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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DESERTO DAS AREIAS VERMELHAS / Marja
O DESERTO DAS AREIAS VERMELHAS / Marja

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

“O Caçador de Fadas”

Livro I

O DESERTO DAS AREIAS VERMELHAS

 

 

 

                   Revoada de partida

        O castelo do Rei Isac estendia-se sobre as rochas do penhasco. Do alto da murada, a paisagem era desoladora e intrigante.

       O desfiladeiro de pedras conduzia diretamente para o Vale dos Humanos, como era chamado o mundo que não pertencia às fadas.

       Impossível, no entanto enxergar essas terras arborizadas e repletas de construções, pois as nuvens e o nevoeiro barravam qualquer claridade e escondiam de seus olhos a imagem tão conhecida por uma fada.

       O Monte das fadas era apenas uma montanha, e os humanos não possuíam a menor ideia do que acontecia nesse recanto. Para eles, apenas uma montanha coberta por florestas, rios e mistérios. Para as fadas, um recanto, onde viviam e se reproduziam, dividindo territórios e convivendo em paz. Existiam muitos outros lugares como este em todo o mundo. Outros recantos tomados pelas fadas e elfos, e demais criaturas mágicas, mas aquele Monte em especial era o recanto das fadas.

       No ponto alto, no ápice da montanha, ficava o Castelo do Rei Isac, onde a realeza abrigava-se.

       Muitos viviam no Castelo do Rei, poucos, no entanto possuíam permissão para andar pelos corredores durante a noite.

       Santha era uma dessas fadas que não possuíam a permissão. Para ela, no entanto, era passado o tempo de importar-se com punições.

       Santha era fada, e suas asas haviam nascido quatro anos atrás, durante um padecimento de uma semana. Depois de tanto tempo ela ainda não fora escolhida e desposada.

       Por isso, pertencia ao Ministério do Rei, o orfanato formado de fadas órfãs e desvalidas, e que anualmente esperavam ser escolhidas para casamento. O Mistério do Rei, nada mais era, do que um orfanato criado utilizando antigas instalações e masmorras, onde as fadas e elfos órfãs eram abandonados.

       Criados como criaturas indesejáveis para toda a sociedade.

       Apartados do convívio dos outros elfos e fadas, como se carregassem pragas em seu sangue.

       Os elfos, pobres criaturas, eram mantidos até completar os seis para sete anos, e então, eram levados para o trabalho escravo, ou como era chamado, o trabalho de ajudantes dos treinamentos dos Guardiões. Na verdade, nada mais eram, do que cobaias para as espadas dos jovens treinados para Guardiões. A vida de um elfo do Ministério do Rei não valia uma moeda de ouro, por tanto, era descartável.

       As fadas permaneciam trancafiadas até o nascimento das asas, quando isso acontecia, estavam prontas para a exibição na Cerimônia de Escolha.

       Anualmente o Rei, ou outro de sua confiança, escolhia uma das fadas virgens para esposa. As que sobravam voltavam ao exílio do subsolo onde eram proibidas de verem a luz do dia, e enclausuradas até o próximo ano quando teriam nova oportunidade de serem escolhidas. Esse confinamento era ainda pior que o convício no orfanato, pois eram privadas de ver a luz do sol, ou de conviver umas com as outras. Eram mantidas trancafiadas em seus quartos, ou como Santha preferia chamar, suas celas.

       Santha estava apoiada na mais alta murada fitando o imprevisível vazio abaixo das rochas.

       Tolos humanos que não suspeitavam que houvesse um mundo de fadas e elfos naquela montanha. Às vezes algum humano se aventurava a tentar desvendar aquelas rochas, mas seus olhos não conseguiam enxergar esse mundo invisível.

       Santha não estava disposta a voltar para a clausura, no entanto não lhe restava alternativa. Se demorasse mais tempo, em sua fuga vespertina, descobririam suas fugas noturnas e ela estaria perdida para sempre.

       Seria julgada e condenada pelo crime de traição ao Rei. Grande ironia. Exigir a cabeça de uma fada condenada a morte em vida. Não fazia grande sentido.

       Assim, como uma fada de sua beleza e grandeza, nunca ter sido acolhida por elfo algum também não fazia sentido.

       Santha não compreendia o porquê de nunca ser escolhida. Aos vinte anos suas asas nasceram lindas e resplandecentes, e seu dom extremamente útil havia se mostrado magistral sobre os demais dons das outras fadas da clausura. Na solidão da muralha do castelo, Santha permitiu que suas asas se abrissem e se exibissem para a noite.

       Longas, esbranquiçadas e quase translúcidas suas asas eram pontuadas com dourado e adornos naturais que desenhavam padrões de beleza na estrutura das asas. Ao contrário do que os humanos pensavam, as asas de uma fada eram extensões do corpo físico, como braços e pernas, por isso, quanto mais belas as asas de uma fada, maior sua beleza física.

       O vento da noite, soprado do âmago do abismo que se abria abaixo das rochas, esvoaçou seus longos e exuberantes cabelos louros platinados, ondulados e sedosos, como brumas, como espumas do mar, como nuvens brancas em um céu de verão.

       Era uma fada ciente da beleza e glamour de sua essência. Era perita em ler as nuvens e o tempo. Seu dom era demasiadamente útil para ser enfurnado em uma clausura que não tinha prazo para ser encerrado. Ela poderia controlar as tempestades, conduzir a exigência solar, e também, os fenômenos de temperatura e solo.

       Era inconcebível que fosse ignorada e deixara de lado. Que elfo algum houvesse e encantado pelo seu cio.

       Sua lembrança era desconcertante. Como ela penou durante o cio. Meses de exigência física não suprida. Seu cheiro de fêmea não teve o poder de enlouquecer nenhum dos elfos próximos.

       A rejeição a conduzia a uma vida de prisioneira, embora o Rei Isac usasse outro nome: Clausura.

       Horrorizada pelo próprio destino, Santha constatou que de nada valia sua beleza e utilidade, se nascera órfã e miserável.

       Estava relegada a escolhas alheias.

       Lembrou-se brevemente da noite anterior quando uma das órfãs da clausura havia finalmente atingido o ápice de sua existência. Suas asas haviam emergido de sua carne, coroando sua juventude com a dádiva do voo.

       O nascimento das asas de uma fada é um momento aclamado e cultuado, pois a partir daquele momento a fada passa a voar e utilizar seu dom mágico em toda sua força e poder.

       Um momento de pura dor e angústia, e a pobre órfã havia passado uma semana toda aos gritos de dor e agonia até finalmente nascerem suas asas avermelhadas e curtas.

       E com esse nascimento viera à constatação de que Santha e as demais não seriam escolhidas naquele ano.

       Era fato: estava velha para ser escolhida.

       Seria o quarto ano de expectativa. O quarto ano de frustração e constatação de que passaria o restante da sua inexpressiva existência em uma clausura imperdoável.

       Solitária em sue martírio, Santha aspirou o ar livre antes de dar as costas para o penhasco e retornar aos corredores escuros do castelo de volta ao seu lugar.

       Amanhã seria outro dia, e novamente ela seria rejeitada.

       O Rei e seus amigos, e subordinados de maior importância se encontrariam em uma cerimônia importante, e muito aguardada, onde as fadas da clausura seriam exibidas e disputadas entre eles.

       Todos os anos o desespero, a ansiedade, a expectativa, tomava conta das fadas. Era o desejo de ser escolhida e finalmente abandonar a clausura.

       Mas esse ano tudo era diferente para ela.

       Diferente porque Santha já não se importava mais.

 

       Amanheceu um dia escuro e frio. Chuvoso, com vento forte e nevoeiro pesado, um dia horrível para cuidar dos animais ou dos treinamentos dos aspirantes a Guardiões. Um dia tórrido e amargo, como o humor das fadas virgens e sacrificadas a uma nova escolha.

       O dia daquelas fadas havia começado ainda na madrugada, quando foram acordadas e passaram pelos rituais de banho, lavagem do corpo com ervas e purificantes, vestimenta, e embelezamento de suas asas com óleos perfumados e especiarias.

       Um desjejum farto. Uma grande ironia. Durante todos os dias do ano comiam sobras. Restos de tudo que sobrava dos fartos banquetes promovidos pelo Rei Isac e seus seguidores.

       Mas na manhã da escolha, elas comiam pão novo e bebiam chás recém coados e adoçados. Santha vinha se perguntado se era por isso que ela esperava durante todo o ano: pela oportunidade de beber chá quentinho e provar pão macio.

       Prontas, todas as fadas foram inspecionadas pelas carcereiras, nome designado para as fiscais do Ministério do Rei, e também da clausura definitiva. Cabelos, perfume, maquiagem, vestimenta. Estavam perfeitas. Desta vez, as fadas mais velhas, não participariam. Era desnecessário. Corria o boato entre as carcereiras que apenas um elfo de confiança do Rei escolheria uma esposa. Então, porque expor as fadas mais velhas a tanta humilhação desnecessária? Seriam rejeitadas. Santha olhou em torno, para as suas companheiras de clausura, e pegou-se pensando que em breve ela seria uma dessas fadas deixada de fora da exibição e da escolha.

       Durante todo o dia, elas aguardaram ser chamadas. Ninguém sabia exatamente a hora em que o Rei iria querer vê-las. Isac era sempre imprevisível.

       As impecáveis fadas haviam se distribuído pelos cantos, sentadas, ou recostadas, cansadas da longa espera. O desânimo era generalizado. Ao menos no ano passado, o Rei as permitiu desfrutar dos festejos e do almoço divino junto aos seus escolhidos. A comemoração estendera-se até a noite, e ela chegou a provar o jantar também. Mas pelo visto esse ano, elas passariam o dia todo com fome.

       Faminta, Santha esperava. A fada recém-agraciada com suas asas torcia as mãos de nervosismo. Santha conhecia esse sentimento... Era esperança. A pobre fadinha ainda nutria esperanças. Suas asas podiam ser a chave para sua liberdade. Esse era um sentimento que todas elas bem conheciam. A esperança frustrada, também era um acontecimento comum entre as fadas da clausura.

       Anoitecia quando finalmente o Rei autorizou que as fadas da clausura fossem levadas a sua presença.

       Em fila, uma a uma percorram a enorme sala de festas do Rei, sendo exibidas como mercadorias. Asas abertas, como braços que se erguem e imploram por serem escolhidos.

       Uma a uma as vinte mulheres pararam diante do Rei.

       Em seu trono de metal e ouro, Isac observou-as atentamente. Era desumana a exposição que as fadas do Ministério do Rei eram submetidas. Avaliadas como animais.

       Fadas e humanos vestiam-se muito parecidos, por isso todas elas usavam longas túnicas em cor escura, feitas em veludo pesado, para aplacar o frio e acalentar a falsa sensação de aconchego.

       Havia poucas pessoas presentes na cerimônia. Apenas algumas famílias abastadas e os Guardiões.

       Era de conhecimento de todos que apenas um dos Guardiões do Rei pretendia escolher uma esposa. Era também de conhecimento de todos que o Rei Isac estava insatisfeito com uma de suas dezenas de esposas e vinha pensando em ‘adquirir’ mais uma fada para sua coleção. Mas como o Rei sempre escolhia fadas em outros vilarejos e sempre de boas famílias, fadas de linhagem, ninguém considerava a possibilidade de ser escolhida por ele.

       Santha em nenhum momento ergueu os olhos. Esse ano não esperava ou queria ser escolhida. Em sua mente planos audazes para os próximos meses. Planos de fuga e liberdade.

       Um a um os Guardiões avaliaram as jovens fadas, andando em torno delas, com olhos cobiçosos e comentários sobre beleza, asas e formas suculentas. Então, chegou à vez do Rei.

       Isac era um elfo grande. Quase dois metros. De pele bastante escura, orelhas demasiadamente pontudas e muitos músculos espalhados por todo o corpo. Ele havia herdado o trono por nascimento, porém seus feitos em guerras passadas eram cultuados mesmo em tempos de paz.

       Como todas as fadas, Santha também apreciava seu porte e o admirava, mas não com empolgação feminina, pois seu tempo de ingenuidade havia acabado.

       No fundo do salão ela enxergou Lucius, seu carcereiro de calvário. Ele fez suave comprimento e sorriu de lado, enquanto bebia vinho, tudo de modo bastante discreto e disfarçado. Ela precisou ocultar um sorriso de pura malícia, para que ninguém notasse, e quando olhou em volta, descobriu que o Rei estava diante dela, fitando-a com interesse.

       Seus olhos opacos, azuis quase translúcidos ficaram presos nos olhos negros do Rei e ela temeu que pudesse ler sua mente.

       As narinas dilatadas, o porte eriçado. A porção macho dentro do elfo elegante e sempre contido fizera a escolha da fêmea que o acompanharia pelos próximos meses, ou com sorte, anos. Tudo dependeria da compatibilidade entre eles.

       Assustada, Santha manteve os olhos arregalados observando as demais fadas serem conduzidas de volta para a clausura enquanto ela era levada por Lucius para outro cômodo, ainda escondido e trancafiado, porém uma alcova onde passaria os próximos três meses sendo preparada para a cerimônia de casamento.

       Era tradição ditava que a fada escolhida passasse por um longo processo de preparação para aprender a respeitar o Rei e ser uma possível Rainha para a vida toda. Mas era uma grande mentira deslavada, essa regra era aplicada unicamente no caso das fadas da clausura. Era preciso limpar e hidratar a pele, alimentar e apagar os vestígios do sofrimento físico vivido na clausura. O Rei não desejava ver feiura e dores. Ele queria alegria e beleza. E o que os olhos não enxergam, não tem o poder de abalar a consciência de um líder.

       O local era tão confortável e luxuoso que por um segundo, Santha esqueceu-se da razão de não querer estar ali dentro. Fadas submissas e encarregadas do trato pessoal da fada escolhida a paparicaram por alguns minutos antes do carcereiro, Lucius, fiel confidente do Rei expulsá-las e voltar para junto da fada escolhida.

       Ele seria o macho a prover suas necessidades e segurança enquanto não fosse entregue ao Rei.

       Sozinhos, o silêncio pesou entre eles. Santha mal podia crer que isso estava acontecendo!

       -Não posso me casar com o Rei – disse em voz baixa, um tom entre susto e penitência. – Porque o Rei me escolheu, Lucius? O que aconteceu com o Rei? Eu esperei a vida toda pelo nascimento das minhas asas... E mesmo sendo as asas mais lindas de todo o reino, ele jamais olhou para mim! Invisível! Mesmo durante o ápice do meu cio, eu sempre fui invisível aos olhos do Rei! Como isso pode acontecer agora? Como?

       Sua indignação fez sua voz crescer em tom e desespero e por isso, o elfo aproximou-se tocando sobre seus lábios para que se calasse. Para que sua indignação e nervosismo não traíssem seus mais obscuros segredos.

       -Sempre foi a mais bela. A única diferença é que agora Isac viu o que eu vejo – ele disse com calor nas palavras – sem a sua castidade, Santha, seu corpo queima e faz o corpo de todos os elfos que se aproximam responder a isso. Ele sentiu seu calor e respondeu como macho. O Rei sentiu sua paixão. Por isso a quer. Mesmo sem o cheiro do cio, mesmo que ele pense que a clausura apenas aliviou o instinto de fada, ainda assim, ele pode sentir o quanto excitante você é. E tudo isso, graças ao seu estado.

       -Quanta injustiça manter todas nós castas quando o desejo do Rei é ter uma libertina – ela disse com olhos brilhantes – Acontece, que eu me deitei com você, Lucius. E você sabe a consequência disso. – ela desceu ambas as mãos para o ventre, marcando assim, o que a túnica de tecido pesado escondia. – Como vou enganar o Rei se o meu ventre acusa que carrego uma cria sua? Tenho escondido até agora, com sua ajuda. Sabe que ninguém repara nas fadas enclausuradas! Que as carcereiras trocam favores por ouro e alguns privilégios! Mas agora... Tudo mudou!

       -Sou da total confiança do Rei. Prepararei o vinho na noite de núpcias, ele se sentirá tão culpado por ter deflorado a noiva estando bêbado que não a culpara por nada ou perceberá diferença entre uma fêmea inexperiente e uma fada usada. - ele foi duro em suas colocações, quase a assustando - E quanto à cria... Sabemos que nascerá antes das bodas. Ninguém precisa saber, Santha.

       -E o que sugere? É a nossa cria! – Ela se afastou surpresa com sua frieza.

       -Nós dois sabíamos que a cria seria levada. Você vive na clausura. O casamento lhe trará liberdade. A criança não pode atrapalhar isso. Não deveria ter sido concebida. Eu a amo Santha, muito além do que amo essa cria ainda não nascida. Aceite o Rei. Eu cuido da criança.

       -Como? Se for fêmea, todos saberão que sou a mãe! Serei morta pelo meu crime de traição as leis do reino!

       -A clausura não é pior do que a morte?

       Santha não pode responder essa pergunta. Mesmo porque a própria pergunta era autoexplicativa. Qualquer coisa era melhor do que viver aprisionada e esquecida em uma prisão.

       -Eu me livrarei da cria no momento oportuno. Case com o Rei, Santha. Sejamos livres os dois para andar a luz do dia sem medo. – Ele implorou.

       O caso dos dois havia começado no ano anterior. Lucius fazia a guarda do Ministério do Rei, das fadas ainda não enclausuradas, quando por conta de um acidente com uma da carcereiras da clausura, fez-se necessário seu trabalho.

       Desde a primeira vez que os olhos de ambos se encontraram, Santha soube que era amor. Um sentimento proibido e obtuso, que condenava ainda mais a sua existência a tristeza e solidão. O cio havia passado, as carcereiras haviam realizado o defloramento, usando de objetos, e essa era uma lembrança amarga que ela queria esquecer. Sem o cio, ela não despertava mais o interesse de macho algum, por isso, quando Lucius reparou nela, Santha teve a certeza que era por amor.

       Os dois se encontravam escondidos, como carcereiros ele lhe concedia algumas regalias secretas, e quando se tornaram amantes, tudo fez sentido em sua mente e coração. A clausura não importava mais, ela possuía um grande amor e faria de tudo para viver esse sentimento!

       -Promete que não me deixará por conta do casamento? – Ela aproximou o corpo do seu e beijou seu queixo de um modo que demonstrava toda sua dependência emocional.

       -Eu prometo jamais abandoná-la, Santha. Jamais. Seremos ambos livres. Para sempre livres e andaremos os dois, lado a lado, diante dos olhos de todos. Acabou os dias de corredores escuros, escassez de água e lavagem no prato em todas as refeições. Sua vida não será mais assim. A liberdade, Santha, ela está em suas mãos.

       Dramático, o elfo segurou ambas as mãos da fada e olhou para as palmas macias.

       Santha sorriu emocionada, pois era o sentimento mais bonito que pensou sentir em toda sua vida. A liberdade? Ela nem ousava mais sonhar com isso!

       Santha abraçou-o e lhe fez juras de amor ao pé do ouvido.

       Por de trás do abraço que lhe deu, Lucius sorriu satisfeito.

 

                       Anjos e demônios

        O tempo passou, mas não diminuiu o medo. Em uma noite sem lua e sem estrelas, quando Santha deu a luz a uma menina.

       Ela vinha sofrendo a muitos dias, bebendo as poções perigosas e sigilosas que Lucius lhe trazia. Cabia a ele a escolha de quem cuidaria da escolhida do Rei, e a trata-la como merecia, cuidando de seu treinamento para esposa e futura rainha. Ninguém questionava suas palavras e suas ordens.

       Rei Isac não se importava com o que era feito pelas suas costas, essa era a impressão que deixava no ar, sempre ignorando os feitos de Lucius.

       Desde o dia em que fora apartada da clausura, Santha vinha bebendo as poções que Lucius lhe dava.

       O curandeirismo vindo do dom de uma fada era considerado um crime, e alimentava o medo de todos. Mas vindo de elfos era aceitável, e tratado com uma ciência e conhecimento. Lucius mentia sobre a procedência das beberagens. Unguentos para a beleza e vitalidade da escolhida do rei... Que mascaravam as verdadeiras poções para apressar o parto e recuperar seu corpo. Beberagens compradas de vendedores escusos e ilícitos

       Enquanto bebia mais uma vez a poção fedorenta, sentada na beirada da cama, Santha, pensava no gosto e no que sentia. Não era uma bebida feita na base de conhecimento, ervas e mágica. Era uma poção fermentada no poder do dom de uma fada.

       Era algo proibido e condenável, e se fossem pegos com isso, seriam presos e condenados a uma longa sentença nas masmorras.

       Como se o que fazia não era deveras condenável, enganando o rei, se comparado com um simples crime de beber poções fabricadas por fadas de dons proibidos.

       Desgostosa, Santha colocou o cálice de lado, e gemeu em desconforto.

       Aos sete meses de gestação, ela precisava dar a luz naquela noite, pois o arranjo estava feito para aquela madrugada.

       Santha possuía mais um mês pela frente, para preparar-se para o casamento, e esse tempo seria o mínimo para seu corpo recuperar-se de um parto, mesmo que com poções e unguentos proibidos.

       O corpo precisava de tempo para curar-se e a beleza de repouso para florescer.

       A fada levantou e andou pelo quarto, quase vergando sobre o peso da dor e da agonia.

       Sua barriga não era nada mais que um monte discreto sob seus seios. Diante de um espelho ela fitou sua aparência sempre impecável.

       Vestia uma das antigas túnicas da clausura, para que suas roupas novas não fossem sujas com sangue. Francamente, aquela roupa era um símbolo. A fada da clausura iria parir naquela noite, não a fada Santha, escolhida pelo Rei para ser sua esposa.

       Seu corpo estava um pouco mais largo, permeado de formas e curvas, mas ela acreditava que os seios fartos e os quadris largos iriam encantar o Rei, pois ele a conhecera assim. Não conhecia suas formas antigas, de antes da gestação. Quanto à barriga seria questão de dias para livrar-se dela, ainda mais se usando das poções.

       Era necessário que a cria fosse parida ainda naquela noite, ou todo o sacrifício seria posto a prova.

       Os Guardiões mais experientes se encontravam em uma missão fora do castelo, os Conselheiros empenhados em negociações com o Rei Isac a cerca de limites e leis para o Povo dos Lagartos, um povo estranho, que fora recém-descoberto habitando nas imediações do abismo, muito próximo as fronteiras que separavam o Monte das Fadas, do território dos humanos. Muito próximo às limitações entre o mágico e o humano, e por definição, um problema a ser eliminado.

       Olhando para sua beleza, sua peculiar aparência, com pele, cabelos e olhos esbranquiçados, Santha respirou fundo, e andou mais um pouco, para que a cria não demorasse ainda mais a nascer. Ela estava naquela angústia quando Lucius veio vê-la. Ele não poderia ausentar-se por muito tempo, por isso não lhe fazia companhia naquele momento assustador.

       As vias de fugas eram escassas, com sua atenção sempre tomada pelos assuntos fúteis de um Rei melindroso.

       Isac fora um guerreiro no passado, mas seu tempo de hombridade e glórias ficara para trás, e infelizmente, a vida de luxo e poder, lhe tornara caprichoso e dependente de ajuda externa, da opinião de Conselheiros, e amigos próximos, como Lucius.

       Bastante influenciável e, sobretudo, um devasso com pouca lucidez no quesito escolha de suas fêmeas. Atualmente seu harém remetia a mais de trinta fadas esposas. Infelizes escolhidas para serem esposas, mas logo descartadas, findado o interesse do Rei Isac. Elas eram entregues a uma clausura muito parecida com a relegada às fadas órfãs, com a única diferença, que às vezes, eram chamadas para as festividades.

       Santha contava com a sorte para cativar sua atenção por alguns meses, tempo suficiente para encanta-lo com seu corpo e seus predicados. Lucius a treinava todas as noites para saber agrada-lo, desde atos sexuais escrachadas, a atitudes do dia a dia, que cativariam sua mente e seu coração.

       Rei Isac não era, nem de longe, alguém tão sofisticado mentalmente, ou emocionante, como Lucius, e isso era um alívio, pois assim, seria fácil cativar seu amor. E uma vez seduzido e enlouquecido de paixão, poderia manipula-lo e conseguir alguns anos ao seu lado, e quem sabe, uma vida longa de liberdade.

       O Rei era um elfo carente de atenção e de cuidados constantes. Ele havia aprendido a desfrutar da boa vida, e qualquer um que o mimasse seria o dono do seu afeto incondicional.

       -Como se sente? – Lucius perguntou ao entrar no quarto.

       -Como eu lhe pareço? – ela tentou sorrir estendendo uma das mãos na sua direção – Sinta, Lucius, a cria não quer nascer essa noite.

       Lucius aproximou-se e tocou sua barriga. Era verdade. A cria movia-se com desespero dentro de seu ventre, desfrutando de uma agonia semelhante a da fada. As poções castigavam o corpo de mãe e filho.

       -Eu trouxe mais poções – ele disse, afastando-se, escondendo dela a preocupação. – Não posso ficar muito tempo, Santha. O que trouxe é muito forte. Vai doer, vai sofrer, mas não pode perder a razão. Eu não demorarei a voltar. Beba tudo, sem hesitação.

       -Eu tenho medo de morrer – ela justificou, sentando na cama, e segurando o cantil que ele lhe trouxera. – Eu tenho medo que essa cria me mate.

       -É exatamente o que acontecerá se não parir essa noite, Santha – ele foi distante, pouco participativo. Essa atitude a desconcertava.

       Santha imaginava a dificuldade que era livrar-se do Rei e de seus compromissos, para estar ali. Sorriu e tentou aliviar o peso desse temor que os dois carregavam:

       -Eu ficarei bem. Em poucas horas estará acabado. Tente voltar, eu preciso de você para fazer isso. – pediu, com doçura.

       Uma pena que Lucius não a beijasse ou lhe fizesse um afago antes de sair. Ela se sentiria mais confiante se fosse acarinhada pelo seu elfo escolhido. O gosto das poções era horrível, e Santha quase se engasgou. Curvou-se na cama, lutando para não vomitar, e segurar em seu estômago o conteúdo necessário para acabar com aquela tortura.

       -Por favor, saia de uma vez – ela importou, apertado à barriga com uma das mãos – Eu imploro, saia de uma vez. Acabemos logo com isso. Por favor, criança, saia de uma vez, venha conhecer o mundo antes de...

       Suas palavras foram caladas diante do pensamento do que dizia. A cria mal veria o mundo antes de ser morta. Sem notar, ela sufocou um gemido de dor, que não era nem de longe proveniente do corpo, e sim da alma, e fechou os olhos, ouvindo os próprios pensamentos.

       Às vezes, no meio da noite, e do silêncio, Santha ouvia o choro e lamento das outras fadas da clausura. Na verdade, era apenas uma lembrança do seu passado recente vindo perturbar seu sono, e desassossegar sua mente, mas era algo tão forte que a assustava. Ela ouvia o choro, os gritos de solidão, temor e privação. Algumas das fadas mais antigas haviam perdido o juízo com os anos de clausura, e viviam apartadas, em quartos ainda mais escondidos, e durante a noite, gritavam sem parar, como se sofressem uma tortura que nunca chega ao fim, e Santha sabia que em breve, muito breve, seria ela a estar naquele lugar, aos berros.

       As carcereiras, eram poucas, cuidavam das fadas do Ministério do Rei, e muito pouco auxiliavam as fadas da clausura, então quando uma adoecia, levava dias para ser notado e tratado. O cheiro de pobre e morte infectava os corredores, pois mais de uma vez, fadas haviam perecido e permanecido em seus quartos, ou deveria dizer celas, sem que ninguém notasse.

       Era um cheiro que empesteava as paredes de tal modo, que nenhuma limpeza poderia expurgar, e por isso, as carcereiras não se davam mais ao trabalho de tentar fazer isso acontecer.

       Assim, de olhos fechados, Santha podia ouvir os gritos. Eram agudos, doentios e angustiantes, e berravam por ajuda e clemência. Berravam por justiça e quem sabe, um pouco de felicidade.

       Ela abriu os olhos, e olhou para baixo, para sua barriga, dizendo com voz embargada:

       -Escute, criança, não tenha medo. Aconteça ao que acontecer, morrerá livre. E isso basta para que sua vida tenha valido a pena. – ela sussurrou. – Não importa que eu seja vil. Que eu esteja tirando sua chance de viver. Entenda, o que faço é muito pouco comparado com o que fizeram comigo a vida toda. Eu não queria isso. Eu não pedi por isso. Mas eu não vou voltar para a clausura. Se eu a deixar, abandonar será criada na escravidão. Se for fêmea, mesmo que ninguém a descubra, e que lhe corte as asas, será enclausurada. É um gesto de humanidade o que faço. Humanidade! – ela gemeu alto, pois uma punção afiada correu por seu ventre derramado sangue por suas pernas.

       Ela sabia que a qualquer momento a poção faria efeito e a cria seria expurgada. E sabia que não estaria preparada para isso. Para vê-la nascer e partir, sabendo que não veria a luz do próximo amanhecer.

       Na manhã seguinte, a cria seria apenas uma lembrança desagradável em sua memória, enquanto ela, enquanto Santha seria uma rainha lembrada e aclamada por gerações. Ela sorriu, apesar de tudo, em demência, ela sorriu. Pensar desse modo era um conforto.

       Uma hora mais tarde, Santha havia despido a roupa de baixo e se contorcia sobre a cama, quando Lucius voltou. Ela sorriu, e havia tanto desespero em seu olhar, que o paralisou:

       -A cria não vai vingar – ela disse com voz tão demente, que lhe despertou pena – Eu sinto, não vai vingar. Isso não é perfeito? Não é assassinato. A cria não vai vingar, Lucius. Não vai. Eu sinto, não vai.

       Ele aproximou-se e lhe fez um carinho nos cabelos suados, beijando sua testa com fria gentileza. Com frio contentamento. Afastou-se da cama. E ela acompanhou seus movimentos sempre tão coordenados e objetivos.

       Lucius jogou uma pesada corda por sobre o lustre amarrando dois pesados nós na ponta. Ele não forneceu explicações. Apenas andou até a cama e ajudou-a a levantar.

       -Conte-me, Lucius, do povo que você viu. Fora do castelo, do povo que você viu. Os lagartos, conte-me sobre eles... – ela pediu, a mente totalmente ofuscada do que realmente acontecia, precisando de falsas distrações.

       -Não, Santha, não lhe contarei sobre eles. Eu mesmo a levarei para conhecê-los e ver com seus próprios olhos a beleza da natureza que os fez peculiares. Você conhecerá tudo. Mostrar-lhe-ei todas as espécies. Todas as criações da mãe natureza. Vai se admirar de tudo que vi. Vai gostar de voar sobre os prados, e ver a copa das árvores. De ver os riachos e lagos, e vamos fazer amor nas águas calmas do Rio Branco e lhe comprarei joias e roupas nos povoados. Você gosta disso, Santha?

       -Oh, sim, eu quero tudo isso, Lucius – ela apoiou-se nele, gritando pela dor, quase caindo no chão, enquanto era praticamente arrastada até a corda.

       Lucius despiu sua túnica, e nua, Santha fitou-o com angústia. Não queria olhar para seu corpo e ver a cria que se abrigava ali. Era um sofrer tão profundo, que preferia a negação.

       -Está acabado, não é? A cria se foi? Diga meu amor, que não nascerá respirando. Por favor, Lucius, por favor, diga! – como ele não falou nada, ela debateu-se em seus braços – Diga! Eu imploro, DIGA!

       Seu grito era de total descontrole. O choro compulsivo, o lamento, sofrimento carnal. Esgotada, Santha ergueu os braços e agarrou-se na corda, no nó que Lucius fizera. Ela quase soltou, e desmaiou, mas Lucius a segurou e forçou-a a empurrar.

       Santha gritava sem parar, pedindo para que ele parasse. Lucius afastou-se e ficou longe, mesmo que ela implorasse por sua ajuda. Era algo que Santha precisava fazer. Ela sabia desde o começo. Era o seu corpo, e os elfos não participam do parto.

       Normalmente, o elfo era mantido apartado da fêmea até o momento do nascimento, quando a cria fosse nascida, seria levada para o progenitor e se aprovado, seria ofertado à família, como um membro de seu clã. Mas não era o caso daquela cria. Não possuía progenitores.

       Era um erro da natureza, um erro do destino.

       -Não! Não! – ela gritou em um momento particularmente doloroso, sentido entre suas pernas a massa de carne e ossos forçar a passagem – Me ajuda! Lucius! Me ajuda!

       Quando mais gritava, maior a força exigida por seu corpo. O desespero a fazia empurrar, e sangue varria o chão. Quando a cabeça da cria passou, e os ombros vieram, ela berrou por clemência. Mantinha-se agarrada a corda, pernas afastadas, de pé, permitindo que a natureza empurrasse a cria para baixo.

       Um louco momento de medo de que a cria caísse e se ferisse, e então, Santha lembrou que ansiava por isso.

       Seu berro final fez eco a um choro compulsivo, quando a criança finalmente saiu. Santha abriu os olhos para ver que somente nesse momento o elfo havia se aproximado para agarrar e apoiar a criança, cortando o cordão a que a ligava ao corpo da fada.

       Mas Santha ouvia o choro, sem entender como era possível que a cria ainda tivesse forças para lutar pela vida. Lucius simplesmente deixou a cria em um canto qualquer, e partiu para acudir a fada.

       Era sua única preocupação. Ajudou-a soltar a corda e carregou-a no colo em direção a cama. Colocou-a gentilmente sob o lençol, e pegou um cantil, ofertando a ela.

       -Beba tudo, Santha – ele tentou fazê-la beber, sem sucesso.

       Suada, transpiração cobria a pele de Santha, cabelos grudados e pegajosos, olhos vermelhos, injetados pela dor do parto e pelo sofrimento de enxergar sua cria chorando, pedindo por sua presença e proteção, e tudo que podia lhe ofertar era a rejeição. O instinto primitivo de fêmea a compelia a acudir e proteger!

       -Eu disse para beber! – Lucius segurou sua cabeça com força e mesmo que Santha se debatesse, forçou-a a beber o conteúdo escuro, que correu pelo queixo e molhou sua pele tão branca como marfim.

       Santha empurrou, e esperneou, livrando-se do aperto, engolindo um tanto, cuspindo outro tanto.

       -Não seja louca, fada – ele disse rancoroso – Beba, é para seu bem. Seu corpo precisa voltar à forma esbelta. Precisa recuperar-se a tempo do casamento. Estamos tão perto, Santha – ele agarrou seus cabelos com força, forçando-a a olhar para ele, e deixar assim a imagem do bebê de lado, focando-se no que importava. – Mais um gole, Santha, isso, mais um gole para que seja bonita outra vez.

       Santha bebeu, olhos nos olhos de Lucius, sendo conduzida diretamente para as decisões que ele desejava que ela tomasse. Desejava que Santha entendesse as necessidades que convinham aos planos de Lucius. Terminado de beber, ele limpou sua face com um pedaço de pano limpo e ricamente bordado, antes de procurar pelo quarto uma toalha e um lençol. Cobriu-a, para não ter que ver o estado do corpo feminino depois do parto e deixou-a sozinha, buscando pela criança.

       Santha não possuía maturidade emocional para entender que ficaria sozinha, em poucos minutos estaria inteiramente sozinha com seus sentimentos e conflitos, tendo Lucius partido com sua cria recém-parida.

       Ele enrolou a fada em uma toalha velha, de tal modo, que parecia uma trouxa de roupa suja.

       Horrorizada, Santha observou-o andar pelo quarto, levando o recém-nascido de um canto ao outro, como se não fosse nada além de um incomodo monte de tecido velho.

       -Espere, Lucius. Espere, por favor – ela pediu, com voz exausta – Deixe-me ao menos ver a cria uma única vez antes de levá-la embora.

       -Não é necessário. É uma fêmea e preciso me livrar dela o mais rápido possível. Você sabe muito bem, que por ser uma fêmea, tem sua linhagem enraizada em nós dois. Que a mágica do seu nascimento e sangue nos impede de mata-la com nossas próprias mãos. E sabe, também, que ela crescerá e terá o cheiro e asas iguais ao seu. Compartilharam o mesmo dom, as mesmas asas e a mesma linhagem.

       -Isso não acontecerá agora. Levará vinte anos para que as asas nasçam. Eu posso ao menos ver a fada? – pediu, lembrando-o que havia tempo para livrar-se dela.

       -Eu tenho um acordo com uma fada banida. Ela me aguarda na floresta. Preciso entregar a cria antes do amanhecer, ou ela partirá e nossa chance de nos livrarmos desse incomodo irá se postergar – avisou, sério, não querendo levar a cria até ela.

       -É minha cria. Não olhe para ela se não consegue. – Santha foi firme, ajeitando-se na cama, com o corpo coberto, necessitando de cuidados pós-parto e sabendo que não haveria ajuda alguma. – Ou se não quer.

       Por um momento, o desejo de liberdade não pode subjugar a verdade do que via através do olhar de Lucius. Ele não nutria amor algum pela cria. E não seria surpresa, se também não nutrisse sentimento algum por ela.

       Provavelmente notando a proximidade da lucidez, e que Santha poderia finalmente chegar à conclusão óbvia, depois de um traumático parto, Lucius aproximou-se e colocou a trouxa de panos sobre a cama, e desembrulhou, revelando o bebê que gritava seu desespero em um choro compulsivo.

       A expressão de Santha era de incredulidade e muito horror.

       -Como ela pode estar viva? Depois de tudo que eu fiz? Do tanto que eu desejei que não vingasse? Será que ela não sabe o que a espera? – seu sussurrou era no mínimo patético aos ouvidos de Lucius. – Ela deveria ter morrido quando teve a chance.

       O elfo ergueu a criança com ambas as mãos, sem carregá-la propriamente, apenas segurá-la pelas costas e pelas pernas, levando-a para Santha.

       Naquela cama, com único auxílio de Lucius, segurou pela primeira vez a filha nos braços. Suja de sangue, pequena e silenciosa. A fêmea era miúda, com a pele tão branca quanto um algodão. Suas sobrancelhas eram do mesmo tom, e a leve penugem que denunciava o cabelo, era da mesma cor que os de sua progenitora. Os olhos estavam fechados, estreitos, pareciam claros, sem cor definida. Sua filha era linda. Ela havia parado de chorar ao ser colocada em seus braços.

       Sentia seu cheiro, e reconhecia sua linhagem e confiava. Como era possível uma cria confiar em seu assassino? Tanta inocência, tanta ingenuidade e abnegação? Isso estraçalhava seu coração.

       Santha não sorriu enquanto a olhava. Não se permitiu sorrir.

       Estava cansada, suada e dolorida, e depois de muito olhar para a menina, fitou Lucius e perguntou:

       -E agora? – Sua voz não era mais que um sussurro, um pesado som carregado de desânimo e dúvida.

       -Terá um mês para se recuperar e casar-se com o Rei. – Ele alertou, fugindo de falar mais especificamente sobre a cria.

       -Não me referia ao Rei. Pergunto sobre ela. O que exatamente fará com a menina?

       -É uma fada. Não é um elfo – ele disse decepcionado. – Os poderes mágicos de uma fada impedem que outro de seu sangue ordene sua morte – ele admitiu - Consegui uma fada que não faz perguntas e que aceitou ouro suficiente para livrar-se desse inconveniente. Será algo muito rápido e espero, indolor. Um momento e a cria obterá paz eterna e você, sua merecida liberdade.

       Santha ouviu tensa. Fitou a menina que olhava para ela com olhos muito claros, iguais aos seus. Ela era toda clarinha, como um pedaço de nuvem.

       -Ao atingir vinte anos suas asas nascerão e por ser fêmea, terá asas idênticas as minhas. É um elo que nos unirá para sempre, Lucius. Se ela viver, eu serei delatada em meu crime. Nós duas não podemos existir no mesmo mundo. É impossível evitar.

       -É muito pequena para que sintamos sua falta – ele prometeu – Outras crias virão, Santha. Prometo-lhe que se o Rei não lhe der filhos, eu lhe darei. Entregue-a. Preciso ser rápido. Aproveitar que ainda é noite.

       -Ainda não – ela pediu triste – Eu quero segurá-la mais um pouco. – seus braços estavam cingidos em torno da recém-nascida e Lucius notou como Santha parecia encolhida em seu lugar, como se protegesse a criança.

       -Se você ficar com a cria, eu serei obrigado que abandona-la, Santha. Eu não morrerei por causa dessa criança. Eu partirei e salvarei a mim mesmo. Eu lhe ofereço minha proteção e meu amor. Mas não concebo a possibilidade de vê-la morta. De ficar para vê-la ser morta pelo crime de traição ao Rei.

       -E você seria preso, Lucius. – Ela lembrou-o.

       -Acha mesmo? Uma fada da clausura que me seduziu e se ofereceu? Fadas possuem dons. Eu me livraria das acusações facilmente. Mas não quero fazer isso. Não quero ficar parado vendo-a ser culpada e morta. Livrar-se da cria é o modo mais rápido de resolver tudo. De sermos livres. – ele tentou pegar a cria, mas não obteve êxito outra vez - Quanto mais tempo segurá-la, mais difícil será esquecê-la. – Lucius agiu, aproximando-se e retirando a criança de seus braços, sem delicadeza.

       O bebê estava desnudo e enrolado apenas em panos ensanguentados. Santha não disse nada enquanto ele se afastava e saia do quarto.

       Um grito de dor ficou preso em sua garganta.

       Olhando para o vazio do quarto, Santha entendeu o que fizera e o que isso queria dizer. Sua cria. Essa frase gritava em sua mente.

       O grito morreu em sua boca e ela socou o lençol, contorcendo-se em um choro que não vinha a tona, mantinha-se contido.

       A liberdade, ela pensou, olhando para o nada, contemplando o vazio de si mesma.

       O preço de sua liberdade era a vida de uma cria que não deveria ter sido gerada.

 

                      Quando o sol desce

        Os dias passaram de modo lento e doloroso. Uma fada na clausura não tem permissão de acompanhar os movimentos e preparativos do próprio casamento. Santha permaneceu no quarto, trancafiada enquanto seu corpo se curava do parto e seu coração aceitava a perda.

       Pouco falava, pois não havia assunto a ser dito. Lucius nunca lhe contou o que exatamente fizera com a menina. Tão pouco Santha perguntara os detalhes.

       Nos trinta longos dias que se passaram desde o parto, e antes da cerimônia oficial do casamento, Lucius não vinha ter com ela. Não o via, ou sentia seu cheiro, o que induzia a crer que não estivera nos corredores ou proximidades do quarto.

       Pelo contrário, fora designada Reina, uma fada, para cuidar de suas necessidades. No começo, Santha desconfiou dessa pajem. Ela era sorridente, mas calada. Sempre chegava pela manhã, nas primeiras horas. Insistia em banhá-la, mas Santha sempre negava. Alegava timidez, falta de costume, mas negava e obtinha privacidade para limpar-se e esconder de olhos mais atentos às marcas ainda visíveis do parto.

       Com o passar dos dias, as duas fêmeas desenvolveram um estranho ritual, poucas palavras, e muitos afazeres. Em determinado dia, Santha virou-se para Reina, ao notar seu olhar de recriminação após um comentário qualquer de Santha e lhe perguntou:

       -Tem contado com as outras esposas do Rei?

       Visivelmente surpresa, Reina negou com a cabeça e retornou sua atenção para o cuidado com as roupas da futura rainha.

       -Então porque eu noto em você algo de impertinente? Como se não me considerasse suficientemente digna do posto de rainha?

       Reina não respondera, é claro que não teria audácia para tanto.

       Era uma fada bonita. Cabelos longos e castanhos, lustrosos, sempre presos por duas tranças, na parte de trás da cabeça. Olhos cor de violeta, expressivos e grandiosos, que pareciam ver o mundo diante de si com maior profundidade que o desejado por fadas melindrosas como Santha. Seu rosto era um tanto pueril, o que detonava uma personalidade romântica, apesar de vestir-se com túnicas sóbrias e de poucos adornos.

       Era sempre precisa em suas colocações e não parecia alimentar insegurança. Santha sabia apenas que essa fêmea seria sua pajem para o resto de seus dias. Ou, até uma das duas não suportar mais. Santha precisava lidar com o sentimento que ela lhe despertava. Ao mesmo tempo em que odiava olhar para o rosto vivo e expressivo de Reina, também ansiava por suas vindas matinais, por sua presença, e sua companhia.

       Não eram amigas, e Santha era bastante consciente que jamais seriam. O magnetismo de Reina a perturbava.

       -Qual o seu dom? – perguntou Santha, e Reina parou o trabalho, olhando para ela com desconfiança.

       -Não possuo um dom útil. Não fui agraciada com um dom significativo. – disse, e era sem duvidas, um texto ensaiado, muitas vezes repetido por alguém que esconde uma verdade deveras complexa.

       -Meu dom controla o tempo. Sabia disso? É um dom maravilhoso. – Santha contou, esperando um elogio.

       -Tenho certeza que os Conselheiros farão bom uso do seu dom, rainha – ela disse com o tom cordato, esperado de uma serva. Mas em seu olhar brilhava o desafio.

       -Acha que os Conselheiros não gostam de mim? – foi direta.

       -É uma fada da clausura. Nenhum elfo Conselheiro lhe terá respeito – Reina informou – Os Conselheiros não respeitam fada alguma. Eles respeitam apenas a si mesmos.

       -Fala com amargura. É rejeitada pelos Conselheiros? Por isso é uma serva? – Santha estava sentada e levantou aproximando-se de sua criada.

       Reina não podia ignorar que Santha era linda e um agrado ao olhar. Pena que conseguia ver a demência e a maldade por trás de seu olhar claro e translúcido, como uma onda de mar, ou o reflexo de um céu azul. Era uma cor indefinida.

       -Não sou uma serva. Servir-lhe, futura rainha, não faz de mim uma serva – ela explicou, com um meio sorriso misterioso.

       -Como não? Você limpa minhas roupas, penteia meus cabelos, pinta minha face. Você é minha criada. – o sorriso presunçoso de Santha merecia uma resposta à altura.

       -Não. Eu sou esposa do Primeiro Conselheiro. Se cuido de suas roupas, penteio seus cabelos e maquio sua face, é por conta do pedido pessoal do Rei ao meu marido. Ele teme pela imagem de seu trono, ao colocar ao seu lado uma fada da clausura. E nenhuma outra fada escolhida por Conselheiros ou Guardiões, desejou cuidar de você e de suas necessidades.

       -E por que você aceitou? – Santha perguntou, sentindo a humilhação perfurar seu orgulho e magoar um coração tão calejado pelas decisões erradas em sua vida.

       -Porque meu marido é justo. E tem grande apreço pelo Rei – ela contou, sem falar a verdade.

       -Eu quero a verdade. Porque me ajuda se não gosta de mim? – foi direta.

       -Eu não gosto de sua personalidade e dos seus atos. Eu não tenho nada contra uma fada da clausura. Estou aqui, porque tenho o desejo de ver uma fada miserável soerguer-se sobre o domínio dos fortes. Se for uma rainha justa e honesta, um novo mundo pode estar começando a partir da noite das bodas e eu quero colocar a cabeça no travesseiro e saber que fiz tudo para ajudar esse sonho a tornar-se realidade. – Reina sorriu de modo triste – Ao subir no trono, estará em suas mãos acudir as fadas da clausura. Ampara-las e salvá-las de seus destinos horríveis. É por isso que ajudou-a, mesmo sem suportar sua presença.

       Santha pensou no que ouvia.

       Nunca considerou essa possibilidade. Como rainha poderia facilmente convencer o Rei a acabar com o Ministério do Rei, ou apenas com a clausura, o que fosse mais viável. Poderia interceder pelas fadas miseráveis que penavam nas masmorras sem terem cometido crime algum.

       Para isso acontecer, poderia acabar ofendendo o Rei, ou desagradando-o e Santha não pretendia contraria-lo em nada. Queria ser a rainha preferida, a escolhida para permanecer ao lado de Isac por toda a vida.

       Pensou em dizer isso a Reina, e acabar com suas esperanças, mas observando-a cuidar de seus pertences, desistiu dessa ideia.

       Gostava da presença da fada Reina e se lhe contasse a verdade, ela desistiria de cuidar da rainha. Por isso apenas afastou-se e olhou pela ampla janela do quarto, que aberta permitia que visse o dia bonito que havia lá fora, onde os elfos e fadas livres viviam suas vidas.

       Dias de sol e beleza e que aguardavam por Santha e em breve ela seria uma dessas fadas livres a desfrutar do livre arbítrio. Sorrindo, Santha olhou além das muradas do castelo e seu sorriso esmoreceu.

       Seus olhos baixaram, para não ver a copa das árvores. Para não pensar que em algum lugar, na floresta, sua cria jazia sem vida e provavelmente enterrado em solo pagão. Sem nome, sem linhagem, sem ter sido vista e conhecida. Em algum lugar do Monte das Fadas, sua fadinha, nascida de suas entranhas, perecia para toda a eternidade. E esse pensamento transfigurava sua face para algo desolador.

       Tanto, que intrigada, Reina parou de cuidar das roupas da futura rainha para observa-la com atenção. O que poderia ser tão profundo e doloroso para transforma-la desse modo?

       -O que foi? O que está olhando? – Santha gritou com ela, ao ver seu modo de olhar – Cuide do seu trabalho, criada!

       Reina não respondeu, apenas desviou o olhar e fingiu não ver que Santha parecia transtornada.

       Apressada, Reina juntou algumas roupas que precisavam ser lavadas e saiu do quarto, mantendo a porta trancada, como era exigência das normas do Reino de Isac, que mantinha a futura rainha em cárcere até o dia das bodas.

       Mas ela não foi embora, permaneceu de pé, ouvindo o que acontecia dentro do quarto. Ouviu um som abafado, de um grito não verbalizado e o som de algo sendo jogado contra a parede e espatifando-se. Assustada, Reina foi embora e quando voltou era noite, e Santha apenas mentiu que havia derrubado o vaso sem querer.

       Não houve perguntas. Não cabia a Reina elaborar perguntas.

       Mas ela temia a loucura interior da futura rainha.

       E daquele momento em diante, ela temeu que a escolha do Rei Isac destruísse a todos eles...

 

       Quando o dia do casamento chegou, não foi surpresa que um belo dia de sol houvesse nascido naquela manhã e rapidamente se tornado em um dia nubloso e então de pesada chuva. Um dia mórbido, gelado, de vento forte e lamurioso. Um vento que barulhento castigava as pedras das muralhas, açoitando anos de imponência, com sua força e magistral potência da natureza.

       Durante todo o dia, Santha permaneceu na espera torturante do que aconteceria. Ninguém dizia nada, explicava nada.

       Reina entrava e saia do quarto, mas não lhe dignava explicações prolongadas. Afinal, não era essa sua função.

       A tempestade estava feia, escura e assustava. Santha afastou-se da janela e foi nesse momento que Reina surgiu, com várias fadas atrás de si.

       -As bodas acontecerão no salão principal – ela explicou, sem nunca parar de trabalhar e sem olhar diretamente para ela. – Seu banho será para limpeza e perfumaria. Dispam a rainha – ela ordenou para as fadas e Santha afastou-se, como quem protege a si mesma.

       -Afastem-se! – ela ordenou – Não quero nada disso!

       -É uma regra que não pode ser descumprida. As bodas não podem acontecer com a fêmea suja. – Reina explicou – Em meu casamento fui limpa e inspecionada por doze fadas castas. É o que deve acontecer com você!

       Santha engoliu em seco, com receio de ser descoberta. Mas não podia mais fugir. Se acreditasse no risco de ser descoberta no banho, imagine então na cópula?

       Apreensiva permitiu que duas fadas soltassem seus cabelos longos e muito claros, retirassem sua túnica e sapatos. Despida das joias e das vestes, ela permaneceu nua diante de todas. As fadas mais jovens encaravam-na com insistência.

       Mas apenas os olhos atentos e astutos de Reina interessavam-lhe.

       -Elas nunca viram uma fada tão bonita – explicou Reina, observando seu corpo com atenção redobrada, em busca de algo suspeito.

       A pele era de leite puro, macia e sem manchas ou marcas. Seus cabelos, sobrancelhas, pêlos púbicos, tudo em tom branco. Mesmo seus mamilos eram tão claros que facilmente poderiam ser confundidos com sua pele.

       -E você? O que acha de mim? – Perguntou Santha.

       -Eu não sei, tem algo em você que.... – Reina parou de falar, ao conscientizar-se do que diria. Ofender a futura esposa do Rei? Péssima ideia, mesmo para a esposa de um Conselheiro. – A água está morna. Deve aproveitar e relaxar. Será uma longa e muito cansativa cerimônia.

       Santha sabia que Reina queria dizer outra coisa. Seus sentidos acusavam a mudança, a diferença, aquilo que torna a criatura pior que a criação.

       Quando Santha entrou na água, permaneceu de pé, sendo banhada pelas outras fadas. Por um instante, Santha considerou que queria que Reina a banhasse também. Mas não ousou dizer isso.

       -Você me olhar com desconfiança – disse finalmente, incomodada com o olhar de Reina.

       -Eu não sinto seu cheiro de cio – ela admitiu cansada das mentiras.

       -As carcereiras acabam com nosso cio. Elas não permitem que continuemos castas, pois o sofrimento do cio atrapalha a rotina das carcereiras – explicou com maldade na voz. – Elas usam o que há a mão. Dedos, hastes de asas, paus, galhos... O que houver, para romper o hímen e acabar com a dor do cio. – disse com amargura.

       -Eu não sabia disso. Sempre achei que as fadas escolhidas fossem castas – estranhou.

       -Nunca me deitei com um elfo ou conheci a paixão, então isso deve lhe responder sua pergunta – disse Santha, lutando para não parecer culpada.

       -Eu sempre fui contra o que acontece na clausura – disse Reina, para surpresa de Santha – Eu sempre quis ter o poder de acabar com o Ministério do Rei.

       O silêncio perdurou a sua declaração. O que Santha lhe responderia? Depois de tudo, ela se esqueceria dessa parte de sua vida.

       Os olhos de Reina correram pelas asas maravilhosamente criadas pela natureza, enquanto as servas alisavam as hastes e espalhavam óleos perfumados, limpando e acariciando as asas, tornando-as sensíveis, o que colocava o banho em um patamar profundamente erótico. O Rei iria fartar-se dos predicados de sua fada escolhida e ela precisava estar perfeita na primeira noite.

       Santha lutou conta os sentimentos de excitação, pois era tocada no corpo todo e não era indiferente aos toques, que eram apenas coreografados e não deveriam ser eróticos.

       Reina olhava para a futura rainha com esse pensamento infame na mente. Outra fada casta, mesmo que lhe roubassem o cio, ainda assim, não desfrutaria de toques inocentes de limpeza, como parecia desfrutar Santha. Corada, pupilas dilatadas, pele arrepiada... Ela desfrutava do sexo, pois o conhecia com profundidade.

       Suas sobrancelhas se curvaram ao aproximar-se e aspirar o suave odor que Santha expelia. Reina era fêmea, era casada a pouco mais de dois anos, mas considerava-se suficientemente experiente para saber exatamente o que farejava.

       Santha nunca mencionou e talvez nunca houvesse percebido, pois as túnicas usadas pelas criadas eram fartas e de tecido grosso, e isso desviava a atenção das formas. Por isso, testando se sua teoria estava correta ou não, Reina ordenou que as jovens afastassem as mãos da rainha e apanhou uma jarra de ouro com água límpida do Rio Branco, que deveria enxaguar o corpo ensaboado de óleos e sorriu, enquanto deslizava a água pelo colo da futura rainha. Seus olhos se ergueram e encontraram os olhos de Santha e quando Reina falou, Santha paralisou no mesmo instante:

       -Acho que nunca percebeu, futura rainha, mas eu espero uma cria.

       Imóvel, Santha parou de respirar. Olhou para baixo e pega em flagra, tocou o próprio ventre, onde a um mês atrás havia uma criança. E gemeu baixinho, empurrando Reina e saindo de dentro da tina com água. De costas para todos ela disse:

       -A água está fria. Como ousam me banhar com água fria?

       Sua voz era tamanhamente tremula que Reina sorriu.

       -A futura rainha tem razão. Busquem água morna. Essa noite precisa ser perfeita. A rainha precisa estar perfeita. Ou desagradará profundamente a Rei Isac.

       Suas palavras fizeram Santha olhar em sua direção, algo de assustado no olhar.

       Reina havia confirmado sua suspeita. O cheiro que sentia em Santha era o odor de uma fada que havia parido recentemente. Apenas as fêmeas conheciam esse cheiro. O cheiro do corpo que passou por uma gestação.

       Isso explicava seu excesso de pudor durante todo o tempo que deveria ser cuidada e paparicada.

       Santha não era o que parecia. Reina permaneceu de pé, olhando fixamente para ela, enquanto Santha ficava de costas, esperando pela tal água morna. Nenhuma delas falou, cobrou ou forneceu explicações. Apenas o silêncio de quem teme abrir a boca e dizer a coisa errada.

       Quando as criadas retornaram, Santha parecia ter readquirido o autocontrole e permitiu que o ritual da limpeza se cumprisse. Foi esfregada, enxaguada e teve a pele besuntada por olés e especiarias.

       Quando limpa, teve os cabelos escovados, desembaraçados e presos em um penteado que a tornava estonteante. Maquiada com cores suaves, que mantinham sua aparência quase etérea, Santha foi vestida com a roupa do casamento e finalmente pronta esperou.

       -O Rei passa por um ritual semelhante. – disse Reina, erguendo um pequeno recipiente, em porcelana – Isto estará na mesinha, ao lado do leito nupcial. Deve espalhar por sua região íntima, é um perfume que agradará ao Rei.

       -O que é isso? – perguntou Santha, intrigada e um pouco ameaçada.

       -É um perfume, eu mesma fiz – Reina não iria lhe contar sobre seu dom proibido de criar poções e desenvolve-las. Era um dom proibido e temido pelos elfos, e por conta disso, ela mantinha em total segredo.

       -Não gosto desse cheiro – disse Santha rechaçando o agrado.

       -É cheiro de pureza. Cheiro da intimidade de uma fada no cio. – alertou Reina – Recriado por alguém com conhecimento. Eu no seu lugar, optaria por usar essa noite.

       Era uma ajuda singela. Santha ficou olhando para o pequeno, mínimo, pote de porcelana, que Reina logo escondeu nas vestes e levou consigo ao sair do quarto.

       Não fazia isso por piedade de Santha. Fazia isso pela singela esperança de que uma fada da clausura ao ser intitulada rainha pudesse interceder com as demais fadas abandonadas ao Ministério do Rei.

       Fazia isso para que a fada não fosse morta, e condenada por ter nascido e crescido desamparada. Nenhuma fêmea que é apartada de sua cria merece a morte, pensou Reina, acariciando o ventre, com a certeza que fazia o correto.

       Correto ou não, horas mais tarde, Santha estava pronta para ser levada ao salão principal, onde as festas do Rei aconteciam. Era o seu dia especial e ela estava linda. Ninguém seria capaz de alegar falso testemunho sobre a escolhida do Rei, tamanha perfeição de feições e encanto despertado nos observadores.

       O salão principal onde normalmente o Rei se reunia com seus Conselheiros e Guardiões era um lugar simplista, pois nesse quesito o Rei era deveras simplório. Ambiente farto, extenso, coberto por mármore e teto alto.

       O trono do Rei e da rainha, que normalmente jazia vago, pois o Rei tendia a não desejar a presença de suas esposas no cotidiano, ocupava o centro do ambiente. Ao lado esquerdo havia dez poltronas elegantes e cobertas de pompa, onde os Conselheiros deveriam se reunir, mas que raramente eram usadas, pois os Conselheiros não perdiam a chance de circular em torno do salão e ofuscar os Guardiões com sua constante presença entre eles.

       Uma eterna disputa por poder velado.

       Uma vez treinado e escolhido por sua armadura mágica, o Guardião seria o protetor de seu reino por um tempo limitado, estipulado por sua armadura. Quando ferido ou considerado em idade avançada, a armadura o rejeitaria e essa armadura deveria ser disputada por seus descendentes, ou no caso de não existirem crias de sua descendência, serem disputados pelos discípulos do mesmo Guardião.

       No momento que a armadura escolhe seu sucessor, o Guardião deixaria de ser o protetor e integraria os Conselheiros, e por causa disso, um deles seria definitivamente aposentado e relegado à vida comum do reino.

       Força física que alcançaria a força do conhecimento.

       Um arranjo perfeito para fazer uso de força e experiência, sem perder um ou outro.

       Mas também, um golpe inenarrável a vaidade de alguns Guardiões, que tornados Conselheiros, guardavam magoa e, e muitas vezes, preferiam o poder à verdade.

       Por sorte, Reina possuía um Conselheiro para si e ele era tudo, menos um homem arrogante ou ganancioso. Vestida com uma bela roupa, ela aproximou-se de seu elfo escolhido e lhe sorriu. Túlio era mais velho, uns vinte anos a mais do que ela, mesmo assim, a escolheu para esposa, após a morte de sua primeira fada escolhida.

       Ele casou-se tarde, quando findava seu tempo como Guardião, ainda na eminência do abandono de sua armadura e permaneceu apenas dez anos casado. Dessa união vingou um filho. Um elfo, seu sucessor. Seu nome era Egan, e gozava de sete anos, idade suficiente para ser treinado para disputar a armadura que um dia pertenceu ai seu pai, Túlio, e que atualmente pertencia ao Reino, pois na ausência de um sucessor, não escolhera por elfo algum. O que causava um desconforto para todos no reino, pois contavam com um Guardião a menos na guarda e proteção.

       Sorrindo para o marido, de quem era apaixonada, Reina sussurrou:

       -Santha está vindo. – sua voz era comedida, mas a experiência de Túlio não o enganava facilmente.

       -Algo de errado com a escolhida do Rei?

       -Não. Mas eu não quero servi-la após o casamento. – ela disse suave.

       Alguns segredos das fêmeas devem permanecer entre elas, por isso Túlio não a pressionou, apenas lhe ofertou um cálice com água límpida e seu braço, para apoia-la pelas costas, aliviando o peso que carregava.

       Ele ansiava pelo nascimento de seu segundo filho. Era uma razão para orgulho. Nunca imaginou ser pai outra vez, casara-se com Reina para ter uma fêmea para cuidar de Egan, mas o casamento lhe apresentou uma grata surpresa. Nunca havia sido tão feliz até conhecer sua Reina.

       Ela lhe tinha amor, respeito e paixão e ele não mais conseguia imaginar sua vida sem ela!

       -Ela está vindo! – disse Reina, bem mais animada com a possibilidade de assistir a um casamento real, do que com a ideia de ver Santha casar-se.

       Apreensiva, Santha era escoltada pelas doze fadas que Reina levara a seu quarto mais cedo. Quando chegaram diante dos amplos portões do salão, ela foi surpreendida pela presença de Lucius.

       Vestido com roupas de gala, penteado e bonito, como ela jamais vira, ele aproximou-se.

       Usava uma pala marrom, com calças e botas da mesma cor. Os cabelos escuros penteados e amarrados na altura do pescoço, caindo pelas costas. Ele não parecia ter notado o afastamento de trinta dias entre eles.

       Agiu como se nada houvesse acontecido.

       -Conduzirei a fada escolhida até Isac – ele disse, dispersando as fadinhas – É uma honra, rainha, conduzi-la até o trono. – ele beijou sua mão com carinho velado e Santha sorriu.

       -Eu mal posso esperar pelo casamento se concretizar - ela respondeu, olhos brilhantes, tanta saudade, tanto apresso. Desejava toca-lo e demonstrar esse sentimento, mas Lucius afastou-se, mantendo sua mão segura, erguida para cima, na altura dos ombros de Santha e fez um gesto para que um dos elfos abrisse a porta principal por onde a rainha entraria.

       -Fale comigo – ela pediu baixinho, enquanto andavam pelo amplo corredor que conduzia ao salão principal.

       -Amanhã – foi sua única resposta.

       -Eu senti sua falta... – tentou dizer.

       -Eu disse que falaremos amanhã – ele ordenou e Santha calou-se.

       É claro, o que ela vinha pensando? Estavam tão próximos de alcançar o objetivo sonhado e ela queria atrapalhar tudo com conversas bobas de amantes? Haveria o tempo certo para encontros escusos.

       Sorrindo, Santha seguiu ao seu lado, cabeça erguida, queixo altivo, olhos brilhantes, a cada passo a liberdade parecia mais perto, real e tangível.

       Ela podia sentir o toque do ar puro em sua carne. Podia sentir o perfume da felicidade. Ela era toda expectativa. Seus sentimentos ao cruzar o arco que separava o corredor do salão, eram indescritíveis.

       Aquilo era um começo, para quem viveu apenas pelo fim.

        

                       Escolhendo laranjas

        Santha vestia uma roupa confeccionada em fios de ouro dourados e delicados, mal cobrindo seios, ventre e coxas. A saia longa e rodada era apenas uma teia de fios que não impediam a vista de suas pernas. Sua sorte era seu belo corpo não ter sido demasiadamente alterado pela recente gravidez e que as poções proibidas logo esconderam os efeitos da gestação curta e interrompida drasticamente por um parto forçado.

       Os cabelos fartos, longos e esbranquiçados estavam presos no alto da cabeça e uma tiara de pedras e ouro os adornava. Suas asas foram abertas e esticadas, exibindo-se ao olhar de todos. Asas longas e translucidas, com padrões circulares desenhados pela natureza em seus filamentos. Nas pontas, suaves tons de dourado, como se o poente estivesse se refletindo em suas asas. Em alguns momentos, eram quase brancas, em outros quase transparentes, e então, ao movê-las, um degrade de cores esbranquiçadas e douradas.

       Nenhum elfo ou fada comentou o fato de tanta beleza permanecer escondido na clausura, mas era um pensamento constante.

       Santha mal prestou atenção no caminho percorrido até o local onde se tornaria a Rainha. Todo o tempo foi conduzida pela mão, pois era obrigação de Lucius entregá-la ao Rei.

       Além de ter sido criado ao lado do Rei, era tratado não como um servo pessoal, mas sim como um amigo. Pura ironia seu amante e seu amor a entregava a outro.

       Ela sorriu para Lucius timidamente ao ser deixada diante do trono. O Rei estava de costas, esperando por ela, por isso não pode ver essa troca de olhares comprometedora.

       Todos os Guardiões do Rei e seus familiares estavam presentes. Era uma reunião íntima, mas todas as figuras de maior poder encontravam-se presentes, como testemunhas do acontecimento.

       Santha correu os olhos, na direção do Conselheiro mais velho, que conduzia a cerimônia e então, em torno, para encontrar os rostos, e ver quem a agradava ou não. Em breve essas criaturas seriam seus súditos. Esse pensamento lhe causou um frêmito de empolgação.

       Seus olhos caíram sobre a serva Reina, que a devastou ao ver sua veste bonita e suas joias. Rancorosa, sufocou o desgosto por constatar que a fada era mesmo apreciada e possuidora de poder. Estava de pé, ao lado de um elfo imponente, consideravelmente mais velho que ela, embora atraente aos olhos de uma fêmea. Diante da fada, um elfo jovem, um menino, parecidíssimo com o elfo, embora parecesse depender da aprovação de Reina, que nesse momento explicava algo para ele.

       Notando o olhar de fúria da rainha, Reina trouxe Egan para mais perto, como se o protegesse. Aquele menino era o orgulho de Túlio, e a razão pungente dele ter suportado a perda da primeira esposa. Egan era também a razão da felicidade de Reina, que encontrou naquele menino um amor incondicional de mãe.

       Santha lhe causava medo quando olhava assim. Por isso Reina manteve o olhar, quem sabe desafiando Santha a mudar de estratégia. A fada escolhida pelo Rei desviou o olhar para a cerimônia, e Reina respirou aliviada, convencida que nunca mais teria contato com Santha. Tão logo a cerimônia chegasse ao fim, ela se afastaria para sempre do olhar traiçoeiro de Santha.

       Santha permaneceu de pé ouvindo as palavras do Conselheiro, sem nunca olhar na direção do Rei e sem que ele nunca olhasse em sua direção. Era desse modo o convívio com o Rei, ela deveria estar preparada para uma vida desse modo.

       Apesar disso, ela continha a felicidade, pois mesmo que o Rei nunca reparasse na verdadeira Santha, ainda assim, era profundamente amada por Lucius. E isso era a única coisa que lhe importava, além da chance de ser livre.

       Em torno do salão, várias das outras fadas esposas do Rei Isac, que nunca foram escolhidas como Rainha definitiva, acompanhavam a cerimônia. Algumas delas invejosas da bela fada que ameaçaria a relação entre elas e o Rei. Outras apenas apreciando a chance de beber vinho e dançar, pois a vida de esposa de um Rei indiferente é muito enfadonha.

       Raras oportunidades de respirar ar puro e ver outras criaturas. As fadas mais velhas não nutriam mais esperanças de viver ao lado do Rei, então apreciassem a chance de ver a vida, e quem sabe, pelas costas do Rei, deitarem-se com algum macho inofensivo, que apreciasse a chance de ser escolhido por uma rainha, e manteria a boca fechada por medo das punições do Rei.

       Nenhuma dessas esposas havia concebido o que indicava que o Rei pudesse ser estéril, mas a culpa normalmente recaia sobre as fêmeas e nunca sobre o macho, o que culminava em um descarte imediato, após pouco tempo de casamento.

       O Rei era volúvel com suas esposas. E Santha esperava reverter isso a seu favor. Se ele não nutria sentimentos por nenhuma das suas outras esposas, precisaria apenas lidar com a indiferença de um Rei incapaz de amar e não precisaria tirar nenhum grande amor do caminho. Assim era mais fácil.

       Algumas dessas esposas eram conhecidas por deitarem-se com jovens Guardiões em treinamento, outras por tramarem com os Conselheiros uma revolta contra o governo de Isac. Boatos que jamais se concretizavam, e por isso caiam no esquecimento total.

       O discurso chegou ao final e ambos acenaram com a cabeça quando a pergunta sobre o enlace ser consensual, foi pronunciada. E foi nesse momento que finalmente o Rei olhou para ela. Santha não pode evitar um arrepio de medo e expectativa. Era um elfo majestoso, um corpo perfeito, seu cheiro de macho era peculiar. Apesar da excitação, algo dentro de Santha não conseguia envolver-se totalmente com o casamento ou com o elfo. A imagem daquele bebezinho indefeso que jazeria morto por sua causa a assolou. Não queria, mas às vezes essa imagem apenas imaginada e nunca vista, lhe vinha à mente, e a perturbava inesperadamente.

       Ela respirou fundo e permaneceu ao lado do Rei, como lhe ensinaram. Havia prometido a si mesma que a liberdade valia qualquer sacrifício, inclusive os sacrifícios do esquecimento.

       A cerimônia durou poucos minutos mais, e quando finalmente chegou ao fim, Santha respirou aliviada, pois nada poderia desfazer esse enlace. Era a esposa de Isac e nunca mais voltaria clausura. Foi nomeada Rainha e pela primeira vez em muitos anos sorriu com genuíno prazer, olhando para os elfos e fadas em torno de si, a vaidade de seu posto a fazendo soberba e arrogante.

       Sem perceber o que passava na mente e coração de sua fada escolhida, Rei Isac cochichou-lhe um pedido no ouvido e Santha sorriu ruborizada por conta da proximidade do elfo e obedeceu ao seu pedido.

       Pela primeira vez em sua vida poderia voar sem medo de ser aprisionada por isso. Concebida a permissão de um voo, o primeiro como rainha, cabia a Santha encantar a todos os olhares com suas belas asas, começando assim a conquistar o coração do Rei, através da vaidade de possuir uma rainha perfeita e bela como nenhuma outra.

       Santha sentiu algo novo, que enaltecia seu ego, ao andar entre as criaturas, que apenas curvavam-se em respeito, e abriam caminho, para que a nova rainha andasse e exibisse suas belas curvas e sua face imponente. De sua beleza, jamais haveria questionamento. Para quem desejava corpo, carne e calor, Santha era a companheira perfeita.

       Atiçada pelos olhares, Santha abriu suas asas em todo seu esplendor, e era a primeira vez que era vista desse modo por elfos e fadas, que não fossem Lucius ou fadas penitentes da clausura, ou ainda, carcereiras invejosas que a esbofeteariam pela audácia de exibir suas asas sem consentimento.

       Asas longas, bonitas, perfumadas pelas essências aromáticas que desfrutara no ritual de limpeza, mais cedo naquele dia. Santha cravou os olhos em Lucius, suas asas tremularam e ela saiu do chão. Não era um voo desajeitado, era um voo magnífico.

       Seu voo calou todas as vozes e as asas translúcidas e douradas foram à causa de suspiros de inveja. Um voo perfeito e adequado a uma rainha como jamais houve no Reino das Fadas.

       Quando Santha pousou novamente os pés no chão, depois de um lindo voo pelo amplo salão, havia esquecido completamente da filha que abandonou. Havia esquecido-se de Lucius e da clausura.

       Só tinha olhos para o Rei Isac e par ao futuro grandioso que a aguardava ao ser acolhida pela mão do elfo e conduzida para fora do salão, pois a porção macho dentro do elfo exigia a presença de sua fada escolhida e a conclusão do coito tão aguardado.

       Daquela noite em diante, Santha jamais voltaria a lembrar-se da menina que abdicou por poder e liberdade. Jamais voltaria a lamentar a decisão tomada.

 

       A montanha das Fadas, como era chamada pelos humanos o poderoso e misterioso rochedo, que apelidaram desta forma por causa das inúmeras lendas sobre fadas e elfos encantados que viviam naquela montanha, era composta por uma sucessão de divisas políticas entre fadas, elfos e outras criaturas mágicas.

       O castelo era soberano, e governava os vilarejos ao seu redor. Dominava a nascente do Rio Branco que nascia na Floresta dos Desejos, e seguia democraticamente banhando a Vila dos Desesperados, a Floresta dos Dois Dias, ainda corria em direção dos Campos dos Humanos, onde era simplesmente tido como um rio necessário ao abastecimento de água, e ignorado totalmente seus poderes mágicos.

       Não era sequer considerado pelos humanos a remota possibilidade de que os boatos e lendas sobre criaturas mágicas possuíssem algum fundo de verdade.

       Os humanos possuíam seu próprio Rei, e esse governava sua parte da Inglaterra com mãos de ferro e decisões que beiravam a crueldade. Talvez essa fosse uma das razões mais poderosas para que humanos e criaturas mágicas não se misturassem. O medo do domínio e da extinção de uma das espécies, ou até mesmo, as duas.

       O Rio Branco fazia divisa com a Floresta de Saul e delimitava o começo do Deserto das Areias Vermelhas, mas disso ninguém gostava de falar. Nenhuma fada ou elfo se aventurava por esses lados e era tabu falar do Deserto das Areias Vermelhas. Um assunto quase proibido, ou apenas ignorado em nome do bom convívio entre fadas e elfos.

       Os poderes mágicos de uma fada, tal como suas asas, eram ineficazes e até o mais poderoso dos elfos se tornava frágil no Deserto das Areias Vermelhas. Muitos perigos e poucas rotas de fuga. Um lugar assustador e que escondia segredos nunca desmitificados. Séculos de ignorância sobre a vastidão de areia escaldante.

       Do mesmo modo que os humanos alimentavam lendas e crenças, as criaturas mágicas também criavam seus mitos. Algumas divisas mágicas eram consideradas perigosas e assustadoras, e era mais provável que metade desse medo se devesse unicamente a comentários, boatos e lendas. Maledicências difundidas pela necessidade de proteger cada região usando do imaginário como barreira para lutas infinitas entre as raças mágicas. Estranhamente o medo alimentava a paz entre os povoados.

       Mas na dúvida, os forasteiros mantinham distância, e os nativos, respeitavam as características de cada floresta, povoado ou deserto. Por isso mesmo que a velha fada sem asas, punida por crimes do passado, uma anciã amargurada e conhecida por suas bruxarias negras, habitante do recanto mais nefasto da Floresta dos Dois Dias, fora recrutada por Lucius em troca de ouro e promessas de ajuda no futuro.

       Seria uma benção se a arte da cura e das poções fosse novamente legalizada, e isso beneficiaria diretamente a fada. Havia aceitado ouro para levar a menina fada para o Deserto e lá esperar por sua morte, ou apressa-la, o que viesse primeiro.

       A cria havia nascido forte e robusta como um touro. Era pequena e delicada, mas sua saúde perfeita. Quem sabe por isso, tomada de uma piedade inesperada, a fada relutou em realizar a ordem paga.

       Era contra destruir aquilo que a natureza criou com perfeição. Lidava todos os dias com a morte e a doença, curando e alimentando poções para sarar as piores chagas. Ver aquilo que é saudável diante de si, era como ver um milagre. E em toda sua existência triste e amadurara, a velha fada nunca vira tanta perfeição e saúde, como via dentro do cesto de palha que abrigava a cria renegada por Lucius.

       Quase arrependida de ter aceitado aquele trabalho, a fada aproveitou-se da vida que a cria esbanjava e revigorou seu dom com a simples presença daquela femeazinha abençoada pelo viço e abundância da natureza. Um mês mais tarde, ela finalmente chegou à conclusão que não poderia manter a cria em seu casebre. Era uma época do ano que atraia muitas fadas e elfos em busca de ajuda e poções e ela não correria o rosto de ser pega com a cria.

       Poderia vendê-la e conseguir algum retorno, mas se Lucius soubesse, ela seria uma fada morta antes mesmo de ter a chance de se defender. Também não desejava percorrer o árduo caminho até o Deserto das Areias Vermelhas, ou a Floresta de Saul, dois destinos que Lucius sugerira como paragem final para a cria.

       Não correria risco desnecessário. Para ela, o bom de ter perdido o caráter era ter assim, abdicado de compromisso para qualquer pessoa. Mesmo aqueles que lhe pagassem por um trabalho imundo.

       Escondida na Floresta dos Desejos esperou muitos dias passarem, e ganhou tempo, forjando sua viagem longa e sacrificante ao Deserto. Então, no mesmo dia em que o Rei adquiria sua nova Rainha, a velha deixou a criança embaixo de uma árvore, em um especial recanto, onde flores amareladas e profundas, com essências curativas, espalhavam-se por um campo farto e belo. Seria um lugar agradável para nascer, e também seria um túmulo adequado para uma fada inocente, que merecia tudo, menos aquele destino cruel.

       Esperando que a morte a encontrasse naquela floresta solitária e perigosa, a velha fada partiu de volta para a Vila das Fadas dentro dos limites do Castelo do Rei Isac, para levar as boas novas a Lucius, sobre o combinado ter se cumprido. Tranquilizá-los sobre o trabalho estar terminado e garantir ao elfo que o incomodo não mais existia. Agora, Lucius poderia dormir aliviado.

       Dentro do cesto de palha, enrolada em panos velhos e sujos, a cria inicialmente apenas sonhava, como todo bebê adormecido. Quem sabe sonhos de um tempo feliz ao lado de sua progenitora, quem sabe apenas sonhos de uma alma sem pecados.

       Horas mais tarde, com fome, frio, e precisando de cuidado, a cria acordou e chorou. Seus berros de desespero, de abandono e de clemência ecoaram por todo campo das flores. Uma rajada fraquinha de vento envolveu o campo e as pétalas das flores dispersaram-se, ascendendo ao céu e cobrindo todo o solo, inclusive cobrindo o lugar onde o cesto estava escondido.

       A natureza se encarregava de criar uma proteção para a cria, que se acalmou aos poucos, fazendo parte do vento, do sol, do barulho da natureza.

       Ainda sem nome, sem existência, sem amor. A cria esperava ser encontrada, esperava sobreviver, esperava sua chance de voltar ao seio de sua progenitora. Era apenas um bebezinho inocente, e a floresta era um lugar assustador.

       Era questão de tempo para a menina sucumbir. Questão de tempo...

 

                          Flores amarelas

        Alguns dias mais tarde, consumado o casamento, Santha passava o maior parte do seu tempo em voos e passeios intermináveis.

       Era normal ver a rainha sobrevoando o reino. Reina vinha prestando muita atenção à movimentação estranha da rainha. Naquela manhã em especial, Reina observava com ressentimento a rainha andar pelos jardins, esquecida de todo sofrimento do Ministério do Rei, e mais do que isso, claramente ignorando o sofrimento das fadas que restaram na clausura.

       Ressentida, Reina seguia a rainha de perto, alguns passos atrás. Era sua obrigação. Desde o dia anterior, quando acordou com batidas na porta de casa e Túlio atendera a porta furioso pela audácia de despertá-lo em plena madrugada e daquele modo abrupto, que acordou Egan e assustou sua esposa grávida.

       O elfo fechou a porta e voltou para o quarto, onde Reina aguardava, acalmando o menino Egan, que viera abrigar-se nos braços da madrasta.

       -O que aconteceu? – perguntou Reina – Porque tanto escândalo em nossa porta?

       -A rainha exige sua presença no castelo na primeira hora da amanhã - ele disse consternado, revoltado e muito perto de explodir diante de tamanha audácia.

       -Minha presença? Por quê? – ela não entendeu.

       -A nova rainha exige que seja sua criada pessoal. – ele olhou para sua barriga e maneou a cabeça – É uma ofensa que Isac permita esse despautério. Minha esposa ser transformada em uma criada!

       Reina maneou a cabeça, sufocando a indignação. Deveria esperar por isso. Santha desconfiava que Reina pudesse descobrir seus segredos e para evitar isso, pretendia mantê-la perto, sob suas vistas.

       -Isso não é nada, Túlio. Não se revolte contra o Rei por tão pouco – achou por bem amenizar a revolta do marido – Sabemos como Isac é caprichoso. Ele logo se cansará de Santha.

       -Isso não está certo – ele continuava furioso.

       Reina sorriu e beijou a testa de Egan, levantou e aproximou-se do marido, abraçando-o pela cintura.

       -Não se aflija. Eu não estou chateada com isso – mentiu – Pode ser até bom permanecer no castelo. Assim eu posso vê-lo maior tempo por dia, e também, visitar Egan durante os intervalos dos treinamentos. O que acha? – seu sorriso desejava acalmar.

       Túlio lhe fez um carinho no rosto e afastou-se.

       Era difícil para ele aceitar os caprichos de Rei Isac. Reina tentou não se exaltar demais, em nome da cria que gerava em seu ventre. Sorriu para Egan e voltou para a cama, para aproveitar mais algumas horas de sono antes de ter que lidar com a desagradável Santha.

       Agora passado dois dias, de seu canto, retraída, Reina reparava que a Rainha sempre andava sozinha, porém ela via o que os outros não conseguiam ver. Lucius sempre encontrava a Rainha em momentos fugidios.

       Apesar de ser dama de companhia da rainha, Reina não era próxima de Santha para achar que devesse alertá-la sobre o perigo de uma traição ao Rei.

       Reina era casada há poucos anos e esperava seu primeiro filho. Seu ventre estava largo e avantajado e ela sentia que seria um macho e não uma fêmea como insistia em dizer-lhe os curandeiros legalizados pelo Rei para o ofício de parteiros.

       Um elfo para conduzir a família e seguir os passos do marido. Primeiro Conselheiro do Rei, seu marido era respeitado por seus feitos de coragem, e Reina rezava com afinco para que seu filho seguisse os passos do pai.

       Para tanto, Reina vinha esperando o momento certo para escapar do trabalho e buscar por ervas na Floresta dos Desejos. Uma beberagem que deveria fortalecer seu filho e lhe garantir um bom parto.

       Enquanto essa oportunidade não chegava, ela suportava seguir Santha por seus passeios indigestos.

       Em uma alameda, Santha despistou-a e Reina demorou quase meia hora para encontrar seu rastro. Sem querer, acabou por flagra-la. Reina mal enxergou a cena, e tentou recuar, fingir não ter visto. Mas a imagem vista, não pode ser apagada apenas pelo desejo de voltar atrás e desfazer o acontecido.

       Em um lugar discreto, pouco movimentado, em desuso, pois antigamente havia sido uma saleta de estudos, Santha copulava com um elfo.

       Curvada sobre uma mesa, nua até a cintura, a fada gritava e gemia, em profundo prazer, enquanto era possuída pelo elfo dominante. Reina nunca imaginou que Lucius pudesse guardar algum tipo de paixão carnal por de trás da fachada gélida e indiferente. Mas ele parecia bastante fora de controle. Santha gritou por mais e tentou se erguer, sendo agarrada pelos cabelos e esbofeteada, enquanto era jogada no chão. O elfo a dominou e a cópula seguiu, de um modo que beirava a crueldade.

       Os gritos e gemidos de prazer de Santha eram devassos e horríveis. Reina afastou-se apressada, tentando apagar da mente a imagem vista. Logo ela, que não desejava confusão! Arfante, ainda assustada com a reveladora descoberta, não uma surpresa total, mas algo inesperado Reina permaneceu um tempo, olhando os corredores, tentando se acalmar.

       Muito tempo depois, Santha a encontrou em um corredor. Seu olhar de puro veneno quase coagiu Reina.

       -Onde estava? Uma criada deve seguir sua rainha e não deixá-la sozinha! – ela lhe disse ameaçadoramente.

       -Perdão, Rainha Santha. Eu precisei descansar, culpa da cria que carrego. Foi um momento, agora passou – ela apelou para uma desculpa que disfarçasse a verdade do que pensava.

       Estava em seus olhos à verdade e a recriminação e Santha sabia que seu segredo era conhecido por sua criada pessoal. Por isso baixou seus olhos, e andou, esperando ser seguida fielmente.

       Uma fidelidade comprada, que não possuía um centésimo de sinceridade. Reina esperava e torcia, para que Rei Isac se cansasse de Santha o mais breve possível, para se livrar dela.

       Notava agora que a rainha vinda da clausura, não faria nada por suas fadas penitentes do Ministério do Rei. Era uma inútil arrogante, soberba e vaidosa. Uma cobra, e não uma fada.

       Santha retornou para seus aposentos e quando pediu por um banho pensou ter visto algo de irônico na face de sua criada. Por mais que Reina a incomodasse e desagradasse, Santha não conseguia apartar-se dela. Era simpatia, ela gostava de Reina, e queria sua presença.

       Reina representava tudo que Santha nunca seria ou obteria. Mas não sabia disso. Raramente as pessoas conseguem entender esses sentimentos ambíguos de amor e ódio. Uma necessidade visceral de aprovação e sofrimento.

       Reina esperou pacientemente sua Rainha mergulhar na água da banheira, cobrindo o corpo perfeito com água e sais especiais, livrando a carne da sujeira que representava a cópula fora do casamento, fruto de uma traição abominável. De pé ao seu lado, Reina ajudou-a a esfregar a pele e limpar-se para a vinda do Rei mais tarde naquela noite.

       Reina gostava do trabalho, mas não podia dizer que gostava de Santha. Sempre hostilizada pela rainha desde que a mesma soube que sua pajem era gestante e também possuía um marido poderoso junto ao reino, e por tanto não poderia ser humilhada constantemente, como fazia com as outras servas. Reina tentava se manter invisível aos seus olhos para não suportar sua fúria.

       Mas era difícil esconder-se de alguém que sente prazer em lhe perseguir e enfurecer.

       Santha era uma rainha voluntariosa e invejosa da felicidade alheia. Uma pena que Rei Isac, tão bom elfo, com defeitos, é claro, mas o melhor Rei eleito em séculos, estivesse encantado e enlouquecido de paixão por ela e não visse seus defeitos.

       Quando Reina finalmente terminou de secar o corpo esbelto da rainha e a envolveu em seda e rendas, deixando-a sobre a cama, lânguida e pronta para esperar pelo marido real, Reina saiu apressada e discreta, pois tinha planos para aquele finalzinho de tarde.

       Em um canto discreto, deixou suas asas azuladas emergirem e voo para as árvores ao longe, fora dos domínios do castelo real. Fora de olhos e bocas curiosas que desejariam fazer perguntas e ou espalhar futricas sobre sua vida.

       Reina sempre se impressionava com a beleza do vilarejo, e da nascente do Rio Branco. Ao longe avistou um relance do Deserto e a bifurcação onde o Rio Branco se transformava em outro córrego que seguia para os Campos dos Humanos.

       Suas asas curtas batiam gentilmente no ar, e ela plainou sobre os campos até enxergar o local onde sempre encontrava as ervas que precisava para seus chás.

       Chás mágicos não eram vistos com bons olhos desde que algumas fadas se recusaram a ajudar com seus poderemos mágicos na última grande guerra entre fadas e elfos. Sim, entre seres da mesma espécie! Uma guerra incitada por um Rei louco e preconceituoso, com profundos rancores contra a raça feminina, e invejoso de asas e dons, ordenara uma verdadeira caçada contra fadas. Uma guerra que chegou a manchar a vida dos humanos e quase os envolveu de modo irreparável.

       Acontecido há muitos séculos atrás e agora as fadas eram apenas uma lenda no mundo humano, mas as lembranças eram bem vívidas na lembrança das novas gerações de fadas.

