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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DEUS SOLITÁRIO / Violet Winspear
O DEUS SOLITÁRIO / Violet Winspear

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O DEUS SOLITÁRIO

 

Mesmo sendo órfã, Yvain sempre acreditou que seria feliz, que sempre haveria alguém para protegê-la. Pois não dizia a lenda que Yvain, a heroína, tinha sido protegida pelo leão? Mas agora, depois do susto com aquele naufrágio, de ser salva do mar e levada ao castelo de don Juan de Conques y Aranda, ela não acreditava mais nos finais felizes das histórias. Porque don Juan, o marques de Leon, o poderoso senhor daquela ilha espanhola, por quem ela estava irremediavelmente apaixonada, pertencia a outra mulher. E quem poderia libertar Yvain daquele fascínio, do desejo poderoso de entregar-se ao próprio leão?

 

Sirenes soavam estridentes, pessoas gritavam, botes salva-vidas eram lançados na água escura. Um dos botes, repleto de passageiros do navio naufragado, desprendeu-se dos cabos e despencou numa queda vertiginosa até o mar. Yvain Pilgrim foi atirada ao ar e poucos minutos depois as águas se fechavam sobre ela. Desesperada, lutou com todas as suas forças até que conseguiu voltar à superfície, graças ao colete salva-vidas.

Tudo aquilo parecia um pesadelo do qual era impossível voltar. Gritos de pavor ecoavam no cérebro de Yvain, mas estranhamente não cessava o som da música que a orquestra tocava no salão de bailes no momento do aciden­te: uma melodia suave e sentimental que tinha enchido de melancolia o seu coração.

Mas ninguém havia se aproximado da mocinha silenciosa, sentada em atitude humilde ao lado da patroa. A sra. Sandell fazia aquele cruzeiro a conselho médico e tinha decidido que Yvain devia acompanhá-la. Yvain trabalhava para, a família Sandell desde os quinze anos, primeiro como babá e depois como dama de companhia da intratável sra. Ida Sandell, mulher orgulhosa e difícil. As necessidades e os sonhos de uma garota de dezenove anos passavam muito além da sua compreensão.

Desde o princípio tinha ficado estabelecido que Yvain deveria fazer-lhe companhia constante.

— Você é sensata — disse a mulher, num tom ríspido e seguro — e sabe qual é seu lugar. Nem pense em participar dos divertimentos em com­panhia dos jovens passageiros. Eles não fazem outra coisa senão nadar, flertar e dançar.

Yvain não alimentava esperanças de viver um romance a bordo. Mas passar todo o lempo lendo para a sra. Sandeli era uma verdadeira tortura, com tantos jogos e tantos jovens rindo e se divertindo por toda parte. Seria muito mais agradável passear pelo convés em companhia de um jovem da idade dela.

Só que a mocinha simples, de roupa humilde e óculos, não havia chama­do a atenção de nenhum dos homens a bordo. Provavelmente pensavam que ela era muito tímida. Ou, então, não tinham coragem de se aproximar por causa da imponência da velha senhora. Como podiam imaginar que, sob a aparência simples, batia um coração ansioso por aventuras?

Aventuras! O movimento das águas conduzia Yvain para longe do navio naufragado. Tinha havido uma explosão na sala das máquinas antes que o transatlântico começasse a afundar. Alarmes soavam, ensurdecedores, enquanto o mar furioso invadia tudo. "Todos para o convés!" No começo, Yvain tinha permanecido ao lado da sra. Sandeli, que agarrava com deses­pero sua caixa de jóias e uma frasqueira. Mas, na confusão de pessoas que tentavam conseguir um lugar no primeiro bote, perdeu de vista a patroa. Quando o bole virou, um grito de desespero encheu o ar — talvez um grito da velha senhora, que viveu toda sua vida numa estufa de luxo para depois ser tragada pelo mar cruel.

Yvain revivia mentalmente cenas passadas, terrivelmente consciente de que eslava se afastando dos demais passageiros, sendo levada para mais longe, cada vez mais longe. Os gritos começavam a morrer na distância e um pesado silêncio se abateu sobre ela. Durante o dia a água parecia azul e morna. Mas, naquele momento, negra e gelada, assemelhava-se a uma mortalha.

Grite, pensou ela. Chame alguém.

— Socorro! — O grito patético perdeu-se no silêncio da noite. — Socorro!

Ninguém respondeu. Ninguém ouviu. Leve como era, estava sendo arrastada pelas águas para ionge do alcance dos ouvidos dos outros passa-jieiros. Logo estaria complelamente só no meio do oceano, entre as costas rochosas da Espanha e o norte da África.

Que pensamento ateirorizante! A solidão dos últimos anos não significa­va nada diante do sentimento que a invadia naquele momento... recorda­ções do passado passavam por sua cabeça como um filme muito nítido.

Tinha nascido em um lugar chamado Combe St. Blaize. No meio dos pântanos erguia-se uma pedra chamada pelos moradores de Anjo Negro, ao redor da qual costumava brincar, quando criança, colhendo flores silvestres para oferecer ao pai. com quem vivia desde a morte da mãe. Amava pro-lundamenie aquele homem enorme de cabelos ruivos, que a chamava de "esquilinho" e cuidava do vasto parque pertencente à família Sandeli.

Sabia que eram parentes afastados dos Sandeli, por parte da mãe, e às vezes, muito cedo, ouvia-os galopando pelos pântanos ã procura deraposas vermelhas. Por causa das raposas, Yvain odiava os Sandeli, gente saudá­vel, corada e impiedosa, para quem detestava trabalhar.

Gloriosa terra, aquela! Não havia lá uma só flor que o pai não conheces­se pelo nome. um só pássaro que não conseguisse imitar.

Envolvida pela água fria, Yvain tremia como na capela, no dia do enter­ro do pai. Tão cheio de vida, tinha morrido estupidamente, escoiceado por um dos cavalos dos caçadores.

Alguém, talvez uma vizinha, tinha amarrado um grande laço negro nos cabelos de Yvain, cabelos da cor das folhas no outono — como dizia o pai —. cabelos lisos e finos como a chuva nas florestas.

Ninguém se preocupou em consolá-la depois do enterro, pois, afinal, ela não passava da filha do jardineiro. Não teve um ombro amigo onde chorar sua tristeza. As lágrimas trancadas na garganta, uma sensação horrível de irrealidade. No dia seguinte ela foi conduzida a um quartinho nos fundos da mansão e. em seguida, começou a trabalhar para a sra. Sandeli.

Agora estava livre... perdida ém pleno mar, mantendo-se viva graças a um colete salva-vidas; enregelada e assustada, envolvida pela noite escura e aterradora. Os óculos que Ida Sandeli a obrigava a usar há muito tempo tinham sido engolidos peias ondas e os cabelos de folhas de outono flutua­vam livres sobre as águas, libertos do birote deselegante. Sentia-se cada vez mais fraca, enquanto um sono estranho a invadia pouco a pouco.

Será que já estava próximo o sono do qual nunca mais acordaria? Será que tornaria a encontrar o homem alto e forte que costumava torná-la nos braços e dizer-lhe que seria uma princesa em um lindo castelo, como Rapunzel? Será que sentiria alguma dor? Eram seus pensamentos, enquanto as ondas quebravam sobre ela e as batidas do seu coração enfraqueciam mais e mais, até que um clarão forte trouxe finalmente a inconsciência.

Um grito soou na noite... seria ela mesma gritando? Durante mais algum tempo flutuou sobre as ondas, até que finalmente ouviu um ruído estranho c sentiu que era agarrada por mãos fortes como aço. Uma voz ansiosa falava com ela numa língua que não conseguia entender. Agarrou-se ao homem como um náufrago que encontra uma (ábua de salvação no meio do oceano.

Algum tempo depois, Yvain despertou numa pequena cabine e percebeu que havia sido envolvida em grossos cobertores. Continuou deitada, imó­vel, sentindo o balanço suave do barco e um abençoado calor nas pernas, o que significava que estava salva... e viva.

Arregalou os olhos quando a porta se abriu e um homem se aproximou. Ele tinha o rosto fino e bronzeado e usava um lenço de seda no pescoço.

— Como está, menina! — perguntou, examinando-a com os oihos escu­ros e profundos.

Como não entendia as palavras dele, apenas sorriu para o jovem que a havia salvo de morte tão horrível.

— Muito obrigada — murmurou, cheia de gratidão.

Ele também sorriu e tornou a sair, deíxando-a descansar. Como era sim­pático, pensou Yvain; como era alto e forte... talvez mais forte que o pró­prio oceano. Concluiu que seu cavaleiro andante era espanhol e adormeceu.

O barco chegou ao porto no momento exato em que rompia a aurora. Trouxeram para Yvain um bule de café fumegante, uma malha de gola alta e uma calça jeans. Quando terminou de se vestir, os primeiros raios de sol já entravam pela janela, trazendo calor e vida. Estavam ancorados no pequeno cais de uma praia cercada de altos pinheiros, que serviam como uma espécie de forte protetor. Um suave perfume de folhas enchia o ar.

Por um pequeno lance de escada, Yvain subiu ao convés, de onde avis­tou uma lancha a motor ancorada junto ao cais. Uma moça de lindos cabe­los cacheados, batidos pelo vento, recebeu com um abraço o salvador de Yvain. Um sentimenlo de profunda tristeza a invadiu ao observar o encon­tro carinhoso dos dois estranhos.

Deixou que o casal gozasse mais alguns minutos de intimidade, depois caminhou até a porta do barco, de onde saltou para o cais, ajudada pelas mãos fortes do homem. Com os cabelos cheios de sal, caindo pesadamente sobre os ombros, e as roupas emprestadas, parecia exatamente o que era: uma órfã da tempestade.

A jovem espanhola, de peie bronzeada como a do seu salvador, exami­nava-a com curiosidade. Era muito bonita e sorriu quando ele fez as apre­sentações.

— Minha mulher, Mari Luz.

Embora ele faiasse castelhano. Yvain conseguiu entendê-lo. Com as ideias mais claras, agora, recordou com facilidade algumas palavras de castelhano aprendidas com Ida Sandell. A linda jovem morena era, então, a esposa do rapaz. Que decepção descobrir que seu cavaleiro andante do ocea­no era um homem casado e feliz!

Seguiu o casal até uma casa de paredes brancas, construída entre os pinheiros, onde um bebé de cabelos cacheados dormia tranquilo num berço de madeira trabalhada. Na lareira, chamas suaves crepitavam. Mari Luz e o marido conversaram durante alguns minutos e, em seguida, ele pediu licen­ça e saiu.

— Telefonar. — Mari Luz ilustrava as paiavras com gestos — Avisar o grau seriar.

Yvain olhou para Mari Luz com certa surpresa.

— Gran senor? —- pergiyjitou.

— Emérito contou a ele da senorila inglesa... compí   'ide?

Yvain fez um sinal afirmativo com a cabeça. Ao que j irecia, Emérito ia entregá-la aos cuidados de algum homem importante do lugar. Mas, em vez de se preocupar, comeu com apetite os ovos mexidos preparados por Mari Luz c observou com ternura o bebé adormecido. Eslava tomando uma xícara de café quando Emérito voltou e explicou que um carro estava a caminho para levá-la até o senor.

— Onde estou? — Apontou para a janeia. — Que lugar da Espanha é este?

Mari Luz foi até o berço e tomou o filho nos braços, deixando ao marido a tarefa de dar explicações. Espantada, soube que estava numa ilha um pouco afastada da costa espanhola, a ilha de Leon.

Ainda não havia se recuperado inteiramente do choque quando ouviu o som de um automóvel que se aproximava. Emérito abriu a porta e Yvain saiu em silêncio. O sol brilhava através dos pinheiros, provocando reflexos fortes no carro parado diante da casa. Yvain prendeu a respiração: nem mesmo os Sandel! possuíam uma limusine luxuosa como aquela, com um leão de prata na frente e brasões nas portas.

Um motorista de uniforme colorido desceu e abriu a porta de trás para Yvain, que dirigiu um sorriso de despedida a Emérito e sua jovem família.

— Muito obrigada. Você salvou minha vida e eu... eu não sei como agradecer.

— Deus te proteja, senorila — disse Emérito, estendendo as mãos com eloquência tipicamente iatina.        

Deus a estava protegendo. Curvando-se, Yvain beijou os cabelos encara­colados do bebe e entrou no carro, deixando-se afundar no assento macio de veludo, invadida por uma sensação deliciosa. Jamais em sua vida de moça pobre imaginou que um dia seria conduzida a um reino fabuloso por um carro com motorista. Não faltava nada ali, nem mesmo tapetes macios e encostos estofados para a cabeça. Confortaveimente recostada, fechou os oihos para apreciar melhor a suavidade do movimento do carro.

A natureza bela e selvagem da ilha de Leon completava-se com o brilho das águas claras que a rodeavam. Quem seria o Leão? Seria possível que estivesse mesmo sentada naquele carro, sendo conduzida ao palácio dele? Tinha ouvido dizer que alguns nobres espanhóis ainda viviam como senho­res feudais naqueles lugares afastados, e Mari Luz havia mencionado um gran senor.

De repente, Yvain agarrou com força a maçaneta da porta, assaltada por uma onda irracional de pânico. Queria pedir ao motorista que a levasse de volta à casa do jovem casal, onde sentia que estaria em segurança. Mas sabia poucas palavras em castelhano e "Pare o carro, quero descer!" não constava do seu vocabulário.

Olhou pela janela e deparou com penhascos íngremes, pinheiros e euca­liptos, um leve briího dourado sobre as montanhas longínquas e um azulado suave nas águas áo mar.

O mesmo mar, tão terrível e assustador algum tempo atrás, naquele momento resplandecia em tons de safira e jade. A medida que o carro se aproximava do alto da montanha, Yvain pensava na patroa. Será que Ida SandelI tinha sido retirada do mar? Estaria a salvo? Estaria naquele mo­mento fazendo perguntas a respeito da criada, Piigrim, como costumava chamá-la?

Yvain sabia que linha um nome bastanie incomum. Muitos anos alrás, o pai havia ihe explicado que (ora retirado de um livro de contos de fadas. Ida SandelI detestava o nome e sempre a chamava por Piigrim, quando desejava alguma coisa.

Yvain olhava pela janela do carro, mas não prestava atenção à paisagem. Não queria passar toda a vida à disposição de uma mulher que só pensava no próprio bem-estar. A ideia de acompanhar a patroa num cruzeiro por terras ensolaradas, a'princípio, tinha excitado a imaginação de Yvain. Mas. a bordo, a vida continuou como sempre: monótona e triste... até que as sirenes começaram a tocar e o mar arrastou-a para perto da praia, onde um marinheiro espanhol a encontrou. A ilha de Leon!

Cravou as unhas nas palmas das mãos, os olhos caslanho-dourados reple­tos de assombro. Como pôde esquecer a história da origem de seu nome? Yvain, a menina que teve a ajuda de um leão na sua luta contra o dragão! Pouco depois, quando o carro dobrava uma das muitas curvas da estrada em espirai, surgiram diante dela, brilhantes contra o céu azul, as torres do castelo como que saídas naquele instante de um conto de fadas. O coração de Yvain se acelerou, excitado com a beleza da cena: sobre uma rocha imensa erguia-se o caslelo, imponente, suas torres elevando-se em direção ao céu, uma bandeira com o brasão da família tremulando ao vento.

Aos poucos, ela foi recuperando o autocontrole. Não era um sonho, caso contrário não sentiria o perfume dos pinheiros e o cheiro de sal que enchia o ar, nem receberia no rosto a brisa fresca. Não era um sonho, pois naquele instante atravessavam o portão do pátio, sobre o qual descansava tranquila a enorme figura de um leão de pedra.

O carro coníornou uma fonte de pedra, localizada no centro do pátio, e parou suavemente diante de uma escadaria que levava a uma porta em forma de arco. O motorista desceu e abriu a porta para ela, que durante alguns segundos permaneceu imóvel, admirando a beleza do brasão de armas que dominava a entrada. Dividido em quatro partes, representava a coragem, o orgulho, a honra e o amor. Examinou com atenção a rosa, que simbolizava o amor. Eslava entrando na casa de um espanhol, sem dúvida alguma. E provavelmente cheia de afeição, crianças, e dirigida por uma mulher sorridente e feliz.

— Por favor. — O motorista apontou não na direção da escadaria, mas na de um portão de ferro batido, localizado em uma das paredes do pátio. — Permitir. — Abriu o portáVe afastou-se para dar passagem a Yvain, que parou, extasiada, ao ver o novo pátio. Era como enirar num quadro, tal a beleza das flores que cresciam por toda parte, infinitas em espécies e cores.

— Muitas flores! — murmurou, mais para si mesma que para o homem.

— Sim, senorita:

— Um edifício grande — acrescentou Yvain num sussurro.

— O senor fidalgo é um homem muito rico — respondeu o motorista, divertido com o deslumbramenio dela.

O motorista parou diante de uma porta de madeira trabalhada e baleu de leve. Em seguida girou as maçanetas de bronze e deixou que Yvain entras­se sozinha.

Yvain deu um passo e parou na entrada da sala, tentando controlar a emoção. Jamais imaginou ver tanta riqueza: o feto ostentava pinturas a ouro, brilhantes como jóias antigas; nas paredes, quadros de pintores espa­nhóis, com molduras de ouro: a mobília antiga completava-se com tapeça­rias finíssimas, nas mesmas cores -que uma pintura em mosaico da Virgem e do Menino Jesus.

Adiantou-se um pouco mais, sentindo que a porta se fechava atrás dela, e arregalou os olhos, espantada, ao deparar com a figura alta parada ao lado de uma das janelas em forma de arco. O homem de traços aquilinos e olhos de uma frieza intensa fumava uma cigarrilha fina, com gestos tran­quilos e seguros. As maçãs do rosto, salientes, davam ao seu olhar um aspecto satânico, bem como o nariz bem-feito e a boca imperiosa. Ele continuou imóvel, imerso no próprio silêncio, gozando o perfume suave da cigarrilha, os cabelos pretos, levemente castanhos, resplandecendo ao bri­lho suave de uma lâmpada avermelhada,

Era realmente um nobre da Espanha — dominador,' distante, sombrio —. e vestia-se com lal apuro que Yvain sentiu uma onda de vergonha por suas roupas.

O senor examinou-a em silêncio, dos pés à cabeça. Yvain, paralisada de (error, parecia esmagada pela grandeza do homem e de seu palácio. Pensou em fugir dali para sempre, mas não teve forças para escapar à atração do olhar profundo e da boca bem marcada que não parecia feita para sorrir.

— Você é a moça que Emérito pescou no mar?

— Sou, — Antes que ele falasse, sabia que sua voz soaria profunda­mente magnética, mas não esperava ouvir um inglês tão perfeito. Era a voz de um verdadeiro bruxo, dominadora como seu olhar.

— Como se chama?

— Meu... meu nome é Yvain Pilgrim, senor.

— Sente-se. — Indicou uma cadeira de encosto alto, forrada de veludo. — Vamos conversar.

Completamente indefesa diante de tanta grandeza, Yvain obedeceu de­pressa, emendo que suas pernas a traíssem. Jamais em toda sua vida tinha sido possuída por uma emoção tão forte...

Só quando ele se afastou da janela e caminhou na direção da lareira é que Yvain percebeu que havia qualquer problema com sua perna esquerda, e que ele andava com o auxílio de uma bengala negra. Parando diante do brasão da família, fez uma leve inclinação de cabeça.

— Sou don Juan de Conques y Aranda, marquês de Leon — disse com voz profunda e cheia de uma força estranha.

O nome pomposo quase provocou um desmaio em Yvain. Então aquele era o leão da ilha... o senhor feudal que governava a todos, ali do seu casteio, e cuja palavra provavelmente era lei.

— Temos um ditado aqui, senorita Pilgrim, que diz que um espanhol pode feri-la, mas que jamais a esfolaria imediatamente. Pare de tremer tanto.

Como consequência, ela ficou ainda mais nervosa, especialmente porque naquele instante ele estava perigosamente próximo, os olhos negros fixan­do-a com intensidade.

— Não gosta da minha casa, senorita? Muitas pessoas a consideram bela, com suas torres construídas sobre o mar, suas amendoeiras, suas fontes.

— Sua casa é um castelo, senor.

— Minha casa é um castelo — concordou, irónico. — Nunca esteve em um castelo antes?

—-Não, senor. — Ergueu a cabeça, cheia de dignidade. — O que uma dama de companhia iria fazer em um castelo?

— Tem razão... o quê? — Acariciou as rosas de um vaso dourado que enfeitava a lareira de mármore. O perfume delicado das flores misturava-se ao cheiro da cigarrilha. — Quantos anos tem, senorita Pilgrim?

Ela não respondeu logo, chocada com a pergunta inesperada. Ele franziu a testa e Yvain percebeu que quando o marquês de Leon fazia uma pergun­ta a resposta devia vir sem hesitação.

— Dezenove, senor.

Pensei que fosse mais jovem. — Percorreu com os olhos a figurinha magra, ainda menor dentro das roupas emprestadas por Emérito. Afastou-se da lareira e foi até uma mesinha antiga, provavelmente muito valiosa, sobre a qual repousava um prato com um cacho de uvas brilhantes como gotas de ouro. Apanhou o prato e estendeu-o para Yvain. — Por enquanto é muito jovem para que lhe ofereça vinho. —- Um sorriso quase imperceptível passou pelos lábios dele. — Vamos, prove-as. São dos vinhedos do castelo.

As uvas tinham um sabor delicioso, mas Yvain não conseguiu comer mais que três ou quatro, envergonhada diante do olhar que não se afastava deia.

— Emérito alimentou você? — perguntou, agora diante do mosaico da Virgem e do Menino, parecendo apoiár-se com mais força sobre a bengala.

— A esposa deie preparou um desjejum para mim, senor. Eu... eu teria morrido, se não fosse Emérito.

— Provavelmente. — Examinou-a através da fumaça da cigarrilha. — Foi inacreditável, não foi? Um pesadelo para você. Não pense mais no assunto. Agora está salva...

— Todas aquelas pessoas... como gritavam!

— Espero que muitas tenham sobrevivido, como você.

— Estava viajando com minha patroa, a sra. Sandell. Será...

— Que eia lambem se salvou?

— Sim. — Nunca sentira muita afeição pela patroa, mas sabia o que era estar perdida no meio do oceano, só e alerrorizada. Por isso sofria por Ida Sandell.

— Vou providenciar para que sejam feitas as investigações. — Olhou-a com curiosidade. — Se tiver sido salva, quer voltar para ela?

— Não! — A re-ição foi tão instintiva que Yvain não conseguiu contro­lá-la. — Mas... acho que é preciso... não tenho nada, nem roupas, nem dinheiro.

— Pretere ficar aqui?

Por um instante Yvain achou que não tinha ouvido bem. Mas. de repen-íe. como uma bomba de efeito retardado, a compreensão explodiu na sua mente. Encarou-o, incrédula. Ele era um marquês e ela não passava de urna pobre dama de companhia... será que ele estava lhe oferecendo um empre­go no castelo?

— Está... me oferecendo um emprego, senor? — perguntou com voz sumida.

— Todos os meus criados são homens, exceto minha governanta. — Outra vez a sombra de um sorriso passou pelos lábios do marquês. — Não, senorita. o convite é para que fique aqui por algum tempo.

— Mas...

Mas o quê? Não parece muito ansiosa para voltar ao antigo trabalho. Não prefere ficar no castelo?

— Em... em que condições? — Hesitou um pouco, torturada pela dúvi­da, mas finalmente conseguiu fazer a pergunta.

— Como minha convidada, senorita Pilgrim. — Seus olhos brilhavam, zombeteiros. — Imaginou que havia despertado paixão em mim?

Uma onda de sangue subiu ao rosto de Yvain, que baixou os olhos con­fusa.

— Posso lhe garantir que não me utilizo de meu direito de senhor sobre as mulheres que pisam nesta ilha — replicou, irónico. — Você está nas minhas mãos e vai ficar aqui! Minha decisão é inabalável!

Yvain permaneceu imóvel como uma estátua, segurando com mãos tré­mulas o prato com as uvas. E a família dele? Será que não protestariam contra a ideia de terem uma pobre náufraga como hóspede?

— Qual é o problema? — Inclinou-se sobre a bengala e examinou-a como se ela fosse um objeto estranho, que destoava do ambiente luxuoso. mas ao mesmo tempo despertava a curiosidade do nobre.

— E sua família, o que vai dizer? — perguntou, nervosa.

— Não lenho família. — Seu rosto ensombreceu, como se Yvain livesse colocado o dedo numa ferida muito profunda, que ele desejava manter oculta sob um muro de ferro. — Náo tenho mulher, nem filhos, senoríta. Há alguns gatos peio castelo, e um cão alsaciano. Mas, como pode ver — apontou para a perna esquerda —, sou aleijado, como Lúcifer.

Um calafrio percorreu a espinha de Yvain. Lúcifer, o anjo caído, tinha sido expulso do céu por causa do seu orgulho. Era estranho, mas desde que pousara os olhos naquele homem tinha sentido^algo de satânico nele.

— Pretende se responsabilizar por mim?

— Será uma novidade. — Tocou um sino de prata para chamar um dos criados. — Sei que os ingleses não gostam de dever obrigações a ninguém, mas a ilha de Leon fica muito distante da sua terra e você não tem outra alternativa senão aceitar minha hospitalidade.

— É muito generoso, senor.

— Generoso? — Sorriu com desprezo. — Sou prático e sou espanhol. Minha casa é sua!

Yvain correu os olhos pela sala ricamente mobiliada, pelas tapeçarias, pelos vasos e quadros. Sentia-se como uma indigente naquele ambiente.

— Tomarei as providências necessárias junto às autoridades do conti­nente — disse ele, no instante em que as portas se abriam e uma mulher entrava.

De rosto impenetrável e sombrias roupas negras, a mulher o ouviu em silêncio; depois olhou para Yvain corn frieza.

— Sim, don Juan. — A mulher fez uma reverência e saiu da sala.

— Disse à minha governanta que preparasse um quarto para você. O nome deia é Alma e vai achá-la bastante prestativa.

Yvain olhou-o, desconsolada. Ele-a recolhera como a um gatinho encon­trado à porta, mas não revelava o menor calor humano.

— Obrigada — murmurou, sem repetir que ele era generoso. Suspeitava de que não era um impulso de generosidade que o levava a hospedar no caste!o"um zero como ela. Talvez a curiosidade fosse o motivo do convite: como uma mocinha pobre reagiria a um castelo tão luxuoso?

— Você entende nossa língua? — Os olhos de don Juan pareciam ler os pensamentos dela.

— Algumas poucas frases.

— Quando deixar a ilha de Leon, terá aprendido muitas outras. E eu, quem sabe, talvez aprecie o papel de guardião.

Guardião demoníaco! Yvain levantou-se de um salto. Viu-se retletida em um espelho, o prato na mão e as roupas estranhas, e não resistiu ao impulso de rir. Ria e ria, num acesso de histeria incontroiável, ao mesmo tempo que sentia as lágrimas correndo pelo rosto. Através das lágrimas, percebeu que o marquês se aproximava e deu um grito quando ele a esbofeteou no rosto.

— Ai! — Sentiu um tremor pelo corpo todo e uma pontada no rosto. Como uma criança indefesa, espancada e humilhada, odiou o marquês de todo coração.

— Não quero outros ataques de histeria — murmurou, com voz contida. — De agora em diante vai aprender a demonstrar dignidade, está me enten­dendo?

— Por quê? — As lágrimas continuavam a correr. — Eu... eu já lhe disse que não passo da criada de uma mulher mimada e egoísta.

— Você era uma criada! — Segurou-lhe o queixo e obrigou-a a olhar para ele. — Yvain, você tem um nome raro e vai viver de acordo com ele.

Os dedos que lhe seguravam o queixo eram os mesmos que a haviam esbofeteado... cruéis. Antes de entregá-la aos cuidados da governanta, o marquês retirou um íenço do bolso e estendeu-o a ela, dizendo-lhe que limpasse aquelas lágrimas.tolas.

— Você vai esquecer o naufrágio, entende? Deite-se, descanse e ama­nhã vai se sentir melhor.

Ela enxugou os olhos, profundamente infeliz. Como seria bom ter al­guém que a abraçasse e a consolasse num momento de crise. Há quanto tempo não sabia o que era ser amada.

Em silêncio, devolveu o lenço, que ele colocou no bolso do casaco de veludo negro.

Yvain seguiu a governanta por escadas em ziguezague até o quarto que lhe estava destinado, e que pelas paredes e janelas curvas parecia localizar-se numa das torres do castelo. Junto ao quarto, um banheiro revestido de azulejos verdes e dourados.

— O banheiro — disse a governanta, abrindo a porta e indicando as torneiras de água quente e fria, bem como um armário repleto de toaihas. Numa das prateleiras inferiores, Yvain encontrou sabonetes, sais de banho e uma esponja. Naquele lugar, teria completa privacidade.

Sorriu para a governanta, mas a mulher permaneceu séria e hostil, o que levou Yvain a pensar no ar esnobe dos criados da mansão dos Sandel!.

— Acho... que vou (ornar um banho.

A mulher fez um sinal com a cabeça, indicando que havia entendido. — A senorita vai encontrar um roupão e uma camisola sobre a cama. O sefior marquês mandou comprar roupas para a senorita na cidade.

— Cidade? Exisle uma cidade aqui? — perguntou Yvain,

— Claro. O castelo fica isolado por causa do mar. mas a alguns quiló­metros daqui existem lojas, um hotel e um teatro. Puerto de Leon possui muitas casas bonitas. Don Juan tem muitos amigos lá.

Que alívio saber que não estava completamenie isolada da civilização! Yvain apanhou um sabonete de óleo de pinho e aspirou o perfume, delicia­da. Um banho, depois um bom sono naquela grande cama do outro cómo­do, e voltaria a ser a mesma de sempre.

— A senorita gostaria de tomar alguma coisa?

— Seria possível... seria possível tomar uma xícara de chá?

Se a senoriía deseja. — Outra vez Yvain sentiu o olhar de desprezo da mulher. — Não somos selvagens aqui na ilha. Há muitos anos que don Juan cuida dos negócios aqui, e homens como o sehor marquês (êm muita visão.

— E fazem as coisas sempre a seu modo — disse Yvain.

— Um espanhol é o senhor da sua própria casa, e don Juan mais que os outros. Sua família e seus feitos estão registrados nos livros de história da Espanha, senorita.

A ilha deve ser muito bonita — disse Yvain, quase em desespero.

— A senorita vai ver por si mesma. Venha. — A governanta conduziu-a até uma das janelas, que abriu de par em par. Imediatamente o quarto foi invadido pelo som do mar. que soluçava como o vento entre os pinheirais, triste e inquieto, carregando consigo um estranho encantamenio.

— Veja — murmurou Alma.

Yvain olhou e viu, bem lá embaixo, o mar cor de jade e as rochas majestosas que ele acariciava dia e noite, formando círculos de espuma branca. Lá no alto da torre, Yvain se sentia como Rapimzel, prisioneira do bruxo do caslelo.

— O mar sussurra coisas — a governanta falou baixo, bem junto ao ouvido de Yvain. — Qualquer noite você vai ouvi-lo e pensar que a voz pertence a um ser humano. Sabe. senorita. há muitos anos atrás uma noiva foi morta nessas rochas.

Yvain prendeu a respiração e afastou-se da janela. Encontrou os olhos da mulher e percebeu que a intenção dela era assustá-la.

— Ela era jovem, como você, e pertencia a uma terra estranha, como você. Certo dia levou um dos cães para um passeio pelas rochas que rodeiam o castelo e ambos se precipitaram nos penhascos, seriorita.

Com essas palavras, a governanta caminhou até a porta e a abriu.

— Quando a senorita estiver pronta, trarei o chá.

A porta fechou-se por trás da figura negra e ameaçadora da mulher, e Yvain sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha ao ouvir novamente o som do mar entrando pela janela, como a voz da moça morta há tanto tempo entre as rochas e as ondas.,

Pela primeira vez prestou atenção ao quarto e achou-o muito bonito... como se tivesse sido preparado para uma pessoa que chegou e partiu... ou para uma mulher que jamais apareceu para reclamá-lo. A cama, incrivel­mente grande, estava coberta por uma colcha de renda, formada por uma centena de pequenas flores, cada pétala detalhada com perfeição. Todas as roupas de cama tinham monogramas em linha de seda e, sobre o criado-mudo. de madeira trabalhada como os demais móveis, descansava um aba­jur de prata. Duas poltronas forradas de brocado, um sofá do mesmo tecido e um tapete azul como o mar completavam a decoração.

Yvain não pôde deixar de comparar seu refúgio atual ao que ocupava na mansão dos Sandell, escuro, mobiliado com velhas peças que os moradores não desejavam mais.

Como que saídos de um sonho, os sinos de uma capela próxima repica­ram, misturando-se aos murmúrios do mar.

— Há uma encruzilhada nas linhas da sua mão — tinha dito uma ciga­na, numa feira de Combe St. Btaize, uma semana antes da viagem com Ida Sandell. Passeando sozinha pela feira, pensava que a cigana bem que pode­ria ter dito que encontraria no navio um estrangeiro alto e moreno.

Sentiu o coração se acelerar ao pensar no estrangeiro alto, moreno e cruel de quem era hóspede por uns tempos. Só que aquele não era o jovem atraente dos seus sonhos... seu rosto frio, seus olhos penetrantes e sua perna aleijada a assustavam.

Ele havia respondido com ironia quando ela lhe perguntou a razão do convite para ficar no castelo... que espécie de sentimento havia despertado naquele homem que vivia solitário no seu reino?

