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O CRUZEIRO DO SNARK / Jack London
O CRUZEIRO DO SNARK / Jack London

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CRUZEIRO DO SNARK

 

Tudo começou na piscina de Glen Ellen. Entre mergulhos, era nosso hábito deitarmo-nos na areia e deixar os nossos corpos gozar o ar tépido e impregnar-se de sol.

Roscoe sabia velejar e eu tinha andado algum tempo no mar. Inevitavelmente, falámos de barcos, sobretudo de barcos pequenos e do modo valoroso como se comportam no mar. Tomámos como modelo o capitão Slocum, que em três anos deu a volta ao mundo no Spray.

Declarámos que não tínhamos medo de dar a volta ao mundo num barco pequeno de doze metros, por exemplo, e garantimos que gostaríamos de fazer essa experiência. Por fim, asseverámos que nada nos daria mais prazer.

- Vamos a isso! - dissemos, por brincadeira. Quando perguntei a Charmian, a sós, se estava de facto interessada, respondeu que sim e que nem queria acreditar que pudesse acontecer.

Da vez seguinte em que nos pusemos ao sol, na piscina, insisti com Roscoe:

- Vá lá, vem daí connosco!

Falava a sério e ele tomou-me à letra, porque perguntou logo:

- Quando partimos?

Eu tinha de construir uma casa no rancho e plantar um pomar, uma vinha e sebes de arbustos, além de muitas outras coisas. Pensámos que teríamos de adiar a viagem para dali a quatro ou cinco anos; mas depois começou a exercer-se sobre nós o apelo da aventura. Por que não partir naquele momento? Era preciso aproveitar enquanto fôssemos novos. Podíamos deixar o pomar, a vinha e as sebes a crescer enquanto estivéssemos fora. Quando voltássemos, estariam na melhor fase; a casa, poderíamos viver no celeiro até estar pronta.

E assim decidimos partir em viagem, dando início a construção do Snark. Demos-lhe este nome por não nos lembrarmos de mais nenhum. Forneço esta informação a pensar nos que possam julgar que a designação tem algum significado especial.

Os nossos amigos não compreendem as razões da nossa viagem. Encolhem os ombros, gemem e levantam as mãos ao alto. Apesar de todas as nossas explicações, não entendem que seguimos a linha de menor resistência; que nos é mais fácil aventurarmo-nos ao mar num barco pequeno do que ficar em terra, da mesma forma que lhes é mais fácil a eles ficar em terra do que aventurar-se ao mar num barco pequeno. Este estado de espírito resulta da importância exagerada que conferem a si próprios. Não conseguem abstrair-se das suas pessoas, não são capazes de ser objectivos para ao menos reconhecer que a linha de menor resistência não é necessariamente a mesma em toda a gente. Querem tomar as suas próprias inclinações como bitola para os desejos, gostos e desgostos de toda a gente. Não é justo, digo-lhes. Mas não chegam a ter serenidade para me ouvir, acham que estou louco. Em compensação, sinto simpatia por eles - é a minha maneira de ser. Compreendo-os: todos temos tendência para pensar que há um desarranjo nos processos mentais dos que não estão de acordo connosco.

Para encurtar razões, digo-lhes: vou porque me apetece. Esta explicação, de uma profundidade a que a filosofia não pode aspirar, resume a essência da vida. Quando um indivíduo, depois de ponderosos e longos arrazoados de inspiração profunda, decide, de repente, "apetece-me" e faz o contrário do aconselhado, deita a filosofia às urtigas. É esse "apetece-me" que leva o bêbado a beber e o mártir a flagelar-se; que faz um homem devasso e outro anacoreta; que leva alguns a buscar a fama e lança outros na busca do ouro, do amor e de Deus. A filosofia é muitas vezes a maneira de um homem explicar os seus próprios apetites.

Mas voltemos ao Snark e por que carga de água me apetece dar a volta ao mundo nele. O meu sistema de valores toma por base as coisas que mais me agradam e aquilo que mais me agrada é a realização pessoal - não a realização através do reconhecimento dos outros, mas a realização pelo prazer que ela me dá. É a velha sensação que se apodera de uma pessoa quando consegue algo pelas suas próprias mãos. Mas, no meu caso, a realização pessoal tem de ser concreta. Prefiro ganhar uma corrida de natação na minha piscina ou manter-me firme em cima de um cavalo que procura atirar-me ao chão, a escrever a obra-prima do romance americano. Gostos não se discutem.

Haverá quem prefira, pelo contrário, escrever o melhor romance americano a ganhar uma corrida de natação ou domar um cavalo.

Talvez a proeza mais notória da minha vida, o meu momento de glória, tenha acontecido quando ia nos meus 17 anos, andava numa goleta ao largo da costa japonesa e fomos surpreendidos por um tufão. Todos os tripulantes tinham trabalhado a noite inteira no convés. Vieram acordar-me ao beliche, às sete horas da manhã, para tomar conta do leme. Nem uma vela fora içada. Seguíamos à frente do tufão com os panos recolhidos e mesmo assim o barco avançava depressa. Os vagalhões formavam-se afastados uns dos outros de um oitavo de milha e o vento, varrendo as cristas, açoitava no ar um polvilhado de espuma tão denso que não conseguíamos ver a uma distância maior do que duas vagas. Quase não dominávamos a goleta, que balouçava ora para bombordo, ora para estibordo, guinava e mudava de direcção entre sudeste e sudoeste e ameaçava a todo o momento virar-se, quando as vagas formidáveis lhe levantavam a popa. Se naufragássemos, perder-se-iam o barco e todos os tripulantes, sem salvação possível.

Pus-me ao leme. O capitão, sabendo-me tão jovem, observou-me por momentos, receoso de me faltarem as forças e o sangue frio necessários. Mas quando me viu vencer vários assaltos do mar, desceu para tomar o pequeno almoço. A proa e à ré, todos os marinheiros estavam a comer. Se o barco se virasse, nenhum deles teria tempo de chegar ao convés. Durante quarenta minutos fui o timoneiro solitário, responsável pelas vidas de vinte e dois homens e pela sorte da goleta, furiosamente fustigada.

A certa altura, uma vaga cobriu o barco. Vi-a crescer e, semi-afogado pelas toneladas de água que se abatiam sobre mim, corrigi o curso de modo a não perder o controlo da embarcação. Ao fim de uma hora, suado e sem forças, fui rendido. Mas conseguira! Com as minhas próprias mãos, e sem quebrar, tinha estado ao leme e mantido na rota certa cem toneladas de madeira e ferro, no meio de outras tantas toneladas de vento e ondas.

O que me agradava era a realização - e não o facto de a ver reconhecida por vinte e dois homens. No fim desse ano, metade deles estavam mortos, mas nem por isso o meu orgulho diminuiu outro tanto. Todavia, confesso: não sou avesso a um pequeno público. Mas tem de ser muito restrito e composto por gente que eu preze e que me preze também. Nessas alturas penso que, ao conseguir realizar-me pessoalmente, justifico a estima que me dedicam. Mas isto nada tem a ver com a felicidade que me proporciona a façanha em si. Essa é toda minha e dispensa testemunhas.

Quando faço algo de notável, exulto, todo eu irradio luz e tenho consciência do meu orgulho pessoal, meu e só meu. É uma coisa orgânica, que penetra em cada fibra do meu ser. Trata-se de algo muito natural e simples: a satisfação que advém da harmonia com o meio ambiente. Em suma, é o êxito.

O sobrevivente confirma o triunfo da vida e o triunfo é-nos tão necessário como o ar que respiramos. Levar a cabo um feito difícil é harmonizarmo-nos triunfantemente com um ambiente que nos submete a duras provas. Quanto mais difícil, maior a satisfação do êxito. É o que se passa com o homem que salta da prancha para a piscina e, com meia revolução do corpo na direcção contrária, entra na água de cabeça. Assim que salta da prancha, o seu meio ambiente torna-se feroz, e feroz seria o castigo a sofrer se falhasse e caísse na água de chapa. Claro, nada o obriga a correr semelhante risco. Podia muito bem optar por se deixar ficar à beira da água, num ambiente calmo e agradável, rodeado de ar estival, de sol e terra estável. Mas as coisas não se passam assim: nesse instante fugaz em que se lança no ar, vive uma experiência que nunca seria sua se ficasse à beira da água.

Pela parte que me toca, prefiro ser esse homem a fazer parte dos que ficam sentados a vê-lo evoluir. É por isso que construo o Snark. Sou feito assim: apetece-me e pronto! A volta ao mundo significa passar por momentos especiais na vida. Pensem num momento e analisem-no. Aqui estou eu, um animalzinho chamado homem - um pedaço de matéria animada de vida, 15 quilos de carne, sangue, nervos, tendões, ossos e cérebro -, tudo tenro e delicado, susceptível de se magoar, falível e frágil. Se lançar um soco com o punho fechado ao focinho de um cavalo espantado, parto um osso da mão. Se puser a cabeça debaixo de água durante cinco minutos, afogo-me. Se cair de uma altura de seis metros, fico todo partido. Sou uma criatura sensível às temperaturas. Uns quantos graus abaixo de zero e caem-me os dedos e as orelhas. Uns quantos graus acima dos 40 e a minha pele greta e separa-se da carne queimada e em chaga. Um pouco mais de frio ou calor, e apagam-se em mim a vida e a luz. Uma gota de veneno injectada por uma víbora no meu corpo e deixo de me mover... para sempre. Se uma bala de espingarda me entrar na cabeça, mergulho na noite eterna.

Vulnerável e frágil, um pedaço de vida palpitante, com a consistência da geléia... sou só isso e nada mais. A minha volta estão as grandes forças naturais – ameaças colossais, titãs de destruição, monstros sem sentimentos que me ignoram como eu ignoro os grãos de areia que esmago ao caminhar. Não têm noção da minha existência, não me reconhecem, são inconscientes, desapiedados e amorais. São os ciclones e os tornados, os relâmpagos e os trovões, as marés e os maremotos, as correntes submarinas e as trombas de água, os grandes turbilhões e os remoinhos, os terramotos e os vulcões, as vagas que submergem os grandes navios, esmagando homens ou varrendo-os para o mar e para a morte - e esses monstros insensatos não reconhecem esta pequena criatura sensível, toda feita de nervos e debilida-des, a quem os homens chamam Jack London, que se reconhece como pessoa válida e como ser bastante superior.

Na confusão caótica causada pelo conflito destes enormes titãs destrutivos, tenho de encontrar o meu precário caminho. O pedaço de vida que sou exultará ao triunfar sobre eles. Na medida em que conseguir esquivar-se-lhes ou pô-los ao meu serviço, o pedaço de vida que sou imaginar-se-á como um deus. É bom dominar a tempestade e sentir-se divino. Atrevo-me a afirmar que, para uma porção finita de geléia palpitante, a sensação de partilhar dessa natureza superior é muito mais gloriosa do que a que sente um deus perante a sua divindade.

Estou perante o mar, o vento e as marés. Perante o mar, o vento e as marés do mundo inteiro. Estou perante o meio ambiente feroz. Estou perante uma harmonia difícil, que alcançarei para simples deleite da pequena vaidade latejante a que se resume o meu ser. Apetece-me. Sou feito assim. É a minha forma particular de soberba, e nada mais.

Além disso, há outro aspecto na viagem do Snark. Já que estou vivo, quero conhecer o mundo, não me contento com uma cidadezinha ou um vale. Pouco planeámos quanto a itinerário. Só uma coisa é certa: o nosso primeiro porto será Honolulu. A não ser por umas quantas vagas generalidades, não temos ideia alguma de qual será a escala a seguir ao Havai. Decidiremos quando estivermos próximos. De forma geral, sabemos que iremos vaguear pelos mares do Sul, visitaremos Samoa, a Nova Zelândia, a Tasmânia, a Austrália, a Nova Guiné, Bornéu e Samatra, e continuaremos, passando pelas Filipinas, até ao Japão. Depois seguiremos pela Coréia, China, índia, mar Vermelho e mar Mediterrâneo. Depois disso, a viagem torna-se tão vaga que não consigo descrevê-la, embora haja certas coisas que faremos de certeza: esperamos passar um a vários meses em cada país da Europa.

O Snark viajará à vela. A bordo teremos um motor a gasolina, mas só será usado em caso extremo, como em mar alteroso entre recifes e baixios, ou quando uma súbita acalmia numa corrente rápida tornar impotente um barco à vela. A mastreação será a de um brigue. Um brigue é um barco que não é bem um escaler, mas também não é uma escuna (1). Ultimamente tem-se concluído que o escaler é o ideal para viagens de cruzeiro. O brigue conserva as vantagens do escaler nesse aspecto e além disso consegue manter algumas das qualidades da escuna, em relação às velas. No entanto, o que aqui fica dito não pode ser tomado à letra, porque são só teorias na minha cabeça. Nunca velejei num brigue nem nunca vi nenhum, mas a ideia convence-me. Esperem até eu me fazer ao mar e depois poderei dizer-vos algo mais acerca das qualidades do brigue, como veleiro e como cruzeiro.

Como estava planeado, o Snark devia ter 12,9 metros pela Unha de água. Mas descobrimos que não ficava espaço para a casa de banho e por isso aumentámos-lhe o comprimento para 13,7 metros. A sua largura máxima são 4 metros e meio. Não tem cabina de convés nem fundo. A cabina principal mede 1 metro e 80 e a coberta, com uma escotilha à frente, só abre para duas escadas. O facto de não haver cabina a quebrar o corpo do convés dar-nos-á mais segurança no caso de vagas gigantescas se abaterem com todo o seu peso sobre o barco. Um poço do leme grande e espaçoso, afundado abaixo do convés, com amurada alta e escoamento automático, dará algum conforto às nossas horas de mau tempo.

Não haverá tripulação. Ou antes, a tripulação será constituída por mim, Charmian e Roscoe Vamos ser nós a executar tudo. Sozinhos, faremos a circum-navegação do globo. Quer cheguemos a bom porto, quer nos afundemos, faremos tudo sozinhos. Claro que haverá um cozinheiro e um grumete: não há necessidade de sermos nós a cozinhar, lavar a louça e pôr a mesa. Se quiséssemos fazer esse tipo de coisas, ficávamos em terra. Além disso, temos de manter turnos e comandar o barco. Acresce que tenho de me desempenhar da minha função de escritor para prover ao nosso sustento, à renovação das velas e do cordame, e à manutenção do Snark em perfeito estado de navegabilidade. Depois há também o rancho, onde os meus assalariados se encarregarão de fazer crescer a vinha, o pomar e as sebes.

Quando aumentámos o comprimento do Snark de forma a conseguir espaço para uma casa de banho, descobrimos que ela não ocupava tanta área como previsto, pelo que aproveitámos para instalar um motor de 70 cavalos, que nos dará uma velocidade de nove nós. Qual será o rio capaz de correr tanto assim?

Contamos fazer bastante navegação interior, possibilitada pelas pequenas dimensões do Snark. Quando penetrarmos pela costa, o barco não terá mastros e recorreremos ao motor. Passaremos meses nos canais da China e no rio Yang-Tsé, se obtivermos autorização do governo. Esse será um dos obstáculos das nossas incursões em terra - autorização governamental. Mas se a conseguirmos, nada nos impedirá de nos embrenharmos pelo interior.

Quando chegarmos ao Nilo, podemos seguir rio acima. Podemos percorrer o Danúbio até Viena, o Tamisa até Londres, e o Sena até Paris, atracando em frente do Quartier Latin com um cabo à popa, virada para Notre Dame e outro a proa, virada para a Morgue. Podemos sair do Mediterrâneo e passar do Saône para o Marne, pelo canal de Bourgogne, e do Marne entrar no Sena e segui-lo até Havre.

Depois de atravessarmos o Atlântico para os Estados Unidos, podemos subir o Hudson, cruzar o canal Erie, atravessar os Grandes Lagos, deixar o lago Michigan em Chicago, alcançar o Mississippi através do rio Illinois e pelo canal de ligação e descer o Mississippi até ao golfo do México. Depois ainda temos os grandes rios da América do Sul. Seremos grandes conhecedores da geografia quando voltarmos à Califórnia.

Quando se constrói uma casa, surgem sempre dúvidas; mas se gostarem desse desafio, aconselho-vos a construir um barco como o Snark. Pensem só na consumição provocada pelos pormenores. Veja-se o motor: qual é o melhor tipo de motor? A dois tempos, a três, a quatro? Até se me gretam os lábios de pronunciar tantas palavras esquisitas; tenho o cérebro massacrado por ideias ainda mais estranhas e desgastado pelas viagens feitas pelos domínios pedregosos de novos conceitos. Sistemas de ignição: magnética ou por bateria? Utilizamos pilhas secas ou baterias? Parece conveniente a bateria, mas necessita de um dínamo. Com que potência? E quando tivermos instalado uma bateria e um dínamo, é disparate não equipar o navio com luz eléctrica. Depois surge a discussão sobre quantas lâmpadas e de quantas velas. A ideia é esplêndida, mas a luz eléctrica exigirá uma bateria mais potente o que, por sua vez, requer um dínamo mais possante.

E já agora, por que não equiparmo-nos com um projector? Seria de extrema utilidade. Mas o projector consome tanta electricidade que, quando o ligarmos, rebentará com todas as outras luzes. Voltamos a percorrer o caminho espinhoso da busca de mais potência para a bateria e para o dínamo. Depois, quando finalmente resolvemos o problema, alguém pergunta: "E se o motor se avariar?" Aí ficamos sem acção. Há ainda as luzes laterais, a luz da bitácula da agulha de marear e a luz de ancoragem. Disso dependem as nossas vidas, por isso temos de equipar o barco com candeeiros a petróleo, por segurança.

Mas a questão do motor não termina aqui. É um motor potente. A bordo, somos dois homens fracos e uma mulher franzina. Puxar a âncora à mão dar-nos-ia cabo do coração e das costas. Tem de ser com o motor. Então surge o problema de como transportar a energia deste para o guincho da âncora. Quando isto se resolve, voltamos a distribuir o espaço disponível para a casa das máquinas, a cozinha, a casa de banho, a sala e a cabina, e começa tudo do princípio. E porque mudamos a posição do motor, envio um telegrama cheio de termos técnicos para os fabricantes em Nova Iorque, do género: Desistir junta de cotovelo, mudar mancai pressão segundo distância desde lado frente do volante para ficar frente cadaste da popa quinze por quinze centímetros.

Ponham-se a escolher os melhores lemes ou, se quiserem afligir-se com pormenores, tentem decidir entre esticar os brandais com cabo à moda antiga ou utilizar esticadores.

A bitácula deve ser colocada em frente do leme, no centro do barco ou mais para o lado? - só nisto temos matéria para grandes discussões. Depois há o problema da gasolina: precisaremos de cerca de quinhentos litros. Qual é a melhor forma de os armazenar e como abastecer o motor? E qual é o melhor extintor de incêndios? Ademais há o problema bicudo do barco salva-vidas e de como o arrumar. Posto isto, vem a questão do cozinheiro e do grumete, na qual nos vemos confrontados com possibilidades terríveis. E um barco pequeno e estaremos todos muito apertados. O problema dos criados, de que alguns se queixam em terra, não é nada, comparado com este. O certo é que seleccionámos um grumete e ficámos um pouco mais descansados, até que ele se apaixonou e se despediu.

Entretanto, como encontrar tempo para estudar a arte de navegar... quando uma pessoa se divide entre resolver estes problemas e ganhar dinheiro para os resolver? Nem Roscoe nem eu sabemos nada de navegação e o Verão já lá vai; partiremos dentro de pouco tempo, os problemas são cada vez mais complicados e os cofres estão vazios. Bom, de qualquer das formas, são precisos anos para aprender a marear e qualquer de nós já navegou. Se não tivermos tempo, levamos connosco os livros e os instrumentos e aprendemos a navegar no mar, entre São Francisco e o Havai.

Há um aspecto infeliz e preocupante na viagem do Snark. Roscoe, que será o meu co-navegador, é discípulo de Cyrus R. Teed. Ora Cyrus R. Teed tem uma cosmologia diferente da que é geralmente aceite. O meu amigo partilha das suas convicções, o que o leva a acreditar que a superfície da Terra é côncava e portanto vivemos no interior de uma esfera oca. Assim, embora nos preparemos para navegar num barco, o Snark, Roscoe viajará à volta do mundo pelo lado de dentro, enquanto eu viajarei pelo lado de fora. Falaremos disto depois e o mais certo é chegarmos a uma conclusão comum antes do termo da viagem. Tenho esperanças de o convencer a fazer a viagem pelo lado de fora, enquanto ele está igualmente convicto de que eu estarei dentro da Terra antes de regressarmos a São Francisco. Só não sei como vai fazer-me passar pela crosta terrestre, mas Roscoe é um homem cheio de recursos.

  1. S. - Outra vez o motor! Já que o comprámos e também temos dínamo e bateria, por que não encomendar um frigorífico? Gelo nos trópicos! Precisamos dele como de pão para a boca. Então venha de lá o frigorífico! Agora estou mergulhado na química. Doem-me os lábios, tenho a cabeça em água... como vou eu arranjar tempo para estudar navegação?

 

Uma coisa inconcebível e monstruosa

- Não olhes a despesas - disse eu a Roscoe. - A bordo do Snark temos de ter tudo da melhor qualidade. E não vamos preocupar-nos com a decoração. Para mim, tábuas de pinho simples são acabamento suficiente. Mas apostemos forte na construção. Que o Snark seja o mais estanque e forte dos barcos! Não importa quanto custe fazê-lo assim; vigia para que o façam estanque e forte enquanto eu continuo a escrever e a ganhar dinheiro para o pagar.

Foi o que fiz... o melhor que pude; porque o Snark consumia mais dinheiro do que aquele que eu conseguia ganhar. Aliás, de vez em quando tinha de pedir emprestado, para complementar os meus rendimentos. Ora pedia mil dólares, ora dois mil, ora cinco mil. E sempre a tratrbalhar, todos os dias, aplicando a totalidade dos ganhos na aventura. Também trabalhava aos domingos e não tive férias. Mas valia a pena. Sempre que pensava no Snark, concluía que valia a pena.

Veja bem, caro leitor, como o Snark é sólido: tem 13,7 metros pela linha de água. A reigada, 8 centímetros de grossura; o tabuado é de 7,5; as tábuas do convés têm uma espessura de mais de 6 centímetros; e em todo o madeirame não há um único remendo. Sei disso, porque encomendei madeiras especiais de Puget Sound. Depois, tem quatro compartimentos à prova de água, o que quer dizer que o seu calado é interrompido por três tabiques estanques. Desta forma, por maior que seja um rombo no casco, só um dos compartimentos se encherá de água.

Os outros três mantê-lo-ão a flutuar e, além disso, permitir-nos-ão calafetar o rombo. Estes compartimentos têm outra virtude: o último, mesmo junto à ré, está equipado com seis tanques que contêm mais de quatro mil litros de gasolina. Ora a gasolina é um produto muito perigoso para ser transportado no casco de um barco pequeno que vogue no mar alto. Mas quando os seis tanques estanques estão encerrados num compartimento hermeticamente fechado, isolado do resto do navio, o perigo é reduzido ao mínimo.

O Snark é um veleiro. Foi construído para velejar a maior parte do tempo. Mas por medida de precaução, como auxiliar da navegação, foi-lhe instalado um motor de 70 cavalos. É um motor bom e potente. Eu que o diga, que paguei para mo trazerem de Nova Iorque. Além disso, no convés, por cima do motor, há um guincho, uma coisa maravilhosa. Pesa centenas de quilos e não ocupa espaço no poço do leme. Bem vêem, seria ridículo içar a âncora à mão, quando temos um motor de 70 cavalos. Por isso instalámos o guincho, abastecendo-o com energia do motor através de um transmissor com peças feitas especialmente numa fundição de São Francisco.

O Snark foi concebido para ser confortável e nada se poupou a esse respeito. Por exemplo, tem uma casa de banho, pequena e compacta, é verdade, mas com todas as comodidades de uma casa de banho em terra. É um sonho admirável, feito de sistemas e aparelhos sofisticados, bombas, torneiras, alavancas e válvulas de descarga.

Durante a construção, aconteceu-me passar a noite acordado, a pensar nela. Depois há o barco salva-vidas e a chalupa. Amarrados ao convés, ocupam o pouco espaço que nos resta para fazermos exercício. Mas a verdade é que valem mais do que um seguro de vida; recomenda a prudência que, apesar de o Snark ser um barco forte e seguro, o salva-vidas seja também de qualidade. E o nosso é-o, é mesmo fora de série. O custo previsto era de 150 dólares e quando fui pagar a conta pediram-me 395 dólares, o que comprova a sua excelência.

Podia continuar por aí fora, relatando as várias virtudes e méritos do Snark, mas abstenho-me. Já o elogiei o suficiente e fi-lo com um propósito, como se verá antes de eu terminar este capítulo, cujo título façam o favor de recordar: "Uma coisa inconcebível e monstruosa". Estava planeado que o Snark zarpasse a 1 de Outubro de 1906. Não ter isto acontecido é uma coisa inconcebível e monstruosa. Não havia razão válida para tal, a não ser o facto de não estar pronto a tempo, e não havia razão concebível para isso suceder. Primeiro prometeram-mo para 1 de Novembro, depois para dia 15, a seguir para 1 de Dezembro; e mesmo assim não ficou pronto. A 1 de Dezembro, Charmian e eu deixámos a bela e salubre paisagem de Sonoma e viemos viver para este lugar opressivo que é a cidade... mas não por muito tempo, nem pensar nisso!, só por duas semanas, porque partiríamos a 15 de Dezembro. Pensávamos que assim fosse, porque Roscoe tinha-nos informado desta data e foi por conselho seu que viemos para a cidade duas semanas antes. Infelizmente, passaram as duas semanas, depois quatro, seis, oito e estávamos cada vez mais longe de embarcar. - Explique-se! - Quem?... Eu? Não sei o que se passou. Esta é a única coisa na vida que não sei explicar. Não há explicação, porque se houvesse, dava-a. Eu, que tenho sempre resposta pronta para tudo, confesso a minha impotência para esclarecer a razão por que o Snark não estava pronto. Como já disse, e como convém repetir, era uma coisa inconcebível e monstruosa.

As oito semanas converteram-se em dezasseis, até que um dia Roscoe, para nos animar, disse:

- Podem usar a minha cabeça como bola de futebol se não partirmos antes de 1 de Abril.

Duas semanas depois, acrescentou:

- Ando a treinar a cabeça para esse jogo de futebol.

- Não faz mal - dissemos um para o outro, Charmian e eu - porque, no fim, o Snark vai ficar um barco maravilhoso.

E a partir daí, mais por encorajamento mútuo, começávamos a enumerar as muitas virtudes e excelências do barco. Além disso, contraí novos empréstimos, empenhei-me a escrever com mais ardor e frequência e recusei heroicamente o descanso dos domingos, não passeei pelas montanhas com os meus amigos. Estava a construir um barco e tinha de ser um barco a sério, um barco com maiúsculas; não queria olhar a despesas, desde que ficasse como eu queria.

Ah! e o Snark ainda tinha outra superioridade, que quero gabar aqui, e que era a proa. Nenhuma onda a conseguiria cobrir. Esta proa ri-se do mar, enfrenta-o em desafio, tenho a certeza. E além disso é uma beleza, com linhas de sonho! Aposto que nunca houve barco com uma proa mais elegante e ao mesmo tempo mais funcional. Foi construída para arrostar com as maiores tempestades. Tocar nesta proa é como pousar a mão na face cósmica das coisas. Ao observá-la, percebe-se que não se olhou a despesas para a fabricar. E sempre que a nossa partida era adiada ou sobrevinha nova despesa, pensávamos naquela proa esplêndida e conformávamo-nos.

O Snark é um barco pequeno. Quando calculei uns generosos sete mil dólares de custos, não estava a ser apenas generoso, mas rigoroso. Já construí celeiros e casas e sei bem que essas coisas têm sempre a característica de ultrapassar as estimativas de custo. Já estava familiarizado com isso, quando calculei o custo provável da construção do Snark. Bem, custou 30 mil. Não me perguntem como, por favor. É verdade, assinei os cheques e reuni o dinheiro necessário. Claro que não há explicação possível. É uma coisa inconcebível e monstruosa, e concordareis comigo, estou certo, antes de eu completar a história.

E depois houve a questão dos atrasos. Conheci 47 tipos diferentes de especialistas e 115 firmas distintas. Nenhum especialista nem nenhuma firma me entregou fosse o que fosse na altura combinada, nem nunca se apresentou a tempo e horas, a não ser para receber pagamentos ou cobrar facturas. Os operários juravam-me a pés juntos que entregariam determinada obra numa data específica; em regra, depois de tais promessas, raramente ultrapassavam os três meses de atraso. Era assim que se passavam as coisas! e Charmían e eu consolávamo-nos um ao outro comentando como era esplêndido o Snark, como era forte e estanque; além disso, metíamo-nos num bote, remávamos até ele, maravilhando-nos com a sua proa incrivelmente elegante. Eu dizia a Charmian:

- Pensa numa tempestade ao largo da costa da China e o Snark a avançar com a sua esplêndida proa pela tormenta adentro. Não deixará passar nem uma gota de água, ficará seco que nem uma pena, e nós estaremos lá em baixota jogar whist, à espera que passe o temporal.

E Charmian apertava-me a mão entusiasmada, exclamando:

- Vale a pena suportarmos tudo... os atrasos, as despesas, as preocupações e tudo o resto. Oh, que barco maravilhoso!

Sempre que eu olhava para a proa do Snark ou pensava nos compartimentos estanques, sentia-me encorajado. No entanto, era o único. Os meus amigos começaram a apostar comigo, pondo em dúvida as várias datas de partida do Snark. Mr. Wiget, que ficara encarregado do rancho de Sonoma, foi o primeiro a receber o valor da aposta, no dia de Ano Novo de 1907. Depois, sucederam-se em profusão as apostas. Os meus amigos rodeavam-me como um bando de harpias, apostando contra todas as datas por mim marcadas. Eu, impetuoso e determinado, apostava, apostava e continuava a apostar; e pagava a todos. As minhas amigas tornaram-se tão afoitas que até as que nunca na vida tinham apostado começaram a apostar comigo. Também lhes paguei.

- Não faz mal - dizia-me Charmian. - Pensa só naquela proa a singrar pelos mares da China!

- Como vêem - comentei para os meus amigos, quando paguei a última série de apostas - não olho a incómodos nem a despesas para fazer do Snark a embarcação mais valorosa que alguma vez transpôs a Golden Gate... todo este atraso é por causa disso.

Entretanto, os jornais e as editoras com quem eu assinara contratos assediavam-me, pedindo-me explicações. Mas como havia de lhes explicar, quando eu próprio não encontrava explicações, quando ninguém, nem mesmo Roscoe, era capaz de mas dar? Os jornais começaram a troçar de mim e a publicar versos sobre a partida do Snark, com refrães do género "Ainda não está mas falta pouco." Charmian animava-me falando-me da proa e eu ia ao banco e pedia emprestados mais 5000 dólares. Porém, nada compensava a espera. Um crítico meu amigo escreveu um artigo a ridicularizar-me, a mim e a tudo o que eu tinha feito ou viria a fazer; combinara com o jornal só editar o texto depois da minha partida. Mas publicaram-no quando eu ainda estava em terra e desde essa altura não parou de tentar justificar-se perante mim.

 

E o tempo continuava a passar. Uma coisa se tornava evidente: era impossível terminar o Snark em São Francisco. Estavam a construí-lo havia tanto tempo que começava a partir-se e a deteriorar-se. Aliás, tinha chegado à fase em que se desfazia tão depressa que não havia tempo para completar as reparações. Era tema de chacota, ninguém levava o projecto a sério e muito menos os homens do estaleiro. Anunciei que zarpávamos assim mesmo e que terminaríamos a construção em Honolulu. E logo naquele dia se detectou uma brecha que teve de ser calafetada antes de partirmos. Tentei colocar o barco no trem de transporte mas, antes de o conseguir, ficou preso entre duas barcaças e sofreu forte amolgadela. Lá consegui içá-lo mas, a meio caminho, o trem deu de si e deixou-o cair, de popa, na lama.

Foi um grande sarilho. Tivemos de chamar salvadores em vez de construtores. Há duas marés todas as 24 horas: em cada maré alta, fosse de noite ou de dia, e durante uma semana, dois rebocadores a vapor puxaram pelo Snark para, o safar. Mas ele estava preso, caído entre os varões do trem e pousado sobre a ré. Depois, sem conseguir dar solução ao desastre, começámos a usar as peças e engrenagens feitas na fundição local, de forma a fornecer energia do motor ao guincho. Era a primeira vez que tentávamos usá-lo. As peças tinham folgas e estouraram, queimando as transmissões e avariando o guincho. A seguir foi a vez de se avariar o motor de 70 cavalos.

Tinha vindo de Nova Iorque, juntamente com a placa de fixação, que tinha uma série de falhas; o motor separou-se da base avariada, empinou-se no ar, desmancharam-se todas as conexões e pontos de junção e caiu de lado. Entretanto, o Snark continuou preso entre os varões desfeitos, enquanto os dois rebocadores se esfaliavam a puxar por ele, em vão.

- Não te importes - disse-me Charmian. - Pensa como é forte e estanque o nosso barco.

- Sim, e que bela proa tem! - respondi.

Animando-nos assim, redobrámos esforços. O motor avariado foi fixado de novo à placa enferrujada; as peças fundidas e as rodas dentadas da transmissão foram desmontadas e consertadas algures - com o intuito de levar tudo para Honolulu, onde seria possível uma boa reparação e novas peças.

Em tempos imemoriais, o casco do Snark tinha recebido uma camada de tinta branca. Vistos a uma luz intensa, ainda eram patentes leves vestígios. Por dentro, nunca fora pintado. Pelo contrário, estava coberto de uma espessa camada de gordura e fuligem de tabaco deixados pelos mecânicos que se tinham ocupado dele. Tudo bem, pensámos; a gordura e a porcaria podiam desaparecer com um trabalho de plaina e, mais tarde, quando chegássemos a Honolulu, o Snark podia ser pintado ao mesmo tempo que o reconstruíssem.

A força de músculos e suor, arrastámos o barco do meio dos varões partidos e colocámo-lo no cais de Oakland City. Mandámos vir de casa, por camião, toda a nossa bagagem pessoal, os livros e os cobertores. E ao mesmo tempo, tudo o mais entrou a bordo, numa torrente confusa: madeira e carvão, água e recipientes para água, legumes, provisões, óleo, o salva-vidas e o bote, todos os nossos amigos, todos os amigos dos nossos amigos e os que se diziam amigos deles, para não falar de alguns dos amigos dos amigos dos amigos da nossa tripulação. Também se assinalou a presença de jornalistas e fotógrafos, estranhos e doidos varridos e, finalmente, a coroar tudo isto, nuvens de pó de carvão vindas do cais.

Devíamos zarpar às onze horas de domingo e já passava de meio da tarde. A multidão apinhava-se no cais e a poeira de carvão tornava-se mais densa. Num dos bolsos eu tinha o livro de cheques, uma caneta, um datador e um mata-borrão; noutro, trazia um ou dois mil dólares em papel e moedas. Pronto a receber os credores, com trocos para as dívidas pequenas e cheques para as grandes, esperava que Roscoe chegasse com as contas das 115 firmas que há tantos meses me retinham. Foi então que...

Foi então que mais uma vez aconteceu uma coisa inconcebível e monstruosa. Antes de Roscoe, chegou outro homem, um oficial de diligências. Afixou um aviso no mastro grande do Snark, de forma que todos os que estavam no cais ficaram a saber que o barco estava apreendido por dívidas. O oficial de diligências deixou um velhote baixinho a tomar conta do Snark e foi-se embora. Eu já não tinha poderes sobre o barco e muito menos sobre a sua bela proa, cujo dono e senhor era agora o velhote baixinho. Fiquei a saber que estava a pagar-lhe três dólares por dia para cumprir essa função. Também me informaram do nome do homem que tinha dado origem à apreensão do Snark. A dívida era de 232 dólares e o acto praticado estava à altura do dono de um nome daqueles: Sellers.

Mas quem era esse Sellers? Analisei o meu livro de cheques e verifiquei que, duas semanas antes, lhe passara um cheque de 500 dólares. Por outros canhotos vi que, durante os muitos meses de construção do Snark, lhe pagara vários milhares de dólares. Então por que razão não tentara ele cobrar a miserável quantia, quanto mais não fosse por simples decência, em vez de mandar apreender o barco? Meti as mãos aos bolsos e num deles encontrei o livro de cheques, o datador e a caneta, e no outro o dinheiro em notas e moedas. Tinha com que pagar aquela conta ridícula e muitas outras... por que não tinha ele aparecido para receber? Não havia explicação; era simplesmente uma coisa inconcebível e monstruosa.

 

Para complicar tudo, a apreensão do Snark dera-se num domingo ao fim da tarde; e embora eu tenha mandado advogados e solicitadores a vários tribunais de Oakland e São Francisco, não foi possível encontrar nenhum juiz ou oficial de diligências, nem Mr. Sellers, nem o advogado de Mr. Sellers. Todos tinham ido passar o fim-de-semana fora. E portanto o Snark não zarpou às onze horas de domingo. O velho baixinho continuava em funções e disse que não nos deixava partir. Charmian e eu caminhámos pelo cais em frente e consolámo-nos a observar a bela proa e a pensar em todas as borrascas e tufões que seria capaz de enfrentar.

- Uma pulhice típica de burgueses! - comentei com ela, referindo-me a Mr. Sellers e à apreensão. - Pânico de pequeno comerciante! Mas não faz mal, as nossas preocupações terminarão assim que nos afastarmos daqui e estivermos no mar alto.

Por fim lá partimos, na manhã de terça-feira, 23 de Abril de 1907. Foi uma partida coxa, confesso. Tivemos de içar a âncora à mão, porque a transmissão estava avariada.

Além disso, o que restava do motor de 70 cavalos fora lançado para o fundo do Snark, a servir de lastro. Mas que importavam tais insignificâncias? Podiam ser consertadas em Honolulu e entretanto... pensem no resto do barco, que era magnífico! É verdade que o motor do bote não pegou e que o salva-vidas metia água por todos os lados; mas não faziam parte do Snark propriamente dito, eram meros acessórios. O que contava eram os compartimentos estanques, o madeirame sólido, sem remendos, os aparelhos da casa de banho - esses é que faziam parte do Snark. E lá estava ela, dominando tudo, a nobre proa, a fender os ares!

Transpusemos a Golden Gate e apontámos para o sul, para a zona do Pacífico onde esperávamos encontrar os alísios de nordeste. As nossas atribulações começaram logo ali. Eu tinha pensado que, para uma viagem como a do a juventude era um elemento indispensável. Por isso contratara três jovens - o mecânico, o cozinheiro e o grumete. Só um terço dos meus cálculos estava certo. Esquecera-me de calcular que os jovens enjoam e já iam dois em mau estado, o cozinheiro e o grumete. Foram logo estender-se nos respectivos beliches e, durante uma semana, não serviram para mais nada. Depreenda-se, por aquilo que relato, que prescindimos das refeições quentes com que contáramos e que a ordem e a limpeza deixaram muito a desejar. Mas nada disso teve grande importância, porque depressa descobrimos que nos tinham fornecido um caixote de laranjas congeladas; que a caixa de maçãs estava cheia de mofo e a apodrecer; que a grade de couves, já pouco fresca quando no-la entregaram, teve de ser lançada ao mar; que alguém entornara o querosene por cima das cenouras, e que os nabos eram fibrosos e as beterrabas podres, ao passo que os toros de madeira não ardiam e o carvão, entregue em sacos de batata esgarçados, entornara-se por todo o convés e caía ao mar pelos embornais. Mas que interessava isso? Eram coisas insignificantes. O importante era o barco... e esse era perfeito, não era? Passeei pelo convés e num minuto contei catorze emendas nas belas pranchas encomendadas especialmente de Puget Sound para virem sem remendos. Além disso, o convés deixava passar água, e muita. Inundou o beliche de Roscoe, obrigando-o a ir dormir para outro lado, e estragou as ferramentas na casa das máquinas, para não falar das provisões que fez apodrecer na cozinha. Também o costado metia água, assim como o fundo, e tivemos que usar a bomba diariamente, para manter o barco a flutuar. O chão da cozinha está meio metro acima do forro interior do Snark; no entanto, já me aconteceu ir à cozinha preparar qualquer coisa para comer e molhar-me até aos joelhos, chapinhando na água, quatro horas depois da última bombagem.

E quanto àqueles magníficos compartimentos estanques que custaram tanto dinheiro e levaram tanto tempo a fazer... bem, afinal não eram nada estanques.

A água passava livremente de um para outro; além disso, um forte cheiro a gasolina que vem do compartimento do fundo leva-me a suspeitar que um ou mais dos seis reservatórios lá armazenados tem um furo. Os tanques pingam e não estão hermeticamente fechados no respectivo compartimento. Depois a casa de banho, com as suas bombas de água, alavancas e válvulas de descarga... avariou-se nas primeiras 24 horas. Poderosas alavancas de aço partiram-se na minha mão quando tentei pôr a bomba de descarga a funcionar. A casa de banho foi a parte do Snark que se deteriorou mais depressa.

E os componentes de aço, sem excepção, eram todos defeituosos, tanto a placa de fixação, expedida de Nova Iorque, como as peças fundidas e as engrenagens do guincho, encomendadas em São Francisco. E finalmente o ferro fundido utilizado no poleame desfez-se em bocados ao primeiro puxão. Ferro fundido, vejam bem, e quebrou-se como se fosse macarrão!

Depois partiu-se a cachola da carangueja da vela grande. Aplicámos-lhe o da mezena e ao fim de quinze minutos aconteceu o mesmo. Note-se que estávamos inteiramente dependentes desta última vela em caso de tempestade. Neste momento o Snark arrasta a sua vela grande como uma asa partida, porque a cachola foi substituída por uma amarração improvisada. Será que conseguiremos encontrar ferro de boa qualidade em Honolulu?

Os homens atraiçoaram-nos e mandaram-nos para o mar num autêntico passador, mas o Senhor das alturas deve ter-nos em boa conta, porque deu-nos bom tempo, o que nos permitiu aprender a dar à bomba todos os dias para nos mantermos à tona da água e termos mais confiança num palito de dentes do que nas peças de ferro maciço que trazíamos a bordo. A medida que aumentavam as nossas dúvidas sobre a solidez e qualidade do Snark, Charmian e eu depositávamos cada vez mais fé na sua maravilhosa proa. Não nos restava mais nada em que confiar. Sabíamos que tudo aquilo era uma coisa inconcebível e monstruosa, mas pelo menos a proa era sólida. Até que, numa noite, tivemos de pôr-nos de capa.

Como descrever a manobra? Em primeiro lugar, para os menos entendidos, convém explicar: pôr-se de capa consiste em recolher o pano da vela em doses comedidas e bem calculadas, de forma a obrigar a embarcação a aproar ao vento. Quando o vento é muito forte ou o mar muito picado, um barco do tamanho do Snark pode manter-se assim com facilidade, sem ser preciso mais manobras no convés. Ninguém precisa de se mexer e não vale a pena estar de vigia. Todos descem e vão dormir ou jogar whist.

Navegávamos ao sabor de uma leve tempestade de Verão quando recomendei a Roscoe que executasse a manobra. Anoitecia, eu tinha estado quase todo o dia ao leme e todos os marinheiros (Roscoe, Bert e Charmian) se sentiam cansados, ao passo que os restantes tripulantes, tomados de enjoo, se mantinham de cama. Já tínhamos posto dois rizes na vela grande. Arreámos a giba e o estai e metemos um riz na traquete. A mezena também foi arreada. Nesse momento, a retranca da traquete mergulhou na vaga e partiu-se. Comecei a orçar para tomar a direcção contrária ao vento. O Snark estava à rola e de través e continuava nesse movimento perigoso, quase se afundando no bojo de cada vaga. Eu segurava-me com mais força ao leme para tentar orçar, mas o barco prosseguia, galeando sem se libertar.

(À rola e de través, caro leitor, é o local mais perigoso para um barco.) Puxei a barra a fundo, mas nada adiantou. Oito graus era o máximo que conseguia orçar em relação ao rumo. Então mandei Roscoe e Bert à escota grande, mas o Snark continuava de través e à rola, com a amurada ora de um lado ora do outro dentro de água.

Mais uma vez nos acontecia uma coisa inconcebível e monstruosa. Era grotesco, impossível! Recusava-me a acreditar. Com dois rízes na vela grande e o estai rizado, o Snark recusava-se a orçar. Caçámos a grande ao máximo e o rumo do barco não se alterou de um décimo de grau. Folgámos a grande toda, sem resultado. Içámos uma vela de capa na mezena e arriámos a grande. Nada! O Snark continuava a mergulhar nas ondas. A sua bela proa recusava erguer-se para enfrentar o vento. Depois, como último recurso, arriámos o estai. Assim, o único bocado de pano que ficou foi a vela de capa na mezena. Seria a única possibilidade de o fazer aproar. Podem não acreditar se vos disser que nem assim aproou, mas realmente foi o que aconteceu. E digo isto porque vi com os meus próprios olhos, se não também não acreditava.

É inacreditável, mas é verdade, sou testemunha!

Ora digam-me lá, caros leitores, o que fariam se estivessem num barco pequeno, atravessado ao mar, com uma vela de capa na popa que nem conseguia aproar ao vento? Lançavam a âncora flutuante! Foi isso que fizemos. Tínhamos uma dessas patenteadas, feita por encomenda e com garantia de ser insubmergível. Imaginem um círculo de aço feito para manter aberto um grande saco de lona em forma de cone: é a âncora flutuante. Bom, fixámo-la solidamente a um cabo atado à proa do Snark e lançámo-la borda fora. Afundou-se imediatamente. Felizmente estava presa a um cabo de segurança, de forma que a suspendemos. Prendemos-lhe uma tábua para servir de bóia e voltámos a lançá-la. Desta vez flutuou, o cabo que o prendia à proa esticou-se, a vela da mezena quase virou a proa ao vento mas, em vez de seguir esse movimento, o barco continuou no mesmo rumo, avançando com a âncora a reboque, sempre a afocinhar nas ondas. E pronto, nada a fazer! Até recolhemos a vela de capa nà mezena e içámos toda a mezena. Mesmo com a mezena) toda caçada, continuávamos de través e a rolar, com á âncora flutuante pela popa. Acreditem se quiserem; só vos posso jurar que foi mesmo assim.

Julgai como quiserdes. Qual de vós já ouviu falar de um veleiro que não se põe de capa... nem com uma âncora flutuante a ajudar? Na minha fraca experiência como marinheiro, nunca ouvi tal coisa. E fiquei no convés, a observar atónito essa coisa inconcebível e monstruosa: o Snark não aproava ao vento! A noite caíra, tempestuosa, com um luar intermitente. Pairava uma humidade no ar e a barlavento pressentia-se chuva da grossa; o mar continuava encapelado, frio e cruel ao luar, enquanto o Snark prosseguia impassível na sua rota, aos tropeções nas ondas. Recolhemos a âncora flutuante e a mezena, içámos o estai de entre mastros rizado, corremos com o tempo e descemos... não para comer uma refeição quente, como merecíamos, mas para patinar na porcaria viscosa que cobria o chão da cabina, onde jaziam o cozinheiro e o grumete, prostrados como mortos nos seus beliches. Atirámo-nos para os nossos, sem nos despir, para podermos acudir lá acima em caso de necessidade, enquanto escutávamos o chocalhar da água que invadia o fundo e na cozinha nos chegava aos joelhos. No hohemian Club de São Francisco encontram-se enticos lobos do mar. Sei, porque ouvi-os comentar cerca do Snark enquanto era construído. Ora a única coisa que criticavam - e nisso estavam todos de acordo – era que nunca seria capaz de navegar bem com muito vento e vaga à popa arrasada. E explicavam enigmaticamente: "É por causa daquelas linhas, a maneira como foi desenhada é defeituosa. Nunca conseguirá avançar depressa, pronto!" Bom, muito gostava eu de ter comigo naquela noite esses marinheiros de água doce do clube, para verem como o seu parecer unânime e decisivo estava completa-mente errado. O Snark não conseguia navegar à popa arrasada? Deixem-me rir! Era a única coisa que fazia na perfeição.

Navegava com a âncora flutuante pela popa e a mezena toda caçada à ré. Neste momento, enquanto escrevo, avançamos a uma velocidade de seis nós, com alísios de Nordeste.

Mar grosso pela popa. Não está ninguém ao leme. A roda do leme nem está amarrada, só um pequeno toque para orçar. Para ser exacto, o vento é nordeste; a mezena do Snark está arriada, a grande a estibordo, as velas de proa todas caçadas e o rumo é de sul-sudoeste. E no entanto, marinheiros que há 40 anos velejam por estes mares garantem que nenhum barco pode navegar à popa sem ninguém no leme. Chamar-me-ão mentiroso quando lerem estas linhas, que foi o que chamaram ao capitão Slocum quando ele disse o mesmo do Spray.

Quanto ao que será do Snark no futuro, nada sei, não posso prever. Se tivesse o dinheiro ou o crédito necessários, construía outro Snark capaz de navegar à bolina.

Mas os meus recursos chegaram ao fim, tenho de me contentar com este se não quiser desistir... e desistir é que eu não posso. Por isso acho que vou ter de me habituar a fazê-lo pôr-se de capa pela ré. Estou à espera da próxima borrasca para ver como será. Acho que é possível, tudo depende de como a popa se comporte frente ao mar.

Quem sabe se, numa manhã desabrida no mar da China, um capitão experimentado assistirá, sem querer acreditar, ao espectáculo incrível de um barco pequeno e invulgar, muito parecido com o Snark, a pôr-se de capa com a ré contra o vento a proteger-se da borrasca?

  1. S. - Ao regressar à Califórnia depois da viagem, soube que o Snark só media 13,1 na linha de água, em vez de 13,7- Isto porque o construtor não se entendia muito bem com a fita métrica e com a régua de carpinteiro.

 

Aventura

Não, a aventura não morreu, apesar da máquina a vapor e de Thomas Cook & Son. Quando anunciei o projecto do Snark, apareceu-me uma legião de homens novos "dados a viajar". E de mulheres também... isto sem falar dos homens e mulheres mais velhos que se ofereceram para me acompanhar. Entre os meus amigos pessoais, pelo menos seis lamentaram ter acabado de casar ou estar em vias de o fazer; e sei de um casamento, pelo menos, que quase não se celebrou por causa do Snark.

A caixa de correio estava sempre a abarrotar de cartas de candidatos que se sentiam sufocar nas "cidades sobrepo-voadas" e depressa me apercebi de que um Ulisses do século XX necessitava de uma série de estenógrafos para decifrar a correspondência antes de se fazer ao mar. Não, não há dúvida que a aventura não morreu.,, pelo menos enquanto se escreverem cartas como esta: "Não duvido que, ao ler esta súplica do fundo da alma de uma desconhecida a viver na cidade de Nova Iorque," etc; e quando se fica a saber, umas linhas mais adiante, que essa desconhecida só pesa 40 quilos, quer ser grumete e "anseia por conhecer outros países."

Um "interesse profundo pela geografia" era a razão apresentada por outro correspondente para explicar a sede de viajar que sentia dentro de si; e outro escreveu:

"Sou perseguido por um maldito e constante desejo de nunca estar muito tempo no mesmo sítio e por isso lhe escrevo". Mas o mais curioso foi o fulano que queria ir connosco porque tinha bichos-carpinteiros.

Havia os que me escreviam anonimamente, referindo nomes de amigos e apresentando os atributos desses amigos; mas para mim essa era uma atitude um tanto obscura e nunca aprofundei o assunto.

Com duas ou três excepções, as centenas de pessoas que se apresentaram como candidatos a tripulantes pareceram-me muito sérias. Muitas enviaram fotografias. Noventa por cento ofereceram-se para exercer qualquer função e noventa e nove por cento prestaram-se a trabalhar sem salário. "Ao pensar na viagem do Snark", dizia um, "e apesar dos perigos inerentes, a única pretensão a que aspiro é a de acompanhá-lo (em qualquer posto que seja necessário)." E aqui vem-me à ideia aquele jovem que "tinha 17 anos e ambições" e que, no fim da missiva, pedia encarecidamente: "Mas, por favor, não publique isto em jornais ou revistas." Muito diferente era a que afirmava: "Estou disposto a trabalhar incansavelmente sem exigir remuneração." Quase todos queriam que lhes telegrafasse, a cobrar no destino, a confirmação de que eram aceites; e muitos ofereceram-se para pagar uma caução como garantia de que apareceriam na data do embarque.

Havia os que tinham uma ideia muito vaga dos trabalhos a executar no Snark, como por exemplo o que escreveu: "Tomo a liberdade de lhe escrever para saber se há alguma possibilidade de ser incluído como tripulante para fazer desenhos e ilustrações." Alguns, sem noção de como é preciso estar activo num barco como o Snark, ofereciam-se para servir, como disse um deles, "como assistente no arquivo de materiais recolhidos para livros e romances." É o que dá uma pessoa ser prolixa!

Uma das cartas dizia: "Permita-me expor as minhas aptidões para a função: sou órfão e vivo com um tio que é socialista revolucionário convicto e que afirma que um homem que não tenha o gosto da aventura é um farrapo humano." Outra: "Sei nadar um pouco, embora não pratique os estilos recentes. Mas mais importante que as novas modas é o facto de me sentir bem na água." "Se me entregassem um barco à vela, levá-lo-ia onde quisesse," era a qualificação apresentada por um terceiro... bem melhor do que a que se segue: "Também já tenho assistido à descarga dos barcos de pesca." Mas provavelmente a que mais mérito tem é esta, que transmite com subtileza um profundo conhecimento do mundo e da vida: "A minha idade, em anos, é de 22."

Depois havia as cartas simples, directas e francas, sem adornos, de rapazes novos, com alguma dificuldade em exprimir-se, é certo, mas ansiando por participar na viagem. Eram as ofertas mais difíceis de recusar e sempre que o fazia tinha a sensação de ofender aqueles jovens. Eram tão sinceros, tinham tanta vontade de ir connosco! "Tenho 16 anos mas sou crescido para a idade", dizia um. E outro: "Tenho 17 anos mas sou alto e saudável." "Sou tão forte como a média dos rapazes da minha idade, pelo menos," dizia um, que devia ser franzino. "O trabalho não me mete medo, seja de que espécie for," declaravam muitos, ao passo que um em particular, sem dúvida para me aliciar, afirmava, acenando-me com custos reduzidos: "Posso pagar a minha deslocação até às costas do Pacífico, de modo que nesse aspecto não terá de se preocupar." "Aquilo que eu mais quero na vida é dar a volta ao mundo," informava um, entre várias centenas com o mesmo anseio. "Ninguém quer saber do meu paradeiro," era a nota patética transmitida por outro. Um enviou uma fotografia e, referindo-se-lhe, dizia: "Sou um tipo com aspecto pacato, mas isso não quer dizer nada." Espero que tudo corra bem ao rapaz que escreveu o seguinte: "Tenho 19 anos, mas sou bastante pequeno e portanto não ocuparei muito espaço, embora seja rijo que nem um pêro." Depois havia um candidato de 13 anos que nos encantou, a Charmían e a mim, e que tivemos muita pena de não poder recrutar.

Mas não se pense que a maior parte dos voluntários eram crianças; pelo contrário, estas eram uma proporção ínfima. Havia homens e mulheres de todas as profissões ofereceram-se em grande quantidade médicos, cirurgiões e dentistas e, como todos os das profissões liberais, sem retribuição, dispostos a exercer qualquer função e até a pagar o privilégio de nos serem prestáveis.

Compositores e jornalistas, esses eram mais que muitos, para não falar dos mordomos, chefes de mesa e criados com experiência. Os engenheiros civis também se interessaram pela viagem; uma grande quantidade de "damas" de companhia dispunha-se a ocupar-se de Charmian, enquanto eu era inundado com propostas de candidatos a meus secretários particulares. Muitos estudantes liceais e universitários gostariam imenso de nos acompanhar e ofereceram-se como candidatos operários de todas as especialidades, sobretudo maquinistas, electricistas e mecânicos. Surpreendeu-me a quantidade de homens de leis que, trabalhando em escritórios poeirentos, eram sensíveis ao apelo da aventura; e ainda mais com o número de velhos comandantes reformados ainda sob o encanto do mar. Vários jovens, com heranças de milhões em perspectiva, dariam tudo pela aventura, da mesma forma que vários inspectores escolares.

