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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O COMEÇO DE TUDO / George R. R. Martin
O COMEÇO DE TUDO / George R. R. Martin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O COMEÇO DE TUDO

Primeira Parte

 

                                           DE TEMPOS SELVAGENS

                                           UMA HISTÓRIA ORAL DOS ANOS DO PÓS-GUERRA

 

                   Studs Terkel (Pantheon, 1979)

                   Herbert L. Cranston

Anos depois, quando vi Michael Rennie sair daquele disco voador em O dia em que a Terra parou, recostei-me em minha esposa e disse: “É assim que um emissário alienígena deveria parecer”. Sempre suspeitei que foi a chegada de Tachyon que lhes deu a ideia do filme, mas você sabe como Hollywood modifica as coisas. Eu estava lá, então sei como realmente foi. Para começar, ele desceu em White Sands, não em Washington. Ele não tinha um robô, e não atiramos nele. Considerando o que aconteceu, talvez devêssemos, não é?

Sua nave, bem, certamente não era um disco voador e não parecia droga nenhuma com os nossos V-2 capturados ou mesmo com os foguetes lunares na prancheta de Werner. Violava qualquer lei conhecida da aerodinâmica e também a relatividade de Einstein.

Ele veio à noite, a nave toda coberta de luzes, a coisa mais bonita que já vi. Pousou com um baque no meio do campo de testes, sem foguetes, hélices, rotores ou qualquer meio de propulsão visível. A superfície externa parecia coral, ou algum tipo de rocha porosa, coberta com espirais e esporões, como alguma coisa que você poderia encontrar em uma caverna de calcário ou ver durante um mergulho no fundo do mar.

Eu estava no primeiro jipe a alcançá-la. Quando cheguei, Tach já estava do lado de fora.

Michael Rennie tinha ficado bem naquele traje espacial azul-prateado, mas Tachyon parecia o cruzamento de um dos três mosqueteiros com um artista de circo. Não me importo de dizer que todos nós estávamos com bastante medo de ir até lá, tanto os garotos dos foguetes e os sabichões quanto os soldados. Lembro-me daquela transmissão do Mercury Theater em 1939, quando Orson Welles fez todo mundo pensar que os marcianos estavam invadindo Nova Jersey, e eu não conseguia deixar de pensar que talvez daquela vez estivesse acontecendo de verdade. Mas assim que os holofotes bateram nele, ali, de pé na frente da nave, nós relaxamos. Ele simplesmente não era assustador.

Era baixo, talvez 1,58, 1,60m, e, para falar a verdade, parecia mais assustado do que nós.

Estava vestindo meias-calças verdes com botas embutidas, e uma camisa alaranjada com babados de rendinha afeminados nos pulsos e no colarinho, e uma espécie de colete de brocados prateados, bem apertado. O casaco era uma coisa amarelo-limão, com uma capa verde sacudindo ao vento atrás dele e chegando até o tornozelo. Tinha no alto da cabeça um chapéu de aba larga com uma comprida pluma vermelha se projetando, mas, quando me aproximei, vi que na verdade era alguma estranha pena pontuda. O cabelo caía sobre os ombros; de início, achei que era uma garota. Também era um tipo de cabelo peculiar, vermelho e brilhante, como fios de cobre finos.

Eu não sabia o que pensar, mas me lembro de um de nossos alemães comentando que ele parecia um francês.

Assim que chegamos ele foi caminhando lentamente até o jipe, destemido – caso prefira assim –, se arrastando pela areia com uma grande bolsa enfiada sob o braço. Começou a nos dizer seu nome, e ainda estava dizendo quando outros quatro jipes chegaram. Falava inglês melhor do que a maioria dos nossos alemães, apesar de ter aquele sotaque esquisito, mas no começo foi difícil ter certeza quando passou dez minutos nos dizendo seu nome.

Fui o primeiro ser humano a falar com ele. Por Deus que é verdade, e não me interessa o que qualquer outra pessoa lhe diga, fui eu. Saí do jipe, estendi a mão e disse: “Bem-vindo aos Estados Unidos”. Comecei a me apresentar, mas ele me interrompeu antes que eu conseguisse falar.

– Herb Cranston, de Cape May, Nova Jersey – disse ele. – Cientista de foguetes. Excelente.

Também sou um cientista.

Ele não se parecia com nenhum cientista que eu tivesse conhecido, mas fiz uma concessão, já que vinha do espaço sideral. Estava mais preocupado sobre como sabia meu nome. Perguntei.

Ele agitou os babados no ar, impaciente.

– Eu leio sua mente. Isso não é importante. O tempo é curto, Cranston. A nave deles quebrou.

Achei que ele parecia mais do que um pouco estranho quando disse aquilo; triste, sabe?, sofrido, mas também assustado. E cansado, muito cansado. Então começou a falar sobre o tal globo. Era o globo com o vírus carta selvagem, claro, todo mundo sabe disso agora, mas na época eu não tinha ideia de que droga ele estava falando. Disse que isso estava perdido, precisava pegá-lo de volta e esperava, para o bem de todos nós, que estivesse intacto. Ele queria falar com nossos líderes. Deve ter lido seus nomes na minha mente, porque citou Werner, Einstein e o presidente, embora o tenha chamado de “esse seu presidente Harry S. Truman”. Então subiu na traseira do jipe e se sentou.

– Leve-me até eles – disse. – Imediatamente.

 

                   Professor Lyle Crawford Kent

Em certo sentido fui eu quem cunhou seu nome. Seu verdadeiro nome, claro, o patronímico alienígena, era absurdamente comprido. Lembro que vários de nós tentaram reduzi-lo, usando este ou aquele pedaço durante nossas conferências, mas evidentemente esse era algum tipo de quebra de etiqueta em seu mundo natal, Takis. Ele sempre nos corrigia, de forma bastante arrogante, devo dizer, como um idoso petulante dando uma lição em um bando de colegiais. Bem, precisávamos chamá-lo de algo. O título veio primeiro. Poderíamos tê-lo chamado de “Sua Majestade”, ou algo assim, já que alegava ser um príncipe, mas os norte-americanos não ficam à vontade com esse tipo de reverência. Ele também disse ser médico, embora não em nosso sentido da palavra, e é preciso admitir que parecia saber bastante de genética e bioquímica, que parecia ser sua especialidade. A maior parte de nossa equipe tinha pós-graduações, e nos dirigíamos uns aos outros devidamente, de modo que parecia natural que passássemos a chamá-lo de “doutor” também.

Os cientistas de foguetes estavam obcecados com a nave de nosso visitante, particularmente com a teoria de seu sistema de propulsão mais rápida do que a luz. Infelizmente, nosso amigo takisiano havia queimado o impulso interestelar da nave em sua pressa para chegar aqui antes de seus parentes e, além disso, se recusou categoricamente a permitir que qualquer um de nós, civil ou militar, inspecionasse o interior de sua nave. Werner e os alemães ficaram limitados a questionar o alienígena sobre o impulso, de forma bastante obsessiva, achei. Pelo que eu entendia, a física teórica e a tecnologia da viagem espacial não eram disciplinas em que nosso visitante fosse particularmente especializado, então as respostas que lhes deu não eram muito claras, mas compreendemos que o impulso fazia uso de uma partícula até então desconhecida que viajava mais rápido do que a luz.

O alienígena tinha um termo para a partícula, tão impronunciável quanto seu próprio nome.

Bem, eu tinha algum conhecimento de grego clássico, como todos os homens instruídos, e um para nomenclatura, se é que posso dizer isso. Fui eu que cunhei o termo “tachyon”. De alguma forma os soldados confundiram as coisas e começaram a se referir ao nosso visitante como “aquele sujeito tachyon”. O nome pegou, e daí foi um pulo para doutor Tachyon, o nome pelo qual ficou conhecido na imprensa.

 

             Coronel Edward Reid, Serviço de Informações do Exército dos EUA

             (Aposent.)

 

Você quer que eu diga, certo? Todo maldito repórter que fala comigo quer que eu diga. Tudo bem, aí vai. Cometemos um erro. E também pagamos por ele. Sabe que depois eles chegaram muito perto de mandar todos nós para a corte marcial, toda a equipe de interrogatório? Isso é um fato.

O inferno é que não sei como é que se poderia esperar que fizéssemos as coisas de forma diferente da que fizemos. Eu estava encarregado desse interrogatório. Eu deveria saber.

O que realmente sabíamos sobre ele? Nada além do que ele mesmo nos disse. Os sabichões o tratavam como o Menino Jesus, mas os militares têm de ser um pouco mais cautelosos. Se você quer entender, se coloque no nosso lugar e se lembre de como era na época. A história dele era completamente absurda, e ele não podia provar porcaria nenhuma.

Certo, ele havia aterrissado naquele avião-foguete de aparência engraçada, só que não tinha foguetes. Isso foi impressionante. Talvez aquele avião tivesse vindo do espaço sideral, como ele disse. Mas talvez não tivesse. Talvez fosse um daqueles projetos secretos em que os nazistas trabalhavam, sobras da guerra. Você sabe que no final eles tinham jatos e aqueles V-2, e estavam até mesmo trabalhando na bomba atômica. Talvez fosse russo. Eu não sabia. Se pelo menos Tachyon tivesse nos deixado examinar a nave, nossos rapazes poderiam ter descoberto de onde ela vinha, tenho certeza. Mas ele não deixou ninguém entrar na maldita coisa, o que me pareceu bastante suspeito. O que ele estava tentando esconder?

Ele disse que vinha do planeta Takis. Bem, nunca ouvi falar em nenhum maldito planeta Takis.

Marte, Vênus, Júpiter, certamente. Até mesmo Mongo e Barsoom. Mas Takis? Liguei para 12 astrônomos renomados de todo o país, até mesmo para um cara na Inglaterra. Perguntei: onde fica o planeta Takis? Não existe planeta Takis, responderam.

Ele devia ser um alienígena, certo? Nós o examinamos. Exame físico completo, raios X, uma bateria de testes psicológicos, tudo. O resultado foi humano. Não importava como o virávamos, o resultado era humano. Nada de órgãos extras, nada de sangue verde; cinco dedos nas mãos, cinco dedos nos pés, duas bolas e um pau. O desgraçado não era diferente de você ou de mim. Falava inglês, por Deus. Mas olha isto: também falava alemão. E russo, e francês, e algumas outras línguas que esqueci. Fiz gravações de duas das minhas sessões com ele e mostrei-as a um linguista, que disse que o sotaque era da Europa Central.

E os psiquiatras, uau, você deveria ouvir seus relatos. Paranoico clássico, disseram.

Megalomania, disseram. Esquizo, disseram. Todo tipo de coisa. Quero dizer, esse cara alegava ser um príncipe do espaço sideral com malditos poderes mágicos, que tinha vindo para cá sozinho a fim de salvar nosso maldito planeta. Isso soa razoável a você?

E deixe-me dizer uma coisa sobre seus malditos poderes mágicos. Tenho de admitir, mas era a coisa que mais me incomodava. Quero dizer, Tachyon podia não apenas dizer o que você estava pensando, mas olhar engraçado e fazer você pular em cima da mesa e baixar as calças, quisesse você ou não. Passei horas com ele todos os dias e ele me convenceu. A coisa é que meus relatos não convenceram os figurões na Costa Leste. Algum tipo de truque, pensaram, estava nos hipnotizando, lendo nossa postura corporal, usando psicologia para nos fazer pensar que lê mentes. Mandariam um hipnotizador de palco para descobrir como fazia isso, mas a merda bateu no ventilador antes que conseguissem.

Ele não pedia muito. Tudo o que queria era um encontro com o presidente para que pudesse mobilizar todas as forças armadas norte-americanas a fim de procurar uma nave espacial acidentada. Tachyon estaria no comando, claro, ninguém mais era qualificado. Nossos principais cientistas seriam seus ajudantes. Ele queria radar, jatos, submarinos, cães farejadores e máquinas esquisitas das quais ninguém havia ouvido falar. Diga o nome de alguma coisa, e ele também iria querer. E também não queria ter de consultar ninguém. Se você quer saber a verdade, aquele cara se vestia como uma cabeleireira bichinha, mas pelo modo como dava ordens você pensaria que tinha pelo menos três estrelas.

E por quê? Ah, sim, sua história, isso certamente era ótimo. Disse que no seu planeta Takis duas dúzias de grandes famílias comandam tudo, como a realeza, só que todas têm poderes mágicos e mandavam em todos os outros que não tinham poderes mágicos. Essas famílias passavam a maior parte do tempo em rixa, como os Hartfield e os McCoy. Seu grupo, em particular, tinha uma arma secreta na qual estavam trabalhando havia dois séculos. Um vírus artificial feito sob medida, projetado para interagir com a composição genética do organismo hospedeiro, disse. Ele havia participado do grupo de pesquisa.

Bem, eu estava lhe dando corda. Perguntei o que aquele germe fazia. E olha só: ele fazia tudo.

Segundo Tachyon, o que ele devia fazer era acelerar os poderes mentais deles, talvez até mesmo lhes dar novos poderes, transformá-los em semi-deuses, o que certamente lhes daria uma vantagem sobre os outros. Mas nem sempre funcionava assim. Algumas vezes, sim. Mas com maior frequência matava as cobaias. Ficou falando em como aquela coisa era mortal e conseguiu me dar arrepios. Quais eram os sintomas?, perguntei. Sabíamos sobre armas biológicas desde 1946; só para o caso de estar dizendo a verdade, queria saber o que procurar.

Ele não conseguiu me dizer os sintomas. Havia todo tipo de sintoma. Todos tinham sintomas diferentes, cada pessoa. Já ouviu falar de um germe que funcione assim? Eu não.

Então Tachyon disse que algumas vezes transformava as pessoas em aberrações em vez de matá-las. Que tipo de aberrações?, perguntei. Todos os tipos, disse ele. Admiti que isso parecia muito ruim e perguntei por que o pessoal dele não havia usado essa coisa nas outras famílias.

Porque algumas vezes o vírus funcionava, falou; refazia as vítimas, lhes dava poderes. Que tipos de poder? Todos os tipos de poderes, naturalmente.

Então eles tinham essa coisa. Não queriam usá-la nos inimigos e talvez lhes dar poder. Não queriam usar neles mesmos e matar metade da família. Não queriam esquecer a coisa toda.

Decidiram testar em nós. Por que nós? Porque éramos geneticamente idênticos aos takisianos, disse, a única raça da qual tinham conhecimento, e o vírus era projetado para funcionar no genótipo takisiano. Por que tínhamos tanta sorte? Alguns deles achavam que era evolução paralela, outros acreditavam que a Terra era uma colônia takisiana perdida – ele não sabia e não se importava.

Ele se importava com a experiência. Achava que era “ignóbil”. Ele protestou, disse, mas o ignoraram. A nave partiu. E Tachyon decidiu detê-los sozinho. Veio atrás deles em uma nave menor, queimou o maldito impulso tachyon para chegar antes deles. Embora fosse da família, mandaram que sumisse quando os interceptou e houve uma espécie de batalha espacial. A nave dele foi danificada, a deles, incapacitada, então caíram. Em algum lugar a leste, disse. Ele os perdeu por causa dos danos em sua nave. Então aterrissou em White Sands, onde achou que poderia conseguir ajuda.

Registrei a história toda em meu gravador. Depois o Serviço de Informações do Exército entrou em contato com todo tipo de especialista: bioquímicos, médicos, pessoal de guerra bacteriológica, tudo em que você pensar. Um vírus alienígena, dissemos a eles, sintomas totalmente aleatórios e imprevisíveis. Impossível, disseram. Totalmente absurdo. Um deles me deu uma aula sobre como germes da Terra nunca poderiam afetar marcianos como naquele livro de H.G. Wells, e germes marcianos também não podiam nos afetar. Todos concordaram em que essa coisa de sintomas aleatórios era risível. Então, o que deveríamos fazer? Todos fizemos piada sobre a gripe marciana e a febre do espaçonauta. Alguém, não lembro quem, chamou-o de vírus carta selvagem em um relatório e o restante de nós passou a usar o nome, mas ninguém acreditou nisso por um segundo.

Era uma situação ruim e Tachyon só a tornou pior quando tentou fugir. Ele quase conseguiu, mas, como meu velho sempre me dizia, “quase” só vale para ferraduras e granadas. O Pentágono havia mandado seu próprio homem para interrogá-lo, um coronel da Aeronáutica chamado Wayne, e Tachyon enfim se cansou, acho. Ele assumiu o controle do coronel Wayne e simplesmente saíram marchando juntos do prédio. Sempre que eram barrados, Wayne ordenava que os deixassem passar, e a patente tem seus privilégios. O disfarce era que Wayne tinha ordem de escoltar Tachyon de volta a Washington. Requisitaram um jipe e foram até a espaçonave, mas nesse momento uma das sentinelas havia verificado comigo, e meus homens esperavam por eles com ordens diretas de ignorar qualquer coisa que o coronel Wayne dissesse. Nós o levamos de volta sob custódia e o mantivemos lá, sob guarda reforçada. Apesar de todos os poderes mágicos, não havia muito que pudesse fazer. Podia obrigar uma pessoa a realizar o que queria, talvez três ou quatro, se realmente se esforçasse, mas não todos nós, e já estávamos atentos aos seus truques.

Talvez tenha sido uma manobra idiota, mas a tentativa de fuga conseguiu para ele o encontro que pedia com Einstein. O Pentágono continuava nos dizendo que ele era o maior hipnotizador do mundo, mas eu não estava mais engolindo aquilo, e você deveria ter ouvido o que o coronel

pensava da teoria. Os sabichões também estavam ficando agitados. De qualquer forma, Wayne e eu conseguimos arrancar uma autorização para levar o prisioneiro de avião a Princeton.

Imaginei que uma conversa com Einstein não poderia fazer mal e, quem sabe, pudesse ser algo bom. A nave dele estava sob custódia e já havíamos arrancado do homem tudo o que podíamos.

Einstein supostamente era o maior cérebro do mundo, então talvez conseguisse descobrir qual era a do sujeito, certo?

Ainda há aqueles que dizem que os militares são culpados por tudo o que aconteceu, mas isso não é verdade. É fácil ser esperto retrospectivamente, mas eu estava lá e vou afirmar até morrer que os passos que demos foram racionais e prudentes.

A coisa que realmente me irrita é quando falam que não fizemos nada para rastrear aquele maldito globo com os esporos do carta selvagem. Talvez tenhamos cometido um equívoco, certo, mas não éramos idiotas, estávamos protegendo nossos traseiros. Cada maldita instalação militar do país recebeu a ordem de ficar atenta a uma espaçonave caída que parecesse algo como uma concha com luzes de navegação. É culpa minha que nenhuma delas tenha levado isso a sério, droga?

Pelo menos me dê o crédito de uma coisa. Quando o inferno começou, coloquei Tachyon em um jato para Nova York em duas horas. Estava na poltrona atrás dele. O ruivo covarde chorou metade da maldita viagem através do país. Já eu, rezei por Jetboy.

 

                             Trinta minutos sobre a Broadway!

                           A ÚLTIMA AVENTURA DE JETBOY!

                                         Howard Waldrop

 

O Campo de Aviação Bonham, em Shantak, Nova Jersey, estava fechado em razão do mau tempo.

O pequeno holofote na torre mal expulsava a escuridão no nevoeiro rodopiante.

Houve o som de pneus de carro no piso molhado em frente ao hangar 23. Uma porta de carro se abriu, um momento depois se fechou. Passos alcançaram a porta de serviço. Ela se abriu. Scoop Swanson entrou, carregando sua Kodak Autograph Mark II e uma bolsa de lâmpadas de flash e filmes.

Lincoln Traynor se ergueu do motor do P-40 excedente, que estava reformando para um piloto de linha aérea que o comprou em um leilão por 293 dólares. A julgar pela forma do motor, devia ter sido pilotado pelos Tigres Voadores, em 1940. O rádio na bancada de trabalho transmitia um jogo. Linc diminuiu o som.

– Oi, Linc – disse Scoop.

– Oi.

– Nada ainda?

– Não, estou esperando. O telegrama que ele mandou ontem disse que chegaria esta noite. É o suficiente para mim.

Scoop acendeu um Camel com uma caixa de fósforos Three Torches que pegou na bancada. Soprou fumaça na direção da placa de “Absolutamente Proibido Fumar” nos fundos do hangar.

– Ei, o que é isso? – Ele caminhou até os fundos. Ainda em suas embalagens, havia duas extensões de asa vermelhas e dois tanques de cerca de mil litros em forma de gota para instalar sob as asas.

– A Força Aérea enviou ontem de São Francisco. Chegou outro telegrama para ele hoje. Você deveria ler, é quem está escrevendo a história.

Linc lhe deu as ordens do Departamento de Guerra.

 

PARA: Jetboy (Tomlin, Robert NMI)

ORIGEM: Campo de Aviação Bonham

Hangar 23

Shantak, Nova Jersey

  1. Efetivo esta data 1.200 horas Zulu, 12 de agosto de 1946, você não está mais em serviço ativo, Força Aérea do Exército dos Estados Unidos.
  2. Sua aeronave (modelo experimental – no serv. JB-1) está por meio deste retirada da ativa, Força Aérea do Exército dos Estados Unidos, e repassada a você como aeronave particular. Material de apoio da FAEUA ou do Departamento de Guerra não será mais enviado.
  3. Registros, comendas e prêmios repassados em envio separado.
  4. Nossos registros mostram que Tomlin, Robert NMI não obteve brevê. Por favor, entre em contato com CAB para cursos e certificação.
  5. Céu limpo e de vento em popa.

Por Arnold, H.H.

CEM, FAEUA

ref: Ordem executiva #2, 8 de dezembro de 1941

 

– O que é essa coisa de ele não ter brevê? – perguntou o jornalista. – Vasculhei o arquivo sobre ele; tem trinta centímetros de espessura. Droga, ele deve ter voado mais rápido e mais longe, derrubado mais aviões que qualquer um... quinhentos aviões, cinquenta navios! Ele fez isso sem um brevê?

Linc limpou gordura do bigode.

– É. Aquele era o garoto mais louco por aviões que eu já vi. Em 1939, não podia ter mais de 12 anos, ouviu falar que havia um emprego aqui. Apareceu às quatro da manhã; fugiu do orfanato para fazer isso. Vieram pegá-lo. Mas é claro que o professor Silverberg o contratou, acertou isso com eles.

– Silverberg, o que os nazistas mataram friamente? O cara que fez o jato?

– É. Anos à frente de todo mundo, mas esquisito. Montei o avião para ele, Bobby e eu fizemos isso à mão. Mas Silverberg fez os jatos; os motores mais desgraçados que já vi. Os nazistas e os italianos, e Whittle, na Inglaterra, haviam começado os deles. Mas os alemães descobriram que alguma coisa estava acontecendo aqui.

– Como o garoto aprendeu a voar?

– Acho que ele sempre soube – disse Lincoln. – Um dia ele está aqui me ajudando a dobrar metal. No dia seguinte, ele e o professor estão voando a 650 quilômetros por hora. No escuro, com aqueles primeiros motores.

– Como eles mantiveram o segredo?

– Não muito bem, os espiões vieram atrás de Silverberg; queriam ele e o avião. Bobby tinha saído com ele. Acho que ele e o professor sabiam que havia alguma coisa. Silverberg lutou tanto que os nazistas o mataram. Depois foi o escândalo diplomático. Na época o JB-1 só tinha seis armas calibre .30, e não sei onde o professor as arrumou. Mas o garoto cuidou do carro cheio de espiões com isso, e aquela lancha no Hudson cheia de gente da embaixada. Todos com vistos diplomáticos.

– Só um segundo – Linc se interrompeu. – Fim de uma rodada dupla em Cleveland. Na Blue Network.

Ele aumentou o volume do rádio Philco de metal que estava acima do quadro de ferramentas.

“... Sanders para Papenfuss, para Volstad, uma jogada dupla. É isso. Então o Sox perdeu dois para o Cleveland. Voltaremos...”

Linc desligou.

– Lá se vão cinco pratas – disse ele. – Onde eu estava?

– Os alemães mataram Silverberg e Jetboy se vingou. Ele foi para o Canadá, certo?

– Se juntou à Força Aérea canadense extraoficialmente. Lutou na Batalha da Grã-Bretanha, foi para a China com os Tigres contra os japas, estava de volta à Grã-Bretanha para Pearl Harbor.

– E Roosevelt o colocou no serviço ativo?

– Mais ou menos. Sabe, tem uma coisa engraçada sobre a carreira dele. Ele luta a guerra inteira, mais que qualquer outro norte-americano, do final de 1939 até 1945, e então, bem no final, desaparece no Pacífico. Durante um ano todos achamos que estava morto. Então eles o acham naquela ilha deserta mês passado e agora está voltando para casa.

Houve um zumbido alto e fino, como um avião a hélice em um mergulho. Vinha do céu nebuloso do lado de fora. Scoop pegou o terceiro Camel.

– Como ele consegue pousar nesta sopa?

– Tem um radar para todos os climas, tirou de um caça noturno alemão em 1943. Poderia pousar aquele avião na lona de um circo à meia-noite.

Eles foram até a porta. Duas luzes de aterrissagem, girando, perfuraram a neblina. Elas baixaram até a extremidade oposta da pista, se viraram e voltaram pela pista de taxiar.

A fuselagem vermelha brilhava à luz envolta em cinza da pista de pouso. O bimotor de asa alta virou na direção deles e deslizou até parar.

Linc Traynor colocou um conjunto de travas duplas sob cada um dos dois trens de pouso traseiros de três rodas. Metade do nariz de vidro do avião se levantou e deslizou para trás. O avião tinha três projeções de canhões de 20 mm na base das asas entre os motores e uma abertura para 75 mm abaixo e à esquerda da borda da cabine.

Tinha um leme alto e fino e os profundores traseiros tinham a forma da cauda de uma truta de rio. Sob cada profundor havia a abertura para um cano de metralhadora voltado para trás. As únicas marcas no avião eram quatro estrelas fora do padrão da FAEUA em um medalhão negro e o número de série JB-1 no alto da asa traseira direita e no fundo da esquerda, e abaixo do leme.

As antenas de radar no nariz pareciam algo em que se podia grelhar salsichas.

Um garoto vestindo calças vermelhas, camisa branca, capacete azul e óculos saiu da cabine e pisou na escada deslizante do lado esquerdo.

Tinha 19, talvez 20. Tirou capacete e óculos. Tinha cabelos castanho-claros encaracolados, olhos castanhos e era baixo e corpulento.

– Linc – disse ele. Abraçou o homem gorducho, dando tapinhas em suas costas durante um minuto inteiro. Scoop tirou uma foto.

– Ótimo ter você de volta, Bobby – exclamou Linc.

– Ninguém me chama assim há anos. É realmente bom ouvir isso de novo.

– Este é Scoop Swanson – disse Linc. – Ele vai te fazer famoso novamente.

– Eu preferia dormir – comentei, apertando a mão do repórter. – Há algum lugar por aqui onde possamos comer ovos com presunto?

 

O barco se dirigiu à doca em meio ao nevoeiro. No porto, um navio terminou de limpar os porões e estava se virando para seguir rumo ao sul.

Havia três homens na amarração: Fred, Ed e Filmore. Um homem saiu do barco com uma maleta nas mãos. Filmore se inclinou e deu uma nota de cinco e duas de vinte ao cara no leme do barco. Depois ajudou o sujeito com a maleta.

– Bem-vindo ao lar, Dr. Tod.

– É bom estar de volta, Filmore. – Tod vestia um terno folgado e um sobretudo, embora fosse agosto. Levava o chapéu baixado sobre o rosto, e deste um brilho metálico refletia as luzes fracas de um armazém.

– Este é Fred e este é Ed – disse Filmore. – Eles estão aqui apenas para a noite.

– Oi – disse Fred.

– Oi – disse Ed.

Caminharam de volta até o carro, um Merc 46 que parecia um submarino. Entraram, com Fred e Ed vigiando os becos enevoados dos dois lados. Depois Fred foi para trás do volante e Ed, para o banco do carona. Com uma escopeta calibre dez.

– Ninguém está esperando por mim. Ninguém se importa – disse o Dr. Tod. – Todos que tinham algo contra mim estão mortos ou se tornaram respeitáveis durante a guerra e fizeram fortuna. Sou um homem velho e cansado. Vou para o interior criar abelhas, apostar em cavalos e investir na bolsa.

– Não está planejando nada, chefe?

– Absolutamente nada.

Ele virou a cabeça quando passaram por um poste de luz. Metade de seu rosto havia desaparecido e uma placa lisa ia do queixo até a linha do chapéu, da narina à orelha esquerda.

– Para começar, não consigo mais atirar. Minha noção de profundidade não é como costumava ser.

– Não surpreende – disse Filmore. – Ouvimos dizer que alguma coisa aconteceu em 1943.

– Eu estava em uma operação um tanto lucrativa fora do Egito, enquanto o Afrika Korps desmoronava. Levando pessoas de um lado para o outro por uma taxa, em aviões supostamente neutros. Só uma atividade paralela. Então dei de cara com aquele aviador metido.

– Quem?

– O garoto com o avião a jato, antes de os alemães terem um.

– Vou lhe dizer a verdade, chefe, não acompanhei muito a guerra. Fico pensando nos efeitos a longo prazo de conflitos puramente territoriais.

– Como eu deveria ter feito – disse o Dr. Tod. – Estávamos saindo da Tunísia. Havia umas pessoas importantes conosco naquela viagem. O piloto gritou. Houve uma tremenda explosão. O que me lembro é de acordar na manhã seguinte e éramos eu e outra pessoa em um bote salva-vidas no meio do Mediterrâneo. Meu rosto doendo. Eu me levantei. Alguma coisa caiu no fundo do bote. Era meu olho esquerdo. Estava olhando para mim. Eu sabia que estava com problemas.

– Disse que era um garoto com um avião a jato? – indagou Ed.

– Sim. Descobrimos depois que decifraram nosso código e ele havia voado quase mil quilômetros para nos interceptar.

– Quer se vingar? – perguntou Filmore.

– Não. Foi há tanto tempo que mal me lembro daquele lado do meu rosto. Isso só me ensinou a ser um pouco mais cuidadoso. Encarei como construção do caráter.

– Então nada de planos, né?

– Nem mesmo um – afirmou o Dr. Tod.

– Vai ser bom, pra variar – disse Filmore.

Eles viram as luzes da cidade passando.

Ele bateu na porta, desconfortável em seu novo terno marrom com colete.

– Entre, está aberta – respondeu uma voz de mulher. E, em seguida, a voz abafada: – Estarei pronta em um minuto.

Jetboy abriu a porta de carvalho do saguão e entrou no aposento, passando pela divisória de tijolos de vidro.

Uma bela mulher estava de pé no meio da sala, o vestido nos braços erguidos à altura da cabeça. Vestia corpete, cinta-liga e meias de seda. Puxava o vestido para baixo com uma das mãos.

Jetboy virou a cabeça, corado e chocado.

– Oh – disse a mulher. – Oh! Eu... Quem?

– Sou eu, Belinda – disse ele. – Robert.

– Robert?

– Bobby, Bobby Tomlin.

Ela o encarou por um momento, as mãos cruzadas sobre a frente do corpo, embora estivesse totalmente vestida.

– Ah, Bobby – disse ela, indo até ele, abraçando-o e dando-lhe um grande beijo na boca.

Era o que ele havia esperado durante seis anos.

– Bobby. Ótimo ver você. Eu... Eu estava esperando outra pessoa. Algumas... Amigas. Como me encontrou?

– Bem, não foi fácil.

Ela recuou.

– Deixe-me olhar para você.

Ele olhou para ela. Na última vez em que a viu, ela tinha 14 anos, parecia um garoto, ainda no orfanato. Era uma garota magra, com cabelos louros escuros. Uma vez, quando ela tinha 11 anos, quase o nocauteou. Era um ano mais velha do que ele.

Então ele foi embora, trabalhar no campo de aviação, depois lutar com os britânicos contra Hitler. Escreveu para ela sempre que pôde durante a guerra, após a entrada dos norte-americanos.

Ela havia deixado o orfanato e sido colocada em um lar adotivo. Em 1944 uma de suas cartas voltou com a marcação “Mudou-se sem deixar endereço”. Então ele ficou perdido no último ano.

– Você também mudou – disse ele.

– Assim como você.

– É.

– Acompanhei os jornais durante a guerra. Tentei escrever para você, mas acho que as cartas nunca chegaram. Depois disseram que você havia desaparecido no mar e eu meio que desisti.

– Bem, desapareci, mas me encontraram. Agora estou de volta. Como tem passado?

– Muito bem, desde que fugi do lar adotivo – disse, uma expressão de dor passando pelo rosto.

– Não sabe como fiquei contente de sumir dali. Ah, Bobby. Ah, queria que as coisas fossem diferentes! – Ela começou a chorar.

– Ei – disse ele, segurando-a pelos ombros. – Sente-se. Tenho uma coisa para você.

– Um presente?

– É – respondeu, dando-lhe um pacote de papel sujo e manchado de óleo. – Carreguei isso comigo durante os dois últimos anos da guerra. Estavam no avião comigo na ilha. Desculpe por não ter tido tempo de fazer outro embrulho.

Ela rasgou o papel pardo. Dentro havia exemplares de O ursinho Pooh e The Tale of the Fierce Bad Rabbit.

– Ah – disse Belinda. – Obrigada.

Ele se lembrou dela vestindo o macacão do orfanato, tendo acabado de entrar suja e cansada de um jogo de beisebol, deitada no chão da sala de leitura com um livro do ursinho Pooh aberto diante dela.

– O livro de Pooh está autografado pelo próprio Christopher Robin – contou. – Descobri que era oficial da RAF em uma das bases na Inglaterra. Ele disse que não costumava fazer esse tipo de coisa, que era apenas outro aviador. Falei que não contaria a ninguém. Mas eu havia procurado por toda parte até encontrar um exemplar, e ele sabia disso.

– Este outro tem uma história. Eu estava voltando quase ao anoitecer, escoltando uns B-17 com problemas. Ergui os olhos e vi dois caças noturnos alemães chegando, provavelmente em patrulha, tentando pegar uns Lancaster antes que passassem sobre o Canal.

– Para resumir, derrubei os dois; eles caíram perto de um pequeno vilarejo. Mas eu havia ficado sem combustível e tive que descer. Vi um belo e plano pasto de ovelhas com um lago na extremidade e pousei.

– Quando saí da cabine, vi uma dama e um sheepdog à beira do campo. Ela tinha uma escopeta.

Quando chegou perto o bastante para ver os motores e os adesivos, ela disse, “Boa pontaria! Não quer entrar para jantar e usar o telefone para ligar para o Comando de Caça?”

– Podíamos ver os dois ME-110 queimando a distância.

– Você é o famoso Jetboy. Temos acompanhado seus feitos no jornal de Sawrey. Sou a Sra. Heelis, disse ela, estendendo a mão.

– Eu a apertei.

– Sra. William Heelis? E aqui é Sawrey?

– Sim – respondeu.

– Você é Beatrix Potter – falei.

– Suponho que sim – disse ela.

–Belinda, lá estava aquela velha e corpulenta senhora, com um suéter puído e um velho vestido liso. Mas quando sorriu, eu juro, toda a Inglaterra se iluminou!

Belinda abriu o livro. Na folha de guarda estava escrito:

 

           Para a amiga norte-americana de Jetboy,

           Belinda,

           Da Sra. William Heelis

           (“Beatrix Potter”)

           12 de abril de 1943

 

Jetboy tomou o café que Belinda fez para ele.

– Onde estão seus amigos?

– Bem, ele... Eles já deviam estar aqui. Estava pensando em descer até o telefone e ligar para eles. Posso adiar e ficamos aqui falando sobre os velhos tempos. Realmente posso ligar.

– Não – falou Jetboy. – Vamos fazer assim: ligo para você depois, durante a semana; podemos sair juntos uma noite quando não estiver ocupada. Seria divertido.

– Seria mesmo.

Jetboy se levantou para sair.

– Obrigada pelos livros, Bobby. Significam muito para mim, mesmo.

– É realmente bom ver você novamente, Bee.

– Ninguém me chama assim desde o orfanato. Ligue logo, certo?

– Com certeza – disse, se inclinando e beijando-a novamente.

Ele caminhou até as escadas. Quando estava descendo, um cara com um terno zoot ajustado – calças largas de boca apertada, paletó comprido, corrente de relógio, gravata-borboleta do tamanho de um cabide, cabelo engomado para trás, fedendo a Brylcreem e Old Spice – subiu as escadas de dois em dois degraus, assoviando “It Ain’t the Meat, It’s the Motion”.

Jetboy o ouviu bater na porta de Belinda.

Do lado de fora, havia começado a chover.

– Ótimo. Exatamente como em um filme – disse Jetboy.

A noite seguinte estava silenciosa como um cemitério.

Então cachorros começaram a latir por todo o Pine Barrens. Gatos gritaram. Pássaros voaram em pânico de milhares de árvores, circularam de um lado para o outro na noite escura.

A estática tomou conta de todos os rádios no nordeste dos Estados Unidos. Aparelhos de televisão novos brilharam, o volume dobrando. Pessoas reunidas ao redor de Dumonts de nove polegadas deram pulos para trás com o barulho e o brilho repentinos, chocados em suas próprias salas, em bares e em calçadas diante de lojas de equipamentos por toda a Costa Leste.

Para os que estavam ao ar livre, aquela noite quente de agosto foi ainda mais espetacular. Uma fina linha luminosa bem no alto se deslocou, brilhante, ainda caindo. Então se expandiu, o brilho aumentando, transformada em um bólido azul-esverdeado, pareceu parar e depois se transformou em cem faíscas cadentes que se apagaram lentamente no céu escuro estrelado.

Algumas pessoas disseram ter visto outra luz menor alguns minutos depois. Ela pareceu pairar, depois acelerou na direção oeste, ficando mais escura à medida que avançava. Os jornais estavam cheios de histórias sobre os “foguetes fantasmas” na Suécia naquele verão. Era uma temporada sem muita novidade.

Alguns telefonemas para o Departamento de Meteorologia ou bases da Força Aérea do Exército receberam a resposta de que provavelmente eram desvios da chuva de meteoros delta aquarídios.

Em Pine Barrens alguém sabia que não era, embora não estivesse com disposição para comunicar isso a ninguém.

Jetboy, vestindo calças largas, camisa e jaqueta marrom de aviador, passou pelas portas da Gráfica Blackwell. Havia uma placa brilhante em vermelho e azul sobre a porta: Lar da Cosh Comics Company.

Ele parou junto à mesa da recepcionista.

– Robert Tomlin, vim ver o Sr. Farrell.

A secretária, uma coisinha loura e magra usando óculos de aros alongados para cima que davam a impressão de que um morcego havia acampado em seu rosto, ficou olhando para ele:

– O Sr. Farrell faleceu no inverno de 1945. Você estava servindo ou algo assim?

– Algo assim.

– Gostaria de falar com o Sr. Lowboy? Ele tem o cargo do Sr. Farrell agora.

– Quem estiver encarregado da história em quadrinhos de Jetboy.

O lugar inteiro começou a tremer com as impressoras sendo ligadas nos fundos do prédio. As paredes do escritório tinham capas extravagantes de revistas em quadrinhos, prometendo coisas que apenas eles podiam oferecer.

– Robert Tomlin – disse a secretária no interfone.

– (Escrate grinte) nunca ouvi sobre ele (esquique).

– Qual é o assunto? – perguntou a secretária.

– Diga a ele que Jetboy quer vê-lo.

– Ah – disse, olhando para ele. – Desculpe. Não o reconheci.

– Ninguém reconhece.

 

Lowboy parecia um gnomo do qual todo o sangue havia sido sugado. Era pálido como Harry Langdon devia ser, como uma erva daninha que tivesse crescido sob uma bolsa de aniagem.

– Jetboy! – Ele estendeu a mão que parecia um punhado de larvas de escaravelhos. – Todos nós achamos que havia morrido até vermos os jornais semana passada. Você é um herói nacional, sabia disso?

– Não me sinto como um.

– O que posso fazer por você? Não que não esteja contente de finalmente conhecê-lo. Mas você deve ser um homem ocupado.

– Bem, para começar, descobri que nenhum dos meus cheques de licenciamento e direitos autorais foi depositado em minha conta desde que fui dado como Desaparecido e Considerado Morto no verão passado.

– Como? Sério? O departamento jurídico deve ter depositado em juízo ou algo assim até alguém aparecer reivindicando. Vou mandar acertarem isso.

– Bem, eu gostaria do cheque agora, antes de sair – afirmou Jetboy.

– Hã? Não sei se podem fazer isso. Isso é assustadoramente repentino.

Jetboy o encarou.

– Certo, certo, vou ligar para a Contabilidade – disse, gritando ao telefone.

– Ah – disse Jetboy. – Um amigo tem recebido meus exemplares. Verifiquei os registros de circulação dos dois últimos anos. Sei que Jetboy tem vendido 500 mil cópias por edição atualmente.

Lowboy gritou um pouco mais no telefone. Depois desligou.

– Eles já vão trazer. Mais alguma coisa?

– Não gosto do que está acontecendo à revista – disse Jetboy.

– O que há para não gostar? Está vendendo meio milhão de exemplares por mês!

– Para começar, o avião está ficando cada vez mais parecido com uma bala. E os artistas curvaram as asas para trás, por Deus!

– Esta é a Era Atômica, garoto. Os meninos hoje não gostam de um avião que parece uma perna de cordeiro vermelha com cabides se projetando da parte da frente.

– Bem, ele sempre foi assim. E outra coisa: por que o maldito avião ficou azul nos três últimos números?

– Não fui eu! Eu acho vermelho legal. Mas o Sr. Blackwell enviou um memorando dizendo que nada mais de vermelho a não ser para sangue. Ele é um convicto membro da Legião Americana.

– Diga a ele que o avião tem de parecer certo e ter a cor certa. E os relatórios de combate foram repassados. Quando Farrell estava sentado na sua cadeira a história era sobre voar e combater, e eliminar grupos espiões, coisas reais. E nunca houve mais do que duas histórias de dez páginas do Jetboy por número.

– Quando Farrell estava nesta mesa a revista vendia apenas um quarto de milhão de exemplares por mês – disse Lowboy.

Robert o encarou novamente.

– Eu sei que a guerra acabou e todos querem uma casa nova e uma excitação de arregalar os olhos – disse Jetboy. – Mas veja o que encontrei nos últimos 18 meses... Eu nunca lutei contra ninguém como o Undertaker, em um lugar chamado Montanha da Perdição. E vamos lá! O Esqueleto Vermelho? Mr. Maggot? Professor Blooteaux? O que é isso com crânios e tentáculos?

Quer dizer, Gêmeos Alemães do Mal? O Macaco Artrópode, um gorila com seis pares de cotovelos? Onde vocês arranjam essas coisas?

– Não sou eu, são os roteiristas. É um bando de malucos, sempre tomando benzedrina e coisas assim. Além disso, é isso que as crianças querem!

– E quanto às criaturas voadoras e as matérias sobre heróis da aviação de verdade? Achei que meu contrato determinava pelo menos duas histórias por edição sobre acontecimentos e pessoas reais.

– Bem, vamos ter que ver isso novamente. Mas posso lhe dizer que as crianças não querem mais essas coisas. Elas querem monstros, espaçonaves, coisas que as façam molhar a cama. Você lembra? Você também já foi criança!

Jetboy pegou um lápis na mesa.

– Eu tinha 13 anos quando a guerra começou, 15 quando bombardearam Pearl Harbor. Passei seis anos em combate. Algumas vezes acho que nunca fui criança.

Lowboy ficou um tempo em silêncio.

– Vou lhe dizer o que você tem que fazer – falou. – Você tem que colocar no papel todas as coisas de que não gosta nas revistas e mandar para nós. Mandarei o departamento jurídico dar uma olhada e vamos tentar fazer algo, resolver as coisas. Claro que imprimimos com três números de antecedência, de modo que só no dia de Ação de Graças as coisas novas vão aparecer. Ou depois.

Jetboy suspirou.

– Entendo.

– Certamente quero que você fique feliz, porque Jetboy é minha história preferida. Não, falando sério. As outras são só trabalho. Meu Deus, que trabalho: prazos, trabalhar com bêbados ou, pior, tomar conta dos gráficos, você nem pode imaginar! Mas gosto do trabalho com Jetboy. É especial.

– Bem, fico contente.

– Claro, claro – disse Lowboy, tamborilando sobre a mesa. – Por que será que estão demorando tanto?

– Provavelmente pegando o outro conjunto de livros-caixa.

– Ei, não! Nós estamos limpos aqui! – disse Lowboy, se levantando.

– Estava só brincando.

– Ah. Diga, o jornal falou que você estava o quê, náufrago em uma ilha deserta ou coisa assim?

Muito duro?

– Bem, solitário. Fiquei cansado de pegar e comer peixe. Era acima de tudo tedioso e perdi tudo. Não quero dizer estar perdido, quero dizer ter perdido. Fiquei lá de 29 de abril de 1945 até mês passado. Em certos momentos achei que fosse enlouquecer. Não consegui acreditar quando certa manhã ergui os olhos e lá estava o USS Reluctant ancorado a menos de dois quilômetros da praia. Disparei um sinal e eles me pegaram. Demorou um mês para encontrar um lugar para consertar o avião, descansar e vir para casa. Estou contente de voltar.

– Posso imaginar. Ei, muitos animais perigosos na ilha? Quero dizer, leões, tigres, coisas assim?

Jetboy riu.

– Tinha menos de um quilômetro e meio de largura e dois quilômetros de comprimento. Havia pássaros e ratos, e alguns lagartos.

– Lagartos? Grandes? Venenosos?

– Não. Pequenos. Devo ter comido metade deles antes de ir embora. Fiquei muito bom com um estilingue feito de um tubo de oxigênio.

– Rá! Aposto que sim!

A porta se abriu e um cara alto com camisa suja de tinta entrou.

– É ele? – perguntou Lowboy.

– Eu só o vi uma vez, mas parece com ele – respondeu o homem.

– Bom o bastante para mim! – disse Lowboy.

– Não para mim – disse o contador. – Mostre uma identidade e assine o recibo.

Jetboy suspirou e fez isso. Olhou para a quantia no cheque. Tinha muito poucos dígitos na frente do decimal. Ele o dobrou e colocou no bolso.

– Vou deixar meu endereço com sua secretária para o próximo cheque. E mandarei uma carta com as objeções esta semana.

– Faça isso. Foi realmente um prazer conhecê-lo. Espero que tenhamos negócios longos e prósperos juntos.

– Obrigado, acho – disse Jetboy. Ele e o contador saíram.

Lowboy se sentou em sua cadeira giratória. Colocou as mãos atrás da cabeça e olhou para a estante do outro lado da sala.

Então disparou para a frente, agarrou o telefone e discou nove para pegar uma linha. Ligou para o roteirista-chefe de Jetboy.

Uma voz pastosa de ressaca atendeu no 12º toque.

– Tire toda a merda da sua cabeça, aqui é Lowboy. Imagine isto: especial de 52 páginas, edição com uma única história. Pronto? Jetboy na ilha dos dinossauros! Sacou? Vejo muitos homens das cavernas, um grande como você chama rex rei. Como? É, é um tiranossauro. Talvez um punhado de soldados japas retardatários. Você sabe. É, talvez até mesmo samurais. Quando? Tirados de seu rumo em 1100 d.C? Cristo. Como quiser. Você sabe exatamente do que precisamos. Agora é o quê? Terça. Você tem até cinco da tarde de quinta, certo? Pare de reclamar. São 150 pratas rápidas! Nós nos vemos.

Desligou. Depois chamou um desenhista e disse o que queria para a capa.

 

Ed e Fred estavam voltando de uma entrega em Pine Barrens.

Dirigiam um caminhão basculante de sete metros. Na caçamba, até alguns minutos antes, havia cinco metros cúbicos de concreto seco. Oito horas antes tinha sido quatro metros cúbicos e meio de água, areia, cascalho e cimento – e um ingrediente secreto.

O ingrediente secreto havia violado três das cinco Regras Invioláveis para conduzir um negócio anônimo e livre de impostos no estado.

Ele havia sido levado por outros empresários a um atacadista de material de construção, onde aprendeu como funciona um misturador de cimento, de perto e pessoalmente.

Não que Ed e Fred tivessem alguma coisa a ver com aquilo. Foram chamados uma hora antes e convidados a dirigir um caminhão basculante pela floresta por duas mil pratas.

Estava escuro na floresta, a poucos quilômetros da cidade. Não parecia que estavam a noventa quilômetros de uma cidade com população de mais de quinhentas pessoas.

Os faróis revelaram valas em que tudo, de velhos aviões até garrafas de ácido sulfúrico, estava disposto em grandes pilhas. Partes do lixo eram novas. Subia um pouco de fumaça e fogo. Outras brilhavam sem combustão. Uma poça de metal borbulhou e estourou quando passaram perto.

Então eles estavam novamente em meio aos pinheiros, sacudindo nas valas.

– Ei! – gritou Ed. – Pare!

Fred enfiou o pé no freio, fazendo o motor morrer.

– Maldição! – exclamou. – Qual é o problema com você?

– Ali atrás. Juro que vi um cara empurrando uma bola de gude néon olho de gato do tamanho de Cleveland!

– Eu não vou voltar de jeito nenhum – disse Fred.

– Ah! Vamos lá. Você não vê coisas assim todo dia.

– Merda, Ed! Um dia você vai nos matar!

Não era uma bola de gude. Eles não precisavam dos faróis para ver que não era uma mina magnética. Era um recipiente arredondado que brilhava sozinho, com cores girando. Escondia o homem que o empurrava.

– Parece um tatu-bola – disse Fred, que tinha estado no Oeste.

O homem atrás da coisa piscou para eles, sem conseguir ver além dos faróis. Era esfarrapado e sujo, com uma barba manchada de tabaco e cabelos despenteados como palha de aço.

Eles chegaram mais perto.

– É minha! – disse a eles, se colocando na frente da coisa, abrindo os braços.

– Calma, velho – disse Ed. – O que você tem aí?

– Minha passagem para a vida mansa. Vocês são da Força Aérea?

– Claro que não. Vamos dar uma olhada nisso.

O homem pegou uma pedra.

– Para trás! Eu encontrei isso onde encontrei o avião caído. A Força Aérea vai pagar muito para conseguir essa bomba atômica de volta!

– Isso não parece com nenhuma bomba atômica que eu tenha visto – disse Fred. – Olhe o que está escrito na lateral. Não é nem inglês.

– Claro que não! Só pode ser uma arma secreta. Por isso eles estavam vestidos de modo tão estranho.

– Quem?

– Eu já falei mais do que queria. Saiam do meu caminho.

Fred olhou para o velho maluco.

– Você despertou meu interesse. Conte mais – pediu.

– Sai do meu caminho, rapaz. Eu matei um homem por uma lata de milho uma vez!

Fred enfiou a mão no paletó. Ela saiu com uma arma cujo cano parecia um tubo de escoamento.

– Ele caiu noite passada – disse o velho, com os olhos agitados. – Me acordou. Acendeu o céu por inteiro. Eu procurei por isso o dia todo, imaginei que a floresta estaria cheia de gente da Força Aérea e policiais do estado, mas não apareceu ninguém. Encontrei um pouco antes de escurecer. Arrancou tudo. As asas da coisa foram completamente arrancadas quando caiu. Todas aquelas pessoas vestidas de modo estranho espalhadas por lá. Mulheres também.

Ele baixou a cabeça um minuto, vergonha no rosto.

– De qualquer modo estavam todos mortos. Devia ser um avião a jato, não encontrei hélices nem nada. E esta bomba atômica aqui estava caída no meio dos destroços. Imaginei que a Força Aérea pagaria bem para tê-la de volta. Uma vez um amigo meu encontrou um balão meteorológico e deram a ele um dólar e vinte e cinco. Imagino que isto é um milhão de vezes mais importante que aquilo!

Fred riu.

– Um conto e vinte e cinco, é? Eu dou a você dez dólares por isso.

– Eu posso conseguir um milhão!

Fred puxou o cão do revólver para trás.

– Cinquenta – disse o velho.

– Vinte.

– Não é justo. Mas eu aceito.

– O que você vai fazer com isso? – perguntou Ed.

– Levar para o Sr. Tod – respondeu Fred. – Ele vai saber o que fazer com isso. Ele é do tipo científico.

– E se for uma bomba atômica?

– Bem, eu não acho que bombas atômicas tenham tubos de aspersão. E o velho estava certo. A floresta estaria lotada de gente da Força Aérea se tivessem perdido uma bomba atômica. Inferno, só cinco delas já foram explodidas. Eles não podem ter mais de uma dúzia, e é melhor acreditar que sabem onde cada uma delas está, o tempo todo.

– Bem, não é uma mina – disse Ed. – O que você acha que é?

– Não me importa. Se valer dinheiro o Dr. Tod vai dividir conosco. Ele é um cara justo.

– Para um vigarista – retrucou Ed.

Eles riram e a coisa chacoalhou na caçamba do caminhão basculante.

Os policiais levaram o ruivo a seu escritório e os apresentaram.

– Por favor, sente-se, doutor – disse A.E. Ele acendeu o cachimbo.

O homem parecia pouco à vontade, como deveria após dois dias de interrogatório pelo Serviço de Informações do Exército.

– Eles me contaram o que aconteceu em White Sands e que você não queria falar com ninguém além de mim – informou A.E. – Então usaram tiopental em você e não fez efeito?

– Ele me deixou bêbado – disse o homem, cujos cabelos pareciam alaranjados e amarelados sob aquela luz.

– Mas você não falou?

– Eu disse coisas, mas não o que eles queriam ouvir.

– Muito incomum.

– Química sanguínea.

A.E. suspirou. Olhou pela janela do escritório de Princeton.

– Então muito bem. Vou escutar sua história. Não estou dizendo que irei acreditar, mas irei escutar.

– Tudo bem – disse o homem, respirando fundo. – Vamos lá.

Ele começou a falar, de início lentamente, formando as palavras com cuidado, ganhando confiança à medida que falava. Então começou a falar mais rápido, seu sotaque voltou, um que A. E. não conseguiu identificar, algo como um nativo das ilhas Fiji que tivesse aprendido inglês com um sueco. A. E. encheu o cachimbo mais duas vezes, depois o deixou apagado após encher uma terceira. Ele se sentou inclinando-se um pouco para a frente, eventualmente concordando, os cabelos grisalhos formando uma auréola à luz da tarde.

O homem terminou.

A.E. se lembrou do cachimbo, achou um fósforo e acendeu. Colocou as mãos atrás da cabeça.

Havia um pequeno furo perto do cotovelo esquerdo do suéter.

– Eles nunca acreditarão em nada disso – falou.

– Não ligo, desde que façam algo! – disse o homem. – Desde que eu o consiga de volta.

A.E. olhou para ele.

– Se acreditarem em você, as implicações de tudo isso irão suplantar a razão pela qual você está aqui. O fato de que você está aqui, se é que me entende.

– Bem, o que podemos fazer? Se minha nave ainda estivesse funcionando eu mesmo estaria procurando. Fiz a segunda melhor opção; pousei onde certamente chamaria atenção, pedi para falar com você. Talvez outros cientistas, institutos de pesquisa...

A.E. riu.

– Perdoe-me. Você não entende como as coisas são feitas aqui. Vamos precisar dos militares.

Vamos ter os militares e o governo, queiramos ou não, então é melhor que os tenhamos nos melhores termos possíveis, os nossos, desde o começo. O problema é que você tem que pensar em algo que seja plausível para eles e ainda assim os leve a fazer a busca.

– Vou falar com o pessoal do Exército sobre você, depois telefonar para uns amigos. Acabamos de encerrar uma grande guerra global e muitas coisas podem passar despercebidas, ou se perder na confusão. Talvez possamos conseguir alguma coisa assim.

– O problema é que será melhor fazer isso de um telefone público. Os policiais militares estarão junto, então terei que falar baixo. Diga – indagou ele, pegando o chapéu no canto de uma estante abarrotada de livros –, você gosta de sorvete?

– Sólidos de lactose e açúcar densos em uma mistura mantida pouco abaixo do ponto de congelamento? – perguntou o homem.

– Eu lhe garanto que é melhor do que soa, e muito refrescante – disse A.E. Eles passaram pela porta do escritório de braços dados.

Jetboy deu um tapinha na lateral danificada do avião. Estava no hangar 23. Linc saiu do escritório limpando as mãos em um trapo sujo de graxa.

– Ei, como foi? – perguntou.

– Ótimo. Eles querem o livro de memórias. Será o grande livro da primavera, se eu conseguir terminar a tempo, ou pelo menos é o que dizem.

– Continua determinado a vender o avião? – perguntou o mecânico. – Eu certamente odeio vê-lo partir.

– Bem, essa parte da minha vida está encerrada. Sinto como se nunca fosse voar novamente, mesmo como passageiro de uma empresa, será cedo demais.

– O que quer que eu faça?

Jetboy olhou para o avião.

– Vou lhe dizer. Coloque as extensões de asa de grande altitude e os tanques externos. Parece maior e mais brilhante assim. Alguém de um museu provavelmente comprará, é o que imagino; estou oferecendo primeiro aos museus. Se isso não funcionar, colocaremos anúncios nos jornais.

Tiramos as armas depois se algum cidadão comprar. Verifique se tudo está apertado. Não deve ter sacudido muito na viagem desde São Francisco e eles fizeram uma bela reforma no Hickam Field. Avise sobre qualquer coisa que você achar que precisa.

– Certamente.

– Ligo amanhã, a não ser que algo não possa esperar.

 

AERONAVE HISTÓRICA À VENDA: jato bimotor de Jetboy. 2 motores de empuxo de 1.200 lbs, velocidade de 600 mph a 25 mil pés, alcance 650 milhas, tanques externos 1000 w (tanques e ext. de asa inc.) comprimento 9,5 m, env. 9,9 m (14,7 m ext.). Aceito ofertas razoáveis. É ver e gostar. Em exibição no hangar 23 Campo de Aviação Bonham, Shantak, Nova Jersey.

 

Jetboy ficou de pé em frente à vitrine da livraria, olhando para as pirâmides de títulos novos.

Dava para notar que o racionamento de papel havia acabado. No ano seguinte seu livro seria um deles. Não apenas uma revista em quadrinhos, mas a história de sua participação na guerra. Ele esperava que fosse suficientemente bom para não se perder na multidão.

Parecia que, nas palavras de alguém, todo maldito barbeiro e engraxate que foi convocado havia escrito um livro sobre como ganhou a guerra.

Havia seis livros de memórias de guerra em uma vitrine, de todo tipo de gente, desde um tenente-coronel até um general de divisão (será que aqueles barbeiros soldados não escreviam tantos livros?).

Talvez tivessem escrito alguns, entre as duas dúzias de romances de guerra que cobriam a outra vitrine.

Havia dois livros perto da porta, pilhas deles em uma vitrine própria, best-sellers, que não eram romances ou memórias de guerra. Um se chamava The Grass Hopper Lies Heavy, de alguém chamado Abendsen (Hawthorne Abendsen, obviamente um pseudônimo). O outro era um livro grosso intitulado Growing Flowers by Candlelight in Hotel Rooms, de alguém tão recatada a ponto de se identificar como “Sra. Charles Fine Adams”. Deve ser um livro de poemas ilegível que o público, em sua loucura, tinha adotado. Não havia explicação para o gosto.

Jetboy enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta de couro e caminhou até o cinema mais próximo.

Tod viu a fumaça subindo do laboratório e esperou que o telefone tocasse. Pessoas corriam de um lado para o outro no prédio a oitocentos metros de distância.

Não havia acontecido nada durante duas semanas. Thorkeld, o cientista que ele contratou para os testes, fez relatórios todos os dias. A coisa não havia funcionado em macacos, cachorros, ratos, lagartos, sapos, insetos ou mesmo em peixes em suspensão na água. O Dr. Thorkeld estava começando a pensar que os homens de Tod haviam pagado vinte dólares por um gás inerte em uma embalagem elegante.

Alguns momentos antes houve uma explosão. Ele estava esperando.

O telefone tocou.

– Tod... ah, meu Deus, é Jones, do laboratório, está...

A estática tomou conta da linha.

– Jesus Cristo! Thorkeld... Eles estão todos...

Houve uma batida no telefone do outro lado.

– Ah, meu...

– Calma – disse Tod. – Todos saíram do laboratório em segurança?

– É, é. O... ohhh.

O som de vômito tomou a ligação.

Tod esperou.

– Desculpe, Dr. Tod. O laboratório ainda está lacrado. O incêndio é pequeno, na grama do lado de fora. Alguém jogou uma guimba de cigarro.

– Diga o que aconteceu.

– Eu tinha saído para fumar. Alguém lá dentro deve ter feito besteira, derrubado alguma coisa. Eu... Eu não sei. É... A maioria deles está morta, acho. Espero. Não sei. Alguma coisa... Espere, espere. Ainda tem alguém se movendo no escritório, posso ver daqui, há...

Houve um estalo de alguém pegando um fone. O volume na linha diminuiu.

– Tog, Tog – disse uma voz, uma aproximação de uma voz.

– Quem está aí?

– Torgk...

– Thorkeld?

– Guh. Cof. Cof. Guh.

Houve um barulho como o de um saco cheio de lulas sendo jogado em um teto de chapa corrugada.

– Cof.

Depois o som de geleia sendo esvaziada em uma gaveta de escrivaninha abarrotada.

Houve um tiro e o telefone caiu da mesa.

– Ele... Ele atirou... Isso... Nele mesmo – disse Jones.

– Estou indo para aí – afirmou Tod.

Depois da limpeza Tod estava de novo de pé em seu escritório. Não havia sido bonito. O reservatório estava intacto. O acidente foi com uma amostra. Os outros animais estavam bem. Era apenas com as pessoas. Três morreram imediatamente. Uma, Thorkeld, se matou. Duas outras ele e Jones tiveram de matar. Uma sétima pessoa estava desaparecida, mas não havia saído por portas ou janelas.

Tod se sentou em sua cadeira e pensou por um longo tempo. Depois se esticou e apertou um botão na mesa.

– Sim, doutor? – perguntou Filmore, entrando na sala com um punhado de telegramas e ordens de corretagem sob o braço.

O Dr. Tod abriu o cofre da escrivaninha e começou a contar notas.

– Filmore. Gostaria que você fosse para Port Elizabeth, na Carolina do Norte, e me comprasse cinco balões vazios tipo B. Diga a eles que eu vendo carros. Consiga que 28 mil metros cúbicos de hélio sejam entregues no armazém do sul da Pensilvânia. Separe o material e me dê uma lista completa do que temos; qualquer coisa de que precisarmos, vamos garantir com sobras. Ache o capitão Mack, veja se ainda tem aquele navio cargueiro. Vamos precisar de passaportes novos.

Encontre Cholley Sacks; vou precisar de um contato na Suíça. Preciso de um piloto com brevê para aeronave mais leve que o ar. Alguns escafandros e oxigênio. Lastro, duas toneladas. Um visor de bomba. Cartas náuticas. E me traga uma xícara de café.

– Fred tem brevê de piloto para mais leve que o ar – afirmou Filmore.

– Aqueles dois nunca param de me impressionar – disse o Dr. Tod.

– Achei que tínhamos dado nosso último golpe, chefe.

– Filmore – disse ele, olhando para o homem de quem era amigo havia mais de vinte anos. – Filmore, alguns golpes você tem que dar, queira ou não.

 

           “Dewey era almirante na Baía de Manila,

             Dewey era candidato outro dia

             Dewey eram seus olhos quando ela disse sim;

             Nós amamos um ao outro? Eu deveria dizer que sim!”

 

As crianças no pátio do prédio pulavam corda. Haviam começado no segundo em que voltaram da escola.

De início isso incomodou Jetboy. Ele se levantou da máquina de escrever e foi à janela. Em vez de gritar, observou.

De qualquer modo a escrita não estava indo bem. O que parecia ser apenas fatos quando contou aos rapazes da inteligência durante a guerra dava a impressão de vanglória no papel, quando as palavras eram escritas:

 

Três aviões, dois ME-109 e um TA-152 saíram das nuvens na direção do B-24 com problemas. Ele tinha sofrido pesados danos com a artilharia antiaérea. Duas hélices estavam torcidas e a torre superior havia desaparecido.

Um dos 109 mergulhou, provavelmente para dar um 360° e disparar na parte de baixo do bombardeiro.

Eu dei uma volta longa com o avião e disparei um tiro em desvio a 650 metros e me aproximando. Eu vi três acertos, e o 109 se desintegrou.

O TA-152 tinha me visto e mergulhou para interceptar. Quando o 109 explodiu, eu reduzi e bati no freio aerodinâmico. O 152 passou a menos de 50 metros de distância. Vi a expressão de surpresa no rosto do piloto.

Disparei uma rajada dos 20 mm quando ele passou. Tudo da cabine para trás se partiu em uma chuva.

Eu subi. O último 109 estava atrás do Liberator. Estava disparando com metralhadoras e canhão. Ele acabou com o artilheiro de cauda e a torre da barriga não conseguia se erguer o suficiente. O piloto do bombardeiro estava sinalizando para que os artilheiros de meio pudessem fazer mira, mas só a arma de meio da esquerda funcionava.

Eu estava a mais de um quilômetro e meio, mas subi e virei à direita. Baixei o nariz e disparei uma rajada com o 75 mm logo antes da mira passar pelo 109.

O meio do caça desapareceu – eu podia ver a França através dele. A única imagem que guardei foi, ao olhar para baixo, ver o alto de um guarda-chuva aberto que alguém fechou de repente. O caça pareceu um enfeite brilhante de

árvore de Natal enquanto caía.

Então os poucos artilheiros que sobravam no B-24 abriram fogo contra mim, sem reconhecer meu avião. Transmiti meu código de identificação, mas o receptor deles devia estar inoperante.

Havia dois paraquedas alemães bem abaixo. Os pilotos dos dois primeiros caças deviam ter saltado. Voltei para minha base.

Quando fizeram a manutenção descobriram que me restavam um de meus 75 mm e apenas 12 cartuchos de 20 mm. Eu havia abatido três aviões inimigos.

Depois soube que o B-24 havia caído no Canal e não havia sobreviventes.

 

Jetboy pensou: quem precisa dessa coisa? A guerra acabou. Alguém realmente vai querer ler O garoto com propulsão a jato quanto for publicado? Alguém além de idiotas continua a querer ler Jetboy Comics?

Nem mesmo acho que eu sou necessário. O que posso fazer? Combater o crime? Posso metralhar carros em fuga cheios de assaltantes de banco. Isso seria uma luta realmente justa.

Circo aéreo? Isso acabou com Hoover e, além do mais, não quero mais voar. Este ano mais pessoas vão voar de férias por companhias aéreas do que todos os que estiveram no ar nos últimos quarenta e três anos, incluindo pilotos do correio aéreo, de avião fumigador e guerras.

O que posso fazer? Desmontar um truste? Processar os que lucraram com a guerra? Esse é realmente um trabalho sem futuro. Punir velhos malvados que estão roubando o Estado mantendo

e matando de fome e espancando os garotos? Vocês não precisam de mim para isso, precisam de Spanky, Alfafa e Buckwheat.

 

               “A tisket, a tasket,

               Hitler num caixão.

               Eenie-meenie-Mussolini,

               A sete palmos do chão!”

 

Disseram os garotos do lado de fora, agora pulando com duas cordas em direções opostas.

Crianças têm energia demais, pensou. Eles aceleraram um pouco, depois reduziram novamente.

 

             “No calabouço, quatro metros de fundo

             Onde o velho Hitler dorme um sono profundo.

             Garotos alemães fazem cócegas nos seus pés,

             No calabouço, quatro metros de fundo!”

 

Jetboy se afastou da janela. Talvez o que eu precise seja ir ao cinema novamente.

Desde o encontro com Belinda, ele não havia feito nada além de ler, escrever e assistir a filmes. Antes de voltar para casa, os dois últimos filmes que vira, em um auditório militar lotado na França, no final de 1944, havia sido em uma sessão dupla barata. That Nazty Nuisance, um filme da United Artists feito em 1943, com Bobby Watson como Hitler e um dos atores preferidos de Jetboy, Frank Faylen, que havia sido o melhor dos dois. O outro era um grande lixo da PRC, Jive Junction, estrelado por Dickie Moore, sobre um bando de dançarinos de suingue saracoteando na lanchonete.

A primeira coisa que fez após pegar seu dinheiro e achar um apartamento foi encontrar o cinema mais próximo, onde viu Ninho da serpente, sobre uma casa cheia de caipiras esquisitos, com Fred MacMurray e Marjorie Main, e um ator chamado Porter Hall interpretando gêmeos idênticos assassinos chamados Bert e Mert. “Qual é qual?”, pergunta MacMurray, e Marjorie Main pega um cabo de machado, acerta um deles no meio das costas e ele desmonta da cintura para cima em uma caricatura distorcida de realidade, mas permanece de pé. “Este é Mert”, diz Main, jogando o cabo do machado na pilha de lenha. “Ele tem as costas ruins”. Havia rádio e homicídio em abundância, e Jetboy achou que era o filme mais divertido que já havia visto.

