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O DESTINO DE VERA BLUE / Elise Little
O DESTINO DE VERA BLUE / Elise Little

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O DESTINO DE VERA BLUE

 

Os meteorologistas de Londres costumam ser muito otimistas. Lá pelas quatro da tarde, a chuva leve que eles haviam previsto acabou se transformando numa grande tempestade. Derek Colton praguejou baixinho a levantou a gola de sua capa, enquanto o porteiro do Regis Hotel lhe abria a porta de vidro, com toda a cortesia. Ofereceu-lhe um guarda-chuva, mas Colton recusou. Não pretendia ir muito longe.

- Sob a proteção do toldo, Colton olhou para o relógio e deu um suspiro profundo. Os minutos seguintes iriam lhe dizer se havia ou não tomado a decisão correta. "Pelo bem do país, arrisque seu pescoço"; esse era o seu lema.

A batida incessante da chuva contra o cimento da calçada era quase que hipnótica. As ruas estavam desertas, por causa da tempestade. Até o pequeno salão de chá ali em frente tinha fechado mais cedo. De qualquer modo, nunca havia muita gente naquela parte da cidade, num domingo à tarde.

Ele continuou debaixo do toldo, inspecionando a rua, procurando por algum sinal de vida, seus olhos passeando pela fila de carros estacionados. Estaria sendo observado? Porém, nem esse fato o preocupava tanto quanto a irreprimível Katherine O'Malley.

Ele a havia avisado para não vir. Havia ordenado para que não viesse. Acontece que Katherine O'Malley não receberia ordens de ninguém. Colton se lembrava de como os olhos castanhos da moça haviam brilhado de raiva quando ele lhe dissera que deveria resolver aquele caso sozinho. Ainda tinha na cabeça a imagem de seus lábios cheios e sensuais contraídos de tanto aborrecimento, sua testa franzida mostrando preocupação. Se fechasse os olhos, podia vê-la passando os dedos pelos cabelos loiros cacheados, um gesto tão típico dela, quando estava tensa... ou assustada. Katherine. A linda, vibrante e corajosa Katherine. Daquela vez, ela teria de obedecer as ordens.

Uma limusine preta dobrou a esquina no momento em que ele se preparava para deixar a proteção do toldo e enfrentar a tempestade. No banco da frente ia um motorista uniformizado. Apesar da névoa que envolvia a cidade, os faróis estavam apagados. Colton observou o carro conhecido parar a poucos metros da entrada do Regis Hotel.

O motorista não desligou o motor, e Colton sentiu o cheiro de fumaça e de gasolina. A porta de trás se abriu, e uma mulher alta, protegida com uma capa de chuva preta, saltou. Usava um chapéu de aba larga da mesma cor, que lhe cobria parcialmente o rosto.

Ela ficou ali, parada, olhando para Colton, sem se incomodar com a chuva. Nem mesmo uma grande tempestade conseguia irritar a tranquila Katherine O'Malley.

Colton balançou a cabeça e ficou observando-a aproximar-se dele. Seu andar era gracioso, confiante, absolutamente feminino. Continuou imóvel enquanto ela vinha a seu encontro, os cabelos loiros compridos e brilhantes, um toque de alegria em seu rosto preocupado.

- Você não achou que eu fosse deixá-lo lidar sozinho com o Demónio, achou, meu amor?

Derek Colton apertou os olhos azul-esverdeados. Ela era fria, muito fria. Mas Colton a conhecia como ninguém. E sabia que, por trás de toda aquela fachada de segurança, havia um certo medo e tensão.

- Quero que vá para casa, Katherine. Isso é muito perigoso. O que está tentando fazer? Matar-se?

- E por acaso você, meu querido Colton, é imune à morte?

Ele deu um suspiro de pura frustração.

- Sua teimosia, um dia desses, minha querida, vai acabar sendo sua ruína.

- Vamos torcer para que esse dia não seja hoje.

E então, porque ela era tão corajosa, tão bonita e, principalmente, porque era o que ele mais queria, Derek Colton a tomou nos braços e beijou-a apaixonadamente. Ela o abraçou com força, um ardor invadindo a sua boca, sua mente, seu coração. Amava aquele homem além da razão, além da própria vida. Eles ficaram abraçados por mais alguns momentos.

- O que vou fazer com você, Kate?

De súbito, os olhos castanhos da moça se encheram de lágrimas.

- Seja lá o que for fazer, querido, quero que o faça para sempre.

- Você não prefere mesmo desistir? Ficar me esperando no café? Prometo que voltarei para os seus braços.

Como resposta, ela dispensou o motorista com um aceno de mão.

Colton beijou seu rosto molhado. Então, pressionou os lábios contra seus cabelos e sentiu o suave perfume de jasmim.

- Tudo bem, mas prometa que vai ficar bem escondida. Você pode me dar cobertura, mas isso é tudo. Estou falando sério. Promete?

- Eu lhe prometo todo o meu amor, Colton. Isso é suficiente?

Ele sorriu, embora temesse por sua segurança. Se alguma coisa acontecesse a Kate...

Ambos se beijaram de novo, como se estivessem desejando sorte. Depois, ele começou a andar.

Katherine esperou que seu amado andasse alguns metros e pôs-se a segui-lo, mantendo-se junto às sombras dos prédios, a mão direita no bolso tocando sua inseparável pistola. Não hesitaria em usá-la, em qualquer pesssoa que tentasse atacar seu querido Colt.

Derek Colton estava quase chegando ao fim da rua quando o esperado Mercedes cinza virou a esquina, seus faróis baixos iluminando as gotas de chuva que continuavam a cair. Sentiu um friozinho na barriga e observou o carro parar entre dois postes de luz. Atrás do volante havia um motorista de terno escuro, com um chapéu enterrado na cabeça. No banco de trás, ia um único homem, protegido pelas sombras.

O passageiro obscuro abriu a porta, como se fosse um aviso para Colt, mas não fez menção de sair.

Derek Colton olhou para trás mais uma vez, para certificar-se de que Katherine não podia ser vista. Então enfiou a mão lentamente no bolso da capa e retirou um pequeno embrulho, do tamanho de um envelope. Ficou segurando o tal embrulho durante alguns instantes; era seu sinal para o homem, e voltou a enfiá-lo no bolso. Uma mão enluvada fez sinal para que ele se aproximasse.

Gotas de chuva misturavam-se ao suor do rosto de Colton, mas sua expressão era fria, controlada e confiante.

Foi só quando já se encontrava bem perto do carro que ele conseguiu ver o rosto pálido e redondo por entre as sombras do banco de trás. E percebeu que havia jogado sua última cartada. Que, infelizmente, não era um ás de ouro. Seu arquiinimigo Andres Wolfgang tinha nas mãos as cartas vencedoras, e também uma arma russa automática.

Ao ver a pistola na mão enluvada do vilão Andres Wolfgang, Derek aproximou-se da porta do carro, tentando fechá-la, na vã esperança de desviar o curso da bala inevitável.

Um trovão explodiu em seus ouvidos, e ele sentiu uma dor insuportável no peito.

Escondida atrás de uma porta, a poucos metros dali, Katherine deu um grito de horror, sua mão cobrindo a boca instintivamente para abafar o som. Viu um homem de constituição física avantajada descer do Mercedes e revirar o bolso da capa de Colton, à procura do embrulho. com fria precisão, ela levantou sua pistola e atirou. O homem caiu contra a porta do carro.

Ela começou a correr pela rua vazia, atirando mais depressa agora, desespero e pavor guiando suas mãos.

Wolfgang, ferido, conseguiu voltar à segurança do Mercedes, que, de porta aberta, arrancou dali, em meio ao nevoeiro da tarde.

Katherine soluçava ao ajoelhar-se diante de Colton, seu corpo estirado na rua molhada. O embrulho jazia a seu lado. Ao longe, sirenes começaram a soar. Katherine fez com que ele deitasse a cabeça em seu colo e percebeu que a limusine vinha se aproximando.

- Está tudo bem, meu amor - Katherine deu-lhe um beijo na testa. - Você vai ficar bom. Precisa ficar. Eu te amo muito para deixá-lo morrer...

- Katherine, você precisa... apanhar o embrulho... e guardá-lo num lugar... bem seguro...

- Eu prometo, meu amor. Mas, primeiro, quero cuidar da sua segurança.

A limusine estacionou, e seu fiel motorista pulou para fora. Ambos colocaram Colt no banco de trás.

Ele já estava perdendo a consciência, mas ainda esboçou um sorriso ao ver Katherine guardando o embrulho na bolsa.

- Eu te amo, Kate. De todo o meu coração.

- Você vai conseguir, Colt? - Seus olhos se encheram de lágrimas.

Ele deu um sorriso ainda mais aberto,

- É claro que vou...

- Segure minha mão, meu amor.

Vera Blue pressionou o livro aberto contra o peito e deu um suspiro alto. Murmurou, de olhos fechados:

- Você vai conseguir, Colt?

E então, com voz fraca, ela mesma respondeu:

- Sim, meu amor, minha Kate querida. Eu vou conseguir.

- Segure minha mão, meu amor. Meu verdadeiro e único amor.

Vera Blue abriu os olhos, olhando em volta com certo embaraço, percebendo, com alívio, que a livraria estava vazia. Havia ficado tão entretida com a leitura do livro Apenas os Tolos Morrem, que teve medo de não ter percebido a chegada de algum cliente.

A Vaughn Livros Raros e Usados ainda estava vazia. Aliás, vivia vazia ultimamente. O quarteirão estava em obras, e havia uma porção de buracos pela rua toda. Naquele dia, então, com uma chuva que não parava, além de não ter tido nenhum cliente na loja, Vera não tinha visto vivalma na rua. Não que isso a aborrecesse. Logo mais fecharia as portas e subiria para seu apartamento aconchegante; tomaria um banho de banheira, esquentaria o assado do dia anterior e acabaria de ler o último romance de Hilary Bennett.

Vera olhou em volta com um sorriso nos lábios. Gerenciava a livraria de seu tio há oito anos, quando se formara na Universidade de Boston. O acerto havia sido muito satisfatório para ambas as partes. Seu tio podia ter mais tempo livre para viajar e procurar edições raras, enquanto ela própria tinha um emprego agradável e um lugar para morar.

Mas não por muito tempo. Vera deu um suspiro desanimado ao imaginar o trator que estaria à sua porta dentro de algumas semanas, colocando um fim em seu trabalho... e em sua casa.

Tirando aquele pensamento triste da cabeça, ela foi sentarse numa poltrona velha e confortável, para reler as últimas páginas de seu livro. Dez minutos depois, fez uma pausa para olhar pela janela empoeirada que dava para a rua.

Perfeito, ela pensou. Uma tarde chuvosa, como no livro. Viu seu próprio reflexo no vidro da janela e balançou a cabeça levemente, um sorriso suave curvando-lhe os lábios.

- Quero lhe dar todo o meu amor, Colt. Você aceita? Deixou o livro de lado, levantou-se e se aproximou da

janela.

- Não vou deixá-lo enfrentar o Demónio sozinho, querido. - Deu um sorriso sedutor, seu próprio reflexo sorrindo-lhe de volta. Caiu na risada. - Eu sei, meu bem, Sou mesmo impossível. O quê? Você acha que sou a mulher mais bonita e mais corajosa que já conheceu na vida?

- Sua voz era vibrante, sedutora, mas o sorriso que deu foi desanimado. - Não, não é verdade. Eu não passo de uma vendedora, querido. E das mais comuns, diga-se de passagem. - Ela suspirou, deu dois passos para trás e voltou a estudar seu reflexo. - Ah, um disfarce maravilhoso, você diria. Meu Deus, como você é inteligente, Colt querido. E como eu estou cansada disso tudo. Já está na hora de abandonar essa ilusão toda. Estou esperando por esse momento há tanto tempo...

Vera começou a estudar seu reflexo, com ar crítico. Precisava urgentemente dar um jeito em seus cabelos. Eles eram tão... sem graça! Soltou o coque e balançou a cabeça, deixando-os caírem livres sobre os ombros. Sentiu-se bem melhor. Olhou para a malha velha de lã que usava. Realmente, aquele disfarce era ótimo.

Voltou a sentar-se, apanhou o livro Apenas os Tolos Morrem e o abriu no meio do primeiro capítulo, onde a escritora Hilary Bennett descrevia o agente britânico Derek Colton pela primeira vez.

"O coração de Katherine começou a bater com mais força quando ela o viu. Ele era alto, forte, tinha cabelos escuros e a pele bronzeada. Um homem e tanto, ela pensou. Então, olhou para seus olhos. E ficou encantada. Nunca tinha visto antes aquele tom de azul. Eles faziam com que ela se lembrasse de um oceano logo após o nascer dó sol. Eram olhos profundos, misteriosos e sensuais, que continham uma estranha mistura de pureza, sensualidade e ironia. Temendo afogar-se naquele mar imenso, Katherine desviou a atenção para o resto de seu rosto. O nariz era reto e firme, os lábios cheios e sensuais. Sim. Realmente, um homem e tanto."

Vera Blue fechou os olhos. Podia até ver o rosto de Colton à sua frente, com aqueles lindos olhos azuis, com aqueles lábios atraentes e sensuais...

O telefone tocou no momento em que seu amado ia beijá-la.

- Droga - ela murmurou, colocando o livro de lado e atravessando a sala para atender. Talvez, pensou sorrindo, fosse Colt, dizendo-lhe qual seria sua próxima missão...

- Alo? - atendeu, com voz rouca.

- Vera? É você?

Ela limpou a garganta.

- Claro que sou eu, tio Lou. Quem mais poderia ser?

- É que você está com uma voz tão diferente... - Ele deu uma risadinha irónica.

Vera ficou vermelha e deu graças a Deus por estar sozinha. O tio, que a havia criado desde seus quatorze anos, vivia brincando com sua mania de sonhar acordada com os livros que lia.

- Eu estava lendo - ela afirmou, com voz firme.

- Liguei para saber como vão as coisas.

- A livraria está parecendo um mausoléu, tio Lou. com essa chuva e a rua toda esburacada, ninguém entrou aqui hoje. O edifício Claughlin ia ser demolido pela manhã, mas acho que o toro impediu o trabalho do pessoal.

- É... - Tio Lou deu um suspiro. - Coisas do progresso. Daqui a pouco, a cidade de Boston só vai ter arranhacéus e parques de bolso.

- Aliás, o progresso vai estar entrando pela porta da Vaughn Livros Raros e Usados lá pelo fim do mês.

- Não tem problema, Vera. É só procurar um outro ponto e...

- Ora, tio Lou. Sei que você prefere fechar a loja, mas que está preocupado comigo. Só que não tem razão nenhuma para isso. Tenho minhas economias e há uma porção de livrarias na cidade. vou trabalhar para a concorrência.

- Há quatorze anos prometi à sua mãe, que Deus a tenha, que tomaria conta de você, até passar a responsabilidade para uma outra pessoa, se é que entende o que estou dizendo.

Vera sorriu.

- Sou capaz de tomar conta de mim mesma.

- Não é, minha querida. E é isso que me preocupa. Você vive nas nuvens. Passa o dia inteiro trancada nessa livraria, perdida nos livros e nos seus sonhos. Me diga uma coisa. Qual foi a última vez que saiu para dançar?

- Dançar? - Vera sorriu, pega de surpresa pela pergunta. - Mas de que tipo de dança você está falando?

- Discoteca. Isso ainda está na moda?

- Sou péssima nesse tipo de coisa, tio Lou.

- Pare de se menosprezar, menina. Você é bonita, inteligente...

Vera fechou os olhos. "Bonita, vibrante, corajosa, impossível... Oh, Katherine, meu amor, você é a mulher mais maravilhosa que já encontrei."

- Vera? Está me ouvindo? Ouviu o que eu disse? Ela riu.

- Claro que sim. Sou uma mulher e tanto, não sou?

-É.

- Obrigada. Agora, vou ter de desligar para arrumar alguns livros. Manterei contato.

Ela recolocou o fone no gancho e olhou em volta. A livraria continuava vazia. Ótimo. A vendedora desapareceu imediatamente, um sorriso sedutor aparecendo em seus lábios: o sorriso devastador de Katherine O'Malley.

- Sim, meu querido. Manterei contato.

Podia até ouvir a voz de Colt em sua cabeça. "Prometame que não vai se arriscar à toa, Kate. Você corre perigo." "E por acaso você, meu querido, é imune à morte?" Vera foi até a janela e olhou para a rua vazia. A chuva caía com mais força ainda.

- vou lhe dar cobertura, Colt. Wolfgang não vai ter a mínima chance de lhe fazer mal. Eu prometo...

Ela olhou para o café do outro lado da rua, imaginando estar na porta do Regis Hotel, observando o salão de chá vazio. A cena real lembrava tanto o cenário do romance de Hilary Bennett que, quando Vera, a Ia Katherine O'Malley, avistou o homem alto e forte, usando uma capa de chuva, andando furtivamente pela calçada, incorporou-o imediatamente à sua fantasia.

- Tome cuidado, meu querido. Wolfgang pode estar seguindo você.

Naquele momento, Vera viu um seda preto virar a esquina. Seu coração começou a bater mais depressa.

- Oh, não! O carro de Wolfgang!

Enquanto ela observava, o homem de capa virou-se para trás, avistou o carro que se aproximava e começou a andar mais depressa. Vera deu um sorriso, convencida de que sua imaginação havia resolvido correr solta.

Na verdade, não era só sua imaginação que estava correndo. O carro preto também.

Quase como se metade de seu ser estivesse participando de um filme e a outra metade observando a cena, ela testemunhou o seda brecar, a poucos metros do homem de capa.

Então, Vera ouviu um ruído seco. Um som baixo, abafado, que mal quebrou o barulho ritmado da chuva. Nada muito dramático, nada muito alarmante.

Acontece que, no mesmo instante em que Vera ouviu o ruído, o homem da capa, que ele apelidara de Derek Colton, ou melhor, Colt, cambaleou e caiu na calçada molhada.

Vera Blue piscou várias vezes, tentando apagar o que teria sido uma visão imaginária. Só que a visão não se apagou. Foi tomada por um súbito pânico.

- Xi, Vera, acho que desta vez sua imaginação foi longe demais...

Nem todas as piscadas do mundo fizeram com que aquela imagem desaparecesse. E quando uma figura atarracada desceu do carro e aproximou-se do homem caído, Vera percebeu que, seja lá o que fosse que estivesse acontecendo ali fora, não era produto de sua imaginação. A cena era real.

Correu para a porta e a abriu, no momento em que o homem atarracado ajoelhava-se no chão molhado, pronto para virar a vítima, que estava de bruços.

- Não faça isso! - ela gritou. - É melhor não tocar nele! Espere. vou chamar uma ambulância!

Ele olhou espantado para a moça que gritava, do outro lado da rua. Naquele momento, um Porsche prateada dobrou a esquina. Foi o bastante para que o tal homem voltasse correndo para o seda preto e arrancasse dali. O Porsche o seguiu, em disparada.

Tudo aquilo durou poucos segundos. Vera Blue ficou ali, parada, sentindo o cheiro de borracha queimada misturado à fumaça e gasolina.

Se não fosse pelo homem caído, ela teria se convencido de que havia imaginado aquela série de acontecimentos. Mas o homem ainda estava ali. Vera tentou pensar com clareza. Precisava chamar a polícia. E uma ambulância. E, depois, apanhar umcobertor em seu apartamento e ver o que podia fazer por aquele pobre homem, enquanto o auxílio não vinha.

Foi só quando discava para a polícia com os dedos trémulos que fez a conexão entre o ruído seco e o homem caído no chão. Aquilo havia sido um tiro. Provavelmente vindo de uma pistola do mesmo tipo que Katherine O'Malley usava. Vera Blue ficou brava consigo mesma. "Esqueça Katherine O'Malley", pensou, resoluta. "O negócio agora é sério."

Uma voz atendeu do outro lado da linha. Ela respirou fundo e, do jeito mais controlado que conseguiu, contou ao policial o que tinha acontecido e lhe deu seu nome e endereço.

Assim que desligou, subiu correndo a escada que levava a seu apartamento. Precisava apanhar um cobertor para manter o homem aquecido. E também uma toalha, para o caso de o coitado estar sangrando muito...

Perdeu o equilíbrio e quase tropeçou quando descia a escada. Após um segundo para respirar fundo e recomporse, atravessou a loja correndo, abriu a porta e saiu para a rua. Vento e chuva a receberam, desmanchando seus cabelos e ensopando seu rosto.

Soltou um grito de espanto.

- Meu Deus!

O lugar onde, há um minuto, jazia o homem ferido, estava completamente vazio. A rua toda estava vazia. Não era possível... Vera foi até lá, com passos incertos, sua malha molhada colando em seu corpo como se fosse uma segunda pele.

Parou exatamente no local onde vira o infeliz cair e olhou em volta, examinando as portas de algumas lojas fechadas, achando que talvez o sujeito tivesse conseguido se arrastar até lá. Não era possível que ele tivesse se levantado e sumido de vista naqueles dois minutos em que ela se ausentara.

- Mas onde esse cara se meteu? - Vera se perguntou. Ali, no meio da rua, a chuva molhando seu corpo, ela sentiu um estranho friozinho na barriga. - Ele estava aqui. Eu... o vi! E o seda preto... E o homem atarracado... Eu... ouvi o tiro! - Olhou em volta, mais uma vez. - Droga! Eu não imaginei! Não podia...

Foi só quando ouviu a sirene ao longe que Vera Blue se lembrou da polícia.

- Xi... E agora?

Como ela iria fazer para explicar a um monte de policiais que um homem ferido a bala dera um jeito de desaparecer em dois minutos, sem deixar vestígios?

- Acho que eu acabei de entrar numa fria, isso sim...

 

Vera desligou o telefone, roxa de vergonha. Além de ter tido que aguentar o sermão dos policiais na rua, o sargento de plantão havia ligado e lhe dito poucas e boas.

- Trate de controlar sua mente fértil, mocinha - ele dissera. - Você ainda pode se dar muito mal.

Ela subiu até seu apartamento, trocou de roupa e voltou à loja. Pensou nos livros que tinha de arrumar, mas não conseguia desviar os olhos da rua vazia. Após um momento de hesitação, aproximou-se da janela e olhou para fora. Não demoraria a anoitecer. A chuva havia diminuído um pouco, mas a rua continuava silenciosa, vazia e... sinistra.

Vera Blue franziu a testa, preocupada. Será que tinha imaginado tudo aquilo? Ou será que vira alguma coisa e fantasiara o resto? Começou a recordar os acontecimentos, tentando lhes dar um sentido de realidade. Imaginou o sujeito andando pela rua, um homem comum, provavelmente voltando para casa, onde mulher e filhos o esperavam. Então, ele ouve um carro se aproximar e começa a correr. Mas começa a correr por quê? Vera fez um ponto de interrogação no vidro da janela. Ora, começa a correr porque está chovendo. O carro não passa de mera coincidência. E o ruído seco? Simples. Só podia ser o escapamento. Porém, a pergunta mais importante continuava sem resposta. A troco de que o homem caíra no chão? Será que ficara assustado com o ruído? Será que escorregara numa casca de banana?

Vera suspirou. Talvez aquele sargento antipático estivesse certo. Era provável que tivesse imaginado a cena toda.

Sentou-se numa poltrona e fechou os olhos. A única coisa que fazia sentido naquele momento era esquecer o nefasto episódio, arrumar os livros e fechar a loja.

Um leve ruído na sala dos fundos interrompeu seus pensamentos. Abriu os olhos, intrigada. Silêncio.

Ah, maravilhoso, ela pensou. Agora dera para ouvir coisas. Era verdade. O sargento tinha razão. E tio Lou também. Precisava urgentemente parar de sonhar acordada.

Havia perdido o controle de suas fantasias, sem se dar conta do fato. Tinha de dar um jeito de voltar à realidade, antes que alguma coisa trágica pudesse acontecer.

"Assim que acordar amanhã", ela pensou, decidida, "vou procurar emprego e um lindo apartamento tipo estúdio para morar."

Um programa bem sem graça, na verdade. Katherine O'Malley jamais sairia por aí, batendo de porta em porta, à procura de trabalho. Aventura, perigo, paixões alucinantes. Era aquilo que existia na vida de uma mulher como a corajosa Kate O'Malley.

Outro ruído vindo da sala dos fundos, aquele mais forte e nítido que o primeiro. Vera ficou tensa. Será que havia entrado ladrão na loja? Era o que faltava! E agora? O que podia fazer? Chamar a polícia? E se aquele sargento antipático atendesse? Bem, o sujeito com certeza mandaria um camburão até lá. Para prendê-la por desacato à autoridade.

Outro ruído, como se alguma coisa tivesse caído. Não dava para negar. Havia alguém na sala dos fundos, provavelmente um assaltante, pronto para abusar de uma jovem indefesa. Respirou fundo, tentando se acalmar. Agir com a cabeça quente só iria piorar as coisas.

Não havia armas na loja. Nem no seu apartamento. Tio Lou costumava manter um revólver numa gaveta, na época em que havia livros raros nas prateleiras. A arma, porém, acabara sendo descartada junto com as raridades, semanas atrás.

Outro ruído, aquele ainda mais forte que os anteriores. Vera levantou-se correndo e apanhou um abridor de cartas que estava em cima da mesa. Era uma faquinha que mal cortava papel, mas, de qualquer modo, era melhor que nada.

Lentamente, com todo cuidado, ela se aproximou da sala dos fundos e girou a maçaneta. A porta se abriu.

- Quem está aí? - O medo havia reduzido sua voz a um mero sussurro.

Silêncio. A sala escura parecia vazia.

Eu estou... armada.

Seu coração batia com força. Afastou os cabelos molhados do rosto e arriscou uma olhada em volta. O interruptor ficava à direita, bem perto da porta.

"Acenda a luz", ela ordenou a si mesma. "E veja de uma vez por todas que a sala está vazia e que você está ouvindo coisas. Vamos, Vera Blue. Acenda logo essa porcaria, olhe atrás da porta, embaixo do tapete e dentro do armário. Então jogue o livro de Hilary Bennett no lixo e pare com essa mania de sonhar acordada."

Ela tocou o interruptor, com dedos trémulos.

- Apague a luz!

Ao ouvir o som daquela voz masculina, ela soltou um grito de pânico.

E, então, o viu. Deitado no chão perto da parede, atrás de uma caixa de livros, quase que na mesma posição que o vira momentos atrás, na rua molhada. O homem da capa de chuva.

- Apague a luz! - ele ordenou de novo.

Vera estava tão assustada para pensar com clareza, que acabou obedecendo.

- Assim é melhor. - O homem deu um gemido de dor. Segurando o abridor de cartas com força, ela deu dois

passos à frente. O homem não se moveu. Mais dois passos. O rosto do sujeito estava virado, de modo que Vera não sabia dizer se seus olhos estavam abertos ou não. Quando chegou a poucos metros dele, perto o suficiente para ouvir sua respiração difícil, ouviu-o gemer de novo.

- Tranque a porta e feche a janela - ele mandou. Depressa!

Porque resolveu obedecer às ordens de um estranho ferido que invadira sua casa Vera não soube explicar. Simplesmente fez o que lhe foi mandado, depois acendeu um abajur em cima da mesa. Uma luz fraca deixou a sala na penumbra.

Foi naquele momento que o homem de capa de chuva virou a cabeça e olhou para ela.

O coração de Vera Blue começou a bater com mais força quando o viu. Ele era alto, tinha cabelos escuros e...

Ela balançou a cabeça. Não. Sua pele não era bronzeada. Mas, a não ser por aquele pequeno detalhe, o sujeito que se encontrava caído no chão de sua loja era exatamente igual a Derek Colton, o herói do romance de Hilary Bennett.

Vera deu um passo à frente e então olhou para seus olhos. E ficou encantada. Nunca tinha visto antes aquele tom de azul. Eles faziam com que ela se lembrasse de um oceano, logo após o nascer do sol. Eram olhos profundos, misteriosos e sensuais, que continham uma estranha mistura de pureza, sensualidade e ironia. Temendo afogar-se naquele azul imenso, Vera desviou a atenção para o resto de seu rosto. O nariz era reto e firme, os lábios cheios e sensuais. Realmente, um homem e tanto.

Ela estava tão trémula e assustada que pensou que fosse desmaiar. Olhou para aquele homem, como se estivesse vendo um fantasma, uma visão. Era aquilo mesmo.

Uma visão.

Fechou os olhos e procurou se acalmar. Devia estar doente. Na manhã seguinte, iria procurar um médico e...

- Não tenha medo - ela o ouviu sussurrar. - Não vou machucá-la.

Ela abriu os olhos, mais assustada ainda. O fantasma falava! E tinha o mesmo sotaque britânico de Derek Colton!

- Não - ela murmurou baixinho. - Não é possível... Isso não pode estar acontecendo...

Esfregou os olhos várias vezes, mas o homem de capa de chuva não desapareceu. Na verdade, continuava ali, encarando-a com uma expressão divertida.

- Estou ficando maluca... - ela sussurrou.

Ele sorriu. Era o sorriso do herói do livro de Hilary Bennett.

- Meu Deus... Derek...

O homem da capa fez um esforço e se sentou, usando a parede como apoio.

- Por favor, não tenha medo. A porta estava aberta e eu... tinha de encontrar algum lugar... Olhe, deixe-me ficar aqui por mais algum tempo, até que eu recupere meu fôlego. Quem é Derek? O dono da livraria?

Vera balançou a cabeça. Foi aí que notou que a perna esquerda do sujeito sangrava.

Você foi ferido... Isso é sangue... Sangue de verdade!

Apesar da dor, ele forçou um sorriso.

- Acredite-me, menina, eu preferia que fosse ketchup; só que, infelizmente, não é... - Ele olhou para sua coxa ensanguentada. - Você não teria um estojo de primeirossocorros aí na sua loja, teria?

Vera apertou os olhos castanhos.

- Quem... quem é você?

- Meu Deus, como sou mal-educado. - Havia um traço de ironia naquele rosto sensual e atraente. - Não costumo ser assim tão grosseiro. É que meu dia não foi dos melhores. Invadiram meu apartamento, fui seguido pelas ruas e usado para a prática de tiro ao alvo. Programão, não é?

Vera se aproximou dele.

- Eu vi tudo da porta da loja.

O homem olhou para a perna machucada.

- Não deve ter sido grave. Um ferimento superficial, apenas.

- Você ainda não me disse como se chama... - Vera reparou que o intruso olhava para o abridor de cartas que ela ainda segurava, com um certo ar de riso.

- Meu nome é Madden. Johnnie Madden. Sou professor, na Universidade de Brandeis. E posso lhe garantir que sou completamente inofensivo. E você? Como se chama?

Ela se sentiu tão aliviada com o fato de ele não ter se apresentado como Derek Colton que teve vontade de cantar.

- Meu nome é Blue. Vera Blue. Johnnie Madden lhe deu um sorriso.

- Por favor, Vera, não fique com medo de mim. Ela pensou que fosse se afogar naqueles olhos azuis.

- Não estou com medo.

E não estava mesmo, embora não pudesse explicar o porquê daquilo.

Ajoelhou-se ao lado dele e deu uma olhada em sua perna ferida.

- É melhor chamar um médico.

Ele balançou a cabeça, exibindo um ar de preocupação.

- Não é necessário. Só preciso de um curativo.

- Temos de limpar a ferida, para não infeccionar. Vera sentiu que ele a observava e, após um momento de hesitação, olhou para ele. - Depois, se você quiser, posso fazer um curativo.

O sorriso dele era quente e afetuoso.

- Você é muito corajosa, Vera Blue. Ela também lhe sorriu.

- Até que nem tanto...

- E muito bonita - ele acrescentou, num sussurro. "E então, porque era o que mais queria fazer, ele a tomou nos braços e a beijou apaixonadamente."

- Você está se sentindo bem, Vera? Ela ficou vermelha.

- Eu? É claro que sim. Bem, vamos ver. vou precisar de água oxigenada, algodão e esparadrapo. Moro aí em cima. Será que consegue chegar até lá?

Ele se abriu num largo sorriso.

- Consigo.

- Então segure minha mão.

 

O vento frio trazia consigo o cheiro desagradável do rio Charles. Anoitecia. A chuva continuava a cair, um pouco mais fraca agora.

Ele abriu a porta, desceu do seda preto e ficou ali, parado na calçada, amaldiçoando a água que o ensopava. O poste de luz iluminava-lhe os traços. Era um homem pálido, de quase cinquenta anos, rosto cheio e nariz achatado. E parecia preocupado.

- Sua preocupação aumentou ainda mais quando viu o homem alto que se aproximava, a pé. Enterrou as mãos nos bolsos e esperou. O negócio ia ser feio.

O sujeito que vinha se aproximando parou para acender um cigarro, então continuou a andar.

"Maldição", pensou Borofsky. "Ele sabe que eu fracassei." As más notícias corriam muito depressa naquele tipo de negócio.

Mas não era culpa sua. Muitas coisas haviam conspirado contra ele. Se não fosse por aquela moça abelhuda, na porta da loja... Se não fosse por aquele maldito Porsche que aparecera para atrapalhá-lo... Se tivesse demorado um minuto mais, não somente não teria conseguido cumprir sua missão, como também não iria conseguir abrir os olhos nunca mais. "Agora tente explicar tudo isso a Dmitri Zakharov." Zakharov não era homem de aceitar explicações.

O sujeito alto, usando um sobretudo cinza e chapéu da mesma cor, parou diante de Borofsky. Nada naqueles traços duros e fortes indicava qualquer tipo de emoção.

Borofsky odiava aquilo em Dmitri Zakharov. Ninguém sabia o que o homem estava pensando ou sentindo... até que fosse tarde demais para se fazer alguma coisa a respeito.

- Noite miserável essa, não é, Yevgenni?

Borofsky olhou para os olhos azuis gelados do chefe. Miserável era a palavra ideal para descrever os últimos acontecimentos.

- Não foi culpa minha. - Sua voz tremeu ligeiramente. Zakharov observou-o com um certo ar de riso.

- É claro que não. Sei que fez o melhor que pôde, meu amigo.

- Talvez ele nem estivesse com aquilo que queríamos. Quem... nos garante que ele não o tenha escondido em algum lugar?

Zakharov deu uma longa tragada em seu cigarro e soltou a fumaça no rosto do outro.

- Pode ser que tenha razão.

- No apartamento dele, talvez... - Borofsky queria apenas ganhar tempo. Havia sentido o pacote no bolso da capa de Madden, ao apalpá-lo. Se ao menos tivesse tido

tempo para apanhá-lo...

Zakharov balançou a cabeça.

- Não, meu amigo. Não está no apartamento. Essa hipótese já foi descartada.

Ele largou o cigarro aceso, que caiu em cima do sapato esquerdo de Borofsky. Esse ficou observando nervosamente, enquanto o chefe o apagava, com sua bota de couro cara e brilhante.

Ele deu uma risada nervosa.

- Por favor, quero mais uma oportunidade para cumprir minha missão. Dou-lhe minha palavra, Dnitri Zakharov...

- Mais uma oportunidade? - Zakharov examinou o homem atarracado à sua frente. - Uma segunda chance, quer dizer.

Borofsky ouviu o som de passos se aproximando atrás dele. Não se virou. Não precisava fazê-lo. viu

um sorriso no rosto do chefe. Era um de seus guarda-costas. E sabia

perfeitamente por que ele vinha se aproximando.

Borofsky começou a tremer.

- Eu juro... Zakharov... Não vou desapontá-lo... de novo. vou achar Madden. vou lhe entregar

o maldito pacote. Eu prometo...

Os passos pararam. O sorriso de Zakharov ficou ainda mais largo, e ele fez que sim com a cabeça.

Borofsky sentiu as pernas bambas, quando uma mão enorme pousou em seu ombro esquerdo.

Seu chefe parecia muito satisfeito.

vou lhe dar outra oportunidade, Yevgenni. Mas, primeiro, meu amigo aqui, Boris Goncharov, vai ter uma conversinha particular com você. Tenho certeza de que ele poderá convencê-lo da importância vital dessa missão. Da necessidade de resolvermos o caso com a máxima urgência.

Borofsky podia sentir o hálito fétido de Goncharov.

- Fui claro, Yevgenni?

O coitado estava tão trémulo que balançou a cabeça espasmodicamente, antes mesmo que o outro terminasse a pergunta.

Zakharov olhou para o céu escuro.

- Noite maldita. Mas talvez melhore amanhã. Enquanto Borofsky observava o chefe virar-se e dobrar

a esquina, sentiu a outra mão de Goncharov pousar em seu ombro direito.

O Porsche prateado entrou no posto de gasolina vazio. Um atendente enfezado de macacão amarelo levantou-se de seu banquinho no escritório iluminado por luz fluorescente e colocou a revista Playboy em cima da mesa. Subiu o zíper do macacão e foi correndo atender o freguês inconveniente.

Ao pôr a cabeça para dentro do vidro meio aberto do carro, a expressão enfezada sumiu de seu rosto. A mulher ao volante fazia com que a coelhinha da capa parecesse uma matrona passada.

- Poderia me encher o tanque, por favor?

A voz dela era tão bonita e sedutora que ele até esqueceu que a coelhinha existia.

- Sim. Claro. Quer que eu dê também uma olhada no óleo e na água?

A deusa morena lhe deu um sorriso provocante e encarouo com aqueles olhos profundos, de cílios longos.

- Não, obrigada. Apenas gasolina.

- Sim. Claro. É pra já. Tempo horrível, não é?

- É mesmo. - Ela olhou para o BMW branco estacionado numa das garagens do posto. - Ah, vejo que o carro de Johnnie encrencou de novo.

- Como?

- Aquele BMW ali adiante. É de um amigo meu, Johnme Madden.

O atendente olhou para o carro em questão.

- Ah, sim. Então a senhora é amiga do professor Madden. - Havia um indisfarçável tom de desapontamento em sua voz. Como é que ele podia competir com um sujeito como Madden, com sua cara de ator de Hollywood e sotaque do príncipe Charles?

- Eu sempre digo a Johnnie para parar com essa mania de só comprar esse tipo de carro. Mas ele é muito teimoso. - A deusa afastou uma mecha de cabelo com a mão protegida por luvas de couro. - Quando é que ele vem apanhar o carro? Amanhã, espero. Nós... temos planos para amanhã, sabe? - Aqueles lábios sensacionais fizeram biquinho. - Eu detesto ser desapontada.

- Bem, ha... O professor Madden disse que só viria buscá-lo na quinta, lá pelas cinco horas. Talvez ele tenha arranjado um outro carro, para quebrar o galho.

O atendente fez força para reprimir um sorriso de satisfação. Se Madden a desapontasse, ele poderia dar um jeito de consolá-la... Sim. Claro.

- Quinta-feira? - Ela parecia ligeiramente aborrecida.

- Tem certeza?

- Certeza absoluta. Mas, se quiser, posso começar a trabalhar nele amanhã. Dê uma ligada para o professor Madden e...

A deusa morena sorriu.

- Não. Está tudo bem. Tenho a impressão de que não vai ser fácil localizá-lo nos próximos dias. - Ela balançou os cabelos negros como a noite. - Lá pelas cinco, você disse?

O atendente fez que sim com a cabeça.

O vidro elétrico abaixou mais alguns dedos. A mão enluvada bateu de leve no braço do atendente.

Bern... obrigada. - Ela lhe deu uma piscada provocante. - vou fazer uma surpresa a Johnnie.

O rapaz sorriu.

- Sim. Claro.

O vidro elétrico subiu, e o Porsche saiu do posto em disparada.

- Ei! E a gasolina? A senhora esqueceu a gasolina!

Vera Blue trocou o abridor de cartas por um par de tesouras.

- vou ter de cortar um bom pedaço da sua calça. Johnnie Madden concordou.

Ela fez seu trabalho com cuidado, e a ferida ficou exposta. Havia muito sangue, mas ambos ficaram aliviados ao ver que o machucado era superficial. Johnnie recostou-se no sofá e fechou os olhos.

- Você está bem?

Ele fez que sim com a cabeça.

- Isso pode doer.

- Não faz mal.

Ele abriu os olhos e observou-a molhar uma toalha limpa numa bacia de água. Ao vê-la hesitar, deu-lhe um sorriso encorajador.

- Vá em frente.

Johnnie apertou os dentes quando ela começou a limpar a ferida. Seu corpo tremeu no momento em que a água oxigenada foi aplicada, mas continuou em silêncio.

Vera sorriu.

- Pronto. Agora é só fazer o curativo. Aposto que não vai ficar nem uma cicatriz. Você foi muito corajoso, Johnnie.

Ele piscou para ela.