Queriam ir connosco pais e filhos, maridos e mulheres, para não falar da jovem dactilógrafa que pediu: "Escreva Mediatamente se precisar de mim. Apanharei o primeiro comboio e levarei a máquina de escrever comigo." Mas o melhor de todos foi este... observem a forma delicada como incluiu a mulher na proposta: "Pensei em redigir estas linhas para lhe perguntar se por acaso será possível acompanhá-lo na viagem. Tenho 24 anos, sou casado e não tenho dinheiro, pelo que um cruzeiro destes nos conviria sobremaneira."

Se pensarmos bem, para o comum das pessoas é bastante difícil escrever uma missiva em que honestamente refiram os seus méritos. Um dos meus correspondentes estava tão atrapalhado que começou a carta com as palavras "Esta é uma tarefa complicada"; e, depois de tentar, em vão, descrever os atributos pessoais, terminou com "É muito difícil falar sobre si próprio." No entanto, houve um que não se poupou a auto-elogios e concluiu afirmando que lhe dera muito prazer redigir aquela carta.

"Ora imagine o seguinte: o seu grumete sabe tratar do motor e repará-lo quando se avariar. Suponha que ele é capaz de o substituir à roda do leme, entende de carpintaria e é bom mecânico. Suponha que é forte, saudável e dedicado ao trabalho. Não preferia ser servido por ele do que por um garoto que enjoe com os balanços do mar e só saiba lavar pratos?" Eram ofertas deste género que eu detestava recusar. Quem a escreveu foi um homem que estava nos Estados Unidos havia dois anos apenas, aprendera inglês sozinho e, como dizia, "Não quero ir consigo para ganhar dinheiro, mas para aprender e ver coisas novas." Na altura em que me escreveu era desenhador numa das grandes empresas fabricantes de motores; já andara no mar e estava habituado à rotina do manejo de barcos pequenos.

"Tenho um bom emprego, mas prefiro viajar," escrevia outro. "Quanto a salário, olhe para mim, e se vir que mereço um ou dois dólares, tudo bem; em caso negativo, não se fala mais nisso. Quanto a honestidade e carácter, terei todo o gosto em apresentar-lhe os meus patrões. Nunca bebo, não fumo, mas devo confessar que, quando tiver um pouco mais de experiência, quero aventurar-me na escrita."

"Asseguro-lhe que sou de absoluta confiança, mas acho aborrecidas as pessoas como eu." O homem que escreveu estas linhas deu-me que pensar e ainda estou para saber se me considera aborrecido ou se não era isso que queria dizer.

"Já passei por períodos melhores do que aquele por que passo agora," escreveu um velho marinheiro, "embora também já tenha passado por outros bem piores."

Mas a disposição para o sacrifício por parte do homem que escreveu o que se segue foi tão comovente que não pude aceitá-la: "Tenho pais e irmãos, amigos queridos e uma posição invejável e no entanto sacrificar-me-ei para o acompanhar."

Outro voluntário cujo contributo nunca poderia aceitar era um jovem exigente que, para me fazer ver como seria importante dar-lhe uma oportunidade, salientava que "seria impraticável eu embarcar num barco normal, fosse ele grande ou pequeno, porque teria de confraternizar e viver com marinheiros vulgares o que, por norma, não é um modo de vida decente."

Depois havia um jovem de 26 anos, que "passara por uma infinidade de emoções humanas" e fizera "de tudo, desde cozinheiro a estudante na Universidade de Stan-ford," e que, no momento em que escrevia, era "vaqueiro num rancho de 22 mil hectares." O contraste não podia ser maior com a modéstia do que afirmava: "Não me parece possuir eu quaisquer qualidades específicas que me possam recomendar à sua consideração. Mas se porventura isso acontecer, poderá achar que vale a pena perder uns minutos a responder-me. Se assim não for, há sempre trabalho nesta profissão. Sem esperar muito, mas com esperanças, subscrevo-me, etc."

Não tenho deixado de me interrogar sobre as afinidades intelectuais entre mim e o homem que escreveu: "Muito antes de saber da sua existência, já eu articulara a economia política com a história e deduzira daí muitas das conclusões que o senhor retirou em concreto."

Esta, à sua maneira, é uma das cartas mais interessantes e a mais curta das que recebi: "Se alguma das pessoas que o acompanham no cruzeiro quiser quem lhe aqueça os pés e se precisar de alguém que perceba de barcos, motores, etc, estou à sua disposição, etc." E havia outra também curta: "Acertei em cheio: gostava de trabalhar como grumete na sua viagem à volta do mundo ou ter qualquer outra função a bordo. Tenho 19 anos, peso 63 quilos e sou americano."

E vejam esta, de um homem "com pouco mais de um metro e meio de altura": "Quando soube do seu corajoso projecto de dar a volta ao mundo num pequeno barco à vela com a sua mulher, fiquei tão satisfeito que me senti como se o projecto fosse também meu e pensei em escrever-lhe para me oferecer como cozinheiro ou grumete. Mas, não sei bem porquê, não o fiz e saí de Oakland para ir para Denver trabalhar na firma de um amigo meu. No entanto, nem tudo corre bem, ou seja, as coisas vão de mal a pior. Entretanto, felizmente o senhor adiou a partida por causa do terramoto e por isso decidi-me finalmente a propor-lhe que me deixe desempenhar uma função qualquer. Não sou muito forte, porque tenho pouco mais de metro e meio de altura, embora esteja de boa saúde e seja uma pessoa capaz."

"Acho que posso beneficiar o seu equipamento com um método inovador de utilização da energia do vento," escreveu alguém bem intencionado, "que, embora não tenha efeito nas velas vulgares em brisas ligeiras, permitir-lhe-á fazer uso de toda a força do vento quando está forte, de forma que, mesmo quando ele soprar a sério, poderá alar todas as velas e navegar a toda a força com o meu método. Com este melhoramento, qualquer naufrágio será impossível."

Esta carta foi escrita em São Francisco, com data de 16 de Abril de 1906. E dois dias depois, a 18 de Abril, deu-se o Grande Terramoto, que deve ter feito do meu correspondente um refugiado, razão pela qual nunca nos encontrámos.

Muitos dos meus camaradas socialistas criticaram-me por este cruzeiro, com considerações como estas: "A causa socialista e os milhões de vítimas do capitalismo reclamam o direito de reivindicar a tua vida e os teus serviços. Se, apesar disso, insistires nos teus intentos, quando engolires o ultimo golo de água salgada antes de te afundares, lembra-te que pelo menos nós protestámos."

Um homem que viajou por esse mundo fora e que, "se lhe derem a oportunidade, poderá relatar muitas cenas e acontecimentos invulgares," gastou várias páginas a tentar explicar-se, para no fim afirmar: "Mas continuo a afastar-me da questão que me levou a escrever-lhe. Por isso vou directo ao assunto: li algures que o senhor e uma ou duas outras pessoas vão fazer um cruzeiro à volta do mundo num barco pequeno. Portanto não consigo conceber que um homem com a sua experiência, e depois de tudo aquilo que realizou, seja capaz de tentar tal façanha, que equivale na prática a desafiar a morte. E se por acaso escapar ileso, quer a sua pessoa, quer as dos que o acompanham, serão afectadas pelo movimento incessante próprio de uma embarcação com as dimensões da sua, mesmo que seja acolchoada, coisa invulgar no mar." Obrigado, caro amigo, obrigado pela expressão "coisa invulgar no mar." E não se pense que este amigo ignore as coisas navais. Como ele próprio diz, "não sou um patego, viajei por tudo quanto é mar." E termina a carta: "Embora sem querer ofendê-lo, assevero-lhe que será loucura levar qualquer mulher para fora da baía, numa embarcação como essa."

E contudo, no momento em que escrevo estas linhas, Charmian, na cabina, escreve à máquina, Martin prepara o jantar, Togichi põe a mesa, Roscoe e Bert estão a calafetar o convés e o Snark singra a cinco nós à hora num mar bastante agitado - sem nenhum acolchoamento.

"Ao ler no jornal a notícia dos seus planos de viagem, gostaria de saber se quer uma boa tripulação. Somos seis jovens marinheiros de grande perícia, com boas referências da marinha mercante e de guerra, todos americanos de gema, com idades entre os 20 e os 26 anos. Estamos actualmente a trabalhar como metalúrgicos na Union Iron Works, e gostaríamos imenso de viajar consigo." ...Eram cartas como esta que me faziam lamentar não ter um barco maior.

E aqui se transcreve o que disse a única mulher - além de Charmian - interessada na viagem: "Se ainda não conseguiu encontrar cozinheira, gostaria muito de o acompanhar nessa qualidade. Tenho 50 anos, sou saudável e competente, e posso confeccionar refeições para a reduzida tripulação do Snark. Tenho muito boa mão e sou óptima marinheira, além de ter viajado bastante. Tanto melhor para mim se o cruzeiro durar 10 anos! Referências, etc."

Um dia, quando tiver muito dinheiro, vou construir um grande barco, com espaço para receber mil voluntários. Terão de desempenhar todas as tarefas necessárias a uma digressão à volta do mundo; caso contrário, mais vale que fiquem em casa. Estou convencido de que chegarão ao fim da viagem, porque sei que a Aventura não morreu.

Sei que não morreu porque acabo de trocar com ela uma longa e íntima correspondência.

 

Na boa rota

Objectavam os nossos amigos: "Mas como se atrevem a partir para o mar sem alguém que saiba navegar? Porque vocês não sabem navegar, pois não?"

Eu tinha de confessar que não sabia, que nunca vira um sextante na minha vida e que era bem capaz de confundí-lo com um almanaque náutico. Quando me perguntaram se Roscoe sabia navegar, abanei a cabeça negativamente. Roscoe ficou ofendido. Tinha passado os olhos pela Ept-tome, o manual comprado para a viagem, sabia fazer cálculos com as tábuas de logaritmos, vira uma vez um sextante e só porque alguns dos seus antepassados tinham sido homens do mar, concluíra que sabia navegar. Mas continuo a insistir que Roscoe se enganava. Viera do Maine para a Califórnia em criança, passando pelo istmo do Panamá, e essa terá sido a única altura da sua vida em que perdeu a terra de vista. Nunca freqüentou uma escola náutica, nem passou nenhum exame de navegação; nunca fez viagens no mar alto ou foi ensinado por qualquer marinheiro. Costumava andar de iate na baía de São Francisco, sempre com terra a poucos quilómetros de distância e sem ter de recorrer à arte de marear.

Portanto o Snark iniciou a sua longa viagem sem navegador. Transpusemos a Golden Gate a 23 de Abril e rumámos às ilhas do Havai, a 21 mil milhas marítimas. O resultado recompensou-nos, porque chegámos ao nosso destino, ainda por cima sem nenhum problema, como vereis; ou antes, sem complicações de maior. Para começar, Roscoe ocupou-se da navegação. Lá de teorias entendia ele, mas era a primeira vez que as punha em prática, como se tornou patente pelo comportamento estranho do Snark. Mantinha-se perfeitamente estável no mar; no mapa é que nos pregava partidas. Num dia, com uma brisa ligeira, deu um salto - no mapa, claro - e noutro dia em que parecia avançar ligeiro pelo mar fora, mal se alterou a nossa posição no mapa. Ora, quando um barco regista seis nós horários consecutivamente durante 24 horas, é porque, sem dúvida alguma, cobriu 144 milhas marítimas.

O mar estava normal e, quanto ao livro de quarto, nada a dizer; a velocidade era patente. Portanto, o erro era dos cálculos, que não reproduziam com rigor, no mapa, a rota do Snark. Isto não aconteceu todos os dias, mas era frequente, e coisa perfeitamente natural, previsível numa primeira tentativa para aplicar uma teoria.

A aquisição de conhecimentos de marear tem um efeito estranho no espírito humano. O navegador vulgar fala da sua arte com profundo respeito, de forma que a sensação experimentada pelo leigo é a de que a navegação é um terrível e secreto mistério: gera-se nele um terrível e secreto respeito semelhante ao dos navegadores. Conheci jovens francos, ingénuos e modestos, completamente leais que, depois de aprenderem a marear, logo evidenciaram gosto pelo secretísmo, a reserva e a empáfia, como se tivessem realizado uma façanha intelectual de tremendo alcance. O navegador vulgar impressiona o leigo, como se fosse sacerdote de um rito sagrado. O navegador convida-nos a olhar para o seu cronometro, com ar misterioso. Por isso os amigos se preocuparam tanto por não termos a bordo alguém que dominasse a arte de marear.

Durante a construção do Snark, Roscoe e eu chegámos a um acordo, mais ou menos nestes termos: "Forneço eu os livros e os instrumentos," propus, "e tu começas a estudar navegação, porque estarei demasiado ocupado com outras coisas. Depois, quando estivermos em viagem, podes ensi-nar-me o que aprendeste." Roscoe ficou encantado.

Além disso, ainda era franco, ingénuo e modesto como esses jovens de que falei. Mas quando nos fizemos ao mar e começou a praticar o rito sagrado, enquanto eu o observava admirativamente, deu-se no seu comportamento uma modificação subtil e peculiar. Ao meio dia, se media a altura do sol, ficava envolto numa auréola radiosa.

Quando descia para fazer os cálculos com base na observação e regressava ao convés para anunciar a nossa latitude e longitude, assumia um tom de voz autoritário, coisa inédita para todos nós. Mas o pior não era isso: das muitas informações de que se munia, só nos transmitia algumas. E quanto mais razões descobria para os saltos imprevistos do Snark nas distâncias indicadas no mapa, menos saltos dava o Snark e mais incomunicáveis, terríveis e sagradas se tornavam as suas informações.

Quando eu sugeria discretamente que era altura de começar a aprender também, correspondia com uma reacção frouxa, sem se oferecer para me ajudar. Não dava o menor sinal de estar na disposição de cumprir a sua parte do acordo.

Mas nada disto era culpa de Roscoe; foi inevitável. Acon-teceu-lhe simplesmente o que acontece a todos os que aprendem navegação. Por uma compreensível e desculpável confusão de valores, associada a uma perda de orientação, vergava ao peso da responsabilidade e sentia-se na posse de um poder semelhante ao divino. Nunca vivera no mar e portanto sempre estivera com terra à vista, com pontos de referência para se orientar. Por isso conseguira, com dificuldades apenas ocasionais, dominar os movimentos do corpo em harmonia com o meio envolvente. Agora via-se no meio daquela imensidão de água, apenas limitada pelo eterno círculo do horizonte, sempre igual, sem terra como ponto de referência. O sol nascia a Leste e punha-se a Ocidente e as estrelas descreviam a sua curva nocturna. Mas quem consegue olhar para o Sol e para as estrelas e dizer: "O meu lugar à face da Terra neste preciso momento é quatro quilómetros e três quartos a oeste da loja do Jones em Smithersville?" ou "Sei onde estou, porque a Ursa Menor informa-me de que Boston está a três quilómetros daqui, na segunda curva à direita"? No entanto, era isso que Roscoe fazia. Não só se sentia maravilhado com tal facto, como era tomado por uma espécie de reverência por si mesmo: realizara um milagre. O acto de encontrar a nossa exacta posição em pleno mar tornava-se um rito e sentia-se um ser superior em relação a nós, que não conhecíamos esse rito e dependíamos dele para sermos conduzidos na nossa rota pela imensidão ondulante, a estrada salgada que liga os continentes e não está assinalada por nenhum marco miliário. Assim, com o sextante ele prestava culto ao Deus Sol, consultava caracteres mágicos dos livros e das tábuas antigas, murmurava orações num idioma estranho, com sons como "Erroinstrumentalefracçãodaparalaxe", traçava sinais cabalísticos, somava e transpunha um deles depois, numa espécie de escritura sagrada chamada o - isto é, o Mapa - pousava o dedo em determinado ponto cuja brancura o tornava misterioso e dizia: "Estamos aqui." Quando olhávamos para o ponto branco e perguntávamos: "Mas onde?", respondia com uma expressão misteriosa de sumo sacerdote: "31 - 15 - 47 Norte, 133 - 5 - 30 Oeste." E nós comentávamos: "Ah!", sentindo-nos seres insignificantes.

Por isso, volto a dizer, a culpa não era de Roscoe. Ele era como um deus e levava-nos, na palma da mão, pelos espaços brancos do seu mapa. Eu sentia um grande respeito, tão profundo que, se me dissesse "Ajoelha e adora-me", tenho a certeza que me teria lançado ao chão do convés a rezar. Mas, um dia, aflorou-me ao pensamento uma ideia fugaz: "Não se trata de deus nenhum, é Roscoe, um homem como eu. Também sou capaz de fazer o que ele faz.

Como aprendeu? Por si próprio. Faz tu o mesmo, ensina-te a ti próprio." E Roscoe caiu por terra, deixou de ser o sumo sacerdote do Snark. Invadi o santuário e exigi os livros antigos e as tábuas mágicas, além do moinho de orações - isto é, o sextante.

E agora, em linguagem simples, passo a descrever como aprendi a navegar. Fiquei uma tarde inteira no poço do leme, a segurar a roda com uma mão e com a outra a tábua de logaritmos. Em duas tardes seguidas, durante duas horas, estudei a teoria geral da navegação e o processo especial de cálculo da latitude meridiana. Depois peguei no sextante, determinei o erro instrumental e medi a altura do Sol. Terminadas estas observações, o cálculo foi fácil. Encontrei na Epítome e no Almanaque Náutico dezenas de tábuas complexas, todas elas inventadas por matemáticos e astrónomos. Era como utilizar aquelas tabelas de juros e de cálculos rápidos que todos conhecemos.

O mistério desvendou-se. Pousei o dedo no mapa e anunciei que era naquele ponto que nos encontrávamos. Acertei, ou pelo menos acertei tanto como Roscoe, que indicou um ponto a um quarto de milha do meu e concordou que a distância exacta devia ficar a meio caminho entre as duas. Já não havia mistério; e contudo, o milagre foi tal, que tomei consciência de estar na posse de um novo poder e percorreu-me um frémito de orgulho. Quando Martin me perguntou onde estávamos, no mesmo tom humilde e deferente com que eu próprio fazía a mesma pergunta a Roscoe, respondi com exaltação, imbuído de uma superioridade espiritual, recorrendo à linguagem cifrada de grande sacerdote, ao que Martin respondeu com um "Oh!" contemplativo e reverente. Quanto a Charmian, senti que se rendia aos meus encantos como nunca antes acontecera; e apercebi-me de outro sentimento: ela era uma mulher afortunada por ter um homem como eu.

Não estava em meu poder dominar estas ideias. Digo-o em defesa de Roscoe e de todos os outros mareantes. O veneno do poder apoderava-se de mim. Já não me identificava com os outros seres humanos... com a maior parte deles; sabia aquilo que eles desconheciam: o mistério dos céus, que me apontava o caminho naquela imensidão. O sabor desse poder recebido dava-me novas forças. Man-tive-me longas horas à roda, que agarrava com uma mão, enquanto com a outra folheava o livro dos mistérios. No fim da semana, aprendendo sozinho, estava já em condições de executar diversas funções. Por exemplo, medi a altura da Estrela Polar, à noite, evidentemente; corrigi o erro instrumental, a depressão, etc. e achei a nossa latitude. Essa latitude correspondia à do meio dia anterior, corrigida pela estimativa entre as duas observações.

O orgulho que senti, no entanto, não se comparou com o que me proporcionou o meu milagre seguinte. Ia entrar de quarto às nove horas. Sem ajuda, resolvi um problema: descobri que uma estrela da primeira grandeza passaria pelo meridiano por volta das oito horas e meia. Era a Alfa Crucis, de que nunca ouvira falar. Procurei-a no mapa estelar. Fazia parte do Cruzeiro do Sul. Ora essa! Pensei: Temos estado a navegar com o Cruzeiro do Sul no céu, sem sabermos de nada? Que burros somos! Não queria acreditar. Voltei a analisar o problema e confirmei-o. Nessa noite, Charmian estaria de quarto das oito às dez horas. Recomendei-lhe que tomasse atenção e procurasse o Cruzeiro do Sul. E, quando as estrelas despontaram, lá estava ele a brilhar, um pouco acima do horizonte! Orgulho? Nunca nenhum feiticeiro ou alto sacerdote sentiu orgulho semelhante. E fui mais longe: com o moinho de orações, localizei a Alfa Crucis e a partir da sua altura determinei a nossa latitude. Mais ainda!

também calculei a altura da Estrela Polar, que correspondia exactamente aos cálculos feitos a partir do Cruzeiro do Sul. Como não me sentir orgulhoso? Dominava a linguagem das estrelas, escutava-as e ouvi-as a apontar-me o caminho na imensidão.

Orgulhoso? Pois se fazia milagres! Esqueci-me de como fora fácil aprender pelo livro. Esqueci-me de que todo o trabalho (trabalho fantástico, aliás) fora realizado, antes de mim, pelas mentes brilhantes dos astrónomos e matemáticos, que haviam descoberto e elaborado toda a ciência da navegação e criado as tábuas do Epítome.

Só me lembrei do milagre maravilhoso que me fizera ouvir as vozes das estrelas, indicando a minha posição na grande estrada do mar. Charmian não sabia, como não o sabiam Martin nem Tochigi, o grumete. Mas eu, o mensageiro dos deuses, disse-lhes. Fui o medianeiro entre eles e o infinito, traduzi o sublime discurso celestial em termos acessíveis às suas inteligências vulgares. Éramos dirigidos pelo céu e era eu quem decifrava o que estava escrito nas alturas! Eu, eu!

Neste momento, mais calmo, apresso-me a divulgar a extrema simplicidade daquelas minhas operações, bem como as de Roscoe, dos outros navegadores e do resto dos sacerdotes, por receio de vir a confundir-me com eles e tornar-me impenetrável, imodesto e enfatuado de sobranceria. E quero dizer ainda o seguinte: qualquer jovem dotado de uma dose normal de matéria cinzenta, com uma educação vulgar e um espírito minimamente apto ao estudo pode aprender sozinho a navegar, recorrendo aos livros, às cartas marítimas e a uns quantos instrumentos. Mas não me interpretem mal, A arte de marear é uma coisa completamente diferente. Não se aprende num dia, nem mesmo em meses; são necessários anos. Também a navegação por estimativa exige longos estudos e muita prática. Mas navegar por observações do Sol, da Lua e das estrelas, graças aos astrónomos e matemáticos, é uma brincadeira de crianças.

Qualquer jovem mediano pode aprender sozinho numa semana. No entanto, insisto, não me interpretem mal: não quero com isto dizer que, ao fim de uma semana, esse jovem pode comandar um vapor de 15 mil toneladas, a cruzar os mares a uma velocidade de 20 nós horários, entre continentes, quaisquer que sejam as condições atmosféricas, dominando todos os instrumentos e mapas com espantosa precisão! Quero apenas significar o seguinte: esse mesmo jovem pode embarcar num veleiro seguro e fazer-se ao largo desconhecedor de toda a navegação e, numa semana, saberá o suficiente para determinar no mapa a sua posição. Será capaz de medir uma latitude meridiana com bastante precisão e determinar a latitude e a longitude ao fim de dez minutos de cálculo. Sem carga nem passageiros, sem pressa de chegar ao destino, seguirá o seu caminho e, se lhe acontecer duvidar da rota e recear embater contra escolhos, pôr-se-á de capa toda a noite e continuará na manhã seguinte.

Há uns anos, Joshua Slocum deu a volta ao mundo num pequeno veleiro de onze metros. Nunca esquecerei aquela passagem da sua narrativa da viagem em que exorta os jovens a seguir o seu exemplo. Aderi imediatamente à ideia e foi tanta a minha confiança que levei comigo a minha mulher. Uma aventura destas ultrapassa em muito o interesse de uma excursão promovida pela Cook's e, ainda por cima, além do prazer e do entretenimento, não só proporciona ao jovem a ocasião única de conhecer as coisas do mundo exterior - países, povos e climas - como a de conhecer-se a si próprio, de exercitar a introspecção, de dialogar com a própria alma. Depois há a aprendizagem e a disciplina a que obriga. A princípio, o jovem navegador aprenderá a distinguir as suas limitações; em seguida, dominá-las-á. Só poderá voltar dessa viagem mais maduro e mais perfeito. E o melhor dos desportos é dar sozinho a volta ao mundo, fazê-lo por esforço pessoal, dependendo apenas de si mesmo para, no fim, de regresso ao ponto de partida, contemplar interiormente o planeta em órbita pelo espaço e dizer: "Realizei esta proeza por esforço próprio. Circum-naveguei esta esfera que rola pelo espaço e sou capaz de viajar sozinho, sem o apoio de um capitão para me guiar pelos mares. Posso não poder voar até às estrelas, mas sou dono desta."

Ao escrever estas linhas, ergo os olhos e o meu olhar abarca a vastidão marinha. Estou na praia de Waikiki, na ilha de Oahu. Lá longe, no céu azul, as nuvens sopradas pelos alísios deslocam-se lentamente por cima do azul-tur-quesa das ondas. Não tão longe, o mar é esmeralda e de um verde de azeitona claro. Em volta dos recifes, a água toma uma tonalidade púrpura ardósia manchada de vermelho. Mais perto de mim, bandas verdes mais fortes alternam com bandas castanhas, assinalando a presença de línguas de areia entrecortadas por bancos de coral vivo. Uma ressaca magnífica ressoa e retumba por cima e em volta destas cores fantásticas. Como disse, ergo os olhos para contemplar tudo isto e, na crista branca de uma onda, surge de repente uma forma negra, muito direita, um homem-peixe ou deus marinho, deslizando por sobre a curva da vaga que se vai desfazendo e espraiando na sua corrida para a margem. Envolto até à cintura pela poalha dos salpicos, o corpo do homem é levado no dorso do mar e lançado para terra, percorrendo num só movimento um quarto de milha. É um canaca numa prancha de surf. E logo ali decido que, quando terminar este capítulo, também vou deslizar sobre esta orgia de cores, tentando cavalgar aquelas ondas como ele, embora sem a mesma perícia, mas vivendo plenamente estes curtos instantes da vida. A imagem deste mar colorido e do deus marinho, o canaca voador, acrescentam-se às razões pelas quais um jovem deve viajar para oeste, internar-se cada vez mais nessa direcção, para lá âo Sol, e finalmente completar o caminho de regresso a casa.

Mas, voltando ao nosso assunto: peço-vos que não se convençam de que sei tudo sobre navegação, porque domino apenas os rudimentos. Ainda há muito para aprender.

No Snark tenho à minha espera uma colecção de livros fascinantes sobre o assunto. Neles estudarei o ângulo de perigo de Lecky e a linha de Sumner que, quando nos perdemos, nos mostra a nossa posição sem sombra de dúvida. Há dezenas e dezenas de métodos de orientação em pleno mar, de forma que, para os dominar a todos, teria de gastar anos e anos a estudar-lhes as particularidades.

Do pouco que aprendemos, já detectámos pequenas asneiras que explicam em grande parte o comportamento irregular do Snark. Na quinta-feira, 16 de Maio, por exemplo, não tivemos vento alísio. Nas 24 horas que terminaram ao meio dia de sexta-feira, baseando-nos na estimativa, não tínhamos navegado 20 milhas. No entanto, as nossas posições por observação ao meio dia, nos dois dias, foram:

Quinta-feira 20° 57' 9" N

52° 401 30" W

Sexta-feira 21° 15' 33" N

154° 12' W

A diferença entre as duas posições era de 80 milhas aproximadamente e no entanto não chegámos a cobrir 20 milhas. Depois de várias verificações, concluímos que o nosso cálculo era exacto. O que estava errado eram as nossas observações. Uma observação correcta exige prática e muita perícia, sobretudo num barco pequeno como o Snark, por causa dos movimentos sacudidos e da dificuldade que o observador tem de ver ao longe, por estar muito próximo da superfície do mar. Uma onda grande a erguer-se a uma milha de nós pode impedir-nos de ver todo o horizonte.

Mas no nosso caso particular, havia outro factor de perturbação. No curso que descreve pelo espaço, ao longo do ano, o Sol aumenta a sua declinação. Em meados de Maio, no paralelo 19 da latitude Norte, está praticamente no zénite, a uma altura entre os 88 e os 89 graus. A 90 graus, estaria precisamente por cima de nós. Num outro dia, aprendemos a medir a altura do Sol na sua posição perpendicular. Roscoe começou por apanhar o Sol no horizonte, a Leste, e não abandonou esse ponto, apesar de o astro ter de atravessar o meridiano para Sul. Pelo meu lado, comecei a assinalar o Sol a sudeste e segui-o para sudoeste. Como vêem, tentávamos aprender. O resultado foi que, ao meio dia e 25 minutos, pelo relógio de bordo, era meio dia solar. Ora isso significava que a nossa posição em relação à Terra se alterara de 25 minutos, o que equivale a 6 graus de longitude, o que no mapa corresponde a 350 milhas. Portanto, o Snark fizera 15 nós por hora durante 24 horas... sem que nos déssemos conta! Era absurdo e grotesco. Mas Roscoe, sempre virado para Leste, afirmava-nos que ainda não era meio dia. Queria provar que íamos a uma velocidade de 20 nós. Em seguida assestámos os nossos sextantes para várias posições no horizonte e, onde quer que observássemos, lá ia o Sol, surpreendentemente próximo da linha do horizonte, umas vezes acima dele, outras abaixo. Numa direcção, anunciava a manhã, na outra, dizia-nos que era de tarde. O Sol nunca se engana - isso sabíamos nós; portanto o erro era nosso. E passámos o resto da tarde no poço do leme a ler sobre o assunto e a descobrir a razão do engano. Nesse dia não fizemos a meridiana, mas no dia seguinte não falhámos. Progredíamos.

Aprendemos bem, ainda melhor do que imaginávamos. Num fim de tarde, no princípio do segundo quarto, Charmian e eu estávamos sentados à proa a jogar cribbage. Ao levantar a cabeça por acaso, vi montanhas cobertas de nuvens a emergir do mar. Ficámos doidos de alegria por ver terra, mas aquilo punha em causa as nossas ideias de navegação. Eu pensava que tínhamos aprendido qualquer coisa, mas a nossa posição ao meio dia devia levar-nos a mais de cem milhas de terra; no entanto, ali estava ela diante de nós, já a esconder-se sob o manto dourado de crepúsculo. A terra era um facto indiscutível, impossível desmenti-lo. Portanto o erro estava na nossa navegação. Mas não. A terra que avistávamos era o cume do Haleakala, a Casa do Sol, o maior vulcão extinto do mundo. Elevava-se a 3330 metros acima do nível do mar e estava a umas cem milhas. Nessa noite navegámos a uma velocidade de 7 nós e, na manhã seguinte, a Casa do Sol continuava a erguer-se diante de nós. Foram precisas mais umas horas para chegarmos à mesma altura do vulcão.

- Aquela ilha é Maui - dissemos, verificando o mapa. - A próxima ilha, que se vê lá ao longe, é Molokai, onde estão os leprosos. E a ilha contígua é Oahu. O cabo Makapuu fica mais adiante. Amanhã estamos em Honolulu. Os nossos cálculos estavam certos.

 

A primeira escala

Eu prometera aos meus companheiros:

- A vida a bordo não será tão monótona como imaginam. O mar fervilha de vida. É tão povoado que todos os dias haverá algo de novo para ver. Assim que passarmos a Golden Gate e rumarmos a Sul, avistaremos peixes-voadores. Fritamo-los para o pequeno almoço. Pescaremos bonitos e golfinhos e no gurupés arpoaremos toninhas e peixe-serra. Depois temos os tubarões... um nunca acabar de tubarões.

Transpusemos a Golden Gate, rumando a Sul, perdemos de vista as montanhas da Califórnia, e todos os dias o calor aumentava. Mas peixes voadores... nem vê-los! E bonitos e golfinhos, nada! O oceano parecia vazio. Eu nunca tinha viajado num mar tão morto. Nas mesmas latitudes, sempre encontrara peixes-voadores.

- Não faz mal - concluí. - Esperem até chegarmos à costa do Sul da Califórnia. Aí é que vamos pescar peixes- voadores.

Perdemos de vista a Califórnia do Sul, a península da Baixa Califórnia, as costas do México, e nada de peixes-voadores ou de outro peixe qualquer. Nem sinal! Enquanto os dias passavam, a ausência de vida marinha tornou-se difícil de suportar.

- Não tem importância - insisti. - Quando encontrarmos os peixes-voadores, encontraremos todos os outros. Os peixes-voadores são o alimento principal de todos os peixes, de modo que quando os virmos, sabemos que os restantes vêm atrás.

Para ir para o Havai, devia aproar a sudoeste, mas continuei a rota para Sul. Tinha de encontrar os tais peixes-voadores! Finalmente, chegou o momento em que, para me dirigir para Honolulu, tinha de rumar a Oeste. Em vez disso, continuei para Sul. Mas só a 19° de latitude norte avistámos o primeiro, absolutamente só. Fui eu quem o viu primeiro. Outros cinco pares de olhos ansiosos perscrutaram o mar durante o dia, em vão. Eram peixes tão raros que não descobrimos mais nenhum naquela semana. Quanto aos golfinhos, bonitos e toninhas, não vimos nem um.

Nem sequer um tubarão veio à superfície mostrar a sua sinistra barbatana dorsal. Bert dava todos os dias uns mergulhos debaixo do gurupés; suspenso nos brandais, deixava flutuar o corpo na água. Todos os dias projectava largar-se e dar umas braçadas, apesar de eu fazer os possíveis para o dissuadir. Mas eu tinha perdido toda a autoridade perante Bert no que respeita à vida marinha.

- Se há tubarões, por que não aparecem? - perguntava ele.

Garanti-lhe que não tardariam a surgir se por acaso se decidisse a nadar um pouco. Era mentira, mas foi a maneira que encontrei de o convencer por mais dois dias.

No terceiro dia o vento estava calmo e fazia muito calor. O Snark avançava a um nó. Bert mergulhou e deixou-se ficar na água por uns momentos. Vejam agora a perversidade das coisas: até então tínhamos percorrido mais de duas mil milhas sem encontrar um único tubarão. Cinco minutos depois de Bert ter terminado o mergulho, vimos a barbatana de um esqualo a fender a água e a descrever círculos em volta do Snark.

Aquele tubarão não fazia sentido, perturbava-me. Que fazia no meio do mar deserto? Quanto mais pensava nisso, mais estranha me parecia a sua presença. Mas duas horas depois avistámos terra e o mistério desvendou-se. Tinha vindo até nós de terra e não do mar despovoado. Era um presságio, um mensageiro da terra.

Vinte e sete dias depois da nossa partida de São Francisco, chegámos pois à ilha de Oahu, Território do Havai. Logo de manhã cedo contornámos o cabo Diamond, com Honolulu à vista. De repente, o mar começou a fervilhar de vida. Cardumes cintilantes de peixes-voadores cortavam o ar. Em cinco minutos vimos mais do que durante toda a viagem. Outros peixes, enormes e de espécies diferentes, saltavam de todos os lados. No mar e em terra reinava a agitação. No porto, víamos os mastros e as chaminés dos barcos, os hotéis e estações de banhos ao longo da praia de Waikiki, e o fumo a elevar-se das casas empoleiradas no alto das vertentes vulcânicas do Punch Bowl e do Tantalus. O rebocador da alfândega, a avançar para nós a toda a força, assustou um cardume de douradas que se refugiou debaixo da nossa proa e executou cabriolas cómicas. Depois foi a vez de avançar sobre nós a lancha do médico do porto. A carapaça de uma enorme tartaruga marinha emergiu e o bicho olhou para nós.

Nunca tínhamos visto semelhante explosão de vida. Caras estranhas no nosso convés, um vozear desconhecido e vários exemplares do jornal dessa manhã, com notícias telegrafadas de todo o mundo... tudo isto se apresentou perante os nossos olhos. Por mero acaso, ficámos a saber que o Snark e todos os seus tripulantes se tinham afundado no alto mar, o que confirmava tratar-se de uma embarcação sem nenhumas condições de navegabilidade. Enquanto líamos esta informação, o Partido do Congresso recebia no alto do Haíea-kala um telegrama anunciando a chegada do Snark.

Era a primeira escala do Snark... e que escala! Durante 27 dias tínhamos navegado pelo mar deserto e parecia-nos quase incrível tanta actividade à nossa volta. A vertigem apoderava-se de nós e não conseguíamos adaptar-nos de repente. Parecíamos o Rip van Winkle ao acordar, era como se sonhássemos. Dum lado, o azul do mar confundia-se com o azul do céu; do outro, erguiam-se grandes vagas cor de esmeralda que se abatiam em franjas brancas sobre uma praia de corais brancos. Para lá das areias, as verdejantes plantações de cana de açúcar subiam em ondulações suaves pelas encostas íngremes que, por sua vez, terminavam em cristas vulcânicas, encimadas por prodigiosas massas de nuvens que se desfaziam em chuvadas tropicais. Era um sonho maravilhoso. Virando de bordo, o Snark dirigiu-se directamente para as ondas esmeraldinas, que o açoitaram de todos os lados; bem perto de nós, o recife mostrava os seus dentes compridos, de um verde pálido ameaçador.

De repente, a própria terra, verdadeira sinfonia de verdes em milhares de tonalidades, ergueu os braços e fechou-os sobre o Snark. Já esquecíamos a perigosa passagem pelo recife, ou as ondas esmeralda e o mar azul - só víamos uma terra prazenteira e amável, uma enseada aprazível, e pequenas praias onde brincavam garotos de pele bronzeada. O mar desaparecera. A corrente da âncora do Snark rangeu ao passar no escovem e ficámos extasiados, no convés imóvel. Era tudo tão belo e estranho que não queríamos acreditar. Chamámos àquele lugar, que aparecia no mapa com o nome de Pearl Harbor, Porto das Pérolas, o "Porto dos Sonhos".

Uma lancha dirigiu-se para nós, transportando membros do Clube Naval do Havai, que vinham cumprimentar-nos e desejar as boas-vindas, com toda a amável hospitalidade própria deste país. Eram homens normais, de carne e osso como nós; mas não quiseram desfazer o nosso sonho. As últimas recordações que guardávamos dos seres humanos relacionavam-se com os oficiais de diligências americanos e com os pequenos negociantes medrosos que no lugar da alma tinham dólares velhos e que, numa atmosfera de fuligem e de poeira negra, lançaram as suas sinistras garras para o Snark, para o impedir de se lançar à aventura da volta ao mundo. Mas os que agora nos recebiam eram gente honesta, de tez morena, ar saudável e olhos sem aqueles reflexos de desejo cúpido que se lia nos dos outros, míopes de tanto contar os seus montes de ouro. Não, estes limitavam-se a confirmar o nosso sonho, reforçando-o com pureza de alma.

Fomos com eles e, cruzando um mar calmo e cintilante, dirigímo-nos para terra, de encontro a uma paisagem de verdejante beleza. Desembarcámos num pequeno molhe e o sonho tornou-se mais insistente. Não vos esqueçais de que estávamos no mar há 27 dias, sofrendo o balanço de um barco diminuto, sem um instante de repouso, a ponto de o movimento incessante das ondas passar a fazer parte de nós mesmos. Tínhamos os corpos e cérebros já tão habituados a esse balouçar que, mesmo depois de deixarmos o mar, continuávamos a sentir o movimento. Naturalmente, numa projecção psicológica, atribuímos o facto ao molhe. Agarrei-me como pude e por várias vezes quase caí ao mar. Olhando para Charmian, fez-me pena a maneira como andava. Para nós era como se estivéssemos no convés: o molhe erguia-se, voltava a baixar, levantava-se e descia bruscamente; como não tinha balaustrada, eu e Charmian tínhamos de nos esforçar para não perder o equilíbrio.

Nunca vi um desembarcadouro assim. Sempre que o tentava fixar, recusava-se a balouçar; mas assim que eu desviava o olhar, lá se inclinava ele, exactamente como o Snark. Uma vez, apanhei-o em falso, justamente quando se levantava; olhei para o chão enquanto percorri vários metros, e era como se estivesse no mar alto.

No entanto, finalmente e com a ajuda dos nossos anfitriões, lá conseguimos chegar ao fim do molhe e pôr pé em terra. Mas era a mesma coisa. A terra virou-se logo de lado e vi a propagação do movimento oscilatório a perder de vista, até às cristas vulcânicas que se erguiam lá no fundo, inclusive até às nuvens, que também oscilavam.

Era evidente que aquela terra tinha falta de estabilidade, caso contrário não me obrigaria a semelhante ginástica para me manter direito. Parecia irreal, como tudo que acontecera desde a nossa chegada. Era um sonho qUe podia esfumar-se a qualquer momento. Lembrei-me de que talvez a cabeça me andasse à roda por culpa minha, por ter comido qualquer coisa indigesta. Mas concluí que não, vendo o andar titubeante de Charmian e observando como ela cambaleava e ia de encontro ao velejador ao lado de quem caminhava. Interpelei-a e queixou-se, como eu, da maneira como aquela terra girava à nossa volta.

Depois de atravessarmos um relvado amplo e esplêndido, descemos uma avenida bordejada de belas palmeiras e passámos por outro relvado esplêndido, até nos abrigarmos sob a sombra acolhedora de árvores majestosas. Os chilreios dos pássaros enchiam o ar carregado de aromas quentes: o perfume de enormes lilases, as flores garridas dos hibíscos e de outras plantas tropicais estranhas e magicas. A paisagem tinha um encanto sublime. O sonho tornava-se de um deslumbramento quase insuportável para nós, que durante tanto tempo só conhecêramos o mar agindo. Charmian, estendendo o braço, agarrou-se a mim, supus eu que para não desfalecer perante aquela inefável beleza. Mas não. Ao apoiá-la, senti as minhas pernas ceder, e as flores e os relvados começaram a dançar à minha volta. Era como um terramoto, só que passou depressa, sem fazer estragos. Era praticamente impossível adivinhar quando a terra nos pregava semelhante partida.

Desde que me mantivesse concentrado, não acontecia nada. Mas assim que me distraía, o panorama punha-se em movimento, balouçando e orientando-se segundo ângulos diferentes e contraditórios. No entanto, de uma das vezes virei a cabeça de repente e apanhei uma fila majestosa de palmeiras a descrever num grande arco pelo céu.

Porém a imagem tornou-se estática assim que a fixei, transformando-se de novo numa plácida paisagem idílica.

Depois chegámos a uma casa fresca, com uma varanda a toda a volta, que parecia ser a moradia adequada a comedores de lótus. As portas e janelas estavam abertas para deixar passar a brisa e, com ela, os sons melodiosos e as fragrâncias. As paredes estavam revestidas com panos tapa. Divãs, espalhados por toda a parte e cobertos com esteiras de palha, convidavam ao repouso, e havia um grande piano onde, estou certo, só se tocavam canções de embalar. As serviçais - criadas japonesas vestidas à moda local andavam silenciosamente de um lado para o outro, como borboletas. Tudo nos transmitia uma sensação de frescura deliciosa e nos fazia esquecer o sol tropical e o seu brilho implacável sobre um mar sempre encapelado.

Aquilo parecia-me demasiado bom para ser verdade. Não era possível, ainda estávamos mergulhados no sonho. Acho que sim porque, ao virar-me, vi o piano, num canto espaçoso da sala, entregar-se a uma furiosa cabriola. Não disse nada, porque nesse momento veio ao nosso encontro uma gentil senhora, uma bela madona, com um vestido branco às flores e de sandálias, que nos cumprimentou como se há muito tempo nos conhecesse.

Sentámo-nos à mesa, na varanda dos comedores de lótus, servidos pelas criadas-borboletas; comemos alimentos estranhos e bebemos um néctar chamado poi.

Mas o sonho ameaçava desfazer-se: vacilava e tremia como uma bola de sabão antes de rebentar. Ao admirar a erva verde, as árvores majestosas e as flores de hibisco, senti de repente que a mesa se movia. A mesa, a madona à minha frente mais a varanda dos comedores de lótus, os híbiscos escarlates, o relvado e as árvores - tudo se soergueu e tombou diante de mim, para depois se afogar no fundo de uma onda monstruosa. Para evitar a queda, agarrei-me o melhor que pude à cadeira em que estava sentado, assim como ao meu belo sonho. Não me surpreenderia se o mar, precipitando-se sobre nós, tivesse submergido esta terra feérica e de súbito me visse de novo ao leme do Snark, prestes a consultar as tábuas de logaritmos ao lado. No entanto, a ilusão persistia. Disfarçadamente, observei a madona e o respectivo marido.

Não pareciam perturbados. Os pratos não tinham desaparecido da mesa. As árvores, os híbiscos e a relva continuavam no mesmo lugar. Nada mudara. Bebi um pouco de néctar e o sonho tornou-se ainda mais real.

- Toma um chá gelado? - perguntou-me a anfitriã. Pareceu-me ver inclinar-se lentamente o lado da mesa em que estava sentada e respondi-lhe que sim, num ângulo de 45 graus.

- A propósito de tubarões, - disse o marido - saibam que em Niihaau conheci um homem...

Nesse momento, a mesa deu uma guinada brusca em sentido inverso e dei comigo a olhar para o meu interlocutor num ângulo mais baixo, numa inclinação de 45 graus.

Toda a refeição se passou assim e ainda me dei por feliz por não ter de ver Charmian a andar. No entanto, no fim, os comedores de lótus pronunciaram de repente uma palavra temível em que julguei reconhecer um som familiar. Adeus, devaneios! Agarrei-me desesperadamente à cadeira, resolvido a levar para a realidade do Snark algum vestígio tangível daquela terra de lótus. Senti todo o meu sonho a esvair-se e a recuar para longe. Nessa altura voltei a ouvir o som misterioso, que soava como algo parecido com jornalistas. Três homens atravessaram o relvado e dírigíram-se para mim. Ah, benditos jornalistas! Afinal o sonho era mesmo real. Percorrendo com o olhar o mar cintilante, vi o Snark ancorado. Mas... pois claro, já me esquecia! Tinha embarcado em São Francisco! Estávamos no Havai, aquele sítio chamava-se Pearl Harbour e, nesse preciso momento, recebendo os jornalistas, respondi à primeira pergunta dizendo:

- Com certeza, durante toda a viagem tivemos um tempo magnífico!

 

Um desporto real

mesmo isso: um desporto real para os soberanos naturais desta terra. Na praia de Waikiki, a erva estende as suas raízes quase até ao nível da água e só deixa de crescer a 15 metros do mar. As árvores também crescem junto da orla salgada e, sentado à sua sombra, vejo a ressaca majestosa a avançar para a praia e a morrer a meus pés. A meia milha, ao largo, onde estão os recifes, as ondas que se formam na calma azul-turqueza lançam-se de repente para o ar, desfeitas em espuma, e vêm em roldão até à areia. Uma após outra, lá avançam elas, expandindo-se numa frente larga, de cristas fumegantes, como batalhões brancos do infindável exército do mar. Fico sentado a ouvir o rugido perpétuo e a ver passar a incessante procissão, sentindo-me mesquinho e frágil perante essa força tremenda, feita de fúria, espuma e som. E imagino, percorrido por um arrepio de apreensão, de medo até: que pode um ser de uma pequenez microscópica contra este mar? Contra esses monstros com cabeça de touro, alinhados à largura de uma milha e pesando mil toneladas, que se precipitam para a margem muito mais depressa do que um homem em corrida? Que hipótese tem de se salvar? Nenhuma, reconheço mentalmente, sentindo-me ainda mais insignificante e ao mesmo tempo feliz por estar sentado na relva, à sombra das árvores.

E de súbito, ao longe, de uma enorme vaga que cresce para o céu, surge, erguendo-se como um deus marinho no meio do turbilhão branco em revolta, um homem de tez morena, empoleirado em cima de uma crista branca, em equilíbrio instável e precário. Avança veloz por sobre a espuma. Depressa se lhe distinguem os ombros escuros, o peito, os braços e as pernas. No sítio onde, há poucos segundos, só se avistava uma enorme desolação e o rugido invencível do mar, ergue-se a toda a altura um ser humano, erecto. Não se debate freneticamente nas ondas agitadas, não é engolido, esmagado ou fustigado pelos possantes monstros. Pelo contrário: domina-os, calmo e soberbo, pousado naquelas cristas movediças, com os pés cobertos por remoinhos de espuma, a poalha dos salpicos a erguer-se-lhe até aos joelhos e o resto do corpo ao ar livre, sob a deslumbrante luz solar. É como se voasse pelo ar, seguindo sempre adiante e deslocando-se vertiginosamente, à velocidade das ondas que cavalga.

É o deus Mercúrio - um Mercúrio de pele escura, com calcanhares de asas céleres. Na realidade, vindo do mar, saltou sobre o dorso de uma onda trovejante que, debatendo-se, procura em vão fazê-lo cair. Não perde a estabilidade nem tem de fazer movimentos bruscos para se equilibrar. Impassível e imóvel como uma estátua miraculosamente esculpida nas profundezas de onde surgiu, avança sempre em direcção à margem, com as tais asas nos pés e montado na crista branca. Depois, a espuma salta em todas as direcções, ouve-se um estrondo tumultuoso quando a onda se quebra, vencida e sem forças, na areia aos nossos pés; e é aí, aos nossos pés, que chega tranquilamente a terra um canaca com a pele bronzeada reflectindo o brilho de ouro do sol tropical. Minutos antes, parecia um pequeno ponto no horizonte. Montou "a vaga com boca de touro" e o orgulho que o feito lhe inspira evidencia-se na atitude do seu corpo magnífico quando, por um momento, fixa em nós, sentados à sombra, um olhar despreocupado. É um canaca... e, mais ainda, é um homem, um membro da espécie superior que dominou a matéria e a força bruta e impera sobre a criação.

Faz-nos pensar naquela manhã fatal em que pela vez derradeira Tristão desafiou as águas; e também reflectir que aquele canaca fez o que Tristão nunca conseguiu, conhece a alegria do mar que Tristão nunca conheceu. Faz-nos pensar mais: é delicioso uma pessoa deixar-se ficar à sombra fresca das árvores da praia; no entanto, somos, como o canaca, representantes da superior raça humana e podemos fazer o mesmo que ele. Então, toca a despir estas roupas tão incómodas neste clima ameno; toca a enfrentar o mar; toca a acrescentar asas aos pés, recorrendo a toda a força e habilidade de que somos capazes; toca a enfrentar as ondas, a dominá-las e a montar-lhes a garupa como um rei!

Foi assim que acabei por cavalgar o mar. Agora que já experimentei esse desporto, considero-o, mais do que nunca, digno da realeza. Mas primeiro deixem-me explicar a sua dinâmica. Uma onda é uma agitação comunicada. A água que compõe o corpo da onda não se move. Se o fizesse, quando se atira uma pedra a um lago e a ondulação se alarga num círculo cada vez maior, apareceria no seu centro um buraco cada vez mais fundo. Não, a água que compõe o corpo de uma onda é estacionária. Assim, se observarmos uma porção específica da superfície do mar, veremos essa mesma água mover-se milhares de vezes para cima e para baixo, pela agitação que lhe é comunicada por milhares de ondas sucessivas. Agora imaginem essa agitação comunicada a deslocar-se para a margem. Quando o fundo diminui de profundidade, a parte inferior da onda bate na terra e pára. Mas a água é fluida e a parte superior, que ainda não encontrou obstáculos, continua a transmitir as suas ondas. Como a crista da onda prossegue incessantemente, ao passo que o fundo se atrasa, produz-se fatalmente um fenómeno: A parte inferior afunda-se e a parte de cima tomba para a frente e depois para baixo, encaracolando, formando uma crista e produzindo um ruído. O que provoca a sucessão de vagas é o facto de o fundo da onda bater contra o chão.

Mas a transformação de uma ondulação ligeira numa maré agitada por vagas fundas não se faz abruptamente, excepto quando o fundo tem um súbito declive. Quando o fundo diminui gradualmente de profundidade, por exemplo numa distância entre 400 e 1600 metros, a transformação opera-se a uma distância igual. É o que se verifica ao largo da praia de Waikiki, que constitui um esplêndido campo de corridas de surf. Salta-se para o dorso de uma onda no momento em que começa a quebrar-se e deixa-se que ela nos transporte até à margem.

Vejamos agora os pormenores deste desporto, chamado surf-riding. Use uma prancha chata, de 2 metros de comprimento por 0,75 de largura, e de forma mais ou menos oval. Deite-se por cima dela, como fazem os garotos nos trenós, e reme com as mãos o mais fundo possível, no sítio onde aparecem as primeiras cristas. Deixe-se ficar tranqüilamente na prancha. As ondas virão quebrar-se, umas à frente, outras atrás, outras por baixo e outras ainda por cima de si, para depois se precipitarem para a margem, deixando-o no mesmo sítio. Quando uma onda se levanta em crista, forma um declive; imagine-se com a sua prancha, em cima dessa curva mais inclinada; se ela ficasse imóvel, você desceria por ali abaixo, exactamente como os miúdos descem as encostas montados nos trenós. Mas - objecta você - uma onda não fica sempre no mesmo lugar. É verdade; no entanto, a água que compõe a onda fica imóvel e é aqui que reside o segredo. Começando a deslizar pela face dessa onda, você manter-se-á assim até chegar à praia, sem bater no fundo. Por favor, não ria. A superfície da vaga pode ser de apenas dois metros, e no entanto transportá-lo-á por uma distância de 400 a 800 metros, sempre à tona. Visto que a onda é simplesmente uma agitação ou um impulso comunicado e visto que a água que a compõe se renova constantemente, essa nova água vai impulsionando-a à medida que ela progride. Você desliza e, embora se mantenha na posição que tinha em cima da onda original, vai sendo transportado por nova água que se ergue e forma a onda. Viaja precisamente à mesma velocidade da onda. Se ela percorre 40 quilómetros numa hora, você vence essa mesma distância. Uma extensão de 400 metros separa-o da costa: à medida que avança no seu percurso, a água acumula-se na vaga, o centro de gravidade encarrega-se do resto e você vai deslizando, transportado por este movimento. Se ainda está convencido de que a água se move consigo, experimente meter o braço no mar e remar com ele: depressa perceberá que é necessária uma agilidade extrema, porque a água fica para trás à mesma velocidade que você se precipita para a frente.

Vejamos agora outro aspecto físico do surf-riding. Todas as regras têm as suas excepções. É verdade que a água de uma onda não avança. Mas existe um fenómeno chamado a impulsão do mar. A água da crista move-se para a frente, como você rapidamente perceberá se ela lhe bater na cara ou se, estando por baixo dela, for envolvido e derrubado, o que o deixará ofegante e semi-sufocado durante meio minuto. O cimo de uma vaga apoia-se na água que forma o seu fundo mas, quando este embate no chão detém-se, enquanto a sua parte superior continua em movimento, sem nada por baixo para se apoiar. O que constituía a sua base é substituído por ar e, pela primeira vez, a onda, submetida às leis da gravidade, abate-se, ao mesmo tempo que se encurva e é atirada para a frente. É por isso que o surf-riding não se compara simplesmente a uma descida deslizante por uma colina abaixo. De facto, a pessoa é levantada no ar e projectada para a praia como pela mão de um titã.

Abandonando a sombra das árvores, enfiei um fato de banho e arranjei uma prancha. Era demasiado pequena, mas eu não sabia disso e ninguém me avisou. Juntei-me a um bando de garotos canacas, em águas pouca profundas, com ondulação ligeira - uma verdadeira escola infantil. Observei-os: quando aparecia uma onda promissora, deitavam-se de barriga para baixo em cima das pranchas, batiam os pés freneticamente e cavalgavam a vaga até à praia. Tentei imitá-los, vendo como faziam e repetindo os mesmos gestos, mas não fui capaz. A onda passava e eu ficava no mesmo sítio. Tentei vezes sem fim, batendo os pés ainda mais depressa que eles, e nada. Andavam por ali meia dúzia deles. Saltávamos todos para as pranchas quando víamos uma onda boa, batíamos os pés como rodas de um vapor e aqueles diabi-nhos seguiam viagem, deixando-me sozinho e frustrado.