Desde então ele fora ao cinema todos os dias, algumas vezes a três salas e assistindo de seis a oito filmes por dia. Ele estava se ajustando à vida civil, como muitos soldados e marinheiros haviam feito, vendo filmes.

Ele viu Farrapo humano, com Ray Milland e Frank Faylen novamente, dessa vez como um enfermeiro em uma ala psiquiátrica; Laços humanos; O regresso daquele homem, com William Powell em seu auge alcoólico, Bring on the Girls, It’s in the Bag , com Fred Allen; Chispa de fogo; Também somos seres humanos (Jetboy havia sido personagem de uma das colunas de Pyle em 1943); um filme de terror chamado Ilha dos mortos, com Boris Karloff; um novo tipo de filme italiano chamado Roma, cidade aberta, em um cinema de arte, e O destino bate à sua porta.

E havia outros filmes, faroestes e policiais da Monogram, PRC e Republic, filmes que vira em salas de cinema 24 horas, mas que esquecia dez minutos após sair das sessões. Pela falta de estrelas e estranha aparência dos atores principais, tinham sido as piores partes das sessões duplas feitas durante a guerra, todas começando exatamente aos 59 minutos de projeção.

Jetboy suspirou. Tantos filmes, tanto de tudo que ele perdeu durante a guerra. Perdeu até mesmo os dias da vitória na Europa e sobre o Japão preso naquela ilha, antes que ele e o avião fossem encontrados pela tripulação do USS Reluctant. Do modo como os caras no Reluctant falavam, você pensaria que eles também haviam perdido a maior parte da guerra e dos filmes.

Ele ansiava por muitos filmes naquele outono, e por vê-los quando fossem lançados, do modo como todos faziam, do modo como costumava fazer no orfanato.

Jetboy se sentou à máquina de escrever. Se eu não trabalhar, nunca terminarei este livro. Irei ao cinema de noite.

Ele começou a datilografar todas as coisas excitantes que havia feito em 12 de julho de 1944.

No pátio, mulheres chamavam crianças para jantar enquanto os pais voltavam do trabalho. Duas crianças continuavam a pular corda lá fora, as vozes finas no ar da tarde:

 

               “Hitler, Hitler parece assim,

                 Mussolini se curva assim,

                 Sonja Heni patina assim,

                 E Betty Grable erra assim!”

 

O armarinheiro da Casa Branca estava tendo um dia de cão.

Começou com um telefonema pouco antes das seis horas da manhã. Os ansiosos no Departamento de Estado tinham alguns boatos da Turquia. Os soviéticos estavam deslocando todos os homens para os limites daquele país.

– Bem – disse o Homem Objetivo do Missouri –, liguem quando cruzarem a maldita fronteira, não antes.

Agora aquilo.

O Primeiro Cidadão de Independence observou a porta se fechar. A última coisa que viu foi o calcanhar de Einstein desaparecendo. Precisava de uma meia-sola.

Ele se sentou novamente na cadeira, tirou os óculos grossos do nariz, esfregou os olhos vigorosamente. Depois o presidente juntou as pontas dos dedos formando uma torre, os cotovelos apoiados na escrivaninha. Olhou para a miniatura de arado na frente da mesa (ele havia substituído o modelo do M-1 Garand que ficou ali do dia em que ele tomou posse até o dia da vitória sobre o Japão). Havia três livros no canto direito da escrivaninha – uma Bíblia, um

dicionário gasto e uma história ilustrada dos Estados Unidos. A mesa tinha três botões para chamar várias secretárias, mas ele nunca os usou.

 

Agora que a paz chegou estou lutando para impedir que dez guerras eclodam em vinte lugares, há ameaças de greves em todos os setores e essa é uma maldita vergonha, as pessoas estão pedindo mais carros e geladeiras, e estão tão cansadas quanto eu de guerra e de alerta de guerra.

E tenho de mexer em casa de marimbondo novamente, colocar todo mundo caçando uma maldita bomba biológica que pode explodir e infectar todos os EUA e matar metade das pessoas ou mais.

Estaríamos melhor ainda lutando com porretes e pedras.

Quanto mais rápido eu voltar para o número 219 da North Delaware, em Independence, melhor eu e todo este maldito país ficaremos.

A não ser que aquele filho da puta do Dewey queira concorrer para presidente de novo.

Como Lincoln disse, prefiro engolir uma cadeira de balanço de chifres de cervo do que deixar aquele desgraçado ser presidente.

É a única coisa que me manterá aqui quando tiver terminado o mandato do Sr. Roosevelt.

Quanto mais cedo eu começar essa caçada, mais rapidamente poderemos deixar para trás a Guerra Mundial Número Dois.

 

Ele pegou o telefone.

– Ligue para o Estado-maior – disse.

– Major Truman falando.

– Major, é o outro Truman, seu chefe. Coloque o general Ostrander ao telefone, por favor.

Enquanto esperava, olhou através do ventilador da janela (detestava ar-condicionado) para as árvores. O céu tinha aquele tipo de azul que rapidamente fica alaranjado no verão.

Ele olhou para o relógio na parede: 10h23, horário de verão no Leste. Que dia. Que ano. Que século.

– Aqui é o general Ostrander, senhor.

– General, acabaram de jogar outro fardo de feno em cima de nós...

Duas semanas depois chegou o bilhete:

 

“Deposite 20 milhões de dólares na conta nº 43Z21, Credit Suisse, Berna, até 2300 Zulu de 14 de setembro ou perca uma grande cidade. Você tem conhecimento desta arma; seu pessoal tem procurado por ela; usarei metade dela na primeira cidade. O preço sobe para 30 milhões de dólares para me impedir de usar uma segunda vez. Você tem minha palavra de que ela não será usada caso o primeiro pagamento seja feito, e serão enviadas instruções de onde a arma poderá ser recuperada.”

 

O Homem Objetivo de Missouri pegou o telefone.

– Coloque tudo para funcionar – disse. – Convoque o gabinete, reúna o estado-maior. E, Ostrander...

– Sim, senhor?

– Melhor entrar em contato com aquele garoto aviador, qual o nome dele?

– Está falando de Jetboy, senhor? Ele não está mais na ativa.

– Pro inferno com isso. Agora está!

– Sim, senhor.

 

Eram 14h24 de terça-feira, 15 de setembro de 1946, quando a coisa apareceu nas telas de radar.

Às 14h31 ainda estava se movendo lentamente na direção da cidade a uma altitude de mais de 18 mil metros.

Às 14h41 dispararam as primeiras sirenes de ataque aéreo, que não eram usadas na cidade de Nova York desde um treinamento de blecaute em abril de 1945.

Às 14h48 houve pânico.

Alguém na defesa civil apertou os botões errados. A energia foi cortada em todos os lugares, exceto em hospitais, delegacias e quartéis dos bombeiros. Trens do metrô pararam. Coisas desligaram e os sinais de trânsito deixaram de funcionar. Metade do equipamento de emergência, que não era verificado desde o fim da guerra, não funcionou.

As ruas foram tomadas por pessoas. Policiais saíram para tentar organizar o trânsito. Alguns dos policiais entraram em pânico ao receber máscaras contra gás. Telefones ficaram ocupados.

Começaram brigas nos cruzamentos, pessoas foram pisoteadas em saídas de metrô e escadas de arranha-céus.

As pontes ficaram engarrafadas.

Foram dadas ordens conflitantes. Levem as pessoas para abrigos antibombas. Não, evacuem a ilha. Dois guardas na mesma esquina gritaram ordens contraditórias para as multidões. A maioria das pessoas simplesmente ficou parada, observando.

Sua atenção logo foi atraída para algo no céu, ao sul. Era pequeno e brilhante.

A artilharia antiaérea começou de forma ineficaz três quilômetros abaixo dele.

Ele continuou se aproximando.

Quando os canhões em Jersey começaram a disparar, o pânico realmente começou.

Eram três da tarde.

– É mesmo muito simples – disse o Dr. Tod.

Ele baixou os olhos para Manhattan, que repousava diante dele como uma arca do tesouro.

Virou-se para Filmore e ergueu um comprido aparelho cilíndrico que parecia fruto de uma bomba de cano e um cadeado de combinação.

– Se alguma coisa acontecer a mim, simplesmente enfie este detonador no encaixe dos explosivos – disse, indicando a parte tapada por fita com a abertura no recipiente coberto de inscrições parecidas com sânscrito –, torça até o número quinhentos e depois puxe esta alavanca.

Ele indicou a escotilha do compartimento de bombas.

– Ela cairá pelo próprio peso, e eu estava errado quanto ao visor de bombardeio. Grande precisão não é nosso objetivo.

Ele olhou para Filmore pela grade do capacete de mergulho. Eles vestiam escafandros com tubos levando a um suprimento central de oxigênio.

– Tenha certeza, claro, de que todos estejam de capacete. Seu sangue irá ferver neste ar rarefeito. E estes escafandros só precisam sustentar a pressão durante os poucos segundos em que a porta da bomba estiver aberta.

– Não espero problemas, chefe.

– Nem eu. Depois que bombardearmos Nova York, iremos nos encontrar com o navio, soltar o lastro, pousar e seguir para a Europa. Eles ficarão felizes de nos pagar o dinheiro. Eles não têm como saber que estaremos usando toda a arma biológica. Uns sete milhões de mortos devem convencê-los de que falamos sério.

– Veja aquilo – disse Ed, do assento do copiloto. – Lá embaixo. Fogo anti-aéreo!

– Qual a nossa altitude? – perguntou o Dr. Tod.

– Exatamente 17.600 metros – respondeu Fred.

– Alvo?

Ed suspirou, conferiu um mapa.

– Vinte e cinco quilômetros à frente. O senhor certamente conseguiu as correntes de ar certas, Dr. Tod.

Eles o haviam mandado até um campo de pouso na periferia de Washington para esperar. Dessa forma estaria ao alcance da maioria das grandes cidades da Costa Leste.

Ele havia passado parte do dia lendo, parte dormindo, e o restante conversando sobre a guerra com alguns dos outros pilotos. Porém, a maioria era nova demais para ter lutado mais do que nos últimos dias da guerra.

A maioria era de pilotos de jatos, como ele, que fizeram o treinamento em P-59 Aircomets ou P-80 Shooting Stars. Uns poucos na sala de prontidão pertenciam a um esquadrão de P-51 a hélice. Havia um pouco de tensão entre os jóqueis de maçarico e os comedores de pistons.

Mas todos eles eram uma nova geração. Já se falava que Truman transformaria a Força Aérea do Exército em algo separado, apenas Força Aérea, no ano seguinte. Aos 19, Jetboy sentia que o tempo o deixara para trás.

– Eles estão trabalhando em algo que irá superar a barreira do som – disse um dos pilotos. – A Bell está por trás disso.

– Um amigo meu em Muroc diz para esperar até que coloquem a Asa Voadora em operação. Já estão trabalhando em uma versão a jato dela. Um bombardeiro que pode percorrer quatro mil quilômetros a 800 quilômetros por hora, levar uma tripulação de treze, camas para sete, passar um dia e meio no ar! – informou outro.

– Alguém sabe alguma coisa sobre esse alerta? – perguntou um sujeito muito jovem e nervoso com divisas de segundo-tenente. – Os russos estão aprontando alguma?

– Ouvi dizer que vamos para a Grécia – disse alguém. – Para mim, ouzo, galões dele.

– Mais provável vodca tcheca de casca de batatas. Teremos sorte de chegar antes do Natal.

Jetboy se deu conta de que sentia mais falta do papo da sala de prontidão do que pensava.

O interfone zumbiu e uma corneta começou a berrar. Jetboy olhou para o relógio. Eram 14h25.

Ele percebeu que sentia falta de algo além do papo furado da Força Aérea. Era de voar. De repente tudo voltou. Quando ele voou para Washington na noite anterior havia sido apenas uma viagem de rotina.

Agora era diferente. Era como na guerra novamente. Ele tinha uma direção. Tinha um alvo.

Tinha uma missão.

Ele também tinha um traje pressurizado experimental T-2 da Marinha. Era o sonho de um fabricante de espartilhos, todo de borracha e cordas, garrafas pressurizadas e um verdadeiro capacete espacial, como que saído de Planet Comics, sobre sua cabeça. Eles o haviam ajustado na noite anterior, quando viram as asas de grande altitude e os tanques descartáveis no avião.

– Melhor apertarmos isso para você – disse o sargento de vôo.

– Minha cabine é pressurizada – respondeu Jetboy.

– Bem, então para o caso de precisarem de você e para o caso de algo dar errado.

O traje ainda estava muito apertado e ainda não pressurizado. Os braços eram feitos para um gorila e o peito, para um chimpanzé.

– Você vai gostar do espaço extra, caso essa coisa infle em uma emergência – disse o sargento.

– O senhor é quem manda – respondeu Jetboy.

Eles até mesmo pintaram o tronco de branco e as pernas de vermelho para combinar com seu modelo. O capacete azul e os óculos apareciam através da bolha de plástico transparente.

Enquanto subia com o restante do esquadrão, estava contente por ter a coisa. Sua missão era acompanhar o vôo dos P-80 e se envolver apenas se fosse necessário. Ele nunca havia sido exatamente um jogador de equipe.

O céu à frente era azul como a cortina de fundo em Alegoria do triunfo de Vênus, de Bronzino, com uma nuvem dois quintos ao norte. O sol estava sobre seu ombro esquerdo. O esquadrão subiu. Ele acenou com as asas. Eles se espalharam em um quadrado escalonado e prepararam as armas.

Chunder, chunder, chunder, chunder, fizeram seus canhões de 20 mm.

Traçantes fizeram um arco à frente dos seis calibre .50 em cada P-80. Deixaram os aviões a hélice para trás e apontaram os narizes para Manhattan.

Eles pareciam um bando de abelhas raivosas circulando abaixo de um falcão.

O céu estava tomado por jatos e caças a hélice subindo como as paredes de nuvens de um furacão.

Acima, um objeto encrespado que pairava e se deslocava lentamente na direção da cidade. No ponto onde seria o olho do furacão havia uma tempestade de fogo antiaéreo, mais densa do que Jetboy havia visto sobre a Europa ou o Japão.

Estava explodindo baixo demais, apenas ao nível dos caças mais altos.

O Controle de Caças os chamou:

– Comando Clark Gable para todos os esquadrões. Alvo a cinco, cinco, zero... Repetindo, cinco, cinco, zero, anjos. Deslocando leste-nordeste a dois cinco nós. Fogo antiaéreo não consegue alcançar.

– Mande suspender – disse o líder do esquadrão. – Vamos tentar voar alto o bastante para tiro de deflexão. Esquadrão Hodiak, me siga.

Jetboy ergueu os olhos para o azul acima. O objeto continuava seu deslocamento gradual.

– O que há nele? – perguntou ao Comando Clark Gable.

– Comando para Jetboy. Algum tipo de bomba, foi o que nos disseram. Tem de ser uma aeronave mais leve que o ar de pelo menos 14 mil metros cúbicos para chegar a essa altitude.

Câmbio.

– Estou começando a subir. Se os outros aviões não conseguirem chegar, também os chame de volta.

Houve silêncio no rádio, e depois:

– Copiado.

Enquanto os P-80 cintilavam acima dele como crucifixos de prata, ele ergueu o nariz.

– Vamos lá, garota – disse ele. – Vamos voar um pouco.

Os Shooting Stars começaram a se afastar, tombando no ar rarefeito. Jetboy só conseguia ouvir o som de suas próprias pressão e respiração nos ouvidos, e o alto gemido agudo de seus motores.

– Vamos lá, garota – disse ele. – Você consegue!

A coisa acima dele se revelou uma aeronave ordinária feita de meia dúzia de balões com uma gôndola abaixo. A gôndola parecia ter sido um dia um casco de lancha torpedeira. Era tudo o que podia ver. Além dela, o ar era roxo e frio. Próxima parada: espaço sideral.

O último dos P-80 escorregou de lado nas estrelas azuis do céu. Uns poucos haviam disparado rajadas aleatórias, dando 360° como os caças costumavam fazer abaixo dos bombardeiros durante a guerra. Disparavam enquanto subiam. Todas as traçantes ficaram abaixo dos balões.

Um dos P-80 quase perdeu o controle, caindo mais de três quilômetros antes de nivelar.

O avião de Jetboy protestou, gemendo. Estava difícil de controlar. Ele ergueu o nariz novamente, teve de se esforçar.

– Tire todo mundo do caminho – disse ele para o Comando Clark Gable.

– É agora que damos uma folga a você – disse para o avião.

Ele soltou os tanques descartáveis. Eles caíram como bombas. Apertou o botão do canhão.

Chunder, chunder, chunder, chunder. Depois novamente, e mais uma vez.

Suas traçantes desenharam um arco na direção do alvo, mas também ficaram abaixo. Ele disparou mais quatro rajadas até o canhão se esgotar. Depois esgotou os dois de cinquenta na cauda, mas não demorou para que todos os cem disparos fossem desperdiçados.

Ele virou e deu um mergulho, como um salmão afundando e tentando se livrar de um anzol, ganhando velocidade. Após um minuto, apontou para cima, colocando o JB-1 em uma comprida ascensão circular.

– Parece melhor, não? – perguntou.

Os motores cortaram o ar. O avião, aliviado de peso, se lançou para a frente e para cima.

Abaixo dele estava Manhattan com seus 7 milhões de habitantes. Eles deviam estar assistindo lá embaixo, sabendo que aqueles poderiam ser os últimos minutos que veriam. Talvez isso fosse viver na Era Atômica, sempre olhando para cima e pensando: Será?

Jetboy esticou uma das botas e pisou forte em uma alavanca. Uma cápsula de canhão 75 mm deslizou para a câmara. Colocou a mão sobre a barra de carregamento automático e puxou um pouco mais para trás os comandos.

O jato vermelho cortou o ar como uma navalha.

Ele estava mais perto agora, mais perto do que os outros haviam chegado, e ainda assim não era perto o bastante. Ele só tinha cinco disparos para fazer o serviço.

O jato subiu, começando a estolar no ar rarefeito, como se fosse algum animal vermelho usando as garras para subir por uma comprida tapeçaria azul que escorregava um pouco cada vez que o animal avançava.

Ele apontou o nariz para cima.

Tudo pareceu congelar, à espera.

Uma fina linha de traçantes de metralhadora correu da gôndola na sua direção como uma amante.

Ele começou a disparar o canhão.

 

                       DO DEPOIMENTO DO PATRULHEIRO FRANCIS V.

                       (“FRANCIS, O POLICIAL FALANTE”)

                       O’HOOEY, 15 DE SET. 1946, 18h45

 

Estávamos observando da rua na Sixth Avenue, tentando impedir que as pessoas se lançassem umas sobre as outras em pânico. Então elas se acalmaram acompanhando as batalhas aéreas e as coisas acima.

Um observador de pássaros estava com um par de binóculos, então o confisquei. Acompanhei boa parte da coisa toda. Os jatos não estavam tendo sorte e a defesa antiaérea desde Bowery também não estava adiantando. Ainda acho que o Exército devia ser processado, porque os caras da defesa antiaérea ficaram tão em pânico que se esqueceram de colocar os temporizadores nos obuses, e ouvi alguns deles caindo no Bronx e explodindo um prédio inteiro de apartamentos.

De qualquer modo, esse avião vermelho, quer dizer, o avião do Jetboy, estava subindo e disparou todas as balas, eu achei, sem causar qualquer dano ao tal balão.

Eu estava na rua e o caminhão dos bombeiros parou com a sirene ligada e o tenente gritava para que eu subisse, que estávamos sendo mandados para o West Side cuidar de um acidente de trânsito e um tumulto.

Então entrei no caminhão e tentei ficar de olho no que estava acontecendo no céu.

O tumulto tinha basicamente acabado. As sirenes de ataque aéreo ainda soavam, mas todo mundo estava apenas de pé, olhando de boca aberta para o que acontecia lá em cima.

O tenente grita para pelo menos levar as pessoas para os prédios. Empurrei algumas por umas portas, depois dei outra olhada pelos binóculos.

E Jetboy tinha acertado alguns dos balões (ouvi dizer que usou o obus neles) e a coisa parece maior – está caindo um pouco. Mas ele ficou sem munição e não está tão alto quanto a coisa e começa a girar.

Eu me esqueci de dizer que o tempo todo o tal balão está disparando tantas metralhadoras que parece os fogos de 4 de Julho, e o avião do Jetboy está recebendo esses tiros sem parar.

Então ele simplesmente faz uma volta com o avião, retorna e bate diretamente na, como é o nome?, na gôndola, isso, dos balões. Eles meio que se fundem. Ele devia estar muito lento na hora, tipo estolando, e o avião meio que apenas se enfiou na lateral da coisa.

E o balão parecia estar descendo um pouco, não muito, só um pouco. Então o tenente tirou os binóculos de mim, eu protegi os olhos e acompanhei o melhor que pude.

Houve um clarão de luz. Achei que a coisa toda tinha explodido e me encolhi atrás de um carro. Mas depois ergui os olhos e os balões ainda estavam lá.

– Olhem! Para dentro! – gritou o tenente. Então todo mundo entrou em pânico de novo e estava se jogando sob os carros, ao lado de coisas e pulando janelas. Pareceu um filme dos Três Patetas por um minuto ou dois.

Alguns minutos depois começaram a chover pedaços vermelhos de avião sobre as ruas, e um punhado no Terminal Hudson...

 

Havia vapor e fogo por todo lado. A cabine estalou como um ovo e as asas dobraram como um leque. Jetboy teve um espasmo quando os cabrestantes no traje pressurizado se inflaram. Ele foi arqueado e devia estar parecendo um gato assustado.

As paredes da gôndola haviam se aberto como uma cortina no ponto em que as asas do caça bateram. Uma onda de gelo se formou sobre a cabine destroçada com oxigênio soprando da gôndola.

Jetboy soltou seus tubos. A garrafa de emergência tinha cinco minutos de ar. Ele se atrapalhou com o nariz do avião, como se lutasse contra barras de ferro em seus braços e pernas. Tudo o que você deveria fazer com aqueles trajes era se ejetar e puxar o anel do paraquedas.

O avião se arrastou como um elevador de carga com um cabo partido. Jetboy agarrou uma antena de radar com a mão enluvada, e a sentiu soltar do nariz do avião. Agarrou outra.

A cidade estava a quase vinte quilômetros abaixo dele, os prédios fazendo a ilha parecer um porco-espinho distante. O motor esquerdo do avião, esmagado e perdendo combustível, se soltou e caiu abaixo da gôndola. Ele o viu diminuindo.

O ar era roxo como uma ameixa – a superfície dos balões, brilhante como fogo ao sol, e as laterais da gôndola, curvadas e rasgadas como papelão barato.

A coisa toda estremeceu como uma baleia.

Alguém passou voando acima da cabeça de Jetboy pelo buraco no metal, arrastando tubos como os tentáculos de um polvo. Entulho se seguiu pelo ar na descompressão explosiva.

O jato se inclinou.

Jetboy enfiou a mão no lado rasgado da gôndola, encontrou uma escora.

Sentiu o cinto do paraquedas prender no equipamento de radar. O avião se sacudiu. Sentiu o peso.

Arrancou o cinto. As bolsas do paraquedas foram arrancadas dele, rasgando nas costas e na virilha.

Seu avião dobrou ao meio como uma cobra com as costas quebradas, depois caiu, as asas subindo e tocando acima da cabine arrasada como se fosse uma pomba tentando bater as asas.

Então se torceu de lado, caindo em pedaços.

Abaixo dele havia o ponto que era o homem que havia caído da gôndola, girando como um esguicho de jardim na direção da cidade brilhante bem abaixo.

Jetboy viu o avião cair sob seus pés. Ficou pendurado no espaço a 19 quilômetros de altura por uma das mãos.

Ele agarrou o pulso direito com a mão esquerda, se ergueu até colocar um pé na lateral, depois entrou.

Ainda havia duas pessoas dentro. Uma estava nos controles, a outra, de pé no centro atrás de uma grande coisa redonda. Enfiava um cilindro em uma reentrância nela. Havia uma torre de metralhadora esmagada de um lado da gôndola.

Jetboy procurou seu .38 de serviço preso sobre o peito. Foi uma agonia esticar a mão, uma agonia tentar correr na direção do sujeito com o detonador.

Eles vestiam escafandros. Os trajes estavam inflados. Pareciam dez ou doze bolas de praia enfiadas em ceroulas compridas. Moviam-se tão lentamente quanto ele.

As mãos de Jetboy se fecharam em garra sobre a coronha do .38. Ele o arrancou do coldre.

A arma voou de sua mão, ricocheteou no teto e saiu pelo buraco pelo qual ele havia entrado.

O sujeito nos controles disparou um tiro contra ele. Pulou na direção do outro homem, aquele com o detonador.

Sua mão agarrou o pulso do escafandro do outro homem enquanto ele empurrava o detonador cilíndrico na lateral do recipiente redondo. Jetboy viu que o equipamento todo estava apoiado em uma escotilha com dobradiça.

O homem tinha apenas metade de um rosto – Jetboy viu metal liso de um lado pelo capacete de mergulho gradeado.

O homem girou o detonador com as duas mãos.

Jetboy viu, pelo teto arrancado da cabine de pilotagem, outro balão começar a esvaziar. Houve uma sensação de queda. Estavam caindo na direção da cidade.

Jetboy agarrou o detonador com as duas mãos. Seus capacetes se chocaram enquanto a nave avançava.

O sujeito nos controles vestia um cinto de paraquedas e ia na direção da abertura na parede.

Outro solavanco derrubou Jetboy e o homem com o detonador. O sujeito esticou a mão para a alavanca da escotilha atrás dele o melhor que pôde com o traje pesado.

Jetboy agarrou suas mãos e o puxou de volta.

Eles caíram juntos sobre o recipiente, as mãos presas nos trajes um do outro e no detonador da bomba.

O homem tentou novamente alcançar a alavanca. Jetboy o afastou. O recipiente rolou como uma bola de praia gigante quando a gôndola se inclinou.

Ele olhou diretamente no olho do homem com roupa de mergulho. O homem usou os pés para empurrar o recipiente de volta para a escotilha de bomba. A mão foi novamente na direção da alavanca.

Jetboy deu meia-volta no detonador no outro sentido.

O homem com roupa de mergulho o pegou por trás. Sacou uma arma .45 automática. Arrancou uma pesada mão enluvada do detonador, controlou o deslize. Jetboy viu o cano se virar na sua direção.

– Morra, Jetboy! Morra! – disse o homem.

Ele apertou o gatilho quatro vezes.

 

                         DEPOIMENTO DO PATRULHEIRO FRANCIS V. O’HOOEY,

                         15 SET. 1946, 18h45 (CONTINUAÇÃO).

 

Então, quando os pedaços de metal pararam de cair, todos saímos correndo e olhamos para cima.

Vi o ponto branco abaixo do tal balão. Arranquei os binóculos do tenente.

Com certeza era um paraquedas. Esperava que fosse Jetboy que tinha saído quando o avião bateu na coisa.

Eu não sei muito sobre essas coisas, mas sei que você não abre um paraquedas tão alto ou se mete em problemas graves.

Então, enquanto eu assistia, os balões e tudo o mais explodiram, de uma vez. Eles estavam ali, então houve a explosão, e depois era só fumaça e coisas no alto.

As pessoas ao redor começaram a aplaudir. O garoto tinha conseguido – tinha explodido a coisa antes que pudesse jogar a bomba atômica na ilha de Manhattan.

Depois o tenente mandou subir no caminhão, que tentaríamos pegar o garoto.

Nós entramos e tentei descobrir onde ele iria pousar. Por toda parte que passávamos, as pessoas estavam de pé em meio a restos de carros, incêndios, tudo, olhando para o alto e aplaudindo o paraquedas.

Percebi a grande mancha no ar depois da explosão, quando estávamos circulando havia dez minutos. Os outros jatos que tinham estado com Jetboy haviam voltado, voando pelo ar, e também alguns Mustang e Thunderjug. Era como um espetáculo aéreo.

De alguma forma chegamos perto da ponte antes de todo mundo. Foi bom, porque quando fomos para a água vimos o sujeito caído a uns seis metros da praia. Ele despencou como uma pedra. Estava vestindo uma roupa de mergulho e nós nadamos e agarramos parte do paraquedas, e um bombeiro agarrou alguns dos tubos e o puxamos para a praia.

Bem, não era Jetboy, era um que identificamos como Edward “Smooth Eddy” Shiloh, um bandidinho.

E estava em péssima forma. Pegamos um alicate no caminhão de bombeiros, arrancamos seu capacete e ele estava roxo como uma beterraba. Havia levado 27 minutos para chegar ao solo. Desmaiou, claro, por falta de ar, e estava tão queimado de frio que ouvi que teria de arrancar um dos pés e tudo, menos o polegar da mão esquerda.

Mas ele pulou da coisa antes de explodir. Olhamos para cima de novo, esperando ver o paraquedas do Jetboy ou alguma coisa, mas não havia nada, só aquela grande mancha enevoada, com todos os aviões zunindo ao redor.

Levamos Shiloh para o hospital.

Este é meu relatório.

 

                   DEPOIMENTO DE EDWARD “SMOOTH EDDY”

                   SHILOH, 16 DE SET, 1946 (FRAGMENTO)

 

(...) todos os cinco obuses em duas das bolsas de gás. Depois ele jogou o avião diretamente sobre nós. As paredes explodiram.

Fred e Filmore foram arremessados sem os paraquedas.

Quando a pressão caiu, eu me senti como se não pudesse me mexer, o traje muito apertado. Tentei pegar meu paraquedas.

Vi que o Dr. Tod estava com o detonador e enfiando-o na tal bomba.

Senti o avião cair para a lateral da gôndola. A próxima coisa que vi foi Jetboy de pé bem na frente do buraco aberto pelo avião.

Eu saco minha arma quando vejo que ele está armado. Mas ele perde a arma e vai na direção de Tod.

“Segure ele, segure ele!”, Tod está gritando pelo rádio do traje. Eu dou um tiro, mas erro, então ele está em cima de Tod e da bomba, e eu decido que meu trabalho terminou há cinco minutos e não estou recebendo hora extra.

Então saio e o rádio transmite todo aquele ranger de dentes e gritos, e eles estão lutando. Então Tod berra, saca a .45 e juro que ele colocou quatro tiros em Jetboy mais perto do que eu estou de você. Então eles caem juntos e eu pulo pelo buraco do lado.

Só que fui idiota e puxei a corda cedo demais, meu paraquedas não abre direito, se enrola e eu começo a desmaiar. Pouco

antes disso a coisa toda explode acima de mim.

O que me lembro a seguir é de acordar aqui e ter um sapato sobrando, entende o que quero dizer? (...)

(...) o que eles dizem? Bem, a maior parte disso estava distorcido. Vejamos. Tod diz “Segure ele, segure ele”, e eu atiro.

Depois eu fui para o buraco. Houve gritos. Eu só consegui ouvir Jetboy quando os capacetes deles se chocaram, pelo rádio do traje de Tod. Eles devem ter se chocado muito, porque ouvi os dois respirando pesado.

Então Tod pegou a arma, atirou quatro vezes e disse “Morra, Jetboy! Morra!”, eu pulei e eles devem ter lutado um segundo, e ouvi Jetboy dizer:

“Ainda não posso morrer. Eu não vi Sonhos dourados.”

Foram oito anos depois do dia em que Thomas Wolfe morreu, mas era seu tipo de dia. Por todo o território dos Estados Unidos e todo o hemisfério norte era um daqueles dias em que o verão cede espaço, quando o clima vem novamente dos polos e do Canadá em vez de do Golfo e do Pacífico.

Acabaram construindo um monumento para Jetboy – “o garoto que ainda não podia morrer”. Um veterano calejado de batalha, com 19 anos, que havia impedido um louco de explodir Manhattan.

Depois que cabeças mais tranquilas prevaleceram, eles compreenderam isso.

Mas demorou um pouco para que se lembrassem. E para voltar a estudar ou comprar aquela geladeira nova. Demorou muito tempo para alguém se lembrar de como tudo era antes de 15 de setembro de 1946.

Quando as pessoas em Nova York olharam para cima e viram Jetboy explodir a aeronave agressora, pensaram que seus problemas haviam terminado. Elas estavam tão erradas quanto cobras em uma rodovia de oito pistas.

 

           – Daniel Deck

               Godot é meu co-piloto:

               Uma vida de Jetboy

               Lippincott, 1963

 

Do alto do céu a névoa fina começou a cair.

Parte dela se espalhou com o vento, seguindo a corrente, na direção leste.

Sob aquelas correntes, a névoa se reagrupou e pairou como chuva que evapora, lentamente assentando sobre a cidade abaixo, faixas se formando e reformando, se rompendo como nuvens perto de uma tempestade.

Onde quer que tenha caído, produziu um som como de uma suave chuva de outono.

 

                                                           O dorminhoco

                                                           Roger Zelazny

 

                   A longa caminhada para casa

Ele tinha 14 anos de idade quando o sono se tornou seu inimigo, uma coisa sombria e terrível que aprendeu a temer como outros temiam a morte. Mas não era uma questão de neurose em qualquer de suas mais misteriosas formas. Em geral uma neurose tem elementos irracionais, enquanto seu medo vinha de uma causa específica e seguia um rumo tão lógico quanto um teorema de geometria.

Não que não houvesse irracionalidade em sua vida. Muito pelo contrário. Mas isso era uma consequência, e não a causa, de seu quadro. Pelo menos foi o que disse a si mesmo mais tarde.

Resumindo, o sono era sua ruína, sua nêmese. Era seu inferno em prestações.

Croyd Crenson havia concluído oito séries na escola e não conseguiu passar pela nona. Não foi por qualquer falha sua. Embora não fosse dos primeiros da turma, também não era dos últimos.

Era um garoto comum, com um corpo comum, rosto sardento, olhos azuis e cabelos castanhos lisos. Gostava de brincar de guerra com os amigos até a guerra de verdade terminar; depois passaram a brincar cada vez mais de polícia e ladrão. Quando era guerra ele esperava – não com muita paciência – por sua oportunidade de ser o grande piloto de caça Jetboy; depois da guerra, em polícia e ladrão, ele normalmente era um ladrão.

Ele começou a nona série, mas, como muitos outros, nunca passou do primeiro mês: setembro de 1946...

– Está olhando o quê?

Ele se lembrava da pergunta da Srta. Marston, mas não de sua expressão, porque não se virara do espetáculo. Não era incomum os garotos de sua sala olharem pela janela com frequência cada vez maior assim que as três horas da tarde chegavam a uma distância crível. Mas era incomum não se virarem rapidamente quando chamados, simulando mais um pouco de atenção enquanto esperavam pelo sinal do final da aula.

Em vez disso ele respondeu:

– Os balões.

Como três outros garotos e duas meninas que também tinham uma boa linha de visão estavam olhando na mesma direção, a Srta. Marston – sua própria curiosidade despertada – foi até a janela. Parou lá e olhou.

Eles estavam bem no alto – cinco ou seis deles, aparentemente –, coisinhas pequenas no final de um corredor de nuvens, se deslocando como se unidos. E havia um avião na vizinhança, fazendo uma passagem rápida por eles. Lembranças em preto e branco de cinejornais, ainda frescas, vieram à mente. Realmente parecia que o avião estava atacando os peixes prateados.

A Srta. Marston observou por algum tempo, depois se virou.

– Certo, turma – começou. – É apenas...

Então as sirenes soaram. A Srta. Marston sentiu os ombros subindo e enrijecendo involuntariamente.

– Ataque aéreo! – gritou uma garota chamada Charlotte na primeira fila.

– Não é – disse Jimmy Walker, o aparelho nos dentes cintilando. – Não tem mais. A guerra acabou.

– Eu sei como eles soam – disse Charlotte. – Sempre que havia um blecaute...

– Mas não tem mais guerra – afirmou Bobby Tremson.

– Agora já chega, turma – disse a Srta. Marston. – Eles talvez estejam fazendo um treinamento.

Mas ela olhou novamente pela janela e viu um pequeno clarão de fogo no céu antes de uma barreira de nuvens bloquear sua visão do combate aéreo.

– Fiquem em seus lugares – disse, enquanto vários alunos se levantavam e iam na direção da janela. – Vou conferir na secretaria e descobrir se há algum treinamento que não foi anunciado.

Volto logo. Podem conversar se for em voz baixa.

Ela saiu, batendo a porta após passar. Croyd continuou a olhar para a cortina de nuvens, esperando que se abrisse novamente.

– É Jetboy – disse a Bobby Tremson da outra fileira.

– Ah, até parece – respondeu Bobby. – O que estaria fazendo lá em cima? A guerra acabou.

– É um avião a jato. Vi nos noticiários, e é assim que funciona. E ele é o melhor.

– Você está inventando tudo isso – disse Liza do fundo da sala.

Croyd deu de ombros.

– Tem alguém mau lá em cima, e ele está lutando contra – disse. – Eu vi o fogo. Há tiros.

As sirenes continuavam a berrar. Da rua do lado de fora subiram sons de pneus travando, seguidos pelo som breve de uma buzina de carro e o baque surdo de uma colisão.

– Acidente! – gritou Bobby, e todos se levantaram e foram para a janela.

Croyd então se levantou, não querendo ter a visão bloqueada; e como estava perto, conseguiu um bom lugar. Mas não olhou para o acidente, continuou a fitar o céu.

– Entrou no porta-malas – disse Joe Sarzanno.

– O quê? – perguntou uma garota.

Croyd então ouviu as explosões distantes. O avião não era mais visto.

– Que barulho é esse? – perguntou Bobby.

– Fogo antiaéreo – respondeu Croyd.

– Você está maluco!

– Eles estão tentando derrubar a coisa, o que quer que seja.

– É. Claro. Como nos filmes.

As nuvens começaram a se fechar novamente. Mas enquanto isso acontecia Croyd achou ter vislumbrado o jato novamente, indo em rota de colisão contra os balões. Sua visão então foi bloqueada antes que pudesse ter certeza.

– Droga! – falou. – Pega eles, Jetboy!

Bobby riu e Croyd o empurrou com força.

– Ei! Cuidado com quem está empurrando!

Croyd se virou para ele, mas Bobby parecia não querer continuar com a confusão. Estava olhando para a janela novamente, apontando.

– Por que todas aquelas pessoas estão correndo?

– Não sei.

– É o acidente?

– Não.

– Olha! Mais um!

 

Um Studebaker azul havia feito a curva rápido, desviado para não acertar os carros parados e batido em um Ford que se aproximava. Os dois carros ficaram inclinados. Outros veículos frearam e pararam para não bater neles. Várias buzinas começaram a soar. Os sons abafados da defesa antiaérea continuaram em meio ao uivo das sirenes. As pessoas agora estavam correndo

pelas ruas, sequer parando para olhar os acidentes.

– Acha que a guerra recomeçou? – perguntou Charlotte.

– Não sei – disse Leo.

O som de uma sirene da polícia de repente se misturou aos outros barulhos.

– Jesus! – disse Bobby. – Aí vem outro!

Antes que ele terminasse de falar, um Pontiac havia entrado na traseira de um dos veículos parados. Três duplas de motoristas se enfrentavam de pé; uma dupla com raiva, as outras simplesmente conversando e eventualmente apontando para cima. Logo, todos se separaram e saíram apressados pela rua.

– Isso não é um exercício – disse Joe.

– Eu sei – respondeu Croyd, olhando para a área onde uma nuvem tinha ficado cor-de-rosa por causa do brilho que escondia. – Acho que é alguma coisa muito ruim.

Ele se afastou da janela.

– Estou indo para casa agora – disse.

– Você vai se meter em confusão – afirmou Charlotte.

Ele olhou para o relógio.

– Aposto que o sinal toca antes que ela volte – respondeu. – Se você não for agora, acho que

não vão nos deixar sair com o que está acontecendo, e quero ir para casa.

Ele se virou e foi até a porta.

– Eu também vou – disse Joe.

– Vocês vão se meter em confusão.

Eles seguiram pelo corredor. Quando se aproximavam da porta da frente uma voz adulta, masculina, chamou do saguão:

– Vocês dois! Voltem aqui!

Croyd correu, abriu a grande porta verde com o ombro e continuou. Joe estava apenas um passo atrás dele enquanto descia os degraus. Agora, a rua inteira estava cheia de carros parados dos dois lados, até onde ele podia ver, em qualquer direção. Havia pessoas no alto dos prédios e em todas as janelas, a maioria olhando para cima.

Ele correu para a calçada e virou à direita. Sua casa ficava seis quarteirões ao sul, em um grupo anômalo de casas geminadas. O caminho de Joe era metade disso, seguindo depois para leste.

Antes que alcançassem a esquina, foram detidos por um rio de pessoas indo da rua lateral para a direita, interrompendo sua passagem, algumas virando na direção norte e tentando avançar, outras seguindo para o sul. Os garotos ouviram xingamentos e o barulho de uma briga no alto.

Joe esticou a mão e puxou a manga de um homem. O homem puxou o braço com rispidez e olhou para baixo.

– O que está acontecendo? – gritou Joe.

– Alguma espécie de bomba – respondeu o homem. – Jetboy tentou deter os homens que estavam com ela. Acho que todos explodiram. A coisa pode disparar a qualquer momento. Talvez seja atômica.

– Onde ela caiu? – berrou Croyd.

O homem apontou para noroeste.

– Para lá.

Então o homem desapareceu, tendo encontrado uma abertura e forçado passagem.

– Croyd, podemos atravessar a rua se formos por cima do capô daquele carro – disse Joe.

Croyd concordou e seguiu o outro garoto por cima do capô ainda quente de um Dodge cinza. O motorista os xingou, mas sua porta estava bloqueada pela pressão dos corpos e a porta do lado do carona só abria alguns centímetros antes de bater no para-lama de um táxi. Contornaram o táxi e atravessaram pelo meio do cruzamento, passando por mais dois carros no caminho.

O tráfego de pedestres diminuía perto do meio do quarteirão seguinte e parecia haver uma grande área aberta à frente. Eles correram na direção dela, mas então pararam de repente.

Havia um homem caído na calçada. Estava tendo convulsões. A cabeça e as mãos tinham inchado muito e estavam vermelho-escuras, quase roxas. No momento em que o viram, sangue começou a escorrer do nariz e da boca; escorreu dos ouvidos, vazou dos olhos e das unhas.

– Santa Maria! – disse Joe, fazendo o sinal da cruz e recuando. – O que ele tem?

– Não sei – respondeu Croyd. – Não vamos chegar perto demais. Vamos passar por cima de mais uns carros.

Eles levaram dez minutos para chegar à esquina seguinte. Em algum momento do caminho perceberam que as armas estavam silenciosas havia muito tempo, embora as sirenes de ataque aéreo, da polícia e as buzinas dos carros sustentassem uma barulheira constante.

– Sinto cheiro de fumaça – disse Croyd.

– Eu também. Se alguma coisa estiver pegando fogo, nenhum caminhão de bombeiros vai chegar lá.

– Toda essa droga de cidade poderia pegar fogo.

– Talvez não seja isso tudo.

– Pode apostar que é.

Eles avançaram, se depararam com uma massa de corpos e foram empurrados até a esquina.

– Nós não vamos por aí! – gritou Croyd.

Mas isso não importava, porque a multidão ao redor deles foi bloqueada segundos depois.

– Acha que conseguimos engatinhar até a rua e passar por cima dos carros de novo? – perguntou Joe.

– Podemos tentar.

Eles conseguiram. Só que, dessa vez, abrir caminho de volta para a esquina demorou mais, já que outros tomavam o mesmo rumo. Croyd viu um rosto reptiliano atrás de um para-brisa, e mãos escamosas agarrando um volante que havia sido arrancado da coluna enquanto lentamente o motorista caía de lado. Desviando os olhos, viu uma coluna de fumaça se erguer além dos edifícios a noroeste.

Quando chegaram à esquina, não havia como passar. As pessoas estavam amontoadas e oscilando. Havia gritos eventuais. Ele queria chorar, mas sabia que não adiantaria nada. Trincou os dentes e estremeceu.

– O que vamos fazer? – perguntou a Joe.

– Se ficarmos presos aqui de noite, podemos quebrar o vidro de um carro vazio e dormir nele, acho.

– Eu quero ir para casa!

– Eu também. Vamos tentar ir o mais longe que pudermos.

Eles se arrastaram pela rua por quase uma hora, mas só avançaram outro quarteirão. Motoristas berravam e batiam nas janelas quando eles passavam por cima do teto dos carros. Outros carros estavam vazios. Uns poucos continham coisas que não gostaram de ver. O tráfego na calçada parecia perigoso. Estava rápido e barulhento, com brigas rápidas, muitos gritos e uma série de corpos caídos que haviam sido empurrados para umbrais de porta ou do meio-fio para a rua.

Houve alguns segundos de hesitação e silêncio quando as sirenes pararam. Então surgiu o som de alguém falando em um megafone. Mas era distante demais. As palavras eram incompreensíveis, a não ser “pontes”. O pânico recomeçou.

Viu uma mulher cair de um prédio à frente, do outro lado da rua, desviou os olhos antes que ela batesse no chão. O cheiro de fumaça continuava no ar, mas ainda não havia sinais de incêndio na vizinhança. À frente, viu a multidão parar e recuar quando uma pessoa – não podia dizer se homem ou mulher – explodiu em chamas no meio dela. Ele deslizou para a rua entre dois carros e esperou que o amigo aparecesse.

– Joe, estou morrendo de medo – falou. – Talvez a gente devesse engatinhar para baixo de um carro e esperar tudo terminar.

– Eu estava pensando nisso – respondeu o outro garoto. – Mas e se uma parte daquele prédio em chamas cair sobre um carro e ele pegar fogo?

– E daí?

– Se acertar o tanque de gasolina e ele explodir, juntos como estão, todos eles explodem, como uma fileira de rojões.

– Jesus!

– Temos que continuar. Você pode ir para minha casa se for mais fácil.

Croyd viu um homem fazer uma série de movimentos que pareciam dança, rasgando as roupas.

Então começou a mudar de forma. Alguém mais atrás na rua começou a uivar. Houve barulho de vidro se quebrando.

Durante a meia hora seguinte o trânsito na calçada diminuiu para o que em outras circunstâncias poderia ser chamado de normal. As pessoas pareciam ou ter chegado aos seus destinos ou levado o engarrafamento para outra parte da cidade. Agora, aqueles que passavam abriam caminho entre cadáveres. Os rostos haviam desaparecido atrás das janelas. Não se via ninguém no alto dos prédios. O som das buzinas dos carros havia se reduzido a surtos eventuais. Os garotos estavam de pé em uma esquina. Haviam percorrido três quarteirões e atravessado a rua desde que saíram da escola.

– Eu viro aqui – disse Joe. – Quer vir comigo ou vai seguir em frente?

Croyd olhou para a rua.

– Parece melhor agora. Acho que consigo chegar bem – disse.

– Até logo.

– Tchau.

Joe foi apressado para a esquerda. Croyd o observou por um momento, depois avançou. Mais adiante na rua um homem saiu correndo de uma porta, gritando. Ele pareceu ficar maior e seus movimentos se tornaram mais erráticos à medida que seguia para o centro da rua. Então explodiu.

Croyd pressionou as costas contra a parede de tijolos à sua esquerda e observou, com o coração acelerado, mas não houve mais nenhuma perturbação. Ouviu o megafone de novo, de algum ponto a oeste, e dessa vez as palavras eram mais claras: “As pontes estão fechadas para carros e pedestres. Não tentem usar as pontes. Voltem para suas casas. As pontes estão fechadas...”

Ele tornou a avançar. Uma única sirene soou em algum lugar a leste. Um avião passou acima, voando baixo. Havia um corpo retorcido em um umbral à esquerda; ele desviou os olhos e acelerou o passo. Viu fumaça do outro lado da rua, procurou chamas e as viu se erguendo do corpo de uma mulher sentada no degrau de uma entrada, com as mãos na cabeça. Ela parecia encolher enquanto ele olhava, depois, caiu para a esquerda com um barulho de chocalho. Ele cerrou os punhos e seguiu em frente.

Um caminhão do Exército saiu da rua lateral na esquina em frente. Ele correu até lá. Um rosto

com capacete se virou para ele do lado do carona.

– Por que está na rua, filho? – perguntou o homem.

– Estou indo para casa – respondeu.

– Onde fica?

Ele apontou para a frente.

– Dois quarteirões – disse.

– Vá direto para casa – ordenou o homem.

– O que está acontecendo?

– Estamos sob lei marcial. Todos têm que ficar em casa. Também é uma boa ideia manter as janelas fechadas.

– Por quê?

– Parece que foi alguma espécie de bomba biológica que explodiu. Ninguém sabe ao certo.

– Era o Jetboy que...

– Jetboy está morto. Ele tentou detê-los.

Os olhos de Croyd de repente se encheram de lágrimas.

– Vá direto para casa.

O caminhão atravessou a rua e seguiu para oeste. Croyd atravessou correndo e desacelerou ao chegar à calçada. Começou a tremer. De repente se deu conta da dor nos joelhos, que os havia arranhado ao engatinhar sobre veículos. Enxugou os olhos. Sentia um frio terrível. Parou no meio do quarteirão e bocejou várias vezes. Cansado. Estava inacreditavelmente cansado. Começou a se mover. Seus pés pareciam mais pesados do que nunca. Parou novamente sob uma árvore. Ouviu um gemido acima de sua cabeça.

Quando ergueu os olhos, percebeu que não era uma árvore. Era alto e marrom, com raízes e esguio, mas havia um rosto humano imensamente alongado perto do alto, e era de lá que vinha o gemido. Enquanto se afastava, um dos galhos agarrou seu ombro, mas era uma coisa fraca e mais alguns passos o deixaram fora de alcance. Ele choramingou. A esquina parecia estar a quilômetros de distância, e depois havia mais um quarteirão...

Ele estava com demorados acessos de bocejo e o mundo refeito perdera a capacidade de surpreendê-lo. E daí se um homem voava sem ajuda pelas ruas laterais? Ou se havia uma poça com rosto humano na sarjeta à sua direita? Mais corpos... Um carro virado... Uma pilha de cinzas... Fios telefônicos pendurados...

Ele se arrastou até a esquina. Apoiou-se em um poste, escorregou lentamente e se sentou encostado nele.

Queria fechar os olhos. Mas aquilo era tolice. Ele morava logo ali. Só mais um pouco e poderia dormir na própria cama.

Agarrou o poste e se levantou com dificuldade. Mais uma travessia.

Chegou ao seu quarteirão, a visão embaçada. Só mais um pouco. Ele conseguia ver a porta...

Ouviu o som deslizante e rangente de uma janela se abrindo, ouviu seu nome ser chamado acima. Ergueu os olhos. Era Ellen, filha caçula dos vizinhos, olhando para ele.

– Lamento pela morte do seu pai – disse.

Ele quis chorar, mas não conseguiu. Os bocejos esgotaram toda a sua força. Ele se apoiou na porta e tocou a campainha. O bolso com a chave dentro parecia muito distante...

Quando seu irmão Carl abriu a porta, ele caiu a seus pés e descobriu que não conseguia se levantar.

– Estou muito cansado – disse a ele e fechou os olhos.

 

                     O assassino no coração do sonho

A infância de Croyd desapareceu enquanto dormia, naquele primeiro Dia da Carta Selvagem.

Quase quatro semanas se passaram antes que ele acordasse, e estava mudado, assim como o mundo ao redor. Não era apenas que estivesse quinze centímetros mais alto, mais forte do que achava que alguém poderia ser e coberto com finos pelos vermelhos. Também descobriu rapidamente, enquanto se olhava no espelho do banheiro, que os pelos tinham propriedades peculiares. Sentindo repulsa por sua aparência, desejou que não fossem vermelhos. Imediatamente começaram a desbotar até um tom louro-claro, e ele sentiu um formigamento não exatamente desagradável sobre toda a superfície do corpo.

Intrigado, desejou que virassem verdes, e viraram. Novamente o formigamento, dessa vez mais como uma onda de vibração passando. Ele quis preto, e enegreceram. Depois, mais uma vez claros. Só que dessa vez ele não parou em louro-claro. Mais claro, mais claro; giz, albino. Ainda mais claro... Qual era o limite? Começou a sumir de vista. Podia ver a parede de azulejos atrás, através de seu perfil esmaecido no espelho. Mais claro...

Sumiu.

Levou as mãos diante do rosto e não viu nada. Pegou a toalha de banho encharcada e a levou ao peito. Ela também ficou transparente, desapareceu, embora ainda sentisse sua presença molhada.

Ele retornou ao louro-claro. Parecia o mais aceitável socialmente. Então se enfiou no que havia sido seu jeans mais largo e colocou uma camisa de flanela cinzenta, que não conseguiu abotoar por completo. As calças só chegavam às canelas. Silenciosamente, desceu as escadas descalço e foi até a cozinha. Estava faminto. O relógio do saguão lhe disse que eram quase três. Ele havia dado uma olhada na mãe, no irmão e na irmã, mas não perturbou o sono deles.

Havia metade de um pão na caixa e ele o rasgou, enfiando grandes pedaços na boca, mal mastigando antes de engolir. Em dado momento, mordeu o dedo, o que só o desacelerou um pouco. Encontrou um pedaço de carne e outro de queijo na geladeira e os comeu. Também bebeu quase um litro de leite. Havia duas maçãs no balcão e as comeu enquanto vasculhava os armários.

Uma caixa de biscoitos. Mastigou enquanto continuava a procurar. Seis biscoitos. Engoliu. Meio pote de manteiga de amendoim. Comeu de colher.

Nada. Ele não conseguiu encontrar mais nada e ainda sentia uma fome terrível.

Então a enormidade do seu banquete o chocou. Não havia mais comida na casa. Recordou da tarde louca de sua volta da escola. E se estivesse faltando comida? E se tivesse recomeçado o racionamento? Ele havia acabado de comer a comida de todos.

Tinha de conseguir mais, para os outros, bem como para si. Foi até a sala da frente e olhou pela janela. A rua estava deserta. Ficou pensando na lei marcial sobre a qual ouvira falar no caminho da escola para casa – há quanto tempo? Aliás, por quanto tempo dormira? Tinha a sensação de que havia sido muito.

Destrancou a porta e sentiu o frescor da noite. Uma das luzes da rua que estavam funcionando brilhava através dos galhos nus de uma árvore próxima. Ainda havia algumas poucas folhas nas árvores da rua na tarde dos problemas. Pegou a chave extra na mesa do saguão, saiu e trancou a porta atrás de si. Os degraus, que ele sabia que deviam estar frios, não pareceram particularmente gelados a seus pés nus.

Então parou e recuou para a sombra. Era assustador não saber o que havia lá fora.

Ele ergueu as mãos e as segurou à luz do poste.

– Claro, claro, claro...

Elas sumiram até a luz passar através delas. Continuaram a se apagar. Seu corpo se arrepiou.

Quando desapareceram, ele baixou os olhos. Parecia não restar nada dele a não ser o formigamento.

Então subiu a rua apressado, uma sensação de enorme energia dentro dele. O estranho ser arbóreo desaparecera do quarteirão seguinte. As ruas estavam liberadas ao tráfego, embora ainda houvesse muito entulho no meio-fio e quase todos os veículos estacionados que via tivessem sofrido algum dano. Parecia que todo prédio pelo qual passava tinha pelo menos uma janela fechada com papelão ou madeira. Várias árvores da rua eram troncos destroçados, e o poste de

metal na esquina seguinte estava muito curvado para um lado. Ele se apressou, surpreso com a rapidez de seu avanço, e quando chegou à escola viu que permanecia intacta, a não ser por alguns vidros que faltavam. Prosseguiu.

Três mercearias que encontrou estavam bloqueadas com tábuas e cartazes de FECHADA ATÉ SEGUNDA ORDEM. Invadiu a terceira. As tábuas ofereceram pouca resistência quando as empurrou. Ele achou o interruptor e o acionou. Segundos depois, o desligou. O lugar estava arrasado. Havia sido totalmente saqueado.

Continuou a subir, passando pelos esqueletos de vários prédios incendiados. Ouviu vozes – uma rouca, outra aguda e musical – vindas de um deles. Momentos depois houve um clarão de luz branca e um grito. Simultaneamente, um pedaço de parede de tijolos desmoronou, caindo sobre a calçada às suas costas. Não viu motivo para investigar. Em certo momento também achou ter ouvido vozes saindo de bueiros.

Perambulou por quilômetros naquela noite, sem se dar conta, até chegar perto da Times Square, de que estava sendo seguido. Inicialmente achou que era apenas um cachorro grande indo na mesma direção. Mas quando este chegou perto e ele percebeu traços humanos, parou e o encarou.

Estava sentado a uma distância de cerca de três metros e olhava para ele.

– Você também é um – rosnou.

– Você consegue me ver?

– Não. Farejar.

– O que você quer?

– Comida.

– Eu também.

– Eu mostro a você onde. Por um pouco.

– Certo. Mostre.

Ele o levou até uma área cercada onde havia caminhões do Exército estacionados. Croyd contou dez. Homens uniformizados estavam de pé ou descansando no meio deles.

– O que está acontecendo? – perguntou Croyd.

– Fale depois. Pacotes de comida nos quatro caminhões à esquerda.

Não foi problema cruzar o perímetro, entrar no fundo de um veículo, pegar uma braçada de pacotes e se retirar na outra direção. Ele e o homem-cão se esconderam em um umbral a dois quarteirões dali. Croyd se tornou visível e começaram a se empanturrar.

Depois, seu novo conhecido – que queria ser chamado de Bentley – contou a ele os acontecimentos das semanas posteriores à morte de Jetboy, enquanto Croyd dormia. Croyd soube da corrida para Jersey, dos tumultos, da lei marcial, dos takisianos e das dez mil mortes que seu vírus havia causado. E ouviu a respeito dos sobreviventes transformados – os sortudos e os azarados.

– Você é um sortudo – concluiu Bentley.

– Eu não me sinto com sorte – disse Croyd.

– Pelo menos continuou humano.

– Então, já foi ver esse Dr. Tachyon?

– Não. Ele tem estado muito ocupado. Mas irei.

– Eu também devia.

– Talvez.

– O que quer dizer com “talvez”?

– Por que você iria querer mudar? Você se deu bem. Pode ter o que quiser.

– Quer dizer roubar?

– Os tempos são difíceis. Você vive do jeito que pode.

– Talvez.

– Posso arrumar roupas que caibam em você.

– Onde?

– Virando a esquina.

– Tudo bem.

Croyd não teve dificuldade em invadir pelos fundos a loja de roupas até onde Bentley o levou.

Depois disso, desapareceu e voltou para pegar outro carregamento de pacotes de comida. Bentley o seguiu enquanto voltava para casa.

– Você se importa se eu o acompanhar?

– Não.

– Quero ver onde você mora. Eu posso levá-lo a muitas coisas boas.

– É?

– Gostaria de um amigo que me mantivesse alimentado. Acha que podemos dar um jeito?

– Sim.

Nos dias que se seguiram, Croyd se tornou o provedor da família. O irmão mais velho e a irmã não perguntavam como ele arrumava a comida ou, depois, o dinheiro que conseguia aparentemente com facilidade durante as ausências noturnas. Nem a mãe, distraída pela dor da morte do marido, pensou em perguntar. Bentley – que dormia em algum lugar na vizinhança – se tornou seu guia e mentor nessas empreitadas, bem como seu confidente em outras questões.

– Eu talvez devesse procurar o médico que você mencionou – disse Croyd, pousando a caixa de enlatados que tirara de um armazém e se sentando nela.

– Tachyon? – perguntou Bentley, se esticando de um modo pouco canino.

– É.

– O que há de errado?

– Não consigo dormir. Já se passaram cinco dias desde que acordei assim e não dormi desde então.

– E daí? Qual o problema com isso? Mais tempo para fazer o que quer.

– Mas finalmente estou ficando cansado, e ainda assim não consigo dormir.

– Você vai sentir sono na hora certa. Não vale a pena incomodar Tachyon. Além disso, se ele tentar te curar, suas chances são apenas de uma em três ou quatro.

– Como sabe disso?

– Eu o procurei.

– E?

Croyd comeu uma maçã.

– Você vai tentar? – perguntou.

– Se conseguir tomar coragem – respondeu Bentley. – Quem quer passar a vida como cachorro?

E, além disso, não exatamente um bom cachorro. Por falar nisso, quando passarmos por uma petshop, queria que você entrasse e pegasse uma coleira antipulgas para mim.

– Claro. Fico pensando... Se eu for dormir, dormirei tanto tempo quanto antes?

Bentley tentou dar de ombros, desistiu.

– Quem sabe?

– Quem cuidará da minha família? Quem cuidará de você?

– Entendi. Se você parar de sair à noite vou esperar um pouco e depois tentar a cura. Quanto à sua família, melhor juntar um punhado de dinheiro. As coisas vão ficar mais tranquilas e dinheiro é a solução.

– Você está certo.

– Você é forte pra caramba. Acha que conseguiria abrir um cofre?

– Talvez. Não sei.

– Podemos tentar um a caminho de casa. Conheço um bom lugar.

– Certo.

– E um pouco de talco anti-pulgas.

 

Foi perto do amanhecer, quando estava sentado, lendo e comendo, que começou a bocejar de forma incontrolável. Quando se levantou, havia um peso em seus membros que não existia antes.

Subiu as escadas e entrou no quarto de Carl. Sacudiu o irmão pelo ombro até que acordasse.

– Qual é, Croyd? – perguntou.

– Estou com sono.

– Então vá para cama.

– Passou muito tempo. Talvez eu durma muito de novo.

– Ah.

– Então tem aqui algum dinheiro, para cuidar de todos caso isso aconteça.

Ele abriu a gaveta de cima do gaveteiro de Carl e enfiou um grande maço de notas sob as meias.

– Ahn, Croyd... Onde você conseguiu todo esse dinheiro?

– Não é da sua conta. Volte a dormir.

Ele foi para o quarto, se despiu e se enfiou na cama. Sentia muito frio.

Quando acordou, tinha gelo nas vidraças da janela.

Ao olhar para fora, viu que havia neve no chão sob um céu plúmbeo. Sua mão no peitoril era larga e escura, os dedos curtos e grossos.

Ao se examinar no banheiro, descobriu que tinha cerca de 1,65m de altura, poderosamente corpulento, com cabelos e olhos escuros e sulcos rígidos como cicatrizes na frente das pernas, nas laterais dos braços, sobre os ombros, descendo as costas e subindo o pescoço. Demorou mais 15 minutos para aprender que podia elevar a temperatura da mão até o ponto em que a toalha que estava segurando pegasse fogo. Apenas mais alguns minutos e descobriu que podia gerar calor em todo lugar, até seu corpo inteiro reluzir – embora lamentasse pela pegada que havia gravado no linóleo e pelo buraco que seu outro pé fez no tapete.

Dessa vez havia muita comida na cozinha, e ele comeu sem parar durante mais de uma hora até a fome passar. Vestiu uma calça e um casaco de moletom, refletindo sobre a variedade de roupas que precisaria manter se mudasse de forma cada vez que dormisse.

Agora não havia nenhuma dificuldade para conseguir comida. O enorme número de mortes ocorridas desde a liberação do vírus resultara em abundância nos depósitos locais, e as lojas estavam reabrindo com suas rotinas de distribuição normalizadas.

Sua mãe estava passando a maior parte do tempo na igreja, e Carl e Claudia voltaram à escola, que reabrira pouco antes. Croyd sabia que ele mesmo não voltaria à escola. O estoque de dinheiro ainda era grande, mas refletindo que dessa vez ele dormira nove dias mais do que da primeira, achou que seria uma boa idéia ter dinheiro extra na mão. Ele se perguntou se conseguiria aquecer a mão o suficiente para abrir um buraco na porta de metal de um cofre. Ele tivera grande dificuldade para abrir o primeiro – na verdade quase desistiu –, e Bentley havia garantido que era uma “lata”. Ele saiu e praticou em um pedaço de cano galvanizado.

Tentou planejar o serviço com cuidado, mas sua avaliação foi ruim. Teve de abrir oito cofres naquela semana antes de conseguir um bom dinheiro. A maioria deles tinha apenas papéis. Ele sabia que havia disparado alarmes e isso o deixava nervoso; esperava que suas digitais também

mudassem quando dormia. Trabalhou o mais rápido possível e desejou que Bentley estivesse de volta. O homem-cachorro teria sabido o que fazer, sentia. Em várias oportunidades ele teve indícios de que sua ocupação normal envolvera algo não exatamente legal.

Os dias se passaram mais rápido do que teria desejado. Comprou um grande e variado guarda-roupas. À noite, caminhava pela cidade observando os sinais de danos que permaneciam e o avanço das obras de recuperação. Acompanhou as notícias da cidade, do mundo. Não era difícil acreditar em um homem do espaço sideral quando o resultado do vírus estava ao seu redor.

Perguntou a um homem com cabeça em forma de bala e dedos palmados onde poderia encontrar o Dr. Tachyon. O homem lhe deu um endereço e um número de telefone. Ele os guardou na carteira, e não ligou nem foi. E se o médico o examinasse, dissesse que não era problema e o curasse?

Àquela altura ninguém mais na família conseguia ganhar a vida.

Chegou o dia em que seu apetite aumentou novamente, o que para ele significava que seu corpo estava se preparando para outra mudança. Dessa vez observou com mais atenção o que sentia, para futura referência. Demorou o restante daquele dia e a noite e parte do dia seguinte antes que começassem o frio e as ondas de sonolência. Ele deixou um bilhete desejando boa-noite aos outros, pois estavam fora quando a sensação tomou conta dele. E dessa vez trancou a porta do quarto, pois descobriu que o haviam observado regularmente enquanto dormia e em dado momento até haviam levado um médico – uma mulher, que ao tomar conhecimento de seu histórico, prudentemente recomendara que simplesmente o deixassem dormir. Também sugerira que procurasse o Dr. Tachyon ao acordar, mas a mãe perdera o papel no qual ela havia escrito isso. A cabeça da Sra. Crenson parecia frequentemente distraída naqueles dias.

Ele teve o sonho novamente – e dessa vez se deu conta de que era novamente – e foi a primeira vez em que se lembrou dele: a apreensão lembrava seus sentimentos no dia em que voltara da escola para casa pela última vez. Estava caminhando pelo que parecia uma rua vazia no crepúsculo. Algo se mexeu atrás dele, que se virou e olhou. Pessoas saíam de umbrais, janelas, carros, bueiros e todas olhavam para ele, se moviam na sua direção. Continuou em seu caminho e houve algo como um suspiro coletivo às suas costas. Quando olhou novamente, todos estavam correndo na sua direção de forma ameaçadora, expressões de ódio nos rostos. Começou a correr, certo de que pretendiam sua destruição. Eles o perseguiram...

Quando acordou, estava repugnante e não tinha poderes especiais. Estava sem pelos, tinha um focinho e estava coberto de escamas cinza-esverdeadas; os dedos eram alongados e tinham articulações extras, os olhos eram amarelos e estreitos; sentia dores nas coxas e na base da coluna se ficasse em pé muito tempo. Era mais fácil andar pelo quarto de quatro. Quando fez uma exclamação em voz alta sobre sua condição, sua fala tinha um sibilo pronunciado.

Era começo da noite e ouviu vozes no andar de baixo. Abriu a porta e chamou, e Claudia e Carl correram para seu quarto. Ele entreabriu a porta e permaneceu atrás dela.

– Croyd! Você está bem? – perguntou Carl.

– Sim e não – sibilou. – Ficarei bem. Neste exato instante estou morrendo de fome. Tragam comida. Muita.

– Qual o problema? – perguntou Claudia. – Você não vai sair?

– Depois! Falar depois. Comida agora!

Ele se recusou a sair do quarto ou a deixar a família vê-lo. Eles levaram a ele comida, revistas, jornais. Escutou rádio e andou de um lado para o outro, quadrúpede. Dessa vez o sono era algo a ser cortejado em vez de temido. Ele se deitou na cama, esperando que viesse logo. Mas isso lhe foi negado a maior parte da semana.

Quando acordou novamente, se viu com pouco mais de 1,80m de altura, cabelos escuros, magro e com traços que não eram desagradáveis. Era tão forte quanto havia sido em ocasiões anteriores, mas após algum tempo concluiu que não possuía poderes especiais – até escorregar na escada ao correr para a cozinha e se salvar levitando.

Depois, notou um bilhete com a caligrafia de Claudia preso à sua porta. Tinha um número de telefone e dizia que podia encontrar Bentley ali. Ele o colocou na carteira. Tinha outro telefonema a dar antes.

O Dr. Tachyon ergueu os olhos para ele e sorriu levemente.

– Podia ser pior – disse.

Croyd quase se divertiu com a avaliação.

– Como? – perguntou.

– Bem, você poderia ter tirado um curinga.

– O que exatamente eu tirei, senhor?

