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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DILÚVIO DE NORDERNEY / Karen Blixen
O DILÚVIO DE NORDERNEY / Karen Blixen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "VT"

 

 

 

Sete Contos Góticos / Isak Dinesen

 

 

Foi moda, no primeiro quartel do século passado, ir-se de veraneio às praias, mesmo naqueles países do Norte da Europa cujos povos sempre viram no mar a figura do demónio, o inimigo antiquíssimo, cruel e voraz da humanidade. O espírito romântico da época, ao comprazer-se em ruínas, fantasmas e lunáticos, concebia as tempestades nocturnas sobre um descampado, ou o intenso conflito das paixões, como um prazer mais requintado para o connaisseur do que a tranquilidade dos salões e a harmonia dos sistemas filosóficos, e lograra reconciliar os espíritos mais cul-tos com as solidões eternas das paisagens costeiras e de alto mar. Homens e senhoras da sociedade abandonavam a sombra dos seus parques e iam passear em praias ermas ou contemplar as indomáveis ondas. Os destroços de um naufrágio que a maré-baixa descobria, esqueletos hirtos e negros, salgados, tornavam-se o apetecido local dos piqueniques, onde artistas louros erguiam os cavaletes.

 

A costa ocidental do Holstein viu assim nascer e prosperar os banhos de Norderney por um período de vinte anos. Percorrendo estradas arenosas entre dunas, vinham carruagens elegantes e os coches depositar, às portas de cottages ou de pequenos hotéis muito limpos, as malas, os baús e as senhoras de pequeninos pés, em chenilles e véus que esvoaçavam à aragem fresca. O príncipe de Noer e o duque de Augustenbourg, acom panhado este pela linda esposa e pela irmã, uma selecta senhora, honravam a estância com a sua presença. A nobreza rural do Schleswig-Holstein, agitada com as últimas conturbações políticas, e os representantes das velhas dinastias comerciais de Hamburgo e Lübeck, homens que valiam o seu peso em ouro, peregrinavam juntos até ao coração da Natureza. Os camponeses e os pescadores de Norderney, esses, aprenderam a ver no monstro cinzento, pérfido e terrível que se estendia a oeste um amável maìtre de plaisir.

 

Em Norderney se construiu um Passeio Público, um clube e um pavilhão, o rendez-vous, nas longas noites estivais, de muitas e belas cores e de sons. As mães de meninas casadoiras, sobreviventes de fanadas saisons em cortes e burgos, vigiavam agora os namoros que floresciam, promissores, em praias soalheiras. Os jovens dandies manobravam as montadas nos largos areais perante uns olhos claros. Senhores de idade embrenhavam-se em discussões de genealogia e política no clube, um copo de excelente rum ao alcance da mão; e as suas mulherzinhas dirigiam-se, o xaile de caxemira no braço, a um vale perdido nas dunas, ainda crestadas do longo dia de sol, para se unirem à Natureza, aos tufos de ervas e aos amores-perfeitos batidos pelo vento, e empinarem o nariz olhando a lua cheia, tão pálida no céu de Verão. Até o beijo do ar tinha ali um vigor zombeteiro, que estimulava e rejuvenescia o coração. Heinrich Heine, que também visitou a estância, declarava que o persistente cheiro a peixe entranhado nas filhas dos pescadores de Norderney era o suficiente para lhes proteger a virtude. Mas outras narinas, outros corações havia que o cheiro podre dessa maresia embriagava como o cheiro da pólvora sobre um campo de batalha. Surgiu até em Norderney um pequeno casino, onde se procurava seduzir outros perigosos poderes da existência. Davam-se por vezes grandes bailes, e nas noites calmosas de Verão uma orquestra tocava no mirante.

 

- Nem faz ideia - dizia a princesa de Augustenbourg a Herr Gottingen - de como este lugar nos faz sentir lavados. A brisa do mar penetra-me o chapéu e a roupa, penetra-me a própria carne e os ossos até me tocar o coração, e a alma fica lavada, seca do sol, salgada.

 

- Do mais puro sal ático, já reparei - cumprimentou Herr Gottingen e, olhando a princesa, acrescentou mentalmente: «É bem verdade. Parece de facto um bacalhau em salmoura.»

 

Nos finais desse Verão de 1835 sucedeu uma terrível catástrofe nos banhos de Norderney. Após três dias de tempestade vinda do su-doeste, o vento virou subitamente a norte, coisa que só acontece uma vez em cada cem anos. A tremenda massa de água trazida pela tempestade mudou de curso e a pressão abateu-se a contravento sobre o land ocidental. O mar rompeu os diques em dois lugares e precipitou-se pelas brechas. Vacas e ovelhas afogaram-se às centenas. Casas e celeiros ruíram, como castelos de cartas sob a força das águas que avançavam, e muitas vidas humanas se perderam em lugares tão afastados como Wilsum e Wredon.

 

Tudo começou numa tarde de extraordinária e agradabilíssima calma, embora o ar abafasse, opaco, numa luminosidade estranha e sulfurosa. Não se divisava um li-mite entre céu e mar. O po-ente fora uma confusão de luz, e o próprio Sol se apresentara na cor vermelha e baça do escudete do Passeio. As ondas pareciam feitas de uma singular substância, como se medusas se espraiassem na areia. Fora uma tarde altamente inspiradora: muita coisa aconteceu em Norderney. Nessa noite, os que puderam conciliar o sono, alheios ao bater do próprio coração, acordaram no terror de um rugido que velozmente chegava. Como poderia aquele mar cantar nessa voz nova?

 

De manhã o mundo encontrava-se mudado, mas desconhecia-se que mudança se operara. Com o ruído ninguém conseguia falar, pensar sequer. O que o mar fazia então ninguém o saberia dizer. As roupas seriam arrancadas do corpo de quem ousasse avistar a praia, e a espuma salgada turbilhonava a espantosa altura. Vagas enormes e altaneiras se lhe seguiam, cada uma mais poderosa do que a outra. O vento era frio e cortante.

 

Rumores tinham chegado aos banhos que um barco dera à costa quatro milhas a nor-te, mas ninguém se aventurou a sair para o ver. O velho general Von Brackel, que assistira à ocupação da Prússia Oriental pelos exércitos de Napoleão em 1806, e o velho professor Schmiegelow, médico dos príncipes de Coburgo, que estivera em Nápoles no tempo da cólera, foram juntos até uma pequena elevação de onde observaram a cena, ambos em silêncio. Só na quinta-feira chegaria o dilúvio. Mas o temporal passara.

 

Por esta altura, aliás, muitos haviam abandonado Norderney. A temporada estava no fim e os visitantes mais ilustres haviam partido antes do temporal. Agora, a maioria dos que ficaram apressava-se a partir também. As jovens comprimiam o rosto contra as janelas dos coches, na ânsia de entrever um último aspecto da paisagem em fúria. Parecia-lhes que deixavam para trás o lugar, a hora mais real de suas vidas. Mas quando o imponente coche do barão Goldstein, de Hamburgo, foi atirado para o dique pela violência do vento, todos compreenderam que era chegada a hora de agir com rapidez. E todos partiram sem demora.

 

Foi durante essas horas, a última do temporal e a primeira da noite seguinte, que o mar rompeu os diques. Feitos para resistir a uma grande pressão vinda do lado do mar, os diques não aguentaram quando minados de leste. Cederam numa extensão de meia milha, e o mar entrou por essa abertura.

 

Os camponeses foram acordados pelos queixumes dos animais. Ao levantarem-se da cama, às escuras, os pés mergulharam em mais de um palmo de água fria e lamacenta. Água salgada. A mesma que, para ocidente, e com uma profundidade de 100 braças, banhava as brancas faldas das colinas de Dover. O Mar do Norte viera visitá-los. E subia rapidamente. No espaço de uma hora tudo o que era móvel nas casas baixas flutuava, chocando contra as paredes. À luz da aurora os camponeses olhavam, dos telhados, a terra que em volta se transformara. Árvores e arbustos pareciam crescer num terreno movente e pardo, e uma espuma grossa e amarela cobria as searas que amadureciam, essas cuja colheita eles haviam discutido nos dias que antecederam o temporal.

 

Cheias assim já as houvera. Alguns velhos repetiam ainda aos jovens as peripécias de um dia em que foram arrancados ao leito e lançados para as jangadas pelas mães, muito pálidas, e viram, das casas que ruíam, debater-se o gado e submergir nas águas negras; um dia em que famílias inteiras ficaram ao desamparo, ou se arruinaram e perderam. O mar fazia destas coisas, de tempos a tempos. Esta cheia, porém, ficou impressa na memória dos habitantes da costa. Chegado em pleno Verão, o dilúvio fora uma ironia amarga e sinistra. Nos anais da região, onde tomou lugar e nome próprios, é chamado a Cheia do Cardeal.

 

Isto porque, no seu infortúnio, as gentes aterrorizadas tiveram o apoio de uma figura já então quase mítica, e sentiram a presença de um anjo da guarda a seu lado. Volvidos muitos anos parecia, no espírito dos camponeses, que a presença desse homem, em dias de tanto desespero, iluminara de uma grande e branca luz as trevas das águas.

 

O cardeal Hamilcar von Sehestedt tinha nesse Verão ocupado uma casinha de pescadores a alguma distância dos banhos, na intenção de coligir os seus papéis de muitos anos numa obra sobre o Espírito Santo. Tal como Joaquim de Fiore, que nasceu em 1202, o cardeal era de opinião que, sendo o Antigo Testamento o livro do Pai, e o Novo Testamento o do Filho, o Testamento da Terceira Pessoa da Trindade não tinha sido escrito ainda. Escrevê-lo fora a tarefa a que devotara toda a sua vida. Crescera no land ocidental e conservara, por uma vida de viagens e trabalhos espirituais, o amor pelas paisagens costeiras e pelo mar. Nas horas de Lazer costumava, seguindo o exemplo de São Pedro, sair para o mar largo com os pescadores, observando-os na sua faina. Tinha o cardeal consigo no cottage apenas um tipo de criado ou secretário, um homem de nome Kasparson. Este homem, que fora actor e aventureiro, e tivera o seu quê de brilhante nesses campos, falava muitas línguas e dedicara-se a toda a sorte de estudos. Era afeiçoado ao cardeal, mas seria um curioso Sancho Pança deste nobre cavaleiro da Igreja.

 

O nome de Hamilcar von Sehestedt era nesse tempo famoso por toda a Europa. Fora feito cardeal três anos antes, contando apenas 70 anos de idade. Era uma estranha flor no sólido tronco dos Sehestedt. Uma velha e nobre estirpe da região consagrara-se durante muitos séculos somente à guerra e às suas propriedades, para enfim o produzir. Digno de nota era neles tão-só o apego, testado por muitas provas, à velha fé católica da província. Não possuíam a mobilidade de espírito que os levasse a modificar o que uma vez lograssem aprender. O cardeal tinha nove irmãos, e em nenhum se revelaram os indícios de uma vida espiritual. Fora como se um tesouro in-telectual, longamente junto pela tribo e perfeitamente intacto, se tivesse revelado unicamente neste seu filho. Talvez uma mulher, vinda do exterior, tenha deixado uma gota de pensamento neste sangue antes de se tornar uma Sehestedt, ou uma ideia de um livro tenha impressionado um rapazinho antes que alguém lhe pudesse ensinar que livros e ideias de nada servem; e tudo isto se acumulara.

 

Os dons extraordinários do jovem Hamilcar foram notados, não pela família, mas pelo seu preceptor, que havia sido mestre de Sua Alteza o príncipe herdeiro da Dinamarca. Foi ele quem conseguiu levar o rapaz até Paris e Roma. Aí, esta nova luz do génio flamejou subitamente num claro brilho, impossível de ignorar-se. Corria a lenda que o Papa, depois de receber o novo padre, vira em sonhos que o jovem tinha sido escolhido pela Providência para trazer os grandes países protestantes de novo ao seio da Santa Sé. A Igreja, porém, submeteu o jovem a severas provas, suspeitosa de muitas das suas ideias e faculdades, dos seus dons de visionário, e do traço mais surpreendente do seu carácter: uma imensa piedade que se estendia não só aos pecadores e aos infelizes, como parecia incluir até, o que de mais alto e sagrado havia no mundo. A severidade da Igreja não o magoou: era de seu natural obediente. Ao grande poder imaginativo aliava um profundo amor à ordem e à lei. Talvez estes dois aspectos da sua natureza fossem afinal a expressão de uma e mesma coisa: a ele tudo parecia possível, e igualmente capaz de integrar-se na bela e harmoniosa ordem das coisas.

 

O próprio Papa teria dito dele mais tarde: «Se, após a destruição deste mun-do conhecido, tivéssemos de encarregar um só homem da construção de um mundo novo, o único a quem confiaríamos tal tarefa seria o nosso jo-vem Hamilcar.» Dito isto, porém, o Papa benzeu-se rapidamente duas ou três vezes.

 

O jovem cardeal, depois de trabalhado pela Igreja, fez-se um homem do mundo, na velha acepção da palavra, se bem que em maiores e novas proporções. Movia-se com a mesma serenidade entre reis como entre párias. Fora en-viado aos mosteiros missionários do México, e a sua influência era grande entre as tribos índias e mestiças. Uma coisa nele impressionava o mundo, onde quer que fosse: acreditava-se que po-dia fazer milagres. Por altura da sua estada em Norderney, os homens rudes e grosseiros deram em pensar dele estranhas coisas. Depois do dilúvio muitos houve que disseram tê-lo visto an-dar por sobre as ondas.

 

Talvez se tivesse sentido em desvantagem para o fa-zer, pois quase morrera nas primeiras horas da cheia. Os pescadores do lugar que, ao verem aproximar-se a inundação, correram a pedir o seu auxílio, foram encontrar o cottage quase em ruínas. O desabamento matara Kasparson, o criado. O próprio cardeal encontrava-se muito ferido e, durante todo o trabalho de salvamento, usara uma alta ligadura manchada de sangue em volta da cabeça.

 

Apesar disto o velho trabalhou todo o dia com uma coragem indómita, em companhia dos sinistrados. O di-nheiro que trazia consigo deu-o a eles. Foi a primeira contribuição para os fun-dos que iriam ser depois an-gariados em favor das vítimas por toda a Europa. Muito maior porém foi o efeito da sua presença entre eles. Demonstrou grandes conhecimentos de pilotagem. As gentes não acreditavam que o barco que o transportava se afundasse. Sob o seu comando remavam sem hesitar entre os edifícios em ruínas, e as mulheres saltavam dos telhados das casas para os barcos com os filhos ao colo. De tempos a tempos falava-lhes o cardeal numa voz clara e forte, citando o Livro de Job. Uma ou duas vezes quando o barco, atingido por pesadas madeiras à deriva, estivera quase a voltar-se, ele levantou-se, estendeu a mão e, como se lhe transmitisse o mágico poder do equilíbrio, o barco estabilizara-se. Perto de uma casa, numa quinta, um cão preso no telhado do canil que o mar varria, puxava pela corrente e uivava, parecendo louco de medo. Quando um dos homens tentou pegar-lhe, o cão mordeu-o. O velho cardeal, virando um pouco o barco, falou ao cão e libertou-o da corrente. O cão saltou para o barco. Ganindo, encolheu-se contra as pernas do velho e nunca mais se separou dele.

 

Muitas famílias de camponeses foram salvas antes que alguém se lembrasse da estância de veraneio. Esquecimento singular, pois essa vida de luxo e de alegria desempenhava um importante papel na imaginação popular. Mas na hora do perigo os velhos laços de sangue e de vida foram mais fortes que o novo fascínio. Nos banhos haveria botes para as viagens de recreio, mas poucos que os soubessem manobrar. Só pelo meio-dia saíram os barcos de maior calado, avançando pela braça de água que cobria o Passeio.

 

O lugar onde os barcos descarregavam, no seu regresso a terra firme, era um moinho de vento que, por si-tuar-se num suave declive e num bastião semicircular de grandes pedras, lhes permitia porem-se de capa. Do outro lado atingia-se, com alguma dificuldade porém, a estrada. A pouca distância dali aguardavam os cavalos e as carroças. O moinho era um marco visível na paisagem, com as suas altas velas erguidas, austeras e hirtas, grande cruz negra delapidada contra a fulva cor do céu. Muitos se foram juntando ali, à espera dos barcos. Quando estes chegaram da sua primeira viagem aos banhos não foram recebidos com lágrimas de boas-vindas e reunião, pois esses que os barcos traziam, luxuosamente vestidos mesmo se em pânico, e com pesados escrínios no colo, eram estranhos. O último barco deu a notícia de estarem ainda em Norderney quatro ou cinco pessoas para quem não houvera lugar no barco.

 

Os remadores cansados entreolhavam-se. Conheciam a maré e o alto mar, e pensaram: «Nós é que não vamos». O cardeal Hamilcar estava, com um grupo de mu-lheres e crianças, de costas para os homens mas, como se pudesse ler-lhes nos rostos e nos corações que endureciam, ficou silencioso. Voltou-se e olhou o grupo de recém-chegados. Até ele parecia hesitar. Sob as li-gaduras brancas os olhos pousaram neles com uma expressão singular, misteriosa. O cardeal não comera em todo o dia; agora pedia que lhe dessem de beber, e trouxeram-lhe um jarro da forte bebida da região. Voltando-se mais uma vez para a água, proferiu em voz baixa estas palavras: Eh bien. Allons, allons. As palavras eram estranhas para os camponeses, pois eram termos usados pelos cocheiros da aristocracia, treinados no estrangeiro, ao falar com os seus tiros de quatro cavalos. Ao dirigir-se para o barco, e enquanto a gente dos banhos dispersava à sua frente, algumas das senhoras subitamente começaram a aplaudir com frenesim. Não o fizeram por mal. Conhecendo o heroísmo apenas do palco, ofereciam-lhe o aplauso do palco. Mas o velho que elas assim aplaudiam parou, por momentos, escutando. Curvou ligeiramente a cabeça, com uma finíssima ironia, à maneira de um herói do palco. Os seus membros estavam tão rígidos que teve de ser apoiado e içado para o barco.

 

Só no fim da tarde de quinta-feira o barco empreendia de novo a sua viagem de regresso. Uma treva de morte havia-se instalado por toda a paisagem. Até onde o olhar alcançava, o que fora uma extensão ondulante de terra era agora uma imensa planície cinzenta, assustadoramente viva. Nada parecia firme. Para os corações apertados dos homens que remavam por sobre searas e prados, esta mobilidade do que antes fora o seu alicerce e apoio era insuportável, e eles desviavam os olhos dela. As nuvens baixas debruçavam-se para as águas. O pequeno barco, movendo-se pesadamente, parecia avançar sobre uma rota estreita, horizontal, apertado entre o peso maciço em baixo e o que parecia ser um peso maciço sobre ele. As quatro pessoas que haviam sido salvas das ruínas de Norderney sentavam-se, pálidas como cadáveres, à popa.

 

A primeira dessas pessoas era Miss Nat-og-Dag, uma velha solteirona muito rica, a última geração de uma antiga família que tem como brasão um escudo partido de branco e preto e cujo nome significa «Noite e Dia». Rondava os sessenta, e o seu espírito estava con-fuso havia alguns anos, pois ela, senhora de severíssima virtude, acreditava ter sido uma das grandes pecadoras do seu tempo. Tinha consigo uma rapariga de 16 anos, a condessa Calypso von Platen Hallermund, sobrinha do poeta e erudito do mesmo no-me. Estas duas senhoras, embora se comportassem perante o perigo com grande autodomínio, davam contudo uma impressão de arrebatamento como só a decadente aristocracia em extinção pode, numa sociedade e num tempo de paz, dar-se ao luxo de manter. Ao grupo dos salvadores parecia que tinham levado para o barco dois tigres fêmeas, uma jovem, a outra velha, a cria completamente selvagem, a velha mais perigosa ainda por parecer domesticada. Nenhuma delas sentia o menor medo. Enquanto somos jovens a ideia da morte e do fracasso é-nos intolerável; não suportamos sequer a possibilidade de cairmos no ri-dículo. Mas temos ao contrário uma fé indómita na nossa boa estrela, e na impossibilidade de que alguma coisa se aventure a contrariar-nos. Quando envelhecemos, principiamos lentamente a acreditar que tudo há-de por fim voltar-se contra nós, e que o fracasso faz parte da ordem das coisas; mas nessa altura já não nos importamos muito com o que venha a acontecer-nos. Assim se obtém o equilíbrio. Miss Malin Nat-og-Dag, se bem que perfeitamente indiferente ao que pudesse acontecer-lhe, aliava, por força da sua perturbação mental, as vantagens que lhe conferia a sua idade ao privilégio da juventude, esse optimismo simples e arrogante que inabalavelmente crê que nada pode correr mal. Talvez ela nem acreditasse que podia morrer. A rapariga de 16 anos, abraçada a ela, as negras tranças soltas e fustigadas pelo vento, olhava para tudo o que a rodeava num êxtase: os rostos dos companheiros, os movimentos do barco, a cor terrível, de um castanho baço, da água a seus pés, e imaginava-se uma grande divindade marinha.

