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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DOMÍNIO / Steve Alten
O DOMÍNIO / Steve Alten

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                               HÁ 65 MILHÕES DE ANOS, VIA LÁCTEA

Uma galáxia espiral – uma das 100 bilhões de ilhas de estrelas que atravessam a matéria escura do uni­verso. Girando como um luminoso cata-vento cósmico na imensidão do espaço, a galáxia arrasta mais de 200 bilhões de estrelas e incontáveis outros corpos celestes em seu vórtice titânico.

Examinemos este círculo galáctico. Observando a formação dentro dos nossos limites tridimensionais, nosso olhar é atraído inicialmente para o bojo da galá­xia, composto de bilhões de estrelas vermelhas e laranja, rodopiando dentro de nuvens de poeira estelar de uns 15 mil anos-luz de diâmetro (um ano-luz equivalendo aproximadamente a 9 trilhões e meio de quilômetros). Girando ao redor dessa região de formato de lente está o disco achatado da galáxia, com 2 mil anos-luz de es­pessura e 120 mil anos-luz de diâmetro, que contém a maior parte da massa galáctica. Percorrem esse disco os braços em espiral da galáxia, lares de estrelas brilhantes e luminosas nuvens de gás e poeira — incubadoras cósmicas que originam novas estrelas. Acima desses braços, estende-se o halo galáctico, uma região esparsa­mente povoada contendo aglomerados globulares que sustentam os membros mais antigos da família galáctica.

Dali passamos para o verdadeiro coração da galáxia, uma região comple­xa, rodeada por nuvens rodopiantes de gás e poeira. Escondida dentro desse núcleo, está a verdadeira central de energia da formação celeste — um mons­truoso buraco negro —, um vórtice denso de energia gravitacional, 3 milhões de vezes mais pesado que o Sol. Essa insaciável máquina cósmica engole tudo o que está ao seu alcance incomensurável — estrelas, planetas, matéria, até luz —, enquanto movimenta os corpos celestes da galáxia em espiral.

Agora vejamos a galáxia de uma dimensão superior — uma quarta di­mensão do tempo e do espaço. Ramificando-se através do corpo galáctico como artérias, veias e capilares, existem vasos invisíveis de energia, alguns tão imensos que poderiam transportar uma estrela; outros, cordões delicados e microscópicos. Todos são alimentados pelas inimagináveis forças gravitacionais do buraco negro, localizado na Central Galáctica. Atravesse o portal de um desses vasos e você terá acesso a uma rodovia dimensional que cruza os limites do tempo e do espaço, contanto, é claro, que o seu veículo possa sobreviver à viagem.

Enquanto a galáxia gira ao redor de seu centro descomunal, também esses fluxos de energia serpenteiam, sempre circulando, e continuam sua eter­na jornada ao redor da planície galáctica, como peculiares raios de uma roda cósmica em perene rotação.

Como um grão de areia apanhado na poderosa corrente de um fluxo gravita­cional, o projétil do tamanho de um asteróide corre pelo canal dimensional, um portal do tempo e do espaço atualmente localizado no braço de Órion da espiral galáctica. A massa ovóide, com mais de 11 quilômetros de diâmetro, é protegida do abraço esmagador do tubo por um campo de força antigravitacional verde-esmeralda.

O viajante celestial não está só.

Escondida dentro do rastro do objeto esférico, que está carregado de magnetismo, e imersa na cauda protetora do campo de força, está outra nave — menor, esguia, seu achatado casco em forma de adaga composto de brilhan­tes painéis solares dourados.

Navegando através da dimensão do espaço e do tempo, a rodovia cósmi­ca deposita seus viajantes numa região da galáxia localizada na borda interior do braço de Órion. À frente deles, um sistema solar contendo nove corpos planetários, governado por uma única estrela de um amarelo-pálido.

Correndo impelida pelo campo gravitacional da estrela, a imensa nave de irídio se aproxima rapidamente de seu alvo — Vênus —, o segundo planeta a partir do Sol, um mundo de calor intenso, envolto numa capa de densas nu­vens ácidas e de dióxido de carbono.

A nave menor se aproxima por trás, revelando sua presença ao inimigo.

Imediatamente, o transporte de irídio altera o seu curso, aumentando a velocidade graças à atração gravitacional do terceiro planeta do sistema, um mundo azul e aquoso contendo uma atmosfera tóxica de oxigênio.

Com um clarão brilhante, a nave menor emite um pulso incandescente de energia de uma antena que se estende de sua proa. A carga corre pelo feixe de íons da cauda eletromagnética da esfera como um raio percorrendo um cabo de metal.

A carga é detonada sobre o casco de irídio como uma aurora, a explosão elétrica pondo em curto o sistema de propulsão da nave, jogando violenta­mente o gigante para fora de sua rota. Em poucos momentos, a massa avariada sucumbe ao letal abraço do campo gravitacional do planeta azul.

O projétil do tamanho de um asteróide se precipita rumo à Terra, fora de controle.

Com um estrondo supersônico, a esfera de irídio viola a hostil atmosfera. O casco exterior, semelhante a um espelho, se racha e afunda. Então, se infla­ma brevemente numa ofuscante bola de fogo antes de mergulhar num mar raso e tropical. Sem sofrer quase nenhuma desaceleração pelas centenas de metros de água, bate no fundo numa fração de segundo, criando, por um momento surreal, um cilindro sem água até o leito do oceano.

Um nanossegundo depois, o impacto do corpo celeste cria uma detona­ção de um branco brilhante, liberando 100 milhões de megatons de energia.

A fragorosa explosão abala todo o planeta, gerando temperaturas que ex­cedem os 17 mil graus centígrados, mais quentes que a superfície do Sol. Duas bolas de fogo gasosas explodem simultaneamente. A primeira é uma nuvem de poeira incandescente formada por rocha pulverizada e irídio, proveniente da desintegração do casco exterior da nave. Ela é seguida por enormes nuvens de vapor e dióxido de carbono em alta pressão, os gases liberados na evaporação do mar e do seu leito calcário.

Os fragmentos e gases superaquecidos sobem para a atmosfera devastada, im­pelidos para cima através do vácuo criado pela queda do objeto. Enormes ondas de choque se espalham pelo mar, gerando monstruosos tsunamis que atingem alturas de 90 metros ou mais ao alcançarem águas rasas e correrem para a costa.

 

 

 

 

                                      Costa Sul da América do Norte

Em silêncio mortal, o bando de velociraptors se aproxima da presa, uma fêmea de Corythosaurus de 9 metros de comprimento. Pressentindo o perigo, o réptil de pés palmados levanta sua magnífica crista em forma de leque e fareja o ar úmido, detectando o cheiro do bando. Soltando um grito de aviso para o resto do grupo, a fêmea corre pela floresta, galopando em direção ao mar.

Sem aviso, um clarão brilhante atordoa o animal em fuga. O réptil cam­baleia, agitando sua enorme cabeça, tentando enxergar novamente. Quando sua visão clareia, dois raptors saltam da vegetação e guincham, bloqueando sua fuga enquanto o resto do bando pula sobre as costas da Corythosaurus, perfurando-lhe a carne com as garras mortais das patas traseiras. Um dos primeiros caçadores encontra a garganta da fêmea e morde seu esôfago, afundando as garras curvas na carne macia abaixo do esterno. O réptil ferido emite um grito sufocado, engasgando-se com o próprio sangue, ao mesmo tempo em que ou­tro raptor morde seu focinho achatado, afundando as garras dianteiras em seus olhos. O pesado réptil é levado ao chão.

Em poucos momentos, tudo está acabado. Os predadores rosnam, ameaçando-se mutuamente enquanto arrancam bocados de carne de sua presa ainda trêmula. Ocupados com a matança, os velociraptors ignoram o chão que treme sob suas patas e o trovão que se aproxima.

Uma sombra escura passa acima deles. Os dinossauros olham para cima ao mesmo tempo, o sangue pingando de suas mandíbulas, e rosnam para a imensa parede de água.

A onda da altura de um prédio de 22 andares atinge seu ápice — e então cai — esmagando os caçadores surpresos, liquefazendo seus ossos sobre a areia com um estampido ensurdecedor. A onda segue para o norte, sua energia ciné­tica obliterando tudo o que encontra no caminho.

O tsunami inunda a terra, varrendo vegetação, sedimentos e criaturas terrestres com seu volume estrondoso, submergindo a costa tropical por cente­nas de quilômetros em todas as direções. O pouco de floresta que permanece fora do caminho do vagalhão pega fogo quando tórridas ondas de choque transformam o ar numa verdadeira fornalha. Um par de Pteranodons tenta fu­gir do holocausto. Voando acima das árvores, suas asas reptilianas pegam fogo, incinerando-se no vento térmico.

Lá no alto, fragmentos de irídio e rocha que foram lançados ao céu come­çam a voltar para a atmosfera como meteoros incandescentes. Dentro de horas, todo o planeta está envolto numa nuvem densa de poeira, fumaça e cinzas.

As florestas arderão durante meses. Por quase um ano, nenhuma luz solar penetrará o céu enegrecido para atingir a superfície desse mundo que um dia foi tropical. A interrupção temporária da fotossíntese vai obliterar milhares de espécies de plantas e animais na terra e no mar, e à volta do Sol vão se seguir anos de inverno nuclear.

Num momento cataclísmico, os 140 milhões de anos de dominio dos dinossauros chegam abruptamente ao fim.

Durante dias, a esguia nave dourada permanece em órbita acima do mundo devastado, seus sensores rastreando continuamente o local do impacto. A es­trada quadridimensional para casa foi-se faz tempo, pois a rotação da galáxia já moveu o ponto de acesso do canal para vários anos-luz dali.

No sétimo dia, uma luz verde-esmeralda começa a brilhar sob o leito rachado do oceano. Segundos depois, um potente sinal de rádio subespacial é emitido, o pedido de ajuda dirigido para os confins externos da galáxia.

Os seres a bordo da nave em órbita distorcem o sinal tarde demais.

O mal se enraizou em mais um jardim celestial. É só uma questão de tempo até que ele acorde.

A nave dourada se move numa órbita geossíncrona diretamente acima de seu inimigo. Um sinal automático de hiperondas de rádio é ativado, blo­queando todas as transmissões recebidas ou enviadas pelo planeta. Então a nave se desativa, dirigindo sua energia para os casulos de sobrevivência.

Para os habitantes da espaçonave, o tempo agora está imóvel.

Para o planeta Terra, o relógio começou a andar...

 

       8 DE SETEMBRO DE 2012, MIAMI, FLÓRIDA

O Centro de Avaliação e Tratamento do Sul da Flórida é um edifício de concreto branco de sete andares, decorado com sempre-vivas e localizado num esquálido bairro latino a oeste da cidade de Miami. Como a maio­ria dos prédios comerciais da área, possui rolos de arame farpado ao redor do teto. Diferentemente dos outros es­tabelecimentos, o arame farpado não está lá para impedir a entrada de ninguém, e sim a saída dos internos.

Dominique Vazquez, de 31 anos, costura em meio ao trânsito da hora do rush, xingando alto enquanto ace­lera pela Route 441. É o seu primeiro dia de residência e já está atrasada. Desviando de um adolescente vindo na contramão de skate motorizado, entra no estacionamen­to para visitantes e para o carro. Enquanto corre para a entrada, prende apressadamente seus longos cabelos ne­gros num coque.

Portas magnéticas se abrem, dando-lhe acesso a um saguão com ar-condicionado.


Uma mulher latina de 40 e tantos anos está atrás do balcão da recepção, lendo o noticiário matutino num computador do tamanho de uma prancheta, fino como uma folha de papelão. Sem levantar os olhos, ela pergunta:

Posso ajudar?

Sim. Tenho hora marcada com Margaret Reinike.

—        Não tem, não. A dra. Reinike não trabalha mais aqui. — A mulher aperta a tecla page down, visualizando outra notícia no monitor.

Mas isso não faz sentido. Falei com a dra. Reinike há duas semanas.

A recepcionista finalmente olha para cima.

Qual o seu nome?

Vazquez, Dominique Vazquez. Vim fazer um ano de residência como pós-graduanda da Universidade Estadual da Flórida. A dra. Reinike seria mi­nha supervisora. — Ela observa a mulher pegar o telefone e teclar um ramal.

Dr. Foletta, uma jovem chamada Domino Vass...

Vazquez. Dominique Vazquez.

Perdão. Dominique Vazquez. Não, senhor, ela está aqui no saguão. Diz que vai fazer residência e que a dra. Reinike seria sua supervisora. Sim, senhor. Após desligar o telefone, ela se volta para Dominique. Pode sentar ali. Daqui a alguns minutos o dr. Foletta vai descer para falar com você. A mulher gira a cadeira, dando as costas para Dominique, e volta a ler no monitor.

Dez minutos se passam antes que um homem corpulento, de uns 50 anos, desponte de um corredor.

Anthony Foletta destoaria menos num campo de futebol americano, trei­nando quartos-zagueiros, do que andando pelos corredores de uma instituição estatal para psicopatas criminosos. Uma juba de cabelo grisalho cobre uma ca­beça enorme, que parece grudada diretamente nos ombros. Acima de bochechas carnudas, seus olhos azuis piscam sob pálpebras sonolentas. Embora esteja aci­ma do peso, seu tronco é firme, a barriga saltando um pouco do jaleco aberto.

Abre um sorriso forçado e uma mão grossa é estendida.

Anthony Foletta, novo chefe de psiquiatria. A voz é profunda e áspera, como um velho cortador de grama.

O que aconteceu com a dra. Reinike?

Problemas pessoais. Dizem que o marido dela tem câncer em fase terminal. Acho que ela decidiu se aposentar mais cedo. Mas ela me falou sobre você. Se não tiver nenhuma objeção, vou supervisionar a sua residência.

Nenhuma objeção.

Ótimo.

Ele se vira e volta pelo corredor, e Dominique aperta o passo para alcançá-lo.

Dr. Foletta, há quanto tempo o senhor está na instituição?

Dez dias. Fui transferido para cá da unidade estatal em Massachusetts. Eles se aproximam de um vigia no primeiro posto de verificação.

Deixe a sua carteira de motorista com o vigia.

Dominique procura em sua bolsa e entrega ao homem o cartão plastifi­cado, recebendo em troca o crachá de visitante.

—        Use isto por enquanto — diz Foletta. — Não se esqueça de devolvê-lo no fim do dia. Vamos providenciar um crachá codificado de residente antes do fim da semana.

Ela prende o crachá na blusa e o segue até o elevador. Foletta ergue três dedos para uma câmera montada acima de sua cabeça. As portas se fecham.

Você já esteve aqui? Conhece a planta do prédio?

Não. Só falei com a dra. Reinike por telefone.

São sete andares. A administração e a central de segurança ficam no primeiro. A central controla os elevadores dos funcionários e dos internos. O segundo andar tem uma pequena unidade médica para idosos e doentes termi­nais. No terceiro andar você encontra nosso refeitório e as salas de convivência. Ele também dá acesso ao mezanino, ao jardim e às salas de terapia. O quarto, quinto, sexto e sétimo andares hospedam os internos. — Foletta ri. — O dr. Blackwell os chama de "clientes". Eufemismo interessante, considerando que todos vieram para cá algemados.

Eles saem do elevador, passando por um posto de segurança idêntico ao do primeiro andar. Foletta acena e entra no curto corredor para a sua sala. Caixas de papelão estão empilhadas por toda parte, cheias de pastas, diplomas emoldurados e artigos pessoais.

—        Desculpe a bagunça, ainda estou me ajeitando. — Foletta tira uma impressora de cima de uma cadeira, indicando que Dominique se sente, e se aperta desconfortavelmente atrás da escrivaninha, encostando-se na cadeira de couro para dar espaço à sua barriga.

Ele abre o arquivo pessoal dela.

Hum. Vejo que está completando seu doutorado na Universidade Estadual da Flórida. Vai a muitos jogos de futebol?

Na verdade, não. — Aproveite a brecha. -— O senhor parece já ter jogado.

É uma boa aposta e faz o rosto rechonchudo de Foletta brilhar.

Fighting Blue Hens of Delaware, turma de 1979. Zagueiro avançado. Teria começado nas divisões de base da Liga Nacional se não tivesse estourado o joelho contra o Lehigh.

Por que o senhor optou pela psiquiatria criminal?

Meu irmão mais velho sofria de uma obsessão patológica. Vivia en­crencado com a lei. O psiquiatra dele era formado em Delaware e era fanático por futebol. Eu o levava para o vestiário depois dos jogos. Quando machuquei o joelho, ele mexeu os pauzinhos e eu fui admitido como aluno de graduação. Foletta inclina-se para a frente, colocando a pasta sobre a mesa. Vamos falar de você. Estou curioso. Há várias outras instituições mais próximas da universidade. O que trouxe você até aqui?

Dominique pigarreia.

—        Meus pais moram em Sanibel. Fica a apenas duas horas de Miami. Não consigo visitá-los com muita frequência.

Foletta corre seu indicador roliço pelas fichas do arquivo.

Diz aqui que você nasceu na Guatemala.

Sim.

Como veio parar na Flórida?

Meus pais... meus pais biológicos morreram quando eu tinha 6 anos. Fui enviada para um primo em Tampa.

Mas isso não durou muito?

Isso é importante?

Foletta ergue os olhos, que não estão mais sonolentos.

Não gosto muito de surpresas, residente Vazquez. Antes de designar internos, gosto de conhecer a psique dos meus funcionários. A maioria dos in­ternos não nos dá muitos problemas, mas é importante lembrar que lidamos com alguns indivíduos violentos. Pra mim, a segurança é uma prioridade. O que aconteceu em Tampa? Como foi que você veio parar num lar adotivo?

Basta dizer que as coisas não correram bem com meu primo.

Ele estuprou você?

Dominique fica chocada com a pergunta direta.

Se você realmente quer saber, sim. Eu só tinha 10 anos na época.

Você ficou sob os cuidados de um psiquiatra?

Ela olha para Foletta. Mantenha a calma, ele está te testando.

Sim, até os 17 anos.

Tocar no assunto te incomoda?

Aconteceu. Acabou. Com certeza influenciou a escolha da minha car­reira, se é o que quer saber.

—        E os seus interesses também. Diz aqui que você tem faixa preta de segundo grau em tae kwon do. Já teve que usá-la?

—        Só em torneios.

As pálpebras se erguem muito, os olhos azuis provocando-a com sua intensidade.

Diga, residente Vazquez, você imagina o rosto do seu primo quando golpeia seus oponentes?

Às vezes. — Ela tira um cacho de cabelos dos olhos. — Em quem você fingia que estava batendo quando jogava futebol pelo Fighting Blue Hens?

—        Touché. — Os olhos voltam para a pasta. — Você namora muito?

—        Minha vida social também interessa?

Foletta se recosta na cadeira.

Experiências sexuais traumáticas muitas vezes levam a desequilíbrios sexuais. Repito, só quero saber com quem estou trabalhando.

Não tenho aversão ao sexo, se é o que está perguntando. Tenho, sim, uma desconfiança saudável de homens enxeridos.

Isso não é um retiro espiritual, residente Vazquez. Vai precisar criar uma casca mais grossa pra lidar com internos criminosos. Esses homens fize­ram suas reputações deitando e rolando com universitárias bonitas como você. Vindo da Universidade Estadual, achei que iria agradecer o alerta.

Dominique respira fundo, relaxando seus músculos tensos. Cacete, dê um jeito no seu ego e preste atenção.

—        Tem razão, doutor. Peço desculpas. Foletta fecha a pasta.

—        A verdade é que estou pensando em indicar você para um trabalho especial, mas preciso ter certeza de que estará à altura.

Dominique volta a se animar. —- Pode me colocar à prova.

Foletta retira um grosso envelope marrom da primeira gaveta da escrivaninha.

—        Como sabe, esta instituição acredita numa abordagem multidis­ciplinar. Para cada interno são destacados um psiquiatra, um psicólogo clínico, um assistente social, um enfermeiro psiquiátrico e um terapeuta ocupacional. Minha reação inicial, ao chegar aqui, foi achar tudo isso um pouco excessivo, mas não posso contestar os resultados, especialmente para pacientes viciados em drogas e na preparação de indivíduos para julgamen­tos futuros.

—        Mas não nesse caso?

Não. O interno que quero pôr sob seus cuidados é paciente meu, veio do sanatório onde eu era diretor de serviços psicológicos.

Não entendo. Ele veio para cá com você?

Nossa instituição perdeu o financiamento há cerca de seis meses. Ele certamente não está pronto para voltar à sociedade e precisava ser transferido para algum lugar. Como sou a pessoa mais familiarizada com o histórico dele, achei que seria menos traumático para todos os envolvidos se ele continuasse sob os meus cuidados.

Quem é ele?

Já ouviu falar do professor Julius Gabriel?

Gabriel? — O nome parecia familiar. — Espere aí, não é o arqueólogo que caiu morto no meio de uma palestra em Harvard há alguns anos?

Há mais de dez anos. — Foletta sorri. — Depois de três décadas recebendo financiamento para suas pesquisas, o Julius Gabriel voltou para os Estados Unidos e se apresentou perante uma platéia repleta de colegas, alegan­do que os egípcios antigos e os maias construíram as pirâmides com a ajuda de extraterrestres para salvar a humanidade da destruição. Consegue imaginar? Ele foi expulso do púlpito a gargalhadas. Deve ter morrido de humilhação. — As bochechas de Foletta tremem com sua risada. — O Julius Gabriel era um caso clássico de paranóia esquizofrênica.

E quem é o paciente?

O filho dele. — Foletta abre o envelope. — Michael Gabriel, 34 anos. Prefere ser chamado de Mick. Passou os primeiros 20 e tantos anos de sua vida trabalhando ao lado dos pais em escavações arqueológicas, o que deve bastar para deixar qualquer criança psicótica.

Por que ele foi preso?

O Mick perdeu a cabeça durante a palestra do pai. O tribunal o diag­nosticou paranóico-esquizofrênico e o enviou para o Hospital Psiquiátrico Estadual de Massachusetts. Lá fui psiquiatra dele e continuei sendo mesmo depois de ser promovido a diretor em 2006.

Ele tem as mesmas ilusões que o pai?

-— Claro. Pai e filho estavam convencidos de que uma calamidade terrí­vel varrerá a humanidade do planeta. O Mick também sofre das costumeiras manias paranoicas de perseguição, a maioria causada pela morte do pai e por seu próprio confinamento. Alega que uma conspiração do governo o manteve trancado todos esses anos. Na mente do Mick Gabriel, ele é a maior das víti­mas, um inocente tentando salvar o mundo, atingido pelas ambições imorais de um político egocêntrico.

—        Desculpe, me perdi nessa última parte.

Foletta folheia as fichas, retirando várias Polaroids de um envelope. Este é o homem que ele atacou. Dê uma boa olhada na foto. Trate de não baixar a guarda.

E um close-up do rosto de um homem, brutalmente espancado. A órbita do olho direito está coberta de sangue.

—        O Mick arrancou o microfone do pedestal e bateu na vítima até ela desmaiar. O pobre homem acabou perdendo um olho. Acho que vai reconhe­cer o nome. Pierre Borgia.

—        Borgia? Está brincando? O secretário de Estado?

—        Isso foi há quase 11 anos, antes que o Borgia fosse nomeado delegado da ONU. Ele era candidato a senador, na época. Há quem diga que a agressão o ajudou a se eleger. Antes que a máquina política dos Borgia o empurrasse para a vida pública, parece que o Pierre era um acadêmico e tanto. Ele e o Julius Gabriel estavam no mesmo programa de doutorado em Cambridge. Acredite se quiser, mas os dois chegaram a trabalhar juntos depois de formados. Explo­raram ruínas antigas por uns cinco ou seis anos antes de terem um desenten­dimento sério. A família de Borgia finalmente o convenceu a voltar para os Estados Unidos e entrar na política, mas o ressentimento nunca foi embora.

Foletta faz uma pausa e logo prossegue.

—        O fato é que foi o Borgia que apresentou o Julius como o principal palestrante. O Pierre provavelmente disse algumas coisas que não deveria ter dito, que ajudaram a provocar o público. O Julius Gabriel tinha coração fraco. Depois que ele morreu nos bastidores, Mick foi à forra. Foram precisos seis policiais para controlá-lo. Está tudo no arquivo.

—        Isso me parece mais uma explosão emocional isolada, provocada por...

—        Esse tipo de fúria leva anos para se acumular, residente. O Michael Gabriel era um vulcão à espera da erupção. Aqui temos um filho único, cria­do por dois arqueólogos de renome nas áreas mais desoladas do mundo. Ele nunca foi à escola, nem teve a oportunidade de conviver com outras crianças, e tudo isso contribuiu para um caso extremo de distúrbio de personalidade antissocial. Caramba, acho que o menino nunca nem namorou. Tudo o que ele aprendeu foi ensinado por seus únicos companheiros, seus pais, e pelo menos um dos dois era comprovadamente psicótico.

Foletta lhe entrega o arquivo.

—        O que aconteceu com a mãe dele?

—        Morreu de câncer no pâncreas enquanto a família morava no Peru. Por algum motivo, sua morte ainda o assombra. Uma ou duas vezes por mês ele acorda gritando. Tem terrores noturnos pavorosos.

Quantos anos Mick tinha quando ela morreu?

Doze.

Sabe por que a morte dela ainda causa tamanho trauma a ele?

—        Não. Mick se recusa a falar sobre isso. Foletta se ajeita, incapaz de ficar confortável na pequena cadeira. A verdade, residente Vazquez, é que Michael Gabriel não gosta muito de mim.

—        Transferência de neurose?

—        Não. Mick e eu nunca tivemos esse tipo de relacionamento médico-paciente. Eu me tornei seu carcereiro, personagem de sua paranoia. Parte disso, sem dúvida, se originou em seus primeiros anos como interno. Ele teve difi­culdades para se adaptar ao confinamento. Uma semana antes de sua avaliação semestral, ele perdeu a cabeça com um de nossos vigias. Quebrou os dois bra­ços dele e deu vários pontapés na virilha. Causou tantos danos que seus dois testículos tiveram que ser removidos. Tem uma foto no arquivo, se quiser...

—        Não, obrigada.

—        Como punição pela agressão, Mick passou a maior parte dos últimos dez anos em confinamento solitário.

—        Isso é um pouco severo, não é?

—        A meu ver, não. Ele é muito mais esperto do que os homens que con­tratamos para vigiá-lo. É melhor para todos se ele for mantido em isolamento.

—        Ele vai ter permissão para participar de atividades coletivas?

—        A instituição tem regras rígidas para a reintegração de internos, mas por enquanto a resposta é não.

Dominique olha novamente as Polaroids.

—        O quanto devo me preocupar com um provável ataque desse paciente?

—        No nosso ramo, residente, precisamos nos preocupar sempre. Mick Gabriel pode atacar? Sempre. Será que ele vai atacar? Duvido. Os últimos dez anos não foram fáceis para ele.

—        Ele vai ser reintegrado à sociedade um dia?

Foletta balança a cabeça.

Nunca. Na estrada da vida, esta é a última parada de Mick Gabriel. Ele nunca vai ser capaz de enfrentar os rigores da sociedade. Tem medo.

Medo de quê?

De sua própria esquizofrenia. Mick diz que pode sentir a presença do mal ficando mais forte, se alimentando do ódio e da violência na sociedade. Sua fobia chega ao ponto de explosão toda vez que um adolescente revoltado pega a arma do pai e entra atirando numa escola. Esse tipo de coisa realmente o afeta.

Isso também me afeta.

Não da mesma forma. Mick vira um tigre.

Ele está sob medicação?

—        Administramos Zyprexa duas vezes ao dia. Tira a maior parte de seu ímpeto de luta.

—        E o que você quer que eu faça com ele?

—        A lei estadual exige que ele receba terapia. Use a oportunidade para adquirir uma experiência valiosa.

Ele está escondendo alguma coisa.

—        Agradeço a oportunidade, doutor. Mas por que eu?

Foletta se afasta da escrivaninha e fica de pé, a mobília rangendo com seu peso.

—        Como sou diretor desta instituição, muitas pessoas interpretariam como um conflito de interesses se só eu tratasse dele.

—        Mas por que não destacar uma equipe completa para...

—        Não. — A paciência de Foletta já se esgotava. — Michael Gabriel ainda é meu paciente, e eu vou determinar que tipo de terapia é melhor pra ele, não um conselho diretor. O que você logo vai descobrir por si mesma é que Mick é uma espécie de artista. É bastante esperto, muito eloquente e inteligen­te. O QI dele é de quase 160.

—        Isso é bastante incomum para um esquizofrênico, não é?

—        Incomum, mas não inédito. O que quero dizer é que ele só manipu­laria um assistente social ou um terapeuta ocupacional. É preciso alguém com o seu preparo pra não cair na dele.

—        E quando vou conhecê-lo?

—        Agora mesmo. Ele está sendo trazido para uma sala isolada para que eu possa observar o primeiro encontro de vocês. Contei a ele tudo sobre você hoje de manhã. Ele está ansioso para conhecê-la. Mas tome cuidado.

Os quatro últimos andares da instituição, chamados de unidades pelos fun­cionários do Centro, abrigam 48 internos cada. As unidades são divididas em alas norte e sul, cada ala contendo três núcleos. Um núcleo consiste em uma pequena sala de convivência com sofás e um aparelho de TV no centro de oito dormitórios particulares. Cada andar tem segurança e enfermarias próprias. Não há janelas.

Foletta e Dominique tomam o elevador dos funcionários até o sétimo andar. Um vigia afro-americano está conversando com uma das enfermeiras no posto central. A sala isolada fica à sua esquerda.

O diretor cumprimenta o guarda e apresenta a nova residente. Marvis Jones tem quase 50 anos e olhos castanhos gentis que transmitem a confiança adquirida com a experiência. Dominique nota que o vigia está desarmado. Foletta explica que armas nunca são permitidas nos andares dos internos.

Marvis os leva por meio do posto central para um espelho de segurança de um lado só, através do qual se vê a sala isolada.

Michael Gabriel está sentado no chão, com as costas apoiadas na parede oposta à janela. Usa camiseta e calça brancas, e seu físico está surpreendente­mente em forma, com o tórax bem definido. Ele é alto, com quase 1,96 metro, e pesa 100 quilos. O cabelo é castanho-escuro, um tanto longo e cacheado nas pontas. O rosto é bonito e bem barbeado. Uma cicatriz de 7 centímetros se estende do lado direito da mandíbula, perto da orelha. Seus olhos estão prega­dos no chão.

—        Ele é bonito.

—        O Ted Bundy[1] também era — diz Foletta. — Vou observar você da­qui. Tenho certeza de que Mick vai usar todo o seu charme para te impressio­nar. Quando achar que você aguentou o suficiente, mando a enfermeira entrar e dar a medicação dele.

Certo. — Sua voz treme.

Fica calma, caramba.

Foletta sorri.

Está nervosa?

Não, só um pouco na expectativa.

Ela sai do posto de segurança, acenando para que Marvis destranque a sala isolada. A porta se abre, fazendo as borboletas no seu estômago alçarem voo. Parando o suficiente para que seu ritmo cardíaco volte ao normal, ela entra, sentindo um calafrio ao ouvir o duplo clique da porta se fechando atrás dela.

A sala isolada mede 3 por 4 metros. Tem uma cama de ferro presa ao chão e à parede à sua frente, suportando um colchão bem fino. Uma cadeira solitária, também parafusada ao chão, está diante da cama. O vidro fume na parede, à sua direita, é a janela de observação. O quarto cheira a antisséptico.

Mick Gabriel se levanta. Sua cabeça está levemente inclinada, e ela não consegue ver seus olhos.

Dominique estende a mão, forçando um sorriso.

—        Dominique Vazquez.

Mick ergue o olhar, revelando olhos animalescos, tão intensamente ne­gros que é impossível determinar onde a pupila termina e a íris começa.

—        Dominique Vazquez. Dominique Vazquez. O interno pronuncia cada sílaba com cuidado, como que as gravando na memória. E um praze...

Seu sorriso desaparece de repente, a expressão sóbria e analítica fica neutra.

O coração de Dominique lateja em seus ouvidos. Fique calma. Não se mexa.

Mick fecha os olhos. Algo inesperado está acontecendo com ele. Do­minique vê sua mandíbula se levantar um pouco, revelando a cicatriz. Suas narinas se abrem como as de um animal farejando sua presa.

—        Posso me aproximar, por favor? As palavras são ditas mansamente, quase sussurradas. Ela sente uma barragem emocional se rompendo por trás da voz.

Dominique luta contra o ímpeto de correr para o vidro fumê. Os olhos voltam a se abrir.

—        Juro pela alma da minha mãe que não vou te machucar.

Vigie as mãos dele. Se ele avançar, mete o joelho.

—        Pode se aproximar, mas sem movimentos bruscos, está bem? O dr. Foletta está olhando.

Mick dá dois passos para a frente, ficando a meio braço de distância. Ele aproxima o rosto, fechando os olhos e inspirando como se o rosto dela fosse uma garrafa de excelente vinho.

A presença do homem está fazendo os pelos dos braços da residente fi­carem de pé. Ela observa que os músculos faciais dele se relaxam, sua mente abandona a sala. Seus olhos fechados se enchem d'água. Várias lágrimas esca­pam, escorrendo livremente pelo seu rosto.

Por um breve momento, o instinto materno a faz baixar a guarda. Será que ele está fingindo? Seus músculos se retesam.

Mick abre os olhos, agora dois lagos negros. A intensidade animalesca desapareceu.

Obrigado. Acho que a minha mãe usava o mesmo perfume. Ela dá um passo para trás.

É Calvin Klein. Traz lembranças felizes?

E algumas ruins também.

O encanto se quebra. Mick se dirige para o catre.

Você prefere a cadeira ou a cama?

Pode ser a cadeira mesmo. — Ele espera que ela se sente, e então se posiciona na beirada da cama para se encostar na parede. Mick se move como um atleta.

Você conseguiu se manter em forma.

Pra quem tem a mente disciplinada, esse pode ser um resultado da vida na solitária. Faço mil flexões e abdominais por dia. — Ela sente os olhos dele absorvendo sua silhueta. — Você também parece malhar bastante.

Eu tento.

Vazquez. É com s ou com z?

Z.

Porto Rico?

Sim. Meu... meu pai biológico cresceu em Arecibo.

É a sede do maior radiotelescópio do mundo. Mas seu sotaque parece da Guatemala.

Fui criada lá. — Ele está controlando a conversa. — Presumo que tenha visitado a América Central?

Visitei muitos lugares. — Mick cruza as pernas, assumindo a posição de lótus. — Então você foi criada na Guatemala. Como veio parar nesta gran­de terra de oportunidades?

Meus pais morreram quando eu era criança. Fui enviada para morar com um primo na Flórida. Mas vamos falar de você agora.

Você disse "pai biológico". Achou importante identificá-lo assim. Quem é o homem que você considera seu verdadeiro pai?

Isadore Axler. Ele e a esposa me adotaram. Passei algum tempo num orfanato depois de sair da casa dos meus primos. Iz e Edith Axler são pessoas maravilhosas. Os dois são biólogos marinhos. Operam uma estação SOSUS na ilha de Sanibel.

SOSUS?

É um sistema submarino de vigilância sonora, uma rede mundial de microfones submarinos. A Marinha usava o SOSUS durante a guerra fria para detectar submarinos inimigos. Agora os biólogos dominam o campo; usam o sistema para bisbilhotar a fauna marinha. Ele é tão sensível que permite ouvir grupos de baleias a centenas de quilômetros de...

Os olhos penetrantes a interrompem.

—        Por que você saiu da casa do seu primo? Algo traumatizante deve ter acontecido, se você foi parar num orfanato.

Ele é pior que o Foletta.

Mick, estou aqui pra falar de você.

Sim, mas talvez minha infância também tenha sido traumatizante. Talvez sua história possa me ajudar.

Duvido. Tudo acabou bem. Os Axler me devolveram minha infância, e eu...

Mas não sua inocência.

Dominique sente o sangue fugir de seu rosto.

Muito bem. Agora que já sabemos que você aprende rápido, vejamos se consegue concentrar esse incrível QI em si próprio.

Pra você então me ajudar?

Pra que possamos nos ajudar mutuamente. — Você ainda não leu meu arquivo, leu?

Não, ainda não.

Sabe por que o Foletta me indicou pra você?

Por que não me conta?

Mick olha para as próprias mãos, pensando numa resposta.

Tem um estudo escrito por Rosenhan. Você já leu?

Não.

—        Se importa de ler antes da nossa próxima sessão? O dr. Foletta com certeza tem uma cópia em alguma daquelas caixas de papelão que ele chama de arquivos.

Ela sorri.

Se é importante pra você, vou procurar.

Obrigado. — Ele se curva para a frente. — Gosto de você, Domini­que. Sabe por que eu gosto de você?

Não. — As lâmpadas fluorescentes dançam como o luar nos olhos dele.

Gosto de você porque sua mente ainda não está institucionalizada. Você ainda é novata, e isso é importante pra mim. Quero me abrir de verdade com você, mas não posso, pelo menos não nesta sala com o Foletta olhando. Também acho que você vai se identificar com alguns dos percalços que en­frentei. Por isso, gostaria de falar com você sobre muitas coisas, coisas muito importantes. Acha que poderemos conversar em particular, da próxima vez? Talvez no jardim?

Vou pedir ao dr. Foletta.

Quando perguntar, lembre o doutor das regras da instituição. Pode também pedir o diário do meu pai? Se você vai ser minha terapeuta, acho que é de vital importância que o leia. Você se importaria?

Será uma honra ler o diário.

Obrigado. Poderia lê-lo logo, talvez no fim de semana? Odeio passar dever de casa, afinal, hoje é seu primeiro dia, mas é vital que você o leia o quanto antes.

A porta se abre, a enfermeira entra. O vigia está lá fora, olhando para a porta.

Hora do seu remédio, sr. Gabriel. — Ela lhe entrega o copo descartá­vel com água, depois o comprimido branco.

Mick, preciso ir. Foi um prazer conhecê-lo. Farei o melhor que puder pra terminar meu dever de casa até segunda, está bem? — Ela fica de pé e se vira para ir embora.

Mick olha para o comprimido.

Dominique, os seus parentes maternos são maias quiches, não são?

Maias? Eu... eu não sei. — Ele sabe que você está mentindo. — Bem, é possível. Meus pais morreram quando eu era muito...

Os olhos se erguem de repente, com um efeito desarmante.

Quatro Ahau, três Kankin. Sabe que dia é esse, não sabe, Dominique?

Merda...

Vejo... vejo você mais tarde. — Dominique sai da sala, esbarrando no vigia.

Michael Gabriel coloca cuidadosamente o comprimido na boca. Esva­zia o copo de água, depois o amassa com a mão esquerda. Ele abre a boca, permitindo que a enfermeira a inspecione com seu depressor de língua e sua mini-lanterna, verificando se o comprimido foi engolido.

—        Obrigada, sr. Gabriel. O vigia vai acompanhá-lo de volta ao seu quar­to daqui a alguns minutos.

Mick permanece no catre até a enfermeira fechar a porta. Ele fica de pé, voltando para a parede oposta, de costas para a janela. Casualmente, com o indicador da mão direita, tira o comprimido do copo de papel e o esconde na palma da mão. Voltando a se sentar no chão na posição de lótus, joga o copo amassado sobre a cama e enfia o comprimido branco no sapato.

O Zyprexa será jogado no vaso sanitário quando ele voltar para a cela.

 

           8 de setembro de 2012, CASA BRANCA

O secretário de Estado Pierre Robert Borgia olha para a sua imagem no espelho do lavabo. Ele ajusta o tapa-olho sobre a órbita direita, depois ajeita os curtos tufos de cabelo grisalho dos dois lados da cabeça calva. O terno preto e a gravata combinando estão imaculados, como de costume.

Borgia sai do lavabo executivo e vira para a direita, acenando para os membros do gabinete enquanto anda pelo corredor até o Salão Oval.

Patsy Goodman ergue o olhar do teclado. — Pode entrar. Ele está esperando. Borgia balança a cabeça e entra. O rosto magro e pálido de Mark Maller mostra o desgaste de quase quatro anos no cargo de presidente. O cabelo negro encaneceu ao redor das têmporas; os olhos, de um azul penetrante, estão rodeados por mais rugas. Seu físico de 52 anos, notavelmente mais magro, ainda continua firme.


Borgia diz que o presidente parece ter perdido peso.

Maller sorri.

É a chamada dieta do estresse de Viktor Grozny. leu o relatório matinal da CIA?

Ainda não. O que o novo presidente da Rússia aptontou desta vez?

Convocou uma reunião com os líderes militares da China, Coréia do Norte, Irã e Índia.

Com que propósito?

Conduzir um exercício nuclear retaliatório conjunto, em resposta aos nossos últimos testes envolvendo o Escudo Antimíssil.

Lá vai o Grozny tentando aparecer. Ele continua furioso porque o FMI cancelou aquele pacote de 20 bilhões de dólares em empréstimos.

Seja qual for o motivo, ele está conseguindo inflamar a paranoia nu­clear na Ásia.

Marko, a reunião do Conselho de Segurança é hoje à tarde, sei que você não me chamou aqui para discutir política externa.

Maller balança a cabeça e esvazia sua terceira xícara de café.

—        O Jeb decidiu renunciar ao cargo de vice-presidente. Não pergunte. Pode chamar de motivos pessoais.

Borgia congela.

Meu Deus, a eleição é daqui a menos de dois meses...

Já fiz uma reunião extraoficial com os líderes do partido. E você ou o Ennis Chaney.

Jesus...

—        Já falou com ele?

—        Não. Quis avisar você primeiro, achei que te devia isso.

Borgia dá de ombros, sorrindo nervosamente.

O senador Chaney é um bom homem, mas não chega nem perto de mim quando o assunto é política externa. E minha família ainda tem muita influência...

Não tanto quanto você pensa, e as pesquisas mostram que a maioria dos americanos não está interessada na militarização da China. O povo vê o Escudo Antimíssil como a solução final contra a guerra nuclear.

Tenho que ser curto e grosso, senhor. O Comitê Nacional Republica­no acha mesmo que o país está pronto para um vice-presidente republicano[2] afro-americano?

A eleição vai ser apertada. Veja como o Lieberman ajudou o Gore. O Chaney nos daria a vantagem que precisamos tanto na Pensilvânia quanto no Sul. Relaxe, Pierre. Nenhuma decisão será tomada antes de pelo menos trinta a 45 dias.

Me parece inteligente. A imprensa vai ter menos tempo para nos massacrar.

Precisamos nos preocupar com alguma mancha no seu passado?

Tenho certeza de que a sua equipe já está verificando isso. Mark, diga a verdade, o Chaney leva vantagem no páreo?

As pesquisas de opinião mostram que a popularidade dele cruza fron­teiras partidárias e raciais. Ele tem os pés no chão. O público confia até mais nele do que no Colin Powell.

Não confunda confiança com qualificações. — Borgia fica de pé e anda de um lado para outro. — As pesquisas também mostram que os ameri­canos estão preocupados com o colapso da economia russa, e como ele afetaria o mercado europeu.

—        Pierre, calma. Muita coisa pode acontecer em 45 dias.

Borgia expira.

—        Desculpe, presidente. Já é uma grande honra ser levado em conta. Escute, preciso ir. Tenho que me reunir com o general Fecondo antes do pro­nunciamento de hoje à tarde.

Borgia aperta a mão do amigo e se dirige à porta camuflada na parede revestida. Ele se vira antes de sair.

—        Marko, você tem algum conselho? O presidente suspira.

—        Não sei. Mas Heidi falou uma coisa no café. Já pensou em trocar esse tapa-olho por um olho de vidro?

 

Dominique sai do saguão do Centro, o calor do verão do sul da Flórida atinge seu rosto em cheio. Um raio distante corta o ameaçador céu vespertino. Passando o diário encadernado em couro da mão direita para a esquerda, ela pressiona o po­legar sobre a fechadura, destrancando a porta do motorista de seu Pronto Spyder preto. O conversível, novinho em folha, foi um presente adiantado de formatura de Edie e Iz. Ela põe o diário no banco do passageiro, afivela o cinto de segurança e aperta o polegar sobre a ignição, sentindo a incômoda picada microscópica. O computador do painel ganha vida, piscando a mensagem:

 

Ativando seqüência de Ignição.

Identidade Verificada. Sistema Antifurto Desativada.

 

Ela sente o familiar solavanco das travas da coluna de direção se soltando.

 

Verificando Nível de Álcool no Sangue. Por Favor. Aguarde...

 

Dominique encosta a cabeça no banco de couro, olhando as primeiras gotas pesadas de chuva que atingem a capota de tereftalato de polietileno de seu carro esporte. Paciência é uma necessidade com os novos recursos de igni­ção segura, mas ela sabe que vale a pena esperar os três minutos a mais. A em­briaguez ao volante se tornou a principal causa de mortes nos Estados Unidos. Até o outono do próximo ano, todos os veículos deverão obrigatoriamente ter instalados os dispositivos de medição de álcool no sangue.

A ignição é ativada.

 

Nível Aceitável de Álcool no Sangue. Por Favor, Dirija com Cuidado.

 

Dominique ajusta o ar-condicionado e em seguida aperta o botão do CD player Digital DJ. O processador interno reage ao tom de voz ou ao toque, in­terpretando o humor do motorista e selecionando uma música adequada entre centenas de combinações pré-programadas.

O baixo pesado do último disco dos Rolling Stones, Past Our Prime, tro­veja dos alto-falantes do som surround. Ela sai do estacionamento de visitantes e começa a viagem de quarenta minutos até sua casa.

Não foi fácil convencer o dr. Foletta a ceder o diário de Julius Gabriel. Sua ob­jeção inicial foi que o trabalho do falecido arqueólogo havia sido patrocinado pelas Universidades de Harvard e Cambridge, e que, legalmente, seria preciso obter permissão por escrito dos dois departamentos de pesquisa antes de libe­rar quaisquer documentos. Dominique argumentou que precisava ter acesso ao diário, não só para fazer seu trabalho direito como para conquistar a confiança de Michael Gabriel. Uma tarde inteira ligando para chefes de departamento em Harvard e Cambridge confirmou que o diário era mais um volume de me­mórias do que um documento científico, e que ela poderia usá-lo à vontade, contanto que não levasse a público nenhuma informação. Foletta finalmente capitulou, trazendo o caderno de 5 centímetros de espessura no fim do dia. O acesso ao diário veio apenas depois de Dominique assinar um acordo de confidencialidade de quatro páginas.

 

Já sem a presença da chuva, Dominique entra na garagem escura da torre de apartamentos em Hollywood Beach. Ela desliga o motor do carro, olhando para uma imagem fantasmagórica que aparece no visor instalado no pára-brisa. A imagem fornecida pela câmera do radiador do carro confirma que a garagem está vazia.

Dominique sorri da própria paranóia. Toma o antiquado elevador até o quinto andar, segurando a porta para que a sra. Jenkins e seu poodle branco possam entrar.

O apartamento de um dormitório, propriedade de seus pais adotivos, fica no fim do corredor. É o último à direita. Enquanto ela digita o código de segurança, a porta às suas costas se abre.

—        Dominique, como foi seu primeiro dia de trabalho?

O rabino Richard Steinbetg a abraça, um sorriso terno se abre por trás da barba grisalha. Steinberg e sua esposa, Mindy, são grandes amigos de seus pais. Dominique conhece o casal desde que foi adotada, há quase vinte anos.

Mentalmente exaustivo. Acho que vou pular o jantar e entrar numa banheira quentinha.

Escute, Mindy e eu queremos te chamar pra jantar lá em casa semana que vem. Pode ser na terça?

—        Acho que sim. Obrigada.

—        Que bom, que bom. Ah, falei com o Iz ontem. Sabia que ele e sua mãe estão querendo vir pra cá nas Grandes Festas?

—        Não, eu não...

—        Olha, preciso ir, não posso me atrasar para o Shabbat. Até semana que vem.

Ela acena, vendo-o andar apressado pelo corredor. Dominique gosta de Steinberg e da esposa, acha os dois afetuosos e autênticos. Ela sabe que Iz lhes pediu para dar uma atenção paternal a ela.

Dominique entra no apattamento e abre as portas da sacada, deixando a brisa do oceano encher a sala abafada com uma lufada de ar marinho. O agua­ceiro da tarde espantou a maioria dos frequentadores da praia, e os últimos raios de sol escapam de trás das nuvens, lançando um brilho rubro sobre a água.

E sua hora favorita do dia, a hora da confortante solidão. Ela pensa em andar sossegadamente pela praia, depois muda de ideia. Enchendo um copo com vinho de uma garrafa aberta na geladeira, ela tira os sapatos e volta para a sacada. Deixando o copo sobre a mesa de plástico, junto com o grosso diário, ela se deita na espreguiçadeira, esticando-se e sentindo seu corpo afundar nas almofadas macias.

O mantra sincopado das ondas logo faz sua mágica. Ela toma um gole de vinho e fecha os olhos, seus pensamentos voltam mais uma vez ao encontro com Michael Gabriel.

Quatro Ahau, três Kankin. Dominique não ouve essas palavras desde a infância.

Os pensamentos se transformam num sonho. Ela está de volta às colinas da Guatemala, com 6 anos de idade, sua avó materna ao seu lado. As duas estão de joelhos, labutando sob o sol da tarde nas plantações de cebola. Uma brisa fresca, o xocomil, sopra do lago Atitlán. A criança ouve com atenção a voz áspera da velha. "O calendário nos foi passado por nossos ancestrais olmecas, e sua sabedoria vem do nosso mestre, o grande Kukulcán. Muito antes de os espanhóis invadirem nossa terra, o grande mestre nos avisou sobre os dias desastrosos que estavam por vir. Quatro Ahau, três Kankin, o último dia do calendário maia. Cuidado com esse dia, minha filha. Quando a hora chegar, você deve voltar para casa, pois o Popol Vuh diz que somente aqui poderemos voltar à vida."

Dominique abre os olhos, fitando o oceano negro. Cristas de espuma cor de alabastro rolam sob o luar parcialmente oculto.

Quatro Ahau, três Kankin — 21 de dezembro de 2012.

O dia do profetizado fim da humanidade.

 

             Diário de Julius Gabriel, 24 DE AGOSTO DE 2000

Meu nome é professor Julius Gabriel.

Sou um arqueólogo, um cientista que estuda relí­quias do passado para entender culturas antigas. Uso evi­dências deixadas pelos nossos ancestrais para tecer hipóteses e formular teorias. Peneiro milhares de anos de mitos para encontrar isolados veios de verdade.

Através das eras, cientistas como eu aprenderam do jeito mais difícil que o medo do homem muitas vezes supri­me a verdade. Rotulada como heresia, seu ímpeto é sufocado até que a Igreja e o Estado, o juiz e o júri sejam capazes de deixar seus medos de lado e aceitar o que é real.

Sou um cientista. Não sou um político. Não estou in­teressado em apresentar anos de teorias apoiadas em fatos para uma assembleia de autodenominados acadêmicos, para que eles votem no que pode ou não pode ser uma verdade aceitável sobre o destino da humanidade. A natureza da verdade não tem nada a ver com o processo democrático. Como um repórter investigativo, só me interessa o que real­

 

mente aconteceu e o que pode de fato acontecer. E se a verdade resultar tão inacre­ditável que me rotulem como herege, que seja.

Afinal, estou em boa companhia: Darwin era um herege; e Galileu antes dele; há quatrocentos anos, Giordano Bruno foi condenado à fogueira por insistir que existiam outros mundos além do nosso.

Como Bruno, estarei morto bem antes que o amargo fim da humanidade chegue. Aqui jaz Julius Gabriel, vítima de um coração doente. Meu médico impõe seus cuidados, avisando que meu coração não passa de uma bomba-relógio que pode explodir a qualquer momento. Que exploda, eu digo. Esse órgão inútil só me fez sofrer desde que se rompeu, há 11 anos, quando minha amada se foi.

Estas são minhas memórias, o relato de uma jornada que começou há uns 32 anos. Meus objetivos em coletar essas informações são dois. Primeiro, a natureza da pes­quisa é tão polêmica, e seus desdobramentos, tão aterrorizantes, que agora percebo que a comunidade científica fará tudo o que estiver ao seu alcance para sufocar, abafar e negar a verdade sobre o destino do homem. Por último, sei que há indiví­duos em meio ao povo que, como meu próprio filho, preferem lutar a ficar passivos enquanto o fim se aproxima. Para vocês, meus "guerreiros da salvação", eu deixo este diário, passando com ele o bastão da esperança. Décadas de labuta e sofrimento se escondem nestas páginas, neste pedacinho da história do homem, extraída de anos de calcário. O destino da nossa espécie está agora nas mãos do meu filho — e talvez nas suas. Na pior das hipóteses, vocês não farão mais parte da maioria que Michael chama de "inocentes ignorantes". Rezem para que homens como meu filho possam resolver o antigo enigma dos maias. E rezem por vocês mesmos.

Dizem que o medo da morte é pior do que a própria morte. Eu acredito que testemunhar a morte de um ente querido seja pior ainda. Ter visto a vida da minha alma gêmea escapar diante de meus olhos, ter sentido o seu corpo esfriar em meus braços — isso é desespero demais para um coração aguentar. As vezes, chego a ficar grato por estar morrendo, pois nem consigo imaginar a angústia de testemunhar toda uma população sofrendo em meio ao holocausto planetário que está por vir.

Para aqueles dentre vocês que riem de minhas palavras, um aviso: o dia do acerto de contas se aproxima rapidamente, e ignorar o fato não mudará em nada o resultado.

Hoje, aguardo nos bastidores, em Harvard, organizando estes textos enquanto es­pero minha vez na tribuna. Tanta coisa depende do meu discurso, tantas vidas. Minha maior preocupação é que os egos dos meus colegas sejam grandes demais para permitir que as minhas descobertas sejam ouvidas com mente aberta. Se eu tiver a chance de apresentar os fatos, sei que poderei instigá-los como cientistas. Se eu for ridicularizado, meu medo é que tudo estará perdido.

Medo. Não tenho dúvidas quanto ao efeito motivador que essa emoção tem sobre mim agora. Porém, não foi o medo que me pôs nesta jornada naquele fatídico dia de maio de 1969, e sim o desejo de conseguir fama e fortuna. Na época, eu era jovem e imortal, ainda cheio de empáfia e cinismo, tendo recebido recentemente meu título de doutor cum laude da Universidade de Cambridge. Enquanto o resto dos meus colegas estava ocupado protestando contra a guerra do Vietnã, fazendo amor e lutando por igualdade, eu parti com a herança do meu pai, acompanhado de dois colegas arqueólogos e companheiros: meu (ex) melhor amigo, Pierre Borgia, e a es­tonteante Maria Rosen. Nosso objetivo — desvendar o grande mistério que cercava o calendário maia e sua profecia de 2.500 anos que anunciava o fim do mundo.

Nunca ouviu falar da profecia do calendário maia? Não estou surpreso. Hoje em dia, quem tem tempo para se preocupar com um oráculo de morte originado numa antiga civilização mesoamericana?

Daqui a 11 anos, quando vocês e seus entes queridos estiverem se retorcendo no chão, lutando para puxar o último hausto de ar, com sua vida passando diante de seus olhos — pode ser que se arrependam de não ter tido tempo.

Vou até dizer o dia em que vocês vão morrer: 21 de dezembro do ano de 2012.

Pronto, vocês foram oficialmente avisados. Agora podem agir ou enfiar a cabeça na areia da ignorância, como o resto de meus cultos colegas.

Naturalmente, é fácil para seres humanos racionais desprezar a profecia maia do Juízo Final como uma mera bobagem supersticiosa. Ainda me lembro da reação do meu professor ao descobrir a área em que eu pretendia me especializar: Está perdendo o seu tempo, Julius. Os maias eram bárbaros, um bando de selvagens que moravam no mato e acreditavam em sacrifícios humanos. Pelo amor de Deus, eles não conheciam nem a roda...

Meu professor estava ao mesmo tempo certo e errado, e esse é o paradoxo. Embora seja verdade que os antigos maias mal entendiam a importância da roda, eles conseguiram, de fato, adquirir conhecimentos avançados de Astronomia, Arquitetura e Matemática que, de muitas maneiras, rivalizavam e até superavam os nossos. Em termos laicos, os maias eram equivalentes a uma criança de 4 anos que consegue tocar a Sonata ao Luar de Beethoven no piano, enquanto continua incapaz de martelar "O Bife".

Vocês acham difícil acreditar nisso, tenho certeza; a maioria dos autodenomi­nados "cultos"acha. Mas as evidências são esmagadoras. E foi isso que me impeliu a começar minha jornada, pois simplesmente ignorar a riqueza de conhecimentos do calendário por causa de sua inimaginável profecia teria sido um crime tão grande quanto menosprezar sumariamente a teoria da relatividade porque Einstein já trabalhou como contínuo.

Então, o que é o calendário maia?

Uma breve explicação:

Se eu pedisse para vocês explicarem a função de um calendário, sua resposta imediata provavelmente seria descrever o dispositivo como um meio de lembrar seus compromissos semanais ou mensais. Indo além desse âmbito limitado, vejamos o calendário como o que ele realmente é— uma ferramenta projetada para deter­minar (tão precisamente quanto possível) a órbita anual da Terra ao redor do Sol.

Nosso calendário ocidental moderno foi introduzido pela primeira vez na Europa, em 1582. Foi baseado no calendário gregoriano, que calculava a órbita da Terra ao redor do Sol com uma duração de 365,25 dias. Ele incorporava um minúsculo erro de 0,0003 dia por ano para mais, algo bastante impressionante para cientistas do século XVI.

Os maias derivaram seu calendário de seus ancestrais, os olmecas, um povo misterioso cujas origens remontam a uns 3 mil anos atrás. Imaginem-se por um momento vivendo há milhares de anos. Não existe televisão, rádio, telefones ou relógios, e sua tarefa é mapear as estrelas para determinar a passagem de tempo que equivale a uma órbita planetária. De alguma forma, os olmecas, sem instrumentos de precisão, calcularam a duração do ano solar em 365,2420 dias, incorporando um erro ainda menor de 0,0002 por dia.

Deixe-me repetir para que vocês entendam as implicações: o calendário maia tem 3 mil anos de idade e é um décimo milésimo de dia mais preciso do que o ca­lendário que o mundo usa atualmente!

Tem mais. O calendário solar maia é só uma parte de um sistema com três calendários. O segundo, o "calendário cerimonial", funciona junto com ele e consis­te em vinte meses de 13 dias. A terceira parte, o "calendário venusiano" ou "Con­tagem Longa", foi baseado na órbita do planeta Vénus. Combinando esses três calendários num só, os maias conseguiram determinar eventos celestiais ao longo de enormes passagens de tempo, não só de milhares, mas de milhões de anos. (Num monumento mesoamericano em particular, uma inscrição se refere a um período de tempo iniciado há 400 milhões de anos.)

Já estão impressionados?

Os maias acreditavam em Grandes Ciclos, períodos de tempo que registra­vam as criações e destruições previstas do mundo. O calendário demarcou os cinco Grandes Ciclos, ou Sóis, da Terra. O ciclo atual, o último, começou em 4 Ahau 8 Cumku, data correspondente a 13 de agosto de 3.114 a.C., considerada pelos maias como a data de nascimento do planeta Vênus. Está previsto que esse último Grande Ciclo terminará com a destruição da humanidade em 4 Ahau 3 Kankin, data determinada como 21 de dezembro do ano de 2012 — o dia do solstício de inverno.

O Dia dos Mortos.

Quão convencidos estavam os maias da veracidade de sua profecia? Depois da partida de seu grande mestre, Kukulcán, os maias começaram a praticar rituais bárbaros envolvendo sacrifícios humanos, arrancando os corações de dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças.

O sacrifício supremo — tudo para impedir o fim da humanidade.

Não peço que vocês recorram a expedientes tão bizarros, mas apenas que abram sua mente. O que não conhecemos pode nos afetar, o que nos recusamos a en­xergar pode nos matar. Existem mistérios que nos cercam cujas origens não podemos compreender, mas precisamos! As pirâmides de Gizé e Teotihuacán, os templos de Angkor no Camboja, Stonehenge, a incrível mensagem inscrita no deserto de Nazca e, acima de tudo, a pirâmide de Kukulcán em Chichén Itzá. Todos esses sítios anti­gos, todas essas maravilhas magníficas e inexplicáveis não foram criados para serem atrações turísticas, mas são peças de um único e intrigante quebra-cabeça que pode evitar a aniquilação de nossa espécie.

Minha jornada pela vida está quase no fim. Deixo essas memórias, um resumo das provas esmagadoras que acumulei durante três décadas, para o meu filho Michael e para todos aqueles que querem continuar o meu trabalho ad finem — até o fim. Enquanto apresento as pistas e a forma como as encontrei, tentarei pintar um quadro histórico com os fatos e seu acontecimento ao longo da linha do tempo da história do homem.

Quero deixar registrado que não sinto satisfação nenhuma por estar certo. Quero deixar registrado que peço a Deus que eu esteja errado.

Eu não estou errado...

 

— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,

     Ref. Catálogo J G 1969-70 páginas 12-28


 

         11 DE SETEMBRO DE 2012, MIAMI, FLÓRIDA

Michael Gabriel está sonhando.

Mais uma vez, ele está sentado no chão, nos bas­tidores de um auditório, a cabeça de seu pai apoiada em seu peito enquanto esperam a ambulância. Julius acena para que o filho aproxime o ouvido, para que ele possa sussurrar um segredo que guarda desde a morte de sua esposa, 11 anos antes.