       Cuidado com fadas curandeiras, elas são traiçoeiras. Essa era a frase mais ouvida nas escolas de fadas e elfos. Para sorte, ou azar, Reina desfrutava desse secreto poder. Seu dom de fada era uma benção, mas também uma maldição.

       Avistando as plantas que precisaria em uma planície de flores amarelas, perfumadas e repletas de líquidos naturais que causavam um fabuloso efeito quando combinados com outras ervas, formando uma beberagem revigorante.

       Reina desceu ao solo coberto por folhas, mato, grama verde e uma imensidão de pétalas amarelas, mesmo que não fosse época de caírem suas pétalas. Sorriu ao avistar um arbusto fabuloso de folhas verdes e flores amareladas e charmosas. Era o que precisava!

       Distraída colheu as ervas e amarrou em um saco de pano que levava na cintura, abaixo da barriga avantajada. Estava indo embora quando ouviu um choro muito baixo. Animais feridos sempre choramingavam e imaginando ser uma lebre ferida, Reina procurou pelo som, pois Egan adoraria ter um mascote para brincar quando não estivesse sendo introduzido aos estudos e treinamento de Guardião.

       Para sua total surpresa ao afastar as flores e folhas encontrou um cestinho de palha com panos enrolados. Reina procurou pelo filhotezinho abandonado, esquecido e deixado para trás, quando encontrou um bebê enrolado em restos de pano.

       A pele roxa de frio e o corpo quase cedendo diante da morte. Assustada, não pensou antes de trazê-lo para seu colo e voar com toda sua potência de volta para o Castelo, diretamente para sua casa.

       Sua casa era seu porto seguro no mundo e Reina colocou a cria sobre a cama, afastando os panos sujos. A criança cheirava muito mal e pela apatia total, não restavam dúvidas que mais um dia na floresta e não poderia ser salva.

       Angustiada, Reina procurou por água e cobertores. Limpou a menina o máximo que conseguiu com toda a presa que sentia. Limpou as profundas assaduras, e quando passou unguentos a menina finalmente começou a chorar outra vez.

       -Pobrezinha – Reina a trouxe para seu peito, e a criança parecia farejar seu leite, o cheiro de leite.

       Reina estava com mais de seis meses de gestação, em breve daria a luz. Seus peitos repletos de leite vazavam sempre no final de cada dia. Naquele frêmito, pareceu tão certo lhe dar o peito, que não pensou duas vezes.

       A pequenina fêmea de fada sugou seu leite com avidez, e Reina não poderia saber, mas era a primeira vez que provava leite de fada. A velha fada que a manteve viva por quase um mês, alimentava a cria com leite de cabras e outros animais. Não se preocupava muito com o que a alimentava.

       Reina cuidou do bebê com todo seu carinho e piedade. Quando terminou de sugar o leite, a criança se aquietou e Reina ficou olhando para ela. Era uma bonequinha. Linda, branquinha como um floco de neve, daqueles que Reina via em seus sonhos, sempre que se lembrava de casa, do continente onde nasceu, e que sempre nevava. O Monte das Fadas raramente era tomado pela neve abundante. Raros os invernos tão rigorosos.

       Esquecida de tudo, Reina não viu a hora passar, muito menos se lembrou de buscar Egan no castelo, por isso surpreendeu-se ao ver o enteado. Ele entrou em casa, falando sem parar sobre as aulas daquela tarde. Reina sempre se admirava em como Egan era independente e apegado a ela, na medida certa.

       -É um bebê? – ele perguntou chegando à cama e pulando sobre ela, para ver melhor a criança.

       -Sim, Egan, é um bebezinho, mas não é seu irmão ainda. – Ela mostrou a barriga – Ainda não é hora, querido. Esse bebezinho eu encontrei na floresta.

       Egan era apenas uma criança, ainda não fazia perguntas complicadas, como o porquê de uma cria parida há tão pouco tempo estaria em uma floresta abandonada.

       Ele gostou de interagir com a femeazinha de fada e Reina incentivou-o a conversa e tocar o bebê.

       A menina era uma pequena nuvenzinha do céu, e Reina sabia muito bem o que isso queria dizer.

       Talvez se não soubesse do comportamento estranho de Santha, ou não houvesse suspeitado que ela estivesse grávida antes do casamento com o Rei, pudesse demorar a ligar uma à outra. Mas conhecia a índole da rainha e semelhança entre ambas às fêmeas era impressionante.

       Reina pensou em delatar a rainha em seu crime, mas olhando para aquela coisinha pequenina e desprotegida, chegou à conclusão que o encanto que Santha mantinha sobre o Rei, o faria cego e surdo para a verdade, e aquela cria seria morta.

       Salvar a vida da menina, para entrega-la a Santha? Não poderia fazer isso, seria uma crueldade sem precedentes.

       A fadinha começou a resmungar e Reina a colocou no colo de Egan, para que ele ninasse a menina, enquanto ela preparava um chá com propriedades curativas para ajudar a acalmar e sossegar um sono revigorante para o bebezinho.

       Horas mais tarde, ela esperava pelo marido, Túlio, ex - Primeiro Guardião, pai de um filho do primeiro casamento, o menino Egan que naquele instante olhava para ela com curiosidade. Reina o criava desde a morte prematura de sua mãe, a primeira esposa de Túlio. Fez sinal de silêncio para que ele não contasse ao pai o que acontecia, não antes que ela fizesse com suas palavras.

       Era quase noite quando ele chegou, desfez-se do manto de Conselheiro e das armas e finalmente encontrou a surpresa que o esperava.

       -De modo algum – ele disse sério, depois de ouvir uma versão reduzida da história daquela criança.

       Olhava para a expressão de suplica de sua mulher e então para a menina adormecida em um cestinho, que no passado fora o berço de Egan:

       -Eu a criaria para você, Reina, se você não estivesse esperando um filho. Essa criança precisará de todo seu leite e dedicação. Não pode se dividir em três. Adotar essa menina ofuscará suas obrigações. Com o trabalho junto a Rainha, lhe sobra cada vez menos tempo. Pense com calma nesse pedido e tente entender minha negativa.

       Reina olhou para o pequeno Egan e então para a própria barriga.

       -Sei disso. Mas eu a encontrei. Agora, é minha responsabilidade. A natureza me deu uma cria, antes mesmo que eu tenha a chance de parir a minha. Eu não posso abandona-la, Túlio.

       Túlio fitou a bela e bondosa fada com quem se casara e quase cedeu. Ela cuidava tão bem de sua vida, que era quase impossível lhe dizer não.

       -Leve-a para o Ministério do Rei. Cuidarão dela. – apelou.

       -Crescerá como uma órfã! Quando for moça padecerá da clausura! Que destino horrível ela terá, Túlio! Por favor, pense nisso! No sofrimento dessa femeazinha! Olhe para ela, e tenha pena! - suplicou.

       -Destino pior era morrer na floresta abandoada. Salvou-a. Cabe ao destino decidir o que será dela. Poderá ver a criança todos os dias no castelo. Pense em você, Reina e em suas obrigações de mãe e esposa. Pense em Egan e em nossa cria que não nasceu ainda. Tem poder dentro do castelo e poderá ajudar essa criança. Quem sabe, no futuro, lhe conseguir um bom casamento que a salvará da clausura. Deixe o destino decidir o futuro dessa cria. E não pense que não sinto pena. Não pense mal de mim.

       A voz forte de Túlio encerrou a discussão. Estava certo, e não poderia ter mágoas do marido. Ele pensava com a mente, ela com o coração:

       -Está bem. Eu a levarei para o Castelo. Farei isso pela manhã. Deixe-me ser sua mãe por essa noite. Apenas uma noite, para que ela saiba como é ter uma família. – pediu emocionada e ele apenas acenou caridoso dos caprichos de sua esposa tão jovem e doce.

       -Eu a chamarei de Eleonora – Reina disse acariciando o bebê que ressonava inocente ao mundo em um berço que infelizmente não lhe pertencia – Por esta noite terá uma mãe, Eleonora. E pela vida toda terá uma amiga que olhará por você – prometeu, beijando sua cabecinha branca, com cabelos macios.

       Uma promessa que pretendia cumprir enquanto vivesse.

 

       O dia seguinte amanheceu radiante, o que por si só era uma ironia. Reina agasalhou muito bem a pequena fêmea, com roupas que seriam para seu próprio filho ainda não nascido. Acalmou-a e alimentou-a. E quando não pode mais atrasar o inevitável, levou Egan consigo.

       Ele foi deixado em seu treinamento rotineiro e Reina seguiu para o Ministério do Rei. Era um lugar abominável. E sua trajetória não poderia ser diferente.

       Levando a criança consigo, Reina atravessou o castelo, dirigindo-se para o local onde no passado ficavam as masmorras principais. Um lugar de sofrimento e injustiça.

       O castelo era um lugar bonito, luxuoso e coberto por pedras e joias, e foi na época do Rei Ulder, empossado séculos atrás, quando se construiu o outro lado do castelo, sua extensão. Um lugar de pedras rústicas, corredores estreitos e muitas celas, hoje adaptadas a quartos.

       Na época, Rei Ulder havia elegido as fadas como suas inimigas. Um Rei invejoso das asas e dons de fadas que achava injusto que elas pudessem proteger a si mesmas, enquanto os elfos contavam apenas com força física e treinamentos para Guardiões, sendo que as armaduras existiam em numero reduzido, apenas dez.

       Após anos de incitação de ódio entre fêmeas e machos, ele finalmente terminou a construção daquele mausoléu. E foi quando a guerra estourou. Um Rei mesquinho e ardiloso que ordenou uma verdadeira caçada contra fadas.

       Todas as fêmeas, casadas, solteiras, infantas ou anciãs, todas deveriam ser trazidas para o castelo. As que se curvassem ao Rei e aceitassem que suas asas fossem cortadas, e que lhe colocassem coleiras no pescoço, com potentes venenos, que deveriam limitar o uso do dom, seriam mantidas em liberdade, a serviço do Rei.

       As fadas que não se vergassem as ordens de Rei Ulder, o que aconteceu com a maioria das fêmeas do Monte das fadas, eram levadas para as masmorras. As asas eram serradas, arrancadas de seus corpos. Eram deixadas para morrer. As que sobreviviam, eram mantidas nas celas, por toda sua vida, pagando pelo crime de insubordinação. As fêmeas mortas eram levadas para uma vala comum, onde todas eram enterradas sem descrição de nome ou localização para que suas famílias as encontrassem.

       Os elfos que não participassem da guerra eram mortos, e suas famílias e linhagens extintas. Os elfos que colaboravam, eram tidos como aliviados e gozavam de riquezas e poder ilimitado.

       Era uma guerra que desde o começo tencionava dividir os sexos de uma mesma espécie. Foi uma época de tormento e horror, e mesmo quando a guerra foi extinta, deixou consequências até o presente momento.

       As más línguas diziam que Rei Ulder fora morto por uma das fadas das masmorras, que se fingiu de aliada, tornou-se amante do rei, permitiu suas asas fossem serradas e passou a agir pelas costas do Rei. Mas eram boatos que nunca foram provados. A única verdade inexorável de toda aquela história era que o Rei foi encontrado morto em sua alcova, sem as suas partes íntimas, o que incitava os boatos de que uma fada sem asas lhe privara de sua essência de elfo, assim como ele privava as fadas de suas asas, suas essências de fêmea.

       Séculos depois, as masmorras raramente eram usadas, por conta disso, o antecessor de Isac, tivera por ideia transformar o lugar em um orfanato para órfãos. Sua ideia era louvável, e apropriada. Mas rapidamente mostrou-se ser um plano muito abrangente e o Rei perdeu o interesse.

       Órfãos sem importância para o Rei, e sem destino depois da maioridade. A melhor solução era usar os elfos como força braçal no cuidado do castelo, e as fêmeas, por não terem utilização prática, eram mantidas em seus quartos até serem escolhidas para matrimônio ou terem alguma serventia real dentro do castelo.

       Com os anos eliminou-se o uso das fadas e manteve-se apenas a clausura total. Ao herdar o trono, Rei Isac herdou também o problema que o Ministério do Rei representava, e era visível que por não saber como lidar com esse problema, Rei Isac optara por deixar tudo como estava.

       Era um problema de cunho social, e político e um Rei nem sempre consegue aliados para resolver determinadas questões.

       A maioria dos órfãos vinha da violência cometida nas florestas. Caçador de Recompensas e Caçadores de Fadas, profissões não regulamentadas pelo reino, nascidas na época da guerra de Rei Ulder, e que sobreviveram aos séculos, causavam mortes de fadas e elfos e muitas vezes o resultado era crias órfãos que acabavam sendo levados para o castelo, e como consequência, para o orfanato.

       Como consequência da guerra entre fadas e elfos, mantinha-se o constante preconceito. Alguns elfos ainda cultuavam essa premissa de que fadas representavam um risco que deveria ser expurgado, por possuírem dons e asas. E muitos pagavam altos valores para obter fadas como prisioneiras, ou asas para estudo, ou ainda fadas no cio.

       O cio de uma fada era um momento de puro erotismo, pois a mente consciente deixava de guiar e apenas os instintos de animal prevaleciam. O cio começava antes do nascimento das asas, dias antes, e culminava com o nascimento das mesmas. Poderiam durar horas, quando consumado, ou anos, dependendo da impossibilidade de consumação.

       Apenas o ato sexual entre fada e elfo poderia aplacar o cio. Algumas fadas respondiam com maior intensidade a esse momento, outras com menor intensidade. Era uma roleta russa. Para os elfos, no entanto, era um momento de pura libido, pois o cheiro do cio de uma fêmea acordava todos os sentidos de um macho.

       Era comum, mesmo que condenável, que Caçadores de Fadas sequestrassem fadinhas infantas e as vendessem, ou então, fadas em pleno cio, ou próxima ao padecimento das asas, momento do nascimento das mesmas.

       E uma vez obtido o desejado, as fadas eram mortas ou descartadas e suas crias perdidas. Raramente uma fada cruzava durante o cio e não reproduzia. E essas crias seriam descartadas.

       E esse descarte quase sempre terminava por atulhar as instalações do Ministério do Rei. Para resolver o problema dos órfãos, Rei Isac precisaria extinguir todos os Caçadores de Fadas e os Caçadores de Recompensa. Mas para isso acontecer, precisaria de uma força de caça maior do que dispunha.

       E também, um grande problema era o fato dos Caçadores de Recomeça ajudarem a manter a ordem nas florestas mais obscuras. Através de suas ações cruéis, eles mantinham o respeito pelas divisas e limites.

       Rei Isac não poderia mexer nesse vespeiro, a menos que estivesse disposto a lidar com todas as situações que viriam a partir disso. Era como costurar um vestido usando uma linha sem nó. Costurar um ponto e soltar outro. Era assim.

       Constantemente Túlio lhe dizia que Rei Isac era bom, mas era preguiço demais para ser um líder. Que os anos de luta e guerra enfrentados o tornaram fraco e amedrontado, causando-lhe muitos traumas. Mas esse era um lado da personalidade do Rei que ninguém desejava falar. Era melhor cultuar a lembrança do guerreiro forte, viril e corajoso que criou as mais lindas lendas sobre salvamento de fadadas donzelas e destruição de inimigos poderosos.

       Infelizmente o Rei não era nada mais do que uma lenda.

       Mantinha metade do povo seguro e prospecto e a outra metade, em constante luta pela sobrevivência. Sendo assim, era difícil admitir que ele fosse muito bom, ou muito ruim. A própria Reina, ao percorrer os corredores fétidos e sujos do Ministério do Rei, não saberia explicar exatamente o que pensava sobre ele.

       Minutos mais tarde, encontrou a saleta que Miquelina, uma das Carcereiras da Clausura, e entrou sem bater. A carcereira era a mais influente delas, por ser amante de um dos Guardiões, e ter um filho bastardo desse relacionamento. Um elfo criado até os sete anos junto aos outros órfãos e levado para ser criado pelo pai no ano anterior. Apesar de não reconhecido como filho, pois o Guardião era casado com outra fada, o menino Solon era treinado para Guardião, junto com Egan.

       Miquelina vestia uma túnica escura e longa, como eram as roupas da clausura. Uma touca branca envolvia seus cabelos e suas asas estavam escondidas sob a túnica pesada. Ela apenas ergueu os olhos em sua direção e lhe disse com sátira na voz:

       -Trouxe-me mais um? Não se cansa, Reina, de coletar esses animais e trazê-los para mim? – ela estava sentada atrás de sua mesinha, com um diário e notas em torno de si.

       -Não são animais. São órfãos. Essa cria é fêmea. Uma femeazinha linda – disse carinhosa, aproximando-se da mesa.

       Em um canto da parede havia uma mesinha alta, forrada com panos. Era ali que Miquelina inspecionava os recém-nascidos em busca de piolhos, pestes e qualquer outro agente que pudesse empestear o lugar e tornar uma vida miserável ainda mais horrível.

       Miquelina ergueu-se e pegou a criança de seus braços, do mesmo modo que faria com um saco de batatadas. Colocou sobre a mesinha e Reina notou imediatamente seu olhar mudar.

       -Onde achou essa cria?

       É claro que os olhos astutos de Miquelina entendiam que a femeazinha era importante, e que mesmo sem saber sua descendência, pelas características físicas era possível supor que seu dom seria peculiar. E dons peculiares garantiam bons casamentos, e Reina bem sabia que as carcereiras faturavam sob a venda das fadas.

       -Foi parida por uma fada nas imediações do Vilarejo sem Fim. Uma conhecida que morreu antes que eu pudesse vê-la. A família não pode cria-la. Por isso eu trouxe-a.

       -Qual o dom da progenitora dessa cria? – Miquelina quis saber, afinal seria ela que viveria dia a dia com uma bomba relógio prestes a explodir. Cada pequena fadinha que chegava era um risco eminente, pois seus dons precisavam ser contidos e controlados, ou se voltariam contra as carcereiras.

       -Eu não a conhecia tão bem para saber destes detalhes. Imagino que a criança tenha um bom simplório, ou sua família teria mais posses – mentiu, e Miquelina era sábia na arte da mentira.

       Reconhecia um mentiroso a quilômetros.

       -O que espera que eu faça com essa cria? – Miquelina foi direta.

       -Conhece Túlio, e sabe que ele faz todas as minhas vontades – apelou para mais mentiras, nervosa, lutando para não deixar claro seu desespero em abandonar a cria – Ele me consentiu a permissão para vê-la sempre que eu quiser e cuidar dela como amiga.

       -Imagino. Um elfo velho casado com uma fada que ainda cheira a cio. Não é estranho que lhe faça todas as vontades e caprichos. – Miquelina ironizou, para desmoralizar Reina.

       -Ao menos ele em assumiu. Não sou uma amante relegada aos cuidados da clausura e visitas semanais. – ela disse de volta, rebatendo a ofensa de Miquelina, ao lembrá-la de sua atual situação junto a um dos Guardiões do Rei.

       Miquelina tornou a enrolar a criança e seus olhos correram sobre Reina, medindo sua vontade de cuidar daquela menina. De defendê-la.

       -Não permitirei regalias. Vivemos de restos, e é essa a vida que a criança terá.

       -Não. Eu trarei comida limpa todos os dias. E roupas. Ela não precisa passar por dificuldades...

       -É mesmo? Incitará o ódio contra essa fêmea. Todas as outras a odiaram. E você sabe o risco que é viver presa na clausura com criaturas que a odeiem? Se ama essa cria deixe-a penar junto com as outras. Ou ela será morta antes que você tenha tempo de acudi-la.

       É claro que a verdade tão cruel chocava Reina.

       -Entenda... Nós comemos quando sobram restos do castelo. Nos vestimos, quando sobram trapos descartados do castelo. Calçamos sapatos, quando estes incomodam os pés de outros elfos e fadas e são doados. – ela mantinha a criança em seus braços com a familiaridade de quem já criou dezenas iguais. Seus olhos eram secos, sem lágrimas, e sem vida própria. Apenas a realidade – Não comemoramos o casamento do Rei, querida esposa do Conselheiro Túlio. Nós comemoramos as sobras do banquete real. Venha vê-la quando quiser. Mas venha de mãos limpas e vazias.

       Era um claro aviso. Reina acenou e perguntou antes que pudesse se conter:

       -Conviveu com Santha? Quando ela estava na clausura? Sei que ela tem a mesma idade que nós, mas me pergunto se você a conheceu.

       É claro que Miquelina não era boba. Um sorriso de vitória, ao entender tudo, e ela disse:

       -Sim, eu convivi com Santha.

       -E o que acha dela? – Reina não controlou a curiosidade.

       -O que acho de Santha? O que eu acho é que Rei Isac finalmente tem o que merece – ela disse clara, e sincera. – Quando vier ter com essa cria, me procure. Tenho um assunto para tratar contigo.

       -Não possuímos assuntos a tratar – Reina disse séria.

       -Possuímos sim. Quando os destinos se entrelaçam não adianta fugir ou tentar voltar atrás. Você acabou de dar um nó nos caminhos de nossas vidas, Reina – ela olhou para a cria – Você sabe qual é o meu dom não sabe?

       Reina apenas acenou concordando. Tal como a própria Reina, a carcereira Miquelina possuía um dom proibido e inconfessável, passível de maior punição. Por isso não ousavam verbalizar.

       Tremula, Reina ficou parada vendo Miquelina sair da saleta levando à femeazinha. Baqueada, ela sentou na primeira cadeira que achou e escondeu o rosto nas mãos, tentando não chorar.

       Doía como se fosse sua própria filha.

       Muito tempo depois, ela levantou e limpou as faces, apagando os rastros de lágrimas.

 

       Santha estava atacada naquela manhã e brigando por qualquer coisa fora do lugar. Apática, Reina ignorou toda a sua fúria, e esse simples ato de ignora-la, deixava Santha ainda mais furiosa.

       -Porque não me ouve? – Perguntou Santha em determinado momento, após jogar roupas no chão e Reina abaixar-se com dificuldade para pegá-las.

       -Porque estou triste. Meu coração não aguenta ouvi-la hoje. Por favor, não fale comigo. – ela disse com pesar, tornado sua atenção para as roupas a limpar, dobrar e guardar.

       -Por quê? Por que tristeza? – Santha afastou-se do grandioso espelho onde se arrumava, e levantou da cadeira procurando pelos olhos de sua criada.

       -Tenho afeto por uma órfã do Ministério do Rei – Reina disse afetada demais com a entrada e saída subida de Eleonora de sua vida. – Eu tive que deixa-la para trás outra vez. Isso me corta o coração.

       -Porque não a leva consigo? Para seu lar? – Santha apontou sua barriga e naquele breve segundo, Reina achou ter visto compaixão.

       -Túlio não acha apropriado. Eu só queria... Ser mãe de Eleonora. Mas ele não acha apropriado.

       -Os machos e sua constante generosidade para com suas fêmeas... – Santha ironizou.

       -E não é por isso que cabem as fêmeas a bondade? – perguntou Reina com um feixe de esperanças. – Como rainha você poderia... Amparar os desvalidos da clausura.

       -Oh, sim, eu poderia. Mas não farei. Não quero desagradar o Rei com assuntos que não lhe causem alegria. Quero ser a escolhida definitiva do Rei, Reina. – ela disse com superioridade. - Se eu fraquejar, as fadas da clausura serão livres... Mas eu voltarei para um quarto fechado, em uma clausura repleta de fêmeas escolhidas e abandonadas pelo Rei.

       O mais triste é que Santha tinha razão. Mas por de trás dessa razão, ainda havia rancor e ódio. Santha não queria ajudar. E lhe convinha à desculpa de não incomodar ao Rei Isac com futilidades.

       Olhando para Santha, a criada pegou-se pensamento que talvez, Eleonora estivesse em melhores mãos no Ministério do Rei, do que se estivesse sendo criada pela sua progenitora.

       Santha tornou a sentar-se e se arrumar, e pelo espelho encontrou o olhar de Reina. Um olhar de julgamento.

       Olhar de cobrança, de justiça.

       Reina guardou essa troca de olhares na memória, para nunca esquecer quem Santha era de verdade e não permitir que a piedade por quem ela foi um dia, afetasse seu julgamento. Santha nunca saberia como lhe cortou o coração não poder criar aquele bebezinho tão clarinho e delicado, de feições tão inocentes. Veria Eleonora sempre e seria como uma amiga, mesmo que não pudesse ser sua mãe.

       E, inocente ao mundo, Eleonora estava de volta ao castelo, de onde havia sido rejeitada e expulsa, e esse retorno prometia não ser apenas uma coincidência do destino...

 

                    Pontos cardeais

        Durante os seis anos seguintes à pequena fada rejeitada, Eleonora viveu no Ministério do Rei. Era levada e assídua de brincadeiras fora do castelo, pois as fadas órfãs viviam na liberdade durante o dia, ajudando no trabalho pesado do castelo. Mas isso durava apenas até os vinte anos, ou até o nascimento das asas, o que viesse primeiro.

       Era inseparável de suas amigas, tendo elegido três das fadas órfãs como suas melhores amigas. Driana, poucos meses mais jovem que Eleonora, era morena, de cabelos muito longos e bagunçados, sempre séria, compenetrada, pensando em fórmulas, textos e possibilidades.

       Joan, por sua vez, era a fada mirradinha, que corria como uma lebre vermelha, com seus cabelos de fogo, cílios claros e olhos verdes como jades, sempre buscando uma aventura e uma estripulia, a maior das parceiras de Eleonora nas travessuras e Alma, a que prometia primeiro obter suas asas, dada a idade de alguns meses mais velha que todas elas, possuía uma voz rachada e esguichada e que quando irritada quebrava vidros com seus gritos. Alma que também era tão bonita quando maquiavélica.

       Mas nenhuma das fadas era tão companheira de travessura quando o órfão Tubã, criado separado das fadas, porém no mesmo Ministério. Os elfos não eram preparados para a clausura e sim para serem guerreiros ou escravo a serviço do Rei.

       Não que os monitores estivessem muito animados sobre Tubã. O jovem preferia correr e brincar a seguir ordens e treinamentos pesados.

       Os cinco, quando se juntavam aprontavam as maiores travessuras já vistas no Reino. E nessas ocasiões, os berros das carcereiras ecoavam pelas paredes.

       Apesar da seriedade das fadas monitoras que tudo viam e sabiam, Eleonora contava com a proteção de Reina e isso obrigava as carcereiras a suavizar as punições.

       Era impossível amar Eleonora e não afeiçoar-se a todas elas, pois de algum modo, uma completava a outra. Era uma amizade nascida da profunda necessidade de amor.

 

       Uma das coisas que mais irritava as carcereiras era sumir com seus apitos. Àqueles medonhos apitos feitos de tronco de árvore. Elas usavam aquilo para avisar da chegada e da partida. A hora do almoço, do jantar, o momento em que deveriam correr para o salão principal, onde lhes dariam surras por qualquer desculpa esfarrapada ou então, catar piolhos e vermes.

       Por isso, quando Tubã apareceu com a ideia de roubar os apitos e esconder, foi uma ideia que fez sentido na mente de todos os órfãos. Como esperado, cabia a Driana elaborar um planejamento perfeito. Ela era inteligente demais. Assustava as carcereiras tanta capacidade de projetar e executar.

       Corajosa, Eleonora ofereceu-se para junto de Tubã entrar no quarto de Miquelina, no horário especial da noite, quando a carcereira sumia do Ministério do Rei para encontrar-se com seu namorado secreto, que na inocência total as crianças não sabiam ser um Guardião, pai de seu filho bastardo.

       Eleonora entrou primeiro no quartinho e sufocando o riso vasculhou uma gaveta até erguer triunfante o apito. Miquelina era a pior delas, a mandante de todas as maldades que faziam contra as órfãs e era um triunfo priva-la de algo que lhe era querido.

       As duas crianças correram de volta para um dos quartos dos órfãos, e encontraram Alma arfante de ter corrido pelos corredores mais longínquos, para surrupiar os outros apitos. Num total de nove apitos!

       -Cada um pega o seu – disse Driana, a mandante e elaboradora do audaz plano infantil. – Joan, você pode nos esconder?

       A menina ruiva, de olhos verdes límpidos e assustados, como duas poças de água depois de uma tempestade, acenou concordando e saiu com elas para os corredores.

       Seu dom se manifestava com força desde os seus cinco anos. Ela podia se camuflar e quando seus amigos lhe tocaram no ombro, braços e roupa, se camuflaram também.

       Entre riso, as crianças começaram a soprar seus apitos com força, alertando a todas as carcereiras que algo acontecia.

       Uma a uma as carcereiras foram surgindo, atazanadas pelo barulho ensurdecedor. Os órfãos saíram de seus quartos para ver o que aconteciam, e quando Miquelina foi chamada, tomou a frente.

       -Eu não vejo aquela criatura! Onde ela está?– ela gritou em determinado momento, procurando entre os elfos e fadinhas, contando as cabeças e procurando pelas femeazinhas que imaginava estarem por de trás daquela espúria ofensa.

       -A fada branca! Encontrem Eleonora! Quando eu puser minhas mãos naquele pescoçinho, eu juro, nem mesmo Reina poderá me segurar! – ela estava descompensada.

       Era um tormento lidar com Eleonora, Driana, Alma e Joan. Ainda mais quando unidas a Tubã em uma travessura. Aparvalhadas as carcereiras as procuraram por horas. O apitaço continuava, sem dó e sem trégua, e as carcereiras estavam enlouquecidas com isso.

       Foi uma pena que Joan não possuísse uma boa saúde que a fizessem suportar a camuflagem por muito tempo. Seu dom não era completo, e ela não possuía força para tanto.

       Quando a imagem começou a tremular, elas foram sendo reveladas em fleches e uma das carcereiras mais jovens as notou.

       Como sempre, o grande plano era correr, e dispersar-se, se possível esconderem-se pelos corredores por alguns dias, até a raiva passar.

       Alguns corredores eram tamanhamente reclusos e abandonados que carcereira alguma ousava procura-las por lá. Mas hoje a sorte não estava ao lado das fadinhas.

       Alma arrastava a pequenina e frágil Joan pela mão, mas a fadinha não conseguiu acompanhar a corrida, tropeçou e caiu. E foi pega por Miquelina.

       Arrastando a fadinha pela orelha, e então pelo braço, Miquelina riu satisfeita ao retirar a tira de couro que usava para bater nos órfãos e que sempre guardava em um dos bolsos da túnica.

       A primeira pancada deveria ter cortado o ar e ter acertado a carne de Joan, mas isso não aconteceu.

       De longe, furiosa, Alma abriu a boca e gritou. Ela sabia que isso parava as carcereiras. Seu grito explodiu agudo e as fadinhas e elfos, cobriram os ouvidos, como de costume. Mas hoje, Alma queria mais. Ver alguém ousar bater em Joan acabou com todo resquício de bondade e complacência da fada, que andava perigosamente pelos dois mundos, da bondade e da maldade.

       Seu dom deveria ser algo estranho, pois os gritos de Alma eram ensurdecedores e às vezes, como agora, arrancavam sangue dos ouvidos das carcereiras mais sensíveis.

       -Pare! – uma das carcereiras tentou segurá-la, mas tomada pela fúria que exige vingança e morte, Alma gritou ainda mais, e os vidros das janelas dos quartos, estouraram. Elas não viram, estavam nos corredores, mas o barulho era inconfundível.

       Uma das carcereiras conseguiu chegar por trás de Alma e passar uma mordaça por sua boca, o que não era a primeira vez que acontecia, calado assim seu grito. A fada ainda se debateu, e por ser grandalhona, quase se soltou.

       -Você! – gritou Miquelina, tão furiosa que abriu mão de Joan para pegar Driana que apenas assistia a tudo em choque, sem condições de fazer nada – é tudo coisa sua! Eu sei que é! – Miquelina empurrou-a na direção de outra carcereira – Leve esse animal para um dos quartos subterrâneos! Não quero ver essa cara dissimulada pelos próximos dias!

       -Não faça isso! – Eleonora tentou acerta-la, chuta-la e para-la estarrecida pela crueldade, mas acabou sendo pega pelos cabeços e arrastada para longe, enquanto Tubã apenas assistia rodeado por carcereiras.

       Joan chorava, caída no chão, sem força física para ajudar. Alma tinha os olhos fixos em Miquelina, mas estava imobilizada e não pode fazer nada também. Mas se pudesse, dificilmente alguém poderia parar a criança que nascera com espírito assassino.

       Miquelina arrastou Eleonora pelo corredor e jogou-a na parede, erguendo a tira de couro para acertar uma surra na órfã.

       Os gritos de dor não vieram. Eleonora suportou sem gritar ou chorar, apenas gritou:

       -Não dói!

       Desafiar as carcereiras era ainda pior.

       -Não adianta me desafiar, sua protetora não está aqui, Eleonora! - Miquelina riu, acertando-a mais uma vez.

       -Não dói! – ela gritava, as lágrimas correndo silenciosas pelo seu rosto, suportando a surra sem pedir clemência – Não dói! – dizer isso enfurecia e desafiava Miquelina a bater com mais força – Não dói! Não dói! Não dói! Não dói! Não dói! Não dói!!!

       Seus berros ainda ecoavam nos corredores. Mas não havia quem ouvisse e acudisse. Tubã mantinha essa imagem na mente, ele viveria para sempre atormentado pelo que faziam com eles. Por isso, rebelde, ele escapou pelos corredores, sem que as carcereiras se importassem em procura-lo, pois o espetáculo de ver Eleonora apanhar era mil vezes melhor. Ele correu muito, até escapar por um buraco e estar livre do Ministério do Rei.

       Ele procurou pelo lugar onde normalmente a protetora de Eleonora sentava para ler, enquanto esperava os passeios da rainha chegarem ao fim. Ela ergueu o rosto, interrompendo sua leitura ao ver o menino acanhado, olhando para ela.

       Simpática, fez um sinal para que o menino se aproximasse e quando ele lhe contou o que acontecia Reina levantou e juntou-o pela mão, correndo para o Ministério do Rei.

       Quando chegou, era tarde demais para evitar. As fadinhas estavam no quarto outra vez, trancadas, com exceção de Driana que foi apartada das amigas, por ser considerada o cérebro pensante que incitava toda a anarquia entre os órfãos.

       Reina possuía influência entre as carcereiras, mas não adiantava lutar contra elas. Apenas recusou-se a olhar nos olhos de qualquer uma delas, seguindo o caminho que conduzia aos quartos dos órfãos. As carcereiras não valiam nada!

       Lutando contra o estarrecimento, Reina aproximou-se primeiro de Alma, que tinha a mordaça presa em sua boca. Era muito pequena para conseguir livrar-se daquilo e Reina ajudou. A fadinha tentou falar, mas Reina pousou os dedos sobre seus lábios miúdos e feridos pela mordaça de couro e disse, olhando em seus olhos castanhos, falando com ela como faria com um adulto, pois Alma carrega uma essência velha, como se estivesse vivendo em um corpo infantil por engano.

       -As carcereiras sentem medo de você, Alma. Cada vez que você grita, esse medo aumenta. Esse pavor é que faz as carcereiras agirem sem dó algum. Isso não é justificativa, eu sei disso, mas é assim que acontece. O medo aliado ao poder, causa dor e sofrimento aos frágeis. E por mais que você seja forte e possa lidar com elas, Joan não pode. Eleonora aguenta, é verdade, mas isso causa feridas e chagas que carregará para sempre em seu coração. E a pobre Driana permanece apartada e aprisionada. E olhe para Joan... Assustada e doente outra vez. Tubã é macho, e não aplica temor a nenhuma das carcereiras, pois em breve irá embora, para ser escravo do Rei. Então, Alma, eu lhe peço, seja obediente. Isso causará menos sofrimento.

       -Eu não aguento - ela disse com ódio no olhar, lábios cerrados, sem doçura ou a candura pertinente às crianças. Alma não era uma criança como as outras.

       -Aguenta sim, é mais forte que todas as crianças do Ministério do Rei. Seja cordata e obediente. Faça isso por elas - olhou principalmente para Joan, que estava acamada outra vez.

       Lágrimas de raiva correram na face de Alma, e Reina soube que ela entendia e concordava, mas não era fácil aguentar calada tanta humilhação e coação. Reina beijou a cabeça da menina, para lhe dar um pouco de amor e lhe reconfortar como podia.

       Aproximou-se de Joan e mediu sua temperatura.

       -Veja só, fadinha, está febril outra vez. Acho que a estripulia de hoje não lhe fez bem - ela foi doce, pois Joan era uma florzinha tão delicada que comovia - Então, o que acha de sua amiga Reina lhe trazer um chá fedorento e amargo para curar esse mal estar?

       Joan riu com a doçura que lhe era pertinente e acenou concordando. Reina sabia que era preciso cuidar dela com muita atenção. Os ares das masmorras lhe faziam mal. Sua doença era culpa do ar fétido e da escassez de luz. Umidade demais e mofo, que consumia seus pulmões frágeis.

       Eleonora estava deitada e sua expressão arrependida não enganava ninguém.

       -E você? O que espera que eu lhe diga, Eleonora? - ela perguntou de pé, olhando para sua protegida com seriedade. - A ideia de provocar as carcereiras foi sua?

       -Foi Driana que disse como fazer - ela disse, fungando.

       Depois da surra que Miquelina lhe dera, estava chorosa e emburrada.

       -Sim, mas de quem foi à ideia. Sua ou de Tubã?

       Ouve uma troca de olhares entre as três fadinhas e por conta disso, Reina curvou-se e segurou o queixo da menina olhando em seus olhos.

       -A verdade, Lora.

       Não era um pedido, era uma ordem afetuosa.

       Arrependimento fez o olhar de Eleonora transbordar em lágrimas. Seus olhos não possuíam cor definida, eram claros e translúcidos, e era impossível definir a cor exata das pupilas.

       Reina sentou na beirada da cama, e lhe fez um afago no rosto antes de dizer:

       -Você sabe o que acontece quando aprontam? As carcereiras conseguem a desculpa perfeita para maltrata-las e nem mesmo eu posso questiona-las. O que fizeram não pode se repetir. Nunca mais. Quando Driana voltar do castigo, espero que se conscientize junto de vocês, e parem com esse comportamento horrível. Em exatos treze anos, serão adultas e passaram pela escolha. E qual elfo em sã consciência irá querer fadas rebeldes, com o histórico de vocês em brigas e armações? Eu me preocupo com o destino de vocês quatro. Eu... - Reina passou uma das mãos na face de Eleonora que se moveu na cama, apesar da dor que sentia por conta da surra.

       Reina abraçou a menina e continuou falando:

       -Eu nem sempre estarei ao seu lado, Eleonora. Meu filho, Mirrar, ele está sempre tão doente. Eu tenho receio por ele. Por causa disso... Precisarei permanecer um tempo sem vir ao Ministério do Rei.

       Eleonora afastou-se dela, e piscou desamparada.

       -Seu filho é doente como Joan? - havia ingenuidade em sua voz e Reina lutou contra as lágrimas.

       -Eu receio que seja pior do que Joan. Minhas poções e chás não fazem efeito com Mirrar. - ela não queria trazer essa dor para a menina, por isso, pediu: - Mantenham-se quietas e não aprontem mais. Eu não poderei ajuda-las nos próximos dias. Prometa-me, Eleonora, que vai obedecer ao meu pedido?

       A menina apenas concordou com um aceno da cabeça. Isso era o máximo que Reina conseguiria dela. Beijando a menina diversas vezes, até fazê-la sorrir, Reina despediu-se. Tentou convencer Miquelina a deixa-la ver Driana, mas não conseguiu.

       Voltou para sua casa com o coração apertado por causa de Eleonora, e de suas amigas. E encontrou o filho, seu amado Mirrar deitado na cama, sendo cuidado por uma fadinha que trabalha em troca de ouro. Ele estava pior outra vez.

 

       Semanas mais tarde, as quatro fadinhas observavam de longe a cerimônia que acontecia em um recanto especial, onde eram enterrados com honras os moradores do castelo.

       Mesmo tendo prometido a Reina que não cometeriam nenhuma outra brincadeira ou traquinagem que pudesse irritar as carcereiras, as quatro fadinhas da clausura haviam escapado da forte segurança, como sempre faziam, e ido esconder-se entre as árvores, para espiar a cerimônia triste, o enterro de Mirrar, o filho de Reina. Ele tinha praticamente a mesma idade que elas. E era um dia de pura tristeza.

       Elas ficaram de trás de uma árvore, e as palavras do cerimonialista mal chegavam aos seus ouvidos, mesmo assim, elas entendiam o que viam. O dia estava chuvoso, pesado, o vento forte, frio, castigando todos os elfos e fadas presentes.

       Ao lado de Reina, o Conselheiro Túlio parecia imperturbável, sem demonstrar em público seus sentimentos de perda e dor. Mas o modo como ele mantinha uma das mãos ossudas no ombro de seu primogênito Egan, era a prova que seu coração doía e o fazia precisar tocar seu filho, na esperança de conformar-se e aceitar que ainda havia razões para viver.

       Reina chorava e não poderia ser diferente. Ela observava o cerimonialista falar, mas as palavras e a imagem não lhe captavam atenção. Era seu filho que partia e ela não queria viver desse modo.

       Não queria. A dor era tamanha que ela achava realmente que tudo estava perdido. Quando a terra cobriu o caixão e tudo terminou, a pesada chuva ameaçou cair em pesadas gotas de chuva. Não estavam presentes a Rainha ou o Rei. Era esperado que Santha não se desse a esse trabalho, apesar de monopolizar sua criada, não lhe tinha afeto suficiente para preocupar-se com sua dor.

       Eleonora olhava para cima, para as nuvens pesadas de chuva, e um pingo grosso caiu em sua face. Ela fechou os olhos por um segundo e pediu aos céus que afastassem a chuva e a escuridão, para que Reina pudesse sorrir.

       Ela sempre ficava feliz quando Eleonora fazia isso, controlava o tempo e mudava a temperatura. Era um agrado simbólico de quem não poderia correr e abraça-la, pois criaria problemas para Reina saberem que ela incitava fadas da clausura a escaparem de suas obrigações e andarem pelo castelo sem supervisão.

       A mudança subida no clima atraiu a atenção e era possível que muitos pensassem ser um agrado da rainha para com sua criada, pois esse era o dom de Santha, controlar a temperatura, e o clima. Mas Reina sabia que não. Sua Eleonora estava por perto. Tentou encontra-la, mas desistiu, pois não seria inteligente expor a órfã sem necessidade.

       Túlio a tocou nas costas, e sussurrou algo em seu ouvido e Reina sufocou as lágrimas aos concordar. Era hora de ir. Egan, que não era mais um garotinho, e sim um rapazinho educado, lhe segurou a mão, na esperança juvenil de oferecer consolo. Apoiada, Reina andou junto de sua família, era um momento de reclusão e não de exposição.

       No meio do caminho, eles pararam quando um elfozinho veio correndo na direção deles e entregou a ela uma flor e um bilhete. Reina sorriu triste para Tubã e ele desapareceu tão rápido como viera.

       Elfos não eram questionados, muito menos sabatinados por estarem cometendo crimes. Em alguns meses Tubã seria levado do Ministério do Rei para a escravidão dos treinamentos. Não possuía sangue nobre ou indicação de algum Guardião ou Conselheiro, desse modo, ele seria eternamente um escravo do Rei, servindo de parceiro para os treinamentos, para que outros elfos, como Egan, pudessem treinar luta, pudessem ter sua chance de disputar a armadura.

       -É um bilhetinho de Eleonora. – ela disse sufocando as lágrimas, olhando para o marido com desespero no olhar – Ela me mandou uma riminha infantil. Eu sempre cantei essa rima para que ela dormisse, nas poucas vezes que pude ficar com ela durante a noite. A mesma cantiga que cantava para Mirrar – ela explicou e foi pega em um abraço pelo marido.

       Chorando, Reina agarrou-se a ele como tábua de salvação. A flor havia caído de suas mãos, mas Egan juntou do chão e ficou parado, cabeça baixa, sofrendo a perda de Mirrar, enquanto segurava a flor para devolver a sua madrasta, a única mãe que conheceu em toda a sua vida.

       Aquele sentimento não desapareceria facilmente, iria acompanha-los para sempre.

       E assim foi por semanas. Reina não pretendia voltar a cuidar de Santha até descobrir que estava sendo obrigada. Que nem mesmo a perda de seu filho pudera adoçar o coração da rainha.

       De volta ao trabalho, sem paciência e sem a menor condição de ser afável, Reina permaneceu lutando contra a tristeza, dia a pós dia, até finalmente obter a permissão que tanto esperava.

       Sua chance de recuperar um pouco da felicidade.

 

       Uma das maiores alegrias da vida simplória de Eleonora eram seus momentos na companhia de sua mãe adotiva, como gostava de chamar Reina. Um dia, talvez o mais marcante de sua jovem vida, a fada a encontrou no jardim, e a interceptou em um abraço forte, com lágrimas nos olhos.

       Elas não se viam há muitos dias, pois Reina pouco saía de casa quando não estava trabalhando. A tristeza e magoa acabava com sua vontade de viver, e ela lutava para não sucumbir.

       -Eu sinto tanto, Eleonora – ela dizia emocionada, acariciando os cabelos de algodão macio da menina, enquanto lutava para não se desesperar – Eu sinto do fundo do meu coração. - a fada mais velha tremia, suas mãos tocavam a órfã com carinho imensurável.

       A pequena fada quis lhe perguntar por quê. Mas não havia tempo para conversar longamente. A Rainha Santha estava em um passeio pelo jardim, e não era apropriado que um dos órfãos fosse visto em seu passeio. Que Reina fugisse de suas obrigações

       -Meu filho, Eleonora, meu pequenino Mirrar... Você sabe que o perdi há alguns meses, meu amado filho... – ela chorava, pois a dor e a lembrança da perda do filho, tão pequeno e frágil, ainda a consumia – e que essa dor é insuportável. Eu pedi muito ao meu marido que me permitisse adotá-la e trazê-la para ser criada em nossa casa, na esperança que essa dor vá embora e eu possa ser outra vez a esposa que Túlio tanto precisa – ela alisou a face da fadinha, com suas bochechas rosadas das travessuras e seus olhos tão claros como gotas de água. – Mas... Egan, meu enteado foi escolhido sucessor de Túlio, meu marido, e será o primeiro Guardião em poucos anos. Ele precisa de dedicação total de uma mãe. Talvez de um irmão. Eu consegui a permissão, Eleonora. Mas apenas... Se eu escolher um menino e não uma menina. Um elfo e não uma fada. Para que Egan tenha com quem treinar e conviver como macho. Que uma fêmea em casa pode distraí-lo dos treinamentos, porque embora seja uma criança ainda, é uma fêmea, e Egan é um adolescente... – ela fungou e baixou o rosto – Eu... Sinto tanta falta de ser mãe. Tanta falta. Eu não consigo lutar contra a vontade do meu marido... Eu queria ser forte e insistir, mas tenho medo de perder essa chance. Eu preciso segurar uma criança, Eleonora. Eu preciso ser mãe de novo. Por favor, não pense que a escolha é fácil para mim.

       -Escolha Tubã – Eleonora havia dito com toda sua inocência infantil, piscando graciosamente, sem hesitar ou ponderar se estaria perdendo ou não. Ela ganhava. Ver seu amigo ser adotado era uma vitória. – Ele será um bom filho. É um pouco trapalhão, mas vou pedir que se comporte. Que não seja arteiro e não lhe dê trabalho, Reina.

       Sua doçura e pureza a fez desesperada de agonia e sofrimento. Com um abraço forte, Reina levantou-se e correu para longe do castelo levando Eleonora pela mão. Poucos segundos depois, a Rainha Santha andava por aqueles lados do jardim sem nada suspeitar.

       Reina nunca permitia que Rainha Santha tivesse a mínima chance de encontrar Eleonora. Miquelina também agia pelas costas de Santha. Era um grande segredo do Ministério do Rei. Um segredo que aguardava seu momento de ganhar vida.

       Em seis anos, Santha jamais avistara a menina que tanto se parecia com ela. Em seis anos jamais voltara a pensar na filha que abdicara em nome do poder, e era melhor assim. Melhor para as duas, cria e progenitora que se mantivessem na ignorância, uma sobre a existência da outra.

       Em dessa forma, dias mais tarde, Eleonora assistiu o melhor amigo Tubã ir embora e sua mãe adotiva virar as costas para ela. Apensar dos pesares estava feliz.

       E não estava sozinha. Ao seu lado, agarradas nas grades da masmorra mais alta do Ministério do Rei, observando Tubã ir com sua nova família, Eleonora permaneceu na companhia de suas amigas Driana, Joan e Alma.

       Elas eram sua única família.

       Era toda a família que ela precisava...

        

                       Sussurros e segredos

        Os próximos treze anos passaram entre invernos rigorosos e verões abafados. Ninguém reclamava disso com exceção de Alma que sentia no corpo as marcas de cada estação, por ser mais sensível do que todas as demais fadas e penar com sua voz sempre presa e garganta dolorida. Sua saúde era de ferro, contrário de Joan, mas sua garganta se ressentia com as mudanças de estação.

       -Eu gostaria de ter o poder de manter a primavera por todo o ano – Alma disse de repente, em um dia de calmaria, estando às quatro deitadas na grama orvalhada, bem cedinho, enquanto observavam o azul do céu.

       Uma das muitas fugas diurnas das quatro, em busca de paz e calmaria, uma trégua em todo o horror que vivenciavam dia e noite no Ministério do Rei.

       Elas fugiam com discrição, como orientara Reina anos atrás, sem enfrentar as carcereiras, e escondiam-se nos prados, desfrutando da falsa sensação de liberdade.

       Ao seu lado Joan piscou graciosamente e afastou uma mexa de cabelo ruivo da face, que o vento insistia em trazer de volta, incomodando-a.

       -Tem quase vinte anos, Alma – ela disse preocupada.

       -E o que tem isso? – Perguntou Eleonora quase ofendida em nome da amiga.

       De todas, a única que se recusava a falar sobre isso era Eleonora. Era um assunto marcante que revoltava Eleonora.

       -Tem, que Alma será a primeira de nós a ser levada para a clausura – Joan disse magoada – Serão longos meses sem vê-la. E a última das suas preocupações será o tempo ou as estações.

       -Grande coisa. Todas nós seremos trancafiadas – Alma disse com amargor – E o que importa qual de nós irá primeiro?

       -Eu vou gostar de ver o dia em que as Carcereiras tentarão levar Alma a força para a clausura definitiva. Vou gostar mesmo. Com sorte Alma estourará os tímpanos de todas as carcereiras e serenos libertadas por falta de quem cuide de nós – ironizou Driana, sabendo bem que essa possibilidade existia, mas não causaria a liberdade e sim as masmorras. Driana mexia com a grama, arrancando tufos verdes, evitando olhar para elas -Tenho esperança que Alma seja escolhida logo para esposa – Driana disse novamente, suspirando – É tão bonita, suas asas serão lindas também. Alguns Guardiões reparam muito em Alma, pois ela tem o corpo grande. E tem peitos grandes também – ela disse para acrescentar alguma esperança na conversa. – Eu ouvi dizer que um Guardião vem falando dela.

       -Conversa – Alma disse com irritação – Não sou eu quem recebe presentes de admiradores secretos.

       Driana olhou para o bloco em suas mãos. Era verdade, um Guardião lhe enviara um bloco de notas como presente de admirador, mas não sabia qual deles enviara. E Driana torcia para não ser nenhum muito estúpido, pois confundir um bloco de notas com um de desenho era uma grande estupidez. Driana ofereceu o bloco para Alma, que era a desenhista do pequeno grupo. Aquele presente seria mais adequado a ela.

       Mas visto que as fadas tinham problemas maiores do que o mistério do admirador secreto e trapalhão de Driana, ela se recusava a pensar nisso.

       -Não seja pessimista, Alma. Você passará pela escolha, e é uma linda fada. Se desfizer a carranca e fingir um belo sorriso, poderá seduzir um bom elfo que se casará com você e a tirará dessa desgraça.

       -Acredita mesmo nisso? – Eleonora sentou-se e abraçou os joelhos, apoiando a face clara sobre os braços, enquanto fitava as amigas – Tubã me disse que não poderá escolher uma esposa enquanto todos os Guardiões não estejam casados. Isso pode levar anos. Eu disse a ele que é um alívio. Afinal, como ele poderia escolher entre nos quatro?

       As outras três fadas sorriram e concordaram com um aceno. Tubã não seria capaz de escolher apenas uma para ser livre, enquanto as demais amigas ficariam para sempre aprisionadas. Apesar do claro interesse que o elfo detinha por Eleonora.

       Apesar de rir, Driana ainda procurava coragem para revelar à amiga, que pelas leis do reino, uma vez adotado por uma família de linhagem, Tubã passava a ser tratado como tal, independente de sua procedência de nascimento,

       E nesse caso, as leis que regiam o comportamento dos elfos escravos não se aplicavam a ele. Poderia escolher uma esposa, independente da escolha dos Guardiões. Mas era melhor não falar sobre isso agora. Tubã deveria ter suas razões para mentir...

       -Soube que Egan terá uma prometida esse ano. – Driana brincou, notando imediatamente Eleonora avermelhar – e não adianta insistir, não contarei o nome da felizarda!

       -Eu me pergunto como Driana sempre sabe de tudo – Joan alfinetou sorrindo.

       Driana sorriu arrogante e respondeu:

       -Tenho ouvidos atentos e gosto de estar no lugar certo e na hora certa... – ela mesma riu quando as outras fizeram isso – Sim, eu escuto as conversas secretas das carcereiras durante a noite, quando elas se juntam na saleta pessoal de Miquelina para fofocar! É a única forma de saber o que elas aprontam para nós.

       -As carcereiras são cobras com asas – disse Alma, rancorosa – Um dia desses ainda me livro de Miquelina.

       -Enquanto isso não acontece... – Driana disse com acidez, desmerecendo a raiva de Alma, pois esse sentimento seria eterno e jamais teria rendição e satisfação, pois as carcereiras detinham poder e elas não.

       -Eu não quero saber quem é – Eleonora disse petulante, ainda pensando no assunto anterior, sobre Egan e sua futura escolhida – Eu não me importo por quem o Primeiro Guardião está apaixonado!

       -Amor? Esse sentimento não está envolvido na escolha. Tudo dependerá da beleza das asas, da utilidade do dom, e da necessidade de cada um que escolher. – Alma lembrou-as. – É assim que seremos analisadas.

       -Como laranjas no mercado da vila – Eleonora disse azeda.

       -Como grandes laranjas pobres – apoiou Joan, triste.

       -Laranjas da mais feia das laranjeiras, grandes, pobres e fedorentas. – Concordou Driana, desistindo de ter esperanças.

       As três se mantiveram em silêncio pensando sobre isso. Estavam em uma planície em volta do vilarejo, adjacente ao castelo. Sempre brincavam por essas terras desde crianças.

       As fugas do Ministério do Rei eram a única forma delas se sentirem normais e livres. Infelizmente não poderiam passar pela forte segurança do castelo e desaparecer floresta a dentro. Limitavam-se aos bosques e planícies dentro das muradas do castelo. Uma pena, pois Eleonora gostaria de ver a vida lá fora, e Driana adoraria ter a chance de saber se tudo que lia nos livros era real.

       Alma apenas desejava desaparecer, e nunca mais precisar ouvir falar em carcereiras, clausura e fadas submissas. Eleonora por sua vez, tinha o coração tomado pelo Primeiro Guardião, e pela amizade por Reina e Tubã, e era refém de seu próprio coração e desejos, por conta disso, provavelmente passaria toda sua vida próxima ao castelo do Rei Isac. A liberdade não a atraia tanto quanto a possibilidade de viver perto daqueles que amava!

       Os anos passaram e agora as quatro estavam na eminência dos vinte anos. Apensar de a idade sugerir que Alma seria a primeira a passar por isso, era impossível precisar, por ser um evento imprevisível.

       As carcereiras tentavam adivinhar a idade das órfãs, mas a única certeza era quando do Padecimento das Asas, o momento onde as asas nasceriam. Normalmente aos vinte anos. Algumas fadas de lugares distantes podiam ter uma anatomia diferente, mas de regra, era sempre aos vinte anos.

       Egan havia se tornado tudo que Reina e Túlio esperavam dele. Um aplicado elfo, que honrara o nome de seu pai, tornando-se um Guardião, seis anos atrás. A armadura o reconhecia pela herança de sangue com Túlio, o último a vestir aquela armadura. E também o aceitava, como elfo justo, honrado e valoroso. A cerimônia de posse da armadura havia sido muito bonita, seis anos atrás.

       Eleonora sorriu saudosa da lembrança.

       Tinha somente quatorze anos na época, assim como Tubã e suas amigas do Ministério do Rei. Egan tinha vinte e um anos, e era um orgulhoso futuro Guardião. Parecia ter-se passado apenas um dia, e não longos anos de caminhos tão distantes e diferentes. Ela queria tanto ir à cerimônia da entrega da armadura. Tanto que doía ser excluída, e saber que não fazia parte da vida de Reina. Sua presença não era bem vinda pela linhagem de Egan.

 

       Tubã estaria lá. Era tão apegado ao irmão de criação que parecia que era ele quem receberia a armadura e não Egan. Orgulho entre irmãos, um sentimento que nasceu imediatamente depois da adoção.

 

       Reina insistiu muito que ela não fosse. Que mesmo que as carcereiras permitissem, ainda assim, seria visto com péssimos olhos essa insubordinação tão perto da escolha das fadas, após o padecimento das asas.

 

       E como sempre, partiu de Driana a ideia maluca de ir escondida na festa. Tubã adorou a ideia, e mesmo Reina concordou desde que ela usasse uma capa, e se mantivesse escondida dos olhares.

 

       Joan não queria ir à festa, estava acamada e não queria desgastar-se demais. Alma, ficaria junto da fada vermelha, como sempre era um cão de guarda, protegendo Joan com a própria vida, se necessário. Nunca a deixaria sozinha e enferma. Driana, por sua vez, era pragmática demais para sentir legitima vontade de ir a uma festa. Fazia questão que trouxesse alguns doces para elas, mas nada, além disso.

 

       Por isso, na tarde da posse da armadura, Eleonora vestiu a capa que Tubã lhe trouxera mais cedo, cobrindo a túnica simples de órfã do Ministério do Rei, o capuz cobrindo seus cabelos e escondendo suas feições.

 

       Decepcionada, Eleonora perdeu a entrega oficial da armadura, pois Miquelina e as outras carcereiras estavam atentas e vigiando os órfãos como moscas varejeiras, pois temiam fugas em um dia de festa. Quando finalmente chegou ao centro do castelo, no salão principal o Guardião estava na posse de sua armadura, vestindo-a com o orgulho de quem fazia isso por merecimento.

 

       Egan era tão bonito, pensou Eleonora, apaixonada. Seu sorriso orgulhoso, seu olhar corajoso, sua postura séria e honrada... Estava tão entretida apreciando Egan, que se assustou quando Tubã abordou-a em seu esconderijo.

 

       -Veja só, uma fada fugitiva! - ele fez troça e ela riu, lhe acertando uma tapa no ombro.

 

       -Você me assustou! - ela reclamou - Me diga, a cerimônia da entrega foi bonita?

 

       -Sim, entediante, mas, foi bonita - Tubã respondeu com seu jeitão desligado das formalidades - Lá está minha mãe, vou avisa-la que está aqui. Vai dançar antes de voltar para... O Mistério?

 

       Ele sempre ficava desconfortável ao falar do orfanato. Culpa por ter sido adotado, quando era ela quem deveria ter tido essa sorte. Eleonora o empurrou gentilmente sorrindo e respondeu:

 

       -Eu não tenho muito tempo. Terá sua dança se eu conseguir falar com Reina primeiro! - prometeu, ocupada em olhar em volta com interesse, enquanto Tubã desaparecia entre as criaturas, procurando por sua mãe adotiva.

 

       A rainha Santha estava lindamente vestida em ouro e seda. Os anos não haviam passado para ela, ou para Rei Isac, mas para Lucius... Bem, ele estava velho e feio. Típico de quem não possui encanto algum, e a ausência de sorrisos ou simpatia, tornava-o ainda mais feio, por culpa da amargura.

 

       Ou simplesmente, seus olhos se recusavam em ver beleza naquele elfo sórdido.

 

       -Eleonora? - a pergunta assustou-a muito.

 

       Ela virou-se em pânico de ter sido pega. Era Túlio, o Primeiro Conselheiro.

 

       -Eu... Ah... Sinto muito, já estou indo embora - apressou-se a dizer.

 

       Ele era sempre muito sério e contrário à devoção da esposa para uma fada da clausura.

 

       -Espere, fique. É uma festa. É bem vinda, desde que não seja vista ou reconhecida - ele foi franco, olhando-a com interesse - Acho que é a primeira vez que conversamos, embora sinta como se fizesse parte da minha vida.

 

       -Sim, também sinto o mesmo - ela foi franca, baixando os olhos, completamente deslocada e envergonhada.

 

       -Vamos andar um pouco. Aqui parados, chamaremos atenção demasiada. - ele sugeriu e Eleonora começou a andar ao seu lado, sem saber no que daria aquela conversa toda. – Sabe que a cada ano, a eminência do padecimento das suas asas tem tirado o sono de Reina. E por consequência, o sono de todos os meus filhos. E o meu sono, também.

 

       -Eu sinto por isso. Faltam muitos anos ainda. É bastante tempo. Reina não precisa preocupar-se com isso. - prometeu.

 

       -Tenho dito isso a ela. Tubã a escolherá. Seu problema estará resolvido, e Reina terá paz. Finalmente, você fará parte da família.

 

       Essa declaração a surpreendeu, Eleonora parou de andar e foi sincera:

 

       -Isso não vai acontecer. Amo Tubã como um irmão. Não me casaria com ele, não poderia fazer isso com seu sentimento. Estaria mentido, apenas para me salvar. - suspirou - Tubã encontrará uma fada que o faça feliz e eu... O destino não pertence a nós.

 

       -Penso desse modo. O destino não pertence a nós. Mas de um modo ou de outro, você precisa fazer parte dessa família, ou Reina jamais será inteiramente feliz. Ou a caso com um Tubã, ou com Egan. Tubã vive falando de casamento, mas na prática, tenho minhas dúvidas se ele realmente terá coragem de lidar com a responsabilidade que um enlace traria. Egan por sua vez deveria ter escolhido uma fêmea, mas ele é cabeça dura e prefere a solidão. Ou melhor, ele prefere os paparicos de Reina, e não vê necessidade de casar. Mesmo assim, não lhe esconderei a verdade, Eleonora: sonho com uma fada de linhagem para meu primogênito. Para Tubã também. Mas não tenho forças para lutar contra toda a minha família.

 

       Eleonora tentou sorrir e não parecer mal agradecida, mesmo que soubesse que o Conselheiro apenas dizia isso por amor a Reina e pelo desejo de acabar de uma vez com a ligação que sua esposa mantinha com o orfanato. Ele não era de todo ruim, apenas não sabia o que fazer para conciliar seu posto de importância dentro do castelo, o que garantia uma vida boa e confortável para sua família, e o amor incondicional de sua esposa devotada, para com uma órfã.

 

       Envergonhada, ela sentiu alívio quando alguém interceptou a atenção do Conselheiro e ela pode fugir daquela conversa estranha.

 

       Avistou o Guardião Egan, e escondeu-se entre os elfos e fadas que dançavam, bebiam e comemoravam. Queria ser invisível, e sem querer, tropeçou em alguém, seus olhos se pegaram aos olhos de outra fada, e tudo foi muito rápido.

 

       Ela havia esbarrado em Santha, a rainha.

 

       Olhos nos olhos, como em um espelho.

 

       As duas se afastaram imediatamente, repelidas pela mesma força do assombro e da falta de eloquência. Santha refugiou-se por trás de uma taça de elixir proibido fitando o vazio de uma paisagem qualquer com horror nos olhos. Nem mesmo a presença de Lucius em seu encalço afastou o sentimento.

 

       -Não foi nada. Eu preciso de mais elixir. Estou vendo o passado e o passado não existe mais. - ela disse emocionada, tentando sorrir - Venha, querido, me leve para um lugar seguro e me abrace. Eu não aguento mais essa musica ridícula e essas criaturas insípidas a minha volta.

 

       Ela apelou para o único consolo que ainda a fazia suportar a vida de rainha. A liberdade pesava em seus ombros bonitos.

 

       Eleonora por sua vez, refugiou-se em um canto, esperando encontrar Reina ou Tubã para fazer a fuga ter valido a pena. Foi um momento de alienamento, e então, Eleonora se esqueceu do susto e começou a procurar por Reina.

 

       Estava distraída por isso gritou quando alguém a segurou por trás e a fez rodopiar.

 

       -Tubã, eu já disse mil vezes para parar de tentar sempre me assustar! - ela empurrou-o, e parou no mesmo instante ao ver que ele não estava sozinho.

 

       Ao seu lado, um dos Guardiões, vestido devidamente com sua armadura, embora mantivesse o elmo de ouro nas moas, pois não se acostumava a usa-lo facilmente.

 

       -Não seja ranzinza, Lora. Conheça meu irmão. Finamente, conheça meu irmão responsável e competente. Só não teça comparativos... O ego de Egan não suportaria saber que uma fêmea prefere seu irmão mais novo a um Guardião... - ele fez graça e a fez próxima demais do Guardião.

 

       -Você perdeu o juízo, elfo? - ela disse entre dentes, rangendo-os, indignada. – Ele é um Guardião!

 

       -Egan é de confiança. Não é, Egan? Não vai dedurar uma fadinha inocente da clausura roubando doces da festa, vai?

 

       - Tubã, sem mentiroso! Eu não roubei doces! Ainda não... - ela disse envergonhada. - Afaste-se, elfo! - ela empurrou Tubã, mas ele sempre a fazia rir, mesmo que não quisesse,

 

       Em meio ao riso, pois ele lhe fazia cócegas, o capuz escorregou de sua cabeça e ela pode ser vista, em sua total beleza. Por um segundo, ela reconheceu esse sentimento no elfo vestido com a armadura.

 

       Um macho que vê a fêmea, e não a fada. Foi algo muito rápido, um olhar de nada, mas que tornou a simples paixonite platônica de Eleonora em um vulcão! Uma paixão totalmente verdadeira!

 

       -Pare! Pare, Tubã! - ela reclamava, mas não podia parar de rir, mesmo que quisesse parecer séria.

 

       -Não deve fazer uma fêmea rir de você, Tubã, ou ela nunca o respeitará com macho - Egan lembrou o irmão e Eleonora mal acreditou no que ouvia. -Acha graça do que eu disse?

 

       -Não - ela disse rápida demais - Quero dizer... Se eu não puder rir com elfo... O que farei com ele... Limpar suas botas e lavar suas roupas encardidas? Diante dessa perspectiva, cada vez a clausura me parece mais atraente.

 

       Não pareceu que Egan compreendesse ou apreciasse seu senso de humor distorcido.

 

       Algumas fadas a consideravam ferina demais em suas colocações, outras, apenas a consideravam uma brincalhona. E de brincadeira em brincadeira Eleonora falava a verdade.

 

       -Entre um serviço e outro, uma dança é sempre mais atraente do que a clausura – ele disse de volta e Eleonora soube que entendia seu humor negro.

 

       -Prometi uma dança para Tubã – ela desvencilhou-se das mãos do elfo, e piscou para ele – Mas não posso dançar, estou escondida. Não quero problemas com as carcereiras.

 

       Tubã reclamou imediatamente. Carinhosa para com seu amigo, ela lhe fez um carinho no cabelo bagunçado e o beijou de leve na face coberta por o que prometia no futuro vir a ser uma barba. Agora era só uma penugem de menino que crescia rápido demais.

 

       -Outro dia quem sabe? – prometeu.

 

       -Dance com Eleonora, Egan – disse Tubã, com piedade no olhar – Ninguém questionará a procedência de uma fada escolhida pelo Guardião empossado. É a sua festa. Se fizerem perguntas, direi que é uma prima feia e rabugenta, vinda de longe para o evento – ele piscou para Eleonora – Lora vai gostar de dançar.

 

       Eleonora não respondeu. Sentiu emoção, e se calou. Sim, ela gostaria de dançar de verdade, uma única vez em sua vida, antes de ser presa na clausura, algo que aconteceria em breve. Ela sempre dançava com suas amigas e mesmo com Tubã, mas era uma dança sem musica e sem vida, pois era algo solitário. Dançar com um par, com musica e em uma festa?

 

       Se ela fosse chorona como Joan, estaria debulhando-se em lágrimas de felicidade. Lembrou-se das amigas e do fato delas não poderem desfrutar do mesmo. Negou o pedido de Tubã, e olhou para o Guardião:

 

       -Eu nem mesmo sei dançar. – havia lágrimas em seus olhos, mas ela sorria.

 

       Egan sabia que havia alguma coisa ali, uma profunda razão para a negativa.

 

       A razão verdadeira era não se iludir e se deixar revelar por conta de uma paixonite. Joan estava bastante doente, não poderia passar por outra surra das carcereiras. E se pegassem Eleonora aprontando, descontariam em todas elas, de modo a causar coação e vingança. Era sempre assim.

 

       -Além disso, é melhor me apressar, ou todas as fadas de linhagem roubaram todos os doces da festa antes de mim – ela ironizou, vendo uma fada ricamente vestida, escondendo doces e salgados em uma bolsinha. – Parabéns, Guardião. É uma honra que tenha sua armadura, e um alívio que tenha o escolhido. Imagine... Se a armadura escolhesse Tubã? – ela não resistiu a uma provocação e o riso do amigo aliviou sua tristeza.

 

       Era melhor assim, que a tristeza e a desilusão fossem camufladas por sorrisos e olhares. Em poucos meses ela seria trancafiada para sempre e talvez, jamais voltasse a ver Tubã.

 

       Com o coração apertado, ela despediu-se e fugiu dos dois elfos. Tubã trocou olhares com o irmão, como quem diz que Eleonora merecia mais do que isso, e a seguiu. Parado no mesmo lugar, Egan aspirou o perfume deixado para trás, perguntando-se se o cheiro da fêmea também abalava seu irmão, do mesmo modo que acontecia com ele.

 

       Virou-se para espiar os dois juntos, Eleonora surrupiava alguns doces, enquanto trocava palavras carinhosas e brincalhonas com o amigo. Em determinado momento, Tubã falava sem parar, mas ela não prestou atenção, e olhou para trás, tentada há espiar um pouco mais o Guardião.

 

       Ele estava olhando para ela. Seu coração saltou dentro do peito. A troca de olhares durou mais do que o esperado. Ela não estava no cio ainda, nem mesmo no começo do padecimento do cio, então essa não era a justificativa plausível para o calor que corria em suas veias e o desespero por contato, que a tomou de surpresa. Envergonhada de si mesma, e confusa, Eleonora desapareceu na multidão de elfos e fadas que comemoravam e voltou para o Ministério do Rei, levando doces e novidades para suas amigas.

 

       Juntas, elas devoraram os doces, antes que as carcereiras sentissem o cheiro e os tirassem delas. As novidades foram degustadas com mais calma. Cada palavra absorvida como se a vida fluísse pelas palavras de Eleonora.

 

       As quatro fadas da clausura conheciam a vida através de relatos, de fugas e de momentos fugidios.

       Talvez por isso, saber que Egan tinha uma escolhida, deixava Eleonora tão incomodada e magoada.

       -Ela é bonita? – Finalmente Eleonora perguntou sem conseguir se conter.

       -Eu sabia! Você quer saber tudo sobre a escolhida de Egan! – Driana gritou rindo.

       Joan e Alma a acompanharam e Eleonora não pode evitar sorrir.

       -Eu reparo no primeiro Guardião. Ele que não sabe que eu existo.

       -Quer ser escolhida por ele? Isso é tão tolo. – Driana desdenhou – Esqueceu-se que por causa dele não pode ser adotada? Eu não entendo as fêmeas. Não gostaria de ser esposa. Mas sim, uma estudiosa. Acho que nasci sob o gênero errado. Identifico-me melhor com o modo de pensar e sentir dos machos.

       -Sim, Driana, não se preocupe, poderá estudar a fundo nossa desgraça se passarmos o resto de nossas vidas naquela desgraçada clausura. – Eleonora disse com acidez.

       -Devemos ter esperanças. Rainha Santha foi escolhida após anos de espera. – Joan lembrou-as, com ingenuidade.

       -Santha. A Rainha. – Eleonora ironizou levantando e andando pela grama, imitando a rainha.

       Apesar de nunca ser vista quando andava pelo castelo, sempre via a rainha. Imitou-a com todo o desdém de alguém que não gosta de uma pessoa.

       Santha que mantinha Reina em um trabalho que não suportava e monopolizava seu tempo. Rainha Santha que proibia que as sobras dos banquetes fossem levadas para a clausura, e que suas festas sempre culminavam em abundância de alimento sendo jogado para os animais nas estrebarias, enquanto as fadas do Ministério do Rei passavam fome! Santha, a rainha louca!

       -Existe alguém mais pomposo que ela? – Perguntou quando terminou sua ironia, rodopiando debochada e imitando os gestos afetados e arrogantes da rainha.

       -Não – as três responderam juntas, rindo de sua performance e Eleonora jogou-se na grama olhando para o céu enquanto dizia:

       -Eu gostaria de saber quem será escolhida por Egan. Eu gostaria de ser escolhida por ele... – Seu pedido inconsciente terminou em um suspiro apaixonado.

       Era um sonho impossível e por causa disso nenhuma delas teve coragem de incentiva-la.

       As quatro deitaram e fitaram o céu azul, em silêncio, pensando em suas desgraças e no que aconteceria nos próximos meses.

       -Oh, não. Ele nos viu! – Joan disse reparando em algo, acabando com o momento de divagação delas.

       Ao longe, eram observadas pelo constante acompanhante da Rainha Santha, Lucius.

       -Ótimo. Eu precisava mesmo de uma semana lavando os degraus de todas as escadarias do castelo... – Alma reclamou levantando e previamente baixando a cabeça, enquanto ele se aproximava.

       Lucius era um devasso e vivia seguindo as fadas da clausura. Ele visitava as pobres enclausuradas e havia boatos sempre estupros e agressões. E quando não estava coagindo as fadas aprisionadas na clausura, perseguia as quatro fadas. Fazia tempo que elas notavam que ele as rondava.

       Lucius não perdeu tempo olhando para as demais fadas, seus olhos estavam fixos na fada debochada que sequer se dava ao trabalho de levantar em sinal de respeito. As outras três de pé, falsamente humildes, esperando a punição, mas Eleonora continuava deitada na relva, olhando para ele com petulância.

       Houve uma disputa de egos naqueles olhares profundos e quando Eleonora sorriu profundamente debochada, ele soube que se o respeitava era apenas por não ter escolha. Ela levantou e fez uma mesura, como era ensinado, e manteve os olhos nos dele, nada arrependida da fuga, muito menos de ter sido pega por ele. Não o respeitava, e isso estava absolutamente evidente em seus olhos expressivos.

       Ele não podia desviar os olhos da fada pálida e esbranquiçada como uma nuvem do céu.

       Em longos dezenove anos eles se recusou a ver a verdade diante dos seus olhos.

       E agora, essa verdade ameaçava sua vida e a vida da Rainha.

 

                      Poeira de diamantes

        Dias mais tarde, Eleonora soube que algo estava errado quando Tubã não apareceu para o encontro com elas durante a tarde. Driana, sempre pragmática não achara necessário preocupar-se com Tubã. Alma, não tinha paciência para isso, e Joan... Pobrezinha, a cama era seu melhor refúgio desde que adoecera outra vez.

       Intrigada com o desaparecimento do amigo, Eleonora permaneceu junto aos portões do castelo, escondida dos olhos de todos, esperando pelo momento que Egan, o Primeiro Guardião voltaria das rondas, e passaria por ali. Há alguns anos atrás ele adquirira o domínio de sua armadura, e poucos meses depois, depois de uma missão bem sucedida junto a Floresta de Saul, adquirira o direito a o posto de Primeiro Guardião, tudo pelo mérito do sucesso na missão que resgatou doze fadinhas sequestradas por Caçadores de Fadas, e que seriam vendidas como mercadorias.

       Resgatada as vítimas e aprisionado os culpados. Infelizmente Rei Isac tendia a entregar poder demasiado a Lucius e ele tinha interesses os próprios em garantir a liberdade dos Caçadores em atividade, e por conta disso, a pena fora branda, e hoje, eles estavam soltos em alguma parte do Monte das Fadas, fazendo novas vítimas.

       Normalmente Tubã acompanhava o irmão de criação e era sua função auxiliar o Guardião em seu trabalho de proteger e zelar pelo Rei, mas todos sabiam que Tubã aproveitava as viagens para se divertir e conhecer o mundo. Estava pouco ligando para o trabalho.

       Quando pensava nisso, Eleonora precisava conter a vontade de revirar os olhos e perguntar a quem todos enganavam. Tubã de modo algum tinha serventia para auxiliar quem quer que fosse ainda mais em um cargo de confiança do Rei! Um Rei que ele debochava e não respeitava, um trabalho maçante, que como dizia Tubã, não fazia jus ao seu talento e criatividade.

       Tubã era um malandro apegado a boa vida, isso sim.

       Estava escondida, mesmo assim, alguém a via. Ela não notou que se destacava a distância. Do alto de seu cavalo, Egan percebeu a cabeleira clara da fada, assim como sua pele e seus traços inconfundíveis. Vestida de branco, uma túnica quentinha para aquela tarde amena, era a visão perfeita de uma flor copo de leite.

       Era um milagre que Eleonora não houvesse sido escolhida por elfo algum. Muitos reparavam nela, mas refreavam o desejo, para não causar briga com o irmão menor, e protegido, do Primeiro Guardião. Mas que a danada era bonita e cativante, isso ela era.

       Ele não gostava de reparar na fada que sempre andava com seu irmão. Tubã estivera desaparecido durante todo o dia, e ao vê-la esperando, Egan entendeu que ao contrário do que imaginou Tubã não estava com a fada, em namoricos impróprios, e sim, em alguma aventura que causaria repercussões desastrosas.

       Menos mal que não andasse com uma das fadas da clausura. Era amigo de quatro delas, e Egan entendia, pois viveram juntos no Ministério do Rei. Mesmo assim desconfiava dos sentimentos entre Tubã e a fada Eleonora.

       Não notou que fixava os olhos na fada, até que não houve modo de fingir não vê-la. Ela segurou com força na grade do imponente portão e não afastou o olhar, apensar de parecer acanhada.

       -Esperava que Tubã estivesse com você – ele foi logo dizendo, sem rodeios, controlando seu cavalo com maestria, pois o animal desejava seguir o exercício.

       Era alto, um dos elfos mais altos do Reino. Tal qual o pai era moreno, cabelos escuros, e pele escura, bronzeada pelo sol. Vestia a armadura de metal, e carregava consigo espadas e escudo. Seus olhos eram castanhos, como duas amêndoas. Eleonora sempre ficava tímida na sua presença. Era incontrolável. Toda sua espontaneidade caia por terra e ela se tornava retraída e envergonhada de si mesma, sem saber como agir.

       O tom de voz do Guardião soou como uma cobrança.

       -Não vi Tubã o dia todo – ela disse preocupada – Onde ele estará? Tinha esperanças que estivesse com você...

       -Talvez tenha criado juízo e esteja conversando com nosso pai sobre a escolha do próximo mês. – Ele deixou escapar, pensativo, pois esse assunto vinha causando muitos transtornos em seu lar.

       Muitas brigas e gritarias. Tubã acabava com os nervos de Reina e a consequência disso, eram as brigas com seu pai, Túlio.

       Sua madrasta martelava sem parar nessa mesma tecla. Casar Tubã ou Egan com sua fadinha protegida, Eleonora, e que o filho restante, deveria escolher uma das outras fadas, quem sabe Joan, a mais delicada e que não viveria muitos anos se continuasse na clausura. E com a influência de Egan junto aos outros Guardiões, cabia a ele convencê-los a escolher as duas restantes.

       E para conseguir o que desejava, Reina não poupava palavras, argumentos e brigas incansáveis na mesa de almoço ou jantar. Literalmente Egan andava com as orelhas pontudas quentes por conta de tanta conversa sobre as fadas da clausura.

       Eleonora achou que fosse perder o ar. Falar com Egan sobre escolha das fadas do Ministério do Rei?

       -Duvido. – Foi sincera – Tubã não escolheria uma de nós. Não sabendo que as restantes passariam suas vidas trancafiadas!

       -Salvar uma, ou deixar as quatro penar? – Ele curvou-se um tanto na cela e Eleonora empertigou o corpo diante da provocação:

       -Não conhece seu irmão? – Perguntou – Tubã não segue as regras. É mais provável que espere nossas asas nascerem, e tente casar-se com as quatro. Ou arrume alguma confusão incitando uma fuga. Deveria saber, que vindo de Tubã, o pior ainda é a melhor expectativa. – havia ternura no modo que falava de Tubã.

       Por um segundo Egan ponderou se havia fundo de verdade em suas palavras. A fada sufocou o riso e ele soube que ela fazia troça de sua seriedade.

       -Volte para o Castelo, fada da clausura. Seu lugar não é aqui. – Ele mandou sério, irritado por nunca conseguir vencê-la em uma conversa.

       Eleonora sempre o intrigava e desafiava, sua simples presença lhe causava um sentimento desagradável de aturdimento. Ele pensava demais em sua situação no Ministério do Rei, e não gostava de desviar seus pensamentos da segurança do castelo, sua obrigação, para pensar em problemas da clausura, assuntos relegados aos cuidados dos Conselheiros.

       -Sigo suas ordens, Guardião. – Ela fez uma falsa mesura e fechou os olhos, abrindo-os a seguir, sempre risonha, debochando dele e de sua seriedade. Afastou-se numa corrida em direção ao castelo.

       Egan observou-a ir, e puxou as rédeas, saindo a galope em direção oposta, para espairecer a cabeça e também procurar pelo irmão desmiolado, rezando secretamente para Tubã não estar envolvido em nenhuma nova confusão.

       Seu irmão adotivo era naturalmente propenso a confusões. Desde o primeiro dia vivendo na mesma casa, Tubã deu trabalho. Não era grato por ser adotado, no começo, ele parecia desafiar essa escolha. Provocar Túlio e devotar seus dias a causar dor ao Conselheiro, pois a seu ver, era culpa dele que fosse adotado enquanto Eleonora permanecia no Ministério do Rei.

       Egan ainda lembrava quando dois meses mais tarde, depois de uma briga e um castigo, onde seu pai que raramente gritava, perdera a calma e usara de sua cinta contra ao menino, Egan o encontrou no quaro, escondido dos pais e o ajudou a escapar pela janela.

       -Aonde vamos? - o pequeno Tubã havia perguntado, desconfiado.

       -Um lugar aonde eu vou quando estou com raiva. - Egan contou.

       Havia uma diferença grande de idade entre eles, de no mínimo sete anos. Mas isso não importava, Tubã era mais amaduro que os outros meninos de sua idade. Eles podiam conversar por horas e brincar juntos, sem distinção de idade.

       Egan levou o irmão para seu lugar secreto, as cavernas no abismo. Ele conhecia um atalho pelo castelo, que conduzia para uma passagem secreta, e isso era o maior de todos os segredos divididos apenas aos futuros Guardiões, e agora, Egan compartilhava isso com Tubã, arriscando-se a perder seu posto e sua futura armadura.

       Tuba era criança demais para entender as implicações de manter um segredo, mas gostou da aventura pelo caminha secreto e mais do que isso, falou por semanas das missões secretas que tinha com seu novo irmão Egan. Depois disso, a amizade tornou-se genuína e insolúvel.

       Ambos tinham um segredo e as brincadeiras entre os irmãos tornaram-se um prazer incomum na vida de um garoto que desde cedo se acostumou aos treinamentos e regras e não sabia de verdade o que era diversão.

       Tubã sempre foi muito brincalhão e divertido, ele via leveza e beleza em tudo, e qualquer coisa, por mais simples que fosse lhe despertava atenção e interesse. Viver ao seu lado era uma roleta russa, um constante reboliço, e Egan não podia negar que isso lhe fazia bem. Tubã viera para alegrar a família, e sem ele, a família estaria partida outra vez, como acontecera após a morte de Mirrar, seu meio irmão.

       Tantos anos depois, e os dois irmãos queriam a mesma fêmea. O que não era propriamente um problema, desde que Egan mantivesse seu interesse oculto. Suspeitava que Reina soubesse do seu apresso pela fada Eleonora, o que levava a crer que a insistência de Túlio, seu pai, em convencê-lo a casar-se com alguma fada de linhagem, devia-se unicamente ao fato de Reina já ter falado com ele sobre essa possibilidade.

       Tubã sempre fora apaixonado por Eleonora, desde a infância, embora em alguns momentos ele lhe parecesse um tanto vago sobre esse sentimento.

       Lembrança muito bem de uma noite, quando retornara cansado do treinamento, e encontrara Tubã na eminência de uma saída fortuita, e ao pegá-lo no flagra, fora encorajado a ir com ele. Tubã quando queria ser convincente era um demônio de insistência.

       -Eu não vou pagar por atenção feminina – Egan havia dito irritado, porém muito tentado a isso.

       -E quem falou em pagar? – Tubã encorajou-o – Ora, vamos, Guardião! Um pouco de diversão na taverna faz bem para qualquer macho... Além disso, você não acha que consegue a atenção de uma fada alegre sem precisar do seu ouro?

       Era um desafio provocador. Na ocasião, Egan havia fechado uma chave de braço no irmão, e entre riso e falsas tentativas de silêncio, os dois saíram de casa sem serem pegos por Reina, sempre vigilante do comportamento do enteado, que precisava estar de pé nas primeiras horas da manhã, para cumprir suas obrigações nos treinamentos.

       Naquela noite Egan mostrou a Tubã, que embora seguisse as regras, não era de todo um santinho. Bastante conhecido na taverna, não foi surpresa encontrar outros de seus amigos Guardiões, como Acheron, que já era empossado de sua armadura há alguns anos. Ou Solon, ou ainda Zoé, a guardiã fêmea, que sempre estava no encalço do Guardião Acheron, esperando que reparasse nela.

       Foi uma noite de musica e dança, e no amanhecer, não foi surpresa, ao acordar com uma caneca de água gelada sendo lançada no rosto e os gritos impiedosos de Reina, que viera buscar os dois filhos, encontrando-os bêbados e em situações bastante constrangedoras, junto ao leito de belas fadas de taverna.

       -Eu esperava isso de qualquer um... Menos de você, Egan! Que Tubã seja inconsequente... É da idade. Mas você? É mais velho, e deveria ser o exemplo de Tubã! Além disso, olhe em volta, o que são esses Guardiões bêbados e atirados pelos cantos, como prostitutas velhas e bêbadas? Perdeu o juízo Egan? Esqueceu quem é seu pai? Esqueceu-se de suas obrigações?

       -É, eu esqueci – ele havia se arrumado com um lençol para cobrir sua nudez, e levantado, irritadíssimo, com a cabeça latejando – Mas obrigado por me lembrar que minha vida não me pertence!

       -Não tente reverter à situação em seu favor! – Reina colocou o dedo na frente do nariz do enteado, enfrentando-o – Vista suas roupas e vá para o treinamento. E leve seus amigos com você. E não volte para casa se não for para admitir que o que fez é errado. – ela sempre tinha o dom de deixá-lo culpado.

       -Eu sinto muito, Reina. Eu só... Queria ouvir um pouco de musica e dançar.

       Reina havia suspirado ruidosamente, sabendo bem que ele tinha razão, mas nem sempre de razão a vida é feita. Existem obrigações.

       -Você nem é o pior, isso que me mata! Você nem é o pior! – ela disse como se falasse consigo mesma – Tubã! Onde você está!? Apareça! Eu sei que tem o dedo seu nesse comportamento inaceitável de Egan! – ela saiu do estreito cômodo gritando pelo nome do filho.

       Egan havia seguido-a até o batente da porta, se recostado ali para observar, e então sorrido satisfeito.

       É claro que Tubã havia fugido do flagrante. Certo estava seu irmão boa vida!

       Era esperado que o pequeno Tubã ao crescer se tornasse um parceiro do futuro Guardião e não um aliciador. Mas Egan estava bastante contente de ter sido um parceiro de farra e diversão.

       Egan não podia falar sobre os sentimentos de Tubã sobre a fada Eleonora, não é justo lançar dúvidas sobre sentimentos alheios, mas ele podia falar sobre os próprios sentimentos.

       Não era um elfo que pudesse orgulhar-se de ser namorador, pois seus flertes eram sempre escondidos e mantidos na surdina. Fadas de tavernas, fadas do vilarejo. Ele preferia as mais velhas, da sua idade, independentes e sem apegos a relacionamentos longos. Fêmeas interessadas em diversão e prazer. Uma vez, houvera uma que quase o cativou, mas foi apenas paixão.

       E nesse caso em particular, era agradecido ao habito que Reina tinha de acabar com seus namoros. A fada que o perturbava com paixão e palavras falsas também era uma conhecida Caçadora de Recompensas e provavelmente tencionava a oportunidade de estar em sua cama, quando fosse empossado como Guardião.