Durante uma boa hora insisti, mas não convenci uma única onda e levar-me para terra. Até que chegou um amigo, Alexander Hume Ford, giobe-trotter de profissão. Este homem, sempre à procura de novas sensações, encontrou a felicidade em Waikiki. Ao dirigir-se para a Austrália, aportou aqui para passar uma semana a fazer surf-riding, desporto que o entusiasmava. Praticava-o havia um mês, todos os dias, e experimentava as mesmas emoções dos primeiros dias. A sua opinião pareceu-me abalizada:

- Não use essa prancha, livre-se dela porque é extremamente perigosa. Veja como tenta montá-la. Se por acaso batesse com a ponta no fundo, ficaria com as tripas de fora. Tome a minha, é própria para o seu tamanho.

Inclino-me sempre perante a verdadeira ciência. Ford sabia o que fazia: mostrou-me como posicionar-me sobre a prancha. Depois esperou por uma boa onda, deu-me um empurrão no momento propício e lá fui eu! Sente-se uma impressão deliciosa quando a onda nos agarra e impulsiona para a frente. Lancei-me como uma flecha numa distância de 30 e tal metros e aterrei na praia ao mesmo tempo que a onda. A partir daí, fiquei à vontade. Aproximei-me de Ford em cima da prancha, que era das grandes, com vários centímetros de espessura, e pesava uns bons 35 quilos. Fez-me uma série de recomendações. Ele próprio não tivera ninguém para o ensinar e transmitiu-me em meia hora tudo quanto aprendera ao longo de várias semanas, à custa de muito trabalho. Foi uma espécie de curso compacto: meia hora depois, estava em condições de funcionar sozinho. Repeti as manobras várias vezes seguidas, enquanto Ford me encorajava e dava conselhos. Por exemplo, mostrou-me a zona precisa da prancha em que devia apoiar-me. Mas devo ter-me colocado muito à frente porque, quando avançava para terra, a maldita prancha embateu de frente contra o fundo, estacou e deu um salto mortal, ao mesmo tempo que cortava as relações comigo de forma violenta. Fui atirado pelo ar como uma moeda e engolido ignominiosamente quando a onda se quebrou. Foi então que percebi que, sem a ajuda de Ford, teria ficado mesmo com as tripas de fora. Esse risco em particular faz parte do desporto, avisou ele. Se lhe acontecer isto antes de abandonar Wai-kiki, estou certo que, nessa altura, a sua ânsia de sensações ficará saciada por uns tempos.

Bem vistas as coisas, estou absolutamente convencido de que o homicídio é pior que o suicídio, especialmente se, no primeiro caso, se tratar de uma mulher. Ford salvou-me de ser um homicida.

- Imagine que as suas pernas são um leme - aconselhou-me. - Mantenha-as juntas e oriente-as na direcção pretendida.

Passados uns minutos, quando eu vinha sobre uma onda em direcção a terra, vi à minha frente, com água pela cintura, uma mulher. Como fazer parar a onda? Pensei que a matava: a prancha pesava 35 e tal quilos e eu 75. A soma deste peso seguia a uma velocidade de 25 quilómetros horários. Eu e a prancha constituíamos um projéctil.

Deixo aos físicos o cuidado de calcular a força do impacte sobre essa pobre e indefesa mulher. Foi então que me lembrei de Ford, o meu anjo da guarda, me ter dito:

"Use as pernas como um leme!" Orientei-as rapidamente noutra direcção, dando uma guinada com toda a força de que fui capaz. A prancha descreveu um círculo por cima da onda e aconteceram várias coisas ao mesmo tempo: a água açoitou-me de passagem, uma bofetada ligeira se comparada com outras, mas suficiente para me fazer desmontar e atirar-me para o fundo, numa violenta colisão que me fez rebolar várias vezes. Lancei a cabeça para fora para poder respirar e por fim pus-me de pé. A mulher estava diante de mim. Senti-me um herói por lhe ter salvo a vida e ela riu-se para mim, mas não era um riso histérico, porque não se apercebera do perigo. Em todo o caso, reflecti, não fora eu mas Ford quem a salvara; não havia razão para me sentir um herói. Além disso, aquela manobra com os pés era fantástica. Com mais uns minutos de prática, consegui abrir caminho por entre vários banhistas sem me deixar derrubar.

- Amanhã, levo-o para o largo - prometeu Ford. Observando o mar à distância, vi as enormes vagas fumegantes.

Ao lado delas, as ondas da véspera pareciam uma simples ondulação. Não sei o que lhe teria dito se de repente não me tivesse lembrado de que era um dos espécimes da espécie superior. Limitei-me a responder:

- Está bem, amanhã dou cabo dessas ondas.

A água que embate na praia de Waikiki não difere da que banha as costas de todas as ilhas havaianas; especialmente do ponto de vista do nadador, por um lado é uma água maravilhosa, fresca mas agradável, e por outro, suficientemente quente para permitir ficar na água todo o dia sem se sentir frio. Mantém sempre a mesma temperatura, de dia ou sob a luz das estrelas, no pino do Verão ou quando o Inverno avança: nem quente de mais, nem fria em excesso. Dadas as qualidades desta água - pura, cristalina e salgada como no mar alto - não admira que os canacas estejam entre os melhores nadadores do mundo.

Na manhã seguinte, depois de Ford aparecer, percorri naquele mar fantástico uma distância que não sei calcular. A cavalo nas pranchas, ou instalados de barriga para baixo, atravessámos, remando, o "infantário" onde brincavam os garotos canacas. Chegámos ao mar alto, onde as grandes vagas se lançavam sobre nós, roncando. Aquela simples luta, em que as enfrentávamos passando-lhes por cima ou por baixo, já era um desporto em si. Impunha-se conservar toda a presença de espírito por ser um combate em que se desferem golpes poderosos, por um lado, e em que, por outro, é preciso usar uma certa astúcia - uma luta entre a força bruta e a inteligência.

Não tardei a aprender novas tácticas. Quando uma vaga se encaracolava por cima de mim, durante um curto instante eu distinguia a luz do dia através do seu corpo de esmeralda; então baixava a cabeça e agarrava-me com toda a força à prancha, pronto a receber o embate que, visto pelos que observavam da praia, me fazia desaparecer completamente no mar. Na realidade, eu e a prancha tínhamos passado pela crista e emergíamos na zona calma, do outro lado. Não recomendaria estes açoites violentos a um inválido ou a uma pessoa delicada. A força que exercem e o impacte da água que transportam são como uma explosão. Acontece uma pessoa ter de enfrentar meia dúzía delas de cada vez e é nessa altura que se descobrem novos méritos ao chão firme e boas razões para se ficar em terra.

Ao largo, no meio de um turbilhão de espuma, um terceiro personagem, de nome Freeth, veio juntar-se a nós. Quando me libertava de uma vaga e esfregava os olhos para me preparar para a próxima, vi surgir em cima dela um jovem deus de pele bronzeada pelo sol, numa pose descontraída. Mergulhámos na onda que cavalgava e Ford chamou-o.

Ele voltou atrás, segurou a prancha pelo meio, e remou direito a nós. Ensinou-me coisas; lembro-me de uma em particular: como enfrentar uma vaga excepcionalmente grande. Estas são mesmo ferozes e é imprudente ir contra elas em cima de uma prancha. Mas Freeth mostrou-me como se faz, de forma que sempre que via uma a avançar para mim, deslizava para a parte de trás da prancha e deixava-me cair dentro do mar, com os braços por cima da cabeça e segurando a prancha. Assim, se a vaga me arrancasse a prancha das mãos e tentasse bater-me com ela (um truque típico dessas ondas), haveria uma camada de água de umas dezenas de centímetros de altura entre a minha cabeça e a pancada. Quando a vaga passava, subia para a prancha e remava. Fiquei a saber que muitos ficaram seriamente feridos por terem sido apanhados pela prancha.

Com Freeth aprendi também que o método do surf-riding e da luta com as ondas que ele implica resume-se à não resistência. Apara-se o golpe que se abate sobre nós.

Mergulha-se bem no fundo da vaga que ameaça fustigar-nos e deixa-se que ela siga o seu caminho por cima da nossa cabeça. Nada de movimentos rígidos; convém manter-se sempre relaxado, ceder à água que tenta forçar-nos. Quando uma corrente submarina nos arrasta para o fundo, não nos devemos debater, para não nos afogarmos, porque é ela mais forte. Mais vale deixarmo-nos levar, nadando ao mesmo tempo para cima. Assim será fácil chegar à superfície.

Quem queira aprender surf tem de ser bom nadador e estar habituado a progredir debaixo de água. Além disso, deve ter uma força mediana e bastante bom-senso. Nunca se pode calcular exactamente o ímpeto de uma nova vaga. Há turbilhões em que quem cavalga a prancha é lançado para fora dela e projectado para uma distância de dezenas de metros. O praticante só pode estar concentrado em si mesmo. Por mais acompanhado que esteja por outros, não pode contar com a ajuda de ninguém. A agradável sensação de segurança que me invadia quando estava na presença de Ford e Freeth fazia-me esquecer que era a minha primeira experiência no mar alto e com as vagas maiores.

No entanto, recordei-me disso, e de súbito, por força das circunstâncias: uma grande massa de água precipitou-se para nós e os outros dois foram correndo para terra, montados nela. Eu podia ter-me afogado várias vezes antes de os meus companheiros terem tempo de voltar para junto de mim.

Uma pessoa desliza pela face de uma onda montada numa prancha, mas primeiro tem de aprender a deslizar. A prancha e o praticante têm de se mover em direcção à costa numa velocidade razoável, antes de serem apanhados pela onda. Quando se detecta uma a aproximar-se, dá-se-lhe as costas e rema-se com os braços para terra com toda a força, usando aquilo a que se chama o "estilo do moinho", que forma uma espécie de ondulação imediatamente à frente da onda. Se a prancha avançar suficientemente depressa, a onda acelera-a e inicia-se o percurso deslizante.

Nunca me esquecerei da primeira grande vaga que enfrentei no mar alto. Vi-a vir, virei-me de costas e remei o mais depressa que pude. A minha prancha avançava cada vez mais rápida, até que tive a sensação de que me arrancavam os braços. Não sei dizer o que se passava lá atrás, porque não é possível virar a cabeça ao mesmo tempo que se roda os braços. Ouvi a crista da onda a silvar e a crepitar e senti a prancha a ser levantada e lançada para a frente. Nem percebi o que se passou no meio minuto seguinte porque, embora tivesse os olhos abertos, não conseguia ver nada, envolvido nos remoinhos brancos da crista. Mas não me importei, porque me dominava a consciência extasiada de ter sido levado pela onda. No entanto, ao fim desse meio minuto, comecei a ver e a respirar. Percebi que pelo menos um metro da minha prancha estava fora da água, empinado no ar. Desloquei o peso do corpo para a frente para fazer baixar a prancha. Depois fiquei deitado em repouso, transportado num movimento louco, a observar a costa, enquanto ia distinguindo cada vez melhor a praia e os banhistas. Não cheguei a percorrer meio quilómetro porque, para evitar que a prancha mergulhasse, desloquei o meu peso para trás, mas demasiadamente, de forma que escorreguei pela retaguarda da onda.

Foi o meu segundo dia de surf e sentia-me muito satisfeito comigo mesmo. Estive quatro horas no mar e a minha intenção era, no dia seguinte, chegar à praia em cima da prancha. Mas esse desejo não se realizaria. No dia seguinte estive de cama, não propriamente doente, mas mal disposto. Quando descrevi a água maravilhosa do Havai, esqueci-me de descrever o sol fantástico do Havai. É um sol tropical e além disso, nos primeiros dias de Junho, um sol a pique, insidioso e enganador. Pela primeira vez na vida, submeti-me a uma insolação sem me dar conta. Já queimara muitas vezes os braços, os ombros e as costas, que estavam habituados; mas as pernas não. Ora as barrigas das pernas tinham estado expostas, durante quatro horas, aos raios perpendiculares do sol. Só ao chegar a terra descobri o que se passara. Quando nos queimamos demasiado, a princípio só sentimos a pele quente; depois torna-se doloroso e formam-se bolhas. Também as articulações, onde a pele encolhe, recusam dobrar-se. Por isso passei o dia seguinte na cama, sem poder andar. E por isso estou hoje a escrever sentado na cama. Mais vale fazer qualquer coisa do que estar parado. Mas amanhã... ah! amanhã volto para aquela água maravilhosa e hei-de regressar a terra de pé, ao lado de Ford e Freeth. Se não conseguir, recomeçarei no dia seguinte, e no outro se for preciso. Uma coisa está decidida: o Snark não zarpará de Honolulu enquanto também eu não puser asas nos pés, asas à velocidade do mar. Quero tornar-me um Mercúrio alado, bronzeado e a pelar.

 

Os leprosos de Molokai

Nesse dia, quando o Snark contornava a costa de Molokai, impelido pelo vento, a caminho de Honolulu, olhei para o mapa. Em seguida apontei a uma península baixa, atrás da qual se elevava uma formidável falésia com uma altura entre 600 e 1200 metros.

- O abismo infernal, o sítio mais amaldiçoado à face da Terra! - exclamei.

Eu próprio ficaria escandalizado se, nesse momento, pudesse ver-me, um mês depois, nas margens deste local maldito, entretendo-me desavergonhadamente na companhia de 800 leprosos tão divertidos como eu. A alegria deles não tinha nada de desonroso; mas a minha sim porque, no meio de tal desgraça, era pelo menos deslocada. Estes os pensamentos que me inspiraria a minha atitude. No entanto, e só isso me pode desculpar, não consegui resistir à boa disposição geral.

Na tarde do 4 de Julho, todos os leprosos se reuniram numa pista para a prova desportiva. Eu tinha-me afastado do director e dos médicos para conseguir fotografar o momento da chegada à meta. Era uma corrida interessante e todos tomavam partido. Concorriam três cavalos, um montado por um chinês, outro por um havaiano e o terceiro por um rapaz português. Todos eram leprosos, assim como o júri e os assistentes. A corrida consistia em duas voltas à pista. O chinês e o havaiano distanciaram-se ao mesmo tempo e cavalgavam lado a lado, enquanto o rapaz português se esfalfava, com 60 metros de atraso.

Terminaram a primeira volta mantendo as posições respectivas. A meio caminho da segunda e última corrida, o chinês tomou a dianteira, deixando o havaiano para trás.

Entretanto, o português acelerou o trote do cavalo, mas parecia não ter qualquer hipótese de alcançar os outros. A multidão agitou-se. Todos os leprosos eram entusiastas deste tipo de corridas. O português aproximava-se cada vez mais. Também eu começava a empolgar-me. Estavam já na recta final quando o português ultrapassou o havaiano.

Num troar de cascos, os três cavalos, muito a par uns dos outros, precipitavam-se para a meta e, enquanto os cavaleiros, aos gritos, faziam silvar os chicotes, os assistentes lançavam urros e frases de incitamento. Cada vez mais perto e com grande esforço, o português ia ganhando terreno, até que ultrapassou o chinês. Dei por mim no meio de um grupo de leprosos que, exultantes, lançavam os chapéus ao ar e dançavam loucamente. Como eu, aliás. Às tantas, surpreendi-me a gritar: "Cos diabos, o rapaz vai ganhar! Vai ganhar!"

Procurei dominar o meu entusiasmo dizendo para mim próprio que estava a assistir a um dos horrores de Molokai e que, em tais circunstâncias, era vergonhoso da minha parte sentir-me tão bem disposto e descontraído. Mas nenhuma dessas reflexões teve qualquer efeito, porque a prova seguinte, uma corrida de burros que já se iniciava, era de morrer a rir. O último a chegar seria o vencedor e, para complicar a situação, nenhum dos cavaleiros montava o animal que lhe pertencia. Tinham trocado de burros, de forma que cada um tentava ultrapassar o seu próprio animal. Naturalmente, só os donos de burricos lentos e teimosos se tinham inscrito para a prova. Um dos bichos fora treinado para dobrar as pernas e deitar-se no chão sempre que o dono lhe tocava com os calcanhares nos flancos. Havia os que queriam à viva força fazer meia volta e regressar à linha de partida, enquanto outros preferiam encostar-se à berma, para depois parar e pousar o focinho por cima da cerca. E nenhum tinha pressa de chegar. A meio da corrida, um dos burros entrou em contradição com o seu cavaleiro. Já todos tinham chegado à meta e ele ainda estava a discutir. Ganhou a corrida, embora o cavaleiro tenha sido obrigado a completá-la a pé. Entretanto, cerca de um milhar de leprosos ria a bandeiras despregadas com a comicidade da prova. Qualquer outra pessoa presente, como foi o meu caso, só poderia juntar-se à alegria geral e divertir-se com eles.

Todo este intróito serve como preâmbulo às minhas declarações seguintes: os horrores de Molokai, como já foram designados, não existem. A colónia foi alvo de descrições feitas por muita gente que se especializou em relatos sensacionalístas, embora nunca lá tenha ido, na maior parte dos casos. Não nego que a lepra seja um terrível flagelo, mas até agora a preocupação principal tem sido realçar o lado sinistro de Molokai, em vez de se analisar fielmente a forma como vivem os leprosos e os que lhes consagram todo o tipo de cuidados. Veja-se este exemplo: um jornalista que, claro, nunca pôs os pés na colónia, descreveu em estilo impressionista o director Mac Veigh deitado numa palhota e todas as noites cercado por leprosos esfomeados que se lhe atiravam aos pés, de joelhos, gemendo e pedindo comida. Este relato arrepiante foi transcrito na imprensa de todos os Estados Unidos e deu origem a editoriais indignados e condenatórios.

Pois bem, vivi e dormi durante cinco dias na "palhota" de Mr. MacVeigh (que, diga-se de passagem, é uma confortável casa de madeira; aliás, convém que se saiba que não existe uma única palhota na colónia) e ouvi de facto os leprosos a gemer e a clamar por comida - só que esses sons dolentes, particularmente harmoniosos e rítmicos, eram acompanhados pela música de instrumentos de corda, violinos, guitarras, ukeleles e banjos. Além disso, os sons dolentes eram de vários tipos: gemeram a orquestra de leprosos, as duas agremiações corais e por fim um quinteto de excelentes vozes. Donde se conclui que tal impostura nunca devia ter sido publicada. Os lamentos descritos eram afinal a serenata que os clubes recreativos fazem a Mr. Mac Veigh sempre que ele regressa de Honolulu.

A lepra não é tão contagiosa como se pensa. Estive de visita à colónia, com a minha mulher, durante uma semana, coisa que não teria acontecido se tivéssemos tido receio de contrair a doença. Também não calçámos luvas de borracha nem evitámos aproximar-nos dos leprosos. Pelo contrário, andámos muitas vezes no meio deles e, quando nos fomos embora, conhecíamos vários doentes, de vista e de nome. Basta que se tomem simples precauções sanitárias. Quando regressam a suas casas, depois de estar todo o dia em contacto com os doentes, os não leprosos, isto é, os médicos e o director da colónia, limitam-se a lavar a cara e as mãos com um sabão ligeiramente anti-séptico e a mandar lavar as batas.

No entanto, convém salientar que os leprosos são pessoas infectadas e que, do pouco que se conhece da doença, há que mantê-las rigorosamente segregadas. Por outro lado, o horror terrível que antigamente inspiravam e o ignóbil tratamento que sofriam eram inúteis e cruéis. Para dissipar certos medos infundados, descreverei as relações entre os leprosos e os não leprosos como as observei em Molokai. Na manhã em que chegámos, Charmian e eu assistimos a uma sessão de tiro organizada pelo Clube de Tiro de Kalau-papa onde, pela primeira vez, nos apercebemos da forma como as aflições dos doentes eram partilhadas por todos e dos esforços que essa solidariedade suscitava. O clube participava justamente num concurso cujo prémio era uma taça oferecida por Mr. Mac Veigh, um dos sócios, tal como o Dr. Goodhue e o Dr. Hollman, os médicos residentes (que, por sinal, viviam na colónia com as respectivas mulheres). Na barraca de tiro, estávamos rodeados de doentes. Leprosos e não leprosos serviam-se das mesmas espingardas e acotovelavam-se naquele espaço exíguo. A maior parte dos doentes eram havaianos. Um norueguês sentou-se num banco ao pé de mim.

Mesmo à minha frente, no stand, estava um americano, veterano da Guerra Civil, que havia combatido contra os confederados. Tinha 65 anos, mas isso não o impediu de marcar pontos. Participavam no concurso robustos polícias havaianos, também leprosos, de farda caqui, assim como portugueses, chineses e cocuas - sendo estes últimos indígenas da ilha, não leprosos, a prestar serviços na colónia. E, de tarde, Charmian e eu subimos ao pali de 700 metros, para observar pela última vez a colónia, o director, os médicos e todo aquele conjunto de nacionalidades, doentes e pessoas sãs, todos entretidos numa apaixonante partida de basebol.

Os leprosos e a sua doença tão misteriosa e temida não eram tratados desta maneira na Europa, na Idade Média. Nessa época, considerava-se um leproso como morto, legal e politicamente. Punham-no à frente de um cortejo e depois levavam-no à igreja, onde um sacerdote procedia à cerimónia fúnebre. Em seguida deitavam-lhe uma pazada de terra sobre o peito e davam-no como morto - um morto vivo. No entanto, este procedimento sumário não era completamente desnecessário. A lepra, que só foi conhecida na Europa depois do regresso das Cruzadas, disseminou-se a pouco e pouco, até que atingiu grande quantidade de pessoas. Tratava-se obviamente de uma doença que se contraía por contacto. Contagiava-se e por isso era também óbvio que se erradicaria isolando os afectados. Por mais bárbaro e monstruoso que fosse o tratamento reservado aos leprosos naqueles tempos, o certo é que a segregação deu resultado, porque foi assim que minimizou a extensão do flagelo.

Graças aos mesmos meios, a lepra vai diminuindo nas ilhas do Havai. Mas o isolamento dos leprosos em Molokai não é o pesadelo horrível tantas vezes explorado pela imprensa sensacionalista. Em primeiro lugar, não arranca impiedosamente o doente à família. Perante um caso suspeito, a delegacia de saúde convida a pessoa a dirigir-se, com viagem e estadia pagas, ao posto de observação de Kalihi, em Honolulu. O bacteriólogo submete-a 3 um exame microscópico e, se for detectado o bacilo da lepra, procede-se a um novo exame, este executado pelos CInco médicos da junta de inspecção médica. Se a lepra for confirmada, a respectiva declaração tem de ser ratificada pela delegacia de saúde e o leproso é mandado para Mlki. Além disso, durante os exames, o doente tem o direito de nomear um médico seu representante, escolhido e pago por si. Mesmo depois de confirmada a doença, não é enviado de imediato para Molokai. É-lhe concedido tempo suficiente, semanas e às vezes até meses, para, em Kalihi, pôr a sua vida e os assuntos pessoais em ordem. Uma vez em Molokai, tem direito à visita dos familiares, dos seus agentes de negócios, etc, embora estes não sejam autorizados a comer e a pernoitar na casa onde ele mora. Estão-lhes reservadas casas próprias, devidamente desinfectadas.

Quando visitei Kalihi na companhia de Mr. Pinkham, director da delegacia de saúde, assisti ao desenrolar de um caso de suspeita de infecção. Tratava-se de um havaiano de 57 anos, que trabalhava em Honolulu havia 34 anos como impressor numa tipografia: O bacteriólogo chegara à conclusão de que era leproso, a junta médica estava na dúvida e nesse dia tinham-se reunido todos em Kalihi para novo exame.

Enquanto estiver em Molokai, o suposto leproso goza do privilégio de pedir reinspecções e os doentes estão constan-temente a deslocar-se a Honolulu para esse efeito.

O vapor que me levou à ilha transportava também duas leprosas de regresso, ambas jovens. Uma delas fora a Honolulu para resolver assuntos relacionados com propriedades que tinha e a outra fora ver a mãe doente. As duas tinham ficado um mês em Kalihi.

A colónia de Molokai tem um clima muito mais ameno que o de Honolulu, por estar situada no lado da ilha onde sopram os alísios frescos do Nordeste. A paisagem é magnífica: de um lado, vê-se o mar azul e, do outro, o panorama grandioso dos contrafortes do pali, entremeado de luxuriantes vales. Por toda a parte há prados verdes onde pascem centenas de cavalos pertencentes aos leprosos, alguns dos quais têm até automóvel próprio. No pequeno porto de Kalaupapa estão amarrados barcos de pesca e uma lancha a vapor que também lhes pertencem e que eles próprios operam. Tirando uma certa e determinada zona não lhes é imposta qualquer restrição especial no mar. Vendem o produto da pesca à delegacia de saúde e o dinheiro com que são pagos pertence-lhes integralmente.

Durante a mínha estadia, numa só noite pescaram ao todo 1800 quilos de peixe.

Enquanto uns se dedicam à pesca, outros trabalham a terra. Exercem todo o tipo de profissões. Um leproso, havaiano puro, é o patrão dos pintores. Emprega oito homens e aceita empreitadas para pintar edifícios da delegacia de saúde. É membro do Clube de Tiro de Kalaupapa, onde o conheci, e confesso que estava muito mais bem vestido do que eu. O carpinteiro-chefe está igualmente bem colocado. Depois, além da loja da delegacia de saúde há outras pequenas lojas privadas, dirigidas por aqueles que têm espírito comercial. Mr. Waiamau, o adjunto do superintendente, homem competente e de uma educação extrema, é havaiano puro e leproso. Mr. Bartlett, que é o actual encarregado da loja, é um americano que se dedicava ao comércio em Honolulu quando foi atingido pela doença. Todo o dinheiro que estes homens ganham lhes pertence por inteiro. Nos casos de incapacidade para o trabalho, a colónia encarrega-se dos doentes, que recebem alimentação, casa, roupa e cuidados médicos. A delegacia de saúde também coordena os trabalhos agrícolas e a criação de gado, gere a leitaria para consumo local e emprega, a troco de salários justos, quem quiser trabalhar.

No entanto ninguém é obrigado a fazê-lo, porque a colónia encarrega-se de sustentar todos.

Conheci o major Lee, engenheiro mecânico ao serviço da Inter Island Steamship Company, que surpreendi em plena actividade, quando instalava os novos equipamentos na lavandaria a vapor, a ser inaugurada em breve. Encontrei-o várias vezes depois disso, e um dia disse-me:

- Conte-lhes lá o modo como aqui se vive, conte fielmente. Por favor, escreva exactamente aquilo que viu! Acabe de vez com essa história da câmara de horrores e coisas do género. Não gostamos que deturpem os factos, porque temos o nosso orgulho. Diga-lhes o que somos, nem mais nem menos.

Todos os que encontrei na colónia - homens ou mulheres, tanto faz - exprimiram o mesmo sentimento de uma forma ou outra. Era evidente que se ressentiam amargamente da forma sensacionalista e mentirosa como a sua situação fora explorada no passado.

Apesar da doença que os aflige, os leprosos formam uma colónia feliz, dividida por duas aldeias e muitas casas de campo e de praia, com cerca de mil almas. Têm seis igrejas, um edifício da Young Men's Christian Association, várias salas de reuniões, um coreto, uma pista de corridas, campos de basebol e de tiro, um clube atlético, muitas colectividades recreativas e duas bandas.

- Gostam tanto de cá estar, que não conseguimos pô-los daqui para fora - disse-me Mr. Pinkham.

Foi-me dado verificar que é verdade. Em Janeiro deste ano, onze dos leprosos nos quais a doença, apesar de certas degenerações, deixara de dar sinais de actividade, foram levados a Honolulu para serem sujeitos a novos exames. Não queriam ir e, quando lhes perguntaram se desejavam Ír-se embora no caso de lhes ser declarada a cura, responderam em coro: "Queremos regressar a Molokai!"

Em tempos recuados, antes da descoberta do bacilo da lepra, um pequeno número de homens e mulheres atingidos por várias afecções de origem completamente diferente foram considerados leprosos e mandados para Molokai.

Anos passados, sentiram-se grandemente consternados quando os bacteriólogos afirmaram que não estavam afectados pela doença nem nunca tinham estado. Não quiseram ser mandados embora e, de uma forma ou de outra, como ajudantes e enfermeiros, acabaram por ser empregados pela delegacia de saúde e ficaram. O actual carcereiro é um deles. Quando descobriu que não estava leproso, aceitou, a troco de salário, ficar encarregado da cadeia, para não ter de se ir embora.

Mr. Mac Veigh citou-me o caso de um negro americano, actualmente a viver em Honolulu como engraxador. Há muito tempo, antes de haver exames bacteriológicos, mandaram-no para Honolulu como leproso. Tomado a cargo pelo Estado, gozava de grande liberdade e entregava-se a uma série de patifarias. Até que um dia, depois de ter passado anos a dar constantes dores de cabeça ao director por pequenos delitos, aplicaram-lhe o teste bacteriológico e foi declarado não leproso.

- Ah-ha! - disse-lhe Mr. Mac Veigh, esfregando as mãos de contente. - Agora é que te apanhei! Vou meter-te no próximo vapor e nunca mais quero pôr-te a vista em cima!

Mas o negro não queria. Casou-se logo com uma velha minada pela lepra e apresentou um pedido à delegacia de saúde para ficar a prestar assistência à esposa doente.

Alegava em tom patético que ninguém a trataria melhor do que ele próprio. Mas percebia-se-lhe o jogo. Foi deportado no tal vapor e posto em liberdade total. No entanto, preferia Molokai. Desembarcou sub-repticiamente no lado abrigado da ilha, escondeu-se no pali de noite e voltou à sua casa da colónia. Prenderam-no, julgaram-no e condenaram-no, por violação de propriedade, a uma pequena multa. Deportaram-no de novo, com o aviso de que, em caso de recidiva, seria multado em cem dólares e mandado sob prisão para Honolulu. Agora, quando Mr. MacVeigh lá vai, o negro engraxa-lhe os sapatos e diz-lhe:

- Ouça, patrão, não imagina como tenho saudades da vida que tinha na ilha! - e acrescenta, em voz baixa: - Patrão, será que posso voltar? Não pode arranjar maneira de me aceitarem de novo?

Passou nove anos em Molokai e nunca fora tão feliz na vida.

Quanto ao medo que a lepra inspira, não vi sinal dele na colónia, nem entre os leprosos, nem entre os que o não eram. Quem mais terror sente são os que nunca viram um leproso e não sabem nada da doença. No hotel em que me hospedei em Waikiki, uma senhora mostrou-se horrorizada e surpreendida quando soube que eu tivera a coragem de visitar a colónia. Disse-me que, nascida em Honolulu, nunca tinha estado perto de um leproso. Ora isso é coisa que eu não posso afirmar sobre mim próprio porque, nos Estados Unidos, o isolamento dos leprosos não é cumprido à risca e aconteceu-me várias vezes ver leprosos nas ruas das grandes cidades.

A lepra é terrível, não há dúvida; mas do pouco que sei dela e do seu grau de contágio, preferiria muito mais acabar os meus dias em Molokai do que, por exemplo, num sanatório para tuberculosos. Nos hospitais para pobres das cidades e vilas americanas ou nas instituições do mesmo género noutros países, assiste-se a cenas mais impressionantes do que em Molokai. Por isso, se pudesse escolher entre ser obrigado a viver na ilha para o resto da vida ou no East End de Londres, no East Side de Nova Iorque ou nos Stockyards de Chicago, não hesitaria em inclinar-me para Molokai. Era melhor um ano de vida lá do que cinco nesses antros de miséria e degradação humana.

Em Molokai as pessoas são felizes. Nunca esquecerei a comemoração do 4 de Julho a que assisti. Às seis horas da manhã, os "horríveis" já andavam na rua, vestidos com fatiotas delirantes, uns a cavalo, outros montados em mulas ou burros (que lhes pertenciam) e a envolver toda a colónia em brincadeiras loucas. Duas bandas acompanhavam-nos. Depois apareceram as amazonas pa-u, umas 30 ou 40 mulheres, todas havaianas, cavaleiras exímias vestidas a preceito com os fatos de montar tradicionais e passeando-se em grupos de duas ou três. De tarde, Charmían e eu fomos convidados para a tribuna do júri e entregámos os prémios às melhores praticantes e às mais bem vestidas. À nossa volta, centenas de leprosos com as cabeças, os pescoços e os ombros enfeitados de grinaldas de flores assistiram encantados ao espectáculo. Nos cumes das montanhas e nas planícies verdejantes avistavam-se de vez em quando grupos de homens e mulheres, vestidos festivamente, também eles e as respectivas montadas engalanados de flores, a cantar, a rir e a galopar velozmente. Na tribuna, observando tudo isto, lembrei-me do lazareto de Havana, onde um dia vi uns duzentos leprosos, presos até ao dia da morte entre quatro paredes, num espaço exíguo. Não, há milhares de sítios no mundo onde eu não desejaria viver, preferindo Molokai como local de residência permanente. A noite, fomos para uma das salas de reunião onde, perante uma assistência compacta, as agremiações corais participaram num concurso, e o serão terminou com um baile. Vi havaianos a viver nos bairros miseráveis de Honolulu e por isso compreendo que os leprosos, quando os levam para novos exames, sejam unânimes em pedir que os deixem regressar a Molokai.

Uma coisa é certa: o leproso nesta colónia está em muito melhores condições do que aquele que vive fora dela. Esse leproso é um pária solitário, vive no pânico permanente de ser descoberto e, lenta e inexoravelmente, vai sendo corroído pela doença. Esta tem períodos de actividade irregulares mas, quando se apodera da vítima, devasta-a, para depois se manter latente por tempo indeterminado. Pode não se manifestar durante cinco ou dez anos, ou até quarenta, e nesse intervalo o doente goza aparentemente de boa saúde. No entanto, é frequente reactivar-se. A vítima necessita dos cuidados de um cirurgião competente, mas este não pode intervir se ela mantém o seu mal em segredo. Por exemplo, a primeira pústula pode aparecer na planta do pé; quando atinge o osso, provoca necrose. Se o leproso se esconder, não pode ser operado, a necrose progride até aos ossos da perna e, num espaço de tempo curto e terrível, o doente morre de gangrena ou de qualquer outra complicação funesta. No entanto, se essa pessoa estiver em Molokai, o cirurgião remove-lhe a úlcera do pé, limpa o osso e erradica completamente a infecção nesse ponto de ataque. Um mês depois da operação, o leproso já pode andar a cavalo, participar em corridas a pé, nadar no mar ou subir as encostas íngremes das montanhas para colher maçãs silvestres. E, como já disse, a doença, estacionária, não voltará a atacá-lo mos próximos cinco, dez ou quarenta anos.

Os horrores lendários da lepra remontam aos tempos em que as condições de vida não permitiam a cirurgia anti-séptica e são anteriores à época em que médicos como o Dr. Goodhue e o Dr. Hollmann foram viver para esta colónia. O Dr. Goodhue foi o primeiro cirurgião de Molokai e merece todos os elogios pelo nobre trabalho que tem feito. Passei uma manhã com ele na sala de operações e, das três intervenções a que assisti, duas eram em recém-chegados, homens vindos no mesmo vapor que eu.

Em ambos os casos, a doença manifestara-se apenas num ponto. Um tinha uma úlcera perfurada no tornozelo, já em estado avançado, e o outro tinha outra idêntica, mas numa das axilas. Nenhum fora tratado antes de vir para a ilha, mas o Dr. Goodhue deteve imediatamente o mal e, daqui a quatro semanas, estes doentes terão recuperado as forças e o bem-estar. A única diferença entre eles e eu é que a doença continua latente nos seus corpos e poderá futuramente causar mais lesões.

Existem referências à lepra, cuja existência remonta à pré-história, nas crónicas mais antigas. No entanto, hoje não se sabe praticamente nada sobre a sua origem.

A única coisa certa é ser ela contagiosa, pelo que convém isolar os afectados. A diferença entre os nossos dias e o passado é que o leproso é sujeito a uma segregação mais rigorosa e é tratado de forma mais humana. Mas a lepra continua a ser um mistério terrível e profundo. Os relatórios dos médicos especialistas de todo o mundo revelam a natureza insidiosa desta doença e todos são unânimes em afirmar que não apresenta nenhuma fase claramente definida. Não a conhecem bem. Antigamente, generalizavam de uma forma grosseira e dogmática. Agora já não o fazem, e a única conclusão geral que se pode extrair de todas as investigações efectuadas é que a lepra tem um carácter relativamente pouco contagioso. Mas ninguém sabe explicar porquê. O bacilo foi isolado, pode-se determinar por exame bacteriológico se uma pessoa está ou não infectada, mas continua a desconhecer-se a forma como o bacilo penetra no corpo de um não leproso. Não se sabe qual o tempo de incubação e fracassaram todas as tentativas para inocular a lepra em várias espécies animais.

Também não se conseguiu ainda descobrir um soro para combater a afecção. Apesar de todas as pesquisas, continua a desconhecer-se a origem da lepra e a sua cura, porque todas as supostas pistas se revelaram infrutíferas. Houve um médico que garantiu, aparentemente com provas convincentes, ser a lepra causada por uma dieta prolongada à base de peixe, até ao dia em que um dos seus colegas, vivendo nas montanhas da índia, lhe perguntou por que razão os habitantes daquela região, que nunca tinham comido peixe, nem eles nem os seus avós, eram afectados pela doença. Se aparece um homem que trata a lepra com uma espécie de óleo ou medicamento e anuncia a sua cura, passados cinco, dez ou quarenta anos, ela surge de novo na mesma pessoa. O facto de a doença se manter latente por muito tempo tem sido responsável por muitas supostas curas. Mas uma coisa é certa: até hoje, nunca se verificou um caso autêntico de cura.

A lepra tem um carácter relativamente pouco contagioso, como já dissemos. Mas como se dá o contágio? Um médico austríaco e os seus assistentes inocularam-se com o bacilo e não contraíram a doença. Mas isto não é conclusivo, porque existe o famoso caso do homicida havaiano que conseguiu que lhe comutassem a pena de prisão perpétua por ter aceitado ser inoculado com o bacilo da lepra e, passado pouco tempo, detectou-se a infecção, vindo o dito homem a morrer em Molokai. No entanto, também isto não é conclusivo, porque se descobriu que, na altura em que foi inoculado, vários membros da sua família estavam já na colónia, porque padeciam da mesma doença. Pode ter sido contagiado por eles e ter havido um misterioso período de incubação, já em curso quando foi oficialmente inoculado. Depois há o caso daquele mártir da Igreja, o padre Damien, que foi para Molokai de boa saúde e morreu leproso. Têm surgido muitas teorias sobre como adoeceu, mas ninguém tem nenhuma certeza.

Ele próprio nunca o soube explicar, mas terá corrido os mesmos riscos que uma mulher que vive há muitos anos na colónia, teve cinco maridos leprosos e filhos deles e continua livre da doença.

Continua por desvendar o mistério da lepra. Quando se souber mais sobre esta afecção e se descobrir uma vacina eficaz, ela será certamente curável e erradicada da face da Terra, visto que é pouco contagiosa. Será uma batalha curta e incisiva. Entretanto, como inventar tal vacina ou qualquer outra arma ainda desconhecida? Esta é hoje uma questão séria. Na índia, há meio milhão de leprosos, não isolados. Está muito certo existirem bibliotecas Carnegie, universidades Rockefeller e outras obras beneméritas do mesmo género, mas não podemos deixar de pensar que os milhares de dólares gastos para esse efeito teriam utilização muito mais proveitosa, por exemplo, na leprosaria de Molokai. Os que aqui vivem foram atingidos por mero acaso, são vítimas de uma misteriosa lei natural da qual nada sabemos, e segregaram-nos para garantir o bem-estar dos seus semelhantes e evitar o contágio, embora nem sequer se saiba como ele se processa. Não só por eles, mas em nome das gerações futuras, uns poucos milhares de dólares poderiam adiantar muito uma investigação conscienciosa e científica com vista à cura da lepra, a descoberta de uma vacina ou de qualquer outra insondável terapia que permitisse ao mundo da medicina exterminar o bacilo desta terrível doença. Filantropos, aqui tendes o meio ideal de aplicar o vosso dinheiro!

 

A Casa do Sol

Há muitos turistas que viajam por todo o mundo, buscando incessantemente paisagens deslumbrantes, marítimas ou terrestres, e maravilhas e belezas da natureza. Invadem a Europa em batalhões cerrados; vêem-se manadas e rebanhos deles na Flórida e nas Antilhas, nas pirâmides e nas encostas e cumes das montanhas Rochosas dos Estados Unidos e do Canadá; mas na Casa do Sol é mais provável encontrar um dinossauro vivo do que um único desses viajantes. Haleakala é o nome havaiano para "a casa do Sol" e designa uma montanha imponente da ilha de Maui; mas, se poucos foram os turistas que a avistaram ao longe, muito menos foram os que a percorreram. No entanto, atrevo-me a afirmar que nunca um amante da natureza contemplará espectáculo mais grandioso em qualquer outro ponto do mundo.

Honolulu fica a seis dias de São Francisco, de vapor. Maui fica a uma noite de Honolulu e, estando com pressa, o viajante pode chegar, no espaço de outras seis horas, a Kolikoli, pouco mais de 3000 metros acima do nível do mar e perto do acesso a Casa do Sol. Contudo, nenhum turista lá vai, e o Haleakala dorme, desdenhado e esquecido na sua grandiosidade solitária.

Como nós, os do Snark, não somos turistas, fomos ao Haleakala. Nas encostas desta montanha gigantesca, a uma altitude de 600 metros, há um rancho de gado com uns 2000 hectares, onde passámos a noite. Na manhã seguinte, calçámos as botas e montámos os cavalos para, na companhia de vaqueiros e apoiados por bestas de carga, subirmos até Ukulele, uma propriedade a uma altitude de 1800 metros, com um clima de temperaturas extremas, que nessa noite exigiu cobertores e a lareira da sala bem acesa. A palavra ukulele significa em havaiano "pulga saltadora" e é também o vocábulo que designa um determinado instrumento musical, comparável a uma guitarra antiga. Penso que aquele rancho se chama assim por essa razão. Não estávamos com pressa e passámos lá o dia, discutindo sabiamente altitudes e barómetros, e sacando do nosso barómetro sempre que os argumentos contrários exigissem uma demonstração. O meu barómetro é o instrumento que mais docilmente se submete aos meus desejos. Também colhemos framboesas, do tamanho de ovos de galinha ou até maiores, das que crescem nas encostas de lava cobertas de verdura até ao cume do Haleakala, a 1300 metros dali. Com o céu descoberto e luminoso, foi-nos dado assistir a uma prodigiosa batalha entre as nuvens que se desenrolava abaixo do ponto em que nos encontrávamos.

Todos os dias, sem falhar, trava-se esse duelo. Ukiukiu é o nome do vento alísio que vem lá de baixo, de Nordeste, e que se lança, impetuoso, para o Haleakala. Esta montanha é tão majestosa e alta que não o deixa chegar ao cume e fá-lo derivar para os lados, de forma que a sotavento não se sente a mais leve brisa. Pelo contrário, o vento, a que chamam Naulu, sopra na direcção contrária ao alísio, pelo que, eternamente, dia e noite, o Ukiukiu e o Naulu lutam um contra o outro, avançando, recuando, flanqueando, curvando, enrolando, contorcendo e virando, num embate que se torna visível através das massas de nuvens que, arrebatadas do céu, são lançadas em colunas, batalhões e exércitos. De vez em quando, o Ukiukiu, em rajadas poderosas, projecta nuvens compactas para o cume do Haleakala; nessa altura, o Naulu captura-as habilmente, alinha-as numa nova formação de guerra e, assim apoiado, dá resposta ao velho e eterno inimigo. É então que o Ukiukiu envia um enorme exército de nuvens para o lado oriental da montanha, num bem executado movimento de flanco. Mas o Naulu, na sua toca a sotavento, alcança as tropas atacantes, puxa, empurra e arrasta, flagelando como lhe convém, e arremete-as de novo contra Ukiukiu, pelo lado ocidental. Entretanto, fora do campo de batalha decisivo, no alto das encostas que se afundam até ao mar, os dois antagonistas não param de se bombardear com pequenos farrapos de nevoeiro que, procurando defrontar-se aqui e ali em escaramuças, rastejam pelo chão, esgueiram-se entre as árvores, passam pelos desfiladeiros, montam emboscadas, saltam uns sobre os outros, e aprisionam-se mutuamente. Às vezes, o Ukiukiu ou o Naulu destaca uma coluna que, em carga cerrada, captura os pequenos grupos de combatentes ou projecta-os para o céu, fazendo-os girar loucamente em remoinhos verticais, a centenas de metros de distância.

Mas é sobretudo nas vertentes ocidentais que a luta é mais acesa. O Naulu reúne o grosso das tropas e averba vitórias retumbantes. O Ukiukiu desfalece ao fim da tarde, como acontece com todos os alísios, e é repelido pelo Naulu, cujos generais não têm rival. Todo o dia acumulou e organizou as suas imensas reservas. A medida que a tarde avança, ele agrupa-as numa coluna compacta, formada em esporão, com vários quilómetros de comprimento, com vários metros de espessura e 500 metros de largura. Esta coluna insinua-se lentamente na vasta frente de batalha do enfraquecido Ukiukiu, que acaba por cortar ao meio. Mas nem tudo se passa sem efusão de sangue porque, por vezes, o Ukiukiu responde selvaticamente e, graças aos numerosos reforços que afluem do imenso Nordeste, desfaz meio quilómetro da coluna de Naulu e varre-a para longe, para o Maui ocidental. Às vezes, quando a vanguarda das duas forças se enfrenta, produz-se um tremendo turbilhão perpendicular, em que as massas nebulosas, envolvidas umas nas outras, sobem milhares de metros em espiral. Uma das tácticas favoritas de Ukiukiu é agrupar formações densamente compactas, nas zonas baixas, e enviá-las para um nível inferior ao do Naulu. Quando está por baixo do inimigo, começa a flagelá-lo. A poderosa tropa central do Naulu cede a estes golpes, forma uma bolsa em corcova mas consegue invariavelmente repelir a coluna atacante, pondo-a em debandada. Entretanto, os farrapos que prepararam as pequenas escaramuças dispersam, esgueiram-se entre as árvores e os desfiladeiros, pairam e rastejam sobre a vegetação e, com corridas inesperadas, saltam uns sobre os outros, enquanto, por cima, lá no alto, o Haleakala, solitário e banhado pelo sol, assiste impassível ao combate. À noite, a luta prossegue mas, de manhã, o Ukiukiu recupera forças, como é próprio dos alísios, repele as hordas do adversário que, desbaratadas, fogem em desordem. Todos os dias se repete esta batalha das nuvens: o Ukiukiu e o Naulu estão condenados a combater eternamente nas vertentes do Haleakala.

Na manhã seguinte, voltámos a partir a cavalo, iniciando a subida ao cume, acompanhados pelos vaqueiros e pelos cavalos de carga. Um destes transportava cerca de 75 litros de água, dividida por dois recipientes, um em cada flanco, porque a água é preciosa na cratera sempre seca, apesar de, uns quilómetros mais a norte e a leste, a pluviosidade ser das mais intensas do mundo. O caminho fez-se por rios de lava fria e endurecida, sem a preocupação de seguir os trilhos. Nunca vi cavalos com trote tão seguro como esses 13 que compunham a nossa comitiva. Subiam ou desciam, sem nunca cair, apoiando-se em pontos inclinados quase na perpendicular, com a calma e sangue-frio das cabras montesas.

Todos os que sobem a picos isolados sofrem uma estranha ilusão de óptica: quanto mais se sobe, mais se torna perceptível a superfície terrestre, pelo que se tem a sensação de que o horizonte se encontra num plano mais elevado. Este fenómeno é muito patente no Haleakala, porque o antigo vulcão ergue-se directamente a partir do mar, como um único bloco, sem apoios laterais. A medida que subíamos pela vertente escarpada, dir-se-ia que a montanha, nós e toda a paisagem em volta mergulhávamos num abismo profundo. A toda a volta, dominava-nos o horizonte e, quanto mais progredia a ascensão, mais nos afundávamos e mais se distanciava a perspectiva da paisagem, numa linha cada vez mais horizontal, onde o céu e o mar se reuniam. Era um espectáculo estranho, irreal, a fazer lembrar o Buraco de Simm e do vulcão pelo qual Júlio Verne viajou até ao centro da Terra.

Quando finalmente chegámos ao alto da montanha gigantesca, o cume era como que a base de um cone invertido, situado no centro de um impressionante poço: não estávamos nem em cima nem em baixo. Lá no alto, víamos o horizonte imponente contra o céu e, muito abaixo, onde devia estar o topo da montanha, estava um fosso profundo, a grande cratera, a Casa do Sol. O bordo das paredes íngremes mede cerca de quarenta quilómetros. Nós estávamos no lado ocidental da parede que desce quase a pique, separados do fundo por uns 800 metros de distância. O chão da cratera, salpicado de pequenos cones de erupções e com marcas de rios de lava, tem um tom vermelho, vivo e fresco como se estivesse ainda em brasa. Os cones de cinzas, entre 100 e 250 metros de altura, pareciam pequenos montes de areia, tal era a magnificência da paisagem que os enquadrava. Duas brechas com centenas de metros de profundidade interrompiam a borda da cratera; o Ukiukíu tentava em vão fazer passar através delas os seus fofos rebanhos de nuvens. Por mais depressa que se esgueirassem por entre as frestas, o calor da cratera dissolvia-as no ar e nenhum avanço, por mais ousado, lhes permitia franqueá-las.

Era um imenso cenário de despojamento e desolação, sombrio, temível e fascinante, palco de fogo e de abalos subterrâneos, que deixara à mostra o interior terrestre.

Dir-se-ía o local onde se reuniam as matérias-primas necessárias à construção do mundo primitivo. Aqui e ali, rochas formidáveis e antiquíssimas tinham sido projectadas das entranhas da Terra, rompendo e abrindo caminho pela superfície derretida e fervente, visivelmente arrefecida há pouco tempo. Era um espectáculo irreal e inacreditável.

Olhando para cima, víamos lá ao alto (na realidade, lá em baixo) o combate entre Ukiukiu e Naulu. E mais acima da vertente abissal, por sobre a batalha das nuvens, no ar e no céu, pairavam as ilhas de Lanai e Molokai. Do outro lado da cratera, para sudeste, ainda aparentemente num plano elevado, lá estava o mar cor de turquesa, primeiro, e depois a linha branca da rebentação nas costas do Havai; mais alto ainda, avistávamos a cintura de nuvens em volta do vulcão e, a uma distância de 120 quilómetros, erguendo os seus corpos estupendos contra o céu azul, com os topos cobertos de neve e coroados por nuvens, tremeluzentes como uma miragem, os picos do Mauna Kea e do Mauna Loa, como que equilibrados na abóbada celeste.

Segundo a velha lenda, um certo Maui, filho de Hina, vivia na montanha hoje chamada Maui ocidental. Hina, a mãe, passava as noites a fazer kapas, que secava. Ocupava integralmente todas as manhãs a pô-las ao sol. Mas assim que terminava este trabalho, Hina tinha de as recolher de novo, para as abrigar da noite. Isto porque (convém dizer) naquele tempo os dias eram mais curtos do que agora. Apiedado da mãe por a ver naquela eterna roda viva, Maui decidiu intervir... não, não lhe ocorreu ajudar a pôr as kapas ao sol, não era tarefa que estivesse à sua altura. Tencionava obrigar o Sol a andar mais devagar.

Talvez tenha sido o primeiro astrónomo havaiano. Seja como for, observou atentamente o astro, medindo-o de vários pontos da ilha, e concluiu que fazia o seu curso em direcção ao Haleakala. Ao contrário de Josué, não implorou a intercessão divina. Recolheu uma grande quantidade de cocos e, com a fibra, teceu uma corda grossa na ponta da qual montou um nó corredio, como ainda hoje fazem os vaqueiros do Haleakala. Depois subiu à Casa do Sol e ficou à espera. Quando o astro apareceu a correr à desfilada, disposto a terminar o dia o mais depressa possível, o valente jovem prendeu com o seu laço um dos raios de luz, dos maiores e mais fortes. Obrigou o Sol a abrandar um pouco e quebrou esse raio. Repetiu a operação várias vezes, até que o astro teve de atendê-lo. Maui estabeleceu os termos da paz, que o Sol aceitou, comprometendo-se a descrever o seu curso mais lentamente. Foi assim que Hina passou a ter muito tempo para secar as suas kapas, e os dias ficaram mais compridos, o que, aliás, corresponde precisamente ao que postula a astronomia moderna.

Almoçámos carne seca de vaca, acompanhada de poi, num curral de pedra que em tempos servia de abrigo ao gado que atravessava a ilha. Depois percorremos a borda da cratera numa distância de 800 metros e começámos a descer. A 750 metros encontrámos a primeira plataforma; a seguir, fomos escorregando por uma vertente íngreme de cinzas vulcânicas. Apesar do terreno movediço, os cavalos não caíram, mantendo-se sempre habilmente em equilíbrio. A superfície cinzenta das cinzas, quando pisada pelos cascos dos animais, transformava-se numa poeira de um tom ocre amarelado, de aspecto venenoso e com sabor ácido, que se elevava em nuvens. Os cavalos percorreram a galope o trecho plano que levava à entrada de uma espécie de chaminé de arejamento, e a descida prosseguiu por entre nuvens de poeira vulcânica, em que fomos contornando os cones de cinza e percorrendo uma paisagem feita de tons de tijolo, rosa velho e roxo escuro. As paredes da cratera dominavam-nos, cada vez mais altas, enquanto passávamos por uma série de rios de lava que ziguezagueavam no meio de grandes vagas estáticas de mar petrificado. A superfície deste oceano sinistro era intersectada por ondas de lava com dentes em serra, rodeada de cristas pontiagudas e espirais de formas fantásticas. Transpusemos uma fenda profunda e, durante mais de 10 quilómetros, continuámos o nosso caminho ao longo do principal rio de lava, o mais recente.

No fundo da cratera escolhemos um lugar para acampar, num pequeno bosque de olapas e koleas, abrigado num canto, contra as paredes da cratera, que se elevavam a 500 metros de altura. Havia pasto para os cavalos, mas faltava água. Percorremos o caminho de lava até uma brecha na muralha onde sabíamos que se acumulava água, mas o reservatório estava vazio. Quinze metros mais acima, descobrimos uma pequena reserva com mais de 300 litros de água. Içámos um balde e dentro de pouco tempo fazíamos correr o precioso líquido ao longo da rocha para encher o reservatório mais abaixo, enquanto os vaqueiros se atarefavam a conter os cavalos, que, cheios de sede, se atropelavam uns aos outros para beber. Voltámos ao acampamento. Mais acima ouviam-se os berros de rebanhos de cabras montesas. Enquanto montávamos a tenda, alguém disparou e abateu uma. Comemos carne seca e cabrito assado nas brasas, tudo regado com poi puro. Sobre a crista da cratera, precisamente por cima das nossas cabeças, agitava-se um mar de nuvens, empurradas pelo Ukiukiu. Embora se tratasse de um movimento perpétuo, essas nuvens nunca cobriam ou obscureciam a lua, porque o calor do vulcão dissolvia-as assim que se aproximavam. Atraídas pelo calor do acampamento, apareceram umas cabras a observar-nos com ar provocador. Esses bichos, muito gordos, raramente bebiam água, contentando-se, segundo nos disseram, com o abundante orvalho matinal. A tenda pareceu-nos um quarto confortável e adormecemos ao som embalador das bulas entoadas pelos nossos infatigáveis vaqueiros havaianos, em cujas veias corria certamente o sangue de Maui, seu valente antepassado.