—        Michael... a pedra central.

—        Não tente falar, papai. A ambulância está chegando.

Escute, Michael! A pedra central, o marco do cam­po. Eu coloquei de volta.

Não estou entendendo. Que pedra?

Em Chichén Itzá.

Os olhos cansados ficam baços, o peso do corpo do pai amolece contra o seu peito.

—        Pai... PAI!

Mick acorda com o corpo banhado de suor.


Dominique acena distraidamente para a recepcionista e segue direto para o posto central da segurança. Um vigia musculoso sorri quando ela se aproxima, o bigode ruivo do homem se ergue e se espalha por seu lábio superior, revelan­do dentes amarelados.

Bom dia, gatinha. Meu nome é Raymond, e aposto que você é a nova residente.

Dominique Vazquez. Ela aperta sua mão calejada, notando gotículas de transpiração em seu antebraço grosso e sardento.

Desculpe, acabei de chegar da academia. Raymond enxuga os bra­ços com uma toalha de mão, exagerando os movimentos para flexionar os mús­culos. Vou competir no torneio regional pra Mister Flórida em novembro. Acha que tenho chances?

Hã, claro. Meu Deus, por favor, tomara que ele não comece a posar...

Você podia ir junto e me ver competir, viu? Torcer por mim? Os pálidos olhos castanhos se abrem sob as sobrancelhas curtas e avermelhadas.

Seja gentil.

Muitos funcionários vão?

Alguns, mas vou te garantir um lugar perto do palco. Vem pros fundos, gatinha, preciso fazer o teu crachá e gravar uma imagem térmica do teu rosto.

Raymond destranca o portão de aço e o segura aberto para ela, flexionan­do o tríceps. Dominique sente os olhos dele correndo pelo seu corpo ao passar.

—        Senta aí, vamos fazer o crachá primeiro. Vou precisar da sua carteira de motorista.

Ela entrega o documento e se senta numa cadeira reta, posicionada diante de uma máquina preta do tamanho de uma geladeira. Raymond enfia um disquete quadrado numa fenda lateral, depois digita as informações no computador.

—        Sorria. O flash explode em seus olhos, deixando uma mancha incômoda. — O crachá fica pronto no fim do dia. Ele devolve a carteira de motorista. Certo, agora pode sentar na frente desta câmera infravermelha. Já mapeou seu rosto?

Já depilou suas costas?

Hã, que eu saiba, não.

A câmera infravermelha cria uma imagem única do seu rosto, regis­trando o calor emitido pelos vasos sanguíneos sob a pele. Até gêmeos idênticos têm padrões faciais diferentes para o infravermelho, e esses padrões nunca mu­dam. O computador registra 1.900 pontos térmicos distintos. O rastreamento da pupila usa 266 características mensuráveis, e as impressões digitais, só quarenta...

Ray, tudo isso é fascinante, de verdade, mas é mesmo necessário? Não vi ninguém usando sensores infravermelhos.

É porque você não esteve aqui à noite. A tarja magnética do seu crachá é tudo que você precisa para entrar ou sair da instituição durante o dia. Mas depois das sete e meia da noite, vai precisar digitar sua senha e se identificar para o sensor infravermelho. A máquina vai comparar sua imagem térmica facial com as imagens que vamos registrar no seu arquivo permanente. Nin­guém entra ou sai deste prédio à noite sem ser identificado, e nada engana a máquina. Sorria.

Dominique olha desanimadamente para a câmera esférica por trás da chapa de vidro, sentindo-se boba.

—        Certo, vire pra esquerda. Ótimo. Agora pra direita. Agora olhe pra baixo. Acabou. Ei, gatinha, você gosta de comida italiana?

Pronto.

De vez em quando.

Tem um restaurante ótimo aqui pertinho. A que horas você sai?

Hoje à noite não é um bom...

Quando é bom?

Ray, preciso ser sincera, eu nunca saio com colegas de trabalho.

Quem falou em sair? Só falei de jantar.

Se é só pra jantar, então tudo bem, eu adoraria ir um dia, mas hoje não dá mesmo. Me dê algumas semanas pra me ajeitar. — E pra inventar outra desculpa. Ela abre um sorriso doce, esperando diminuir a dor da rejeição. — Além do mais, se você está treinando não pode se encher de comida italiana.

Tudo bem, então, mas vou te cobrar. — O ruivão sorri. — Escute, se precisar de alguma coisa, é só chamar.

Não vou precisar. Preciso ir. O dr. Foletta está esperando...

O Foletta só chega à tarde. Está na reunião mensal do conselho. Ei, ouvi dizer que ele te destacou pra aquele paciente dele. Como é o nome dele mesmo?

Michael Gabriel. O que você sabe sobre ele?

Não muito. Foi transferido de Massachusetts junto com o Foletta. Eu sei que o conselho e a equipe médica ficaram muito putos quando ele chegou. O Foletta deve ter mexido uns pauzinhos.

—        Como assim?

Raymond vira a cabeça, evitando o olhar dela.

Ah, deixa pra lá.

Vamos, me conte.

Não, preciso aprender a fechar a matraca. O Foletta é o seu chefe. Não quero dizer nada que possa causar uma má impressão.

Fica só entre nós dois.

Mais dois vigias entram, acenando para Raymond.

—        Tudo bem, eu conto, mas não aqui. Ouvidos atentos e bocas grandes demais. A gente conversa no jantar. Eu saio às seis. — Os dentes manchados aparecem num sorriso triunfante.

Raymond abre o portão para ela. Dominique sai do posto de segurança e espera pelo elevador de funcionários sorrindo amarelo. Parabéns, gatinha. Você devia ter imaginado que ia dar nisso.

 

Marvis Jones a observa sair do elevador em seu monitor de segurança.

Bom dia, residente. Se está aqui para ver o interno Gabriel, ele está confinado no quarto.

Posso vê-lo?

O vigia ergue o olhar dos papéis.

—        Talvez seja melhor esperar que o diretor volte.

—        Não. Quero falar com ele agora. E não na sala isolada.

Marvis parece contrariado.

—        Te aconselho a não fazer isso. Esse sujeito tem um histórico de vio­lência e...

—        Não sei se eu caracterizaria um episódio em 11 anos como um histórico.

Seus olhares se cruzam. Marvis percebe que Dominique não vai ceder.

—        Certo, moça, como quiser. Jason, acompanhe a residente Vazquez ao quarto 714. Dê o seu transponder de segurança para ela e tranque-a lá dentro.

Dominique segue o vigia por um corredor curto, entrando no núcleo central de três situado na ala norte. A área da entrada está vazia.

O vigia para diante do quarto 714 e fala no interfone do corredor.

—        Interno, sente na cama, onde eu possa vê-lo. — Ele destranca a porta e entrega a Dominique o que parece uma caneta grossa. — Se precisar de mim, dê dois cliques nesta caneta. — Ele faz uma demonstração, e o receptor em sua cintura vibra. — Mas tome cuidado. Não o deixe chegar muito perto.

—        Obrigada. — Ela entra no quarto.

A cela mede 3 metros por 4. A luz do dia entra por uma tira de plástico de 8 centímetros de largura que percorre verticalmente uma das paredes. Não há janelas. A cama é de ferro, presa ao chão. Uma escrivaninha e alguns escaninhos estão parafusados ao lado dela. Uma pia e uma privada de aço ficam na parede à direita, fora do rumo do corredor para dar ao ocupante alguma privacidade.

A cama está arrumada, o quarto imaculado. Michael Gabriel está sentado sobre o colchão da espessura de uma revista. Ele se levanta, cumprimentando-a com um sorriso afetuoso.

—        Bom dia, Dominique. Vejo que o dr. Foletta ainda não chegou. Que sorte.

—        Como você sabe?

—        Porque estamos conversando na minha cela, e não na sala de entre­vista. Por favor, sente na cama, eu fico no chão. A menos que prefira sentar na privada?

Ela retribui o sorriso, sentando-se na beirada do colchão. Mick se apoia na parede à esquerda. Seus olhos negros brilham sob a luz fluorescente.

Ele não perde tempo para começar a interrogá-la.

—        Como foi o seu fim de semana? Leu o diário do meu pai?

—        Desculpe. Só consegui ler as primeiras dez páginas. Mas terminei de ler o estudo do Rosenhan.

—        Sobre ser são em lugares insanos. O que achou?

Achei interessante, talvez até um pouco surpreendente. A equipe dele teve bastante dificuldade em distinguir os voluntários dos pacientes. Por que você quis que eu lesse?

Por que você acha? Os olhos de ébano cintilam para ela, refletindo sua inteligência felina.

—        Obviamente quer que eu considere a possibilidade de você não ser louco.

—        Obviamente. Ele se endireita, cruzando os calcanhares na posição de lótus. Vamos fazer um jogo. Volte no tempo 11 anos e imagine que você é o Michael Gabriel, filho do arqueólogo Julius Gabriel, a poucos minutos do ridículo e de uma morte fulminante. Você está nos bastidores, na Universidade de Harvard, diante de uma plateia lotada, ouvindo seu pai compartilhar uma vida de informações com algumas das maiores mentes da comunidade cientí­fica. Seu coração está acelerado pela adrenalina, porque você trabalhou ao lado dele desde que nasceu, e sabe o quanto essa palestra é importante, não só para ele, mas para o futuro da humanidade. Aos dez minutos da palestra, você vê o arqui-inimigo de longa data de Julius cruzar o palco até outra tribuna. Pierre Borgia, o filho pródigo de uma dinastia política, decide desafiar a pesquisa do meu pai ali mesmo, no palco. Na verdade, a palestra toda é uma grande cilada, preparada pessoalmente por Borgia para promover um ataque verbal ao meu pai e destruir sua credibilidade. Pelo menos 12 pessoas na plateia sabiam da brincadeira. Depois de dez minutos, Julius mal conseguia se fazer ouvir em meio às risadas dos colegas.

Mick para, momentaneamente perdido na lembrança.

Meu pai era um homem altruísta e brilhante que dedicou sua vida à busca da verdade. No meio do pronunciamento mais importante de sua carrei­ra, viu sua existência inteira roubada, seu orgulho destruído, o trabalho de uma vida, 32 anos de sacrifício, desmoralizado num piscar de olhos. Pode imaginar a humilhação que ele sentiu?

O que aconteceu depois?

Ele cambaleou para os bastidores e caiu nos meus braços, com a mão no peito. Julius tinha o coração fraco. Com suas últimas energias, murmurou algumas instruções pra mim e morreu nos meus braços.

E foi aí que você atacou o Borgia?

O desgraçado ainda estava no palco cuspindo ódio. Apesar do que com certeza te disseram, não sou um homem violento. Seus olhos escu­ros se arregalam. Mas, naquele momento, eu queria enfiar o microfone na garganta dele. Lembro que andei em volta da tribuna, o mundo ao meu redor se movendo em câmera lenta. Só conseguia ouvir a minha respiração e só con­seguia ver o Borgia, mas parecia que eu estava olhando pra ele através de um túnel. Quando dei por mim, ele estava no chão e eu estava amassando a cabeça dele com o microfone.

Dominique cruza as pernas, disfarçando um calafrio.

O corpo do meu pai foi parar no necrotétio municipal e foi crema­do sem nenhuma cerimônia. O Borgia passou as três semanas seguintes num quarto de hospital particular, de onde a família dirigia a campanha dele pro Senado, construindo o que a imprensa chamou de "uma virada sem preceden­tes". Eu estava apodrecendo numa cela de cadeia, sem amigos ou família pra pagar a minha fiança, esperando enfrentar uma acusação de agressão. Mas o Borgia tinha outras idéias. Usou a influência política da família e manipulou o sistema, entrando num acordo com o promotor e o defensor público que foi indicado pra mim. No final, fui declarado maluco e o juiz me mandou pra um sanatório decrépito em Massachusetts, onde, com o perdão pelo trocadilho, o Borgia podia ficar com um olho em mim.

Você disse que o Borgia manipulou o sistema judiciário. Como?

Da mesma forma que ele manipula Foletta, meu guardião nomeado pelo Estado. Pierre Borgia recompensa a lealdade, mas que Deus ajude quem vai pra lista negra dele. O juiz que me sentenciou foi promovido à Corte Su­prema do Estado três meses depois de me declarar criminalmente insano. Pou­co tempo depois, nosso bom doutor foi nomeado diretor da instituição, de al­guma forma saltando por cima de uma dúzia de candidatos mais qualificados. Os olhos negros lêem os pensamentos dela.

Me diga o que está pensando, Dominique. Você acha que eu sou um paranóico-esquizofrênico iludido.

Eu não disse isso. E o outro incidente? Você nega ter atacado brutal­mente um vigia?

Mick olha para ela com uma expressão perturbadora.

—        Robert Griggs era mais sádico do que homossexual, um vigia cujos atos você provavelmente diagnosticaria como estupro motivado por raiva e excitação. Foletta o indicou de propósito pra ronda noturna na minha ala um mês antes da minha primeira avaliação. O velho Griggsy costumava fazer a ronda às duas da manhã.

Dominique sente seu coração bater mais forte.

—        Trinta internos por ala, todos dormindo com um pulso e um torno­zelo algemados na cama. Uma noite, Griggs chegou bêbado me procurando. Acho que tinha decidido me acrescentar ao harém dele. Pra começar, me lubri­ficou um pouco enfiando um cabo de vassoura...

—        Pare! Onde estavam os outros vigias?

—        Ele era o único. Como eu não podia fazer nada pra impedi-lo, falei manso, tentando convencê-lo de que iria ser mais prazeroso se minhas duas pernas estivessem livres. O otário soltou a algema do meu tornozelo. Não vou te entediar com detalhes do que aconteceu a seguir...

Fiquei sabendo. Você fez ovos mexidos com ele, por assim dizer.

Eu podia tê-lo matado, mas não matei. Não sou um assassino.

—        E por causa disso passou o resto dos seus dias na solitária? Mick faz que sim com a cabeça.

—        Onze anos no útero de concreto. Duro e frio, mas sempre lá. Agora me conte. Que idade você tinha quando seu primo te sodomizou?

Desculpe, mas não me sinto à vontade pra discutir isso com você.

Porque você é a terapeuta e eu sou o psicótico?

Não. Quer dizer, sim. Porque sou a médica e você é meu paciente.

—        Somos mesmo tão diferentes? Você acha que a equipe do Rosenhan saberia determinar qual de nós dois deve ocupar esta cela? — Ele se apóia na parede. — Posso te chamar de Dom?

—        Pode.

Dom, o isolamento na solitária pode esgotar um homem. Posso estar sofrendo de privação sensorial, e talvez até parecer um pouco assustador, mas sou tão são quanto você, o Foletta e o vigia do outro lado da porta. O que posso fazer pra te convencer disso?

Não sou eu quem você precisa convencer. É o dr. Foletta.

Já falei, o Foletta trabalha pro Borgia, e o Borgia nunca vai me deixar sair daqui.

Posso falar com ele. Forçá-lo a te dar os mesmos direitos e privilégios dos outros internos. Com o tempo, posso...

Nossa, já estou até ouvindo o Foletta: "Acorde, residente Vazquez. Você já está caindo na famosa teoria da conspiração do Gabriel." Ele deve ter te convencido de que eu sou o novo Ted Bundy.

De jeito nenhum. Mick, eu quis ser psiquiatra pra ajudar gente como...

Gente como eu. Malucos?

Me deixa terminar. Você não é maluco, mas acho que precisa de aju­da. O primeiro passo é convencer o Foletta a designar uma equipe de avaliação pra você...

Não. Ele não vai permitir uma coisa dessas. E mesmo se permitir, não há tempo.

Por que não há tempo?

A avaliação e a audiência que tenho que fazer todo ano é daqui a seis dias. Você ainda não entendeu por que o Foletta te indicou pra cuidar de mim? Você é uma residente, facilmente manipulável. "O paciente mostra sinais encorajadores de melhora, residente Vazquez, mas ainda não está pronto para voltar à sociedade." Você vai concordar com o diagnóstico dele, e isso é tudo que a junta de avaliação precisa ouvir.

O Foletta tem razão, ele é bom. Talvez não seja tão bom quando não está controlando a conversa.

Mick, vamos falar um pouco sobre o trabalho do seu pai? Na sexta, você mencionou quatro Ahau, três Kankin...

O dia do fim da humanidade. Eu sabia que você reconheceria a data.

É só uma lenda maia.

Muitas lendas contêm verdades.

Então você acredita mesmo que vamos todos morrer em menos de quatro meses?

Mick olha para o chão, balançando a cabeça.

Um simples sim ou não já basta.

Sem joguinhos psicológicos, Dominique.

Que joguinhos psicológicos?

Você sabe muito bem que a pergunta, formulada desse jeito, cheira a esquizofrenia paranóica e ilusões de...

Mick, é uma pergunta simples. — Ele está ficando nervoso. Ótimo.

Você está me desafiando a uma batalha de intelectos pra encontrar pontos fracos. Não faça isso. Não é muito eficaz e você vai perder, o que signi­fica que vamos todos perder.

Você me pediu pra avaliar sua capacidade de voltar à sociedade. Como posso fazer isso sem perguntar?

Pergunte o que quiser, mas não arme ciladas. Terei prazer em discutir as teorias do meu pai com você, mas só se estiver realmente interessada. Se o seu objetivo é descobrir qual o meu limite, me passe a porra do Teste de Rorschach ou de Percepção Temática e acabe logo com isso.

Que ciladas você acha que estou armando?

Mick fica de pé e se aproxima dela. O coração de Dominique dispara. Ela pega a caneta.

A própria natureza da pergunta me condena. É como perguntar a um sacerdote se a esposa dele sabe que ele se masturba. De um jeito ou de outro, fica ruim pra ele. Se eu responder "não" sobre a previsão do Juízo Final, terei que explicar por que mudei repentinamente de opinião depois de 11 anos. O Foletta vai interpretar isso como uma farsa destinada a enganar o comitê de avaliação. Se eu disser que sim, você vai concordar que eu só sou mais um psicótico que acredita que o céu vai desabar.

Então como sugere que eu avalie a sua sanidade? Não posso evitar esse assunto.

Não, mas pode ao menos examinar as provas com a cabeça aberta antes de tirar conclusões. Algumas das maiores mentes da História foram cha­madas de loucas, até que a verdade foi revelada.

Mick se senta na outra ponta da cama. A pele de Dominique formiga. Ela não sabe ao certo se está excitada ou assustada, ou talvez ambas as coisas. Muda de posição, descruza as pernas, segurando a caneta disfarçadamente. Ele está perto o suficiente pra me estrangular, mas se estivéssemos num bar, eu provavel­mente já estaria dando em cima dele...

Dominique, é muito importante, muito, muito importante que a gente confie um no outro. Preciso da sua ajuda, e você da minha, embora ainda não saiba disso. Juro pela alma da minha mãe que jamais vou mentir pra você, mas precisa prometer que vai me ouvir com a mente aberta.

Tudo bem, vou ouvir objetivamente. Mas a pergunta permanece. Você acredita que a humanidade vai ter fim em 21 de dezembro?

Mick se inclina para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. Ele olha para o chão, apertando o meio do nariz com os dois dedos indicadores.

—        Presumo que você seja católica?

Nasci católica, mas fui criada numa família judaica desde os 13 anos. E você?

Minha mãe era judia, e meu pai, episcopal. Você se considera uma pessoa religiosa?

Não muito.

Acredita em Deus?

Sim.

Acredita no mal?

No mal? — A pergunta a surpreende. — Isso é meio amplo. Pode explicar melhor?

Não estou falando de homens cometendo assassinatos brutais. Me refiro ao mal como uma entidade autônoma, parte da própria trama da exis­tência. — Mick ergue a cabeça, fixando os olhos nela. — Por exemplo, a crença judaico-cristã é de que o mal tomou forma pela primeira vez ao entrar no Jar­dim do Éden disfarçado de serpente, tentando Eva a morder a maçã.

Como psiquiatra, não acredito que nenhum de nós nasça mau, nem bom, aliás. Acredito que temos capacidade para ambas as coisas. O livre-arbítrio nos permite escolher.

—        E se... se algo estiver influenciando o seu livre-arbítrio sem que você saiba?

—        O que você quer dizer?

Algumas pessoas acreditam que existe uma força maligna, parte da natureza. Uma inteligência autônoma que existiu neste planeta durante toda a história do homem.

Estou meio perdida. O que tudo isso tem a ver com a profecia do Juízo Final?

Como pessoa racional, você me pergunta se acredito que a humanida­de está pra acabar. Como pessoa racional, peço que você me explique por que toda civilização antiga e bem-sucedida previa o fim da humanidade. Como pes­soa racional, peço que me diga por que todas as principais religiões anunciam um apocalipse e esperam que um Messias volte pra livrar nosso mundo do mal.

—        Não posso responder. Como a maioria das pessoas, não sei.

—        Meu pai também não sabia. Mas por ser um homem racional, um cientista, ele queria descobrir. E por isso dedicou a vida e sacrificou a felicidade de sua família em busca da verdade. Passou décadas investigando ruínas anti­gas à procura de pistas. E no fim, o que ele encontrou era tão insondável que literalmente o deixou à beira da loucura.

—        O que ele encontrou?

Mick fecha os olhos e a inflexão de sua voz fica mais suave.

—        Provas. Provas deliberadamente deixadas para nós com grande sacrifí­cio. Provas que apontam para a existência de uma presença, uma presença tão maligna que o fim da humanidade será marcado por sua ascensão.

—        Mais uma vez, não entendo.

—        Não posso explicar, só sei que, de alguma forma, sinto essa presença ficando mais forte.

Ele está se esforçando pra continuar racional. Faça-o falar mais.

Você diz que essa presença é maligna. Como sabe?

Simplesmente sei.

Você não está me dando muitos dados. E o calendário maia não é algo que eu chamaria de prova...

O calendário é só a ponta do iceberg. Existem lugares extraordinários, inexplicáveis, espalhados por este planeta, maravilhas astronômicamente ali­nhadas, todas partes de um único quebra-cabeça gigante. Nem os maiores cé­ticos do mundo podem refutar sua existência. As pirâmides de Gizé e Chichén Itzá. Os templos de Angkor Wat e Teotihuacán, Stonehenge, os mapas de Piri Reis e os desenhos do deserto de Nazca. Foram necessárias décadas de trabalho intenso para erguer essas maravilhas antigas, e o método de sua construção ain­da é um mistério para nós. Meu pai descobriu uma inteligência unificada por trás de tudo isso, a mesma inteligência responsável pela criação do calendário maia. Mais importante ainda é o fato de que cada um desses locais está ligado a um propósito comum, cujo significado se perdeu no último milênio.

E esse propósito é?

A salvação da humanidade.

O Foletta tem razão. Ele realmente acredita nisso.

—        Me deixe ver se entendi. Seu pai acreditava que cada um desses locais antigos foi projetado pra salvar a humanidade. Mas como uma pirâmide ou um monte de desenhos no deserto podem nos salvar? E nos salvar de quê? Dessa presença maligna?

Os olhos negros penetram-lhe a alma.

—        Sim, mas é algo infinitamente pior. Algo que virá pra destruir a hu­manidade no solstício de dezembro. Meu pai e eu estávamos prestes a resolver o mistério quando ele morreu, mas ainda faltam peças importantes do quebra-cabeça. Se os códices maias não tivessem sido destruídos...

—        Quem os destruiu?

Mick balança a cabeça, como que decepcionado.

—        Você nem conhece a história dos seus próprios ancestrais? O criador do calendário do Juízo, o grande mestre, Kukulcán, deixou informações cruciais nos antigos códices maias. Quatrocentos anos depois de sua partida, a Espanha invadiu o Yucatán. Cortez era branco e usava barba. Os maias o confundiram com Kukulcán, e os astecas com Quetzalcoatl. Ambas as civilizações basica­mente depuseram as armas e se deixaram conquistar, achando que seu Mes­sias caucasiano havia voltado para salvar a humanidade. Os padres católicos se apossaram dos códices. Devem ter ficado bastante assustados com o que leram, porque os burros queimaram tudo, essencialmente nos condenando à morte.

Ele está ficando exaltado.

Não sei, Mick. As instruções pra salvar a humanidade parecem im­portantes demais pra serem deixadas com um bando de índios mesoamericanos. Se Kukulcán era tão sábio, por que não deixou essas informações em outro lugar?

Obrigado.

Por quê?

Por pensar. Por usar o hemisfério lógico do seu cérebro. A informação realmente era importante demais pra ser deixada com uma cultura vulnerá­vel como a maia, ou com qualquer outra cultura antiga, aliás. No deserto de Nazca, no Peru, há uma mensagem visual, simbólica, inscrita no pampa em ideogramas precisos, de 120 metros de largura. Meu pai e eu estávamos quase chegando ao significado da mensagem quando ele morreu.

Ela olha inocentemente para o relógio.

Mick salta de pé como um gato, assustando-a ao segurar seus ombros.

—        Pare de tratar isso como uma parte do seu currículo de graduação e ouça o que estou dizendo. Tempo é um luxo que nós não temos...

Ela o olha nos olhos enquanto ele esbraveja, seus rostos separados apenas por centímetros.

Mick, me solte... — Ela mexe na caneta.

Me escute. Você perguntou se eu acredito que a humanidade vai aca­bar daqui a quatro meses. A resposta é sim, a menos que eu possa completar o trabalho do meu pai. Caso contrário, vamos todos morrer.

Dominique clica a caneta sem parar, seu coração disparado, sua mente cheia de medo.

—        Dominique, por favor. Preciso que você me tire deste hospício antes do equinócio de outono.

Por quê? — Faça-o continuar falando...

O equinócio é daqui a apenas duas semanas. Sua chegada será anun­ciada em todos os locais que eu mencionei. A pirâmide de Kukulcán, em Chitchén Itzá, vai marcar o evento em sua balaustrada setentrional, com a descida da sombra da serpente. Naquele momento, a Terra vai entrar num alinhamen­to galáctico extremamente raro. Um portal vai começar a se abrir no centro da faixa escura da Via Láctea. Será o começo do nosso fim.

Ele está delirando... Lembrando-se da foto de Borgia com um olho só, ela se move, preparando o joelho.

Dominique, não sou maluco. Preciso que você me leve a sério...

Você está me machucando...

Desculpe, desculpe... — Ele a solta. — Escute, isso é vital. Meu pai acreditava que ainda é possível impedir a ascensão do mal. Preciso da sua ajuda. Preciso que você me tire daqui antes do equinócio...

Mick se vira e vê Marvis pondo o punho diante de seu rosto, cegando-o com o spray de pimenta.

—        Não! Não, não, não...

Agitada demais para falar, Dominique empurra o vigia para o lado e sai correndo do quarto. Ela para no corredor, seu coração disparado.

Marvis tranca o quarto 714 e a acompanha para fora do núcleo.

Mick continua esmurrando a porta, gritando para ela como um animal ferido.

 

                               DIÁRIO DE JULIUS GABRIEL

E aconteceu que, como os homens começaram a multiplicar-se sobre a face da Terra, e lhes nasceram filhas, viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram... Naqueles dias, os NEFILINS estavam na Terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os VALENTES que houve na ANTIGUIDADE, os HOMENS DE FAMA.

— GÊNESIS, 6: 1 -2, 4

 

A Bíblia. O livro sagrado das religiões judaica e cristã. Para o arqueólogo em busca da verdade, esse documento da antiguidade pode oferecer pistas importantes para preencher as lacunas na história da evolução do homem.

O capítulo 6 do Gênesis talvez seja a passagem menos compreendida de toda a Bíblia, mas pode vir a ser a mais reveladora. Ela se passa pouco antes de Deus dar instruções a Noé e se refere aos filhos de Deus e aos Nefilins, um nome que se traduz literalmente como "os caídos" ou "aqueles que caíram do céu com o fogo".

Quem eram esses "caídos", esses "homens de fama"? Uma pista importante pode ser encontrada na Apócrifa do Gênesis, um dos textos antigos descobertos entre os Manuscritos do Mar Morto. Numa passagem importante, Lameque, pai de Noé, confronta sua esposa por achar que a concepção de seu filho tinha sido o resultado de uma copulação com um anjo ou com um de seus filhos, um Nefilim.

Será que corria sangue extraterrestre nas veias de Noé? O conceito de anjos "caídos" ou "homens de fama" miscigenando-se com mulheres humanas pode pa¬recer mirabolante, mas deve haver algum elemento de verdade nele, pois o relato, como a história de Noé e o Grande Dilúvio, se repete em diferentes culturas e religiões de todo o mundo.

Como já mencionei, passei a vida investigando maravilhas misteriosas, estruturas magníficas, deixadas na face deste planeta, que sobreviveram aos rigores do tempo. Acredito que essas estruturas foram criadas por esses "homens da antiguidade, homens de fama" com uma única finalidade: salvar a nossa espécie da aniquilação.

Talvez nunca venhamos à saber quem eram os Nefilins, mas provas geológicas nos permitem agora determinar o período em que eles apareceram pela primeira vez. O fato é: houve um grande dilúvio. A culpada foi a última era glacial da Terra, um acontecimento que remonta há cerca de 115 mil anos atrás. Na época, geleiras enormes cobriam a maior parte dos hemiférios norte e sul, avançando e recuando, finalmente atingindo o ápice há cerca de 17 mil anos. A maior parte da Europa foi soterrada sob uma camada de gelo de 3 quilômetros de espessura. As geleiras da América do Norte avançaram para o sul até o vale do Mississipi, atingindo o 37º paralelo.

Era a época do Homo sapiens neanderthalensis, o Homem de Neandertal. Foi também por volta desse momento na história dos nossos antepassados que os misteriosos "caídos" chegaram.

Talvez os clãs dos primeiros Homo sapiens não tivessem impressionado muito esses homens de fama. Talvez os Nefilins achassem melhor devolver o esboço do homem à prancheta evolutiva. Qualquer que tenha sido a reação deles, só sabemos que, milagrosa e repentinamente, o mundo começou a derreter.

Aconteceu rápido, em decorrência de algum desdobramento desconhecido e cataclísmico. Milhões de quilômetros cúbicos degelo que haviam levado mais de 40 mil anos para avançar de repente derreteram em menos de dois milênios. O mar subiu de 100 a 120 metros, inundando o solo. Partes da Terra, antes comprimidas por bilhões de toneladas de gelo, começaram a se elevar, causando terremotos terríveis. Vulcões entraram em erupção, expelindo enormes quantidades de dióxido de carbono na atmosfera, aumentando o aquecimento global. Ondas gigantes varreram selvas, dizimando animais e devastando a Terra.

O planeta se tornou um lugar muito hostil.

Entre 13.000 a.C. e 11.000 a.C., a maior parte do gelo havia derretido, e o clima havia se estabilizado. E daquela gosma lamacenta emergia uma nova subespécie: Homo sapiens sapiens, o homem moderno.

Evolução ou criação bíblica — onde está a verdade sobre o surgimento do homem moderno? Como cientista, me sinto inclinado a acreditar no darwinismo, mas como arqueólogo, também reconheço que a verdade muitas vezes se esconde em mitos transmitidos ao longo de milênios. A profecia do calendário maia se enquadra na mesma categoria. Como já mencionei anteriormente, o calendário é um instrumento científico preciso que utiliza princípios avançados de Astronomia e Matemática para efetuar seus cálculos. Ao mesmo tempo, as origens do calendário se concentram na mais importante lenda da história maia — o Popol Vuh, o livro maia da criação.

O Popol Vuh é a Bíblia dos índios mesoamericanos. Segundo o Popol Vuh, escrito centenas de anos depois da morte de Kukulcán, o mundo foi dividido em um Mundo Superior (Paraíso), um Mundo Médio (Terra) e um Mundo Inferior, um antro do mal conhecido como Xibalba. Ao olharem para o céu noturno, os antigos maias viam a fenda escura da Via Láctea e a interpretavam como sendo uma serpente escura ou Estrada Negra (Xibalba Be), que levava ao Mundo Inferior. Bem perto da fenda ficam as três estrelas do cinturão de Orion. Para os maias, essas estrelas eram as três pedras da criação.

Como disse anteriormente, o calendário maia se divide em cinco Grandes Ciclos, o primeiro dos quais começou há cerca de 25-800 anos. Esse período de tempo não é arbitrário, mas o intervalo real, em anos, que a Terra leva para completar um ciclo de precessão, a lenta oscilação do nosso planeta sobre seu eixo. (Mais sobre isso depois.)

A história da criação contada no Popol Vuh começa há cerca de 25.800 anos, quando o gelo ainda cobria boa parte da Terra. O herói da história é um homem primitivo conhecido como Hun (Um) Hunahpu, mais tarde reverenciado pelos maias como "Primeiro Pai". A maior paixão da vida de Hun Hunahpu era jogar o antigo jogo de bola conhecido como Tlachtli. Um dia, os Senhores do Mundo Inferior, falando através de Xibalba Be (a Estrada Negra), desafiaram Hun Hunahpu e seu irmão para um jogo. Hun Hunahpu aceitou e entrou no portal para a Estrada Negra, que era representado nas lendas maias como a boca de uma grande serpente.

Mas os Senhores do Mundo Inferior não tinham nenhuma intenção de jogar. Usando truques e armadilhas, derrotaram os irmãos e os decapitaram, pendurando a cabeça de Hun Hunahpu no ramo de um cabaceiro. Os Senhores do Mal, então, isolaram a árvore, proibindo a todos de visitá-la.

Depois de muitos e muitos anos, uma jovem corajosa chamada Lua de Sangue se aventurou pela Estrada Negra para ver se a lenda era verdade. Aproximando-se da árvore para colher alguns frutos, ela se assustou ao encontrar a cabeça de Hun Hunahpu, que cuspiu na palma da mão dela, magicamente engravidando-a. A mulher fugiu, e os Senhores do Mundo Inferior não conseguiram destruí-la antes que escapasse.

Lua de Sangue (também conhecida como Primeira Mãe) deu à luz filhos gêmeos. Com o passar dos anos, os meninos cresceram, tornando-se guerreiros fortes e hábeis. Quando chegaram à idade adulta, sua vocação genética os impeliu a seguir pela Estrada Negra até Xibalba: desafiariam os Senhores do Mal e vingariam a morte de seu pai. Novamente, os Senhores do Mundo Inferior usaram trapaças, mas dessa vez os Gêmeos Heróis triunfaram, repelindo o mal e ressuscitando seu falecido pai.

O que podemos inferir do mito da criação? O nome, Hun ou Um Hunahpu, refere-se à data de Um Ahau no calendário, cujo nome significa primeiro sol. O primeiro sol do ano-novo é o do solstício de dezembro. A data profetizada do Juízo Final acontece no solstício de inverno do ano de 2.012, exatamente um ciclo precessional de 25-800 anos depois do primeiro dia do calendário maia!

Usando um programa de computador que permite prever o cosmos em qualquer momento da história, calculei como o céu noturno estará em 2012. Começando na época do equinócio outonal, um alinhamento astronômico extremamente raro entre os planos galáctico e solar vai acontecer. A fenda escura da Via Láctea parecerá estar na altura do horizonte terrestre, e o Sol começará a entrar em alinhamento com seu ponto central. Esse movimento estelar vai culminar no dia do solstício de inverno, um dia considerado pela maioria das culturas antigas como o Dia dos Mortos. Nessa data, pela primeira vez em 25- 800 anos, o Sol irá se mover em conjunto com o ponto de cruzamento da Via Láctea com a eclíptica de Sagitário, marcando o alinhamento do Equador Galáctico, o centro exato da galáxia.

De alguma forma, o calendário maia previu com exatidão esse evento celeste há mais de 3 mil anos. Interpretando o mito da criação, o alinhamento galáctico culminará com a abertura de um portal cósmico que cobre a distância entre o nosso planeta e o Mundo Inferior maia, Xibalba.

Chamem de ficção, chamem de fato, mas de alguma forma esse alinhamento intergaláctico resultará na morte de cada homem, mulher e criança na face do nosso planeta.

— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,

Ref. Catálogo 1978-79 páginas 43-52

       Catálogo 1998-99 páginas 11-75

 

                     11 DE SETEMBRO DE 2012, MIAMI, FLÓRIDA

- Acorde, residente Vazquez. Você está caindo na famosa teoria da conspiração do Gabriel.

—        Eu discordo. — Dominique devolve o olhar frio que o dr. Foletta lhe direciona do outro lado da mesa. — Não há nenhum motivo para Mick Gabriel não receber uma equipe de apoio completa.

Foletta se recosta na cadeira giratória, ameaçando romper as molas com seu peso.

—        Vamos nos acalmar um pouco. Olhe pra você. Falou com o interno duas vezes e já está fazendo diagnósticos. Na minha opinião, você está se envolvendo emocionalmente, e nós falamos sobre isso na sexta. É exatamente por isso que recomendei ao conselho não designar uma equipe neste momento.

—        Senhor, eu garanto que não estou emocionalmente envolvida. Só me parece que as pessoas julgaram precipitadamente este caso. Sim, concordo que ele tem ilusões, mas elas poderiam facilmente ser atribuídas ao fato de ele ter passado os últimos 11 anos na solitária. E quanto à violência, não vi nada no arquivo que indicasse algo mais do que um caso isolado de agressão.

—        E quanto ao ataque ao vigia?

—        Mick me disse que o vigia tentou estuprá-lo.

Foletta belisca o alto do nariz com dois dedos grossos, sorrindo mansamente enquanto balança sua grande cabeça para a frente e para trás.

—        Ele te enganou, residente Vazquez. Eu avisei que ele era esperto.

Dominique sente um tremor na boca do estômago.

—        Está dizendo que é tudo mentira?

—        Claro. Ele apostou no seu instinto materno e tirou a sorte grande.

Dominique olha para baixo, sem palavras. Mick mentiu? Será que ela foi realmente tão ingênua? Idiota! Você queria acreditar nele. Caiu na armadilha.

—        Residente, você não vai muito longe com seus pacientes se acreditar em tudo que eles dizem. Só falta ele te convencer de que o mundo está pra acabar.

Dominique se encolhe na cadeira, sentindo-se tola.

Foletta vê a expressão no rosto dela e ri alto, suas bochechas rechonchudas corando e fazendo covinhas. Ele respira fundo, enxugando os olhos, e mexe numa caixa de papelão sob a mesa. Tira uma garrafa de uísque e duas canecas e serve duas doses.

Dominique enxuga a caneca, sentindo o líquido ardendo na mucosa de seu estômago.

—        Está se sentindo melhor? — As palavras, murmuradas e roucas, são ditas de maneira paternal.

Ela faz que sim.

—        Apesar do que ele diz, residente, eu gosto do Mick. Também odeio vê-lo na solitária.

O telefone toca. Foletta atende e olha para ela.

—        É um dos vigias. Diz que está te esperando lá embaixo.

Merda.

—        Pode dizer que estou numa reunião importante? Diga que hoje à noite não posso.

Foletta dá o recado e desliga.

—        Doutor, e quanto à avaliação anual do Mick? Também é mentira?

—        Não, é verdade. Aliás, está na minha lista de coisas a discutir com você. Sei que é um tanto incomum, mas vou precisar que você assine a avaliação pra mim.

—        O que você recomenda?

—        Depende de você. Se conseguir se manter objetiva, vou recomendar que continue como psiquiatra do Mick durante sua permanência aqui.

—        O Mick está sofrendo de privação sensorial. Gostaria que tivesse aces¬so ao jardim e ao resto das instalações de reabilitação.

—        Ele acabou de te atacar...

—        Ele não me atacou. Só ficou um pouco agitado e eu me desesperei.

Foletta relaxa e olha para o forro, como se estivesse ponderando uma grande decisão.

—        Bem, residente, façamos assim: assine a minha avaliação anual e eu devolverei a ele todos os privilégios. Se ele melhorar, designarei uma equipe completa de reabilitação em janeiro. Certo?

Dominique sorri.

—        Certo.

 

                   22 DE SETEMBRO DE 2012, MIAMI, FLÓRIDA

O jardim do Centro de Avaliação e Tratamento do Sul da Flórida é um gramado retangular cercado pelos quatro lados. O formato em L do prédio principal fecha o perímetro a leste e ao sul, e os lados norte e oeste são murados por uma barreira de concreto branco de 6 metros de altura com arame farpado no alto.

Não há portas para o jardim. Para sair do átrio gramado, é preciso subir três lances de degraus de cimento que levam a uma passarela aberta que percorre o lado sul do prédio. Esse mezanino dá acesso ao ginásio do terceiro andar, às salas de terapia de grupo, a um centro de artesanato, à sala de informática e ao cinema.

Dominique se abriga sob o toldo de alumínio que se estende da passarela do terceiro andar quando vê as nuvens cinzentas chegando do leste. Duas dúzias de internos abandonam o jardim quando os primeiros pingos de chuva vespertina começam a martelar o toldo.

Uma figura solitária fica para trás.

Mick Gabriel continua percorrendo o perímetro do jardim, com as mãos enfiadas no fundo dos bolsos. Ele sente o ar úmido esfriando quando as nuvens se abrem no céu. Em segundos, está imerso no aguaceiro, seu uniforme branco encharcado, aderindo ao corpo magro e definido.

Ele continua andando, seu ensopado tênis de lona afundando na grama macia, suas meias molhadas fazendo barulho ao andar. A cada passo, recita o nome de um ano do calendário maia, um exercício mental que usa para manter sua mente afiada. Três Ix, quatro Cauac, cinco Kan, seis Muluc...

Os olhos escuros se concentram na parede de concreto, procurando por falhas, sua mente, em busca de opções.

Dominique o observa através de um véu de chuva, sentindo remorso. Você estragou tudo. Ele confiava em você. Agora acha que você o traiu.

Foletta se aproxima. Acena para vários internos curiosamente exultantes e vai falar com ela.

—        Ele ainda se recusa a falar com você? Dominique balança a cabeça.

—        Já faz quase duas semanas. Todo dia é a mesma coisa. Ele toma café, vai pra minha consulta e olha pro chão por uma hora. Quando chega ao jar¬dim, anda pra lá e pra cá até a hora do jantar. Nunca se mistura com os outros internos e nunca diz uma palavra. Só anda.

—        Ele devia era ficar agradecido. Afinal, você é a responsável pela nova liberdade dele.

—        Isso não é liberdade.

—        Não, mas depois de 11 anos na solitária é um grande passo.

—        Acho que ele realmente acreditava que eu podia tirá-lo daqui. A expressão de Foletta o denuncia.

—        O que foi, doutor? Ele tinha razão? Eu poderia...

—        Ei, calma aí, residente. O Mick Gabriel não vai a lugar nenhum, pelo menos não agora. Como você mesma viu, ele ainda é muito instável e representa uma ameaça tanto pra si próprio quanto para os outros. Continue trabalhando com ele, o encoraje a participar da terapia. Tudo pode acontecer.

—        Você ainda está pensando em designar uma equipe de reabilitação, não está?

—        Nosso acordo é pra janeiro, isso, se ele se comportar. Você devia falar com ele sobre isso.

—        Eu tentei. — Ela olha Mick passando pelo lance de escadas diretamente abaixo deles. — Ele não confia mais em mim.

Foletta lhe dá uns tapinhas no ombro.

—        Conforme-se.

—        Eu não estou fazendo bem a ele. Talvez ele precise de alguém com mais experiência.

—        Bobagem. Vou dizer aos enfermeiros para não deixá-lo sair do quarto a menos que ele participe ativamente das sessões de terapia.

—        Forçá-lo a falar não vai ajudar em nada.

—        Isso não é um clube de recreação, residente. Temos regras. Se um interno se recusa a cooperar, perde os privilégios. Já vi casos assim. Se você não agir agora, o Mick vai se encolher dentro da própria mente e você vai perdê-lo pra sempre.

Foletta chama um enfermeiro.

—        Joseph, tire o sr. Gabriel da chuva. Não podemos deixar que nossos internos fiquem doentes.

—        Não, espere, ele é meu paciente. Eu vou buscá-lo. — Dominique enrola o cabelo num coque, tira os sapatos e desce os dois lances de escada até o jardim. Ela já está encharcada ao alcançar Mick. — E aí, companheiro, posso te fazer companhia?

Ele a ignora.

Dominique aperta o passo, a chuva bombardeando o seu rosto.

—        Vamos, Mick, fale comigo. Passei a semana inteira pedindo desculpas. O que queria que eu fizesse? Eu precisava assinar o relatório do Foletta.

Ela ganha um olhar duro.

A chuva aumenta, obrigando-a a gritar.

—        Mick, espere.

Ele continua andando.

Ela corre, passando por ele, e fica em pose de luta, com os punhos erguidos, impedindo a passagem.

—        Não me obrigue a te dar porrada.

Mick pára. Ele ergue os olhos, a chuva escorrendo por seu rosto anguloso.

—        Você me decepcionou.

—        Me desculpe — murmura ela, baixando os punhos. — Por que mentiu pra mim sobre o ataque do vigia?

Com uma expressão de dor, ele responde.

—        Então você não julga mais o que é verdade com seu coração, mas com sua ambição. É isso? Pensei que fôssemos amigos.

Ela sente um nó crescendo em sua garganta.

—        Eu quero ser sua amiga, mas também sou sua psiquiatra. Fiz o que pensei ser o melhor.

—        Dominique, prometi que nunca mentiria pra você. — Ele levanta a cabeça, apontando para a cicatriz em seu maxilar. — Antes de tentar me estuprar, o Griggs ameaçou cortar minha garganta.

Foletta, seu desgraçado.

—        Meu Deus, Mick, me desculpe. Naquela consulta, quando você perdeu o controle...

—        Foi culpa minha. Fiquei agitado. Estou trancado há tanto tempo... Às vezes... bom, às vezes é difícil me manter calmo. Não sou muito sociável, mas juro que jamais machucaria você.

Ela vê lágrimas nos olhos dele.

—        Eu acredito em você.

—        Sabe, poder sair um pouco me ajudou. Me fez pensar sobre muitas coisas... meio egocêntricamente, na verdade. Minha infância, o modo como fui criado... como vim parar aqui e se um dia vou sair. Tem tanta coisa que eu nunca fiz... tantas coisas que eu mudaria, se pudesse. Eu amava meus pais, mas pela primeira vez me dei conta de que realmente odeio o que eles fizeram. Odeio o fato de nunca terem me dado uma chance de escolher...

—        Não escolhemos nossos pais, Mick. O importante é que você não se culpe. Nenhum de nós tem controle sobre o jogo ou as cartas que recebemos. O que temos é total responsabilidade sobre como jogamos com essas cartas. Acho que posso ajudar você a recuperar esse controle.

Ele se aproxima, a chuva escorrendo dos lados do seu rosto.

—        Posso te fazer uma pergunta pessoal?

—        Pode.

—        Você acredita em destino?

—        Destino?

—        Você acha que nossa vida, nosso futuro foi... Não, deixa pra lá, esquece...

—        Se eu acho que o que acontece com a gente está predestinado?

—        É.

—        Acho que temos escolhas. Acho que depende de nós escolhermos o destino certo.

—        Você já se apaixonou por alguém?

Ela olha, involuntariamente, em seus olhos brilhantes e carentes.

—        Já cheguei perto algumas vezes. Mas nunca parecia dar certo. — Ela sorri. — Acho que eles não faziam parte do meu destino.

—        Se eu não estivesse... aprisionado. Se a gente tivesse se conhecido em circunstâncias diferentes. Você acha que poderia me amar?

Merda... Ela engole em seco, sua pulsação fazendo o fundo de sua garganta tremer.

—        Mick, vamos sair da chuva. Venha...

—        Tem alguma coisa especial em você. Não é só atração física, é como se eu já te conhecesse, ou tivesse te conhecido em outra vida.

—        Mick...

—        Às vezes eu tenho algumas premonições. Tive uma na primeira vez em que vi você.

—        Você disse que era o perfume.

—        Era algo mais. Não consigo explicar. Só sei que gosto de você, e os sentimentos são um pouco confusos.

—        Mick, estou lisonjeada, de verdade, mas acho que você tem razão. Seus sentimentos estão confusos, e...

Ele sorri tristemente, ignorando as palavras dela.

—        Você é tão linda. — Inclinando-se, ele toca sua face, depois estica o braço e solta os seus cabelos negros.

Ela fecha os olhos, sentindo o cabelo se desenrolar em suas costas e tornar-se pesado com a chuva. Pare com isso! Ele é seu paciente, um paciente psiquiátrico, meu Deus.

—        Mick, por favor. O Foletta está olhando. Vamos entrar? A gente pode conversar lá dentro...

Ele a olha com seus olhos melancólicos, revelando uma alma torturada pela beleza proibida.

—        "Ela é que ensina as tochas a brilhar. E no rosto da noite tem um ar de joia rara em rosto de carvão..."

—        O que você disse? — Dominique sente as rápidas batidas de seu coração.

—        Romeu e Julieta. Era o que eu lia pra minha mãe quando ela estava de cama. — Ele levanta a mão dela, aproximando-a dos seus lábios. — "Para com a mão dela, a minha abençoar. Já amei antes? Não, tenho certeza; pois nunca havia eu visto tal beleza."

A chuva para. Ela vê dois enfermeiros se aproximando.

—        Mick, escute. Obriguei o Foletta a te designar uma equipe de reabilitação. Você tem a chance de sair daqui em seis meses.

Mick sacode a cabeça.

—        A gente não vai ver esse dia, meu amor. Amanhã é o equinócio de outono... — Ele se vira e fica ansioso ao avistar os homens de branco. — Leia o diário do meu pai. O destino do mundo está prestes a cruzar outro limiar, empurrando a espécie humana pro alto da lista das espécies em extinção...

Os dois enfermeiros seguram seus braços.

—        Ei, não o machuquem!

Mick se vira para olhá-la enquanto é arrastado, a umidade saindo de seu corpo como vapor.

—        "A voz do amor na noite é som de prata, parece música a quem o escuta." Você está no meu coração, Dominique. O destino nos uniu. Posso sentir. Posso sentir...

 

                           Diário de Julius Gabriel

Antes de continuarmos nossa viagem pela história do homem, me permitam apresentar um termo desconhecido da maioria do público: arqueologia proibida. Parece que, quando o assunto é a origem e a antiguidade do homem, a comunidade científica nem sempre tem a mente aberta para provas que possam contradizer os modelos de evolução já estabelecidos. Em outras palavras, às vezes é mais fácil simplesmente refutar os fatos do que tentar pensar numa explicação plausível ao que não pode ser explicado.

Ainda bem que Colombo usou um mapa de Piri Reis em vez da versão aceita na Europa, senão ele teria navegado para fora da beira do mundo.

Quando o homem acha que sabe tudo, ele para de aprender. Essa infeliz realidade levou à supressão de muitas pesquisas importantes. Como ninguém consegue publicar nada sem a aprovação de uma grande universidade, torna-se quase impossível desafiar as visões dominantes de uma época. Vi colegas cultos tentarem fazê-lo e amargarem o ostracismo, suas reputações destruídas e suas carreiras arruinadas, embora as provas que corroboravam seus polêmicos pontos de vista parecessem irrefutáveis.

Os egiptólogos egípcios são os piores. Odeiam quando cientistas tentam desa¬fiar a história aceita de seus sítios arqueológicos, e se tornam especialmente perversos quando estrangeiros questionam a idade e a origem de suas estruturas monolíticas.

Isso nos traz para os métodos de datação, o aspecto mais polêmico da Arqueologia. O uso da datação por carbono-14 em ossos e resíduos de carvão é tão fácil quanto exato, mas a técnica não pode ser aplicada à pedra. Em decorrência disso, os arqueólogos muitas vezes datam um sítio de acordo com outros achados mais datáveis encontrados nos arredores da escavação ou, quando nenhum é encontrado, datam meramente por conjectura, levando a uma larga margem de erro humano.

Tendo afirmado isso, voltemos à nossa viagem através da História e do tempo.

Foi algum tempo depois do Grande Dilúvio que as primeiras civilizações começaram a aparecer por todo o mundo. O que aceitamos agora como verdade ê que a História escrita começou na Mesopotâmia, no vale dos rios Tigre e Eufrates, por volta de 4.000 a.C., com alguns dos mais antigos restos urbanos encontrados em Jericó remontando até 7.000 a.C. Mas novas evidências indicam agora que outra civilização, uma civilização superior, havia florescido ainda antes, às margens do rio Nilo. E foi essa cultura mais antiga e seu sábio líder que nos deixaram a primeira das misteriosas maravilhas que podem salvar nossa espécie da aniquilação.

Há muitos templos, pirâmides e monumentos espalhados pela paisagem egípcia, mas nenhum se compara às maravilhas magníficas construídas em Gizé. E aqui, na margem ocidental do Nilo, que um plano arquitetônico incrível foi traçado, consistindo na Esfinge, seus dois templos e as três grandes pirâmides do Egito.

For que estou falando das grandes pirâmides de Gizé? Como esses monumentos antigos podem estar relacionados com o calendário maia e a cultura mesoamericana, situada do outro lado do mundo?

Depois de três décadas de pesquisa, finalmente percebi que, para desvendar o profético enigma do Juízo Final, é preciso deixar de lado as idéias preconcebidas de tempo, distância, culturas e impressões superficiais, para assim analisar as pistas antigas que cercam o grande mistério da humanidade.

Permitam-me um momento para me aprofundar.

As maiores e mais inexplicáveis estruturas já erguidas pelo homem são as pirâmides de Gizé, os templos de Angkor, localizados nas selvas do Camboja, as pirâmides na antiga cidade mesoamericana de Teotihuacán (também conhecida como "lugar dos deuses"), Stonehenge, os desenhos de Nazca, as ruínas de Tiahuanaco e a pirâmide de Kukulcán em Chichén Itzá. Cada uma dessas maravilhas antigas, construídas por diferentes culturas, em diferentes partes do mundo, durante períodos muito diferentes da pré-história do homem, está, ainda assim, ligada ao fim da humanidade mencionado no calendário maia. Todos os arquitetos e engenheiros que construíram essas cidades possuíam um vasto conhecimento de Astronomia e Matemática, que facilmente excedia o cabedal existente em sua época. Além disso, a localização de cada uma das estruturas antigas foi cuidadosamente planejada de acordo com o equinócio e o solstício e, por incrível que pareça, com as outras estruturas, pois se alguém desejasse dividir a superfície do nosso planeta usando marcos distintos, essas estruturas facilmente cumpririam a tarefa.

Mas é aquilo que não podemos ver que eternamente liga essas estruturas maciças umas às outras, pois no âmago de seu projeto reside uma equação matemática comum que demonstra um conhecimento avançado — o conhecimento da precessão.

Mais uma vez, uma breve explicação:

À medida que flutua pelo espaço em sua jornada anual ao redor do Sol, nosso planeta gira sobre seu eixo uma vez a cada 24 horas. Quando a Terra gira, a atração gravitacional da Lua a faz inclinar-se aproximadamente 23,5 graus na vertical. Somando a atração gravitacional do Sol sobre a saliência equatorial do nosso planeta, temos uma oscilação do eixo da Terra, parecida com a de um pião girando. Essa oscilação é chamada de precessão. Uma vez a cada 25.800 anos, o movimento do eixo traça um círculo no céu, relocalizando a posição dos poios e equinócios celestiais. Esse desvio gradual para o oeste também faz com que os signos do zodíaco não correspondam mais às suas respectivas constelações.

O astrônomo e matemático grego Hiparco é considerado o descobridor da precessão em 127 a.C. Hoje sabemos que os egípcios, maias e hindus já entendiam a precessão centenas, se não milhares, de anos antes.

No início da década de 1990, a arqueoastrônoma Jane Sellers descobriu que o mito de Osíris do Egito antigo continha chaves numéricas que os egípcios usavam para calcular os vários graus de precessão da Terra. Dessas chaves, um conjunto de dígitos em particular se destacava: 4320.

Mais de mil anos antes do nascimento de Hiparco, os egípcios e maias, de alguma forma, haviam conseguido calcular o valor de pi, a razão do diâmetro de um círculo, uma esfera ou um hemisfério para a sua circunferência. Com 146,729 metros, a altura da Grande Pirâmide, multiplicada por 2pi, éprecisamente igual à sua base (921,46 metros). Por incrível que pareça, o perímetro da pirâmide equivale ao diâmetro da Terra com um erro de 6 metros, quando as dimensões do nosso planeta são reduzidas numa razão de 1:43.200, números que representam nosso código matemático de precessão. Usando a mesma razão, o raio polar da Terra equivale à altura da pirâmide.

Resulta que a Grande Pirâmide é um marcador geodésico localizado quase exatamente no 30º paralelo. Se suas medidas fossem projetadas numa superfície plana (com o ápice representando o Polo Norte e o perímetro, o equador) as dimensões do monumento equivaleriam ao Hemisfério Norte, reduzido para, mais uma vez, 1:43.200.

Sabemos que o Sol equinocial leva 4.320 anos para completar um movimento precessional de duas constelações zodiacais ou 60 graus. Esse número multiplicado por cem é igual 43.200, o número de dias que no Calendário Longo Maia equivale a 6 Katuns, um dos valores numéricos chave que os antigos maias usavam quando eles calculavam a precessão. Um ciclo completo de precessão leva 25.800 anos. Se somarmos todos os anos dos cinco ciclos do Popol Vuh, o período de tempo equivale exatamente a um ciclo precessional.

Escondidos dentro da densa selva de Kampuchea, no Camboja, estão os magníficos Templos Hindus de Angkor. Os baixos-relevos e estátuas que abundam no conjunto incluem símbolos precessionais, sendo os mais populares uma serpente gigante (Naga), com seu corpo enrolado em volta de uma montanha sagrada no oceano leitoso, ou Via Láctea. As duas extremidades da serpente estão sendo usadas como corda numa competição cósmica de cabo de guerra entre duas equipes: uma representando a luz e o bem, a outra, as trevas e o mal. Esse movimento, combinado com a rotação da Via Láctea, representa a interpretação hindu da precessão. As Puranas, escrituras sagradas dos hindus, referem-se às quatro idades da Terra como Yugas. Nossa Yuga atual, a Kali Yuga, tem uma duração de 432 mil anos mortais. No final dessa época, as escrituras dizem que a humanidade irá ao encontro da destruição.

Egípcios, maias e hindus antigos — três culturas distintas localizadas em partes distintas do mundo, cada uma existindo num período diferente do nosso passado. Três culturas que compartilhavam um conhecimento avançado da ciência, cosmologia e matemática, e usavam sua sabedoria para criar misteriosas maravilhas arquitetônicas, cada estrutura construída para um único propósito oculto.

As mais velhas entre essas estruturas são as grandes pirâmides de Gize e sua guardiã atemporal, a Esfinge. Localizada a noroeste do templo conhecido como Casa de Osíris, a magnífica figura de calcário do leão com cabeça de gente é a maior escultura do mundo, com a altura de um prédio de seis andares e 73 metros de comprimento. A própria criatura é um marco cósmico, com seu olhar orientado precisamente para o leste, como se esperando o Sol nascer.

Qual a idade do complexo de Gizé? Egiptólogos garantem a data de 2.475 a.C. (um período que, por acaso, se encaixa no folclore egípcio). Por muito tempo, foi difícil discutir isso, pois nem as Grandes Pirâmides nem a Esfinge deixaram nenhum marco determinante.

Era o que pensávamos.

Aparece o estudioso americano John Anthony West. West descobriu que a vala de 7 metros e meio de profundidade que rodeia a Esfinge exibe sinais inconfundíveis de erosão. Investigando mais, um grupo de geólogos determinou que os danos não haviam sido causados pelo vento ou pela areia, mas unicamente pela chuva.

A última vez que o vale do Nilo viu esse tipo de clima foi há uns 13 mil anos, resultado da Grande Inundação que aconteceu no final da última era glacial. No ano 10.450 a.C., Gizé não era apenas fértil e verde, mas seu céu oriental também ficava em frente à própria figura que a Esfinge retrata, a constelação de Leão.

Enquanto tudo isso acontecia, Robert Bauval, engenheiro civil belga, percebeu que as três pirâmides de Gizé (quando vistas do alto) estavam precisamente alinhadas com as três estrelas do cinturão de Órion.

Usando um sofisticado programa de computador projetado para calcular todos os movimentos precessionais de qualquer vista do céu noturno em qualquer localização geográfica, Bauval descobriu que, embora as pirâmides de Gizé e as estrelas do cinturão de Órion estivessem um tanto alinhadas em 2.475 a.C., um alinhamento infinitamente mais preciso havia acontecido em 10.450 a.C. Nessa época, a faixa escura da Via Láctea não só aparecia sobre Gizé, mas espelhava o curso meridional do rio Nilo.

Conforme já mencionei, os antigos maias consideravam a Via Láctea uma serpente cósmica, e chamavam sua faixa escura de Xibalba Be, a Estrada Negra para o Mundo Inferior. Tanto o calendário maia quanto o Popol Vuh se referem aos conceitos de criação e morte como originários desse canal cósmico de nascimento.

Por que as três pirâmides de Gizé estão alinhadas com o cinturão de Órion? Qual o significado do número precessional 4.320? Qual foi a verdadeira motivação que impeliu nossos ancestrais a construir os monumentos de Gizé, as pirâmides de Teotihuacán e os templos de Angkor?

Como esses três locais estão ligados à profecia maia do Juízo Final?

— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,

Ref. Catálogo 1993-94 páginas 3-108

       Disquete 4: Nome do arquivo: ORION-12

 

                   23 DE SETEMBRO DE 2012 , MIAMI, FLÓRIDA

3h30

O sonho de Michael Gabriel se transforma em terror noturno. Pior do que qualquer pesadelo, é um sonho violento e recorrente que toma conta de seu subconsciente — um murmúrio em seu cérebro que o leva de volta a um momento crucial de seu passado.