 

Um soi glorioso despertou Yvain na manhã seguinte. Bem-disposta, lcvan(ou-se e correu até a janela para ver o mar à luz do dia, deslumbrada como uma criança. Debruçou-se à janela, a camisola grande demais caída de um dos ombros.

Como a Espanha era bela, com suas montanhas distantes e seu oceano cor de jade! Depois de uma noite de sono profundo, já refeita do choque provocado pelo naufrágio, sentia uma necessidade urgente de explorar aquele novo mundo.

Passeou o olhar pelo quarto e lembrou o que a governanta havia dito no dia anterior a respeito de roupas novas que seriam trazidas para ela da cidade. Como a roupa emprestada por Emérito havia desaparecido, Yvain, num impulso, correu até o guarda-roupa imenso e abriu as portas de parem par, examinando com ansiedade as peças compradas especialmente para ela. Entre um vestido cor de laranja, um conjunto listrado de linho, um vestido florido de seda e um conjunto de saia verde e blusa de babados, com mangas bufantes, escolheu o último, que lhe agradou por ser uma espécie de roupa camponesa. Sem perda de tempo, tomou um banho, ves­tiu-se e penteou o cabelo. Já ia arrumá-io no coque costumeiro quando lembrou que não eslava mais sob as ordens dos Sandeil e que o marquês de Leon não era seu patrão.

Prendeu o cabeio numa trança e deixou-a cair sobre o ombro esquerdo. Diante do espelho, admirou a própria imagem como se não pertencesse a ela mesma.

Livre dos óculos horríveis, seus olhos revelavam-se grandes e cheios de curiosidade. Gostou da nova aparência e sorriu, satisfeita.

Afastando-se do espelho, decidiu descer à procura de alguma coisa para comer. Estava morta de fome, o que atribuiu ao efeito do ar marinho que havia respirado durante toda a noite.

Desceu correndo a escada que unia a torre ao vestíbulo, que, por sua vez, dava para um pátio. Parada diante de um dos arcos do pátio, respirou profundamente o ar puro da manhã, deixando que o sol lhe batesse no rosto.

Sob uma árvore copada, coberta de flores, sentado a uma pequena mesa preparada para o café da manhã, avistou o marquês descascando distraida-mente uma tangerina. Ia se afastar quando ele ergueu a cabeça, como se houvesse sentido a presença de alguém.

— Muito bom dia! — cumprimentou-a, — Venha me fazer companhia, senorita Pilgrim.

Respirou fundo, intimidada pela estatura do marquês, que se levantou para recebê-la. Naquela manhã ele vestia uma malha de lã amarelo-ouro e calça marrom. Esperou que ela ocupasse a cadeira e sentou-se outra vez, estendendo a perna esquerda como se não conseguisse dobrá-la no joelho.

— Dormiu bem? — Tocou um sininho de prata e continuou a descascar a tangerina, cujo perfume se misturava ao das flores e plantas que orna­mentavam o pátio.

— Dormi, obrigada. — Yvain sentia-se tímida e insegura diante dele. — Por acaso teve notícias das outras pessoas do navio, senor?

— Emérito foi até o continente investigar e, também, comunicar às autoridades que você vai permanecer aqui, como minha convidada.

Era estranho ouvir alguém se referir a ela como convidada, depois de tantos anos de trabalho quase que ininterrupto para a família Sandell, que parecia não considerá-la um ser humano digno de atenção. Acostumada a servir, e não a ser servida, ficou um pouco confusa quando um criado apareceu e don Juan lhe perguntou o que desejava para o desjejum.

— Ovos flamengos? Pãezinhos, mel e geléia? — sugeriu o marquês.

— Sim, por favor. — Uma onda de sangue coloriu o rosto dela. — Parece tudo delicioso.

Ele se virou para o criado, que esperava as ordens em atitude atenta e respeitosa, falando num castelhano rápido e incisivo.

— Já tomei meu café. — Don Juan examinou com atenção a roupa que Yvain havia escolhido para aquela manhã. — Café, pãezinhos e frutas. Vejo que minhas instruções foram seguidas. Hoje você não tem mais aque­la aparência de náufraga infeliz.

— Agradeço muito pelas roupas, don juan. Não... não sei como vou poder pagar.

— Tenho certeza de que vai descobrir um meio — respondeu, enigmático. O sol benfazejo iluminava e aquecia tudo, menos os olhos escuros pousados nela.

— Sua vida mudou muito depressa, e de maneira dramática, senorita pilgrim. Não a excita a perspectiva de novas descobertas?

— Ainda me sinto um pouco assustada. — Olhou em tomo, observando com renovada admiração as paredes cobertas de flores, a fonte, os pássaros que cantavam nas árvores do pomar, pensando que um jardim de tanta beleza podia ocultar uma serpente venenosa. Era tudo belo demais! Impos­sível que um sonho desses não se misturasse a alguns pesadelos, por isso Yvain se mantinha na defensiva. A vida lhe havia ensinado a ser cautelosa.

— Precisa aprender a viver o presente. O que passou está morto — falou don Juan, grave. — Senorita, a memória pode ser uma artista bastan­te realista, mas você é suficientemente jovem para apagar as cores escuras e substituí-las por outras mais alegres.

— No momento as lembranças estão vivas demais e não consigo apagá-las. — Tocou uma pétala que caiu sobre a mesa. — Vou me sentir melhor quando souber que a sra. Sandell está bem.

— Mas você não era feliz trabalhando para aquela mulher.

— Ela era um pouco egoísta, mas... morrer afogada!

— Nós, espanhóis, somos fatalistas e acreditamos que cada pessoa deve cumprir seu destino. Ah, aí vem Luís com seu desjejum. — Don Juan levantou-se e apanhou a bengala de castão de prata. — Tenho negócios a tratar, por isso vou deixá-la sozinha. Divirta-se, explore a região, faça ami­zade com os animais e, se quiser ler, minha governanta lhe mostrará a biblioteca. Lembre-se de que não deve ocupar sua mente com imagens escuras. Goze sua juventude e sua despreocupação, pois o tempo das triste­zas não tarda.

Ele se despediu com uma inclinação de cabeça e afastou-se mancando, alto e moreno, até desaparecer dentro do castelo. O que o teria ferido tão profundamente a ponto de transformá-lo num homem que jamais sorria? Como a torre do casteio, ele parecia distante e envolto em mistério.

Luís arrumou os pratos na mesa. diante dela: ovos mexidos com mantei­ga, pãezinhos saídos do fomo, um pote de mel brilhante como ouro e um bule de chá.

— Obrigada. — Sorriu para o criado, mas, como Alma, também ele era reservado, parecendo saber que ela não estava acostumada a ser tratada como uma lady. O homemTecolheu as pétalas caídas sobre a mesa e as cascas da tangerina de don Juan. Yvain sentiu-se triste, O marquês havia dito que a casa dele pertencia a ela, mas os criados pareciam considerá-la uma intrusa. Sabiam que ela não possuía a segurança das pessoas nascidas para dar ordens e serem servidas. Sabiam que ela não passava de uma dama de companhia.

Estava comendo as delícias trazidas por Luís quando percebeu uma enor­me cabeça de cão surgindo do meio de um arbuslo. O animal olhou para ela, depois sacudiu a cabeça e aproximou-se para examinar a estranha. Yvain não sentiu medo, pois estava acostumada com os mastins da mansão Sandell.

— Olá — saudou-o. — Espero que seja mais amigável que os demais hábil antes desta casa.

O alsaciano sentou-se nas patas traseiras e cheirou as sandálias verme­lhas de Yvain. Depois levantou a cabeça e encarou-a, em dúvida.

— Como é que você se chama? — Inclinou-se e examinou a pequena placa que o cão trazia na coleira. — Carlos! Vamos dar uma volta?

O cachorro pareceu pensativo durante alguns segundos, depois colocou o focinho sobre a mesa, à procura de restos de comida.

— Ah. precisa ser subornado, é?

Carlos aceitou com prazer os pedaços de pão com mel e. quando já estava satisfeito, conduziu-a através de um corredor em forma de arco até a parte principal do castelo. Desceram um lance de escadas ornamentadas de ambos os lados com estátuas e grandes jarros. Salgueiros seculares erguiam-se em voita, projetando sua sombra fresca sobre os degraus e so­bre o regalo de água cristalina que corria com um murmúrio suave entre as flores.

Um jardim tão imenso e tão belo para dar prazer a um único homem... Yvain pensou na felicidade que gozariam os filhos do marquês, se ele os tivesse, correndo livres pelos gramados, subindo como esquilinhos pelos galhos das magnólias... quanto desperdício!

Seguiu o cachorro por um caminho cercado de estranhas árvores de folhagem suave como veludo, que serpenteava até uma construção de teto de vidro. Na porta, havia uma lâmpada decorativa, presa por uma grossa corrente. Deu um passo para dentro do edifício e parou, maravilhada: no interior sombrio, havia palmeiras por toda parte e, no centro, um lago com peixinhos dourados. A mobília de vime combinava perfeitamente com o clima do recanto. O ar recendia o perfume das orquídeas e das pequenas frutas que pendiam dos lótus, retletindo o ouro do sol que se filtrava pela cobertura de vidro.

Carlos enfiou o focinho no lago, depois se deitou, feliz, sobre os ladri­lhos dourados. Yvain olhou em lomo. deslumbrada, estendendo as mãos para tocar as pétalas delicadas das flores tropicais.

Será que don Juan costumava ir até aquele recanto para fumar um cigar­ro, antes de dormir? Yvain quase podia vê-lo, perdido entre a fumaça da cigarrilha e o verde mistério do lugar, como uma escultura de rosto duro como pedra.

Seniou-se em uma cadeira de vime, observada por Carlos.

— Você não passa de um carneirinho com pele de lobo, Carlos. __ Acariciou-lhe a cabeça, pensativa. Até quando don Juan pretendia mantê-la no castelo? O que aconteceria se Ida Sandell estivesse viva e exigisse a volta da sua dama de companhia?

Yvain aspirou o perfume das flores e sentiu-se invadida por uma estranha paz, uma alegria infinita por estar longe de Ida Sandell e de seus desejos egoístas. Mas, apesar de feliz, era perseguida pela dúvida: qual a verdadei­ra intenção do marquês? Ele parecia frio e prático demais para se comover com a triste sorte de uma inglesinha pobre e perdida.

Yvain mordeu o lábio, e o cão, como que sentindo a inquietação dela, aproximou-se e deitou a cabeça em seu colo.

— Car!os — passou os dedos pela cabeça dele —, se ao menos você soubesse falar e pudesse me dizer o que existe por trás da máscara imper­turbável do seu dono! Ele não se parece com ninguém que conheci até agora, e me assusta um pouco. Os Sandell se consideravam pessoas de sangue azul, mas a verdadeira nobreza é aquela a que pertence o marquês de Leon. Não imagino o que ele possa esperar de mim, uma humilde criada.

A manhã voou, e Yvain voitou ao pátio, onde almoçou sozinha, pois, segundo Alma, don Juan não voltaria antes do entardecer. Em redor, tudo era silêncio e solidão.

— Aconselho a senorita a fazer a sesta, caso contrário o dia vai parecer muito longo. Don Juan vai jantar com seu amigo, o senor Fonseca, e a filha dele, dona Raquel, que moram na cidade, e depois provavelmente vão ao teatro.

— Dona Raquel... que nome bonito — comentou Yvain. curiosa.

— Posso garantir à senorita — disse a governanta, examinando a figura infantil de Yvain —, que dona Raquel é uma verdadeira beleza espanhola. Don Juan não podia encontrar noiva melhor. Um nobre espanhol tem a obrigação de se casar com uma moça de estirpe, e don Juan sabe muito bem disso, pois teve como exemplo o casamento desastroso do pai. Isso com certeza vai impedi-lo de se casar com alguém de condição inferior à dele.

Yvain sentiu um aperto no coração. Queria fazer perguntas, mas Alma se afastou, deixando-a intrigada com aquelas palavras misteriosas e cheias de maidade.

Tarde da noite, quando já estava deitada, Yvain ouviu a buzina do carro do marquês, que chamava o porteiro. Procurou imaginar a cena: uma limu-sine negra deslizando suavemente pela alameda e, no banco traseiro, a figura alta e misteriosa, talvez sorridente depois de uma noite com dona Raquel.

Havia muita coisa a conhecer sobre o senhor do castelo, e Yvain desejou que sua permanência ali durasse o suficiente para descobrir o segredo ocul­to sob a máscara de impenetrável reserva.

Passaram-se vários dias antes que ela visse o marquês novamente. O castelo era um verdadeiro mundo; assim, durante vários dias, ela percorreu os jardins e cada um dos cómodos imensos. Quando a noite chegava, don Juan saía para jantar com os amigos ou então jantava sozinho no castelo, jamais convidando a jovem hóspede para se unir a ele. Tendo Carlos como companhia, Yvain não se importava muito por ser ignorada.- Era melhor ter um cão como amigo do que passar o dia à disposição de Ida Sandell, que não lhe dava um minuto de folga.

Algum tempo depois, ela soube que Emérito havia voltado do continen­te. Andou de um iugar para outro durante lodo ó dia, inquieta, até que recebeu uma mensagem do marquês, convidando-a para jantar com ele naquela noite, às nove horas.

Como seu guarda-roupa não incluísse uma roupa de noite, decidiu usar o vestido florido de seda. Estava um pouco grande, mas Yvain, com sua habilidade com a agulha, adaptou-o em pouco tempo. As flores vermelhas combinavam maravilhosamente com seus cabelos dourados. Mas, pensou desconsolada, talvez don Juan nem notasse.

Chegado o momento tão temido, ela deu uma última olhada no espelho e desceu lentamente a escadaria da torre, ansiando pelo próximo encontro e, ao mesmo tempo, agitada e insegura. Atravessou o vestíbulo e dirigiu-se ao aposento de don Juan, batendo à porta com os dedos trémulos.

Assustou-se com o relógio do vestíbulo, que soou naquele instante. Reu­nindo todas as forças, entrou na sala e encontrou o marquês diante de um belíssimo móvel anligo, vestindo um conjunto de veludo negro, impecável, tão imponente que Yvain foi tomada por uma onda de timidez.

— Boa noite, senorita Pilgrim — falou em tom formal, a expressão inalterada. — Vamos jantar. O salão de refeições fica aqui ao lado.

Com a ajuda da bengala, caminhou até a outra porta e a abriu, dando passagem a Yvain. A grandiosidade do salão não contribuiu em nada para diminuir a timidez dela. Sentaram-se, cada um numa das pontas da mesa decorada com candelabros e vasos de cristal. Sentada naquela cadeira alta como um trono. Yvain se sentia perdida, insegura e com medo do homem que a observava fixamente.

— Precisamos providenciar algumas roupas mais adequadas ao seu cor­po. — Examinou-a com desaprovação. — Mas que nenhuma delas seja

vermelha.

— Mas... — Yvain respirou fundo. — Não vou ficar aqui por muito

tempo.

— Acha que não? — Inclinou a cabeça quando Luis surgiu com uma garrafa de vinho. — Tenho algumas notícias que podem prolongar sua permanência aqui como minha... convidada.

— Notícias sobre a sra. Sandell'.' — Não lhe passou despercebida a pequena pausa antes da palavra convidada, mas estava mais preocupada com a mulher que tantas vezes a tratara mal. — Boas notícias; senor'

Ele acariciou o copo com os dedos, enquanto Luís se aproximava dela com o vinho.

— No continente recebemos a informação de que a sra. Sandell estava entre um grupo de passageiros recolhidos e enviados a Tangiers. de navio. De lá, suponho que tenha viajado para Londres, de avião. Sua patroa deu como certa a sua morte, o que parece não tê-la preocupado muito, senão teria entrado em contato com as autoridades espanholas para maiores infor­mações.

Cada palavra era clara e fria como gefo... tinha sido abandonada nas mãos daquele homem.

O brilho das velas se refletia na superfície polida da mesa. dando um ar de mistério à cena. Yvain tentou ler os sentimentos do marquês de olhos frios, mas tudo que conseguiu perceber foi que teria que concordar com tudo que ele decidisse.

— A sua saúde. — Ergueu o copo. como num ritual. — Você não é mais a criada daquela mulher mimada e egoísta.

O vinho íresco e saboroso provocou uma espécie de exaltação em Yvain que. apesar de separada de don Juan pela longa mesa parecia possuída por de.

Depois do janiar foram para uma outra sala.

Temos uma saleta que não é usada com frequência, mas gostaria que vi>cê a conhecesse. — A bengala de ébano ecoava no silêncio do vestíbulo, enquanto se encaminhavam para uma porta guardada por uma armadura sirracena. Ele retirou do bolso um molho de chaves e abriu a porta com unia delas.

— Damos a este cómodo o nome de quarto dourado. — Quando o mar­ques acendeu a luz. foi como se uma caixa de jóias tivesse sido aberta e revelasse todo o esplendor oculto.

— Entre, por favor. — Como num sonho, ela obedeceu, ma! podendo crer no que seus olhos viam. Tudo ali brilhava como ouro, desde as corti­nas que caíam do teto dourado e iam até o rico tapete, também cor de ouro. ifté a mobília graciosa, os vasos cheios de rosas, os antigos afrescos.

A sala cru um verdadeiro deslumbramento. Esquecida do homem som­brio que a acompanhava. Yvain andou de um lado para o outro, tocando «bjetosi adoráveis como um porta-jóias mourisco e um xale bordado a ouro, tMendtdo sobre um piano pintado em creme e ouro. Uma rosa vermelha iu/m sobre a tampa fechada. Uma espécie de melancolia pairava sobre a Miia, que com certeza devia ter pertencido a uma mulher. Quem havia dedilhado o piano'.1 Quem seria a mulher que amava rosas e música?      

Quando se virou para olhar para don Juan, notou um retraio e um par de castanholas que brilhavam contra a parede forrada de seda. A moça do quadro chamava a atenção pela beleza dos cabelos negros e peia suavidade da pele, que contrastavam lindamente com o vestido vermelho. A figura esbelta e doce trazia nas mãos um par de castanholas, e nos cabelos, flores cheias de vida. como seus olhos.

— Essa era Lu Rosaltta. — Don Juan parou ao lado de Yvain, alio e imponente, apesar de levemente inclinado sobre a bengala. — A dançarina cigana com quem meu pai se casou.

Yvain voltou-se para ele, surpresa, e sentiu que seu coração disparava ao impacto daqueles olhos negros e brilhantes.

— Sim. seiiorita, minha mãe era uma cigana. E a família de meu pai jamais o perdoou por ter-se casado com ela. Ele a trouxe para viver aqui e mandou construir esta sala especialmente para ela, que era pura aiegria, pura música, simples como uma flor que, aos poucos, foi fenecendo na atmosfera de gelo e hostilidade criada pela família. Nos momentos de ale­gria c de tristeza, fugia para cá e passava longas horas ao piano, tocando as músicas Ilamengas que tanto amava.

Os olhos de thn Juan estavam fixos, com expressão de profunda tristeza,

no reirato de sua mãe cigana.

— Ainda me lembro como ela costumava passar os dedos pelos cabelos fartos c brilhantes, negros como a meia-noite.

Estendeu a mão e pegou as castanholas, cujo som ecoou pela sala como um grito de desespero. Colocou-as de volta onde estavam e anunciou que minariam ali mesmo o café e o licor. Yvain examinou-o com atenção e concluiu que os olhos negros e a estrutura óssea do rosto assemelhavam-se muito aos da mãe. escondendo sob a máscara de frieza a mesma força, a mesma chama.

— Toca? — Apontou para o piano.

— Entre os deveres de uma dama de companhia não se incluem tais refinamentos, senor, — Sentada na cadeira de encosto alto, as mãos cruza­das sobre o colo, Yvain falava com tristeza. Queria saber mais sobre a cigana, mas não teve coragem de fazer perguntas. Em pé, apoiado à benga-, Ia, ele parecia compará-la às lindas moças da Espanha.

— Durante quantos anos trabalhou para aquela mulher?

— Desde os quinze anos, senor, quando meu pai foi morto pelo coice de uni cavalo.

— Ele estava cavalgando? — Imediatamente uma chama surgiu nos olhos negros de don Juan.

— Havia uma caçada na mansão dos Sandeil e ele estava ajudando na estrebaria. — Apertou as mãos com força ao relembrar o dia doloroso. — Estava ajustando um estribo quando... quando aconteceu. Amava tanto os animais, e foi morto por um deles.

— E sua mãe?

— Não me lembro dela, senor. Vivi apenas com meu pai, e depois com a família Sandeli.

— Uma rebelde? — Havia'malícia na pergunta, e por um momento Yvain pensou ver um brilho de simpatia nos olhos profundos.

— Algumas vezes pensei em fugir — admitiu.

— E por que continuou lá?

— Porque as cidades são muito barulhentas e porque amava os bosques selvagens onde havia vivido com meu pai. Amava os pássaros, as flores, os ciganos que acampavam por lá.

— Gostava dos ciganos?

— Eles eram alegres e usavam roupas coloridas, mas meu pai cuidava do parque de caça, por isso...

Don Juan deu uma gargalhada. Era a primeira vez que isso acontecia, e Yvain admirou-se um pouco.

. — Sim, os ciganos têm a alma indomável e amam os pavões tanto quan­to os ricos.

Luís entrou com a bandeja de café e recebeu ordens de coiocá-la na mesa ao lado de Yvain. Seu olhar cruzou com o do criado por um breve instante, e imediatamente ela adivinhou o que ele estava pensando: era inconcebível que uma simples criadinha se sentasse como uma grande senhora no salão dourado e que lhe fosse concedida a honra de servir café para o marquês.

— Por favor, sirva — disse o marquês depois que Luís saiu. Sentou-se também e estendeu a perna rígida, o moreno da pele contrastando com o brocado vermelho e dourado da cadeira.

Yvain precisou de todo o seu autocontrole para não derramar o café, e estendeu-o a don Juan com as mãos ligeiramente trémulas. A seu pedido, não colocou nem açúcar nem creme na xícara.

— Está nervosa por minha causa? — perguntou ele.

— Não é natural, senor? — Concentrou toda a atenção em adoçar o próprio café. —Não estou acostumada a... a tudo isso.

— Com o tempo vai se acostumar.

Ela tremeu, como se houvesse recebido um golpe.

— Teremos outras oportunidades de estar a sós, como hoje, seiiorita Pilgrim, e espero que das próximas vezes não me olhe mais como se eu fosse o monstro do castelo.

— Mas eu não olho!

— Olha, sim. — Riu, zombeteiro. — Você tem dois grandes olhos expressivos, seiiorita. E os olhos são as janelas através das quais se pode enxergar o interior das pessoas. É como uma intromissão na alma da outra pessoa.

Seus olhares se cruzaram e Yvain pressentiu que estava entregando a ele parte do seu eu mais íntimo. Sim, ele era um bruxo, o bruxo moreno.

— Tome seu café antes que esfrie. — Levantou-se com o auxílio da bengala e caminhou até uma prateleira de cristal. — Este licor é muito antigo — disse, enquanto enchia dois cálices. — Vamos brindar à sua vida e à sua chegada à ilha de Leon.

Yvaín recebeu o cálice que o marquês lhe estendia e teve a impressão de eslar segurando uma bolha muito leve. repleta de um líquido dourado.

— O mundo é pequeno. —Segurava o cálice como num ritual pagão. — Um simples lenço nas mãos do destino. Ao destino, senorita Pilgrim... senhor de todos nós.

Como efeito do licor, Yvain senliu que seus nervos se acalmavam. A sala adquiriu um brilho especial, um calor penetrante, e ao piano surgiu La Rosalita, com uma rosa vermelha nos cabelos.

Como don Juan olhasse distraído para o retrato, imerso nos próprios pensamentos, Yvain teve tempo de examiná-lo à vontade. Força e paixão misturavam-se no seu rosto, como o castanho se misturava ao negro dos cabelos, Mais por intuição que pela aparência, percebeu que ele era muito mais jovem do que parecia, e que as marcas ao redor da boca e dos olhos eram obra do sofrimento.

— Já viu uma dança flamenga?

— Não, senor, mas ouvi dizer que é linda.

— O flamengo é como um duelo entre um homem e uma mulher. — Baixou o olhar e encontrou os olhos dela fixos nele. — Preciso providen­ciar para que veja. Os pais espanhóis consideram essa dança obrigatória à educação das filhas, e acho que você tem muito que aprender.

— Tenho dezenove anos, senor.

— A idade das descobertas. Uma época da vida em que, apesar das emoções estarem no seu auge, ainda são incontroláveis. — A voz magneti-zante mantinha-a presa ao encanto daquele bruxo. — Considera-me arro­gante, não é? O homem que sabe tudo?

— O senor parece encarar as pessoas como peças de xadrez, que podem ser manipuladas à vontade — comentou, encorajada pelo licor.

— E qual das peças você é, senorita'?

— Acho que... o peão — murmurou Yvain..

— E qual a jogada que supõe que vou fazer com o peão? — Não tenho a menor ideia.

— Pensei que tivesse muita imaginação. — Pousou o olhar sobre o cabelo dourado dela.

Yvain pensou que fosse sorrir, mas ele permaneceu sério e distante, oculto sob a máscara de suave e satânica beleza.

— Neste exato momento sua imaginação está trabalhando. — Ele leu os olhos dela, mas escondeu os próprios por trás de uma nuvem de fumaça. — Nossa reação à vida pode ser intensa ou medíocre, e nossos tormentos provêm daí. Creio que não é medíocre, senorita Pilgrim, caso contrário teria pedido a Emérito que a levasse de volta ao continente.

— Eu... preferia ter ido para o continente. —Sentia as batidas fortes.do próprio coração. — Não posso permanecer aqui indefinidamente. Preciso encontrar trabalho... não tenho dinheiro...

— Eu tenho o suficiente — interrompeu ele. — Durante o jantar, notei que come como um passarinho, e ouso dizer que a vida a condicionou a aceitar menos do que secretamente deseja e merece. Qual é seu desejo secreto, senorita? Tenho condições de satisfazê-lo.

— Preciso de um trabalho — respondeu, nervosa. Ele sorriu, enigmático.

— Que criaturinha pouco exigente você é! Que espécie de trabalho? Dama de companhia de outra muiher sem coração?

— É só isso que sei fazer, senor. Conhece alguém...

— Claro, conheço muitas mulheres desocupadas que ficariam encanta­das em tê-la à disposição.

— Então...

— Não vou recomendá-la a nenhuma delas.

— Por quê?

— De uma forma ou de outra, somos todos dependentes dos outros, senorita. — Acompanhou com a ponta da bengala um desenho do tapete,

— Deve ambicionar uma posição melhor que a de dama de companhia. O que gostaria de fazer da sua vida?

Descobrir que ele estava interessado na vida dela, que a ouvia com aten­ção, em vez de diminuir a timidez de Yvain. aumentou-a. Nunca havia pen­sado seriamenle em seguir uma carreira. Para isso era necessário ter estudo. e ela havia saído da escola aos quinze anos, para trabalhar. Claro que, como todas as outras garotas, tinha sonhado em ser aeromoça, em voar para terras distantes e coloridas. E, muito oculto no fundo do seu coração, havia o desejo de trabalhar com objetos de arte e antiguidades. Adorava coisas antigas e belas, e muito do encanto que aquele lugar provocava nela devia-se aos objetos espalhados em profusão pelo castelo.

— Sua ambição é tão impossível que não tem coragem de mencioná-la'.

— O senor riria de mim — respondeu, incapaz de encará-lo. Olhou para o chão, envergonhada, e sentiu um choque quando ele se inclinou, segurou seu queixo e obrigou-a a olhar para cima. Ao contato da mão dele. não conseguiu controlar um leve tremor e percebeu que ele sorria, irónico.

— Não sou pessoa para deixar que os obstáculos se interponham diante de meus objetívos. Vamos, diga-me qual é seu desejo e veremos se é possí­vel torná-lo realidade.

— Seria interessante... trabalhar com objetos de arte. — Riu, nervosa.

— Mas tal desejo não poderia ser mais impossível para alguém que. Como eu, só sabe levar e trazer cachorros de madames.

— Você me surpreende. As garotas jovens geralmenle sonham com ati-vidades mais excitantes, como a de modelo, por exemplo.

— Modelo? — Ela riu e ele demonstrou curiosidade. — Senor, não sou exatamente o tipo para essa espécie de carreira.

— Tem uma estrutura óssea pouco comum. -— Virou o roslo dela da direita para a esquerda, como quem estuda um objeto de arte. -— Então gostaria cte manusear objetos raros e de valor incalculável, não é?

— É apenas um sonho. — Encarou-o, grave. — Não tive muito estudo. Deixei a escola quando tinha quinze anos.

— Jovem — os olhos dele revelavam um ar divertido —, quando meni­no, eu cavalgava pelas planícies da América do Sul. Era um gaúcho, como são chamados os boiadeiros de lá.

— Mas o senor é o marquês de Leon!

— Era apenas um gaúcho, quando tinha quinze anos. — Soltou o quei­xo de Yvain e olhou para o retraio da mãe. — Meu pai morreu lutando na guerra civil, e minha mãe fugiu comigo, juntamente com outros refugiados que se dirigiam à Argentina. Lá ela trabalhou como dançarina e lá me tornei um vaqueiro, até que, arrastado pela ambição, decidi me dedicar à mineração da prata. Tive sorte, encontrei uma mina de prata e comprei uma casa para minha mãe em Lima, onde ela passou a viver, sem precisar mais dançar para os desordeiros que frequentavam os cafés. Ela morreu de triste­za, senorita. Com o tempo, meu avô também morreu e acabei voltando para a ilha de Leon. Jamais perdoei a família, que queria a mim, mas não a Rosalita. Por isso preferi ficar com ela e cuidar de minha própria educação. O destino conspirou para me trazer de volta ã ilha, mas deixei atrás de mim uma profunda afeição por Lima, cidade de história selvagem e estranha beleza. — Seus olhos brilhantes encontraram os de Yvain. — Sim, o va­queiro vive na sela — disse, com voz tensa. — Não fui sempre como me vé agora.

— Sofreu... um acidente, senor'

__ Sim, foi um acidente. — Ele parecia não querer falar dessa passagem de sua vida e, por um instante, suas feições se contraíram. — Quer dizer então que deseja trabalhar entre objetos antigos...

— B bom sonhar — respondeu Yvain, sorrindo.

— Não precisa continuar sendo um sonho. Você não é uma pessoa medíocre. Já havia percebido sua atração pelos objetos e pela mobília ira-balhada (festa sala. Claro que precisa aprender muita coisa, inclusive duas línguas estrangeiras. Tenho um amigo aqui na ilha que conhece em profun­didade a vida dos grandes pintores e escultores e que, na juventude, foi professor de línguas. O .senor Fonseca... ah, você o conhece'.'

— Sim, senor. — Pensou nas palavras da governanta, que havia dito que o senor Fonseca tinha uma filha de rara beleza, que provavelmente se

tornaria esposa de don Juan.

— Ótimo. Vou apresentá-los e estudar a possibilidade de você ter aulas com ele algumas horas por dia. Por que arregala os olhos de espanto? Não é isso que quer? Aprender com um homem de cultura?

— Estou... pensando no preço, senor.

— Então pare de pensar agora mesmo. — Encarou-a, os olhos brilhan­tes e impenetráveis. — Um dia poderá me pagar. Enquanto isso, será divertido ser tutor de uma jovem inglesa.

— Tutor?

— Não concordamos em que eu seria responsável por você enquanto estivesse na ilha de Leon? Mesmo que o sehor Fonseca concorde em rece­bê-la como aluna, levará algum tempo até que esteja apta a deixar a ilha e partir para o mundo das antiguidades. Como precisa morar em algum lugar, morará aqui.

— Não... não sei como agradecer, don Juan. — Corou, desconcertada por ele poder ler seus pensamentos.

— Ficarei recompensado se um dia entrar numa galeria de arte e encon­trar Yvain Pilgrim lá. — Olhou-a de alto a baixo. — Amanhã peça à governanta que tire suas medidas. Elas serão enviadas à casa de modas de Ignazio, em Madri, juntamente com detalhes de cor, e ele nos mandará as roupas adequadas à vida que vai levar agora como minha tutelada. — Fe? um gesto para que ela se calasse. — Não torne a falar em gratidão. Faço isso por mim mesmo. As flores vermelhas deste vestido não combinam com seu cabelo, senorita.

Yvain sentiu um impulso de correr até ele e abraçá-lo, cheia de gratidão, mas ele passou sem olhá-la e abriu a porta.

— Agora vã para a cama.

— Boa noite, senor.

— Boa noile, senorita Pilgrim. — Fez uma ligeira inclinação de cabeça, e Yvain, sentindo um calafrio estranho, apressou o passo.

Como num sonho, a vida agora seria nova e excitante. ,O demónio guar­dião tinha realizado o desejo de Yvain, e ela finalmente teria uma carreira.

Como não havia ninguém no vestíbulo, riu e fez uma reverência para ela mesma no espelho do vestíbulo, dizendo:

— Vai aprender a se comportar como uma dama, srta. Pilgrim. — Sor­riu. _ Nunca pensou que isso pudesse acontecer, não é?

 

Era impossível dormir até tarde no castelo, pois o sol invadia o quarto da torre às primeiras horas do dia, inundando-o de luz e calor. Yvain tomava um banho, se vestia e dava um passeio até a praia, deixando o café para mais tarde, a fim de evitar a companhia de don Juan. Depois da refeição matinal, o marquês costumava subir para o escritório, ou então ia até a cidade tratar de negócios.

Podia ter feito perguntas à governanta a respeito do escritório, mas desde o dia em que a mulher lhe tirara as medidas e don Juan as enviara à famosa casa de modas de Madri, Alma mantinha uma atitude ainda mais reservada e fria que no início, talvez pensando que a protegida do patrão não passasse de uma caça-dotes.