Qualquer fotografia só pode dar uma pálida ideia do que é a Casa do Sol. A composição química sublimada da película pode não mentir, mas na realidade não revela toda a verdade. É possível a objectiva reproduzir fielmente a brecha de Koolau, tal como ela se projectou na lente da máquina; no entanto, na fotografia resultante perde-se a escala gigantesca da paisagem. As paredes das crateras, que parecem ter umas dezenas de metros de altura, têm de facto várias centenas; as nuvens ao canto, que procuram insinuar-se na enorme fenda, têm mais de dois quilómetros de largura naquele ponto, e do lado de fora são um verdadeiro oceano; no primeiro plano, os cones e escórias vulcânicas, que na fotografia parecem incolores e bolorentos, têm na realidade uma infinidade incrível de tonalidades, em que predominam os vermelhos tijolo, os rosas, os amarelos ocres e o roxo escuro. A descrição oral também deixa muito a desejar: dizer que a parede de uma cratera mede 500 metros de altura é evocar uma simples dimensão linear; a mera estatística não permite visualizar a imponência dessa muralha. O Sol está a 150 milhões de quilómetros da Terra mas, segundo as concepções vulgares, um país vizinho fica muito mais longe. A debilidade do cérebro humano não faz justiça ao Sol, como não a faz à Casa do Sol. O Haleakala transmite à alma humana uma mensagem de beleza e encantamento para a qual não há palavras. É como as distâncias: Kolikoíi está a seis horas de Kahului, que por sua vez está a uma noite de Honolulu. Honolulu está a seis dias de São Francisco. E depois?...

Subimos pelas paredes da cratera e, depois de prendermos os cavalos em sítios inimagináveis, divertimo-nos a atirar pedras e a abater cabras selvagens a tiro. Não matei nenhuma, estava demasiado ocupado com as pedras. Lembro-me em particular de um local onde fizemos rolar uma rocha do tamanho de um cavalo. Começou a descida aos tombos e aos sacões, parecendo querer estacar mas, passados uns minutos, fazia voos sucessivos de mais de 20 metros. Pareceu diminuir rapidamente de volume e a certa altura embateu contra um pequeno ressalto de areia vulcânica que a projectou no ar, num salto de lebre, deixando um rasto de poeira amarela. Víamos a rocha cada vez pior por causa da poeira, até que alguém do nosso grupo assinalou o ponto em que ela parara, embora provavelmente não conseguisse distingui-la, por ter desaparecido na distância. Outros viram-na mais abaixo... Eu não vi nada e estou firmemente convencido de que continua a rolar para o abismo.

No nosso último dia dentro da cratera, o Ukiukiu fez-nos uma demonstração de força. Venceu o Naulu em toda a linha, encheu a Casa do Sol com nuvens e afogou-nos também nelas, obrigando-nos a sair dali. Usávamos um recipiente de meio litro de capacidade, colocado debaixo de um rasgão na tenda, como uma espécie de pluviómetro.

Ficou cheio nessa última noite de tempestade e chuva e não pudemos medir o excesso de água que encharcou os nossos cobertores. Com o pluviómetro avariado, já não havia razão para nos deixarmos ficar. Por isso levantámos o acampamento, envolvidos no lusco-fusco da madrugada húmida, e dirigimo-nos para leste, por cima das cinzas, para chegar à brecha de Kaupo. O Maui oriental não é mais do que um imenso rio de lava que transbordou, há muito tempo, por esta brecha. Os nossos cavalos seguiram esse caminho, a uma altitude de pelo menos 2000 metros acima do nível do mar, e foi-lhes necessário muito esforço para terminar a descida. Nunca na minha vida vi animais assim: sem perder o sangue-frio, transpunham com mil cuidados e gestos lentos os locais perigosos mas, assim que chegavam a um piso relativamente plano e amplo, percorriam-no a trote até se tornar difícil, altura em que refreavam o passo. Durante dias, tinham vencido assim todo o tipo de terreno acidentado, pastando quase sempre as ervas que encontravam, durante a noite e enquanto nós dormíamos. Naquele dia, tendo percorrido 45 difíceis quilómetros, entraram em Hana a galope, como potros irrequietos. Alguns deles, criados na região seca do Haleakala, no lado protegido do vento, nunca tinham recebido ferraduras. Todos os dias suportavam o piso áspero da lava, com o peso de um homem em cima, e no entanto tinham os cascos em tão bom estado como os que estavam ferrados.

A paisagem entre Vieira's (onde a brecha de Kaupo despeja a sua lava no mar) e Hana, que percorremos em meio dia, bem merecia uma estadia de uma semana ou um mês; mas, apesar da sua beleza selvagem, empalidece e amesqui-nha-se quando comparada com a paisagem deslumbrante que se estende para lá das plantações de borracha, entre Hana e o desfiladeiro de Honomanu. Foram necessários dois dias para atravessarmos aquele trecho maravilhoso no barlavento de Haleakala, que os seus habitantes chamam "terra do fosso", designação prosaica, sem dúvida, mas a única que usam. É raro vir alguém de fora a estas paragens praticamente desconhecidas e, à excepção de uns tantos comerciantes, nunca ninguém ouviu falar deste lugar de Maui. Ora um fosso é uma fenda profunda, provavelmente lamacenta e rodeada de paisagens desinteressantes e monótonas. Mas o desfiladeiro de Nahiku não é um fosso qualquer. O lado de barlavento do Haleakala está sulcado de milhares de brechas abruptas das quais se precipitam outras tantas torrentes, e cada uma delas forma à sua passagem dúzias de cascatas e quedas de água, antes de chegar ao mar. Já vos contei que nestas paragens chove mais do que em qualquer ponto do mundo. No ano de 1904, o nível médio foi de 10,5 metros. Não esqueçamos que aqui a água se transforma em açúcar, porque afinal a cana-de-açúcar é a principal riqueza das ilhas do Havai. Ora, o desfiladeiro de Nahiku não é um desfiladeiro propriamente dito, mas uma sequência de túneis abertos pelo homem. A água corre debaixo de terra e só surge à superfície para transpor uma garganta; é recolhida por uma conduta suspensa a uma altura vertiginosa, que a transporta para o outro flanco da montanha e, daí, para as plantações. A este magnífico aqueduto chamam "fosso", com a mesma propriedade com que se designaria como "furgão" a barca de Cleópatra.

Por aqui não há rede viária e, antes da perfuração dos túneis, nem sequer havia trilhos para cavalos. A intensidade das chuvas, aliada a um solo fértil e ao sol tropical, dá origem a uma selva densa e fumegante. Mesmo que se desbravassem mil metros da floresta por dia, a vegetação é tão luxuriante que, ao fim de um semana, seria preciso voltar atrás rapidamente, antes que as lianas invadissem por completo o caminho aberto. O'Shaughnessy é o nome do engenheiro empreendedor que conquistou a selva e os desfiladeiros, dirigiu a construção da conduta e abriu os trilhos para os cavalos. As estruturas que concebeu são sólidas, à base de cimento e trabalho de carpintaria, e constituem uma das mais notáveis obras hidráulicas do mundo inteiro. Não há riacho ou fonte, por mais pequenos, cuja água não esteja aproveitada, recolhida pelos canais subterrâneos e levada para a conduta principal. Mas por vezes a chuva é tanta, que em muitos pontos transborda e uma parte dela é arrastada para o mar.

O trilho para os cavalos não é muito largo. Como o engenheiro que o planeou, não recua perante nenhum obstáculo. Quando à sua frente uma vala se interna na montanha, salta-lhe por cima; e quando um troço do aqueduto transpõe um desfiladeiro, atravessa-o. Sobe e desce pelas vertentes dos precipícios, estreita-se para acompanhar as curvas das vertentes íngremes, contorna as quedas de água ou passa por trás delas, indiferente ao ribombar da espuma em fúria e às paredes a pique, que se estendem por centenas de metros, acima e abaixo. E os admiráveis cavalos da montanha não se mostram menos destemidos.

Seguem no seu trote elegante e descontraído, apesar da humidade do terreno escorregadio e, se os deixarem, galopam e fazem acrobacias na borda do abismo. Só aconselho esta travessia do desfiladeiro de Nahiku aos que tenham nervos sólidos e suficiente presença de espírito. Um dos vaqueiros, exímio a domar cavalos e toda a vida habituado a cavalgar pelas acidentadas encostas ocidentais do Halea-kala, era conhecido como o mais forte e corajoso do rancho. Nas pastagens, enquanto os outros recuavam, ele pegava os touros de frente, como se nada fosse. Todos o respeitavam. Mas nunca tinha feito este caminho e foi aí que perdeu o prestígio. Quando aquele vaqueiro viu a primeira vala do aqueduto, construída por cima de um precipício assustador, estreita, sem corrimão, com uma queda de água ameaçadora lá ao alto e uma catarata mais abaixo, o ar impregnado de uma poalha de salpicos de água e vibrando num clamor de som e movimento... bem, desmontou, explicou rapidamente que era casado e tinha dois filhos, e atravessou a pé, levando o cavalo à rédea.

Só nos livrávamos das condutas para nos metermos em precipícios; e descansávamos dos precipícios quando encontrávamos novas condutas, excepto quando a vala estava debaixo de terra, e nesse caso passava cavalo e cavaleiro, todos em fila, por uma ponte primitiva, feita de toros de madeira, oscilante e ameaçando arrastar-nos para o fundo. Confesso que, a princípio, transpunha esses troços com os pés fora dos estribos e, junto das encostas a pique, certificava-me num gesto perfeitamente consciente e deliberado de que o pé do lado de fora estava bem solto, a milhares de metros de altura sobre o abismo. Isto ao princípio porque, assim como na cratera tínhamos perdido a noção de grandeza, também aqui, em Nahiku, depressa perdemos a noção de profundidade. A sucessão ininterrupta de gargantas e picos altos já não nos causava qualquer surpresa, era como se estivéssemos perante acidentes normais de terreno; além disso, passou a ser gesto habitual e isento de emoção olharmos para baixo e vermos abrir-se a nossos pés um fosso de muitas centenas de metros. Como acontecia com o trilho e os cavalos, nada nos metia medo.

Que cavalgada! Por toda a parte se via água a caír - tão depressa tínhamos as nuvens abaixo de nós como acima, porque passávamos pelo meio delas! E, de vez em quando, um facho de luz penetrava como um projector no abismo que se abria aos nossos pés ou faiscava sobre uma crosta rochosa na beira da cratera, a centenas de metros acima das nossas cabeças. Em cada curva do trilho, surgiam aos nossos olhos dezenas de quedas de água, projectando-se a dezenas de metros de altura.

Quando acampámos naquela primeira noite, na ravina de Keanae, num só ponto de observação contámos 32 quedas de água. A vegetação era exuberante naquela terra virgem: havia florestas de koa, e koleas e árvores-da-cera; outras, as ohiaais, davam uma espécie de maçãs vermelhas, tenras, gostosas e suculentas; bananeiras bravas, agarradas às paredes dos desfiladeiros, vergavam sob o peso dos cachos maduros, que caíam e obstruíam o caminho. E por cima do arvoredo ondulavam, num mar de vida verde, milhares de variedades de lianas:

umas lançavam-se para o ar sem apoio, saindo dos ramos mais altos em filamentos rendilhados; outras enroscavam-se em volta dos troncos das árvores, como serpentes monstruosas; uma delas, chamada ei-ei, muito parecida com uma palmeira trepadeira, desenvolvia-se sobre um tronco grosso, passando de ramo em ramo, de árvore em árvore, e sufocando a vegetação em que se apoiava. Neste mar verde, fenos majestosos abriam as suas frondes grandes e delicadas e o lehua exibia as suas flores escarlates.

No chão crescia igual profusão de plantas estranhas, que nos Estados Unidos costumamos ver cuidadosamente conservadas em estufas. De facto, nas fendas abrigadas de Maui encontramos um verdadeiro jardim botânico, onde se desenvolvem todas as variedades conhecidas de fetos, desde a pequena avenca cabelo-de-vénus ao enorme e voraz chifre-de-veado - odiado pelos habitantes da floresta, porque cresce em massas compactas com quase um metro de espessura e cobre hectares de terreno.

Nunca se viu cavalgada assim. Durou dois dias, no fim dos quais entrámos numa paisagem de campos ondulados e, por um caminho relativamente transitável, galopámos até ao rancho. Bem sei que parece uma crueldade obrigar os animais a este último esforço, depois de uma jornada tão difícil; mas não conseguimos refreá-los, apesar de nos esforçarmos, ao ponto de ficarmos com as palmas das mãos esfoladas. Basta isto para compreenderem a espécie de cavalos que se cria no Haleakala. No rancho, reinava uma grande animação. Havia uma concentração do gado, para se fazer a marcação a ferro e domar cavalos selvagens. Lá em cima, o Ikiukiu e o Naulu prosseguiam em valorosos combates e, mais alto ainda, o sol brilhante dominava o majestoso cume do Haleakala.

 

Travessia do Pacífico

Das ilhas Sandwich ao Tahiti. - Há grande dificuldade em realizar esta travessia contra os ventos alísios. Os baleeiros e outros marinheiros têm grandes dúvidas sobre a possibilidade de chegar ao Tahiti a partir das ilhas Sandwich. O capitão Bruce afirma que um barco deve manter-se a Norte até começar a ter vento, antes de se orientar para o seu destino. Na travessia que fez em Novembro de 1837, não observou ventos variantes perto do Equador quando vinha do Sul e não conseguiu ganhar leste em nenhum dos bordos, embora o tentasse de todas as maneiras.

São estas as instruções náuticas para o Pacífico Sul, Nem mais uma palavra para ajudar o fatigado viajante a fazer a longa travessia - e nenhuma referência à passagem entre o Havai e as Marquesas, que ficam a umas 800 milhas a nordeste do Tahiti e são as mais difíceis de alcançar. Suponho que a causa desta falta de informações se deve ao facto de nenhum mareante se ter dado ao trabalho de percorrer uma distância tão incrível. Mas o Snark nunca se deteve diante do impossível... principalmente porque só lemos aquelas curtas linhas orientadoras depois de zarparmos. Partimos de Hilo a 7 de Outubro e chegámos a Nuka-hiva, nas Marquesas, a 6 de Dezembro, uma distância de 2000 milhas em linha recta. Percorremos pelo menos o dobro para lá chegar, o que mais uma vez prova que o caminho mais curto de um ponto para outro nem sempre é uma linha recta. Se tivéssemos aproado directamente às Marquesas, talvez tivéssemos pela frente cinco ou seis mil milhas.

Uma coisa tínhamos já decidido. Não atravessaríamos o Equador a oeste dos 130 graus de longitude oeste, pelo seguinte problema: se atravessámos a oeste desse ponto, se os alísios de sudeste começassem a soprar nessa direcção, empurrar-nos-iam tão para oeste das Marquesas, que seria praticamente impossível tentar alcançá-las à bolina. Também era preciso ter em conta a corrente equatorial, que avança para Oeste a uma velocidade de 12 a 75 milhas ao dia. Estaríamos numa situação crítica se ficássemos a sotavento do nosso destino, com uma corrente destas contra nós. Não, não atravessaríamos o Equador nem um minuto, nem um segundo sequer a oeste dos 130 graus de longitude oeste. Mas como esperávamos os alísios de sudeste a 5 ou 6 graus a norte do Equador (o que implicava que, se soprassem de sudeste para sul-sudeste, precisávamos de ganhar sul para leste) tivemos de nos manter a norte para este dos alísios, até atingirmos pelo menos 128° graus de longitude oeste.

Esqueci-me de dizer que, como era costume, o nosso motor a gasolina de 70 cavalos não funcionou, de forma que só podíamos contar com o vento. O motor auxiliar também estava avariado. Já agora, mais vale confessar que o motor de cinco cavalos que fazia funcionar a luz, os ventiladores e as bombas também não valia grande coisa.

Noite e dia, sou perseguido pela ideia de um título sensacional para um livro que gostaria de escrever: A volta ao mundo com três motores de gasolina e uma mulher.

Mas provavelmente nunca o escreverei, para não ferir a susceptibilidade de certos jovens senhores de São Francisco, Honolulu e Hilo, que aprenderam mecânica à custa dos motores do Snark.

No papel, tudo parecia fácil Aqui ficava Hilo e ali o nosso objectivo, a 128 graus de longitude oeste. Com o alísio de nordeste a soprar, podíamos viajar em linha recta entre os dois pontos e até arribar. Mas o principal inconveniente com estes ventos é que nunca se sabe exactamente quando os vamos encontrar e em que direcção irão soprar. Apanhámos o alísio de nordeste mesmo à saída do porto de Hilo, mas o maldito vento rondava para leste. A corrente equatorial norte dirigia-se para oeste, forte como um rio. Além disso, um barco pequeno com mar forte e vento pela proa pouco pode avançar. Caturra nas ondas e fica no mesmo sítio. Com as velas todas caçadas, adorna e fica com a amurada de sotavento dentro de água, caturra, bate e não avança. Portanto, com o Snark, o resultado destas condições adversas foi uma longa curva para sul. Bem, não propriamente para sul, mas uma deriva para leste bastante desencorajadora porque, na realidade, não avançava exactamente nessa direcção. A 11 de Outubro, percorreu 40 milhas para leste; a 12 de Outubro, 15 milhas; a 13, nada; a 14, 30 milhas, a 15, 23 milhas, a 16, 11 milhas e a 17 de Outubro fez simplesmente quatro milhas para oeste. Assim, numa semana, cobriu um total de 115 milhas para este, ou seja 16 milhas diárias. Mas entre a longitude de Hilo e os 128 graus de longitude oeste há uma diferença de 27 graus, isto é, em números redondos, 1600 milhas. A razão de 16 milhas por dia, precisaríamos de 100 dias para cobrir essa distância. E mesmo assim, o nosso objectivo, 128 graus de longitude oeste, era 5 graus a norte do Equador, ao passo que Nuka-hiva, nas Marquesas, estava 9 graus a sul do Equador e 12 graus a oeste!

Só nos restava uma solução: ganhar sul para fugir aos alísios e entrar na zona dos ventos variáveis. De facto, o capitão Bruce não encontrou variáveis na sua travessia e não conseguiu ganhar leste em nenhum dos bordos, embora o tentasse de todas as maneiras. Ou encontrávamos os variáveis, ou estávamos perdidos, pelo que esperámos ter mais sorte que ele. Os variáveis ocupam uma faixa estreita de oceano entre os alísios e a calma equatorial e pensa-se que resultam das correntes de ar quente que se formam nas calmas equatoriais e se elevam no ar em direcção contrária aos alísios, baixando gradualmente até varrerem a superfície do mar, onde os podemos aproveitar. Encontram-se... onde calha, isto porque ficam confinados entre os alísios e as calmas equatoriais que mudam de lugar todos os dias, ao longo de meses.

Encontrámos ventos variáveis a 11 graus de latitude norte e mantivemo-nos deliberadamente nessa latitude. A sul estavam as acalmias equatoriais e a norte o alísio de nordeste que se recusava a soprar nessa direcção. Os dias passavam mas o Snark continuava no 11° paralelo. Os variáveis faziam jus ao nome. De vez em quando levantava-se um vento ligeiro que logo desaparecia e nos deixava quase parados durante 48 horas. Depois, outro vento soprava durante três horas e durante dois dias inteiros ficávamos no mesmo sítio. A seguir - até que enfim! - vinha mais um vento ligeiro de oeste, deliciosamente fresco, que punha o Snark em movimento, a todo o pano, com um rasto de espuma e o cabo da barquilha muito direito. Ao fim de meia hora, quando nos preparávamos para içar a vela de balão, o vento, depois de mais uns sopros asmáticos, caía. E assim por diante. Qualquer vento favorável que durasse mais de cinco minutos restituía-nos o optimismo, mas isso não nos valia de nada, porque a brisa desvanecia-se na mesma.

Mas havia excepções. Nos variáveis, se se esperar, acaba por acontecer qualquer coisa e nós podíamos dar-nos a esse luxo, pois estávamos bem abastecidos de comida e água potável. A 26 de Outubro, percorremos 103 milhas para este, acontecimento tão notório que durante dias não falámos de outra coisa. Uma vez, apanhámos uma pequena tempestade de sul, que durou oito horas e nos ajudou a fazer 71 milhas para leste nessas 24 horas. Depois, quando já amainava, levantou-se vento de norte (a direcção oposta), que nos fez ganhar mais um grau a leste.

Havia muitos e muitos anos que nenhum veleiro se atrevia a fazer aquele percurso. Navegávamos numa das regiões mais desertas e solitárias do Pacífico. Nos 60 dias que durou a nossa travessia não vimos nenhuma vela ou fumo de vapor à distância. Um navio que se avarie nestas paragens bem pode andar à deriva anos a fio, antes de ser socorrido. A única hipótese de auxílio só poderia vir de um barco como o Snark, que se encontrava ali principalmente pela simples razão de a travessia ter começado antes de termos lido o parágrafo relativo às instruções náuticas. De pé no convés e traçando uma linha imaginária do olho ao horizonte, mediria, qualquer que fosse a direcção, três milhas e meia. Portanto, o diâmetro do círculo de água à nossa volta era de sete milhas. Visto que nos mantínhamos sempre no centro e nos movíamos sempre em qualquer direcção, vimos muitos círculos, todos iguais. Nenhum acidente que pudesse indicar uma ilha com árvores, um promontório sombrio, uma vela branca a quebrar a monotonia da curva perfeita do horizonte. As nuvens iam e vinham: surgiam por cima do limite do círculo e, cruzando-o, desapareciam do outro lado.

A medida que passavam as semanas, íamo-nos esquecendo da existência do mundo. Até que, por fim, só existia o pequeno mundo do Snark, com as suas sete almas a naveear na imensidão das águas. As nossas recordações do vasto mundo civilizado pareciam-nos sonhos de outras existências por nós vividas antes da nova vida a bordo.

Depois de esgotarmos a reserva de legumes, acontecia-nos por vezes falar desses alimentos com o mesmo pesar do meu pai quando se referia às maçãs da sua infância, hoje desaparecidas. Mas o homem é uma criatura de hábitos e habi-tuámo-nos àquela vida. Qualquer coisa diferente que viesse perturbá-la seria uma irritação e uma ofensa.

O mundo exterior deixou de interferir. A nossa sineta marcava as horas, mas nunca era accionada por visitantes. Não tínhamos convidados para jantar, nem telegramas, nem insistentes campainhas de telefone a perturbar a nossa intimidade. Não tínhamos compromissos a honrar, nem comboios para apanhar e não líamos matutinos para saber o que se passava com o restante bilião e meio de criaturas humanas.

Mas não sentíamos qualquer monotonia. Os problemas do nosso pequeno mundo tinham que ser resolvidos e, ao contrário do mundo maior, o nosso tinha de prosseguir a sua viagem pelo espaço marinho. Além disso, deparávamos com intrigantes perturbações cósmicas, que não afligem o globo terrestre na sua órbita pacífica pelo vácuo, onde não sopram ventos. Nunca sabíamos o que ia acontecer de um momento para outro. Emoção e variedade não nos faltavam. Por exemplo, às quatro horas da manhã, substituo Hermann no leme. Ele dá-me o rumo:

- Este-Nordeste. Desviou-se oito graus, mas não consigo mantê-lo na nossa direcção.

Nada de admirar. Ainda está para surgir o barco que se deixe governar numa calma tão grande.

- Há momentos levantou-se uma leve brisa... talvez ainda volte - diz Hermann, esperançado, antes de regressar ao seu beliche.

A mezena está arriada e bem ferrada. Nessa noite, com os balanços e a falta de vento, a vela a bater no mastro e o som cavo das adriças a bater e a roçar nos brandais tornaram-nos a vida num inferno. Mas a vela grande está içada e o estai, a bujarrona e a traquete estalam e as escotas chicoteiam cada vez que há um balanço. O céu está crivado de estrelas. Ponho o leme para ver se dá sorte, na direcção contrária àquela em que Hermann o mantinha, recosto-me e olho para o firmamento. Não tenho mais nada para fazer: que fazer quando um veleiro está absolutamente encal-mado?

A certa altura, bate-me no rosto uma brisa, leve, tão leve, que mal a sinto. Mas sucede-se-lhe outra, depois uma terceira, e um ventinho fresco, mas quase imperceptível, decide-se a soprar. Para meu grande espanto, o velame do Snark sente a alteração, agita-se, e o nosso barco também, porque a agulha de marear gira lentamente. Na realidade, não está mesmo a girar. O magnetismo terrestre mantém-na no mesmo eixo e, enquanto o Snark gira sobre si próprio, a agulha oscila sobre o delicado dispositivo de cartão que flutua num recipiente fechado e cheio de álcool.

E assim retomamos o nosso rumo. A brisa transforma-se num vento ligeiro que impele levemente o Snark. As nuvens correm no céu e reparo que as estrelas se vão apagando.

Rodeiam-me muros de trevas, de forma que, quando a última estrela desaparece, a escuridão é tão palpável que tenho a sensação de que a posso tocar. Se me inclino, sinto-a encostada à minha cara. As lufadas de vento sucedem-se e regozijo-me por a mezena estar arriada. Bolas! Esta rajada foi forte! O Snark começa a balançar, a amurada de bombordo afunda-se e o oceano Pacífico em peso entra pelo convés adentro. Quatro ou cinco destes bordos fazem-me lamentar que a bujarrona e a giba não estejam arriadas. O mar embravece e as rajadas de vento, mais frequentes, aumentam de violência, atirando salpicos de espuma para o ar. Não vale a pena tentar ver, O muro de escuridão está impenetrável. No entanto, não resisto ao desejo de medir a força dos golpes assestados sobre o Snark. Manifestam-se sinistros presságios do lado do vento e tenho a sensação de que, se me obstinar na observação, poderei adivinhá-los. Impressão inútil! Entre duas rajadas deixo a roda do leme e corro para a frente da cabina, onde acendo uns fósforos para consultar o barómetro, que indica 29-90. Este instrumento sensível recusa-se a tomar nota do rugido feroz que se ouve no cavername. Regresso à roda do leme mesmo a tempo de receber nova rajada, a mais forte de todas. Bem, seja como for, o vento sopra e o Snark está no suo rumo, a grande velocidade, para Este. De momento, é isso que conta.

Não deixo de me preocupar com a bujarrona e a giba. Se estivessem arriadas, o barco resistiria melhor ao vento e com menos perigo. O vento começa a roncar e caem grossas gotas de chuva no convés. Concluo que vou ter de chamar toda a equipagem; mas logo depois decido esperar um pouco mais. Talvez tudo fique por aqui e não seja necessário chamá-los, é melhor deixá-los dormir. Mantenho o Snark à altura do que se espera dele. De repente, abate-se sobre o convés um dilúvio, acompanhado de silvos lúgubres. Depois ressurge a calma, no meio da escuridão. Regozijo-me mais do que nunca por não ter chamado os homens.

Assim que cai o vento, o mar torna-se encapelado. Formam-se grandes vagas e o barco oscila como uma rolha de cortiça. Depois as rajadas sucedem-se, cada vez mais violentas. Se ao menos, no meio de todo o negrume, eu soubesse o que se passa do lado do vento! O Snark resiste com dificuldade, a amurada de sotavento mergulha cada vez mais na água. O vento ruge e silva com mais força.

Agora é que é altura de chamar os outros. Hei-de chamá-los, de certeza. A seguir cai uma bátega de água, o vento amaina e não os chamo. Mas sinto-me bem só, ali à roda do leme, a guiar aquele pequeno mundo por entre as trevas e o vendaval. É uma grande responsabilidade estar só, num momento de perigo, a tomar decisões enquanto os habitantes deste pequeno mundo dormem. Ocorre-me que era preferível não ter de arcar com esse peso quando nova tempestade se levanta, fazendo o mar galgar a amurada e as vagas bater contra o poço do leme. A água salgada em contacto com o meu corpo parece-me estranhamente tépida e forma nódulos espectrais de luz fosforescente.

O mais acertado seria chamar toda a equipagem para ferrar as velas. É estupidez da minha parte poupá-los ao esforço e deixá-los dormir calmamente. A luta interior entre o raciocínio e a compaixão ora me diz que os deixe em paz, ora me aconselha o contrário. Enquanto se desenvolve este combate singular, a tempestade parece querer dissipar-se. Concluo sabiamente que a solicitude pelo simples conforto físico não tem lugar na navegação prática; mas estudo a força das próximas rajadas de vento e decido não chamar os meus companheiros. No fim de contas, é o meu intelecto, acima de tudo, a querer adiar a decisão, a querer medir a sua capacidade de levar o Snark a dominar as condições adversas e a protelar para mais tarde, em caso de agravamento da situação, o pedido de ajuda aos outros. Rompe a aurora, cinzenta e brusca, por entre as nuvens, desvendando um mar espumoso que se abate sob o peso de borrascas cada vez mais frequentes e violentas. A chuva cai, levantando um vapor leitoso por cima das colinas moventes do mar, abatendo ainda mais as ondas, que aproveitam todas as acalmias para se agitarem com mais furor. Acordados pela tempestade, os homens vêm para o convés, e entre eles Hermann, que faz um sorriso rasgado quando lhe conto as dificuldades por que passei. Entrego o timão a Warren e decido descer, mas antes paro um instante no convés para voltar a pôr no seu lugar a chaminé do fogão da cozinha, que caíra. Estou descalço e, embora os meus pés já estejam bem treinados para se agarrar a qualquer piso, quando a amurada volta a mergulhar no mar, de repente dou por mim tombado no convés varrido pela água. Hermann, bem disposto, pergunta-me por que razão escolhi aquele sítio para me sentar. Depois vem um segundo balanço e ele cai ao meu lado, sem saber bem como. O Snark oscila para cima e para baixo, a amurada mergulha no mar e Hermann e eu, agarrados à preciosa chaminé, somos varridos pela enxurrada de água que se vai escoar pelos embornais de sotavento. Lá consigo completar a minha viagem até ao piso inferior e, enquanto mudo de roupa, sorrio satisfeito: o Snark ruma a Este.

Não, como vêem, nem tudo é monótono. Depois de conseguirmos rumar a este até aos 126 graus de longitude Oeste, deixámos para trás os ventos variáveis e dirigimo-nos para Sul, atravessando a zona de acalmias equatoriais, onde o tempo estava sereno. Aí, tirando partido da menor brisa, já nos dávamos por satisfeitos quando conseguíamos percorrer uma milha por hora; e isto em dias em que, apesar de tudo, passávamos por uma dúzia de pontos de tempo tempestuoso, em que o Snark corria sempre riscos de ser esmagado pelo vento. Às vezes éramos apanhados no centro ou na orla dessas rajadas e nunca sabíamos onde e como seríamos fustigados. As vezes o temporal levantava-se, cobrindo metade do céu, caía direito sobre nós e dividia-se em dois, depois passava por ambos os lados do barco sem nos atingir; noutros casos, uma massa de ar inofensivo, parecendo transportar pouca chuva e menos vento, assumia de repente proporções ciclópicas, desfazendo-se num dilúvio e massacrando-nos com ventania. Depois havia as rajadas traiçoeiras, que nos apanhavam por trás, a uma milha a sotavento. Também se dava o caso de sermos atingidos por duas rajadas ao mesmo tempo, que nos açoitavam sem piedade, uma de cada lado. Um temporal sempre cansa ao fim de umas horas, mas as rajadas não. A milésima rajada é tão interessante como a primeira e talvez até mais. Só os novatos não as temem. Quem tenha passado por mais de mil respeita-as, porque lhes conhece o poder.

Foi na zona das calmas equatoriais que se deu o acontecimento que mais nos excitou. A 20 de Novembro, descobrimos que, por acidente, tínhamos perdido metade do abastecimento em água potável. Era uma catástrofe porque, como nessa altura estávamos a 43 dias de Hilo, o que restava não era grande coisa. Controlando muito os gastos, teríamos apenas para mais uns 20 dias. Mas estávamos na zona das acalmias; não sabíamos onde nem quando encontraríamos os alísios de sudeste.

A bomba de água passou a funcionar com parcimónia e fazíamos uma única distribuição diária. Cada um recebia um litro para uso pessoal e o cozinheiro tinha direito a oito litros. Agora veja-se o lado psicológico da situação. Assim que se descobriu a falta de água, começou a assediar-me uma sede ardente, como nunca senti em dias da minha vida. Apetecia-me beber de um só trago o meu exíguo litro de água e tinha de recorrer a toda a minha força de vontade para não o fazer. E não era o único: todas as conversas giravam à volta da água, ninguém pensava em mais nada senão na água e até em sonhos ela nos perseguia. Analisámos os mapas, à procura de possíveis ilhas às quais recorrer em caso de extrema necessidade, mas não havia ilhas. As Marquesas eram as mais próximas e estavam do outro lado do Equador e da zona de calmas, claro, o que agravava o problema. Estávamos a 3 graus de latitude Norte, ao passo que as Marquesas ficavam a 9 graus de latitude Sul - uma diferença de mais de mil milhas. Além disso, situavam-se 14 graus a oeste da nossa longitude, perspectiva pouco agradável para um punhado de seres humanos que, em pleno mar, suavam as estopi-nhas sob o sol tropical.

Fixámos cabos de cada lado do Snark entre os ovéns da vela grande e da mezena. A estes prendemos o toldo grande do convés, içando-o com a ajuda de uma enxárcia, de forma a que a água da chuva que recolhesse se escoasse de maneira a poder ser aproveitada. De vez em quando passávamos por zonas enevoadas. Todo o dia procurámos as nuvens, ora a estibordo, ora a bombordo, e também à popa. Mas nunca nenhuma se aproximou para nos dar chuva. Da parte da tarde, uma bem grande pareceu querer avançar para nós, expandindo-se por sobre o mar. Víamo-la a despejar milhares de litros no mar salgado. Sempre atentos ao toldo, esperámos. Warren, Martin e Hermann formavam um verdadeiro quadro vivo. Juntos, agarrados à enxárcia e balouçando ao ritmo do barco, observavam atentamente a tempestade ao longe. A posição dos corpos indicava tensão, ansiedade e emoção. Mas, quando o temporal se abriu ao meio, passando por cima de nós e à popa sem que uma única gota de água caísse sobre o toldo seco e vazio, os corpos dos homens, tornando-se flácidos, pareceram encolher sobre si próprios.

No entanto, choveu nessa noite. Martin, cuja sede psicológica o obrigara a consumir demasiado depressa a sua ração de litro, pôs a boca na borda do toldo e bebeu o mais longo trago que vi beber em toda a minha vida. O precioso líquido caiu do céu às bátegas e, ao fim de duas horas, tínhamos mais de 400 litros nos reservatórios.

Estranhamente, no resto da viagem até às Marquesas não voltou a cair um pingo de chuva. Se aquele temporal não tivesse passado por nós, a bomba continuaria selada e nós teríamos procurado utilizar a nossa gasolina de reserva para destilar água salgada.

Também tínhamos de pescar, mas isso não constituía problema porque os peixes vinham deixar-se apanhar junto à amurada. Um anzol de aço de 90 centímetros preso a uma linha forte, com um lenço branco a servir de isco, foi mais do que suficiente para pescarmos bonitos com dezenas de quilos. Os bonitos, habituados a alimentar-se de peixes-voadores, não costumam morder o isco. Nunca me esquecerei da primeira vez que os vi. São os mais endiabrados de quantos peixes andam no mar e praticam um canibalismo desavergonhado. Assim que um deles é apanhado pelo anzol, os companheiros atacam-no vorazmente. Aconteceu-nos muitas vezes içar alguns já semídevorados, com dentadas enormes do tamanho de chávenas de chá.

Um cardume de vários milhares de bonitos acompanhou-nos noite e dia, durante mais de três semanas. Ajudados pelo Snark, entregaram-se a uma caça fantástica, abrindo um sulco de destruição de meia milha de largura e de 1500 milhas de comprimento. Colocados de ambos os lados do barco, saltavam sobre os peixes-voadores que a nossa proa desviava do seu curso. Como perseguiam incansavelmente as suas presas, que abocanhavam depois de vários saltos, estavam sempre a par do barco e a todo o momento, olhando para trás, víamos agitar-se, à frente de uma vaga, as suas formas prateadas, singrando quase à superfície das ondas. Uma vez saciados, apreciavam a sombra do Snark, ou a das suas velas, e havia sempre uma boa centena de bonitos a deslizar calmamente junto a nós, à sombra fresca.

Mas., coitados dos peixes-voadores! Perseguidos e devorados vivos pelos bonitos e pelos golfinhos, procuravam refúgio no ar, mas logo os pássaros, em voo rasante, os forçavam a regressar ao mar. Nada os podia salvar. Não pensem que é por puro desporto que saltam para fora da água, porque para eles é mesmo uma questão de vida ou de morte. Milhares de vezes ao dia víamos desenrolar-se diante dos nossos olhos uma verdadeira tragédia. Atraídos pelo voo de uma ave a descrever círculos e ziguezagues, víamos o dorso de um golfinho a rasgar a superfície num sulco veloz. Mesmo à sua frente, uma flecha dardejante e prateada elevava-se no ar - um mecanismo de voo, delicado e orgânico, dotado de sensações, poder de direcção e amor à vida. O pássaro lança-se em voo picado e falha o alvo. O peixe voador, ganhando altitude como um papagaio, contra o vento, vira-se num meio círculo e deixa-se levar pelo vento, flutuando sob o seu impulso. Lá em baixo, o golfinho abre um sulco de espuma revolta.

E assim mantém a perseguição, seguindo com os seus grandes olhos o almoço palpitante que navega num elemento diferente do seu. Não é capaz de se elevar até ele, mas a experiência demonstrou-lhe muitas vezes que, mais tarde ou mais cedo, o peixe-voador, no caso de não ser engolido pelo pássaro, regressará à água e nessa altura...

saciará a fome. Tínhamos pena dos infelizes peixes alados e custava-nos assistir àquela matança sórdida e sanguinária, mas quando, certa noite, um pequeno peixe-voador, perdido, bateu contra a vela grande e caiu no convés, estrebuchando, corremos a apanhá-lo com uma voracidade idêntica à dos bonitos e dos golfinhos. Porque - fiquem a saber - não há nada melhor que um peixe-voador ao pequeno almoço. Tenho-me perguntado por que razão uma carne tão saborosa não se transforma em tecidos igualmente delicados no organismo dos seres que a consomem. Talvez a rapidez com que se deslocam os golfinhos e os bonitos em busca da presa lhes torne a carne mais rija. Mas, pensando bem, os peixes-voadores deslocam-se também a grande velocidade...

Ocasionalmente caçávamos tubarões, com anzóis maiores, munidos de esporões e presos a linhas curtas. Com os tubarões vêm os peixes-piloto, as rémoras e todo o tipo de criaturas parasitas. Com os seus olhos de tigre e as suas doze fiadas de dentes aguçados como lâminas, os tubarões têm mesmo aspecto de comedores de homens. No entanto, confesso que, tal como os meus companheiros do Snark, sou de opinião que não há prato de peixe mais delicioso do que tubarão estufado em tomatada. Na zona das calmas apanhámos uma vez um peixe a que o cozinheiro japonês chamou haké. E noutra ocasião, com a ajuda de um anzol de colher, arrastado a 300 metros na esteira do barco, içámos um peixe com aspecto de cobra, com 1 metro de comprimento pelo menos e não mais de 9 centímetros de diâmetro, armado com quatro grandes dentes.

Foi o melhor petisco - delicioso de sabor e de consistência - que comemos a bordo.

A mais apreciada adição à nossa ementa foi uma tartaruga verde que pesava uns bons 70 quilos e que nos foi servida em postas assadas, sopas e guisados e finalmente num suculento caril que, de tão bom que estava, alguns repetiram a ponto de quase terem uma indigestão. A tartaruga foi detectada a sotavento, dormindo calmamente no meio de um grande cardume de golfinhos curiosos. Era certamente espécime do alto mar, porque a costa mais próxima estava a milhares de milhas. Virámos de bordo e aproximámo-nos.

Hermann enterrou-lhe o arpão no pescoço. Quando a içámos, tinha muitas rémoras agarradas à carapaça e dos buracos por onde passam as barbatanas saíram vários caranguejos grandes. Bastou uma única refeição para a tripulação do Snark decidir de comum acordo que não hesitaria em deter a marcha para capturar mais tartarugas.

Mas o golfinho é o rei dos peixes do alto. Assume tonalidades muito diferentes entre si. Criatura etérea do azul imenso, quando nada proporciona um milagre de cores:

tanto surge em tons de verde - verde-esmeralda, verde-escuro e verde-fosforescente - como em tons de azul - azul-escuro, azul-eléctrico, toda a gama de azuis. Quando içado a bordo, exibe todo o espectro, passando por matizes inconcebíveis de azuis, verdes e amarelos, até que, de repente, se torna de um branco lívido, com pontos azuis claros no meio, como se fosse malhado como as trutas. A seguir abandona o branco e volta a passar por todas as cores anteriores, terminando em tom madrepérola.

Aos adeptos, recomendo um desporto apaixonante: a pesca do golfinho. Claro, é preciso uma linha fina, molinete e vara. O anzol indicado é um nº 7 O'Shaughnessy, usando como isco um peixe-voador. Como o bonito, o golfinho alimenta-se exclusivamente de peixes-voadores e precipita-se sobre o isco com a rapidez de um raio. O primeiro sinal de que mordeu surge quando o molinete range e a linha se move em ângulo recto com o barco. Sem nos dar tempo para nos preocuparmos com o comprimento da linha, o peixe projecta-se no ar, numa sucessão de saltos. É possível dominar um animal destes, que tem sempre mais de um metro de comprimento. Quando preso pelo anzol, toma uma tonalidade dourada e dá esses saltos para se libertar. O pescador tem de ser insensível ou decadente se não sentir o coração bater mais depressa ao ver esse admirável peixe dourado a cabriolar e a debater-se como um potro.

Cuidado, mantenha a linha bem tensa! Caso contrário, num dos saltos o anzol pode desprender-se ou o animal empreende nova corrida que culmina com uma nova série de saltos. Nesta altura, o pescador começa a preocupar-se com a linha e a desejar ter mais umas centenas de metros no carreto. Mas, manobrando com cuidado, é possível poupar linha. Ao fim de uma hora, o peixe pode ser arpoado. Eu próprio icei um golfinho com 1,35 m.

Hermann pescava-os com meios mais prosaicos. Só precisava de uma linha simples e carne de tubarão. Era uma linha muito grossa mas em mais de uma ocasião partiu-se e o peixe fugiu. Um dia, um golfinho escapou-se com um isco inventado por Hermann, um pedaço de carne com quatro anzóis O'Shaughnessy. Passada uma hora, o mesmo golfinho foi repescado com arpão e, quando o abrimos, recuperámos os quatro anzóis. Depois de nos acompanharem durante mais de um mês, perdemos os golfinhos de vista a norte do Equador e não voltámos a ver mais nenhum até ao fim da travessia.

E assim se passavam os dias. Havia tanto para fazer que o tempo nunca nos pesava. Mesmo que assim não fosse, as horas não nos pareceriam longas, porque o mar e as nuvens apresentavam-nos espectáculos maravilhosos: madrugadas que faziam lembrar cidades imperiais a arder sob arco-íris que quase chegavam ao zénite; crepúsculos que inundavam o mar arroxeado com rios de luz em tons rosados, escorrendo de um sol com raios do mais puro azul, difundindo-se pelo céu em todas as direcções. Quando o dia avançava e o calor apertava, o mar estendia-se como um tecido de cetim azul, em cujas dobras a luz formava túneis brilhantes. Quando soprava uma brisa, à popa e ao longe via-se uma procissão borbulhante de fantasmas de uma cor turquesa leitosa - a espuma levantada pela quilha do Snark investindo contra o mar. À noite, o sulco tornava-se num fogo fosforescente quando o barco passava por uma colónia de medusas, enquanto, mais ao fundo, se podia imaginar o voo incessante de cometas, com caudas longas, ondulantes e nebulosas - causados pela passagem de bonitos por entre as medusas. E de vez em quando, emergindo da escuridão dos dois lados do barco, surgiam quase à tona da água organismos fosforescentes maiores, que se iluminavam de repente, como projectores eléctricos, sempre que, mesmo por baixo do nosso gurupés, se dava uma colisão entre bonitos apressados em busca de alimento.

Continuando o nosso rumo para este, lá atravessámos a zona das calmas tropicais e reencontrámos a brisa fresca de Sul-Sudoeste. Apanhados assim de lado, corríamos o risco de passar diante das ilhas Marquesas a uma grande distância para Oeste. Mas no dia seguinte, terça-feira 26 de Novembro, no meio de uma violenta borrasca, o vento virou bruscamente para sudeste. Finalmente, chegavam os alísios e acabavam-se os temporais! A partir daí, o tempo esteve magnífico, com um vento favorável e a barquilha a assinalar uma boa velocidade, as escotas bastante folgadas e, cada uma de seu lado, a vela de fortuna e a vela grande bem enfunadas. O alísio rondou progressivamente até nordeste, enquanto singrávamos para sudoeste.

Dez dias depois, na manhã de 6 de Dezembro, às 5 horas, avistámos terra "no local exacto onde devia estar", mesmo à nossa frente. Passámos a bombordo de Ua-Huka, contornámos a costa meridional de Nuka-Hiva e na mesma noite, em plena borrasca e imersos numa escuridão total, lá chegámos ao molhe da estreita baía de Taiohae.

Os rangidos da âncora faziam coro com os berreiros das cabras selvagens nas falésias e o ar estava carregado do perfume de flores. Terminávamos a nossa travessia:

sessenta dias sem ver terra, num mar deserto em cujo horizonte nem uma só vez avistámos as velas enfunadas de um barco!

 

Typee

A este, a ilha de Ua-Huka estava encoberta por uma chuvada de temporal, que depressa envolveu o Snark. Mas o nosso pequeno barco, com a vela de fortuna largada ao alísio de Sudeste, não abrandou o seu curso. O cabo Martin, na ponta extrema a sul da ilha de Nuka-Hiva, apresentava-se em posição oblíqua e a sua enorme baía - a baía do Comptroíler - surgiu inteira perante os nossos olhos quando passámos pela sua vasta entrada, onde o rochedo da Vela - realmente muito parecido com a vela de um barco de pesca do salmão dos que se constróem no rio Colúmbia - resistia valentemente aos ataques furiosos da maré de sudeste.

- Que vês lá adiante? - perguntei a Hermann, que estava à roda do leme.

- Um barco de pesca - respondeu, depois de perscrutar o horizonte.

No entanto, no mapa, o local está perfeitamente assinalado: o rochedo da Sentinela.

Depois analisámos a topografia da baía, procurando avidamente com o olhar as três enseadas. Detivemo-nos na do meio onde, à luz mortiça do crepúsculo, distinguimos os contornos confusos de um vale. Quantas vezes nos debruçámos sobre o mapa para estudar aquela enseada espaçosa onde terminava o vale de Typee! Taipi é a ortografia exacta, como está no mapa, mas prefiro Typee e escreverei sempre assim. Quando era pequeno, li um livro de Herman Melville, Typee, que me fez sonhar muito. Mas não eram apenas sonhos, porque nessa época eu já decidira que, quando fosse grande e forte, também iria a Typee, desse lá por onde desse. Porque a visão radiosa do mundo já iluminava o meu cérebro de criança - essa visão que, mais tarde, me iria levar a muitos países e cuja beleza não diminuiu aos meus olhos.

Os anos passaram, mas nunca me esqueci de Typee. Uma vez em que regressei a São Francisco depois de um cruzeiro de sete meses no Norte do Pacífico, decidi que era o momento de partir. O brigue Galilee preparava-se para viajar para as Marquesas mas infelizmente a equipagem estava completa. Marinheiro experimentado e bastante jovem para sentir excessivo orgulho por esse facto, pedi contudo ao comandante que me deixasse embarcar como simples grumete, porque queria a todo o custo visitar Typee. Claro, o Galilee zarparia das Marquesas sem mim, porque, à semelhança do personagem do livro, eu queria encontrar outro Fayaway e um novo Kory-Kory para me acompanhar nas minhas peregrinações. O patrão do barco deve ter lido nos meus olhos a intenção de desertar, ou talvez o lugar de grumete já estivesse realmente preenchido. A verdade é que não embarquei.

Depois foi a corrida desenfreada dos anos a passar, cheios de projectos mirabolantes, de muitos êxitos e fracassos; mas Typee não fora esquecida e finalmente ali estava eu, a procurar com os olhos os contornos nebulosos do seu vale, enquanto o temporal amainava e a cortina de bruma se deixava penetrar pelo Snark. Mal tivemos tempo de ver diante de nós o rochedo da Sentinela, com as vagas a quebrarem-se à sua volta, antes de se tornar imperceptível por causa da chuva e da escuridão. Dirigimo-nos direitos a ele, esperando ouvir o roncar das vagas, para nos afastarmos a tempo. Para nos orientar, só tínhamos a posição marcada pela agulha de governo e, se passássemos ao lado do rochedo da Sentinela, também não encontraríamos o porto de Taiohae, pelo que teríamos de pôr-nos a capa durante a noite, perspectiva pouco brilhante para viajantes como nós, cansados de uma travessia de 60 dias na imensa solidão do Pacífico, ávidos de rever terra, de comer fruta e ansiando por admirar o doce vale de Typee há tantos anos sonhado.

De repente, no meio de fragores terríveis, a massa do rochedo da Sentinela surgiu à nossa frente, debaixo de chuva. Alterámos o rumo e, com a vela grande e a vela de fortuna desfraldadas, passámos diante do rochedo, depois do que encalmámos por completo. A seguir, uma lufada enfunou o velame e empurrou-nos para fora da baía de Taiohae. Avançando muito lentamente, sondávamos com os olhos, procurando o farol vermelho do porto em ruínas, que nos indicaria a posição do molhe. A brisa, ligeira e enganadora, soprava ora de Leste, ora de Norte, Sul e Oeste e de todos os lados ouvíamos o roncar de grandes vagas invisíveis. Das falésias abruptas chegavam-nos os berros das cabras selvagens e, por cima de nós, as primeiras estrelas surgiam no céu tormentoso, semí-encobertas pela chuva. Ao fim de duas horas, tendo percorrido uma milha dentro da baía, lançámos a âncora a onze braças de fundo. Chegávamos finalmente a Taiohae.

Na manhã seguinte, acordámos diante de uma paisagem deslumbrante. O Snark descansava num porto ameno, aninhado no sopé de uma enorme elevação em anfiteatro, cujas escarpas inclinadas, cobertas de vinhedos, pareciam nascer directamente no mar. A oeste, distinguimos, visível num determinado ponto da encosta, a linha fina de uma vereda.

- O caminho por onde Toby fugiu de Typee! - gritámos.

Descemos a terra pouco depois e alugámos cavalos. Mas tivemos de adiar o passeio para o dia seguinte: ao fim de dois meses no mar, sempre descalços, sem espaço suficiente para fazer exercício, não conseguimos adaptar-nos de imediato aos sapatos de couro e ao piso estável. Além disso, primeiro tínhamos de esperar que o solo deixasse de balançar e que nos passasse o enjoo, antes de podermos escalar os trilhos íngremes da ilha montados em cavalos com a agilidade das cabras. Para treinarmos um pouco, fizemos um pequeno percurso e embrenhámo-nos na selva densa. Logo a seguir deparámos com um venerável ídolo de madeira, coberto de musgo, junto do qual se encontravam um comerciante alemão e um capitão de um barco norueguês que discutiam o peso do monumento e não se decidiam a cortá-lo ao meio receando depreciar-lhe o valor. Tratavam o ídolo de forma sacrílega, espetando-lhe navalhas para lhe testar a solidez e avaliar a espessura da camada de musgo. Só lhes faltava dizer-lhe que se levantasse e caminhasse até ao barco, para não terem o trabalho de o carregar. Em vez disso, dezanove canacas amarraram-no a uma grade de madeira e embarcaram-no, solidamente preso por baixo das escotilhas. Neste momento deve navegar pelo Pacífico Sul, passando pelo cabo Horn a caminho da Europa, última morada dos velhos ídolos pagãos, excepto dos poucos que ficam na América, em particular um que, com um esgar que pretende ser um sorriso, está ao meu lado enquanto escrevo estas linhas e que, a menos que se dê um naufrágio, continuará a sorrir algures na minha terra e vencerá a partida, porque permanecerá mesmo depois de eu me transformar em pó.

Para começar, assistimos a uma festa, onde um certo Taiara Tamarii, filho de um marinheiro havaiano que desertara de um baleeiro, assinalava a morte da mãe, originária das Marquesas, assando catorze porcos e convidando toda a aldeia para o banquete funerário. Também fomos, sendo recebidos por um arauto, uma jovem nativa que, em cima de uma grande rocha, proclamava que a nossa presença abrilhantaria a festa - o que aliás repetia sempre que chegava novo conviva. No entanto, assim que nos sentámos ela mudou de tom, enquanto os presentes manifestavam grande excitação. A jovem lançava gritos agudos e penetrantes e vozes de homens respondiam-lhe a certa distância. A certa altura, aqueles clamores transformaram-se num canto bárbaro, evocando imagens de sangue e guerra. A seguir, avistámos por entre a folhagem tropical uma procissão de selvagens, quase completamente nus, vestindo apenas uma tanga feita com pano de cores berrantes. Avançavam lentamente, soltando urros guturais de triunfo e exaltação. Aos ombros carregavam ramos de árvores de onde pendiam misteriosos fardos bastante pesados, dissimulados por meio de folhas verdes.

Aqueles embrulhos eram apenas porcos, porcos inocentes e gordos, assados no espeto, mas os homens carregavam-nos imitando os seus antepassados na época em que estes carregavam "porcos compridos". Ora esses animais dos tempos antigos não eram exactamente porcos. "Porco comprido" é o eufemismo polinésio para designar carne humana; e aqueles descendentes de canibais, chefiados por um príncipe real, traziam os porcos como os seus avós faziam com os inimigos massacrados. De vez em quando, o cortejo 142 detinha-se para os transportadores poderem entoar com mais ênfase os seus ferozes gritos de vitória e de desprezo pelos adversários, assim como para expressar os seus desejos gustativos. Foi assim que Melville assistiu, há duas gerações, à exibição dos cadáveres de guerreiros hapares, embrulhados em folhas de palma e transportados para um banquete em Ti. Noutra ocasião, também em Ti, observou "um recipiente de madeira curiosamente esculpido" e verificou que o seu conteúdo consistia em "membros esparsos de um esqueleto humano com os ossos ainda húmidos e revestidos, aqui e ali, de bocados de carne".

O canibalismo tem sido considerado uma lenda por homens ultracivilizados, a quem talvez repugne admitir que os selvagens de quem descendem também se entregavam antigamente a práticas idênticas. O capitão Cook manifestava igual cepticismo, até ao dia em que, num porto da Nova Zelândia, viu chegar a bordo um indígena que queria vender-lhe uma magnífica cabeça humana seca ao sol. Cook mandou cortar uns pedaços de carne fresca e ofereceu-os ao nativo, que os devorou gostosamente. O menos que se pode dizer é que Cook era um empirista convicto. De qualquer forma, esta experiência forneceu aos sábios a prova que há muito lhes faltava. Longe estava o célebre capitão de sonhar na existência de um certo arquipélago situado a milhares de milhas dali, onde, anos mais tarde, se desenrolaria um estranho processo judicial em que um velho chefe de Maui seria acusado de difamação por persistir em afirmar que o seu corpo era o repositório vivo do próprio Cook. Diz-se que a acusação nunca conseguiu provar que o velho chefe não fosse o túmulo do dedo grande do pé do navegador, razão por que o caso foi encerrado sem mais formalidades.

Nestes nossos degenerados tempos, espero não chegar a ver os nativos comer "porco comprido", mas pelo menos sou proprietário legítimo de uma cabaça das Marquesas, de forma oblonga e curiosamente esculpida, com mais de cem anos, na qual se bebeu o sangue de dois capitães de navios. Um deles era um patife: vendeu um baleeiro decrépito, que acabara de pintar de branco para o fazer passar por novo, a um chefe marquesíno. Dias depois da partida do capitão desonesto, o barco desfez-se em bocados. Algum tempo depois, quis a sorte que naufragasse precisamente na mesma ilha. O chefe marquesino não quis saber do estranho costume que consiste em dar descontos e fazer saldos; mas tinha um instinto primitivo de justiça e um conceito não menos primitivo de economia natural e saldou as contas comendo o homem que o enganara.

Pela fresca, de madrugada, partimos para Typee, montados em pequenos garanhões ferozes que resfolgavam, relinchavam e mordiam-se uns aos outros sem a menor preocupação pelos seres frágeis que transportavam à garupa, ou com os calhaus soltos, pedaços de rochas e gargantas a pique. O nosso trilho conduzia a uma estrada velha que atravessava uma mata de árvores a que chamam hau. De cada lado, víamos sinais de uma população que em tempos terá sido muito numerosa. Por entre a densa vegetação, distinguiam-se muralhas solidamente construídas, de dois metros e mais de altura e vários metros de largura e espessura, vastas plataformas que serviam de fundações às casas. Mas estas e os respectivos ocupantes desapareceram há muito e agora as árvores de porte gigantesco, com as raízes enterradas nas fundações, dominam a restante flora. Chamam às fundações pae-paes - as pi-pis de Melville.