Ele está de volta ao Peru, um menino de novo, com menos de 12 anos. Olhando pela janela de seu quarto para a sonolenta aldeia de Ingenio, ele escuta as vozes abafadas que vêm do quarto ao lado. Ouve seu pai falando com o médico em espanhol. Ouve seu pai soluçando. A porta se abre. — Michael, entre, por favor.

Mick sente o cheiro da doença. E um cheiro rançoso, um odor de lençóis suados e frascos de soro, de vômito, dor e angústia.

Sua mãe jaz na cama, seu rosto amarelado. Ela o olha com seus olhos melancólicos e aperta-lhe a mão fracamente.

—        Michael, o médico vai te ensinar a administrar os remédios da sua mãe. É muito importante que você preste bastante atenção e faça tudo corretamente.

O médico de cabelos prateados olha para ele.

—        Ele é um pouco jovem, Señor...

—        Mostre a ele.

O médico puxa os lençóis, revelando um cateter venoso central saindo do ombro direito enfaixado de sua mãe. Mike vê o tubo e sente medo.

—        Papai, por favor, a enfermeira não pode...?

—        Não podemos mais pagar a enfermeira, e eu preciso completar o meu trabalho em Nazca, já conversamos sobre isso, filho. Você consegue. Eu vou estar em casa toda noite. Agora se concentre e preste atenção no que o médico vai mostrar.

Mick fica ao lado da cama, olhando de perto o médico enchendo a seringa com morfina. Ele memoriza a dose e sente seu estômago revirar quando a agulha é injetada no cateter, os olhos da mãe virando para cima...

—        Não! Não! Não!

Os gritos de Michael Gabriel acordam todos os internos do núcleo.

 

                   Espaço Profundo

A sonda leve Expresso Plutão-Kuiper voa pelo espaço, há oito anos, dez meses e 13 dias de casa, a apenas 58 dias e 11 horas de seu destino: o planeta Plutão e sua lua, Caronte. Com a aparência de uma antena parabólica high-tech, o aparato científico continua a transmitir seu sinal não codificado para a Terra através de sua antena de alto ganho de um metro e meio.

Sem aviso, um imenso oceano de energia eletromagnética radiante corta o espaço na velocidade da luz, e a porção inferior de um pulso de hiperondas banha o satélite em sua transmissão de alta potência. Num nanossegundo, o subsistema de telecomunicações e os circuitos integrados monolíticos de micro-ondas (CIMMs) são completamente torrados.

 

               NASA: Laboratório de Rede do Espaço Profundo

14h06

Jonathan Lunine, chefe da equipe científica da Expresso Plutão, se apoia numa fileira de bancadas de controles da missão, ouvindo distraidamente oengenheiro, dr. Jeremy Armentrout, dirigindo-se aos novos membros da equipe de terra.

—        ... a antena de alto ganho da EPK transmite continuamente um entre três tons possíveis. Eles se traduzem, essencialmente, como: está tudo bem, os dados estão prontos para a transmissão, ou há um problema sério que precisa de atenção imediata. Nos últimos oito anos, esses sinais foram monitorados por...

Lunine suprime um bocejo. Os três turnos consecutivos de 18 horas se fazem sentir, e ele está mais do que pronto para começar o fim de semana. Mais uma hora na sala de reuniões, depois casa e cochilo. O Redskins pega o Eagles amanhã, esse jogo vai ser bom...

—        Jon, posso falar com você, por favor?

Um técnico está de pé ao lado de seu console, fazendo sinais urgentes. Lunine nota gotas de suor na testa do homem. Os operadores dos dois lados parecem trabalhar febrilmente.

—        Qual a situação?

—        Perdemos contato com a EPK.

—        Vento solar?

—        Desta vez não. Meu painel mostra uma sobrecarga maciça de energia que afeta todo o sistema de comunicações do SDST e dos dois computadores de voo. Sensores, dispositivos eletrônicos, corretores de atitude... tudo inoperante. Pedi uma análise completa de sistemas, mas só Deus sabe como isso está afetando a trajetória da EPK.

—        E os sistemas de reserva?

—        Todos inoperantes.

—        Droga. — Armentrout esfrega a têmpora. — A prioridade, claro, é restabelecer contato. Também é fundamental relocalizar e continuar rastreando a sonda antes que passe muito tempo e a gente perca a EPK no espaço.

—        Você tem alguma sugestão?

—        Lembra quando perdemos contato por um mês com o SOHO no verão de 1998? Conseguimos localizá-lo antes de restabelecer contato. Transmitimos sinais de rádio para o satélite com a antena grande de Arecibo e captamos os ecos com a antena da NASA na Califórnia.

—        Vou ligar para Arecibo.

 

                 Centro Nacional de Astronomia e Ionosfera

Arecibo, Porto Rico

— Entendido, Jon. — Robert Pasquale, diretor de operações de Arecibo, desliga o telefone, depois assoa o nariz pela enésima vez antes de interfonar para seu assistente. — Arthur, venha aqui, por favor.

O astrofísico Arthur Krawitz entra no escritório do diretor.

—        Meu Deus, Bob, você está um trapo.

—        É essa maldita sinusite. Primeiro dia do outono e a minha cabeça já está latejando. Aqueles astrônomos russos já terminaram com a antena grande?

—        Há uns dez minutos. O que aconteceu?

—        Acabei de receber um chamado de emergência da NASA. Parece que eles perderam contato com a Plutão-Kuiper e querem que a gente ajude a localizá-la. Estão mandando as últimas coordenadas válidas da sonda pro seu computador e pedem que a gente use a antena grande pra mandar um feixe de rádio pro espaço. Com sorte, a NASA vai conseguir detectar um eco usando a antena grande de Goldstone.

—        Vou cuidar disso. Ah, e a SETI? Você sabe que o Kenny Wong vai querer ficar na escuta usando os receptores da SERENDIP. Não vai dar problema se...?

—        Ah, Arthur, estou me lixando. Se o garoto quer passar o resto da vida esperando o ET ligar, não tenho nada a ver com isso. Se você precisar de mim, estarei no meu quarto enchendo a cara de remédio.

Quando a Escola de Engenharia da Universidade de Cornell teve a idéia de construir o radiotelescopio mais potente do mundo, procurou durante anos um local que oferecesse uma depressão geológica natural com as dimensões aproximadas de um gigante prato refletor. O local precisava estar sob a jurisdição dos Estados Unidos, e como o prato não se mexeria, sua localização também precisava estar o mais perto possível do equador, para que a Lua e os planetas aparecessem quase totalmente a pino. Essa busca levou ao desfiladeiro de montanhas calcárias de carste do norte de Porto Rico, uma área verdejante e isolada, com vales profundos rodeados por enormes colinas que protegeriam o telescópio de qualquer radiointerferência.

Completado em 1963, com reformas em 1974, 1997 e 2010, o telescópio de Arecibo parece, para quem o visita pela primeira vez, uma enorme estrutura alienígena de aço e concreto. O prato de 300 metros de diâmetro, formado por quase 40 mil painéis perfurados de alumínio, tem o lado côncavo para cima, preenchendo toda a bacia de carste como uma gigante saladeira de 51 metros de profundidade. Pendurados 130 metros acima do centro do prato estão o braço de azimute do radiotelescopio, o telescópio gregoriano e as antenas secundária e terciária. Essa teia de aço de 600 toneladas é mantida suspensa por 12 cabos presos a três imensos obeliscos de sustentação e numerosos blocos de ancoragem localizados no perímetro do vale.

Construído na encosta calcária montanhosa que tem vista para o telescópio, o laboratório de Arecibo é um prédio de concreto que abriga os computadores e equipamentos técnicos usados para controlar a instalação. Ao lado do laboratório ficam quatro andares de dormitórios com refeitório e biblioteca, bem como uma piscina aquecida e uma quadra de tênis.

O gigantesco telescópio de Arecibo foi projetado para ser usado por cientistas em quatro campos diferentes. Radioastrônomos usam a antena para analisar as radioemissões naturais de galáxias, pulsares e outros corpos celestes a até 10 milhões de anos-luz de distância. Astrônomos especializados em radar vêm a Arecibo para lançar poderosos feixes de rádio contra objetos dentro do nosso sistema solar e depois gravar e estudar os ecos. Cientistas atmosféricos e astrônomos usam o telescópio para estudar a ionosfera da Terra, analisando a atmosfera e sua relação dinâmica com o nosso planeta.

O último campo de estudo envolve o programa SETI, ou Busca de Inteligência Extraterrestre. O objetivo da SETI é localizar vida inteligente no cosmos usando a abordagem em duas frentes. A primeira é lançar transmissões de rádio para o espaço profundo na esperança de que um dia alguma espécie inteligente receba nossa mensagem de paz. A segunda usa o telescópio gregoriano e suas duas antenas menores para receber ondas de rádio vindas do espaço profundo, tentando distinguir nelas padrões inteligíveis para provar que não estamos sós no universo.

Os astrônomos se referem à tarefa de buscar sinais de rádio na imensidão do espaço como procurar uma agulha no palheiro cósmico. Para simplificar a busca, o prof. Frank Drake e seus colegas do Projeto Ozma, fundadores da SETI, concluíram que qualquer vida inteligente existente no cosmos teria (logicamente) que ser associada à água. Com tantas frequências de rádio à disposição, os astrônomos supuseram que uma inteligência extraterrestre emitiria seus sinais de rádio em 1,42 gigahertz, o ponto do espectro eletromagnético no qual a energia é liberada pelo hidrogênio. Drake batizou essa região de espectro de olho-d'água, e desde então ela tem sido o único alvo da caça por sinais de rádio interestelares.

Um projeto adjunto da SETI é a SERENDIP, ou Busca por Emissões de Rádio Extraterrestre de Populações Próximas Desenvolvidas e Inteligentes. Como o tempo de telescópio é caro e difícil de se obter, a SERENDIP simplesmente acopla seus receptores à antena maior durante todas as observações. A principal limitação desses cientistas da SETI é que eles não escolhem o que vão escutar. Seus alvos são escolhidos pelo anfitrião.

Kenny Wong está no terraço localizado à frente das grandes janelas panorâmicas do laboratório. Emburrado, o estudante de graduação de Princeton se apoia no balaústre e olha para o emaranhado de metal e cabos suspensos sobre o centro da grande antena.

Essa porra de NASA. Além de cortar o nosso orçamento, fica monopolizando o telescópiopra localizar aquela droga de sonda...

—        Ei, Kenny...

Captar sinais é perda de tempo se não for no olho-d'água. Eu devia ir à praia, não adianta porra nenhuma ficar aqui...

—        Kenny, vem pra cá, caramba. O seu equipamento está me dando dor de cabeça!

—        Hã?

O estudante corre para dentro do laboratório, seu coração batendo forte quando ele ouve um som que jamais ouviu antes.

—        Essa droga de computador está tocando esse bipe faz cinco minutos. — Arthur Krawitz tira os óculos bifocais e lhe lança um olhar furioso. — Dá pra desligar essa merda? Está me deixando louco.

Kenny o empurra e digita comandos freneticamente para ativar o programa de busca e identificação do computador. O programa SERENDIP-IV consegue examinar simultaneamente 168 milhões de frequências a cada 1,7 segundo.

Em segundos, uma resposta surge na tela, deixando-o sem fôlego.

 

Sinal Candidato: Detectado

 

—        Meu Deus do céu...

Kenny corre para o analisador de espectro, com o coração latejando em seus ouvidos. Ele verifica que o sinal analógico está sendo gravado e formatado digitalmente.

 

Sinal Candidato: Não Aleatório

 

—        Jesus Cristo... é um sinal de verdade! Puta que pariu, Arthur, preciso ligar pra alguém, preciso verificá-lo antes que a gente o perca!

Arthur cai na gargalhada.

—        Kenny, é só a sonda Plutão. A NASA deve ter restabelecido a comunicação.

—        O quê? Ah, merda. — Kenny desmorona numa cadeira, sem fôlego. — Meu Deus, por um momento achei...

—        Por um momento, você pareceu o Curly, dos Três Patetas. Fique sentado aí e se acalme enquanto eu ligo pra NASA e verifico, certo?

—        Certo.

O físico aperta uma tecla pré-programada em seu videocomunicador, que o coloca em ligação direta com a NASA. O rosto do dr. Armentrout aparece no monitor.

—        Arthur, é bom ver você. Ei, obrigado por nos ajudar.

—        Obrigado por quê? Vi que já restabeleceram contato com a EPK.

—        Negativo, continua tudo morto aqui. O que te fez pensar isso?

Kenny pula da cadeira.

—        NASA, aqui é Kenny Wong, da SETI. Estamos recebendo uma transmissão de rádio do espaço profundo. Achamos que fosse a EPK.

—        O sinal não é nosso, mas não se esqueça que a sonda Plutão usa onda portadora não codificada. Tem muito engraçadinho por aí, SETI. Qual a frequência do sinal?

—        Um momento. — Kenny volta para o seu computador e digita uma série de comandos. — Caramba, é em 4.320 MHz. Porra, Arthur, essa faixa de micro-ondas é alta demais pra ser de qualquer telecomunicação terrestre, ou mesmo de um satélite geossíncrono. Espere um pouco, vou pôr o sinal nos alto-falantes pra gente ouvir.

—        Kenny, espere...

Um tom agudo perfurante sai dos alto-falantes, a explosão sonora pulveriza os óculos de Arthur e faz as vidraças trepidarem nos caixilhos.

Kenny puxa o cabo, esfregando os ouvidos.

Arthur olha para os cacos de vidro em suas mãos.

—        Inacreditável. Qual a potência do sinal? De onde está vindo?

—        Ainda estou calculando a origem, mas a potência está totalmente fora da minha escala. E um brilho de rádio cerca de mil vezes mais forte do que qualquer coisa que podemos transmitir de Arecibo. — Um arrepio percorre a espinha de Kenny. — Cacete, Arthur, é pra valer, é de verdade!

—        Calma aí um minuto. Antes que a gente vire os Patetas do milênio, comece a verificar o sinal. Comece com o Very Large Array, no Novo México. Vou entrar em contato com a Universidade de Ohio...

—        Arthur...

Krawitz se vira para o videocomunicador.

—        Pode falar, Jeremy.

Meia dúzia de técnicos se aglomeram em volta de um pálido dr. Armentrout.

—        Arthur, acabamos de confirmar o sinal.

—        Vocês confirmaram... — Krawitz se sente meio zonzo, como se estivesse vivendo um sonho. — Já localizaram a origem?

—        Ainda estamos tentando. Estamos recebendo muita interferência por causa da...

—        Arthur, já tenho uma trajetória preliminar! — Kenny está de pé, empolgado. — O sinal está vindo da constelação de Órion, em algum lugar nas proximidades do cinturão.

 

                   Chichén Itzá, Península de Yucatán

16h00

A antiga cidade maia de Chichén Itzá, localizada nas terras baixas da península de Yucatán, é uma das grandes maravilhas arqueológicas do mundo. Várias centenas de construções ocupam esse sítio de 1.200 anos cercado pela selva, incluindo alguns templos e santuários com as esculturas mais intrincadas de toda a Mesoamérica.

As verdadeiras origens da cidade conhecida como Chichén remontam a 435 d.C. Depois de um período de abandono, a cidade foi redescoberta pelos itzás, uma tribo que falava o idioma maia e ocupou a região até o final do século VIII, quando os toltecas migraram para o leste de Teotihuacán. Sob a tutela e liderança do grande mestre, Kukulcán, as duas culturas se fundiram e a cidade floresceu, dominando a região como um centro religioso, cerimonial e cultural. A partida de Kukulcán no século XI levaria à decadência da cidade, seu povo perdido, levado por sua depravação a formas diabólicas de sacrifício humano. Por volta do século XVI, o pouco que restava da cultura havia caído rapidamente sob o domínio dos espanhóis.

Dominando Chichén Itzá está, possivelmente, a estrutura mais magnífica de toda a Mesoamérica: a pirâmide de Kukulcán. Apelidada de El Castillo pelos espanhóis, esse imponente zigurate de nove terraços se ergue quase 30 metros acima de um campo aberto de grama baixa.

Kukulcán é bem mais do que uma pirâmide — é um calendário de pedra. Cada um de seus quatro lados tem 91 degraus. Com a plataforma, o total perfaz 365, igual aos dias do ano.

Para arqueólogos e cientistas, a pirâmide de cor encarnada continua um enigma, pois seu projeto revela um conhecimento de Astronomia e Matemática que rivaliza com o do homem moderno. A estrutura foi geologicamente alinhada de tal maneira que duas vezes ao ano, nos equinócios da primavera e do outono, estranhas sombras começam a ondular ao longo da balaustrada norte. À medida que o sol do fim de tarde se põe, a enorme sombra de um corpo de serpente começa a deslizar pelos degraus até se encontrar com sua cabeça esculpida, que jaz na base da estrutura. (Na primavera, a serpente desce a balaustrada; no outono, a ilusão é invertida.)

No alto da pirâmide fica um templo de quatro lados, inicialmente usado para adoração, e somente mais tarde, depois da partida de Kukulcán, para sacrifícios humanos. Erguida, segundo se acredita, em 830 d.C., Kukulcán foi originalmente construída sobre uma estrutura muito mais antiga, cujas ruínas só podem ser acessadas por meio de um portão localizado na base norte. Uma passagem claustrofóbica leva a uma escada estreita, cujos degraus de calcário ficam lisos com a umidade. Subindo a escada, chega-se a duas pequenas câmaras interiores. A primeira contém a figura reclinada de um Chac Mool, uma estátua maia segurando uma bandeja cerimonial cuja função era conter os corações das vítimas dos sacrifícios. Atrás da cerca de segurança da segunda câmara fica o trono de um jaguar vermelho, com verdes olhos brilhantes de jade.

Brent Nakamura aperta a tecla que elimina imagens tremidas, e então, com sua câmera de vídeo Sony, faz uma panorâmica pelo mar de corpos suados. Meu Deus, deve ter umas 100 mil pessoas aqui. Vou ficar um tempão preso no trânsito.

O rapaz de San Francisco aponta a câmera para a balaustrada norte, fechando o zoom na sombra da cauda da serpente, que continua sua jornada de 202 minutos pela parede calcária da pirâmide de 1.200 anos.

O aroma acre de suor humano paira pesadamente na tarde úmida. Nakamura grava um casal canadense discutindo com dois funcionários do parque, depois desliga a câmera quando um turista alemão e sua família se apertam para passar por ele.

Olhando para o relógio, Nakamura decide que é melhor fazer algumas imagens do cenote sagrado antes que escureça. Depois de passar por cima de uma miríade de pessoas fazendo piquenique, ele ruma para o norte pelo antigo sacbe, um caminho elevado de terra bem perto da face norte de Kukulcán.

O sacbe é o único meio de correr pela densa selva para chegar ao segundo lugar mais sagrado de Chichén Itzá — um poço de água doce conhecido como cenote, ou poço maia de sacrifício.

Cinco minutos de caminhada o levam até a boca do abismo de 58 metros de largura, um lugar onde milhares de virgens morreram sacrificadas. Ele olha para baixo. Dezoito metros abaixo, as águas escuras e infestadas de algas fedem à estagnação.

O som de um trovão distante atrai sua atenção para o céu. Que estranho, não tem uma nuvem no céu. Será que foi um avião a jato? O som fica mais alto. Centenas de turistas se entreolham, inquietos. Uma mulher grita.

Nakamura sente seu corpo tremer. Ele olha para o poço. Círculos estão se formando na superfície antes tranquila. Puta que pariu, é um terremoto1.

Sorrindo entusiasmado, Nakamura aponta a câmera para a boca do cenote. Depois de sobreviver ao grande terremoto de 2005, a psique desse nativo de San Francisco precisa de muito mais do que alguns tremores para se abalar.

A multidão retrocede à medida que o tremor aumenta. Muitos correm pelo sacbe para a saída do parque. Outros gritam quando o chão sob seus pés pula como um trampolim.

Nakamura para de sorrir. Que porra...?

A água dentro do poço forma um redemoinho.

E então, tão abruptamente como começaram, os tremores cessam.

 

                       Hollywood Beach, Flórida

A sinagoga está lotada neste Yom Kippur, o dia mais sagrado do calendário judaico.

Dominique está sentada entre seus pais adotivos, Edie e Iz Axler. O rabino Steinberg está de pé no púlpito, ouvindo a voz angelical de sua chazan, que entoa uma pungente prece para a congregação.

Dominique está com fome, depois de jejuar quase 24 horas desde o início do Dia do Perdão. Ela também está no período pré-menstrual. Talvez por isso esteja tão emocionada, incapaz de se concentrar. Talvez por isso seus pensamentos fiquem voltando para Michael Gabriel.

O rabino começa a ler de novo:

—        No Rosh Hashana, nós refletimos. No Yom Kippur, consideramos. Quem viverá pelo bem dos outros? Quem, morrendo, deixará uma herança de vida? Quem arderá no fogo da ganância? Quem se afogará nas águas do desespero? Quem passará fome para fazer o bem? Quem terá sede de justiça e retidão? Quem sofrerá com o medo do mundo? Quem sufocará por falta de amigos? Quem descansará no final do dia? Quem ficará insone num leito de dor?

Suas emoções se agitam ao imaginar Mick deitado em sua cela. Pare com isso...

—        A língua de quem será uma espada em riste? As palavras de quem vão trazer a paz? Quem seguirá em busca da verdade? Quem ficará trancado na prisão do ego?

Em sua mente, ela vê Mick andando pelo jardim enquanto o sol do equinócio se põe atrás da muralha de concreto.

—        ... os anjos, tomados pelo medo e por tremores, declaram, assombrados: Este é o Dia do Juízo! Pois até as hostes celestes serão julgadas, como todos que habitam a Terra agora estão diante de Vós.

A barragem emocional se abre, as lágrimas quentes mancham seu rosto com a maquiagem. Confusa, ela passa por Iz e corre pelo corredor para fora do templo.

 

                 25 DE SETEMBRO DE 2012, WASHINCTON, DC

Ennis Chaney está exausto. Já se passaram dois anos desde que o senador republicano da Pensilvânia enterrou a mãe, e ele ainda sente imensamente sua falta. Sente falta das visitas ao lar de idosos, onde sempre levava para a mãe seu leitão assado especial, e sente falta de seu sorriso. Também sente falta da irmã, que morreu 11 meses depois de sua mãe, e de seu irmão mais novo, que o câncer lhe roubou no mês passado.

Ele aperta as mãos com força, sua filha mais nova tenta confortá-lo com um carinho nas costas. Quatro longos dias se passaram desde que ele recebeu o telefonema no meio da noite. Quatro dias desde que seu melhor amigo, Jim, morreu de um ataque cardíaco fulminante.

Ele vê, através da janela do salão de jantar, a limusine e o carro dos seguranças parando na entrada. Solta um suspiro. Nenhum descanso para os exaustos, nenhum descanso para os enlutados. Ele puxa para si a esposa e as três filhas, abraça a viúva de Jim mais uma vez e sai da casa, acompanhado pelos dois guarda-costas. Enxuga uma lágrima de seus olhos fundos, o pigmento escuro ao redor das órbitas criando a sombra da máscara de um guaxinim. Os olhos de Chaney são o espelho de sua alma. Eles revelam sua paixão de homem, sua sabedoria de líder. Contrarie-o, e os olhos se tornam adagas fixas.

Ultimamente, os olhos de Chaney têm estado vermelhos de tanto chorar.

Com relutância, o senador se senta no banco de trás da limusine que o aguardava, enquanto os dois guarda-costas entram no outro carro.

Chaney odeia limusines. Aliás, odeia tudo que chama atenção para si ou cheira ao tipo de tratamento preferencial que se associa ao privilégio político. Ele olha pela janela e pensa na sua esposa, perguntando-se se está para cometer um grande erro.

Ennis Chaney nasceu há 67 anos no bairro negro mais pobre de Jacksonville, na Flórida. Foi criado pela mãe, que sustentava a família fazendo faxina nas casas dos brancos, e pela tia, que muitas vezes ele chama de mãe. Nunca conheceu seu verdadeiro pai, um homem que saiu de casa poucos meses depois que ele nasceu. Quando ele tinha 2 anos, sua mãe se casou de novo, e seu padrasto se mudou com a família para New Jersey. Foi ali que o jovem Ennis cresceu. Foi ali que desenvolveu suas habilidades de líder.

A quadra era o único lugar onde Chaney se sentia em casa, o único lugar onde a cor não importava. Embora fosse menor que seus colegas, não se deixava intimidar por ninguém. Depois das aulas, forçava-se a cumprir milhares de horas de treinos, canalizando sua agressão para o desenvolvimento de suas habilidades atléticas, aprendendo também disciplina e autocontrole. Nos últimos anos do colégio, fazia parte do segundo time municipal de futebol como zagueiro e da seleção estadual de basquete. Poucos defensores se atreviam a desafiar o pequeno e valente armador, que preferia lhes quebrar os tornozelos a deixar que roubassem a bola; mas, fora das quadras, não se podia encontrar um jovem mais gentil e afetuoso.

Sua carreira no basquete acabou quando ele lesionou o tendão patelar em seu primeiro ano na universidade. Embora estivesse mais interessado na carreira de treinador, permitiu que sua mãe, uma mulher que crescera na época da segregação, o convencesse a ingressar na arena política. Por também ter convivido o suficiente com o racismo, Ennis sabia que a política era o principal ambiente que precisava de mudanças.

Seu padrasto tinha contatos no Partido Republicano na Filadélfia. Apesar de democrata ferrenho, Chaney acreditava que poderia produzir mais mudanças como candidato republicano. Aplicando a mesma ética de trabalho, a paixão e a intensidade que lhe permitiram brilhar nas quadras esportivas, Ennis rapidamente galgou os degraus mais baixos da política municipal, nunca temendo expressar sua opinião, sempre disposto a se arriscar para ajudar os oprimidos.

Desprezando a preguiça e a falta de autocontrole dos seus pares, ele se tornou uma brisa de ar fresco e uma espécie de herói popular na Filadélfia. O vice-prefeito Chaney logo se tornou o prefeito Chaney. Anos depois, concorreu ao cargo de senador pela Pensilvânia e ganhou disparado.

E agora, a menos de dois meses da eleição de novembro de 2012, o presidente dos Estados Unidos liga para pedir que ele concorra em sua chapa. Ennis Chaney — o garoto miserável de Jacksonville, Flórida —, a um passo do cargo mais poderoso do mundo.

Ele olha pela janela enquanto a limusine vira para a Capital Beltway. A morte apavora Ennis Chaney. Não há como se esconder dela ou argumentar com ela. Ela não traz nenhuma resposta, apenas perguntas e confusão, lágrimas e tributos no enterro, tributos até demais. Como resumir a vida de um ente querido em vinte minutos? Como esperar que se traduza uma vida de afeto em meras palavras?

Vice-presidente. Chaney balança a cabeça, deixando sua mente às voltas com o seu futuro.

Não é o seu futuro que o preocupa, mas o fardo que a candidatura representaria para a sua esposa e a sua família. Ser eleito senador é uma coisa, aceitar a indicação republicana como o primeiro vice-presidente afro-americano é algo totalmente diferente. O último e único negro que teve uma chance legítima de ser eleito para a Casa Branca foi Colin Powell, e o general acabou desistindo, alegando preocupações familiares. Se Maller for reeleito, Chaney será o candidato favorito para 2016. Como Powell, ele sabe que sua popularidade cruza fronteiras políticas e raciais, mas há sempre uma pequena parte da população que, como a morte, não aceita argumentos.

E ele já fez sua família enfrentar tanta coisa.

Chaney também sabe que Pierre Borgia deseja entrar na chapa, e se pergunta até onde o secretário de Estado está disposto a ir para conseguir o que quer. Borgia é tudo o que Chaney não é: impulsivo, interesseiro, motivado politicamente, egoísta, solteiro, pró-guerra — e branco.

Os pensamentos de Chaney voltam para o seu melhor amigo e sua família. Ele chora abertamente, sem se importar nem um pouco com a presença do motorista.

Ennis Chaney demonstra suas emoções facilmente, algo que aprendeu há muito tempo com a mãe. A força interior e a tenacidade para comandar são inúteis se alguém não se permite ter sentimentos, e Chaney tudo sente. Pierre Borgia não sente nada. Criado entre os ricos, o secretário de Estado tem uma visão bitolada da vida, jamais parando para pensar no que o outro lado pode estar sentindo. Esse último fato tem um grande peso para o senador. O mundo se torna um lugar mais complicado e perigoso a cada dia. A paranóia nuclear na Ásia está aumentando. Borgia é a última pessoa que ele quer ver comandando o país numa situação de crise.

—        O senhor está bem, senador?

—        Claro que não. Que pergunta idiota é essa? — A voz de Chaney é áspera e grave, a menos que ele esteja gritando, algo que faz com freqüência.

—        Desculpe, senhor.

—        Cale a boca e dirija.

O motorista sorri. Dean Disangro trabalha para o senador Chaney há 16 anos e o ama como a um pai.

—        Deano, que diabos pode ser tão importante pra NASA me querer no Goddard num domingo?

—        Não faço idéia. O senhor é o senador, eu sou só um subalterno mal pago...

—        Ah, fica quieto. Você é mais bem-informado que a maioria daqueles tontos no Congresso.

—        O senhor é adido da NASA, senador. Se tiveram coragem de convocá-lo durante o fim de semana, é óbvio que algo importante aconteceu.

—        Obrigado, Sherlock. Você tem um monitor de notícias aí?

O motorista lhe passa o aparelho do tamanho de uma prancheta, já ligado no Washington Post. Chaney corre os olhos pelas manchetes e vê os preparativos para os testes nucleares retaliatórios na Ásia. Grozny marcou os testes uma semana antes do Natal. Muito esperto. Sem dúvida queria estragar o espírito natalino.

Chaney joga o monitor para o lado.

—        Como está sua esposa? Está pra dar à luz, não é?

—        Daqui a duas semanas.

—        Maravilha. — Chaney sorri, enxugando outra lágrima de seus olhos injetados.

 

                 NASA: Centro de Vôo Espacial Goddard

Greenbelt, Maryland

O senador Chaney sente sobre si os olhos ansiosos da NASA, da SETI, de Arecibo, e só Deus sabe de quem mais. Ele termina de folhear o relatório de vinte páginas e pigarreia, silenciando a sala de conferências.

—        Vocês têm certeza absoluta de que o sinal de rádio veio do espaço?

—        Sim, senador. — O tom de Brian Dodds, diretor executivo da NASA, é quase de desculpas.

—        Mas não conseguiram determinar a origem exata do sinal?

—        Não, senhor, ainda não. Temos quase certeza de que a fonte está localizada no braço de Órion, o nosso braço na espiral da galáxia. O sinal atravessou a Nebulosa de Órion, uma enorme fonte de interferência, o que torna difícil determinar exatamente quanto viajou. Presumindo que tenha vindo de um planeta dentro do cinturão de Órion, podemos considerar uma distância mínima entre 1.500 e 1.800 anos-luz da Terra.

—        E esse sinal durou três horas?

—        Três horas e 22 minutos, para ser exato, senador — Kenny Wong exclama, levantando-se.

Chaney, com um gesto, indica que ele se sente.

—        E não houve outros sinais, sr. Dodds?

—        Não, senhor, mas continuaremos monitorando a freqüência e a direção do sinal.

—        Muito bem. Imaginando que o sinal seja real, quais são as implicações?

—        Bem, senhor, a implicação mais óbvia e entusiasmante é que agora temos a prova de que não estamos sós, de que existe pelo menos mais uma forma de vida inteligente em algum lugar da nossa galáxia. Nosso próximo passo é determinar se padrões ou algoritmos específicos estão ocultos dentro do próprio sinal.

—        Você acha que o sinal pode conter alguma espécie de comunicação?

—        Achamos bastante possível. Senador, este não é um sinal aleatório viajando pela galáxia. O feixe foi propositalmente direcionado para o nosso sistema solar. Existe outra inteligência que sabe que estamos aqui. Dirigindo o sinal para a Terra, estão nos avisando que existem.

—        Uma espécie de "Oi, como vai" entre vizinhos, é isso?

O diretor da NASA sorri.

—        Sim, senhor.

—        E quando o seu pessoal vai terminar a análise?

—        Difícil dizer. Se um algoritmo alienígena existe, estou confiante que nos¬sos computadores e nossa equipe de matemáticos e criptógrafos vai encontrá-lo. Mesmo assim, pode levar meses, anos. Ou pode nunca acontecer. Como pensar como um extraterrestre? Tudo isso é entusiasmante, mas é muito novo para nós.

—        Isso não é exatamente verdade, certo, sr. Dodds? — Os olhos de gua¬xinim fitam o diretor. — O senhor e eu sabemos que a SETI vem usando o grande radiotelescópio de Arecibo para transmitir mensagens para o espaço há algum tempo.

—        E as redes de televisão têm lançado sinais de TV para o espaço na velocidade da luz desde a estréia do I Love Lucy.

—        Não faça piadinhas, sr. Dodds. Não sou astrônomo, mas li o suficiente para saber que os sinais de TV são fracos demais para chegar a Orion. Quando essa descoberta for anunciada, muita gente vai ficar furiosa e com medo, e insistir que a SETI atraiu esse terror desconhecido.

Dodds silencia as objeções de seus assistentes.

—        Tem razão, senador. As transmissões da SETI são mais potentes, mas os sinais de TV são infinitamente mais amplos, espalhando-se pelo espaço em todas as direções. Entre os dois, é muito mais provável que os sinais de TV alcancem aleatoriamente um receptor do que o feixe estreito de Arecibo. Não se esqueça que o sinal de rádio que detectamos foi produzido por um transmissor alienígena muito superior ao nosso. Precisamos presumir que a inteligência por trás do sinal também tenha receptores capazes de detectar nossos sinais mais fracos.

—        Mesmo assim, sr. Dodds, a realidade da situação é que milhões de pessoas ignorantes vão acordar amanhã morrendo de medo, esperando que homenzinhos verdes invadam suas casas, estuprem suas esposas e raptem seus bebês. Essa situação precisa ser controlada com delicadeza ou vai explodir na nossa cara.

O diretor da NASA balança a cabeça.

—        Por isso chamamos o senhor, senador.

Os olhos fundos perdem um pouco de sua dureza.

—        Muito bem, vamos falar desse novo telescópio que vocês estão propondo. — Chaney folheia sua cópia do relatório. — Aqui diz que a antena teria 48 quilômetros de diâmetro e seria construída no lado escuro da Lua. Isso vai custar uns trocados. Por que diabos precisam construí-lo na Lua?

—        Pelo mesmo motivo que lançamos o Telescópio Hubble. A Terra libera radiointerferência demais. O outro lado da Lua está sempre oposto à Terra, oferecendo uma zona naturalmente livre de sinais de rádio. A idéia é construir a concha no fundo de uma cratera imensa, como foi feito com a concha de Arecibo, só que milhares de vezes maior. Já escolhemos um local: a cratera Saha, que fica só três graus dentro do lado escuro da Lua, perto do equador lunar. Um telescópio lunar vai permitir que nos comuniquemos com a inteligência que fez contato conosco.

—        E por que iríamos querer esse tipo de contato? — A voz de Chaney ecoa pela sala de conferências, perdendo a aspereza ao ficar mais alta. — Sr. Dodds, esse sinal de rádio pode ser a descoberta mais importante da história da humanidade, mas o que a NASA propõe vai assustar a população. E se o povo americano disser que não? E se ele disser que não quer gastar alguns bilhões de dólares pra falar com um ET? Vocês querem enfiar um comprimido bem grande na goela do Congresso.

Brian Dodds conhece Ennis Chaney, e sabe que o homem quer testar sua convicção.

—        Senador, o senhor tem razão. Essa descoberta vai amedrontar muita gente. Mas me deixe dizer o que apavora muitos de nós mais ainda. Temos medo quando pegamos o monitor de notícias e lemos a respeito das armas nucleares do Irã. Temos medo quando lemos sobre a crescente carestia na Rússia ou sobre a acumulação de armas estratégicas na China, outro país capaz de destruir o mundo. Parece que toda nação que sofre de instabilidade política e econômica está armada até os dentes, senador Chaney, e essa realidade é muito mais apavorante do que qualquer sinal de rádio vindo de 1.800 anos-luz de distância.

Dodds fica de pé. Com pouco mais de 1,85 metro e pesando 100 quilos, parece mais um lutador do que um cientista.

—        O que o público precisa entender é que estamos lidando com uma espécie inteligente, muito mais avançada que a nossa, e que conseguiu fazer o primeiro contato. Sejam o que forem, estejam onde estiverem, estão longe demais para nos fazer uma visita. Construindo esse radiotelescópio, poderemos nos comunicar com outra espécie. Com o tempo, poderemos aprender com eles, compartilhar nossas tecnologias e entender melhor o universo, talvez até nossa própria origem. Essa descoberta pode unir a humanidade. Esse projeto pode ser o catalisador que afastará a humanidade da aniquilação nuclear.

Dodds olha Chaney diretamente nos olhos.

—        Senador, um ET ligou, e é de suma importância para o futuro da humanidade que retornemos a ligação.

 

                 26 DE SETEMBRO DE 2012, MIAMI, FLÓRIDA

Cinco internos estão reunidos no núcleo conhecido como 7-C. Dois estão sentados no chão, jogando o que pensam ser xadrez, e outro está dormindo no sofá. O quarto está perto da porta, esperando que um membro de sua equipe de reabilitação chegue para levá-lo até sua sessão matinal de terapia.

O último interno do 7-C está parado diante de um aparelho de TV suspenso acima de sua cabeça. Ele ouve o presidente Maller elogiar o tremendo trabalho dos homens e mulheres da NASA e da SETI. Ouve o presidente falando, empolgado, de paz mundial e cooperação, do programa espacial internacional e o seu impacto sobre o futuro da humanidade. A aurora de uma nova era está chegando, ele anuncia. Não estamos mais sós.

Diferente dos outros bilhões de espectadores que assistem à coletiva ao vivo em todo o mundo, Michael Gabriel não está surpreso com o que está ouvindo, só entristecido. Os olhos de ébano não piscam, o corpo, rígido, não se move. Sua expressão neutra não muda, nem mesmo quando o rosto de Pierre Borgia aparece na tela sobre o ombro esquerdo do presidente. E difícil até saber se Mick está respirando.

Dominique entra no núcleo. Ela para por um momento para observar seu paciente assistindo ao boletim extraordinário enquanto verifica se o gravador preso sob sua camiseta está escondido pelo jaleco branco.

Ela fica ao lado dele, os dois ombro a ombro, agora, diante da televisão, a mão direita dela perto da esquerda dele.

Seus dedos se entrelaçam.

—        Mick, quer ver o resto da coletiva ou podemos conversar?

—        No meu quarto.

Ele a leva pelo corredor e entra no quarto 714. Mick anda pela cela como um animal enjaulado, sua mente sobrecarregada tentando organizar mil detalhes de uma vez.

Dominique se senta na beira da cama, olhando para ele.

—        Você sabia que isso ia acontecer, não sabia? Como? Como você sabia? Mick...

—        Eu não sabia o que ia acontecer, só que algo ia acontecer.

—        Mas você sabia que seria um evento celeste, alguma coisa a ver com o equinócio. Mick, pare de andar, é difícil conversar assim. Venha cá. Senta perto de mim.

Ele hesita, e então se senta ao lado dela. Ela pode ver suas mãos tremendo.

—        Fale comigo.

—        Eu posso sentir, Dom.

—        O que você pode sentir?

—        Não sei... não consigo descrever. Algo está vindo, uma presença. Ainda está distante, mas está se aproximando. Já senti isso antes, mas nunca assim.

Ela toca o cabelo que cobre o pescoço dele, enrolando um grosso cacho castanho em seu dedo.

—        Tente relaxar. Vamos falar dessa transmissão de rádio do espaço. Quero que me conte como sabia que o maior evento na história da humanidade estava pra acontecer.

Ele olha para ela, medo em seus olhos.

—        Isso não é nada. É só o começo do último ato. O maior evento vai acontecer no dia 21 de dezembro, quando bilhões de pessoas vão morrer.

—        E como você sabe? Eu sei o que o calendário maia diz, mas você é inteligente demais pra simplesmente aceitar uma profecia de 3 mil anos sem provas científicas. Me explique os fatos, Mick. Nada de folclore maia, apenas as evidências que comprovam. Ele balança a cabeça.

—        Por isso pedi que você lesse o diário do meu pai.

—        Eu comecei a ler, mas prefiro que você mesmo me explique. Da última vez que conversamos, você me alertou sobre algum tipo de alinhamento galáctico raro em que a Terra ia entrar, começando no equinócio de outono. Me explica isso.

Mick fecha os olhos, respirando lentamente para obrigar seus músculos carregados de adrenalina a se acalmarem.

Dominique consegue ouvir o zumbido do gravador. Ela pigarreia, acobertando o ruído.

Ele reabre os olhos, seu olhar mais suave, agora.

—        Você conhece o Popol Vuh?

—        Eu sei que é o livro maia da criação, o equivalente à nossa Bíblia pra eles.

Ele concorda com a cabeça.

—        Os maias acreditavam em cinco sóis ou cinco Grandes Ciclos da criação, sendo que o quinto e último deve terminar em 21 de dezembro, o dia do solstício de inverno deste ano. De acordo com o Popol Vuh, o universo foi dividido em um Mundo Superior, um Mundo Médio e um Mundo Inferior. O Mundo Superior representa o céu, o paraíso, e o Mundo Médio representa a Terra. Os maias se referiam ao Mundo Inferior como Xibalba, um lugar escuro e terrível que seria governado por Hurakan, o deus da morte. A lenda maia diz que o grande mestre, Kukulcán, estava empenhado numa longa batalha cósmica contra Hurakan, lançando as forças do bem e da luz contra as trevas e o mal. Está escrito que o quarto ciclo teve um fim abrupto quando Hurakan fez um grande dilúvio inundar o mundo. A palavra "furacão" vem do nome maia "Hurakan". Os maias acreditavam que essa entidade demoníaca existia dentro de um violento redemoinho. Os astecas acreditavam na mesma lenda, só que o nome deles para o grande mestre era Quetzalcoatl, e a divindade do mundo inferior era conhecida como Tezcatilpoca, um nome que se traduz como "espelho enfumaçado".

—        Mick, espere. Pare um momento, está bem? Esqueça o mito maia. Preciso que você se concentre nos fatos referentes ao calendário e em como ele se relaciona com essa transmissão do espaço.

Os olhos negros chispam para ela como lasers de ônix, e o olhar faz Dominique se encolher.

—        Não posso discutir os aspectos científicos que confirmam a profecia do Juízo Final sem explicar o mito da criação. Tudo está relacionado. Um paradoxo envolve os maias. A maioria das pessoas acha que os maias eram só um bando de selvagens que moravam na floresta e construíam umas pirâmides legaizinhas. A verdade é que os maias eram astrônomos e matemáticos incríveis, que tinham uma incomensurável compreensão da existência do nosso planeta dentro da galáxia. E foi esse conhecimento que permitiu que eles previssem o alinhamento celeste que levou ao sinal de ontem.

—        Não entendo...

Mick se agita, depois começa a andar pelo quarto de novo.

—        Temos provas que mostram que os maias e seus antepassados, os olmecas, usavam a Via Láctea como um marcador celestial pra calcular o calendário maia. A Via Láctea é uma galáxia espiral com cerca de 100 mil anos-luz de diâmetro, formada por aproximadamente 200 bilhões de estrelas. O nosso Sol está localizado num dos braços espirais, o braço de Orion, a cerca de 35 mil anos-luz do centro da galáxia, que os astrônomos agora acreditam ser um gigantesco buraco negro que atravessa a constelação de Sagitário. O centro da galáxia funciona como uma espécie de ímã celeste, movendo a Via Láctea num vórtice poderoso. Neste exato momento, nosso sistema solar está voando ao redor do ponto central da galáxia a uma velocidade de 217 quilômetros por segundo. Apesar dessa velocidade, a Terra leva 226 milhões de anos pra com¬pletar uma revolução ao redor da Via Láctea.

A fita está acabando.

—        Mick, o sinal...

—Tenha paciência. Ao se mover pela galáxia, nosso sistema solar segue uma trajetória de 14 graus de largura chamada de eclíptica. A eclíptica cruza a Via Láctea de tal forma que periodicamente se alinha com a saliência central da galáxia. Quando olhavam pro céu noturno, os maias viam uma fenda escura, uma faixa escura alongada de densas nuvens interestelares que começava onde a eclíptica cruza a Via Láctea, na constelação de Sagitário. O mito da criação do Popol Vuh se refere a essa fenda escura como Estrada Negra, ou Xibalba Be, um nexo na forma de uma grande serpente que liga a vida e a morte, a Terra e o Mundo Inferior.

—        Já falei, tudo isso é fascinante, mas que relação tem com o sinal de rádio vindo do espaço?

Mick para de andar.

—        Dominique, esse sinal de rádio não foi só uma transmissão aleatória lançada através do universo. Foi propositalmente direcionado pro nosso sistema solar. Do ponto de vista tecnológico, você não pode simplesmente transmitir um feixe de rádio do outro lado da galáxia e torcer pra que ele alcance um determinado grão de poeira planetário como a Terra. Quanto mais o feixe viaja, mais o sinal se distorce e perde a força. A transmissão de rádio que a SETI detectou era um feixe muito poderoso, preciso e estreito. Pelo menos pra mim, isso indica que quem quer, ou o que quer que o tenha mandado precisou de um alinhamento galáctico particular, uma espécie de corredor celeste que dirigisse a transmissão de sua origem até a Terra. Essencialmente, o sinal viajou dentro de uma espécie de corredor cósmico. Não sei explicar por que nem como, mas senti quando o portal desse corredor começou a se abrir.

Dominique vê o medo nos olhos dele.

—        Você sentiu que ele se abria? O que sentiu?

—        Era uma sensação repugnante, como de dedos gelados se movendo dentro do meu intestino.

—        E você acredita que esse corredor cósmico se abriu só o suficiente pra permitir a passagem do sinal?

—        Sim, e o portal está se alargando um pouco mais a cada dia. No solstício de dezembro, vai se abrir completamente.

—        O solstício de dezembro. O Dia do Juízo maia?

—        Isso mesmo. Os astrônomos já sabem há anos que o nosso Sol vai se alinhar com o ponto exato do centro da galáxia em 21 de dezembro de 2012, o último dia do quinto ciclo do calendário. Ao mesmo tempo, a fenda escura da Via Láctea vai entrar em alinhamento com o nosso horizonte oriental, aparecendo diretamente sobre a cidade maia de Chichén Itzá à meia-noite do solstício. Essa combinação de eventos galácticos acontece somente uma vez a cada 25.800 anos, e mesmo assim, de alguma forma, os maias foram capazes de prever o alinhamento.

—        E a transmissão vinda do espaço, qual a finalidade dela?

—        Não sei, mas é um presságio de morte. Justifique a esquizofrenia dele. Culpe os pais.

—        Mick, eu acho que, à parte um episódio isolado de violência, seu aprisionamento constante tem mais a ver com sua crença fanática no apocalipse, que é uma crença compartilhada por dezenas de milhões de pessoas. Quando você diz que a humanidade está perto do fim, o que eu ouço é um credo que provavelmente foi martelado em você desde que nasceu. Não seria possível que seus pais...

—        Meus pais não eram fanáticos religiosos nem arautos do milênio. Não passavam o tempo construindo abrigos subterrâneos. Não amontoavam armamentos pesados e comida se preparando pro Dia do Juízo. Aliás, eles não acreditavam no Segundo Advento de Cristo, nem do Messias, e não acusavam qualquer líder mundial autocrático de bigodinho de ser o Anticristo. Eles eram arqueólogos, Dominique. Cientistas inteligentes o bastante pra não ignorar os marcos que apontam pra um desastre que aniquilará toda a nossa espécie. Chame de Armagedom, chame de Apocalipse, de profecia maia, do que você preferir, mas me tire daqui pra que eu possa fazer alguma coisa pra impedi-lo!

—        Mick, fique calmo. Sei que você está frustrado, mas estou tentando te ajudar, mais do que imagina. Só que pra conseguir sua alta, preciso pedir outra avaliação psiquiátrica.

—        Quanto tempo isso vai levar?

—        Não sei.

—        Meu Deus... — Ele anda mais rápido.

—        Digamos que você fosse solto amanhã. O que faria? Pra onde iria?

—        Pra Chichén Itzá. A única chance que temos de nos salvar é conseguir entrar na pirâmide de Kukulcán.

—        O que há dentro da pirâmide?

—        Não sei. Ninguém sabe. Nunca ninguém encontrou a entrada.

—        Então como...

—        Porque sinto que há algo lá dentro. Não me pergunte como, eu sinto e pronto. É como quando você está andando na rua e consegue sentir que alguém está te seguindo.

—        Os membros da junta vão querer algo mais palpável do que uma sensação.

Mick pára de andar e lhe lança um olhar exasperado.

—        Por isso pedi que você lesse o diário do meu pai. Duas estruturas em Chichén Itzá estão ligadas à nossa salvação. A primeira é o Grande Campo, que foi alinhado precisamente pra espelhar Xibalba Be, a fenda escura da Via Láctea, do jeito como ela vai aparecer em 4 Ahau, 3 Kankin. A segunda é a pirâmide de Kukulcán, a estrutura mais importante de toda a profecia do fim do mundo. A cada equinócio, a sombra de uma serpente aparece na balaustrada norte da pirâmide. Meu pai acreditava que esse efeito era um aviso que Kukulcán nos deixou, representando a ascensão do mal sobre a humanidade. A sombra dura exatamente três horas e 22 minutos. O mesmo intervalo de tempo da transmissão vinda do espaço.

—        Tem certeza disso? — Lembre-se de verificar esses fatos no seu relatório.

—        A mesma certeza de que estou aqui, na sua frente, apodrecendo nesta cela. — Ele começa a andar de novo.

Ela ouve o clique do gravador se desligando quando a fita chega ao fim.

—        Dom, a CNN deu outra notícia, só peguei o final dela. Algo sobre um terremoto na bacia de Yucatán. Preciso descobrir o que aconteceu. Preciso saber se o terremoto se originou em Chichén Itzá ou no Golfo do México.

—        Por que o Golfo?

—        Você não leu nem a parte do diário que fala dos mapas de Piri Reis?

—        Desculpe. Estou muito sem tempo.

—        Meu Deus, Dom, se você fosse minha residente, já tinha te mandado embora. Piri Reis era um famoso almirante turco que, no final do século XIV, de alguma forma teve acesso a uma série de misteriosos mapas do mundo. Usando-os como referência, o almirante criou um conjunto de mapas que os historiadores agora acreditam que foram usados por Cristóvão Colombo pra navegar pelo Atlântico.

—        Espere, esses mapas existiram mesmo?

—        Claro que existiram. E revelam detalhes topográficos que só poderiam ter sido detectados usando sondas sísmicas sofisticadas. Por exemplo, a costa da Antártida aparece como se não existisse nenhuma calota polar.

—        O que tem de tão significativo nisso?

—        Dom, o mapa tem mais de quinhentos anos. A Antártida só foi descoberta em 1818.

Ela olha para ele, sem saber em que acreditar.

—        Se duvida de mim, fale com a Marinha dos Estados Unidos. Foi a análise deles que confirmou a precisão da cartografia.

—        E o que esse mapa tem a ver com o Golfo ou com a profecia do fim do mundo?

—        Há 15 anos, meu pai e eu localizamos um mapa parecido, só que esse era um original de milhares de anos atrás, como aquele que Piri Reis encontrou. Ele estava selado num recipiente de irídio, enterrado num local preciso do platô de Nazca. Consegui tirar uma Polaroid antes que o pergaminho se desfizesse. Você pode ver a foto no final do diário do meu pai. Quando a vir, você vai notar uma área com um círculo vermelho, no Golfo do México, um pouco ao norte da península de Yucatán.

—        O que o círculo representa?

—        Não sei. Encerre a conversa.

—        Mick, não duvido de nada que você me contou, mas e se... bom, e se essa transmissão não tiver nada a ver com a profecia maia? A NASA diz que o sinal se originou em algum ponto distante, a mais de 1.800 anos-luz daqui.

Isso deve te tranqüilizar, certo? Afinal, convenhamos — ela sorri —, é meio improvável que algum extraterrestre chegue do cinturão de Órion nos próximos sessenta dias.

Os olhos de Mick ficam esbugalhados, enormes. Ele recua, apertando as têmporas com as duas mãos.

Merda, ele surtou. Você o pressionou demais.

—        Mick, o que foi? Você está bem?

Ele ergue um dedo, pedindo que ela se afaste, que fique em silêncio.

Dominique o vê ajoelhando-se no chão, seus olhos — janelas escuras para uma mente que rodopia a mil quilômetros por hora. Talvez você esteja enganada sobre ele. Talvez ele seja mesmo doido.

O longo momento passa. Mick ergue a cabeça, e a intensidade de seu olhar é positivamente assustadora.

—        Tem razão, Dominique. Você tem toda a razão — murmura ele. — Seja o que for, aquilo que está predestinado a erradicar a humanidade não vai chegar do espaço. Está no Golfo. Já está aqui.

 

                      Diário de Julius Gabriel

Para melhor entender e finalmente desvendar os mistérios que cercam o calendário maia e sua profecia do fim do mundo, é preciso explorar as origens das primeiras culturas que ganharam destaque no Yucatán.

Os primeiros mesoamericanos eram seminômades e apareceram na América Central por volta de 4.000 a.C. Finalmente, tornaram-se fazendeiros, desenvolvendo o milho, um híbrido da grama selvagem, bem como abacate, tomates e abóbora.

Então, por volta de 2.500 a.C., Ele chegou.

Ele era um caucasiano de rosto alongado, com barba e cabelo brancos e compridos, um sábio que, de acordo com a lenda, chegou por mar às planícies tropicais do Golfo do México para educar e transmitir grande sabedoria aos nativos da região.

Atualmente nos referimos a esses nativos educados como os olmecas (que significa: moradores da terra da borracha), e eles acabaram se tornando a "Cultura Mãe" de toda a Mesoamérica, a primeira sociedade complexa das Américas. Sob a influencia do "homem barbado", os olmecas unificaram a região do Golfo, e suas realizações na Astronomia, Matemática e Arquitetura influenciaram os zapotecas, maias, toltecas e astecas — culturas que acabaram tomando o poder nos milênios seguintes.

Quase da noite para o dia, esses simples fazendeiros que moravam na selva começaram a estabelecer estruturas complexas e grandes centros cerimoniais. Técnicas avançadas de Engenharia foram incorporadas aos projetos arquitetônicos e obras públicas de arte. Foram os olmecas que originaram o antigo jogo de bola, bem como o primeiro método de registrar os eventos. Eles também criaram grandes cabeças monolíticas de basalto, de 3 metros de altura, muitas delas pesando até 30 toneladas cada. Como essas enormes cabeças olmecas eram transportadas continua sendo um mistério.

Mais importante, os olmecas foram a primeira cultura mesoamericana a erguer pirâmides usando um conhecimento avançado de Astronomia e Matemática. São essas estruturas, alinhadas com as constelações, que revelam o entendimento que os olmecas tinham da precessão, uma descoberta que deu origem ao mito da criação registrado no Popol Vuh.

Portanto, foram os olmecas, e não os maias, que usaram seus inexplicáveis conhecimentos de Astronomia para criar o Calendário Longo e sua fatídica profecia.

No âmago do calendário do fim do mundo está o mito da criação, o relato histórico de uma batalha contínua da luz e do bem contra as trevas e o mal. O herói da história, Um Hunahpu, é um guerreiro capaz de acessar a Estrada Negra (Xibalba Be). Para os indígenas mesoamericanos, Xibalba Be equivalia à fenda escura da Via Láctea. O portal para Xibalba Be era representado, tanto nos artefatos olmecas quanto nos maias, como a boca de uma grande serpente.

Podemos imaginar os olmecas primitivos olhando para o céu noturno, apontando para a fenda escura da galáxia como uma serpente cósmica.

Por volta de 100 a.C., por motivos ainda desconhecidos, os olmecas decidiram abandonar suas cidades e se dividir em dois acampamentos, diversificando-se em duas regiões distintas. Aqueles que se mudaram para o oeste, na direção do centro do México, ficaram conhecidos como toltecas. Aqueles que foram para o leste ocuparam as selvas do Yucatán, Belize e Guatemala, e se denominaram maias. Só em 900 d.C. as duas civilizações se reunificaram sob a influência do grande mestre, Kukulcán, em sua majestosa cidade de Chichón Itzá.

Mas estou me adiantando demais.

Cambridge, 1969. Foi dali que meus dois colegas e eu partimos para desvendar os mistérios da profecia maia. Por unanimidade, decidimos que nossa primeira parada deveria ser o sítio olmeca de La Venta, pois foi ali, vinte anos antes, que o arqueólogo americano Matthew Stirling trouxe à luz a sua mais assombrosa descoberta, uma enorme fortificação olmeca, consistindo numa muralha de seiscentas colunas, cada uma pesando mais de 2 toneladas. Adjacente a essa estrutura, o explorador havia localizado uma rocha magnífica, coberta de intrincados entalhes olmecas. Depois de dois dias de trabalho intenso, Stirling e seus homens conseguiram desenterrar a monumental escultura, de 4 metros de altura e 2 metros de largura, e quase um metro de espessura. Embora alguns dos entalhes tivessem sido danificados pela erosão, a imagem de uma figura magnífica permanecia: um grande homem caucasiano de cabeça alongada, nariz adunco e barba branca comprida.

Imagine o choque entre meus colegas arqueólogos ao encontrar uma estátua de 2 mil anos claramente retratando um caucasiano, um artefato criado 1.500 anos antes que o primeiro europeu pusesse o pé nas Américas! Igualmente intrigante era o retrato de um homem barbado entre os olmecas, pois é um fato genético que os ameríndios de sangue puro não têm barba. Como todas as formas de expressão artística devem ter raízes em algo, a identidade do branco barbado era mais um enigma a ser resolvido.

Quanto a mim, imediatamente expus a teoria de que o caucasiano era um ancestral do grande mestre maia Kukulcán.

Não sabemos muito sobre Kukulcán ou seus ancestrais, embora todo grupo mesoamericano pareça ter idolatrado uma divindade masculina que se encaixa na mesma descrição física. Para os maias, ele era Kukulcán, para os astecas, Quetzalcoatl — um lendário sábio barbado que trouxe paz, prosperidade e grande sabedoria para o povo. Registros indicam que, por volta de 1.000 d.C., Kukulcán/Quetzalcoatl foi obrigado a abandonar Chichón Itzá. Reza a lenda que, antes de ir embora, o misterioso sábio prometeu ao seu povo que um dia voltaria para livrar o mundo do mal.

Depois da partida de Kukulcán, uma influência demoníaca se espalhou rapidamente pela região. Tanto os maias quanto os astecas se voltaram para os sacrifícios humanos, matando com selvageria dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças, tudo num esforço para invocar o retorno de seu amado deus-rei e impedir o fim profetizado da humanidade.

Foi no ano de 1519 que o conquistador espanhol Hernán Cortez chegou da Europa para invadir o Yucatán. Embora em vantagem numérica sobre o inimigo, os indígenas mesoamericanos confundiram Cortez (um branco barbado) com o Segundo Advento de KukulcánlQuetzalcoatl e depuseram as armas. Depois de conquistar os selvagens, Cortez mandou chamar os padres espanhóis, os quais, ao chegarem, ficaram horrorizados ao saber dos sacrifícios humanos e de outro ritual chocante: as mães maias estavam atando tábuas de madeira na cabeça dos bebês, na tentativa de deformar o crânio em desenvolvimento dos recém-nascidos. Com o crânio alongado, os maias pareceriam mais divinos, uma crença inspirada, sem dúvida, por indícios de que o grande mestre, Kukulcán, tinha o crânio igualmente alongado.

Proclamando rapidamente a prática maia como uma influência do demônio, os padres espanhóis mandaram queimar vivos os xamãs e converteram o resto dos indígenas ao cristianismo — sob ameaça de morte. Em seguida, os tolos supersticiosos jogaram na fogueira todos os códices maias importantes que existiam. Milhares de volumes de textos foram destruídos — textos que sem dúvida se referiam à profecia do fim do mundo, e poderiam conter instruções vitais, deixadas por Kukulcán, para salvar nossa espécie da aniquilação.

E foi assim que a Igreja, há uns quinhentos anos, tentando salvar nossas almas do diabo, muito provavelmente condenou nossa espécie à ignorância.

Enquanto Borgia e eu discutíamos a identidade do homem barbado retratado na escultura olmeca, nossa colega, a bela Maria Rosen, fez uma descoberta que redirecionaria nossos esforços para longe da América Central, rumo ao trecho seguinte da nossa jornada.

Enquanto escavava um sítio olmeca em La Venta, Maria descobriu um túmulo real e desenterrou os restos de um crânio alongado. Embora esse bizarro crânio, aparentemente não humano, não tivesse sido o primeiro do tipo localizado na Mesoamérica, resultaria ser o único encontrado na pátria olmeca chamada de Santuário da Serpente.

Maria decidiu doar o crânio ao Museu de Antropologia em Mérida. Ao falarmos com o curador, descobrimos, para nossa grande surpresa, que crânios parecidos haviam sido recentemente encontrados em escavações localizadas no platô de Nazca, no Peru.

Será que havia uma ligação entre as civilizações maia e inca?

Nós três nos vimos numa encruzilhada arqueológica. Deveríamos seguir para Chichén Itzá, uma antiga cidade maia crucial para a profecia do fim do mundo, ou deixar o México e seguir a pista no Peru?