- Nem tanto. Por acaso você tem conhaque aqui no seu apartamento?

- Tenho, sim. vou buscar, assim que terminar o curativo e...

Ele pôs sua mão sobre a dela, durante alguns instantes.

- Primeiro a bebida, meu amor. É que eu tive um dia péssimo hoje.

Vera sentiu um arrepio na espinha causado por aquele toque, pelo som de sua voz e pelo modo como dissera "meu amor".

- Ha... Tudo bem. vou buscar.

- Sirva uma dose para você também. Aposto como está precisando de alguma coisa para relaxar.

Ela foi até o banheiro e voltou à sala momentos depois, com uma garrafa de conhaque francês nas mãos. Abriu um armário encostado à parede e apanhou dois copos.

- Perdoe minha curiosidade, Vera, mas você costuma guardar suas bebidas no banheiro?

Ela ficou vermelha na hora. Todo seu estoque de álcool consistia numa garrafa de vinho branco, que usava para temperar seus pratos de peixe, e aquele conhaque. Não costumava beber muito, mas de vez em quando gostava de tomar um drinque em sua banheira cheia de espuma. Por isso, o conhaque ficava sempre no armário dos remédios, entre o vidro de água oxigenada e o pacote de algodão.

Pega de surpresa pela pergunta, ela não pôde deixar de pensar no que Katherine O'Malley responderia numa ocasião daquelas. Algo bem provocante e inteligente, sem dúvida.

Chegara a hora de bancar sua heroína favorita. Deu um sorriso enigmático e jogou os cabelos para trás.

- É que eu não sou nada convencional. Algumas mulheres acham que deve haver um lugar certo para cada coisa e que cada coisa deve estar em seu devido lugar. Pessoalmente, acho esse tipo de ordem tão aborrecido!

Ele levantou a sobrancelha ligeiramente.

- Ah, sei.

Vera serviu o conhaque e arriscou um olhar rápido a seu herói recém- descoberto. Estava rindo. com ela? Ou dela?

Johnnie pegou o copo que lhe foi oferecido. Tomou dois goles grandes e recostou-se no sofá.

- Ah... como isso é bom... Agora, se quiser, pode fazer o curativo.

Ela também tomou um gole de conhaque e reprimiu uma tossida.

- Vamos lá! - Ela deixou o copo em cima da mesa e apanhou o rolo de esparadrapo. Era o mesmo que usava para fechar os caixotes de livros. - Não sou boa nisso, mas

vou fazer o melhor que puder.

- Tenho a maior confiança em você.

Vera começou a trabalhar em silêncio, seus movimentos rápidos, mas gentis. Era a primeira vez que tratava de uma perna masculina ferida a bala. Na verdade, ela não tinha tido muitas oportunidades na vida de lidar com pernas masculinas, feridas ou não. O resultado final, porém, foi bem satisfatório.

- Pronto. Até que não ficou tão mal assim.

Vera olhou para cima e descobriu que Johnnie Madden caíra no sono. Franziu a testa, estava louca de vontade de lhe fazer as perguntas que martelavam em sua cabeça.

Quem era aquele homem atarracado? A troco de que atirara nele? Quem dirigia aquele carro prateado? Em resumo, que diabo estava acontecendo?

- Johnnie Madden?

Os olhos dele continuaram fechados.

- Johnnie? - Ela tocou de leve em seu braço. - Está acordado?

Não houve resposta.

Vera continuou ali, no chão, olhando para o estranho que acabara de entrar em sua vida. E se ele fosse um agente inimigo, que havia roubado um documento secreto? E se tivesse acabado de assaltar um banco? E se tivesse... matado a mulher?

- Um dia, minha querida Vera Blue, sua boa-fé vai acabar sendo sua ruína...

Johnnie Madden se mexeu. Vera levou a mão aos lábios. Deus do céu, será que ele a ouvira?

O sujeito deu um suspiro profundo e se ajeitou melhor no sofá.

Ela continuou a observá-lo. Na verdade, aquele homem não parecia com um vilão. Mas, sem dúvida nenhuma, havia se metido numa grande fria.

Foi buscar um cobertor em seu quarto e o cobriu.

- Bem, Johnnie Madden, seja lá quem você for, não vou deixar que pegue um resfriado.

Apanhou a capa de chuva do chão e estava pronta para pendurá-la quando parou, de súbito. Havia um pacote no bolso interno. Sentiu um friozinho na barriga e olhou para o homem no sofá. Continuava dormindo. Era agora ou nunca. Apanhou o tal pacote. Era do tamanho de um livro.

Estava decidindo se deveria abri-lo ou não quando ouviu o sininho da porta tocar, anunciando a entrada de algum cliente. Deu um pulo. Na pressa de atender Johnnie, tinha se esquecido completamente de trancar a porta! Que hora mais imprópria para um freguês aparecer! Foi aí então,que um pensamento aterrador fez com que seu coração batesse mais depressa. E se não fosse um freguês?

Johnnie Madden também ouviu o som e acordou imediatamente, disposto e alerta. Alerta o suficiente para ver o pacote na mão de Vera, antes que ela o colocasse de volta no bolso.

Ele ficou bravo consigo mesmo por ter dormido daquele jeito e mais bravo ainda com a bisbilhotice da garota, mas fingiu não ter percebido o movimento. Tinha coisas mais importantes para se preocupar no momento, a principal delas descobrir quem fora o abelhudo que havia acabado de entrar na loja.

Vermelha, mas aliviada por não ter sido pega em flagrante, Vera pendurou a capa rapidamente e virou-se para ele, sem encará-lo diretamente.

- vou ver quem é.

Com o canto do olho, viu que ele fez que sim com a cabeça.

- Vera...

Ela fez força para olhá-lo nos olhos.

- Sim?

- Você não vai dizer a ninguém que estou aqui, vai? Havia uma certa preocupação em sua voz profunda.

- Deve ser alguém procurando proteção para a chuva.

- Ela hesitou por alguns instantes. - Não se preocupe. Não vou dizer nada.

Ele se sentou, reparando pela primeira vez que havia um cobertor sobre seu corpo.

- Tome cuidado, Vera. Por favor.

Naquele momento, ela se sentiu uma verdadeira heroína.

Pode deixar. - E, dando-lhe uma piscada, não pôde

deixar de acrescentar: - Você não imagina há quanto tempo eu estava esperando por algo assim.

Ele a observou se afastar, mais confuso do que nunca. Vera Blue era a mulher mais encantadora e desconcertante que já havia encontrado. Pena que a hora não tivesse sido das melhores.

Levantou-se e caminhou com dificuldade até a porta. E foi aí então que ouviu-a dizer a uma cliente, com toda a naturalidade possível, que não, infelizmente, não tinha a primeira edição de nenhuma obra de Gorky.

Johnnie recostou-se à parede, sentindo um alívio difícil de ser descrito. Vera tinha se saído muito bem.

Talvez seu encontro com aquela moça não tivesse se dado numa hora tão errada assim. Na verdade, ele podia ter acabado de tirar a sorte grande.

 

Vera subiu a escada e voltou ao apartamento em silêncio para não acordar seu hóspede, que deveria ter caído no sono de novo. Porém, Johnnie Madden não dormia. Estava de pé, perto da janela, afastando ligeiramente a cortina para poder olhar a rua. Foi só quando Vera chamou seu nome, que ele se deu conta de sua presença. Virou-se, surpresa e raiva em sua expressão.

Vera também ficou surpresa. E amedrontada, ao ver a arma na mão dele. Ficou ali, paralisada, no meio da sala, amaldiçoando sua própria estupidez. Era agora que aquele homem iria estuprá-la e...

- Você não deve assustar as pessoas desse jeito, meu amor. - Ele voltou a guardar o revólver na cintura. - É perigoso.

Ela deu um suspiro de alívio.

- Você segura a arma como um profissional. Johnnie sorriu.

- Diz isso porque não me viu atirando. Vera franziu a testa.

- Está querendo me confortar? Ele a observou com ar pensativo.

- Como é que sabe como um profissional segura uma arma?

Agora foi a vez de Vera sorrir.

- É que eu adoro livros sobre espiões, policiais e... criminosos.

Johnnie Madden recostou-se à parede para aliviar o peso de sua perna ferida.

- E por qual dessas três coisas me toma, Vera Blue? Ela ficou olhando para ele em silêncio durante algum tempo, antes de responder.

Ainda não sei ao certo. - Aproximou-se dele lentamente.

- Você estava observando a mulher que acabou de sair da minha loja. Por acaso a conhece?

Johnnie deu de ombros.

- Acho que não. Na verdade, não consegui vê-la direito. Será que poderia descrevê-la?

Ele fez força para falar com naturalidade, mas, pela expressão do rosto de Vera, percebeu que não tinha sido muito bem-sucedido.

Mancando ligeiramente, voltou ao sofá e apoiou a perna estendida em cima da mesinha. Vera sentou-se a seu lado.

- Bem, era uma mulher de uns cinquenta anos, olhos azuis, cabelos loiros curtos e bem penteados, do tipo mignon. Deve ter dinheiro suficiente para vestir-se em butiques caras e frequentar cabeleireiros luxuosos. Educada, refinada, provavelmente vinda do Sul. Posso apostar que levou um tempão para livrar-se do seu sotaque.

Johnnie estava impressionado.

- Alguma coisa mais? Ela sorriu.

- E posso apostar outra coisa também, A mulher não é nenhuma fã de Gorky, embora tenha entrado na loja para perguntar se eu tinha alguma primeira edição dele. Duvido que ela leia qualquer autor. Deve estar sempre muito ocupada fazendo compras ou indo ao cabeleireiro.

Agora, Johnnie Madden estava impressionadíssimo. E mais do que isso. Preocupado. Vera Blue era a mulher mais observadora que já vira na vida. O engraçado era que ela não se parecia em nada com uma vendedora de livros. Porém, o que mais o intrigava era que ela não se parecia com nada que já vira antes.

- Agora é minha vez - ela disse, enquanto Johnnie estava perdido em seus pensamentos.

- Como?

- Essa descrição fez com que se lembrasse de alguém?

- Não - ele respondeu, rapidamente. Rapidamente demais para o gosto dela.

- O que está havendo, Johnnie? Você está armado. Seu apartamento foi invadido. Alguém, graças a Deus com uma péssima pontaria, lhe deu um tiro. Meu Deus, homem, em que tipo de encrenca você se meteu?

- Vejo que é muito esperta, Vera Blue. Corajosa, bonita, inteligente... Uma combinação perigosa, eu diria.

Ele lhe acariciou o rosto, depois encostou a mão em seu ombro.

Vera sentiu um arrepio na espinha. Aquele homem exercia uma atração inegável sobre ela. O fato de ele ser um estranho e um grande enigma só serviam para aumentar ainda mais seu encanto. O sujeito parecia um herói saído dos livros que costumava ler... Só que aquela não era a hora de fazer fantasias nem de sonhar acordada. O negócio era sério. Precisava urgentemente saber alguma coisa concreta a respeito daquele homem.

Olhou bem dentro de seus olhos.

- Quem é você, Johnnie?

A determinação na voz de Vera fez com que ele retirasse a mão de seu ombro. Não pôde deixar de se surpreender com sua atitude. Até aquele momento, mulher alguma resistira a seu toque. De duas, uma. Ou estava perdendo o charme, ou aquela tal de Vera Blue era mesmo uma mulher diferente.

Limpou a garganta e tentou responder com naturalidade.

- Já lhe disse. Sou professor e...

- Professor de quê?

Ele hesitou por alguns instantes e tomou o último gole de conhaque que havia ficado no copo.

- De literatura russa.

- Ah, sei.

- Olhe, Vera. Tudo isso é muito complicado. Complicado demais, na verdade. Não tenho o direito de lhe pedir mais nenhum favor. Você já foi... bem, você já foi incrivelmente gentil. A maioria das mulheres, frente a frente com um homem ferido, não teria agido com sua calma e seu sangue frio.

Ela deu um sorriso.

- Sei que deve ser um grande orador, professor. Mas que tal parar de fazer rodeios e ir direto ao assunto? Qual é o favor que quer que eu lhe faça?

Johnnie Madden passou a mão pelos cabelos.

- Eu ficaria muito feliz se você me deixasse passar a noite no seu apartamento. No sofá, é claro. Irei embora amanhã bem cedo. Dou minha palavra que você não estará abrigando nem um espião, nem um policial, muito menos um criminoso. Sou um professor de faculdade, dos bem comuns, aliás, que, por um golpe do destino, se meteu numa... enrascada. Enrascada temporária, digamos assim. Pretendo sair dela o mais rápido possível.

- Então você está com problemas. Ele a encarou com olhos sérios.

- Não exatamente... Quero dizer, não é bem um problema. - Fez uma pausa. - Não estou sendo muito convincente, não é?

- Queria que você confiasse em mim, Johnnie. Ele voltou a colocar a mão em seu ombro.

- Não é uma questão de confiança. Só não quero envolvê-la em algo que poderá lhe trazer dor de cabeça.

Ela deu um sorriso.

- Então está mesmo com problemas, professor. Ele caiu na risada.

- Vejo que é uma garota muito persistente, Vera Blue.

É verdade, ela pensou. Muito persistente, mesmo. Cuidese, Katherine O'Malley. Você acabou de ganhar uma forte concorrente.

- Bem - ela continuou, confiante -, onde é que Gorky entra nessa história toda?

Ele levantou a sobrancelha.

- Gorky?

- Exatamente. Notei um brilho de reconhecimento em seus olhos quando o mencionei. Talvez... - ela fez uma pausa, de propósito - eu devesse lhe fazer a mesma pergunta que aquela mulher me fez, há quinze minutos. Por acaso você tem uma primeira edição rara de algum livro de Gorky?

Johnnie Madden franziu a testa, preocupado.

- Não insista, Vera. Para seu próprio bem.

Ela chegou à conclusão de que aquele método de ataque não iria levá-la a lugar nenhum. Melhor mudar de tática.

- Para onde pretende ir, quando sair daqui? Ele balançou a cabeça.

- Ainda não tenho certeza.

- Não pretende voltar a seu apartamento?

- Não.

- Será que você estará seguro... lá fora?

- Também não tenho certeza.

Ela continuou a olhar bem dentro de seus olhos.

- Deixe-me ajudá-lo, Johnnie. Ele balançou a cabeça.

- Você já fez muito. Mais do que devia.

- Eu não fiz nada.

Johnnie não pôde deixar de sorrir.

- Eu não consigo entendê-la, Vera Blue. Os olhos dela brilharam.

- É que eu sou um enigma.

- Sabia que eu não gosto de enigmas? Ela jogou os cabelos para trás.

- Sabia. Você deve gostar dos tipos mais previsíveis. São mais seguros, não é?

Ele riu de novo.

- Eu não fazia ideia de que era assim tão transparente.

- Ah, não, meu caro Johnnie. Você não é transparente. - Ela fez uma cara sedutora, a Ia Katherine O'Malley.

- Eu é que sou muito observadora e captei o pouco que deixou transparecer. Mas isso só aconteceu porque seu dia foi mesmo de lascar. Algo me diz que, em situações normais, sua guarda é intransponível. E isso apenas confirma minha teoria de que você se meteu numa grande enrascada.

- Como é que pretende me ajudar, Vera? - O riso, assim como qualquer traço de diversão, haviam desaparecido de seu rosto. - No seu lugar, eu teria receio de me envolver.

- Passar a vida inteira tendo receio é uma coisa muito monótona, professor.

- Presumo então que goste da excitação, do perigo e do mistério.

Ele falou em tom de brincadeira, mas ela o encarou, com rosto sério.

- Exatamente. E, além disso, você precisa do meu auxílio.

- Preciso?

- Tenho a impressão, professor, de que não viverá por muito tempo se continuar a agir sozinho.

- Talvez eu a surpreenda. Ela se abriu num largo sorriso.

Ou talvez eu possa surpreendê-lo.

Seus olhos se encontraram. Johnnie estava encantado com aquela garota loira de. rosto sensual e inocente, que conseguia excitá-lo e desconcertá-lo ao mesmo tempo. Estendeu a mão e acariciou-lhe os cabelos. Ela fechou os olhos e sorriu.

E então, porque Johnnie a achava encantadora, tão corajosa e porque era o que ele queria fazer desde o começo, tomou-a nos braços e a beijou apaixonadamente.

- Droga! Você acha que eu não estou aborrecida com isso tudo? - A deusa tamborilou os dedos nervosamente no vidro da cabine telefónica. - Eu fiz o que achei melhor!

- Sair correndo atrás do russo foi uma péssima decisão

- respondeu o homem do outro lado da linha, com voz irritada.

- Johnnie estava caído, e Borofsky ajoelhado a seu lado, remexendo em seu bolso. Eu achei que ele tinha conseguido pegar o que queria! - Seu tom de voz era zangado e defensivo. - O que você teria feito, se estivesse no meu lugar?

- Uma pergunta inútil, a essa altura dos acontecimentos, Christine.

Ela deu um suspiro.

- Olhe, estou perto do local onde vi Johnnie pela última vez. vou dar uma busca pelo bairro todo. Pelo que eu pude ver, o coitado não estava em condições de ir muito longe. Mandei Al ficar plantado em seu apartamento, e Denny irá para a universidade amanhã. Johnnie tem várias aulas para dar.

- Ora, Christine. Use a cabeça! Você acha que Madden vai aparecer na faculdade, depois de tudo que aconteceu?

- Estou fazendo o que posso. - Ela estava visivelmente irritada.

O homem do outro lado da linha deu um sorriso irónico. A moça continuou a falar.

- Vi o carro dele num posto de gasolina. Um atendente idiota me falou que ele vai buscá-lo na quinta, às cinco horas. Se não conseguirmos encontrá-lo até lá...

- Certo, Christine. Faça o que puder aí e, enquanto isso, eu faço o que puder por aqui.

Ela apertou os olhos.

- Mas você me prometeu que não iria...

- Christine, quer fazer o favor de raciocinar, pelo menos uma vez na vida? Até quinta-feira, Madden já terá tido mil oportunidades de dar um sumiço naquele pacote! O homem sabe que está andando com uma bomba-relógio no bolso, graças a seu velho amigo e mentor Marcus Lloyd!

- Eu nunca teria entrado nesse negócio sujo se você não tivesse me prometido que Marcus não seria molestado.

- Ora, ora, Christine. Sua preocupação com seu querido amante chega a ser comovente. Mas, agora, você está falando com seu melhor amigo. Alguém que a conhece a fundo.

Você me faz lembrar uma Eva no paraíso, minha pombinha. A maçã já foi mordida há muito tempo. Agora, não me venha dizer que está com dificuldade para digeri-la.

- Se você estivesse aqui agora, seu filho da mãe, eu lhe daria uma bofetada!

Ele caiu na risada.

- Ah, minha cara, mas o que será que você vai fazer quando eu lhe entregar os duzentos e cinquenta mil dólares? Você pode me achar um filho da mãe, mas um filho da mãe bem generoso, diga-se de passagem. Eu lhe ofereci metade da grana. Não se esqueça disso. Você poderá ir para o lugar que seu coraçãozinho desejar. Nós dois sabemos muito bem que Marcus não vai mante-la interessada por muito tempo. Além disso, por acaso eu disse uma só palavra a respeito de molestar seu amante?

Antes que ela pudesse responder, ouviu-se um clique e a linha ficou muda.

- Você é um grande idiota, Daniel Emerson - sussurrou Christine. - Um grande idiota!

E então, respirando fundo várias vezes para se acalmar, ela apanhou o fone e discou de novo. Após o primeiro toque, alguém atendeu do outro lado da linha.

- Alo, Marcus, querido. Sou eu, Christine.

- Estava preocupado, meu bem. Você ficou de me ligar há três horas.

Ela forçou uma risada.

- Você sabe como eu sou quando começo a fazer compras.

- Como está Nova York?

-- Aquela loucura de sempre.

- E o tempo?

Christine olhou para a rua molhada de Boston.

- Ótimo. Um lindo dia de primavera.

Aquilo, de acordo com a Rádio Cidade de Nova York, que sintonizara há poucas horas.

- Escute, querida, espero que você não esteja zangada comigo por causa da minha falta de atenção nos últimos tempos. Os negócios, você entende... Logo, logo tudo vai voltar a ser como antes.

- Sei disso, meu amor. Sinto muito por não ter sido mais compreensiva.

- Você é muito importante para mim, Chris. Quando Elizabeth morreu, há oito anos, eu precisei mergulhar no meu trabalho. E, então, tudo deu errado. Pensei que minha vida estivesse acabada. Mas então você apareceu. Para mim, nosso caso não é algo passageiro. Gostaria de que acreditasse em mim.

- Eu acredito, Marcus. É claro que acredito.

O beijo de Johnnie fez com que o coração de Vera disparasse. O prazer iluminou-lhe o rosto,

dando-lhe uma aparência suave e vulnerável.

- Isso significa que você vai me deixar passar a noite aqui? - ele perguntou, com voz rouca.

Havia começado a chover de novo. Vera podia ouvir os pingos batendo contra a janela.

- vou. No sofá.

Ele sorriu, os olhos fixos naqueles lábios macios.

- No sofá.

Ela percebeu um certo ar de desapontamento em seu rosto. Levantou-se, tentou em vão dar um jeito nos cabelos e dirigiu-se à cozinha.

- Eu ia esquentar o que sobrou do assado de ontem. Quer um pouco? Ou prefere que eu lhe prepare alguma outra coisa?

- Prefiro o assado. Sabe que é meu prato favorito?

- Ótimo. - Ela respirou. - Vamos esquecer o que acabou de acontecer, professor.

- Johnnie.

Vera olhou para ele.

- Você deve estar me achando muito descuidada, não é? Ele sorriu.

- Eu estou achando que você é maravilhosa, isso sim. Talvez um pouco descuidada, também, mas isso até que foi bom para mim.

Os olhos castanhos de Vera brilharam.

- Então quer dizer que vai me deixar ajudá-lo? Johnnie deu um sorriso resignado, depois olhou para o

buraco em sua calça.

- Bem, você poderia me ajudar a comprar uma calça nova. Tenho a impressão de que vou parecer meio suspeito andando pela rua desse jeito amanhã.

Vera cruzou os braços.

- Bem... não deixa de ser um começo.

- Falando em começos, que tal esquentar o jantar? Estou morrendo de fome!

Enquanto comiam, foi Vera quem falou mais. Contou a Johnnie que tomava conta da loja do tio e que morava naquele apartamento há muitos anos. Contou também que o prédio iria ser demolido dentro de algumas semanas e que, a partir de então, ela seria uma mulher livre como um pássaro. Johnnie riu, dizendo que a invejava. Vera também riu, dizendo que era ela quem sentia inveja.

Estavam quase acabando de comer quando o telefone tocou.

Vera levantou-se da mesa e apanhou a extensão, perto da geladeira, sabendo que ele a observava.

- Alo?

- Vera, sou eu.

jio Lou. - Ela olhou para Johnnie e sorriu. - O

que aconteceu?

- Gostaria de convidá-la para jantar em casa amanhã.

- Jantar?

- Comida de verdade, querida. Não aquela porcaria enlatada que eu costumo servir.

Posso saber qual é o motivo de tal comemoração? A

última vez que você resolveu cozinhar foi no dia da minha formatura na faculdade.

- E queimei quase toda a comida. Mas não se preocupe. vou tomar mais cuidado dessa vez.

- Ah... Então é uma ocasião especial mesmo.

- Não é nada disso. Estou sendo apenas um bom vizinho. Uma pessoa muito simpática alugou um apartamento no meu prédio. Ela veio aqui um dia desses para usar o telefone e uma coisa foi levando a outra, até que eu decidi convidá-la para jantar.

Vera sorriu, seguindo Johnnie com o olhar, enquanto ele levava os pratos para a pia.

- Não me diga, tio Lou. Você está querendo alguém para segurar vela?

- Não seja indelicada, garota. Ela é uma senhora muito simpática, e eu achei que talvez ficasse mais à vontade se... Olhe, não precisa vir, se não quiser. Aliás, ainda nem lhe falei que você viria. Posso levá-la a um restaurante e...

- Não precisa levá-la a restaurante nenhum, tio Lou. É claro que eu vou.

- Ótimo. Aposto que vocês vão se dar muito bem. Sabe que ela se interessa muito por livros raros?

Vera sentiu um ligeiro mal-estar. "

- É mesmo?

Johnnie percebeu aquela súbita mudança em sua voz e olhou para ela.

- É.- E depois acrescentou, sorrindo: - Quem sabe? Ela pode vir a ser uma boa cliente.

- Tio Lou...

- Sim, querida?

- Como é o nome dela?

- Andrea Lambert. Por quê?

- Andrea Lambert - repetiu Vera, mas seu hóspede não mostrou sinal de reconhecimento. - Que coincidência, não é? Uma mulher interessada por livros raros acabar indo morar aí no seu prédio...

Naquele momento, ela notou um certo ar de tensão no rosto de Johnnie.

- Não é tanta coincidência assim - tio Lou estava dizendo. - Muita gente gosta de livros raros. Afinal, como você acha que sobrevivi durante todos esses anos?

Ela sorriu.

- Tem razão. Agora me diga, tio Lou. Como é essa sua vizinha?

- Mas como a minha sobrinha é abelhuda! Você vai ficar sabendo amanhã. Às sete em ponto, por favor.

Vera mordeu o lábio.

- Tubo bem. Sete horas. vou levar uma garrafa de vinho. E uma pessoa também, se você não se incomodar.

Ela deu uma olhada rápida para Johnnie, que não pareceu muito satisfeito com a ideia.

- Uma pessoa - repetiu tio Lou. - Homem, por acaso?

Vera deu um suspiro.

- Agora, quem está sendo abelhudo? Ela desligou e olhou para Johnnie.

- Bem, o que você acha? Ele sorriu.

- Acho que aceitaria uma xícara de café.

- Só que não é de café que estou falando, e você está cansado de saber disso.

- Coincidências acontecem, Vera. - Ele abriu a torneira e começou a lavar os pratos. - O assado estava uma delícia.

- Você adora jogar um balde de água fria no ânimo das pessoas, não é?

- Não é nada disso. - Ele olhou para Vera e sorriu, tentando tranquilizá-la. - É bobagem se alarmar à toa. Isso só serve para deixar as pessoas malucas. Mas, de qualquer modo, você vai poder conhecê-la amanhã à noite.

- Quer dizer que você não vem comigo?

Não posso. Mas não faz mal. Você pode me dizer depois se ela é suspeita ou inofensiva.

pelo seu tom de voz, Vera não conseguiu saber se ele estava falando sério ou não.

- E se ela for suspeita? Ele sorriu.

- Por que você não deixa para se preocupar com a ponte na hora de atravessá-la?

Vera olhou para Johnnie com os olhos cheios de esperança.

- Então nós vamos ter de manter contato. Johnnie evitou os olhos dela.

- Vamos, sim.

Lou Vaughn ouviu a campainha logo após ter desligado. Foi atender muito feliz ao ver sua vizinha, Andrea Lambert, à porta. Ela era uma mulher muito bonita, com seus cabelos loiros bem penteados, olhos azuis e tipo mignon. E estava bem conservada, para seus cinquenta anos. E até que, para um homem de sessenta, ele também não estava de se jogar fora. Não tinha um pingo de barriga, e sua saúde era excelente.

- Boa noite, sr. Vaughn. Desculpe vir incomodá-lo de novo...

- Não é incómodo nenhum. E, por favor, me chame de Lou.

- Lou - ela repetiu, sorrindo - Pois bem, Lou, passei por aqui para perguntar se você não se incomoda se adiarmos o jantar de amanhã. É que eu tenho uns negócios a resolver e acho que não vou conseguir terminar tudo a tempo. Será que poderíamos transferi-lo para quinta à noite?

- Quinta à noite? Não tem problema... Andrea. Já está marcado.

Ela deu um sorriso cativante.

- Ótimo. À mesma hora?

- À mesma hora.

Ela já estava saindo quando Lou resolveu arriscar.

- Olhe, são só oito horas. Podíamos jantar juntos hoje. E quinta também, é claro. Conheço um ótimo restaurante italiano aqui perto.

- É muita gentileza sua me convidar, Lou, mas é que eu estou exausta, sabe? Além disso, ainda tenho de abrir dois caixotes que acabaram de chegar. Mudar de apartamento é uma tarefa complicada, não é?

Ele sorriu.

- Nem diga!

- vou esperar ansiosa pela quinta-feira. Boa noite, Lou.

- Boa noite, Andrea.

O sorriso continuou nos lábios de Lou Vaughn, mesmo depois de ele ter fechado a porta. Bem, afinal das contas, talvez não fosse precisar de alguém para segurar vela. Ele e Andrea Lambert podiam perfeitamente ficar sozinhos.

Decidiu ligar para Vera e comunicar-lhe sua mudança de planos. Diria a ela que o jantar para a vizinha tinha sido cancelado, mas pediria à sobrinha que viesse, de qualquer jeito. Estava curioso para conhecer o tal amigo que ela mencionara. E, caso aparecesse sozinha, aproveitaria para ter uma conversa franca com a garota. Sentia-se preocupado com sua única sobrinha, que para ele era como uma filha. O que Vera precisava era de um pouco mais de movimento e ação, algo que pudesse dar um pouco mais de colorido à sua vida pacata.

 

O barulho de passos acordou Johnnie imediatamente. Sentou-se no sofá, confuso e desorientado, mas aquela sensação passou logo.

Olhou para sua anfitriã e deu um sorriso sonolento.

- Ah, é você.

- Quem mais você esperava?

Ele esfregou os olhos e passou a mão pelos cabelos. Seu corpo estava moído. O sofá de Vera não era lá muito confortável. De qualquer modo, não podia reclamar. Ele não estava em condições de ser muito exigente.

- Que horas são?

Vera deu uma boa olhada nele. com cara de sono e cabelos em desalinho, Johnnie Madden conseguia ficar ainda mais atraente. Talvez fosse a expressão de menino desprotegido em seus olhos.

- Quase onze. Como está se sentindo?

O menino desprotegido desapareceu imediatamente.

- O quê? Onze horas?

Ele afastou as cobertas e se levantou. Porém, uma súbita tontura fez com que voltasse a se sentar depressa.

- Calma, Johnnie. Você precisa comer alguma coisa, antes de ir embora. E vou ter de trocar seu curativo também. Mas, primeiro, o café. - Ela sorriu. - Café misturado com almoço, na verdade.

Johnnie Madden não costumava se levantar de bom humor. E, naquela manhã, se sentia ainda mais irritado. Dormira tanto e não se sentia descansado. Isso sem contar que havia planejado acordar cedo.

- Não. Só quero café.

Vera ignorou seu tom ríspido de voz.

- Sei fazer uma omelete divina. Tenho certeza de que você vai adorar.

Ele deu um suspiro.

- Olhe, Vera, não quero ser indelicado, mas é que tenho aulas para dar hoje de manhã. Aliás, já perdi a primeira. Preciso ir correndo para a faculdade. Agora, tudo que eu quero é tomar um banho rápido e, se você puder me preparar, uma xícara de café. - Ele se levantou de novo, com mais cuidado desta vez. Ainda se sentia meio tonto, mas ia passar logo.

Vera cruzou os braços. Usava jeans e uma malha branca de lã e, ao contrário de seu hóspede, havia se levantado cedo, sentindo-se excitada, revigorada, cheia de esperanças. Meio desapontada, ficou observando Johnnie mancar ligeiramente em direção ao banheiro.

- Será que seus alunos não vão achar meio estranho você aparecer na classe vestido desse jeito?

Ele olhou para sua calça cortada.

- Acho que tem razão.

- Não se lembra de que eu lhe prometi comprar roupas novas?

- É que está ficando tarde... - Ele lhe lançou um olhar esperançoso. - Será que você não teria uma calça masculina e uma camisa limpa aqui no seu apartamento?

Ela sorriu.

- Sinto muito. Você me pegou numa fase pouco favorável em matéria de romance.

Ele também tentou sorrir, apesar de sua perna dolorida e das preocupações que povoavam sua mente.

- Não vou demorar nada - continuou Vera. - É só dar uma chegada até a Washington Street e comprar alguma coisa apropriada.

Johnnie lhe deu um olhar agradecido.

- Você vai precisar de dinheiro. - Ele apanhou a carteira, que estava no bolso da capa pendurada, junto com o tal pacote misterioso, que era a fonte de todos os seus problemas. - Aqui está. Cem dólares devem ser suficientes. Eu tenho um gosto relativamente simples.

- Antes que eu saia - disse Vera, apanhando o dinhei-

acho que você deveria dar uma olhada pela janela.

johnnie franziu a testa e foi mancando até a janela da sala, tomando cuidado para não ser visto da rua.

Ao contrário do dia anterior, a Madison Street estava bem movimentada. O tempo tinha melhorado, a equipe de demolição voltara ao trabalho e havia uma porção de gente andando pela calçada. Mas nenhum dos pedestres chamou a atenção de Johnnie. Seu olhar estava fixo numa moça morena parada perto da porta do café, do outro lado da rua. Fumava um cigarro e olhava de vez em quando para o relógio, como se esperasse por alguém que estivesse atrasado.

Vera aproximou-se dele.

- Ela está lá há quase duas horas.

Johnnie franziu a testa. A presença da moça não o surpreendia. Aquela havia sido uma das razões pelas quais queria ter acordado cedo, ainda antes do amanhecer, na esperança de que, sob a proteção da noite, ele pudesse fugir sem ser visto. Agora, precisava pensar num novo plano. Fez menção de se afastar da janela, mas Vera tocou em seu braço.

- Espere. Tem outra coisa. Fique olhando para a rua. Dentro de um ou dois minutos, um seda preto vai passar por aqui. Ele vem dando a volta pelo quarteirão desde as seis da manhã. O coitado do motorista já deve estar completamente tonto a uma hora dessas. E entediado até a alma também. - Ela sorriu. - Acabei de perceber que, na vida real, até a vida excitante daqueles que vivem perigosamente tem seu lado monótono.

Exatamente um minuto depois, um seda dobrou a esquina. Johnnie reparou que havia um motorista e um outro homem no banco de trás.

- Alguém mais, Vera?

Ela fez que não com a cabeça.

- Só esses. Você estava esperando mais gente? Ele deu um suspiro aborrecido.

- É claro que não. Você acha que isso costuma me acontecer sempre? Já lhe disse e vou repetir: sou um professor de faculdade... um cidadão comum. Nunca estive envolvido neste tipo de coisa antes. Vera sorriu.

- Nem eu.

Johnnie olhou para ela, com certa curiosidade.

- Tem certeza? Até que, para uma principiante, você está se saindo muito bem.

- Você se sentiria melhor se eu fosse uma espiã tarimbada? Ele sorriu, tocando de leve em seu ombro.

- Não. Iria me sentir muito pior.

Ela cheirava a sabonete de lavanda, a creme dental de menta, a shampoo de ervas. Olhou para seus lábios, lábios que lhe sorriam, lábios que haviam correspondido a seu beijo com tanto ardor na noite passada... E, naquele momento, Johnnie Madden compreendeu que não iria a lugar algum.

Como se estivesse sendo guiado por um impulso mais forte que sua vontade, ele a abraçou com força. Vera Blue não era nenhuma espiã tarimbada. Era simplesmente a moça mais encantadora que já conhecera em toda a sua vida.

- Eu tenho um plano - ela sussurrou, quando ambos finalmente se afastaram.

- Vera...

- Precisamos de um plano, Johnnie. Se alguém me seguir e me pegar comprando roupas de homem, acabaremos sendo descobertos. Esse pessoal já deve estar desconfiado. Tudo que temos a fazer é tirá-los do nosso caminho.

Ele não podia argumentar com sua lógica.

- Venho pensando nisso desde o momento que acordei ela continuou. - vou dar um telefonema rápido a uma amiga, depois lhe farei uma omelete. com queijo e tomates. Você gosta de queijo e tomate? E café também, é claro. Enquanto isso, você pode tomar seu banho. Sinto muito se achar o perfume do sabonete muito feminino, mas é o único que tenho.

Ela estava quase apanhando o fone quando Johnnie agarrou seu braço de forma nada gentil, obrigando-a a encará-lo.

- Vá com calma, mocinha. Meu raciocínio é lento pela manhã, e você não está fazendo nada para ajudá-lo. Em primeiro lugar, que amiga? E a troco de que vai ligar para ela?

Vera pareceu um pouco frustrada.

Sandy Hoffman. Trabalha numa livraria no período da

tarde. Temos o mesmo tipo de corpo. Ela vai servir direitinho. Ele apertou os olhos.

- Vai servir direitinho para quê? Para o meu plano, ora essa.

- Vera, eu lhe disse ontem que não a quero envolvida nessa história. Agora, você só não está se envolvendo como também parece querer tomar a liderança da coisa. Não vou permitir um absurdo desses. Está fora de questão.

Ela ficou ofendida.

- Pois fique sabendo que meu plano é muito bom, professor. Bem, é claro que ainda não sei em que tipo de enrascada você se meteu e por que aquelas pessoas aí fora querem pôr as mãos em seu pescoço, mas...

- Você já sabe muito mais do que deveria! - ele a interrompeu, irado.

-Vera sentiu seu coração bater mais depressa.

- O que é que eu sei?

- Não me venha bancar a desentendida agora. Pensa que eu não vi você xeretando no bolso da minha capa, ontem à noite?

Já que ele tinha percebido, Vera achou que não havia razão para negar.

- Você vai me dizer o que havia dentro daquele pacote? Será que ele tem alguma coisa a ver com o romancista russo Maxim Gorky?

- Acredite em mim, garota. Quanto menos perguntas você fizer, melhor para nós dois.

Ela enterrou as mão nos bolsos.

- Tudo bem, não vou perguntar mais nada, por enquanto. Temos coisas muito importantes para resolver. Vá tomar seu banho, Johnnie.

Ele a encarou de um modo desconfiado.

- E você vai fazer o quê?

- Preparar sua omelete.

- E depois?

- Ligar para Sandy. Eu já lhe disse...

- Você não vai ligar para amiga nenhuma. Sei que quer

me ajudar e agradeço sua atenção. Mas quem faz os planos aqui sou eu. Ela franziu a testa.

- Ao que parece, seus planos não foram exatamente um sucesso até agora.

- Talvez eu consiga bolar um melhor.

- Acontece que nós não temos tempo para bolar mais coisa nenhuma. Olhe, Johnnie, o negócio é muito complicado. Você precisa de uma calça nova, mas nenhum de nós pode sair daqui sem ser notado pelo seu comité de recepção aí fora. - Seus olhos brilharam. - A menos que eu ponha meu plano em ação.

- Mas, Vera, a respeito dessa sua amiga...

- Não se preocupe. Sandy não vai saber de nada a seu respeito. Prometo. Tudo que eu vou fazer é pedir para que ela fique um pouco na loja, enquanto eu dou uma chegada até a Washington Street. A operação inteira não vai durar nem meia hora.

- É esse o seu plano? Ela riu.

- Tem mais uma coisinha.

- Que coisinha.

- O xale de Sandy. Pessoalmente, não gosto dele. Muito berrante para o meu gosto. Vermelho e laranja, com umas listinhas amarelas. Mas ela o adora. Não o tira do corpo, nessa época do ano.

Johnnie balançou a cabeça, confuso. Vera Blue não estava lhe sendo de muita ajuda. Ela percebeu seu estado de confusão e apressou-se em explicar.

- Olhe, é tudo muito simples. Uma mulher entra na loja, uma cliente, para qualquer observador, usando um xale berrante. Um item bem marcante, diga-se de passagem. E então, minutos depois, ela sai, levando alguns livros numa mala. Será que nossa morena do outro lado da rua prestaria atenção nela?

- Quer dizer que a mulher deixando a loja não seria Sandy? Vera sorriu.

- Até que para alguém que não raciocina bem pela manhã, você não está nada mal. - Ela fez uma pausa. - vou dizer a Sandy que tenho um encontro com um novo namorado meio hippie e que eu adoraria usar aquele xale para impressioná-lo.

- Bem, até aí, tudo em ordem. Mas...

- Você está falando muitos "mas" para o meu gosto.

- Como você vai fazer para voltar à loja? Será que nossa amiga morena não vai achar meio esquisito ver a cliente de volta, tão pouco tempo depois?

- Ah, mas ela não vai voltar. Parecerá outra pessoa, quero dizer.

Ele não entendeu nada.

- Olhe, Vera...

- Fique sossegado. Eu já resolvi essa parte. Mas - ela deu uma piscada -, quero lhe fazer uma surpresa.

Johnnie ficou preocupado.

- Acontece que eu não gosto de surpresas. Além disso, tenho medo de que seu plano não funcione.