Yvain não seria menos feliz com roupas mais simples. Mas don Juan era um homem refinado e não concordaria em conviver com uma moça mal vestida, especialmente sendo sua protegida.

A caminho da praia, Yvain apanhou uma flor e colocou-a no cabelo. Não se cansava nunca de admirar as águas espumantes que vinham beijar a areia dourada. Parecia incrível que aquelas mesmas águas tranquilamente azuis, uma certa noite, quase a tivessem levado para sempre.

Um latido soou ao longe e poucos minutos depois Carlos, o alsaciano, juntava-se a ela numa brincadeira pela areia. Yvain jogava um pedaço de madeira e o cão corria para apanhá-lo, e nesse jogo acabaram se aproxi­mando do caminho que conduzia ao chalé de Emérito. Decidiu visitar Mari Luz, e pensou mesmo em ficar lá durante toda a manhã, cuidando do meni­no, enquanto a mãe ia até a pequena vila de pescadores fazer algumas compras.

Ouvindo os acordes de um violão. Yvain se virou e percebeu que um rapaz caminhava na sua direção, cantando uma Canção com voz tão macia quanto seus olhos. O cantor desconhecido usava uma camisa de seda e um lenço vermelho no pescoço. Era jovem, tinha cabelos negros e, como num passe de mágica, conseguiu acalmar o bebé com sua serenata.

O rapaz cantou e tocou até que o bebé dormisse, depois se aproximou devagar e olhou as feições tranquilas da criança que dormia nos braços de Yvain.

— Muito obrigada, senor— disse Yvain, tímida.

Ele respondeu em castelhano, mas ela não conseguiu entender nem uma palavra-

— Desculpe — olhou para ele e reparou que era muito bonito —, não falo castelhano.

— Ah! — Seus olhos brilharam. — Seu bebé tem um belo par de pul­mões, senora. Vai ser um cantor, como eu — disse em inglês.

— O bebé não é meu, senor. — Sorriu do engano. — Estou cuidando dele enquanto a mãe foi fazer compras.

— Entendo. — O brilho dos olhos dele ficou ainda mais radioso. — Quando a vi, momento atrás, pensei cá comigo: Rique, infelizmente che­gou (arde outra vez! Cabelos como os da Madona... e, como a Madona, é mãe! Mas felizmente estava enganado... Por acaso, sehorita, pertence a algum outro homem?

— Não, não pertenço — respondeu, meio sem jeiio, tentando evitar aqueles olhos penetrantes. Estendeu no chão o cueiro e deitou o menino sobre ele; quando levantou novamente os olhos para o jovem cantor, ele fez uma inclinação de cabeça e apresentou-se como Manrique Cortez y Este-ban, uma das atraçôes do Clube Hidalgo, em Puerto de Leon, residente na ilha duranle seis semanas, enquanto durasse seu contrato.

— Permite que me sente a seu lado? — Apontou para a areia e segundos depois estava sentado junto dela, muilo à vontade, um sorriso nos lábios. — A senorita não vai me dizer seu nome? Podemos conversar durante uma hora e depois nos separarmos, mas se souber seu nome conseguirei encon­trá-la outra vez.

— Você gostaria de me ver outra vez? — Nunca havia tlertado antes na vida e estava admirada com a facilidade.

Para algumas pessoas, uma hora basta para se conhecerem; para outras, é necessária toda uma vida. — Pousou os olhos na trança que caía suave pelo ombro de Yvain. — Seu nome deve ser muito especial, pois é uma pessoa incomum. Você é diferente das outras moças com quem conversei na Espanha.

— Fala muito bem o inglês, senor.

— É inglesa, senorita?

— Claro.

— Existe alguma coisa especial na sua voz. — Sorriu, revelando dentes muito alvos. — Você me intriga.

Yvain gostou do elogio, mas não pôde deixar de pensar em como aquele romântico jovem teria reagido se a visse com as velhas roupas, os óculos antiquadas e o cabelo preso num coque sem graça.

Quando ele se inclinou para olhá-la mais de perto, Yvain não sentiu aquele impulso incontrolável de se afastar, como acontecia sempre que don Juan se aproximava dela.

—- Até.mesmo seu sorriso é misterioso — murmurou Rique. — Veio de algum lugar encantado das florestas?

— De um castelo, talvez — brincou ela. — Com um cão de guarda para me proteger.

— Que criatura imensa! — Olhou para Carlos, cuja cabeça repousava no ombro de Yvain. — Não (em medo dele?

— Nem um pouco. — Acariciou o focinho de Carlos. — É um verda­deiro cordeirinho.

— Parece mais um lobo.

— E se eu disser o mesmo do senhor?

— Touché! — Riu, divertido com a observação. — Os espanhóis são pessoas de sangue quenle, senorita, que apreciam o mistério e o romance. Espanhol algum é frio. O bom Deus nos deu olhos, sentimentos fortes, braços fortes, que sabemos usar muito bem, sejamos jovens ou velhos.

— Isso não é um pouco difícil, com as barras de ferro que separam o casal espanhol? — Sorriu, um pouco triste.

— Não existe esta barreira entre nós — garantiu Rique.

— Existe Carlos e o fato de que mal o conheço, senor Cortez.

— Essa observação me dá esperanças, senorita mistério. Vai permitir que nos tornemos... amigos?

— É sempre bom ter amigos,

— Uma moça atraente como você deve ter vários.

— Ao contrário. — Acariciou a cabeça de Carlos. — Só Emérito e a esposa. Quanto ao marquês de Leon... bem, não tenho certeza.

—- Conhece o marquês?

— Será que alguém pode dizer que o conhece? — Correu os olhos pelo mar azul que rodeava a ilha. — Vivo com ele... meu Deus, como isso parece escandaloso! É meu tutor, senor.

— Tutor? Quer dizer que é a moça que foi recolhida no mar? Todo mundo em Puerto de Leon está falando em você. Estão todos muito curio­sos, mas ninguém ousa fazer perguntas ao marquês. Então é assim que ele se intitula... seu tutor!

— Exatamente! — Yvain levantou-se de um salto, assustando o cachor­ro e fazendo o bebé chorar. — O que é que lodo mundo está dizendo, senor Cortez? Que sou uma caça-dotes?

— Você? — Levantou-se num movimento ágil e seguro, parando ao lado dela, alto e forte, os cabeios batidos pelo vento. — Como é que alguém poderia olhar para você e pensar tal coisa? Além disso, o marquês não é nenhum (olo. Tem a reputação de ser muito generoso, mas mulher alguma... pelo menos é o que dizem... conseguiu conquisiá-lo.

— Ele é espanhol até os ossos — observou Yvaín. — Não foi você mesmo quem disse que os espanhóis são homens de sangue quente, sejam eles jovens ou velhos?

— Estava falando dos homens comuns.

— Entendo. — Seus olhos se encontraram por alguns instantes. — Emérito, que trabalha para o marquês, foi quem me encontrou perdida no mar e me levou para o castelo. Ficou combinado que eu ficaria aqui até sabermos do paradeiro da minha patroa, mas ela partiu e me deixou sozi­nha. Não tenho ninguém no mundo além do marquês. A maneira dele, é muiio gentií comigo.

— Nunca pensou no risco que corre, senorita?

— Você disse que mulher alguma...

— O outro don Juan cosiumava destruir muitos corações, embora o dele permanecesse intacto.

— Acha que meu coração está em perigo?

— O marquês é um homem de posição elevada.

— E eu era uma criada até duas semanas atrás, senor Cortez.     — Não quer me chamar de Rique?

— Ainda quer ser meu amigo, senor?

— Mais do que nunca. — Sorriu, suplicante. — Se não me disser seu nome, vou chamá-la de Soledad.

— Que nome triste!

— Não pretendo deixar que continue solitária.

— Você confia muito em você!

— Não quer ser arrancada da sua concha?

— Parece um processo muito doloroso...

— Prometo que não será doloroso. — Estendeu a mão, como se fosse tocar a trança de Yvain, mas apenas retirou a flor que ainda estava lá. — A vida é como esta flor: uma mistura de doçura e amargor. Até a vista. Soledad. Ainda vamos nos encontrar novamente.

Foi embora como havia chegado: silenciosamente, pelo meio das árvo­res. Mas minutos depois Yvain ouviu o ruído de um carro que se afastava velozmente. Imaginou o carro se afastando, ficando cada vez menor, me­nor, até desaparecer de vista.

Pegou ò bebe e dirigiu-se ao chalé. Man Luz já estava de volta e havia trazido com ela alguns melões enormes. Tomaram café junias e, quando Yvain disse que já era hora de partir, Mari Luz insistiu em lhe dar um melão. O presente era tão tentador que Yvain não resistiu, e foi assim que chegou ao castelo: com um melão nas mãos e um sorriso nos lábios.

Entrou pelo portão de ferro do pátio e se admirou de encontrar o marquês já em casa... e acompanhado de uma belíssima mulher, de olhos negros e pestanas espessas contrastando com a pele clara e suave.

Yvain ficou ali parada, o melão nas mãos, desejando que a fruta fosse suficientemente grande para ocultar sua figura, queimada de sol e suja de areia, do casal que conversava animadamente sob uma árvore copada, cujas flores tinham a cor do vestido da amiga de dm Juan.

Don Juan levantou os olhos e por um longo momento observou a figura frágil de Yvain, com toda sua juventude e deselegância. Ele usava um traje imaculadamente branco e seus cabelos espessos brilhavam como as asas de um corvo.                        

Com sua habitual polidez, e um traço de leve divertimento nos olhos, levantou-se com a ajuda da bengala e cumprimentou Yvain.

— Por favor, venha conhecer dona Raquel Fonseca. Estive falando a ela de meus planos de fazer de você uma aluna do pai dela.

Yvain — ainda segurando o melão — aproximou-se, obediente, sentin­do-se observada por um penetrante par de olhos.

— Que prazer conhecê-ia, srta. Pilgrim. — Dona Raquel tinha a voz quente e um sotaque encantador. Virou-se para o marquês, um riso alegre nos lííbios. — Juan, você não tinha me dito que sua protegida era uma verdadeira criatura da natureza! Que tocante... com o melão e tudo. Agora entendo por que quis tomá-la sob suas asas protetoras.

Ele inclinou a cabeça, como se concordasse com cada palavra daqueles lábios vermelhos, suaves como seda... palavras que atingiram duramente Yvain, com seu tom de zombaria. Com melão e tudo! Quis jogá-lo entre as árvores, mas lembrou de Mari Luz e da alegria com que ela o havia ofere­cido. Ficou envergonhada por se preocupar tanto com o que aquela moça tão segura de si pensava dela.

— Estou ansiosa para conhecer o senor Fonseca — disse, levantando a cabeça, cheia de dignidade. — Pelo que me disse o senor marquês, seu pai é um homem de grande cultura.

Foi uma tentativa deliberada de vingança, e Yvain percebeu que don Juan contraía o rosto.

— Dona Raquel vai ficar para o almoço — disse, frio. — Tem meia hora para vestir alguma coisa apresentável, Yvain.

— Quer que almoce com vocês? — Yvain alimentava a esperança de ser dispensada da tortura de se sentar à mesa com dona Raquel, cujo vestido era adorável, a maquilagem era perfeita e os cabelos não traziam o cheiro do sal da praia.

— É esse o meu desejo — respondeu seco, e Yvain percebeu o sorriso malicioso nos lábios da outra mulher.

— Seus desejos são ordens para sua protegida, não, Juan? — Pronuncia­va o nome deie com perfeição, como se o acariciasse.

— Vou me vestir. Com licença. — Yvain praticamente fugiu do seu guardião e da convidada, as unhas penetrando na casca macia do melão, que atirou com raiva sobre a cama quando chegou ao quarto. Olhou-se no espelho do guarda-roupa: parecia uma garotinha, uma órfãzinha de asilo de caridade. Seria de estranhar que Raquel Fonseca quisesse usá-la como cobaia de suas investigações?

Abriu o guarda-roupa, retirou a saia verde-água e a blusa de mangas bufantes com babados, e enquanto se banhava imaginou quando chegariam as novas roupas encomendadas em Madri. A princípio tinha relutado em aceitá-las, mas agora estava feliz por poder dispor de vestidos novos. Como protegida de don Juan, teria que conhecer seus amigos. E ele, natu­ralmente, não queria se envergonhar dela, como ela não desejava ser humi­lhada por moças ricas que não sabiam o que era ser órfã e trabalhar de manhã até a noite sob as ordens de uma patroa sem coração.

Foi um almoço muito alegre para dona Raquel, mulher bastante versada na arte da conquista. Era coquete e tímida, altemadamente, e o distante marquês parecia encantado com ela. Ouvia-a com um sorriso nos lábios e chegava a rir quando ela descrevia a festa a que havia comparecido a bordo do iate de um famoso toureiro.

— Ele usava pulseira de brilhantes e disse que, na próxima vez que eu fosse a Madri, mataria um touro em minha homenagem e me ofereceria a orelha.

— Que horror! — As palavras escaparam sem que Yvain se desse conta. — Isto é... o touro, não a pulseira!

Dona Raquel lançou-lhe um olhar frio, pousando o garfo sobre o prato.

— É uma ironia que os ingleses nos considerem cruéis por causa das touradas. Seus conterrâneos não costumam caçar? O que preferem, a rapo­sa ou o veado?

— Também detesto a caça. — O rosto de Yvain empalideceu, diante da lembrança da noite em que seu pai foi morto por um coice de cavalo nos estábulos da mansão Sandell. — Pessoas que consideram matar animais indefesos um esporte não sentem nada além da emoção de ser cruéis. Gos­taria que a caça fosse declarada ilegal em meu país.

— As touradas são um espetáculo desprezível — don Juan falou em voz baixa, mas havia seniimento nas suas palavras. — Sempre detestei a ma­tança de touros.

— Você diz isso, Juan, mas foi um cavalo...

— Não vamos mais falar sobre o assunto, Raquel. — Ele sorria, mas seus olhos tinham o negror das profundidades misteriosas de um poço. — Vai haver um concerto no Clube Hidalgo. Acho que minha protegida gosta­ria de ir, não?

Dona Raquel examinou com olhos críticos a roupa quase camponesa de Yvain, seus cabelos presos em uma trança e o pescoço sem adornos. Pas­sou os dedos pelas pérolas do próprio colar, deiiberadamente, e perguntou, séria:

— Tem certeza de que a srta. Pilgrim vai gostar da nossa música, Juan? É muito diferente das guitarras barulhentas dos conjuntos pop da Inglaterra.

— Gosta de música pop? — perguntou o marquês, olhando para Yvain. —- Não tive tempo de descobrir, senor.

Ele sorriu, e por um desconcertante momento Yvain chegou a penetrar naqueles olhos escuros e profundos e lá encontrou uma promessa de sim­patia.

— Acho que podemos ficar tranquilos, Raquel. Minha protegida ainda não perdeu a inocência. A música de Manrique Corte?, não será estranha para ela.

Yvain sentiu que seu coração saltava no peito. Então, em companhia de don Juan, veria outra vez o jovem que a chamara de Soledad, a garota solitária- A perspectiva era excitante!

 

A estufa das flores era como uma gruta de sombra e aroma, era lá que Yvain buscava refúgio quando queria ler um livro ou mesmo gozar o prazer de não fazer nada.

O amor ocupava algumas vezes seus pensamentos, mas de forma nebulo­sa. Seria bom ser amada e protegida com paixão, mas o homem que o destino lhe reservava ainda era apenas um sonho, que poderia jamais se tornar realidade.

Passeava pelos penhascos e pelo pequeno porto pesqueiro, onde às vezes encontrava estrelas-do-mar e medusas, quando a maré estava baixa. As ostras faziam ruídos leves dentro das conchas fechadas e as algas marinhas enrolavam-se nos pés nus de Yvain, provocando uma sensação esquisita. O vilarejo chamava-se San Cáliz e lá ela passava horas observando os pesca­dores lançando suas redes e vagando por vielas tortuosas completamente cobertas por tetos abobadados.

A fumaça dos fogões a lenha flutuava pelo ar, e os moinhos usados na irrigação acrescentavam um encanto ainda maior ao clima legendário da ilha. Escondida do mundo, ocultava as ruínas de um antigo monastério, de onde, muitos anos atrás, os monges haviam defendido os habitantes da região com canhões, quando os navios-pi ratas aportavam na praia.

Tudo isso atraía Yvain, que jamais havia sido uma garota da cidade. Corria pela praia, deixando sulcos na areia, os cabelos ao vento, o olhar maravilhado com o castelo, suas paredes curvas, suas torres que brilhavam à luz do sol como que saídas de um sonho.

E lá em cima vivia don Juan, o senhor do castelo que era agora seu refúgio. O homem distante e dominador que gostava de parecer livre de sentimentos. Yvain às vezes pensava se ele teria sido ferido em Lima: no dia em que dona Raquel havia mencionado os cavalos dos picadores, ele tinha mudado de assunto. Tinha sido ferido enquanto cavalgava... seria por isso que as cocheiras do castelo estavam vazias?

Quando voltou ao castelo naquela tarde, Yvain descobriu que na sua ausência tinham chegado os presentes encomendados para ela. Caixas lon­gas, quadradas e redondas estavam empilhadas sobre a cama e as cadeiras, e num impulso infantil de curiosidade ela começou a rasgar os embrulhos, emocionada.

Deparou, deslumbrada, com tecidos macios em cores suaves, do branco mais puro ao verde-água mais límpido. Acariciou com os dedos os vestidos de seda, a lingerie de sonho, as roupas de noite de veludo macio, as roupas de banho e os vestidos mais simples, para o dia, em cores vivas alguns, em cores suaves os outros, mas todos combinando com o dourado dos seus cabelos. Havia calçados para todas as ocasiões... e dentro de uma caixa longa algo que ela mal ousava tocar.

Com as mãos trémulas acariciou o casco de mink, marrom-dourado. Com certeza aquilo tinha vindo por engano. Don Juan não havia menciona­do casacos de pele, e no entanto um tinha sido enviado: suave como um sonho, fechado por um enorme botão forrado com a mesma pele e com aberturas para os braços.

Num impulso irresistível, vestiu-o e parou diante do espelho, incrédula. Pilgrim com um casaco de mink.' Pilgrim, a criadinha, vestida como uma princesa!

Sentiu que o sangue lhe subia ao rosto. Será que linha interpretado mal as palavras de don Juan, quando ele disse que ia fazer dela sua protegida? Manrique Cortez tinha dito que a cidade falava nela. Será que ela, na sua inocência, tinha levado o marquês a pensar que, em troca de coisas tão adoráveis, estaria disposta a concordar com todos os desejos do senhor do castelo?

Tirou o casaco, jogou-o sobre a cama e saiu correndo do quarto, só parando quando chegou ao escritório do marquês, no alto da torre do mar. Bateu na porta antes que perdesse a coragem: precisava dizer a ele que as roupas eram finas demais, que queria apenas coisas simples. Precisava es­clarecer bem sua posição... era uma moça decente, não alguém que podia ser comprada com um casaco de pele!

Uma voz forte convidou-a a enlrar e ela respirou fundo antes de girar a maçaneta da porta oval. Deu alguns passos para dentro da sala redonda, e por um instante quase não reconheceu a figura magra sentada por trás de uma escrivaninha de madeira trabalhada. Ele vestia uma camisa de seda. aberta no peito, e tinha os cabelos despenteados, como se estivesse passan­do os dedos por eles. Envolvendo-o como numa aura, o perfume das cigar­rilhas que ele tanto amava.

Era sempre perturbador estar na presença dele, mas naquela ocasião o nervosismo de Yvain atingia o máximo.

— Até que enfim encontrou o caminho do meu atalaya. — Levantou-se e índicou-lhe uma cadeira forrada de veludo negro. -— É uma palavra que significa torre de vigia. Nos velhos tempos, os homens costumavam se postar aqui para vigiar a aproximação de navíos-piratas. Na verdade, um dos descendentes da família Leon chegou a ser um famoso pirata. A histó­ria da minha família sempre me fascinou e agora decidi escrevê-la. — Sorriu, mostrando os dentes muito brancos. E, apontando para uma pilha de papéis e livros de anotações espalhados em torno dele, continuou: —. A tarefa é absorvente, pois os Leon foram soldados, exploradores, piratas e poetas.

Yvain olhava, fascinada, para as feições intensameme atraentes do mar­quês, mais encantador que nunca com a camisa de seda e os cabelos em desalinho. Sentiu que seu coração se acelerava... aquele homem parecia carregar nas veias o sangue do seu ancestral pirata! Confusa diante do olhar dele e perturbada por aquele pensamento, desviou os olhos.

— As roupas chegaram... de Madri — disse, quase cuspindo as pala­vras.

— Espero que sejam do seu gosto.

— Don Juan...

— Sim, Yvain?

A maneira dele dizer seu nome, a inflexão aveludada de sua voz. seu jeito de olhar fizeram Yvain entrar em pânico outra vez.

— Ignazio mandou... um casaco de mink, seãor. O senor não tinha encomendado...

— Claro que encomendei. — Seus olhos brilharam. — Um casaco de mink apropriado para uma moça da sua idade... não gostou, senoritu? Não fica bem em você?

— É lindo, mas não posso aceitar!

— E por que não?

— É muito caro.

— Se o casaco agrada a você, então o preço não importa.

— A mím importa!

— Importa, senorita? — Levou a cigarrilha à boca e deu uma tragada lenta. — Tem intenção de pagar pelas roupas também?

— Geralmente os casacos de pele custam bem mais do que valem. — O coração de Yvain batia loucamente, pois, embora ele se mantivesse impas­sível, seus olhos intensos pareciam penetrá-la. Ela agarrava com força os braços da cadeira, como se a qualquer momento fosse saltar dali para a porta.

Foi então que ele deu uma risada divertida.

— Então, menina, adivinhou minhas maléficas intenções e não pretende deixar-se comprar por um casaco de peles, não é? Que decepção para o senhor do castelo! O que ele fará agora para atrair a inocente criadinha para seus braços? Será que no próximo e emocionante capítulo ele conseguiár vencer os escrúpulos dela?

Yvain corou até a raiz dos cabelos quando ele deu outra gargalhada.

— Que romances absurdos a sra. Sandell pedia que a senorila lesse para ela? — Bateu a cinza do cigarro num cinzeiro de prata. — Criança, eu !he dei as roupas porque você precisa delas, e porque uma jovem deve ter algumas coisas bonitas. Acho que não recebe presentes há tanto tempo que-suspeita de qualquer pessoa que lhe ofereça um. Não tenha receio. Vai precisar de um casaco quando formos ao teatro ou ã casa dos amigos.' Como minha protegida, espero que não me envergonhe.

— Desculpe... por ter sido tola, senor. — Sentia-se mortificada.

— Não condeno, criança. Você trabalhou para uma mulher tola que sem dúvida incutiu na sua mente a ideia de que o amor é um jogo de interesses, algo que pode ser comprado e vendido. Sei que existem pessoas que acreditam nisso. Meus avós, por exemplo, jamais compreenderam que meu pai preferisse o amor em vez de uma união brilhante e fria com uma jovem de fortuna. E não o perdoaram até o dia da sua morte.

Os olhos de don Juan pousaram, pensativos, na peça de prata escavada na terra selvagem da sua juventude.

— Eles diziam que eu era filho de uma broxa, que minha mãe havia lançado um feitiço em meu pai... e a culparam pela morte dele.

Os olhos negros do filho de Rosalita encontraram os de Yvain. Eram profundos como o mar e contrastavam com a seda branca da camisa. Então ele se levantou e caminhou até a janela da torre do mar.

— Venha ver o sol mergulhando no mar — disse, abrindo a janela e deixando entrar o ar fresco da tarde. Yvain, envergonhada por causa de sua atitude infantil, temerosa de qualquer contato com aquele homem, inclinou-se e admirou o pôr-do-sol. Uma chama flamejante descia sobre as águas, -lançando reflexos coloridos na crista das ondas.

— Tão belo e tão cruel — suspirou Yvain.

Também o cabelo de Yvain recebia os reflexos do sol, e de repente ela sentiu uma mão pousar sobre ele.

— Vai conseguir escapar, Rapunzel? — Havia um toque de humor na voz dele e um brilho diferente nos olhos.

— Meu pai costumava me chamar assim — disse Yvain. — Ele costu­mava dizer que um dia eu... senor, seu castelo está muito bem conservado, embora seja tão antigo!

— Tem apenas cem anos, senorita. — Ele parecia se divertir com a ideia de ser considerado um sedutor de adolescentes. — O antigo castelo era uma construção irregular erguida sobre as rochas... deve haver uma

pintura por aí... mas acho o atual mais atraente e compacto. E você?

— Eu o adoro. — As palavras explodiram, quentes, de seus lábios. — Jamais pensei que fosse viver em um castelo... parece que estou vivendo

uni sonho.

— E eu sou o ogro? — brincou o marquês.

— Não...

— Vamos, acho natural que uma jovem da sua idade me considere um pouco sinistro, com essa perna aleijada e minha melancolia.

Virou-se, sem esperar pela resposta de Yvain, e voltou para a escriva­ninha.

— Amanhã à noite vamos jantar no Clube Hidalgo com o senor Fonseca

e filha. Gostaria que usasse uma das roupas novas.

— Sim, sefior. — Percebeu que ele queria ficar só e caminhou na dire-ção da porta, onde parou e olhou para ele. — Obrigada pelas coisas adorá­veis que me ofereceu, don Juan. Agradeço de coração.

— São necessárias à sua nova ida — falou com voz ríspida, sem olhar para ela, a atenção presa a um manuscrito que tinha nas mãos. — Vou trabalhar até tarde esta noite, por isso vaya co» Dios.

As lindas palavras castelhanas a acompanharam até o quarto, onde come­çou a desembrulhar as roupas e guardá-las nos cabides e gavetas do guarda-roupa, cheia de excitação.

As roupas eram reais... o castelo era real... náo precisava mais acordar assustada com o ruído irritante do despertador e correr durante todo o dia

para satisfazer os desejos de Ida Sandell. O passado estava morto... tinha agora uma nova vida pela frente.

Jantou sozinha e depois sentou-se à janela do quarto, observando o bri­lho das estrelas que cintilavam sobre o mar. Aspirou o perfume suave de flores que subia até ali e imaginou o que pensaria Manrique Cortez ao vê-la usando uma das lindas roupas que ganhara.

Seu coração batia, excitado. Manríque Cortez a achava atraente e isso lhe dava infinito prazer. Pensou nos rapazes do navio, que passavam por ela sem ao menos um olhar. Como tinha sido doloroso! Quantas e quantas noites tinha chorado no silêncio do seu camarote, pensando nas moças que dançavam, felizes, nos braços de jovens sorridentes. E ela... sem ninguém que a envolvesse nos braços e lhe dissesse coisas bonitas...

Mas Manrique tinha dito coisas bonitas e talvez a convidasse para dançar quando se encontrassem novamente.

Na noite seguinte, decidiu usar o vestido de veludo. Adorava o dourado macio do tecido, e principalmente o coletinho bordado que completava o traje. Fez uma longa trança nos cabelos brilhantes e enrolou-a no alto da cabeça. Em seguida passou pó de arroz, batom e um pouco de sombra nos olhos, pois tinha recebido um farto estoque de maquiiagem juntamente com; as roupas. Diante do espelho, sentiu um tremor de excitação com a imagem adulta que via refletida.

Agarrava com ansiedade a bolsa bordada enquanto descia a escada. Já se aproximava dos últimos degraus quando se deu conta da figura alta e more­na parada no vestíbulo. Uma lâmpada lançava reflexos sobre ele, que não se moveu nem falou até que os olhos de Yvain encontraram os dele.

— Oh! — Parou de repente, apertando a bolsa de encontro ao peito. — Boa noite, senor.

Ele estendeu a mão e Yvain caminhou, hesitante, na direção dele.

— Parece mais adulta — disse, e por um momento Yvain pensou que ele fosse erguer sua mão e beijá-la. Mas não. Trouxe-a para perto da luz e examinou-a com cuidado. — Passou muito batom... venha! — Puxou-a pela mão até a sala.

Apontou para um espelho na parede.

— Tire o batom — ordenou.

Fez o que ele mandava, mas por dentro estava trémula. Como tinha sido tuia em pensar que aquele homem fosse achá-la bonita com as roupas novas. Tudo que ele queria era que ela se apresentasse decentemente diante dos amigos.

— Assim está melhor, seilor? — Virou-se para olhá-lo e sentiu-se jovem e desajeitada sob o olhar penetrante do marquês. Sem ao menos um sorriso, ele se apoiou sobre a bengala e estudou-a como se ela fosse apenas uma pintura, e não uma jovem de carne e osso cujo coração palpitava sob o vestido que brilhava à luz das lâmpadas.

Os olhos dele pousaram sobre o pescoço nu de Yvain.

— Colocar jóias nas jovens é como querer enfeitar uma flor — disse —, mas achei que gostaria de usar isto.

Retirou do bolso uma pequena caixa de jóias e estendeu-a a ela. Yvain abriu com as mãos tremulas e quase desfaleceu ao ver o colar de ouro trançado, com pequenas flores de diamantes e esmeraldas incrustradas aqui e ali.

— Que beleza! — sussurrou, quase sem voz. — Mas tenho medo de perdê-lo.

Já ia fechar a caixa quando ele estendeu a mão e retirou o colar do seu leito de cetirrt.

— Venha aqui — ordenou, e ela não ousou desobedecer, prendendo a respiração ao sentir contra o pescoço o roçar leve dos dedos dele, que prendia o fecho do colar. — Vire-se, Yvain.

— Se a sra. Sandell me visse agora! — exclamou, virando-se.

— O que acha que ela diria?

— Acho que perderia a fala, seãor. Eu...

— Sim, Yvain?

— jamais tive uma roupa bonita... usava sempre o mesmo vestido cre­me e aqueles óculos horríveis.

— Mas não me parece que seus olhos tenham algum problema. — Fran­ziu a testa, tomou o rosto dela entre as mãos e ergueu-o como se faz com um cálice ou uma flor. — O que aconteceu com os óculos?

— Perdi no mar.

— E lá devem ficar também as lembranças tristes, menina. Prometo-lhe que jamais usará uma roupa creme enquanto viver em meu castelo.

— Obrigada pela sua bondade, sefior.

Não quero agradecimentos e não sou bondoso. — Seus olhos se encon­traram por alguns instantes, depois ele a soltou. — Vamos, temos um lon­go caminho até Puerto de Leon e não quero deixar Raquel e o pai à nossa espera.

Yvain foi à frente e entrou primeiro no automóvel, cuja porta o moiorista mantinha aberta, à espera deles. Don Juan entrou em seguida, um tanto desajeitado por causa da perna, e deixou cair a bengala no chão do carro. Yvain abaixou-se imediatamente para apanhá-la e sentiu o coração disparar quando suas mãos se encontraram. Ele agradeceu com secura, o rosto impassível. Yvain encolheu-se contra um dos cantos tjo assento traseiro, assustada como um animalzinho acuado.

Sentia que jamais conseguiria entender aquele homem, que ora parecia quase humano, ora orgulhoso e distante. Ele havia lhe dado um lar, roupas e comida, mas parecia proibi-la de retribuir como quer que fosse... muito menos com simpatia e afeição.

Ao seu lado, o marquês parecia duro e frio como uma estátua de pedra.

Yvain não imaginava que o clube Hidalgo fosse tão grande. Muitos car­ros chegavam e estacionavam diante das janelas iluminadas por lustres de cristal. Lá dentro, um perfume caro enchia o ar, e a orquestra tocava músi­cas sofisticadas.

O marquês de Leon e sua protegida foram saudados com inclinações reverentes e sorrisos, e acompanhados pelos olhares curiosos até chegarem à mesa onde já estavam um homem de cabelos grisalhos e barba bem apa­rada e a bela Raquel Fonseca.

— Que graciosa! — O sr. Fonseca se levantou com um sorriso tão gentil que imediatamente Yvain se sentiu mais à vontade. Beijou-lhe a mão quan­do foram apresentados, e Yvain pensou que o pai era muito mais simpático que a filha. Raquel- por sua vez, examinava o vestido de veludo e o colar de ouro com expressão enigmática.

— Juan — disse com sua voz quente e sensual —, quase não reconheci sua protegida. Papai, foi tão divertido! Essa garota veio da praia carregando um melão e eu pensei que não passasse de uma colegial. Está muito bonita esta noite... é incrível o que as roupas de Ignazio podem fazer por uma mulher.

Sorriu para don Juan, coquete, quando se sentaram. Ele se virou para consultar o maitre.

— Sei que você adora champanhe, Raquel. Vamos celebrar com uma garrafa?

— Seria maravilhoso, mas o que é que estamos celebrando? — Olhou para Yvain. — É seu aniversário, minha querida?

— Não. — Yvain cerrou as mãos sobre o colo e seus olhos procuraram o sr. Fonseca. Ele parecia bom, tolerante, e transmitia a ela uma sensação de segurança. — Mas é como se tivesse renascido. Tudo isso é completa-mente novo para mim.

Raquel brincava distraída com o leque, cuja estampa de rosas combinava com a cor de seu vestido.

— Você trabalhava como acompanhante, não é?

— Dama de companhia — corrigiu Yvain, sabendo muito bem que a intenção da outra era forçá-la a dizer diante de todos a própria profissão.

— Não admira que tudo isso seja novo para você- — O sr. Fonseca sorriu para ela. — Juan quer que eu ensine a você castelhano e um pouco de arte, e acho que vai ser um prazer dar aulas a uma jovem tão encanta­dora.