       A armadura de um Guardião é um prêmio inestimável. Uma vez pertencente a um Guardião, outra pessoa não poderia tocar, a menos que o Guardião a aceitasse de modo inexorável, nesse caso, a criatura poderia tocar sem ser morta ou ferida.

       A fada desejava leva-lo ao altar, para ser aceita, e poder colocar as mãos na armadura e vende-la. Claro que para isso, seria necessário matar o elfo que a armadura reconhecia como dono. O que não seria muito difícil para alguém que dividisse o leito com ele.

       Mas Reina e seu excesso de zelo escandaloso havia colocado as esperanças da jovem fêmea por terra.

       Em relação à Eleonora, Reina sempre usava o mesmo discurso:

       -Tubã, se você encostar-se a Eleonora antes do tempo, eu nem sei o que farei com você. Se você não escolher Eleonora para esposa, estou lhe avisando, não reclame depois! Eu vou casa-la com Egan! Está avisado! Por isso não ouse encostar um dedo nela! Que lástima se dois irmãos dividissem a cama da mesma fada! Que Lástima! E não se atreva a contar a quem quer que seja sobre essa conversa!

       Era a eterna ordem, normalmente os dois apenas ouviam calados, trocando olhares cúmplices, e apesar de Egan saber que isso não precisava acontecer, ele era adulto e poderia dizer não, ainda assim, gostava da ideia de Reina poupá-lo de levar a culpa por roubar a namorada de seu irmão.

       Se Tubã não casasse com a fada nas próximas semanas, ele faria. Pelo bem de Reina, claro.

       Era um modo de lidar com uma situação sem solução.

       Quando aos sentimentos da fada, ele tinha esperanças de não ser um grande amor, ou uma relação profunda, que a fizesse odiá-lo, caso se casassem. Ela estava nas vésperas do padecendo das asas e preocupada com o cio, o que lhe dizia que Tubã nunca avançou etapas com a fada, e sua castidade estava intocada.

       Ele não era preocupado com isso, era bastante flexível sobre castidade, sua preocupação era deitar-se ao lado de uma fada que mantivesse seu irmão Tubã em sua mente e coração, e odiasse por ser seu marido.

       Mas tudo há seu tempo, pensou Egan, conduzindo seu cavalo, tentando achar o lugar onde Tubã deveria ter se escondido dessa vez, e principalmente descobrir a causa dessa nova fuga, pois ele desaparecia sempre que aprontava alguma coisa realmente séria.

 

       Anoitecia quando Eleonora finalmente soube de Tubã. O fujão estava escondido em seu quarto, o mesmo que dividia com as amigas, e que no passado era o lugar onde se escondia quando aprontava alguma coisa no setor destinado aos elfos órfãos.

       -Enlouqueceu? – Perguntou, assim que o enxergou, bem sabendo a resposta.

       Ele estava suado, sorrindo de orelha a orelha e parecia tão feliz como poucas vezes vira em sua vida. Ele ostentava um brinco na orelha pontuda, e este brilhou sob a luz escassa que vinha da vela acesa que Eleonora carregava, para iluminar um pouco o quarto.

       -Onde elas estão? – ele foi logo perguntando.

       -Onde você acha? – ela disse furiosa – Joan está outra vez precisando de poções e unguentos! As carcereiras estão infernizando a vida de Driana e Alma por conta do seu desaparecimento! Eu só vim aqui buscar uma roupa limpa para Joan. Tadinha, ela tem vomitado muito.... Mas... – em sua fúria, ela empurrou Tubã e o sacudiu, extravasando fisicamente sua preocupação – O que faz aqui??? Está sendo procurado o dia todo! Seu irmão organizou uma busca por você, seu inconsequente!

       -Eu consegui, Eleonora! Eu consegui! – Ele comemorou, como fazia na infância, ao aprontar, pegando-a nos braços, e a rodopiando. Eleonora o empurrou outra vez, furiosa e se soltou.

       -O que você conseguiu? – Perguntou fechando a porta, pois não havia formas de dissolvê-lo de uma ideia.

       -Veja com seus próprios olhos! – Ele exibiu algo, retirado de um pano enrolado em seu bolso.

       Era uma tiara cravada com os mais belos diamantes que alguma vez Eleonora vira. Fascinada ela pegou a joia e colocou-a diretamente na cabeça. Foi um impulso incontrolável, ela somente via joias, quando Reina usava-as, mas a sua protetora raramente usava joias, preferia a vida simples.

       -De onde veio isso? É lindo demais! – Perguntou olhando-se no pequeno e rachado espelho que havia na parede, sua vaidade feminina esquecendo completamente dos problemas.

       -Pertence à Rainha Santha – ele disse orgulhoso de seu feito.

       -O que? – Imediatamente retirou da cabeça como se aquilo pudesse criar vida e atacá-la e seus olhos se arregalaram como imensos pires de água límpida. – Você enlouqueceu? A Rainha jamais lhe daria isso!

       -É claro que não. Eu peguei. Um dos carcereiros prometeu ajudar a leva-las para um lugar seguro se eu pegasse essa tiara. Eu consegui! Eu disse que conseguia, não disse, Lora? Eu trocarei a tirara pela liberdade de vocês quatro! – Ele disse com simplicidade.

       Eleonora maneou a cabeça incrédula. Sentou-se na beira da cama e olhou para a joia com pesar, desconsolada como que acontecia:

       -Não seja tolo, Tubã. Ele estava rindo de você. Jamais poderia vender essa joia, pois seria pego em flagrante. É uma joia da rainha, como pode ser tão estúpido? Quem terá coragem de comprar e usar isso? Não seria seguro guardá-la. Então... Por que iria querê-la? Porque pedir algo que jamais terá valor? Pense um pouco antes de fazer esse tipo de coisa estúpida!

       Tubã era um boa vida nato. Sempre vestindo suas melhores roupas, colete de couro, calças e camisa de linho. Cabelos empoados de gel, e um brinco na orelha esquerda. A mesma orelha que em vez de pontuda, tendia a ser um tanto torta por causa das surras que levava dos carcereiros do orfanato quando pequeno.

       Sentindo o peso do mundo nos ombros, Eleonora tentou sorrir diante do seu choque de realidade, que o emudeceu:

       -Esqueça, nossa liberdade é apenas uma fantasia, Tubã. Fico com isso. Vou esconder e quando todos se esquecerem do roubo acho um modo de devolver sem que saibam quem pegou. Agora vá para casa, seu irmão o tem procurado durante o dia todo e Reina deve estar angustiada com seu sumiço!

       -Egan, Egan, Egan... Sempre Egan – Ele debochou e ela quase sorriu, pois sabia do amor que havia entre os dois irmãos. – Eu não aceito que permaneçam na clausura, Lora. Não aceito.

       -Não aceite. É seu direito. Mas isso foi uma estupidez! Eu tenho medo de pensar no que Driana diria se visse tanta burrice junta! – ela sacudiu a tiara. – Vá daqui antes que o peguem. Eu me livro disso antes que você se prejudique desnecessariamente!

       Tubã ficou calado e ela sentiu o sangue ferver.

       -Roubar, Tubã? Roubar a Rainha? Por favor! Quer condenar a todas nós com a prisão? As masmorras são piores que a clausura! Você perdeu a razão!

       -Não é justo que eu possa ser livre e vocês não. – Ele disse perigosamente sério.

       -E quem viria nos contar as novidades do mundo lá fora quando estivermos presas pela vida toda? – Perguntou para vê-lo menos tenso – O dia de amanhã não pertence a nós, Tubã. O que for para acontecer vai acontecer. E você não melhora em nada nossa situação fazendo esse tipo de besteira!

       Ela mal fechou a boca e ouviu barulho nos corredores.

       -Droga! Alguém o viu se esconder aqui? – Perguntou espiando pelo corredor.

       -Eu não sei. Eu tentei ser cuidadoso.

       Era a voz dos carcereiros elfos, que raramente vinham por aqueles lados, dominados pelas carcereiras fêmeas. Suas passadas pesadas, provavelmente de elfos usando armaduras, indicava que não estavam sozinhos.

       -Vamos, você precisa ir daqui! – Ela o empurrou porta a fora pelo corredor.

       De mãos dadas eles correram por vários corredores escuros. Saíram por uma abertura que desembocava em uma das torres no alto do castelo.

       Foi impossível não rirem da aventura. Eles sempre faziam isso, fugas loucas após travessuras imperdoáveis. Não era a primeira vez que escapavam de uma boa surra. Mas agora eram adultos e isso não deveria estar acontecendo!

       Estavam convictos de terem escapados quando foram surpreendidos por Egan.

       -Oh, não! – Ela disse baixo, logo atrás de Tubã.

       -Eu juro meu irmão, não é o que parece – Tubã não teve sequer a decência de não sorrir. O riso era inevitável. Como crianças que não notaram que a idade chegou e a responsabilidade da vida adulta cobra seu preço por tudo que fazem.

       Acostumado a prender o irmão de criação, Egan o jogou contra a parede e imobilizou-o. Quisera ele que fosse a primeira vez que Tubã cometia um crime. Principalmente, que fosse a primeira vez que precisasse prendê-lo. Era quase um ritual entre eles. Algo diário. Se pudesse viver um único dia sem levar Tubã para ser sentenciado pelo Rei, Egan poderia dizer que alcançara a plena felicidade.

       Quando prendeu o elfo, focou-se na fada. Eleonora ergueu a mão e lhe ofereceu a tiara sem relutar. Seus olhos eram tão claros, sem cor definida, que o hipnotizavam. Era uma sorte que a fêmea não soubesse do encanto que lhe despertava, ou faria dele gato e sapato.

       Pela expressão da fada, já imaginava que isso aconteceria. Estava conformada.

       Não trocaram palavras, apenas levou os dois para o Rei, onde seriam julgados por mais um dos seus muitos crimes contra a paz do reino de Isac. Para Eleonora era uma novidade. Ela sempre era levada diretamente para as carcereiras. Mas dessa vez o roubo era mais serio e ela estava realmente em uma enrascada!

        

                     Linhagem e desafios

        Rei Isac não perderia tempo com um julgamento tão simplório. Lucius era seu braço direito, e parte dessa confiança, era relegar a ele esses pequenos cuidados. Até mesmo o Rei confessava que ouvir falar de Tubã era cansativo.

       Uma vez, a cada três dias, no mínimo, o bandoleiro estaria ali naquela sala, sendo relembrado de suas obrigações, enquanto era absolvido de tudo, por consideração ao Conselheiro Túlio, e Reina, a criada da rainha.

       Era um circulo vicioso, onde quem sempre saia ganhando era Tubã.

       Algumas vezes Santha participava, apenas pelo prazer de ver sua criada desesperada, com medo da punição que seu filho ilegítimo seria submetido. Mas naquele dia em especial, a pedidos de Lucius, ela não compareceu. O que foi um alívio para todos, pois a presença de Santha era sempre algo que pesava no ambiente e tornava todos os presentes, tensos e incomodados.

       Rainha Santha era alguém desagradável por natureza, e não tentava mudar. Estava bastante feliz em ser temida por seus súditos.

       Em seu lugar diante do trono, sentado em uma das cadeiras destinadas aos Conselheiros, Lucius fez um sinal arrogante para que Egan falasse:

       -Encontrei a tiara da rainha em posse de Tubã e da fada do Ministério do Rei chamada Eleonora – ele disse sucinto, sem muitas palavras.

       -Hum – o elfo moveu-se e encarou um ao outro, com desplante – Alega que roubaram a tiara?

       -Não. Eu não vi o roubo. Não presenciei o roubo – Egan foi direto, medindo muito bem cada palavra que pronunciava, para não incriminar o irmão – O que vi, foi Tubã com a tirara em suas mãos. Em companhia da fada Eleonora.

       -Uma fada do Ministério do Rei? Explique as condições do roubo – ele exigiu.

       -Rainha Santha reportou o roubo algumas horas atrás. Não encontramos provas que levassem ao Ministério do Rei, ou a participação da fada. Impossível que a fada estivesse envolvida no roubo, pois ela estivera toda a tarde junto à carcereira Miquelina, e não duvido das palavras da Carcereira. Quando a Tubã, a única prova contra ele, é o fato de estar com a joia no momento da apreensão.

       -O que quer dizer com isso, Primeiro Guardião? Que seu irmão é inocente da acusação de roubo? – Lucius debochou.

       -O que digo é que não posso testemunhar o que não vi, e na ausência total de provas que digam que Tubã roubou a tiara, posso apenas deduzir que ele diz a verdade ao contar que encontrou a tiara abandonada em um estábulo, durante seu trabalho, e que curioso decidiu mostrar a bela joia para sua amiga, antes de devolvê-la para as autoridades. A meu ver, o único crime de Tubã foi à inconsequência da idade que o fez desejar impressionar uma fêmea usando da beleza de uma joia.

       As alegações de Egan faziam sentido. Isso, se todos não soubessem que o Primeiro Guardião protegia seu irmão, mesmo que isso lhe custasse seu posto de Guardião. A cada dia Egan tornava-se mais e mais criativo em suas elaboradas estórias. A pergunta que sempre pairava no ar, era o que seria de Tubã quando a criatividade do Guardião chegasse ao fim.

       -Foi exatamente isso que aconteceu, elfo? – Lucius apontou para Tubã que lutou contra o riso, piscando para Eleonora, ao dizer:

       -Faço minhas as palavras do respeitável Primeiro Guardião.

       Típico de Tubã não se importar com a seriedade da situação. Eleonora sentiu vontade de puxar suas orelhas, até despertar a responsabilidade que jazia adormecida no elfo.

       -Aproxime-se, enclausurada - Lucius apontou para Eleonora, que obedeceu por não ter outra escolha.

       O modo como ela olhou para Lucius era de desafio puro. Odiava Lucius pelo que ele fazia contra os órfãos, sempre incitando as carcereiras a serem punitivas e cruéis, e odiava Santha por sua alienação.

       -Eleonora – ela disse sem pensar – Me chamo Eleonora. Enclausurada não é nome, é adjetivo.

       Pensou ter ouvido um palavrão sussurrado escapar da boca do Guardião. É claro que não ajudaria em sua situação ser petulante com Lucius.

       -Uma fada da clausura chamada Eleonora – Lucius satirizou, com os olhos fixos nos da fada.

       -Não. Ainda não. Por enquanto uma fada do Ministério do Rei. Minhas asas não nasceram. Ainda me resta esperança de casamento e liberdade. – ela desmereceu Lucius, sem controlar a vontade de provocá-lo.

       -O que a fada quer dizer – Egan interferiu, segurando o braço da fada, e era a primeira vez que a tocava. Por um segundo ela esqueceu o que acontecia e o perigo ao qual era submetida, perdida nesse toque encantador. – É que seu dom não é completo, ou suas asas nascidas. Ela não possui capacidade para roubar a rainha. O mais provável é que a versão que Tubã conta seja verdadeira. Conte a Lucius o que aconteceu, Eleonora. Apenas a verdade do acontecido.

       O olhar de Egan pedia que ela falasse, mas nem de longe falasse a verdade.

       -Tubã trouxe a tiara para que eu visse. Ele me contou que achou a joia exatamente onde o Guardião contou. Eu fiquei encantada e pedi para usar um instante. Foi culpa minha que Tubã não tenha devolvido imediatamente.

       Eleonora não era burra, ela sabia muito bem que a única coisa que impedia Lucius de liberar logo Tubã e poder voltar para sua vida de luxo e pasmaceira, era a vontade de punir a fada que sempre o desafiava.

       Agora, ela lhe fornecera um motivo para puni-la e sendo assim, não havia razão para aquilo tudo continuar.

       -A palavra de um Guardião, me basta – Lucius despachou-os com um movimento de mão, que soo como descaso e deboche – diante da confissão da fada da clausura – ele insistia em chama-la assim – não me resta alternativa além de sentencia-la a uma noite nas masmorras. Para que aprenda seu lugar e não deseje o que pertence à rainha.

       Eleonora pensou ter entendido errado sua sentença. Como ela poderia desejar algo que pertencesse à rainha?

       -Escute, Lucius, uma noite na masmorra não é apropriado para uma fada na situação de Eleonora. Em poucas semanas ela será exposta ao cerimonial de escolha – foi Túlio quem se intrometeu – Saber que esteve nas masmorras, poderá levantar suspeitas sobre sua castidade, e nenhum elfo irá desejar escolher uma fada que penou nas masmorras. Apelo para eu senso de justiça.

       -Meu senso de justiça diz que a fada deveria ter pensando nisso antes de cometer seus crimes hediondos contra a honra da rainha. A meu ver, essa reunião está encerrada. Cabe ao Guardião cumprir sua obrigação para com o reino.

       Lucius encerrava a conversa como se o poder de um Guardião e de um Conselheiro não valesse nada diante dele. Como se fosse o próprio Rei.

       Nenhum deles ousou questionar a decisão de Lucius, mas a troca de olhares entre Egan e Túlio denunciava que mais tarde haveria uma longa conversa sobre esse comportamento arbitrário.

       -Lora não pode passar uma noite nas masmorras! – foi Reina quem se desesperou. – Estão de acordo com isso?

       -Reina, não é culpa deles – disse Eleonora – é culpa de Tubã! – ela pós os pontos nos ‘is’ – Está vendo, seu inconsequente, o que você fez? – a sequencia de tapas que Eleonora acertou em Tubã era esperado, pois eles eram mais íntimos do que irmãos – O que eu faço com você, Tubã? Um dia vai causar um dano a si mesmo que será irreversível! Sua peste!

       -Me desculpe, Lora. Desculpe-me – falsamente dramático, ele caiu de joelhos e abraçou sua cintura, sufocando-a com seu jeito de fazê-la rir quando não queria. Era só um jeito de conquistar e amolecer seu coração

       -É a última vez, Tubã. Da próxima eu nunca mais falo com você! – ela sorriu, mesmo sem querer – Vá, me solte, ou seu pai pensará que é uma criança, e não um elfo adulto.

       Era verdade, Túlio esperava uma justificativa.

       -Túlio, por favor, não permita que Lora fique desamparada nas masmorras – Reina implorou ao elfo mais velho tendo um entendimento maior da situação, que os mais jovens não conseguiam entender – Por favor, use sua influência...

       -Egan deve fazer a segurança da fada. Não é apropriado que uma fêmea permaneça presa entre machos, sem supervisão. Quanto ao resto, a punição de Tubã recairá sobre os ombros do Guardião, que tudo perdoa e defende. Mentiu sobre seu irmão, Egan, mais uma vez, você encobriu as atitudes de Tubã!

       -Eu não vou falar disso aqui, na frente de outros Conselheiros e Guardiões – ele avisou o pai, notando que havia outras pessoas olhando e prestando atenção.

       Túlio fez um sinal para que Egan o seguisse, e eles permaneceram apartados dos demais, em uma discussão nada agradável. Eleonora manteve os olhos sobre eles, querendo saber o que diziam.

       -É inaceitável! – disse Reina – Eu vou apelar para o Rei! Não é possível que uma fêmea seja condenada a permanecer na masmorra!

       -Reina – disse Eleonora – Ouça, uma noite não é nada. Melhor não tornar essa situação em algo pior. Tubã é um cabeça de vento! É isso que ele é!

       Suas palavras acalmaram Reina, mas não amorteceram sua indignação. Voltada contra Tubã, à fada despejou sobre ele toda sua indignação de mãe. Eleonora não prestou atenção nas desculpas esfarrapadas de Tubã, e sim, tentou ouvir o que Túlio dizia para Egan, não tão longe que não pudesse usar seu dom ainda não totalmente desperto para trazer o som para ela. Uma brisa suave, deslocada de caminho, trazia o cheiro do Guardião e também o som da conversa, para que ela pudesse saber o que diziam sobre ela e Tubã.

       -O que espera que eu faça, meu pai? Que eu prenda meu irmão, mesmo que o Rei o absorva das acusações? – Egan respondeu prontamente, enfrentando seu pai e mentor – Isso não vai acontecer. Você colocou Tubã em nossas vidas quando obrigou Reina a escolher um macho e não uma fêmea. E eu nunca poderei esquecer isso. Do dia em que ele veio para casa com Reina. Naquele dia, meu pai, você mudou tudo. Eu deixei de ser enteado de Reina e filho de Túlio, eu passei a ser irmão de Tubã. Tubã não é meu irmão. Eu sou irmão dele, e é desse modo que lidarei com tudo que Tubã fizer de errado! Vou ser complacente e relapso com minhas obrigações. Não me peça para abandona-lo ou ser rígido com ele. Não vai acontecer.

       -Eu sei que a perda de Mirrar foi muito dura, Egan – Conselheiro colocar as duas mãos nos ombros do filho – e que você quer proteger Tubã como faria com seu irmão de sangue. Mas acobertar os crimes de Tubã não fará bem algum a ele.

       -Eu não protejo Tubã por causa do que aconteceu com Mirrar. São dois sentimentos distintos. Tubã é parte da alegria da minha vida. Eu não vou pedir que ele siga ordens e mude. Ele tem que ser assim, pois é assim que Tubã é feliz e torna a vida de todos nós mais felizes. – ele disse sério, afastando-se do pai – Cumpro minha obrigação, eu o predo sempre que apronta, mas não vou fazer nada além. Se você consegue... Então o puna como se deve. Eu não consigo.

       Foi um momento decisivo, Túlio manteve os olhos nos do filho e então se afastou, gritando com irritação:

       -Vá, Guardião, fale a favor de seu irmão mais uma vez e livre-o de suas responsabilizes para com as leis! Ensine-o a ser um bandoleiro de rua!

       Era o jeito de Túlio assumir que não consegui punir Tubã, pelas mesmas exatas razões que Egan também não conseguia.

       Egan, exasperado com o pai e com o irmão, apenas praguejou e descobriu que era observado pela fada. O modo como Eleonora o olhava, denunciava que estivera ouvindo sua conversa. Era uma fada e logo obteria seu dom.

       Egan estreitou os olhos, intrigado. Nunca antes se perguntou qual era o dom dessa peculiar fada, mas agora suspeitava que não gostaria de saber a resposta para essa dúvida. Vencida pelo desejo que sentia pelo elfo, Eleonora baixou os olhos envergonhada. Não queria que ele visse o quanto o gostava dele.

       -Chega de brigas, mãe - Egan finalmente encerrou o berreiro de Reina e livrou o irmão da surra que Reina tentava lhe dar.

       Eram elfos grandalhões, e era um pouco patético que Reina achasse que poderia machucar Tubã.

       -Seu irmão merece uma bela surra, Egan! - Reina disse com lágrimas nos olhos e indignação - Eu não quero minha fadinha nas masmorras - ela abraçou Eleonora, chorando.

       Eleonora lutou para não sorrir.

       -Eu ficarei bem. Não é a primeira noite que passo em um lugar sujo e fedorento, Reina. Além disso, eu terei histórias para contar as meninas quando voltar para o Ministério. Não é de todo ruim.

       Como se minimizar a situação pudesse acalmar Reina.

       -Vocês três são os amores da minha vida - disse Reina chorando - Eu tenho medo do que será de vocês. Tubã você fazendo essas coisas, cometendo esses crimes... Eu tenho medo do que será de você no futuro, não tendo uma profissão, ou se assentando na vida, para poder escolher Lora em casamento, ou uma das meninas! Egan... Olhe para você! Um Guardião protegendo um ladrãozinho de meia tigela furada! Irá perder seu posto um dia desses! Causará o maior desgosto da vida de seu pai! Desonrará sua linhagem! E você, Eleonora, o que ainda lhe dá na cabeça para seguir as loucuras de Tubã? Não pensa em Driana, Alma e Joan? Elas são sua família, criança, como pode esquecer-se delas e se colocar em tamanho risco?

       -Não é para tanto, Reina - ela disse envergonhada, cabeça baixa.

       -Oh, sim, vocês três não pensam. Esse é o problema! Não pensam! Eu não sei mais o que fazer. Eu não sei o que fazer com você, Eleonora! Não deveria estar aqui! Eu sempre a proibi de vir até essa parte do castelo! Eu sempre a proibi de se envolver com a rainha! - seu descontrole levantou uma suspeita em Egan, mas ele se esqueceu disso, tendo que acalma-la.

       -Chega, mãe. Eu preciso levar Eleonora para a masmorra. Cumprir a ordem de Lucius. Vá atrás da Rainha. Tente convencê-la de que a perda da tiara foi um descaso de alguma serva. Faça-a esquecer disso. O resto eu resolvo.

       -Palavras de elfos... As palavras dos machos não valem nada quando a vida de uma fêmea está em risco. São egoístas, todos os machos são egoístas - Reina acusou-os, mesmo assim, afastou-se para cumprir o pedido do Guardião.

       Restou apenas os três e um silêncio constrangedor.

       -Porque você fez isso, Tubã? - o Guardião perguntou.

       O suspiro derrotado do elfo era sinal de que não mentia para o irmão. Para o pai e a mãe de adoção ele até conseguia mentir às vezes, mas para Egan nunca.

       -Um carcereiro do setor dos elfos disse que se eu pegasse a tiara da rainha e lhe desse, ele conseguiria facilitar a fuga das fadas. Eleonora, Alma, Driana e Joan. Eu só queria ajudar. Joan está doente outra vez, e... - notando a expressão do irmão, Tubã exasperou-se - você não entende! Ninguém faz nada para ajudar! Joan está sempre doente e ninguém move um dedo para ajuda-la! Ela vai acabar morrendo cedo se não for tirada de lá!

       -Case-se com ela na próxima escolha. - Egan respondeu, afastando-se do irmão, pois Tubã impacientava-se e tentava agarrar Egan pelo braço para que ouvisse - Você sabe muito bem como ajuda-la!

       -Eu não quero me casar obrigado! - Tubã revelou no calor do momento. Então constrangido, baixou a cabeça.

       -Não fique assim, Tubã - Eleonora disse triste - Eu sei que fez o melhor que pode ao roubar a tiara. Achou estar sendo bonzinho e não um completo estúpido - ela abraçou Tubã, não reparando no olhar do primeiro Guardião. Um olhar de represaria.

       -Você me perdoa, Lora? - ele tocou seu rosto, implorando seu perdão com seus olhos de cão ferido. - Perdoa?

       -É claro que sim. - ela sorriu e Tubã rapidamente afastou a tristeza erguendo-a do chão com um abraço apertado - Agora me solte, elfo burro. Eu tenho uma pena a cumprir. - ela olhou para Egan e então cochichou no ouvido de Tubã - Amanhã eu conto como é a masmorra. Quem sabe assim você finalmente fica com medo e para de aprontar?

       Para Egan era um sussurro de namorados. Desembaraçada dos braços de Tubã, a fadinha da clausura até sorriu antes de seguir o Guardião.

       Egan não andou devagar, ou pareceu notar que ela quase corria para acompanhar suas passadas. De cabeça erguida, porte tenso e reto, fruto do seu treinamento exaustivo para Guardião, ele a conduziu pelo castelo, e então pelos corredores imundos das masmorras.

       Eleonora não abriu a boca para falar. Temia dirigir-se diretamente ao Guardião sem licença, era um temor que extrapolava o medo e submissão esperado de uma fada do Ministério do Rei, era um temor que vinha de dentro do seu coração. Um temor de ser uma tola ou parecer boba diante do seu primeiro amor de infância.

       Sempre Egan em sua mente e coração. Ele a cativava, quando não deveria fazê-lo.

       É claro que percorrer os corredores com uma fêmea incitava comentários grosseiros e gracejos mal educados, mesmo os carcereiros das masmorras pareciam empolgados em ter uma fêmea à disposição. Eram elfos que há tantos anos foram privados do convívio normal, relegados ao trato das prisões, que muitos deles semelhavam-se aos apenados. Rei Isac não tratava apropriadamente de seus servos. Não entendia o conceito de trabalho, apenas de escravidão.

       Eleonora não estava incomodada com Tubã ter sido inocentado totalmente enquanto ela pagaria por um crime que não era seu. Isso era esperado. Filho de criação do melhor amigo do Rei, e da acompanhante da Rainha. Irmão do corajoso Primeiro Guardião... Qual a possibilidade real de ser punido por seus crimes?

       Eleonora esperava de coração que da próxima vez Tubã aprontasse algo realmente devastador para que aqueles hipócritas sentissem o gosto do desamparo.

       Contrariado, Egan deixou-a em uma cela afastada das demais, e virou as costas sem olhar para trás. Não que Eleonora esperasse qualquer tipo de conversa, mas doía a rejeição. Era uma fada da clausura, e como tal, não era digna de respeito ou importância. Deveria estar acostumada a esse tratamento.

       Por mais que dissesse a si mesma que isso não importava, e que a punição não a feria, era mentira, e ela descobriu que as próximas horas seriam insuportavelmente difíceis.

       Mas, para sua total surpresa, Eleonora descobriu que estava redondamente enganada sobre as masmorras.

       Estava enganada ao pensar que as masmorras seriam piores que a clausura. Pelo contrário. Há muitos anos não havia penas longas ou prisioneiros sentenciados a mais que alguns dias de flagelo, e por conta disso, os corredores eram animados em conversas e palavrões sem fim.

       Sozinha em uma cela pequena, Eleonora ouvia atentamente a conversa de dois elfos que foram presos por desacatar um dos Guardiões, o mais novo deles, que ocupava a décima colocação em hierarquia. Eles estavam na cela ao lado, e contavam estórias engraçadas que a fazia conter o riso, pois eram animados e engajados em desrespeitar as leis do reino, sobretudo com palavras pejorativas.

       A cela que Eleonora ocupava era suja e pequena, e não havia privacidade ou acesso à luz do sol. Como se a clausura fosse muito melhor que isso, pensou amargurada.

       Ao menos ali havia som de vozes e ocasionalmente algum agitamento em brigas e rivalidade entre elfos bandoleiros e os guardas.

       Ela estava sentada contra as grades, mexendo nos dedos dos pés distraidamente, quando sentiu uma presença atrás de si.

       Ergueu a face para enxergar quem era.

       Do alto de sua imponência Egan a fitava como quem olha um filhote engraçadinho que se desgarrou da matilha.

       No mesmo instante, ela ficou curiosa pela presença inesperada;

       -Sua comida – ele disse seco, passando pelas grades um prato e um cantil.

       Ela suspirou de contentamento, sabendo muito bem que Reina não a deixaria comer a comida das masmorras.

       -Há quanto tempo não provo a comida de Reina... – Disse alegre.

       No Ministério do Rei, as comidas e pequenos confortos que Reina às vezes lhe trazia, sempre eram confiscados. Com o tempo, Eleonora e suas amigas, desenvolveram métodos de esconder, como madeiras soltadas nos móveis, ou pedras frouxas no chão. Se não fosse desse modo, Miquelina e as demais carcereiras, sempre as roubariam.

       Notou que Egan não iria embora. Segurando o prato, olhou-o cobrando que partisse, pois lhe incomodava o modo que era observada por ele. Com recriminação e desagrado. Claro, lhe era desagradável perder seu tempo com uma fada sem linhagem, pensou Eleonora.

       -Era Tubã quem deveria estar atrás dessas grades – ele disse sério e bravo, provavelmente notando que ela estava incomodada com seu jeito de olha-la.

       Um longo e divertido sorriso brincou nos lábios da fada.

       -De modo algum. Sabemos que jamais irão punir o filho de criação do Guardião que no passado salvou a vida do Rei e que há anos ocupa o lugar de Conselheiro. Eu? Sou apenas uma fada do orfanato. Ninguém se importa se estou presa ou não. Sorte minha as leis serem brandas desde que a paz foi reconstituída ou passaria o restante dos meus dias enfurnada nessa masmorra apenas pelo deleite de Lucius, o crápula – lamentou-se, sem perder a chance de ofender o elfo, amante da rainha.

       -Não pense que me causa felicidade ver uma fada num lugar desses. – Egan baixou o corpo ficando de cócoras, muito perto dela.

       As grades estavam entre os dois, mas ela sentia seu hálito quente em seu ouvido. Foi impossível conter um arrepio, e se manteve firme, para não afastar-se dele, no instinto de proteger sua timidez do arroubo que a presença de Egan representava:

       -Participou do roubo da tiara da Rainha, fada? – Perguntou-lhe azedo.

       -Pergunte ao seu irmão – ela disse rancorosa, provando a comida, sem lhe dar ouvidos quando a pergunta.

       -Tem raiva de mim – ele afirmou convencido disso – Sei disse desde que foi deixada no orfanato por minha causa.

       Essa afirmação a surpreendeu tanto que as palavras lhe faltaram.

       Surpreendida, Eleonora parou de comer e fitou-o.

       -Eu fui abandonada pelos meus pais. Não sei a situação que os levou a isso ou quem eram, mas eu fui deixada em total abandono, e creio que isso não tenha nada a ver com você, Guardião. Sobretudo, sou agradecida a sorte de ter tido Reina como minha protetora. E a sorte dela ter podido adotar Tubã. Ele não tem vocação para escravo. Foi melhor assim, ele é bom filho para Reina, apesar de suas estripulias.

       -Mas se não fosse o desejo do meu pai em ter companhia para mim, Reina teria adotado-a. – ele culpava-se disso.

       -Reina lhe disse isso? – ficou surpresa.

       -Não com essas palavras. Mas ficou implícito.

       -Tubã é macho, e por excelência, é mais fácil que os elfos sejam adotados, e não as fêmeas. Poderia ter sido Reina, ou qualquer outra fada. Não foi só por sua causa que seu pai não quis me adotar. O comprometimento de criar uma fêmea é muito grande, ainda mais uma sem linhagem – disse apenada da sua própria história de vida – Eu seria um peso para Reina, e consequentemente para seu pai, e esse peso cairia nas suas costas, Guardião. Minha amiga Driana diria ser uma questão de lógica.

       -Mesmo assim, poderia ter sido você. – ele insistiu, sempre olhando em seus olhos.

       -Mas não foi assim que o destino quis – ela não diria a ele que no fundo preferia assim ou jamais poderia sonhar com ele. Se fossem irmãos, mesmo que de criação, jamais lhe seria permitido manter qualquer contato físico com o elfo. E ela guardava sonhos românticos dentro de si. Mas ele não tinha que saber disso. Corada, Eleonora completou:

       -Tubã é meu melhor amigo, eu fico feliz que ele tenha uma boa família olhando por ele – ela disse como se isso explicasse tudo.

       Se ela não poderia ser feliz e livre, ao menos ficaria feliz em ver o amigo feliz.

       -São quatro fadas – ele disse pensativo – Tubã escolhe uma. Eu escolho outra. Posso conseguir mais dois Guardiões para escolher as que sobram. Os guardiães mais jovens estão ansiosos para agradar, eu posso coagi-los a escolher suas fadinhas da clausura. – ele disse contrariado – É o único modo de acalmar meu irmão e garantir que ele não cometa mais loucuras como roubar a rainha! É o único modo de salvar Tubã e acabar com os problemas, e de quebra amenizar a tristeza que Reina vive, nessa agonia da antecipação da sua clausura.

       -Hum, dispenso tanta bondade – ela disse orgulhosa – Não falo por minhas amigas, elas merecem a liberdade. Por mim, não faço questão da piedade dos Guardiões e de tamanho sacrifico. – ela não controlou a ironia. Deveria ser grata, mas doía sua vaidade e seu coração pensar que para Egan ela era um problema a ser solucionado em nome da felicidade de sua família.

       Egan sorriu petulante e disse em tom superior:

       -Tubã a escolherá – afirmou – Meu irmão sempre teve o péssimo hábito de querer chamar atenção demasiada para si.

       Sentindo-se ridicularizada, Eleonora baixou os olhos para o prato e quando os ergueu havia riso em seus olhos, pois ele bem que merecia uma alfinetada:

       -Tubã vive tudo que você não tem coragem de viver – acusou-o – Tem inveja dele não é?

       Essa afirmação fazia sentido em partes. Não era inveja, era um sentimento diferente. Muitas vezes Egan realizava-se através dos feitos de Tubã. Tal como Eleonora, o elfo conhecia a vida pelas histórias de Tubã. O Guardião conhecia um tipo de liberdade que Tubã gozava e que apenas conhecia por palavras. Seu irmão vivia tudo que ele não podia. A diversão da juventude era negada a um Guardião. Desde a infância ele era treinado, conduzido, e levado a um caminho não escolhido.

       -Não - Ele respondeu rápido demais, levantando e impondo distância física e emocional.

       Eleonora também levantou e fitou-o com carinho:

       -Não seremos escolhidas. Nenhuma de nós. – Baixou o olhar – É o destino de uma fada órfã. Tubã vai esquecer com o tempo. Além disso... Não pretendo passar minha vida toda na clausura.

       -Mesmo? Essa é uma confissão de planos de fuga? – Ele provocou.

       -Espere minhas asas nascerem, Guardião, e você verá o quão alto poderei voar – ela disse em tom de ameaça.

       Egan não poderia sorrir de suas palavras. Seria inapropriado para seu posto. Olhou em volta e desistiu de seguir a conversa. Muitos olhos e muitos ouvidos nas celas ao lado.

       -Preciso vigiá-la. É a única fada entre celas de elfos – ele disse com pesar. – E Reina jamais me perdoaria se a deixasse sozinha.

       -Hum, não perca seu tempo cuidando da minha honra. – Ela disse provando a comida – Minha honra, tal como minha vida não vale um tostão. Ao menos, eu teria alguma diversão antes do inevitável.

       Amargura. Sim, ela sentia uma punção de amargura. Não era culpa dele. Mesmo que soubesse que ele poderia escolher uma noiva, assim como os outros Guardiões, poupando assim, sofridas jovens fadas de uma vida de solidão e sofrimento. Ainda assim, a necessidade delas não poderia respingar na vida de elfos que nasceram livres e com vidas perfeitas.

       -Eu não duvido que sua língua afiada seja uma arma poderosa contra qualquer um que atente contra sua honra. Mas não esqueça que sou pago para manter a ordem e primar pelo cumprimento das leis – Egan pensou em brigar, mas apenas alegou o óbvio.

       -Então faça isso. – Jocosa, sentou-se outra vez na cela, desta vez contra a parede, olhando para ele.

       Olhando para a fada, era fácil entender porque Tubã dizia-se tão apaixonado e empenhava-se tanto em livra-la da clausura definitiva. Eleonora era um belo exemplar de fêmea. Suas amigas também eram bonitas e jeitosas, mas ele reparava bem mais em Eleonora.

       Seus cabelos loiros, quase brancos, longos, macios, e perfumados, como uma linda nuvem em um céu de verão. Seus olhos de cor indefinida, que às vezes lhe apreciam azulados, às vezes esverdeados e em outras horas, pareciam apenas um reflexo de algo branco e translucido. Seus lábios cheios, maduros, e curiosos por beijos.

       Ele se perguntava se alguma vez Eleonora havia sido beijada. Pelo tanto que Tubã insistia em rouba-la da clausura, imaginava que sim, que eles trocassem beijos e a fada não admitiria, mas os dois eram namorados em segredo.

       Se ela confessasse algo do gênero jamais seria escolhida em casamento no cerimonial, após o nascimento de suas asas.

       Desgostoso com a ideia de seu irmão desfrutar da beleza de uma fada que também lhe atraia, Egan não resistiu ao pensamento de que suas asas seriam lindas. Ela era peculiar, única, não apenas fisicamente. Sua personalidade era instigante, principalmente para alguém tão regrado e certinho como Egan. Ele ficava imaginando como seriam suas asas, e seu dom. Que tipo de segredo Eleonora guardava dentro de si.

       Reina falava muito sobre as fadas, sobre o dom da inteligência, que Driana possuía de sobra. Sobre o possível dom do hipnotismo pela voz, que Alma vinha manifestando aos poucos. E sobre o dom perturbador da fadinha Joan, de camuflar-se e possivelmente, enganar os olhos alheios com imagens. Essas informações eram suposições das carcereiras baseadas em anos de monitoramento dos dons das fadas do Ministério do Rei.

       Quanto ao dom de Eleonora, nunca houvera uma palavra sequer. Nem mesmo uma especulação. Reina nunca falava sobre isso. Tão pouco Tubã. O que era no mínimo intrigante.

       -Quando nascem suas asas? – Ele perguntou após um curto silêncio, pensativo.

       -Logo. Creio que as de Alma nascerão antes, as carcereiras sempre dizem que de nós quatro, ela foi a que chegou primeiro ao orfanato. Mas é impossível saber ao certo. As fadas abandonadas não costumam vir com informações sobre seu nascimento. – disse triste, enquanto comia vagarosamente – Quando exatamente sairei aqui?

       -Amanhã cedinho estará livre – ele notou imediatamente suas feições mudarem diante da palavra ‘livre’. – Reina pediu um favor a Rainha. Ela intercedeu por você. Não passará mais que uma noite na masmorra.

       -A Rainha? Nossa. E o mundo não acabou diante de tal acontecimento fantástico? – Seu desprezo era nada mais do que escancarado.

       Egan sufocou um sorriso de apreciação. Ele também não gostava da rainha.

       -Fico feliz em saber que seu deboche estende-se também a outras figuras de autoridades e não apenas aos Guardiões. – ele alfinetou.

       -Hum, não se preocupe, não é nada pessoal – ela revidou, sorrindo – Mas formalidades excessivas tendem a despertar o pior dentro de mim.

       Era uma brincadeira, e Egan não sabia como lidar com isso. Como ligar com uma fada que o fazia desejar abrir as grades da cela, e toma-la nos braços, esquecendo-se de suas obrigações, de sua família e, sobretudo esquecendo que essa fada pertencia ao seu irmão.

       -Será uma longa noite – ele deduziu ajeitando-se em uma das cadeiras dos vigias.

       -Diga por você. – Ela não resistiu a provocar, terminando seu jantar improvisado. – Sinto cheiro de novidade. Vou dormir feliz essa noite.

       Suas últimas palavras foram sussurradas, mas ele ouviu. Quanta tristeza um ser vivo penar do calvário de ser aprisionado. Apenado observou a fada se ajeitar para descansar.

       Jamais confessaria a Eleonora, sobretudo a Tubã, mas se o irmão não fosse tão apegado à fada loura, ele a escolheria quando suas asas nascessem.

       Do mesmo modo que Eleonora jamais admitiria que estar nas masmorras valia a pena, desde que estivesse na companhia do Primeiro Guardião Egan...

        

                         Tenha pena de mim

        O Vale dos Humanos sempre lhe parecia hipnotizante. Era possível ver os rochedos e os montes, que se sobressaiam na linha do horizonte. Santha raramente subia a torre mais alta do castelo, onde anos atrás era seu refúgio, quando escapava do medo da clausura, para ter algumas horas de amor e paixão na companhia de seu amante.

       Ou apenas, ficava sozinha e pensava em sua desgraça. Mas o tempo de tristeza havia ficado para trás. Um aperto em seu coração a fez pensar em morte, sofrimento e abandono.

       Havia aprendido a esquecer. Deixar de lado a constante voz interior que a fazia pensar na cria abandonada e no que deveria ter sido do seu futuro caso houvesse confessado seu crime de ter engravidado na clausura. A punição lógica seria a morte. Ou as masmorras. A cria seria levada para o Ministério do Rei, e provavelmente teria o mesmo destino que a própria Santha.

       Ao salvar a si mesma, salvara também aquele bebê nascido do pecado, libertando-o de uma vida que teria sido de sofrimento e penitência.

       Estarrecida, sentindo aquele frio em sua alma, ouviu passos e imaginou que Lucius estaria com pressa.

       Ele lhe enviara um bilhete durante a tarde, avisando-a que passaria por uma audiência de julgamento, onde mais uma vez julgaria o filho adotivo de Reina, e mais tarde, desejava vê-la na murada mais alta, de onde a visão do abismo era total.

       Santha sabia das pressões que Lucius vinha sofrendo. Pressões diplomáticas. O Rei Isac estava prestes a assinar novos tratados de paz, e por conta disso, o trabalho estava difícil e corrido para alguém do posto de Lucius.

       Primeiramente, ele era contra essas parcerias, e depois, mesmo vergando a vontade inquestionável de Isac, havia a dificuldade de aplacar o próprio orgulho e ajudar a realizar aqueles acordos, que lhe pareciam desnecessários e arbitrários.

       Santha virou-se, o vestido confeccionado em metal e seda, cobrindo seu corpo de modo sensual e cativante, brilhando contra a luz do sol.

       Não havia perigo de encontrarem-se durante o dia. O Rei não vigiava sua rainha, pois acreditava completamente em sua honestidade.

       Convencido que encontrara sua fada escolhida, sua parceira para uma vida toda, Isac era um tolo ouvindo apenas a voz da paixão e luxuria, ignorando os lamentos da razão e da consciência.

       Lucius estava sério. Ela se perguntou o porquê disso. Ele sempre suavizava sua raiva e seriedade quando estavam juntos. Evitava dividir com ela as pressões do seu trabalho. E as magoas de ser submisso ao elfo que se deitava com Santha todas as noites.

       -Disse que tinha pressa em me ver – ela disse baixo. – Saudades ou assuntos sérios?

       -Ambos – ele disse aproximando-se. – Tem uma coisa que você precisa saber, Santha. Uma suspeita que carreguei por muitos anos, e que não posso mais ignorar – ele foi direto ao assunto, acuado, com pressa em desabafar e dividir com ela essa agonia.

       -Suspeita? Acha que o Rei escolherá outra Rainha? Depois de tantos anos cativo de mim? Acha possível? – Imediatamente se assustou, pois era seu medo constante.

       Santha foi à única rainha a ser mantida por tantos anos ao lado de Isac, e se isso aconteceu, foi a custas de muita mentira, enganação e disfarce.

       Sua dedicação em agradar ao Rei era total, pois não desejava perder o posto de rainha.

       -De modo algum. Seu encanto é inquebrável. O Rei é louco por você – ele afastou o olhar – A menina está viva.

       -Que menina? – Perguntou, aproximando-se e tocando sobre seu peito, sobre o colete de couro e a camisa de linho com bordados que remetiam a seu clã de elfos nascidos nos arredores do Rio Branco. Sua linhagem pura e límpida, repleta de significados e aceitação dentro da sociedade.

       -A nossa cria - ele foi franco.

       Santha afastou as mãos no instante em que entendeu.

       -Não existe a ‘nossa cria’ – ela disse horrorizada. Em quase vinte anos, jamais falaram sobre isso. Nem mesmo uma única palavra!

       Algumas vezes, as lembranças daquela noite lhe vinham à mente, e Santha sentia o impulso de gritar, até expurgar essas imagens. O parto difícil e doloroso, a sensação esplêndida de ser uma progenitora, de ter em seus braços sua cria, sua fêmea, que dividia o dom e asas, por ser sua primogênita. Quantas e quantas vezes ela não afugentou essas lembranças com elixir proibido, festas, música e orgias ao lado de Lucius?

       Levou muito tempo, mas atualmente aquele era um assunto morto e enterrado.

       -Sim, existe. Eu suspeitei ter sido enganado pela fada que deveria ter... Você sabe o que eu mandei fazer com a cria – ele virou as costas e fitou o precipício – quando vi uma fêmea tão parecida com você, mesmo sendo tão infanta, ainda assim, tão igual a você... Eu suspeitei. Achei que fossem os meus olhos querendo ver à cria, entende? Que meus olhos quisessem ver a criança e por isso estivessem vendo-a. Mas não, a cria é uma fada adulta, Santha. É uma fêmea idêntica a você.

       Ouvir isso lhe trouxe a estarrecedora lembrança de uma tarde, anos atrás quando o enteado de Reina obtiver sua armadura. Na ocasião, uma fada esbarrara em Santha, e ao olhar em seus olhos, Santha obteve a certeza total de estar diante de sua cria renegada. Eram idênticas e seus olhos eram espelhos aos seus. Mas foi um momento tão rápido, ela havia ingerido tanto elixir proibido durante a cerimônia e estava completamente consciente que era seu coração querendo lhe pregar uma peça, confundindo sua mente, para que visse sua cria abandonada em outra jovem qualquer.

       Saudade daquilo que não conheceu ou pode amar. Uma saudade tão poderosa que transforma alguém lúcido em uma tola vendo fantasmas do passado.

       -É impossível. As asas... – Ela parou de falar cada instante mais horrorizada, ao lembrar-se do significado real dessa informação -... As asas irão me delatar. É impossível que exista uma fada com as mesmas asas que eu... E ninguém tenha dito nada! Que não tenham me acusado ainda!

       -As asas ainda não nasceram. Ela fará vinte anos em breve. Temo que a qualquer momento nasçam e todos saibam a verdade. Você não imagina, Santha... O quanto ela lembra você. – Ele olhou-a com fixação e devoção. – São iguais. Sobretudo na personalidade. Ela é...

       Suas palavras sumiram como vento. Faltavam adjetivos para explicar como era Eleonora, ou ao menos, como ele a via.

       -Como ela é? - Perguntou-lhe incapaz de conter a vontade de saber mais.

       O modo como Lucius a olhou era desconcertante.

       -Debochada. Ela ri e faz graça das regras. Não ouve um ‘não’. Tenho espreitado a fada desde que notei que minhas suspeitas tinham fundamento e descobri que ela não aceita a clausura. Tem três amigas inseparáveis e sei que trama uma fuga. Sei também que nesse momento está nas masmorras por acobertar um roubo.

       Santha chegou a abrir a boca para falar, mas as palavras lhe faltavam. A descrição de sua filha era desoladora, pois o desejo de conhecê-la era insano.

       -É a protegida de Reina – ele disse sério – Eu só não sei como é possível que sua acompanhante nunca tenha notado a semelhança.

       -Reina tem adoração por uma órfã – ela disse com ódio no olhar. Fogo puro no olhar – ela criou uma das órfãs como sua filha! Não é possível que Reina tenha dado amor de mãe para minha filha! Lucius, eu não aceito isso! Não aceito!

       Santha virou de costas, fitando o abismo com loucura. Ela não concebia a ideia de sua criada ter laços afetivos com sua cria de sangue. Era inconcebível! Reina tinha tudo que um dia Santha sonhou ter para si: um marido apaixonado, uma vida simples e honrada, filhos bonitos e saudáveis.

       Reina não conheceu o lado obscuro da vida. Ela não carregava em seu coração as pesadas marcas que Santha fingia não ter, e suprimia todos os dias, com um sorriso cínico e roupas caras. A beleza exterior de Santha escondia e mascarava o horror que vivenciava em seus sonhos e constantes lembranças.

       Reina nasceu livre, uma fada de linhagem. Ela não entendia do medo da clausura. Não era justo que houvesse conhecido a cria e vivido ao seu lado, dividindo amor de progenitora, quando esse amor deveria ter pertencido unicamente a Santha!

       -Não aceita? A fada não pode viver, Santha. E não podemos matá-la. Será que não vê? Tem nosso sangue e a mágica que protege as fadas me impede de matá-la. O mesmo vale para você.

       -Contrataremos alguém que faça isso – ela tentou recuperar a frieza.

       -Não é tão simples acabar com uma fada adulta, quanto é com um bebê que ninguém tinha ciência da existência. Reina vai procurar saber do seu paradeiro. Soube que o primeiro Guardião anda de olho na fada. Seu irmão, aquele bandoleiro também. Ela é abandonada pelo destino, mas cativa de muitas pessoas importantes. Não pode simplesmente desaparecer. Farão perguntas. Perguntas perigosas. E essas perguntas levarão diretamente até você!

       -E o que sugere? Que eu fuja? Eu sou a rainha! Você me prometeu a liberdade, Lucius!

       -O Rei tem me desagradado, Santha. Ele tem planos de firmar acordos de paz com espécies que me desagradam profundamente. É mais fácil nos livrarmos do Rei.

       -Você enlouqueceu – ela disse com horror total na voz, um momento de pânico ao pensar em sua vida sem Isac.

       -Eu pensei em tudo – ele sorriu – São quatro fadas da clausura. Uma delas, nossa fada, envolveu-se com um roubo. Não deve ser difícil elaborar algo a partir disso.

       -Elaborar? Do que está falando? – Segurou seu braço assustada, querendo impedi-lo de abandona-la e partir, sem concluir seus pensamentos, como normalmente Lucius fazia, deixando-a mortificada em dúvidas.

       -O Rei deve morrer. Nossa cria deve morrer. Que morram os dois juntos. – Ele disse taxativo, puxando o braço e se afastando.

       Para Lucius era tão simples falar assim. Como se não fosse uma cria gerada pelos dois, gerada em seu ventre e nascida do seu corpo. Como se nunca antes houvesse segurado-a no colo, recém-nascida e desprotegida.

       Quando fizeram isso no passado, a cria não era nada além de uma ideia, uma possibilidade, um sonho, e mal nascido, não lhes fizera tanta falta. Mas agora, sabendo que era alguém criado e com personalidade, e toda a vida ao seu redor, era doentio considerar a possibilidade de mata-la.

       Perdida nesses pensamentos, Santha permaneceu parada, imóvel, encarando o vazio do precipício...

 

       Amanhecia quando Egan notou que a fada havia despertado. De olhos abertos, aqueles olhos tão claros e expressivos fitavam o teto acima de sua cabeça. Sua cabeleira loura, quase esbranquiçada cobria o chão a sua volta, pois ela tivera um sono agitado.

       Estava pensativa e ele se perguntou se a causa de sua inquietude devia-se a noite insone ou a sua situação atual.

       -Levante. – Ele mandou. – Está quase na hora de ser liberta.

       -Hum – Eleonora olhou para Egan.

       Havia quase esquecido de sua presença. Não era culpa do Guardião, era culpa sua, pois durante a noite algo muito estranho havia se passado com ela.

       Algo inesperado e totalmente inconveniente. Palavras vagas para nomearem o que acontecia. Ela nunca supor ser possível ser a primeira!

       -Não lute contra minhas ordens, fada – ele insistiu, retirando uma chave da cintura e Eleonora apenas olhou-o com candura, vendo-o destrancar a cela e barrar a passagem, esperando que o obedecesse.

       -Eu não posso levantar. Sinto dor – disse surpresa com apropria revelação.

       -Dor? - Ele parou de andar e percorreu seu corpo frágil com os olhos a procura da fonte de sua dor.

       Estivera atento durante toda a noite, não havia notado nada anormal. Ninguém chegara perto da fêmea.

       -Eu não posso acreditar... – Eleonora fechou os olhos com muita força, incrédula e chocada. – Sinto que... Eu acho que são as minhas asas...

       Seu murmúrio era um misto de surpresa, aflição e orgulho.

       O que um macho poderia dizer para uma fada que estivesse para ter suas asas? Era um assunto delicado e dificilmente Egan poderia ser imparcial.

       Inconscientemente ele a farejou. Antes de tudo, era um elfo, e sua porção animal suprimia seu senso de obrigações. É claro que Eleonora notou. Era indelicado e desrespeitoso que o fizesse, pois o momento para ela era de dor. Mas também era interessante e a fazia pensar se o elfo não poderia se interessar por ela.

       Ótimo, ela pensou irônica, o cio iria começar em breve e ela estaria pensando em machos e cópulas. E despertando os instintos de todos os machos nas proximidades. Envergonhada de si mesma, e de sua situação, ela baixou o rosto.

       Egan desejou lhe dizer que seu cheiro estava suave, não havia alteração. Ele a farejava como macho, mas era por conta do desejo antigo, despertado há muito tempo, independente do cio.

       Havia tempo antes que Eleonora fosse levada para um lugar seguro antes que o seu cheiro dominasse as narinas de todos os machos num raio de quilômetros de distancia.

       Isso atrairia todo tipo de Caçador de Fadas e Recompensas para o castelo. O vilarejo se tornaria um reduto de problemas. Esses marginais esperariam pela oportunidade de obter o cio para comercialização, raptando a fada em questão, e ao descobrir que a criaria pertencia à clausura, abandonariam a ideia inicial, mas encontrariam algum tipo de trabalho escuso ou crime a ser cometido.

       O súbito pensamento do que as carcereiras fariam com ela na clausura, o fez pensar em largar tudo para os ares, e reivindicá-la agora mesmo.

       Se bem conhecia Miquelina, a carcereira levaria Eleonora para um dos mais reclusos quartos, amarraria a fada com cordas e tiras de couro, para conter seus impulsos de cópula, e negociaria o cio para quem pagasse mais.

       Com sorte, e supervisão de Reina, a fada chegaria à cerimônia da escolha com suas asas e o cio intocado.

       -Chamarei minha mãe para ajudá-la – avisou sem saber exatamente como lidar com a situação. Faltava-lhe traquejo para lidar com a delicadeza que a situação requeria.

       -Não é necessário – Ela disse séria – Levará dias para as asas nascerem. Dias. – frisou bem a última palavra, estarrecida pela constatação que em apenas alguns dias sua vida se tornaria um verdadeiro inferno - Eu poderia... Andar pelo castelo uma última vez? Enquanto me leva para a clausura? Pode ser minha última chance de ver a vida lá fora antes de ser trancafiada definitivamente... Eu vou entender se disser não.

       Era um pedido singelo.

       De um condenado prestes a ir à força. Como lidar com isso? Quem sabe se Eleonora não lhe despertasse tanta afeição pudesse agir com a severidade que era exigida de seu posto de Guardião.

       -Não posso desobedecer às leis – ele fechou-se em suas obrigações, para não ceder diante daquele olhar que sempre o encantou.

       Eleonora era proibida para ele. Interesse romântico de seu irmão. Impossível olhar para aquela fada com olhos de macho. Mesmo que a simples alusão do seu cio, o fizesse ferver de expectativa de ser seu primeiro macho escolhido e quem sabe, o único. Quando Tubã fugisse da responsabilidade e não a escolhesse por medo do compromisso que o casamento representava, aí sim, ele poderia ter sua chance sem ser condenado. Mas até esse momento, ele manteria distância de Eleonora.

       -Está bem – ela disse triste, se movendo devagar, sem ousar rebelar-se contra ele e ser punida. Restava-lhe, provavelmente, pouco tempo com suas amigas e não poderia desperdiçar esse tempo com punições.

       Pensar em Alma, Driana e Joan lhe trazia o choro à tona, mas ela não queria parecer fraca. Só de pensar no desespero de suas amigas, ao serem separadas uma a uma, já sentia a dor cortar seu coração.

       Sofrer por si mesma, não era tão estarrecedor, quando sofrer por elas.

       Quando levantou do chão, sentiu uma punção de dor tão forte que achou que pudesse morrer. A sensação durou alguns segundos e passou. Tão rápido quanto veio, foi embora. Sentia uma ardência nas costas, como se estivesse queimando.

       Quem diria que seu infortúnio seria iniciado tão cedo? Elas sempre acharam que Alma seria a primeira desafortunada a penar da clausura definitiva, mas estavam erradas.

       Egan manteve-se a distância, pois para um elfo esse momento era extremamente afrodisíaco. Era a essência de uma fada. E como tal, seu cheiro de fêmea atraia qualquer macho que estivesse próximo. E mesmo que a mudança ainda fosse sutil, o imaginário completava o cenário e o tornava sensível à presença de uma fada começando a penar do nascimento de suas asas, sobretudo sendo essa fêmea a sua fada escolhida.

       Mas isso era um grande segredo e não seria apropriado tornar público.

       Talvez por conta do que acontecia com a fada o silêncio nas celas ao redor era absoluto. Todos os machos silenciosos. Sentiam a mudança sutil e mantinham aquele silêncio constrangedor. Eleonora andou ao lado do Guardião envergonhada da própria dor e, sobretudo triste pelo fim da sua liberdade.

       Egan não conversou uma única palavra enquanto a levava pelos corredores. Eleonora também não teve coragem de questioná-lo quando a conduziu por um dos corredores que levaria ao vilarejo dentro do castelo. Silenciosa apenas focou os olhos no elfo ao seu lado.

       Gostava de olhar para ele, e devido a sua situação atual, era provável que não voltasse a vê-lo tão cedo. Se Egan não estivesse presente na escolha das fadas daquele ano... Então, nunca mais o veria. Era um pensamento horrível, mas totalmente consciente da sua nova realidade.

       Reparou que eram observados a distância por olhares atentos. Em meio às pessoas do vilarejo, elfos e fadas, eram insignificantes, mas para olhares atentos daqueles que a amavam, os dois se sobressaiam.

       Alma, Driana e Joan os seguiram de perto, mantendo uma pequena distância, com receio das represarias vindas de um Guardião. Sabiam sua insignificância diante da sociedade em que viviam. Sabiam também que suas fugas eram conhecidas pelas carcereiras e ignoradas unicamente pelo fato do dom de Alma estar quase completo, e temerem sua personalidade perturbada. Alma era uma bomba relógio prestes a explodir, e nenhuma das carcereiras queria estar perto quando isso finalmente acontecesse!

       As fadas vestiam as mesmas túnicas simples e velhas que Eleonora. Sempre olhando para trás, para ver as amigas, Eleonora foi levada diretamente para um local escondido entre barracas e comerciantes do mercado.

       Egan a permitia ver um pouco do movimento, como ela pedira. Pois sabia que em breve a vida da fada seria um horror. Ele precisava achar um modo de pressionar Tubã a admitir que não iria escolher Eleonora para casamento, e isso precisava acontecer o mais rápido possível! Conseguir a desculpa perfeita e usar como escudo contra a ira de seu irmão.

       -Lora! – O chamado angustiado de Tubã a fez enrugar o nariz e empurrá-lo antes de ser abraçada, pois ele corria em sua direção e tentava toca-la.

       -Estou de mal com você pela vida toda! – ela disse emburrada, ainda sentida pelo seu comportamento, que lhe rendera uma noite na masmorra.

       -Lora, eu pedi desculpas para todos. Perdoe-me também – ele beijou sua mão e ela suspirou apenada.

       -Eu o perdoo, pois não tenho escolha – disse quase sorrindo – É bom vê-lo, Tubã. Não sabe como é bom vê-lo.

       O elfo tentou abraça-la, mas Eleonora se desesperou em afastar-se de um elfo macho. O padecimento das asas trazia consigo o cio, e era esse o momento mais íntimo de uma fêmea. Quando seu corpo alcançava a maturidade sexual, seu cheiro mudava, seus desejos falavam mais alto.

       E não queria, de modo algum sentir desejos carnais por Tubã! Seu melhor amigo!

       -Lora... O que eu fiz para me afastar? – o desamparo de Tubã a fez sentir o choro vir aos olhos.

       -Eu sinto muito, Tubã. Sinto muito – ela disse afastando-se – Minhas asas... Minhas asas estão nascendo. Eu não posso ficar perto de você, me perdoe.

       Não pode continuar falando. Suas palavras acabaram ali. Baixou os olhos e seguiu Egan contendo o choro.

       Não reclamou de ser levada para o Ministério do Rei. Queria estar sozinha para afundar-se na dor e sofrimento.

       Foi deixada na entrada principal, que levaria diretamente para os corredores fétidos e para os quartos sujos e mofados. Apesar disso, era mil vezes melhor do que a perspectiva de ser aprisionada definitivamente.

       Seus olhos seguiram a imagem de Egan se afastando e deixando-a para trás. Ele não olhou em sua direção nenhuma vez e ela sentiu-se tola de sonhar com ele e esperar que olhasse e quem sabe, demonstrasse algum interesse. Eleonora, assim como as outras fadas do Ministério do Rei, era apenas um incomodo para os Guardiões, e Egan não era diferente de seus amigos. Pensava o mesmo que eles.

       Baixou a face e lutou contra o choro quando suas amigas aproximaram-se.

       Alma ficou afastada, em estado de choque por finalmente estar acontecendo. As asas eram reais. Não mais uma ameaça velada que um dia as alcançaria. Era real. Eleonora seria a primeira a padecer do nascimento das asas e o momento que deveria ser o mais importante da vida de uma fêmea, passava a ser um fardo desesperador, um modo incondicional e inexplicável. Joan segurou sua mão para que ela se aproximasse delas, mas Alma não quis, ficou imóvel, presa ao chão, incapaz de vencer o próprio temor.

       Joan deixou-a com seu desespero e aproximou-se de Driana que abraçava Eleonora, tentando consolar e acalmar sua amiga.

       As quatro não sabiam, mas o que acontecia com Eleonora era apenas o começo de algo ainda maior. Elas seriam alvo de um plano que mudaria suas vidas para sempre.

       Era só questão de tempo...

 

                          Tenha pena de mim

        A tiara pesava em sua mão. Recuperada há dois dias aquela tiara feita em pedras preciosas e ricamente entalhada em ouro, era um peso em suas mãos. Santha estava sentada em frente a um grande espelho em seu quarto real, enquanto contemplava a magnitude de tudo que conquistou e alcançou em sua vida.

       O Rei estava profundamente adormecido em seu lado direito da cama. Nu e coberto por uma manta, o elfo era inocente aos seus pensamentos. Ela vestia uma túnica de seda sobre o corpo desnudo do recente ato sexual.

       As noites ao lado do elfo Isac eram sempre quentes e apaixonadas. Ele sabia agradar uma fêmea, e louco de amor por ela, dedicava-se exclusivamente a lhe dar prazer e fazer um sorriso brotar em seus lábios. Todos os dias, Isac parecia disposto a conquistá-la, como se no fundo de seu coração, soubesse que não possuía o amor de sua rainha e que seu coração e pensamento iam longe. Que Santha era inalcançável.

       Com uma das mãos, tremula, Santha moveu a taça de elixir proibido e cheirou o perfume almíscar. Ela gostava de um gole da bebida exótica depois do sexo. Na penteadeira em frente ao espelho havia outra taça como aquela. De vinho, pois Isac preferia um bom vinha maturado no vale dos Humanos, e nesta noite havia algo mais nessa taça de vinho. E esse algo mais garantia o pesado sono de Isac.

       Fitando-se no espelho, ela pensava se devia ou não fazer isso. A imagem da fêmea bonita e pálida, sempre tão inocentemente bela para despertar suspeitas, quase a comoveu. O tempo parecia não ter passado. Ainda era a mesma fêmea do passado, com seus olhos sem cor indefinida e expressão de desamparo, que não sabe o que fazer da própria existência. A mesma fada atormentada pelo medo.

       Santha esticou uma das mãos e tocou sobre o reflexo, como quem deseja se esconder de si mesma, ou apagar essa imagem. Ou ainda, acarinhar essa fada que nunca conheceu a felicidade.

       Estarrecida, a conclusão era óbvia demais para ser negada: uma vez delegara a Lucius o cuidado de livrar-se da criança que poderia causar sua morte. Ele falhara. Agora, era chegada a hora de novamente confiar em um elfo que provara ser um incompetente.

       Lucius era muito bom em tudo, menos em protegê-la. E essa certeza vinha crescendo com os anos. Uma fada pode se iludir com o amor. Até mesmo aceitar essa ilusão como algo saudável e ser feliz assim, mas essa fantasia não poderia ultrapassar seu desejo alcançado por liberdade.

       Seu querido Lucius tinha planos, mas Santha suspeitava que suas próprias decisões seriam mais acertadas.

       Por que esperar Lucius tramar um plano, se ela poderia livrar-se do problema facilmente? Usar da ideia de Lucius ao seu modo.

       Livrar-se do Rei e da criança ao mesmo tempo sem, no entanto precisar se expor as falhas constantes de Lucius? Era um bom plano. Estar no controle real pela primeira vez em sua vida. Pois mesmo quando enganou o Rei e casou-se com ele, ainda assim, quem detinha o controle era Lucius. Agora, era a vez de Santha provar a si mesma que não precisava de criatura alguma.

       No entanto, ser a executora, era tão diferente de ser uma aliada. Lucius poderia ser relapso, é verdade, mas geralmente manchava suas mãos de sangue enquanto ela apenas assistia a distância. Enquanto ela podia dormir a noite sem pesadelos.

       Com um súbito aperto no coração, Santha olhou para o Rei adormecido e largou a taça de elixir proibido sobre a penteadeira, levantou e manteve nas mãos a tiara que fora pivô da prisão de sua cria. A fêmea que não deveria ter sobrevivido. Sobretudo, não deveria ousar tirar sua paz.

       Isac era um elfo tão bonito. Cativante, intrigante, peculiar. Ele sabia falar e ouvir. Atento, atencioso, carinhoso e tão generoso como elfo e Rei. Qualquer desejo ele atendia. Desde o mais fútil pedido ao mais difícil.

       Ele sempre perguntava sua opinião, justamente em um mundo onde machos não se importam com o que as fêmeas pensam. Isac tentava manter aquele reino em paz, lutando contra todas as tentativas de rebeliões e guerras. Era obsoleto em algumas decisões, não poderia negar. Mas no balanço geral, era um Rei justo e apenado do sofrimento do seu povo.

       Provavelmente por isso doía tanto curvar-se a ideia de Lucius.

       Sentindo o peso da tiara nas mãos, Santha ficou olhando para o seu Rei. Para o elfo que a escolheu. A tiara era feita em ouro e diamantes, uma joia tão gelada quanto seu coração naquele momento. De pé aos pés da cama, Santha pensou naqueles anos todos ao lado daquele elfo. No fundo de seu coração, precisava admitir a verdade: havia amor por ele. De algum modo a convivência fizera sua paixão por Lucius se tornar passado e o amor por um Rei justo e apaixonado vir a tona.

       Era inapropriado, e quase condenável que se sentisse assim depois de tanta luta por liberdade e redenção.

       Uma pena a vida ter entrelaçado seu destino ao de Lucius de tal modo, que não pudesse esquecer e separar-se dele. Ambos precisavam um do outro, mesmo que essa necessidade pudesse destruí-los. Lucius era uma erva daninha que nasce e se alimenta de uma flor perfumada. E Santha era essa flor, dependente da força danificada dessa erva daninha que a suprimia e erguia sempre que o vento tentava derruba-la.

       Uma codependência que nada poderia suprimir ou extinguir.

       Aquela noite Santha colocaria fim na opressão e no medo constante. Sua liberdade seria total. Nada de momentos escondidos. A rainha escolheria um novo Rei quando houvesse passado o luto. E esse novo Rei lhe daria toda a liberdade do mundo.

       Esse novo Rei não poderia reclamar de ter sido esquecido. Esse elfo a levaria pelas mãos, e seria seu mentor. Era o justo. O cabível. Nada mais importava diante do que já fizeram juntos. Do que viveram juntos.

       Com um sorriso de contentamento, que mascarava a verdade de seus sentimentos, Santha aproximou-se da cama, e ajoelhou-se sobre o elfo adormecido, farejando seu cheiro de elfo. Ela jamais se esqueceria desse cheiro. Estava impregnado em sua alma, em seu corpo, e em suas lembranças para sempre. Onde Rei Isac a tocara, elfo algum poderia alcançar. Um recanto em seu coração até então intocado, havia sido descoberto por ele, e se apropriado sem sua permissão.

       -Eu o amo, Isac – sussurrou, esfregando o rosto no dele. Alisou a pele do seu peito, e pela primeira vez em toda sua vida conjugal, permitiu que seu cheiro de fada impregnasse no dele.

       Seria um susto para Lucius, o único que até aquele momento sentira esse cheiro, quando o reconhecesse no Rei. Uma fada pode ou não revelar seu cheiro ao parceiro. O Rei nunca pediu e ela nunca quis fazê-lo.

       Não era tola e sabia muito bem que o cheiro e as asas de sua primogênita seriam idênticos aos seus.

       O pensamento e a ideia eram tão mais simples que a execução. Por um momento suas mãos tremularam e ela quase derrubou a tiara. Deixou-a cair ao lado da cama, e retirou da túnica o punhal que escondia na seda e linho.

       Fechou os olhos enquanto deslizava a lâmina pelo pescoço do Rei. Não ouve som, ele estava tão profundamente adormecido que nada sentiu ou viu. Não foi um ato demorado.

       Ela manteve uma das mãos sobre seu peito, e descobriu que ele ainda respirava. Contendo o choro, ela tornou a correr a lâmina pela pele, dessa vez com força, mantendo as vistas apartadas para não ver o sangue jorrar. Sentiu-o nas mãos, viscoso e quente, e sob a palma de sua mão espalmada no leito do Rei, sentiu os movimentos cessarem.

       Santha não teve coragem de abrir os olhos, apenas deslizou para o chão e ficou ali, enquanto esperava.

       Algum tempo depois, abriu os olhos e levantou do chão, pois estava feito e não havia volta. As mangas de sua túnica estavam lavadas de sangue e ela espalhou esse sangue pela roupa enquanto andava para fora do quarto.

       Não olhou nenhuma outra vez para a cama, ou para o corpo do Rei.

       A varanda da alcova real era diretamente ligada ao corredor da mais alta murada do castelo, e Santha andou sem destino por alguns minutos. Então parou, como que tomada por um desespero sem fim, ao entender o que fizera e principalmente que não haveria volta.

       Foi quando ela caiu de joelhos no chão que seu grito de horror e dor ecoo por todo castelo.

       Este grito estava preso em sua garganta há vinte anos...

 

       Os gritos da rainha acordaram a criadagem e alertou os guardas do que acontecia.

       A primeira a encontrar a rainha foi uma serva jovem e inexperiente que normalmente apenas cuidava dos desejos do Rei, provendo alimento e outros caprichos, quando solicitados durante a noite. Por causa disso ela dormia em um quartinho próximo a torre.

       Naquela noite, no entanto, seu sono não foi atrapalhado por nenhum capricho da rainha ou alguma ordem estapafúrdia do Rei.

       Havia um massacre acontecendo na alcova do Rei, e nada conseguia acalmar a rainha. Quando os Guardiões finalmente chegaram à cena do crime, a rainha ainda gritava, sua voz esguichada e rachada, pois a garganta não suportava tanto esforço. Foi um custo fazê-la parar de gritar e esboçar qualquer reação, sobretudo contar um pouco do que houve.

       Egan ouviu o relato desesperado da rainha, que caída no chão de pedras geladas gritava e chorava sua dor. Suas palavras eram desconexas e sua narrativa perdia a lógica.

       Santha agarrava as pedras do chão, como se elas pudessem ser um apoio. Egan tentou ergue-la, mas ela afastou-o e caiu outra vez, batendo as duas mãos contras as pedras, próxima a ferir-se.

       Por um segundo, ele considerou a possibilidade de deixar. Santha, a rainha louca e cruel, que fingia não enxergar o sofrimento do seu povo. A rainha que mantinha domínio sobre Reina, a única mãe que ele conheceu, e que a mantinha cativa de um trabalho que beirava a escravidão.

       Apensar da verdadeira opinião sobre a rainha, seu cargo falava mais alto, e ele ordenou que dois Guardiões a levassem para longe da alcova onde o corpo sem vida do Rei jazia.

       Santha foi colocada sobre um divã em uma saleta particular e se encolheu em uma bola, as roupas manchadas de sangue sujaram sua face tão bela e clara, mas ela não notou. Ou se notou, acho que não deveria se limpar. Que era melhor assim.

       Santha estava em completo choque. Mesmo que Egan não pudesse saber a exatidão de seus sentimentos, era capaz de notar que ela estava a um passo da histeria total.

       -Eu preciso saber, rainha, o que aconteceu aqui. - ele disse sério, e não houve resposta.

       Pela porta, em meio aos criados e Guardiões que se agrupam em torno da cama, abriu caminho uma figura em especial.

       Era Reina. Ela manteve-se longe, os olhos cravados em Santha. Não fez um movimento sequer para aproximar-se. Não sentia pena. Na verdade o único sentimento de Reina naquele momento era expectativa e uma certeza que a punha em estado de alerta. Pressentia o pior e sabia que Santha era capaz de tudo para não perder seu trono.

       -Veja, Reina está aqui - disse Egan, aproveitando-se disso para acalmar a rainha - Diga a ela o que aconteceu.

       Os olhos de Santha correram para a figura de Reina, e houve reconhecimento e segurança em sua face.

       -Eu dormia – ela disse cravando seus olhos em Reina – Eu não percebi nada... Como pude dormir sem notar nada?

       -O que aconteceu? – Ele perguntou direto, sem crer em demasia em seu alienamento. - Precisa ser especifica rainha, para que encontremos quem fez isso ao Rei.

       Santha desviou os olhos para o primeiro Guardião.

       -Onde está Lucius? - ela sussurrou.

       -Ele não chegou ainda. Esteve fora do castelo nas últimas horas. - Egan alegou.

       -Porque Lucius viajaria sem me avisar? - ela disse para si mesma, quase esquecida que poderiam ouvi-la e julgar sua dúvida como inapropriada. - Eu não quero falar assim, sem Lucius para me ouvir...

       -Sou o responsável pela guarda, e nem mesmo a Rainha está isenta de reportar-se ao Primeiro Guardião. Esteve nesse quarto durante toda a noite, Rainha, e agora, o Rei está morto. Diga o que aconteceu. -ele alegou, sabendo que soaria como uma ameaça.

       E foi exatamente assim que Santha sentiu-se. Ameaçada.

       Egan não era como os outros Guardiões, que a idolatravam pela beleza e frescor. Ele era diferente dos demais.

       -Eu estava adormecida, ao lado de Isac na cama. Fomos dormir cedo, eu estava cansada. Isac... Ele queria me segurar, me abraçar, como fazíamos todas as noites, na intimidade do nosso quarto. Ele adormeceu antes de mim e foi quando... Ouvi uma voz cantar muito suavemente... Uma fada com a voz hipnótica... Mas eu não notei que era uma fada até levantar da cama e ficar de pé assistindo a tudo, sem poder reagir... – Seu choro cresceu e Egan esperou que se acalmasse. Com quem espera uma cena teatral chegar ao fim, esperou que ela continuasse falando. Não duvidava do que ela dizia, mas sim da emoção exacerbada. Ou Santha era uma ótima atriz disfarçando seus verdadeiros sentimentos de amor pelo Rei. Ou era uma mentirosa, exagerando seus sentimentos.

       Mas ela continuava falando, e ele precisava saber o que acontecia. Ao menos, precisava ouvir sua versão:

       – Eu vi quando entraram. Elas andaram pelo meu quarto e mexeram nas minhas coisas... Minha mente estava confusa, como se estivesse sendo confundida de propósito... Eu tentei lutar, tentei fazê-las pararem. Mas eu não conseguia sair do lugar, ou falar. Eu me lembro de uma fada de cabelos longos e vermelhos rindo para mim, ela mexia nas minhas coisas, e falava sobre as joias, perfumes... E então ela entrou... Dava ordens. Falava sem parar. Nunca vi alguém com tanto discernimento para falar... Ela me chamava de palavrões, sobre como me odiava. Era tão bonita, com olhos expressivos e uma expressão angelical... Eu sabia que era ela quem comandava, pois as outras a obedeciam... E quando a última fada surgiu, ela parou diante de mim, e despiu as roupas. Ficou nua e se deitou com o Rei. Ela acordou Isac, e foi quando a outra fada começou a conversar com ele, hipnotizando-o do mesmo modo que fazia comigo. Não creio que meu marido tenha notado que estava sendo induzido como eu também era induzida a ver e não pode fazer nada...

       -Fala de quatro fadas? – Egan quis conformar, pois era confuso seu relato.

       -Acho que sim. Apenas uma copulou com o Rei e pegou minha tiara... Falava que lhe pertencia. Que seria seu troféu quando fugisse da clausura... Que merecia ouro e diamantes. Que sua beleza merecia tudo, e que eu não valho nada, mereço a sarjeta... Ela... Pegou o punhal e... Oh, não! Não! Isac! O Rei! O que fizeram com o meu Rei? – Ela levantou e começou a gritar histericamente sendo contida por Egan que a fez se acalmar.

       -Quatro fadas invadiram o domínio real, usaram de seus dons para ter acesso ao Rei, matá-lo e roubar a tiara? É isso que está dizendo? A mesma tiara recuperada no dia de ontem?

       -Não queriam roubar a tiara. Colocaram sobre a minha cabeça a tiara coberta de sangue... – Ela tremia tanto que Egan sentiu profunda pena – Havia sangue... Tanto sangue sobre mim... Eu só entendi que fugiam quando me deixaram no chão e fugiram... Eu não vi se levaram a tiara. Acho que não. Eu não sei - ela tremia tanto, que não houve alternativa além de recoloca-la sobre o divã.

       Egan afastou-se da rainha com expressão sombria, olhando nos olhos de Reina, enquanto falava com os outros guardas e Guardiões presentes.

       Acheron, descabelado e acordado as pressas, do leito de alguma fada de taverna, Solon atento à situação, procurando as mais escondias provas, que poderiam estar pelo quarto, aguardando serem encontradas. E Zoé, a única Guardiã fêmea, que estava devidamente trajada, provando que nunca poderia ser pega de surpresa, pois estava sempre em alerta, esperando ser chamada.

       -Traga Tubã e as fadas – ele disse com amargor, se dirigido a Zoé.

       -Seu irmão? – Acheron perguntou, sem achar prudente.

       -Se as fadas estiverem no Ministério do Rei, não é necessário trazê-las. Serão inocentadas, pois não há como escapar do Ministério durante a noite. Se não estiverem... Toque o alarme anunciando a fuga. - Egan foi rápido em achar um modo de retirar o nome das fadas da clausura do envolvimento na morte do Rei.

       Primeiro, seria um desastre se o ódio da população se voltasse contras os órfãos. Segundo, ele deduzia que as fadas envolvidas no assassinato eram Eleonora e suas amigas, e isso envolvia não só a fada de seu interesse, como também seu irmão Tubã. Quanto antes os afastasse dessa estória, melhor.

       -Elas conseguiram me enganar! – Santha gritou ao ouvir suas palavras, horrorizada com a possibilidade de tão facilmente Egan inocentar Eleonora – Como acha que não conseguiriam enganar os carcereiros e fugir?

       Seu argumento era incontestável. E nesse momento de indignação, por um fração de segundo, Santha deixou o personagem que representava de lado, e revelou exatamente quem era e o que sentia. O ódio e a revolta em sua face, acabou com sua beleza e mudou drasticamente sua expressão sempre sedutora para algo sombrio.

       -Traga Tubã e as fadas – ele mandou assim mesmo, evitando enfrenta-la, mas prevalecendo seu poder de Guardião.

       Suas palavras foram ouvidas por alguém que não concordava com essa decisão.

       Reina andou apressada para o corredor, tentando ser mais rápida que a Guardiã Zoé. Egan a viu sair, e sabia muito bem que ela agiria pelas suas costas, mas não moveu um dedo para impedir sua mãe de fazer o que achava certo.

       No afã de encontrar as fadinhas da clausura antes da Guardiã, Reina mal reparou em Lucius que corria na direção da alcova real, avisado as pressas do acontecido. Ele vinha atrás de notícias que desmentissem o boato que se espalhava rapidamente pelo castelo. O boato que dizia que Rei Isac fora assassinado em sua alcova!

       Era um tolo sendo enganado, assim como todos. Santha não o colocou a par de suas atitudes e isso dizia muito sobre o rumo que o relacionamento escuso de ambos tomava.

       Reina não se enganava sobre o que acontecia. Esperava por isso há vinte anos. Mas saber a verdade não mudava em nada a situação e precisava correr contra o tempo para salvar Eleonora e as fadas do Ministério do Rei.

 

                              Asas de fada

        A única certeza que as fadas do Ministério do Rei tinham, era que sagradamente, todas as noites, as oito em ponto, Miquelina apagaria todas as tochas que mantinham um pouco de luz nos corredores e cômodos, e as trancaria a chave em seus quartos. Eram forçadas a dormir cedo, e com o tempo, o costume as fez reféns do sono precoce. Aquela era uma noite calma. Joan estava adormecida desde cedo, bem melhor de seu mal estar daquela semana.

       Eleonora havia sido acalmada e dopada com um chá, para que sua dor não causasse destemperos para as carcereiras. Enquanto seu cheiro fosse fraco e não atraísse elfos, ela ficaria em seu quarto. Era questão de tempo ser apartada de suas amigas. Talvez por isso, carente e com medo de perdê-la no meio da noite, Driana havia se enfiado sob as cobertas no meio da escuridão, e abraçado Eleonora, para que dormissem juntas. Assim se as carcereiras tentassem leva-la no meio da noite, em segredo, ela acordaria imediatamente, e acharia um modo de convencê-las a não fazer isso.

       Uma esperança infantil e tola, mas ela apegava-se a essa possibilidade. No final, as fadas sempre adormeciam cedo. Era impossível combater o sono naquela escuridão total. Adormecidas, às vezes acordavam com gritos oriundos dos calabouços mais profundos, onde ficava a clausura.

       Eram gritos de fadas aprisionadas há muitos anos, que o tempo levara o juízo e a consciência, e atormentadas, berravam por salvação e liberdade. Nestas noites, era impossível dormir e todas se abraçavam e esperavam o amanhecer com ansiedade.

       Mas não era o caso, aquela noite estava tranquila e quieta. E o sono era pesado e sem atropelos. Talvez por isso o susto houvesse sido tão grande.

       A primeira a acordar foi Alma. Como um animal, seus ouvidos não a enganavam quanto a passos nos corredores. Ela quase podia farejar o cheiro das carcereiras. Seu instinto sempre apurado e desejoso de vingança fez rugir dentro de si uma vontade insana de arrombar aquela porta e atacar a carcereira que estivesse ousando invadir os quartos durante a noite, provavelmente para tentar drenar sangue de fada para vender aos Caçadores de Recompensas.

       Era um custo, nesses anos todos, esconder das amigas o que acontecia durante as madrugadas. Há seis anos atrás, Alma descobriu Miquelina no quarto, drenando sangue de Joan, pois a fadinha era sempre dopada por chás e remédios e não acordaria por causa de uma picada de Still, o inseto sugador de sangue. Ele possuía uma película anexa ao corpo, e era comum que o usassem para drenar o sangue de fadas, recolhendo a seguir o conteúdo para um cantil. Depois, era só comercializar e a fada que o usasse, poderia desfrutar temporariamente do dom da fada.

       Era preciso muito sangue para pouco efeito, e apesar do dom não completo das fadas do Ministério do Rei não causar grande poder, o fato das fadas não poderem reclamar e serem ouvidas tornava o orfanato uma fonte inesgotável de sangue de fada. E as carcereiras mantinham esse comércio paralelo ativo há muitos anos, sem nunca serem punidas. Faltava vergonha na cara e clemência para aquelas que deveriam primar pela vida dos órfãos.

       Mas ao descobrir o que faziam, Alma ainda lembrava-se da noite, quando pulou da cama, e tão rápido quando pudera, afastara a carcereira de Joan. A fada era jovem, mas a surpresa não permitiu que visse Alma atacando-a.

       Alma era apenas uma menina de quatorze anos, mas a mantivera imóvel usando uma das mãos, apertando sua garganta com força, tolhendo seu ar. A carcereira fora minguando aos poucos tentando se soltar, e quando sussurrou:

       -Solte-me. Não me deixe morrer. Solte-me...

       Alma apenas apertou com mais força. Queria fazer isso. Era seu mais vivaz sonho. Mas não seria naquela noite que Alma descobriria quem era de verdade. Seu dom não era a força física, mas havia algo dentro dela de ódio e revolta, que a fazia forte e absoluta quando desejava agredir e coagir. Ela guardava a doçura para tratar suas amigas. Elas mereciam seu carinho.

       -Nunca mais faça isso com essas fadas. Está ouvindo? Esse quarto é proibido para você, e para as outras carcereiras. Se ousarem fazer isso outra vez, eu vou acabar com a vida imunda, uma a uma, eu juro que vou acabar com suas vidas podres. Implorar por sua vida não basta. Você sabe, se eu quiser, eu pego uma a uma em seus quartos, e arranco as tripas e depois... Eu juro, vou vender suas carcaças imundas para os Caçadores de Recompensa!

       Não era uma ameaça banal. Estava longe disso.

       Alma executaria, e era apenas um aviso. Um lembrete do que aconteceria da próxima vez. A carcereira foi solta e cobriu o rosto com as mãos tentando respeitar, desesperada por ar. Ainda mais desesperada para sair daquele quarto.

       Por isso ao ver luz sob a fresta da porta, Alma imediatamente levantou. A porta foi destrancada e ela esperou para ver quem era. No canto do quarto, como um animal prestes a atacar sua presa, Alma esperou para saber quem era e o que queria.

       Foi um total alívio que fosse Reina. Ela nunca estivera no Ministério do Rei durante a noite, a menos que uma delas estivesse doente e precisasse de cuidados.

       -Junte as coisas de vocês - disse Reina para Alma, pois a fadinha não diria nada contra sua ordem.

       Esperava que Alma fosse direta e sem rodeio, assim como a própria Reina.

       Eleonora foi desperta por um Reina completamente histérica, que tentava a todo custo manter a calma e a lógica.

       -Quieta – ela dizia enquanto a segurava pelo braço e obrigava a levantar – Cale-se, Eleonora! – reclamou de seus protestos, principalmente porque falava alto demais. - Levante! Vocês duas! - ela apontou Driana e Joan que acordavam também - Levantem!

       Reina fez o mesmo com as duas, arrancando-as de suas camas.

       -Me sigam agora. Sem perguntas! – ela mandou sem explicações, observando que Alma havia pegado uma trouxa com poucos pertences.

       -Não – Eleonora reclamou. - Eu não quero ir.