Aos marquesinos da actual geração falta a energia para erguer e colocar no seu lugar pedras tão grandes. Aliás, nada os encoraja à construção. Há pae-paes por toda a parte e milhares estão em ruínas. Subindo o vale, vimos algumas magníficas, contrastando com as miseráveis palhotas que constróem por cima delas, cujas proporções lembram o efeito que teria uma câmara de voto colocada em cima da fundação majestosa da pirâmide de Keóps. Os marquesinos estão em vias de extinção e, a julgar pela situação actual de Taiohae, a única coisa que retarda o seu desaparecimento é a infusão de sangue novo. Um marquesino puro é coisa rara. Só se vêem mestiços, fruto de misturas estranhas de dezenas de diferentes raças. O comerciante de Taiohae só conseguiu reunir 19 trabalhadores válidos para carregar a copra para bordo e nas veias de todos eles corre sangue inglês, americano, dinamarquês, alemão, francês, corso, espanhol, português, chinês, havaiano, paumotano, tahi-tiano e islandês. Há mais raças do que pessoas, mas raças com todos os indícios de degeneração, pois a vida parece vacilar e elanguescer nessas pessoas. Neste clima quente e ameno - verdadeiro paraíso terrestre - onde nunca há variações extremas de temperatura e onde o ar é como um bálsamo, sempre puro graças aos alísios de Sudeste, carregados de ozono, a asma, a sífilis e a tuberculose prosperam com exuberância igual à da vegetação. Em todas as palhotas ouve-se a tosse cavernosa ou a respiração difícil de gente com pulmões afectados. Também grassam outras doenças horríveis, mas as mais mortais são as que atacam o peito, entre elas a tísica "galopante", especialmente temida. No espaço de dois meses, reduz o mais forte à condição de esqueleto amortalhado. Os vales vão ficando desertos e o solo fértil é conquistado pela selva. No tempo de Melville, o vale de Hapaa (que ele grafava "Happar") era habitado por uma tribo forte e aguerrida. Passada uma geração, não tem mais de duzentas pessoas. Hoje é uma terra devoluta, desolada, onde só se ouve o uivar dos animais selvagens.

Continuámos a subir pelo vale. Os nossos cavalos, sem ferraduras, procuravam o melhor piso no trilho mal cuidado que conduzia através das pae-paes abandonadas e da floresta insaciável. Quando vimos maças silvestres, as ohias que já conhecíamos do Havai, pedimos a um nativo que as fosse colher. Depois subiu aos coqueiros para nos trazer cocos. Já bebi leite de coco na Jamaica e no Havai, mas nunca senti tanto prazer a matar a sede com ele como nas Marquesas. De vez em quando passámos por limoeiros e laranjeiras - árvores de grande porte que resistiram à desolação, mais do que as pessoas que as cultivaram.

Passámos com dificuldade por massas de moitas de cássis cheias de pólen, cuja fragrância atraía as vespas. E que vespas! Enormes insectos do tamanho de canários pequenos, que fendiam os ares com as patas traseiras, com vários centímetros de comprimento, esticadas para trás. De repente um dos cavalos empina-se nas patas da frente e começa aos coices no ar. Depois bate com as patas de trás no chão, o tempo suficiente para dar um salto enérgico para a frente, para em seguida voltar e escoicear da mesma maneira. Não se passa nada de especial, foi só uma vespa que enterrou um ferrão viril no pêlo grosso do cavalo, provocando-lhe uma dor lancinante.

Segue-se um segundo e um terceiro cavalo aos pinotes, e a certa altura estão todos aos coices, apoiados nas patas dianteiras e correndo o risco de se precipitar pelo abismo abaixo. Ai! Um punhal ardente penetra-me a bochecha. Ai Ai! Agora é no pescoço. Como sou o último da fila, as vespas assediam-me mais que aos outros.

Não posso fugir-lhes, porque o trilho é estreito e os cavalos lá adiante continuam excitados, fazendo perigar a nossa segurança. O meu cavalo ultrapassa o de Charmian e este, como criatura sensível que é, atingido por uma ferroada naquele preciso momento, lança um coice contra a minha montada e outro contra mim. Agradecendo à minha boa estrela o facto de o casco não estar ferrado, endireito-me em cima da sela, ao mesmo tempo que sou cruelmente apunhalado por outra vespa. É de mais para mim e para o meu pobre cavalo em pânico, cuja dor suplanta a minha.

- Saiam da frente! Deixem-me passar - grito, sacudindo freneticamente com o boné as vespas à minha volta.

Num dos lados do trilho, o piso sobe a pique e, do outro, desce vertiginosamente. A única forma de me escapar dali é continuar em frente. É um milagre a forma como aquela fila de cavalos consegue equilibrar-se sem cair! E no entanto, lançam-se para a frente, chocam uns com os outros, uns a trote, outros a galope, tropeçam, saltam, desembaraçam-se e escoiceiam metodicamente para o ar sempre que uma vespa os ataca. Ao fim de algum tempo, retomamos fôlego e aproveitamos para avaliar os ferimentos. E esta cena repetiu-se uma, duas e muitas vezes mais. Curiosamente, nunca se tornou monótona. Pela minha parte, saí sempre de cada moita com a mesma alegria de um homem que escapa à morte súbita. Não há dúvida: a viagem de Taiohae para Typee nunca poderia ser aborrecida.

Finalmente elevámo-nos acima do tormento das vespas, mas mais por razões de altitude do que por força de alma. A nossa volta e a perder de vista erguiam-se os contrafortes irregulares da cordilheira, projectando os seus picos contra as nuvens. Aos nossos pés, na direcção de onde viéramos, lá estava o Snark, como um brinquedo minúsculo, nas águas calmas da baía de Taiohae. Lá à frente, víamos já o recesso que a baía Comptroller formava no terreno. Depois de descermos uns 350 metros, Typee revelou-se de repente aos nossos olhos. "Se me fosse dado entrever, por um curto momento, os jardins do paraíso, não teria ficado mais maravilhado do que perante aquela visão" - exclamou Melville quando viu este vale pela primeira vez. Naquele tempo, era um jardim, mas nós vimos uma mata agreste. Onde estavam as centenas de pomares de fruta-pão que ele referiu? Vimos apenas uma selva sem fim, duas palhotas e pequenos palmares espalhados por entre o manto verde e inculto. Onde estavam o Ti de Mehevi, a casa dos homens solteiros, o palácio onde as mulheres se tornavam tabu e onde o chefe reinava com os seus dignitários mais próximos, rodeados de meia dúzia de anciãos trôpegos e sujos, vestígios do valoroso passado? Do rio não se elevava canto nenhum das virgens e das respectivas mães a pisar cascas de árvores para fabricar tapa. E onde estava a palhota que o velho Narheyo nunca mais acabava de construir? Procurei-o em vão, empoleirado a vinte metros do solo, em algum coqueiro alto, a fumar o cachimbo matinal.

Descemos por um trilho sinuoso, sob um arco de folhagem, onde enormes borboletas voavam em silêncio. Não havia nenhum selvagem tatuado, armado de arco e flecha, a guardar o caminho e passámos o rio a vau sem encontrar obstáculos. O tabu sagrado e cruel já não dominava o doce vale. Não, havia um novo tabu, porque quando nos aproximámos de um grupo de pobres nativas de aspecto miserável, alguém pronunciou essa palavra. E com razão: eram leprosas. O homem que nos avisara padecia horrivelmente de elefantíase. E todos tinham doenças pulmonares. O vale de Typee era o asilo da morte e a dúzia de sobreviventes da tribo exalavam penosamente o último suspiro da raça.

Os bravos não tiveram de travar esta batalha, porque antigamente os de Typee eram muito fortes, mais do que os hapares, os taiohaeanos e todas as tribos de Nuku-hiva.

A palavra typee ou taipi significava originalmente "comedor de carne humana". Mas, visto que todos os marquesinos eram antropófagos, a designação indicava que os taipianos se destacavam particularmente neste aspecto. A sua fama de crueldade e bravura não se estendia apenas a Nuku-hiva, propagara-se a todas as ilhas Marquesas, onde os taipianos eram temidos. Ninguém os conseguira conquistar, nem mesmo a frota francesa que ocupou o arquipélago. A certa altura, o capitão Porter, da fragata Essex, invadiu o vale com os seus marinheiros e fuzileiros apoiados por dois mil guerreiros de Happar e Taiohae, mas depararam com tal resistência que tiveram de bater em retirada e afastaram-se a bordo dos seus barcos e pirogas de guerra.

Entre todos os habitantes dos mares do Sul, os marque-sinos são considerados os mais fortes e os mais belos. Melville disse sobre eles: "Impressíonou-me em especial a sua força física e porte magnífico... A graça das suas formas ultrapassa tudo o que vi até hoje. Não detectei uma única deformidade em toda a multidão que participava nos festejos. Todos pareciam livres dessas imperfeições que por vezes destroem a harmonia de um corpo humano. Mas a sua superioridade física não se limitava à ausência de quaisquer males: todos podiam servir de modelo a um escultor." Mendana, o descobridor das Marquesas, descreveu os nativos como senhores de uma beleza invulgar.

Figueroa, o cronista da sua viagem, afirmou: "Têm uma pele quase branca; são de boa estatura e possuem corpos formosos." O capitão Cook considerou os marquesinos como os ilhéus mais esplêndidos dos mares do Sul e disse dos homens que eram "quase sempre dotados de boa estatura, com pelo menos 1,80 m de altura."

Agora que todo esse vigor e beleza desapareceram do vale de Typee, este serve de refúgio a umas dúzias de pobres diabos, atacados de lepra, elefantíase e tuberculose.

Melville calculava a população em duas mil almas, sem contar com o pequeno vale vizinho de Ho-o-umi. A vida foi tomada de corrupção neste maravilhoso jardim, de clima delicioso e saudável como nenhum outro no mundo. Os taipianos não só tinham a beleza dos deuses, como era exemplar a pureza dos seus costumes. O ar que respiravam não continha os bacilos nem germes mórbidos que contaminam o nosso. Desde que os brancos levaram nos seus barcos estes diversos miasmas, os taipianos começaram a definhar e sucumbiram a eles.

Pensando bem, quase chegamos à conclusão de que a raça branca só prospera na impureza e na corrupção. A explicação tem a ver com a selecção natural: os brancos são uma raça de sobreviventes e descendem de milhares de gerações de sobreviventes da guerra contra os microorganismos. Sempre que nasce algum com uma constituição particularmente receptiva ao desenvolvimento desses microscópicos adversários, não tarda a ser vencido por eles. Só sobreviveram os que puderam resistir. Portanto os que vivem neste momento são os imunizados, os aptos - os mais bem constituídos para viver num mundo de microorganismos hostis. Os pobres marquesinos não passaram por essa selecção, não se imunizaram. Eles, que comiam os inimigos, foram por sua vez devorados pelos inimigos invisíveis contra os quais não podiam travar combates de arco e flecha.

Por outro lado, se tivesse havido, desde o princípio, umas boas centenas de milhares de marquesinos, teriam sido em número suficiente para lançar as bases de uma nova raça - regenerada, se se pode considerar regeneração o facto de se mergulhar num banho de veneno orgânico.

Tirámos as selas aos cavalos para almoçar, mas tivemos de os separar, porque lutavam uns com os outros. Nos flancos do meu garanhão faltavam uns pedaços de carne, arrancados por um dos seus companheiros. Depois de tentar em vão sacudir as moscas da areia, comemos bananas com carne de conserva, acompanhando a refeição com generosa dose de leite de coco. A nossa volta, o espectáculo não tinha nada de especial. A selva reconquistara terreno, afogando em verdura os trabalhos ilusórios dos homens.

Aqui e ali, encontrávamos pai-pais, mas não havia inscrições, nem hieróglifos ou qualquer sinal revelador do passado - apenas pedras mudas, talhadas por mãos anónimas há muito transformadas em pó. Por cima dessas muralhas cresciam árvores de grande porte que, ciumentas do duro trabalho do homem, fendiam e deslocavam as pedras para as remeter ao seu caos primitivo.

Abandonámos a selva e procurámos o rio, na esperança de nos livrarmos das moscas da areia. Vã esperança! Para nadarmos, tivemos de nos despir, como muito bem sabem essas moscas, que se mantêm emboscadas nas margens, aos milhares. Os nativos chamam-lhes nau-nau, que se pronuncia now-now, nome muito apropriado, já que as moscas constituem um presente obstinado. Quando se agarram à epiderme de uma pessoa, deixa de haver passado e futuro. Estou convencido de que Omar Khayyam nunca seria capaz de escrever o Rubaiyat no vale de Typee - seria psicologicamente impossível. Cometi o erro de me despir no topo da margem escarpada donde era fácil mergulhar, mas impossível de sair da água. Quando terminei o meu banho, tive de percorrer uma centena de metros pela margem para chegar ao ponto onde deixara a roupa. Assim que pus pé em terra, fui atacado por umas dez mil nau-naus. Ao segundo passo, já havia uma nuvem delas à minha volta. Ao terceiro, quase deixei de ver a luz do Sol. Depois disso, não sei o que se passou. Quando cheguei ao sítio das roupas, parecia um louco furioso e foi aqui que cometi o erro táctico. Há uma regra obrigatória para uma pessoa enfrentar as nau-naus: nunca as afugentar às palmadas, sob nenhum pretexto. São tão perversas que, no momento em que as matamos, injectam no nosso corpo o último átomo de veneno. Por isso é preciso pegar nelas delicadamente, entre o polegar e o indicador, e convenceras com calma a desistir de manter ferrada a sua pequena tromba na nossa carne trémula. É como arrancar dentes, mas o problema foi que, neste caso, os dentes cresciam mais depressa do que a minha capacidade para os arrancar.

Por isso lancei palmadas em todas as direcções e assim fiquei cheio de veneno. Isto foi há uma semana e, neste momento, ainda tenho o aspecto de uma pessoa atacada de varíola em último grau.

Ho-o-u-mi é um vale pequeno, separado de Typee por uma cordilheira relativamente baixa, para onde nos dirigimos depois de acalmarmos um pouco as nossas fogosas montadas.

O facto é que a de Warren, ao fim de quilómetro e meio, escolheu a parte mais perigosa do trilho para uma exibição que nos manteve aterrorizados e presos às selas uns bons cinco minutos. Seguimos a embocadura do vale de Typee e avistámos lá em baixo a praia por onde Melville se evadiu. Era ali que o seu baleeiro o aguardava, junto à costa; foi aí que Karakoi, o canaca tabu, procurou, dentro da água, disputar-lhe a vida; foi certamente ali que Melville beijou Fayaway pela última vez antes de alcançar o barco. E foi também nesse ponto que Mehevi e Mau-mau, assim como os que os seguiam, se atiraram à água para tentar em vão interceptar os fugitivos, porque os marinheiros laceraram-lhes os braços com punhais quando eles quiseram transpor a amurada. Mau-mau recebeu um grande murro de Melville na cara.

Continuámos para Ho-o-u-mi. Melville era tão vigiado que nunca se deve ter sabido da existência deste magnífico vale, embora deva ter encontrado com freqüência habitantes seus, que eram súbditos de Typee. De caminho, passámos por algumas pai-pais abandonadas e, perto do mar, encontrámos grande quantidade de coqueiros, árvores-pão e campos de taro e pelo menos uma dúzia de palhotas. Arranjámos maneira de passar a noite numa delas e imediatamente começaram a fazer preparativos para uma festa.

Um leitão foi prontamente sacrificado; enquanto o assavam entre pedras quentes e várias galinhas eram estufadas em leite de coco, convenci um dos cozinheiros a subir a um coqueiro excepcionalmente alto. Os cocos apinhados debaixo das folhas estavam a uns bons 20 metros do solo, mas o nativo saltou para a árvore, segurou o tronco com ambas as mãos, curvou-se pela cintura de forma a assentar toda a planta dos pés e trepou por ali acima sem parar. A casca da árvore não apresentava golpes onde se fincar e não usou cordas para se apoiar: simplesmente subiu pela árvore até ao cimo e de lá lançou os cocos. Nem todos os homens locais tinham energia física, ou antes, pulmões para um esforço destes, porque a maior parte, como já disse, consumia-se em ataques de tosse. Algumas das mulheres gemiam e queixavam-se sem parar, completamente minadas pela tuberculose. Entre homens e mulheres, poucos eram os marquesinos puros. Eram quase sempre mestiços e com três quartos de sangue francês, inglês, dinamarquês e chinês. Na melhor das hipóteses, estas infusões de sangue fresco apenas atrasavam o momento da morte e os resultados faziam-nos duvidar da vantagem de tal demora.

O festim foi servido numa grande pai-pai, cuja parte posterior estava ocupada pela casa onde dormíamos. O primeiro prato foi peixe cru e poi-poi, este último mais áspero e mais amargo que o poi do Havai, que é de taro. O poi-poi das Marquesas é feito com fruta-pão. O fruto maduro, depois de retirada a casca, é colocado numa cabaça e esmagado com um pilão de pedra, até se obter uma pasta dura e pegajosa. Pode ser enterrada, cuidadosamente envolvida em folhas, para se manter em conserva durante anos. No entanto, antes de ser levada à mesa, são necessários outros preparativos. Coloca-se essa massa envolta em folhas entre pedras quentes, como com o leitão, e deixa-se cozer bem. Depois a massa é misturada com água fria e coada: obtém-se assim uma massa de consistência grossa, que se come à mão espetando nela o polegar e o indicador e retirando-se um pedaço. O paladar habitua-se depressa a este alimento gostoso e saudável. E a fruta-pão, madura e bem cozida ou assada, é deliciosa! A fruta-pão e o taro são legumes dignos da mesa de reis, embora o primeiro seja designado impropriamente como fruta porque parece-se mais com uma batata doce do que com qualquer outra coisa, embora não seja tão alimentício nem tão doce.

A festa terminou e assistimos ao nascer da Lua sobre o vale de Typee. O ar estava ligeiramente impregnado do odor de flores. Foi uma noite mágica, de um silêncio absoluto, sem a mais leve brisa a agitar a folhagem. Para não lhe estragar o encanto, mal me atrevia a respirar, transido com tanta beleza. Esquecido e longínquo, chegava até nós o troar da ressaca na areia. Como não havia camas, esten-demo-nos nos pontos do chão que nos pareceram mais macios. A pouca distância de nós, uma mulher resfolgava e gemia enquanto dormia e, vinda de toda a parte à nossa volta, pela noite fora ouvimos a tosse incessante dos ilhéus moribundos.

 

O Homem Natureza

Encontrei-o pela primeira vez na Market Street em São Francisco, numa tarde húmida e chuvosa. Caminhava em passada larga, só vestido com umas calças pelos joelhos, uma camisa de proporções reduzidas e descalço, esparramando a lama com os pés. Uma dúzia de garotos excitados perseguia-o. Todas as cabeças - e eram milhares - viravam-se para observar com curiosidade o personagem. Também eu olhei para trás. Nunca tinha visto alguém assim tão tisnado pelo sol. Era uma cor fantástica, um tom dourado próprio das pessoas louras quando se queimam sem lhes cair a pele. Os longos cabelos claros estavam também bronzeados, tal como a barba, que crescia desordenada.

Era um homem da cor do bronze, um bronzeado com reflexos dourados, radioso e brilhante como um sol. Pensei: "Mais um profeta, vindo à cidade com uma mensagem que salvará o mundo."

Passadas semanas, no chalé de uns amigos nas montanhas de Piedmont que dominam São Francisco, ouvi-os gritar: "Apanhámo-lo! Apanhámo-lo! Estava empoleirado numa árvore, mas começa a adaptar-se: dentro em breve virá comer-nos à mão. Vem cá vê-lo!" Acompanhei-os até ao alto de um monte íngreme e aí, numa cabana mal jeitosa construída num eucaliptal, reconheci o meu profeta bronzeado.

Avançou muito direito para nós, a girar sobre si próprio, como um turbilhão. Não nos apertou a mão, contentando-se em saudar-nos com acrobacias várias. Executou mais umas cabriolas, torceu o corpo como uma cobra e, depois de bem desarticulado, dobrou-se em dois; a seguir, com as pernas esticadas e os joelhos juntos, tamborilou no chão com as palmas das mãos. Deu mais umas voltas, fez novas piruetas e dançou como um macaco bêbado. Irradiava-lhe do rosto todo o calor de uma vida ardente; todo o seu ser era um hino à felicidade.

Cantou pela noite fora, com variantes histriónicas de uma diversidade espantosa. "Que louco! Que louco! Encontrei um louco na floresta!" pensava eu. Demonstrou o valor da loucura que o animava. Entre piruetas e cabriolas, transmitiu a sua mensagem de salvação do mundo, que aliás se dividia em duas: primeiro, a humanidade sofredora deve libertar-se do hábito de se vestir e percorrer montes e vales, em completa liberdade; em segundo lugar, este mundo miserável deve adoptar a ortografia fonética. Tive uma breve visão de como todos os grandes problemas sociais seriam resolvidos pelos citadinos: aos magotes e todos nus, estes andariam à solta pela paisagem, acossados pelos disparos das espingardas e pelos latidos dos cães de guarda, quando não sucumbissem aos ataques à forquilha por parte dos camponeses indignados.

Passaram-se anos. Numa manhã de sol, o Snark meteu a proa por uma abertura estreita num recife - batido por vagas furiosas cujo bramido se perdia na poalha de espuma que cobria o mar - e entrou lentamente no porto de Papeete. Dirigiu-se para nós um barco com pavilhão amarelo que trazia a bordo o médico do porto. Mais ao longe, na sua esteira, vinha uma minúscula piroga cujo aspecto nos intrigou. Arvorava uma bandeira vermelha. Observei-a longamente com os meus binóculos, receando que assinalasse algum perigo insuspeito para a navegação, um naufrágio recente ou alguma bóia ou farol que flutuasse à deriva. Quando o médico entrou a bordo e verificou o estado de saúde de todos nós, certificando-se de que não escondíamos ratos vivos no Snark, perguntei-lhe o que significava a bandeira vermelha.

- Ah! São coisas de Darling - respondeu.

E Darling, Ernest Darling, com a bandeira vermelha, símbolo da fraternidade entre os homens, saudou-nos, aos gritos:

- Olá, Jack! Olá, Charmian!

Remou rapidamente para perto e foi então que reconheci o profeta bronzeado das montanhas de Piedmont. Qual deus solar, com uma tanga escarlate a cingir-lhe os rins, com presentes da Arcádia e dádivas de boas-vindas em ambas as mãos: um frasco de mel dourado e um cesto de palha cheio de frutos cor de ouro: grandes mangas, bananas com pintas de um amarelo mais intenso, ananases, limões e laranjas sumarentas, exemplares da mesma riqueza preciosa das terras tropicais. E foi assim que me encontrei de novo com Darling, o Homem Natureza, desta vez naquelas paragens austrais.

O Tahiti é um dos lugares mais maravilhosos do mundo. Nele habitam ladrões, gatunos e vigaristas e também alguns homens e mulheres honestos e sinceros. Por causa da sombra que lançam sobre a beleza deste país os parasitas humanos que o infestam, em vez de vos falar do Tahiti, prefiro falar-vos do Homem Natureza. Ele, pelo menos, é estimulante e são. Alberga um espírito sensível e delicado, inofensivo excepto aos olhos de um capitalismo voraz e predador.

- Que significa essa bandeira vermelha? - perguntei.

- O socialismo, claro!

- Sim, sim, bem sei, - respondi - mas que significa o facto de andar com ela?

- Significa que encontrei a minha mensagem.

- E que a transmite ao Tahiti? - arrisquei, incrédulo.

- Claro! - confirmou simplesmente.

Mais tarde verifiquei ser verdade. Depois de lançarmos ferro, descemos para uma pequena chalupa e fomos a terra. O Homem Natureza acompanhou-nos. "Pronto, agora vou ter de aturar este chato noite e dia até nos irmos embora!", pensei.

Nunca na minha vida fiz uma avaliação tão errada. Aluguei uma casa onde me instalei para trabalhar, mas o Homem Natureza nem uma só vez tentou intrometer-se. Esperou que o convidassem e, entretanto, passou a pente fino a biblioteca do Snark, encantado com a quantidade de livros científicos e escandalizado, como verifiquei depois, pela quantidade excessiva de ficção. O Homem Natureza não perde tempo a ler romances.

Passada uma semana, cheio de remorsos, convidei-o a jantar num dos hotéis da cidade. Contra o costume, apareceu hirto e incomodado dentro de um casaco de algodão.

Quando lhe pedi que o tirasse, detectei-lhe uma expressão de agradecimento e de alegria. Então revelou, da cintura para cima, uma pele dourada como o sol e apenas coberta com um pedaço de rede de pesca de fio grosso e malha larga. A tanga escarlate completava o vestuário. Nessa noite comecei realmente a conhecê-lo e, durante a minha longa estadia no Tahiti, acabámos por ficar amigos.

- Então você escreve livros? - perguntou-me um dia em que me viu terminar a minha tarefa matinal, cansado e a suar. - Pois eu também escrevo.

Pensei: "Lá vem ele agora com confidências sobre os seus talentos de escritor!" Sentia-me indignado: não tinha vindo até aos mares do Sul para ser agente literário de ninguém.

- O livro que escrevo é este! - explicou, dando um murro sonoro no próprio peito. - O gorila da selva africana bate assim no peito até o som se propagar por muitas centenas de metros.

- Você tem um peito resistente - disse eu, em tom admirativo. - Capaz de fazer inveja a qualquer gorila.

Foi nessa altura, e mais tarde também, que fiquei a conhecer os pormenores do livro maravilhoso que Ernest Darling escrevera. Doze anos antes, estivera às portas da morte. Pesava 40 quilos e mal conseguia falar. Os médicos e o próprio pai, que também era médico, tinham perdido a esperança de o salvar. O estudo excessivo (além de professor primário, era estudante universitário) e duas pneumonias seguidas tinham causado aquele seu definhar. Ia perdendo forças a olhos vistos e não tirava proveito algum dos alimentos substanciais com que o medicavam; nem os comprimidos e os pós lhe facilitavam a digestão. Estava feito num farrapo, física e mentalmente.

Desorientado, sentia-se doente e tão farto dos remédios como do convívio com as outras pessoas. Já não suportava ouvi-las e as atenções de que o rodeavam deixavam-no exasperado. Acabou por se convencer que, morrer por morrer, mais valia terminar a vida ao ar livre, longe de aborrecimentos e irritações. Pouco a pouco insinuou-se nele a ideia de que talvez recuperasse a saúde se se libertasse de alimentos demasiado ácidos, de poções e de pessoas que, com a melhor das intenções, o punham fora de si.

De forma que Ernest Darling, só pele e ossos e mal se mantendo em pé, quase sem um sopro de vida, virou as costas aos homens e às casas onde costumam morar e arrastou-se durante oito quilómetros até às matas em torno da cidade de Portland, no Oregon. Estava louco, sem dúvida. Só um lunático se ergueria assim do leito de morte.

Mas, nas matas, Darling encontrou o que procurava: sossego. Aí ninguém o obrigava a comer bifes e costeletas de porco. Nenhum médico lhe dava cabo dos nervos a tactear-lhe o pulso, ou a atormentar o seu pobre estômago com pílulas e pós. Sentiu um imenso alívio. Tomava banhos de sol, o que actuou como maravilhoso elixir tónico. Depois teve a sensação de que todo o seu corpo reclamava mais sol. Deixou de usar roupa e continuou os tratamentos solares. Ia arribando. Pela primeira vez após longos meses de sofrimento, sentia-se aliviado.

Enquanto continuava a melhorar, observou o que se passava à sua volta. Por toda a parte voavam e pipilavam os passarinhos; os esquilos brincavam e comunicavam uns com os outros. Invejou-lhes a saúde e a boa disposição, a existência despreocupada. Inevitavelmente, acabou por comparar a sua situação com a deles: porque seriam essas criaturas tão cheias de esplêndido vigor enquanto ele, pobre farrapo humano, vegetava miseravelmente? A conclusão foi imediata: se queria manter-se em vida, tinha de regressar à natureza!

Sozinho naquelas brenhas, descobriu o remédio eficaz e aplicou-o prontamente. Livrando-se de roupas, pôs-se a saltar e a pinotear por toda a parte; correu a quatro patas, subiu às árvores; em suma, praticou todos os desportos de ar livre, sempre a bronzear-se ao sol. Imitou os animais: construiu um ninho de folhas e de ervas secas; cobriu-o de cascas de árvore para se proteger das primeiras chuvas outonais. Batendo violentamente os braços contra os flancos, explicou-me: "Este é um exercício soberbo. Aprendi-o a observar os galos cantar." De outra vez, reparei no modo como sorvia ruidosamente o leite de coco. Respondeu-me que foi observando as vacas no rio: "Devem gozar de boa saúde por beberem assim", reflectiu. Tentou fazer o mesmo, sentiu-se bem e nunca mais deixou de as imitar.

Reparou que os esquilos viviam de frutos e nozes. Iniciou uma dieta idêntica, associada ao pão, e sentiu-se que recuperava forças e aumentava de peso. Durante três meses, levou essa existência primitiva; depois as fortes chuvas do Oregon obrigaram-no a regressar às casas dos homens: em apenas três meses, um frágil sobrevivente a duas pneumonias não conseguiria desenvolver defesas suficientes para passar um Inverno rigoroso ao ar livre.

Já conseguira muito, mas tinha de abrigar-se por uns tempos. Só lhe restava voltar a casa do pai e viver recolhido em interiores onde os seus pulmões reclamavam ar puro. Declarou-se terceira pneumonia e elanguesceu mais do que nunca. O seu corpo era como o de um morto vivo, o cérebro enfraquecia. Ficava estendido como um cadáver, tão esgotado que não podia falar, demasiado enervado para prestar atenção aos conselhos dos outros. O único acto de vontade de que foi capaz consistiu em não dar ouvidos a ninguém. Chamaram os melhores médicos especialistas de doenças mentais, que o consideraram doido e não lhe deram mais do que um mês de vida.

Por intermédio de um desses famosos especialistas, foi levado para o sanatório de Mount Tabor. Quando os médicos verificaram que se tratava de um doente inofensivo, deixaram-no à vontade. Retiraram as prescrições de refeições especiais, de modo que voltou à fruta e às nozes - azeite de oliveira, manteiga de amendoim e bananas passaram a ser os elementos principais da sua dieta. Quando recuperou forças, decidiu passar a viver como muito bem entendesse. Pensou que, se obedecesse, como toda a gente, às convenções sociais, estaria perdido. Ora ele não queria morrer. O medo de deixar este mundo foi um dos factores mais decisivos na génese do Homem Natureza.

Para sobreviver, precisava de uma alimentação natural, de ar puro e do efeito terapêutico dos banhos de sol.

Como o Inverno no Oregon não é propriamente atractivo para os que desejam regressar à pureza natural, Darling procurou um clima mais favorável. Montado na sua bicicleta, partiu para o Sul. Ficou um ano na Universidade de Stanford, onde prosseguiu os estudos, assistiu às aulas sumariamente vestido tanto quanto lho permitiam e aplicando na medida do possível os preceitos aprendidos com os esquilos. Apreciava sobretudo subir às montanhas por trás da universidade para, depois de se despir por completo, estender-se na erva, a ler um livro e a impregnar-se de sol, saúde e ciência.

Mas a Califórnia Central também tem os seus Invernos e o Homem Natureza continuou a peregrinar em busca de um clima ideal. Experimentou Los Angeles e a Califórnia do Sul onde, preso várias vezes, foi levado perante juntas psiquiátricas já que, como se pode imaginar, o seu modo de vida não se harmonizava com o dos seus semelhantes.

Tentou o Havai onde, sem conseguirem provar a sua insanidade mental, as autoridades tiveram de o expulsar. Não foi propriamente uma deportação, porque em alternativa ofereciam-lhe a possibilidade de cumprir um ano de cadeia. Ora, para o Homem Natureza, ser preso era o mesmo que optar pela morte, porque só ao ar livre e banhado pela luz do sol conseguiria resistir. Por outro lado, os juizes havaianos também tinham alguma razão: Darling era um cidadão indesejável, sem sombra de dúvida, por não se comportar como toda a gente. E como ele, com a sua filosofia de vida simples, se comportava tão fora da normalidade, estava mais que justificada a decisão das autoridades havaianas de o considerar indesejável.

Por isso voltou a viajar, sempre à procura de uma terra que, além de ter um clima adequado, fosse também tolerante em relação à sua presença. Encontrou-a no Tahiti, o paraíso supremo. E foi assim que, como ele dizia, escreveu uma das páginas mais belas do seu livro. Usa apenas uma tanga e uma camisa sem mangas, feita de rede de pesca.

Nu, pesa 65 quilos e goza de perfeita saúde. A vista, em lipos ameaçada, tornou-se excelente. Os pulmões, debilitados por três pneumonias sucessivas, estão recuperados e nunca foram tão resistentes.

Nunca esquecerei como esmagou um mosquito no nosso primeiro encontro. O irritante insecto tinha-lhe pousado s costas, entre as espáduas. Sem interromper minimamente a conversa, ele lançou um punho ao ar, curvou o braço para trás e acertou no sítio certo, matando o mosquito O peito ressoou-lhe com o choque, como se fosse um tambor.

Aquele barulho fez-me lembrar o que fazem os cavalos quando dão coices contra as paredes de madeira dos estábulos.

- O gorila da selva africana bate no peito até o som se propagar por muitas centenas de metros - disse ele de repente.

E começou a dar pancadas no peito, num batuque de pôr os cabelos em pé.

Um dia reparou numas luvas de boxe penduradas num gancho de parede e os olhos brilharam-lhe.

- Você já praticou boxe? - perguntei.

- Quando estava em Stanford, costumava dar lições - foi a resposta.

Logo ali nos pusemos em trajes menores e calçamos as luvas. Bang! Um longo braço de gorila distendeu-se de repente e a mão enluvada aterrou no meu nariz. Bif! Aplicou-me um directo na cabeça que quase me fez cair para o lado. Durante uma semana andei com um galo por causa desse murro. Esquivei-me a um directo da mão esquerda e mandei-lhe um soco ao estômago. Foi dado com muita força porque o lancei com todo o peso do corpo, alem de que ele próprio mergulhava para a frente naquele momento. Esperava vê-lo cair por terra. Mas não: em vez disso, levantou a cabeça, radioso, e felicitou-me pela minha destreza.

No momento seguinte, tive de me pôr em guarda, tentando aparar uma avalancha de ganchos e uppercuts. Depois, esperei pelo momento propício para o atingir no plexo solar. Finalmente encontrara um ponto fraco. O Homem Natureza baixou os braços, ofegante, e deixou-se cair no chão.

- Isto já passa, espere um instante - disse-me.

Ao fim de trinta segundos, já estava de pé... ai! E retribuiu-me o cumprimento, acertando-me no plexo solar. Sem fôlego, também eu baixei os braços e caí ao chão, num embate um pouco mais estrondoso do que o dele.

Tudo o que aqui relato demonstra que aquele homem já não tinha nada a ver com o pobre diabo que, oito anos antes, pesava menos de quarenta quilos e, abandonado por médicos e psiquiatras, jazia quase morto num quarto abafado em Portland, no Oregon. O livro que Ernest Darling escreveu é um óptimo livro e a encadernação não lhe fica atrás.

Durante anos, o Havai queixou-se da sua necessidade de receber emigrantes desejáveis. Gastou muito tempo, engenho e dinheiro para os atrair, sem resultados apreciáveis.

E no entanto deportou o Homem Natureza, recusou-se a acolhê-lo. Assim, para castigar o orgulho do Havai, aproveito a oportunidade para lhe fazer ver o que perdeu ao despedi-lo. Este homem, quando chegou a Tahiti, pôs-se à procura de um terreno para cultivar os alimentos que lhe convêm. Mas não encontrava propriedades a bom preço e o Homem Natureza não nadava em dinheiro. Percorreu as colinas escarpadas durante semanas, depois subiu mais alto, às montanhas, e acabou por descobrir, entre uma série de desfiladeiros, cerca de três hectares de selva e mata que, aparentemente, não pertenciam a ninguém. Os funcionários do governo avisaram-no de que, se quisesse desbravar aquela terra e se a cultivasse durante trinta anos, receberia um título de propriedade.

Logo lançou mãos ao trabalho. E que trabalho! Nunca ninguém se tinha lembrado de plantar àquela altitude. A terra estava coberta de mato cerrado e era habitada por porcos bravos e ratos sem conta. Vistos daquele pedaço de selva, Papeete e o mar eram magníficos, mas as perspectivas afiguravam-se pouco encorajadoras. Passou semanas a construir um caminho para tornar a plantação acessível. Os porcos e os ratos comiam tudo quanto tentava cultivar. Matou os porcos e montou ratoeiras. Destes, em duas semanas apanhou milhar e meio. Darling tinha de transportar tudo às costas e normalmente fazia-o durante a noite.

Gradualmente, começou a obter resultados. Construiu uma palhota com erva seca. Disputara o solo vulcânico, muito fértil, à selva e aos animais selvagens. Agora cresciam nele quinhentos coqueiros, outras tantas papaíeiras, trezentas mangueiras, muitas árvores-pão e abacateiros, para não falar das videiras, arbustos e legumes. Desenvolveu Um engenhoso sistema de irrigação, aproveitando a água que escorria das colinas e desviando-a para os desfiladeiros através de valas cavadas paralelamente, em altitudes diferentes. Estas gargantas estreitas tornaram-se verdadeiros jardins botânicos. Nos flancos áridos das colinas onde dantes o sol ardente quase secara a vegetação, transformando-a em mato rasteiro, viam-se agora muitas árvores, moitas e flores em franco crescimento. O Homem Natureza não só providenciava para si próprio como, prosperando como agricultor, passara a vender os seus produtos aos habitantes de Papeete.

Foi então que se descobriu que aquela terra, declarada pelo governo como não tendo proprietário, pertencia de facto a alguém, como se provava por actos notariais, mapas, etc. depositados nos arquivos cadastrais da ilha. Todo o trabalho de Darling parecia perdido. Aqueles terrenos não tinham valor nenhum quando neles se instalara e o dono - um rico proprietário - não fazia ideia de como ele os desenvolvera. Acertou-se um preço justo e o acto de venda foi assinado oficialmente a favor de Darling.

Depois sobreveio um problema mais grave: foi-lhe proibido o acesso ao mercado. O caminho que ele abrira foi impedido por três filas de arame farpado, na sequência de uma daquelas implicações burocráticas tão costumeiras neste absurdo sistema social. Certamente terá havido manobras ocultas, por parte daqueles elementos conservadores que já antes, em Los Angeles, tinham levado o Homem Natureza à presença de uma junta psiquiátrica - as mesmas que o haviam deportado do Havai, gente enquistada numa postura arrogante, incapaz de admitir que um seu semelhante possa ter gostos essencialmente diferentes. Parecia óbvio que os funcionários faziam causa comum com essas forças retrógradas, porque o caminho construído pelo Homem Natureza continua vedado até hoje. Ninguém tomou providências para ultrapassar esse estado de coisas e de todos os quadrantes se manifesta uma má vontade flagrante. Quanto a Darling, continua feliz da vida, sem nunca perder o sono a pensar na injustiça de que foi alvo: deixa esse cuidado aos autores da arbitrariedade. Não tem tempo para amarguras. Acredita que está neste mundo para gozar a felicidade e entrega-se por inteiro a esse ideal.

Portanto, o caminho que leva à plantação está obstruído e é impossível construir outro. As autoridades obrigam Darling a recorrer a um trilho de porcos selvagens que sobe pelas escarpas até ao cume da montanha. Escalei essa senda com Darling e tivemos de nos agarrar ao terreno inclinado com os pés e mãos, até chegar ao alto.

Esta pista primitiva só poderá transformar-se em estrada com o auxílio de um mecânico, uma máquina a vapor e um cabo de aço. Mas o Homem Natureza não se rala com isso. Retribui o mal que lhe fazem com bem. E quem pode negar que ele é mais afortunado do que os outros?

- Não quero saber da maldita estrada! - diz-mef quando nos sentamos à beira de um rochedo para recuperar o fôlego. - Estou a pensar comprar um avião e então quem se fica a rir sou eu. Ando a preparar uma zona de aterragem, de forma que, quando você voltar ao Tahiti, poderá apear-se mesmo à minha porta.

Não há dúvida, o Homem Natureza tem ideias estranhas, não é só a do gorila a bater no peito em plena selva africana. Também pensa na levitação. Disse-me um dia:

- Pode crer, a levitação não é impossível. Imagine a maravilha que não será uma pessoa elevar-se do solo por um simples esforço de vontade! Pense só! Os astrónomos avisam-nos de que o nosso sistema solar está moribundo e que, se tudo correr como previsto, esfriará tanto que deixará de ser possível vivermos na Terra. Muito bem:

nessa altura, toda a gente dominará a técnica da levitação e deixaremos este mundo, trocando-o por outros mais acolhedores. Como chegar à levitação? Por jejuns progressivos.

Sim, já tentei, e no fim da experiência senti que o meu corpo se tornava mais leve.

"Este homem é um maníaco", pensei.

- Evidentemente - continuou - são só teorias minhas. Gosto de especular acerca do glorioso futuro do homem. A levitação talvez não seja viável, mas agrada-me pensar que sim.

Uma noite, vendo-o bocejar, perguntei-lhe quantas horas de sono fazia.

- Sete horas. Mas daqui a dez anos estarei a dormir só seis horas e, dentro de vinte anos, cinco horas. De dez em dez anos roubo a mim mesmo uma hora de sono.

- De maneira que, quando chegar aos cem anos, já não dorme!

- Exactamente! É isso mesmo. Nessa idade, já não terei necessidade de dormir e além disso viverei de ar puro. Sabe que há plantas que se alimentam de vento?

- Mas já algum ser humano conseguiu fazer o mesmo? Abanou a cabeça.

- Nunca ouvi falar de quem tivesse conseguido. Mas esta ideia de viver do ar é apenas uma teoria minha. Seria óptimo, não acha? Claro que pode ser impossível...

e provavelmente é mesmo. Não pense que não tenho sentido prático. Nunca perco de vista o presente. Quando pairo nos meus sonhos sobre o futuro, deixo sempre um fio pendurado, a marcar o caminho, para poder voltar atrás.

Tenho a impressão de que o Homem Natureza é um bom malandro que se ri de todos nós. Em todo o caso, soube adoptar uma vida simples. Não deve arruinar-se com gastos de lavandaria. Alimenta-se do que a sua plantação produz e calcula o preço da sua própria mao-de-obra a cinco cêntimos ao dia. O caminho bloqueado obriga-o a viver na cidade, onde mergulha a fundo na propaganda socialista, e tem como despesas diárias, incluindo o aluguer da casa, a módica quantia de 25 cêntimos. Para ajudar ao orçamento, dirige uma escola nocturna para chineses.

Também não é sectário. Se só tiver carne para comer, mete-lhe o dente. É o que acontece se, por exemplo, passar uns dias na prisão ou viajar num barco, onde não lhe servem fruta nem frutos secos.

-- "Onde quer que se lance a âncora, ela cumpre a sua função... isto se a alma da pessoa for um mar sem fundo e sem fim, e não uma poça de água suja..." - citou ele um dia esta frase, acrescentando: - Como vê, a minha âncora está sempre a postos. Vivo para ter saúde física e moral, porque para mim estas duas coisas são inseparáveis.

Só a fé nessa âncora me salvou. Não me deixou ficar amarrado à cama: iludiu os médicos e arrastou-me para o mato.

Quando recuperei saúde e força, comecei a pregar pelo exemplo. Encorajei homens e mulheres a viver de acordo com a natureza, mas não quiseram ouvir o meu apelo.

No vapor que me trouxe para Tahiti, um mestre quarte-leiro explicou-me as doutrinas do socialismo. Demonstrou-me que era necessária uma justa distribuição económica para a humanidade se poder adaptar às leis naturais. Mais uma vez, mudei de táctica: actualmente consagro os meus esforços a estabelecer uma comunidade cooperativa.

Quando se realizar esse sonho, será fácil para os homens o retorno à natureza.

- Na noite passada tive um sonho - prosseguiu, ao mesmo tempo que se lhe iluminava o rosto - em que vi desembarcar de um navio vindo da Califórnia 25 discípulos, homens e mulheres; depois, na sua companhia, metia-me pelo carreiro dos porcos bravos que leva à minha plantação.

Ah, meu caro Ernest Darling, adorador do sol e da natureza! Há momentos em que te invejo, a ti e à tua existência descuidada. Revejo-te agora a subir os degraus da minha varanda no meio de cabriolas indescritíveis; com o cabelo a pingar depois de um mergulho no mar, os olhos brilhantes e o corpo dourado pelo sol; ouço ressoar a tua caixa torácica ao som desse tamborilar demoníaco que acompanha a tua canção: "O gorila da selva africana bate no peito até o som se propagar por muitas centenas de metros". E ver-te-ei sempre como te vi pela última vez, no dia em que partimos, quando o Snark, afocinhando mais uma vez nas ondas, se fazia ao largo por entre os recifes espumosos e eu acenei para os que em terra se despediam de nós. A minha recordação afectuosa vai sobretudo para ti, deus bronzeado de tanga escarlate, de pé na tua minúscula piroga.

 

O Trono da Sublime Abundância

Quando chega um estranho, todos procuram conquistar-lhe a amizade e levá-lo a casa; aí, cada um dos habitantes da zona o trata com a maior amabilidade; depois fazem-no sentar num trono mais alto e oferecem-lhe os melhores alimentos, em abundância.

Polynesian Researches

 

O Snark estava ancorado em Raiatea, ao largo da aldeia de Uturoa. Chegados na véspera, quando já caía a noite, decidimos guardar para o dia seguinte a visita à terra.

Quando nasceu o dia, reparei numa pequena piroga, com uma vela de espicha de aspecto esquisito, porque parecia rasar a superfície da lagoa. O barco, em forma de caixão, era escavado num tronco de árvore e media quatro metros e meio de comprido por 30 centímetros de largura e não mais de 60 de profundidade. Pontiagudo nos dois extremos, não tinha nenhum feitio especial. As partes laterais eram perpendiculares, pelo que, sem a vela, virar-se-ia sozinho numa fracção de segundo.

Como acabo de dizer, a vela era indescritível. Sem exagero: era uma daquelas coisas em que custa a acreditar se não se vê com os próprios olhos. A altura da relinga e o comprimento da retranca eram já de si desconcertantes; mas o construtor, não contente com isso, conferiu à parte superior uma superfície tão grande que nenhuma espicha normal conseguiria resistir a uma brisa média. Um mastro fixado à piroga pendia sobre a água à popa e na sua extremidade estava preso um cabo; desta forma, a borda da vela era mantida pela escota e a extremidade estava presa pelo cabo à espicha.

Não era um simples barco, nem sequer uma piroga, mas um verdadeiro veleiro, que o marinheiro manobrava com o seu próprio peso e sobretudo com muito sangue frio.

Segui a embarcação com os olhos enquanto ela se dirigia para a aldeia, com o seu único ocupante empoleirado na forquilha de brandal, bolinando e esvaziando o vento do bojo da vela para a rizar.

- Juro por quem sou que não sairei de Raiatea sem ter dado uma volta naquela piroga! - exclamei.

Passados uns minutos, Warren chamou-me das escadas:

- Olha, Jack, lá está a piroga outra vez!

Subi rapidamente à coberta e saudei o proprietário do barco, um polinésio alto e magro, de rosto ingénuo e uns olhos claros que brilhavam de inteligência. Como vestuário, tinha uma tanga escarlate e um chapéu de palha. Nas mãos, presentes: um peixe, um ramo de legumes verdes e uns inhames enormes. Aceitei tudo com grandes sorrisos - moeda corrente ainda usada em certos cantos isolados da Polinésia - e repetindo várias vezes mauruuru (o que em tahitiano quer dizer "obrigado") e depois fiz compreender ao homem que gostaria de experimentar a sua piroga.

O rosto dele iluminou-se de alegria e pronunciou uma única palavra, Tahaa, ao mesmo tempo que se virava e apontava para os picos altos e cobertos de nuvens de uma ilha a três milhas dali: a ilha de Tahaa. O vento estava favorável para lá irmos, mas no regresso teríamos de bordejar. Ora eu não fazia questão de visitar Tahaa.

Tinha cartas para entregar em Raiatea, precisava de me avistar com as autoridades, e Charmian, lá em baixo, estava a vestir-se para irmos a terra. Com gestos insistentes, expliquei ao homem que só queria dar uma volta na enseada. Por uma fracção de segundo, a sua expressão foi de decepção total; no entanto, aceitou a minha proposta com um sorriso.

- Anda, depressa! Vamos dar um passeio em piroga à vela! - gritei para Charmian. Mas vem de fato de banho, porque vamos molhar-nos de certeza.

Não queria acreditar, parecia-me um sonho. A piroga deslizava na água, deixando atrás de si um sulco prateado. Trepando à forquilha, eu fornecia-lhe o peso necessário para a manter em equilíbrio e Tehei (que se pronuncia Taí-hai-i) empregava a sua força. Quando o vento soprava mais forte, ele também subia para o meio da forquilha e manobrava com as duas mãos um remo largo, enquanto com o pé segurava a escota da vela grande.

- Ready about! - gritou.

Desloquei lentamente o meu peso para a piroga para a manter em equilíbrio enquanto a vela perdia vento.

- Hard a-lee! - bradou, fazendo o barco bolinar. Deslizei para o lado oposto, por cima da água, apoiado num mastro atravessado na piroga e, tendo assim virado de bordo, prosseguimos no nosso rumo.

- Ali right! - disse Tehei.

Estas três frases - Ready about!, Hard a-lee! e AU rigbt! - eram todo o vocabulário de Tehei em inglês e levaram-me a suspeitar que o homem teria feito parte de uma equipagem canaca comandada por um comandante americano. Entre lufadas de vento, falei-lhe por gestos e pronunciei várias vezes, com ar interrogador, a palavra sailor. Depois tentei o francês, na minha pronúncia atroz: Marin não lhe dizia nada, como de resto matelot. Ou o meu francês era mau ou o homem não conhecia estas palavras. As duas suposições confirmaram-se mais tarde. Desisti e comecei a soletrar os nomes das ilhas próximas. Com um sínal de cabeça, deu-me a entender que já lá fora. Quando mencionei Tahiti, percebeu que eu lhe perguntava se já lá fora. O seu esforço mental era quase palpável e dava gosto vê-lo discorrer. Acenou vigorosamente com a cabeça: sim, conhecia o Tahiti e acrescentou o nome de outras ilhas, como Tikihau, Rangiroa e Fakarava, provando assim que navegara até às Paumotus - certamente como marinheiro a bordo de qualquer escuna comercial.

Depois do nosso curto passeio, subiu a bordo connosco e perguntou-me qual o destino do Snark; quando citei Samoa, as ilhas Fidji, a Nova Guiné, a França, a Inglaterra e a Califórnia, em sequência geográfica, ele repetiu Samoa e, com gestos, deu-me a entender que queria lá ir. Foi a maior das dificuldades convencê-lo de que não tinha lugar para ele. Finalmente as palavras francesa petit bateau, barco pequeno, resolveram a questão. A sua expressão de desapontamento desanuviou-se num sorriso aquiescente e renovou o convite para o acompanharmos a Tahaa.

Charmian e eu olhámos um para o outro. Animados com a ideia da excursão, esquecemo-nos das nossas cartas para Raiatea, do funcionário que prometêramos procurar e - depois de metermos rapidamente uns sapatos, umas calças, uma camisa, cigarros, fósforos e um livro numa caixa de bolachas que protegemos com uma capa de borracha - galgámos a amurada e descemos para a piroga.

- A que horas contam regressar? - perguntou Warren, enquanto o vento enfunava a vela e eu e Tehei nos deslocávamos para cima da forquilha.

- Não faço a mínima ideia, logo se vê - respondi. - O melhor é não esperar por nós.

Afastámo-nos. A força da brisa aumentava e, com as velas frouxas, avançámos velozmente. Como o bordo livre do barco só media uns cinco ou seis centímetros, as cristas das ondas passavam-lhe por cima e fomos obrigados a escoar a água. Ora essa é uma das funções principais da vahinê, a palavra que em tahitiano significa mulher.

Como Charmian era a única vahinê a bordo, cabia-lhe pôr-se ao trabalho. Aliás, Tehei e eu não nos podíamos ocupar disso: empoleirados na forquilha, tínhamos que nos esforçar para a piroga não se virar. Com um vertedouro primitivo, de madeira, Charmian meteu mãos à obra, e tão bem que de vez em quando tinha tempo para descansar um pouco.

Raiatea e Tahaa são as únicas ilhas situadas no centro do mesmo círculo de recifes. Nessas duas ilhas vulcânicas, a linha do horizonte surge entrecortada pelos picos e cabeços que parecem querer chegar ao céu. Raiatea apresenta uma conferência de 50 quilómetros e Tahaa de 25: por aqui se pode fazer uma ideia da imensa barreira rochosa que rodeia as duas ilhas. Entre estas e os recifes estende-se uma magnífica enseada que em certos pontos mede mais de quilómetro e meio de comprimento e chega a atingir 3000 de largura. As enormes vagas do Pacífico, que às vezes formam frentes ininterruptas com meio quilómetro, precipitam-se contra os recifes, passam-lhes por cima e voltam a tombar com um barulho formidável; no entanto, a delicada estrutura de coral resiste ao embate e protege as margens. Para lá da enseada, desencadeiam-se as forças destrutivas, capazes de aniquilar o navio mais sólido; dentro dela, numa superfície calma e tranquila, uma piroga como a nossa voga impunemente apesar do seu bordo livre de cinco centímetros.

Tenho a sensação que deslizamos por cima da água. E que água!... Pura como fonte das mais cristalinas, salpicada de fascinantes matizes de todas as cores do arco-íris, mais esplendorosas que as de qualquer arco-íris. O verde-jade alternava com a turquesa, o azul-pavão com a esmeralda. Depois, a piroga atravessou lagos de um vermelho-púrpura, logo seguidos de outros de uma brancura intensa, estonteante, em cujos fundos de areia coralífera se contorciam holotúrias monstruosas. Tão depressa passávamos por cima de maravilhosos jardins de coral, onde flutuavam peixes coloridos, como borboletas marinhas, como percorríamos a superfície sombria de canais profundos, sulcados em voo prateado por cardumes de peixes-voa-dores, como logo a seguir avistávamos outros jardins de coral vivo, cada um mais esplendoroso que o anterior.

E, cobrindo tudo isto, o céu tropical dos alísios, com os seus farrapos de nuvens correndo para o zénite e acumulando-se em massas fofas no horizonte.

Sem que nos apercebêssemos, tínhamo-nos aproximado de Tahaa (que se pronuncia Ta-a-a, com tripla acentuação na vogal) e Tehei sorria com ar aprovador perante os esforços da habilidosa vahinê a esvaziar a água do barco. A piroga aterrou na areia, na maré baixa, a uns sete metros da praia, e nós descemos para o chão macio, por entre grandes holotúrias, que se torciam e contraíam debaixo dos nossos pés; uns polvos pequenos assinalavam a sua presença quando pisávamos os seus corpos moles.

Perto da praia, entre coqueiros e bananeiras, erguía-se sobre estacas a cabana de bambu de Tehei, coberta de colmo, de onde saiu a vahinê, uma mulher pequena de olhos meigos e traços que nos faziam hesitar entre aparentá-la com mongóis ou com índios norte-americanos. Tehei chamava-lhe Bihaura, pronunciando Bi-a-u-ra, com as sílabas bem destacadas.