— Estou ansiosa por aprender, senor. — Yvain sentiu vontade de abra­çá-lo. — Prometo que vou ser uma aluna aplicada.

— Meu Deus! — Raquel riu e flertou com don Juan por cima do leque. — Papai vai adorar despejar sobre ela uma avalancha de saber, mas, quan­to a mim, prefiro gozar a vida e namorar.

— Está vendo, Juan — o senor Fonseca riu —, o que acontece quando um espanhol permite que a filha se torne emancipada? Não pensa em mais nada a não ser em namorar.

— E existe alguma coisa mais bela que o amor? — Rachel perguntou, olhando para o marquês, que parecia apreciar o humor da jovem. — Claro, para uma moça simples, é melhor ser esperta. Eu nunca fui muito esperta.

Yvain percebeu a insinuação; sabia que, para a espanhola, parecia ingé­nua e desajeitada, incapaz de usar com classe um vestido de Ignazio. Pen­sou na trança enrolada no alto da cabeça e achou-a ridícula. Será que don Juan via os lábios de Raquel como pétalas de rosa iluminando o dourado suave do seu rosto?

A chegada do garçom com a garrafa de champanhe foi um alívio. A rolha saltou com tamanho ruído que Yvain deu um salto, fazendo Raquel rir.

— É a primeira vez que toma champanhe?

— Sim. é a primeira — concordou Yvain, olhando com admiração o jíquido dourado e borbulhante.

— Saúde, amor e tempo! — Sorriu o senor Fonseca. — Um brinde tipicamente espanhol, seiiorita Yvain. Amor e tempo... com habilidade. pode-se aproveitar ao máximo tanto um quanto outro.

Depois daquele incidente o jantar correu alegre, com pratos de sabor picante e uma conversa agradável, da qual Yvain pouco participou. A orquestra tocava, casais dançavam, e dentro em pouco Manrique Corte? surgiria no palco, fazendo maravilhas com sua voz e seu violão.

A ideia de ver Manrique outra vez trouxe um brilho especial aos olhos de Yvain, o que não passou despercebido a don Juan.

— Gostou da champanhe? — perguntou ele.

— É relaxante. — Ousou até sorrir para ele, depois do que sua atenção se desviou para o palco, onde acabava de surgir uma figura alta e esguia, de calças negras, muito justas, e camisa de babados, saudada pelo público com um aplauso caloroso. Ele se inclinou em agradecimento, olhou em tomo, e seus olhos encontraram os de Yvain. que tremeu de excitação. Manrique sorriu e ela teve a impressão de que todos sabiam que ele estava sorrindo apenas para ela.

— Senhoras e senhores, vou apresentar uma antiga canção de amor de Sevilha. -— Encostou-se a um pilar e começou a tocar, ao mesmo tempo em que as luzes começavam a brilhar. — Imaginem um balcão e uma moça, e lá em baixo, oculto na noite, um jovem apaixonado mas conscien­te de que um outro homem" se interpõe entre ele e seu desejo.

Quando Manrique tocava, o instrumento parecia vivo nas suas mãos: na sala não se ouvia o menor ruído, nem um murmúrio, nem um pequeno tilintar de copos. Quando o encontrara na praia, Yvain já havia sentido sua mágica, e naquela noite, estimulada pela bebida, imaginava-se a própria moça do balcão. Uma moça desejada e dividida entre dois homens que a adoravam.

Terminado o número, o público aplaudiu com entusiasmo e dona Raquel comentou que o cantor era muito atraente. Yvain percebeu o brilho nos olhos dela e sentiu um desfalecimento, como se a espanhola pudesse des­truir um sonho lindo.

—- É um excelente músico, não. Juan? — O senor Fonseca inclinou-se para acender o cigarro do amigo, e seus olhos brilhavam. — Mas parece que nossas duas jovens estão mais interessadas no charme do artista que no seu talento.

Don Juan fumava, pensativo, e observava Yvain. Manrique começou a tocar uma música de Málaga, que falava do preparo do vinho, canção ale­gre, cheia de amor e insinuações. Afastou-se do pilar e começou a cami­nhar entre as mesas, parando diante de Yvain e cantando um trecho especialmente para ela, antes de voltar ao palco.

-— Sabiam — disse o senor Fonseca, rindo que só às jovens inocen-tes era permitido entrar nos vinhedos?

— Não admira que ele tenha vindo a esta mesa. — O leque de Raquel agitava-se como a asa de um pássaro raivoso. — Yvain não afastou os olhos dele desde que começou a cantar.

Por um instante Yvain ficou sem faia, depois olhou para a outra moça e sentiu um impulso violento de puxar seus cabelos.

— Aconlece que eu o conheço — retrucou. — Encontrei Manrique Cor-tez na praia e nos tomamos amigos.

As luzes se acenderam naquele instante e o ruído dos aplausos cortou qualquer possibilidade de conversa, mas o olhar de Raquel falava com mais eloquência que suas palavras. Yvain percebeu que os olhos do seu guardião tinham uma expressão aborrecida.

— Por que não convida o senor Cortez para ir até o castelo? — pergun­tou, quando os aplausos cessaram. — É costume entre os espanhóis que o rapaz se apresente formalmente ao pai da moça ou a seu guardião.

— Sou inglesa — replicou Yvain. — Esse costume está fora de mida em meu país.

Uma chama brilhou nos olhos de don Juan.

— Vai seguir nossos costumes enquanto for minha hóspede. Da próxima vez que um rapaz se aproximar de você...

Deixou a frase pela metade, pois quando a orquestra recomeçou a tocar Manrique Cortez se aproximou da mesa. Tinha trocado de roupa e vestia um traje de noite. Parando diante deles, inclinou-se num cumprimento ao marquês e seus convidados.

— O senor marquês permitiria que eu convidasse a senoríia inglesa para dançar? — perguntou, educado. Já nos conhecemos, mas aproveito esla ocasião para me apresentar formalmente a seu guardião.

Para Yvain, era como se estivesse assistindo à representação de uma peça, apenas como integrante da plateia, e não como uma das estreias. Viu don Juan bater a cinza do cigarro e Raquel escondeu o rosto por trás do ieque.

— Senor Cortez, congratulações por sua perícia como instrumentista — disse don Juan. — Se soubesse que é amigo de minha protegida, já o teria convidado para tomar uma taça de champanhe conosco. Aceita uma agora?

— O senor marquês é muito gentil. — Manrique olhou para Yvain com olhos sorridentes. — Mais agradável que o vinho seria dançar com a seno-rita.

— Quer dançar? —Don Juan olhava diretamente nos olhos de Yvain.

— Gostaria muito — respondeu, confusa. — Mas... não sei dançar mui­to bem.

— Deixe-me ensiná-la, senorita. — Manrique tomou-a pela mão e con­duziu-a à pista de dança, onde a envolveu nos braços. —- Alo, Soiedad. Santo Deus, retirá-la de perto do seu guardião foi como entrar na jaula de um leão!

— Entendo o que quer dizer. — Riu com timidez, ajustando-se ao ritmo da música, e sentindo que Manrique era uni parceiro perfeito.   Os braços dele a envolviam com energia e delicadeza e seus ombros (ínham a altura perfeita para protegê-la dos olhares de don Juan e de Raquel.

— Você disse que não sabia dançar — brincou Manrique — senorita misteriosa... vamos, diga-me, com quem dançou antes?

— Com o açougueiro — Yvain riu —, numa festa de Natal realizada para os criados da mansão. Dançar com Higgins era uma honra para todas as moças, e depois de alguns tragos ninguém conseguia segurá-lo.

Dançou com Manrique durante quase uma hora. Saindo do salão, foram até o terraço, e sob aquele céu estrelado Yvain sentiu o coração e a cabeça num redemoinho. Riu com suavidade.

— Jamais passei momentos tão bons em minha vida! Já é meia-noite? Será que preciso fugir correndo para que meu vestido não se transforme na pobre roupa creme de sempre?

— Como você me deixa curioso! — Manrique segurou seu queixo como se fosse beijá-la, e Yvain afastou-se depressa, descendo até o jardim. Ele a seguiu e poucos minutos depois caminhavam entre as árvores e as flores. onde ela se sentia menos nervosa, já que a escuridão e as rosas serviam de proteção contra a autoridade de don Juan sobre ela.

— Você é muito sensível, não é? — Manrique prendeu-a de encontro a uma árvore, os olhos brilhantes como estrelas. — Mas gosto do seu jeito... uma garota generosa demais com seus beijos não é sincera no amor.

— Não é um pouco cedo para começarmos a discutir este assunto? — Embora seu coração batesse apressado por causa do vinho e da dança, Yvain não sentia diante de Rique a mesma ansiedade que don Juan provo­cava nela.

— Não. Os casais espanhóis faiam de amor o tempo todo.

— Não sou espanhola, senor — respondeu, séria.

— Quer dizer que nunca falou de amor com um homem?

Ela balançou negativamente a cabeça e sorriu, pois na verdade não havia nem mesmo dançado com alguém em toda sua vida; jamais havia sentido a emoção de estar a sós com um homem atraente e ousado. A flecha do amor jamais a havia atingido.

— Foi muito protegida — comentou Rique.

— Obscuridade seria -uma palavra melhor. — Passou os dedos de leve pelo veludo macio. — Ainda me sinío ião estranha vestida assim... como se estivesse fantasiada com as roupas de outra pessoa.

Mas você não está usando roupas de outra pessoa. — Os olhos de Rique brilharam na semi-obscuridade. — O marquês é um homem rico e

fez de você sua protegida. Esse colar que você usa é de brilhantes e esme­raldas.

Seus dedos tocaram as pedras e Yvain tremeu.

— Sou grata a ele, mas sinto-me como um objeto que pertence a ele.

— O que quer dizer? — As mãos de Rique se contraíram em lomo dos braços dela. — Ele a trata como uma filha, não trata?

— Sim...                                                                                          

— Então por que diz que pertence a ele? — O rosto de Rique estava muito próximo do de Yvain, e seus olhos não sorriam mais. — Usamos esta palavra com outro sentido. Eu te quero! Não como filha, mas como mulher!

— Não! — Afastou-se dele. —- Não quis dizer isso... Don Juan é meu protetor e leva a sério sua responsabilidade. Mandou buscar uma dama de

companhia para mim na Espanha e quer que lhe apresente todos os meus amigos.

— Ah, agora eu entendo! — Rique deu uma risada. — É isso que faz um pai ou guardião. Não se admire com essa atitude do senor marquês, pois agora é protegida dele e, como tal, haverá muitos homens interessados no seu dote.

— O que quer dizer? — Sentia-se perplexa. — Dote implica em casa­mento. Asseguro-lhe que...

— Agora ficou aborrecida. — Rique acariciou-ihe o rosto, como para sentir o calor provocado pela exaltação. — Minha cara, como protegida do marquês, terá todos os benefícios que ele pode proporcionar. Sabe disso, não? Um espanhol leva a sério suas responsabilidades.

— Mas tudo que eu quero é receber uma boa educação!

— Como você é inocente. — Rique riu e tomóu-a nos braços. - O que você precisa é ser educada nos assuntos do coração. Deixe-me ser seu professor, deixe-me mostrar-lhe como um beijo pode ser excitante.

— Não, Rique! — Lutou com todas as suas forças, depois contraiu-se, imóvel, ao ouvir sons de passos e o ruído de uma bengala vindo naquela direção. — É ele!

— Yvain? —- Os ouvidos atentos do marquês devem ter adivinhado o sussurro aterrorizado dela. — Onde você está?

Não teve forças para responder, e RiqUe parecia tão abafado quanto ela. Continuaram aii parados, os braços dele enlaçando a cintura de Yvain, quando o marquês surgiu através dós arbustos.

— Já vamos embora — disse, a voz tão inexpressiva quanto o rosto. — Solte minha protegida, por favor, senor. Ela já teve emoções demais para uma única noite.

Rique soltou-a, e Yvain percebeu que ele estava tão pálido e se sentia tão culpado quanto ela própria. Don Juan esperou que ela se afastasse um pou­co e disse a Rique:

— No futuro, lembre-se de que Yvain é minha protegida. Se tentar bei­já-la novamente eu a proibirei de vê-lo.

Ela se virou para protestar, mas don Juan parecia tão alto, tão severo e tão distante que não ousou desobedecer. Segurou as pontas do vestido de veludo e correu para o terraço. Sentia-se como uma garotinha apanhada em flagrante durante uma travessura.

No carro, a caminho de casa, tentou se defender.

— Não estávamos nos beijando — disse, os olhos fixos no painel de vidro que os separava do motorista.

— Mas esíou certo de que csiariam. se eu chegasse alguns minutos de­pois.

— Como um tio antiquado!

— É essa sua opinião? — Sorriu de leve, suavizando um pouco a expressão irónica. — Você é muito inocente, Yvain, más conheço meus conterrâneos e sei como são peritos na arte da conquista. Não quero que confunda as palavras ardentes de um cantor simpático com sentimentos mais profundos, que não podem ser expressos com palavras. Gostaria que você conhecesse os latinos e seu modo de viver, assim não precisaria da proteção de um tio antiquado.

— Desculpe se sou um peso, senor. — Yvain mordeu o iábio.

— Está empregando palavras que eu não disse, sehorita.

— Mas sugeriu...

— Está se referindo à minha atitude quando a encontrei nos braços daquele jovem'.'

— Estava nos braços dele enquanto dançávamos... qual é a diferença?

— Minha querida criança, se acha que não existe diferença, então preci­so cuidar também de outros aspectos da sua educação.

Nos olhos dele, surgiu outra vez aquele desconcertante brilho de humor, tão pouco frequente no rosto normalmente impenetrável. Yvain teve a sen­sação de estar vendo.o antigo Juan de Leon, aquele que ainda não tinha um defeito na perna.

— O senor age como um tirano... — disse ela, o rosto afogueado — apenas para me provocar.

— Não exatamente. — Contraiu as mãos sobre o castão de prata da bengala. — Quanto a Manrique Cortez, eu falava sério. Ele pode ser seu amigo, já que você precisa de um amigo jovem com quem conversar e dançar... mas não vou tolerar um romance de amor. Está entendido?

— Sim, senor. — Analisou a mistura de vigor e maturidade que emana­vam dele e desejou não sentir aquela estranha excitação. Gostaria que o marquês pudesse ser como um pai para ela.— Vou tentar obedecê-lo, mas e meus sentimentos?

— Seus sentimentos? — Olhou-a admirado, como se ela não tivesse o direito de ter sentimentos.

— Não pode me proibir de amar.

— Se está se referindo a um fogo de palha, acho que todos nós temos de passar por isso quando começamos a nos fomar adultos.

— Eu me tomei adulta quando tinha quinze anos — disse num murmú­rio, cravando as unhas nas palmas das mãos. — De qualquer jeito, acho que Rique não vai mais querer minha amizade depois da maneira como o senhor falou com ele.

Don Juan encarou-a, as sobrancelhas erguidas, a expressão satânica.

— Os espanhóis não são assim tão sensíveis. Ao contrário, são extrema­mente persistentes na busca de um ideal.

— Como Don Quixote? — Sorriu.

— Exatamente. — Sustentou com os olhos escuros o olhar dela. — Já leu as aventuras de Don Quixote?

— Sim, quando não estava fendo romances de amor para a sra. Sandell. — Minha biblioteca possui vários livros em inglês. São seus. — Sorriu

também.

Eía agradeceu, mas não deixou de notar a sutileza com que ele a afastou dos pensamentos românticos e a levou de volta à sala de aula. Então o marques não a considerava pronta para o amor.

O que era o amor? Seria como um tremor incontrolável, um abraço sení fim, um beijo ardente que silenciasse todas as dúvidas?

Com o murmúrio macio do carro, Yvain dormiu e sonhou, No sonho, uma mão tocava seu cabelo e dizia:

— Chegamos em casa, Yvain.

— Em casa? — murmurou sonolenta, e só então percebeu que sua cabe­ça repousava no ombro do marquês, tão próxima da dele que poderia até atraí-lo para si e sentir seus lábios quentes.

O pensamento não durou mais que um instante, mas perturbou-a tanto que no momento seguinte estava longe dele.

— Vamos — disse ele, ríspido. — Está com sono por causa da champa­nhe e por ter dançado tanto tempo com o belo Manrique. Não se esqueça de que amanhã começa a ter aulas com o senor Fonseca.

De volta às aulas, pensou, descendo do carro e seguindo don Juan até a porta do castelo.

— Boa noite, menina -— cumprimentou don Juan, seco, e se afastou.

 

A vila dos Fonseca ficava acima do aveludado azul do mar, na baía. Pequenos barcos de pesca flutuavam em torno dos paredões visguentos que sustentavam as rochas sobre as quais erguiam-se punhados de casas brancas como flocos de algodão. No mercado, pessoas faziam compras: na capela o sino soava, alegre; por toda parte o sol brilhava, quente, iluminando as flores que cresciam em cada balcão.

Don Juan levou Yvain até a casa, onde dona Raquel os esperava, fria e adorável como uma flor, usando um vestido imaculadamente branco e, na cabeça, um chapéu também branco, enfeitado apenas com uma rosa. Ela e don Juan iam até o continente, onde passariam o dia. Raquel tinha com­pras a fazer, e o marquês, negócios a tratar.

Antes de partirem, todos tomaram chá de limão no pátio da vila. Era um iugar delicadamente romântico, repleto de oliveiras, por onde pairava uma espécie de encanto mágico. Sentada em um dos bancos que rodeavam algu­mas oliveiras, Raquel sorria, contente por ter só para si, durante um dia inteiro, o homem moreno e misterioso.

— Você parece um quadro de Renoir — ele disse a ela.

Ela sorriu e olhou para Yvain, vestida com uma roupa amarela, muito simples, tendo como único adorno um colar branco. O vestido sem mangas deixava à mostra seus braços esguios e revelava um pouco as pernas jovens e bem-feitas. Caindo por um dos ombros, uma trança dourada, presa na ponta por uma fita verde.

— Juan, que artista pintou sua protegida? — Os olhos de Raquel brilha­vam, parecendo transmitir ao marquês uma mensagem cifrada, que só um homem apaixonado poderia entender.

O marquês estava em pé, apoiado ao tronco de uma árvore, e o senor Fonseca descansava numa poltrona de vime, tendo na boca uma cigarrilha.

— Degas. — Quem respondeu foi o dono da casa, pois don Juan parecia não ter uma opinião a respeito. — Só ele podia ter desenhado essas pernas esguias e esses olhos imensos. As modelos de Degas tinham sempre uma expressão levemente mágica, como se pudessem desvanecer-se a quaiquer momento, tal qual as nuvens de verão.

— Quer dizer, minha querida — Raquel deu uma risada e levantou-se entre um murmúrio de rendas — que não pertence a esta terra, como nós? Papai, ofereça-lhe outra fatia de torta... não queremos que ela saia flutuan­do pelo ar e desapareça, não é mesmo?

— Vá Jogo fazer suas compras! — ordenou o pai, rindo. — Juan. leve daqui essa minha filha mimada e deixe-me a sós com essa criança cuja mente jovem ainda não foi contaminada pela mania da moda. dos coquetéis e do prazer!

Don Juan sorriu, apoiou-se à bengala e aproximou-se de Yvain. Parou diante dela. numa atitude tão dele: meio inclinado, observando-a com olhos penetrantes. — Seja uma aluna atenta, menina, pois vou fazer perguntas, mais tarde.

Yvain sustentou o olhar do marquês, sentindo que ele era novamente o guardião severo. Só mesmo num sonho aquelas mãos poderiam acariciar com suavidade.

— Espero que tenha um dia tão bom quanto o que espero ter, senor. — Sorriu de leve para o mestre, pois don Juan parecia apreciar sorrisos apenas quando esses vinham de dona Raquel. Quanto a ele, guardava muito bem a chave do próprio enigma.

— O que quer que lhe traga? — perguntou don Juan inesperadamente.

Yvain arregaJou os olhos, até que não via mais nada diante de si. a não ser o rosto moreno, digno e discretamente iníjuisitivo. Raquel observava a cena, fria e divertida, os dedos apoiados de leve sobre o fecho da bolsai

— Eu... não quero nada, don Juan — gaguejou Yvain.

— Nem mesmo uma caixa de doces? — insistiu ele, um leve sorriso no olhar.

— Doces? Está bem... — concordou e sorriu também. — Não muito açucarados, por favor.

— Caramelos? —- sugeriu, e virou-se para o seãor Fonseca. — Vamos voltar tarde, meu amigo, mas prometo não deixar que sua encantadora filha se afaste muito de mim, — juan, não comece a agir como se fosse o meu guardião... não há . necessidade disso. — Raquel riu com entusiasmo e tomou o braço que ele lhe oferecia. — Não sou uma adolescente.

— Sei disso, Raquel. — Sorriu para ela e para Yvain, parecendo muito mundano naquele instante. — Melhor nos apressarmos se não queremos nos atrasar.

— Como você quiser — respondeu Raquel.

Yvain percebeu o suspiro aborrecido do senor Fonseca, que parecia desaprovar a atitude da filha. Ela admitia abertamente aceitar a posição de escrava obediente do nobre da Espanha.

Don Juan cumprimentou o dono da casa, olhou um momento para Yvain e saiu com Raquel. O som da bengala batendo no iadrilho foi sumindo aos poucos, até morrer completamente.

Por um ou dois minutos, tanto Yvain quanto o tutor pareceram gozar a sensação de paz que desceu sobre o pátio. Era como se, após uma luta de emoções em conflito, a tranquilidade retomasse: só se ouvia o chilrear dos pássaros e o murmúrio suave da fonte. A vila era uma construção barroca de sólidas paredes, e a poucos passos de Yvain erguia-se um oleandro que espalhava pétalas e perfume pelo pátio. As flores eram adoráveis, pensou Yvain, mas continham um veneno perigoso.

— Então, minha menina, você tem sede de aprender, — O homem esta­lou os dedos e observou Yvain com um interesse amistoso. — Foi ideia sua ou de don Juan'.' Ele é um jovem de vontade forte e me parece pouco comum uma garota bonita como você desejar estudar arte e literatura com um professor velho e rabugento como eu. A maioria das moças prefere namorar.

Ela acariciou uma flor de oleandro e sorriu, tímida.

— Nunca tive uma verdadeira educação, senor, e parece um milagre que don Juan tenha me proporcionado um mestre como o senor. Quero aprender muito e crescer através do saber.

Um brilho apareceu nos olhos do senor Fonseca.

— Pode parecer estranho que um solteirão tenha uma protegida, mas vejo que ela é que é incomum. Juan não ê um homem sentimental. Se você fosse uma tola, tenho certeza de que ele a teria enviado de volta à Inglater­ra com algum dinheiro e uma reverência educada. Ele me disse que você não tem família.

— Não tenho mais, senor.

— Deve ser triste para você. Todas as pessoas deviam ter alguém na vida. Como vê Juan... como uma espécie de tio?

— Não... — Deu um sorriso, que se transformou numa risada. — Não consigo me imaginar chamando-o de tio Juan. Ele é tão sério e tão impor­tante... é o leão da ilha.

— Considera-se um dos caprichos dele?

— Sim.

— Sabia, minha menina, que o homem espanhol é solitário e cruel?

— Agora já sei.

— Foi Juan quem a ensinou? — O senor Fonseca inclinou-se, atento às reações de Yvain. — Como fez isso?

— Ele faz alguma objeção à minha amizade com Manríque Cortez. Acho que me considera imatura para manter uma relação com um homem sofisticado como Rique.

— Você gosta da companhia daquele jovem?

— Não tenho muitos amigos, senor, por isso me alegro por ter enconíra-do um. Rique é alegre e bonito e...

— Você está se sentindo lisonjeada. — O homem sorriu. — É natural. Como tenho uma filha, sei o que representa para uma mulher sentir-se desejada e atraente.

— Dona Raquel é muito bela — Yvain falou com sinceridade, embora duvidasse da beleza interior da moça. — Deve ter muitos admiradores.

— Desde criança — admitiu o pai, com um leve brilho de orgulho no olhar. — É muito parecida com a mãe. mas Anna era doce c meiga, c nossa vida em comum foi extremamente feliz. Minha Raquel, ao contrário, tem uma personalidade forte e dominadora, o que me faz ter um pouco de­pena do homem com quem ela se casar.

Yvain retirava as pétalas de uma flor, distraída, pensando na bela Raquel apoiada ao braço de don Juan. Raquel Fonseca tinha decidido que seria vantajoso e mesmo excitante ser a noiva do marquês de Leon. Se isso se tornasse realidade, o que aconteceria à protegida do marquês?

— Em que está pensando, minha menina, com esses olhos tão misteri­osos?

Yvain olhou para o professor e sorriu.

—- A vida é que é misteriosa. Será verdade que nosso destino está traça­do antes mesmo de nascermos?

— O destino? — Ele ficou pensativo. — Estou inclinado a crer que todos nós temos uma encruzilhada na vida... ah, por que arregala esses olhos dourados? Eu disse alguma coisa significativa, senorita?

— Sim... é estranho. -— Deixou cair a flor e olhou para a palma da mão, onde certa vez uma cigana havia visto uma encruzilhada. Contou ao professor da cigana, esperando que ele sorrisse, mas ele continuou sério.

— O verdadeiro cigano tem o dom da clarividência. A mãe do seu guar­dião era uma cigana, e às vezes fico imaginando se ela não sabia desde o início que seu casamento terminaria em tragédia. Como o velho marquês não a aceitaria, depois da tragédia ela fugiu com o bebé para a América do Sul. Juan cresceu lá, e, sendo forte e ambicioso, fez fortuna sem a ajuda da família do pai. Isso foi em Lima... — O senor Fonseca calou-se e analisou o rosto alento de Yvain. — Você tem o dom de saber ouvir em silêncio...

alguma vez Juan já retirou a máscara diante de você e revelou um pouco da sua dor?

— Dor? — repetiu, pensando nos momentos em que ele parecia perdido em pensamentos tristes, momentos em que conseguia ser assustador e man-tê-la afastada.   -

— A perna doente ainda o atormenta. No começo os médicos de Lima quiseram amputá-la, mas ele não concordou e viajou para a Inglaterra, onde se colocou aos cuidados de um cirurgião que reconstruiu a pema pouco a pouco, numa série de operações dolorosas. Foram meses de tortu­ra, os quadris imobilizados pelo gesso, os nervos dia a dia mais tensos. Pode-se dizer que só um milagre salvou-lhe a perna, esmagada quando o cavalo que montava quebrou uma das patas durante um galope. Juan gosta­va de velocidade, o que, juntamente com o fato de estarem subindo a en­costa de uma montanha, contribuiu para a gravidade do acidente.

Yvain tremeu ao imaginar a cena: o cavalo caindo com todo o peso do corpo, a perna do marquês presa sob a massa bruta do animai.

— Deve ter se sentido muito só... — disse com ã" voz trémula de emo­ção — caído na imensidão das planícies.

— Algumas horas depois os vaqueiros o encontraram delirando sob o sol inclemente, e ao seu lado o cavalo morto, pois Juan ainda conseguiu forças para dar o tiro de misericórdia que acabou com o sofrimento do animal. Ele me contou que só pensando no revólver que trazia no cinturão conseguiu forças para suportar as horas de espera. Sabia que poderia colo­car um fim no próprio sofrimento quando a agonia se tornasse insuportável.

— Só uma pessoa com vontade de ferro conseguiria suportar tamanho pesadelo — sussurrou Yvain. — A dor, o sol quente, a consciência da própria solidão e desamparo...

— Don Juan é espanhol e cigano, minha menina, raças acostumadas à conquista de novos mundos, acostumadas a sofrer e praticar torturas. Só pçk isso.sobreviveu ao acidente, à longa exposição ao sol, aos longos meses de tratamento. De volta à Espanha, viveu todo o tempo sozinho naquele castelo assombrado. Assombrado pela lembrança do sofrimento suportado lá dentro pela mãe.

— -Vi o retrato dela — disse Yvain com suavidade. — Deve ter sido difícil para ele perdoar aqueles que a feriram, Como é que foram capazes de maltratar uma flor adorável como La Rosalita?

— Sim, Rosalita. — Os olhos do homem pousaram com tristeza sobre as rosas que cresciam numa das paredes do pátio. — Eu a conheci numa breve visita que fiz à ilha. Naquela época eu dava aulas num colégio de Madri e ainda não havia fixado residência na ilha de Leon. Vi Rosalita poucas vezes, antes que ela e o filho deixassem a ilha para nunca mais. Havia uma espécie de aura, um estranho encanto naquela mulher. A marquesa, avó de Juan, tintia unia pretendente para o filho, mas ele recu­sou a moça para se casar com uma cigana, e a família jamais o perdoou por isso.

— Quanto preconceito e insensibilidade! — exclamou Yvain. — Consi­derar a posição e a fortuna mais importantes que o amor!

O senor Fonseca sorriu com o ceticismo próprio das pessoas de idade.

—- As paixões da juventude, minha criança, têm pouco valor aos olhos das pessoas que jamais as conheceram. Na família de juan, era natural que dinheiro se juntasse a dinheiro, que prestígio se casasse com prestígio. O pai dele quebrou uma regra estabelecida há muitas gerações, e às vezes me pergunto...

— Sim, senor?

— Juan... o filho do nobre e da adorável cigana. Se não fosse pelo acidente, que matou a inquietude própria da natureza dele, não acredito que tivesse assumido o título e a posição que ostenta hoje. Juan de Leon é dois homens. Às vezes seus olhos deixam entrever gm leão enjaulado; às vezes aceita o destino com o humor irónico dos espanhóis.

Fazia calor no pátio, mas Yvain sentiu um tremor. O destino era cruel demais com certas pessoas, e ela desejou do fundo do coração que o mar­quês encontrasse a felicidade como recompensa por todo o sofrimento suportado durante a vida- A dor havia deixado marcas no rosto jovem: tinha roubado as alegrias a que um nobre como ele tinha direito; cavalgar um cavalo ágil, jogar ténis, tomar nos braços uma mulher para gozarem juntos o ritmo alegre de uma dança.

— Quantos anos têm don Juan? — perguntou sem pensar.

— Trinta e dois, menina.

— Pensei que fosse muito mais velho! Ele me trata como a uma criança!

— Creio que Juan a considera muito jovem e inocente. — O tutor riu.

— Don Juan — murmurou Yvain. — O grande amante cujo coração jamais foi tocado.

— Diz a lenda que ele se apaixonou... apenas uma vez.

— É mesmo? — Imaginou outra vez a bela Raquel apoiada ao braço dele. O marquês havia olhado para a espanhola com admiração e talvez estivesse a ponto de entregar o coração.

— Já é hora de começarmos as lições. O senor Fonseca levantou-se. — A sala está mais fresca e possui objetos e livros que você pode estudar.

A sala tinha sido decorada com móveis antigos e de estilo. Escura e pesadamente entalhada, fazia ressaltar a coleção de arte do dono da casa. Yvain recebeu autorização para manusear com cuidado umas figuras de terracota, representando crianças.

— Você deve amar os objetos de arte com todo seu coração — aconse­lhou o tutor.

— Estes são encantadores — comentou, sem contudo sentir mais que o interessada. Olhou para as pinturas e teve a sensação de estar SeTe olhos reais, e não apenas pintados. Sentiu um tremor involuntá-nocoías inanimadas, não importa quão belas fossem, jamaIS consegu,-riam emocioná-la como seres humanos.

— Lindas — repetiu, sentindo o olhar penetrante do tutor.

_ Vamos começar com a história de Ticiano. - O professor retirou um grande livro da estante. - Creio que vai simpatizar com ele... so daqu. a muito tempo vai estar preparada para o mestre.

Os olhos de Yvain deixavam entrever a pergunta que ela nao fez

- Uonardo da Vinct. - O senor Fonseca somu. e Yvain teve a impressão de que havia malícia nos olhos dele.

 

Era domingo... nada de lições. Um bilhete de Manrique a convidava para um passeio pela ilha.

Como a carta foi entregue durante o café da manhã, Yvain foi obrigada a pedir o consenlimento de don Juan. Ele levantou os olhos da correspondên­cia que lia.

— Já lhe disse que não faço objeções ao rapaz... como amigo, Yvain. Claro que pode ir passear com ele.

— Obrigada.

— Acho que vamos precisar esquecer a ideia de uma dama de compa­nhia para você. Recebi uma carta de dona Augusta recusando meu convile, pois iniciou um pequeno negócio e não pode abandoná-lo por um trabalho temporário. — Sorriu quase que imperceptivelmente. — Acha que pode continuar no castelo sem uma acompanhante?

— E por que eu ia precisar de uma?

— De fato, por quê? É que você parecia estar em dúvida quanto às minhas intenções quando as roupas chegaram de Madrí.

— Agora já o conheço melhor, don Juan.

— Conhece mesmo? — Encheu mais uma vez a xícara de café. — Che­gou ã conclusão de que não sou perigoso como meu homónimo?

— Ele era um conquistador.

— E o que é que eu sou?

— O senhor é um homem refinado — riu, confusa —, e deve ter-se divertido muito comigo por tef interpretado mal sua gentileza...

— Por que insiste em dizer que sou bondoso? — Tomou um gole de café. — Minhas ações raramente são motivadas pelo sentimento. Sou um homem prático, como todos os espanhóis, e não gosto de ver juventude e inteligência desperdiçadas. Estou feliz com os progressos que vem fazendo com o senor Fonseca. Ele me disse que você tem muita facilidade para aprender nosso idioma. Vamos, diga alguma coisa em castelhano!

— Não tenho coragem.

— Não tenha medo de mim..— Riu, zombeteiro. — Faça de conta que sou Manrique Cortez.

— Isso é impossível!