       Estivera à noite toda em dor profunda e havia acabado de adormecer de exaustão, agradecida ao afeito dos chás que as carcereiras lhe deram. E ser arrancada dessa forma da cama não aliviava em nada seu pesar.

       -Eu não vou a lugar algum... – Tentou deitar outra vez, mas Reina a segurou e puxou com força.

       -As quatro precisam sair agora! Agora!

       -Pra onde devemos ir? – Driana perguntou assustada – É por causa do nascimento das asas de Eleonora?

       -Suas asas estão nascendo? – Reina parou, olhos arregalados, a fez girar abruptamente e baixou sua rouba revelando seu corpo e suas costas, onde marcas avermelhadas denunciavam o recente inicio do ciclo do padecimento das asas. – Que os céus tenham piedade de você, minha querida. - ela lamentou, correndo os dedos por suas costas, onde a pele queimava. - Me perdoe Eleonora, o que faço é para o seu bem – ela disse vestindo-a e segurando seu rosto – Ouça com atenção: precisam fugir. A rainha assassinou o Rei e vai responsabilizá-las por isso. Precisam sair daqui. Egan vem buscá-las e estará aqui em segundos. Calem-se! – Reina gritou quando as quatro fadas se puseram a falar ao mesmo tempo. - Fugir é única chance de sobreviverem!

       Reina praticamente arrastou-as pelos corredores do castelo. Tantos anos trabalhando e vivendo como a sombra de uma rainha com pouco respeito por normas e regras, fizera com que Reina conhecesse muitos caminhos obscuros dentro do castelo. Reina também mantinha estranhas alianças com Miquelina. Ódio e necessidade as uniam e ninguém ousava questionar essa ligação atípica.

       Enquanto Zoé e os demais Guardiões reviravam o Ministério do Rei em busca das fadas fugitivas, Reina as levava diretamente para um local afastado, que desembocou em uma ferraria no vilarejo.

       Eleonora caiu sobre o chão coberto de panos velhos e feno, pois a corrida até ali lhe trouxera ainda mais sofrimento.

       -O que está acontecendo? – Driana segurou o braço de Reina com força, obrigando-a a parar.

       Sua mente aguçada não permitiria uma fuga sem respostas.

       Todas se assustaram quando uma porta foi aberta com brutalidade e um elfo entrou. Era Tubã que as procurava nos lugares mais prováveis de estarem escondidas. Sempre se escondiam ali quando buscavam uma fuga da clausura. Uma vez, anos atrás, Reina havia levado o elfo para brincadeiras no castelo. E naquele dia, Reina o treinava para saber o que fazer, no momento certo. Ela lhe disse que ali seria o ponto de fuga no dia em que levassem Eleonora embora. Nunca lhe disse a razão ou como soubera disso, mas que assim seria e ele deveria estar preparado para encontra-las naquele lugar.

       -Ainda bem que está aqui, Tubã. - ela o puxou pela mão para que ele ficasse perto - Não façam perguntas! Calem a boca, será que vocês só sabem falar ao mesmo tempo? – Reina disse desesperada, calando as perguntas desencontradas. – Driana, seu poder será a estratégia, e você sabe disso há muito tempo. Joan... Você sabe que pode ludibriar os sentidos alheios. Esconder dos olhos, aquilo que deseja. Não se engane quanto a si mesma, seu dom é bem maior do que isso. Preste atenção aos sinais. - ela olhava de uma para outra, sem tempo para respirar entre as palavras, com o texto decorado há tantos anos, na ponta da língua - Alma, querida, sua voz pode hipnotizar. Controle seus impulso. Não mate nenhuma criatura por diversão ou necessidade. Contenha-se! - era preciso ser muito direta com Alma - Além de mim, todos no Ministério do Rei sabem que serão estes os dons recebidos juntamente com as asas. A rainha está se valendo disso para acusá-las. É tudo uma farsa. Ela acusa Eleonora de ter se deitado com o Rei, e seu cheiro de fada está sobre ele. Sobre seu corpo degolado – notando o modo horrorizado de Eleonora, Reina aproximou-se e se abaixou segurando seu rosto nas mãos – Não teça perguntas. A teia de mentiras que Santha teceu é bem mais ornada do que suas perguntas mais audazes poderiam ser capazes de exemplificar. A Rainha tem o seu cheiro e suas asas, Eleonora. Você é um perigo para a existência dela. Agora eu vejo a pressa dela. Suas asas estão nascendo. Por isso, daqui por diante, é uma fugitiva. Irei levá-la para longe com minhas asas. Não há outro modo de resolver isso. Está tramado desde o seu nascimento que seria assim. Uma vez - ela segurou o queixo de Eleonora e olhou bem em seus olhos, pois ela não parecia entender - Túlio me disse que o destino sabe o que faz, e que saberia decidir seu destino, Lora. E é verdade. O destino uniu a todos nós e agora, o mesmo destino exige redenção. E é isso que faremos. Dar ao destino o que ele quer. - ela sentiu o choro sufocar, mas se conteve - Tubã, seu tempo de elfo livre acabou. Seu tempo de irresponsabilidade chegou ao fim. Leve Alma para a Vila dos Desesperados. Deixe-a próxima ao rio. Todas as fadas possuem aparência e trejeitos estranhos nesse vilarejo, e não vão reparar na voz de Alma como algo anormal. Depois, siga sempre em frente e deixe Joan nos Campos dos Humanos. Ela é a única que possui poucas características distintas e que pode andar entre eles sem levantar suspeitas sobre sua raça. Joan vai se misturar aos humanos com perfeição. Depois disso, desapareça por muito tempo, meu querido filho. Suma, esconda-se e não saia até ser seguro, não olhe para trás, não pense em nenhuma de nós. Apenas se esconda e espere. Essa será a salvação de todos nós. – Disse emocionada.

       -E eu? – Driana perguntou com fragilidade, segurando na manga da túnica de Reina, com medo da resposta.

       -Sua mente brilhante fará com que fique aqui. Se esconda, ninguém a encontrará se usar sua mente perfeita. Saberá das novidades e no momento certo... Poderá nos achar. Não preciso lhe dizer o que fazer, você saberá sozinha. Agora vamos todos... Não é seguro ficar aqui!

       -Não pode deixar seu marido – Eleonora disse chorosa, com dor, lágrimas correndo em sua face.

       Um pequeno sorriso irônico e Reina maneou a cabeça com tristeza:

       -Eu vivi toda minha vida para o meu casamento. Agora é a vez de o meu marido mostrar em quem ele acredita. O mesmo digo sobre Egan. Está na hora desses dois definirem eu lado. – Disse com tristeza – Não há tempo para falar. Precisamos partir agora. Eleonora, por favor, nos ajude com isso. Você precisa ir embora!

       Eleonora foi erguida por Reina e mal conseguiu se segurar a ela. Suas amigas estavam diante dela e não tinha palavras para se despedir.

       -Por minha culpa serão fugitivas – ela sussurrou, tentando tocar Joan, pois seu coração se quebrava de aparar-se da fadinha ruiva, tão frágil como um arco iris após a tempestade.

       -Qualquer coisa é melhor do que a clausura – Alma se apressou a dizer – Salve-se, Eleonora. Porque vamos nos salvar. E todas nos reencontraremos um dia.

       -Um dia não – apressou-se a dizer Joan – Em breve! Eu ficarei bem, Lora, não pense em mim - pediu, sabendo muito bem que parte do receio de Eleonora devia-se a ela.

       -Use seu dom, Lora! – Driana se lembrou disso quando mais ninguém lembrava – Seu cheiro e suas asas serão iguais à rainha. Sabemos bem a causa disso! Então seu dom... Também será semelhante ao dela. Não esqueça: use seu dom para escapar! Não hesite! Apenas reze para o padecimento acabar logo. Se não estou errada, e sei que não estou - olhou nos olhos de Reina - Suas asas serão a prova para nossa liberdade! - havia deduzido tudo. A inteligência era seu ponto forte.

       -Eu não quero ir – Eleonora chorou, sendo levada para longe das amigas – eu não quero fugir assim, sem vocês! Eu não quero ficar longe das minhas amigas!

       Seu protesto foi ignorado completamente. Reina a arrastou consigo para fora da ferraria e suas asas se lançaram ao vento, pois a noite trazia vento e chuva.

       Joan foi à única que correu para fora para enxergar sua partida. Ficou parada vendo Reina alçar voo levando Eleonora consigo para longe delas.

       Normalmente a magia que impedia as fadas de levarem fêmeas da clausura em voos para fora do castelo, sem permissão, iria conter Reina. Mas essa noite não era como as demais. Em seu voo alto, por sobre o castelo, Reina não viu que era observada por uma figura solitária. Era Miquelina, uma das carcereiras. A possível responsável pela ausência da magia de guarda que protegia o castelo de fugas.

       Driana e Alma buscaram por Joan, para que ela não se revelasse e fosse descoberta antes de fugirem. Precisam fugir, e sem asas, a fuga era ainda mais ariscada. Juntas, elas focaram em Tubã. Eles se amavam como amigos, como irmãos, mas daí a confiar em Tubã para algo tão sério...

       Talvez por saber que era difícil para ele, Driana tomou à dianteira e disse o que deveriam fazer a seguir, deduzindo com sua mente afiada, os passos certos para levar as duas fadas para fora do castelo sem serem notadas.

       Sem a mágica que impedia as fadas do Ministério do Rei saírem do castelo, tudo ficava mais fácil. E esse fácil, por definição, era repleto de incertezas.

 

                         Sem chão

        A noite chegava ao fim, e o dia amanhecia inocente ao que acontecia em suas vidas. A natureza sempre segue seu curso sem prestar atenção aos desmandos dos humanos ou das criaturas mágicas. Somente a flora, e fauna, poderiam ser compreendidos e atendidos pela natureza. O ser que pena, causa atropelos, e como tal, não merece atenção.

       Era assim que pensava Túlio, que um dia fora o Primeiro Guardião, e hoje em dia, era apenas um elfo velho, de cabelos brancos, andando pela casinha vazia e abandonada por sua dona. Ele vestia suas roupas de Conselheiros, sua túnica bordada a ouro, e mantinha a longa capa de veludo presa ao pescoço. Todo o poder que possuía, não fora capaz de impedir que a casa estivesse vazia.

       Ele apoiou uma das mãos sobre a mesa de madeira, e somente o tremor de sua mão indicava o quanto ele estava cansaço e ultrapassado, vítima da idade e do pesar da recente fuga de Reina.

       Um dia, aquela mesa fora repleta de felicidade. Primeiro, com sua fada escolhida, ele já era um elfo vivido quando se casou com uma fada de linhagem que gerou Egan. Ela era alguém doce e afável, mas não de confiança. Às vezes, sua mente perdia o foco e ela gostava de vagar sem paradeiro. Sua saúde frágil custou sua vida. E ele lamentou e sofreu por muito tempo.

       Mas havia uma criança que precisava de uma fêmea que o amasse e cuidasse, e encontrar Reina havia sido uma benção. No principio um casamento útil para ambos. Mas os dias e os meses juntos se encarregaram de fazer nascer um amor inexplicável, e aquela mesa se tornou pequena para tanta felicidade.

       Túlio apoiou a outra mão, e baixou a cabeça, vendo diante de si a mesa lotada. Reina ao lado da cabeceira da mesa, onde Túlio regia a família. Egan na esquerda e Mirrar, seu segundo filho, na sua direita. O tempo levou Mirrar, e essa dor era grande demais para ser lembrada. A mesa não ficou vazia por muito tempo.

       Um dia Reina surgira em casa trazendo pela mão o irrequieto Tubã e mesmo que não quisesse ter o menino como um filho, não poderia negar que o elfo não pedira licença ao entrar em seu coração e tomar conta das vidas de todos eles.

       Depois disso, aquela mesa tornou-se tão pequena para os elfos adultos e grandalhões, para a comida, e para a festa. Vozes altas, risos, algumas vezes brigas e implicâncias, mas na maior parte das vezes, apenas alegrias cotidianas.

       E agora? Tubã foragido. Reina acusada de cumplicidade na fuga das fadas. Egan precisando busca-los e puni-los.

       O que fazer diante da destruição de uma família? Ele deveria ter permitido que a fada Eleonora viesse para sua família. Quando Reina a encontrou na floresta abandonada para a morte, fora um sinal de que a fêmea pertencia a sua família. O destino não pode ser ludibriado e Túlio livrou-se da menina por temer que sua presença causasse danos.

       Não estava errado de todo, mas o estrago seria menor se a fadinha não estivesse na clausura.

       Sem Reina, sua casa e sua vida, assemelhavam-se a um mausoléu vazio.

       Não havia nada a ser dito ou visto. Apenas o frio do abandono.

       Ou nem isso, visto que o som de passos e vozes alertava que a hora da verdade aproximava-se. Ele sabia que buscariam por ele. Desde o momento, quando acordou e descobriu apenas um bilhete contando tudo, que Túlio sabia que esse momento chegaria.

       Guardar um segredo imensurável ou delatar aqueles que mais amava em sua vida? A vida solitária era tão triste. Ele não ousaria fazer isso com Egan. Seu filho merecia uma mãe e um irmão. Merecia tudo que seu coração conquistou. O próprio Túlio depois de quase meio século dedicado ao reino merecia ter sua esposa e seu filho adotivo, resguardados do perigo.

       Sua porta foi aberta antes da primeira batida. Era a Guardiã Zoé. Sua face sempre dura e sem expressão não era a melhor das faces a ser vista em um momento tão complicado. Pelo contrário, ele fez um sinal para que se calasse, e andou para longe da casa, dizendo sem palavras que não aceitaria ser legado, como se fosse um criminoso. Que a Guardiã respeitasse seu cargo e seus cabelos brancos e a contra gosto, a Guardiã vergou-se a sua ordem.

       O salão onde antigamente o Rei Isac orquestrara as mais belas festas e recepções estava coberta de elfos e fadas, todos exasperados pelo acontecido.

       -O Primeiro Conselheiro - disse Lucius, acusador - Marido da fada traidora.

       -Renego sua autoridade - Túlio disse imediatamente, olhando para os demais Conselheiros - Na ausência do Rei, Conselho e Guardiões comandarão o reino ao lado da rainha. E desse modo será até a escolha de um novo Rei, caso o desejo de Santha seja ter um novo amante.

       Seu tom era irônico. Reina era criada pessoal de Santha e sabia do caso de Lucius com a rainha. Se pressionasse demais Túlio ele poderia usar isso contra eles.

       -Ao Primeiro Guardião, a honra de interrogar o grande e justo Conselheiro Túlio - Lucius disse com falso respeito, apontando para Egan com desprezo e algo mais que sempre enfurecia Egan.

       -Isso não é um interrogatório. - Egan desmentiu Lucius - Meu pai não deve ser tratado como um assassino ou cúmplice. Tão pouco minha mãe. Ser criada de Reina não a coloca diretamente envolvida no crime. - ele alegou, desafiando Lucius.

       -Mas ser protetora da assassina, torna Reina nossa próxima suspeita. E onde ela está? Alguém pode ver Reina em torno? Eu não posso vê-la. Você pode, Egan? Onde está sua madrasta? - Lucius provocou, frisando muito bem a palavra madrasta, para lembrar ao Guardião que não possuía parentesco de sangue com Reina.

       Engolindo a resposta mordaz que Lucius merecia Egan olhou para o pai e perguntou:

       -Onde esta Reina, meu pai?

       Túlio olhou-o fixamente. Os olhos de seu filho pediam pela mentira. Imploravam pela camuflagem da verdade, pela arte da invenção. Egan implorava para que não verbalizasse aquilo que todos sabiam e estava implícito no desaparecimento de Reina e Tubã.

       -Onde mais sua mãe estaria, Egan? Acaso você não sabe? - ele jogou de volta, sem abalar-se um segundo sequer.

       O importante era manter a aparência fria e firme. Não fora isso que Túlio lhe ensinara nas primeiras aulas para Guardião? Queime por dentro, mas por fora seja frio e indiferente. Isso confunde o inimigo. A indiferença poderia vencer uma batalha. Causar dúvidas e estranhezas entre inimigos e aliados.

       -Prefiro ouvir suas palavras, Conselheiro. Onde está Reina? - Egan jogou de volta, pois era isso que seu pai esperava.

       Deixar claro que o Guardião sabia do paradeiro de Reina, antes mesmo de lhe perguntar, mas por conta do seu posto, não podia argumentar a favor de Reina. Não sem provas concretas. Confundir os demais elfos e fadas, esse era o trabalho de um bom Conselheiro. E Túlio era o melhor de todos.

       -É de conhecimento de minha família, que na noite anterior, Reina partiu para o Vilarejo dos Desesperados, a pedido meu, para visitar conhecidos. Uma fada aparentada está para dar a luz e não poderá ficar com sua cria. Reina viajou para buscar a criança e trazê-la em segurança para o Ministério do Rei. Devo frisar que Reina faz isso há anos. Ela resgata órfãos da morte e do abandono, sobretudo, livrando-os do árduo destino de serem encontrado por Caçadores de Recomenda, ou então, perecerem abandonados na floresta. Largados para a morte, por seus próprios progenitores... - ele disse isso fitando Lucius diretamente nos olhos.

       Lucius manteve-se firme, mas sabia que era uma forma de calar seus protestos.

       -E Tubã? - Egan insistiu.

       -As estradas andam muito perigosas para a travessia de uma fada desacompanhada. E Reina não é mais uma fada tão jovem. Uma travessia tão longa levando um bebezinho nos braços... Não, ela precisava da proteção de um elfo. Eu mesmo recrutei meu filho para levar e trazer Reina em segurança. Eles devem retornar em alguns dias.

       -Isso é uma vergonhosa mentira - disse Lucius - Reina foi vista por Santha em sua alcova horas depois do assassinato.

       -Não - Foi Egan quem o desqualificou - Você não estava presente, eu mesmo atesto que vi a rainha e que ela estava completamente fora de si, descontrolada. Ela não sabia o que dizia ou o que via. Reina não esteve no quarto do Rei. Não durante minha presença.

       Era uma mentira deslavada. Ele vira Reina no quarto, observando-o conversar com Santha.

       Lucius não pode ser veemente como desejava. Alegar que Santha tinha domínio de seu emocional, era alegar que ela poderia ter impedido o assassinato ou então, ter participado do acontecido ao Rei Isac.

       -Diz que minha mãe está em viagem ao Vilarejo dos Desesperados a pedido seu? – Egan mal podia crer que seu pai, ex-primeiro Guardião, estivesse encobrindo uma fuga – Está mentindo, meu pai. Reina se juntou as fugitivas. É o que todos pensam.

       -De modo algum. Minha palavra tem valor. Minha esposa está entre amigos. – Túlio alegou, movendo-se para observar a imagem patética que adentrava ao salão trazida por suas criadas pessoais. - Meu filho mais jovem a acompanha. É minha última palavra sobre esse assunto.

       A rainha ainda chorava ao sentar-se no trono. Lucius aproximou-se e permaneceu ao seu lado e tudo observava com olhos de rapina

       – Permita-me uma viagem, eu a buscarei e provarei minhas palavras. - o Conselheiro ofereceu irônico.

       Precisavam dele para as votações. Ele sabia exatamente cada passo que seria dado. Cada decisão que seria tomada. E sabia que para metade das lambanças que Lucius tinha em mente, precisaria de seu voto como Conselheiro. Sem uma unanimidade, nada poderia ser feito. Nem mesmo, uma perseguição as supostas assassinas.

       Egan pensou seriamente em continuar brigando com o pai por justiça. Mas não o fez. Ele não queria ser autor desse tipo de justiça.

       -Ponderar sobre Reina não nos levará a lugar algum - disse outro Conselheiro, que sempre apoiaria Túlio. Os Conselheiros se protegiam. Era a última ligação antes do Rei. Se Santha caísse, eles governariam. Simples assim.

       -Exatamente - disse Lucius, dobrando-se a vontade dos Conselheiros - Ela precisa ser encontrada e interrogada, mas não é nossa prioridade. As fadas assassinas são nossa prioridade, e o cúmplice, o elfo Tubã.

       É claro que o elfo não abriria mão de Tubã. Uma troca significativa de olhares entre Egan e Túlio e não houve argumentos para refutar Lucius.

       O elfo andou em torno deles, e mirou diretamente Egan.

       -É necessário o retorno das assassinas. Uma caçada se faz imprescindível - ele disse o que todos temiam.

       -Não - foi a voz de Solon quase fez ouvir. Ele nem sempre participava das conversas, mas nesse caso, era necessário usar de qualquer recurso para entender o que diziam, e argumentar - Não somos criminosos. Não usaremos dos mesmos recursos que Caçadores de Fadas. É preciso trazê-las de volta, mas não usando os recursos de criminosos. A crueldade dos Caçadores são indiscutíveis e inaceitáveis. E enquanto não houver provas conclusivas do envolvimento das fadas, não apoio essa decisão, e espero que meus amigos Guardiões tenham lucidez para não votar a favor deste porte!

       -Ora, por favor, Solon - foi Zoé quem interrompeu - A Rainha esteve presente durante o assassinato. Ela é a testemunha principal. Ela viu e contou em detalhes como a fada Alma hipnotizou-a para que não gritasse ou lutasse contra elas, como a fada Driana ordenava o passo a passo do que as outras fadas deveriam fazer. Sobre como a fada Joan ludibriou os olhos da rainha e desse modo deve tê-las camuflado pelo castelo tanto na invasão a alcova do Rei, quanto na fuga. Sobre a fada Eleonora ter se deitado com o Rei. O cheiro da ratazana da clausura empesteia o cadáver de Isac!

       Sua veemência beirava a crueldade.

       -Contenha-se, Zoé - Egan reclamou e sua palavra deveria bastar, pois era o primeiro em hierarquia. - A própria rainha foi vaga em seu depoimento. Ela não citou nomes - notou a troca de olhares entre Santha e Lucius.

       -Eu não sabia os nomes das fadas. Mas agora eu sei - ela disse séria - Como eu poderia conhecer nomes de fadas que vivem no Ministério do Rei?

       -Deveria ser seu dever como rainha conhecê-las, mas não estamos discutindo os deveres de uma rainha. Existe uma acusação, e existem fugitivas. Elas devem ser trazidas de volta - disse Acheron, o segundo em hierarquia e o menos paciente com ladainhas sem fim - Mas sem o uso de Caçadores de Fadas. Eu não trabalho ao lado de criminosos. Se o reino começará a usar caçadores, então, não há sentido perseguir essas fadas. Sejamos todos criminosos aliados, e tudo fica como está.

       Em sua rudeza, Acheron se fazia entender muito bem.

       -As fadas não estão no castelo ou no vilarejo. Pelo tempo entre o assassinato do Rei e a descoberta do corpo, elas não devem estar longe. Levando em conta que nenhuma delas possui asas, e que trabalhamos com a hipótese de não possuírem cúmplices e ajudas externas... Podemos supor que ainda estejam nas redondezas do castelo. Eu peço a oportunidade de caçá-las e trazê-las para julgamento, sem envolvimento de Caçadores de Fadas. – Egan afirmou diante da rainha que apenas olhou para Lucius, como quem relega poder.

       -Um Guardião é muito pouco. Não podemos dispor de todos os Guardiões... Por isso, deve se ater a busca pela assassina. A principal e mais importante das fadas, a assassina do Rei. Viva ou morta traga Eleonora para ser punida. É sua missão, Primeiro Guardião – Lucius desceu um dos degraus diante do trono e olhou para os outros nove Guardiões.

       -Ao Segundo Guardião relego o fardo de caçar a fada de nome Driana. Ela possui demasiada esperteza. Pode estar em qualquer lugar. – Ele disse a Acheron, o segundo Guardião.

       O elfo correu os olhos para Egan em busca de concordância, pois sempre foi fiel ao Primeiro Guardião e apenas acenou concordando com as palavras de Lucius. Virou as costas e se afastou, com pesadas passadas, pois sua missão agora era sua vida.

       Acheron era o mais rude de todos os Guardiões. Alto, pele escura, com cabelos longos, na cintura, em louro acobreado, vinha de uma dinastia extinta de elfos claros, e sua pele escurecera devido ao sol e ao trabalho constante. Ele sempre se vestia com peles e poucos apetrechos de luxo. Preferia tudo que fosse visceral. Contato com a terra. Sentir a natureza a sua volta.

       Egan não teve a menor dúvida que ele encontraria a fada Driana, e que esse encontro seria memorável, pois a fada guiava-se pela mente e Acheron pelo corpo.

       -Ao Terceiro Guardião, designo que encontre a fada Joan. Ela possui o dom de ludibriar os sentidos. Suas asas ainda não nasceram, sendo assim, esse dom é fraco. Use de sua porção fada, para encontrá-la e fugir de seus encantos. A fada é adoentada, não pode estar longe e se a encontrar, não poderá lutar e se defender. Não terá o mesmo poder de luta que as outras fugitivas.– Lucius tramou, falando com Zoé, que era uma fada e não um elfo.

       Uma guerreira por natureza, Zoé não pestanejou antes de ir à busca de sua fugitiva. Coberta por armadura e peles, vestia-se como um Guardião, com a vantagem de ter asas. Asas vermelhas e sempre mantidas ocultas por uma capa, como se estivesse tentando esconder que era uma fada.

       Era fêmea, mas raramente demonstrava querer viver como tal. Alta, de longos cabelos negros sempre trançados, ignorava a beleza dos próprios traços femininos em nome da carreira escolhida junto à segurança do Rei. Vinha de uma linhagem desconhecida de raça, mas pelas características mulatas, era possível ariscar o palpite que viesse de origens africanas.

       Seria uma luta justa, visto que a fugitiva possuía um dom perigoso, mas ainda não contava com suas asas.

       Como fêmea Zoé possuía o dom de revelar. E esse dom seria usado contra o dom de Joan, de esconder. Uma briga desumana, visto que Zoé possuía o prazer de esmigalhar e destroçar qualquer um que cruzasse seu caminho. Uma fêmea nas condições de Joan não duraria um dia na mão de Zoé.

       -Ao quarto Guardião deixo a responsabilidade de trazer Alma, a fada de voz hipnótica. Ela tentara ludibriá-lo. Mas sei que vencerá essa luta com louvor.

       Era cruel o sorriso debochado de Lucius. Surdo de um dos ouvidos, Solon não seria de modo algum uma vítima fácil da fada. Sua deficiência não era conhecida de todos, por isso, poucos entenderiam a maldade expressa em sua colocação.

       Solon era um elfo comum, parecido com Egan, com exceção da altura. Solon era um guerreiro de armas e de luta no solo. Sua determinação brilhava em seus olhos profundamente azuis.

       Foi o único que esperou por Egan. Precisavam trocar impressões e fatos sobre a busca pelas fadas. Solon não era do tipo que facilmente acreditaria na culpa de fadas da clausura. Ou que acataria ordens de Lucius ou Santha, sem fazer perguntas.

       Em sua mente Egan perguntava-se por onde seus amigos e fieis companheiros de luta pensavam começar as buscas. Por mais experiente que fosse Egan não tinha a menor pista de onde poderia estar uma fada de meia idade com suas asas em pleno funcionamento, possuidora de um dom nada prático em uma fuga. Estava convencido da participação de Reina na fuga de uma fada na eminência do padecimento de suas asas. Sem dom e sem asas, padecendo de dor e privação disso. Onde Reina esconderia uma fada nas condições de Eleonora?

       Seu único pensamento lógico era levá-las diretamente para uma armadilha. Não poderia alcançá-las, Reina era esperta e conhecia o filho que criou. Conhecia o Guardião que Egan se tornou. Sabia como ele pensava, assim, como ele sabia o modo que a mente de Reina agia.

       Também não poderia fazer nada que agredisse e ferisse sua mãe de criação a quem tinha amor de filho. Sempre incorreria no risco de Tubã, seu irmão de criação estar com as duas, e não desejava enfrentá-lo em uma luta onde certamente o venceria e perderia o irmão, ou a confiança dele. Tão pouco queria ferir a fada que cativou seu coração e que poderia ser inocente das acusações.

       Rainha Santha não era grande coisa. Ele não confiava cegamente nela.

       Restava-lhe guardar para si seus medos, criar a armadilha perfeita e levar Reina e Eleonora diretamente para o único lugar onde um Guardião se equiparava a uma fada. Ou melhor, dizendo o único lugar onde uma fada perdia seus poderes e o uso de suas asas e simplesmente era tão inofensiva quanto uma borboleta.

       Separar e confundir. Conquistar na base da armadilha.

       Ele sabia até como começar.

       O Deserto das Areias Vermelhas. Precisava levar Eleonora diretamente para lá. E para isso, precisaria de ajuda. Uma ajuda bastante significativa. Usar de um elo inocente, para que Reina achasse seguro apartar-se de Eleonora. Convencido dessa estratégia, Egan despediu-se do Quarto Guardião e partiu sozinho.

       Com um aceno, Solon se despediu também, e cada qual seguiu um caminho diferente.

       Era o inicio de uma caçada desleal contra as quatro fadas da clausura. E não havia regras em uma caçada. Não havia leis. Tudo era valido em nome da sobrevivência.

 

                          Farsantes

        Tubã poderia ser considerado um inútil por quase todos os elfos do reino, sobretudo os Guardiões e Conselheiros, mas ele não era nada estúpido. Era relapso com ordens que não acreditava e sagaz quando lhe interessava.

       Ouvia atentamente todas as regras e leis que vinham da boca de seu irmão. Nem todas conseguia cumprir, mas sempre entendia e tentava obedecer, por mais que Egan não acreditasse em seu esforço. E, sobretudo, aprendia tudo que Egan lhe ensinava, isso desde a mais tenra idade. Por isso, conhecer alguns segredos de Guardiões, o auxiliou na fuga. Encontrou caminho, usando de passagens secretas reveladas por Egan ao seu irmão caçula em momentos de descontração.

       Na metade do tempo esperado, eles chegaram a Vila dos Desesperados. Tubã havia arranjado uma carroça no meio do trajeto, pois Joan não estava bem de saúde outra vez, e não aguentaria caminhadas longas. Em alguns momentos aquela fuga parecia à coisa mais estúpida que já fizera. Seriam pegos pelos Guardiões. Era improvável que conseguissem fugir. Em outros momentos, era uma dádiva que estivessem em fuga,

       Principalmente quando flagrava o olhar de surpresa de Joan diante de uma planta ou de um passarinho que nunca antes vira. Tudo era novidade. O barulho da mata, o luar fechado, sem estrelas, que tornava tudo uma escuridão assustadora. O ar limpo, livre de mofo, a liberdade de não ter paredes pra prender e sufocar.

       Mesmo na desgraça, as fadas pareciam quase felizes. Não fosse a incerteza e o apartamento de Driana e Eleonora, e o risco que todas corriam de ser morta, a felicidade poderia assemelhar-se ao que vivenciavam.

       Dois dias mais tarde, chegaram ao local indicado por Reina, nos arredores da Vila dos Desesperados.

       Alma não era apegada a grandes demonstrações de sentimentos, por isso apenas pulou para fora da carroça e acenou com a cabeça em despedida, esperando que Tubã partisse logo levando Joan para um lugar seguro, onde nenhum Guardião pudesse apanha-la.

       -Alma... - havia sido a voz frágil de Joan que a deteve.

       De pé longe da carroça, Alma esperou, cravando os olhos em sua face chorosa e delicada.

       -Eu sentirei sua falta, Alma - Joan sussurrou, sufocando o choro - Durante todos esses anos vivendo no orfanato, sempre esteve ao meu lado, me protegendo. Eu sentirei falta da sua proteção, mas acima de tudo, sentirei falta de você - ela desabafou, pois era provável que fosse a última vez que se vissem.

       A liberdade parecia trazer consigo a partida. Elas sabiam disso. Joan seria encontrada e morta. Era frágil demais para suportar uma luta com Guardiões. Alma, com toda certeza, lutaria ao ser encontrada, e obrigaria o Guardião que a caçasse a mata-la, ou seria morto por sua fúria incondicional e sua voz estridente.

       Então, aquela era a última vez juntas. O último olhar. O último som de voz.

       -Vá em paz - disse Alma. - Eu vou busca-la. Encontre um buraco e se esconda. Que eu vou encontrá-la quando seguro. Não lute. Não haja. Apenas encontre um buraco e se esconda. Eu luto, eu ajo. Obedeça-me, Joan.

       Era um aviso bastante sério. Alma lutaria pelas duas. Joan fechou os olhos e concordou, voltando a se recostar dentro da carroça, na cama improvisada feita com restos de cobertores e uma manta mal cheirosa trazida do Ministério do Rei. Cobriu-se para proteger-se do frio, mesmo a temperatura estando amena. Joan tremia incontrolavelmente. Era a doença definhando-a aos poucos...

       Tubã bateu o chicote no lombo do cavalo e ele ganhou velocidade, levando-os para longe de Alma e daquelas estradas. Quanto antes encontrasse um abrigo para a noite, melhor. E de preferência bem longe daquela região, pois seria uma lástima se as duas fadas fossem encontradas juntas.

       Como ordenando por Reina, a fada Alma foi deixada na Vila dos Desesperados, protegida unicamente por uma túnica com capuz para lhe proteger a face e não ser tão facilmente reconhecida. Ela afastou da mente o olhar de Joan na carroça enquanto Tubã partia levando-a consigo, pois essa lembrança era de cortar o coração.

       Precisava esquecer o pensamento insistente do que poderia acontecer com suas amigas e manter-se resguardada, pois se a alcançassem por conta de um descuido seu, seria anda pior. Os Guardiões usariam de uma das fadas fugitivas para atrair as demais.

       Era previsível que essa estratégia surtiria efeito rápido.

       Alma percorreu a estradinha de terra, andando rápido. Podia ver fumaça através da copa das árvores, e acreditava que aquela era a direção certa para chegar ao vilarejo.

       Não lhe assustava estar sozinha. Em outra situação qualquer, poderia gostar da solidão e da oportunidade de conhecer o mundo fora dos portões do castelo. Mas a situação não era boa e isso a assustava além do que estava disposta a admitir.

       Uma hora mais tarde, deixada para trás por Tubã e Joan, Alma finalmente chegou ao centro da Vila dos Desesperos. O local não era nada do que esperava. Era um lugar pequeno e com poucos casebres. Muitas barracas, muitas vendas, e muitos elfos e fadas com expressões estranhas, aberrações da natureza, raças misturadas, muitas expressões incomuns, pois Alma nunca antes vira nas imediações do castelo. Demorou um instante para se misturar as demais fadas e elfos do mercado movimentado no centro do vilarejo e procurar por uma ocupação que lhe servisse também de esconderijo.

       Ficar parada sem fazer nada, despertaria muita curiosidade. Misturada entre as criaturas, Alma, se sentiu em casa.

       Naquele instante em que permaneceu solitária, soube que levaria muito tempo para reencontrar suas amigas, e que pela primeira vez na vida estava verdadeiramente sozinha.

       Não importava que fosse forte e capaz de aguentar a solidão e a fuga. Ela estava sozinha e o peso do abandono era doentio.

       Dois dias mais tarde, foi à vez de Joan ser deixada nos Campos dos Humanos.

       Entre construções e camponeses que cuidavam de sua colheita e seguiam suas vidas sem estranhar a pequenina jovem ruiva que desamparada misturou-se a eles, depois de ser deixada para trás, enquanto Tubã acenava e seguia seu caminho, pois procuraria um lugar para se esconder também.

       Joan perambulou até quase escurecer, procurando um amparo, até ser abordada por mulheres mais velhas que procuravam por serviçais para o castelo de um nobre, o nobre daquelas terras.

       Ela aceitou e seguiu-as, misturando-se, enquanto as lágrimas silenciosamente corriam em sua face. As jovens que como ela, humanas que procuravam abrigo e trabalho, pareciam notar que sua dor era genuína. Muitas delas não precisavam saber a causa. Elas conheciam bem o sentimento que faz as lágrimas de uma mulher pobre e sozinha correr por suas faces. E foi esse amparo que Joan encontrou.

       Misturada às humanas, Joan tornou-se uma delas, e seria desse modo até que o pesadelo da perseguição chegasse ao fim.

       Por sua vez, Driana foi à primeira delas a encontrar um lugar para ficar. Não foi preciso pensar muito. Ela sabia como elaborar os mais simples e eficazes planos. Enquanto todas corriam quilômetros em busca de uma chance de escapar, Driana arrumou roupas e um disfarce e estava ao lado dos quatro guardiões enquanto eles selavam seus cavalos e tramavam os últimos detalhes da partida.

       Ouvia atentamente tudo que diziam, e os planos que orquestravam. Movia-se de um lado ao outro, sem ser reconhecida, pois sua mente era capaz de fazê-la saber lidar com eles e com seu novo disfarce.

       Um deles, Egan precisava de um cavalariço para acompanhá-lo e Driana desconfiou de sua escolha ao coagir o pequeno Pietro, um rapazola fofoqueiro, que geralmente causava conflitos com sua mania de disseminar fofocas e nunca seria levado para uma caçada tão importante, pois sua boca grande colocaria todos os planos do Guardião a perder.

       Acheron, o mais assustador em porte físico e maneiras, entre todos os Guardiões, lhe pareceu o mais tolo e sucessível ao seu plano.

       Driana ofereceu seus serviços e o tolo não percebeu quem era. Aceitou o trabalho de um menino experiente com ferraduras que se oferecia para carregar os pertences de seu amo, sem notar que esse elfo prestativo era na verdade uma das fadas fugitivas. O estúpido era tão crédulo que sequer checou sua origem, ou confirmou suas palavras.

       O esconderijo de Driana? Era ao lado do Guardião que deveria caçá-la e levá-la para a morte.

       Sobre um cavalo, logo atrás do cavalo de Acheron, Driana rezou secretamente que Eleonora tivesse mais sorte que todas elas juntas.

       Que suas asas nascessem logo, para que pudesse voar e se proteger.

       E que um dia pudessem as quatro se reencontrar. E para isso, Driana faria tudo que pudesse para impedir que os Guardiões encontrassem suas amigas...

 

       Cabia a Reina ajudar Eleonora a encontrar um esconderijo, pois a fada penava do padecimento das asas e não poderia olhar por si mesma, ou se proteger.

       De volta a Floresta dos Desejos, pensou Reina. Como voltar ao tempo, Reina pousou o corpo praticamente desfalecido de Eleonora no chão de grama e mato, na mesma floresta onde vinte anos atrás a encontrara. Eleonora era um bebê indefeso quando foi deixada para perecer naquela floresta. Agora, adulta, aquele lugar seria seu esconderijo.

       Eleonora estava a par de tudo que acontecia. Deveria lutar e ajudar a si mesma, mas a dor a cegava para o medo. Seu desejo era fechar os olhos e sucumbir, livrando-se assim do padecimento de sua carne, e de seus sentimentos. Acusada de assassinato por sua própria progenitora? Como alguém aguenta tanta humilhação e rejeição?

       Reina era uma mãe para Eleonora desde que a encontrou abandonada pelos pais. Disso nunca duvidou. Vê-la ao seu lado nesse momento, abandonando sua própria vida bem estabelecida, para encarar uma fuga que não era sua, era emocionante. Eleonora ergueu uma das mãos e tocou o rosto de Reina, querendo lhe fazer um carinho, que contasse sobre sua gratidão, pois as palavras faltavam.

       -Fique aqui, minha querida. Não se afaste desse lugar. Eu buscarei comida e abrigo. Eu virei buscá-la, Eleonora. Não saia daqui de modo algum – Reina pediu antes de aprumar as asas e outra vez voar.

       Eleonora olhou em volta e por um segundo sentiu-se outra vez um bebê desamparado, abandonado para a morte.

       Estar sozinha a fez pensar na óbvia razão de tudo aquilo estar acontecendo. Suas asas seriam iguais as da rainha? O cheiro, e o dom, poderiam ser explicados através de linhagens distantes de sangue. Mas as asas? Não. De modo algum. Rainha Santha era sua progenitora.

       Sua mãe. Eleonora era sua primogênita e possuiria asas idênticas a sua, e por consequência, o sangue que corria em suas vezes garantia a mágica entre fadas, que impedia que uma mãe pudesse mata-la. Assim como o sangue impedia que seu progenitor fizesse o mesmo. Era necessário uma terceira criatura, e saber disso apenas aumentava sua agonia. Essa pessoa deveria ser Lucius. Seu braço direito, seu capacho para tudo. Mas não fora desse modo, o que a fazia chegar a terrível conclusão de que Lucius poderia ser seu pai.

       Eles eram os causadores do seu abandono vinte anos atrás. Justamente a fêmea que lhe deu a vida também tentou tirá-la ao abandoná-la naquela floresta. E que agora, não satisfeita com o rumo que o destino tomara para a vida de todos eles, tramava para acabar com sua existência mais uma vez.

       Angustiada, Eleonora prometeu a si mesma que Santha não teria êxito. Sobreviveria para cobrar-lhe a responsabilidade de seus atos! Precisava encontrar forças dentro de si para lutar por sua vida, pela honra de Reina, e, sobretudo, pela liberdade de suas amigas. Elas não mereciam esse destino. Não mereciam ser caçadas como animais. O único crime de Driana, Alma e Joan, eram amar incondicionalmente sua amiga Eleonora. Apenas isso! Estar ao seu lado nos piores momentos de sua vida, e lhe apoiar naquela vida de sofrimento!

       Porque uma criatura viva precisa sofrer tanto? Porque alguns nascem para a felicidade e outros para penar? Por quê?

       Assustada com a dimensão do ódio que sentia, Eleonora recostou-se em uma árvore, tentando respirar com mais calma, e aliviar a tensão. Puxou a túnica para baixo, revelando o torço de seios pequenos, jovens e bonitos. Tentou olhar pelo ombro e ver como estavam suas costas. Viu apenas manchas feias, escuras e dolorosas. Manteve a roupa abaixada para que o frescor da floresta refrescasse a sensação de queimação. Fechou os olhos e tentou adormecer, pois do modo que estava não conseguiria fazer nada por si mesma.

       Algumas vezes, no Ministério do Rei, vira fêmeas sofrerem por semanas do padecimento das asas, até finalmente serem agraciadas por seu dom completo e suas asas. Uma vez, ela não gostava de lembrar-se disso, uma fadinha bastante frágil de saúde havia sucumbido durante o padecimento, e foi um choque para todas, saberem que esse momento de graça e clamor, tão aguardado, poderia também ser um momento mortal.

       Ela sabia que possuía boa saúde, e que aguentaria. Mas em condições precárias, era melhor descansar e aguardar Reina, rezando para não ser encontrada por nenhum Caçador de fada, Recompensa, ou por um Guardião.

       Eleonora chegou a adormecer, e quando escureceu cobriu-se com a túnica, pois o frio cortava sua pele. Estava profundamente envolvida por uma dormência dolorosa quando Reina retornou. A fada mais experiente encontrou-a tremula de dor e frio e bastante assustada.

       -Encontrei uma cabana abandonada aqui perto – disse acariciando seus braços, para afastar o frio – Farei chás que devem amenizar a dor. Estive no vilarejo... Não tenho boas notícias, Eleonora.

       -Sabe algo sobre elas? Sobre minas amigas? – Era seu único pensamento urgente. Nada lhe importava mais do que saber sobre elas!

       -Não. Mas sei que devem estar bem. Tubã sabia o que fazer. Finalmente as constantes fugas dele com Egan surtiram algum efeito. Eu ouvi boatos no vilarejo, Eleonora. Ouvi fofocas feitas por Pietro, um elfo que cuida dos cavalos e cuidados com os Guardiões, quando eles estão em viagem. Ele está servindo Egan na caça por você. Lucius tomou a palavra para si e dita às ordens como se fosse o novo Rei. Está sendo caçada por Egan. Meu filho enviou dezenas de guardas para cada vilarejo. É questão de dias para encontrá-la, pois do modo que está não conseguirá se esconder muito tempo – disse com angústia. – Lucius decidiu por enviar um Guardião na caça de cada uma de vocês, como eu imaginava que faria. Eu não esperava que Egan viesse atrás de você, tinha esperanças que ele não aceitasse. Mas eu deveria saber que o senso de dever do meu filho é maior que seu amor por mim. – não havia rancor em sua voz apenas constatação.

       -Ele não é seu filho – Eleonora disse rancorosa.

       -Sim, Egan é meu filho. Assim como você e Tubã também são meus filhos. Não se volte contra Egan. Ele não sabe de tudo. Ele está sendo enganado assim como os outros. Pietro sempre espalhou boatos, e se dessa vez espalhou essa fofoca, é porque realmente estamos cercadas. Em pouco tempo nem mesmo o voo poderá ajuda-la, não conseguirei leva-la no estado em que está.

       -E o que eu faço, Reina? Entrego-me? – Perguntou lutando contra o choro.

       -Não. Eu vou distraí-los. Egan sabe que estou com você. Deixarei que me pegue. Túlio, meu marido, intercederá por mim. Enquanto isso, você segue sozinha para o Deserto das Areias Vermelhas. É o único lugar onde Egan é inofensivo. Onde ele não enviará nenhum soldado por saber que é impossível um elfo sobreviver muito tempo. Egan é teimoso e seguirá procurando, mas não vai encontrá-la sozinho. E eu sei que ele não gosta do Deserto. Ele teve um treinamento horrível por aquelas terras. Ele vai esmorecer nesse lugar e você terá uma chance de escapar dele!

       -Mas Driana sempre disse que o Deserto é um lugar horrível... Eu não posso sobreviver por lá – assustada, ela esperava que Reina pudesse esclarecer essa situação -Eu tenho medo de ficar sozinha, Reina – ela disse assustada.

       -Eu sei. As beberagens que lhe der vão ajudar na dor. Em poucos dias suas asas nascerão e sua fuga acabará. Voltará para o castelo e exigirá direito de defesa. Suas asas, Eleonora, serão seu álibi. Se as suas asas são iguais as de Santha, seu cheiro também é. É uma dedução lógica, que não será negada! Isso deixará a dúvida em todos. Quem poderá provar se foi você, ou Santha quem deixou o cheiro no Rei? Você é a personificação dos crimes da rainha. Não será difícil conseguir instalar a dúvida agora que o Rei está morto e não existe encanto da parte de Santha sobre ele. Egan é um elfo justo, ele tomará seu partido no instante em que vir suas asas. Não desista dele, Eleonora. Não desacredite na capacidade de Egan em acreditar na justiça. Ele é difícil as vezes, mas não se deixe enganar sobre seu coração! – Reina esclareceu.

       -Mas e Lucius? Ele sempre me detestou – ela disse triste.

       -E por que você acha que Lucius perderia seu precioso tempo com uma das órfãs da clausura? – Sorriu terna – Seu sangue é permeado de mistérios, Lora. O maior deles é a relação de Santha e Lucius. Suas asas serão seu álibi. E sua salvação. Agora, esqueça o medo. O medo não fará nada de bom por você. Apenas a enfraquecerá.

       -Ficará comigo esta noite? – Eleonora segurou sua mão, como faria com a de uma mãe – eu sinto medo. Muito medo. Não posso evitar.

       -Eu deveria ter ficado com você desde o dia em que a encontrei nessa floresta. Foi um erro ter aberto mão de criá-la. Amanhã cedo nos separaremos. Mas não por muito tempo, querida. Não por muito tempo.

       Reina sentou ao seu lado, e a acolheu em seus braços, embalando-a.

       -Seu dom, fada, será o mesmo dom de Santha – ela seguiu falando, para que Eleonora entendesse a exatidão da situação – Controlará o tempo. As estações. Os quatro elementos e as criaturas que vivem neles; não pode domina-los, mas pode conseguir que a ouçam e intercedam por você, pois reconhecerão seu poder sobre o ambiente onde eles vivem. Eu não aconselho que se imponha as criaturas da água, do ar ou da terra. Isso será muito ruim para você. Faça deles aliados. Como tempo saberá conseguir ajuda espontânea. Basta saber negociar.

       -Negociar? – ela não entendeu.

       -Um elfo que viva da plantação, por exemplo, lhe ofereça boas chuvas e bom tempo de colheita, e obterá a ajuda que necessitar. Uma criatura do mar aceitará uma boa maré em troca de favores. Faça isso, Lora. Entenda que seu dom é profundo e imenso. Vai aprender a domina-lo aos poucos. Não se angustie com isso agora. Descanse e adormeça, eu cuido de você. Ficaremos bem. Suas asas nascerão, provará sua inocência, e ainda a verei livre e feliz. Eu lhe prometo isso, Eleonora.

       Com essa promessa em seu coração Eleonora sorriu. Um pequeno sorriso triste de quem ao menos tem esperanças.

 

                    Areias do tempo

        Egan descobriu a eficácia do seu plano quando o elfozinho que o acompanhava contou-lhe da curiosidade de uma fada no mercado da Vila dos Desesperados.

       Pelas características, sabia que essa fada cheia de perguntas era Reina. Apressado, despachou o menino de volta para casa, pois não era seguro expor alguém sem treinamento a uma caçada e seguiu sozinho pelas estradas reclusas da Floresta de Saul, onde precisaria enfrentar a fúria do Rio Branco em uma travessia perigosa, para finalmente chegar ao Deserto das Areias Vermelhas. Não possuir asas era uma desvantagem.

       Desde pequeno, que Egan tinha problemas com o deserto. E isso era de conhecimento de Reina. E ela usaria suas fraquezas como proteção para a fada Eleonora. Sempre que os treinamentos eram no deserto, apesar de ser o melhor elfo em treinamento, Egan sempre acabava derrotado ou humilhado.

       A aridez do lugar, a temperatura e a areia, eram agravantes para qualquer um que tentasse refugiar-se por lá. E Egan nunca conseguiu superar essas adversidades. Acheron era um Guardião capaz de passar semanas no deserto sem uma reclamação. Solon se saia bem, e Zoé... Bem, era impossível alguma coisa ficar entre Zoé e seus objetivos e ainda permanecer vivo.

       Mas Egan? Não. Seu ponto fraco era o deserto, e Reina sabia disso, ele sabia exatamente que agiria assim. Ao se sentir acuada e sem rotas de fuga, imaginaria que Egan não pensaria no deserto como uma opção, e por causa disso, Reina esconderia Eleonora neste terrível lugar.

       Era ciente que levaria dias para essa travessia. No ritmo em que estava seguindo, ficaria para trás. Precisaria encontrar uma fada disposta a bom pagamento por uma carona.

       O difícil era achar uma disposta a tal feito. Fadas e elfos raramente se entendiam. Sempre havia a questão da força física e as asas. Um elfo macho e adulto poderia facilmente subjugar uma fada, no entanto, se ela fugisse com suas asas, jamais seria encontrada. Algo que vinha de séculos atrás quando elfos e fadas não conviviam juntos e sim as fadas eram relegadas a haréns e clausura forçada.

       A escolha de uma fada também acalentava amarguras. Quando um elfo escolhe uma fada, normalmente essa escolha é dada pelo cheiro e não por sentimentos. Egan não era adepto dessa barbárie, mas muitos elfos ainda praticavam esse poder sobre as fêmeas. E a intimidade unicamente regada à atração animal, durante o cio, acarretava magias nas fêmeas, o que sempre acabava em relações rápidas, dramáticas e com finais trágicos.

       Todas as fadas desconfiavam de pedidos de elfos por voos. Elfos não escolhiam esse meio de transporte, a menos que possuíssem segundas intenções.

       Apesar de Egan nunca ter sido adepto ao pensamento machista e antiquado de seus antepassados, no entanto, não achava sábio de sua parte atentar contra sua própria gente.

       Algum ouro poderia amaciar as desconfianças de uma fada da taverna e ele conhecia algumas bastante simpáticas.

       Elfo de pouco contato com fadas, Egan convivia com fêmeas apenas em locais apropriados para isso. Fadas sem poder ou família que ganhavam a vida servindo elfos em tavernas e pousadas.

       Tubã era um namorador, desde a mais tenra idade, e enquanto Egan era unicamente dedicado ao treinamento e vez ou outra, procurava por companhia feminina, Tubã vivia na esbórnia. E nessas farras, muitas vezes, convencia Egan a acompanha-lo. Seu irmão sabia leva-lo para o mau caminho e Egan era muito agradecido a isso, ou sua vida teria sido demasiadamente séria.

       Normalmente Egan pagava pelo serviço íntimo por uma fada de taverna e partia. Era o mais próximo a uma relação que tivera. Isso, até desejar para esposa a namorada do seu irmão menor.

       Tubã e sua amizade com Eleonora, e as noites de sono que Egan vinha perdendo pensando neste dilema.

       Apesar da vivacidade e da liberdade que Tubã possuía seu irmão ainda resguardava muita imaturidade, e por causa disso, não percebia o que era óbvio aos olhos de Egan, e Reina. Tubã não nutria sentimentos matrimoniais por Eleonora, apenas desejo, e uma amizade tão genuína que se confundia com amor.

       E essa era a razão por sua relutância em escolher a fada e casar-se com ela.

       Um ano atrás, Egan lembrava-se de Reina ter insistido nesse assunto. Era um dia comum, a mesa repleta com toda a família reunida e Reina trouxera o assunto à tona:

       -Falei com Miquelina, aquela cobra aceitou finalmente vender Eleonora por um bom preço. - ela disse entre alívio e indignação - Eu preciso muito do ouro que falamos, Túlio. Você me ajuda?

 

       Ela tocou a mão do marido, por sobre a mesa, e ele acenou. Era contra, mas não tinha coragem de lhe dizer não uma terceira vez na vida. Dissera não quando Reina trouxe a fada ainda bebê para casa. Dissera não quando ela adotou um órfão, mas não Eleonora. Agora era hora do sim.

 

       -Me diz quanto e eu consigo o ouro para você- ele prometeu.

 

       -Isso é maravilhoso. A negociação está feita - ela disse sorrindo, com tanta felicidade que não se continua - Claro, será necessário mascarar os olhos de Lucius. Ele vigia toda a movimentação do Ministério do Rei.

 

       -E como você pretende fazer isso, mãe? - perguntou Egan, tentando não parecer interessado na possibilidade da fada morar na mesma casa que ele. - Ela virá para casa com você?

       -Não. Pensamos em tudo... Eu pedirei um favor a Santha, mesmo que me custe o orgulho, mas farei isso. Pedirei que peça a Lucius permitir que meu filho se casse com a fada antes da escolha do próximo ano. Falarei sobre os impulsos da juventude. Sei alguns segredos de Santha... Ela não poderá me dizer não mesmo que queira. Não queria usar isso contra ela, mas... Não há outro jeito! - suspirou desgostosa - Tubã, você vai se casar com Eleonora na próxima semana.

 

       Sim, Egan parou de comer no mesmo instante, sem saber como dizer que não aprovava essa ideia. Mas o interessante, foi o engasgo de Tubã. O elfo engasgou-se com a carne que devorava e foi preciso muito tempo para que ele melhorasse.

 

       Foi preciso de Reina o acudisse. Recuperado, a primeira coisa que ele disse foi:

 

       -Casar?

 

       -Sim, uma cerimônia simples e rápida. Para não chamar atenção. O preço foi alto para que Miquelina aceitasse fugir das regras e permitir que Eleonora se case antes do padecimento das asas. Eu encontrei uma casinha muito boa perto daqui. Vocês dois viverão lá por um tempo, até que você se ajeite em um trabalho e consiga mantê-los com seu próprio esforço - enquanto Reina falava, Tubã a encarava aparvalhado, a cada palavra mais pálido - Vai demorar um ano para que as asas de Lora nasçam. É possível que nesse tempo sejam como amigos. Eu sei que a sexualidade dela não está completa, mas isso mudará no ano que vem e poderão ter belas crias.

       -Crias? - Tubã gaguejou.

 

       Sua expressão era tão clara que Egan apenas pegou uma bacia de barro perto da mesa e colocou na sua frente, antes que ele se curvasse e vomitasse todo almoço.

 

       -Tubã não quer se casar - ele disse para Reina, apontando o óbvio. Seu nervosismo era tamanho que se refletia no corpo. Pânico, completo horror diante da ideia de casamento.

 

       Reina sentou-se pesadamente em uma cadeira, frustrada e decepcionada.

 

       -Eu pensei que estivesse tudo acertado, Tubã. Que você quisesse escolher Lora para casamento. Você vive dizendo isso!

 

       -Eu quero! - ele praticamente gritou - Mas não quero deixar as outras para trás.

 

       Referia-se a Alma, Driana e Joan. Era uma justificativa que Reina poderia aceitar e compreender. Mas Egan sabia que havia muito mais por trás dessa negativa. Enquanto Reina recuperava-se da decepção e tentava encoraja-lo a pensar nisso no ano seguinte, Egan apenas lhe deu um tapinha nas costas e maneou a cabeça.

 

       -Não conte a ela, Egan! -seu irmão implorou. Túlio continuou comendo, ignorando a esposa que se refugiava no quarto, para que os filhos não a vissem chorar de decepção.

 

       -Convenci os outros guardiões a escolherem as fadas que sobraram. As três amigas de Eleonora - Egan explicou ao pai que parou de comer e encarou Tubã com seriedade.

 

       -Precisa contar a sua mãe que não quer se casar, Tubã. Parar de inventar desculpas e iludi-la! - ele mandou.

 

       -Eu vou contar - Tubã prometeu. -Eu vou, não sei como, nem quando, mas eu vou contar... - ele ainda estava pálido e Egan voltou a comer.

 

       Ocultava o riso.

 

       -Não ria do seu irmão, Primeiro Guardião - disse Túlio ranzinza por conta de toda a situação - Se ele se acovardar, serei obrigado a casar a fada da clausura com você.

 

       Para Túlio, isso era uma ameaça desagradável. Para Egan, uma expectativa que mascarava fingindo não gostar da ideia. Tudo para não romper sua ligação de irmão com Tubã.

 

       Conhecia Tubã do avesso e reverso, e sabia muito bem que seu irmão não queria o casamento e a responsabilidade que o enlace trazia para a vida de um macho. Amava Eleonora do mesmo modo que amava a liberdade, e escolher entre um e outro era custoso.

       -Reina não vai aceitar a mesma desculpa ano que vem - avisou o irmão.

 

       Pela expressão de Tubã, soube que ele pensava nisso também.

 

       Egan afastou-se para cuidar de seus afazeres de Guardião, não sem antes trocar um significativo olhar com o pai. Túlio era o único que sabia do interesse do filho mais velho pela fada da clausura.

 

       Não duvidava propriamente do amor de Tubã, mas sim de sua maturidade em aceitar o enlace e as bodas e por causa disso Egan permanecia num eterno dilema.

       Dilema que caíra por terra no instante em que a fada cometera tal crime. A porção elfo dentro de si exigia que encontrasse e tomasse a fêmea para si, pois era seu desejo e direito de Primeiro Guardião ter a fada que desejasse.

       Mas a porção racional impunha seus princípios morais e exigia que cumprisse as leis.

       Não era um elfo que cometesse barbaridades contra fêmeas. Ele respeitava o gênero e apreciava a complexidade da personalidade feminina. Não desejaria o mal para uma fada, mesmo que esta fosse acusada de assassinato.

       Se algum Caçador de Fadas, ou Recompensa, encontrasse Eleonora antes dele, não teria a menor chance de sobrevivência.

       As ordens de Lucius foram muito claras, e logo espalhar-se-iam como rastilho de pólvora. Aquele que trouxesse a fada viva ou morta seria tido como um herói diante da Rainha. E de Lucius, que provavelmente seria seu elfo escolhido para futuro marido, e posteriormente Rei.

       Naquele momento, o ato mais sábio era ignorar os sentimentos e se ater aos pensamentos. Demoraria mais tempo para encontrá-la, mesmo assim era questão de dias para Reina cair na armadilha e Eleonora estar vulnerável. Dias até que pudesse alcança-la. Restava torcer para que ela sobrevivesse ao sofrimento do deserto e que pudesse alcança-la antes que algum perigo maior a encontrasse antes dele!

 

       Eleonora acordou dois dias mais tarde, depois de um alienamento induzido pelos medicamentos, e apesar de zonza estava menos dolorida. Os chás de Reina fizeram efeito enquanto dormia de exaustão e ela pode sentar-se na cama improvisada na velha cabana escondida dentro da floresta. Em algum momento, Reina a levara para a cabana que conhecia, mas Eleonora não se lembrava de quando isso aconteceu.

       A primeira coisa que enxergou foi à imagem de Reina apreensiva.

       A cabana era muito pequena e suja. Abandonada a muitos e muitos anos.

       -Onde estamos? - perguntou Lora em voz baixa e cansada.

       Reina notou que estava acordada e parecia não querer ter que lidar com ela nesse momento.

       Virou-se para a fada que estava aquecida e protegida sob uma coberta antiga e fedorenta, mas que protegia seu corpo das agressões externas naquele momento delicado do padecimento das asas.

       -Essa cabana pertenceu a uma fada. Ela trabalhou por muito tempo escondida. Seu dom era proibido, assim como o meu. O dom das poções. - Reina sentou perto de Eleonora e mediu se tinha febre - ela teve uma vida imunda e miserável. Quando a conheci era bastante idosa. Ela aceitava pagamento para fazer trabalhos que mais ninguém queria. Eu há conheci pouco tempo depois de encontrar você abandonada na floresta. - ela explicou.

       -Por quê? - não entendeu imediatamente.

       -Porque eu tinha a suspeita de que Santha havia parido uma cria. Ela escondia um segredo. Um amante e uma cria abandonada. E eu havia encontrado um bebezinho desprotegido abandonado na floresta. E essa femeazinha desprotegida possuía as mesmas características físicas de Santha. Eu precisava ter certeza que não estava enganada.

       -Reina, eu não quero que diga isso. Eu não quero ouvir. Eu já entendi o que esta acontecendo, não preciso saber como aconteceu. - ela afirmou, odiando a ideia de saber os detalhes.

       -É claro que precisa. Sua vida depende disso, Eleonora. Sejamos sinceras, Egan vai encontrá-la. Ele é um exímio Guardião. Treinado, e competente. Ele honra a armadura e esta o guiará até você. É questão de tempo para que a encontre. Eu espero que esse encontro aconteça no deserto. Ele não lida bem com a região. Sempre foi seu fraco. E suas asas, Lora, serão sua prova final. Conte a ele o que aconteceu. Egan saberá ouvir. Mas você precisará saber falar com ele. Nem sempre o meu enteado é fácil de conversar. Ele é muito reservado, muito fechado e prudente. Túlio o criou para ser Guardião. Era sua única preocupação. Eu tentei torna-lo um elfo humanitário e a presença de Tubã ajudou muito a moldar sua personalidade, mesmo assim, ele tende a ser reto demais em suas missões. Ele não pega atalhos. Vai caça-la e leva-la de volta sem fazer perguntas e sem ouvir argumentos. Cabe a você falar mesmo que ele não ouça.

       -E de que serve as palavras se ele não vai me ouvir? - ela perguntou sofrida.

       -As palavras entram na mente e incomodam. Egan é justo. Até demais, eu diria. Perturbe-o com a verdade, e ele intercederá por você.

       Eleonora ouviu calada. Não concordava que houvesse alguma chance do Guardião ouvir seus apelos. Ele nunca demonstrou se importar com a clausura. Ela fechou os olhos com força, expurgando a amargura. Mentia para si mesma, Egan era interessado sim nos problemas do Ministério do Rei.

       -Santha não foi escolhida para casamento quando suas asas nasceram. Ela foi enclausurada. Isso durou três anos. Lucius se tornou o responsável pela administração da clausura no mesmo ano em que você foi concebida. Ele seduziu muitas fadas, e Santha foi uma delas. Não sei se ela sabe disso. Que era apenas mais uma. Mas a grande verdade, é que ela emprenhou. Provavelmente ele se livraria da cria de qualquer modo, para esconder seu crime contra o reino. Imagino a surpresa dos dois quando Santha foi escolhida para esposa de Isac – Reina disse apenada de Eleonora – Eu nunca vou saber os detalhes, o que sei é quando fui atendê-la, como sua criada pessoal, ela já havia parido. Eu notei que algo estava errado. Eu logo descobri que havia estado prenhe. Eu não disse nada, não era da minha conta, eu ainda não sabia que tipo de fada ela era. Quando a encontrei na floresta, tive certeza que o pior aconteceria se eu abrisse a boca. Meses mais tarde, encontrei a fada que Lucius pagou para leva-la para o deserto e abandona-la. A dona dessa cabana. Ela recebeu em ouro para descartá-la no Deserto e assim, resolver o problema de Lucius e Santha. - Reina foi direta, e Eleonora permaneceu ouvindo calada, sem condições de argumentar.

       -Essa fada era muito velha quando isso aconteceu. Ela me contou que não achou que eles merecessem que ela perdesse seu tempo e saúde indo tão longe por tão pouco pagamento. Manteve-a com ela por algum tempo e então a descartou na floresta. Eu sei que é chocante ouvir isso - ela lhe fez um carinho na face, para assim amenizar o efeito dessas palavras.

       -Eu sei como se sente, Eleonora. Está doendo. É tempo de falar a verdade. E a verdade machuca, fere e rasga por dentro. A mentira não, minha querida. A mentira é carinhosa e afaga. E por um bom tempo, a mentira pode ser saudável, mas não uma vida toda. E chegou o momento de saber o que aconteceu. Saber a mentira que a manteve viva até hoje. Mas a verdade... Essa vai liberta-la para sempre.

       -Porque não contou o que sabia? No passado, quando me encontrou? - ela quis saber, sentindo a dor da fúria vir à tona. Raiva de Santha.

       -Primeiro de tudo: medo. E se ninguém acreditasse em mim? Você seria morta. Santha se livraria de você. Meu casamento estaria arruinado e eu perderia minha família. Ambas estaríamos desgraçadas. E por quê? Por nada. Eu levei essa enganação adiante todos esses anos esperando tira-la da clausura antes que suas asas nascessem. Era minha esperança. - confessou.

       -E a fada que me levou do reino? Ela não pode contar o que sabe? Isso resolveria metade dos meus problemas, Reina! - Eleonora se lembrou disso.

       -Infelizmente ela faleceu há alguns anos. Eu sinto muito, querida fada, não há como amenizar as decisões do destino. É preciso lutar pela sobrevivência. Prometa-me, Eleonora que lutará com todas as suas forças. - Reina pediu.

       Eleonora vasculhou a expressão facial de Reina em busca de respostas.

       -Está partindo – disse baixo, verbalizando o que pensava.

       -Sim, vou me entregar no reino. Isso fará Egan recuar. Ele precisa cumprir seu dever. Perderá tempo comigo, ficará atrasado na busca por você. Esse tempo irá permitir que você se refugie no Deserto das Areias Vermelhas. Quando tentar encontra-la, estará aclimatizada no lugar e será mais difícil encontra-la ou abatê-la. Terá obtido suas asas e seu dom, e Egan não será tolo. Ele entenderá o que isso quer dizer quando ver que tem as mesmas asas que Santha. Não há outra explicação para esse fenômeno. É a cria primogênita de Santha. Isso será incontestável quando suas asas nascerem.

       -Como sobreviverei no deserto? Não há água. Não há chuva. Duvido que algo cresça naquela areia quente. O que vou comer? E beber? – Perguntou com pesar, tendo o pressentimento que sobreviver em um lugar desses era mais difícil do que fugir de um Guardião.

       -Suas asas estão nascendo, Lora – Reina sorriu pela primeira vez em dias e aproximou-se – É um momento único. Levará as ervas que separei para você e fará os chás para a dor. Isso deve bastar por alguns dias. Se não conseguir prepara-las, mastigue-as. O efeito será o mesmo, mas o sabor é horrível. A cada dia, com a proximidade do nascimento, seu dom aflorará. Precisa começar a ouvir seu dom e usá-lo. Santha dominava o tempo a seu favor. Faça o mesmo. Crie chuva onde há apenas mormaço e terá o que beber. Verá que apesar de ser deserto existem algumas plantas que resistem ao calor e terra seca. Vai conseguir, Lora. Vai conseguir, pois tem uma batalha para vencer. Seu retorno será a liberdade de suas amigas. Eu sei que vai sobreviver.

       -Eu queria ter a mesma confiança – ela choramingou enquanto as duas se abraçavam com força.

       O momento não podia durar. Juntas elas se prepararam para o caminho que aguardava por Eleonora.

       Uma trouxa com os chás e um cantil com água. Algumas frutas e ervas que poderia alimenta-la por alguns dias até dominar seu dom e obter suas asas.

       Então sem despedidas Reina a ergueu em um voo calmo e a levou para seu fatídico destino final.

       Horas mais tarde, pousou em um lugar qualquer no meio do nada. Reina partiu, sem falar mais nada, apenas olhar para sua fada protegida com piedade. Temia ficar para trás e não cumprir o destino. Precisava ser forte e deixar Eleonora era parte dessa força.

       Eleonora se viu de pé, em meio a areia quente e vermelha.

       Uma rajada de vento forte cortou o silêncio aterrorizador daquela terra desabitada e varreu o chão levantando areia vermelha que a cegou por um momento.

       O vento esvoaçou seus cabelos claros e corou sua pele com a cor da terra. Quando a rajada de vento se acalmou, Eleonora pode respirar outra vez, e estava coberta por areia vermelha, e restos de terra. Caída no chão, ela apoiou as duas mãos na terra fervente e tentou se ajoelhar e se erguer.

       Sentia a dor ferina das asas nascendo e quase vergou de volta ao chão. Mas não podia fraquejar. Precisava andar, e encontrar um abrigo. Encontrar um esconderijo.

       Não seria fácil sobreviver naquele lugar. Olhando desolada para a imensidão a sua frente, começou a andar, rezando secretamente para suas asas nascessem o mais rápido possível para que tivesse uma chance real de sobrevivência.

       Poucos dias atrás ela amaldiçoava o nascimento precoce de suas asas. Agora, era vital obtê-las.

       Sabia que era em vão a tentativa de encontrar qualquer criatura mágica naquela terra abandonada, mesmo assim estava repleta de esperanças enquanto andava em direção ao imprevisível horizonte coberto de areia seca, mormaço e calor...

 

                      Queima minhas esperanças

        Três dias mais tarde, Eleonora andava sem rumo, e praticamente sem provisões quando a dor a fez parar e se ajoelhar no chão quente e vermelho de areia pesada e massacrada pelo sol escaldante.

       A mágica que protegia aquela terra mantinha os forasteiros afastados. A sobrevivência era praticamente impossível. Depois de comer praticamente toda a comida, e mastigar quase todas as ervas que tinha para a dor, Eleonora não sabia mais o que fazer. Seu cantil estava vazio. Seu estômago também. A sede era cruel. Ela sentia o corpo cedendo, as vistas embasadas, as imagens perdendo o foco, e alucinações tomando o lugar da realidade.

       Em alguns momentos era impossível saber se ela estava vendo a realidade, ou perambulando por alguma alucinação.

       As lágrimas corriam em sua face, o coração oprimido pela incapacidade de usar seu dom. Suas asas nasciam aos poucos e há um dia atrás as manchas vermelhas em suas costas se tornaram feridas abertas, ensanguentadas, que atraiam moscas, insetos e queimavam seu corpo com dor e sofrimento. Era um horror descobrir que os insetos e larvas pretendiam encontrar abrigo em suas feridas e ela não podia fazer nada além de tentar livrar-se deles.

       Apesar dos pesares era incapaz de usar o próprio dom. Toda fada mesmo antes de obter suas asas costuma ter seu dom ativo, mesmo que em poder menor. Menos ela! Cada vez que se manifestava, alguma carcereira a tolhia ou castigava. Ordens expressas de Miquelina, e agora, Eleonora sabia que a razão era o medo que Santha descobrisse que havia no Ministério do Rei uma fada com dom idêntico ao seu.

       Seu dom não fora incentivado, ou treinado, e por causa disso, ela possuía quase nenhum domínio sobre ele.

       Algumas fadas eram treinadas, as mais obedientes, e tratadas para serem usadas a favor do reino, e mesmo enclausuradas, vez ou outra eram solicitadas. Eleonora sempre achou que não teria essa sorte.

       Havia tentado mudar o clima, sem sucesso. Tentou chuva, mas não conseguiu nada. Tentou até mesmo, diminuir o calor, e fazer algum frio em torno de sim, mas o resultado fora apenas mais dor e sofrimento físico. Então, ela desistiu.

       Furiosa, Eleonora caiu exausta e socou o chão, sufocando um grito, pois as ervas haviam acabado e enfrentava o sofrimento sem anestésicos.

       Amaldiçoava Santha pelo abandono e a crueldade. Amaldiçoava a vida por não ter piedade de uma fada desprotegida. Ela não merecia tal perseguição!

       Amaldiçoava a si mesma por sentir piedade de si, e pouca coragem de seguir. Eleonora deixou o corpo escorregar no chão, exausta, e fitou o sol escaldante sobre sua cabeça.

       Suja de areia da cabeça aos pés vagava há dias sem sucesso, desmaiando e adormecendo sob o sol, acordando faminta e sedenta, sempre sob o sol escaldante. A um passo de enlouquecer, rezou para ter forças para seguir.

       Só mais um pouco, disse a si mesma. Precisava aguentar mais um pouco. Suas asas logo nasceriam. Quanto maior o sofrimento, mais perto do final, do nascimento definitivo.

       Algumas vezes ela sentia como estivesse vivendo uma fantasia, um pesadelo. Que a qualquer momento suas asas arrebentariam a carne, e se ergueriam majestosas, levando-a para longe, e para a liberdade. Ela podia deixar tudo para trás. Voar para bem longe, encontrar Driana, Alma e Joan, e leva-las consigo. Esquecer-se do passado e começar uma vida nova em terras desconhecidas e distantes.

       Havia um horizonte a ser seguido, um horizonte de mundo novo para serem explorados. Ela sabia que havia. O mundo era maior do que o Monte das Fadas, e apesar de não conhecer nada sobre esse mundo, ela tinha esperanças de encontrar um lugar seguro e feliz.

       Ela cobriu a face com as mãos, soluçando. Esse sonho nunca aconteceria. Suas lágrimas eram secas, sem água, apenas a compulsão por chorar, o que a levava diretamente para as vertigens e quase desmaios.

       Chorando Eleonora avistou uma sombra sobre sua face e abriu os olhos. Não havia sombras naquele lugar. Apavorada, ela logo pensou no Guardião e sua armadura.

       Chegou a tentar correr, mas não conseguiu se erguer e caiu outra vez. Olhou para cima, esperando ver Egan diante de si, pronto para leva-la consigo de volta para o reino, para ser presa a julgada por um crime que não cometera.

       Foi quando viu. Era uma sombra pequena, e quando os seus olhos se fixaram e enxergaram, descobriu o que era, gritou assustada debatendo-se para fugir da criatura.

       Talvez por culpa do medo, ou pela exaustão, no segundo seguinte estava desmaiada...

 

       Egan atravessou o Rio Branco com adrenalina correndo nas veias.

       Odiava sentir-se incapaz, e após perder seu cavalo para a correnteza, sentia-se o mais ineficaz dos elfos.

       Molhado, sujo e com frio, ele encarou as rochas que se erguiam em volta da margem do rio, e que selavam a passagem para o deserto.

       Podia sentir o calor se insinuando pelas rochas e o bafo quente e árido ameaçando a vida daqueles que ousassem invadir aquelas terras.

       Terra de pura magia, que boicotava a magia alheia. Um lugar perigoso, que facilmente poderia roubar a vida de um elfo. Estar preparado para o perigo, não o fazia preparado para se aventurar no Deserto das Areias Vermelhas.

       Se a fada fugitiva fosse tão esperta como parecia ser, deveria estar refugiada entre as pedras, perto do precipício. Era o único lugar protegido das tempestades de areia. Reina sabia disso, então Eleonora também deveria saber.

       Convencido que sabia onde encontrá-la, Egan puxou o elmo da armadura para baixo, cobrindo a face com metal, protegendo-se assim da areia e do vento. Nas mãos a espada, pois não sabia o que encontraria no percurso que seguiria.

 

       Eleonora ouviu sons estranhos, como algo sendo roído. Estava deitada sobre o que parecia ser uma esteira feita de bambu e cordas. Assustada se moveu e olhou em volta, descobrindo uma criatura roendo as ervas que ainda lhe restaram na trouxa que carregava consigo. A criatura fuçava e farejava em busca de alimento e água.

       Com o desespero de um animal faminto, Eleonora avançou sobre a criatura e tentou reaver seus pertences. Eles lutaram, ela era alta perto dele, e bastante forte, enquanto ele era ágil e movia-se muito rápido.

       Não era uma criatura. Era um elfo, ou ao menos pareceria brevemente ser um elfo macho. Pequeno, atarracado e modesto, cheio de dentes longos e afiados em sua bocarra escancarada, e uma expressão enrugada, com olhos pequenos, na face escondida por muito cabelo.

       -Isso é meu! – Ela lutou e caiu no chão, sendo vencida pela força do ser estranho – Me devolva! É meu! Não tire de mim! É meu!

       A criatura a empurrou e fugiu, mas ela alcançou e tentou segurá-lo, mas foi arrastada por alguns centímetros areia quente a dentro. Desistiu e ficou no chão, respirando fundo tentando recuperar o ar.

       Ruídos foi sua resposta enquanto ele comia e devorava as ervas. Chorando de raiva Eleonora apenas observou, pois a dor a impedia de lutar mais.

       Estava abatida e cansada demais para tentar lutar mais uma vez. Afinal, que diferença fazia? Um dia a mais ou a menos de alimento para alguém que jamais conseguiria sobreviver naquelas condições? Era como apegar-se a uma esperança vã.

       A criatura comia com vontade e sons que lembravam rugidos de uma fera sem dialeto. Eleonora arranjou forças para rastejar e refugiar-se na pouca sombra.

       Minutos mais tarde ela notou a criatura andar por entre as rochas e notou que estavam protegidos por alguma sombra, e a causa disso era as rochas em volta, formando uma singela proteção contra sol e mormaço.

       Havia tecidos, utensílios e parecia que alguém vivia naquele lugar. Uma espécie de acampamento ou casa. Ele vivia ali? Naquele árido lugar? A criatura voltou com uma cumbuca de barro nas mãos e estendeu em sua direção.

       Eleonora quase chorou de felicidade ao ver algo emplastado, cheiroso e úmido. Com a fome e sede que sentia, não perdeu tempo fazendo perguntas. Enterrou as mãos na comida e comeu ferozmente.

       Não levou mais do que alguns minutos para devorar o conteúdo da cumbuca, que apesar de não possuir sabor, enchia seu estômago e ajudava a saciar sua sede.

       -O que você é? Um elfo? – Perguntou quando estava quase terminando, olhando para a criatura com dúvida no olhar.

       O macho, ou fosse lá o que fosse apenas observava a distância.

       -Não – A resposta veio em rugidos.

       -E o que você é? Você sabe o que é? – Quis saber, lambendo os dedos para aproveitar toda a comida e umidade que vinha daquele delicioso pirão.

       Magoa nos olhos da criatura a fez sentir pena. Ele não sabia mesmo o que era?

       -Existem muitas raças no mundo. Eu não conheço praticamente nenhuma. Apenas elfos, fadas e duendes. Uma vez eu vi um still, mas é um inseto, então não conta. Você parece um elfo pequeno – ela disse com um meio sorriso na face suja, esperando que ele entendesse que não havia nada de errado em não conhecer a própria raça.

       Afinal, até alguns dias atrás, ela não sabia sua própria origem. Então, como julga-lo por não conhecer sua essência?

       Imunda, estava completamente suja, e usou as mãos para tentar limpar a areia vermelha que impregnava suas roupas, pele e cabelos.

       -Meu pai ser um duende. Minha mãe uma fada. Eu nascer assim - ele disse com erros de fala, nada que a impedisse de entendê-lo.

       -Porque você vive aqui? – Devolveu-lhe a cumbuca de barro e se moveu para mais perto engatinhando sobre a areia até estar de volta protegida sobre a esteira de bambu. Aliviada, gemeu pelo conforto inestimável de estar longe da areia fervente – Você não possui poderes mágicos?

       O silêncio foi sua resposta. É claro que não possuía poderes e também não seria aceito em parte alguma com aquela aparência. Apenada Eleonora se lembrou de si mesma. Não é fácil ser aceito quando não se é igual aos demais.

       Fadas órfãs não são aceitas. São relegadas para a clausura. Escondidas dos olhos dos elfos e fadas que mereciam uma vida de liberdade. Os órfãos eram indesejados e não deveriam ser vistos, para assim, não lembrá-los dos desmandos e sofrimentos da vida. Não era muito diferente de esconder-se no local mais inacessível de todo reino, para obter um pouco de paz e evitar assim a perseguição.

       Eleonora sentiu uma dor no coração. Isso era tão injusto, que machucava.

       -Meu nome é Eleonora. E o seu? – disse sentida por não ser capaz de oferecer mais a essa criatura do que palavras. Não temeu revelar quem era. Dificilmente ele saberia da sua estória, ou da caçada. Naquele lugar era impossível ter esse tipo de informações.

       -Mikazar – foi o rugido de resposta e ela supôs ser seu nome.

       -Eu tenho tanta sede – ela disse triste.

       Mikazar apenas olhou para cima como quem fala sobre chuva. Sem chuva, sem água fresca. Ele era acostumado a viver assim. Reservar água da chuva em tempos de abundância, e lamentar a falta em épocas de escassez. Era assim, e não adiantava argumentar.

       -Porque comeu minhas ervas? – Quis saber, entendendo que reclamar não adiantaria de nada em sua situação. Se nem mesmo ele, que tinha o deserto como seu lar, possuía água quando desejava, não seria ela a conseguir.

       -Saborosas – foi sua resposta e ela sorriu.

       Era provável que não provasse ervas há muito tempo. Para ele uma iguaria. Ela detestava o sabor, mas ajudava a aliviar suas dores, por isso lamentava ter acabado.

       -Posso ficar em sua casa enquanto não regresso para a minha? – Apontou o interior das rochas e ele apenas seguiu seu olhar.

       Era uma singela permissão e Eleonora engatinhou para lá, onde era mais fresco.

       Era um lugar ajeitadinho. As rochas formavam uma espécie de caverna oval e não muito profunda. Eles pisavam em areia, por isso as esteiras de palha. Havia alguns panos velhos em um canto. Uma panela de metal, algumas bacias de barro e copos. Cumbucas grandes, onde suponha que ele armazenasse água limpa depois das escassas chuvas.

       Ela pensou ter visto um espelho rachado em um canto, mas teve até medo de olhar-se nele. Estava coberta de areia grudenta, por causa do suor abundante. Não estava muito diferente de Mikazar que era coberto de areia vermelha da cabeça aos pés.

       Deitou-se na esteira mais afastada da borda da caverna, e fechou os olhos por um instante.

       -Você mora aqui há muito tempo, Mikazar? – perguntou ainda de olhos fechados.

       -Nascer aqui – ele respondeu sempre de poucas palavras, ou apenas com pouco vocabulário. Sem ter com quem conversar, era possível que não conhecesse muitas palavras em seu idioma.

       -Você me deu um grande susto agora a pouco – ela disse – mas estou feliz em ter o conhecido. Estou tão sozinha, sem ninguém para falar – abriu os olhos e fixou-os nele, lutando para não chorar outra vez – Quer saber quem eu sou? Se me abriga, é justo que eu diga quem sou.

       Era uma oferta de quem não tinha coragem de mentir para quem lhe estendia a mão em um momento tão difícil.

       -Não precisar. – ele negou – Mikazar ver o Guardião nos arredores. Ele a caçar.

       -Egan? Oh, não – ela sentou na esteira, assustada – ele não pode me encontrar. Eu não sou culpada, não sou uma assassina! Acha que ele me encontrará aqui? – perguntou angustiada.

       A criatura não negou, mas também não acenou.

       Sem saber o que falar, Eleonora apenas se calou e voltou a deitar de costas para cima e gemeu de dor.

       Não ousou tocar as costas e sentir o que acontecia em sua pele, mas se houvesse feito teria sentido calombos que nasciam e se projetavam pela pele que começava a rasgar e verter sangue e impurezas típicas do nascimento das asas.

       Não era fácil suportar, mas era o fardo que toda fada carrega. Para obter suas asas e seu dom definitivo, padecer do nascimento.

       Para cada fada, o padecimento das asas se mostrava de uma forma diferente. Algumas fadas sofriam mais do que as outras. Dependia da descendência, da raça e da linhagem. Particularmente as fadas do Ministério do Rei não possuíam a vantagem de saberem a própria descendência, o que dificultava o entendimento de como seria esse momento.

       Exausta, Eleonora adormeceu e foi desse modo durante alguns dias. Acordava e conversava pouco com o calado Mikazar. Ele serviria mingau e ela falaria amenidades para acalentar a saudade e o medo.

       Ele não fez perguntas sobre as asas, e não parecia afetado pelo cheiro do cio, como aconteceria com outros elfos. Ela tão pouco contou detalhes sobre sua fuga.

       Um fazia companhia ao outro. Era bom que fosse dessa forma, pois a solidão era lacerante para ambos. Em alguns momentos Eleonora apenas chorava, pensando em suas amigas. Seu coração não aguentava pensar em Joan sozinha, em fugindo. Sua Joan era uma florzinha delicada, que não sobreviveria sem ser cuidada diariamente!

       Alma era um perigo para si mesma, Eleonora temia que ela cedesse aos seus impulsos e cometesse alguma loucura, ferindo alguma criatura viva, ou até mesmo, se ferindo. Lutavam todos os dias para conter os impulsos de morte que Alma carregava dentro de si, e agora ela estava relegada as próprias decisões.

       Driana era capaz de lidar melhor com a situação toda. Não precisa se preocupar com ela, sempre tão racional. Uma pena que ela não estivesse ali. Estaria falando sem parar sobre o deserto e toda a história daquelas terras. Seria um alento na saudade.

       Quase dez dias após o começo das dores do nascimento das asas, Eleonora arrastou-se para fora da singela proteção que as rochas ofereciam e de pé, implorando por chuva, sentiu um pingo úmido cair do céu. Estava de pé implorando por chuva quando o pingo caiu em sua mão. Olhou para cima e descobriu que a água não vinha do céu, e sim da areia. Um pingo de água magicamente havia vertido do chão para a palma de sua mão.

       Imóvel e sem reação. Foi assim que ficou, até que comovida em descobrir que seu dom finalmente estava vindo à tona ajoelhou-se no chão e pousou as mãos sobre a areia quente, pedindo por água. Horas mais tarde uma pequena poça havia se formado, fluindo do chão para a superfície.

       Mikazar não fez perguntas, mas sua alegria ao se refestelar na poça a fez rir. Parecia uma criança brincando com a lama vermelha, e acalentando o calor insuportável. Eleonora participou e foi bom rir um pouco depois de tantas lágrimas.

       Os dois beberam água, e lavaram as faces com sorrisos inocentes de quem não deseja nada além da sobrevivência. Era tão pouco e ao mesmo tempo tão mais do que esperavam.

       Mikazar foi prático e guardou um pouco da água em um cantil. Era melhor do que contar com a sorte.

       Eleonora quis dizer-lhe que isso era um sinal que em breve ela faria bem mais do que criar uma poça de água, trazendo o líquido do fundo da terra para a superfície. Que em breve ela salvaria a si mesma.

 

       No décimo segundo dia daquela busca pela fada assassina, Egan finalmente encontrou-a. Como suspeitava a fada escondia-se nas rochas. Espreitou a distância estreitando os olhos diante da criatura que parecia conviver com ela.

       Os dois riam e brincavam em uma poça de água e quando ela fez jorrar água da terra seca, Egan invejou-os, pois estava faminto e sedento.

       Era quase impossível acreditar que a fêmea coberta de barro vermelho da cabeça aos pés, cheirando a cio e padecimento de fadas, e que tentava rir e brincar, com a naturalidade de quem não tem pecados, pudesse ser uma assassina. Era necessário tão pouco para fazê-la feliz e olhando assim, não era possível acreditar que fosse capaz de elaborar profundos planos de assassinato e colocá-los em prática.

       Egan esperou até a criatura estranha afastar-se da fada para somente então tomar a frente. Finalmente colocaria as mãos naquela assassina e poderia voltar para casa.

       Apesar da euforia por cumprir sua missão, Egan sentiu uma pressão no peito, enquanto a via rir como uma criança feliz coberta de lama vermelha.

       Em determinando momento, Eleonora engatinhou para baixo das rochas e ele entendeu que não conseguia andar. O modo como ela se deitou de lado, era indício que suas asas estavam acabando com suas forças. Ele nunca vira o padecimento de perto, por isso a imagem dos nós disformes em suas costas eram imagens para serem esquecidas.

       O cheiro de fêmea impregnava o ar e por mais resistente que fosse, Egan era apenas um macho elfo, e seus instintos dominavam. O que era estranho, pois segundo Santha aquela fadinha havia se deitado com o elfo. O sexo antes do padecimento das asas acabava com a possibilidade do cio. A fada perdia o hímen e seu corpo não era mais portador da mágica do cio. Ele farejou no ar seu odor e essa desconfiança aumentou.