 

A terceira pessoa entre os que foram salvos era um jovem dinamarquês, Jonathan Maersk, que fora mandado a Norderney pelo médico a restabelecer-se de um severo ataque de melancolia. A quarta pessoa era a criada de Miss Malin, que jazia no fundo do barco, tão aterrorizada que não ousava erguer o rosto dos joelhos da sua senhora.

 

Estas quatro pessoas, tão tardiamente roubadas às fauces da morte, não tinham ainda escapado ao seu braço. Quando a embarcação, na sua viagem para terra, passou a pouca distância das casas esparsas de uma quinta, das quais só os telhados e a parte superior das paredes surgiam acima da linha da água, os que nela seguiam avistaram seres humanos que lhes faziam sinais de um sótão. Os camponeses que remavam surpreenderam-se, pois tinham a certeza de que uma grande barcaça havia sido enviada a esse mesmo lugar pela manhã. Guiados pelo poderoso olhar da jovem Calypso, que avistara crianças entre os refugiados, mudaram de rumo e com dificuldade acercaram-se da casa. Ao aproximarem-se, um pequeno celeiro de que apenas o telhado era visível, cedeu subitamente, desmoronou-se e desapareceu sem ruído perante os seus olhos. Ao ver isto, Jonathan Maersk ergueu-se no barco. Por momentos procurou seguir os escombros dispersos com o olhar. Depois voltou a sentar-se, muito pálido. O barco roçava na parede da casa e por fim encontrou o croque numa viga mais saliente, o que lhes permitiu comunicarem com as pessoas refugiadas no palheiro. Ali encontraram duas mulheres, uma velha e a outra jovem, um rapaz de 16 anos e duas crianças pequenas, e ali souberam que a barcaça os visitara três horas antes. Mas com ela apenas lucraram o salvar a vaca e o bezerro e uma pequena porção dos seus escassos bens, tendo eles ficado heroicamente para trás, rodeados pelas águas que subiam. Fora oferecido à velha um lugar na barcaça com o gado, mas ela recusara-se a abandonar a filha e os netos.

 

O barco não podia aguentar o peso de mais cinco pessoas, e havia que decidir rapidamente quem de entre os passageiros trocaria de lu-gar com a família da quinta. Os que ficassem no palheiro teriam de ali permanecer até que o barco pudesse voltar. Como já escurecia, e não havia hipóteses de trazer ali um barco antes do amanhecer, ficar significaria uma espera de seis ou sete horas. A questão era saber se a casa aguentaria por todo esse tempo.

 

O cardeal, erguendo-se, a capa negra adejando, disse que ficaria no palheiro. Ao ouvirem estas palavras os homens do barco mergulharam no mais negro desespero. Tinham medo de regressar sem ele. Os remadores largaram os remos e agarraram-no, implorando que ficasse. Mas ele, não lhes dando ou-vidos, explicou que estaria sempre nas mãos de Deus, ali ou em qualquer lugar, mesmo se o dedo de Deus era, um outro, e que talvez fosse por isto que ele tinha sido enviado nesta última viagem. Os homens viram que nada o poderia demover, e resignaram-se à sua sorte. Miss Malin, então, prontamente se revelou determinada a acompanhá-lo, e a rapariga não deixaria a sua velha amiga. O jovem Jonathan Maersk pareceu acordar de um sonho e disse-lhes que iria com eles. No último momento a criada de Miss Malin exclamou que não deixaria a sua senhora, e os homens já a levantavam do fundo do barco quando a ama lhe assestou um desses olhares que revelam se a pessoa em questão é bom parceiro numa mesa de jogo.

 

- Minha querida - disse ela - não és precisa aqui. Além disso, estás provavelmente de esperanças, e portanto tens de pensar no futuro, minha filha. Boa noite, Mariechen.

 

Não foi fácil para as mulheres passarem do barco para o palheiro. Miss Malin, porém, era magra e forte, e os homens içaram-na e colocaram-na sobre a soleira, tal como se colocassem um espantalho num campo. A rapariga, pequena e leve, seguiu-a com a agilidade de uma gata. O cão preto, ao ver que o cardeal abandonava o barco, lançou fortes ganidos e subitamente saltou da amurada para o palheiro, e a rapariga puxou-o para dentro. Era mais do que tempo de a família de camponeses entrar no barco, mas não o quiseram fazer sem antes beijar, em altos choros, as mãos dos seus salvadores e os cumularem de bênçãos. A velha insistiu em entregar-lhes uma pequena lanterna de cavalariça e um par de velas de sebo, um jarro de água e um barrilete de gin, bem como o pão escuro e grumoso como o fazem os camponeses do land.

 

Os homens do barco empunharam os remos e em breve uma faixa de água castanha separava da casa o barco.

 

Da porta do palheiro os desamparados observaram o barco que se afastava muito lentamente, pois ia de sobremaneira carregado, na ondulante planura. Os ramos dos altos choupos junto à casa flutuavam à superfície das águas e eram violentamente arrastados com elas. O céu negro, que todo o dia pesara sobre o mundo como chumbo, coloriu-se subitamente no longínquo ocaso, como se o peso ali se aliviasse um pouco, de um vermelho flamejante que se reflectiu no mar. Todos os rostos dos que iam no barco se fixavam no palheiro, e quando quase o perdiam de vista levantaram os braços num gesto de adeus. A figura do cardeal, na porta, er-gueu solenemente os braços numa bênção. Miss Malin acenou com o seu lencinho. Em breve o barco desaparecia, unindo-se ao céu e ao mar.

 

Como se fossem marionetas puxadas pelo mesmo fio, os quatro voltaram-se uns para os outros.

 

«Será ele capaz de dançar bem comigo?», pergunta a si própria a jovem quando, no baile, o Chapeau lhe é apresentado. Talvez acrescente: «Será para mim o Namorado, o Épouseur, o Prometido que me espera?»

 

«Serão estas pessoas capazes de morrer bem comigo?», perguntaram-se os náufragos do palheiro, perscrutando os rostos uns dos ou-tros. Miss Malin, sempre disposta a ver o lado bom de tudo, achou-se satisfeita com os seus companheiros.

 

Foi o cardeal quem expressou estes pensamentos. O velho, de pé e em profundo silêncio, parecia necessitar de uns instantes para habituar-se à estabilidade de uma casa depois de um dia passado em barcos sobre o agitado mar, e habituar-se também a uma atmosfera de relativa paz depois de longas horas de incessante perigo - pois não era provável que alguma coisa acontecesse, de momento - e habituar-se também, depois do seu trabalho junto dos camponeses e pescadores aflitos, à companhia dos seus iguais, lentamente os seus modos transformaram-no de comandante em conviva. Sorriu aos companheiros.

 

- Meus irmãos - disse - congratulo-me por estar entre gente corajosa. É com prazer que aguardo as horas que Deus permitir que aqui passe convosco. A sua bravura, Madame - disse ele a Miss Malin - não me surpreende, pois conheço a história da sua família. Foi um Nat-og-Dag que em Warberg, quando a montada do rei tombou ferida, saltou do seu cavalo e o entregou ao rei dizendo: «Ao Rei o meu cavalo, ao inimigo a minha vida, a Deus a minha alma.» Foi um Svinhoved 1 se não me engano - o seu trisavô - quem, na batalha de Koege, preferiu, a expor toda a frota dinamarquesa ao perigo de um incêndio pela proximidade do seu navio que ardia, continuar o combate enquanto lhe restou um sopro de vida, até que o fogo atingiu o paiol da pólvora e a explosão o matou com toda a marinhagem. Aqui - disse ele, abarcando com os olhos o palheiro - posso bem dizê-lo: Bem-aventurados os puros de sangue, porque verão'''

 

Fez uma pausa, reflectindo no seu tema.

 

- A morte - concluiu. - Em verdade vos digo que verão a face da morte. Para este nosso momento aqui foi que os nossos avós foram educados, através dos séculos, no manejo das armas e na lealdade ao seu rei; e as nossas avós na virtude.

 

Não poderia ter dito ••••••••••••••••••

 

1 O nome significa «cabeça de porco». (N' da A')

 

nada que melhor fortalecesse e inspirasse os corações das mulheres, que ambas eram acérrimas defensoras do orgulho da raça. Mas o jovem Jonathan Maersk, o único burguês entre eles, fez um gesto como se protestasse. Todavia nada disse.

 

Fecharam a porta do palheiro, mas, como estivesse solta e ressoasse continuamente no batente, o cardeal pediu às mulheres o favor de arranjarem alguma coisa com que a prendessem. A rapariga levou a mão ao cabelo, procurando a fita que o tinha atado, mas havia-se perdido no vento. Miss Malin então levantou graciosamente a saia e tirou uma larga jarreteira com rosas em botão bordadas.

 

- O zénite da carreira de uma liga, Eminência - disse ela - é geralmente o desprender-se mais do que o prender. Por esse motivo a irmã gémea desta fita, que a vossa venerável mão agora santifica, jaz na cripta do Mausoléu Real de Estugarda.

 

- As suas palavras, Madame - disse o cardeal - são ditas frivolamente. Peço-lhe que não fale nem pense assim. Nada santifica, nada, de facto, é santificado excepto pela intervenção do Senhor, pois só Ele é divino. As suas pa-lavras são as de alguém que pronunciasse metade das notas da escala - digamos o dó, o ré e o mi - como sendo sagradas, e o fá, o sol, o lá e o si como profanas somente, quando, Madame, nenhuma das notas é em si mesma sagrada e só a música, que delas pode ser feita, é divina. Se a sua liga, Ma-dame, for santificada por esta mão velha e débil, tam-bém esta mão o será por essa fita de seda fina. O leão espera o antílope no riacho, e o antílope é santificado pelo leão como o leão pelo antílope, pois só a intervenção do Senhor é divina. Não são o bispo, ou o cavalo, ou a poderosa torre sa-grados em si mesmos, e só o xadrez é um nobre jogo, e nele o cavalo é santificado pelo bispo, como o bispo pela rainha. Nem seria vantajoso que o bispo ambicionasse as virtudes superiores da rainha, ou a torre as do bispo. Assim nós somos santificados quando a mão do Senhor nos move até onde Ele quer que estejamos. Aqui, neste lugar, talvez Ele esteja prestes a jogar um belo jogo connosco, e nesse jogo eu serei santificado por si, como a senhora por qualquer um dos que aqui estão.

 

Quando a porta do palheiro se fechou, o compartimento ficou escuro, e só a pequena lanterna sobre o chão irradiava uma suave luz. O palheiro parecia um lar aos corações dos desamparados. Era como se ali tivessem vivido longo tempo. Os lavradores haviam ceifado há pouco o feno, e em metade do palheiro se guardavam os molhos. Cheirava muito bem o feno, e oferecia um assento limpo e macio. O cardeal, que se achava muito fatigado, depressa se afundou nele, a capa longa espalhada em sua volta no chão. Miss Malin sentara-se em frente dele, do lado oposto da lanterna. A rapariga sentou-se junto dela, as pernas cruzadas, como um pequeno ídolo oriental. O rapaz, quando por fim se foi sentar com eles, instalou-se numa escada que havia pelo chão, e que o elevava um pouco acima dos outros. O cão não se afastava do cardeal. Sentado sobre as patas traseiras, as pontas das orelhas empinadas, de tempos a tempos o animal parecia, num movimento profundo, engolir o medo e a solidão. Nestas posições ficaram eles durante a maior parte da noite. Aliás, o cardeal e Miss Malin mantiveram-se assim, como veremos, até romper a primeira luz da aurora. As sombras de todos, projectadas num círculo de que o centro era a lanterna, subiam até às vigas do tecto. Durante a noite muitas vezes pareceu que estas largas sombras estavam realmente vivas, e que eram elas que falavam e animavam o grupo, por trás das pessoas exaustas.

 

- Madame - disse o cardeal a Miss Malin - ouvi falar do seu salão, onde a senhora a todos faz sentir tranquilos e simultaneamente ansiosos por mostrarem o seu melhor. Como desejamos sentir-nos assim nesta noite, peço-lhe que seja aqui a nossa anfitriã, e que para este palheiro transfira os seus talentos.

 

Miss Malin imediatamente aquiesceu à sugestão e chamou a si essa incumbência. Durante a noite desempenhou o seu papel, prodigalizando aos convidados os luxos raros da solidão, da treva e do perigo, guardando em trunfo a própria Morte, como um leão da temporada, ou um puro tenor italiano, fora do alcance das damas rivais, esperando à porta pelo momento de aparecer e provocar a grande sensação da noite. Alguns conseguem refastelar-se até num trono; Miss Malin, ao contrário, sentava-se no feno como num desses escabelos que fazem parte dos privilégios das duquesas. Conseguiu que Jonathan partisse o pão e o distribuísse, e para os companheiros, que não haviam comido em todo o dia, as côdeas duras e negras tinham a fragrância das searas. Pela noite fora, ela e o cardeal, ambos velhos e enfraquecidos, beberam quase todo o gin do barrilete. Os dois jovens não lhe tocaram.

 

Desde o começo, a incumbência de fazer os companheiros sentirem-se confortáveis se revelou mais árdua do que esperava, pois, apenas tinha falado, o cardeal caiu num desmaio profundo. As mulheres, que não ousavam aliviar as ligaduras da cabeça, molharam-nas com a água do jarro. Ao recobrar os sentidos, o cardeal olhou-as demoradamente, como alucinado, e levou as mãos à cabeça, mas ao recuperar a consciência pediu desculpas brandamente pelo trabalho que lhes dera, acrescentando que tivera um dia fatigante. Parecia, porém, transformado depois que se restabelecera, como se estivesse agora mais fraco do que antes, e, como se entregasse alguma parte da sua liderança e responsabilidade nas mãos de Miss Malin, manteve-se perto dela sempre.

 

Convirá talvez, chegados a este ponto, contar um pouco da história de Malin Nat-og-Dag.

 

Foi dito que estava um pouco louca. Todavia, a quem a conheceu bem, parecia por vezes duvidoso que ela não estivesse louca por sua própria escolha, ou por um capricho seu, pois ela era uma mulher caprichosa. Nem ela estivera sempre louca. Fora, até, uma mulher de forte inteligência, que estudara filosofia e escarnecera das paixões humanas. Se a Miss Malin fosse dado escolher agora voltar à razão, e estivesse capaz de compreender o significado de tal oferta, talvez ela a declinasse por, na realidade, se tirar mais prazer da vida quando se é um pouco louco.

 

Miss Malin era agora uma mulher rica, mas nem sempre o fora. Órfã, crescera em casa de uns parentes ricos. O seu orgulhoso e antigo nome, esse, sempre o tivera, bem como o seu orgulhosíssimo e grande nariz.

 

Fora educada por uma piedosa preceptora da seita dos Hernutos, que muito prezavam a virtude na mu-lher. Nesses tempos o corpo feminino tinha um único centro de gravidade, e a vida era para a mulher mais simples, por esta razão, do que iria ser depois. A mulher podia envenenar a parentela, ou fazer uma tremenda batota às cartas, sem deixar de ser uma honnête femme, conquanto não tolerasse a heresia na esfera do que lhe era específico. As damas do seu tempo podiam fixar elas próprias o preço dos seus corações, das suas opiniões, ou das suas almas, se optassem por um pacto com o diabo; mas o corpo da mulher era o seu capital de renda, e o abaixamento, por ela, do sacrossanto preço oficial era considerado como um acto de competição desleal pela guilda das honnêtes femmes, e como um pecado mortal. Com efeito, quanto mais alto a mulher cotasse o seu preço, individualmente, maior era o seu estatuto de santidade, e seria de todo preferível que dela se dissesse que fizera muitos homens infelizes do que dela se soubesse que os havia feito, a muitos, felizes.

 

Miss Malin, tanto por inclinação como por educação, estraçoava um tanto a observância da doutrina. A sua táctica, além de defensiva era, e audaciosíssima, ofensiva. Caprichosa por natureza, não via razões para a temperança, e subiu o seu preço a um nível extravagantemente alto. Com efeito, e no que diz respeito à alta cotação do próprio corpo, veio a tornar-se vítima de uma certa megalomania. Sigrid, a Altiva, a antiga rainha da Noruega, convocou todos os seus pretendentes entre os pequenos reis do país, e depois lançou fogo à casa, queimando-os a todos, declarando que era assim que ensinava os reizinhos da Noruega que se atreviam a cortejá-la. Malin poderia ter feito o mesmo com uma consciência igualmente tranquila. Sensível às palavras da Bíblia que a preceptora lhe lera - «Aquele que olhar para a mulher com luxúria comete com ela adultério em seu coração» - fez de si a émula feminina do consciencioso jovem do Evangelho. O desejo de um homem por ela tomava-o, como provavelmente fez a rainha Sigrid, por impertinência fatal, um crime tão grave como uma tentativa de violação. Revelou sempre pouco esprit de corps feminino, e parecia não reflectir sequer em quão injusto seria esse princípio para as jovens honestas em geral, se fosse levado a cabo, pois todo o campo de acção das jovens se media entre as duas ideias, e, fundindo-as, pôr-se-ia um tão rápido fim à actividade delas como à de um tocador de concertina por fechar o instrumento e prender uma à outra as duas extremidades. Miss Malin fez uma figura quase patética como todos os que, neste mundo, tomam as palavras das Escrituras au pied de la lettre. Mas de nada lhe importava a figura que fazia.

 

Na sua juventude, porém, esta virgem fanática não fez fraca figura, pois era talentosa e brilhante em extremo. Ainda que não fosse bonita, possuía o supremo dom de o parecer, e em sociedade desempenhava o papel de uma beldade requisitada enquanto mulheres mais belas ficavam sós. As homenagens recebia-as como natural tributo devido a uma Nat-og-Dag, e não era insensível aos galanteios que enalteciam o seu ânimo e coragem, ou os seus raros talentos de instrumentista e dançarina. Escolhia até as amizades, sobretudo entre os homens, e considerava as mulheres um pouco estúpidas. Mas, ao mesmo tempo, estava sempre alerta, como um touro esperando a capa, ou o cruzado a insígnia do crescente, contra um indício de luxúria nos olhares. Para aniquilar o seu possuidor sem dó nem piedade.

 

E contudo Miss Malin não escapou ao destino do ser humano. Também ela se apaixonou. Aos 27 anos, já uma solteirona, decidiu-se por fim a casar. Esta posição fazia-a sentir-se uma fêmea muito alta, rodeada pelos latidos de cãezinhos de colo. Ainda estava disposta a queimar os reizinhos que pudessem atrever-se a cortejá-la, mas a escolha foi ela quem a fez. Assim fizera já a rainha Sigrid, que arrebatou o herói cristão Olav Trygveson, e na saga se conta o trágico resultado do encontro destes dois orgulhosos corações.

 

Malin, ela, escolheu o príncipe Ernest Theodore de Anhalt. Este jovem era o ídolo do seu tempo. Do mais alto nascimento e extremamente rico, visto sua mãe ter sido uma grã-duquesa da Rússia, ele era também formoso como um anjo. Um bel-esprit, e um leão da Judeia como soldado. Tinha, até, um nobre coração, e nada havia de frívolo no seu carácter, chegando ao ponto de afligir-se vendo a seus pés belas mulheres morrerem pelo seu amor. E, além do mais, era um observador: via as coisas. Um dia viu Miss Malin e durante algum tempo nada mais viu.

 

Este jovem tinha conseguido tudo da vida - e das mulheres em particular - sem o mínimo esforço. A beleza, o talento, o encanto, a virtude, tudo era seu, bastava-lhe levantar um dedo. Em Miss Malin nada era surpreendente à parte o seu preço. Que esta rapariga magra, de grande nariz, sem um centavo de seu e dois anos mais velha do que ele exigisse não só o seu nome principesco e uma parte activa no seu brilhante futuro, como ainda a sua adoração submissa, uma fidelidade eterna, e a sujeição na vida e na morte, e que por nada menos se deixasse possuir - isto impressionou o jovem príncipe.

 

Algumas pessoas têm um amor inquebrantável por enigmas. Podem ter ocasião de escutar o comum bom senso, ou a sabedoria que explica a vida; mas não, hão-de dar tratos à cabeça com enigmas, justamente porque não compreendem o que eles significam. Que a solução seja em si mesma de uma imbecilidade a toda a prova, tal não obsta aos tomados desta particular paixão. O príncipe Ernest tinha esta mentalidade, e, desde criança, costumava ficar dias a fio mergulhado em enigmas e quebra-cabeças - passatempo que, no seu caso, era tido como prova de um grande poder intelectual. Quando, portanto, encontrou este osso duro de roer, todas as beldades de mais fácil solução se desvaneceram dos seus olhos.

 

Tão nervoso estava o príncipe Ernest perante este primeiro risco de se ver recusado - e sabe Deus se ele o temia ou se ele o desejava - que só se declarou a Malin Nat-og-Dag na véspera da sua partida para a guerra. Quinze dias mais tarde morria nos campos de Iena, segurando um pequeno medalhão de ouro com um anel de cabelo louro. Muitas louras bonitas se consolaram pensando nesse medalhão. Nenhuma sabia que, entre as esplêndidas tranças que tanto o subjugaram, só este anel do cabelo de uma solteirona havia sido para ele como a pena da asa de uma valquíria, levantando-o do chão.