O instinto de Maria foi de viajar para a América do Sul, por acreditar que o calendário maia não era senão uma peça importante do quebra-cabeça da profecia. E assim, nós três tomamos um avião para Nazca, sem saber aonde nossa jornada nos levaria.

Enquanto sobrevoávamos o Atlântico, eu refletia sobre algo que o médico em Mérida me revelara. Ao examinar o crânio alongado, o perito médico, homem de boa reputação, declarara, com bastante ênfase, que a maciça deformação óssea daquele espécime em particular não poderia ter sido causada por nenhuma técnica conhecida de alongamento. Para corroborar sua tese, ele pediu que um dentista examinasse os restos dos dentes, e o resultado mostrou algo ainda mais aterrador.

 

Artefato no 114:

crânio alongado — descoberto por Maria Rosen, La Venta, 1969

É fato que os adultos humanos têm 14 dentes na arcada inferior. O crânio alongado que Maria encontrara tinha apenas dez.

— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,

Ref. Catálogo 1969-73 páginas 13-347

       Diário Fotográfico, Disquete 4: Nome do arquivo:

       OLMECA-1-7

 

               9 DE OUTUBRO DE 2012, WASHINGTON, DC

O presidente Mark Maller entra no Salão Oval, vindo de seu escritório particular, e assume seu lugar atrás da mesa. Sentados diante dele estão os membros de gabinete da Casa Branca.

—        Bem, pessoal, vamos lá. Vamos começar falando sobre a indicação de um novo candidato à vice-presidência. Kathie?

A chefe de gabinete, Katherine Gleason, lê de seu laptop.

—        Estes são os resultados de uma pesquisa de opinião pública realizada na última quinta. Quando perguntamos quem eles preferiam ver na chapa do partido, os eleitores registrados preferiram Ennis Chaney a Pierre Borgia por 53% contra 39%. O quesito confiança parece ser o principal fator de motivação. No entanto, quando pedimos que identificassem aquela que achavam a questão central para a eleição de novembro, 89% do público citou o acúmulo de armas estratégicas na Rússia e na China como sua preocupação principal, com apenas 34% dos eleitores registrados interessados na construção de um radiotelescópio na Lua. Numa tradução livre: Chaney vai para a chapa, nós concentramos nossa campanha na estabilização das relações com a Rússia e a China, e o senhor se mantém neutro sobre o radiotelescópio, pelo menos até ser reeleito.

—        De acordo. Alguma novidade na NASA?

—        Sim, senhor — diz Sam Blumner, o principal assessor econômico do presidente. — Analisei o orçamento preliminar da NASA para a construção dessa geringonça na Lua.

—        Qual o tamanho do estrago?

—        Deixe-me colocar a questão desta forma, presidente: o senhor tinha duas chances de ganhar aprovação do Congresso: pouca e nenhuma. E "pouca" foi embora junto com o ex-vice-presidente.

—        Pensei que a NASA tivesse embutido o projeto na proposta da base lunar que já passou pela Comissão de Orçamento.

—        Eles tentaram. Infelizmente, aquela base lunar foi projetada para ser construída do lado de cá da Lua, perto da região polar, onde a NASA localizou formações de gelo, e não do lado escuro. Desculpe o trocadilho, mas em termos orçamentários, a diferença é igual à do dia pra noite, pois os painéis solares não serão mais uma alternativa quando o Sol não estiver brilhando.

Kathie Gleason balança a cabeça em desaprovação.

—        Sam, um dos motivos de o público americano ser tão contrário a essa empreitada é o fato de que a vêem como um projeto internacional. O sinal de rádio não foi transmitido só para os Estados Unidos. Foi recebido por todo o planeta.

—        E no final, ainda serão os Estados Unidos que arcarão com a maior parte da conta.

Cal Calixte, secretário de Imprensa do presidente, levanta a mão.

—        Presidente, na minha opinião, o radiotelescópio nos dá um meio de transferir fundos para a economia da Rússia, especialmente em vista dos cortes recentes do FMI. Talvez o senhor pudesse até ligá-lo ao novo tratado START-V.

—        Disseram a mesma coisa da Estação Espacial Internacional — interrompe Blumner. — Aquele brinquedinho gigante custou 20 bilhões de dólares aos Estados Unidos, mais os bilhões que emprestamos aos russos para que eles pudessem participar. E no fim são os russos que ficam atrasando a conclusão do projeto.

—        Sam, pare de ver tudo do ponto de vista financeiro — diz Kathie. — Essa é uma questão política, não é só um programa espacial. Proteger a democracia russa vale mais do que o próprio telescópio.

—        Democracia? Que democracia? — Blumner afrouxa a gravata. — Uma rápida lição de direitos civis pra você, Kathie. O que nós criamos foi uma economia de extorsão, em que os russos ricos ficam mais ricos, os pobres morrem de fome, e todos parecem estar cagando, contanto que chamemos aquilo de democracia. Os Estados Unidos e o FMI deram bilhões de dólares aos russos. Pra onde foi todo o dinheiro? Do ponto de vista fiscal, minha filha de 3 anos é mais responsável do que o Yeltsin ou o Viktor Grozny jamais foram.

Blumner se vira para o presidente, seu rosto rechonchudo, em tom de vermelho.

—        Antes de começar a distribuir bilhões, temos que ter em mente que esse sinal de rádio vindo do espaço pode muito bem não dar em nada. Pelo que entendi, a NASA ainda não encontrou um padrão subjacente que indique que a transmissão seja uma tentativa genuína de comunicação. E por que ainda não houve nem sinal de uma segunda transmissão?

Cal balança a cabeça.

—        Você não está enxergando a importância disso. O povo de Grozny está com fome. Os tumultos populares estão atingindo proporções perigosas. Não podemos dar as costas pra uma nação desesperada que tem um arsenal nuclear capaz de destruir o mundo uma dúzia de vezes.

—        Pra mim, ainda é extorsão — diz Blumner. — Estamos criando um projeto de fachada como meio de pagar bilhões de dólares a uma superpotência capenga e aos seus líderes corruptos. E isso só pra que não nos desafiem pra uma guerra nuclear que eles jamais poderiam vencer.

O presidente levanta a mão para fazer um aparte.

—        Mesmo assim, acho que o argumento de Cal tem mérito. O FMI já deixou claro que não dará mais um centavo à Rússia, a menos que o dinheiro seja investido em tecnologias que possam ajudar a impulsionar sua economia. Mesmo se esse sinal de rádio se mostrar inútil, o telescópio dará aos cientistas uma verdadeira oportunidade para explorar o espaço profundo.

—        A gente ajudaria mais o povo russo se abrisse alguns milhares de McDonald's e deixasse todo mundo comer de graça.

Mailer ignora o comentário de Blumner.

—        A reunião do G-9 é daqui a duas semanas. Quero que você e Joyce preparem uma proposta preliminar, usando o radiotelescópio como veículo para direcionar divisas para a Rússia. Na pior das hipóteses, talvez possamos aplacar um pouco a paranóia provocada pelos exercícios nucleares retaliatórios na Ásia.

O presidente se levanta.

—        Cal, pra que hora está marcada a coletiva de hoje à noite?

— Nove horas.

—        Ótimo. Vou me reunir com o novo vice-presidente daqui a uma hora, depois quero que você faça a ele um relatório sobre a reeleição. E diga pra ele fazer a mala. Quero que o Chaney comece a seguir o itinerário da campanha a partir de hoje à noite.

 

                           Universidade Estadual da Flórida

Dominique está sentada no corredor, na porta da sala de sua orientadora, remexendo-se desconfortavelmente sobre um banco de madeira sem estofamento. Ela pondera se deve arriscar mais uma ida ao banheiro, quando a porta da sala se abre.

A dra. Marjorie Owen, com o celular encostado a uma orelha, convida-a a entrar com um gesto apressado. Dominique entra no santuário do atulhado escritório da chefe do departamento e se senta, esperando que sua professora termine de falar ao telefone.

Marjorie Owen leciona psiquiatria clínica há 27 anos. E solteira e livre de compromissos, e seu físico magro e forte de 57 anos é conservado razoavelmente em forma pelo alpinismo. Mulher de poucas palavras, é respeitada e um tanto temida por seus funcionários não efetivados, e tem a reputação de ser rígida com seus alunos de graduação.

A última coisa que Dominique quer é entrar na lista negra dela.

A dra. Owen desliga o telefone, ajeitando seu curto cabelo grisalho atrás da orelha.

—        Muito bem, mocinha, já ouvi sua fita e li seu relatório sobre Michael Gabriel.

—        E?

—        E o quê? Ele é exatamente o que o dr. Foletta diz, um paranóico-esquizofrênico com um QI incomumente alto. — Ela sorri. — Mas devo acrescentar que é alguém que produz algumas ilusões deliciosas.

—        Mas isso justifica mantê-lo trancafiado? Ele está preso há 11 anos, e não vi nenhuma prova de comportamento criminoso.

—        De acordo com o dossiê que você me mostrou, o dr. Foletta acaba de completar sua avaliação anual, uma avaliação que você assinou. Se tinha alguma objeção, deveria tê-la apresentado na ocasião.

—        Só depois percebi isso. Tem alguma coisa que você possa me recomendar, algo que eu possa fazer para questionar as recomendações de Foletta?

—        Quer questionar a avaliação do seu supervisor? Baseada em quê?

Lá vamos nós...

—        Baseada na minha convicção pessoal de que... bem, de que as alegações do paciente merecem ser investigadas.

A dra. Owen encara Dominique com seu famigerado "olhar perplexo", um olhar que já destruiu as esperanças de formatura de muitos alunos.

—        Mocinha, está me dizendo que o sr. Gabriel realmente te convenceu de que o mundo vai acabar?

Meu Deus, estou ferrada...

—        Não, senhora, mas ele parecia saber sobre o sinal de rádio vindo do espaço e...

—        Não, na verdade, de acordo com a fita, ele não fazia idéia do que ia acontecer, só de que algo ia acontecer no equinócio.

O olhar silencioso volta, fazendo gotas de suor aparecerem nas axilas de Dominique.

—        Dra. Owen, minha única preocupação é garantir que meu paciente esteja recebendo os melhores cuidados possíveis. Ao mesmo tempo, também me preocupa que... bom, que ele talvez não tenha sido avaliado com justiça.

—        Entendo. Então me deixe recapitular. Depois de trabalhar com seu primeiro paciente por quase um mês... — Owen verifica suas anotações. — Não, espere, engano meu, na verdade faz mais de um mês. Cinco semanas, pra ser exata. — A dra. Owen anda até a porta da sala e a fecha com autoridade. — Cinco semanas inteiras de trabalho, e você não só questiona os últimos 11 anos do tratamento do paciente, mas está disposta a desafiar o diretor do Centro, esperando devolver o sr. Gabriel à sociedade.

—        Sei que sou só uma residente, mas, se vejo algo que não está certo, não tenho a obrigação moral e profissional de denunciar?

—        Certo. Então, baseada em sua infinita experiência na área, você acha que o dr. Anthony Foletta, um psiquiatra clínico respeitado, é incapaz de avaliar adequadamente o seu paciente. É isso?

Não responda. Morda a língua.

—        Não fique aí mordendo a língua. Responda.

—        Sim, senhora.

Owen se senta na beirada de sua mesa, posicionando-se propositalmente acima de sua aluna.

—        Me deixe dizer o que eu acho, mocinha. Eu acho que você perdeu a sua objetividade. Acho que cometeu o erro de se envolver emocionalmente com o paciente.

—        Não, senhora, eu...

—        Ele é esperto, não resta dúvida. Ao contar pra sua nova e jovem psiquiatra, uma mulher, que foi molestado sexualmente na prisão, ele esperava atingir um ponto fraco, e atingiu. Acorde, Dominique. Não percebe o que está acontecendo? Você está se identificando emocionalmente com o seu paciente por causa do seu próprio trauma de infância. Mas o sr. Gabriel não foi sodomizado por um primo durante três anos, foi? Ele não foi espancado quase até a morte...

Cala a boca, cala a porra da boca...

—        Muitas mulheres que passaram por experiências como a sua costumam lidar com os sintomas pós-traumáticos aderindo a movimentos feministas ou aprendendo defesa pessoal, como você fez. Escolher a psiquiatria clínica como profissão foi um erro se você planeja usá-la como sua terapia alternativa. Como pode esperar ajudar seus pacientes se você se deixa envolver emocionalmente?

—        Sei o que está dizendo, mas...

—        Mas nada. — Owen balança a cabeça. — Na minha opinião, você já perdeu a objetividade. Pelo amor de Deus, Dominique, esse maluco te convenceu de que todas as pessoas do mundo vão morrer daqui a dez semanas.

Dominique enxuga as lágrimas dos olhos e sufoca uma risada. É verdade. Mick mexeu tanto com ela emocionalmente que ela não estava mais apenas ouvindo o que ele dizia como parte da terapia. Estava se deixando cooptar pelas ilusões apocalípticas do paciente.

—        Estou me sentindo envergonhada.

—        É pra ficar envergonhada mesmo. Ao sentir pena do sr. Gabriel, você estragou a dinâmica do relacionamento médico-paciente. Isso me obriga a falar com o dr. Foletta e intervir em nome do sr. Gabriel.

Cacete.

—        O que a senhora vai fazer?

—        Vou solicitar que o Foletta transfira você para outro interno. Imediatamente.

 

                     Miami, Flórida

Mick Gabriel está andando no jardim há seis horas.

Andando no piloto automático, ele desvia dos mentalmente incapazes e criminalmente loucos enquanto sua mente se concentra em reorganizar as peças do quebra-cabeça da profecia que flutuam em seu cérebro.

O sinal de rádio e a descida da serpente emplumada. A fenda escura e Xi-balba. Não cometa o erro de amontoar tudo junto. Separe causas e ações, morte e salvação, bem e mal. Duas facções estão agindo aqui, duas entidades diferentes envolvidas na profecia maia. O bem e o mal, o mal e o bem. O que é bom? Avisos são bons. O calendário maia é um aviso, como também são os desenhos de Nazca e a sombra equinocial da serpente na pirâmide de Kukulcán. Cada um desses avisos deixado por um sábio caucasiano barbado, e todos anunciando a chegada do mal. Mas o mal já está aqui, já estava aqui. Já o senti antes, mas nunca assim. Será que essa transmissão do espaço o ativou? Reforçou-o de alguma forma? Nesse caso, onde ele está?

Ele pára, deixando o sol do fim de tarde aquecer seu rosto.

Xibalba — o Mundo Inferior. Posso sentir a Estrada Negra que leva ao Mundo Inferior ficando mais forte. O Popol Vuh alega que os Senhores do Mundo Inferior influenciaram o mal na Terra. Como isso é possível... a menos que a presença malévola na Terra tenha estado sempre aqui?

Mick abre os olhos.

E se ela não esteve sempre aqui? E se chegou há muito tempo, antes da evolução do homem? E se estava dormente, esperando que essa transmissão a acordasse?

O alarme das cinco no alto-falante, anunciando o jantar, desperta uma lembrança distante. Mick se imagina de volta ao deserto de Nazca, vasculhando o platô com seu detector de metais. O alarme elétrico do detector o fez cavar na areia macia e amarela, com seu pai, adoentado, ao seu lado.

Em sua mente, ele desenterra o recipiente de irídio, retirando dele o antigo mapa. Concentrando-se no círculo vermelho... Demarcando o misterioso local no Golfo do México.

O Golfo do México... o recipiente — feito de irídio! Seus olhos se arregalam, incrédulos.

—        Puta merda, Gabriel, como você pôde ser tão cego!

Mick sobe correndo os dois lances da escada de concreto até o mezanino e anexo de terapia do terceiro andar. Ele empurra vários internos e entra na sala de computadores.

Uma mulher de meia-idade o recebe.

—        Olá. Meu nome é Dorothy, sou a...

—        Preciso usar um dos computadores!

Ela vai até o seu laptop.

—        Qual o seu nome?

—        Gabriel. Michael Gabriel. Procure por Foletta.

Mick vê um terminal ligado. Sem esperar, se senta, e então nota que o sistema de comando de voz não está funcionando. Usando o mouse, ele ativa a conexão com a Internet.

—        Um momento, sr. Gabriel. Temos regras aqui. Não pode simplesmente ir usando o computador. Precisa obter permissão do seu...

 

Acesso Negado. Por Favor. Digite a Senha.

 

—        Preciso da senha, Dorothy. Só vai levar um minuto. Pode me dar sua senha, por favor?

—        Não, sr. Gabriel, nada de senha. Há três internos na sua frente, e vou precisar falar com o seu terapeuta. Depois posso...

Mick olha para o crachá da mulher: DOROTHY HIGGINS, No G45927. Ele começa a digitar senhas.

—... marcar um horário pro senhor. Está me ouvindo, sr. Gabriel? O que está fazendo? Ei, pare com...

Uma dúzia de senhas não dão resultado. Ele olha novamente para o crachá.

—        Dorothy. Que nome bonito. Seus pais gostam de O Mágico de Oz, Dorothy?

Sua expressão de assombro a denuncia. Mick digita OZG45927.

 

Senha Inválida.

 

—        Pare com essa bobagem agora mesmo, sr. Gabriel, ou vou chamar a segurança.

—        A Bruxa Má, o Homem de Lata, o Espantalho... Vamos perguntar ao Mágico. — Ele digita MAG45927.

 

Conectando à Internet...

 

—        Já chega. Vou chamar a segurança!

Mick a ignora enquanto busca na Web, digitando CRATERA DE CHICXULUB enquanto se lembra das palavras que disse a Dominique. O maior evento da História vai acontecer em 21 de dezembro, quando a humanidade vai ao encontro da destruição. Não é exatamente verdade, ele percebe agora. O maior evento da História, pelo menos até agora, aconteceu há 65 milhões de anos, e o local foi o Golfo do México.

O primeiro arquivo aparece na tela. Sem se dar ao trabalho de ler, ele aperta IMPRIMIR TUDO.

Ele ouve a segurança se aproximando no corredor ao lado. Vamos, vamos...

Mick arranca as três páginas impressas e as enfia no bolso da calça enquanto vários vigias entram na sala de computadores.

—        Pedi três vezes que ele se retirasse. Ele conseguiu até roubar minha senha.

—        A gente cuida disso, madame. — O ruivo musculoso acena para seus dois homens, que agarram Mick pelos braços.

Mick não oferece resistência e o ruivo se adianta, seu rosto bem próximo ao dele.

—        Interno, pediram que você saísse desta sala. Algum problema com isso?

Mick vê com o canto do olho o dr. Foletta entrar na sala. Ele olha para o crachá do vigia e abre um sorriso para o ruivo.

—        Sabe, Raymond, não adianta ficar se matando na academia, você nunca vai pegar mulher com esse bafo de alho...

Foletta se aproxima.

—        Raymond, não...

O soco atinge em cheio o plexo solar de Mick, expulsando o ar de seus pulmões. Ele cai para a frente, dobrado pela dor, seu corpo ainda sustentado pelos dois vigias.

—        Caramba, Raymond, mandei esperar!

—        Desculpe, achei que o senhor...

Mick recobra o equilíbrio e num só movimento curva as costas, levanta os joelhos até o peito antes de estender as pernas para a frente e enfia os calcanhares de seus tênis com toda a força no rosto do ruivo, esmaga o nariz e o lábio superior do homem, fazendo o sangue espirrar longe.

Raymond desaba no chão de uma vez.

Foletta se inclina sobre o vigia aturdido, olhando para o rosto dele.

—        Isso foi desnecessário, Mick.

—        Olho por olho, doutor.

Mais dois enfermeiros entram, empunhando Tasers. Foletta balança a cabeça.

—        Acompanhem o sr. Gabriel para o seu quarto, depois mandem um médico cuidar deste idiota.

 

Já é tarde quando Dominique pára seu Pronto Spyder preto no estacionamento do Centro. Ela entra no saguão e passa o crachá magnético no primeiro bloqueio de segurança.

—        Não vai funcionar, gatinha. A voz é fraca e um tanto abafada.

—        Raymond, é você? — Dominique mal consegue ver o ruivo grandalhão pelo portão da segurança.

—        Use a varredura facial.

Ela digita o código, pressiona o rosto contra a moldura de borracha e o raio infravermelho percorre seu rosto. O portão se abre.

Raymond está jogado em sua cadeira. Uma bandagem pesada envolve o seu rosto, cobrindo o nariz. Seus dois olhos estão pretos.

—        Meu Deus, Ray, o que aconteceu com você?

—        A porra do teu paciente surtou na sala de computadores e me deu um pontapé na cara. O filho da puta quebrou o meu nariz e amoleceu dois dentes.

—        O Mick fez isso? Por quê?

—        Como é que eu vou saber? O cara é um psicopata, cacete. Olha pra mim, Dominique. E agora, como vou competir no concurso de Mr. Flórida deste jeito? Juro por Deus que pego aquele filho da puta, nem que seja a última coisa que eu...

—        Não, senhor. Não vai fazer nada com ele. E se algo acontecer, não vou pensar duas vezes antes de te entregar à polícia.

Raymond se inclina para a frente, ameaçador.

—        É assim que vai ser entre a gente? Primeiro você me despreza, depois manda me prender?

—        Ei, não desprezei você. Eu estava em reunião com o Foletta. Você é que foi transferido pro turno da noite. Quanto ao Michael Gabriel, ele é meu paciente, e não vou permitir...

—        Não é mais. O Foletta recebeu um telefonema da tua orientadora hoje à tarde. Parece que o teu rol de pacientes aqui vai mudar.

Cacete, Owen, precisa ser sempre tão eficiente?

—        O Foletta ainda está aqui?

—        A esta hora? Você está brincando.

—        Ray, escute, sei que você está bravo com o Mick, mas... quero fazer um acordo com você. Fique longe dele e... e eu te ajudo a se preparar pro concurso de fisiculturismo. Vou até aplicar maquiagem nesses seus olhos de guaxinim pra não assustar os juízes.

Raymond cruza os braços sobre o peito inchado.

—        Não basta. Você ainda me deve um encontro. — Ele abre um sorriso mostrando os dentes amarelos. — E não vai ser só um jantarzinho italiano. Quero me divertir, sabe, dançar um pouco, namorar um pouco...

—        Um encontro, só isso, e não quero saber de namorar.

— Me dá uma chance, gatinha. Eu acabo envolvendo as pessoas.

Como micose de pele.

—        Um encontro, e você fica longe do Gabriel.

—        Combinado.

Ela passa pelo bloqueio de segurança e entra no elevador.

Raymond a admira indo embora, seus olhos cheios de desejo focados no contorno dos glúteos dela.

Só um vigia está de serviço no sétimo andar, e sua atenção está concentrada no campeonato da Liga Nacional.

—        Olá, Marvis. Quem está ganhando?

Marvis Jones desvia o olhar da TV.

—        O Cubs está com dois de vantagem no final do oitavo inning. O que faz aqui tão tarde?

—        Vim ver meu paciente.

Marvis parece preocupado.

—        Não sei, Dom. É meio tarde... — O barulho da multidão o obriga a olhar para a tela. — Que bosta, o Phillies acaba de empatar.

—        Vamos, Marvis.

Marvis olha para o relógio.

—        Já sei. Vou fechar você na cela dele por 15 minutos, mas você sai quando a enfermeira entrar pra dar a medicação.

—        Combinado.

O vigia a acompanha até o quarto 714 e lhe entrega a caneta transmissora que aciona o seu bipe.

—        É melhor você levar. Ele estava violento hoje.

—        Não, eu vou ficar bem.

—        Leve a caneta, Dominique, senão não entra.

Ela sabe que não adianta discutir com Marvis, que é tão meticuloso quanto gentil, e enfia o dispositivo no bolso. Marvis ativa o interfone.

—        Interno, você tem visita. Vou deixá-la entrar assim que vir você vestido e sentado na cama. — Marvis olha pela janelinha. — Ele está pronto. Pode entrar. — Marvis abre a porta e a tranca atrás de Dominique.

As luzes no quarto estão fracas. Ela vê uma silhueta escura sentada na cama.

—        Mick, sou eu, Dom. Você está bem?

Mick está apoiado na parede. Dominique vê o rosto dele ao se aproximar, a face esquerda com um feio hematoma e o olho fechado de tão inchado. O coração dela dispara.

—        Meu Deus, o que fizeram com você? — Ela pega uma toalha de rosto, molha na água fria e a aperta contra o rosto dele.

—        Ai.

—        Desculpe. Ponha isto no seu olho. O que aconteceu?

—        De acordo com o relatório oficial, escorreguei no chuveiro. — Ele olha para ela, seu meio sorriso causando dor. — Senti sua falta. Como foram as coisas na universidade?

—        Nada boas. Minha orientadora não acha que estou lidando com as minhas responsabilidades de maneira profissional.

—        Ela acha que eu te perturbo emocionalmente. É isso?

—        Sim. A partir de amanhã vou trabalhar com outro interno. Sinto muito, Mick.

Ele aperta a mão dela e a coloca sobre seu coração.

—        Se faz alguma diferença — ele sussurra —, você foi a única pessoa que conseguiu mexer comigo.

Ela engole o nó na garganta. Não desmorone de novo,

—        O que aconteceu hoje? Vi o que você fez com o Raymond.

—        Ele atacou primeiro.

—        Ouvi dizer que você não queria sair da sala de computadores.

—        Eu precisava entrar na Internet. — Ele solta a mão dela e tira várias folhas impressas amassadas do bolso. — Hoje descobri uma peça importante do quebra-cabeça da profecia. É tão inacreditável que eu precisava verificar os fatos antes de aceitá-la.

Ela pega as páginas da mão dele e começa a ler.

 

                             A CRATERA DE CHICXULUB

Em 1980, o físico ganhador do Nobel Luis Alvarez propôs que um impacto extraterrestre acontecido 65 milhões de anos atrás foi a causa da extinção em massa que acabou por encerrar o reinado dos dinossauros, mudando para sempre o rumo evolucionário da vida na Terra. Essa ousada teoria resultava da descoberta de Alvarez de uma camada de argila sedimentar de um centímetro de espessura depositada sobre toda a superfície do planeta na época do impacto do asteróide, entre os períodos geológicos cretáceo (K) e terciário (T). Verificou-se que essa camada de argila K/T contém altas concentrações de irídio, um metal extremamente raro que, acredita-se, existe no centro da Terra. O irídio é o único metal capaz de sobreviver a temperaturas acima dos 2.200 graus centígrados, e é praticamente invulnerável à corrosão, mesmo aos ácidos mais fortes. O fato de altas concentrações de irídio terem sido encontradas em meteoritos levou Alvarez a propor sua teoria de que o sedimento K/T era formado pelos resíduos de uma nuvem de poeira criada pelo impacto de um grande asteróide (11 quilômetros de diâmetro) que atingiu a Terra 65 milhões de anos atrás. Tudo que Alvarez precisava para provar sua teoria era encontrar o local do impacto.

Em 1978, um piloto de helicóptero e geofísico chamado Glenn Pennfield estava sobrevoando o Golfo do México, fazendo um rastreamento aéreo para medir tênues variações no campo magnético terrestre que poderiam indicar a presença de petróleo. Ao sobrevoar uma área do mar a noroeste da península de Yucatán, Pennfield detectou um anel simétrico de material altamente magnético, com 160 quilômetros de diâmetro, um quilômetro e meio sob o leito do oceano. A análise desse imenso anel magnético veio a confirmar, mais tarde, que a área, cobrindo tanto mar quanto terra firme, era uma cratera — o local do impacto de um asteróide gigante.

Batizada com o nome da cidade do Yucatán, localizada entre Progreso e Mérida, a cratera de Chicxulub é a maior bacia de impacto que se formou no nosso planeta no último bilhão de anos. O centro aproximado da área fica debaixo d'água, a 21,4 graus de latitude norte por 89,6 graus de longitude oeste, enterrado sob 300 a 900 metros de calcário.

A cratera é imensa, com diâmetro entre 175 e 290 quilômetros, estendendo-se pela costa noroeste da península de Yucatán e o Golfo do México. Ao redor da porção terrestre da cratera, há um anel de poços naturais. Acredita-se que essas fontes de água doce, chamadas de cenotes pelos mexicanos, tenham se formado na geografia do Yucatán como resultado das enormes fraturas que a bacia de calcário sofreu durante o impacto do asteróide.

Há 65 milhões de anos, o território da América Central ainda estava debaixo d'água.

 

Dominique ergue os olhos, levemente irritada.

—        Não entendo. Onde está a grande pista?

—        No mapa de Piri Reis, aquele que achei no platô de Nazca. Eu o encontrei selado num recipiente de irídio. O mapa indicava o local da cratera de Chicxulub. Chichén Itzá fica bem no perímetro do círculo do impacto. Quando você traça uma linha da pirâmide de Kukulcán até o centro da cratera, o ângulo mede 23,5 graus, exatamente o ângulo do eixo de rotação da Terra, a inclinação que nos dá as estações do ano.

Pronto, lá vamos nós de novo.

—        Tá, e o que isso tudo significa?

—        O que isso significa? — Mick faz uma careta de dor ao se levantar. — Significa que a pirâmide de Kukulcán foi intencional e cuidadosamente posicionada na península de Yucatán, em relação com a cratera de Chicxulub. Não pode ser outra coisa, Dominique. Não existe nenhuma outra estrutura antiga perto do local do impacto, e o ângulo é exato demais pra ser acidental.

—        Mas como os antigos maias saberiam do impacto de um asteróide há 65 milhões de anos? Olhe o tempo que o homem moderno levou pra descobri-lo.

—        Não sei. Talvez tivessem a mesma tecnologia que o autor do mapa de Piri Reis usou pra desenhar a topografia da Antártida, mesmo ela estando toda encoberta por gelo.

—        Então qual é a sua teoria: a humanidade vai ser destruída por um asteróide em 21 de dezembro?

Mick se ajoelha aos pés dela, com agonia em seu rosto inchado.

—        A ameaça à humanidade não é um asteróide. A probabilidade de outro asteróide passar pelo mesmo local é astronômica demais pra ser levada em conta. Além disso, a profecia maia aponta pra fenda escura, não pra um projétil celeste.

Ele apóia a cabeça dolorida sobre o joelho dela. Dominique alisa sua longa cabeleira castanha, suja de suor e oleosa.

—        Talvez seja melhor você descansar um pouco.

—        Não consigo, minha mente não deixa. — Ele fica de pé, apertando a compressa sobre o olho inchado. — Algo sempre me incomodou na localização da pirâmide de Kukulcán. Diferente de suas similares no Egito, no Camboja e em Teotihuacán, a estrutura sempre pareceu fora de lugar. Como um belo polegar, geograficamente situado sem razão, enquanto os outros dedos ficam a intervalos regulares sobre a face da Terra. Agora acho que entendi.

—        Entendeu o quê?

—        O bem e o mal, Dominique, o bem e o mal. Em algum lugar dentro da pirâmide de Kukulcán está o bem, a chave pra nossa salvação. Em algum lugar da cratera de Chicxulub está uma força maligna que se torna cada vez mais forte com a aproximação do solstício.

—        Como sabe...? Não, esqueci, desculpe. Você sente.

—        Dom, preciso da sua ajuda. Você tem que me tirar daqui.

—        Eu tentei...

—        Esqueça das apelações, não há tempo. Preciso sair agora!

Ele está perdendo o controle.

Mick a segura pelo pulso.

—        Me ajude a fugir. Preciso chegar a Chichén Itzá...

—        Me solta! — Ela pega a caneta com a outra mão.

—        Não... espere, não chame o vigia...

—        Então se afaste, assim você me assusta.

—        Desculpe. Desculpe. — Ele a solta. — Só me escuta, está bem? Não sei como a humanidade vai sucumbir, mas acho que sei qual a finalidade daquela transmissão do espaço.

—        Continue.

—        O sinal era um despertador, viajando pela Estrada Negra, um corredor celestial que está se alinhando com o que quer que esteja soterrado no Golfo.

Foletta tinha razão. As ilusões dele estão piorando.

—        Mick, calma. Não tem nada ali...

—        Você está errada! Eu consigo sentir, como consigo sentir a Estrada Negra pra Xibalba se abrindo. O caminho está ficando mais pronunciado...

Ele está delirando...

—        Sinto que se espalha. Não sei como, mas consigo sentir, eu juro! E tem outra coisa...

Ela vê lágrimas de frustração brotando nos olhos dele, ou será realmente medo?

—        Sinto uma presença na outra ponta da Estrada Negra. E ela consegue me sentir!

A enfermeira entra, seguida por três enfermeiros corpulentos.

—        Boa noite, sr. Gabriel. É hora do seu remédio.

Mick vê a seringa.

-— Isso não é Zyprexa!

Dois enfermeiros agarram seus braços, e o terceiro lhe segura as pernas. Dominique assiste a tudo, impotente, enquanto ele luta.

—        Enfermeira, o que está acontecendo?

—        O sr. Gabriel deve receber três injeções de Thorazine por dia.

—        Três?

—        O Foletta quer me transformar num vegetal! Dom, não deixe... — Mick se agita com violência sobre a cama, os enfermeiros se esforçando para controlado. — Não deixe que façam isso. Dominique, por favor...

—        Enfermeira, sou a psiquiatra do sr. Gabriel e...

—        Não é mais. O dr. Foletta assumiu o seu lugar. Amanhã você pode conversar com ele sobre isso. — A enfermeira passa álcool no braço de Mick. — Imobilizem o paciente.

—        Estamos tentando. Dê logo a injeção...

Mick levanta a cabeça, as veias saltando do seu pescoço.

—        Dom, você precisa fazer alguma coisa! A cratera de Chicxulub... o relógio está andando... o relógio...

Dominique vê os olhos negros rodando nas órbitas, sua cabeça caindo sobre o travesseiro.

—        Pronto, assim está melhor — diz a enfermeira suavemente, retirando a seringa. — Pode ir, residente Vazquez. O sr. Gabriel não precisa mais dos seus serviços.

 

                    21 DE OUTUBRO DE 2012, PENTÁGONO

ARLINGTON, VIRGÍNIA

Pierre Borgia entra na sala de reuniões e toma o seu lugar à mesa oval de conferências entre o secretário de Defesa, Dick Przystas, e o chefe de gabinete do Exército, general James Adams. Sentados do outro lado da mesa estão o diretor da CIA, Patrick Hurley, o chefe de gabinete da Aeronáutica, general Arne Cohen, e o chefe de operações navais, Jeffrey Gordon. Este último, um homenzarrão de 1,98 metro, cumprimenta Borgia com um rápido aceno de cabeça.

O general "Big Mike" Costolo, comandante dos fuzileiros navais, entra depois de Borgia e se senta à direita de Gordon.

À cabeceira da mesa está o general Joseph Fecondo. O comandante do Estado-Maior das Forças Armadas e veterano das guerras do Vietnã e do Golfo passa a mão bem cuidada por sua careca incipiente e bronzeada e olha para Borgia e Costolo com ar aborrecido.

—        Bem, agora que estamos todos aqui, acho que finalmente podemos começar. Diretor Hurley?

Patrick Hurley assume seu lugar na tribuna. Magro e em forma, o ex-armador da seleção de Notre Dame, de 52 anos, parece ainda jogar basquete profissional.

Hurley aperta um botão na tribuna. As luzes diminuem e uma foto aérea em preto e branco aparece na grande tela à direita do diretor da CIA.

Borgia reconhece a qualidade da imagem. A foto digitalizada é da câmera térmica de alta resolução C-8236, montada no avião ultrassecreto Darkstar, da Aeronáutica. O Veículo Aéreo Não Tripulado (VANT), camuflado, é uma aeronave fina, em forma de concha e com enormes asas. O Darkstar opera em altitudes de 20 mil metros e pode transmitir imagens detalhadas em qualquer condição climática, de dia ou à noite.

Um quadrado computadorizado aparece em vermelho. Hurley o posiciona, depois amplia a imagem dentro dele. Detalhes de uma pequena escola com playground ficam visíveis. Ao lado da escola, um estacionamento de concreto bem cercado.

O diretor da CIA pigarreia.

—        As fotografias que vocês vão ver foram tiradas sobre uma área a nordeste de Pyongyang, na costa oeste da Coréia do Norte. Aparentemente, o local é apenas uma escola elementar. Mas 1,3 quilômetros abaixo deste estacionamento fica a instalação subterrânea de armas nucleares de Kim Jong II, a mesma instalação que os norte-coreanos usaram quando começaram a testar mísseis de médio alcance de dois estágios em 1998. Suspeitamos que o local também possa abrigar o novo míssil Taepo Dong-2, um ICBM com alcance de 3.540 quilômetros, capaz de carregar ogivas nucleares múltiplas.

Hurley clica na foto seguinte.

—        O Darkstar está monitorando a instalação há duas semanas. As fotografias que vou mostrar foram tiradas ontem à noite, entre 23 horas e uma da manhã, horário de Seul.

Hurley amplia a imagem para revelar dois homens saindo de um Mercedes-Benz preto.

—        O cavalheiro da direita é o presidente iraniano, Ali Shamkhani. O da esquerda é o novo líder do Partido Comunista chinês e ex-comandante militar, general Li Xiliang. Como Pierre pode atestar, o general é um comunista linha-dura.

Hurley clica em várias outras fotos, parando na de um homem vestindo um longo casaco de couro preto, que olha para o céu como se soubesse que alguém o está fotografando.

—        Meu Deus — murmura Borgia —, é Viktor Grozny.

—        Parece até que está olhando pra nossa câmera — acrescenta o general Cohen.

—        A lista de chamada ainda não está completa. — O diretor da CIA muda a imagem. — E o anfitrião da noite...

O coração de Borgia bate mais forte.

—        Kim Jong II.

Hurley reacende as luzes e volta para o seu lugar à mesa.

—        A reunião de cúpula com Viktor Grozny pela não proliferação de armas nucleares aconteceu semanas atrás. Então por que os líderes de quatro países que representam 38% das armas nucleares do planeta se reuniriam em segredo naquele lugar específico?

O secretário de Defesa, Dick Przystas, se recosta na cadeira e alisa seu topete de cabelo branco.

—        Almirante Gordon, pode divulgar a informação sobre a qual conversamos antes?

O magro almirante aperta uma tecla em seu laptop.

—        Nossa vigilância por satélite mais recente indica que os iranianos reforçaram sua presença militar na costa norte do Golfo Pérsico. Além de reposicionar seus canhões Howitzers e suas plataformas de mísseis terra-ar móveis, o Irã adquiriu recentemente da China mais 46 barcos de patrulha da classe Hudong. Cada um desses barcos é equipado com mísseis de cruzeiro antinavio C-802. Os iranianos também estão duplicando seus silos de mísseis chineses Bicho da Seda no litoral e, apesar dos protestos da ONU, continuaram a fortalecer suas baterias de mísseis terra-ar e terra-terra em Qeshm, Abu Musa, e nas ilhas Sirri. Essencialmente, o Irã está se preparando para efetuar um bloqueio na parte reduzida de Hormuz, que tem apenas 50 quilômetros de largura.

—        Os iranianos alegam que a escalada militar é uma preparação para as manobras militares de Grozny em dezembro — diz o secretário de Defesa Przystas. — Naturalmente, se eclodissem hostilidades no Oriente Médio, o bloqueio iraniano impediria que nossa frota chegasse ao Golfo Pérsico.

—        Sem querer aumentar a paranóia geral, mas e as bombas nucleares? — O general Costolo se afasta da mesa. — Os israelenses dizem que Grozny vendeu mísseis Sickle com ogivas nucleares aos iranianos quando ajudou a negociar o Acordo de Paz no Oriente Médio de 2007.

O almirante Gordon vira-se para Costolo.

—        O Irã tem a força e a posição geográfica para estabelecer um novo domínio no Oriente Médio. Se uma guerra começasse, a Rússia teria condições de consolidar o Oriente Médio como uma hegemonia.

—        Grozny parece mesmo estar se preparando para uma guerra nuclear — declara Borgia.

—        Pierre, a Rússia está se preparando para a guerra nuclear há sessenta anos — interrompe o general Fecondo. — Não podemos esquecer que foi nossa própria antecipação, ao construir o Escudo Antimíssil, que aumentou a paranóia deles.

—        Pode haver mais uma variável oculta a se considerar, general — diz o diretor da CIA. — A Agência de Segurança Nacional interceptou uma comunicação entre o premier russo, Makashov, e o ministro chinês da Defesa. A conversa falava de algum novo tipo de arma de alta tecnologia.

—        Que tipo de arma? — pergunta Przystas.

—        Eles mencionaram fusão, nada mais.

 

                         Ilha de Sanibel, Costa Oeste da Flórida

Dominique diminui a velocidade do Pronto Spyder conversível preto, conservando o carro esporte abaixo dos 80 km/h ao passar pela cabine de pedágio da ilha de Sanibel. Sensores eletrônicos gravam a placa e o número de identificação do veículo de seu carro e a informação é passada instantaneamente para o Departamento de Trânsito, que soma o valor do pedágio à sua conta mensal. Ela mantém o carro abaixo de 80 km/h por mais um quilômetro e meio, sabendo que ainda está ao alcance do radar automático do sistema.

Dominique dirige o Spyder sobre a ponte para a ilha de Sanibel e Captiva, uma área residencial e de lazer aninhada numa pequena ilha na costa do Golfo da Flórida. Ela ruma para o norte por uma estrada bastante arborizada de uma pista, depois segue para o oeste, passando por vários hotéis grandes antes de entrar numa área residencial.

Edith e Isadore Axler moram numa casa de praia cúbica de dois andares, situada num terreno de esquina de um quinto de hectare com vista para o Golfo do México. À primeira vista, as pranchas de sequóia do exterior que envolvem a casa lhe dão o aspecto de uma enorme lanterna de festa, especialmente à noite. Essa camada exterior protege a estrutura dos furacões, criando, efetivamente, uma casa dentro da casa.

A ala sul da residência dos Axler foi reformada para abrigar um sofisticado laboratório acústico, um dos únicos três na costa do Golfo interligados com o SOSUS, o Sistema de Vigilância Sonora Submarina da Marinha dos Estados Unidos. A rede de microfones submersos de 16 bilhões de dólares, construída pelo governo federal durante a guerra fria para espionar submarinos inimigos, é uma teia global conectada às estações terrestres da Marinha por uns 45 mil quilômetros de cabos submarinos.

Quando a importância militar do SOSUS começou a diminuir, no inicio da década de 1990, cientistas, universitários e empresas privadas pediram à Marinha e receberam acesso à rede acústica. Para os oceanógrafos, o SOSUS se tornou o Telescópio Hubble da exploração submarina. Os cientistas podiam agora ouvir as vibrações de freqüência super baixa produzidas por blocos de gelo se partindo, leitos tremendo e vulcões submarinos entrando em erupção, sons que normalmente ficam bem abaixo do espectro da audição humana.

Para biólogos marinhos como Isadore Axler, o SOSUS proporcionou uma nova maneira de estudar as formas de vida mais inteligentes do oceano: os cetáceos. Com o apoio da Fundação Nacional para a Pesca e Vida Selvagem, o lar dos Axler se tornou uma estação acústica SOSUS, voltada especificamente para os habitantes cetáceos do Golfo do México. Usando o SOSUS, os Axler podiam agora gravar e analisar vozes de baleias, identificar espécies, contar populações, até rastrear espécimes individuais por todo o Hemisfério Norte.

Dominique vira à esquerda numa rua sem saída, depois à direita na última casa, reconfortada pelo som familiar do cascalho sendo esmagado pelo peso do carro.

Edith Axler a cumprimenta enquanto a capota do conversível se fecha. Edie é uma mulher de ar astuto e cabelo grisalho, de 70 e poucos anos, com olhos castanhos que transpiram a sabedoria de uma professora e um sorriso meigo que transmite amor de mãe.

—        Olá, querida. Como foi a viagem?

—        Tudo bem. — Dominique abraça apertado sua mãe adotiva.

—        Algum problema? — Edith recua, notando as lágrimas. — O que foi?

—        Nada. Só estou feliz por estar em casa.

—        Não me trate feito uma velha caduca. É aquele seu paciente, não é? Qual o nome dele, Mick?

Dominique balança a cabeça.

—        Meu ex-paciente.

—        Venha, vamos conversar um pouco antes que o Iz apareça. — Edith a leva pela mão para o canal de acesso ao Golfo localizado no lado sul da propriedade. Dois barcos estão atracados na doca de concreto, sendo que o menor é um pesqueiro de 35 pés pertencente aos Axler.

Elas se sentam, de mãos dadas, num banco de madeira de frente para a água.

Dominique olha para um pelicano cinza e branco que alisa as penas sobre um dos mourões de madeira.

—        Lembro que quando eu era criança, sempre que eu tinha um dia ruim, você me trazia pra sentar aqui.

Edie faz que sim.

—        Este sempre foi o meu lugar favorito.

—        Você dizia: "As coisas não podem estar tão ruins se ainda podemos apreciar uma vista tão linda." — Ela aponta para a traineira rústica de 48 pés atracada atrás do pesqueiro dos Axler. — De quem é aquele barco?

—        Pertence ao Clube dos Caçadores de Tesouros de Sanibel. Você deve se lembrar do Rex e da Dory Simpson. O Iz aluga a vaga pra eles. Está vendo aquela lona? Tem um minissubmarino de dois lugares preso ao convés debaixo dela. Amanhã o Iz pode te levar pra dar uma volta, se quiser.

—        De minissubmarino? Vai ser divertido.

Edie aperta a mão da filha.

—        Me fale do Mick. Por que você está tão chateada? Dominique enxuga uma lágrima.

—        Desde que aquele gordo de merda do Foletta me trocou de paciente, ele vem mantendo o Mick sob doses maciças de Thorazine. Meu Deus, Edie, é muita crueldade, não consigo... não agüento nem olhar pra ele mais. Está tão drogado. Fica só sentado, amarrado numa cadeira de rodas, como um vegetal babão. Todas as tardes o Foletta o empurra pro jardim e o deixa lá, parado na área de artesanato, como se fosse um paciente geriátrico irrecuperável.

—        Dom, sei que você se preocupa muito com o Mick, mas precisa se lembrar que você é uma só. Não pode achar que vai salvar o mundo.

—        O quê? O que você disse?

—        Só quis dizer que, como psiquiatra, não pode achar que pode ajudar todo interno com o qual tem contato. Você trabalhou com o Mick por um mês. Gostando ou não, ele não é mais responsabilidade sua. Você precisa saber quando deve se afastar.

—        Você sabe que não sou assim. Não consigo simplesmente me afastar quando alguém está sofrendo abusos.

Edie aperta a mão da filha de novo. Elas ficam em silêncio, observando o pelicano bater as asas para manter o equilíbrio precário sobre o mourão.

Quando alguém está sofrendo abusos. Ao ouvir essas palavras, Edie se lembra da primeira vez que viu a garotinha assustada da Guatemala. Ela trabalhava meio período como enfermeira escolar e orientadora pedagógica. A menina de 10 anos havia sido trazida para ela, queixando-se de cãibras no estômago. Edith segurou a mão da garotinha até que a dor diminuiu. Esse gesto singelo de amor maternal ligaria Dominique para sempre à mulher, cujo coração se partiu quando soube do abuso sexual praticado pelos primos mais velhos da criança. Edie deu queixa e providenciou um lar temporário. Ela e Iz adotaram Dominique seis meses depois.

—        Tudo bem, querida, me diga o que podemos fazer pra ajudar o Mick.

—        Só há uma solução. Precisamos tirá-lo dali.

—        Por "tirar", presumo que queira dizer levar pra outro hospital.

—        Não, quero dizer tirar mesmo, pra sempre.

—        Uma fuga?

—        Bem, sim. O Mick pode estar um pouco confuso, mas não é louco. O lugar dele não é num hospício.

—        Tem certeza? Porque nem você me parece muito convencida. Você não me disse que o Mick está certo de que o mundo vai acabar?

—        Não o mundo, a humanidade, e sim, ele acredita nisso. Está só um pouco paranóico, mas quem não estaria, depois de passar 11 anos na solitária?

Edie vê Dominique se remexer.

—        Tem alguma coisa que você não está me contando. Dominique se vira para ela.

—        Você vai achar loucura, mas parece que muitas das ilusões do Mick têm um fundo de verdade. A teoria do fim do mundo dele se baseia numa profecia maia de 3 mil anos atrás. Estou lendo o diário do pai dele, e alguns dos achados são inacreditáveis. O Mick praticamente previu a chegada daquele sinal de rádio vindo do espaço no equinócio de outono. Edie, quando eu morava na Guatemala, minha avó costumava me contar histórias sobre meus ancestrais maternos. As coisas que ela dizia eram bastante assustadoras.

Edie sorri.

—        Você está começando a me dar medo.

—        Eu sei que são só bobagens supersticiosas, mas sinto que estou em dívida com o Mick, que devo ao menos verificar essas coisas. Pode ajudar a aliviar os temores dele.

—        Que coisas?

—        Ele está convencido de que aquilo que vai destruir a humanidade está escondido no Golfo do México. — Dominique enfia a mão no bolso do jeans e tira várias páginas dobradas, passando-as a Edie.

Edie corre os olhos pelas folhas.

—        A cratera de impacto de Chicxulub? Como uma depressão enterrada um quilômetro e meio abaixo do leito do oceano vai matar a humanidade?

—        Não sei. O Mick também não. Mas eu esperava...

—        Você esperava que o Iz pudesse verificar usando o SOSUS.

Dominique sorri.

—        Faria com que eu me sentisse muito melhor.

Edie abraça a filha.

—        Vamos. O Iz está no laboratório.

O professor Isadore Axler está sentado na estação SOSUS, com fones de ouvido e de olhos fechados. Seu rosto manchado pela idade está sereno enquanto ele ouve os pungentes ecos dos cetáceos. Dominique bate no ombro dele.

Iz abre os olhos, seu ralo cavanhaque grisalho se abrindo num sorrisinho, e tira os fones.

—        Jubarte.

—        É assim que você me cumprimenta, Jubarte?

Iz se levanta e a abraça.

—        Você parece cansada, menina.

—        Estou bem.

Edie se aproxima.

—        Iz, a Dominique quer pedir um favor.

—        O que, mais um?

—        Quando foi a última vez que eu pedi um favor?

—        Quando você tinha 16 anos. Pediu o carro emprestado. Foi a noite mais traumatizante da minha vida. — Iz lhe dá um tapinha carinhoso no rosto. — Diga lá.

Ela lhe entrega as informações sobre a cratera de Chicxulub.

—        Preciso que você use o SOSUS e me diga se ouve algo lá embaixo.

—        E o que eu devo procurar?

—        Não sei. Qualquer coisa fora do comum, eu acho.

Iz faz o seu famoso olhar de "pare de desperdiçar meu tempo" franzindo o cenho grisalho.

—        Iz, pare de olhá-la desse jeito e faça o que ela pediu — ordena Edie.

O velho biólogo volta a se sentar, resmungando.

—        Qualquer coisa fora do comum, é? Talvez a gente ouça uma baleia peidando. — Ele digita as coordenadas no computador e recoloca os fones.

Dominique o abraça por trás e beija-lhe a bochecha.

—        Tudo bem, tudo bem, chega de subornos. Escute, minha filha, não sei o que você quer com isso, mas a cratera cobre uma área imensa. Vou calcular o centro dela, que parece ficar perto do atol de Campeche, a sudoeste do recife de Alacan. Vou programar o computador pra fazer uma busca nas baixas freqüências. Começaremos na faixa de um a 50 hertz e aumentaremos gradualmente os ciclos. O problema é que você visa uma área cheia de jazidas de petróleo e gás. A bacia do Golfo é toda feita de calcário e aloés, e contém bolsões geológicos porosos. Petróleo e gás vazam constantemente das rachaduras no leito, e o SOSUS vai registrar cada um desses vazamentos.

—        O que você sugere, então?

—        Que a gente vá almoçar. — Iz termina de programar o computador. — O sistema vai automaticamente analisar quaisquer perturbações na área.

—        Quanto tempo você acha que o SOSUS vai levar pra encontrar alguma coisa? — A pergunta de Dominique provoca mais um olhar.

—        Quem você acha que eu sou, Deus? Horas, dias, semanas, a vida toda, talvez. Que diferença faz? No final, provavelmente só vamos ter um monte de ruídos de fundo inúteis.

 

                               Washington, DC

O maître abre um sorriso ao ver a quarta pessoa mais poderosa dos Estados Unidos entrando no luxuoso restaurante francês.

—        Bon soir, monsieur Borgia.

—        Bon soir, Felipe. Acho que estão me esperando.

—        Oui, certainement. Venha comigo, por favor. — O maître o conduz entre mesas iluminadas por candelabros até uma saleta particular ao lado do balcão. Ele bate duas vezes na porta dupla e se vira para Borgia. — O seu grupo já está lá dentro.

—        Merci. — Borgia põe uma nota de vinte na mão enluvada, e a porta é aberta por dentro.

—        Pierre, entre. — O co-presidente do Partido Republicano, Charlie Myers, aperta a mão de Borgia e bate em seu ombro com afeição. —Atrasado, como sempre. Já estamos duas rodadas na sua frente. Bloody Mary, certo?

—        Sim, pode ser.

A sala particular de reuniões é, como o resto do restaurante, revestida por painéis de nogueira escura. Meia dúzia de mesas com toalhas brancas preenchem o recinto à prova de som. Sentados à mesa central estão dois homens. O cavalheiro mais velho, de cabelo branco, é Joseph H. Randolph, Sr., um bilionário texano, amigo e figura paterna para Borgia há mais de vinte anos. Borgia não reconhece o homem corpulento sentado à frente dele. Randolph fica de pé para abraçado.

—        Pierre, seu sortudo, é bom te ver, filho. Deixe-me ver. Engordou uns quilinhos?

Borgia enrubesce.

—        Talvez alguns.

—        Junte-se aos bons.

O homem corpulento se levanta e estende uma mão roliça.

—        Pete Mabus, da Mabus Tech Industries.

Borgia reconhece o nome da empresa licitada pela Defesa.

—        Prazer em conhecê-lo.

—        O prazer é todo meu. Sente-se e relaxe.

Charlie Myers traz a bebida de Borgia.

—        Cavalheiros, com licença, preciso ir ao toalete.

Randolph espera que Myers saia da sala para falar.

—        Pierre, estive com sua família semana passada em Rehobeth. Estamos todos muito chateados por você não ter sido indicado a vice. O Maller está prestando um desserviço a todo o partido.

Borgia balança a cabeça.

—        A preocupação do presidente é se reeleger. As pesquisas mostram que o Chaney vai trazer o apoio que o partido precisa no Sul.

—        O Maller não está pensando a longo prazo. — Mabus aponta com seu grosso dedo. — O que este país precisa agora é de liderança forte, não de mais um cordeirinho que nem o Chaney como segundo em comando.

—        Concordo plenamente, mas não tenho nenhuma influência na escolha.

Randolph curva-se para a frente.

—        Talvez não agora, filho, mas daqui a quatro anos vai ter uma grande influência. Já falei com alguns figurões, e o consenso é que você vai representar o partido em 2016.

Borgia reprime um sorriso.

—        Joe, é ótimo ouvir isso, mas quatro anos é muito tempo.

Mabus balança a cabeça.

—        Você precisa se preparar agora, filho. Vou te dar um exemplo. O meu menino, Lucien, é um gênio. Sem brincadeira, o moleque tem 3 anos e já sabe mexer na Internet. Estou criando-o pra assumir a Mabus Tech quando tiver 16 anos. Se a gente der as cartadas certas na política, ele vai ser trilionário quando tiver a sua idade. O que quero dizer é que todos nós precisamos estar preparados bem antes da oportunidade bater à porta, e pra você ela já está batendo. Veja esse exercício militar conjunto dos russos e dos chineses que vem por aí. Muitos eleitores registrados estão putos da vida, o que torna essa picuinha algo que pode decidir a sorte de um candidato à presidência.

—        O Pete tem razão, Pierre. O modo como o público enxergar a sua presença de comando nos próximos meses pode ajudar a determinar o resultado da próxima eleição. O povo precisa ver um cara que toma as rédeas, um líder agressivo que não vai deixar as porras dos russos ou os crioulos das Arábias ditarem as regras do nosso governo. Caramba, a gente não tem uma presença forte na Casa Branca desde que Bush saiu de lá.

Mabus agora está tão perto que Borgia consegue saber o que ele comeu no almoço pelo cheiro.

—        Pierre, esse conflito nos dá uma excelente oportunidade pra mostrar ao público a força do seu caráter.

Borgia se apóia na cadeira.

—        Entendido.

—        Ótimo, ótimo. Agora temos um último item na nossa pauta, algo que precisamos passar a limpo.

Mabus mexe em sua cutícula.

—        Um esqueleto no seu armário, digamos assim.

Randolph balança a cabeça enquanto acende um cigarro.

—        É esse tal de Gabriel, Pierre, o cara que você mandou internar depois do seu acidente. Assim que anunciarmos a sua candidatura, a imprensa vai começar a cavucar. Logo vão descobrir o que você fez pra manipular as coisas em Massachusetts. Pode dar uma encrenca danada.

O rosto de Borgia fica rubro.

—        Está vendo este olho, sr. Mabus? Aquele doido filho da puta fez isso comigo. Agora querem que eu o solte?

—        Preste atenção, filho. O Pete não falou nada de você soltá-lo. Apenas amarre essa merda de fio solto antes que a campanha comece. Porra, todos nós que valemos alguma coisa na política guardamos nossos esqueletos. Só queremos que você enterre o seu... presidente.

Borgia respira fundo para se acalmar e balança a cabeça.

—        Entendo o que querem dizer, cavalheiros, e agradeço o seu apoio. Acho que sei o que precisa ser feito.

Mabus estende a mão.

—        E nós agradecemos, secretário. Também sabemos que, quando chegar a hora, o senhor não vai esquecer quem são seus amigos.

Borgia aperta a mão suada de Mabus.

—        Me digam sinceramente, cavalheiros, à parte a presença política da minha família. Quando me escolheram, quanto pesou o fato de o senador Chaney ser negro?

Randolph abre um sorriso matreiro.

—        Bem, filho, digamos que o lugar não se chama Casa Branca à toa.

 

                             Diário de Julius Gabriel

O platô deNazca, no sul do Peru, é um deserto árido, com 64 quilômetros de comprimento e 10 quilômetros de largura. E uma planície desolada e inóspita, uma zona morta aninhada nos Andes. Ele também tem uma geologia extraordinariamente peculiar, pois o subsolo de Nazca contém altos níveis de gipsita, um adesivo natural. Reumidificada todo dia pelo orvalho da manhã, a gipsita literalmente mantém as pedras locais de ferro e sílica, que se espalham pelo deserto, grudadas à sua superfície. Essas pedras escuras retêm o calor do sol, fazendo surgir um escudo protetor de ar quente que virtualmente elimina os efeitos do vento. Ele também toma o platô um dos lugares mais secos da Terra, com menos de 25 milímetros de chuva por década.

Para o artista que deseja se expressar na mais grandiosa das escalas, o platô de Nazca se torna a tela perfeita, pois o que é desenhado naquele platô tende a ficar ali. No entanto, só quando um piloto o sobrevoou em 1947 o homem moderno descobriu os misteriosos desenhos e linhas geométricas entalhadas nessa paisagem peruana há milhares de anos.

Mais de 13 mil linhas cruzam o deserto de Nazca. Alguns desses marcos se estendem por mais de 8 quilômetros, riscando terrenos acidentados e se mantendo milagrosa e perfeitamente retos. Embora alguns queiram crer que as linhas representam pistas de pouso pré-históricas para antigos astronautas, agora sabemos que elas são astronomicamente alinhadas, marcando as posições do solstício de inverno, do equinócio, da constelação de Órion e talvez de outros corpos celestes ainda desconhecidos para nós.

Mais bizarras são as centenas de ícones ilustrando animais. Ao nível do chão, esses zoomorfos colossais parecem apenas sulcos aleatórios causados pela remoção de toneladas de pedras vulcânicas pretas, o que seria feito com a intenção de expor a gipsita amarela subjacente. Mas, quando vistos do alto, os desenhos de Nazca tomam vida, representando uma visão artística unificada e uma façanha de engenharia que sobreviveu sem danos por milhares de anos.

A arte do platô de Nazca foi completada em dois intervalos de tempo bastante distintos. Embora isso contrarie nossa idéia de evolução, os desenhos mais antigos são de longe superiores. Eles incluem o macaco, a aranha, a pirâmide e a serpente. Não só as formas retratadas são incrivelmente precisas, mas as próprias figuras, muitas delas maiores que um campo de futebol, foram desenhadas usando uma linha contínua, sem interrupções.

Quem eram os artistas misteriosos que criaram essas imagens no deserto? Como foram capazes de realizar uma façanha tão magnífica, numa escala tão grandiosa? E o mais importante: qual foi a motivação para entalhar as figuras no platô?

 

Foi no verão de 1972 que Maria, Pierre e eu chegamos pela primeira vez a esse deplorável deserto sul-americano. Na época, não estávamos nem um pouco interessados nos desenhos; nosso propósito era unicamente determinar a relação entre os crânios alongados da Mesoamérica e aqueles encontrados em Nazca. Ainda me lembro da primeira semana trabalhando no platô, amaldiçoando o perverso sol peruano que me torturava diariamente, cobrindo meu rosto e meus braços de bolhas. Se alguém me dissesse, então, que eu acabaria voltando para aquele purgatório de areia e pedras para viver o resto dos meus dias, eu o chamaria de louco. Louco.