       Sempre poderia ter sido outra das fadas. Santha poderia ter se confundido, e Alma, ou Driana ter se deitado com o Rei. Ele não acreditava que a fada Joan conseguisse, pois estava adoentada na ocasião. Mas uma das outras duas poderia ter feito isso. Cuidadoso para não se anunciar, Egan andou em sua direção no intuito de atocaia-la inesperadamente.

       As rochas eram ásperas e secas, e impediam a escalada. Foi preciso usar toda sua técnica de escalada aprendida no treinamento para Guardião, para conseguir se firmar e subir. Apesar de ser um lugar apropriado para vigiar sua vítima, era também um lugar horrível. A rocha quente queimava seu corpo, e a armadura era pouca proteção contra o calor escaldante. Na verdade, funcionava como um catalisador, potencializando o calor e fervendo seu corpo. E o sol, batia diretamente em suas costas, e o massacrava.

       Era um bom ponto de observação. A fada estava deitada, e a sombra parecia ajudar a aplacar o calor. Ela tinha os olhos abertos, e ele viu uma lágrima solitária correr em sua bochecha e o estranho Mikazar aproximar-se e tocar a lágrima com seu longo e fino dedo.

       Ele colheu essa lágrima e ficou olhando para isso, pois nunca vira uma lágrima.

       -Estou com saudades, Mikazar - ela disse baixinho, explicando isso a ele - Minhas amigas estão em perigo eu não posso fazer nada para ajuda-las.

       -Mikazar ouvir falar de lágrimas. Mas nunca ver uma na vida. - ele observava o liquido precioso dissolver-se em seu dedo e pareceu absorto por isso.

       -Como não? Você não tem lágrimas? - ela perguntou, enquanto limpava a face, limpando as lágrimas e um pouco da lama que secava e grudava na pele.

       -Achar que não. - ele disse sério e tentou se afastar.

       -Mikazar, espere - ela tentou sentar, e conseguiu, apesar do sofrimento do corpo - Muito obrigada por me abrigar. Eu não choro por sua causa. É apenas saudade. Você tem sido um elfo muito valoroso para mim. Nunca vou esquecer o que tem feito para me ajudar - ela agradeceu, antes de deitar-se outra vez e permitir que o cansaço a subjugasse.

       Egan assistiu-a adormecer, sempre com o corpo de lado, na esperança de apaziguar a dor. O pensamento insistente de que deveria esperar o nascimento daquelas asas. Ninguém saberia se ele esperasse. Era difícil encontrar uma fada com suas asas. Seu coração insistia em lhe dizer isso. Que prender Eleonora romperia sua família pare sempre.

       Reina e Tubã jamais o perdoariam totalmente. Reina até poderia aceitar, mas jamais poderia confiar nele outra vez. Furioso por ser colocado naquela situação, Egan descobriu qual o ponto fraco, e o lugar de melhor aceso sem ser visto, e rastejou para fora daquela posição desconfortável. Desceu pelas rochas e pousou os pés cobertos pela armadura na areia fervente. Ele podia ver a fumaça quente elevada acima da areia e observou um movimento anormal sob a areia vermelha. Alguma coisa corria por baixo, dentro do solo. Ele tentou pegar, estava faminto, e a comida que trouxera consigo não era suficiente para saciar um elfo de seu porte. Infelizmente o animal rastejante era mais rápido. Ele observou correr sob a terra, e ser parado por uma criatura de maior agilidade.

       Sem reparar nele, a criatura feia e estranha, que acompanhava Eleonora interceptou o bicho sob a terra e desenterrou-o com habilidade de quem faz isso regularmente. Egan fez uma carreta de nojo e quase não aguentou olhar. Rapidamente ele destroçou a cabeça do inseto com os dentes, e começou a comer, encolhido no chão, em posição fetal.

       Era uma cruza de animais e Egan nem queria saber o que era. Já lhe bastava saber como se alimentava. Enojado, aproveitou sua distração para aproximar-se do recanto sob as pedras.

       Eleonora dormia de exaustão. Inocente ao perigo que a rondava.Egan encontrou facilidade em alcança-la. Foi preciso deixar sobre a esteira que cobria o chão sua bolsa de couro onde levava alimento e provisões, e que naquele momento encontrava-se vazia, e se curvar obre ela, para girar seu frágil corpo e apanha-la.

       Eleonora não teve tempo de gritar antes de ser apanhada e imobilizada. Seus olhos tão claros se arregalaram de susto e medo quando o reconheceu. Em seus sonhos, ela via um Guardião bonito e sério, que a protegia e amava. Era assim em seus sonhos mais secretos. Mas na realidade esse mesmo Guardião a mantinha imóvel, presa, e com lábios presos, cobertos por uma de suas mãos, para que não gritasse.

       Os instintos de Guardião o avisaram do perigo, por isso manteve a fada imóvel com o peso do corpo e girou o braço com a espada para trás, encostando-a no pescoço da criatura que ousava tentar atacá-lo pelas costas. Pelo visto Mikazar não estava tão entretido com seu alimento como Egan pensou!

       O ser afastou-se e largou a pesada pedra que carregava para atingi-lo. Era uma boa tática de sobrevivência, usar pedras para abater seres de maior tamanho. Para alguém da estatura de Mikazar essa era a forma mais eficaz de ataque, e até mesmo defesa.

       Egan agarrou a fada pelos cabelos, e pelo braço. Levantou trazendo-a consigo.

       -Vou levá-la de volta para o castelo, Eleonora – disse com satisfação na voz – Vai pagar por seu crime. Não achou que se esconderia para sempre, achou?

       Seu tom de deboche e satisfação ascendeu o ódio dentro de Eleonora. Ela esperneou e tentou soltar os cabelos, e quando não conseguiu, ergueu uma das mãos atiçando o vendo a sua volta.

       O vento chegou a se agitar, mas não revoou como esperado. No Deserto das Areias Vermelhas sem dom era minimizado, e o agravante era ainda não possuí-lo inteiramente. Frustrada, ainda tentou chuta-lo, mas lhe restou apenas morder a mão que a mantinha calada e gritar por ajuda, uma ajuda que não viria.

       -Porque acha que enganei Reina para trazê-la para cá? – Ele perguntou baixinho em seu ouvido, sorrindo em meio a areia e secura dos próprios lábios.

       Egan estava acabado, assim como ela. Sujo e suado, areia grudada pelo corpo todo. Deplorável era a melhor palavra para defini-lo. Seco por dentro e por fora, castigado pelo sol.

       Eleonora parou de se mover entendendo que tudo que fizeram na tentativa de escapar de Egan, fizera com que Eleonora caminhasse diretamente para uma armadilha e que nunca houvera uma chance real de fuga.

 

                        Sem sombras e sem dúvidas

        Uma vez imobilizada, a fada não pode se defender de um ataque maior. Egan a fez deitar no chão, e usou as cordas que trazia em sua bolsa de couro para amarrar suas mãos e seus tornozelos.

       Sem ar, ele parou ao terminar a tarefa e olhou para cima, para a parca sombra que os protegiam. A vontade real era ficar ali indefinidamente, recuperando-se da travessia penosa até ali. Mas havia um dever a cumprir e ele era apenas uma ferramenta para concluí-la.

       A criatura mantinha-se afastada, acuada por conta da armadura. No começo Mikazar não sabia o que era o elfo que atacava Eleonora. Depois, entendeu que era um Guardião, e manteve-se longe, hostilizando a presença do oponente. Egan levantou com dificuldade e aproximou-se de Mikazar. A criatura tentou correr, mas ele era mais forte e pegou-o pelo cangote, e então pelos tornozelos, erguendo-o acima de sua cabeça. A criatura ficou de cabeça para baixo e Egan tentou identificar o que era aquilo.

       -Você é bastante feio, mas se parece com um elfo – ele disse com desconfiança.

       -Deixe Mikazar em paz! - A fada gritou, com raiva de ver o elfozinho penar por causa de uma briga que não era sua – Ele não tem nada a ver com nossos problemas!

       -Mikazar? Está coisa tem nome? – ele perguntou curioso, e desdenhoso. Normalmente não alimentava preconceitos e sim os combatia.

       Mas estava ferido e queria magoar a fada. Se Eleonora não fosse uma assassina ele queria se casar com ela.

       Tantos dias de calor e sol na cabeça, e estava no limite entre o que sentia e o que deveria estar sentindo. Não era racional.

       Ele amarrou os tornozelos de Mikazar, sem notar que o elfo encontrava um espaço para ataca-lo. Uma fenda entre a parte de cima da armadura e a de baixo, encontrou uma porção de pele coberta por uma camisa de linho, e cravou seus dentes ali.

       O Guardião berrou pela dor e caiu sobre um dos joelhos, lançando a criatura num canto da caverna.

       Praguejando, ele viu sangue e uma marca feia de dentes na pele. Por sorte, não houve tempo ou força para cravar toda a dentição do animal, ou ele estaria realmente em má situação.

       -Eu juro, se isso ficar ruim, vou arrancar seus dentes um a um, criatura! –ele berrou, apontando para Mikazar.

       O modo como ele avançou sobre o pequenino, fez Eleonora temer pelo pior.

       -Não! Não o machuque! Não, Egan! Ele é um elfo! – ela tentou se soltar, sem sucesso.

       O Guardião ergueu Mikazar e pareceu decidir se o matava ou não. Por fim, lutando outra a raiva, jogou outra vez o ser no chão e o amarrou com as mãos para trás. E usou uma mordaça em sua bocarra.

       Mikazar soltava grunhidos e Eleonora chorava. O que ela poderia fazer? O Guardião estava descontrolado, porém de posse da sua armadura! Era um perigo desafia-lo naquele momento!

       Encontrou um pedaço de pano relativamente limpo e esfregou na ferida, estacando o sangue e enquanto segurava sobre a ferida com uma das mãos, começou a vasculhar o lugar com ódio, arrancando todos os poucos pertences de Mikazar de seus lugares, lançando-os ao chão.

       Eleonora fechou os olhos, apenada quando viu o pequeno e gasto espelho cair no chão e quebrar-se em mínimos pedacinhos. Era tão pouco o que Mikazar possuía e chamava de lar!

       -Onde está a água? – Egan gritou com ela, revirando potes e panos.

       Não havia nada. O cantil de Mikazar não estava mais ali, e Eleonora imaginava que o pequenino mantivesse seu mais preciso bem, a água, em um lugar escondido, talvez enterrado na arreia. Ele conhecia os perigos daquela terra como ninguém mais conhecia e sabia se proteger.

       -Eu sei que há água aqui! Eu vi a água brotar do chão! – ele ergueu Mikazar com uma das mãos e o prensou contra a parede de rochas – Onde está? É uma ordem, criatura! Onde está a água que eu vi?

       O pequeno elfo cruza com duende olhava para os dois com confusão. Amarrado não oferecia riscos a Egan, assim como a fadinha abatida não chão oferecia riscos de fuga.

       Vendo o desespero do enorme Guardião coberto por desespero e miserabilidade, ambos impostos pela vida no Deserto das Areias Vermelhas, Eleonora sentiu-se vingada e tentou trazer sua atenção para si:

       -Vai morrer de sede, seu porco! – ela disse com ódio no olhar – Quantos dias aguenta me carregar sem água para beber? Mikazar não lhe dirá onde há água! Que morra sedento, seu porco imundo!

       -Quantos dias você aguenta ser carregada pelo deserto sem fazer brotar água? – Ele revidou, e ela sorriu em meio à sujeita que grudava em todo lugar de seu corpo, e face. - Eu vi a água brotar do chão, eu sei que vi.

       A loucura vinha da sede, da fome e das provações. Ele não era assim normalmente. Tão pouco ela era cruel a ponto de negar uma gota de água para alguém que amava. Mas aquele lugar não os fazia lógicos e sim, lunáticos esquecidos de que havia uma vida toda fora dali.

       -Depende. Eu não tenho muita escolha entre viver ou morrer – alertou-o – Posso preferir levá-lo comigo.

       -E o seu amigo aqui? – Ele apontou o elfo de aparência estranha – também preferirá vê-lo morto por sua culpa?

       -Não pode carregar nós dois pelo deserto, precisará deixar Mikazar para trás e ele sabe viver aqui, ele vai ficar bem. Mas você... Eu não sei. Quanto tempo você aguenta sem água? – havia sim maldade dentro de si e prazer em saber que ele não poderia sobreviver sem água, assim como ela. Então, o arrependimento a dominou, pois não queria pensar isso, ou se sentir assim. Amava àquele elfo, e não queria vê-lo sofrer - Eu não matei o Rei – ela preferiu apenas refutar o ato de implorar e tentar falar o que de fato aconteceu.

       Mikazar arregalou os olhos de surpresa, pois não imaginaria a pequena fada cometendo assassinato.

       -Eu bem ouvi sua defesa quando decidiu enfrentar seu julgamento e provar sua inocência – ele satirizou revirando a caverna em busca de água e alimento. Tão frenético, pensou Eleonora.

       -Não confia no julgamento de Reina? – Apelou.

       -Não. Ela a criou como filha. – Ele deu de ombros, achando restos de mingau e devorando tudo com voracidade.

       Se ele pudesse se ver naquele momento, lamentaria aquilo que se tornou. Comendo com as mãos, sem pensar ou ponderar sobre a comida. Apenas alimentando-se e usufruindo da pouca umidade que o alimento provinha.

       -E o seu irmão? Tubã acredita em mim! – Eleonora tentou mais uma vez.

       -São amantes. É claro que Tubã a defenderá, mesmo sabendo do seu crime. Ele tende a confiar demais quando ama. Ele não mede o perigo. Tubã até gosta de correr riscos. Ele a protegeria mesmo sabendo quem você é de verdade. – Outra pesada ironia.

       Acabado o mingau, Egan deixou a cumbuca de barro cair no chão, ignorando que isso se quebrava. Continuou revirando tudo, até encontrar uma bolsa de couro escondida em um canto, era a bolsa que Reina preparara para Eleonora quando as duas fugiram juntas do Reino de Isac.

       E não encontrou nada de útil. Mesmo assim continuou revirando o pouco conteúdo, espalhando tudo no chão.

       -A rainha transformou todos nós em animais – ela disse depois de algum silêncio vendo-o comer com tanto desespero, e revirar o lugar sem o menor respeito pelo dono do acampamento – Como pode alguém sempre conseguir tudo que deseja? Como ela pode seguir tantos anos enganando, mentindo e manipulando? Como?

       Egan não se deu ao trabalho de responder.

       A fada estava deitada no chão, e ele fitou suas costas. Não era imune ao cheiro de uma fada que entra no cio. Era um elfo, não podia conter seus instintos. Eleonora tremeu diante do seu olhar e a dor a fez gemer. Amarrada era impensável tentar se mover.

       Naquela situação, sem ter quem a protegesse era apropriado temê-lo. Estava descontrolado. Não pensava com sua mente honesta e consciente, pensava com os instintos mais baixos de sobrevivência e um desses instintos, era a cópula.

       Eleonora tentou se mover na esteira, e afastar-se de Egan, pensando na possibilidade de ser forçada a fazer o que não deveria. Ela queria pertencer a ele, mas não a força, e não daquele modo.

       Mesmo assim, o cio falava mais alto, e Eleonora sentiu uma punção de paixão tão forte, que precisou sufocar a vontade de dizer isso a ele, de implorar para ser solta e copularem.

       Não era ela, era o cio. Revoltada consigo mesma, tentou se soltar, mas não tinha forças para tanto. Egan aproximou-se um pouco mais, pensando o mesmo que ela. Porque esperar? Ele poderia apartar suas pernas e acabar com o sofrimento do cio em um único instante. E isso resolveria tudo. Ele revindicaria a fêmea para si. Era culpa do cio, não dele. A opção dos covardes.

       O modo como à fêmea o olhava e o aumento do ódio entre eles, era a prova que ela sentia e pensava o mesmo.

       -Reina culpa Santha por tudo que aconteceu – contou com voz tremula, esperando desviar o pensamento de Egan do que passava com ela.

       -Pobre rainha – ele disse apenado – Uma pena que não tenha ficado para ver o sofrimento de Santha por perder seu elfo escolhido.

       -Sofrimento? E quanto eu sofri sendo abandonada na floresta para morrer? – Jogou de volta. – É claro, você não conhece a história toda. É um Guardião tão estúpido que me revolta! Além do mais, Santha nunca escolheu Isac! Ela foi escolhida! Tem muita diferença entre uma coisa e outra, elfo estúpido!

       Egan parou e aproximou-se dela, com olhos atentos, fúria mal mascarada em sua face.

       -Eu sou estúpido? – Ele perguntou com mãos apertadas, lutando contra todos os seus instintos mais primitivos.

       Desejo insano de esgana-la com as duas mãos, e ao mesmo tempo arrancar todas asa suas roupas e possuí-la naquele momento de insanidade total. Nenhum macho o culparia por ter perdido o controle, e era o gênero masculino que dominavam as leis.

       -Sente meu cheiro do cio. Não posso controlar isso. Vire as costas e volte para o castelo e obrigue Santha a mostrar seu cheiro. Verá que é igual ao meu. Eu não crio água. Egan... Eu controlo o tempo. Tal como Santha. E minhas asas... É meu único álibi. Vão nascer idênticas as da rainha. Porque ela me pariu e vem tentando matar a anos! Ela matou o Rei, para que ele não visse minhas asas. Para que algum Guardião estúdio como você me prendesse, julgasse e assassinasse antes que as asas nasçam! Ela sabe que eu lutarei por liberdade! E espera que me mate antes que minhas asas nasçam e sejam vistas! – gritou para que ele ouvisse, para que ao menos o desagrado por sua voz alta, causasse algum impacto e quem sabe, suas palavras fossem levadas em consideração.

       -Essa é a sua defesa? – Ele mal acreditou naquela estupidez.

       -Santha é minha mãe. – ela disse baixo, chorosa – Minhas asas estão nascendo, Egan... Não pode esperar que nasçam para saber se minto? Ver com seus próprios olhos, em vez de me julgar e condenar?

       -Não. Quanto suas asas nascerem jamais conseguirei apanhá-la. Vai voar pelo mundo a fora e não cumprirei minha missão.

       -Cumprir sua missão? À custa da vida de uma inocente?

       -Foi com essa conversa mole e com esses olhos suplicantes que seduziu meu irmão? – Ele revidou amargurado, pensando demais nisso.

       -Tubã é meu amigo. Meu irmão de coração. Eu nunca o seduziria. – Baixou a voz sabendo que não adiantava argumentar com Egan – Não é estúpido seduzir um segundo em hierarquia? Porque não seduzir um Guardião? Não sou tão ardilosa? Porque matar o Rei se minhas amigas e eu possuíamos o poder de enganá-lo a ponto de entrar em seu leito e me deitar com ele? Porque não fazê-lo abandonar a rainha e me escolher para o lugar de Santha? É muito burro mesmo em acreditar que precisaria fazer tudo isso por causa de uma tiara estúpida que Tubã roubou sem causar um décimo de problemas! Acho que todos os Guardiões são fortes e brutos, e por dentro seus cérebros são vazios e ocos!

       -A única coisa que conseguirá me ofendendo é umas palmadas, fada.

       Eleonora quase sufocou com o próprio ar diante da ameaça. Em seu estado sensível de excitação constante, pensar em Egan erguendo-a em seus braços, colocando-a sobre seus joelhos e lhe tocando as nádegas em palmadas cruas e diretas, era dolorosamente excitante. Não era algo bom, era apenas excitante.

       Como fada repudiava esse tipo de imagem, mas como fêmea descontrolada em hormônios que não entendem o racional, ela queria, precisava e apreciaria esse comportamento animalesco. Pela forma como Egan correu os olhos por seus flancos, soube imediatamente que ele queria o mesmo que ela.

       -Deixe minhas asas nascerem, Egan. É a prova da minha inocência. – Apelou, tremendo por inúmeras razões inconfessáveis – Olhe o estado em que estou... Não vai demorar. Minhas asas nascerão nos próximos dias. Você pode me deter. Eu não tentaria fugir, eu preciso mostrar minhas asas para todos, e somente assim, ser inocentada. Eu não fugiria de você.

       Egan engoliu em seco e curvou-se para o chão, para ver o que ela dizia. Não deveria ousar contra a privacidade de uma fêmea, sendo ela fada ou humana. Mesmo assim, precisava confirmar o que dizia.

       Eleonora chorou de dor quando ele baixou a túnica imunda revelando suas costas. Seus braços finos cobriam seu peito, tentando se poupar do olhar do elfo. Ele engoliu em seco dividido entre piedade e asco. Entre desejo de ver seu corpo e toca-la e piedade pelo padecimento das asas. Eram feridas feias, negras, ensanguentadas e era inegável que despontavam as asas.

       Dois dias no máximo, pensou. Estariam na estrada quando isso acontecesse.

       -É melhor partir agora – disse azedo, levantando e catando tudo que pudesse lhe ser útil na viagem de volta para o castelo.

       -Leve Mikazar conosco – ela pediu – Ele vive aqui solitário, sem companhia. Por favor. – Pediu, pensando em uma possível fuga. Em ter ajuda em uma fuga futura.

       -Desista, fada – Egan voltou e segurou seu queixo, fitando seus olhos com desejo e ardor, uma pena que Eleonora enxergou apenas desprezo – Não vai conseguir me enganar com suas palavras. É ardilosa, isso eu já sei há anos. Tem se infiltrado pelo castelo, tendo acesso a todos os lugares. Tem se feito necessária para Reina e Tubã. Tem ocupado um espaço que não é seu. E agora, quer me enganar também.

       -Não quero enganá-lo – ela sussurrou. – Minto quando o chamo de estúpido. É inteligente e sagaz. Pode dizer de coração que confia cegamente na rainha? Que Santha nunca o desagradou com seu comportamento?

       Egan não soltou sua face, mas também não concordou com sua colocação.

       -E eu? Alguma vez o desagradei? Fiz algo que o contrariasse? Cometi algum crime que pudesse me julgar desonesta?

       Namorar seu irmão menor não era um crime, ele pensou e logo refutou esse pensamento.

       Sangue ferveu em suas veias, pensando nos dois juntos, em todas as fugas e oportunidades que tiveram para namoros secretos. Olhou para as pernas da fada, onde a túnica erguida e mostrava as curvas delicadas, pele macia, coberta de areia e barro seco, mas que ele sabia que era naturalmente brancas e suaves, como leite fresco.

       Parado. Ele manteve os olhos fixos naquelas pernas, imaginando-as entrelaçadas no dorso de outro elfo, seu irmão Tubã. Os dois nus, se roçando e entrelaçando, em um ato violento e sensual, em algum canto escondido, talvez um estábulo ou cabana abandonada, quem sabe o prado ou os arredores arborizados do castelo... Pensar nos dois fazendo amor, aos gritos de paixão, seu irmão usufruindo de todo o calor e que aquela fada poderia proporcionar, era de enlouquecer um elfo são.

       Ele atirou a bolsa de couro longe, assustando Eleonora, e manteve-se calado, tentando se controlar. Esquecer essa imagem. Era uma fantasia, mas era forte demais. O ciúme era doentio. Ele sempre teve ciúmes dos dois juntos, mas naquela situação, naquele momento primitivo, esse ciúme era potencializado e sua porção Guardião implorava por calma.

       -Me deixe tocar a areia - pediu com a voz mais mansa, pensando em algo para dobrá-lo a sua vontade. – Não consigo usar meu dom nesse lugar. Mas consigo fazer isso, Egan, se você confiar um pouquinho em mim... Posso lhe mostrar que sou sincera em tudo que digo...

       Egan se aproximou e a segurou. Tentou mantê-la parada quando ela se moveu, mas deixou-a ir, pois não conseguiria ir longe amarrada como estava. Eleonora reteve gemidos de dor, e conseguiu se arrastar para fora da esteira de bambu, roçando os dedos na areia quente. Estava amarrada e não era nada confortável sua posição. Sentiu o conhecido formigamento nas palmas das mãos e água começou a surgir acima da areia vermelha. Egan ajoelhou-se ao seu lado e começou a pescar a água com as mãos em concha. Sorveu o liquido com desejo.

       Ele ergueu os olhos, e encontrou-a olhando-o com algo de pena e rancor no olhar.

       -Eu volto com você, se me prometer ao menos ver minhas asas antes de me entregar a Santha e Lucius. – Ela apelou, pois ele estava muito perto, e acessível. – é feio ver o que se transformou, Egan. O que nos dois nos tornamos por causa de Santha. Olhe para nós... Porque eu mentiria?

       -E porque eu confiaria em você? – Perguntou desconfiado.

       -Eu não sei. Mas estou cansada. Minhas asas irão nascer e eu provarei minha inocência. Esteja ao meu lado, e será o salvador do seu povo, livrando-o dos desmandos de uma rainha assassina. Esteja contra mim, e será culpado da destruição de todos que ama. Acredite nas minhas palavras, não haverá lugar para os Guardiões quando Santha fizer de Lucius um Rei. Ele banirá todos vocês! – Não era um presságio e sim a mais pura das verdades!

       -E o que a leva a crer que Lucius será Rei? – Ele ironizou.

       -Lucius e Santha são amantes desde a clausura. – Contou – Eu nasci desse crime contra as leis do Rei. Santha foi livre por muitos anos. Agora é a vez de Lucius ser livre também. À custa da minha vida. À custa da vida das minhas amigas e do seu irmão. Se não acredita em mim, acredite nas pessoas que o amaram a vida toda. Reina não lhe mentiria. Tubã não preferiria uma amante ao irmão. Aliás, onde ele está nesse momento? Fugindo. Eu não o vejo a minha volta... Idolatrando uma assassina. Tubã protegeu minhas amigas, pois elas são inocentes!

       -Suas amigas não são assunto meu. – Ele sorriu ao contar – Aposto como não previa isso não é, fada? Suas amigas serão encontradas... Mas não por mim. Cada uma delas está sendo caçada nesse exato momento. Lucius será um Rei sagaz. Sabe decidir o melhor para seu povo– ele ironizou levantando, querendo que acreditasse nisso, quando ele mesmo não acreditava.

       Pegou o cantil e encheu de água, da água que ela fizera brotar da areia escaldante. Ergueu o cantil e espalhou um bocado em sua boca e Eleonora bebeu avidamente. Estava com muita sede. Egan, juntou uma trouxa com objetos que pudessem ser úteis e agarrou a fada pelos braços, jogando-a sobre o ombro como um saco de batatas.

       -E você – apontou a espada para Mikazar – Fique onde está e não atravesse meu caminho outra vez.

       O pequeno elfo apenas concordou olhando para a fada com olhos dúbios. Ele não permaneceria muito tempo amarrado. Um ser que vive e sobrevive em um lugar árido como aquele sabe bem se virar sozinho. Egan duvidava que os seguisse, pois não havia razão para uma criatura do deserto envolver-se com problemas de elfos e fadas do reino de Isac. Com a fada no ombro ele andou para longe enfrentando o vento, a areia e o calor. Missão praticamente cumprida. Estava satisfeito consigo mesmo.

       Não fosse a voz insistente em sua mente tentando alertá-lo do erro que cometia...

 

                          Último toque

        O último gole de água tinha o melhor sabor do mundo. Egan pousou a fada no chão seco, e ela mantinha os olhos abertos, arregalados, fitando algo que Egan não via. Há algum tempo, sendo carregada, Eleonora começou a esquecer de sua situação e a sentir algo estranho. Seu dom se manifestava e por causa disso, estava muito consciente de cada sensação e cheiro. Seu corpo se fundia ao seu ambiente e ela sentiu-se incomodada.

       Esse incomodo evoluiu e transformou-se em um desespero pouco convencional. Ela sentia algo, e esse ‘algo’ era a integração entre fêmea e natureza.

       Quando foi deixada no deserto, e Eleonora não era capaz de sentir as mudanças sutis no clima, e no ambiente, mas à medida que seu dom aflorava, conseguia prever o que aconteceria.

       Quando notou seu medo, Egan olhou em volta. Não viu nada além de areia vermelha e aquele estranho reflexo que causava nos olhos cansados de alguém que permanecesse muito tempo exposto ao calor e privação. A fada parecia ver algo no horizonte vermelho e quente, mas ele não via nada além do mormaço.

       -Vejo areia – ela disse com medo – Egan, eu sinto a areia vindo na nossa direção...

       -Fala de uma tempestade? São comuns nesse lugar – desmereceu sua previsão, sem interesse em seu medo.

       -Não. É mais do que isso... É algo pior – Ela apontou para o horizonte onde não havia nada além da ameaça que sentia na alma.

       Conhecia os segredos do tempo, e Egan começou a ficar intrigado. Santha também os conhecia. O dom e o cheiro podem ser explicados por uma longínqua linhagem de sangue. Duas fadas órfãs do Ministério do Rei poderiam facilmente ter uma ligação sanguínea desconhecida.

       Isso não provava nada contra a Rainha, ou a favor de Eleonora. Mas um dom idêntico, isso era muito difícil de explicar. As asas idênticas e o dom, isso era o esperado de uma fada primogênita.

       Eleonora estava cansada de pedir, implorar e falar com ele. Não havia meios de se proteger do que sabia estar a caminho. Precisaria aguentar. Suportar. Os dois estavam presos ali.

       Ergueu os olhos para o elfo e pensou em deixá-lo a sua própria conta, afinal, se não acreditava em suas palavras, não merecia sua consideração!

       Amor apertou em seu coração e ela precisou insistir. Se fossem apanhados de surpresa, Egan sofreria muito mais do que ela, por conta de sua situação de Guardião.

       -É uma tempestade maior, diferente de tudo que você já viu nesse lugar! Egan, por favor, vamos nos proteger da areia. Por favor... – Implorou, olhando-o com olhos tão claros e sinceros que a dúvida o assolou mais uma vez.

       Dividido entre sentimentos, ele retirou panos da trouxa que carregava e jogou um deles para Eleonora, sem considerar um risco maior do que uma simples tempestade de areia, comuns naquela região. Ele enfrentara diversas dela durante seu treinamento, e apesar de odiar com todas as forças passar por isso, não via perigo de vida real para os dois.

       Ela conseguiu sentar-se e mesmo com as mãos presas pela corda, conseguiu amarrar o tecido velho em volta do rosto, protegendo lábios, nariz, e olhos. Apenas um buraco para enxergar quando quisesse. Egan fez o mesmo.

       -Não use a armadura. Vai queimar sua pele. O calor da areia e da tempestade vai queimar o metal, armaduras mágicas não possuem poder algum neste lugar, Egan! A armadura vai queima-lo vivo! Egan me escute, eu não estou mentindo, não é uma tempestade de areia comum. É uma tempestade de puro calor. – Eleonora disse apenada, pois ele ficaria com sérias queimaduras se não a ouvisse.

       Em outro lugar qualquer, a armadura o protegeria da tempestade e seria seu abrigo. Mas no Deserto das Areias Vermelhas, a armadura era apenas uma proteção comum de metal. Apenas isso, sem poder algum. E o queimaria e potencializaria todo o calor da tempestade.

       Por mais que tentasse acreditar nela, Egan achava sinceramente que a fada desejava deixá-lo desprevenido. Privá-lo de sua proteção. O corpo de um elfo não possui poderes mágicos. Conta apenas com a força e a proteção de armaduras.

       Estava perdido em ponderações quando ouviu um som agudo como um grito vindo de longe. Assustado, olhou para Eleonora e a viu arrastar o corpo para trás procurando por um buraco na areia, onde poderia ficar mais baixa do que o nível da areia. Rápido, Egan não teve tempo para grandes meditações, apenas despiu a armadura e juntou-se a ela, cobrindo seu corpo com o seu, pois era a única forma de protegerem-se no espaço diminuto.

       Por alguns segundos, não ouviram mais nada além do silêncio do deserto. A fada tremia em seus braços, e ele sabia que a dor do padecimento das asas era a culpada, assim como o medo.

       Ela gemeu e gritou de pânico, agarrando o tecido de sua camisa que ele usava por baixo da armadura e foi nesse instante em que a tempestade explodiu repentinamente em volta deles. Egan enterrou a cabeça em seus cabelos e ela se agarrou a ele, enquanto a areia, vento e o que parecia uma chuva úmida cobria os dois. Era uma chuva de pingos quentes e ferinos, que queimavam a pele, como água fervente.

       Eleonora esforçou-se para controlar a tempestade, mas não obteve o resultado desejado. O vento parecia afastar-se deles com maior rapidez, mas ainda assim castigava-os.

       Foram minutos de tormento, e completo alienamento. Escuridão total, barulho ensurdecedor. Nenhum deles ousou tentar ver em volta. O chão tremia sob ele e em volta.

       O ar chegava ao fim, pois a areia infiltrava-se sob o tecido e quando estavam a um passo de perder os sentidos tudo se aquietou e pareceu desaparecer, como se nada houvesse acontecido. Era assim no deserto, as tempestades de areia eram repetidas, e desapareciam em segundos, ou às vezes duravam dias.

       Eleonora não o soltou por muito tempo. Egan estava nervoso, e foi o primeiro a se mover, arrancando suas mãos da sua roupa, livrando-se do seu aperto, pois a fêmea queria e precisava sentir-se protegida e procurava nele esse amparo.

       Ela ficou deitada, com medo de se mover. Egan olhou em volta para a desolação total a sua volta.

       -Minha armadura... – Ele disse andando em círculos, tentando encontrá-la. Areia havia coberto tudo a volta e não havia sombra de indício de onde estaria sua armadura. – Não! – Ele gritou furioso – Minha armadura!

       Elfos possuíam uma ligação visceral com suas armaduras. Elas sempre obedeciam e retornavam ao elfo que as merecia. Mas no Deserto das Areias Vermelhas essa mágica não existia. O elfo caiu varias vezes, na busca pela armadura. Uma busca que jamais alcançaria sucesso. Por fim, de joelhos, ele fixou os olhos no horizonte, sem saber o que fazer.

       Desolado. Egan estava desolado. Eleonora engatinhou até ele. Pensou em toca-lo, mas apenas olhou para ele com pena.

       -É tudo culpa de Santha – disse baixo, praticamente no ouvido de Egan, chorando de dor e medo – O desespero que sinto é culpa dela. A perda da sua armadura é culpa dela! Olhe para nós dois, Egan. Veja a verdade. O que nos tornamos? Bichos? Animais sem princípios, sem perspectivas? Eu sou uma fada da clausura e me conformo com meu destino, esse sofrimento todo é pouco comparado com a chance de ser livre... Mas você é um Guardião! Isso não é destino para alguém como você. É um elfo de linhagem, com família, com uma vida toda a sua frente! Uma vida coberta de bênçãos!

       -Culpa de Santha? Ou sua culpa? – Ele jogou em sua cara, com fúria desesperada, olhando em seus olhos, procurando por falsidade.

       Eleonora sentou na areia. Não havia argumentos que pudessem convencê-lo da verdade. Desistência era um sentimento cruel, pensou.

       -Ali – ela apontou a areia, um ponto muito distante de onde estavam – Cave. Sua armadura está ali. Eu sinto, eu faço parte desse lugar. Eu sinto, Egan. A terra me conta seus segredos. Os elementos me dizem tudo que preciso saber. É o meu dom completo se manifestando. Cave, pois não tenho poder para trazê-la para você... Eu não tenho forças para nada. Enquanto cava, pense nisso. Pense em porque o meu dom é idêntico ao dom de Santha.

       Exausta, Eleonora manteve-se deitada na areia quente, sentindo o corpo perecer. Em determinado momento, uma hora mais tarde, ela se ergueu e tentou andar. Egan cavava com a dedicação de alguém que não pode e não aceita perder seu lugar no mundo.

       Cavava com as mãos e ela sentia sua dor e sua aflição. Ajoelhou-se no chão, perto dele, e então o chamou quando conseguiu o que queria. Andou até ele com água nas mãos, que em formato de concha guardava um pouco da água.

       Egan não disse nada, enquanto bebia de suas mãos. Ergueu os olhos castanhos para olhar a fada e encontrou pureza em suas feições. Tanta pureza que um nó se formou em sua garganta.

       Não via uma assassina cruel. Via apenas uma jovem desamparada e solitária, lutando por sua sobrevivência, e mais do que isso, tentando ajuda-lo a lutar por si mesmo. Eleonora brigou com tudo que acreditava, para não sucumbir e dizer-lhe que tinha sentimentos por ele desde a adolescência. Que tinhas intenções românticas guardadas em seu coração há muitos anos e que era passado o tempo em que suspirava pelo Guardião bonito e forte, e que hoje era quase uma mulher adulta, e com suas asas nascendo, seus sentimentos de idolatria e amor platônico, se transformava em desejo de fêmea e amor verdadeiro. Não era apenas o cio, era muito mais do que isso.

       Suja de areia, não havia resquício da fada clara, loura e pálida. Ele sorriu enquanto limpava os lábios do excesso da água.

       -Estamos sujos da cabeça aos pés. – Ele disse sorrindo ainda, como quem pede uma trégua.

       -Sim. Mas eu não me importo. Eu nunca tive luxo ou conforto. Eu realmente viveria feliz em um lugar como esse, desde que tivesse paz. Acho que consigo entender Mikazar...– Eleonora sentou no chão perto dele, pois Egan voltava a cavar com as mãos – Se a dor passasse, eu ficaria bem feliz de continuar coberta de areia... Mas preciso voltar ao castelo. Reina disse que devo fazer isso quando as asas nascerem. Não precisa se preocupar com uma fuga, minhas asas precisam ser vistas, por isso tenho que voltar. A vida e a liberdade das minhas amigas dependem disso. Só tenho medo de chegar ao castelo antes das minhas asas despontarem...

       Egan não respondeu. Ele tornou a cavar e Eleonora esforçou-se para não reparar no esforço que o corpo forte executava. Molhado de suor, a areia grudava em todos os lugares, mesmo assim, ela admitiu os braços grossos cobertos de músculos. O pescoço longo e cheio de virilidade, com veias que se dilatavam a cada esforço maior.

       Sua expressão voraz ao executar o trabalho desgastante; hipnotizada pela porção macho diante de si esqueceu um pouco da própria realidade.

       Eleonora não conseguiu controlar a própria mente. Estava parada ali, sem poder fazer nada por si mesma, assistindo-o lutar contra a areia escaldante na busca por sua armadura.

       Mas e se ele percebesse que ela estava ali, precisando de um olhar seu?

       Egan pararia de cavar e secaria o suor abundante de sua testa, deixando um rastro de areia na pele. Olharia para a fêmea ao seu lado e diria algo como:

 

       -Obrigado pela água. Você é muito doce, Eleonora. Eu sempre soube disso. Perdoe-me por nunca ter dito.

 

       É claro que uma fada inocente, e platonicamente apaixonada jamais resistiria ao seu sorriso arrependido. Egan sempre sorria tão bonito e garboso, que seria impossível para Eleonora resistir por mias tempo.

 

       -Eu... Eu me importo com você. Por isso lhe ofereci água, Egan. Porque quero o seu bem, eu não sou uma assassina, não sou. – ela diria tentando não corar. Sem lembrar que ele na poderia saber se corava ou não, pois suas bochechas estavam cobertas por areia.

 

       -Eu acredito em você – ele diria, pois no fundo, acreditava em sua inocência. – Eu não posso deixa-la ir, é meu trabalho e minha vida, mas eu entendo sua situação.

 

       Seria o momento mais doce de sua vida. Ouvir que Egan acreditava em sua inocência, mesmo que todas as evidências acusassem sua culpa.

 

       Um momento tão doce e tão forte. Uma troca profunda de olhares, para quem vivia aquele momento confuso do cio, era como levar uma punhalada no âmago de seu estômago. Ela queimava pelo macho a sua frente, e ele sentia o mesmo.

 

       Seu cheiro dominaria acima das meditações sobre inocência ou culpa, acima do amor e do ódio.

 

       Por que pensar enquanto a natureza faz a porção fêmea dentro de si exigir consumação a qualquer preço?

 

       Era quase cruel admitir que fosse do mesmo modo com qualquer macho de sua espécie que estivesse perto. Mas para sua sorte, era Egan, e ela sempre quis que fosse com ele. Por isso, não lutou contra o sentimento e sim, o instigou.

 

       Ergueu os punhos, ofertando-os ao elfo, num convite pouco sutil. Ela tremia quando sentiu as mãos fortes desfazerem os nós que a prendiam. Atiçada, ela ergueu as pernas, antes mesmo que ele pudesse fazer isso, e Egan rompeu a corda, usando o fio de sua espada. Era tudo uma loucura, e no momento ela não questionou de onde vinha à espada.

       Suas pernas estavam livres, e ela não sentia nada além do sangue fervendo em suas veias, e o barulho incessante de seu coração disparado dentro do peito. Se o elfo disse alguma coisa, Eleonora não ouviu. Egan a tomou no colo, e Eleonora caiu sobre ele, os dois rolando na areia quente, sem notar que era uma inclinação e que cairiam de nível, alguns centímetros mais baixo que o nível de areia.

 

       Eleonora ficou por cima, e teve a túnica rasgada na altura do peito. Ela soltou uma palavra qualquer de incentivo, movendo a cabeça e sua longa cabeleira, tão limpa e perfumada, sempre tão macia e bela, encantando os olhos do elfo. Ela tocou o próprio peito, para que ele olhasse.

 

       Egan era um macho de ação, sobretudo durante o momento do cio. Ele elevou a fada em seu quadril e levantou da areia, pois essa era quente e machucaria os joelhos da fêmea.

 

       Seus seios foram tomados pela boca e dentes do elfo e ela apenas gritou, pois ele encontrou sua intimidade desnuda por sob a túnica e a possuiu finalmente. O cio era devastador e os berros de prazer de Eleonora ecoavam pelo deserto. Assim como os grunhidos do elfo, que a invadia com força e decisão, impulsionado pelo efeito do cio em sua sexualidade.

 

       Suor corria, e Eleonora procurou os lábios do elfo, cobrando-lhe um primeiro beijo, e sendo recompensada por um beijo inesquecível, que tomava tudo dela, inclusive o juízo.

 

       Egan impulsionava com agilidade, e tomado pelo mesmo prazer que ela, caiu na areia, de joelhos, ainda empurrando em seu corpo meigo. Eleonora agarrou-se ao pescoço do elfo ao ser deitada contra a areia, e ajudou nos movimentos, abrindo os olhos para enxergar o sol escaldante sobre suas cabeças, embaçando sua visão e apagando seus sentidos.

 

       O prazer a sobrecarregou de sentimentos inexplicáveis e as mãos de Egan, com dedos cravados em sua carne, a marcaram como dele, do mesmo modo que ele espalhava sua semente de elfo, e provavelmente a emprenhava de uma cria, naquele exato momento.

 

       Era tão perfeito e romântico, que poderia ser um acontecimento criado apenas por sua mente, em uma fantasia.

 

       Culpa do calor, ou da aridez, ou ainda da paranoia apaixonada, mas era apenas uma fantasia sua.

       Egan ainda cavava alheio aos seus sonhos. Ele sequer imaginava que a fada estivesse sonhando acordada e ele fosse o pivô desses sonhos.

       Quando Egan notou que era observado não teve tempo de fingir não estar olhando. Ele reconheceu desejo em seu olhar e também reconheceu timidez. Avidez inesperada, de quem nunca se imaginou tendo esse tipo de pensamento ou comportamento.

       Timidez de uma fada despreparada para o convívio com elfos. Um comportamento estranho vindo de uma assassina fria, calculista e sedutora.

      

        Era pouco sábio demonstrar que percebia seu interesse. E pouco inteligente também, visto que esse interesse todo era baseado no cio, e não na realidade.

       -Continue cavando – ela disse doce – Eu sinto, está perto agora.

       Egan estava exausto. Continuou cavando com menos empenho, mas não menos vontade. Eleonora tocou a areia, pedindo que ajudasse. Ainda não entendia como fazer isso acontecer, mas não custava tentar. A areia apenas se moveu um tanto e rachou, facilitando que a armadura fosse vista.

       Quando finalmente a armadura estava completa e a salvo, Egan olhou para a fada. Ela esperava um agradecimento, mas um Guardião jamais se rebaixaria a agradecer a uma fada fugitiva. Com um suave sorriso de deboche, Eleonora disse:

       -Não precisa agradecer Guardião. Eu entendo que a ingratidão faça parte do seu treinamento e que para ser forte precisa esquecer-se de sentimentos como bondade e retribuição.

       Era uma provocação, e merecia uma resposta à altura. Mas dada a situação, a fada da clausura estava coberta de razão e não havia resposta que pudesse salvá-lo da humilhação de depender de sua caça.

       Ela lhe alcançará a armadura, quando era mais sábio desarma-lo completamente. E isso era intrigante. Muito intrigante.

 

                              Toque de amor

        Dormir no deserto, sem a proteção do acampamento de Mikazar era terrível. Eleonora havia adquirido experiência nisso, mas não podia dizer que aquilo era aceitável.

       Quando os raios de sol começaram a minguar no céu, e o frio da noite varreu a areia até então escaldante, ela enrolou-se o melhor que pode na túnica que vestia e tentou se acalmar, em um canto qualquer da areia. Não havia como escolher muito.

       Ao longe havia uma árvore desfolhada, com galhos altos e finos, mas o tronco era queimado, seco e provavelmente lar de insetos e criaturas medonhas, dos quais Eleonora queria manter distância.

       Não queria reparar no Guardião. Se ele sabia o que fazer ou tinha alguma ideia melhor do que a dela. Apenas ficou quieta e esperou o tempo passar. Ouvia o movimento dele entorno de onde estava acendendo uma fogueira. Não conseguiu se conter e precisou olhar o que ele fazia.

       Egan conseguiu ascender uma fogueira modesta e se acomodou perto do calor do fogo. Era bom, minimizava o frio. Aquele lugar era horrível. Insuportável, em alguns dias o calor atravessava a noite, mas em outros, anoitecia e um frio absoluto cortava a pele.

       -Eu prefiro o frio - ela disse cansada, querendo puxar assunto.

       Egan ergueu os olhos para ela, como uma cobrança.

       -Sério, as outras noites nesse lugar foram horríveis. O calor é detestável. E quem disse que não existem animais e insetos nesse lugar, estava mentindo. Escorpiões, escaravelhos, e cobras. É pavoroso - confessou, arrepiada de asco só de lembrar.

       -Eu conheço as noites desse lugar - ele disse sério - Fui treinado aqui muitas vezes.

       -Reina contou. Disse que você odeia este lugar. Que nunca se saiu bem nas provas que aconteceram aqui. - ela sorriu. - Não é vergonha falhar em alguma coisa.

       Egan sentou na areia, em torno da fogueira e encarou-a por entre as chamas.

       -E você, fada, é falha em algo? - ele jogou com as palavras.

       -Bem, obviamente não sou boa em fugas - tentou fazer graça, mas ele não sorriu, então ela desistiu de brincar com ele - Eu não sou inteligente como Driana, ou boa em usar a força física, como Alma. Muito menos sou doce e meiga como Joan. Eu sou... - ela suspirou diante dessa revelação - muito moleque para ser escolhida como fada por um elfo. Isso é uma falha, não é?

       -Porque diz isso? - ele não resistiu em perguntar, curioso por ela achar algo assim.

       -Não é óbvio? Meu melhor amigo é um elfo. Um macho. Nós sempre aprontamos juntos. Minhas brincadeiras preferidas sempre foram masculinas. Repare no meu jeito de falar e agir... Eu sou um menino. Só que com asas. Ou quase com asas - ela sorriu - Além disso... Até mesmo Driana, a fada mais chata da humanidade já foi cortejada por um admirador secreto... E os elfos reparam no corpo de Alma. Onde quer que passemos, sempre olham para ela. E Joan? É uma bonequinha, tem a saúde fraca, mas é lindinha como uma gota de orvalho. E eu? Sou desengonçada e desbocada. Não tenho qualidades significativas, a menos claro, que minhas asas nasçam como eu espero. Aí sim, terei alguma vantagem.

       -Você tem dúvidas sobre sua própria defesa? - ele perguntou interessado - Acha que suas asas podem não ser iguais as Santha?

       -Não, eu acho que somos ligadas por linhagem, mas do modo que nasci azarada, não me admitiria se minhas asas nascessem com algum defeito. Não sou uma fêmea naturalmente sortuda, Guardião. Caso não tenha notado ainda.

       -Diz isso baseado na sua decisão de assassinar o Rei e fugir? - ele revidou - eu não chamaria isso de azar, e sim de falta de prudência.

       Como sempre afiado, pensou Eleonora, gostando de conversar com ele. Por isso ignorou sua língua ferina, e sorriu:

       -Veja, eu fui deixada para morrer na floresta. Era apenas um bebê. Eu não fiz nada de mal a ninguém. Minha progenitora se tornou uma rainha. Eu? Uma fada relegada ao orfanato. Depois, eu poderia ter sido adotada por Reina, mas não era viável. Continuei no Ministério do Rei. Então, quando meu maior problema era a clausura, aparece uma acusação infundada de assassinato, e tenho que me afastar das minhas amigas. Eram nossos últimos momentos juntas antes da clausura. Não é justo o que nos fizeram. E olhe para mim, sou fugitiva, apanhada, e agora, o que será de mim? Pagarei por um crime que não cometi? Isso é ou não é azar?

       -Seria tão fácil acreditar em você, fada, caso eu não soubesse como é labiosa. - ele revidou no mesmo tom.

       Exasperada, Eleonora reclamou com um palavrão nada discreto e Egan sorriu. Mas ela não viu esse sorriso. Olhou para o céu, e perguntou:

       -Porque será que não tem lua? Desde que eu cheguei não vi lua no céu. Em nenhuma das noites eu vi a lua - ela estava deitada um pouco de lado, cabelos espalhados pelo chão. Imunda, e suada, mas seus olhos brilhavam delatando a nostalgia que inundava sua mente romântica e o furor da revolta de uma alma que não podia ser aprisionada e que nem mesmo diante das dificuldades aceitava a coação, ou desistia.

       -Não existe lua nesse inferno - ele disse pesaroso, soltando um suspiro de desgosto - Apenas sol. Isso não é noite, fada, é apenas alguma tempestade de areia acontecendo longe daqui e que está encobrindo o sol. Acontece muito, por isso parece que anoitece cedo e amanhece rápido, é apenas coincidência.

       -Eu não podia imaginar isso - ela disse interessada, se movendo para olhar melhor para ele - Conhece bem essa terra, não é mesmo? Por causa dos seus treinamentos?

       -Sim - ele disse afastando olhos para as chamas da simplória fogueira.

       -E porque você não se saia bem nos treinamentos aqui? Reina contou sobre isso. Eu não entendo, porque você é bom em tudo que faz. - confessou, sem notar que o surpreendia que pensasse isso.

       O modo intenso com que a olhada lhe passou despercebido. Dolorida, Eleonora se moveu outra vez, lutando para prestar atenção na conversa e esquecer-se da sua situação complexa.

       Egan disfarçou a vaidade de saber que a fada o considerava competente e sem saber por que, pegou-se confidenciado:

       -A primeira vez que estive aqui, tinham menos de dez anos, nossos treinadores nos deixaram aqui. Em grupos de cinco. Precisávamos chegar ao rochedo, o lugar onde você encontrou Mikazar. Então, o grupo que primeiro alcançasse o rochedo, e fosse vitorioso, seria desfeito, e cada elfo deveria lutar e se colocar contra o outro. E aquele que chegasse primeiro ao Rio Branco, seria o grande ganhador e poderia escolher um dos perdedores como escravo por um ano. Túlio me avisou que eu deveria vencer ou seria escolhido, mas eu não acreditei. Acabei me perdendo e fui escravo de um dos elfos em treinamento por um longo ano. - ele confidenciou. - Essa foi à primeira vez que perdi meu tempo nessa terra. Uma das muitas vezes. Sempre vínhamos aqui para o treinamento de resistência e força.

       -Porque você seria escolhido? Seu pai tinha toda essa certeza baseado no que, dedução? - perguntou surpresa.

       Egan sorriu, e era algo tenso e triste.

       -Algumas criaturas nascem prisioneiras, fada da clausura, mesmo que não vivam em um Ministério do Rei ou em uma masmorra. Eu nasci prisioneiro da minha linhagem. - ele quase pareceu acanhado ao dizer isso.

       -Tal como eu - ela disse baixinho, e ele fingiu não ouvir, embora seus olhos brilhassem na escuridão quase total, aceitando esse comentário como algo verdadeiro.

       -Quando nasci à armadura que pertenceu ao meu pai jazia sem uso, e havia rejeitado muitos Guardiões treinados. Depois que abandonou meu pai, por causa da idade, a armadura nunca mais escolheu outro. Eu cresci sabendo que um dia seria disputada entre mim e os outros. Todos sabiam disso, que eu possuía a vantagem da linhagem, que a armadura esperava por um descendente de sangue e que esse seria eu. Para meu azar total, nos últimos anos do meu treinamento nenhum Guardião morreu ou perdeu a armadura por idade. Sendo assim, eu era àquele que acabaria com os sonhos de todos os outros. Eles sabiam que treinavam em vão. E que a culpa era minha - ele desabafou, e olhou para areia, envergonhado dessa fase da sua vida - confesso foi um alívio quando dois Guardiões morreram naquele mesmo ano, em missão oficial. Pode imaginar isso? Sentir alívio por saber que companheiros de lutas, morreram? E que suas armaduras também seriam disputadas?

       -Sim, eu posso imaginar esse sentimento muito melhor do que você. Acha que não há disputa entre as fadas da clausura? Aquelas que são agraciadas pelo nascimento de asas bonitas são odiadas, pois é uma possibilidade real de serem escolhidas. Aquelas que se destacam em dom, ou formosura, são odiadas pelas demais. - confidenciou também.

       -Pois bem. Aumentou duas chances e eu estava bastante feliz com isso, mas então Acheron chegou ao Monte das Fadas, e era um guerreiro completo, pronto para a luta e uma das armaduras o escolheu de surpresa. Restaram apenas duas, e minha desgraça voltou. Eu era sabotado em tudo que fazia. Precisava me dedicar em dobro e quando falhava... Meu pai acabava comigo. Se ele não fizesse, Reina fazia. Se os dois não fizessem, Lucius faria, me humilhando publicamente. E assim sucessivamente. Eu dormia com os dois olhos abertos quando estava junto aos outros elfos em treinamento.

       A amargura seca em sua voz era horrível. Eleonora se ajeitou na areia e engatinhou para perto, pois não conseguia andar muito. Tocou sobre o braço do Guardião e disse:

       -Uma vez, uma fada ficou com tanta raiva porque eu ganhei um brinquedo de Reina, que me deu uma pedrada. Eu quase morri. Tínhamos seis anos. Depois disso, Reina nunca mais me deu nada. - ela confidenciou.

       Então baixou os olhos, e afastou o toque. Ele entendia o que dizia. Eram situações idênticas. Não havia maldade nas crianças que os atacaram na infância, e sim, desespero. E isso era ainda mais triste. Saber que adultos não fizeram nada para impedir o ódio e inveja disseminarem-se.

       -Depois disso... Alma passou a bater em todo mundo - ela não podia esquecer disso - Ela gritava e fazia com que todos se calassem e a temessem. Nunca mais apanhei. - era um pensamento desconcertante.

       -Tubã passou a trapacear nas minhas provas - ele disse lembrando-se disso, como quem se lembra de um segredo que não deve ser dito sob a luz do sol, e sim na escuridão de uma 'noite' sem lua - ele infernizava os demais, e sabotava as provas. Então eu me saia bem.

       -Eu me lembro disso. Ele contou que você o pegou um dia, e o amarrou em um estábulo, para que não fosse até o lugar das provas e atrapalhasse os outros. E que nesse dia, você quase foi expulso dos treinamentos, porque ele tinha sabotado a água dos competidores - ela disse feliz em ter algo para lembrar sobre Egan.

       -Ah, sim, e a culpa caiu em mim. - ele disse sorrindo - Depois disso eu deixei que ele aprontasse. Aqueles filhos da puta mereciam ser sabotados. Eu não pedi para ter vantagem com a armadura. Eu era o melhor. Sempre o melhor, e eles mereciam provar o gosto da sabotagem.

       -Hum, é bom saber que há algo de mal dentro do Guardião Egan - ela disse sorrindo - Sabe, eu até gostava quando Alma infernizava as carcereiras - riu baixinho - Eu nunca imaginei que a vida de um filho de Conselheiro pudesse ser difícil. Acho que ninguém consegue ser inteiramente feliz, afinal.

       -Fala com a rabugice de um duende velho - ele respondeu com um meio sorriso.

       -Não posso negar. Ultimamente não tenho sentido muita vontade de sorrir. - ela admitiu.

       -Minha mãe vai acabar com minha paz quando eu a entregar a Lucius e Santha - ele deixou escapar, olhando para ela com algo que poderia ser ternura.

       -Você chama Reina de mãe. - ela disse como se aquilo fosse à coisa mais fofa que ela ouvira na vida - Deveria dizer a ela como se sente. Às vezes ela diz que tem dúvidas sobre ter falhado como madrasta - contou - eu sempre digo a ela que isso é impossível, mas ela tem receio de desagrada-lo. Que suas obrigações de madrasta de um futuro Guardião podem ter confundido sua forma de vê-la. Ela aprendeu a ser mãe com você. Por isso eu acho que ela é insegura.

       -Reina é a melhor mãe do mundo - ele negou, surpreendido pela revelação - Meu pai pensa o mesmo. Tubã também. É impossível que ela não saiba.

       -Já parou para pensar que na mente de Reina somos todos irmãos? - ela perguntou a queima roupas - E que ela não pode evitar que você sofresse em seus treinamentos, que não pode salvar Mirrar, seu filho de sangue. Que não consegue emendar o comportamento de Tubã. Que não consegue me salvar da clausura, ou ajudar minhas amigas a sofrer menos. Que ela sequer consegue apaziguar a dor que seu pai carrega pela morte da primeira esposa. Que tudo isso a deixa desmotivada e desgostosa consigo mesma? Ela se sente fracassada sobre nós todos. Somos filhos vergonhosos, mas ela não entende isso. Que a culpa é nossa, e não dela.

       Sentada ao lado do Guardião, Eleonora olhou para armadura que descansava ao lado, perto de onde estava.

       -E eu que sempre pensei que ser Guardião protegeria de toda a dor e humilhação. - sussurrou - Estou começando a achar que não existe felicidade na vida e que Driana sempre mentiu lendo àquelas poesias sobre liberdade e redenção. Somos todos ferrados vivendo uma vida de merda. E não há exceções. - disse triste com essa verdade escrachada e irrefutável.

       -Eu gostaria de dizer que está errada - ele afirmou, num tom muito parecido com o dela. - Mas seria uma grande mentira.

       Egan sorriu. Baixou a cabeça para esconder o sorriso, mas ela viu e sorriu também. Ruim ou não, uma vida regada a sorrisos de Egan valia muito a pena, pensou Eleonora.

       -Você nunca teve dúvidas sobre ser um Guardião, Egan? Nunca pensou em fazer outra coisa que não fosse seguir os passos do seu pai? - perguntou sem esperar, pois temia que o sol voltasse a brilhar e a realidade impedisse que os dois prosseguissem conversando tão abertamente como faziam naquele momento.

       -Eu nunca pensei muito nisso. Gosto da luta, do exercício. Da responsabilidade, acho que teria escolhido isso mesmo que não fosse minha linhagem. Mesmo que não me tornasse um Guardião. - ele afirmou.

       -Uma escolha bastante coesa para quem só conheceu essa vida - ela disse apenada de alguém que jamais conheceria a profundidade de si mesmo.

       -E você? O que você seria, fada? - ele jogou de volta, incomodado com sua forma de cobrar-lhe satisfações.

       -Eu não sei. - ela admitiu - eu não sei, provavelmente nada que preste. Driana seria uma estudiosa. - ela sorriu orgulhosa - você não pode imaginar como ela é inteligente. Muito mais do que nos dois juntos. Ela seria uma professora, ou uma erudita. Acho que Joan gostaria de lecionar também, mas sua saúde não permitiria. Quem sabe, cuidar de um belo jardim? Ela sempre gostou de flores... - disse com saudade.

       -E a outra? A grandalhona? - ele referia-se a Alma.

       -Alma sempre desenhou bem. Aliás, ela sempre reproduziu com maestria o rosto das fadas e elfos que via. Ela poderia fazer isso para ganhar a vida. E se ela ouvisse que a chamou de grandalhona iria gritar até fazer seus ouvidos sangrarem - ela disse com carinho, pois falar das amigas a encantava, ainda mais com a saudade que sentia.

       -Fala como se um dia fosse reencontra-las - ele disse pesaroso.

       Alarmada, Eleonora fitou-o com tanta indagação na face que Egan quase se arrependeu de ter dito isso.

       -Encare a verdade, Eleonora: será acusada de assassinato. Sua sentença saíra tão logo Santha e Lucius coloquem os olhos sobre você. Mesmo com a interferência do meu pai, a sentença de morte será a única escolha lógica para punir o assassinato do Rei. Quando suas amigas forem localizadas, provavelmente você estará no calabouço aguardando cumprimento da pena. Ou já estará cumprida à sentença. Não voltará a vê-las nunca mais.

       -Não. Isso não pode acontecer. - desolada, ficou olhando para as chamas, sem reação - eu tenho direito a um julgamento justo. Ao menos que esperem o nascimento das minhas asas para saber se minto ou não!

       -Santha não permitirá que seja ouvida. E mesmo que permitisse, porque esperar? Eleonora, minha madrasta faria qualquer sacrifício para garantir sua vida. Mesmo mentir sobre suas asas.

       -Mas e se eu fizer uma denúncia a um Guardião? Sobre minhas asas e o abandono que sofri quando criança? Não é obrigação de um Guardião investigar o que eu digo? - lhe pareceu lógico usar disso a seu favor.

       -Minha missão anterior anula sua denúncia. Precisará encontrar outro Guardião para ouvi-la - ele não resistiu a sorrir.

       -Está sentindo prazer em me amedrontar? - ela perguntou nervosa - Em me dizer que nunca mais verei minhas amigas? Isso lhe faz feliz, Primeiro Guardião?

       -Um pouco. - ele admitiu.

       -Quanta maldade! - ela tentou levantar, mas escorregou.

       Insistiu e conseguiu ficar de pé.

       -Sente-se, eu não quero ter que amarra-la ainda mais forte. - ele disse azedo.

       -É mesmo? - ela ironizou e conseguiu andar alguns passos para longe, a raiva comandando, mesmo que não soubesse como escapar dele.

       Egan deixou-a ir. Não iria muito longe mesmo. Exausta e amarrada, ela tropeçou na areia e caiu de boca no chão. Seu gemido de dor foi também de raiva e magoa. Ela não queria chorar. Mas como evitar? Ele estava sendo tão propositalmente cruel!

       -Eu sou inocente! Tão inocente que você se sentirá um bosta quando eu provar e esfregar minha inocência na sua cara! - ela gritou, e não ouviu resposta.

       -Precisa de ajuda, fada da clausura? - ele gritou de longe, provocando-a.

       -Sim, preciso! Você me ajudaria muito se desaparecesse do Monte das Fadas! - ela revidou, mas não se moveu. Ficou ali, deitada, tentando acalmar a respiração e esquecer a dor lacerante no coração.

       Ele não mentia. Era exatamente isso que aconteceria quando a entregasse para Santha e Lucius. Nunca mais ver suas amigas era seu caminho mais provável.

       Em sua revolta, ela chegou a criar um pequeno revoar de areia. Egan olhou na sua direção e levantou-se pronto para se defender de um ataque. Mas ela desistiu e apenas olhou na sua direção, recolhendo-se na própria insignificância e sussurrou:

       -Nada disso é culpa sua...

       Soou como uma desistência. Não o atacava, pois Egan não podia lugar contra ordens maiores que ele, afinal, ele não fazia nada além de seguir ordens.

       -... Mesmo assim eu estou começando a odia-lo.

       Egan não respondeu. Palavras não mudariam a verdade dos fatos.

       -Guardiões não deveriam proteger as vitimas? Porque você é diferente dos outros? - ela reclamou, recolhendo-se a sua insignificância momentânea e engatinhando de volta para perto da chama da fogueira, onde havia um pouco de calor e luz. Não admitiria, mas a situação das suas costas atraiam insetos e ela temia um ataque agora que as feridas estavam bem mais abertas que antes.

       -Sim, proteger as vítimas é basicamente nossa principal ocupação. E nesse momento a única vítima que conheço... Foi Rei Isac. - ele afirmou, e Eleonora revirou os olhos de desgosto e pouco caso. Lá vinha ele com essa estória de novo!

       -Você não acredita em mim. Sabe o que eu acho? Se fosse outra fada implorando por uma chance, você esperaria as asas nascerem antes de tomar uma atitude tão séria e definitiva quanto me entregar a Lucius e Santha!

       -E porque você acha que eu faria distinção entre você e as outras fadas? - ele perguntou nem um pouco atacado por sua acusação.

       -Porque eu sou uma fada da clausura, e Reina tenta a todo custo misturar uma fada órfã a elfos de linhagem e esses elfos são sua família. Seu irmão. Isso não é algo agradável para alguém que preze a linhagem pura. - ela disse para ofender.

       -Tubã não possui linhagem pura. E mesmo que possuísse, acha que eu nutro preconceitos? Isso é ridículo! - ele indignou-se.

       -É mesmo? Então assume que tem implicância comigo? É a única explicação para tanto zelo para com uma rainha que todos odeiam!

       -Realmente, eu não tenho problemas com linhagem, ou nesse caso, falta de linhagem. É claro que Reina não deve ter contado, mas eu pretendia escolher uma fada do Ministério do Rei esse ano!

       O choque foi tamanho que Eleonora mal piscou. Por essa informação não esperava.

       -Isso não é justo - ela afirmou mais para si mesma do que para ele.

       -Porque não? O que a distingui das outras fêmeas do Ministério do Rei? O que a faz especial? Existem outras fêmeas esperando sua chance de ser escolhidas. Porque eu não posso escolher outra que não você ou suas amigas?

       Não era uma questão a se discutida. Egan tinha razão. Como ela argumentaria sobre as decisões do coração daquele Guardião? Como falar dos próprios sentimentos quando a missão dele era aprisioná-la e levar diretamente para as mãos de Lucius e Santha?

       -Bem, inicialmente a resposta mais lógica seria lhe explicar que as únicas fadas em tempo de obter suas asas e aptas a participar do Ritual de Escolha, somos nós quatro. Existem outras, mas já padecentes do nascimento e que já vivem na clausura. Então, se o que afirma é verdade, devo concluir que a sua escolhida está entre nós quatro.

       Egan afastou os olhos se negando responder a esse argumento.

       -Bem, podemos eliminar a possibilidade de ter interesse por mim - ela disse irônica - sobram Driana, Alma e Joan... Embora Joan seja a mais bonita de nós, você parece ser do tipo que aprecia algo mais forte. Alma ou Driana? Acho que Alma o destroçaria na primeira noite... Ela não suporta dissimulação - alfinetou e então Eleonora lembrou-se de algo, e sua expressão mudou de ironia para abatimento - Foi você, não é?

       Egan não entendeu, mas para ela fazia todo o sentido do mundo.

       -Driana recebeu um presente, tempos atrás. De um admirador secreto. Um bloco de anotações. Depois o elfo desapareceu e nunca mais enviou nada ou revelou a própria identidade. Era você, não é? O admirador secreto de Driana? - perguntou magoada.

       Se ele notou sua magoa, ou suspeitou da causa, Eleonora nunca saberia. Egan apenas deu de ombros, e nada respondeu.

       Doída dessa possibilidade, a fada calou-se também.

       Egan não sabia desse assunto, tão pouco conseguia imaginar um dos Guardiões tendo uma atitude tão covarde, ou tímida, em relação a uma fêmea. Se ela queria pensar que seu interesse era a fada Driana, ele não reclamaria. Muito melhor do que saber que cobiçava o que pertencia ao seu irmão.

       Apesar do pensamento de Egan envolvido com Driana lhe causar um embrulho no estômago, Eleonora entendia que era melhor assim, que esta fosse sua escolhida daquele ano. Driana o rejeitaria sumariamente. E seria vergonhosa a humilhação dele. Se a escolhida fosse Joan... Era capaz de a pobrezinha aceitá-lo, apenas pelo receio de dizer não a alguém do seu posto e poder. E Alma... Bem, Egan não merecia um triste fim caso tentasse corteja-la, e era provavelmente o que aconteceria.

       Alma não perdoaria a audácia de um macho em apaixonar-se por ela.

       Olhando para ele, através das chamas, Eleonora perguntou, optando pela mudança do assunto:

       -Nunca se arrependeu de ser um Guardião? De ter seguido os passos do seu pai?

       Ele não esperava por aquela pergunta.

       -Nunca me arrependi de seguir a carreira de Guardião. Ser escolhido por uma armadura é uma honra. Mesmo que minha linhagem indicasse essa escolha desde o meu nascimento. Foi merecimento que me levou a merecer e ser aceito, tenho que me orgulhar disso.

       -Você disse 'tenho que me orgulhar'. Não 'me orgulho' - ela opinou.

       -O que quer dizer com isso? - ele perguntou, engolindo em seco, pois já imaginava a resposta.

       -É um elfo feliz, Primeiro Guardião?      

       -Você conhece alguém realmente feliz, Eleonora?

       Sim, esse tipo de resposta era esperada de alguém que dedica sua vida para caçar outras vidas, a mando e desmando de um Rei pouco confiável.

       -Eu poderia ser feliz. Às vezes, eu penso que a felicidade é não entregar uma fada inocente apara Lucius e Santha, sem antes conferir suas asas, e saber se ela fala a verdade ou não - ela não resistiu em debochar dele. - A felicidade pode ser tão mais simples do que pensamos. Eu era feliz ao lado das minhas amigas. Com as visitas esporádicas de Reina, sabendo que ela se preocupava comigo. Feliz em ouvir as aventuras de Tubã fora do orfanato com sua família. Havia felicidade nisso. Agora, não há mais nada.

       Seu desânimo comovia. Egan procurou palavras para expressar-se, mas elas não existiam.

       -Meu pai não escolheu um bom caminho. Eu quero fazer tudo diferente. - ele disse meio sem notar o que fazia. Mais tarde culparia sua exaustão física e mental, ou nunca lhe teria feito tal confissão - Ele dedicou a vida para o trabalho e a proteção do reino. Casou-se, mas não constituiu família. Ter um filho foi uma necessidade. Ter alguém de sua linhagem para disputar a armadura. Quando minha mãe se foi, era tarde para arrependimento. Ele encontrou Reina para cuidar de mim. Para lhe dar mais filhos. Eu ainda não sei se ele tem consciência do que é viver exatamente ou apenas sobrevive das lembranças e desejos de quando era Guardião. Eu não quero viver por causa disso - olhou para armadura perto de si - um dia a armadura me deixará. E eu quero mais do que meu pai teve quando isso finalmente acontecer.

       -É justo que deseje uma família. - sorriu para incentiva-lo a falar.

       -Espero ter crias por vontade e não obrigação. Não estou reclamando, fui criado com muito amor, mesmo assim, eu gostaria de tomar a decisão de ser pai baseada em vontade e não obrigação.

       -Mais justo ainda. - ela não pode deixar de manter um sorriso provocador na face.

       Eleonora queria que ele entendesse que conversar com ela não era um risco. Que não usaria essas informações contra ele.

       -Está rindo de mim - ele afirmou, mas sem estar incomodado.

       Cansado, deitou na areia, com um gemido de dor. Não era um décimo do padecimento que a fêmea passava, mas era exaustão pela caçada penosa no deserto das areias vermelhas.

       -Não, eu não estou rindo de você, Egan - ela sussurrou.

       O assunto acabou entre eles. Mas não os olhares. Olhos que diziam mais do que quais queres outras palavras poderiam expressar. Eleonora notou o instante em que o abatimento teve total efeito sobre a capacidade do elfo em manter-se acordado. Ele piscou e fechou os olhos, provavelmente apenas para repousar um instante. Precisava vigiar sua prisioneira. Mas o sono o pegou.

       Como culpa-lo? O corpo precisava de descanso, assim como a mente. Torcendo para que ele sonhasse algo bom, e acordasse mais sucessível a crer em suas palavras, Eleonora se moveu com cuidado na areia, para ficar mais próxima.

       Não queria acorda-lo, apenas ficar mais perto. Sentir sua presença. Suas costas explodiam em dor a cada movimento, mas isso não a impediria de estar perto. Era provável que essa chance não se repetisse.

       Ela deitou ao lado de Egan, mas não perto demais. Deitou a cabeça sobre o braço dobrado, e observou-o adormecido. Era tão bonito e viril. Seus cabelos sempre impecáveis estavam bagunçados e a sujeita impregnava em todo o corpo. Seu cheiro de elfo, no entanto, não se confundia com o cheiro da imundice.

       E era esse o odor que a atraia. Era culpa do cio, disse a si mesma. Se o farejava, era culpa da imensa sensação de desejo carnal. Seu corpo pulsava pelo contato com o corpo masculino.

       Tanto, que fechou os olhos para apagar a imagem do corpo ao seu lado. Era culpa sua a proximidade. Excitada, ela manteve os olhos fechados para não ver a tentação. Adormeceu sem perceber.

 

                            Horizonte escarlate

        O novo dia trouxe consigo o calor miserável de volta. Como diria Driana, caso estivesse presente, fazendo uso de um de seus discursos enfadonhos: era impossível saber se era um novo dia o ou não. Era impossível medir o tempo em horas. Era possível que a tempestade longínqua que encobrira o sol escaldante, houvesse se dissipado e isso criava a ilusão de um novo dia.

       Ela se moveu na areia, assustada, procurando pela imagem do Guardião, achando que estava sozinha. Era a confusão do sono. Avistou a imagem da armadura perto de si, e estendeu a mão para toca-la.

       -Não faça isso - ele alertou a voz vinda de longe - À armadura rejeita qualquer um que tente tomá-la sem minha permissão.

       -Eu não quero tomar sua armadura - ela disse sonolenta procurando pela imagem que sucedia a voz.

       Lamentou pelo esforço, que lhe causava mal estar, e olhou para Egan.

       -Ontem, durante a noite eu empurrei sua armadura para o lado e nada aconteceu. Ela deve estar quebrada - disse mal humorada.

       Tentou limpar areia das mãos e rosto, mas era em vão. Não percebeu o modo como o macho olhou para a armadura e então para a fada. Meio para provoca-lo, Eleonora usou a armadura como apoio para levantar-se. Não foi repelida e ele engoliu em seco, afastado o olhar.

       Sabia a razão. A armadura divide com seu Guardião muito de sentimentos e esperanças. Um completa o outro e essa ligação é visceral. O Guardião aceitava a fêmea como sua, e consequente, a armadura aceitava a presença da mesma. Era simples assim.

       Quando Eleonora percebesse que possuía domínio sobre a armadura, saberia que esse domínio estendia-se ao Guardião também!

       -Isso é comida? - perguntou reparando que ele segurava algo em suas mãos.

       Egan olhou para o mesmo lugar, e sua expressão era engraçada ao dizer:

       -Vai ter que servir para esse propósito. - Aproximou-se - Prefere a cabeça ou o tronco?

       Eleonora olhou para o bicho com asco. Era uma espécie de inseto ou réptil. Impossível definir sem um estudo aprofundado. De uma cor muito escura, com patas longas, como um animal do mar ou algo assim. Mas não havia água por aquela região. Desgostosa, deu de ombros.

       -Como conseguiu caçar isso? Nos dias que passei sozinha eu tentei caçar várias vezes, mas não vi nada comestível. Isso deve viver em buracos - ela queria conversar um pouco.

       Um sorriso e Egan usou sua espada para cortar os pedaços do pequeno bicho e estendeu para ela um pedaço relativamente comestível.

       -Cru? - ela perguntou com desgosto.

       -Acredite, se você cozinhar o gosto será ainda pior. Coloque na boca e engula sem morder. - avisou.

       De seus treinamentos, restara o conhecimento sobre o que poderia virar alimento e como fazê-lo.

       -Hoje cedo, enquanto dormia - ele começou a contar, bastante contente em deixa-la enojada - os insetos e nojeiras desse lugar começaram a rastejar até as suas feridas. Foi assim que eu cacei esse daqui. Ele omitiu a parte onde se dedicou a impedir que isso acontecesse e a protegeu!

       Eleonora havia acabado de colocar aquela coisa na boca e tentava engolir quando ele terminou de contar. Imediatamente bílis azeda e quente subiu em sua garganta, só de imaginar aquele réptil, ou fosse lá o que aquilo era, rastejando para alimentar-se de pus e secreções, ainda mais, vindas de seu corpo.

       Ela tentou não vomitar, mas não aguentou. Rastejou para longe e vomitou o alimento.

       Quando olhou para trás, para Egan, encontrou-o sorrindo.

       Acostumado com aquele tipo de alimento, Egan abriu a boca e deixou aquela nojeira entrar garganta a dentro e fez uma falsa expressão de satisfação. Então ergueu a cabeça do bicho e estendeu na sua direção como um convite. Foi o bastante para Eleonora sentir mais enjoo e tornar a vomitar.

       -Espero que não esteja prenhe do meu irmão - ele disse para provocar.

       -Eu juro seu filho da mãe ingrato, que se eu sobrevier a essa caçada irei tomar sua armadura e trancafiá-lo na mesma masmorra que vivi toda minha vida! Eu juro! - outra onda de nojo e ela continuou a vomitar. - Oh, não, oh...

       Ela gemeu de novo, o vomito virando sangue rapidamente.

       Egan levantou e afastou seus cabelos, para ver o que a assustava.

       Na pequena poça de vomito e sangue, movia-se algo. Uma espécie de escorpião saiu da areia e começou a chafurdar naquilo. Eleonora não resistiu quando Egan a ergueu do chão, em seus braços. Até segurou em seu pescoço, para ser levada para longe.

       -Sinto muito - ele disse apenado, deitando-a na areia, sobre um pano velho. - Beba, é o resto da água que você conseguiu fazer brotar do chão.

       Culpado, Egan queria compensa-la pelo sofrimento desnecessário. A fêmea padecia do nascimento das asas, e não cabia a ele tortura-la fisicamente por crimes que ainda não haviam sido julgados.

       -Eu menti. Não o punirei por me caçar - ela confessou - Eu não poderia punir o filho de Reina, seja ele um imbecil desnaturado, ou não.

       Egan afastou os cabelos longos e sujos, e tocado de piedade e culpa, limpou sua face, onde a água escorregou. Eleonora ergueu os olhos e não conseguiu evitar o olhar. O cio compelia, a vontade pedia, ela queria agarrar-se ao elfo e consumar o ato.

       Engolindo em seco, ela soube que ele pensava o mesmo. Que o ardor que corria em suas entranhas, também seguia caminho pelas de Egan. Animais precisando da consumação.

       -Não estou prenhe de macho algum, você sabe disso, sente o meu cheiro. É odor do cio. Todo macho sente. Não finja que é exceção. Eu sou intocada. As carcereiras vendem nosso cio, sabia disso? - Sussurrou, sua a voz bastante baixa e magoada - depois da escolha, as fadas rejeitadas, tem o cio vendido para elfos que paguem um bom valor. Depois são trancafiadas e esquecidas nas masmorras até o ano seguinte, para a próxima escolha. E assim sucessivamente. Miquelina sempre cuidou de mim, e das minhas amigas. Ela sabia que nosso cio é valioso. Isso não é estranho? Se eu copulei com o Rei, como posso estar padecendo do cio? Seja sincero, eu não acredito que um elfo da sua idade e experiência não saiba que uma vez mantido relações carnais antes do padecimento das asas, o cio será totalmente impossibilitado.

       Eleonora respirou fundo quando terminou de falar.

       -E é por isso que você quer arrancar minhas roupas e consumar o ato. Eu sinto seu cheiro também. Não pode dizer que minto - era a cartada final.

       -É labiosa. Eu sempre soube disso - ele correu um dedo por seu rosto, onde havia uma marca de areia impregnada. - Sempre fez o que quis e não quis, com Tubã e Reina. Mas eu não sou como eles. Eu sei disseminar entre o certo e o errado. Não vou arrancar suas roupas e consumar o ato. Desista.

       -E quem disse que eu quero isso? - ela se mexeu, sem querer, atraindo o olhar dele para seu quadril - É culpa do cio. Pode ser você ou qualquer outro macho. Tanto faz. Negue à vontade essa verdade. Um dia ela criará tentáculos e o morderá bem no rabo. - ofendeu.

       -Sempre foi desbocada com meu irmão? - ele segurou seu queixo e ela tentou morder seus dedos, e então, afastou-o usando os braços, mas Egan forte, e esqueceu quem era e sua missão, e a segurou de volta, imobilizando.

       Assim tão pertinho, aquecidos pelas sensações despertadas pelo cio, ambos poderiam facilmente esquecer-se de tudo e ficarem juntos.

       Eleonora se esqueceu das asas que nasciam, esqueceu-se da dor e das privações, afastou as pernas e o acolheu. O elfo se moveu com força, e usou uma das mãos para abrir as calças. Ela não relutou ou impediu, chegou a gemer e erguer os quadris pedindo por isso.

       Egan soltou seus braços, e ela imediatamente agarrou os cabelos escuros com ambas as mãos, usando as pernas como apoio para o quadril ficar alto e encontrar a investida do macho.

       Egan parou um segundo antes disso acontecer, e ela chegou a grunhir de frustração.

       -Copular não vai mudar o que penso! - ele avisou, empurrando-se para trás e levantando.

       A fêmea chegou a tentar segurá-lo. Então, furiosa, esmurrou a areia antes de sentar, impulsionada pela raiva, apontando para ele e gritando frustrada:

       -Seu merda! Eu não quero que me toque! Não quero! É culpa do cio! Abusador!

       -Eu nunca abusei de uma fêmea em toda minha vida! - revoltado, e nervoso por conta do envolvimento que o cio lhe causava, Egan marchou de volta até ela e a encarou. Eleonora estava de pé agora, e deu um passo para trás - Nenhuma fêmea poderá apoiar essa acusação! Nunca toquei em uma fada sem prévio consentimento!

       -Estava sobre mim! E eu não tenho direito de escolha! É culpa do cio! Não fui julgada ou condenada pelo crime que estou sendo acusada e mesmo assim, pretendia... Pretendia... Você sabe o que pretendia! Olhe para minhas mãos, Guardião! - ela ergueu os pulsos - Estou amarrada! Amarrada!

       Eram gritos histéricos. Em algum momento ela perderia as estribeiras. Era esperado. A briga poderia durar horas, os dois estavam inflados de excitação, ódio e algum outro sentimento que não ousavam nomear. Mas a biologia do corpo da fada decidiu o final da discussão. Eleonora sentiu os joelhos fraquejarem.

       Uma pontada nas costas. Egan não moveu um dedo para acudir, ainda furioso, ficou de pé, respirando com força acalmando a sua porção macho. Por pouco não cometeu um crime contra as leis do reino.

       Tocar em uma fada da clausura sem consentimento do Rei era um crime severamente punido. No caso de um Guardião cometer tão grande desatino, a punição era ainda mais séria. Reclusão nas masmorras por semanas. Vergonha para a família. Privação do contato com a armadura, algo que acarreta muita dor e lástima para ambos.

       Sem contar, que Tubã nunca o perdoaria por tocar em sua namorada!

       -Reconheço sua castidade - ele disse sério, sem olhar para ela - É claro que sinto o odor do cio. Mas isso não prova nada. Eram quatro fadas. Qualquer uma poderia ter se deitado com Isac. A Rainha Santha pode ter se confundido. Não tente mudar minha mente, Eleonora. Não torne essa situação pior do que é.

       -Pior? Você acha que a situação é ruim para você? Olhe para mim quando falo, elfo! - ela havia perdido definitivamente a paciência - Sou eu quem está no chão! Sou eu quem esta sofrendo! Você é apenas o bastardo sem sentimentos que me amarrou e me caçou! Não se faça de injuriado! Eu sou inocente, Guardião, sou a criatura mais inocente dessa terra! Minhas amigas são inocentes! E quando a verdade vier à tona, sua vergonha será abominável!

       -Palavras, palavras e palavras. Todas as órfãs do Ministério do Rei são tagarelas como você? -ele ridicularizou.

       -Não. Apenas as condenadas por crimes que não cometeram. Eu vou ser condenada a morte, Egan, mas morro esperneando! Lembre-se disso, Guardião. É bom que guarde bem minhas palavras nessa sua cabeça dura como pedra!

       Como se ele pudesse esquecer.

       Eleonora acompanhou todos os movimentos do elfo. Primeiro, por desejo do que não podia fazer e insistia em virar sua cabeça. Depois pela necessidade de ver o que ele faria e como escapar disso.

       Minutos de silêncio se passaram. Acalmado o ódio despertado pela frustração física, ambos se olharam. Era pura vontade de conversar. E a primeira a ceder foi Eleonora.

       Egan juntou seus pertences e aproximou-se dela por último, puxando-a pela corda em suas mãos.

       -Você se deitou com Santha alguma vez, Guardião? Sempre ouvi boatos de que ela se deixa com os Guardiões.

       A pergunta de Eleonora não o surpreendeu em nada. Baixou os olhos, procurando as palavras certas.

       -Eu não julgo suas palavras. Eu não estou julgando-o. Não precisa pensar antes de falar. - ela avisou, tímida.

       O assunto a incomodava. Reina lhe contara uma vez que era costume da rainha assediar os Guardiões. Elfos jovens e másculos. Robustos e no ápice do apogeu sexual. Aperitivos deliciosos para uma sangue suga sedutora como Santha!

       -Santha não tem paragem.

       Era uma frase vaga. Egan começou a andar e ela o seguiu, mesmo depois de solta. Seguiu-o calada, pois não podia fugir de um Guardião, não em sua atual situação.

       -E isso quer dizer que ela o assediou?

       -Quer dizer que ela assediou todos os gudiões. - ele olhou para trás, para os olhos da fada - creio que teve mais sorte com os Guardiões novos, e os elfos em treinamento.

       -É mesmo? Nunca cedeu aos caprichos da sua rainha? Estou surpresa. - deu de ombros, provocativamente surpresa.

       -Santha não é tão bonita quanto pensa que é - ele confessou - Nunca gostei do modo como ela olha para os elfos. Sem respeito, sem compaixão. Creio que entre os Guardiões mais experientes ela nunca conseguiu nada, mas os jovens são impulsivos e tendem a ceder ao encanto e poder de uma rainha.

       -Mesmo que isso seja um crime contra o Rei. - ela lembrou - O que aconteceu quando você denunciou seus colegas Guardiões pelo crime de fornicação com a rainha?

       É claro que ela sabia que essas denúncias nunca aconteceram. Era apenas uma provocação. Quando Egan olhou para ela encontrou uma expressão jocosa e debochada na face da fada.

       -Odeio Santha. - ela disse, relevando sua fraqueza em não denunciar os amigos. - em minha defesa, digo que se eu houvesse assassinado o Rei, o que não fiz, teria incriminado essa cretina. Acha que é uma boa defesa?

       -Sim, e muitos a apoiariam nisso - ele sorriu, mas ela fingiu não notar. - Santha não é popular por ser querida por seu povo. Uma vez, eu a peguei em minha cama, me esperando. Aconteceu no meu quarto, no alojamento dos elfos em treinamento. - ele deixou escapar.

       Eleonora parou de andar e ficou chocada.

       -Não aconteceu nada, eu vi a tempo e não entrei no quarto. Foi uma sorte imensa que Tubã tenha invadido meu quarto para procurar por algo que confisquei dele, depois de um de seus roubos injustificáveis. Ele fez tamanho alarde que eu vi o que acontecia a tempo. A rainha fingiu que nada aconteceu e eu nunca mencionei que sabia o que ela queria no meu quarto. Ainda mais nos alojamentos para treinamento. Ficou o dito pelo não dito, pois se chegasse aos ouvidos de Reina... Seria um escarcéu sem fim.

       -Tubã nunca me contou nada disso! - ela revelou.

       -Provavelmente por que ele se deitou com Santha no meu lugar. - ele alegou - O patife - disse carinhosamente, referindo-se ao irmão - nunca me contou exatamente o que aconteceu lá dentro entre os dois, antes que eu chegasse, encontrasse a rainha me aguardando, e Tubã com expressão culpada e roupas desalinhadas.

       -Tubã! Esse fanfarrão! Deitar-se com Santha? Ah, quanta audácia! Se ele houvesse contado eu teria arrancado suas orelhas pontudas! Ou pior, teria dedurado sua sem-vergonhice para Reina!

       -Existe pacto de fidelidade entre vocês dois? Não parecem namorados convencionais. - ele disse petulante.

       -Não somos namorados. Você saberia disso se ouvisse seu irmão. Reina quer nos casar, para me salvar da clausura. Tubã foge do casamento como se fosse uma sentença de morte. Ele nunca namoraria comigo. Ele me ama, e eu o amo. Mas é amor demais para ser casamento. É amor diferente - explicou. Mas não convenceu.

       Egan sabia do medo de casamento que seu irmão nutria, por isso calou-se.