 

Se Malin fosse católica, teria ido para um convento depois da batalha de Iena, para salvar, se não a alma, pelo menos o respeito que a si própria devia, pois, diga-se o que se disser, nenhuma donzela faz mais esplêndido casamento do que aquela que se torna a esposa do Senhor. Mas, sendo uma boa protestante, com uma parcialidade pelos ensinamentos dos Hernutos, tomou a sua cruz e carregou-a valorosamente. Que ninguém no mundo conhecesse a sua tragédia coadunava-se bem com a opinião que mantinha dos outros, e esta era que os outros nada sabem do importante. Abandonou então quaisquer propósitos de casamento.

 

Aos 50 anos herdou inesperadamente uma grande fortuna. Houve quem a compreendesse tão mal que jul-gasse ter-lhe a herança su-bido à cabeça e provocado essa confusão, agora patenteada, entre os factos e a realidade. Mas não. Ela não se sentiria minimamente perturbada ainda que entrasse na posse dos tesouros do Grão-Turco. O que a transformou foi aquilo que transforma qualquer mulher de 50 anos: a transferência do serviço activo da vida - com uma pensão ou a honra dos vencidos, conforme o caso - para o estado meramente passivo de espectador. Um peso lhe caiu dos ombros; e ela voou até um ramo mais alto e disparatou um pouco mais. A fortuna ajudou-a apenas porque lhe forneceu o sopro de ar nas asas que lhe permitiu voar um pouco mais e disparatar em mais sonoras vozes, ainda que tivesse também eliminado por completo a crítica dos que a rodeavam. No seu riso de libertação havia por certo um timbre de loucura.

 

Esta loucura tomou, como já foi dito, a curiosa forma de uma convicção inabalável num passado de colossal devassidão. Acreditava ter sido a grande cortesã do seu tempo, se não mesmo a grande prostituta do Apocalipse. Tomou a fortuna, a casa, as jóias como os honorários do pecado, acumulados numa longa carreira de luxúria, e por isso era extremamente generosa, considerando ela que o dinheiro frivolamente adquirido deve ser frivolamente gasto. Não abria a boca que não se referisse aos seus tempos de libertinagem. Até o príncipe Ernest Theodore, o casto amante a quem ela recusou o beijo de adeus, figurava na sua colecção de figuras de cera como uma vítima das suas artes e crueldades de sereia.

 

Sabe-se que um espectáculo não é desfrutado do mesmo modo por aqueles que, enfim, podem correr o risco de se tornarem parte dele, e por aqueles outros que, por qualquer circunstância, estão inteiramente excluídos dessa possibilidade. O Imperador de Roma, depois de uma exibição particularmente emocionante, pode ver a rede e o tridente num pesadelo. Mas as virgens Vestais repousam nos seus leitos de mármore e, com um saber de connaisseur, rememoram todos os passos da luta, imaginando-se no lugar do gladiador seu favorito. Do mesmo modo é pouco provável que até a mais piedosa das velhas assista ao julgamento e ao suplício de uma bruxa com o mesmo espírito imperturbado da assistência masculina em volta da fogueira.

 

Nenhuma jovem poderia, mesmo na cela de um convento, abandonar-se aos excessos imaginários de Miss Malin sem recear e estremecer. Mas a velha, que já construiu a sua segurança, pode precipitar-se em qualquer abismo de corrupção com a graciosidade de um mergulhão-de-crista. Leal por natureza, Miss Malin Manteve-se fiel à opinião da sua juventude no que dizia respeito às palavras do Evangelho sobre o adultério. Acreditando cegamente na letra da Bíblia, reconhecia que uma multidão de homens cometera de facto adultério com ela. Mas, resolutamente, virou as palavras do avesso, como faz a mulher ao vestido se as cores desbotadas a desgostam. Ela era a imagem catóptrica da grande pecadora arrependida, cujos pecados haviam ficado brancos como a lã do cordeiro, pois a ela dava-lhe infindo prazer tingir a bonita lã branca da sua vida de variegadas e tremendas cores. Ciúmes, enganos, seduções, violações, infanticídios e crueldades senis, e toda a perversão do humano mundo das paixões, até as suas maladies galantes, das quais exibia um conhecimento surpreendente, eram para ela os confeitos que escolhia, um a um, da bombonnière da loucura e trincava com verdadeira gourmandise. Em todas as suas fantasias era ela a heroína, e percorria as esferas dos sete pecados mortais com o êxtase do rapazinho que galopa por todos os grandes hipódromos do mundo sentado no seu cavalo de pau. Nenhum perigo a atemorizava, nem qualquer angústia da consciência lhe perturbava a tranquilidade. Se de alguém falava com desprezo, era da Maria Madalena do Evangelho, que unicamente suportou o fardo dos seus doces pecados, retirando-se para o deserto da Líbia em companhia de uma caveira. Ela, porém, carregava o peso dos seus com a destreza de um atleta, e com a sua estava disposta a jogar uma partida de bilboquet.

 

Até o seu rosto se transformou com essa grande revolução espiritual e, na idade em que as outras mu-lheres recorrem ao rouge e à beladona, a sua indulgência para com as fraquezas humanas produziu nela uma cor mais viva e deu aos olhos um brilho mais doce. Estava mais perto agora de ser considerada uma bonita mulher do que jamais estivera na juventude. Se fora sempre a imagem de uma bru-xa, na segunda meninice tinha mais a aparência da fada má das histórias infantis que da Medusa, esse anjo vingador de espada flamejante que lutou de igual para igual com o príncipe Ernest. Conservava a sua esbelteza e graciosidade de sílfide, e quanto à sua destreza como dançarina, poderia ser ainda o centro de todos os olhares num grande baile. O seu pezinho de cabra estava agora tão elegantemente dourado como o casco da cabrinha de Esmeralda.

 

Era nesta aura de gentil loucura e segunda juventude que ela agora se sentava, náufraga, no palheiro dos camponeses, conversando animadamente com o cardeal Hamilcar.

 

- Quando, em rapaz, estive algum tempo em Coblentz, na corte emigrada do duque de Chartres - dizia o cardeal, após uma breve pausa, pensativamente - conheci o grande pintor Abildgaard, e costumava passar as manhãs no seu atelier. Quando as damas da corte vinham pedir-lhe que lhes pintasse o retrato, pois ele era muito procurado por essas belas mulheres que querem ver a sua beleza imortalizada, quantas vezes não o ouvi dizer-lhes: «Lavai os vossos rostos, Mesdames. Tirai-lhes o pó, o rouge, o kohl. Porque, se pintais vós mesmas o vosso rosto, não poderei eu pintar-vos.» Muitas vezes, ao longo da vida, tenho pensado nessas palavras. Quer-me parecer que o Senhor está continuamente dizendo aos fracos e presunçosos mortais: «Lavai os vossos rostos. Pois, se vos pintardes vós próprios com as cores da humildade e da renúncia, da caridade e da castidade, espessas sobre a face, eu nada poderei fazer.» Esta noite, com efeito - continuou o velho, sorrindo, enquanto um profundo movimento do mar parecia fazer estremecer a casa -, o Senhor está-nos lavando os rostos com as Suas próprias mãos, e usando uma tremenda quantidade de água para o fazer. Mas procuraremos conforto no pensamento de que não há honra mais alta para nós, ou felicidade, que ter os nossos retratos pintados pela mão do Senhor. Isto foi o que sempre ambicionámos e a que demos o nome de imortalidade.

 

Vendo que o rosto daquele que assim falava estava coberto de ligaduras manchadas de sangue, Miss Malin esteve prestes a fazer um comentário, mas refreou-se, pois não sabia que duradoura desfiguração de uma nobre face elas poderiam ocultar. O cardeal leu esses pensamentos e expressou-os com um sorriso.

 

- Sim, Madame - disse ele - o meu rosto quis o Senhor lavar com o mais ardente líquido. Mas não nos avisaram do poder purificador do sangue? Sei agora, Madame, que esse poder é maior ainda do que o supúnhamos. E talvez o meu rosto dele carecesse. Quem senão o Senhor sabe quanto rouge e quanto pó eu coloquei sobre ele ao longo de setenta anos? Em verdade, Madame, nestas ligaduras sinto estar mais perto de posar para o meu retrato feito por Ele, do que jamais antes estive.

 

Miss Malin corou ligeiramente ao ver-se descoberta numa falta de tacto, e vivamente fez recuar a conversa como quem atrasa um relógio.

 

- Dou graças - disse ela - por nunca na vida ter posto rouge ou pó nas fa-ces, e Monsieur Abildgaard poderia ter-me pintado em qualquer momento. Mas, quanto a esse divino retrato de mim que há-de figurar, suponho, nas galerias do Céu quando eu já estiver morta e enterrada, consinta-me que diga, Eminência, que nesse ponto as minhas ideias diferem um pouco das vossas.

 

- As opiniões dos críticos de arte - disse o cardeal - estão sujeitas a controvérsia; foi o que aprendi no atelier. Vi um dia o mestre bater no rosto de um grande pintor francês com um pincel de pêlo de texugo cheio de cádmio, só porque discordavam quanto às leis da perspectiva. Dê-me a saber, Madame, as suas opiniões, para que eu possa aprender com elas.

 

- Pois bem - disse Miss Malin - onde foi Vossa Eminência buscar a ideia que o Senhor deseja de nós a verdade? É uma estranha ideia, toda original, a vossa. Pois Ele já a conhece, e talvez até a ache um tanto ou quanto insípida. A verdade é para os alfaiates, Eminência, e para os sapateiros. Eu, pelo contrário, sempre fui de opinião que o Senhor tem um penchant por máscaras. Não sois vós outros, príncipes espirituais, que nos dizeis haver bênçãos ocultas nas provações que padecemos? E é bem assim. Eu também o pensei quando, à meia-noite, caíam as máscaras. Mas, por outro lado, ninguém poderá negar que foram criadas pelas mãos de um perito inimitável. O próprio Cristo, se Vossa Eminência mo permite, parece-me ter-se mascarado bem livremente no tempo em que se fez carne e habitou entre nós. Sinceramente, fosse eu a dar o ban-quete de Caná, talvez me tivesse ofendido um pouco essa Sua pobreza, talvez, Eminência, talvez, tivesse eu convidado esse brilhante jovem, o filho do carpinteiro, para Lhe oferecer do meu melhor Berncastler Doctor, e Ele mudasse, no momento que melhor Lhe conviesse, a água pura num vinho de muito melhor colheita! E ainda assim essa senhora de Caná não sabia, evidentemente, de quanto Ele era realmente capaz, por ser Deus Todo-Poderoso.

 

- Com efeito, Eminência - continuou ela - de todos os monarcas de quem ouvi falar, aquele que melhor se aproximou, quanto a mim, do verdadeiro espírito de Deus, foi o califa Ha-run de Bagdade, que, como Vossa Eminência sabe, gostava de mascarar-se. Ah!, ah! Tivesse eu vivido nesse tempo, que havia de fazê-lo pagar o costume com língua de palmo, nem que tivesse de dormir com quinhentos mendigos antes de topar com o Príncipe dos Crentes sob as vestes de um mendigo. E quando eu mesma mais me aproximei na vida de desempenhar o papel de uma deusa, a última coisa que eu queria dos meus adoradores era a verdade. «Façam poesia - dizia-lhes eu - usem a imaginação, mascarem-me a verdade. A vossa verdade depressa se descobre (com perdão de Vossa Eminência) e que se há-de fazer então?»

 

- E já agora - continuou a velha senhora - o que pensa Vossa Eminência da modéstia feminina? É, por certo, uma qualidade divina; e o que é ela senão, por princípio, falsidade? Visto estarem aqui presentes um jovem e uma donzela, não nos poupemos nós, eu e Vossa Eminência, que temos observado a vida dos melhores ângulos, Vossa Eminência do confessionário e eu da alcova, a esforços para desprezar a verdade; falemos somente de pernas. Dir-vos-ei então que podem dividir-se as mulheres de acordo com a beleza das suas pernas. As que as têm bonitas, e que sabem ser a verdade escondida mais bela que mil ilusões, são as mulheres verdadeiramente valorosas, que olham nos olhos, e têm a genuína coragem de uma consciência tranquila. Mas, se começassem a usar calças, que seria da sua bravura? Os jovens dos nossos dias, que usam calças tão justas que são precisos dois criados para as vestirem, um por cada perna'''

 

- E mesmo assim, a coisa é difícil - disse o cardeal, pensativo.

 

- Passearem-se como verdadeiros missionários da verdade - prosseguiu Miss Malin - pode ser mais hu-mano, mas por certo nada terá de divino. Podem ter por eles a rudeza dos factos, mas as pernas das mulheres, ocultas sob as saias, são as ideias. E quem se firma em ideias possui o verdadeiro heroísmo. Porque é a consciência de um poder oculto que transmite a coragem. Mas peço perdão a Vossa Eminência por haver falado tanto.

 

- Não me peça perdão, Madame - disse, gentil, o cardeal - muito me aproveitaram as suas palavras. Mas não me convenceram de que não estamos de acordo. Este nosso mundo é como aquele jogo infantil, o pão-com-queijo: verdade, engano, verdade, engano! Quando o califa se vestia como o mais pobre dos seus súbditos, nem todo o seu esplendor oculto poderia ressalvar o péssimo gosto dessa mascarada, se ele no fundo não sentisse um amor fraternal pelos pobres. Do mesmo modo, quando Nosso Senhor se revestiu, durante uns trinta anos, da máscara de Filho do Homem não teria realmente sentido o fazê-lo se Ele não possuísse, afinal, um coração humano, e até, Madame, uma certa simpatia por aqueles que apreciam o bom vinho. A mulher de fino espírito, Madame, escolhe para seu trajo de Carnaval aquele que engenhosamente revele algo da sua alma ou do seu coração e que as convenções do quotidiano escondem; e quando coloca uma horrível máscara veneziana, de longo nariz, ela diz-nos que por trás dela se esconde não somente um nariz clássico, mas muito mais, e que pode ser adorada por algo superior à sua beleza. E assim fala o Árbitro da mascarada: «Pela tua máscara te conhecerei.»

 

- Mas concordemos, Madame - prosseguiu - que o Dia do Juízo não há-de ser, como os nossos insípidos pregadores querem que acreditemos, o momento em que o véu cai das nossas pobres tentativas de engano, sobre as quais o Senhor realmente já tudo conhece, mas que, ao contrário, há-de ser a hora em que o próprio Deus Todo-Poderoso deixa cair a Sua máscara. E que momento esse! Ah, não será de mais termos esperado um milhão de anos por ele. O Céu, Madame, há-de ressoar de riso. Riso puro e inocente como o da criança, riso claro como o da noiva, riso triunfante como o do guerreiro leal que depõe os estandartes inimigos aos pés do seu soberano, ou do que é finalmente libertado das masmorras e das correntes, ilibado das calúnias dos seus detractores!

 

E no entanto, Madame, não nos proporcionou o Senhor a nós, aqui, um Dia do Juízo em miniatura? Em breve será meia-noite. Seja essa a hora em que hão-de cair as máscaras. Se não for a sua, ou a minha máscara, que seja a do Destino e da Vida. Talvez tenhamos em breve de enfrentar a Morte, sem qualquer máscara. Entretanto, nada temos a fazer senão lembrar como é realmente a vida. Vamos, Madame, e meus jovens irmãos! Já que não podemos conciliar o sono, e ainda estamos aqui, sentados com conforto, dizei-me quem sois, e contai-me as vossas histórias sem reservas.

 

- O Senhor levantou-se no barco - disse o velho cardeal, dirigindo-se a Jonathan Maersk - com o risco de o fazer soçobrar, perante o espectáculo do celeiro ruindo. Assim, creio eu, algum altaneiro edifício da sua vida ruiu e se desmoronou perante os seus olhos. Diga-nos qual foi. Notei ainda, há pouco tempo - prosseguiu - quando falei da pureza do nosso sangue, que o senhor recuava perante as minhas palavras como antes perante o celeiro. Será talvez partidário das ideias revolucionárias da sua geração? Não imagine, então, que sou estranho a tais teorias. Estou pelo contrário em mais íntimo contacto com elas do que poderá supor. Mas deveremos deixar que uma diferença po-lítica separe os nossos corações numa hora como esta? Vamos, falar-lhe-ei com as suas próprias palavras: e agora espera a liberdade, a igualdade, a fraternidade, estas três; mas a maior delas é a fraternidade.

 

- Ou, meu caro filho - disse ele ainda - pode sofrer o triste fardo da ilegitimidade. Mas quem, mais do que o bastardo, precisa de erguer a voz para perguntar quem é? Tenha, pois, fé em nós. Conte-nos agora, antes que rompa a manhã, a história da sua vida.

 

O jovem, em cujo rosto se estivera sempre estampando a solidão, que é o emblema da verdadeira melancolia, a estas palavras ergueu os olhos para o cardeal. A grande dignidade de maneiras do velho impressionara os outros desde que chegaram à sua presença. Agora o rapaz estava fascinado pela estranha lucidez do seu olhar. Por alguns momentos os dois se fitaram intensamente. A cor subiu às faces pálidas do rapaz. Um profundo sus-piro se lhe arrancou do pei-to.

 

- Sim - disse ele, como que inspirado - contar-vos-ei a minha história. Talvez eu a compreenda melhor se finalmente a disser por palavras.

 

- Lave o seu rosto, meu jovem amigo - disse Miss Malin - e o seu retrato em nossos corações lhe dará a imortalidade.

 

- Chamarei à minha narrativa - disse o jovem - a história de Tímon de Assenas.

 

 

«Se tivésseis vivido em Copenague - principiou o jovem - teríeis ouvido falar de mim, pois fui ali, em tempos, muito falado. Até me deram um nome. Chamavam-me Tímon de Assenas, e tinham razão num ponto: eu nasci em Assenas, que é, como sabeis, uma pequena ci-dade portuária na ilha de Fiónia. Ali nasci, filho de uma família muito respeitável, o arrais Clement Maersk e sua mulher, Magdalena, que tinham uma bonita casa com jardim na cidade.

 

Não sei se acharão cu-rioso que, em todo o tempo que vivi em Assenas, eu nunca tivesse pensado que alguma coisa me pudesse prejudicar. Nunca pensei, de resto, que alguma coisa se ocupasse de mim. Parecia-me que era minha missão, pelo contrário, cuidar do mundo. Em muitos Verões acompanhei meu pai, e fomos até Portugal e à Grécia. Quando estávamos no mar tínhamos de cuidar da carga e do navio, e isso a ambos parecia ser a coisa mais importante no mundo.

 

Minha mãe era uma mulher muito bonita. Embora me tivesse movido, durante algum tempo, na mais alta sociedade, nunca vi mulher que a igualasse, quer em beleza quer em maneiras. Ela não acompanhava as mulheres dos outros arrais, e nunca frequentava a casa de alguém. Seu pai tinha sido assistente do grande botânico sueco Lineu, e a ela as flores, e o que lhes acontecia, e as abelhas, seu trabalho e suas colmeias, pareciam-lhe mais importantes do que quer que se relacionasse com os seres humanos. Enquanto estive com ela acreditei que as plantas, as flores e os insectos do mundo eram os seus seres mais importantes, que os humanos apenas existiam para os proteger.

 

No jardim de Assenas minha mãe e eu vivíamos no que julgo chamar-se um idílio. Os nossos dias eram feitos apenas de inocência e de prazer.»

 

Miss Malin, que estivera ouvindo atentamente, sempre apaixonada por qualquer sorte de narrativa, interrompeu neste passo o narrador com um pequeno suspiro.

 

- Ah! - disse ela - não me fale em idílios. Mais moi je n'aime pas les plaisirs innocents.

 

«Tinha um amigo em Assenas, ou pensava que o tinha - continuou Jonathan - um rapaz de talento, de nome Rasmus Petersen, uns dois anos mais velho do que eu, e mais alto uma cabeça. Destinava-se a ser clérigo, mas criou um certo problema e não foi bem sucedido, mas nos seus tempos de estudante em Copenague foi preceptor em muitas casas nobres. Ele sempre se interessou muito por mim; eu, embora o admirasse, nunca me senti à von-tade em sua companhia. Era cortante como uma lâmina; quem se aproximasse dele feria sempre os dedos, embora não se apercebesse disso na altura. Quando eu tinha 16 anos, ele disse a meu pai que eu devia ir com ele para Copenague, para estudar com os sábios que ele lá conhecia, pois me achava um rapaz muito brilhante.»

 

- E era realmente muito brilhante? - perguntou Miss Malin com surpresa.

 

- Infelizmente não, Madame - respondeu Jonathan.

 

«Quando cheguei a Copenague - prosseguiu ele - senti-me muito só, pois a cidade não me oferecia nada para fazer. Parecia-me que ali só existia gente. E esses também não se interessaram por mim. Se lhes falava uns instantes, logo se afastavam. Mas pouco depois o meu interesse foi despertado pelas dispendiosas estufas e viveiros dos palácios reais e da alta nobreza. Entre estas, as mais famosas eram as do barão Joachim von Gersdorff, que era camareiro-real da Dinamarca e ele próprio um grande botânico, tendo viajado por toda a Europa, Índia, África e América, e reunido plantas raras de todas as partes do mundo.