– O seu é um dos casos mais interessantes que vi até agora. Em todos os outros ele simplesmente seguiu seu caminho e matou a pessoa ou a modificou – para o bem ou para o mal.

No seu caso... Bem, a melhor analogia é uma doença terrestre chamada malária. O vírus que você tem parece reinfectá-lo periodicamente.

– Eu tirei um curinga uma vez...

– Sim, e pode acontecer novamente. Mas diferentemente de qualquer outro com quem isso aconteceu, você só precisa esperar. Passa dormindo.

– Não quero ser um monstro novamente. Há alguma forma pela qual você possa mudar apenas essa parte?

– Temo que não. É parte de sua síndrome total. Só posso cuidar da coisa toda.

– E as chances de uma cura são de três ou quatro para uma?

– Quem lhe disse isso?

– Um curinga chamado Bentley. Ele meio que parecia um cachorro.

– Bentley foi um dos meus sucessos. Ele agora voltou ao normal. Na verdade, acabou de sair daqui.

– Mesmo? Bom saber que alguém conseguiu.

Tachyon desviou os olhos.

– Sim – respondeu um instante depois.

– Diga-me uma coisa.

– O quê?

– Se eu só mudo quando durmo, então posso evitar uma mudança permanecendo acordado, certo?

– Entendo o que quer dizer. Sim, um estimulante poderia afastar isso um pouco. Se você sentir que está vindo quando estiver em algum lugar, a cafeína de duas xícaras de café provavelmente irá segurar tempo suficiente para que volte para casa.

– Não há nada mais forte? Algo que elimine isso por mais tempo?

– Sim, há estimulantes poderosos; anfetaminas, por exemplo. Mas podem ser perigosos caso tome demais ou por tempo demais.

– De que forma são perigosos?

– Nervosismo, irritabilidade, belicosidade. Depois, psicose tóxica, com ilusões, alucinações, paranoia.

– Loucura?

– Sim.

– Bem, você pode simplesmente parar se chegar perto disso, não?

– Não acho que seja tão fácil.

– Eu odiaria ser um monstro novamente, ou... Você não disse, mas não é possível que eu simplesmente morra durante um dos comas?

– Existe essa possibilidade. É um vírus terrível. Mas você já passou por vários ataques, o que me leva a crer que seu corpo sabe o que está fazendo. Eu não me preocuparia demais com isso...

– É a parte do curinga que me incomoda de verdade.

– Essa é uma possibilidade que você simplesmente terá que aceitar.

– Certo. Obrigado, doutor.

– Gostaria que viesse ao Monte Sinai da próxima vez que sentir que está começando. Eu realmente gostaria de observar o processo em você.

– Eu prefiro que não.

Tachyon assentiu com a cabeça.

– Ou pouco depois de você acordar...

– Talvez – disse Croyd e apertou a mão dele. – Por falar nisso, doutor... Como se escreve “anfetamina”?

Croyd parou no apartamento dos Sarzanno depois, pois não via Joe desde aquele dia de setembro em que saíram da escola juntos e a necessidade de ganhar a vida reduziu seu tempo livre desde então.

A Sra. Sarzanno entreabriu a porta e olhou para ele. Depois que se identificou e tentou explicar sua mudança de aparência, ela ainda se recusou a abrir mais a porta.

– Meu Joe também mudou – disse ela.

– Ah, como ele mudou? – perguntou.

– Mudou. Isso é tudo. Mudou. Vá embora.

Ela fechou a porta.

Ele bateu novamente, mas ninguém atendeu.

Croyd então partiu e comeu três filés, pois não havia mais nada que pudesse fazer.

Croyd analisou Bentley – um homem pequeno com traços de raposa, cabelos escuros e olhos agitados – sentindo que sua transformação anterior de fato combinava com seu comportamento geral. Bentley devolveu o cumprimento por vários segundos, depois disse:

– É realmente você, Croyd?

– É.

– Venha. Sente-se. Tome uma cerveja. Temos muito a conversar.

Ele deu um passo para o lado e Croyd entrou no apartamento belamente mobiliado.

– Fiquei curado e voltei aos negócios. Os negócios estão péssimos – disse Bentley depois que tinham se sentado. – Qual a sua história?

Croyd contou a ele sobre as mudanças e os poderes que experimentara e sua conversa com Tachyon. A única coisa que nunca contou a ele foi sua idade, já que todas as suas transformações tinham uma aparência de maturidade. Ele temia que Bentley não confiasse nele da mesma forma caso soubesse.

– Você fez esses outros serviços de modo errado – disse o homenzinho, acendendo um cigarro e tossindo. – Tentativa e erro nunca é bom. Você precisa de um pouco de planejamento, e isso deve ser ajustado ao seu talento especial a cada vez. Você diz que desta vez consegue voar?

– Sim.

– Certo. Há muitos lugares no alto de arranha-céus que as pessoas acham bastante seguros.

Desta vez atacamos esses. Sabe, você tem o melhor físico possível. Mesmo que alguém o veja, não importa. Estará diferente da vez seguinte.

– E você me consegue as anfetaminas?

– Tudo o que você quiser. Volte aqui amanhã; mesma hora, mesma estação. Talvez eu tenha arrumado um serviço para nós. E terei seus comprimidos.

– Obrigado, Bentley.

– É o mínimo que posso fazer. Se continuarmos juntos, ficaremos ricos.

Bentley planejou um bom serviço e três dias depois Croyd levou para casa mais dinheiro do que já tivera antes. Deu a maior parte dele para Carl, que estava cuidando das finanças da família.

– Vamos dar uma volta – disse Carl, escondendo o dinheiro atrás de uma fila de livros e olhando significativamente para a sala, onde a mãe estava com Claudia.

Croyd fez que sim com a cabeça.

– Claro.

– Você parece muito mais velho atualmente – disse Carl, que faria 18 em poucos meses, assim que chegaram à rua.

– Eu me sinto muito mais velho.

– Não sei onde você continua arrumando o dinheiro...

– Melhor não.

– Certo. Não posso reclamar, já que estou vivendo dele também. Mas queria que você soubesse sobre a mãe. Ela está piorando. Ver papai ser despedaçado daquele jeito... Ela está piorando desde então. Até agora você perdeu o pior disso, da última vez estava dormindo. Em três noites diferentes ela simplesmente se levantou e saiu de camisola; descalça, em fevereiro, por Cristo! E vagou como se estivesse procurando por papai. Felizmente, todas as vezes alguém que conhecíamos a viu e a trouxe de volta. Continuou perguntando a ela, a Sra. Brandt, se o tinha visto. De qualquer forma, o que estou tentando dizer é que está piorando. Já conversei com dois médicos. Eles acham que deveria passar um tempo em uma casa de repouso. Claudia e eu também achamos. Não podemos vigiá-la o tempo todo e ela pode se machucar. Claudia tem 16 anos. Nós dois podemos cuidar das coisas enquanto ela estiver fora. Mas vai ser caro.

– Eu posso conseguir dinheiro – disse Croyd.

Quando finalmente conseguiu falar com Bentley no dia seguinte e disse que precisavam fazer outro serviço logo, o homenzinho pareceu contente, pois Croyd não ansiava por uma sequência rápida.

– Um dia ou dois para arrumar algo e acertar os detalhes – disse Bentley. – Falo com você.

– Certo.

No dia seguinte, o apetite de Croyd começou a aumentar e ele se viu bocejando de vez em quando. Então tomou um dos comprimidos.

Funcionou bem. Na verdade, melhor que bem. Foi uma bela sensação que tomou conta dele.

Não conseguia se lembrar da última vez em que se sentiu tão bem. Tudo parecia como se estivesse se encaminhando diretamente para uma mudança. E todos os movimentos pareciam particularmente fluidos e graciosos. Também se sentia mais alerta, mais consciente do que de hábito. E, mais importante, não estava sonolento.

Apenas de noite, depois que todos haviam se recolhido, essas sensações começaram a passar.

Ele tomou outro comprimido. Quando começou a fazer efeito, ele se sentiu tão bem que saiu e levitou bem alto acima da cidade, flutuando na fria noite de março entre as brilhantes constelações da cidade e aquelas bem acima, sentindo como se tivesse uma chave secreta para o significado interno de tudo. Pensou brevemente na batalha de Jetboy no céu e voou sobre os restos do Terminal Hudson, que havia pegado fogo quando pedaços do avião de Jetboy caíram por cima.

Tinha lido que planejavam construir um monumento ali. Era essa a sensação de cair?

Ele desceu para deslizar entre os prédios – algumas vezes parando no teto de um, saltando, caindo, se salvando no último instante. Em uma dessas ocasiões, viu dois homens o observando de um umbral. Por alguma razão que ele não entendeu, isso o irritou. Voltou para casa e começou uma faxina. Empilhou jornais e revistas velhos e os amarrou em fardos, esvaziou cestos de lixo, varreu e esfregou, lavou toda a louça na pia. Voou com quatro carregamentos de lixo até o East River e os jogou, já que a coleta de lixo ainda não havia sido totalmente regularizada. Tirou o pó de tudo e a manhã o encontrou polindo a prataria. Depois lavou todas as janelas.

Foi de repente que se viu fraco e trêmulo. Ele se deu conta do que era e tomou outro comprimido e colocou um bule de café para filtrar. Os minutos se passaram. Era difícil permanecer sentado, confortável em uma posição. Ele não gostava do formigamento nas mãos.

Lavou-as várias vezes, mas não passou. Finalmente, tomou outro comprimido. Olhou o relógio e escutou o som do bule de café. Quando o café ficou pronto, o formigamento e o tremor começaram a passar. Ele se sentiu muito melhor. Enquanto tomava o café pensou novamente nos dois homens no umbral. Estavam rindo dele? Sentiu um surto de raiva rápido, embora não tivesse realmente visto seus rostos, reparado em suas expressões. Observando! Se tivessem mais tempo poderiam ter jogado uma pedra...

Balançou a cabeça. Isso era tolice. Eram apenas dois caras. De repente ele quis correr para fora e caminhar pela cidade, talvez voar novamente. Mas podia perder o telefonema de Bentley, caso ligasse. Começou a andar de um lado para o outro. Tentou ler, mas não conseguiu se concentrar tão bem como de costume. Finalmente ligou para Bentley.

– Ainda não conseguiu nada? – perguntou.

– Ainda não, Croyd. Por que a pressa?

– Estou começando a sentir sono. Entende o que quero dizer?

– Ahn... Sim. Já tomou aquela merda?

– Aham. Precisei.

– Certo. Olhe, vá o mais devagar possível. Estou trabalhando em duas coisas. Vou tentar ter algo acertado até amanhã. Se não tiver nada, você para de tomar a coisa e vai para a cama.

Podemos fazer isso da próxima vez. Entendeu?

– Quero fazer desta vez, Bentley.

– Falo com você amanhã. Agora relaxe.

Ele saiu e caminhou. Era um dia nublado, com neve e gelo em alguns pontos do chão. De repente se deu conta de que não havia comido desde o dia anterior. Isso tinha de ser ruim, considerando o que passou a ser seu apetite normal. Deviam ser os comprimidos fazendo efeito, concluiu. Procurou um restaurante, decidido a se obrigar a comer algo. Enquanto caminhava, lhe ocorreu que não queria se sentar no meio de uma multidão e comer. A ideia de ter todos ao redor era perturbadora. Não, ele faria um pedido para viagem...

Enquanto seguia na direção de um restaurante, foi detido por uma voz saindo de um umbral. Ele se virou tão rápido que o homem que havia falado com ele ergueu um braço e recuou.

– Não... – protestou o homem.

Croyd recuou um passo.

– Lamento – murmurou.

O homem vestia um casaco marrom, o colarinho levantado. Usava um chapéu, a aba baixada o máximo que era possível sem bloquear a visão. Mantinha a cabeça inclinada para a frente. Ainda assim Croyd pôde ver um bico curvo, olhos cintilantes e uma pele que brilhava de modo nada natural.

– Poderia me fazer um favor, senhor? – pediu o homem em uma voz entrecortada e aguda.

– O que você quer?

– Comida.

Croyd enfiou a mão no bolso automaticamente.

– Não. Eu tenho dinheiro. Você não entende. Não posso entrar naquele lugar e ser servido com a minha aparência. Pago a você para entrar, pegar dois hambúrgueres para mim e trazer para fora.

– Eu ia entrar de qualquer forma.

Mais tarde Croyd se sentou com o homem em um banco, comendo. Ele era fascinado por curingas. Porque sabia que ele mesmo era, em parte, um. Começou a pensar em onde comeria se um dia acordasse em má forma e não houvesse ninguém em casa.

– Eu normalmente não venho mais tão para o norte da cidade – disse o outro. – Mas eu tinha um serviço.

– Onde vocês costumam ficar?

– Há alguns de nós no Bowery. Ninguém nos incomoda lá. Há lugares onde você é servido e ninguém se importa com a sua aparência. Ninguém dá a mínima.

– Quer dizer que as pessoas poderiam... Atacar você?

O homem deu uma breve risada estridente.

– As pessoas não são muito legais, garoto. Não quando você realmente as conhece.

– Eu o levo de volta – disse Croyd.

– Você pode estar correndo um risco.

– Tudo bem.

Foi na altura da 40th Street que três homens em um banco ficaram encarando enquanto eles passavam. Croyd havia acabado de tomar mais dois comprimidos alguns quarteirões antes. (Teria sido alguns quarteirões antes?) Não queria o nervosismo de novo enquanto conversava com o novo amigo, John – pelo menos era como ele queria ser chamado –, então tomou mais dois para se acalmar na próxima depressão, caso acontecesse logo, e soube imediatamente quando viu os dois homens que planejavam algo ruim para ele e John, e os músculos de suas costas se contraíram e ele cerrou os punhos dentro dos bolsos.

– Cocoricó – disse um dos homens e Croyd começou a correr, mas John colocou a mão em seu braço e disse:

– Vamos.

Eles saíram andando. Os homens se levantaram e foram atrás deles.

– Quiquiquiqui – disse um.

– Quá-quá – disse o outro.

Pouco tempo depois, uma guimba de cigarro passou por cima da cabeça de Croyd e caiu na sua frente.

– Ei, amigo esquisitão!

Uma mão pousou em seu ombro.

Ele ergueu o braço, segurou a mão e a apertou. Ossos estalaram dentro dela enquanto o homem começava a gritar. Os gritos pararam de repente, quando Croyd soltou a mão e estapeou o homem no rosto, derrubando-o na rua. O homem seguinte lançou um golpe na direção do seu rosto e Croyd desviou o braço para o lado com um movimento de mão que girou o homem de frente.

Então esticou a mão esquerda, segurou as lapelas do outro, juntando-as e torcendo-as, e ergueu o homem 60 cm no ar. Ele o lançou contra a parede de tijolos perto de onde estavam, depois o soltou. O homem caiu no chão e não se moveu.

O último homem havia sacado uma faca e o xingava entre dentes trincados. Croyd esperou até ele estar quase em cima, depois levitou 1,20m e o chutou no rosto. O homem caiu de costas na calçada. Croyd se colocou em posição acima dele e se soltou, pousando em sua barriga. Chutou a faca para o bueiro, se virou e caminhou com John.

– Você é um ás – disse o homem menor após um tempo.

– Nem sempre – retrucou Croyd. – Às vezes sou um curinga. Mudo sempre que durmo.

– Você não precisava ter sido tão duro com eles.

– Certo. Eu poderia ter sido muito mais duro. Se realmente vai ser assim, devíamos cuidar uns dos outros.

– É. Obrigado.

– Escute. Quero que você me mostre os lugares no Bowery onde diz que ninguém nos incomoda.

Posso precisar ir lá um dia.

– Claro. Farei isso.

– Croyd Crenson. C-r-e-n-s-o-n. Lembre-se, certo? Porque se você me vir novamente, eu estarei diferente.

– Vou me lembrar.

John o levou a várias espeluncas e apontou lugares onde alguns deles ficavam. Ele o apresentou a seis curingas que encontraram, todos terrivelmente deformados. Lembrando-se de sua fase lagarto, Croyd trocou apertos de apêndice com todos e perguntou se precisavam de algo. Mas eles balançaram as cabeças e ficaram olhando. Ele sabia que sua aparência não o favorecia.

– Boa noite – disse e saiu voando.

Seu medo de que os sobreviventes não infectados o estivessem observando, esperando para saltar sobre ele, aumentou enquanto voava ao longo do East River. Naquele exato instante alguém com um rifle e mira telescópica poderia estar fazendo pontaria.

Ele se moveu mais rápido. De certa forma, ele sabia que seu medo era ridículo. Mas era forte demais para que o deixasse de lado. Pousou na esquina, correu para a porta e entrou. Subiu as escadas correndo e se trancou no quarto.

Ficou olhando para a cama. Queria se esticar nela. Mas e se dormisse? Tudo estaria encerrado.

O mundo terminaria para ele. Ligou o rádio e começou a andar. Seria uma longa noite...

Quando Bentley ligou no dia seguinte e disse que tinha um serviço quente, mas que era um pouco arriscado, Croyd respondeu que não ligava. Ele teria de levar explosivos – significando que teria de aprender a usá-los antes do serviço – porque aquele cofre era resistente demais mesmo para sua força aumentada. Também havia a possibilidade de haver um guarda armado...

Ele não queria matar o guarda, mas o homem o assustou ao entrar de arma em punho daquela forma. E devia ter calculado errado o detonador, porque a coisa explodiu antes da hora, motivo pelo qual o pedaço de metal arrancou os dois primeiros dedos de sua mão esquerda. Mas ele havia enrolado a mão no lenço, pegado o dinheiro e saído.

Parecia se lembrar de Bentley dizendo: “Meu Deus, garoto! Vá para casa e durma!”, pouco depois de dividir o dinheiro. Então levitou e foi na direção certa, mas teve de descer e invadir uma padaria, onde comeu três pães antes de conseguir continuar, a cabeça girando. Havia mais comprimidos em seu bolso, mas achou que haviam dado um nó em seu estômago.

Deslizou a janela do quarto, que havia deixado destravada, e se arrastou para dentro.

Cambaleou até a porta do quarto de Carl e jogou o saco de dinheiro sobre sua forma adormecida.

Trêmulo, retornou ao quarto e trancou a porta. Ligou o rádio. Queria lavar a mão ferida no banheiro, mas ele parecia longe demais. Caiu na cama e não se levantou.

 

Estava caminhando pelo que parecia uma rua vazia no crepúsculo. Algo se mexeu atrás dele, que se virou e olhou. Pessoas saíam de umbrais, janelas, carros, bueiros, e todas olhavam para ele, se moviam na sua direção. Continuou em seu caminho, e houve algo como um suspiro coletivo às suas costas. Quando olhou novamente, todos estavam correndo na sua direção de forma ameaçadora, expressões de ódio nos rostos. Ele se virou para eles, agarrou o homem mais próximo e o estrangulou. Os outros pararam, recuaram. Esmagou a cabeça de outro homem. A multidão se virou, começou a fugir. Ele perseguiu...

 

                   O dia da gárgula

Croyd acordou em junho para descobrir que sua mãe estava em um sanatório, seu irmão se formara no ensino médio, sua irmã estava noiva e ele tinha o poder de modular sua voz de modo a rachar ou quebrar virtualmente qualquer coisa assim que determinasse a frequência certa por meio de uma espécie de resposta ressonante que carecia de vocabulário para explicar. Também estava alto, magro, de cabelos escuros, pele amarelada e seus dedos perdidos haviam crescido de novo.

Antecipando o dia em que estaria só, falou outra vez com Bentley para acertar um grande trabalho para esse período desperto rapidamente, antes que o cansaço o derrotasse. Havia resolvido não tomar os comprimidos novamente ao se lembrar do pesadelo que foram seus últimos dias da vez anterior.

Dessa vez prestou mais atenção no planejamento e fez perguntas melhores enquanto Bentley fumava um cigarro atrás do outro resolvendo uma série de detalhes. A perda dos pais e o iminente casamento da irmã o fizeram refletir sobre a transitoriedade das relações humanas, levando à conclusão de que Bentley talvez não estivesse sempre por perto.

Foi capaz de desligar o sistema de alarme e danificar a porta do cofre do banco o suficiente para entrar, embora não tivesse planejado estilhaçar todas as janelas em três quarteirões enquanto buscava a frequência certa. Ainda assim, conseguiu escapar com uma grande quantidade de dinheiro. Dessa vez alugou um cofre em um banco do outro lado da cidade, onde deixou o grosso da sua parte. Havia ficado um tanto incomodado com o fato de o irmão estar dirigindo um carro novo.

Alugou quartos em Village, Midtown, Morningside Heights, Upper East Side e Bowery, pagando um ano adiantado de aluguel. Levava as chaves em uma corrente no pescoço, juntamente com aquela do cofre no banco. Queria lugares que pudesse alcançar rapidamente, não importando onde estivesse quando o sono chegasse. Dois dos apartamentos eram mobiliados; os outros quatro foram dotados de cobertores e rádios. Estava com pressa, então podia cuidar dos confortos

depois. Havia acordado tendo noção de vários acontecimentos que se deram durante seu sono mais recente e só podia atribuir isso a uma compreensão inconsciente dos noticiários do rádio que deixou ligado da última vez. Decidiu manter a prática.

Ele demorou três dias para encontrar, alugar e equipar os novos retiros. Como o lugar em Bowery era o último, ele procurou John, se identificou e jantou com ele. As histórias que ouviu de uma gangue de espancadores de curingas o deprimiram, e quando a fome, o frio e a sonolência o assaltaram naquela noite, ele tomou um comprimido para permanecer acordado e patrulhar a área.

Apenas um ou dois não fariam diferença, decidiu.

Os agressores não apareceram naquela noite, mas Croyd estava deprimido com a possibilidade de acordar como um curinga da próxima vez. Então engoliu mais dois comprimidos no café da manhã para ajeitar as coisas e decidiu mobiliar os quartos locais no acesso de energia que se seguiu. Ao escurecer tomou mais três, para uma última noite na cidade, e a música que cantou enquanto caminhava pela 42nd Street, partindo janelas prédio após prédio, fez com que cachorros uivassem por vários quilômetros ao redor e acordou dois curingas e um ás equipado com audição UHF. Brannigan Ouvido de Morcego – que faleceu duas semanas depois sob uma estátua em queda arremessada por Vincenzi Músculos no dia em que foi abatido a tiros pela polícia de Nova York – o procurou para esmagá-lo na calçada em pagamento por sua dor de cabeça e acabou lhe pagando vários drinques e pedindo uma suave versão UHF de “Galway Bay”.

Na tarde seguinte, na Broadway, Croyd reagiu a um xingamento de um taxista fazendo o carro dele passar por uma série de vibrações até desmontar. Depois, enquanto estava animado, lançou a força sobre todos os outros que haviam se revelado inimigos tocando suas buzinas. Só quando o engarrafamento resultante o fez se lembrar daquele diante de sua escola no primeiro Dia da Carta Selvagem ele se virou e fugiu.

Acordou no início de agosto em seu apartamento de Morningside Heights, lentamente se lembrando de como havia chegado lá e prometendo a si mesmo não tomar comprimidos dessa vez.

Quando olhou os tumores em seu braço torcido, soube que não seria difícil manter a promessa.

Dessa vez queria voltar a dormir o mais rapidamente possível. Olhando pela janela, ficou grato por ser noite, já que era um longo caminho até Bowery.

Em uma quarta-feira de meados de setembro, ele despertou e se descobriu louro-escuro, altura, peso e constituição medianos e sem nenhuma marca visível de sua síndrome do carta selvagem.

Fez uma série de exames simples que a experiência ensinou serem capazes de revelar sua habilidade oculta. Nada na forma de um poder especial foi revelado.

Intrigado, vestiu as roupas mais adequadas que tinha à mão e saiu para o desjejum habitual.

Pegou vários jornais no caminho e os leu enquanto devorava prato após prato de ovos mexidos, waffles e panquecas. Havia sido uma manhã fria quando saíra para a rua. Ao deixar o restaurante eram quase dez horas da manhã e estava fresco.

Foi de metrô para o centro, onde entrou na primeira loja de roupas de aparência decente que encontrou e fez uma reforma completa. Comprou dois cachorros-quentes de um ambulante e os comeu enquanto caminhava até a estação do metrô.

Saltou na altura da First Avenue, caminhou até a delicatéssen mais próxima e comeu dois sanduíches de carne em conserva com panquecas de batata. Ele se perguntou se estaria protelando. Sabia que podia ficar sentado ali o dia inteiro comendo. Podia sentir o processo de digestão acontecendo como uma fornalha em seu ventre.

Ele se levantou, pagou e partiu. Caminharia o resto da distância. Quantos meses haviam se passado?, ele se perguntou, coçando a testa. Era hora de ver Carl e Claudia. Hora de ver como mamãe estava passando. Ver se alguém precisava de dinheiro.

Quando Croyd chegou à porta da frente da casa, parou, a chave na mão. Recolocou a chave no bolso e bateu. Momentos depois Carl abriu a porta.

– Sim? – perguntou.

– Sou eu. Croyd.

– Croyd! Jesus! Entre! Não o reconheci. Quanto tempo faz?

– Bastante.

Croyd entrou.

– Como está todo mundo? – perguntou.

– Mamãe está na mesma. Mas você sabe que nos disseram para não ter muitas esperanças.

– É. Precisa de dinheiro para ela?

– Não até mês que vem. Mas dois mil seriam úteis então.

Croyd passou um envelope para ele.

– Provavelmente eu só iria confundi-la se a visse estando tão diferente.

Carl balançou a cabeça.

– Ela ficaria confusa mesmo que você tivesse a mesma aparência, Croyd.

– Ah.

– Quer comer alguma coisa?

– Quero. Claro.

Seu irmão o levou à cozinha.

– Muito rosbife aqui. Dá um bom sanduíche.

– Ótimo. Como vão os negócios?

– Ah, estou me estabelecendo agora. Está melhor do que no começo.

– Bom. E Claudia?

– Bom que tenha aparecido agora. Ela não sabia para onde enviar o convite.

– Qual convite?

– Ela se casa no sábado.

– Aquele cara de Jersey?

– É. Sam. Aquele do qual estava noiva. Ele administra um negócio de família. Ganha um bom dinheiro.

– Onde será o casamento?

– Em Ridgewood. Você vai comigo. Eu vou de carro.

– Certo. De que tipo de presente gostariam?

– Eles fizeram uma lista. Você encontra.

– Bom.

 

Croyd saiu naquela tarde e comprou um televisor Dumont com tela de 16 polegadas, pagou em dinheiro e mandou que fosse entregue em Ridgewood. Depois visitou Bentley, mas recusou um serviço que soava arriscado por causa de sua aparente falta de talentos especiais dessa vez. Na verdade, era uma boa desculpa. Não queria realmente trabalhar, correr o risco de se ferrar –fisicamente ou com a lei – tão perto do casamento.

Jantou com Bentley em um restaurante italiano e depois ficaram várias horas bebendo uma garrafa de Chianti, falando de trabalho e pensando no futuro enquanto Bentley tentava lhe explicar o valor da solvência a longo prazo e de um dia se tornar respeitável – algo que ele mesmo nunca havia conseguido direito.

Depois disso, caminhou a maior parte da noite, para praticar estudando prédios em busca de pontos fracos, para pensar sobre sua família mudada. Em algum momento depois da meia-noite, quando passava por Central Park West, uma forte coceira começou em seu peito e se espalhou pelo corpo todo. Após um minuto ele teve de parar e se coçar violentamente. Alergias estavam entrando na moda na época e ele se perguntou se sua nova encarnação o dera uma sensibilidade a algo no parque.

Seguiu para oeste na primeira oportunidade e saiu da região o mais rápido possível. Após uns dez minutos a coceira diminuiu. Em meia hora, havia desaparecido completamente. Mas suas mãos e o rosto pareciam ásperos.

Por volta de quatro da manhã parou em um restaurante 24 horas perto da Times Square, onde comeu lenta e constantemente e leu um exemplar da revista Time que alguém deixou em um reservado. A seção médica tinha um artigo sobre suicídio entre curingas, o que o deprimiu consideravelmente. As citações que trazia o fizeram se lembrar de coisas que ouvira serem ditas por muitas pessoas que conhecia, levando-o a pensar se algumas delas estariam entre os entrevistados. Ele compreendia muito bem os sentimentos, embora não pudesse partilhá-los, sabendo que não importava o que tirasse, sempre receberia outra carta selvagem na vez seguinte – e que com maior frequência não era um ás.

Todas as suas articulações rangeram quando se levantou e ele sentiu uma dor penetrante entre as omoplatas. Seus pés também pareciam inchados.

Voltou para casa antes do amanhecer, se sentindo febril. No banheiro, encharcou uma toalha para colocar sobre a testa. Notou no espelho que o rosto parecia inchado. Ele se sentou na poltrona do quarto até ouvir Carl e Claudia se movimentando. Quando se levantou para tomar café com eles, seus membros pareciam de chumbo, e as articulações rangeram novamente enquanto descia a escada.

Claudia, magra e loura, o abraçou quando entrou na cozinha. Depois estudou seu novo rosto.

– Você parece cansado, Croyd – disse.

– Não diga isso – retrucou. – Não posso ficar cansado tão cedo. Faltam dois dias para seu casamento e vou chegar lá.

– Mas você pode descansar sem dormir, não pode?

Ele assentiu com a cabeça.

– Então relaxe. Sei que deve ser difícil... Venha, vamos comer.

Enquanto tomavam o café, Carl perguntou:

– Quer ir ao escritório comigo conhecer o espaço?

– Outra hora – respondeu Croyd. – Tenho umas coisas a fazer.

– Claro. Talvez amanhã.

– Talvez.

Carl saiu pouco depois disso. Claudia encheu novamente a xícara de Croyd.

– Nós quase não o vemos mais – disse ela.

– É. Bem, você sabe como é. Eu durmo; às vezes meses. Quando acordo, nem sempre estou bonito. Em outras vezes tenho de dar um jeito de pagar as contas.

– Apreciamos isso – disse ela. – É difícil entender. Você era o garotinho, mas agora parece um homem crescido. Você se comporta como um. Não teve direito a uma infância inteira.

Ele riu.

– E o que você é, uma senhora? Tem apenas 17 e vai se casar.

Ela riu de volta.

– Ele é um cara legal, Croyd. Sei que vamos ser felizes.

– Bom. Espero que sim. Escute, se um dia quiser me encontrar, vou dar a você o nome de um lugar onde pode deixar uma mensagem. Mas nem sempre posso ser rápido.

– Entendo. O que você faz, aliás?

– Fiz uma série de coisas diferentes. No momento estou indo de uma coisa para outra. Estou devagar dessa vez por causa do seu casamento. E como ele é?

– Ah, muito respeitável e correto. Estudou em Princeton. Foi capitão do Exército.

– Europa? Pacífico?

– Washington.

– Ah. Boas ligações.

Ela fez que sim com a cabeça.

– Família tradicional – acrescentou.

– Bem... Que bom – opinou ele. – Você sabe que quero que seja feliz.

Ela se levantou e o abraçou novamente.

– Senti sua falta – disse ela.

– Eu também.

– Agora tenho coisas a fazer. Vejo você mais tarde.

– Sim.

– Vá devagar hoje.

Quando ela saiu, ele esticou os braços ao máximo tentando aliviar a dor nos ombros. Sua camisa rasgou atrás quando fez isso. Ele se olhou no espelho do corredor. Seus ombros estavam mais largos hoje do que ontem. De fato, seu corpo inteiro parecia mais largo, forte. Ele retornou ao quarto e se despiu. A maior parte do tronco estava coberta por uma irritação vermelha. A simples visão dava vontade de coçar, mas ele se conteve. Em vez disso encheu a banheira e ficou afundado nela por um bom tempo. O nível da água diminuíra visivelmente no momento em que saiu. Quando se examinou no espelho do banheiro, parecia ainda maior. Será que ele teria absorvido parte da água através da pele? De qualquer forma a inflamação parecia ter desaparecido, embora sua pele ainda estivesse áspera nos pontos em que havia ficado inchada.

Vestiu roupas que sobraram de uma vez anterior em que fora maior. Depois saiu e foi de metrô até a loja de roupas que visitou no dia anterior. Lá ele se trocou completamente e retornou, sentindo-se ligeiramente nauseado enquanto o vagão balançava e sacudia. Notou que as mãos pareciam secas e ásperas. Quando as esfregou, cascas de pele morta caíram como caspa.

Ao sair do metrô, caminhou até chegar ao prédio dos Sarzanno. Mas a mulher que abriu a porta

não era Rose, mãe de Joe.

– O que quer? – perguntou.

– Estou procurando por Joe Sarzanno.

– Não há ninguém aqui com esse nome. Deve ser alguém que se mudou antes de virmos para cá.

– Então não sabe para onde eles foram?

– Não. Pergunte ao zelador. Talvez ele saiba.

Ela fechou a porta.

Ele tentou o apartamento do zelador, mas ninguém atendeu. Então foi para casa, se sentindo pesado e inchado. Na segunda vez que bocejou, sentiu um medo repentino. Parecia cedo demais para voltar a dormir. Aquela transformação era mais perturbadora que de hábito.

Ele colocou um bule de café novo no fogão e andou de um lado para o outro esperando que filtrasse. Embora não houvesse certeza de que acordaria com algum poder especial a cada ocasião, a única coisa que havia sido constante era a mudança. Ele pensou em todas as mudanças pelas quais passara desde que tinha sido infectado. Aquela era a única em que não parecia nem curinga nem ás, mas normal. Ainda assim...

Quando o café ficou pronto ele se sentou com uma xícara e se deu conta de que estivera coçando a coxa direita quase inconscientemente. Esfregou as mãos e mais pele seca descascou.

Pensou em seu diâmetro aumentado. Pensou em todas as pequenas dores e rangidos, na fadiga. Era óbvio que ele não era completamente normal dessa vez, mas não estava certo de o que exatamente seria aquela anormalidade. Será que o Dr. Tachyon poderia ajudá-lo? Ou pelo menos lhe dar alguma ideia do que estava acontecendo?

Ligou para o número que havia decorado. Uma mulher com voz alegre disse que Tachyon estava fora, mas voltaria naquela tarde. Ela anotou o nome de Croyd, pareceu reconhecê-lo e mandou que fosse lá às três horas.

Ele terminou a jarra de café; a coceira aumentou gradualmente por todo o corpo enquanto ficara sentado tomando a última xícara. Ele subiu e abriu a água da banheira novamente. Enquanto enchia, se despiu e examinou o corpo. Toda a pele tinha a aparência seca e escamada das mãos.

Onde quer que coçasse, havia uma pequena descamação.

Ficou um bom tempo mergulhado. O calor e a umidade eram bons. Depois de alguns instantes se recostou e fechou os olhos. Muito bom...

Ele se sentou com um sobressalto. Havia começado a cochilar. Quase adormeceu naquele momento. Pegou a toalha e começou a se esfregar vigorosamente, não apenas para retirar todo o detrito. Quando terminou, se enxugou rapidamente enquanto a banheira esvaziava e foi apressado para o quarto. Encontrou os comprimidos no fundo de uma gaveta de roupas e tomou dois.

Qualquer que fosse o jogo que seu corpo estava fazendo, o sono era seu inimigo naquele momento.

Retornou ao banheiro, limpou a banheira, se vestiu. Seria bom se esticar na cama por algum tempo. Descansar, como Claudia havia sugerido. Mas sabia que não podia.

Tachyon tirou uma amostra de sangue e a colocou em sua máquina. Na primeira tentativa a agulha só havia entrado um pouco e parado. A terceira agulha, empurrada com força considerável, penetrou uma camada subdérmica de resistência e o sangue foi retirado.

Enquanto esperava as descobertas da máquina, Tachyon fez um exame a olho nu.

– Seus incisivos estavam tão compridos quando você acordou? – perguntou, olhando dentro da boca de Croyd.

– Pareciam normais quando os escovei – respondeu Croyd. – Cresceram?

– Dê uma olhada.

Tachyon ergueu um pequeno espelho. Croyd olhou. Os dentes tinham 2,5 cm de comprimento e pareciam afiados.

– Essa é uma novidade – afirmou. – Não sei quando aconteceu.

Tachyon levantou o braço esquerdo de Croyd às costas em uma chave de braço gentil, depois enfiou os dedos abaixo da escápula que se projetava. Croyd deu um berro.

– Tão ruim assim? – perguntou Tachyon.

– Meu Deus! – falou Croyd. – O que é isso? Há algo quebrado aí atrás?

O médico balançou a cabeça. Examinou algumas das cascas de pele ao microscópio. Depois

estudou os pés de Croyd.

– Estavam tão grandes quando você acordou? – perguntou.

– Não. Que porra está acontecendo, doutor?

– Vamos esperar mais um minuto até minha máquina terminar com seu sangue. Você já esteve aqui três ou quatro vezes...

– Sim – disse Croyd.

– Felizmente você veio uma vez logo ao acordar. Em outra, apareceu umas seis horas após despertar. Na primeira ocasião tinha um nível alto de um hormônio muito particular que na época achei que poderia estar associado ao próprio processo de mudança. Na vez seguinte, seis horas após acordar, ainda tinha traços do hormônio, mas em um nível muito baixo. As únicas vezes em que foi evidente.

– E?

– O principal teste no qual estou interessado agora é conferir sua presença no sangue. Ah! Acredito que já temos alguma coisa.

Uma série de símbolos estranhos brilhou na tela da pequena unidade.

– Sim. De fato, sim – disse ele, estudando-os. – Você tem um alto nível da substância em seu sangue; ainda maior do que era pouco após despertar. Ahn. Você também tem tomado anfetaminas novamente.

– Precisei. Estava começando a ficar sonolento, e tenho de chegar até sábado. Diga em palavras simples o que esse maldito hormônio significa.

– Significa que o processo de mudança ainda está ocorrendo em você. Por alguma razão você acordou antes que ele se completasse. Ele parece ter um ciclo regular, mas dessa vez foi interrompido.

– Por quê?

Tachyon deu de ombros, um movimento que parecia ter aprendido desde a última vez em que Croyd o viu.

– Algum de uma constelação de possíveis acontecimentos bioquímicos deflagrados pela própria mudança. Acho que você provavelmente recebeu algum estímulo cerebral como efeito colateral de outra mudança que estava acontecendo no momento em que foi despertado. Qualquer que tenha sido essa mudança específica, ela foi concluída; mas o restante do processo não. Então, seu corpo agora está tentando fazer você dormir de novo até terminar seu trabalho.

– Em outras palavras, eu acordei cedo demais?

– Sim.

– O que devo fazer?

– Pare de tomar as drogas imediatamente. Durma. Deixe o processo seguir seu curso.

– Não posso. Tenho de ficar acordado mais dois dias; na verdade um dia e meio bastam.

– Suspeito que seu corpo irá lutar contra isso e, como já disse antes, ele parece saber o que está fazendo. Acho que você pode correr riscos ficando acordado muito mais tempo.

– Que tipo de risco? Quer dizer que isso pode me matar; ou apenas me deixará desconfortável?

– Croyd, simplesmente não sei. Seu quadro é único. Cada mudança segue um caminho diferente.

A única coisa em que podemos confiar é que algum ajuste seu corpo fez ao vírus, algo dentro de você faz com que passe em segurança por cada surto. Se tentar ficar acordado por meios

artificiais, é exatamente isso que estará combatendo.

– Eu já afastei o sono muitas vezes com anfetaminas.

– Sim, mas nessas vezes você estava apenas adiando o início do processo. Ele normalmente não começa até sua química cerebral registrar um estado de repouso. Mas agora ele já está em desenvolvimento e a presença do hormônio indica sua continuação. Não sei o que acontecerá.

Você pode transformar uma fase ás em uma fase curinga. Pode mergulhar em um coma realmente longo. Simplesmente não tenho como dizer.

Croyd pegou a camisa.

– Depois conto como foi – disse.

Croyd não estava tão disposto a caminhar como costumava fazer. Pegou o metrô novamente. Sua náusea voltou, e dessa vez trouxe com ela uma dor de cabeça. E seus ombros ainda doíam muito.

Foi à farmácia perto da estação do metrô e comprou um frasco de aspirinas.

Antes de ir para casa, parou no prédio onde os Sarzanno haviam morado. Dessa vez o zelador estava. Mas não pôde ajudar, pois a família de Joe não havia deixado endereço ao partir. Croyd deu uma espiada no espelho ao lado da porta do homem ao sair e ficou chocado com o inchaço em seus olhos, as olheiras profundas abaixo. Agora estavam começando a doer, notou.

Voltou para casa. Havia prometido levar Claudia e Carl para jantar em um bom restaurante e queria estar na melhor forma possível para a ocasião. Retornou ao banheiro e se despiu outra vez.

Estava enorme, com uma aparência inchada. Então se deu conta de que com todos os outros sintomas, se esquecera de dizer a Tachyon que não se aliviara em momento algum desde que acordou. Seu corpo devia estar encontrando alguma utilidade para tudo o que comeu ou bebeu.

Subiu na balança, mas ela só ia até 136 e ele estava acima disso. Tomou duas aspirinas e esperou que fizessem efeito logo. Coçou o braço e uma longa tira de carne se soltou, indolor e sem sangrar. Coçou mais levemente em outras áreas e a escamação continuava. Tomou uma chuveirada e escovou as presas. Penteou os cabelos e grandes mechas saíram. Parou de pentear. Por um momento quis chorar, mas foi distraído por um surto de bocejos. Foi ao seu quarto e tomou mais

duas anfetaminas. Depois, lembrou-se de ter ouvido em algum lugar que a massa corporal deve ser levada em conta no cálculo das doses de medicamentos. Então tomou mais uma, só por garantia.

Croyd encontrou um restaurante escuro e deu algum dinheiro ao garçom para que os colocasse em um reservado nos fundos, fora da vista da maioria dos outros fregueses.

– Croyd, você realmente está parecendo... indisposto – disse Claudia mais cedo, quando ele voltou.

– Eu sei – respondeu. – Fui ao médico esta tarde.

– O que ele disse?

– Que vou precisar de muito sono, logo depois do casamento.

– Croyd, se quiser faltar, eu entendo. Sua saúde em primeiro lugar.

– Não quero faltar. Ficarei bem.

Como podia dizer a ela quando ele mesmo não entendia completamente? Dizer que era mais do que o casamento de sua parente preferida – que a ocasião representava a dissolução final de seu lar e que era improvável que um dia tivesse outro? Dizer que aquilo era o fim de uma fase de sua existência e o começo de um grande desconhecido?

Em vez disso ele comeu. Seu apetite não diminuiu e a comida era particularmente boa. Carl assistiu com o fascínio de um voyeur, muito após ele ter terminado sua própria refeição, enquanto Croyd dava cabo de mais dois Chateaubriand para dois, parando apenas para pedir mais cestinhas de pão.

Quando enfim se levantaram, as articulações de Croyd estavam rangendo novamente.

Naquela noite ele se sentou na cama, sentindo dores. As aspirinas não estavam adiantando. Ele havia retirado suas roupas porque sentia todas apertadas novamente. Sempre que se coçava, a pele fazia mais do que escamar. Grandes pedaços dela caíam, mas eram secos e claros, sem sinal de sangue. Não espantava que parecesse pálido, decidiu. No fundo de uma abertura

particularmente grande no peito ele viu algo cinza e duro. Não conseguiu descobrir o que era, mas sua presença o assustou.

Finalmente, apesar da hora, telefonou para Bentley. Tinha de falar com alguém que soubesse de sua situação. E Bentley costumava dar bons conselhos.

Bentley atendeu após vários toques e Croyd contou sua história.

– Sabe o que eu penso, garoto? – disse Bentley enfim. – Você devia fazer o que o médico mandou. Dormir.

– Não posso. Ainda não. Só preciso de pouco mais que um dia. Depois ficará tudo bem.

Consigo ficar acordado até lá, mas está doendo demais, e minha aparência...

– Tá legal, tá legal. Olha o que vou fazer. Você aparece aqui lá pelas dez da manhã. Não posso fazer nada por você agora. Mas logo cedo vou falar com um homem que conheço e te arrumar um analgésico realmente forte. E quero dar uma olhada em você. Talvez haja algum meio de melhorar um pouco sua aparência.

– Certo. Obrigado, Bentley. Fico muito grato.

– Tudo bem. Eu entendo. Também não foi divertido ser um cachorro. Boa noite.

– Noite.

Duas horas depois, Croyd sentiu cólicas terríveis, seguidas por diarréia; sua bexiga também pareceu que iria explodir. Isso continuou a noite toda. Quando ele se pesou às três e meia, havia caído para 125 quilos. Às seis, pesava 109. Gorgolejava constantemente. A única vantagem, refletiu, era que isso desviava a atenção da coceira e das dores nos ombros e articulações. E também era suficiente para mantê-lo acordado sem anfetaminas adicionais.

Às oito horas ele pesava 98 quilos e se deu conta – quando Carl o chamou – de que finalmente havia perdido o apetite. Estranhamente, sua cintura não havia diminuído nada. A estrutura do corpo em geral estava inalterada desde o dia anterior, embora naquele momento estivesse pálido quase ao ponto do albinismo – e isso, somado aos dentes proeminentes, dava-lhe a aparência de um vampiro gordo.

Às nove horas ele ligou para Bentley, pois continuava gorgolejando e correndo para o banheiro.

Contou que estava com diarreia e não podia ir pegar o remédio. Bentley disse que ele mesmo levaria assim que o homem o entregasse. Carl e Claudia já haviam saído para cuidar de suas vidas. Croyd os evitou naquela manhã, alegando não estar bem do estômago. Pesava 89.

Eram quase 11 horas quando Bentley apareceu. A essa altura Croyd havia perdido mais nove quilos e arrancado um grande pedaço de pele do abdômen inferior. A área de tecido exposto abaixo era cinzenta e escamosa.

– Meu Deus! – disse Bentley quando o viu.

– É.

– Você está careca em grandes áreas.

– Certo.

– Vou conseguir uma peruca. Também vou falar com uma mulher que conheço. Ela é esteticista.

Vamos arranjar algum creme para passar. Dar a você uma cor normal. Acho que também seria melhor usar óculos escuros quando for ao casamento. Diga a eles que está com conjuntivite. Você também está ficando corcunda. Quando isso aconteceu?

– Sequer percebi. Eu estive... Ocupado.

Bentley deu um tapinha no calombo entre os ombros dele e Croyd berrou.

– Desculpe. Talvez fosse melhor você tomar um comprimido imediatamente.

– É.

– Você também vai precisar de um grande sobretudo. Qual o seu tamanho?

– Não sei... Agora.

– Tudo bem. Conheço alguém que tem um armazém cheio. Vou mandar uma dúzia.

– Tenho de correr, Bentley. Estou gorgolejando novamente.

– É. Tome seu remédio e tente descansar.

Às duas horas Croyd pesava 70 quilos. O analgésico funcionara e ele estava sem dores pela primeira vez em muito tempo. Infelizmente, isso também o deixou sonolento, e ele teve de tomar anfetaminas mais uma vez. Em compensação, essa combinação lhe deu a primeira sensação boa desde que tudo havia começado, mesmo sabendo que era falsa.

Quando o carregamento de casacos foi entregue às três e meia, ele havia caído para 61 quilos e se sentia muito leve. Em algum lugar no fundo do corpo seu sangue parecia estar cantando.

Encontrou um casaco que se ajustava perfeitamente e o levou para o quarto, deixando os outros no sofá. A esteticista – uma loura alta cheia de laquê e que mascava chicletes – apareceu às quatro horas. Arrancou a maior parte do seu cabelo com um pente, raspou o restante e ajustou uma peruca. Depois maquiou o rosto, orientando-o sobre o uso dos cosméticos enquanto o fazia.

Também recomendou que mantivesse a boca fechada o máximo possível para esconder as presas.

Ele ficou contente com o resultado e lhe deu cem dólares. Ela então observou que havia outros serviços que poderia prestar, mas ele estava novamente gorgolejando e lhe desejou boa-tarde.

Às seis horas suas entranhas começaram a se acalmar. Ele fora reduzido a 52 e ainda se sentia muito bem. A coceira também finalmente havia parado, embora ele tivesse arrancado mais pele de tórax, antebraços e coxas.

Quando Carl chegou, gritou para o andar de cima.

– Que porra todos esses casacos estão fazendo aqui?

– É uma longa história – respondeu Croyd. – Pode ficar com eles se quiser.

– Ei, são de casimira!

– É.

– Este é do meu tamanho.

– Então fique com ele.

– Como está se sentindo?

– Melhor, obrigado.

Naquela noite ele sentiu sua força retornar e deu uma de suas longas caminhadas. Levantou bem alto a parte dianteira de um carro estacionado para testar. Sim, parecia estar se recuperando. Com os cabelos e a maquiagem, tinha a aparência de um gordo comum, desde que ficasse de boca fechada. Se tivesse um pouco mais de tempo teria procurado um dentista para fazer algo em relação às presas. Não comeu nada naquela noite ou de manhã. Sentia uma pressão peculiar nas laterais da cabeça, mas tomou outro comprimido e isso não se transformou em dor.

Antes que ele e Carl partissem para Ridgewood, Croyd se permitira outro banho de imersão.

Mais pele caíra, mas estava tudo bem. As roupas cobririam seu corpo de retalhos. Pelo menos o rosto havia permanecido intacto. Fez a maquiagem cuidadosamente e ajustou a peruca. Quando estava totalmente vestido e havia colocado óculos de sol, achou que parecia apresentável. E o sobretudo minimizava um pouco o calombo nas costas.

A manhã estava fresca e nublada. O problema intestinal parecia ter terminado. Tomou outro comprimido como profilaxia, sem saber se realmente havia mais alguma dor a ser escondida. Isso tornou necessário outra anfetamina. Mas tudo bem. Ele se sentia bem, embora um tanto nervoso.

Enquanto passavam pelo túnel, ele se viu esfregando as mãos. Para seu desalento, um grande pedaço de pele se soltou nas costas da mão esquerda. Mas mesmo isso não era problema. Ele se lembrou de levar luvas.

Não sabia se era a pressão no túnel, mas sua cabeça estava começando a latejar novamente.

Não era uma sensação dolorosa, meramente uma pressão pesada nos ouvidos e nas têmporas. O alto das costas também latejava e havia um movimento dentro. Ele mordeu o lábio e um pedaço dele se soltou. Ele xingou.

– Qual o problema? – perguntou o irmão.

– Nada.

Pelo menos não estava sangrando.

– Se você está doente, posso levá-lo de volta. Odeio que esteja indo doente ao casamento.

Especialmente com um bando pomposo como a turma de Sam.

– Ficarei bem.

Ele se sentia leve. Sentia a pressão em muitos pontos dentro do corpo. A sensação de força da droga se sobrepunha à sua verdadeira força. Tudo parecia correr perfeitamente. Ele cantarolou uma canção e tamborilou sobre o joelho.

– ... casacos devem valer bastante – Carl estava dizendo. – São todos novos.

– Venda em algum lugar e fique com o dinheiro – ele se ouviu dizer.

– São roubados?

– Provavelmente.

– Você está no crime, Croyd?

– Não, mas conheço pessoas.

– Vou ficar quieto.

– Ótimo.

– Mas você está bem no papel, sabe? Com esse casaco preto e os óculos.

Croyd não respondeu. Estava escutando seu corpo, que lhe dizia que algo se soltava em suas costas. Esfregou os ombros no encosto do banco. Isso fez com que se sentisse melhor.

Quando foi apresentado aos pais de Sam, William e Marcia Kendall – um homem grisalho de aparência rude, um pouco mais para o gordo, e uma loura conservada –, Croyd se lembrou de sorrir sem abrir a boca e fazer seus poucos comentários quase sem mover os lábios. Pareceram estudá-lo cuidadosamente, e ele teve certeza de que tinham mais a dizer, só que outros esperavam para ser cumprimentados.

– Quero conversar com você na recepção – foram as últimas palavras de William.

Croyd suspirou enquanto se afastava. Havia passado. Não tinha intenção alguma de ir à recepção. Estaria em um táxi voltando para Manhattan assim que a cerimônia religiosa terminasse, estaria dormindo em questão de horas. Sam e Claudia provavelmente estariam nas Bahamas antes que ele acordasse.

Viu seu primo Michael, de Newark, e quase o abordou. Ao inferno com isso. Teria de explicar sua aparência e não valia a pena. Entrou na igreja e foi levado a um banco na frente, à direita.

Carl conduziria Claudia. Pelo menos havia acordado tarde demais para ser escolhido como escudeiro. Era preciso reconhecer que tinha timing.

Enquanto esperava o início da cerimônia, começou a observar a decoração do altar, os vitrais dos dois lados, os arranjos de flores. Outras pessoas entraram e foram acomodadas. Ele se deu conta de que suava. Olhou ao redor. Era o único vestindo sobretudo. Pensou se os outros achariam aquilo estranho. Pensou se a transpiração estava fazendo a maquiagem escorrer.

Desabotoou o casaco e o deixou aberto.

O suor continuou e seus pés começaram a doer. Finalmente ele se inclinou para a frente e afrouxou os cadarços. Ao fazer isso ouviu a camisa se rasgar nas costas. Algo parecia ter se soltado ainda mais ao redor dos ombros. Outro pedaço de pele, imaginou. Quando se ajeitou sentiu uma dor penetrante. Não conseguiu se recostar novamente no banco. Seu calombo parecia ter aumentado e qualquer pressão era dolorosa. Então assumiu uma posição projetada para a frente, levemente curvado, como se rezasse. O organista começou a tocar. Mais pessoas entraram e foram acomodadas. Um acompanhante passou com um casal idoso por sua fila e lhe lançou um estranho olhar no caminho.

Logo todos estavam sentados e Croyd continuava a suar. Escorria pelo lado do corpo e pelas pernas, era absorvido pelas roupas, que ficaram marcadas e depois encharcadas. Decidiu que poderia ficar mais fresco se tirasse os braços das mangas do casaco e o deixasse apenas pendurado nos ombros. Isso foi um erro, pois enquanto se esforçava para soltar os braços ouviu os trajes se rasgando em vários outros pontos. Seu sapato esquerdo se rasgou de repente e dedos cinzentos se projetaram pelas laterais. Algumas pessoas olharam na sua direção quando ocorreram esses sons. Ele ficou grato por ser incapaz de corar.

Não sabia se foi o calor ou algo psicológico que deflagrou a coceira novamente. Não que importasse. Era coceira de verdade, independentemente do que havia causado. Ele tinha analgésicos e anfetaminas no bolso, mas nada para irritação de pele. Cruzou as mãos com força, não para rezar, mas para se impedir de coçar – embora também tenha feito uma prece, já que as circunstâncias pareciam apropriadas. Não adiantou.

Viu o padre entrar, por entre cílios cobertos de transpiração. Ficou se perguntando por que o homem olhava tanto para ele. Era como se não aprovasse não episcopais suando em sua igreja.

Croyd trincou os dentes. Se pelo menos tivesse o poder de ficar invisível, pensou. Desapareceria por alguns minutos, se coçaria loucamente, depois reapareceria e se sentaria quieto.

Com grande força de vontade ele conseguiu se manter quieto durante a “Marcha” de Mendelssohn. Não conseguiu se concentrar no que o padre dizia depois disso, mas agora tinha certeza de que não conseguiria permanecer sentado durante a cerimônia inteira. Ele se perguntou o que aconteceria caso saísse imediatamente. Claudia ficaria constrangida? Por outro lado, tinha certeza de que se permanecesse ela ficaria. Ele devia estar parecendo doente o bastante para justificar. Ainda assim, seria um daqueles incidentes sobre os quais as pessoas passavam anos falando? (“O irmão dela saiu...”) Talvez pudesse ficar um pouco mais.

Houve movimento em suas costas. Ele sentiu o casaco se esticar. Ouviu engasgos femininos atrás de si. Estava com medo de se mover, mas...

A coceira se tornou insuportável. Ele descruzou as mãos para coçar, mas em um gesto final de resistência agarrou o encosto do banco à sua frente. Para seu horror, houve um barulho alto de estalo quando a madeira se partiu sob seu aperto.

Seguiu-se um longo momento de silêncio.

O padre estava olhando para ele. Claudia e Sam haviam se virado para olhar para ele, que estava sentado agarrando um pedaço de encosto de banco de um metro e oitenta e sabendo que não podia sequer sorrir, ou suas presas apareceriam.

Ele soltou a madeira e se agarrou com os dois braços. Houve exclamações atrás quando seu casaco escorregou. Ele enfiou os dedos nas laterais do corpo com toda a força e se coçou.

Ouviu as roupas se rasgando e sentiu a pele partir até o alto da cabeça. Viu a peruca cair à sua direita. Jogou as roupas fora e coçou novamente, com força. Ouviu um grito atrás e soube que nunca se esqueceria da expressão no rosto de Claudia quando começava a chorar, mas não podia mais parar. Não até que suas grandes asas de morcego se abrissem, as plumas altas e pontudas de suas orelhas se libertassem e os últimos restos de roupa e carne fossem removidos de seu corpo

escuro e escamoso.

O padre recomeçou a falar, algo que soava como um exorcismo. Houve guinchos e barulho de passos rápidos. Sabia que não podia sair pela porta para onde todos se encaminhavam, então saltou no ar, circulou várias vezes para ter algum domínio dos novos membros, depois cobriu os olhos com o antebraço esquerdo e atravessou o vitral à sua direita.

Enquanto batia asas de volta a Manhattan, sentiu que se passaria um longo tempo antes que voltasse a ver os parentes. Esperava que Carl não se casasse tão cedo. Então se perguntou se um dia encontraria a garota certa...

Subiu, aproveitando uma corrente de ar ascendente, a brisa uivando ao seu redor. A igreja pareceu um formigueiro agitado quando olhou novamente. Ele saiu voando.

 

                                       Testemunha

                                       Walter Jon Williams

 

Quando Jetboy morreu, eu assistia a uma matinê de Sonhos dourados. Queria ver a atuação de Larry Parks, que todos diziam ser memorável. Eu a estudei cuidadosamente e fiz anotações mentais.

Jovens atores fazem coisas assim.

O filme terminou, mas eu estava me sentindo bem, não tinha planos para as horas seguintes e queria ver Larry Parks novamente. Assisti ao filme uma segunda vez. Dormi na metade, e ao acordar os créditos estavam rolando. Eu estava sozinho no cinema.

Quando fui para o saguão os lanterninhas haviam sumido e as portas estavam trancadas. Tinham saído correndo e esquecido de avisar o projecionista. Escapei para uma brilhante e agradável tarde de outono e vi que a Second Avenue estava vazia.

A Second Avenue nunca está vazia.

As bancas de jornal estavam fechadas. Os poucos carros que via estavam estacionados. O letreiro do cinema havia sido desligado. Podia ouvir buzinas de carro raivosas a distância e, acima delas, o ronco de motores potentes de aviões. Havia um cheiro ruim vindo de algum lugar.

Nova York tinha o clima misterioso que as cidades às vezes ganham durante um ataque aéreo, deserta, apreensiva e nervosa. Havia estado em ataques aéreos durante a guerra, normalmente do lado atacado, e não gostava nada do clima. Comecei a caminhar na direção de meu apartamento, a um quarteirão e meio dali.

Nos primeiros trinta metros vi o que estava produzindo o cheiro ruim. Vinha de uma poça rosa-avermelhada que parecia com muitos litros de sorvete de cor esquisita derretendo na calçada e escorrendo para o esgoto.

Olhei mais de perto. Havia alguns ossos dentro da poça. Um maxilar humano, parte de uma tíbia, uma órbita. Estavam se dissolvendo em uma espuma rosa-claro.

Havia roupas sob a poça. Um uniforme de lanterninha. Sua lanterna rolara para o bueiro e as partes metálicas estavam se dissolvendo junto com os ossos.

Meu estômago se revirou quando a adrenalina entrou no sistema. Comecei a correr.

Chegando ao meu apartamento percebi que devia haver alguma espécie de emergência e liguei o rádio para conseguir informações. Enquanto esperava o Philco esquentar, fui conferir a comida enlatada no armário – duas latas de Campbell’s foi tudo o que encontrei. Minhas mãos tremiam tanto que derrubei uma das latas atrás do armário e ela rolou de lado para trás da caixa de gelo.

Empurrei a lateral da caixa de gelo para pegar a lata e de repente foi como se a luz mudasse, e a caixa de gelo voou por metade do aposento e quase saiu através da parede. A panela que coloquei embaixo para conter o gelo derretido caiu no chão.

Peguei a lata de sopa. Minhas mãos ainda tremiam. Recoloquei a caixa de gelo no lugar e era leve como uma pena. A luz continuava a mudar de forma esquisita. Consegui erguer a caixa com uma das mãos.

O rádio finalmente esquentou e soube do vírus. Pessoas que se sentissem doentes deviam ir aos hospitais de campanha de emergência montados pela Guarda Nacional por toda a cidade. Havia um em Washington Square Park, perto de onde eu morava.

Não me sentia doente, mas por outro lado podia fazer malabarismo com a caixa de gelo, o que não era exatamente um comportamento normal. Caminhei até Washington Square Park. Havia baixas por todo lado – alguns simplesmente caídos na rua. Não consegui olhar para muitos deles.

Era pior do que qualquer coisa que vira na guerra. Sabia que, como estava saudável e me movimentava, os médicos me colocariam no fim da lista de tratamento e se passariam dias antes que conseguisse ajuda, então caminhei até um encarregado, disse que havia sido do exército e perguntei o que podia fazer para ajudar. Imaginei que se começasse a morrer pelo menos estaria perto do hospital.

Os médicos me pediram para ajudar a instalar uma cozinha. Pessoas gritavam, morriam e mudavam diante dos olhos dos médicos, que não podiam fazer nada a respeito. Alimentar as vítimas era tudo em que conseguiam pensar.

Fui até um caminhão de duas toneladas e meia da Guarda Nacional e comecei a pegar caixas de comida. Cada uma pesava uns 20 quilos e empilhei seis, uma em cima da outra, e as tirei do caminhão com um braço só. Minha percepção da luz continuava a mudar de forma estranha.

Esvaziei o caminhão em cerca de dois minutos. Outro caminhão havia ficado atolado na lama ao tentar cruzar o parque, então o peguei e levei-o para onde deveria estar, depois descarreguei e perguntei aos médicos se precisavam de mim para mais alguma coisa.

Havia um brilho estranho ao redor de mim. As pessoas me disseram que quando fiz uma das proezas eu brilhei, que uma aura dourada brilhante cercou meu corpo. Olhar para o mundo através de minha própria radiância fazia com que a luz parecesse mudar.

Não pensei muito nisso. O cenário ao meu redor era esmagador e continuou assim durante dias.

As pessoas tiravam a rainha negra ou o curinga, se tornando monstros, morrendo, se transformando. A lei marcial havia sido instaurada na cidade – era como na época da guerra.

Depois dos primeiros tumultos nas pontes não houve mais distúrbios. A cidade viveu com blecautes, toques de recolher e patrulhas durante quatro anos e as pessoas simplesmente retomaram os hábitos da guerra. Os boatos eram ensandecidos – um ataque marciano, liberação acidental de gás venenoso, bactérias espalhadas por nazistas ou por Stalin. Para completar, milhares de pessoas juravam ter visto o fantasma de Jetboy voando, sem seu avião, sobre as ruas de Manhattan. Continuei a trabalhar no hospital, transportando cargas pesadas. Foi onde conheci Tachyon.

Ele apareceu para entregar um soro experimental que esperava que pudesse aliviar alguns sintomas e de início eu pensei, Ah, Cristo, uma bicha conseguiu passar pelos guardas com uma poção dada pela sua tia Nelly. Era um cara magrelo com um longo cabelo vermelho metálico abaixo dos ombros, e eu sabia que não podia ser cor natural. Ele se vestia como se tivesse conseguido suas roupas no Exército da Salvação no bairro dos teatros, um paletó laranja brilhante, como usaria um líder de banda, suéter carmesim, chapéu de Robin Hood com uma pena, calções com meias com estampa de losangos e sapatos bicolores, que pareceriam inadequados até em um cafetão. Estava indo de leito em leito com uma bandeja cheia de seringas, observando cada paciente e enfiando as agulhas nos braços das pessoas. Pousei a máquina de raios X que carregava e corri para detê-lo antes que pudesse causar algum mal.

Então percebi que entre as pessoas que o seguiam havia um general de três estrelas, o coronel aviador da Guarda Nacional que dirigia o hospital e o Sr. Archibald Holmes, que era um da velha turma de Franklin D. Roosevelt na Agricultura e que reconheci imediatamente. Ele fora responsável por um grande órgão de ajuda na Europa depois da guerra, mas Truman o mandara para Nova York assim que a peste atacou. Eu me coloquei atrás de uma das enfermeiras e perguntei o que estava acontecendo.

– É um novo tipo de tratamento – disse ela. – Aquele Dr. Tach alguma coisa trouxe.

– O tratamento é dele? – perguntei.

– É – disse, franzindo o cenho para mim. – Ele é de outro planeta.

Olhei para os calções e o chapéu de Robin Hood.

– Tá brincando.

– Não. Sério. Ele é.

De perto era possível ver olheiras sob seus estranhos olhos roxos, o cansaço que transparecia em seu rosto. Ele estava se esforçando demais desde a catástrofe, como todos os médicos ali – todos exceto eu. Eu me sentia cheio de energia apesar de só ter algumas poucas horas de sono por noite.

O coronel aviador da Guarda Nacional olhou para mim.

– Eis outro caso. Este é Jack Braun.

Tachyon olhou para mim.

– Seus sintomas? – perguntou. Tinha uma voz grave, um sotaque discreto da Europa Central.

– Sou forte. Consigo levantar caminhões. Um brilho dourado me cerca quando faço isso.

Ele pareceu empolgado.

– Um campo de força biológico. Interessante. Gostaria de examiná-lo mais tarde. Depois que a presente crise passar – disse, uma expressão de desgosto passando por seu rosto.

– Claro, doutor. Quando quiser.

Ele caminhou para o leito seguinte. O Sr. Holmes, o homem da ajuda, não o seguiu. Ficou e me observou, brincando com a piteira.

Enfiei os polegares no cinto e tentei parecer útil.

– Posso ajudar em alguma coisa, Sr. Holmes? – perguntei.

Ele pareceu levemente surpreso.

– Sabe meu nome?

– Eu me lembro do senhor indo a Fayette, Dakota do Norte, em 1933 – respondi. – Pouco depois do New Deal. Estava na Agricultura na época.

– Há muito tempo. O que está fazendo em Nova York, Sr. Braun?

– Eu era ator até os teatros serem fechados.

– Ah – respondeu, assentindo com a cabeça. – Logo teremos os teatros funcionando novamente.

O Dr. Tachyon diz que o vírus não é contagioso.

– Isso vai acalmar algumas mentes.

Ele olhou para a entrada da barraca.

– Vamos sair e fumar.

– Tudo bem para mim.

Depois de segui-lo, limpei as mãos e aceitei um cigarro feito por encomenda de sua cigarreira de prata. Ele acendeu nossos cigarros e olhou para mim por cima do fósforo.

– Quando a emergência tiver terminado, gostaria de fazer mais alguns testes com você – disse. – Apenas descobrir o que pode fazer.

Dei de ombros.

– Claro, Sr. Holmes. Alguma razão em especial?

– Talvez possa lhe arranjar um emprego. No palco mundial – respondeu.

Algo passou entre mim e o sol. Ergui os olhos e um dedo frio tocou meu pescoço.

O fantasma de Jetboy estava voando negro contra o céu, seu cachecol branco de piloto adejando ao vento.

Cresci em Dakota do Norte. Nasci em 1924, em tempos difíceis. Havia problemas com os bancos, problemas com o excesso de produção das fazendas que mantinham os preços baixos. Quando veio a Depressão, as coisas foram de mal a pior. Os preços dos grãos eram tão baixos que alguns fazendeiros literalmente tiveram de pagar as pessoas para levar a coisa embora. Havia leilões de fazendas quase toda semana no tribunal – fazendas que valiam 50 mil dólares eram vendidas por algumas centenas. Metade da Main Street estava fechada.

Aqueles eram os dias da Farm Holidays, fazendeiros segurando grãos para forçar aumento de preços. Eu me levantava no meio da noite para levar café e comida para meu pai e meus primos, que patrulhavam as estradas de modo a garantir que ninguém roubasse seus grãos. Se alguém aparecia com grãos, eles tomavam o caminhão e esvaziavam; se vinha um caminhão de gado, atiravam no gado e jogavam no acostamento para apodrecer. Alguns dos figurões que estavam ganhando uma fortuna comprando trigo abaixo do preço enviaram a Legião Americana para acabar com a paralisação nas fazendas, carregando cabos de machado e usando seus pequenos chapéus – e todo o distrito se levantou, deu aos legionários a maior surra de suas vidas e os mandou correndo de volta para a cidade.

De repente um bando de fazendeiros alemães conservadores estava falando e agindo como radicais. Roosevelt foi o primeiro democrata em que minha família votou.