       -Isso não importa. Tubã terá que esquecê-la, depois de tudo que você fez contra o rei - ele lavou o suor da testa, com o braço e apressou o passo.

       Pelas costas de Egan. Eleonora fingiu imitar seu modo pomposo de falar. Uma gralha sempre repetindo o mesmo discurso. Era preciso uma paciência vinda dos céus para falar com alguém que está decidido a não lhe ouvir!

       A fada seguiu-o, pensando em como se livrar dele. Não era sua vontade, mas uma necessidade. Sentindo as dores do padecimento, precisou andar lentamente, o que o irritava.

       Não era algo dirigido a fada, mas a situação que viviam. Por isso Egan parou de andar, e voltou-se contra Eleonora. Ela nem se deu ao trabalho de reclamar quando foi jogada sobre o ombro do elfo, como se fosse uma trouxa de roupas sujas. Preferia essa carona indigna a enfrentar uma longa caminhada pelo deserto.

       E mesmo que não admitisse, Egan fazia isso para poupá-la desse desgaste físico. Era um jogo de esconde-esconde, e os dois mentiam um ao outro. Talvez por isso, o melhor caminho, era o do silêncio.

 

       Egan deixou-a andar no restante do dia, pois o peso adicional acabava com o corpo do elfo. Mesmo que treinado para isso, tantos dias de privação de alimento e água acabavam com suas forçar. E também, ele parecia convencido que não conseguiria fugir. Ou essas eram as desculpas que inventava para si mesmo, para não admitir que apenas estivesse cansado demais de carregá-la, e era orgulhoso para admitir isso em voz alta.

       Com as pernas amarradas, mal podia andar, mas era melhor do que ser carregada. Ela sentia as costas ardendo e apesar de não poder se tocar e saber o que acontecia, tinha a impressão que as asas despontavam pra fora, de um modo mais real do que a dias atrás quando as dores começaram. Durante o dia, aquela sensação cresceu. Sentia que a natureza seguia seu curso, agindo sobre sua carne e isso era assustador, pois tudo que desejava, era encolher-se em um canto escuro e esperar suas asas nascerem.

       O cheiro era de algo apodrecido e com o passar das horas, aquele odor acentuava-se e causava embrulhos no estômago sensibilizado de Eleonora.

       Egan havia parado há algum tempo atrás e ela se assustou quando ficou atrás dela, e com puxões nada delicados rasgou sua túnica nas costas, libertando o que lutava para sair pelo tecido. Ela chorou pela dor, mas não disse nada.

       O elfo via a situação, enquanto ela apena sentia.

       -Consegue ver a cor das minhas asas? – Perguntou-lhe com inocência. Estava curiosa.

       Eram suas asas. Sempre pensou nelas como um incômodo que a levaria diretamente para a clausura. Mas agora, pensava em suas asas com carinho e ansiedade.

       Era parte do seu corpo. A parte que faltava para ser completa! Estava em liberdade, mesmo que fugitiva, e ter suas asas seria um momento inesquecível. Um momento para guardar na memória e no coração. A dor e o padecimento ficariam para trás, mas suas asas seriam eternizadas em sua vida.

       -Não. – Ele foi curto, distante, pensativo demais.

       -Nenhuma cor? – Insistiu, pois Egan era teimoso e não olharia apenas pelo prazer de não lhe dar o gosto de saber.

       -Nada, não vejo nada – ele foi taxativo, recusando-se a admitir o que via.

       -As asas da rainha são brancas. Quase transparentes. E tem dourado nas pontas... São largas, longas, abertas são lindas... As asas mais lindas de todo reino. Foi isso que encantou o Rei. Minhas asas serão idênticas. Olhe mais uma vez... Não consegue ver cor alguma? Algum nuance? Quem sabe algum indício de que serão asas bonitas?

       Olhar ansioso. Os olhos da fada lhe pediam ajuda e Egan olhou para suas costas com o rabo do olho. Não era uma imagem agradável de ver.

       -Nunca vi isso na minha vida. Não quero ficar olhando. – Ele admitiu.

       Era um acontecimento penoso para um elfo. O cheiro do cio o fazia disposto a tomar a fêmea para si, mas o padecimento da carne, o fazia repudiar olhar para ela. Como lidar com isso? Normalmente os machos são mantidos apartados das fêmeas até o momento em que ela obteria suas asas.

       Passado esse momento penoso, os pais da fada negociariam um bom enlace, ou no caso de haver um elfo já escolhido pela fada, era acertada a consumação do cio, caso não fosse possível aguardar um casamento.

       O cio de uma fada nunca é igual. Algumas fadas penam mais que outras e a dor física tornavam-se quase insuportável. O melhor jeito, sempre foi encaminhar a fada para uma união antes do padecimento de suas asas. Por isso, era raro um elfo que presenciasse o nascimento em si.

       Eleonora sorriu mesmo sem razão para alegria. A expressão do elfo era quase cômica. Ele não sabia como lidar com a situação.

       -Esqueci que é elfo. Os segredos femininos não fazem parte da sua vida. Eu vi asas nascerem, eu sei que é feio de ver. Mas o resultado é lindo. Aprecia as asas de uma fada, não é? É um elfo. Disse que tem uma fada que despertou seu interesse para a escolha deste ano. Se ela for Alma, Driana ou Joan... Podem estar passando pela mesma situação que eu. Alma tem idade para isso. Driana também. Joan parece ser mais novinha, mas é apenas adivinhação, pois fadas entregues ao Ministério do Rei nunca são acompanhadas de informações sobre o nascimento.

       -Não me referia a suas amigas. Pensava em outra fada. Mas ela não vale a pena – admitiu contrariado. Egan olhou para baixo, e então para si mesmo, para a armadura que carregava e se envergonhou de negar-lhe algo tão pequeno como uma informação – São brancas. Parecem que são brancas.

       -Brancas? Minhas asas parecem brancas? – Eleonora parou de andar e fitou-o.

       -Parecem claras. Mas não é possível ver muita coisa ainda. – Admitiu, apontando região com resignação.

       -Veja, eu não minto. Acreditará em mim se forem asas idênticas as da rainha Santha? – Perguntou sem rodeios.

       Egan engoliu em seco, na dúvida.

       -Não cabe a mim seu julgamento. – Ele manteve-se fiel a sua posição.

       -Quer saber... Você é muito chato – ela disse petulante, recomeçando a andar. – Tubã sempre disse que era chato, correto e cheio de melindres. Mas eu nunca acreditei. Achei que fosse vivido, experiente e esperto. Quando o via treinar achava que fosse o melhor dos Guardiões. Que nada e nem ninguém poderia enganá-lo. Mas agora vejo que é um tolo com uma armadura suja de areia – disse com arrogância, pois a armadura de Egan estava em estado lastimável depois de ter sido desenterrada da areia quente, e ele insistia em usar uma parte e carregar outra, pois estava sujo demais para vesti-la totalmente. Ou era apenas o calor. Ele não podia admitir que possuísse fraquezas.

       -As fadas do Ministério do Rei não possuem permissão para ver os treinos. – Ele alegou, pegando-a em um crime.

       -Oh, nossa. Julgue e condene. Ficarei deveras amedrontada com a acusação – satirizou seguindo a passos difíceis, falseando a maios parte dos passos.

       Egan suprimiu um sorriso. Era difícil odiá-la. Sabia disso desde que passara a reparar na fada branca, loura e travessa que andava com seu irmão para cima e para baixo.

       Os dois continuaram andando em silêncio. Egan imaginava que estivessem próximos a saída do deserto,e quando venceram uma duma e avistou as pedras no horizonte, apressou-a. Eleonora não se esforçou para correr, queria ganhar tempo para suas asas despontarem, e o atrasaria o máximo que pudesse. Por isso Egan a jogou outra vez no ombro e apressou o passo.

       -Isso é ultrajante! –ela gritou, sacudindo em suas costas, sendo levada como um saco de batatas.

       -Ultrajante é ter que carregá-la – ele lhe deu um tapinha na coxa e seguiu andando – Sabe como é pesada? - ajeitou-a e Eleonora debateu-se ainda mais.

       -Não sou pesada! – ela gritou de volta, batendo os punhos amarrados em suas costas, como represaria – Como poderia ser? Mal tive o que comer a vida toda! Me chame tudo, seu egoísta, menos de gorda! Chega a ser cruel dizer isso de alguém que passou fome uma vida toda!

       Egan não respondeu. O que ele diria?

       Era a verdade. Quantas e quantas vezes, ele não vira Reima preparar comida e levar escondido para as fadas do Ministério do Rei? Ela desviava tudo que podia e não apenas para Eleonora, mas para as outras fadas também.

       -Deve ser sua consciência culpada que a faz pesar tanto – ele revidou, apurando o passo.

       -Se fosse assim, você seria o Guardião mais pesado da face da terra! Eu posso andar! Respeite minha situação! Tire as mãos de mim! Agora!

       Ele ignorou totalmente. Sentindo-se uma inútil, sem opção, ela permaneceu quieta, observando a areia vermelha ficar para trás. Aliviada de sair daquele inferno, deixou-se levar sem reclamar mais.

       Olhava para cima, para ver o sol escaldante ficar cada vez menos intenso.

       Chegaram à divisa entre o Deserto das Areias Vermelhas e a Floresta de Saul. Não era desejo de o Guardião enfrentar a floresta sombria que guardava os mais obcursos segredos. Não tendo em mãos um problema do tamanho de Eleonora para lidar.

       -Eu não sei nadar - ela avisou assim que seus pés tocaram na grama úmida. Longe daquele calor insuportável, ela rastejou na grama, e aproximou-se da água, usando as mãos em concha para levar água até a boca. Seu dom ainda não desperto de todo, mal criava um pouco de água lamacenta naquele deserto calorento, por isso beber água límpida e fresca era um alívio. - Isso é divino. Você quer? - ofereceu as mãos repletas de água.

       -Não - negou, convencido que não deveria fraquejar diante dos belos olhos claros, quase sem cor, como duas gotas de água límpidas e incolor.

       Egan aproximou-se da água e lavou o rosto e o pescoço, assombrado pelo sentimento de tentação que a fêmea lhe despertava. Bebeu água e levantou outra vez, olhando em torno, pensando no que faria.

       -Precisamos atravessar o rio - ele informou, incomodado, evitando olhar para sua prisioneira.

       -Eu já disse que não sei nadar. Nem adianta me jogar na água. Eu não vou colaborar - avisou, sendo direta.

       Era uma mentira deslavada. Sabia nadar, vivia fugindo com suas amigas para o pequeno lago que havia dentro das imediações do castelo, protegido pelas muralhas. Era boa no nado, mas não facilitaria o trabalho do Primeiro Guardião.

       Quanto mais tempo o atrasasse, melhor.

       -Eu não esperava sua colaboração - ele sorriu, e isso a surpreendeu. - Acontece que eu posso carrega-la facilmente na água. Acho que não sabe disso, fada, mas sou perito no nado.

       -Eu não sabia disso. É perito na água? Como um peixe, ou algo assim? - ironizou.

       -Não. Eu sou exímio nadador, e minha armadura é feita para o nado. Resiste à força das águas, e me ajuda a manter a resistência. Atravessaremos em um instante. - ele estava feliz em frustra-la.

       -Nossa, fico contente em saber disso. Nada me deixaria mais alegre do que ser arrastada água a dentro por um Guardião que me odeia, vestido em sua estúpida armadura. - ela não suportou, precisou provoca-lo mais e mais.

       Testar seu limite.

       O deserto ficou para trás, e não poderiam culpar a loucura imposta pelas privações, sendo assim, era preciso cuidado no trato um do outro.

       -Quer comer alguma coisa? Posso pegar uma fruta - ele ofereceu, como quem propõe uma trégua.

       -Não estou com fome. Você estragou meu apetite para sempre - dramatizou referindo-se a sua indigestão de dias atrás, quando Egan a fez vomitar com sua estória nojenta de como caçou no desespero.

       -Você quem sabe. Depois não me acuse de não alimenta-la - alfinetou de volta.

       -Eu tenho coisas piores para acusa-lo. Não percebeu ainda?

       -Eu tenho percebido muitas coisas, Eleonora. E uma delas, é que você não fala a verdade. Tem segredos, e por causa desses segredos, que não posso acreditar em você.

       -Eu não tenho segredos. – ela ficou surpresa – Eu disse a verdade. Fui abandonada pelos meus pais, e estes, exigem minha morte, pois são Lucius e Santha. Disse que minhas asas serão idênticas as de Santha. Eu não menti sobre isso!

       -Mas mente sobre Tubã. E quem mente sobre uma coisa, mente sobre todas.

       Era impossível falar com alguém decidido a não ouvir sua versão dos fatos. Egan queria acreditar que mantinha um caso com Tubã. Então, azar o dele, que acreditasse nisso.

       Horas mais tarde eles atravessaram o Rio Branco de um modo inesperado. Egan a manteve no ombro e lutou contra a correnteza até chegar ao outro lado. Eleonora tentou atrapalhar, mas não conseguiu. A armadura realmente garantia ao elfo agilidade e presteza na água, e como se não houvesse feito esforço algum, ele a levou para a outra margem.

       Sem ar, ensopada e angustiada, Eleonora bateu nos ombros fortes até ser lançada na grama verde na margem do Rio branco. Agora, o Deserto das Areias Vermelhas era apenas uma pálida lembrança, deixada totalmente para trás.

       -Como é possível do outro lado ser um deserto e aqui... Haver tanta vida? Eu amo toda essa mágica. O mundo é lindo. – Olhou em volta, para a mata, a água, a vida que crescia a sua volta, com a singela felicidade de quem sempre foi prisioneira, mas pela primeira vez na vida, conhece o mundo – Eu quero me lavar. – pediu.

       -Não vou deixá-la fugir, fada – ele avisou, sentando no chão e baixando a cabeça.

       Parte da areia havia cedido ao atravessar o rio, mas não tudo. Havia muito que limpar e esfregar da pele. Sujeira acumulada e incrustada nos cabelos, e pelos do corpo.

       -Mais um dia, Egan. Por favor. Somente mais um dia. Dê-me o beneficio da dúvida, Guardião. Espere mais um dia para que minhas asas nasçam e lhe convençam se falo a verdade ou não. – ela implorou.

       Em terra, longe do deserto, ele poderia pedir ajuda e obter cavalos ou mesmo o serviço de uma fada. Sendo assim, Eleonora contava os minutos para ser entregue a Santha.

       -Levante, precisamos seguir viagem – ele mandou e ela sentiu que poderia fazê-lo ceder. A exaustão poderia convencê-lo.

       Egan parecia inclinado a ceder em suas opiniões. Era questão de jeitinho para dobra-lo. Eleonora, no entanto, não tinha a menor ideia de como fazer isso.

       -Eu não vou fugir. Olhe bem pra mim... Mal posso andar sem ajuda. Quanto mais perto do despontar das asas, mais fraca e inofensiva me torno. Podemos dormir um pouco? Um banho, comida, e algumas horas de sono? Minhas asas não nascerão hoje, Egan. Eu lhe imploro, me dê o beneficio de uma trégua.

       Egan fitou-a tentado a ceder. Estava no limite físico e sabia que poderia conseguir transporte a qualquer momento. Não era um risco desmedido.

       Amarrada a fada não poderia fazer nada além de obedecê-lo. O perigo real era outro. Era o perigo de ceder a tentação e tomar a fada para si. Exigi-la como fêmea e usufruir do cio. E sendo assim, sua vergonha diante de sua família e do reino, seria devastadora!

       Egan levantou da grama e a fez ficar de pé, soltando suas mãos, segurando-a para lhe dar apoio. Aliviada Eleonora o seguiu até a beira do rio, com uma expressão de pura gratidão na face. Egan entrou na água e a levou com ele, cuidadoso sobre deixá-la desamparada, e frágil em um rio turbulento.

       Água a cobriu até a cintura e Eleonora sorriu ao mergulhar, sendo puxada pela gola da túnica, nada delicadamente para cima, pois ele não queria perdê-la de vista. Sorrindo, ela emergiu e disse:

       -A água está deliciosa.

       Como Egan parecia não desfrutar, Eleonora juntou um punhado com as mãos em concha e jogou sobre seu peito, onde ele vestia a armadura.

       Depois de tantos dias de privação era simplesmente maravilhoso se banhar. Mesmo que não pudesse trocar de roupas. A sujeira foi embora, e a dor minimizou aplacada pela água gelada. Mergulhando, Eleonora limpou a camada mais grossa de areia, sentindo-se inundar pela plena sensação de estar limpa outra vez.

       Eleonora sorria pelo prazer do banho improvisado, os cabelos molhados correram por suas costas, sobre as feridas e o que nascia das asas. Apenado, Egan aproximou-se e afastou a vasta cabeleira, espalhando água nas feridas, aliviando um pouco a dor.

       -É um bom elfo. Tem o coração maior do que aparenta – ela disse baixinho, agradecida por esse gesto de generosidade. Olhos nos olhos, ele não conseguia manter o contato visual, quando Eleonora o fazia sentir-se assim cativo. Era algo novo, fêmea alguma tivera esse efeito sobre ele. Era uma peculiaridade da fada fugitiva. – Reina sempre disse isso. Que você mente e esconde quem é para não desagradar seu pai, que espera que seja alguém forte e totalmente leal as leis. – Olhou em sua direção mais uma vez com aqueles olhos claros que pareciam tão francos. – Eu nunca precisei fingir quem eu sou. Mesmo entre as paredes do Ministério do Rei sempre fui livre para ser como sou e agir do modo que acho correto.

       -E o que espera? Que eu traia todos que amo por conta de uma assassina? Tubã já fez isso. Não é preciso que dois elfos percam a razão por sua causa, fada. O que seria do meu pai se perdesse dois filhos por culpa de uma única fêmea?

       Eleonora se virou, e encheu uma das mãos com água jogando na face do Guardião, dessa vez para irrita-lo. Enquanto ria, afastou-se dele.

       -Fala como se eu tivesse esse poder! – Reclamou – Sou a criatura mais sem graça do mundo mágico. Porque alguém repararia em mim? Toda fada da clausura sabe que passará sua vida solitária e triste. Você deve ser o único que vê tanto encanto em nós. Pena que todos os Guardiões não nos subestimem desse modo... Assim todas casariam e sairiam da clausura!

       -Não tem respeito por ninguém não é? – Ele parou e a fitou com olhos que cobravam suas verdades – Sempre debochando das regras e da forma como as pessoas vivem!

       -Regras, regras, regras... Veja minhas asas antes de me entregar a rainha, Egan. Pode ser sua única chance de entender o mundo e ver a vida com outros olhos que não sejam os do seu pai.

       -Ou ser conhecido para sempre como o elfo enganado pela fada assassina do Rei – ele completou com ceticismo.

       -Pelo visto nunca entraremos em um consenso – ela disse sorrindo, pois estar ao seu lado, compensava um pouco do seu sofrimento e saudade de suas amigas.

       Apesar dos pesares, sorria. Seu dom moveu a água a sua volta e formou uma corrente de água em torno de Egan, que o manteve afastado dela. A água se ergueu e como uma mão invisível feita de água soltou as cordas que prendiam os pés da fada e ela riu antes de mergulhar. Retirou a túnica e mergulhou.

       O Guardião lutou contra a água, mas sua armadura não possuía recursos para lutar contra uma força da natureza como a água, que apenas limpa e não fere. E se a armadura não reconhece o perigo, não permite seu uso. Egan desistiu de lutar contra a força da natureza que o suprimia e apenas observou a fada se divertir na água. Se Eleonora houvesse reparado bem notaria que o elfo praticamente salivava observando a pele clara sob a água. Não era como estar nua diante dos olhos de um macho, era menos exposto, coberta por água, mas ainda assim, ele sabia da nudez e do fato da fada estar atingindo seu apogeu sexual com a maturidade das asas.

       A brincadeira na água durou muitos minutos. Quando Eleonora cansou, parou de nadar e olhou para ele em dúvida. Era sua oportunidade de fugir. Egan nada poderia contra o poder da natureza. Poderia sair da água, vestir a túnica e correr para a floresta. Apesar do seu cheiro, ele não a encontraria facilmente, pois conseguiria manobrar o poder da natureza para escondê-la. Não pudera fazer isso no começo, pois não sabia como, mas agora se sentia cada segundo mais perto do dom completo e assim, naturalmente sabia como controlar os elementos.

       Parte sua desejava fazer isso, mas havia outra parte gritando por sua companhia. Fugiria quando as asas houvessem nascido completamente. Ou se ele tentasse entregá-la antes da hora.

       Era a decisão covarde de uma fêmea apaixonada. Eleonora fez a água se acalmar e esperou pela sua fúria.

       -Vista sua túnica, Eleonora – ele mandou com voz grossa, mal contendo a raiva.

       Não discutiria sobre a fada ter enganado-o. Isso acabava com seu orgulho.

       Eleonora fez a túnica vir até ela, e pegou a roupa molhada e vestiu se perguntando por que de tanto zelo por sua nudez.

       Egan agarrou seu braço assim que estava vestida e a arrastou para fora da água. A fêmea deixou-se levar sem reclamar.

       -Está furioso comigo. Sinto muito, eu queria me livrar daquela sujeira toda e refrescar minhas feridas. Você não deixaria se eu pedisse permissão.

       -Usou seu dom contra mim, Eleonora. Isso é um ataque direito a um Guardião – ele a largou sobre a grama, e ela sentou, fingindo não estar sendo agredida. Enfurecer um Guardião não era uma boa ideia. Se ele usasse todo seu poder de Guardião, dotado da armadura, contra ela, seria um duelo mortal. Dom de fada contra poder de armadura? Não era uma ideia esperta para nenhum dos dois.

       Uma pena que ela não soubesse que a armadura não a considerava um risco, e sendo assim, bloquearia qualquer tentativa de ataque vinda do Guardião.

       -Conversa. Você tem me levado arrastada de um lado para o outro, sem minha permissão. Não fui julgada ainda, tão pouco condenada. Isso é um ataque direto a uma fêmea desprotegida e somente por não ter família a interceder por mim, é que age assim sem pensar nas consequências. – jogou em sua cara.

       -Em alguns momentos minha vontade é deixa-la fugir, Eleonora. Para que você parta e nunca mais volte a infernizar a tranquilidade da minha família. Sua presença só trouxe tristeza e desentendimentos.

       Ter essa acusação verbalizada fez Eleonora calar-se. Doeu tão profundamente ser rejeitada e acusada, que não havia palavras que pudesse afugentar essa dor. Ela amava Reina, Tubã e por mais que doesse admitir, amava Egan. Ouvir isso machucava, de um modo que ele jamais entenderia.

       Ele observou-a calar, sem saber como desfazer o que dissera. Era mentira, ele queria saber se as asas daquela fada a inocentariam. Queria muito ter a chance de acolher sua vida, caso fosse inocente. Tudo o que não desejava era perder-se dela.

       Eleonora havia controlado a água, e poderia fazer isso com os outros elementos da natureza, por isso seria infantilidade amarrá-la outra vez, sendo assim, deixou que deitasse na grama e andou em torno, procurando por alimento. Não deveriam conversar mais. O assunto minguara entre eles, fugira do caminho produtivo para ambos.

       Retornou alguns minutos depois com frutos e encontrou-a adormecida.

       Tocado por uma ternura que não conhecia, Egan juntou-se a ela e enquanto comia as frutas, velava seu sono. Em determinado momento roçou a ponta dos dedos em sua face, afastando os longos cabelos molhados e Eleonora entreabriu os olhos, deixando-o imóvel por ter sido pego em flagrante, mas ela não percebeu qualquer intenção maliciosa e ao reconhecê-lo relaxou e tornou a adormecer.

       Eleonora não tinha medo dele.

       E Egan? Sentia medo dessa fada?

 

                         Emproado e viscoso

        Horas mais tarde, Egan a fez despertar de seu sono. Eleonora não queria levantar, a dor havia acentuado e ficar de pé quase lhe custou um desmaio. Egan a manteve em pé, segurando-a pela cintura, até sentir que estava firme e poderia seguir sem ajuda.

       Pelo modo como a fêmea da clausura tornou-se silenciosa, ele soube que sua situação havia piorado e muito. O odor do cio totalmente camuflado pelo cheiro das feridas em suas costas. A caminhada estendeu-se pela noite.

       Os dois caminharam em ritmo acelerado. Eleonora gostaria de fazê-lo parar, mas estava cansada das inúmeras discussões sem fim.

       No meio do caminho apoiou-se em um tronco grosso e forte de uma árvore antiga e olhou para cima. Sentia magia naquela árvore. Era possível ter sido morada de algum ser mágico como duende ou uma fada errante, sem lar.

       Era um pensamento tolo, para distrair a mente.

       -Eu não posso mais – Ela disse quase chorando quando Egan notou seu afastamento – Terá que ir sem mim, ou esperar o padecimento chegar ao final... Eu não consigo andar mais. Eu não consigo.

       Havia a terceira possibilidade, a de amarrá-la e levá-la a força. Egan desconfiou de suas palavras, pois avançavam pela Floresta de Saul, e poderia ser uma artimanha da fada para postergar seu julgamento. A lua no céu permitia que visse em torno, e ela não se opôs ou reclamou quando Egan baixou sua túnica mais uma vez.

       Dessa vez ele não estava preparado para o que veria, e nem se preocupou com sua doce nudez. Era carne disforme. Um embolado de carne, sangue e massas disformes que lhe causaram náusea.

       -É melhor se sentar, Eleonora – ele mandou apenado.

       -Está tão ruim assim? – Sua voz soou tremula.

       Seu algoz não era insensível, e Eleonora suspeitava que o coração de Egan fosse bem maior que seu senso de obrigação. Dedicar-lhe alguma ajuda, era o mesmo que dizer que temia por sua vida. Que estava assustado com seu estado. Sem saber como lidar com sua situação delicada.

       Eleonora fez o que ele disse e precisou se agarrar a árvore quando seus joelhos não a seguraram de pé. Egan veio por trás e ajudou-a a se encostar ao chão. Eleonora sequer percebeu que o Guardião montava acampamento naquele lugar.

       Egan colocou a esteira de palha de Mikazar perto dela, e se afastou, ascendendo uma fogueira para cozinhar algo para si. Eleonora não pediu comida, tão pouco pediu por água.

       Qualquer desconforto era pequeno comparado ao infortúnio que a tomava naqueles momentos de tortura. Eleonora chorou baixinho por muito tempo, não por ser fraca ou submissa, mas pela dor lacerante. Sussurrava palavras fracas, palavras que não eram para ser ouvidas.

       -O que você está sussurrando? Alguma oração? – ele estranhou, sentando longe dela, apenas aguardando o inevitável acontecer.

       -Não – ela disse em lamento. – Não é nada. Deixe-me em paz.

       -É minha obrigação saber o que você está fazendo – insistiu – o que está sussurrando?

       Eleonora fechou os olhos com força. Não lutaria contra a insistência de Egan.

       -Estou contando para minhas amigas tudo que sinto nesse momento.

       Ouviu o riso de escárnio de Egan e encarou-o.

       -Isso é impossível. Elas não podem ouvi-la. Está falando sozinha, um pouco louca por causa da dor. Deve ser normal, é impossível passar por algo assim e não ter alucinações.

       -Não são alucinações. Eu fecho meus olhos e imagino que elas estão aqui comigo, porque era assim que deveria ter sido! – ela revidou, fervendo por dentro, de indignação e magoa – Alma me seguraria em sues braços, para que eu não me sentisse abandonada, enquanto Driana me contaria uma de suas elaboradas estórias, para distrair minha mente e meu coração. E Joan, minha flor tão bonita, ela me faria carinhos, sussurrando que isso logo acabaria... E eu... Contaria-lhe tudo que sinto e passo, para prepara-las quando chegasse o momento delas! É isso que estou fazendo, fingindo que elas estão aqui comigo, que não estou sozinha!

       -Mas não é isso que acontece Eleonora. Elas não estão aqui.

       -Eu sei que não! – ela gritou, perdendo a compostura, e agarrando uma pedra qualquer do chão para jogar sobre ele. Não teve muita força, por isso a pedra não alcançou distância e não ofereceu risco ao Guardião. – Eu sei que elas não estão aqui. Eu sei disso. – era um sussurro magoado, carregado de sofrimento e lágrimas.

       Arrependido de ter lhe causado mais essa desilusão, calou-se.

       Aos poucos a exaustão pegou Eleonora de surpresa no meio da madrugada e Egan agradeceu aos céus, pois não sabia o que fazer com ela ou se havia algo para ajudar a fada a suportar a dor.

       Em algum momento da noite também adormeceu, imaginando que o restante da noite seria tranquilo, que o pior havia passado.

       Este foi um pensamento bastante estúpido e digno de um macho, que nunca presenciou o padecimento das asas.

       No meio da madrugada escura e subitamente silenciosa de uma floresta que normalmente é barulhenta e movimentada, Egan acordou com gemidos animalescos e um grito de pura angústia.

       Acostumado a lutar, ergueu a espada muito antes de levantar, mas dessa vez não havia uma luta a sua frente, muito menos um opositor.

       No chão, a fada gritava, urrava e gemia de dor. Eleonora engatinhou no chão, como quem espera conseguir fugir de si mesma. Ela nunca se sentiu tão profundamente ligada à natureza como naquele instante. Em cada poro, em cada centímetro do seu corpo corria a magia da floresta. Era um ser mágico, mas era também parte da terra, do ar, da água e do vento. Ela era fogo que queimava, e água que aplacava. Desesperada por amenização, desesperada pelo ápice, e pela obtenção do que lhe pertencia.

       Suas unhas rasgaram a terra e o mato úmido do orvalho da manhã, arranhando o chão, enquanto seus berros de angústia cortavam o coração de quem apenas podia observar. Seus olhos claros estavam vermelhos, suas feições normalmente delicadas distorcidas em uma careta de medo e sofrimento. Os cabelos sempre tão macios estavam empapados de sangue, e a visão de suas costas era tão assustadora que Egan deixou a espada cair, sem reação.

       Os primeiros raios de sol da manhã banharam as asas que explodiam para fora da carne, e Egan permaneceu mudo enquanto ouvia seus gritos e ouvia também que implorava por ajuda.

       Chamava por suas amigas. Ele ouvia os nomes, chamava por Alma, Driana, Joan e Reina. Chamava por ajuda, implorava socorro. Mas tudo que lhe restava era o abandono e o medo.

       Era o nascimento, o momento mais esperado por uma fêmea. Suas asas rasgavam suas entranhas, e finalmente estavam livres do receptáculo que as nutriu por anos, preparando-as para àquele momento sublime e doloroso.

       Egan não podia fazer nada além de assisti-la. Era um Guardião, o primeiro em hierarquia, e não podia fugir de suas obrigações. Mesmo assim, naquele momento, diante da selvageria da natureza sobre a essência animal de uma fêmea, Egan não se sentia Guardião. E sim, um macho presenciando sua fada escolhida padecer.

       Os braços de Eleonora não conseguiam sustentá-la, seu corpo frágil tremia completamente. Num impulso inexplicável, Egan ajoelhou-se no chão e usou seus braços fortes para mantê-la erguida o bastante para sua face não tocar o chão. Eleonora entregou-se a sua força e se rendeu, entregue aos seus braços, uma das mãos agarrando a carne do ombro de Egan enquanto gritava em mais e mais dor.

       As unhas femininas cravaram feridas em sua pele, mas Egan não viu ou notou nada.

       Olhos arregalados, fitando as asas emergirem de um modo nunca antes imaginado. Sabia da teoria de como acontecia. Mas nunca imaginou que um dia veria com seus próprios olhos acontecer. Nenhum macho pensa muito nesse momento.

       As asas eram longas como raramente vira outras iguais. O sangue que as cobria não impedia que o sol glorificasse o tom claro, esbranquiçado, quase translúcido das terminações, extensões do corpo da fada, contornos delicados que as tornavam irresistivelmente belas. Nascidas, às asas se abriram pela primeira vez e os gritos de Eleonora cessaram como se ela houvesse sido calada a força.

       Em choque o corpo da fada tremia em seus braços, e sua emoção era a emoção do elfo. O dourado das pontas, onde as asas eram como seda, foram agitadas e exibidas com o primeiro farfalhar das asas.

       Era um espetáculo. Com exceção da dor, era um momento fascinante. Aos poucos, o que pareceu horas, o corpo da fada se acalmou e ela ficou tão quieta em seus braços que Egan temeu ter desfalecido.

       O coração do elfo batia acelerado, como se fizesse parte daquele ritual, quando na verdade era apenas um espectador silencioso.

       -Como elas são? – Sua voz era apenas um fiapo sem forças, uma baforada de ar morno no pescoço de Egan.

       A preocupação desesperada de saber como eram as asas, e se ela seria inocentada de seus crimes, inocentando suas melhores amigas, Reina e também Tubã.

       -Brancas... – Ele precisou limpar a garganta para conseguir falar -... Douradas. São lindas asas, Eleonora – admitiu sem conseguir afastar os olhos das asas.

       Ela se moveu e sua face suada e coberta de lágrimas ficou a centímetros do rosto do elfo. Olhos que imploravam por ajuda.

       -Acredita em mim agora? – Perguntou-lhe com medo da resposta.

       -Ser filha de Santha não a inocenta das acusações – foi claro e direto – Precisa ser julgada e inocentada formalmente. Não posso deixá-la impune. A decisão não é minha.

       Eleonora puxou o ar e soltou-o tensa.

       -Eu deveria saber... – Admitiu cansada – Eu não posso lutar contra você nesse momento. Solte-me, não quero que me segure. Por favor, não me segure nesse momento.

       Era um quase desespero de afastar-se, agora que a natureza concluíra o padecimento das asas, e elas haviam nascido seu corpo entregava-se tolamente ao cio. E não era prudente um macho segurá-la.

       Egan largou-a imediatamente. Toda sua obrigação lhe voltou à mente e quando Eleonora olhou em sua direção enxergou cordas em suas mãos.

       Fraca demais para lutar permitiu ser amarrada nos pés e punhos. Seus olhos fitaram o céu, o azul do céu livre de nuvens. O sol bonito daquele começo de manhã. Todo tempo em que era amarrada, ela olhava para o céu, onde em breve, voaria livre.

       Um sorriso pairou em sua face, e era um sorriso de pura felicidade.

       Suas asas haviam nascido e ela estava feliz. Queria que suas amigas estivessem ali para dividir esse momento com ela. Mas estava sozinha e nas mãos de Egan.

       Ele terminou de prendê-la e Eleonora cravou os olhos sobre ele, querendo lhe mostrar que nada poderia segurá-la agora que era uma fada com seu dom completo e suas asas.

       Sentia correr em suas veias sua essência de fada, sentia seu dom pulsando em seu coração e aquecendo sua pele. Sem esforço algum, ela fez uma rajada sutil de vento despentear os cabelos de Egan, enquanto desamparavam as cordas que prendiam suas mãos e pés.

       Ele levantou e fitou-a, consciente que isso era um aviso e também uma constatação. Não conseguiria mantê-la prisioneira.

       Era um impasse sem solução. Ela sorriu, e dessa vez era algo de misterioso, e ajeitou-a na grama macia, vencida pela exaustão total do que passou.

       Não lutaria com ele agora. Primeiro, obteria suas forças de volta. Então... O elfo teria sua porção de sofrimento em suas mãos...

 

                                Segure firme!

        Eleonora adormeceu por quase uma hora, seu corpo repousando depois de tanto sofrimento. Quando despertou, como um milagre, a magia dentro de si havia evaporado com qualquer dor ou cansaço. Era assim com toda a fada.

       Refeita, olhou em volta e descobriu que Egan estava sentado no chão perto dela, as costas repousadas contra uma árvore.

       Olhos fechados, ele parecia tão tranquilo... Eleonora sorriu com segundas intenções, enquanto o vento a sua volta se movia e em rajadas leves e especificas, vinham como ondas invisíveis, desamarrar as cordas de seus pés e punhos, que ele havia novamente prendido enquanto ela dormia. Era um elfo iludido, tentando provar ter poder sobre uma fada com seu dom recém-adquirido.

       Egan acordou com o movimento a sua volta. As folhas secas do chão revoavam em torno da fada e seus pulsos e pés estavam sendo soltos. Ela sorria e se moveu no chão, erguendo-se de pé, balançando graciosamente na ponta dos dedos enquanto abria e movia as asas pela primeira vez na vida.

       Distraída com a sensação única de poder e liberdade, Eleonora não percebeu seu algoz aproximando-se e quando estava prestes a sair do chão, seus pés afastando-se do solo, foi agarrada por trás.

       Escapou e ganhou distância, fascinada pela sensação de voar. Egan conseguiu agarrá-la pelas pernas, puxando-a com toda força para baixo.

       Era fada e jamais a encontraria se a perdesse justamente quando estava a um dia de distância do castelo!

       Egan agarrou-a de um modo que a distraiu de sua fuga. Nunca antes fora agarrada assim, e seu corpo reagiu com toda a maturidade da sexualidade de uma fada que finalmente é completa.

       Atiçada, porém precisando lutar pela própria liberdade, Eleonora o chutou e conseguiu se soltar. Egan caiu para trás no chão, e segurou seu pé no último segundo, levando-a com ele.

       Inexperiente na arte de voar, Eleonora caiu sobre ele, montada em sua cintura. Egan não hesitou em segurá-la pela cintura, impedindo sua fuga.

       Lora moveu as asas desesperadamente inquieta, pois estivera a centímetros de provar a liberdade mais intensa que uma fada pode conhecer.

       -Eu juro que sou inocente, Egan – ela disse arfante, e ele sentou, mantendo-a imóvel, seus braços presos, seus movimentos tolhidos pela força do elfo.

       Seus quadris femininos quentes, em contato com o quadril masculino. Chamas queimavam nos olhos da fada e Egan estava enfeitiçado.

       -Eu nunca me deitei com um elfo. Eu posso provar. Santha me acusou de ter relações com o Rei. Mas é mentira. Eu posso provar que é mentira! Sou casta, nunca fui tocada... Nem mesmo beijada... – Ofereceu, seu hálito quente perturbando o elfo. – Minhas asas e minha inocência lhe provaram que não minto? Então, porque não acreditar quando digo que sou inocente das acusações? Eu poderia ter o rei em minhas mãos, Egan. Eu não precisaria matá-lo...

       Lábios rosados, entreabertos e convidativos. Ele precisou usar cada fibra do seu ser para lutar contra a tentação, e agarrou seus cabelos, obrigando-a a parar de mover as asas, ficando finalmente quieta e apanhada.

       -A fada Joan ludibria os sentidos de qualquer elfo ou fada. Mesmo que esteja falando sério sobre sua castidade, ainda assim, qualquer outra fada poderia ter se deitado com o Rei e confundido a mente da rainha, eu já lhe expliquei isso, Eleonora – acusou, com os olhos brilhantes com as mesmas chamas de paixão que os olhos de Eleonora exibiam. - É o que todos pensam, não é apenas o meu pensamento!

       -Apega-se a qualquer vestígio de verdade, para me culpar, por mais absurdo que seja. – Ela acusou – Sabe muito bem que o cheiro de uma fada somente impregna em um macho quando há a cópula. Ouviu ou não ouviu da boca de sua rainha que era o meu cheiro no Rei? – Intimidou-o, puxando a cabeça e tentando livrar-se do aperto em seus cabelos.

       -Ouvi – ele admitiu.

       Eleonora libertou os cabelos, e eles eram uma cortina a sua volta.

       -Eu prometo, Egan, que se me ouvir, não se decepcionará. É tudo um plano de Santha. Um plano para se livrar do Rei e de mim. Minhas amigas foram usadas e acusadas, pois assim, disfarçavam minha existência. Se ela me acusasse, todos os olhos se voltariam apenas em mim! Quatro fadas... Dividindo atenção de todos! Mas elas são inocentes. Eu sou inocente. O dom de Joan ainda é fraco. Ela não tem suas asas. Como seu dom poderia ludibriar um elfo adulto e uma fada madura? Impossível! Pense na malícia de Santha e em seus amantes, pense no comportamento dela, e me diga do fundo do seu coração, se não acha que ela é capaz de ter tramado tudo isso... – Face a face, Eleonora lutava para não beijá-lo.

       Quase roçou os lábios nos dele, mas se conteve um segundo antes de fazer isso, e Egan gemeu de frustração, apertando com força as mãos em suas curvas, na cintura, e a outra mão subindo para suas costas, alisando cada terminação nervosa em torno das asas.

       Eram impulsos que lhe pertenciam, e por mais que tentasse culpar a maturidade que alcançava em seu sexo, sabia muito bem que essa paixão sempre existira dentro de si. Desde pequena, quando seu coração saltitava no peito ao mero pensamento sobre o Primeiro Guardião...

       -É incapaz de enxergar, Eleonora? – Ele foi firme, pois ela não entendia o que de fato acontecia – Se você estiver falando a verdade... O Reino perderá sua rainha. A última em sucessão do trono. E as leis são muito claras. O primogênito, ou primogênita de sangue daquele que governa, será seu sucessor. Rei Isac partiu sem herdeiros de sangue. Santha será destituída do poder... E deixará uma filha. Uma descendente de linhagem. Uma primogênita. Reina sempre soube disso. O trono será seu, fada. Se as suas palavras forem verdadeiras, o trono será seu. E me pergunto se consegue entender a amplitude dessa verdade.

       O susto na face da fada era uma confissão de ingenuidade. Ela sabia dessa possibilidade, mas ainda não percebera o quanto perto disso estava até ouvir Egan confessar os detalhes sórdidos.

       Um pequeno sorriso travesso nasceu no belo rosto e Eleonora não resistiu a provocá-lo, pois não se importava de fato com a possibilidade de ser rainha:

       -Imagino o que eu faria com o poder... Você imagina?

       -Acabar com o Ministério do Rei? – Deduziu, quase esquecendo que deveria lutar contra ela.

       -Não. Os órfãos precisam de um lugar para crescer. Mas acabarei com a clausura e com a farra dos Guardiões que nunca escolhem esposas, e apenas se divertem com as fadas desprotegidas. E como exemplo para todos eles, farei do Primeiro Guardião, aquele que me ouviu e acreditou em mim, um Rei. O que me diz? Colabora comigo, e se torna Rei? Eu ofereço algo grande para que entenda que o poder não me interessa. Como Rei, sendo Guardião, terá o Conselho ao seu lado, pois conta com a autoridade de seu pai, e com a lealdade dos outros Guardiões. Deste modo minhas ordens pouco valor terão. Eu lhe dou o poder, pois isso não me importa. Meu único desejo é a liberdade de minhas amigas e minha inocência.

       -Tubã deverá ser seu Rei – ele foi preciso em sua resposta, chocado com a oferta despretensiosa.

       -Tubã? De modo algum. Suspeito dos sentimentos dele por Joan. – Foi sincera – Não há amor de macho e fêmea entre nós. A maldade está na sua mente, Guardião. Seja meu protetor quando chegarmos ao reino, e lhe recompensarei com o poder.

       O Guardião pensou em lhe contar sobre as confissões de Tubã sobre sentimentos e sua falsa vontade de casar-se com Eleonora. Agora, pensava se tanta convicção não era apenas fruto da imaturidade de seu irmão.

       -E porque faria cumprir sua promessa? Pode estar blefando, tornar-se rainha e me deixar. – Duvidou.

       -Porque eu detestaria lidar com o poder. A liberdade é a única coisa que me interessa. E se Reina sabia que me encontraria, é porque ela esperava que lhe oferecesse o trono. E eu sempre confiarei em Reina, e seu julgamento. – suas palavras mascaravam seus sentimentos verdadeiros.

       -Não posso tomá-la – ele foi claro, olhando para seu corpo mal coberto com a túnica surrada, e empurrando-a para longe de si. – Sua castidade será mais uma prova contra Santha. Não posso encostar um dedo em você, fada.

       -Então acredita em mim! – ela exultou, sentando-se de joelhos no chão.

       Egan nada respondeu. Se ficasse mais um minuto perto da fada, faria uma besteira.

       Afastados fisicamente, mas presos pelos olhares. Egan estava a um passo de desistir de ser honesto e manter sua castidade intacta, e pelo sorriso na face da fada ela era capaz de saber disso agora que seu corpo de fêmea sabia reconhecer os sinais de paixão no corpo de um elfo.

       Era questão de segundos para um dos dois, ou quem sabe os dois, cederem e se atacarem em um ato sexual regado a cio e paixão acumulada, quando foram interrompidos por um som.

       O som de um grito de guerra cortou o ar, e os assustou principalmente a Egan que foi atacado pelas costas.

       Eleonora correu em sua ajuda, a tempo de ver o pequeno Mikazar acertando a cabeça de Egan varias vezes com um tacape em madeira coberto de pequenos pregos. O Guardião caiu no chão, defendendo-se com os punhos, que neste momento, era a única parte coberta com a armadura. Por estar fora de combate havia retirado a armadura, o que era uma pena.

       -Mikazar, não faça isso! – Eleonora gritou para pará-lo – Egan vai me ajudar! Mikazar, pare! Solte-o! Egan finalmente acredita em mim! Não, Mikazar, a cabeça dele não é tão dura assim, não vai aguentar uma paulada dessas!

       O pequeno elfo cruza com duende parou e olhou para ela em dúvida, querendo saber se isso era mesmo verdade.

       -Egan e eu chegamos a um acordo! Ele me protegerá e ajudará a provar minha inocência! Deixe-o em paz! Ele pode até merecer apanhar depois do que me fez... Mas não é um bom momento para isso!

       Mikazar saltou para longe do elfo e Egan sentiu ganas de pegá-lo e se vingar. Mas o modo como Eleonora parecia feliz em ver o recente amigo feito no deserto, o desmotivou.

       -Mikazar, você desistiu de se esconder no deserto para me ajudar? – Ela se ajoelhou no chão, ficando da mesma altura que o pequeno elfo.

       -Eu conhecer uma fada que a colocar na floresta a mando da rainha louca – ele disse com seu sotaque carregado e seus erros de fala. – Ela ainda se esconder na floresta. E eu saber onde achar. - ele falou com seus erros inconfundíveis na fala enrolada.

       -Santha usou alguém para me abandonar. - ela explicou, pois Egan não sabia disso - Reina me contou sobre tudo que aconteceu no passado. Ela me disse que essa fada não existe mais. O que é uma pena. – Ela ainda se indignava por saber que Lucius e Santha não se deram sequer ao trabalho de fazerem isso pessoalmente.

       -A rainha desejar que a velha fada exterminar você – Mikazar encolheu os olhos, apenado – Mas a velha não tiver paciência para isso. Eu saber que ela não está morta. Ela ainda viver. Escondida na floresta, com medo de ser encontrada, desde que soube que a cria abandonada havia regressado para o castelo.

       -Tem certeza disso, Mikazar? – foi à vez de Egan perguntar, refazendo-se da briga, alisando o pescoço dolorido, na busca por ferimentos, enquanto focava na conversa da criatura e em sua importância.

       -Sim, ela manter suas negociações longe das vistas do castelo. Vive escondida para não ser pega pela rainha. - Mikazar confirmou.

       -Eu imagino o medo que essa fada sente. Ser inimiga de Santha é horrível, ela não tem piedade de nada, nem ninguém. - disse Eleonora.

       – Uma testemunha desse calibre com toda certeza colocará Santha muda diante dos Conselheiros - foi à voz grave de Egan que apontou óbvio. Ele havia levantado do chão e ainda sondava a cabeça em busca de ferimentos – Consegue trazê-la até o reino em um prazo de um dia? - mais calmo em não encontrar ferimentos, relaxou.

       -Ser tempo bastante – Mikazar concordou.

       -Então vá. Faça isso por mim, e eu farei muito por você – Eleonora prometeu ao elfo, com o coração apertado de felicidade por ter tanta ajuda quando nunca antes as pessoas se importaram com ela, com exceção de Reina e suas amigas.

       Mikazar era um ser tão rápido em sua corrida, que Eleonora mal conseguiu vê-lo se afastar entre as árvores. Era assim que ele sobrevivia no deserto, pensou. Rápido demais para a aridez ferir seu corpo.

       -Venha – a mão de Egan surgiu diante de seus olhos e Eleonora se viu segurando nessa mão forte, enquanto era erguida.

       Olhos nos olhos. Não eram mais inimigos. Calados os dois juntaram as poucas coisas que tinham e seguiram andando pela floresta. Queriam chegar ao castelo, mas não antes de um dia, para que Mikazar tivesse tempo de encontrar a fada que seria seu reforço em sua defesa.

       Com o pensamento nas amigas, Eleonora seguiu Egan de perto, suas asas agitadas por sua presença, e pela necessidade de voar. O tempo todo, seus olhos erguiam-se para o céu, e então, voltavam a fixar-se sobre o elfo bonito e que a cativava como fêmea.

       -Quer voar um pouco? É seu primeiro voo. - ele ofereceu, pois não era mais seu algoz.

       -Não. Eu não quero voar. - ela olhou novamente para cima, fechou os olhos com força e tornou a falar - Eu quero, mas não assim. Eu quero esperar pela chance de voar com minhas amigas. Eu quero que estejam comigo no meu primeiro voo.

       -Isso não será possível, fada - ele alertou - está sendo boba. Experimente suas asas. Suas amigas ficariam felizes em vê-la obter essa satisfação.

       -Não. Ainda não. Eu quero esperar - ela negou e baixou a cabeça para não parecer tão triste quanto se sentia. - Eu tenho esperança que o dia do nosso reencontro está próximo. Eu vou esperar enquanto eu puder - tornou a olhar para o céu - Agora que não preciso mais fugir de você, eu vou esperar.

       Era uma promessa que fazia a si mesma. Esperar pela chance de estar reunida as suas amigas na hora do seu primeiro voo, visto que elas não puderam estar presente durante o padecimento das asas.

 

                              O caminho até aqui

        Egan tinha razão ao dizer que detestava atravessar a Floresta de Saul, ainda mais sem necessidade. Além de sombrio e perigoso, era um lugar solitário e angustiante. Para uma fada no cio, um lugar de puro risco e sofrimento.

       Qualquer barulho era um sobressalto. Poderia ser um Caçador de Fadas, ou de recompensa, e ela seria o alvo procurado. O cio de uma fada alcança grande valor de venda e o valor atribuído a uma fada fugitiva era ainda maior.

       Por isso, Egan mantinha-se atento, vestira sua armadura e mantinha Eleonora perto de sim mesmo que o cheiro do cio o contagiasse e fizesse dele um dos maiores perigos que a fadinha corria! Era mais seguro que ele a tomasse, do que outro elfo qualquer.

       -Será que existem Caçadores por aqui? - ela perguntou, depois de muito tempo de caminhada - eu gostaria de descansar um pouco.

       -Sempre há caçadores nessa floresta. Não tenho dúvidas sobre encontra-los. Permanecer aqui por muito tempo é pedir por uma luta. Apego-me a possibilidade de Pietro, o elfo que usei para espalhar a fofoca que fez Reina instrui-a sobre ir ao deserto, ter espalhado tão bem o fuxico que a maioria dos Caçadores de Recompensa esteja procurando-a para outros lados.

       -Ou, procurando por minhas amigas - disse pessimista - Poucos caçadores enfrentariam o Primeiro Guardião em uma disputa pela assassina do Rei. Agora, sobre as cúmplices... Sempre há flexibilidade. Estou errada?

       -Não, não esta errada. Não poderia estar mais certa. Mas eu duvido que algum caçador saia da toca, a não ser para caçar um prêmio valioso como você.

       -Quanto acha que eu estou valendo? Duas bolsas se ouro? - sugeriu referindo-se as pequenas bolsas onde os elfos carregavam ouro.

       -Assassina do Rei? Possível cria de Santha? Não se iluda. Qualquer elfo desejará roubar-lhe o cio e emprenha-la. A possibilidade de ser Rei fará de todos eles animais - explicou, reparando em seu medo. - Eu sei que não fui justo no começo, mas agora eu irei protegê-la, com a mesma dedicação que a cacei.

       -Eu não gosto de pensar no que passamos. É tudo culpa de Santha. E um pouco de culpa do seu pai também. Ele o criou para ser um elfo sem pensamentos próprios. Não se envergonhe disso - disse rápida antes que ele se ofendesse - as fadas do Ministério do Rei são criadas com a mesma finalidade. Nossas mentes deveriam ser manipuladas e comandadas pelas carcereiras. Obviamente, algo deu errado na minha criação. Talvez, muito sangue podre em minhas veias para me permitir ser quieta e cordata.

       -As carcereiras são criaturas infelizes, Eleonora. Um dia, quando for seguro, lhe contarei segredos de cada uma delas. - ele disse sorrindo, ao notar imediatamente sua expressão mudar para curiosidade.

       -Ah, não, por favor, me conte agora! - ela bateu as asas de empolgação sem notar, e foi erguida no ar alguns centímetros.

       Egan a segurou e ela riu ao pousar os pés no chão.

       -Me conte, eu preciso saber alguns segredos feios daquelas cobras disfarçadas de fadas! Por favor, eu mereço saber... -ela pediu, sorrindo.

       -Eu lhe conto apenas a história de Miquelina. - ele cedeu - Mas primeiro, me prometa manter segredo. É algo que envolve um Guardião e um Conselheiro. Odiaria que soubessem que sou fofoqueiro como Pietro - ele fez graça, segurando o queixo da fada entre dois dedos, como uma espécie de carinho.

       Eleonora suspirou derretida por dentro.

       -Eu guardo seus segredos, Egan. Eu sou e confiança - prometeu, evolvida pelo olhar do elfo.

       -Miquelina é mãe de um dos Guardiões. Amante de um dos Conselheiros. Ela abandonou o filho para não deixar a carceragem do Ministério do Rei, mesmo depois da viuvez do Conselheiro. -ele notou os olhos da fada brilharem.

       -Eu não consigo imaginar Miquelina como uma amante. Como uma fêmea sedutora... Mas posso imagina-la abandonando a própria cria. É algo que lhe cabe muito bem - disse desgostosa, e com um sorriso no rosto. - Quem é o Guardião?

       Egan chegou tão perto que a fez conter a respiração. Então sussurrou em seu ouvido o nome do Guardião, mas inicialmente Eleonora não registrou quem era. Seus joelhos pareciam geleia. Se era culpa do cio, ela não sabia, mas a grande verdade é que seus braços doíam de vontade de enlaça-lo pelo pescoço e sua boca pulsava por um beijo.

       A porção macho dentro do Guardião sabia como a fêmea se sentia e dividia com ela o mesmo impulso. Ele chegou a roçar a bochecha na dela, e Eleonora ergueu-se na ponta dos dedos, tocando sobre o peito do elfo com uma das mãos. Não foi um toque, ela apalpou a carne tensa e rija, musculosa pelos anos de treinamento.

       Egan olhou para esse contato e segurou sua mão, mas não afastou o toque.

       -Reina pretendia obrigar Tubã a casar-se com você. Eu tomei a decisão, anos trás, que esperaria a escolha de Tubã. Não e intrometeria nos assuntos dele. E você, fada, é um assunto do meu irmão. Se ele não a escolhesse, eu escolheria. Não fui eu quem enviou presentes secretos para sua amiga Driana. A fada que eu escolheria sempre foi à mesma que meu irmão quer.

       Eleonora não percebeu quando apertou com mais força sobre o músculo de Egan, onde o coração pulsava. Aquele coração acelerado, tal como o dela.

       -Eu nunca quis Tubã como macho escolhido - foi direta - Você sabe disso. - baixou os olhos envergonhada, mas a vergonha durou um instante apenas - Sempre soube não é?

       Egan não conseguiu conter um sorriso. Algo de malícia e típica vaidade.

       -Eu suspeitava que você e suas amigas não assistissem nossos treinamentos escondias por causa das travessuras de Tubã. Estavam de olho nos Guardiões.

       -Eu estava de olho em um Guardião. Minhas amigas... Apenas curiosas sobre o mundo...

       Era uma declaração de amor. Os dois se declaravam, mas não com as palavras corretas. Eleonora achou que fosse desmaiar de expectativa e sentimento inconfessáveis quando Egan tocou sua cintura, de um modo íntimo e a cingiu contra seu peito. Iria beija-la? Sim! Ansiosa por isso, ela não percebeu que suas asas batiam descontroladas, e tentavam tira-la do chão, elevando-a com o poder de suas hastes e envergadura das asas.

       Egan a segurou outra vez, e parecia que isso o divertia bastante. Agarrou-a pela cintura e a prendeu ao seu corpo, enterrando o rosto em seu pescoço, aspirando seu cheiro de cio. O perfume de seus cabelos, o odor de sua pele, um afrodisíaco poderoso nessa fase delicada e única.

       Egan permaneceu assim, segurando seu corpo por alguns instantes, então afastou o rosto do seu e disse voz grossa e rouca de paixão:

       -Eu não devo encostar um dedo em você.

       Sim, não dever não era a mesma coisa que não querer. Eleonora não conseguiu raciocinar sobre isso. Sabia muito bem que o macho não conseguiria resistir a suas investidas. Por isso ofereceu os lábios para um beijo.

       E se esse beijo acontecesse os dois não parariam. O ato seria levado adiante, era assim que a natureza faz. Macho, fêmea e cio, entrelaçados em pura inconsequência e necessidade.

       -Encoste-se a mim, Egan. Não me importa o que vai acontecer depois. - ela atiçou sem a menor condição de esperar mais.

       Ele não podia saber, mas seu corpo sentia a dor da necessidade. Uma dor afiada que a fazia quente e excitada, como os animais em pleno apogeu sexual se sentem.

       -Se eu fizer isso, parte da sua defesa cai por terra - ele alertou - vai correr esse risco?

       -Sim - ela sussurrou, e ao mesmo tempo em que isso era uma verdade latejante em seu peito, era também uma culpa sem justificativa - Eu...

       -É claro que não vai colocar a vida de tantas criaturas em risco por conta do cio - ele disse maduro, pois a experiência de uma vida toda o fizera capaz de entender coisas que Eleonora somente sonhava em sua mente romântica. - Tente não voar quando estiver nervosa - ele sugeriu - Quando estivermos no salão principal, sendo interrogados pelos Conselheiros, você não deve voar. Poderá ser confundido com um ataque ou fuga. Contenha sua emoção e nervosismo. Voe Eleonora, um primeiro voo vai aquietar suas asas.

       -Sem minhas amigas? Nem pensar - ela decidiu convencida que isso era o melhor para si.

       -Está sendo cabeça dura. - Ele alegou, roçando o nariz no seu, e quase tocando seu lábio superior, o que Eleonora até tentou forçar contato, mas ele a soltou antes disso acontecer - Precisamos continuar. Devemos chegar antes de Mikazar, ou Santha poderá interceptar a chegada de uma possível testemunha.

       -Não duvido nada que ela faça isso - Eleonora concordou e lutou contra a decepção de ser largada e privada do toque do Guardião. - O que acontece com Santha, levando em conta que minha inocência seja confirmada?

       Egan recomeçou a andar, mas mantinha os olhos sobre a fada. Eleonora permaneceu parada um instante, sem fôlego ainda. A roupa rasgada e destruída pelos dias de fuga cobriam seu corpo, mas revelavam suas canelas e braços. A gola ampla havia caído para o lado e ele mal podia olhar para a porção de pele macia e perfumada a mostra. A vontade era mordiscar essa carne e arrancar-lhe gemidos.

       -É difícil dizer, dependerá do sucessor do trono - ele estendeu uma das mãos, como que a chamando, e Eleonora mordeu o lábio antes de alcança-lo e segurar sua mão, pois eles subiam uma pequena inclinação de terra e pedras. Logo em seguida uma espécie de estrada de terra se revelou. O que facilitava muito a travessia que fariam. Eleonora segurou a mão do Guardião com força, por isso não soube se ele pretendia ou não soltar primeiro.

       -Fala de mim, não é? - ela perguntou.

       -Sim, se você reinar sozinha, deverá decidir sozinha. Se escolher um Rei e esse for eu - ele sorriu - a decisão mudará, eu tenho certeza.

       -O que você faria com Santha? - quis saber.

       -Masmorras para sempre, ou a morte. - ele alegou imediatamente, sem preâmbulos. - Para Lucius a mesma punição. Talvez, primeiro uma longa punição nas masmorras, e a morte depois. Eu gostaria de ver Lucius pagar por tantos anos de terror para com o povo.

       -Terror permitido pelo Rei Isac - ela fez questão de lembra-lo disso.

       -Sim, mas Isac teve algumas boas atitudes ao longo dos anos. O povo nunca passou privações. Ele sempre se esforçou por tratados que mantivesse a paz entre os povos, e faz muito tempo que não se houve falar em guerras ou batalhas prolongadas. O único e maior erro de Isac foi se encantar por Santha. - Egan olhou demoradamente para a fada ao seu lado - Eu me pergunto se esse também será o meu destino.

       -Espero que sim - ela tentou não parecer empolgada demais - Será um bom Rei, Egan. E eu não planejo atrapalhar as decisões do Rei. - explicou.

       -Eu duvido que consiga assistir e não interferir, Eleonora. Além disso, eu penso no que meu pai dirá disso.

       -Como assim? Está com medo que seu pai não aprove um de seus filhos ser eleito Rei? - duvidou, sorrindo.

       -Você não conhece o meu pai. Ele não aceita nada menos, ou mais, do que manter a ordem através dos Guardiões.

       -Sim, mas você será Guardião. Quero dizer... O reino não pode ficar sem um dos seus Guardiões. Ser Rei não o impedirá de cuidar do seu trabalho de Guardião. Um dia armadura será do... - ela calou-se diante dos pensamentos audazes.

       -Do meu primeiro filho? - ele completou, olhando-a com olhos experientes enquanto ela corava e baixava a cabeça. - Fica envergonhada de falar disso?

       -É claro que sim. Todos sabem como funciona o cio. Mas é constrangedor...

       Sim, durante o cio, o apogeu de sexualidade de uma fada a leva diretamente para uma gravidez. Era raro não acontecer, e também seria impossível resguardar o cio por muito tempo.

       -Uma cria é sempre uma benção. Macho ou fêmea será bem vindo. - ele não insistiu no assunto para não constrangê-la ainda mais.

       -Mesmo que eu pai não me aprove?- perguntou, e soltou a mão do Guardião.

       Era inconsciente, o pensamento de ser rejeitada por Túlio, Conselheiro e pai de Egan. Sabia que o elfo era o centro da vida de Reina e Egan, e até mesmo de Tubã, apesar do amigo não admitir, e que obriga-lo a aceitá-la seria um fardo.

       -Meu pai ficará aliviado de ver a angústia de Reina chegar ao fim - ele contou - Além disso, a escolha é minha e não do meu pai.

       -Mesmo? - ironizou - Devo crer que seu pai não influenciaria em sua escolha, elfo?

       Seu tom jocoso o incomodou;

       -Você realmente acha que sou um pau mandado do meu pai não é? - Egan parou de andar e perguntou.

       -Sim - ela admitiu, curta e grossa, sem remendos para essa verdade costurada em retalhos.

       Apenas uma palavra que define muita coisa. Falar sobre relacionamentos familiares, um tema complexo. Ainda mais, levando em conta, que Eleonora não estava enganada.

       O elfo simplesmente retomou a caminhada sem dizer nada em defesa própria. O que ela podia dizer sobre isso? Não o amava menos por causa desse defeito.

       -Eu não vou deixar seu pai se meter nos meus negócios de rainha. Então, você precisa pensar bem antes de me ajudar. - ela se lembrou de falar sobre isso, e ser totalmente sincera - Ele poderia querer decidir por mim, e acabaríamos brigando, não voltarei para a clausura só porque ele não gosta de mim e não me acha apropriada para Tubã. Imagina então, para seu filho preferido? - avisou bem.

       -Meu pai não toma decisões por mim, eu sou um elfo adulto. Eu faço minhas escolhas. A começar pela minha fêmea escolhida. - ele estava realmente raivoso.

       Eleonora tentou não rir. Mas era difícil. Sim, o Conselheiro Túlio decidia pelo filho e Egan sabia disso também, mas incomodava-o ouvir.

       -Só estou dizendo que não vou me casar com seu pai. - ela sabia que ele ficaria ainda mais irritado.

       -Você gosta de me provocar, não é, Eleonora? - ele revidou, parando de andar para olhar em seus olhos.

       -Sim, eu gosto de fazer isso, mas também gosto de deixar bem claro que não gosto de ser comandada. Eu não gosto de receber ordens. Nunca gostei. Eu serei uma fêmea livre, Egan, pela primeira vez em minha vida serei totalmente livre. E não vou baixar minha cabeça para as ordens do seu pai!

       -Estou pedindo isso? - ele revidou.

       -Não! Mas caso venha a pedir, está avisado. - ela informou - E o mesmo vale para Tubã. Ele não vai passar o dia todo monopolizando um Rei por conta de suas artes. Precisa parar de dar corda para que Tubã o enforque. Nunca percebeu que ele quer sua atenção, Egan?

       -Você é louca, fada - ele disse sério, retornando a andar, dessa vez apressado.

       -Não sou, não. Tubã sempre buscou pela aprovação de Túlio, e pela companhia do irmão Egan. O primeiro, jamais o aprovará. Mas o segundo... Bem, você precisa por fim a isso, ou um dia Tubã realmente vai se ferir ou ferir alguma criatura em suas andanças e afrontamentos a todas as leis. Ele sempre aprontou para ter sua atenção, para ter razões para estar perto e fazer parte da sua vida!

       -E é claro que você se importa com Tubã - ele alfinetou.

       -É claro que sim! Ele é meu irmão. Meu amigo. Meu tudo. - ela disse sem notar a sombra de ciúmes no olhar do elfo que seria seu Rei. - Mas estamos sonhando acordados. Posso não ser inocentada, você mesmo disse isso. Santha pode reverter tudo a seu favor. - disse desanimada.

       -Duvido. Suas asas são uma prova irrefutável. Ela pode atrasar a decisão, mas não impedi-la de ser vista. Como Guardião, exigirei que suas asas sejam contempladas. Assim como eu me conscientizei da verdade, outros se conscientizaram - afirmou.

       -E o que acontece com minhas amigas? Elas são fugitivas. Eu tenho a esperança de que Tubã ainda está com elas, não que ele seja de grande ajuda, mas pelo menos não estão sozinhas. Mas o que será delas se eu for inocentada?

       -Serão encontradas a tempo, não se lastime por isso. - ele prometeu.

       -Fácil falar. - ela deu de ombros e olhou em torno, sentindo um arrepio.

       Depois de ter passado pelo Deserto das Areias Vermelhas nada poderia assusta-la. Mas a Floresta de Saul rivalizava com o deserto. Impossível não se impressionar. E era dia, imaginava como seria a noite...

       Os dois pararam quando ouviram um som vindo do mais profundo recanto da floresta, bastante distante. Algo que parecia um lamento ou um grito, como se alguma criatura chamasse por outra.

       Egan aproximou-se mais de Eleonora e a tocou nas costas, empurrando gentilmente:

       -Venha, eu conheço um atalho. - disse preocupado.

       -Seria realmente cômico se eu fosse morta por uma criatura selvagem depois de ter escapado do deserto e estar à beira de ser inocentada e ter minha liberdade. - ela não pode evitar dizer.

       -Fique calada, algo está perto. E você fede a cio - ele avisou, em posição de luta. A gentileza de elfo educado ia embora quando o Guardião vinha à tona. E não seria Eleonora a reclamar de sua postura de luta!

       A armadura de Egan não possuía elmo ou capacete, por isso suas orelhas pontudas se destacavam entre os cabelos, orelhas atiçadas tentando ouvir passos ou qualquer outro som que pudesse atentar para o perigo.

       Seu olfato apurado encontrou vestígios do que era a criatura e imediatamente arrastou Eleonora com ele para o centro da floresta, entre as árvores.

       -Fique imóvel e não faça barulho - ele mandou, deixando-a imóvel contra um tronco de árvore.

       Afastou-se alguns passos e fez o mesmo. Eleonora cravou os olhos no Guardião, louca para saber o que acontecia. Seu descontrole refletiu-se em suas asas que bateram rapidamente, levantando poeira, e criando um reboliço de folha secas em torno dela, e anunciando sua localização.

       Tudo aconteceu rápido demais para que os olhos de Eleonora conseguissem acompanhar. Em fração de um segundo algo gigantesco correu e pulou sobre ela e então, tudo teve fim.

       Caída no chão, ela rastejou para longe. Havia uma criatura despedaçada no chão. Era um raptor gigantesco, de pelo escuro e presas colossais. Raptores eram animais peludos, como enormes búfalos ou algo do gênero. Assustadores em forma, músculos e força. Se o animal houvesse abocanhado-a, estaria despedaçada entre sua mandíbula, como alimento,

       O Guardião baixou a espada, e ela percebeu a energia que a armadura liberava depois do seu uso.

       Algo tão forte que a fez insana. A adrenalina estava em cada poro. Primeiro, pelo medo, agora pelo orgulho. Egan marchou na sua direção e ela ficou esperando. Os olhos do elfo lhe diziam sobre paixão e obsessão.

       Que ele a pegaria no meio da floresta e a ensinaria o significado exato da palavra 'cio'.

       Mas isso não aconteceu. Egan a puxou do chão, como um cavalheiro faria por uma dama.

       -O que é essa criatura? - ela perguntou tremendo, por varias razões.

       -É um raptor, uma fera usada por Caçadores de Recompensa como ferramenta de ataque. Eles aprisionam e trazem consigo, então, são usados contra os povoados que desejam saquear. É uma prática antiga. Se eu não estivesse em uma missão, seguiria por aquele lado - ele apontou para a direita, mata a dentro - e provavelmente encontraria um bando de Caçadores acampados.

       -Porque até hoje não acabaram com eles? Os Guardiões são mais fortes que elfos armados com espadas. Eu não entendo.

       -Rei Isac nunca permitiu uma perseguição e prisão de caçadores em geral - ele contou, ajudando-a a afastar-se da criatura abatida no chão - Se eu for Rei, pretendo mudar isso. Prender os Caçadores de Fadas, e destruir essa prática abominável. Nenhuma fada jamais será caçada e perseguida por causa de suas asas e do cio, jamais. É uma barbárie inaceitável.

       -E os Caçadores de Recompensas?- Perguntou interessada em seu modo de pensar.

       -É uma carreira necessária. Dez Guardiões mantém a ordem do castelo, mas e o restante do Monte das Fadas? É necessário que a profissão exista. Mas sem crimes. Sem saques e abusos. Eu exterminaria os corruptos e criaria um novo contingente de caçadores de recompensas, cadastrados e fiscalizados pelo reino. Uma carreira que pudesse prender assaltantes e bandidos, mas sem ofender a honra e a integridade dos inocentes.

       -Fala de um sonho. Mas na prática... Acha que isso aconteceria? - duvidou.

       -É preciso começar por um sonho, Eleonora. O tempo se encarregará de tornar realidade. - ele prometeu. - Não aceitarei ser seu Rei por causa de soberba. Eu declinaria de seu pedido se não estivesse... - ele quase disse 'apaixonado por você' mas mudou a frase a tempo -... Convencido que posso realizar mudanças importantes que acabarão com desigualdade.

       Egan ainda não se sentia a vontade em admitir a razão verdadeira que o fazia aceitar a proposta de Eleonora. Um pensamento irritante em sua mente e se Tubã aparecesse e a fada mudasse de ideia diante de seu verdadeiro amor?

       A atração entre eles poderia desaparecer rapidamente diante de um grande amor.

       -Eu... - Eleonora olhou demoradamente para a criatura que Egan enfrentou e pensou no risco que correu. Precisava chegar viva ao castelo, isso inocentaria suas amigas. Olhou para o céu demoradamente, e abrindo mão de seu sonho, disse:

       -É tolice passar por tanto perigo. Eu vou voar, Egan. Levar-nos para o castelo em segurança. Outro dia, eu subirei ao céu na companhia de minhas amigas e voaremos juntas. Outro dia. - ela baixou os olhos, não queria ser vista emocionada.

       -Tem certeza? Estamos perto do castelo, mais um dia de viagem e chegaremos. - ele ofereceu pouco tocado por sua oferta.

       -Eu preciso acabar com isso logo. - apontou a criatura - se algo houvesse acontecido comigo aqui, e não pudesse provar minha inocência... O que seriam delas perdidas pelo mundo, sendo consideradas cúmplices da morte do Rei? Não, não é justo, que por egoísmo elas penem um dia a mais que seja.

       -Eu não posso decidir em seu lugar - ele foi franco - Quer fazer isso, Eleonora?

       -Sim - ela disse triste. - Eu quero fazer isso.

       -Certo - ele olhou em torno e então a puxou gentilmente para perto de si - Primeiro vamos andar um pouco, e comer alguma coisa, preciso falar com você.

       -Falar comigo? Sobre o que? - perguntou sem fazer ideia do que ele pensava.

       -Sobre o que vai acontecer ao chegarmos ao castelo e sobre o que espero que faça e diga. Existem procedimentos a seguir e precisa estar ciente disso.

       -Oh, não. Mais regras? - não resistiu a perguntar, e seu sorriso inesperado arrancou dele um olhar menos severo e menos austero.

       -Sim, Eleonora, mais regras - ele concordou, sorrindo-lhe e alegrando seu dia, até então, escurecido e feio de uma chuva que começou há cair poucos minutos depois...

 

                        Sangue de fada

        Egan arrumou um pequeno espaço para os dois embaixo de uma árvore carregada de cipós e longos galhos entrelaçados por folhas largas e pesadas, que seriam perfeitas para segurar a chuva em suas folhas e impedir que os molhasse.

       Depois de tantos dias de privação, ela adorava ser tocada pela chuva. Os cipós desciam dos galhos como uma cortina protegendo-os da floresta. Egan havia conseguido caçar um pequeno roedor e famintos haviam comido tudo rapidamente.

       Foi à vez do silêncio. Eleonora manteve os olhos na chuva, que podia ser vista entre os vãos formados pelos cipós. O som da curva caindo no chão era hipnótico.

       -Quando chegarmos ao reino precisará me obedecer totalmente - ele avisou com voz rouca, usando um longo graveto para mover a terra úmida, distraindo a mente das preocupações. - Eu serei a única voz ao seu lado. Não poderá me contestar, mesmo que não concorde com meus métodos adotados.

       -Eu sei disso - ela concordou.

       -Não, você não sabe. Estará diante de sua mãe, a fêmea que a pariu e abandonou. A mesma que a condenou a ser perseguida, que a condenou a uma vida de clausura. Estará diante dessa fêmea, que ao mesmo tempo em que você se defende, Santha tentara acusa-la. E você estará diante dessa fada. Diante de Lucius, seu progenitor, que tentara com todas as forças incrimina-la a cada palavra dita por mim. As cosias serão diferentes quando isso acontecer. Eu não poderei ajuda-la, se você perder a cabeça.

       -Eu não vou perder a cabeça - prometeu.

       -Vai, é claro que vai. Mas eu não poderei interceder por você se isso acontecer.

       -Não vai acontecer! - ela insistiu.

       Pelo olhar de Egan ficou claro que ele não acreditava.

       -Eu vou tentar me controlar. - ela acabou cedendo - Não vai ser fácil olhar para aqueles dois, depois de tudo que me fizeram, e do que fizeram com minhas amigas!

       -Será ainda pior se houver agitação e brigas entre vocês. Estará ao meu lado, como uma fugitiva recuperada. É assim que será tratada. Eu falarei em seu nome. Sua personalidade tende a ser agitada, e é por isso que peço que se detenha e escute antes de falar. Se eles a levarem para as masmorras, estará tudo perdido, Eleonora. E é isso que Lucius fará se você der uma única razão que seja e que endosse essa ordem! E uma vez nas masmorras, ele achará um modo de livrar-se das suas asas.

       Eleonora sabia bem que modo seria esse. Cortar suas asas, e livrar-se delas.

       -Iremos chegar ao castelo normalmente, ninguém impedirá nossa entrada, você está aos meus cuidados, é minha prisioneira. É assim que eu quero lidar com a situação. Que pensem que é minha prisioneira.

       -Você não está mentindo para mim, não é? Não está me enganando para me aprisionar facilmente?

       Egan sorriu diante da sua expressão de surpresa. Pelo visto era a primeira vez que esse pensamento passava por sua mente.

       -E você? Está mentindo que me fará Rei em troca de defesa e apoio? - jogou de volta.

       -Eu falo a verdade. - ela disse emburrada por causa da sua desconfiança.

       -Eu também falo a verdade - ele disse num tom de deboche inegável.

       -Parece que nenhum de nós terá certeza alguma. Você pode me trair, eu posso te trair. Que linda relação de amizade, não é?

       -A mais sincera de todas - ele cutucou o pé da fada com o graveto e Eleonora sorriu.

       -Reina sempre disse que sua honestidade é seu ponto forte. Vou acreditar nela, e por isso, confiar totalmente em você. O que eu devo fazer quando chegarmos, Guardião?

       -Calar e aceitar que serei eu a tomar a palavra e conduzir os acontecimentos, se fizer isso, estará a meio caminho da vitória.

       -E depois? O que acontece se eles acreditarem em mim? - perguntou voraz por saber mais.

       -É complicado. Se tudo correr bem, e eu digo se, pois não há garantias que seremos ouvidos, você terá decisões a tomar. Sérias decisões, que não podem ser adiadas, Eleonora.

       -Que decisões são essas? E porque eu adiaria decisões? - duvidou.

       -Precisará definir o que acontecerá com Santha e Lucius. E se adiar essas ordens, poderá dar tempo para que eles fujam. Não vai querer passar sua vida toda na expectativa de um dia Lucius aparecer e lhe causar dor, não é?

       -Não mesmo. Mas eu vou decidir, na hora certa, farei isso. Os dois terão as punições que merecem. Isso eu prometo, Egan. - era a mais pura verdade.

       Seu coração exigia reparação, depois de tanto abandono e sofrimento. O que lhe fizeram não se faz nem pra um inimigo perigoso. Quanto mais para uma cria desamparada, que mal nasceu e já sofre o abandono dos próprios pais!

       -Quanto às suas amigas... Não deve falar delas inicialmente - ele tocou no ponto complicado da situação.

       -O que? É claro que falarei das minhas amigas! Elas estão perdidas e sozinhas! Fugindo por minha causa! Tem ideia de como Joan é frágil? - exasperou-se.

       -Sim, mas elas não são prioridade e não podem provar a inocência de todas elas, você pode. Suas asas, sua história de vida. Está em você a verdade. Focaremos em sua presença. O que vier é consequência.

       -Claro, diz isso porque não são suas melhores amigas que estão perdidas e correndo perigo de vida, expostas a todo tipo de sofrimento. - ela empurrou o graveto com o pé e virou a face de lado, recusando-se a ouvi-lo.

       -Escute, fada, sabe que tenho razão. Provar sua inocência é o meio mais rápido para ajudar suas amigas. Creio que expor suas asas será o caminho mais fácil para evitar um julgamento longo e penoso. Quanto menos houver a ser discutido, mais rápido será. Sabe que estou certo. Tubã é um nome que deve ser evitado. E você sabe por quê?

       -Não me interessa - ela disse emburrada por não poder defender suas amigas em primeiro ligar.

       -Eu fiz uma pergunta, Eleonora? É assim que pretende me ajudar e obedecer minhas ordens? - ele segurou seu pulso, projetando o corpo para frente, para segurá-la, e Eleonora lutou para soltar, mas acabou desistindo, e correspondendo ao longo olhar.

       Era assim que os lideres da matilha faziam com os integrantes submissos. Quando em revolta, era preciso subjulgar a fêmea rebelde. E a postura do macho era essa. Olhar e postura dominante. E estranhamente, em seu estado de cio, isso fazia todo sentido do mundo, e a deixava estranhamente mole.

       -Porque não devo falar em Tubã? - ela cedeu e ele a soltou.

       Como uma recompensa por ser boazinha. Ela detestava tanto isso, e ao mesmo tempo não conseguia evitar agir assim. Egan possuía uma fala dominante e só cabia a ela ouvir. Nesse momento ele era Guardião, e não elfo. E como fêmea, era submissa ao seu poder. Era algo de matilha, raça e genética. Eleonora não podia fugir dos seus instintos animais.

       -Porque ele sempre cometeu delitos graves. Roubos. Badernas. Incitação contra a ordem e quebra de todas as regras do Reino. Ele roubou a tiara da rainha poucos dias antes do assassinato do Rei. É melhor evitar pronunciar o nome dele. Lucius vai tentar levantar essa questão e eu vou desviar o assunto. Seja submissa e faça o mesmo.

       -Entendo. Eu não pedi para Tubã roubar a tiara, Egan. Não pedi - ela disse triste dessa lembrança - ele fez isso por que... Brincam com ele. Enganaram Tubã dizendo que facilitaria minha fuga e das meninas em troca da tiara da rainha. Abusaram do desespero dele.

       -Sim, mas Lucius vai usar isso contra você. – ele alertou severo em suas colocações, pois precisava lhe contar algo bastante difícil – É possível que a essa altura Lucius saiba de informações que você não sabe. Sobre Tuba e sobre a clausura.

       -O que ele poderia saber que eu não ainda não saiba? – perguntou incrédula.

       -Tubã roubou a tiara com a melhor das intenções. Mas Tubã tem um histórico que depõe contra ele, e essas razões justas podem ser facilmente distorcidas. Ano passado, Reina negociou com Miquelina a sua venda. Meu pai concordou com o valor a ser pago. A única exigência da carcereira era que você saísse do Ministério do Rei casada. Caso a transação fosse descoberta, isso amenizaria a punição contra ela. Estava tudo acertado... Mas Tubã deu para trás. Lucius pode usar esse argumento para convencer que Tubã não precisava roubar a tiara enganado por promessas de liberdade. Ele mesmo abriu mão de uma forma rápida e fácil para liberta-la.

       Claro que Eleonora não sabia disso.

       -Aquele bandido! – indignou-se – Como ele ousou dizer não?

       -Tubã não lida bem com as responsabilidades da vida. Acho que o casamento o assustou. Reina começou a falar sobre casa, trabalho e crias, e como esperado, Tubã escapou. Alegou que...

       -...não poderia me escolher e deixar as outras para trás – ela completou, pois conhecia esse discurso de cor. – Tubã me deve uma boa explicação! Eu poderia estar longe daqui a um ano! Poderia ter encontrado elfos para casar com minhas amigas e tira-las da clausura! Tubã é um imprestável mesmo! Quem ele pensa que é, para achar que eu ficaria casada com ele? Trabalho? Eu me sustentaria! Se bobear, sustentaria aquele boa vida também! – furiosa, devaneou – E casa? Eu não quero uma casa! Vivi presa à vida toda! Eu quero a liberdade! Crias? Eu não teria crias com um elfo covarde e boa vida como ele! E se tivesse, eu criaria minhas próprias crias! Ah, o dia que eu por minhas mãos sobre Tubã... – ela não teve palavras para descrever o que faria com o amigo, mas com certeza envolveria muitos tapas e gritos.

       -Não fique magoada com meu irmão – ele defendeu, apesar de Tubã merecer, defendeu Tubã. Os sentimentos que nutria por ele, eram maiores do que qualquer ciúme de macho. – é a natureza de Tubã.

       -Oh, sim. Agora vejo porque ele se sente no direito de agir inconsequentemente o tempo todo! Um pai Conselheiro que finge não ver suas falhas e um irmão Guardião que o protege incondicionalmente! Você alivia todos os defeitos de Tubã! – exasperou-se.

       -E o que eu devo fazer? Romper com ele? – Egan jogou de volta. – Odeio quanto esperam que eu concerte Tubã. Ele não está quebrado para precisar de concerto! – o Guardião levantou e disse com raiva, que não era dela, e sim da situação que vivia – O mundo está louco e aos pedaços, e caso ninguém note, a única pessoa que está vivendo e sendo feliz, é Tubã! O resto... – apontou a si mesmo e o lugar onde estava.

       -Não se engane. Tubã não é feliz. Ele finge para não causar dor na família que o acolheu –ela retrucou – Sabe a história dele? De onde ele veio? Dos seus pais? Alguma vez, Tubã lhe contou sobre isso?

       -Não – ele admitiu, envergonhado. – Ele nunca confiou em mim ou no meu pai. Nunca nos contou sobre sua história. Reina sabe, mas também nunca disse uma palavra sequer.

       -Não é falta de confiança que calou Tubã. Ele não quer lembrar. Tubã não se prende a nada, Egan, porque ele não entende que há onde se apegar. A mãe dele era uma fada de taverna, uma prostituta. Ela era conhecida por ter crias e as vender para Caçadores de Fadas. Ela emprenhava em troca de pagamento em ouro. Quando nasceu um elfo, vendeu para um Caçador de Recompensas, que o criou até os quatro anos. Tubã foi usado em pequenos furtos e golpes contra camponeses. Ele era a isca. Foi criado assim, sendo usado. Ele não sabe viver diferente. No orfanato, ao menos, sabia que não o usávamos, pois não havia nada a ser tirado dele. Agora, com uma família, ele não sabe o que esperar da vida. Ele está perdido, sem rumo. Ele não quer se casar comigo, ou com qualquer fada que o tente seduzir. Tubã quer ser sozinho, quer se proteger da má fé alheia. Mas seus planos foram frustrados, ao ter uma mãe zelosa que o ama, um pai que o protege e um irmão que vive por ele.

       -Se Tubã houvesse falado sobre isso... – Egan tornou a sentar, confuso com a revelação.

       -Então, não seria Tubã. Ele não fala sobre seu coração. E sobre suas magoas. Ele faz um truque de mágica e nos faz rir. É o seu modo de dizer que está tão triste, mas tão infeliz, e tão desesperado, que precisa de uma razão para sorrir, ou vai desistir de tudo e se entregar a solidão. Muitas vezes, ele nos alegrava no orfanato, pois era sua única forma de aguentar e sobreviver a toda a tristeza que sentia. É assim a sina dos abandonados, Egan. Não é bonito. Não é fácil. Mas sobrevivemos.

       Era a pior conversa para ter com seu grande amor, momentos antes de seguirem viagem, para um caminho que possivelmente a levaria para a morte ou as masmorras.

       -Eu perdi muita coisa na vida, Eleonora. Primeiro minha mãe... O meu pai acha que não me lembro dela, que era jovem demais para ter lembranças... Mas eu lembro. Todos os dias. Depois meu irmãozinho... Eu ainda ouço o choro dele, de dor e sofrimento, sucumbindo para a doença que o matou. É só fechar os olhos que eu lembro. Mas eu não conheço a dor do abandono, por que nunca me deixaram para trás por intenção e sim por força maior. Eu não posso entender do que fala. Mas posso entender sobre dor e sofrimento.

       Em torno deles a chuva intensificou-se, e o barulho naquele momento os obrigou a encerrar a conversa. Os dois fixaram o olhar na água que despencava do céu, e corria pelos galhos e cipós, molhando em volta, mas não sobre eles. Relativamente bem protegidos, eles assistiam a vida seguir seu rumo.

       -Eu nunca penso sobre abandono. Eu penso sobre reencontro. Encontrar minhas amigas, encontrar meu grande amor. Encontrar Reina, encontrar a liberdade perdida desde o dia que nasci. Eu prefiro pensar em encontros e não despedidas. – ela sussurrou, esperando que ele ouvisse, apesar do barulho da chuva. – É menos doloroso assim.

       Egan sabia que Eleonora referia-se a Tubã ao falar em um grande amor, por isso, baixou a cabeça e fitou o chão úmido de chuva, folhas e mato. A fada estava recostada contra o amplo tronco da árvore, suas belas asas abertas, e esparramadas em sua volta. Sua cabeleira clara parecia algodão em torno dela. Seu olhar era de macho, e não de Guardião, e pelo acelerar da respiração da fêmea, captava essa sutil mudança entre eles.

       -Fadas são criaturas impressionantes. – ele acabou por divagar – Possuem dons e asas. Possuem o mundo nas mãos. E ainda assim, permanecem ao lado de seu elfos escolhidos. Alguns chamam de submissão.

       -Outros de amor –ela completou, suave – Eu posso ser presa e morta. Posso não ver o nascer de um novo dia. Tudo pode acontecer, Egan. E eu nunca... – perdeu-se em seus pensamentos de desânimo. – Eu nunca fui beijada.

       -Eleonora. – ele disse em tom de repreensão.

       A despeito disso, ela respondeu:

       -O que posso fazer? A natureza me fez animal, Egan. Eu tenho que lidar com a dor do cio. Só que a natureza também me deu um coração. E, este pede por um beijo. Eu quero ser beijada antes de enfrentar Santha. Um único beijo. Você é um Guardião, não é? Pode se controlar.

       -Está usando de artimanhas para conseguir o que quer – ele alertou – E isso é perigoso, fêmea.

       -Tenho vivido em constante perigo, Guardião. E este é o primeiro momento perigoso que me fez desejar não fugir. – ela se moveu, e suas asas se agitaram em suas costas.

       Extensões perfeitas do corpo da fêmea, as asas se agitaram e a ergueram apenas o suficiente para ficar de pé e poder andar até ele. A túnica escurecida pelo uso, e rasgada em muitos pontos, não foi obstáculo para que se ajeitasse ao lado do elfo.