 

Tereis ouvido falar deste homem, ou conhecei-lo? Descendia de uma família russa, e a sua riqueza era tal como nunca houvera outra na Dinamarca. Era poeta e músico, diplomata e sedutor de mulheres, mesmo nesse tempo, em que já era velho. No entanto não era tudo isto que nele me cativava a imaginação. Era o seguinte: Ele era um leão da moda. Ou melhor, a própria moda era, em Copenague pelo menos, tão-somente um lacaio do barão Gersdorff. O que ele fizesse tornava-se imediatamente o imperativo de todos. Ah, não quero descrever esse homem. Sabeis, julgo eu, o que significa ser um leão da moda. Eu aprendi-o. Ele era assim.

 

Eu não tinha ido às suas estufas, onde Rasmus me conseguira admissão, mais do que um par de vezes quando, numa tarde, lá encontrei o barão Gersdorff em pessoa. Rasmus apresentou-me, e ele acolheu-me com muita cordialidade, oferecendo-se depois para me mostrar toda a instalação, o que fez com muita paciência e benevolência. Desde esse dia, passei a encontrá-lo quase sempre lá. Contratou-me depois para escrever o catálogo da sua estufa de cactos. Passámos juntos muitos dias, Nessa estufa envidraçada. Eu gostava muito dele, porque ele tinha corrido mundo, e podia contar-me das flores e dos insectos de todos os luga-res. Por vezes notava que a minha presença lhe despertava uma estranha comoção. Uma tarde, Quando lhe estava lendo um tratado sobre a boca do receptáculo do Epiphyllum, vi que tinha fechado os olhos. Tomou a minha mão, que conservou nas suas, e, terminada a leitura, levantou os olhos para mim e disse:

 

- Que hei-de dar-lhe, Jonathan, como alvíssaras?

 

- Ri-me e respondi que não me parecia que tivesse encontrado já alguma coisa de especial.

 

- Oh, meu Deus! - disse ele - alvíssaras pelo Verão de 1814!

 

Poucos dias depois, ele começou a falar-me da minha voz. Disse-me que eu tinha uma voz particularmente bonita, e pediu-me que o deixasse contratar Monsieur Dupy para me dar lições de canto.»

 

- E tinha realmente uma voz bonita? - perguntou Miss Malin com alguma incredulidade, pois a voz do narrador era baixa e rouca.

 

- Sim, Madame - respondeu ele - nesse tempo eu tinha uma voz muito agradável. Aprendera a cantar com minha mãe.

 

- Ah! - disse Miss Malin - não há nada no mundo mais gracioso do que uma bonita voz de rapaz. Quando estive em Roma, havia um rapaz chamado Mario, no coro da Jesú, que tinha uma voz de anjo. O próprio Papa me recomendou que fosse ouvi-lo, e eu bem sabia porquê, pois Sua Santidade esperava converter-me ao catolicismo e pensava que a voz desse menino de ouro podia aniquilar a minha resistência. Do meu banco eu vi o próprio Papa desfazer-se em lágrimas quando como um cisne que se eleva, o tal Mario lançou a voz no imortal recitativo de Carissimi: Vade retro Satana! Ah, esse bom Papa Pio VIII! Dois dias mais tarde morria, perversamente envenenado com três pílulas de cantaridina. Não me seduz o papismo, mas confesso que ele era uma bela figura de Papa, e morreu como um homem. E então, teve as suas lições e tornou-se um virtuoso, Monsieur Jonathan?

 

- Sim, Madame - disse Jonathan com um sorriso - tive as minhas lições. E como sempre gostei muito de música, trabalhei muito e fiz consideráveis progressos. No princípio do terceiro inverno o barão, que até essa altura nunca parecera disposto a separar-se de mim, levou-me a todos os palacetes dos seus amigos, e fez-me cantar para eles. Quando chegara a Copenague costumava parar junto aos palacetes, nas noites de Inverno, para ver as flores e os candelabros dos átrios, e as jovens que desciam das carruagens. Agora, era eu quem ali entrava, e as senhoras, velhas ou jovens, eram tão bondosas para mim como se eu fosse um filho seu, ou um irmão mais novo. Cantei na corte, perante o rei Frederico e a rainha Maria, e a rainha sorriu-me com muita bondade. Sentia-me muito feliz. Pensava: Como são tolos aqueles que dizem que os grandes das cidades só amam a riqueza e as honrarias mundanas. Todas estas senhoras, estes grandes homens, amam a música tanto quanto eu - ou mais - e esquecem tudo por amor dela; que maravilha é o amor do belo.

 

- Apaixonou-se? - perguntou Miss Malin.

 

- De certo modo estava apaixonado por toda a gente - respondeu Jonathan. - Por essas que tinham lágrimas nos olhos quando eu can-tava; por essas que me acompanhavam na harpa, ou se juntavam a mim nos duetos; por essas que tiravam flores dos seus cabelos e mas ofereciam. Mas talvez estivesse apaixonado pela condessa Atalanta Danneskjold, a mais nova das irmãs Danneskjold, a quem chamavam os nove cisnes de Sams. A mãe fez-nos posar juntos numa charada como Orfeu e Eurídice. Todo esse Inverno o vivi como num sonho. Pois não é verdade que por vezes sonhamos que podemos cantar qualquer nota que se queira, e subir e descer por toda a escala como os anjos pela escada de Jacob? Ainda hoje tenho esse sonho, às vezes.

 

«Mas na Primavera sucedeu o que tomei por uma grande infelicidade, não sa-bendo o que a palavra significava. Caí doente e, Quando já melhorava, o médico da corte, que me tratava, disse-me que eu tinha perdido a voz e que eram nulas as esperanças de a recuperar. Ainda na cama, afligi-me muito com isto, não só com a ideia de perder a voz, mas com a ideia de que iria agora decepcionar e perder os meus amigos, e que a minha vida se iria tornar muito triste. Cheguei até a derramar lágrimas por isto, e foi chorando que Rasmus Petersen me veio achar. Abri-lhe o meu coração, esperando que ele me confortasse no meu infortúnio. Ele teve de levantar-se da cadeira e fingir que olhava pela janela para esconder o seu riso. Achei isso uma crueldade da sua parte, e nada mais lhe disse.

 

- Então, Jonathan - disse ele - eu tenho motivos para rir, pois ganhei a minha aposta. Apostei que eras tão simplório como de facto parecias, o que ninguém quis acreditar. Toda a gente te achava muito sagaz. Não te fará a mínima parcela de diferença teres perdido essa voz que tinhas.

 

Não compreendi. Creio que fiquei pálido, embora as suas palavras me animassem.

 

- Então, ainda não percebeste - disse ele - que o barão Gersdorff é teu pai? Eu já o tinha adivinhado, mesmo antes de te levar à estufa, quando vi um retrato do barão em criança, no qual ele tem essa cabeça de anjo. Quando ele próprio o descobriu, a sua satisfação foi tal como eu nunca vira. Disse-me: «Nunca tive um filho na vida. Parece-me muito curioso que tenha arranjado um. Todavia, acredito que esse rapaz seja de facto o filho do meu corpo, e tenciono recompensá-lo por isso. Mas, se vir que a minha alma se perpetua nele, juro por Deus que o reconhecerei como filho legítimo e lhe deixarei tudo o que tenho. Se não for possível fazer dele um barão Gersdorff, pelo menos será Cavaleiro de Malta, com o nome de Ressurrection». É por isso - disse Rasmus - que as pessoas distintas de Copenague te têm mimado, Jonathan. Têm-te observado constantemente, para verem se a alma do barão Gersdorff se revelava em ti, pois nesse caso tu serias o homem mais rico, o melhor partido, Jonathan, de toda a Europa do Norte.

 

Contou-me então a conversa que tivera com o barão Gersdorff a meu respeito. «Sabe, meu bom Rasmus, que sou poeta - dissera-lhe o Barão. - Enfim, dir-lhe-ei que espécie de poeta eu sou. Nunca na minha vida escrevi um verso sem que me imaginasse no lugar de algum poeta conhecido. Escrevi poemas à maneira de Horácio e de Lamartine. Do mesmo modo, não sou capaz de escrever uma carta de amor a uma mulher sem representar no meu espírito Lovelace, o Corsário ou Eugénio One-guine. As mulheres têm sido incensadas, adoradas e seduzidas por todos os heróis de Chateaubriand e Lord Byron. Nada eu fiz inconscientemente sem saber muito bem o que fazia. Mas este rapaz, este Jonathan, filo realmente sem pensar. Ele é que há-de ser, não uma personagem de Firdousi, ou até de Oehlenschlaeger, mas uma verdadeira e genuína obra de Joachim Gersdorff. O que é uma coisa curiosa, muito curiosa mesmo, de observar pelo próprio Joachim Gersdorff. É um fenómeno de extrema importância para Joachim Gersdorff. Se ele vier apenas a mostrar-me que é na realidade um Joachim Gersdorff, nenhuma recompensa será excessiva. Riquezas, casas, jóias, mulheres, vinhos, e as honras do país serão suas.»

 

Tudo isto eu ouvi, deitado na minha cama.

 

Não sei se Vossa Eminência achará estranho, ou Vossa Excelência, Miss Nat-og-Dag, mas a mais forte emoção que estas palavras provocaram em mim foi uma intensa vergonha. Um tão forte sentimento nunca, em toda a minha vida, eu tinha experimentado.

 

Se o barão me tivesse seduzido, como acredito que seduziu outros rapazes bonitos, eu teria de corar perante os rostos das pessoas honestas. Mas poderia ter achado refúgio dessa vergonha no meu próprio coração, pois de certo modo eu amava esse homem. Da vergonha que então senti não me parecia haver refúgio no mundo. Sobre o mais profundo da minha alma eu sentia, e pela primeira vez na vida, os olhares do mundo inteiro.

 

Deus criou o mundo, Eminência, e o olhou, e viu que era bom. Sim. Mas, e se o mundo também O tivesse olhado, para ver se Ele era bom? Foi isto, pensava eu, o que Lúcifer realmente fez a Deus: olhou para Ele, e fê-Lo sentir que Ele próprio estava a ser julgado por um crítico: e Ele era bom? Eu''' eu era inocente como Deus. Agora fora tornado num verdadeiro Joachim Gersdorff. Corria-me nas veias todo o sangue desse homem, um leão da moda, a espécie de homem que atrai os olhares de todo o mundo. Deus não o suportou, e, como vos lembrais, precipitou Lúcifer no abismo. Agiu bem; Ele não devia suportar esse olhar. Eu também não o suportava, mas tive de sustentá-lo.

 

Para saber se Rasmus tinha razão, tive um acto, creio, de bravura, se não mesmo de heroísmo, o que para mim foi prova de que afinal o arrais e sua mulher me educaram bem. Compareci a uma grande festa em casa da condessa Danneskjold, e cantei de novo para os con-vidados. Cantei as minhas velhas canções, e ouvi a minha própria voz, ou o que dela restava. Vós, que me escutais agora, por certo adivinhareis a pobreza desse canto. Eu tinha cantado para eles, antes, tão bem quanto sabia, e julgara ter-lhes dado o melhor que havia em mim. Ao ouvirem-me agora, nem um só dos presentes traiu no rosto a menor decepção ou pena. Todos foram amáveis, todos me cumprimentaram como sempre o haviam feito. Senti então que nunca lhes havia dado coisa alguma, que nunca tinha agido sobre eles. Era o mundo à minha volta que me observava, que queria agir sobre mim. Todos os olhos estavam postos em mim, porque eu era um genuíno Joachim Gersdorff, um jovem leão da moda. Saí daquela casa à meia-noite, e foi essa hora, Eminência, que a derrocada do celeiro me lembrou.

 

Nessa mesma noite escrevi uma carta ao barão, despedindo-me dele. Era tanta a minha repugnância por ele e pelo seu mundo que, ao reler a carta, achei a palavra «moda» repetida nove ve-zes. Dei a carta a Rasmus para que a entregasse. À despedida lembrei-me de que nada dissera da fortuna que o barão tencionava deixar-me. Encarreguei então o meu amigo de lhe comunicar a minha recusa do legado.

 

Eu não suportava as ruas. Deixei os meus bonitos aposentos perto do palácio Gersdorff, e fui de barco até ao porto da pequena ilha fortificada de Trekroner e instalei-me em casa do quarteleiro, onde nada mais podia ver senão o mar. Rasmus acompanhou-me, levando a minha mala. Durante todo o caminho procurou reter-me. Tínhamos de passar pelo portão do palácio Gersdorff, e foi tanta a aversão que esse lugar su-bitamente me inspirou, que lhe cuspi, como meu pai - pobre de mim, como o arrais Clement Maersk de Assenas - me ensinara a cuspir quando eu era rapaz.

 

Durante alguns dias vivi em Trekroner, tentando ali reencontrar o mundo que um dia fora o meu - e não eu próprio, pois nada queria senão eu próprio. Pensei no jardim de Assenas, mas as portas desse jardim haviam-se fechado para sempre. Uma vez provado o fruto da árvore da sabedoria, uma vez que nos vimos a nós mesmos, os jardins fecham-se para nós. Tornamo-nos pessoas da moda, como Adão e Eva se tornaram, quando começaram a ocupar-se da sua aparência.

 

Mas só alguns dias mais tarde Rasmus veio ver-me à ilha. Tinha tomado um pequeno escaler, ele, que tanto pavor tinha do mar.

 

- Ah, meu amigo - disse ele, esfregando as mãos - nasceste com uma boa estrela. Entreguei a tua carta ao barão e ele, quando a leu, ficou desvanecido e agitado em extremo. Levantou-se, andou de um lado para o outro, e exclamou: «Meu Deus, esta misantropia, esta melancolia! Como as conheço. É o meu vivo retrato! Na primeira semana em que fui amante da imperatriz Catarina senti tudo o que ele sente agora. Queria entrar para um mosteiro. É o jovem Joachim Gersdorff sem tirar nem pôr, mas todo em tons de negro, uma água-forte do original colorido. Mas, meu Deus, que vigor o desse rapaz, que negro rico e profundo! Não o julgava capaz dele, com a sua voz tão aguda. Esta é a noite de Inverno da Rússia, os lobos descem à estepe.» Depois de ler a tua carta pela segunda vez, disse-me: «Ele não quer ser um leão da moda? Mas todos nós o somos, na família; já o foi meu pai na corte da jovem imperatriz. Porque não há-de o meu filho sê-lo também? Claro que há-de ser o nosso herdeiro, o espelho da moda e o modelo de todos.»

 

- Digo-te, Jonathan - prosseguiu Rasmus - que a tua melancolia é a última moda. Os rapazes elegantes de Copenague vestem-se de negro e falam com amargura do mundo, e as senhoras fa-lam do túmulo.

 

E foi nesta altura que começaram a chamar-me o Tímon de Assenas.

 

- Disseste-lhe - perguntei a Rasmus - que, sob pretexto algum, quero o seu dinheiro?

 

E Rasmus respondeu:

 

- Disse-lho, sim; e ele ficou tão satisfeito que eu pensei que ia ter um ataque e fazer-te seu herdeiro naquele mesmo instante. «Muito bem - disse ele - muito bem, meu filho Tímon. Que eu te veja desprezá-lo. Dissipa-o bem. Mostra ao mundo o teu desdém por ele, à boa maneira dos Gersdorff. Que as heteras o guardem; não há melhor pu-blicidade que essa para um melancólico leão da moda. Hão-de seguir-te a toda a parte, e farão um belo contraste com o teu negro profundo. Como eu amo esse rapaz, disse ele. Tenho, acrescentou, uma colecção de esmeraldas ímpar em toda a Europa. Mandar-lhas-ei, para começar.» E de facto elas aqui estão - disse Rasmus entregando-me, com todo o cuidado, um cofre de jóias.

 

- Mas quando o barão soube - disse Rasmus - que tinhas cuspido na porta de sua casa, ficou muito sério. «Foi o que eu fiz - disse ele - na porta de casa de meu pai, na porta do palácio Gersdorff de Sampetersburgo.» E imediatamente mandou chamar o seu advogado e redigiu um documento em que te reconhece como seu filho, e em que te deixa toda a sua fortuna. Fez também uma petição para que te seja concedido o título de Cavaleiro de Malta e o nome de Ressurrection.

 

Por esta altura eu estava já tão deprimido que pensava na morte com verdadeiro desejo e nostálgia. Voltei com Rasmus à cidade, a pagar as minhas dívidas, para que o meu alfaiate e o meu chapeleiro não falassem de mim após a minha morte, e atravessei a ponte de Langebro, olhando a água e os barcos parados, alguns dos quais vinham de Assenas. Esperei até que o local ficasse deserto. Era uma das noites azuis do Abril de Copenague. Veio-me à lembrança uma das barcarolas de Salvatore que eu costumava cantar. Deu-me ela muita tranquilidade, tanta quanto a ideia de que em breve eu iria desaparecer. Como ali me encontrava, uma carruagem passando moderou o andamento e, pouco depois, uma senhora vestida de rendas negras caminhou em minha direcção, olhou em volta, e falou-me em voz baixa, sufocada.

 

- O senhor é Jonathan Maersk? - perguntou-me e, como eu lhe respondesse afirmativamente, aproximou-se mais de mim. - Oh, Jonathan Maersk, eu conheço-o. Segui-o. Sei o que vai fazer. Deixe-me morrer consigo. Há muito que procuro a morte, mas não tenho coragem de morrer sozinha. Deixe-me morrer em sua companhia. Sou tão pecadora como Judas - disse ela - como ele eu traí, traí. Venha, morramos juntos.

 

No anoitecer primaveril ela tomou a minha mão nas suas. Tive de a empurrar, e parti a correr.

 

Pensei: Existem provavelmente sempre em Copenague quatro ou cinco mulheres à beira do suicídio; talvez mais. Se me tornei o leão da moda para elas, como hei-de escapar-lhes para morrer em paz? Terei de morrer en-tão em elegante companhia, e lançar na moda a ponte de Langebro? Terei de afundar-me no mar com uma comitiva de mulheres que não distinguem um tom menor de um tom maior, e o meu último suspiro terá de ser'''?»

 

- Le dernier cri - disse Miss Malin com o risinho de uma verdadeira bruxa.

 

«Voltei a Trekroner - disse Jonathan após uma breve pausa - e sentei-me no meu quarto. Não era capaz de comer ou de beber.

 

Nesse momento recebi a visita inesperada do arrais Clement Maersk de Assenas. Tinha estado em Trankebar e, no regresso, viera procurar-me.

 

- Que é isto - disse ele - que eu ouvi dizer, Jonathan? Vais ser feito Cavaleiro de Malta? Conheço bem Malta. Quando se entra, com o Castelo de San Angelo à mão direita, tem de se ter cuidado com uma rocha antes de acostar.

 

- Meu pai - disse eu, Lembrando ainda as nossas viagens juntos - o barão Gersdorff é meu pai? Conhece esse homem?

 

- Não falemos de assuntos de mulheres - disse ele. - És um navio para todo o mar, Jonathan, seja quem for que te construiu.

 

Contei-lhe então tudo o que me acontecera.

 

- Meu pequeno Jonathan - disse ele - caíste nas mãos das mulheres.

 

Respondi-lhe que na verdade não conhecia muitas mu-lheres.

 

- Isso não importa - disse ele - eu vi os homens de Copenague. Essa gente que quer que o mundo gire à sua volta são todos mulhe-res, mascaradas com um novo modelo de narizes de cera. Digo-te que, no que toca aos navios, se não fosse pelas mulheres sentadas nos portos, à espera de sedas, de chá, de cochonilha e de pimenta, tudo coisas que precisam para que o mundo gire à sua volta, os navios velejariam calmamente, contentes do mar, sem nunca pensarem na terra. A tua mãe - prosseguiu ele pouco depois - foi a única mulher que eu conheci que não queria que o mundo lhe girasse em volta.

 

Eu disse-lhe: - Mas até ela, pai, não resistiu, e agora que Deus tenha pie-dade de mim.

 

Contei-lhe que o barão Gersdorff quisera deixar-me a sua fortuna. Meu pai fizera-se surdo com a idade. Só instantes depois ele disse:

 

- Falaste em dinheiro? Queres dinheiro, Jonathan? Teria a sua graça, pois eu sei de um lugar onde há muito dinheiro. Há três anos - contou ele - apanhei calmaria ao largo de uma pequena ilha perto de Haiti. Desembarquei para ver a ilha, e para buscar umas plantas raras que queria levar a tua mãe, e ao desenterrá-las deparei com o tesouro do Capitão L'Olonnais, que era um dos Filibustiers. Desenterrei-o, e como me fazia bem o exercício, voltei a enterrá-lo todo, em melhor ordem do que o fizera o Capitão. Conheço o local exacto. Se quiseres, um dia trago-to, e se não conseguires impedir o barão de te deixar a fortuna, podes fazer-lhe presente dele. É mais do que ele tem.

 

- Meu pai - exclamei - não sabe o que diz! Não viveu nesta cidade como eu. Que gesto seria! Faria de mim um leão da moda para sempre: eu seria de facto o Tímon de Assenas. Traga-me um papagaio do Haiti, meu pai, mas nunca dinheiro.

 

- Creio que és infeliz, Jonathan - disse ele.

 

- Sou infeliz, meu pai - respondi-lhe. - Amei esta cidade e os seus habitantes. Entorpeci-os de prazer. Mas eles têm dentro de si um veneno que eu não posso suportar. Se pensar neles agora, vomitarei a própria alma. Conhece alguma cura para mim?