Ela segurou Charmian pela mão e levou-a para dentro; Tehei e eu seguimo-las. Dentro da cabana, os nossos anfitriões deram-nos a entender, por gestos peremptórios, que tudo quanto lá estava nos pertencia. Nenhum fidalgo se mostraria tão magnânimo e tão sincero nesse oferecimento - até porque suspeito que poucos foram realmente generosos. Não tardámos a descobrir que mais valia refrear o nosso interesse por qualquer dos objectos à vista, porque no-lo ofereciam acto contínuo. Como é costume entre vahi-nês, as duas vahinês puseram-se a apalpar e a trocar impressões sobre tecidos, enquanto Tehei e eu, como nos competia, falávamos sobre apetrechos de pesca, a caça ao porco do mato e o dispositivo das pirogas duplas que serve para capturar bonitos com canas de quatro metros de comprimento. Charmian admirou um cesto de costura - nunca vira exemplar mais perfeito da cestaria polinésia. Logo lhe passou a pertencer. Assim que exprimi agrado diante de um anzol para bonitos esculpido em nácar, tive que tomar posse dele. Charmian foi seduzida por um novelo de corda de palha entrançada, com dez metros de comprimento e suficiente para confeccionar qualquer modelo de chapéu: de imediato o rolo mudou de dono. Quando detive o olhar num pilão de poi que devia ser muito antigo, passou a ser meu. Charmian também cometeu a imprudência de se interessar por uma tigela de madeira para poi, em forma de piroga, com quatro pés, toda esculpida numa só peça; deram-lha prontamente.

Como pousei os olhos numa concha feita de casca de coco, tive de ficar com ela. Depois de um breve conciliábulo, Charmian e eu decidimos passar a conter o nosso entusiasmo, para não levar à ruína os nossos anfitriões. Além disso, começámos a dar tratos à cabeça para decidir quais os objectos do Snark que poderiam servir como prendas de retribuição. O problema dos presentes de Natal não é nada comparado com o ritual polinésio de oferendas.

Enquanto se preparava o jantar, sentámo-nos nas melhores esteiras de Bihaura, ao fresco, na varanda, e ao mesmo tempo fomos conhecendo os outros moradores da aldeia.

Avançaram lentamente, em grupos de dois e de três, apertaram-nos a mão dando-nos a saudação de boas-vindas em tahitiano: ioarana, que se pronuncia io-ra-na. Quase todos os homens, tipos de constituição sólida, usavam apenas tanga, sem camisa, enquanto as mulheres vestiam o ahu nacional, espécie de bibe, franzido nos ombros e comprido, caindo em linhas graciosas até ao chão. Infelizmente, alguns tinham elefantíase. Vi uma mulher de estatura imponente e o porte de uma rainha, com um dos braços pelo menos quatro vezes mais volumoso que o outro. Ao lado dela estava um homem de um metro e oitenta de altura, muito musculado, com um corpo belo como o de um jovem deus. Infelizmente, os pés e os tornozelos estavam tão inchados que tocavam uns nos outros, dando o aspecto de pernas de elefante, disformes e monstruosas.

Ninguém sabe ao certo qual a origem desta enfermidade típica dos mares do Sul. Alguns atribuem-na à ingestão de água não potável; outros, às picadelas dos mosquitos; e outros a uma predisposição natural dos indivíduos, associada ao processo de aclimatação. Por outro lado, não aconselho ninguém a viajar até aqui que tenha pavor por esta e por outras doenças similares. Ocasiões haverá em que terá de beber água imprópria para consumo e será por certo mordido pelos mosquitos, pelo que qualquer precaução será inútil. Se andar pela praia descalço, pisará areias recentemente percorridas por doentes atingidos por elefantíase. Mesmo que se feche em casa, todos os alimentos frescos que ingerir - carne, peixe, aves ou legumes - poderão estar contaminados. No mercado de Papeete, toda a gente está ao corrente de que há dois leprosos à testa de bancas de venda e sabe-se lá por que vias chegam ao mercado os abastecimentos diários de peixe, frutas, carne e vegetais. A única maneira de andar pelos mares do Sul é numa total descontracção e com uma fé absoluta no brilho rutilante da boa estrela de cada um. Se virem uma mulher com elefantíase espremer com as mãos polpa de coco para dela extrair líquido, bebam-no e apreciem como é delicioso, esquecendo as mãos que o prepararam. Lembrem-se também de que tudo leva a crer que a elefantíase e a lepra não se transmitem por contacto.

Observámos uma mulher de Raratonga com os membros inchados e deformados a preparar creme de coco e diri-gimo-nos depois para o telheiro que serve de cozinha a Tehei e Bihaura, onde eles preparavam o jantar, que nos foi servido dentro de casa, numa mesa improvisada: um caixote de embalagem. Os nossos anfitriões esperaram que nos instalássemos para em seguida se sentarem no chão ao nosso lado e apresentarem o que havia para comer. Que banquete! Era sem dúvida alguma o trono da sublime abundância. Primeiro, serviram um delicioso peixe cru, apanhado horas antes e banhado em sumo de limão diluído em água. Seguiram-se frangos assados. Como bebida, dois cocos com o seu leite de doce sabor. Havia também umas bananas que sabiam a morango e se desfaziam na boca, e um poi de banana que nos fez lamentar que os nossos antepassados ianques tenham inventado o pudding. Comemos mandioca e taro cozidos, féis assado, feito com enormes bananas-rosa, suculentas e substanciais, preparadas de maneira especial. No momento em que nos maravilhávamos com a riqueza da ementa, trouxeram-nos um leitão inteiro envolvido em folhas verdes e assado em cima das pedras quentes de um forno tradicional, o prato mais nobre e celebrado da cozinha polinésia. No fim ainda havia café, forte e delicioso, um café local que se cultiva nas encostas de Tahaa.

Fascinado pela cana de pesca de Tehei, planeei uma pescaria com ele para o dia seguinte, pelo que Charmian e eu decidimos passar ali a noite. Mais uma vez Tehei referiu Samoa e de novo disfarçou com um sorriso compreensivo uma expressão de desapontamento quando, para explicar a falta de espaço, recorri às palavras petit bateau. Bora Bora era a nossa próxima escala, não muito longe de onde estávamos, visto que os cutters faziam a travessia entre esse porto e Raiatea. Por isso convidei Tehei a acompanhar-nos até lá no Snark. Foi então que me contou que a mulher nascera em Bora Bora e ainda lá tinha uma casa. Convidei-a também e imediatamente se ofereceram para nos receberem naquela sua segunda casa. Era segunda-feira. No dia seguinte partiríamos para a pescaria e voltaríamos a Raiatea. Na quarta-feira navegaríamos ao largo de Tahaa e, em determinado ponto a cerca de uma milha da costa, recolheríamos Tehei e Bihaura para seguir para Bora Bora. Tudo isto foi cuidadosamente combinado, assim como conversámos acerca de muitas outras coisas, apesar de Tehei saber apenas três frases em inglês e de Charmian e eu apenas conhecermos uma dúzia de vocábulos tahitianos e entre os quatro todos compreendermos umas dez palavras francesas. Claro que uma conversa poliglota como esta era lenta, mas Charmian desenhou a lápis num bloco de papel um mostrador de relógio e, com a ajuda de gestos, acabámos por nos entender.

Assim que manifestámos vontade de ir para a cama, os visitantes locais despediram-se, com suaves iaoranas, e Tehei e Bihaura retiraram-se. A casa consistia numa grande divisão, que ficou por nossa conta, enquanto os anfitriães iam dormir para outro sítio. De facto, entregavam-nos a guarda do castelo. E aqui faço questão de dizer que, de todas as recepções de que fui alvo da parte de gente de todas as raças e de todos os países, nunca ninguém me acolheu com tanta cortesia como aquele casal de tez morena em Tahaa. Não me refiro aos presentes, à generosidade sem limites, à sublime abundância, mas aos requintes de afabilidade, consideração e tacto com que nos trataram e sobretudo à sua sincera simpatia, nascida de uma total compreensão a nosso respeito. Sem se importarem com os seus costumes tradicionais, fizeram questão de perscrutar os nossos desejos para nos serem agradáveis, e nunca lhes faltou a perspicácia. Seria impossível enumerar as centenas de pequenos gestos de delicadeza com que nos rodearam durante a nossa breve estadia. Basta dizer que nunca ninguém igualou e muito menos excedeu toda a hospitalidade e gentileza que nos dispensaram.

O aspecto mais delicioso desse acolhimento foi o facto de a sua boa educação não resultar de nenhuma convenção adquirida ou de complexos ideais de sociabilidade, mas ser a expressão espontânea e natural do que lhes ia nos corações.

No dia seguinte, Tehei, Charmian e eu partimos para a pesca na piroga em forma de caixão, mas desta vez sem a enorme vela. Não podíamos pensar em velejar e pescar ao mesmo tempo numa embarcação tão exígua. Tehei lançou os anzóis e as sondas a várias milhas da praia, entre os recifes, num canal com uma fundura de vinte braças.

O isco eram pedaços de polvo, cortados de um animal vivo que se contorcia no fundo da piroga. Lançou sete linhas, cada uma delas atada à ponta de um bambu curto que flutuava à superfície. Quando um peixe mordia, a ponta do bambu era puxada para baixo e a outra ponta, logicamente, erguia-se no ar, oscilando e acenando-nos freneticamente para acorrermos. E lá íamos nós à pressa, no meio de gritos, exclamações e remadas vigorosas, de um bambu para outro, íçando das profundezas magníficos troféus reluzentes de meio metro a um metro de comprimento.

De repente, levantou-se a leste um vento fresco, escurecendo completamente o céu até então claro. Como estávamos a três milhas da margem, decidimos voltar, justamente no momento em que as primeiras rajadas encrespavam o mar. Depois começou a chover, uma chuva como só se vê nos trópicos, em que se abrem todas as torneiras do imenso reservatório celeste e parece que se lança sobre a Terra um dilúvio incontível. Charmian tinha vestido um fato de banho, eu um pijama e Tehei simplesmente uma tanga. Bihaura estava à nossa espera na praia e acompanhou Charmian até casa, quase como uma mãe leva a menina mal comportada que esteve a brincar em poças de lama.

Depois de mudar de roupa, fumámos em silêncio, con-fortavelmente instalados, a seco, enquanto nos preparavam o kai-kai, designação polinésia para "comida" ou "comer".

Aliás, foi uma das formas da raiz da palavra original, hoje desconhecida, que se disseminou por todo o Pacífico. Diz-se kai nas Marquesas, Raratonha, Manahiki, Niué, Fakaafo, Tonga, Nova Zelândia e Vate. No Tahiti, "comer" muda para amu, no Havai e Samoa é ai, em Bau diz-se kana, em Niua kaina, em Nongone kaka e na Nova Caledónia ki. Mas, fosse qual fosse o som ou símbolo desta palavra, foi sempre recebido com prazer pelos nossos ouvidos, depois de uma longa travessia a remos e à chuva. Mais uma vez tomámos o nosso lugar no trono da sublime abundância, lamentando não possuir um estômago de girafa ou de camelo.

Quando nos preparávamos para regressar ao Snark, o céu voltou a escurecer e levantou-se vento fresco, mas agora com pouca chuva e rajadas fortes. Soprou horas a fio, gemeu e rangeu por entre as folhas das palmeiras, rasgou e abanou, aos uivos, a frágil cabana de bambu. Ao largo, ouvia-se o troar aterrador das vagas a esmagar-se contra os recifes. Dentro do cordão dos recifes, a enseada, apesar de abrigada, estava branca, tal era a fúria da água. Nem Tehei, com a sua longa experiência como homem do mar, conseguiria fazer frente, na pequena piroga, a semelhante tormenta.

Ao pôr-do-Sol, o vento amainou, embora estivesse ainda muito forte para a piroga. Tehei apresentou-nos um nativo que consentiu em levar-nos no seu cutter até Raiatea pela quantia incrível de dois dólares chilenos, o equivalente a 90 cêntimos na nossa moeda. Metade das pessoas da aldeia vieram trazer-nos presentes, que Tehei e Bihaura nos entregaram antes da partida: galinhas em gaiolas, peixes crus marinados e envolvidos em folhas de palma, enormes cachos de bananas douradas, cestas entrançadas a transbordar de laranjas e limões, abacates (os avoca), enormes ceiras de inhame, réstias de taro e cocos e, por fim, grandes ramos e troncos de árvores - lenha para o Snark.

Quando nos dirigíamos para o cutter encontrámos o único branco de Tahaa: George Lufkin, ainda por cima nascido na Nova Inglaterra! Com 86 anos, contou-nos que passou 60 deles nas ilhas da Sociedade, a não ser por ausências ocasionais, como a corrida ao ouro no Eldorado em 45 e um curto período em que se dedicou à agricultura num rancho na Califórnia, perto de Tulare. Como os médicos lhe tinham dado só mais três meses de vida, regressou aos seus mares do Sul e ainda estava vivo, apesar da idade avançada, a rir-se dos ditos médicos, todos já falecidos. Sofria de fai-fai, a palavra nativa para elefantíase. Essa doença surgira-lhe havia um quarto de século e não o largaria até à morte. Perguntámos-lhe se tinha família. Ao lado dele estava sentada uma enérgica senhora de 60 anos, a filha. "É a única e não tem filhos vivos."

O cutter era um barco pequeno do tipo chalupa, mas parecia enorme, comparado com a piroga de Tehei. Porém tomou proporções liliputianas quando, ao chegarmos à enseada, fomos mais uma vez surpreendidos por vento rijo.

Nessa altura o Snark pareceu-nos sólido e estável como a terra firme. Tehei e Bihaura, que tinham vindo a acompanhar-nos, eram bons marinheiros. Com o cutter bem lastrado, conseguimos enfrentar a tempestade com as velas todas largadas. Estava a escurecer, na enseada havia muitos bancos de coral, mas nós continuávamos a avançar. A tormenta tornou-se mais forte, e então tivemos de virar de bordo, para evitar um banco de coral quase à superfície. Quando o cutter se encontrava a meio de executar a manobra e antes de retomar direcção, foi apanhado por uma rajada. As velas cambaram. Folgou-se a giba e a mestra e o barco endireitou-se ao vento.

Três vezes o barco foi derrubado por rajadas, antes de terminada a bordada, e três vezes as velas se folgaram.

Quando voltámos a virar de bordo, a noite caíra já. O vento levava-nos agora em direcção ao Snark e a borrasca roncava. Colhemos a giba e rizámos em parte a vela grande, largando apenas um pedaço do tamanho de um lenço. Infelizmente não vimos o Snark, que resistia às rajadas surto pelas duas âncoras, e o cutter foi embater num banco de coral. Com a ajuda de um dos botes, lançou-se uma amarra comprida para bordo do Snark e, após uma hora de duros esforços, o cutter foi desencalhado e amarrado, com toda a segurança, à popa do nosso veleiro.

No dia em que partimos para Bora Bora o vento estava escasso; atravessámos a enseada com o motor ligado até ao ponto em que Tehei e Bihaura se deviam encontrar connosco.

Quando nos orientámos para terra bolinando entre os bancos de coral, por mais que procurássemos na praia não conseguíamos avistar os nossos amigos. Não havia sinal deles.

- Não podemos esperar - disse eu. - Esta brisa não nos deixa chegar esta noite a Bora Bora e não quero desperdiçar mais gasolina.

Talvez não saibam, mas é um problema arranjar gasolina nos mares do Sul. Nunca se sabe quando será possível reabastecer os reservatórios.

Nesse preciso momento, Tehei apareceu entre as árvores, encaminhando-se para a água. Tinha tirado a camisa e acenava freneticamente com ela. Aparentemente, Bihaura não estava pronta. Uma vez a bordo, Tehei informou-nos por sinais que tínhamos de seguir ao longo da costa até à casa dele. Pegou na roda do leme e conduziu o Snark por entre os corais, evitando habilmente cada recife, do primeiro ao último. Da praia saudaram-nos com gritos de boas-vindas e Bíhaura, ajudada por várias pessoas da aldeia, aproximou do nosso barco duas pirogas carregadas de víveres: inhames, taro, fais, fruta-pão, cocos, laranjas, limões, ananases, melancias, abacates, romãs, peixe, muitas galinhas que se puseram a cacarejar e a pôr ovos no convés, e um porco vivo que guinchava como louco, certamente na previsão de uma morte iminente.

Já a lua ia nascendo quando entrámos na perigosa passagem dos recifes de Bora Bora e ancorámos ao largo da aldeia de Vaitapé. Bihaura, com a impaciência de uma boa dona de casa, ansiava por chegar a casa para nos preparar mais uma abundante refeição. Enquanto a chalupa a levava, com Tehei, para o pequeno molhe, chegaram até nós os sons de cantos e de instrumentos de música. Em todas as ilhas da Sociedade nos haviam prevenido de que os de Bora Bora andavam sempre alegres e não perdiam oportunidades para festejos. Charmian e eu fomos a terra para ver e na praça da aldeia, não longe de umas campas esquecidas junto à praia, demos com jovens de ambos os sexos a dançar, enfeitados com grinaldas e com os cabelos ornamentados de estranhas flores fosforescentes que, ao luar, emitiam um brilho intermitente. Um pouco mais longe, ao longo da praia, erguia-se uma imensa palhota, de forma oval, com pelo menos vinte metros de comprimento, onde os anciãos da aldeia cantavam himines. Também eles estavam em festa e tínham-se adornado com grinaldas de flores. Receberam-nos à entrada e fizeram-nos entrar, recolhendo-nos como ovelhas perdidas na noite.

Na manhã seguinte, muito cedo, Tehei subiu a bordo com um molho de peixes acabados de pescar presos num fio, convidando-nos para jantar naquela noite. Quando nos dirigíamos para casa dele, entrámos na casa dos himines. Lá estavam os mesmos velhos a cantar, acompanhados de alguns jovens em que não tínhamos reparado na véspera.

Tudo indicava que se tratava de preparativos para uma festa. No chão erguia-se uma montanha de frutas e legumes, rodeada de muitas galinhas atadas umas às outras com um fio feito de tiras de palma de coco. Depois de cantarem vários himines, um dos velhos levantou-se e fez um discurso. Dirigia-se a nós e, embora não compreendêssemos nada, percebemos que de alguma forma nos relacionava com aquela montanha de provisões.

- Será possível que nos estejam a oferecer tudo isto? - segredou-me Charmian.

- Impossível! - murmurei em resposta. - Por que haviam de nos presentear assim? Ademais, não temos espaço no Snark para tanta coisa, além de que não conseguiríamos consumir nem um décimo. O resto iria estragar-se. Talvez estejam a convidar-nos para a festa. De qualquer forma, não pode ser tudo para nós.

Mas o certo é que mais uma vez nos vimos sentados no supremo trono da abundância. Com gestos iniludíveis, o orador ofereceu-nos simbolicamente cada um dos alimentos e depois a totalidade. Foi um momento de embaraço. Que fariam vocês se vivessem num quarto e vos oferecessem um elefante branco? O nosso Snark pouco mais área tinha e além disso já estava carregado com a abundância de Tahaa. Aquele novo abastecimento era de mais. Coramos, titubeámos e agradecemos com muitos mauruurus, seguidos de outros tantos nuis, superlativo que indicava a intensidade e a veemência dos nossos agradecimentos. Ao mesmo tempo, através de sinais, cometemos uma terrível quebra de etiqueta: não aceitámos os presentes. O desapontamento dos cantores de himines foi evidente e nessa noite, com a ajuda de Tehei, chegámos a um compromisso: aceitámos uma galinha, um cacho de bananas, um molho de taro e assim por diante.

Mas não foi possível furtar-nos à abundância. Comprei uma dúzia de galinhas a um camponês local e no dia seguinte ele entregou-nos treze e um carregamento de fruta que trazia na piroga. O cantineiro francês brindou-nos com romãs e emprestou-nos o seu melhor cavalo. O polícia também nos ofereceu o dele, que estimava como à menina dos olhos. Todos nos mandaram flores. O Snark parecia uma frutaria decorada por uma florista. Andávamos por toda a parte engrinaldados de flores. Quando os velhos vieram a bordo cantar-nos himines, as raparigas beijaram-nos em sinal de boas-vindas e os homens da equipagem, do capitão ao grumete, ficaram rendidos às donzelas de Bora Bora. Tehei organizou em nossa honra uma pescaria: descemos para uma piroga dupla, manobrada a remos por uma dúzia de amazonas bem musculadas. Foi um alívio não termos pescado nada, porque essa carga suplementar acabaria por afundar o Snark.

Os dias passavam mas a abundância não diminuía. No dia da partida, as pirogas aproximaram-se uma a uma do nosso barco. Tehei ofereceu pepinos e uma papaieíra carregada de frutos esplêndidos. Além disso, trouxe para mim uma miniatura de uma piroga dupla com todos os apetrechos de pesca e uma profusão de frutas e legumes, como em Tahaa. Bihaura ofereceu a Charmian presentes especiais: almofadas de seda e algodão, leques e esteiras decoradas. Toda a população trouxe fruta, flores e galinha. E Bihaura acrescentou um leitão vivo. Nativos que víamos pela primeira vez debruçavam-se sobre a amurada e estendiam-me canas de pesca, linhas e anzóis esculpidos em nácar.

Quando o Snark, à partida, contornou os recifes, levava a reboque um cutter, que deveria levar Bihaura de volta a Tahaa... sem Tehei. Cedendo às súplicas deste, eu acabara por o aceitar a bordo e agora fazia parte da equipagem. No momento em que o cutter, depois de desamarrado, se orientou para este e a proa do Snark se virou para oeste, Tehei ajoelhou-se perto do poço do leme e rezou em silêncio, com lágrimas a correrem-lhe pela cara abaixo. Uma semana depois, Martin revelou as nossas fotografias e mostrou algumas a Tehei. E aquele polinésio de tez escura rebentou a soluçar quando viu a imagem da sua Bihaura bem amada.

Mas a abundância era demasiada! Não podíamos mexer-nos à vontade por causa da fruta que, espalhada por toda a parte, atravancava tudo. O próprio barco salva-vidas e a chalupa iam carregados. Os cabos do velame gemiam com o peso. Mas quando chegámos ao mar alto, batido pelo alísio, começámos a perder carga. Cada vez que o Snark balançava de lado, saltavam borda fora um ou dois cachos de bananas ou cocos, ou uma cesta de limões. Uma avalancha dourada deles foi varrida pelas ondas e escoou-se pelos escovéns de sotavento. Os cestões de inhame rebentavam, os ananases e as romãs rolavam pelo convés. As galinhas tinham-se soltado e andavam por toda a parte: chocavam ovos nos rolos dos cabos, cacarejavam e esvoaçavam em volta do botaló da giba e tentavam, em perigosa acrobacia, empoleirar-se no pau do palanque. Eram galinhas bravas, acostumadas a voar. Quando tentávamos agarrá-las, voavam para o mar, descreviam um círculo e voltavam para o Snark. Às vezes perdíamos alguma. Aproveitando a confusão a bordo, o leitão soltou-se e escorregou borda fora.

"Quando chega um estranho, todos procuram conquistar-lhe a amizade e levá-lo a casa; aí, cada um dos habitantes da zona o trata com a maior amabilidade; depois fazem-no sentar num trono mais alto e oferecem-lhe os melhores alimentos, em abundância."

 

A pesca à pedrada em Bora Bora

Às cinco horas da manhã, as buzinas das conchas começaram a fazer-se ouvir. Ao longo de toda a costa elevaram-se mugidos assustadores, semelhantes aos antigos chamamentos à guerra, acordando os pescadores e convocando-os para se prepararem. Também nós no Snark nos levantámos, porque era impossível dormir com aquele troar das conchas.

Também participaríamos da pesca à pedrada, embora os nossos preparativos fossem simples.

Tautai-taora é o nome que se dá a este tipo de pesca: tautai significa "instrumento de pesca" e taora "lançado". Mas a expressão tautai-taora significa "pesca à pedrada", porque a pedra é o instrumento que se lança. Na realidade, trata-se de uma batida aos peixes, semelhante, do ponto de vista da concepção, a uma batida às lebres ou a uma manada, embora nestes dois últimos casos os caçadores e os caçados operem no mesmo meio físico, ao passo que aqui o homem está à superfície, porque precisa de respirar, e os peixes são perseguidos na água, não interessa a que profundidade.

O procedimento é o seguinte: as pirogas formam uma fila mantendo entre si intervalos de 30 a 50 metros. Na proa de cada barco há um homem armado com um calhau pesando vários quilos e amarrado a uma corda curta. O pescador limita-se a bater violentamente com o calhau na água, levantando-o e deixando-o cair várias vezes seguidas. Na popa, um remador faz avançar a piroga e mantém-na a par das restantes.

Esta fila de embarcações vai ao encontro de outra fila idêntica, que está a uma ou duas milhas de distância. Do lado dos recifes, as duas pontas unem-se de maneira a formar rapidamente um círculo cujo extremo oposto é a costa. Este círculo fecha-se e contrai-se lentamente em direcção à margem, onde as mulheres, em pé e alinhadas dentro da água, formam com as pernas uma barreira que impede qualquer fuga dos peixes em frenesim. Quando o círculo atinge a dimensão mínima, uma piroga lança-se da margem e desenrola e deita borda fora uma longa esteira de folhas de palma que vai envolver o círculo, reforçando assim a paliçada de pernas. Claro que esta pescaria é sempre feita dentro dos recifes, na enseada.

- Três jolie - disse o polícia que estava ao nosso lado, depois de explicar, por gestos e sinais, que seriam apanhados milhares de peixes de todos os tamanhos, desde robalos a tubarões, e que seriam todos cozinhados na praia.

É a pesca que melhor resulta, embora se assemelhe mais a um festival, dada a sua natureza, do que à prosaica tarefa de angariar alimento no mar. Estas pescarias realizam-se mais ou menos uma vez por mês em Bora Bora, e são um costume que vem desde tempos imemoriais. Sempre se fez isto, mas não podemos deixar de pensar no primeiro selvagem desconhecido que, há muito, concebeu esta ideia de reunir tão facilmente quantidades prodigiosas de peixe sem recorrer a anzóis, redes ou arpões.

De uma coisa podemos ter a certeza: era um revolucionário e os conservadores da tribo devem tê-lo considerado anarquista e irresponsável. Teve de enfrentar dificuldades maiores do que as do inventor moderno, que se limita a convencer antecipadamente dois ou três capitalistas. Este precursor antigo teve de convencer toda a tribo antes da experiência, porque sem o seu apoio nunca conseguiria pôr o método em prática. Quase podemos visualizar os longos conciliábulos nocturnos em que, neste mundo de ilhas primitivas, ele chamou retrógrados aos companheiros e estes, por sua vez, o acusaram de ser alienado, demente, visionário e mentiroso.

Imagina-se que só à custa de muitos cabelos brancos e insultos vários terá finalmente conseguido conquistar para a sua ideia uma maioria que lhe permitiu pô-la à prova. Fosse como fosse, a experiência resultou, resistiu à verdade do teste... funcionou! E podemos ter a certeza que, depois disso, todos asseveraram que sabiam muito bem que ia funcionar.

Os nossos bons amigos Tehei e Bihaura, que haviam preparado esta pescaria em nossa honra, tinham prometido estar presentes. Estávamos nos nossos beliches quando nos vieram avisar da sua chegada. Subimos a escada à pressa e ficámos assombrados quando vimos a grande canoa polinésia em que iríamos embarcar. Era uma canoa dupla comprida, com as suas pirogas presas uma à outra por tábuas com um certo intervalo entre si, decoradas de alto a baixo com flores e ervas douradas. Uma dezena de amazonas cobertas de flores manejavam os remos e à popa de cada piroga perfilava-se um imponente timoneiro. Todos se engrinaldavam de flores amarelas, cor de laranja e carmim e traziam em volta dos rins um pareu escarlate. Havia flores por todo o lado, flores, flores e mais flores... Aquilo tudo era uma orgia de cores. Numa plataforma colocada sobre as proas das pirogas, Tehei e Bihaura executavam uma dança e todas as vozes se erguiam num canto vibrante de boas-vindas.

Descreveram três círculos em volta do Snark antes de se aproximarem para nos levarem para bordo, a Charmian e a mim. Depois dirigimo-nos para a zona da pesca, a cinco milhas dali, numa veloz corrida à força de remos, com o vento a favor. "Os de Bora Bora andam sempre contentes", diz-se nas ilhas da Sociedade, e de facto assim é. Entoaram canções de remar, canções de caçar tubarões e canções de pesca, sempre ao ritmo do bater dos remos, num coro dançado e participado por todos. De vez em quando alguém soltava o grito Mao! e nessa altura as remadoras ganhavam novo alento. Mao significa tubarão e, quando esses tigres aquáticos se aproximam, os nativos procuram distanciar-se, sabendo perfeitamente os perigos que correm de ser devorados, se porventura o animal abocanhar alguma das frágeis canoas. Claro que no nosso caso não havia tubarões, mas o grito é utilizado para incitar as remadoras, que correspondem como se realmente fugissem ao predador. Hoé! Hoé! é outro grito que faz levantar a espuma à nossa passagem.

Na plataforma, à frente, Tehei e Bihaura continuavam as suas danças, acompanhadas de cantos, coros e bater de palmas. Outras vezes o ritmo era mantido pelo bater sincopado dos remos contra os costados das pirogas. A dado momento, uma jovem, largando o remo, saltou para a plataforma e executou uma hula: sempre a dançar, balançava-se, debruçava-se para nós e pespegava-nos nas faces o beijo de boas-vindas.

Certos cantos religiosos ou himines eram de grande beleza; os baixos profundos dos homens combinados com os altos e os sopranos delicados das mulheres formavam uma harmonia de sons semelhante à dos órgãos. Na realidade, por graça, há quem chame ao himine o "órgão canaca". Outros cânticos ou baladas, de sabor muito primitivo, remontam à época pré-cristã.

Foi assim - cantando, dançando e remando - que estes alegres polinésios nos levaram à pesca. Um polícia francês que desempenha as funções de governador de Bora Bora acompanhou-nos com a respectiva família na sua piroga dupla, manobrada por presos; não é apenas o polícia e o chefe: é também o carcereiro. Nesta terra festiva, quando toca a pescar, vão todos. Umas vinte pirogas de forquilha remavam ao nosso lado. Numa curva da margem, apareceu de repente uma enorme piroga à vela, deslizando majestosamente com vento por trás. Quando se aproximou, três rapazes, debruçando-se habilidosamente na forquilha, saudaram-nos com um formidável rufar de tambores.

Meia milha mais adiante, chegámos ao lugar de concentração. Aqui, a chalupa a motor trazida por Warren e Martin despertou a curiosidade de todos os de Bora Bora, que não percebiam como se movia. Puxaram as pirogas para a areia seca e foram todos a terra beber leite de coco, cantar e dançar. Vieram juntar-se-nos outros que chegavam a pé em grande número, vindos dos povoados vizinhos. Foi um espectáculo bonito ver chegar as raparigas com coroas de flores, de mãos dadas e aos pares.

- Geralmente fazem uma boa pescaria - disse-nos Allicot, um comerciante mestiço. - No fim, a água fervilha de peixe. É muito divertido. Com certeza que sabe que todo esse peixe é para vocês, não?

- Todo? - gemi, porque o Snark já estava a abarrotar de belos presentes, trazidos em pirogas cheias de fruta, legumes, porcos e galinhas.

- Sim, absolutamente todo - confirmou Allicot. - Quando o cerco estiver completo, você, que é o convidado de honra, deve arpoar o primeiro peixe, como é tradição.

Depois toda a gente apanhará peixe à mão, levando-o para a praia para formar um monte. Em seguida um dos chefes fará um discurso em que lhe oferece tudo o que está nesse monte. Mas você não tem de aceitar a totalidade. Nesse momento, deve levantar-se, fazer um discurso e indicar qual o peixe que lhe agrada, deixando o resto para os outros. Então todos proclamarão a sua generosidade.

- Mas o que aconteceria se eu ficasse com tudo?

- Nunca se viu tal coisa. A etiqueta exige a retribuição dos presentes oferecidos.

O chefe religioso indígena entoou uma oração propiciatória e todos descobriram as cabeças. Depois o chefe dos pescadores chamou as pirogas uma a uma e atribuiu-lhes os respectivos lugares. Então todos embarcaram e partiram, deixando as mulheres em terra, à excepção de Bihaura e Charmian. Noutros tempos, nem este favor lhes seria concedido. Atrás de nós, as outras mulheres avançaram para a água, formando uma paliçada com as pernas.

A grande piroga dupla ficou a seco e fomos na chalupa. Metade das pirogas remou de sotavento e nós, com a outra metade, colocámo-nos na direcção contrária, a uma distância de milha e meia, até que a ponta da nossa linha tocou na barreira de recifes. Numa piroga a meio da nossa fila, o chefe da batida, um velho imponente, que seguia de pé na sua piroga, segurava uma bandeira na mão. A sua função era dirigir o movimento das embarcações. Mantinha-as formadas em linha soprando numa concha.

Quando todos estavam alinhados, agitou a bandeira à direita. Logo os pescadores da direita começaram a bater com os calhaus na água, todos ao mesmo tempo, num único movimento. Enquanto puxavam as pedras para si - uma questão de segundos, porque elas apenas afloravam a água - a bandeira fez sinal à esquerda que, por sua vez e com admirável precisão, percutiu a superfície com os calhaus, em uníssono. E assim por diante, sucessivamente à direita e à esquerda: a cada sinal da bandeira, uma formidável linha de choque abalava a enseada; ao mesmo tempo, as linhas formadas pelas pirogas avançavam à força de remos e cada sector repetia os movimentos do sector oposto, a mais de uma milha de distância.

Na proa da chalupa, Tehei, com os olhos fitos no velho, lançava o seu calhau em cadência com os outros. Uma vez fugiu-lhe a pedra da corda e, no mesmo instante, mergulhou para a ir buscar. Não sei se tocou no fundo. Em todo o caso, reapareceu segundos depois, de pedra na mão.

Este incidente ocorreu por diversas vezes a bordo das pirogas mais próximas de nós e de todas as vezes o homem em causa atirou-se ao mar para recuperar o calhau.

As pontas das duas filas aceleraram as manobras, virando para o lado da praia e encurtando as distâncias entre si, sob a supervisão atenta do chefe, até que se uniram junto aos recifes, fechando o círculo. Depois, iniciou-se a contracção do círculo, com os pobres peixes a fugir espavoridos, em direcção à margem, perseguidos pela vibração violenta dos calhaus na água. Pelo mesmo processo se fazem as batidas a elefantes na selva: homens que ao lado destes imponentes animais parecem pigmeus, agachados na savana ou atrás das árvores, perseguem-nos provocando ruídos estranhos. A paliçada de pernas já estava formada. Víamos as cabeças das mulheres, numa longa fila, como pontos regulares a marcar a superfície plácida da enseada. Dispostas por ordem de alturas, aventuravam-se o mais longe que podiam, de forma que, exceptuando as que estavam perto da margem, todas tinham água pelo pescoço.

O círculo continuou a contrair-se até que as pirogas quase se tocavam. Fez-se uma pausa. Uma piroga comprida destacou-se da costa, contornando a linha curva e deslocando-se a toda a velocidade. Na popa, um homem lançou borda fora uma esteira muito comprida de folha de palma. As pirogas já não eram necessárias e os homens foram reforçar a paliçada das mulheres: como a esteira não era propriamente uma rede, tratava-se de evitar que os peixes passassem através dela. Donde a necessidade de agitar a esteira com as pernas, de bater na água com as mãos e de lançar gritos, num verdadeiro pandemónio, enquanto a armadilha se estreitava.

Mas nem um peixe surgia à superfície ou ia lançar-se contra as pernas ocultas pela água. Por fim, o chefe dos pescadores entrou na zona de caça, no meio do círculo, procurando a vau em todas as direcções, com cuidado. Mas não havia peixe de espécie alguma. Nem uma sardinha, nem um robalo, nem sequer um peixe-sapo. A oração talvez não tivesse sido a mais apropriada ou então - eventualidade mais provável, como me explicou um velhote - o vento soprava do lado errado e o peixe estava noutro ponto da enseada. De qualquer maneira, não pescámos nada!

- Isto acontece uma vez em cinco - disse Allicot, para me consolar.

Vejam lá a nossa pouca sorte: tínhamos ido a Bora Bora atraídos pela pescaria à pedrada, e logo nos foi calhar a vez funesta! Se não tivéssemos planeado nada, talvez tivesse sido ao contrário. Não é que eu seja pessimista ou me insurja contra os desígnios do universo. Apenas exprimo os sentimentos de qualquer pescador ao fim de um longo dia de esforços infrutíferos.

 

O navegador amador

Nem todos os capitães são iguais, e alguns são certamente muito competentes, bem sei; mas a seqüência de capitães que calhou em sorte ao Snark deixou muito a desejar.

A experiência que me ficou é que, num barco pequeno, o mau capitão exige mais cuidados do que dois bebés de leite. Claro que pouco mais se poderia esperar. Os bons profissionais fazem carreira em navios de mil a quinze mil toneladas e não admira que não abandonem as suas belas posições para comandar uma casca de noz como o Snark, com as suas modestas dez toneladas. Tivemos de recrutar os nossos mareantes um pouco ao acaso, nos portos, e os navegadores dos portos padecem geralmente de uma deficiência congénita - são aquele tipo de homens que levam duas semanas sem conseguir encontrar uma ilha no meio do mar e regressam na sua escuna para anunciar que a ilha se afundou com todos a bordo, o tipo de homens cujo temperamento ou sede de bebidas fortes os arreda dos barcos e não os deixa trabalhar.

O Snark teve portanto três capitães e, se Deus quiser, ficaremos por aqui. O primeiro era senil ao ponto de não ser capaz de dar ao carpinteiro a medida exacta de um pau de retranca ou de ordenar a um marinheiro que lançasse uns baldes de água do mar sobre o convés. Durante os doze dias consecutivos em que estivemos atracados sob intenso sol tropical, o convés, que era novo em folha, esteve sempre seco. Por causa disso tive de pagar 135 dólares para o mandar recalafetar. O segundo capitão andava sempre mal disposto, já deve ter nascido assim. "O paizinho está sempre zangado", comentava a seu respeito um filho mestiço. Quanto ao terceiro, era um refinado malandro. Além de mentiroso, de honesto não tinha nada, e afastava-se tanto da seriedade mais elementar como da rota que devia seguir no dia em que quase fez naufragar o Snark ao largo das ilhas Ringgold.

Foi em Suva, nas ilhas Fidji, que despedi o meu terceiro e último capitão e reassumi o meu papel de navegador amador. Já tivera uma primeira experiência sob orientação do meu primeiro capitão que, depois de largarmos de São Francisco, fazia o Snark dar saltos tão espantosos no mapa que me vi obrigado a descobrir o que de facto se passava. Foi relativamente fácil perceber, porque ainda tínhamos a percorrer uma distância de vinte e duas mil milhas. Eu não entendia nada de navegação mas, depois de passar umas boas horas a ler e meia hora a praticar com o sextante, acabei por determinar a latitude do Snark pela observação dos meridianos e a longitude pelo método simples conhecido sob o nome de "alturas correspondentes". Não é um método muito exacto, nem sequer seguro, mas o meu capitão tentava navegar orientando-se por ele e era a única pessoa a bordo que poderia ter-me informado da sua pouca fiabilidade, coisa que não fez. Levei o Snark até ao Havai, mas favorecido pelas condições.

A declinação do Sol era Norte e o astro estava quase no zénite. Nunca tinha ouvido falar do cálculo do ângulo horário, feito com o cronometro, que permite determinar a longitude; ou por outra, tinha ouvido ao meu primeiro capitão algumas referências muito vagas mas, após uma ou duas tentativas práticas sem êxito, ele nunca mais voltou ao assunto.

Nas ilhas Fidji tive ocasião de comparar o meu cronometro com dois outros cronometros. Duas semanas antes, em Pago Pago, na Samoa, havia pedido ao meu capitão que comparasse o nosso cronometro com os de um cruzeiro americano, o Annapolis. Respondeu-me que já o fizera... o que era absolutamente mentira; e disse-me que a diferença achada era de apenas uma fracção de segundo. Asseverou-me tudo isto ostentando uma alegria fingida e acrescentando elogios à esplêndida precisão do meu cronometro.

Digo eu agora: elogios à sua própria esplêndida e descarada falta de verdade. Porque, vejam bem, catorze dias mais tarde, em Suva, comparei o meu cronometro com o do Atua, um vapor australiano, e descobri que o meu estava 31 segundos adiantado. Ora 31 segundos de tempo, convertidos em arco, equivalem a sete milhas e um quarto.

Ou seja, se me dirigisse para Oeste durante a noite e a posição do Snark, segundo cálculo baseado na minha longitude observada de tarde, fosse de sete milhas ao largo da costa, eu estaria nesse preciso momento a embater nos recifes. Depois comparei o meu cronometro com o do capitão Wooley, o comandante do porto que avisa Suva das horas, disparando um canhão, três vezes por semana, ao meio dia. O meu cronometro estava 59 segundos avançado, o que quer dizer que, se navegasse para Oeste, me esmagaria contra os recifes quando pensasse estar a 15 milhas de distância deles.

Rectifiquei em parte, subtraindo 31 segundos do total do erro do meu cronometro, e dirigi-me para Tanna, nas Novas Hébridas, não sem jurar, sempre que o Snark se aproximava da costa, noite cerrada, que não me esqueceria de corrigir o outro erro de sete milhas revelado pelo cronometro do capitão Wooley. Tanna fica a umas 600 milhas a oeste-sudoeste das ilhas Fidji e eu estava convencido que, enquanto cobria essa distância, podia armazenar na cabeça conhecimentos náuticos suficientes para chegar ao destino.

Em todo o caso, lá cheguei, apesar das dificuldades, mas primeiro vejam bem aquilo por que passei. Sempre tenho dito que navegar é fácil, mas não dispunha do tempo necessário para me consagrar seriamente ao Snark. Além da minha tarefa quotidiana de escritor, reservada para cobrir as despesas do nosso cruzeiro, estavam-me atribuídas diversas ocupações a bordo. Por outro lado, aprende-se melhor a teoria da navegação em casa, em terra firme, onde a latitude e a longitude são sempre invariáveis, do que num barco que dia e noite segue o seu rumo em direcção à costa, sem sabermos sequer onde fica essa costa, que pode surgir-nos quando menos esperamos, provocando o desastre. Para começar, há as agulhas de marear e o traçar das rotas. Zarpámos de Suva na tarde de sábado, 6 de Junho de 1908, e só ao escurecer é que passámos o canal apertado e cheio de recifes entre as ilhas de Viti Levu e Mbengha. Diante de mim espraiava-se o oceano. No caminho não havia nada, excepto Vatu Leile, uma ilhazita miserável que persistia em assomar em pleno Pacífico, a umas 20 milhas para oeste-sudoeste - precisamente a minha direcção. Claro que parecia muito simples evitá-la, alterando o curso de forma a passar oito ou 10 milhas para Norte. Era uma noite escura e navegávamos com o vento a favor. Eu tinha de dizer ao timoneiro em que direcção virar para não cruzar com Vatu Leile. Mas qual direcção? Embrenhei-me nos livros de navegação. Localizei o "Curso Verdadeiro". Era mesmo isso! O que eu queria era o curso verdadeiro. Li ansiosamente:

"O Curso Verdadeiro é o ângulo com o meridiano de uma linha recta desenhada no mapa para ligar a posição da embarcação ao local de destino."

Era mesmo isso. A posição do Snark era a entrada ocidental do canal entre Viti Levu e Mbengha. A escala seguinte, no mapa, ficava 10 milhas a norte de Vatu Lele. Assinalei esse ponto com o meu compasso de pontas fixas e, com as réguas paralelas, achei o curso verdadeiro: Oeste quarto-sudoeste. Só tinha que o indicar ao timoneiro e o Snark seguiria caminho na segurança do mar alto.

Mas, felizmente para mim, continuei a ler e apercebi-me de que a agulha de marear, essa amiga fiel do marinheiro, não apontava para norte. Tanto se detinha a este como a oeste e por vezes até virava a cauda para norte e a cabeça para sul. A declinação, nesse ponto particular do globo onde o Snark se encontrava, era de 9° 401 este. Por conseguinte, eu deveria ter isso em conta antes de dar o rumo ao timoneiro. Continuei a leitura:

"A Rota Magnética Correcta obtém-se corrigindo o Curso Verdadeiro com a declinação."

Portanto, pensei, se a agulha marca 9o 401 a este do norte, terei de dirigir o barco para 9o 401 a oeste do norte indicado pela agulha, e que na realidade não era o norte. Acrescentando 9o 40' à esquerda da minha rota oeste quarto-sudoeste, consegui estabelecer a minha rota magnética e parecia, mais uma vez, em condições de pôr-me ao largo.

Mas... miséria das misérias! A Rota Magnética Correcta não correspondia à Rota da Agulha de Marear. Emboscado, outro diabinho esperava por mim para me passar uma rasteira e atirar-me contra os recifes de Vatu Seile. Dava pelo nome de Declinação. Li:

"A Rota da Agulha de Marear é o curso pelo qual se governa o timoneiro e obtém-se corrigindo a Rota Magnética Correcta com a Declinação."

Ora a Declinação é a variação causada na agulha pelo ferro incluído na construção do barco. Obtive esta variação puramente local na tabela de declinações da minha agulha e apliquei-a depois à Rota Magnética Correcta. O resultado foi a Rota da Agulha de Marear. Mas as minhas contas ainda não estavam certas. A minha agulha padrão ficava a meio do Snark, no poço do leme, perto da roda. Quando a agulha de governo indicava oeste-sudoeste três quartos-sul (a rota de governo), a agulha padrão indicava oeste meío-norte, o que não era a rota de governo. Fiz o Snark desviar-se até a agulha padrão indicar oeste-sudoeste três quartos-sul, o que dava na agulha de governo sudoeste-oeste.

As operações descritas constituem o método simples de corrigir a rota. E o pior é que, se não nos conformarmos rigorosamente a ele, arriscamo-nos a ouvir, uma bela noite "Escolhos à vista!", a tomar um banho de mar completo e a passar pela agradável diversão de nadar à pressa para a costa, perseguidos por tubarões famintos.

Assim como a agulha de governo é traiçoeira e faz pouco do marinheiro, apontando em todas as direcções excepto para norte, também esse indicador celeste, o Sol, persiste em mudar de lugar quando menos se espera. Essa leviandade do Sol é fonte permanente de aborrecimentos... pelo menos para mim. Para identificar o exacto local onde nos encontramos à superfície da Terra, temos de saber onde se encontra o Sol nesse preciso momento. Ou seja, o astro do dia, considerado pelo homem como medidor do tempo, não é um relógio de confiança. Quando descobri isto, caí numa profunda melancolia e cheguei a duvidar do próprio cosmos. Leis imutáveis, como a da gravitação e da conservação da energia, pareciam postas em causa e preparei-me para as ver em contradição a qualquer momento, sem me espantar minimamente. Visto que a agulha de governo mentia e o Sol faltava aos seus compromissos, por que não haveria a matéria de perder a força de atracção e a energia?

Até o movimento perpétuo se tornava possível e eu estava numa tal disposição de espírito que seria capaz de comprar um motor Keeley ao primeiro vendedor habilidoso que me aparecesse no convés do Snark. Depois, quando descobri que a Terra rodava 366 vezes sobre o seu eixo, quando o Sol só se levantava 365 vezes no mesmo período de tempo, questionei-me seriamente sobre se não estaria a sonhar.

De facto, o Sol é tão irregular na sua rota que não é possível inventar um relógio que se guie pelo tempo solar. O astro acelera e abranda e tanto se pode adiantar no horário como atrasar-se; há também alturas em que não conhece limite de velocidade, procurando ultrapassar-se a si próprio ou, por outra, chegar a tempo ao ponto do céu onde deveria estar. Neste último caso, não abranda no momento certo, de forma que vai parar mais à frente. Na realidade, só quatro vezes ao ano é pontual e chega a tempo ao ponto indicado. Nos restantes 361 dias erra a seu bel-prazer pelo firmamento. Como o homem é mais perfeito que o Sol, inventou o relógio, que mantém a regularidade do tempo e também calcula o avanço ou o atraso do astro na sua rota e a diferença entre a sua posição e a que devia ocupar, se tivesse o mínimo de pudor. Chama-se a isso a Equação do Tempo. Assim, o navegador que queira saber onde se encontra consulta o cronometro para determinar a posição do Sol segundo a hora do observatório de Greenwich, depois aplica a esses números a Equação do Tempo e descobre então o ponto preciso onde o Sol se deveria encontrar.

O Snark deixou as ilhas Fidji no sábado, 6 de Junho. No dia seguinte, domingo, no imenso oceano, sem terra à vista, procurei de novo a minha posição por meio de um cálculo de ângulo horário para a longitude e de uma observação meridiana para a latitude. A posição pelo cronometro foi calculada de manhã, quando o Sol estava a cerca de 21° acima do horizonte. Procurei no Almanaque Náutico e descobri que nesse dia, 7 de Junho, estava atrasado um minuto e 26 segundos, e que recuperava do seu atraso à razão de 14,67 segundos à hora. O cronometro indicava que no momento preciso em que eu media a altura do Sol, eram 8 h 25 em Greenwich. Depois, qualquer simples aluno de escola primária seria capaz de resolver o problema de corrigir a Equação do Tempo. Infelizmente, eu não era aluno da escola primária. Era óbvio que, a meio do dia, em Greenwich, o Sol estava um minuto e 26 segundos atrasado. Era igualmente óbvio que, supondo que eram onze horas da manhã, o Sol estaria um minuto e 26 segundos atrasado, mais 14,67 segundos. Se fossem 10 horas da manhã, teríamos que acrescentar duas vezes 14,67 segundos. E se fossem 8 h 25 da manhã, teríamos de acrescentar três vezes e meia 14,67 segundos. Portanto, era evidente que, em vez de serem 8 h 25 da manhã, eram 8 h 25 da noite, e por conseguinte teríamos que subtrair e não acrescentar oito vezes e meia 14,67 segundos; porque se, ao meio dia, o Sol estivesse atrasado um minuto e 26 segundos e recuperasse desse atraso à razão de 14,67 segundos por hora, às 8 h 25 da noite encontrar-se-ia muito mais próximo do ponto em que deveria estar do que de manhã.

Até aqui, tudo certo. Mas o cronometro marcava 8 h 25 da manhã ou da noite? Consultei o relógio do Snark: marcava 8 h 9 e de certeza que era de manhã, porque eu acabava de tomar o pequeno almoço. Portanto, se eram oito da manhã a bordo do Snark, as oito horas do cronometro (que eram a hora em Greenwich) deviam ser oito horas diferentes das oito horas do Snark. Mas diferentes em quê? Não podiam ser oito horas daquela manhã, pensei eu; por conseguinte, deviam ser oito horas daquela noite ou oito horas da noite passada.

Chegado a este ponto do meu raciocínio, caí no poço sem fundo do caos intelectual. Disse para comigo: Vejamos, estamos numa longitude leste, portanto adiantados em relação a Greenwich. Se estivéssemos atrasados em relação a Greenwich, hoje seria ontem; se estamos adiantados em relação a Greenwich, ontem é hoje, mas se ontem é hoje, que raio é hoje?... amanhã? Absurdo! No entanto, deve ser assim mesmo. Quando medi o Sol naquela manhã às 8 h 25, os astrónomos de Greenwich acabavam de jantar na noite anterior.

- Nesse caso, corrige a Equação do Tempo para a data de ontem - diz-me o meu espírito lógico.

- Mas hoje continua a ser hoje - insiste o meu espírito literal. - Tenho de corrigir o Sol para hoje e não para ontem.

- No entanto, hoje é ontem - insiste o meu espírito lógico.

- Está tudo muito bem - prossegue o meu espírito literal. - Se eu estivesse em Greenwich, podia ser ontem. Em Greenwich acontecem coisas estranhas. Mas sei, tão certo como eu existir, que estou aqui, hoje, 7 de Junho, e medi a altura do Sol aqui e hoje. Portanto, tenho de corrigir o Sol aqui e agora.

- Disparate! - reponta o meu espírito lógico. - Lecky diz...

- Não me interessa o que diz Lecky - interrompe o meu espírito literal. - Deixa que te explique o que diz o Almanaque Náutico. Diz que hoje, 7 de Junho, o Sol estava atrasado um minuto e 26 segundos e recuperava a uma média de 14,67 segundos à hora. Diz que ontem, 6 de Junho, o Sol estava atrasado um minuto e 36 segundos e a recuperar a uma média de 15,66 segundos à hora. Como vês, é despropositado pensar em corrigir o Sol de hoje com o horário do Sol de ontem.

- Estúpido!

- Idiota!

Discutiram os dois até eu sentir a cabeça a andar à roda, a ponto de começar a perder a noção do tempo.

Lembrei-me de um conselho prudente que me dera o capitão do porto de Suva: "Na longitude leste, consulte o Almanaque Náutico para obter os elementos do dia anterior."

Depois ocorreu-me outra ideia. Corrigi a Equação do Tempo para domingo e sábado, fazendo duas operações distintas e, vejam só!, quando comparei os resultados, havia uma diferença de apenas quatro décimos de segundo. Senti-me outro! Acabava de encontrar o caminho que me faria sair do labirinto. O Snark era demasiado pequeno para conter-me, a mim e à minha experiência. Quatro décimos de segundo equivaliam apenas a uma diferença de um décimo de milha... quase nada!

Tudo correu às mil maravilhas nos dez minutos seguintes, quando por acaso pousei o olhar sobre a seguinte quadra para navegadores:

 

Avanço sobre o tempo de Greenwich

Longitude Este;

Atraso sobre o tempo de Greenwich

Longitude Oeste.

 

Céus! A hora do Snark não coincidia com a de Greenwich! Quando eram 8 h 25 em Greenwich, o relógio do Snark só marcava 8 h 9 minutos. Atraso sobre o tempo de Greenwich, longitude oeste. Pois claro! Navegávamos na longitude Oeste.

- Que grande imbecil! - exclamou o meu espírito literal. - Aqui são 8 h 9 minutos da manhã e em Greenwich são 8 h 25 da noite.

- Muito bem! - responde o meu espírito lógico. - Para sermos mais precisos, 8 h 25 da tarde são de facto 20 h 25 minutos, o que sempre é melhor que 8 h 9 minutos.

Não, não há dúvida: estamos na longitude oeste.

É então que o meu espírito literal triunfa.

- Zarpámos de Suva, nas Fidji, não foi? - pergunta, e o espírito lógico apoia.

- E Suva fica na longitude oeste, não fica? - Mais uma vez o espírito lógico concorda. - E navegámos para Oeste (o que nos leva ainda mais para a longitude este), não é? Desta vez não se pode negar: estamos na longitude este.

- Atraso sobre o tempo de Greenwich, longitude oeste, repete incansavelmente a lógica. Admites que as 20 h 25 minutos estão adiantadas em relação às 8 h 9 minutos?

Interrompo a discussão:

- Perfeito. Vamos comprovar a minha observação e logo vemos.

E assim fiz, para chegar à conclusão de que a minha longitude era 184° oeste.

-Eu bem disse! - troça o meu espírito lógico.

Fico pasmado e o meu espírito literal também, por uns minutos. Depois declara:

- Mas não há 184° de longitude oeste, nem de longitude este ou de qualquer outra longitude. O meridiano maior tem 180°, como muito bem sabes.

Chegado aqui, o espírito literal sucumbe sob o esforço de raciocínio e o espírito lógico está esparvecido; quanto a mim, fico com uma expressão perdida e dou voltas à cabeça, para saber se navego em direcção às costas da China ou ao golfo de Darien.

Então uma vozinha fraca, que não reconheço, vinda de uma parte remota da minha consciência, diz:

- O número total de graus é 360. Subtrai os 184° de longitude oeste de 360 e terás 176° de longitude leste.

- Mera especulação! - exclama o espírito literal. E o espírito lógico reforça:

- Não existe nenhuma regra nesse sentido.

- Quero lá saber de regras! - proclamo. - Não tenho olhos para ver? A coisa parece evidente: 184° de longitude oeste significam que ultrapassámos em 4 graus a longitude este em que, aliás, sempre me mantive. Parti das Fidji, que ficam na longitude este. Agora vou marcar a minha posição no mapa e comprová-la por estimativa.

No entanto, seria assaltado por novos aborrecimentos e novas dúvidas. Um exemplo: nas latitudes sul, toma-se a altura do Sol para o cálculo do ângulo horário de manhã bem cedo, quando a declinação é norte. Eu tomava as minhas às 8 horas. Ora para fazer o cálculo é necessário, entre outras coisas, ter uma latitude exacta.