— Por quê? Porque ele é da sua geração e eu fenho idade bastante para ser seu tio?

—- Eu... não o vejo como um tio — protestou Yvain.

— Mas tem medo de mim, por isso não quer dizer algumas palavras em castelhano.

— Tenho vergonha...

— Quer que eu fique de costas? — brincou don Juan. — Francamente, Yvain, você vive dizendo que sou bondoso, mas age como se me considerasse um monstro. Sim, Luís? — Oihou para o criado, parado ao lado dele.

— O senor Cortez espera peia senorita, senor.

— Obrigado, Luís. — Don .luan olhou para Yvain. — Como deve estar   ansiosa para se encontrar com seu admirador, continuaremos nossa conversa num outro dia, Yvain, não se esqueça do que eu lhe disse: agora está sob meus cuidados e não gostaria que as pessoas pensassem que o jovem Cor­tez está cortejando você.

— Terei cuidado, senor. — Seus olhos brilhavam de ansiedade pelo passeio, e ela praticamente saltou da cadeira. — Não sei a que horas estarei de volta...

— Isso não é problema meu. — Seu tom era frio. — Também vou sair.

— Espero que se divirta, senor.

—- Pois eu tenho certeza de que você vai se divertir muito, Yvain. — Fez uma pequena inclinação de cabeça, — Corra, menina. Não faça o rapaz esperar.

— Não... até logo.

— Até a vista.

Mais do que depressa, saiu correndo dali, como se a presença do mar­quês a assustasse. Ao passar pelo criado que segurava a porta para ela, notou que nos olhos dele já não havia a antiga desconfiança. Talvez a presença de uma pessoa jovem na casa o estivesse agradando, por ser uma novidade, — Tenha um bom dia, senorita — murmurou Luís.

— Obrigada, Luís. — Sorriu para ele, — Na Inglaterra, normalmente os dias ensolarados como este terminam com uma tempestade.

— Acho que a senorita não precisa se preocupar — garantiu Luís, depois de examinar o céu.

— Yvaín! — Manrique a esperava ao pé da escada, com um sorriso amplo nos lábios.

Ela correu para ele, que lhe segurou as mãos e examinou-a com admi­ração.

— Cada vez que a vejo — disse ele, sorrindo —, parece mais crescida. Você é como uma flor que estivesse fechada por causa da sombra: o sol da Espanha está fazendo desabrochar a beleza oculta.

— Não seja- bobo — protestou Yvain. — Não sou nem um pouco bonita!

— Você é linda. — Ajudou-a a entrar no carro, um modelo creme com estofamento cor de caramelo. Apesar da capota aberta, uma proteção de linho impedia os assentos de ficarem muito quentes.

— Todos os homens latinos são aduladores — brincou Yvain.

— Até mesmo don Juan? — Rique olhou-a fixamente enquanto entrava no carro,

— Meu protetor é um homem de responsabilidade...

— É espanhol e tem olhos muito vivos. — Rique deu partida no carro e virou na direção dos portões e da estrada ensolarada. O mar lá embaixo tinha um brilho azul de prata e no ar sentia-se uma delicada fragrância. — Ele ainda é jovem... para ter uma protegida.

— Espero que não esteja pensando que...

— Claro que não. — Deu uma risada. — Não tenho a menor dúvida de que ainda não fez amor com homem algum.

— Não sabe falar de outro assunto que não seja amor?

— Não existe assunto mais fascinante. Faz parte do mistério da vida; é o que faz da vida uma coisa digna de ser vivida.

— Deve ter se apaixonado muitas vezes, Rique, para falar com tanta segurança.

— E que latino não é antes de tudo um amante, se não com atos. ao menos com palavras e músicas? Será que tem medo do amor, chica"!

— Você confunde amor com um simples flerte.

— Será que posso flertar com você?

— Flerte não combina com amizade.

— Se seu protetor espera que eu a trate como uma garotinha, então por que não a tranca na torre? Quer que a leve de volta para ele?

— Não.,, ele vai sair.

— Com a exótica Raquel?

— Acho que sim.

— Toda a ilha comenta que ele vai se casar com ela. O que você acha?

— Ele não me faz confidências.

— Acho que você não vai ficar muito feliz se eles se casarem, não é?

— Por que eu iria me importar? — Olhou para Rique, espantada.

— Se Raquel se tornar a senhora do castelo, pode não gostar da presen­ça da atraente protegida do marido.

— Don Juan não precisa continuar sendo meu protetor para sempre. Vou permanecer no castelo até que o senor Fonseca me ensine o suficiente para eu poder iniciar uma carreira.

— Está falando sério? — Rique diminuiu a velocidade do carro para olhar para ela. Com os cabelos agitados pelo vento, Yvain parecia ainda mais jovem e atraente, embora não tivesse consciência disso.

-— Claro. Quero ter um trabalho mais agradável que o de dama de com­panhia.

— Existe uma ocupação mais agradável... pode se casar.

— Só darei esse passo quando estiver apaixonada.

— Mas você tem medo do amor — brincou Rique.

— Tanto quanto qualquer outra moça, mas sou cuidadosa. Rique. veja o mar! E tão lindo que mal consigo acreditar que um dia ele me aterrorizou.

O carro deslizava suave sob o sol e Yvain observava cada detalhe da paisagem, atenta e maravilhada, ansiosa por ter tudo registrado na memória para quando fosse embora da ilha. A distância, a Espanha parecia cor de violeta, e a paisagem de olíveirais e moinhos de vento parecia saída das páginas do Don Quixole.

— A Espanha se parece com a ilha? — perguntou Yvain.

— Muito. É como se alguém houvesse roubado um pedaço da Andalu­zia e jogado no mar. Sou do sul, mas adoraria viver aqui.

— Sua vida é nas cidades. — Sorriu. — Sua música vai levá-lo a todas as partes do mundo e você sabe disso.

— Pode ser — admitiu ele.

— Será que um dia nos lembraremos deste passeio ao sol da ilha? Será que nos lembraremos daquela casa de paredes brancas, coberta de flores vermelhas? Da criança que recolhe conchinhas na praia? Sinto o cheiro das algas e das flores e talvez um dia consiga senti-lo outra vez, apenas fechan­do os olhos. — Olhou para Rique, admirando seu belo perfil latino. — E você, vai se lembrar?

— As lembranças são muito vagas. Prefiro tudo que é vivo e respira.

— Isso porque você é homem. Acho que os homens só lembram daquilo que os magoou. — Pensou em don Juan, que não teria voltado à ilha para assumir seus títulos se não fosse aquele acidente horrível. Até hoje, segun­do o senor Fonseca, ele ainda sofria com o passado.

— Em que está pensando? — Rique parou o carro no alto de um roche­do; o sol e o som do mar os envolviam como um manto. Yvain aspirou o perfume do ar, deliciada, sentindo-se segura ali. Não pensava mais na força terrível do mar que quase a matara um dia.

Rique segurou sua mão com delicadeza.

— Nesse instante você parece estar sonhando. Quem é que vive e respi­ra nos seus sonhos?

— Muitas pessoas. — Yvain riu, mas sentiu que seu pulso se acelerava e desejou que Rique não tivesse percebido.

— Você é uma coísinha perturbadora, Yvain. Muitas moças gostam de flertar com os homens, mas você nem sabe como fazer isso. Deve ter sido muito protegida até hoje.

— Uma vida restrita, o que é diferente. Uma órfã não tem ninguém para protegê-la, Rique, por isso pare de me tratar como se eu fosse uma criança.

— Gostaria de tratá-la como namorada. — Aproximou-se, os olhos bri­lhantes, obrigando-a a encolher-se no assento.

— Rique...

— Os tabus costumam tentar os homens.

— Por favor, não estrague nosso dia.

— Vou fazer o possível para que nosso dia seja o melhor possível. Olhe em volta: a não ser pelo menino que recolhe conchinhas, estamos comple-tamente sós. Seu protetor provavelmente está cortejando a bela Raquel com a distinção de um verdadeiro fidalgo.

— Não sabe se controlar? — pediu Yvain. sentindo que as mãos dele lhe acariciavam o cabelo dourado. Mas, estranhamente, não o afastou, pois o toque dos dedos dele não despertava nela aquela esquisita sensação de corrente elétrica, como acontecia toda vez que seu guardião a tocava sem querer.

— Pensei que fôssemos almoçar numa finca — disse Yvain.

— Daqui a pouco. — De repente ele a abraçou e beijou seu pescoço nu.

— Sua pele é suave como a de uma menina, macia como uma pétala... Tenho que beijá-la!

Beijou-a, mas Yvain permaneceu fria e passiva. Ele se afastou e olhou-a, perplexo.

— As moças inglesas são todas assim, frias como gelo.

— Sim... quando são beijadas contra a vontade.

— Devo concluir que não me acha atraente? — Afastou-se deia.

— Não, Rique.   Só quero conhecê-lo melhor.   Quero que sejamos amigos...

— Amigos... um homem e uma mulher? — Riu com desprezo. — Você não estaria no meu carro se não me atraísse.

— É só nisso que pensa? — Abriu a porta do carro e saltou, indignada.

— Obrigada pelo passeio...

— Yvain, sua idiotazinha...

Ela tirou os sapatos e desceu correndo a encosta, até a praia. Percebeu que Rique vinha atrás e se sentiu perdida, pois o garoto que catava conchi­nhas havia desaparecido. Estava sozinha na praia com um homem furioso a persegui-la.

Yvain... está se comportando como uma criança... Talvez estivesse, mas mesmo assim tinha deixado de gostar de Rique e não queria que ele a tocasse oulra vez. Apressou o passo, correndo livre peia areia, sem o sapato para atrapalhá-la. Viu uma cerca de madeira e! saltou-a, achando-se em seguida diante de uma escada que conduzia a um pequeno cais. Quase sem fôlego, subiu os degraus de dois em dois, desco­brindo, aliviada, que algumas pessoas tomavam sol a pequena distância.

Calçou os sapatos e junlou-se aos banhistas. De longe viu que Rique a observava durante alguns instantes, depois virava-se e caminhava na dire-ção do carro. Não se senliu triste por ele ter ido embora; sentou-se ao lado de um garoto que pescava, muito compenetrado,

— Já pegou alguma coisa? — perguntou, num castelhano inseguro.

— Logo vou pegar um peixe enorme — garantiu o menino.

Ela não cometeu a indelicadeza de rir, mas, para sua surpresa, pouco tempo depois ele fisgou mesmo um peixe de tamanho razoável e convidou-a para uma refeição à beira do mar.

Apesar do desentendimento com Rique, Yvain aproveitou cada momento do dia. O pequeno Fernando tinha numa sacola um pão caseiro, tomates e todos os utensílios necessários para o preparo de um peixe.

Recolheram madeira, fizeram uma fogueira e puseram o peixe para as­sar. Depois de pronto, comeram-no com o pão e os tomates, sem deixar um só pedacinho. Descansaram um pouco na areia para fazer a digestão e em seguida jogaram vôlei.

Foi tudo tão divertido que só quando Fernando avisou que precisava ir embora é que Yvain se deu conta de que estava a muitos quilómetros do castelo. Seu jovem amigo indicou-lhe a direção que devia seguir.

—- Vai ser uma longa caminhada, senorita.

— O peixe estava esplêndido. Muito obrigada, Fernando.

— Foi um prazer, senorita. — Ele a olhou com estranheza, pois o cabe­lo de Yvain, molhado e embaraçado, colava-se ao pescoço dela, e o vestido ensopado da água do mar não tinha uma aparência muito fina. — É sério que vive no castelo do senor marquês?

— Seriíssimo. — Sorriu e estendeu a mão para ele. — Até breve. Fernan­do. Espero que nos encontremos de novo.

Ele não apertou a mão de Yvain. como ela esperava, mas inclinou-se galante, e beíjou-a.

— Alé a vista, senorita.

Yvain sentiu-se solitária quando a pequena ligura desapareceu. Logo o sol desapareceria e ela ficaria sozinha naquele lugar estranho. Como ficar ali parada, sentindo piedade dela mesma não ia ajudá-la a voltar ao castelo, tomou a estrada da praia, como Fernando havia indicado, e enquanto cami­nhava notou distraída que as montanhas estavam praticamente ocultas na névoa, à exceção dos picos,

A cena, apesar de um pouco sinistra, não deixava de ter uma beleza misteriosa, e só depois de meia hora Yvain decidiu parar para descansar um pouco, percebendo que o sol começava a desaparecer no horizonte. Olhou para o mar e sentiu um calafrio. Logo seria noite e a névoa parecia estar penetrando na ilha. Começou a correr... e de repente o salto de um dos sapatos quebrou e ela sentiu uma dor no tornozelo. Esfregou a perna e olhou para o sapato, desconsolada,

— Este não é o seu dia — murmurou para si mesma. Enquanto cami­nhava envolta pela névoa, olhava esperançosa para as torres distantes do castelo, esperando vê-las surgir por entre as nuvens a qualquer momento.

A umidade começou a tomar conta dos cabelos e da roupa de Yvain, que ouvia ao longe o som fantasmagórico dos apitos dos navios que chegavam ao porto. Apressou o passo, mas a névoa a seguiu. Até então estava apre­ensiva, mas não assustada. Uma ou duas vezes já se havia perdido nos pântanos de Combe St. Blaize, mas. sendo uma garota do campo, não se deixara dominar peio pânico. O importante era evitar o pânico, caso contrá­rio ficaria mais difícil encontrar o caminho de volta.

Procurou reunir toda sua frieza, pois sabia que dentro de pouco tempo estaria andando às cegas no meio da neblina e que leria que depender ape­nas dos seus instintos para conseguir voltar ao castelo. Sabia da existência de chalés ao longo do caminho, mas todos eles se localizavam em lugares bem protegidos. Se saísse da estrada, seria muito difícil encontrá-la outra vez.

Lembrou-se de ter dito a Luís naquela manhã que um dia de sol, na Inglaterra, costumava significar tempestade. Jamais imaginou que.o sol bri­lhante da ilha pudesse se transformar naquela neblina cerrada. Mas ali esta­va ela, presa no nevoeiro, impotente como uma mosca presa num pote de mel. Sentia frio e uma enorme solidão, e desejava ter um agasalho com que se proteger. De repente, um som chegou até ela. fazendo-a olhar para trás com novas esperanças.

Pela primeira vez na última hora um automóvel vinha na direção dela, os faróis fortes cortando a névoa. Sentiu que o coração lhe saltava no peito. Precisava a todo custo fazer o carro parar e pedir uma carona... precisava!

Correu para o meio da pista, e o motorista, que só a viu quando os faróis iluminaram o vestido branco, precisou frear bruscamente para não atropelá-la. Yvain ouviu o ruído dos pneus, o som de vidros que se quebravam contra uma árvore... e depois um silêncio pesado.

Apavorada, correu até o automóvel e começou a lutar com a porta, que não queria abrir. Alguém abriu por deniro e. apesar da escuridão. Yvain reconheceu a figura alta e esguia que parou diante, do único farol que restou intacto. O olhar negro e penetrante num instante transformou o frio que ela sentia numa onda de calor sufocante. Olharam-se em silêncio por um instante.

— Eslá... bem? — gaguejou Yvain.

— Graças a você, não — ele respondeu, cortante. — Suponho que esta­va perdida na neblina?

— Sim, senor. — Estava a ponto de chorar, por causa do choque, mas ao mesmo tempo se sentia aliviada por vê-lo são e salvo. A parte dianteira do automóvel estava bastante danificada e, apesar das inúmeras tentativas, o motor recusou-se a funcionar. Ela sabia que âs vezes don Juan dirigia sozinho o carro construído especialmente para ele, onde podia manter a perna esticada.

Ao pensar na perna já ferida em outro acidente terrível, Yvain sentiu uma súbita tontura e precisou apoiar-se à porta para não cair.

— Sua perna ficou ferida? — perguntou, trémula.

— Está tudo bem, exceto meu carro e meu humor. Por que não ficou no acostamento e simplesmente acenou para que eu parasse? Quando os faróis iluminassem seu vestido branco eu a teria visto.

— Estava tão transtornada que não pensei em nada. Sinto muito pelo carro... o motor ficou muito danificado?

Ele tentou novamente dar a partida no motor, mas este simplesmente fez um ruído seco e o silêncio voltou a envolvê-los.

— Parece que o motor está avariado — disse ele, seco. Olhou para ela longamente, depois entrou no carro, estendeu a mão e puxou-a para dentro também. — Feche a porta, senão a neblina vai tomar conta do carro.

Ela obedeceu, enquanto ele retirava do porta-luvas uma garrafa com um líquido dourado.

— Tome um pouco deste conhaque. — Tirou a tampa do frasco e esten­deu-o para ela. — Está tremendo, Yvain.

Ela agarrou a garrafa e tomou pequenos goles da bebida reconfortante.   Os olhos dele brilhavam à luz fraca do interior, meio preocupados, meio irritados.

— Vocês, mulheres... Só porque o dia é de sol, saem sem um agasalho, esquecendo-se de que o tempo é imprevisível. O conhaque que tomou foi suficiente?

— Sim... — Devolveu-lhe a garrafa. —Já não estou tremendo tanto.

— Há um casaco no assento traseiro, se conseguir alcançá-lo.

Ela ajoelhou no banco para poder alcançar o agasalho e deu uma excla­mação de prazer quando seus dedos tocaram o tecido: o mais macio dos arminhos.

— Vista-o — ordenou don Juan. — Seu vestido não tem mangas e a saia é muito curta.

Yvain sentiu uma onda de sangue subir a seu rosto por causa da maneira como ele a olhava quando se inclinou para a frente e a envolveu no casaco. Os dedos quentes do marquês lhe tocavam o pescoço.

— Vi Cortez no Clube Hidalgo, esta manhã. Perguntei onde você estava e ele me disse que havia voltado ao castelo. O que aconteceu, Yvain? Teve uma discussão com ele?

— Tivemos uma divergência de opinião — admitiu, presa pelas mãos e pelo olhar dele.

— Sobre o que divergiram?

— Nada de importante. As discussões às vezes nascem de bobagens.

— O rapaz me pareceu um pouco mai-humorado. Ele tentou... fazer amor com você?

— Não...

—- A verdade, Yvain, por favor.

— Ele quis me beijar... eu não estava com vontade. — Tenlou rir, para demonstrar que não estava dando importância ao problema. — Não antes do almoço...

— Quer dizer que esteve andando por aí durante todo o dia? Sem almoçar?

— Almocei maravilhosamente — protestou. — Fiz amizade com Fer­nando. Ele-estava pescando e me convidou para almoçar. Ele mesmo assou o peixe numa fogueira e serviu-o com pão e tomates.

— Fernando? Espero que tenha sido menos ardente que seu outro cava­lheiro.

— Era muito mais galante e encantador. — Riu, divertida. — Beijou minha mão, quando nos despedimos.

— Os dois teriam sido muito mais galantes se tivessem ido acompanhá-la até o castelo.

Don Juan parecia tão zangado que Yvain não conseguiu conter outra gargalhada. Ele a segurou pelos ombros e sacudiu-a.

— Por que está rindo? O que aconteceu de tão divertido?

— Só que meu amiguinho da praia tinha onze anos, senor.

— Diabinha! — Apertou os ombros dela com mais força. — Então esta­va brincando comigo...

Olhou para ele e parou imediatamente de rir, perturbada pela proximida­de dele. Estava fechada dentro de um carro, perdida na neblina, com um homem que lá em Lima tinha sido um conquistador tão ardente quanto o outro don Juan. A consciência disso assustou-a. Desviou o olhar e olhou

pela janela.

— Será que a névoa vai desaparecer, senor'

— Não até a madrugada.

A voz dele a atraía como um imã.

— Quer dizer que teremos que... passar a noite aqui?

— A perspectiva a assusta? — Seus olhos brilharam, maliciosos. -— Vamos esperar mais um pouco e talvez passe outro carro. Caso contrário, teremos que encontrar um abrigo apropriado para passar a noite. O vidráp quebrado não consegue conter a neblina, está vendo?

Sentindo as pequenas rajadas que entravam pelas rachaduras do vidro, Yvain fechou o casaco e aconchegou-se dentro dele. Don Juan abriu a cigarreira de ouro e estendeu-a a ela.

— Fume um. Vai ajudá-la a aceitar o tormento de passar a noite comigo.

— Agora é o senor quem esíá brincando comigo, don Juan, —Aceitou um cigarro; não apreciava o hábito de fumar, mas infelizmente tinha adqui­rido o vício duranie os anos em que trabalhara para Ida Sandeil.

Inclinou-se sobre o isqueiro do marquês e sentiu com toda a intensidade como aquelas úitimas semanas tinham sido estranhas. Tudo que havia acontecido anies do acidente tomava agora a forma de um sonho distante. Naquele momento, estava mais viva que nunca. A fumaça dos cigarros, que se misturava, o vidro estilhaçado, os olhos profundos do homem... tudo era dolorosamente real.

— Gosta de crianças? — perguntou ele, inesperadamente.

— Sim. — Sorriu. — Fernando é divertido e foi por isso que acabei me esquecendo da hora de voltar para casa.

— Vê o castelo como sua casa?

— De certa forma. — Seus olhos encontraram os dele. — Isso o abor­rece?

— De maneira nenhuma. O castelo esperou durante longos anos por uma pessoa jovem que afastasse as sombras que o cercam. Quando chegar o momento...

— De eu partir? — interrompeu-o, ansiosa.

Ele demorou para responder, os oihos impenetráveis,

— É... no princípio vou achar estranho. Mas agora precisamos pensar no que vamos fazer esta noite. Aqui dentro vamos sentir muito frio, pois a batida avariou o aquecedor do automóvel. Podíamos fechar as rachaduras do vidro com alguma coisa, mas acho que nenhum dos dois vai se sentir muito confortável aqui dentro.

— Sua perna esta doendo, senor?

— Um pouco. Algumas vezes me arrependo de não ter permitido que me amputassem a perna, mas sou obstinado e detesto tudo que é artificial.

— O senor Fonseca me falou do seu acidente — disse ela, um pouco temerosa de demonstrar simpatia. — Deve ter sido terrível.

— Tanto quanto para um soldado em combate, mas eu me recusei a perder minha perna, por isso devo suportar a dor e considerã-la resultado da minha própria escolha. — Sorriu, triste. — Os espanhóis não são com­placentes; nem com os outros, nem consigo mesmos, nina. Veja nossas pinturas, leia nossos livros, lembre-se de nossos conquistadores.

— Eles são feitos de aço e fogo — murmurou Yvain. — Sente-se isso aqui na ilha, está estampado na face das pessoas. São rostos como os pinta­dos por Diaz, olhos como os de El Greco.

— El Greco compreendia a Espanha, embora fosse grego. Talvez um estrangeiro seja capaz de nos conhecer melhor do que nós mesmos.

Nos olhos de don Juan, naquele instante, Yvain viu todo os elementos que, combinados, fizeram da Espanha um país ião cruel e fascinante. Seu povo tinha sido moldado a partir das rochas, do sol inclemente, de sombras profundas.

— O senor Fonseca está me ensinando tudo a respeito da Espanha. — Sorriu.

— Você gosta do que está aprendendo?

— Estou fascinada, senor.

Pelo povo, pela história ou pela geografia?

— Por tudo. O que é o povo, senão sua história e sua terra?

— Que mistura de sabedoria e ingenuidade vejo em minha protegida!

— Isso é ser jovem, senor.

— Claro. — Ele se inclinou e estudou os olhos grandes e ardentes de Yvain, seu corpinho delgado, quase perdido dentro do imenso casaco de arminho. — Você é tão jovem, mas agora compreendo por que Cortez estava tão abalado quando falei com ele. O que foi que você fez? Esbofe-leou-o?

— Não. — Sorriu, nervosa. — Desci do carro e fugi dele.

— Ele a perseguiu?

— Até que cheguei ao cais. Lá eu estava segura, pois havia muita gente.

— Segura contra as atenções índesejadas de Cortez?

— E. — Seus dedos se contraíram sobre o arminho macio. — Os homens parecem pensar que o fato de estarem sozinhos com uma mulher lhes dá o direito de serem... ousados.

— Estamos sozinhos, nina. — Don Juan sorriu, malicioso. — Não tem medo dos meus instintos amorosos?

— O senhor é meu protetor.

— Não sente o impulso de fugir de mim?

Ela olhou para ele, sem palavras, mas consciente da força e da beleza morena daquele homem com cada fibra do seu ser. A obscuridade suaviza­va as linhas da boca do marquês, e seus cabelos estavam em desalinho. Por um instante perturbador, foi como se ela estivesse em companhia do jovem e ousado don Juan, que amava os cavalos velozes, que descobrira minas de praia em regiões selvagens, que apreciava mulheres exóticas.

Jamais o ser jovem e inexperiente de Yvain sentira por um homem aque­la emoção que don Juan lhe provocava.

Aliviada, Yvain viu que ele voltava a atenção para o porta-iuvas, de onde retirou um farolete de mão.

— Sugiro que procuremos refúgio em um dos chalés da região. Proteja-se bem com o casaco.

Saíram do carro e penetraram na névoa densa. Yvain olhou em tomo. apreensiva: o silêncio era absoluto; as árvores agitavam-se como fantasmas na escuridão.

— Não seria melhor ficarmos no carro, senor?

— Não. — A voz dele era firme. — Você estaria se arriscando a pegar uma gripe, e, além disso, há essa minha perna. Venha, fique junto de mim e prometo que logo estaremos ao lado de uma lareira, tomando um café bem quente.

O facho de luz cortava a escuridão e em pouco tempo achavam-se numa trilha de. terra batida, que com certeza devia levar até alguma habitação. Yvain manteve-se bem próxima de seu guardião, que mancava mais que de costume. Certamente era a umidade que penetrava nos ossos reconstruídos com tanto sofrimento e lentidão... Sentiu vontade de tomar o braço do marquês, como Raquel costumava fazer, para transmitir-lhe um pouco de conforto. A dor parece ser maior quando é suportada sozinha.

Ele parou de repente, com uma exclamação de alívio, e a ansiedade de Yvain acalmou-se um pouco quando o farolete iluminou as paredes rudes e brancas de uma casinha.

O foco de luz voltou-se para Yvain, coberta até o nariz pelo arminho.

— Pois bem, Maria, encontramos um chalé. Acha que João deve bater? Ela deu uma risada, pois gostava de ver don Juan bem-humorado.

— Os pés de Maria estão gelados!

— Notei que você estava mancando um pouco,

— Perdi o salto de um dos sapatos.

— Então vamos lá.

Ele levantou a aldrava e bateu uma, duas, três vezes, o ruído ecoando na noite. Depois de alguns minutos de expectativa, ouviram o ruído de uma janela que se abria. Uma voz fantasmagórica desceu até etes:

— Quem é? — Parecia a voz de uma vetha.

— Senora, viemos pedir abrigo por uma noite. Nosso carro quebrou na estrada e estamos perdidos na neblina.

— Desculpe, senor, mas não tenho um quarto... — Pagaremos bem, senora.

A mulher hesitou: depois de um momento de silêncio ouviram o ruído da janela que se fechava.

— As pessoas do campo ficam temerosas em noites como esta — don Juan falou. — A velha senora vai nos receber, se pagarmos bem.

— Diga-lhe quem o senhor é — sugeriu Yvain.

— Prefiro que ela não saiba quem somos. — Sorriu.

Enquanto Yvain pensava na resposta do marquês, a porta se abriu e surgiu no batente uma mulher muito velha, com uma lâmpada na mão. O lampião foi erguido a uma altura suficiente para que a mulher visse o rosto dos recém-chegados. Olhou primeiro para don Juan, de ar distinto apesar das roupas encharcadas, e depois para a figurinha pequena de Yvain, es­condida sob o grosso casaco. Aparentemente ela não reconheceu o mar­quês, pois falou em tom pouco amigável:

— Não sei se devo deixar que estranhos entrem em minha casa. Como posso ter certeza de que são pessoas honestas?

Don Juan retirou a carteira do bolso e estendeu várias notas para a mulher.

— Isto é suficiente para pagar o abrigo que nos dará por esta noite? A senorita está tremendo de frio.

A mulher guardou o dinheiro no decote do vestido e abriu a porta apenas o suficiente para que don Juan e Yvain se esgueirassem pela fresta. A porta foi fechada, os trincos ajustados e os visitantes conduzidos até a cozinha. onde um fogo baixo lançava sombras avermelhadas nas paredes e no teto.

A dona da casa colocou o iampião sobre uma mesa e alimentou o fogo com mais alguns pedaços de madeira. Assim que as chamas cresceram um pouco, ela se virou para os hóspedes, os olhos escuros e penetrantes como os de uma bruxa, impressão acentuada ainda mais peia roupa negra. Ela olhou para Yvain e disse alguma coisa em castelhano. Yvain olhou para don Juan à procura de auxilio, pois não compreendia o díaleto da mulher.

— A senora pergunta se você gostaria de tomar um prato de sopa.

— Sim... por favor.

Ele traduziu as palavras para a mulher, que pegou uma panela negra e colocou-a no fogo. Enquanto preparava a sopa, a velha fazia observações. Depois de algum tempo deixou o fogão e foi até a mesa, onde arrumou dois pratos de barro, colheres e pão.

— O que ela está dizendo? — O cabelo deYvain, muito úmido, colava-se ao pescoço, iluminado pela luz do lampião, que retirava dele reflexos dourados. A velha cozinha tinha como mobiliário uma mesa de madeira, banquetas rústicas e um armário repleto de objetos'pobres e vasos de flores artificiais.

A sombra de don Juan projetava-se no teto... uma figura elegante, deslo­cada naquele ambiente rústico. Para Yvain, era uma novidade, pois estava acostumada a vê-lo em ambientes luxuosos, entre tapetes dourados, mobília de estilo, perfume de rosas e de charutos finos.

Ele hesitou, como se receasse ferir os sentimentos de Yvain, o que não deixava de ser uma novidade.

— Ela diz que só há um quarto... ela vai dormir aqui, ao pé do fogo. Yvain olhou para ele, desconcertada. Percebia que a perna doía muito...

e não havia outro lugar onde" pudesse repousar, a não ser naquele único quarto!

Quando a sopa fumegante foi despejada nosf pratos, um cheiro de lentilhas e ervas se espalhou pela cozinha. Yvain recebeu seu pralo e comeu em silêncio, sem ousar olhar para deu Juan. Sentia os joelhos estranhamente trémulos- O instinto lhe dizia que uma velha espanhola jamais permitiria que um casai ocupasse o mesmo quarto, a menos que acreditasse que fos­sem casados.

Subiram até o quarto por uma escada estreita de pedra, a chama da veia que Yvain levava nas mãos iluminando as paredes cobertas de limo.

No quarto de teto baixo havia apenas uma cama, uma cómoda e uma cadeira- O dormitório assemelhava-se muito ao seu frio quarlinho da man­são Sandeil... só que lá jamais linha dormido em companhia de um homem alto. moreno, de brilho diabólico no olhar.

Encontrou os olhos dele e temeu que o ruído das batidas do seu coração ultrapassasse os limites do seu corpo.

— Você parece agitada — murmurou ele.

Encarou-o e descobriu nos olhos dele a razão para sua inquietação: tinham aquele brilho satânico que a deixava tão insegura diante dele.

— Sempre tremo assim quando estou cansada. Não estou preocupada porque vamos dormir no mesmo quarto.

— Temos que dividir a cama também. — Olhou-a, curioso. — Eu poderia ser cavalheiro e passar a noite naquela cadeira desconfortável, mas acho que seu coração é terno demais para permitir que sofra tai martírio.

— Claro que não. — Sentiu as pernas bambas outra vez e desejou poder estender-se na cama nistica. Examinou cada detalhe do cómodo, apenas para não olhar para don Juan, que. à luz da vela. tinha um fascínio que ela náo ousava notar. Precisava manter o autocontrole para não agir como uma tola, só porque iriam dormir no mesmo quarto... na mesma cama!

— Eu podia dormir na cadeira! — sugeriu Yvain, esperançosa.

— Nina. — A voz dele era perigosamente suave. — Pensei que se sen­tisse segura ao meu lado. criança.

— Eu me sinto... só que...

— O quê?

— Só que não sou uma criança.

— Então é isso! Acha que não é uma criança e tem medo que eu perca g autocontrole e invista apaixonadamente sobre você.

Insegura como estava, demorou alguns segundos até perceber que ele estava sendo sarcástico.

— Não... não estou acostumada a situações como essa. Talvez o senhor esteja...

— Como você não é mais criança, não posso lhe dar uma surra por isso — disse, tranquilo, — Mas existem outros meios para lidar com uma moci­nha tola... sabia?

Yvain afastou-se dele o mais possível, a chama da veia reíletindo nos seus olhos dourados e cheios de terror. Só o pensamento de ser beijada por don Juan era suficiente para fazé-la perder o controle; lágrimas de emoção e cansaço brilharam nos seus olhos.

— Não quero brigar com o senhor — respondeu, tremula. Ele percebeu as lágrimas e a tensão do corpinho jovem.

— Acho que você náo se conhece. Não vou atormentá-la ainda mais esla noite. Durma sob as cobertas, e eu dormirei sobre elas. Acredite, ne­nhuma barreira é tão poderosa quanto a inocência e o medo, e você é a imagem de ambos.

O sorriso do marquês foi breve, mas enquanto durou revelava bondade. E outra vez ela se sentiu invadida por sentimentos que não entendia e não conseguia controlar. Ora queria fugir dele, para bem longe; ora sentia um desejo bem diferente. Se ele tivesse aberto os braços para ela enquanto sorria, Yvain teria corrido para ele.

Ela tremeu... talvez seus pensamentos o tivessem atraído, talvez fosse o frio do quarto, mas ele percebeu e veio andando na direção dela. Segurou a mão de Yvain e sentiu-a gelada.