Eu tinha 11 anos de idade quando vi Archibald Holmes pela primeira vez. Ele estava trabalhando como mediador para o Sr. Henry Wallace, do Departamento de Agricultura, e foi a Fayette conversar com os fazendeiros sobre alguma coisa – controle de preços ou de produção, provavelmente, ou conservação, a agenda do New Deal que deixou nossa fazenda fora do leilão.

Fez um pequeno discurso nos degraus da prefeitura ao chegar e por alguma razão eu não o esqueci.

Era um homem impressionante mesmo então. Bem-vestido, grisalho embora ainda não tivesse 40 anos, fumava cigarros com piteira, como Roosevelt. Tinha um jeito de falar do Sul que soava estranho ao meu ouvido, como se houvesse algo ligeiramente vulgar no modo como pronunciava o R. Pouco depois de sua visita as coisas começaram a melhorar.

Anos mais tarde, depois que o conheci bem, ele sempre foi o Sr. Holmes. Nunca consegui chamá-lo pelo prenome.

Talvez possa identificar a origem de meu desejo de viajar à visita do Sr. Holmes. Senti que tinha de haver algo fora de Fayette, algo fora do modo de Dakota do Norte de ver as coisas. Do modo como minha família via as coisas, eu teria minha própria fazenda, casaria com uma garota da região, produziria muitas crianças e passaria os domingos escutando o pastor falar sobre o inferno e os dias de semana trabalhando nos campos para o bem do banco.

Eu me indignava com a ideia de que isso era tudo o que havia. Sabia, talvez apenas por instinto, que havia outro tipo de existência lá fora e queria minha parcela disso.

Eu me tornei alto, de ombros largos e louro, com mãos grandes que ficavam confortáveis ao redor de uma bola, o que meu agente de publicidade depois chamou de “boa aparência rústica”.

Joguei futebol, e bem, cochilei durante a escola, e durante os longos invernos escuros atuei em teatros comunitários e espetáculos. Havia um belo circuito de teatro amador em inglês e alemão e eu fazia ambos. Interpretava principalmente melodramas vitorianos e espetáculos históricos e também recebi boas críticas.

As garotas gostavam de mim. Eu tinha boa aparência, era um cara comum e todas achavam que seria apenas o fazendeiro delas. Tomei cuidado de nunca ter ninguém especial. Levava camisinhas no bolso e tentava manter pelo menos três ou quatro garotas no ar ao mesmo tempo.

Não cairia na armadilha que meus velhos pareciam ter planejado para mim.

Todos crescemos patriotas. Era uma coisa natural naquela parte do mundo: há um forte amor ao país que vem com climas cruéis. Não havia nada sobre o que falar muito, o patriotismo simplesmente estava lá, parte de tudo o mais.

O time de futebol local se saiu bem e comecei a identificar um modo de sair de Dakota do Norte. No final de minha temporada na escola recebi uma oferta de bolsa na Universidade de Minnesota.

Nunca fui. Em vez disso, no dia seguinte à formatura, em maio de 1942, marchei para o recrutamento e me ofereci para a Infantaria.

Nada de mais. Todos os garotos de minha turma marcharam comigo.

Terminei na 5ª Divisão na Itália e tive uma guerra medonha na Infantaria. Chovia o tempo todo, nunca havia abrigo adequado e cada movimento nosso era acompanhado por alemães invisíveis

sentados na colina seguinte com binóculos Zeiss colados nos olhos, ao que inevitavelmente se seguia aquele horrendo som zumbido de um 88 caindo... Senti medo o tempo todo e parte do tempo fui um herói, mas a maior parte do tempo estava me escondendo com a boca na terra enquanto os obuses caíam assoviando, e, após alguns meses daquilo, sabia que não voltaria inteiro, e havia chances de que não voltasse de modo algum. Não existiam turnos, como no Vietnã; um fuzileiro simplesmente ficava na linha até a guerra terminar, até morrer ou até estar tão aterrorizado que não podia retornar. Aceitei esses fatos e continuei com o que tinha de fazer. Fui promovido a suboficial e acabei ganhando uma Estrela de Bronze e três Corações Púrpuras, mas medalhas e promoções nunca significaram tanto para mim quanto de onde viria o próximo par de meias secas.

Um de meus camaradas era um homem chamado Martin Kozokowski, cujo pai era um pequeno produtor teatral em Nova York. Certa noite, dividíamos uma garrafa de um vinho tinto medonho e um cigarro – fumar foi outra coisa que o exército me ensinou – e mencionei minha carreira de ator em Dakota do Norte e, em um surto de boa vontade embriagada, ele disse:

– Que inferno, venha para Nova York depois da guerra e eu e meu pai o colocaremos no palco.

Era uma fantasia sem sentido, já que àquela altura nenhum de nós sabia realmente se voltaria, mas pegou, falamos sobre isso mais tarde e, pouco a pouco, como acontece com alguns sonhos, isso se tornou realidade.

Depois do dia da vitória na Europa, fui para Nova York e o velho Kozokowski me conseguiu alguns papéis enquanto eu trabalhava em vários empregos de meio expediente, todos fáceis quando comparados ao trabalho de fazenda e à guerra. O teatro era cheio de garotas intelectuais e intensas que não usavam batom – não usar batom era considerado uma espécie de ousadia – e que o levavam para casa com elas se você as ouvisse falar sobre Anouilh, Pirandello ou sua psicanálise, e a melhor coisa nelas é que não queriam se casar e produzir pequenos fazendeiros.

Os reflexos do tempo de paz começaram a retornar. Dakota do Norte começou a se apagar e depois de um tempo comecei a pensar se afinal a guerra não tinha seus consolos.

Uma ilusão, claro, porque certas noites ainda acordo com os 88 assoviando em meus ouvidos, o terror se contorcendo em minhas entranhas, o velho ferimento em minha panturrilha latejando e me lembro de como deitava de costas em um buraco de morteiro com lama até o pescoço, esperando que a morfina fizesse efeito enquanto olhava para o céu para ver um grupo de Thunderbolts prateados com o sol refletindo em suas asas grossas, os aviões saltando as montanhas mais

facilmente do que eu conseguia saltar de um jipe. E me lembro de como era ficar deitado ali, furioso de inveja, porque os pilotos de caça estavam em seu céu sereno enquanto eu sangrava em meu curativo de campanha e esperava morfina e plasma, e pensava que se um dia apanhasse um daqueles desgraçados em terra faria com que pagasse por aquilo...

Quando o Sr. Holmes começou os testes, provou exatamente o quanto eu era forte, que era mais forte do que qualquer um já tinha visto, ou mesmo imaginado. Se eu me preparasse suficientemente bem, podia levantar até quarenta toneladas. Balas de metralhadoras amassavam contra meu peito. Projéteis de canhão de 20 mm, capazes de perfurar blindagem, me derrubavam pela transferência de energia, mas eu me levantava novamente sem ferimentos.

Eles tiveram medo de usar algo maior que um 20 mm nos testes. Eu também. Se fosse atingido por um canhão de verdade, em vez de apenas por uma metralhadora grande, provavelmente viraria mingau.

Tinha meus limites. Após algumas horas disso, começava a ficar cansado. Enfraquecia. Balas começavam a doer. Tinha de parar e descansar.

Tachyon imaginara bem ao falar de um campo de força biológico. Quando eu estava em ação ele me cercava como um halo dourado. Eu não exatamente controlava isso – se alguém disparasse uma bala nas minhas costas de surpresa, o campo de força se ligava sozinho. Quando começava a ficar cansado, o brilho ia diminuindo.

Nunca fiquei suficientemente cansado para ele sumir por completo, não quando o queria ligado.

Tinha medo do que poderia acontecer e sempre tomava o cuidado de descansar se precisasse.

Quando o resultado dos testes chegou, o Sr. Holmes me chamou ao seu apartamento em Park Avenue South. Era um lugar grande, o quinto andar inteiro, mas muitos dos aposentos tinham aquele cheiro de falta de uso. Sua esposa havia morrido de câncer de pâncreas em 1940 e desde então ele desistiu de quase toda a vida social. A filha estava na escola.

O Sr. Holmes me deu um drinque e um cigarro e perguntou o que eu achava do fascismo e o que podia fazer em relação a isso. Lembrei-me de todos aqueles oficiais da SS e arrogantes paraquedistas da Luftwaffe, a Força Aérea alemã, e pensei no que poderia fazer em relação a eles agora que era a coisa mais forte do planeta.

– Imagino que agora daria um belo soldado – respondi.

Ele me lançou um sorriso fino.

– Você gostaria de ser um soldado novamente, Sr. Braun?

Entendi imediatamente o que ele queria dizer. Havia uma emergência. O mal estava solto no mundo. Talvez pudesse fazer algo em relação a isso. E ali estava um homem que se sentara à direita de Franklin Delano Roosevelt, que por sua vez se sentara à direita de Deus, no que me dizia respeito, e me pedindo para fazer algo em relação a isso.

Claro que me ofereci. Provavelmente isso me tomou três segundos inteiros.

O Sr. Holmes apertou minha mão. Depois fez outra pergunta.

– Como se sentiria trabalhando com um homem de cor?

Dei de ombros.

Ele sorriu.

– Bom. Nesse caso, terei de apresentá-lo ao fantasma de Jetboy.

Eu devo tê-lo encarado. Seu sorriso aumentou.

– Na verdade, seu nome é Earl Sanderson. É um senhor personagem.

Estranhamente, eu conhecia o nome.

– O Sanderson que costumava jogar futebol pela Rutgers? Um atleta infernal.

O Sr. Holmes pareceu chocado. Talvez não acompanhasse esportes.

– Ah. Acho que irá descobrir que ele é um pouco mais que isso.

Earl Sanderson Jr. nasceu em uma vida muito diferente da minha, no Harlem, Nova York. Era onze anos mais velho do que eu e talvez nunca conseguisse ser como ele ou o alcançasse.

Earl Jr. era cabineiro, um homem inteligente, autodidata, admirador de Frederick Douglass e Du Bois. Foi fundador do Niagara Movement, que se tornou a NAACP, Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, e depois da Irmandade de Cabineiros de Vagão-Leito. Um homem duro e inteligente, absolutamente à vontade no Harlem raivoso da época.

Earl Jr. era um jovem brilhante e seu pai insistiu em que não desperdiçasse isso. No ensino médio, ele se destacou academicamente e como atleta, e quando seguiu os passos de Paul Robeson para a Rutgers, em 1930, pôde escolher a bolsa.

Com dois anos de universidade, ingressou no Partido Comunista. Quando o conheci mais tarde, fez parecer como se fosse a única escolha razoável.

– A Depressão estava aumentando – disse-me ele. – Os tiras estavam atirando em organizadores de sindicatos por todo o país e os brancos estavam descobrindo como era ser tão pobres quanto os de cor. Tudo o que tínhamos da Rússia na época eram fotografias das fábricas funcionando com capacidade plena, e aqui nos Estados Unidos as fábricas estavam fechadas e os operários, passando fome. Achei que era só uma questão de tempo até a revolução. O PC era o único em que as pessoas, ao trabalharem pelos sindicatos, também trabalhavam pela igualdade.

Tinham um slogan: “Preto e branco, unidos na luta”, e aquilo soava correto para mim. Estavam se lixando para a segregação: olhavam você nos olhos e o chamavam de “camarada”. O que era mais do que eu já havia recebido de qualquer outro.

Ele tinha todos os bons motivos do mundo para ingressar no PC em 1931. Depois todos esses bons motivos se rebelariam e arrasariam conosco.

Não estou certo de por que Earl Sanderson se casou com Lillian, mas entendo muito bem por que Lillian perseguiu Earl por todos aqueles anos.

– Jack, ele simplesmente brilhava – disse-me ela.

Lillian Abbott conheceu Earl quando ele estava no terceiro ano do ensino médio. Depois daquele primeiro encontro, passou todo minuto livre com ele. Comprou seus jornais, pagou sua entrada nos teatros com o troco, foi a reuniões radicais. Aplaudiu-o em eventos esportivos.

Ingressou no PC um mês depois que ele. E algumas semanas após deixar a Rutgers, summa cum laude, o desposou.

– Não dei nenhuma escolha a Earl – disse ela. – A única forma que tinha de me fazer parar de falar nisso era se casar comigo.

Nenhum deles sabia no que estava se metendo, claro. Earl estava envolvido em questões maiores do que ele mesmo, na revolução que acreditava estar vindo e talvez achasse que Lillian merecia um pouco de felicidade naquela época de amargura. Não custou nada a ele dizer sim.

Para Lillian, custou quase tudo.

Dois meses depois do casamento Earl estava em um barco rumo à União Soviética para estudar um ano na Universidade Lenin, aprendendo a ser um bom agente do Comintern. Lillian ficou em casa, trabalhando na loja da mãe, indo a reuniões do partido que pareciam um pouco sem graça sem Earl. Aprendendo, sem grande entusiasmo pela tarefa, a ser a esposa de um revolucionário.

Após um ano na Rússia, Earl foi cursar Direito em Columbia. Lillian o sustentou até se formar e ir trabalhar como advogado para A. Philip Randolph, da Irmandade de Cabineiros de Vagões-Leito, um dos sindicatos mais radicais dos Estados Unidos. Earl Jr. deve ter ficado orgulhoso.

Enquanto a Depressão passava, o envolvimento de Earl com o PC murchava – talvez a revolução não fosse acontecer no final das contas. A greve na GM foi encerrada a favor da CIO enquanto Earl aprendia a ser um revolucionário na Rússia. A Irmandade foi reconhecida pela Pullman Company em 1938 e Randolph finalmente começou a receber um salário – havia trabalhado todos aqueles anos de graça. O sindicato e Randolph estavam tomando muito do tempo

de Earl, e seu comparecimento às reuniões do partido começou a diminuir.

Quando o pacto germano-soviético foi assinado, Earl se desfiliou do PC com raiva. Fazer acordo com os fascistas não era seu estilo.

Earl me contou que depois de Pearl Harbor a Depressão terminou para os brancos quando começou a contratação nos fornecedores da Defesa, mas poucos foram os que conseguiram empregos. Randolph e seu pessoal finalmente se cansaram. Randolph ameaçou com uma greve nas ferrovias – em plena época de guerra – combinada com uma marcha rumo a Washington. Franklin Roosevelt enviou seu negociador, Archibald Holmes, para conseguir um acordo. Isso resultou na Ordem Executiva 8802, pela qual fornecedores do governo eram proibidos de discriminar por raça. Foi um dos marcos legais na história dos direitos civis e um dos maiores sucessos da carreira de Earl. Ele sempre falava disso como uma das realizações que lhe davam mais orgulho.

Na semana seguinte à Ordem 8802, a classificação de Earl para convocação foi alterada para 1-A. Seu trabalho com o sindicato das ferrovias não o protegeria. O governo estava se vingando.

Earl decidiu se oferecer como voluntário para a Força Aérea. Sempre quis voar.

Ele estava velho para ser piloto, mas ainda era um atleta e seu condicionamento o levou a ser aprovado nos exames físicos. Seu registro foi rotulado de AFP, Antifascista Prematuro, classificação oficial para alguém pouco confiável o bastante para não gostar de Hitler antes de 1941.

Foi designado para o 332º Grupo de Caça, uma unidade inteiramente negra. O processo de seleção de aviadores negros era tão severo que a unidade terminou cheia de professores, ministros protestantes, médicos, advogados – e todas essas pessoas brilhantes também apresentavam reflexos de pilotos de primeira categoria. Como nenhum dos grupos aéreos no exterior queria pilotos negros, o grupo permaneceu meses seguidos treinando em Tuskegee. Eles acabaram tendo três vezes mais treinamento do que o grupo médio e, quando finalmente se deslocaram para bases na Itália, o grupo conhecido como “Águias Solitárias” explodiu no Teatro de Operações Europeu.

Voaram com seus Thunderbolts sobre a Alemanha e os países dos Bálcãs, incluindo os alvos mais difíceis. Realizaram mais de 15 mil missões e, durante esse período, nem um único bombardeiro escoltado foi perdido para a Luftwaffe. Depois que a notícia correu, grupos de bombardeiros começaram a pedir especificamente que o 332º escoltasse suas aeronaves.

Um dos principais pilotos era Earl Sanderson, que terminou a guerra com 53 abates “não confirmados”. Os abates não eram confirmados porque não eram feitos registros para os esquadrões negros – as forças armadas temiam que os pilotos negros pudessem ter totais superiores aos dos brancos. Seu medo era justificado – aquele número colocava Earl acima de todo piloto norte-americano, exceto Jetboy, que era outra enorme exceção a um monte de regras.

No dia em que Jetboy morreu, Earl voltou para casa com o que achava ser uma grande gripe, e no dia seguinte acordou como um ás negro.

Ele podia voar, aparentemente por vontade própria, a até oitocentos quilômetros por hora.

Tachyon chamou isso de “telecinesia de projeção”.

Earl também era bastante resistente, embora não tão resistente quanto eu – como acontecia comigo, as balas ricocheteavam nele. Mas tiros de canhão podiam feri-lo e eu sabia que ele temia a possibilidade de uma colisão no ar com um avião.

E ele podia projetar uma muralha de força diante dele, uma espécie de onda de choque viajante que tirava tudo do seu caminho. Homens, veículos, paredes. Um som como um trovão estalando e a coisa era arremessada trinta metros à frente.

Earl passou duas semanas testando seus talentos antes de permitir que o mundo soubesse deles, voando sobre a cidade com seu capacete de piloto, jaqueta de couro preta de aviador e botas.

Quando finalmente deixou que as pessoas soubessem, o Sr. Holmes foi um dos primeiros a telefonar.

Conheci Earl no dia seguinte a fechar acordo com o Sr. Holmes. Já havia me mudado para um dos aposentos livres do Sr. Holmes e recebera uma chave do apartamento. Estava subindo na vida.

Eu o reconheci imediatamente.

– Earl Sanderson – saudei-o, antes que o Sr. Holmes pudesse nos apresentar, e apertei sua mão.

– Lembro-me de ler sobre você quando jogou pela Rutgers.

Earl recebeu aquilo com serenidade.

– Você tem uma boa memória – disse.

Nós nos sentamos e o Sr. Holmes explicou formalmente o que queria de nós, e de outros que esperava recrutar mais tarde. Earl não gostava do termo “ás”, significando alguém com habilidades úteis, em oposição a “curinga” – significando alguém muito desfigurado pelo vírus –, sentia que os termos impunham um sistema de classe aos que haviam tirado a carta selvagem e não queria nos colocar no alto de alguma pirâmide social. O Sr. Holmes chamou nossa equipe oficialmente de Exóticos pela Democracia. Nós nos tornaríamos símbolos visíveis dos ideais norte-americanos do pós-guerra para dar crédito à tentativa norte-americana de reconstruir a Europa e a Ásia, continuar a luta contra o fascismo e a intolerância.

Os Estados Unidos criariam uma Era de Ouro no pós-guerra e a partilhariam com o restante do mundo. Nós seríamos seu símbolo.

Parecia ótimo. Eu queria participar.

No caso de Earl a decisão foi um pouco mais difícil. Holmes havia conversado com ele antes e pedido que fizesse o mesmo tipo de acordo que mais tarde Branch Rickey pediu a Jackie Robinson: Earl teria de ficar fora da política interna. Teria de anunciar que rompera com Stalin e o marxismo, que estava comprometido com uma mudança pacífica. Foi pedido que mantivesse seu temperamento sob controle, que absorvesse a inevitável raiva, o racismo e a superioridade, e fazer isso sem retaliação.

Mais tarde, Earl me contou que lutou contra si mesmo. Ele conhecia seus poderes e sabia que podia mudar as coisas simplesmente estando presente onde fatos importantes estivessem acontecendo. Policiais do Sul não poderiam dispersar reuniões de integração se alguém presente pudesse esmagar companhias inteiras de patrulheiros estaduais. Fura-greves seriam lançados longe por sua onda de força. Se ele decidisse ir ao restaurante de alguém, todo o Corpo de Fuzileiros não poderia retirá-lo – pelo menos não sem destruir o prédio inteiro.

Mas o Sr. Holmes havia chamado atenção para que se ele usasse seus poderes dessa forma, não seria Earl Sanderson quem pagaria o preço. Se Earl Sanderson fosse visto reagindo violentamente à provocação, negros inocentes seriam pendurados em galhos de carvalho por todo o país.

Earl deu ao Sr. Holmes a garantia que ele desejava. A partir do dia seguinte, nós dois começamos a fazer muita história.

O Exóticos pela Democracia (EPD) nunca fez parte do governo dos Estados Unidos. O Sr. Holmes conversava com o Departamento de Estado, mas pagava a Earl e a mim do próprio bolso, e eu morava em seu apartamento.

A primeira coisa foi lidar com Perón. Ele fora eleito presidente da Argentina em uma eleição fraudada e estava a caminho de se transformar em uma versão sul-americana de Mussolini e a Argentina, em um refúgio de fascistas e criminosos de guerra. O Exóticos pela Democracia voou rumo ao sul para descobrir o que podíamos fazer em relação a isso.

Olhando retrospectivamente, fico impressionado com nossas suposições. Estávamos determinados a derrubar o governo constitucional de uma grande nação estrangeira e não achávamos nada em relação a isso... Até mesmo Earl foi em frente sem pensar uma segunda vez.

Havíamos acabado de passar anos combatendo fascistas na Europa e não víamos nenhum problema em ir para o sul e esmagá-los lá.

Quando partimos, tínhamos outro homem conosco. David Harstein parecia simplesmente ter dado um jeito de embarcar no avião. Lá estava ele, um enxadrista judeu do Brooklyn, um daqueles jovens de cabelos encaracolados e fala rápida que você via por toda a Nova York vendendo seguros contra inundação, pneus de carros usados ou ternos sob medida feitos de alguma nova fibra milagrosa que era tão boa quanto casimira, e de repente ele era um membro do EPD e dava as cartas. Era impossível não gostar dele. Era impossível não concordar com ele.

Ele era um exótico, certo. Transpirava feromônios que deixavam todos em paz com ele e com o mundo, criava uma atmosfera de bonomia e sugestão. Podia convencer um stalinista albanês a ficar de ponta-cabeça e cantar o hino norte-americano – pelo menos enquanto ele e seus feromônios estivessem no aposento. Depois, quando nosso stalinista albanês recobrasse os sentidos, imediatamente se denunciaria e daria um tiro em si mesmo.

Decidimos manter em segredo os poderes de David. Espalhamos uma história de que ele era uma espécie de super-humano ardiloso, como O Sombra do rádio, e que era nosso batedor. Na verdade, apenas ia para encontros com as pessoas e fazia com que concordassem conosco.

Funcionava bastante bem.

Perón ainda não se firmara no poder, estando no cargo havia apenas quatro meses. Demoramos duas semanas para organizar o golpe que acabou com ele. Harstein e o Sr. Holmes iam para reuniões com oficiais do exército, e antes que terminassem os coronéis estavam jurando entregar a cabeça de Perón numa bandeja, e mesmo que depois começassem a pensar melhor nas coisas, sua noção de honra não os deixaria recuar em suas promessas.

Na manhã antes do golpe, descobri algumas das minhas limitações. Havia lido quadrinhos quando estava no exército e vi como, quando os caras maus estavam tentando fugir de carro em alta velocidade, o Super-Homem pulava na frente do carro, que ricocheteava nele.

Tentei isso na Argentina. Havia um major peronista que tinha de ser impedido de chegar ao seu posto de comando e saltei na frente do seu Mercedes. Fui lançado sessenta metros contra uma estátua do próprio Juan P.

O problema é que eu não era mais pesado que o carro. Quando coisas colidem, é o objeto com menos momento linear que cede, e o peso é um componente do momento. Não importa quão forte o objeto mais leve seja.

Fiquei mais esperto depois disso. Derrubei a estátua de Perón de sua base e a lancei contra o carro. Isso resolveu o problema.

Há algumas outras coisas sobre o trabalho do ás que você não aprende lendo revistas em quadrinhos. Eu me lembro de ases dos quadrinhos agarrando canos de canhões de tanques e dando nós neles.

De fato é possível fazer isso, mas você precisa ter alavancagem. Precisa fincar os pés em algo sólido de modo a ter em que fazer pressão. Era muito mais fácil para mim mergulhar sob o tanque e o arrancar das lagartas. Depois ia para o outro lado, colocava os braços ao redor do cano do canhão, com o ombro abaixo dele, e puxava para baixo. Usava o ombro como o ponto de apoio de uma alavanca e dobrava o cano ao redor de mim mesmo.

Era o que fazia quando estava com pressa. Quando tinha tempo eu abria caminho a pancada pelo fundo do tanque e o rasgava de dentro para fora.

 

Mas devaneio. De volta a Perón.

Havia duas coisas fundamentais que precisavam ser feitas. Não era possível influenciar alguns peronistas leais, e um deles era comandante de um batalhão blindado aquartelado em um complexo fortificado na periferia de Buenos Aires. Na noite do golpe, peguei um dos tanques e o joguei de lado em frente ao portão, depois simplesmente apoiei o ombro nele e o mantive no lugar

enquanto os outros tanques viravam lixo tentando movê-lo.

Earl imobilizou a Força Aérea de Perón. Simplesmente voou atrás dos aviões na pista e arrancou os estabilizadores.

A democracia venceu. Perón e sua piranha loura fugiram para Portugal.

Eu me dei algumas horas de folga. Enquanto multidões de classe média iam para as ruas festejar, eu estava em um quarto de hotel com a filha do embaixador francês. Escutando o canto do povo através da janela, sentindo o gosto de champanhe e Nicolette em minha língua, concluí que aquilo era melhor que voar.

Nossa imagem foi construída naquela campanha. Eu vestia meu velho uniforme do exército a maior parte do tempo, e é dessa minha imagem que a maioria das pessoas se lembra. Earl usava fardas castanhas de oficial da Força Aérea com a insígnia arrancada, botas, capacete, óculos, cachecol e sua velha jaqueta de couro de aviador com o símbolo do 332º no ombro. Quando não estava voando, tirava o capacete e colocava uma velha boina preta que guardava no bolso. Com frequência, quando éramos convidados a fazer aparições pessoais, pediam a Earl e a mim para vestir as fardas para que todos nos reconhecessem. O público pareceu nunca se dar conta de que a maioria do tempo vestíamos terno e gravata, exatamente como todo mundo.

Quando Earl e eu estávamos juntos, costumava ser em situação de combate, e por esse motivo nos tornamos grandes amigos... As pessoas em combate se tornam íntimas muito rapidamente. Eu falava sobre minha vida, minha guerra, sobre mulheres. Ele era um pouco mais reservado – talvez não tivesse certeza de como eu reagiria ao ouvir de seus feitos com garotas brancas –, mas finalmente uma noite, quando estávamos no norte da Itália procurando por Bormann, ouvi tudo sobre Orlena Goldoni.

– Eu costumava ter que pintar suas meias pela manhã – disse Earl. – Tinha de maquiar as pernas para que parecesse que tinha meias de seda. E tinha que pintar a costura atrás com um delineador - contou, sorrindo. – Era um trabalho de pintura que sempre gostei de fazer.

– Por que você não simplesmente dava meias a ela? – perguntei. Era bastante fácil consegui-las.

Soldados escreviam a amigos e parentes nos Estados Unidos pedindo que as enviassem.

– Eu dei muitos pares a ela – disse Earl, dando de ombros. – Mas Lena as repassava às camaradas.

Earl não tinha guardado uma foto de Lena, não onde Lillian pudesse encontrar, mas eu a vi nos filmes depois, quando foi apresentada como a resposta europeia a Veronica Lake. Cabelos louros despenteados, ombros largos, voz rouca. A persona de Lake na tela era legal, mas a de Goldoni era atraente. As meias de seda eram de verdade nos filmes, mas também as pernas dentro delas, e o filme festejou as pernas de Lena o máximo que o diretor achou que conseguiria. Lembro-me de pensar em como Earl devia ter se divertido pintando-as.

Ela era cantora de cabaré em Nápoles quando se conheceram, em uma das poucas boates que permitiam a entrada de soldados negros. Tinha 18 anos, negociava no mercado negro e havia sido mensageira dos comunistas italianos. Earl deu uma olhada nela e jogou a cautela pela janela.

Talvez tenha sido a única vez na vida em que se entregou. Começou a correr riscos. Escapar do campo à noite, driblando patrulhas da polícia militar para ficar com ela, voltar furtivamente no começo da manhã e estar no campo pronto para decolar para Bucareste ou Ploesti...

– Sabíamos que não era para sempre. Sabíamos que a guerra iria terminar mais cedo ou mais tarde – disse Earl. Havia uma espécie de distanciamento em seus olhos, a lembrança de uma dor, e pude ver o quanto deixar Lena lhe custara. Deu um longo suspiro. – Éramos adultos em relação a isso. Então nos despedimos. Fui dispensado e voltei a trabalhar para o sindicato. E não nos vimos desde então. Agora ela está nos filmes. Não vi nenhum deles – disse, balançando a cabeça.

No dia seguinte, pegamos Bormann. Eu o segurei pelo hábito de monge sacudindo-o até seus dentes chacoalharem. Nós o entregamos ao representante do Tribunal Aliado de Crimes de Guerra e nos demos alguns dias de folga.

Earl parecia mais nervoso do que já o vira. Continuava desaparecendo para telefonar. A imprensa estava sempre nos seguindo e Earl dava um pulo sempre que um flash era disparado. Na primeira noite ele desapareceu de nosso quarto de hotel e não o vi durante três dias.

Normalmente era eu quem tinha esse tipo de comportamento, sempre me esgueirando para passar algum tempo com uma mulher. Earl fazer isso me pegou de surpresa.

Ele passou o fim de semana com Lena em um pequeno hotel ao norte de Roma. Vi as fotos deles juntos nos jornais italianos na manhã de segunda-feira – de algum modo a imprensa havia descoberto. Fiquei imaginando se Lillian ouvira falar, no que estaria pensando. Earl apareceu de cenho franzido por volta de meio-dia de segunda, bem na hora de seu voo para a Índia: ele ia a Calcutá ver Gandhi. Earl acabou se colocando entre o Mahatma e as balas que um fanático disparou contra ele nos degraus do templo – e de repente os jornais só falavam da Índia, esquecidos do que acabara de acontecer na Itália. Não sei se Earl explicou isso a Lillian.

O que quer tenha dito, suponho que Lillian acreditou nele. Ela sempre acreditava.

Anos gloriosos, aqueles. Com a rota de fuga fascista para a América do Sul fechada, os nazistas foram obrigados a permanecer na Europa, onde era mais fácil encontrá-los. Após Earl e eu termos desencavado Bormann de seu mosteiro, arrancamos Mengele de um sótão de fazenda na Baviera e chegamos tão perto de Eichmann na Áustria que ele entrou em pânico e se jogou nos braços de uma patrulha soviética, e os russos o fuzilaram imediatamente. David Harstein entrou no Escorial com um passaporte diplomático e convenceu Franco a fazer um discurso ao vivo pelo rádio no qual ele renunciava e convocava eleições, e depois David permaneceu com ele no avião até a Suíça. Portugal convocou eleições pouco depois e Perón teve de encontrar um novo lar em Nanquim, onde se tornou conselheiro militar do generalíssimo. Nazistas estavam fugindo da Península Ibérica às dezenas e os caçadores de nazistas apanharam muitos deles.

Eu estava ganhando muito dinheiro. O Sr. Holmes não me pagava um grande salário, mas recebia muito para anunciar o Chesterfield e vender minha história para a Life, além de fazer muitas palestras remuneradas – o Sr. Holmes me contratou como redator de discursos. Minha metade do apartamento da Park Avenue era de graça e nunca tinha de pagar por uma refeição se não quisesse. Recebi grandes quantias por artigos escritos em meu nome, coisas como “Por que

acredito na tolerância”, “O que a América significa para mim” e “Por que precisamos da ONU”.

Agentes de Hollywood faziam ofertas inacreditáveis por contratos longos, mas eu ainda não estava interessado. Estava conhecendo o mundo.

Tantas garotas me visitavam em meu quarto que a associação dos locatários pensou em instalar uma porta giratória.

Os jornais começaram a chamar Earl de “Águia Negra”, em função do apelido do 332º, “Águias Solitárias”. Ele não gostou muito. Para os poucos que conheciam seu talento, David Harstein era “o Embaixador”. Eu era “Garoto Dourado”, claro. Não me importava.

O EPD ganhou outro membro, Blythe Stanhope van Renssaeler, que os jornais começaram a chamar de “Especialista”. Era uma pequena e decente dama de Boston, de alta classe, tensa como um puro-sangue, casada com um congressista desprezível de Nova York com quem tinha três filhos. Era o tipo de beleza que você levava algum tempo para perceber, e então ficava pensando em como não vira isso antes. Acho que ela nunca soube como realmente era adorável.

Ela podia absorver mentes. Lembranças, habilidades, tudo.

Blythe era uns dez anos mais velha do que eu, mas isso não me incomodava e, em pouco tempo, comecei a flertar com ela. Eu tinha muitas outras companhias femininas e todos sabiam disso, de modo que, se sabia alguma coisa de mim – e talvez não soubesse, porque minha mente não era suficientemente importante para ser absorvida –, não me levou a sério.

Seu medonho marido Henry acabou a expulsando e ela foi ao nosso apartamento em busca de um lugar para ficar. O Sr. Holmes não estava e eu me encontrava bem embriagado após algumas doses do seu conhaque 21 anos, então lhe ofereci uma cama – na verdade a minha. Ela explodiu comigo, o que eu merecia, e saiu furiosa.

Droga, eu não queria que ela tomasse a oferta como permanente. Ela devia saber.

Assim como eu devia. Em 1947, a maioria das pessoas preferia se casar a arder de desejo. Eu era uma exceção. E Blythe era tensa demais para que se pudesse brincar com ela – passava metade do tempo à beira de um colapso nervoso, com todo aquele conhecimento na cabeça, e se havia uma coisa de que ela não precisava era um caipira de Dakota a assediando na noite em que seu casamento chegara ao fim.

Em pouco tempo Blythe e Tachyon estavam juntos. Não foi muito bom para minha auto-estima ser trocado por um ser de outro planeta, mas fiquei conhecendo Tachyon muito bem e decidi que ele era legal, apesar de sua preferência por brocados e cetim. Se ele fazia Blythe feliz, estava bom para mim. Imaginei que devia ter algo de bom para convencer uma intelectual como Blythe a viver em pecado.

A expressão “ás” pegou logo após Blythe ter se juntado à EPD, então de repente éramos os Quatro Ases. O Sr. Holmes era o Ás na Manga da Democracia, ou Quinto Ás. Éramos caras bons e todos sabiam disso.

Era impressionante o volume de bajulação que recebíamos. O público simplesmente não permitia que fizéssemos algo errado. Mesmo intolerantes obstinados se referiam a Earl Sanderson como “nosso garoto voador de cor”. Quando ele falava sobre segregação, ou o Sr. Holmes falava sobre populismo, as pessoas escutavam.

Earl estava conscientemente manipulando sua imagem, acho. Era inteligente e sabia como funcionava a imprensa. A promessa que fizera ao Sr. Holmes com tanta dificuldade foi plenamente justificada pelos acontecimentos. Ele estava conscientemente se transformando em um herói negro, uma figura impoluta desejada. Atleta, acadêmico, líder sindical, herói de guerra, marido fiel, ás. Foi o primeiro negro na capa da Time, o primeiro na Life. Substituíra Robeson como o grande ideal negro, como Robeson reconheceu ironicamente quando disse: “Eu não sei voar, mas Earl Sanderson não sabe cantar”.

Robeson estava errado, aliás.

Earl estava voando mais alto do que nunca. Ele não havia percebido o que acontece aos ídolos quando as pessoas descobrem sobre seus pés de barro.

Os fracassos dos Quatro Ases aconteceram no ano seguinte, em 1948. Quando os soviéticos estavam prestes a tomar a Tchecoslováquia, voamos apressadamente para a Alemanha e então a coisa toda foi suspensa. Alguém no Departamento de Estado havia decidido que a situação era complicada demais para que resolvêssemos e pedira ao Sr. Holmes para não intervir. Depois ouvi um boato de que o governo estivera recrutando seus próprios talentos ases para serviços secretos, e que haviam sido enviados e feito besteira. Não sei se é verdade ou não.

Então, dois meses depois do fiasco na Tchecoslováquia, fomos enviados à China para salvar cerca de um bilhão de pessoas para a democracia.

Não estava claro na época, mas nosso lado já havia perdido. No papel ainda era possível um resgate – o Kuomintang do generalíssimo ainda controlava todas as maiores cidades, seus exércitos eram bem equipados em comparação com Mao e suas forças, e sabia-se que o generalíssimo era um gênio. Se não era, por que o Sr. Luce havia feito dele Homem do Ano da Time duas vezes?

Por outro lado, os comunistas marchavam rumo ao sul a um ritmo constante de 37 quilômetros por dia, sob chuva ou sol, verão ou inverno, redistribuindo terras enquanto avançavam. Nada podia detê-los – certamente nem o generalíssimo.

No momento em que fomos chamados a intervir, o generalíssimo havia renunciado – ele fazia isso de tempos em tempos apenas para provar a todos que era indispensável. Então os Quatro Ases se reuniram com o novo presidente do KMT, um homem chamado Chen, que estava sempre olhando por sobre o ombro para não ser substituído assim que o Grande Homem decidisse fazer outra entrada dramática para salvar o país.

Na época a posição dos EUA era ceder o norte da China e a Manchúria, que o KMT já havia perdido, com exceção das grandes cidades. A ideia era salvar o sul para o generalíssimo, dividindo o país. O Kuomintang teria uma chance de se instalar no sul enquanto se organizava para uma reconquista e os comunistas ficariam com as cidades no norte sem precisar lutar por elas.

Estávamos todos lá, os Quatro Ases e Holmes – Blythe havia sido incluída como conselheira científica e acabou dando pequenas palestras sobre saneamento, irrigação e vacinação. Mao estava lá, e Chu en-lai, e o presidente Chen. O generalíssimo estava em Cantão, ressentido em sua barraca, e o Exército Popular de Libertação (EPL) estava sitiando Mukden, na Manchúria, e marchando paulatinamente para o sul, a 37 quilômetros por dia, comandado por Lin Biao.

Earl e eu não tínhamos muito a fazer. Éramos observadores e basicamente o que observávamos eram os delegados. O pessoal do KMT era impressionantemente educado, se vestia bem, tinha empregados uniformizados que circulavam a serviço deles. Sua interação uns com os outros parecia um minueto.

O pessoal do EPL pareciam soldados. Eram inteligentes, orgulhosos, militares no sentido em que soldados de verdade são militares, sem toda a formalidade afetada de luvas brancas do KMT.

O EPL havia ido para a guerra e eles não estavam acostumados a perder. Eu pude dizer isso de imediato.

Foi um choque. Tudo o que eu sabia sobre a China era o que tinha lido em Pearl Buck. Isso e a genialidade confirmada do generalíssimo.

– Esses caras estão combatendo aqueles caras? – perguntei a Earl.

– Aqueles caras não estão combatendo ninguém – respondeu Earl indicando a turma do KMT. – Estão procurando abrigo e fugindo. Isso é parte do problema.

– Não gosto do jeito disto – eu disse.

Earl pareceu um pouco triste.

– Eu também não – falou e cuspiu. – Os funcionários do KMT têm roubado terras dos camponeses. Os comunistas estão devolvendo a terra e isso significa que conseguiram apoio popular. Mas assim que tiverem vencido a guerra irão tomá-las de volta, exatamente como Stalin fez.

Earl conhecia história. Eu apenas lia os jornais.

Ao longo de duas semanas o Sr. Holmes definiu uma base para negociação, e então David Harstein entrou na sala e logo Chen e Mao estavam sorrindo um para o outro como velhos colegas de escola em uma reunião, e em uma maratona de negociação a China foi formalmente dividida. O KMT e o EPL receberam ordens de ser amigos e depor armas.

Tudo desmoronou em dias. O generalíssimo, que sem dúvida havia sido informado de nossa perfídia pelo ex-coronel Perón, renegou o acordo e retornou para salvar a China. Lin Biao nunca parou de marchar para o sul. E após uma série de batalhas colossais, a genialidade confirmada do generalíssimo terminou em uma ilha protegida pela frota dos Estados Unidos – juntamente com Perón e sua piranha loura, que tiveram de se mudar novamente.

O Sr. Holmes me disse que quando atravessou o Pacífico de volta com a partilha no bolso, enquanto o acordo era desfeito atrás dele e as multidões jubilosas em Hong Kong, Manila, Oahu e São Francisco se tornavam cada vez menores, ficou se lembrando de Neville Chamberlain e seu pedacinho de papel, e de como a “paz na Europa” de Chamberlain se transformara em conflagração e Chamberlain, no otário da história, triste exemplo de um homem que tinha boas intenções mas esperança em excesso, e confiara demais em homens com maior experiência em traição que ele.

O Sr. Holmes não era diferente. Não se dera conta de que enquanto continuava a viver e trabalhar pelos mesmos ideais, pela democracia e pelo liberalismo, por justiça e integração, o mundo mudava ao seu redor, e como ele não mudaria com o mundo, o mundo o transformaria em pó.

Àquela altura o público ainda estava inclinado a nos perdoar, mas se lembrava de que o havíamos desapontado. Seu entusiasmo havia diminuído um pouco.

E talvez o tempo dos Quatro Ases tivesse passado. Os grandes criminosos de guerra haviam sido apanhados, o fascismo estava em fuga e havíamos descoberto nossas limitações na Tchecoslováquia e na China.

Quando Stalin bloqueou Berlim, Earl e eu voamos para lá. Eu estava novamente em uniforme de combate, Earl em sua jaqueta de couro. Ele fez patrulhas acima dos arames russos e o exército me deu um jipe com motorista com o qual brincar. Stalin acabou recuando.

Nossas atividades, porém, estavam se tornando pessoais. Blythe ia a conferências científicas por todo o mundo e passava a maior parte do tempo que restava com Tachyon. Earl marchava em manifestações pelos direitos civis e discursava por todo o país. O Sr. Holmes e David Harstein foram trabalhar naquele ano eleitoral para a candidatura de Henry Wallace.

Eu falei ao lado de Earl em encontros da Liga Urbana Nacional e para ajudar o Sr. Holmes disse algumas coisas legais sobre o Sr. Wallace, e recebi um monte de dinheiro para dirigir o último modelo Chrysler e falar sobre americanismo.

Depois da eleição, fui para Hollywood trabalhar para Louis Mayer. O dinheiro era mais inacreditável do que qualquer coisa com a qual havia sonhado e eu estava ficando cansado de abusar do apartamento do Sr. Holmes. Deixei a maior parte das minhas coisas no apartamento, imaginando que não demoraria a voltar.

Estava faturando 10 mil por semana e tinha conseguido um agente, um contador, uma secretária para atender o telefone e alguém para cuidar da publicidade; tudo o que tinha de fazer àquela altura era ter aulas de teatro e dança. Na verdade ainda não tinha de trabalhar, porque eles estavam com problemas no roteiro do meu filme. Nunca tinham precisado escrever um roteiro sobre um super-homem louro.

O roteiro que acabaram fazendo era levemente baseado em nossas aventuras na Argentina e se chamava Garoto Dourado. Pagaram muito dinheiro a Clifford Odets para usar esse título, e considerando o que aconteceu a Odets e a mim depois, essa ligação tinha alguma ironia.

Quando me deram o roteiro, não liguei para ele. Eu era o herói e estava tudo bem para mim.

Eles me chamaram de “John Brown”. Mas o personagem de Harstein havia sido transformado no filho de um ministro protestante de Montana, e o personagem de Archibald Holmes, em vez de ser um político da Virgínia, se transformara num agente do FBI. A pior parte era o personagem de Earl Sanderson – ele se transformara num zero à esquerda, um negro subserviente que só aparecia em algumas cenas, e mesmo assim para receber ordens de John Brown e responder com um seco

“Sim, senhor” e uma saudação. Liguei para o estúdio para falar sobre isso.

– Não podemos colocá-lo em muitas cenas – me disseram. – Do contrário não poderemos cortar para a versão do Sul.

Eu perguntei ao meu produtor executivo sobre o que ele estava falando.

– Se lançamos um filme no Sul, não podemos ter pessoas de cor ou os exibidores não irão passar. Escrevemos cenas de modo a podermos lançar uma versão sulista cortando todas as cenas com crioulos.

Fiquei chocado. Não sabia que faziam coisas assim.

– Olhe – eu disse. – Fiz discursos para o NAACP e a Liga Urbana Nacional. Apareci na Newsweek com Mary McLeod Bethune. Não posso ser considerado parte disso.

A voz do outro lado da linha se tornou repulsiva.

– Veja seu contrato, Sr. Braun. O senhor não tem que aprovar o roteiro.

– Não quero aprovar o roteiro. Quero apenas um roteiro que reconheça certos fatos sobre minha vida. Se eu seguir este roteiro, minha credibilidade desaparece. Você está fodendo com minha imagem aqui!

Depois disso ficou desagradável. Fiz certas ameaças e o produtor executivo fez certas ameaças.

Recebi um telefonema do meu contador me dizendo o que aconteceria se os 10 mil por semana parassem de entrar e meu agente me disse que eu não tinha direito legal de me opor a nada disso.

Enfim liguei para Earl e lhe contei o que estava acontecendo.

– Quanto você disse que eles estão lhe pagando? – perguntou.

Eu disse a ele novamente.

– Veja. O que você faz em Hollywood é problema seu. Mas você é novo aqui, e é uma mercadoria desconhecida para eles. Você quer defender o que é certo, isso é bom. Mas se você for embora, não fará nenhum bem a mim nem à Liga Urbana Nacional. Fique no negócio, ganhe alguma influência e depois a use. E se você se sentir culpado, a NAACP sempre pode usar parte desses 10 mil por semana.

Então ficou assim. Meu agente conseguiu um acordo com o estúdio para que eu fosse consultado sobre mudanças no roteiro. Consegui tirar o FBI do roteiro, deixando o personagem de Holmes sem nenhuma participação no governo e tentei tornar o personagem de Sanderson um pouco mais interessante.

Vi o copião e era bom. Gostei da minha atuação – pelo menos era descontraída, e até tive de me colocar na frente de uma Mercedes acelerando e vê-la ricochetear em meu peito. Isso foi conseguido com efeitos especiais.

O filme foi para a lata e eu fui de um almoço com três martínis para a festa de encerramento sem pausa para ficar sóbrio. Acordei três dias depois em Tijuana com uma dor de cabeça terrível e a suspeita de que havia feito algo idiota. A bela lourinha que dividia o travesseiro comigo me contou o que era. Havíamos acabado de nos casar. Quando ela estava no banho, tive de olhar a certidão de casamento para descobrir que seu nome era Kim Wolfe. Era uma estrelinha da Geórgia que estava na luta em Hollywood havia seis anos.

Após algumas aspirinas e umas doses de tequila, o casamento não pareceu uma idéia inteiramente ruim. Com minha nova carreira e tudo o mais, talvez fosse a hora de me aquietar.

Comprei a velha casa de campo pseudoinglesa de Ronald Colman, em Summit Drive, Beverly Hills, e me mudei com Kim e nossas duas secretárias, o cabeleireiro de Kim, dois motoristas, duas empregadas residentes... De repente eu estava pagando salários a todas essas pessoas e não estava bem certo sobre de onde vinha o dinheiro.

O filme seguinte foi A história de Rickenbacker. Victor Fleming iria dirigir, com Fredric March como Pershing e June Allyson como a enfermeira pela qual eu deveria me apaixonar. De todas as pessoas, Dewey Martin iria interpretar Richthofen, cujo peito teutônico eu encheria de chumbo norte-americano – não importava que o verdadeiro Richthofen tivesse sido morto por outro. A produção seria filmada na Irlanda, com um orçamento enorme e centenas de extras.

Insisti em aprender a pilotar para poder fazer algumas das cenas pessoalmente. Dei um interurbano para Earl sobre isso.

– Ei – disse. – Finalmente aprendi a voar.

– Alguns caipiras demoram um pouco – falou ele.

– Victor Fleming vai me transformar em um ás.

– Jack. Você já é um ás – disse, com uma voz divertida.

O que me fez parar um pouco, porque de algum modo, no meio da correria, me esqueci de que não havia sido a MGM que me transformara em um astro.

– Você está certo nisso – eu disse.

– Você deveria vir a Nova York com maior frequência – disse Earl. – Descobrir o que está acontecendo no mundo real.

– É. Farei isso. Vamos conversar sobre voar.

– Faremos isso.

Passei três dias em Nova York a caminho da Irlanda. Kim não estava comigo – conseguira trabalho, graças a mim, e havia sido emprestada à Warner Brothers para um filme. De qualquer forma, era muito sulista e na única vez em que estivera com Earl ficara muito desconfortável, então não me importei que não estivesse ali.

Passei sete meses na Irlanda – o clima era tão ruim que a filmagem durou para sempre.

Encontrei com Kim em Londres duas vezes, uma semana cada vez, mas passei o resto do tempo sozinho. Era fiel, à minha maneira, significando que não dormia com nenhuma garota mais de duas vezes seguidas. Eu me tornei um piloto suficientemente bom para que os pilotos dublês me cumprimentassem algumas vezes.

Quando voltei à Califórnia, passei duas semanas em Palm Springs com Kim. Garoto Dourado iria ser lançado em dois meses. Em meu último dia em Springs acabara de sair da piscina quando um assessor parlamentar, de terno e gravata, foi na minha direção e me deu um documento cor-de-rosa.

Era uma intimação. Eu deveria comparecer perante o Comitê da Câmara sobre Atividades Anti-americanas terça-feira cedo. O dia seguinte.

Fiquei mais chateado do que qualquer outra coisa. Imaginei que evidentemente haviam chamado o Jack Braun errado. Telefonei para a Metro e falei com alguém do Departamento Jurídico. Ele me surpreendeu dizendo:

– Ah, achamos que receberia a intimação a qualquer momento.

– Espere um minuto. Como você soube?

Houve um silêncio desconfortável de um segundo.

– Nossa política é colaborar com o FBI. Veja, um de nossos advogados irá encontrá-lo em Washington. Apenas diga ao comitê o que sabe e poderá estar de volta à Califórnia semana que vem.

– Ei – falei. – O que o FBI tem a ver com isso? E por que vocês não me disseram que isso iria acontecer? E que porra o comitê acha que eu sei, afinal?

– Algo sobre a China – disse o homem. – Pelo menos era sobre isso que os investigadores estavam nos perguntando.

Eu bati o telefone e liguei para o Sr. Holmes. Ele, Earl e David haviam recebido suas intimações mais cedo e estavam tentando falar comigo desde então, mas não haviam conseguido me achar em Palm Springs.

– Eles vão tentar acabar com os Ases, caipira – disse Earl. – Melhor pegar o primeiro vôo para o Leste. Temos que conversar.

Fiz meus preparativos, e então Kim entrou, vestindo seus trajes brancos de tênis, voltando da aula. Ela ficava melhor suada do que qualquer outra mulher que já tinha conhecido.

– O que há de errado? – perguntou. Apenas apontei para o papel rosa.

A reação de Kim foi rápida, e isso me surpreendeu.

– Não faça o que os Dez fizeram – disse rapidamente. – Eles conversaram, adotaram uma defesa agressiva e nenhum deles trabalhou desde então.

Ela esticou a mão para o telefone.

– Vou ligar para o estúdio. Precisamos conseguir um advogado para você.

Eu a observei enquanto pegava o telefone e começava a discar. Uma mão fria tocou minha nuca.

– Gostaria de ter sabido o que estava acontecendo – eu disse.

Mas eu sabia. Eu sabia mesmo então, e meu conhecimento tinha uma precisão e uma clareza aterrorizantes. Tudo em que conseguia pensar era como desejava não poder ver as escolhas tão claramente.

Para mim, o Medo chegara tarde. O comitê fora atrás de Hollywood pela primeira vez em 1947, com os Dez de Hollywood. O comitê supostamente estava investigando infiltração comunista na indústria cinematográfica – uma ideia ridícula, já que nenhum comunista conseguiria qualquer publicidade nos filmes sem o conhecimento e a autorização expressa de pessoas como o Sr. Mayer e os irmãos Warner. Os Dez eram todos comunistas ou ex-comunistas, e eles e seus advogados concordaram com uma defesa baseada nos direitos de liberdade de expressão e associação garantidos pela Primeira Emenda.

O comitê se lançou sobre eles como uma manada de búfalos sobre um canteiro de margaridas.

Os Dez foram acusados de desacato ao Congresso por sua recusa em cooperar e, após seus recursos terem sido negados anos depois, acabaram na cadeia.

Os Dez haviam imaginado que a Primeira Emenda os protegeria, que as acusações de desacato seriam descartadas em no máximo algumas semanas. Em vez disso, os recursos se arrastaram por anos e os Dez foram para a cadeia, e durante esse período nenhum deles conseguiu trabalho.

Surgiu a lista negra. Meus velhos amigos da Legião Americana, que haviam aprendido táticas um pouco mais sutis desde que tinham se lançado contra a Holiday Association com cabos de machado, publicaram uma lista de comunistas conhecidos ou suspeitos para que nenhum empregador tivesse desculpa para contratar alguém da lista. Caso contratasse alguém, ele mesmo se tornava suspeito e seu nome podia ser acrescentado à lista.

Nenhum daqueles convocados pelo comitê havia cometido algum crime definido em lei, nem nunca havia sido acusado de crimes. Não eram investigados por atividade criminosa, mas por associação. O comitê não tinha mandado constitucional para investigar essas pessoas, a lista negra era ilegal, as provas apresentadas nas sessões do comitê eram, em grande medida, rumores, e inaceitáveis em um tribunal... Nada disso importou. Ainda assim aconteceu.

O comitê havia permanecido algum tempo em silêncio, em parte porque seu presidente, Parnell, havia sido jogado na cadeia por fraude em salários, em parte porque os recursos dos Dez de Hollywood ainda estavam sendo avaliados nos tribunais. Mas sentiram falta de toda aquela enorme publicidade que haviam recebido quando foram atrás de Hollywood e o público havia sido lançado em uma grande excitação pelo julgamento dos Rosenberg e o caso Alger Hiss, então concluíram que chegara a hora de outra investigação espalhafatosa.

O novo presidente da comissão, John S. Wood, da Geórgia, decidiu ir atrás da maior caça do planeta.

Nós.

O advogado da MGM me encontrou no aeroporto de Washington.

– Eu o aconselho a não conversar com o Sr. Holmes ou o Sr. Sanderson.

– Não seja ridículo.

– Eles tentarão convencê-lo a uma defesa baseada na Primeira ou na Quinta Emenda – disse o advogado. – A defesa pela Primeira Emenda não irá funcionar, foi recusada em todos os recursos.

A Quinta é uma defesa contra se incriminar e, a não ser que você tenha feito algo ilegal, não pode usá-la, se não quiser parecer culpado.

– E você não irá trabalhar, Jack – disse Kim. – A Metro não irá sequer lançar seus filmes. A Legião Americana faria piquetes diante deles por todo o país.

– Como posso saber se irei trabalhar caso fale? – perguntei. – Tudo de que você precisa para entrar na lista negra é ser convocado, Deus do céu.

– Fui autorizado pelo Sr. Mayer a lhe dizer que permanecerá como seu empregado caso coopere com o comitê – disse o advogado.

Eu balancei a cabeça.

– Vou conversar com o Sr. Holmes esta noite – disse, sorrindo para ele. – Deus do céu, somos Ases. Se não conseguirmos derrotar um deputado provinciano da Geórgia, não merecemos trabalhar.

Então eu me encontrei com o Sr. Holmes, Earl e David no Statler. Kim disse que eu não estava sendo razoável e manteve distância.

Houve uma divergência desde o início. Earl disse que, para começar, o comitê não tinha direito de nos convocar e que deveríamos simplesmente nos recusar a cooperar. O Sr. Holmes falou que não podíamos fugir da luta naquele momento, que deveríamos nos defender diante do comitê – que não tínhamos nada a esconder. Earl lhe disse que um tribunal ilegal não era lugar para uma defesa racional. David só queria que seus feromônios tivessem uma chance no tribunal.

– Para o inferno com tudo isso – falei. – Fico com a Primeira. Liberdade de expressão e associação é algo que todo norte-americano entende.

Algo em que eu não acreditei por um único segundo, aliás. Só sentia que precisava dizer algo otimista.

Não fui chamado naquele primeiro dia – fiquei fazendo hora com David e Earl no saguão, andando de um lado para o outro e roendo os nós dos dedos, enquanto o Sr. Holmes e seu advogado faziam como o rei Canuto e tentavam impedir que a malvada maré ácida comesse a carne de seus ossos. David continuava tentando passar pelos guardas, mas não estava tendo sorte – os guardas do lado de fora estavam dispostos a deixá-lo entrar, mas aqueles do lado de dentro,

não expostos a seus feromônios, continuavam a mantê-lo de fora.

A imprensa havia sido autorizada a entrar, claro. O comitê gostava de desfilar sua virtude diante das câmeras dos noticiários, e os noticiários davam todo espaço ao circo.

Não soube o que estava acontecendo do lado de dentro até o Sr. Holmes sair. Ele caminhava como um homem que tivera um derrame, um pé cuidadosamente diante do outro. Estava cinza.

Suas mãos tremiam e ele se apoiava no braço do advogado. Parecia ter envelhecido vinte anos em poucas horas. Earl e David correram até ele, mas eu só consegui ficar olhando aterrorizado enquanto os outros o ajudavam a cruzar o corredor.

O Medo me pegara pelo pescoço.

Earl e Blythe colocaram o Sr. Holmes no carro, depois Earl esperou que minha limusine da MGM chegasse e entrou atrás conosco. Kim parecia emburrada, espremida no canto para que ele não encostasse nela, e se recusou até mesmo a dizer olá.

– Bem, eu estava certo – disse ele. – Não deveríamos ter cooperado de modo algum com esses desgraçados.

Eu ainda estava chocado com o que vira no corredor.

– Não consigo entender por que diabos estão fazendo isso.

Ele me olhou com uma expressão divertida.

– Caipiras – disse, um comentário resignado sobre o universo, e depois balançou a cabeça. – Você precisa bater na cabeça deles com uma pá para que prestem atenção.

Kim fungou. Earl não deu qualquer indício de ter ouvido.

– Eles têm fome de poder, caipira. E foram mantidos por muitos anos fora do poder por Roosevelt e Truman. Vão tomá-lo de volta e estão alimentando a histeria para conseguir isso.

Olhe para os Quatro Ases e o que você vê? Um negro comunista, um judeu liberal, um liberal de Roosevelt, uma mulher vivendo em pecado. Acrescente Tachyon e você tem um alienígena que está subvertendo não apenas o país, mas nossos cromossomos. Provavelmente há outros igualmente poderosos sobre os quais ninguém sabe. E todos têm poderes sobrenaturais, então quem sabe do que são capazes? E não são controlados pelo governo, têm alguma agenda política liberal, logo isso ameaça a base de poder da maioria das pessoas no comitê bem ali.

– Do modo como entendo, o governo tem seus próprios ases neste momento, pessoas sobre as quais não ouvimos falar. Isso significa que somos dispensáveis – somos independentes demais e não somos confiáveis politicamente. China, Tchecoslováquia e os nomes dos outros ases são apenas uma desculpa. A questão é que se conseguirem acabar conosco em público, provarão que podem acabar com qualquer um. Será um reino de terror que irá durar uma geração. Ninguém, nem mesmo o presidente, estará imune.

Balancei a cabeça. Escutei as palavras, mas meu cérebro não as aceitava.

– O que podemos fazer sobre isso? – perguntei.

Earl me encarou.

– Porra nenhuma, caipira.

Virei o rosto.

Meu advogado da MGM tocou uma gravação da audiência com Holmes para mim naquela noite.

O Sr. Holmes e seu advogado, um velho amigo da família, da Virgínia, chamado Cranmer, estavam acostumados aos antigos ritos de Washington e aos ritos da lei. Esperavam procedimentos ordeiros, os cavalheiros do comitê fazendo perguntas educadas aos cavalheiros testemunhas.

O quadro não tinha relação com a realidade. O comitê mal deixou o Sr. Holmes falar – em vez disso, gritaram com ele, ataques cheios de terríveis insinuações e boatos e ele nunca foi autorizado a replicar.

Recebi uma cópia da transcrição. Partes dela são assim:

 

  1. RANKIN: Quando olho para este repulsivo homem do New Deal sentado diante deste comitê, com seus modos pretensiosos, roupas da Bond Street e sua piteira efeminada, tudo que é norte-americano e cristão em mim se revolta. O homem do New Deal! Esse maldito New Deal se espalha nele como um câncer, e eu quero gritar: “Você é tudo o que há de errado com a América. Saia e volte para a China Vermelha que é seu lugar, seu socialista do New Deal! Na China eles darão boas-vindas a você e à sua traição”.

PRESIDENTE: O tempo de Sua Excelência terminou.

  1. RANKIN: Obrigado, Sr. presidente.

PRESIDENTE: Sr. Nixon?

  1. NIXON: Quais são os nomes dessas pessoas no Departamento de Estado que você consultou antes de sua viagem à China?

TESTEMUNHA: Devo lembrar ao comitê que aqueles com os quais lidei eram funcionários públicos norte-americanos agindo de boa-fé...

  1. NIXON: O comitê não está interessado em seus históricos. Apenas em seus nomes.

 

A transcrição prossegue, oitenta páginas no total. O Sr. Holmes aparentemente apunhalara o generalíssimo pelas costas e perdera a China para os vermelhos. Foi acusado de ser frouxo com o comunismo, assim como aquele fingido cor-de-rosa Henry Wallace que ele apoiara à presidência. John Rankin, de Mississippi – provavelmente a voz mais bizarra no comitê –, acusou o Sr. Holmes de ser parte da conspiração dos judeus vermelhos que havia crucificado Nosso Salvador. Richard Nixon, da Califórnia, continuou pedindo nomes – queria saber as pessoas que o Sr. Holmes havia consultado no Departamento de Estado para que pudesse fazer a elas o que já havia feito a Alger Hiss. O Sr. Holmes não deu qualquer nome e apelou para a Primeira Emenda. Foi quando o comitê realmente se levantou em indignação moral: eles o espancaram durante horas e no dia seguinte enviaram uma acusação de desacato ao Congresso. O Sr. Holmes estava a caminho da penitenciária.

Ele estava indo para a prisão e não havia cometido um único crime.

– Jesus Cristo, tenho de falar com Earl e David.

– Já o aconselhei contra isso, Sr. Braun.

– Ao inferno com isso. Temos que fazer planos.

– Escute-o, querido.

– Ao inferno com isso – o som de uma garrafa batendo em um copo. – Tem que haver um modo de sairmos disto.

Quando cheguei à suíte do Sr. Holmes, ele havia tomado um sedativo e fora colocado na cama.

Earl me disse que Blythe e Tachyon haviam recebido suas intimações e chegariam no dia seguinte.

Não conseguíamos entender o porquê. Blythe nunca teve qualquer participação nas decisões políticas e Tachyon não teve nada a ver com a China ou a política norte-americana.

David foi chamado na manhã seguinte. Estava sorrindo quando entrou. Ele se vingaria por todos nós.

 

  1. RANKIN: Gostaria de garantir ao cavalheiro judeu de Nova York que ele não encontrará qualquer preconceito por causa de sua raça. Qualquer homem que acredita nos princípios fundamentais do cristianismo e os segue, seja católico ou protestante, tem meu respeito e minha confiança.

TESTEMUNHA: Gostaria de dizer ao comitê que faço objeções à caracterização de “cavalheiro judeu”.

  1. RANKIN: Você faz objeções a ser chamado de judeu ou de cavalheiro? O que o incomoda?

Depois desse início difícil, os feromônios de David começaram a penetrar na sala e, embora ele não tenha conseguido fazer o comitê dançar em uma roda cantando “Hava Nagila”, fez com que afavelmente cancelassem as intimações, encerrassem as audiências, redigissem uma resolução louvando os Ases como patriotas, enviassem uma carta ao Sr. Holmes se desculpando por seu comportamento, retirassem as acusações de desacato contra os Dez de Hollywood e em geral fez com que passassem por idiotas durante várias horas, bem na frente das câmeras dos noticiários. John Rankin chamou David de “pequeno amigo hebreu da América”, para ele um grande elogio. David saiu dançando, vimos aquele sorriso de orelha a orelha e demos tapinhas em suas costas e voltamos ao Statler para uma celebração.

Tínhamos aberto a terceira garrafa de champanhe quando o detetive do hotel abriu a porta e assessores do Congresso distribuíram uma nova rodada de intimações. Ligamos o rádio e ouvimos o presidente John Wood fazer um discurso ao vivo sobre como David usara “controle mental do tipo praticado no Instituto Pavlov, na Rússia comunista” e como essa forma mortal de ataque seria plenamente investigada.

Eu me sentei na cama e fiquei olhando para as bolhas subindo pela taça de champanhe.

O Medo voltara.

Blythe foi na manhã seguinte. Suas mãos tremiam. David foi mandado embora por guardas no saguão usando máscaras de gás.

Havia caminhões com símbolos de guerra química do lado de fora. Mais tarde descobri que se tentássemos fugir, usariam fosgênio em nós.

Estavam construindo uma gaiola de vidro na sala de audiências. David testemunharia isolado, usando um microfone. O controle do microfone estava nas mãos de John Wood.

Aparentemente o comitê estava tão abalado quanto nós, pois o interrogatório foi um tanto desarticulado. Perguntaram a ela sobre a China, e como ela tinha ido em missão científica, não tinha nenhuma resposta para eles sobre as decisões políticas. Depois perguntaram sobre a natureza do seu poder, como exatamente ela absorvia mentes e o que fazia com elas. Foi tudo bastante educado. Afinal, Henry van Renssaeler ainda era um deputado e a cortesia profissional determinava que não sugerissem que sua esposa controlava a mente dele.

Eles dispensaram Blythe e chamaram Tachyon. Ele vestia um casaco pêssego e botas altas com borlas. Ignorara completamente os conselhos de seu advogado – entrou com a postura de um aristocrata cujo dever cumprido com relutância era corrigir os equívocos da malta.

Ele se superou completamente e o comitê o fez em pedaços. Eles o denunciaram como alienígena ilegal, depois o massacraram por ser o responsável por liberar o vírus selvagem e para completar exigiram os nomes dos ases de que havia tratado, apenas para o caso de eles serem perversos infiltrados influenciando as mentes dos Estados Unidos em benefício de Tio Joe Stalin.

Tachyon se recusou.

Eles o deportaram.

Harstein foi no dia seguinte, acompanhado por um destacamento de fuzileiros com trajes de guerra química. Assim que o colocaram na gaiola de vidro o fizeram em pedaços, como haviam feito com o Sr. Holmes. John Wood ficou com o botão do microfone e nunca o deixou falar, nem mesmo para responder quando Rankin o chamou publicamente de judeu repulsivo. Quando enfim teve oportunidade de falar, David atacou o comitê como sendo um bando de nazistas. Ao Sr. Wood aquilo soou desacato ao Congresso.

No final da audiência David também estava indo para a prisão.

O Congresso entrou em recesso de fim de semana. Earl e eu iríamos comparecer na segunda-feira seguinte.

Ficamos sentados na suíte do Sr. Holmes na noite de sexta-feira, ouvindo rádio e tudo era muito ruim. A Legião Americana estava organizando manifestações de apoio ao comitê por todo o país.

Havia uma série de intimações para pessoas de toda a nação sabidamente com habilidades de ases – nenhum curinga deformado foi convocado, pois não ficavam bem nas imagens. Meu agente deixara uma mensagem me dizendo que a Chrysler queria seu carro de volta e que o pessoal do Chesterfield telefonara e estava preocupado.

Eu tomei uma garrafa de uísque. Blythe e Tachyon estavam se escondendo em algum lugar.

David e o Sr. Holmes eram zumbis, sentados no canto, olhos fundos, introjetados em sua própria agonia. Nenhum de nós tinha nada a dizer, a não ser Earl.

– Vou apelar para a Primeira Emenda e que se danem – disse. – Se me colocarem na prisão, voarei para a Suíça.

Fiquei olhando para minha bebida.

– Eu não posso voar, Earl – disse.

– Claro que pode, caipira. Você mesmo disse.

– Eu não posso voar, droga! Me deixe em paz.

Eu não conseguia mais suportar aquilo e levei outra garrafa comigo para a cama. Kim queria conversar e apenas virei de costas e fingi estar dormindo.

– Sim, Sr. Mayer.

– Jack? Isso é terrível, Jack, simplesmente terrível.

– É, sim. Esses desgraçados, Sr. Mayer. Eles vão acabar com a gente.

– Apenas faça o que os advogados dizem, Jack. Você ficará bem. Seja corajoso.

– Corajoso? – reagi, rindo. – Corajoso?

– É a coisa certa, Jack. Você é um herói. Não podem tocar em você. Apenas diga a eles o que sabe e os Estados Unidos o amarão por isso.

– Quer que eu seja um rato.