Luto até para escrever essa maldita palavra. A esta altura, muitos de vocês devem estar se perguntando se estão lendo o relato de um cientista ou de um lunático. Devo confessar que não há um dia que passe sem que eu mesmo debata essa questão. Se perdi mesmo o juízo, foi Nazca que me levou a isso, seu incessante calor fazendo o meu cérebro inchar, sua superfície inóspita martelando a artrite nos meus ossos durante décadas. Qualquer chance de atingir a paz interior me escapou no dia em que condenei minha família àquele deserto. Rezo para que Michael me perdoe por tê-lo criado naquele inferno, e pelas outras injustiças que infligi à sua alma torturada na infância.

Do verão de 1972 ao inverno de 1974, nosso pequeno trio labutou em Nazca, desenterrando centenas de crânios deformados encontrados em túmulos cerimoniais localizados perto das montanhas andinas. Um exame completo de cada crânio revelou que as deformações haviam sido causadas pelo uso de tábuas de madeira sobre a cabeça da criança em tenra idade.

Foi em janeiro de 1974 que descobrimos um túmulo real situado perto dos Andes. As paredes dessa incrível tumba eram feitas de enormes colunas de pedra, cada uma pesando entre 10 e 20 toneladas. Dentro da câmara subterrânea havia 13 múmias de homens, o crânio de cada uma delas alongado. Nosso entusiasmo atingiu novas proporções depois que radiografias meticulosas e outros testes revelaram que os mortos, como o crânio de La Venta que Maria havia encontrado, tinham o crânio nesse formato puramente como resultado da genética!

Descobrir uma nova raça de homens provou ser tão polêmico quanto estarrecedor. Ao ficar sabendo da nossa descoberta, o presidente do Peru ordenou que todos os nossos artefatos fossem colocados numa câmara subterrânea do Museu Arqueológico de Lea, longe dos olhos do público. (Até hoje, os crânios só podem ser vistos pelos portadores de um convite especial.)

 

Que raça misteriosa era aquela? O que a fazia nascer com crânios duas vezes o tamanho normal?

Sabemos que as primeiras pessoas a chegarem à região andina eram caçadores e pescadores que se estabeleceram ao longo da costa peruana por volta de 10.000 a.C. Então, por volta de 400 a.C., outro grupo chegou ao platô de Nazca. Pouco sabemos sobre esse povo misterioso, só que chamavam seus líderes de Viracochas, semideuses que diziam ter migrado para a América do Sul logo depois do Grande Dilúvio. Os Viracochas eram descritos como sábios pálidos com olhos de um azul profundo como o do oceano, e longa barba e cabelo brancos. Esses antigos governantes, aparentemente, possuíam inteligência superior e crânios maiores do que o normal, sua aparência bizarra sem dúvida influenciou seus seguidores a praticar a arte da deformação dos crânios numa tentativa de emular seus nobres líderes.

A semelhança física entre os Viracochas e o grande mestre maia, Kukulcán, é incrível demais para ser ignorada. O fato de caucasianos altos e barbados aparecerem também nas lendas de várias outras culturas andinas dá mais pistas de uma ligação entre os indígenas mesoamericanos e aqueles da América do Sul.

 

A civilização indígena mais dominante que surgiu nas selvas montanhosas da América do Sul foi a inca. Como os maias, eles também idolatravam um grande mestre, um sábio que fez o seu povo progredir através do ensino da Ciência, Agricultura e Arquitetura. Embora saibamos agora que a maioria das façanhas creditadas à genialidade inca na verdade tenha se originado de grupos étnicos mais antigos, relatos escritos nos contam que foi esse caucasiano barbado que inspirou a criação das grandes estradas incas, bem como dos famosos terraços agrícolas construídos em encostas íngremes. Acredita-se que o barbado também tenha sido o artista criador dos desenhos mais antigos e sofisticados de Nazca. Embora fosse conhecido por vários nomes entre as culturas andinas, os incas o idolatravam simplesmente como Viracocha, que significa "espuma do mar".

Como Kukulcán entre os maias e Quetzalcoatl para os astecas, Viracocha é a figura mais reverenciada da história inca. Seriam os Viracochas de 400 a.C. seus ancestrais? Seria ele um parente distante de Kukulcán? Nesse caso, sua presença na antiga América do Sul teria algo a ver com o calendário maia e sua previsão de fim do mundo?

Em busca de respostas, abandonamos o deserto de Nazca e rumamos para os Andes, determinados a explorar dois sítios antigos que se acreditava terem sido criados pela divindade inca. O primeiro deles era a fortaleza de Sacsayhuaman, uma monstruosa estrutura erguida ao norte de Cuzco. Como o túmulo real, as muralhas dessa assombrosa cidadela são formadas por blocos de granito de formas irregulares que foram milagrosamente encaixados tão perfeitamente que eu não conseguia enfiar a lâmina de meu canivete entre as pedras.

Sobrecarrega a imaginação pensar como os indígenas andinos conseguiram transportar pedras pesando 100 toneladas ou mais por 15 quilômetros de terreno montanhoso da pedreira distante, depois encaixá-las perfeitamente no lugar em volta da fortificação. (Um desses monstros, de 8 metros e meio de altura, pesa mais de 320 toneladas.) Arqueólogos, ainda procurando explicar essa façanha indecifrável, tentaram duplicar uma pequena parte do legado de Viracocha, transportando um bloco de tamanho médio de uma pedreira distante usando princípios avançados de engenharia e um pequeno exército de voluntários. Até hoje, todas as tentativas fracassaram miseravelmente.

Sabemos que a fortaleza de Sacsayhuaman foi construída para proteger seus habitantes de forças hostis. O verdadeiro propósito por trás do projeto da outra estrutura de Viracocha, a antiga cidade andina de Tiahuanaco, continua um mistério.

Situadas 380 metros acima do Pacífico, nos Andes bolivianos, as ruínas de Tiahuanaco repousam na antiga margem do lago Titicaca, o mais alto lago navegável do mundo. Depois de examinar as façanhas impossíveis de engenharia de Sacsayhuaman, eu poderia jurar que nada mais me surpreenderia. Apesar disso, o sítio de Tiahuanaco era simplesmente aterrador. A planta dessa cidade antiga consiste em três templos de calcário e quatro outras estruturas, todas colocadas sobre uma série de plataformas elevadas e retângulos escavados. Como em Sacsayhuaman, a maior parte da construção consiste em blocos de pedra impossivelmente grandes, encaixados com perfeição.

Mas há claramente mais coisas em Tiahuanaco do que o olho pode enxergar. Um plano secreto está presente ali — um plano que pode ter relação com a salvação da nossa espécie.

Os restos de Akapana, uma pirâmide em degraus cujos quatro lados, direcionalmente orientados, medem 210 metros cada, dominam a cidade. A função de Akapana, infelizmente, permanecerá um mistério, pois os invasores espanhóis usaram a estrutura como uma pedreira, roubando o templo de 90% de seu revestimento.

A estrutura mais maravilhosa de Tiahuanaco é o Portal do Sol, um único bloco maciço de pedra pesando 100 toneladas. Essa monumental obra de arte fica no canto noroeste do complexo, como um Arco do Triunfo pré-histórico. De alguma forma, seu criador conseguiu transportar esse enorme bloco de pedra de uma pedreira a quilômetros de distância, escavar um portal perfeito usando só Deus sabe que tipo de ferramenta e depois alinhar verticalmente a peça.

Colunas gigantes se espalham por toda a cidade. No meio de uma bacia retangular ao ar livre fica uma escultura de 2 metros, em pedra vermelha, do próprio Viracocha. O crânio alongado está presente, bem como a testa pronunciada, o nariz fino e reto, e o queixo coberto de barba. Os braços e as mãos estão cruzados. Uma última característica digna de nota: dos dois lados da túnica do sábio surgem duas serpentes, parecidas com aquelas retratadas por toda a Mesoamérica.

A estrutura mais polêmica de Tiahuanaco é o Kalasasaya, um templo subterrâneo localizado no centro da cidade, rodeado por grandes muralhas. Blocos de pedra de 3 metros e meio foram erguidos dentro de seus limites. Embora Pierre tivesse concluído que o Kalasasaya deveria ter sido uma fortaleza, Maria discordava, reconhecendo que o alinhamento dos monolíticos blocos verticais era similar àqueles encontrados em Stonehenge.

Como de costume, Maria estava correta. O Kalasasaya não é uma fortaleza, e sim um observatório celeste, o mais antigo do mundo, talvez.

Então, o que tudo isso significa?

Cinco anos depois de sair de Cambridge, meus colegas arqueólogos e eu havíamos encontrado provas esmagadoras que indicavam que uma raça caucasiana superior influenciara o desenvolvimento tanto dos indígenas mesoamericanos como dos sul-americanos. Esses homens barbados, com seus crânios geneticamente deformados, de alguma forma projetaram e supervisionaram a construção de monumentos magníficos, cuja finalidade ainda nos intrigava.

Maria estava convencida de que o projeto do observatório de Kalasasaya era parecido demais com o de Stonehenge para ser uma simples coincidência. Ela acreditava que era imperativo continuarmos seguindo o rastro dessa raça caucasiana e sua sabedoria antiga para o leste para ver aonde isso nos levaria.

Pierre Borgia não estava contente com isso. Dois anos em Nazca haviam sido mais do que suficientes para saciar seu apetite pela Arqueologia, e ele estava sendo pressionado por sua abastada família para retornar aos Estados Unidos e fazer carreira na política. O problema era que ele amava Maria; aliás, os dois iam se casar na primavera.

Por mais que gostasse de Pierre, Maria não estava preparada para abandonar sua busca pela solução da profecia maia, insistindo que continuássemos a seguir o rastro dos barbados até Stonehenge.

A idéia de voltar à Inglaterra era toda a motivação de que precisávamos, e assim reservei as passagens e voamos para a perna seguinte da nossa jornada, a qual, eu sabia, estava destinada a dissolver nosso pequeno triunvirato para sempre.

— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,

 

Ref. Catálogo 1972-75 páginas 6-412

Diário Fotográfico, Disquete 2: Nome do arquivo: NAZCA, Foto 109

 

                   26 DE OUTUBRO DE 2012 , ILHA DE SANIBEL, FLÓRIDA

DOMINGO, 5h20

Acorde, querida! Dominique abre os olhos, bocejando.

—        O que aconteceu?

—        O Iz quer que você vá para o laboratório. O SOSUS localizou alguma coisa.

Com a adrenalina subindo, ela joga longe o cobertor e segue Edie pela escada dos fundos até o laboratório acústico.

Iz está sentado no terminal do SOSUS com os fones de ouvido, de costas para ela. Dominique nota que o sistema de som está gravando dados.

Ele gira na cadeira para olhá-la. Ela vê que ele está só de roupão e chinelos. Tufos de seu cabelo ralo e grisalho brotam ao redor dos fones. A expressão séria em seu rosto sufoca a risada de Dominique.

—        Verifiquei o sistema ontem à noite, antes de ir dormir. A única coisa fora do comum que o SOSUS havia localizado era o que chamamos de uma "zona morta", uma área sem vida marinha. Isso não é tão fora do comum assim. O Golfo sofre zonas mortas anuais todo verão, quando proliferações de plâncton criadas pelo despejo de fertilizantes privam a água de oxigênio. Mas essas zonas mortas costumam ocorrer na costa do Texas e da Louisiana, e nunca em águas tão fundas. De qualquer forma, reprogramei o SOSUS pra se concentrar nessa área e deixei o sistema em modo de busca a noite toda. O alarme tocou há uns 15 minutos. — Iz tira os fones e passa para ela. — Escute isso.

Ela ouve estática, como o som que uma lâmpada fluorescente faz antes de queimar.

—        Parece só ruído.

—        Foi o que eu disse. Continue escutando. — Iz muda o ajuste para uma freqüência mais alta.

O ruído desaparece. Agora Dominique ouve um som incessante de batidas surdas, metálicas.

—        Uau. Parece um mecanismo hidráulico.

Iz balança a cabeça.

—        Pergunte pra sua mãe. Eu falei a mesma coisa. Aliás, achei que o SOSUS tivesse captado um submarino parado no fundo do mar. Aí verifiquei de novo a posição. — Iz lhe entrega uma folha impressa pelo computador. — Os sons não estão vindo do fundo do mar, estão vindo de baixo do fundo do mar. De 1.426 metros abaixo do fundo do mar, pra ser exato.

O coração de Dominique está batendo feito um tambor.

—        Mas como isso é possível...

—        Me diga você! O que estou ouvindo, Dominique? E alguma brincadeira? Porque se for...

—        Iz, pare de dizer bobagens. — Edie passa um braço protetor pela cintura de Dominique. — Dom não fazia idéia do que você iria encontrar. A informação foi dada a ela por um... bom, por um amigo.

—        Quem é esse amigo? Quero conhecê-lo.

Dominique esfrega os olhos sonolentos.

—        Não pode.

—        Por que não? Edie, o que está acontecendo?

Dominique olha para Edie, que balança a cabeça.

—        Ele... ele é um ex-paciente meu.

Iz olha de Dominique para a esposa, depois para Dominique de novo.

—        Seu amigo é doente mental? Oy vey...

—        Iz, que diferença faz? Tem algo lá embaixo, não tem? Precisamos investigar...

—        Calma aí, menina. Não posso simplesmente ligar pra Administração Oceânica e Atmosférica Nacional e dizer que localizei sons hidráulicos um quilômetro e meio abaixo do atol de Campeche. A primeira coisa que vão querer saber é como eu descobri os sons. O que devo dizer, que um maluco deu as coordenadas pra minha filha de sua cela em Miami?

—        Faria alguma diferença se o Stephen Hawking te desse as coordenadas?

—        Sim, faria, na verdade, faria muita diferença. — Iz esfrega a testa. — A velha história do touro na loja de porcelanas não funciona mais, Dominique, pelo menos não com o SOSUS. Há uns três anos, usei o sistema pra detectar vibrações que vinham de baixo do leito do Golfo e pareciam sinais de um maremoto. — Iz balança a cabeça ao se lembrar. — Conte a ela, Edie.

Edie sorri.

—        Seu pai achou que a gente estava a minutos de ser atingido por um enorme tsunami. Ele entrou em pânico e mandou a Guarda Costeira evacuar todas as praias.

—        Eu tinha calibrado o sistema com sensibilidade demais. O que pensei ser um maremoto era a companhia telefônica dragando cabos a 100 quilômetros da costa. Eu me senti um imbecil. Pedi favores a muita gente pra ligar nossa estação ao SOSUS. Não posso me dar ao luxo de fazer outra merda dessas.

—        Então não vai investigar?

—        Eu não disse isso. Vou abrir um dossiê e continuar a gravar e monitorar a área com atenção, mas não vou entrar em contato com nenhum órgão federal até ter certeza absoluta de que essa sua descoberta justifica uma atitude dessas.

 

                       Miami, Flórida

22h17

Mick Gabriel está sentado em sua cama, balançando-se em silêncio. Seus olhos negros estão perdidos, seus lábios levemente abertos. Um fio fino de saliva escorre de seu queixo barbado.

Tony Barnes entra no quarto de Mick. O enfermeiro acaba de voltar de uma suspensão de três semanas.

—        Doce ou travessura, vegetal? Hora da sua injeção noturna. — Ele levanta o braço direito de Mick, que está inerte em seu colo, e examina a série de hematomas roxos no lado de dentro do antebraço.

—        Ah, foda-se. — O enfermeiro espeta a agulha no braço de Mick, injetando o Thorazine numa veia já estourada.

Os olhos de Mick rolam para cima e seu corpo cai para a frente, amontoando-se aos pés do enfermeiro.

O enfermeiro cutuca a cabeça dele com seu tênis. Olha para trás, verificando que estão a sós, e lambe a orelha de Mick.

Barnes ouve Marvis fazendo sua ronda.

—        Bons sonhos, amor. — Ele sai apressadamente.

A porta se fecha com um clique duplo. As luzes do núcleo diminuem. Mick abre os olhos.

Ele cambaleia até a pia e lava o rosto e a orelha com água fria. Xingando baixinho, aperta a veia ensangüentada e arroxeada com o polegar. Então, sentindo a tontura se aproximando, cai dolorosamente de joelhos e fica em posição de flexão de braço.

Nas duas horas seguintes, Mick submete seu corpo a um agonizante ritual de ginástica. Flexões de braço, abdominais, polichinelos, correr sem sair do lugar — qualquer coisa para manter seu metabolismo acelerado, qualquer coisa para neutralizar o tranqüilizante antes que ele possa afetar seu sistema nervoso central.

Das três, a dose matinal era sempre a pior. O próprio Foletta a administrava, monitorando o paciente e murmurando suavemente no ouvido de Mick de forma zombeteira. Quando a droga fazia efeito, punha Mick numa cadeira de rodas e o empurrava de núcleo em núcleo durante sua ronda matinal, mandando um aviso para os outros internos de que nenhuma dissidência seria tolerada.

Os exercícios noturnos depois da terceira dose do dia eram um esforço válido. Acelerando seu metabolismo, Mick descobriu que era capaz de neutralizar mais rapidamente os efeitos da droga, reconquistando gradualmente sua sanidade. Na quarta manhã, havia recobrado seu equilíbrio mental o suficiente para se concentrar num plano.

Daquele momento em diante, representou o papel de morto-vivo. Os enfermeiros do sétimo andar o encontravam toda manhã deitado no chão da cela, num estupor profundo, totalmente incoerente. Isso enfurecia os funcionários, que agora eram obrigados a alimentar o paciente incapacitado e, para total asco deles, até trocar sua roupa quando ele se sujava. Depois de uma semana dessa rotina, Foletta se viu obrigado a reduzir a dosagem de Mick de três vezes ao dia para apenas duas injeções, uma à tarde e outra à noite.

Nas últimas semanas, a agenda de Foletta ficou tomada por outros assuntos. Ele parou de visitar Mick, confiando seus cuidados aos enfermeiros.

Pela primeira vez em seus 11 anos de cativeiro, a segurança ao redor de Michael Gabriel ficou relaxada.

 

                       NASA: Centro de Vôo Espacial Goddard

Greenbelt, Maryland

O diretor da NASA, Brian Dodds, olha, incrédulo, para o imenso rolo de papel de impressora estendido sobre sua mesa.

—        Me explique de novo, Swicky.

O assistente de Dodds, Gary Swickle, aponta com o grosso indicador para o padrão xadrez, consistindo em 13 quadrados pretos cobrindo a largura da impressão, que continua por milhares de folhas de papel.

—        O sinal de rádio é formado por 13 harmônicos diferentes, representados aqui por estas 13 colunas. Cada harmônico pode ser tocado em qualquer uma de vinte freqüências distintas e consecutivas. Isso permite a combinação de 260 trechos sonoros ou comandos diferentes.

—        Mas você diz que o padrão não se repete?

—        Só no início. — Swickle localiza a primeira página da impressão. — Quando o sinal começa, os harmônicos são bem simples, algumas notas tocadas em uma só freqüência, mas repetidas várias vezes. Agora veja aqui. Na marca de 17 minutos, tudo muda, todos os 13 harmônicos e as vinte freqüências começam a ser usadas de repente. Desse ponto em diante, o sinal nunca se repete. Os 185 minutos restantes usam todas as 260 combinações de trechos sonoros, indicando uma comunicação altamente estruturada.

—        Tem certeza de que não há nenhuma base nos primeiros 17 minutos? Nenhuma equação matemática? Nada que indique algum tipo de instruções para tradução?

—        Nada.

—        Droga. — Dodds esfrega os olhos avermelhados.

—        O que está pensando, chefe?

—        Lembra quando perdemos contato com o SOHO no verão de 1998? Antes que Arecibo localizasse de novo o satélite, ficamos repetindo o mesmo sinal de rádio simples, tentando restabelecer contato com o computador principal do satélite. É isso que os primeiros 17 minutos desse sinal lembram. Nenhuma base, nenhuma instrução ou código, só um sinal vindo do espaço se repetindo como um telefone que toca, esperando que o outro lado atenda pra que a informação possa ser transmitida.

—        Concordo, mas não faz sentido. Os extraterrestres que transmitiram esse sinal não poderiam esperar que nossa espécie fosse capaz de traduzir todas essas informações sem uma base.

Swickle nota que o rosto do diretor ficou pálido.

—        O que foi?

—        Só uma idéia maluca. Esqueça, estou muito cansado.

—        Vamos, chefe.

—        Bem, eu estava pensando no SOHO. Nossa transmissão obviamente não precisava de uma base, pois o computador do SOHO já tinha sido programado pela gente. Talvez esse sinal não contenha uma base porque ela não é necessária.

—        Quer dizer que o sinal não foi enviado pra ser traduzido?

—        Não, Swick. — Dodds lança um olhar preocupado para o seu assistente. — Quero dizer, e se o sinal não foi enviado para nós?

 

               5 de Novembro de 2012, Ilha de Sanibel, Flórida

O cântico de "mais quatro anos — mais quatro anos" acorda Edith Axler. Ela se apruma e olha para o relógio, depois desliga a TV e desce para o laboratório. Isadore ainda está curvado sobre a estação SOSUS, escutando.

—        Iz, pelo amor de Deus, são 11 e meia da...

—        Shhh. — Ele tira os fones e liga o alto-falante. — Escute.

Ela ouve um zumbido grave.

—        Parece um gerador.

—        Isso não é nada. Espere.

Momentos se passam, e então o gemido agudo do que parece ser uma broca hidráulica sai do alto-falante, seguido imediatamente por batidas metálicas que continuam por vários minutos.

Iz sorri para a esposa.

—        Não é incrível?

—        Parece o som de algo sendo montado. Provavelmente é uma plataforma petrolífera se preparando pra perfurar.

—        Ou isso, ou é mais uma daquelas expedições geológicas investigando a cratera. Seja o que for, o nível de atividade se intensificou nas últimas trinta horas. Mandei um e-mail pedindo que a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional verifique ambas as possibilidades, mas ainda não recebi resposta. Quem ganhou a eleição?

—        O presidente Maller.

—        Ótimo. Agora que isso acabou, talvez alguém do Departamento de Estado me responda.

—        E se não responderem?

Iz olha para a esposa e dá de ombros.

—        Não importa. Como você disse, deve ser só uma plataforma petrolífera. O Carl e eu vamos fazer nossa pescaria anual nas próximas duas semanas. Talvez a gente estique a viagem até lá pra dar uma olhada mais de perto, só pra ter certeza.

 

                           Miami, Flórida

Dominique olha, enojada, o grandalhão ruivo enfiando mais uma garfada de berinjela na boca. Talvez ele morra engasgado.

—        E então, gatinha, está orgulhosa de mim?

Uma gota de molho de tomate cuspido a atinge na bochecha.

—        Meu Deus, Ray, sua mãe não te ensinou a não falar de boca cheia?

Ele sorri, revelando um naco de berinjela preso entre os dentes amarelados. — Desculpe. Estou de dieta há seis meses. É bom voltar a comer. E então, o que acha?

—        Já falei, achei o sexto lugar ótimo, especialmente considerando que é o seu primeiro concurso.

—        O que posso dizer? Você foi minha inspiração.

—        Agora me fale do Foletta. Quando nos conhecemos, você disse que o conselho diretor e a equipe médica não gostaram nada quando ele chegou de Massachusetts. O que você quis dizer?

—        Isso fica só entre nós, certo?

—        Certo.

Raymond empurra a comida goela abaixo com um gole de cerveja.

—        O pai de um grande amigo meu faz parte do conselho regional. Aliás, foi ele que me ajudou a conseguir o emprego no Centro. Bom, dizem que a dra. Reinike, que trabalhava lá antes do Foletta, vai voltar mês que vem pra reassumir o comando.

—        É mesmo? Achei que ela tivesse se aposentado. O Foletta me disse que o marido dela estava morrendo de câncer.

Ray balança a cabeça, enfiando mais comida na boca.

—        Tudo mentira. Meu amigo me contou que a Reinike está de licença remunerada desde setembro. Ao que parece, um asilo novinho em folha vai ser inaugurado em Tampa daqui a três semanas, e prometeram o cargo de diretor pro Foletta.

—        Espere aí. Se o Foletta vai embora daqui a três semanas, então ele já devia saber antes de vir pra Miami que ia conseguir o emprego em Tampa. Por que tirar a dra. Reinike do cargo pro Foletta ficar só por três meses?

Ray aponta o garfo para ela.

—        Por causa do teu ex-paciente. O instituto de Massachusetts ia fechar e o de Tampa ainda não estava pronto. A Reinike é louca por detalhes. Parece que alguém bem poderosão queria o Foletta no comando pra não ter risco do teu queridinho Gabriel ser reposicionado no sistema.

Ou receber uma avaliação decente. Foletta, seu desgraçado.

—        O que foi, gatinha?

—        Fiz um acordo com o Foletta. Ele me prometeu que o Mick seria colocado sob os cuidados de uma das equipes de reabilitação até janeiro, no máximo.

Os dentes amarelados aparecem de novo.

—        Acho que mentiram pra você, garota. Daqui a três semanas o Michael Gabriel já vai estar longe.

 

O motor elétrico do arrojado Dodge Intrepid ESX2 vermelho zumbe ao ser ativado, auxiliando o motor diesel 1.5 de três cilindros a acelerar pela rampa íngreme da 1-95.

Dominique olha pela janela do passageiro enquanto Raymond costura no trânsito. Ela range os dentes, furiosa com a mentira de Foletta. Eu devia ter imaginado. Devia ter acreditado no que meu coração dizia.

Ela fecha os olhos, lembrando-se de uma das primeiras conversas que teve com Mick.

"O Pierre Borgia manipulou o sistema judiciário. O promotor fez um acordo com o defensor público que foi indicado pra mim e me mandou pra um sanatório em Massachusetts. O Foletta se tornou meu guardião nomeado pelo Estado. O Pierre Borgia recompensa a lealdade, mas que Deus ajude quem vai pra lista negra dele."

Ela foi manipulada, e mais uma vez Michael Gabriel sofrerá as conseqüências.

—        Ray, não estou a fim de dançar. Você se importa de me levar pra casa?

—        Pra casa? Já estamos quase em South Beach.

—        Por favor.

Raymond olha para as pernas bronzeadas e esculturais saindo da saia preta, imaginando-as cruzadas ao redor do seu tronco musculoso.

—        Certo, gatinha, pra casa, então.

 

O Intrepid para no estacionamento do prédio de Dominique vinte minutos depois.

Ela sorri.

—        Obrigada pelo jantar. Desculpe por estragar a noite, mas não estou me sentindo bem mesmo. Da próxima vez eu convido, está bem?

Ele desliga o motor.

—        Eu te acompanho.

—        Não precisa, estou bem. Te vejo no trabalho. — Ela abre a porta e ruma para o elevador.

Ray corre atrás dela.

Droga.

—        Ray, já falei, não precisa me acompanhar.

—        Ei, não tem problema. Eu adoraria conhecer a tua casa. — Ele espera que ela chame o elevador.

—        Ray, esta noite não.

—        Não foi isso que combinamos — diz ele, passando o grosso braço pela sua cintura, puxando-a para perto.

—        Não...

Antes que ela possa impedi-lo, ele a empurra para a parede de concreto, enfiando a língua em sua boca, apertando seus seios com a pata direita.

Uma onda de pânico incandescente toma conta dela quando dezenas de lembranças da infância passam por sua mente de uma só vez.

Reaja! Ela sente ânsia de vômito com o gosto em sua boca, depois morde a língua intrusa, tirando sangue.

—        Ai! Puta que pariu... — Raymond lhe dá um tapa na cara, depois a pressiona contra a parede com uma mão enquanto rasga a sua saia com a outra.

—        Solta ela!

Dominique vê o rabino Steinberg e a esposa se aproximando. Raymond continua segurando o braço dela.

—        Cai fora, isso não é da tua conta.

—        Solte ela, ou vamos chamar a polícia. — Mindy Steinberg mostra o alarme portátil.

Raymond dá um passo ameaçador na direção do casal, arrastando Dominique com ele.

—        Não seja burro — diz Steinberg, apontando para as câmeras de segurança.

—        Ei, Ray...

Raymond se vira.

A ponta do salto alto de Dominique esmaga com força o dedão de Raymond. Ele geme de dor, soltando-a. Num só movimento, o lado do pulso dela atinge o halterofilista em cheio no pomo de adão, silenciando seu grito.

Raymond põe as mãos na garganta, lutando para respirar. Enquanto ele cai de joelhos, Dominique gira o corpo, preparando-se para atingi-lo na nuca exposta com o salto.

—        Dominique, não. — Steinberg a segura pelo braço antes que ela dê o pontapé. — Deixe a polícia cuidar dele.

Mindy abre o elevador e os três entram.

Raymond luta para ficar de pé. Ele se vira para Dominique, seus olhos enlouquecidos, sua boca tentando emitir sons. Quando as portas do elevador começam a se fechar, ele forma a palavra "Gabriel" com os lábios e passa um dedo sobre a garganta, simulando o movimento de uma faca.

 

                         18 DE NOVEMBRO DE 2012 , MIAMI, FLÓRIDA

As salas de terapia em grupo do Centro de Avaliação e Tratamento do Sul da Flórida ficam no terceiro andar, em frente à sala de ginástica, entre o cinema e a sala de computadores.

Dominique está sentada no fundo da sala 3-B, ouvindo distraidamente a sessão vespertina de terapia de grupo do dr. Blackwell, quando nota um enfermeiro empurrando Michael Gabriel, semi-consciente na cadeira de rodas, para dentro do cinema. Ela espera o enfermeiro ir embora e sai da sala.

O cinema está às escuras. A única luz vem do telão de TV. Oito internos, espalhados pelas três dúzias de cadeiras dobráveis, estão assistindo ao último filme de Jornada nas Estrelas.

A cadeira de rodas está na última fila. Dominique se senta, deslizando sua cadeira para perto de Mick. Ele está apoiado de lado, curvado para a frente. Um cinto preso sobre seu peito é a única coisa que o impede de cair de cara no chão. Os olhos negros, antes faróis intensos, agora são poças sem vida que refletem a tela da TV. O longo cabelo castanho de Mick está preso num rabo de cavalo. Dominique sente o cheiro do cabelo sujo e o fedor que emana de suas roupas imundas. A barba incipiente só não cobre a cicatriz em seu maxilar.

Foletta, seu desgraçado. Ela tira um lenço de papel do bolso do jaleco e enxuga a baba que escorre de seu lábio inferior.

—        Mick, não sei se pode me entender, mas sinto sua falta, de verdade. Odeio o que o Foletta fez com você. Você tinha toda a razão sobre ele, e me sinto muito culpada por não ter acreditado. — Ela põe sua mão sobre a dele.

—        Queria que você pudesse me entender.

Para sua surpresa, Mick vira a mão esquerda, cruzando seus dedos com os dela.

—        Meu Deus — ela sussurra.

Mick pisca.

Ela mal consegue conter seu entusiasmo.

—        Mick, preciso te contar tantas coisas...

—        Shhh. — Seus olhos continuam perdidos.

Ela se inclina para a frente distraidamente, fingindo interesse pelo filme.

—        O Raymond, o vigia que te atacou, tentou me estuprar. Foi suspenso, mas ouvi dizer que talvez volte a trabalhar já na semana que vem. Tome cuidado, ele ameaçou te machucar pra se vingar de mim. — Ela aperta a mão dele. — Lembra que eu falei do SOSUS? Convenci o Iz a usar o sistema pra verificar as coordenadas no Golfo que você me deu. Mick, você tinha razão. Realmente tem alguma coisa lá, enterrado mais ou menos um quilômetro e meio abaixo do leito do oceano. O Iz prometeu que iria investigar.

Mick aperta mais a mão dela.

—        Perigoso demais — ele murmura, praticamente sem mexer os lábios.

—        Perigoso demais? Por quê? O que você acha que tem lá embaixo? — Ela solta a mão dele quando a sessão de terapia do dr. Blackwell termina. — Mick, o Foletta mentiu a respeito de tudo. Descobri que ele vai pra Tampa dirigir um novo sanatório de segurança máxima. Você vai ser transferido semana que vem.

—        Me ajude a fugir.

—        Não posso...

Ela se levanta quando o dr. Blackwell se aproxima.

—        Residente, não sabia que você era tão fã de Jornada nas Estrelas. Presumo que este filme seja mais importante do que minha sessão de terapia?

—        Não, senhor. Só... só vim olhar este paciente. Ele estava caindo da cadeira de rodas.

—        Temos enfermeiros pra isso. Tome. — Ele lhe entrega um grosso maço de fichas de pacientes e a afasta de Mick. — Quero que atualize todas as planilhas e as envie para o faturamento em uma hora. Não se esqueça de anotar a sessão de hoje. Quando terminar, pode ir para a nossa reunião no segundo andar.

—        Sim, doutor.

—        E fique longe do paciente do dr. Foletta, residente.

 

                             Golfo do México

O pesqueiro Manatee, de 48 pés, singra os mares rumo ao sudoeste através de ondas de meio a um metro, sua proa banhada pela luz dourada do sol que se põe, beijando o horizonte.

Na cabine, Iz Axler enche sua caneca de café enquanto o seu melhor amigo, Carl Reuben, prepara o jantar na pequena cozinha.

O dentista aposentado passa uma toalha de mão por sua careca incipiente, depois enxuga o vapor das grossas lentes bifocais.

—        Meu Deus, como está quente aqui. Estamos perto desse seu local misterioso?

—        Mais 5 quilômetros. O que vamos comer no jantar?

—        Já falei, dourado-do-mar grelhado.

—        Comemos isso no almoço.

—        Pesque lagosta e comerá lagosta. Me fale desse local. Você disse que lá não tem peixe?

—        Isso mesmo. É o que chamamos de zona morta.

—        Por que está morta?

—        Não sei. Por isso quero dar uma olhada.

—        E por quanto tempo pretende nos manter nessa zona morta?

—        Daqui a quanto tempo sai o jantar?

—        Vinte minutos.

—        Bem, se tiver uma plataforma petrolífera na área como eu desconfio que tenha, sairemos de lá antes da sobremesa.

Iz sai da cabine e sobe no convés, saboreando o cheiro do ar salgado temperado pelo aroma do peixe grelhado. Para ele, Carl e Rex Simpson, os cinco dias anuais de pescaria são o ponto alto do ano. Depois de uma longa temporada de furacões, as águas do Golfo se acalmaram e o tempo se abrandou, oferecendo condições ideais para passeios de barco. Em dois dias, eles pescaram uma dúzia de dourados-do-mar, oito olhos-de-boi e uma garoupa. Virando-se para o sol poente, Iz fecha os olhos e inspira, deixando os haustos tépidos do vento aliviarem seu rosto queimado pelo sol.

Uma pancada seca o faz virar. Rex recoloca o tanque de ar e termina de afivelado nas costas do colete com o compensador de flutuação.

—        Vai mergulhar um pouco, Rex?

O proprietário do Clube dos Caçadores de Tesouros de Sanibel, de 52 anos, olha por cima do ombro.

—        Por que não? Já que não podemos pescar nesse seu lugar secreto, pensei em fazer um mergulho noturno.

—        Não sei se vai ter muita coisa pra ver. — Iz retoma seu lugar no assento do capitão. Ele pega os binóculos e vasculha o horizonte vazio, depois verifica a posição do barco no GPS. — Que estranho.

—        O que é estranho?

Iz desativa o piloto automático e desliga os motores do Manatee.

—        Chegamos. É aqui, este é o lugar que eu falei.

—        Aqui só tem água. — Rex enrola seu longo cabelo grisalho num rabo de cavalo. — Você não disse que teria uma plataforma petrolífera?

—        Devo ter me enganado. — Iz ativa o rádio para falar com a costa. — Manatee chamando Alfa-Zulu-três-nove-seis. Alfa-Zulu, responda. Edie, está me ouvindo?

—        Prossiga, Manatee. Como vai a pescaria?

—        Vai bem. Muitos olhos-de-boi e dourados-do-mar. O Rex pegou uma garoupa hoje de manhã. Edie, acabamos de chegar ao local acima da cratera de Chicxulub. Não tem nada aqui.

—        Nenhuma plataforma?

—        Nada. Mas o tempo está perfeito e o mar está calmo. Acho que vamos passar a noite aqui enquanto faço alguns testes.

—        Tome cuidado.

—        Pode deixar. Falo com você mais tarde.

O Sol, agora, é uma bola vermelha de lava pondo-se espetacularmente a bombordo da proa. Iz esvazia a caneca de café e ativa o sonar do barco para verificar a profundidade do mar.

Pouco mais de 600 metros.

Rex vê Isadore fuçando num compartimento estanque.

—        Ei, Iz, olhe a sua bússola, está dançando mambo.

—        Eu sei. Tem uma cratera enorme sob o leito do oceano, de uns 100 quilômetros de diâmetro. Estamos perto do centro, que possui um campo magnético muito forte.

—        O que você está fazendo?

Iz termina de conectar um microfone submarino a um grande carretel de cabo de fibra óptica.

—        Quero ouvir o que está acontecendo lá embaixo. Pegue esse microfone e coloque do lado de estibordo da proa. Vá soltando o cabo devagar.

Iz pega a outra ponta do cabo e a conecta a um modulador de amplitude. Ele liga o computador, enfia o plugue dos fones na tomada do sistema acústico e escuta.

Jesus Cristo...

Rex volta.

—        Já baixei o microfone. O que está ouvindo? Sinatra?

Iz lhe passa os fones.

Sons mecânicos metálicos, como de estridentes pistões hidráulicos e engrenagens inundam os ouvidos de Rex.

—        Que porra é essa?

—        Não sei. O SOSUS detectou os sons há algumas semanas. Estão vindo de uns 1.500 metros abaixo do fundo do mar. Achei que fosse uma plataforma petrolífera.

—        Coisa bizarra. Falou com alguém a respeito disso?

—        Fiz um relatório pra Marinha e pra Administração Nacional, mas ninguém me deu nenhuma resposta ainda.

—        Pena que não trouxemos o Barnacle.

—        Não sabia que o seu submarino podia descer tanto.

—        Claro que pode. Já desci 1.800 metros com ele nas Bahamas.

Carl aparece no convés, seu rosto rubro.

—        Ei, vocês vêm comer ou não?

 

21h22

Uma tapeçaria de estrelas cobre o limpo céu noturno.

Carl está debruçado sobre a travessa da popa, organizando sua caixa de pesca pela terceira vez naquele dia. Rex está na cabine, lavando a louça, enquanto Iz escuta os sons submarinos no posto do piloto.

—        Manatee, responda.

—        Prossiga, Ead.

—        Eu estava monitorando o SOSUS. Os ruídos estão ficando mais altos e mais rápidos.

—        Eu sei. Parece quase uma locomotiva desgovernada.

—        Iz, acho que vocês deviam sair daí. Iz?

O silvo hiper agudo queima o seu canal auditivo como um ferro em brasa. Iz arranca os fones da cabeça e cai de joelhos, desorientado, com um insuportável zumbido nos ouvidos.

—        Rex! Carl! — Ele ouve só um eco abafado.

Uma fantasmagórica luz verde o faz erguer os olhos. O interior da cabine está brilhando com um halo esmeralda iridescente que irradia da água. Rex ajuda Iz a ficar de pé.

—        Você está bem?

Iz faz que sim, com os ouvidos ainda zumbindo um pouco. Os dois homens cambaleiam por cima dos trajes de mergulho e vão para a proa, onde está Carl, atento demais à luz brilhante para notar a fumaça saindo dos circuitos eletrônicos torrados do modulador de amplitude.

Santo Deus. Iz e seus dois amigos olham estarrecidos para o mar, seus rostos banhados no verde fantasmagórico do brilho luminoso.

O Manatee está flutuando na superfície de uma porção circular de mar luminescente, com pelo menos 1.500 metros de diâmetro. Iz se curva sobre a água, estupefato pela visibilidade surreal criada pelo feixe incandescente, vindo de algum lugar no fundo do mar, uns 600 metros abaixo do barco.

—        Iz, Rex, o cabelo de vocês!

Carl aponta para o cabelo dos amigos, que está de pé. Rex toca seu rabo de cavalo, ereto como a pena de um índio. Iz esfrega a palma da mão nos pelos do seu antebraço, provocando faíscas de eletricidade estática.

—        Que diabos está acontecendo? — murmura Carl.

—        Não sei, mas vamos sair daqui agora. — Iz volta rapidamente para a cabine e aperta o botão da ignição.

Nada.

Ele aperta o botão mais três vezes. Verifica o rádio e o sistema de navegação por GPS.

—        Qual o problema? — Carl pergunta nervosamente.

—        Nada funciona. Aquilo que está brilhando lá embaixo pôs todos os nossos dispositivos eletrônicos em curto. — Iz se vira e vê Rex vestindo o traje de mergulho. — O que está fazendo?

—        Quero ver o que tem lá embaixo.

—        É perigoso demais. Pode ser radioativo.

—        Então estarei mais seguro no traje de mergulho do que vocês dois aqui em cima. — Ele afivela o colete com o tanque de ar, verifica os manômetros e calça os pés de pato. — Carl, minha câmera submarina está perto de você.

Carl joga-lhe a câmera.

—        Rex...

—        Iz, emoções fortes são meu hobby. Vou tirar umas fotos rapidinho e voltar pra cá em cinco minutos.

Iz e Carl veem Rex se jogar da lateral, impotentes.

—        Carl, pegue um remo. Vamos mover o barco.

 

O mar está tão visível que Rex se sente nadando em direção às luzes submersas de uma piscina profunda. Ele paira 2 metros abaixo do casco, sentindo-se totalmente em paz, seu corpo e as bolhas de ar que escapam imersos no suave brilho verde-esmeralda.

O movimento acima de sua cabeça o faz olhar para cima. Meu Deus...

Rex pisca duas vezes, olhando incredulamente para a criatura grotesca que grudou por todo o comprimento bem no centro da quilha do Manatee. Dez metros de tentáculos fibrosos ondulam de um cilindro gelatinoso que lembra uma lagarta. Nada menos que cem estômagos em forma de sino atravessam o corpo encordoado e cor creme da criatura, cada abertura digestiva contendo sua própria boca hedionda e projeções venenosas parecidas com dedos.

Incrível. Rex nunca viu um espécime vivo, mas sabe que a criatura é uma Apolemia, uma espécie de sifonóforo. Esses seres bizarros, que podem medir de 25 a 30 metros de comprimento, habitam apenas as águas mais profundas e, em decorrência disso, raramente são vistos pelo homem.

A luz deve tê-la afugentado para a superfície.

Ele tira várias fotos, mantendo o que espera ser uma distância segura dos tentáculos venenosos da criatura, e em seguida solta ar de seu compensador de flutuação e afunda.

A iluminação surreal lhe dá a estranha sensação de estar caindo em câmera lenta. Rex bate as pernas a 18 metros para diminuir a velocidade da descida, a pressão aumentando em seus ouvidos. Ele aperta o nariz e equaliza, mas fica surpreso ao descobrir que a dor está piorando. Então, olhando para baixo, nota algo subindo em sua direção, vindo do vazio luminoso.

Rex sorri e estende os braços. Milhares de bolhas de ar do tamanho de Fuscas sobem ao redor dele.

Incrível.

A dor nos seios nasais o obriga a se concentrar. Um rugido abafado de barítono enche seus ouvidos, reverberando em sua máscara, que faz cócegas no seu nariz.

Rex Simpson para de sorrir ao notar uma sensação torturante no fundo do seu estômago, parecida com os efeitos de estar suspenso no ponto mais alto de uma imensa montanha-russa. O rugido fica mais alto.

E um terremoto submarino!

Seiscentos metros abaixo, uma enorme seção do leito de calcário desmorona, revelando uma abertura enorme em forma de túnel. O mar começa a girar ao ser sugado para o buraco crescente, a correnteza puxando tudo para o redemoinho que afunda.

A luz verde-esmeralda se intensifica, quase deixando-o cego.

 

Iz e Carl conseguiram remar com o Manatee até o perímetro da área brilhante do mar quando uma força invisível parece agarrar a proa, puxando o pesqueiro para trás. Os dois homens se viram, horrorizados, e vêem o mar se abrindo num grande vórtice que gira no sentido anti-horário. — E um redemoinho! Reme mais rápido!

Em segundos, o Manatee é capturado, movendo-se para trás na borda exterior do redemoinho.

 

A poderosa sucção aferrou o corpo de Rex com uma força assustadora, puxando-o para águas mais fundas. Ele mexe as pernas mais depressa, a pressão aumentando em seus ouvidos enquanto ele luta para soltar seu cinturão de pesos com uma das mãos e agarrar a mangueira descontrolada atrás de sua cabeça com a outra.

O cinturão escorrega da sua cintura, desaparecendo na luz intensa. Rex tateia o dispositivo do compensador de flutuação e aperta uma alavanca, inflando-o.

Sua descida fica mais lenta, mas não para.

Uma corrente indescritivelmente forte o joga para o lado de repente, como se ele estivesse sendo sugado para fora de um avião. Ele se agita, a corrente ameaçando arrancar o respirador e a máscara de seu rosto. Ele morde com força e segura sua preciosa máscara, lutando futilmente contra a irresistível turbulência.

O mar se abre abaixo dele. Ele olha como se estivesse do alto de cem andares lá para baixo, para o brilhante olho verde do vórtice, um buraco no mar cuja força centrífuga agora o mantém grudado à parede interior de seu crescente funil giratório.

O medo faz o coração de Rex bater loucamente. A força sobre o seu tronco aumenta, forçando as fivelas de velcro, que é tudo o que evita que o tanque de ar seja arrancado do colete. Ele fecha os olhos, sentindo náusea, enquanto o redemoinho o gira em sua parede interior numa velocidade estonteante, ao mesmo tempo que o suga cada vez mais fundo para a sua bocarra.

Eu vou morrer, meu Deus, por favor, me ajude...

O vidro da máscara racha. A pressão de uma morsa lhe espreme o rosto. Sangue escorre de suas narinas. Ele sufoca, depois fecha os olhos com todas as forças, gritando no respirador, sentindo que seus globos oculares estão sendo arrancados dos nervos ópticos, saltando das órbitas. Um grito final é obliterado quando o cérebro de Rex Simpson implode.

As monstruosas forças G criadas pelo funil de água empalam o casco do Manatee contra as paredes íngremes e rodopiantes, destroçando partes do barco a cada revolução. A força centrífuga pregou o corpo inconsciente de Carl Reuben sobre a parte de trás das pernas de Iz, esmagando o apavorado biólogo contra o convés de fibra de vidro.

Iz se segura ao balaústre diante dele com as duas mãos. O redemoinho ruge em seus ouvidos, sua velocidade estonteante empurrando-o para a inconsciência.

Ele se força a abrir os olhos, dirigindo-os para a fonte da luz verde. A morte está a poucos minutos dali, e de alguma forma a idéia é simultaneamente assustadora e reconfortante.

O feixe brilhante fica mais fraco de repente. Iz estica o pescoço para a frente, inclinando-se precariamente sobre uma viga. Ele vê uma gosma borbulhante como alcatrão esguichando de um enorme buraco no fundo do oceano. A substância negra arrota — Iz pode sentir o seu fedor pútrido e sulfuroso — e depois termina de recobrir o brilho esmeralda enquanto continua a subir pelo funil de água, escurecendo o mar ainda revolto.

Iz fecha os olhos, obrigando-se a pensar em Edie e Dominique enquanto a correnteza enlouquecida empurra o Manatee para o fundo do vórtice.

Meu Deus, que seja rápido.

Carl estica o braço. Ele aperta a mão de Iz quando a gosma preta sobe para engoli-los.

O barco bate no líquido espesso como piche e vira, jogando Iz e Carl de cabeça na garganta do redemoinho de tinta.

 

             23 DE NOVEMBRO DE 2012 , PRAIA DE PROCRESO , PENÍNSULA DE YUCATÁN

6h45

Bill Godwin beija o rosto de sua esposa adormecida, pega seu microdisc player e sai do quarto de hotel no segundo andar do Holiday Inn. Mais uma manhã perfeita.

Ele desce a escadaria de alumínio e concreto até a piscina, depois sai da área cercada e atravessa a Route 27 até a praia, a luz da manhã forçando-o a cerrar os olhos. Diante dele se estendem quilômetros de imaculadas areias brancas virgens e águas azuladas transparentes como cristal.

Lindo...

Fiapos dourados brilham sobre uma faixa de nu¬vens no horizonte oriental quando ele chega à beira da água. Uma adolescente mexicana desliza sobre as águas serenas do Golfo num jet ski roxo e branco. Bill admira a silhueta da moça enquanto se alonga, depois coloca os fones e começa a correr num ritmo suave.

O analista sênior de mercado da Waterford-Leeman, de 46 anos, começou a correr três vezes por semana depois de se recuperar de seu segundo ataque cardíaco, há seis anos. Ele calcula que a "corridinha matinal", como sua esposa a chama, deve ter somado mais uns dez anos à sua expectativa de vida, e está mantendo seu peso sob controle pela primeira vez desde a época da universidade.

Bill passa por outro corredor e acena, momentaneamente apertando o passo. Uma semana de férias no Yucatán fez maravilhas por sua pressão arterial, mas a farta cozinha mexicana não ajudou sua cintura. Ele chega ao posto de salva-vidas deserto, mas decide ir um pouco além. Cinco minutos e 800 metros depois ele para, totalmente exausto. Curvando-se, tira os tênis, enfia o player num deles e vai para as convidativas águas do Golfo para o seu mergulho matinal.

Bill entra na água até que as ondas batam em seu peito. Ele fecha os olhos e relaxa no mar morno, organizando mentalmente o seu dia.

—        Filha da puta... — Bill salta para o lado, segurando o braço, procurando a água-viva que o queimou. — Mas que porra...?

Uma substância preta como alcatrão grudou em seu antebraço, queimando-lhe a carne.

—        Malditas companhias petrolíferas. — Ele balança o braço para a frente e para trás na água, sem conseguir limpar a gosma.

A dor ardente aumenta.

Xingando alto, Bill se vira e dá vários passos em direção à terra. Quando ele finalmente cambaleia até a praia, sangue já está escorrendo de suas duas narinas. Manchas vermelhas tiram-lhe a visão. Sentindo-se zonzo e confuso, ele cai de joelhos na areia.

—        Preciso de ajuda! Alguém pode me ajudar? Um velho casal mexicano se aproxima e pára.

—        Qué pasó, Señor?

—        Sinto muito, não falo espanhol. No hablo. Preciso de um médico. El doctor.

O homem olha para ele.

—        El doctor?

Uma dor penetrante inflama os olhos de Bill. Ele grita, agonizante, e enfia os punhos cerrados nos olhos.

—        Meu Deus, minha cabeça!

O homem olha para a esposa.

—        Por favor, llame a un médico.

A mulher sai correndo.

Bill Godwin sente como se seus olhos tivessem sido perfurados. Ele arranca tufos de cabelo, depois se curva e vomita uma bílis negra ensangüentada e ácida.

O velho mexicano está abaixado, tentando inutilmente ajudar o americano doente quando recua de repente e segura seu tornozelo.

— Hijo de la chingada!

O vômito fumegante respingou no pé do homem, queimando-lhe a carne.

 

                             Casa Branca, Washington, DC

Ennis Chaney sente sobre si os olhos do presidente Maller e de Pierre Borgia ao ler o relatório de duas páginas.

—        Nenhuma pista de onde veio essa porcaria tóxica?

—        Veio do Golfo, provavelmente de um dos campos petrolíferos da PEMEX — diz Borgia. — O mais importante é que uma dúzia de americanos e várias centenas de mexicanos morreram. As correntes confinaram a maré negra à costa do Yucatán, mas é importante que monitoremos a situação para garantir que o vazamento não chegue à costa americana. Também achamos importante manter uma presença diplomática no México durante essa crise ambiental.

—        Traduzindo?

Chaney nota o desconforto de Maller.

—        O Pierre acha que seria melhor você liderar a investigação. O problema do tráfico de drogas desgastou nossa relação com o México. Achamos que essa situação pode nos dar a oportunidade de consertar a cerca, por assim dizer. A imprensa acompanhará você...

Chaney suspira. Embora seu mandato oficial como vice-presidente só comece em janeiro, o Congresso já confirmou sua indicação para o posto vago. O novo cargo e a tarefa de ajudar seu gabinete a preparar sua saída do Senado o estão esgotando.

—        Deixe-me ver se entendi. Estamos nos preparando para um potencial conflito no Golfo Pérsico, mas o senhor quer que eu chefie uma missão diplomática no México? — Chaney balança a cabeça. — Que diabos posso fazer lá, além de oferecer minhas condolências? Com todo o respeito, presidente, nosso embaixador no México pode cuidar disso.

—        Isso é mais importante do que você imagina. Além disso — diz o presidente abrindo um sorriso forçado —, quem mais teria estômago para tanto? Você já trabalhou no Centro de Controle de Doenças Infectocontagiosas. E o seu trabalho durante a epidemia de dengue em Porto Rico há três anos foi uma tremenda cartada de relações públicas.

—        Minha participação não teve nada a ver com relações públicas.

Borgia fecha sua valise com estrondo.

—        O presidente dos Estados Unidos acaba de lhe dar uma ordem, vice-presidente. O senhor pretende cumprir o seu dever ou está pensando em renunciar?

Os olhos de guaxinim se arregalam, lançando setas contra Borgia.

—        Pierre, pode nos dar uns minutos?

O secretário de Estado tenta devolver o olhar de Chaney com seu único olho sadio, mas está em desvantagem.

—        Pierre, por favor.

Borgia sai.

—        Ennis...

—        Presidente, se está pedindo que eu vá, naturalmente eu irei.

—        Obrigado.

—        Não precisa me agradecer. Apenas informe àquele ciclope que Ennis Chaney não renuncia pra ninguém. Aquele moleque acaba de ir pro alto da minha lista negra.

 

O vice-presidente sobe a bordo do Sikorsky MH-60 Pave Hawk duas horas depois. Seu recém-promovido assistente, Dean Disangro, já está a bordo, junto com dois agentes do Serviço Secreto e meia dúzia de jornalistas.

Chaney está furioso. Durante toda a sua carreira política, ele jamais permitiu que o tratassem como um lacaio de relações públicas. As fronteiras partidárias e o politicamente correto nada significam para ele. Pobreza e violência, educação e igualdade racial, essas são as lutas que vale a pena travar. Ele costuma se imaginar como um Dom Quixote moderno — lutando contra os moinhos de vento. Aquele caolho de merda pode achar que me controla, mas acabou de comprar briga com um cara que não pensa duas vezes antes de pisar em cima.

Dean traz para o vice-presidente um copo de café descafeinado. Ele sabe que Chaney detesta voar, especialmente em helicópteros.

—        O senhor parece nervoso.

—        Cale a boca. O que é isso que eu ouvi sobre sairmos da rota?

—        Vamos parar no Forte Detrick pra pegar o pessoal do USAMRIID antes de ir para Yucatán.

—        Maravilha. — Chaney fecha os olhos e segura o braço da poltrona quando o Sikorsky salta para o céu.

Treze minutos depois, o helicóptero pousa no Instituto. De sua janela, Chaney vê dois homens supervisionando o carregamento de várias caixas grandes.

Os dois homens sobem a bordo. Um oficial de cabelo prateado se apresenta.

—        Vice-presidente, sou o coronel Jim Ruetenik, um especialista militar em ameaças biológicas destacado para a sua equipe. Este é o meu colega, dr. Marvin Teperman, um exobiólogo emprestado de Toronto.

Chaney examina o canadense baixinho, de bigode fininho e irritante sorriso amigável.

—        O que é um exobiólogo, exatamente?

—        A exobiologia trata do estudo da vida fora do nosso planeta. Essa gosma pode conter uma cepa de vírus que jamais vimos antes. O AMRIID achou que eu poderia ajudar.

—        O que há nas caixas?

—        Trajes anti-contaminação — responde o coronel. — Trajes espaciais portáteis e pressurizados que usamos quando saímos a campo e lidamos com agentes potencialmente ativos.

—        Já conheço os trajes, coronel.

—        É verdade, o senhor esteve em Porto Rico durante a epidemia de dengue de 2009.

—        Temo que isto vá ser um pouco mais nojento — diz Marvin. — Pelo que fiquei sabendo, o contato físico com a substância causa hemorragia generalizada por todos os orifícios do corpo.

—        Eu agüento. — Chaney se segura no assento durante a decolagem. — É a porcaria do helicóptero que me dá enjôo.

O coronel sorri.

—        Assim que pousarmos, nossa primeira preocupação será ajudar os mexicanos a estabelecer zonas cinza, quer dizer, áreas intermediárias entre os locais contaminados e o resto da população.

Chaney ouve um pouco mais, depois reclina o assento da poltrona e fecha os olhos. Trajes anti-contaminação. Hemorragia generalizada. Que diabos estou fazendo aqui?

 

Quatro horas depois, o Sikorsky diminui a velocidade e paira sobre uma praia branca, manchada por uma substância preta como alcatrão. Partes infectadas do litoral foram isoladas com barreiras de madeira laranja.

O helicóptero percorre a praia deserta para o leste, aproximando-se de uma série de barracas da Cruz Vermelha que foram erguidas num trecho isolado. Uma fogueira gigantesca arde a 50 metros do local, sua fumaça marrom deixando um rastro espesso de quilômetros no céu sem nuvens.

O Sikorsky voa lentamente e pousa num estacionamento cercado adjacente à área das barracas.

—        Vice-presidente, acho que este traje é do seu tamanho. — O coronel Ruetenik lhe entrega um traje laranja de astronauta.

Chaney vê Dean vestindo um traje.

—        Errado. Sente a bunda aí, vovô, você fica aqui. A imprensa e os seguranças também.

—        Meu trabalho é ajudar o senhor...

—        Me ajude ficando aqui.

Chaney sai do helicóptero vinte minutos depois, acompanhado por Teperman e pelo coronel. Os três estão usando os volumosos trajes laranja e os tanques de ar.

Um médico os recebe na entrada da barraca principal. Chaney nota uma gosma verde pingando do traje branco do homem.

—        Sou o dr. Juarez. Obrigado por virem tão rápido. O coronel Ruetenik faz as apresentações.

—        Isso é a substância tóxica no seu traje, doutor? — Chaney pergunta, apontando para o líquido verde.

—        Não, senhor. É Envirochem, uma aliada nossa. Usamos como desinfetante. Não deixe de borrifá-la no seu traje antes de se trocar. Venham comigo, vou mostrar a nossa inimiga.

Chaney sente gotas de suor escorrendo dos lados do seu rosto ao seguir os outros para a área de quarentena.

Dúzias de pessoas jazem em macas de plástico na barraca da Cruz Vermelha. A maioria usa trajes de banho. Todas estão cobertas de manchas negras de sangue e bílis. Os que estão conscientes gemem de dor. Trabalhadores usando trajes de plástico e pesadas botas e luvas de borracha estão removendo sacos com cadáveres da barraca no mesmo ritmo em que novas vítimas são trazidas para dentro.

O dr. Juarez balança a cabeça.

—        Este lugar virou uma zona de guerra. O maior estrago aconteceu nas primeiras horas da manhã, antes que se percebesse o quanto a gosma era contagiosa. Isolamos as praias ao meio-dia, mas a primeira leva de médicos e voluntários se contaminou, o que piorou muito as coisas. Começamos a identificar as vítimas e queimar os cadáveres para diminuir o alastramento.

Eles entram na barraca adjacente. Uma bonita enfermeira mexicana de traje anti-contaminação está sentada ao lado de uma maca, segurando a mão de um americano de meia-idade em sua mão enluvada.

O dr. Juarez dá um tapinha afetuoso no ombro dela.

—        Enfermeira, quem é esse cavalheiro?

—        É o sr. Ellis, um artista da Califórnia.

—        Sr. Ellis, está me ouvindo?

O sr. Ellis está de costas, com o olhar perdido, os olhos arregalados. Ennis Chaney estremece. Os globos oculares do homem estão completamente pretos.

O coronel puxa o médico para o lado.

—        Como a infecção está se espalhando?

—        Pelo contato físico com a maré negra ou com as excreções de alguém contaminado. Não há nada que sugira que o vírus se espalhe pelo ar.

—        Marvin, pegue o gravador de microfita, por favor, e fique a postos com a caixa de amostras.

O coronel pega o gravador em miniatura da mão de Teperman e começa a falar enquanto assiste o dr. Juarez com o exame.

—        O paciente parece ter entrado em contato com a substância no polegar, indicador e médio direitos. A carne dos três dedos foi corroída até o osso. Os globos oculares estão imóveis, sangrando e completamente enegrecidos. O paciente parece em choque. Enfermeira, há quanto tempo o sr. Ellis entrou em contato com a maré negra?

—        Não sei, senhor. Duas horas, talvez.

Marvin fala ao ouvido de Chaney.

—        Essa coisa age bem rápido.

O coronel ouve o comentário e balança a cabeça.

—        A pele do paciente está úmida, amarelada, com manchas negras aparecendo nos membros superiores e inferiores. — O coronel Ruetenik toca com cuidado as bolhas de sangue sob a pele de Ellis. — Bolhas são evidentes em ambos os membros superiores...

O dr. Juarez se senta ao lado do paciente, que parece estar saindo do estupor.

—        Tente não se mexer, sr. Ellis. O senhor entrou em contato com alguma espécie de...

—        Minha cabeça está me matando. — Ellis levanta o corpo de repente, o sangue negro pingando das narinas. — Quem são vocês, caralho? Ai, meu Deus... — Sem aviso, uma enorme quantidade de sangue negro e espesso, misturado com tecidos, esguicha com força da boca de Ellis. A bílis fumegante escorre pelo seu peito e espirra nos capacetes de Teperman e da enfermeira.