- Vai funcionar. Confie me mim. Eu ainda não o desapontei, não é?

- Eu ainda não encontrei uma mulher como você, isso sim. Ela tocou seu rosto com a ponta dos dedos, depois roçou seus lábios nos dele.

- Você vai mesmo para a faculdade, quando sair daqui? Ele a observou por alguns instantes.

- vou.

- Mas com certeza vai haver muita gente esperando por você lá.

Johnnie lhe deu um sorriso maroto, a Ia Derek Colton.

- Eu também tenho meus planos, querida.

- Pode acreditar, estamos perdendo tempo. Parecemos dois idiotas, andando em círculos há horas, sem parar. Madden não está aqui. Acho que seria melhor nos juntarmos aos outros, na faculdade. - Stephan Petrenko parecia muito irritado. - Além disso, já estou ficando tonto. E seu maldito cigarro só está servindo para piorar as coisas.

Borofsky dobrou a esquina. Também se sentia tonto e enjoado, mas aquilo não o impedia de fumar um cigarro atrás do outro. Nem seu corpo dolorido e moído, resultado de sua conversa "amigável" com Goncharov, a respeito da importância vital daquela missão.

- Olhe! Alguém está entrando na livraria! - ele exclamou, entusiasmado, ao se aproximar da Vaughn Livros Raros e Usados.

Os dois homens observaram uma mulher de xale vermelho e lar aja com listinhas amarelas entrar na loja. Borofsky estacionou o carro ali perto, ajeitou o espelhinho retrovisor e começou a estudar um mapa da cidade, ostensivamente.

Petrenko resmungou.

- É só uma cliente, ora bolas. - Ele levou a mão à testa. - Acho que nunca enjoei tanto em toda a minha vida. Que vontade de tomar um daqueles remédios milagrosos, que eles anunciam na televisão americana. É tiro e queda.

- Quer fazer o favor de ficar quieto? Reclamações, reclamações. Por acaso pensa que eu estou gostando muito disso? Por acaso acha que fui eu quem escolheu essa missão? Preferia muito mais ter ido para a Califórnia ou para a Flórida.Que vontade de conhecer a Disneylândia, antes de ser chamado de volta a Moscou. Isso é pedir muito?

Petrenko deu um suspiro.

- Meu sonho é Hollywood. A. terra de John Wayne.

- John Wayne já morreu, seu idiota.

Poucos minutos depois, Petrenko cutucou seu companheiro.

- Olhe! A mulher está indo embora. Eu bem que lhe disse, rã só uma cliente. Estamos perdendo nosso tempo.

- Ele levou a mão à testa de novo. - Clint Eastwood também morreu?

- Não.

- Que bom.-Oostaria de conhecê-lo, um dia.

Cinco minutos depois, Borofsky e Petrenko viram quando a outra moça deixou a livraria e atravessou a rua.

- Deve ser ela - Borofsky parecia mais animado. A vendedora. Se Madden esteve lá e lhe entregou o pacote, estamos feitos. Vamos segui-la.

O rosto de Petrenko estava ficando verde.

- Espero que ela não resolva andar em círculos.

A beldade morena de lábios vermelhos estava com um humor de cão. Ficar ali de pé, como uma perfeita idiota, por mais de duas horas, na esperança de que Madden tivesse procurado refúgio na livraria, era de lascar. O pior de tudo era que não havia sido a única a ter aquela ideia. O mesmo seda preto que perseguira no dia anterior vinha dando voltas pelo quarteirão, desde que ela chegara ali.

De repente, ela avistou outra moça saindo da loja. A vendedora, com certeza. Ao ver que o seda resolvera perseguir a fulana, Christine achou que também devia fazê-lo. Mas acabou mudando de ideia. Era provável que Madden ainda estivesse ali dentro e que a moça tivesse saído para despistar. Johnnie era esperto. Sabia que ela iria ser seguida e-que o caminho ficaria livre para ele. Christine resolveu ficar. Ela era mais esperta ainda.

Afastou-se do lugar onde estava, de modo que Johnnie não pudesse vê-la, se estivesse na livraria. Quando pensou estar fora de vista, encostou-se à porta de um pequeno prédio de apartamentos e esperou. Tinha certeza de que Johnme Madden iria sair de seu esconderijo dali a instantes.

Vinte minutos depois, Christine observou dois operários da equipe de demolição se aproximarem da tal loja. Ambos usavam chapéus. Conversaram durante alguns instantes, depois um deles foi se juntar aos outros trabalhadores, mais adiante. O outro, com um fichário nas mãos, ficou do lado de fora da livraria, fazendo anotações. Cinco minutos depois, dirigiu-se ao beco nos fundos, para continuar seu trabalho.

Christine franziu a testa. Estava começando a achar que, no final das contas, não era assim tão inteligente. Enquanto perdia seu tempo ali, de pé, Johnnie Madden e seu pacote podiam estar a quilómetros de distância. Havia muitas coisas na vida que Christine Dupré achava desagradáveis. Mas a pior delas era sentir-se uma idiota.

Vera Blue sorriu ao ver Johnnie usando seu robe.

- Bem, o que você achou do meu plano? - Ela tirou o chapéu e balançou seus cabelos. Depois, desceu o zíper do macacão verde-oliva e retirou o xale multicolorido, que servira para dar volume a seus ombros. - Funcionou, não é?

Ele sorriu.

- Estou impressionado. Ela também deu um sorriso.

- É para ficar mesmo. Fale a verdade. Até que eu tenho boas ideias, não é?

Johnnie apanhou o macacão que ela havia acabado de tirar e começou a vesti-lo.

- O seda foi atrás da sua amiga, logo depois que ela saiu. Quando os caras perceberem seu erro, já estarei longe. Mas a morena ainda está aí. Vi quando ela se afastou do café e foi se plantar perto de um prédio de apartamentos.

Vera Blue observou-o se vestir. A visão de seu peito musculoso fez com que ela quase perdesse o fôlego. Aquele homem punha todos os seus heróis fictícios no bolso. Derek Colton que fosse para o inferno.

- Não vai ser difícil despistá-la - disse ela. - Você sai pela janela dos fundos e reaparece triunfante na rua, com o fichário nas mãos.

Ele se aproximou de Vera e sorriu.

- Antes que isso acabe, srta. Blue, acho que vou estar perdidamente apaixonado por você...

Seu tom de voz era irónico, assim como o sorriso, mas as palavras... nem Hilary Bennett poderia ter escrito melhor.

- Preciso ir agora - Johnnie continuou. - Não se esqueça de se livrar das minhas roupas velhas, está bem?

- Ei, espere um pouco. O que vai acontecer quando chegar à universidade? As pessoas vão cair em cima de você antes que se dê conta do que aconteceu!

- Como eu disse, também tenho meus planos.

- Posso saber que planos são esses? Johnnie tirou o pacote do bolso de sua capa.

- Quero que fique com isso. Abra e dê uma olhada. Ela desembrulhou o pacote com cuidado, revelando um caderno grosso, que parecia bem velho. Abriu na primeira página.

- Está escrito em russo. À mão. É Gorky?

- É.

- Então é disso que eles estão atrás? Não estou entendendo. Até uma obra rara dessas não pode ser assim tão valiosa. Não a ponto de eles quererem matá-lo.

- Você diria que meio milhão de dólares é razão suficiente para alguém cometer assassinato?

Ela olhou para ele, assustada.

- Isso aqui vale tanto assim? Por quê?

- Você conhece literatura russa? Gorky, em particular?

- Meu tio conhece. Ele fala russo e já esteve na União Soviética algumas vezes, para comprar livros raros. Mas eu conheço pouco.

- Gorky, além de romancista, foi uma grande figura política. Um pouco antes da sua morte, ele estava trabalhando no que foi considerada sua obra-prima, um romance panorâmico de quatro volumes a respeito das condições sociais da Rússia, durante o período czarista, pouco antes da revolução de 1917. Acredita-se que Gorky tenha morrido antes de completar seu trabalho, envenenado por um grupo anti-soviético. Isso que você está segurando nas mãos pode ser a parte final de sua obra-prima.

- Por que pode ser? Há possibilidades de que isso seja falso?

- É o que preciso descobrir. Se for autêntico, vale uma fortuna. Meio milhão de dólares, para ser mais exato.

- Como foi que você acabou virando dono de uma coisa dessas?

- Eu não sou dono de nada. Sou apenas um intermediário. O proprietário está em Londres. Recebi o pacote ontem, pelo correio. Uma coisa valiosa dessas precisa ser autenticada, antes que algum comprador concorde em pagar tanto dinheiro.

- Sei. - Ela olhou de novo para o livro. - E você foi escolhido para autenticá-lo.

- Certo.

- E...?

- E?

- É autêntico ou não? Ele deu um suspiro.

- Ainda não tive muitas chances de descobrir. O processo de análise leva uma semana, mais ou menos. E requer bastante concentração. Uma tarefa difícil, quando se é seguido e alvejado na rua.

- Quer dizer que os caras do seda e a morena também querem pôr as mãos no manuscrito?

- Exatamente. Acho que os homens são russos. Imagino que eles queiram que o trabalho do "Pai da Literatura Soviética" continue em seu país.

- E a mulher?

- Ainda não sei ao certo para quem ela está trabalhando.

- Não vamos nos esquecer da mulher que apareceu por aqui ontem à noite.

- É verdade - ele admitiu. - Percebi que ela me seguiu ontem durante a tarde inteira.

Vera balançou a cabeça.

- Acho que chegou a hora de você me contar seu plano.

- Claro. Pretendo deixar o manuscrito aqui com você. Só até amanhã à noite. Talvez até antes disso.

- Mas será que não é perigoso? Esse pessoal pode oltar a qualquer hora. E se eles arrombarem a loja?

- Há mais de mil livros nas prateleiras lá embaixo. Teremos de colocá-lo entre eles. De qualquer modo, se neu plano funcionar, ninguém mais vai voltar aqui ja

incomodá-la.

Ele começou a acariciar seus cabelos.

- O que você acha disso? Prometo que estarei de volta amanhã à noite, o mais tardar.

Aquele toque estava lhe causando um profundo efeito. Sentiu as pernas bambas e o coração bater

com mais força.

- Amanhã ànoite - ela murmurou.

Ele a beijou de leve nos lábios. Um beijo que guardava uma promessa.

- Como você pode saber que eu sou digna da sua confiança, Johnnie?

Ele sorriu, um dedo sobre os lábios dela.

- Intuição. Você não me desapontou até agora. Na verdade, tem sido brilhante.

Ela sorriu, um sorriso sedutor que punha os de Katherine O'MaIley no bolso.

É verdade. Tenho sido brilhante mesmo.

- Que pena, tiu Lou. Eu estava tão curiosa para conhecer sua vizinha!

- De qualquer modo, venha jantar aqui comigo, Vera. Também estou curioso para conhecer aquela pessoa que você ficou de trazer.

- Ah, infelizmente, ele não vai poder ir. Vamos ser só nós dois mesmo, tio.

- Então a tal pessoa era um amigo. Onde o conheceu? O que ele faz?

Vera sorriu.

- Você está falando como uma autêntica mãe.

- Eu sou como uma mãe para você, garota. E quero o relatório completo hoje à noite, durante o jantar.

- Não vai haver relatório nenhum, tio Lou. Eu... mal o conheço.

- Essa pequena hesitação em sua voz me faz crer que você gostaria de conhecê-lo melhor.

Ela não podia negar aquilo.

- Eu o vejo na hora do jantar, tio. - Vera fez uma pausa. - Bem, e como só vamos ser nós dois, vou levar uma coisa para lhe mostrar.

- O que é?

- Algo que vai deixá-lo de boca aberta. Mas quero que me prometa que vai guardar segredo.

- Nossa, quanto mistério!

- Prepare-se para levar um grande susto, tio Lou. Até mais tarde.

Foi só após ter desligado que Vera começou a achar que poderia ser perigoso retirar o manuscrito da livraria. E se fosse seguida? Atacada no meio da rua? De qualquer modo, o fato de deixar a obra ali, enquanto ela estivesse fora, a deixava ainda mais nervosa. O melhor a fazer era levá-la consigo. E que Deus a ajudasse.

Fechou os olhos e começou a sonhar acordada. Só que, agora, não era Derek Colton beijando seus cabelos e sentindo o perfume de jasmim. Era seu herói de carne e osso, Johnnie Madden, que sussurrava:

- Voltarei para você, meu amor. Eu prometo.

 

O plano de Johnnie Madden funcionando direitinho. Vera Blue não era o único membro brilhante da parceria. Parceria. Era isso que eles eram agora? Parceiros? Pelo menos, era o que parecia. Aquilo havia acontecido apesar de sua vontade, apesar de seus protestos, apesar do alarme que teimava em buzinar em sua cabeça. Bem, era uma parceria passageira, ele disse a si mesmo. Assim que resolvesse umas coisinhas ainda pendentes, voltaria para apanhar o manuscrito e iria embora.

- Madden! Espere um pouco!

Johnnie olhou para trás e viu seu colega do Departamento de Russo, Ray Silver, correndo para alcançá-lo.

- O que aconteceu? Você nunca faltou a uma aula sem avisar antes! - Ele o alcançou e ambos começaram a andar juntos. - Que bom que, pelo menos, consegui chegar a tempo de dar as aulas da tarde, caso contrário não teria havido ninguém para substituí-lo.

Johnnie pôs a mão no ombro do amigo.

- Eu... ha... tive um problema inesperado, Ray. Obrigado por ter dado as aulas por mim. Olhe, eu vou colocar um pacote na caixa do correio aqui perto. Não quer vir comigo e me contar o que deu aos alunos?

Johnnie retirou um embrulho marrom do bolso da jaqueta nova, seu macacão verde-oliva fora jogado na lata do lixo do banheiro de uma loja de roupas masculinas nas proximidades. Uma vez vestido de novo como um respeitável professor, não demorou muito a ser localizado de novo. Exatamente conforme o planejado. Dentro de quinze minutos, o russo atarracado que quase o despachara para o além no dia anterior e seu companheiro de cara esquisita estavam na sua cola. Cinco minutos depois, a beldade morena também dera o ar de sua graça. Estavam todos ali, seu comité de boas-vindas. Só que ninguém teria coragem de fazer um movimento sequer, em plena luz do dia e com tanta gente pelas ruas, e era exatamente com isso que Johnnie contava.

- O que há nesse pacote? - perguntou Ray.

Ele olhou para o embrulho em suas mãos. Era do mesmo tamanho daquele que deixara na livraria de Vera Blue.

- Nada de importante. Apenas um livro que vou mandar para um amigo.

Minutos depois, eles chegaram à caixa do correio. Johnme abriu a tampa e verificou o horário da coleta.

- Que horas são? - ele perguntou ao amigo, percebendo que havia esquecido seu relógio na casa de Vera.

- Cinco e dez.

- Que pena. O carteiro acabou de passar. - Ele jogou o embrulho na caixa. - Mas não faz mal. Não tem pressa.

- Você tem algum compromisso agora? Quer tomar uma cerveja comigo?

- Obrigado, mas não vou poder. Tenho de acabar um trabalho no escritório.

- Que bom que nossa folga começa amanhã. vou precisar dessa semana de folga para terminar meu artigo. E você? O que pretende fazer nesse tempo todo?

Johnnie sorriu.

- Eu tenho algumas coisinhas para me manter ocupado.

com um cigarro pendurado no canto da boca e binóculos nos olhos, Borofsky praguejou baixinho. Sem poder fazer nada, observou Madden jogar o embrulho dentro da caixa do correio. Virou-se para Petrenko, com cara de poucos amigos.

- Eu bem que disse que devíamos ter posto as mãos nele antes!

Sentindo-se muito melhor depois que parara numa farmácia para comprar pílulas contra enjoo, Petrenko limitouse a balançar a cabeça.

- Era impossível. Não se pode agarrar um cidadão americano

em plena rua, com um monte de gente olhando. Você conhece as regras. Não leu o manual?

Borofsky deu uma longa tragada no seu cigarro e soltou lentamente a fumaça.

- Então me diga, camarada Petrenko, o que o nosso manual diz a respeito de assaltar caixas de correio americanas?

- Ah, disso eu não me lembro direito. - Ele olhou em volta. - De qualquer forma, acho que é um pouco arriscado, com tanta gente olhando.

Borofsky bufou de raiva.

- Mas como você é idiota! Pense um pouco. O que você acha que aquele ator de Hollywood... como é mesmo o nome dele? Clint Eastwood, não é? Pois bem, o que o cara faria? Esperaria até o anoitecer, é claro!

Petrenko abaixou a cabeça.

- Esperaria o anoitecer. É claro, ele faria isso. - De súbito, um sorriso que revelava uma fileira de dentes de ouro iluminou o rosto do homem. - Ei, acho que já vi um filme de Clint Eastwood a esse respeito. Só que ele não quebrava a caixa. Serrava o pé e levava o negócio todo embora.

- Ele caiu na risada. - Ou será que era Charles Bronson? Não importa. Eu adoro cinema americano!

Borofsky, entretanto, não esboçou um só sorriso. Ao contrário. Parecia muito sério.

- Pela primeira vez na vida, camarada, você deu uma dentro.

Ao ouvir aquilo, Petrenko parou de rir imediatamente.

- Você está falando sério, Yevgenni? Borofsky fez que sim com a cabeça. O outro não estava entendendo nada.

- Mas o que eu fiz para merecer o elogio?

- A caixa de cartas, seu idiota. Vamos levá-la. Antes que alguém ponha as mãos nela. Alguém num Porsche prateado, por exemplo.

- Está falando sério, Yevgenni? Você quer roubar a caixa inteira?

- Assim que anoitecer. Enquanto isso, ficaremos aqui de guarda. Entendeu?

Petrenko pôs a mão na cintura, onde estava sua pistola automática.

- Enquanto eu estiver dê serviço, Yevgenni, nem uma mosca vai ser retirada daquela caixa.

Borofsky voltou a olhar através de seu binóculo.

- Me diga uma coisa, camarada. Esse filme americano que viu. Como foi que Clint Eastwood terminou sua tarefa?

- Que tarefa?

- Roubar a caixa de cartas, seu imbecil. - Ele balançou a cabeça, bufando de raiva. - O que eu fiz para merecer um parceiro desses?

- Por favor, Yevgenni. Pare de me insultar e deixe que eu me lembre. Estou achando que talvez fosse Charles Bronson...

- E agora, srta. Dupré? - perguntou o rapaz, logo após ambos terem observado Johnnie Madden colocar o pacote no correio.

Christine sorriu.

- É muito simples, Dennis - ela explicou ao homem que Daniel havia lhe dito para contatar, se precisasse de ajuda. - Espere anoitecer e quebre a caixa. A menos, é claro, que o carteiro chegue antes. Daí você simplesmente alivia a carga dele.

Dennis fez que sim com a cabeça.

- Enquanto isso, vou ficar de olho em Madden. Quero resolver esse negócio logo e não vou permitir que nada saia errado. - Havia uma certa tensão em sua voz.

- Não se preocupe, senhorita.

Christine deu um sorriso, embora as palavras do rapaz não tivessem conseguido tranquilizá-la. Talvez tivesse cometido um erro em permitir que a ganância vencesse o amor. Mas era provável que Daniel estivesse certo. Ela não tinha muitas chances de ficar com Marcus Lloyd para sempre. Desse modo, uma pequena fortuna, mesmo sendo um conforto frio... era melhor do que conforto nenhum.

Christine não foi a única que decidiu seguir Madden. O chefe de Borofsky, Zakharov, não pretendia deixar o destino daquele manuscrito nas mãos daqueles agentes trapalhões e resolvera mandar seu guarda-costas, Goncharov, tomar parte no caso. E, como Christine Dupré, Goncharov também resolveu ficar de olho em Madden.

Então, desse modo, ambos viram quando ele parou diante de outra caixa de correio, do outro lado do campus da universidade, e colocou ali dentro um pacote marrom, igualzinho ao anterior.

Uma hora depois, o professor Johnnie Madden tinha colocado seis pacotes idênticos em seis caixas diferentes, uma em cada quarteirão. Logo após ter depositado o último, abriu a jaqueta e virou o corpo lentamente, para mostrar a quem o estivesse observando que suas entregas haviam sido concluídas.

- Depois, tomou um táxi e desapareceu de vista. Aquele pessoal todo iria ter muito trabalho nas próximas horas.

- Não estou entendendo, tio Lou. Você parece mais curioso a respeito do homem que me emprestou o manuscrito do que nele próprio. Pensei que fosse ter um ataque, ao vê-lo!

- Eu não tenho mais ataques, Vera - ele respondeu, sorrindo. - Estou muito velho para esse tipo de coisa. Mas devo admitir que fiquei bem surpreso.

- Você acha que é autêntico? Lou Vaughn coçou o queixo.

- Não sei. Uma análise bem-feita leva tempo, mas há uma boa possibilidade de que seja verdadeiro. É por isso que estou preocupado com esse tal fulano que lhe pediu para guardá-lo. Você está com uma cara meio misteriosa, querida.

- Ora, tio, pare com isso. Não estou com cara misteriosa coisa nenhuma. Já lhe disse e vou repetir: um homem muito gentil entrou na livraria ontem, me mostrou o manuscrito, disse que achava que era valioso e, como tinha de passar vinte e quatro horas fora da cidade, me perguntou se eu não me incomodava de guardá-lo, até ele voltar.

- E a troco de que esse sujeito confiaria a uma estranha um manuscrito que pode valer uma fortuna?

- Eu já lhe disse, tio Lou. Ele conhece muita gente que lida com livros raros e já tinha ouvido falar na boa reputação da livraria. De qualquer modo, ele nem sabe se a obra é autêntica ou não. Pode ser que nem valha o papel em que está impresso. Escrito a mão, quero dizer.

Sua tentativa de fazer piada não apagou a preocupação do rosto de seu tio.

- Vera, nunca lhe passou pela cabeça que, se isso for autêntico, deve ter sido roubado de algum lugar da União Soviética? Se está aqui, nos Estados Unidos, é porque foi contrabandeado. Você faz ideia do quanto isso pode ser perigoso para a pessoa que o está guardando?

Vera fazia ideia, sim, mas manteve o sorriso bemhumorado nos lábios.

Lou Vaughn continuou a falar:

- A parte final da obra-prima de Gorky não só seria uma espécie de tesouro nacional para os russos como também renderia milhões e milhões em direitos autorais, na hora em que fosse publicada. Você acha, minha querida, que os russos vão ficar sentados, de braços cruzados, observando seu precioso tesouro escapar-lhe das mãos?

Vera não achava.

- Mas ninguém sabe que eu estou com ele, tio Lou mentiu ela. - A troco de que os russos iriam desconfiar de uma modesta vendedora?

Lou Vaughn passou a mão pelos cabelos.

- De qualquer modo, não a quero andando por aí com isso nas mãos. E guardá-lo na loja, enquanto o tal fulano não aparece, também pode ser perigoso. Sei que há muitos desocupados vagando pela Madison Street, vendo o trabalho dos demolidores. Hoje em dia, todo cuidado é pouco, com esse tipo de gente. Não, Vera. A melhor coisa que você tem a fazer é deixar o manuscrito comigo. vou guardálo no cofre e, quando o dono aparecer, você pode trazê-lo para cá. - Ele deu um sorriso. - Além disso, estou louco para examinar o trabalho com mais calma.

Vera não ficou muito satisfeita com aquele plano, mas tinha de admitir que fazia sentido. A Madison Street andava povoada de vagabundos, por causa das demolições. Se algum deles resolvesse entrar na loja... É, seu tio tinha razão.

Entretanto, ela ainda estava preocupada com uma coisa.

- Quero que me prometa uma coisa, tio Lou. Ele franziu a testa.

- O quê?

- Aquela mulher que vinha jantar aqui hoje... sua nova vizinha.

Lou sorriu.

- Vamos jantar amanhã à noite, só nós dois. Afinal de contas, sou um homem adulto, e ela é uma mulher adulta. Podemos ficar a sós, conversando... quem sabe se isso não vai ser o começo de uma linda amizade?

- Era exatamente aquilo que preocupava Vera.

- Então o que você quer que eu lhe prometa? - ele perguntou.

- Quero que não diga uma só palavra a respeito desse manuscrito para ninguém. Principalmente para essa sua nova vizinha.

- Ora, Vera, por acaso você está achando que ela é uma russa? - Ele sorriu. - Ah, essa sua imaginação... A troco de que uma espiã russa iria se mudar para o meu prédio? Só se, além de espiã, ela for também vidente e adivinhou que você viria jantar aqui hoje, com esse manuscrito.

- Você disse que ela se interessava por livros raros. E eu tenho a impressão de que essa fulana pode ser a mesma mulher que entrou na loja ontem, perguntando se nós tínhamos alguma primeira edição de Gorky. - Vera apertou os olhos. - Agora me diga, tio. Eu tenho ou não tenho razão para estar preocupada?

Lou Vaughn não respondeu sua pergunta. Apenas prometeu que não diria uma só palavra a ninguém.

A polícia de Boston estava tendo uma noite movimentada. E uma das mais loucas de sua história. Bem, sempre houvera malucos tentando danificar caixas de correios, aqui e ali. Mas seis, num raio de oito quarteirões? Uma delas até fora removida completamente! Que diabo estava acontecendo por ali?

À meia-noite, Johnnie ligou para Londres. Marcus Lloyd atendeu, na primeira chamada.

- Madden?

- Temos mais gente do que esperávamos, Marc. A KGB não é a única na minha cola. Uma linda morena também resolveu andar atrás de mim o tempo todo. E não vou ficar nem um pouco surpreso se houver mais gente nas sombras.

- Precisamos andar logo com isso.

- Acredite em mim, Marc. Estou fazendo o melhor que posso.

- Essa morena que o está seguindo... Como é ela?

- Eu só a vi de relance, de modo que não lhe posso dar muitos detalhes. Só sei que é alta, de cabelos compridos e muito bonita.

- Hum... Isso não ajuda muito, não é? Talvez ela faça parte do Estado. Sei que eles também estão interessados no caso. Faça o seguinte. Ligue para lá e verifique. Depois, volte a me ligar.

Johnnie levou um pouco mais de tempo para fazer a outra ligação.

- Alo?

- Aqui é Johnnie Madden.

- Quero uma reunião com você amanhã. - A voz dó outro lado da linha era dura, irritada.

- vou dar uma passada no escritório.

- Não. É muito arriscado. Você faz ideia de como perturbou a polícia de Boston esta noite?

Ele sorriu.

- Faço.

- Restaurante Grandview, em Cohasset, ao meio-dia. A linha ficou muda.

Dmitri Zakharov parecia muito aborrecido. Borofsky tentou esconder seu pavor atrás de um sorriso polido.

Mas eu não entendo... Vi o homem colocando o pacote na caixa do correio. Petrenko... também viu.

- E Goncharov o viu colocar mais cinco pacotes idênticos, em outras cinco caixas. O professor se divertiu às nossas custas. E, o que é pior, sumiu de vista!

Borofsky respirou fundo para ganhar coragem, antes de perguntar:

- Você conseguiu pegar os outros pacotes?

- Todos, menos dois. Mas eram todos iguais. - Dimitri Zakharov apontou para um livro, em cima da mesa. O título era bem sugestivo: "O Guia Clandestino da Telefonista para a Terminologia Secreta. O que todo espião queria saber, mas tinha medo de perguntar". - Aquele idiota nos fez de bobos! Por isso, Borofsky, vou dizer para onde você e Petrenko irão agora! , Borofsky sentiu um arrepio de horror, achando que seu chefe fosse dizer inferno. Ou algo ainda muito pior: Sibéria.

Felizmente, estava enganado.

- Vocês vão voltar para a livraria e vasculhá-la inteirinha!

- A livraria? Você acha...

- Pelo jeito, eu sou o único que acha alguma coisa por aqui, seu idiota!

- E a vendedora? Ela mora no andar de cima. Devemos eliminá-la?

- Só se for absolutamente necessário. Não queremos despertar suspeitas. E usem máscaras, para não serem reconhecidos.

Johnnie Madden estava intrigado. Aquela era a terceira vez que ligava para Marcus Lloyd. Onde o homem tinha se metido? Afinal de contas, ele estava esperando sua ligação.

Daquela vez, o telefone foi atendido no quarto toque. Uma voz masculina perguntou:

- Madden?

Johnnie hesitou. Não era Marcus. Mas que diabo estava acontecendo por ali?

- Quem está falando? - ele perguntou, sem se identificar.

- Não interessa, professor. Eu tenho um recado para você. Um recado bem interessante, diga-se de passagem.

- Onde está Lloyd?

- Digamos que ele esteja detido, professor. Temporariamente, se você decidir cooperar. Se não... eu sinto muito em dizer que a detenção será em caráter definitivo. Ah, talvez você prefira ouvir o recado da boca do próprio sr. Lloyd.

Segundos depois, uma voz trémula, mas familiar, apareceu na linha.

- Eles querem o manuscrito, Johnnie. Mas não... O telefone foi arrancado das mãos do infeliz.

- Sinto muito, professor. Ao que parece, o sr. Lloyd ainda não compreendeu bem a nossa mensagem. Mas vai compreender, eu garanto. E bem depressa. Enquanto isso, eu mesmo lhe transmito o recado. Quero que me mande o manuscrito pelo correio. Dentro de quarenta e oito horas eu o quero aqui, em minhas mãos! Acho que não será preciso dizer o que vai acontecer com o sr. Lloyd, se eu não receber a encomenda no prazo marcado, não é?

Vera Blue foi para cama à meia-noite. Não estava cansada. Ao contrário. Sentia-se alerta, excitada e cheia de energia. Passara a vida toda sonhando com aventura, heróis, perigo... e agora tudo aquilo acontecia de verdade. Ela estava em êxtase. E apaixonada, também. Ou muito se enganava, ou tinha acabado de encontrar o homem de sua vida.

Estava quase dormindo quando ouviu um barulho lá embaixo. Sentou-se na cama, achando que Johnnie tivesse resolvido aparecer mais cedo. Levantou-se, penteou os cabelos, passou um pouco de batom nos lábios, depois tirou o excesso com um lenço de papel, para não dar muito na vista, voltou para a cama e fechou os olhos.

Não demorou a abri-los novamente. Segundos depois, estava sentada na cama, com o coração aos pulos. Não podia ser Johnnie. A loja estava trancada, e ele não tinha a chave - Alguém devia ter arrombado a porta e entrado!

pulou da cama, como um rojão. Aqueles passos não eram de seu herói de carne e osso. Encostou o ouvido à porta ficou ouvindo. Ou o intruso tinha quatro pernas, ou eram dois. Olhou em volta, à procura de algo que pudesse lhe servir de arma. O secador de cabelos parecia ser a melhor alternativa. Correu para apanhá-lo e ficou ali, atrás da porta, esperando a hora do ataque. Nem Katherine O'Malley tinha passado por experiência similar.

Um pontapé foi suficiente para arrebentar a tranca. A porta de seu quarto se abriu, e uma cabeça foi colocada para dentro. Vera levantou o secador, mas, ao abaixá-lo, a cabeça tinha desaparecido.

- Ela não está aqui.

- Nós a vimos entrar, seu idiota.

- Shh, Yevgenni. Fale baixo. - Seguiram-se algumas tosses. - Será possível que você insiste em fumar até numa hora dessas?

Vera franziu a testa. O sotaque era russo.

E a conversa entre os dois era engraçada, se ela estivesse em condições de achar graça em alguma coisa.

Espremida atrás da porta, ela levantou o secador, pronta para atacar de novo. Infelizmente, não estava preparada para o empurrão violento que Borofsky deu em Petrenko, que fez com que a porta a atingisse com força, a maçaneta batendo-lhe na boca do estômago. Um grito de dor escapoulhe dos lábios, traindo seu esconderijo.

O segundo homem arrancou o secador de suas mãos. Na escuridão, ela só conseguiu ver que ele era atarracado e usava uma máscara no rosto. O toque cómico, se é que havia algo que pudesse fazer aquela cena ficar engraçada, era o cigarro no canto da boca.

- Onde você o colocou? - ele perguntou aos berros, enquanto o outro se levantava do chão, resmungando em russo, depois em inglês, que era melhor andarem logo, porque aquela maldita máscara estava irritando sua pele.

- Eu... eu não sei o q... que v... você quer - gaguejou Vera, em parte para bancar a garota assustada, em parte por medo mesmo. - Se estiver atrás de dinheiro ou jóias... Borofsky a atirou na cama.

- Vamos levar a noite toda para procurarmos. Mas talvez, se você resolver abrir a boca, possamos salvar sua vida e...

- Mas Yevgenni - interrompeu Petrenko.- Recebemos ordens para não machucá-la!

- Cale a boca, seu idiota!

Vera respirou um pouco mais aliviada. Então aqueles brutamontes não iriam lhe fazer mal. Graças a Deus. com seu medo um pouco atenuado, poderia representar seu papel de jovem desprotegida com mais gosto. Agarrou a camisa de seu algoz e começou a soluçar alto, sacudindo-o, jurando que era inocente e que não tinha ideia do que eles queriam. Borofsky teve de fazer força para se livrar das mãos dela. E nem ele nem Petrenko conseguiram acalmá-la.

Finalmente, tendo conseguido se livrar da moça, Borofsky ordenou a Petrenko que a fizesse dormir. Agora, Vera começou a se debater de verdade. A fantasia tinha se transformado num pesadelo real. Onde estava seu herói? Se ela fosse Katherine O'Malley, Derek Colton entraria por aquela porta para salvá-la daqueles brutamontes. Por que as coisas não aconteciam conforme os livros? A última coisa que Vera pensou, antes que um soco a deixasse desacordada, foi "Johnnie".

- O que você está achando? - perguntou Petrenko.

- Estou achando que essa mulher é uma neurótica, isso sim. Nem minha mulher tem essa voz de taquara rachada.

- Nem a minha.

- Bem, agora chega de conversa mole. Você vasculha o apartamento enquanto eu reviro a livraria. Se não encontrar nada aqui em cima, desça para me ajudar. Vamos revirar essa porcaria de cabeça para baixo. Se não encontrarmos nada, não vai ser por falta de vontade.

Uma hora depois, a Vaughn Livros Raros e Usados estava de pernas para o ar. Borofsky nunca estivera tão irritado em toda a sua vida. Tanto trabalho para nada. Mas o pior de tudo não era o seu cansaço. Era ter de dar a notícia a seu chefe.

Assim que os dois russos saíram da loja revirada, o ciarro aceso que Borofsky tinha esquecido em cima de uma mesa caiu no chão.

com tanto papel velho por ali, o fogo não demorou a se espalhar. Johnnie Madden estava dobrando a esquina da Madison Street quando viu as chamas e a fumaça. Começou a correr feito um louco, pânico e culpa invadindo-lhe a alma. Sabia, desde o começo, que estava cometendo um erro em envolver aquela garota inocente num negócio sujo e perigoso.

Não dava para entrar pela porta da frente. E nem tinha tempo para chamar os bombeiros. Se Vera tivesse voltado a seu apartamento... Johnnie rezou para que ela ainda estivesse com seu tio, pois, se não fosse assim, cada minuto desperdiçado poderia significar a morte.

Johnnie correu para o beco atrás da loja e deu um suspiro de alívio ao localizar a escada de incêndio. A subida durou apenas alguns segundos, mas pareceu uma eternidade, até que ele conseguisse quebrar o vidro da janela, protegendo seu rosto dos cacos de vidro e da fumaça que o recebeu.

Não demorou a achá-la, deitada na cama. Estava imóvel.

Por um momento, ele ficou ali, paralisado, com medo de que ela estivesse morta. Uma angústia tremenda invadiulhe a alma, com uma intensidade que chegou a assustá-lo. Já havia visto a morte antes. Já havia sentido a dor da perda. Mas nada se comparava com o que sentia agora.

Foi aí que ouviu um gemido. Vera estava se mexendo. O alívio foi tão grande que ele quase gritou de alegria. Tomou-a nos braços e, ao deixarem o quarto, as chamas já começavam a invadir o andar de cima da loja.

Momentos depois, quando observava aquele inferno do outro lado da rua. Vera ainda tonta a seu lado, Johnnie ouviu o som de sirenes se aproximando.

- Meu herói - ela balbuciou. - Você me salvou daqueles brutamontes.

- Brutamontes?

Ela deitou a cabeça dolorida em seu ombro.

- Os russos, querido. Johnnie ficou tenso.

- Os russos? Foram eles que incendiaram a livraria? Vera... eles levaram o manuscrito?

Ela fez um esforço enorme para olhá-lo nos olhos e sorriu.

- Não.

Johnnie balançou a cabeça.

- Bem, então ele acabou de ser queimado junto com os outros livros. - Pensou em Marcus Lloyd. Conseguira salvar Vera do desastre, mas seu amigo não iria ter a mesma sorte.

Soprava um vento fresco, que ajudou Vera a pensar com mais clareza. Olhou para Johnnie e tocou seu rosto cheio de cinzas.

- Eu nunca o desapontei, querido. O manuscrito não estava na loja. Garanto que o deixei num lugar bem seguro.

Naquele momento, ele pensou que fosse explodir de tanta felicidade.

 

No final das contas, as perdas de Vera Blue form mínimas. A livraria e seu apartamento estavam no seguro e, além disso, tio Lou já havia retirado todos os livros de valor. Suas jóias, a maioria colares e anéis deixados por sua mãe, ficavam no cofre do banco. O fato de seu armário ter sido totalmente destruído não a incomodou nem um pouco, embora tivesse preferido ficar com alguma coisa a mais, além da camisola que usava agora.

Johnnie emprestou-lhe sua jaqueta de lã e ficou a seu lado, -enquanto ela respondia às perguntas de um dos bombeiros. Não mencionou a visita daqueles dois russos trapalhões e admitiu que não fazia ideia de como o incêndio havia começado. Vândalos, talvez.

Após o fogo ter sido apagado, eles pegaram um táxi e foram para o prédio de Lou Vaughn. Ao descer do carro, Vera olhou para a janela do quinto andar. As luzes estavam apagadas.

- Ele deve estar no sétimo sono, Johnnie.

- Pobre homem. Vai ficar tão aborrecido quando souber o que aconteceu...

- Nem tanto. A loja ia ser mesmo demolida. Todos os livros de valor já haviam sido retirados.

Eles entraram no prédio e tomaram o elevador.

- Você vai gostar do tio Lou, Johnnie - comentou ela, ao tocar a campainha. - Ele é como um pai para

mim. Ou, como ele mesmo insiste em dizer, uma mãe.

Ninguém atendeu ao chamado.

- Seu tio não deve ter acordado. Toque de novo. Vera tocou. Mais uma. Mais duas. Mais três vezes. Na

quarta vez, apertou a campainha por vinte segundos seguidos.

Silêncio absoluto.

- Será que ele saiu, Vera?

- Acho muito difícil. Quase impossível, para dizer a verdade. Tio Lou não vai a canto algum à noite. vou tocar de novo.

Mais vinte segundos apertando a campainha.

Nada.

Vera começou a sentir um friozinho desagradável na barriga. Algo lhe dizia que alguma coisa de muito ruim estava para acontecer.

Johnnie girou a maçaneta. Para surpresa de ambos, a porta se abriu. Vera observou-o apanhar sua arma.

- Verá... Me espere aqui.

- Não. Eu vou com você. Não havia tempo para discussão.

- Então fique atrás de mim.

A sala de estar estava exatamente como Vera deixara, poucas horas atrás. Aliás, tudo por ali continuava em seus devidos lugares.

- Tio Lou?

Não houve resposta.

Eles entraram na cozinha. Os pratos sujos do jantar ainda estavam dentro da pia.

- Vamos até o quarto dele, Johnnie.

A porta estava encostada. Vera fez menção de entrar, mas ele a impediu.

- Não. Espere aqui.

Daquela vez, ela resolveu obedecer e ficou ali, parada do lado de fora, o friozinho em sua barriga cada vez mais forte. Porém, o que ela sentia naquele momento não foi nada comparado à sensação gelada que lhe percorreu a espinha quando Johnnie saiu do quarto e a encarou, com ar de poucos amigos.

- O quê... o que foi?

- Por que não vê por si mesma?

- Eu...

Antes que ela pudesse dizer alguma coisa mais, ele agarrou seu braço e quase a empurrou para dentro.

O quarto estava vazio, a cama ainda arrumada. Não havia ninguém por ali. jio Lou... foi embora - ela balbuciou, incrédula.

- E, ao que parece, levou um livro para ler, a fim de se distrair.

Vera olhou para o cofre aberto. Antes de sair do apartamento, vira o tio guardar o manuscrito ali dentro e trancálo com cuidado.