– Jack, Jack. Não use esse tipo de palavras. É uma coisa patriótica que quero que você faça. A coisa certa. Quero que você seja um herói. E quero que saiba que sempre há um lugar na Metro para um herói.

– Quantas pessoas irão comprar ingressos para ver um rato, Sr. Mayer? Quantas pessoas?

– Passe o telefone para o advogado, Jack. Quero falar com ele. Seja um bom garoto e faça o que ele diz.

– Não farei porcaria nenhuma.

– Jack? O que posso fazer com você? Deixe-me falar com o advogado.

Earl estava flutuando do lado de fora da minha janela. Gotas de chuva brilhavam nos óculos colocados no alto do capacete de aviador. Kim olhou furiosa para ele e saiu do quarto. Eu levantei da cama, fui até a janela e a abri. Ele entrou voando, pousou as botas no carpete e acendeu um cigarro.

– Você não parece muito bem, Jack.

– Estou de ressaca, Earl.

Ele tirou do bolso um Washington Star dobrado.

– Há uma coisa aqui que irá deixar você sóbrio. Já viu o jornal?

– Não. Não vi porra nenhuma.

Ele o abriu. A manchete dizia: STALIN ANUNCIA APOIO AOS ASES.

Eu me sentei na cama e peguei a garrafa.

– Jesus.

Earl jogou o jornal no chão.

– Ele quer acabar conosco. Nós o deixamos fora de Berlim, Deus do céu. Ele não tem motivo para nos amar. Ele está perseguindo seus próprios talentos da carta selvagem lá.

– O desgraçado, o desgraçado. – Fechei os olhos. Cores latejaram na parte de trás de minhas pálpebras. – Tem um cigarro?

Ele me deu um e acendeu com seu Zippo da guerra. Recostei na cama e esfreguei a barba por fazer no meu queixo.

– Pelo que vejo, vamos ter dez anos ruins – disse Earl. – Talvez tenhamos até de deixar o país.

Ele balançou a cabeça.

– E então seremos heróis novamente. Isso não pode durar tanto.

– Você certamente sabe animar uma pessoa.

Ele riu. O cigarro tinha um gosto horrível. Eu afastei o gosto com uísque.

O sorriso sumiu do rosto de Earl e ele balançou a cabeça.

– São as pessoas que serão chamadas depois de nós; é por esses que lamento. Haverá uma caça às bruxas neste país durante anos – disse, balançando a cabeça. – A NAACP está pagando meu advogado. Eu poderia devolvê-lo. Não quero nenhuma organização associada a mim. Apenas será mais difícil para eles depois.

– Mayer ligou.

– Mayer – disse com uma careta. – Se pelo menos os caras que mandam nos estúdios tivessem se erguido quando os Dez se apresentaram perante o comitê. Se tivessem mostrado um pouco de coragem, nada disso teria acontecido.

Ele me lançou um olhar.

– Seria melhor você arrumar um novo advogado. A não ser que apele para a Quinta – disse,

franzindo o cenho. – A Quinta é mais rápida. Eles apenas perguntam seu nome, você diz que não vai responder e tudo acaba.

– Então que diferença faz um advogado?

– Bem pensado – disse ele, me dando um grande sorriso desigual. – Realmente não faz nenhuma diferença, não é? O que dissermos ou não dissermos. O comitê fará o que quiser de qualquer jeito.

– É. Acabou.

Enquanto ele olhava para mim, seu rosto ganhou um sorriso suave. Por um momento vi o brilho que Lillian dissera que o cercava. Ali estava ele, prestes a perder tudo pelo que tinha lutado, quase sendo usado como uma arma que golpearia o movimento pelos direitos civis, o anti-fascismo, o anti-imperialismo, o trabalhismo e tudo o mais que importava para ele, sabendo que seu nome seria anátema, que qualquer um a quem ele tivesse se ligado logo estaria enfrentando o mesmo tratamento... E ele de alguma forma aceitava isso, entristecido, claro, mas ainda sólido interiormente. O Medo sequer chegara perto de tocá-lo. Ele não temia o comitê, a desgraça, a perda de sua posição e seu status. Não lamentava por um só instante sua vida, um momento de dedicação às suas crenças.

– Acabou? – disse, um fogo nos olhos. – Que inferno, Jack, não acabou – disse, rindo. – Uma audiência de comitê não é a guerra. Somos ases. Eles não podem nos tirar isso. Certo?

– É. Acho.

– É melhor eu deixar que você cure sua ressaca – disse, indo para a janela. – De qualquer modo é hora do meu exercício matinal.

– Vejo você mais tarde.

Ele ergueu o polegar enquanto passava uma perna pelo peitoril da janela.

– Cuide-se, caipira.

– Você também.

Levantei da cama para fechar a janela no momento em que o chuvisco se transformava em tempestade. Olhei para a rua abaixo. Pessoas corriam para se abrigar.

– Earl realmente era um comunista, Jack. Ele foi do partido por anos, foi estudar em Moscou.

Escute, querido – disse, agora implorando –, você não pode ajudá-lo. Ele vai ser crucificado, não importa o que você faça.

– Posso mostrar a ele que não está sozinho na cruz.

– Maravilha. Que maravilha. Eu me casei com um mártir. Apenas me diga, como você vai ajudar seus amigos apelando para a Quinta? Holmes não voltará para a vida pública. David se colocou na cadeia. Tachyon vai ser deportado. E Earl está condenado, sem dúvida alguma. Você não pode sequer carregar a cruz deles.

– Quem está sendo sarcástico agora?

E depois gritando:

– Quer largar essa garrafa e prestar atenção em mim? É algo que seu país quer que você faça! É a coisa certa!

Eu não conseguia mais suportar, então fui dar uma caminhada na fria tarde de fevereiro. Não havia comido nada o dia todo e tinha uma garrafa de uísque dentro de mim, e o tráfego continuava zumbindo enquanto eu andava, a chuva batendo em meu rosto, encharcando meu paletó leve da Califórnia e eu não percebia nada disso. Só pensava naqueles rostos, Wood, Rankin e Francis Case, os rostos, os olhos com ódio e o desfile constante de insinuações, então comecei a correr para o Capitólio. Eu ia encontrar o comitê e acabar com ele, bater suas cabeças, fazer com que saíssem correndo gaguejando de medo. Eu levei a democracia à Argentina, por Deus, e podia levá-la a Washington da mesma forma.

As janelas do Capitólio estavam escuras. Chuva fria brilhava sobre o mármore. Não havia ninguém lá. Contornei procurando uma porta aberta, depois enfim invadi por uma entrada lateral e fui diretamente à sala do comitê. Escancarei a porta e entrei.

Estava vazia, claro. Não sabia por que estava tão surpreso. Só havia algumas luzes acesas. A gaiola de vidro de David brilhava à luz suave como uma peça de cristal refinado. Equipamentos de câmera e rádio estavam em seus lugares. O martelo do presidente brilhava em latão e verniz.

De alguma forma, enquanto ficava de pé como um imbecil no silêncio abafado da sala, a raiva escorreu de mim.

Eu me sentei em uma das cadeiras e tentei me lembrar do que estava fazendo ali. Era claro que os Quatro Ases estavam condenados. Éramos guiados pela lei e pela decência e o comitê, não. A única forma pela qual poderíamos combatê-los seria violando a lei, acertando seus rostos satisfeitos e fazendo a sala do comitê em pedaços, rindo enquanto os congressistas se jogavam no chão em busca de abrigo sob suas mesas. E se fizéssemos isso nos tornaríamos aquilo que combatíamos, uma força extralegal de terror e violência. Nós nos tornaríamos aquilo que o comitê dizia que éramos. E isso só pioraria as coisas.

Os Ases seriam derrotados e nada podia impedir isso.

Enquanto descia os degraus do Capitólio, me senti completamente sóbrio. Não importava o quanto tivesse para beber, o álcool não me impedia de saber o que sabia, de ver a situação em toda a sua clareza chocante e esmagadora.

Eu sabia, soube o tempo todo e não podia fingir que não.

Entrei no saguão na manhã seguinte com Kim de um lado e o advogado do outro. Earl estava lá, com Lillian de pé agarrando a bolsa.

Não consegui olhá-los. Passei por eles, os fuzileiros com máscaras de gás abriram a porta, entrei na sala de audiência e anunciei minha intenção de depor perante o comitê como testemunha amigável.

Depois o comitê desenvolveu um procedimento para testemunhas amigáveis. Haveria primeiramente uma sessão fechada, apenas a testemunha e o comitê, uma espécie de ensaio geral para que todos soubessem sobre o que falariam e qual informação seria dada, para que as coisas funcionassem bem durante a sessão pública. Aquele procedimento não havia sido criado quando testemunhei, portanto tudo foi um pouco desajeitado.

Eu suava sob os holofotes, tão aterrorizado que mal conseguia falar – tudo o que conseguia ver eram aqueles nove pares de olhinhos perversos me encarando do outro lado da sala, e tudo o que conseguia ouvir eram suas vozes, ribombando dos alto-falantes como a voz de Deus.

Wood começou, fazendo as perguntas iniciais: quem eu era, onde morava, o que fazia para viver. Depois começou a falar de minhas ligações, começando por Earl. Seu tempo acabou e ele me passou para Kearney.

– Tem consciência de que o Sr. Sanderson foi um dia membro do Partido Comunista?

Sequer ouvi a pergunta. Kearney teve de repetir.

– Ahn? Ah. Sim, ele me contou.

– Sabe se ele ainda é membro?

– Acredito que rompeu com o partido depois da coisa germano-soviética.

– Em 1939.

– Se foi quando a coisa germano-soviética aconteceu. 1939. Acho.

Eu me esqueci de todos os elementos de técnica teatral que nunca conhecera. Estava brincando com a gravata, murmurando ao microfone, suando. Tentando não olhar para aqueles nove pares de olhos.

– Tem conhecimento de qualquer ligação comunista mantida pelo Sr. Sanderson posteriormente ao pacto germano-soviético?

– Não.

Então veio.

– Ele não mencionou a você nenhum nome pertencente a grupos comunistas ou ligados aos comunistas?

Eu disse a primeira coisa que me veio à cabeça. Sequer pensei.

– Houve uma garota, acho, na Itália. Que ele conheceu na guerra. Acho que o nome dela era Lena Goldoni. É atriz agora.

Aqueles pares de olhos sequer piscaram. Mas pude ver sorrisinhos em seus rostos. E pude ver com o canto do olho os repórteres de repente se curvando sobre seus blocos.

– Poderia soletrar o nome, por favor?

E essa foi a estaca no caixão de Earl. O que quer que pudesse ter sido dito sobre Earl até então, pelo menos o teria revelado fiel a seus princípios. A traição a Lillian insinuava outras traições, talvez a seu país. Eu o destruíra com algumas poucas palavras e na época sequer sabia o que estava fazendo.

Eu tagarelei. Ansioso para terminar, disse tudo que passou pela minha cabeça. Falei sobre amar a América e sobre como só dissera aquelas coisas legais sobre Henry Wallace para satisfazer o Sr. Holmes, e claro que era uma coisa idiota a fazer. Eu não queria mudar o modo de vida do Sul, o modo de vida do Sul era um bom modo de vida. Eu vi E o vento levou duas vezes, um grande filme. A Sra. Bethune era apenas uma amiga de Earl com a qual tirei uma foto. Velde assumiu o

interrogatório.

– Tem conhecimento dos nomes de algum suposto ás que possa estar vivendo neste país hoje?

– Não. Nenhum, quero dizer, além daqueles que já receberam intimações do comitê.

– Sabe se Earl Sanderson conhece algum nome?

– Não.

– Ele não confidenciou isso a você de algum modo?

Tomei um gole de água. Quantas vezes eles repetiriam aquilo?

– Se ele conhece o nome de algum ás, não o mencionou em minha presença.

– Sabe se o Sr. Harstein conhece algum nome?

Continuava.

– Não.

– Acredita que o Dr. Tachyon conhece algum nome?

Já tinham abordado aquilo. Eu estava apenas confirmando o que eles sabiam.

– Ele tratou de muitas pessoas afetadas pelo vírus. Suponho que saiba seus nomes. Mas ele nunca mencionou nenhum nome para mim.

– A Sra. van Renssaeler sabe da existência de algum outro ás?

Comecei a balançar a cabeça, então um pensamento me ocorreu e eu gaguejei:

– Não. Não ela mesma, não.

Velde prosseguiu.

– O Sr. Holmes... – começou, e então Nixon sentiu algo ali, no modo como eu acabara de responder a pergunta e pediu a Velde permissão para interromper. Nixon era o cara esperto, sem dúvida. Seu jovem rosto de esquilo ansioso olhou para mim atentamente por cima do microfone.

– Eu poderia pedir que a testemunha esclarecesse sua declaração?

Fiquei horrorizado. Tomei outro gole de água e tentei pensar em um jeito de sair daquilo. Não consegui. Pedi a Nixon que repetisse a pergunta. Ele o fez. Minha resposta saiu antes que ele tivesse terminado.

– A Sra. van Renssaeler absorveu a mente do Dr. Tachyon. Ela saberia qualquer nome que ele soubesse.

A coisa estranha era que eles não haviam descoberto sobre Blythe e Tachyon até então.

Precisaram que o grande atleta de Dakota aparecesse para juntar as peças para eles.

Eu deveria ter sacado uma arma e atirado nela. Teria sido mais rápido.

O presidente Wood me agradeceu ao final do depoimento. Quando o presidente do comitê dizia obrigado significava que você estava limpo no que dizia respeito a eles, e outras pessoas podiam se ligar a você sem medo de se transformar em párias. Significava que você tinha um emprego nos Estados Unidos da América.

Saí da sala de audiência com meu advogado de um lado e Kim do outro. Não olhei nos olhos dos meus amigos. Em uma hora estava em um avião voltando para a Califórnia.

A casa em Summit estava cheia de buquês de congratulações dos amigos que fiz na indústria cinematográfica. Havia telegramas de todo o país dizendo como havia sido corajoso, como havia sido patriota. A Legião Americana estava fortemente representada.

Em Washington, Earl estava apelando para a Quinta.

Eles nem deram atenção à Quinta nem o deixaram ir. Fizeram uma pergunta insinuante atrás da outra e o obrigaram a recorrer à Quinta em cada uma delas. Você é comunista? Earl respondeu com a Quinta. É um agente do governo soviético? A Quinta. Está ligado a espiões soviéticos? A Quinta. Conhece Lena Goldoni? A Quinta. Lena Goldoni foi sua amante? A Quinta. Lena Goldoni era uma agente soviética? A Quinta.

Lillian estava sentada em uma cadeira logo atrás. Sentada muda, agarrando sua bolsa, enquanto o nome de Lena era repetido.

E finalmente Earl se cansou. Ele se inclinou para a frente, o rosto tomado de raiva.

– Tenho coisas melhores a fazer do que me incriminar diante de um bando de fascistas! – rosnou e imediatamente determinaram que ele abrira mão da Quinta ao falar e fizeram as perguntas todas novamente. Quando, tremendo de fúria, ele anunciou que simplesmente reafirmaria a Quinta e continuaria a se recusar a responder, eles o acusaram de desacato.

Ele se juntaria ao Sr. Holmes e a David na prisão.

Pessoas da NAACP se reuniram com ele naquela noite. Disseram para se afastar do movimento pelos direitos civis. Ele havia feito a causa recuar cinquenta anos. Deveria manter distância no futuro.

O ídolo caíra. Ele moldou a imagem de um super-homem, um herói sem falhas, e, assim que mencionei Lena, o povo de repente se deu conta de que Earl Sanderson era humano. Eles o culparam por isso, por sua própria ingenuidade de acreditar nele e por sua própria perda de fé repentina, e em tempos passados poderiam tê-lo apedrejado ou enforcado na macieira mais próxima, mas no final o que fizeram foi pior.

Deixaram que vivesse.

Earl sabia que estava acabado, era um homem morto que caminhava, que dera a eles uma arma que foi usada para esmagá-lo e a tudo em que ele acreditava, que havia destruído a imagem heróica que criou com tanto cuidado, que destruía as esperanças de todos que haviam acreditado nele... Ele levou essa consciência consigo até o dia de sua morte, e isso o paralisou. Ainda era jovem, mas estava inválido e nunca mais voaria tão alto ou tão longe.

No dia seguinte o comitê convocou Blythe. Nem mesmo quero pensar no que aconteceu então.

Garoto Dourado estreou dois meses depois das audiências. Eu me sentei ao lado de Kim na estréia e, no instante em que o filme começou, percebi que dera terrivelmente errado.

O personagem de Earl Sanderson havia desaparecido, simplesmente cortado do filme. O personagem de Archibald Holmes não era do FBI, mas também não era independente, pertencia àquela nova organização, a CIA. Alguém fez muitas novas filmagens. O regime fascista na América do Sul havia sido transformado em um regime comunista na Europa Oriental, comandado por homens morenos com sotaques espanhóis. Sempre que um dos personagens dizia “nazista” era dublado para “comuna”, e a dublagem era alta, ruim e nada convincente.

Vaguei chocado pela recepção depois. Todos continuavam a me dizer como eu era um grande ator, como era um grande filme. O cartaz do filme dizia Jack Braun – Um herói em quem a América pode confiar! Eu queria vomitar.

Saí cedo e fui para a cama.

Continuei a receber 10 mil por semana enquanto o filme fracassava totalmente nas bilheterias.

Disseram que o filme de Rickenbacker seria um grande sucesso, mas que naquele momento estavam tendo problemas com o roteiro do meu filme seguinte. Os dois primeiros roteiristas haviam sido convocados pelo comitê e acabaram na lista negra por não fornecer nomes. Isso me fez querer chorar.

Depois que os recursos dos Dez de Hollywood foram rejeitados, o ator que eles chamaram em seguida foi Larry Parks, o homem que eu estava vendo quando o vírus atingiu Nova York. Ele deu nomes, mas não os deu com suficiente boa vontade e sua carreira chegou ao fim.

Aparentemente eu não conseguia me livrar da coisa. Algumas pessoas não conversavam comigo nas festas. Algumas vezes ouvia fragmentos de conversas. “Ás Judas”. “Rato Dourado”.

“Testemunha Amigável”, dito como se fosse um nome ou título.

Comprei um Jaguar para tentar me sentir melhor.

Enquanto isso, os norte-coreanos cruzaram o paralelo 38 e as forças dos Estados Unidos estavam sendo esmagadas em Taejön. Eu não estava fazendo nada além de aulas de interpretação duas vezes por semana.

Liguei pessoalmente para Washington. Eles me deram uma patente de tenente-coronel e me levaram em um avião especial.

A Metro achou que era um grande golpe publicitário.

Recebi um helicóptero especial, um daqueles primeiros Bell, com um piloto dos pântanos da Louisiana que decididamente tinha pulsão de morte. Havia um desenho meu nas laterais, com um joelho levantado e um braço erguido, como se fosse o Super-Homem voando.

Eu era levado para trás das linhas norte-coreanas e chutava uns traseiros. Era muito simples.

Eu demolia colunas inteiras de tanques. Qualquer peça de artilharia vista pelo nosso lado era transformada em rosquinhas. Fiz prisioneiros quatro generais norte-coreanos e resgatei o general Dean dos coreanos que o haviam capturado. Empurrei comboios de suprimentos de encostas de montanhas. Eu era feroz, determinado e raivoso, estava salvando vidas norte-americanas e era muito bom nisso.

Uma foto minha saiu na capa da Life. Ela me mostra com aquele sorriso apertado de Clint Eastwood, segurando um T-34 acima da cabeça. Há um norte-coreano muito surpreso na torre. Eu brilho como um meteoro. A fotografia era intitulada O superastro de Pusan, com “superastro” sendo uma palavra nova na época.

Eu estava muito orgulhoso do que fazia.

Nos Estados Unidos, Rickenbacker era um sucesso. Não um sucesso tão grande quanto todos haviam esperado, mas era espetacular e rendeu um bom dinheiro. As plateias pareciam um pouco ambíguas em suas reações ao astro. Mesmo aparecendo na capa da Life, havia algumas pessoas que não conseguiam me ver como um herói.

A Metro relançou Garoto Dourado. Fracassou novamente.

Não me importei muito. Estava mantendo o perímetro de Pusan. Estava lá com os recrutas, sob fogo metade do tempo, dormindo em uma barraca, comendo enlatados e parecendo alguém saído de um cartum de Bill Mauldin. Acho que era um comportamento único para um tenente-coronel.

Os outros oficiais odiavam, mas o general Dean me apoiava – em dado momento ele mesmo estava atirando em tanques com uma bazuca – e eu era um sucesso com os soldados.

Eles me levaram de avião à ilha Wake para que Truman pudesse me dar a Medalha de Honra e MacArthur foi no mesmo avião. Ele pareceu preocupado o tempo todo, não perdeu tempo conversando comigo. Parecia inacreditavelmente velho, nas últimas. Acho que não gostava de mim.

Uma semana depois saímos de Pusan e MacArthur desembarcou a X Divisão em Inchon. Os norte-coreanos correram para lá.

Cinco dias depois eu estava de volta à Califórnia. O exército me disse, bem secamente, que meus serviços não eram mais necessários. Estou bastante certo de que foi coisa de MacArthur.

Queria ser o superastro da Coreia e não gostaria de dividir as honras. E na época provavelmente havia outros ases – ases legais, quietos, anônimos – trabalhando para os Estados Unidos.

Eu não queria partir. Durante algum tempo, particularmente após MacArthur ter sido esmagado pelos chineses, continuei a telefonar para Washington com novas ideias de como podia ser útil.

Podia atacar os campos de pouso na Manchúria que estavam nos dando tantos problemas. Ou poderia ser o homem de frente para uma ofensiva. As autoridades foram muito educadas, porém estava claro que não me queriam.

Mas tive notícias da CIA. Depois de Dien Bien Phu, quiseram me mandar à Indochina para acabar com Bao Dai. O plano parecia incompetente – não tinham ideia de quem ou o que colocar no lugar de Bao Dai, para começar; esperavam apenas que “forças liberais anti-comunistas nativas” se levantassem e assumissem o controle – e o cara encarregado da operação continuava a usar jargão da Madison Avenue para disfarçar o fato de que não sabia nada sobre o Vietnã ou qualquer das pessoas com as quais supostamente estava lidando.

Recusei a oferta. Depois daquilo, meu único envolvimento com o governo federal passou a ser pagar meus impostos todo mês de abril.

Enquanto eu estava na Coreia os recursos dos Dez de Hollywood se esgotaram. David e o Sr. Holmes foram para a prisão. David cumpriu três anos. O Sr. Holmes cumpriu apenas seis meses e foi libertado por razões de saúde. Todos sabem o que aconteceu com Blythe.

Earl fugiu para a Europa e apareceu na Suíça, onde renunciou à cidadania norte-americana e se tornou um cidadão do mundo. Um mês depois estava morando com Orlena Goldoni no apartamento dela em Paris. Ela havia se tornado uma grande estrela. Imagino que decidiu que, como não havia mais razão para esconder o relacionamento, podia exibi-lo.

Lillian permaneceu em Nova York. Talvez Earl mandasse dinheiro para ela. Não sei.

Perón voltou à Argentina em meados da década de 1950, juntamente com sua piranha oxigenada.

O Medo indo para o Sul.

Fiz filmes, mas de alguma forma nenhum deles foi o sucesso esperado. A Metro continuava resmungando sobre meu problema de imagem.

As pessoas não conseguiam acreditar que eu era um herói. Eu também não conseguia e isso afetava minha interpretação. Em Rickenbacker eu estivera convicto. Depois disso, nada.

Kim tinha a própria carreira. Não a via muito. Finalmente o detetive dela conseguiu uma foto minha na cama com a dermatologista que fazia sua maquiagem toda manhã e Kim ficou com a casa em Summit Drive, as empregadas, o jardineiro, os motoristas e a maior parte do meu dinheiro, e terminei em uma pequena casa de praia em Malibu com o Jaguar na garagem. Algumas vezes, minhas festas duravam semanas.

Houve dois casamentos depois disso e o mais longo durou apenas oito meses. Eles me custaram o restante do dinheiro que havia ganhado. A Metro me dispensou e trabalhei para a Warner. Os filmes foram cada vez piores. Fiz o mesmo faroeste umas seis vezes.

Finalmente enfrentei a realidade. Minha carreira no cinema havia terminado anos antes e eu estava quebrado. Procurei a NBC com a ideia de uma série de televisão.

Tarzan dos macacos durou quatro anos. Eu era produtor executivo e na tela servia de escada para um chimpanzé. Fui o primeiro e único Tarzan louro. Tinha muito ibope e a série me sustentou pelo resto da vida.

Depois disso, fiz o que todo ex-ator de Hollywood faz. Entrei no mercado imobiliário. Vendi casas de atores na Califórnia por algum tempo e então abri uma empresa e comecei a construir prédios de apartamentos e shopping centers. Quase sempre usava o dinheiro de outras pessoas – não correria o risco de quebrar de novo. Levantei shoppings em metade das pequenas cidades do Meio-Oeste.

Ganhei uma fortuna. Mesmo depois de não precisar mais de dinheiro, continuei nisso. Não tinha muito mais a fazer.

Quando Nixon foi eleito, fiquei doente. Não entendia como as pessoas podiam acreditar naquele homem.

Depois que o Sr. Holmes saiu da prisão, começou a trabalhar como editor da New Republic.

Morreu em 1955, câncer de pulmão. Sua filha herdou o dinheiro da família. Suponho que minhas roupas ainda estavam nos armários dele.

Duas semanas após Earl fugir do país, Paul Robeson e W.E.B. Du Bois ingressaram no Partido Comunista norte-americano, recebendo as carteiras do partido em uma cerimônia pública na Herald Square. Anunciaram que se juntavam aos protestos pelo tratamento dispensado a Earl pelo comitê.

O comitê chamou muitos negros para sua sala. Até mesmo Jackie Robinson foi intimado e apareceu como testemunha amigável. Diferentemente das testemunhas brancas, os negros nunca eram conclamados a citar nomes. O comitê não queria criar mais mártires negros. Em vez disso, as testemunhas eram conclamadas a denunciar os pontos de vista de Sanderson, Robeson e Du Bois. Muitas fizeram isso.

Ao longo da década de 1950 e da maior parte da de 1960 foi difícil ter noção do que Earl estava fazendo. Vivia discretamente com Lena Goldoni em Paris e Roma. Ela era uma grande estrela, politicamente atuante, mas Earl não aparecia muito.

Ele não estava se escondendo, acho. Apenas ficando fora de vista. Existe uma diferença.

Mas havia boatos. De que havia sido visto na África em várias guerras pela independência. De que combatera na Argélia contra os franceses e o Exército Secreto. Quando interrogado, Earl se recusava a confirmar ou negar suas atividades. Era cortejado por pessoas e causas de esquerda, mas raramente se comprometia publicamente. Acho que, como eu, não queria ser usado novamente. Mas também acho que tinha medo de prejudicar uma causa se ligando a ela.

O reino de terror finalmente acabou, como Earl disse que aconteceria. Enquanto eu balançava em cipós na selva como Tarzan, John e Robert Kennedy acabaram com a lista negra, passando por um piquete da Legião Americana para ver Spartacus, um filme com roteiro de um dos Dez de Hollywood.

Ases começaram a sair dos esconderijos, ingressando na vida pública. Mas passaram a usar máscaras e nomes inventados, como nos quadrinhos que havia lido durante a guerra e achado tão bobos. Não era mais bobo. Eles não correriam riscos. O Medo poderia voltar um dia.

Foram escritos livros sobre nós. Recusei todas as entrevistas. Algumas vezes a pergunta era feita em público e eu simplesmente ficava frio e dizia: “Eu me recuso a falar sobre isto neste momento”. Minha própria Quinta Emenda.

Nos anos 1960, quando o movimento pelos direitos civis começou a ganhar força no país, Earl foi a Toronto e se instalou na fronteira. Ele se encontrou com líderes negros e jornalistas, falou apenas sobre direitos civis.

Mas, naquela altura, Earl era irrelevante. A nova geração de líderes negros invocava sua memória e citava seus discursos e os Panteras copiavam sua jaqueta de couro, botas e boina, mas sua existência continuada, como um ser humano em vez de como símbolo, era um pouco perturbadora. O movimento teria preferido um mártir morto cuja imagem pudesse ser usada com qualquer objetivo a um homem vivo e apaixonado que dava suas próprias opiniões em voz alta e clara.

Talvez ele tivesse sentido isso quando convidado a ir ao Sul. O pessoal da imigração provavelmente teria permitido. Mas hesitou demais e então Nixon se tornou presidente. Earl não entraria em um país comandado por um antigo integrante do comitê.

Nos anos 1970, Earl se instalou permanentemente no apartamento de Lena em Paris. Panteras exilados como Cleaver tentaram atuar em causas em comum com ele e fracassaram.

Lena morreu em 1975 em um acidente de trem. Deixou seu dinheiro para Earl.

Ele deu entrevistas de tempos em tempos. Eu as rastreava e lia. Segundo um entrevistador, uma das condições para a entrevista era que não fossem feitas perguntas sobre mim. Talvez ele quisesse que certas lembranças tivessem morte natural. Quis agradecer a ele por isso.

Há uma história, quase uma lenda, espalhada por aqueles que marcharam para a cidade de Selma em 1965, durante a cruzada pelo direito ao voto... De que quando os policiais avançaram com gás lacrimogêneo, cassetetes e cães, e os manifestantes começaram a cair diante da onda de patrulheiros brancos, alguns deles juraram que olharam para o céu e viram um homem voando, uma figura negra esticada, de jaqueta de aviador e capacete, mas que o homem simplesmente pairou e depois partiu, incapaz de agir, incapaz de decidir se usar seus poderes teria ajudado sua causa ou a prejudicado. A mágica não voltara, nem mesmo em um momento tão fundamental, e depois daquilo não restou mais nada em sua vida além da cadeira no café, o cachimbo, o jornal e a hemorragia cerebral que finalmente o levou para seja lá o que nos espere no céu.

Com frequência começo a pensar se acabou, se as pessoas realmente esqueceram. Mas hoje os ases fazem parte da vida, parte do cenário e o mundo inteiro é criado com a mitologia dos ases, a história dos Quatro Ases e seu traidor. Todos conhecem o Ás Judas e sabem sua aparência.

Em um dos meus períodos de otimismo, eu me vi em Nova York a trabalho. Fui ao Aces High, o restaurante do Empire State que a nova geração de ases frequenta. Fui recebido à porta por Hiram, o ás que costumava chamar a si mesmo de Bolão até sua verdadeira identidade ser revelada, e imediatamente percebi que me reconheceu e que eu estava cometendo um grande erro.

Foi bastante educado, reconheço, mas seu sorriso lhe custou muito esforço. Ele me instalou em um canto escuro onde as pessoas não me veriam. Pedi uma bebida e um filé de salmão.

Quando o prato chegou, o filé estava cercado por um arrumado círculo de moedas de dez centavos. Eu as contei. Trinta peças de prata.

Eu me levantei e saí. Pude sentir os olhos de Hiram sobre mim o tempo todo. Nunca voltei.

Não podia culpá-lo.

Quando eu estava fazendo Tarzan, as pessoas me chamavam de bem conservado. Depois, quando estava vendendo imóveis e construindo, todos me diziam o quanto o trabalho me fazia bem.

Parecia muito jovem.

Se olho no espelho agora, vejo o mesmo cara jovem que percorria as ruas de Nova York a caminho de testes de ator. O tempo não acrescentou uma ruga, não me mudou fisicamente de modo nenhum. Hoje tenho 55 e pareço ter 22 anos. Talvez nunca vá envelhecer.

Ainda me sinto um rato. Mas só fiz o que meu país mandou.

Talvez eu vá ser o Ás Judas para sempre.

Algumas vezes fico pensando em voltar a ser um ás, vestir uma máscara e um traje para ninguém me reconhecer. Chamar a mim mesmo de Homem Músculo, Garoto da Praia, Gigante Louro ou algo assim. Sair e salvar o mundo, ou pelo menos uma parte dele.

Mas então penso: não. Tive meu tempo e acabou. E quando tive a chance, não consegui salvar sequer minha própria integridade. Ou Earl. Ou qualquer um.

Deveria ter ficado com as moedas. Afinal, eu as mereci.

 

                         Ritos de degradação

                         Melinda M. Snodgrass

 

Uma página de jornal do tamanho de um selo postal passou voando pela grama seca do parque em Neuilly e pousou na base de uma estátua de bronze do almirante D’Estaing. Sacudiu intermitentemente, como um animal exausto parando para respirar; em seguida, o vento gelado de dezembro a apanhou mais uma vez e a enviou adiante, deslizando rapidamente.

O homem jogado em um banco de ferro no centro do parque observou o papel se aproximando com o ar de quem encara uma decisão monumental. Então, com o cuidado exagerado de um bêbado de longa data, esticou o pé e o pegou.

Enquanto se curvava para pegar o papel esfarrapado, uma torrente de vinho tinto da garrafa aninhada entre suas coxas escorreu pela perna. Uma sequência de xingamentos, composta de diversos idiomas europeus e pontuada de tempos em tempos por uma estranha palavra cantada, saiu de seus lábios. Tampando a garrafa, ele limpou a mancha que se espalhava com um grande lenço roxo e pegou o jornal, a edição de Paris do Herald Tribune, e começou a ler. Seus claros olhos de cor lilás passaram pelas colunas enquanto devorava as palavras.

 

  1. Robert Oppenheimer foi acusado de ter relações comunistas e de possível traição. Fontes próximas da Comissão de Energia Atômica confirmam que estão sendo tomadas providências para rescindir seu certificado de segurança e afastá-lo da Presidência da Comissão.

 

O homem amassou o papel compulsivamente, reclinou-se no banco e fechou os olhos.

– Malditos sejam, que Deus amaldiçoe a todos – sussurrou em inglês.

Como em resposta, seu estômago deu um ronco alto. Ele franziu o cenho com raiva e tomou um longo gole do vinho tinto barato. A bebida desceu amargamente sobre sua língua e explodiu com calor causticante em seu estômago vazio. Os roncos diminuíram e ele suspirou.

Um volumoso sobretudo cor de pêssego claro decorado com enormes botões de latão e várias sobrevestes estavam lançados sobre seus ombros, como um manto. Por baixo, vestia um paletó azul-celeste e calças azuis apertadas enfiadas em botas de couro surradas da altura dos joelhos. O colete era de um azul mais escuro do que o paletó e as calças, bordado com padrões intrincados em fios de ouro e prata. Todas as peças de roupa estavam manchadas e amarrotadas, e havia remendos na camisa de seda branca. Um violino e um arco repousavam a seu lado no banco, e estojo do instrumento (explicitamente aberto) estava no chão a seus pés. Sob o banco havia uma mala gasta, e uma bolsa de couro vermelha, estampada em folha de ouro com uma palma, duas luas, uma estrela e um estreito bisturi dispostos em graciosa harmonia no centro, repousava junto a ela.

O vento recomeçou, agitando os galhos das árvores e balançando seus cachos emaranhados até a altura dos ombros. Cabelos e sobrancelhas eram vermelho metálico, e a barba por fazer, que escurecia as bochechas e o queixo, era do mesmo tom incomum. A página de jornal sacudia sob sua mão, e ele abriu os olhos e a observou. A curiosidade superou o ultraje e, com um gesto de mão, abriu o papel e recomeçou.

 

                                 A ESPECIALISTA MORRE

 

Blythe van Renssaeler, também conhecida como A Especialista, morreu ontem no sanatório Wittier. Integrante do infame grupo Quatro Ases, foi internada no sanatório Wittier pelo marido, Henry van Renssaeler, pouco depois de comparecer perante o Comitê da Câmara sobre Atividades Anti-americanas...

 

O texto embaçou enquanto seus olhos se enchiam de água. O líquido se acumulou lentamente até que uma lágrima transbordou e escorreu depressa pela extensão de seu nariz fino e comprido.

Ficou absurdamente pendurada na ponta, mas ele não fez nenhum movimento para retirá-la. Estava paralisado, mantido em uma estase medonha que não tinha nada a ver com dor. Isso viria depois; tudo o que sentia no momento era um grande vazio.

Eu deveria saber, deveria ter sentido , pensou. Pousou o jornal sobre o joelho e passou suavemente sobre a matéria o indicador esguio, como um homem acariciaria o rosto de sua amada. Percebeu de um modo muito abstrato que havia mais fatos, fatos sobre a China, sobre Archibald, sobre os Quatro Ases e o vírus.

E todos eles errados! – pensou com selvageria, e sua mão se contraiu sobre a página em um espasmo.

Rapidamente alisou o papel e voltou a acariciá-lo. Ele se perguntou se sua morte teria sido fácil. Se a haviam retirado daquele cubículo imundo e a levado para o hospital...

O aposento fedia a suor e medo, a fezes e ao enjoativo cheiro adocicado de putrefação, e, acima de tudo, flutuava o odor pungente de antisséptico. Muito do suor e do medo estava sendo gerado por três jovens residentes que se apertavam como ovelhas perdidas no centro da enfermaria. Junto à parede sul uma cortina isolava um leito dos demais pacientes, mas não podia bloquear os grunhidos inumanos que se erguiam por trás daquela frágil barreira.

Perto, uma mulher de meia-idade estava curvada sobre seu breviário, lendo o serviço de vésperas. Um rosário madrepérola pendia de seus dedos finos e periodicamente gotas de sangue caíam nas páginas. Quando isso acontecia, os lábios se moviam em uma prece rápida e ela limpava o sangue. Se o sangramento constante se limitasse a um verdadeiro estigma, ela poderia ser canonizada, mas sangrava por todos os orifícios. Escorria sangue de suas orelhas, embaraçando os cabelos e sujando os ombros do hábito, da boca, do nariz, dos olhos, do reto... de toda parte. Um médico cansado a apelidara de Irmã Maria Hemorragia na sala de descanso certa noite, e a gargalhada resultante só podia ser desculpada com base na entorpecente exaustão.

Todos os profissionais de saúde da região de Manhattan estavam em regime de trabalho quase constante desde o Dia da Carta Selvagem, em 15 de setembro de 1946, e cinco meses de trabalho incessante estavam deixando suas marcas.

Ao lado havia um homem negro, antes bonito, flutuando em um banho de solução salina. Dois dias antes, começara a trocar a pele novamente e agora só lhe restavam vestígios. Seus músculos brilhavam nus e infeccionados e Tachyon ordenou que fosse tratado como vítima de queimadura.

Ele sobreviveu a uma dessas trocas. Era duvidoso se sobreviveria a outra.

Tachyon liderava uma sombria procissão de médicos na direção da cortina.

– Irão se juntar a nós, cavalheiros? – chamou com a suave voz grave pontuada por um sotaque oscilante e musical que lembrava a Europa Central ou a Escandinávia. Os residentes se adiantaram com relutância.

Uma enfermeira impassível abriu a cortina, revelando um velho macilento. Seus olhos fitaram com desespero os médicos e horríveis sons abafados saíram de seus lábios.

– Um caso interessante, este – disse Mandel, erguendo o prontuário. – Por alguma razão bizarra, o vírus está fazendo com que todas as cavidades no corpo deste homem se fechem. Em alguns dias seus pulmões não serão capazes de inalar ar, nem haverá espaço para o devido funcionamento de seu coração...

– Então, por que não acabar com isso? – perguntou Tachyon, tomando a mão do homem e percebendo o aperto que respondia às suas palavras.

– O que está sugerindo? – reagiu Mandel, baixando a voz para um sussurro urgente.

Tachyon pronunciou cada palavra claramente.

– Nada pode ser feito. Não seria mais gentil poupá-lo dessa morte lenta?

– Não sei o que se passa por medicina em seu mundo; ou talvez saiba, a julgar por esse vírus infernal que vocês criaram; mas neste mundo não assassinamos nossos pacientes.

Tach sentiu os músculos de seu maxilar se contraírem de raiva.

– Vocês sacrificam um cachorro ou um gato por misericórdia, mas negam a seu próprio povo a única droga conhecida que realmente alivia o sofrimento e forçam as pessoas a uma dor agonizante. Ah... Malditos sejam!

Ele jogou o jaleco para trás, revelando um traje espalhafatoso de brocados de ouro fosco, e se sentou na beirada da cama. O homem se esticou desesperadamente para cima e Tachyon agarrou suas mãos. Foi uma coisa fácil entrar na sua mente.

Morrer, me deixe morrer , veio o pensamento marcado pelo sabor de dor e medo e ainda assim havia uma calma certeza no pedido do homem.

Não posso. Eles não permitirão, mas posso lhe dar sonhos. Ele se moveu rapidamente, bloqueando os centros de dor e raciocínio do cérebro do homem. Em sua própria mente, viu isso como uma parede concreta, construída com cintilantes blocos de energia brancos e prateados.

Estimulou os centros de prazer do homem, permitindo que mergulhasse em sonhos que ele mesmo concebia. O que construíra seria temporário; duraria apenas alguns dias, mas seria o suficiente – antes disso, aquele curinga teria morrido.

Ele se ergueu e baixou os olhos para o rosto sereno do homem.

– O que você fez? – cobrou Mandel.

Lançou um olhar arrogante para o outro médico.

– Apenas mais um pouco de magia takisiana infernal.

Com um altivo aceno de cabeça para os residentes, ele saiu da enfermaria. No saguão, havia leitos junto às paredes e um assistente abria caminho cuidadosamente pela passagem. Shirley Dashette o chamou do posto das enfermeiras. Eles haviam passado várias noites agradáveis explorando as diferenças e semelhanças entre os modos takisiano e humano de fazer amor, mas,

naquela noite, não conseguiu mais do que um sorriso e a falta de uma reação física o alarmou.

Talvez estivesse na hora de dar uma descansada.

– Sim?

– O Dr. Bonners gostaria de consultá-lo. A paciente está em choque e eventualmente fica histérica, mas não tem nenhum problema físico e ele pensou...

– Que poderia ser um dos meus.

Ah, Deus, não permita que seja outro curinga, resmungou em silêncio. Acho que não posso encarar outra monstruosidade.

– Onde ela está?

– Quarto 223.

Ele podia sentir a exaustão lambendo seus nervos e fazendo os músculos tremerem. E bem perto da sensação de exaustão vinham desespero e autopiedade. Com um xingamento abafado, lançou a mão sobre o tampo da mesa e Shirley recuou.

– Tach? Você está bem? – perguntou, a mão fria sobre seu rosto.

– Sim. Claro. – Ele forçou os ombros para trás, apertou o passo e se dirigiu para o corredor.

Bonners estava reunido com outro médico quando Tachyon abriu a porta. Bonners franziu o cenho, mas pareceu mais do que disposto a permitir que ele assumisse quando a mulher na cama deu um grito lancinante e fez força contra as correias. Tach pulou para o lado dela, colocou uma mão gentil sobre sua testa e se fundiu à sua mente.

 

AH DEUS! A eleição, será que Riley fez o que era necessário? Deus sabe que ele pagou o bastante por isso. Comprou uma vitória, mas estaria ferrado se tivesse comprado uma vitória esmagadora. (...) Mamãe, estou com medo (...) A mordida de uma manhã de inverno e o chiado de uma lâmina de patim deslizando pelo gelo (...) Uma mão segurando a dela (...) mão errada.

Onde estava Henry? Deixá-la agora (...) quantas horas mais (...) ele devia estar aqui (...) Outra contração vindo. NÃO. Ela não podia ouvir isso. Mamãe (...) Henry (...) DOR!

 

Ele recuou e se chocou ofegante contra o armário.

– Deus do céu, Dr. Tachyon, está tudo bem?

A mão de Bonners estava em seu braço.

– Não... Sim... Dentro do normal.

Ele se empertigou com cautela. Seu corpo ainda doía pela empatia da lembrança do primeiro trabalho de parto que a mulher tivera. Mas de onde vinha aquela segunda personalidade, aquele homem frio e severo?

Livrando-se da mão de Bonners, ele voltou à mulher e se sentou na beirada da cama. Com mais cautela dessa vez, realizou rapidamente alguns exercícios calmantes e de fortalecimento e golpeou com todo o seu poder psíquico. As frágeis defesas mentais dela desmoronaram com o ataque e, antes que pudesse arrastá-lo para seu redemoinho mental, ele agarrou sua mente.

Como uma flor em botão, veludo delicado tremulando à brisa com apenas um toque...

Ele se obrigou a abandonar o prazer quase sensual do compartilhamento mental e retornar à tarefa diante de si. Totalmente no comando, logo percorreu sua cabeça. O que descobriu adicionou uma nova faceta à saga do carta selvagem.

Nos primeiros dias do vírus eles tinham visto principalmente morte. Perto de 20 mil delas na região de Manhattan. Dez mil pelos efeitos do vírus e outros dez mil como resultado de tumultos, saques e da Guarda Nacional. Depois vieram os curingas: monstros hediondos nascidos da fusão do vírus com as próprias criações mentais. E finalmente apareceram os ases. Ele tinha visto uns trinta deles. Pessoas fascinantes com poderes exóticos – a prova viva de que a experiência era um sucesso. Apesar do custo terrível, haviam criado super-seres. E agora existia uma nova, com um poder único entre os outros ases.

Ele recuou, deixando apenas um único fio de controle, como rédeas nas mãos de um cavaleiro experiente.

– Sim, você estava certo, doutor, ela é uma das minhas.

Bonners agitou as mãos em um gesto de completa e total confusão.

– Mas como... Quero dizer, você normalmente não... faz exames? – concluiu de forma insatisfatória.

Tach relaxou e sorriu com a confusão do colega.

– Acabei de fazer. E é uma coisa impressionante; de alguma forma esta mulher conseguiu absorver todo o conhecimento e todas as lembranças do marido – disse, com o sorriso morrendo com a chegada de um novo pensamento. – Imagino que talvez devêssemos mandar alguém até a casa dela para descobrir se o pobre velho Henry é uma casca sem mente cambaleando pelo quarto. Pelo que sei, ela pode tê-lo sugado todo. Mentalmente falando, claro.

Bonners pareceu decididamente nauseado e saiu. O outro médico saiu com ele.

Tachyon afastou-os de seus pensamentos, bem como o destino de Henry van Renssaeler, e se concentrou na mulher na cama. Sua mente e sua psique estavam rachados como gelo derretendo e teria de ser feita uma restauração muito rápida para impedir que a personalidade se estilhaçasse sob o estresse e ela afundasse na loucura. Depois tentaria um trabalho mais permanente, mas isso seria, na melhor das hipóteses, um remendo. Seu pai seria perfeito para isso, já que o conserto de mentes partidas era seu dom. Mas como estava longe de Takis, ela dependeria das habilidades inferiores de Tach.

– Aqui, minha querida – murmurou, enquanto começava a trabalhar nas faixas amarradas que a mantinham presa à cama. – Vamos deixá-la mais confortável, e depois começarei a ensinar a você algumas disciplinas mentais para que não enlouqueça totalmente.

Ele reiniciou a ligação mental plena. A mente dela flutuou sob a dele, confusa, incapaz de compreender a magnitude da mudança que havia lhe ocorrido.

 

Estou louca... Isso não poderia ter acontecido... Enlouquecer.

Não, o vírus...

Ele realmente está aqui... Não consigo suportar isso.

Então não suporte. Veja, aqui e aqui, redirecione e o coloque bem abaixo.

NÃO! Tire daqui, fora!

Não é possível; controle é a única solução.

 

A defesa ganhou vida como a ponta de um fogo incandescente e criou sua gaiola intrincada ao redor de “Henry”.

Havia uma sensação de encantamento e paz, mas ele sabia que estavam apenas na metade do caminho. A defesa surgiu por causa do poder dele, não por qualquer compreensão real por parte dela; para manter a sanidade ela mesma teria de aprender a criá-la. Ele recuou. A rigidez havia deixado o corpo dela e a respiração se tornou mais regular. Tach retornou à tarefa de soltá-la, assoviando uma música de dança ritmada por entre os dentes.

Pela primeira vez desde que havia sido chamado ao quarto, ele estava relaxado para olhar, realmente olhar para a paciente. Sua mente já o encantara e seu corpo fez o pulso acelerar.

Cabelos castanho-escuros à altura dos ombros cascateavam sobre o travesseiro até o peito da mulher, um contraponto perfeito ao cetim champanhe de sua camisola fina e à pele de alabastro.

Cílios longos e negros adejaram em suas bochechas e depois se ergueram, revelando olhos de um profundo azul-escuro.

Ela o olhou atentamente por alguns segundos, depois perguntou:

– Eu o conheço ou não? Nunca vi seu rosto, mas... eu... o sinto.

Seus olhos se fecharam novamente, como se a confusão fosse demais.

Ele respondeu, tirando os cabelos da testa dela.

– Sou o doutor Tachyon, e sim, você me conhece. Partilhamos a mente.

– Mente... Mente. Eu toquei a mente de Henry, mas foi medonho, medonho!

Ela se ergueu de um pulo e se sentou trêmula, como um pequeno animal assustado.

– Ele fez tantas coisas terríveis e desonrosas, eu não tinha ideia, e pensei que ele era... – disse, antes de interromper o fluxo de palavras e agarrar o braço dele. – Agora tenho de viver com isso.

Nunca me ver livre dele. As pessoas deveriam ser mais cuidadosas quando escolhem... É melhor, acho, não saber o que existe atrás dos olhos delas.

Seus olhos se fecharam brevemente e a testa se franziu. De repente os cílios foram erguidos e suas unhas se cravaram no bíceps dele.

– Gostei de sua mente – ela anunciou.

– Obrigado. Acredito que posso dizer com alguma precisão que tenho uma mente extraordinária. De longe, a melhor que você provavelmente conhecerá.

Ela riu, um som grave e rouco estranhamente incongruente com sua aparência delicada. Ele riu com ela, satisfeito de ver a cor retornando às faces.

– A única que provavelmente conhecerei. As pessoas o consideram vaidoso? – prosseguiu em tom mais relaxado e se recostou novamente nos travesseiros.

– Não, não vaidoso. Arrogante algumas vezes, dominador, mas nunca vaidoso. Veja, meu rosto não permite.

– Ah, não sei – disse, esticando a mão e passando os dedos suavemente pela bochecha dele. – Acho um belo rosto.

Ele recuou com prudência, embora lhe custasse fazê-lo. Ela pareceu ferida e se recolheu.

– Blythe, mandei alguém verificar seu marido.

Ela desviou o rosto, enfiando a bochecha no travesseiro.

– Sei que você se sente desonrada pelo que descobriu sobre ele, mas precisamos ter certeza de que tudo está bem.

Ele se levantou da cama e as mãos dela o buscaram. Ele as segurou e cruzou os dedos entre os seus.

– Não posso voltar para ele, não posso!

– Você pode tomar esse tipo de decisão pela manhã – disse, acalmando-a. – Neste momento

quero que durma um pouco.

– Você salvou minha sanidade.

– Foi um prazer.

Ele fez sua melhor mesura e pressionou a pele macia da face interna do pulso dela contra os lábios. Foi um comportamento inconsciente, mas ficou satisfeito com seu auto-controle.

– Por favor, volte amanhã.

– Trarei seu café na cama e lhe darei pessoalmente a massa repulsiva que se faz passar por cereal quente neste estabelecimento. Poderá me falar mais sobre minha mente maravilhosa e meu belo rosto.

– Apenas se prometer corresponder.

– Quanto a isso, você não tem nada a temer.

Eles flutuaram em um mar branco prateado sustentado pelos mais suaves toques mentais. Era quente, maternal e sensual, tudo ao mesmo tempo, e ele estava levemente consciente de seu corpo reagindo ao primeiro partilhamento de verdade que experimentara em meses. Ele se obrigou a voltar a atenção para a sensação. A defesa pairava entre eles como um vaga-lume peripatético.

Novamente.

Não consigo. Difícil.

Necessário. Novamente agora.

O vaga-lume retomou seu curso errático, traçando as linhas e as espirais complexas de uma defesa mental. Houve uma projeção de escuridão, como uma onda de lama fedorenta, e a defesa se desfez em pedaços. Tachyon retornou a seu corpo bem a tempo de segurar Blythe enquanto ela caía de cara na direção do concreto do terraço.

Sua mente doía pelo esforço.

– Você precisa contê-lo.

– Não consigo. Ele me odeia e quer me destruir.

Soluços pontuaram as palavras.

– Vamos tentar novamente.

– Não!

Ele a agarrou, um braço sobre os ombros, o outro segurando as mãos finas.

– Estarei com você. Não deixarei que ele a fira.

Ela respirou fundo e assentiu secamente com a cabeça.

– Certo, estou pronta.

Eles recomeçaram. Dessa vez ele permaneceu em uma ligação mais próxima. De repente teve consciência de um redemoinho de poder sugando sua mente, sua identidade, arrastando-o cada vez mais fundo para ela. Houve uma sensação de estupro, de violação, de perda. Ele rompeu contato e saiu cambaleando pelo terraço. Quando recobrou a noção do que o cercava, se viu em um abraço íntimo com um pequeno salgueiro tristemente murcho em um canteiro de concreto, e Blythe soluçava infeliz com o rosto apoiado nas mãos.

Ela parecia absurdamente jovem e vulnerável em seu casaco Dior de lã preta com colarinho de pele. A severidade da cor destacava a palidez de sua pele e o colarinho rígido erguido fazia com que parecesse uma princesa russa perdida. A sensação de violação que tinha murchou diante da óbvia perturbação dela.

– Desculpe, desculpe. Não pretendia. Só queria estar mais próxima de você.

– Não ligue – disse ele, dando alguns beijinhos em sua face. – Estamos ambos cansados.

Tentaremos novamente amanhã.

E assim fizeram; trabalhando dia após dia, no final da semana ela tinha um controle seguro de seu indesejado passageiro mental. Henry van Renssaeler ainda não aparecera no hospital; em vez disso, uma discreta empregada negra levara a Blythe suas roupas. Isso foi bom para Tachyon.

Ficou contente porque o homem saiu incólume da experiência, mas o contato íntimo com a mente do deputado van Renssaeler havia produzido pouca satisfação, e na verdade sentia ciúmes. Ele tinha direito a Blythe, mente, corpo e alma, e Tachyon ansiava por aquela posição. Teria feito dela sua genamiri com toda a honra e todo o amor e a mantido segura e protegida, mas tais sonhos eram inúteis. Ela pertencia a outro homem.

Certa noite ele foi tarde ao seu quarto e a encontrou lendo na cama. Levava nos braços trinta rosas cor-de-rosa de caule longo e, enquanto ela ria e protestava, começou a cobri-la com os botões perfumados. Assim que o lençol de flores estava concluído, se esticou ao lado dela.

– Demônio! Se me furar com espinhos...

– Eu arranquei todos.

– Você é maluco. Quanto tempo isso demorou?

– Horas.

– E não tinha nada melhor a fazer com seu tempo?

Ele se virou, passando os braços ao redor dela.

– Não negligenciei meus pacientes, garanto. Fiz isso no meio da madrugada.

Ele roçou os lábios na sua orelha e quando ela não o empurrou, passou para a boca. Os lábios brincaram sobre os dela, provando a doçura e a promessa, e a excitação correu por ele quando os braços dela se apertaram sobre seu pescoço.

– Faz amor comigo? – sussurrou sobre os lábios dela.

– É o que você pede a todas as suas garotas?

– Não – gritou, ferido pelo riso em sua voz. Ele se sentou e espanou pétalas de seu paletó rosa fosco.

Ela arrancou pétalas de várias rosas.

– Você tem uma grande fama. Segundo o Dr. Bonners, você dormiu com todas as enfermeiras deste andar.

– Bonners é um velho intrometido; além disso, algumas delas não são suficientemente bonitas.

– Então você admite – disse, usando o caule despetalado para apontar para ele.

– Admito que gosto de me deitar com garotas, mas com você seria diferente.

Ela se recostou, uma das mãos sobre os olhos.

– Ah, me poupe, senhor, já ouvi essas palavras antes.

– Onde? – ele perguntou, de repente curioso, pois sentiu que não falava sobre Henry.

– Na Riviera, quando eu era muito mais jovem e muito mais tola.

Ele a abraçou com mais força.

– Ah, me conte.

Uma rosa o acertou no nariz.

– Não, conte-me você sobre a sedução em Takis.

– Prefiro flertar dançando.

– Por que dançando?

– Porque é bem romântico.

As cobertas foram jogadas de lado e ela começou a se enfiar em um penhoar âmbar.

– Mostre-me – ordenou, abrindo os braços.

Ele deslizou o braço pela cintura dela e tomou sua mão direita na esquerda.

– Vou ensinar a você “Temptation”. É uma valsa muito bonita.

– Justifica o nome?

– Vamos tentar e você me diz.

Ele alternou entre cantarolar em sua voz suave de barítono e dar instruções enquanto avançavam pela dança intrincada.

– Céus! Todas as suas danças são tão complicadas?

– Sim, isso demonstra como somos sujeitos inteligentes e graciosos.

– Vamos novamente, e, dessa vez, apenas cantarole. Acho que peguei os passos básicos e você pode simplesmente me empurrar quando eu errar.

– Irei conduzi-la, como cabe a um homem com sua dama.

Ele a girava com um braço, olhando para seus olhos azuis sorridentes, quando um “hã-hã” ofendido quebrou o clima. Blythe engasgou e pareceu se dar conta do quadro escandaloso que pintava; pés nus, cabelos soltos cascateando sobre os ombros, seu leve penhoar rendado revelando demais de seu decote. Voltou apressada para a cama e puxou as cobertas até o queixo.

– Archibald – guinchou.

– Sr. Holmes – disse Tachyon, se recompondo e estendendo a mão.

O homem da Virgínia a ignorou e encarou o alienígena com sobrancelhas franzidas. O homem havia sido escolhido pelo presidente Truman para coordenar os trabalhos de ajuda em Manhattan, e, nas semanas imediatamente posteriores à catástrofe, dividiram o palanque durante várias entrevistas coletivas agitadas. Parecia um pouco menos amistoso naquele momento.

Foi na direção da cama e deu um beijo paternal na testa de Blythe.

– Estive fora da cidade e ao retornar descobri que você estava doente. Nada sério, espero.

– Não – respondeu ela, rindo. Saiu um pouco alto e firme demais. – Eu me tornei um ás. Não é

impressionante?

– Um ás! Quais são suas habilidades... – Ele se interrompeu de repente e encarou Tachyon. – Se

puder nos desculpar, gostaria de conversar com minha afilhada sozinho.

– Claro. Blythe, eu a verei pela manhã.

Quando ele retornou, sete horas depois, ela havia partido.

Foi embora, disse a recepção; um velho amigo da família, Archibald Holmes, a apanhara cerca de uma hora antes. Por um momento ele pensou em dar uma passada na cobertura dela, mas decidiu que isso só causaria problemas.

Era esposa de Henry van Renssaeler e nada mudaria isso.

Tentou dizer a si mesmo que não importava e voltou a perseguir uma jovem enfermeira na maternidade.

Tentou tirar Blythe da cabeça, mas nos momentos mais estranhos se pegava recordando do toque de seus dedos em sua bochecha, o azul profundo de seus olhos, o cheiro de seu perfume e, mais do que tudo, sua mente. Aquela lembrança de beleza e gentileza o assombrava, pois ali, entre os psicocegos, ele se sentia muito isolado. Simplesmente não era possível entrar em comunicação

telepática com todos que encontrava e o que teve com ela foi o primeiro contato real desde sua chegada à Terra. Suspirou e desejou poder vê-la novamente.

Ele alugou um apartamento em uma mansão reformada perto do Central Park. Era uma abafada tarde de domingo, em agosto de 1947, e ele caminhava pelo aposento único de camisa de seda e cueca samba-canção. Todas as janelas estavam abertas na esperança de uma brisa, sua chaleira assoviava de modo estridente no fogão e La Traviata de Verdi tocava alto no fonógrafo. O extremo nível de decibéis era determinado por seu vizinho de baixo, que era viciado em álbuns de Bing Crosby e escutava Moonlight Becomes You sem parar. Tachyon desejou que Jerry tivesse ido se encontrar com a atual namorada na ensolarada Coney Island; sua seleção musical parecia determinada pelas horas e pelos lugares onde encontrava suas paixões.

O alienígena acabara de pegar uma gardênia e estava pensando qual o melhor lugar para colocá-la no jarro de flores, quando bateram à porta.

– Certo, Jerry – gritou ele, indo na direção da porta. – Eu desligo, mas só se você concordar em enterrar Bing. Por que não fazemos uma trégua e tentamos algo não cantado? Glenn Miller ou algum outro. Apenas não me obrigue a escutar aquele leporino novamente.

Ele escancarou a porta e ficou de queixo caído.

– Acho que seria uma boa ideia se você abaixasse – disse Blythe van Renssaeler.

Ele a encarou por vários segundos, depois esticou a mão e puxou a fralda da camisa discretamente para baixo. Ela sorriu e ele percebeu que tinha covinhas. Como não havia notado aquilo antes? Achara que seu rosto estava gravado de forma indelével em sua mente.

Ela balançou a mão diante do rosto dele.

– Alô, lembra de mim? – disse, tentando manter um tom leve, mas havia uma assustadora intensidade.

– Cla... Claro. Entre.

Ela não se moveu.

– Tenho uma mala.

– Estou vendo.

– Fui colocada para fora.

– Você ainda assim pode entrar... Com mala e tudo.

– Não quero que você se sinta... Bem, numa armadilha.

Ele enfiou a gardênia atrás da orelha dela, pegou a mala de sua mão e a puxou para dentro. As pregas de seu vestido de seda pêssego-claro raspavam em suas pernas, erguendo os pelos com o contato elétrico. Moda feminina era um passatempo de Tachyon e ele notou que era um Dior original, a saia até os tornozelos sustentada por uma série de anáguas de chiffon. Ele percebeu que provavelmente podia enlaçar sua cintura com as mãos. O corpete era sustentado por duas alças finas, deixando a maior parte das costas nuas. Ele gostou do modo como suas omoplatas se moviam sob a pele branca. Houve um movimento de resposta dentro de sua cueca.

Constrangido, correu para o closet.

– Deixe-me colocar calças. Há água pronta para o chá, e abaixe aquela gravação.

– Você toma chá com leite ou limão?

– Nenhum dos dois. Tomo com gelo. Estou quase morrendo – disse, andando pelo quarto, enfiando a camisa dentro das calças.

– Está um adorável dia.

– Está um adorável dia quente. Meu planeta é bem mais fresco que o seu.

Os olhos se desviaram e ela brincou com um cacho de cabelo.

– Sei que você é um alienígena, mas parece estranho falar sobre isso.

– Então não falamos – disse, ocupando-se do chá enquanto a estudava discretamente com o canto do olho. – Você parece muito arrumada para uma mulher que acabou de ser colocada para fora – comentou finalmente.

– Tive meu momento de choro no banco do táxi – disse, com um sorriso triste. – Pobre homem, achou que estava com uma verdadeira maluca nas mãos. Especialmente já que...

Ela se interrompeu, usando a aceitação da xícara como meio de evitar o olhar inquisidor dele.

– Não estou me queixando, de modo algum, mas por que você... Ahn...

– Eu o procurei? – completou, andando pela sala e abaixando o fonógrafo. – Essa é uma parte muito triste.

Ele voltou a atenção para a música novamente e se deu conta de que era a cena de despedida entre Violetta e Alfredo.

– Ahn... Sim, é.

Ela se virou para encará-lo e seus olhos estavam preocupados.

– Vim para cá porque Earl está absorvido demais em suas causas, marchas, greves e ações, e David, pobre garoto, teria ficado aterrorizado com a ideia de ganhar uma mulher mais velha histérica. Archibald teria insistido para que eu desse um jeito nas coisas e ficasse com Henry; felizmente não estava em casa quando apareci, mas Jack estava e me quis... Bem, um pouco demais.

Ele balançou a cabeça como um garanhão atormentado por mosquitos.

– Blythe, quem são essas pessoas?

– Como você pode ser tão mal informado? – provocou e fez uma pose dramática; tão dramática que debochava de suas palavras. – Nós somos os Quatro Ases.

De repente ela começou a tremer, derramando chá pela beirada da xícara.

Tach foi até ela, pegou a xícara de sua mão e a apertou junto ao peito. As lágrimas deixaram uma mancha quente e molhada em sua camisa e ele se projetou para a mente dela, mas ela pareceu sentir sua intenção e o expulsou com violência.

– Não, não faça, não até eu ter explicado o que fiz. Do contrário provavelmente sentirá um choque terrível.

Ele esperou enquanto ela tirava um lenço bordado da bolsa, assoava com determinação e enxugava os olhos. Quando ergueu a cabeça novamente estava calma, e ele admirou sua dignidade e seu controle.

– Você deve imaginar que sou uma típica fêmea desmiolada. Bem, não irei entediá-lo mais. Vou começar do começo e ser bastante lógica.

– Você partiu sem se despedir – cortou ele.

– Archibald achou que era melhor e quando ele está sendo paternal e autoritário nunca consigo dizer não – disse, a seguir censurando-se. – Não em qualquer coisa. Quando ele soube o que eu podia fazer, me disse que eu tinha um grande dom. Que podia preservar conhecimento inestimável. Insistiu para que me juntasse ao seu grupo.

Ele estalou os dedos.

– Earl Sanderson e Jack Braun.

– Isso mesmo.

Ele se levantou e começou a andar pela sala.

– Estiveram envolvidos em algo na Argentina e capturaram Mengele e Eichman, mas quatro?

– David Harstein, conhecido como o Embaixador...

– Eu o conheço, tratei dele há poucas... Deixe para lá, continue.

– E eu – disse, sorrindo com o constrangimento de uma garotinha. – Especialista.

Ele se afundou novamente no sofá e a encarou.

– O que ele... O que você fez?

– Usei meu talento do modo como Archibald recomendou. Quer saber alguma coisa sobre relatividade, tecnologia de foguetes, física nuclear, bioquímica?

– Ele tem mandado você pelo país absorvendo mentes – falou. Depois explodiu. – Inferno,

quem você tem em sua cabeça?

Ela se juntou a ele no sofá.

– Einstein, Salk, von Braun, Oppenheimer, Teller; e Henry, claro, mas preferiria esquecer isso - disse, sorrindo. – E esse é o cerne do problema. Henry não aceitava muito bem uma esposa com vários ganhadores do Nobel na sua casa, muito menos uma esposa que sabia onde todos os seus esqueletos estavam enterrados, então esta manhã me colocou na rua. Não me importaria muito se não fosse pelas crianças. Não sei o que vai contar a eles sobre a mãe e... ah, maldição – sussurrou, batendo os punhos nos joelhos. – Eu não vou começar a chorar novamente.

De qualquer forma, estava tentando pensar no que fazer. Acabara de me livrar de Jack e estava soluçando no banco de trás de um táxi, quando pensei em você.

De repente Tachyon se deu conta de que ela estava falando alemão. Mordeu com força, empurrando a língua contra o céu da boca para conter a náusea.

– É tolo, mas de certa forma me sinto mais próxima de você do que de qualquer outra pessoa no mundo; o que é estranho, considerando que você sequer é deste mundo.

O sorriso dela era meio sereia, meio Mona Lisa, mas não havia resposta física ou reação emocional. Ele estava enjoado e com raiva demais.

– Algumas vezes eu não entendo vocês de modo algum! Vocês não têm idéia dos perigos inerentes a esse vírus?

– Não, como posso ter? – ela interrompeu. – Henry nos tirou da cidade quando a crise tinha poucas horas e não voltamos até ele achar que o perigo havia passado.

Ela retornara ao inglês.

– Bem, ele estava errado, não?

– Sim, mas não é culpa minha!

– Não estou dizendo que é!

– Então por que está com tanta raiva?

– Holmes – soltou. – Você o chamou de paternal, mas se ele tivesse qualquer afeto por você, não a teria encorajado nesse caminho louco.

– O que há de tão louco nisso? Sou jovem, muitos desses homens são velhos. Estou preservando um conhecimento inestimável.

– Arriscando sua própria sanidade.

– Você me ensinou...

– Você é uma humana! Não é preparada para lidar com o estresse de mentes de alto nível. As técnicas que lhe ensinei no hospital para manter sua personalidade separada daquela do seu marido eram inadequadas, de modo algum fortes o bastante.

– Então me ensine o que preciso saber. Ou me cure.

O desafio o conteve.

– Não posso... Pelo menos não ainda. O vírus é infernalmente complexo, descobrir uma linhagem oposta para anular... – disse, dando de ombros. – Ter um trunfo para a carta selvagem, digamos assim, pode me custar anos. Sou um homem trabalhando sozinho.

– Então vou voltar para Jack – disse ela, pegando a mala e se arrastando na direção da porta.

Era uma mistura estranhamente atraente de dignidade e farsa enquanto a bolsa pesada a desequilibrava. – E se enlouquecer talvez Archibald encontre um bom psiquiatra para mim.

Afinal, sou uma dos Quatro Ases.

– Espere... Você não pode simplesmente ir embora.

– Então você vai me ensinar?

Ele enfiou polegar e dedo médio nos cantos dos olhos e apertou com força a base do nariz.

– Vou tentar.

A mala caiu no chão e ela se aproximou lentamente. Ele a deteve com a mão livre.