Chaney se afasta vários passos, a visão da bílis negra causa-lhe ânsia. Ele engole o vômito que sobe pela sua garganta e desvia o olhar, tentando se recompor.

A enfermeira continua ajoelhada diante do paciente, segurando as duas mãos de Ellis, a compaixão impedindo-a de desviar o olhar do rosto horrorizado do moribundo.

O sr. Ellis olha para o dr. Juarez e o coronel com dois buracos negros, uma expressão inerte em seu rosto ensangüentado, sentado rigidamente, como se temesse se mover.

—        Estou derretendo por dentro — ele geme.

Chaney vê o tronco do homem começando a tremer e se retorcer. Com um estertor revoltante, ele vomita mais bílis negra, que desta vez flui também das narinas e dos olhos. Ela escorre pelo pescoço de Ellis, seguida por um rio de sangue rubro e brilhante.

O dr. Juarez segura o corpo pelos cotovelos e o tronco da vítima sofre violentos espasmos. Chaney fecha os olhos e reza.

O médico e a enfermeira deitam o saco inerte de órgãos infectados sobre a maca.

O coronel Ruetenik continua de pé ao lado do cadáver ensangüentado e prossegue friamente com o exame.

—        O paciente aparenta ter sofrido uma hemorragia generalizada e maciça. Marvin, traga a caixa de amostras. Quero várias ampolas desse excremento negro, bem como amostras de tecido e órgãos.

Ennis Chaney precisa de toda a sua força de vontade para não vomitar dentro do capacete. Suas pernas estão tremendo visivelmente enquanto vê Marvin Teperman ajoelhado ao lado do morto, enchendo vários pequenos recipientes com o sangue contaminado. Cada amostra é cuidadosamente colocada na caixa, um cilindro de papelão encerado.

Chaney sua profusamente. Ele se sente sufocar dentro do traje.

Os quatro homens deixam a enfermeira fazendo a limpeza.

O coronel puxa Chaney para o lado.

—        O Marvin vai voltar pra Washington com o senhor pra completar a análise dessas amostras. Eu gostaria de ficar um pouco mais. Se o senhor pu¬desse providenciar...

—        Diego! — A enfermeira sai da barraca de isolamento, cambaleando e gritando em espanhol. O dr. Juarez segura-a pelos pulsos.

—        Carajo! — Juarez olha para o pequeno rasgo no cotovelo esquerdo do traje dela. A pele do braço exposto está fumegando, uma mancha de vômito preto do tamanho de uma moeda já queimando a maior parte da carne até o osso.

O coronel Ruetenik lava o braço dela com o desinfetante verde.

—        Calma, Isabel, acho que agimos a tempo. — O dr. Juarez olha para o vice-presidente, seu rosto desesperado, com lágrimas nos olhos. — Minha esposa...

Chaney sente um nó crescendo em sua garganta ao olhar nos olhos apavorados da mulher condenada.

—        Diego, ampute o meu braço!

—        Isa...

—        Diego, vai infectar o bebê!

Chaney fica o suficiente para ver Juarez e Ruetenik levando a mulher aos gritos para a cirurgia. Depois sai correndo da barraca, tentando tirar o capacete e tropeçando num monte de areia. Ele cai de joelhos, procurando o zíper na gola do traje, sentindo a bílis subindo em sua garganta.

—        NÃO! — Marvin segura Chaney pelo pulso, impedindo por um triz que ele retire o capacete. O exobiólogo borrifa desinfetante verde no traje laranja do vice-presidente, que vomita sobre a viseira do capacete.

Marvin espera-o terminar, depois o pega pelo braço e o conduz até os chuveiros químicos. Os dois homens entram debaixo do jato de desinfetante com os trajes anti-contaminação, depois passam para um segundo chuveiro de água, onde tiram os trajes.

Chaney joga a camisa suja num saco plástico. Ele lava o rosto e o pescoço, depois se senta num banquinho, sentindo-se fraco e vulnerável.

—        O senhor está bem?

—        Merda. Estou muito longe disso. — Ele balança a cabeça. — Perdi o controle.

—        O senhor se saiu bem. Esta é a quarta vez que visito uma zona de contágio. O coronel já esteve em pelo menos uma dúzia.

—        Como vocês agüentam? — ele arfa, suas mãos ainda tremendo.

—        Fazemos o melhor que podemos para nos distanciar enquanto estamos ali, depois vamos pro chuveiro, tiramos o traje e vomitamos.

Distanciar. Malditos moinhos de vento. Estou ficando velho demais pra lutar contra eles.

—        Vamos pra casa, Marvin.

Chaney segue Teperman de volta para o helicóptero. Ao subir a bordo, ele se vira e vê dois homens jogando mais um cadáver na pira funerária.

É a enfermeira.

 

             24 DE NOVEMBRO DE 2012, HOLLYWOOD BEACH, FLÓRIDA

As lágrimas escorrem tão copiosamente de seus olhos que Dominique mal consegue ver a imagem de Edie no vídeo-comunicador. O rabino Steinberg aperta com mais força a sua mão enquanto a esposa dele esfrega as suas costas.

—        Edie, não entendo. O que aconteceu? O que o Iz estava fazendo lá?

—        Investigando aqueles sons vindo da cratera.

Um uivo sobe de sua garganta. Ela esconde o rosto no peito do rabino, soluçando incontrolavelmente.

—        Dominique, olhe pra mim! — Edie ordena.

—        É minha culpa.

—        Pare. Isso não teve nada a ver com você. O Iz estava lá fazendo o trabalho dele. Foi um acidente. A Guarda Costeira mexicana está investigando...

—        E a autópsia?

Edie desvia olhar, lutando para conter sua própria dor.

O rabino Steinberg encara Dominique.

—        Os três corpos foram infectados pela maré negra. Tiveram que ser queimados.

Dominique fecha os olhos, seu corpo tremendo.

O rosto de Edie volta a ocupar a tela.

—        Escute, querida. Vamos fazer o funeral daqui a dois dias. Quero que você venha pra casa.

—        Eu vou. Vou ficar em casa por uns tempos. Tudo bem?

—        E a sua residência?

—        Já não importa mais. — Ela enxuga as lágrimas. — Edie, eu sinto muito...

—        Apenas venha pra casa.

 

O céu cinza da tarde está ameaçador quando Dominique sai do portão térreo do prédio em Hollywood Beach. Ela atravessa a A-l-A e destranca a porta do Pronto Spyder, jogando sua valise no banco do passageiro. Ela inspira profundamente, sentindo o cheiro do mar e da chuva iminente, depois entra no carro.

Dominique gira a chave na ignição e aperta o botão da partida, apoiando a testa no volante enquanto espera que o sistema antifurto e de segurança complete sua análise.

Iz morreu. Ele morreu, e a culpa é minha. Ela fecha os olhos e balança a cabeça. A culpa é toda minha.

O CD player liga.

O aparelho está programado no modo Digital DJ. O computador de bordo do carro esporte registra a temperatura de suas mãos no volante, interpretando o seu humor.

O CD Best of the Doors é selecionado.

Pense bem. O tempo estava calmo, e Iz era experiente demais no mar pra deixar o barco simplesmente afundar. Algo terrível e imprevisto deve ter acontecido.

O som familiar de baquetas dançando sobre o prato da bateria se entrelaça com seus pensamentos. Notas pungentes de uma guitarra oriental a tocam, alimentando o seu sofrimento, mas de alguma forma também a acalmam. Lembranças de Iz cruzam sua mente. Uma profunda tristeza recarrega suas emoções esgotadas quando a letra da música chega ao seu coração, empurrando-a mais uma vez para o abismo. Lágrimas quentes a cegam quando a estrofe melódica de Jim Morrison ecoa em seus ouvidos.

 

This is the End... beautiful friend,

This is the End... my only friend, the End.

 

Hipnotizada pelo surreal epitáfio, ela levanta a cabeça do volante e vê os primeiros pingos de chuva batendo no pára-brisa. Ela fecha os olhos para o aguaceiro, e as lembranças de Iz, Edie e Mick rodopiam em sua mente, fora de controle.

 

—        Você parece cansada, menina...

—        Apenas venha pra casa...

 

Lost in a romance, wilderness of pain.

 

—        Se eu não estivesse... aprisionado... você acha... você acha que poderia me amar?

 

And all... the children... are insane,

Waiting for the summer rain, yeahhh...

 

—        Quatro Ahau, três Kankin. Você sabe que dia é esse, não sabe, Dominique?

—        Você acredita em Deus?

—        Você parece cansada, menina...

—        Você acredita no mal?

 

There's danger on the edge of town...

 

—        Você precisa fazer alguma coisa! A cratera de Chicxulub... o relógio está andando...

—        Querida, você é uma só. Não pode achar que vai salvar o mundo...

—        O relógio está andando... e nós vamos todos morrer!

—        Não pode achar que vai salvar o mundo...

—        O relógio está andando...

 

Father, I want to kill you...

 

Dominique cai sobre o volante, seus soluços competindo com as vociferações de luxúria edipiana de Jim Morrison.

Abrandando-se de novo, as notas orientais retomam o controle.

 

This is the End... beautiful friend,

This is the End... my only friend, the End.

 

—        Nenhum de nós tem controle sobre o jogo ou as cartas que recebemos. O que temos é responsabilidade total sobre como jogamos com essas cartas.

O motor do Spyder arranca, assustando-a.

 

This is the End...

 

Ela desliga o som e enxuga as lágrimas, enquanto a chuva continua bombardeando o pára-brisa. Ela olha para cima e se vê no espelho retrovisor. Jogar com as cartas que recebemos.

Por vários minutos, ela continua a olhar para a frente, a determinação substituindo a dor, sua mente se concentrando num plano. Então ela ativa o telefone do carro e tecla o número do rabino Steinberg.

—        Sou eu. Não, ainda estou aqui embaixo. Tenho que fazer uma coisa importante antes de ir pra Sanibel, mas vou precisar da sua ajuda.

 

                       25 DE NOVEMBRO DE 2012, MIAMI, FLÓRIDA

21h54

O Pronto Spyder preto vira à direita na 23rd Street, faz uma conversão e estaciona ao lado de um poste telefônico na calçada, em frente ao muro de concreto branco de 6 metros de altura. A rua lateral, que ladeia o sanatório ao norte, vira para o oeste por mais duas quadras antes de terminar numa tecelagem abandonada. O bairro é esquálido e a rua está deserta, exceto por um furgãozinho Dodge estacionado no fim da quadra.

Dominique sai do carro, sentindo a adrenalina. Ela abre o porta-malas, olha se não há ninguém por perto, e tira 15 metros de uma corda branca de náilon de um centímetro e meio de espessura. A corda tem nós a intervalos de meio metro. Abaixando-se como se quisesse verificar o pneu traseiro direito, ela amarra uma ponta da corda na base do poste, voltando depois para o porta-malas.

Ela abre a caixa grande de papelão e tira dela o modelo de helicóptero de controle remoto de 80 centímetros. Ele tem uma garra mecânica sob o minúsculo trem de pouso. Dominique posiciona o último nó da ponta solta da corda na garra e a fecha.

Certo, não estrague tudo agora. Mantenha a corda longe do arame farpado.

Ela liga o motor à bateria do helicóptero, fazendo uma careta ao ouvir o zumbido agudo e barulhento dos rotores. O brinquedo decola, balançando ao lutar para puxar a corda. Dominique manobra o aeromodelo numa subida em vertical bem acima do muro de concreto, usando todo o comprimento da corda.

Isso, com calma...

Usando o controle, ela guia o helicóptero para além do muro, sobre o jardim, e, acionando a garra, solta a corda.

A ponta livre cai no jardim e o resto da corda cai entre as voltas de arame farpado, pousando no topo da barreira de concreto.

Perfeito. Vai! Dominique empurra o controle para a direita. O aeromodelo voa para a tecelagem no fim da rua e desaparece por cima do telhado do imóvel abandonado. Ela desliga o controle remoto e ouve o som revelador do plástico se despedaçando a distância.

Fechando o porta-malas, ela volta para o carro e entra no estacionamento dos funcionários.

Dominique olha o relógio: 22:07. Quase na hora. Ela tira do porta-luvas, a vela queimada e a chave de vela, desliga o motor do carro e abre o capô.

Fecha o capô três minutos depois, usando um pano úmido para limpar a graxa das mãos. Depois de retocar a maquiagem, ajeita por um momento o top aderente e cobre seu decote revelador com o suéter de cashmere cor-de-rosa.

Certo, Mick, agora é com você.

Ela corre para a entrada do Centro, rezando para que Mick estivesse lúcido quando eles conversaram naquela tarde.

 

22h14

Michael Gabriel está sentado na beirada do colchão fino, seus olhos negros perdidos, olhando para o chão. Sua boca está aberta e a saliva pinga do lábio inferior. O lado de dentro do antebraço esquerdo, coberto de hematomas, está virado para cima, apoiado na coxa, um convite ao açougueiro. O braço direito está ao lado do corpo, o punho semicerrado. Ele ouve o enfermeiro se aproximando.

—        Ei, Marvis, é verdade? É a última noite do vegetal aqui?

Mick respira fundo, tentando acalmar seu coração acelerado. A presença do vigia do sétimo andar complica as coisas. Você tem só uma chance. Derrube os dois, se precisar.

Marvis desliga o televisor do núcleo e termina de limpar as manchas de suco de uva da mesinha de café.

—        Sim. Amanhã o Foletta vai levá-lo pra Tampa.

As portas se abrem. Com sua visão periférica, Mick vê o sádico se aproximando, a sombra do outro homem esperando perto da porta.

Ainda não. O Marvis vai fechar a porta se você pular. Espere até ele ir embora. Deixe o animal te espetar.

O enfermeiro segura o pulso esquerdo de Mick e empurra a seringa na veia inchada, quase quebrando a ponta da agulha ao injetar o Thorazine no vaso sanguíneo danificado.

Mick contrai os músculos abdominais com a dor, forçando seu tronco a não se encolher.

—        Ei, Barnes, vá devagar com ele, ou eu te denuncio de novo.

—        Vá se foder, Marvis.

Marvis balança a cabeça e se afasta.

Os olhos de Mick giram para o alto. Seu corpo vira gelatina e ele desaba sobre o lado esquerdo, olhando para o teto, como um zumbi.

Barnes verifica que Marvis foi embora e abre o zíper da calça.

—        Ei, amor, quer provar uma coisa? — Ele se curva e se aproxima do rosto de Mick. — Por que não abre essa boquinha linda e...

O enfermeiro não vê o punho, só a explosão de luz avermelhada quando os nós dos dedos médio e anular de Mick atingem sua têmpora exposta. Barnes desaba no chão, abalado, mas ainda consciente. Mick o puxa pelo cabelo e o olha nos olhos.

—        Doce ou travessura, filho da puta? — Ele enfia o joelho no rosto de Barnes, tomando cuidado para não deixar o sangue espirrar no uniforme do enfermeiro.

 

22h18

Dominique digita a senha numérica e espera que a câmera infravermelha percorra o seu rosto. A luz vermelha se torna verde, deixando-a entrar no posto central da segurança.

Raymond se vira para encará-la.

—        Ora, olha só quem está aqui. Veio se despedir do seu namorado psicótico?

—        Você não é meu namorado.

Raymond dá um murro nas barras de ferro da porta.

—        Nós dois sabemos de quem eu estou falando. Daqui a pouco vou fazer uma visitinha pra ele. — Os dentes amarelos aparecem. — E, gatinha, eu e o seu garoto vamos nos divertir.

—        Faça o que quiser — diz ela, se encaminhando para o elevador.

—        Que história é essa?

—        Eu vou embora. — Dominique tira um envelope da bolsa. — Está vendo isto? É uma carta de demissão. Vou largar a residência e abandonar o curso. O Foletta está na sala dele?

—        Você sabe que não.

—        Ótimo, então vou deixar isso com o Marvis. Se não for muito além das suas capacidades, libere o acesso pro sétimo andar.

Raymond a olha com desconfiança. Ele ativa o elevador, apertando o botão do sétimo andar no seu painel, depois fica olhando para ela no monitor das câmeras de segurança.

 

Marvis está para deixar sua mesa e ir procurar Barnes quando as portas do elevador se abrem.

—        Dominique? O que você está fazendo aqui?

Ela pega Marvis pelo braço e dá a volta na mesa com ele, virando-o de costas para o elevador e o corredor até o núcleo de Mick.

—        Eu queria falar com você, mas não queria que aquele enfermeiro, o Barnes, ouvisse.

—        Ouvisse o quê?

Dominique lhe mostra o envelope.

—        Estou indo embora.

—        Por quê? O semestre está quase acabando.

Seus olhos se enchem de lágrimas.

—        Meu... meu pai morreu num acidente de barco.

—        Caramba. Eu sinto muito.

Ela soluça e deixa que Marvis a console, encosta a cabeça no ombro dele, seus olhos sempre no corredor que leva para o núcleo 7-C.

Mick cambaleia para fora do seu quarto, usando o uniforme e o boné de beisebol de Barnes. Ele bate a porta e se dirige para o elevador.

Dominique põe a mão no pescoço de Marvis, como se o estivesse abraçando, impedindo que ele se vire.

—        Você me faria o favor de entregar esta carta pro dr. Foletta?

—        Claro. Você quer sair, conversar, fazer alguma coisa?

As portas do elevador se abrem. Mick cambaleia para dentro. Ela se afasta.

—        Não, já estou atrasada. Preciso pegar a estrada. O funeral é amanhã de manhã. Barnes, segure o elevador, por favor...

Um braço impede que as portas se fechem. Dominique dá um beijo no rosto de Marvis.

—        Se cuida.

—        Você também.

Dominique entra no elevador e as portas se fecham atrás dela. Em vez de olhar para Mick, ela dirige o olhar diretamente para a câmera localizada no canto do teto do elevador.

Distraidamente, ela mexe na bolsa.

—        Qual o andar, sr. Barnes?

—        Terceiro.

Ela ouve o cansaço na voz dele. Ergue três dedos para a câmera, depois um dedo, e continua a olhar para a lente enquanto Mick pega o pesado alicate de corte da outra mão dela e o enfia no bolso.

O elevador para no terceiro andar. As portas se abrem.

Mick sai, trôpego, quase caindo de cara no chão.

As portas se fecham.

Mick se vê sozinho no corredor. Cambaleia para a frente, os azulejos verdes do corredor girando em sua cabeça. A dose maciça de Thorazine o está derrotando, e não há nada que ele possa fazer para reagir, agora. Cai duas vezes, depois se apóia na parede e usa todas as forças para sair no jardim.

O ar noturno o reanima momentaneamente. Ele consegue alcançar os degraus de concreto e abraçar o corrimão de aço. Três lances íngremes de escada rodopiam em sua visão. Ele pisca com força, incapaz de desanuviar os olhos. Muito bem, você consegue. Um passo... agora ponha o pé no chão. Ele tropeça ao descer os três primeiros degraus, depois consegue se segurar. Se concentra! Um de cada vez. Não se incline...

Ele rola os últimos 3 metros, batendo dolorosamente com as costas no chão.

Por um momento perigoso, ele deixa que seus olhos se fechem, dando ao sono uma oportunidade de tomar conta. Não! Ele se vira, fica de pé e arrasta as pernas dolorosamente rumo ao monstro de concreto que rodopia à sua frente.

 

Dominique desabotoa o suéter de cashmere, respira fundo e sai do elevador. Ao se aproximar do posto de segurança, corre os olhos pela dúzia de monitores às costas de Raymond, que mostram continuamente imagens de vários pontos do prédio.

Ela avista a câmera do jardim. Uma figura de uniforme está lutando para escalar o muro nu de concreto.

Raymond ergue a cabeça e olha para o seu decote.

 

Os braços de Mick parecem de borracha. Por mais que ele tente, não consegue fazer os músculos obedecerem aos seus comandos.

Ele sente o nó da corda escorregar dos seus dedos e cai de 2 metros e meio de altura, quase quebrando os dois tornozelos na terra dura.

 

Dominique vê Mick cair e sufoca um grito. Antes que Raymond possa reagir, ela tira o suéter, revelando o seu decote.

—        Meu Deus, por que vocês deixam isso aqui tão quente?

Os olhos de Raymond estão saltados. Ele se levanta da cadeira e fica de pé ao lado da porta.

—        Você gosta de me provocar, não gosta?

Com a visão periférica, ela vê Mick ficar de pé. Ele começa a subir de novo. A imagem muda.

—        Ray, vamos ser francos, com tantos anabolizantes nesse seu corpo, você não consegue ficar de pau duro tempo suficiente pra me dar prazer.

Raymond abre a porta.

—        Pra alguém que quase quebrou meu pescoço há três semanas você tem uma boca bem suja.

—        Você não entende mesmo, não é? Nenhuma mulher gosta de ser forçada.

—        Sua vagabundinha. Você quer me fazer violar a condicional, não quer?

—        Talvez eu só esteja tentando pedir desculpas.

Vamos, Mick, mexa-se...

 

A dor o mantém consciente.

Mick cerra mais os dentes, gemendo ao se puxar para cima, andando na parede como um alpinista. Mais três passos. Só mais três, seu babaca, vamos. Dois agora. Mais dois, mexa esses braços, aperte mais a corda. Isso, isso. Pare, respire fundo. Certo, o último, vamos...

Ele chega ao alto do muro. Segurando-se de forma precária, enrola rapidamente algumas voltas da corda no braço esquerdo para não cair. O rolo de arame farpado está a centímetros de sua testa. Mick pega o alicate do bolso de trás e abre as lâminas sobre uma parte do arame à direita da corda.

Ele aperta o alicate com toda a força, até que o aço se quebra. Reposicionando o alicate, luta para se concentrar na outra parte do arame através do nevoeiro do Thorazine, que já toma conta de sua visão periférica.

 

Raymond se apóia na parede e olha para os dois volumes perfeitos sob o top de Dominique.

—        O acordo é o seguinte, gatinha. A gente faz bem gostoso, e eu prometo que deixo teu garoto em paz.

Ela finge se coçar e olha rapidamente para o monitor através das barras da porta. Mick ainda está cortando o arame farpado.

Enrole esse porco.

—        Quer fazer aqui mesmo?

A mão dele lhe sobe pelo braço.

—        Você não vai ser a primeira.

Uma onda de náusea toma conta dela quando ele passa a ponta do indicador na auréola do seu mamilo.

 

Mick retira a seção do arame farpado e sobe no alto do muro, equilibrando-se precariamente sobre o peito. Ele se aproxima da beirada e olha para o outro lado, para a queda de 6 metros.

—        Caramba...

Grunhindo, ele puxa a ponta livre da corda em sua direção e a enrola várias vezes nas outras voltas de arame farpado, cortando-se nas farpas. Enrolando a corda nos pulsos, ele passa por cima do muro — e cai.

Mick cai 3 metros e meio antes que a corda se enrosque no arame farpado, detendo a sua queda. Pendurado pelos pulsos, sente seu peso puxando as voltas de arame do alto do muro enquanto cai para a calçada.

Segundos depois, ele está de quatro, olhando para os faróis que se aproximam como um animal desorientado.

 

— Espere, Ray, eu disse pra parar! — Dominique tira a mão dele de seu seio e puxa uma latinha de spray de pimenta da bolsa.

—        Sua puta, você está brincando comigo!

Ela recua.

—        Não, apenas decidi que a vida do Mick não vale o que você está pedindo.

—        Sua piranha...

Ela se vira e apóia o rosto sobre o sensor. Vamos... Ela espera pelo barulho da trava, depois abre a porta e sai.

—        Tudo bem, gatinha, você fez sua escolha. Agora o seu garoto vai ter que agüentar. — Raymond abre a gaveta da escrivaninha, tira uma mangueira de um centímetro e meio de espessura e vai para o elevador.

 

Dominique chega ao estacionamento, aliviada ao ver o furgãozinho Dodge pegando a Route 441. Ela abre o capô do carro e aperta a tecla pré-programada com o número do serviço mecânico de emergência.

 

O elevador para no sétimo andar. Raymond desliga a energia e sai dele.

Marvis ergue o olhar.

—        Algum problema?

—        Continue vendo TV, Marvis. — Raymond anda pelo núcleo 7-C, parando no quarto 714. Ele digita a senha.

O quarto está mal iluminado. O cheiro azedo de desinfetante e roupas sujas enche o ar.

O ocupante da cela está deitado no colchão, de costas para Raymond, com o lençol puxado até as orelhas.

—        Boa noite, babaca. Estou trazendo um presentinho da tua namorada.

Raymond desce a mangueira com força no rosto do homem adormecido.

Um grito agonizante. O homem tenta se levantar. O grandalhão o derruba de novo com um pontapé, depois espanca suas costas e seus ombros várias vezes, até descarregar toda a testosterona.

Raymond fica perto do corpo, ofegante com o esforço.

—        Foi bom pra você, seu merda? Espero que tenha sido, porque foi muito bom pra mim.

Ele puxa o lençol.

—        Puta que pariu...

 

O rabino Steinberg para o furgãozinho Dodge no acostamento, perto do latão de lixo atrás da loja de conveniência. Ele abre a porta lateral, tira a corda de náilon e a joga rapidamente no lixo. Depois, entra na traseira e ajuda Mick a se levantar e a se sentar no assento.

—        Você está bem?

Mick lhe dirige um olhar sem foco.

—        Thorazine.

—        Eu sei. — O rabino levanta a cabeça de Mick e lhe dá um gole d'água, fazendo uma careta ao ver os hematomas no seu braço. — Você vai ficar bem. Descanse, a viagem é longa.

Mick está inconsciente antes que sua cabeça pouse no banco do carro.

 

O guincho já está puxando o Pronto Spyder sobre a sua traseira quando as primeiras viaturas da polícia de Dade County chegam.

Raymond sai do prédio para recebê-los e vê Dominique.

—        É ela! Prendam essa mulher! Dominique finge surpresa.

—        Do que você está falando?

—        Vá se foder, você sabe do que estou falando. Gabriel fugiu.

—        O Mick fugiu! Meu Deus, como? — Ela olha para os policiais. — Não podem achar que eu tive alguma coisa a ver com isso. Estou parada aqui há vinte minutos.

O motorista do guincho balança a cabeça.

—        É verdade, agente. Eu sou testemunha. E nós não vimos nada.

Um Lincoln Continental freia diante da entrada principal. Anthony Foletta sai do carro usando um agasalho esportivo amarelo-claro.

—        Raymond, o que... Dominique, que diabos você está fazendo aqui?

—        Vim entregar minha carta de demissão. Meu pai morreu num acidente de barco. Estou largando a residência. — Ela olha para Raymond. — Parece que o seu capanga aqui fez uma besteira e tanto.

Foletta olha para ela e puxa um dos policiais para o lado.

—        Agente, sou o dr. Foletta, diretor deste Centro. Essa mulher trabalhava com o interno que fugiu. Se os dois planejaram isso juntos e ela ia dar carona pra ele, é bem provável que ele ainda esteja aqui dentro.

O policial instrui seus homens a entrarem no Centro com os cães, depois volta a sua atenção para Dominique.

—        Moça, pegue suas coisas, você vem comigo.

 

 

                     Diário de Julius Gabriel

Foi no final do outono de 1974 que meus dois colegas e eu chegamos à Inglaterra, todos muito felizes por voltar para a "civilização". Eu sabia que Pierre havia perdido o apetite pelo trabalho e queria voltar para os Estados Unidos. A pressão de sua família politicamente poderosa estava finalmente persuadindo-o a se candidatar. O que eu mais temia era que ele insistisse que Maria o acompanhasse.

Sim, temia. Para dizer a verdade, eu estava apaixonado pela noiva do meu melhor amigo.

Como alguém permite que algo assim aconteça? Ponderei essa questão mil vezes. Os assuntos do coração são difíceis de justificar, embora, de início, eu tenha certamente tentado. Era luxúria, me convenci, causada pela própria natureza do nosso trabalho. A arqueologia tende a ser uma profissão isolada. Equipes muitas vezes são obrigadas a morar e trabalhar em condições primitivas, abrindo mão dos prazeres mais simples da privacidade e da higiene para poder completar suas tarefas. O pudor perde lugar para a praticidade. O banho noturno numa fonte de água doce, o ritual diário de se vestir e se despir — a própria coabitação pode se tornar um festim para os sentidos. Um ato aparentemente inocente pode inflamar as gônadas e ativar o coração, enganando facilmente a mente enfraquecida.

No meu íntimo, eu sabia que tudo isso eram desculpas, pois a beleza morena de Maria havia me intoxicado desde que Pierre nos apresentara, no nosso primeiro ano juntos em Cambridge. Aquelas maçãs do rosto altas, o longo cabelo negro, aqueles olhos de ébano que irradiavam uma inteligência quase animal — Maria era uma visão que capturou a minha alma, um relâmpago que atingiu o meu ser, mas me proibia de agir, sob pena de destruir minha amizade com Borgia.

Mas eu não me entreguei. Convencido de que Maria devia continuar sendo uma garrafa de vinho delicioso que eu ansiava por saborear, mas jamais poderia abrir, trancafiei minhas emoções e joguei fora a chave diabólica — ou pensei ter feito isso.

Ao viajarmos de Londres para Salisbury naquele dia de outono, senti que uma bifurcação na estrada esperava o nosso trio, e que um de nós, provavelmente eu, seguiria por um caminho solitário.

Stonehenge é sem dúvida um dos lugares mais misteriosos da Terra, um templo bizarro de monumentais pedras verticais, dispostas num círculo perfeito como que por gigantes. Como havíamos visitado o sítio durante nosso curso de graduação, nenhum de nós esperava realmente encontrar qualquer nova revelação naquelas extensas planícies verdejantes do sul da Inglaterra.

Estávamos enganados. Mais um pedaço do quebra-cabeça estava lá, olhando-nos de frente.

Embora nem de longe tão antigo quanto Tiahuanaco, Stonehenge incorpora as mesmas façanhas aparentemente impossíveis de Engenharia e Astronomia que já vimos antes. Acredita-se que o próprio local fosse um ímã espiritual para os fazendeiros que chegaram às planícies depois do fim da última Era do Gelo. A encosta da colina devia certamente ser considerada sagrada, pois num raio de 3 quilômetros do monumento ficam nada menos que trezentos túmulos, vários dos quais nos forneceriam pistas vitais ligando a área a artefatos encontrados nas Américas Central e do Sul.

A datação por carbono nos conta que Stonehenge foi construído aproximadamente 5 mil anos atrás. A primeira fase da construção começou com um traçado preciso e circular de 56 mastros de madeira parecidos com totens, cercados por uma vala e uma lombada. Pequenas pedras azuis, transportadas de uma cordilheira a 150 quilômetros dali, substituiriam mais tarde esses marcos de madeira.

Elas, por sua vez, seriam substituídas por pedras monumentais, cujos restos ainda estão presentes nos dias de hoje.

 

As monstruosas pedras verticais que formam Stonehenge são chamadas pedras sarsan. São feitas da rocha mais dura da região e são encontradas na cidade de Avery, uns 30 quilômetros ao norte. A planta original de Stonehenge consistia em trinta dessas pedras, cada uma pesando incríveis 25 a 40 toneladas. Cada uma das grandes colunas de pedra precisava ser transportada por muitos quilômetros de terreno acidentado, depois posta de pé para formar um círculo perfeito de 30 metros de diâmetro. Lintéis de 9 toneladas ligavam o alto dos sarsans, trinta ao todo. Cada lintel precisou ser erguido a 6 metros do chão, depois colocado no lugar sobre os sarsans. Para assegurar um encaixe perfeito, os engenheiros antigos escavaram projeções arredondadas no alto de cada coluna. Esses "plugues" se encaixavam em "soquetes" ocos na parte inferior de cada lintel, permitindo que as peças se unissem como blocos de Lego gigantescos.

Depois que o monumental círculo de pedra estava completo, os construtores ergueram cinco conjuntos de trilithons, dois sarsans verticais unidos por um só lintel. Cada um desses trilithons, formados pelas maiores pedras do complexo, tem 7 metros e meio de altura, com mais um terço de sua massa enterrado no chão.

Cinco trilithons foram dispostos dentro do círculo, formando uma ferradura cuja boca dá para um altar de pedra alinhado com o solstício de verão. O trilithon central, o maior de todos, foi alinhado com o solstício de inverno, 21 de dezembro, o dia da profecia maia, um dia que a maioria das culturas antigas associa com a morte.

Como os aldeões da Idade da Pedra, na Inglaterra antiga, foram capazes de arrastar sarsans de 36 toneladas por 30 quilômetros de terreno acidentado, irregular? Como conseguiram levantar lintéis de 8 mil quilos a 6 metros do chão e encaixá-los perfeitamente no lugar? Além disso, que missão poderia ser importante a ponto de motivar esse povo pré-histórico a completar uma tarefa tão incrível?

Não sobreviveram registros escritos que identificassem os construtores de Stonehenge, mas uma lenda popular (embora absurda) aponta Merlin, o mago da corte do rei Artur, como o cérebro por trás da empreitada. Diz-se que o sábio barbado projetou o templo para funcionar como observatório cósmico e calendário celestial, além de um lugar de comunhão e adoração, até que foi misteriosamente abandonado em 1.500 a.C.

Enquanto Pierre voltava para Londres, Maria e eu saímos de Stonehenge para explorar os grandes túmulos em formato de morros que rodeiam o monumento, esperando encontrar os restos de crânios alongados que ligariam os sítios das Américas Central e do Sul àquele cemitério antigo. O maior túmulo da área é um subterrâneo de 100 metros, também construído com sarsans. Dentro desse túmulo estão os esqueletos de 47 indivíduos. Por algum motivo, os ossos foram anatomicamente separados em câmaras diferentes.

O que encontramos não foi tão surpreendente quanto o que não encontramos — faltavam ao menos uma dúzia de crânios dos maiores indivíduos!

Passamos os quatro meses seguintes indo de túmulo em túmulo, sempre com os mesmos resultados. Finalmente, chegamos ao que muitos arqueólogos consideravam o mais sagrado deles, uma fortificação de pedra localizada sob um túmulo em Loughcrew, região remota do centro da Irlanda.

Entalhados nas paredes de sarsan desse túmulo estão hieróglifos magníficos, o principal desenho sendo uma espiral. Eu me lembro do rosto de Maria, iluminado pela lanterna, quando seus olhos escuros examinaram os bizarros emblemas. Meu coração pulou quando seu rosto se acendeu, reconhecendo-os. Arrastando-me da tumba para a luz do dia, ela correu até o nosso carro e começou a abrir caixas contendo centenas de fotos que tiramos juntos, sobrevoando o deserto de Nazca num balão de ar quente.

— Julius, olhe, é aqui!— ela proclamou, enfiando-me uma fotografia em preto e branco sob os olhos.

A foto era da pirâmide de Nazca, um dos desenhos mais antigos do deserto, que acreditávamos ser de extrema importância. Dentro de seus contornos triangulares estão duas figuras: uma, um animal invertido de quatro patas, a outra, uma espiral.

A espiral era idêntica à dos entalhes encontrados dentro do túmulo.

Maria e eu estávamos empolgados com a descoberta. Ambos compartilhávamos havia algum tempo a convicção de que os desenhos de Nazca representavam uma mensagem antiga de salvação relacionada com a profecia do fim do mundo, a qual era destinada ao homem moderno. (Por que outro motivo o artista misterioso desenharia figuras tão grandes que só poderiam ser vistas de uma aeronave?)

Nosso entusiasmo foi esvaziado pela próxima pergunta lógica: Que pirâmide o desenho de Nazca representava?

Maria insistia que a estrutura tinha que ser a Grande Pirâmide de Gizé, o maior templo de pedra do mundo. Pela sua lógica, Gizé, Tiahuanaco, Sacsayhuaman e Stonehenge eram todos formados por pedras colossais, suas datas de construção eram próximas (ou nós pensávamos que fossem) e o ângulo da pirâmide de Nazca se parecia muito com as laterais íngremes da pirâmide egípcia.

Eu não me convenci tão facilmente. Minha teoria era de que muitos dos desenhos mais antigos de Nazca serviam como marcos de navegação, referências para nos apontar a direção certa. Ao redor da pirâmide de Nazca havia várias pistas que eu acreditava terem sido deixadas para que identificássemos a misteriosa figura triangular.

 

O mais importante desses ícones aparece dentro da borda da pirâmide, abaixo da espiral. É a imagem de um animal invertido de quatro patas, que eu supus ser um jaguar, talvez o bicho mais reverenciado de toda a Mesoamérica.

A segunda pista é o macaco de Nazca. Esse imenso ícone, desenhado numa só linha ininterrupta, tem uma cauda que termina em espiral, idêntica à forma que aparece dentro da pirâmide.

 

Os maias glorificavam o macaco, tratando-o como outra espécie de pessoa. O mito da criação do Popol Vuh diz que o quarto ciclo do mundo foi destruído por um grande dilúvio. As poucas pessoas que sobreviveram, acredita-se, foram transformadas em macacos. O fato de macacos não existirem em Gizé e na região sul do Peru indica, para mim, que a pirâmide retratada nos pampas de Nazca deve se localizar na Mesoamérica.

Baleias tampouco existem no deserto, no entanto, há desenhos de três desses animais majestosos no platô de Nazca. Expondo a teoria de que o misterioso artista usara as baleias para representar no pampa a água cercando três lados, tentei convencer Maria de que a pirâmide em questão devia representar um dos templos maias localizados na península de Yucatán.

De sua parte, Pierre Borgia não estava interessado em nenhuma das teorias. Perseguir fantasmas maias não importava mais para o noivo de Maria; o que importava era o poder. Como já falei, eu previra esse fato havia algum tempo. Enquanto Maria e eu estávamos ocupados explorando os túmulos, Pierre concluía seus planos de voltar aos Estados Unidos e se candidatar ao Congresso. Dois dias depois de termos feito nossa descoberta, ele anunciou, com grande pompa e circunstância, que já era tempo, para ele e a futura sra. Borgia, de se dedicarem a coisas mais importantes.

Aquilo partiu o meu coração.

Os planos para o casamento foram feitos rapidamente. Pierre e Maria se casariam na Catedral de São João, e eu seria o padrinho.

O que eu podia fazer? Me sentia desesperado, acreditando de todo coração que Maria estava destinada a ser minha alma gêmea. Pierre a tratava como uma posse, não como sua parceira. Ela era o seu troféu, a sua Jackie Onassis — um enfeite para o seu braço, que ele achava útil para suas ambições políticas como primeira-dama. Ele a amava? Talvez, pois que homem seria capaz de não amá-la? Mas será que ela o amava de verdade?

Isso eu precisava saber.

Foi só na véspera do dia do casamento que consegui tomar coragem de confessar-lhe o meu amor em voz alta. Olhando naqueles lindos olhos, nadando em lagos negros de veludo, eu podia imaginar os deuses sorrindo para a minha alma torturada quando Maria puxou minha cabeça para o seu peito e soluçou.

Ela sentia a mesma coisa por mim! Maria confessou que vinha rezando para que eu tomasse a iniciativa e a salvasse de uma vida com Pierre, que tinha o seu carinho, mas não o seu amor.

Naquele momento abençoado, eu me tornei sua salvação e ela, a minha. Como amantes desesperados, fugimos naquela noite, cada um deixando um bilhete para Pierre, pedindo perdão por nossos atos e nossas intenções imperdoáveis, nenhum dos dois forte o suficiente para encarar o homem.

Vinte horas depois, chegamos ao Egito — o sr. e a sra. Julius Gabriel.

— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,

Ref. Catálogo 1974-75 páginas 45-62

Diário Fotográfico, Disquete 2: Nome do arquivo: NAZCA,

Fotos 34 & 65

Diário Fotográfico, Disquete 3: Nome do arquivo: STONEHENGE, Desenho 6

 

         27 DE NOVEMBRO DE 2012, ILHA DE SANIBEL, FLÓRIDA

O grasnar agudo de uma gaivota faz Mick abrir os olhos.

Ele está deitado numa cama de casal, com os dois pulsos atados às laterais do estrado. Seu antebraço esquerdo está enfaixado. Um tubo de soro está espetado no direito.

Ele está num quarto residencial. Faixas de sol dourado refletem-se na parede oposta, entrando pelas venezianas que se agitam sobre sua cabeça. Ele sente o cheiro de sal no ar. Consegue ouvir o som da arrebentação do oceano entrando pela janela aberta.

Uma mulher grisalha, de uns 70 anos, entra no quarto.

—        Então você acordou. — Ela abre o velcro de seu pulso direito e verifica o frasco de soro.

—        A senhora é a Edie?

—        Não, sou Sue, esposa do Carl.

—        Quem é Carl? O que estou fazendo aqui?

—        Achamos perigoso levar você pra casa da Edie. A Dominique está lá, e...

—        Dominique? — Mick se esforça para erguer o corpo, mas a tontura o empurra para baixo de novo como uma mão pesada e invisível.

—        Calma aí, amigo. Você logo, logo, vai ver a Dominique. No momento, a polícia está de olho nela, esperando que você apareça. — Ela retira o tubo de soro e aplica um Band-Aid no seu braço.

—        A senhora é médica?

—        Fui assistente no consultório odontológico do meu marido por 38 anos. — Metodicamente, ela enrola o tubo no frasco de soro.

Mick nota seus olhos vermelhos.

—        O que tinha no soro?

—        Sobretudo vitaminas. Você estava mal quando chegou, dois dias atrás. Nada mais do que desnutrição, embora o seu braço esquerdo estivesse num estado deplorável. Você dormiu por quase 48 horas. Na noite passada, teve um pesadelo feio, gritava no sono. Tive que prender seus braços para que não arrancasse o soro.

—        Obrigado. E obrigado por me tirar daquele hospital.

—        Agradeça à Dominique. — Sue enfia a mão no bolso do casaco.

Mick fica surpreso ao vê-la puxar um revólver Magnum .44. Ela aponta a arma para a sua virilha.

—        Ei, espere aí...

—        Meu marido se afogou há alguns dias, a bordo do barco do Isadore. Três homens morreram enquanto investigavam o lugar do Golfo que você falou à Dominique. O que tem lá embaixo?

—        Não sei. — Ele olha para a arma, que treme nas mãos da idosa. — A senhora poderia mirar num órgão menos vital?

—        A Dominique contou tudo a seu respeito; por que você estava preso, sobre o biruta do seu pai e suas histórias do fim do mundo. Pessoalmente, estou me lixando se você acredita nessas maluquices apocalípticas, a única coisa que me importa é descobrir o que aconteceu com meu Carl. Pra mim, você é um fugitivo perigoso. Basta que me olhe torto e vou meter bala em você.

—        Entendi.

—        Não entendeu não. A Dominique se arriscou muito pra te libertar. Até agora, tudo na sua fuga aponta pra uma falha do enfermeiro, e não pra ela, mas a polícia ainda está desconfiada. Estão vigiando a Dominique de perto, o que significa que estamos todos em risco. Esta noite vamos te levar pro barco do Rex. Tem um minissubmarino a bordo...

—        Um minissubmarino?

—        Isso mesmo. O Rex o usava pra procurar navios naufragados. Você vai usá-lo pra descobrir o que está enterrado no leito do oceano. Até lá, vai ficar neste quarto e descansar. Se tentar fugir, te mato e entrego seu corpo à polícia pra pegar o dinheiro da recompensa.

Ela levanta o lençol. O tornozelo esquerdo de Mick está algemado ao estrado.

—        Agora você entendeu.

 

         NASA: Centro de Vôo Espacial Goddard, Greenbelt, Maryland

Ennis Chaney, contrariado, segue o técnico da NASA pelo corredor antisséptico de azulejos brancos.

O vice-presidente não está de bom humor. Os Estados Unidos estão à beira da guerra, e seu lugar é com o presidente e o Estado-Maior, não à disposição do diretor da NASA. Maldito caolho, com certeza me botou em mais uma de suas canoas furadas...

Ele fica surpreso ao ver um vigia parado à porta da sala de reuniões.

Ao ver Chaney, o vigia digita uma senha e abre a porta.

—        Pode entrar, senhor, estão à sua espera.

O diretor da NASA, Brian Dodds, está sentado à cabeceira da mesa de reuniões. Ao seu lado estão Marvin Teperman e uma mulher de 30 e tantos anos, de jaleco branco.

Chaney nota as olheiras escuras de Dodds.

—        Vice-presidente, entre. Obrigado por ter vindo tão prontamente. Esta é a dra. Debra Aldrich, uma das principais geofísicas da NASA, e acho que já conhece o dr. Teperman.

—        Olá, Marvin. Dodds, é bom que isso seja importante...

—        É. Sente-se, senhor. Por favor.

Dodds toca num botão do teclado à sua frente. As luzes da sala enfraquecem e uma imagem holográfica do Golfo do México aparece sobre a mesa.

—        Esta imagem vem do satélite de observação oceanográfica SEASAT, da NASA. Como o senhor pediu, começamos a rastrear o Golfo para tentar isolar as origens da maré negra.

Chaney observa a imagem mudar, passando para um trecho de mar rodeado pela sobreposição de um círculo pontilhado branco.

—        Usando o Radar de Abertura Sintética da Faixa X, conseguimos rastrear a maré negra até estas coordenadas, uma área localizada a uns 56 quilômetros a noroeste da península de Yucatán. Agora observe.

Dodds aperta outro botão. O mar holográfico se dissolve em manchas brilhantes verdes e azuis, no centro das quais está um círculo branco brilhante, sua borda se esfumando em tons mais frios de amarelo, depois vermelho.

—        Estamos vendo uma imagem térmica da área em questão. Como pode ver, algo muito grande está lá embaixo, irradiando um calor tremendo.

—        De início, pensamos ter encontrado um vulcão submarino — acrescenta a dra. Aldrich —, mas o levantamento geológico realizado pela Companhia Petrolífera Nacional do México confirma que não há vulcões na região. Fizemos mais alguns testes e descobrimos que o local libera muita energia eletromagnética. Isso não é tão surpreendente. Ele fica quase no centro da cratera de impacto de Chicxulub, uma área com fortes campos magnéticos e gravitacionais...

Chaney levanta a mão.

—        Desculpe interromper, doutora. Sei que certamente esse assunto é fascinante para vocês, mas...

Marvin segura o pulso do vice-presidente.

—        Eles estão tentando dizer que há algo lá embaixo, Ennis. Algo mais importante do que a sua guerra. Brian, o vice-presidente é um homem ocupado. Por que não pula as leituras de gradientes gravitacionais e vai direto para as imagens de tomografia acústica?

Dodds muda o holograma. As manchas coloridas se transformam numa imagem em preto e branco do leito do oceano. Uma abertura profunda e bem definida, como um túnel, aparece em preto no cinza cheio de rachaduras do leito.

—        Senhor, a tomografia acústica é uma técnica sensorial remota que lança pro leito do oceano feixes de radiação acústica, neste caso, pulsos de ecos ultrassônicos, permitindo que vejamos objetos enterrados.

Chaney observa, intrigado, um enorme objeto ovóide tridimensional começando a se definir sob o buraco maior. Dodds manipula a imagem, tirando o objeto do leito do oceano e fazendo-o flutuar sobre suas cabeças.

—        Que diabos é isso? — diz Chaney, com voz rouca. Marvin sorri.

—        Simplesmente a descoberta mais magnífica da história da humanidade. O sólido ovóide flutua acima da cabeça de Chaney.

—        Que papo-furado é esse, Marvin? O que é essa porcaria?

—        Ennis, há 65 milhões de anos, um objeto de uns 11 ou 12 quilômetros de diâmetro, pesando cerca de um trilhão de toneladas e voando a 56 quilômetros por segundo, caiu num raso mar tropical que hoje é o Golfo do México. O que estamos vendo são os restos do próprio objeto que atingiu nosso planeta e matou os dinossauros.

—        Ora, Marvin, essa coisa é imensa. Como algo tão grande pode sobreviver a um impacto assim?

—        A maior parte não sobreviveu. O objeto que vemos só tem aproximadamente um quilômetro e meio de diâmetro, mais ou menos um oitavo do tamanho original. Cientistas debatem há anos se o objeto que atingiu a Terra era um cometa ou um asteróide. Mas e se não fosse nenhum dos dois?

—        Pare de fazer charadas.

Marvin olha para a imagem holográfica em rotação como se estivesse hipnotizado.

—        O que estamos vendo é uma estrutura uniforme, feita de irídio e só Deus sabe que outros materiais compostos, enterrada um quilômetro e meio abaixo do fundo do mar. O casco é grosso demais para ser penetrado pelos sensores do satélite...

—        O casco? — Os olhos de guaxinim estão esbugalhados. — Está me dizendo que esse objeto enterrado é uma espaçonave?

—        Os restos de uma nave, talvez até um casulo interno separado, posicionado dentro da nave como o núcleo de uma bola de golfe. O que quer que seja, ou fosse, conseguiu sobreviver enquanto o resto do aparelho se desintegrou com o impacto.

Dodds levanta a mão.

—        Um momento, dr. Teperman. Vice-presidente, essas são todas suposições.

Chaney olha para Dodds.

—        Sim ou não, diretor. Essa coisa é uma espaçonave?

Dodds enxuga o suor da testa.

—        No momento, não sabemos...

—        Esse buraco no fundo do oceano... ele leva até a nave?

—        Não sabemos.

—        Por Deus, Dodds, o que é que vocês sabem, afinal?

Dodds respira fundo.

—        Pra começar, sabemos que é imperativo mandar nossos navios pra área antes que outro país encontre o objeto enterrado.

—        Você está se esquivando pra todo lado feito um político, diretor, e sabe que isso me irrita. Tem alguma coisa que não está me contando. O que é?

—        Sinto muito, tem razão. Tem mais, muito mais. Acho que eu mesmo ainda estou meio atordoado. Alguns de nós, inclusive eu, acreditamos agora que o sinal de rádio que recebemos do espaço não era pra nós. Pode... pode ter sido transmitido pra ativar algo dentro dessa estrutura alienígena.

Chaney olha para Dodds, incrédulo.

—        Com "ativar", você quer dizer despertar?

—        Não, senhor. Ativar mesmo.

—        Explique.

Debra Aldrich tira um relatório de seis páginas de sua pasta.

—        Senhor, isto é uma cópia de um relatório do SOSUS enviado mês passado para a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional por um biólogo da Flórida. Ele dá detalhes de sons não identificados vindos do subsolo oceânico dentro da cratera de impacto de Chicxulub. Infelizmente, o diretor da Administração em exercício foi um pouco lento em verificar as informações, mas agora confirmamos que os sons agudos estão se originando dentro dessa estrutura ovóide enterrada. Muita atividade complexa parece estar acontecendo dentro do objeto, sobretudo de natureza mecânica.

O diretor da NASA balança a cabeça.

—        Em seguida, pedimos que a estação receptora central da Marinha em Dam Neck fizesse uma análise completa de todos os picos acústicos registrados na área do Golfo nos últimos seis meses. Embora os sons pareçam ser só estática, os dados confirmam que os ruídos subterrâneos começaram em 23 de setembro, exatamente no mesmo momento em que o sinal de rádio chegou à Terra.

Chaney fecha os olhos e massageia as têmporas, sentindo-se sobrecarregado.

—        Tem mais uma coisa, Ennis.

—        Meu Deus do céu, Marvin. Não posso ter nem um minuto pra engolir isso antes de... deixa pra lá, pode falar.

—        Desculpe, eu sei que tudo isso é demais pra cabeça.

—        Continue...

—        Completamos a análise da maré negra. Quando a toxina entra em contato com tecidos orgânicos, ela não decompõe simplesmente as paredes da célula, mas altera sua composição química básica no nível molecular, levando a uma perda total da integridade das paredes. A substância age como ácido, e o resultado, como vimos, é uma hemorragia total. Mas o interessante é isto: a substância não é um vírus, nem mesmo um organismo vivo, porém contém grandes quantidades de silício e um DNA bizarro.

—        DNA? Meu Deus, Marvin, o que está dizendo?

—        É só uma teoria...

—        Chega de joguinhos. O que é?

—        Resíduos animais. Fezes.

—        Fezes? Está dizendo que é merda?

—        Ha, sim, mas merda alienígena, mais precisamente. Merda alienígena muito velha. A gosma contém traços de elementos que acreditamos terem origem num organismo vivo, um ser baseado em silício.

Chaney desmorona na cadeira, mentalmente esgotado.

—        Dodds, por favor, desligue essa bosta de holograma, está me dando dor de cabeça. Marvin, você está dizendo que algo pode ainda estar vivo lá embaixo?

—        Não, de maneira alguma, senhor — interrompe Dodds.

—        Perguntei ao dr. Teperman. Marvin sorri.

—        Não, vice-presidente, não estou insinuando nada disso. Como falei, as fezes, se são mesmo fezes, são muito velhas. Ainda que uma forma de vida alienígena tivesse conseguido sobreviver ao impacto, com certeza está morta há mais tempo do que nossa própria espécie habita o planeta. E uma espécie baseada em silício como essa provavelmente nem poderia existir num ambiente com oxigênio.

—        Então me explique que diabos está acontecendo.

—        Certo. Por mais incrível que pareça, uma nave alienígena, obviamente anos-luz à frente da nossa tecnologia, caiu na Terra há 65 milhões de anos. Esse impacto foi um acontecimento tremendo na história humana, pois o cataclisma, dizimando os dinossauros, levou à eventual evolução da nossa espécie. Fosse qual fosse a forma de vida dentro dessa nave, ela provavelmente mandou um SOS para o seu planeta natal, que acreditamos estar localizado em algum lugar dentro da constelação de Órion. Isso seria um procedimento padrão. Nossos astronautas fariam a mesma coisa se se vissem isolados em Alfa Centauri ou algum outro mundo a anos-luz daqui. Naturalmente, as distâncias envolvidas deixavam uma missão de resgate fora de questão. Quando nossos equivalentes do Controle da NASA alienígena receberam o SOS, sua única atitude podia ser tentar reativar os computadores alienígenas a bordo da espaçonave e coletar os dados que pudessem.

A dra. Aldrich balança a cabeça, concordando.

—        A gosma preta provavelmente foi liberada automaticamente quando o sinal reativou algum tipo de sistema vital alienígena.

O diretor da NASA mal consegue conter o entusiasmo.

—        Esqueça o transmissor na Lua. Se o Marvin estiver certo, podemos acessar a nave e talvez até nos comunicarmos diretamente com a inteligência alienígena usando o próprio equipamento deles.

—        Você está presumindo que o planeta alienígena ainda existe — diz Marvin. — O sinal do espaço teria sido transmitido há milhões de anos. Até onde sabemos, o sol do planeta pode ter se tornado uma supernova...

—        Sim, sim, claro que você tem razão quanto a isso. A questão é que temos uma oportunidade incrível de acesso a tecnologias avançadas que podem ter sobrevivido dentro da nave. A potencial riqueza de conhecimentos lá embaixo pode acelerar nossa civilização um milênio ou mais.

O vice-presidente sente suas mãos tremendo.

—        Quem mais sabe disso?

—        Só as pessoas nesta sala e um punhado de diretores da NASA.

—        E o tal biólogo do SOSUS, aquele da Flórida?

—        O biólogo está morto — Aldrich declara. — A Guarda Costeira Me¬xicana tirou seu corpo do Golfo no começo desta semana, recoberto da gosma.

Chaney xinga baixinho.

—        Muito bem. Obviamente, preciso pôr o presidente a par disso o quanto antes. Enquanto isso, quero todo acesso público ao SOSUS vedado imediatamente. Informações só devem ser passadas a quem precisa saber. De agora em diante, esta operação é secreta, entenderam?

—        E as fotos de satélite? — pergunta Aldrich. — O objeto pode representar apenas um pontinho no Golfo, mas é um pontinho bem brilhante. Um satélite GOES ou SPOT vai acabar por encontrá-lo. Assim que mandarmos um navio da Marinha ou mesmo uma embarcação científica para a área, vamos revelar nosso segredo para o resto do mundo.

O diretor da NASA balança a cabeça concordando.

—        Senhor, a Debra tem razão. No entanto, acho que sei um jeito de manter a operação em segredo, mesmo permitindo que nossos cientistas tenham acesso ilimitado ao que está lá embaixo.

 

                         Washington, DC / Miami, Flórida

Anthony Foletta tranca a porta da sua sala antes de se sentar para atender a comunicação de longa distância.

A imagem de Pierre Borgia aparece no telemonitor.

—        Alguma novidade, diretor?

Foletta fala baixinho.

—        Não, senhor, mas a polícia está vigiando a garota de perto. Tenho certeza de que ele vai procurá-la a qualquer momento...

—        A qualquer momento? Escute, Foletta, deixe bem claro que o Gabriel é perigoso, entendeu? Instrua a polícia a atirar pra matar. Eu o quero morto, ou pode dizer adeus ao cargo de diretor em Tampa.

—        O Gabriel não matou ninguém. Nós dois sabemos que a polícia não vai matá-lo...

—        Então contrate alguém que esteja disposto a fazê-lo.

Foletta olha para baixo, como se estivesse absorvendo as palavras do secretário de Estado. Na verdade, ele já previa essa diretriz desde que seu interno fugiu.

—        Acho que sei de alguém que poderia fazer isso, um serviço benfeito vai custar caro.

—        Quanto?

—        Trinta. Mais despesas.

Borgia ri.

—        Você é um péssimo jogador de pôquer, Foletta. Vou mandar vinte, nem um centavo a mais. Vai receber o dinheiro dentro de uma hora.

O sinal de linha aparece no telemonitor.

Foletta desliga o sistema, depois se certifica de que a conversa foi gravada. Por um longo momento, pensa em sua próxima ação. Então tira o celular da gaveta da escrivaninha e liga para o pager de Raymond.

 

                       Ilha de Sanibel, Flórida

O Lincoln branco para sobre o cascalho. Karen Simpson, de 31 anos, uma loura oxigenada e bronzeada usando vestido azul-claro, sai do carro e anda cerimoniosamente até a porta do passageiro para ajudar sua mãe, Dory, a descer.

À meio quarteirão dali, um policial à paisana vê, do furgão de campana, as duas mulheres enlutadas, de braço dado, caminharem lentamente para os fundos do lar dos Axler, onde a shivah, a reunião do luto judaico, está acontecendo.

Mesas com comida foram montadas para os familiares e amigos dos falecidos. Três dúzias de convidados circulam, conversando, comendo, contando histórias — fazendo o que podem para consolar uns aos outros.

Dominique e Edie estão sentadas a sós num banco estofado de frente para o Golfo, olhando o sol que começa a se pôr no horizonte.

A uns 800 metros da costa, um pescador a bordo do pesqueiro Hatteras, de 52 pés, luta para puxar sua linha.

Edie aponta.

—        Parece que finalmente pegaram alguma coisa.

—        E só o que vão pegar.

—        Querida, prometa que vai tomar cuidado.

—        Prometo.

—        E você tem certeza de que sabe como operar o minissubmarino?

—        Sim, o Iz me mostrou... — Seus olhos se enchem de lágrimas com a lembrança. — Tenho certeza.

—        A Sue acha que você devia levar a arma dela.

—        Não tive tanto trabalho pra libertar o Mick só pra atirar nele.

—        Ela acha que você não deve confiar tanto.

—        A Sue sempre foi paranóica.

—        E se ela estiver certa? E se o Mick for realmente um psicótico? Ele pode ficar violento e te estuprar. Afinal, está preso há 11 anos e...

—        Ele não vai fazer isso.

—        Leve ao menos o meu Taser. É pequeno, parece um isqueiro. Cabe na palma da mão.

—        Tudo bem. Vou levar, mas não vou precisar dele.

Edie se vira e vê Dory Simpson se aproximando e sua filha, Karen, entrando na casa.

Dominique se levanta e abraça a senhora.

—        Quer tomar alguma coisa?

Dory se senta perto de Edie.

—        Sim, aceito uma soda diet. Infelizmente, não podemos ficar por muito tempo.

 

A bordo do Hatteras, o detetive Sheldon Saints vê Dominique rumar para a casa através de um potente binóculo montado num tripé dentro da cabine do barco.

Outro detetive, usando bermuda jeans, camiseta do Tampa Bay Buccaneers e um boné de beisebol, entra na cabine.

—        Ei, Ted, acabei de pegar um peixe.

—        Já era tempo. Estamos aqui há oito horas, cacete. Me passa o binóculo noturno, está ficando escuro demais.

Saints encaixa o binóculo ITT Night Mariner-260 no tripé e olha, ajustando o controle que transforma a luz fraca em tons de verde, permitindo que ele enxergue. Cinco minutos depois, ele observa a bela suspeita, com seu comprido cabelo preto, sair da casa, levando uma lata de soda em cada mão. Ela se aproxima do banco, oferece uma lata para cada mulher e se senta entre as duas.

Mais vinte minutos se passam. Agora o detetive vê a loura bronzeada de vestido azul sair da casa e se juntar às três mulheres. Ela abraça a sra. Axler, depois ajuda a mãe a se levantar do banco e acompanha até a entrada.

Saints olha por um momento, depois volta a apontar o binóculo para o banco, onde a mulher mais velha e a bela morena estão sentadas, de mãos dadas.

 

Dory Simpson se senta no banco da frente do Lincoln enquanto a jovem dá a partida. A loura dá ré sobre o cascalho e ruma para sudoeste, para a estrada principal da ilha.

Dominique enfia a mão por baixo da peruca para coçar a cabeça.

—        Eu sempre quis ser loura.

—        Não tire até sairmos do cais. — Dory lhe entrega o pequeno Taser, do tamanho de um isqueiro a gás. — A Edie pediu que você sempre carregasse isso com você. Prometi que te faria obedecer. Tem certeza de que vai conseguir operar o minissubmarino?

—        Vou, sim.

—        Eu posso ir com vocês.