Estou muito cansado agora - dissera ele. - Mas

amanhã bem cedo vou começar a examiná-lo. Mal posso esperar por isso.

Ela se sentou na cama e levou as mãos à cabeça. Parecia que ia explodir de tanta dor. Percebeu que Johnnie a encarava, o rosto dele uma máscara de fúria e ódio.

Respirou fundo, procurando se acalmar.

- Você não está achando que meu tio fugiu com o manuscrito, está?

Ele deu um sorriso irónico.

- Por um momento, pensei que você tivesse perdido sua capacidade de raciocínio.

- Você está errado, Johnnie! Você não conhece meu tio!

- Tem razão. Eu não conheço seu tio. Dessa forma, não tenho o mínimo motivo para confiar nele.

Naquele momento, Vera percebeu que ele também não tinha o mínimo motivo para confiar nela. Johnnie a olhava de um modo que teria intimidado a mais corajosa das mulheres,

mas Vera Blue não iria permitir que sua aventura recém-iniciada tivesse um fim tão triste.

- Ouça aqui, Johnnie - ela disse com voz firme, levantando-se e aproximando-se dele. - Se eu não tivesse trazido o manuscrito para cá, a uma hora dessas ele estaria

nas mãos dos russos, ou transformado em cinzas, na livraria. De qualquer modo, você jamais poderia recuperá-lo. Mas, agora, ainda existe uma esperança.

Ele falou com voz mais firme ainda.

- Esperança de quê? De que o ladrão do seu tio resolva devolvê-lo?

Ela o esbofeteou. Lágrimas de dor e de raiva brotaram em seus olhos.

- Meu tio não é ladrão! Você não tem o direito... Ele lhe segurou os punhos, com força.

- Não me provoque desse jeito, Vera, senão...

- Senão o quê? Você vai provocar de volta?

Na verdade, era preciso muita coisa para provocar Johnme, mas Vera estava conseguindo fazê-lo sem o mínimo esforço.

Ele a largou e voltou a olhar para o cofre vazio.

- O que mais seu tio costumava guardar aqui?

- Pouca coisa. Seus objetos de valor estão no banco. Ei! Espere! Era aí que ele guardava seu... - Ela parou de falar, de súbito.

Johnnie sacudiu seus ombros.

- Vamos, fale logo!

Vera se afastou dele, controlando-se para não esbofeteá-lo de novo.

- Escute uma coisa, Johnnie Madden, se você pensa que pode me tratar desse jeito...

Ele a interrompeu.

- Vera, pelo amor de Deus, o negócio é muito pior do que você imagina! Em primeiro lugar, se eu não conseguir o manuscrito de volta, o homem que me enviou... será assassinado, a Vera arregalou os olhos.

- O quê?

- Seu nome é Marcus Lloyd. Ele foi raptado e o resgate é o manuscrito. Dentro de quarenta e oito, porcaria, quarenta e cinco horas agora. Se eu não mandar o manuscrito para Londres, Marcus morre!

- Que horror! Mas será que, se você explicasse o que aconteceu...

- Explicar? - ele explodiu. - Como vou fazer para explicar uma coisa que eu ainda nem comecei a entender?

Ela voltou a sentar-se na cama. Aliás, jogar-se seria um termo mais adequado.

- O que tio Lou vinha guardando no cofre era seu passaporte. Eu me lembro de que ele disse que iria renová-lo dentro de algumas semanas.

- Ah, que maravilha. A uma hora dessas ele já deve estar fora do país, com o manuscrito. Sabe Deus qual é o seu destino. União Soviética, talvez.

Vera lançou-lhe um olhar furioso e apoiou as mãos na colcha. Ia abrir a boca para lhe dar uma resposta à altura quando seus dedos tocaram num objeto redondo, de metal.

Meu Deus! - ela exclamou. - Johnnie, olhe para isso! Ele examinou o objeto na palma da mão de Vera.

- É um anel de safira. Deve ter caído do cofre. Ela estava de pé, agarrando seu braço, sacudindo-o.

- Não, você não está entendendo. Esse é o anel favorito do meu tio. Seu anel de sorte, como ele o chama. É que o ganhou num jogo de pôquer, há muitos anos, junto com quase dezessete mil dólares.

- E daí?

- Daí que ele estava usando o anel esta noite. Tio Lou nunca o tira do dedo. Você não vê?

- O que eu vejo é que ele resolveu tirá-lo, antes de colocar o passaporte e o manuscrito no bolso.

- Não, não, não. Essa seria a última coisa no mundo que ele faria. Eu já lhe disse. É o seu anel de sorte. Isso só pode ser um sinal. Ouça o que eu estou lhe dizendo. Tio Lou sabia que eu iria achá-lo. Sabia que, assim que eu pusesse os olhos nele, descobriria que alguma coisa de errado havia acontecido. Deus do céu, Johnnie, você sabe o que isso significa?

- Não.

O rosto dela estava branco.

- Significava que ele foi raptado! Essa é a única explicação para o fato de ele ter sumido sem deixar nem ao menos um bilhete!

A raiva de Johnnie parecia ter diminuído um pouco. A preocupação, porém, continuava.

- Por que alguém iria querer raptá-lo? Por que não somente levar o manuscrito?

Vera franziu a testa.

- Ainda não pensei nisso. Ele deu um sorriso irónico.

- E eu que pensei que você tivesse todas as respostas...

Ela sorriu com a mesma ironia.

- Pelo menos, tenho mais respostas do que você. E as mesmas preocupações.

Johnnie pôs as duas mãos nos ombros dela e olhou bem dentro de seus olhos.

- Eu acho que fui um pouco rude com você. Vera estremeceu com aquele toque.

- Até os heróis têm o direito a seus momentos de mau humor. Você devia ter me contado a respeito do sequestro do seu amigo. Isso teria explicado...

- Vera, me escute, por favor. Eu não sou um herói. Você tem de parar com essas fantasias e...

Só que ela não estava prestando atenção. Agarrou a camisa dele.

- Johnnie, a vizinha nova! Será que não seria bom darmos uma olhada no apartamento dela? Meu tio me contou que ela ia estar fora esta noite. Foi por isso que cancelou o jantar. Mas e se essa história for mentira? E se ela me viu entrar aqui? O apartamento não foi arrombado. Isso significa que, seja lá quem for que raptou meu tio, foi convidado a entrar. O pobre tio Lou deve ter ficado eufórico em receber a visita noturna de uma mulher por quem já está apaixonado! Olhe no que deu o coitadinho se apaixonar...

Johnnie fez com que ela largasse sua camisa.

- Nós ainda não sabemos o que aconteceu, Vera.

- Mas se alguma coisa de ruim acontecer... - O pensamento era terrível demais para ser completado. - Ele é a única família que eu tenho.

- Se sua teoria a respeito do desaparecimento do seu tio estiver correta, Vera, podemos ter certeza de que ele está bem. Se não, nós o teríamos achado aqui, esta noite...

Ela fez que sim com a cabeça e o abraçou.

- Eu estou tão assustada, Johnnie... Ele a apertou com força.

- Você teve um dia terrível. Por que não se deita um pouco, enquanto eu dou uma olhada no apartamento da vizinha?

Vera ia começar a protestar, mas o cansaço acabou vencendo.

- Certo. Eu fico aqui, esperando.

Quando Johnnie já estava quase saindo, ela ainda perguntou:

- Se a tal mulher estiver na casa dela, bela é folgada, você ainda vai achar que meu tio...

Ele voltou para perto de Vera e colocou um dedo em seus lábios.

Eu nunca mais vou duvidar de você, Vera Blue.

Ela se deitou na cama e observou-o sair.

- Pode ser que você não concorde comigo - disse baixinho a si mesma. - Mas você é a coisa mais próxima a um herói que eu já tive o prazer de conhecer.

Vera sonhava com os anjos quando Johnnie voltou, uma hora depois. Havia dado alguns telefonemas e vasculhara o apartamento da vizinha. Agora estava de pé, na porta do quarto, observando aquela beldade loira que dormia.

Desde que o primeiro momento em que recebera o manuscrito soubera que seu trabalho não seria simples, soubera que haveria riscos e perigos. Só que não esperava que eles chegassem assim tão depressa. O livro roubado, Marcus Lloyd sequestrado, Lou Vaughn desaparecido. Mais encrencas do que um homem poderia suportar.

E ainda havia Vera Blue. Ela também representava problemas, o mais grave deles sendo que, desde que a vira pela primeira vez, não conseguira parar de desejá-la. Infelizmente, aquela não era a hora certa para tal tipo de coisa. Sua vida já andava complicada demais. Não poderia permitir que nada o distraísse, embora aquela distração prometesse muitos prazeres secretos. Além disso, apesar de toda a coragem que havia mostrado até agora, Vera Blue sempre vivera longe das emoções... e também dos perigos que uma vida daquelas proporcionava. A menina era mais vulnerável do que admitia. E o próprio Johnnie, sempre tão confiante e seguro, nunca estivera tão consciente de sua insegurança.

Vera acordou de repente e sentou-se na cama.

- Johnnie...

Ele se sentou a seu lado.

- Descobri o apartamento da fulana. A mobília está toda lá, mas desconfio que ela o alugou mobiliado. Não havia roupas no armário, nenhum objeto de uso pessoal, nada que indicasse que, por algum momento, alguém morou ali.

- Meu Deus... Ele deu um suspiro.

- Ao que parece, sua teoria a respeito do que aconteceu aqui ontem está se encaixando cada vez melhor.

Ela mordeu o lábio.

- Ou cada vez pior.

Johnnie acariciou-lhe os cabelos, tentando não pensar no que aquele toque lhe proporcionava.

- Vamos pensar com a cabeça fria. Se a fulana quisesse fazer alguma coisa contra seu tio, por que levá-lo consigo? Poderia ter acabado com ele aqui mesmo e levado o manuscrito. Não. Por alguma razão, a mulher precisa dele.

Vera arregalou os olhos.

- Para examinar o trabalho! Claro! Só pode ser por isso. Ela precisa verificar a autencidade do trabalho antes de despachá-lo. Bem, tio Lou não é um perito do seu nível, mas fala russo e passou a vida inteira lidando com livros raros. Tenho a impressão de que a palavra dele seria aceita.

- Bem, nesse caso, você pode começar a respirar com mais alívio. Um trabalho desses costuma levar alguns dias. Pelo menos durante esse período, seu tio estará seguro.

- Mas nós não vamos ter tempo para localizá-lo. Nem para salvar seu amigo Marcus Lloyd.

- Vera, de agora em diante, nós não vamos mais poder agir sozinhos. Precisamos da ajuda de profissionais. Aliás, já fiz meus contatos. vou almoçar com uma pessoa amanhã, na cidade de Cohasset, e lhe dar todos os detalhes. Você pode ficar esperando aqui.

- Aqui?

- Bem, acho que esse é o lugar mais seguro e...

- De jeito nenhum - ela o interrompeu. - Eu vou com você.

- Mas eu já lhe disse. vou jogar essa confusão toda nas mãos de pessoas treinadas nesse tipo de coisa.

Como sempre, ela nem estava ouvindo o que Johnnie Dizia - Você falou Cohasset?

Ele franziu a testa.

- Vera...

Cohasset fica a caminho de Cape Cod. Menos de quarenta e cinco minutos de Sandwich.

- Sandwich?

- Sandwich é uma cidadezinha costeira, logo após a Sagamore Bridge.

- E o que essa tal cidadezinha tem a ver com a história?

- Meu tio tem uma casa em Sandwich. Costumávamos passar o verão ali, quando eu era criança. Ele ainda vai muito para lá. É uma espécie de refúgio, um lugar onde pode ler e estudar com calma.

Johnnie parecia confuso. Ela continuou a falar.

- Se tio Lou foi mesmo raptado, é muito provável que tenha ido para lá, junto com a pessoa que o raptou. O lugar é completamente deserto nessa época do ano.

- Você está se precipitando, Vera. A pessoa em questão saberia que essa casa seria um dos primeiros lugares que iríamos revistar.

- Não necessariamente. Pense um pouco. Você jamais desconfiaria que esse lugar existe. E eu... bem, a uma hora dessas, eu devia estar morta. A casa seria um esconderijo perfeito.

- Você acha que essa fulana está agindo junto com os russos que invadiram a livraria?

- Faz sentido, não é? Ela mandou aqueles dois brutamontes procurarem o manuscrito. Como não encontraram, imaginou que eu o tivesse levado ao apartamento do meu tio e acabou raptando o coitado.

Johnnie respirou fundo.

- Não sei não, mas acho que você está deixando sua imaginação voar alto demais.

- Pois eu não acho. Agora, o melhor que temos a fazer é partirmos para Sandwich o mais rápido possível. A que horas é o seu encontro com aquele homem em Cohasset?

- Ao meio-dia. Mas...

- Não tem problema. Vamos para lá agora mesmo e você terá tempo para chegar ao almoço na hora marcada. Ela fez menção de sair da cama.

- Vera, são quatro e meia da manhã. Nós não vamos a lugar nenhum. Tivemos um dia de lascar e precisamos dormir. - Ele sorriu. - Sozinhos, infelizmente. Ainda bem que o sofá do seu tio parece ser um pouco mais confortável que o seu. - Ele se inclinou e lhe deu um beijo. - Durma bem, Vera. Procure descansar. Seu dia hoje foi duro, e amanhã promete ser muito pior.

 

Se Vera Blue não tivesse sono leve, sua entrada no mundo da aventura e da emoção teria terminado às 7:20 da manhã seguinte, com a saída de Johnnie Madden do apartamento de Lou Vaughn.

Acordada pelo barulho de porta se fechando, ela pulou da cama e se vestiu apressadamente, com as roupas do tio. Os sapatos eram grandes demais e saíam de seus pés, mas não havia muita coisa que pudesse fazer a respeito. Pelo menos, era melhor do que perseguir Johnnie descalça.

A caminho da porta, ela estava apenas dois minutos atrás dele, apanhou um dos chapéus do tio e o enterrou na cabeça, escondendo seus cabelos dentro dele. Disfarçar-se de homem até que não era uma má ideia. Estava disposta a fazer qualquer coisa para que aqueles dois gorilas russos e a beldade morena não a reconhecessem.

Curiosidade e um pouco de raiva a impediram de chamar Johnnie ao vê-lo andando apressadamente pela calçada. Ele parou de andar, ao chegar à esquina, e ficou ali, olhando para os carros que passavam, claramente à espera de alguém.

Vera Blue nunca tinha considerado muito o fator sorte em sua vida. Mas, ao pôr a mão no bolso da jaqueta do seu tio e tocar em seu chaveiro, cruzou os dedos, torcendo para que os deuses da fortuna estivessem a seu lado. Voltou correndo ao prédio de Lou Vaughn, entrou na garagem e foi com grande alívio que viu o Chevy marrom do tio estacionado em seu lugar habitual.

Uma das chaves abriu a porta do carro; a outra deu a partida. Vera saiu da garagem, consciente de que seu súbito golpe de sorte confirmava o grande azar de seu tio. A presença daquele carro era mais uma indicação de que o coitado deixara seu apartamento contra a sua vontade.

Os deuses da fortuna continuavam a seu lado, quando ela dobrou a esquina e avistou um seda azul parar em frente ao local onde Johnnie se encontrava. Um homem de terno desceu, e ele tomou seu lugar ao volante. Segundos depois, o carro seguia seu caminho pela rua movimentada.

Vera tentou esquecer a raiva e o desapontamento causados pela súbita partida de seu novo herói. Precisava de toda a sua concentração para segui-lo em meio àquele trânsito infernal sem que ele a visse.- Não era provável que fosse reconhecida, mas, de qualquer forma, todo cuidado era pouco.

Quinze minutos depois, Johnnie entrava na auto-estrada que levava ao sul. Vera imaginou que ele estivesse se dirigindo a Sandwich, para dar uma busca na casa da praia. Ou talvez tivesse resolvido antecipar sua reunião em Cohasset e fosse verificar a casa depois. Tentou imaginar quem exatamente ele iria encontrar. Alguém da polícia? Do FBI? Bem, pretendia descobrir logo.

Não havia muitos carros na estrada. Johnnie dirigia bem, mas um pouco depressa para o seu gosto. E ela, motorista sem muita experiência, teve de se esforçar para não perdêlo de vista.

Ele fez sinal que ia virar à direita, um pouco antes da saída para Cohasset. Desacostumada com o carro do tio, Vera ligou o limpador do pára-brisas, em vez da seta. Começou a resmungar, torcendo para não ter chamado a atenção de Johnnie, principalmente porque eles eram os únicos que haviam virado, e ela não teve outra alternativa senão seguir bem atrás dele.

Pouco depois, o seda azul virava à esquerda, para pegar o atalho que levava a Cohasset. Então, ele iria ter a tal reunião primeiro. A confirmação veio um minuto depois, quando seu carro parou em frente a um restaurante rústico, que parecia quase deserto àquela hora.

Ela enterrou o chapéu na cabeça, passou pelo seda e foi estacionar mais adiante. Esperou que ele entrasse no restaurante e, então, desceu do carro.

A garçonete de uniforme vermelho a recebeu à porta.

- Mesa para uma pessoa, senhor?

Vera fez força para não cair na risada e, abaixando a cabeça, apontou para o lugar onde Johnnie acabara de sentar de costas para ela. À sua frente havia um homem de meia-idade, de cabelos curtos e grisalhos.

Atravessou o salão, com passos decididos. Porém, ao ver aquela estranha figura de roupas e sapatos enormes se aproximando, o sujeito grisalho se levantou, sua mão tocando a arma que trazia à cintura. Johnnie, assustado, virou-se rapidamente. E foi tomado por uma sensação estranha, que misturava irritação, alegria e admiração.

- Relaxe, Lês. Está tudo bem.

- Você conhece esse cara, Madden? Johnnie deu um suspiro.

- Digamos que sim.

- Bem, quem é ele então? E o que está fazendo aqui? Ele olhou para Vera.

- É uma boa pergunta. Também gostaria de saber a resposta.

Ela enterrou o chapéu ainda mais fundo em sua cabeça, de modo que seu rosto ficasse quase todo escondido. Sentouse numa cadeira vaga e tentou engrossar um pouco a voz.

- Você devia ter me acordado, querido.

O homem que Johnnie havia chamado de Lês ainda estava de pé, fazendo cara de assustado, mas agora por razões bem diferentes.

- Ei, o que ele está querendo dizer com isso? Johnnie não prestou atenção à pergunta de Lês nem no olhar estranho que o homem lhe lançava. Virou-se para Vera e falou baixinho.

- Eu não quis acordar você. Não havia necessidade de nós dois madrugarmos, depois de tudo que passamos ontem.

- Mas eu pensei que fôssemos uma dupla. Johnnie deu um suspiro.

- Eu já disse que quero você fora disso.

- Você pode querer, mas eu não quero. - Ela fez uma pausa, abaixando sua voz ainda mais. - Fiquei desapontada, Johnnie. Não pensei que você fosse fugir de mim desse jeito.

Ainda de pé, Lês percebeu que começava a chamar a atenção dos outros clientes do restaurante e voltou a sentar-se. Parecia mais confuso do que nunca.

- Escute, Madden, seja lá o que você tiver que falar com esse cara, que tal deixar para depois? Nós temos coisas muito mais importantes para resolver agora.

Vera sorriu e tomou a mão de Johnnie nas suas.

- Acho que seu amigo está com ciúme de nós, meu amor.

- O quê? - Lês ficou roxo de ódio. - Mais respeito, cara. Eu não sou do seu time! E, francamente, Madden, nunca pensei que você...

Num gesto teatral, ela tirou o chapéu e sacudiu os cabelos.

- Surpresa...

Lês olhou para ela, de boca aberta. E deu um sorriso, cheio de alívio.

- Deus do céu, garota, você me enganou direitinho! Ele olhou para Johnnie. - E quanto a você, amigo, devo dizer que me pregou um susto daqueles!

- Bem, rapazes - Vera passou a mão pelos cabelos e colocou o chapéu na cadeira ao lado -, agora que já está tudo esclarecido, vamos à nossa reunião?

Lês ficou um pouco embaraçado.

- Sinto muito, garota, mas a conversa que eu vou ter com Madden é particular e...

Ele parou de falar ao ver a garçonete que se aproximava. Os dois homens pediram café preto. Vera pediu ovos com queijo, torradas com manteiga e geléia e um pedaço

de torta de maçã. Ao que parecia, não tinha a mínima intenção de ir embora.

Assim que a moça se afastou, ela sorriu para Lês e estendeu-lhe a mão.

- Meu nome é Blue. Vera Blue.

- Ah... Então você é a sobrinha de Vaughn.

- Pelo visto, Johnnie já começou a lhe dar os detalhes.

- Olhe, Vera - interrompeu Johnnie -, me faça um favor. Coloque esse chapéu de novo e volte para Boston.

Mas e a casa em Sandwich?

- Eu estava tão cansado na noite passada que nem conseguia pensar direito e acabei achando que Sandwich fosse uma possibilidade. Mas hoje de manhã, eu me lembrei do passaporte. Seu tio levou o passaporte, lembra-se? E pelo que eu saiba, ninguém precisa de passaporte para viajar para Cape Cod.

Um a zero para você, pensou Vera.

- Vera, nesse caso, vocês mandaram verificar os aeroportos?

Lês fez que não com a cabeça, esquecendo, por um momento, que a moça não tinha sido convidada a participar da conversa.

Como Johnnie continuasse quieto, Vera resolveu concentrar sua atenção em Lês.

- Acho que ainda não sei seu nome completo.

- Lês Sharp.

- Lês Sharp... Que nome diferente. Diferente e bonito. - Ela fez uma pausa. - Lês Sharp de onde?

O homem olhou para Johnnie, sem saber o que fazer. Ele deu um suspiro.

- Tudo bem, Lês. Vamos deixá-la participar. Vera está envolvida nessa história até o pescoço.

- Obrigada, Johnnie. - Ela deu um sorriso largo e virou-se para o outro. - Lês Sharp de onde?

- Da CIA - ele respondeu, em voz baixa. Vera arregalou os olhos.

- Da CIA?

Johnnie inclinou-se em sua direção e sussurrou:

- Lês é agente especial da CIA. Do jeito que as coisas vão, achei que seria bom procurar ajuda profissional.

- Nós queremos o manuscrito - Lês limpou a garganta. - É claro, também queremos ajudar seu tio, se ele estiver em perigo.

Vera olhou para Lês, um pouco confusa.

- Desde quando a CIA se interessa por livros raros?

- Ela não...

- Livros raros russos - interrompeu Johnnie.

Os olhos de Vera continuaram fixos no rosto de Lês.

- Eu não o quê?

O agente da CIA percebeu que devia ficar de boca fechada.

- Nada.

Antes que Vera pudesse fazer alguma outra pergunta, a garçonete voltou com os pedidos. Enquanto comiam, John me fez um resumo dos últimos acontecimentos. Contou a Lês a respeito dos dois brutamontes russos, do incêndio, do desaparecimento de Lou Vaughn, do sumiço do livro. Vera o interrompeu e falou sobre o anel de safira.

- Tio Lou quis me deixar um sinal. Posso jurar que ele foi raptado pela loira bonita, que usa o nome de Andrea Lambert. - Ela descreveu a mulher. - Aposto que essa fulana é agente da KGB.

Lês Sharp parecia impressionado.

Johnnie parecia confuso. Contou a Lês a respeito da beldade morena que havia ficado horas vigiando a livraria no dia anterior.

- Por acaso ela é alguma agente sua? Lês balançou a cabeça.

- Não. Sei que Langley pôs alguém no caso, assim que soubemos que havia muita gente interessada no manuscrito. Mas não é nenhuma mulher. - Ele abaixou a voz - É um homem, que atende pelo nome de Gold. Nunca o vi mas é considerado o melhor nesse tipo de coisa. Se alguém conseguir recuperar o manuscrito e localizar Vaughn.

esse alguém é Gold. Enquanto isso, vou espalhar a descrição dessa tal de Andrea Lambert. Vamos colocar agentes nos aeroportos e- nos terminais rodoviários. Quando eles aparecerem, vão encontrar um comité de boas-vindas à sua espera. Agora, a respeito dessa casa em Sandwich...

- Não - interrompeu Johnnie. - Não acho que haja muitas chances de eles terem ido para lá.

Vera, porém, não concordava.

- Olhe, Johnnie, essa tal de Andrea pode ser muito esperta. E se ela resolveu esperar alguns dias até embarcar, para o caso dos aeroportos estarem sendo vigiados?

Ele balançou a cabeça.

- Por que ela iria se preocupar com isso? Para a fulana, você morreu no incêndio e ninguém ainda deu falta do tio. A troco de que ela iria achar que os aeroportos estariam sendo vigiados?

Lês concordou com um gesto de cabeça, depois deu um sorriso embaraçado para Vera.

Os jornais noticiaram o incêndio da livraria... e a morte de Vera Blue. Para essa tal de Andrea Lambert e para os russos... você morreu.

- Não precisa ficar sem graça, Lês. Essa ideia é ótima.

Ela piscou. - Tenho certeza de que Katherine O'Mal-

ley... - Parou de falar, de súbito.

- Quem é Katherine O'Malley? - os dois homens perguntaram ao mesmo tempo.

Vera sorriu, misteriosamente.

- Ha... Uma pessoa acostumada a esse tipo de negócio. Johnnie lançou-lhe um olhar meio desconfiado.

- Que negócio?

- Espionagem, ora essa.

- Alguma amiga sua?

- Uma conhecida, digamos assim. Lês limpou a garganta.

- Esqueça Katherine O'Malley. - Ele apertou os olhos.

- A menos que ela tenha algo a ver com essa história.

Vera sorriu de novo.

- Não tem, não.

- Então vamos voltar ao que interessa. Alguma notícia de Marcus Lloyd? O sequestrador fez algum contato com você?

Johnnie coçou o queixo.

- Não. Mas tenho certeza de que fará. Preciso convencer o filho da mãe a me dar um pouco mais de tempo, para que eu possa achar o manuscrito.

- Você faz ideia de quem agarrou Lloyd?

- Tenho minhas desconfianças, mas não posso provar nada.

Lês fez que sim com a cabeça.

- Bem, acho que isso é tudo por enquanto. Você quer discutir mais algum tópico?

- Não. Manterei contato, se alguma coisa acontecer.

Agora, a respeito desse tal de Gold... Ele vai entrar em contato direto comigo, se conseguir alguma coisa?

- Provavelmente.

Vera percebeu que o agente da CIA havia ficado um pouco tenso.

- O que foi, Lês? Ele franziu a testa.

- É que eu já devia ter recebido um sinal dele, a uma hora dessas, e nada... Bem, acho que isso não é motivo para preocupação. Gold é famoso por fazer as coisas a seu modo. O importante é que ele é eficiente como o diabo.

Lês Sharp deixou o restaurante antes que Vera terminasse seu café da manhã. Johnnie ficou a seu lado. Ela lhe passou um prato de torradas.

- Coma. Você vai se sentir bem.

- Acontece que eu já estou me sentindo bem. Ela franziu a testa.

- Eu ainda acho que devíamos dar uma olhada na casa em Sandwich. Meu tio mantém uma biblioteca bem razoável ali. Inclusive alguns livros que iriam ajudá-lo a autenticar o manuscrito. Não vai nos custar nada. Sandwich fica a menos de uma hora daqui.

- Vera, eu vou para Londres.

Ela deu uma mordida em sua torrada.

- Ah, sei.

- É minha semana de folga na universidade. Eu sempre costumo visitar minha mãe nessa época do ano. E agora, com essa história do pobre Marcus ter sido sequestrado, eu acho que...

- Que o livro vai aparecer em Londres? Então, nesse caso, meu tio...

- Eu não acho nada, Vera. Como já disse, estou querendo visitar minha mãe. Agora, quanto a seu tio, Marcus Lloyd e o manuscrito, sinto informar que não faço a mínima ideia de onde eles possam estar. Isso agora está nas mãos de profissionais, tanto aqui quanto em Londres.

- Lês Sharp é um deles?

- Ele é apenas um coletor de dados. Quem vai tomar conta de tudo mesmo é esse tal de Gold. Parece que o sujeito é dos bons.

- Em Londres também tem um cara bom desses?

Deve ter. Marcus Lloyd é um... homem muito importante. Seu sequestro vai dar o que falar. - Ele fez uma pausa. - Bem, como eu já disse, o caso não está mais nas minhas mãos. vou para Londres visitar minha mãe e deixar que os profissionais se encarreguem de Lloyd e do manuscrito.

Vera deu mais uma mordida na sua torrada. Não acreditava em uma só palavra de Johnnie. Ele não estava desistindo do caso coisa nenhuma. Ela tomou o resto de seu café da manhã em silêncio, pensando num jeito de convencer aquele homem a levá-la junto para Londres.

- Yevgenni, você não passa de um grande incompetente! - berrou Zakharov. - Eu falo para vasculhar a loja e você põe fogo nela. Eu falo para você não machucar a garota e a coitada acaba virando cinza!

Borofsky mantinha a cabeça baixa, a fumaça do cigarro de seu chefe lhe dando uma grande vontade de fumar. Sabiamente, decidiu que aquela não era a melhor hora para fazê-lo.

- Mas não fui eu que comecei o fogo. A única coisa que fiz foi dar um safanão na garota, para que ela ficasse quieta. A fulana não parava de berrar! Agora, quanto ao manuscrito, dou minha palavra de que ele não estava lá. Juro pela alma da minha mãe!

Zakharov apertou os olhos.

- E se eu pedisse para você jurar pela sua própria alma, Yevgenni, você juraria?

Borofsky pensou que fosse desmaiar, de tanto pavor. Zakharov pôs a mão no ombro do coitado e constatou que ele tremia, da cabeça aos pés. Chegou quase a sentir pena dele.

Quase.

- Camarada Yevgenni, eu me encontro num dilema terrível. Não posso voltar a Moscou sem o manuscrito. Seria... vamos dizer... uma grande humilhação para mim. E eu não pretendo ser humilhado. Por enquanto, vou aceitar sua palavra de que o manuscrito ainda existe. E, desse modo, a pergunta permanece: Onde está ele?

- O professor - respondeu o coitado, respirando fundo. - Ele deve estar com o manuscrito. É a única resposta. - Borofsky fez força para se acalmar. - Prometo que vou encontrá-lo, nem que seja no meio do inferno!

- Pois eu lhe asseguro, camarada, que se você não achar o professor e o manuscrito, quem vai para o meio do inferno é você!

E, dizendo isso, Zakharov deu uma gargalhada. Só que Borofsky não esboçou nem um sorriso.

- Quero que me prometa que não vai machucá-lo - disse Christine Dupré ao telefone.

- Sua preocupação com seu amado é comovente, querida. Embora eu ache que Marcus não ficaria nem um pouco comovido.

- Daniel, por favor.

- Fale logo o que você quer, garota. Ela deu um suspiro.

- A vendedora morreu. A livraria pegou fogo. Li no jornal de hoje.

- Esqueça a vendedora. O professor vai nos entregar o manuscrito logo, logo.

- O sequestro de Marcus não foi mencionado por nenhum meio de comunicação de Boston. Como conseguiu isso? E onde está ele?

- Relaxe, querida. São perguntas irrelevantes.

- vou para Londres, Daniel. Já estou no aeroporto.

- É mesmo?

- Marcus... está bem?

- Meu Deus, você está preocupada mesmo!

- Você me jurou que o caso iria ser simples. Não me disse nada a respeito de sequestros... ou coisa pior.

- Querida, assim que o manuscrito estiver na minha mão, o resto vai ser bem simples. E muito mais lucrativo do que eu esperava.

- Como assim?

- Fui informado de que os russos estão dispostos a fazer qualquer negócio para ter seu tesouro de volta. Isso significa que o preço vai poder ser duplicado... ou triplicado. Mas não esquente sua linda cabecinha com esses detalhes, pense apenas na generosa quantia que vai receber, quando tudo isso estiver acabado.

Christine hesitou.

- Como eu vou saber que vai realmente me pagar, Daniel? Afinal das contas, você não vai mais receber o manuscrito das minhas mãos.

- O que me faz pensar novamente nessa sua viagem a Londres. Eu prefiro que fique aí, querida. Não confio em Madden. Acho que você devia continuar a segui-lo e certificar-se de que ele vai mesmo mandar a encomenda. E quanto ao seu pagamento, fique tranquila. Você vai recebê-lo, como recompensa pelo bom trabalho que vem fazendo. Mantenha contato.

A linha ficou muda.

Christine franziu a testa. Sabia muito bem qual era a verdadeira razão pela qual Daniel iria mesmo pagá-la. Seu silêncio valia aquela fortuna. Ela sorriu. Como era mesmo aquele ditado? O silêncio vale ouro.

Realmente, muito apropriado.

 

Vera observava a paisagem, pensativa. Cada quilómetro percorrido a levava para mais perto da casa de seu tio, em Sandwich... e para mais perto do fim de sua aventura. Não podia suportar o pensamento de que tudo já estivesse acabando. Para ela, aquela história estava apenas no começo. Não podia deixar que Johnnie Madden saísse de sua vida agora.

Olhou para o lado. Ele dirigia com calma, os olhos fixos na estrada. Vera precisava dar um jeito de acompanhá-lo naquela viagem a Londres, custasse o que custasse. Nem que, para isso, precisasse se disfarçar de aeromoça.

- Eu sinto muito por tudo o que aconteceu, Vera. Johnnie disse isso no momento em que estacionava o carro

em frente a um chalé acinzentado, que dava para a praia. Vera olhou para ele e sorriu.

- Pois eu não sinto nada, Johnnie. Nunca vivi tanta emoção e felicidade em toda a minha vida. É só uma pena que... tudo já esteja acabando.

Ele desligou o motor, lançou-lhe um olhar desconcertado e desceu do carro.

Vera recostou a cabeça no banco e fechou os olhos. Maldito homem. Ele devia se apaixonar perdidamente, antes do fim da aventura. Porcaria. Por que as coisas não aconteciam conforme os livros?

Abriu os olhos lentamente e ficou observando Johnnie examinar a entrada, a casa e o jaTdim. Ele a chamou, e Vera desceu do carro.

- Não há marcas recentes de pneus no chão. E o chalé está trancado. - Ele fez uma pausa e olhou em volta. Lugar gostoso este aqui, não é? Me faz lembrar a casa que tínhamos em Devon.

Vera não respondeu, e ele ficou um pouco sem graça. - Desculpe. Eu sei que você queria que seu tio estivesse aqui.

- Queria, sim. - Ela deu um sorriso desanimado.

Mas não tinha muitas esperanças.

Eles deram a volta na casa e foram até a praia. Não havia ninguém por ali. Exceto por uma ou duas gaivotas que emitiam seu lamento triste, o lugar estava completamente deserto.

- É lindo, não é, Vera?

- É lindo, sim. Mas solitário também.

Johnnie olhou para ela. O vento soprava em seus cabelos, afastando-os de seu rosto, um rosto desprovido de maquiagem... e de qualquer outro tipo de artifício. Ela não passava de uma garota inocente. Doce, meiga e vulnerável. Uma romântica incurável. E, ainda assim, tão inteligente.

Até mesmo ousada, quando necessário. Lembrou-se do susto que levara ao vê-la no restaurante, usando aquela roupa esquisita. Estava encantado com ela. E aquilo o deixava assustado. Talvez esse fato explicasse a mistura de alívio e frustração que sentia agora que ambos iriam se separar.

O silêncio dela era desconcertante, impelindo-o a falar:

- Tenho certeza de que você não vai precisar passar muito tempo aqui. Logo, logo, tudo terá voltado ao normal. Seu tio vai aparecer. Confie em mim. Então, essa loucura toda ficará para trás e você esquecerá que passou por tantos apuros.

Nunca, ela pensou. Nunca vou me esquecer de um só segundo dessa aventura. Nem vou permitir que ela acabe assim, tão de repente.

Tinha de dar um jeito de fazer com que Johnnie a levasse para Londres. Mas como? Ele jamais iria concordar.

Pense em alguma coisa, Vera Blue, ela ordenou a si mesma. Você é muito mais inteligente e esperta do que imagina.

Só que, naquele momento, sua inteligência e esperteza pareciam tê-la abandonado. Sentia-se uma perfeita Cinderela pega no meio do baile após a meia-noite, seu vestido reduzido a trapos, sua fantasia desaparecendo bem diante de seus olhos. Não conseguia pensar numa só coisa inteligente para falar ou fazer. E Johnnie estava se virando, para deixar a praia. Num impulso, ela agarrou sua jaqueta.

- Johnnie...

Havia desespero em seus olhos, e aquilo não era artificial.

- O que foi? Há alguma coisa que você queira ou precise, antes que eu vá embora?

Ela fechou os olhos, uma lágrima escorrendo por seu rosto.

- Se eu quero alguma coisa? - sussurrou.

"Oh, Johnnie, é claro que sim. Eu quero você. Eu preciso de você."

Aquela lágrima fez com que ele se sentisse ainda mais confuso. Estava louco de vontade de tocá-la, de beijá-la, de amá-la. E de confiar nela, também. Queria fazer com que ela visse que os riscos eram muito grandes, que ainda havia muita coisa para acontecer... e que ele não era o herói que ela pensava que fosse. Nesse mundo não havia heróis nem santos. Queria fazê-la compreender tudo aquilo. Mas não conseguia.

Tirou um pedaço de papel e uma caneta do bolso e rabiscou um número de telefone.

- Se quiser entrar em contato com Lês Sharp... - E entregou-lhe o papel, com a mão trémula.

- Espere! - ela quase gritou, ao vê-lo se afastar. Ele parou.

Vera respirou fundo.

- O chalé! Nós ainda não o revistamos! Johnnie hesitou.

- É, acho que devíamos dar uma olhada.

"Um a zero para você, Vera Blue", ela pensou com alegria, ao apanhar o chaveiro e abrir a porta com uma das chaves.

A sala da frente, espaçosa e mobiliada confortavelmente, estava vazia. Johnnie se aproximou de uma mesa, perto da janela, cheia de livros e papéis.

- Tudo isso aqui pertence ao seu tio, Vera? Ela fez que sim com a cabeça.

Eu já lhe disse. Meu tio costuma vir muito para cá, a fim de ler e trabalhar com calma.

- O que ele pretendia fazer a respeito da livraria? Você disse que ela ia ser demolida logo, não é?

- Ele estava pensando em abrir uma outra loja, em algum canto da cidade. Mas isso era só por minha causa, para que eu não ficasse desempregada. Pobre tio Lou. Sempre tão preocupado comigo... Na verdade, o que ele gosta mesmo é de viajar, à procura de livros raros.

Johnnie não disse nada e continuou a olhar para os papéis, em cima da mesa.

- Você ainda tem dúvidas a respeito do meu tio, não tem? - ela continuou. - Você ainda acha que ele pode ter fugido com o manuscrito. E Andrea Lambert? Você acha que os dois estão juntos nessa história? É nisso que acredita, Johnnie?

Johnnie olhou para ela.

- E você acredita que seu tio é completamente imune a tais tentações?

Vera tirou a jaqueta enorme, chutou os sapatos número 40 para longe e sentou-se no sofá.

- Piamente. Tio Lou me criou, desde os meus catorze anos. Se eu não o conheço a fundo, então ninguém mais o conhece. Ele é um homem bom, honesto e íntegro. Gostaria de que o tivesse conhecido. Aí iria ver...

Johnnie apanhou um porta-retrato, em cima de uma estante.

- Esse é ele?

- É. E essa ao lado sou eu. Eu tinha dezesseis anos. A foto está meio tremida, mas tio Lou gosta muito dela. Bem, eu diria que ele é um homem sentimental. Nunca se casou, nunca teve filhos. Não deve ter sido fácil para o coitado receber de presente uma adolescente para criar. Mas, se ficou aborrecido com minha súbita entrada na sua vida, nunca demonstrou. Ele foi maravilhoso para mim. Tão doce, tão amoroso... Sempre se sentiu culpado pelo fato de viajar tanto, a negócios, mas eu nunca me incomodei muito com isso. Passamos juntos momentos inesquecíveis.

As lágrimas voltaram a seus olhos.

Johnnie sentou-se no sofá a seu lado. Ignorando a vozi nhã que martelava em sua cabeça, insistindo que estava entrando numa fria, passou o braço pelo ombro de Vera, puxando-a para mais perto de si.

- Nós o encontraremos, Vera. Confie em mim. Ela se afastou e olhou bem dentro de seus olhos.

- Você disse nós!

- Como?

- Você disse "nós". Nós o encontraremos.

- Não estou entendendo.