– Uma última coisa. Não sou um santo, nem um de seus monges humanos – disse, apontando para a alcova separada por cortina onde tinha sua cama. – Algum dia irei desejá-la.

– O que há de errado com isso agora?

Empurrou a mão dele para o lado e colou seu corpo no dele. Não era um corpo particularmente exuberante. Na verdade, poderia ser descrito como carente, mas qualquer defeito que ele pudesse encontrar desapareceu quando as mãos dela tomaram sua cabeça e aproximaram seus lábios dos dela.

– Um dia adorável – suspirou Tachyon com satisfação, esfregando o rosto com a mão e tirando meias e roupa de baixo.

Blythe sorriu para ele do espelho do banheiro, onde estava em pé passando creme no rosto.

– Um terráqueo que o ouvisse dizer isso decidiria que você é comprovadamente insano. Um dia passado na companhia de uma criança de oito anos, uma de cinco e uma de três não é considerado um prêmio pela maioria dos homens.

– Seus homens são idiotas. – Ficou olhando para o espaço, por um momento, lembrando-se da sensação de mãos meladas em seus bolsos enquanto um bando de primos pequenos vasculhava os doces que levava ali, a pressão de uma bochecha macia e roliça de bebê contra a dele quando ia embora prometendo fielmente voltar novamente e brincar.

Ele expulsou o passado e a flagrou fitando-o atentamente.

– Saudades de casa?

– Pensando.

– Saudades de casa.

– Crianças são uma diversão e um prazer – disse com pressa antes que ela pudesse retomar sua constante discussão. Pegando uma escova, passou-a pelos cabelos compridos. – Na verdade, várias vezes pensei se os seus não foram trocados ou se você não estava enganando o velho Henry desde o começo.

Seis meses antes, quando Blythe havia sido expulsa de casa, van Renssaeler instruíra os empregados a proibir a entrada da esposa, afastando-a, assim, dos filhos. Tach rapidamente resolveu a situação. Toda semana, quando sabiam que o deputado não estava em casa, iam ao apartamento de cobertura, Tachyon controlava as mentes dos empregados e eles passavam horas brincando com Henry Jr., Brandon e Fleur. Ele então ordenava à babá e à faxineira que se esquecessem da visita. Dava-lhe grande satisfação ridicularizar o odiado Henry, embora, para ser uma verdadeira vingança, o homem devesse ter conhecimento de seu desafio à autoridade.

Jogando a escova de lado, pegou o jornal vespertino e entrou sob as cobertas. Na primeira página havia uma foto de Earl recebendo uma medalha por ter salvado Gandhi. Jack e Holmes estão de pé ao fundo, o homem mais velho aparentemente exultante, enquanto Jack parecia desconfortável.

– Eis uma foto do banquete desta noite – acrescentou ele. – Mas ainda não entendo por que toda a agitação. Foi só uma tentativa.

– Não partilhamos sua postura insensível com relação a assassinato.

A voz dela era abafada pelas dobras da camisola de flanela que passava por cima da cabeça.

A cama velha rangeu um pouco quando ela se instalou.

– Isso é terrível.

– Estamos acostumados a isso. Assassinato é um estilo de vida na minha classe. É como as famílias disputam posição. Quando tinha 20 anos havia perdido 14 membros de minha família próxima por assassinato.

– Quão próximo é próximo?

– Minha mãe... Acho. Eu só tinha 4 anos quando foi encontrada ao pé das escadas perto dos aposentos das mulheres. Sempre suspeitei que minha tia Sabina estava por trás daquilo, mas não havia provas.

– Pobre garotinho – disse, pegando o rosto dele com a mão em concha. – Você se lembra dela?

– Só imagens fugazes. O barulho de seda e renda e principalmente o cheiro de seu perfume. E seus cabelos, como uma nuvem dourada.

Ela se virou e se aninhou mais, as nádegas pressionando a virilha dele.

– O que mais é tão diferente entre Takis e a Terra?

Era uma tentativa óbvia de mudar de assunto, e ele ficou grato por isso. Falar sobre a família que havia abandonado sempre o deixava triste e com saudades de casa.

– Mulheres, para começar.

– Somos melhores ou piores?

– Apenas diferentes. Vocês vivem livremente após chegar à idade da procriação. Nunca permitiríamos isso. Um ataque bem-sucedido a uma mulher grávida poderia destruir anos de planejamento cuidadoso.

– Acho que isso também é horrível.

– Também não relacionamos sexo a pecado. Para nós, pecado é reprodução casual, que poderia perturbar o plano. Mas prazer é algo totalmente diferente. Por exemplo: pegamos jovens homens e mulheres atraentes da classe inferior, as pessoas não psi, e os treinamos para servir aos homens e mulheres das grandes famílias.

– Vocês nunca saem com as mulheres de sua própria classe?

– Claro. Até os 30 anos crescemos juntos, treinamos e estudamos juntos. Apenas quando a mulher chega aos anos reprodutivos é que é isolada para ser mantida em segurança. E ainda nos reunimos para funções familiares: bailes, caçadas, piqueniques, mas sempre dentro das muralhas da propriedade.

– Quanto tempo os garotinhos ficam com as mães nos aposentos das mulheres?

– Todas as crianças permanecem até 13 anos.

– Eles voltam a se ver?

– Claro, elas são nossas mães!

– Não seja defensivo. Isso é apenas muito fora do meu mundo.

– Por assim dizer – disse ele, puxando a camisola e correndo a mão pela perna dela.

– Então vocês têm brinquedinhos sexuais – ficou pensando enquanto as mãos dele exploravam seu corpo e ela acariciava seu pênis que enrijecia. – Parece uma boa idéia.

– Quer ser meu brinquedinho sexual?

– Achei que já fosse.

Foi um arrepio que o despertou. Sentou-se e descobriu que Blythe não estava ali e as cobertas estavam jogadas no chão. Percebeu vozes por trás da cortina de contas. O vento batia no prédio, produzindo um uivo agudo ao passar pelas rachaduras e pelos espaços nas janelas. Os pelos em sua nuca se arrepiavam, mas isso não tinha nada a ver com frio. Eram aquelas vozes guturais atrás da cortina, lembrando-lhe as histórias de assustar crianças sobre fantasmas ancestrais inquietos se apossando dos corpos vivos de descendentes diretos. Estremeceu e passou pelas contas. Elas caíram tilintando atrás dele, e viu Blythe de pé no centro da sala tendo uma discussão animada consigo mesma.

– Estou lhe dizendo, Oppie, precisamos desenvolver...

– Não! Já passamos por isso antes, nossa primeira prioridade é o artefato. Não podemos nos desviar com essa bomba de hidrogênio neste momento.

Tachyon passou um longo tempo paralisado de horror. Tais coisas haviam acontecido antes, quando ela estava cansada ou estressada, mas nunca de tal forma. Sabia que tinha de encontrá-la rapidamente para que não se perdesse, e se obrigou a se mover. Chegou ao lado dela em dois passos, agarrando-a com firmeza e buscando sua mente. E quase se retirou aterrorizado, pois do lado de dentro havia um redemoinho assustador de personalidades conflitantes, todas lutando pela supremacia, enquanto Blythe rodopiava desamparada no centro. Ele se lançou em sua direção e foi bloqueado por Henry. Tachyon o jogou de lado furioso e a tomou dentro da defesa protetora de sua mente. As outras seis personalidades orbitaram ao redor deles, lutando contra as defesas.

A força de Blythe se combinou à sua e eles baniram Teller para seu compartimento e Oppenheimer para o dele; Einstein se retirou resmungando, enquanto Salk pareceu apenas confuso.

Blythe se jogou contra ele e o peso repentino foi demais para seu corpo exausto. Seus joelhos fraquejaram e ele se sentou com força no piso de madeira, Blythe aninhada em seu colo. Ele podia ouvir na rua o leiteiro fazendo entregas e se deu conta de que levara horas para restaurar o equilíbrio dela.

– Maldito seja, Archibald – murmurou, mas pareceu inconveniente, tão inconveniente quanto sua capacidade de ajudar.

– Você não quer fazer isso – murmurou David Harstein. A mão de Tach congelou. – Seria melhor o cavalo.

O takisiano assentiu e rapidamente moveu a peça de xadrez. Ficou de queixo caído ao ver o movimento.

– Ladrão! Seu ladrão miserável!

Harstein ergueu a mão em um gesto impotente e apaziguador.

– Foi apenas uma sugestão.

O tom do jovem era suave e ofendido, mas seus olhos castanho-escuros estavam brilhando de diversão.

Tachyon resmungou e se remexeu para trás até conseguir se apoiar no sofá.

– Acho bastante alarmante que uma pessoa em sua posição se rebaixe a usar seus dons de forma tão desprezível. Você deveria dar o exemplo aos outros ases.

David sorriu e pegou sua bebida.

– Essa é a imagem pública. Certamente com meu criador posso retornar a meus hábitos preguiçosos e boêmios.

– Não.

Houve um momento de silêncio forçado enquanto Tach olhava para dentro, para imagens que gostaria de esquecer, e David, com elaborada concentração, deu ao tabuleiro de bolso um deslocamento infinitesimal para a esquerda.

– Lamento.

– Tudo bem – disse, dando um sorriso reconfortante para o homem mais jovem. – Vamos

continuar com o jogo.

David concordou e curvou a cabeça escura e magra sobre o tabuleiro. Tach tomou um gole de seu Irish coffee e permitiu que o calor enchesse sua boca antes de engolir. Estava envergonhado de sua reação exagerada à provocação. Afinal, o garoto não o fez por mal.

Ele havia conhecido David no hospital no começo de 1947. No Dia da Carta Selvagem, Harstein estivera jogando xadrez na mesa externa de um café. Nenhum sintoma se manifestou então, mas meses depois ele foi levado ao hospital se contorcendo e tendo convulsões. Tach receou que aquele homem intenso e belo fosse mais uma vítima sem rosto, mas, contra todas as expectativas, ele se recuperou. Haviam feito exames: o corpo de David transpirava feromônios poderosos, feromônios que tornavam difícil resistir a ele em qualquer nível. Foi recrutado por Archibald Holmes, apelidado de Embaixador por uma imprensa fascinada e começou a usar seu impressionante carisma para solucionar greves, negociar tratados e ser mediador junto a líderes mundiais.

Era o preferido de Tachyon entre os ases do sexo masculino e, sob a orientação de David, aprendera a jogar xadrez. Era uma prova tanto de suas crescentes habilidades quanto da capacidade de ensino de David que tivesse recorrido aos seus poderes para não deixar Tach ganhar. O alienígena sorriu e decidiu se vingar do outro homem pela interferência.

Ele iniciou uma exploração, deslizou abaixo das defesas de David e acompanhou enquanto aquela bela mente pesava e avaliava possíveis jogadas. A decisão foi tomada, mas antes que Harstein pudesse colocá-la em prática, Tach deu uma pequena torção, apagando a decisão e colocando outra em seu lugar.

– Xeque.

David olhou para o tabuleiro e então o jogou no chão com um uivo enquanto Tach subia no sofá, enfiava a cabeça em uma almofada e ria.

– E me acusa de roubar. Eu não consigo controlar meu poder, mas você! Entrar na cabeça de um homem e...

Uma chave raspou na fechadura e Blythe chamou:

– Crianças, crianças, pelo que estão brigando agora?

– Ele está roubando – disseram os dois homens em coro, apontando um para o outro.

Tach a tomou nos braços.

– Você está congelando. Vou lhe fazer um chá. Como foi a conferência?

– Nada mau – disse, retirando o chapéu de pele e sacudindo a neve das extremidades prateadas.

– Com Werner de cama com laringite, ficaram gratos por ter minhas informações.

Ela se inclinou para a frente e deu um beijo leve na bochecha escura de David.

– Olá, querido, como foi na Rússia?

– Sombrio – disse, começando a catar as peças espalhadas. – Sabe, não parece justo.

– O quê?

Jogando o casaco no sofá, ela tirou as botas enlameadas e se aninhou sobre as almofadas com os pés enfiados sob a pele de raposa prateada.

– Earl vai arrancar Bormann da Itália e salvar Gandhi de um hindu fanático, e você tem de se sentar em um hotel vagabundo e ir a uma conferência sobre foguetes.

– Eles também cuidam de quem apenas senta e fala. Como você deveria saber. Além disso, você já teve sua boa dose de glória. E a Argentina?

– Isso foi há mais de um ano e tudo que fiz foi falar com os peronistas enquanto Earl e Jack intimidavam os totalitários na rua. Quem você acha que a imprensa notou? Nós? Improvável.

Você precisaria relampejar para ser percebido neste ramo.

– E exatamente que ramo é este? – interrompeu Tachyon, colocando uma caneca de chá fumegante nas mãos de Blythe.

David se inclinou para a frente, a cabeça se projetando dos ombros caídos, como uma ave inquisidora.

– Resgatar algo do desastre. Usar esses dons para melhorar a condição humana.

– É assim que começa, mas terminará assim? Minha experiência com super-raças, sendo eu mesmo membro de uma, é que pegamos o que queremos e o diabo pega todos os outros. Quando uma pequena minoria de pessoas em Takis começou a desenvolver poderes mentais, rapidamente começaram a se reproduzir entre elas para garantir que ninguém mais tivesse chance de conseguir os poderes. Isso nos deu o comando de um planeta, e somos apenas 8% da população.

– Conosco será diferente – disse Harstein, seu riso seco debochando da declaração.

– Espero que sim. Mas me consolo mais em saber que há apenas algumas dúzias de vocês, ases, e que Archibald não incorporou todos vocês a essa grande força pela democracia.

Seus lábios finos se retorceram um pouco nas últimas palavras.

Blythe estendeu a mão e retirou a franja da testa.

– Você desaprova?

– Eu temo.

– Por quê?

– Acho que você e David deveriam ser gratos por ficar longe das vistas do público. A fúria dos que não têm contra os que têm nunca é bonita, e sua raça tem uma tradição de suspeita e hostilidade para com o estranho. Vocês, ases, estão além do estranho. O que diz um de seus livros sagrados? Não deixarás com vida uma feiticeira?

– Mas somos apenas pessoas – objetou Blythe.

– Não, não são... Não mais, e os outros não se esquecerão disso. Sei de 37 de vocês, pode haver mais, e vocês não podem ser detectados, não como os curingas. Histeria nacional é uma erva daninha particularmente virulenta e de crescimento rápido. As pessoas estão vendo comunistas por toda parte e provavelmente não irá demorar muito para que transfiram essa desconfiança para alguma outra minoria aterrorizadora; como um grupo de pessoas invisível,

secreto e assustadoramente poderoso.

– Acho que está exagerando.

– Estou? Veja essas audiências do comitê – disse, apontando para uma pilha de jornais. – E há dois dias um júri federal indiciou Alger Hiss por perjúrio. Esses não são atos de um país saudável e estável. E isso durante seu mês de êxtase e renascimento.

– Não, essa é a Páscoa. Este é o primeiro nascimento.

A piada ruim de David afundou no silêncio pesado que tomou a sala, rompido apenas pelo chiado do vento, que jogava neve contra as janelas.

Harstein suspirou e espreguiçou.

– Que bando melancólico somos. Que tal jantar e encontrar um espetáculo? Satchmo está tocando na cidade.

Tachyon balançou a cabeça.

– Tenho de voltar ao hospital.

– Agora? – gemeu Blythe.

– Preciso, querida.

– Então vou com você.

– Não, isso é bobo. Deixe David levá-la para jantar.

– Não – disse, os lábios duros em uma linha obstinada. – Se você não me deixar ajudar, pelo menos posso fazer companhia.

Ele suspirou e olhou para o teto enquanto ela calçava as botas.

– Dama teimosa – observou David debaixo da mesa de centro, onde estava caçando as peças de xadrez espalhadas. – Todos descobrimos que não adianta discutir com ela.

– Você deveria experimentar viver com ela.

O delicado chapeuzinho redondo se dobrou sob dedos que se apertaram de repente.

– Acredite, podemos resolver esse problema.

– Não comece – avisou Tach.

– E não use esse tom paternalista desaprovador comigo! Não sou uma criança, nem uma de suas damas takisianas isoladas.

– Caso fosse, se comportaria melhor; e quanto a ser uma criança, certamente está se comportando como uma, e ainda por cima mimada. Já tivemos essa discussão antes e não vou fazer o que você quer.

– Nós não tivemos uma discussão. Você constantemente me cortou, mudou de assunto, se recusou a discutir a questão...

– Sou esperado no hospital – disse ele, indo na direção da porta.

– Está vendo? – ele se dirigiu ao desconfortável Harstein. – Ele me cortou ou ele me cortou?

O jovem deu de ombros e enfiou o jogo de xadrez no bolso de seu desajeitado paletó de veludo cotelê. Pela primeira vez ele parecia não ter palavras.

– David, por gentileza, leve minha genamiri para jantar e tente devolvê-la com um humor um pouco melhor.

Blythe lançou um olhar suplicante para Harstein, enquanto Tachyon olhava com régio desprezo para a parede distante.

– Ei, pessoal, acho que vocês deveriam dar uma bela caminhada romântica pela neve, resolver as coisas, cear, fazer amor e parar de brigar. Seja o que for, não pode ser um problema tão grande.

– Você está certo – murmurou Blythe, a rigidez do corpo diminuindo sob o efeito relaxante dos feromônios.

David colocou a mão nas costas de Tach e o passou pela porta. Erguendo a mão de Blythe, colocou-a com firmeza na de Tachyon e fez um leve gesto de bênção acima de suas cabeças.

– Agora vão, meus filhos, e não voltem a pecar.

Ele os seguiu escada abaixo até a rua, depois disparou na direção do metrô antes que os esforços de pacificação de seus poderes de dissipassem.

– Agora entende por que não quero você trabalhando comigo?

A lua conseguira se esgueirar sob a saia das nuvens e a pálida luz prateada batendo sobre a neve fazia a cidade parecer quase limpa. Estavam no limite do Central Park, o hálito se fundindo em nuvens brancas macias enquanto ela olhava séria no rosto dele.

– Entendo que você está tentando me proteger e esconder, mas não acho isso necessário. E após vê-lo esta noite... – disse e hesitou, buscando uma forma de suavizar as palavras seguintes. – Acho que posso lidar com isso melhor do que você. Você cuida de seus pacientes, Tach, mas suas deformidades e insanidades... Bem, elas também o desagradam.

Ele estremeceu.

– Blythe, estou muito envergonhado. Acha que eles sabem, que podem sentir?

– Não, não, amor – disse, acariciando seus cabelos, acalmando-o como faria com um de seus filhos pequenos. – Só vejo isso porque sou muito próxima de você. Eles veem apenas a compaixão.

– O Ideal sabe que tentei reprimir isso, mas nunca vi tantos horrores – disse, livrando-se dos braços reconfortantes dela e andando pela calçada. – Não toleramos deformações. Nas grandes casas tais criaturas são destruídas.

Houve um barulho leve e ele se virou para encará-la. Ela pressionava a boca com uma mão enluvada e seus olhos estavam arregalados, buracos cintilantes ao brilho de um poste próximo.

– E agora você sabe que sou um monstro.

– Acho que sua cultura é monstruosa. Toda criança é preciosa, não importando suas deficiências.

– Assim pensava minha irmã, e nossa cultura preciosa também a destruiu.

– Conte.

Ele começou a desenhar padrões aleatórios em um banco do parque coberto de neve.

– Ela era a mais velha, uns trinta anos a mais que eu, mas éramos muito próximos. Ela se casou fora da casa, em uma daquelas raras tréguas familiares. Seu primeiro filho tinha defeitos e foi eliminado, e Jadlan nunca se recuperou. Ela se matou meses depois. – A mão deslizou pelo banco, apagando os desenhos. Blythe ergueu a mão dele e esquentou os dedos gelados entre as mãos enluvadas. – Isso me levou a refletir sobre toda a estrutura de minha sociedade. Então foi tomada a decisão de se fazer um teste de campo do vírus na Terra, e esse foi o fim. Não pude mais ficar assistindo.

– Sua irmã deve ter sido especial, diferente, como você.

– Meu primo diz que é a linhagem Sennari que carregamos. É um atavismo recessivo que, pelo menos segundo ele, nunca deveria ter sido permitido que se mantivesse. Mas eu a estou aborrecendo com essa conversa de linhagem e seus dentes estão batendo. Vamos para casa para você se aquecer.

– Não, não até resolvermos isso – disse ela, e ele não fingiu não entender. –Posso ajudar e insisto em que me deixe partilhar isso com você. Me dê sua mente.

– Não, seriam oito personalidades. É demais.

– Deixe que eu julgue isso. Estou lidando bastante bem com sete.

Ele fez um ruído grosseiro e ela enrijeceu, ultrajada.

– Assim como lidou bem em fevereiro, quando encontrei Teller e Oppenheimer tendo uma batalha sobre a bomba de hidrogênio enquanto você ficava parada feito um zumbi no centro da sala?

– Será diferente. Sinto carinho por você, sua mente não me fará mal. E além do trabalho...

Quando tiver suas lembranças e seu conhecimento, você não será mais solitário.

– Não tenho sido solitário, não desde que você apareceu.

– Mentiroso. Eu vi o modo como você olha para o nada, e a música triste que tira daquele violino quando acha que não estou escutando. Deixe que esteja ali para dar a você uma pequena parte de casa – disse, colocando a mão sobre sua boca. – Não discuta.

Então ele não discutiu e se permitiu ser convencido. Mais por amor a ela do que realmente por aceitar seus argumentos. E mais tarde naquela noite, enquanto as pernas dela se apertavam em sua cintura, suas unhas escorregavam por suas costas escorregadias de suor e ele tinha um violento orgasmo, ela se projetou e também sugou sua mente.

Houve um terrível momento revoltante de violação, roubo, perda, e então acabou, e do espelho da mente dela voltaram duas imagens. O amado toque feminino gentil que era Blythe e uma imagem assustadoramente familiar e igualmente amada que era ele.

– Malditos sejam todos!

Tachyon cruzou a pequena antecâmara, se virou e encarou Prescott Quinn, com o indicador em riste.

– É ultrajante, inadmissível nos convocar desta forma. Como eles ousam e com que direito, nos tirar de casa e mandar correndo para Washington com duas horas, duas horas, de antecedência?

Quinn sugou ruidosamente o bocal do cachimbo.

– Com o direito da lei e do costume. Eles são membros do Congresso e esse comitê tem o poder de convocar e interrogar testemunhas.

Ele era um velho corpulento com uma barriga impressionante que esticava a corrente do relógio, com direito a símbolo Phi Beta Kappa, sobre o negro sisudo de seu colete.

– Então nos chamem para testemunhar; embora só Deus saiba sobre o quê; e acabem com isso.

Viemos correndo para cá noite passada apenas para ouvir que a audiência havia sido adiada, e agora eles nos deixam esperando por três horas.

Quinn grunhiu e coçou as grossas sobrancelhas brancas.

– Se você acha que esta é uma espera demorada, meu jovem, tem muito a aprender sobre o governo federal.

– Tach, sente-se, tome um café – murmurou Blythe, parecendo pálida, mas composta em um vestido de tricô preto, chapéu com véu e luvas.

David Harstein entrou lentamente na antecâmara e os dois fuzileiros de guarda à porta ficaram tensos e o observaram atentamente.

– Graças a Deus, um toque de sanidade em meio a loucura e pesadelos.

– Ah, David, querido – disse Blythe, apertando as mãos com força nos ombros dele. – Você está bem? Foi terrível ontem?

– Não, foi ótimo... Exceto continuar sendo chamado de “cavalheiro judeu de Nova York” pelo nazista Rankin. Eles me interrogaram sobre a China: eu disse que havíamos feito de tudo para negociar um acordo entre Mao e Chiang. Eles concordaram, claro. Então sugeri que encerrassem essas audiências, e concordaram com alegria e aplausos, e...

– E então você saiu da sala – interrompeu Tach.

– Sim – disse, baixando a cabeça escura e contemplando as mãos cruzadas. – Agora estão construindo uma gaiola de vidro e serei reconvocado. Malditos sejam!

Um assistente pretensioso entrou e chamou a Sra. Blythe van Renssaeler. Ela se assustou, deixando a bolsa cair no chão. Tach a pegou e pressionou o rosto junto ao dela.

– Paz, querida. Você é rival para eles sozinha, quanto mais com o resto de vocês junto. E não se esqueça, eu estou com você.

Ela deu um sorriso discreto. Quinn a pegou pelo braço e a acompanhou até a sala de audiência.

Tachyon teve um rápido vislumbre de costas, câmeras e uma confusão de mesas, tudo banhado por uma forte luz branca dos holofotes de televisão. Então a porta se fechou com um baque surdo.

– Jogo? – perguntou David.

– Claro, por que não?

– Não estou atrapalhando? Não prefere preparar seu depoimento?

– Qual depoimento? Eu não sei nada sobre a China.

– Quando eles pegaram você? – perguntou, as mãos hábeis deslizando, montando o tabuleiro.

– Ontem à tarde, por volta de uma hora.

– É uma palhaçada – disse o Embaixador com uma clara falta de diplomacia, e bateu com força um peão no peão quatro da Rainha.

Eles ainda estavam jogando quando Blythe e Quinn retornaram. O tabuleiro foi arremessado com o salto rápido do alienígena, mas David não o censurou. Blythe estava pálida como a morte e trêmula.

– O que eles fizeram? – cobrou Tach, as palavras arranhando a garganta. Ela não respondeu, simplesmente tremeu nos seus braços, como um animal ferido.

– Dr. Tachyon, isso vai um pouco além da China. Precisamos conversar.

– Um momento.

Ele se curvou para ela e pressionou os lábios sobre sua têmpora. Podia sentir a pulsação ali.

Passou rapidamente sob suas defesas e enviou uma maré calmante por sua mente. Ela relaxou com um último estremecimento e afrouxou o aperto na lapela do seu paletó pêssego-claro.

– Sente-se com David, meu amor. Tenho de conversar com o Sr. Quinn.

Sabia que estava sendo paternalista, mas o estresse podia abalar a estrutura frágil que ela construíra para manter separadas as personalidades divergentes e o que descobrira naquela rápida incursão havia sido um edifício desmoronando.

O advogado o chamou de lado.

– A China foi a desculpa, doutor. A questão agora é o vírus. Acho que este comitê incorporou a idéia de que os ases são uma força subversiva e podem estar refletindo a disposição do país como um todo.

– Dr. Tachyon – chamou o assistente. Quinn o dispensou com um gesto brusco.

– Que absurdo!

– Ainda assim, agora entendo por que você está aqui. Meu conselho é que apele para a Quinta.

– O que significa?

– Sua recusa a responder a toda e qualquer pergunta. Isso inclui seu nome. Tal resposta seria interpretada como abrir mão da Quinta.

Tach se empertigou em toda a sua altura pouco impressionante.

– Não temo esses homens, Sr. Quinn, não permanecerei sentado me condenando pelo silêncio.

Vamos encerrar essa tolice agora!

A sala era uma pista de obstáculos de luzes, cadeiras, mesas, pessoas e cabos sinuosos. Em certo momento, ele prendeu o calcanhar, tropeçou e se levantou com um xingamento murmurado.

Por um instante a sala se apagou e ele viu o grande espaço com piso de parquete e iluminado por candelabros do salão de baile Ilkazam e ouviu os risos abafados de parentes e amigos enquanto se perdia em meio às complexidades principescas. Por causa de seu erro, a dança tivera uma interrupção ríspida e instável, e acima da música ele podia ouvir a voz anasalada de seu primo Zabb descrevendo em detalhes cruéis exatamente qual passo errara. Um sangue quente subiu às suas faces e produziu uma linha de suor em seu lábio superior. Ele enxugou a umidade com um lenço e então percebeu que o desconforto não se devia unicamente a lembranças; por causa das luzes da televisão, a sala fervia.

Enquanto se sentava na dura cadeira de madeira de espaldar reto, Tach notou a estrutura da gaiola de vidro que estava sendo construída para receber David. Parecia algo ameaçador, como um patíbulo pela metade, e rapidamente desviou os olhos para os homens que ousavam julgar a ele e sua genamiri. Só se destacavam por suas expressões de pomposidade soturna. Fora isso, não passavam de um grupo de homens de meia-idade ou idosos vestindo ternos escuros de caimento ruim. Uma expressão de desprezo régio tomou seus traços e ele se reclinou na cadeira, sua própria descontração debochando do poder deles.

– Gostaria que tivesse me escutado na questão de suas roupas – murmurou Quinn abrindo a maleta.

– Você recomendou que me vestisse bem. Eu o fiz.

Quinn espiou o paletó de fraque e as calças pêssego-claro, o colete bordado em tons de verde e ouro e as botas altas e macias com suas borlas douradas.

– Preto teria sido melhor.

– Não sou um trabalhador braçal.

– Diga seu nome para o comitê – disse o presidente Wood, sem erguer os olhos de seus papéis.

Ele se inclinou para o microfone.

– Sou conhecido em seu mundo como Dr. Tachyon.

– Seu nome verdadeiro completo.

– Tem certeza de que deseja isso?

– Eu perguntaria se assim não fosse? – rosnou Wood, irritado.

– Como queira – disse o alienígena, sorrindo levemente e começando a recitar sua linhagem completa. – Tisianne brant Ts’ara sek Halima sek Ragnar sek Omian. Assim termina minha linhagem materna, sendo Omian de certa forma um recém-chegado ao clã Ilkazam, tendo se casado vindo dos Zaghloul. Meu avô materno foi Taj brant Parada sek Amurath sek Ledaa sek Shahriar sek Naxina. Seu pai foi Nakonur brant Sennari...

– Obrigado – disse Wood, apressado. Ele olhou para os colegas à mesa. – Talvez para os propósitos desta audiência possamos passar com seu nom de plume?

– De guerre – ele corrigiu docemente, desfrutando da irritação de Wood.

Seguiram-se várias perguntas inúteis e digressivas sobre onde ele morava e trabalhava; depois John Rankin, de Mississippi, começou.

– Agora, pelo que entendo, Dr. Tachyon, o senhor não é cidadão dos Estados Unidos da América.

Tach lançou um olhar incrédulo para Quinn. Houve risinhos abafados dos jornalistas reunidos e Rankin olhou com raiva.

– Não, senhor.

– Então é um alienígena. – Satisfação permeando as palavras.

– Inegavelmente – respondeu lentamente. Recostando-se de maneira relaxada na cadeira, começou a brincar com as dobras da gravata.

Case, de Dakota do Sul, se adiantou.

– E você entrou ou não ilegalmente neste país?

– Aparentemente, não havia um centro de imigração em White Sands, por outro lado, eu não perguntei, estando preocupado com questões mais urgentes na época.

– Mas nos anos desde então em nenhum momento solicitou a cidadania americana?

A cadeira foi arrastada para trás e Tach se colocou de pé.

– O Ideal me concedeu paciência. Isso é absurdo. Não tenho qualquer desejo de me tornar cidadão de seu país. Considero seu mundo fascinante e mesmo se minha nave fosse capaz de viagem hiperespacial, eu permaneceria, pois tenho pacientes que precisam de mim. O que não tenho é tempo nem inclinação de latir e rolar para diversão deste tribunal ignorante. Por favor, continuem com seus joguinhos, mas me deixem trabalhar...

Quinn o puxou de volta para a cadeira e colocou a mão sobre o microfone.

– Continue assim e você estará pesquisando este mundo por trás dos muros de uma penitenciária federal – sibilou. – Aceite isso agora. Esses homens têm poder sobre você e os meios de exercê-lo. Agora se desculpe e vamos ver se conseguimos sair desta confusão.

Ele o fez, mas de má vontade, e o interrogatório continuou. Foi Nixon, da Califórnia, que os levou ao cerne da questão.

– Pelo que entendo, doutor, foi sua família que desenvolveu esse vírus que custou as vidas de tantas pessoas. Isso é correto?

– Sim.

– Perdoe-me?

Ele pigarreou e disse de modo mais claro dessa vez.

– Sim.

– E então você veio...

– Para tentar impedir sua liberação.

– E o que tem que corrobore essa alegação, Tachyon? – concedeu Rankin.

– O diário de bordo da minha nave detalhando minha discussão com a tripulação da outra nave.

– E você consegue obter esses diários? – retomou Nixon.

– Estão em minha nave.

Um assistente subiu ao palanque e houve uma conferência apressada.

– Relatórios indicam que sua nave resistiu a todos os esforços de entrada.

– Assim foi ordenado.

– Você a abriria e permitiria que a Força Aérea retirasse os diários?

– Não – disse, e eles se encararam por um longo momento. – Vocês devolverão minha nave e então darei a vocês os diários.

– Não.

Ele se recostou novamente na cadeira e deu de ombros.

– Bem, de qualquer forma eles não adiantariam muito para vocês; não estávamos falando em inglês.

– E quanto a esses outros alienígenas? Podemos interrogá-los?

A boca de Rankin se retorceu como se estivesse contemplando algo particularmente desagradável e viscoso.

– Temo que estejam todos mortos – disse, baixando a voz enquanto mais uma vez lutava contra a culpa que essas lembranças ainda despertavam. – Avaliei equivocadamente a determinação deles. Lutaram contra o feixe de tração e se fragmentaram na atmosfera.

– Muito conveniente. Tão conveniente que fico pensando em se não teria sido planejado dessa forma.

– Foi o fracasso de Jetboy que liberou o vírus.

– Não conspurque o nome do grande herói americano com suas mentiras maliciosas – berrou Rankin, lançando-se completamente no modo pregador sulista. – Sugiro a este comitê e ao país que você permaneceu neste mundo para estudar os efeitos de sua experiência maldosa. Que esses outros alienígenas estavam agindo como camicases prontos para morrer de modo a que você parecesse um herói e vivesse entre nós, aceito e reverenciado, mas na verdade tratando-se de um alienígena subversivo buscando abalar esta grande nação com a utilização desses perigosos elementos selvagens...

– Não! – disse ele, de pé, os braços plantados na mesa, inclinando-se na direção de seus inquisidores. – Ninguém lamenta mais os acontecimentos de 1946 do que eu. Sim, falhei... Falhei em deter a nave, falhei em localizar o globo, falhei em convencer as autoridades do perigo, falhei em ajudar Jetboy e tenho de viver com esses fracassos o resto da minha vida. Só o que posso fazer é me oferecer... Meus talentos, minha experiência no trabalho com esse vírus, para desfazer o que criei; eu lamento... Lamento.

Ele se interrompeu, engasgou e bebeu, grato, a água oferecida por Quinn.

O calor era algo tangível, enroscando em seu corpo, arrancando o fôlego dos pulmões e o deixando tonto. Ele desejou não desmaiar e, tirando o lenço do bolso, enxugou os olhos e soube que havia cometido outro erro. Os machos dessa cultura eram treinados para reprimir emoções.

Ele acabara de violar outro de seus tabus. Ele caiu pesadamente na cadeira.

– Se de fato se arrepende, Dr. Tachyon, então demonstre isso a este comitê. O que peço a você é uma lista completa dos chamados “ases” de que tenha tratado ou ouvido falar. Nomes... Se possível endereços e...

– Não.

– Estaria ajudando seu país.

– Este não é meu país e não irei colaborar com sua caça às bruxas.

– Você está neste país ilegalmente, doutor. Poderia ser do interesse deste país que seja deportado. Portanto, eu pensaria com cuidado na resposta, se fosse você.

– Ela não demanda mais reflexão... Não trairei meus pacientes.

– Então este comitê não tem mais perguntas para esta testemunha.

Nas portas da frente do Capitólio, eles se depararam com um homem pálido de traços angulosos.

Blythe soltou um pequeno ruído e agarrou o braço de Tach.

– Boa tarde, Henry – resmungou Quinn, e o alienígena se deu conta de que era o marido da mulher que partilhara sua cama e sua vida por dois anos e meio.

Ele parecia familiar. Tach lutava contra aquela persona sempre que se juntava a Blythe em união telepática ou física. Verdade que Henry havia sido relegado a um canto não utilizado da mente dela, como madeira descartada em um sótão empoeirado, mas a mente estava lá, e não era uma mente muito legal.

– Blythe.

– Henry.

Ele lançou um olhar frio a Tachyon.

– Se pudesse nos dar licença, gostaria de falar com minha esposa.

– Não, por favor, não me deixe – disse ela, os dedos agarrando seu paletó, e ele os soltou com cuidado antes que pudesse destruir o vinco, e segurou calorosamente sua mão na dele.

– Acho que não.

O deputado agarrou seu ombro e empurrou. Foi um erro de avaliação. Ele podia ser pequeno, mas Tachyon estudara com um dos maiores mestres defesa pessoal de Takis e sua resposta foi quase mais automática do que consciente. Não se importou com a sutileza das artes marciais,

simplesmente ergueu o joelho, acertando as bolas de van Renssaeler, e quando ele se dobrou, seu punho o acertou no rosto. O deputado caiu no chão como se acertado por um martelo e Tach sugou os nós dos dedos.

Os olhos azuis de Blythe estavam desfocados, olhando perdidos para seu marido abaixo, e Quinn franzia o cenho como um Zeus de cabelos brancos. Várias pessoas foram correndo ajudar o político caído e Quinn, se recuperando rapidamente, os levou escadaria abaixo.

– Aquele foi um golpe muito baixo – resmungou enquanto acenava para um táxi de passagem. – Não é muito esportivo chutar um homem nas bolas.

– Não estou interessado em esportividade. Você luta para vencer e, caso fracasse, você morre.

– Um mundo muito estranho do qual você vem, se esse foi o código que lhe ensinaram – resmungou novamente. – E como se já não tivesse problemas suficientes, aposto que Henry irá processá-lo por agressão e violência física.

– Considere-se contratado, Prescott – disse Blythe, erguendo a cabeça do ombro de Tach. Ela estava apertada entre os dois homens no táxi e Tach podia sentir o leve tremor que ainda corria por seu corpo.

– Talvez devesse pensar em pedir divórcio. Não imagino por que não o fez antes.

– As crianças. Sabia que nunca as veria se me divorciasse de Henry.

– Bem, pense nisso.

– Para onde estamos indo?

– O Mayflower. Belo hotel, vão gostar.

– Quero ir para a estação. Vamos para casa.

– Não recomendaria isso. Minhas entranhas dizem que isto ainda não terminou, e minha barriga é um indicador infalível.

– Já demos nossos depoimentos.

– Mas Jack e Earl ainda vão comparecer, Harstein tem de depor novamente e pode haver algo que exija que sejam chamados de novo. Vamos apenas ficar até os vivas finais. Vai poupar a vocês outra viagem, se estiver certo.

Tach concordou de má vontade, afundando no encosto para ver a cidade passar.

Na noite de domingo ele estava totalmente enjoado de Washington, totalmente enjoado do Mayflower e totalmente enjoado das profecias funestas de Quinn. Blythe tentou manter a fantasia de que estavam tendo pequenas férias adoráveis e o arrastou pela cidade para olhar os prédios de mármore e a estatuaria sem sentido, mas seu mundo de sonhos se despedaçou no final de sexta-feira, quando David foi acusado de desacato ao Congresso e o caso, transferido para um grande júri.

O garoto se encolhera na suíte deles alternando entre total confiança em que não haveria indiciamento e medo de ser condenado e preso. A segunda opção parecia mais provável, pois tinha sido terrivelmente agressivo com o comitê no último dia de depoimento, chegando ao ponto de compará-los com a elite governante de Hitler. O clima não era de contemporização. Tachyon quase fora distraído tentando reprimir os planos mais vingativos de David contra o comitê e tentando acalmar Blythe, que parecia ter perdido totalmente o inglês como primeiro idioma, falando quase exclusivamente em alemão.

Seus esforços não eram facilitados pelo fato de que estavam virtualmente sitiados no quarto; cercados e assediados por um bando de repórteres que não se detiveram mesmo após Blythe ter esvaziado um bule de café sobre um jornalista que tentara entrar se fazendo passar por serviço de quarto. Apenas Quinn podia penetrar em sua fortaleza e ele era tão uniformemente pessimista que Tach estava prestes a jogá-lo por uma janela.

Naquele momento, com o amanhecer colorindo o céu a leste, Tach estava deitado escutando as batidas regulares do coração de Blythe e o sussurro suave de sua respiração aninhada a seu lado.

Haviam feito amor longa e freneticamente, como se ela temesse perder contato com ele. Também havia sido perturbador, pois ele descobriu um grande volume de fissuras entre as várias personalidades. Tentara levá-la a se concentrar em uma nova construção, mas estava emocionalmente fragmentada demais para que isso funcionasse. Apenas descanso e um alívio do estresse restaurariam o equilíbrio, e Tach jurou que, com ou sem comitê, deixariam Washington naquele dia.

Uma batida furiosa na porta da suíte o arrancou da cama uma hora da tarde. Confuso, sequer havia pensado em seu robe, enrolando a colcha na cintura e indo para a porta. Era Quinn e a expressão no rosto dele varreu os últimos vestígios de sono de sua cabeça.

– O quê? O que aconteceu?

– O pior. Braun arruinou com vocês todos.

– Ahn?

– Testemunha amigável. Ele lançou todos vocês aos lobos para se salvar.

Tach se jogou em uma cadeira.

– Não é só isso, vão chamar Blythe novamente.

– Quando? Por quê?

– Amanhã, logo depois de Earl. Jack muito generosamente ofereceu a informação de que, além de von Braun, Einstein e o resto dos gênios, ela também tem seus pensamentos e lembranças.

Querem os nomes dos outros ases e, se não conseguem com você, vão conseguir com ela.

– Ela irá se recusar.

– Poderia ir para a cadeia.

– Não... Eles não fariam... Não uma mulher.

O advogado apenas balançou a cabeça.

– Faça alguma coisa. Você é o advogado. Eu recusei primeiro, que me mandem para a cadeia.

– Há outra opção.

– Qual?

– Dar a eles o que querem.

– Não, essa não é uma opção. Você tem que mantê-la fora daquela sala de audiências.

O velho suspirou e coçou furiosamente a cabeça até os cabelos se projetarem dela como os espinhos de um porco-espinho ameaçado.

– Certo, verei o que posso fazer.

Não havia sido o suficiente, e na manhã de terça-feira eles estavam de volta ao Capitólio. Earl havia marchado para dentro, apelado para a Quinta e marchado para fora com uma expressão de total desprezo e repulsa. Não esperava nada do governo do homem branco e este não o desapontou. Era então a vez de Blythe. À porta, dois jovens guardas dos fuzileiros haviam tentado detê-lo. Sabia que estava sendo injusto atacando as pessoas erradas, mas a tentativa deles de separá-lo de Blythe o descontrolara e ele dominara a mente de ambos com violência. Havia ordenado que dormissem e eles estavam roncando antes que batessem no chão. Aquela exibição de seu poder tivera um profundo efeito em vários observadores e rapidamente encontraram um lugar no fundo da sala, entre o pessoal da imprensa. Ele tentara protestar, querendo ficar com Blythe, mas dessa vez foi Quinn quem se opôs.

– Não, você se sentar lá com ela será como sacudir uma bandeira vermelha para um touro.

Cuidarei dela.

– Não é apenas a questão legal. A mente dela... Está muito frágil neste momento – disse, apontando com a cabeça para Rankin. – Não permita que ele a golpeie.

– Vou tentar.

– Minha querida. – Os ombros dela pareciam finos e ossudos sob suas mãos e, quando ergueu a cabeça, os olhos eram como dois hematomas escuros no rosto branco.

– Lembre-se, a liberdade e a segurança deles depende de você. Por favor, não diga nada.

– Não se preocupe, não direi – falou, com um lampejo de sua antiga coragem. – Eles também são meus pacientes.

Ele a observou se afastar, uma das mãos pousando levemente no braço de Quinn, e o pânico tomou conta dele. Quis correr atrás dela e segurá-la mais uma vez. Ficou pensando se a sensação era sua precognição errante despertando ou apenas uma mente confusa.

– Agora, Sra. van Renssaeler, vamos acertar a cronologia nas mentes de todos nós, certo? – disse Rankin.

– Certo.

– Quando descobriu que tinha esse poder?

– Fevereiro de 1947.

– E quando abandonou seu marido, o congressista Henry van Renssaeler?

Ele reforçou a palavra congressista, olhando rapidamente à esquerda e à direita para ver se seus colegas compreendiam.

– Não fiz isso, ele me colocou para fora.

– E talvez tenha sido porque descobriu que você estava se envolvendo com outro homem, um homem que sequer era humano?

– Não! – gritou Blythe.

– Objeção! – gritou Quinn ao mesmo tempo. – Este não é um julgamento de divórcio...

– O senhor não tem base para objetar, Sr. Quinn, e devo lembrá-lo de que algumas vezes este comitê considerou necessário investigar o histórico de advogados. É de se pensar por que vocês escolheriam representar inimigos deste país.

– Porque é um princípio do Direito anglo-americano que um réu tenha alguém que o proteja do impressionante poder do governo federal...

– Obrigado, Sr. Quinn, mas não acho que precisemos de aulas de jurisprudência – interrompeu o deputado Wood. – Pode continuar, Sr. Rankin.

– Obrigado, senhor. Vamos deixar isso de lado no momento. Quando se tornou uma dos chamados Quatro Ases?

– Acho que foi em março.

– De 1947?

– Sim. Archibald me mostrou como poderia usar meu poder para preservar conhecimento inestimável e entrei em contato com vários cientistas. Eles concordaram e eu...

– Começou a sugar suas mentes.

– Não é assim.

– Não acha um tanto repulsivo, quase vampiresco, o modo pelo qual come o conhecimento e as habilidades de um homem? Também é uma fraude. Você não nasceu com uma grande mente, nem estudou ou trabalhou para chegar à sua posição. Apenas rouba os outros.

– Eles se dispuseram. Nunca teria feito isso sem permissão.

– E o congressista van Renssaeler lhe deu sua permissão?

Tachyon podia ouvir as lágrimas engrossando a voz dela.

– Isso foi diferente. Eu não compreendia... Não podia controlar.

Ela baixou o rosto para as mãos enluvadas.

– Vamos continuar. Chegamos ao momento em que você abandonou marido e filhos – disse, acrescentando em um tom de conversa, obviamente dirigido aos outros membros do comitê. – Também acho inacreditável que uma mulher abandone seu papel natural e se comporte dessa forma. Bem, isso é irrelevante...

– Eu não o abandonei – interrompeu Blythe.

Ele ignorou a observação.

– Semântica. Quando foi isso?

Blythe afundou na cadeira, desesperançada.

– Vinte e três de agosto de 1947.

– E onde tem morado desde 23 de agosto de 1947?

Ela ficou sentada em silêncio.

– Vamos lá, Sra. van Renssaeler. A senhora concordou em responder a perguntas perante este comitê. Não pode voltar atrás nessa concordância agora.

– Em Central Park West, 117.

– E de quem é esse apartamento?

– Do Dr. Tachyon – sussurrou.

Com isso houve uma agitação na imprensa, pois eles haviam sido muito discretos. Apenas os outros três ases e Archibald sabiam de seu arranjo de vida.

– Então, após violar seu marido e roubar sua mente, a senhora saiu e vive em pecado com um inumano de outro planeta que criou o vírus que lhe deu esse poder. Há algo muito conveniente em tudo isso – disse, inclinando-se para a frente sobre a mesa e gritando em sua direção. – Agora escute, madame, e é melhor responder, pois está correndo um grande perigo. Tomou a mente e as lembranças desse Tachyon?

– S-sim.

– E trabalhou com ele?

– Sim.

Suas respostas eram quase inaudíveis.

– E reconhece que Archibald Holmes formou os Quatro Ases como um elemento subversivo projetado para abalar aliados leais dos Estados Unidos?

Blythe se balançou na cadeira, as mãos agarrando a barra superior com uma intensidade desesperada, os olhos percorrendo de modo vago a sala lotada. Seu rosto parecia se contorcer, tentando se reacomodar em diferentes aparências, e havia um ruído elétrico quase psíquico saindo de sua mente. Ele penetrou na cabeça de Tachyon e os escudos dele se ergueram.

– Está escutando, Sra. van Renssaeler? É melhor que esteja. Estou começando a pensar que você e seu poder sugador são um perigo para este país. Talvez seja melhor que vá para a cadeia antes que pegue esse conhecimento indevidamente obtido e o venda para os inimigos deste país.

Blythe tremia tanto que parecia improvável que conseguisse permanecer ereta na cadeira, e lágrimas escorriam pelo rosto. Tach se levantou e começou a passar em meio à multidão que os separava.

–Não, não, por favor... Não. Me deixe em paz.

Ela passou os braços ao redor do corpo em busca de proteção e balançou para a frente e para trás.

– Então me dê esses nomes!

– Tudo bem... Tudo bem.

Rankin se afastou do microfone, sua caneta produzindo um pequeno ritmo satisfeito sobre o bloco à sua frente.

– Há Croyd...

Para Tachyon o tempo pareceu se distender, esticar, quase ficar imóvel. Várias filas de pessoas ainda o separavam de Blythe e naquele éon ele tomou sua decisão. Sua mente se projetou, imobilizando-a como uma borboleta. A voz dela engasgou e ela emitiu um engraçado barulhinho seco. Para ele foi semelhante a segurar um floco de neve ou alguma escultura de vidro particularmente delicada. Sob seu aperto, sentiu toda a estrutura da mente se fragmentar e Blythe caiu rodopiando para dentro de uma escura e assustadora caverna da alma. Libertados, os outros sete se agitaram. Rindo, censurando, posando, vociferando, pareciam correr pelo sistema nervoso central dela, fazendo seu corpo se contorcer como uma marionete enlouquecida. Palavras se projetaram dela: fórmulas, palestras em alemão, discussões entre Teller e Oppenheimer, discursos de campanha e takisiano se misturaram em um caldo rodopiante.

No instante em que sentiu a mente dela fraquejar, ele a soltou, mas era tarde demais. Cadeiras e pessoas foram jogadas de lado de modo grosseiro enquanto abria caminho para o lado dela e a pegava nos braços. A sala estava em completo caos, com Wood batendo o martelo, repórteres gritando e se empurrando e, acima de tudo, o monólogo maníaco de Blythe. Ele a pegou, projetou novamente o poder coercivo e a conduziu ao esquecimento. Ela desmontou em seus braços e um silêncio assustador se abateu sobre a sala.

– Acredito que o comitê não tenha mais perguntas para esta testemunha. – As palavras saíram rascantes e seu ódio se projetava dele como uma força tangível. Os nove homens se remexeram, desconfortáveis, e então Nixon murmurou em uma voz quase inaudível:

– Não, mais nenhuma pergunta.

Horas depois ele estava sentado no apartamento embalando-a no colo e cantarolando como teria feito com um de seus priminhos em Takis. Seu cérebro estava esgotado da luta para levá-la de volta à sanidade; nenhum de seus esforços produzira qualquer resultado. Ele se sentia jovem e desamparado; queria sapatear no tapete e uivar como um garoto de quatro anos de idade. Imagens de seu pai surgiram para assombrá-lo; grande, sólido e poderoso, ele tinha a formação e o talento natural para lidar com essas doenças mentais. Mas estava a centenas de anos-luz e não tinha idéia de para onde o filho errante e herdeiro tinha ido.

Houve uma batida peremptória na porta. Transferindo seu fardo frouxo e sem resistência para o braço esquerdo, cambaleou até a porta e recuou um passo quando seus olhos flamejantes se concentraram nos dois policiais e na figura toda encapotada atrás deles. Henry van Renssaeler ergueu o rosto machucado e olhou para Tachyon.

– Tenho um mandado de internação para minha esposa. Por favor, entregue-a.

– Não... Não, você não entende. Só eu posso ajudá-la. Ainda não tenho a construção, mas conseguirei. Apenas irá demandar um pouco mais de trabalho.

Os policiais corpulentos se adiantaram, e gentil, mas inexoravelmente, tiraram-na de seus braços protetores. Ele saiu tropeçando atrás deles enquanto desciam as escadas, Blythe caída nos braços de um dos policiais. Van Renssaeler não fez qualquer movimento para tocá-la.

– Só mais um tempinho – disse, chorando. – Por favor, apenas me deem mais um tempinho.

Ele desmoronou, agarrando-se ao corrimão, enquanto a porta da rua se fechava atrás deles.

Ele só a viu uma vez após a internação. O recurso contra a ordem de deportação estava sendo negado pelos tribunais e, vendo o fim se aproximar, ele dirigiu até o sanatório particular no norte do estado de Nova York.

Não o deixaram entrar no quarto. Ele teria revertido essa decisão com controle mental, mas desde aquele dia abominável não havia conseguido usar seu poder. Então espiou através de uma janelinha na porta pesada, olhando para uma mulher que já não conhecia. Os cabelos pendiam em cachos emaranhados ao redor de seu rosto retorcido enquanto ela percorria o pequeno quarto falando para uma plateia invisível. Sua voz era baixa e rouca; obviamente suas cordas vocais haviam sido danificadas pelas tentativas constantes de sustentar um timbre masculino.

Incapaz de se conter, ele se projetou telepaticamente, mas o caos de sua mente o mandou de volta, cambaleando. Pior havia sido a sensação infinitesimal de Blythe gritando por ajuda de alguma fonte profunda e oculta. Sua culpa foi tão intensa que ele passou vários minutos no banheiro vomitando, como se isso de alguma forma pudesse limpar sua alma.

Cinco semanas depois ele havia sido colocado a bordo de um navio rumo a Liverpool.

– Le pauvre.

Uma grande matrona com duas garotinhas ao lado olhava para a figura caída no banco.

Vasculhou a bolsa e tirou uma moeda. Ela caiu com um barulho abafado no estojo do violino.

Recolhendo as crianças, ela avançou, e Tachyon pegou a moeda com dois dedos sujos. Não era muito, mas compraria outra garrafa de vinho, e outra noite de esquecimento.

Ele se levantou, guardou o instrumento, pegou a bolsa de médico e enfiou a página de jornal dobrada na camisa. Mais tarde, durante a noite, ela o protegeria do frio. Deu alguns passos vacilantes, então parou, oscilando. Segurando as duas malas com uma mão, tirou a página e olhou a manchete pela última vez. O vento frio do leste recomeçou, puxando o papel com urgência. Ele o soltou e o jornal deslizou para longe. Caminhou, sem olhar para onde ficou pendurado, oscilando desamparadamente contra as pernas de ferro do banco. Poderia esfriar, mas confiaria no vinho para isolá-lo do frio.

Interlúdio Um

 

                                           DE ASES VERMELHOS, ANOS NEGROS

 

                   Elizabeth H. Crofton

                   New Republic, maio de 1977

A partir do momento, em 1950, em que declarou em seu famoso discurso de Wheeling, na Virgínia Ocidental, que “Tenho aqui em minhas mãos uma lista de 57 cartas selvagens que sabemos viver e trabalhar clandestinamente hoje nos Estados Unidos”, não restava muita dúvida de que o senador Joseph R. McCarthy havia substituído os membros sem rosto do Comitê da Câmara sobre Atividades Antiamericanas (HUAC) como o líder da histeria anticartas selvagens que se espalhou pela nação no início daquela década de 1950.

Sem dúvida o HUAC podia reivindicar o crédito por desacreditar e destruir os Exóticos pela Democracia de Archibald Holmes, os “Quatro Ases” dos anos tranquilos do pós-guerra e os símbolos vivos mais visíveis da devastação que o vírus carta selvagem tinha causado ao país (é preciso reconhecer que havia dez curingas para cada ás, mas, assim como negros, homossexuais e drogados, durante todo esse período os curingas foram homens invisíveis, ignorados com determinação por uma sociedade que teria preferido que eles não existissem). Quando os Quatro Ases caíram, muitos acharam que o circo havia terminado. Estavam enganados. Estava apenas começando, e sob a direção de Joe McCarthy.

A caçada aos “Ases Vermelhos” que McCarthy provocou e empreendeu não produziu nenhuma vitória espetacular para o rival HUAC, mas, no fim, o trabalho de McCarthy afetava muito mais gente e se mostrou duradouro, enquanto o triunfo do HUAC tinha sido efêmero. O CRISE-A (Comitê de Recursos Internos do Senado para Empenho dos Ases) nasceu em 1952 como fórum para as caçadas aos ases de McCarthy, mas acabou se tornando uma parte permanente da estrutura

de comitês do Senado. Com o tempo, o CRISE-A, assim como o HUAC, se transformaria em um mero fantasma do que havia sido, e décadas mais tarde, sob a presidência de homens como Hubert Humphrey, Joseph Montoya e Gregg Hartmann, evoluiria para um tipo de animal legislativo totalmente diferente. Contudo, o CRISE-A de McCarthy era tudo o que a sigla significava: crise. Entre 1952 e 1956, mais de duzentos homens e mulheres responderam a intimações do CRISE-A, normalmente sem evidências mais substanciais do que o depoimento de informantes anônimos de que eles, em alguma ocasião, haviam exibido poderes de carta selvagem.

Foi uma verdadeira caça às bruxas moderna, e como os ancestrais espirituais em Salem, os que eram levados à presença de Joe Caçador pelo não crime de ser um ás tinha sérios problemas para provar sua inocência. Como você prova que não pode voar? Nenhuma das vítimas do CRISE-A jamais respondeu a essa pergunta de modo satisfatório. E a lista negra estava sempre à espera daqueles cujos depoimentos fossem considerados insatisfatórios.

Os destinos mais trágicos eram os de pessoas que na verdade eram vítimas do vírus carta selvagem e reconheciam seus poderes de ás abertamente diante do comitê. Desses casos, nenhum foi mais comovente que o de Timothy Wiggins, ou o “Sr. Arco-Íris”, como era apresentado ao subir ao palco. “Se sou um ás, não quero ver um dois de paus”, disse Wiggins a McCarthy quando foi intimado em 1953, e a partir daquele momento “dois de paus” entrou no vocabulário como o termo para um ás cujos poderes de carta selvagem são triviais ou inúteis. Com certeza esse era o caso de Wiggins, um artista míope e gordinho de 48 anos cujo poder de carta selvagem, a habilidade para mudar a cor de sua pele, o havia levado a ser uma atração de segunda nos menores resorts de Catskill, onde seu número consistia em tocar um ukulele e cantar versões em falsete de músicas como Red, Red Robin, Yellow Rose of Texas e Wild Card Blues , acompanhando cada interpretação com as mudanças de cor apropriadas. Ás ou dois de paus, o Sr. Arco-Íris não recebeu piedade de McCarthy ou do CRISE-A. Na lista negra e sem conseguir contratos de trabalho, Wiggins se enforcou no apartamento da filha, no Bronx, menos de 14 meses após seu depoimento.

Outras vítimas tinham as vidas perturbadas e destruídas: perdiam empregos e carreiras para a lista negra, perdiam amigos e parceiros e inevitavelmente perdiam a custódia dos filhos nos divórcios muito frequentes. Pelo menos 22 ases foram descobertos no auge das investigações do CRISE-A (o próprio McCarthy costumava dizer que tinha “exposto” duas vezes mais, porém, incluía nesse total inúmeros casos em que os “poderes” dos acusados foram determinados apenas por boatos e provas circunstanciais, sem um fiapo de documentação verdadeira), abrangendo criminosos perigosos como uma dona de casa do Queens que levitava enquanto dormia, um estivador que podia meter a mão numa banheira e fazer a água ferver em menos de sete minutos, uma professora primária anfíbia da Filadélfia (ela escondia as guelras sob as roupas, até o dia em que se entregou tolamente ao salvar uma criança que se afogava) e mesmo um quitandeiro italiano barrigudo que demonstrava uma habilidade impressionante de fazer seu cabelo crescer quando quisesse.

Embaralhadas em meio a tantas cartas selvagens, o CRISE-A encontrou realmente alguns ases genuínos em meio aos dois de paus, entre eles Lawrence Hague, o corretor de ações telepata cuja confissão provocou pânico em Wall Street, e a mulher conhecida como “mulher pantera” de Weehawken, cuja metamorfose diante das câmeras dos cinejornais aterrorizou o público dos cinemas de costa a costa. Mas isso era praticamente irrelevante perto do caso do misterioso homem detido enquanto roubava o distrito de comércio de diamantes de Nova York, com os bolsos cheios de pedras preciosas e anfetaminas. Esse ás desconhecido tinha reflexos quatro vezes mais rápidos que os de um homem normal, assim como força surpreendente e uma aparente imunidade a tiros de armas de fogo. Depois de arremessar um carro de polícia a meio quarteirão de distância e mandar 12 policiais para o hospital, ele enfim foi dominado com gás lacrimogêneo.

O CRISE-A imediatamente emitiu uma intimação, mas o homem identificado mergulhou em um sono profundo comatoso antes de prestar seu depoimento. Para desgosto de McCarthy, o homem não conseguiu ser despertado – até o dia, oito meses mais tarde, em que sua cela especial reforçada e de segurança máxima foi encontrada repentina e misteriosamente vazia. Um preso de boa conduta jurou ter visto o homem atravessar a parede, mas a descrição que deu não combinava com a do prisioneiro desaparecido.

A conquista de efeito mais duradouro de McCarthy, se é que pode ser chamada de conquista, foi a aprovação das chamadas “Leis das Cartas Selvagens”. A Lei de Controle de Poderes Exóticos, aprovada em 1954, foi a primeira. Ela exigia o registro imediato no governo federal de toda pessoa que tivesse poderes da carta selvagem; quem não fizesse isso era punido com penas que chegavam a dez anos de prisão. Depois dessa, veio o Ato de Recrutamento Especial, que dava ao Gabinete de Recrutamento e Serviço Militar o poder de convocar ases registrados para servir ao governo por período indefinido. Persistem rumores de que vários ases, em cumprimento às novas leis, foram realmente convocados para servir no Exército, no FBI e no Serviço Secreto no fim dos anos 1950, mas, se isso for verdade, as agências que empregaram seus serviços mantiveram seus nomes, poderes e até a própria existência desses agentes como um segredo muito bem guardado.

Na verdade, apenas dois homens foram abertamente convocados depois do Ato de Recrutamento Especial durante todos os 22 anos de duração desse estatuto: Lawrence Hague, que desapareceu a serviço do governo depois que as acusações de manipulação do mercado de ações foram arquivadas, e um ás ainda mais celebrado, cujo caso virou manchete em toda a nação.

David “Embaixador” Harstein, o carismático negociador dos “Quatro Ases”, recebeu um aviso de convocação menos de um ano após deixar a prisão em que fora confinado pelo CRISE-A por desacato ao Congresso. Harstein nunca se apresentou para o serviço. Em vez disso, desapareceu completamente da vida pública no início de 1955, e nem a caçada do FBI por todo o país conseguiu descobrir qualquer pista do homem que o próprio McCarthy chamou de “o maior subversivo dos Estados Unidos”.

As Leis Cartas Selvagens foram o maior triunfo de McCarthy, mas de modo muito irônico sua aprovação plantou as sementes de sua ruína. Quando os projetos de lei muito divulgados foram enfim aprovados, o estado de ânimo da nação pareceu mudar. McCarthy repetiu inúmeras vezes ao público que as leis eram necessárias para lidar com ases ocultos que ameaçavam a nação.

Bem, respondeu a nação, as leis foram aprovadas e o problema está resolvido, e já não aguentamos mais isso.

No ano seguinte, McCarthy apresentou o projeto de Lei de Contenção de Doenças Alienígenas, que teria obrigado a esterilização compulsória de todas as vítimas do vírus carta selvagem, tanto curingas quanto ases. Isso era demais até para seus partidários mais ferrenhos. O projeto sofreu uma derrota fragorosa, tanto na Câmara quanto no Senado. Em um esforço para se reerguer e voltar às manchetes, McCarthy comandou no CRISE-A uma imprudente investigação sobre o Exército, com o propósito de revelar os “ases na manga”, que os boatos insistiam em afirmar terem sido recrutados secretamente em anos anteriores ao Ato de Recrutamento Especial. Mas a opinião pública mudou radicalmente contra ele durante as audiências Exército-McCarthy, que culminaram em uma censura pública a ele feita pelo Senado.

No início de 1955, muitos achavam que McCarthy podia ter força o bastante para tentar arrancar de Eisenhower a indicação para concorrer à Presidência pelo Partido Republicano,

porém, na época da eleição de 1956, o clima político tinha mudado tão claramente que ele foi um fator praticamente sem importância.

Em 28 de abril de 1957, ele foi internado no Centro Médico da Marinha em Bethesda, Maryland, um homem desequilibrado que falava sem parar sobre as pessoas que ele achava que o haviam traído. Em seus últimos dias, ele insistia que sua derrocada fora toda culpa de Harstein, que o Embaixador estava lá fora em algum lugar, cruzando o país de um lado a outro, envenenando as pessoas contra McCarthy com um sinistro controle mental alienígena.

Joe McCarthy morreu em 2 de maio e a nação não deu a mínima. Mas seu legado sobreviveu a ele: o CRISE-A, as Leis Cartas Selvagens, uma atmosfera de medo. Harstein podia até estar solto lá fora, mas não apareceu para comemorar sua morte. Como muitos outros ases de seu tempo, ele permaneceu escondido.

 

Capitão Cátodo e o ás secreto

 

Michael Cassutt

 

DENTRO DO ESTRATO-JATO. ATRAVESSANDO A PONTE. DURANTE O DIA.

 

Os motores RUGEM enquanto o Curinga Lobo faz uma CURVA BARULHENTA com o estrato-jato. As mãos de Cátodo estão amarradas. Ouvem-se BATIDAS na escotilha.

 

Marty (voz de)

 

Capitão! Estamos ficando sem ar!

 

Nos controles, o Curinga Lobo se vira e olha para ele com desprezo.

 

Curinga Lobo

 

A escolha é sua, Capitão. Entregue os códigos, ou todos os seus amigos vão morrer sufocados.

 

 

Cátodo

 

Você também vai morrer, Curinga!

 

Curinga Lobo

 

Vou apontar o estrato-jato para a montanha e cair fora.

 

Cátodo

 

Eu sabia. No fundo, os Curingas são covardes.

 

Curinga Lobo

 

Insultos, Cátodo. Inúteis... e no alvo errado.

 

O Curinga Lobo arranca o próprio rosto. É uma máscara, claro. Por baixo dela... o rosto bigodudo e presunçoso de ROWAN MERCADO, a nêmese takisiana de Cátodo.

 

Cátodo

 

Mercado! Eu devia ter imaginado.

 

Karl von Kampen fechou o roteiro e o colocou virado para baixo sobre a mesa. Era cedo em uma manhã de segunda-feira, agosto de 1956. A temperatura fora do escritório dos Estúdios Republic, do Capitão Cátodo – perto das Montanhas de Santa Monica, em San Fernando Valley –, já passava dos 30 graus e beiraria facilmente os 40. Um ar-condicionado barulhento prometia mais frio do que produzia.

Mas ali, naquele seu escritório de canto, Karl sentiu um arrepio.

Um roteiro do Capitão Cátodo não precisa chegar ao nível de Macbeth. Não era preciso ter a maravilha conceitual de um H.G. Wells. Não tinha de ser tão emocionante quanto um Conflitos do destino.

Mas aquele velho truque do vilão mascarado? O que Willy Ley estava pensando?

Karl se levantou da cadeira e se alongou, não só para aliviar a tensão crescente, mas simplesmente para mudar a geometria do ambiente. Seu escritório era tão simples e organizado quanto, ele esperava, a paisagem interior de sua mente: uma mesa e uma cadeira simples, uma máquina de escrever na qual redigia os rascunhos de seus memorandos e um arquivo cheio com seis roteiros do Capitão Cátodo, nem mais nem menos.

Karl era um homem pequeno com cabelos louro-esbranquiçados e olhos azuis; um espécime ariano perfeito, não fosse pelos ombros arqueados – ele nunca fora nem remotamente esportivo – ou, algo mais perceptível, seu andar claudicante, herança de um ferimento recebido em um bombardeio em Peenemunde durante a Guerra.

Ele ficou aliviado quando ouviu o telefone tocar. Era sua assistente, Abigail.

– Ligaram do set – disse ela, e Karl entendeu a mensagem antes mesmo de ouvir as palavras. – Brant está atrasado de novo. – Brant Brewer, o próprio Capitão Cátodo.

Karl pegou um dos muitos pares de óculos escuros na gaveta, saiu do escritório e parou ao lado de Abigail antes que ela tivesse recolocado o fone no gancho.

– Entre em contato com Saul Greene e avise a ele que o Sr. von Kampen não está satisfeito. – Greene era o agente de Brewer. Karl sabia que o telefonema seria um esforço inútil; você raramente encontrava o agente sem o cliente. Mas Brewer podia ser motivado por um aviso.

– O Sr. von Kampen vai ficar ainda menos satisfeito quando souber que Harold Dann, da Kellogg’s, estará às nove horas no set. – Dann era o chefe dos compradores da Kellogg’s, a empresa de cereais para o café da manhã que estava negociando para ser a patrocinadora de Cátodo, o que dobraria o orçamento da série... e deixaria Karl rico.