 

- Pois conheço - disse ele. - Conheço uma cura para todos os males: a água salgada.

 

- A água salgada? - perguntei.

 

- Sim - respondeu-me -, de uma forma ou de outra. Ou o suor, ou as lágrimas, ou o mar salgado.

 

Disse-lhe: - Já experimentei o suor e as lágrimas. O mar salgado tencionava experimentá-lo se uma mulher vestida de rendas negras não mo tivesse impedido.

 

- Falas sem nexo, Jonathan - disse ele.

 

- Podes vir comigo - disse ele, instantes depois. - Vou rumo a Sampetersburgo.

 

- Não - disse eu - a Sampetersburgo não vou.

 

- Bom - disse ele - eu tenho de ir. Vê se te pões bom enquanto eu lá estiver, porque me pareces muito doente. Quando voltar, levo-te para o mar largo.

 

- Não posso ficar em Copenague - disse eu.

 

- Muito bem - disse ele - vai para onde os mé-dicos te recomendarem, que eu vou buscar-te a Hamburgo.

 

E foi assim, Eminência, e Miss Nat-og-Dag, disse o jovem, que fui mandado pa-ra aqui pelo arrais Maersk, seja ele ou não o meu pai, para buscar remédio na água salgada.»

 

- Ah, ah, ah - riu Miss Malin quando o rapaz terminou a narrativa, na qual ela muito se absorvera. Esfregou as mãos pequenas, tão satisfeita como uma cri-ança com um brinquedo novo. - Que história, Monsieur Tímon. Que lugar é este! Que criaturas nós somos! Eu, por mim, tomei agora consciência da minha identidade: sou Mademoiselle Diógenes, e esta lanter ninha, que a gorda camponesa velha nos deixou, esta é a minha famosa lanterna, à luz da qual busquei um homem, e graças à qual o encontrei. É o senhor esse homem, Tímon! Se procurasse por toda a Europa de lanterna e lampião, não encontraria um homem mais a meu gosto.

 

- E para que me quer, Madame? - perguntou Jonathan.

 

- Oh, não é para mim - disse Miss Malin. - Esta noite não estou com disposição para amores. Na verdade, parece que tomei ao jan-tar uma infusão dessa árvore agnus-castus, de que se pode ver um espécime no Guinenne. Quero-o para Calypso.

 

- Vê esta menina? - perguntou-lhe, olhando com orgulho e ternura para a bela rapariga a seu lado. - Não é minha filha, mas apesar disso, pelo Espírito Santo!, é obra minha tanto como o meu velho amigo, o barão Gersdorff, fez de si obra sua. Tenho-a carregado no meu coração e no meu pensamento, e muito tenho sus-pirado sob o seu peso. Agora completam-se os dias de eu a dar à luz e aqui temos o estábulo e a manjedoura. Mas quando a der ao mundo precisarei de uma ama; mais, precisarei de uma preceptora, um preceptor, um maestro para ela, e o senhor será tudo isso.

 

- Pobre de mim, para ensinar-lhe o quê? - perguntou Jonathan.

 

- Para ensinar-lhe a ser vista - respondeu Miss Malin. - O Senhor queixa-se de que olham para si. Mas o que seria se fosse atingido pela tragédia oposta? O que seria se ninguém pudesse ou quisesse vê-lo, embora o senhor estivesse firmemente convencido da sua própria existência? Há mais martírios que o seu, Misantropo de Assenas. Terá lido talvez a história do novo fato do Imperador, escrita por esse brilhante, esse jovem autor em ascensão, Hans Andersen. Mas aqui temos a história ao inverso: o Imperador passeia em todo o seu esplendor, ceptro e globo na mão, e ninguém em toda a cidade se atreve a olhar para ele, pois acreditam que, se o fizerem, serão considerados indignos dos seus cargos, ou insuportavelmente idiotas. É este o meu imperadorzinho; o desfile organizou-o um homem mau, de quem lhe falarei; e o se-nhor, Monsieur Tímon, será a inocente criança que há-de exclamar: «Mas o Imperador existe!»

 

- A divisa da família Nat-og-Dag - continuou Miss Malin - é a seguinte: «De fel como de mel.» Por devoção filial aos meus antepassados provei de muitos dos pratos agridoces da vida: a sopa de cabidela do senhor Swedenborg, a salada do amor platónico, até o sauerkrat do divino Marquês. Desenvolvi o paladar de uma verdadeira Nat-og-Dag; acabei por gostar desse travo. Mas a amargura da vida, essa, é um mau alimento, particularmente para um coração jovem. Nos prados do land ocidental cria-se uma espécie de carneiro que, alimentado de ervas salgadas, produz uma carne de excelente sabor, conhecida no mundo culinário por pré-salé. Esta menina foi alimentada nessas planícies salgadas, e de lágrimas e ervas amargas. O seu coraçãozinho nada mais teve para comer. Ela é, de facto, espiritualmente, um agneau pré-salé, a minha cordeirinha marinhã.

 

A rapariga, que todo o tempo se sentara acocorada junto da sua velha amiga, ergueu o busto quando Miss Malin começou a contar a sua história. Sentou-se muito direita, então, e os seus olhos cor de âmbar sob as delicadas e longas sobrancelhas, que eram como as marcas nas asas de uma borboleta, ou um par de asas alongando-se, fixavam-se no ar, altivos de mais para fitarem os ouvintes. A despeito da gentileza da fronte, era um animal perigoso, pronto a saltar. Mas sobre o quê? Sobre a vida em geral.

 

- Já ouvistes falar - perguntou Miss Malin - do conde August Platen-Hallermund? - Ao som deste nome a rapariga estremeceu, ficando pálida. Uma treva ameaçadora desceu sobre os seus olhos claros. - Pronto, pronto - disse Miss Malin - não voltaremos a pronunciar o seu nome. Como ele não é um homem, mas um anjo, chamar-lhe-emos conde Seraphina. Tomaremos assento esta noite num lit de justice em que julgaremos o conde. A verdade sobre ele tem de ser dita, nem que seja apenas aqui. Quando em menina aprendia francês - e a velha senhora dirigiu-se ao cardeal, por sobre as cabeças dos dois jovens, com súbita familiaridade - a primeira frase do meu livro de leitura rezava assim: Le lit est une bonne chose; si l'on n'y dort pas, l'on s'y repose. Como tanta outra coisa que aprendemos em meninos, a vida provou que isto era uma rematada falácia. Mas poder-se-á aplicar ainda ao leito da justiça.

 

- Com efeito, li a poesia e a filosofia do conde August - disse o cardeal.

 

- Eu não - disse Miss Malin. - Quando, no Dia do Juízo Final, for chamada a prestar contas das mui-tas horas que passei em maus lugares, poderei dizer ainda em minha defesa: «Mas não li os poemas do conde Au-gust von Platen.» Sabe Vossa Eminência quantos poemas ele escreveu?

 

- Ah, não saberei dizer - replicou o cardeal.

 

Miss Malin disse: - Cinq ou six mille? C'est beaucoup. Combien en at-il de bons? Quinze ou seize. C'est beaucoup, dit Martin.

 

- Vossa Eminência leu - continuou ela - a história do infeliz mancebo que foi transformado num Carlin por uma bruxa, e que não po-dia voltar à primitiva forma a menos que uma virgem pura, que não tivesse conhecido homem, lesse, numa noite de São Silvestre, os poemas de Gustav Pfizer sem adormecer? Pois bem, a amiga, compassiva, ao ouvir isto respondeu-lhe: «Então, infelizmente, não posso ajudá-lo. Em primeiro lugar, não sou virgem. Em segundo lu-gar, nunca poderia, se lesse os poemas de Gustav Pfizer, impedir-me de adormecer.» Se o conde August for algum dia transformado em carlin, e exactamente pelas mesmas razões, eu não poderei ajudá-lo.

 

- Este homem, então, este conde Seraphina - disse, retomando o fio à história depois do breve adejo do seu espírito - é o tio desta menina, e ela se criou em sua casa depois da morte dos pais. E assim, meus bons amigos, aliviarei as trevas desta noite, imprimindo nelas a treva mais negra da história de Calypso.

 

«O conde Seraphina - disse Miss Malin - meditava muito sobre os assuntos celestiais. E, como deveis calcular, se haveis lido os seus poemas, estava convencido que a nenhuma mulher foi alguma vez permitido que entrasse no Paraíso. Sentia aversão e desconfiança por tudo o que fosse feminino; ficava em pele de galinha.

 

A sua ideia de Paraíso era, então, uma longa fila de lindos rapazes, em transparentes e alvas túnicas, caminhando dois a dois, cantando os seus poemas e a sua música, em tão doces trinados como foram os do senhor Jonathan, ou discutindo a sua filosofia, ou absorvidos nos seus livros sobre aritmética. A propriedade que tinha em Angelshorn, no Meclemburgo, quis torná-la num paraíso assim, num Olimpo de cera á la Von Platen, e no exacto centro dele tinha uma coisa muito embaraçosa para os dois: esta menina, que ele duvidava que pudesse passar por anjo.

 

Enquanto ela foi pequenina, agradava-lhe a sua companhia, pois ele aprecia a beleza e a graça. Mandava que lhe vestissem fatos de rapaz, todos de veludo e rendas, e consentiu que o seu cabelo crescesse num tal labirinto de anéis jacintinos como os que o jovem Ganimedes exibia na corte de Júpiter. Estava todo ocupado pelo pensamento de se mostrar ao mundo como um prestidigitador, um alto praticante da magia branca, capaz de transformar essa gota de sangue do próprio demónio - uma rapariga - no doce objecto que mais se aproxima dos anjos - um rapaz. Ou talvez sonhasse criar um ser de espécie diferente, um objecto de arte, que não fosse rapaz nem rapariga mas um puro Von Platen. Ocasiões houve, talvez, em que o seu sangue delicado de artista se exaltou nas veias contemplando este pensamento. Ensinou à menina o grego e o latim. Tentou transmitir-lhe a ideia da beleza das altas matemáticas. Mas quando lhe dissertava sobre a infinita beleza do círculo, eis que ela pergunta: «Se era assim tão belo, que cor tinha - não seria azul? Ah, não, disse ele, não tinha cor nenhuma». Desde esse momento começou a duvidar que ela se transformasse em rapaz.

 

Continuou a observá-la, preso de terríveis dúvidas, cada vez mais virtuosamente indignado com os sinais do seu próprio erro. E quando viu que já não restava lugar a dúvidas, que o seu fracasso era uma certeza, com um calafrio desviou os olhos dela, e aniquilou-a. A sua beleza de menina foi a sua sentença de morte. Isto aconteceu há dois ou três anos. Desde então ela não tem existido. O senhor Tímon é livre de a invejar.

 

O conde Seraphina tinha grande predilecção pela Idade Média. O seu enorme castelo de Angelshorn datava desses tempos, e ele não se poupara a esforços para fazer com que o seu interior, como já o exterior, voltasse ao tempo das Cru-zadas. O castelo não fora feito, como não o era o pró-prio conde, para se espalhar muito sobre a terra, mas as altas torres aspiravam ao céu, envoltas no fino fumo de uma revoada de gralhas, e as profundas masmorras pareciam enterrar-se em direcção ao fosso. A luz do dia en-trava, entre paredes de dez palmos de espessura, por ve-lhos vitrais, como canela e sangue de boi, ao comprimento das salas, onde, em tapeçarias desbotadas, unicórnios eram mortos e os Magos com seus séquitos levavam a Belém o ouro e a mirra. Aqui, o conde escutava, ou tocava a viola de gamba e a viola d'amore e praticava tiro com arco. Nunca lia um livro impresso, e por isso mandava copiar à mão os au-tores modernos, em letras de escarlate e azul ultramarino.

 

Gostava de imaginar-se o abade de um mosteiro altamente selectivo, onde só os jovens e belos monges de brilhantes talentos e doces maneiras eram admitidos. Ele e o seu círculo de jo-vens amigos sentavam-se a jantar em velhos bancos de carvalho esculpido, e usavam hábitos capuchos de seda púrpura. A sua casa era uma abadia sobre o solo do Norte, um monte Athos onde nem galinha ou vaca se consente, nem sequer abelhas bravas, que são governadas por uma rainha. Sim, o conde era mais zeloso que os monges do Athos, pois quando ele e o seu serralho de lindos jovens bebiam por vezes o vinho por uma caveira, para terem presente a ideia da morte e da eternidade, ele cuidava para que a caveira não fosse de mulher. Ah, o nome desse homem traz a desonra aos meus lábios! Seria melhor que um homem matasse uma mulher para obter uma caveira por onde bebesse o seu vinho, que excitar-se ao bebê-lo, por assim dizer, pelo seu próprio crânio.

 

Neste castelo perverso a aniquilada menina vagueava. Era a coisa mais bela que nele havia, e teria adornado a corte da rainha Vénus, que muito provavelmente faria dela a guardiã das suas pombas, pomba que ela própria era. Mas aqui, sabia que não tinha existência, pois ninguém a olhava. Onde, Eminência, onde nasce a música - sobre o instrumento ou no ouvido que o escuta? A beleza de uma mulher é criada nos olhos de um homem. Falou, Tímon, de Lúcifer, que ofendeu a Deus por olhá-Lo para ver como Ele era. Isso mostra que o senhor adora uma divindade masculina. Uma deusa perguntaria em primeiro lugar ao seu adorador: «Que lhe pareço eu?»

 

Perguntar-me-ão talvez: - Nem um dos acetinados favoritos do castelão olhou, por sua iniciativa, e percebeu como ela era linda? - Não. Esta é a história do fato novo do Imperador, e é contada para vos provar o poder da vaidade humana. Esses bonitos rapazes tinham muito medo que os achassem insuportavelmente idiotas e indignos dos seus cargos. Andavam ocupados a discutir Aristóteles, e a dissertar sobre a doutrina e os mistérios dos escolásticos antigos e medievais.

 

O próprio Imperador, como vos lembrareis, acreditava que estava magnificamente vestido. Assim a donzela acreditava que não era digna de ser olhada. Todavia, em seu coração não podia acreditá-lo, e esta eterna luta entre o instinto e a razão devorava-a, tanto quanto devorou Hércules, ou outro herói tradicional da tragédia. Parava por vezes a olhar as imponentes armaduras nos corredores de Angelshorn. Estas, sim, pareciam homens verdadeiros. Sentia que elas haveriam de ser seus partidários, se não estivessem todas vazias. Começou a recear qualquer presença, e errava, selvagem, na solidão do brilhante círculo do conde. Mas tornou-se também feroz, e bem podia, numa noite escura, ter posto fogo ao castelo.

 

Por fim, tal como o se-nhor, Tímon, que não suportava a existência e queria lançar-se à água da ponte de Langebro, ela também já não suportava a inexistência em Angelshorn. Mas a sua missão foi mais fácil; o senhor só queria desaparecer. Ela, não; ela tinha de criar-se a si própria. Crescera por tanto tempo entre as perversas heresias desses falsários da verdade, e fora tão completamente torturada e ameaçada com a fogueira, que se encontrava agora pronta a renegar qualquer deus. Abu Mirrah tinha um anel que o tornava invisível, mas quando quis casar-se com a princesa Ebadu, e não conseguia tirá-lo do dedo, decepou o dedo com o anel. Do mesmo modo Calypso se resolveu a cortar os longos cabelos, e a decepar os jovens seios, para se assemelhar aos que a rodeavam. Este acto diabólico resolveu-se ela a cometê-lo numa noite de Verão.»

 

Neste ponto da narrativa de Miss Malin, a rapariga, que até ali tinha fitado um ponto distante à sua frente, volveu os olhos terríveis para a narradora e dispôs-se a escutá-la com um novo interesse, como se ela própria ouvisse a narrativa pela primeira vez. Miss Malin tinha um opulento poder imaginativo. Mas ainda assim a história, correcta ou não, era para a sua heroína um símbolo, uma imagem alegórica do muito por que tinha passado em realidade, e isto o reconheciam os olhos claros e profundos que fitavam a velha senhora.

 

«À meia-noite, Eminência - prosseguiu Miss Malin - a donzela ergueu-se para o seu rendez-vous sinistro. Tomou um candelabro em uma das mãos e um afiado machadinho na outra, e ia semelhante a Judite quando foi matar Holofernes. Mas que treva, meus amigos, que treva no castelo de Angelshorn, comparada com a escuridão da tenda de Dotain. Os anjos devem ter desviado os olhos e chorado.

 

Atravessou toda a casa até chegar a um aposento onde sabia haver um longo espelho na parede. Era uma sala que ninguém usava; ninguém viria ali. A menina perdida fez descer as roupas até à cintura e fixou os olhos no espelho, não se consentindo um pensamento, para que ele não a fizesse temerosa do seu intento.

 

A essa mesma hora jovens recém-casados, em leitos nupciais, descobriam, trémulos, acariciavam e beijavam os corpos das jovens esposas. À luz de quinhentas velas de cera grandes damas mudavam os destinos das nações com um movimento dos ombros decotados. Até nas casas de má nota de Nápoles as velhas madamas tisnadas, arrastando as raparigas para junto da vela na mesa de cabeceira e baixando-lhes os corpetes, regateavam com os clientes por um preço mais alto. Calypso, ao baixar os olhos à alvura do seu colo reflectida no espelho baço, pois nunca se tinha visto nua num espelho, experimentava o gume do machado no dedo mínimo.

 

Nesse momento ela viu no espelho uma grande figura por trás dela. Parecia mover-se, e ela voltou-se. Não estava ali ninguém, mas da parede pendia um enorme quadro antigo, que escurecera com o tempo, onde as partes mais claras, porém, iluminadas pela vela, sobressaíam. Representava uma cena de ninfas, de faunos e de sátiros, com os centauros brincando em bosques e nas planícies floridas. Fora trazido muitos anos antes da Itália por um dos antigos senhores do castelo, mas, considerado indecente, antes ainda do tempo do presente conde fora retirado das salas. Não era o quadro de um mestre, mas tinha muitas figuras. Em primeiro plano, três jovens ninfas nuas, prateadas como rosas brancas, empunhavam ramos de árvore.

 

Calypso percorreu toda a extensão do quadro, erguendo a vela e estudando-o gravemente. Que se tratava de um quadro escandaloso não tinha ela conhecimento para o jul-gar; nem duvidou que fosse a representação fiel de seres reais. Olhava com grande interesse os sátiros e os centauros. Na sua existência solitária desenvolvera uma ternura apaixonada pelos animais. Para o espírito do conde August a existência de tais criaturas era um enigma e uma tragédia, e não havia animais em Angelshorn. Mas à menina pareciam mais amoráveis que os seres humanos, e ficou encantada por descobrir que havia quem possuísse tantas das suas características. Mas o que a surpreendeu e subjugou foi o facto de estes seres fortes e belos estarem obviamente concentrando a atenção em perseguir, adorar e abraçar raparigas da sua idade, em figura e rosto semelhantes a ela, e de tudo aquilo ser em honra dos seus encantos e inspirado por eles.

 

Esteve olhando o quadro por longo tempo. Voltou por fim ao espelho e ali ficou, contemplando-se nele. Possuía o sentido artístico de seu tio, e sabia por instinto quais as coisas que entre si se harmonizavam. Agora sentia-se invadir por uma sensação de grande harmonia, até ali não experimentada.

 

Sabia agora que tinha amigos neste mundo. Por direito de beleza podia figurar sob essa luz dourada e branda, o céu azul e as nu-vens cinzentas, e nas intensas sombras, castanhas, dessas planuras e desses olivais. O seu coração encheu-se de gratidão e orgulho, pois todos ali a olhavam e reconheciam como sua igual. O próprio deus Dionísio, que estava presente, a fitava, risonho, nos olhos.

 

A menina olhou em volta e viu, em vitrinas, o que antes nunca vira em Angelshorn: roupas de mulher, leques, jóias, e sapatinhos pequenos. Tudo isto pertencera à sua bisavó. Pois, e estranho é dizê-lo, o conde tivera uma avó. Tivera mãe, até, e tempos houve em que, bon gré mal gré, tinha entrado em íntimo contacto com o corpo de uma jovem loura. Ele sentia uma ternura pela avó, que o tinha sovado em pequeno, e no centro dessa abadia deixara intacto o seu boudoir. Um leve aroma de essência de rosas ainda ali vivia.

 

A menina passou a noite nesse quarto. Vestiu e despiu todos os vestidos de gala, pôs e tirou os colares de pérolas e os diamantes. Olhou no espelho o quadro, procurando o aplauso dos centauros - com que vestes ficava ela melhor? Dúvidas não as tinha. Deixou por fim esse quarto para se di-rigir aos aposentos do castelão. Antes de fechar a porta beijou as ninfas, tão alto quanto puderam chegar os seus lábios, como se elas fossem suas amigas queridas.

 

Subiu as escadas com toda a suavidade, e aproximou-se do grande leito do tio. Ali estava ele, entre as cortinas de seda amarela, os olhos fechados, o nariz empinado, branco numa fina camisa branca de dormir. A menina envergava ainda um vestido amarelo de brocado e, de pé junto à cama, parecia Psique junto ao leito de Amor. Psique temera ver um monstro e achara um deus. Mas Calypso julgara o tio um ministro da verdade, um árbitro do gosto, um Apolo, e que achou ela? Um pobre boneco de pano, a caricatura de uma caveira. Corou intensamente. Sentira medo desta criatura - ela, que era a irmã das ninfas e tinha centauros por companheiros de folguedos? Ela era cem vezes mais forte do que ele!