- Você vai voltar a Londres para procurar meu tio, não para visitar sua mãe. Você está mais envolvido nessa história do que quer admitir. E o que foi que Lês Sharp

pensava que eu soubesse? Ora, Johnnie, você acha que eu nasci ontem? A troco de que um simples professor de faculdade andaria armado? E, ao que parece, você sabe manejar sua arma muito bem.

Ele se recostou no sofá.

- Vera, eu já lhe disse. Meu apartamento foi invadido. Eu fui seguido. Não é preciso ser muito inteligente para perceber que corria perigo. Sabia que havia muita gente interessada no manuscrito, que não ia ser fácil guardá-lo. Por isso comprei a arma. E faz tempo que eu sei atirar. Pratiquei tiro ao alvo, por hobby, é claro, quando era mais jovem, na Inglaterra.

- Entendo.

- Agora, quanto ao fato de procurar seu tio e o manuscrito, eu me incluí na história apenas no sentido de cooperar com as autoridades, dando-lhes todas as informações que puder.

- Entendo.

- Pare com isso, Vera. Você não acredita numa só palavra minha. Sabe qual é o seu problema? Sua imaginação. Nunca vi alguém com uma imaginação tão fértil!

Ela sorriu e não respondeu. Johnnie continuou a falar:

- E essa ideia de que sou um herói... Isso é uma grande bobagem. Sou um homem comum, que, por acaso, se meteu numa enrascada. Me arrependo profundamente por têla envolvido nessa história toda. Você arriscou sua vida. Seu tio sumiu. Seu apartamento e a livraria foram destruídos. nualquer mulher com a cabeça no lugar não iria querer saber de mais aventuras, pelo resto da vida. Qualquer mulher com a cabeça no lugar estaria louca de vontade de me ver pelas costas, esquecer tudo isso e desejar que nunca tivesse me visto!

- Eu não sou uma mulher com a cabeça no lugar, Johnnie. O sorriso dele foi meigo.

- Deu para perceber. Ela se levantou.

- Nunca me esquecerei de você, Johnnie.

Ele a observou durante alguns instantes, então também se levantou. Os dois ficaram se olhando, calados. Foi Johnnie quem quebrou o silêncio.

- Se eu fosse mesmo um herói, a melhor coisa que eu

teria a fazer...

- Mas você não é um herói. Pelo menos, é o que vive

dizendo! - Vera...

Ele pôde sentir o tremor no corpo nela no momento em

que a abraçou pela cintura.

- Eu te quero, Johnnie.

- Você é uma mulher incrível...

- Você também me quer?

- Quero! - Ele sentiu um friozinho na barriga, uma espécie de medo misturado a

um desejo feroz. Levou a mão ao rosto dela e acariciou a pele aveludada, com ternura.

Vera deixou escapar um gemido de prazer.

A boca de Vera estava bem próxima de seu rosto. Ele olhou para o contorno bonito daqueles lábios. Ela havia perguntado se a queria. Claro, a desejava desesperadamente, mas a culpa acendia as luzes da resistência dentro dele. Estava partindo. Tinha de partir. E quando aquela confusão toda acabasse e ele voltasse a Boston... Era aquilo que o preocupava. Não tinha certeza se iria mesmo voltar. Depois de todos aqueles meses de relativa calma, meses em que se convencera de que nunca tinha se sentido tão bem, que nunca estivera tão feliz, a pergunta ficava no ar. Estaria se enganando? Estaria tentando fugir de um destino do qUal não havia escapatória?

Vera observou-o se afastar. Viu que seus olhos tornaram, se mais escuros. Os músculos do rosto ficaram tensos. Ma sua opinião, ele nunca estivera tão bonito, tão desejável

- Por quê, Johnnie? Por que você está tão relutante em fazer amor comigo? - As palavras escaparam de seus lábios quase contra a sua vontade.

Ele sentiu um aperto no coração.

- Vera, não faça isso, por favor.

- Será que para você eu não passo de uma vendedora sem atrativos... de uma boboca sem charme nenhum?

- Pare com isso.

- Olhe para mim. Eu sei que estou ridícula com essa roupa, mas será que você não me acha nem um pouco...

- Vera...

Ele colocou o dedo em seus lábios.

- Se você me deixar, Johnnie, se sair da minha vida agora. .. essa sensação de vazio aqui dentro do meu coração nunca mais desaparecerá. Nunca mais.

- Mas eu tenho tão pouco a oferecer. - As palavras dele estavam cheias de arrependimento.

- Não, Johnnie. Você tem tudo.

- Talvez você não pense desse modo amanhã, querida.

- Acontece que eu não estou nem um pouco preocupada com amanhã.

Não dava mais para resistir. Johnnie colou os lábios aos dela e a beijou com carinho e desejo.

Lentamente, ele se afastou e desceu o zíper da jaqueta enorme. Ela não usava nada por baixo, e seus seios altos e firmes foram inteiramente revelados.

- Como você é bonita... - ele murmurou. Aquelas palavras a envolveram como uma doce brisa de primavera, aumentando ainda mais seu desejo.

- Johnnie... Oh, Johnnie, como eu te quero...

A jaqueta voou longe, e ele a abraçou com força, todas as dúvidas e inseguranças desaparecendo frente ao desejo que o consumia. Tomou a mão dela nas suas e levou-a para o quarto.

Comentos depois, completamente nua na cama, sentindo as carícias de Johnnie em seu corpo, ela ficou insegura. Aquela não era sua primeira vez, mas não podia ser considerada uma mulher muito experiente. E Johnnie, por sua vez, parecia um verdadeiro expert na arte do sexo.

Um pouco envergonhada, cobriu os seios com as mãos. Ele ficou tocado com aquele gesto e sentiu um estranho e perturbador senso de responsabilidade. A combinação de inocência e paixão que emanava dela o excitou mais profunda e intensamente do que qualquer outra coisa em muito, muito tempo.

com delicadeza, afastou as mãos que ela insistia em manter sobre os seios e abaixou a cabeça para tocá-los com a boca. Naquele momento, Vera sentiu que era dele, irremediavelmente dele, e sentiu sua vergonha e insegurança caindo por terra. Ajudou-o a se despir e o abraçou, sentindo aquelas coxas masculinas sobre as suas, aquelas mãos fortes tocando seu corpo nu, e pensou que fosse explodir de tanto prazer.

Eles se amaram em total abandono, num clima de carinho, paixão e cumplicidade, depois ficaram um longo tempo abraçados, em silêncio.

Vera levantou a cabeça e deu-lhe um beijo nos cabelos. Sentia-se completa, satisfeita e feliz. Para ela, a experiência fora perfeita.

Mas, para Johnnie, as coisas tinham sido um pouco diferentes. Ele se sentia fraco, confuso. Não era só desejo que havia sentido por Vera. Ela tinha tocado alguma coisa dentro dele, algo que ia muito além da simples atração física. Mas, fosse lá o que fosse, ele não podia, não devia, mudar sua decisão.

- vou ligar para Lês Sharp - ele disse finalmente, levantando-se e começando a se vestir.

Ela se sentou na cama.

- Eu sei que ainda não é amanhã, Johnnie, mas não estou nem um pouco arrependida.

Ele olhou para Vera. Apesar do sorriso em seus lábios, havia um certo ar de desapontamento em seus olhos, e ele sentiu uma pontada de culpa.

- Eu ainda quero ajudá-lo - ela continuou. - Sei o que está pensando. Que eu lhe arrumei mais problemas do que soluções. - Ela se levantou e estendeu-lhe a mão.

Johnnie se aproximou dela, mas, em vez da mão, segurou, lhe o pulso, com toda a força.

Vera não se moveu.

Johnnie olhou para ela. A mulher à sua frente era tão maravilhosa que ele sentiu um nó na garganta, só de olhá-la.

A luz do sol começava a entrar através da janela.

Ele soltou seu pulso com certa relutância.

- É verdade, querida. Você tem me criado muitos problemas. E, de problemas, eu já estou cheio.

- Ah, querido Lou... Posso chamá-lo de Lou, não posso? Quero dizer... espero, do fundo do meu coração, que você não esteja sentido comigo. Estou tão triste com o que aconteceu à sua sobrinha... Que coisa horrível. Sei como deve estar sofrendo... De uma maneira ou de outra, também perdi alguém que amava muito. Minha irmã. - Andrea Lambert torceu as mãos. - Pobre Denise. Sempre escolheu o homem errado. Mas, dessa última vez, ela achou, e eu também achei, para falar a verdade, que finalmente havia achado o homem certo. Falava sem parar de sua boa educação, de seu charme, de sua beleza e de seu carinho. Pelo que minha irmã me escreveu, ele tinha tudo que uma mulher podia querer!

Lou Vaughn mal estava ouvindo. Devia ter lido o artigo sobre o incêndio da livraria e a morte de Vera pelo menos uma dúzia de vezes. E ainda assim, dizia:

- Eu não acredito.

Andrea Lambert pôs a mão no ombro dele.

- Eu queria poder fazer algo por você, Lou. Ele lhe lançou um olhar esperançoso.

- Quero dizer... qualquer coisa, menos deixá-lo ir.

- Mas você já tem essa droga do manuscrito.

- Acontece que eu preciso de você. Não tenho mais ninguém que possa me ajudar. Além disso... não posso enfrentar essa história toda sozinha. Nunca estive envolvida numa coisa dessas antes. Preciso descobrir o que aconteceu com minha irmã Denise. Emerson tem a resposta. E eu tenho manuscrito. Eu sei que meu cunhado o quer com desespero.

Denise me escreveu falando sobre isso.

Lou Vaughn olhou bem dentro de seus olhos.

vou lhe fazer uma pergunta. E quero que a resposta seja verdadeira. Você tem algo a ver com o incêndio?

A loira atraente quase se desmanchou em lágrimas.

- Por Deus, Lou, não. Mil vezes não. Sei que estou desesperada, desesperada o suficiente para fazer isso... - Ela olhou para o homem algemado à sua frente, sentado na cama de um hotel, perto do aeroporto Logan, de Boston. Havia comprado as algemas e a arma há poucos dias. Havia planejado usá-las contra Johnnie Madden, mas então tudo mudara, e seus planos tiveram de ser alterados.

Lou Vaughn deu um suspiro. Ela podia estar falando a verdade. Queria acreditar nela. Mais uma vez, passou os olhos pelo jornal. Havia algo naquilo tudo... podia ser que ele estivesse se apegando a uma fantasia infantil, mas simplesmente não conseguia acreditar que Vera estivesse morta.

- Você vai me ajudar, Lou? Vai me ajudar a procurar minha irmã e a lidar com Daniel Emerson?

Ele desviou os olhos do jornal e encarou Andrea Lambert.

- Ao que parece, você não está me dando muita escolha. Ela forçou um sorriso.

- Talvez, depois de ouvir minha história, você possa me entender e me perdoar.

Lou Vaughn observou sua raptora com um certo interesse. Ela era ainda mais bonita do que achara no começo. Não só bonita, aliás. Inteligente, esperta, corajosa. Tudo o que ele mais apreciava numa mulher. De qualquer modo, era bom ficar de olhos bem abertos. Aquelas mesmas qualidades podiam se transformar na sua ruína.

Após um longo silêncio, ele acabou dizendo:

- Tudo bem, Andrea. Pode começar a falar.

 

Vera percebeu que havia novidades quando Johnnie desligou o telefone, depois de dois minutos de conversa com Lês Sharp.

- O que aconteceu? - ela foi logo perguntando, seus olhos castanhos arregalados de tanta expectativa.

Ele se sentou na cama a seu lado.

- E quem disse que aconteceu alguma coisa?

- Eu disse. Pensa que não reparei no brilho dos seus olhos?

Aquela mulher era mesmo de lascar.

- Seu tio está bem.

- O quê? Lês Sharp achou tio Lou? Falou com ele? Onde? Quando? Como foi que...

- Vera, acalme-se, por favor. Em primeiro lugar...

- Em primeiro lugar o quê? Ele a beijou com carinho.

- Em primeiro lugar, vista-se. É difícil falar a respeito da minha conversa com Lês com você aí, completamente nua, fazendo com que minha mente comece a ter pensamentos obscenos...

Ela sorriu, se levantou e abriu o armário. Ainda bem que sempre mantinha algumas roupas no chalé. Vestiu um jeans desbotado, uma malha de moletom e calçou um par de ténis.

- Pronto. Agora que estou decentemente vestida, que tal abrir a boca e me contar tudo?

- Para falar a verdade, não há muita coisa a ser dita.

- Você precisa tomar aulas para aprender a mentir, meu querido.

Ele deu um suspiro desanimado.

Seu tio foi visto embarcando num avião para Londres

- Sozinho?

Não. Ao lado de uma mulher cuja descrição bate com

a de Andrea Lambert. Vera passou os dedos pelos lábios secos.

- Ele parecia estar embarcando... contra sua vontade? Ou estaria drogado... ou coisa parecida?

A resposta veio rápida.

- Ele parecia estar muito bem, Vera. Aquilo não era possível.

- Eu não estou entendendo, Johnnie. Não estou entendendo mesmo...

Eles ficaram em silêncio por alguns minutos.

- E agora? - ela perguntou finalmente. - O que vai acontecer? Haverá alguém da polícia esperando por eles no aeroporto de Heathrow?

- Isso é com o pessoal do Departamento de Estado. Lês Sharp e seus homens vão cuidar de tudo. Agora, o mais importante que temos a fazer é sair daqui e fazer algumas compras.

- Compras? - Ela franziu a testa, - Que compras? Ele coçou o queixo.

- Ora, querida, não se esqueça de que, oficialmente, você está morta. Como quer circular pelo aeroporto de Londres sem um disfarce apropriado?

Johnnie mal havia acabado de falar e ela já se atirava em seus braços, beijando-o várias vezes, no rosto e nos cabelos.

- Obrigada, meu amor! Muito obrigada! Você vai me deixar ir com você! Eu sempre quis conhecer Londres. Quando eu era pequena, minha mãe costumava me recitar uma poesia a respeito de uma menina que ia a Londres, visitar a rainha.

Ele sorriu.

- Bem, Vera, eu não posso lhe prometer uma visita à rainha, nem mesmo à rainha-mãe. Será que minha própria mãe pode quebrar o galho?

Ela caiu na risada e o abraçou de novo.

Vinte minutos depois, eles estavam numa butique sofisticada em Hyannis, escolhendo roupas e acessórios. Daquela vez, Vera deixou a decisão nas mãos de Johnnie. Ela se sentia fora de seu elemento naquela loja cara, mas ele parecia muito à vontade.

- Isso aqui é uma fortuna - ela cochichou, ao ver o preço do vestido de linho preto que ele escolhera. - Não tenho dinheiro para comprar uma coisa dessas.

- Deixe comigo, querida. Ela franziu a testa.

- Eu não sabia que os professores ganhavam tão bem assim...

Ele ignorou a ironia e pediu à vendedora que removesse a etiqueta do preço, para que Vera pudesse usar o vestido agora mesmo.

- E quero também um par de sapatos de salto alto, bolsa e chapéu. Tudo em preto.

Ela esperou a vendedora se afastar e olhou bem dentro de seus olhos.

- Johnnie Madden, você por acaso faz ideia de quanto isso vai custar? E por que tudo em preto? Será que estou indo para algum funeral, ou coisa parecida?

Ele passou a mão pelos cabelos.

- Acertou em cheio.

- O quê? Quer dizer que vamos para Londres como um casal que perdeu alguém da família?

- Você vai, querida. É esse seu disfarce. Uma jovem rica e elegante, chorando a morte do marido.

- E você?

- Meu disfarce está me esperando em Boston. Foi tudo arranjado pelo nosso esperto Lês Sharp. Ah, por falar nisso, preciso ligar de novo para ele e pedir um passaporte falso para você.

A vendedora voltou, trazendo os artigos pedidos. Artigos muito caros, aliás. Vera deu uma olhada no preço dos sapatos e ficou horrorizada. Aquela quantia era suficiente para mante-la por quase um mês! O chapéu e a bolsa conseguiam ser ainda mais caros. Pela milésima vez, ela tentou imaginar de onde viria o dinheiro para cobrir aquela despesa absurda.

Johnnie olhou em volta, procurando um telefone público.

- Agora, você só vai precisar de um pouco de maquiagem. Enquanto se arruma, vou tentar entrar em contato com Lês Sharp.

Ela o observou se afastar, depois seguiu a vendedora em direção ao balcão de cosméticos.

Vinte minutos depois, ela se olhava no grande espelho do provador. Nunca teria escolhido aquele vestido de linho, se estivesse sozinha, e estava surpresa ao descobrir como ficara bonita dentro dele. A vendedora a ajudara a maquiarse e sugerira que ela repartisse os cabelos de lado. E, agora, o reflexo no espelho mostrava uma mulher bonita, sensual e elegante.

Johnnie assobiou ao vê-la.

- Vera, você está deslumbrante!

Naquele momento, ela se sentiu a própria Katherine

O'Malley.

Conforme o previsto, a conta foi astronómica. Johnnie, porém, não pareceu nem um pouco aborrecido. Tirou seu cartão de crédito do bolso e o entregou à vendedora.

Pouco depois, eles deixavam a butique.

Antes de sair, ela ainda deu uma última olhada no espelho. E mal se reconheceu. Não era apenas por causa do novo penteado e da roupa sofisticada. A diferença estava em seu rosto, no modo como seus olhos castanhos brilhavam. Parecia haver uma aura de encanto e feminilidade à sua volta, algo que não existia antes. Pela primeira vez na vida, ela se sentiu bonita. E especial. Realmente, uma mulher fatal para ninguém botar defeito.

Lou Vaughn apertou o cinto, no momento em que o jumbo preparava-se para decolar. Reparou que as mãos de Andrea Lambert estavam mais firmes agora, apertando seu próprio cinto, do que quando lhe apontara aquela pequena arma semi-automática. Isso fora antes da longa conversa que tiveram, antes de ele ter resolvido ajudá-la. Andrea havia sido muito convincente a respeito de sua querida irmã que desaparecera. Tinha certeza de que o marido de Denise, Daniel Emerson, era o responsável. E, agora, o próprio Emerson também desaparecera. Ela queria descobrir o paradeiro da irmã e, para isso, precisava primeiro achar o cunhado. E o único modo de atrair a atenção do fulano era usar o manuscrito como isca, já que, segundo as cartas de Denise, era o que ele mais queria na vida.

Lou Vaughn tinha lhe dito que as coisas seriam muito complicadas. Ela concordara. Mas aquela era sua última esperança.

- Você pode guardar o manuscrito consigo - ela dissera. - Não tenho o mínimo interesse nele. Tudo o que eu quero é usá-lo para atrair esse sujeito com que minha irmã teve a infelicidade de casar.

E ele acabara concordando.

A aeromoça apareceu, oferecendo revistas, mas eles recusaram. Voltou dez minutos depois, para anotar o pedido das bebidas. Ambos pediram uísque sem gelo.

Nenhum dos dois abriu a boca, até que os drinques chegassem. Lou quase esvaziou o copo de um gole só e olhou para ela.

- Deixe-me ver a fotografia de novo. Andrea Lambert abriu a bolsa.

- Aqui está. É a única que eu tenho. Denise me contou que Daniel odiava retratos. Muito estranho, considerando-se o quanto era bonito.

- Você nunca o viu?

- Não. Como eu já lhe falei, a única vez que fui visitálos em Londres, há alguns meses, Daniel tinha viajado a negócios, alguns dias antes.

- Que tipo de negócios?

- Não sei. Denise era muito vaga a respeito do trabalho do marido. Pelo visto, ele vivia viajando e lidava com investimentos. Nas horas vagas, parece que comprava

e revendia quadros, moedas e livros raros. Minha irmã me disse, na última carta que mandou, que o sujeito estava completamente obcecado com esse manuscrito de Gorky.

- Você disse que ela desapareceu há três semanas? Andrea fez que sim com a cabeça.

- Bem, segundo Daniel, ela foi fazer um cruzeiro. Foi a única informação que o miserável me deu.

- E por que você achou que ele estava mentindo?

- Você não conhece minha irmã. Ela odeia navios. Quando éramos crianças, papai nos levou para um cruzeiro, nas Bahamas. Denise quase morreu de tanto enjoo. Passou tão mal o tempo todo que jurou que jamais pisaria de novo em qualquer coisa que flutuasse.

- Então, achando que seu cunhado estava mentindo, você contratou um detetive particular.

- Exatamente. Só que não obtive resultado algum. Foi comose Denise tivesse sumido do mapa! Ninguém conseguiu localizá-la!

Lou passou a mão pelos cabelos.

- Vamos voltar a Johnnie Madden. Você disse que sua irmã...

- Foi a última vez que conversamos pelo telefone. Ela me ligou aos prantos, uma noite, dizendo que Daniel não tinha voltado para casa e que achava que ele estava tendo um caso com outra mulher. Me disse também que havia remexido nas gavetas dele, tentando encontrar alguma prova - Andrea Lambert fez uma pausa. - Bem, prova, a pobrezinha não encontrou. A única coisa de interessante que ela viu na gaveta foi uma nota escrita a mão, dizendo que um tal de Johnnie Madden, de Boston, era o atual proprietário do manuscrito que Daniel queria tanto. Então, depois que Denise desapareceu, esse Madden acabou sendo minha última pista. Não foi difícil encontrá-lo: Eu o segui e o resto... bem, o resto você já sabe. Fui à livraria, achando que Madden tivesse ido até lá para contatá-lo, descobri onde você morava e aluguei um apartamento no seu prédio, onde tracei todos os meus planos.

Lou ouviu aquele relato com atenção, pela segunda vez.

Andrea Lambert não havia caído em contradição, nem por um segundo sequer. E parecia absolutamente natural e verdadeira. Ela não pode estar mentindo, ele pensou. Ninguém é tão boa atriz assim. Os dois passaram o resto da viagem em silêncio.

- Uma agência funerária?

Johnnie sorriu para Vera e estacionou o carro em frente à Casa Funerária Richardson, na Willow Street, em Charlestown, do outro lado do rio, com vista para o porto.

- Eu disse que você ia a um enterro.

- Mas eu pensei que o enterro fosse em Londres. Ele desligou o motor.

- Certo. Acontece que enterros exigem corpos. E Lês Sharp já providenciou um.

Vera o olhou de um modo um tanto desconfiada.

- Posso saber de quem é o corpo em questão? Ele se inclinou e lhe deu um beijo nos lábios.

- Pode. O meu. Ela riu.

- Ora, Johnnie quer fazer o favor de falar sério?

- E quem disse que eu estou brincando?

Johnnie desceu do carro e deu a volta para abrir a porta para ela. Vera, porém, já estava na calçada, antes que ele pudesse se dar conta.

- Pelo amor de Deus, homem, você não pode ir para Londres dentro de um caixão! Isso é ridículo!

- Foi o que eu pensei quando Lês Sharp me veio com essa ideia. Mas, na verdade...

- Para mim, esse seu amigo deve ser algum maluco. Nunca ouvi nada tão absurdo, mordido e perigoso em toda a minha vida. Você pode sufocar lá dentro!

- Ora, Vera, deixe de história. A ideia é brilhante. Ela sorriu. - Um caixão é uma cobertura perfeita.

- Eu não acho graça nenhuma. Viajar trancado num caixão, por mais de seis horas, vai matá-lo de verdade!

- Pois fique sabendo que eu vou estar muito mais confortável ali dentro do que numa daquelas poltronas horrorosas dos aviões. O caixão foi feito com medidas especiais,

de modo que eu posso me movimentar perfeitamente

lá dentro. Não há nada com o que se preocupar. - Johnnie piscou para ela. - Mas essa sua cara de desespero está vindo a calhar. Afinal das contas, sra. Oberchon, você está cheirando a morte do seu saudoso marido. - Sra. Oberchon?

- Harriet Oberchon. De Braintree, Massachusetts. Viúva Ide Alfred Oberchon, de Londres, Inglaterra. Vera franziu a testa. Harriet Oberchon. Um nome horroroso, certamente inventado por aquele maluco do Lês Sharp. Preferia algo mais excitante, glamouroso e sensual, Algo como... Katherine O'Malley.

Petrenko estava do lado de fora da cabine de telefone público.

- O que foi que Zakharov disse?

Borofsky fez sinal para que ele calasse a boca e continuou a ouvir as ordens de seu chefe, do outro lado da linha. Quando desligou o telefone, minutos depois, Petrenko voltou a repetir:

- O que foi que Zakharov disse?

- Que nós somos dois imbecis! - Borofsky estava vermelho de raiva. - Que nós somos dois imprestáveis que não servem para nada! Insultos, só insultos! - Ele acendeu um cigarro. - Nós vamos para Londres. Zakharov vai nos encontrar lá e nós dirá o que deveremos fazer.

Um lindo sorriso iluminou o rosto de Petrenko.

- Será que vamos conseguir ver a rainha? Borofsky sentiu ímpetos de esbofetear o camarada a seu lado.

- Mas como você é imbecil! Se eu fosse Zakharov, já o teria despachado para a Sibéria há muito tempo!

- Vá com calma, Yevgenni. - Ele deu um sorriso, -Se não conseguirmos ver a rainha, há sempre a chance dei cruzarmos na rua com aquele cara que faz James Bond no cinema.

Boroky agarrou o colarinho da camisa do outro.

- É melhor você rezar para cruzar na rua com aquele maldito professor, seu imbecil. Ou então as únicas estrelas que vai ver serão as que estiverem queimando com você, no meio do inferno!

 

Vera deixou o aeroporto de Heathrow amaldiçoando o momento em que esquecera de incluir uma capa de chuva em suas compras naquela butique chique, em Hyannis. Chovia sem parar e, pelo visto, o toro não iria passar tão cedo.

Dirigiu-se ao ponto de táxi e teve de ficar esperando na fila, atrás de mais seis passageiros. Felizmente, havia muitos carros disponíveis, e ela não precisou esperar muito.

Seu táxi era um daqueles veículos ingleses enormes, com um-compartimento separando o banco do motorista.

- Para onde vamos? Ela respirou fundo.

- Para a Casa Funerária Brown, na Fenchurch Street. O motorista virou-se para trás e lançou um olhar respeitoso àquela moça atraente, vestida de preto.

- Sim, senhora.

O percurso durou uma hora. Apesar de todo o seu cansaço, Vera não desgrudou os olhos da janela nem por um minuto sequer. Viu a Abadia de Westminster, a Casa do Parlamento, o Big Ben, seus ponteiros gigantes marcando nove e vinte, e sentiu vontade de se beliscar para ter certeza de que tudo aquilo não era um sonho. Queria parar diante de cada atração, tirar fotografias de todas aquelas maravilhas, mas sabia que a paisagem de Londres teria de esperar. A paisagem que ela mais tinha vontade de ver, na verdade, era Johnnie Madden ressuscitando.

A Casa Funerária Brown, na Fenchurch Street, era um sobrado branco e espaçoso, com um grande toldo na frente. Vera pagou a corrida e ainda deu uma boa gorgeta ao motorista. Torceu para que Lês Sharp não se incomodasse com sua generosidade. Antes da partida, ele havia lhe dado uma carteira cheia de dinheiro inglês para cobrir suas despesas. Vera sorriu e desceu do táxi. Não só conseguira que Johnnie a levasse para Londres como também dera um jeito de se incluir, ainda que em caráter temporário, na folha de pagamento da CIA. Nada mal, para uma modesta vendedora.

Apesar da chuva, ela ficou alguns segundos na calçada, olhando para os lados. Não parecia haver ninguém suspeito por perto. Era mesmo improvável que alguém fosse seguila. Afinal das contas, quem iria desconfiar de uma chorosa viúva chamada Harriet Oberchon? De qualquer modo, não custava nada manter os olhos bem abertos.

Abriu a porta e entrou na Casa Funerária, fazendo cara de choro. Naquele momento, ela se sentiu apta a ganhar um Oscar.

Não havia ninguém ali para recebê-la. O hall de entrada estava vazio. Por um momento, tentou imaginar se tinha ido ao lugar certo. Olhou em volta. À direita, havia uma escada, grande e imponente. À esquerda, um corredor cheio de portas fechadas.

Foi só cinco minutos depois que uma das portas se abriu e um homem grisalho, de uns sessenta anos, resolveu aparecer.

- Pois não? Em que posso ajudá-la?

- bom dia. Sou a sra. Oberchon. Harriet Oberchon. Ele sorriu, apresentou-se como Reginald Brown e

examinou-a da cabeça aos pés. Vera tentou imaginar se era algum agente disfarçado.

- Bem, sr. Brown, eu espero que tudo esteja arranjado. Quero dizer... espero que não tenha havido nenhuma complicação.

O sr. Brown massageou a testa lentamente.

- Não, senhora.

Nem suas palavras nem seu olhar tenso inspiravam confiança. Ela sentiu um friozinho estranho na barriga.

- Queira me acompanhar, sra. Oberchon.

Ele abriu a primeira porta à esquerda e ficou ali, parado, esperando que Vera entrasse primeiro. Ela achou melhor não fazer perguntas e entrou.

Foi dar numa pequena capela, que cheirava a incenso.

Olhou Para os lados, esperando que Johnnie estivesse ali, pronto para toma-la nos braços. Pura ilusão. A capela estava deserta.

- Pode se sentar no primeiro banco à direita - continuou o sr. Brown.

Ela hesitou por alguns instantes.

- Por favor, sra. Oberchon. Tome seu lugar. A cerimónia não vai demorar.

Não tendo outra opção no momento, ela resolveu obedecer.

- Há uma almofada no banco, sra. Oberchon. Pode usála, se achar o encosto muito duro.

E, dizendo isso, o sr. Brown desapareceu de vista.

Vera sentou-se, deixando a almofada de lado. Estava começando a ficar nervosa. Onde Johnnie teria se metido? Quanto tempo iria ficar ali?

Vinte minutos depois, ela ainda estava sentada na mesma posição, literalmente apavorada. Por que Johnnie não aparecia? Será que alguma coisa dera errado? Imaginou-o deitado naquele caixão, seu rosto duro e frio, os maravilhosos olhos azuis fechados para sempre... e sentiu um arrepio de horror. Seu coração começou a bater mais depressa. A espera podia fazer parte do jogo da aventura, mas era uma coisa que Vera Blue sempre achara angustiante.

Dez minutos. Foi o tempo que ela lhe deu para aparecer. Se Johnnie não tivesse chegado até então, iria fazer alguma coisa, com urgência.

Mas, o quê?

- Fez boa viagem, Madden? - perguntou o homem alto e calvo, acendendo um cigarro.

- Já fiz piores. - Johnnie tomou um gole do café que o outro havia acabado de lhe servir. - Agora, que tal irmos direto ao assunto? Estou atrasado para um funeral.

Avery Noble caiu na risada.

- Ah, sei. Seu funeral. É estranho alguém se atrasar para o próprio funeral, não é? - Ele se levantou, apanhou três fotografias que estavam em cima da mesa e entregou-as a Johnnie. - Reconhece esses rostos?

Ele olhou para a primeira foto.

- Este é o russo que praticou tiro ao alvo em mim em Boston. - Examinou a outra foto e acrescentou. - E esse é seu parceiro. Nunca o vi de perto, de modo que não posso ter certeza absoluta. Mas é bem provável que seja o fulano. Posso ficar com as fotografias, para verificações futuras?

- Claro.

Ele olhou para a última foto e não pôde deixar de dar um assobio. A morena que lhe sorria era mesmo uma parada.

- Quem é ela?

- Você a reconhece?

Johnnie fez que sim com a cabeça.

- É a beldade que me seguiu em Boston. Avery Noble deu um sorriso maroto.

- Uma gata, não é? Johnnie voltou a insistir.

- Quem é ela?

- Seu nome é Christine Dupré. Uma francesa que mora em Londres. Uma espécie de atriz, digamos assim. Dança, canta e já participou de três produções da West End, como atriz secundária. Mas tenho certeza de que tem ambições maiores. - Ele fez uma pausa. - É a amante de Marcus Lloyd há seis meses.

Johnnie olhou de novo para a foto, depois voltou a entregá-la a Avery Noble.

- Realmente, uma beleza. Preciso dar os parabéns a Marcus, quando me encontrar com ele.

Noble fez um gesto em direção às fotos.

- Os dois russos estão a caminho de Londres. E a amante de Lloyd já chegou. Agora, vamos falar daquele casal. Lou Vaughn e Andrea Lambert. Eles chegaram antes de você. Ao que parece, esta cidade vai ficar bem movimentada, não é? E, pelo que fiquei sabendo, você também trouxe uma acompanhante.

Ele fez uma pausa, esperando que Johnnie fizesse algum comentário. Como ficasse quieto, resolveu continuar:

- A morena, Christine Dupré, não é exatamente o que se pode chamar de uma mulher fiel. Temos razões para acreditar que ela também é muito... íntima de um outro cara, chamado Daniel Emerson. Parece que esse tal sujeito coleciona quadros e trabalhos raros. Seu passado não é dos mais limpos. Parece que já andou se metendo em encrencas no mercado negro de arte, mas nada ficou provado. O cara é muito ardiloso, mas ficamos sabendo que investiu uma grana violenta num espetáculo da West End. Um musical de vanguarda, chamado Fanfarra. Vai estrear daqui a uns meses e os ensaios já vão começar.

- E onde esse tal de Emerson entra na história?

- Parece que ele estava tentando comprar o manuscrito de Lloyd.

- E, como não conseguiu, sequestrou o coitado.

- Faz sentido, não é? Johnnie deu um suspiro.

- E os russos? Será que existe alguma coisa a mais sobre esse trabalho de Gorky, além do seu grande valor literário?

- Estamos fazendo investigações nesse sentido. É claro que precisamos examinar o trabalho com mais calma, para poder ter uma confirmação.

- O manuscrito está com Vaughn e Lambert?

- Nosso pessoal na alfândega revistou as duas malas do casal e não encontrou nada. Podíamos mandá-los tirar a roupa, mas ia dar muito na vista. Fique tranquilo. Os dois estão sendo bem vigiados.

- E, enquanto isso, Marcus fica apodrecendo nas mãos dos sequestradores.

Avery Noble deu um suspiro desanimado.

- Calma, Madden. Você continua a mesmo apressado de sempre, não é? Confie em mim. Eu sei o que estou fazendo. No momento certo, esse manuscrito estará em nossas mãos.

Vera Blue estava tonta. O cheiro de incenso ali dentro era tão forte que ela sentia a cabeça rodar. E, além da tontura, ela sentia uma coisa muito pior: desespero.

Não era possível. Alguma coisa tinha de ter acontecido. E agora? Ela não conhecia ninguém em Londres.

"É, Vera Blue, acho que dessa vez você se meteu numa fria."

Estava prestes a se desmanchar em lágrimas quando uma voz soturna soou atrás dela.

- Rezando por mim, querida?

Ela não conseguiu reprimir um grito de susto. Virou-se para trás e viu um Johnnie muito vivo e sorridente sentado no banco de trás.

Ela ficou aliviada e irritada ao mesmo tempo.

- Pelo amor de Deus, homem, onde esteve esse tempo todo? Estou aqui há mais de duas horas, quase morta de medo! O tal do sr. Brown sumiu. A casa está completamente vazia. Eu não sabia se chamava a polícia, a CIA, ou o departamento de pessoas desaparecidas. Mas como eu ia fazer para explicar a eles que estava procurando por um homem que tinha viajado escondido num caixão?

- Eu fui detido na alfândega.

- O quê? O pessoal de lá quis abrir o caixão? Ele sorriu.

- Não exatamente. Agora, vamos sair daqui. Ela se levantou.

- Graças a Deus. Mais um minuto nesse mausoléu e teríamos um outro funeral: o meu.

Johnnie a conduziu através de um longo corredor, que dava para um jardim lateral, onde um Ford azul os esperava.

- Para onde vamos agora? Eles entraram no carro.

- Você está cansada e precisa descansar. Minha mãe ficará muito contente em recebê-la em sua casa.

- Ei! Quando foi que você ligou para ela? Não me diga que havia telefone no caixão.

Ele sorriu.

- Era um modelo de luxo, querida.

- Por favor, Johnnie, me diga a verdade. Onde esteve durante esse tempo todo?

Johnnie virou na Broad Street.

- Eu dei uma paradinha para dar um ou dois telefonemas.

- Você fez contato com os sequestradores de Marcus Lloyd? Contou-lhes que o manuscrito não está mais em seu poder? Você não falou nada a respeito do meu tio, não é? Se eles descobrirem a respeito de tio Lou e Andrea Lambert, o pobrezinho vai correr perigo de vida! Ele pôs a mão no ombro dela para tranquilizá-la.

- Seu tio está sendo vigiado de perto, Vera. Nada de mal vai lhe acontecer.

Johnnie não pretendia alarmá-la, acrescentando: "A menos que ele não seja o homem leal e honesto que você acredita ser".

O resto do percurso foi feito no mais completo silêncio. A chuva batia com força contra o pára-brisa, e Vera, cansada, fechou os olhos e recostou a cabeça no encosto do banco.

- Chegamos - Johnnie avisou.

Ela abriu os olhos. E não pôde reprimir um grito de espanto. Johnnie havia parado em frente a uma mansão enormeK em estilo elizabetano, um sobrado acinzentado de pedras, cercado por um jardim imenso, cheio de flores, plantas e canteiros bem cuidados.

- Quer dizer que vamos mesmo visitar a rainha, Johnnie?

Ele sorriu.

- Mais ou menos.

- Mais ou menos?

- Digamos que minha mãe se sente uma espécie de... rainha destronada. Aliás, gostaria de que você não se incomodasse com o jeito dela. Mamãe é um pouco... - Ele fez uma pausa, como se estivesse procurando pela palavra certa.

- Esnobe?

- Não. Vamos dizer que ela é muito... britânica. E eu sou filho único, fato que me é constantemente jogado na cara. - Johnnie sorriu. - Vamos lá?

Eles desceram do carro. No mesmo instante, a porta da frente se abriu e um homem de terno preto, com dois guardachuvas na mão, atravessou o jardim.

- bom dia, senhor. Lady Edith está à sua espera, na biblioteca.

Johnnie apanhou um dos guarda-chuvas.

- Obrigado, Donald. Tempinho horrível, não?

Vera sentiu um friozinho na barriga. Então a mãe dele pertencia à nobreza. Não só iria se hospedar num palácio como também sua anfitriã era uma lady. Agora, sim, que estava ficando apavorada. E se não soubesse se comportar direito? E se houvesse dezenas de talheres na mesa e ela não soubesse qual deles usar? A Casa Funerária Brown lhe parecia o paraíso, se comparada àquele lugar.

- Você não me falou que era nobre - ela cochichou no ouvido dele quando estavam quase chegando à porta da frente.

- Eu não sou nobre coisa nenhuma. O segundo marido da minha mãe era um barão qualquer e, mesmo depois do divórcio, ela continuou com o título.

Percebendo que Vera estava nervosa, ele continuou:

- Não fique desse jeito, querida. Pense nas coisas que você já teve de enfrentar até agora. Agradar minha mãe vai ser o mais simples de tudo.

Vera Blue duvidava. E sua dúvida se confirmou quando olhou para lady Edith pela primeira vez.

Ela era uma mulher alta e imponente, daquelas que já pareciam nascer chiques. Os cabelos pretos estavam presos num coque, e ela usava um vestido cinza de seda, com um grande laço na frente. Sua única jóia era um enorme anel de brilhantes, que faiscavam sob a luz do candelabro.

Após as apresentações, os três se sentaram. Vera olhou em volta e calculou mentalmente quantas vezes seu pequeno apartamento caberia ali. Sentiu de novo aquele familiar friozinho na barriga. Não estava gostando muito do rumo que as coisas vinham tomando. Aquela mulher a intimidava.

- Bem, meu filho querido... - Lady Edith se levantou e começou a andar pela sala. - Eu presumo que você tenha se metido em encrencas mais uma vez. Estou certa?

- Está errada, mamãe. Encrenca nenhuma. Eu vim apenas... lhe fazer uma visita. Não é mesmo, Vera?

Vera sorriu e fez que sim com a cabeça. E tentou imaginar o que lady Edith diria se soubesse que seu filho viajara de Boston a Londres só para lhe fazer uma visitinha... deitado num caixão.

 

Vera estava tão cansada que resolveu se deitar um pouco. Pretendia descansar por meia hora, mas acabou dormindo a tarde inteira. E teria dormido ainda mais se Donald, o mordomo, não tivesse batido na porta, anunciando que o jantar iria ser servido.

Ela se levantou da enorme cama e deu uma olhada em volta. O quarto era todo decorado em tons de rosa. Nunca em toda a sua vida tinha visto um aposento daqueles.

Nem em revistas de decoração. Nem em seus sonhos e fantasias.