       O elfo a acolheu, desmentindo vergonhosamente suas negativas.

       A pele clara da fada era um convite ao troque. Egan escorregou a palma da mão pela bochecha de Eleonora usufruindo desse predicado, enquanto analisava seus traços. Ela era toda clarinha, esbranquiçada e peculiar. As sobrancelhas, os cílios, as Iris dos olhos. A cor predominante era tão clara que era impossível definir se era loiro ou branco. Os olhos poderiam ser definidos como azuis, mas somente se ele pensasse em um lado de águas translucidas e azuladas. Era muito similar em aparência e na sensação que causava em quem lhe olhasse nos olhos.

       O nariz arrebitado, a testa alta, impondo sua inteligência a quem a olhasse. O queixo desafiador era estreito e fácil de segurar, e ele não cansaria de fazer isso enquanto vivesse.

       O suspiro da fada delatou sua expectativa e também muito dos seus sentimentos guardados a sete chaves em seu coração. Egan manteve seu rosto imóvel, segurando seu queixo com carinho, e aproximou o s lábios dos de Eleonora.

       Lábios rosados, entreabertos e fartos, que mesmo depois de uma estadia no deserto ainda conservam o aspecto macio, enquanto os dele estavam rachados e feridos. No entanto, não seria isso que o deteria. Não pensava com clareza, assim como ela. Envolvidos pela magia do cio da fêmea, nada mais importava além de trocarem um beijo.

       Os primeiros toques dos lábios do macho a fizeram tremer. Foi tão sutil e leve que a fez descontrolada. Eleonora agarrou a cabeça de Egan e grudou os lábios nos dele. Romantismo não tinha espaço naquela situação.

       Era o cio, ele sabia bem disso, mesmo assim correspondeu. Eleonora não sabia beijar, e quando ele avançou por dentro de seus lábios tocando sua língua com a sua, levou um susto e parou de tentar beijar. Deixou-se conduzir.

       O pensamento louco sobre não o agradar, foi banido de sua mente, quando Egan a trouxe para seu colo. Era perigoso prosseguir com o beijo, mas ele o fez. Aprofundou o contato, arrancando gemidos da fêmea. Suas mãos emaranharam o cabelo macio e a cingiram mais perto, espremendo as curvas do torço de Eleonora contra sua armadura.

       Ela correu os dedos pelo metal da armadura, que cobria o peito do elfo, e estranhamente fazia sentido. Era como toca-lo. A armadura correspondeu com ardor, queimando a ponta dos seus dedos, e ela entendeu que fazia amor com o elfo, mas também com sua armadura. Eram fundidos em um só e ao ter um, automaticamente precisava da permissão do outro. E obtivera. Esse pensamento, de dominar elfo e armadura, excitou-a ao ponto da dor. Ela grunhiu e rompeu o beijo, num frêmito de desespero, para sentir o gosto do metal, lambendo sobre o metal pesado. Egan gemeu, e agarrou sua cabeça, obrigando-a a olhar em seus olhos. Os olhos do elfo haviam se tornado uma tempestade descontrolada, e via apenas a paixão e nenhum autocontrole.

       Egan estendeu uma das mãos para tocar na junção das asas da fada e Eleonora arquejou, empurrando o corpo para mais perto, com um gritinho de prazer incontrolável.

       -Suas asas são sua extensão. A armadura é a minha extensão. Entende isso, Eleonora?

       -Sim... –ela choramingou, tentando caçar um novo beijo, mas Egan a segurou, mantendo seu rosto preso por sua mão.

       -A armadura a aceita. – era como uma ameaça formalizada com as palavras – ela lhe pertence também. O peso dessa responsabilidade é maior do que você ou eu. Entende isso também?

       -Sim, Egan, não pare agora. Está doendo, não pare agora – ela mesma tocou sobre o ventre, um pouco abaixo, onde suas pernas estavam apartadas, em torno do quadril do elfo, que sentado, olhou para baixo, sabendo que essa dor que a consumia somente iria embora depois da conclusão do cio.

       -Isso vai passar em breve, eu prometo, fada, em breve essa dor vai embora – ele tocou sobre sua mão e desceu os dedos sobre a túnica, contornando o vale entre suas pernas, e Eleonora se contorceu, sem esperar por algo assim.

       Ele encostou sua face em seu ombro, para que ela se aquietasse enquanto a tocava. Era maduro sexualmente e sabia como agradar uma fêmea. Na situação de Eleonora pouca coisa poderia alivia a dor. Mas com certeza ele faria essa experiência menos penosa.

       Não ousou tocar sob a túnica, mesmo sabendo que ela estava nua. Sentia a umidade e o calor, através do tecido. Esfregou os dedos lentamente a principio e a fada agarrou o músculo do seu braço com força, fincando os dedos na carne, sem notar o que fazia. Enquanto gemia e se contorcia, o rosto escondido em seu ombro. Era provocação pura, Egan esfregou com mais força, roçando também uma das mãos por suas costas, entre as asas, arrastando-a para um sentimento e uma emoção nunca antes esperados.

       Eleonora não conseguia pensar, apenas sentir. Mordiscou o metal da armadura, e foi recompensada com um esfregão de dedos mais forte, que a fez saltar em seu colo e agarrar-se com mais força a ele. A pele do pescoço de Egan era convidativa demais para ignorar, e ela cravou os lábios ali, sugando a pele e mordiscando, obrigando-o a se controlar, lutando contra os impulsos mais básicos de sua anatomia masculina.

       Não podia aguentar mais tempo, sem tomar a fêmea para si por isso, intensificou o rodilhar de dedos entre as pernas da fêmea e exultou ao sentir o molhar amplo de seus dedos, antes mesmo dela arfar, gemer e engasgar com o próprio prazer, o corpo todo tenso, e repentinamente mole contra o seu.

       Eleonora nunca imaginou algo assim. Sem pensamentos claros, ou consistentes, foi pega nos braços e pousada contra o tronco da árvore, abrigada da chuva, e longe do elfo.

       -Aonde você vai? – perguntou quase sem voz, sem ar e sem vergonha.

       -Preciso me afastar. Eu estarei vendo-a. Feche os olhos e descanse uns minutos. Seguiremos viagem quando acordar. – ele prometeu, e se afastou tão rápido, que Eleonora mal viu para onde foi.

       Um sorriso em sua face, ela se aconchegou contra a árvore, a cabeça descansando no braço dobrado, o corpo satisfeito e cansado, pego numa letargia até então desconhecida. Sentia o cio flamejando no fundo do seu ser, sendo alimentado por aquela sensação, mas por hora estava calma e a dor havia esmorecido um tanto, o que a fazia agradavelmente exausta.

       Aquilo era prazer puro, pensou. E Egan lhe proporcionara isso. Como não amar uma criatura assim? Era seu elfo escolhido, e agora, não restavam mais dúvidas sobre isso.

       Egan refugiou-se longe de Eleonora, mas perto o bastante para enxerga-la adormecida e vigia-la. Para que nenhum perigo a alcançasse. Inclusive ele. Foi preciso algum tempo para recuperar o autocontrole.

       Neste tempo, ele olhou para cima, para a chuva que se dissipara como que por magia. Para o sol abundante que iluminava toda a floresta. Sorriu diante da imagem do arco iris longínquo no céu que coloria entre as nuvens.

       Olhou para sua fada escolhida e soube que esse fenômeno da natureza era reflexo do dom completo dela.

       Proporcionara um pouco de felicidade para Eleonora e esse sentimento era inexplicável.

       Egan a deixou descansar por horas, não teve coragem de obriga-la a levantar. Eleonora enfrentaria o mundo quando chegasse ao castelo. Era melhor que estivesse descansada e alerta.

       O dia correu tão rápido, que a decisão de passar a noite na floresta, foi a mais sábia.

 

                            Lágrimas de ouro

        Nos primeiros raios de sol do dia seguinte, Eleonora seguiu o elfo pela estrada que conduzia ao reino. Depois de um primeiro voo triste, por ser longe de suas amigas, Eleonora os levou diretamente para onde Egan apontava.

       Não foi um momento para ser recordado. Ela apreciou a liberdade, mas era um sentimento atrelado na culpa, por não ter esperado suas amigas. O que deveria ter sido o momento mais feliz de sua vida se tonou um dos mais tristes.

       Juntos pousaram no chão, e Egan a cobriu com uma capa. Ela não fez perguntas, era hora de obedecê-lo. Ele desejava esconder suas asas, e ela não questionou. E foi assim, que cruzaram os portões do Castelo, e atravessaram o vilarejo.

       Toda a movimentação do comércio e trabalho diário da vila cessou enquanto as fadas e elfos focavam total atenção na fada aprisionada que era levada pelo Primeiro Guardião. A assassina do Rei, resgatada e abatida, sendo levada para julgamento. Era assim que a viam.

       Não era surpresa que ele houvesse sido o primeiro a retornar com êxito. Sempre o melhor em tudo que fazia Egan não frustrou as expectativas de nenhum deles, trazendo a prisioneira antes de seus amigos encontrarem as demais fadas fugitivas. Mas esse êxito era questionável. Ainda não era uma fada condenada, pensou Eleonora, olhando para os seres a sua volta, pensando na surpresa que todos teriam muito em breve.

       Em uma das barracas de comércio, em meio à agitação, Eleonora enxergou Reina. A fada não fez um único movimento em sua direção, e essa confiança em Egan era tão clara e emocionante, que o Guardião fingiu não notar, para não se distrair de sua missão atual. Reina entregava em suas mãos sua filha de coração e não temia a escolha do elfo.

       Os olhos da fada mais velha estavam em suas costas, Eleonora percebeu, tentando ver as asas. Eleonora usava uma capa de veludo, que pertencia a Egan, e que escondia as asas nascidas.

       E mesmo sem ver suas asas ou saber se eram nascidas ou não, Reina não moveu um músculo em sua direção, pois confiava cegamente no bom julgamento de seu filho. Naquela distância, o cheiro do cio era forte, mas não do padecimento das asas sendo assim julgava que a pesada capa cobria a prova definitiva contra Santha e Lucius.

       Os minutos silenciosos andando em direção ao forte fez Eleonora sentir diversos sentimentos opostos. Primeiro de tudo, o medo. Então, o sentimento que prevaleceu foi o desejo de abrir as asas e enfrentar Santha. Enfrentar Lucius.

       Poucas criaturas no mundo poderiam entender esse sentimento de desespero, de opressão. De enfretamento, embate, renegação. Ela queria e precisava olhar nos olhos de Santha e expor suas asas, como um triunfo sobre aquela que desejou e executou sua morte.

       Mostrar a Santha que apesar de tudo, ela sobreviveu. Lutou, e venceu, e a vida era seu prêmio absoluto. E quem sabe, a liberdade. Provar-se que às vezes, a bondade e a verdade prevalecem e exultam sob a mentira e o mal.

       Era difícil, e penoso o caminho, mas era preciso lutar pela verdade.

       Egan a levou diretamente para o castelo, subindo pelas altas escadas, de degraus de pedra construídos há muito séculos atrás. Eram seguidos de perto pelos Guardiões mais jovens, que começaram a surgir, alertados pela movimentação anormal na vila. Passaram a seguir o Primeiro Guardião, como sombras.

       Quando adentraram o amplo salão do reino, onde a rainha mantinha-se no trono, e era entretida pela dança de algumas fadas que compunham o balé real, juntamente com algumas famílias de Conselheiros reais, todos se calaram.

       Era esperado que optassem por entreter a rainha, para que ela se contivesse e não tornasse a vida dos Conselheiros um inferno, usando de seus caprichos constantes e ordens estapafúrdias!

       Lucius foi o primeiro a se mover, enxergando a fada fugitiva antes de todos. Deixou seu posto, ao lado da rainha para aproximar-se do Guardião.

       -Estou de volta – anunciou Egan sem rodeios, olhando diretamente para Santha, ignorando Lucius. – Trago comigo a fugitiva que atende pelo nome de Eleonora, cumprindo assim minha missão.

       Por um segundo Eleonora pensou se não estava enganada e o elfo não a trairia. Era um pensamento constante. Assustador, mas ela preferia acreditar nos bons sentimentos de Egan. Colocava nas mãos de seu elfo escolhido a vida de suas amigas e sua própria vida. Isso dizia muito sobre o amor que sentia. Com o coração acelerado, Eleonora preferiu apegar-se a esperança.

       -Onde a encontrou? – Foi à pergunta fria. Gelada. Sem emoção. Era assim que as palavras soavam na boca de Lucius.

       -Deserto das Areias Vermelhas – foi Eleonora quem respondeu por Egan, com uma punção de ódio revirando dentro de si, e destruindo seu bom senso, como Egan imaginava que aconteceria. – Escondi-me no deserto. Sobrevivi no deserto. E aqui estou. De volta ao meu lugar.

       Lucius não responderia para a filha que em breve estaria morta pela sua espada. Mas os olhos de Eleonora lhe cobraram que respondesse. Por mais cruel que fosse ele não pode evitar olhar em seus olhos. Não conseguiu evitar imaginar o que essa fada escondia em seu olhar.

       -Sim – Eleonora respondeu a pergunta que encontrou em seus olhos – As asas nasceram. É muito tarde para me matar. Egan as viu. O Primeiro Guardião, um elfo de poder e respeito, que não poderá ser calado, mesmo que eu esteja morta, viu minhas asas e ouviu minhas palavras. No Deserto, onde tudo é cruel e mortal, eu padeci do nascimento das asas, e sobrevivi. Na Floreta de Saul, nas margens do Rio Branco, como jamais esquecerei, minhas asas romperam a carne e surgiram. E agora, aqui estou. Pronta para tomar o que é meu. Pegar a força. Tirar de você.

       Medir força com Lucius não era uma boa ideia. Mas Eleonora precisava dizer a ele que era a vencedora. Que era justo que fosse desse modo, depois de todo o mal que lhe fizeram!

       Santha levantou do trono e disfarçando o tremor do corpo, apontou em sua direção:

       -Assassinou o meu Rei. Não tem o direito de falar comigo. Não tem o direito de falar com a rainha! Assassina que deve ser punida com a morte! O abismo. Leve-a Lucius. Corte suas asas, e a jogue no abismo. É a única punição que lavará a honra e as lágrimas derramadas dentro do meu castelo! – A voz tremeu, e Eleonora sentiu pena.

       Tanta pena que era impossível Santha não perceber o brilho em seu olhar.

       -Não olhe para mim! – Santha berrou, apontando para Eleonora, sua mão e seu braço trêmulos.

       -Houve uma mudança de planos – Egan ergueu a voz, chamando assim atenção de todos, calando os gritos da rainha – Novas provas que devem ser julgadas com calma. Peço aos Guardiões que se aproximem, e aos Conselheiros, que façam o mesmo. Não caberá a Lucius e Santha a decisão de punir pela morte do Rei.

       -Enlouqueceu Egan? - A voz a contestá-lo vinha de seu pai, que ao adentrar o salão parecia desacorçoado com o que ouvia – Permitiu que essa fada o ludibriasse?

       -Não – Egan enfrentou-o – Apenas me rendi à verdade que não pode ser contestada, a menos que apresentem novas provas. – ele aproximou-se de Eleonora e soltou o broche que prendia a capa, em um movimento íntimo, que fez os olhos da fada inundar-se de lágrimas.

       Ele a exibiria ao mundo, com o orgulho de quem sabe de sua inocência.

       A capa cedeu e ela se encolheu, apavorada.

       -Mostre suas asas, fada – Egan ordenou.

       Eleonora nunca quis passar por isso. Não pediu para ser rejeitada justamente por quem deveria ter-lhe dado amor e proteção. Sempre temeu a exposição que uma fêmea agraciada pelas asas passa, ao ser submetida ao ritual de escolha que acontecia anualmente. Naquele mesmo salão, todos os anos as fadas da clausura eram exibidas como mercadorias.

       Qual a diferencia do que acontecia agora? Nenhum.

       Magoada, andou alguns passos para frente, e encarou Lucius antes de dizer:

       -Saia da minha frente, inseto. Quero que Santha veja as asas antes de todos. Quanto a você... Não é nada pra mim.

       Lucius não esperava que a cria que abandonara para a morte pudesse um dia enfrentá-lo e principalmente ser tal como ele, cheia de domínio próprio, de força interior e de esperteza. Que poderia esconder o medo, e camuflar o pavor, exibindo aqueles modos gelados, do mesmo modo que ele fez a vida toda.

       A vida fizera sua cria ser uma copia física de sua progenitora, mas por dentro, era uma copia perfeita dele mesmo. Sua melhor obra estava diante de si.

       Reconheceu na face orgulhosa tanto de si que se arrependeu de tudo que fizera. Mas o arrependimento não pode ser medido por sentimentos e sim por atos. E era demasiadamente tarde para ele. E para Santha também.

       -Não concebemos escolhas aos assassinos. Levem-na para as masmorras – Lucius elevou a voz.

       Havia um claro impasse. Sem o Rei, e nas mãos de uma rainha instável, deveria prevalecer a vontade dos Guardiões e Conselheiros, quando em consenso.

       O pai de Egan aproximou-se e pôs uma das mãos no ombro de Lucius, fazendo-o recuar em suas palavras de ordem.

       -O Primeiro Guardião defende a acusada. É justo que esclareça suas razões antes que se puna um inocente e incorra no risco de deixar os assassinos a solta.

       O simples ato de usar as palavras ‘os assassinos’ era um indício que sabia muito bem de todo o plano e confiava que Reina não lhe mentiria.

       -Não é necessário palavras. A fada deve exibir as asas para que todos saibam que seu cheiro é idêntico ao da rainha. E que sendo sua filha de sangue, deve ser eliminada ou todos saberão que a rainha enganou e casou-se com o Rei usando de mentiras. O cheiro de uma fada pode ser explicado por linhagem, mas as asas não. As asas de uma fada são idênticas as de sua progenitora. Não há margem para contestação de que há um forte motivo para que a rainha Santha e seu amante, Lucius, desejem causar mal a acusada.

       Eleonora não deveria estar imóvel pensou Egan, ela fitava Santha com tanta raiva, mas era incapaz de expressá-la, pois lá no fundo da alma doía terrivelmente saber que era alvo de um plano, vindo daquela que deveria ter lhe amado a vida toda.

       A loucura nos olhos de Santha, a fragilidade por trás da rainha louca. Ela conhecia aquela expressão. Durante anos ela enxergou isso diante de si, em suas amigas, em suas colegas de Ministério do Rei. Até mesmo nas carcereiras. Em si mesma, foi lá que Eleonora mais viu essa expressão.

       Eleonora aproximou-se de Egan, singelamente pedindo que não a deixasse sozinha. Ele segurou sua mão e a levou para longe de Lucius e para perto dos Guardiões, pois aqueles elfos eram sua segunda família e como tal, também a acolheriam.

       -Prenda esse Guardião por desobedecer às ordens da rainha – Lucius apelou – É um traidor! Aliou-se a essa assassina no golpe para tomar o lugar do Rei! É isso! Um plano entre Guardiões e fadas da clausura!

       -E de que modo uma fada da clausura poderá tomar o poder? Exigir o torno? – Foi à palavra do pai de Egan, desafiando o elfo – A menos que corra sangue real nas veias da fada, ela nada pode tramar contra uma tomada de poder. O trono pertence aos descentes de sangue do Rei e da rainha. Tão somente a eles, inexistentes até esse momento. Mesmo que a rainha seja destronada, ainda assim, sem descendentes de sangue, o trono será disputado entre Conselheiros e Guardiões!

       Lucius se calou.

       Santha desceu os degraus que elevavam o trono a outro patamar, e andou a passos lentos em direção a Eleonora. Era possível que diante da situação, houvesse mudando seus planos, pela necessidade de escapar a todo custo!

       Egan impôs-se entre as duas, mas Santha não parou ou deu atenção a um simples Guardião, fosse Egan ou não.

       -Eu nunca pude vê-la – ela admitiu – Apenas um relance de olhar quando nasceu – ela admitiu outra vez – Eu nunca imaginei que meu amante teria matado minha filha. Ele a levou morta, disse-me que estava morta, e logo depois o Rei me escolheu. O Rei sabia de tudo. Juro que sabia. Assim como eu jamais imaginei que estivesse viva. Perto de mim – mentiu – Mostre suas asas, fada da clausura. Se é mesmo a minha filha roubada de mim, é muito bem vinda ao meu lado no trono...

       Egan ficou surpreso com a nova informação. Eleonora mediu as palavras da rainha e seus olhos. Cada célula do seu corpo gritou de vontade de acreditar naquela doce mentira.

       A verdade apunhala e sangra. A mentira afaga e presenteia. Era assim a vida, e ao contrário de confortar, revoltava.

       A sua volta ela não olhou para Lucius e sua indignação que tentava aproximar-se e investir contra Santha, vingando-se pela mentira que o levaria a morte. Foi contido pelos Guardiões e calado ouviu:

       -Eu sei por que fez isso – Eleonora disse afinal – Eu sei como é crescer no Ministério do Rei – contou sem saber que a tristeza trazia lágrimas silenciosas em suas faces – Eu sei o desespero da clausura. O medo de uma vida sem ver a cor do dia. Eu sei da expectativa de esperar ser escolhida... Do desamor de querer alguém que nunca poderá lhe escolher. De viver sem saber o que é liberdade. Eu sei que trocou sua descendência por liberdade. Eu entendo – os olhos de Santha estavam secos, arregalados e frios. Mas lá no fundo das íris vítreas havia reconhecimento pelas verdades impressas nas suas palavras – Entendo porque foi mais fácil abrir mão de tudo. Eu só não... Consigo aceitar. Entender é fácil. Perdoar... Eu não sei perdoar alguém que me odiou desde o dia da minha concepção. Eu sei que mente, Santha. Não é minha mãe. Não é nada meu. Tão pouco é Rainha. Assassinou o Rei para que ele não soubesse. Para que a decisão fosse sua. Para que me caçassem como a um animal, e eu fosse morta antes das asas nascerem e serem vistas pelos Guardiões e Conselheiros. Mas não foi o que aconteceu – ela deixou as asas finalmente se abrirem e o som de surpresa em torno de si não a teve o poder de abalar ou desviá-la de sua missão – Egan acreditou em mim. Minhas asas são meu álibi. Eu nunca me deitei com um elfo, e meu cio é legítimo. Eu provo. E quem terá sido a fada a deixar o mesmo cheiro que eu? Quem é a única com razão para tudo isso? Quem foi à única fada a testemunhar meu crime? E também a única a ter motivos para querer ao Rei e a mim, mortos?

       -Ainda sou a rainha – Santha alegou mudando a postura de tal modo que ninguém reconheceu à bela e fútil rainha, apenas um demônio de ódio e rancor – A decisão ainda é minha! Levem-na para as masmorras! - gritou.

       -Por quê? Para ter a chance de cerrar minhas asas e livrar-se das provas? Agora é tarde, todos já sabem do seu crime! - Eleonora gritou de volta, sem perceber que Santha retirava algo das vestes.

       -Sou a rainha! Rainha! – Seu berro estremeceu as paredes e antes que Egan pudesse tentar evitar, ou prever, ela fincou um punhal nas costas de Eleonora, exatamente na raiz das asas.

       Era um movimento louco, de alguém que nunca primou pela razão. Ela cerrou com força, ignorando a dor de sua própria cria que se curvou para o chão sob o peso do seu ataque. Tudo muito rápido, frações de segundos.

       Os gritos de dor de Eleonora cessaram quando Egan imobilizou a rainha e do outro lado do salão os Guardiões fizeram o mesmo com Lucius, preventivamente, pois o ataque da rainha confirmava as alegações sobre sua insanidade total e a possibilidade de ser a responsável pelo assassinato do rei.

       Santha tentou cerrar as asas, numa patética tentativa de acabar com a prova do seu crime. Estava louca e apesar de Eleonora ter um talho doloroso na carne, a única dor verdadeira, era no coração de Eleonora:

       -Minha mãe! – Ela gritou para que Santha ouvisse antes de ser levada, levantando do chão, cambaleando mesmo assim, precisando ficar de pé para mostrar a ela que não importava quantas vezes tentasse derruba-la, sempre levantaria e a enfrentaria – Como pode? Como pode viver sabendo que tirou minha vida? Como pode me abandonar? Me expulsar da sua vida por causa de ouro e poder? Como? Onde está seu coração? O que você é? U monstro é o que você é! Não merece suas asas, não merece sua beleza, não merece o título que ostenta! Não é uma fada – Eleonora tentou correr atrás de Santha, mas foi contida, mantendo os gritos mesmo assim – não é uma fada, é um verme! Um verme asqueroso que merece sentir a dor que eu senti a vida toda! Eu a odeio! Eu a odeio tanto! Mas tanto! Tanto...!

       Seu choro cortou o coração de Egan, mas ele não podia aliviar seus sentimentos, apenas barrar sua passagem e a segurar, mesmo que ela dobrasse o corpo e tentasse se soltar.

       -Acabou, fada. Acabou – ele a consolou enrolando-a na capa e a erguendo do chão.

       Mesmo em seu descontrole nervoso, Eleonora suspeitou que não fosse assim tão simples. Quanto tempo leva para um ser esquecer tanta rejeição?

       -Ainda falta muito para provar a inocência desta fada – foi à voz forte do pai de Egan que trouxe lucidez. – As demais fadas devem ser encontradas primeiro.

       -Não será necessário, meu pai. Eleonora diz ser casta. O que torna todo o testemunho de Santha falso. A única a se deitar com o Rei naquela noite foi ela mesma. Ambas partilham o mesmo cheiro natural, típico de fadas da mesma linhagem. Uma das duas deitou-se com Isac naquela noite. E se Eleonora é casta... Não sobram dúvidas sobre Santha estar mentindo em sua versão do que aconteceu naquela noite. Se mente sobre Eleonora, mente sobre as demais fadas. Foi apenas um plano ardiloso. Apenas isso. O Rei está morto e os culpados são Santha e Lucius.

       -Primeiro, provaremos a castidade da fada. Depois... Veremos o que fazer sobre a rainha. – ele sugeriu e não havendo divergência de opinião entre os demais Guardiões, Egan e Eleonora foram levados para que ela pudesse ser atendida.

       -O que farão comigo? –ela balbuciou sendo levada por Egan.

       -Por enquanto nada, agora se cale, que você não me obedeceu em nada que pedi. – ele estava no limite do autocontrole por causa da situação que viviam. A fada não entendia a dimensão da situação que enfrentavam. Era emocional demais para considerar a amplitude do que vivia.

       Ela via tudo pelo lado pessoal, por sua situação e por tudo que perdeu no campo familiar. Egan lidava com a situação de uma troca de governo. Uma tomada de poder. Algo que acontece entre os séculos, de forma natural, com a sucessão de um Rei por outro, sempre na mesma linhagem, e nunca por um golpe e exigência da substituição de uma rainha! Nunca de modo vergonhoso e abusivo. Eleonora não conseguia compreender o reboliço que isso causava.

       -Eu... Eu não pude me controlar. Ela me atacou, Egan. Santha tentou mais uma vez me ferir... – ela não queria chorar, mesmo assim escondeu o rosto em se peito e ele sentiu as lágrimas molharem sua armadura.

       Palavras não poderiam abrandar o que sentia, e tão pouco Egan as possuía para ofertar-lhe.

 

       Algum tempo mais tarde, em um dos quartos do castelo, nas alas relegadas ao uso da família real, Eleonora estava sentada na cama, nua da cintura para cima, enquanto Reina fazia curativos em sua pele, onde estava ferida.

       O choro havia acabado, mas ela estava abatida e apática, sem coragem para dizer nada. Mesmo assim, algo lhe veio à mente, em meio a toda a confusão do confronto com seus progenitores.

       -O que o pai de Egan aquis dizer com provar minha castidade? – Era uma dúvida que martelava em sua mente, e a fazia pensar sobre a repercussão disso em seu futuro.

       -O que você acha, querida Lora? – Reina perguntou em tom sorridente, sendo provavelmente a única que entedia o que acontecia por outro ponto de vista. Ela não enxergava apenas as brigas, a luta, aprovação e a questão política. Reina enxergava a liberdade de sua menina, a prosperidade quando aquilo tudo acabasse. – Os Conselheiros e Guardiões escolherão um deles para comprovar sua castidade. Mas não se preocupe, será um breve momento de irritação e estará livre das acusações.

       -Eu não poderei escolher qual deles? – Ela perguntou horrorizada, afastando-se de Reina, chocada – Eu prometi a Egan que... Ele seria o Rei se me ajudasse. Eu empenhei minha palavra!

       -E o que tem uma coisa a ver com a outra? - Reina perguntou surpresa, tornando a cuidar de seu ferimento, que graças à sorte, não era tão profundo que não pudesse cuidar com seu dom de trabalhar ervas medicinais. - Prove sua inocência. Depois cumpra sua promessa. A cada segundo a liberdade total se aproxima de você, minha querida Lora. E de suas amigas, de nossas meninas perdidas no Reino das Fadas. Elas estão desamparadas e desesperadas. Estou preocupada com Tubã sem supervisão, andando por aí... Com Joan, sem minhas poções e chás... Como não deve estar sua saúde sem cuidado... - suspirou, em lamento - Alma, pobre fada, não é bom que ande sozinha, tensa e acuada. Ela pode cometer algum desatino e a perderemos para sempre. Tenho receio que se ela matar uma única vez, nunca mais pare de matar! Isso precisa chegar ao fim o mais rápido possível. Não renegue a sorte que está desmantelando-se diante de você. – Seu tom continua uma pitada de aviso e represaria - Agora descanse. Durma e descanse. Mais tarde será chamada para saber da decisão dos Guardiões e do Conselho.

       -Mas eu... – Ela pensou em argumentar que não queria deitar-se com qualquer elfo. Queria Egan!

       Reina a fez vestir uma túnica limpa e macia, em linho caro, ricamente bordado, e a colocou sob as cobertas, ignorando seus protestos.

       -Para onde levaram Santha? – perguntou, sem saber de onde vinha a necessidade de saber do paradeiro de Santha, a rainha louca.

       Reina não gostou da pergunta, e o modo como a olhou era a prova disso.

       -Lucius foi levado para as masmorras temporariamente. Ele é apenas um agregado do reino, e ousou gritar com Guardiões e rebelar-se contra Conselheiros. É atribuída a ele a punição de aguardar junto às masmorras. Quanto a Santha... Não pode ficar no trono enquanto as acusações não forem descartadas. Também não possui família que a abrigue. E não pode ser levada para as masmorras, pois não há sentença firmada ainda. – engoliu em seco e olhou-a nos olhos, estes lhe dizendo bem mais do que suas palavras – Levaram-na para seu lugar, de onde ela veio... O único lar a que pertence: a clausura.

       Eleonora não conseguiu manter o olhar em Reina. Era desconcertante saber que uma criatura não valia nada além do que lhe era atribuído ao nascimento. Reina não insistiu no assunto, tão pouco Eleonora queria falar disso agora. Com cuidado, Reina cobriu-a com as cobertas e lençóis, como uma verdadeira mãe faria com sua cria adorada. Beijou-a na testa e saiu.

       Bem, melhor se calar, pensou Eleonora, absorvendo as palavras ditas por Reina, esperando que fizessem sentido na sua mente. Parecia tão pouco reclamar de um momento íntimo, com um desconhecido, quando poderia ter sido privada de toda uma vida!

       Cansada, deitou na cama e apesar de todo conforto, não conseguiu descansar. Sua mente insistia em lembra-la de Santha, da clausura e de tudo que aconteceu. Do confronto entre elas duas mais cedo, ainda no salão principal do trono. Da agressão. Fechava os olhos e enxergava a face enlouquecida de Santha, ao ataca-la com tanta crueldade.

       Inquieta, afastou as cobertas e levantou-se.

       Era sua última chance de saber a verdade.

       Sua última chance!

 

                            O escuro de saliências

        Para quem viveu toda uma vida andando pelos corredores, sorrateira como os ratos, não houve dificuldade alguma em esgueirar-se até o Ministério do Rei. Conhecia aquele lugar como a palma de sua mão.

       Desde que saíra da área nobre e luxuosa do castelo, destinada para a família real, Eleonora levava consigo uma pequena ajuda. Seu dom aflorado conduzia uma singela brisa como aliada. Nada demais, apenas uma delicadeza para esconder seu cheiro de cio, e prevenir que o odor alertasse sobre sua presença.

       Era aprazível sentir-se poderosa. Dominar seu poder e usufruir dele. Ao chegar diante do gabinete usado por Miquelina, a principal das carcereiras, Eleonora espiou pela fresta da porta entreaberta. A cobra peçonhenta nunca usava a chave. Gostava de ouvir os gritos das fadas da clausura. Era um prazer secreto que a fada guardava para suas noites.

       Furiosa, sufocando a fúria, Eleonora deixou que a brisa suave encontrasse caminho para a saleta pequena e abafada. Não havia janelas, e Miquelina sentiu um arrepio quando a corrente de ar a tocou. Não percebeu, porém que a corrente de ar levava consigo sorrateiramente seu molho de chaves, sempre preso em seu cinturão, preso sobre sua roupa de carcereira.

       A fada carcereira manteve os olhos de águia abertos, procurando qualquer vestígio de anormalidade. Era seu sexto sentido pressentindo o perigo. Aquela cobra merecia vingança, mas Eleonora se controlou e recebeu nas mãos as chaves, afastando-se apressada pelo corredor.

       Controlar seu dom lhe permitia ludibriar o faro das fadas. Infelizmente não conseguia o mesmo efeito com machos, pois a essências masculina era deveras sensível ao odor do cio.

       Eleonora nunca havia estado na clausura por muito tempo. Às vezes era levada para lá, como punição. Mas quem mais frequentava aquelas celas era Alma e Driana. As duas rivalizavam em punições. Eram assíduas daquelas celas fedorentas. Aqueles quartos mofados e escuros.

       Driana que por conta de sua mente aguçada, naturalmente se tornava um desafio para mente limitada das carcereiras e suas palavras sempre era tomadas como ofensas e soavam arrogantes. E Alma por defender Joan com unhas e dentes, sempre assumir a culpa por tudo, para não ver nenhuma das amigas ser levada para aquele lugar horrível. Às vezes, Eleonora desconfiava que Alma até gostasse da reclusão, pois ao menos nesses momentos ela estava longe da tentação de acabar com tudo usando seus gritos estridentes.

       Pensamentos horríveis. Precisava livrar-se deles.

       Percorrer os mesmos corredores medonhos do seu recente passado causava-lhe uma estranha sensação de claustrofobia. Uma vez provado o gosto da vida em liberdade, era impossível suportar o cheiro daqueles corredores, e ouvir o som dos gritos.

       As celas, como chamavam as fadas, ou quartos, como chamavam as carcereiras, eram lado a lado, cubículos de não mais de um metro. Portas maciças, muitas protegidas pela magia dos dons das carcereiras, impedindo assim as constantes tentativas de fugas. Apenas uma fenda na parte inferior da porta, rente ao chão, permitia passar um prato com comida ou água.

       Em determinado ponto, Eleonora parou e apoiou-se na parede, tentando conter o ataque de nervos que ameaçava torná-la histérica como aquelas fadas que berravam por ajuda. Elas ouviam os passos de Eleonora no corredor, e imaginavam que fosse uma das carcereiras, por isso tanto medo.

       Eram gritos de temor, desespero e esperança, como se mesmo depois de anos de clausura esperassem que um milagre acontecesse.

       Eleonora recuperou o controle e tornou a andar, fingindo não ouvir as vozes. Andou por muitos metros, quando ouviu uma voz que não gritava, e sim sussurrava provavelmente esquecida de tentar ser ouvida. A desistência, nesses casos, parecia ser um desolador companheiro de sofrimento!

       -Por favor, me ajude... Por favor, me ajude... Por favor, me ajude... Por favor, me ajude...

       Era uma mesma sequência repetida sem descanso. A pobre infeliz deveria ter enlouquecido com os anos, e por isso mesmo, sua mente não compreendia que jamais seria atendida em seu pedido de ajuda.

       Eleonora curvou-se e tentou ver pela fresta, e encontrou um par de olhos tentando ver o lado exterior.

       Era uma fada com olhos escuros, olhos desesperados, e sujos, olhos que a muito não viam nada além do horror. Comovida Eleonora apoiou as mãos naquela porta e sussurrou de volta, para a estranha por detrás daquela porta, de um modo simbólico, como se ela representasse todas as outras:

       -Eu vou destruir a clausura. O inferno terá fim, minha querida. Eu juro que os dias de escuridão e dor estão chegando ao fim. Não peça ajuda. Creia em mim, e nada mais poderá atingi-la. Será livre, eu lhe juro. Não chore mais.

       Talvez sua voz calma, ou a convicção em cada palavra dita, ou apenas o olhar sincero, foi o bastante para acalmar os sussurros desesperados da fada. Eleonora sabia que jamais a conheceria pessoalmente. Era algo tão despretensioso e sem interesse, que cortava seu coração em pequenos pedacinhos, e espalhava-o pelos chãos e paredes daquele lugar.

       Os gritos das outras fadas continuavam, mas ela já não sentia tanta angústia. Fortalecida pela certeza de que seria ela a destruir a clausura, o Ministério do Rei e todas as carcereiras, Eleonora recompôs-se e recomeçou a andar, farejando no ar o cheiro de Santha.

       Uma dos quartos mais reclusos era o lugar onde trancafiaram Santha. Eleonora tocou a porta, e sentiu o medo voltar. Cuidadosa, colou a chave no buraco da fechadura e abriu a tranca. Era provável que Santha pensasse ser a visita de uma das carcereiras, pois Eleonora disfarçava seu cheiro para que nenhuma delas farejasse, encontrasse e delatasse.

       Afinal, ainda não era uma fada inteiramente livre, faltava à sentença dos Conselheiros e dos Guardiões. Um consenso entre eles, a cerca de sua inocência, a levaria diretamente para o trono.

       O quarto era muito parecido com os quartos das fadas do Ministério do Rei. Menores e solitários, mas muito parecidos. Uma cama pequena, grudada a parede, feita em madeira e palha. Um candelabro de metal no chão, desprovido de velas. Um buraco no chão, onde as fadas deveriam aliviar suas necessidades fisiológicas. Santha estava de costas para a porta, sentada ereta, mãos rente aos joelhos, cabeça erguida, olhos focados na parede mofada.

       Haviam lhe desprovido da túnica ricamente bordada, e a vestido com uma túnica velha e gasta, típica da clausura. Suas joias haviam sido confiscadas pelas carcereiras, é claro que elas fariam isso, pensou Eleonora. Urubus sobre a carniça, essa era a melhor definição para as carcereiras daquele lugar!

       Roubaram-lhe tudo, inclusive os sapatos, mas não lhe arrancaram o ar austero e orgulhoso.

       Santha percebeu que a carcereira não falava e não andava pelo quarto. Isso lhe despertou curiosidade, por isso foi a primeira a ceder e olhar na direção da porta, enquanto Eleonora mantinha-se imóvel.

       -O que quer aqui? – a pergunta foi séria, limpa e sem sombra de abalo. Santha não se preocupava com as razões da criatura diante de sim. Apenas não desejava ser importunada naquele momento de horror.

       -Eu escapei de Reina e dos outros, para procura-la – Eleonora trancou a porta e guardou a chave em seu busto, sob a roupa. A suave brisa que trazia consigo adentrou e Santha respirou fundo, apreciando esse ar fresco. Não era a intenção de Eleonora, mas acabou por ajuda-la. –Eu vim até aqui porque preciso saber por que. – sua voz não demonstrou um terço da emoção que sentia. Mesmo assim, o seu olhar desmentia sua aparente força.

       -Olho para você e vejo minha aparência – disse Santha – Ouço suas palavras e seu modo de falar, e se fechar os olhos, ouço Lucius. Ele sempre foi assim. Falador demais. Capaz de convencer a mais sábia das criaturas a segui-lo em seus planos mirabolantes.

       -Não me interessa saber de Lucius. Eu sei tudo o que preciso sobre ele. É um egoísta. Um desgraçado que sempre usou da clausura para se beneficiar. Um enganador. Filho de um elfo abastado, não precisava de nada disso. Ele quis o poder, e encontrou-o em um Rei cheio de falhas. Como eu disse, eu sei tudo que preciso saber sobre Lucius. Mas não sei sobre você. Eu não sei o porquê fez isso. Porque chegou tão longe. Por quê?

       -Olhe para si mesma. E saberá a resposta – Santha levantou e andou alguns passos pelo limitado espaço. – é uma fêmea! Será que não percebe? É fêmea. Por condição, nasceu destinada a padecer. Eu fui assim minha vida toda. E mesmo rainha, minha vida não deixou de ser miserável. O que a faz pensar que é diferente, Eleonora? O que a faz especial?

       -Não fale o meu nome. Não lhe dou esse direito. – ela disse magoada.

       -Porque não? É um belo nome. – Santha ridicularizou.

       -Reina escolheu esse nome com amor e carinho, e foi ela quem me nomeou. Não ouse sujar algo bonito com o seu veneno - disse entre dentes.

       -Eleonora é um belo nome. Mas não é seu nome, nunca foi. Eu a chamei de Thena. Quando ainda estava no meu ventre, eu a chamava assim. Thena. – ela lembrou-se – Fazia muito tempo que não pensava sobre isso, achei que tinha esquecido, mas sim, foi esse o nome que escolhi. Lucius disse que era tolice nomear uma cria que não me pertencia, mas eu fiz assim mesmo.

       -Como é possível que tenha feito tudo isso por causa dele? De Lucius? – ela mal acreditava nisso.

       -Acha mesmo que foi por causa de Lucius? Que ele me usou? – Santha ironizou.

       -Ele sempre fez isso. Enganar as criaturas em nome do poder. Porque você seria diferente? – Eleonora jogou de volta.

       -O problema, Eleonora, não é ser diferente. É ser igual. – Santha afastou os olhos, e por um segundo, Eleonora pensou ter visto um vislumbre de lágrimas.

       Um pensamento triste, talvez?

       -De onde você vem, Santha? De onde eu venho? – era a derradeira pergunta.

       Santha não olhou em sua direção. Fitou a parede, e agora sim, Eleonora tinha certeza que via tristeza. Um pensamento longe, procurando pelas lembranças trancafiadas em seu coração.

       -Eu tinha muitas esperanças quando minhas asas nasceram. Eu era tão linda. Assim como você, minha beleza era peculiar e única – finalmente olhou para ela. – Tão bela, minhas asas eram divinas, meu cheiro de cio era perfeito. Eu deveria ter sido escolhida naquele ano. Meu tormento teria fim, eu tinha total convicção. Mas não aconteceu. Durante quatro longos anos, não aconteceu. As fadas mais jovens foram adquirindo suas asas, e a certeza do esquecimento se abateu sobre mim e tantas outras na mesma situação – ela fugiu da pergunta original, mas Eleonora não teve coragem de retrucar – Eu não me importava com mais nada. Foi quando Lucius apareceu – ela quase sorriu – Eu nunca me enganei sobre ele. Um aproveitador, enganando as fadas desiludidas da clausura para obter sexo fortuito, um modo de desafiar o poder do Rei, sem, no entanto despertar interesse suficiente para uma punição. Lucius sempre quis o lugar do Rei. E quem não queria, não é? – outra vez ela ironizou – Eu acreditava no que dizia, eu me entregava as suas palavras, sorvendo de sua vitalidade. Ele ficava mais tempo comigo do que com as outras. Com o tempo, eu era a única com quem ele permanecia. Trazia-me roupas, comida. Água limpa. Eu não preciso lhe explicar o valor que um cantil de água tem para alguém que é privado de tudo. Você sabe. – ela jogou de volta, e Eleonora não teve coragem de responder ou desmentir.

       -É essa a sua desculpa esfarrapada, que justifica todos os seus atos? - ela devolveu a ironia e Santha sorriu.

       -Quem está tentando se desculpar? Eu? Foi por isso que veio aqui? Em busca de um pedido de perdão?

       -De modo algum – Eleonora negou, pois jamais esperaria isso da rainha.

       -Cada segundo mais parecida com Lucius. Tenha cuidado, Eleonora. Parece demais com ele. – Santha sabia que a ofendia falar desse modo. – Eu nunca seria notada, ou escolhida, Eleonora, então porque me importar com o que aconteceria comigo? Eu aproveitei cada segundo do caso tórrido que vivi com Lucius numa cela parecida com essa, nos mais obscuros corredores das clausuras! Eu desfrutei cometer o crime contra o Rei. Eu fiz isso por gosto. – havia tanta fúria guardada nas palavras de Santha que custava crer que ela houvesse mesmo vivido com Isac tantos anos – Eu emprenhei. Não esperava por isso. Mas aconteceu. Quer saber minhas alternativas? Não havia alternativas. – fixou os olhos em Eleonora. – O Rei me escolheu naquele ano. Uma grande piada do destino, não é? Aconteceu. Lucius não viu impedimento para o casamento. Para ele era tudo tão simples. Eu entendo que deveria ser simples para mim também. Você me olha com nojo – ela disse quase sorrindo diante dessa constatação – Acho que você não entende, não é? Quando nascesse, Lucius a levaria para o Ministério do Rei. Para ser criada como órfã, enquanto eu apodreceria na clausura sem nunca vê-la, ou saber de você. Se descobrissem meu crime, eu seria morta. Você? Continuaria no Ministério do Rei. Casando-me com Isac, você se tornou um problema a ser eliminado. Poderia ser levada para o orfanato ou então escondida. Mas sejamos sinceras, em algum momento, alguém notaria suas asas. Notaria a semelhança. Eu preferi o caminho mais justo e fácil. Preferi a morte da minha cria, a vê-la penar da clausura – suas palavras soaram duras, ela tremia diante desse pensamento – e no fim, foi o que aconteceu. Eu olho para você, e sinto cheiro do Ministério. Eu olho para você e me vejo, amarga e dura pela vida, olhando com olhos de cobrança e rancor. Você é tudo que eu não queria que uma cria fosse. Você penou o que eu não queria que penasse. A morte era mais justa. Menos cruel. O caminho libertador. Mas você não entende isso. Claro que não.

       -Eu preferia ter sido criada longe. Eu preferia ter tido a chance de viver uma vida! – Eleonora usou o mesmo tom, acuada por Santha ver através dela, e reconhecer seus mais reclusos sentimentos.

       -Uma vida? Que vida acha que espera uma fêmea sem linhagem? É uma estúpida. Nem mesmo sua fuga conseguiu lhe mostrar como o mundo é de verdade? – Santha disse rancorosa – Sabe o destino de uma fêmea lá fora, sem a proteção do reino? Sabe? – Santha gritou a última palavra e Eleonora gritou de volta:

       -Sim, eu sei!

       -Não. Você é uma criança estúpida, e rancorosa que não sabe de nada! Não conhece a vida, não conhece a vida como eu conheço! – apontou para si mesma. – Não são todos os órfãos que chegam bebês e sem lembranças a esse inferno! Eu vim parar aqui, Eleonora, porque fui vendida para as carcereiras! E quer saber como foi que cheguei a isso?

       -Foi o que vim lhe perguntar. Não fingia que não ouviu minha pergunta – finalmente, ela diria tudo que Eleonora viera ouvir.

       Tremando, mas tentando subjugar esse descontrole, Santha sentou-se na beirada da cama de madeira, coberta de palha e contou:

       -Minha progenitora era uma fada verde. Por isso nossas características físicas são tão diferentes – contou, a voz tornando-se novamente fria – Dizem que as fadas verdes trazem absoluta sorte a quem as possui. É mentira, fadas verdes não trazem sorte, e sim destruição. Ela casou-se com um elfo aldeão, no Vilarejo Sem Fim. Um elfo comum, sem posses, e sem condição alguma de garantir a segurança de uma fada verde, tão cobiçada por todos. Eu tinha poucos meses de vida, quando Caçadores de Fadas vieram e a levaram. Eu nunca mais soube sobre ela. Incendiaram nossa casa, e mataram a todos. Minha mãe me escondeu na hora do ataque. Algum aldeão me encontrou logo depois. Eu não era especial como uma fada verde, mas era peculiar. Este elfo me criou até os cinco anos de idade, esperando me manter como sua fêmea no futuro. Mas a esposa dele não gostou da ideia. Tentou me afogar no Rio branco. Achou que eu estivesse morta, e me jogou na água. A correnteza me levou por quilômetros. Fui encontrada por uma Caçadora de Recompensa. Ela estava em uma missão importante, me alimentou, vestiu, penteou – ela contou com frieza – disse que cuidaria de mim, que eu teria um lar e nunca mais sofreria! – apontou para si mesma com obsessão no olhar - Achei que estivesse segura! Segura! Durante semanas eu achei que estivesse salva e protegida! Que finalmente eu seria querida e amada por uma família! Mas esse foi o tempo que levou para que ela chegasse ao Reino de Isac e me oferecesse como uma mercadoria na Vila das Fadas – olhos opacos e sem vida, eram assim os olhos de Santha - uma carcereira me comprou. Disse que precisava de ajuda no trabalho doméstico do orfanato. Eu valia tão poucas moedas que ela comprou sem negociar o preço. Eu era menos que nada. Bem menos que nada! – seu desabafo não era apenas para Eleonora, era para si mesma - Ela foi embora um ano depois, acho que se casou... E eu fiquei para trás, sem família, sem ninguém por mim. Depois disso, tornei-me outra fada do Ministério do Rei, fadada a clausura. Assim como você. Entenda, Eleonora, tirar sua vida era um ato de humanidade.

       Eleonora não disse nada. As palavras estavam presas em sua garganta.

       -Eu não queria me livrar da minha cria. Mas também não me esforcei para mantê-la. Com meu dom, o mesmo que possui, eu poderia ter coagido o Rei a aceitar essa cria como sua. Eu poderia ter achado um meio para um fim. Muitas e muitas vezes, ao longo destes anos todos, eu pensei sobre isso. Havia tantas possibilidades. Mas eu nunca quis. Eu não queria nada que viesse da clausura. Nem mesmo a cria que gerei. Nem mesmo a Thena que nutri em meu ventre durante aqueles meses de angústia e aflição!

       -Thena? – Eleonora disse amarga – Eu não gosto desse nome, eu prefiro Eleonora. Diz que tenho sangue de fada verde. Isso é bom, precisarei de muita sorte para ser uma boa rainha. Mas eu serei. Uma rainha como você nunca foi. Acabarei com a clausura. Cuidarei das fadas que ficaram trancafiadas por tantos anos, elas jamais passaram dificuldades novamente. Eu mudarei tudo, Santha. Será outro tipo de vida.

       -A qual eu não faço parte. – ela concluiu – Tem que ser assim. Espero que não lhe falte forças para levar adiante tão belos planos. Não é tão simples agir, quanto falar – ela foi derrotada pela própria cria, e suas convicção de liberdade – o preço da liberdade é tão alto, Eleonora, que às vezes penso se a prisão não é o caminho mais fácil.

       -Eu só vim aqui para olhar para você e saber da verdade. Foi só isso. Não tenho mais nada a fazer aqui. – disse desacorçoada. Viera buscar respostas para suas perguntas, mas encontrara apenas novas indagações e mais dor.

       -Será essa a minha punição? – Santha perguntou antes que ela saísse. – As masmorras para sempre?

       Sim, era apenas isso que a importava. Não ser prisioneira. Santha e seu desejo absoluto por liberdade. Era uma obsessão. Uma necessidade, um desespero. Uma pena, que ao obter seu maior desejo, Santha não soube usufruir e ser feliz!

       E por isso mesmo que Eleonora nada respondeu.

       -Só não esqueça, Eleonora, que um dia eu a quis mais que tudo. Foi um momento. Durante apenas alguns segundos... Eu a quis mais do que desejei a liberdade.

       A voz sussurrada de Santha doeu na alma de Eleonora. Ela destrancou a porta e saiu, fechando-a a trás de si. Encostou ambas as mãos na madeira, depois de trancar outra vez.

       As lágrimas corriam em seu rosto, e ela encolheu-se, escorregando no chão, sentando-se no corredor, de lado, chorando. Era falta de colo, falta de amparo, falta de mãe. Falta daquilo que jamais seria seu. Não se importou em ser ouvida. Tantos gritos em torno de si, tantos gritos de desespero e medo, ninguém se importaria com seu choro.

       Pensou ter ouvido passos e ergueu a cabeça, imaginando encontrar uma das carcereiras. Mas não era. Fechou os olhos para não ver a repreensão no olhar de Egan. Ele nunca poderia entender plenamente o que passava no seu coração.

       -Desobedeceu minhas ordens novamente, Eleonora – ele disse ríspido – Está brincando com sua sorte. O que pensa que faz aqui, fada?

       Eleonora não impediu que Egan a pegasse pelos braços e a erguesse de pé. Ele tentou olhar em seus olhos, mas ela não aceitou, e baixou a cabeça, escondendo a face.

       -Valeu a pena se arriscar tanto por causa dessa rainha louca? – ele quis saber, revoltando.

       -Não. – ela negou, humilhada.

       -O Conselho está deliberando. Eles precisam chegar a um consenso, antes de chamar os Guardiões. É assim que funciona. Pela manhã deveremos chegar a uma posição sobre o que vai acontecer com você e com o reino. Quer estragar tudo isso? – a sacudiu de leve e Eleonora chorou, enquanto respondia angustiada:

       -Não!

       Apenado, Egan manteve o olhar sobre ela. Dividido entre lhe confortar e lhe cobrar essa desordem.

       Vozes no corredor alertaram o Guardião do perigo. Era Miquelina, acompanhada de mais duas carcereiras. A fada sorriu satisfeita em pegar Eleonora no flagra. Havia algo de demente em seu olhar ao aproximar-se e arrancar a chave da cintura de Eleonora, onde havia amarrado em sua túnica.

       -Cometeu um crime contra as leis da clausura. É terminantemente proibido ter contato com enclausuradas, sem permissão prévia! No caso de uma prisioneira, esse crime tornar-se imperdoável! – ela disse com satisfação na voz – mais um crime para sua longa lista de acusações, Eleonora!

       Tanta satisfação. Egan enxergou diante de si o que as palavras de Eleonora não conseguiram explicitar ao lhe narrar sobre a vida no Ministério do Rei.

       Enfurecido, ele agarrou a carcereira, quando ela tencionou por as mãos na fada chorosa. Uma das mãos do Guardião vestida com a armadura agarrou o pescoço da fada e a colocou contra a parede.

       A força da fada não era nada comparada a força de um Guardião.

       -Guarde sua língua dentro da boca, carcereira. Eu tenho o poder de cala-la para sempre – ele ameaçou – Respeite sua futura rainha.

       -Um Guardião que se bandeia e se junta aos assassinos... – Miquelina rosnou, furiosa – Quanta vergonha carrega a linhagem de Túlio, seu pai. Quanta vergonha!

       O desaforo apenas alimentou a raiva de Egan. Ele apertou com mais força, mas parou e a soltou, quando a fêmea engasgou e agarrou seu pulso, tentado se soltar. Dizendo para as outras carcereiras, bem mais jovens que Miquelina:

       -No amanhecer do próximo dia, o Ministério do Rei não mais existirá. – as duas jovens se olharam assustadas – A clemência de uma rainha deve ser conquista e não repudiada. – lembrou-as disso.

       Não houve respostas, mas é claro que nenhuma delas apoiaria Miquelina em uma queixa contra Eleonora. E diante da perda total do poder, a carcereira permaneceu no lugar, sem concepções de reclamar ou atentar contra eles.

       Egan tomou Eleonora no colo e a levou rapidamente pelos corredores. Foi um longo caminho até encontrarem o luxo e ostentação que Rei Isac, quando vivo, exigia de seus aposentos.

       -Egan... Desculpe-me, eu não pensei. Eu só fiz. –ela explicou, ainda tremula.

       -Entre e deite-se. Durma. Cure-se. Esqueça. Faça o que tiver que fazer, mas amanhã quando for chamada, terá que me obedecer. Terá que ouvir, terá que calar. – ele segurou sua face e plantou um beijo suave sobre a curva da sua testa e nariz – Amanhã, será uma rainha, Eleonora. Deixe essa verdade embalar os seus sonhos nesta noite.

       Um suspiro penoso e ao mesmo tempo satisfeito, Eleonora acenou e aceitou que ele se afastasse.

       Entrou no quarto, e foi diretamente para a cama. Cobriu-se e tentou fechar os olhos. Os sonhos viriam, pensou. Sonhos de uma vida livre, feliz e repleta de alegrias. Uma vida com suas amigas e uma família formada ao lado de Egan.

       Mas antes, o que veio foi o choro. Ela perdeu tanto na vida. E esse tanto não voltaria jamais. Esse tanto estava perdido para sempre. E o sempre é tempo demasiado para guardar uma magoa como a que machucava seu coração...

 

                          Espelho da verdade

        Uma barulhenta reunião envolvendo todos os dez Conselheiros, os Guardiões e as esposas do rei assassinado, aconteceu e perdurou por todo o dia seguinte.

       Era meio do dia, quando cansados todos os presentes ouviram a voz das esposas viúvas. Uma delas, a mais jovem foi eleita entre elas para falar.

       -Exigimos o direito ao trono – ela disse, era uma fada relativamente jovem, adquirira por Isac um ano antes de escolher Santha. Após a escolha de Santha, não houve outras fadas escolhidas pelo Rei. Sua obsessão pela rainha beirava a loucura. – Somos as primeiras, as esposas de direito. O trono nos pertence.

       -Nenhuma das fadas escolhidas de Isac gerou herdeiros – disse Túlio, falando em nome dos Conselheiros. – Nenhuma cria viva ou morta. Não houve direito de sangue, e as leis são muito claras quanto a isso. O trono pertencerá à esposa escolhida que estiver ocupando o trono na ocasião da morte do Rei. Essa fada era Santha. Cabe a ela, e as suas crias, a herança do trono. Dada a delicadeza da situação, uma cria de Isac poderia ser eleita ao trono, passando sob o direito de Santha. Mas nunca houve herdeiros.

       A fada olhou na direção de suas companheiras de calvário. Usavam belas vestes, em tecido de boa qualidade. Joias. Adornos. Maquiagens. Eram bem tratadas, no entanto, privadas do direito de ter uma vida. Ela usava um vestido transado nas costas, revelando suas asas curtas e de coloração escura. A seda fluía até o chão, e era um movimento bonito de ver. Era uma bela fêmea.

       -E o que acontecerá conosco? – perguntou a fada, assustada.

       -Essa pergunta não pode ser respondida ainda. Deverá aguardar, assim como todos os outros. – Disse Egan, aproximando-se da fada – mas acredito que Eleonora, se empossada do trono, não deseja causar sofrimento as esposas do Rei Isac, pelo contrário. Ela tem planos sobre extinção de métodos antiquados dentro do castelo. Tranquilizem-se.

       A fêmea olhou para o Guardião com esperança no olhar. Quem sabe, fosse à hora de ser livre? Para algumas delas era tarde demais, eram velhas e doentes, mas para outras, como ela própria, ainda havia a chance de uma vida. Quem sabe uma vida feliz? O direito a escolher um elfo, obter uma família, e obter uma linhagem?

       -Se isso é verdade, e podemos mesmo confiar em suas promessas, Guardião Egan... Não há reivindicações da nossa parte. Desde que a futura rainha prometa não esquecer-se da nossa situação. Precisamos de amparo. De um lar. De uma chance de recomeçar nossas vidas em liberdade. Não há mais espaço para nós junto ao trono.

       -Eleonora não se esquecerá de nenhuma de vocês. Na verdade, ela deseja priorizar as fadas enclausuradas, sejam desvalidas ou não. – Prometeu Egan, sinalizando para que Reina, mera espectadora, se aproximasse para conduzir a fada para seu lugar, junto as outras esposas de Isac. Agora, elas eram meras espectadoras.

       Egan notou o instante em que Reina sussurrou algo no ouvido da fada, e ambas olharam para ele. Sua mãe adotiva espalhava a novidade sobre Egan ser o rei escolhido da futura rainha. Sendo assim sua promessa, e sua palavra, eram valiosas.

       A fada ficou ao lado das demais, como espectadoras. Todas elas com o mesmo sentimento. Fêmeas que exigiam reparação. E a liberdade. Não eram rainhas, mas eram viúvas de um rei que não existia mais. Junto com sua morte, havia se ido à obrigação de privarem suas vidas em nome de seguir um rei que nunca se importou com nenhuma delas.

       Contrariando as expectativas de um desfecho no dia seguinte, as brigas e discussão entre Guardiões e Conselheiros estendem-se noite a dentro.

       A madrugada evaporou sem uma resolução. Quando ficou claro para todos que Santha era uma mentirosa, e que a chegada da fada contratada por ela anos atrás para assassinar a própria cria, era por si só uma confirmação inquestionável, a sentença surpreendeu a Egan.

       Mikazar não entrou no castelo, por isso não pode ser ouvido. Era uma criatura estranha demais para ser aceita pelos Conselheiros. Deveria ser mantido sob a guarda, em vigilância. Um absurdo baseado em puro preconceito, mas era assim que funcionavam as regras do reino. A criatura pertencia a uma raça ainda não catalogada e como tal não poderia ser considerado um vivente do reino, e sim, uma possível ameaça. Era necessário primeiro avaliar sua permanência na Vila das Fadas antes de permitir que andasse pelo castelo.

       A velha fada foi ouvida por longas horas. Ela contou sobre seu trabalho proibido na floresta. Sobre Lucius ter descoberto e não acusado formalmente ao Rei, e sim, usado do seu segredo para chantageá-la. Contou sobre a pena que sentiu da fadinha abandonada, de como não teve coragem de ficar com ela, por medo de Lucius, mas também não teve coragem de deixa-la no deserto para uma morte tão cruel.

       Que deixou a cria na floresta, com uma esperança de que algum milagre pudesse acontecer. E que esse milagre aconteceu e Reina a encontrou. Que ao saber disso, que havia uma recém-nascida deixada no Ministério do Rei, com as características de Santha, sua única escolha foi anunciar a própria morte, e fugir. Esconder-se e mudar de nome e profissão, para que Lucius não a caçasse quando descobrisse a verdade.

       Que essa demora a fez crer que nunca seria descoberta em sua fuga, até ficar sabendo dos boatos sobre o assassinato do Rei.

       Seu depoimento durou tempo suficiente para satisfazer todas as perguntas dos Conselheiros.

       -Alega não mais praticar seu dom de cura. – Túlio disse com voz mansa. Era um assunto delicado, pois ele conhecia muito bem esse assunto – Há quanto tempo aboliu essa pratica proibida?

       -Muitos anos, meu senhor, mais de vinte anos. – a fada anciã mentiu. - Aprendi uma dura lição ao abusar do meu dom, e aceitar ouro para atos condenáveis e criminosos. Tenho vivido como um animal escondido em tocas, tentando sobreviver. Imploro clemência e perdão para meus crimes do passado. Sou apenas uma fada velha, cansada e que precisa de um lugar para viver em paz.

       Os olhos do Conselheiro encontraram a figura de sua esposa, Reina, que também possuía o mesmo dom perigoso, e essa decisão lhe pesou. Se ele levasse adiante a acusação, todos os Conselheiros concordariam.

       -Segue as regras do Reino. Não posso acusa-la oficialmente. Será uma pendência a ser decidida pela nova rainha, seja ela Santha ou Eleonora. – ele avisou e com um sinal de descaso, indicou para um dos Guardiões mais novos que poderia levar a fada embora.

       Aliviada a fada seguiu o jovem.

       -E a criatura chamada Mikazar? Deve ser ouvida – disse Egan, apegando-se a mais essa testemunha.

       -Nenhuma palavra dita por uma criatura sem raça definida poderá ser considerada. Primeiro é necessário descobrir a que raça pertence.

       Era uma decisão que Egan não poderia mudar com palavras e insistência. Falsamente cordado, acenou e não insistiu mais.

       Por enquanto a única conclusão unanime era que as asas de Eleonora eram prova suficiente de que Santha tinha razões fortes para querê-la morta. E sua castidade era a confirmação que não estivera com o rei na noite de sua partida.

       E se não era o seu cheiro sobre o corpo do Rei, e sim de Santha, era possível que as mentiras estivessem confirmadas.

       Ainda faltava ouvir Miquelina. Com certeza, esse depoimento acabaria com as chances de liberdade de Eleonora, mesmo assim, Egan não pode evitar que a cobra fosse ouvida.

       Vestida como sempre, a fada foi levada diante dos Conselheiros. Era amante de um deles há muitos anos, e mãe de um dos Guardiões. E embora Egan conhecesse toda a triste história, não disse nada. Ainda não. Evitaria ao máximo causar danos a um de seus colegas Guardiões.

       -O que querem de mim? – Miquelina não aguardou as perguntas. Não era seu jeito esperar.

       -Uma única pergunta. A fada Joan possui ou não o dom da ilusão dos sentidos? De criar imagens e desviar a realidade dos olhos de quem for guiado por ela?

       -Sei aonde quer chegar e a resposta é não. A fada Joan, até então, mostrou um dom fraco para criar ilusões. Apenas isso. Ela é doente. Fraca. Nunca me causou grandes problemas com seu dom, nunca teve forças para manifesta-los. Suas asas não nasceram e seu dom não é completo. Duvido que consiga ter domínio sobre ele na situação precária de sua saúde. Muitas vezes foi necessário puni-la por insubordinação incitada pelas demais fadas. Mas nunca foi algo natural da fada, ou espontâneo. Ela não é de criar arruaças.

       -Hum, interessante – Túlio olhou para os demais Conselheiros antes de perguntar – Então não acredita que ela pudesse ludibriar os olhos de Santha a ponto de outra de suas amigas se passar por Eleonora durante a cópula?

       -Sinceramente? Duvido que alguém conseguisse ludibriar os sentidos de Santha. É uma fada com dom de controle sobre os elementos. Ela sente o cheiro de um invasor a quilômetros. E além do mais, as fadas fugitivas não possuíam controle de seus dons completos na ocasião da fuga. Nenhuma delas. Faço um rigoroso controle disso, e não existe nenhum dom dentro do Ministério do rei que não seja controlado por mim, e monitorado diariamente.

       -Mesmo a fada com dom de hipnotizar com a voz? Ela não poderia ter controle sobre seu dom? – Túlio insistiu.

       -Alma é como um raptor descontrolado. Não conseguira controle suficiente para manter seu dom, mesmo ele desperto. Ela é instável. Furiosa demais para seguir ordens. Eu não apostaria o reino de Isac na teoria de Alma ter conseguido controlar Santha.

       -Bem, levando em conta que as fadas não poderiam ludibriar Santha e quem apoia essa teoria é a carcereira responsável pelas fadas, à mesma que acompanhou o crescimento de todas elas, paga para vigiar o dom das enclausuradas, pergunto: Alguma contestação sobre isso? – a pergunta era somente para os Conselheiros, seus colegas.

       -Resta saber se o elfo envolvido poderia ter responsabilidade no acontecido. – um deles alegou – Tubã é acusado de roubar a tiara do Rei.

       -Não – imediatamente Egan se manifestou – O elfo Tubã foi acusado e absolvido da acusação. Isso aconteceu antes do assassinato do Rei. Ele encontrou a tiara perdida, e ficou com ela por curiosidade. Não queiram reabrir uma questão encerrada! As leis foram seguidas e obedecidas e não pesa sobre Tubã nenhuma acusação, além das especulações de ter ajudado na fuga das fadas!

       -Seu irmão causou muitos transtornos ao longo dos anos, Egan – o mesmo Conselheiro ironizou – São muitos os crimes de roubo que pesam sobre ele!

       -Sim, e todos esses crimes foram julgados e suas sentenças cumpridas. Não podem condenar um elfo pelo seu passado. Ou todos os elfos presentes nesse salão seriam passiveis de condenação! – ele devolveu o veneno do Guardião na mesma moeda. – Tubã e as outras fadas estão envolvidos na trama armada por Santha para incriminar Eleonora. Usou-os como escudo para que ninguém notasse Eleonora. São quatro fadas. Mas três delas foram acusadas injustamente por causa da amizade com Eleonora, à cria renegada de Santha. Não cabe falar das outras fadas, elas não oferecem nada ou agregam valor nessa questão. O ponto central é a relação entre Santha, Lucius e Eleonora. Está na hora de definir toda a situação! Chega de especulações! Todos reconhecem a procedência da fada? Sua linhagem?

       Houve um pesado silêncio diante dessa pergunta.

       -Se a resposta é sim, cria-se um forte motivo para Santha ter comandado essa trama elaborada, que culminou com a morte do Rei Isac. - Encerado seu discurso, Egan esperou.

       Os Guardiões falavam entre si. Era necessário um debate sobre tudo que ouviram e viram. O mesmo acontecia com os Conselheiros.

       E quando os Conselheiros finalmente chegaram a um consenso, uma hora mais tarde, Egan ouviu calado toda a conclusão.

       -Egan trouxe a acusada e foi muito corajoso em acreditar nela – seu pai disse com orgulho. Coube outra vez a Túlio ser o porta voz.

       -Acreditei nas provas, não nas palavras da fada – ele alegou não gostando da expressão dos elfos – Os Guardiões estão seguindo fadas inocentes, dispostos a trazê-las vivas ou mortas para serem julgadas. Há presa em definir a culpa dessas fadas. Eu sei da ponderação e do cuidado, mas não há tempo a perder!

       -Sim, por causa dessa situação inaceitável, não resta alternativas – seu pai alcançou-o com passadas largas – está diretamente envolvido com a fada. Suas palavras podem ser mal interpretadas e a dúvida prevalecerá. Por conta disso, a castidade da fada será confirmada, para que não haja qualquer sombra de dúvidas quanto à inocência da fada. Adolf foi um Guardião de confiança. Um dos melhores – ele apontou um dos elfos mais velho, que nos tempos atuais era Conselheiro, após uma brilhante carreira como Guardião – seu interesse é puramente social e consciente da necessidade de destituir Santha do trono e definir os direitos da fada Eleonora. Ele deverá confirmar a castidade e assim, libertar a jovem para sua nova condição de rainha.

       -Confirmar a castidade? Você quer casar uma fada da clausura com esse elfo ancião? – O sangue ferveu nas veias de Egan, e ele sabia bem que era o ciúme falando mais alto do que a razão.

       -De modo algum. Ele apenas deflorará a fada. Os métodos que usará não nos cabem questionar. Ela estará livre para usufruir de seu lugar no trono e escolher o Rei que lhe convir.

       Um sorriso irônico e Egan apontou o elfo velho, com desprezo:

       -E acaso não foi este, e todos os outros Conselheiros, inclusive o senhor, meu pai, que durante anos aceitaram ordens de Santha sem nunca questioná-la? Se a minha palavra não é imparcial, porque a dele seria? É bem provável que se deleite com a fada e depois a acuse. Exijo que uma fada confirme essa verdade. Essa é a verdadeira imparcialidade! Uma fêmea sem segundas intenções deve confirmar a castidade da fada!

       -Egan – foi à vez de Reina interferir – Não é desse modo que acontece. Nunca esteve com uma fada casta, não sabe como é. Apenas o macho saberá. Não é algo que uma fada possa confirmar. Não é como no corpo de uma humana. Sei que já se deitou com humanas e fadas – era seu enteado e ela sabia tudo sobre ele, mesmo os segredos que ela acreditava manter escondidos dos pais – mas uma fada casta é diferente das fadas que conheceu.

       -Fadas e humanas são iguais – ele negou.

       -Fisicamente sim. Mas existe algo diferente em uma fada casta, uma mágica que apenas um elfo pode sentir, e que nem mesmo o dom de uma fada pode camuflar. Isso é muito maior do que o físico e muito maior que uma barreira física. Sugiro que a fada escolha o elfo de seu agrado. E que um dos Conselheiros acompanhe tudo com olhos atentos.

       -Pelo que entendo a palavra de um Guardião não tem valor. Nós que doamos nossas vidas lutando e protegendo o Rei – um deles se manifestou, um Guardião mais jovem e impetuoso, ansioso para se fazer ouvir, pois acreditava ter palavras de valor a dizer – Porque um Conselheiro? Porque eu não posso fiscalizar?

       Reina e o marido trocaram um olhar longo e condescendente. Como haviam imaginado uma guerra de egos estava definida. Horas de discussão que nada acertaria.

       -Sugiro um sorteio – uma voz se elevou entre eles – Sortear o elfo que deflorará a fada e sortear quem fiscalizará. Desse modo não há a menor chance de contestação!

       Era um Guardião ainda mais jovem que o primeiro, e pelo olhar de ódio do Primeiro Guardião, o rapazola preferiria ter mantido a língua dentro da própria boca em vez de se meter naquele pesado assunto.

       -Está decidido. – Túlio, representando o conselho, concordou – um sorteio mágico, sem chances de trapaças.

       Um sorteio. Egan apenas assistiu o sorteio acontecer. Uma travessa de prata com os nomes dos elfos escritos com magia sobre o metal. Um a um, cada elfo presente escreveu seu nome.

       Quando o último o fez, os papéis evaporaram da travessa de metal e um nome se destacou.

       -Ildegar – seu pai disse satisfeito – O Sétimo Guardião. Uma perfeita escolha para a fada Eleonora. Agora, o elfo que fiscalizará.

       Egan olhou para longe, remoendo a raiva e o ciúme. Quando o segundo nome apareceu e o silêncio aconteceu, Egan imaginou o resultado.

       Olhou para confirmar. Como imaginava, ele seria o elfo a fiscalizar, assistir e acompanhar cada segundo do momento em que outro macho deflorasse a fêmea que ele desejava.

       As palavras de protesto estavam na ponta da sua língua. O desejo de erguer a espada contra a decisão dos Conselheiros também. Mas era a vida de Eleonora e suas amigas que estava em jogo e não a dele.

       Fadas perdidas em florestas e vilarejos, expostas aos perigos mais odiosos que uma fêmea pode ser apresentada. Meninas inocentes, feridas e magoadas pela vida, lutando pela própria sobrevivência, enquanto eram caçadas como animais por Guardiões repletos de poder.

       Sufocando a fúria doentia, Egan saiu do salão principal, sabendo que sua mãe o seguiria.

       Reina o seguiu por muitos corredores, e quando Egan parou e virou-se em sua direção, ela soube que era a hora de falar, pois ele ouviria:

       -Eleonora precisa ser rainha, Egan. Não fique revoltado. É apenas um acontecimento comum, um momento, e a fada será livre para você. – ela ponderou.

       -Eu tive a chance de fazer isso na floresta... - estava inconformado - não é justo que a usem desse modo, mãe! – ele alegou.

       -Ainda bem que não encostou-se a Lora. Seria uma falha imperdoável. Pense nela, e não em você. É um macho experiente, Eleonora é uma fêmea inocente para tudo. Ela ficará assustada quando souber seu destino e o que terá de acontecer. Torne esse momento menos angustiante, fique ao lado dela. A magoa e o ciúme passarão com o tempo.

       Egan não respondeu, o silêncio era prova de sua revolta.

       -Está apaixonado por Lora. Eu sempre soube disso. Que você a ama desde muito cedo. Eu sempre nutri a esperança de que Tubã não interferisse nesse sentimento e o destino tratou de resolver isso. Eu o incentivei a querer Eleonora, pois não sabia como resolver o impasse entre Tubã e Eleonora, mas agora... Veja, o destino foi caprichoso e resolveu isso. Resolverá também esse sentimento de ciúme. O tempo fará isso.

       -Eu odeio os Conselheiros – ele disse amargo.

       -Não, você não odeia. Seu pai é um Conselheiro, o pai de muitos dos Guardiões são Conselheiros. Você será um deles em poucos anos, quando a armadura não mais lhe convier. Não tenha ódio do seu destino, Egan. Eles lidam com a maturidade e as decisões baseadas em razão e ponderação. Os Guardiões lidam com o corpo e o imediatismo. Ambos se completam, e são vitais para o bom andamento do reino. Agora, pense em Eleonora. Seja gentil com ela. Seja cuidadoso com Ildegar, ele é um Guardião jovem, e o idolatra. Não cause uma ruptura entre os Guardiões por causa de Eleonora. Será um Rei, Egan e essa é apenas uma das muitas decisões difíceis que terá de tomar em sua vida.

       -Farei o que tem que ser feito – ele alegou, afastando-se do toque carinhoso de Reina – mas não me peça para aceitar. Não vai acontecer. Tenho aturado todo tipo de ordem vinda do Conselho. Todo tipo de absurdo! Não vou tolerar mais nada!

       Reina segurou-o, obrigando o filho a olhar em sua face, pois com todo seu carinho de mãe tocou o rosto de Egan e o fez menos furioso:

       -Será Rei, Egan. Depois, quando estiver no trono, você concerta todos os problemas do reino. Inclusive, uma lição para os Conselheiros. Agora, você abaixa sua cabeça, engole a ordem, e ajuda Eleonora a passar por isso com o mínimo de dignidade. Lembre-se, você não viveu metade da dor que Lora experimentou em sua jovem vida. É hora de ela ter um pingo de alegria e tranquilidade. E se você a ama, como eu sei que ama, fará isso por ela. – Reina tocou sobre o peito coberto pela armadura e completou – Em breve nada impedirá que sejam um casal. Nada. Será um Rei justo e corajoso. Eleonora será uma rainha piedosa e clemente para os mais necessitados. Haverá uma balança entre os dois, até onde um pode ir, sem magoar a índole do outro. Comece agora, Egan. Irei preparar Eleonora para a consumação. E você, prepare Ildegar. Ele deve saber como agir com uma fada casta, provavelmente não sabe o que acontece na consumação do cio. Fale com ele. Alivie seu coração sendo útil.

       Egan fechou os olhos com força, e afastou as mãos de sua mãe. Não havia aceitação real, apenas cumprimento do dever.

       Que fosse assim, pensou Reina.

 

                          Cacos de vidro no chão

        Eleonora acordou no meio da madrugada com barulho nos corredores. Não era fácil adormecer depois de tanta emoção e de estar em uma cama normal, quando sua vida toda dormiu em camas simples e desconfortáveis. Dois dias inteiros desfrutando do bom e do melhor. Comendo comida luxuosa, vestindo roupas bordadas a ouro, provando vinho. Sendo cuidada por fadas de linhagem, que submissas lavavam seus cabelos e alisavam sua pele com aromáticos cremes e unguentos.

       No orfanato nunca houvera luxo, e estar em uma cama repleta de tecidos, plumas e conforto era estranho e irreal. Ainda mais com sua mente confusa, perturbada e fora dos sentidos.

       A exaustão a levou ao sono, em mais uma noite de espera, por isso, acordou assustada quando a porta foi aberta por Reina. Atrás dela vinham dois elfos, dois Guardiões desprovidos de suas armaduras.

       Um deles era Egan, e seu coração acelerou por vê-lo. O outro era conhecido por ser um Guardião, mas Eleonora nunca havia reparado nele o bastante para saber quem era ou seu posto, seu lugar em hierarquia dentro do conjunto de Guardiões que mantinham o reino em total segurança.

       -Acorde, Eleonora. – Reina disse carinhosa, aproximando-se da cama com um sorriso satisfeito, tentando despertá-la com naturalidade – A reunião acabou, e decidiram sua situação.

       Imediatamente, Eleonora sentou na cama, esquecida dos elfos.

       -Qual foi à sentença? – perguntou, com angústia pura em sua face.

       Infelizmente Reina não estava interessada em elucidar-lhe dúvidas e sim, preparar o que deveria acontecer naquele quarto.

       -Foi banhada mais cedo, com ervas especificas, e preparada para o que acontecerá. Eu pedi que cuidassem de você enquanto procurava por isso – ela apontou um embrulho que estava esquecido sobre a cama, pois Eleonora não reparou quanto Reina o colocou ali. – É um presente. De uma mãe que a ama acima do bem e do mal. Que quer sua felicidade e fará de tudo para que alcance a liberdade usando do modo mais justo e verdadeiro que exista. – Reina beijou ambas as bochechas de Eleonora e disse, sem conter o sorriso:

       -O Conselho e os Guardiões chegaram a um consenso. Não há provas que possa incrimina-la. Nenhuma prova que aponte para você a culpa, e sim, para Santha. Resta uma única pendência, Lora. Prove sua castidade e sairá livre desse castelo. Não é maravilhoso? Santha não conseguiu o que queria. Eu mal posso acreditar que finalmente será livre, Lora! Tantos anos esperando por esse momento! Finalmente poderei leva-la para casa comigo!

       Era um argumento invalido, como rainha Eleonora moraria no castelo, mas Reina não falava como pajem pessoal da rainha e sim, como sua protetora.

       Sua alegria era de mãe. Eleonora olhou para os dois elfos e perguntou a ela baixo, envergonhada, e assustada:

       -Dois elfos? O que fazem dois machos no quarto?

       Sabia como acontecia a cópula, mas não sabia que precisaria de dois machos! Apesar dos pesares, o cio fez revirar um sentimento obsceno em suas entranhas. Ela olhava desconfiada para os dois e Reina sorriu e maneou a cabeça.

       -Não. Não se assuste. Não copulará com os dois! De modo algum! Foi realizado um sorteio, para definir quem a deflorará e quem fiscalizará. Egan deve fiscalizar. Foi um sorteio justo. Ildegar é o Sétimo Guardião e é uma grande honra para ele deflorar a futura rainha. Não fique nervosa, querida, é um ato natural entre macho e fêmea. Lembre-se que estarei no corredor. Chame se precisar de mim.

       -Não! – ela segurou a mão de Reina, imediatamente assustada - Não vá, não me deixe sozinha com eles... Por favor, não me deixe sozinha... Não, Reina. Não...!

       Reina não podia ficar por isso, livrou-se de suas mãos, que tentavam segurá-la, soltou-se e saiu. Era algo que sua protegida precisa enfrentar. Sozinha, Eleonora olhou para os dois em pânico.

       Puxou as cobertas sobre o corpo, e nesse movimento derrubou o presente de Reina no chão. O embrulho cedeu, e revelou um tecido delicado e ricamente bordado. Uma túnica para ser usada depois do ato, quando não fosse mais uma fada casta e sim uma fêmea completa. E algo mais, que rolou pelo chão. Era uma concha do mar. Uma linda e graúda concha do mar. Algo incomum naquela região.

       Ninguém reparou nisso. Eleonora afastou os olhos do objeto e fixou-os nos dois Guardiões.

       O elfo Ildegar era alguns centímetros mais baixo que Egan e um pouco menos musculoso. Seus cabelos eram avermelhados, curtos e mantidos rentes à cabeça. Olhos castanhos e um sorriso envergonhado de quem não queria estar fazendo aquilo. Parecia tão contrariado que era quase ofensivo a sua vaidade.

       -Isso é... Ridículo – ela disse tensa, ainda na cama. Ao notar sua vulnerabilidade, saltou da cama e se afastou dos dois, impondo distância – Eu não o conheço. Nunca o vi, ou reparei em você! Eu não me deitarei com um completo estranho!

       O elfo olhou para trás, para o seu superior, como quem pergunta se pode falar com a fada.

       -Ordens são ordens, Eleonora. Não as questione. O mesmo vale para você Ildegar. – Egan disse apontando a fada – Sirva-se do que lhe foi dado. Confio em seu julgamento, Ildegar. Não ficarei olhando, me retirarei para a varanda. – ele avisou, procurando um local no quarto onde pudesse ficar sem precisar olhar para aquela cama.

       Mais do que isso, onde não precisasse olhar para a fada.

       -Quanta delicadeza – ela disse furiosa ao notar que Egan não se importava – Tanto faz com quem seja só quero que isso acabe logo de uma vez para ir embora daqui! – Furiosa, aproximou-se da cama e puxou os lençóis para o chão, pois se não estava enganada a cama ficaria imunda quando terminassem.

       Não era ignorante sobre o ato em si, apenas assustada sobre realiza-lo com quem não lhe despertava os instintos.

       -Não será permitido que vá embora – Egan fez questão de enfrentá-la usando todo a raiva vinda do ciúme como arma para feri-la. Deveria ficar calado, e não confronta-la, mas era impossível conter o ciúme, e não ataca-la – Será rainha. E tem uma divida de honra comigo. Cumpri minha parte no acordo, fada! Terá de cumprir a sua!

       -Sim, cumprirei! Será Rei! E depois... Vou embora! Para bem longe de você e da sua arrogância!

       -Talvez vá atrás do meu irmão – ele acusou, sentindo o ciúme avolumar, pois não aceitava que outro a tivesse. Finalmente havia admitido para si mesmo que queria a fada. E sua porção macho não aceitava vê-la com outro.

       -Farei isso. – Ela avisou – qualquer um é melhor que um elfo que não faz nada para impedir uma barbárie dessas! Onde já se viu! Olhe para mim! Olhe para ele! Não nos conhecemos!

       -E você me conhece? – Ele jogou de volta – Isso não fez a menor diferença quando me ofereceu o reino! Quando se ofereceu para mim na floresta!

       -É diferente! – Gritou com ele – Através das palavras de Tubã e de Reina eu o conheço! Através dos meus olhos que sempre o enxergaram entre os demais, eu o conheço! É muito diferente, seu egoísta! Eu sempre olhei na sua direção! Eu sempre o procurei! Eu sempre o quis! É muito diferente!

       -A escolha não é minha, fada. Se eu me opuser você ficará sem sua liberdade e Santha retoma seu posto de rainha. Negar-se ao ato será sua confirmação de culpa! Um crime fica impune e uma inocente será punida. Além disso, meu irmão é fugitivo de um crime que não cometeu! Suas amigas serão caçadas e mortas, assim como acontecerá com você!

       Eleonora sentiu a raiva abrandar diante dessa verdade.

       -Tem razão. – Ela disse triste – Minhas amigas merecem toda minha dedicação e todo o meu sacrifício. Desculpe-me por isso, Ildegar, não queria ofendê-lo como elfo. Perdoe meu susto. Não é sua culpa que me sinta assim. – Disse humilde.

       O elfo pareceu tão desconfortável quanto poderia estar alguém que não deseja desagradar sua futura rainha, tão pouco seu ídolo, o Guardião a quem sempre se espelhou.

       Eleonora permaneceu parada olhando para ele esperando que se manifestasse. O Elfo fez o mesmo. Olhou para trás, para Egan como quem pergunta se deve mesmo fazer isso, e seguir em frente.

       Eleonora estava começando a se desesperar quando entendeu que o elfo não moveria um dedo para consumar o ato, e assim provar sua inocência.

       -Eu preciso provar que falo a verdade – disse admitindo a si mesma que teria sim que passar por isso – Minhas amigas estão correndo risco de vida por minha causa! Diga-me o que espera que eu faça, Guardião Ildegar. Eu devo obedecê-lo nesse momento.

       Egan virou de costas furioso, odiando cada segundo de sua própria presença naquele cômodo. Em sua raiva, seu pé escorregou na concha do mar, que rolou para perto de onde Eleonora estava.

       -Eu nunca questionaria a palavra do meu superior – Ildegar disse tenso – Não sei como os Conselheiros puderam pensar que Egan mentiria sobre um assunto tão sério!

       -Ora, a única razão para aquelas rapinas acharem que mentiria, é que se um deles emprenhar a futura rainha, o Conselho jamais precisará votar junto aos Guardiões. Nunca mais precisarão conquistar votos, tendo um deles como Rei – Egan disse naquela irritação que impunha medo no Guardião mais jovem. Esbravejava com tal fúria que assustava o rapazola.

       O rapaz engoliu em seco e disse sem jeito:

       -Eu não gostaria de emprenhar a rainha. Pretendo escolher uma jovem da clausura daqui a dois anos quando suas asas nascerem... Eu não posso casar com outra. – Disse sem jeito, olhando para o chão, parecendo arrependido do que dizia.

       -Ildegar... Serei a rainha. Eu posso tirar essa fada da clausura e colocá-la ao meu lado, como uma criada. Isso a fará próxima a você, não é? – Eleonora sugeriu, aproximando-se dele, tocando sua mão, e obtendo dele contato físico – Francamente? Eu pretendo diluir o Ministério do Rei e recriá-lo com novas regras. Isso seria bom para você e sua pretendida, não é?

       Os olhos do Guardião brilharam intensamente:

       -Fará isso? De verdade?

       -Esqueceu-se de onde eu vim? Eu não poderia manter aquele lugar em funcionamento. Jamais dormiria em paz se fizesse isso. – Perguntou quase sorrindo. – Alguma vez ouviu o barulho do mar, Ildegar? – perguntou de surpresa, seu subconsciente entendendo o que Reina quisera lhe dizer sem palavras.

       Tudo fazia sentido agora, bastava abaixar-se e pegar no chão a concha do mar.

       -Nunca tive a oportunidade de visitar o Vale dos Humanos – ele disse segurando sua mão, pois Eleonora o conduzia para a varanda do quarto.

       -Eu tão pouco imagino como seja o mar. Minha amiga Driana me contou tudo sobre as criaturas que habitam as profundezes do mar. – ela seguiu falando e as vozes se tornaram abafadas.