—        Não, fico mais tranqüila sabendo que você e a Karen estão aqui, cuidando da Edie pra mim.

 

É tarde quando elas chegam ao cais particular em Captiva. Dominique se despede da idosa com um abraço, depois anda pelo molhe de madeira até o barco a motor Grady-White de 24 pés.

Sue Reuben pede que ela desamarre a corda da popa. Segundos depois, eles estão cruzando o Golfo.

Dominique tira a peruca antes que o vento a arranque, depois puxa a lona cinza.

Mick está deitado de costas, seu pulso direito algemado ao pé do banco do passageiro. Ele sorri para ela, depois faz uma careta quando a proa salta sobre as ondas de meio a um metro, fazendo-o bater a cabeça dolorosamente no convés de fibra de vidro.

—        Sue, onde está a chave?

—        Acho que você devia deixá-lo aí mesmo até chegarmos ao barco. Não faz sentido se arriscar...

—        Desse jeito ele vai enjoar antes de chegarmos lá. Me dê a chave. — Dominique abre a algema e o ajuda a se sentar. — Como você está?

—        Melhor. A enfermeira Ratched aí fez um bom trabalho.

Eles chegam à traineira de 48 pés. Sue desliga o motor, deixando que o impulso termine de aproximar o barco. Mick sobe a bordo. Sue abraça Dominique.

—        Tome cuidado. — Ela enfia o revólver na mão da garota.

—        Sue...

—        Quieta. Não faça estardalhaço. Estoure os miolos dele se tentar alguma coisa.

Dominique enfia a arma no bolso da jaqueta, depois sobe a bordo, acenando enquanto o barco a motor se afasta velozmente.

Agora tudo está tranqüilo, a traineira balançando num mar negro sob um céu estrelado.

Dominique olha para Mick, sem conseguir ver seus olhos no escuro.

—Acho melhor a gente ir, não é? — Relaxe, você parece uma pilha de nervos.

—        Dom, antes preciso dizer uma coisa.

—        Esqueça. Pode me agradecer me ajudando a descobrir o que aconteceu com o Iz.

—        Farei isso, mas não era o que eu ia dizer. Sei que você ainda tem dúvidas a meu respeito. Precisa saber que pode confiar em mim. Sei que já te pedi muita coisa, mas juro pela alma da minha mãe que prefiro me machucar a deixar que qualquer coisa aconteça com você.

—        Eu acredito.

—        E eu não sou louco. Sei que às vezes pareço, mas não sou. Dominique desvia o olhar.

—        Eu sei. Mick, realmente precisamos ir, a polícia vigiou a casa o dia todo. As chaves devem estar na cabine, debaixo da almofada do passageiro. Você pega?

Mick vai para a cabine. Ela espera até ele desaparecer antes de tirar a arma do bolso da jaqueta. Ela olha para o revólver, lembrando o alerta de Foletta. Tenho certeza de que Mick vai usar todo o seu charme para te impressionar.

O motor parte.

Ela olha para a arma, hesita, depois a joga no mar.

Meu Deus, me ajude...

 

                 29 DE NOVEMBRO DE 2012 , GOLFO DO MÉXICO

5h14

A traineira Jolly Roger, de 48 pés, continua sua viagem para o oeste sob o céu estrelado da madrugada. Dominique está no banco do piloto, lutando para se manter acordada, suas pálpebras ficando pesadas. Exausta, ela encosta a cabeça no banco de vinil e volta a forçar a atenção para o livro que está lendo. Depois de reler a mesma frase pela quarta vez, decide dar um momento de descanso a seus olhos vermelhos.

Só alguns segundos. Não durma...

O livro cai de sua mão e o barulho a acorda. Ela inspira o ar fresco e olha para a entrada escura que leva à cabine sob o convés. Mick está lá dentro, dormindo nas sombras. A idéia a reconforta e ao mesmo tempo a apavora. Apesar de o barco estar no piloto automático, ela se recusou a dormir. Sozinha na cabine do piloto, sua imaginação deixou que seus medos mais secretos tomassem conta dela.

Isso é ridículo. Ele não é o Ted Bundy. Jamais te machucaria...

Ela nota que o horizonte está ficando cinza atrás dela. O medo a convenceu de que dormir durante o dia é a melhor opção. Ela decide acordar Mick ao amanhecer.

—        Jolly Roger, responda. Alfa-Zulu-três-nove-seis chamando Jolly Roger, responda por favor...

Dominique pega o microfone.

—        Jolly Roger, prossiga, Alfa-Zulu.

—        Como você está aí, querida?

—        Agüentando. O que aconteceu? Você parece nervosa.

—        Os federais fecharam o SOSUS. Dizem que é só um problema técnico, mas eu não acredito.

—        Droga. Por que você acha...

—        Ahhhhh... Ahhhhhh... — O grito de Mick faz o coração de Dominique pular no peito. — Meu Deus, Edie, eu falo com você depois...

—        Isso é alguém gritando?

—        Está tudo bem. Já falo com você.

Ela desliga o rádio e desce correndo a curta escada, ligando as luzes.

Mick está sentado no beliche do canto, como um animal assustado e confuso. Seus olhos negros estão arregalados, brilhando com a lâmpada nua perto da sua cabeça.

—        Mãe? — A voz é rouca. Apavorada.

—        Mick, está tudo bem...

—        Mãe? Quem está aí? Não consigo te ver.

—        Mick, sou eu, Dominique. — Ela liga mais duas lâmpadas, depois se senta na beira da cama. Mick está de peito nu, seus músculos rijos encharcados de suor frio. Ela vê que as mãos dele tremem.

Ele a olha nos olhos, ainda confuso.

—        Dominique?

—        Sim. Você está bem?

Ele olha para o seu rosto, depois para a cabine ao seu redor.

—        Preciso sair daqui... — Ele a empurra e sobe a escada de madeira, trôpego, saindo no convés.

Dominique o segue rapidamente, temendo que ele pule.

Ela o encontra de pé na proa, o vento frio soprando em seu rosto. Dominique pega um cobertor de lã e o joga sobre seus ombros nus. Ela vê lágrimas em seus olhos.

—        Você está bem?

Por um longo momento, ele apenas olha para o horizonte escuro.

—        Não. Não, acho que não. Eu achava que estava, mas agora acho que estou todo ferrado.

—        Pode me contar o seu sonho?

—        Não. Agora não. — Ele olha para ela. — Aposto que você levou o maior susto.

— Tudo bem.

—        A pior coisa da solitária... o que me dava mais medo... era acordar gritando e ver que eu estava sozinho. Você nem imagina o vazio.

Ela o leva de volta para o convés. Ele se encosta no pára-brisa da cabine do piloto e abre o lado esquerdo do cobertor, chamando-a para junto de si.

Dominique se encosta ao lado dele, deitando a cabeça em seu peito frio. Mick puxa o cobertor ao redor dos ombros dela.

Dali a minutos, os dois estão dormindo profundamente.

 

16h50

Dominique tira duas latas de chá gelado de pêssego do refrigerador, verifica a posição do barco no GPS e volta para a proa. O sol do fim de tarde ainda é intenso, e seu reflexo no convés branco a faz cerrar os olhos. Ela põe os óculos de sol e se senta perto de Mick.

—        Está vendo alguma coisa? Mick baixa o binóculo.

—        Nada ainda. A que distância estamos?

—        Uns 8 quilômetros. — Ela lhe entrega uma lata. — Mick, eu queria te perguntar uma coisa. Lembra no hospital, quando você me perguntou se eu acreditava no mal? O que você quis dizer com isso?

—        Também perguntei se você acreditava em Deus.

—        Está me perguntando do ponto de vista religioso? Mick sorri.

—        Por que os psiquiatras nunca conseguem responder a uma pergunta sem fazer outra?

—        Acho que gostamos de deixar as coisas claras.

—        Eu só queria saber se você acredita num poder superior.

—        Acredito que alguém olha por nós, toca nossas almas num plano mais alto da existência. Sei que uma parte de mim acredita nisso porque preciso acreditar, porque isso me reconforta. E você, o que acha?

Mick se vira, olhando o horizonte.

—        Acredito que a gente possui uma energia espiritual que existe numa dimensão diferente. Acredito que um poder superior existe nesse outro nível, e só temos acesso a ele quando morremos.

—        Acho que nunca ouvi uma descrição assim do paraíso. E quanto ao mal?

—        Todo Yin tem seu Yang.

—        Está dizendo que acredita no demônio?

—        No demônio, Satanás, Belzebu, Lúcifer, que diferença faz o nome? Você disse que acredita em Deus. Você diria que a presença de Deus na sua vida te influencia a ser uma pessoa boa?

—        Se sou uma pessoa boa, é porque escolhi ser. Acredito que os seres humanos receberam liberdade de escolha.

—        E o que influencia essas escolhas?

—        As coisas de sempre... a família, a pressão dos colegas, o ambiente, as experiências de vida. Todos temos certas predisposições, mas no final é nossa capacidade de entender o que está acontecendo conosco que permite que nosso id tome decisões diariamente. Se você quer dividir essas decisões em bem e mal, tudo bem. Mas é livre escolha mesmo assim.

—        Você falou como uma verdadeira psiquiatra. Mas me deixe perguntar uma coisa, srta. Freud. E se essa liberdade de escolha não for tão livre quanto pensamos? E se o mundo ao nosso redor estiver exercendo uma influência sobre o nosso comportamento como espécie que não podemos ver nem entender?

—        O que quer dizer?

—        A Lua, por exemplo. Como psiquiatra, você com certeza está familiarizada com o efeito da Lua sobre a psicose.

—        Os efeitos da Lua são polêmicos. Podemos ver a Lua. Portanto, seu efeito sobre a psique pode ser auto-induzido.

—        Você pode sentir a Terra se movendo?

—        O quê?

—        A Terra. Neste exato momento, ela não está apenas girando, está voando pelo espaço a 77 quilômetros por segundo. Pode sentir isso?

—        O que quer dizer?

—        Coisas estão acontecendo ao nosso redor, coisas que nossos sentidos não percebem, mas que existem mesmo assim. E se essas coisas estiverem exercendo uma influência sobre a nossa capacidade de raciocínio, nossa capacidade de escolher entre o certo e o errado? Você acha que tem vontade própria, mas o que faz você realmente decidir algo? Quando perguntei se você acreditava no mal, estava me referindo ao mal como uma entidade invisível, cuja presença pode cegar nosso juízo.

—        Não sei se entendo o que você está falando.

—        O que influencia um adolescente a metralhar um playground lotado com uma Uzi? Por que uma mãe desesperada tranca suas crianças num carro e o empurra pra dentro de um lago? O que faz um homem estuprar sua enteada ou... ou sufocar sua amada?

Ela vê uma lágrima se formando no olho dele.

—        Você acha que existe uma força maligna que influencia nosso comportamento? Mick?

—        Às vezes... às vezes acho que posso sentir alguma coisa.

—        O que você sente?

—        Uma presença. Às vezes sinto os dedos gelados dela me alcançando de uma dimensão superior. Sempre que sinto essas coisas, parece que coisas terríveis acontecem.

—        Mick, você ficou preso na solitária por 11 anos. Seria estranho se você não ouvisse vozes...

—        Não são vozes, é mais como um sexto sentido — diz ele, massageando os olhos.

Esta viagem pode ter sido um grande erro. Ele precisa de ajuda. Pode estar à beira de um colapso nervoso. De repente, Dominique se sente muito sozinha.

—        Você acha que eu sou um psicótico...

—        Eu não disse isso.

—        Não, mas está pensando. — Ele se vira e olha para ela. — Os maias antigos acreditavam no bem e no mal como presenças físicas. Acreditavam que o grande mestre Kukulcán foi banido por uma força maligna, um deus do mal que os astecas chamavam de Tezcatilpoca, o espelho enfumaçado. Diziam que Tezcatilpoca podia penetrar na alma do homem, enganando-o, fazendo-o cometer grandes atrocidades.

—        Mick, tudo isso é folclore maia. Minha avó costumava me contar as mesmas histórias.

—        Não são só histórias. Quando Kukulcán morreu, os maias começaram a chacinar dezenas de milhares de pessoas do seu próprio povo. Homens, mulheres e crianças foram sacrificados em rituais sangrentos. Muitos foram levados pro templo no alto da pirâmide de Kukulcán, onde o coração foi arrancado dos seus peitos. Virgens eram conduzidas pela antiga estrada elevada até o cenote sagrado, onde suas gargantas eram cortadas e elas eram atiradas no poço. Os templos de Chichén Itzá são decorados com os crânios dos mortos.

Os maias viveram em paz por mil anos. Algo deve tê-los influenciado pra que de repente começassem a se matar dessa forma.

—        De acordo com o diário do seu pai, os maias eram supersticiosos e acreditavam que os sacrifícios impediriam o fim do mundo.

—        Sim, mas havia outra influência, o culto de Tezcatilpoca, que dizem também ter influenciado as atrocidades.

—        Nada do que você me contou até agora prova a existência do mal. O homem massacra sua própria espécie desde que nossos ancestrais desceram das árvores. A Inquisição espanhola assassinou milhares, Hitler e os nazistas mataram 6 milhões de judeus nos fornos e em câmaras de gás. A violência irrompe a toda hora na África. Os sérvios chacinaram milhares em Kosovo...

—        É exatamente isso que eu estou dizendo. O homem é fraco, permite que sua vontade seja corrompida por influências exteriores. As provas estão em toda parte.

—        Que provas?

—        A corrupção está se espalhando nos membros mais inocentes da sociedade. Crianças estão usando sua liberdade de escolha pra cometer atrocidades, sua consciência incapaz de entender a diferença entre o certo e o errado, a fantasia e a realidade. Vi na CNN, alguns dias atrás, uma notícia sobre um menino de 10 anos que levou a pistola automática do pai pra aula e matou dois garotos que caçoavam dele. — Mick fita o mar com os olhos novamente rasos d'água. — Um menino de 10 anos, Dominique.

—        É um mundo doente...

—        Exatamente. Nosso mundo está doente. A trama da sociedade está infestada por uma influência maligna, uma espécie de câncer, e nós a procuramos só nos lugares errados. Charles Baudelaire disse uma vez que o maior truque do demônio é nos persuadir de que ele não existe. Dominique, posso sentir a influência ganhando força. Sinto que ela se aproxima à medida que o portal galáctico se abre e nos aproximamos do solstício de inverno.

—        E se essa sua presença maligna não aparecer daqui a três semanas? O que você vai fazer?

Mick parece intrigado.

—        Como assim?

—        O quê? Você nunca considerou a possibilidade de talvez estar enganado? Mick, toda a sua vida foi devotada a resolver a profecia maia e salvar a humanidade. Sua consciência, sua própria identidade, foi influenciada pelas crenças infundidas em você pelos seus pais. Fortalecidas, desconfio, por esse trauma que você sofreu, que continua assombrando seus sonhos. Não é preciso ser um Sigmund Freud para ver que essa presença que você sente está dentro de você.

Os olhos de Mick se arregalam enquanto ele absorve suas palavras.

—        O que vai acontecer quando o solstício de inverno chegar, passar e todos nós continuarmos aqui? O que você vai fazer da sua vida, então?

—        Eu... eu não sei. Pensei nisso, mas nunca me permiti pensar muito. Temia que se eu pensasse em levar uma vida normal, acabaria perdendo de vista o que realmente importa.

—        O que realmente importa é que você viva a sua vida plenamente. — Ela segura a mão dele. — Mick, use essa sua mente brilhante pra olhar pra dentro de si mesmo. Você sofreu lavagem cerebral desde que nasceu. Seus pais te condenaram a salvar o mundo, mas a pessoa que precisa realmente ser salva é o Michael Gabriel. Você passou toda a sua vida seguindo coelhos brancos, Alice. Agora precisamos te convencer de que o País das Maravilhas não existe.

Mick se deita, olhando para o sol do fim de tarde, as palavras de Dominique ecoando em seus ouvidos.

—        Mick, me fala da sua mãe.

Ele engole em seco, limpando a garganta.

—        Ela era minha melhor amiga. Foi minha professora e constante companhia por toda a minha infância. Enquanto o Julius passava semanas a fio analisando o deserto de Nazca, mamãe me dava sua ternura e seu amor. Quando ela morreu...

—        Como ela morreu?

—        De câncer no pâncreas. Foi diagnosticado quando eu tinha 11 anos. No fim, virei o enfermeiro dela. Ela ficou tão fraca... O câncer a devorava viva. Eu lia pra ela pra fazê-la esquecer a dor.

—        Shakespeare?

—        Sim. — Ele se senta. — A peça favorita dela era Romeu e Julieta. "A morte, que sugou todo o mel de teu doce hálito, não teve poder nenhum sobre tua beleza."

—        Onde estava o seu pai, enquanto isso?

—        Onde mais? No deserto de Nazca.

—        Seus pais se amavam?

—        Muito. Sempre diziam que eram almas gêmeas. Quando ela morreu, levou o coração dele pro túmulo. Levou um pedaço do meu também.

—        Se ele a amava tanto, como pôde deixá-la à beira da morte?

—        Minha mãe e o Julius me disseram que a busca era mais importante, mais nobre do que ficar esperando, vendo a morte invadir seu corpo. Aprendi desde cedo sobre o destino.

—        Como?

—        Minha mãe acreditava que certas pessoas foram abençoadas com dons especiais que determinam seus caminhos na vida. Esses dons vêm acompanhados de grandes responsabilidades, e manter-se no caminho exige grandes sacrifícios.

—        E ela acreditava que você tinha sido abençoado?

—        Sim. Dizia que eu herdei uma visão e uma inteligência únicas dos ancestrais maternos dela. Me explicou que quem não tivesse esse dom jamais iria entender.

Meu Deus, os pais do Mick ferraram com a cabeça dele. Serão necessárias décadas de terapia pra colocá-lo nos eixos. Dominique balança tristemente a cabeça.

—        O que foi?

—        Nada. Só estava pensando em Julius, deixando seu filho de 11 anos com o fardo de tomar conta da mãe doente.

—        Não era um fardo, era o meu modo de agradecer por tudo o que ela tinha me dado. Analisando agora, não sei se eu ia querer fazer alguma coisa diferente.

—        Ele estava presente quando ela morreu?

Mick franze o cenho ao ouvir as palavras.

—        Sim, e como estava.

Ele olha para o horizonte e seus olhos endurecem com a lembrança. Depois, de repente, se aguçam como os de uma águia. Ele pega o binóculo. Um objeto se tornou visível, crescendo a oeste no horizonte. Mick aponta.

—        Tem uma plataforma petrolífera ali, das grandes. Você não disse que o Iz não viu nada nas imediações?

—        Não viu mesmo.

Mick ajusta o foco.

—        Não é da PEMEX, tem a bandeira americana. Algo está errado.

—        Mick... — Dominique aponta.

Ele vê o barco se aproximando e focaliza o binóculo.

—        Droga, é a Guarda Costeira. Desligue o motor. Quanto tempo leva pra pôr aquele submarino na água?

Dominique corre para a cabine.

—        Cinco minutos. Você quer ir pro fundo agora?

—        É agora ou nunca. — Mick corre para a popa, puxando a lona cinza de cima do submarino em formato de cápsula. Ele liga o guindaste. — A Guarda Costeira vai nos identificar. Vamos ser presos na hora. Ah, e pegue suprimentos.

Dominique joga latas de comida e galões de água numa mochila, depois entra no submarino enquanto...

... a lancha está a 100 metros, o comandante gritando um aviso sobre a água.

—        Mick, vamos!

—        Ligue o motor, eu já vou! — Mick entra na cabine e procura o diário do pai.

—        AQUI É A GUARDA COSTEIRA DOS ESTADOS UNIDOS. VOCÊS ENTRARAM NUMA ÁREA RESTRITA. PAREM TODAS AS ATIVIDADES E SE PREPAREM PARA SEREM ABORDADOS.

Mick pega o diário quando a lancha da Guarda Costeira alcança a proa da Jolly Roger. Ele volta para a popa, soltando o cabo do guindaste...

—        Parado!

Ignorando a ordem, ele salta para dentro da esfera protetora interna do minissubmarino de 5 metros e meio de comprimento, equilibrando-se precariamente na escada de ferro para puxar e fechar a escotilha.

—        Pro fundo, rápido!

Dominique está no assento do piloto, tentando lembrar tudo o que Iz lhe mostrou. Ela empurra o timão para baixo para submergir — enquanto a quilha da lancha da Guarda Costeira colide com a parte de cima do submarino.

—        Se segura...

O submarino desce vertiginosamente num ângulo de 45 graus, as placas de liga de titânio rangendo nos ouvidos de Mick. Ele se abaixa e segura um tanque de mergulho que está rolando para a proa.

—        Ei, capitã, sabe mesmo o que está fazendo?

—        Não banque o co-piloto. — Ela diminui o ângulo de descida. — Certo, e agora, o que devemos fazer?

Mick se aperta ao passar pela escada e vai para perto de Dominique.

—        Descobrir o que está acontecendo aqui embaixo, depois ir pra costa de Yucatán. — Mick se abaixa para olhar por uma das janelinhas de 20 centímetros de diâmetro e 10 de espessura.

Na água azul-escura, uma miríade de bolhas minúsculas envolve o casco.

—        Não consigo ver nada. Espero que esta banheira tenha um sonar.

—        Bem na minha frente.

Mick olha por cima do ombro dela para a tela laranja brilhante. Ele nota o sensor de profundidade: 105 metros.

—        Que profundidade esta coisa alcança?

—        Esta coisa se chama Barnacle. Pelo que sei, é um submarino francês muito caro, uma versão menor do Nautile. A capacidade nominal dele é de 3.300 metros.

—        Tem certeza de que sabe pilotá-lo?

—        O Iz e o proprietário me levaram num fim de semana e me deram um curso de imersão total.

—        Imersão total, era isso que eu temia — diz Mick, olhando ao seu redor.

O interior do Barnacle é uma esfera reforçada de 3 metros de diâmetro situada dentro do casco retangular da embarcação. Equipamentos para processamento de dados forram o apertado compartimento, como um papel de parede tridimensional. A estação de controle do braço mecânico e da cesta isotérmica retrátil de amostras ocupa uma parede, e monitores submarinos high-tech e transponders acústicos ocupam a outra.

—        Mick, faça algo de útil e ative a câmera térmica. É esse monitor em cima da sua cabeça.

Ele liga o dispositivo. O monitor é ativado e revela uma tapeçaria de tons verdes e azuis. Mick puxa um joystick curto, apontando o sensor externo para o leito do oceano.

—        Ei, o que temos aqui? — O monitor revela uma luz branca brilhante no alto da tela.

—        O que é?

—        Não sei. A que profundidade estamos?

—        A 330 metros. O que devo fazer?

—        Continue indo pra oeste. Tem alguma coisa enorme ali na frente.

 

             Golfo do México, 1,8 quilômetro a oeste do Barnacle

A plataforma da Exxon, Scylla, é uma unidade de perfuração flutuante Bingo série 8000, semissubmersa, de quinta geração. Diferente das antigas plataformas, a superestrutura flutua quatro andares acima da superfície (e três andares abaixo) sobre colunas verticais de 25 metros de altura encaixadas em dois enormes pontões de 120 metros de comprimento. Doze cabos prendem a estrutura ao leito do oceano.

Três deques contínuos se apóiam sobre a base da Scylla. O deque superior, aberto, das dimensões de um campo de futebol, sustenta o guindaste de 22 metros de altura que opera a broca, feita de tubos de aço de 10 metros de comprimento. Duas gruas imensas estão posicionadas nos lados norte e sul, com um heliponto octogonal elevado cobrindo o deque oeste. As salas de controle e engenharia, bem como a cozinha e as cabines para duas pessoas, ficam no deque do meio ou principal. O deque inferior ou das máquinas abriga os três motores de 3.080 hp da plataforma, além do equipamento necessário para extrair 100 mil barris de óleo cru por dia.

Embora a superestrutura esteja com a lotação máxima de 110 pessoas, nem uma gota de petróleo está saindo de sua broca. O deque inferior da Scylla foi desocupado às pressas para acomodar miríades de sensores multiespectrais high-tech, computadores e sistemas de mapeamento da NASA. Equipamentos de apoio, cabos submarinos e as mesas de controle de três VORs (Veículos de Operação Remota) estão ao lado de feixes de tubos de aço empilhados na lateral do semi-aberto deque inferior.

Posicionado no centro exato da plataforma de concreto e aço, um buraco circular de 3 metros e meio de diâmetro deveria servir para a passagem da broca. Um brilho esmeralda suave sobe do mar, passando pela abertura e inundando o teto e a área de trabalho ao redor com uma irreal luz verde. Técnicos, vencidos pela curiosidade, param de vez em quando para dar uma olhadinha no fundo do mar artificialmente iluminado, localizado 656 metros abaixo da superestrutura flutuante. A Scylla está posicionada diretamente acima de uma enorme abertura, um túnel no leito do oceano. Em algum lugar daquele misterioso poço de 1.500 metros está a fonte da incandescente luz verde.

O comandante naval Chuck McKana e o diretor da NASA Brian Dodds estão encurvados sobre os dois técnicos que operam o Sea Owl, um VOR de 2 metros, ligado ao guindaste da Scylla por um cordão umbilical de 2 mil metros. Eles olham para o monitor do VOR enquanto o pequeno submarino chega ao leito rachado do oceano e começa a sua descida no vórtice brilhante.

—        A energia eletromagnética está aumentando — diz o piloto virtual do VOR. — Estou perdendo dirigibilidade...

—        Sensores falhando...

Dodds fecha os olhos para o brilho ofuscante do monitor da mini-câmera do submarino.

—        A que profundidade está o VOR?

—        A menos de 30 metros da boca do poço. Cacete, lá se vai o sistema elétrico do Sea Owl.

O monitor se apaga.

O comandante McKana passa os dedos curtos pelo cabelo escovinha grisalho.

—        Esse é o terceiro VOR que perdemos nas últimas 24 horas, diretor.

—        Eu sei contar, comandante...

—        Vocês deviam se concentrar em encontrar uma maneira alternativa de entrar.

—        Já estamos trabalhando nisso. — Dodds aponta para onde uma dúzia de trabalhadores estão ocupados, conectando tubos de aço no guindaste do alto. — Vamos baixar a broca dentro do buraco. Os sensores vão descer presos à primeira seção.

O capitão da plataforma, Andy Furman, se aproxima.

—        Temos um problema, cavalheiros. A Guarda Costeira avisou que duas pessoas a bordo de uma traineira acabam de lançar um minissubmarino 3 quilômetros a leste da Scylla. O sonar mostra que estão rumando para o objeto.

Dodds parece alarmado.

—        Espiões?

—        Parecem civis. A traineira está registrada em nome de uma empresa de busca submarina americana, licenciada na ilha de Sanibel.

McKana não parece preocupado.

—        Deixe que olhem. Quando voltarem à tona, mande a Guarda Costeira prendê-los.

 

                                 A bordo do Barnacle

Mick e Dominique apertam os rostos contra o vidro LEXAN reforçado das janelinhas, enquanto o minissubmarino se aproxima do irreal feixe de luz, o clarão que sobe do fundo do oceano como um holofote de 51 metros de largura.

—        Que diabos pode haver lá embaixo? — Dominique pergunta. — Mick, você está bem?

Os olhos de Mick estão fechados, sua respiração irregular.

—        Mick?

—        Estou sentindo a presença. Dom, a gente não devia estar aqui.

—        Não cheguei até aqui pra dar meia-volta. — Uma luz vermelha pisca acima de sua cabeça. — Os sensores do submarino estão malucos. Uma fortíssima energia eletromagnética está saindo do buraco. Será que não é isso que você está sentindo?

—        Não passe pelo feixe de luz, senão vai pôr em curto todos os sistemas de bordo.

—        Certo, talvez tenha outra entrada. Vou contornar a área enquanto você rastreia com os sensores.

Mick abre os olhos, fitando as fileiras de consoles de computador que forram a cabine.

—        O que quer que eu faça? Ela aponta.

—        Ative o gradiômetro, é um sensor eletromecânico de gravidade acoplado à parte de baixo do Barnacle. O Rex o usava pra detectar gradientes de gravidade sob o fundo do mar.

Mick liga o monitor do sistema, que revela uma tapeçaria de laranja e vermelhos, as cores mais brilhantes indicando altos níveis de energia eletromagnética. O buraco emite um brilho branco quase cegante. Mick puxa o joystick do gradiômetro ampliando o campo para examinar o resto da topografia do leito do oceano.

O brilho intenso se reduz a um ponto branco. Tons de verde e azul criam uma borda circular ao redor dos vermelhos e laranja.

—        Peraí. Acho que encontrei alguma coisa.

Ao redor da área da cratera há uma série de pontos escuros dispostos perimetralmente num padrão preciso, eqüidistante e circular.

Mick conta os buracos. Ele sente seu estômago se contraindo e um suor frio brotando de seu corpo. Folheia as páginas amareladas do diário do pai até encontrar a anotação de 14 de junho de 1997.

Ele olha para a fotografia do ícone circular de 3 metros, localizado no ponto central do platô de Nazca. Dentro de sua borda, Mick encontrou o mapa original de Piri Reis, selado num recipiente de irídio. Ele conta 23 linhas estendendo-se da figura como os raios de um sol, a última delas aparentemente infinita.

Vinte e três pontos escuros rodeiam o buraco monstruoso no leito do oceano.

—        Mick, o que foi? Você está bem? — Dominique ativa o piloto automático para olhar o monitor. — O que é isso?

—        Não sei, mas um padrão idêntico foi desenhado no platô de Nazca há milhares de anos.

Dominique olha para o diário.

—        Não é exatamente idêntico. Você está comparando linhas escavadas no deserto com um monte de buracos escuros no fundo do mar...

—        Vinte e três buracos. Vinte e três linhas. Você acha que é só uma coincidência?

Ela lhe dá um tapinha na bochecha.

—        Calma, iluminado. Vou me aproximar do buraco mais próximo, vamos olhar mais de perto.

O Barnacle diminui a velocidade e flutua acima de um túnel escuro de 6 metros de diâmetro que cospe bolhas em profusão. Dominique aponta uma das luzes externas do submarino para a garganta íngreme. O feixe de luz revela um túnel extenso, penetrando no fundo do mar num ângulo de 45 graus.

—        O que você acha?

Mick olha para o túnel, a familiar sensação de pavor crescendo em suas entranhas.

—        Não sei.

—        Sugiro que a gente investigue.

—        Você quer entrar nesse buraco infernal?

—        É pra isso que estamos aqui, não é?

Pensei que você quisesse entender a profecia maia.

—        Não assim. É mais importante irmos pra Chichén Itzá.

—        Por quê? — Ele está com medo.

—        A salvação está na pirâmide de Kukulcán. A única coisa que nos espera nesse buraco é a morte.

—        Bem, eu não joguei sete anos de faculdade na privada nem me arrisquei a ir pra cadeia pra você ir atrás de uma profecia maia idiota. Estamos aqui porque minha família e eu precisamos encerrar o caso, saber o que realmente aconteceu com o Iz e os amigos dele. Não te culpo pela morte do meu pai, mas já que foi você que nos pôs nesta aventura vai seguir nela até o final.

Dominique empurra o timão, mergulhando o minissubmarino bem no meio do túnel.

Mick se segura numa barra da escada enquanto o Barnacle acelera no poço escuro.

Um som líquido ecoa dentro do submarino. Dominique olha pela janelinha.

—        O som está vindo das paredes desta passagem. O revestimento interior parece funcionar como uma espécie de esponja gigante. Mick, à sua esquerda tem um sensor, o espectro fotômetro...

—        Estou vendo. — Ele ativa o sistema. — Se estou fazendo a leitura direito, o gás que sai deste buraco é oxigênio puro.

Uma nota de barítono reverbera pela cabine, aumentando à medida que eles descem. Mick está para dizer algo quando o Barnacle dá um tranco para a frente, acelerando túnel adentro.

—        Ei, vá mais devagar...

—        Não fui eu. Fomos pegos por uma espécie de correnteza. — Ele ouve o pânico na voz dela. — A temperatura exterior está aumentando. Mick, acho que estamos sendo sugados num tubo de lava!

Ele se segura mais forte na escada. As graves pulsações fazem os vidros dos instrumentos diante dele vibrarem.

O minissubmarino mergulha, girando cegamente pelo túnel como um besouro numa galeria pluvial.

—        Mick! — Dominique grita ao perder o controle do Barnacle. Ela fecha os olhos com força e se segura no assento, quando a energia é interrompida e a escuridão os envolve.

Ela sente que está hiper ventilando, esperando o tranco que fará o submarino se desintegrar e ser invadido pelo mar. Meu Deus, eu vou morrer, me ajude, por favor...

Mick cruzou os braços e as pernas ao redor da escada, suas mãos segurando as barras de aço como morsas. Não reaja, deixe acontecer. Deixe que a loucura termine...

Vertigem intensa. O minissubmarino rodopia sem parar, como se estivesse numa máquina de lavar gigante.

Um estrondo — um solavanco de partir os ossos: Mick sai voando cega¬mente pela escuridão, e o Barnacle é empurrado de cabeça contra uma força invencível e invisível. O ar explode de seus pulmões quando seu rosto e seu peito colidem contra uma fileira de consoles de computador.

 

                 GOLFO DO MÉXICO

2.185 METROS ABAIXO DA SUPERFÍCIE

O latejar incessante de sua cabeça força Mick a abrir os olhos.

Silêncio.

Ele está deitado de costas, com as pernas para o ar, seu tronco preso num emaranhado fumegante de equipamentos quebrados. A cabine está úmida e escura como breu, à exceção do esmaecido brilho de um console laranja bruxuleando em algum lugar. Tudo está de cabeça para baixo, e um líquido quente escorre em sua garganta, sufocando-o.

Ele se vira dolorosamente, cuspindo uma golfada de sangue, sua cabeça ainda rodando. Verificando que o sangue vem de suas narinas, ele as aperta para estancar a hemorragia.

Por um longo momento ele fica sentado ali, apoiando-se precariamente em fragmentos pontiagudos de monitores de computador e equipamentos de navegação estilhaçados, enquanto tenta lembrar seu nome e onde está.

O minissubmarino. O túnel... Dominique!

—        Dom? — Ele cospe mais sangue e escala uma pilha de equipamentos que bloqueia o caminho até o assento do piloto. — Dom, está me ouvindo?

Ele a encontra inconsciente, ainda presa pelo cinto de segurança, o queixo apoiado no peito. Seu coração dispara de medo enquanto ele reclina cuidadosamente o assento ao máximo, segurando-lhe a cabeça ensangüentada antes de apoiá-la no encosto. Verifica sua respiração, e vê como está fraca. Depois de soltar o cinto, cuida do profundo corte na testa de Dominique.

Mick tira a camiseta, rasgando o tecido empapado de suor em longas tiras. Improvisa uma bandagem sobre o ferimento, depois vasculha a cabine destroçada em busca da caixa de primeiros socorros.

Dominique geme. Ela ergue o corpo dolorosamente, vira a cabeça e tosse.

Mick localiza a caixa e uma garrafa de água. Voltando para perto dela, lava o ferimento e tira uma bolsa de gelo da caixa.

—        Mick?

—        Aqui. — Ele aperta a bolsa de gelo, furando o conteúdo, e a comprime contra a cabeça dela, amarrando-a com o resto da camiseta. — Você está com um ferimento feio na cabeça. A hemorragia diminuiu, mas você deve ter sofrido uma concussão.

—        Acho que quebrei uma costela, está difícil de respirar. — Ela abre os olhos e olha para Mick, a dor em seu rosto. — Você está sangrando.

—        Quebrei o nariz. — Ele lhe passa a garrafa d'água. Ela fecha os olhos e toma um gole.

—        Onde estamos? O que aconteceu?

—        Descemos pelo túnel e batemos em alguma coisa. O minissubmarino está inoperante. O sistema de subsistência mal funciona.

—        Ainda estamos no buraco?

—        Não sei — diz Mick, indo para a janela dianteira e olhando para fora. A luz de emergência do exterior do Barnacle revela uma câmara escura

e pequena, sem água do mar. A popa do submarino parece alojada entre duas barreiras escuras e verticais. O espaço entre as duas paredes se estreita abruptamente antes de terminar numa fenda curva e metálica.

—        Meu Deus, onde viemos parar?

—        O que é isso?

—        Não sei. Uma espécie de câmara subterrânea. O submarino está enfiado entre duas paredes, mas não tem água lá fora.

—        Será que a gente pode sair daqui?

—        Não sei. Nem sei ao certo onde é aqui. Já notou que aquelas vibrações graves pararam?

—        Tem razão. — Ela o ouve vasculhar os destroços. — O que você está fazendo?

—        Procurando o equipamento de mergulho. — Ele localiza o traje de neoprene, a máscara e os tanques de ar.

Dominique geme ao erguer o corpo, depois recosta a cabeça novamente, vencida pela dor e pela vertigem.

—        O que vai fazer?

—        Onde quer que a gente esteja, estamos presos. Vou ver se encontro uma maneira de nos tirar daqui.

—        Mick, espere. Devemos estar a uns 1.500 metros de profundidade. A pressão vai nos esmagar assim que você abrir a escotilha.

—        Não tem água na câmara, o que significa que ela deve ser despressurizada. Acho que precisamos arriscar. Se ficarmos aqui, vamos morrer do mesmo jeito. — Ele tira os tênis e veste o apertado traje de neoprene.

—        Você tinha razão. A gente não devia ter entrado no túnel. Foi idiotice. Eu devia ter te ouvido.

Ele para de se vestir para se curvar sobre ela.

—        Se não fosse por você, eu ainda seria um vegetal nas mãos do Foletta. Fique aí e tente não se mexer enquanto eu tiro a gente daqui.

Ela luta contra o choro.

—        Mick, não me deixe aqui. Por favor, não quero morrer sozinha...

—        Você não vai morrer...

—        O ar, quanto ar ainda temos?

Ele procura o painel de controle e verifica o manômetro.

—        Quase três horas. Tente ficar calma...

—        Espere, não vá ainda. — Ela segura a mão dele. — Só me abrace um pouco. Por favor.

Ele se ajoelha, apoiando a face direita suavemente contra a dela, sentindo os músculos da moça tremendo ao abraçá-la e inalar seu perfume.

—        Vou tirar a gente daqui, prometo — ele sussurra. Ela o abraça com força.

—        Se você não conseguir, se não houver saída... Me prometa que vai voltar.

Ele engole o nó na garganta.

—        Prometo.

Eles ficam abraçados por mais alguns minutos, até que o aperto do traje de neoprene no corpo de Mick fica insuportável.

—        Mick, espere. Olhe debaixo do meu assento. Deve ter um kit de suprimentos de emergência.

Ele puxa a maleta de metal e a abre, retirando dela um canivete, um punhado de sinalizadores e um isqueiro a gás.

—        Tem um pequeno tanque de ar aí também. Oxigênio puro. Leve com você.

Ele retira o tanque, ligado a uma máscara de plástico.

—        É muita coisa pra carregar. É melhor eu deixar isso com você.

—        Não, leva. Se você ficar sem ar, nós dois vamos morrer.

Ele volta a calçar os tênis, prende o canivete ao tornozelo com fita adesiva, depois abre a válvula do tanque maior de ar para verificar se o regulador está funcionando. Põe o compensador de flutuação e o tanque nas costas e prende o tanque menor de oxigênio na cintura com a tira de velcro. Enfia os sinalizadores e o isqueiro no colete, e então, sentindo-se um burro de carga, sobe a escada do minissubmarino, que agora está num ângulo de 30 graus.

Mick destrava a escotilha, respira fundo e tenta abri-la.

Nada.

Se eu estiver errado sobre a pressão, vamos os dois morrer aqui. Ele para, ponderando suas alternativas, e tenta de novo, desta vez empurrando a tampa de titânio com o ombro. Com um chiado, a escotilha se desprende da guarnição de borracha e se abre.

Mick força a passagem para fora do submarino, subindo sobre o casco, deixando que a escotilha se feche ao ficar de pé...

Bam! Ele morde o regulador ao bater dolorosamente a cabeça numa superfície dura como pedra.

Agachado, equilibrando-se sobre o submarino, ele esfrega o galo na cabeça e olha ao redor. Do alto do Barnacle, percebe que está num toro gigante, uma câmara em formato de rosca, iluminada pelas luzes de emergência do submarino, a proa da nave bem presa entre duas lâminas curvas de 2 metros de altura. O feixe de luz de sua lanterna revela a parte de cima de pelo menos 12 dessas divisórias, todas se originando de um centro curvo, como as várias pás de uma hélice horizontal.

Mick olha para a estrutura, analisando os arredores, o regulador chiando em seus ouvidos com sua respiração. Eu sei o que é isto. E uma turbina, uma turbina gigante. A gente deve ter sido sugado para um duto de entrada. A pulsação grave parou. O minissubmarino está bloqueando a rotação das pás, paralisando a turbina e entupindo o duto.

Mick desce do Barnacle e pisa numa superfície metálica lisa e envelhecida. O que aconteceu com a água do mar?

De repente, ele cai para trás. Seus pés escorregam e ele perde o equilíbrio, seu cotovelo e flanco direitos batem na superfície dura e limosa com um barulho oco. Mick geme de dor, depois olha para cima.

A lanterna revela uma substância porosa, preta e esponjosa recobrindo toda a parte central do teto. Pingos de água do mar caem sobre sua cabeça.

Mick fica de pé e estica o braço, surpreso ao constatar que o material poroso é extremamente quebradiço, como isopor, só que mais duro. Ele pega o canivete e golpeia a substância, desprendendo vários fragmentos de rocha friável, parecendo gesso embebido em água marinha.

Mick para. O som de ar soprando por um duto ecoa em algum lugar à sua direita. Ele estica o braço, se segura no alto da divisória metálica à sua direita, apontando o feixe de luz da lanterna para o teto metálico.

O som vem de um duto oco de um metro de largura, situado no teto, sobre a lâmina imediatamente ao lado. Subindo num ângulo quase vertical, a passagem escura parece atravessar o teto como uma bizarra calha de lavanderia.

Mick sobe na parede de aço e fica sob a abertura, sentindo o ar quente soprando em seu rosto.

Um duto de saída?

Passando à lâmina seguinte, ele sobe na barreira e monta sobre a parede de 5 centímetros de espessura. Começa a apalpar a boca do duto, suas mãos sondando a inclinação, íngreme, mas escalável.

Cuidadosamente, Mick se apóia no teto e fica de pé, equilibrando-se precariamente sobre o alto da lâmina e se movendo para cima, para a cavidade escura, arrastando-se de barriga para dentro do duto. Virando de lado, ele estende as pernas até o outro lado do cilindro de um metro de diâmetro, com o tanque de ar e os cotovelos apoiados na parede às suas costas. Olhando para cima, o vento quente em seu rosto, sua luz lhe revela um enorme tubo, perdendo-se na escuridão num ângulo vertiginoso de 70 graus.

Isto vai ser difícil...

Mantendo as costas e os pés pressionados firmemente contra as paredes interiores, ele escala duto acima, centímetro por centímetro, dolorosamente, como um alpinista subindo por uma fenda vertical. Para cada metro e meio que consegue subir, ele desliza uns 30 centímetros para baixo, descendo e gemendo até conseguir limpar o suor das mãos e firmar sua pele escoriada na escorregadia superfície metálica.

Ele leva vinte minutos para subir os 26 metros até o topo. A sua espera no ápice trevoso está um beco sem saída.

Mick bate a cabeça na parede e geme no regulador, desesperado. Os músculos das pernas, exaustos com a escalada, começam a tremer, ameaçando despencá-lo lá de cima. Sentindo-se escorregar, ele se segura com as duas mãos, derrubando a lanterna.

Merda...

Rodeado pela escuridão, ele a ouve caindo pelo duto, destroçando-se ao atingir a superfície abaixo.

Se não tomar cuidado você é o próximo.

Com movimentos desesperadoramente lentos, ele retira o isqueiro e um dos sinalizadores que enfiou no traje. Pingando de suor, gasta os cinco minutos seguintes tentando futilmente acender o sinalizador.

Mick olha para o isqueiro, que está cheio, mas se recusa a acender. Não dá pra fazer fogo sem oxigênio, seu burro.

Respirando fundo, ele tira o regulador da boca e aperta o botão de limpeza, soltando um jato de ar na direção do isqueiro. Uma chama amarela surge, permitindo que ele acenda o sinalizador.

A faiscante luz cor-de-rosa revela o que parecem ser duas pequenas mangueiras ligadas a uma junta hidráulica. Usando o canivete, ele corta as duas mangueiras, que deixam pingar um fluido quente e azul-escuro sobre seu traje. Ele põe o regulador na boca, depois força a tampa com a cabeça.

A escotilha se move um centímetro.

Trabalhando tão perto da tampa quanto pode, Mick empurra a escotilha até abrir uma fenda e enfia a mão no buraco. Num só movimento ele rola, ficando pendurado na escuridão antes de conseguir se puxar para fora do duto, sobre o que parece ser uma grade metálica. Ele cai de quatro, seu corpo tremendo de exaustão, enquanto o calor intenso de seu novo ambiente faz sua máscara se embaçar e o cega.

Mick tira a máscara, mas sua boca está seca demais para cuspir. Ele enxuga as lágrimas do rosto afogueado e olha para cima.

Meu Deus...

Ele se senta, aturdido, seus membros tremendo fora de seu controle. Arregala os olhos, sua mente rodando tão rápido que ele não consegue produzir um só pensamento coerente. O suor lhe escorre do rosto e do corpo no calor de fornalha, formando poças em seu traje. Seu coração bate tão forte que parece oprimi-lo, pressionando-o contra o metal em brasa que raspa no seu corpo.

Estou no inferno...

Ele está numa câmara descomunal, escura, ovóide, do tamanho de um estádio como o New Orleans Superdome, esvaziado de todo o seu conteúdo.

Uma camada de chamas rubras e incandescentes lambe a superfície das paredes, subindo pela câmara em ondas como uma cachoeira invertida e desaparecendo na escuridão do alto.

Mas não é escuridão! Girando centenas de metros acima de sua cabeça, iluminando o centro do imponente abismo, está um vórtice brilhante e esmeralda de energia rodopiante — uma galáxia espiralada em miniatura, rodando num majestoso, lento, onipotente movimento anti-horário, como um ventilador de teto cósmico, pulsando energia.

Mick olha para o brilho irreal da galáxia, hipnotizado por sua beleza, esmagado por sua magnitude e totalmente aterrorizado por suas implicações. Ele se força a fechar as pálpebras sobre as pupilas doloridas, tentando desesperadamente desanuviar a cabeça.

Dominique...

Lutando para ficar de pé, ele volta a abrir os olhos e absorve o resto da paisagem etérea.

Ele está de pé numa plataforma, uma grade metálica presa à escotilha que tampava o duto cilíndrico. Um metro abaixo, preenchendo toda a câmara, como um lago numa cratera de montanha, há um líquido semelhante ao mercúrio, ondulante e prateado. Sua superfície, brilhante e espelhada, reflete as chamas rubras e dançantes. Filetes de fumaça negra flutuam acima do agitado mar de metal derretido, como vapor saindo de um caldeirão fervilhante.

Mick se vira para a parede em brasa. Logo abaixo das chamas há uma grelha que percorre todo o interior da câmara. A distorção da luz revela gases invisíveis saindo das frestas minúsculas da grelha, como o calor que irradia do asfalto de uma estrada deserta.

O túnel de entrada... um duto de ventilação?

Mick olha para a surreal parede de fogo, que não queima nem consome, mas flui para cima pelo espaço vertical como um rio caudaloso de sangue. Pensamentos febris giram em sua mente. Estou morto? Será que morri no submarino? Será que estou no inferno?

Ele cai na beirada da plataforma, meio sentado, meio deitado, fraco e zonzo demais para se mover. Consegue cuspir na máscara e recolocá-la, e então se lembra do tanque menor. Soltando-o, ele suga vários haustos de oxigênio puro, conseguindo clarear a mente.

É então que ele nota o rasgo no traje. A pele de seu joelho direito está exposta, o ferimento sangrando profusamente. Intrigado, ele toca o sangue quente, examinando-o como se fosse algum tipo de caldo alienígena.

O sangue está azul.

Onde eu estou? O que está acontecendo comigo?

Como que em resposta, um clarão de energia violeta irrompe de algum lugar do outro lado do lago. Ele se curva para a frente, esforçando-se para enxergar através da máscara, que embaçou de novo apesar da camada de saliva.

E então acontece outra coisa bizarra. Quando ele tira a máscara, uma poderosa onda de energia invisível se eleva como uma lufada de ar da superfície do lago e atinge o seu braço. A máscara levita e fica pairando no ar, um metro acima de sua cabeça.

Mick fica de pé. Ao erguer o braço para pegá-la, ele sente um campo intenso de energia eletromagnética, que ressoa em seu cérebro como um diapasão reverberando.

Desorientado, ele tateia cegamente à procura do tanque de oxigênio, enquanto as chamas altas dançam em sua visão desfocada. Desistindo, ele cai novamente sobre o metal e suga mais oxigênio, fechando os olhos para a vertigem.

Michael...

Mick abre os olhos, prendendo a respiração. Michael...

Ele olha para o lago. Será que estou delirando? Chegue perto de mim, meu filho. O bocal do oxigênio cai de sua boca.

—        Quem está aí? Senti sua falta.

—        Quem é você? Onde estou? Que lugar é este?

Agente chamava Nazca do nosso purgatório particular, lembra, Michael? Ou será que essa sua mente brilhante finalmente desmoronou, depois de tantos anos solitários no hospício?

Mick sente o coração falhar. Lágrimas ardentes escorrem por suas faces avermelhadas.

—        Papai? Pai, é você mesmo? Estou morto? Pai, onde você está? Não consigo te ver. Como você pode estar aqui? Onde é aqui?

Chegue perto de mim, Michael, e eu vou te mostrar.

Num estado hipnótico, ele pisa para fora da grade e cai no lago.

—        Merda... meu Deus!

Mick olha para baixo, sua mente vencida pelo que os sentidos estão relatando. Ele está sem peso, desafiando a gravidade, flutuando sobre a superfície prateada num colchão verde-esmeralda de energia que atravessa cada fibra do seu ser, inebriando-o. Sensações eufóricas lhe sobem pelos ossos e saem pelo couro cabeludo, fazendo cada fio de cabelo ficar de pé. A adrenalina e o medo lutam pelo controle de sua bexiga. Sentindo o tanque de ar flutuando para longe de suas costas, ele apressadamente aperta o fecho de velcro ao redor da cintura e põe o regulador na boca. Chegue perto de mim, Michael.

Um único passo o impele sobre o campo de energia como um imponderável Baryshnikov. Tomando coragem, ele dá mais alguns passos, e se vê ganhando altura sobre a superfície espelhada do lago, um anjo sem asas guiado por uma força invisível.

—        Papai?

Um pouco mais...

—        Papai, onde você está?

Ao se aproximar do outro lado da câmara, ele vê uma plataforma imensa e enegrecida, pairando uns 10 metros acima da superfície brilhante como uma balsa infernal. Uma onda de terror percorre sua alma quando ele se dá conta de que não pode parar, de que o impulso através desse mundo imponderável o guia na direção do objeto, contra a sua vontade.

Estou aqui.

Em pânico, Mick se vira para fugir, mas descobre que suas pernas se movem em vão enquanto ele é puxado para cima, para longe da superfície do lago. Ele mergulha de barriga no ar, aferrando-se inutilmente ao campo de energia, mas seu corpo é jogado para trás sobre a plataforma por uma presença invencível, gélida e malevolente.

Mick é jogado de joelhos, caindo para a frente, como que obrigado a se prostrar diante de um soberano. Com o cérebro hiper ventilado e tomado pelo medo, ele ergue o olhar para ver o seu captor.

É um casulo, tão alto e largo quanto uma locomotiva, tão longo quanto um campo de futebol. Uma miríade de dutos chamuscados, semelhantes a tentáculos, saem da parte de baixo da plataforma e vão até o objeto vítreo e escuro, como milhares de tubos intravenosos.

Por que tem medo de mim, Michael?

Um clarão de energia violeta irrompe dentro do cilindro, revelando por um momento a presença sombria de um ser imenso.

Mick fica paralisado, seu rosto é uma máscara congelada de terror e os membros são incapazes de sustentar seu peso.

Olhe para mim, Michael. Olhe para o rosto que é sangue do seu sangue!

Os pensamentos de Michael se despedaçam quando ele é empurrado por uma força invisível e vai de cabeça contra a superfície vítrea. Ele consegue sentir a presença dentro da câmara enfumaçada — uma presença de puro mal que faz uma bílis sulfúrica subir por sua garganta e sufocá-lo. Fecha os olhos com força, sua mente incapaz de entender o terror que o aguarda.

Uma onda de energia abre-lhe as pálpebras à força.

Ele vê um rosto surgindo no casulo através de uma névoa amarelada. O coração de Mick salta em seu peito.

Não...

É Julius, o cabelo branco de seu pai revolto como o de Einstein, o rosto bronzeado e enrugado parecendo couro velho. Os ternos e familiares olhos castanhos estão pregados nele.

Michael, como pode temer seu próprio pai?

Você não é meu pai...

Claro que sou. Lembre-se, Michael. Não lembra como sua mãe morreu? Você sentiu tanta raiva de mim. Me odiou pelo que eu fiz. Você me olhou nos olhos, como está olhando agora — E ME CONDENOU AO INFERNO!

A voz monstruosa fica mais grave ao ecoar em seus ouvidos. Mick grita no regulador, sentindo sua mente ceder, e o rosto de Julius se dissolve num par de olhos injetados, demoníacos, reptilianos, do tamanho de faróis — as pupilas, duas fendas douradas e diabólicas que queimam sua alma e incineram a sua sanidade.

Mick solta um grito de gelar o sangue, sentindo sua mente atormentada sendo acariciada pelos dedos gélidos da morte. Num só movimento, impelido pela adrenalina, ele salta da plataforma, mas é agarrado no ar e suspenso.

Você é minha carne, é meu sangue. Eu estava te observando, esperando este dia chegar. Sei que sentiu a minha presença. Logo estaremos juntos. Unidos... Pai e filho.

Em meio ao delírio, Mick olha para cima e vê a galáxia acima de sua cabeça girando mais rápido. À medida que sua velocidade aumenta, um cilindro imenso e oco de energia esmeralda se forma no centro do lago derretido, subindo até a abóbada como um tornado verde e luminoso. O funil de energia se mistura ao vórtice, os dois rodopiando em sincronia, cada vez mais rápido.

A mente de Mick está gritando, seus olhos saltando das órbitas. Em meio à loucura, ele vê um círculo solitário se formando no centro do lago, uma onda criada por algo que assoma à superfície derretida.

E agora ele pode vê-lo — subindo pelo funil de energia esmeralda —, um ser negro como a noite, uma criatura predadora, reptiliana, com 9 metros de envergadura das asas. Duas garras, cada uma com três pontas, pendem de seu tronco. Um crânio sem rosto, em formato de bigorna, termina numa saliência curva, como um chifre, sua cauda cônica com a metade do tamanho das asas.

Um globo incandescente, cor de âmbar, brilha de seu pescoço, como um olho sem pupila.

Mick vê, hipnotizado, a abóbada acima da galáxia de energia aparente¬mente se desfazendo, revelando um túnel vertical aberto através da rocha até o leito do oceano. A água dentro do túnel também está girando, formando a base de um monstruoso redemoinho.

Mick segura o pequeno tanque de oxigênio com força contra o peito. Ele arranca a máscara, apontando a válvula selada para longe de seu corpo.

Com um chiado penetrante, o centro da abóbada se retrai e um rugido retumbante preenche a câmara. Mick sente seus ouvidos estalando quando o mar invade o espaço, a torrente de água escorrendo pelos lados do campo de força vertical como as cataratas do Niágara.

Desesperado, Mick percorre o perímetro da câmara com o olhar, seus olhos se concentrando nos 23 dutos idênticos, todos, menos um, aspirando a maré crescente.

Ouve-se um som de trovão quando as turbinas gigantes da nave alienígena começam a reverter a rotação para expelir a água do mar.

Mick segura o isqueiro a gás, depois abre a válvula do pequeno tanque, encostando a chama num fluxo invisível e inflamável de oxigênio puro. O gás pressurizado se inflama como um foguete, empurrando a base do tanque contra o seu estômago e impelindo-o para trás no ar, longe do casulo.

Mick voa por cima do lago de metal derretido, depois mergulha no caudaloso rio de água marinha que escorre sobre a superfície metálica.

Mick solta o tanque vazio ao ser tragado pela correnteza, o medo e a adrenalina movimentando seus braços e suas pernas, dirigindo-o para o duto inoperante de onde ele saiu. Ele se segura na grade e puxa o corpo para cima, enquanto a maré crescente vem em seu encalço.

Mick abre a escotilha e olha para o duto escuro. Não pare, não pense, pule de uma vez!

Ele pula, precipitando-se de pé pelo duto íngreme e totalmente às escuras. O tanque de ar range às suas costas, e o rugido acima de sua cabeça diminui por um momento. Pressionando os antebraços contra a lisa superfície metálica, ele tenta desesperadamente brecar sua queda, usando o traje de neoprene como freio.

Mick é atirado pela boca do duto, caindo de cabeça sobre uma das lâminas do rotor. Atordoado, ele fica de pé, trôpego, sentindo as potentes vibrações da turbina ganhando vida sob seus pés.

- Suba — volte pro submarino!

Mick sobe e passa por cima da lâmina de 2 metros no momento em que um rio de água marinha explode do alto. Ele cai de pé, em pânico ao ver as lâminas começarem a rodar e mudando de direção, lutando para desalojar o Barnacle.

Não deixe o submarino ir embora sem você!

Mick cambaleia através da água, que está na altura de seu joelho. Enche os pulmões de ar e solta o volumoso tanque de suas costas. Livre do peso, salta sobre o casco de titânio ao mesmo tempo em que uma parede de água o atinge em cheio nas costas, quase derrubando-o do casco.

A câmara toroidal se enche rapidamente de água, a pressão aumentando, ameaçando desalojar o submarino a qualquer momento. Mick sobe até o alto do Barnacle, sentindo a pressão aumentar na sua cabeça enquanto abre a escotilha e se joga pela abertura, fechando a comporta atrás de si e girando a trava.

Uma explosão de água joga o minissubmarino de lado.

Mick cai escada abaixo, aterrissando dolorosamente sobre cacos de equipamentos enquanto o Barnacle é libertado.

Ouve-se um gemido agudo e ensurdecedor quando a turbina gigante acelera para cem rotações por segundo, empurrando o minissubmarino de volta duto acima, rápido como um projétil.

 

                           A bordo da Scylla

20h40

— É um redemoinho! — O capitão Furman é arremessado sobre um painel de controle, o chão fugindo-lhe dos pés enquanto 12 toneladas de canos de perfuração se espalham pelo deque inferior.

Sons de metal rangendo rasgam o ar. Com um gemido agonizante, o deque superior da plataforma de sete andares balança sobre a monstruosa correnteza, e a Scylla se inclina 60 graus quando meia dúzia de cabos submersos, presos a um dos pontões, se recusam a ceder para o vórtice crescente.

Técnicos e equipamentos deslizam pelo deque aberto, precipitando-se no agitado mar esmeralda.

O resto dos cabos se rompe, soltando a plataforma do leito do oceano. A superestrutura flutuante endireita — depois gira, balançando e saltando dentro da boca rodopiante do redemoinho luminescente.

Os alarmes cortam a noite. Tripulantes atordoados cambaleiam de suas cabines e são atingidos por destroços voadores. Enquanto o mundo roda em revoluções vertiginosas, eles se precipitam por escadas de alumínio, indo para o deque inferior, onde uma dúzia de botes salva-vidas pende dos guinchos.

Brian Dodds segura as cordas de um bote, seus ouvidos ressoando o rugido ululante do redemoinho. A embarcação está suspensa 2 metros abaixo, mas a Scylla se agita tão violentamente que descer até o bote é impossível.

A plataforma petrolífera vira para o lado, à mercê da força centrífuga do redemoinho, que prende a Scylla contra a parede do funil. O diretor da NASA abre os olhos, obrigando-se a olhar para a fonte cegante da energia que irradia do centro do mar turbulento. Dodds se segura, puxando ar desesperadamente antes que um vagalhão de 12 metros passe por cima dele, destruindo o deque inferior e arrancando o último dos botes em sua fúria.

O estômago de Dodds se contrai, e seus olhos arregalam-se de choque quando o centro do vórtice subitamente desce até o leito do oceano, a plataforma girando precariamente sobre o precipício líquido de 600 metros. Dentro daquele cegante delírio esmeralda, ele vê algo — uma criatura negra, alada, levitando redemoinho acima como um demônio saindo do inferno.

A besta alada passa por ele, desaparecendo no céu noturno — enquanto a Scylla cai para o lado, despencando rumo à sua aniquilação.

 

O ser sem vida voa sobre a superfície do Golfo em velocidade supersônica, planando sem esforço sobre um denso colchão de gravidade negativa. Indo para o sudoeste, ele ascende para uma altitude maior, seu rastro de energia per¬turbando os picos montanhosos do México em sua viagem rumo ao Pacífico.

Ao chegar ao oceano, seus sensores pré-programados alteram o curso para uma rota ocidental mais precisa. O ser diminui a velocidade, ajustando-a para permanecer no lado escuro do planeta por toda a duração de sua fatídica jornada.

 

                     Diário de Julius Gabriel

Nossa lua de mel no Cairo foi maravilhosa.