Ainda bem que Johnnie lhe comprara aquele vestido de linho preto. Era uma roupa versátil, que servia tanto para se bancar a viúva, como para um jantar em grande estilo, ao lado da esnobe lady Edith.

Abriu o armário é esfregou os olhos para se certificar de que não estava vendo coisas. O vestido de linho continuava ali, no lugar onde tinha colocado. Mas havia também outras roupas, que não estavam ali antes.

Examinou-as, com curiosidade. Eram três vestidos super-chiques, quatro conjuntos esporte e um uniforme de ténis.

Tudo muito elegante, muito fino... e muito caro. Ela sorriu, satisfeita. Nem Katherine O'Malley tinha um guarda-roupa assim.

Depois de pensar um pouco, acabou decidindo-se pelo vestido azul. Era um modelo em seda, com elástico na cintura, um pouco acima do joelho. Enquanto se vestia, Vera sentiu-se uma autêntica Cinderela aprontando-se para o baile. E não reclamava do fato de que, em vez de fada madrinha, lhe fora dado um herói alto, moreno e enigmático, que vinha transformando seus sonhos em realidade.

Lady Edith estava tomando seu habitual girn-tônica quando Vera entrou na biblioteca. A mulher sorriu ao vê-la.

- Você está com uma cara bem mais descansada agora. Quer tomar um gim-tônica?

Ela nunca tomava nada antes do jantar. Aliás, quase nunca jantava. Depois de fechar a livraria, subia para seu apartamento e fazia um sanduíche com as sobras do almoço, ou então comia um hambúrguer com batata frita e uma Coca-Cola, no bar da esquina.

- Sim, obrigada.

O mordomo serviu-lhe a bebida e se retirou, discretamente.

- Onde está Johnnie? - ela perguntou, sentando-se no sofá que lady Edith lhe indicou.

- Ele saiu há algumas horas.

Então Johnnie não se encontrava no palácio. Vera começou a se sentir pouco à vontade.

- Ele disse para onde ia?

Lady Edith deu um sorriso desanimado.

- E ele costuma fazer isso? Vera franziu a testa.

- Pelo menos ele disse a que horas voltaria?

A mulher tomou um gole de seu gim-tônica e sentou-se no sofá, ao lado de Vera.

- Você e meu filho são muito amigos?

Como ela podia lhe contar que o conhecera há quatro dias, salvara sua vida e ainda que fora para a cama com ele?

- Nós... nos conhecemos há pouco tempo. Lady Edith olhou bem dentro de seus olhos.

- Você se meteu em algum tipo de encrenca?

Vera balançou a cabeça, procurando manter a calma.

- Não exatamente.

- Eu imagino que, seja lá o que esteja acontecendo, é bem complicado. Estou certa?

Ela não pôde deixar de sorrir.

- Absolutamente certa. Lady Edith balançou a cabeça.

- As coisas com meu filho são sempre complicadas.

- Como assim?

- Um homem muito misterioso, esse meu filho. É charmoso, lindo até, e muito, muito inteligente. Mas um solitário.

SemPre fechado, desde os tempos de infância. E agora, depois de adulto, ficou impossível penetrar em sua vida pessoal. Vera hesitou por alguns momentos, antes de perguntar:

- Lady Edith, quando nós chegamos aqui, a senhora falou qualquer coisa a respeito de Johnnie estar com problemas. Por acaso ele já... se meteu em alguma enrascada, no passado?

Lady Edith deu de ombros.

- Como eu já disse, meu filho é muito fechado e não costuma se abrir com ninguém. Pelo menos, não comigo. Entretanto, não é preciso ser muito inteligente para perceber que um homem que anda armado, que recebe telefonemas no meio da madrugada e que, em várias ocasiões, apareceu por aqui todo arrebentado, dizendo que tinha batido o carro contra um poste... bem, mocinha, eu diria que ele já teve sua cota de problemas no passado. E meu sexto sentido é bem forte. Algo me diz que meu filho está nadando em águas muito turbulentas. Senti isso quando vocês dois chegaram, hoje de manhã.

Lady Edith fez uma pausa, depois continuou:

- Na verdade, eu esperava que você pudesse me dizer o que estava acontecendo.

Vera deu um suspiro.

- Eu bem que achei que ele não podia ser um professor comum.

Lady Edith deu um sorriso.

- Não há nada de comum a respeito do meu filho. Ele é uma pessoa muito especial. Pena que seja tão fechado... Para falar a verdade, eu ainda não entendi por que resolveu deixar Londres, há seis meses, e voltar a dar aulas naquela universidade. Ele havia deixado de ensinar há anos!

- O que Johnnie fazia em Londres, para ganhar a vida? A resposta veio rápida.

- As pessoas da minha família nunca precisaram trabalhar para ganhar a vida, mocinha.

Naquele momento, Vera Blue se sentiu uma perfeita idiota. Droga! Por que não pensava duas vezes antes de abrir a boca?

- Mas, para falar a verdade - continuou Lady Edith -, Johnnie nunca foi um homem acomodado. Ele sempre gostou de línguas, principalmente do russo. E de literatura também. Andou dando umas aulas, aqui em Londres, depois fez alguns trabalhos de tradução de documentos e autenticação de papéis para o governo.

- Então, há seis meses ele arrumou as coisas e foi para Boston, sem lhe dar nenhuma explicação?

Houve uma longa pausa, antes que lady Edith respondesse:

- Na época, eu ouvi rumores de que Johnnie estaria envolvido num negócio suspeito... com um amigo seu.

Vera arregalou os olhos.

- Que amigo?

Lady Edith hesitou de novo.

- Não sei se devo me intrometer nas coisas do meu filho...

- Por favor, lady Edith. Eu... gosto muito dele. E o conheço tão pouco. Gostaria de ajudá-lo. Gostaria de compreendê-lo.

A mulher tirou um lenço de rendas do bolso e o passou lentamente pela testa.

- Na verdade, eu também não sei de muita coisa. Mas o nome desse amigo é Marcus Lloyd. Parece que ocupava uma posição elevada no governo.

- A senhora o conhece?

- Pessoalmente, não. Bem, há uns meses, esse tal sr. Lloyd foi acusado de apropriação indevida de fundos públicos. Antes que qualquer queixa fosse formalmente apresentada, ele anunciou seu afastamento do serviço público. E esse foi o fim do incidente.

- Johnnie não lhe falou mais nada a respeito?

- Ele ficou muito aborrecido com essa história toda. E zangado também. Insistia que o sr. Lloyd era inocente e que as acusações haviam sido feitas com o propósito de derrubálo. Eu fiquei muito preocupada na época, porque o nome de Johnnie também foi mencionado nos jornais. Não houve nenhuma acusação contra ele, mas sei que ficou sob investigação durante algum tempo. E então... acabou arrumando as malas e partindo para os Estados Unidos. Lady Edith fez uma pausa. - Agora, eu sinto tanto medo de que ele tenha se metido em outra encrenca... Vera procurou tranquilizá-la.

- Seu filho não fez nada de errado, lady Edith. Infelizmente, não sei de mais detalhes, mas tenho certeza de que ele veio para cá a fim de ajudar um amigo que está com problemas. Confio em Johnnie como confio em mim mesma. A senhora vai ver, lady Edith. No fim, tudo vai dar certo.

Pelo menos, era o que ela esperava. A mulher pareceu momentaneamente satisfeita com o comentário de Vera. Olhou para o relógio e perguntou:

- Vamos jantar?

Vera ficou um pouco surpresa.

- Mas nós não vamos esperar por Johnnie? Lady Edith se levantou.

- Ele não vai voltar para o jantar. Aliás, ficará fora por alguns dias.

- O quê? Mas...

- Não se preocupe. Tenho certeza de que ele vai manter contato. E não pense que vai me dar trabalho. Estou muito feliz em ter companhia. Principalmente uma amiga de Johnnie. Aliás, ele me pediu que levasse você para conhecer Londres. Podemos ir a museus e teatros, se você gostar. E pode frequentar o clube, também. Os sócios são um tanto esnobes, mas há alguns que talvez você goste de conhecer.

Vera estava surpresa. Louca da vida. E furiosa.

- Ele não pode ter feito isso. Não pode ter me deixado desse jeito!

- Ah, minha querida. -Lady Edith deu um suspiro.

- Eu pensei que você soubesse que ele tinha negócios para resolver.

- Nós. Nós tínhamos negócios para resolver. Ele não pode se livrar de mim assim, como se eu fosse um sapato velho! Não vou permitir!

Lady Edith abriu-se num largo sorriso.

- Ah, uma mulher audaciosa. Eu gosto disso.

- Por favor, lady Edith. A senhora deve ter algum palpite de onde ele esteja. Alguma pista, ou coisa parecida.

- Infelizmente, ele não me disse uma só palavra. - Ela fez uma pausa, um sorriso cúmplice iluminando seu rosto.

- Mas, de qualquer modo, podemos dar uma olhada no quarto dele, não é? Quem sabe ele não deixou alguma pista ali, sem perceber?

Vera sorriu.

- Uma mulher audaciosa. Eu gosto disso.

- O que você quer dizer com "ela foi embora", mamãe?

Lady Edith deu um sorriso. Graças a Deus Johnnie estava do outro lado da linha, assim não podia ver o ar de satisfação em seu rosto. Na sua opinião, Vera Blue tomara a atitude correta.

- Exatamente o que você ouviu. Sua amiga é bem voluntariosa, não é?

- Para onde ela foi?

- Deve ter saído à sua procura.

- Mas ela não tem ideia de onde eu esteja! Ora, mamãe, por que você não a levou para passear, como eu lhe pedi?

- Meu querido, eu tenho a impressão de que sua amiga não estava nem um pouco interessada em passeios.

Johnnie não podia estar mais irritado.

- A que horas ela foi embora?

- Logo cedo. Tomou uma xícara de chá e saiu. - Lady Edith fez uma pausa. - Espero que você não se importe, mas eu lhe dei a chave do seu carro. Espero que ela se lembre de manter-se à esquerda. Você sabe, esses americanos...

- Para onde ela foi?

- Ela não disse, Johnnie. Mas parece que estava certa de que iria achá-lo em pouco tempo. E, por falar nisso, onde você está?

- Olhe, se ela ligar, peça... não, mande que volte para casa imediatamente e espere por mim. Diga que eu prometo que estarei de volta hoje à noite. Nove horas, o mais tardar. Está certo?

- Tudo bem, filho. Mas não posso garantir que ela vá ligar.

- Mas se ligar...

- Eu lhe darei o recado. Cuide-se, Johnnie. Seja lá onde você estiver.

- Em que posso ajudá-la?

- É aqui que estão sendo feitos os testes para o musical Fanfarra?

- É aqui, sim. Mas eles só começam às onze horas. O diretor-assistente, um jovem de jeans e camisa quase toda aberta no peito, examinou-a com certa curiosidade. Você é candidata? É bailarina, ou coisa parecida?

Vera hesitou por alguns instantes. Seu conjunto de linho cinza não era exatamente o tipo de roupa que uma dançarina de um musical de vanguarda usaria.

- Não. Na verdade, estou procurando por uma pessoa.

- Quem?

Ela deu de ombros.

- Não tem importância. Volto depois das onze. Virou as costas e deixou o teatro. Olhou para o relógio.

Nove e cinquenta. Faltava mais de uma hora para o início dos testes. Será que Johnnie iria aparecer? Ou será que tudo aquilo não passava de fantasia em sua cabeça?

Ela não tinha encontrado no quarto de Johnnie nada que pudesse ajudá-la. Na verdade, a única pista, muito vaga por sinal, havia sido um pedaço de jornal, em cima de sua cama. Era um pequeno artigo que anunciava testes para um musical de vanguarda chamado Fanfarra, no Teatro Garrich. Agora, que relação um musical daqueles

tinha com o manuscrito de Gorky, Marcus Lloyd e seu seqúestrador e com seu tio desaparecido, Vera Blue não podia sequer começar a imaginar. De qualquer modo, Johnnie devia ter algum motivo para recortar aquele anúncio.

Às onze e dez, ela estava de volta ao Teatro Garrich; era a vigésima de uma fila de jovens dançarinas, prontas para o início dos testes. Havia trocado de roupa, colocando o conjunto de linho bem dobrado dentro de uma sacola, e usava agora um colant rajado e meias pretas. Não estava nervosa. Apavorada seria a palavra mais apropriada. Lembrou-se da conversa que tivera com seu tio, quando ele lhe perguntara qual tinha sido a última vez que saíra para dançar e ela respondera que era péssima dançarina. Será que tudo aquilo havia acontecido há apenas quatro dias?

O mesmo rapaz com quem conversara há pouco apareceu e começou a distribuir formulários para que as candidatas preenchessem. Não a reconheceu. Além de ter trocado de roupa, Vera tinha feito um rabo-de-cavalo e tirado a maquiagem do rosto. Parecia estar mais próxima dos vinte do que dos trinta anos. Estava muito satisfeita com aquela transformação.

Mas quem não ia ficar muito satisfeito com seu desempenho era o tal diretor. Fizera jazz e bale quando adolescente, mas estava completamente fora de forma. Torceu para ser a última a ser chamada. Tudo o que ela queria era ganhar tempo e ver se Johnnie aparecia por ali.

Estava aplaudindo a quinta moça quando de repente suas mãos ficaram paradas no ar. Ali num canto, conversando com o coreógrafo, estava a beldade morena que seguira Johnnie em Boston. Deu uns passos à frente, para ver se era ela mesma. E não teve dúvidas. Era a própria.

Foi nesse momento que ela sentiu uma mão em seu ombro.

- Telefone para você - soou uma voz masculina. Venha comigo.

Ela se virou, assustada e confusa. Ali estava Johnnie, de colant preto e cabelos penteados com musse modeladora. Um perfeito candidato a bailarino...

- Posso saber o que veio fazer aqui? - ele perguntou, levando-a para detrás das cortinas.

Ela sorriu, satisfeita.

- Pelo visto, o mesmo que você. Ora, Johnnie, por que nunca me contou que tinha vocação para o bale?

- Isso não é hora para brincadeiras! - ele respondeu, zangado.

- Pois fique sabendo que eu não achei graça nenhuma quando vi que você tinha me deixado para trás!

- Vera, isso não é hora...

- Katherine.

- O quê?

- Estou usando o nome de Katherine O'Malley.

- E o que aconteceu a Harriet Oberchon? Não, esqueça. Olhe, você corre perigo aqui.

- Sei disso. Eu a vi.

- Viu quem?

- A beldade morena. A fulana que o seguiu em Boston. Johnnie deu um suspiro.

- Eu sei. Ela é uma das principais artistas do show.

- Então foi por isso que você recortou aquele artigo do jornal?

Johnnie lançou-lhe um olhar furioso, mas achou que aquela não era a hora apropriada para um sermão a respeito de xeretar no quarto dos outros.

- Parece que ela não foi a única que resolveu vir para cá. Os dois russos também chegaram.

- Não me diga que eles também são aspirantes a bailarinos!

Ele não pôde deixar de sorrir.

- Aqueles dois patetas podem ter jeito para tudo, menos para Baryshnikov!

- Bem, Johnnie, agora que tal me contar o que está acontecendo? O que a beldade morena tem a ver com Gorky? A troco de que ela quer o manuscrito?

Johnnie franziu a testa.

- Vera, eu já disse que a quero fora disso e... Ela apertou o braço dele.

- Pelo amor de Deus, homem, você não percebe que eu já estou envolvida nessa história até o pescoço? Se não era para ajudá-lo, então por que me trouxe a Londres?

Ele respirou fundo, dando-se por vencido.

- Tenho motivos para crer que o homem que sequestrou Marcus tem relação com esse espetáculo. Seu nome é Daniel Emerson.

- Será que ele está aqui, no teatro?

- Não faço ideia. Nunca vi a cara do fulano. Aliás, não tenho nenhuma prova concreta contra ele. - Johnnie fez uma pausa. - Como pode ver, Vera, as coisas não são nada simples. E sua presença aqui só vai servir para complicar as coisas ainda mais.

Ele pôs a mão no bolso e apanhou uma porção de moedas e uma chave. Uma chave de hotel, Vera notou. Hotel Savoy, quarto 643. Pegou uma das moedas e os outros itens

voltaram ao seu bolso.

- vou achar um telefone público, ligar para minha mãe e dizer que você vai voltar para casa imediatamente. Quero que fique lá, quietinha, por alguns dias. Isso é uma ordem. Entendeu, Vera?

Ela sorriu.

- Katherine.

- Esqueça Katherine. É com Vera Blue que eu estou preocupado. Agora, trate de tirar essa roupa, enquanto eu ligo para minha mãe. E, pelo amor de Deus, não se meta em mais encrencas!

Johnnie foi procurar o telefone público, deixando uma Vera confusa e desorientada, sem saber o que fazer. Mas seu momento de indecisão durou apenas poucos segundos.

- Katherine O'Malley! - chamou o coreógrafo. Queira se apresentar.

Ela olhou rapidamente na direcão onde Johnnie tinha ido, depois correu para o palco. Se ele pensava que iria se livrar dela assim tão facilmente, estava completamente enganado.

Quando Johnnie voltou, sua apresentação já estava quase no fim. Ele não pôde deixar de sorrir. Não é que Vera dançava muito bem? Porém, seu sorriso se congelou nos lábios quando ouviu o coreógrafo anunciar que ela tinha sido aprovada.

Maldição. Não havia jeito de segurar Vera Blue... ou Katherine O'Malley. com qualquer nome, ela era incorrigível... e maravilhosa. Bem, pelo menos ele não teria mais de se apresentar. Graças a Deus. Era uma negação como bailarino. E, já que o tal de Daniel Emerson não ia aparecer por lá tão cedo, até que ter a linda e adorável Katherine O'Malley dançando no espetáculo não seria uma má ideia. Pelo menos evitaria que ela ficasse atrás dele o tempo todo.

Johnnie franziu a testa. Katherine O'Malley. Ela já não havia mencionado aquele nome antes?

Estava deixando o teatro, quando um outro bailarino, aguardando sua vez, o chamou. -- Ei, amigo, você desistiu de se apresentar? johnnie deu um sorriso desanimado.

- Acho que hoje não é o meu dia de sorte. Acabei de torcer o pé.

Vera foi para os bastidores, certa de que Johnnie estava lá à sua espera. Só que ele não se encontrava em canto algum.

- Katherine O'Malley?

Ela se virou e viu um dos coreógrafos andando em sua direção.

- Um dos bailarinos deixou isso para você.

- Obrigada.

Ela apanhou o bilhete que o outro lhe estendia, mas só o abriu no momento em que entrou no carro.

A mensagem era breve e clara.

"Volte para casa imediatamente e espere meu telefonema."

Vera abaixou o vidro quando viu que um guarda se aproximava.

- Por favor, o senhor pode me dizer onde fica o Hotel Savoy?

Um minuto depois, ela seguia pela avenida Shaftesbury, feliz da vida. Era provável que Johnnie não conhecesse aquele ditado americano: "Sua casa é onde está seu coração".

Lou Vaughn passou pela banca de revistas no hall do Claridge, comprou todos os jornais da tarde e tomou o elevador para o décimo quarto andar, onde Andrea Lambert o esperava.

Se fosse por ele, teria escolhido um hotel bem mais simples... e mais barato, de preferência. Mas, pelo visto, Andrea sempre se hospedava no Claridge quando ia para Londres. E insistira, já que Lou era seu convidado, em arcar com todas as despesas. Aquilo não deixava de ser um grande alívio. Alguns dias naquele hotel e ele poderia se considerar um homem falido.

- Achou o anúncio? - ela perguntou, levantando-se do sofá assim que Lou entrou na suíte. Usava uma camisola de cetim, que revelava as curvas de seu corpo bem-feito

Para uma mulher de cinquenta anos, ela estava em grande forma.

- Ainda não procurei. Vamos ver.

Ele abriu os jornais em cima da mesa e ambos começaram a procurar juntos. Lou Vaughn, porém, não parecia muito entretido na tarefa. A mulher a seu lado, com seu charme e sorriso cativante, fazia com que ele se comportasse como um adolescente sonhador.

Será... que estava se apaixonando?

- Achei! - exclamou ela, triunfante. - Aqui está, bem no meio da página dos classificados. "Por favor, queira me informar a hora e o local da próxima reunião do

Grupo Amigos de Gorky. Obrigado." - Ela olhou para Lou. - Se tivermos sorte, alguém vai responder ao nosso anúncio, no jornal de amanhã. E, enquanto isso... teremos de esperar.

Depois de tantos anos, Lou Vaughn sentia-se feliz como um menino.

- É, vamos ter de esperar mesmo.

 

Tapear o recepcionista do Hotel Savoy foi mais fácil do que Vera esperava.

- O quê? Meu marido não se lembrou de me deixar uma chave aqui na recepção? Nós nos casamos há três semanas, e ele já esqueceu da minha existência... Ah, esses homens! Na verdade, eu lhe disse que só ia chegar amanhã. Bem, de qualquer modo, vou lhe fazer uma surpresa. Isto é, se o senhor me fizer a gentileza de me dar uma chave extra do 543.

Saiu do elevador sentindo-se vitoriosa. Nem Katherine O'Malley teria tido uma ideia daquelas.

"Você precisa de mim, Johnnie Madden", pensou consigo mesma, batendo na porta do quarto. Ninguém respondeu. Bateu outra vez. Nada. Era provável que ele ainda nem tivesse chegado. Colocou a chave na fechadura e entrou.

Johnnie estava debaixo do chuveiro, tentando tirar aquela maldita musse modeladora dos cabelos. A agua quente batia em seu corpo, aliviando os músculos doloridos de suas costas. Sete horas dentro de um caixão, não importava o quanto fosse confortável, era dose para elefante. E nada do que acontecera em Londres desde a sua chegada havia dado certo.

Foi só depois de fechar a torneira que ele sentiu a desagradável sensação de não estar sozinho. Ou muito se enganava, ou havia alguém no seu quarto.

Seu revólver. Ele o havia deixado no bolso da calça, em cima da cama. Àquela altura, já devia estar nas mãos dó invasor.

Maldição. Por que tudo tinha de dar errado? Enrolou-se numa toalha e ficou ali, pingando, pensando no que fazer.

Foi aí que seus olhos pousaram na porta, a maçaneta se abrindo lenta e cuidadosamente...

Correu para atrás da porta, desejando estar usando alguma coisa a mais do que uma simples toalha. A nudez fazia com que se sentisse extremamente vulnerável. E com frio também. O aquecimento central do Savoy não estava dos melhores naquele dia. Ou talvez o frio não tivesse nada a ver com o sistema de aquecimento.

A porta se abriu, bem devagar.

A surpresa era um elemento-chave, a única coisa que Johnnie tinha a seu favor naquele momento. O intruso mal pôs o primeiro pé no banheiro e Johnnie já caía em cima dele, derrubando-o no chão, colocando um joelho contra suas costas.

- Johnnie... Sou eu...

Ele já tinha tido muitas surpresas, desde que chegara a Londres. Mas aquela foi a maior de todas.

- Pelo amor de Deus, Vera! Como conseguiu entrar aqui? A voz dela não era mais que um gemido.

- Será que você... podia tirar esse joelho das minhas

costas? Ele a ajudou a se levantar.

- Eu podia tê-la machucado de verdade, sua cabeça-dura!

- Você me machucou de verdade, ouviu? Ai, minhas costas!

- E o que você queria que eu fizesse? Que esperasse calmamente que um intruso entrasse no banheiro e fizesse picadinho de mim? Ora, Vera! E, por falar nisso, posso saber como entrou aqui?

- Eu disse na recepção que era sua mulher. Johnnie esboçou um sorriso.

- Fale a verdade, querido. A ideia foi boa, não foi?

Confesse!

- Foi péssima. Eu não mandei você voltar para casa e

me esperar lá, bem quietinha?

- Mandou. Mas eu não disse que ia obedecer. Ele passou a mão pelos cabelos molhados.

- Vera, Vera, o que eu faço com você?

Ela sorriu e deu um passo à frente. Ele cheirava a shampoo e a sabonete perfumado. E estava irresistível, com aquela toalha enrolada na cintura.

- Aceita sugestões, meu querido?

Johnnie se afastou dela e voltou ao quarto. Vera o seguiu.

- Você não me quer, Johnnie?

- Pelo amor de Deus, não é questão de querer ou não. Minha cabeça está cheia de problemas. Aliás, minha vida está repleta deles. Nada vem dando certo. Preciso pôr minha cabeça no lugar. Não sei o que vai acontecer. - Ele fez uma pausa. - Eu não devia tê-la trazido a Londres. Que idiota eu fui, achando que você ia ficar quieta na casa da minha mãe!

- Foi-se o tempo em que eu ficava quieta, Johnnie. Agora, as coisas mudaram. - Ela começou a andar pelo quarto. - Estou tão envolvida nessa história quanto você. Meu tio desapareceu. Estou preocupada com ele. Você não acha que eu também tenho o direito de participar dessa história?

- Eu acho que você devia voltar para a casa da minha mãe.

Ela deu um sorriso maroto.

- Depois. Não agora. - Tirou o blazer e o jogou em cima da cama. - Adorei esse conjunto. Você deve ter gastado uma fortuna. Aliás, eu adorei todas as roupas. Não precisava ter se incomodado. - Ela começou a abrir a blusa.

Johnnie levou um susto.

- Ei, Vera, o que pensa que está fazendo?

- Estou tirando a roupa, ora essa.

- Pare com isso imediatamente. Se está achando que vai me seduzir...

- Estou achando que vou seduzi-lo, sim. - A blusa voou longe. Vera não usava nada por baixo.

Johnnie apanhou-a do chão.

- Vista-se, Vera. - Ele lhe estendeu a blusa. - Rápido, de preferência.

Ela nunca havia se sentido tão embaraçada em toda sua vida. E humilhada, também. Que situação constrangedora... Foi só no momento em que abotoou o último botão que teve coragem de encará-lo de novo. Levou um susto. Havia um lindo sorriso em seus lábios. Ele estendeu os braços e enlaçou-lhe a cintura.

- Você é linda, Vera. Esperta, inteligente, competente... Um pouco entrona, para falar a verdade, mas uma mulher maravilhosa... Pena que, no meio de tantas qualidades, haja um defeito.

- Defeito? - A voz dela estava trémula. - Que defeito?

- Você nunca me dá a oportunidade de seduzi-la primeiro...

Eles se abraçaram.

- Fiquei maluco quando vi você usando aquele colant tão sexy - ele sussurrou em seu ouvido, antes de beijá-la.

- Tive de fazer força para me conter e não agarrá-la ali mesmo, no meio do palco.

O beijo foi longo, cheio de carinho e desejo. Então, Johnme pegou-a pela mão e foi até o telefone.

- Ei! O que você vai fazer agora?

- Já vai ver.

Ele ligou para a recepção e pediu uma garrafa de champanhe Don Perignon e um prato de morangos.

- com chantilly - sussurrou Vera.

Ele sorriu e acrescentou chantilly ao pedido. Desligou, procurou uma música lenta no rádio e voltou a toma-la nos braços.

Ela sentiu as pernas bambas. Johnnie podia não ser nenhum Baryshnikov, mas movia-se num ritmo delicioso, os braços firmes em sua cintura. Fechou os olhos e deitou a cabeça em seu ombro.

Uma batida na porta os interrompeu. Johnnie recebeu o pedido e colocou a bandeja com a champanhe e os morangos com chantilly em cima da mesa.

Abriu a garrafa e serviu a bebida em duas taças.

- Quero fazer um brinde - disse ele. - À garota mais maravilhosa, encantadora e intrometida que eu já conheci em toda a minha vida!

Abraçaram-se. E, entre goles de champanhe e mordidas em suculentos morangos, se despiram e se amaram no chão do Savoy, toda a tensão das últimas horas desaparecendo frente ao desejo que os consumia.

- Foi maravilhoso - ele sussurrou, sua respiração pouco a pouco voltando ao normal. - Nunca encontrei uma mulher como você.

Ela deitou a cabeça em seu ombro.

- Johnnie...

- O que foi, amor?

- Por que você fugiu de mim? Ele a abraçou com força.

- Eu não fugi de você, querida. Só quis protegê-la. Achei que, na casa da minha mãe, você estaria bem segura. - Ele fez uma pausa. - Eu me preocupo com você. Muito mais do que imagina.

- Mas, agora, eu faço parte do musical Fanfarra e... Ele a interrompeu, com um beijo nos lábios.

- Me prometa uma coisa. Prometa que não vai fazer nada a não ser observar o que se passa por ali, para depois me contar tudo. Você me dá sua palavra?

"Eu lhe dou meu amor, Johnnie querido. Isso serve?"

- Tudo bem - ela sussurrou.

"Eu o amo", ela pensou. Johnnie sabe disso, mas não quer ouvir. Ela não tinha nenhuma dúvida. Ele lhe oferecia paixão e aventura. Não amor. Mas aquilo já não era suficiente? É claro que era. Estava disposta a aceitar qualquer coisa que ele pudesse lhe oferecer.

- Vamos para a cama - ele murmurou com voz rouca, tomando-a nos braços.

Na tarde seguinte, em várias partes de Londres, algumas pessoas ficaram muito satisfeitas em encontrar um pequeno anúncio na seção de classificados de um jornal. Dizia: "O Grupo Amigos de Gorky está aceitando novos sócios. Próxima reunião hoje, no Ambassador Club, às nove horas".

- Quando é que vamos parar com esse irritante jogo de esconde-esconde, Daniel? Pensei que fôssemos nos encontrar no teatro! - Christine apertou o fone com tanta força que os nós de seus dedos ficaram brancos. - O que vai acontecer a Marcus se Johnnie estiver falando a verdade, e o manuscrito tiver mesmo sido roubado? Estou avisando, Daniel, se alguma coisa de ruim acontecer a ele...

- Christine, querida, você sabe muito bem que eu odeio ameaças.

- Você odeia receber ameaças, não é? Mas adora fazê-las!

Ele deu uma risada sonora.

- E, quando as faço, costumo cumpri-las... Ela sentiu um friozinho na espinha.

- Daniel, por favor...

- Fique sossegada. Marcus está bem. E talvez suas férias forçadas cheguem ao fim antes do que você imagina.

O friozinho se transformou numa geladeira.

- O que vote quer dizer com isso? Novamente, a mesma risada.

- Não é o que está pensando, queridinha, Eu só quis dizer que o manuscrito pode ser meu logo, logo, apesar do nosso professor ter nos desapontado.

- Ele está nas mãos de quem agora?

- Não faço ideia.

- Mas você disse...

- Quero que me faça um favor, Christine. Arranje alguém para levá-la ao Ambassador Club esta noite e trate de negociar a compra daquela preciosidade. E trate de se comportar direito. Faça alguma bobagem e seu amado Marcus Lloyd vai acabar tirando férias permanentes.

Zakharov tomou um gole do intragável café inglês, sentindo saudades de seu samovar, em Kiev. Aquela era sua última missão. Quinze anos de serviço, quinze anos longe de casa, quinze anos de brilhantes realizações. Ele era o melhor. Aquela era sua última missão, mas, se não tomasse cuidado, poderia vir a ser seu primeiro fracasso.

E, mesmo após quinze anos de vitórias, uma falha poderia custar tudo que ele havia esperado, tudo que havia sonhado. Bateu com força na mesa, sem se incomodar com a xícara que segurava. O café voou em cima do camarada a seu lado.

Borof sky soltou um grito de dor ao sentir o líquido quente espirrar em sua camisa e queimar sua pele. Zakharov nem mesmo se desculpou. Parecia muito nervoso. Deu um soco na mesa. O negócio estava feio. Mais um pouco, pensou porofsky, e o chefe ia tirar o sapato e bater com ele na mesa.

Os olhos de Zakharov brilhavam de ódio. Borofsky temia o pior. E o pior poderia ter mesmo ocorrido, se Goncharov não tivesse entrado na sala naquele momento. Trazia um jornal nas mãos e sorria. Um sorriso na boca daquele brutamontes só podia ser sinal de que uma coisa muito boa tinha acontecido.

- O Ambassador não é um clube privei - perguntou Lou Vaughn, lendo a página de classificados.

Andrea sorriu.

- É. Mas, se quisermos entrar, é só pagarmos uma taxa. Bem, acho melhor irmos andando.

- Mas ainda é muito cedo. O anúncio diz nove horas.

- Não, Lou. Nós vamos a uma butique masculina. Você vai precisar de um smoking para entrar no Ambassador.

- Ah... Será que não seria melhor alugar um? Ela deu um sorriso.

- Querido, ninguém usa smoking alugado num clube chique daqueles. E, já que vamos entrar num negócio arriscado, precisamos estar com a melhor aparência possível. Você entende o que quero dizer, não entende?

Ele fez que sim com a cabeça e respondeu, lentamente:

- Entendo.

- Johnnie, você precisa me levar junto ao Ambassador!

- Esqueça, querida. Você não é sócia.

Como se uma desculpa daquelas pudesse impedi-la.

- Mas você é, não é?

- Não. Só minha mãe. Eu vou como convidado dela.

- Pois eu tenho certeza de que lady Edith não vai se importar de levar mais uma convidada.

- Pelo amor de Deus, Vera! Será que já se esqueceu de que está morta? Se aqueles dois brutamontes a virem, vão cair em cima de você antes que se dê conta do que aconteceu!

- Vera Blue pode estar morta, mas Katherine O'Malley vai muito bem, obrigada.

- E o que aconteceu a Harriet Oberchon?

- Está chorando a morte do marido, pobrezinha. Johnnie deu um suspiro desanimado.

Ela agarrou seu braço.

- Por favor, querido! Eu nunca estive num clube prive em Londres. Aliás, nunca estive num clube prive em parte alguma do mundo. Não me negue esta chance! Por favor!

Ele a encarou por um longo momento.

- O que me preocupa, Vera, é que eu não sou capaz de lhe negar nada.

 

- Você está maravilhosa! - exclamou lady Edith. parece uma princesa recém-saída de um conto de fadas! Mas ainda está faltando uma coisa. - Ela abriu uma caixa de veludo. - Isto!

Vera deu um grito ao ver o lindo colar de brilhantes que faiscavam sob a luz do candelabro. Era a jóia mais linda que já vira na vida.

- Mas... eu não posso usar uma coisa tão valiosa dessas, lady Edith. E... se eu perder... ou alguém me roubar?

Lady Edith sorriu e colocou o colar em volta de seu pescoço.

- Essa jóia é o complemento perfeito para a sua roupa. E, quanto ao valor, fique tranquila. Ela está no seguro. Você não tem nada com o que se preocupar. Meu filho vai ficar encantado!

Os olhos de Vera brilharam.

- Será que vai ficar mesmo?

Lady Edith deu dois passos para trás e examinou-a cuidadosamente. A transformação fora espantosa. À sua frente estava uma jovem cheia de graça e beleza.

Vera investira muito tempo e dinheiro naquela transformação. Havia marcado hora num dos salões de beleza mais sofisticados de Londres, onde passara a tarde inteira tratando dos cabelos e da pele. O resultado fora fantástico. Depois passara por uma butique e comprara um vestido de tafetá azul, tomara-que-caia. Quase todo o dinheiro que Lês Sharp lhe dera em Boston, antes da partida, se fora naquela brincadeira. Mas valera a pena.

- Você está parecendo uma beldade do século XVIII, que posou para Gainsborough - comentou a encantada lady Edith.

- Espero que Johnnie goste. - Vera se olhou de novo no grande espelho do quarto de vestir. - A única coisa que eu quero é agradá-lo.

Lady Edith franziu a testa, como se tivesse ficado preocupada.

- O que foi? - perguntou Vera. - A senhora não está gostando? Achou o vestido decotado demais?

- Não, minha querida. Não há nada de errado. Você está perfeita.

- Então... o que a está preocupando?

Ela se virou de novo, e lady Edith pegou suas mãos com carinho.

- Eu gosto de você, Vera. É uma moça doce, meiga e corajosa. - Ela fez uma pausa. - E muito inocente.

Vera sorriu.

- Não sou tão inocente assim, lady Edith.

- Estou me referindo ao mundo. Ao mundo de Johnnie. O brilho desapareceu de seus olhos, como que por encanto.

- É, eu acho que tem razão. Eu não pertenço ao seu meio, não é? Nada pode mudar esse fato. Nem vestidos bonitos, jóias caras e cabeleireiros chiques. É tudo ilusão, não é? E, assim que o baile acabar, volto a ser Cinderela de novo... - Ela fez uma pausa. - Não sou quem a senhora queria para Johnnie, não é?

Lady Edith apertou as mãos dela com mais força.

- Você entendeu tudo errado, menina bobinha. Não foi nada disso que eu quis dizer. O que me preocupa é Johnme. Você não o conhece direito.

- Estou começando a conhecê-lo.

Lady Edith olhou bem dentro de seus olhos.

- Você gosta muito dele, não é?

- Gosto.

- E ele de você?

- Eu... acho que sim. Pelo menos, é o que eu espero.

- Também acho.

- E isso... incomoda a senhora? Houve um longo silêncio.

- Não, minha querida. O que me incomoda é que eu não quero que você se machuque. E tenho a impressão de que meu filho pode machucá-la.

- Me machucar? - De repente, toda a alegria que Vera sentia se evaporou.

- Vera, Johnnie é um... solteirão convicto. Muitas mulheres Já passaram por sua vida, mas nenhuma delas conseguiu a proeza de levá-lo ao altar. Ele é um homem livre. E nunca deixou que nenhuma das suas namoradas se aproximasse muito. Você foi a que chegou mais perto. E, como tal, pode ser a que venha a sofrer mais. Você me parece uma moça sensível, capaz de viver um grande amor... - Lady Edith deu-lhe um beijo no rosto. - Sabe que nós duas somos muito parecidas? Eu também tive minhas paixões. E como sofri... Não quero estragar sua noite, querida. Mas, para o seu próprio bem, não alimente muita fantasia.

Alguém bateu na porta.

-- Vocês já estão prontas? Está ficando tarde e...

- Pode entrar, Johnnie!

Ele abriu a porta e entrou. E não pôde reprimir um grito de espanto ao ver a beldade loira no meio do quarto.

- Meu Deus, Vera Blue! Você está deslumbrante! Ela sorriu, satisfeita.

- Obrigada! - E acrescentou, em tom de brincadeira:

- Você também não está nada mal.

Na verdade, usando aquele smoking, Johnnie Madden estava, se isso fosse possível, ainda mais bonito e charmoso que antes.

- Bem, vamos indo? - Ele olhou para o relógio. - Já são quase nove. A uma hora dessas, uma porção de gente deve estar a caminho do Ambassador.

Johnnie circulava pelos salões do clube tentando localizar os membros do grupo "Amigos de Gorky" quando percebeu que Vera lhe fazia um sinal. Aproximou-se dela, discretamente.

- O que foi, querida? Ela estava excitadíssima.

- Eu vi os dois russos perto do bar. E a atriz morena também!

- O nome dela e Christine Dupré.

- Francesa?

Ele fez que sim com a cabeça.

- Algum dos três viu você? Os olhos de Vera brilharam.

- Eles viram Katherine O'Malley. E não a reconheceram de jeito nenhum.

- De qualquer modo, é melhor manter-se longe deles.

- Ele fez uma pausa. - E longe de mim, também. com certeza, Andrea deverá chegar daqui a pouco para negociar a venda do manuscrito.

- E meu tio?

- Bem, se Andrea o sequestrou, como nós acreditamos, duvido que ele apareça por aqui.

Vera quase pulou no pescoço dele.

- Obrigada, Johnnie, muito obrigada!

Ele procurou se afastar de Vera e olhou disfarçadamente para os lados.

- Obrigado por quê?

- Porque você disse "como nós acreditamos"! Isso quer dizer que também acha que o pobre tio Lou é inocente! Essa tal de Andrea Lambert deve ter... - Então, Vera ficou branca como um fantasma. - Meu Deus!

Johnnie virou-se discretamente para ver o que a tinha assustado daquele jeito. E também levou um susto.

Andrea Lambert, usando um lindo vestido preto e colar de brilhantes, entrava no salão, E a seu lado, um braço em seu ombro, estava um homem grisalho de smoking, que a olhava com muita ternura. Lou Vaughn. Naquele momento, ele se parecia com tudo, menos com uma vítima de sequestro.

Vera estava tão trémula que Johnnie ficou com medo de que ela fosse desmaiar ali mesmo.

- Respire fundo - ele cochichou. - Você precisa sair daqui. Minha mãe vai levá-la para casa.

Para grande alívio de Johnnie, ela estava muito traumatizada para responder. Na verdade, estava muito traumatizada para ouvir o que ele dizia.

- Johnnie Madden, há quanto tempo!