 

Se ele tivesse acordado e a tivesse visto junto à sua cabeceira, ainda com o machadinho na mão, talvez tivesse morrido de medo, ou talvez a visão lhe fizesse uma outra espécie de bem. Mas ele continuou a dormir - e só Deus sabe que sonhos eram os seus - e ela não lhe cortou a cabeça. Ofereceu-lhe em vez disso um pequeno epigrama rápido, do seu livro de francês, que em tempos fora feito a um rei que também se imaginara muito amado:

 

 

           Ci-gìt Louis, ce pauvre roi,

           L'on dit qu'il fut bon - mais à quoi?

 

           E não lhe guardou o menor

           rancor; porque ela não era

           uma escrava liberta, mas um

           conquistador com imponente

           séquito, que se podia

           permitir esquecer.

 

Saiu do quarto tão depressa como havia chegado, e apagou a vela, pois na noite de Verão conseguia achar o caminho sem luz. À sua volta o serralho estava silencioso; só quando passou uma porta ouviu dois rapazes discutir o amor divino. Tanto se lhe dava que estivessem vivos ou mortos.

 

Ao levantar o pesado ferrolho medieval da porta principal, levantou um peso do próprio coração.

 

Quando saiu, chovia. Até a noite parecia querer tocá-la.

 

Caminhou pelos pântanos, grave como Ceres levando o trovão tomado a Júpiter, e que, mesmo quando franze o sobrolho, cheira a morangos e a mel. Por todo o horizonte os relâmpagos da deusa faiscavam em sua honra. Deixou que o vestido arrastasse pelas urzes. E porque não? Se um jovem salteador a encontrasse, ela teria feito dele talvez o seu marido, imediatamente, até que a morte os separasse; ou talvez lhe tivesse cortado a cabeça, e só Deus sabe qual dos dois destinos seria o mais invejável.

 

Ela não tinha uma cançoneta alegre nos lábios. Fora educada gravemente, como boa protestante, e a vida não lhe ensinara frivolidades. Em seu coração repetia o hino desse bom Paul Gerhardt, alterando-o tão-somente no pronome pessoal:

 

           Contra mim quem pode erguer-se?

           O relâmpago está em minha mão.

           Quem ousa trazer desolação

           Ao que eu decidi abençoar?

 

De manhã cedo chegou à casa onde eu me havia instalado. Estava toda encharcada, como as árvores do jardim. Ela conhecia-me, pois sou sua madrinha, e pressentira que eu sabia, e poderia contar-lhe, das ninfas e dos centauros. Encontrou-me quando eu subia para a carruagem, a caminho dos banhos de Norderney. Assim foi que o destino nos uniu para, afinal, como o senhor, senhor Tímon, buscarmos remédio na água salgada.»

 

- E para brilharem sobre ela - disse o cardeal com a mesma suavidade com que estivera escutando a narrativa da velha senhora - uma Stella Maris na treva deste palheiro.

 

- Na realidade, Madame - disse Jonathan - não sei se achará estranho, mas nunca na vida pensei, até Vossa Excelência mo dizer agora, que as mulheres bonitas podiam sofrer. Julgava-as flores preciosas, que devemos cuidar com desvelo.

 

- E o que sente agora, que já lho disse? - perguntou-lhe Miss Malin.

 

- Madame - disse o jovem, depois de reflectir - sinto que é edificante pensar que, no que toca às mulheres, estamos sempre sem a razão.

 

- É um jovem honesto, o senhor - disse Miss Malin. - O seu lado sangra de onde uma vez lhe foi retirada a costela.

 

- Se eu estivesse no castelo de Angelshorn - prosseguiu ele, muito agitado - não me importaria de morrer ao serviço desta dama.

 

- Pois bem, Jonathan e Calypso - disse Miss Malin -, seria um pecado e pura blasfémia se os dois morressem solteiros. Ambos foram trazidos aqui, de Angelshorn e Assenas, para os braços um do outro. O senhor pertence-lhe a ela, ela pertence-lhe a si, e o cardeal e eu, que aqui fazemos as vezes dos vossos pais, vos daremos a nossa bênção.

 

Os dois jovens olhavam-se.

 

- Se alguém disser - prosseguiu Miss Malin - que não sois iguais em nascimento, responderei que pertenceis à ordem de cavalaria do palheiro de Norderney, fora da qual nenhum membro dela pode casar-se.

 

A rapariga, em grande excitação, soergueu-se e ficou de joelhos.

 

- Não viste, Calypso - dirigiu-se-lhe Miss Malin com bondade - como ele te seguiu até aqui, e como, no momento em que viu que ficavas comigo, nada no mun-do o faria permanecer no barco? As muitas águas não poderiam extinguir o amor, nem os dilúvios podem afogá-lo.

 

- É verdade? - perguntou a rapariga volvendo os olhos para o rapaz de modo tão intenso e desvairado como se a própria vida ou a morte dependessem da sua resposta.

 

- Sim, é verdade - disse Jonathan. Não era de modo algum verdade. Nessa altura nem dera pela existência da rapariga. Mas o poder imaginativo da velha senhora era suficiente para arrebatar qualquer um. O rosto da rapariga, ao ouvir aquelas palavras, empalideceu, tornando-se de súbito de uma cor rara de pérola. Os seus olhos ficaram maiores e mais escuros. Fulgiam para ele como estrelas, com um brilho mais líquido, mais intenso do que as lágrimas, e ao ver esse rosto transformado Jonathan caiu de joelhos sobre o feno.

 

- Oh, Jonathan - disse Miss Malin - quer agradecer ao barão, de joelhos, por se ter preocupado consigo?

 

- Quero, Madame - disse o jovem.

 

- E tu, Calypso - perguntou ela à rapariga - queres que ele olhe para ti por todo o sempre?

 

- Quero - disse a rapariga.

 

Miss Malin lançou-lhes um olhar triunfante.

 

- Então, Eminência - disse ela ao cardeal - consente em casar estes dois jovens, que tanto precisam casar-se?

 

Os olhos do cardeal perscrutaram gravemente os dois jovens, que se coloriram de cor tão rubra como se estivessem em frente de um vivo lume.

 

- Consinto - disse ele. - Levantai-me.

 

O futuro noivo ajudou-o a erguer-se.

 

- Tereis - disse Miss Malin - um cardeal a celebrar o vosso casamento, e uma Nat-og-Dag por dama de honor, o que mais ninguém terá no futuro. No vosso casamento terá de haver mais intensidade do que nas uniões mornas que geralmente os outros celebram, pois o senhor deverá vê-la, ouvi-la, conhecê-la com essa energia que pretendia usar para se lançar ao mar da ponte de Langebro. Um beijo vos compensará pelos gémeos que não nasceram, e à alvorada celebrareis as vossas bodas de ouro.

 

- Eminência - disse ela, dirigindo-se ao cardeal - sendo as circunstâncias tão incomuns, pois não haverá necessidade de procriar, visto o barco não poder aguentar mais dos que nós somos, e não correndo eles o risco de incesto, creio eu; e, quanto à companhia uns dos outros, não podemos fugir-lhe ainda que o quiséssemos, penso que Vossa Eminência terá de estabelecer um novo ritual do matrimónio.

 

- Tenho consciência do facto - disse o cardeal.

 

Para desembaraçar o centro do círculo, Miss Malin levantou a lanterninha na sua mão ossuda, e Calypso retirou o pão e o barrilete. O cão, vendo a mudança de posições no grupo, levantou-se e vagueou entre eles, intranquilo. Instalou-se por fim junto da jovem noiva.

 

- Ajoelhai, meus filhos - disse o velho sacerdote.

 

O cardeal ergueu-se, a figura enorme e pesada pairando sobre eles no largo aposento mal iluminado. Nesse instante, como se levantasse o vento, ouviram o queixume das águas que os rodeavam.

 

- Não poderei - disse o cardeal, muito lentamente - evocar aqui, nesta noite, a magnificência da catedral, ou a presença de uma congregação, que sancionem a vossa promessa. Não tenho tempo para vos ensinar ou preparar. Tereis, portanto, de aceitar as minhas palavras baseadas unicamente na minha autoridade. Vós dois, soube-o hoje - prosseguiu ele depois de uma pausa - vistes abalada a vossa fé na coesão e na justiça da vida. Tende fé em mim, agora, eu vos ajudarei. Tendes um anel?

 

Os jovens não tinham um anel, e ficaram muito desapontados por isso, mas Miss Malin tirou do dedo um magnífico diamante, que entregou ao velho cardeal.

 

- Jonathan - disse ele - coloca este anel no dedo desta jovem.

 

O rapaz assim fez, e o cardeal colocou as mãos sobre a cabeça dos noivos ajoelhados.

 

- Jonathan - repetiu o cardeal - acreditas agora que estás casado?

 

- Sim - disse Jonathan.

 

- E tu, Calypso? - perguntou o cardeal à rapariga.

 

- Sim - murmurou ela.

 

- E que a partir deste momento vos amareis e honrareis um ao outro até ao fim de vossas vidas, e mesmo na morte e na eternidade?

 

- Sim - responderam.

 

- Então - disse o cardeal - sois marido e mu-lher.

 

Miss Malin, perto de-les, erguia a lanterna como uma sibila.

 

As horas de descanso no palheiro não tinham dado forças ao cardeal, que provavelmente nunca mais haveria de recuperar-se. Eram menos firmes os seus movimentos do que antes, ao sair do barco. O seu corpo parecia vacilar, estranhamente, ao ritmo do marulhar das águas.

 

- Quanto ao estado do matrimónio - disse ele - e ao amor, suponho que nenhum de vós sabe alguma coisa a esse respeito? - Os dois jovens abanaram a cabeça. - Não poderei - disse uma vez mais o cardeal - ter aqui por testemunhas das minhas palavras as Escrituras ou os Doutores da Igreja. Não poderei, sequer, pois estou muito cansado, recordar os textos e os exemplos com que vos esclareça e ins-trua. De novo tereis de aceitar as minhas palavras baseados na minha autoridade de homem muito velho, que cumpriu uma vida longa e estranha estudando os assuntos divinos. Estes assuntos, digo-vos eu, são divinos. Jonathan, crês e afirmas que o sejam?

 

- Sim - disse Jonathan.

 

- E tu, Calypso? - perguntou à noiva.

 

- Sim - disse ela.

 

- Então é tudo - concluiu o cardeal.

 

Como ele não parecia disposto a acrescentar mais coisa alguma, o jovem casal, após um instante, ergueu-se, mas estavam ambos tão profundamente comovidos que não puderam separar-se. Ali, de pé, olharam um para o outro pela primeira vez desde que haviam sido chamados a casar-se, e este só olhar dissipou a timidez de ambos. Voltaram aos seus lugares sobre o feno.

 

- Quanto a nós, Madame - disse o cardeal dirigindo-se, por sobre a cabeça dos jovens, a Miss Malin, mas aparentemente esquecendo que já não se encontrava no púlpito, pois falou com a mesma solenidade com que celebrara a cerimónia do casamento -, que ambos somos apenas espectadores nesta ocasião, e conhecemos mais do amor e do casamento, reflictamos na lição que eles, antes de tudo e sobretudo, nos ensinaram sobre a tremenda coragem do Criador deste mundo. Todo o ser humano tem, creio eu, cedido à ideia de criar ele próprio um mundo. O Papa quis ter a bondade de encorajar em mim esses pensamentos, quando eu era jovem. Reflecti então que eu próprio poderia, se me fosse dada omnipotência e carta branca, ter feito um belo mundo. Talvez me tivesse lembrado de criar as árvores e os rios, os di-ferentes tons da música, a amizade e a inocência; mas, sob minha palavra de honra, não me atreveria a dispor estes assuntos de casamento e amor tal como eles existem, e o meu mundo perderia muito com isso. Que formidável lição para todos os artistas! Não tenhais medo do absurdo, nem receeis o fantástico. Perante um dilema, escolhi a solução mais inédita, a mais perigosa. Sede corajosos! Ah, Madame, o muito que nós temos de aprender!

 

E dito isto, mergulhou em profundos pensamentos.

 

Ao sentarem-se, as posições que primeiro tomaram não se alteraram muito, excepto que os recém-casados agora se sentavam mais jun-tos e davam as mãos. Por vezes voltavam o rosto um para o outro. A lanterna ficou sobre o chão em frente deles. Miss Malin e o cardeal, depois do esforço de os casarem, ficaram silenciosos por uma meia hora, e beberam umas gotas do barrilete de gin.

 

Miss Malin sentava-se muito direita, mas agora parecia um corpo morto há vinte e quatro horas. Estava profundamente comovida e feliz, como se tivesse realmente casado uma filha. Grandes arrepios a percorriam da cabeça aos pés. Quando por fim retomou a conversa a sua voz era débil, mas sorria. Tinha provavelmente estado a reflectir sobre o casamento e o Jardim do Éden.

 

- Vossa Eminência acredita - perguntou ela - no pecado original?

 

O cardeal reflectiu na questão durante algum tempo, depois inclinou-se para a frente, os cotovelos sobre os joelhos, e afastou um pouco a ligadura da fronte.

 

- Essa é uma questão - disse ele numa voz quase diferente, mais grossa que antes, muito mais vigorosa também, como se no mesmo gesto ele tivesse afastado dez anos de vida - sobre a qual tenho pensado muito. É agradável ter a oportunidade de falar dela esta noite.

 

- Estou convencido - declarou - que houve um pecado, mas não sou de opinião que tenha tido como consequência a queda do homem. Creio que foi a divindade que sofreu a queda. Estamos agora servindo uma inferior dinastia do Céu.

 

Miss Malin estava preparada para um engenhoso ar-gumento, mas a estas palavras ficou chocada, e por um momento manteve as pequeninas mãos sobre os ouvidos.

 

- Que palavras terríveis para os ouvidos de uma legitimista - exclamou.

 

- Que serão elas, então - perguntou solenemente o cardeal - para os lábios de um legitimista? Durante setenta anos as calei. Mas a senhora perguntou-mo e, Madame, se a verdade tem de dizer-se, eis um bom lugar e uma boa hora para o fazer. Em algum tempo aconteceu, no Céu, uma tremenda mudança, semelhante à Revolução Francesa na Terra, que trouxe as suas sequelas. O mundo de hoje, como a França de hoje, está nas mãos de Louis Philippe.

 

- Há tradições ainda - prosseguiu - do Grand Monarque e do Grand Siècle. Mas ninguém, sensível à grandeza, poderá acreditar que o Deus que criou as estrelas, o mar e o deserto, o poeta Homero e a girafa, é o mesmo Deus que hoje está criando, e sustendo, o rei da Bélgica, a Escola Poética da Suábia, e as ideias morais do nosso tempo. Servimos Louis Philippe, um Deus Humano, tal como o rei de França é um rei burguês.

 

Miss Malin fitava-o, pálida, os lábios entreabertos.

 

- Minha senhora - disse o cardeal - nós que somos por nascimento e herança os grandes do reino, e os dignitários do rei, e temos o código do Grand Monarque correndo nas nossas veias, temos o dever de servir o rei legítimo, indepen dentemente do que possamos pensar dele. Temos de perpetuar a sua glória. Porque o povo não pode duvidar da grandeza do rei ou suspeitar das suas fraquezas, e a res-ponsabilidade de manter a fé desse povo é nossa, Madame. O barbeiro da corte não foi capaz de manter o segredo; teve de murmurar, no cana vial, que o rei tinha orelhas de burro. Mas nós, seremos nós barbeiros? Não, Madame, não somos barbeiros.

 

- Não demos o nosso melhor? - perguntou Miss Malin com orgulho.

 

- Sim - disse o cardeal - demos o nosso melhor. Se olhar em sua volta, Madame, verá por toda a parte os feitos dos fiéis que trabalharam, anónimos, para a honra do seu rei. Poderia citar-lhe exemplos da história, nos quais tenho reflectido. Citar-lhe-ei alguns apenas. Deus criou a concha, que é um bonito objecto, mas não mais do que aquilo que até Louis Phi lippe poderia descobrir ao brincar com um compasso. Da concha criámos nós toda a arte rococó, que é um gracejo encantador, no verdadeiro espírito do Grand Monarque. E se ler a história dos grandes, achará que os camareiros e as aias tra balharam para servir o nosso amo de boa memória. O papa Alexandre e seus filhos, de acordo com as últimas in vestigações históricas, eram uma família amável, dada à jardinagem e à decoração de interiores, e cheia de afecto filial, et voilá tout - obviamente uma obra de Louis Philippe. Mas desse material indiferente nós talhámos as nossas figuras dos Bórgias. Achará casos muito semelhantes se estudar os factos sobre os nomes mais famosos da História. Ou até, se não tiver objecções, Madame - prosseguiu o velho cardeal - a morte: o que é a morte, hoje em dia, nas mãos de Louis Philippe? Uma negação, uma decomposição, e nem sequer de bom gosto. Mas veja o que fizemos dela fiéis ao nosso Deus: o Mausoléu Imperial do Escorial, Madame, e a Marcha Fúnebre de Herr Ludwig von Beethoven. Como poderíamos tê-los feito, pobres seres humanos que nós somos e, além do mais, condenados a sofrer essa indigência, se não tivéssemos no nosso coração o amor imorredoiro pelo nosso Senhor que nos deixara, o grande aventureiro, a quem a nossa família prestou pela primeira vez um juramento de fidelidade?

 

- Mas com tudo isto - prosseguiu ele muito gravemente - o fim está próximo. Ouço cantar os galos. O rei Louis Philippe não durará muito. Na sua causa o sangue do próprio Rolando seria derramado em vão. Ele tem todas as qualidades de um bom burguês, e nenhum dos vícios de um Grand Seigneur. Nenhum título reclama que o de primeiro cidadão do seu reino, e nenhum privilégio excepto o que decorre da sua lealdade ao código da moral burguesa. Quanto a isso, os dias da realeza estão contados. Farei uma profecia, Madame: o bom rei de França não durará outros treze anos. E o bom Deus, que Louis Philippe e a sua burguesia adoram hoje, tem todas as virtudes de um ser humano íntegro; não reclama quaisquer privilégios divinos excepto os que decorrem das suas virtudes. Nós, es peramos uma atitude moral do nosso Deus, tal como não colocamos o nosso rei acima do código penal. O Deus humanizado terá de partilhar o destino do rei burguês. Eu próprio fui ensinado por seres humanos na fé em um Deus humanizado. Isso tocou, para mim, as raias do intolerável. Que revelação, Madame, que bênção para o meu coração, quando, nas noites mexicanas, senti as grandes tradições erguerem-se de um Deus que não se ralava nem um pouco com os nossos mandamentos! E assim, Madame, estamos nós morrendo por uma causa perdida.

 

- Para obtermos a nossa recompensa no Paraíso - disse Miss Malin.

 

- Ah, não, Madame - disse o velho - não iremos para o Paraíso, nem a senhora nem eu. Veja que o Rei Louis hoje condecora quem ele eleva ao pariato, quem ele coloca nos mais altos cargos. São todos idóneos burgueses, todos; nem um só nome da velha aristocracia aparece na lista. Nem a senhora nem eu conseguimos agradar ao Senhor hoje em dia; até O irritamos um pouco, e Ele bem o demonstra na Sua atitude para connosco. A velha nobreza, cujas maneiras e nomes nos fazem recordar as tradições do Grande Monarca, deve ser um tanto desagradável para o rei Louis Philippe.

 

- Então não podemos ter esperança no Céu, nem Vossa Eminência nem eu? - perguntou Miss Malin orgulhosamente.

 

- Não sei se lhe agradaria lá entrar - disse o velho cardeal - se lhe fosse permitido dar uma vista de olhos ao Céu. Deve ser o rendez-vous da burguesia. Em minha opinião, Madame, nunca houve um grande artista que não tivesse o seu quê de charlatão; nem um grande rei, nem um deus. A charlatanice é uma qualidade indispensável na corte, no teatro, e no Paraíso. Trovões e relâmpagos, a lua nova, um rouxinol, uma rapariga - tudo isso são charlatanices, ou uma gabarolice divina. Tal como a gallérie de glaces de Versalhes. Mas o rei Louis Philippe não tem uma gota de charlatão nas veias; ele é completa e genuinamente idóneo. O Paraíso, hoje em dia, é muito provavelmente isso mesmo. A senhora e eu não fomos feitos para a mediania. Faremos melhor figura no Inferno. Fomos educados para ele.