Mas essa latitude obtém-se ao meio dia, pela altura meridiana do Sol. Ou seja, para poder fazer o meu cálculo de ângulo horário pela manhã, tenho de saber qual a minha latitude nesse momento. Claro, se o Snark se dirige para este a seis nós, durante as quatro horas de diferença a sua latitude não deve alterar-se. Por outro lado, se o nosso barco se desloca para Sul, a sua latitude variará de 24 milhas. Neste caso, uma simples adição ou uma subtracção converterá a latitude do meio dia na latitude das 8 horas. Mas suponhamos que o Snark esteja em rota para sudoeste. Então será preciso consultar as tabelas de pontos.

Vejamos a ilustração: às 8 horas tomei a altura do Sol. No mesmo momento anotei a distância registada no livro de bordo. Ao meio dia, depois de ter tomado a altura meridiana do sol, consultei o livro de bordo e descobri que, desde as 8 horas, o Snark tinha percorrido 24 milhas. A sua rota verdadeira fora oeste Ya Sul Verifiquei a tabela 1, na coluna das distâncias, na página correspondente às rotas de Va de ponto, e parei em 24, o número de milhas percorridas. Em frente, nas duas colunas seguintes, verifiquei que o Snark tinha feito 3,5 milhas para Sul e 23,7 milhas para oeste. Só tinha que deduzir 3,5 milhas da minha latitude do meio dia. Obtidos todos estes elementos, calculei a minha longitude.

Mas essa era a minha longitude das 8 horas. Até ao meio dia, tinha efectuado uma rota de 23,7 milhas a oeste. Qual era a minha longitude ao meio dia? Seguindo a regra, voltei à tabela de pontos n° 2, que estudei em pormenor, e detectei uma diferença de 25 milhas para as quatro horas. Fiquei aterrado! Repeti a operação uma dúzia de vezes, sempre com o mesmo resultado. Conclua você, caro leitor. Suponha que viajou 24 milhas e fez 3,5 milhas em latitude: como poderá ter percorrido ao mesmo tempo 25 milhas em longitude? Supondo até que avançou 24 milhas para oeste sem mudar de latitude, explique-me como será possível modificar em 25 milhas a sua longitude? Em nome da razão, diga-me como fez para cobrir uma milha a mais em longitude do que o número total de milhas que navegou?

E no entanto, eu tinha uma tabela de pontos famosa: nada menos que a Bowditch. A regra de utilização era simples (tanto quanto o podem ser as regras de marear); não me enganara em nada. Passei uma hora de volta daquilo e no fim continuei a ver-me diante da impossibilidade material de ter percorrido 24 milhas, numa rota em que a minha latitude variou 3,5 milhas e a minha longitude 25 milhas. O pior é que não tinha ninguém para me ajudar. Nem Charmian nem Martin sabiam tanto como eu sobre o assunto. E entretanto, o Snark seguia a todo o pano para Tanna, nas Novas Hébridas. Tinha de tomar qualquer decisão.

Não sei como a ideia me veio ao espírito... chamem-lhe inspiração, se quiserem; mas pensei: se a rota para Sul é a latitude, por que não será a rota para oeste a longitude? Por que não hei-de transformar a rota para oeste em longitude? Então toda a questão me pareceu clara. Os meridianos de longitude estão separados de 60 milhas (náuticas) no Equador. Convergem no pólo. Por exemplo, se seguir o meridiano de 180° de longitude até ao pólo Norte e, por outro lado, um astrónomo de Greenwich seguir o meridiano de longitude zero na mesma direcção, quando chegarmos ao pólo podemos apertar a mão um ao outro, embora à partida estivéssemos separados por milhares de milhas. Sigamos o raciocínio: se um grau qualquer de longitude mede 60 milhas de largura no Equador, e se reduz a nada no pólo, em certos pontos entre o pólo e o Equador, algures entre o pólo e o Equador, esse mesmo grau deve medir meia milha, uma milha, 2 milhas, 10 milhas, 30 milhas, etc, até 60 milhas.

Tudo se simplificava novamente. O Snark encontrava-se a 19° de latitude sul. O perímetro do globo terrestre era menor aí do que no Equador. Por conseguinte, cada milha para oeste, a 19° de latitude sul, era superior a um minuto de longitude, porque se 60 milhas são sempre 60 milhas, 60 minutos só equivalem a 60 milhas no Equador. George Francis Traine quebrou o recorde de Júlio Verne na volta ao mundo. Mas qualquer um pode quebrar o recorde de George Francis Traine. Para isso só precisará de ir, num vapor veloz, à latitude do cabo Horn, e navegar para oeste a toda a volta. O mundo é muito pequeno nessa latitude e não há terra pelo caminho a interromper a rota do navegador. Se o barco mantiver uma velocidade de 16 nós, a volta ao mundo completar-se-á em apenas 40 dias.

Mas há compensações. Na noite de quarta-feira, 10 de Junho, transpus para o meu mapa o ponto calculado às 8 horas da noite, partindo do meu ponto observado ao meio dia. Depois modifiquei a rota do Snark para o orientar para Futuna, uma das ilhas situadas no extremo oriental das Novas Hébridas, com o aspecto de um cone vulcânico de 650 metros a emergir do mar profundo. Alterei a rota de forma a fazer o Snark passar 10 milhas a norte. A seguir fui ter com Wada, o cozinheiro, que todas as manhãs fazia de timoneiro, das quatro às seis horas, e disse-lhe:

- Wada San, tome atenção: amanhã de manhã, olhe bem, para ver se vê terra a sotavento.

E fui deitar-me, entregando-me à sorte. A minha reputação como navegador seria posta à prova. Suponham por um instante que, ao nascer do dia, não surgisse terra no horizonte. Que raio de navegação seria a minha? Em que situação nos encontraríamos? Como saber onde estávamos? Para onde nos dirigirmos se quiséssemos chegar a terra? Tive visões sinistras: o Snark a vaguear meses a fio, na solidão do mar, na busca vã de terra firme, os nossos víveres a escassear e nós a olharmos uns para os outros com olhares sinistros, ponderando friamente a hipótese de recorrer ao canibalismo.

Confesso que o meu sono não foi

 

"...como um céu estival

Vibrando ao canto da cotovia."

 

Diria antes que "acordei no silêncio das trevas" para escutar o ranger das traves dos compartimentos e o chocalhar das vagas contra os flancos do Snark, que avançava regularmente a seis nós. Várias vezes passei os meus cálculos em revista, esforçando-me por descobrir erros, até ter o cérebro em tal agitação que detectei dúzias deles. Suponham que em vez de estarmos a 60 milhas de Futuna, a minha navegação estivesse toda errada e nos encontrássemos de facto a 6 milhas. Nesse caso, a minha rota também estaria errada e o Snark até podia estar prestes a naufragar contra as costas de Futuna. Quase saltei do beliche ao imaginar tal eventualidade; e, embora me contivesse, fiquei acordo por momentos, nervoso e tenso, à espera de sentir o embate.

O meu sono foi interrompido por pesadelos terríveis. Os tremores de terra foram a aflição mais recorrente, embora aparecesse um homem que insistia em perseguir-me pela noite fora para lhe pagar uma conta. Além disso, queria medir forças comigo, enquanto Charmian me persuadia constantemente a não lhe pôr a mão em cima. Todavia, no fim o homem aventurou-se por outro sonho em que Charmian não estava presente. Era a minha oportunidade: desta vez engalfinhámo-nos, rebolando pelo passeio e pela rua fora, até ele implorar tréguas. Então eu disse-lhe: "Então, quanto é essa conta?" Depois de o vencer, estava disposto a pagar. "Foi tudo um engano", respondeu; "era uma conta para o seu vizinho."

Resolvida a questão, nunca mais me apareceu em sonhos; e também eu acordei, rindo-me do episódio. Eram três da manhã. Subi ao convés. Henry, o da ilha de Rapa, estava ao leme. Analisei o livro de bordo: registava 42 milhas. O Snark mantinha a sua velocidade de seis nós. Durante um longo quarto de hora, encostado à parede do poço do leme, debati-me numa dúvida mórbida. Depois vi terra: um ponto de terra alto, precisamente onde deveria estar, emergindo do mar à nossa frente. Às seís horas, distinguia-se perfeitamente o belo cone vulcânico de Futuna. Às oito horas, quando passámos em frente dele, medi a distância com o sextante e verifiquei que estava a 9,3 milhas. Ora eu tinha calculado que passaríamos a 10 milhas!

Depois, ao sul, apareceu no meio do mar Aneiteum, com Aniwa a norte e, mesmo à nossa frente, Tanna. Não havia que enganar, porque o fumo do vulcão elevava-se no céu. Estava a 40 milhas de distância e, pela tarde, quando nos aproximávamos, sempre a seis nós, verificámos que era uma terra montanhosa, coberta de bruma, sem sinais de enseadas na linha costeira. Eu procurava Port Reso-lution, embora me tivessem prevenido de que poderia estar danificado como ponto de ancoragem. Os abalos provocados pelo vulcão tinham levantado o solo submarino nos últimos quarenta anos, de forma que, quando dantes fundeavam navios de grande calado, agora, segundo os últimos relatos, talvez nem houvesse espaço e profundidade suficientes para o Snark. Desde então, nova convulsão ainda não referenciada poderia ter fechado completamente o porto.

Segui de perto a costa ininterrupta, cercada de rochas à flor da água, batidas por altas vagas espumosas. Com os binóculos, vasculhei o horizonte a milhas de distância, sem ver nenhuma entrada. Fiz uma medição de Futuna e outra de Aniwa e registei-as no mapa. A intersecção das duas medidas deveria indicar, sem sombra de dúvida, a posição do Snark. Com as réguas paralelas, tracei uma rota da posição do nosso barco até Port Resolution. Depois de corrigir esta rota com a variação e o desvio, subi ao convés e vi que ela me conduzia directamente para a costa avistada pouco antes, onde as vagas furiosas se iam desfazer. Para grande preocupação do homem de Rapa, mantive o curso até um oitavo de milha dos rochedos.

- Não há porto nenhum aqui - disse ele, abanando a cabeça com ar aflito.

Mas alterei a rota e segui paralelo à costa. Charmian estava ao leme. Martin tomava conta do motor, pronto a pôr a hélice em funcionamento. De repente, avistei uma passagem estreita. Pelos binóculos, vi que aí o mar parecia espraiar-se. Henry, o homem de Rapa, fitou-me com ar inquieto, assim como Tehei, o homem de Tahaa.

- Ali não há passagem - avisou Henry. - Se for lá, morremos depressa, juro!

Confesso que partilhava dos seus receios; mas continuei a seguir a costa, observando para ver se era possível passar entre as vagas que vinham desfazer-se de cada lado da entrada. Então surgiu uma passagem estreita onde o mar estava calmo. Charmian preparou-se para a aproximação, Martin ligou o motor e todos, incluindo o cozinheiro, corremos a arriar o velame.

Avistámos a cantina de um comerciante na margem da angra. A cem metros de distância, um geiser lançava uma coluna de vapor. Quando contornávamos um pequeno promontório, a bombordo surgiu o posto de uma missão.

- Três braças!... duas braças... ! - gritou Wada na linha de sonda.

Charmian baixou a roda, Martin desligou o motor, o Snark virou de bordo e ouvimos o ruído surdo da âncora, fundeada a três braças.

Sem nos dar tempo para respirar, um bando de taneses escuros aproximaram-se e saltaram a bordo - criaturas sorridentes, com aspecto simiesco, cabelos emaranhados e olhos turvos, que usavam, à laia de brincos, alfinetes de segurança e cachimbos de barro, sem mais nenhum vestuário.

Não me importo de confessar: nessa noite, quando todos dormiam, subi sub-repticiamente ao convés, observei o panorama sereno e rejubilei - sim, rejubilei! - com a minha navegação.

 

Cruzeiro nas ilhas Salomão

- Por que não vêm comigo? - perguntou-nos o capitão Jansen, em Penduffryn, na ilha de Guadalcanal.

Charmian e eu olhámos um para o outro e consultãmo-nos em silêncio por uns instantes; depois trocámos simultaneamente um assentimento. É assim que por norma tomamos as nossas decisões. E é um excelente meio, desde que depois não nos desfaçamos em lágrimas temperamentais se tudo correr mal e tivermos de abrir a última lata de leite condensado. (Ultimamente vivemos de conservas e, como se diz que o espírito é uma emanação da matéria, temos naturalmente aspecto de rótulos de embalagem.) - Mais vale trazerem os vossos revólveres e umas espingardas - avisou o capitão Jansen. - Tenho cinco carabinas a bordo, embora a Mauser esteja sem munições. Podem dispensar algumas balas?

Trouxemos as nossas espingardas, vários carregamentos de balas para Mauser, e Wada e Nakata, o cozinheiro e o grumete do Snark, um tanto ou quanto amedrontados.

O menos que se pode dizer é que estavam algo apreensivos, embora Nakata nunca antes tivesse dado quaisquer sinais de temor perante o perigo. Não se estavam a dar bem com as ilhas Salomão. Em primeiro lugar, ambos padeciam de úlceras, devido ao clima insalubre. Acontecia o mesmo com todos nós (na altura, eu andava a tratar com sublimado corrosivo duas que me tinham aparecido); mas os dois japoneses tinham mais razões de queixa. Além disso, estas de que falo são úlceras desagradáveis à vista, que se podem considerar extremamente activas. Uma picada de um mosquito, um golpe ou uma pequena esfoladela servem de refugio ao veneno de que o ar parece impregnado.

A ferida começa imediatamente a roer a carne em todos os sentidos, consumindo pele e músculo com rapidez espantosa. Uma úlcera do tamanho da ponta de um alfinete já tem no dia seguinte as dimensões de uma moeda de dez cêntímos; no fim da semana, nem uma moeda de cinco dólares bastaria para a cobrir.

Os dois japoneses estavam atacados das febres das ilhas Salomão, piores que as úlceras. Ambos tinham tido vários acessos e nos momentos de maior fraqueza, quando convalesciam, era frequente aninharem-se um junto ao outro, na parte do Snark que na altura estivesse mais próxima do Japão distante, olhando fixamente nessa direcção.

Para cúmulo, agora levámo-los para bordo do Minota, para um cruzeiro de recrutamento ao longo da costa selvagem de Malaita. Wata, o mais medroso, estava intimamente convencido de que não voltaria ao seu Japão natal e foi com um olhar baço e desconfiado que viu as nossas espingardas e munições serem transportadas para o Minota.

Sabia que este barco fazia incursões a Malaita e que, seis meses antes" havia sido apresado e o seu capitão cortado em pedaços à machadada; e sabia igualmente que, segundo o bárbaro sentido de justiça dessa doce ilha, ainda faltava cobrar-lhe mais duas cabeças. Além disso, um trabalhador da plantação de Penduffryn, originário de Malaita, acabava de morrer de disenteria e Wada também sabia que, por isso, a plantação passava a dever mais uma cabeça. Ademais, ao arrumarmos as nossas bagagens na cabina do capitão, Wada reparara na respectiva porta, onde se viam as marcas das machadadas que abriram passagem aos vitoriosos habitantes da floresta. E, por fim, faltava a chaminé ao fogão da cozinha, por ter sido levada na altura do saque.

O Minota era um iate australiano, construído em madeira de teca e concebido como brigue, comprido e estreito, com uma quilha funda e destinado mais a regatas de costa do que ao recrutamento de homens de cor. Quando Charmian e eu chegámos a bordo, vimos que estava repleto. A equipagem, incluindo os suplentes, era composta de 15 tripulantes e contámos uma vintena ou mais de homens "de regresso", que haviam cumprido o tempo do contrato nas plantações e voltavam às suas aldeias da floresta.

A julgar pelo seu aspecto, eram autênticos canibais caçadores de cabeças. Nas narinas furadas usavam adornos de osso e de madeira do tamanho de lápis. Muitos deles tinham perfurado a extremidade carnuda do nariz, de onde saíam pontas de casca de tartaruga ou missangas enfiadas num arame rígido. Outros tinham aberto nos narizes filas de buracos dos dois lados, seguindo a curva das narinas da base até à ponta. Todos estes homens tinham nas orelhas dois a uma dúzia de orifícios, alguns tão grandes que neles cabiam rodelas de madeira com uns 10 centímetros de diâmetro; nos buracos pequenos usavam cachimbos de barro e bugigangas. Na realidade, tinham tantos orifícios que não havia ornamentos para todos; e quando, no dia seguinte, à aproximação de Malaita, verificámos se as nossas armas estavam em bom funcionamento, houve uma comoção geral entre os nossos passageiros, cada um tentando apossar-se dos cartuchos vazios, que logo enfiavam nos buracos vazios das orelhas.

Quando experimentámos as espingardas colocámos arame farpado sobre o costado do Minota. Cheio até às bordas, sem casa do leme, e com amuradas de 18 centímetros de altura, era demasiado acessível, podia ser facilmente abordado pelos indígenas. Por isso foram aparafusados pontaletes de cobre à amurada e colocou-se uma fila dupla de arame farpado a toda a volta, da proa à popa e vice-versa. O que era sem dúvida uma excelente protecção contra os selvagens, mas terrivelmente incómodo para os passageiros quando o mar estava bravo e o Minota se lembrava de balançar e galear. Não é agradável escorregar encostado ao arame de bombordo e ninguém se atreve a deitar a mão ao arame de estibordo para evitar escorregar. Quando, com estes vários desequilíbrios, nos vemos num convés instável inclinado num ângulo de 45 graus, podem imaginar-se algumas das delícias de um cruzeiro nas ilhas Salomão. Convém também recordar que uma queda por cima dessas farpas, além de causar arranhões, quase sempre significa que estes depressa se transformarão em úlceras perniciosas. Veremos que mesmo a máxima prudência nem sempre é bastante contra acidentes deste género: numa manhã, seguíamos ao longo da costa de Malaita, com o vento a ajudar-nos. Estava fresco e o mar começou a agitar-se. Estava um negro à barra. O capitão Jansen, Mr. Jacobsen (o imediato), Charmian e eu acabávamos de nos sentar no convés para tomar o pequeno almoço. Três vagas excepcionalmente grandes caíram sobre nós. O timoneiro perdeu a cabeça, e três vezes seguidas o convés do Minota foi varrido de uma ponta à outra. O pequeno almoço deslizou borda fora; facas e garfos desapareceram pelos escovéns; um negro que estava à popa foi varrido para o mar e logo a seguir repescado e o nosso valente capitão ficou encavalitado em cima do arame farpado, com metade do corpo do lado do convés e a outra metade inclinada para fora. Depois disto, e durante o resto da viagem, os poucos talheres que restaram serviram à vez, num exemplo soberbo de comunismo primitivo. Contudo, no Eugenie, foi ainda pior, porque só tínhamos uma colher de chá para os quatro - mas o Eugenie é outra história.

O nosso primeiro porto foi Su'u, na costa ocidental de Malaita. As ilhas Salomão estão nos confins do mundo. É bastante difícil navegar em noites escuras por canais coalhados de recifes e passando por correntes traiçoeiras sem luzes a orientar de noroeste para sudeste, as Salomão estendem-se por milhares de milhas e em toda essa extensão não há um único farol); mas a dificuldade acentua-se seriamente pelo facto de a própria terra não estar devidamente cartografada. Su'u é um exemplo.

No mapa do almi-rantado de Malaita, a costa nesse ponto segue uma linha recta, sem interrupções. No entanto, nesta linha, o Mínota navegou com 20 braças de profundidade mas, em vez de encontrar terra, como esperávamos, entrámos num braço de mar comprido, com margens cobertas de mangais cerrados; chegámos assim a um lago brilhante como um espelho, onde fundeámos. Este ponto de ancoragem não foi do completo agrado do capitão. Era a primeira vez que visitava aquelas paragens, e Su'u, pela reputação deplorável que tem, não lhe inspirava confiança alguma. Não havia vento que os ajudasse a fugir em caso de ataque e os homens da equipagem seriam massacrados até ao último se tentassem rebocar o Minota com as baleeiras.

- Suponhamos que o Minota encalhasse. Que faria?

- Não encalha - respondeu o capitão num tom seco.

- Mas imaginemos essa eventualidade - insisti. Reflectiu um momento e desviou o olhar para o imediato que pendurava o revólver à cintura e para os marinheiros que, de espingardas em punho, subiam para a baleeira.

- Saltaríamos para a baleeira e fugiríamos o mais depressa possível - disse por fim.

Explicou longamente que nenhum branco se podia fiar na sua equipagem malaítana num lugar como aquele; que os habitantes das florestas consideravam como seus todos os barcos encalhados; que estavam bem armados com espingardas Snider; e, finalmente, que a dúzia de "regressados" que se encontravam a bordo não hesitariam em juntar-se aos parentes e amigos para participar na pilhagem do Minota.

Em primeiro lugar, a baleeira levou para terra os "regressados" com as suas caixas de mercadorias. Assim, afastava-se um dos perigos. Durante esta operação, aproximou-se uma piroga, manobrada por três selvagens nus. E quando digo "nus", não exagero. Não traziam vestuário algum, a não ser que se considere como tal os anéis nasais, as rodelas auriculares e as pulseiras feitas de conchas. O homem que comandava a piroga era um velho chefe, cego de um olho, aparentemente amistoso, e tão sujo que, se o esfregassem com uma escova, ela gastar-se-ia por completo. Vinha com a missão de avisar o capitão de que não deixasse os seus homens ir a terra. Nessa mesma noite, o velho voltou a repetir o aviso.

Foi em vão que a baleeira vasculhou todos os recantos da baía à procura de gente para recrutar. A floresta estava cheia de nativos armados, todos interessados em discutir com o recrutador, mas nenhum disposto a assinar um contrato de trabalho de três anos numa plantação em que o salário médio era de seis libras esterlinas ao ano. Porém, pareciam bastante desejosos de que os nossos homens desembarcassem. No segundo dia, acenderam uma grande fogueira junto à baía - sinal habitual para indicar que havia homens prontos para recrutar. Mandou-se a baleeira, mas sem resultados: não apareceu ninguém e os marinheiros também não pisaram terra. Pouco depois, avistámos um grupo furtivo de nativos armados a caminhar pela praia.

Tirando estes indivíduos isolados, não seria possível dizer quantos se encontravam emboscados na mata. A vista desarmada, não se distinguia coisa alguma naquela selva impenetrável. De tarde, o capitão Jansen, Charmían e eu fomos dinamitar peixe. Cada marinheiro tinha a sua espingarda Lee-Enfíeld. "Johnny", o recrutador indígena, que estava ao leme, mantinha a sua Winchester à mão. Remámos para uma parte da margem aparentemente deserta, depois virámos de bordo, com a popa para a praia, de forma a que, em caso de ataque, estivesse tudo a postos para fugirmos. Durante todo o tempo em que estive em Malaita, nunca vi nenhum barco com a proa virada para terra. Por norma, os navios recrutadores usavam dois barcos - um para ir a terra, armado, evidentemente, e outro para ficar no mar a umas dezenas de metros do primeiro, para o "cobrir" em caso de necessidade. Porém, o Minota, por ser um navio pequeno, só dispunha de um barco.

Quando estávamos quase junto à margem, passou por nós um cardume. Acendemos logo a mecha do nosso foguete de dinamite e lançámo-lo à água. A explosão perturbou a superfície líquida e uma chuva de peixes projectou-se no ar. Nesse preciso instante, a floresta animou-se. Uma vintena de selvagens nus, armados de arcos e flechas, lanças e Sniders, surgiram e correram para a beira-mar. Os nossos homens ergueram as armas em posição de disparar. E assim se defrontaram os dois grupos, fitando-se, enquanto os nativos que transportávamos mergulhavam para apanhar os peixes atordoados.

Passámos três dias inúteis em Su'u. Nem o Minota conseguia contratar ninguém, nem os homens da floresta caçavam cabeças. De facto, o único que apanhou alguma coisa foi Wada: um febrão e tanto. Saímos dali rebocados pela baleeira e seguimos ao longo da costa até Langa Langa, uma aldeia grande de pescadores, construída com labor prodigioso no banco de areia de uma lagoa -- uma ilha artificial literalmente construída, e concebida como refúgio contra os ferozes homens da floresta. Na margem da lagoa, fica Binu, o local onde o Minota fora capturado seis meses antes, e o antigo capitão morto pelos da floresta. Quando entrávamos pela passagem estreita, uma piroga abordou-nos para nos avisar de que um navio de guerra acabava de levantar ferro nessa manhã, depois de incendiar três aldeias, matar trinta porcos e afogar um bebé. Era o Cambrian, comandado pelo capitão Lewes. Tínhamo-nos conhecido na Coréia, eu e elef durante a Guerra Russo-Japonesa, e desde então os nossos caminhos cruzaram-se várias vezes, sem que, no entanto, nos voltássemos a ver. No dia em que o Snark chegou a Suva, nas Fidjis, vimos o Cambrian a partir. Em Vila, nas Novas Hébridas, desencon-trámo-nos por um dia. Passámos um pelo outro de noite, ao largo da ilha de Santo. E no dia em que o Cambrian chegou a Tulagi, zarpávamos nós de Penduffryn, a umas milhas de distância. Agora, em Langa Langa, não nos encontrávamos por uma questão de horas.

O Cambrian fora castigar os assassinos do capitão do Minota, mas só soubemos ao certo o que acontecera ao fim do dia, quando um tal Mr. Abbot, missionário, se aproximou de nós, numa baleeira. As aldeias haviam sido queimadas e os porcos mortos, mas os nativos tinham escapado ilesos. Os assassinos não foram capturados, embora tivesse sido recuperada a bandeira do Minota e outros objectos. O afogamento do bebé ocorrera devido a um mal-enten-dido. O chefe Johnny, de Binu, recusara-se a guiar pela floresta o grupo que fora a terra, e nenhum dos seus homem se deixou convencer a substituí-lo na tarefa. Então o capitão Lewes, indignado, dissera ao chefe que merecia que lhe queimassem a aldeia. O inglês "bêche de mer" de Johnny não incluía a palavra "merecer". O que compreendeu foi que iam incendiar a aldeia. Os habitantes começaram a fugir, espavoridos, num tal tumulto que o bebé caiu à água. Entretanto, o chefe Johnny apressou-se a procurar Mr. Abbot, a quem entregou catorze soberanos, pedindo-lhe que fosse a bordo do Cambrian para os entregar ao capitão Lewes e dissuadi-lo dos seus intentos. A aldeia de Johnny não foi queimada, nem o capitão recebeu os catorze soberanos, porque mais tarde vi-os eu na posse de Johnny, quando foi a bordo do Minota. A desculpa que deu para não servir de guia ao grupo foi um grande furúnculo, que orgulhosamente me mostrou. Mas a verdadeira razão, aliás perfeitamente válida, embora não a explicitasse, era o receio de uma vingança por parte da gente da floresta. Se ele ou algum dos seus homens guiasse os marinheiros, o mais certo seria seguirem-se represálias sangrentas, assim que o Cambrian levantasse ferro.

Para se ter uma ideia das condições que reinavam nas ilhas Salomão, basta dizer que a missão de Johnny era entregar-nos, em troca de algum tabaco, a carangueja, a vela grande e a bujarrona de uma baleeira. No fim do dia, veio a bordo um tal chefe Billy que nos devolveu, em troca de algum tabaco, um mastro e uma retranca.

Ora este material pertencia a uma baleeira recuperada pelo capitão Jansen quando da viagem anterior do Minota, que pertencia à plantação de Meringe, na ilha Isabel.

Onze trabalhadores contratados, por sinal homens de Malaita e da floresta, tinham decidido fugir. Sem saberem navegar nem manobrar um barco, convenceram dois nativos de San Cristoval, gente do mar, a fugir com eles. Os de San Cristoval bem se devem ter arrependido, porque se deram mal: depois de terem levado os fugitivos, sãos e salvos, até Malaita, como paga estes cortaram-lhes as cabeças. Esse era o barco cujo equipamento o capitão Jansen recuperara em parte.

Não foi em vão que fiz esta longa viagem às ilhas Salomão. Finalmente, foi-me dado ver o orgulho de Charmian deitado por terra, e toda a sua feminil majestade arrastada na lama. Aconteceu em Langa Langa, em terra, na ilha fabricada que as casas não deixam ver. Passeávamo-nos como tranquilos turistas, rodeados de centenas de homens, mulheres e crianças inocentemente nuas. Levávamos os nossos revólveres nos coldres e os tripulantes, bem armados, mantinham-se junto aos remos, com a popa virada para terra. Mas o castigo aplicado pelo navio de guerra era demasiado recente para recearmos problemas. Andámos por toda a parte e vimos o que queríamos, até que por fim nos aproximámos de um grande tronco de árvore que servia de ponte sobre um estuário pouco fundo. Os nativos formaram uma barreira em frente de nós, recusando-se a deixar-nos passar. Quisemos saber porquê e percebemos que nos davam passagem. Aí, voltaram a proibir-nos, de modo mais definitivo: o capitão Jansen e eu, por sermos homens, podíamos prosseguir. Mas nenhuma Mary estava autorizada a passar perto daquela ponte e muito menos a atravessá-la. "Mary" é o inglês bêche de mer para "mulher".

Charmian era uma Mary. A ponte era tambo para ela, isto é, tabu. Ah, senti o peito a inchar de orgulho! Finalmente homenageavam a minha virilidade! Sem contestação, eu pertencia ao sexo nobre. Charmian poderia seguir na nossa peugada, mas nós éramos HOMENS, e podíamos atravessar a ponte a pé, enquanto ela tinha de fazer um desvio na baleeira.

Gostaria que não me interpretassem mal a propósito do que vou dizer; mas é sabido que, nas ilhas Salomão, muitas vezes os ataques de febre dão-se quando a pessoa passa por um choque. Ora, meia hora após este incidente, Charmian foi levada a toda a pressa para bordo do Minota, embrulhada em cobertores, e tiveram que lhe dar quinino. Não sei qual a comoção que atingiu Wada e Nakata, mas o certo é que também eles foram dominados pela febre. Não se podia dizer que as Salomão fossem muito salubres.

Além disso, durante esse febrão, Charmian contraiu uma úlcera. Foi a gota de água: todos nós, os do Snark, fôramos afectados, excepto ela. Eu próprio pensei que ia ficar sem um pé, por causa de uma úlcera excepcionalmente maligna que me apareceu no tornozelo. Henry e Tehei, os marinheiros tahitianos, tinham uma série delas.

As de Wada eram às dúzias e Nakata tivera três, cada uma com dez centímetros de diâmetro. Martin estava convencido de que a necrose que se lhe instalara na tíbia provinha da espantosa colónia de micróbios que se aglomerara nessa parte do seu corpo. Mas Charmian escapara. Essa longa impunidade acabara por gerar nela uma espécie de desprezo por todos nós e tal presunção que, um dia, me confessou modestamente que se tratava de uma questão de pureza de sangue. Visto que todos nós contraíamos aquelas feridas e ela não... Bom, teve uma, com as dimensões de uma moeda de dólar, mas graças à pureza do sangue curara-a ao fim de várias semanas de cuidados intensos.

Tem uma confiança cega no sublimado corrosivo, ao passo que Martin é adepto do iodofórmio. Henry usa sumo de lima não diluído e eu sou de opinião que, quando o sublimado corrosivo não produz efeito, o que há a fazer é alterná-lo com pachos de peróxido de hidrogénio. Certos brancos das ilhas Salomão juram que o melhor é o ácido bórico, outros são a favor do lisol. Também tenho a fraqueza de acreditar numa panaceia: chama-se Califórnia. E desafio quem quer que seja a contrair uma úlcera das ilhas Salomão em São Francisco.

A partir de Langa Langa, descemos a lagoa entre pântanos cobertos de mangais, atravessando canais pouco mais largos que o Minota, e passámos pelas aldeias das tribos de Kaloka e de Aukí, construídas sobre os recifes. Como os fundadores de Veneza, estes pescadores eram originariamente refugiados do continente. Demasiado fracos para subsistirem na floresta, estes sobreviventes de massacres nas aldeias fugiram para os bancos de areia da lagoa e aí construíram as suas ilhas. Obrigados a procurar alimento no mar, ao fim de algumas gerações tornaram-se pescadores. Observaram os hábitos dos peixes e dos crustáceos, inventaram anzóis, linhas, redes e armadilhas. Os seus corpos adaptaram-se ao uso das canoas: tendo perdido o hábito de andar em terra por passarem a maior parte do tempo no mar, ficaram com os braços mais grossos, as espáduas mais musculadas, as cinturas mais estreitas e as pernas atrofiadas, adelgaçadas como fusos. Controlando as costas marítimas, enriqueceram, visto que as trocas com o exterior passaram em grande parte pelas suas mãos. Mas mantém-se uma hostilidade permanente entre eles e os homens da floresta. Praticamente as únicas tréguas são as que se fazem nos dias de mercado, isto é, duas vezes por semana, quando as mulheres se reúnem para trocar produtos. A uns cem metros desse local, os do mato, escondidos por trás dos arbustos e armados até aos dentes, mantêm-se emboscados, enquanto, não longe da costa, os pescadores montam guarda às pirogas. É raro darem-se lutas nos dias de mercado: a gente do mato aprecia peixe e o estômago dos outros reclama os legumes que não podem cultivar nas ilhas sobrepovoadas.

Depois de percorrermos uns 40 quilómetros desde Langa Langa, ao fim do dia abordámos o estreito entre a ilha de Bassakanna e o continente. Aqui, ao cair da noite, o vento caiu e foi preciso rebocar o Minotâ com as baleeiras; toda a noite os homens suaram para nos fazer avançar contra a maré. A meia noite, a meio do estreito, cruzámo-nos com o Eugenie, enorme escuna recrutadora, também rebocada por duas baleeiras. O patrão, o capitão Keller, um alemão robusto de 22 anos, veio a bordo para nos fazer uma visita de cortesia e falámos das últimas notícias de Malaíta. Ele tivera a sorte de contratar 20 recrutas na aldeia de Fiu. Durante a estadia, dera-se uma das corajosas matanças tão frequentes nesta região. A jovem vítima era um homem do mato de água salgada, como se diz nestas paragens, ou seja, um pescador que em certa medida ainda é homem do mato e vive dos produtos do mar, embora não viva numa ilha. Cuidava da horta quando viu surgir três homens da floresta que o abordaram amistosamente e, passado algum tempo, lhe sugeriram kai-kai, que significa comer. Ele acendeu uma fogueira e começou a cozinhar taro. Quando se debruçou sobre a panela, um dos homens deu-lhe um tiro na cabeça. Caiu sobre o fogo e nessa altura trespassaram-lhe a barriga com uma lança, torceram-na e partiram-na.

- Credo! - exclamou o capitão Keller. - Oxalá nunca me ataquem com uma Snider. Não fazem uma pequena ideia do que é: pelo buraco que lhe fizeram na cabeça podia passar um cavalo e a respectiva carruagem.

Também me relataram a morte de um velho em Malaita. Um chefe do mato morrera de morte natural. Ora os da floresta não acreditam em mortes naturais, não têm esse conceito. A única morte que reconhecem é a causada por uma bala, um machado ou uma lança. Quando alguém morre de outra maneira, suspeitam de feitiçaria. Quando se deu a morte do chefe, a tribo atribuiu a culpa a determinada família. Como tinham de matar um dos seus membros, escolheram, por facilidade, um velho que vivia sozinho.

Além disso, não tinha nenhuma Snider e para mais era cego. O velho ouviu uns rumores sobre o que se planeava e abasteceu-se com uma boa provisão de flechas. A coberto da escuridão, três corajosos guerreiros, cada um com a sua Snider, tentaram atacá-lo. Toda a noite lutaram bravamente. Sempre que se moviam por entre a vegetação, faziam um ruído ou causavam uma restolhada, ele disparava uma seta naquela direcção. De manhã, quando o velho já esgotara as munições, os três heróis rastejaram até ele e rebentaram-lhe a cabeça a tiro.

A manhã surpreendeu-nos ainda no estreito, tentando vencê-lo. Em desespero de causa, virámos de bordo, voltámos para o alto mar, contornámos Bassakanna e dirígimo-nos para o nosso objectivo, Malu. O molhe em Malu era óptimo, mas ficava entre a costa e uns recifes perigosos e, embora fosse fácil entrar, a saída seria mais difícil.

O alísio de sudeste obrigou-nos a bolinar; a ponta do banco de recifes era larga e estendia-se quase à tona da água, sempre batida por uma forte corrente.

Mr. Caulfeild, o missionário de Malu, regressava na sua baleeira de uma viagem pela costa abaixo. Era um homem magro, de maneiras delicadas, cheio de entusiasmo pela sua obra, sensato e prático, um verdadeiro soldado de Cristo do século xx. Contou-nos que, quando o mandaram para o posto de Malaita, ele concordara em ir por seis meses e, caso estivesse vivo ao fim desse tempo, continuaria por mais seis meses. Já lá iam seis anos e mantinha-se firme. No entanto, não sem razão, duvidava da possibilidade de ali ficar outros seis meses. Dos três missionários chegados antes dele, em menos tempo dois tinham morrido de febres e o terceiro regressara em triste estado.

- De que morte estão a falar? - perguntou de repente, no meio de uma conversa confusa com o capitão Jansen.

Este explicou-lhe.

- Ora, não foi dessa que ouvi falar - retorquiu Mr. Caulfeild. - Essa já é velha. Há duas semanas houve outra.

Foi ali, em Malu, que paguei por todas as troças e chalaças que dirigi a Charmian e à úlcera que lhe aparecera em Langa Langa. Mr. Caulfeild foi responsável, indirectamente, por esse castigo. Presenteou-nos com uma galinha, que persegui pelo mato, de espingarda em punho, com a intenção de lhe decepar a cabeça com um tiro. Consegui, mas tropecei num tronco de árvore e esfolei a perna. Resultado: três úlceras, ou seja um total de cinco a adornar a minha pessoa. Além disso, o capitão Jansen e Nakata tinham apanhado gari-gan. Em tradução à letra, significa "coça-coça". Mas quem os visse não precisava de tradução: bastava ver a ginástica dos dois para percebermos o que se passava, Não, as ilhas Salomão não são tão saudáveis quanto se possa crer. Escrevo este artigo na ilha Ysabel, para onde levámos o Snark a fim de limpar o costado da querena.

Esta manhã tive o meu último febrão e estes ataques surgem-me dia sim, dia não. Os de Charmian são de quinze em quinze dias. Wada tornou-se um verdadeiro farrapo humano. Ontem à noite, apresentava todos os sintomas de um início de pneumonia. Henry, esse gigante tahitiano, que acaba de se recompor de um ataque de febre, arrasta-se pelo convés com ar abatido. Ele e Tehei acumularam uma série completa de úlceras das ilhas Salomão. E também contraíram uma nova forma de gari-gari, uma espécie de intoxicação vegetal, com os mesmos efeitos que o produzido pelo carvalho ou a hera venenosos. Mas não são os únicos. Há dias, Charmian, Martin e eu fomos caçar pombos a uma ilhota vizinha. Viemos de lá com umas comichões que nos deram uma ideia do que serão os tormentos eternos. Além disso, nessa mesma ilha, Martin cortou a sola dos pés nos corais quando tentava apanhar um tubarão... pelo menos é o que ele diz, mas quando o observava deu-me a sensação que o contrário é que era verdadeiro.

Todos os cortes criaram úlceras. Antes do meu último febrão, esfolei os nós dos dedos quando puxava por uma linha de pesca e agora tenho mais três novas úlceras. E coitado do Nakata! Há três semanas que não conseguia sentar-se. Ontem sentou-se pela primeira vez, e conseguiu manter-se assim quinze minutos. Diz com ar satisfeito que espera estar curado do gârí-gari dentro de um mês. Mas acontece que, de tanto se coçar, estão a formar-se-lhe inúmeras úlceras por cima das feridas. E para mais, já vai no seu sétimo ataque de febre. Se eu fosse rei, o pior castigo que podia infligir aos meus inimigos seria deportá-los para as ilhas Salomão. Aliás, pensando melhor, acho que não teria coragem de chegar a tanto.

O transporte de mão-de-obra indígena num iate pequeno e estreito, feito para correr regatas num porto, não é nada agradável. Os conveses fervilham de recrutas e respectivas famílias. A cabina principal está cheia deles e à noite é aí que dormem. A única entrada para a nossa cabina pequena é pela cabina principal e temos de abrir caminho para passar por cima deles. Não tem graça nenhuma. Todos eles estão atacados de um tipo qualquer de doença de pele: há os que sofrem de impetigo ou de bukua, afecção causada por um parasita vegetal que invade a epiderme, corrói-a e produz uma comichão insuportável. Os atingidos coçam-se a tal ponto que o ar se enche de flocos de películas secas. Depois há as feridas e muitas outras afecções de pele. Os homens chegam a bordo com úlceras tão grandes nos pés que só conseguem andar apoiados nos calcanhares, ou buracos nas pernas tão profundos que cabe lá um punho. É muito frequente o envenenamento do sangue e o capitão Jansen, armado com uma faca comprida e uma agulha de velame, opera um após outro. Por pior que seja o estado do doente, abre e limpa a ferida, e aplica-se um emplastro de biscoito de bordo embebido em água. Quando deparamos com um caso particularmente horrível, retiramo-nos para um canto e inundamos as nossas feridas de sublimado corrosivo. E é assim que vivemos, comemos e dormimos no Minota, aceitando a nossa sorte com aparente bom humor.

Em Suava, outra ilha artificial, tive mais uma ocasião de me rir à custa de Charmian. O chefe máximo deu-nos a honra da sua visita. Antes de subir a bordo, enviara um emissário ao capitão Jansen para lhe pedir um pedaço de chita com que cobrir a real nudez. Entretanto, esperou numa canoa encostada ao Minota. Sem exagero, tinha no peito uma crosta de sujidade com um dedo de altura, cujas camadas inferiores deviam ter uns dez ou vinte anos. Pouco tempo depois, o embaixador regressou a bordo e explicou-nos, no seu inglês arrevesado, que o "grande homem chefe de Suava" estava disposto a apertar a mão do capitão Jansen e a minha, e até a pedir-nos uma ou duas réstias de tabaco, mas a sua alma bem nascida pairava a altura tamanha que não podia amesquinhar-se a ponto de apertar a mão a uma vulgar mulher. Pobre Charmian!

Desde aquela experiência em Malaita, parece outra. A sua docilidade e modéstia acrescentam-lhe novo encanto e não me admira que, quando regressarmos à civilização e formos dar um passeio, ela caminhe, de cabeça baixa, um metro atrás de mim.

Não aconteceu nada de especial em Suava. Bichu, o cozinheiro indígena, desertou. O Minota aproou ao vento largando a âncora flutuante, no meio de rajadas fortes acompanhadas de chuva. Mr. Jacobsen, o imediato, e Wada caíram com febre. As nossas úlceras cresceram e multiplicaram-se. E as baratas a bordo comemoraram ao mesmo tempo o 4 de Julho e a Parada da Coroação, escolhendo a meia noite como horário e a nossa pequena cabina como zona de desfile. Tinham cinco a dez centímetros de comprimento; eram às centenas e passavam-nos por cima. Quando tentávamos persegui-las, lançavam-se em voo e volteavam no ar como beija-flores. São muito maiores do que as do Snark, mas as nossas ainda são pequenas e não tiveram tempo de crescer. Além disso, o Snark tem centopeias, das grandes, com quase vinte centímetros de comprimento.

Matamos uma de vez em quando, normalmente no beliche de Charmian. Fui mordido duas vezes, e sempre à traição, quando dormia. Mas o pobre Martin teve pior sorte:

depois de estar três semanas de cama, no primeiro dia de convalescença sentou-se em cima de uma. Às vezes penso que espertos são os tipos que nunca vão à aventura.

Dias depoiso Minota regressou a Malu, embarcou sete contratados e levantámos ferro. Ao tentarmos passar pelo estreito cheio de escolhos, o vento começou a soprar de várias direcções, e a corrente que contornava os recifes tornou-se mais violenta. No momento em que íamos transpor o estreito e entrar no alto mar, o vento recusou-se.

O Minota tentou virar de bordo, mas sem conseguir. Tinham-se perdido duas das suas âncoras em Tulagi e largou-se ferro com a única que restava. Desenrolou-se toda a amarra, para unhar bem no fundo de coral. A quilha bateu no fundo e o mastro grande oscilou e tremeu como se fosse cair sobre nós. A amarra do Minota ficou tensa no momento em que uma enorme vaga o projectou violentamente em direcção à costa e quebrou-se. Só tínhamos aquela âncora! O barco girou sobre a quilha e avançou a direito, por entre as ondas.

A desorientação foi geral. Todos os contratados, gente do mato e receosos do mar, correram em pânico para o convés, atrapalhando o caminho à equipagem. Ao mesmo tempo, os tripulantes correram para as armas. Sabiam o que significava naufragar na costa de Malaita: teriam de lutar para conservar o barco e para rechaçar os nativos.

Não sei como poderiam manter-se firmes, mas tinham de o conseguir, porque o Minota levantava a proa, balançava, galeava e embatia contra o coral. Os indígenas agarravam-se aos brandais, tão desnorteados que nem reparavam nas oscilações do mastro grande. A baleeira, presa por um cabo de reboque, tentava com dificuldade impedir o Minota de se lançar contra os recifes, enquanto o capitão Jansen e o imediato - este pálido e enfraquecido pelas febres - desencantavam do lastro uma âncora velha e procuravam colocar-lhe um cepo novo.

Foi nessa altura que apareceu Mr. Caulfeild, acompanhado por pessoal da missão, para nos ajudar com a sua baleeira.

Antes do incidente, não se via nada do mar, mas agora surgiam, como bandos de abutres, pirogas de vários lados. Com as espingardas apontadas, os marinheiros do Minota obrigaram-nas a manter-se afastadas uns bons trinta metros, sob pena de serem alvejadas. E elas deixaram-se ficar, a essa distância, sombrias e sinistras, cheias de homens, que com os remos as mantinham na perigosa orla da rebentação das ondas. Entretanto, os da floresta, armados de lanças, Sniders, flechas e matracas, desceram das colinas em bandos e correram para a praia. Para complicar as coisas, pelo menos dez dos contratados pertenciam à gente do mato, que esperava avidamente o instante propício para pilhar o tabaco, as mercadorias e tudo o que transportávamos a bordo.

O Minota era de construção sólida, atributo essencial para qualquer barco que se acerque de recifes. Para dar uma ideia da sua resistência, basta dizer que, nas primeiras vinte e quatro horas, perdeu duas amarras de âncora e oito espias. Os tripulantes mergulharam várias vezes no mar para recuperar as âncoras no fundo e prendê-las de novo. Por vezes, o barco rebentava as amarras reforçadas com espias mas, até àquele momento, mantinha-se incólume. Trouxeram troncos de árvore da costa para os colocar debaixo do Minota, para proteger a quilha e o costado, mas os troncos estavam carcomidos e gretados e os cabos que os seguravam esgarçaram e partiram-se, mas mesmo assim, aos baldões, o barco aguentou-se. Menos sorte teve a Ivanhoe, uma grande escuna utilizada para transportar contratados, que, meses atrás, naufragada em Malaita, fora prontamente invadida pelos nativos. O capitão e a equipagem conseguiram fugir nas baleeiras e os homens do mato e os pescadores pilharam tudo quanto puderam transportar.

Rajadas sucessivas de vento furioso e chuva torrencial varreram o Minota, enquanto o mar embravecia cada vez mais. O Eugenie, ancorado cinco milhas a sotavento, não se apercebia do nosso infortúnio, porque entre nós e ele havia um promontório. Por sugestão do capitão Jansen, escrevi uma nota ao capitão Keller, pedindo-lhe que trouxesse mais âncoras e aparelho para nos socorrer. Mas nenhuma piroga se dispôs a levar a carta, nem mesmo a troco de meia caixa de tabaco que ofereci. Os nativos sorriram e mantiveram as pirogas aproadas junto à rebentação. Meia caixa de tabaco valia bem três libras esterlinas. Em duas horas, mesmo com o mar agitado, um homem numa piroga podia entregar a carta e receber em troca uma mercadoria que representava seis meses de salário numa plantação. Consegui descer para uma piroga e remar até ao sítio onde Mr. Caulfeild mantinha a sua baleeira ancorada. A minha ideia era que ele teria mais influência junto dos indígenas. Convocou as pirogas para junto de si, um grupo delas aproximou-se e ele renovou a oferta de meia caixa de tabaco. Ninguém se pronunciou.

- Sei o que vocês pensar! - gritou o missionário. - Pensar que há muito tabaco na escuna e ficar com ele. Ouvir bem: o que há é muitas espingardas. Não receber tabaco, mas balas.

Finalmente, um homem sozinho a bordo de uma canoa, pegou na carta e afastou-se com ela. Enquanto não nos socorriam, o trabalho no Minota prosseguia a bom ritmo Depois de esvaziados os reservatórios de água doce, as antenas, as velas e o lastro foram colocados do mesmo lado, do lado da terra, Houve comoção geral quando o barco balançou sobre um dos costados e depois sobre o outro: muitos dos homens saltaram no ar, para não serem atingidos nas pernas pelas caixas de mercadorias, paus e lingotes de ferro de lastro com vinte quilos cada que rebolavam de um bordo ao outro e voltavam de novo para trás. Pobre iate de recreio! Os conveses e as amuradas estavam bastante danificados. Em baixo, o desconserto era geral. O chão da cabina fora destruído para se retirar o lastro e a água que vinha dos costados, cheia de ferrugem, esparramava-se e manchava tudo. Um alqueire de limões, misturados com água e farinha, rolava de um lado para o outro, como pastéis peganhentos ainda por fritar que se tivessem entornado de uma frigideira. Na cabina interior, Nakata estava de guarda às nossas espingardas e munições.

Três horas depois da partida do nosso mensageiro, uma baleeira, vogando rápida e a todo o pano, surgiu subitamente por entre denso temporal, a barlavento. Era o capitão Keller, completamente molhado, com o revólver à cintura e a sua equipagem armada até aos dentes, com âncoras e espias amontoadas no meio do barco, voando nas asas do vento - o homem branco, o inevitável homem branco, correndo em socorro de outro homem branco.

A fila de pirogas rapaces que havia tanto tempo esperava a presa desfez-se e desapareceu com a mesma velocidade com que se reunira. O cadáver regressava à vida. Agora dispúnhamos de três baleeiras, duas delas ligando continuamente o barco à margem. Na outra, os homens ocupavam-se a encepar as âncoras, a dar nós nas espias partidas e a procurar as âncoras perdidas. Nessa mesma tarde, depois de uma consulta em que tomámos em consideração o facto de um certo número dos nossos marinheiros, assim como dez dos contratados, serem originários destas paragens, decidimos desarmar a equipagem. Aliás, esta medida deixou-lhes as mãos livres para se ocuparem, como toda a gente, do Minota. As espingardas foram confiadas a cinco dos membros da missão de Mr. Caulfeild.

Na cabina danificada, em baixo, o missionário e os seus conversos rezaram pela salvação do barco. Foi uma cena impressionante: o homem de Deus, desarmado, orando com fé ardente, ao lado dos discípulos selvagens apoiados nas espingardas e murmurando ámens. As paredes da cabina rangiam com os balanços. A cada vaga, o barco erguia-se e voltava a abater-se, com estrondo, sobre o coral. Do convés chegavam-nos os gritos dos homens, esforçando-se a trabalhar - rezando também, mas de outro modo: com vontade consciente, sustentada pela força braçal.

Nessa noite, Mr, Caulfeild veio avisar-nos que a cabeça de um dos contratados fora posta a prémio por cinqüenta fiadas de dinheiro em conchas e quarenta porcos.

Frustrados na sua expectativa de se apoderarem do Minota, os homens do mato tinham decidido caçar a cabeça do homem. Quando alguém é morto, nunca se sabe até onde pode ir a matança, e por isso o capitão Jansen armou uma baleeira e remou até junto à praia. Ugi, um dos marinheiros que o acompanhavam, levantou-se e rezou por ele. Como estava nervoso, em vez de transmitir o aviso do capitão de que qualquer piroga que fosse avistada durante a noite seria crivada de balas, optou por uma autêntica declaração de guerra, que se transformou numa peroração mais ou menos deste género:

- Vocês matar meu capitão, eu beber sangue dele e morrer com ele!

Os outros contentaram-se com queimar uma casa abandonada da missão e recolheram-se à floresta. No dia seguinte, chegou o Eugenie, que lançou ferro. Durante três dias e duas noites, o Minota bateu contra o recife; mas manteve-se firme e finalmente libertou-se e pôde ser levado para águas calmas, onde ancorou. Foi aí que nos despedimos dele e de todos os que seguiam a bordo e seguimos viagem no Eugenie, que ia para a ilha de Florida.

 

Ulava, quinta-feira, 12 de Março de 1908.

Um bote foi a terra de manhã. Embarcámos dois carregamentos de noz de marfim, 4000 copras. O capitão esteve de cama com febre.

Ulava, sexta-feira, 13 de Março de 1908.

Comprámos cocos aos homens da floresta, uma tonelada e meia. O imediato e o capitão de cama com febre.

Ulava, sábado" 14 de Março de 1908.

Ao meio dia suspendemos âncora e seguimos a nossa rota, com um vento E.-N. E. muito ligeiro, para Ngora-Ngora. Fundeámos a oito braças, fundo de conchas e coral. O imediato de cama com febre.

Ngora-Ngora, domingo, 15 de Março de 1908.

Ao nascer do dia, descobrimos que o nativo Bagua morreu durante a noite, de disenteria. Doente havia 14 dias. Ao pôr do sol, grande temporal de N.-O. (Segunda âncora pronta a fundear.) Durou uma hora e 30 minutos.

Alto mar, segunda-feira, 16 de Março de 1908.

Rumámos a Sikíana às 4 horas da tarde. O vento acalmou. Grande temporal durante a noite. O capitão de cama com febre, assim como um tripulante.

Alto mar, terça-feira, 17 de Março de 1908.

O capitão e dois tripulantes de cama com disenteria. Imediato, febre.

Alto mar, quarta-feira, 18 de Março de 1908.

Mar tormentoso. A bombordo, amurada constantemente submersa. Velame: vela grande rizada, traquete, giba. Capitão e três tripulantes disenteria. Imediato febre.

Alto mar, quinta-feira, 19 de Março de 1908.

Tempo brumoso, não se distingue nada. Rajadas de vento, sem parar. Bomba obstruída, esgotamos a água com baldes.. Capitão e cinco tripulantes de cama com disenteria.

Alto mar, sexta-feira, 20 de Março de 1908.

Durante a noite, temporal seguido de rajadas. Capitão e seis tripulantes de cama com disenteria.

Alto mar, sábado, 21 de Março de 1908.

Regressamos de Sikiana. Temporal todo o dia, com chuvas fortes e mar agitado. Capitão e a maior parte da equipagem de cama com disenteria. Imediato, febre.

 

E o diário de bordo do Eugenie continua, assim por diante, dia após dia, com a maioria dos tripulantes prostrados. A única variante ocorreu a 31 de Março, quando o imediato caiu à cama com disenteria e o capitão teve febre. (N. do A.).

 

Inglês "bêche de mer"

Dada a quantidade de comerciantes brancos, a vastidão do território e a multiplicidade de idiomas e dialectos indígenas, aconteceu que os negociantes acabaram por criar uma língua totalmente nova, não científica, mas perfeitamente adequada. Foi assim que surgiu o chinook, verdadeiro dialecto usado na Colúmbia Britânica, no Alasca e nas terras do Noroeste americano e canadiano; o mesmo se passou com o kroo-boys africano, o pigeon English do Extremo Oriente, e o bêche de mer da parte ocidental dos mares do Sul. Este último é muitas vezes chamado pigeon English, mas impropriamente. Para vermos como é diferente, basta dizer que lhe é desconhecido o clássico vocábulo piecee (4) usado na China.

A este respeito dou-vos um exemplo: um comandante de um navio queria chamar à sua cabina um potentado de cor que estava no seu convés. Ordenou então ao criado chinês:

"Ei, boy, ir no cima buscar piecee rei." Se o criado fosse das Novas Hébridas ou das ilhas Salomão, a ordem teria sido: "Ei, fella boy, ir ver convés com teu olho, trazer mim fella grande chefe do homem de cor."