Ele se virou ao ouvir aquela voz. Era Avery Noble. - Você não vai me apresentar sua amiga? Vera olhou para o homem alto e careca que lhe sorriu e tentou adivinhar quem era.

- Avery Noble, Katherine O'Malley.

Johnnie não se incomodou em dar mais detalhes. Noble estava cansado de saber sua verdadeira identidade.

- Muito prazer, Katherine. Madden, você se importa se eu roubar sua amiga para uma dança?

Johnnie ficou furioso. Sabia muito bem qual era o jogo de Noble. O homem queria sondar Vera, já que Lou Vaughn tinha dado o ar de sua graça. Avery suspeitava que ela estivesse envolvida naquela operação.

- Katherine não está se sentindo bem - Johnnie inventou. - Não é, querida?

Sem saber que atitude tomar, ela se limitou a fazer que sim-com a cabeça. Ele passou o braço por sua cintura.

- Venha comigo, amor. Minha mãe vai levá-la para casa. Noble arregalou os olhos.

- Ah, então você está hospedada na casa de lady Edith?

- Estou, sim.

O homem parecia ser bem persistente.

- E depois?

- A srta. O'Malley vai voltar para a casa dela dentro de poucos dias - respondeu Johnnie. Depois olhou para Vera e disse: - Vamos, Katherine?

Logo que se afastaram, ela cochichou:

- Eu não quero ir embora.

- Não perguntei se você queria, Vera.

- Katherine.

- Pois Katherine vai se aposentar.

- Johnnie...

Ele fez um sinal para sua mãe, que, vendo a preocupação no rosto do filho, pediu licença aos amigos com os quais conversava e se aproximou dele.

- Vera está morrendo de dor de cabeça, mamãe. Será que podia levá-la para casa?

- Mas eu não estou com...

Johnnie apertou-lhe o braço com tanta força que ela não conseguiu reprimir um grito de dor.

- Claro que sim, meu filho. Você quer que tomemos

um táxi?

- Não. Podem ir com o Bentley. Eu me arranjo depois.

- Ele fez uma pausa. - Tranque Vera em casa, mamãe. Não a deixe sair de lá em hipótese alguma.

Johnnie continuava a segurar o braço de Vera, mas com menos força.

- Você vai voltar para casa logo? - ela perguntou. Ele fez que sim com a cabeça.

- Vou.

- Promete?

Johnnie hesitou por alguns momentos.

- Pelo menos, vou fazer o possível. Ela deu um suspiro.

- Tudo bem, mas não pretendo pregar o olho enquanto você não chegar.

- Você vai estar bem, querida.

- Eu não estou preocupada comigo. Ele lhe deu um beijo no rosto.

- Eu sei.

E fez sinal para que sua mãe a levasse embora. Momentos depois, já no Bentley, a caminho de casa, Vera explodiu:

- Quero que ele vá para o inferno! Lady Edith fez a volta na praça Berkeley.

- Suponho que esteja se referindo ao meu filho. Vera ficou vermelha.

- Desculpe.

A mulher sorriu.

- Não precisa se desculpar, querida. Eu também já falei isso tantas vezes...

- A senhora não imagina o quanto estou preocupada. Lady Edith estacionou o carro mais adiante.

- Conte-me o que está acontecendo. Você parecia muito relutante em deixar o clube. Por quê?

Era evidente que a mulher decidira que havia chegado a hora de uma conversa mais franca. E a conversa acabou sendo muito eficaz. Vera hesitou por apenas alguns segundos, depois abriu a boca e fez um relato resumido de todos Os fatos acontecidos, desde o momento em que Johnnie entrara em sua vida.

- É por isso que eu não queria sair do clube, lady Edith. Sei que deve haver uma explicação para o fato de meu tio ter aparecido ali, de braço dado com aquela mulher diabólica. Eu preciso falar com ele. Preciso alertá-lo. Havia mais gente maldosa naquele salão do que no meio do inferno.

- E foi essa a razão pela qual Johnnie quis que você fosse embora.

Vera deu um sorriso.

- Pode ser que a senhora teve um susto, lady Edith, mas tenho a impressão de que seu filho é um agente secreto do governo inglês. Também acho que Marcus Lloyd seja

seu colega, talvez seu chefe.

- Não estou nem um pouco assustada. Eu mesma já tinha chegado a essa conclusão.

- Eu queria tanto que ele me deixasse ajudá-lo... Johnnie precisa da minha ajuda, lady Edith. E meu tio também. Sou boa nisso. Muito boa mesmo. E, ainda assim, ele me manda de castigo para casa! Não é justo! Não é justo!

Lady Edith passou a mão pelos cabelos.

- Eu detesto ter de lhe fazer essa pergunta, Vera, mas e se seu tio...

- Ele é inocente - ela interrompeu, com voz firme. Ela fez que sim com a cabeça. Depois, acabou dizendo:

- É, acho que não é justo mesmo. Afinal de contas, você já está envolvida nessa história até o pescoço. Pessoalmente, quando eu começo uma coisa, gosto de chegar até o fim. E imagino que isso também aconteça com você.

- Acontece, sim.

Lady Edith sorriu.

- Eu sabia disso.

- Então a senhora vai me levar de volta ao Ambassador?! Ela hesitou por alguns instantes.

- Se Johnnie a vir no clube de novo, o negócio vai fil car preto para nós duas.

Vera se mexeu no banco do carro.

- E se eu voltasse disfarçada? Sou ótima em disfarces! Um sorriso iluminou o rosto de lady Edith.

- Bem, nós não temos muito tempo. Vamos voltar ao clube imediatamente e entrar pela porta dos fundos. Me diga uma coisa, querida, você é boa como copeira?

Vera sorriu.

- Nunca servi nada, em toda a minha vida.

- Ah, que pena!

- Mas isso não é problema. A senhora ficaria surpresa se soubesse como eu aprendo depressa.

Lady Edith caiu na risada.

- Nada em você me surpreende, minha querida. Nada mesmo.

 

O gerente do Ambassador Club não questionou o desejo de uma de suas mais ilustres clientes. Vera Blue foi "contratada" como garçonete num piscar de olhos. Ela entiou correndo no vestiário das funcionárias, com um uniforme preto, avental branco e uma touquinha debaixo do braço. Ali, o lindo vestido azul foi guardado, o colar que lady Edith lhe emprestara escondido sob a gola alta de seu novo traje. Trocou os sapatos de salto alto por sapatilhas simples, um número maior do que costumava calçar. Escovou os cabelos, desmanchando o penteado que levara horas para ficar pronto e lavou o rosto, retirando toda a maquiagem. Olhouse no espelho e sorriu, satisfeita. Ela era um perfeito camaleão. A CIA não sabia o que estava perdendo em não contratá-la.

Saindo do vestiário, quase tropeçou numa outra garçonete, que tinha acabado de apanhar uma bandeja de canapés na cozinha.

- Desculpe. Eu não... - Parou no meio da frase, ao ver o rosto da mulher que lhe sorria.

- Não tem problema, querida. Você é nova por aqui, não é?

Vera piscou várias vezes, para ter certeza de que não estava sonhando.

- Lady Edith?

- Edie, minha querida. É assim que meus amigos me chamam.

- Meu Deus, lady Edith, a senhora não pode...

- Mas é claro que posso. Por acaso pensou que eu fosse ficar de fora de toda essa confusão? De jeito nenhum!

- Mas Johnnie...

- Eu já circulei pelo salão, e ele não me reconheceu. Fique tranquila, querida. Johnnie pensa que nós duas estamos em casa, sonhando com os anjos. - Lady Edith deu um sorriso. - Há muito tempo, na época do colégio, eu fiz o papel de uma garçonete numa peça de fim de ano. Passei horas na frente do espelho, praticando. Quem diria que, um dia, todo aquele trabalhão ia valer para alguma coisa... Bem, querida, agora é melhor começarmos a servir os canapés. O gerente detesta conversa entre as funcionárias!

Entre risos e desejos de boa sorte, elas se separaram e entraram no salão, cada uma por uma porta. Porém, o sorriso que Vera ainda tinha nos lábios se congelou quado avistou Johnnie mais adiante, dançando de rosto colado com a tal Christine Dupré. A mulher era mesmo belíssima e ela sentiu vontade de subir pelas paredes. Nunca tinha se dado conta de que era tão ciumenta.

Começou a circular por entre os convidados, oferecendo seus canapés. Não demorou a avistar tio Lou e Andrea Lambert, de mãos dadas, perto do bar. Pareciam muito interessados um no outro. Os dois russos, com copos de vodka nas mãos, também andavam pelo salão. Pelo jeito como cambaleavam, já deviam estar na terceira ou quarta dose.

- Eu aceito um canapé, senhorita.

Vera se virou ao ouvir aquela voz masculina e deu de cara com Avery Noble, que lhe sorria maliciosamente.

- É nova por aqui, mocinha?

Ela fez que sim com a cabeça e se afastou. Noble a seguiu.

- Sabe que seu rosto me é muito familiar? Será que nunca nos vimos antes? Onde trabalhava, antes de vir para cá?

Vera sentiu que o sangue lhe fugia do rosto. Se fosse descoberta agora, estaria em maus lençóis.

- Eu... não posso conversar com os clientes do clube, senhor. com licença.

E tratou de dar o fora dali o mais rápido possível.

A sorte, porém, não parecia estar a seu lado.

Entrou no terraço, a fim de respirar um pouco de ar fresco e se acalmar, quando uma outra voz masculina soou atrás dela.

- Por favor, senhorita. Como o bar está muito cheio, será que poderia trazer uma taça de vinho branco para a minha amiga?

Era o que faltava. com tantas garçonetes circulando pelo salão, por que raios Johnnie tinha de pedir vinho justo para ela?

- vou providenciar - sussurrou, de cabeça baixa, fazendo o possível para não ser reconhecida.

Saiu do terraço e dirigiu-se rapidamente ao bar. Estava louca da vida. Desejou acrescentar uma dose de arsénico ao vinho branco de sua "amiga". Droga. Vista de perto, aquela atriz metida a espiã era ainda mais bonita e atraente. E se Johnnie resolvesse misturar um pouco de prazer aos negócios e convidasse a fulana para uma conversa íntima, num local mais sossegado?

Roxa de ciúme, passou os cinco minutos seguintes tentando conseguir o vinho no bar lotado. Como não estivesse nem um pouco disposta a perder tempo, acabou saindo da fila, apanhou um copo cheio deixado em cima da mesa e correu para o terraço.

Só que nem Johnnie nem a morena estavam ali. Olhou em volta, intrigada. Mas para onde o miserável tinha ido agora?

Lady Edith aproximou-se dela, com uma bandeja nas mãos.

- Ele foi embora agora mesmo - disse ela, apontando para os degraus.

Vera entregou-lhe o copo de vinho. - vou segui-lo.

E, dizendo isso, disparou escada abaixo.

O Ambassador Club ficava no meio de um imenso jardim, e Vera levou dez minutos até conseguir localizar alguém em meio a tantas plantas, árvores e arbustos. Escondeu-se atrás de um carvalho e, corm os olhos já mais acostumados à escuridão, distinguiu três pessoas, que conversavam mais adiante. Uma delas era tio Lou. Deu dois passos à frente, para ouvir melhor o que diziam.

- O sr. Vaughn só fará acordo se nossas exigências forem cumpridas. Pode dizer a seja lá quem for seu chefe que temos o que ele quer, mas que só o receberá no momento em que nós tivermos o que queremos.

- Vamos falar com calma, Andrea. - Foi a vez do tio Lou falar. - Tenho certeza de que esta moça está disposta a resolver qualquer dificuldade que possa aparecer.

Vera deu mais um passo à frente, tentando se esconder atrás de um arbusto. Pisou um galho seco e, no mesmo instante, o grupo mais adiante ficou em silêncio. Ela se abaixou, procurando segurar a respiração.

- Talvez devêssemos conversar num local mais seguro.

A declaração veio de uma terceira voz, rouca e feminina, com um inegável sotaque francês. A beldade morena. Vera tantou imaginar onde Johnnie teria se metido.

- Meu carro está logo aí - disse Lou Vaughn. - Por que não a acompanhamos até a casa do homem que a mandou aqui? Não gosto de negociar com moças de recado, não importa o quanto sejam atraentes.

- Preciso dar um telefonema - soou de novo a voz rouca.

- Pois então faça isso. Nos encontramos no estacionamento. Gostaria de resolver esse negócio o mais rápido possível. É melhor para todos nós.

Vera Blue não acreditava no que ouvia. Não era possível. Tio Lou parecia ser tudo naquele momento, menos uma pobre vítima de sequestro! Aquilo não podia estar acontecendo! Beliscou o próprio braço para ver se não estava sonhando.

E então, para seu grande espanto, sentiu um outro beliscão na cintura e uma mão tapando sua boca.

- Fique quieta, mocinha.

Como se ela tivesse condições de falar alguma coisa! Johnnie retirou a mão de sua boca.

- Eles estão indo embora - ela sussurrou.

- Deu para perceber.

- Nós... não vamos atrás deles?

- "Nós" não vamos para canto nenhum. Você é completamente maluca, Vera Blue! Será que não pode me ouvir, pelo menos uma vez na vida?

Ela deu um sorriso tímido.

- Não.

- Da próxima vez vou deixá-la em casa, amarrada a uma cadeira!

- Eu daria um jeito de me soltar e de ir atrás de você. Isto não adianta, Johnnie. Você não vai conseguir se livrar de mim assim tão facilmente. Bem, mas agora chega

de conversa mole. Eles estão indo embora. Meu tio disse qualquer coisa a respeito...

- Eu ouvi o que ele disse.

- Então, se não andarmos logo, vamos perdê-los de vista!

- E como pretende segui-los? A pé? Não se esqueça de que minha mãe levou o carro!

Vera abriu-se num largo sorriso.

- Lady Edith não foi embora. O Bentley está no estacionamento. No estacionamento dos empregados, para falar a verdade. Você sabia que sua mãe já foi garçonete numa peça nos tempos de escola?

Johnnie deu um suspiro.

- Minha mãe... Aqui? Servindo canapés aos convidados? Meu Deus, tudo pode acontecer nessa vida! - Ele agarrou o braço dela. - Bem, agora vamos. De que lado fica o tal estacionamento?

- Por aqui - ela respondeu, e os dois saíram correndo naquela direção.

Minutos depois, entravam no Bentley sem serem vistos. Ou, pelo menos, foi o que pensaram. No momento em que Johnnie deu a partida e ligou o farol, um homem alto e careca surgiu em frente ao carro, como que por magia.

- Porcaria - murmurou ele, enquanto Avery Noble aproximava-se da janela.

- Que tal me oferecer uma carona, amigo?

Sem ter como recusar, Johnnie fez sinal para que o outro entrasse. Ter Avery Noble ali, a seu lado, vigiando seus passos, era a última coisa que queria no momento.

O careca sentou-se ao lado de Vera.

- Bonito disfarce, srta. O'Malley. Posso chamá-la de Katherine? Ou será que prefere que eu a trate simplesmente de Vera?

Ela não respondeu.

- Há um carro logo ali na frente - comentou Johnme. - Deve ser o de Lou Vaughn e Andrea Lambert.

- Pelo visto, Christine Dupré ainda não acabou de dar seu telefonema. - Noble deu um sorriso. - Ah, as mulheres! Quando começam a falar no telefone...

Vera olhou para ele.

- Então você também ouviu toda a conversa? Onde estava escondido? Eu não o vi!

Noble sorriu.

- Truques da profissão, minha cara. Nós, os agentes secretos, temos nossas pequenas artimanhas, que não podemos revelar a ninguém...

Vera deu um suspiro.

- Eu sei. Um bom agente tem de ficar de boca fechada, não é? Principalmente na frente de alguém em quem não confia muito. Não confia em mim, não é, sr. Noble? E tenho a impressão de que nenhum de vocês dois confiam no meu tio. Mas fiquem sabendo que estão errados, ouviram bem? Completamente errados!

Como ninguém dissesse nada, ela continuou:

- Tio Lou é o homem mais honesto que já conheci. Pode não ser rico, mas nunca se interessou por extravagâncias materiais. Ele tem tudo o que quer: um bom apartamento, uma casa na praia e dinheiro suficiente para poder fazer suas viagens. Meu tio jamais roubaria qualquer coisa que fosse por dinheiro!

- Talvez - disse Noble - ele não tenha feito isso só por dinheiro.

Vera estreitou os olhos.

- Como assim?

- Você sabia que seu tio já fez parte de certa organização, onde a maioria dos membros era comunista?

- Comunistas?

- Exatamente, minha cara. Como você pode ver, as coisas nem sempre são o que parecem...

Vera olhou para Johnnie.

- Por acaso ele está dizendo que tio Lou é comunista? Que é uma espécie de... traidor? Você também acha isso?

Que ele está trabalhando para os russos? - Ela estava indignada. - Nunca ouvi tanto absurdo em toda a minha vida!

- Não ligue para Noble. - Johnnie também parecia furioso. - Nos anos cinquenta, praticamente todas as organizações americanas foram acusadas de ter ligações com os comunistas. - Ele fez uma pausa e virou-se para o amigo.

- Sabe qual é o seu problema, Noble? Você fala muito.

- Não se exalte, meu caro. Eu não estou acusando ninguém diretamente. Só disse que... - Ele parou de falar.

- Olhe! A francesa está saindo do clube!

Os três pararam de discutir e observaram Christine Dupré entrar em seu carro, um Jaguar preto.

- Minha nossa - murmurou Noble. - Que carrão! Ao que parece, Marcus vem sendo passado para trás. Não creio que ele tenha lhe dado essa maravilha de presente.

Vera franziu a testa.

- Marcus? Marcus Lloyd? Christine Dupré é namorada dele? Quer dizer que ela...

- O traiu. - Noble sorriu. - É exatamente isso, mocinha. Pobre Marcus. Nunca teve muita sorte com as mulheres e...

- Mais uma palavra - interrompeu Johnnie -, e você segue a pé!

- Não se esqueça de que nós dois estamos do mesmo lado, cara. Nossos objetivos são os mesmos.

- Meu único interesse nessa história toda é libertar Marcus. Assim que ele estiver solto, quero que esse manuscrito vá para o inferno. Quero que o caso todo vá para o inferno!

Poucos minutos depois, eles seguiam o Jaguar de Christine Dupré e o Austin de Lou Vaughn pela Embankment Road, quase deserta àquela hora.

- Não estou gostando muito disso - comentou Johnme. - Eles estão indo em direção ao parque Battersea.

Noble, porém, não parecia nem um pouco preocupado.

- Até que um parque não é um mau lugar para uma transação dessas. Precisamos apenas tomar cuidado. Assim que o Austin diminuir a velocidade, acho que devemos esconder o Bentley e prosseguir a pé. Vera, você espera no carro. Ela deu um sorriso irónico.

- Não lhe devo obediência, sr. Noble. O homem ficou irritado.

- Johnnie, mande a moça ficar no carro.

- Acontece, Noble, que ela não deve obediência a mim também. - Johnnie sorriu. - Será que você ainda não percebeu?

- Eu insisto para que ela fique no carro!

Naquele momento, o Jaguar e o Austin pararam na entrada do parque. No mesmo instante, Johnnie embicou o carro para uma entrada lateral e desligou o motor.

Noble inclinou-se para a frente.

- Vamos cercá-los. E lembre-se, Johnnie, de que nós não queremos os peixinhos. Queremos o tubarão. Isso significa que, acima de tudo, temos de agir de cabeça-fria.

Vera agarrou o braço dele.

- Acima de tudo, Johnnie, veja que meu tio não se machuque. Por favor.

- Eu sigo por aqui - disse Noble. - Você pode ir por lá. Agora, quanto a você, Vera...

Johnnie apertou a mão dela.

- Gostaria de que esperasse aqui dentro, querida. E, antes que comece a reclamar, lembre-se de que, se alguma coisa der errada, precisaremos de alguém no volante, para nos tirar daqui.

Ela queria poder acompanhá-lo mais que tudo na vida, mas teve de admitir que Johnnie tinha razão, E foi com um misto de frustração e pânico que observou os dois homens desaparecerem por entre a mata.

O Jaguar e o Austin continuaram parados, e ninguém havia descido deles. Será que o tal chefe de Christine Dupré iria aparecer? E a que horas? Quem seria ele? E seu tio? A troco de que teria se envolvido naquela história?

O parque estava no mais completo silêncio, todos os jogadores fixos em suas posições, esperando. Vera tentou imaginar se os outros estariam tão angustiados quanto ela. As palavras de Johnnie ainda ecoavam em seu ouvido.

- Se alguma coisa der errado... por que algo daria errado? Será que tudo não dera errado, desde o começo?

Num outro canto do parque Battersea, Borofsky e Petrenko, os dois russos meio bêbados, estavam sentados no banco de trás de um Ford inglês alugado. No banco da frente, encontravam-se o sóbrio Zakharov e seu guarda-costas, o brutamontes Goncharov.

Zakharov acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e olhou para trás.

- Prestem muita atenção, camaradas. Quero esse manuscrito o mais rápido possível. Recebi informações de que ele está agora em mãos desse tal de Lou Vaughn e da sua amiga, Andrea Lambert. Não é preciso dizer que eles não vão querer entregá-lo de livre e espontânea vontade. E não podemos nos esquecer dos outros, que farão de tudo para atrapalhar nossos planos. Também precisaremos lidar com eles. Estou sendo claro, camaradas?

Petrenko engoliu em seco.

- Devemos matá-los, senhor? Pela primeira vez, Zakharov sorriu.

- Façam o que for preciso. Matem, roubem, estuprem. Mas me tragam o manuscrito!

Borofsky hesitou por alguns instantes, antes de perguntar:

- E se o cara e a mulher não tiverem trazido o pacote?

- Nesse caso, traga-os a mim. Tenho certeza de que posso convencê-los a me contar exatamente o que eu quero. Não concorda comigo, Yevgenni?

Borofsky concordava.

O telefone do carro tocou apenas uma vez, antes que Ghristine atendesse, nervosamente.

- Onde você está, Daniel?

- Não fique nervosa, querida. Estou por perto. Quero que vá até o Austin e peça a seus amigos para descerem do carro. Daí eu apareço.

- Você está pensando em...

- Não estou pensando em machucar ninguém, Christine. Só quero o manuscrito.

- Você pretende aceitar as exigências deles?

- Se forem razoáveis, por que não?

- Tenho a impressão de que eles querem alguma coisa a mais, além do dinheiro.

- O quê, por exemplo?

- Não sei. Quem deve saber é você.

- Agora chega de conversa mole. Desça do carro e vá falar com eles. Depressa, de preferência.

- Estou com medo, Lou.

- Não se preocupe, Andrea. Eles não vão fazer nada contra nós, uma vez que temos o trunfo nas mãos. E o trunfo está bem guardado. Se tentarem usar a força, jamais irão pôr as mãos no manuscrito.

- Você acha que Daniel Emerson vai aparecer? E se ele mandar outra pessoa?

- Ele deve estar ficando muito impaciente. Acredito que venha. E sua impaciência pode acabar trabalhando a nosso favor.

Andrea lançou-lhe um olhar curioso.

- Você é muito diferente do que eu imaginei a princípio, Lou.

- Como assim?

- Você é muito mais forte e seguro de si do quê eu pensava. É como... se já tivesse feito esse tipo de coisa antes. Engraçado, não é?

Nuvens densas cobriram a lua, fazendo com que a noite ficasse ainda mais escura. Vera Blue não aguentava mais um segundo dentro daquele carro. A angústia era tanta que ela sentia vontade de gritar. Tirou a touquinha e o avental branco e desceu do Bentley. Não havia nada de mal em dar uma espiada por ali.

Tinha andado apenas alguns metros quando ouviu o barulho de passos. E de vozes. Falando em russo. Segundos depois, quando um facho de luz iluminou seu rosto, ela teve a certeza de que seu fim havia chegado.

Mas, então, algo incrível aconteceu. Ao vê-la, os dois brutamontes deram um grito de horror. A lanterna caiu no chão e eles saíram correndo, como se tivessem visto um fantasma. E tinham visto mesmo. O fantasma de uma moça que morrera queimada numa livraria, a milhares de quilómetros de distância.

Vera deu um suspiro de alívio e continuou seu passeio pela mata.

 

Escondendo-se atrás das árvores, Vera Blue conseguiu se aproximar do Austin de seu tio. Agachada atrás de um arbusto, pôde avistar Lou Vaughn e Andrea Lambert recostados no carro, como se estivessem à espera de alguém. Do patrão de Christine Dupré, com certeza. Ela queria falar com o tio, avisá-lo de que o parque estava cheio de inimigos e espiões, mas ouviu o barulho de motor ao longe. Segundos depois, avistou o carro, uma grande limusine, que se aproximava do Austin.

Naquele momento, Vera pressentiu que alguma coisa de muito ruim estava para acontecer. Não dava para explicar. Foi um friozinho esquisito na barriga, uma coisa que nunca sentira antes. Mas seu coração dizia que uma catástrofe estava a caminho.

A catástrofe realmente aconteceu, mas foi tudo tão rápido que ela mal se deu conta do que se passou. Os pneus cantando, a limusine preta arrancando em alta velocidade, o Austin, o Jaguar e um terceiro carro, um Ford inglês cinza, seguindo atrás. Meio tonta, sem saber o que fazer, ela começou a correr pela estrada. Porém, a poucos metros dali, parou de súbito, a boca aberta de tanto horror. À sua direita havia um corpo, o rosto apoiado no chão de terra.

"Meu Deus... Tio Lou!"

Ouviu-se um grito de angústia. O dela própria. Então, disparou em direção ao homem caído.

Alguém agarrou seu braço, antes que pudesse chegar lá. Johnnie a abraçou.

- É tio Lou, Johnnie... Deixe-me vê-lo, por favor. Ele procurou tranquilizá-la.

- Não é seu tio, querida. Vamos, acalme-se.

Ela levantou a cabeça, sentindo um alívio difícil de ser descrito.

- Não?

Não. Andrea Lambert foi sequestrada pelo cara da limusine. Lou Vaughn saiu em disparada, tentando seguir o carro. Mas nunca vai conseguir, com aquele Austin antigo.

Avery Noble surgiu do meio das árvores e examinou o homem caído. Depois, aproximou-se de Johnnie e Vera.

- O coitado está morto. Alguém meteu uma bala bem no meio do seu peito.

- Quem é ele?

- Um russo chamado Goncharov. Já tive uma briga com ele há algum tempo. Acreditem, a experiência foi ttaumatizante.

- Quem será que o matou?

- Não faço a mínima ideia. Bem, mas agora isso também não interessa. - Avery Noble respirou fundo. - Bem, acho que vou indo. Johnnie, ligue para o departamento e peça.para que eles mandem alguns homens. Qualquer novidade, entre em contato comigo.

Assim que Noble sumiu de vista, Vera e Johnnie voltaram ao Bentley e saíram do parque. Ele parou em frente a uma cabine telefónica, fez duas ligações e voltou depressa ao carro.

- Já avisei minha mãe, querida. Nós não vamos voltar para casa hoje. Achei que você fosse preferir passar a noite num hotel.

Vera fez que sim com a cabeça. Lady Edith era um amor de pessoa, mas com certeza iria querer saber de detalhes sobre a aventura, e ela estava exausta para responder seja lá o que fosse. Aliás, quem tinha algumas coisinhas a responder agora era Johnnie.

Ela esperou pacientemente até que chegassem ao hotel para começar o interrogatório.

- Você quer alguma coisa? - Johnnie perguntou com voz terna. - Um uísque ou um coquetel?

Vera sentou-se na beira da cama.

- Eu quero, sim. Quero respostas. Johnnie sentou-se ao lado dela.

- Você é sempre assim tão direta? Ela sorriu.

- Você é um agente secreto do governo inglês, não é? Ele passou a mão pelos cabelos.

- Acho que não dá mais para negar, não é?

- Você nunca me enganou, querido. Cara de professor você não tem mesmo!

- Foi meu amigo Marcus Lloyd que me introduziu nesse mundo. A princípio, meu trabalho era simples, e eu passava o tempo todo lidando com papéis em russo e documentos oficiais. Depois, fui tomando gosto pela coisa. - Ele fez uma pausa. - Eu comecei a ficar fascinado pelo perigo e pela aventura. O trabalho monótono, dentro do escritório, já não mais me satisfazia. Você me entende?

Os olhos dela brilhavam.

- E como!

Johnnie continuou a falar:

- Numa das minhas primeiras missões, Avery Noble foi designado como meu parceiro. Mas, infelizmente, a parceria não funcionou desde o princípio, e nós nos demos muito mal. No fim, tudo acabou saindo errado, e a missão teve de ser cancelada. Noble ficou louco da vida.

- E Lloyd?

- Marcus também não gostou nada da história. Ele e Noble nunca foram com a cara um do outro e, depois disso, o relacionamento de ambos ficou ainda pior. - Ele fez uma pausa. - Pouco tempo depois desse caso, Marcus foi envolvido num escândalo financeiro e acabou sendo obrigado a renunciar a seu cargo no departamento. Só que eu sei que ele é completamente inocente. Alguém lhe preparou uma armadilha, e o coitado caiu direitinho.

- Noble? Será que foi ele quem armou tudo?

- Acho que sim. Mas o diabo é que não tenho provas. Agora é Noble quem ocupa o antigo posto de Marcus. Bem, para encurtar a história, como eu não estava nem um pouco disposto a aceitar ordens daquele imbecil, resolvi largar tudo e aceitar o convite para dar aulas de russo na Universidade de Boston. Durante alguns meses, perdi quase que totalmente o contato com Lloyd. Nós nos falávamos apenas uma vez ou outra por telefone, até que estourou esse problema do manuscrito de Gorky.

- E, então, você voltou à ativa.

- Marcus conseguiu o manuscrito, através de um contato em Moscou. Corre rumores de que haja segredos de Estado escondidos em suas páginas, mas eu não tive chance de verificar. O que eu sei é que a CIA, a KGB e o Serviço Secreto Britânico estão desesperados atrás dele. E, então, Lloyd foi sequestrado. Tenho a impressão de que isso é obra de Daniel Emerson. O que ainda não consegui descobrir é se ele quer o manuscrito porque é raro ou por causa dos documentos secretos.

Vera ficou pensativa por alguns instantes.

- E meu tio e Andrea Lambert? Onde é que eles entram nessa confusão toda? Eu me recuso a acreditar que tio Lou seja um ladrão, ou, o que é ainda pior, um traidor. Mas devo admitir que não estou entendendo sua atitude, muito menos seu relacionamento com aquela mulher. Depois há aquela Mata Hari, a tal da Christine Dupré. Ela é mesmo amante de Marcus?

- Pelo menos, é o que Noble diz.

- Ele poderia estar mentindo.

- Não. Isso é o tipo da coisa fácil de se verificar. Ela deve mesmo ter se envolvido com Marcus e com certeza ajudou a bolar o sequestro. Essa fulana é uma das nossas ligações mais preciosas.

- Foi por isso que você dançou com ela no Ambassador... de rosto colado?

Ele sorriu ao perceber o ciúme de Vera.

- É claro que sim. Só que ela perdeu completamente o interesse por mim quando percebeu que o Gorky não estava comigo. - Johnnie fez uma pausa. - Não sei o que está acontecendo, Vera. Tudo vem dando errado, desde o momento em que esse manuscrito chegou às minhas mãos. Existem tantas peças... e eu não consigo encaixá-las. Sabe de uma coisa, querida? Acho que eu não sou o James Bond que você pensou que eu fosse...

Vera tomou o rosto dele entre mãos, e, com carinho e ternura estampados em seus olhos, disse:

- E quem se lembra que James Bond existe, depois que conhece este homem maravilhoso que se chama Johnnie Madden?

 

Christine Dupré enxugou o suor da testa com a ponta da toalha que estava em volta de seu pescoço, apanhou o fone e discou um número. As duas horas de ensaio a haviam deixado exausta e ofegante.

- Daniel? Já não era sem tempo! Estou tentando falar com você há um tempão! Posso saber que confusão foi aquela que você arrumou ontem à noite? Eu pensei...

- De onde está me ligando?

- Do meu camarim, no teatro. Estou no meio de um ensaio.

- Eu já lhe disse para nunca me ligar do teatro. Tem muita gente e...

- As únicas pessoas aqui hoje são as dançarinas, e todas elas estão no palco. Precisamos conversar, Daniel. Eu não entendo o que está acontecendo. Você prometeu que o negócio iria ser rápido e limpo. Nunca imaginei que houvesse tanta gente envolvida, tanto caos. E... tiroteio, Daniel. Eu vi um homem...

- Não se incomode com isso. Não fui eu quem fez o serviço.

- Mas o sequestro da mulher foi obra sua. Por acaso o manuscrito estava com ela? Eu juro que vou ficar louca antes que essa história chegue ao fim! Não estou mais suportando tanta pressão!

- Você não tem de suportar nada, Christine.

- Daniel...

- Fique calma, querida. Você não tem com o que se preocupar. Se Lou Vaughn quiser ver sua amiguinha de novo, vai ter de me entregar o manuscrito sem demora e sem receber um tostão. Como pode ver, as coisas estão correndo muito bem...

- Ah, muito bem mesmo. Ajudei você a sequestrar duas pessoas, uma das quais é muito importante para mim, e ainda por cima tem uma porção de gente louca para pôr as mãos no meu pescoço!

- Não se afobe. Não há motivo nenhum para isso. Já deixei um recado no hotel de Lou Vaughn, pedindo para que ele a procure, amanhã à tarde, aí no teatro, com o manuscrito na mão. Depois eu lhe digo o que deve fazer, está bem?

- Mas e se Vaughn não aparecer? E se decidir ficar com o manuscrito?

- Daí ele terá a morte de Andrea Lambert na consciência durante o resto dos seus dias.

Christine franziu a testa.

- E a sua consciência, Daniel? Como é que ela fica?

Ele caiu na risada e desligou. Christine Dupré ficou parada, olhando para o fone. Sua pergunta havia sido inútil. Sabia muito bem que Daniel Emerson não tinha consciência nenhuma. Restava saber se a dela ainda existia.

O coreógrafo Lennie Aarons bateu palmas.

- Vamos lá, pessoal. Quero passos mais leves desta vez. Nada de agitação. Podem tomar seus lugares. Ei! Esperem! Onde está a loira, a terceira da esquerda para a direita? Como é mesmo o nome dela? O'Malley, não é?

Uma ruiva, que calçava as sapatilhas naquele momento, se encarregou de responder: -

- Ela machucou o pé e foi comprar um band-aid na farmácia da esquina. Disse que voltaria em cinco minutos.

Aarons não gostou muito da história.

- Eu deixei claro que não queria que ninguém saísse até o intervalo. Não quero nenhuma prima donna tumultuando os ensaios. Se ela não aparecer dentro de dois minutos, poderá se considerar fora do espetáculo. E que isso sirva de alerta a todos vocês. Isso aqui não é berçário. As pessoas não podem sair correndo assim que sentirem uma dorzinha à toa!

Quarenta e oito segundos depois, Vera Blue, vermelha e ofegante, subia no palco e retomava seu lugar. Tentou prestar atenção nos passos, mas estava ansiosa demais em voltar ao hotel e contar as novidades a Johnnie.

Johnnie Madden estava desligando o telefone quando Vera entrou voando no quarto.

- Quero lhe contar uma coisa que... Mas ele a interrompeu.

- Acabei de falar com Noble. Vamos até o escritório dele. Seu tio está lá.

- O quê? Tio Lou foi até lá? Fazer o quê?

Não havia como lhe dar a notícia de um modo mais gentil.

- Avery o prendeu, Vera.

- Mas por quê? Por causa do manuscrito? Mas ele não roubou nada! Quem passou a mão no livro foi Andrea Lamberí! Além disso, Noble não tem provas e...

- A prisão do seu tio não tem nada a ver com o manuscrito.

- Não? Agora que eu não estou entendendo nada!

- É melhor você trocar de roupa. Quero chegar lá o mais depressa possível.

- Pelo amor de Deus, Johnnie, fale logo! Tio Lou foi acusado de quê?

- De... ter matado um homem. Vera pensou que fosse desmaiar.

- Matado um homem?

- É melhor você se sentar um pouco. vou lhe preparar um drinque.

Vera correu atrás dele.

- Pelo amor de Deus, Johnnie, desembuche! Ele foi acusado de matar quem?

- O homem que você viu caído ontem, no parque. Um russo chamado Goncharov. O fulano era guarda-costas de um tal de Zakharov, da KGB.

- Se ele o matou, só pode ter sido em legítima defesa!

- Vera nunca se sentira tão revoltada em toda a sua vida.

- Tio Lou não é um assassino!

- Calma, querida. - Johnnie a abraçou. - Eu tenho certeza de que tudo vai ser esclarecido.

Ela respirou fundo várias vezes.

- Tio Lou... sabe que eu estou viva? Noble lhe contou?

- Para falar a verdade, eu não perguntei.

- Ah, já ia me esquecendo. Ouvi a conversa que Christine Dupré teve com Daniel Emerson pelo telefone. Ela estava uma fera!

Johnriie deu um sorriso.

- Posso perguntar como foi que você conseguiu ouvir essa conversa, querida?

- Claro que pode. Eu estava escondida embaixo da cama do seu camarim. Procurando um band-aid, para o meu pé machucado.

Avery Noble lançou-lhe um olhar compreensivo.

- Sinto muito, Vera. Sei o quanto tudo isso a está aborrecendo.

- Onde está meu tio? - ela foi logo perguntando, dispensando maiores manifestações de simpatia. - Gostaria de falar com ele. Em particular, se possível. Por acaso já lhe contou que a história da minha morte foi mentira e que eu estou... bem viva?

- É claro que sim. E devo dizer que ele não ficou muito surpreso. Acho que sabia, desde o começo, que essa sua ida para o além não passava de pura invenção e...

- Chega de conversa mole - interrompeu Johnnie. Vera quer ver o tio. E, enquanto eles conversam, vou lhe contar uma coisa muito interessante a respeito de Christine Dupré e Daniel Emerson.

Noble sorriu, com ar de superioridade.

- Eu já sei o que você vai falar, embora não faça ideia de como tenha descoberto. Quanto aos nossos métodos, apenas interceptamos um recado deixado para o sr. Vaughn, no seu hotel. Ele deveria procurar Christine Dupré no teatro e aceitar os detalhes da entrega do manuscrito. Aliás, gostaria de que esse "encontro" fosse mantido. Assim poderíamos chegar a Emerson com mais facilidade.

- Por favor, sr. Noble! - insistiu Vera. - Deixe-me ver o tio Lou!

Ele deu um suspiro.

- Ah, essas mulheres... São tão sentimentais! Tudo bem, já vou chamá-lo. - Ele apertou um botão. - Bob, mande o homem para cá. - Depois, virou-se para Johnnie. - Vamos deixá-los a sós.

Vera Blue ficou ali, sozinha no escritório, sentindo uma grande angústia. Só se acalmou no momento em que Lou Vaughn apareceu e ela viu, com seus próprios olhos, que ele estava bem.

- Tio Lou!

Eles se abraçaram, entre risos e lágrimas. Depois, sentaram-se num sofá.

- Que confusão, não é, querida? - Ele não parecia nem um pouco preocupado. - E pensar que nós dois levávamos uma vida tão pacata... Bem, deixe-me olhar para você. Hum... acho que nunca a vi tão bem em toda a minha vida. Há um brilho em seus olhos que não existia antes.

Ela sorriu.

- Você é que está ótimo, tio. Uma grande surpresa, considerando-se o que vem passando...

- Foi tudo um grande mal-entendido. As coisas vão ser esclarecidas, você vai ver. - Ele fez uma pausa. - Não fiz nada de errado, Vera. Você precisa acreditar em mim.

Ela o abraçou.

- Mas é claro que eu acredito! Só que não estou entendendo nada...

Lou Vaughn procurou mudar de assunto.

- Quando eu li a respeito da sua... morte, quase fiquei maluco. Mas alguma coisa no fundo do meu coração dizia que você estava bem... Então eu a vi no Ambassador Club...

- Ele sorriu. - A princípio, nem consegui acreditar. Mas era você mesma, vestida de garçonete, não era?

- E eu que pensei que estivesse enganando todo mundo...

- Você me surpreende, Vera. Posso saber como foi que se envolveu nessa história?

- E você? Se envolveu como?

- Acho que nós dois fomos seduzidos. Eu, por uma dama desesperada. E você, por um homem alto e moreno. Ele fez uma pausa. - Eu sei que é uma mulher adulta, Vera, e que há muito não me deve mais obediência. Mas, de qualquer modo, gostaria de que aceitasse minha sugestão. Volte para casa. As coisas por aqui podem ficar pretas. Ela baixou a cabeça.