— Seus pés estão frios como suas mãos?

— Sempre tive muito frio nos pés... a mansão Sandeíl era um lugar muito grande e gelado.

— E não havia lareira no seu quarto, não é? — Ele a levou com delica­deza até a cama e obrigou-a a deitar-se. — Tire os sapatos e eu esquentarei seus pés.                                                                        ... .

Não adiantaria protestar. Mas sem os sapatos ela se sentia infantil, inde­fesa, e quando ele tomou seus pés entre as mãos e os esfregou até esquentá-los, sentiu-se ao mesmo tempo envergonhada e agradecida. Aquilo era o que um pai faria pela filha, só que aquele homem alto, de olhos enigmáti­cos, não tinha nada de paternal. À medida que o calor das mãos dele passa­va para os pés de Yvain. o sono foi descendo sobre eia. Quando ele puxou as cobertas e ajeitou-as sobre ela, Yvain o via como num sonho.

— Assim está melhor? — perguntou, suave, inclinando-se e afastando com delicadeza os cabelos que caíam sobre o rosto de Yvain.

— Muito melhor... e quentinho — respondeu, sentindo a respiração pre­sa na garganta quando ele lhe acariciou o rosto. Sentiu vontade de virar o rosto e beijar as mãos dele, mas sabia que se o fizesse acabariam um nos braços do outro... ela à mercê dos lábios, da solidão e da paixão controlada do marquês. Afastou o rosto e ele imediatamente levantou-se. Com o cora­ção descontrolado, observava a sombra projetada contra a parede: ele tirou os sapatos, depois o casaco, a gravata e a camisa e colocou-os sobre o encosto da cadeira. Em seguida apagou a vela. Yvain cravou as unhas nas palmas das mãos quando sentiu que ele se deitava ao lado dela, cobrindo-se com o casaco de arminho.

A princípio ele respirou com dificuldade, depois deu um pequeno suspi­ro, como quem se sente bem onde está. Seus corpos estavam separados apenas pelas cobertas da cama, e, sentindo essa proximidade, Yvain tremeu interiormente.

Ninguém poderia saber sobre aquela noite, muito menos Raquel, com quem ele havia passado o dia. Ela jamais acreditaria que uma moça pudes­se passar a noite com don Juan sem se atirar nos braços dele.

Yvain pensava nos braços fortes estendidos ao lado dela quando eie mur­murou:

— Feche esses olhos enormes, nina, e durma. Esta noite é um segredo nosso. Amanhã vamos rir de tudo que aconteceu hoje.

— O que disse à senora, senor'! — perguntou Yvain depois de muita hesitação.

— Não disse nada... sobre nós.

— Quer dizer que deixou-a pensar que nós tínhamos o direito de... dor­mir juntos?

— Ela tirou as conclusões que quis.

— O senor é mesmo terrível, don Juan!

— Se quer pensar assim... — falou com tranquilidade. — Mas tem que admitir que a cama é mais confortável que aquela cadeira dura.

— E... acho que sim.

— Então não se atormente, sehõrita Pilgrim. Faça de conta que sou um fantasma e durma.

Ela teve vontade de rir... amava-o quando ele dava vazão ao seu lado bem-humoradóT..

Amava-o?

Continuou deitada, imóvel, e ouviu-o respirar e mover a perna para uma posição mais confortável. "Como eu o amo?" As paJavras da canção lhe vieram à mente. '"Eu o amo com a paixão das antigas tristezas/e com minha fé infantil./Eu o amo com os suspiros, os sorrisos e as lágrimas de toda minha vida.'"

Yvain finalmente fechou os olhos e adormeceu ao lado de don Juan de Leon.

 

Ela acordou antes dele, quando o sol já brilhava e os pássaros cantavam no telhado. Recordou os acontecimentos da noite anterior, analisou o ho­mem adormecido ao seu lado, de cabelos tão escuros, nariz bem-feito, e pensou que ao Jado dele estaria segura.

Levantou e foi até a janela, abrindo-a de par em par e respirando o ar puro da manhã ensolarada e quente. Os últimos vestígios da névoa da vés­pera ainda podiam ser vistos ao longe, entre os pinheirais, e o perfume de grama molhada subia até o quarto.

Se pudesse fazer com que aquele momento durasse para sempre! A ma­nhã era linda e ela era a única mulher da vida de don Juan. Nenhuma palavra, nenhuma promessa já feita a outras poderia quebrar a magia daquele instante.

 

Nos dias seguintes. Yvainagiu com cautela, como se não tivesse nada mais importante em que pensar do que as lições do senor Fonseca. Todas as manhãs o motorista a levava até a vila dos Fonseca, onde às vezes via Raquel no jardim, ou saindo para o clube.

A elegante Raquel mantinha sempre um ar divertido ao dirigir-se à aluna do pai.

— Você é muito dedicada-—comentou certa manhã, quando encon­trou Yvain estudando no pátio. — Manrique Cortez perguntou por você ontem, e eu lhe disse que seria bem-vindo se quisesse visitá-la aqui.

— Espero que não aceite o convite — respondeu Yvaín. — Ele iria me distrair e levo a sério minhas lições.

— Estou vendo. — Raquel apanhou uma rosa e prendeu-a à gola do vestido. — Não acharia mais divertido casar-se com um jovem simpático, em vez de passar os dias estudando bobagens?

— Gosto de estudar, e seu pai é um professor maravilhoso.

— Ele é um amor — concordou Raquel, com um sorriso possessivo. — Só existe um outro homem capaz de igualar-se a ele em sabedoria e encan­to. Acha nossos homens encantadores, senorita Pilgrim?

Yvain ergueu os olhos e percebeu que Raquel observava seu vestido simples e seus cabelos dourados, presos num rabo-de-cavalo.

— Os latinos são muito bonitos e cavalheirescos.

— Fico admirada que não tenha ainda se apaixonado por um deles, senorita Pilgrim. E verdade que os ingleses são frios e não revelam seus sentimentos?

O que está querendo me dizer, senoriia Fonseca? Yvain procurou sorrir com naturalidade. — Seja franca comigo.

— Don Juan não pode ser eternamente responsável por você... fui bas­tante franca? Você não é mais uma criança, embora Juan pense que sim.

— Não, senorita. — Yvain sustentou o olhar da outra. — Não tenho a menor intenção de impor minha presença a don Juan por mais tempo que o necessário. Seu pai conhece o diretor de uma galeria de arte em Madri. e espero que breve consiga um emprego para mim lá,

— Madrí? Seria bom para você, assim poderia ver Manrique Cortez com frequência. Ele sente uma grande curiosidade em relação a você, mas siga meu conselho e não leve o jogo muito longe. Os homens gostam da emoção da conquista, mas desistem quando a espera é longa demais. — Raquel acariciou as luvas que trazia nas mãos. — Tem medo dos homens?

~ Não sou uma frágil violeta — protestou Yvain.

— Manrique acha você muito tímida e pensa que a assustou na ultima vez que saíram juntos.

— Ele me aborreceu.

— Minha querida -— Raquel a olhava com curiosidade — o que foi que ele fez?

Yvain tentou relembrar os detalhes daquele passeio, mas tudo que conse­guiu foi recordar a noite passada no chalé com don Juan. Se Raquel sou­besse daquela noite! Certamente pensaria o pior, pois não era do tipo capaz de acreditar que uma moça continuasse inocente depois de passar a noite com um homem. E como sentiria seu orgulho ferido ao saber que don Juan se interessava por outra mulher além dela.

Yvain tremeu ao recordar a noite passada ao lado de don Juan, ao mes­mo tempo que se apossava dela uma pontinha de rebelião. Raquel era tão superficial, se comparada a don Juan! Passava os dias entretida em diverti­mentos vazios e não estava realmente apaixonada por ele.

Foi um alívio avistar o seHor Fonseca, que se aproximava trazendo um livro de gravuras.

— Vai ficar e assistir à nossa aula? — perguntou à filha, malicioso. — Pensei que fosse almoçar no Clube Hidalgo com um dos seus inúmeros admiradores.

— Ele não se importa de esperar por mim, papai. ~ Raquel sorriu para Yvain. — É uma pena que tenha que trabalhar, minha querida. Devia seguir meu conselho e procurar um marido.

— Já encontrou um para você? — perguntou o pai, seco.

— Já, papai. Existe alguém especial. — Sorriu, misteriosa, enquanto beijava o pai, e continuou sorrindo ao acenar para Yvain, caminhando gra­ciosamente para fora do pátio. O perfume da outra permaneceu no ar por muito tempo, e suas palavras perseguiram Yvain durante a resio do dia.

Esse alguém especial devia ser don Juan, que precisava se casar para ter um filho que levasse avante o domínio da ilha de Leon.

Yvain e o tutor almoçaram à sombra de uma árvore, ouvindo o chilrear dos pássaros e vendo o reflexo do sol nas flores.

— Parece um pouco triste, Yvain. Preocupada.

Ela levou um pequeno susto e esqueceu os próprios pensamentos.

— Estava pensando, senor, que não posso permanecer indefinidamente no castelo. Quando acha que estarei pronta para trabalhar na galeria de arte, em Madri?          

Ele se levantou e cortou um pêssego da árvore, com um canivete de cabo de marfim.

— Por que será que os jovens são tão impacientes por novas aventuras? Já está cansada do seu tutor barbudo c dos livros que a faço ler?

— Não, não é isso — apressou-se em explicar. — Adoro todos os momentos que passo aqui. Seus ensinamentos me fascinam, mas quero ser independente... não posso continuar me alimentando e morando às custas de don Juan.

— Tenho certeza de que para ele é um prazer. — Partiu o pêssego ao i meio e colocou metade diante de Yvain. — Juan é um verdadeiro espanhol e muito generoso. Sente-se muito só no castelo e sua presença o ajuda a esquecer a solidão. Vamos, coma seu pêssego e não pense que representa um peso para ninguém.

— Quando eie se casar, senor...

Não acho que o grande dia esteja muito próximo, minha querida.

— Mas quero ir embora, quando chegar esse dia.

— E compreensível. — Olhava-a fixamente. — Quando Juan se casar, a vida vai mudar para você. Mas, enquanto isso, aproveite ao mãximo'o tempo em que é sua protegida.

— Cest Ia vie — murmurou Yvain, sorrindo e dando uma mordida no pêssego.

— Sim, minha menina, o que será, será. Precisamos aceitar nosso desti­no, seja ele qual for.

— Isso me faz sentir insegura como uma folha de outono.

— Sente-se assim, nina, porque é joveín. Os jovens precisam sonhar, ter esperança e sentir às vezes um pouco de melancolia. Os melhores poe­tas e pintores eram jovens para quem o amor representava mais sofrimento que felicidade. O amor é a base de tudo... não se pode escapar dele.

— Nunca estive apaixonada. Como é que alguém pode saber...

— Morremos um pouco cada vez que dizemos adeus à pessoa amada... partindo quando tudo que desejamos é ficar. O amor é uma coisa básica, nina. É o desejo de ser parte da outra pessoa, não por uma hora, mas por todas as noites e todos os dias. Quando se apaixonar, saberá, acredite.

Você é sensível, e por isso pertence à ciasse das pessoas que se apaixonam verdadeiramente.

Ele riu da maneira como Vvain o olhava, os olhos dourados muilo aten­tos e brilhantes.

—- Vai encontrar ou uma grande alegria ou um pouco de tristeza — predisse. — Não há meio (ermo para a mulher que se entrega totalmente a um homem.

— O sefior fala como se eu fosse a própria dedicação — disse ela, rindo um pouco.

— Sem essa dedicação — tomou-lhe a mão e beijou-a de leve —, náo seria a aluna perfeita que é.

— Obrigada pelo elogio, senor. Quando vai me dar o diploma?

— Na hora apropriada, nina. — Apertou a mão dela com mais força. — Se o casamento de don Juan for iminente, serei dos primeiros a saber.

Yvain procurou manter o sorriso. Claro, o pai de Raquel seria o primeiro a saber que sua filha ia se tomar a senhora de Leon, numa cerimónia reali­zada na catedral barroca da ilha, com suas torres imponentes e suas paredes ensolaradas. A noiva entraria vestida de branco da cabeça aos pés, carre­gando um buque imaculado. As pérolas da família Leon lhe enfeitariam o colo e um sorriso lhe iluminaria os lábios suaves. Os sinos soariam e have­ria celebrações em toda a ilha. Todos se alegrariam pelo marquês, todos concordariam em que a escolha não podia ter sido melhor.

Só alguns minutos mais tarde Yvain percebeu que o senor Fonseca já havia ido fazer a sesta. A conversa a deixara inquieta, e ela começou a desenhar perfis no cademo... Depois de alguns minutos, deixou de lado o lápis e, num impulso repentino, decidiu que não ia mais estudar naquele dia.

Desceu pelas ruas íngremes até a praia, onde barcos pesqueiros flutua­vam, suaves, ao sol da tarde. Havia poucas pessoas no cais, e as janelas fechadas protegiam os moradores contra o calor; apenas alguns gatos passe­avam, preguiçosos, por ali. O ar marinho cheirava a peixes e rosas. Uma palmeira projetava sua imagem contra uma parede branca, e Yvain a obser­vava, solitária e pensativa-

Alguns degraus conduziam à areia branca, onde um barco descansava ao sol. Yvain sentou-se. Tudo estava imóvel: o mar murmurava, suave, e as montanhas da Espanha brilhavam ao longe, como uma corrente azulada.

Dentro de pouco tempo estaria penetrando nas sombras daquelas monta­nhas, cruzando estradas de areia branca até chegar a Madri, onde iria traba­lhar. Tenlou se alegrar com a perspectiva, mas quando pensou na solidão das grandes cidades tremeu como se sentisse frio.

Era triste ser sozinha. mas esse parecia ser o destino dela: deixar tudo que amava e partir para outros lugares. Amava o chalé de Combe St. Blai-ze, mas não pôde permanecer lá depois da morte do pai. Amava aquela ilha e o castelo, mas quando seu guardião se casasse teria que partir novamente para o meio de estranhos.

Piscou e sentiu que lágrimas lhe corriam pelo rosto. Sentia-se solitária e qualquer voz amiga seria bem-vinda.

Sem precisar se virar, reconheceu a voz e a guitarra.

— Estava pensando em você, Yvain. Meus pensamentos devem ter me trazido até você.

Estendeu a mão para ele, esperando que o aperto caloroso- a libertasse das ideias tristes.

— Alô, Rique. Nós e os gatos somos os únicos por aqui.

Ele segurou a mão dela com carinho. O cabelo de Rique era negro como as sombras; seu sorriso, branco como o reflexo do sol nas paredes caiadas: seu contato, suave e reconfortante. Dessa vez ela não tremeu ante a ousada franqueza do olhar dele.

— O que trouxe lágrimas aos seus olhos? — perguntou. — O reflexo do so! sobre a água ou a maneira como fugiu de mim sem razão'.'

— Como se eu chorasse por você! — protestou, a voz áspera, mas no fundo sentindo-se feliz por vê-lo. — Sente-se e converse comigo. Rique.

— E o que pretendo fazer. — Sentou-se ao lado dela no barco. Vestia uma camisa azul, aberta no peito, onde brilhava um medalhão. Tão colori­do e tão latino! Animou um pouco o coração de Yvain.

— O que fez depois que fugiu de mim no domingo? Espero que não tenha ficado na praia por muito tempo, por causa da neblina.

Como podia esquecer a neblina?

— Não vamos faiar sobre aquela discussão tola — pediu Yvain, o cora­ção batendo fone.

— Foi tola mesmo, Yvain. O que foi que eu fiz de tão terrível?

— Por favor, vamos fazer de conta que este é O nosso primeiro encon­tro. Você foi tão romântico... como um trovador de antigamente!

— Prefiro que sejamos simplesmente jovens, pequena. — Deu um sorri­so brincalhão, — O que foi que o marquês lhe disse? Que devia estudar suas lições e desencorajar as atenções dos rapazes?

— Meu maior sonho é estudar.

— E o que está estudando neste momento? Pretende escrever um ensaio sobre barcos de pesca?

— Estou enforcando a aula — confessou. — Como não conseguia me concentrar, resolvi fugir dos livros por uma hora.

— Lições, livros! — Rique apertou sua mão com força. — Você devia estar se divertindo, e se eu fosse o marquês ia lhe dar lições bem dife­rentes.

— Rique! Ele riu muito.

— Nunca viu um casamento espanhol, pequena? Então vou levá-la a um. Às seis horas o casal e os parentes vão para a igreja, e depois da cerimónia vai haver uma festa. Prometi tocar para eles e me disseram que podia levar uma moça. — Fez uma pausa. — Terei grande prazer se você for comigo ao casamento.

— Gostaria muito, Rique, mas o carro vem me buscar às quatro horas, para me levar de volta ao castelo.

— Pode dizer ao motorista que vai para casa mais tarde.

— Posso — concordou —, mas don Juan...

— Ele tranca você na torre depois das quatro da tarde? -— Acrescentou, zombeteiro: — Está tão fascinada que não ousa agradar a ninguém mais a não ser a eie? Quero tratá-la como uma mulher, Yvain, não como uma criança. Quero lhe oferecer música e alegria, não as paredes sombrias de um castelo e jantares assombrados peias recordações do passado. Por que ele não pode dançar, vai impedi-la de dançar também? Quer fazer de você uma criança durante todo o dia e uma solteirona durante a noite!

— Rique, que absurdo! Don Juan não é assim. Ele não me impediria de ir ao casamento, se eu quisesse.

— Então não há problema. — Rique sorriu. — Voltaremos à vila às quatro, para que você possa mandar a mensagem pelo motorista. Depois iremos até o Clube Hidalgo apanhar minha guitarra. Não trabalho no clube esta noite, assim estamos ambos livres para nos divertir. Não acha românti­co comemorar um casamento sob as estrelas?

— Vocês latinos têm o romance no sangue — concordou Yvain.

— A mulher espanhola vive para agradar o homem que ama.

— Duvido que eu me transforme numa espanhola.

— Está enganada. — Aproximou-se, o olhar brilhante. — Se se casar com um espanhol, vai se transformar numa espanhola.

— Mas o coração será sempre inglês. Nunca serei uma verdadeira espa­nhola.

— Você tem sua magia própria. — Acompanhou com os olhos os traços suaves do rosto de Yvain e os cabelos dourados. Suavizando o olhar, pres­sionou ã mão dela contra o rosto e murmurou: — Mão fria, coração quente. Na semana passada, queria só flertar com você, mas agora vou tratá-la de forma diferente.

— Não, Rique... — Se» coração batia, forte. — Não vamos levar as coisas muito a sério.

— Leves como sinos, música e luar,

— Rique — pediu, quase em pânico —, não me tente. Talvez eu não seja capaz de resistir e, nesse caso, sairemos ambos machucados.

— A vida é para isso mesmo, para nos machucarmos, para amarmos, para sermos felizes. Yvain, não se feche!

Como tudo seria mais fácil se o destino tivesse feito com que ela se apaixonasse pelo guitarrista de olhos negros! Ela sorriu, mas na verdade

desejava chorar.

— Os espanhóis são perigosos exatamente por causa da sua simpatia. Vou ao casamento dos seus amigos. Será uma lembrança para quando eu for embora da ilha.

— Não pretende ficar aqui?

— Desde o começo estava decidido que eu ficaria aqui temporariamen­te. Dentro de pouco tempo vou trabalhar em Madri.

— Madri? Há muitas coisas lá que quero lhe mostrar. O antigo e o moderno, o estranho e o belo. Seremos felizes lá.

Ela desejou poder ser feliz longe da ilha de pinheiros aromáticos, de oleandros, de sol e mar, de torres recortadas contra o azul do céu.

— A ideia de deixar a ilha parece entristecê-la, Yva.

Ela olhou as redes e os mastros espalhados pela areia da praia, depois virou-se para eie, espantada.

— Você me chamou de Yva.

— Não gosta?

— Gosto, é carinhoso.

— É mais do que isso, Yva. Quando um espanhol usa um diminutivo, é porque a aceitou e gosta muito de você.

— Você me enganou! — Deu uma risada. — Desde o começo me levou a chamá-lo de Rique!

Ele a olhou com ternura e Yvain quase lhe pediu que não fizesse aquilo. Seu medo deve ter sido percebido por Rique, pois no mesmo instante ele começou a falar sobre outros assuntos. De sua infância nas montanhas da Espanha, de sua ânsia em ser mais que um lavrador de azeitonas. Tinha fugido de casa aos quinze anos, indo para Barcelona, onde trabalhou como garçom, ao mesmo tempo em que aprendia a tocar guitarra com um amigo.

— Não tenho nem a metade do talento daquele homem, mas aproveito ao máximo o que tenho e sou ambicioso. Pretendo ganhar muito dinheiro para comprar uma casa enorme, cheia de árvores, flores e fontes. Serei um homem realizado, Yvain, terei uma esposa e filhos.

— Você me surpreende, Rique. — Yvain sorriu.

— Pensou que eu fosse um play-boy"! Sou antes de" tudo um espanhol, e nós espanhóis levamos a vida a sério, mesmo quando cantamos e nos diver­timos. Esta noite você vai ver nossa alegria e vai aprender a dançar como uma espanhola.

— Vamos à igreja para a cerimónia? — perguntou, contagiada pelo entusiasmo dele.

— Cara nina, claro que vamos.

As velas altas brilhavam sobre o altar, iluminando o casal que fazia seus votos diante do padre. As tapeçarias coloridas davam à igreja um ar festivo; e as imagens de Maria e José, curiosamente reais, pareciam abençoar com doçura o jovem casal.

Yvain observava, num silêncio maravilhado, o ritual simbólico: o véu de renda branca usado pela noiva foi colocado sobre os ombros do noivo, como uma promessa de que ela se submeteria a ele com amor. Em seguida ele colocou .a aliança sobre a mão da moça, que com um olhar tímido repetiu o gesto, provocando suspiros de satisfação entre os convidados que lotavam a igreja.

O cheiro das velas misturava-se ao perfume do incenso, e foi nesse clima que o padre os declarou marido e mulher. O jovem moreno sorriu e apertou a mão que segurava um buque de flores de laranjeira, um rosário e um missal de madrepérola. Apaixonados, mas muito tímidos, não ousaram se beijar em publico, e Yvain percebeu que a mãe da noiva levava o lenço aos olhos. Para a jovem noiva, os votos seriam eternos. Os dois estavam uni­dos para sempre e se olhavam com alegria e esperança.

O sol poente lançava reflexos vermelhos e dourados sobre os convidados que deixavam a igreja, alegres, e tomavam as carruagens brilhantes aluga­das pelo pai do noivo- Sininhos tilintavam, festivos, no espaço dos cavalos que conduziam os carros até a casa da família, onde seria realizada a festa. Era uma velha fazenda nas montanhas, de paredes cobertas de hera e um pátio imenso iluminado por dezenas de lanterninhas coloridas, pendentes dos ciprestes e dos oleandros.

As saias rodadas das moças farfalhavam quando elas desciam das carrua­gens, rindo muito, carregadas pelos acompanhantes de roupas negras e cha­péus de abas largas. Alguns dos convidados chegavam a cavalo, e Yvain sentiu-se transportada a um outro século: a velha e romântica Espanha dos sombreros e dos cabalteros ousados.

Rique, sorrindo feliz, envolveu a cintura de Yvain com o braço e condu­ziu-a até os pais do alegre casal. Com um lenço de seda sobre os cabelos — um lenço perfumado e fino, que seu tutor havia pedido emprestado a Raquel — foi muito admirada pelas duas senhoras vestidas com exóticas mantilhas e enormes pentes no cabelo alto.

Em ocasião como aquela, as mulheres espanholas retiravam dos porta-jóias os broches e colares guardados durante todo o ano e adornavam-se com mais esplendor que as jovens noivas. Os leques agitavam-se por toda parte e os olhos brilhavam. Os homens inclinaram-se sobre a mão de Yvain, respeitosos, murmurando seu prazer em conhecer uma inglesa. Com o coração batendo em feliz excitação, ela respondia num castelhano hesi­tante, recebendo como recompensa sorrisos deliciados.

— Sua língua, sua musica e seus casamentos são cheios de encanto — dizia, sorrindo, pensando que ali entre aquela gente era como se estivesse outra vez em Combe St. Blaize. O pai jamais a deixava sozinha no chalé; quando ia a festas, carregava-a nos ombros para que pudesse se divertir com as outras crianças.

Ali na festa de Doretta e Alvarez, as crianças corriam pelas árvores ilu­minadas, chupando sorvetes e laranjas, vestidas com seus melhores vesti­dos e seus teminhos mais novos.

Vendo tanta alegria, Yvain pensou no seu guardião, que provavelmente estava jantando sozinho. Estaria sozinho no castelo ou teria a companhia da bela Raquel, que aos poucos tentava envolvê-lo com seu encanto? Quando seria a vez dele receber os cumprimentos ao lado da noiva?

— Venha, vamos comer alguma coisa antes que me chamem para tocar e cantar. — Rique segurou-a peto braço e arrancou-a dos seus pensa­mentos.

Ela sorriu e acompanhou-o até a mesa longa, provida de dezenas de pratos diferentes: pão, presunto, camarões gigantescos, molhos diversos, queijos do campo, fatias recheadas de carne de porco, frango e lagostas,

Escolheram o que mais lhes agradava e serviram-se de vinho. Enquanto isso, sob o céu enluarado, um casal dançava o fandango.

Yvain sentiu que seus pulsos se aceleravam. Sobre os ombros, a força suave do braço de Rique; junto ao cabelo, a respiração quente do compa­nheiro. Ela não queria pensar em nada a não ser naquela noite; não queria enfrentar a realidade do amanhã.

— Excitante? — murmurou Rique ao ouvido dela.

— Muito. — Tomou um gole rápido de vinho. — Obrigada por me trazer... eu não gostaria de ter perdido isto por nada no mundo.

— Faia como se jamais fosse assistir a outro casamento espanhol.

— Pode ser que ainda veja outros, mas a primeira vez tem uma espécie de magia diferente.

— Como quando a gente se apaixona pela primeira vez?

Sentiu os olhos dele pousados sobre ela, profundos e intensos à luz das lanternas.

— Espero que a primeira vez seja emocionante, mas ainda não sei como é.

— Eu imagino. — Fez com que ela se virasse para ele e tentou ler o que se passava naqueles olhos brilhantes como o luar. — Todas essas pessoas pensam que estou cortejando você. Para eles não existe amizade entre um rapaz e uma moça... só amor ou paixão.

— Mas nós somos amigos!

— Não seja ingénua, Yvain. Para o espanhol, amigo é aquela pessoa com quem se discute política e touradas.

- Você me trouxe aqui de propósito, para que todos vissem que somos mais que amigos?

- Acha que comprometi você?

Riu e acariciou de leve o rosto dela.

— Seria preciso um pouco mais que isso, chica. Se eu passasse a noite com você, por exemplo, e alguém soubesse, então, como espanhol, eu teria que me casar com você, caso contrário seu nome estaria manchado para sempre e nenhum outro homem a quereria para esposa.

—- Quer dizer — seu coração batia furiosamente — que ninguém acredi­taria na... nossa inocência?

— Acha possível que uma noite assim seja inocente?

— Sim, se o homem é uma pessoa honrada.

— Ele teria que ser um homem de ferro. — Riu. — De qualquer forma, não faria a menor diferença se ele e a moça não tivessem feito amor. Ainda assim ele seria obrigado a se casar com ela.

— Os latinos são realmente tão impiedosos com uma moça que, por forças superiores à sua vontade, precisasse passar a noite na companhia de um homem?

— Os latinos têm um rígido senso de honra, e não se esqueça de que foi Eva quem primeiro tentou o homem. Os homens são livres e felizes até que uma moça os enfeitice.

— Pobres homens! — Yvain levantou a cabeça, cheia de dignidade. — Deve ser muito duro para vocês estarem constantemente sob esse risco. Talvez fosse melhor se a operação na costela de Adão não tivesse dado resultado.

— Talvez. — Riu. divertido. — Mas pensa nas coisas boas que estaría­mos perdendo. Apesar do perigo, é agradável... não acha?

— Acho que Eva nos fez um grande mal tomando a iniciativa. Levou Adão a pensar que era um prémio a ser conquistado pelas mulheres, e desde então os homens agem como se representassem o prémio maior que uma mulher pode tirar na loteria.

— Para a maioria das moças, eles são — concordou Rique, sem se envergonhar. — Escute, quer passar toda sua vida sem um homem que a ame?

Yvain virou-se para olhar o jovem casal, rodeado pelqs amigos risonhos e tão índescritivelmente felizes naquela noite, fazendo um voto secreto de que as realidades do casamento jamais apagassem as estrelas que brilhavam nos seus olhos. Eles se amavam... a maioria das pessoas desejava ser ama­da, pois sem amor a vida era vazia e sem sentido.

Naquele momento começaram a chamar por Rique, para que ele cantasse e tocasse. A magia da sua música era intensificada pelo perfume dos corpos que dançavam e pelo brilho das lanternas coloridas espalhadas pelo pátio. Os dentes muito brancos de um homem brilharam quando ele se inclinou para cumprimentar uma moça com flores no cabelo negro.

Yvain se sentia parte daquela gente, mas ao mesmo tempo uma estranha. Eram como figuras de uma antiga iapecaria, sem a máscara de cinismo que a vida moderna moldava nos rostos das pessoas. Tinham olhos alertas e ardentes, e pareciam pôr todo seu entusiasmo e seus corações no simples prazer da música. Bebiam aqueles acordes como se bebessem bom vinho, davam-se as mãos e formavam um círculo e dançavam a sardana. Tudo era novo para Yvain e ela amava cada instante. Todos, homens e mulheres, estavam prontos a ensiná-la como dar passos pequenos e depois passos mais largos, até que ela pegou o ritmo e sentiu-o correr como o vinho dentro das veias.

Passaram-se quase duas horas antes que pudesse ficar um pouco a sós, abanando-se com um lenço e ouvindo os acordes finais de delito Lindo, que se filtravam entre as árvores. Naquela noite tinha conhecido um peda­cinho do céu, ao mesmo tempo que a invadia a certeza dolorosa de que breve estaria longe da amada ilha de corações calorosos, dias ensolarados e noite de magia.

Aspirou fundo o perfume do cipreste contra o qual se apoiava, deixando-se possuir pelo encanto da lua e da música.

Logo a música cessaria e Rique viria à procura dela. Procurou não pen­sar nele, pois naquela noite a beleza da festa de casamento a tomara vulne­rável, e talvez não conseguisse resistir se ele a beijasse,

Ele chegou como uma sombra, como uma pantera leve e ágil que salta sobre a presa, e envolveu-a com os braços, imobilizando-a de encontro ã árvore. Não conseguiu fugir dos olhos brilhantes nem dos lábios quentes, que lhe deixaram um calor suave no pescoço.

— Preciso estar atento o tempo todo, senão você desaparece — murmu­rou junto ao ouvido dela. — Você é irreal como um sonho... Parece até um sacrilégio pensar em você com paixão.

— Agora há pouco estava me falando de paixão...

— Mas agora gostaria de colocá-la num vaso de cristal para poder admi­rá-la melhor.

— Na prateleira do alto? — Riu, divertida.

— Vamos. — Riu também. — Os noivos já vão distribuir os doces da árvore decorada para eles.

De mãos dadas, juntaram-se ao demais convidados, que se aglomera­vam, curiosos, em torno do jovem casal. Yvain estava tão fascinada com o espetáculo que surpreendeu-se quando Doretta lhe ofereceu um doce. enquanto Alvarez oferecia outro a Rique. Houve uma explosão de riso. Ninguém, além de Yvain, parecia surpreso. Virou-se para Rique e viu, à luz de uma das lanternas, o rosto inconfundível da mulher que dera abrigo a ela e a don Juan na noite da neblina. A surpresa e o medo a imobilizaram: não podia ser... aquela velha não passava de um sonho...

A mulher carregava uma bandeja e servia vinho aos convidados. Devia ter sido contratada para ajudar na festa, e Yvain, entretida como estava com cada detalhe do casamento, não a tinha notado até aquela hora. Tentou sorrir quando encontrou o olhar da velha.

— Não fique envergonhada, senorita — gritavam todos. — Coma o doce!

Mas ela não conseguiu. Sentia a boca seca e o coração disparado; não conseguia ver nada além da figura vestida de negro.

— Posso lhe oferecer um pouco de vinho, senora? — A mulher havia se aproximado e olhava para Yvain com malícia. — Seu marido está bem? Que cavalheiro! Ele me pagou bem pela noite que passaram no chalé...

— A senhora está enganada — interrompeu Rique, enquanto as pessoas mais próximas assistiam à cena com curiosidade. — A jovem não é casada.

— Não? Então não é de admirar que o cavalheiro tenha me oferecido tanto dinheiro.

— Do que está falando, mulher? — Rique estava a ponto de explodir.

— Por que não pergunta à senorita, senor? — E como um espírito maligno das sombras, a mulher desapareceu. Yvain gemeu de dor quando Rique lhe agarrou os pulsos com violência.

— Entendeu o que ela disse?

Yvain compreendeu, pela expressão do rosto dele, que o segredo — segredo dela e de Don Juan — já era do conhecimento de todos.

— Entendi... alguma coisa.

Com o olhar em chamas, ele a arrastou do meio da multidão para um lugar afastado do pátio.

— Gostaria de ter uma explicação, se não se importa. — Seus olhos brilhavam perigosamente. — Com quem você passou a noite no chalé da mulher, e por que se fizeram passar por marido e mulher?

Yvain livrou-se das mãos dele e esfregou os putsos doloridos.

— Não posso lhe dizer...