Este falar foi forjado pelos primeiros brancos que se aventuraram pela Melanésia depois dos exploradores primitivos. Inventaram o inglês bêche de mer homens como os pescadores de holotúrias, os negociantes de sândalo, os caçadores de pérolas e os recrutadores de mão-de-obra. Nas ilhas Salomão, por exemplo, fala-se uma infinidade de idiomas e dialectos. Infelizmente, os comerciantes nunca tentaram aprendê-los todos, porque cada povo que contactavam tinha o seu modo de se exprimir, diferente dos outros. Era necessária uma língua comum, suficientemente simples para até as crianças a poderem aprender, com um vocabulário limitado à compreensão dos selvagens pelos quais seria usada. Claro que os comerciantes não teorizaram isto. O inglês bêche de mer foi o produto das condições e das circunstâncias. A função antecede o órgão e a necessidade de uma língua melanésia universal foi anterior ao inglês bêche de mer. Este surgiu fortuitamente, mas de uma forma determinista. Além de ser necessária, esta língua artificial constitui um esplêndido argumento para os entusiastas do esperanto.

Um vocabulário limitado exige que cada palavra assuma vários significados. Assim, a palavra fella, em bêche de mer, significa o mesmo que piecee e muito mais, pelo que é usada continuamente, a propósito de tudo e de nada. Outro vocábulo assim é belong. Tudo está relacionado com alguma coisa, nada está isolado. A coisa desejada é designada pela sua relação com outras coisas. Assim, um vocabulário primitivo exige expressões primitivas: uma chuva continuada diz-se chuva ele parar. Sol ele sobe não necessita de explicação, embora a estrutura da frase possa ser empregada, sem grande esforço mental, de dez mil maneiras diferentes como, por exemplo, quando um indígena quer transmitir a existência de grandes quantidades de peixe no mar e diz peixe ele parar. Foi quando tentava negociar na ilha Ysabel que compreendi a excelência deste falar. Eu queria dois ou três pares dessas conchas gigantes (com quase um metro de comprimento) mas sem o animal dentro. Por outro lado, queria outros moluscos mais pequenos, para fazer com eles um guisado. As minhas instruções aos indígenas foram-se apurando até se reduzirem ao seguinte: "Vocês fella trazer mim fella big fella concha. Kai kai ele parar, deixar ir. Vocês fella trazer mim fella small fella concha. Kai kai ele parar, trazer.

Kai kai é a palavra polinésia para comida, carne, comer; mas não se sabe se foi introduzida pelos mercadores de sândalo, ou pelos polinésios em diáspora para Ocidente.

Walk about é uma expressão engraçada. Se quisermos pedir a um marinheiro das ilhas Salomão que fixe uma talha num mastro, dir-lhe-emos: "Aquele mastro passeia de mais." E se esse marinheiro quer ir a terra, diz-nos que quer passear. Mas se estiver com enjoos, explica-se dizendo "Barriga belong mim passeia de mais."

De mais, aliás, não indica nada de excessivo, é simplesmente um superlativo. Assim, se perguntarmos a um nativo a distância para determinada aldeia, a resposta pode ser uma destas quatro: "Perto"; "pouco longe"; "muito longe pouco"; "muito longe de mais". Este muito longe de mais não quer dizer que não se possa chegar à aldeia; significa que se tem de caminhar mais do que se a aldeia estivesse muito longe pouco.

Gammon é mentir, exagerar, troçar. Mary é uma mulher. Qualquer mulher é uma Mary e todas são Marys. Com certeza que, por troça, o primeiro viajante anónimo a aventurar-se nestas ilhas terá chamado Mary a uma mulher indígena e a mesma origem devem ter tido outras palavras em bêche de mer. Os brancos eram todos gente do mar, de forma que introduziram neste linguajar palavras como adornar e dar vozes (de manobra). Não se diz a um cozinheiro polinésio que deite fora a água de lavar pratos, diz-se que a adorne; dar vozes é ordenar em voz alta, gritar, ou simplesmente falar. Sing-sing é uma canção. Os indígenas cristianizados não dizem que Deus chamou por Adão no jardim do paraíso; na ideia deles, Deus deu voz por Adão.

Savvee ou catchee são praticamente as únicas palavras introduzidas directamente do pigeon English. Claro, pickaninny é vulgar, mas alguns dos seus usos são deliciosos.

De uma vez em que comprei uma galinha a um indígena numa piroga, ele perguntou-me se eu queria pickaninny ele parar junto com fella". Só quando me mostrou os ovos da galinha é que compreendi. My word é uma exclamação com milhares de significados, que só podia ter vindo da velha Inglaterra. Um remo ou um leme é um washee, que também se usa como verbo.

Veja-se esta carta ditada por um tal Peter, comerciante nativo de Santa Anna, e dirigida ao seu patrão. Harry, o capitão da escuna, começou a redigi-la, mas Peter interrompeu-o no fim da segunda frase. Depois as palavras são do próprio Peter, que receava que Harry o enganasse e queria que a lista das suas necessidades chegasse incólume ao seu destino:

 

"Santa Ana

"O comerciante Peter trabalhou 12 meses para a sua firma e ainda não recebeu qualquer pagamento. Por isso quer 12 libras esterlinas. (Neste ponto Peter começou a ditar.) "Harry mente com boca dele o tempo todo de mais. Mim gostar 6 latas biscoito, 4 sacos arroz, 24 latas bullamacow. Mim gostar 2 espingardas, mim tomar conta barco, mim ir alguns sítios encontrar homens maus, eles tirar kai-kai de mim.

Peter"

 

Bullamacow é carne enlatada. Esta palavra é corruptela samoana do inglês, adoptada pelos comerciantes que a levaram para a Melanésia. O capitão Cook e outros navegadores tinham o hábito de levar sementes, plantas e animais domésticos para essas novas paragens. Foi em Samoa que um desses navegadores fez desembarcar um touro e uma vaca. Quando ele disse a bull and a cow, os samoanos pensaram que estava a indicar o nome da espécie e a partir daí toda a carne de animais comestíveis com cascos, enlatada ou não, é designada de bullamacow.

Os ilhéus de Samoa não conseguem pronunciar fence de forma que, em bêche de mer, diz-se fennis, store é sitore, box é bokkis. Neste momento a moda é aplicar à fechadura das arcas, a que chamam bokkis, uma campainha, que soa sempre que alguém a tenta abrir, funcionando como alarme. Uma caixa com este equipamento é designada bokkis belong campainha.

Fright é medo em bêche de mer. Se um indígena parecer tímido e o interrogarem a esse respeito, é natural ele dizer "Mim terror de ti de mais." Ora o indígena também tem terror do temporal, do mato ou de lugares assombrados. Cross abrange todo o tipo de ira. Um homem pode estar zangado com outro por ser simplesmente arrogante; ou pode estar zangado a ponto de cortar a cabeça do outro para comer ao jantar. Um contratado, depois de trabalhar três anos numa plantação, regressou à sua aldeia de Malaita, com roupas berrantes e desportivas. Na cabeça usava um chapéu alto. Tinha uma arca cheia de chitas, missangas, dentes de toninha e tabaco. Assim que o barco fundeou, os nativos foram a bordo. O contratado procurou ansiosamente os parentes, mas não viu nenhum. Um dos indígenas tirou-lhe o cachimbo da boca. Outro confiscou-lhe os colares de missangas que trazia ao pescoço. Um terceiro arrancou-lhe a tanga vistosa e o quarto experimentou o chapéu alto, esquecendo-se de o devolver.

Finalmente, um deles pegou na arca que continha o produto de três anos de trabalho e lançou-a para uma piroga próxima. "Aquele é dos teus?" perguntou o capitão ao contratado, referindo-se ao ladrão. "Não, não é dos meus", respondeu ele. "Então por que o deixas levar a arca?" inquiriu o capitão, indignado. "Ripostou o homem: "Mim falar ele, dizer bokkis ele parar, aquele fella zangado com mim" - o que era uma maneira de dizer que o outro o mataria. A ira de Deus, quando mandou o Dilúvio, foi apenas uma maneira de se mostrar zangado com a humanidade.

What name é a grande interrogação usada em bêche de mer. Tudo depende da forma como for pronunciada. Pode significar "Ao que vem?", "O que pretende com esse comportamento indigno?", "Que deseja?", "Que coisa procura?", "O melhor é ter cuidado", "Exijo uma explicação", e muitas outras coisas. Se alguém chamar um indígena a meio da noite, provavelmente ele dirá ao sair de casa: "Que nome dar voz para mim?"

Imagine-se as dificuldades por que passaram os alemães das plantações da ilha de Bougainville, que são obrigados a aprender bêche de mer para dar ordens aos trabalhadores nativos. Para eles é um linguajar que nada tem de científico, ainda por cima sem manuais por onde estudar. É matéria de grande risota para os outros plantadores e comerciantes brancos ouvir os alemães a debater-se valorosamente com as metáforas e simplificações de um idioma que não tem gramáticas nem dicionários.

Há anos, foram recrutados grupos de gente das ilhas Salomão para trabalhar nas plantações de açúcar de Queensland. Um missionário convenceu um dos trabalhadores, que se convertera, a pregar um sermão aos ilhéus acabados de chegar de barco. Escolheu como tema a Expulsão do Paraíso e exprimiu-se de tal forma que a alocução passou a ser citada em toda a Austrália. Era mais ou menos assim:

Vocês todos, boys vindos das Salomão, não conhecer o branco. Mim fella conhecer ele. Mim fella conhecer e falar história dele.

Antes de muito tempo ele não estar em sítio nenhum. O deus grande fella patrão do branco fez ele homem inteiro. O deus grande fella patrão do branco fez grande fella jardim para ele. Ele fella muito bom. Todo jardim inhame muito parar, muito coco, muito taro, muito kumara (batata doce), boa fella kai kai de mais.

Então deus grande fella patrão do branco fez homem e pôr ele no jardim dele. Chamar este homem Adão. É nome dele. Pôr este homem Adão no jardim e dizer "Este fella jardim ser teu." E ele ver esse fella Adão passear de mais. Esse fella Adão sempre doente; ele não querer kai-kai, andar tempo todo. E deus grande fella patrão do branco não saber, coçar cabeça por causa dele. Deus dizer: "Que nome? Mim não saber que coisa esse fella Adão querer."

Então Deus coçar muito cabeça por causa dele e falar: "Mim saber. Esse fella Adão querer Mary." Então fez Adão dormir, tirou um fella osso dele e fazer uma fella Mary com osso dele. Chamar esta Mary Eva. Dar esta fella Eva a Adão e falar para Adão. "Tomar conta juntos este fella jardim vocês dois. Uma fella árvore ser tabu de verdade. Essa fella árvore ter maçã."

Então Adão e Eva dois fella parar no jardim e passar bom tempo os dois muito. Então um dia Eva juntar com Adão e dizer: "Melhor tu e mim os dois fella comer esta fella maçã." Adão ele falar: "Não." E Eva falar: "Que nome? Não gostar mim?" E Adão ele falar: "Mim gostar muito, mas mim medo com Deus." E Eva ela falar: "Disparate! Que nome? Deus ele não sabe tomar conta nós dois fella todo o tempo. Deus grande fella patrão, ele mentiu no você." Mas Adão ele dizer: "Não." Mas Eva ela falar, falar, falar, sempre, sempre... como todas Marys elas falar boys de Queensland e arranjar complicação com eles. E então Adão ele cansar muito e falar: "Está bem." Logo esses dois fella comer. Quando acabar comer, palavra! Eles muito medo e correr esconder no mato.

"E Deus passear no jardim e dar voz: "Adão!" Adão ele não fala. Ele também muito medo. Palavra! E Deus dar voz: "Adão!" E Adão ele falar: "Chamar mim?" Deus falar: "Chamar você muito muito." Adão falar: "Mim dormir com muita força." E Deus falar: "Você comer essa fella maçã." Adão ele falar: "Não, mim não comer ela." Deus falar: "Que nome? Mentir comigo? Você comer, sim." E Adão ele falar: "Sim, mim comer."

"E Deus patrão grande zangar com Adão e Eva dois fella muito e falar: "Vocês dois fella acabar comigo. Vocês ir buscar bokkis de vocês e ir para inferno na floresta.

"Então Adão e Eva dois fella ir na floresta. E Deus fazer uma grande fennis (vedação) no jardim e pôr um patrão grande tomar conta vedação, dar um grande fella espingarda nele e dizer no patrão grande: "Quando ver dois fella Adão e Eva, você disparar muito de mais."

 

Médico amador

Quando partimos de São Francisco eu sabia tanto de doenças como um almirante suíço sabe de mar. E aviso-vos, desde já, que se alguém me consultar antes de iniciar um cruzeiro nas regiões tropicais, dar-lhe-ei sem hesitar este conselho: entre numa grande farmácia, daquelas que contratam profissionais que sabem tudo, e peça para falar com um deles. Anote cuidadosamente tudo o que lhe disserem. Peça uma lista de tudo o que lhe recomendarem. Preencha um cheque com o custo global e rasgue-o.

Quem me dera ter feito o mesmo! Teria sido muito mais sensato, sei-o agora, se tivesse comprado um desses estojos de pronto-socorro, automáticos e inócuos, preferidos pelos comandantes de quarta categoria. Nesses estojos, todos os frascos são numerados. Na parte interior da tampa, há uma tabela com instruções: nº 1, dores de dentes; nº 2, varíola; nº 3, males de estômago; nº 4, cólera; nº 5, reumatismo; e assim por diante, passando por todas as doenças humanas. Poderia ter-me servido desses medicamentos como certo respeitável capitão meu conhecido que, quando o frasco nº 3 chegava ao fim, misturava uma dose do nº 1 e do nº 2 ou, quando acabava o nº 7, tratava os tripulantes com o 4 e o 3 até o 3 estar gasto, e nessa altura usava o 5 e o 2.

Até agora, à excepção do sublimado corrosivo (que me foi recomendado como anti-séptico em operações cirúrgicas e que ainda não usei com esse fim), o meu estojo médico tem sido inútil. Tem sido pior que inútil, porque ocupa muito espaço que me faria bastante jeito.

Com os meus instrumentos cirúrgicos foi diferente. Embora ainda não os tenha usado seriamente, não lamento o espaço que ocupam. Só de pensar neles sinto-me melhor.

Para mim são uma espécie de seguro de vida, só que menos sinistro, no sentido em que não é preciso morrer para ter direito a ele. Como é evidente, ignoro como se utilizam estes instrumentos, mas consolo-me a pensar que, com a minha fraca bagagem de conhecimentos médicos, uma dúzia de charlatães podiam montar clínica com a certeza de prosperar. Mas no Snark nunca se sabe quando o destino nos porá à prova: tanto pode ser a mil milhas de terra ou a vinte dias do porto mais próximo.

Eu não sabia como tratar dentes e no entanto um amigo equipou-me com alicates e armas do mesmo género e em Honolulu comprei um livro para dentistas. Nessa cidade subtropical também consegui deitar a mão a uma caveira, à qual extraí todos os dentes, rapidamente e sem dor. Assim equipado, estava pronto, embora não propriamente ansioso, para tratar de qualquer dente que me aparecesse pela frente. Foi em Nuku-hiva, nas Marquesas, que surgiu o meu primeiro caso, sob a forma de um velhinho chinês. A primeira coisa que fiz foi tremer de medo. Deixo às pessoas de boa fé o cuidado de concluir se o pânico, com todo o seu cortejo de palpitações cardíacas e tremores de mãos, é a melhor forma de se apresentar, para alguém que, como eu, queria dar a ideia de estar senhor de uma longa experiência. O velho chinês não se deixou enganar. Estava tão assustado como eu e um pouco mais trémulo. Quase me esqueci do meu medo, só de pensar que ele se podia pôr a andar. Juro que, se ele fizesse menção disso, eu não hesitaria em passar-lhe uma rasteira e sentar-me em cima dele, até que ele recuperasse a calma e o tino.

Estava mesmo disposto a arrancar-lhe aquele dente. Além disso, Martin queria tirar-me uma fotografia no momento da extracção. Charmian também se equipou com uma máquina fotográfica. Então começou a procissão. Estávamos hospedados na casa que servia de clube dantes, na altura em que Stevenson chegou às Marquesas no Casco.

Na varanda onde passou tantos momentos agradáveis, a luz não era boa... para as fotografias, quero dizer. Com os outros atrás de mim, fui para o jardim, a cadeira numa mão e na outra uma série de alicates de vários géneros e os joelhos a tremer desgraçadamente. O pobre chinês vinha em segundo lugar, também a tremer. Charmian e Martin seguiam à retaguarda, armados com Kodaks. Embrenhámo-nos pelos abacateiros, abrimos caminho por entre palmeiras, e chegámos a um ponto satisfatório para as exigências fotográficas de Martin.

Observei o dente e foi então que descobri que não conseguia lembrar-me de como tinha extraído os da caveira, cinco meses antes. Tinham uma raiz, duas ou três? O que ainda restava da parte exposta parecia muito carcomido e eu sabia que tinha de procurar o dente bem no interior da gengiva. Julgando indispensável saber em quantas raízes se dividia um molar, voltei a casa para procurar o manual de dentista. A minha pobre vítima assemelhava-se a certos criminosos chineses que às vezes nos mostram em fotografia, ajoelhados à espera de ser decapitados por uma espada.

- Não o deixes ir-se embora! - recomendei a Martin. - Quero arrancar esse dente.

- Não te preocupes - respondeu com convicção. - Também não dispenso a minha fotografia.

Pela primeira vez senti pena do chinês. Embora o manual não explicasse como se arrancam dentes, numa certa página encontrei desenhos de todos eles, incluindo as raízes e como estavam implantadas na mandíbula. Depois foi o dilema dos alicates. Tinha sete, mas não sabia ao certo qual usar. Quando comecei a mexer neste equipamento, fazendo grande estardalhaço, começou a faltar o ânimo à pobre vítima e surgiu-lhe no rosto uma cor amarelo-esverdeada. Queixou-se do sol nos olhos, mas era necessário por causa da fotografia e teve de se conformar. Quando apliquei o alicate no dente, o paciente estremeceu e pareceu desmaiar.

- Estás pronto? - perguntei a Martin.

- Tudo a postos! - respondeu.

Puxei com força. Oh deuses! O dente estava quase solto! Saiu num instante. Radiante, levantei o alicate para mostrar o troféu.

- Volta a pô-lo no seu lugar, por favor! - pediu Martin. - Foi tão rápido, que não tive tempo para a fotografia.

O pobre velhote voltou à posição inicial enquanto eu fingia colocar o dente no alvéolo e puxar por ele. Martin disparou o botão da máquina. A operação estava concluída.

Exaltação? Orgulho? Nenhum caçador terá mostrado maior jactância, à vista do primeiro veado abatido, do que eu diante daquelas três raízes! O autor daquela proeza era eu, eu! Eu próprio, com as minhas próprias mãos e o alicate, isto sem falar das experiências com os dentes da caveira.

O meu segundo cliente foi um marinheiro tahitiano, de fraca estatura, que se apresentou num total estado de prostração, depois de longos dias e noites de dores lancinantes.

Comecei por lancetar as gengivas. Não sabia ao certo como proceder, mas não hesitei. Depois tive de puxar com toda a força. O homem era um herói: soltou uns gemidos e uns urros tão terríveis que pensei vê-lo desmaiar de um momento para o outro, mas manteve a boca aberta e deixou-me manobrar. Por fim o dente cedeu.

Depois daquilo estava pronto a praticar com quem quer que aparecesse... mas este era o estado de espírito propício a um desaire iminente. E foi o que aconteceu.

O doente chamava-se Tomi. Era um pagão gigante, forte e com fama de mau. Dado a actos de violência, entre outras coisas matara duas das suas mulheres a soco. Era filho de canibais primitivos. Quando se sentou e lhe enfiei o alicate na boca, a cabeça dele chegava à altura da minha, como se não estivesse sentado. Sabendo eu que os homens fortes têm por vezes acessos de brutalidade, e desconfiado deste, pedira a Charmian que o segurasse por um dos braços e Warren agarrava-lhe o outro.

Depois começámos todos a fazer força: assim que o alicate fez prisão no dente, ele fechou as mandíbulas e lançou ambas as mãos à minha, que puxava pelo alicate.

Resisti e ele também, Charmian e Warren resistiram igualmente. Lutámos assim, agarrados, e arrastando-nos uns aos outros pela sala fora.

Eram três contra um e a maneira como eu prendia aquele dente cariado era muito precária. O bruto acabou por nos vencer. O alicate escorregou e bateu nos dentes superiores com um ruído metálico e um rangido que nos pôs os nervos em franja, voou para fora da boca e o homem levantou-se de repente, soltando um urro de fera. Caímos os três para trás, esperando ser massacrados. Mas o selvagem de fama sanguinária, aos uivos, deixou-se abater na cadeira. Segurou a cabeça entre as mãos e gemeu, gemeu sem parar. Não quis atender aos meus argumentos. Chamou-me charlatão, disse-me que a minha promessa de extracção dentária indolor era uma fraude, uma armadilha para papalvos. Eu estava tão ansioso por arrancar aquele dente que me dispunha a oferecer-lhe qualquer coisa em troca. Mas aqueles propósitos ofendiam o meu orgulho profissional e deixei-o ir-se embora com o dente intacto. Este foi o meu único caso mal sucedido, até hoje, no que toca a tratar da saúde aos doentes. Ainda há dias me dispus a navegar três dias contra o vento para arrancar um dente à mulher de um missionário. Antes de o Snark terminar o seu périplo, espero estar capaz de fabricar dentaduras e colocar coroas de ouro.

Não sei se tive impetigo ou não - um médico nas Fidji disse-me que sim, e um missionário nas Salomão disse-me que não. O certo é que sofri horrores. No Taihi, aconteceu contratar um marinheiro francês que, quando estávamos no alto mar, foi atacado por uma pestilencial doença de pele. O Snark era demasiado pequeno e a nossa equipa demasiado numerosa para nos ser possível conservá-lo a bordo; no entanto, fui obrigado a tratá-lo até acostarmos e despedirmo-nos dele. Consultei os livros e prestei-lhe os cuidados necessários, tomando sempre a precaução de me lavar muito bem depois. Quando chegámos a Tutuila, em vez de me livrar dele, o médico do porto declarou-o de quarentena e recusou-se a deixá-lo desembarcar. Mas em Apia, na Samoa, consegui metê-lo num vapor que ia para a Nova Zelândia. Em Apia, os mosquitos picaram-me particularmente nos tornozelos e confesso que me cocei muito - como aconteceu milhares de vezes antes. Quando chegámos à ilha de Savaii, uma pequena ferida que tinha na curva do pé transformou-se numa úlcera profunda. Julguei que se devia a excesso de calor ou aos fumos ácidos de um chão de lava quente por onde caminhara.

Um bálsamo bem aplicado curar-me-ia, pensei. O bálsamo sarou a úlcera, mas instalou-se uma infecção impressionante, a pele mais recente caiu e apareceu uma úlcera ainda maior. O fenómeno repetiu-se várias vezes. Sempre que a pele se regenerava, declarava-se nova inflamação e a chaga tomava proporções maiores. Eu sentia-me ao mesmo tempo intrigado e receoso. A minha pele sempre cicatrizara com rapidez invulgar, mas aquela ferida não só se recusava a sarar, como crescia sem parar, começando a roer o próprio músculo.

Nessa altura, o Snark navegava em direcção às ilhas Fidji. Seriamente alarmado, lembrei-me do marinheiro francês. Apareceram-me mais quatro chagas semelhantes - ou antes, quatro úlceras - e toda a noite não preguei olho, com dores. Comecei a fazer planos para deixar o Snark nas ilhas Fidji e tomar um vapor que fosse para a Austrália; à chegada, consultaria um médico. Entretanto, tratava-me o melhor possível, atendendo aos meus conhecimentos de amador. Li de uma ponta à outra todos os tratados de medicina que levava a bordo; nem uma linha, nem uma frase que descrevesse o meu mal! Para tentar resolver o problema, recorri ao mais elementar bom senso. Estava a ser minado por úlceras virulentas causadas por um veneno orgânico. Concluí que havia duas coisas a fazer. Primeiro, era preciso descobrir um remédio capaz de erradicar o mal. Em segundo lugar, as úlceras não sarariam de fora para dentro; tinham de ser debeladas de dentro para fora. Pensei no sublimado corrosivo, mas a própria designação do produto dava-me a entender que não seria a melhor solução. Era um método que equivalia a combater o fogo com o fogo! Atacado por um veneno corrosivo, como curar-me empregando outro veneno igualmente corrosivo? Ao fim de uns dias, resolvi alternar os pachos de sublimado com outros à base de peróxido de hidrogénio. O resultado, vejam bem, foi que, quando chegámos às ilhas Fidji, quatro das cinco úlceras estavam curadas e a última reduzida ao tamanho de uma ervilha.

Embora na altura me sentisse perfeitamente capaz de tratar aquele tipo de chagas, elas inspiravam-me um grande respeito, que os meus companheiros de viagem não partilhavam.

Não lhes bastava ter diante dos olhos o meu exemplo.

Tinham testemunhado a minha horrível aflição e todos, estou convencido, imaginavam inconscientemente estar ao abrigo de males como o meu. Tendo em vista a soberba constituição e as gloriosas personalidades de que estavam dotados, nunca um veneno tão infecto ousaria insinuar-se nos seus esplêndidos organismos, ao contrário de mim, tipo anémico e de robustez medíocre. Em Port Reso-lutíon, nas Novas Hébridas, Martin decidira caminhar descalço pelo mato e voltara a bordo com muitos cortes e esfoladelas, especialmente nas pernas.

- Devias ter cuidado - avisara-o eu. - Vou preparar um pouco de sublimado corrosivo para lavares essas feridas. Só para prevenir, percebes?

Mas Martin sorriu com ar superior. Embora evitasse dizê-lo, deu-me a entender que não era como os outros (alusão discreta, suponho, à minha pessoa) e que dentro de dias estaria em forma. Também me fez uma dissertação sobre a sua pureza de sangue e respectivas faculdades curativas. Senti-me humilde quando terminou a peroração.

Não havia dúvida de que o meu sangue não se comparava ao dos outros homens.

Nakata, o grumete, num dia em que passava a ferro, deve ter confundido a barriga da perna com a tábua de engomar, porque fez uma queimadura de 10 centímetros de comprimento por 3 de largura. Também me recebeu com um sorriso superior quando lhe propus tratá-lo com sublimado e lhe lembrei a minha experiência passada. Com modos suaves e corteses, afirmou claramente que o seu esplêndido sangue de japonês de Port Arthur daria cabo de qualquer micróbio mais atrevido.

Wada, o cozinheiro, participou de uma desastrada acostagem da chalupa, em que teve de saltar borda fora e puxá-la para a praia, no meio de uma rebentação furiosa.

Ficou com as pernas e os pés cheios de cortes, devido às conchas e corais. Ofereci-lhe o frasco de sublimado. Mais uma vez tive de suportar um sorriso superior e fiquei a saber que já uma vez derramara o seu sangue em luta contra a Rússia e um dia derramá-lo-ia contra os Estados Unidos. Se esse mesmo sangue não fosse capaz de curar quaisquer arranhões insignificantes, então só lhe restava sucumbir à desonra e cometer hara-kiri.

De tudo isto concluí que um médico amador, mesmo curando-se a si próprio, não vê os seus méritos devidamente reconhecidos. Os meus companheiros consideravam-me uma espécie de monomaníaco inofensivo, no que se referia a feridas e sublimado. Lá porque o meu sangue era impuro, não podia convencer-me de que com o dos outros se passava o mesmo. Desisti de interferir. O tempo e os micróbios estavam do meu lado, e só me restava esperar.

Passados uns dias, Martin disse-me, algo contrariado:

- Acho que estes cortes estão um tanto sujos. Vou lavá-los e em pouco tempo estarei curado - acrescentou, quando viu que eu não mordia o isco.

Passaram-se mais dois dias, mas os cortes não saravam e dei com ele a lavar os pés e as pernas num balde de água quente.

- Não há nada como uma boa água quente! - proclamou com entusiasmo. - É melhor do que todas as drogas que os médicos receitam. Estas feridas estarão curadas amanhã de manhã.

Mas na manhã seguinte notei-lhe um olhar inquieto. Aproximava-se o meu momento de triunfo.

- Acho que vou experimentar um pouco desse remédio - anunciou, passadas umas horas. - Não é que tenha grande confiança nele, mas de qualquer forma não me fará mal arriscar.

A seguir foi a vez do orgulhoso japonês puro sangue, que me veio pedir medicação para as suas ilustres chagas, enquanto eu lhe dava cabo da cabeça a explicar-lhe com minúcia e pormenores solícitos o tratamento a que as devia submeter. Nakata seguiu as instruções à letra e as feridas sararam a olhos vistos. Wada estava apático e curou-se mais devagar. Mas Martin ainda duvidava e, porque não se curou instantaneamente, desenvolveu a teoria de que, mesmo que o medicamento fosse bom, isso não queria dizer que todos os doentes reagissem da mesma forma. No caso dele, o sublimado corrosivo não tinha qualquer efeito. Ademais, como sabia eu que era esse o tratamento mais indicado? Faltava-me experiência. Só porque acontecera curar-me, não podia concluir daí que o mérito se devia ao produto aplicado. E que há coincidências dessas na vida. Por certo haveria uma droga capaz de curar aquelas feridas, mas quando pudesse consultar um médico a sério saberia qual era e então aplicá-la-ia.

Foi por essa altura que chegámos às ilhas Salomão. Nenhum médico se lembraria de recomendar este arquipélago como sanatório aos seus doentes, dado aquele clima insalubre.

Não levei muito tempo a aperceber-me - pela primeira vez na minha vida - da delicadeza e instabilidade dos tecidos humanos. Fundeámos em Port Mary, na ilha de Santa Anna. O único branco que lá vivia, um comerciante, veio procurar-nos. Chamava-se Tom Butler e era um óptimo exemplo da devastação que as ilhas Salomão podem provocar num homem forte. Estava deitado na sua baleeira, definhado como um moribundo, sem que um sorriso ou uma chispa de inteligência lhe iluminassem o rosto sombrio, onde se liam já os sinais da morte. Também sofria de enormes úlceras. Fomos obrigados a transportá-lo em peso para o Snark. Contou-me que sempre gozara de boa saúde, há muito que não tinha febres e, à excepção dum braço, sentia-se em excelente forma. Esse membro parecia paralisado, mas o homem não lhe dava importância.

Já lhe acontecera antes e recuperara. Era uma doença comum entre os indígenas de Santa Anna, disse ele, enquanto o levávamos escada abaixo, com o braço inerte a produzir um som cavo cada vez que batia nos degraus. O estado do nosso convidado era sem duvida mais macabro que o de todos os infelizes que, atingidos pela lepra ou a elefantíase, acolhêramos a bordo do Snark.

Martin fez-lhe várias perguntas acerca das chagas, porque lá entendido era ele, a julgar pelas cicatrizes que tinha nos braços e nas pernas e pelas úlceras em ferida que corroíam o centro dessas cicatrizes. Ora, uma pessoa habitua-se às úlceras, dizia Tom Butler. Nunca eram graves, a não ser que atingissem a carne mais profunda.

Nessa altura, atacavam as paredes das artérias, que rebentavam. A seguir, a única coisa a fazer era preparar o funeral. Vários indígenas haviam sucumbido assim, muito recentemente. Mas que importância tinha isso? Ali, nas ilhas Salomão, se não fosse pelas úlceras, morria-se de outro mal qualquer...

Reparei que a partir daí Martin passou a dedicar um interesse cada vez maior às suas úlceras. Insistia mais nas lavagens com sublimado e, nas conversas, referia-se amiúde e com entusiasmo crescente ao clima saudável do Kansas e à excelente qualidade de tudo o que fosse do Kansas. Charmian e eu tínhamos a Califórnia em boa conta, nesse aspecto. Henry achava que Rapa era insuperável e Tehei daria tudo para voltar a Bora Bora; ao passo que Wada e Nakata lançavam aos céus hinos em honra dos encantos do Japão.

Numa noite em que contornávamos a ponta meridional da ilha de Ugi à procura de um ponto de desembarque, um certo Mr. Drew, missionário da Igreja da Inglaterra que seguia na sua baleeira para San Cristoval, acostou ao Snark e convidámo-lo para jantar. Martin, com as pernas cobertas de ligaduras que o faziam assemelhar-se a uma múmia, desviou a conversa para as úlceras. Mr. Drew confirmou que eram muito comuns nas Salomão e que todos os brancos as contraíam.

- Também aconteceu consigo? - quis saber Martin, intimamente chocado por um representante da Igreja da Inglaterra padecer de uma afecção tão vulgar.

Mr. Drew confirmou e acrescentou que não só lhe acontecera, como naquele momento andava a tratar de várias.

- O que usa como curativo? - perguntou logo Martin. Quase se me parou o coração. Da resposta dependia o meu prestígio médico. Percebi que Martin não duvidava da minha queda. E então veio a resposta... a bendita resposta:

- Sublimado corrosivo - disse Mr. Drew.

Tenho de admitir que Martin encaixou a informação com elegância. Admito e estou certo de que, naquele momento, se eu lhe pedisse autorização para lhe arrancar um dente, ele não ma recusaria.

Todos os brancos das ilhas Salomão contraem úlceras e qualquer corte ou arranhão significa na prática mais uma chaga. Todos os que conheci já haviam passado por isso e nove em dez tinham alguma em actividade. Só encontrei uma excepção: um jovem que, vindo para as ilhas havia cinco meses, adoecera com febre dez dias após a chegada e desde então estivera acamado tantas vezes que não surgira oportunidade nem tempo para ulcerar.

Todos os do Snark, tirando Charmian, tiveram úlceras. À semelhança dos naturais do Kansas e do Japão, ela atribuía orgulhosamente essa imunidade à pureza do sangue e, à medida que o tempo passava, ostentava esse atributo com arrogância e freqüência cada vez maiores. Intimamente, eu sabia que, por ser mulher, estava mais protegida dos cortes e arranhões a que nós, homens castigados pelo trabalho, nos sujeitávamos no decorrer das manobras que fariam o Snark dar a volta ao mundo. Mas não lho podia confessar porque, bem vêem, não queria ferir o seu amor próprio confrontando-a com a brutal realidade. Como médico, ainda que amador, conhecia melhor a doença do que ela e sobretudo tinha a certeza de que o tempo estava a meu favor. Mas infelizmente traí esse precioso aliado quando me apercebi de uma minúscula ferida numa perna de Charmían. Apliquei-lhe tão depressa o tratamento anti-sép-tico que a ferida sarou antes de ela se convencer de que tinha uma úlcera. Mais uma vez, ficaram sem reconhecimento os meus talentos de médico; e, pior ainda, fui acusado de a ter induzido em erro ao identificar incorrectamente uma úlcera. A pureza do seu sangue resplandeceu como nunca e eu enfronhei-me nos manuais de marear, sem argumentos. Até que chegou a minha hora. Nesse dia, navegávamos pela costa de Malaita.

- Que tens aí, no tornozelo? - perguntei-lhe.

- Nada - respondeu.

- Está bem, mas em todo o caso aplica um pouco de sublimado corrosivo. E daqui a duas ou três semanas, quando estiver tudo bem e se tiver formado uma cicatriz que te acompanhará até à morte, esquece a tua pureza de sangue e a história dos teus antepassados e dá-me a tua opinião sobre úlceras.

A tal úlcera, do tamanho de uma moeda de dólar, levou três semanas a sarar. As dores eram tão violentas que às vezes Charmian não conseguia andar; e não se cansava de explicar que o sítio pior para se ter uma úlcera era o tornozelo, por ser tão doloroso. Pelo meu lado, expliquei-lhe que, por nunca ter tido essa experiência, inclinava-se a pensar que uma ferida na parte inferior do peito do pé era aquela que mais dores causava. Pusemos a questão a Martin, que discordou de ambas as opiniões e proclamou com veemência que o único sítio verdadeiramente doloroso era a perna. Toda esta discussão explica, aliás, a razão da popularidade das apostas nas corridas de cavalos.

Mas, ao fim de certo tempo, de tão banais, as úlceras perderam o interesse. Neste preciso momento em que escrevo, tenho cinco nas mãos e mais três nas pernas. Charmian tem uma de cada lado do tornozelo direito. As de Tehei exasperam-no. As chagas antigas que Martin tinha nas pernas foram substituídas por outras mais recentes. E Nakata tem várias a corroer-lhe a pele. Mas a história do Snark nas ilhas Salomão é a de todos os barcos desde as primeiras descobertas. Cito as seguintes linhas retiradas das Instruções Náuticas:

"Quase todos os membros da equipagem das embarcações que prolongam a sua estadia nas ilhas Salomão contraem chagas que normalmente se transformam em úlceras virulentas."

Também no que diz respeito às febres as Instruções Náuticas são particularmente desencorajadoras, porque comentam o seguinte:

"Os recém-chegados sofrem mais tarde ou mais cedo de febres, às quais também os indígenas estão sujeitos. O número de falecimentos entre os brancos, no ano de 1897, foi de 9, numa população de 50."

No entanto, algumas dessas mortes eram acidentais.

Nakata foi o primeiro a cair com febre, em Penduffryn. Seguiram-se Wada e Henry; depois Charmian. Consegui resistir durante uns dois meses; mas quando sucumbi, Martin, solidário, juntou-se-me passados uns dias. De nós todos, que éramos sete, só Tehei escapou; mas o seus padecimentos de nostalgia eram piores que qualquer febre.

Nakata, como de costume, seguiu as instruções à risca, de forma que, no terceiro ataque, depois de suar durante duas horas e tomar trinta ou quarenta grãos de quinino, apesar de combalido, pôs-se a pé ao fim de 24 horas.

Contudo, Wada e Henry eram doentes mais difíceis. Em primeiro lugar, Wada deixou-se tomar por tal terror que pensou ter sido abandonado pela sua boa estrela e concluiu que deixaria os ossos naquelas paragens. A vida à sua volta pareceu-lhe precária. Infelizmente, em Penduffryn, onde a disenteria causava terrível devastação, viu uma vítima, levada numa chapa de zinco, ser atirada, sem caixão ou funeral, para uma cova no chão. Não havia quem não tivesse febre, disenteria ou qualquer outra maleita. A morte era coisa banal e nunca se sabia quando nos caberia a vez... Wada convenceu-se que chegara o seu triste dia.

Indiferente às úlceras, deixou de lhes aplicar sublimado; além disso, por se coçar desconsoladamente, elas propagaram-se-lhe a todo o corpo. Também não seguia as recomendações sobre como tratar as febres e por isso ficava de cama cinco dias de cada vez, quando se poderia curar num dia. Henry, que é um gigante robusto, nem por isso se mostrava mais razoável. Recusava-se terminantemente a tomar quinino, argumentando que anos antes tivera febre e que os comprimidos que o médico receitara eram de tamanho e cor diferentes dos nossos. De forma que fazia companhia a Wada.

Mas enganei bem aqueles dois. Viviam no terror de uma morte iminente; então, para alcançar os meus fins, alimentei esse seu estado de espírito e fi-los crer que estavam realmente à beira da morte, pelo que não tinham nada a perder em aceitar as doses de quinino que eu lhes recomendava. Além disso, tirei-lhes a temperatura.

Era a primeira vez que usava o termómetro da nossa farmácia portátil. Depressa descobri que não servia de nada, porque estava avariado. Se informasse os dois doentes de que o aparelho indicava uma temperatura de 40 graus, teríamos dois funerais consecutivos em perspectiva. Com ar solene, meti o termómetro debaixo do braço de cada um deles e, com ar satisfeito, anunciei-lhes que era uma febre tão ligeira que nem chegava aos 38 graus. Depois fi-los engolir mais quinino e esperei que melhorassem. Foi o que aconteceu, apesar de Wada se sentir às portas da morte. Se é verdade que se pode morrer de medo, qual é a imoralidade de salvar o doente recorrendo à mesma arma?

Não há como a raça branca quando toca a resistir e a lutar pela vida. Um dos nossos japoneses e os nossos dois tahitianos sucumbiram ao terror do fim iminente e tivemos de os encorajar e mimar, trazendo-os de volta à vida quase à força. Charmian e Martin aceitaram com outro ânimo os seus males, sem lhes dar grande importância, e recuperaram a saúde com uma fé serena. Quando Wada e Henry se convenceram de que tinham os dias contados, o ambiente fúnebre à sua volta tornou-se insuportável para Tehei, que rezou e soluçou horas a fio. Em compensação, Martin, que não se cansava de rogar pragas à doença, pôs-se bom, e Charmian, entre gemidos, fez projectos para quando estivesse curada.

Charmian foi habituada desde criança a seguir uma dieta vegetariana e preceitos higiénicos muito rígidos. A sua tia Netta, que a criou e que vivia num clima excelente, não tinha grande confiança nos medicamentos. Charmian também não. Além disso, reagia mal aos remédios, que lhe causavam efeitos mais nefastos que os males que supostamente aliviariam. Mas aceitou os argumentos a favor do quinino e tomou este remédio como um mal menor. Em consequência disso, teve ataques de febre mais ligeiros, menos penosos e espaçados. Mr. Caulfeild, o missionário que encontrámos e cujos dois predecessores morreram nas ilhas Salomão em menos de seis meses, acreditava, como eles, na homeopatia, até ter o primeiro ataque de febre. Depois, associou-se aos partidários da alopatia e do quinino, arrostando com a febre e cumprindo a sua missão evangélica.

Mas coitado do Wada! O que deu cabo dele foi o facto de Charmian e eu o levarmos connosco numa viagem à ilha de Malaita, infestada de canibais, num iate em cujo convés o capitão fora assassinado no ano anterior. Wada convenceu-se de que iam fazer dele kai-kai, isto é, repasto. Andávamos bem armados, mantínhamo-nos sempre vigilantes e quando nos banhámos na foz de um rio, fomos guardados por jovens indígenas que estiveram de sentinela, de espingarda em punho. Vimos canhoneiras inglesas bombardear e queimar aldeias para as castigar por assassínios cometidos. Indígenas com a cabeça a prémio vieram acolher-se à nossa protecção a bordo. Na região pululavam os criminosos. Em locais remotos, recebemos avisos sobre agressões iminentes, transmitidos por selvagens nossos amigos que se preocupavam com a nossa segurança.

O iate em que viajávamos devía duas cabeças a Malaita e a qualquer momento podia dar-se o ataque que procuraria resgatá-las. Ainda por cima, encalhámos num recife e enquanto procurávamos safar o barco, mantivemos à distância, sob a ameaça de armas de fogo, as pirogas dos que aguardavam o naufrágio para proceder à pilhagem.

Tudo isto foi de mais para Wada, que quase enlouqueceu e que finalmente abandonou o Snark na ilha de Ysabel, desembarcando de vez, debaixo de chuva intensa, entre dois ataques de febre e correndo o risco de contrair uma pneumonia. Se escapar a ser servido como kai-kai e se sobreviver às úlceras e à febre que grassam em terra, talvez consiga, com sorte, viajar até à ilha vizinha dentro de seis a oito semanas. Nunca teve muita confiança nos meus tratamentos, apesar de eu lhe ter arrancado, logo à primeira tentativa, dois dentes que lhe causavam dores incómodas.

Há meses que o Snark funciona como hospital e confesso que já nos habituámos. Na lagoa de Meringe, onde limpámos o costado da querena do Snark, houve alturas em que só um de nós estava em condições de entrar na água e os três brancos que trabalhavam na plantação ardiam em febre. No momento em que escrevo estas linhas, estamos perdidos no mar, algures a nordeste de Ysabel, e tentamos em vão descobrir a ilha de Lord Howe, que é um atol impossível de avistar ao longe. O cronometro avariou-se, o dia está enevoado e à noite não consigo observar as estrelas. Chove e faz vento há vários dias. Ficámos sem cozinheiro e Nakata, que tem tentado preencher estas funções, além das de grumete, está com febre. Martin, acabado de se curar de um ataque, já adoeceu de novo. Charmian, cujas febres se tornaram recorrentes, consulta o calendário para calcular a data do próximo acesso.

Henry pôs-se a consumir quinino como medida preventiva. Pela minha parte, como os febrões me assaltam de sopetão, estou sempre à espera de uma recaída. Por imprevidência, demos as nossas últimas provisões de farinha a uns brancos que haviam esgotado as suas. Não sabemos quando veremos terra. As nossas úlceras estão pior do que nunca, e mais numerosas. Esquecemo-nos do sublimado corrosivo em Penduffryn e já gastámos todo o peróxido de hidrogénio; ando a fazer experiências com ácido bórico, lisol e antiflogistina. De qualquer forma, se não chegar a ser um médico famoso, não será por falta de prática.

 

  1. S. - Escrevi estas últimas linhas há duas semanas. Tehei, o único imune até agora, caiu há cama há dez dias com febres muito mais violentas que as nossas e ainda não se recompôs. Por várias vezes teve mais de 40 graus de febre e pulsação de 115.

 

  1. S. - No mar, entre o atol de Tasman e o estreito de Manning.

O acesso de Teheí evoluiu para febre de água preta, a forma mais aguda de malária que, segundo o manual de medicina, é também causada por qualquer infecção cutânea. Depois de o curar da febre, não sei a que mais posso recorrer para o fazer sair do estado de demência em que se encontra. A minha prática de tratar de malucos é bastante recente e este é o segundo caso de insanidade mental nesta curta viagem.

 

  1. S. - Um dia escrevo um livro (de carácter médico) chamado: Viagem a volta do mundo no barco-hospital Snark. Nem os animais escaparam às maleitas. Quando zarpámos da lagoa de Meringe trouxemos connosco um terrier irlandês e uma catatua branca. O cão caiu da escada da cabina e magoou a pata esquerda da frente; depois repetiu a manobra e magoou a pata direita de trás. Felizmente ainda se pode mexer, saltitando apoiado nas outras duas pernas. A catatua embateu contra a vigia da cabina e tivemos que a matar. Esta foi a nossa primeira morte... embora as galinhas que voaram borda fora e se afogaram nos pudessem dar agora muito jeito como caldos para os convalescentes. Só não há mal que chegue às baratas. Crescem a olhos vistos e tornam-se cada vez mais carnívoras, roendo-nos as unhas das mãos e dos pés enquanto dormimos.

 

  1. S. - Charmian está com novo acesso de febre. Martin, desesperado, deu em tratar as úlceras com sulfato de cobre e continua a praguejar contra as ilhas Salomão.

Quanto a mim, apesar de continuar a cumprir as minhas funções de navegador, médico e escritor, não me sinto nada bem. Exceptuando os casos de loucura, sou quem está pior a bordo. Tomarei o próximo vapor que for para a Austrália e irei directamente para a sala de operações. Entre os meus males menos graves, cito-vos um, novo e misterioso: desde a semana passada, começaram a inchar-me as mãos, como se sofresse de hidropisia. Mal as consigo fechar, e com dor. Puxar por um cabo causa-me padecimentos intoleráveis e dá-me a mesma sensação de quando tive frieiras graves. Cai-me a pele das mãos a uma velocidade assustadora, além de que a pele nova nasce dura e espessa. O manual de medicina não faz referência a esta doença e ninguém sabe do que se trata.

 

  1. S. - Bom, de qualquer forma consertei o cronometro. Depois de andarmos oito dias no mar, com o Snark açoitado por temporais e chuva, quase sempre de capa, consegui fazer uma observação parcial do Sol ao meio dia. A partir daí calculei a latitude, depois tracei no mapa uma rota para a latitude da ilha de Lord Howe, para chegar à ilha e ao seu paralelo ao mesmo tempo. Aí verifiquei o cronometro pelo cálculo do ângulo horário e descobri que se adiantava aproximadamente três minutos. Como cada minuto equivale a quinze milhas, pude calcular o erro total. Depois de várias observações à ilha de Lord Howe, regulei o cronometro e cheguei à conclusão de que perdia diariamente sete décimos de segundo. Ora acontece que, há um ano, quando saímos do Havai, este mesmo cronometro registava igual erro de sete décimos de segundo. Como ele se acumulou regularmente todos os dias e como não se alterou, como se prova pelas minhas observações em Lord Howe, como se explica que o cronometro acelere de repente e adiante três minutos? Como pode acontecer tal coisa? Os relojoeiros dirão que não é possível; mas eu respondo-lhes que venham então fazer verificações nas ilhas Salomão. O meu único diagnóstico é que é do clima. De qualquer modo, consertei o cronometro, apesar de não ter tido o mesmo êxito com os casos de loucura e com as úlceras de Martin.

 

  1. S. - Martin tenta agora tratar-se com alúmen queimado e roga pragas cada vez mais acaloradas contra as ilhas Salomão.

 

  1. S. - Entre o estreito de Manning e as ilhas Pavuvu.

Henry apareceu com dores reumáticas nas costas, já mudei de pele nas mãos dez vezes e vou na décima primeira, ao passo que Tehei anda mais lunático que nunca e reza dia e noite, pedindo a morte. Além disso, Nakata e eu debatemo-nos de novo contra a febre. Para cúmulo do azar, ontem à noite Nakata teve um começo de intoxicação alimentar e tivemos de passar a noite a tratar dele.

 

O Snark mede 13,7 metros pela linha de água e 16,5 metros ao todo, com um vau de 4,5 metros e calado de 2,30 metros. Está equipado com dois mastros e tem bujarrona, giba, estai, vela grande, mezena e palanque. A altura do pavimento inferior ao convés é de 1,80 metro e tem quatro compartimentos supostamente estanques. Um motor auxiliar de 70 cavalos, a gasolina, forneceu-lhe esporadicamente locomoção, a um custo aproximado de 20 dólares por milha. Um motor de cinco cavalos accionava as bombas quando não estava avariado e, por duas vezes, chegou a alimentar o projector. Os acumuladores funcionaram quatro ou cinco vezes ao longo de dois anos. A chalupa de 4,2 metros fez algum serviço, mas avariava-se quase sempre que eu precisava dela.

Mas o Snark navegava à vela. Aliás, foi só assim que conseguimos fazer a viagem. Durante dois anos, andou pelo mar sem nunca bater contra rocha, recife ou banco de areia. Não tem nenhum lastro interior, a quilha pesa cinco toneladas, mas o calado fundo e a amurada muito alta fazem dele um barco muito estável. Quando surpreendido com as velas aladas por borrascas tropicais, metia logo água pela amurada e pelo convés, mas recusava-se teimosamente a adornar. Governava-se muito bem e fazia rota de dia e de noite, sem homem à barra, em brisa ligeira e vento de través.

Com vento quase em popa e as velas convenientemente desfraldadas, governava sozinho sem guinar mais de dois quartos; e com o vento por trás, só excepcionalmente guinava de três quartos.

Parte do Snark foi construída em São Francisco. Na manhã em que ia ser fundida a sua quilha de ferro, deu-se o grande tremor de terra. Instalou-se a anarquia total.

Depois de um atraso de seis meses sobre a data de entrega, decidi levar o casco para o Havai, para terminar a obra. Amarrou-se o motor no fundo e os diferentes materiais de construção ficaram no convés. Se ficássemos à espera do barco em São Francisco, ainda hoje lá estaríamos. No fim de contas, fabricado por fases, o Snark custou-me quatro vezes mais do que o orçamento previsto.

Este barco nasceu sob maus auspícios. Foi impedido de seguir viagem em São Francisco, recusaram-se a pagar os meus cheques no Havai sob o pretexto de serem falsos, e fui multado nas ilhas Salomão por quebra de quarentena. Os jornais não tiveram a coragem de revelar a verdade aos leitores. Quando despedi um capitão por incompetência, acusaram-me de o ter espancado. Um jovem abandonou o posto de trabalho que lhe ofereci para voltar aos estudos e logo a imprensa me apelidou de Wolf Larsen (2), acrescentando que toda a equipagem abandonara o Snark em conseqüência dos meus maus tratos. Se alguém chegou a vias de facto a bordo e maltratou o nosso cozinheiro, foi um capitão que embarcou abusando da nossa boa fé, tendo eu de o despedir nas ilhas Fidji. Charmian e eu praticávamos boxe como exercício físico, mas nenhum de nós se magoou seriamente.

Encarámos a viagem como um período agradável das nossas vidas. Construí o Snark e paguei-o, saldando todas as despesas. Comprometi-me a escrever 35 000 palavras a relatar o cruzeiro para uma revista que me deveria pagar o mesmo que me pagava quando escrevia em casa. Essa revista, que não se podia queixar de crises financeiras, apressou-se a anunciar que me enviara numa viagem à volta do mundo à sua custa. Como era uma publicação de sucesso, todos os meus fornecedores triplicaram os seus preços porque partiram do princípio que ela os suportaria sem esforço. Até nas ilhas mais remotas dos mares do Sul essa ideia se impôs, de modo que sempre tive de desembolsar pela medida grande. Ainda hoje, há quem esteja firmemente convencido de que a revista arcou com todos os custos e que a viagem me rendeu uma fortuna.

Depois de uma publicidade destas, é difícil meter na cabeça dos meus compatriotas que resolvemos fazer este cruzeiro por simples prazer.

Quando desembarquei na Austrália, passei cinco semanas no hospital e cinco meses em hotéis, doente e infeliz. A misteriosa doença que me afligia as mãos escapava à competência dos médicos australianos. Não figurava em nenhum manual de medicina e nunca se vira caso semelhante. O inchaço apareceu também nos pés e às vezes deixava-me impotente como uma criança. Houve ocasiões em que as mãos atingiram o dobro do tamanho normal, com sete camadas de pele morta a cair ao mesmo tempo. E por três vezes as minhas unhas dos pés cresceram desmedidamente em comprimento e em espessura no espaço de 24 horas. Limava-as e passadas outras 24 horas voltaram ao mesmo tamanho desconforme.

Os especialistas australianos declararam que esta doença, que não era de origem microbiana, devia ser de natureza nervosa. Como o mal persistisse, tive de renunciar à viagem. A única forma de a prosseguir seria ficar deitado num beliche porque, naquela situação, não poderia agarrar nada com as mãos e não seria capaz de me movimentar assim num barco pequeno, sujeito aos balanços do mar. Além disso pensei que, embora mais tarde os barcos e as viagens pudessem ser muitos, o certo é que só tinha duas mãos e dez unhas dos pés. Por outro lado, o meu sistema nervoso sempre gozara de perfeito equilíbrio no clima da Califórnia. Decidi pois regressar.

Desde que cheguei, sinto-me completamente restabelecido. E descobri o que se passou comigo. Encontrei um livro da autoria do tenente-coronel Charles E. Woodruff, do exército americano, chamado Effects of Tropical Ltgbt on Wbite Men. E encontrei a explicação. Mais tarde, avistei-me com ele e fiquei a saber que também padecera do mesmo mal. Cirurgião militar, consultou 17 colegas da mesma especialidade nas Filipinas. Estes, como os médicos australianos, confessaram-se impotentes. Em resumo, os meus tecidos cutâneos têm uma forte predisposição para se deixarem destruir pela luz dos trópicos. Os raios ultravioletas estavam a dar cabo de mim, da mesma forma que muitos dos que fizeram experiências com esses raios sofreram de lesões graves.

De passagem, convém acrescentar que esta doença, uma das que nos forçaram a abandonar o cruzeiro, é conhecida sob três denominações: a doença do homem são, a lepra do europeu e a lepra bíblica. Ao contrário do que se passa com a lepra verdadeira, nada se sabe sobre este misterioso mal. Nenhum médico descobriu como tratá-la, embora tenha havido casos espontâneos de cura. Não se sabe como surge, desconhece-se a sua natureza, e desaparece sem se saber como. Sem recorrer a medicamentos e simplesmente regressado ao saudável clima californiano, livrei-me da minha pele cor de prata. A única esperança que os médicos australianos me deram era a cura espontânea e foi isso que aconteceu.

Uma última palavra: a apreciação da viagem. Embora me baste dizer que foi agradável, há uma testemunha melhor que eu, a mulher que, do princípio ao fim, fez parte do cruzeiro do Snark. No hospital, quando disse a Charmian que era obrigado a regressar à Califórnia, vi como os seus olhos se marejaram de lágrimas. Durante dois dias, esteve para ali a sofrer, com o coração despedaçado, só de pensar que teria de interromper a magnífica viagem.

Glen Ellen, Califórnia, 7 de Abril de 1911.

 

                                                                                            Jack London

 

                      

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