- Não quero ir embora, tio. Já fui muito longe para recuar agora.

Ele deu um sorriso desanimado.

- Eu tinha certeza de que iria falar isso. - Ele suspirou. - Vera, será que você pode me fazer um favor?

- Claro. O que é?

- Sei que pode parecer estranho, mas gostaria que você entrasse em contato com meu investidor em Boston. Carpenter, você se lembra dele?

- Lembro, sim. Mas por que você quer que eu o procure?

- Quero que ele pare de comprar ouro e comece a investir meu dinheiro em outro tipo de negócio. Você lhe dá esse recado?

- Claro. Só não entendo como você pode se preocupar com uma coisa dessas quando sua vida está tão atrapalhada! Me diga uma coisa. O manuscrito está com você? Pretende mesmo ir ao encontro de Christine Dupré para negociar o resgate de Andrea Lambert? Houve uma longa pausa.

- O manuscrito não está mais comigo, Vera.

- Não? - Ela ficou branca. - Alguém já passou a mãoB nele?

Lou Vaughn sorriu, para tranquilizá-la.

- Não. Ele está num local seguro. Deve recebê-lo amanhã, sem falta.

Ela deu um suspiro de alívio.

- Ainda bem.

- Por favor, querida. Não se esqueça de ligar para Carpenter e dizer que eu insisto para que ele pare de comprar ouro e comece a investir em outro tipo de negócio.

Entendeu?

Na verdade, Vera não entendia nada. De qualquer modo, fez que sim com a cabeça, concordando.

 

Na manhã seguinte, Johnnie deixou Vera na casa de sua mãe e foi tratar de seus negócios. Lady Edith tinha saído, e Vera passou o dia todo sozinha, andando de um lado para outro, sem ter o que fazer.

Só na hora do jantar Johnnie resolveu dar o ar de sua graça. E não estava sozinho.

- Tio Lou!

Esquecendo temporariamente a frustração por ter sido abandonada, Vera correu para abraçá-lo.

- O que está fazendo aqui? Avery Noble o soltou? Lou Vaughn sorriu e apertou a sobrinha nos braços.

- Vamos dizer que ele tenha... se convencido da minha inocência. - Ele olhou em volta. - Que casa linda, Madden. Parece um palácio.

- Obrigado. Diga isso a minha mãe. Ela vai gostar de ouvir. Você toma alguma coisa? Um uísque, talvez?

- com gelo, por favor.

Quando Johnnie se afastou para apanhar a bebida, Lou Vaughn virou-se para a sobrinha.

- Você está apaixonada por ele, não é, querida? Ela fez que sim com a cabeça.

- Dá para perceber, não é?

- Dá. Seus olhos brilham quando ele se aproxima. Lou Vaughn fez uma pausa. - E isso me deixa muito preocupado.

- Preocupado por quê?

- Porque Madden não me parece um homem... disposto a se amarrar tão cedo. Tenho medo de que você venha a sofrer e...

- Já entendi tudo, tio Lou. Você acha que um agente secreto lindo de morrer como Johnnie jamais pensaria em ter um relacionamento sério com uma vendedora modesta e sem graça, não é? Ele lhe apertou o braço.

- Não foi nada disso que eu quis dizer. Só acho que você deveria... lhe dar um pouco mais de tempo para pensar e avaliar seus próprios sentimentos. Volte para casa, querida. Ouça o que estou lhe dizendo.

Johnnie voltou à sala com dois copos na mão.

- Vamos beber à sua liberdade, Lou. E ao sucesso da nossa missão!

Vera sentia-se tão desanimada que se sentou no sofá e deixou que os dois confabulassem à vontade. Estava louca da vida. Vinha arriscando seu pescoço desde o momento em que entrara naquela história e agora aqueles dois queriam vê-la pelas costas. Não era justo!

Lady Edith chegou momentos depois. Após alguns minutos de conversa, ela convidou Lou Vaughn para conhecer sua casa.

- O senhor vai adorar nossa biblioteca! Depois que eles saíram, Johnnie sentou-se no sofá.

- Você está com uma cara meio estranha, Vera. O que aconteceu?

- Aconteceu que você está me boicotando, e eu não suporto isso!

Ele deu um longo suspiro.

- Quero que me ouça, querida. Você é uma mulher inteligente, maravilhosa e corajosa. Mas...

- Mas você não precisa mais de mim. Fez-se um longo minuto de silêncio.

- É verdade. Eu não preciso mais de você.

Foi como se o mundo tivesse caído em sua cabeça. Vera procurou disfarçar as lágrimas que começavam a brotar em seus olhos.

- Johnnie... Será que tudo isso não passou de simples fantasia? Será que eu só imaginei... que você gostou um pouquinho de mim?

Ele se levantou e começou a andar pela sala. Vera Blue era a mulher mais incrível que conhecera na vida. Mas, de qualquer modo, ainda se sentia inseguro. Seu futuro era cheio de incertezas. Estava confuso e desorientado. E a presença daquela mulher desconcertante só servia para aumentar sua confusão.

- Gostaria de que voltasse para Boston amanhã, Vera. Ela o encarou.

- E se eu não quiser?

- Por favor, seja... razoável. Seu tio vai falar com Christine. Ela deverá marcar um encontro com Emerson. Nós também iremos ao tal encontro, agarramos o cara e a confusão toda estará terminada antes que seu avô chegue a Boston.

- E os russos?

- Espero que Zakharov também apareça. Faz tempo que estamos querendo pôr as mãos nele.

Vera ficou pensativa por alguns instantes. Sentia que seu coração estava prestes a explodir de tanta dor.

- Tudo bem, Johnnie. Eu vou embora. Mas só quando tudo já estiver terminado. Me recuso terminantemente a partir e deixar as coisas pela metade. Você me envolveu nessa história quando invadiu minha livraria à procura de abrigo. Agora vai ter de me aguentar até o fim.

- Mas...

- Não tem nada de "mas". Nada vai me fazer mudar de ideia.

Lou Vaughn entrou na sala com um grande sorriso nos lábios.

- Sua mãe é um amor, Madden. Me mostrou a casa toda e insistiu para que eu ficasse para o jantar. - Ele parou de falar ao reparar no desânimo da sobrinha. - Vera, o que foi? Aconteceu alguma coisa?

- Aconteceu. Vocês dois estão conspirando contra mim. Querem me ver pelas costas a todo custo, não é? Agora, se pensam que vão... - Ela fez uma pausa. - Ei, esperem um pouco... Estou me lembrando de uma coisa... Naquele restaurante, em Cohasset... Lês Sharp me falou de um agente chamado Gold... Gold que dizer ouro em inglês... E você, tio Lou, me pediu para dar um recado a Carpenter que envolvia ouro... Meu Deus! O agente Gold é você!

Lou Vaughn deu um sorriso. Sua sobrinha era mesmo impossível. Ela se levantou do sofá, com os olhos arregalados.

- Não dá para acreditar num absurdo desses! Você, tio Lou, o homem que me criou desde os quatorze anos... o homem que eu conheci minha vida toda... é agente da CIA? É inacreditável!

Os dois homens ficaram em silêncio.

- Agora estou entendendo todas aquelas viagens para a União Soviética e outros lugares... Bem, uma pessoa que lida com livros raros viaja bastante. Quem iria imaginar que você estava viajando em missão especial?

Vera voltou a se sentar. Aquela revelação fora o bastante para esgotá-la de vez.

- E Andrea Lambert? - ela continuou. - Essa fulana também é agente?

LQU sentou-se a seu lado.

- Não. Andrea Lambert entrou nessa história por acaso. Ela não passa de uma mulher desesperada, que quer localizar a irmã, Denise, casada com Daniel Emerson. Esse caso todo acabou caindo nas minhas mãos graças a você, querida. Lá estava eu, um agente prestes a se aposentar, quando você me apareceu em casa com aquele manuscrito nas mãos. Eu liguei imediatamente para o quartel-general, em Langley, e eles me pediram para mandar aquela verdadeira bomba para lá na mesma hora. - Ele fez uma pausa. - Mas daí Andrea Lambert apareceu e eu resolvi ajudá-la. E achei que, durante o decorrer do caso, ainda poderia pôr as mãos em Zakharov. De qualquer modo, eu sabia que não poderia ficar andando com o manuscrito no bolso para baixo e para cima. Então, antes de embarcar, sem que Andrea percebesse, eu despachei o pacote, e ele chegou às mãos do meu pessoal muito antes de pisarmos em Londres.

Vera pegou o copo das mãos de Johnnie e tomou um gole de uísque.

- E o recado a Carpenter?

- Aquilo é uma espécie de senha. Eu precisava do manuscrito de volta e queria que o pessoal em Langley confirmasse minha identidade, para que Noble parasse de me aborrecer. Vera esvaziou o copo.

- É inacreditável... Meu tio é um agente secreto. Você Johnnie, que se fazia passar por um simples professor... é um agente secreto. Será que eu sou a única por aqui que não é espiã? Agora, só falta vocês me dizerem que lady Edith...

Johnnie sorriu.

- Pelo menos no Serviço Secreto Britânico ela não trabalha. Por acaso ela é agente da CIA, Lou?

Lou Vaughn caiu na risada.

Só que Vera não estava achando graça nenhuma.

- Vocês mentiram para mim! Não pretendiam me contar a novidade, não é? Mas o que não sabiam é que eu era mais esperta do que os dois juntos! - Ela se aproximou de Johnnie. - Você não foi nem um pouco honesto comigo! Derek Colton jamais faria uma coisa dessas!

Os dois homens se entreolharam.

- Quem é Derek Colton, Madden? - cochichou Lou Vaughn.

- Não faço a mínima ideia. O velho deu um sorriso.

- É melhor tomar cuidado. O sujeito pode ser seu rival.

 

- Trabalhamos para um governo que não tolera o fracasso - avisou Zakharov.

Borofsky e Petrenko concordaram, nervosamente. Fracasso. Era só aquilo que eles haviam conhecido até então. Já podiam até adivinhar qual seria o seu destino: Sibéria.

- Felizmente, eu mantenho certas... conexões. - Zakharov fez uma careta. Ou talvez estivesse sorrindo. Às vezes era difícil de distinguir. - Conexões que podem nos ajudar a transformar o fracasso em triunfo. E, agora, eu quero o triunfo não apenas para meu país, mas também para um camarada que perdeu a vida no cumprimento do dever.

Seguiu-se um minuto de silêncio em homenagem ao malvado Goncharov. Borofsky e Petrenko faziam caras tristes, mas, quando Zakharov virou de costas, ambos deram um sorriso. Nenhum dos dois jamais sonharia em contar ao chefe que a bala que despachara o brutamontes para o além viera de suas próprias armas. Não sabiam quem havia acertado o alvo. Melhor assim. Daquele modo, tinham certeza absoluta de que o voto de silêncio entre ambos jamais seria quebrado.

Na verdade, eles não queriam matar ninguém. Mas ficaram tão assustados, ao ver o fantasma da moça entre as árvores, que começaram a correr feito alucinados, atirando em tudo o que se movimentava. E uma das balas atingira o brutamontes, que tinha ido ver por que ambos estavam demorando tanto. Azar dele. Quem havia mandado aparecer na hora errada, no lugar errado?

O minuto de silêncio para o bravo camarada Goncharov chegou ao fim. Agora era hora de Zakharov terminar seu trabalho.

E era hora também de Borofsky e Petrenko se redimirem. Tudo indicava que aquela seria a última chance deles.

- Não me importa que você já tenha ido longe demais, Johnnie - disse Avery Noble, com a voz irritada. - Quero você fora dessa história. Você e sua amiguinha Vera Blue, que só fez bobagens até agora. - Ele se virou para Lou Vaughn, sentado no outro canto da sala. - Quanto a você, Vaughn, devo dizer que estou muito satisfeito com o modo como conduziu sua conversa com Christine Dupré. Seu próximo passo é usar a passagem aérea que ela lhe deu e embarcar para Paris. Um carro estará à sua espera no aeroporto. Emerson está se mordendo de vontade de fazer o negócio: o manuscrito em troca de sua mulher, da cunhada Andrea Lambert e de Marcus Lloyd. Quero que se comporte da forma mais natural possível. Mostre o pacote ao sujeito e deixe o resto com meu pessoal. Bem entendido?

Lou Vaughn apertou os olhos.

- E os russos? com certeza eles também vão aparecer. Aqueles gorilas estão em todo lugar, grudando em nós como se fossem carrapatos.

- Esqueça-os. Meus homens vão cuidar deles. Chamei os melhores agentes que temos para essa missão. - Ele fez uma pausa. - Só os melhores. Por isso, Madden, considerese dispensado do caso. E não ouse aparecer em Paris, ouviu bem? Porque, se você e aquela abelhuda da Vera Blue resolverem dar o ar da sua graça por lá, as coisas vão ficar pretas para o seu lado. Pretas, está ouvindo?

Johnnie e Lou Vaughn se levantaram e saíram da sala. Noble correu para a porta.

- Você me ouviu, Madden? - Ele estava furioso. Não apareça em Paris! Isso é uma ordem! Ainda sou seu superior, e você me deve obediência! Está me ouvindo, seu surdo?

Se Johnnie não ouviu, pelo menos o décimo quarto andar inteiro ficou a par do recado.

- Olhe, Vera, desta vez você não pode mesmo vir conosco. - Johnnie viu que ela ia abrir a boca para protestar.

- Não quero discutir o assunto. Já está decidido. Você fica aqui, ao lado da minha mãe. Deixe que seu tio Lou e eu tomemos conta de tudo.

- Mas eu...

- Vera, pelo amor de Deus, seja razoável. Você não está preparada para enfrentar uma situação dessas. Poderia ser ferida... ou coisa pior. Isso é negócio para profissionais, para gente que entende do assunto. - Lou Vaughn serviuse de uma dose de uísque e entregou um cálice de licor a lady Edith, que estava a seu lado.

- Obrigada, sr. Vaughn. Ele sorriu.

- Gostaria de que me chamasse de Lou. De nada... Edie. Vera Blue estava inconformada.

- Por favor, me deixe ir com vocês! Prometo que não vou fazer nenhuma bobagem!

Johnnie balançou a cabeça.

- De jeito nenhum. Desta vez o negócio é muito sério. Lady Edith terminou seu licor e colocou o copo sobre a

mesa.

- Bem, se vocês me derem licença, vou andando agora. Tenho algumas coisinhas para resolver na cidade. Boa viagem para vocês dois. - Ela deu um beijo no filho. Cuide-se, Johnnie querido. - Estendeu a mão para Lou Vaughn. - Quero que se cuide também, sr... isto é, Lou.

- Obrigado... Edie.

Vinte minutos depois de lady Edith ter saído, Vera implorava para ser levada a Paris.

- Por favor, Johnnie...

- Não, não e não. - Ele olhou para o relógio. - É melhor já irmos indo para o aeroporto, Lou. Não quero me atrasar. Ele se virou novamente para Vera. - Fique tranquila, querida. Antes que você possa imaginar, seu tio e eu estaremos de volta.

Ela o abraçou.

- Johnnie, meu querido, deixe-me ir com vocês! Por favor! Nós dois formaremos uma dupla invencível!

- Você não desiste, não é?

- Não! E não vou desistir nunca!

- Bem, então, nesse caso... Ela começou a se animar.

- Quer dizer que vai me levar com você?

- Quero que se sente aqui, Vera. - Ele apontou para uma cadeira. - Vamos, depressa.

Vera obedeceu, sem entender o que se passava. Johnnie abriu uma gaveta e se aproximou dela, por trás. Antes que se desse conta do que havia acontecido, Vera Blue tinha as mãos amarradas ao encosto da cadeira.

Ela começou a gritar, desesperada.

- Johnnie, por acaso ficou louco? Você não pode fazer isso comigo! Me solte imediatamente!

- Sinto muito, querida, mas esse é o único jeito de ter certeza de que você não vai me seguir.

Ela se debatia freneticamente.

- Não vou perdoá-lo nunca, Johnnie! Você me paga!

- Eu tinha de fazer isso, Vera. Senão, você iria subir atrás de mim naquele avião, disfarçada de aeromoça ou coisa parecida. Fique aí quietinha, meu amor. Dentro de duas horas, mais ou menos, minha mãe vai estar de volta e poderá soltá-la. Ah, e não adianta gritar por socorro. Dei folga para os empregados esta noite.

Ela ainda tentou apelar para Lou Vaughn.

- Tio Lou, por favor, peça para Johnnie me soltar! Vocês não podem fazer isso comigo!

O velho aproximou-se dela.

- Nós conhecemos você, minha filha. E precisamos ter certeza de que, desta vez, não seremos seguidos. - Ele se inclinou para lhe dar um beijo, mas Vera virou o rosto. Até logo, querida. Antes que você possa imaginar, tudo isso já estará acabado.

Lou Vaughn deixou a sala. Johnnie passou a mão pelos cabelos de Vera, tentando acalmá-la.

- Quero que me escute, querida...

- Eu não vou escutar nada! - ela berrou. - Saia daqui, seu monstro. Agora mesmo!

Ele deu um suspiro e se afastou. Não tinha mais tempo a perder. Se não andasse logo, acabaria perdendo o voo.

Na volta, se é que haveria uma volta, daria um jeito de fazer com que Vera entendesse sua atitude e o perdoasse.

Borofsky espirrou pela quarta vez. Não aguentava mais ficar ali, escondido atrás de uma árvore, no jardim da mansão de lady Edith, naquele frio desgraçado. Odiava o clima de Londres. Sentiu-se profundamente irritado. O tempo em Paris devia estar muito melhor. Por que Zakharov não havia mandado seguir Madden à França e deixado aquele idiota do Petrenko vigiando o fantasma? Bem, afinal de contas, não era um fantasma de verdade. A vendedora não tinha morrido coisa nenhuma. De qualquer modo, aquela era uma grande perda de tempo. Madden e Vaughn tinham saído há poucos minutos. Lady Edith saíra um pouco antes. Vera Blue ainda estava ali dentro. Era pouco provável que fosse sair. A noite prometia ser muito aborrecida.

Mas imagine se Zakharov ia acreditar numa coisa daquelas. O chefe estava convencido de que a tal Blue não era uma vendedora inocente. Desde o momento em que seu contato em Londres havia revelado a verdadeira identidade de Lou Vaughn, Zakharov pusera na cabeça que sua sobrinha também trabalhava para o governo americano. Tinha certeza de que ela era uma alta agente, talvez até mais importante do que seu tio. Provavelmente a chefona de toda a operação.

Vera Blue estava chorando. De raiva. Nunca se sentira tão frustrada em toda a sua vida. Johnnie Madden, como todos os homens, não passava de um grande sem-vergonha sem coração, que usava as pessoas sem nenhum escrúpulo e depois as jogava fora. Ele iria pagar muito caro! Ah, a hora em que pusesse as mãos nele...

Seus planos de vingança foram interrompidos no momento em que ouviu barulho na sala. Não podia ser lady Edith. Ela ainda ia demorar a chegar. E os empregados estavam

de folga. Será que Johnnie se arrependera e acabara voltando?

A porta da biblioteca se abriu, lentamente. Vera segurou a respiração. Não podia ser Johnnie. Ele já estava atrasado para o embarque. Sentiu um friozinho na barriga e um ódio mortal daquele maldito que a amarrara daquele jeito, fazendo dela um alvo fácil para qualquer um que quisesse acertá-la.

Segundos depois, Christine Dupré entrava na sala, com uma pistola na mão. Parecia tão trémula e assustada quanto a própria Vera.

- Onde está Madden? - perguntou ela, olhando em volta.

- Você está atrasada. - Vera fez força para que sua voz saísse firme. - Ele já foi embora.

- Já? - Christine largou a arma. - Meu Deus... Ei, espere um pouco. Não era assim que as coisas deviam

acontecer.

- Por que quer falar com Johnnie? -perguntou Vera, com cautela.

Christine Dupré fechou os olhos.

- Eu só fiz bobagens. As coisas não aconteceram do jeito que eu queria... Saiu tudo errado! - Ela abriu os olhos de novo. - Tudo errado mesmo!

Vera teve a impressão de que a beldade morena estava começando a chorar.

- Quem amarrou você desse jeito? - ela perguntou. O russo trapalhão que está aí fora, vigiando a casa? Bem, pode ficar sossegada. - Christine Dupré forçou um sorriso. - Ele não vai aborrecê-la de novo, durante um tempinho.

Vera não se incomodou de perguntar o que ela havia feito com o pobre coitado.

- Você vai me soltar? Christine balançou a cabeça.

- Não. Você ligaria para a polícia assim que eu fosse embora. Preciso fugir Para muito longe. - Ela respirou fundo. - Eu nunca deveria ter me envolvido com o

demónio...

- Você está se referindo a Emerson?

- Agora ninguém vai acreditar que eu amo Marcus Lloyd de verdade. Daniel Emerson pôs na minha cabeça que eu iria perdê-lo, mais dia, menos dia. Que era só uma questão de tempo. Pensei que uma grande soma em dinheiro pudesse me confortar quando ele finalmente resolvesse ir embora. Nunca pensei que Daniel fosse raptá-lo. Mas, agora que o conheço bem, sei que ele é capaz de fazer coisas bem piores. Acho que pretende liquidar Mar cus... e a mulher, também. O sujeito é louco!

- As mulheres também?

- Está se referindo a Denise?

- A Denise e à irmã dela, Andrea.

- Irmã?

- Andrea Lambert, a mulher que conversou com você no Ambassador Club. A que estava com meu tio.

Christine deu uma risada.

- Pelo que eu saiba, Denise não tem irmã alguma. Aquela era a própria mulher de Daniel. Ela sabia que o marido estava louco pelo manuscrito e resolveu passar a mão nele pôr vingança, quando descobriu que o imbecil ia fugir com... - com você?

- Claro que não. Daniel e eu não somos amantes. Nunca fomos. Ele não gosta de misturar negócios com prazer. Nosso relacionamento sempre foi... profissional, digamos assim. Nós temos algumas coisas em comum. Ganância, por exemplo.

Vera mal podia acreditar no que ouvia. Ninguém naquela história era o que parecia. Christine Dupré continuou a falar:

- Daniel se casou há alguns meses. Cansou-se logo da mulher e, um dia, ela ficou sabendo que o marido estava prestes a fugir com a pianista da musical Fanfarra. A coitada ficou com tanto ódio que decidiu pôr as mãos no manuscrito de qualquer jeito, para fazer chantagem e obrigá-lo a ficar com ela. - Christine Dupré deu um sorriso. - Grande idiota, essa Denise Lambert Emerson.

Enquanto a francesa falava, a porta da biblioteca se abriu lentamente. Uma cabeça foi colocada para dentro. Vera teve de fazer um esforço sobre-humano para não demonstrar sua surpresa.

Era lady Edith. Mas não como Edie, a garçonete. Agora ela era madre Edith, uma dedicada religiosa.

A "freira" atravessou a sala, em silêncio. A atenção de Christine Dupré estava voltada para a mulher amarrada à sua frente.

Não foi uma Bíblia que a madre levantou atrás da francesa. Foi um vaso. Dos caros, por sinal. E depois que se espatifou na cabeça de Christine, Vera teve certeza de que nunca mais poderia ser consertado.

Lady Edith não se incomodou com a perda do vaso, embora tivesse preferido não machucar a garota. Mas aquela não era a hora para arrependimentos. Soltou Vera e entregou-lhe um segundo hábito.

- Acabei de alugar essas duas fantasias, querida. Imagine só se eu ia deixar que Johnnie e Lou Vaughn nos passassem para trás desse jeito. Nunca! Vamos, vista-se logo. A madre Edith e a irmã Vera vão visitar Paris!

 

Vera e lady Edith entraram no avião para Paris cinco minutos antes do embarque. Ambas estavam cansadas e ofegantes por terem corrido feito loucas pelos corredores do aeroporto, mas muito satisfeitas consigo mesmas.

- Por aqui, irmãs - soou a voz respeitosa da aeromoça. Elas estavam chegando a seus lugares quando passaram por um padre de cabeça baixa, provavelmente perdido em suas orações.

Mas não tão perdido assim. No momento em que ambas se acomodaram em suas poltronas, o religioso se levantou e se aproximou delas, fúria e espanto estampados em seu rosto.

- Suas duas irresponsáveis! - exclamou Johnnie Madden, sentando-se na poltrona vaga ao lado de Vera. - Vocês perderam o juízo! Por acaso têm consciência da fria em que estão se metendo?

- Nós tínhamos de vir - respondeu Vera. - Espere só até saber das novidades. Ah, mas primeiro, pode esquecer a beldade morena. Sua mãe já cuidou dela. E um dos russos também já está fora do páreo.

Johnnie arregalou os olhos.

- Você, mamãe?

Vera continuou a falar, animada.

- Você nem imagina quem é AndreaLambert. Na verdade, a fulana não existe e...

- Eu não consigo acreditar numa coisa dessas. Não consigo mesmo... - Ele balançou a cabeça. - Como eu fui idiota, achando que uma simples corda fosse o bastante para segurá-la em Londres... E, ainda por cima, você recrutou minha mãe!

- Eu não fui recrutada - reclamou a madre superiora.

- estou aqui como voluntária. E, se não tivesse chegado a tempo em casa, sabe Deus o que teria acontecido a Vera. Na hora em que eu entrei na sala, Christine Dupré linha uma arma apontada para ela. E a pobrezinha amarrada daquele jeito, sem poder se defender. Francamente, Johnnie. Nunca pensei que você pudesse fazer uma coisa dessas! E eu que achei que o conhecia bem! - Ela fez uma pausa. - Agora, eu nem sei se o conheço mesmo ou não!

- Eu fico imaginando - comentou Vera - se as pessoas realmente conhecem umas às outras profundamente. Mesmo as pessoas que amamos. Talvez principalmente as pessoas que amamos.

- O que estamos esperando? Não devíamos segui-los?

- perguntou Vera, no aeroporto Charles de Gaulle, ao ver o tio partindo em seu Renault alugado atrás de um seda preto brilhante.

- É verdade - concordou lady Edith. - Não devíamos ir atrás deles?

Johnnie lançou-lhes olhares furiosos.

- Gostaria que vocês voltassem à suas orações.

- Mas eles estão indo embora! - as duas protestaram, em coro com uma lentidão que Vera e lady Edith acharam frustrante, Johnnie dirigiu-se a um Mercedes branco estacionado ali adiante. Observou as duas freiras ansiosas durante um longo instante.

- Tudo bem, irmãs. Entrem no banco de trás. E boca fechada!

As duas sorriram, vitoriosas.

- Sim, padre.

- E agora? - perguntou Vera, no momento em que ele deu a partida e o carro entrou em movimento.

- Eu disse boca fechada, irmã Vera... Ela se inclinou para a frente.

- Você sabe para onde estão indo? Pensei que...

- Eu disse boca fechada!

- Ora, Johnnie, você não está sendo justo! Se não fosse eu, você nunca teria descoberto a verdade a respeito de Denise Emerson. Acho que mereço algum crédito, não é? Johnnie tirou o pé do acelerador e começou a dirigir mais devagar.

- Ei! - protestou Vera. - Você não está pensando em parar e nos deixar aqui, está?

- Nada me daria mais prazer nesse mundo, querida. Mas eu sei que não adiantaria nada. Vocês arrumariam uma carona e dariam um jeito de me seguir.

Ela franziu a testa.

- Então incomoda-se de me dizer para onde estamos indo?

Ele respirou fundo.

- Para uma cidadezinha chamada Dampierre, a quarenta quilómetros de Paris. Um vale de orquídeas e vinhedos. Um desses vinhedos pertence a um inglês.

- Emerson?

- O próprio. É lá que o negócio vai se realizar.

A viagem foi muito rápida. Johnnie diminuiu a velocidade ao chegar à cidadezinha e estacionou o carro ao lado de uma igreja de pedra.

- Por que estamos parando aqui? - perguntou Vera, ajeitando seu chapéu de noviça.

Os três desceram do carro.

- A casa de Emerson fica no fim dessa rua. vou seguir o resto do caminho a pé. - Johnnie tomou a mão de Vera nas suas. - Eu admiro a coragem e a inteligência, querida. Mas também admiro a cautela e o bom senso. Por isso, quero que vocês duas entrem nessa igreja e fiquem aí dentro, à minha espera.

- Mas...

- Nada de "mas", irmã Vera. E nada de "mas", madre Edith. Agora, tratem de entrar logo e comecem a rezar. - Ele fez uma pausa. - Do jeito que as coisas estão complicadas, acho que vou precisar mesmo de muita oração...

Johnnie aproximou-se da casa de Emerson com passos rápidos. O Renault de Lou Vaughn estava estacionado ali adiante.

À sua esquerda havia um celeiro branco. Correu para lá, na esperança de que Marcus Lloyd pudesse estar preso lá dentro. Empurrou a porta e entrou. O lugar estava completamente deserto. Onde estaria seu amigo? E será... que ainda estava vivo?

Johnnie deixou o celeiro e aproximou-se da casa de Emerson, escondendo-se atrás de árvores e arbustos. De joelhos agora, levantava-se ao chegar perto de cada janela e olhava para dentro. Todos os quartos pareciam vazios, até chegar ao último, nos fundos do casarão.

Foi aí que deu um grande suspiro de alívio. Graças a Deus. As coisas ainda não estavam completamente perdidas. Tirou a arma da cintura e começou a abrir o vidro.

Zakharov e Petrenko entraram na igreja de pedra de Dampierre.

- Fique aqui na porta - Zakharov ordenou. - E mantenha os olhos bem abertos!

Petrenko apontou para as duas freiras, ajoelhadas no primeiro banco.

- Ao que parece, chefe, não estamos sozinhos. Zakharov franziu a testa, aborrecido, e jogou o cigarro

no chão. Haviam lhe dito que aquela igreja era lugar ideal para uma reunião, já que não era usada há muitos anos. Amaldiçoou sua própria falta de sorte. Droga. Não podia conversar sossegado com aquela pessoa, na presença de quem quer que fosse.

Naquele momento, um outro homem entrou na igreja e aproximou-se de Zakharov. Também pareceu aborrecido ao ver as freiras logo ali adiante.

- Pensei que ninguém viesse aqui - comentou o sujeito. - Vamos conversar num lugar mais sossegado.

Segundos depois de eles terem saído, as duas irmãs se levantaram.

- São os russos - cochichou Vera. - Vamos atrás deles.

Elas não precisaram ir muito longe. Zakharov e seu amigo misterioso conversavam debaixo de uma árvore, no cemitério atrás da igreja.

Vera e lady Edith passaram por eles, de cabeça baixa, e foram rezar num túmulo mais adiante. Vera deu graças a Deus por poder se ajoelhar. Mais um segundo e teria caído no chão, de tanto que suas pernas tremiam. Havia reconhecido a pessoa que falava com Zakharov. E tivera de fazer uma força incrível para não dar um grito de espanto.

Esperou que os homens se afastassem, cochichou qualquer coisa a lady Edith e as duas, de hábito levantado, saíram correndo em direção à casa de Daniel Emerson.

Johnnie conseguiu levantar o vidro da janela e entrou. O quarto era pequeno e úmido, e sobre a única cama estreita e desconfortável que havia no aposento jazia Marcus Lloyd, imóvel como uma estátua.

Aproximou-se dele e tocou de leve em seu rosto.

- Marcus? Nada.

Resolveu tocá-lo com mais força.

- Marcus? Você está bem? Nada.

Achou melhor sacudi-lo.

- Marcus?

Daquela vez, ele se mexeu. E abriu os olhos momentos depois.

- Johnnie,.. É você?

- Sim, sou eu, amigo. E vim libertá-lo!

- Eu... fui drogado...

- Nós vamos tirá-lo daqui. Fique tranquilo. Tudo vai dar certo e...

O barulho de passos interrompeu suas palavras. Alguém vinha vindo. E, no momento em que a porta foi aberta, Johnnie já estava escondido debaixo da cama.

- Como pode ver, ele está sob o efeito de sedativos disse Daniel Emerson a Lou Vaughn. - Me passe o manuscrito e seu amigo estará livre.

- E sua mulher?

- Denise agiu como uma perfeita idiota. Aliás, ela mesma reconheceu isso. O ciúme mexe com as pessoas, sr. Vaughn. Nós dois tivemos uma longa conversa e, quem sabe... talvez possamos nos acertar de novo. Sinto muito, meu velho, se estava se interessando por ela.

Lou Vaughn balançou a cabeça e observou de novo o homem pequeno e franzino à sua frente. Era incrível que tivesse passado o tempo todo achando que ele fosse alto, forte, bonitão e carismático. Agora, quanto a Andrea, ou melhor, a Denise Emerson, não era de se admirar que ambos ficassem juntos no final. Eles se mereciam.

- Estamos perdendo nosso tempo - continuou Emerson. - Me passe o manuscrito. Então seu amigo Marcus será libertado e... - Ele parou de falar ao ver duas figuras de preto correndo pelo jardim em direção à janela. Sem saber o que estava acontecendo, sacou uma pistola e atirou. As duas figuras se jogaram ao chão, assustadas. Johnnie aproveitou aquela súbita distração de Emerson para agir. Enquanto o malvado tentava espantar as duas freirinhas que haviam invadido seu jardim, ele saiu de seu esconderijo e pôs Emerson para dormir, com um golpe certeiro na nuca. Vera e lady Edith estavam quase chegando à janela quando uma figura assustadora surgiu à frente delas, como que por magia: Zakharov. E tinha nas mãos uma arma de meter medo.

O russo agarrou as duas freiras e gritou para que Johnme e Lou Vaughn largassem suas armas. Depois, ordenou que ambos saíssem pela janela e se aproximassem.

- Johnnie, eu sinto muito. - Vera estava quase chorando. - Eu só queria...

- Silêncio! - berrou o russo. - Em toda a minha carreira, nunca encontrei tanta gente doida junta! - Ele se virou para Vera. - Srta. Blue, pegue o manuscrito do seu tio.

Foi aí então que uma outra pessoa se aproximou do grupo. Avery Noble. E também estava armado.

- Ele está do lado dos russos - berrou Vera. - Eu o vi conversando com Zakharov, no cemitério!

Noble deu um sorriso cínico.

- Você é uma perita em disfarce, Vera Blue. Pena que, de agora em diante, não vá mais poder se disfarçar de

Coisa alguma... - Virou-se para Johnnie. - Eu sabia que acabaria vindo, Madden. Pensou que fosse me passar a perna, não é? Que grande idiota é você, achando que pudesse ser mais esperto que eu... Bem, agora chega de conversa mole. Me passe o manuscrito, Vaughn. Depressa! Lou não teve outra alternativa senão obedecer.

- Agora - ele ordenou a Petrenko, que se aproximava de arma na mão -, quero que leve esse bando todo ao celeiro e toque fogo em tudo.

Ele falava com a naturalidade de quem estivesse pedindo um sanduíche no bar da esquina.

A aventura havia acabado. Vera foi andando até o celeiro, de cabeça baixa. Johnnie havia passado o braço por seu ombro. Atrás deles ia Petrenko, de arma na mão. Por que tudo tinha de ser daquele jeito? Por que as coisas não aconteciam como nos livros? Por que seu fim iria ser tão diferente do de Katherine O'Malley?

Eles foram empurrados para dentro do celeiro. Petrenko entrou também e fechou a porta.

Porém, em vez de amarrá-los e fazê-los virar churrasco, o russo entregou uma arma a Johnnie e, tirando uma outra pistola do bolso, estendeu-a a Lou Vaughn.

- Ei! - exclamou Vera. - O que está acontecendo? Johnnie lhe deu um beijo.

- Como pode ver, querida, ninguém por aqui é o que parece ser. Este é meu amigo lan Powell. Estudamos russo juntos em Oxford.

Petrenko estendeu-lhe a mão e sorriu.

- Muito prazer... irmã.

- A essa altura dos acontecimentos - ela murmurou -, acho que nada mais me surpreende.

Minutos depois, tudo estava acabado. Noble, o agente duplo, Zakharov e Emerson foram dominados pelos homens de Johnnie, que estavam espalhados pelos jardins da casa.

A aventura realmente chegara ao fim. Só que, daquela vez, o final havia sido feliz.

Eles estavam sentados na sala de estar da casa de Emerson, tomando café e comemorando a vitória.

- Bem - disse Mar cus Lloyd, com o manuscrito nas mãos. - Agora, já podemos rasgar essa porcaria.

Vera e lady Edith se entreolharam. Pobre Marcus Lloyd. com certeza as drogas tinham feito mal à sua cabeça. Até Lou Vaughn ficou assustado.

- Como assim, Marcus? Rasgar o manuscrito por quê?

- Porque ele não vale nada - respondeu Johnnie. Tudo não passou de um plano nosso. Marcus e eu suspeitávamos de que Noble fosse um agente, mas não tínhamos provas. Então inventamos essa história de manuscrito, a fim de desmascará-lo. - Ele se virou para Lou. - Sinto muito, Vaughn. Até mesmo vocês da CIA tiveram de ser enganados. O negócio era convencer todo mundo envolvido que o manuscrito era mesmo valioso. E, mais importante que tudo, Noble e os russos achavam que entre as páginas da obra havia segredos de Estado muito importantes. Por isso tinham de pôr as mãos nele de qualquer jeito.

Ninguém disse nada. Era como se a surpresa tivesse emudecido todos ali em volta.

- Bem - continuou Johnnie -, nós não tínhamos contado com a presença de Emerson nessa história toda. Nem com o sequestro de Marcus. Mas o importante foi que tudo acabou bem. Saímos vitoriosos disso tudo!

- Agora o Serviço Secreto Britânico vai voltar a ser o que era - disse Marcus Lloyd, animado. - com Avery Noble atrás das grades, ninguém mais poderá nos segurar!

Johnnie aproximou-se de Vera e a abraçou.

- Como você pode ver, querida, na vida real os finais felizes também acontecem...

Ela sorriu e retribuiu-lhe o abraço. Só que, para o final ser mesmo feliz, era preciso que uma outra coisa também acontecesse...

 

Eles estavam tomando uísque na biblioteca da mansão de lady Edith, em Londres.

- Você reparou como o tio Lou e sua mãe ficaram amigos? - Vera deu um sorrisinho. - Acho que, depois de ter conhecido lady Edith, ele não ficou nem um pouco triste em saber que aquela vigarista da Andrea Lambert era mesmo Denise Emerson.

- Também acho. Não pensei que minha mãe fosse se apaixonar de novo. E agora aí está ela, com um brilho todo especial nos olhos... - Ele se aproximou de Vera e tomou-a nos braços. - Mas não foi só ela quem se apaixonou, querida. Seu filho também está perdidamente apaixonado...

Vera engoliu em seco.

- Por quem?

- Por uma cabeça-dura, que consegue ser mais teimosa que uma mula. Pela mulher mais maravilhosa do mundo. Case-se comigo, Vera. Sem você, minha vida nunca mais vai ter graça...

Ela o apertou com força.

- Se você não me pedisse em casamento nos próximos cinco minutos, querido, eu mesma iria fazê-lo...

- Como você pode ver, até a vida real também pode ter um final feliz.

- Só que o final não foi tão feliz assim para Andrea Lambert, quer dizer, Denise Emerson. No final da história, ela acabou sozinha. E Christine Dupré teve ainda pior sorte. Perdeu o amante e a carreira e ainda vai passar um tempo atrás das grades. E, por falar nisso, como foi que seu amigo Marcus reagiu quando soube que ela era uma traidora?

- Ele não demonstra, mas acho que, no fundo, ficou muito triste. O coitado estava gostando dela de verdade. Aliás, ele está impressionadíssimo com você. Disse que jamais encontrou uma mulher tão corajosa, tão encantadora e tão esperta em toda sua vida... Sabe o que foi que eu respondi? Que essa mulher maravilhosa já tinha dono...

Vera sorriu, sentindo uma felicidade difícil de ser descrita.

- E o manuscrito, Johnnie? Era mesmo falso?

- Visto pelo lado científico, sim. Aquele livro não passa de uma cópia sem valor literário algum. Mas, por outro lado, ele é precioso.

- Como assim?

- Lembre-se, querida, de que se não fosse por ele, nós nunca teríamos nos conhecido. E tudo então seria tão diferente... Eu te amo, Vera Blue.

- Eu também te amo, Johnnie Madden.

E então, porque ela era tão corajosa, tão bonita, e porque era o que ele mais queria fazer, abraçou-a com força e a beijou apaixonadamente... Um beijo que convenceu

Vera Blue de que sua aventura, na verdade, estava apenas começando.

 

                                                                                Elise Little  

 

                      

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