– Dê um jeito de atrasá-lo – disse Karl. Com uma raiva que o deixou à beira da violência, pegou a edição matutina do Herald na mesa de Abigail. A reportagem sobre um corpo transformado em pedra perto do observatório do Griffith Park imediatamente chamou sua atenção.

– Ah, o Assassino Medusa atacou de novo. – A série de mortes horrendas já durava três meses.

Todos curingas, transformados em pedra. – E o Sol também nasceu hoje de manhã.

– Karl, você é mau.

– “Cínico” é a palavra. – Ele se divertia fingindo saber mais inglês do que Abigail, que tinha realmente se formado em uma faculdade do Leste.

– Eu disse mau, e foi isso o que quis dizer. – Abigail tinha 25 anos, era magra e de cabelos escuros. Era fácil imaginá-la como a única repórter mulher em uma redação cheia de homens metidos a engraçados. Karl amava a voz dela assim como sua indiferença refrescante em relação às convenções de um relacionamento profissional, como as que proibiam uma secretária de se dirigir a seu chefe pelo primeiro nome. – A única coisa diferente entre essas mortes e os assassinatos habituais de curingas é que as vítimas não são mulheres jovens, mas homens.

– Aposto que são atores – disse Karl com amargura. – Mortos por produtores. – Ele deu um sorriso de despedida para Abigail e colocou os óculos escuros sobre o rosto. – Como você disse... mau!

Karl não estava fazendo justiça a si mesmo. Apesar de ter um senso de humor rústico alemão, afiado por experiências brutais na guerra, ele simpatizava com qualquer pessoa que tivesse uma fraqueza, que fosse vulnerável.

Qualquer um que escondesse uma habilidade de carta selvagem. Karl tinha até um nome para a dele: fokus, assim mesmo, com a grafia alemã. O fokus lhe dava o dom de uma visão ampliada, a habilidade de fazer um zoom e aproximar as coisas, e frequentemente de ver através de qualquer objeto em seu campo de visão. Não era apenas uma habilidade física. Na verdade, era um estado mental, um momento em que o tempo se estendia.

Algo que ele ainda lutava para controlar.

Enquanto Karl atravessava o asfalto quente, uma olhada rápida para as montanhas na extremidade norte do vale despertou o fokus. De repente, o distante monte Wilson, com seu observatório e uma coleção de torres de transmissão de rádio e TV, apareceu em close.

Mais uma piscada e Karl viu a cúpula branca do grande refletor de 2,5 m... sua pintura descascada. Outra piscada, a torre da Rádio KNX... uma de suas lâmpadas vermelhas de segurança queimada.

Havia uma satisfação quase sexual em exercitar o fokus. Tinha de ser em particular, é claro, uma concessão fácil, já que o fokus exigia circunstâncias especiais, como um alvo convidativo, próximo ou distante.

Era um poder de carta selvagem que não fazia com que Karl chamasse atenção, exceto por uma coisa: suas íris ficavam vermelhas, em vez de azuis. Por isso os óculos escuros sempre à mão, não importava quantas vezes o haviam provocado por parecer pretensioso.

Os óculos marcavam Karl von Kampen tanto quanto seu sotaque alemão. Às vezes ele se perguntava qual o maior problema na Hollywood de 1956: ser um ás, ou ter trabalhado para Hitler?

Entrar na cabine de som era como adentrar uma caverna escura e convidativa. Por um instante Karl conseguiu esquecer sua preocupação constante com dinheiro e a pressão de seu chefe, Frederick Ziv.

Ele pôde tirar os óculos.

O primeiro a notar a presença de Karl ali foi Eugene Olkewitz, o ator limpo, rotundo e frequentemente bêbado que interpretava Turk, o curinga com cara de cachorro e ajudante do Capitão Cátodo.

– Lá vem o Führer! Wie gehts? – acrescentou, dando um tapinha nas costas de Karl.

– É isso o que vim aqui descobrir. – Karl não gostava de Olkewitz. Comparado a Brewer, Eugene era muito profissional, sempre pontual, nunca errava as marcações nem esquecia suas falas, mas levava aquele papel secundário muito a sério, e a menina do figurino disse que ele costumava levar a máscara de cachorro para casa. Ele dizia que gostava de ensaiar caracterizado, mas...

– Estamos resolvendo as coisas sem Brant para a primeira cena – disse Olkewitz. – Vamos filmar nossos planos, certo, garota?

“Garota” se referia a “Nora”, a atriz Dotty Doyle, maravilha escultural de olhos azuis cujas pernas magníficas eram constantemente exibidas em seu uniforme de estrato-jato da equipe de Cátodo. Karl fez uma anotação mental para parabenizar o figurinista, que obviamente entendia que um programa infantil podia mostrar muito mais pele do que seria considerado escandaloso em uma série dirigida a adultos.

– Não sou sua garota, Gene. – Dotty sequer se dirigiu diretamente a ele, plantando-se bem na frente de Karl. – E não vamos conseguir fazer nada desse jeito.

Essa era Dotty: informada, descolada, séria... o tipo de princesa nórdica que os pais de Karl teriam recebido muito bem como parceira de seu filho.

Karl deu a volta nos bastidores e foi até o cenário. As luzes tinham sido desligadas enquanto trabalhadores removiam o painel de controles do estrato-jato de Cátodo.

– Ela tem razão, Karl – disse aborrecido Marshall Korshak, o diretor. – O resto do dia inteiro é com o Cátodo.

Korshak ficava nervoso até quando as coisas funcionavam bem. Ele veio para Cátodo de Hopalong Cassidy. Karl deu um sorriso forçado.

– Podia ser pior, Marshall. Podíamos ter cavalos.

– Os cavalos estão sempre presentes quando precisamos deles. Ou você arranja outro, e ninguém percebe a diferença.

Naquele instante, um assistente de produção passou correndo por eles.

– Ele está aí! – disse e seguiu em frente, para evitar sentir o efeito colateral da explosão que viria. O mesmo impulso de autodefesa fez Korshak anunciar que precisava mijar.

Karl se aprumou para o encontro. Mas, assim que seus olhos se ajustaram à mudança brusca na luz, ele se deu conta de que não era Brant Brewer, o Capitão Cátodo. Era Harold Dann, da Kellogg’s.

Dann beirava os 40 anos, era moreno, forte e começava a ficar careca. E ele tinha os dentes mais brancos que Karl jamais vira em um humano que não fosse ator. Dann, na verdade, sorria com cada frase que dizia... como se estivesse sendo pago por segundo de deslumbramento.

Ele foi apresentado a Olkewitz e Dotty. Os olhos de Dann se arregalaram ao ver pela primeira vez a companhia feminina de Cátodo.

– Acho que devíamos botar você na caixa de cereais.

– Se pernas e peitos venderem flocos de milho, por que não?

Antes que a conversa ficasse mais animada, Karl ouviu:

– Qual o problema de vocês, gente? Não veem que temos televisão imortal para fazer?

Brant Brewer, conhecido por milhões de jovens americanos como o Capitão Cátodo, flagelo dos takisianos e seus malvados asseclas curingas, surgiu caminhando das sombras e parou no meio do cenário, com as mãos nos quadris, um modelo de força, justiça e valores americanos.

Estava usando seu uniforme de vôo colante azul-marinho, com a letra C e um raio bordados.

Sempre que Karl via seu Capitão, não importava com quanta raiva estivesse, ele sonhava com a possibilidade de transmissão em cores.

Ou isso ou a capacidade de lançar raios explosivos de seus olhos com o fokus.

– Brant, você está duas horas atrasado.

– A cabeleireira e maquiadora não me deixava sair do trailer. – O sorriso de Brewer era tão deslumbrante quanto o de Dann, mas completamente natural. Karl não duvidava de que a cabeleireira e maquiadora tivesse uma queda pelo astro; a maioria das mulheres na equipe tinha, e sem dúvida alguns dos homens.

– Você chega horas atrasado todos os dias e isso está acabando com a gente.

– Estamos fazendo as cenas, Karl.

– Estamos dando um jeito de fazer as cenas sem você! E elas nunca ficam tão boas quanto poderiam ficar.

Brewer brandiu um roteiro.

– Como isso pode ficar bom? Sou um homem de uniforme que enrola e derrota idiotas mascarados. Não posso atirar neles. Não posso jogá-los pela escotilha. Tudo o que posso fazer é falar duro com eles e mandá-los comer todo seu espinafre. – Em uma discussão, Brewer retornava a seu sotaque cajun original, da mesma forma que Karl ficava mais teutônico. Era impressionante que conseguissem se comunicar.

– Nosso público são crianças pequenas. Elas já veem bastante violência em suas vidas reais.

– As crianças não merecem esse monte de bosta. Você lê mesmo esses roteiros, Karl? – A expressão de Brant mudou de desafio para compaixão. – Esqueça as simplificações... dramáticas.

Será que as crianças americanas merecem ver esse retrato de ases e curingas? Será que botar uma máscara de cachorro em Gene Olkewitz é melhor do que escalar um verdadeiro...

– Pare com isso! – Karl podia perceber que Brewer estava, como sempre, mudando de assunto, saindo de seus próprios erros para a covardia de Hollywood em relação à carta selvagem. – Você sabe que não podemos usar curingas verdadeiros. Quantas vezes vamos ter que discutir isso? A série está bem montada e fechada. Você faz parte dela ou não. Continue a se atrasar para as gravações e vai ser dispensado.

– Você quer entrar para a história como o homem que demitiu o Capitão Cátodo?

Karl deu um tapinha com os dedos na parte da frente da fantasia do Capitão Cátodo.

– O Capitão Cátodo é qualquer pessoa que vista esse uniforme.

Então a expressão de Brewer mudou outra vez, irradiando calor e eterna amizade.

– Você é o chefe. – Ele olhou ao redor, como se procurasse aliados, e viu Korshak. – Será que estamos ou não estamos fazendo televisão aqui?

Karl ainda estava tão abalado com o encontro que levou um momento para perceber que havia alguém atrás dele batendo palmas: Dann.

– Está sentado em uma mina de ouro aqui, Sr. von Kampen.

– A série vai bem.

– E deve continuar a ir bem, mas a grana de verdade não virá dos jovens olhinhos que sintonizam o programa toda tarde. Ela virá do que esses jovens forçarem seus pais a comprarem.

Revistas em quadrinhos do Capitão Cátodo, brinquedos, os... pijamas, capacetes, os modelos do estrato-jato, os bonecos.

– E o cereal do café da manhã.

– É melhor você controlar seu ator. – Ele não estava sorrindo.

Antes de fazer qualquer coisa, Karl tinha de sofrer durante a sessão de gravação da trilha sonora dos cinco episódios da semana seguinte de Cátodo.

Chamar aquilo de sessão de gravação era um exagero, claro. Toda trilha incidental era padrão, já pré-gravada. O uso de cada trecho era mecânico... toda aparição de um vilão ou falso clímax recebia o mesmo toque melodramático. Para Karl, as repetições eram como picadas de inseto:

pequenas, mas frequentes e incômodas.

Quando deixou o estúdio, ele viu o homem de que precisava.

– Jack!

Jack Braun, o famoso Ás Judas, mais recentemente astro do Tarzan dos macacos , de Ziv, ostentava um bronzeado que parecia impossível e parecia bizarramente jovem de calças cáqui e camisa branca. Sua carta selvagem, é claro.

– Oi, Karl. Como vai seu Capitão? – O sorriso falso de Braun revelava que ele sabia tudo sobre as faltas de Brant. Bem, Braun ainda tinha amigos em todos os cantos do estúdio Republic.

– É exatamente sobre ele que eu quero conversar com você, Jack.

Os olhos de Braun se estreitaram.

– Você seria louco se me desse o papel, Karl. Esse ás é uma carta marcada, para usar uma metáfora.

– Sei disso. Seria caro e arriscado demais trocar de ator agora. Eu queria saber por que Brant Brewer não consegue chegar na hora no set.

– Estou ocupado demais com Tarzan para prestar atenção na vida dele.

– Você está ligado em tudo o que acontece aqui.

– Porque é a única maneira de sobreviver! Acredite em um homem que teve que aprender do jeito mais difícil.

– Então me ensine.

– Você está indo bem, sozinho.

Karl apenas cruzou os braços. Ele tinha experiência o bastante com atores para saber quando estavam representando. Hoje era: Jack Braun, o manipulador resistente de Hollywood.

Não durou muito. Braun puxou um cartão.

– Está bem. O homem de quem precisa se chama Edison Hill. Você pode encontrá-lo aqui toda tarde, depois das duas.

Karl leu o nome no verso do cartão.

– The Menagerie, píer de Santa Monica. Esse Hill é um bêbado ou uma bicha? – O píer era um conhecido ponto de encontro de homossexuais e um dos lugares mais frequentados pela pequena população de curingas da cidade.

– Pelo que sei, nenhum dos dois. Ele não vai dar um soco na sua cara se você lhe pagar um coquetel, mas basicamente ele é apenas um sujeito que sabe das coisas, ou sabe como descobrir.

O Menagerie é como se fosse seu escritório.

Karl nunca se encontrava com Braun sem ter vontade de dizer que era um ás como ele, para no mesmo instante se dar conta da futilidade desse gesto.

– Sabe, Jack, um dia desses, toda essa... insanidade vai acabar. Devíamos trabalhar juntos.

Braun deu um sorriso verdadeiramente caloroso e também de um ceticismo de quem sabia alguma coisa.

– Seria uma boa coisa, não seria?

Ele quase perdeu a entrada do The Menagerie. Ficava no meio da descida, apertado ao lado do infame carrossel do píer de Santa Monica e cercado por estandes de jogos, barraquinhas de comida e shows de aberrações, quase todos propriedade e operados por curingas. O interior do clube era mal iluminado e apertado, com cheiro de serragem e cerveja choca. No palco, uma mulher curinga dançava entediada, girando as franjas do sutiã de lantejoulas e balançando o traseiro ao ritmo da música.

– Eu venho aqui há anos – disse Hill. – Tenho um fraco pela beleza sem enfeites. – Ele era magro, alto e bonito como um ator coadjuvante de filme B, completo com o bigode estilo Dick Powell. Parecia ter crescido em algum lugar muito a leste de Los Angeles.

– Tem algumas... pessoas incríveis aqui – disse Karl.

– Elas podem virar um hábito – disse Hill. Era o meio da tarde, não exatamente horário de maior movimento em nenhum clube, e o Menagerie estava praticamente vazio. Mesmo assim, a dançarina no palco era muito bonita para qualquer padrão, apesar de Karl ter notado, quando ela tirou o sutiã, que tinha bocas no lugar dos mamilos. Ele não queria pensar no que poderia estar por baixo do biquíni fio dental.

– O que você faz quando não está aqui? – perguntou ele a Hill, mais por verdadeiro interesse do que curiosidade educada.

– Você pode me chamar de um espectro – disse Hill. Então acrescentou: – Ghost writer.

Escrevo projetos, discursos... Um pouco disso e daquilo. Algumas histórias de detetive para revistas policiais.

– Dá para viver bem?

– Algumas histórias que vendo para as pulp fictions pagam razoavelmente bem. Mas eu era da Marinha, antes da guerra. Descobriram uma mancha em meu pulmão e fui reformado.

– Você não voltou à ativa durante a guerra?

– Tentei várias vezes, mas eles não me aceitaram. – Hill pousou o copo e entrelaçou os dedos.

– Agora, como posso ajudá-lo?

Karl relatou brevemente seus problemas com Brant Brewer.

– Acha que ele é um comuna?

– Duvido. – Karl conhecia comunistas verdadeiros de Hollywood; Brant Brewer não se parecia

em nada com eles.

– Homossexual?

Karl abriu as mãos.

– Bem, ele é ator. – Querendo dizer que a homossexualidade era sempre uma possibilidade.

– Está bem, vamos descartar essa. – Hill olhou despreocupadamente para a esquerda e a direita. Quando falou, Karl mal pôde ouvi-lo. – Isso deixa apenas o fator carta selvagem.

– Não há sinais, mas...

– Meus honorários são 20 dólares por dia, mais despesas. Quarenta antecipados. Normalmente eu cobraria metade disso, mas quando o caso envolve cartas selvagens... – Hill fez um gesto na direção das pessoas que estavam no Menagerie.

– Está bem. – Karl contou cuidadosamente quatro notas de dez.

– Você vai receber um relatório completo. Onde Brewer mora, como passa seus dias, o que ele faz e com quem. Vai gostar do estilo, senão do conteúdo.

Eles combinaram de se encontrar em uma cafeteria na esquina de Franklin com Western às oito horas da manhã seguinte. Se Hill precisasse entrar em contato com Karl imediatamente, telefonaria para o escritório se identificando como Sr. Edwards. Se Karl precisasse de Hill, deveria ligar para o serviço de mensagens que recebia recados para ele.

Hill pegou o chapéu, desceu da banqueta, ajustou os punhos da camisa, o colarinho e os vincos do chapéu de feltro. E cumprimentou Karl com um aceno de dois dedos ao sair.

As gravações terminaram às dezenove horas, uma hora depois do horário previsto (hora extra em dobro para a equipe, graças ao atraso de Brewer). Mas com a possibilidade de que o Sr. Dann, da Kellogg’s, surgisse de qualquer canto, Karl preferiu evitar novos confrontos e pediu a Abigail que telefonasse e chamasse um táxi.

Ele morava em um apartamento duplex em Beverly Hills, acima de Hollywood. Sua senhoria era uma atriz do cinema mudo chamada Estelle Blair, que foi levada a se aposentar com a chegada do som, engavetada para sempre graças à carta selvagem, que a havia transformado em uma mulher invisível; um fantasma com voz de menininha localizado apenas por um robe e chinelos sem corpo.

Karl tinha visto uma foto de Estelle nos tempos do cinema mudo. Loura e de pernas compridas, era uma jovem deusa de lábios provocantes. Ele se perguntou como ela estaria agora, aos 50.

Será que ela própria sabia?

Era sabidamente difícil lidar com ela... exceto para Karl. Ela, ou melhor, seu robe, estava lá para recebê-lo quando ele chegou.

– Você trabalha demais – disse ela. – Já jantou?

– Já, no estúdio. – Ele sempre dizia isso para Estelle, mesmo que não tivesse. Não queria ser obrigado a aceitar um convite para jantar e a responder às perguntas dirigindo-se a um bocado de comida que se tornava invisível quando Estelle o engolia.

Ele aceitou sua correspondência, pegando-a do que parecia ser apenas ar, e foi para o interior da casa.

A mobília ali era tão espartana quanto no escritório de Karl no estúdio. Um sofá, uma mesa baixa, várias cadeiras. O quarto que vinha em seguida era igualmente econômico e parcamente mobiliado, assim como a cozinha.

Além de usar táxis duas vezes por dia, a única concessão de Karl a seu status de produtor era a maior televisão no mercado, uma Zenith X2552 de 17 polegadas, completa, com console. Ele fazia questão de ver as edições finais de Cátodo em uma tela do mesmo tamanho ou até menor, pois era assim que o público veria o programa.

Karl normalmente ligava a Zenith no momento em que entrava em casa... além de ser a caixa onde ele ganhava a vida, agora tinha se tornado companhia, na maioria das noites.

Mas antes que Karl pudesse ligar o aparelho, viu entre suas correspondências uma carta de Herb Cranston. O ex-diretor de operações de White Sands, o primeiro humano a ficar cara a cara com o Dr. Tachyon, estava na cidade naquela noite e sugeria que jantassem no Musso’s, às oito horas.

Karl deu uma olhada no relógio. Oito e meia, mas o Musso ficava bem perto.

Ele telefonou para chamar um táxi.

– Oh, é mesmo Herr Kampen.

Karl havia entrado no Musso’s pela porta dos fundos e examinou o salão à procura de Herb Cranston; um processo complicado, pois tinha reservados. O homem-foguete estava sentado ao balcão e à sua frente havia o que sobrara do que parecia ter sido um prato de bolo de carne. E alguns coquetéis.

– Só recebi sua mensagem agora.

– Já comeu?

– Já.

– Bem, então por mais que eu goste do ambiente daqui, ouvi falar muito dos curingas de Santa Monica.

– Eles deviam botar uma placa: TERRA DOS CURINGAS. – Karl levou vários segundos para entender que Cranston estava realmente interessado em visitar o píer e experimentar o submundo triste da vida dos curingas. Normalmente, Karl teria recusado, tanto por ignorância quanto por repulsa. Ele tinha ido ao píer algumas vezes, e isso era o bastante. Curingas prostitutas andando no carrossel e chamando os homens que passavam. Rostos horrendos em barraquinhas vendendo suvenires baratos e alimentos fritos. Brigas de faca entre membros de gangues de curingas.

Deformidade, desespero e drogas se misturavam aos cheiros de água salgada, graxa e peixe podre.

Mas naquela noite dois fatores tinham mudado. Ele queria muito ver Cranston... e conhecia um clube de curingas.

Era estranho visitar um lugar como o Menagerie duas vezes em uma vida, ainda mais no mesmo dia.

O píer de Santa Monica parecia mais glamouroso à noite, com as luzes coloridas reluzentes e a música vinda do carrossel. Vários limpos se misturavam aos curingas, tomando sorvete e comendo cachorro-quente enquanto circulavam entre os brinquedos, barraquinhas e espetáculos de aberrações.

No interior do The Menagerie, as dançarinas curingas estavam de algum modo mais atraentes, ou talvez apenas em maior número e variedade.

– Isso dá um novo significado à expressão “dançarina exótica” – disse Cranston. Ele adorava fazer piadas. Quando trabalhavam juntos em White Sands, o inglês de Karl era rudimentar para entender a maior parte delas. Ele não tinha mais essa desculpa.

Havia também um público de bom tamanho para uma noite de meio de semana. Ou pelo menos era isso o que imaginava Karl. O píer e sua vida noturna não estavam entre suas especialidades.

Enquanto um trio de dançarinas se apresentava no palco (elas se chamavam American Girls e eram, sucessivamente, vermelha, branca e azul por baixo de suas fantasias inspiradas na bandeira americana), uma mulher-felina espetacular se sentou à mesa de Karl e Cranston.

– Estão interessados em companhia?

Cranston dispensou a garota e começou a falar de trabalho.

– As coisas finalmente estão andando em Tomlin.

– Ainda tentando descobrir os segredos de Tachyon? Fazendo engenharia reversa com uma nave takisiana?

– Claro que não! Wright Field não tem nada melhor para fazer... deixe que eles desperdicem seu tempo! – Animado pelo álcool e com a necessidade de ser ouvido acima do burburinho, Cranston praticamente gritou. Então, envergonhado, disse mais baixo: – Karl, estamos de novo no negócio

de criar nossos próprios projetos... e produzi-los. Olhe para o céu. Logo você vai ver uma coisa feita na Terra voando. – Ele tomou mais um gole, então sorriu. – Igual a seu estrato-jato.

– Meus parabéns.

– Alguns de seus amigos de White Sands estão conosco. Até Willy Ley. – Ley tinha deixado a Alemanha antes da guerra e se tornara jornalista especializado em reportagens populares sobre foguetes, motivo pelo qual Karl o chamara para trabalhar em Cátodo. – O cara de quem mesmo é você. Você era o mais promissor do grupo.

– Meu amigo, você está tão equivocado quanto bêbado. Aquele “grupo” incluía von Braun, Rudolf, Dornberger e muitos outros...

– Não quis dizer em termos de realizações. Sabemos que você saiu da escola direto para a Peenemunde. E, droga, nenhum de nós conseguiu nem sair do lugar em White Sands, não depois que Baby apareceu.

Cranston e von Braun e um punhado de ex-nazistas engenheiros tinham sido enviados para se encontrar com Tachyon e sua nave takisiana em forma de concha quando ela aterrissou em White Sands. Karl e o restante, entretanto, foram mantidos afastados, ocupados com exercícios calistênicos, relatórios sem fim e aulas de inglês.

– Foi Willy que contou a vocês?

Cranston deu de ombros.

– Ele só disse que devíamos perguntar.

– Ele não devia ter feito isso sem falar comigo.

– Aí eu não teria conseguido surpreender você! – Cranston deu um sorriso forçado. Já bêbado, ele estava começando a ficar sentimental. Karl se lembrava dele como um sujeito que bebia muito. – Nós dois, tanta sorte... o carta selvagem nunca nos pegou.

– É.

O carta selvagem havia contaminado Karl von Kampen, é claro. Em 1947, ele acompanhou Walter Dornberger em uma visita à Bell Aircraft em Buffalo e estava concentrado no tédio de criar projetos para um bombardeiro que provavelmente jamais seria construído quando começou a sentir o que achava – esperava – ser uma gripe. Após dias de febre e delírios, ele se recuperou e descobriu que sua visão tinha sido alterada: antes quase cego de tão míope, agora via a nível microscópico, ou ao nível dos melhores telescópios óticos.

Ele tinha fokus.

Havia um efeito colateral: por vários minutos depois do fokus, os olhos de Karl reluziam com um vermelho demoníaco. No início ele achou que fosse um efeito temporário... mas em algumas semanas, enquanto lutava para controlar o novo “talento”, percebeu que provavelmente seria permanente, um sinal de seu status de ás. Foi aí que começou a usar óculos escuros.

Odiando o trabalho na Bell e odiando Buffalo ainda mais, Karl resolveu realizar o sonho de sua vida. Escreveu para o famoso diretor Fritz Lang, o homem que tinha feito o primeiro filme de foguetes, The Lady in the Moon. Lang era amigo de Dornberger e tinha certo carinho por projetistas de foguete alemães esquecidos, como Karl von Kampen. O cineasta se ofereceu para recomendar o nome de Karl se um dia ele fosse para Los Angeles...

Karl empacotou todos os pertences e, na semana seguinte, se mudou para Hollywood. Lá, seu fokus o tornou de grande valia para qualquer equipe de câmera. Ele foi promovido de assistente de câmera para operador, depois para cinegrafista e em seguida para produtor de Cátodo.

Antes que Karl pudesse avaliar o efeito de sua mentira sobre Cranston, a mulher-felina voltou.

– Estão se sentindo mais amistosos, agora que já quebramos o gelo? – perguntou ela, deslizando para seu colo.

Cranston parecia mais receptivo.

– Você é mesmo persistente, hein?

– Não sei bem o que isso quer dizer. É uma palavra muito grande. – Ela brincou com a orelha de Cranston, para o mais que evidente prazer do engenheiro. – E eu gosto de coisas grandes.

Karl percebeu que também estava gostando da encenação da mulher-felina. Ela percebeu seu interesse.

– Você é uma graça, não devia estar sozinho, bonitão. Está vendo alguém aqui que gostaria de conhecer?

– No momento, não, obrigado.

A jovem curinga ronronou de rir.

– Ah, é tímido. Mas, afinal, o que vocês dois fazem?

– Ele é um cientista que projeta foguetes – disse Karl, tentando dirigir a atenção da mulher-felina de volta para Cranston.

Para não ser superado, Cranston disse:

– Karl aqui é o produtor de Capitão Cátodo.

Karl poderia tê-lo matado. Uma coisa era ir a um clube de curingas; outra bem diferente era ser reconhecido em um.

Entretanto, a mulher-felina pareceu gostar.

– Então você conhece Brant e Gene!

– E muito bem – disse Karl, tentando esconder a surpresa. – Você também conhece?

– É claro! Gene disse que ia tentar conseguir me botar no programa! Turk precisa de uma garota, não acha? Cães e gatos... as crianças iam adorar. E pense em quanto você ia economizar em maquiagem! – Ela deu uma risada rouca. – Só estou fazendo isso para pagar o aluguel, sabe, na verdade eu sou atriz.

Claro que era. Ele sabia também o tipo de atriz. Tinha ouvido falar que havia um mercado crescente para filmes eróticos com curingas.

– Não sabia que eles eram frequentadores habituais do lugar – disse Karl. – Eles vêm muito aqui? – Ele usou o fokus em seu belo rosto felino... percebeu as gotas cintilantes de umidade em sua penugem... uma sobrancelha erguida... a boca levemente aberta. Em um limpo, seriam sinais claros de hesitação.

Ou medo.

A mulher-felina tinha falado demais e de repente pareceu se dar conta disso.

– Não diria que são frequentadores habituais. Eles são só... caras que conheci. Com licença. – Ela se levantou do colo de Cranston.

O projetista de foguetes não pareceu muito chateado quando ela foi embora.

– O caminho de volta até Mojave é longo.

– Nesse estado, você vai ter sorte se conseguir chegar a Lankershim.

Karl acompanhou Cranston até a extremidade do píer onde uma fila de táxis aguardava. Ele deixou o ex-colega no Roosevelt Hotel e depois disse ao motorista que pegasse a Hollywood Boulevard e fosse até Gower. De lá, ele foi a pé. Era pouco mais de um quilômetro, subindo direto a Gower até a Scenic, depois alguns quarteirões para leste até Beachwood. Ele precisava de tempo para dissipar a bebida. Tempo para pensar.

Ele podia continuar como estava... espremendo episódios de uma série infantil de TV até que ela morresse. Depois outra, depois outra. Até que ele morresse. Ou, pior que morrer, saísse de moda. Ele podia vender sua parte do Cátodo para a Kellogg’s e usar o dinheiro para se sustentar pelo resto da vida. Nada mais de histórias bobas nem de ases traiçoeiros superados por um idiota em uniforme azul.

Ou ele podia aceitar a oferta de Cranston e retomar o trabalho de sua vida.

Mas ele não podia fazer nada disso até resolver o problema com Brant Brewer.

Seu astro estava frequentando uma boate de curingas. O que podia explicar os cada vez mais frequentes atrasos pela manhã. Mas o que Eugene Olkewitz estava fazendo com ele? Pelo que Karl sabia, os dois não passavam de colegas de set. E com certeza Olkewitz não estava se atrasando.

Na esquina de Gower com Franklin, parou para usar um telefone público e deixou um recado urgente para Edison Hill.

Às oito e meia da manhã seguinte, Karl estava sentado na cafeteria na esquina da Franklin com a Western. Encorajado pela caminhada da noite anterior e contando com o sol e o exercício para aliviar a ressaca, Karl foi até lá a pé, ansioso para saber o que Edison Hill descobrira.

Mas Edison Hill não estava lá.

Tudo o que ele podia fazer era esperar e ler as novas reportagens do Herald sobre o Assassino Medusa. Houve sete desses assassinatos nos vinte meses anteriores. Todas as vítimas homens, todos curingas entre 25 e 50 anos. Nenhum deles uma vítima óbvia, como vagabundos, drogados ou garotos de programa. Eram cidadãos tão respeitáveis quanto qualquer curinga poderia jamais esperar ser: ex-militares, advogados, contadores, arquivistas, mecânicos, um dono de posto de gasolina em Glendale e até um bombeiro e dois ex-professores que perderam os empregos quando a carta selvagem se manifestou. (Nenhum pai queria curingas perto de seus filhos.)

Nada disso era imediatamente relevante para Karl. Ele queria saber sobre o belo, sedutor e misterioso Brant Brewer... o homem que detinha as chaves do futuro de Karl.

Às nove ele desistiu de esperar, deixou um dólar no balcão e ligou para um táxi. Ele tinha dado quarenta dólares para um homem que conhecera em um bar de curingas! Teria uma conversa com Jack Braun quando tornasse a vê-lo.

Karl von Kampen detestava se sentir idiota.

Ele foi deixado, como sempre, diante do portão principal. Para sua surpresa, Abigail o esperava

no estacionamento. Ele olhou para ela através de seus óculos.

– Por que você não está no escritório?

– Porque Saul Greene está à sua espera.

– Deixe-me adivinhar...

– Brant está atrasado de novo.

A cabeça de Karl começou a doer e dessa vez não era culpa da ingestão de álcool na noite anterior.

– Conte-me notícias melhores.

– Ontem à noite acharam outro cara morto em Silver Lake... transformado em pedra, Karl.

– Se Saul Greene me criar algum problema, ele vai ser achado petrificado em Silver Lake.

Mande que ele me encontre no set.

Karl não queria encarar o agente gigantesco em seu escritório; e precisava assegurar o nervoso Korshak de que ele não seria responsabilizado pelos atrasos.

Como era de se esperar, a vaga de Brant Brewer ainda estava vazia, mas ao lado dela havia um Hudson Hollywood preto de duas portas, o tipo de carro que Karl compraria... se ele fosse comprar um. Ele pertencia a Saul Greene.

Que de algum modo conseguiu chegar à cabine de som ao mesmo tempo que Karl.

– Hoje a coisa vai ficar quente de novo – disse Greene.

Nos melhores momentos, Karl não tinha paciência para Greene e aquele seu tipo de conversa.

– Por que você está aqui e não seu cliente?

– Brant está atravessando problemas pessoais. Problemas médicos.

– Então ele está no hospital.

– Ainda não. Sua vida não está em risco...

– Só sua carreira.

Greene tomou Karl pelo cotovelo e conseguiu afastá-lo alguns metros.

– Karl, você e eu nunca fomos bons amigos.

– Na verdade, somos quase inimigos mortais.

– Mas este é um negócio que funciona com base em amizades, algumas bem improváveis.

– Você quer ficar meu amigo, Saul? É tudo por causa disso?

– Eu, não. Mas... você entende bem os atores, Karl?

– Pago a eles muito dinheiro para aparecerem e dizerem suas falas. O que mais preciso saber?

O grandalhão balançou a cabeça, como se estivesse corrigindo o erro de uma criança.

– Os melhores deles são vazios por dentro, presas fáceis para qualquer paixão ou moda que surja. É o que os torna bons no que fazem... se tornarem outras pessoas.

– Então de algum modo Brant Brewer está incorporando alguém que se atrasa cronicamente?

– Não. Estou dizendo que ele precisa de... compreensão. Flexibilidade.

– Já estamos reorganizando praticamente todos os dias de filmagem, Saul. Você já tentou essa teoria com Harold Dann? Por alguma razão, não acho que nosso novo patrocinador vai ser compreensivo sobre programas que atrasam, ou não existem!

– Você não precisa botar a Kellogg’s nisso. Eles só estão interessados em dinheiro.

– E você é o quê? Um altruísta?

– Sou amigo de Brant Brewer. E estou pedindo a você, como alguém que poderia ser seu amigo, para parar. – Greene se inclinou para mais perto de Karl. Não havia amizade em seus modos. – Pare de mandar seguirem-no.

– Nossa conversa acabou, Saul. – Karl levou a mão à porta da cabine de som. Só a luz vermelha alertando que as câmeras estavam rodando evitaram que ele a abrisse.

– O que quer que aconteça, Karl? Não concorda que ainda é um momento ruim para que sua, sua... vida particular venha a público? O que isso faria com sua carreira?

Karl encarou o agente.

– Não me ameace.

Greene, então, sorriu e estendeu as mãos.

– Estou apenas dando um conselho de amigo. – Ele se virou e, então, voltou a cabeça e disse sobre o ombro: – Por falar nisso, você fica bem com esses óculos.

Karl fugiu para o santuário escuro de seu estúdio com as mãos trêmulas e o estômago ardendo.

Saul Greene sabia seu segredo.

Quando Brewer apareceu, pouco antes do almoço, Karl já tinha voltado para o escritório com ordens de não ser incomodado. Havia fumaça no ar, aparentemente vinda de algum incêndio nas colinas. Sirenes distantes. Karl achava tudo aquilo enervante.

Mas agora ele estava sentindo mais simpatia em relação a Edison Hill. Pelo menos tinha parado de achar que ele era um vigarista. Jack Braun não teria recomendado alguém assim.

Num impulso, mandou que Abigail arranjasse o endereço residencial e o telefone de Hill. Ele não gostava de esperar.

Depois tentou se concentrar nos roteiros dos próximos episódios de Cátodo. Mas suas preocupações com Brewer e Greene e com a Kellogg’s, combinadas com a banalidade trivial do último argumento, além do zumbido monótono do ar-condicionado, deixaram-no frustrado e infeliz.

Ele pensou em seu trabalho junto com Brant Brewer. Ele tinha visto apenas o rosto do ator em uma foto 18 x 24, junto com uma breve lista de créditos que iam de papéis secundários na Broadway até TV ao vivo e algumas participações como ator convidado em outras séries de TV da Ziv. De cabelos negros e olhos azuis, Brewer tinha cara de herói. E na série de testes para o papel, mostrou que também sabia falar como um.

Karl e Brewer assinaram um contrato por intermédio de Saul Greene antes mesmo que chegassem a ter uma conversa. E os rigores de produzir mais de cem episódios de baixo orçamento de 15 minutos em cada uma das duas temporadas tornou impossível que fossem além disso. Eles nunca foram amigos, nunca fizeram uma refeição ou beberam juntos. Seus únicos encontros sociais tinham sido em raras festas de fim de ano.

Ele sabia ainda menos sobre o restante de seu elenco. Olkewitz era outro cliente de Greene que tinha, Karl se lembrava, feito os testes caracterizado, já vestindo a máscara de cachorro.

Karl não teria se importado em conhecer Dotty Doyle bem melhor, mas sua condição de ás complicava sua vida amorosa; o fokus desviava seus desejos sexuais normais para sua forma peculiar de voyeurismo. Além disso, Karl não queria ser conhecido como um produtor que dava

em cima das atrizes.

Ao perceber que já eram quase 17h e que ainda não tinha comido, foi até a ante-sala de seu escritório, que estava vazia, exceto por um bilhete com o endereço residencial, o telefone de Edison Hill e as palavras: “Tentei este. Número fora de serviço”.

Na melhor tradição alemã, ele resolveu tomar uma atitude.

O endereço de Hill era Lookout Mountain, 8.777, uma divertida coincidência: Fritz Lang vivia em Lookout Mountain quando Karl o visitou, uma década antes. O local ficava a menos de dez quilômetros dos estúdios do Capitão Cátodo.

Mas levou mais de uma hora para chegar lá. A estrada que seguia para o sul pelo Laurel Canyon estava bloqueada por caminhões dos bombeiros em Mulholland Drive.

O motorista do táxi de Karl sugeriu um caminho alternativo que os fez dar uma volta pelos três lados de uma praça, entrar na Woodrow Wilson, pegar um desfiladeiro secundário e depois subir de novo o Laurel pelo norte.

Mais caminhões dos bombeiros obstruíam parcialmente o cruzamento das estradas de Laurel Canyon e Lookout Mountain, mas ainda era possível passar por eles e subir a estrada estreita.

Entretanto, depois de várias curvas, o táxi de Karl chegou ao bloqueio definitivo: um trio de viaturas policiais de Los Angeles.

– Está proibido seguir adiante – disse um policial a Karl.

– Eu moro aí. – Ele odiava mentir, mas precisava chegar à casa de Hill.

– Meu amigo, se você mora aí, é melhor ligar para seu corretor de seguros... Quatro casas pegaram fogo e o incêndio ainda não foi totalmente controlado.

Karl retirou os óculos escuros e examinou a parte mais alta da estrada. Várias das casas pequenas e estranhas do cânion, estruturas verticais que, para Karl, lembravam casas em árvores, estavam danificadas ou destruídas. Árvores nas colinas tinham se transformado em troncos fumegantes. Até a sinalização da rua estava coberta de fuligem.

– Mas os caminhões dos bombeiros estão lá embaixo em Laurel.

O policial encarou Karl.

– O senhor deve ir embora. Fumaça faz mal aos olhos.

Karl tentou insistir, mas então o motorista ficou impaciente. Depois de uma manobra trabalhosa sob o escrutínio de vários policiais, o táxi seguiu de volta pela estrada.

– Aqui – disse Karl assim que saíram de vista.

Ele pagou o motorista e voltou a pé na direção do que costumava ser a casa de Edison Hill.

Uma das estradas laterais que formavam algo parecido com uma teia permitiu que Karl driblasse o bloqueio policial e subisse em paralelo à Lookout Mountain. Ele emergiu do meio de arbustos não atingidos pelo fogo e viu a cena lá embaixo.

Na encosta enegrecida acima do que antes era o número 8.777 da Lookout Mountain havia um objeto estranho... um bloco de pedra que, visto através do fokus de Karl, parecia a estátua de um homem encolhido de medo... um homem com um bigode fino.

Era uma caminhada longa e cansativa pelo Laurel Canyon, passando pela Hollywood Boulevard (que não tinha nada além de casas nessa extremidade oeste), até a Sunset. Lá ele foi ao Schwab’s e ligou para um táxi.

Quando o carro chegou e o estava levando para o leste, na direção de casa, ele considerou mandar o motorista virar para o norte, na direção da Base Tomlin, da Força Aérea.

Karl von Kampen estava cheio de Hollywood.

Quando subia as escadas de seu duplex, sentiu o cheiro gostoso de perfume de jasmim, uma melhora considerável na fumaça e nas cinzas do Laurel Canyon. O ar fresco o reviveu. Ele deu uma parada e olhou para trás. Enquanto fazia isso, entrou outra vez em fokus, espontaneamente, e foi recompensado com uma sequência de imagens nítidas e distantes. Um tordo americano pousado num cabo telefônico. Uma bola chutada por um menino da vizinhança num pequeno

quintal nos fundos de casa e imobilizada em pleno voo. Uma nuvem de fumaça saída de um cigarro mais longe, lá embaixo em Beachwood. Uma nuvem de mariposas ao redor de uma lâmpada de rua. Na encosta, um coiote abaixado. Tudo isso ligado por tiras de concreto rachado, folhagem, tubulações e o borrão de carros em movimento.

Mesmo que Saul Greene ou Brant Brewer fosse o Assassino Medusa, ele já tinha enfrentado desafios maiores. Tinha construído foguetes. Tinha sobrevivido ao bombardeio aéreo britânico.

Tinha sobrevivido ao carta selvagem. Tinha virado um produtor de Hollywood.

Sem dúvida ele podia encontrar um jeito de controlar Brant Brewer.

A meio caminho da porta de casa, ele foi agarrado. Uma mão em seu ombro. Uma mão invisível.

– Volte – disse Estelle Blair.

Foi um desafio fazer a volta como se nada tivesse acontecido e ao mesmo tempo tentar identificar um agressor em potencial. Karl não sabia se ia conseguir até que chegou à calçada sem sentir a lâmina de uma faca ou uma bala nas costas.

– Estelle... – disse ele.

– Bem atrás de você.

– O que está acontecendo?

– Dois homens, de cara muito feia e roupas demais para esse calor. Começaram a bisbilhotar por aí há mais ou menos uma hora. Eu os ouvi e me tornei mais difícil de achar, se entende o que quero dizer.

Karl ainda estava fazendo o caminho de volta para Beachwood, na direção do mercado da esquina e de testemunhas.

– Entendi.

– Acho que eles iam esperá-lo chegar e depois iam entrar em casa atrás de você. Um deles estava armado.

Um carro foi ligado. Instantes depois, um Hudson Hollywood passou pela rua de Karl e rapidamente virou na direção sul, para Beachwood.

Havia dois homens de chapéu e sobretudo no interior, um deles grande o bastante para ser Saul Greene.

– Você se meteu em alguma encrenca, Karl?

– É o que parece. – Ele sentira náusea e apreensão nas ruínas carbonizadas da casa de Edison Hill... agora sentia puro medo. Quem quer que tivesse matado Hill, de algum modo havia feito a ligação entre eles.

– Talvez você não esteja conseguindo ver direito por causa dos óculos escuros.

– Pode ser. – Era possível que Estelle também conhecesse seu segredo. Ela podia tê-lo espionado pelos últimos três anos. Uma tolice a dele ter escolhido uma senhoria que era a única pessoa imune ao fokus.

– Bem, meu pai lá em Iowa, que Deus abençoe sua alma, tinha um método para lidar com pessoas inconvenientes. “Faça com eles antes que façam com você.”

– Estelle – disse Karl. – Eu não podia concordar mais.

Brant Brewer morava na Drexel Avenue, não longe do Farmer’s Market e do Gilmore Field, ao norte da Miracle Mile, em Wilshire.

O carro parou no Gilmore Field, onde os astros de Hollywood estavam jogando uma partida amadora. Karl podia caminhar os quatro quarteirões até o endereço de Brewer. Isso lhe daria tempo para refletir mais sobre suas poucas opções.

O sol estava se pondo, oferecendo uma promessa de alívio do calor opressivo, mas a névoa no ar permaneceria por dias. Karl estava grato pela ausência de lua (naquela noite terrível em Peenemunde, a lua estava cheia, para ajudar mais os bombardeiros britânicos).

Apesar de ter dois andares, a casa de Brewer era de tamanho modesto, situada num terreno muito bonito por trás de uma cerca, bem escondida da rua.

Karl se aproximou caminhando colado à cerca, usando o fokus através das barras e dos arbustos para ver além. Ele viu o Hollywood de Greene estacionado na entrada de carros circular, junto a outros veículos. Com o fokus, viu a tinta que descascava na parede da casa e um grilo que fazia grande esforço para atravessar uma rachadura no calçamento.

Não havia obstáculos óbvios. Mas tampouco armas óbvias.

Karl tinha seu plano, e era digno do Capitão Cátodo. Esperava viver o bastante para contar o esquema para Willy Ley.

Deu uma última olhada na tranquila vizinhança a seu redor e em seguida abriu o portão e caminhou até a porta da frente. Quando começou a ouvir música e risos vindos do interior, recuou. Ainda podia abortar toda a missão... Dependendo de a próxima meia hora seguir o roteiro previsto, aquelas pessoas poderiam estar em perigo.

Também havia a tentação de simplesmente deixar para lá. Assinar o contrato com a Kellogg’s e se livrar dele. Que os fabricantes de cereais se preocupem com a habilidade de Brewer acertar suas marcações.

Não, Brewer não apenas trouxera o caos para a vida de Karl; ele e Saul Greene quase com certeza tinham matado Edison Hill, e quem poderia saber quantos outros? Eram monstros, versões reais dos curingas vilões malvados de Capitão Cátodo. Precisavam ser detidos...

Karl bateu na porta. No instante seguinte, um muito surpreso Gene Olkewitz a abriu. Ou melhor, Turk a abriu. Olkewitz estava usando a máscara de cara de cachorro.

Karl meio que esperava aquilo, mas ainda estava chocado por descobrir que o bom ajudante do capitão não estava interpretando o papel apenas na frente das câmeras.

– É agora que eu digo “guten abend”? – perguntou Karl. – Ou eu devo latir? O que você está fazendo aqui? Por que está usando essa máscara?

– Bocetas curingas – disse Olkewitz, dando um sorriso emborrachado. – As garotas curingas são uma loucura, Führer. E tão agradecidas. – O ator se virou como se para pedir ajuda. Um Saul Greene com expressão de raiva abria caminho entre as pessoas.

– Você está louco? – disse Greene.

– Você queria me ver, Saul. Chegou a ir até minha casa! – Karl sorriu para mostrar que, como todo mundo em Hollywood desde antes do cinema mudo, conhecia a velha piada.

Greene conseguiu apenas gritar:

– Brant!

Brewer deslizava através de um grupo de convidados, todos curingas. E que grupo! Uma garota-lagarto. Uma coisa escamosa com pés. Um homem que parecia perfeitamente limpo, exceto por um par de antenas na cabeça. Ele também viu a mulher-felina do Menagerie, que se contorcia no colo de um homem gordo com um rosto que parecia ter sido esculpido em carvalho.

Havia mais uma meia dúzia. A festa era o oposto da Arca de Noé. Nenhum curinga tinha um par perfeito. Karl sentiu como se estivesse de volta ao The Menagerie. As únicas coisas que faltavam eram o cheiro de batatas fritas e o tilintar da música do carrossel ao lado. Em vez disso, havia tapeçarias; elegantes sofás brocados; pinturas artísticas nas paredes; uma vitrola.

– Não vejo uma televisão – disse Karl quando Brewer chegou até ele. – Onde você assiste a si mesmo?

– Você acredita que eu nunca vi um episódio?

Entre as muitas coisas chocantes que Karl soubera ultimamente, essa era a maior. Que tipo de ator deixava passar a chance de se ver?

– Bem, por que ver televisão em preto e branco quando você tem uma fauna colorida como esta toda noite? – dizia Brewer quando Karl percebeu a deliciosamente real Nora/Dolly com um vestido rosa apertado, os cabelos enrolados em um ninho dourado, lábios cor de sangue e os olhos azuis como um mar tropical. Ele nunca a tinha visto tão desejável, nem mesmo em suas fantasias mais vergonhosas.

Ela cumprimentou Karl a distância, então acenou com a cabeça na direção do canto da sala de estar, onde Harold Dann sorria de volta para eles, erguendo um drinque na direção de Karl. Karl não via o homem da Kellogg’s havia dias. Duas dançarinas do The Menagerie estavam com ele: as American Girls, a azul no braço esquerdo e a garota vermelha no direito.

Karl se virou para Brewer e Greene.

– Pelo que vejo, estão comemorando alguma coisa. – Será que ele tinha confundido um típico acordo por baixo dos panos típico de Hollywood (agente e ator tentando roubar Capitão Cátodo pelas suas costas) com assassinato?

Antes que Brewer pudesse responder, Karl foi agarrado por Greene e Olkewitz, cada um dos homens segurando-o por um cotovelo.

– Por que não vamos conversar em outro lugar?

Enquanto era levado pelo meio das pessoas, Karl captou o olhar de Dolly. Ele disse para ela:

– Vá embora daqui. Tire todos eles daqui. Diga a eles... diga a eles que a polícia está chegando.

Uma batida!

– Oh – disse ela.

Eles chegaram ao escritório e fecharam a porta, os três. Olkewitz ficou de guarda do lado de fora.

– Ou você é louco ou o homem mais corajoso do mundo – disse Greene.

– Eu não posso ser os dois?

Brewer virou-se para seu agente.

– Saul...

– Cale a boca, Brant! – Greene olhou para Karl. – Na verdade você é muito burro, Karl. Pelo menos para um projetista de foguetes.

– Não sabia que ser burro significava sentença de morte em Hollywood. Nossa, as ruas iam ficar vazias...

Greene lhe deu um tapa com as costas da mão, um golpe maldoso que surpreendeu Karl tanto quanto machucou.

– Acha que isso é nossa escolha? Você tem sorte! Seu ás o ajuda!

– Já basta, Saul!

Brant parecia realmente preocupado. Ele pôs as mãos sobre Greene e gentilmente afastou o agente corpulento.

– O que são vocês dois? – perguntou Karl, sentindo com a língua gosto de sangue e um dente mole. – Alguma espécie de time?

Brewer não era um ator bom o bastante para ocultar sua reação.

– Nós precisamos um do outro. Saul os petrifica. Enquanto faz isso, eu me alimento. – Ele se virou para o parceiro grande e mal-humorado. – Ainda bem que encontramos um ao outro.

– Brant... – O rosto de Greene estava molhado de suor.

– Ele merece saber, Saul! – Brewer parecia aliviado por ter a oportunidade de confessar. – Ele nos fez ganhar muito dinheiro.

– O que, um astro de programas infantis e um agente de quarta categoria? – Karl não resistiu e virou-se para Greene. – Você só consegue 10% do que quer que seja sugado de suas vítimas?

Greene ergueu o braço para dar um segundo tapa, mas Brewer o deteve.

– Pare com isso, Saul! – Ele se meteu entre o agente e Karl. – Você já ouviu falar dos viciados em heroína e de seus problemas? Eu trocaria este vício pela heroína na hora. – Ele passou um dedo pela testa, secando o suor. – E ainda piora nesse calor.

– Mas o que você consegue? Sangue? Ossos...

Greene soltou uma gargalhada.

– Isso, vá em frente, conte a ele!

Surpreendentemente, Brant pareceu envergonhado... incapaz de articular as palavras.

– Saul transforma seus corpos e eu tomo suas almas. Suas... personalidades. Na verdade, não posso ser um herói... Não posso interpretar um humano de verdade, até fazer isso.

Se não estivesse semiparalisado de medo, Karl teria rido. Então Brant Brewer era o supremo ás ator, um verdadeiro receptáculo vazio. Por um instante, Karl sentiu pena do homem, até de Greene. Todos no mundo exigiam saber o preço físico que cobrava o carta selvagem... mas e as alterações mentais? Que tormentos e torturas tinham sido infligidos em cérebros humanos pelo vírus takisiano?

Então Saul Greene agarrou Karl por trás, um abraço de urso do qual Karl sabia que jamais conseguiria escapar.

– Seu camarada Hill se revelou um herói. E você também resolveu ser um. – Karl podia se sentir ficando pesado, mais denso. Estaria virando pedra? – Como eu disse, Karl, burrice.

Karl enfiou a mão no bolso.

– Sintam esse cheiro – disse Karl, forçando as palavras. – É gás, e já encheu a casa. Tudo o que é preciso para ele explodir isso até a lua é de fogo. – Ele conseguiu tirar um isqueiro do bolso.

Brant pareceu preocupado.

– Saul, cuidado com ele!

Mas Saul Greene sorriu e gritou:

– Gene!

A porta se abriu e Olkewitz entrou carregando embaixo do braço uma figura que se debatia dentro de um lençol. Ele jogou a trouxa no chão e se sentou sobre ela.

Greene não largava Karl.

– Podemos não ser capazes de ver sua amiga invisível, Karl, mas Gene tem um nariz e tanto para um limpo: ele a farejou.

A trouxa no chão se retorcia enquanto Brant Brewer delicadamente retirava o isqueiro da mão de Karl, que endurecia.

– Está tudo bem, Estelle – disse Karl. Ela tinha sido pega. Estava tudo acabado...

Brant parecia surpreso.

– Era esse o seu plano? Entrar aqui e nos explodir?

– Meu plano... – disse Karl, tentando se desvencilhar de Greene. – Era entrar aqui e tentar botar algum juízo em vocês! Podem me matar como mataram todos os outros... mas se eu morrer, não vai ser apenas mais um assassinato de curinga. Sou alemão! Sou seu produtor! Eu sou um ás.

Quem vai me substituir? Alguém mais forte e mau. E quando isso acontecer, quanto tempo acham que vocês dois vão sobreviver? Não seria melhor simplesmente... fazer algum tipo de trégua?

Ele sentia como se falasse sozinho. Estava preso ao chão, se sentindo pesado, a pele endurecendo. Tentou usar o fokus, mas não conseguiu.

Tudo o que podia fazer então era fechar os olhos e morrer.

De repente, a porta se abriu! Houve uma comoção e um grito de Greene:

– Brant!

Karl abriu os olhos e viu que ele e Estelle tinham sido deixados ali sozinhos. A coberta já tinha sido jogada de lado.

– Você consegue se mover?

– Consigo – disse Karl, apesar de não ser fácil. Ele se sentia como um homem que tivesse ficado sentado por horas na mesma posição, como se seus pés, pernas e até as coxas estivessem dormentes.

– Acho que a gente deve dar o fora daqui!

Cheio de dores e com a ajuda invisível e não muito substancial de Estelle, andou lentamente e com passos pesados até a sala de estar.

Dolly e Dann e os convidados curingas tinham entendido o recado. As únicas pessoas presentes eram Brant Brewer, Saul Greene e Eugene Olkewitz. Brewer estava na escada, com um isqueiro na mão erguida para não deixar que Greene o pegasse. Ele, na verdade, estava em uma pose que podia ser vista todas as noites em Capitão Cátodo.

– Abaixe isso, Brant!

Olkewitz estava entre os dois, ainda com a máscara de cachorro.

– Pare com isso, Saul!

Karl começou a correr na direção da porta da frente e saiu aos tropeções na noite quente de agosto, desesperado para se afastar o máximo possível de Estelle e da casa. Quando chegou ao portão, ouviu o que pareceu ser um pedaço de madeira podre se quebrando...

A casa explodiu em um clarão. Uma gigantesca mão acertou Karl e o empurrou contra um carro estacionado.

Surdo devido à explosão, com as mãos e os joelhos machucados pelo impacto, Karl se encolheu contra a lateral de um carro enquanto a bola de fogo crescia acima.

Ele se levantou e se obrigou a olhar, apesar de o próprio ar parecer estar em chamas.

– Estelle! – chamou.

– Aqui, querido! – A voz veio de trás dele. – Não estou me sentindo muito...

Karl ouviu um baque surdo quando algo caiu no gramado. Ele encarou o desafio de tentar carregar uma mulher invisível nos braços.

Atrás dele, a casa de Brant Brewer estava totalmente envolvida pelas chamas, tão violentamente abalada que o segundo andar já havia desabado sobre o primeiro. Nenhum esquadrão de bombeiros conseguiria fazer alguma coisa... quando eles chegassem, não haveria nada além de cinzas.

Duas semanas mais tarde, a caminho da base aérea Tomlin, o ônibus que levava Karl von Kampen parou no lado norte de Palmdale para abastecer.

Esticando as pernas, ainda rígidas por causa do toque de Medusa de Saul Greene, Karl viu a manchete do jornal que o frentista estava lendo:

 

A ZIV TV apresenta o novo Cátodo

George Reeves, que atuou em E o vento levou...

e em A um passo da eternidade.

 

A oferta da Kellogg’s morrera com Brant Brewer. Tudo bem. Harold Dann tinha ido embora de Los Angeles e voltado para Michigan no primeiro avião, sem dúvida ansioso para escapar antes que alguém fizesse perguntas inconvenientes sobre o que ele estava fazendo naquela festa. Karl não ligava. Ele queria deixar Hollywood, tinha até dado sua Zenith nova para Estelle. Ele devia muito mais a ela, não apenas por salvar sua vida, mas por ajudá-lo a entender por que Brant Brewer tinha se matado.

– Ser um curinga já era bem ruim – disse ela. – Os índices de suicídio são assustadores. Mas atores são as pessoas mais inseguras que se pode imaginar. Nunca sabem por que são populares ou um sucesso, apenas que são, durante algum tempo. Brant Brewer deve ter se dado conta de que Capitão Cátodo era o máximo que conseguiria ser. E que quando você descobriu a verdade sobre ele, estava acabado.

Karl von Kampen botou de volta os óculos escuros e olhou para o futuro.

 

                           David D. Levine

                           Powers

Às 9h35 da manhã do dia 2 de maio de 1960, uma batida inesperada soou à porta do escritório de Franciszek Majewski. A mesa de Frank era a mais próxima da porta; ele apagou o cigarro e se preparou para atender.

– Só um instante – disse ele.

A maior parte dos documentos de Frank já estava guardada de maneira apropriada em pastas de cores diferentes para cada classificação, todas perfeitamente alinhadas com as bordas da mesa.

Ele guardou aqueles em que estava trabalhando em suas respectivas pastas, e então olhou para os dois colegas de escritório para se assegurar de que tinham feito o mesmo. Apesar de ser cedo naquela manhã de primavera, a sala sem janelas já estava abafada com o calor de Washington.

Frias luzes fluorescentes zumbiam acima de arquivos de metal surrados comprados em lojas de saldos e excedentes das forças armadas, linóleo verde e branco arranhado, mesas cinza de navios de guerra marcadas por décadas de queimaduras de cigarro. Os quatro cofres pesados ao longo da parede dos fundos estavam adequadamente identificados por cartões verdes de “abertos”, suas portas fechadas, mas sem trancas durante o horário de trabalho.

Frank estava preparando uma estimativa da Inteligência sobre a capacidade soviética de produção de bombardeiros. Suas pastas continham documentos em russo, alemão, polonês e inglês: reportagens, telegramas interceptados, relatórios de oficiais de campo resumindo a descoberta de seus agentes. Estes, apesar de mais frescos e excitantes, também eram os mais suspeitos... mesmo se os fatos apresentados não fossem desinformação intencional, podiam estar errados, mal interpretados ou completamente fabricados por agentes desesperados por dinheiro ou ação. Nada era certo naquele negócio, por isso se chamavam “estimativas”, mas por meio de correlação cuidadosa da informação disponível, um analista inteligente podia produzir uma versão muito provável da verdade.

O homem à porta era Robert Amory Jr., alto, magro e, diferentemente de Frank, ainda de posse de todo o seu cabelo.

– Que surpresa agradável! – disse Frank, enquanto apertava sua mão. Robert, o homem que havia recrutado Frank para a CIA, tinha sido seu superior imediato antes de ser promovido a diretor adjunto da Inteligência. Ele tinha na mão uma pasta vermelha com uma etiqueta de CONFIDENCIAL.

– Preciso falar com você, Frank – disse ele. – Em particular. Venha comigo.

Frank engoliu em seco. Tirou os óculos com armação de metal e os limpou com o lenço para disfarçar o desconforto.

Enquanto andavam pelo corredor, com o eco de seus passos no piso de lajotas, Frank sentiu o suor escorrer pelo corpo, mais do que o resultado do dia úmido e quente. Qualquer distúrbio na rotina era preocupante, e ter a atenção dos superiores sobre si era ainda mais preocupante. Seria aquele o dia que temia havia tantos anos?

Robert conduziu Frank até uma sala subterrânea pela qual ele jamais havia passado, fechando e trancando a porta após entrarem. Quando estavam sentados a uma mesinha que ocupava quase toda a antessala, Robert ofereceu um cigarro (ele fumava Marlboro, que Frank achava forte demais, mas aceitou um de bom grado para acalmar os nervos). Robert bateu o filtro do cigarro num pesado cinzeiro de vidro com o emblema da CIA e em seguida extraiu da pasta uma folha de papel.

– Assine aqui.

– O-o q-que é isso? – A pulsação de Frank se acelerou por trás do botão de seu colarinho.

– Preciso inscrever você em um novo compartimento.

“Inscrever” era o processo de autorizar um agente a ter acesso a determinado compartimento de informações confidenciais. A folha continha uma descrição resumida do compartimento, um projeto de reconhecimento fotográfico que envolvia voos a grandes altitudes sobre a União Soviética, e a declaração habitual de que Frank entendia que a divulgação não autorizada de qualquer informação daquele compartimento implicaria penas que poderiam chegar à prisão perpétua. Robert já havia preenchido o nome de Frank, a data de nascimento e o número do Serviço Social, e Frank assinou com uma sensação de alívio.

Frank ainda não sabia por que estavam aumentando seu nível de acesso a dados confidenciais, mas qualquer que fosse a razão, isso significava que seu segredo ainda estava seguro.

Depois que Robert também assinou e guardou o formulário, ele pegou outra pasta em uma das gavetas da sala subterrânea. “Bem-vindo ao AQUATONE”. Cada compartimento era identificado por um criptônimo, ou codinome, que começava com um prefixo de dois caracteres chamado dígrafo designando sua área geográfica ou operacional. O AQ de AQUATONE indicava que era alguma espécie de recurso técnico.

Robert sacou da pasta uma foto 18 x 24 brilhante e a empurrou até o lado oposto da mesa.

– Essa informação não sai desta sala sob nenhuma circunstância. AQUATONE é um de nossos projetos mais secretos. – Com o carimbo de ALTAMENTE CONFIDENCIAL AQUATONE, a foto mostrava um avião... um avião muito estranho. As asas eram bizarramente longas e delgadas, a fuselagem fina como um charuto; podia ser um planador, exceto pela turbina a jato na cauda.

Estava todo pintado de negro, sem qualquer marca ou insígnia que o identificasse. – Este é o Lockheed U-2 – disse Robert. – Ele tem um teto de voo de 21.000 metros, velocidade máxima de 950 km/h e pode permanecer no ar por até oito horas sem reabastecer. Há quase cinco anos voamos com esse avião sobre a Rússia.

Frank percebeu que a cinza de seu cigarro estava prestes a cair e a jogou no cinzeiro.

– Que tipo de foto se pode conseguir a essa altitude? – Vinte e um mil metros era quase no espaço sideral.

Robert deu um sorrisinho maldoso.

– Muito boas. E os soviéticos não têm nada que possa detê-lo. – Ele olhou Frank nos olhos. – Pelo menos, nós achávamos que eles não tinham. Mas, no domingo, um de nossos U-2 não voltou para casa. – Ele entregou a pasta a Frank.

Frank pousou o cigarro no cinzeiro e leu os documentos que ela continha, todos com o carimbo ALTAMENTE CONFIDENCIAL AQUATONE. O avião tinha decolado de Peshawar, no Paquistão, e deveria sobrevoar Stalingrado, Arcangel e Murmansk à procura de provas da construção de instalações de lançamento de mísseis balísticos intercontinentais, mantendo silêncio absoluto no rádio. Mas agora já haviam se passado mais de 24 horas do horário previsto para sua aterrissagem em Bodo, na Noruega, e ele devia ser considerado perdido.

– O que aconteceu?

– Não sabemos. É um avião muito temperamental; pode ter sido falha no equipamento ou erro do piloto. – A última folha na pasta era outra fotografia, um cara todo metido com macacão de piloto amarrado com cadarços como se fosse um espartilho antigo. – Esse é o piloto, Francis Gary Powers. É um dos nossos. Todos os pilotos e a equipe de apoio são pessoal da Agência.

O piloto tinha um queixo marcante e olhos escuros. Parecia um pouco mais velho do que o filho de Frank, talvez 30.

– Sabemos que o avião caiu em algum lugar na União Soviética. Quero que você descubra o que os soviéticos sabem. Eles o derrubaram? Será que sequer sabem que caiu? Eles encontraram os destroços, e, se encontraram, o que aprenderam com eles? O avião está equipado com uma unidade de autodestruição, é claro, mas ela pode ter falhado.

– E o piloto?

Um olhar duro, direto.

– Equipado com uma agulha com curare. – Ele tragou por reflexo e soltou a fumaça pelo nariz. – Mas para fazer o avião voar tão alto e tão longe... ele é basicamente feito de papel higiênico, Frank. Se cair, as chances de sobrevivência são de uma em um milhão.

Frank pegou seu cigarro no cinzeiro. Esquecido, ele tinha queimado quase até o filtro. Ele deu um último trago amargo e o apagou.

– Por que a mim? – Apesar de o coração de Frank ter desacelerado quando percebeu que seus segredos pessoais não eram a razão daquela visita, ainda se incomodava com a atenção que a missão atrairia sobre ele.

– Eu conheço você, Frank. O russo é sua língua natal. Você tem um bom olho, e confio em seu julgamento. E se for bem-sucedido nisso, pode ser um grande impulso em sua carreira. – Deu uma piscadela conspiratória para Frank.

– Obrigado. – Ele tentou sorrir.

Naquela noite, Frank chegou em casa às 23h10. Enfiou a chave na fechadura e abriu a porta tentando fazer o mínimo de barulho possível. Mas sua mulher estava acordada, de robe e chinelos, roendo as unhas enquanto olhava fixamente pela janela da sala de estar. Ela se virou para ele quando entrou, o rosto redondo de babushka iluminado pelo alívio que imediatamente se transformou em raiva.

– Onde você estava? – disse ela com voz tensa.

– Me desculpe por chegar tão tarde, kochanie – disse e se aproximou para beijá-la no rosto. – Recebi hoje uma missão nova. Fiquei tão enrolado que me esqueci de ligar. – Na verdade, ele havia passado a maior parte do dia na sala subterrânea do AQUATONE, onde não tinha linhas telefônicas.

Ela lhe deu um abraço apertado.

– Estava tão preocupada com você, serduszko – sussurrou ela ao pé de seu ouvido. — Fiquei com medo de que o CRISE-A tivesse descoberto você.

– Hoje não, kochanie. – Ele acariciou seus cabelos. – Hoje não. Nosso segredo está seguro... por enquanto.

Frank se lembrava de cada detalhe do dia em que o segredo se manifestou. Era um belo dia de primavera em 1952. Frank estava atravessando a C Street, obedecendo ao sinal de siga, quando olhou para a esquerda e viu um Packard 1950 verde quase em cima dele. Frank estava a segundos de se tornar uma panqueca ensanguentada na rua. De repente, ouviu um ruído alto ressonar em sua cabeça e o carro pareceu reduzir a velocidade até se arrastar.

Frank recuou, sentindo como se estivesse mergulhado em cola, sem conseguir respirar. No instante seguinte, o carro passou correndo. Frank ficou parado e tremendo na rua sem saber o que tinha acontecido e passou a mão sobre a cabeça suada. Ela voltou cheia de cabelo grudado. Ele sempre soube que ficaria careca, como o pai, mas não imaginava que isso chegaria tão rápido.

Outro incidente como esse ocorreu alguns meses depois, quando o vaso favorito de sua mulher caiu da mesa, e um mês depois disso, quando uma de suas sobrinhas foi ameaçada por um cão perigoso. Frank não tinha se tornado um analista bem-sucedido por ignorar informação, por mais inesperada ou absurda, e logo se convenceu de que suas experiências não eram apenas subjetivas.

Ele tinha desenvolvido uma habilidade extraordinária.

Um ás.

Mas o caçador Joe McCarthy recém-iniciara suas audiências, afirmando que um número crescente de ases infestava o governo e que isso havia começado a gerar sentimentos negativos.

Parte do trabalho de Frank era entender e prever tendências políticas em outros países, e ele sabia que a vida de um ás no governo em pouco tempo ficaria extremamente desagradável. E, apesar de ter apenas 8 anos quando os bolcheviques tomaram o poder na Rússia e forçaram seus pais, nascidos na Polônia, a fugir para os Estados Unidos, sabia que ser diferente da multidão em tempos difíceis podia ser fatal.