— Vai me dizer! Exijo que me diga!

— Pois eu me recuso. — Estava trémula, tinha perdido todo o interesse pela festa e só desejava voltar ao castelo. — Aquela noite no chalé foi totalmente inocente e aconteceu por circunstâncias que estavam fora do meu controle...

Ele a interrompeu bruscamente, gritando o nome que não devia ser men­cionado... o nome de don Juan, Ninguém devia saber, pois apenas algumas horas atrás Rique havia dito que o espanhol que desonra uma moça devia reparar o erro casando-se com ela!

— Gostaria de ir embora — pediu, tensa.

— Não! — lmpediu-a de se afastar, prendendo-a entre um grupo de árvores. — Precisamos esclarecer isso, Yvain. Não podemos ir embora e fingir que não aconteceu nada. Quero saber o nome desse homem... só assim posso saber se a noite que passou com ele foi realmente inocente.

Quero acreditar na sua pureza.

— Você é generoso. — Sentiu a brisa fria da noite tocá-la e tremeu. — Mas antes de provar que é generoso precisa demonstrar uma arrogância tipicamente masculina. Desculpe, Rique, mas não posso dizer o nome do meu companheiro de adversidade, por isso pense o que quiser...

— Era don Juan, por acaso?

Ela quase se traiu com um grito, mas o terror a havia petrificado. Preci­sou fazer um esforço supremo para falar,

— Francamente, Rique! Se don íuan quisesse me seduzir, não precisaria fazê-lo na casa de outra pessoa. — Afastou-se de Rique, magoada pelas palavras que ele a obrigara a dizer.

— Então quem? — A voz de Rique soava áspera e ele parecia prestes a saltar sobre ela e obrigá-la a revelar o nome do homem a quem ela prote­gia. — Quem mais você conhece na ilha? Que outro homem além do senhor Fonseca?

— Agora está acusando meu tutor? — O frio da noite agora estava pre­sente na voz dela. — Rique, o que importa isso? Não aconteceu nada de

errado, acredite. — Por que protege o homem tão obstinadamente?

— Você é que é obstinado, Rique. — Suspirou. — No domingo em que saímos de carro e discutimos... conheci outra pessoa. Um homem que você não conhece. Encontrou o olhar de Rique e viu refletídas nele a raiva e a desilusão.

— Perdoe-me por desfazer suas ilusões a meu respeito — tentou falar com tranquilidade. — Precisa acreditar. Tudo o que aconteceu foi que nos perdemos na neblina e pedimos abrigo na primeira casa que encontramos. Ele foi honesto e gentil, e serei sempre grata a ele.

— Está apaixonada por ele?                                                              

A pergunta deixou-a sem fôlego... precisou se controlar para não demonstrar sua agitação.

— Não se pode amar um estranho. — Tentou rir. — Teria sido uma experiência estranha, mas não vai ser fácil esquecê-lo.

— Não compreendo como pôde permitir que um desconhecido agisse como... seu marido!

— A mulher presumiu que fôssemos casados... e ele achou que isso não tinha muita importância, naquelas circunstâncias.

— Que falta de bom senso da parte dele observou Rique. — A velha a viu de novo e traiu seu segredo. Todos os meus amigos vão pensar que você é uma aventureira.

— Está preocupado com a opinião dos outros'? — O rosto de Rique, jovem, sério e ferido, parecia o de um menino que ganha um brinquedo e descobre que ele tem um defeito. — Sob esse seu ar de conquistador, você é um latino inflexível, não é, Rique? Parece que já não mereço mais ser exposta num vaso de cristal...

— Não brinque!

— É divertido... — Sorriu, triste. — Ser considerada uma aveniureira quando apenas algumas semanas atrás vivia presa dia e noite junto de uma mulher que não pensava senão em si própria. O que será que ela diria? Com certeza, que eu devia ter continuado usando o antigo birote e os óculos.

— Yvain — agarrou-a pelos ombros c a sacudiu —, o escândalo se espalha como fogo num palheiro aqui nesta ilha, e Jogo todos estarão fazendo comentários sobre você. Será que não se importa?

Preocupava-se muito mais em que ninguém descobrisse que don Juan tinha sido o homem com quem ela compartilhara a cama. Ele havia sido estranhamente bondoso, e agora tinha chegado a hora de retribuir por tudo o que ele lhe havia dado, em especial aquelas semanas de estudo com o pai de Raquel...

— Gostaria de ir para casa. Já é mais de meia-noite e os outros convida­dos estão começando a sair.

Por um instante Rique esteve a ponto de dizer qualquer coisa, mas conte-ve-se ao encontrar o olhar um pouco triste de Yvain. Há apenas poucos minutos estavam dançando a sardana 6 recebendo, alegres, os doces ofere­cidos pelos noivos... e agora... tudo acabado. A doçura dos lábios de Rique havia se transformado em amargor.

Despediram-se das famílias e foram embora no carro de um amigo. Yvain sentiu um profundo alívio quando viu surgirem as torres do castelo, prateadas pelo luar. Sentia-se como Cinderela, que havia saído (ão alegre para o baile e que voltava em prantos.

— Boa noite... — As palavras a seguiram enquanto abria a porta do castelo, e logo em seguida Rique e o amigo se afastavam, velozes.

 

Algumas lâmpadas brilhavam, fracas, quando Yvain atravessou o pátio em direção ao castelo. Mariposas voavam em tomo das luzes e sapos coa-xavam na fonte. Os raios frios do luar iluminavam uma pérgola coberta de flores, dando ao lugar um aspecto fantasmagórico e misterioso como a noite.

Contemplava a cena notuma quando ouviu sons de piano que desciam de uma das salas do castelo, suaves, tristes e cheios de encanto mágico. Como que atraída pela musica, foi subindo até chegar diante da porta do salão dourado, onde parou, indecisa. Era tão tarde, o castelo estava tão silencio­so, que Yvauí imaginou que um fantasma estivesse lá — no salão de Rosa-lita — tocando o prelúdio de Cbopin. A música era tão triste que Yvain hesitou antes de entrar.

Finalmente criou coragem, e com o coração batendo de ansiedade cami­nhou em direção ao pianista. O candelabro iluminava fracamente a parte superior do piano e o perfil do marquês.

Ele tocava como se estivesse longe do mundo, mas Yvain sabia que os instintos alertas do seu guardião já deviam tê-la pressentido. Sentiu que estava aborrecido com ela e que a estivera esperando todo aquele tempo. Embora vestisse um roupão, os cabelos bem penteados indicavam que ele ainda não havia se deitado.

À medida que o prelúdio ia chegando ao fim, o pulso de Yvain se acele­rava e ela se sentia a ponto de desfalecer. Queria sair dali, mas não conse­guia se mover; queria falar, mas as palavras lhe faltavam. Faria qualquer coisa, até se ajoelharia aos pés dele, se ele não a tratasse como uma criança que chega tarde em casa e merece ser castigada.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala, e instantes depois ele se virou lentamente para olhar para ela, moreno, severo, fazendo-a tremer. O rosto tenso parecia um pouco pálido em contraste com o negro da roupa, mas olhar era tão firme que Yvain não conseguiu evitá-lo. Encararam-se e silêncio e Yvain percebeu que havia raiva nos olhos do marquês.

— Sabe que horas são? — perguntou, cortante.

— Sei... que estou atrasada. — Sua voz tremia um pouco. Estive num casamento... a cerimonia foi tarde, e depois houve uma festa... nós só saímos de lá à meia-noite...

— Nós? — Falava num tom perigosamente suave. Suponho que tenha ido com Manrique Cortez?

— Sim, senor.

— O casamento estava tão alegre que você não conseguiu vir embora antes? Havia vinho, música e dança, não é? Vejo pelo seu roslo que esteve dançando.

— Adorei a festa. — Levou os dedos aos lábios, como para acalmar o tremor da voz. — Há alguma coisa de errado, don Juan, em me divertir numa festa de casamento? Me acha tão jovem e tola, que só mereço confi-anca quando estou aqui estudando minhas lições?

— É jovem demais para ficar fora até tão tarde. Agora, por favor, entre e feche a porta. Quero saber que casamento é esse. Os noivos eram amigos de Cortez?

— Era um casal tão simpático! — Fechou a porta, obediente, e parou diante dele, o rosto vermelho. — A festa foi na quinta do pai de Alvarez, o senor Velarde.

— É um homem respeitado na ilha. Fico satisfeito que Cortez a apresen­te a pessoas de bom nome. Ouvi dizer que ele nem sempre escolhe tão bem as amizades.

— Não está sendo paternal demais? — perguntou Yvain. — Não sou nenhuma garotinha ingénua, criada em convento de freiras, que precisa ser protegida contra a vida. Está se esquecendo, senor, de que fui uma criada e que era eu quem atendia os convidados nas recepções dos SandelI? Foi agradável poder me sentir convidada também, ao menos uma vez na vida!

— Fico satisfeito por saber que se divertiu. Mas, como seu guardião, não consigo deixar de sentir certa ansiedade quando volta tarde para casa.

SÓ que o que Yvain via no rosto dele não era ansiedade, mas seriedade e aborrecimento.

— Não precisava ficar me esperando — respondeu, zangada, ser que pretendesse me repreender.

— Não a estou repreendendo, menina.

A não

— Mas parece. — Forçou um sorriso. — Está tão carrancudo que me deixou com as pernas trémulas. Se continuar me olhando assim, sem dúvi­da vou desmaiar no tapete!

Ele sorriu de leve, já um pouco mais calmo.

— Acho que já me esqueci do que é ser jovem e perder a noção do tempo por causa dos amigos. Devia ter pensado que para você, que nunca viu um casamento espanhol, o espetáculo é fascinante. — Mudou a posição da perna, apoiando-se à bengala. — De que parte da festa gostou mais?

Pensou nas velas que iluminavam o altar, no véu de renda branca esten­dido sobre os ombros do noivo, na troca das alianças.

— Da cerimónia na igreja, don Juan. — De repente, com graça juvenil, ela se ajoelhou e colocou uma banqueta sob a perna esquerda do marquês. Ele a olhou, espantado, e ela se sentiu perdida diante da negra profundida­de daqueles olhos.

— Por que fez isso? — perguntou ele.

— Acho que sua perna está doendo — respondeu com suavidade, o rosto erguido para ele, pálida e tímida, um pouco temerosa por ter ousado tocar naquele assunto.

— Você é observadora.

— E o senhor é orgulhoso demais para admitir que está sentindo dor.

— Acabaria me tornando aborrecido, Yvain, se gemesse cada vez que minha perna resolvesse doer. Aprendi a viver com a dor, e você não deve me mimar.

— Todos nós gostamos de ser mimados às vezes. — Sorriu. — Quer que lhe sirva um pouco de vinho?

— Yvain — ele se inclinou e a segurou pelo pulso, provocando uma reação instantânea, uma espécie de corrente elétrica que quase a paralisou — não deve servir ninguém mais em sua vida. Não pense que me deve alguma coisa, muito menos simpatia, está entendendo?

— Estou. — Deu um suspiro trémulo. — Eu posso aceitar coisas do senhor, porque tem dinheiro, mas você recusa o pouco de gratidão que eu posso dar em troca. Não é muito, mas é tudo que tenho para oferecer.

Ele sorriu de maneira estranha.

— Quando seus olhos brilham, parece uma espanholinha. No armário ao lado da janela vai encontrar uma garrafa de vinho branco. Ficarei feliz se nos servir um pouco.

— Claro! — Levantou-se de um salto e correu para o armário. As portas eram adornadas com dragões dourados, e depois de abertas revelaram várias prateleiras de vinhos muito antigos e taças de cristal. Tentando se acalmar, Yvain demorou um pouco para servir a bebida.

Pensou, com uma sensação quase de choque, que don Juan de Leon era um homem capaz de amar uma mulher além da razão. Não acreditava que ele amasse Raquel daquela maneira, caso contrário ela não seria uma pes­soa tão inquieta, sempre à procura de novas sensações, sempre buscando a admiração de outros homens no Clube Hidalgo. Se tivesse o amor do leão da ilha, não precisaria de mais nada; seria feliz como mulher alguma no mundo já foi.

— Aqui está, senor. — Estendeu o cálice e observou os dedos longos e ágeis que o seguraram com delicadeza. Aquelas mãos amavam a beleza e sabiam criar beleza. Yvain sentiu desejo de ouvi-lo tocar piano outra vez. — Gostaria de ouvi-lo tocar mais alguma coisa antes de ir para a cama — murmurou.

— Ainda não ouviu o suficiente por hoje? Tenho certeza de que Cortez cantou e tocou guitarra para você, e não existe nenhum outro instrumento que case tão bem com o temperamento espanhol.

Observou a guitarra pendurada ao lado do retrato de Rosalita e imaginou-o criança, sentado no colo da mãe, ouvindo-a tocar e cantar canções da terra da qual haviam fugido...

— O que gostaria de ouvir?

— Alguma coisa de que o senor goste muito — pediu, sabendo que jamais esqueceria aquela música.

— Está bem, Yvain. — Ele depositou sobre a mesa o cálice de vinho e foi até o piano. O coração de Yvain batia apressado, consequência do vinho e do momento de intimidade com don Juan. Fechou os olhos quando ele começou a tocar, e pensou que teria escolhido aquela mesma música, tão triste como a tristeza de dois amantes que precisam se separar.

A música foi morrendo suavemente, e só quando cessou por completo foi que Yvain percebeu que tinha lágrimas nos olhos. Enxugou-a depressa quando don Juan se virou para ela, os olhos tristes como os da mãe.

— Gostou da música que escolhi para você?

— Linda, senor, como o momento em que o véu da noiva foi colocado sobre o ombro do noivo, na cerimónia da igreja. Vou relembrar esses dois momentos para sempre.

— Sabe qual é o significado daquela parte da cerimónia? — A luz fraca das velas, o rosto e os olhos dele estavam obscurecidos, por isso ela não conseguiu ler o que se passava neles.

— Acho que significa que a esposa se submete à autoridade do marido. Parecia significar qualquer coisa assim, e foi tão belo! O véu branco os uniu para sempre.

— Os votos latinos são eternos, Yvain: na terra, no céu, juntos ou sepa­rados. Por isso o homem deve estar muito seguro da escolha que faz. E a moça não deve se deixar cegar por fatores exteriores ao amor. Ela deve sentir mais que admiração ou afeição pelo homem; mais do que gratidão pela bondade com que ele possa tê-la tratado, O amor é mais sofrimento que prazer... no começo.

Yvain não conseguiu ler a expressão dos olhos dele, pois naquele instan­te uma das velas se apagou, como se tivesse sido soprada por alguém. Mas se ele falava do amor como um sentimento de prazer doloroso, então era porque ele sentia realmente isso. Nesse caso, não se casaria apenas para ter um filho que levasse adiante as tradições da família; se casaria por ele mesmo, por desejar a mulher mais que qualquer outra coisa no mundo.

A sala de repente pareceu muito fria e Yvain tremeu. A chama das velas já estava morrendo e algumas pétalas das rosas de Rosalita caíam sobre a mesa. Yvain fez um esforço e se levantou.

— Já deve ser muito tarde, senor! Amanhã vou dormir sobre os livros.

— Sim, já é hora de irmos para a cama. — Estendeu a mão para pegar a bengala, mas esta, como que atraída por uma força estranha, escorregou e rolou para longe dele. Yvain correu para pegá-la e entregou-a com um sorriso, que lhe morreu imediatamente nos lábios ao notar a expressão com que ele a recebeu. Uma expressão sombria, selvagem, quase de ódio.

Ela se afastou, admirada e temerosa.

— Vá para a cama. — Agarrando a bengala com os dedos contraídos, ele se levantou.

— Não vai me dizer boa noite? — ela falou com voz trémula, pois ele parecia furioso.

— Boa noite. — Deu as costas a ela. — No futuro, controle sua piedade e não corra para pegar as coisas que eu derrubo, como se estivesse diante de um inválido!

— Desculpe. — Aquelas palavras a haviam ferido profundamente, e lágrimas lhe corriam pela face quando subiu as escadas em direção ao quar­to. Ele não era bondoso! Era orgulhoso e cruel, e ela queria ir embora daquela casa. Queria estar a quilómetros de distância dali! No dia seguinte pediria ao senor Fonseca que lhe conseguisse um emprego em Madri o quanto antes. Lá trabalharia e seria independente e tentaria esquecer seu diabólico guardião.

Dormiu mal e ficou contente quando a manhã chegou. Para seu alívio, don Juan não tomou o café da manhã no pátio. Às nove horas ela estava a caminho da vila dos Fonseca.

Assim que chegou à casa do tutor, Raquel veio até ela, parecendo muito agitada.

— Papai não está bem. O médico está com ele. Yvain, peço que volte para o castelo, pois preciso cuidar de meu pai e não posso perder tempo com você.

— Sinto muito, Raquel. Notei que ele parecia muito cansado ontem, mas como o dia estava muito quente atribuí seu estado ao calor.

— Ele tem se queixado de uma dor no peito. — Raquel fez um gesto significativo com as mãos. — O médico já o havia prevenido para não se cansar retirando aqueles livros pesados da biblioteca, mas ele não o ouviu e agora precisa repousar por uma semana ou mais.

— Pobre senor Fonseca! — Yvain estava sinceramente preocupada. — Posso ajudar em alguma coisa? Gosto muito dele e...

— Minha querida — Raquel assumiu um tom suplicante —, gostaria que me fizesse um favor. Leve um bilhete para a senora Grayson, a ameri­cana que me convidou para almoçar com ela a bordo do seu iate. Detesto deixar uma pessoa esperando por mim, especialmente uma pessoa tão sim­pática quanto ela.

Raquel foi até uma elegante escrivaninha, e Yvain ficou esperando enquanto ela escrevia um bilhete pedindo desculpas. Parecia mais preocu­pada com a quebra do compromisso que com a saúde do pai, e Yvain teve vontade de lhe dizer que um pai é uma pessoa muito especial, que nada pode substituir. Nenhum homem jamais amaria e compreenderia tão bem a filha quanto o pai, O amor paterno, entre todos, era o mais sincero e des­prendido.

— Aqui está. — Raquel entregou-lhe um envelope selado. — O iate da seúora Grayson é o Blue Dolphin. Está ancorado a mais ou menos um quilómetro da ilha e qualquer pescador poderá lhe indicar o local. É um barco muito elegante, e eu estava ansiosa para conhecê-lo. A senora Gray­son falou até em um cruzeiro...

— Um cruzeiro faria bem a seu pai — murmurou Yvain.

— Sim... claro. — Raquel olhou para o alto da escada. — Preciso ir vê-lo.

— Por favor, Raquel, diga a ele que desejo que sare logo e que sentirei falta das nossas aulas.

— Ele não devia estar dando aulas. — O tom de Raquel era ríspido. — Foi isso que provocou s crise.

— Não vou mais tomar o tempo de seu pai. — Yvain mordeu o lábio, ofendida. — Ia mesmo conversar com ele hoje sobre um emprego em Ma-dri. Acho que já estou preparada para começar.

— Quer deixar a ilha? — Os olhos de Raquel brilharam. — Não se sente feliz no castelo? Juan tem sido muito generoso, mas acho que isso não significa muito para uma moça quando ela sabe que essa bondade não foi motivada por nenhum sentimento pessoal. Juan é caridoso por natureza:

Yvain sentiu um choque, pois a última coisa que desejava na vida era a caridade de don Juan. Guardou o bilhete de Raquel no bolso da calça com­prida e tentou parecer despreocupada.

— Posso telefonar amanhã para saber se o senor Fonseca está melhor?

— Se quiser... — respondeu Raquel, fria. — Diga à senora Grayson que lamento muito por precisar quebrar o compromisso, mas que como filha preciso ficar ao lado de meu pai.

— Poucas moças têm um pai como o seu — disse Yvain, numa espécie de repreensão velada. — Desejo-lhe rápidas melhoras, senorita. Até amanhã.

Saiu novamente para o dia ensolarado e desceu pelas ruazinhas tortuosas até o porto. Quando cruzou a praça barroca, sentiu calor e resolveu com­prar uma fatia de melão para matar a sede; saboreando a fruta gelada e cheia de suco, caminhou em direção às redes e mastros que se erguiam na praia.

Olhou em torno, à procura de um barqueiro que aceitasse levá-la até o iate por pouco dinheiro. Ainda bem que tinha trazido algum dinheiro na bolsa, pois Raquel havia se esquecido completamente desse detalhe.

Avistando um jovem apoiado contra uma palmeira, ao lado de um barco ancorado na praia, aproximou-se e perguntou se podia levá-la até o Blue Dolphin, cuja beleza azul e branca podia ser avistada dali.

Ele examinou as roupas de Yvain e seus cabelos caídos sobre os ombros.

— A senorita tem amigos no iate?

— Tenho um recado para entregar à dona do iate — explicou. — E preciso voltar à praia assim que o entregar.

Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça e começou a empurrar o barco na direção da água, segurando-o para que Yvain entrasse e se acomodasse no banco. Ela sentiu uma pontada de medo quando os remos tocaram a água e o barco começou a se afastar da segurança da praia, mas logo esque­ceu o temor para admirar a beleza da bafa e a frescura da brisa que lhe batia no rosto. A água restava tão azul que mais parecia feita de safiras; gaivotas voavam contra o céu azul e o rosto bronzeado do belo pescador tinha leves traços de areia e sal.

— Não temos muitos turistas na ilha — comentou o rapaz. — O mar­quês não encoraja o turismo, pois deseja que a ilha permaneça intocada.

— Espero que o marquês não pense que estou contaminando a ilha — disse Yvain, com um sorriso.

— Não! — Os olhos do rapaz brilharam, cheios de admiração. — Se todos os turistas fossem como a senorita, acho que o marquês ficaria encantado.

— Será? — Deu uma risada um pouco triste. Estavam se aproximando do Blue Dolphin, de onde um marinheiro os observava.

— Alô! — gritou ele, inclinando-se sobre a amurada quando a canoa se aproximou.

Yvain acenou com a carta, indicando que queria entregá-la.

— Suba a bordo!

Ela hesitou, pois havia um espaço razoável entre o iate e a canoa, que balançava bastante. Levantou-se com cuidado e subiu a escadinha de ferro com passos cuidadosos, temendo cair na água.

— Suba e não olhe para baixo — aconselhou o marinheiro.

Como um dia precisaria perder o medo do mar, Yvain decidiu que seria naquele momento; agarrou as barras frias de ferro e subiu. Quando estava quase no alto, mãos fortes a puxaram até o convés. Ela riu, aliviada, e encontrou um par de olhos azuis como o mar.

— Mas que surpresa! — Ele a examinou. — Não me diga que a corres­pondência da ilha é entregue por senoritas tão bonitas.

Ela sorriu, divertida, pois ele parecia não ter reparado que ela, embora sendo também inglesa, havia se apresenlado com algumas palavras tímidas em castelhano.

— De dona Raquel? — Olhou para o envelope como se estivesse ansio­so por abri-lo. — Para minha mãe?

— O sr. Fonseca não está passando muito bem e Raquel achou melhor ficar com ele, mas ficou muito triste por perder o passeio no iate.

Ele olhou para Yvain e riu.

— Então não é uma senoriía.' É turista, como eu?

A frase a atingiu como uma punhalada, mas era verdade... ela era apenas uma turista que havia se apaixonado pela ilha. Não poderia permanecer ali. como o pescador, como as mulheres que recolhiam algas na praia, como os alunos do convento.

— A ilha de Leon é um lugar e tanto. — O filho da sra. Grayson obser­vou com deslumbramento a areia branca, as casas brancas que se erguiam à distância, as palmeiras que bordeavam a linha da água. — Está hospedada na casa dos Fonseca? Raquel não nos disse que tinham uma convidada...

Para alívio de Yvain, naquele momento surgiu uma mulher no convés. Eva alta, tinha cabelos grisalhos e usava um vestido cor-de-rosa.

— Kent, quem está à nossa procura? — Aproximou-se com um sorriso simpático, e arregalou os olhos ao ver Yvain. — Quanta honra! Eu a vi outro dia e me disseram que é a protegida do marquês de Leon... a moci­nha com nome de conws de fadas.

Yvain sentiu um impulso de sair correndo pelo convés e saltar na água.

— Yvain e o Leão! — disse a sra. Grayson, triunfante. — Estou encan­tada em conhecê-la, minha querida. É amiga de Kent?

Kent observava a cena, divertido, e entregou o bilhete de Raquel à mãe.

— A jovem veio trazer isto.

Ela abriu o envelope, leu a mensagem, expressou sua tristeza pela doen­ça do senor Fonseca e anunciou que, se Raquel não podia almoçar com eles, então Yvain tomaria o lugar dela.

— Mas eu não posso... — Yvain queria evitar as perguntas, pois perce­beu o olhar curioso da sra. Grayson.

— Faço questão, minha querida. — Bettina Grayson não era uma mulher que gostasse de ser contrariada. —- Só a deixarei ir se acaso já tiver um compromisso com o senhor marquês para o almoço.

Yvain foi tentada a dizer uma pequena mentira, mas a honestidade pre­valeceu e ela confessou que não era esperada para o almoço.

— Mas tenho algumas lições para estudar.

— Lições? Aulas de castelhano, minha querida?

— Sim.

— Ora, as aulas podem esperar. Kent e eu ficaremos encantados se acei­tar nosso convite, e não vou aceitar uma recusa. — A sra. Grayson olhou para o filho com um olhar cheio de significação. — Peça que tragam uns drinques para nós, Kent. Quero conhecer melhor nossa mocinha de contos de fadas.

— Um pescador me trouxe de canoa. — Yvain evitou o olhar divertido de Kent. — Ele está esperando para me levar de volta à ilha.

— Vou dizer a ele que você não vai voltar... pelo menos agora — anun­ciou Kent, sorrindo.

 

Nos dias seguintes, Yvain encontrou-se várias vezes com Kent Grayson. Como o senor Fonseca continuava de cama, aproveitou o tempo na compa­nhia agradável do rapaz. Ele era um excelente fotógrafo e, juntos, desco­briram muitos lugares interessantes para fotografar.

Ele demonstrou curiosidade a respeito do castelo, mas Yvain não quis levá-lo até lá para conhecer seu guardião.

— Don Juan não considera o castelo uma atração turística. Ele gosta de manter sua privacidade.

— Tem medo dele? — perguntou Kent, enquanto tirava uma foto dela.

— Claro que não!

— Pois parece ter, querida. Ele é feroz e inflexível como os guardiães tradicionais?

Ela deu uma risada e arrancou uma flor da árvore sob a qual estava sentada.

— É o homem mais simpático do mundo. E, se tem um humor um pouco difícil, é porque sofreu muito na vida e sente uma dor torturante em uma das pernas, que quase perdeu em um acidente.

— Quantos anos ele tem agora? — Kent encostou-se a um muro e acen­deu um cigarro.

— Mais ou menos trinta e cinco. — Yvain afastou com a mão a fumaça do cigarro de Kent, sentindo-se insegura e incerta a respeito do futuro. Enquanto o senor Fonseca não melhorasse, não podia conversar com ele sobre o emprego cm Madri.

— Tinha a impressão de que ele era mais velho. — Kent sorriu, malicio­so. — Então ele é simpático, hein? E de admirar que você tenha se apaixonado por ele. Ouvi dizer que os homens latinos são muito sensuais.

— Sensuais? — Yvain sorriu,

— Sabe muito bem o que quero dizer, sita. Pilgrim. — Kent se inclinou e acariciou a trança de Yvain, que se lembrou de Rique e ficou um pouco tímida. Kent sorriu. — Tem medo dos homens, Yvain?

— Gosto de ser amiga deles — explicou ela.

— Por quê? É mais fácil?

— Não vejo razão para flertar com cada homem que conheço.

— Acha que certos aspectos do relacionamento entre um homem e uma mulher devem permanecer sagrados? — Os olhos de Kent brilharam, iróni­cos. — Será que estou diante de uma mocinha antiquada e romântica, capaz de amar um homem sem pensar na segurança financeira que ele pode lhe oferecer?

— Kent, nem todas as mulheres são mercenárias!

— As que conheci até agora preferiam encontrar um ninho seguro, mais que um ninho de amor.

— Já que conseguiu escapar delas, Kent, deve ser um pássaro esperto. Sabe o que quer.

— Talvez eu queira alguém como você — falou em tom de brincadeira, mas havia seriedade nos olhos dele. — Seu coração está livre, Yvain?

— Sim, e vai continuar assim. — Afastaram-se em direção a uma taber­na da praia, com mesinhas protegidas por guarda-sóis coloridos.

A caminhada ao sol deixou-os sedentos e Kent pediu ao garçom dois enormes sucos de frutas gelados e alguns petiscos leves. A poucos metros de onde estavam, o mar reluzia, muito azul, e gaivotas faziam evoluções no ar, mergulhando em seguida na água clara.

Era agradável estar ali sentada, tomando uma bebida gelada em compa­nhia de um jovem simpático e atraente. Gostava de Kent e o considerava boa companhia. A sra. Grayson, por sua vez, era um mulher encantadora, bondosa e curiosa. Na noite anterior, enquanto gozavam a brisa suave da noite e o luar de verão, Yvain se deu conta de que, breve, mãe e filho partiriam para a Espanha, depois para Portugal e, finalmente, para a Amé­rica... Bem que podia ir com eles!

— Desça das nuvens — disse Kent, apertando suavemente a mão de Yvain. — Estou me sentindo terrivelmente solitário, pois sei que nào faço parte dos seus pensamentos.

— Mas eu estava justamente pensando em você, —- Sorriu, pensativa. — Vou sentir sua falta, Kent, quando for embora.

— Venha comigo. Mamãe gosta de você. Por que não aceita o emprego que ela lhe ofereceu e não deixa que nosso relacionamento sê aprofunde? Se não gostar de mim... não por falta de estímulo dá minha parte, o que vai perder? Você me disse que de qualquer forma pretende deixar a ilha de Leon para ir trabalhar em Madri... mas sozinha? Uma moça como você'.' Uma gatinha bronzeada de olhar perdido? Às vezes, Yvain, fico imaginan­do de onde vem essa tristeza dos seus olhos.

— E que estou morrendo de vontade de comer aqueles deliciosos cama­rões aqui da ilha. — Riu, um pouco nervosa. — Estale os dedos como um espanhol, e vamos dar uma olhada no cardápio.

— Não sou espanhol, querida.

Ela examinou os cabelos loiros de Kent, muito curtos, seus olhos azuis, os lábios finos.

— Não, Kent, não há nenhum traço latino em você.

— Isso tem muita importância?

— Ao contrário, faz com que me sinta... segura.

— Em terreno sólido, sem vulcões por baixo, não é?

Ela riu de novo, tentando ignorar a dor que lhe provocava a lembrança do vulcão que se agitava em don Juan: a raiva que demonstrou quando ela apanhou a bengala caída, a ordem ríspida para que ela não demonstrasse piedade. Piedade? Jamais pensaria em sentir piedade por um homem tão forte, tão maduro, tão independente. Queria apenas lhe transmitir um pou­co de calor humano.

— As pessoas mais sólidas podem oferecer mais que os homens misteri­osos, com os quais você não vai jamais conseguir se comunicar realmente. Acho que, se vier conosco, se abandonar esta ilha sem olhar para trás, vai encontrar a felicidade.

Olhou primeiro para Kent, depois para os picos cor de violeta das distan­tes montanhas da Espanha, perdidas no horizonte.

— Ir para Madri era um plano tão certo, antes de conhecer você! O pai de Raquel me deu aulas sobre arte e antiguidade. Gostaria de seguir uma carreira.

— Existem galerias de arte na Califórnia... e eu estarei lá, Yvain.

— Vocês americanos são muito persistentes.

— Existem imensos vales cobertos de laranjeiras e casas de paredes brancas. Você adoraria.

— Você e sua mãe vivem numa casa de pedras brancas, Kent?

— Vivemos. — Sorriu, sedutor. — A casa tem dois pátios e muitas camélias rubras. O contraste com as paredes brancas é magnífico.

— Eu... — suspirou, indecisa — não posso decidir nada antes de con­versar com meu guardião.

— Guardião apenas temporário, Yvain. Ele não é dono da sua vida.

— Não...

— Ele age como se você pertencesse a ele?

— Não, mas tem sido muito bom para mim. Eu não tinha nada quando fui salva do mar e trazida para cá por um pescador. Foi ele quem conseguiu das autoridades que eu permanecesse como turista, foi ele quem mandou buscar lindas roupas para mim em Madri, foi ele quem convenceu o sr. Fonseca a me dar aulas. Eu... eu era apenas uma dama de companhia, mas ele me trata quase como... uma sobrinha.

— Por que não como filha?

— Não tem idade suficiente para isso. — Sorriu de leve. — Embora fosse muito precoce quando era jovem.

— Gostaria de conhecê-lo, Yvain. Nas atuais circunstâncias, acho que devo conhecê-lo. — Kent falou com muita seriedade. — Você está meio inclinada a aceitar o emprego que mamãe lhe ofereceu, e acho que se eu falar com o marquês posso tranquilizá-lo a respeito das pessoas com as quais você vai conviver. A outra mulher para quem você trabalhava era muito dura?

— Inflexível. — Yvain sorriu e deu de ombros. — Talvez a culpa fosse minha, por me deixar dominar. Mas o contato com os espanhóis me ensi­nou que o orgulho é um direito comum a todas as pessoas, e que todos nós somos iguais. Durante o tempo que permaneci no castelo, jamais ouvi pala­vras desagradáveis de don Juan para com os criados.

— Vai me levar para conhecê-lo?

— Vamos esperar mais um ou dois dias, Kent...