 

É uma satisfação, Madame, faremos algo que aprendemos a fazer bem. Deve ser uma satisfação para si, tenho a certeza, dançar um minuete. Vejamos um exemplo. Digamos que eu fui educado desde criança a fazer uma determinada coisa. Tomemos por exemplo retórico que eu fui ensinado a dançar na corda. Ensinaram-me, sovaram-me para que eu aprendesse. Se caio e me magoo, tenho, ainda assim, de subir de novo para a cor-da. Minha mãe chorou, mas ainda assim encorajou-me a fazê-lo. Teve de passar sem comer para pagar ao funâmbulo que me ensina. E eu tor-nei-me um bom funâmbulo, digamos o melhor funâmbulo do mundo. É uma boa coisa, então, ser funâmbulo. E serei amplamente recompensado se, numa ocasião especialíssima, na presença de um grande monarca estrangeiro, o meu rei disser ao seu real convidado: «Tendes de ver isto, Majestade e meu Irmão; é o meu melhor espectáculo, o meu servo Hamilcar, o fu nâmbulo!» Mas que seria, Madame, se ele dissesse: «Não faz muito sentido, dançar na corda. É um espectáculo tosco; vou mandar que parem.» Que espécie de actuação, por parte do rei, seria essa para comigo?

 

- Já esteve em Espanha, Madame? - perguntou ele à velha senhora.

 

- Oh, sim - disse Miss Malin - um lindo país, Eminência. Fizeram-me serenatas sob as minhas janelas, e o próprio Mon sieur Goya pintou o meu retrato.

 

- Assistiu a uma tourada? - perguntou o cardeal.

 

- Assisti - disse Miss Malin. - É uma coisa muito pitoresca, embora não seja do meu gosto.

 

- É uma coisa pitoresca - disse o cardeal. - E o que julga, Madame, que o touro pensa da tourada? O Touro plebeu pode até pensar: «Deus tenha piedade de mim, que terrível situação esta. Que desgraça, que má sorte a minha. Mas tenho de a suportar.» E ficaria profundamente agradecido, comovido, porventura, até às lá-grimas de humildade, se o rei, a meio da tourada, des-se ordem para que parassem, tanto se compadecia dele. Mas o touro de raça pura logo se harmoniza com ela e diz: «Ah, isto é que é uma tourada!» A ele ferverá o sangue, e lutará, e morrerá, porque de outra maneira aquilo não seria uma tourada. Será também lembrado durante muitos anos, como o touro negro que deu tão boa faena, e que matou o espada. Mas se, a meio, quando o sangue desse touro já correu, ao rei lembrasse de parar a tourada, que pensaria então o touro de raça pura? Voltar-se-ia talvez contra o público, contra o próprio inteligente. E rugiria: «Deviam ter pensado nisso antes!» O rei terá o seu espectáculo, Madame. Ele me fez e criou para isso, e eu estou pronto a lutar e a morrer em presença do Grande Monarca, quando ele vier com toda a sua pompa para me ver. Mas diabos me levem - disse ele após um instante, com grande energia - se eu quero actuar na presença de Louis Philippe.

 

- Ah, mas espere - disse Miss Malin. - Pensei noutra coisa. Talvez Vossa Eminência se engane quanto ao sentido de humor do rei Louis Philippe. Ele pode ter um gosto bastante diverso do meu e do vosso, e pode gostar do mundo virado de pernas para o ar, como a Imperatriz da Rússia que, para se divertir, obrigava os seus velhos conselheiros, a quem as lágrimas corriam, a dançar um ballet na sua presença, e os seus bailarinos a sentarem-se à mesa do Conselho. Talvez isso, Eminência, seja para o rei um gracejo. Contar-vos-ei uma pequena história para melhor me fazer compreender, e virá a propósito, pois estivemos falando de funâmbulos.

 

«Quando estive em Viena, há vinte anos - principiou ela - um bonito rapaz de grandes olhos azuis causava ali grande rebuliço ao dançar na corda com uma ven-da nos olhos. Ele dançava com uma graça e uma habilidade maravilhosas, e estava genuinamente vendado, sendo o pano atado por um membro do público. A sua actuação era a grande sensação da temporada, e foi chamado a dançar perante o Imperador e a Imperatriz, os arquiduques e as arquiduquesas, e toda a corte. O grande of talmologista, o professor Heimholz, estava presente. Fora mandado chamar pelo Imperador, já que toda a gente discutia então o problema da clarividência. Mas no fim do espectáculo o professor levantou-se e exclamou em voz sonora: - Majestade - disse ele em grande agitação - e Altezas Imperiais, isto é tudo uma fraude e um embuste!

 

Não pode ser uma fraude - disse o oftalmologista da corte - eu próprio atei a venda à volta dos olhos do rapaz com o maior dos cuidados.

 

É tudo uma fraude e um embuste - insistiu, indignado, o grande professor. - Esse rapaz é cego de nascença!»

 

Miss Malin fez uma pequena pausa.

 

- E se o seu Louis Philippe - disse ela - vier a dizer, vendo-nos fazer essa bela figura do Inferno: Isto é tudo uma fraude, essas pessoas já estavam no inferno desde o dia em que nasceram.

 

E deu um risinho.

 

- Madame - disse o cardeal após um silêncio - é grande o seu poder imaginativo e esplêndida a sua coragem.

 

- Oh, sou uma Nat-og-Dag - disse, com modéstia, Miss Malin.

 

- Mas não será também - disse o cardeal - um pouco'''

 

- Louca? - perguntou a velha senhora. - Bem me parecia que Vossa Eminência tinha dado por isso.

 

- Não - replicou ele - não era isso que eu queria dizer. Mas talvez um pouco severa para com o Rei de França. Estarei talvez em posição de o compreender melhor do que a senhora. Ele é um burguês, mas não é canaille.

 

- Também eu lhe contarei uma história - prosseguiu o velho - visto que ainda não contribuí para o entretenimento da noite. Contá-la-ei apenas para ilustrar que existem, se mo permite, Madame, coisas piores do que a perdição, e chamar-lhe-ei - o velho reflectiu por um momento - chamar-lhe-ei «O Vinho do Tetrarca».

 

«Naquele tempo, quando, na primeira quarta-feira após a Páscoa - principiou o cardeal -, o Apóstolo Simão, chamado Pedro, ia andando pelas ruas de Jerusalém, tão completamente absorto na ideia da ressurreição que nem sabia se caminhava ou se era transportado pelo ar, notou ele, ao passar pelo Templo, que um homem esperava junto a uma coluna. Os olhos dos dois encontraram-se, e o estrangeiro deu uns passos e interpelou-o.

 

- Não estavas tu também - perguntou - com Jesus de Nazaré?

 

- Sim, sim, sim - apressou-se Pedro a responder.

 

- Nesse caso, gostaria muito de dar-te duas palavras - disse o homem. - Não sei o que fazer. Que-res entrar na estalagem aqui próxima e beber comigo?

 

Pedro, porque não podia desprender-se dos seus pensamentos o suficiente para achar uma desculpa, aquiesceu, e em breve os dois homens se sentavam na estalagem.

 

O estrangeiro parecia ser ali bem conhecido. Imediatamente conseguiu uma mesa só para si ao fundo da taberna e longe dos que, de tempos a tempos, entravam na estalagem ou saíam, e também pediu do melhor vinho para si e para o Apóstolo. Pedro olhava agora para o homem e achava-o uma figura impressionante. Era um jovem trigueiro, de forte constituição e altivo porte. Estava mal vestido, e tinha nos ombros uma capa de pele de cabra muito remendada, mas por baixo dela usava um lenço de fina seda carmesim e tinha uma corrente de ouro em volta do pescoço, e nos dedos muitos anéis de ouro, um dos quais com uma grande esmeralda. Pareceu então a Pedro que já tinha visto esse homem antes, no meio de um medo e turbulência terríveis; mas não se lembrava onde.

 

- Se és de facto um dos que seguiam o Nazareno - disse ele - quero fazer-te duas perguntas. Dir-te-ei as minhas razões para o fa-zer à medida que formos conversando.

 

- Terei prazer em te ajudar - disse Pedro, ainda abstracto.

 

- Muito bem - disse o homem - eis a primeira: É verdade o que dizem desse Rabi que servias, que ele ressuscitou dos mortos?

 

- Sim, é verdade - Respondeu Pedro, sentindo porém o seu próprio coração dilatar-se a tal proclamação.

 

- Pois eu ouvi boatos sobre isso - disse o homem - mas não o sabia com certeza. E é verdade que ele próprio te disse, antes de ser crucificado, que iria ressuscitar?

 

- Sim - disse o Apóstolo - Ele disse-nos. Nós sabíamos que isso iria acontecer.

 

- Pensas então - perguntou o estrangeiro - que cada palavra do que ele disse vai por certo verificar-se?

 

- Nada no mundo é mais certo do que isso - respondeu Pedro. O homem calou-se por momentos.

 

- Dir-te-ei por que te pergunto isto - disse ele subitamente. - É porque um amigo meu foi crucificado com ele na sexta-feira no Monte da Caveira. Viste-o lá, penso eu. A ele esse teu Rabi prometeu que estaria consigo no Paraíso nesse mesmo dia. Acreditas que ele foi mesmo para o Paraíso na sexta-feira? - Sim, tenho a certeza de que foi, e que está lá agora - disse Pedro. De novo o homem se calou.

 

- Enfim, isso é bom - disse ele. - Ele era meu amigo.

 

Nessa altura um rapazito da estalagem trouxe o vinho que o homem pedira. O homem deitou um pouco de vinho nos copos, olhou-o, e pousou-o de novo.

 

- E esta - disse ele - é a outra questão de que queria falar-te. Provei muitos vinhos nestes últimos dias, e todos me souberam mal. Não sei o que aconteceu ao vinho de Jerusalém, que já não tem aroma nem corpo. Acho que deve ter sido do tremor de terra que tivemos na tarde de sexta-feira; azedou o vinho todo.

 

- Não me parece que este vinho seja mau - disse Pedro para animar o homem, pois ele parecia triste como a morte.

 

- Não é? - disse o homem, com esperança, e bebeu um trago. - Sim, este também é mau - disse ele, e pousou o copo. - Se lhe chamas bom é talvez porque não percebes muito de vinhos. Eu percebo, e um bom vinho é o meu grande prazer. Agora não sei o que fazer.

 

- Agora sobre esse meu amigo, Fares - disse, retomando o fio da conversa - dir-te-ei como ele foi feito prisioneiro e condenado à morte. Ele era um salteador na estrada de Jericó a Jerusalém. Nessa estrada passou um carregamento de vinho que o Imperador de Roma mandava de presente ao Tetrarca Herodes, e entre outros vinha um odre de vinho tinto de Capri, que não tinha preço. Uma noite, aqui neste mesmo lugar onde nós estamos, conversávamos, eu e Fares, e eu disse-lhe: Daria o coração para beber o vinho tinto do Tetrarca. Ele disse-me: «Porque te amo, e para te mostrar que não valho menos do que tu, matarei o intendente da caravana e enterrarei o odre de vinho tinto sob um tal cedro assim-assim da montanha, e ambos beberemos juntos o vinho do Tetrarca.« Ele de facto assim fez, mas, ao voltar a Jerusalém para se encontrar comigo, foi reconhecido por um dos carregadores que escapara, lançado na prisão e condenado à cruz.

 

- Vieram dizer-mo, e eu caminhei nessa noite por toda a cidade de Jerusalém, pensando num meio de o ajudar a escapar-se. De manhã, ao passar pelos degraus do Templo, vi neles um velho mendigo, que eu ali vira muitas vezes, e que tinha uma perna má, toda ligada, e que também era louco. Na sua loucura ele gritava e dizia profecias, lamentando o seu destino e amaldiçoando os governadores da cidade, clamando muitas injúrias contra o Tetrarca e a sua mulher. Como ele era louco, todos costumavam rir-se de-le. Mas nessa manhã sucedeu que um centurião passava com os seus homens, e quando ou-viu o que ele dizia da mu-lher do Tetrarca, zangou-se. Disse ao mendigo que, se voltasse ao mesmo, ele o faria dormir na prisão de Jerusalém, e lhe mandaria dar 25 bastonadas à noite e outras tantas pela manhã, para o ensinar a falar com reverência das pessoas ilustres.

 

- Eu ouvia e pensava: eis a minha oportunidade. Assim, nesse dia rapei a barba e o cabelo, tingi a face com óleo de nozes, e vesti-me de farrapos, e também enfaixei a perna direita, escondendo nas ligaduras uma lima forte e afiada e uma longa corda. À noite, quando me dirigi ao Templo, vi que o velho tivera tanto medo que não viera, de modo que eu tomei o seu lugar. Quando a ronda passou gritei bem alto, na voz do men-digo Louco, as piores maldições que me ocorreram contra o próprio César em Roma e, tal como eu previra, a ronda agarrou-me e levou-me para a prisão, e ninguém me reconheceu assim vestido de farrapos. Deram-me ali 25 bastonadas, e tomei boa nota do homem que me batia, para o reconhecer no futuro; mas, com uma moeda de prata, su-bornei o carcereiro para que me fechasse nessa noite na prisão onde se encontrava Fares, e que era no alto do edifício, o qual, como sa-bes, está construído numa rocha.

 

Fares caiu a beijar-me os pés, deu-me a beber a água que tinha, mas depois começámos a limar a barra de ferro da janela. Como era alta, ele teve de subir aos meus ombros, ou eu aos dele, para o fazermos e por fim atámos a corda à barra partida. Fares desceu primeiro, até chegar ao fim da corda, que não era suficientemente comprida, e deixou-se cair. Saí eu então, mas estava fraco e demorava muito a descer, e sucedeu que nessa mesma hora um grupo de soldados entrava com um pri sioneiro. Traziam archotes, e um deles avistou-me pendurado na corda rente à parede. Fares podia ter fu-gido, se corresse, mas não quis fazê-lo antes de ver o que acontecia, e assim foi que mais uma vez nos prenderam e viram então quem eu era.

 

- Foi assim que sucedeu - disse o estrangeiro. - Mas agora tu dizes-me que Fares está no Paraíso.

 

- Tudo isso - disse Pedro, que estivera ouvindo, porém sem escutar - tenho para mim que é prova de grande coragem da tua parte, e fizeste bem em arriscar a vida pelo teu amigo. - E Pedro suspirou profundamente.

 

- Ah, quem viveu, como eu vivi, tanto tempo na flo-resta, não tem medo das corujas - disse o estrangeiro. - Alguém já te fa lou de mim como um homem que foge do perigo?

 

- Não - disse Pedro. - Mas tu dizes - continuou ele instantes depois - que também foste feito prisioneiro. Ora, estando tu aqui, é porque conseguiste escapar?

 

- Sim, escapei - disse o homem, e lançou a Pedro um estranho e profundo olhar. - Quis então vingar a morte de Fares. Mas, visto que ele está no Paraíso, não vejo por que hei-de preocupar-me. E agora não sei o que fazer. Deverei desenterrar o odre do vinho do Tetrarca e bebê-lo?

 

- Achá-lo-ás triste, sem o teu amigo - disse Pedro, e os olhos encheram-se das lágrimas que ainda lhe restavam depois daquela Semana. Pensou que deveria talvez censurar o homem pelo roubo do vinho do Tetrarca, mas muitas recordações lhe sufocavam o peito.

 

- Não, não é nisso que estou a pensar - disse o estrangeiro - mas nisto: se esse vinho também se estragou, e não me der prazer nenhum, que farei eu então?

 

Pedro ficou por instantes perdido em pensamentos.

 

- Amigo - disse ele - há outras coisas na vida que te darão prazer, além do vinho do Tetrarca.

 

- Sim, eu sei - disse o estrangeiro - mas se a mesma coisa se passar com elas? Tenho duas belas esposas esperando por mim em casa, e antes de tudo isto acontecer, comprei uma virgem de 12 anos. Ainda não a vi depois disso. Mas o tremor de terra pode tê-las afectado também, deixando-as sem aroma e sem corpo, e então o que farei?

 

Agora, Pedro começava a desejar que este homem parasse de se lamentar e o deixasse sozinho.

 

- Porque vieste - perguntou - a mim com este as-sunto?

 

- Lembras bem - disse o estrangeiro. - Dir-to-ei. Fui informado que o teu Rabi, nas vésperas do dia em que morreu, deu uma ceia aos que o seguiam, e que nessa ceia foi servido um vinho especial, que era muito raro e tinha um corpo altamente precioso. Tens ainda desse vinho, e consentes em mo vender? O teu preço será o meu.

 

Pedro quedou-se a fitar o estrangeiro.

 

- Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! - exclamou, tão extraordinariamente abalado que entornou o seu copo, e o vinho correu para o chão. - Não sabes o que dizes. Esse vinho que bebemos na noite de Quinta-Feira, nem o Imperador de Roma pode pagar uma só gota dele.

 

O coração doía-lhe tanto que ele se balançava para a frente e para trás no banco. Ainda assim, no meio da sua dor, as palavras do Senhor, que ele seria pescador de homens, lhe vieram à mente, e reflectiu que talvez fosse seu dever ajudar este homem, que parecia tomado de profunda aflição. Voltou-se de novo para ele, mas ao olhá-lo lembrou-se que, de todos os homens que havia no mun-do, esse jovem era o único que ele não poderia ajudar. Para se fortalecer evocou uma das palavras do Senhor.

 

- Meu filho - disse com gravidade e mansidão - toma a tua cruz e segue-O.

 

O estrangeiro, na mesma altura em que o Apóstolo falava, esteve quase a dizer alguma coisa. Agora calava-se, e olhava sombriamente para Pedro.

 

- A minha cruz! - exclamou. - Onde está a minha cruz? Quem tomará a minha cruz?

 

- Só tu próprio a poderás tomar - disse Pedro - mas Ele te ajudará a levá-la. Tem paciência e força. Dir-te-ei muito mais sobre isto.

 

- Que tens tu para me dizer? - perguntou o estrangeiro. - Parece-me a mim que tu nada sabes. Ajudar? Quem é que precisa de ajuda para levar essas cru-zes que os carpinteiros de Jerusalém fazem hoje em dia? Eu não, decerto! Aquele cireneu de pernas tortas não teria nunca a oportunidade de exibir a sua força às minhas custas. Falas de força e paciência - prosseguiu ele instantes depois, ainda muito agitado - mas eu nunca vi homem tão forte como eu. Olha - e ele entreabriu a veste para mostrar a Pedro os ombros e o peito marcados por muitas, terríveis e profundas cicatrizes brancas. - A minha cruz! A cruz de Fares estava à direita, e a cruz desse tal Acaz, que nunca valeu grande coisa, estava à esquerda. Eu teria levado a minha cruz melhor que qualquer dos dois. Não achas que eu havia de durar mais do que seis horas? Não foi grande coisa, vamos lá. Onde quer que estive, fui sem-pre um chefe, e os meus homens tinham os olhos postos em mim, não creias, lá porque não sei o que fazer ago-ra, que não estou habituado a dizer aos outros para fa-zerem o que a mim me apetecer.

 

Perante o tom desdenhoso destas palavras, Pedro esteve quase a perder a paciência, mas prometera a si próprio, desde que cortara a orelha a Malco, controlar o seu génio, de modo que nada disse.

 

Ao fim de certo tempo o homem olhou para ele, como se impressionado pelo seu silêncio.

 

- E tu - disse ele - que és um dos que seguiam esse Profeta, que pensas que irá ser de ti agora?

 

A face de Pedro, que a dor desfigurava, iluminou-se de suavidade. Todo o seu rosto irradiava esperança.

 

- Espero e creio - disse ele - que a minha fé, sofrendo embora a prova do fogo, seja merecedora da glória e da honra. Espero que me seja dado sofrer e morrer pelo meu Senhor. Tenho, até, nestas últimas noites - prosseguiu, falando em voz baixa - pensado que talvez no fim do meu caminho me espere uma cruz. - Tendo dito isto, não ousou olhar o outro homem nos olhos, mas acrescentou rapidamente: - Embora tu penses que estou a vangloriar-me, e que a minha condição é demasiado humilde para tal.

 

- Não - disse o estrangeiro. - Acho muito provável que tudo o que disseste venha de facto a acontecer-te.

 

Esta confiança do homem nas suas esperanças pareceu a Pedro um gesto de amizade inteiramente inesperado e generoso por parte do estrangeiro. O seu peito encheu-se de gratidão. Rubo rizou-se como uma jovem noiva. Pela primeira vez sentiu um real interesse pelo seu companheiro, e pareceu-lhe que devia fazer algo por ele, em paga das lindas coisas que ele lhe dissera.

 

- Perdoa-me - disse brandamente - por não ter podido aliviar o que pesa em tua alma. Mas de facto pouco domínio tenho de mim, tanto foi o que me aconteceu nos últimos dias.

 

- Oh! - disse o estrangeiro - eu também não esperava mais.

 

- No curso da nossa conversa - disse Pedro - repetiste que não sabes o que fazer. Diz-me em que questão tens essas dúvidas. Até sobre esse vinho que dizes tentarei aconselhar-te.

 

O estrangeiro olhou-o.

 

- Não tenho estado a falar de uma questão em particular - disse ele. - Não sei o que fazer em geral. Não sei onde se encontrará o vinho que possa de novo dar prazer ao meu cora ção. Mas suponho - prosseguiu ele ao fim de certo tempo - que farei melhor em desenterrar esse vinho do Tetrarca, e em dormir com essa rapariga de que te falei. Posso tentar, pelo menos.

 

E com estas palavras se levantou da mesa, embrulhando-se na capa.

 

- Não vás ainda - disse Pedro. - Parece-me haver muitas coisas de que de-veríamos falar os dois.

 

- Tenho de ir, de qualquer modo - disse o homem. - Há um transporte de azeite do Hébron, que não posso perder.

 

- Negoceias em azeite, então? - perguntou Pedro.