No início ele não contou nem à mulher sobre suas habilidades. Mas ela era inteligente e observadora, e quando ela percebeu como, em momentos de estresse, ele às vezes parecia “piscar”, ele se viu obrigado a lhe confessar seu segredo. Ironicamente, ela ainda não sabia que ele trabalhava para a CIA.

As audiências de McCarthy agora tinham terminado, mas o medo e a desconfiança em relação aos ases persistia. Qualquer um que descobrisse ter poderes incomuns era obrigado por lei a se apresentar ao CRISE-A, que os designava para posições em que seus poderes pudessem ser usados para o bem da nação. Mas o CRISE-A só tinha reconhecido dois casos: Lawrence Hague, o corretor de ações telepata, e David Harstein, conhecido como O Embaixador. Nenhum deles jamais voltou a ser visto em público.

Sophia fungou e secou os olhos na manga do robe.

– Me desculpe por estourar com você – disse ela. – Sempre que você se atrasa eu fico com medo que tenha ido para... você sabe, Nevada. – Uma das teorias mais exorbitantes sobre o que acontecia com os ases que desapareciam no CRISE-A era que os transportavam para uma instalação ultrassecreta no deserto de Nevada, um lugar do qual nunca tinham permissão para sair, exceto para desempenhar suas obrigações.

– Você sabe que isso é apenas um boato – disse ele.

Mas ele sabia que os campos de trabalhos forçados na Rússia eram reais, apesar de o governo soviético tentar mantê-los em segredo do próprio povo. Os Estados Unidos nunca fariam uma coisa dessas... fariam?

Outro carro passou. Seu farol entrou pelas frestas da persiana da janela, projetando um arco de luz no teto do quarto, e Frank deu um suspiro e se levantou. Apesar de estar exausto e de ser muito tarde, o sono não vinha.

Enquanto Sophia roncava suavemente na outra cama, Frank vestiu o robe, calçou os chinelos e foi arrastando os pés até o escritório. Aquele aposento, com os painéis de madeira que o deixavam mais quente, tinha sido o quarto de seus filhos, e a cúpula da luminária que ele ligou ao entrar ainda era pintada com desenhos infantis de aviões. Mas Jenna, a mais nova, tinha se casado e mudado havia três anos.

Ele se sentou diante do tabuleiro de xadrez e abriu Cem partidas escolhidas, de Botvinnik, na página marcada “Partida número 89, Tolush vs. Botvinnik, 1945”. Arrumou as peças no tabuleiro com rápida eficiência e começou a jogar a partida do livro, parando no décimo movimento das brancas para pensar as alternativas discutidas por Botvinnik. Tentava apenas ler e jogar as partidas em sua mente, mas segurar e mover as peças tornava as estratégias e os ataques dos jogadores mais claros para ele.

O xadrez fazia sentido. Apesar de a estratégia e os planos dos jogadores estarem ocultos, as regras eram conhecidas por todos, os movimentos eram feitos abertamente, e até um xeque tinha de ser anunciado. Mas a vida real era cheia de perigos ocultos. Se o CRISE-A estivesse vigiando Frank, ele podia nunca saber até que caíssem em cima dele.

Depois de terminar de jogar a partida, Frank bocejou, guardou de volta as peças no estojo, devolveu o livro à estante e foi para o quarto. Quando passou pelo espelho do corredor, os faróis de outro carro que passava iluminaram rapidamente seus membros magros e a barriga protuberante, e ele parou.

Houve uma época, não muito depois de seu poder se manifestar, quando considerou se apresentar ao CRISE-A. Na juventude, ele tinha fantasias de levar a vida de um destemido agente secreto, com aventuras excitantes e um codinome. Mas mesmo na época ele já era velho e estava estabelecido demais para aventura, e agora o homem no espelho estava com 51 anos e parecia ter 60.

Frank sacudiu a cabeça, afastando a imagem, enquanto entrava no quarto e fechava a porta.

Frank se barbeou com uma navalha, usando sabão de barbear em barra, uma caneca e um pincel de pelos de texugo, assim como fazia seu pai. Até o barbeiro de Frank usava um aparelho de barba Gillette e creme de barbear em spray – ele dizia que era mais fácil, limpo e seguro –, mas Frank gostava de se barbear cortando bem rente e da sensação de controle que tinha com uma navalha. Os métodos antigos eram melhores e sem dúvida mais baratos.

Mas às 8h15 da manhã da quinta-feira 5 de maio, Frank lamentou ter esse hábito quando ouviu a voz de Nikita Kruschev no rádio falando sobre uma “aeronave inimiga” ter sido “derrubada”. A voz do premier foi imediatamente coberta por uma tradução em inglês, mas Frank já havia escutado o suficiente... demais, na verdade.

Enquanto cuidava do corte no pescoço com um lápis cicatrizante, Frank xingava baixinho em russo, polonês e inglês. Ele trabalhara mais de 14 horas na quarta-feira, mas não vira nenhum detalhe em todas as fontes que estudou que o levasse à conclusão de que os soviéticos sequer soubessem da existência do U-2 que caíra, e ele tinha entregado um relatório dizendo isso ao ir embora do escritório às 9h da noite anterior.

Ele tinha falhado.

O cérebro de Frank se revirava com críticas à sua conclusão e recriminações enquanto ele apertava a gravata em torno do pescoço ainda por barbear e úmido com restos de espuma. O que deixou passar? Havia aquele dado ambíguo, alguma coisa sobre um aumento nas forças de segurança na cidade de Vladimir, mas, apesar de tê-lo incomodado, não conseguiu correlacionar isso com nenhuma outra coisa, por isso não incluiu a informação no relatório. Talvez devesse ter investigado mais a fundo.

No rádio, Kruschev continuava a censurar os americanos pela “invasão agressiva”, acusando-os de “brincar com fogo” e tentando “torpedear” o encontro de cúpula em Paris que se aproximava. Frank girou o dial para mudar de estação.

Era aquele troglodita Elvis Presley, ameaçando “te apertar mais forte do que um urso-pardo”.

Frank não sabia bem quem, Elvis ou Kruschev, era a maior ameaça para os Estados Unidos.

Indignado, ele desligou o rádio.

Antes mesmo que Frank conseguisse pendurar o chapéu, Galen, seu colega de escritório, o avisou que Robert Amory queria vê-lo assim que chegasse. A secretária de Robert o conduziu até uma sala de reuniões cheia de gente. O ar na sala estava azul de fumaça e Frank não conhecia metade dos homens ali.

Um que não podia deixar de reconhecer era Allen W. Dulles, diretor da CIA. Com seus cabelos e bigodes brancos, óculos sem armação e colarinho antiquado, parecia mais um banqueiro do que um espião. Naquele momento sua expressão estava fechada; o maxilar apertando com força a haste do cachimbo.

– Ainda bem que está aqui, Frank – disse Robert depois de fazer as apresentações. – Vamos explicar a situação para o presidente... – Ele puxou o punho da camisa e olhou para o relógio. – Em 25 minutos, e eu gostaria que você estivesse presente.

A boca de Frank ficou seca.

– Sinto muito por não...

Robert o interrompeu com um aceno.

– Vamos conversar mais tarde sobre o que saiu errado. Agora precisamos estar preparados para o que vamos enfrentar.

A sala de reuniões da Ala Oeste usada para o briefing, com seu papel de parede de estampas coloniais e retratos a óleo de generais da Guerra Revolucionária, lembrava Frank uma sala de espera de dentista, nada mais que isso. Mas quando o presidente Eisenhower entrou, ele sentiu um choque elétrico. Aquilo era de verdade. Aquilo era História.

Frank nunca antes havia estado no mesmo aposento que um presidente. O rosto familiar embaixo da careca de Eisenhower parecia cansado e ele mancava levemente ao andar, mas os olhos por trás dos óculos de armação grossa de plástico transparente pareciam penetrantes e inteligentes.

– Bem, senhores – disse ele para todos na sala. – Acho que temos um pequeno problema aqui.

A pergunta sobre a mesa era se deviam “confessar”, como disse o presidente, admitir que o avião perdido estava em uma missão de espionagem, ou permanecer fiéis à história falsa inventada para acobertar a verdade, que o U-2 era um avião de pesquisa da NASA que, por acidente, entrara no espaço aéreo russo. Todos os homens da CIA presentes defendiam veementemente a história de acobertamento; como Dulles dizia: “Apesar de todas as nações espionarem, nenhuma admite isso”. Mas Thomas Gates, o secretário de Defesa, estava preocupado: se Kruschev tivesse provas físicas de espionagem, a mentira americana seria desmascarada.

– Não queremos chegar a Paris constrangidos e de cabeça baixa – disse ele.

Mas o presidente não parecia estar escutando.

– O que eu quero saber é onde está o piloto. Há alguma possibilidade de ter sobrevivido?

Frank ficou impressionado por ver tamanha preocupação acerca de um homem vindo de um general que tinha comandado dezenas de milhares.

Kelly Johnson, da Lockheed, um homem muito branco com a pele ruborizada, tomou a palavra.

– Bem, senhor – disse o engenheiro, esfregando a testa com um lenço. – A aeronave é equipada com assento ejetável e kit de sobrevivência... mas honestamente, senhor, eles existem apenas para tranquilizar os pilotos. – A expressão de Eisenhower se fechou com essa revelação. – Por razões de segurança, os protocolos de operação exigem que a aeronave passe todo o tempo sobre a Rússia em seu teto de voo ou próximo dele, que é, como sabe, de 21.000 metros. E ninguém jamais caiu de uma altitude como essa e sobreviveu.

Os olhos do presidente se fecharam apertados e ele inclinou a cabeça para a frente por um instante. Quando ergueu a cabeça, parecia dez anos mais velho.

– Muito bem – disse ele, com os olhos sempre indo de um lado para outro de modo que visse todos ali na sala. – Se esse é o caso, vamos ficar com a história de acobertamento. Obrigado por seu tempo, senhores.

Enquanto todos na sala se levantavam arrastando as cadeiras sobre o linóleo, Eisenhower balançou a cabeça e murmurou:

– Que Deus tenha piedade de todos nós. – Se Frank estivesse um metro e meio mais distante não teria ouvido isso, e ele se emocionou com a humanidade do homem.

Na sexta-feira, os superiores de Frank pareciam tê-lo perdoado por sua falha, apesar de ele mesmo não ter se perdoado e trabalhar o dia inteiro tentando descobrir o que os soviéticos sabiam do U-2. O Pravda tinha publicado fotos dos destroços, e Grechko, o ministro interino da Defesa soviético, fizera um discurso no Soviete Supremo dizendo que o “pirata do ar americano” tinha sido “derrubado”, mas não havia indicação de que os russos soubessem da missão ou das características do U-2.

Existia, porém, uma pequena informação incômoda, ou melhor, falta de informação, que o preocupava. Havia um oficial da KGB em ascensão, um homem ambicioso denominado Geada, que parecia ter sumido da face da Terra em 1º de maio, mesmo dia em que o U-2 desaparecera.

Até aquele momento, porém, Frank não tinha nada que ligasse o homem ao U-2 além de uma vaga intuição. Enquanto trancava seus papéis no cofre antes de sair para o fim de semana, decidiu que iria mais fundo na segunda-feira.

No sábado, 7 de maio, Frank estava no beco dos fundos de seu prédio lavando seu adorado Rambler 56 quando Sophia abriu a janela do quarto e chamou:

– Frank, é alguém chamado Robert. Ele diz que precisa falar com você imediatamente.

Frank jogou a esponja no balde e subiu correndo a escada, dois degraus de cada vez. Ofegante e com as mãos ainda molhadas de água com sabão, ele atendeu a ligação no escritório.

– Você precisa vir para o escritório agora. – Robert não parecia satisfeito.

– Sim, senhor. – Não fazia sentido pedir maiores detalhes em uma linha não segura.

Quando Frank chegou ao escritório de Robert, sem uma palavra o diretor adjunto entregou a ele um maço amarelo de folhas de fax. Eram a transcrição de um discurso que Kruschev fizera no Soviete Supremo algumas horas antes.

– “Camaradas” – foi como começou o premier –, “preciso lhes contar um segredo. Quando fiz meu relatório, deliberadamente evitei mencionar que o piloto estava vivo e bem, e que tínhamos os restos do avião”. – Frank ergueu os olhos, horrorizado.

– Continue a ler – disse Robert.

– “Fizemos isso de propósito” – as palavras de Kruschev continuaram –, “porque se tivéssemos entregado toda a história, os americanos já teriam pensado em outra versão. O piloto está bem e em segurança. Neste momento está em Moscou. O nome dele é Francis G. Powers. Segundo seu depoimento, ele é primeiro-tenente da Força Aérea dos Estados Unidos, onde serviu até 1956, quando se juntou à CIA...”

Havia mais. Muito mais. Nomes, datas, planos de voo, informações precisas. Fotos das câmeras do avião que Kruschev descrevera como “boas”. Até a agulha com ponta embebida em curare com a qual Powers deveria se matar. A história falsa de um avião de pesquisa meteorológica que saíra de sua rota por acidente tinha sido completamente detonada.

Powers seria julgado por espionagem. Se condenado, e os tribunais soviéticos não eram conhecidos por sua tolerância, enfrentaria um pelotão de fuzilamento.

Frank largou o manuscrito sobre a mesa à sua frente e massageou as têmporas. Precisava desesperadamente de um cigarro mas, na pressa, deixara de trazê-los de casa. Naquele instante a porta se abriu de repente, e Allen Dulles entrou na sala, com o cachimbo preso entre os dentes.

Parecia prestes a falar com Robert, mas então percebeu a presença de Frank.

– O que ele está fazendo aqui?

Frank ficou sentado, paralisado, posto em xeque pelo olhar do diretor.

– Frank é um de nossos melhores analistas para a União Soviética – protestou Robert.

Dulles o interrompeu, tirando o cachimbo da boca e apontando sua haste para Frank.

– Ele falhou completamente em identificar o fato de que Kruschev tinha o U-2, não ligo para o Powers! Eu o quero fora desta operação. Consiga alguém que possa me dizer o que realmente está acontecendo por lá! – Com um último olhar devastador para Frank, ele se virou e foi embora.

Após um momento de surpresa silenciosa, Robert se jogou em sua cadeira.

– Eu nunca o vi com tanta raiva assim antes – disse ele. – Nunca.

Frank agarrou a borda da mesa.

– Fiz o melhor que pude com a inteligência disponível, senhor – disse ele, surpreso por sua voz não ter tremido.

Robert pegou um maço de Marlboro na gaveta de sua mesa. Agradecido, Frank também aceitou um.

– Não é só você, Frank. – Robert soltou uma baforada de fumaça ao acender o cigarro. – Tem mais alguma coisa acontecendo por aqui, e seja lá o que for, é algo que não estão compartilhando

comigo. – Ele soltou uma nuvem de fumaça. – Sinto muito, Frank. Você fez realmente o máximo possível. Infelizmente estava no campo de visão de Allen na hora errada.

Frank deu uma tragada profunda, mas isso não ajudou muito. Apesar de seu coração estar desacelerando, sabia que tinha acabado de causar um grande estrago em sua carreira e talvez igualmente na de Robert.

– Eu também sinto muito.

Pelo menos, disse para si mesmo, ele não estaria mais no centro das atenções.

Nos dias seguintes, a crise se aprofundou. A Casa Branca emitiu uma nota oficial culpando o excesso de segredo russo, que tornava necessários os voos do U-2, e censurava os soviéticos por atacar um “avião civil desarmado”. Kruschev respondeu que Eisenhower era um fantoche dos “militaristas do Pentágono” e de seus sócios nos monopólios que realmente governavam o país.

Enquanto isso, em Washington, os democratas aproveitaram a oportunidade para atacar um enfraquecido presidente republicano, dizendo que era “quase difícil de acreditar em algo tão estúpido” quanto mandar um avião espião sobrevoar a União Soviética imediatamente antes do encontro da cúpula de Paris. Um senador chegou a acusar Powers de ser um agente duplo, o que provocou uma resposta negativa pessoal de Eisenhower.

Durante todo esse tempo, o Departamento de Estado negociava com os soviéticos para tentar libertar Powers. Mas estava claro que os russos sabiam estar no controle do centro do tabuleiro.

Recusaram-se a negociar e aceleraram os procedimentos para o julgamento de Powers por espionagem.

Malinovsky, ministro da Defesa soviético, ameaçou que bases aéreas de “cúmplices” dos Estados Unidos usadas em missões de sobrevoo do U-2 podiam facilmente ser “destruídas”. O secretário de Defesa Gates, em uma declaração com palavras cuidadosamente escolhidas, destacou que os Estados Unidos “defenderiam seus aliados em caso de ataque”.

Finalmente, piscando diante das luzes das câmeras de TV e de cinejornais, Eisenhower fez um pronunciamento.

– Com um peso no coração – disse ele –, tenho de anunciar que os Estados Unidos estão se retirando das conversações de paz entre as quatro potências em Paris. Nas atuais circunstâncias, as perspectivas de paz parecem remotas.

Enquanto ele falava, o Comando Aéreo Estratégico elevou sua prontidão para o nível DEFCON 3.

Noite de terça-feira, 10 de maio. Ou talvez nas primeiras horas da manhã de quarta. Frank encarava fixamente o tabuleiro de xadrez. Uma espiral de fumaça subia do cigarro entre seus dedos enquanto contemplava a posição final da partida número 90: Romanovsky vs. Botvinnik em 1945. Frank simpatizou com Romanovsky, que cometeu um erro grosseiro no décimo movimento,

mas conseguiu consertá-lo. Porém, ficou confuso com surpresa após surpresa do grande mestre Botvinnik. Se ele tivesse conseguido se manter no jogo... mas não havia conseguido. Romanovsky perdeu a concentração e o jogo, e Botvinnik acabou por se tornar campeão russo e, três anos mais tarde, campeão mundial.

O rangido da porta do escritório assustou Frank e o tirou de seu devaneio. Era Sophia, iluminada pela luz da luminária decorada com aviões.

– Venha para a cama, serduszko – disse ela. – É tarde.

Frank deu um suspiro, apagou o cigarro e começou a guardar as peças de xadrez em sua caixa.

– Desculpe, kochanie. Não consigo parar de me preocupar com aquele piloto do U-2. – Apesar de ter sido afastado do projeto U-2, Frank não conseguia tirar Powers da cabeça. Onde os soviéticos o estavam mantendo? O que haviam descoberto por meio dele? Eles iam mesmo executá-lo por espionagem? O homem desaparecido da KGB, Geada, incomodava Frank como um dente arrancado. Ele não tinha fatos novos sobre o homem, mas sua intuição insistia que Geada e Powers estavam ligados de alguma forma.

– Talvez você devesse tomar um relaxante muscular.

Frank balançou a cabeça.

– Coitado do rapaz, ele é só um pouco mais velho do que nosso filho.

– Não há nada que você possa fazer para ajudar.

– Bem – Frank estava com o último peão branco na mão –, tenho pensado sobre isso...

– Frank! – O choque em sua voz fez a cabeça dele girar. O rosto dela estava rígido de medo e raiva. – Com certeza você não pode estar pensando em se entregar ao CRISE-A!

– Eu tenho uma habilidade única, kochanie. Talvez agora seja a hora de usá-la. Pelo bem do país. – Ele estendeu os braços para confortá-la.

– Loucura! – Ela evitou o abraço e caminhou até o outro lado da sala, os braços cruzados apertados contra o peito. – Você não é o Garoto Dourado, Frank, você é um avô! Um burocrata de meia-idade que está ficando careca! Você não gosta nem de tempero na comida! – Ela se virou e ele viu lágrimas escorrendo por seu rosto. – E pense nas crianças! O que as pessoas vão achar se souberem que o pai delas é... um deles?

Frank baixou os olhos para o último peão, ainda em sua mão, e para o compartimento forrado de veludo com sua forma. Cada peça tinha um lugar próprio, e um peão não cabia no espaço projetado para uma rainha. Ele deu um suspiro.

– Você tem razão, é claro.

Os chinelos de Sophia deslizaram pelo chão e ela o abraçou por trás e pressionou seu calor suave contra as costas dele. Ele pôs o peão sobre a mesa e se virou para tomá-la nos braços.

Ficaram parados assim por um tempo, balançando lentamente de um lado para outro enquanto se abraçavam.

– Agora venha para a cama – disse finalmente Sophia.

Frank apagou a luz, deixando no escuro o peão em pé ao lado do tabuleiro de xadrez.

Sexta-feira, 13 de maio. Frank estava sentado sozinho em seu escritório. No canto de sua mesa, jazia frio um gorduroso cachorro-quente de rua pela metade. Havia duas semanas que não almoçava direito. Em vez disso, passava cada momento livre no problema de Powers.

Nos últimos dias, a situação internacional já tensa tinha piorado bastante, com bombardeiros soviéticos entrando no espaço aéreo do Alasca e do Canadá e aumentando a intensidade das atividades em bases de lançamento de mísseis de média distância, ameaçando a Turquia e o Paquistão. Mas Frank estava com a atenção concentrada no desaparecido e misterioso Geada. Ele não era mais o único agente da KGB desaparecido; outros também haviam saído de cena. Ao relacionar essa informação com as últimas interceptações de transmissões sobre orçamentos de transporte e segurança, Frank tinha deduzido o local do epicentro dessa atividade misteriosa: Vladimirsky Central, uma prisão de segurança máxima na cidade russa de Vladimir.

Powers devia estar lá.

Frank estava quase pronto para apresentar essa descoberta aos superiores; só precisava de mais alguns fatos para sustentar sua intuição. Dulles não ia gostar de saber que ele ainda estava envolvido no caso Powers, mas se Frank pudesse produzir um relatório bem sólido, não teria alternativa que não a de aceitar suas conclusões. Se tomaria alguma providência a partir dessas conclusões era outra questão, mas isso estava além do controle de Frank.

Ele remexeu nas folhas de papel finas, rosa, pardas e amarelas marcadas com carimbos de CONFIDENCIAL e ALTAMENTE CONFIDENCIAL à procura de provas definitivas. Aquela era a inteligência mais recente... Frank tinha perturbado os agentes de controle de documentos de tal modo que eles lhe davam tudo o que pudessem só para se livrar dele. Era possível que ele fosse o primeiro a ver aquela informação.

Então, quando leu o relatório de um agente no sonolento subúrbio moscovita de Noginsk dizendo que Roman Andreyevich Rudenko, promotor-geral da União Soviética, tinha sido visto com os generais Borisoglebsky, Vorobyev e Zakharov em um vagão privativo de um trem que seguia para o Leste, sua boca ficou seca.

Rudenko era o equivalente soviético do procurador-geral dos EUA. Borisoglebsky, Vorobyev e Zakharov formavam a divisão militar da Suprema Corte da União Soviética. E Noginsk ficava no caminho de Vladimir.

Julgamentos de espionagem na União Soviética eram realizados em segredo. Se aqueles quatro estivessem em Vladimir, podiam estar julgando Powers naquele exato momento. E Frank talvez fosse a única pessoa que soubesse disso.

Mas o agente em Noginsk fizera poucos relatórios; Frank não tinha como determinar quanto crédito aquele merecia. Precisava de mais informação para ter certeza. Folheando as pilhas e pilhas de papel, examinando e descartando cada folha o mais rápido possível, logo formou um monte de folhas soltas no chão a seus pés.

Então alguma coisa que havia acabado de ler despertou algo em seu cérebro, justo quando seus dedos largaram a folha. Ele remexeu no monte de papel para encontrá-la de novo, amassando e rasgando outros papéis em sua pressa, então a ergueu sob a luz. Era um telegrama interceptado da Central de Prisões para o comandante da orquestra e coral do Exército Vermelho.

“INFELIZMENTE DEVE CANCELAR SUA APRESENTAÇÃO 17 DE MAIO 1960 NA PRISÃO DE VLADIMIR”, dizia em letras cirílicas maiúsculas. “PÁTIO DE EXERCÍCIOS NÃO DISPONÍVEL NESSE DIA.”

Prisão de Vladimir. Suprema Corte. Promotor-geral. Julgamento secreto. Pátio de exercícios.

Execução por pelotão de fuzilamento.

Era um tênue fiapo de prova, sem dúvida. Mas Frank havia ignorado suas intuições antes e o resultado fora apenas infâmia e vergonha. Sua especialidade profissional, durante toda a vida, tinha sido produzir estimativas a partir de fatos aparentemente sem conexão, e ele raramente teve tanta certeza sobre uma conclusão.

A data indicada era dali a quatro dias. Três dias, considerando a diferença de fuso horário entre Washington e Moscou. Para ter alguma chance de salvar Powers, seus superiores deveriam ser informados imediatamente.

Frank juntou os documentos de que precisava para confirmar suas conclusões e saiu apressado pela porta. Não parou nem para pegar o chapéu.

Robert estava em um avião rumo a Genebra para uma reunião da OTAN, por isso Frank engoliu em seco e foi falar com Dulles.

– O diretor está em uma reunião na Casa Branca – disse a secretária. – Ele só volta amanhã.

Mas o caminho de Frank foi interrompido pelo guarda na mesa da segurança da Ala Oeste.

– Sinto muito, senhor, o diretor Dulles está em reunião com o presidente. Por favor, aguarde aqui.

– Por quanto tempo? – Frank agarrava a pasta cheia de documentos como se fosse o volante de seu destino.

– Não tenho como dizer, senhor.

Frank se sentou na cadeira indicada, mas só por um instante. Ele se levantou e começou a andar de um lado para outro.

Ele olhou para o relógio na parede: 16h15, 23h15 no horário de Moscou. Em 45 minutos seria sábado lá. Se Frank estivesse certo, a execução de Powers estava marcada para terça-feira, provavelmente ao amanhecer. Faltavam mais ou menos oitenta horas.

Se ele pudesse apenas voltar o relógio...

Frank parou de repente.

– Sinto muito – disse ao guarda. – Não posso esperar. Tenho de encontrar outro modo.

Frank saiu e virou no corredor. Havia outro segurança ali, mas ele estava olhando para fora e Frank estava atrás dele.

Aquilo era loucura. Se Frank fizesse mesmo o que estava pensando em fazer, sua vida mudaria para sempre. Talvez nunca mais visse a mulher e os filhos. E Powers era apenas um homem, um homem que sabia mesmo ao embarcar no U-2 que podia nunca voltar de sua missão.

Mas Frank tinha feito o juramento de defender os Estados Unidos de todos os inimigos, dentro e fora do país. Powers não era apenas um homem... sua vida simbolizava muito mais e resgatá-lo poderia evitar um confronto muito maior. A mulher de Frank talvez não entendesse. Mas o que ele fazia pelo país, fazia por ela e pelos filhos.

Ele agarrou a pasta e se concentrou.

Um farfalhar parecido com o ruído de um vento forte abafou o tique-taque do relógio e outros sons. Do lado de fora da janela, uma bandeira que tremulava congelou.

Frank abriu caminho pelo ar espesso, parecendo geleia, e passou pelo segurança da Ala Oeste, que estava sentado à mesa sem piscar. A porta atrás dele pareceu pesada como chumbo, mas depois dela havia um corredor longo e estreito que estava vazio, não fosse por dois fuzileiros armados em rígida posição de sentido ao lado da terceira porta à esquerda.

Por trás daquela porta, como Frank imaginou, havia uma sala de reuniões pequena e escura onde três homens imóveis estavam sentados em torno de uma mesa, olhando fixamente e com expressão fechada para uma tela de projeção no alto. Com a luz do projetor, Frank reconheceu Dulles e Eisenhower; o terceiro parecia vagamente familiar, apesar de Frank não saber seu nome.

Frank olhou diretamente para o presidente, que estava sentado congelado com o retângulo reluzente da tela refletido em seus óculos. Em um instante, Frank se revelaria para ele, e sua vida civil estaria acabada.

Ou ele podia recuar e ir embora agora mesmo, e ninguém jamais saberia.

Ninguém além do próprio Frank.

Frank inspirou profundamente em um fôlego, e o ronco em seu ouvido foi substituído pelo som mais suave da ventoinha do projetor. No instante seguinte, outro inalar súbito e ofegante, este de Dulles, quando percebeu o surgimento repentino de Frank.

– Que diabos! – Imediatamente ele pulou para cobrir com a mão a lente do projetor.

Aquele gesto inesperado chamou a atenção de Frank para a tela. Antes que Dulles conseguisse bloquear a luz, ele identificou as palavras AQUATONE e CAPTURADO e RAMPART e PILOTO.

AQUATONE era o criptônimo para o U-2, Frank sabia. E “RA” era o dígrafo para criptônimos relacionados ao vírus carta selvagem. Se RAMPART fosse o codinome do piloto do U-2 capturado, isso significava...

– Temos um problema – disse o terceiro homem enquanto acendia as luzes da sala. – Esse homem sabe quem é e o que é RAMPART.

De repente, Frank lembrou quem era o terceiro homem. Lawrence Hague, o corretor de ações que tinha sido a primeira pessoa recrutada pelo CRISE-A. Um telepata. Ele era cinco anos mais velho do que os trechos de cine-jornais que Frank vira dele diziam, mas aqueles olhos penetrantes e a testa alta eram inconfundíveis. Foi uma coisa boa Frank ter entrado naquela sala com a intenção de se revelar.

– Sim, acabei de deduzir a partir de informações do slide projetado que Francis Gary Powers é um ás – disse ele. Para sua própria surpresa, sua voz estava tranquila. – Vim aqui dizer a vocês que ele já foi julgado e condenado à morte.

A expressão de Eisenhower estava muito séria.

– Como conseguiu entrar aqui?

– Também sou um ás. – Pronto, ele tinha falado. Agora não havia retorno.

– Um ás atrapalhado, talvez... – reclamou Dulles.

Eisenhower se levantou, interrompendo Dulles.

– O que você disse sobre Powers ter sido condenado?

Frank imediatamente expôs a informação da inteligência e sua interpretação.

Dulles estava extremamente cético.

– Esse homem não conseguiria encontrar o próprio rabo nem com um mapa e uma lanterna – torceu o nariz.

– Sei que esta análise tem muitas conexões problemáticas – retrucou Frank. – Mas meu erro, antes, foi não seguir minha intuição. – Ele se virou e falou diretamente para Eisenhower. – Senhor presidente, eu nasci na Rússia antes da Revolução. Observo esses bolcheviques desde seus primeiros dias. Sei como funcionam, sei como pensam e dediquei minha vida a estudar sua política e seu governo. O senhor tem de acreditar que eu sei que Powers ou já foi condenado por espionagem ou será em breve, e vai ser executado por um pelotão de fuzilamento no pátio de exercícios da Prisão Central Vladimirsky na terça-feira, dia 17 de maio.

– É esse o seu poder de ás? – perguntou Eisenhower. – Algum tipo de... superdedução?

– Não, sr. presidente. Análise é minha profissão. Meu poder é fazer o tempo parar. Tudo para, menos eu; de seu ponto de vista, pareço me mover instantaneamente. – Ele tinha ensaiado esse discurso em sua mente mil vezes. – Se o senhor permite que eu faça uma demonstração...

Dulles revirou os olhos, mas Eisenhower olhou para Hague, que assentiu com a cabeça.

Frank concentrou sua mente. O mundo começou a rugir, e os três homens congelaram onde estavam. Abrindo caminho pelo ar pesado e resistente, foi até cada um deles e removeu as carteiras do bolso interno de seus paletós. Ele foi até o canto mais distante da sala antes de liberar o tempo para retomar seu curso normal.

– Aqui – disse ele. Todos os três homens levaram um susto e giraram para olhar para ele, então tatearam os bolsos e foram ficando cada vez mais agitados. Ele ergueu as carteiras. Hague fez com a cabeça uma leve reverência para ele em sinal de aprovação.

Aquele era o momento pelo qual ele esperava havia cinco anos. Queria saborear seu triunfo... mas apenas se sentia cansado, exausto até os ossos, dez anos mais velho. Tudo o que conseguia fazer era permanecer de pé.

– Senhor presidente – disse com voz rouca –, eu já vi o quanto Powers significa para o senhor.

Por favor, acredite em mim... no que eu sei, no que descobrimos, no que posso fazer. Deixe-me ajudá-lo de todas as maneiras que eu puder.

Dulles foi o primeiro a se recuperar.

– Senhor, isto é um ultraje – bradou para Eisenhower.

Mas o presidente ignorou Dulles e, em vez disso, se virou para Hague.

– Este homem está dizendo a verdade?

– Pelo que ele compreende, sim.

– Alguma mancha em sua folha? – Esta foi dirigida a Dulles.

– Ele não conseguiu descobrir que os soviéticos estavam com Powers.

– Ele não foi o único. Mais alguma coisa?

Dulles olhou com raiva para Frank antes de responder.

– Não que seja de meu conhecimento.

Eisenhower olhou por longo tempo nos olhos de Frank, pensando, e apesar de sua própria exaustão, Frank percebeu que aquele homem realmente carregava o peso do mundo nos ombros, e fazia isso havia quase oito anos.

– Certo – disse ele por fim. – Senhor... Mazursky, é isso?

– Majewski, senhor.

Eisenhower se aprumou.

– Sr. Majewski, pelos poderes conferidos pela Lei de Controle de Poderes Exóticos e pelo Recrutamento Especial, eu o ponho sob o comando do Comitê de Recursos Internos do Senado para Empenho dos Ases, a partir deste momento. O senhor conhece seus direitos e responsabilidades sob essa lei?

– Sim, senhor.

– O Sr. Hague aqui é o diretor do CRISE-A e, a partir de agora, você está subordinado a ele.

Larry, por favor, inscreva o Sr. Majewski no RAMPART.

Hague puxou uma folha de papel de sua maleta e pediu a Frank que soletrasse seu nome e desse sua data de nascimento e número do Seguro Social. A folha tinha a logomarca do CRISE-A no cabeçalho e se parecia com o formulário de liberação da segurança da CIA, exceto que a descrição do compartimento era apenas algumas breves palavras escritas à mão – “Francis Gary Powers, habilidades e história”, a tinta ainda úmida –, e a declaração sobre divulgação não autorizada incluía as palavras “qualquer tipo de divulgação constitui traição” e seu autor está “sujeito a execução imediata, sem julgamento”. Frank engoliu em seco e assinou o formulário, que depois também foi assinado por Hague, Dulles e o próprio Eisenhower.

Hague então explicou que Gary Powers, código de identificação “Olho de Águia”, era na verdade um ás, e o maior recurso de vigilância dos Estados Unidos.

– O poder de ás dele é uma incrível visão a distância – disse Hague. – Melhor que nossas melhores câmeras telescópicas. E ele teve anos de treinamento para entender o que vê. Powers é insubstituível e precisa ser resgatado ileso.

Eisenhower agradeceu Hague por sua apresentação e tomou a palavra.

– Esta reunião foi convocada – disse ele – com o objetivo de considerar as alternativas para Olho de Águia e para o controle e a redução de dano diante de sua perda. Entretanto, agora que você está aqui, acredito que temos uma chance de resgatá-lo. A combinação única de seu conhecimento sobre a Rússia, treinamento da CIA e poderes de ás parece ter sido enviada pelo céu para esta situação. Se eu lembro bem, o russo é sua língua nativa, não?

– Da – respondeu Frank. Seu coração batia mais forte à medida que compreendia o que Eisenhower estava prestes a sugerir.

Mas Dulles, que estava remoendo sua raiva em silêncio, naquele momento explodiu:

– Senhor presidente! O senhor não pode estar pensando em mandar este homem para a Rússia!

Ele não é um agente, é um analista! Não tem treinamento em subterfúgios, evasão, resistência a interrogatórios...

– Allen – disse Eisenhower –, cale a boca. – Um tom indefinível de comando em sua voz congelou e imobilizou Dulles. – Olho de Águia é tão crítico para a segurança desta nação que, por seu resgate, estou pronto para arriscar a vida de nosso novo recurso. – Um frio penetrou no fundo das entranhas de Frank quando percebeu que o presidente estava se referindo a ele. – E para qualquer dano colateral resultante. De qualquer modo, o Sr. Majewski não está mais sob seu comando. – Ele afastou os olhos de Dulles no que Frank interpretou como um gesto intencional de desprezo.

– Sr. Majewski – prosseguiu Eisenhower, agora concentrando a atenção em Frank –, sinto muito por colocar tamanho fardo sobre o senhor e por expô-lo a uma situação tão perigosa, mas, como tenho certeza de que sabe, seu país precisa do senhor e de suas habilidades únicas. O Sr. Hague vai lhe dar o máximo possível em termos de treinamento e assistência antes de sua partida para a missão.

Frank abriu a boca, mas nada saiu. Após algumas tentativas, ele simplesmente assentiu com a cabeça.

O peão que chega à última casa, disse a si mesmo, se torna uma rainha.

Hague o levou até um prédio de escritórios na F Street, supostamente um escritório de advocacia e administração de imóveis, mas que na verdade era a sede do CRISE-A. Lá ele foi submetido a uma bateria de exames médicos, aplicados com educação mas também firmeza e eficiência por uma equipe que incluía o Dr. Thatcher, um homem careca de um metro e meio, barrigudo, de pele branca, olhos apertados e amarelados e presas, que extraiu uma seringa do sangue de Frank e

começou a prová-lo antes de fazer longas anotações em taquigrafia. Era a primeira vez que Frank ficava no mesmo aposento que um curinga, mas ele tentou permanecer calmo.

Imediatamente em seguida, Frank foi submetido a uma série de exercícios com o objetivo de estabelecer os limites de seus poderes de ás. Segurou um cronômetro (qualquer coisa que tocasse sua pele era levada com ele para fora do tempo) e manteve o tempo parado pelo máximo que pôde, o que revelou um total de 11 minutos, apesar de parecer muito mais. Com o tempo parado, ele correu e levantou pesos de até 15 quilos. E fez algo que nunca sequer cogitara antes: levou outro ser humano com ele para fora do tempo, um voluntário que caminhava lentamente enquanto era levado por Frank pela mão. O voluntário disse que a experiência tinha sido estranha e assustadora, um turbilhão semiconsciente e delirante, sem qualquer controle. Era como acordar de um sonho em que estivesse dirigindo em alta velocidade. Depois que acabou, não pareceram restar quaisquer efeitos nocivos. Quando juntou-se um segundo voluntário, Frank achou difícil demais dar até mesmo um passo.

Depois de todos esses testes, ele repetiu o exame médico. Ninguém lhe disse nada sobre o que haviam descoberto, se é que haviam descoberto alguma coisa. Então ele teve permissão de telefonar para a mulher, apesar de o fazer sob observação severa, e apenas para lhe dizer que estava em missão especial e não poderia voltar para casa por pelo menos alguns dias.

A essa altura já eram quase duas da madrugada. Os escritórios do CRISE-A tinham pequenos dormitórios, sem janelas e muito simples, mas, fora isso, bem confortáveis; a porta também não trancava, nem por dentro nem por fora. Frank tirou a gravata e os sapatos e se esticou na cama para descansar um pouco, certo de que sua mente estava cheia demais de perguntas e experiências novas para dormir.

Quando deu por si, estava sendo acordado por um secretário educado que lhe disse serem seis horas. Ele também deu a Frank uma mala grande e surrada com as iniciais cirílicas Ya.G. Ela continha várias mudas de roupa (pesadas, mal cortadas e mal-acabadas, com etiquetas em russo), sapatos, lenços e outros itens, e o que pareceu aos olhos de Frank um passaporte russo autêntico com sua própria fotografia e o nome de Jacek Grabowski.

Enquanto se barbeava com uma lâmina sem fio e cheia de dentes e um sabão grosseiro feitos na Rússia, Frank pensou que era uma coisa boa o fato de não estar acostumado ao creme de barbear suave e lubrificado em aerossol que seu barbeiro insistia para que experimentasse.

No momento em que saiu do banheiro, foi levado às pressas para uma reunião com Hague e vários outros homens muito sérios, que lhe apresentaram uma pasta grossa, cheia de papéis: um plano detalhado para o resgate de Powers. Para que tudo funcionasse a tempo, ele teria de partir para a base aérea de Andrews em uma hora. Ele tinha alguma pergunta?

Frank leu o plano sobre uma xícara de café horrível e um donut velho, plano que parecia levar em conta tudo o que ele e o CRISE-A haviam descoberto sobre suas habilidades no dia anterior... ao forçá-la até seus limites absolutos. Funcionaria, pensou, desde que nada inesperado acontecesse e Frank mantivesse o mesmo nível de desempenho.

Mas havia uma parte do plano que Frank não conseguia aprovar. Ele seria acompanhado por um agente de campo experiente para ajudá-lo a entrar e sair do país, mas o plano exigia que o agente acompanhasse Frank até o interior da prisão e depois, enquanto Frank resgatasse Powers usando seu talento de carta selvagem, ele que desse seu jeito de sair de lá por conta própria.

– Vou para a Rússia tirar um homem de uma prisão à prova de fuga – disse Frank, botando o indicador com força sobre o mapa. – Não vou deixar outro homem para trás em seu lugar.

As mãos de Hague se entrelaçaram sobre a mesa.

– Esse é o trabalho dele, Frank. E o seu é seguir minhas ordens.

Frank encarou o olhar duro de Hague.

– Não vou fazer isso.

Eles se encararam por um longo momento, enquanto escorria suor pelo corpo de Frank por baixo do pesado paletó soviético. Mas foi Hague quem piscou primeiro.

– Está bem – disse e se virou para um dos outros planejadores do CRISE-A. – Vamos usar o plano alternativo no qual Frank entra e sai da prisão sozinho.

Frank ficou atônito por Hague ter aceitado tão fácil e rapidamente.

– Não fique tão surpreso – disse Hague, apesar de Frank não ter falado. – Eu posso ver exatamente o que você pode aceitar. – Ele ficou de pé e estendeu a mão. –Acho que você é um bobo sentimental, mas eu lhe desejo boa sorte e boa viagem. – Os planejadores também se levantaram.

Os joelhos de Frank tremiam tanto que ele tinha dificuldade para se manter de pé, mas conseguiu.

O avião no qual Frank embarcou na base aérea de Andrews era um grande Hércules C-130, e ele era o único passageiro.

– Tudo isso para mim? – perguntou ao piloto, um militar da Marinha magro e curtido com olhos azuis, cuja etiqueta de identificação dizia A. DEARBORN.

– Eu voo para onde me mandam. – Deu de ombros.

A decolagem foi dura, com o compartimento de carga vazio chacoalhando e os quatro motores roncando como tornados, mas o voo logo se estabilizou na rotina.

– São quinze horas até Helsinque – disse Dearborn. – Incluindo uma escala para reabastecer em Keflavik.

Frank dormiu um pouco, mas, apesar da exaustão, dos protetores de ouvido e do terno de lã soviético, o barulho e o frio o acordaram após algumas horas. Ele releu o plano de resgate até ter certeza de que havia memorizado todos os detalhes. Fez um levantamento do conteúdo de sua mala e contou cada botão em cada camisa. Quando Dearborn passou os controles para o co-piloto para descansar e foi até lá atrás oferecer um sanduíche para Frank, este já havia percorrido todo o caminho do terror ao tédio, e depois até o desespero.

– Imagino que não haja um tabuleiro de xadrez neste avião, há?

– Você está com sorte. – Dearborn puxou um de dentro de sua sacola, um pequeno jogo de viagem, cujas pequenas peças de madeira se encaixavam em furos no tabuleiro. – É sempre bom ter outro jogador nesses voos longos – disse Dearborn enquanto arrumava o tabuleiro. – Qual o seu nível?

– Eu... eu não sei. Não costumo jogar contra outras pessoas.

– Ah, então você joga por correspondência? – Dearborn, jogando com as brancas, moveu o peão da dama.

– Não, eu, ah, só... estudo os jogos dos campeões. Eu os jogo no tabuleiro e analiso. – Foi surpreendentemente doloroso confessar seu hobby. Ele sabia que o xadrez não era apenas um passatempo intelectual; também era um jogo, para ser jogado com outras pessoas como uma forma de interação social. Mas esse aspecto simplesmente não o interessava. – Na verdade, não jogo uma partida de xadrez de verdade há... mais ou menos uns dez anos. – Ele moveu o peão da dama para enfrentar Dearborn.

– Não há momento melhor que o presente, então. – Dearborn moveu o peão do bispo da dama na clássica abertura de gambito da dama.

Nesse momento, Frank podia recusar o gambito da dama avançando seu peão do rei, mantendo o controle do centro, ou aceitá-lo e comer o peão que Dearborn acabara de mover e ganhar mais liberdade para agir mais tarde.

Ele se viu incapaz de decidir.

Esticou a mão... então recuou. Repetiu o gesto. Ele tremia com a dúvida.

Após tantos anos de estudos e análises detalhados de algumas das maiores partidas de xadrez da história... contra um adversário humano ele não conseguia nem enfrentar uma abertura clássica em um jogo sem compromisso e nenhuma importância.

Dulles estava certo. Ele era um analista, não um agente de campo. O que em nome de Deus ele achava que estava fazendo ali?

– Ei – disse Dearborn. – Você está bem?

– Estou bem – mentiu Frank e assoou o nariz para esconder as lágrimas. O lenço russo era grosseiro e áspero. Ele o dobrou, enfiou-o de volta no bolso, respirou fundo e capturou o peão de Dearborn.

Ele já tinha aberto mão de tanto controle sobre sua vida. Por que não abrir mão do controle do centro? Isso podia ajudá-lo no final do jogo.

A partida prosseguiu. Dearborn era um jogador enfadonho e conservador, que não conseguia ver além de alguns poucos movimentos à frente, mas de algum modo sempre parecia estar no lugar certo para enfrentar os ataques de Frank.

– Acho que é pura sorte – disse ao capturar o cavalo de Frank.

– Não há sorte no xadrez. – Frank avançou o cavalo que restava. – Xeque.

– Talvez. Mas, de algum modo, sempre tenho sorte. Podia ser eu lá, agora, em vez de Francis Gary Powers. – Ele comeu o cavalo de Frank com seu bispo.

– É? – Frank empurrou a dama uma casa adiante para ameaçar aquele bispo.

– É. Fui sondado pelo programa U-2, passei por todos os exames e entrevistas, consegui as liberações, tudo. Mas então peguei caxumba, caxumba, acredita? E perdi o prazo para entrar no treinamento. Quando estava liberado para voltar a voar, não tinham mais vagas. – Ele moveu o bispo ameaçado até a outra extremidade do tabuleiro, mas, assim que soltou a peça, se arrependeu.

– Ah... eu não queria botá-lo aí. Maluquice. – Ele franziu o cenho, examinando o tabuleiro, e de repente exclamou: – Ei, xeque-mate!

Frank torceu para que não fosse um mau presságio.

Frank foi recebido em Helsinque por um homem corpulento de rosto grande e sisudo que se apresentou em russo como Pyotr Andreievich Malinov. Ele levou a mala de Frank até um elegante sedã Volvo cinza, e Frank achou que ele fosse apenas o motorista até que a porta fechou e ele deu a Frank o código de confirmação. Ele era o oficial de campo de Frank, um agente confiável da CIA de longa data que havia trabalhado várias vezes com o CRISE-A.

– Qual seu codinome? – perguntou-lhe Frank. – Como devo chamá-lo?

– Você vai se dirigir a mim como Pyotr Andreievich Malinov. Se não souber meu nome verdadeiro, não corre risco de cometer um deslize e me chamar por ele. E você, pelo que me consta, é apenas Jacek Grabowski, primo um pouco simplório de minha mulher que estou acompanhando até Moscou para a exposição agrícola como um favor para ela. Se surgirem perguntas estranhas, aja como se fosse burro. – Era evidente que ele não achava aquilo um grande desafio para Frank.

Um protesto começou a tomar forma por trás dos lábios de Frank, ele era um analista da CIA, tinha diplomas de Economia e Política Internacional, mas se manteve em silêncio. Sua vida dependia desse homem, que conhecia seu trabalho. Não fazia sentido antagonizá-lo.

“Malinov” mal falou com Frank enquanto seguiam de carro até a estação de trem de Helsinque e, assim que se instalaram em suas poltronas de segunda classe, ele puxou o chapéu sobre os olhos e dormiu. Frank estava desconfortável em seu casaco pesado e úmido. Aquele era o homem que devia protegê-lo? Mas Frank estava morto de cansaço e, apesar da poltrona desconfortável e das muitas preocupações, em pouco tempo seus olhos também começaram a se fechar.

Antes de adormecer completamente, Frank ouviu Malinov lhe desejar boa-noite. Talvez o outro homem nem estivesse dormindo.

Frank acordou assustado com um cutucão forte nas costelas. Quatro guardas de fronteira russos com capacetes de aço e metralhadoras penduradas nas costas, por cima de seus longos sobretudos verdes, abriam caminho e vinham percorrendo todo o vagão do trem.

– Passaporte – sussurrou Malinov.

Mas o passaporte de Frank não estava no bolso do casaco. Rapidamente procurou nos outros bolsos do casaco, nos bolsos das calças, embaixo dele na poltrona.

– Me... me desculpe. – Sua pulsação martelava seus ouvidos.

– Encontre-o – murmurou baixinho Malinov.

Dois dos guardas se aproximaram.

– Passaportes – disse um deles bruscamente.

Malinov entregou seu passaporte.

– Mil desculpas, mas meu primo não está encontrando o dele. – Bateu com o indicador na têmpora em um gesto significativo e sorriu. – Ele é polonês.

Frank jamais teria imaginado que outras emoções pudessem penetrar em seu terror, mas descobriu que a raiva pela ofensa étnica conseguiu se fazer sentir mesmo enquanto ele continuava a tatear os bolsos. Malinov e os guardas riram à custa de Frank, o que se transformou em gargalhada quando o documento de Frank surgiu no bolso de sua camisa.

O guarda abriu o passaporte fraudulento de Frank.

– Por favor, me confirme sua data de nascimento.

O coração de Frank quase parou. Ele não conseguia se lembrar da data de nascimento que constava no documento falso. Seria a dele mesmo? Se não fosse, qual seria? Segundos agonizantes se arrastaram... dessa vez, ele estava congelado, e o resto do mundo se movia.

– Polonês – disse de novo Malinov e deu de ombros. Dessa vez, até o homem na poltrona do outro lado do corredor se juntou aos risos. Ainda rindo, o guarda devolveu o passaporte a Frank e seguiu pelo corredor.

– Você não precisava me insultar desse jeito – disse Frank quando os guardas foram para o vagão seguinte. O ritmo de seu coração tinha desacelerado para apenas duas vezes a velocidade normal.

– O riso reduz as desconfianças – respondeu Malinov. – E isso livrou você de uma encrenca. – Ele deu de ombros. – O que mais queria que eu fizesse?

Mais tarde ele se deu conta de que podia ter usado seu poder para procurar o passaporte, ou para examiná-lo enquanto o guarda o tinha nas mãos. Mas não pensou nisso quando poderia ter sido de alguma ajuda. Oito anos escondendo seus poderes, ou fingindo ser alguém que não era diferente de ninguém, não permitiram que, no momento-chave, ele se lembrasse do que podia fazer.

O que em nome de Deus ele achava estar fazendo ali?

Talvez, no fim das contas, Dulles tivesse razão.

Na terça-feira, 17 de maio, às três da manhã, horário de Moscou, Frank estava parado tremendo sob a chuva diante do portão da Prisão Central de Vladimirsky e se sentindo muito pequeno.

Os muros da prisão se erguiam altos; a chuva que respingava no rosto de Frank formava halos brilhantes ao redor dos holofotes instalados em intervalos ao longo do topo dos muros. Guardas armados com cães patrulhavam o perímetro; o interior tinha inúmeras portas operadas por controle remoto, projetadas para tornar impossível uma fuga. Aquela era a prisão mais segura da Rússia.

Frank entraria ali andando e sairia andando depois com Powers.

Mesmo com a habilidade de carta selvagem de Frank, só graças a um agente duplo dentro da prisão o resgate seria possível. O mapa detalhado fornecido pelo agente duplo indicava a Frank alguns lugares para descansar, fora de vista, quando seu poder estivesse diminuído; a lista de horários precisos a cumprir que tinha agarrada na mão, enfiada fundo no bolso do casaco, ia fazê-lo passar por aquelas portas trancadas.

O primeiro desses horários era 3h05 da manhã, ainda faltavam cinco minutos. Frank conferiu o relógio, mas nem seus poderes podiam fazer aquele ponteiro dos minutos andar mais rápido.

A chuva de Moscou tinha gosto de concreto e enxofre.

Finalmente as 3h05 chegaram. Frank respirou fundo e se concentrou.

O ronco do tempo imobilizado atacou seus ouvidos exaustos. Gotas de chuva se detiveram em meio à queda, cada uma delas se revelando como um disco achatado irregular, sem nada a ver com a forma de uma gota de chuva. Frank abriu caminho pelo ar pegajoso. As gotas suspensas batiam em seu rosto ou eram absorvidas pelo casaco.

Ele simplesmente entrou caminhando pelo portão externo, uma cancela com faixas diagonais vigiada por dois guardas paralisados em seus sobretudos em meio à chuva imóvel. A porta da prisão em si não estava trancada, nem as duas portas seguintes, e os guardas nelas não foram obstáculo. Mas abrir e fechar as portas exigia um esforço substancial. Mais pesadas e duras que as portas domésticas, cada uma delas parecia ter mais de 40 quilos para Frank. Ele estava literalmente trabalhando contra o tempo.

Agora vinha o primeiro dos obstáculos sérios: um cubículo de passagem com portas pesadas de aço e vidro dos dois lados, cada uma trancada por uma fechadura com barra de segurança que só podia ser aberta apertando um botão na cabine do guarda que ficava entre as portas. Mas o agente duplo tinha prometido destrancar as duas portas por um minuto, entre 3h05 e 3h06, que ninguém iria notar.

Frank olhou instintivamente para o relógio ao se aproximar da primeira porta e sentiu um momento de pânico: ele marcava 3h13. Mas claro que isso refletia seu tempo pessoal. O relógio na parede estava congelado em alguns segundos após as 3h05. Ele pôs o peso contra a porta e, com pesada relutância, ela se abriu. A segunda porta também estava destrancada, graças a Deus!, mas foi preciso mais do que um simples esforço para abri-la.

Depois de fechar a segunda porta, Frank se apoiou contra a parede de concreto pelo espaço de algumas respirações ofegantes. Mas fora do tempo não havia descanso. Até respirar era trabalhoso. Ele tinha de chegar ao primeiro local de esconderijo antes de ficar cansado demais para continuar.

As luzes frias no interior da zona de segurança agrediram os olhos de Frank enquanto ele se esgueirava pelo meio do ar denso e resistente a caminho da segurança de um armário de produtos de limpeza e manutenção. Quando chegou lá, sua visão estava começando a ficar turva, e tudo o que conseguiu fazer foi destravar o trinco e abrir a porta. Assim que ele a fechou, e mergulhou em uma bendita escuridão, liberou seu poder. Tremendo, ele se deixou deslizar pela porta até sentar no chão, ofegando o mais silenciosamente possível. O armário sujo e escuro era frio e cheirava a água sanitária, mas ainda era melhor do que o ronco e a imobilidade sobrenaturais do mundo fora do tempo.

O horário seguinte do agente duplo era às 3h15. Dez minutos de descanso não seriam o bastante.

Dez minutos de espera impotente dentro de um armário escuro, tremendo de medo cada vez que

uma pessoa passava pisando firme e fazendo barulho do outro lado da porta, eram demais.

Ele imaginava a porta se abrindo de repente, enchendo o espaço apertado e atulhado de luz e exclamações de surpresa. Se isso acontecesse, ele podia congelar novamente o tempo e assim fugir, mas o plano seria afetado e podia provocar um alarme. E onde ele se esconderia antes do próximo horário possível de saída?

Finalmente, finalmente, os ponteiros fluorescentes marcaram 3h15. Muito feliz por deixar aquele armário fedorento, e com muito medo de enfrentar o ronco do tempo congelado, ele se concentrou e conjurou seu poder.

Ele teve de usar toda a sua força para abrir a porta petrificada.

Nunca antes Frank passara tanto tempo fora do tempo. Cada passo era como escalar uma montanha; cada porta que abria e fechava era a rocha de Sísifo.

ÁREA DE SEGURANÇA MÁXIMA, diziam as letras cirílicas pintadas com estêncil na porta onde deveria estar no horário marcado seguinte. Esta era uma porta de correr, operada eletricamente e, apesar de destrancada como prometera o agente duplo, nem toda a força que restava em Frank foi suficiente para abri-la. Ele encontrou um cassetete de aço encostado em um canto e o usou como alavanca para abrir a porta o bastante para que pudesse se espremer e

atravessá-la. Depois teve de guardar de volta o cassetete no lugar, com cuidado para colocá-lo na mesma posição de que se lembrava. Droga, qual das extremidades estava para cima? Estava cada vez mais difícil pensar direito.

Já do outro lado, ele se virou... e imediatamente deu de cara com um rosto sombrio e carrancudo. Ele recuou em pânico e bateu com a cabeça na porta de metal às suas costas antes que sua razão superasse a reação inicial. O homem grande e musculoso no uniforme de coronel do Exército soviético, cuja etiqueta de identificação dizia POLYAKOV, estava congelado como tudo o mais na prisão, petrificado no ato de se dirigir com raiva na direção da porta da qual Frank acabara de surgir. Frank se apoiou contra a porta por um instante, esfregando a cabeça e se censurando pela burrice.

Espere. Polyakov? Aquele nome era familiar.

Era um dos nomes listados pela CIA como uma das possíveis identidades do oficial da KGB chamado de Geada pela Agência. E agora ali estava ele, na prisão central de Vladimirsky, na ala de segurança máxima onde Powers estava preso. Frank estivera certo todo o tempo, e agora tinha até o nome daquele homem.

Frank se permitiu um momento de triunfo e satisfação, estalando os dedos embaixo do nariz imobilizado do homem da KGB antes de se agachar, passar por ele e seguir pelo corredor. A cela de Powers, de número 37, era a primeira à direita, com o nome POVRZ, “Powers” em cirílico, escrito a giz acima da porta.

Agora não havia nada entre Frank e o sucesso.

Mas a porta não abria.

Frank tentou de novo, empurrando para baixo a tranca com toda a força. Ela não se moveu.

O agente duplo devia ter providenciado para que a porta ficasse destrancada entre 3h10 e 3h40.

Todo o resto tinha corrido exatamente como planejado.

Frank tentou abrir a tranca mais uma vez. Nada.

Procurou ansiosamente por outro modo de abrir a porta. Mas ela era de aço maciço e pesado, o mecanismo e as engrenagens de sua tranca bem protegidos e reforçados, e não havia nada naquele corredor de concreto vazio que pudesse usar contra ela. Chegar tão perto e superar tanta coisa só para ser vencido por uma simples fechadura!

Não, espere. A chave. Polyakov, congelado no momento em que vinha da cela de Powers, devia ter a chave.

Frank caminhou com dificuldade através do ar que parecia ainda mais denso que antes. Não demorou muito para localizar o volume duro das chaves no bolso da calça de Polyakov, mas a posição de sua perna e seu braço petrificados tornavam impossível que Frank as pegasse. Ele podia mover o braço à força, pensou, ou cortar o bolso com seu canivete, mas as duas ações assustariam Polyakov e o fariam disparar o alarme. E Frank tinha outro horário marcado em dez minutos para passar de volta com Powers na saída.

Ele precisava pegar a chave com Polyakov, e de uma maneira que ele não percebesse.

Ele se moveu até uma posição atrás de Polyakov, assegurando-se de que nenhum outro olho congelado o visse onde estava. A porta de correr estava cerca de 20 cm aberta, mas os olhos de Polyakov estavam baixos... ele teria de arriscar.

Ele liberou o tempo para correr em seu ritmo normal.

– ... matar o idiota que a deixou destrancada... – murmurava Polyakov enquanto andava.

Parar o tempo assim tão depressa de novo era como tentar parar o jato no meio de uma mijada demorada e forte, mas de algum modo Frank conseguiu. Ele inspirou o ar pegajoso e então foi até o lado de Polyakov.

O bolso agora estava acessível, graças a Deus! Ele pescou as chaves de lá, esperando que Polyakov, no meio de um passo, não percebesse a intrusão, e se arrastou de volta até a cela de Powers. A chave marcada com o número 37 entrou na fechadura, apesar de o ato de destrancá-la e abri-la parecer a ele como se estivesse puxando um vagão de trem morro acima.

Powers estava deitado de lado na cama. Estava com aparência péssima, os olhos fundos e a boca numa expressão triste e desesperada, mas sem dúvida era ele.

O coração de Frank bateu forte e sua visão começou a borrar. O ronco em seus ouvidos aumentara e se transformara no barulho de uma locomotiva a toda velocidade. Ele precisava desesperadamente de descanso.

Mas, com as duas portas abertas e as chaves nas mãos, ele não podia arriscar. De algum modo, tinha de seguir em frente.

Frank ergueu Powers de pé à força. Isso provavelmente deixaria alguns hematomas, mas não havia alternativa. Caminhando de costas e conduzindo o piloto impassível pelas duas mãos, ele guiou Powers pela porta, passou pelo congelado Polyakov e pela porta de correr. Então voltou para fechar e trancar a porta da cela, recolocar as chaves no bolso de Polyakov e fechar de volta a porta que encerrava aquele grupo de celas.

– Eu queria poder ver a sua cara – disse ofegante para Polyakov enquanto empurrava com todo o seu peso a tranca da porta – quando descobrir que Powers evaporou misteriosamente de uma cela trancada.

Ele devia levar Powers para o armário da limpeza onde tinha descansado ao entrar, mas não tinha condições de chegar tão longe. Ele já estava começando a se apoiar em Powers mesmo enquanto o conduzia pelo corredor, a visão diminuindo e os passos cada vez mais vacilantes.

Ali havia um banheiro. Teria de servir.

Ele entrou conduzindo Powers, mal se lembrando de acertar seu relógio com o do corredor antes de fechar e trancar a porta às suas costas.

Tão, tão cansado...

Não, ele não podia relaxar. Ainda não.

Deitou Powers no chão como se fosse uma marionete rígida em tamanho natural. Apoiou-se com todo o peso sobre o peito do piloto e pôs uma mão com firmeza sobre sua boca e nariz.

Então liberou o tempo.

– Mmmrrrph! – Powers se remexeu e tentou se desvencilhar de Frank. De seu ponto de vista, tinha apenas sido levado de sua cela de repente e agora estava sendo agarrado e sufocado por um estranho. Mas mesmo enfraquecido por dezessete dias sob custódia soviética, ele ainda era mais forte que Frank.

– Fique quieto! – sussurrou Frank no ouvido de Powers, em inglês. – Estou aqui para resgatá-lo!

Powers parou de lutar, apesar de todos os músculos estarem trêmulos pela tensão.

– Humf?

– Sou do CRISE-A – murmurou. – Lawrence Hague me enviou. Estou a par de AQUATONE e RAMPART. Ainda estamos dentro da prisão e se formos descobertos aqui vamos morrer os dois.

Está entendendo?

Powers balançou lentamente a cabeça, os olhos arregalados acima da mão trêmula de Frank.

Frank soltou Powers e se encostou na parede, deixando os olhos se fecharem de cansaço. Ele se sentia com mil anos de idade.

– Você é um ás? – murmurou Powers. Ele tinha um sotaque arrastado de Virgínia.

– Sou. Eu posso parar o tempo. Mas só por alguns minutos...

– Mais útil do que ser o Sr. Visão. – A voz de Powers respingava amargura. Então ele inspirou fundo e soltou o ar. – Humm... Qual o seu nome?

– Franciszek Majewski. É, na verdade, Francis em polonês. Como você.

Powers revirou os olhos.

– Por favor, me chame de Gary. Só minha mãe e meu pai me chamam de Francis.

– Eu sou Frank.

Eles apertaram as mãos.

Na sexta-feira, 20 de maio, às onze da manhã, Frank entrou no Salão Oval, e o presidente saiu de trás da mesa para cumprimentá-lo. Dulles e Hague, também presentes, ficaram parados de pé onde estavam. Apesar de honrado pelo gesto, Frank não pôde evitar perceber que Eisenhower não apertou sua mão.

– Está tudo bem, Sr. presidente – disse ele. – Não sou contagioso.

Frank sabia que estava com um aspecto terrível. Apesar de ter dormido na maior parte da viagem de volta, incluindo na limusine durante a maior parte do caminho desde a base aérea de Andrews, ele ainda se sentia fraco; tinha perdido muito do cabelo que lhe restava, dores estranhas nas juntas o incomodavam, e seu andar tinha se tornado o arrastar de pés de um velho.

Ele esperava que alguns dias ou semanas de descanso trouxessem de volta sua vitalidade, mas temia que não. Usar seu poder sempre o havia envelhecido de modo não natural, muito mais do que os minutos ou horas que passava fora do tempo, e o esforço sem precedentes que fizera na missão de resgate de Powers com certeza tinha lhe custado muito. Ele podia ter perdido cinco anos naquela única noite infernal.

– Bem-vindo de volta aos Estados Unidos, Frank – disse Eisenhower, que o acompanhou até uma das grandes poltronas perto da lareira. – Todos estamos orgulhosos do trabalho que você fez por seu país. – Eisenhower deu uma olhada para Dulles e Hague. Hague sorriu e balançou de leve a cabeça de satisfação. Dulles, com ar furioso, encarava a ponta de seus sapatos pretos.

Eisenhower limpou a garganta.

– Allen?

Dulles levou um bom tempo para olhar nos olhos de Frank.

– Você fez um bom trabalho – reconheceu por fim.

– Obrigado – disse Frank, aceitando uma xícara de café servida pelo próprio presidente. – Houve alguma... reação à fuga de Powers? – Essa pergunta o havia atormentado durante toda a viagem de volta. Será que Kruschev, já com raiva por causa da invasão de seu território pelo avião espião, iria se sentir mais provocado com o desaparecimento misterioso de Powers de sua prisão mais segura? Será que a missão de Frank tivera como resultado apenas atrasar um pouco o relógio do dia do juízo final?

Eisenhower balançou a cabeça.

– Eles admitiram ter perdido Powers, não podiam negá-lo depois da entrevista dele em Helsinque. Mas, em público, não disseram nada sobre como ele escapou, e mesmo em particular eles têm andado menos hostis.

Hague se sentou na poltrona diante de Frank.

– Eles sabem que deve ter sido um ás quem ajudou Powers a escapar – disse ele. – Mas, politicamente, não podem admitir que nossos ases são melhores que os deles. Eles vão ter que engolir o orgulho e ficar quietos.

Mas Dulles não estava tão otimista.

– Eles também ficaram quietos em relação aos sobrevoos dos U-2 por cinco anos.

Eisenhower lançou um olhar para Dulles.

– Pare com esse seu pessimismo, Allen. Esta é uma ocasião de comemoração. – Ele sacou do bolso uma folha de papel dobrada e a entregou a Frank. Era uma recomendação oficial, no papel timbrado do CRISE-A, assinada pelo presidente e selada com uma fita vermelha. – Isto vai para sua ficha, Frank. Eu adoraria fazer um desfile em carro aberto para você, mas... – Ele deu de ombros. – Você sabe como é. – Estendeu a mão.

Após um instante, Frank entendeu o que a mão aberta significava e devolveu o papel. Claro que ele não podia guardar uma cópia. Como um agente do CRISE-A, ele não existia mais.

Frank engoliu em seco.

– Sei que o senhor não pode reconhecer publicamente meu trabalho – disse ele. – Mas... – Sua voz começou a vacilar, e ele teve de parar para tentar recuperar a compostura. Eisenhower esperou pacientemente. – Tudo o que peço – recomeçou – é que vocês digam à minha mulher que eu morri como um herói a serviço de meu país. – Ele esperava que as instalações secretas em Nevada tivessem pelo menos ar-condicionado.

Hague piscou.

– Você acha que vamos mandá-lo para a Área 51? – Ele deu um sorriso forçado e balançou a cabeça, e Frank se lembrou de que Hague sabia o que Frank estava pensando. – Não, Frank, isso é apenas um mito. – Ele e Dulles trocaram olhares. – Bem, quero dizer a parte de ases mantidos prisioneiros. Você não vai simplesmente desaparecer. Na verdade, você vai para casa assim que nós o interrogarmos.

– Você vai continuar na CIA como cobertura – disse Dulles, apesar de ser evidente que ele não gostava da ideia. – E vai desempenhar missões para o CRISE-A apenas quando necessário. Você provavelmente vai passar tantas noites em casa quanto antes. Talvez mais.

– É como ser um espião em seu próprio país – prosseguiu Hague. – E, no seu caso, já sabemos que você consegue guardar um segredo.

“O peão que chega à última casa se torna uma rainha”, pensou Frank. Mas mesmo uma rainha podia ser capturada... ou podia morrer de velhice em cinco anos. Tudo dependia de como se movesse a peça. Mas por enquanto ele podia voltar para casa, longe do tabuleiro e guardado em segurança no espaço reservado a ele.

– Obrigado, senhor – disse ele.

– Não, obrigado a você – disse Eisenhower, e de novo estendeu a mão, dessa vez para apertar a de Frank.

– Bem-vindo ao CRISE-A, agente especial Stopwatch.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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