— Mas nos partimos no sábado! Só vamos ficar até lá para assistir à festa de sexta-feira. Precisa se decidir, Yvain. Tenho a impressão de que se o senhor marquês disser não, você aceitará a decisão dele.

— Não todas as vezes — protestou.

— Alguma vez o desafiou?

— Sim, por causa de Rique... meu guardião não concordava com nossa amizade, e só mais tarde percebi que ele tem a visão muito mais aguda que a minha. Mais aguda ou talvez mais mundana...

— Quem é Rique? — Kent ficou sério.

— Ele toca e canta no Clube Hidalgo.

— As   mulheres   o consideram   atraente — comentou   Kent,   mal-humorado.

— É verdade. — Ela riu, nervosa, relembrando o último encontro com Ríque e o motivo da separação. Olhou para Kent, seu companheiro cons­tante de tantos dias, e teve um pouco de medo: talvez as pessoas pensassem que era ele o homem com quem ela havia passado a noite. E se os comen­tários chegassem ao ouvido de Kent, será que ele reagiria da mesma manei­ra que Rique?

— Com fome? — Sorriu para ela. — Vamos pedir aqueles camarões deliciosos?

Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça e ele chamou o garçom. Sen­tia-se bem ao lado de Kent, e a Califórnia ficava bem distante da ilha, suficientemente distante para que o tempo a fizesse esquecer don Juan e mesmo aceitar o casamento dele com Raquel.

Os camarões eram imensos, fresquinhos e rosados, e foram servidos com torradas e vinho branco. Em seguida Kent pediu um filé e Yvain aceitou uma salada de presunto.

Depois do almoço, descansaram sob a sombra de uma palmeira frondo­sa, quase sem falar. Kent parecia compreender que ela estava se despedin­do da ilha do seu coração, preparando-se para dizer adeus a don Juan e receber como resposta um "Vaya con Dios".

Kent a convidou para passar aftesia a bordo do iate, que já estava sendo decorado com luzes coloridas para a ocasião festiva.

— Acha que o senhor marquês aceitaria um convite para participar de nossa pequena festa de despedida? — perguntou a sra. Grayson, esperanço­sa. — Encontrei Raquel esta manhã e ela me disse que o pai está bem melhor. Don Juan poderia vir com ela.

Yvain compreendeu que não poderia manter os Grayson afastados de don Juan por mais tempo.

— Acho que aceitaria... se Raquel vier.

— Então vou lhe enviar um convite formal agora mesmo. — Bettina Grayson saiu alegre para preparar o convite, e Yvain inclinou-se sobre a amurada, observando a água tão azul que não veria nunca mais.

— É verdade o que comentam as pessoas? — Kent falou com voz suave junto ao ouvido de Yvain. — A bela Raquel tem ambições de se tomar marquesa?

— Não acha que ela seria a marquesa ideal? — Yvain não desviou o olhar das águas tranquilas. — É linda e muito graciosa. Seria a senhora ideal para o castelo, a mais encantadora e elegante das marquesas.

— Será que um homem não merece mais que isso? — Tocou de leve o cabelo de Yvain. — Mesmo um fidalgo deseja ser amado com paixão.

— Não acredita que Raquel seja apaixonada?

— Tanto quanto uma estátua de mármore.

— Kent, você mal a conhece!

— Conheço o tipo, querida, Essa espécie de mulher não é exclusividade das ilhas espanholas.

— Conheceu muitas mulheres, Kent?

— Algumas — admitiu, rindo —, como todos os americanos. Mas sei muito bem qual a mulher que quero para toda a vida. Tenho um presente para você — disse ele em seguida, segurando Yvain pelos ombros e fazen­do-a olhar para ele. — Encontrei numa pequena loja da praça, ao lado do cavaleiro de pedra. — Tirou do bolso um embrulhinho em papel de seda. — Merece um presente por ter sido minha guia e modelo esta semana.

Yvain ficou sem palavras ao ver o bracelete de ouro com pequenos talismas incrustrados: uma ferradura, um galo, uma maçã, um cpração... havia uma dúzia deles, pequenos objetos delicados, cuja beleza era realçada pela alvura da pele de Yvain.

— Kent!

— Bonito, não é?

— Não devia me dar isso.

— Por que não? — Sorriu, um pouco embaraçado. — Na América, as moças gostam de receber pequenas lembranças como sinal de estima dos rapazes.

— Não estamos na América. — Acariciou os talismãs e depois sorriu, pois o bracelete era realmente muito lindo e porque o sorriso de Kent era tão terno. Num impulso, beijou-o no rosto.

— Muito obrigada, Kent. Vou guardar com muito carinho o seu pre­sente.

— Gostaria que também sentisse carinho por quem lhe deu o presente. — Sem que ela esperasse, Kent envolveu-a nos braços e beijou-a na boca. Os lábios dele eram quentes, carinhosos, e Yvain aceitou-os para descobrir se um beijo dele a faria esquecer tudo o mais no mundo.

— Yvain...

— Ela escondeu o rosto no ombro de Kent, abalada com a própria insensibilidade, desejosa de uma paixão tempestuosa como só se tem em sonhos. Será que toda moça devia deixar o sonho pela realidade?

Foram até a praia numa pequena lancha e Kent acompanhou-a até o castelo. Algumas luzes ainda estavam acesas, mas a torre estava mergulha­da na escuridão.

— Que lugar sombrio —- observou Kent, segurando-a pela mão, como se temesse deixá-la sozinha naquele lugar.

— Porque agora é noiie — explicou Yvain. — À luz do sol as paredes brilham com reflexos dourados e os pátios ostentam todas as cores das flores. A torre, dando para o mar, não pode ser mais romântica.

— É de lá que ele reina? O Leão na sua jaula?

— Ele não ruge — brincou Yvain. — É muito humano e bastante solitá­rio. Às vezes sente muita dor na perna, mas, como é orgulhoso, não quer que ninguém perceba e sinta piedade. Os homens fortes não gostam de admitir suas fraquezas, não é? Como são tolos!

— E qual a intensidade do seu amor por ele? — Os dedos de Kent se comprimiram em torno do pulso de Yvain. — Yvain, sua tolinha, não sabe que um nobre só se casa com uma mulher que também pertença à nobreza?

— Pensa que sou alguma idiota romântica? — Livrou-se das mãos de Kent. — Só mesmo num romance barato um marquês se apaixonaria por uma pobre dama de companhia!                                                                

— Estamos falando dos seus sentimentos por ele.

— Sinto-me grata, Kent. Isso é um crime, só porque ele não tem cabe­los brancos e barba?

— Yvain — Kent murmurou e depois riu —, acho que sou um idiota. Você é tão diferente das outras moças que conheço! Ao mesmo tempo que gostaria que continuasse sempre assim, sinto um imenso desejo de acordá-la. Não posso suportar a ideia de que outro homem... você me entende?

— Quer dizer que os homens podem tudo, mas as mulheres devem manter-se intactas?

— Sei que é um sentimento egoísta, mas os homens pensam assim, e quando encontram uma moça...

— Quer uma garantia de que minha pureza ainda não foi tocada?

— Sua voz é toda pureza, Yvain.

— Como sabe? — Estendeu a mão para a maçaneta da porta. — Por favor, Kent, agora deixe-me ir. Amanhã, na festa, teremos esquecido tudo isso.

— Não me convida para entrar? — Kent inclinou a cabeça e falou em tom suplicante, — Prometo ser um bom rapaz.

— Eu... estou cansada. — E era verdade; era como se as emoções con­fusas do dia tivessem retirado todas as suas forças.

— Pobrezinha — murmurou ele. —Está muito confusa, não está? Mas, querida, precisa se decidir...

— Amanhã você terá minha decisão — garantiu. — Prometo.

— Precisa conversar com o guardião espanhol, não é?

— Acho... que sim, Kent.

— Não deixe que ele a convença a não ir conosco. Afinal, de qualquer maneira vai mandá-la para Madri, não vai?

— Vai. — Um calafrio desceu pela espinha de Yvain. — Boa noite, Kent.

— Boa noite, Yvain. — Com delicadeza, Kent segurou as mãos dela e beijou-lhe as pontas dos dedos. — É assim que fazem os espanhóis?

— Acho que sim.

— Don Juan já beijou sua mão.

— Por que ele deveria?

— Talvez por ter o mesmo nome do famoso don Juan. o homem que amava as mulheres.

— Kent, garanto-lhe que meu guardião ama apenas uma mulher... Raquel, e que só irá à festa de sua mãe porque ela também estará lá.

— Você é encantadora.

— Gracias, senor, e boa noite. — Livrou-se dele com uma risada e fugiu pela porta do pátio.

— Hasta mañana. — Ele riu. — Mocinha de contos de fadas!

 

Yvain tinha um sorriso nos lábios quando depositou sobre uma bandeja de prata o convite de Bettina Grayson. Ali ele veria o envelope assim que chegasse. Provavelmente o marquês tinha ido jantar com o sehor Fonseca e com Raquel, e ela devia ter-lhe falado a respeito da festa a bordo do iate dos Grayson. Sem dúvida iria à festa para estar com Raquel, e assim conheceria Kent.

Seu coração se acelerou ao passar diante do salão dourado, a caminho do quarto. Lembrou-se da musica que âon Juan tinha tocado para ela e das palavras cheias de raiva com que a havia prevenido para não tratá-lo como a um inválido. Naquele momento o salão dourado estava imerso na escuri­dão, e o piano, silencioso. O marquês estava, naquele momento, em com­panhia da mulher que breve teria o direito de manter a decoração do castelo como estava ou de mudá-la de acordo com sua própria personalidade. Ele não interferiria; aceitaria de bom grado os desejos da mulher que iria tomar sua vida menos solitária.

Yvain subiu correndo as escadas, uma profunda sensação de solidão na alma. Decidiu naquele instante que aceitaria a oferta de Kent para viajar com ele e a mãe, pois ficando em Madri teria maiores possibilidades de encontrar-se com don Juan e a esposa. Lá na América, distante, não corria esse risco.

Antes de se deitar, abriu o guarda-roupa e tornou a examinar o deslum­brante vestido que havia escolhido para a festa do dia seguinte: uma combi­nação de negro, vermelho e creme, do mais fino veludo. Colocou sobre os ombros a mantilha que usaria como complemento e olhou-se no espelho. Emoldurava maravilhosamente o rosto claro e pensativo de Yvain, desta­cando os cabelos cor de mel; o bracelete brilhava suavemente à luz das lâmpadas de cabeceira.

Passou a mão sobre a ferradura, para dar sorte; locou a maçã, símbolo da tentação; demorou o olhar sobre o coração de ouro e pensou no significado do amor. Todas as pessoas desejavam ser amadas, mas para cada uma o amor tinha um significado diferente: paixão ou segurança; companheirismo

— para afastar a solidão; ou compreensão — um ombro para se apoiar na alegria ou na tristeza.

Yvain viu refletidos no espelho seus próprios desejos. "E o amor que eu busco, mas um amor tão belo como nunca se viu." As palavras do poeta traduziam bem o que ia no coração de Yvain: um amor maior que todos os outros, um amor romântico que maravilhasse, que a enchesse de medo e encantamento; um amor que a elevasse da terra e a conduzisse até as nuvens.

—Sua romântica idiota! — Riu ao murmurar essas palavras, mas ú desejo não a deixou e ela se afastou depressa do espelho.

Já era tarde quando ouviu o ruído do carro do seu guardião que chegava. Imaginou-o descendo do carro com dificuldade, subindo a escada, parando diante da mesa onde se achava o convite. Com certeza demoraria alguns instantes para abrir o envelope, saboreando a surpresa ali contida. Inclinan­do-se um pouco sobre a bengala de ébano, leria a mensagem e pensaria um pouco sobre a conveniência de ir ou não à festa, mas por fim se decidiria, pois Raquel estaria lá. Iria à festa também para satisfazer sua curiosidade a respeito da americana e do filho, com o qual sua protegida vinha saindo com frequência.

 

O dia da festa amanheceu brilhante e ensolarado. Yvain ouviu os sinos que bimbalhavam na igreja, ao lado do porto: um som gostoso de feriado, que se misturava ao barulho do mar. Num misto de alegria e ansiedade, colocou o vestido e desceu para o desjejum. O cabelo, arranjado numa trança, tinha sido enrolado no alto da cabeça.

Parou diante de um espelho para admirar a própria imagem: com a roupa típica da ilha, parecia uma figura saída de um quadro pintado muitos sécu­los atrás. Distraída como estava, sentiu o coração disparar quando viu a figura alta que surgiu por irás dela.

— Bom dia, Yvain. — A voz soava profunda, e os olhos dele a fita­vam, extasiados. — Está linda, nina. Quase uma senorita da ilha. Venha, vamos apanhar uma flor para o seu cabelo.

Estendeu a mão para ela. O contato provocou em Yvain uma reação imediata e intensa, uma espécie de corrente, quente e fria ao mesmo tem­po. Enquanto caminhavam, ela arriscou um olhar tímido para ele.

— Vai à festa, senor?

— Claro. — Os olhos de ambos se encontraram e ele sorriu. — Tenho uma predileção especial pela festa de Adão e Eva. Foi introduzida aqui na ilha muitos e muitos anos atrás pela noiva de um dos meus ancestrais, moça natural da Galícia. Como sentia imensas saudades da sua terra, con­venceu o marido a recriar a procissão tradicional da Galícia, e desde então tradicional também na ilha de Leon.

— Que emocionante! — Yvain levantou as pontas do vestido longo en­quanto desciam até o pátio rescendente a perfume das flores que cresciam em profusão por toda parte.

Don Juan retirou do bolso um canivete de cabo de madrepérola e cortou um botão ainda coberto pelo orvalho da noite. Com uma reverência, entre­gou a flor de pétalas rosadas a Yvain, cuja mão tremeu ao prendê-la no cabelo.

— Que dia maravilhoso para a festa — disse ela, escondendo o rosto no meio de um cacho de flores para ocultar o rubor. O que estaria acontecendo com ela? Ele não ia agredi-la ao saber que ela passaria o dia com Kent Grayson.

— Ficou combinado que veremos a procissão do balcão da prefeitura, que fica bem diante da praga. O desfile vai fazer uma parada ali e os dançarinos dançarão ao som da banda. — Don Juan conduziu-a até uma mesa. circular, preparada no jardim para o desjejum.

— Don Juan... — Alegrou-se por estar sentada, pois sentia as pernas trémulas.

— O que, nina? — Ele encheu um copo de suco de laranja e colocou-o diante dela.

— Eu... — Tomou um gole de suco, desejando que ele não estivesse tão gentil naquela manhã; tão belo, tão seguro de que ela acataria os pianos que havia feito para ela.

— Tem alguma coisa para me dizer, Yvain? — Olhou-a daquela manei­ra que sempre a assustava.

— Como as flores estão perfumadas esta manhã. — Sorriu para Luís, muito nervosa, quando ele colocou diante dela um prato com ovos mexi­dos. Ficou ainda mais tensa quando Luís saiu, deixando no ar um silêncio só quebrado pelo zumbido das abelhas e dos sinos da igreja. Sem coragem de olhar para o marquês, pegou uma fatia de torrada e demorou-se a passar manteiga nela. Por que era tão difícil falar com ele? Por que aquela sensa­ção de constrangimento? Mas não era só ela que estava inquieta; também ele parecia pouco à vontade, como se já desconfiasse de que ela ia passar a festa ao lado de Kent Grayson.

— Yvain... — Ele levou o guardanapo aos lábios e encarou-a, firme. — Parece estar com medo de mim. Se quer me dizer que tem outros planos para a festa, diga. Não vou bater em você por isso, nem vou prendê-la na torre.

Olhou para ele, numa espécie de deslumbramento. Quando sorria daqueIa maneira, sentia um desejo imenso de agradá-lo, mas sabia que quando chegassem à festa ele não teria olhos a não ser para a beleza de Raquel.

— Eu... tinha feito outros planos — admitiu, nervosa. — Prometi pas­sar o dia com outra pessoa.

— Um rapaz?

— Sim. — Tomou um gole de café para ocultar o nervosismo. — Acho que já ouviu falar dos Grayson... Raquel deve ter comentado. São america­nos e muito simpáticos, e nos tomamos muito amigos... espero que não se importe.

— São eles que vão dar uma festa no iate? Ouvi dizer que vão partir amanhã à noite.

— Senor, faz objeção a que eu passe o dia com Kent?

— De qualquer maneira, nina, você (em passado todos os dias com ele ultimamente. Detestaria privá-lo da sua companhia hoje.

Percebeu o sorriso irónico nos lábios do marquês e esteve a ponto de lhe dizer que ia embora com eles. Tinha mesmo que contar a ele... então, por que não naquele momento?

Já havia criado coragem para falar, quando notou que o olhar dele estava pousado sobre o bracelete de Kent, que ela resolvera usar para dar sorte.

— Não conhecia essa pulseira. — Pegou o pulso de Yvain, com força. — Foi você quem comprou?

— Kent me deu...

— Sei. — Nos olhos dele brilhava uma chama de raiva. — Conheceu este rapaz há menos de uma semana e, mesmo assim, aceitou um presente, que aos olhos dos espanhóis significa um compromisso?

— Kent é americano, senor. — Os talismãs brilhavam com os raios do sol. — Acho que ele não conhece os costumes espanhóis.

— Você sabia, Yvain, que aqui na ilha é comum que um homem ofere­ça à mulher amada um bracelete para que todos saibam que ela pertence a ele?

— Já ouvi falar dos braceletes usados pelos escravos. — Magoada e assustada, respondeu com voz segura, já não se importando com a reaçao deie diante da notícia de que sua protegida partiria em companhia de Kent.

— De certa forma o bracelete simboliza a escravidão dos corações dos amantes. — A pressão dos dedos dele sobre o pulso de Yvain diminuiu um pouco, sem desaparecer completamente. Os olhos negros pareciam penetrar nela. — Isso é amor, minha pequena romântica. Os braços do amante nem sempre são gentis, e a mulher que não está preparada para isso ainda não passa de uma criança. — Correu os dedos por cada figura do, bracelete, examinando uma a uma com cuidado. — Esse jovem americano gosta do incomum, do encantamento. Será que é um presente de despedida, e não uma declaração de amor, como eu pensei?

— Quando um americano ama uma moça, oferece a ela um anel. — Livrou-se das mãos do marquês e levantou-se. — Já vou, senor. Kent está me esperando.

— Onde ele vai esperá-la, Yvain? — Serviu-se de mais um pouco de café com as mãos tão suaves para a música, mas tão indelicadas ao tocar uma mulher.

— Na árvore grande da praia, onde ancora sua lancha.

— Vejo que escolheu um lugar romântico. — Olhou-a com um sorriso suave como veludo. — Chamamos aquela árvore de "árvore do céu". Divirta-se, nina. Vai à festa de despedida no iate?

— Vou, senor. — Cravou as unhas nas palmas das mãos. — Vai estar lá, senor?

—- A senora Grayson me convidou gentilmente. Vou sim, Yvain... que­ro conhecer seus amigos.

— Espero que o senor e Raquel gostem da festa. — Virou-se e correu para encontrar Kent. O sol estava quente e a flor oferecida por don Juan exalava um perfume delicioso. Yvain queria vestir a mantilha, como havia planejado, mas, como tinha pressa de sair do castelo, desistiu da ideia. Estava ansiosa pela companhia de Kent, tão simples, tão diferente dos espanhóis. Queria aproveitar cada momento da festa, rir, brincar e não pensar no futuro.

Kent a esperava no lugar combinado, apoiado à árvore e fumando um cigarro. Ela disse a si mesma que o ardor que sentia nos olhos era conse­quência do ar marinho, mais nada.

Desceu correndo a pequena trilha que conduzia à praia e atirou-se nos braços abertos de Kent, que a abraçou com carinho.

— Esperou muito? —- perguntou quase sem fôlego, os olhos marejados de lágrimas.

— Esperaria todo o dia — respondeu ele, apaixonado. — Você parece ter saído de um conto de fadas... está parecendo Rapunzel, que fugiu da torre para se-encontrar com o namorado. — Ele a envolveu nos braços e olhou-a nos olhos. — Temos só o dia de hoje, Yvain, ou teremos também amanhã e todos os outros dias que virão?

— Vamos à festa e aproveitemos ao máximo o dia. — Não conseguia expressar em palavras sua decisão, embora já houvesse decidido. — Não quero perder nada.

Todos os balcões da cidade estavam enfeitados com flores e tapeçarias bordadas e, de lá, as famílias assistiam ao desfile, vestidas com suas melhores roupas de festa, rindo, tocando guitarras e jogando flores sobre a multidão que se reunia nas mas.

Os barcos pesqueiros, ornamentados com flores e fitas coloridas, flutua­vam alegres na água tranquila. As mulheres e as moças ostentavam encan­tadores vestidos azuis ou vermelhos e usavam colares e longos brincos que cintilavam ao sol. Os leques agitavam-se como asas de seda ou renda, nas mãos das mulheres que acompanhavam, cheias de admiração, seus homens de roupas escuras e chapéus de abas largas. Alguns dos mais jovens usa­vam calças azuis ou vermelhas, e seus dentes muito brancos brilhavam como as camisas imaculadas.

Os sinos continuavam tocando em meio aos risos e cantos da multidão. As crianças corriam carregando buques de flores que mais tarde jogariam sobre as moças escolhidas para a procissão de Adão e Eva. Em pequenas bancas, vendiam-se doces, churros e a horchata, bebida típica da região.

A um canto da praça, ciganos dançavam ao som de seus instrumentos e, da montanha, desciam carroças enfeitadas de flores, trazendo camponeses vestidos com roupas alegres.

Tudo parecia um sonho brotado do passado, e Yvain, maravilhada, não queria perder nenhum detalhe. Kent a colocou sobre a mureta de uma das casas, de onde poderia avistar melhor o espetáculo. Ela sentia sob a mão o calor do ombro de Kent, mas ao mesmo tempo seus olhos eram fortemente atrafdos para um dos balcões floridos do palácio da praça.

Lá estava don Juan, alto e belo, ao lado de Raquel e do sehor Fonseca. Raquel usava um vestido delicado de renda azul-clara e trazia sobre a cabe­ça uma mantilha bordada com pequeninas pedras brilhantes. O coração de Yvain saltou no peito. Seu guardião tinha uma flor na lapela e Raquel parecia uma noiva.

— É ele?

Ela olhou para os olhos azuis de Kent, desconcertada.

— É ele o seu guardião, aquele nobre tão imponente ao lado da bela Raquel?

Ela fez um sinal afirmativo.

— É muito mais jovem do que eu imaginava. Ele e Raquel formam um casal magnífico... mas quem é o outro espanhol ao lado deles, vestido como um matador?

Yvain analisou o espanhol simpático, que realmente usava roupas de toureiro, e acenava para a multidão. Lembrou-se de que Raquel certa vez havia falado de um famoso toureiro que às vezes costumava visitar a ilha... para cortejá-la, é claro.

Don Juan inclinou a cabeça e disse qualquer coisa ao ouvido de Raquel, que sorriu, olhou para o toureiro e colocou a mão de leve sobre o braço do marquês. Um raio de sol iluminou o bracelete de diamantes que Raquel trazia no braço.

Yvain afastou o olhar. Ainda naquela manhã o marquês lhe havia dito que os homens da ilha costumavam oferecer à mulher amada um bracelete para que todos soubessem que ela pertencia a ele. Raquel certamente havia escolhido um de diamantes, porque ficavam bem nela, e don Juan devia tê-lo oferecido sem hesitação.

De repente uma banda começou a tocar e um murmúrio de expectativa correu pela praça. A procissão vinha vindo, e os pais colocavam as crian­ças nos ombros para que pudessem ver o desfile. Moças dançavam diante dos rapazes... eternas Evas tentando os homens.

Yvain sentiu que lhe tocavam o bracelete de talismãs, mas não ousou olhar para Kent. Aquela festa era a celebração do amor. A tentação pairava no ar e sussurrava ao ouvido de Yvain que ela devia dizer a Kent que estava pronta a partir com ele.

Estava a ponto de pronunciar as palavras decisivas quando foram chama­dos por Bettina Grayson, que estava em companhia de vários amigos.

— Meus queridos, já faz horas que estamos procurando por vocês. Não é linda a festa?

A procissão chegou até eles e uma chuva de pétalas caiu sobre Adão e Eva e sobre os dançarinos. O que mais impressionou Yvain foi que o homem escolhido para representar Adão já era maduro, ao contrário do que ela esperava. A jovem Eva carregava um buque de flores brancas e uma cesta de laranjas, frutas que o povo daquela região acreditava ser o símbolo da tentação. Sorria para Adão e oferecia a ele uma laranja. Ele recusava enfaticamente e sorria para a multidão, que caía na risada.

Quando Yvain olhou outra vez na direção do balcão do palácio, o prefei­to e seus acompanhantes já haviam entrado. À medida que a procissão se afastava, a multidão começava a se desfazer em pequenos grupos. Yvain acompanhou os Grayson e seus amigos, e o resto do dia foi como um sonho para ela.

Participou dos risos, das danças, comeu melões e churros e deixou que a alegria tomasse conta dela, como numa tentativa de esquecimento. As ho­ras voaram e, quando as luzes coloridas começaram a brilhar, no porto, os Grayson anunciaram que era hora de voltarem ao iate.

— Lá está o Blue Dolphin! — A caminho da lancha, Kent segurou o braço de Yvain e apontou para o barco. As luzes coloridas já haviam sido acesas, e o iate balançava na água escura como uma figura de sonho. Por um instante Yvain deixou-se invadir pelo encantamento da cena, mas em seguida percebeu que não teria forças para suportar mais música, mais vinho, mais alegrias falsas.

— Desculpe, Kent! — Puxou o braço com força e sentiu que o bracelete se abria. Correu sem olhar para trás, até unir-se à multidão que assistia ao espetáculo de fogos de artifício. Tinha ouvido Kent chamá-la, mas não se virou nem por um instante. Não parou nem mesmo ao bater com força contra a mureta do portei; continuou correndo, apesar da dor, sentindo que o bracelete já não estava mais no seu braço. Já nãoisuvia mais a voz de Kent e desejou que ele a perdoasse um dia por aquele comportamento irra­cional. Queria estar só! A ideia de continuar sorrindo e demonstrando des­preocupação por mais três ou quatro horas parecia insuportável. Queria sentir a brisa do mar batendo em seu rasto, mas não a bordo do iate. Queria um pouco de alívio para o coração que havia doído durante todo o dia, sob a máscara de despreocupação.

Por fim parou, quase sem fôlego, e percebeu que estava sozinha na praia. As luzes da cidade pareciam uma corrente de diamantes, à distância. Logo começariam os fogos e ela poderia vê-los dali.

As estrelas brilhantes lançavam reflexos prateados sobre o mar, e a bele­za da noite tocou-a profundamente. Caminhou até a beira da água, onde as ondas despejavam na areia pequeninas conchas e algas marinhas.

Sentiu um impulso súbito de sentir a carícia fresca da água na pele; tirou os sapatos e as meias e entrou na água prateada. Mais calma, pensou na tolice de preferir a solidão ã dança, à música e à alegria.

Estava ali sozinha, na praia, quando poderia estar a bordo de um iate deslumbrante, cortejada por um lindo jovem de olhos azuis. Ele sem dúvi­da ficaria zangado com ela por ter fugido sem uma explicação, e don Juan se aborreceria quando as taças de champanhe se erguessem para desejar felicidades a ele e a Raquel.

Tocou o ferimento do braço e perdeu-se outra vez em pensamentos tris­tes. Sentada de costas para as rochas escarpadas que subiam em direção à estrada, não ouviu o ruído de um carro que se aproximava. À luz dos faróis, o motorista avistou a moça de pés descalços parada à beira da água, triste e solitária.

O silêncio foi rompido por uma voz conhecida.

— Yvãin... é você, nina?

Por um instante ela teve a impressão de que era o mar que a chamava, como num sonho. Virou-se devagar e avistou uma figura alta parada atrás dela, Ninguém mais no mundo tinha o poder de acelerar seu coração daquela maneira; ninguém mais era capaz de dominá-la sem palavras, sen­tindo seus desejos ocultos antes mesmo que ela os percebesse.

— Don Juan!

Ouviu o ruído da bengala que batia nas rochas e percebeu que ele vinha descendo na direção dela. Pensou que ele poderia perder o equilíbrio e cair nas pedras, e sem pensar no que fazia correu para ele. Ele a esperava de braços estendidos e envolveu sua cintura, ansioso; Yvain pousou as mãos de leve sobre os ombros do seu protetor.

— É você!

— Sim. — Ela riu. — Quem mais podia ser, senão a doidínha da sua protegida?

— Foi o que pensei. Quem mais pensaria em andar sozinha pela praia, sem se importar com festas e com a ansiedade do seu protetor? -

— Não pensei que fosse deixá-lo ansioso. — Seus olhos se encontra­ram, brilhantes. — Pensei que tivesse coisas mais importantes em que pen­sar, especialmente esta noite. Por que se preocuparia comigo?

— É mesmo, por quê? — o marquês brincou. Acariciou o cabelo de Yvain, que tremeu de emoção àquele contato. — Está com frio, nina? Deve estar, assim descalça. Onde estão seus sapatos e suas meias?

— Devem estar por aí. —- Apontou para um lugar vago da praia. — Raquel não vai ficar zangada por tê-la deixado sozinha na festa?

— Por que Raquel se importaria? — Com as mãos sob os cabelos doura­dos de Yvain, ele lhe acariciava a nuca.

— O bracelete que ela usava. Eu a vi na festa com o senhor... parecia uma noiva.

— Logo ela será uma noiva.

Um calafrio desceu pela espinha de Yvain. Tentou se afastar dele, mas era impossível.

— Sente ciúmes porque Raquel vai se casar? Gostaria de estar no lugar dela?

— Não...

— Não? Meu ouriço-do-mar... — Um brilho divertido apareceu nos olhos dele. — Raquel vai se casar com um toureiro que a perseguiu com tamanha insistência que ela não foi capaz de resistir. Não lhe disse que mulher alguma resiste ao ouvir de um espanhol a frase "te quiero"? Você resiste?

— E quem me quer? — Yvain estava a ponto de desmaiar a qualquer instante. Então era com o matador que Raquel ia se casar! Não era com o marquês! Ele estava ali ao lado dela... provocando-a como se soubesse dos sentimentos que ela alimentava em relação a ele. Sentiu raiva do tom brin­calhão com que era tratada.

— Fugi de Kent na frente dos amigos dele. E Rique descobriu que pas­samos a noite juntos... melhor dizendo, descobriu que passei a noite com um homem.

— Não contou a ele que esse homem era eu?

—- Claro que não! Toda a ilha esperaria que o senor... se casasse comigo.

— E você não gostaria disso... de se casar comigo?

— Don Juan... —- De repente não conseguiu suportar mais o tormento. — Quero ir embora... por favor, deixe-me ir!

— E para onde vai?

— Para Madri. Ou para a América, em companhia da sra. Grayson.

— É uma mulher muito simpática, mas depois de algum tempo você estaria fazendo para ela os mesmos serviços que fazia para a seriora San-dell, e cada vez que o filho olhasse para você ela sentiria ciúme. Logo exigiria que a pequena dama de companhia prendesse os cabelos num biro-te e usasse óculos. Não! — Envolveu-a num abraço de ferro. — Não enquanto eu viver! Fique comigo, Yvain. Sou obrigado a fazer de você uma mulher respeitada, lembra-se?

— Mas ninguém sabe... que era o senhor que estava comigo na casa da mulher.

— Se não concordar em se casar comigo, farei com que toda a ilha saiba.

— Mas... por quê? — Mal conseguia falar, tamanha era a emoção.

— Como você é inocente! — Riu baixo. — Porque eu a quero. Porque para mim você é tudo no mundo. Amo seu rosto inocente, a maneira como às vezes se aproxima de mim e às vezes foge. No cometo disse a mim mesmo que não tinha o direito de querê-la, porque sou mais velho, porque tenho esta perna manca... mas se não ficar comigo vai cair nas mãos de outra mulher dominadora. Não é muito melhor ser dominada por um homem que a ama até a loucura?

— Eu? — sussurrou, sentindo que a terra tremia sob seus pés.

— Você, Yvain. Posso até aceitar que não me ame, no princípio, mas pretendo ensiná-la a me amar. — Abraçou-a com mais força e passou à primeira iição: um beijo apaixonado. — Te quiero, querida. Quero que seja minha companheira. Para sempre. Para um espanhol estas palavras são absolutas.

— Mas um marquês não se casa com uma dama de companhia.

— Pois este faz exatamente o que quer. — O velho tom de arrogância voltou à voz dele. — Você nasceu para viver em um castelo, Rapunzel... o castelo e eu esperamos durante muito tempo que você surgisse para nos iluminar com sua juventude e alegria. Yvain, vai condenar o Leão a conti­nuar solitário?

— Não! — Abraçou com força e descansou o rosto de encontro ao peito dele. — Se me quer, então sou sua. Não precisa me ensinar a amar... Juan. Se às vezes fugi, foi porque queria muito me aproximar.

— Pensou que Raquel e eu íamos nos casar? — Acariciou os cabelos dela.

— Vocês pareciam ter muito em comum.

— Muito, mas não amor, nina. — Ergueu o rosto dela e olhou-a daque­la maneira que sempre a deixava tonta. — Vamos voltar para o nosso castelo, nina mia?

Ela fez um sinal afirmativo, sem falar, pois a emoção calava todas as palavras. Pensou em Kent, que partiria no dia seguinte... sozinho. Ela con­tinuaria ali onde seu coração ansiava por estar, para sempre. Finalmente chegava ao lar, e o lar era o castelo do amado don Juan.

 

                                                                                Violet Winspear  

 

                      

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