 

- De certo modo - disse o homem.

 

- Mas diz-me, então, antes de partires - tornou Pedro - qual é o teu nome. Pois poderemos voltar a conversar um dia, se souber onde te encontras.

 

O estrangeiro ia já no limiar da porta. Voltou-se e olhou para Pedro com hauteur e um leve desprezo. A sua figura era magnífica.

 

- Não sabes o meu nome? - perguntou. - O meu nome foi gritado por todas as ruas da cidade. Não houve um só desses burgueses servis de Jerusalém que não gritasse com todas as suas forças. «Barrabás«, gritavam eles, «Barrabás! Barrabás! Solta-nos Bar rabás!« O meu nome é Barrabás. Fui um grande chefe e, como tu próprio disseste, um homem de coragem. O meu nome será lembrado.

 

E com estas palavras desapareceu.»

 

 

Como o cardeal terminasse a narrativa, Jonathan levantou-se e substituiu a vela de sebo, que se consumira quase e bruxuleava fu-riosamente em convulsões extremas.

 

Mal o fez, a rapariga a seu lado ficou pálida de morte. De olhos fechados, toda a sua figura parecia sucumbir. Miss Malin perguntou-lhe brandamente se sentia sono, mas ela negou com grande energia; teve ra-zões para o fazer. Vivera nessa noite como antes nunca tinha vivido. Enfrentara a morte e atirara-se nobremente para as fauces do perigo por amor dos seus se melhantes. Fora o centro de um brilhante círculo, e até se havia casado. Não queria perder um só instante dessas horas fecundas. Mas nos dez minutos que se seguiram, adormeceu repetidamente, mau-grado os seus esforços para se manter acordada, a jovem cabecinha pendendo para trás e para a frente.

 

Por fim consentiu em deitar-se e repousar por uns instantes, e o marido fez para ela uma cama no feno, e tirou a capa para a cobrir. Ainda segurando a mão dele, ela afundou-se no feno e parecia, no chão escuro, a figura linda e marmórea de um anjo da Morte. O cão, que havia ficado junto dela nessa última hora, imediatamente a seguiu, e, enroscando-se, comprimiu-se contra ela, pousando a cabeça nos seus joelhos.

 

O jovem esposo ficou por certo tempo a vê-la dormir, mas em breve já não podia conservar-se acordado e deitou-se, a pequena distância dela mas próximo ainda para poder segurar a sua mão. A princípio não dormiu, olhando-a por vezes, outras observando as figuras erectas de Miss Malin e do cardeal. Quando finalmente adormeceu, teve um súbito movimento, atirando-se para a frente, de modo que a sua cabeça quase tocou na cabeça da rapariga e o cabelo de ambos, na almofada que era o feno, misturou-se. Momentos depois mergulhava no mesmo sono da esposa.

 

Os dois velhos ficaram em silêncio frente à luz da vela nova, que a princípio fracamente alumiava. Miss Malin, que parecia capaz agora de resistir a uma eternidade de vigília, olhava o par adormecido com a benevolência de um criador feliz. O cardeal observou-a por momentos e depois evitou o seu olhar. Passado algum tempo começou a retirar as ligaduras que lhe envolviam a cabeça, e ao fazê-lo fitava o rosto da velha senhora com estranha fixidez.

 

- Acho melhor tirar isto - disse ele - agora que a manhã se aproxima.

 

- Mas não lhe dói? - perguntou, ansiosa, Miss Malin.

 

- Não - disse ele sem interromper a operação. Momentos depois acrescentou: - Nem sequer é o meu sangue. A senhora, Miss Ma lin Nat-og-Dag, que tão bem conhece o verdadeiro sangue azul, já devia ter reconhecido o sangue nobre do cardeal Hamilcar.

 

Miss Malin não se moveu, mas o rosto alterou-se um pouco.

 

- O sangue do cardeal Hamilcar? - perguntou numa voz ligeiramente menos firme.

 

- Sim - disse ele - o sangue desse nobre velho, sobre a minha cabeça. E sujando as minhas mãos. Porque eu bati-lhe na cabeça com uma viga que caíra, antes de chegar o barco a salvar-nos esta manhã.

 

Durante uns bons dois ou três minutos um silêncio profundo envolveu o palheiro. Só o cão se movia, ga-nindo fracamente no sono, ao afundar o focinho nos vestidos da rapariga. O homem das ligaduras e a velha se-nhora não se desfitavam. Ele acabava lentamente de tirar as compridas tiras de linho manchadas de sangue, e pousou-as no chão. Liberto delas, o seu rosto era largo, vermelho, balofo, e o cabelo era escuro.

 

- Deus tenha em descanso a alma desse nobre velho - disse por fim Miss Malin. - E quem é o senhor?

 

O rosto do homem alterou-se um pouco a estas palavras.

 

- É a senhora quem mo pergunta? - disse ele. - É em mim que está a pensar, ou nele?

 

- Oh, nós ambos não precisamos de pensar nele - disse ela. - Quem é o senhor?

 

- O meu nome - disse - é Kasparson. Fui o criado do cardeal.

 

- Tem de me dizer mais do que isso - replicou Miss Malin com firmeza. - Eu quero saber com quem passei a noite.

 

- Dir-lhe-ei muito mais, se isso a diverte - disse Kasparson - pois estive em muitos continentes, e eu próprio gosto de falar do passado.

 

«Sou um actor, como Vossa Excelência é uma Nat-og-Dag; isto é, isso que nós somos permanece, seja o que for que façamos, e a isso voltamos quando tudo o resto fracassa.

 

Mas em criança dançava ballet, e aos 13 anos de idade fui acolhido - porque era extraordinariamente gracioso, e particularmente porque tinha em alto grau o que na técnica do ballet é chamado ballon, o que quer dizer capacidade de elevação, de nos erguermos do chão e para além das leis da gravidade - pelos nobres de meia-idade de Berlim. O meu padrasto, o famoso tenor Herr Eunicke, foi quem me apresentou a eles, e acreditava que eu viria a ser uma verdadeira mina de ouro. Durante cinco anos soube o que é ser uma bonita mulher, alimentada a finas iguarias, vestida de sedas e turbantes dourados, e cujos caprichos são leis para todos. Mas Herr Eunicke, como todos os tenores, esquecia-se de contar com as leis do tempo. A idade apossou-se de nós furtivamente, sem que o sonhássemos sequer, e a minha carreira de cortesão foi breve.

 

Depois disso fui para Espanha, onde me fiz barbeiro. Fui barbeiro em Sevilha durante sete anos, e gostei, porque sempre tive uma predilecção por sabão e águas de colónia, sempre gostei de toda a sorte de coisas limpas e asseadas. Por esta razão muitas vezes me surpreendeu que o cardeal não se importasse de sujar as mãos com as suas tintas pretas e vermelhas. Tornei-me, de facto, Madame, num óptimo barbeiro.

 

Mas também fui tipógrafo de jornais revolucionários em Paris, vendedor de cães em Londres, mercador de escravos em Argel, e amante de uma principezza viúva em Pisa. Através dela cheguei a viajar com o professor Rosellini, e o grande ori entalista francês Champollion, na expedição que empreenderam ao Egipto. Eu estive no Egipto, Madame. Eu pisei a grande sombra triangular da grande pirâmide, e do cimo dela quarenta séculos me contemplaram.»

 

Miss Malin, ensombrada pelas viagens do criado, ra-pidamente se refugiou no amplo mundo da sua imaginação.

 

- Ah - disse ela - no Egipto, na grande sombra triangular da grande pirâmide, enquanto o burro pastava, São José disse a Maria: «Oh, minha doce e jovem esposa, não poderias por um momento fechar os olhos e fingir que eu sou o Espírito Santo?»

 

Kasparson prosseguiu o seu relato.

 

«Até vivi em Copenague - disse ele - mas para o fim comecei a passar mal. Fui cavalariço no albergue nocturno de um velho gordo chamado Bolle Bandeat - o que significa, com sua li cença, o amaldiçoado, ou o maldito - onde por um dinheiro se podia dormir no chão e por meio-dinheiro em pé, com uma corda passada por debaixo dos braços. Quando por fim tive de fugir ao braço da lei da cidade, mudei o meu nome para Kasparson, em memória desse orgulhoso e infeliz rapaz de Nuremberga que se apunhalou até à morte para que Lord Stanhope acreditasse que ele era o filho bastardo da grã-duquesa Stephanie de Baden.

 

Mas se é da minha família que quer ouvir falar, tenho a honra de informá-la que sou bastardo, do mais puro sangue bastardo que existe. Minha mãe era uma verdadeira mulher do povo, filha de um honesto artesão, essa linda actriz Johanna Handel-Schultz que deu vida no palco a todos os ideais clássicos. Tinha um temperamento melancólico, porém. Dos meus 16 irmãos, cinco suicidaram-se. Mas se lhe disser quem foi o meu pai, irá sem dúvida interessar-lhe. Quando Johanna foi para Paris, com 16 anos de idade, para estudar arte, encontrou favor aos olhos de um grande senhor. Eu sou o filho do duque de Orléans - que pouco depois se ligou ao povo de uma outra maneira - que insistia em ser chamado citoyen, votou pela morte do Rei de França, e mudou o seu nome para Égalité. O bastardo de Égalité! Pode alguém ser mais bastardo, Madame, do que eu?»

 

- Não - disse a velha senhora, os lábios de cera rígidos, incapaz de oferecer uma palavra de conforto ao homem pálido que tinha à sua frente.

 

- Esse pobre rei Louis Philippe - disse Kasparson - de quem tenho pena, e de quem lamento ter falado com tanta severidade esta noite, é meu irmão mais no-vo.

 

Miss Malin, mesmo em face dos maiores infortúnios, nunca ficava calada por muito tempo. Disse, depois de um silêncio:

 

- Diga-me então, porque podemos não ter muito tempo, em primeiro lugar, porque matou o cardeal? E em segundo lugar, porque se deu ao trabalho de me enganar, depois de para aqui vir comigo, e de fazer de mim tola nesta noite que pode ser a última da minha vida? Aqui não corre perigo. Pensou que eu não tinha coragem suficiente, ou simpatia pelos negros lugares do coração, para o compreender?

 

- Ah - replicou Kasparson - porque não lho disse? Esse momento em que matei o cardeal foi o dos esponsais da minha alma com o destino, com a eternidade, com a alma de Deus. Não impomos nós ainda silêncio no limiar da câmara nupcial? Ou então, quer o Imperador publicidade, não pode Pitágoras preferir o decoro?

 

«E fui eu quem matou o meu amo? - prosseguiu ele. - Minha senhora, poucas esperanças havia que nos salvássemos ambos, e ele sacrificaria a sua vida por mim. Deveria eu continuar a viver como o criado por quem o senhor deu a sua vida, ou deveria simplesmente afogar-me e perder-me como um triste aventureiro?

 

Disse-lho já: sou actor. Não deve um actor desempenhar um papel? Se o director do teatro sempre afasta de nós os bons papéis, não poderemos insistir em praticar o papel das vedetas? A prova da nossa empresa está sujeita ao sucesso como ao fiasco. Representei bem o meu papel. O cardeal ter-me-ia aplaudido, pois ele era um fino conhecedor da arte. Sir Walter Scott, Madame, leu com muito prazer o romance de Wilibald Alexis, Walladmor, que ele publicou com o seu nome, e a que chamava o mais delicioso mistério do século. O cardeal haveria de reconhecer-se em mim.»

 

E citando a grande tragédia Axel e Walborg, disse lentamente:

 

         Meu amado Senhor,

         Santo Olavo em pessoa

         Assume o meu corpo, veste-se de mim.

         Eu sou o fantasma, a visão do seu espírito;

         Uma forma breve da alma imortal'''

 

«A única coisa - continuou ele depois de uma pausa - que ele me poderia ter criticado é esta: talvez ele achasse que eu excedi a minha personagem. Fiquei neste palheiro para salvar a vida desses rústicos patetas, que preferiram salvar o gado a salvarem-se a si mesmos. Duvido que o cardeal o tivesse feito, pois ele era um homem de excelente juízo. Pode ser que sim. Mas é precisa alguma charlatanice em qualquer arte, e o pró prio cardeal não estava isento dela.

 

- Mas, em qualquer caso - concluiu, erguendo a voz e o corpo - no Dia do Juízo, Deus não me dirá: Kasparson, que mau actor tu és! Como foi que não pudeste, nem mesmo com a morte na alma, representar para mim o Gaulês Moribundo?»

 

De novo Miss Malin ficou por longo tempo mergulhada no silêncio profundo e escuro do enorme palheiro.

 

- E porque quis assim tanto - disse ela por fim - este papel?

 

- Contar-lho-ei - disse Kasparson lentamente. - Não será o homem conhecido pelo seu rosto, mas pela sua máscara. Já o disse no princípio da noite.

 

«Sou um bastardo. Caiu sobre mim a maldição dos bastardos, que Vossa Exce-lência desconhece. O sangue de Égalité é um sangue ar-rogante, cheio de vaidade - difícil, difícil para quem o tem correndo nas veias. Clama por esplendor, Madame; não admite sucedâneos; e faz sofrer terrivelmente ao mais pequeno desprezo.

 

Mas estes camponeses e pescadores são a gente da minha mãe. Não crê que eu tenha chorado já lágrimas de sangue sobre a dureza das suas vidas e a palidez dos seus filhos? À ideia das côdeas duras e dos canivetes, finíssimos do uso, dos fatos remendados, dos rostos pacientes, o meu coração sofre. Nunca amei nada no mundo excepto a eles. Se eles tivessem feito de mim o seu chefe, tê-los-ia servido toda a minha vida. Se eles tivessem caído de Joelhos a adorar-me, teria morrido por eles. Mas não o fizeram. Reservaram tudo isso para o cardeal. Só esta noite tornaram a si. Viram a face de Deus no meu rosto. E, depois desta noite, dir-lhe-ão que havia uma luzinha branca pairando naquele barco onde eu saí com eles. Sim, Madame, assim mesmo.

 

- Sabe - disse ele - sabe por que razão eu confio em Deus e me apego a Ele? Porque não posso passar sem Ele? Porque Ele é o único ser por quem não posso, não devo, não preciso de sentir piedade. Se olho todas as outras criaturas desta vida torturo-me, sou devorado pela piedade, e sinto-me curvado e esmagado sob o peso das suas dores. Tinha pena do cardeal, muita pena desse velho que teve de ser grande e bom, e que escreveu um livro sobre o Espírito Santo qual pequena aranha suspensa no grande espaço. Mas na relação entre mim e Deus, se algum de nós deve sentir pena, é Ele. Ele terá pena de mim.

 

O mesmo deveria ter acontecido, Madame, com os nossos reis. Mas, e assim Deus me ajude, eu tenho pena do meu irmão, o Rei de França. O coração dói-se-me um pouco por esse homenzinho.

 

Só Deus guardarei, sem ter piedade d'Ele. Deixai-me, pelo menos, guardar Deus, ó ternos seres humanos!»

 

- Mas nesse caso - disse Miss Malin subitamente - não pode por certo ter muita importância para si o ser salvo ou não. Per doe-me que lhe diga isto, Kasparson, mas não fará muita diferença ao seu destino que esta casa se aguente até o barco voltar a bus-car-nos, ou não.

 

Ao ouvir estas palavras Kasparson riu-se, manso e jovial. Era claro agora que ele estava sob a influência do barrilete de gin da cam-ponesa, mas sob este aspecto Miss Malin não lhe ficava muito atrás.

 

- Tem razão, Miss Nat-og-Dag - disse ele - a sua perspicácia acertou na mouche. Lá se foi a minha bela coragem. Mas tenha um pouco mais de paciência, e eu lhe explicarei o caso.

 

«Poucas pessoas, disse-o há pouco, podem afirmar que nunca se convenceram de que podiam refazer o mundo. Vou até mais longe, Madame: poucas pessoas se podem gabar de não acreditarem que este mundo que vêem à sua volta não é em realidade o fruto da sua própria imaginação. Agrada-nos então este mundo, temos orgulho dele? Sim, por vezes. Em algumas noites de Primavera, se na companhia das crianças e de mulheres belas e inte ligentes, tenho já sentido orgulho, tem-me agradado a minha criação. Em outras ocasiões, quando estou com pessoas vulgares, tenho sentido a má consciência de ter criado uma coisa tão ordinária, tão insípida, tão desluzida. Posso ter procurado suprimi-las, semelhante ao monge que, na sua cela, procura afastar as visões degradantes que perturbam a sua paz de espírito e o seu orgulho em ser um servo do Senhor. Agora, Madame, estou satisfeito por ter criado esta noite, aqui. Sinto um verdadeiro orgulho em tê-la criado a si, asse guro-lhe. Mas que fazer desta única figura dentro do quadro, esse tal Kasparson? É um sucesso, ele? Valerá a pena conservá-lo? Não estará ele a borrar toda a pintura? O monge pode chegar a flagelar-se para expulsar a imagem que o ofende. Os meus cinco irmãos que, de entre os 16 filhos de minha mãe, se suicidaram, talvez tenham sentido isto porque, como já referi, minha mãe sentia de um modo profundo e instintivo os clássicos e a harmonia do cosmos. Talvez eles tenham dito: - Esta obra é brilhante em si mesma; o meu único fracasso é esta figura nela, que eu terei de fazer desaparecer, custe o que custar.»

 

- Bom - disse Miss Malin depois de uma pausa - e gostou de representar o papel do cardeal, quando finalmente chegou a oportunidade? Foi-lhe agradável?

 

- Pelo Santo Nome de Deus, foi - disse Kasparson - foi uma noite boa e um dia bom. Porque vivi o suficiente, até agora, para aprender, quando o demónio se ri de mim, a rir-me dele também. E se isto - rirmo-nos do demónio quando ele se ri de nós - for na realidade o verdadeiro, o supremo gozo no mundo? E se tudo o mais, a que as pessoas chamam gozo, for tão-só um pressentimento, uma prefiguração dele? É uma arte que vale a pena aprender, então.

 

- E eu também, eu também! - disse Miss Malin numa voz que, embora sussur-rada, era rica e estridente, e que parecia erguer-se em voo, qual alegre cotovia. E como se quisesse acompanhar em pessoa essa asa, ela ergueu-se a toda a altura, com a leveza e a dignidade de uma senhora que, tendo apreciado suficientemente uma agradável conversa, se despede. - Eu já me ri dele também. É uma arte que vale a pena aprender.

 

O actor tinha-se erguido com ela, seu cavalier servant, e estava agora de pé. Ela fitava-o com um olhar radioso.

 

- Kasparson, que grande actor o senhor é! - disse ela. - Bastardo de Égalité, dê-me um beijo!

 

- Ah, não, Madame - disse Kasparson. - Estou doente; há veneno na minha boca.

 

Miss Malin riu.

 

- Quero lá saber disso, esta noite - disse ela. E parecia, de facto, que nenhum veneno seria capaz de tocá-la. Tinha sobre os ombros essa caveira com que os boticários assinalam os seus frascos de venenos, o menos sedutor dos objectos que um homem pode querer beijar. Mas, olhando nos olhos o homem à sua frente, ela disse, devagar e cheia de graça: - Fils de St' Louis, montez au ciel!

 

O actor tomou-a nos braços, apertou-a mesmo num forte amplexo, e beijou-a. E assim a altiva solteirona não foi para o túmulo sem saber o que é um beijo.

 

Com um movimento de graça e majestade ela ergueu a fímbria da saia e colocou-a na mão dele. A seda, que arrastara pelo chão, estava encharcada e gotejava. Ele compreendeu que foi por isso que ela se levantara do seu assento.

 

Os olhos de ambos no mesmo movimento perscrutaram o chão do palheiro. Um de-senho negro, como o de uma cobra longa e grossa, jazia no soalho e, um pouco mais abaixo, onde o chão se inclinava ligeiramente, alargava-se numa poça negra que quase tocava os pés da rapariga adormecida. A água ha-via subido até ao nível do palheiro. Na verdade, ao moverem-se, sentiram que as pesadas tábuas balançavam suavemente, flutuando sobre as águas.

 

Subitamente o cão levantou-se de um salto. Atirou a cabeça para trás e, de orelhas baixas e nariz empinado, soltou um ganido frouxo.

 

- Calado, Passup - disse Miss Malin, que aprendera o nome do animal com os pescadores.

 

Tomou uma das mãos do actor nas suas.

 

- Espere um pouco - murmurou, para não acordar os que dormiam. - Quero dizer-lhe. Eu já fui também rapariga. Passeei pelos bosques e olhei os pássaros e pensei: É horrível que as pessoas fechem os pássaros em gaiolas. Pensei: Se eu pudesse viver e servir o mundo para que, depois de mim, nunca mais houvesse um pássaro dentro de uma gaiola, que todos fossem livres'''

 

Interrompeu-se e olhou a parede. Por entre as tábuas uma faixa de azul profundo e novo era visível, contra a qual a pequena lanterna parecia pôr uma mancha vermelha. Amanhecia.

 

A velha senhora lentamente desenlaçou os dedos da mão do homem, e levou um aos lábios.

 

Á ce moment de sa narration - disse ela - Scheherazade vit paraìtre le matin et, discrète, se tut.

 

                                                                                Karen Blixen  

 

                      

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