       Egan mal podia olhar para eles. Eleonora flertava com o Guardião. Os dois se conheceriam antes de copular, era certo que ocorresse assim. O cheiro do cio não havia se modificado, então a libido da fêmea não fora despertada pelo elfo Ildegar. Talvez por isso Eleonora quisesse conhecê-lo melhor. O ciúme o sufocou.

       O som das vozes vindas da varanda era baixo, mesmo assim ele se esforçou para ouvir. Se martirizar ouvindo o flerte que os levaria a alcova.

       Eleonora mostrava ao Sétimo Guardião a concha do mar. Egan teria se perguntado de onde viera a concha, onde Reina encontrara aquele adorno, mas sua mãe guardava muitos segredos e parecia saber demais sobre o desfecho da situação de Eleonora antes mesmo que as coisas acontecessem.

       Se ele não conhecesse o segredo sobre seu dom da cura através das plantas, imaginaria se Reina possuísse o dom da clarividência.

       Ildegar estava encantado com o som do mar que ouvia através da concha, e lhe perguntava se poderia ficar para si e mostrar a fada de nome Clarita, sua pretendida.

       Eles conversaram um pouco, e quando a conversa cessou, Egan se afastou para não ouvir o som de beijos, pois imaginava que isso poderia acontecer. Pouco depois Eleonora surgiu e correu a cortina de rendas em suas hastes, mantendo a varanda separada do restante do quarto.

       -Ildegar é muito doce. Ele gostou muito do presente que lhe dei. Eu conheço a fada que ele deseja. É uma boa menina. Quieta, compenetrada. Boa para os números. Acho que seu dom possa ser remetido para o ensino. – contou aproximando-se de Egan.

       -O que está fazendo, fada? Está achando graça dessa situação?

       -O Sétimo Guardião está entretido com o som do mar. É quase hipnótico para aqueles que gostam e entendem a música celestial das águas. As sereias cantam, se eu pedir, Egan. Ele não saíra de lá enquanto eu não quiser. Agora entendo a razão do presente de Reina. Eu posso controlar o mar, as criaturas das águas, e Ildegar está encantado por elas. – Eleonora andou pelo quarto, com o semblante de um animal que deseja atocaiar uma presa.

       -Pretende enganá-lo? – Egan começou a entender sua artimanha, ou melhor, a artimanha de Reina!

       -De modo algum. Ildegar não queria fazer isso. Ele prefere ser enganado a desertar de uma ordem que lhe foi dada. Desse modo não há culpados. No entanto, continuo com o mesmo problema. Quem dirá a ele que não minto quanto a minha castidade? – Ocultou o sorriso para não deixar claro que o queria. – Eu preciso me livrar do cheiro do cio...

       -Isso se chama trapaça, fada – Egan não tentou aproximar-se, ainda tenso, furioso e irritado.

       -Se eu não gerar uma cria dessa cópula, não há problema algum – foi direta, desafiando-o a desmenti-la.

       -Como seu futuro Rei, isso acontecerá algumas vezes – ele permaneceu longe, e a fada manteve a mesma distância, olhos nos olhos, em um desafio.

       -Não exatamente... Prometi-lhe o trono, e não o meu leito. – Desafiou-o.

       -Não me provoque, fada – ele mandou, vencendo a distância com algumas passadas, erguendo a mão esquerda para segurar em seu rosto, obrigando que olhasse para ele.

       O tempo das mentiras e segredos havia se acabado e Eleonora não se conteve:

       -Minto. Sempre desejei que olhasse para mim. Mas nunca reparou em nenhuma fada... Nunca olhou para mim como fêmea, e sim como a menina que Reina protegia. – Confessou entregando-se ao carinho em sua face. – Seu pai sempre me olhou assim, como um inconveniente que atraía atenção demasiada de sua esposa e filhos. Porque você pensaria diferente?

       -E como eu poderia olhar para a fada que pensava namorar meu irmão? Nunca me colocaria entre Tubã e sua fada escolhida. – Ele foi sincero sobre seus sentimentos.

       -Não sou e nunca fui à fada escolhida de Tubã. Ele é um amigo, é um irmão. Eu não sinto por ele nada além de amor de irmã, e eu sei que Tubã sente o mesmo. Ele pode não saber ainda, mas não sente paixão, apenas afeição pura.

       -Eu não sei como será quando Tubã souber de nós dois, mas não posso mais mentir e me afastar. – Egan confessou, baixando o rosto em sua direção, sem lhe dar tempo para retrucar, ou fazer perguntas. – Eu não preciso ser Rei, fada. Não preciso do trono. Eu quero e preciso ser seu elfo escolhido. E tenho esse sentimento há muito tempo guardado e escondido em meu coração. Sempre achei que obteria minha chance de me declarar, quando Tubã finalmente assumisse não ter coragem para o casamento. Perdoe-me nunca ter sido corajoso e imposto minha vontade. Todo esse sofrimento seria evitado se eu houvesse tirado-a do Ministério do Rei, antes de Lucius notar quem você é.

       Eleonora sorriu, e havia algo de matreiro em seu olhar, ao dizer:

       -Não se culpe por deixar Tubã mandar nas suas vontades, eu também sou incapaz de dizer não para aquele bandoleiro. É assim quando se ama. Eu quero que seja meu Rei, Egan. Que esteja ao meu lado, no quarto e no trono. E quero que as crias que gerar tenha seu sangue e sua linhagem. Porque eu amo tudo em você.

       A revelação era simples, mas explicava o porquê de tanta estranheza entre eles.

       -Todos esses anos, eu precisava tanto vê-la, e falar com você, mas nunca pareceu certo – ele contou, numa revelação igualmente simplória, sobre amor, afeição e abnegação.

       O carinho em suas mãos, alisando seus cabelos e contornando o belo rosto de fada, era emocionante para quem nunca conheceu o amor entre macho e fêmea.

       -Sempre a mais bonita, a mais arteira e a mais sorridente. Eu nunca consegui tirá-la do meu pensamento – ele revelou.

       -Eu não sou tudo isso – ela negou, achando que desmaiaria de tanta emoção.

       -Talvez não para os outros. Mas para os meus olhos, meus ouvidos e meu olfato, você é a fada escolhida.

       Vinda de um elfo essa declaração era irrefutável.

       Eleonora não tentou mais controlar seu odor. Era custoso fazer isso, e estando no cio, era doloroso também. Ela baixou os olhos, envergonhada, mas Egan notou o que acontecia. Seu corpo imediatamente reagiu ao acontecimento.

       -Reina me contou como acontece. Eu... Nunca pensei muito nesse momento. Na floresta eu não senti medo algum, eu não pensei em nada... Mas agora... Pensando... Eu não quero que seja algo feio, Egan – confessou – Eu sei que às vezes é algo violento, tanto a fada quanto o elfo se ferem. Eu não gostaria que fosse assim entre nós.

       -E não será. Eu sou treinado para me controlar. Algumas vezes, dependendo do dom da fada, as coisas podem ficar descontroladas e perigosas para o macho envolvido na cópula, mas isso não vai acontecer entre nós dois. Eu sei evitar esse descontrole.

       -Mas eu quero que você goste – ela tocou em seu queixo, apenada dele ser privado desse momento que jamais voltaria a se repetir entre os dois. O cio era um momento único na vida de uma fêmea.

       -É claro que eu aproveitarei, fada. Mas não permitirei que minha faceta mais selvagem venha à tona. O mesmo com você. Um momento, Eleonora, e tudo terá acabado. E poderemos começar uma nova relação. É a primeira vez, mas não a última.

       Eleonora acenou, concordando. Confiaria totalmente em seu elfo escolhido.

       Egan sorriu diante do mistério que surgiu no olhar da fada. Ela afastou seu toque e apartou-se dele alguns passos. Longe o bastante para andar pelo quarto, retirou os sapatos luxuosos que adornavam seus pés, chutando-os para longe.

       Seu odor do cio foi expelido para o ar, e Egan a farejou, suas narinas dilatadas, suas orelhas eriçadas, os pelos de seu corpo arrepiados. Ela andou pelo quarto, olhando-o de lado, com expectativa no olhar. As joias em seus pulsos caíram ao chão, juntamente com as joias de suas orelhas, e as correntes de mental e ouro que adornavam sua cabeleira loura.

       Santha possuía muitas joias e ostentava muito luxo. Com a passagem do trono para as mãos de Eleonora, esses bens passavam a lhe pertencer. Ela usava os acessórios porque ainda não era uma rainha. Não havia sido empossada. No instante em que a coroa estivesse sobre sua cabeça, ela mudaria todas as regras espúrias do castelo. Por hora, bastava livrar-se de tudo que pesava sobre sua pele. De tudo que não pertencia a sua natureza.

       Ela queria sua pele, seu cheiro, e sua alma. Nada além dos dois. Nada além do que sentia e fariam juntos. Luxo não fazia parte daquela relação começada há tantos anos, fundamentada em olhares, pensamentos e amor platônico. E alimentada por um encontro explosivo.

       Todo o constrangimento natural não existia, seu corpo pedia por isso e derrubar o tecido da roupa pelos ombros, sabendo que seu corpo nu seria conhecido em minúcias era libertador!

       O tecido mergulhou para o chão, e ali permaneceu. Eleonora exibiu o corpo, mas nem precisava. Egan corria os olhos por cada detalhe. Foi inevitável para a fêmea umedecer os lábios com a língua, enquanto observava-o livrar-se da armadura que adornava seus pulso e cintura. Não vestia toda a composição, mesmo assim, era necessário livrar-se de qualquer impedimento que pudesse torna-lo descontrolado. A armadura sentia e respondia com a mesma intensidade que o elfo, e não seria adequado possuir tanto poder em um momento de completo alienamento sexual.

       As roupas do elfo foram largadas de qualquer modo pelo chão, sem a mesma graça sensual que a fêmea exibira ao despir-se, porém regado a uma masculinidade que a fez nervosa.

       Suas asas se agitaram, e Eleonora não controlou o puxão que a fez ser elevada a alguns centímetros do chão. As asas batiam em suas costas, batidas descompassadas, refletindo seu estado de completa ansiedade.

       A pele leitosa da fada era coroada por poucos pontos de cor. Apenas nos bicos dos seios, levemente rosados, e nos pelos íntimos, havia alguma indicação de cor. Olhos apaixonados enxergavam mais do que isso. Ossos delicados de sua clavícula, a graça de seus braços finos e suas mãos pequenas. As curvas mimosas de seu torso, sua barriga e seu quadril. As pernas fortes, de quem sempre correu para a liberdade, mas nunca obteve êxito. As panturrilhas, os tornozelos, os pés... Em um movimento inesperado, Egan avançou e agarrou seus tornozelos, puxando-a para baixo.

       Aparentemente a fada teria esse hábito, de tentar fugir dele. Era inconsciente, mas significativo. Estava nervosa, angustiada e acuada, e a culpa disso era a sentimento complexo e animalesco resultante do cio postergado, do acumulo de desejo e da necessidade.

       Pelo visto Egan precisaria agarra-la e trazê-la para junto de si muitas e muitas vezes, pois as asas da fada insistiam em agitar e eleva-la do solo. Eleonora agarrou os cabelos do elfo, e foi recompensada com uma tentativa de mordida. Era culpa do instinto primitivo, e ela notou o esforço que ele fazia para se controlar, e apenas morder suas pernas, em suaves mordiscadas, embora sentisse os dentes roçando a pele sensibilizada.

       Calor varria seu interior, e quando a boca do elfo encontrou suas coxas, Eleonora afastou a perna e Egan enrolou seu corpo no dele, na altura de seu torno, segurando suas nádegas com força, enterrando o rosto contra a barriga lisa e tremula, arrepiada de paixão.

       Eleonora não conteve um grunhido quando a boca quente e úmida subiu para seus seios e mordeu a carne. Suas asas a projetavam para frente, mas a força do elfo a compelia a manter o torço erguido, oferecido aos seus carinhos. Olhos fechados, cabelos espalhados, Eleonora sentiu o toque perturbador da língua de Egan sobre seu mamilo, enquanto era mordiscado e sugado. Ele demorou na carícia, enquanto ondulava sua cintura feminina contra a pele chapada de seu abdômen de guerreiro. Era estranhamente erótico e Eleonora apertou os olhos, controlando o sentimento ofuscante, de estar nua e em contato direto com um macho de sua espécie.

       Envolvida, apenas se contorceu quando Egan apertou o outro seio com os lábios. Se ele pudesse morderia forte, tinha certeza disso, mas se continha, e o prazer que provocava em Eleonora era inexplicável. Ensandecido, ele desceu os lábios e lambeu seu umbigo, mordendo com força a dobra acima da virilha, antes de empurra-la afastado do corpo, o bastante para erguer seu quadril e poder cheirar diretamente sobre sua feminilidade.

       Aspirou o cheiro amargo, pungente e fresco, o cheiro de paixão, de cio, e de fêmea, e lambeu para saber o seu mais íntimo gosto. Era uma marca da fêmea, ser saborosa. Tão quente, tão estreita e tão macia. Mesmo que não estivesse em um cio ardente, ainda assim, era tentação mais que suficiente para leva-la a um ato descontrolado.

       Eleonora ergueu o torço e agarrou outra vez os cabelos do elfo, e então seus ombros, murmurando que não esperasse, que não a torturasse, que fizesse a dor parar. Suor varia sua pele, e não era a temperatura do quarto, e sim a quentura interna que a fazia sucessível ao calor.

       Egan ergueu o rosto, e encarou seus olhos, descobrindo que a claridade translúcida de seu olhar, dera lugar a uma escuridão perigosa. Era o dom da fada se manifestado. Em segundos aquela relação se tornaria dolorosa e perigosa.

       A fada cravou as unhas em suas costas e ele gritou pela dor, sentindo a carne romper, e por isso, afastou suas mãos, e seus braços, mas Eleonora trincou as pernas em torno de seu torço, e algo em volta dos dois transformou o romantismo em algo mortal.

       Era o ar, o ambiente, ele sentia o calor aumentar, o ar que antes não passava de uma brisa muito leve, vinda da varanda, tornar-se um turbilhão de ar quente, como se os dois estivesse novamente no Deserto das Areias Vermelhas. Era o dom da fada totalmente descontrolado.

       Precisou de força para segurá-la, mas não usou força suficiente, por isso não conseguiu evitar que o acertasse uma unhada na face, que provavelmente deixaria um arranhão profundo.

       -Egan, me ajude – ela pediu, tentando agarrar onde pudesse do corpo do elfo, sendo repelida, pois não percebia que o feria.

       Estava em chamas, e nada ouvia, ou sentia além do toque da pele do macho.

       Suas asas bateram com força e ele precisou empurra-la com bastante força, para derruba-la na cama, antes que voasse mais alto e que não pudesse segurá-la. Eleonora tentou escapar e em sua fuga tornou a arranha-lo com força na altura das costelas, desta vez arrancando um grito de dor do Guardião.

       Ele sentiu o chamado da armadura, exigindo a guarda diante do perigo, mas se recusava a ver a fada Eleonora, tão doce e espevitada, como um risco a sua integridade física.

       Beijou-a, na tentativa de acalma-la, mas apenas ateou fogo a uma palha tão seca quanto a areia do deserto!

       Eleonora agarrou seu rosto, beijando-o de volta, grudando seu corpo ao dele, pernas escrachadas, exalando o odor da fêmea de um modo que indicava o ápice. Não havia muito tempo, uma vez eriçado o cio, era melhor consuma-lo ou a fada penaria de sofrimento em breve.

       O beijo parecia não ter fim, em seu afã de entregar-se, não notava que complicava a situação. Egan tentou encaixar-se entre suas pernas, mas Eleonora não parava quieta.

       -Chega, fada! - ele parou o beijo e a segurou, tolhendo seus movimentos – Chega, está se ferindo, Eleonora!

       -Eu não aguento mais, Egan, eu não aguento mais! - ela gritou igualmente descontrolada – Faça! De uma vez por todas, acabe com isso!

       Sim, Reina estava coberta de razão ao alerta-lo da dificuldade do cio. Não era como deitar-se com fadas sexualmente maduras, ou humanas. Era diferente de tudo que ele imaginou!

       Confiante, Egan soltou-se de seus apertos ainda mantendo suas mãos seguras entre as suas, e a girou na cama. Imediatamente as asas se agitaram, e Egan impediu o movimento, esfregando entre as asas, entre os eixos, arrancando de Eleonora um grito de puro deleite. Era uma zona erógena e a fada ficou sem movimento por alguns instantes, completamente aturdida pela sensação. Aproveitando disso, Egan segurou-a na altura da nuca e a prendeu na cama, apartando suas pernas, encaixando-se ali, para enterrar sua vitalidade dentro do espaço limitado que aguardava a consumação do cio.

       Eleonora debateu-se no instante em que seu corpo foi invadido, a euforia de ser possuída subjugando a razão. Egan a soltou por um instante e ela bateu as asas com tanta força que o feriu. Ao seu lado na cama, uma rajada de ar trouxe um objeto qualquer, que quase o acertou, voando para a parede, e espatifando-se lá.

       Egan empurrou com mais força, rompendo o hímen, ignorando seus gritos, e segurando-a outra vez pela nuca, com o rosto pressionado no colchão. Foi mais fundo, acabando de vez com a castidade da fêmea. As asas ainda agitadas, as hastes ferindo-o. Egan afastou o corpo o bastante para deixa-la livre do incomodo, para que pudesse respirar e se acalmar, aliviando o desconforto da penetração e do rompimento de sua castidade.

       Curvou o corpo para beijar sua bochecha e sussurrar em seu ouvido:

       -Está rompido. O descontrole do cio acalmará em poucos minutos.

       -Não espere – ela disse mansa, mesmo que seus olhos ainda estivessem contendo aquela devassidão perigosa. – Não desperdice isso, Egan. Eu quero isso, eu quero, não importa as consequências....

       Sim, era devassidão pura em seus olhos. Era um momento que jamais se repetiria na vida da fada. Uma vez terminado o cio, a fêmea jamais sentiria nada parecido. O corpo tornar-se-á normal, e seu prazer seria condicionado ao seu estado de excitação e ao amor que sentisse pelo macho envolvido na cópula. Aquela sensação doentia jamais se repetiria.

       E sempre havia a possibilidade da fecundação de uma cria. Não seria inteligente gerar uma cria, quando todos pensariam que essa nova vida seria fruto da cópula da rainha com o Sétimo Guardião Ildegar.

       Mas naquele momento de ensandecimento total, nenhum deles levou isso em consideração.

       Ainda segurando-a pela nuca, Egan gemeu, e a acarinhou entre as asas, molhando o caminho com beijos, até encontrar o vale entre suas nádegas, onde sorveu o gosto da fada mais uma vez, lambendo-a com avidez. Eleonora moveu as pernas, como se pudesse força-lo a toma-la outra vez, mas tudo que conseguiu, foi erguer ainda mais a cintura, e ser beijada intimamente com maior sofreguidão.

       Luzes brotavam em seus olhos fechados, e Eleonora controlou as asas, ao menos tentou controla-las, por isso Egan pode soltá-la e se acomodar mais uma vez entre suas nádegas, invadindo sua vulva com mais jeito, menos força dessa vez.

       Eleonora gemeu, e Egan fez de novo e de novo, até se convencer que esses gemidos eram unicamente de prazer.

       Puro engano achar que o prazer poderia sufocar os impulsos selvagens do cio. Egan esmoreceu um instante e fechou os olhos deleitando-se no prazer de possuir sua fêmea escolhida, e por isso não percebeu que Eleonora fugia.

       Com a força induzida pelo cio, ela o empurrou e fugiu. Egan a segurou pelas pernas e ela o chutou varias vezes, ficando de frente para Egan, lutando para toca-lo, mas sem perceber que quanto mais tentava pegar e agarrar, mais o agredida.

       Sem paciência, e deixando seu lado primitivo falar mais alto, Egan segurou seus dois tornozelos apartados e a puxou de volta, deitando-a na cama e a possuindo sem lhe dar espaço para fuga. Era maior que a fada, e seu peso a segurava imóvel.

       Era disso que ela precisava. Agarrar, segurar, e provar o gosto. Eleonora mordeu, beijou e segurou em cada pequena porção de pele morena que encontrou. Egan a possuiu com redobrada paixão, cada investida aumentando o frisson dentro do ventre da fada, cada empurrão criando uma nova expectativa, aumentando aquela sensação de crescimento e de estourar. Como se algo estivesse para explodir dentro do corpo de Eleonora.

       Como um crescente, que aumenta, eleva, sobrepõe e domina. Parada, tensa, tomada por um choque, Eleonora foi acometida de seu primeiro orgasmo provindo de uma cópula real. Foi tão forte que ela não disse, gemeu, ou gritou. Apenas manteve-se arfando, lábios entreabertos, buscando pelo ar que faltava, olhos fechados, ouvindo aquele estranho som abafado dentro de si, algo que remetia a paz total. Aproveitando cada fugaz segundo daquele entorpecimento que se instalou em seu corpo.

       Tão forte, tão entorpecente, e tão assustador. Não havia descrição possível para aquele sentimento. Entreabriu os olhos, procurando pela face do seu Egan. Seus olhos novamente suaves e meigos de sempre, para encarar o elfo completamente fora de si, empurrando, gemendo e grunhindo seu nome, descontrolado enquanto derramava sua vitalidade no corpo que o acolhia.

       A mesma tensão em Egan, por isso ela alisou suas costas trincadas, seus músculos duros, molhados de suor, e beijou seus lábios, acolhendo seu prazer com boas vindas.

       Ele era tão bonito gozando, tão viril e apaixonante, que sorrir era algo natural.

       Quando Egan notou o sorriso na face de Eleonora, todo o receio foi embora, e a exaustão do ato o fez acariciar os cabelos úmidos da fada, e beija-la por toda a face, até encontrar seus lábios para um beijo manso, cândido e longo.

       Um beijo que não falava sobre cio, e necessidade selvagem e sim, sobre amor e carinho. Quando o beijo acabou, ele correu os olhos pelo corpo da parceira, procurando sinais de ferimentos. A única marca que indicava sofrimento era o sangue entre as pernas. Mas isso era esperado na primeira vez de uma fêmea. Aliviado em não encontrar machucados, sorriu.

       Nua, a fada era doce, linda e poética. Ou ele quem estava apaixonado pela primeira vez em sua vida e encontrava poesia na mais simplória das imagens. Estivera com muitas mulheres durante toda sua vida, muitas delas de raças diferentes da sua, principalmente em missões a mando do Rei, ou durante os treinamentos para Guardião, ainda menino, descobrindo o mundo e a vida, mas nenhuma dessas parcerias de cama o fez sentir metade do que sentia agora.

       Nenhuma nunca lhe pareceu tão bonita ou tão doce.

       O mesmo pensava Eleonora. Que nunca vira um elfo tão perfeito. Era tolice pensar isso, era muito jovem e inexperiente, e aquele havia sido seu primeiro contato íntimo. A vida lhe ensinaria a diferenciar amor e paixão. No entanto, ela queria guardar àquela sensação para sempre. Como uma lembrança de como a vida poderia ser apenas instintiva.

       -Eu o machuquei – ela disse começando a notar o óbvio.

       Suas mãos deslizaram pelo ombro, pelo braço. Assustada notou que haviam muitos arranhões e unhadas. A mais feia delas na altura das costelas.

       -Eu sinto muito. Eu não queria fazer isso. Eu não me controlei. – era uma desculpa desnecessária. Os dois sabiam que seria assim.

       -Não está doendo – ele mentiu. Sorrindo, ele afastou sua mão e levou-a aos lábios, beijando seus dedos – Valeu a pena ter amado-a em segredo por todos esses anos, Eleonora. Você é tudo que eu um dia sonhei.

       -Mas eu sou de verdade, Egan. E a realidade nunca é tão boa quanto o sonho. – ela filosofou nostálgica e entregue a sensação de puro prazer do pós-ato, onde a intimidade de casal tomava conta dos dois.

       Para que alimentar dúvidas ou perguntas, se agora tudo fazia sentido? Eram destinado um para o outro, e a compatibilidade e cumplicidade explosiva da consumação do cio provava isso!

       -Dessa vez, eu posso afirmar, que o sonho não chegou aos pés da realidade - ele elogiou e sorriu quando ela tocou o arranhão profundo na bochecha do elfo.

       -Como explicará isso? – perguntou a ele.

       -Não tenho obrigação de fornecer justificativas do que faço ou deixo de fazer durante uma missão. As leis são claras, o que importa é o resultado. – ele não ocultou um sorriso safado.

       -Eles não farão perguntas – Eleonora deduziu – Duvido que algum Conselheiro queira saber como o filho de Túlio, Primeiro em hierarquia entre eles, adquiriu um ferimento de cópula, durante uma missão, de fiscalizar a cópula de sua futura rainha com outro elfo. E muito menos, seus Guardiões, sempre tão devotados a você, irão fazer perguntas constrangedoras, colocando em cheque a reputação de Ildegar, e também, a reputação do Primeiro Guardião, o líder deles. Terei que me acostumar que as regras são ditadas por machos que seguem leis próprias quando lhes convém – ela não resistiu a provocar.

       -Está começando a pensar como uma rainha de verdade – ele respondeu e a procurou para um beijo.

       Egan finalmente entendeu o que Reina dissera sobre a castidade de uma fada. O cheiro da fêmea, o farfalhar das asas, a mágica do corpo feminino, que pela primeira vez era expelida, tudo formava uma nuvem de sensações e sentimentos, e enquanto a possuíra, Egan fora levado junto com a fada para um mundo único de sensações.

       Mas passado esse momento, a realidade mostrava aos dois um mundo de opções. Com calma e serenidade para descobrir a paixão entre eles, com carícias e afagos não explorados até aquele momento. Sem notar, retomaram o ato, fazendo amor de verdade, agora somente os dois e a mágica dos corpos, sem o toque do cio.

       Minutos mais tarde, novamente no ápice do apogeu sexual, Eleonora gemeu e se esfregou em Egan, enquanto ele guiava sua ereção diretamente para a intimidade da fada. Foi um momento de reconhecimento e ela agarrou-se aos ombros do elfo com ambos os braços, mordendo muito delicadamente o ombro direito, quando foi invadida e o prazer misturou-se a um sentimento novo, diferente do cio, mas não menos intenso.

       Durante longos minutos foram um ser só. Gemidos, gritos, sussurros, Eleonora sentiu a febre atingir limites inesperados e foi atirada em um mundo de emoções desconhecidos, ao mesmo tempo que diferentes da urgência do cio, igualmente poderosas em poder de turvar a mente e tolher os sentidos. Esperava do fundo do coração que sempre fosse assim entre eles, o prazer sem limites, sem barreiras.

       Quando terminou, Egan a aconchegou na cama, os corpos unidos intimamente. As asas haviam se acalmado e estavam baixas, rente ao corpo, por isso a colocou de lado, e deitou-se junto a Eleonora, embalando seu corpo com o seu.

       Exausta, Eleonora fitou o teto, em êxtase. Egan escorregou beijos por seu peito, pescoço e queixo, atraindo sua atenção.

       Parecia que horas haviam se passado, ou dias, tamanho torpor.

       E às vezes o torpor é perigoso e afasta os pensamentos da cabeça, deixando apenas as divagações da paixão e do amor recém-descoberto.

       Como se uma fada da clausura pudesse se dar ao luxo de apenas amar sem restrições. Enquanto não fosse uma rainha, ainda conservava os conflitos de uma fada apegada ao passado e repleta de sombras a perturbar seu descanso.

       Subitamente emocionada, Eleonora pensou em Driana, Alma e Joan. Em como elas estariam e o que estaria acontecendo em suas vidas. Lembrar-se delas causou-lhe tanta aflição que escondeu o rosto no pescoço de Egan, procurando nele um abraço e proteção para aquela angústia que não parecia ter fim.

       -Minhas amigas – ela disse em um sussurro meigo, explicando-lhe a causa de sua aflição – eu preciso ser livre para buscar por elas... Eu não posso ficar aqui. Não posso mais esperar, Egan.

       -Não – ele negou – Sua liberdade vem atrelada a responsabilidades. Suas amigas serão trazidas em segurança, eu lhe prometo que as trarei de volta em segurança, Eleonora.

       -Quanto mais tempo demorar a provar minha inocência, maior o risco dos Guardiões chegarem a elas antes de nós! – ela disse sentando na cama de súbito, e olhando para ele com suplica. – A guardiã Zoé, você não sabe, mas ela sempre infernizou e perseguiu Joan. Ela não podia enxergar a pobrezinha que a perseguia! Sempre a defendemos, mas eu fico pensando no que pode ter acontecido se aquela troglodita encontrou Joan!

       -Isso ainda não aconteceu. Reina é esperta. Ela enviou cada uma de suas amigas para um lugar diferente, um esconderijo de difícil acesso para os Guardiões. Elas estão seguras, não perca a esperança.

       -Esperança? Eu nunca tive esperança de ser livre, e olhe só para mim agora – tentou sorrir. Fez um carinho no elfo, em seu rosto e disse apaixonadamente – Não pense que não estou feliz. Essa noite, o momento que dividimos, foi inesquecível. Eu não consigo pensar em palavras para explicar o que eu sinto. Minha vontade é ficar nessa cama, nos seus braços, para sempre! Eu sou uma tola, é o que sou! – sorriu um pouco encabulada – Mas eu penso em minhas amigas, e toda essa felicidade de esvai em preocupação. Agora que provei minha honestidade, preciso apressar tudo, e ir em busca das minhas amigas! - conteve a exasperação, pois seu coração estava dividido entre muitos sentimentos diferentes - Além disso... Não podemos deixar Ildegar pra sempre naquela varanda... – acabou explicando, maliciosa.

       Seu sorriso traquina arrancou de Egan um sorriso. Sempre sério, se rendia a seu senso de humor.

       A fada estava coberta de razão. Beijando seu pescoço, num último carinho de amantes, Egan levantou e pegou a bela túnica que Reina trouxera de presente, que jazia no chão, entregando-lhe enquanto a beijava de leve na testa.

       -Fique neste quarto até ser chamada por Reina.

       -Sim, Guardião. Seguirei suas ordens – era um deboche apaixonado.

       -Espero que sim. Não esqueça que serei seu Rei, fada, e que me deverá submissão total – ele mesmo ria dessa ameaça irreal.

       Mesmo assim suas palavras ditas com aquela voz rouca e virial causaram um frisson em Eleonora. Ele seria rei, mas não era isso que importava. Seria o seu rei, e isso sim definia tudo!

       Seria interessante passar o restante da sua vida ao lado de Egan. Desafiador e perigoso dividir uma vida com aquele que lhe despertava paixão e amor em uma intensidade tão grande!

       Vestindo a túnica que Egan lhe entregou, ela deitou na cama entre os lençóis, e esperou, pois o Guardião permaneceu um bom tempo na varanda.

       Egan conversou longamente com o Sétimo Guardião, depois de retirar a concha de suas mãos, acabando assim com o encanto imposto pelo dom de Eleonora.

       Quando os dois deixaram a varanda, a fada dormia em sua cama, com a aparência inocente e serena de quem nunca cometeu pecados.

       Egan não disse nada, apenas conduziu o outro elfo para fora do quarto. Os dois saíram na surdina e Eleonora não foi importunada pelas próximas horas.

       Era preciso preparar a defesa de Eleonora.

        

                           A véspera

        Quando o Conselho se reuniu outra vez com os Guardiões, permitiu que Ildegar contasse sua versão dos acontecimentos ao lado da fada acusada. Falaram sobre a castidade, sobre o cio e sobre a punição para um Guardião que mentisse e ousasse contra as leis e honra do reino.

       E depois e um curto relato sobre ter se deitado com a fada Eleonora, e isso ter acontecido de modo rápido e impessoal, e que a fiscalização do Guardião Egan confirmara o ocorrido e também o cio da fada, o assunto foi encerrado.

       Não houve questionamento quanto à palavra do Guardião Ildegar. A fada era casta e final de assunto. Também não houve perguntas sobre o arranhão no rosto de Egan, como supunha Eleonora que não aconteceria. A maioria deles ansioso por encerrar aquela situação toda, para livrar-se de Santha e Lucius para sempre.

       Ao tramar contra a própria filha, Santha não considerou que isso pudesse atrapalhar seus planos. Que ser detestada por todos a faria alvo fácil para qualquer defesa que Eleonora apresentasse.

       Atentos, ouviram novamente o depoimento da fada paga há vinte anos atrás para exterminar a recém-nascida indesejada. Faltavam algumas formalidades, como por exemplo, explicar quem levara o bebê até a fada da floresta. Lucius seria acusado de mais essa traição contra o reino. Não era permitido a um agregado do Rei, decidir sobre o destino dos órfãos, fossem eles fruto do pecado de uma fada da clausura ou não. A comercialização ou sequestro de um bebê era sumariamente punido pelas leis criadas por Rei Isac. Um Rei de muitas contradições, como aliás, era a personalidade dos lideres levados ao poder por linhagem e não merecimento.

       Mikazar finalmente havia entrado no reino, mas preferia manter-se afastado dos olhares. Não definiram sua raça, era impossível, mas ao menos aceitaram sua explicação a cerca de sua descendência. Já era um começo. Em um reino até então elitista, aceitar diferenças era um começo esplendoroso, que prometia anos de mudanças e evolução.

       Era começo de noite outra vez, quando Reina buscou por Eleonora. A fada da clausura nunca imaginou que seria tão demorado, tantas horas de espera. Era deixada de lado, como Egan afirmou que aconteceria. Ninguém queria a futura rainha envolvida com assuntos sujos e de baixa categoria. O receio que dissesse algo errado ou envergonhasse a si mesma diante de elfos e fadas de menor poder. Era estranho que um título mudasse o tratamento que recebia.

       Há poucas semanas Eleonora fora tratada como uma ladrazinha que deveria der extirpada do reino, e não fosse pela interferência de Reina, estaria nas masmorras cumprindo pena pelo suposto roubo da tiara de Santha quando fora acusada de assassinato do Rei!

       Na ocasião ela não valia nada. Era apenas um incomodo. E agora, por causa de um título de rainha, era tratada com regalias e cordialmente. Quanta hipocrisia.

       Se Driana estivesse ali, ao seu lado, estaria revirando os olhos de vontade de discursar sobre a repercussão de tanta mentira e cinismo, em uma civilização que desejava ser prospera. Por sua vez, Alma estaria tão furiosa que era capaz de estar aos berros, gritando todos os mais feios palavrões que conhecia, ou estaria estourando os tímpanos de todos com seus gritos estridentes e intimidadores.

       E Joan? A doce fadinha estaria tão feliz em ver sua amiga rainha e livre, que apenas a abraçaria e esperaria aquela mentirada toda ter fim.

       Eleonora estava vestida com túnica de boa qualidade, em tecido caro, e com os cabelos escovados e brilhantes, adornados por joias que balançavam e tilintavam quando andava. Era estranho ter esse peso em seus cabelos. Era estranho ter esse peso nas roupas. Ela sentia falta dos pés descalços.

       Sua aparência não lembrava em nada a fada arteira que sempre corria pelo castelo, fugindo das severas regras impostas pelo orfanato.

       Mas Egan sabia que por baixo do tecido luxuoso, e dos cuidados, era a mesma órfã caridosa e sorridente e que esta fada sempre moraria dentro de Eleonora, refletindo-se em seu comportamento e a fazendo ser alguém melhor.

       Houve um silêncio generalizado quando Lucius e Santha foram trazidos de seus respectivos cárceres. Os dias de masmorra não fizeram nada bem a Lucius. O elfo não sabia lidar com a miséria e desgraça que costumava impor a todos que o desagradassem.

       As demais esposas do Rei não cansavam de gritar ofensas, tão logo os dois adentraram o salão e não demorou uma multidão de súditos exigia a morte dos acusados.

       Era necessário permitir que um pequeno contingente de habitantes estivesse presente à cerimônia. Súditos mais importantes, esposas e filhos de Conselheiros, pais e irmãos de Guardiões, os elfos em treinamento, e assim por diante, para garantir uma total transparência em suas ações e calar as dúvidas e desconfianças que eventualmente pudessem ser levantadas sobre o destrono da rainha Santha.

       Túlio, pai de Egan e Conselheiro do Rei precedia a cerimônia não por querer, mas por ser o elfo de maior confiança do Rei morto.

       Era seu dever vingar sua morte prematura, pois apesar de egoísta, Isac era um Rei calmo e sereno, e conduzia seu reinado com considerável justiça e prosperidade, que não atendia a todas as classes sociais, mas tentava sanar o máximo possível essas discrepâncias. E nisso, Isac era omisso.

       Poucas noites na clausura não fizeram nada bem para a rainha. Santha estava pálida, muito mais que o habitual. Seus olhos, cabelos e lábios sem vida. Ela parecia perturbada, como alguém que cometeu um grave erro.

       Era possível que perder tudo, tão de repente, houvesse lhe trazido uma lucidez que os anos de riqueza e poder mascararam.

       A sujeira das pequenas e abafadas câmaras, impregnara em suas roupas e cabelos. Era assim a vida de prisioneira da clausura. A solidão e o desespero impregnavam na alma da criatura, do mesmo modo que a sujeita fazia com as roupas.

       Túlio falava sem parar, mas tanto Eleonora quanto Santha não prestavam atenção, ocupadas em olharem uma para a outra. Lucius era mera peça descartada, pois seu amor nada significava para ambas.

       Eleonora foi mantida ao lado de Reina, longe dos acusados.

       Em determinado momento, Lucius foi erguido e levado diante dos Conselheiros Reais. Sua postura ajoelhada era considerada a submissão maior, onde o prisioneiro respeita seu algoz. Mas era mentira, os olhos de Lucius falavam sobre essa insubordinação. Nada poderia aprisionar sua mente criminosa!

       -É sua oportunidade de confessar seu crime. – Túlio lembrou-o – Atentou contra a vida do Rei? – era uma pergunta de praxe.

       -De modo algum. Não participei do plano, mas tomei conhecimento dele. Como cúmplice, tenho consciência que minha pena é reduzida – ele disse com a seriedade de alguém que não aceita perder.

       Um elfo que desfrutou do tempo solitário na masmorra para pensar em sua situação e em suas possibilidades de defesa e possíveis escapatórias!

       Santha correu os olhos sobre ele, completamente incrédula. Era quase inocente de sua parte estar surpreendida pela atitude de Lucius contra ela. Conhecia sua índole e sua mesquinhez, mas às vezes gostava de se enganar dizendo que havia amor por baixo de tanta sujeita. Baixou os olhos, ferida. Eleonora podia sentir sua dor, pois a traição é uma das piores dores da existência de uma fada. E de traição, Eleonora entendia. Melhor que qualquer outra criatura, Eleonora entendia o que era sentir a dor da traição!

       -O crime de abandono da fada Eleonora não pode ser julgado. É impossível obter provas contundentes após tantos anos. O depoimento da fada contratada para eliminar Eleonora, é bastante significativo. Mas não o suficiente para acarretar uma pena concreta. – Túlio foi franco – Tem algo que queira dizer sobre isso, Lucius?

       -Não – ele alegou, sem olhar para nenhum deles.

       Nem ao menos uma tentativa de defesa. Se não era punível, ele não desmentiria suas atitudes. Nem mesmo para parecer alguém bom. Nem ao menos por pena da cria que tentou matar.

       Egan observou Eleonora, sua fada, e percebeu o quanto era difícil para ela olhar para Lucius.

       Santha era um monstro, mas era passional. Lucius não. Frio, sem apegos, sem sentimento algum. Ele jamais pensou na filha perdida, ou na amante que padecia da própria loucura. Sempre atendeu aos próprios interesses e ambições.

       Ser amante de uma rainha lhe trouxe benefícios. Era o que importava.

       Eleonora cochichou algo no ouvido de Reina, que levantou de seu lugar junto às esposas do Rei, onde as mulheres aguardavam e andou até Túlio. Deixou Eleonora ali, guardada por essas mesmas esposas, que daquele momento em diante seriam responsabilidade da rainha e pareciam entender muito bem que lhe deviam lealdade, pois aquela rainha representava a chance de liberdade de todas elas.

       Eleonora já sabia que poderia exigir as esposas de Isac para um harém de seu futuro Rei, ou liberta-las. Como a primeira alternativa era totalmente inconcebível, pois jamais permitiria que Egan tivesse intimidade com outra fêmea, totalmente ciumenta do seu elfo escolhido, a liberdade era o único caminho para aquelas fadas desgraçadas pela vida. Seria necessário muito cuidado e responsabilidade nessa transação. Mas acharia um modo de dar a elas uma boa vida.

       -É sugestão de Eleonora que sua pena não seja cumprida na masmorra. Segundo ela, é um local razoavelmente movimentado, onde obteria voz e som. Ela sugere que seja aprisionado na clausura. – houve um momento de choque na face do elfo, mas Lucius logo disfarçou – Que a clausura será apenas uma pálida lembrança, pois como rainha, Eleonora a exterminará. Mas você, Lucius... Será o único a desfrutar deste privilégio pelos anos seguintes a sua punição. Como pode ver, sua cria entende sua necessidade de ser especial, e lhe oferece uma punição única, pois nunca um elfo desfrutou de tal... Honra. – Reina sentiu prazer em falar isso.

       Como não houve contrariedade da parte dos Conselheiros, Lucius foi erguido e levado. Estava tão chocado, que as palavras lhe falaram, provavelmente acreditava que em algum momento conseguira fugir. Em seu caminho, quando passou perto de Santha, foi surpresa para todos que a prisioneira tentasse tocá-lo.

       -Por favor, me deixe tocá-lo uma última vez – ela implorou, livrando-se das mãos dos Guardiões, para tocar o rosto de Lucius – Eu o amei tão cegamente. Preciso olhar em seu rosto uma última vez...

       Era uma voz fraca, sem autoridade alguma, como havia sido quando jovem, quando era apenas uma fada da clausura, com sonhos de liberdade e não de soberba.

       Ela esfregou a palma das mãos no rosto de Lucius várias vezes decorando as formas de seu rosto. Era amor, pensou Eleonora. Um amor estranho, mesquinho e cruel, mas era um amor grande demais para o rancor subjugar.

       Santha foi arrancada de perto de Lucius e levada aos Conselheiros. Caída de joelhos no chão, ela olhou para cada um deles com a mesma face altiva de sempre.

       -Confessa seu crime contra a vida do Rei Isac? – perguntou Túlio.

       A pergunta soou estúpida.

       -Isac nunca gostou de você, Túlio – ela disse furiosa – ele achava que era um elfo fraco. Um Conselheiro humanista demais. Um estúpido manipulado pela esposa e pelos filhos. E ele tinha razão. Tenho certeza que Isac não concordaria em vê-lo presidindo essa cerimônia! – ela fez questão de deixar isso claro.

       -Rei Isac está morto. Tão pouco creio que Isac aprovaria seu comportamento, Santha. – Túlio disse, e repetiu a pergunta - Confessa seu crime contra a vida do Rei Isac?

       Houve um silêncio repentino, como se esperassem uma negativa. Mas para a surpresa de todos, ela acenou com a cabeça;

       -Sim, eu tramei contra a vida do Rei. – Seus olhos tão claros, quase sem cor, remeteram para a fada Eleonora, sem que ela virasse a cabeça.

       Era um modo visceral de olhar. A verdadeira Santha. Não a rainha, ou a fêmea sofisticada. A verdadeira essência da fada Santha.

       -Conte-nos sua motivação para tal crime. – A exigência de Túlio a fez sorrir.

       Lágrimas correram em sua face, mesmo assim ela sorriu, como se não conseguisse mais sentir dor:

       -Eu emprenhei na clausura. Não me importava com mais nada. Nunca seria escolhida. Mas naquele ano... O cheiro de fêmea atiçou o Rei e ele me escolheu. A criança era dispensável. Uma fêmea que teria minhas asas. Se não fosse essa a razão, teria crescido como qualquer outro órfão. Mas com as asas idênticas as minhas... Não restou alternativa.

       -Sempre há alternativas – Túlio alegou e ela olhou-o irônica.

       -Não para uma fada da clausura – ela negou – A vida toda presa entre quatro paredes. Vendo o sol uma vez ao ano, quando levadas para a escolha. Um cruel momento, pois após os anos de juventude, nenhuma fada é escolhida. Matar ou morrer? Que escolha me foi ofertada?

       Era uma pesada verdade.

       -Mas nada justifica meu crime. Sei disso – foi gelada – Eu amei o Rei. Não deveria, mas amei. Amo. Não há explicação para o que fiz. Eu não queria correr o risco de perder a liberdade. De ser presa, e permanecer minha vida toda trancafiada – ela ergueu a voz – Mesmo agora, eu imploro, estou confessando meu crime. Quero a morte, e não a prisão.

       -Não é digna de escolhas. – Egan ergueu a voz, e levantou, andando até ela – Enviou sua primogênita para a morte, quando sabia muito bem que o rei perdoaria seu deslize do passado! Isac era fraco, ele sempre se apegou a desejos pouco profundos! Manipulou o rei por seu desejo de ser mantida rainha, não apenas escolhida! Merece apodrecer na clausura!

       -Eu não queria que ninguém soubesse do meu pecado – Santha esclareceu – Eu não queria ter que encarar o meu erro.

       Era uma pesada declaração. Eleonora também se levantou e andou até Egan.

       Todos pensavam que era uma fada deflorada por outro, mas isso não importava para os dois, que sabiam a verdade. Egan seria seu rei e todo o sofrimento seria esquecido com o tempo.

       Eleonora ficou ao seu lado, e tocou a mão dele com a sua, entrelaçando os dedos, pois precisava de força para fazer o que pretendia:

       -Inocente as fadas Driana, Alma e Joan. Confesse que não tiveram participação no seu crime e lhe concederei o seu pedido. – Ofereceu.

       Egan tentou impedi-la, mas Eleonora não fazia isso por sua mãe, e sim pelas amigas.

       Santha levantou e encarou a filha, pois tal como ela, sabia que seu pedido era motivado por dois sentimentos: as amigas que corriam perigo e também, o secreto sentimento que jamais poderia ser revelado: Eleonora entendia e compartilhava seu desejo de liberdade.

       As duas enxergavam-se através do reflexo de um espelho imaginário que datava de vinte anos de diferença.

       -Fiz tudo sozinha. Cada palavra que disse era uma grande mentira. As acusações que proferi contra as fadas do Ministério do Rei... Tudo mentira. Um plano para incriminar minha cria renegada. Ninguém além de mim participou da morte do Rei Isac – ela formalizou sua confissão, sem tirar os olhos dos olhos de Eleonora.

       -Que a punição seja aplicada, então – O pai de Egan alegou, com voz cansada, desgostoso do rumo daquele julgamento. – As asas da fada devem ser cerradas e ela deve ser lançada ao abismo.

       -Porque manchar o chão do castelo com o sangue dessa fada traidora? – Eleonora perguntou seca, olhos perigosos, olhos traiçoeiros, tal como os olhos de Santha. Era provável que apenas Reina, pudesse notar que naquele instante mãe e filha eram idênticas em manipulação e sagacidade – amarre suas asas, para que leve consigo sua tão amada liberdade. Que seja seu último voo, Santha. Espero que desfrute de tudo que conquistou com suas mentiras e maldades.

       Era vingativo da sua parte, mas ninguém questionou. Santha foi imobilizada e presa no chão enquanto amarravam suas lindas asas junto ao corpo. Em seu pescoço uma das coleiras usadas na época da guerra de rei Ulder contra as fadas, que tolhia totalmente o dom da fada.

       Santha não gritou, ou lamentou enquanto era levada. Em comitiva as criaturas seguiram a prisioneira em direção ao abismo.

       Ao lado da alcova do Rei, na mais alta das torres, daqueles corredores por onde o Rei havia sido traído, a até então rainha Santha foi levada e mantida suspensa sobre a murada de pedras. Egan permaneceu ao lado de Eleonora todo o tempo, ambas as mãos pousadas em seus ombros para contê-la caso mudasse de ideia, ou ampará-la caso a emoção fosse demasiada.

       Eleonora não fraquejou um milímetro enquanto assistia Santha ser lançada no abismo. A morte era eminente e quando uma rajada de ar frio balançou as vestes e cabelos de todos, uivando um grito de dor, como se o vento chorasse, todos acharam por bem voltar ao salão principal um a um partindo e deixando-os para trás. Era o receio de uma tempestade.

       Sozinha com Egan, muito tempo depois, Eleonora manteve os olhos fixos no abismo e ele aconchegou-se por trás, abraçando-a com intimidade e calor, compartilhando segredos inconfessáveis de sua rainha:

       -Porque fez isso, Eleonora? – Perguntou sério.

       Eleonora não ficou surpresa que ele soubesse. Que fosse o único a ter notado.

       -Porque no fundo da alma eu entendo o desespero de uma fada da clausura. Eu sou uma delas. Eu ainda sou uma delas, e serei até o último dos meus dias. Entendo o medo e o desespero. Eu entendo, Egan. Não posso perdoar, mas eu entendo.

       O vento havia se acalmado e Egan soube que era um comando de Eleonora para que o vento soltasse as cordas e Santha pudesse voar e salvar-se. Toda a fúria dirigida a Santha era real, mas no final, o coração de Eleonora falou mais alto.

       -Ela estará em algum lugar, talvez fazendo mal a outras criaturas – ele ponderou.

       -Não. Santha não tem mais razões para atentar sobre nada. Ela é livre afinal. – Seus olhos deixaram o abismo e pousaram sobre Egan, pronunciando a palavra seguinte com dolorosa cumplicidade – Livre.

       Sim, Santha era finalmente livre, e dessa vez não havia barreiras para sua liberdade. Nem olhares curiosos, ou interessados. Santha simplesmente não existia mais nas vidas dos elfos e fadas e o que seria dela daquele momento em diante não importava para mais ninguém, muito menos para Eleonora.

       Cúmplice, Egan não tentou entender, mas aceitou sua decisão. Levou-a para longe do abismo e mais adiante, longe de toda a profundidade de seus sentimentos dolorosos.

       Para longe de tudo que pudesse feri-la.

 

                          Florescer de sândalo

        Durante todo o dia seguinte, Eleonora precisou ser vista e ver. Nada que a fizesse esquecer-se de suas amigas, apenas obrigações que precisava suportar. No final, era noite quando ela arrumou uma desculpa qualquer para encerrar um desagradável jantar na companhia dos Conselheiros, sendo Túlio o mais desagradável de todos, e nem mesmo a presença do filho, poderia amenizar o desgosto do elfo por ver Eleonora sendo levada ao trono. Era preferível a Santa e Lucius, mas ainda assim uma péssima escolha.

       No final, ela acabou esperando por Egan no quarto, e quando ele finalmente livrou-se do compromisso, ficaram juntos e conversaram muito, aliviando dúvidas e reafirmando fatos que ambos desconheciam um sobre o outro. Dessa vez sem obrigações e sem pressões, o assunto entre eles evoluiu lindamente. Sem contar que precisavam falar sobre Santha e os sentimentos de Eleonora sobre tudo que aconteceu.

       Nas primeiras horas do dia, ainda estavam despertos.

       -Seu pai não me suporta. - ela disse triste - Espero que não cause problemas para Reina. Ele pode não gostar de saber que sua esposa quer ser minha pajem.

       -Reina jamais permitiria que meu pai a impedisse de ficar perto de você. Foram duas às vezes em que permitiu, uma terceira não acontecerá - Egan alegou, olhando-a com olhos de pura afeição - Reina será uma ótima aconselhadora. É importante que uma rainha tenha alguém para lhe dar bons conselhos.

       -Hum, fala como um rei chato - ela provocou, ainda mantendo os olhos sobre ele com quase adoração romântica. - Eu deveria ir com você – Eleonora disse cansada, deitada de lado na imensa cama, entre lençóis de seda e travesseiros de plumas.

       Estava nua e suas asas estavam calmas, em repouso. Depois de uma noite inteira de conversa e mesmo que não quisesse, uma noite chorando pelo que Santha lhe fez, nos braços de Egan, sendo que ambos não fizeram amor, apenas se abraçaram, ela sentia-se limpa da dor pela traição dos pais.

       Egan estava de pé, vestindo a armadura, e parecia descrente da sua afirmação:

       -De modo algum, Eleonora. – negou – É a futura rainha. Será coroada em poucos dias. Não pode abandonar seu lugar. Deve isso a tantas fadas e elfos que precisam de um líder justo e piedoso. Não deve se expor aos perigos de uma caçada.

       -Conversa – ela debochou – Você só não quer que eu descumpra suas ordens. Quer que eu fique aqui, longe dos riscos de uma caçada! Submissa as suas ordens! – ela sorria diante dessa afirmação.

       -Sim, eu posso ser justo e piedoso e ainda assim pensar em dois pontos de vistas diferentes, não posso? Desconfie de uma criatura totalmente piedosa, Eleonora. Um pouco de egoísmo faz parte da vida. – Egan aproximou-se da cama, e ela abriu um lindo sorriso, quando ele sentou perto dela.

       -Sábias palavras, meu rei.

       Eleonora correu os dedos sobre o metal gelado que cobria seu peito e braços.

       Poucos elfos eram agraciados com o recebimento de armaduras. Pouquíssimos possuíam o dom e a justiça em seu sangue e eram acolhidos para Guardiões e como tal, eram escolhidos por suas armaduras. E pouquíssimos, eram agraciados com a chance de viver um amor verdadeiro.

       Este carinho no metal era o mesmo que acariciar a pele do elfo, pois a armadura e a carne se fundiam quando unidas. Egan lhe sorriu e curvou-se para um beijo terno.

       -Apesar de que... Agradar a si mesmo não é um modo de justiça – ela provocou de propósito.

       -Depende... Se a futura rainha é decente e honrada, faço um favor a mim mesmo e ao reino mantendo-a a salvo de suas próprias travessuras - Egan segurou seu queixo, como gostava de fazer e completou - é mais seguro para todos que permaneça ao lado de Reina sendo preparada para a posse do trono. É preciso conhecer um pouco da etiqueta esperada de uma rainha, e você, minha doce fada escolhida não é agraciada pela delicadeza e etiqueta esperada de uma fêmea submissa. – ele também não resistiu a ver seu sorriso, provocando-a com falsas cobranças sociais.

       -Acontece que não é uma travessura minha. Estamos falando das minhas amigas. É meu sangue. É estranho, não somos parentes, mas cada uma delas corre no meu sangue, na minha carne, e pulsa no meu coração. Eu quero achá-las, Egan. Salvá-las. Além disso, pensemos em Tubã. – ela suspirou preocupada – O que ele não deve estar aprontando sozinho? É capaz de há essa hora estar em alguma enrascada! Nunca foi sábio deixa-lo sozinho! Tenho até medo de pensar nas brigas que deve estar arrumando e nas confusões que possa ter aprontado!

       -Eu sei onde Tubã está – Egan sorriu misterioso – eu sempre soube, conheço meu irmão e sei de apenas um lugar para onde ele fugiria.

       -Onde? Para onde Tubã iria? – Ela perguntou curiosa.

       -Você não sabe? Achei que fosse unha e carne com meu irmão, e que soubesse de todos os segredos de Tubã – ele disse ciumento. Seria sempre enciumado da amizade de seu irmão com sua fada escolhida.

       Ofendida Eleonora afastou-se e disse séria:

       -Sou e serei sempre unha e carne com Tubã. Mas não sei de todos os seus segredos. Ele é elfo. Eu sou fada. Ele não me conta tudo que faz e tão pouco eu pergunto. Sempre houve um limite muito claro entre nós, e isso incluiu nossas amigas. Nunca houve liberdades entre nós. Saberá de bocas de confiança, quando resgatar minhas amigas. Elas lhe contarão da nossa amizade.

       -Tenho meus segredos com Tubã, somos irmãos, não se esqueça disso, Eleonora. Apensar da diferença de idade entre nós, sempre houve grande cumplicidade. Eu lhe mostrei um caminho seguro para esconder-se caso necessário. E é lá que o procurarei quando houver resgatado as fadas fugitivas. Acaso, sabe aonde devo procurá-las primeiro? Sei que Reina arquitetou um plano elaborado para que escapassem. – Ele afirmou e Eleonora retomou os carinhos, pousando a cabeça em seu ombro, sobre a armadura.

       -Terá dificuldades em encontrar Driana. Ela deveria estar aqui mesmo, no castelo, escondida. Mas não apareceu nem mesmo sabendo que estou inocentada o que me leva a crer que optou por partir. Ela é tão engenhosa e criativa... Tão inteligente que jamais conseguirá pegá-la a menos que ela queira. Quem poderá saber o que se passa na mente de Driana? É um mistério! E isso me preocupa, pois pode demorar até saber que estou livre e voltar espontaneamente – disse desanimada.

       -Levando em conta que o Guardião a persegui-la é Acheron, e que ele não é o mais inteligente dos Guardiões... – Egan sorriu – Pode demorar meses a encontrá-la. Quanto a isso não se preocupe, ele não deve ter chegado nem perto do esconderijo da fada.

       -Que crueldade falar isso de seu amigo – ela riu e o cutucou, pois era bom ouvi-lo falar com naturalidade sobre seus amigos.

       Egan fora criado de modo tão rigoroso e severo, que temia que isso houvesse afetado suas relações com todos os elfos. Mas não era assim, ele possuía bons amigos e isso a deixava muito contente.

       - Acheron é bom onde deve ser bom. É um guerreiro nato. É invejado por seu porte e capacidade de luta. Ninguém nunca disse que ele deveria ser bom com números, ou fórmulas. – Ele explicou. Deixando claro que não desmerecia o companheiro de guarda e sim, aceitava as diferenças e aptidões que distinguia os dez Guardiões.

       -Cada qual com seu talento, Guardião. Você também não presa muito pela astucia... – Arreliou, incapaz de conter o sorriso, estava tão feliz em seus braços, que não podia conter-se – Eu procuraria Driana no lugar mais óbvio. Ela consegue se esconder muito bem, mas o bom mesmo... Seria se o boato da minha inocência se espalhasse rapidamente. Mikazar pode nos ajudar nisso. Ele é tão rápido. Pode ir de um ponto ao outro sem dias, e espalhar a novidade como mensageiro oficial. O que acha? Driana voltará quando souber que estou livre de riscos.

       -Confia tanto assim na sua amiga? – Ele sondou, desconfiado dessa afirmação.

       -Confio em minhas amigas com a minha vida. – Ela disse segura – Outro problema será Joan. Ela vai se camuflar dos olhos de quem a persegue. É fato. Além disso, Reina a enviou para o Vale dos humanos, e fisicamente Joan é muito parecida com um deles. Enquanto as asas não nascerem... E eu aviso que falta para ela alguns meses ainda, não será fácil encontrá-la! Seus olhos não conseguirão distingui-la, se usar seu dom, mesmo incompleto, e seus sentidos não a reconheceram mesmo que se mantenha visível. Ela estará misturada aos humanos. Isso é fato.

       -Foi designado o Terceiro Guardião para encontrá-la – Egan explicou – Zoé é fêmea, sendo assim metade dos encantos de Joan não terão efeito sobre ela, por conta de seu dom. Zoé é capaz de ver a verdade, mesmo entre brumas. E tem asas. Pode competir com uma fada de igual para igual. Preocupa-me que já tenha encontrado sua amiga... Zoé é um pouco bruta quando quer.

       -Bruta? – Eleonora sentou-se e cobriu o corpo nu com o lençol, pois haviam deitados nus durante a noite passada – Eu lembro dela! É uma selvagem! Podre Joan se foi encontrada... – Disse assustada, pensando nisso com alarde.

       -Zoé não é uma assassina. Não se preocupe – ele garantiu.

       -Eu não tenho tanta certeza disso! Ela sempre foi um monstro conosco! Sobretudo com Joan! É uma Guardiã perigosa e se ela tocar um dedo em Joan não poderei perdoa-la, mesmo que seja uma Guardiã! - avisou, desconsiderando a possibilidade de viver em um mundo onde Joan não existisse! Era inconcebível! A saudade já era dolorosa, mas o apartamento definitivo seria insuportável!

       -E Alma? Reina e enviou para a Vila dos Desesperados e neste lugar todas as criaturas têm características estranhas. Quem notará uma fada com voz estranha? Além disso, Alma pode ser bem malvada quando quer – disse pensativa, a tensão retornando, agora que pensava com clareza sobre os perigos que cercavam suas melhores amigas, suas companheiras de sofrimento e sobrevivência! – Ela com certeza fará da vida do seu perseguidor um verdadeiro martírio se tiver a chance!

       Egan sorriu e acariciou seu rosto para que se acalmasse:

       -Não se preocupe, Solon é praticamente surdo. Não vai se perder pelo dom da sua amiga. Além disso, ele é bastante paciente. Vai saber lidar com as mazelas de uma fada irritante. Assim como eu soube.

       -Você não entende! Alma não usará apenas seu dom, Egan. Ela é bem mais perigosa do que isso... - não quis entrar em detalhes, ou delatar as mais íntimas sombras que sua amiga carregava em sua personalidade, por isso desviou sua atenção - Além disso, não se anime muito, você não sabe lidar comigo! Jamais admitiria gostar de mim, se eu não lhe propusesse o trono! – Acusou.

       -Mentira. Eu sempre reparei na fada que andava com meu irmão. E jamais, escute bem fada, jamais me colocaria entre meu irmão e a sua fada escolhida – ele garantiu. Relembrando-a disso.

       -Não sou a fada escolhida de Tubã. Nem mesmo ele sabe quem escolheria. Se convença disso, pois é verdade. E você, poderia ser menos turrão e começar a falar com as pessoas sobre o que sente e pensa e não deduzir tudo sozinho! Nunca pensou pela sua cabeça que Tubã poderia querer saber sobre seu amor por mim? Que ele poderia não querer disputar uma fêmea com seu irmão adorado? Precisa abrir seu coração, Egan, é o melhor caminho para a felicidade. Eu sempre senti tanta solidão amando um elfo que nunca olhou para mim! – Ameaçou e Egan sorriu.

       -Eu volto em alguns dias, fada rainha. Comporte-se e cumpra o treinamento que Reina ministrará. É necessário para que case e suba ao trono. Não cause tumulto. E não enfrente os Conselheiros. Eles estão sensíveis em ter um Guardião como Rei.

       -Espere, Egan... - Eleonora sentou na cama, e então ficou sobre os joelhos, revelando o corpo nu – Fique mais um pouco... Mais uns minutos para me despedir...

       Era um pedido inocente, mas seus olhos brilhavam com pura luxuria e diante do farfalhar daquelas asas que amava, Egan não resistiu.

       Poderia demorar semanas, ou meses, para retornar ao seu lado.

       Sem retirar a armadura, apenas livrar-se das calças, Egan voltou para a cama e para Eleonora, fazendo-lhe um amor rápido, quente e apaixonado, enquanto lá fora o mundo esperava pelo futuro Rei, que deveria encontrar as fadas acusadas injustamente e trazê-las em segurança.

       Pois enquanto não houvesse um final feliz para Driana, Alma e Joan, Eleonora não poderia ser inteiramente feliz...

         

       Driana não conseguia relaxar. Estava seguindo a pé atrás do Guardião Acheron. Seu cavalo havia sido perdido na Floresta dos Dois Dias, e agora seguia a pé atrás de seu amo, enquanto o Guardião seguia em seu cavalo. Guardião, ela pensou irônica. Se aquele não era o elfo mais burro que encontrara na vida, estava entre os três primeiros. Como era possível uma carcaça tão perfeita conter tão pouco conteúdo?

       Acheron era valente e bom com armas. Seus olhos mal podiam crer em tanta vitalidade ao lutar e vencer os adversários, como acontecera no dia anterior quando foram atacados ainda na Floresta dos Dois Dias.

       Pena que sem a espada nas mãos, Acheron era apenas um elfo grandalhão. Entediada, ela fincou os olhos nas costas reluzentes de suor. O maldito elfo insistia em deixar a armadura dependurada no lombo do cavalo enquanto seguia sob o sol, sem camisa.

       Não que isso a perturbasse... Mas ela sentia a aproximação do nascimento das asas, e sua libido estava começando a ser subjulgada por sua porção fêmea. Seu dom estava consideravelmente mais afiado, o que a fazia crer que seu momento se aproximava. Em breve nem mesmo a burrice latejante de Acheron conseguiria ignorar que era uma fêmea e não um elfo de aparência estranha e feminina que o seguia e ajudava naqueles longos dias de caçada.

       -Tem certeza que a fada foi por aqui, Acheron? – Driana gritou lá de trás, para que o brutamontes a ouvisse.

       Estava de mau humor desde a noite passada e a culpa era somente dele!

       -Sim – ele respondeu, com um rápido olhar em sua direção.

       O sol corou o bronzeado de sua pele, e os cabelos louros longos e dourados, e ela quase esqueceu o que pensava.

       Olhos claros, rosto quadrado, criado para personificar o perfeito macho. Sua mente critica sabia que elfos assim existiam, assim como fadas perfeitas também existiam, e era apenas um ideal de beleza, sensualidade, e não algo real e valioso.

       Mesmo assim, ela lutou para se concentrar em seus próprios pensamentos enquanto ignorava um pingo de suor que descia do pescoço másculo e rolava sobre a carne suculenta do peito, cruzando sobre o mamilo masculino, escondendo-se entre os gomos de seu abdômen e finalmente se perdendo no cós da calça justa, moldada pelo cinturão de couro onde pendia a espada.

       -Tem absoluta certeza que confiar na indicação de uma fada de taverna é algo inteligente de fazer? – Insistiu.

       Acheron havia perdido algumas horas em uma taverna e saíra de lá com novidades sobre o paradeiro da fada desaparecida, ou seja, ela mesma.

       -Viram uma fada fugindo para esses lados – ele alegou puxando as rédeas do cavalo e girando para retomar o caminho de trás, vindo atrás de Driana, pois sentia que seu ajudante, o pequeno elfo que se nomeara Jô tinha ideias sobre o paradeiro da fada.

       -E poderia ser qualquer fada – ela disse ignorando sua presença no alto do cavalo – Pelo que ouvi dizer... A fada Driana é inteligentíssima. Capaz das maiores artimanhas e planos audazes – enalteceu a si mesma – porque ela seguiria a pé e correndo para que todos vissem? E porque vir tão longe para uma Floresta tão perigosa se as suas asas estão para nascer?

       -As asas estão para nascer? Como sabe disso? – Ele perguntou curioso, tentando lembrar-se de quando essa informação havia sido passada para eles.

       -Eu imagino que sim. Ela tem quase vinte anos não tem? – Driana corrigiu-se rapidamente.

       -Sim, isso é verdade, a idade de uma fada da clausura nunca é exata, mas as carcereiras estimam que esteja aproximando-se dos vinte anos – ele logo esqueceu a questão.

       Nessas horas Driana perguntava-se sinceramente se o Guardião era lento, burro ou crédulo. Qualquer uma das hipóteses era inaceitável.

       -O que eu digo é que parece menos provável que uma fada sozinha seguisse para Saul.

       -Eu acredito na informação que recebi, garoto. A fada é de confiança, mesmo que ganhe a vida em uma taverna – ele sorriu sonhador e Driana fechou os olhos contando até dez para conter uma resposta amarga.

       É claro que era de confiança. Aquele monte de músculos era capaz de confundir prestação de serviço com amizade!

       -Eu apenas acho tolice seguir para a Floresta de Saul – insistiu.

       -É mesmo? E é por isso eu sou o Guardião e você é um ajudante? Eu tomo as decisões, garoto. Coloque-se em seu lugar. – Ele se irritou.

       Sim, mais de uma vez Acheron se irritava mortalmente ferido em seu orgulho pelo rapazola que apenas erguia uma sobrancelha de descaso em sua direção e deixava claro que o Guardião era um imbecil de pensamento lento, enquanto ele era sagaz e capaz de encontrar uma agulha no palheiro.

       Se bem que quando ouviu o rapaz, eles seguiram por uma trilha bem melhor e não haviam perdido tempo em trajetos errôneos.

       Orgulhoso, e decidido a não dar o braço a torcer, Acheron acelerou o trote do cavalo e seguiu a frente, deixando Driana revoltava atrás de si.

       Carregando sua trouxa de pertences nas costas, Driana andou atrás do Guardião que deveria encontrá-la e levá-la para julgamento.

       Ao menos o tolo seguia para o caminho errado, pensou sorrindo. Cada vez mais longe, se houvesse um bendito caminho errado para seguir, Acheron encontraria e seguiria por ele, todo contente e orgulhoso de seu feito!

       Esse era Acheron capaz de fazê-la sorrir mesmo quando a preocupação e o medo deveriam dominar seus dias e a fazia pensar onde estaria suas amigas e como estariam.

       Driana não sabia, mas não muito longe de onde estava Alma costurava um manto, sentada ao lado da velha duende, que se cobria com mantos verdes, e mantinha sua pele da mesma cor, tornando-se quase camuflada. No mercado da Vila dos Desesperados Alma ganhava o pão com pequenos trabalhos e contava com apenas essa proteção para se manter escondida.

       Sabia que era fugitiva, mas não teciam comentários e levando em conta que Alma suspeitava que a duende também estivesse fugindo de algo... Tudo estava bem.

       As duas mantinham-se caladas e se ajudavam. Embora às vezes, Alma sentisse a curiosidade aflorar e vir com força total, fazendo sua língua coçar de vontade de perguntar a velha duende se também fugia de algo ou era apenas impressão sua.

       Alma parou de bordar o manto ao reparar que outra vez a sagaz duende reparava em movimentação suspeita na vila.

       Era só o que lhe faltava! Eldor ter voltado e insistir em infernizar sua vida, já tão miserável!

       Não era nada disso, mas também era preocupante. Era o Quarto Guardião Solon. Ele falava com as pessoas por gestos e às vezes se irritava, mas insistia em obter respostas.

       Os habitantes da vila não lhe forneceriam nenhuma pista, por solidariedade a uma pobre fada que precisava fugir para sobreviver, assim como a maioria dos moradores da Vila dos Desesperados, que já sofreram ou ainda sofrem o peso do preconceito, dominação ou apenas miséria.

       Em uma das barracas ela ouviu a voz de uma jovem fada de cor acinzentada e feições muito estranhas, uma das mais ignoradas de todas as criaturas estranhas do vilarejo, ele gritava com a fada e ela respondia nervosamente. Não forneceu nenhuma informação que pudesse ajudar, mas seu nervosismo e o modo inconsciente de olhar sem parar para a barraca de calçados e artigos de couro, indicou ao elfo por onde deveria começar.

       Havia sim uma fada recém-chegada a Vila dos Desesperados e que a pouco mais de três semanas se escondia entre os moradores. Uma fada que nesse instante exalava um cheiro característico e nada discreto de cio.

       A velha duende havia pendurado vários tipo de ervas por toda a barraca na tentativa de amenizar o odor, ou ao menos disfarçar sua origem, mas era um ato falho. Tentativa desesperada de ao menos despistar os elfos mais tolos ou influenciáveis.

       Sua companheira de bordado não disse nada quando Alma largou o que fazia. Apenas apontou para o fundo da barraca como quem alerta da necessidade de fuga. Por isso, Alma não pensou em nada, apenas levantou e correu para esconder-se atrás do couro que limitava a barraca.

       Solon encontrou apenas a velha bordando, calmamente.

       -Onde está a fada? – Perguntou invadindo a barraca.

       -Quem? – Ela perguntou, fingindo-se de surda.

       -Onde está a fada? – Ele gritou mais alto, irritado.

       -Quem? – Ela insistiu e Solon desistiu.

       A velha duende sabia de sua carência auditiva a usava isso contra ele! Se fosse outro elfo, se vingaria desse deboche, mas era alguém justo e valoroso e apenas ignorou seu ato contra a lei do reino. Atrasar ou atrapalhar uma missão de um Guardião a mando do rei ou rainha era razão para um longo julgamento.

       Alma correu para longe da barraca, escondendo-se entre árvores, espiando o Guardião Solon sair do mercado e ficar muito perto e quando se aproximou ela rezou para não ser vista. Sem querer esbarrou em pedregulhos e o barulho foi imenso.

       Em pânico ela sabia que seria avistada, mas nada aconteceu. O Guardião não ouviu o barulho.

       Desconfiando que o Guardião não possuía boa audição Alma correu para outro ponto no meio das árvores. Suas asas haviam nascido e Alma poderia voar para longe, mas evitava fazer isso. Descobrira que ao abrir suas asas e farfalhá-las o som eram insuportavelmente alto e o barulho ao voar fazia mal para as criaturas a sua volta.

       Fora na floresta longe de todos que tentou voar pela primeira vez, e acabou por matar varias criaturas entre esquilos e pássaros, que não suportavam o som agudo e estridente.

       Alma não tinha apegos sobre voar, pois tinha medo de altura, mas lamentava não poder fugir do modo mais fácil. Correu por entre árvores e mato, torcendo para despista-lo e evitar um confronto que a impedisse de usar seu dom contra um elfo bom e justo, que apenas cumpria ordens, seguindo leis de um reino que sempre mascarava suas falhas e enganava seus olhos, assim como mascarava os olhos de muitas outras criaturas mágicas.

       Pensou em leva-lo para o córrego e então para a clareira onde descobriu que podia controlar sua voz para matar, mas faltou coragem para tanto. Quem sabe, com um pouco de sorte, pudesse despistá-lo sem a necessidade de cometer um crime ainda maior?

       Alma escondeu-se atrás de um carvalho gigantesco. Até tentou entrar na árvore, em uma fresta larga, mas não coube. Era grandalhona demais para caber em um esconderijo de duendes.

       Sem fôlego, fechou os olhos, torcendo para ser agraciada por uma sorte inesperada, e o Guardião perder seu rastro. Como se isso pudesse acontecer... Bastava que farejasse o ar para sentir seu cheiro de cio!

       Tomada de coragem, espiou pelos lados da árvore, até avistar o elfo procurando por ela em torno das árvores. Ele era cuidadoso, e parecia comedido demais. Não usava a armadura e isso era indício de que não a considerava uma inimiga ou que não considerava sua capacidade de luta suficientemente significativa para merecer proteção extra.

       Alma estreitou os olhos ao notar o chocalho no cinturão de couro que ele usava. Era barulhento e indicava a direção do vento. Estranho, porque ele precisava de um guiso?

       O súbito entendimento, depois de lembrar que ele não a notou tão perto, mesmo tendo feito muito barulho, a fez chocada. Seria possível que o Guardião não estivesse ouvindo-a?

       Seria essa a razão que levava Tubã sempre a desmerecê-lo e até mesmo rir dele?

       Apreensiva, espiou-o mais um pouco e descobriu que não era a única que reparou que o Guardião não tinha boa audição.

       Do outro lado da clareira, ele não percebeu a aproximação de ladrões. O barulho dos passos não chegou aos seus ouvidos e ele não percebeu que seria atacado pelas espadas.

       Atacado pelas costas, pois eram mestres em roubo, e habilidosos em camuflar o barulho e, sobretudo camuflar suas presenças. Alma olhou em volta, era sua oportunidade de fugir. Deveria fugir. Quem a notaria fugir em meio a uma luta de espadas entre ladrões e Guardiões?

       Dividida entre a liberdade e a obrigação para com outro ser humano, ela observou a face do Guardião com piedade. Um sentimento apertou seu coração, era pena pura e límpida.

       Ele não podia ouvir, e não podia se defender. Como ela que não podia voar e se salvar. Simples assim. Por maior que fosse seu poder, ainda assim, o Guardião Solon era indefeso quando seus truques não funcionavam e não conseguia ouvir seus agressores.

       Como toda criatura que foge da perfeição seria morto por sua vulnerabilidade.

       Sem saber de onde viera o pensamento, Alma decidiu que precisava ajudá-lo. Como faria isso lhe era um mistério. Mas não permitiria que fosse morto! Não por sua vulnerabilidade!

       Era um impulso inexplicável vindo dela que normalmente tendia a querer ver o circo pegar fogo e a espada verter sangue.

       Gostava de assistir aos treinamentos dos Guardiões, e ao contrário de suas amigas do Ministério do Rei, não o fazia para admirar belos elfos sem camisa, suados e em posição de luta... Não mesmo. Ela assistia as lutas com o desejo de ver alguém se ferir. Eram desejos mórbidos acompanhados de muita fúria interna.

       Por isso, estava surpresa com esse apelo de bondade surreal. Precisava ajuda-lo por caridade e por sentir-se unida a um ser que como ela, é imperfeito e não pode salvar a si mesma. Assim como faria de tudo para manter-se segura e não por a vida de suas amigas em risco. Esquecendo-se delas, Alma agiu por impulso, sem saber que Joan passava por dilema bastante parecido.

       Quem dera Joan pudesse escolher algo em sua vida. Ela havia se juntado a mulheres humanas no Vale dos Humanos e agora servia a um nobre. Era final do dia e deveria levar-lhe o jantar no quarto, pois ele estava ferido de uma batalha.

       Na cama, Rowell tinha o peito enfaixado e estava sem camisa, um pouco febril ainda, pois na noite anterior estivera com muitas dores e padecendo. Os cabelos negros estavam úmidos do recente banho dado pelas outras servas e seus olhos claros estavam cansados, mirando o espelho na parede do quarto, com pesar e pensamentos pesados.

       Abatido o homem não suportava ter que ficar na cama e passar dias sem poder cuidar de sua gente.

       -Eu não quero comer – ele reclamou quando a serva lhe trouxe o jantar.

       Seu mau humor era corriqueiro. Havia dias em que não conversava. Em outros, a presença de Joan ao menos o fazia menos chateado. Mas eram oscilações perigosas de humor. Joan não poderia culpá-lo por isso. Era um homem de luta e de ação e agora estava preso a uma cama.

       -Eu... – Ela começou a falar e quase perdeu a coragem.

       Vestia um vestido verde, de veludo simples e gasto, que Liara lhe emprestara, enquanto maliciosamente lhe confidenciara que torcia que conquistasse o duque o suficiente para conseguir que Matilde fosse mandada embora. Usava também um lenço que cobria parte dos cabelos, pois estava cansada de Matilde gritando que era piolhenta e fedida. Quem sabe se ela não visse seus cabelos, não pudesse ter desculpas para os gritos?

       Mesmo assim sua face sardenta e os olhos claros não escondiam sua beleza e o humano era capaz de notar e se apegar a isso, mas Joan não notava esses detalhes.

       -Eu estive pensando... Conheço um pouco sobre ervas. Poderia, se o meu senhor autorizasse, eu poderia buscar ervas e lhe fazer um chá que deve apressar sua recuperação.

       -Isto existe? – Ele ficou imediatamente interessado e Joan sorriu aliviada por entender que não seria punida.

       Ele não acreditava em muitas coisas, mas quando ela abordava o assunto normalmente levava em consideração.

       Joan gostava da interação com Rony, mas ainda temia as represarias de Matilde. Estava cansada de apanhar de Matilde, a governanta que dava ordens nas servas e que adorava gastar a madeira de seu cajado lambendo as costas e as pernas das servas com surras de horas. Até então fora vítima de algumas pancadas, mas as demais moças viviam feridas.

       -Sim, não fazem milagres, mas ajudam muito a aliviar a dor e fechar as feridas. – Garantiu.

       -E onde pode achar essas ervas? – Ele sentou na cama com uma careta de dor.

       -Perto do lago. – Aproximou-se um passo, com vontade de ajudá-lo, mas se conteve.

       -O lago fica muito longe daqui – ele decepcionou-se.

       Joan abriu um lindo sorriso e disse:

       -O meu senhor acredita em magia? – Perguntou, gostando até demais de conversar com ele e desafia-lo a deixar a dor de lado para prestar atenção a outros assuntos.

       -Não. Você acredita? – Ele perguntou de volta.

       -Talvez. Mas e se eu posso ir e voltar com as ervas em uma hora? Isso o convenceria que existe alguma magia no mundo?

       -De modo algum, apenas me convenceria que conhece alguém que já colheu as ervas e que mora perto daqui – ele opinou.

       -Acho que essas leituras fazem mal para a capacidade de crer de um macho humano – ela apontou a pilha de livros sobre a mesinha de cabeceira.

       -Vá, busque as ervas. Eu tenho pressa de sair dessa cama, Joan. – Ele autorizou não mais estranhando seus modos de falar.

       Joan era diferente das outras moças e ele se dividia entre curiosidade de fazer-lhe perguntas e exigir respostas e o estranho fascínio de apenas desfrutar de sua companhia.

       Um estanho sentimento de que sua presença em sua vida era algo temporário. Em algum momento ele a perderia. Como uma aparição, talvez um anjo, Joan partiria e levaria a pouca esperança que o fazia aguentar seu estado com menos sofrimento.

       Joan conteve a vontade de dizer-lhe que tinha pressa para vê-lo sair da cama. Não deveria, mas seu coração estava acelerado por conta daquele humano.

       Mesmo que não fosse uma fugitiva, era uma fada e ele um humano. Uma relação impossível.

       Sorriu-lhe enquanto observava-o comer e beber do café com interesse. Seu apetite estava melhor e ele vinha se fortalecendo, pois tinha prazer de comer na companhia de sua nova amiga.

       Quando terminou, apressada, Joan despediu-se e levou a bandeja para a cozinha.

       Em surdina para não ser vista, Joan andou pelo castelo e em um canto discreto abriu os botões do vestido nas costas e revelou as asas. Haviam nascido logo depois da fuga, e ninguém percebeu por que ela camuflava muito bem as asas. Depois de nascidas descobriu que elas se fundiam com sua carne quando queria embutidas, ao contrário das asas das outras fadas que conhecia. Eram asas pequenas, avermelhadas e ágeis.

       Era a primeira vez que voaria em duas semanas de obtenção de suas asas. Era o momento certo e valia a pena o risco da exposição.

       Ela tinha medo de andar sozinha pela floresta, sobretudo voando. Receio do cheiro do cio, imperceptível para os humanos, ser captado pelas criaturas mágicas da floresta, e por isso, ser perseguida e interceptada por malfeitores.

       Caçadores de Fadas, de Recompensa, ou Guardiões.

       Ela temia por sua vida, e pela existência de suas amigas. Mas temia também que a vida de um bom macho humano se perdesse por conta da ignorância pelo que é mágico.

       Assustada com o que faria, pois nunca antes voo, Joan ergueu uma das pernas e pousou o pé na murada de pedra da mais alta das muralhas. Bateu suas asas, e foi erguida o bastante para seu outro pé tocar as pedras. De pé, ela olhou para baixo. Fechou os olhos diante dessa liberdade. Era único, não era prisioneira, não era padecente da clausura, não era fada e não era humana.

       Era apenas um corpo suspenso no ar, prestes a se lançar ao desconhecido.

       Cheia de coragem e impulsionada por sentimentos profundos demais para nomear em tão pouco tempo, Joan se lançou. Suas asas imediatamente a içaram para cima e ela ganhou velocidade e altura. Tão alto, que se a vissem lá embaixo pensariam ser um pássaro.

       Era estranho como às vezes certas coisas sobre o interir de um ser é revelado apenas nos momentos mais inesperados. Joan era fada. E sua essência era profundamente ligada a suas raízes e ela não sentia o menor incomodo ou dificuldade em voar. Francamente, era de surpreender-se que viveu por longos vinte anos sem suas asas. Meia hora depois, ela pousou os pés na grama macia, em meio à floresta, nos arredores do Rio Branco, que banhava o campo dos humanos, a poucos quilômetros do lugar onde o Campo dos Humanos fundia-se com o mundo mágico.

       Um campo repleto de plantas altas. Que lhe chegavam à cintura, com folhas longas e amareladas, com miolo carregado de esporos e pequenos insetos que costumavam polinizá-la.

       Joan recolheu uma grande quantidade dessas folhas, e então, das florzinhas do miolo, que ela lembrava que eram boas para os pulmões.

       Menos de uma hora depois estava com as ervas cortadas e presas a uma bolsinha em sua cintura quando reparou em uma fada se banhando do outro lado do lago.

       Um princípio de esperança a fez sorrir pensando na possibilidade de uma de suas amigas andar por aqueles lados, escondendo-se de seu Guardião perseguidor.

       O sentimento foi tão forte, que Joan quase derrubou a bolsa com as ervas, na ansiedade de aproximar-se e descobrir que estava certa.

       Ela queria tanto abraçar Alma. Tanto que seu seus braços doíam de ansiedade. Ouvir a voz de Driana mesmo que a repreendesse por estar se expondo ao perigo por causa de um humano, ou quem sabe ainda, e isso lhe trouxe lágrimas aos olhos, ouvir a voz suave de Eleonora elogiando-a pelas lindas asas vermelhas que se estendiam de suas costas.

       Perto, Joan fixou os olhos na imagem que emergia da água após um longo mergulho.

       Era linda e estava nua. A pele era escura, e brilhante pela água e pela luz do sol. Os cabelos longos, trançados escorriam por suas costas. Em sua testa uma linha pintada com tinta negra, em formas circulares e ornamentais que descrevia sua descendência, cravada em sua carne, em uma tatuagem eterna.

       Joan correu os olhos pela figura e toda a esperança caiu por terra, diante de seus olhos, revelando novamente o horror da vida. Na margem do lago uma armadura de Guardião. Assustada, Joan engoliu em seco e camuflou-se para não ser vista. Invisível aos olhos de tudo e todos, andou para longe sem saber que para os olhos de Zoé não havia nada capaz de se esconder.

       Ela achara a fada e agora era questão de tempo para cumprir sua missão...

       E tempo era o que não faltava para Tubã. As chamas altas ameaçavam correr sobre a terra rachada e as folhas secas, por isso Tubã usou um toco de galho ainda úmido de árvore para controlá-lo e não perder a fonte de calor que aquecia o peixe que cozinhava.

       Acampado ao pé do abismo, entre as rochas, Tubã cozinhava para matar a fome os peixes que pescava no córrego entre as pedras. Dormia na caverna e fingia estar acampando e não se escondendo.

       Quando era pequeno e Reina o levou para ser criado em sua casa, Tubã descobriu aquele lugar. O irmão mais velho, Egan sempre se escondia ali. Em poucos dias se tornaram melhores amigos, em uma empatia mútua instantânea e o menino dividiu com ele seu lugar favorito no mundo todo.

       Era o único segredo que tinham e que apenas os dois conheciam.

       Intrigado Tubã olhou para cima, para a murada imensuravelmente grande das pedras, que milhares e milhares de quilômetros acima ficavam o castelo. Somente Egan e Tubã sabiam o atalho para aquele lugar. De outro modo, a menos que tivessem asas, jamais poderiam chegar com segurança.

       No dia anterior avistou uma fada sobrevoando a nevoa do abismo e desaparecendo no horizonte em meia a uma ventania. Pela cor das asas chegou a crer ser Eleonora. Ela teria as asas idênticas as da rainha, por isso ele sentiu o coração apertar de esperanças de ter sua Lora consigo.

       Mas era apenas uma visão ou sua imaginação. Ou ainda sua imensurável vontade de ver Eleonora e lhe falar de seus sentimentos. A fada achava que eram amigos. Sempre minimizava seus sentimentos e rotulava como amizade. Mas Tubã estava convencido que quando tudo acabasse e fossem livres outra vez, a tomaria para esposa. Com o tempo Eleonora entenderia que se amavam e esqueceria aquela tolice de amizade. Pensando sobre a vida, Tubã recostou-se em uma das pedras e começou a mascar uma folha de erva que encontrara nas redondezas. O gosto era adocicado e acalmava.

       Inocente a sua fragilidade, concentrou seus pensamentos em sua paixão platônica Eleonora e fechou os olhos, enquanto não sabia ser observado por olhos atentos. Vários pares de olhos atentos dispostos a atacar e acabar com a ameaça que o elfo macho representava.

 

       Enquanto a vida de todos seguia seu curso, Eleonora observava a partida do seu Guardião favorito, Egan, que em seu cavalo deixava a segurança do castelo, na única companhia de Mikazar.

       Ao seu lado Reina a consolou:

       -Ele não vai demorar a voltar. Agora está segura, Lora. Sua vida está apenas começando. Esqueça tudo que aconteceu. Pense no futuro.

       -Farei isso. Quando Egan voltar. – Disse triste – E quando minhas amigas estiverem seguras outra vez. Nesse dia, eu começarei a viver – Virou-se para Reina, pois não conseguia mais avistar Egan por entre as copas das árvores. Sentia a imensa vontade de voar até ele e juntar-se a caçada. Mas não era prudente.

       -Eu juro, Reina, que farei desse castelo um lugar melhor para todos viverem. Os dias de clausura acabaram. Quando Alma, Driana e Joan voltarem serão fadas livres. E a liberdade será a única lei que jamais será modificada. Eu viverei para isso, nem que custe a minha própria liberdade!

       Reina acenou concordando, reconfortando-a nesse momento de desolamento, e a guiou para dentro do castelo, fechando todas as janelas da torre.

       Em breve todos se reuniriam e seriam tempos de paz. E os tempos de tristeza, medo e dor ficariam esquecidos no passado... Parada diante das janelas fechadas Reina encarou o futuro diante de si. Sua boca dizia para Eleonora que tudo ficaria bem, mas não acreditava nisso.

       A paz estava longe de acontecer.

       Não era o momento de comemorar.

       Ainda não.

                                                                                M a r j a  

 

 

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