Maria era tudo para mim — minha alma gêmea, meu amor, minha companheira, minha melhor amiga. Dizer que a presença dela me consumia não é exagero. Sua beleza, seu perfume, sua sexualidade — tudo nela era tão inebriante que muitas vezes eu me sentia bêbado de amor. Me sentia pronto, às vezes até ansioso, para abdicar do meu juramento de desvendar o enigma do calendário maia, só para voltar aos Estados Unidos com minha jovem consorte.

Formar uma família. Viver uma vida normal.

Maria tinha outros planos. Depois de uma semana de lua de mel, ela insistiu que continuássemos nossa jornada ao passado do homem, procurando na Grande Pirâmide pistas que ligassem essa magnífica estrutura egípcia ao ícone desenhado no platô de Nazca.

Como discutir com um anjo?

 

Quando se trata de Gizé, a questão de quem construiu as pirâmides é tão importante quanto quando, como e por quê.

E que as estruturas de Gizé são elas próprias um paradoxo, erguidas com incompreensível precisão e um propósito que continua sendo um mistério milhares de anos depois de sua conclusão. Diferentes dos outros monumentos antigos do Egito, as pirâmides de Gizé não foram construídas como túmulos; aliás, não trazem nenhum hieróglifo, inscrição interna ou sarcófago que as identifique, nem quaisquer tesouros importantes.

Como já mencionei antes, a erosão na base da Esfinge provaria mais tarde que as estruturas de Gizé foram erguidas em 10.450 a.C., distinguindo-se como as mais antigas em todo o Egito.

Vocês devem ter notado que não me refiro a essas maravilhas como as pirâmides de Khufu, Khafre e Menkaure, seus nomes de origem. Os egiptólogos querem que acreditemos que esses três faraós mandaram construir os monumentos. Que grande bobagem! Khufu teve tanto a ver com o projeto e a construção da Grande Pirâmide quanto Artur, um rei cristão, poderia ter mandado construir Stonehenge, que foi abandonado 1.500 anos antes de Cristo.

A falácia remonta a 1837, quando o coronel Howard Vyse foi destacado para escavar em Gizé. O arqueólogo, não tendo feito nenhuma descoberta significativa (e bastante desesperado por financiamento), convenientemente descobriu marcas com o nome de Khufu num túnel um tanto obscuro que ele próprio escavara dentro da pirâmide. Por algum motivo, ninguém questionou o fato de as marcas terem sido pintadas de cabeça para baixo (algumas até com erros de grafia), e nenhuma outra inscrição ter sido encontrada em nenhum outro lugar da Grande Pirâmide.

Os egiptólogos, naturalmente, consideram a descoberta de Vyse uma verdade incontestável.

Muitos anos depois, uma estela de inventário seria descoberta pelo arqueólogo francês Auguste Mariette. O texto que aparece nessa pedra, o equivalente antigo de uma placa histórica para turistas, claramente indica que as pirâmides foram construídas bem antes do reinado de Khufu, referindo-se às estruturas de Gizé como a Casa de Osíris, Senhor de Rostau.

Osíris — talvez a figura mais reverenciada de toda a história egípcia — foi um grande professor e sábio que aboliu o canibalismo e deixou um legado duradouro para o seu povo.

Osíris... o deus-rei barbado.

Maria e eu passamos a maior parte do tempo examinando a Grande Pirâmide, embora todo o sítio arqueológico de Gizé tenha um propósito misterioso bastante distinto.

 

O exterior da Grande Pirâmide é tão assombroso quanto o seu interior. Tendo já discutido as medidas do templo em relação ao valor de pi, à precessão e às dimensões da Terra, falarei agora dos quatro lados da estrutura, feitos de blocos de calcário. Por incrível que pareça, cada lado tem 230 metros, e à pirâmide faltam meros 20 centímetros para ser um quadrado perfeito. Cada lado é também alinhado aos verdadeiros pontos cardeais, norte, sul, leste e oeste, um fato que causa ainda mais impacto quando nos damos conta de que a Grande Pirâmide é formada por 2.300.000 blocos de pedra, cada um pesando entre 2,5 e 15 toneladas. (Na menor das três pirâmides de Gizé há uma única pedra que pesa 320 toneladas. No momento em que registro estas palavras, no ano 2.000, só existem três guindastes em todo o mundo que poderiam erguer esse peso monumental do chão.) No entanto, como no caso de Tiahuanaco e Stonehenge, nenhuma máquina foi usada para mover esses pesos incríveis, que tiveram de ser transportados de uma pedreira distante, e posicionados muitas vezes a dezenas de metros do chão.

A maioria das pessoas que vêem a Grande Pirâmide não se dá conta de que as paredes da estrutura tinham, originalmente, um revestimento de pedras altamente polidas, cada um dos 144 mil blocos pesando 9 toneladas. Hoje só restam resíduos dessas pedras de revestimento, a maioria tendo sido destruída num forte terremoto em 1.301 d.C. Porém, sabemos que os blocos de calcário haviam sido cortados com tal precisão e habilidade que a lâmina de um canivete não entrava nas fendas entre eles. Agora só podemos imaginar como a Grande Pirâmide era há milhares de anos — uma estrutura de 6 milhões de toneladas, cobrindo 5 hectares —, brilhando como vidro sob o sol do Egito.

Embora o exterior da pirâmide seja uma visão maravilhosa, é o interior dessa misteriosa estrutura que talvez esconda sua verdadeira finalidade.

A Grande Pirâmide contém várias passagens que levam a duas salas vazias, inocentemente batizadas de Câmara do Rei e Câmara da Rainha. A verdadeira finalidade dessas salas ainda é desconhecida. Uma entrada escondida na face norte leva a uma estreita passagem de ligação até um corredor que sobe diretamente para o coração da pirâmide. Depois de uma breve subida, pode-se entrar num claustrofóbico túnel horizontal de 40 metros que leva à Câmara da Rainha, ou então continuar subindo ainda mais pela Galeria Central, um impressionante corredor que leva à Câmara do Rei.

A Câmara da Rainha é uma sala de 5,2 por 5,5 metros, com 6 metros de pé-direito e forro no formato de um teto com duas águas. Sua única característica notável é um estreito duto de ventilação com uma abertura retangular de apenas 20 por 23 centímetros. Esse duto, bem como os dois encontrados na Câmara do Rei, ficaram fechados até 1993, quando os egípcios, procurando melhorar a ventilação da pirâmide, contrataram o engenheiro alemão Rudolf Gantenbrink para usar seu robô em miniatura e escavar os dutos entupidos. Imagens feitas com a câmera em miniatura do robô revelaram que os dutos não estavam entupidos, mas fechados por dentro com um mecanismo deslizante, uma pequena porta presa com pinos de metal. Quando está solto, o duto se abre diretamente para o céu.

Usando um sofisticado inclinômetro, Gantenbrink foi capaz de calcular os ângulos exatos de projeção no céu noturno. Com 39 graus e 30 minutos, o duto sul da Rainha aponta diretamente para a estrela Sirius. O duto do Rei, com 45 graus, aponta para Al Nitak, a mais baixa das três estrelas do Cinturão de Órion.

Astrônomos descobriram logo depois que as três pirâmides de Gizé foram cuidadosamente alinhadas para espelhar as três estrelas do Cinturão como elas apareciam em 10.450 a.C. (A lenda de Osíris também está ligada a Órion; sua esposa, Ísis, à estrela Sirius.)

Será que o alinhamento cósmico era a verdadeira finalidade por trás da escavação dos dutos, ou eles teriam sido projetados para desempenhar outra junção?

A própria Galeria Central é uma incrível façanha de Engenharia. Com menos de 2 metros de largura ao nível do chão, as paredes desse túnel se estreitam gradualmente de ambos os lados para se unirem ao teto, a 8 metros e meio do piso. Com uma inclinação de 26 graus, a estreita passagem sobe mais de 45 metros, uma assombrosa realização arquitetônica, considerando que a abóbada da galeria sustenta todo o peso dos três quartos superiores da pirâmide.

No ápice da Galeria Central fica uma misteriosa antecâmara cujas paredes são feitas de granito vermelho. Estranhos pares de sulcos paralelos, parecendo trilhos para um antigo conjunto de divisórias, foram escavados nas paredes. Dali, um pequeno túnel leva à Câmara do Rei, a sala mais impressionante da pirâmide. A câmara é um retângulo perfeito, com 5,23 metros de largura, 10,46 metros de comprimento e pé-direito de 5,81 metros. Toda a câmara formada por cem blocos de granito vermelho, cada um pesando mais de 70 toneladas!

Como os construtores da antiguidade conseguiram levantar esses blocos de granito até seus lugares, especialmente num espaço tão apertado?

Somente um objeto ocupa a Câmara do Rei: um bloco solitário de granito cor de barro, seu interior escavado como uma banheira gigante. Situada na parede ocidental, a peça tem 2,28 metros de comprimento por um metro de largura e um de altura. O bloco maciço de granito foi cortado com inexplicável precisão mecânica. A tecnologia usada para cortar esse objeto era superior a qualquer ferramenta à disposição do homem moderno.

Embora nenhuma múmia tenha sido encontrada nele, os egiptólogos continuam a identificar esse objeto oco como um sarcófago sem tampa.

Eu tenho outra teoria.

A Câmara do Rei parece funcionar como um instrumento acústico, coletando e amplificando sons. Em várias ocasiões, me vi sozinho na sala e aproveitei a oportunidade para entrar no bloco em forma de banheira. Ao me deitar nele, fui tomado pelo que pareciam profundas reverberações, como se eu tivesse entrado no canal auditivo de um gigante. Não exagero quando digo que meus ossos chocalhavam com as esmagadoras vibrações de som e energia. Discussões posteriores com enge¬nheiros eletrônicos revelaram que a geometria do ápice da Grande Pirâmide (% 377 ohms) faz dela um reverberador perfeito, igualando-se à impedância do espaço.

Por mais bizarra que pareça, minha teoria é que a Grande Pirâmide foi projetada para funcionar como um incrível, imenso diapasão canalizador de energia, capaz de reverberar correntes como as ondas de rádio, ou talvez alguns outros campos de energia ainda desconhecidos.

 

Mais fatos esclarecedores: além de investigarmos a Grande Pirâmide, Maria e eu passamos incontáveis horas entrevistando alguns dos principais arquitetos e enge¬nheiros do mundo. Depois de calcular o peso e os requerimentos de mão de obra e de espaço para a construção da estrutura, cada um desses profissionais chegou à mesma e estarrecedora conclusão: a Grande Pirâmide não poderia ser duplicada — nem mesmo nos dias de hoje.

Me deixem reiterar a informação: mesmo usando nossos guindastes mais sofisticados, os seres humanos da nossa época jamais poderiam erguer a Grande Pirâmide.

No entanto, a Grande Pirâmide foi construída há cerca de 13 mil anos! Então, quem construiu a Grande Pirâmide?

Como procurar respostas para o impossível? O que é o impossível? Maria o descrevia como "uma conclusão equivocada tirada por um observador desinformado, a cuja experiência limitada falta a base de informações para adequadamente compreender algo que simplesmente não está dentro de seus parâmetros aceitáveis de realidade".

O que minha amada estava tentando expressar é isto: mistérios permanecem mistérios até que o observador abra sua mente para novas possibilidades. Ou, mais sucintamente: para encontrar uma solução para o que é percebido como impossível, busque soluções impossíveis.

Foi o que nós fizemos.

A lógica dita que, se os seres humanos não poderiam ter construído as pirâmides de Gizé sozinhos, alguém os assistiu, neste caso outra espécie obviamente de inteligência superior.

Essa conclusão simples, porém perturbadora, não surgiu do nada, mas derivou de evidências palpáveis e empíricas.

Os crânios alongados encontrados nas Américas Central e do Sul nos revelam que os membros dessa espécie misteriosa tinham aparência humanóide. Várias lendas os descrevem como caucasianos altos, com olhos azuis da cor do mar, barbas longas e cabeleiras brancas. Várias das culturas antigas mais bem-sucedidas da História, incluindo os egípcios, os incas, os maias e os astecas, reverenciaram esses seres como homens de grande sabedoria e paz que chegaram para estabelecer a ordem no caos. Todos eram grandes mestres, possuindo um conhecimento avançado de Astronomia, Matemática, Agricultura, Medicina e Arquitetura que fez nossa raça selvagem evoluir para nações com sociedades organizadas.

As evidências físicas que restaram para confirmar sua existência são incontestáveis.

Essa espécie humanóide também tinha um plano claro: preservar o futuro da humanidade, seus filhos adotivos.

Com que conclusão bizarra e assustadora Maria e eu nos deparamos. Ali estávamos, dois pensadores modernos, doutorandos de Cambridge, apresentando um ao outro teorias que deixariam Erich von Däniken orgulhoso. Mas não estávamos orgulhosos. Aliás, nossa reação inicial foi de vergonha. Não éramos como ele, hoteleiros suíços transformados em escritores. Éramos cientistas, arqueólogos renomados. Como poderíamos apresentar aos nossos colegas tais idéias absurdas de intervenção alienígena? No entanto, pela primeira vez, minha jovem esposa e eu sentíamos que nossos olhos finalmente, verdadeiramente, se abriam. Podíamos sentir um grande plano em ação, mas ainda nos frustrava não poder decifrar seu significado oculto. Nossos anciãos humanóides nos deixaram instruções nos códices maias, duplicando com exatidão a mensagem do platô de Nazca, mas os códices haviam sido queimados pelos padres espanhóis, e o significado da mensagem de Nazca ainda nos escapava.

Maria e eu nos sentíamos apavorados e sozinhos, com a terrível profecia do calendário maia pendendo como a espada de Dâmocles sobre nossas cabeças.

Lembro que eu abraçava minha esposa, me sentindo como uma criança perdida que, depois de tomar conhecimento da morte, se esforça para compreender o conceito de seus pais de paraíso. A idéia me fez perceber que, apesar de todas as suas façanhas e realizações, nossa espécie, do ponto de vista evolucionário, realmente ainda está na infância. Talvez por isso sejamos tão propensos à violência, ou continuemos sendo criaturas tão carentes e emocionais, sempre buscando o amor, sempre nos sentindo sozinhos. Como bebês de 30 mil anos, simplesmente não sabemos fazer outra coisa. Somos um planeta de crianças, e a Terra — um imenso orfanato, sem mentes adultas para nos guiar nos caminhos do universo. Fomos obrigados a aprender sozinhos, do jeito mais difícil, à medida que caminhamos, vivendo e morrendo como glóbulos vermelhos, circulando com abandono imprudente pelo corpo da humanidade — tão jovem, tão inexperiente e tão ingênua. Os dinossauros dominaram a Terra por 200 milhões de anos, mas nossos primeiros ancestrais caíram das árvores há menos de 2 milhões de anos. Em nossa incrível ignorância, nos imaginamos superiores.

A verdade é que não passamos de uma espécie de crianças — crianças curiosas e ignorantes.

Os Nefilins, os "caídos", eram nossos tutores. Estiveram aqui há muito tempo, tomaram fêmeas de Homo sapiens como esposas, fornecendo seu DNA à nossa espécie. Eles nos ensinaram o que acharam que compreenderíamos, e nos deixaram marcos claros de sua presença. Também tentaram nos avisar de uma calamidade futura, mas, como a maioria dos filhos, não lhes demos ouvidos, recusando-nos a acatar o alerta de nossos pais.

"Ainda somos crianças", lembro de ter dito a Maria. "Somos crianças frágeis e ingênuas, achando que sabemos tudo, balançando despreocupadamente em nosso berço enquanto a serpente entra pela janela aberta da creche para nos aniquilar."

Maria concordava. "E você sabe que a comunidade científica vai nos desprezar."

"Então não devemos contar a eles, pelo menos não por enquanto", eu disse. "A profecia da humanidade pode estar gravada em pedra, mas ainda podemos determinar o futuro. Os Nefilins não teriam se dado a todo esse trabalho para nos avisar sobre 4 Ahau, 3 Kankin sem também nos deixar alguma arma, algum meio de nos salvarmos da aniquilação. Precisamos encontrar o meio de nos salvar — então, e somente então, o resto do mundo ouvirá com mente aberta."

Maria me abraçou, concordando com minha lógica. "Não encontraremos as respostas aqui, Julius. Você tinha razão desde o início. Embora a Grande Pirâmide faça parte do quebra-cabeça da profecia, o templo que aparece no platô de Nazca fica na Mesoamérica."

— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,

 

Ref. Catálogo 1975-77 páginas 12-72

Diário Fotográfico, Disquete 4: Nome do arquivo: GIZÉ, Diagrama 17

 

               1º DE DEZEMBRO DE 2012, PLANÍCIE DE NULLARBOR, AUSTRÁLIA

5h08

A planície de Nullarbor, a maior área plana do planeta, é uma erma região de calcário que se estende por 245 mil quilômetros quadrados, beirando a nua costa sul do Pacífico na Austrália. É uma região inabitável, sem fauna ou vegetação.

Mas para o naturalista amador Saxon Lennon e sua namorada, Reneè, a planície de Nullarbor sempre representou a fuga perfeita. Nada de pessoas, de barulho, de gerentes de projeto gritando — somente os sons relaxantes das ondas, que arrebentavam nos penhascos verticais de calcário 30 metros abaixo do acampamento do casal.

A reverberação sônica faz Saxon se espreguiçar em seu saco de dormir. Ele abre os olhos, afastando as abas da barraca para olhar a abóbada estrelada.

Reneè passa o braço pela cintura dele e brinca com sua genitália.

—        Já acordou, amor?

—        Espera um pouco... você ouviu alguma coisa passando aqui?

—        Tipo o quê?

—        Não sei...

O enorme estrondo faz o solo sob a barraca tremer, e Saxon se desvencilhar do abraço da namorada.

—        Vamos!

O jovem casal sai correndo da barraca, seminu, calçando as botas de caminhada sem se dar ao trabalho de amarrar os cadarços. Eles pulam no jipe e rumam para o leste, Saxon tomando cuidado para manter o veículo a uma distância segura da beira dos penhascos da costa, alinhados à sua direita.

O horizonte escuro já está cinza quando eles chegam.

—        Caramba, Sax, o que é aquilo?

—        Eu... eu não sei.

O objeto é enorme, da altura de um sobrado, com asas reptilianas que se expandem uns 18 metros de ponta a ponta. A criatura é negra como a noite e está encarapitada sobre um par de garras com três pontas que parecem aferrar a superfície nua de calcário. Uma cauda enorme, espelhada e em forma de leque, está imóvel, metros acima do chão, enquanto uma série de tentáculos sai do abdômen. A cabeça sem rosto, em forma de chifre, parece apontada para o céu. O ser parece sem vida como uma estátua, exceto pelo brilho âmbar-dourado de um órgão em forma de disco num dos lados de seu tronco.

—        Será que é um daqueles aviões de controle remoto que a Força Aérea está sempre usando por aqui?

—        Será que a gente precisa ligar pra alguém?

—        Liga você. Eu vou tirar umas fotos. — Saxon aponta sua câmera, batendo várias fotos enquanto a namorada tenta ligar do carro.

—        O telefone está mudo, só ouço estática. Tem certeza de que pagou a conta?

—        Absoluta. Tome, tire uma foto de mim perto dessa coisa pra mostrar o tamanho dela.

—        Não chega muito perto, amor.

Saxon entrega a câmera a Reneè, depois fica a 4 metros e meio do ser.

—        Acho que essa coisa nem está viva. Só está empoleirada aqui, como um condor carbonizado.

Um brilho dourado aparece no horizonte.

—        A hora é perfeita. Espere o sol nascer, a foto vai ficar melhor.

Os primeiros raios da aurora surgem sobre o Pacífico, a luz solar beijando a superfície da cauda espelhada da criatura.

Saxon dá um salto quando a cauda se ergue com um chiado hidráulico.

—        Puta merda, acho que ela está se ativando.

—        Sax, olha, o olho dela está começando a piscar.

Saxon olha para o disco âmbar, que está piscando cada vez mais rápido, sua cor escurecendo para um tom escarlate.

—        Vem... — Ele pega Reneè pelo pulso e corre de volta para o jipe. Pondo em marcha o veículo, acelera para o norte através da imensa expansão plana.

O disco fica mais vermelho, cor de sangue, depois para de piscar. Uma centelha surge na borda das asas abertas, explodindo numa chama brilhante, incandescente e prateada.

Com um clarão cegante, a criatura é detonada, liberando uma quantidade indescritível de energia combustível que se expande por todo o platô de Nullarbor na velocidade do som. Ondas de choque da explosão nuclear penetram na rocha calcária porosa.

Vaporizando tudo em seu caminho.

Saxon sente a tórrida explosão de 9 mil graus um nanossegundo antes que seu corpo, sua namorada, o jipe e o solo se evaporem num gás tóxico e escaldante que sobe pela atmosfera, num vácuo infernal de chamas e poeira cósmica.

 

                         Golfo do México

A fragata USS Boone (FFG-28), com mísseis teleguiados classe Oliver Hazard Perry, flutua silenciosamente num tenebroso mar cinza-chumbo, sob o ameaçador céu da tarde. Ao redor do vaso de guerra, espalhado pela superfície num raio de 3 quilômetros, está tudo o que resta da plataforma petrolífera semissubmersa Scylla. Uma dúzia de botes infláveis motorizados navegam cuidadosamente em meio aos destroços, e marinheiros emocionalmente esgotados puxam cadáveres inchados a bordo.

O guarda-marinha Zak Wishnov fecha mais um cadáver num saco, enquanto o subtenente Bill Blackmon manobra o bote lentamente através dos fragmentos flutuantes.

—        Zak, tem outro ali, a estibordo da proa.

—        Meu Deus, odeio isso. — Wishnov se debruça sobre a proa e fisga o cadáver com um croque. — Caramba, este aqui está sem um braço.

—        Tubarão?

—        Não, o corte é perfeito demais. Mas agora que você falou, não vi um só tubarão desde que chegamos aqui.

—        Nem eu.

—        Não faz sentido. Tem sangue pra todo lado, e estas águas são infestadas de tubarões. — Zak rola o corpo mutilado para dentro do bote, enfiando-o rapidamente num saco. — É aquela coisa lá embaixo, não é, tenente? A fonte daquele brilho verde. Por isso os tubarões não chegam perto.

O tenente concorda.

—        Os tubarões sabem de algo que não sabemos. Quanto antes o capitão nos tirar daqui, melhor.

 

O capitão Edmund O. Loos III está imóvel sobre a ponte, seus olhos castanhos fitando o tenebroso horizonte, seu maxilar contraído pela raiva. O 13º oficial a comandar a Boone e sua tripulação de 42 oficiais e 550 marinheiros está espumando por dentro. Isso porque seu oficial em comando ordenou que ele se apresentasse no Golfo do México e, conseqüentemente, afastasse seu navio de guerra do grupo de batalha que seguia ao Golfo Pérsico.

Fazer a porra de uma operação de resgate no meio do que pode ser o maior conflito dos últimos vinte anos. Vamos ser motivo de piada pra toda a Marinha.

O comandante Curtis Broad, oficial executivo da embarcação e segundo em comando, se aproxima.

—        Com licença, capitão. Um dos LAMPS localizou um submarino flutuando 1,7 quilômetro a oeste. Dois sobreviventes a bordo. Um deles diz que sabe o que destruiu a Scylla.

—        Traga-o para a sala de reuniões. Quando o vice-presidente vai chegar?

—        Daqui a 35 minutos.

Um raio explode silenciosamente a distância, seguido, pouco depois, pelo rugido do trovão.

—        Recolha todos os botes, comandante. Estarei na sala de reuniões. Me avise quando o vice-presidente chegar.

—        Sim, senhor.

 

O helicóptero antissubmarino Kaman SH-2G Seasprite, também conhecido como LAMPS, balança duas vezes antes de pousar no heliporto do cruzador.

Mick Gabriel segura uma das pontas da maca de Dominique e um tripulante levanta a outra. Quando as portas deslizantes do helicóptero se abrem, o médico do navio e sua equipe se juntam a eles.

O oficial médico se curva sobre a beldade hispânica inconsciente. Ele verifica que ela está respirando, toma seu pulso, depois aponta uma lanterna para os olhos dela.

—        Esta moça sofreu uma concussão grave e pode ter ferimentos internos. Precisamos levá-la para a enfermaria.

Um tripulante empurra Mick, tomando a maca de suas mãos. Ele está fraco demais para protestar. O médico olha para ele.

—        Você também parece ter passado maus bocados, meu filho. Algum ferimento além dos cortes e hematomas?

—        Acho que não.

—        Há quanto tempo não dorme?

—        Não sei. Talvez dois dias. Minha amiga vai ficar bem?

—        Acho que sim. Qual o seu nome?

—        Mick.

—        Venha comigo, Mick. Nós vamos cuidar desses machucados e você vai comer e se limpar um pouco. Precisa descansar...

—        Negativo — o tenente interrompe. — O capitão quer vê-lo na sala de reuniões em 15 minutos.

 

Está chovendo quando o helicóptero de Ennis Chaney pousa no deque traseiro da Boone. O vice-presidente se curva e cutuca o homem adormecido à sua direita.

—        Acorde, Marvin, nós chegamos. Não entendo como você consegue dormir com essa barulheira toda.

Marvin Teperman dá um sorrisinho e esfrega os olhos.

—        Viajar me cansa.

Um guarda-marinha abre a porta deslizante, presta continência e leva os dois homens para a superestrutura.

—        Senhor, o capitão Loos está à sua espera na sala de reuniões...

—        Ainda não. Primeiro quero ver os corpos.

—        Agora, senhor?

—        Agora.

O guarda-marinha o leva para dentro de um grande hangar. Os sacos de cadáveres estão alinhados em fileiras no chão de concreto.

Chaney anda lentamente de um saco a outro, parando para ler a etiqueta de identificação de cada um.

—        Meu Deus... — O vice-presidente se ajoelha ao lado de um saco e abre o zíper, suas mãos tremendo.

Ele olha para o rosto pálido e sem vida de Brian Dodds. Com um toque paternal, afasta o cabelo castanho da testa do morto, a emoção marejando seus olhos.

—        Como isto aconteceu? — A voz de Chaney é tênue e rouca.

—        Não temos certeza, senhor. O sujeito que talvez saiba está na sala de reuniões do capitão, esperando para falar com o senhor.

Chaney fecha o saco e se levanta com dificuldade.

—        Me leve até ele.

 

Mick enfia o último pedaço de sanduíche de peru e queijo na boca e toma mais um gole de ginger ale.

—        Está se sentindo melhor?

Ele faz que sim para o capitão. Embora esteja exausto, a comida, o banho quente e as roupas limpas melhoraram o seu estado de espírito.

—        Bom, o senhor disse que se chama Michael Rosen e é um biólogo marinho que trabalha num laboratório em Tampa, correto?

—        Sim, senhor. Pode me chamar de Mick.

—        E o senhor descobriu o objeto abaixo de nós. Como?

—        Usando o SOSUS. É um sistema de observação sonora...

—        Sei o que é o SOSUS, obrigado. Agora, a sua colega...

Batidas na porta interrompem a pergunta. Mick ergue o olhar e vê o vice-presidente Ennis Chaney entrando, seguido por um cavalheiro mais baixo e mais velho, com bigode fino e um sorriso amigável.

—        Bem-vindo a bordo, senhor. Lamento que sua visita aconteça em circunstâncias tão desfavoráveis.

—        Capitão, este é o dr. Marvin Teperman, um exobiólogo que veio do Canadá em uma transferência temporária. E quem é esse cavalheiro?

Mick estende a mão.

—        Dr. Michael Rosen.

—        O dr. Rosen diz que entrou no objeto abaixo de nós com seu minissubmarino.

Chaney se senta à mesa de conferências.

—        O que ele viu?

O capitão Loos consulta suas anotações.

—        O dr. Rosen descreveu um cenário que parece digno do Inferno de Dante. Ele diz que o brilho esmeralda está sendo emitido por um poderoso campo de energia originado dentro dessa câmara subterrânea.

Chaney encara Mick com seus olhos intensos de guaxinim.

—        O que aconteceu com a Scylla?

—        A plataforma petrolífera era um posto de observação sensorial posicionado sobre o buraco — esclarece Loos.

—        O campo de energia criou um vórtice poderoso. O redemoinho deve ter destruído a plataforma.

Loos arregala os olhos. Ele pressiona um botão do intercomunicador.

—        Ponte.

—        Sim, senhor, comandante Richards falando.

—        Baixe bóias sensoras, comandante, depois mude nossa posição para um quilômetro a leste.

—        Um quilômetro a leste, sim, senhor.

—        Cumpra a ordem imediatamente, comandante.

— Entendido, senhor.

Mick corre os olhos do capitão Loos para o vice-presidente.

—        Mudar seu navio de lugar não basta, capitão. Corremos um grande perigo. Há uma forma de vida lá embaixo...

—        Uma forma de vida! — Marvin praticamente pula sobre a mesa. — Algo ainda está vivo lá embaixo? Como é possível? Como ela é?

—        Não sei.

—        O senhor não viu?

—        Ela estava escondida dentro de um enorme casulo.

—        Então como sabe que estava viva? Ela se mexeu?

—        Ela se comunicou comigo... telepaticamente. Tem a capacidade de acessar nossos pensamentos, até nossa memória subconsciente.

Teperman continua de pé, incapaz de conter sua empolgação.

—        Isso é incrível. Que pensamentos ela comunicou?

Mick hesita.

—        Ela acessou uma lembrança do meu falecido pai. Não era... não era uma lembrança muito feliz.

Chaney se inclina para a frente.

—        O senhor disse que corremos um perigo terrível. Por quê? Essa forma de vida é uma ameaça para nós?

—        É mais do que uma ameaça. A menos que a gente destrua esse ser e a nave dele, todos os homens, todas as mulheres e crianças deste planeta vão morrer em 4 Ahau... quer dizer, no dia 21 de dezembro.

Marvin para de sorrir. Chaney e o capitão se entreolham. Então olham para Mick, que sente a tensão por trás dos olhos do vice-presidente pregados nele.

—        Como sabe? O ser comunicou essa ameaça pra você?

—        Você viu algum tipo de arma? — pergunta o capitão.

—        Não tenho certeza. Alguma coisa foi liberada. Não sei o quê. Parecia um morcego enorme e deformado, só que não batia as asas, apenas saiu flutuando de um lago de energia líquida e prateada...

—        Era um ser vivo? — Marvin pergunta.

—        Não sei. Parecia mais mecânico do que orgânico. Como uma sonda. O campo de energia se agitou, um redemoinho se formou, e então o teto da câmara se abriu parcialmente pro mar. Aí a coisa subiu reto e saiu do funil.

—        Reto, pra fora do funil? — Chaney balança a cabeça, descrente. — É uma história bem louca, dr. Rosen.

—        Sei disso, mas garanto que é tudo verdade.

—        Capitão, o senhor examinou o submarino deste homem?

—        Sim, senhor. Os dispositivos eletrônicos estão destruídos, e o casco está bastante avariado.

—        Como você teve acesso à nave alienígena? — Marvin pergunta. Mick olha para o exobiólogo.

—        E a primeira vez que você se refere a ela como uma nave alienígena. São os restos do objeto que atingiu a Terra há 65 milhões de anos, não são, doutor?

Marvin ergue as sobrancelhas, surpreso.

—        E o sinal de rádio vindo do espaço profundo deve ter ativado o sistema vital da nave — continua Mick.

Teperman parece impressionado.

—        Como você sabe de tudo isso?

—        Isso é verdade? — pergunta o capitão Loos, incrédulo.

—        É bastante possível, capitão, embora, pelo que o dr. Rosen acabou de contar, pareça mais provável que o sistema vital alienígena nunca tenha sido completamente desativado. Esse casulo que o dr. Rosen mencionou deve ter continuado a funcionar, mantendo o ser vivo em algum tipo de animação suspensa protetora.

—        Até que o sinal vindo do espaço o ativou — completa Mick.

Chaney olha para ele com desconfiança.

—        Como você sabe tanto sobre esse ser alienígena? Após fortes batidas na porta, o comandante Broad entra.

—        Lamento interromper, capitão, mas preciso falar com o senhor em particular.

O capitão Loos sai com ele.

—        Dr. Rosen, o senhor diz que esse ser vai destruir a humanidade em 21 de dezembro. Como sabe disso?

—        Como eu disse, dr. Teperman, ele se comunicou comigo. As intenções dele podem não ter sido verbalizadas, mas eram bastante claras.

—        Ele mencionou o dia 21 para o senhor?

—        Não. — Mick pega as anotações do capitão. Ele corre os olhos sobre elas, tirando distraidamente o clipe do maço de folhas. — Passei a vida toda estudando as profecias maias, além de vários sítios arqueológicos ao redor do mundo que associam essa presença maligna ao fim do mundo. O dia 21 é a data mencionada no calendário maia, a data em que a humanidade será varrida da face da Terra. Antes que riam de mim, precisam saber que o calendário é um instrumento astronômico preciso...

Chaney esfrega os olhos, perdendo a paciência.

—        Eu acho que o senhor não fala como um biólogo, doutor, e não vejo graça nenhuma nessa sua profecia maia. Um monte de gente morreu a bordo daquela plataforma, e eu quero saber a causa da morte.

—        Eu já falei. — Mick enfia o clipe na cintura da calça.

—        E como conseguiu acesso à nave alienígena?

—        Existem 23 túneis situados num círculo perfeito no leito do oceano, a cerca de 1.500 metros do buraco central. Minha colega e eu entramos com nosso minissubmarino num desses túneis. Ficamos presos numa enorme turbina, que sugou nosso submarino para...

—        Uma turbina! — Teperman ergue as sobrancelhas novamente. — Incrível. Qual a função da turbina?

—        Desconfio que seja pra ventilação. O minissubmarino emperrou as lâminas durante a aspiração. Quando os rotores reverteram pra drenar a câmara, fomos lançados de volta ao mar.

O capitão Loos volta para a sala de reuniões com uma expressão irônica.

—        Fiquei a par de uma situação, vice-presidente, que pode explicar muita coisa. Parece que o dr. Rosen não é quem diz ser. O verdadeiro nome dele é Michael Gabriel, e ele escapou semana passada de um hospital psiquiátrico em Miami.

Chaney e Marvin olham para Mick com ar descrente.

Mick olha nos olhos do vice-presidente.

—        Não sou doente mental. Menti sobre minha identidade porque a polícia está atrás de mim, mas não sou louco.

O capitão Loos lê um fax.

—        Aqui diz que você esteve preso pelos últimos 11 anos, depois de um incidente envolvendo Pierre Borgia.

Chaney arregala os olhos.

—        Borgia, o secretário de Estado?

—        O Borgia atacou verbalmente meu pai, ele foi humilhado diante de uma assembléia lotada de colegas de trabalho. Perdi o controle. O Borgia manipulou o sistema judiciário. Em vez de ser preso por simples agressão, ele fez com que eu fosse internado numa instituição.

O capitão Loos entrega o fax a Chaney.

—        O pai de Mick era o Julius Gabriel.

Marvin parece surpreso.

—        Julius Gabriel, o arqueólogo?

O capitão sorri com desdém.

—        O charlatão que tentou convencer a comunidade científica de que a humanidade estava à beira da destruição. Lembro que li a respeito. A morte dele saiu na capa da Time.

Chaney ergue os olhos do fax.

—        Tal pai, tal filho.

—        Talvez ele tivesse razão — murmura Marvin.

O rosto do capitão fica rubro.

—        O Julius Gabriel era um lunático, dr. Teperman. Na minha opinião, pelo fruto se conhece a árvore. Este homem já tomou muito o nosso tempo.

Mick se levanta, exaltado.

—        Tudo o que acabei de contar é verdade...

—        Por que não para com essa farsa, Gabriel? Encontramos o diário do seu pai no minissubmarino. A única finalidade da sua história é convencer a gente e o resto do mundo de que as teorias ridículas do seu pai eram verdadeiras.

O capitão abre a porta.

Dois seguranças armados entram.

—        Vice-presidente, a menos que o senhor ainda precise deste homem, recebi instruções para prendê-lo.

—        Instruções de quem?

—        Do secretário Borgia, senhor. Ele está a caminho.

 

                                 Sydney, Austrália

O jato supersônico Dassault voa sobre o Pacífico Sul a 1.900 quilômetros por hora, seu design alongado mal registrando qualquer turbulência. Embora haja oito assentos no avião de três turbinas, 31 metros de comprimento e asas triangulares, somente três estão ocupados.

A embaixatriz americana na Austrália, Barbara Becker, se espreguiça ao acordar. Ela olha para o relógio quando o jato começa a descer sobre a Austrália. De Los Angeles a Sydney em menos de sete horas e meia. Nada mal. Ela se levanta e atravessa o corredor à direita para se juntar aos dois cientistas do Instituto de Pesquisas de Energia e Meio Ambiente.

Steven Taber, um homenzarrão que faz Barbara se lembrar do senador Jessé Ventura, está apoiado na janelinha, roncando, enquanto seu colega, o dr. Marty Martinez, digita furiosamente num laptop.

—        Com licença, doutor, mas logo vamos pousar, e eu queria fazer mais algumas perguntas pra você.

—        Só um momento, por favor. — Martinez continua digitando.

Becker se senta ao lado dele.

—        Talvez a gente devesse acordar o seu amigo...

—        Estou acordado. — Taber dá um bocejo de urso.

Martinez desliga o computador.

—        Pode perguntar, embaixatriz.

—        Como o senhor sabe, o governo australiano está em polvorosa. Eles dizem que mais de 173 mil quilômetros quadrados de território foram vaporizados na explosão. É uma área absurdamente grande para simplesmente desaparecer. Baseado na sua análise preliminar das fotos de satélite, o senhor diria que esse acidente foi causado por um fenômeno natural, como o monte Santa Helena, ou será que houve causas humanas?

Martinez dá de ombros.

—        Prefiro não responder, pelo menos até completarmos nossos testes.

—        Entendo. Mas...

—        Embaixatriz, o sr. Taber e eu estamos aqui representando o Conselho de Segurança das Nações Unidas, não os Estados Unidos. Sei que a senhora está no meio de um turbilhão político, mas prefiro não especular...

—        Calma, Marty. — Taber se inclina para a frente. — Vou responder à sua pergunta, embaixatriz. Primeiro, pode esquecer qualquer coisa semelhante a uma catástrofe natural. Aquilo não foi nenhum terremoto ou vulcão. Na minha opinião, estamos lidando com o teste de um novo tipo de dispositivo termonuclear. Com o perdão da expressão, eu fico me cagando de medo só de pensar na possibilidade.

Martinez balança a cabeça negativamente.

—        Steven, você não pode afirmar com certeza...

—        Vamos, Marty, chega de bobagem. Você e eu temos a mesma suspeita. Vai todo mundo ficar sabendo mesmo.

—        Ficar sabendo o quê? Falem comigo. Do que vocês suspeitam?

Martinez fecha o seu laptop com violência.

—        Nada que não seja motivo de protesto para os cientistas do Instituto há mais de uma década. Armas de fusão, fusão pura.

—        Me desculpe, não sou cientista. O que você quer dizer com fusão pura?

—        Não me surpreende que não tenha ouvido falar — Taber diz. — Por alguma razão, esse assunto nunca foi levado a público. Existem três tipos de armas nucleares: a bomba atômica, a bomba de hidrogênio ou bomba H e a bomba de fusão pura. A bomba atômica usa fissão, que é o processo de dividir um núcleo atômico pesado em dois ou mais fragmentos. Essencialmente, a bomba A é uma esfera cheia de explosivos detonados eletronicamente. Dentro da esfera há uma bola de plutônio do tamanho de um melão, e no centro dela tem um dispositivo que libera uma chuva de nêutrons. Quando os explosivos são detonados, o plutônio é esmagado e vira uma massa derretida. Os átomos são divididos em fragmentos, criando uma reação em cadeia que, por sua vez, libera quantidades imensas de energia. Se eu estiver indo rápido demais, é só dizer.

—        Continue.

—        Numa bomba de hidrogênio, o urânio-235 absorve um nêutron. A fissão acontece quando o nêutron se parte, produzindo dois núcleos menores, vários nêutrons e muita energia. Isso produz a temperatura e a densidade necessárias para a fusão do deutério e do trítio, que são dois isótopos de hidrogênio...

—        Peraí, calma, já me perdi. Martinez se vira para a embaixatriz.

—        Os detalhes não são importantes. O que a senhora precisa saber é que a fusão é diferente da fissão. A fusão é a reação que acontece quando dois átomos de hidrogênio se juntam, ou se fundem, pra formar um átomo de hélio. Esse processo, o mesmo que acontece no Sol, libera quantidades de energia muito maiores do que a fissão, causando uma explosão ainda mais forte.

Taber faz que sim.

—        O fator crucial, que no fim das contas determina a potência de uma arma termonuclear, é o que origina a explosão. Uma bomba de fusão pura é muito diferente de uma atômica ou de hidrogênio, pois não requer um gatilho de fissão pra causar a fusão. Isso significa que o plutônio ou o urânio enriquecido não são necessários pro projeto. A boa notícia é que a ausência de plutônio significa pouca ou nenhuma radioatividade residual. A má notícia é que um dispositivo de fusão pura relativamente pequeno teria um poder explosivo muito maior até do que a nossa mais moderna bomba de hidrogênio.

—        Maior quanto?

—        Vou dar um exemplo — diz Martinez. — A bomba atômica que jogamos em Hiroshima gerou uma quantidade de energia equivalente a 15 quilotons, ou 15 mil toneladas de TNT. Temperaturas no centro da explosão chegaram a 3.800 graus, com um vento de velocidade estimada em 1.580 quilômetros por hora. A maioria das pessoas num raio de 800 metros morreu. Isso numa explosão de 15 quilotons. Nossa versão moderna da bomba H tem o poder de 20 a 50 megatons, ou 50 milhões de toneladas de TNT, o equivalente a 2 ou 3 mil bombas como a de Hiroshima. Uma bomba de fusão pura tem um potencial destrutivo ainda maior. Bastaria uma pequena bomba de fusão pura de 2 quilotons para causar o mesmo impacto criado por uma bomba H de 30 megatons. E uma tonelada de TNT de fusão pura para cada 15 milhões de toneladas de TNT geradas por uma bomba de hidrogênio. Se quiséssemos dizimar uma área de 173 mil quilômetros quadrados, a fusão pura seria o melhor caminho.

Meu Deus... Apesar do forte ar-condicionado, Barbara sente o suor acumulado.

—        E vocês acham possível que uma potência estrangeira tenha desenvolvido esse dispositivo?

Martinez e Taber se entreolham.

—        O que foi? Falem!

Taber passa a mão na testa.

—        A viabilidade de se desenvolver um dispositivo de fusão pura não foi provada oficialmente, embaixatriz, mas os Estados Unidos e a França já vêm fazendo experiências há mais de uma década.

O dr. Martinez olha nos olhos dela.

—        Como já falei, nada disso deveria ser tão chocante. Os cientistas do Instituto estão questionando a moralidade e a legalidade desse trabalho há anos. Tudo isso viola diretamente o Tratado Abrangente Contra Testes.

—        Um momento, Marty— diz Taber. — Nós dois sabemos que o TACT não menciona a fusão pura.

—        Por que não, caramba? — pergunta a embaixatriz.

—        É uma chicana judicial que não foi corrigida, sobretudo porque nenhuma nação jamais anunciou formalmente a intenção de construir uma arma de fusão pura.

—        Vocês acham que os franceses teriam vendido a tecnologia para os australianos?

—        Não somos políticos, embaixatriz Becker — declara Taber. — De qualquer forma, quem pode dizer que foram os franceses? Podem ter sido os russos ou até os bons e velhos Estados Unidos, pelo que sabemos.

Martinez concorda com um movimento da cabeça.

—        Os Estados Unidos já estavam na frente. Testar essa arma na Austrália colocaria pontos de interrogação na cabeça de todo mundo.

Barbara balança a cabeça.

—        Meu Deus, estou entrando num vespeiro. Todos os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança vão enviar representantes. Todos vão ficar trocando acusações.

Martinez encosta a cabeça no assento e fecha os olhos.

—        A senhora ainda não entendeu o significado de tudo isso, não é, embaixatriz? A fusão pura é a bomba do fim do mundo. Nenhum país, nem os Estados Unidos, deveria ter sido autorizado a realizar qualquer tipo de experiência com fusão pura. Não importa qual país a desenvolva primeiro. A arma pode destruir todos nós.

Barbara sente seu estômago afundar quando o Dassault pousa. O jato taxia pela pista até um Seahawk Sikorsky S-70B-2 que está à espera.

Um cavalheiro alto, usando macacão preto de neoprene, os cumprimenta na pista de pouso. Ele se aproxima de Barbara e estende a mão.

—        Embaixatriz, sou Karl Brandt, da Organização Australiana de Pesquisa Geológica, como vai? Me desculpe pelos trajes, mas os macacões de chumbo que vamos usar são bastante desconfortáveis. Imagino que vocês sejam do Instituto de Pesquisas de Energia e Meio Ambiente?

Taber e Martinez se apresentam.

—        Muito bem. Olha, não quero apressar vocês, mas Nullarbor, ou o que restou dela, fica a duas horas daqui, e não quero perder a luz do dia.

—        E os outros membros da delegação do Conselho de Segurança?

—        Já estão esperando no helicóptero.

 

                         Golfo do México

Mick se ajoelha ao lado da porta de aço da cela de 2 metros e meio por 3, lutando para se manter acordado enquanto sonda o buraco da fechadura com o pedaço de arame.

—        Droga! — Ele se deixa cair contra a parede, olhando para a ponta do clipe quebrado, agora emperrada na fechadura.

Não adianta... não consigo me concentrar. Preciso dormir, preciso descansar um pouco. Ele fecha os olhos e abre em seguida.

—        Não! Fique acordado, mexa na fechadura. O Borgia logo vai estar aqui e...

—        Mick?

A voz o assusta.

—        Mick Gabriel, está aí dentro?

—        Teperman?

Uma chave gira na fechadura e a porta é aberta. Marvin entra, deixando a porta escancarada.

—        Aí está você. Deu trabalho encontrá-lo, este barco é grande. — Ele entrega a Mick o diário encapado em couro. — Leitura interessante. Mas também seu pai sempre teve bastante imaginação.

Mick olha para a porta.

—        Conheci seu pai, sabia? Foi em Cambridge, no final dos anos 1960. Eu estava no terceiro ano da faculdade. O Julius foi o orador convidado num ciclo de palestras intitulado "Mistérios da Humanidade Antiga". Eu o achei brilhante. Aliás, foi o discurso dele que me motivou a seguir carreira na exobiologia.

Marvin nota que Mick está olhando a porta. Ele se vira e vê o clipe espetado na fechadura.

—        Assim você não vai muito longe.

—        Dr. Teperman, preciso sair daqui.

—        Eu sei. Tome isto. — Marvin enfia a mão no bolso do paletó, puxando um maço de notas. — Tem pouco mais de seiscentos dólares aí, alguns canadenses. Não é muito, mas deve bastar para você chegar aonde precisa.

—        Você está me libertando?

—        Eu não. Sou só o mensageiro. Seu pai foi uma grande influência, mas eu não gostava tanto assim dele.

—        Não entendi.

—        Sua fuga foi planejada por alguém que despreza o secretário Borgia tanto quanto você.

Chaney?

—        Então você não está me soltando porque acredita na minha história?

Marvin sorri, dando-lhe um tapinha afetuoso na face.

—        Você é um bom menino, Mick, mas, como o seu pai, é um pouco biruta. Agora ouça com atenção. Vire à esquerda e siga este corredor de acesso até o fim. Vai chegar a uma escada de três lances que leva até o deque principal. Tem um hangar na popa. Dentro dele, no chão, estão os cadáveres das vítimas da plataforma petrolífera. Pegue um saco vazio, entre dentro dele e espere. Daqui a trinta minutos, um helicóptero da EVAC vai chegar pra transportar os mortos pro aeroporto de Mérida. Depois disso, você está por sua conta.

—        Obrigado... espere, e a Dominique?

—        Sua namorada está melhor, mas não está em condições de viajar. Quer mandar um recado pra ela?

—        Por favor. Diga que não vou desistir até fechar esse quebra-cabeça.

—        Aonde vai?

—        Quer mesmo saber?

—        Melhor não. Agora saia daqui antes que nos prendam.

 

                       Sul da Austrália

A embaixatriz Becker olha pela janela, ouvindo com atenção a conversa que acontece no fundo do helicóptero entre os delegados da Federação Russa, da China e da França. Spencer Botchin, o representante do Reino Unido, curva-se para sussurrar no ouvido dela.

—        Só podem ter sido os franceses. Espero que não tenham sido estúpidos a ponto de vender esse negócio para os iranianos.

Ela balança a cabeça, concordando.

—        Eles não teriam testado a arma sem o apoio da Rússia e dos chineses — murmura ela.

É fim de tarde quando o helicóptero chega ao sul da Austrália. Barbara Becker olha pela janela, e a visão a deixa literalmente arrepiada.

A paisagem é uma enorme cratera carbonizada, uma depressão fumegante que se estende até onde a vista alcança, em todas as direções.

Karl Brandt se senta perto dela.

—        Há três dias, essa área ficava 40 metros acima do nível do mar. Agora, na maioria dos lugares, mal atinge um metro e meio.

—        Como é que alguma coisa consegue vaporizar tanta rocha?

Steve Taber para de ajudar o dr. Martinez a vestir o macacão de chumbo.

—        A julgar pela cratera que estamos vendo, eu diria que houve uma explosão subterrânea de incrível magnitude.

Brandt veste seu traje à prova de radiação e fecha o zíper.

—        Os tanques destes trajes nos fornecem ar por trinta minutos.

O dr. Martinez se esforça para fazer um sinal de positivo com as pesadas luvas. Taber entrega o contador Geiger ao colega.

—        Marty, tem certeza de que não quer que eu desça com você?

—        Eu dou conta.

O co-piloto se aproxima, ajudando Brandt e Martinez a vestirem os arreios ligados por cabos a dois guinchos hidráulicos.

—        Cavalheiros, há um intercomunicador nos seus capacetes. Vocês poderão se comunicar conosco e um com o outro. Vamos ter que soltar vocês quando tocarem no chão. — Ele abre a porta do compartimento de carga, gritando por cima do barulho ensurdecedor das hélices: — Certo, rapazes, pra fora.

Os cinco embaixadores se aproximam para olhar. Martinez sente o coração pular na garganta quando atravessa a porta e fica pendurado a 47 metros do chão. Ele fecha os olhos, sentindo-se girar enquanto desce.

—        Tudo bem aí, doutor?

—        Sim, sr. Brandt. — Ele abre os olhos e verifica o contador Geiger. — Nenhuma radiação até agora. Muito calor.

—        Não se preocupe, os trajes devem nos proteger.

—        Devem? — Martinez olha para baixo. Baforadas de fumaça branca sobem até ele, embaçando sua viseira. Mais 3 metros...

—        Esperem! Parem! Parem! — Martinez ergue os joelhos até o peito, lutando para se afastar da superfície derretida abaixo dele. — Levantem a gente! Mais alto! Mais alto!

Os dois homens param de descer e ficam pendurados a centímetros do solo branco, leitoso, fervilhando a 340 graus.

—        Nos levantem 6 metros — grita Brandt. O guincho os levanta.

—        Qual é o problema? — A voz de Barbara penetra em seus tímpanos.

—        A superfície está fervendo, é um caldeirão de rocha derretida e água do mar — diz Martinez, com voz aguda e nervosa. — Faremos nossos testes daqui. Só vai levar um minuto.

A voz grave de Taber o sobressalta.

—        Alguma radiação?

Martinez verifica os sensores.

—        Não. Peraí, estou detectando argônio-4l.

Brandt olha.

—        Não é um subproduto do plutônio?

—        Não, é um produto de vida curta da ativação da fusão pura. O que vaporizou esta paisagem devia ser alguma espécie de arma híbrida de fusão pura. — Martinez prende o contador Geiger no cinto, depois analisa os gases que sobem do solo. — Uau. O nível de dióxido de carbono está fora da escala.

—        É compreensível — diz Brandt. — Toda esta planície era feita de calcário, que é um depósito natural de dióxido de carbono. Quando o solo foi vaporizado, liberou uma nuvem tóxica de CO2. Na verdade, tivemos sorte, os ventos do sul a sopraram pro mar, pra longe das nossas cidades.

—        Também estou detectando altos níveis de ácido clorídrico.

—        É mesmo? Isso é esquisito.

—        Sim, sr. Brandt, tudo isso é esquisito e bastante assustador. Puxem a gente pra cima, já vi tudo o que eu precisava ver.

 

                    Aeroporto de Mérida, México

O helicóptero pousa com um tranco assustador.

Mick abre os olhos, respirando profundamente para espantar o sono de seu corpo. Ele levanta a cabeça para fora do saco aberto e olha ao redor.

Sessenta e quatro sacos verde-oliva de cadáveres, contendo os restos da tripulação da Scylla, ocupam o interior. Mick ouve o barulho das portas deslizantes. Ele se deita e fecha o zíper do saco.

As portas se abrem. Mick reconhece a voz do piloto.

—        Vou estar no hangar. Peça aos seus homens que tomem bastante cuidado, compreende, amigo?

O homem responde num espanhol rápido. Homens começam a transportar os sacos. Mick fica totalmente imóvel.

Vários minutos se passam. Ele ouve o motor de um caminhão partir e sumir a distância.

Ele abre o zíper do saco e olha pelo vão da porta, avistando o veículo indo para um hangar aberto.

Mick sai do saco, salta do helicóptero e corre até o terminal principal.

 

                         Diário de Julius Gabriel

Foi no outono de 1977 que Maria e eu voltamos para a J. Mesoamérica, minha esposa agora grávida de seis meses. Precisando desesperadamente de financiamento, decidimos submeter nosso trabalho a Cambridge e Harvard, tomando o cuidado de omitir quaisquer informações relativas à presença de uma raça de humanóides alienígenas. Impressionados com nossa pesquisa, os poderes acadêmicos nos recompensaram com bolsas de pesquisa para que continuássemos nosso trabalho.

Depois de comprar um trailer usado, saímos para explorar as ruínas maias, esperando identificar a pirâmide mesoamericana que o artista de Nazca desenhara no deserto do pampa, bem como uma maneira de salvar a humanidade da destruição profetizada.

Apesar da morbidez da nossa missão, os anos que passamos no México foram felizes. Nosso momento favorito foi o nascimento do nosso filho, Michael, no alvorecer da manhã de Natal, na sala de espera de uma pequena clínica médica em Mérida.

Devo admitir que me preocupava bastante criar um filho em condições tão duras, por temer que o isolamento de Michael das outras crianças da sua idade pudesse impedir o desenvolvimento social do menino. À certo ponto, até sugeri a minha esposa que o enviássemos a um internato particular quando ele completasse 5 anos. Maria não quis nem saber. No final, capitulei aos seus desejos, percebendo que ela precisava da companhia do menino tanto quanto ele precisava da dela.

Maria era mais do que a mãe de Michael, era sua mentora, guia e melhor amiga — e ele, seu aluno prodígio. Até na mais tenra idade, era fácil perceber que o menino possuía a mente perspicaz da mãe, como acompanhamento daqueles olhos negros de ébano e seu olhar desarmante.

Durante sete anos, nossa família vasculhou as densas selvas hoje existentes no México, Belize, Guatemala, Honduras e El Salvador. Enquanto outros pais ensinavam os filhos a jogar beisebol, eu ensinava meu filho a escavar artefatos. Enquanto outros alunos aprendiam um idioma estrangeiro, Michael aprendia a traduzir hieróglifos maias. Juntos, nós três escalamos os templos de Uxmal, Palenque e Tikal, exploramos as fortificações de Labna, Churihuhu e Kewik, e nos maravilhamos com o castelo de Tulum. Investigamos a capital zapoteca de Monte Alban e os centros religiosos em Kaminaljuyu e Copán. Rastejamos através de tumbas e mergulhamos em cavernas subterrâneas. Descobrimos plataformas antigas e entrevistamos anciãos maias. E no final, reduzimos a identidade da pirâmide do desenho de Nazca a um entre dois sítios antigos, ambos, nós acreditávamos, peças do quebra-cabeça da profecia do calendário maia.

O primeiro sítio era Teotihuacán, uma magnífica cidade tolteca situada sobre um platô a 2 mil metros de altura nas montanhas mexicanas, uns 48 quilômetros a nordeste da atual Cidade do México. Supostamente fundada na época de Cristo, Teotihuacán foi a primeira grande metrópole do hemisfério ocidental, e acredita-se que tenha sido uma das maiores.

Como as estruturas de Gizé, as origens de Teotihuacán continuam sendo um mistério. Não fazemos idéia de qual cultura projetou a cidade, como a façanha foi realizada, ou mesmo que língua era falada por seus habitantes originais. Como no caso da Esfinge e das pirâmides de Gizé, a data da construção de Teotihuacán ainda é muito debatida. Até o nome do complexo e de suas pirâmides nos chegaram da civilização tolteca, que se mudou para lá séculos depois que a cidade foi abandonada.

Estima-se que o trabalho de construir as estruturas de Teotihuacán tenha ocupado um exército de 20 mil homens durante mais de quarenta anos. No entanto, não foi o mistério de como a cidade foi construída que de cara nos chamou a atenção, mas seu projeto e as óbvias semelhanças com a planta de Gizé.

 

Conforme já falei, há três pirâmides principais em Gizé, dispostas em referência às estrelas do Cinturão de Órion, com o Nilo representando uma reflexão da fenda escura da Via Láctea. Teotihuacán também tem três pirâmides, dispostas numa formação alternada surpreendentemente semelhante, embora a orientação difira em quase 180 graus. Ligando uma ponta da cidade à outra está a avenida dos Mortos, a principal rota de acesso através do complexo. A avenida, como o rio Nilo em Gizé, fora projetada para representar a fenda escura da Via Láctea.

Para os indígenas mesoamericanos da antiguidade, a fenda escura era conhecida como Xibalba Be, a Estrada Negra que leva até Xibalba, o Mundo Inferior. Novas escavações em Teotihuacán descobriram largos canais sob essa estrada, que, agora sabemos, foram projetados para coletar água da chuva. Isso indicaria que a avenida dos Mortos talvez nunca tenha sido uma estrada, e sim um magnífico espelho d'água cósmico.

As similaridades entre Gizé e Teotihuacán não param aí. O maior dos três templos da cidade mesoamericana é chamado de Pirâmide do Sol, uma estrutura precisa de quatro lados cuja base, com 226,3 metros, é apenas 3,8 metros mais curta que sua equivalente egípcia, a Grande Pirâmide de Gizé. Isso faz da Pirâmide do Sol a maior estrutura construída pelo homem do hemisfério ocidental, sendo a Grande Pirâmide a maior do Oriente. O interessante é que a Pirâmide do Sol aponta para o oeste, e a Grande Pirâmide, para o leste, um fato que fazia Maria pensar nessas duas imensas estruturas como gigantescos terminais planetários.

Medições precisas da Grande Pirâmide e da Pirâmide do Sol indicam claramente que os antigos arquitetos das duas estruturas possuíam amplo conhecimento de Matemática avançada, Geometria e do valor de pi. O perímetro da Pirâmide do Sol é igual à sua altura multiplicada por 2 pi e a Grande Pirâmide tem o dobro de sua altura, 4 pi.

Uma pista sobre quem projetou Teotihuacán pode ser encontrada na menor das três estruturas, a Pirâmide de Quetzalcoatl. O templo está localizado num enorme quadrilátero murado, chamado de Ciudadela (Cidadela), uma praça grande o suficiente para acomodar 100 mil pessoas. A estrutura mais elaboradamente adereçada de toda Teotihuacán, a Pirâmide de Quetzalcoatl contém uma miríade de esculturas e fachadas tridimensionais que representam uma personagem em particular — uma ameaçadora serpente emplumada.

Para os toltecas e astecas, a serpente emplumada simbolizava o grande sábio caucasiano, Quetzalcoatl.

Mais uma vez, a presença de um misterioso mestre barbado parecia dirigir nossa jornada ao passado.

Depois de abandonar Teotihuacán, os toltecas e seu líder migraram para o leste, assentando-se na cidade maia de Chichén Itzá. Foi ali que as duas culturas se fundiram novamente numa só, criando a estrutura mais magnífica e intrigante de todo o mundo antigo — a pirâmide de Kukulcán.

Eu não sabia disso na época, mas seria em Chichén Itzá que ficaríamos cara a cara com uma descoberta que não mudaria apenas o destino da minha família, mas nos condenaria a permanecer em nossa jornada para sempre.

— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,

 

Ref. Catálogo 1977-81 páginas 12-349

Diário Fotográfico, Disquete 5: Nome do arquivo: MESO, Foto de Balão 176

 

               4 DE DEZEMBRO DE 2012, A BORDO DA USS BOONE

GOLFO DO MÉXICO

O secretário de Estado Pierre Borgia desce do helicóptero e é recebido pelo capitão Edmund Loos.

—        Bom dia, secretário. Como foi o vôo?

—        Uma droga. O diretor psiquiátrico de Miami já chegou?

—        Há uns vinte minutos. Está à sua espera na minha sala de reuniões.

—        Quais as últimas notícias sobre o Gabriel?

—        Ainda não sabemos ao certo como ele conseguiu fugir da cela. A fechadura mostra sinais de manipulação, mas nada significativo. Nossa melhor hipótese é que alguém o tenha libertado.

—        Foi a garota?

—        Não, senhor. Ela sofreu uma concussão e estava na enfermaria, inconsciente. Ainda estamos investigando.

—        E como ele conseguiu sair do navio?

—        Provavelmente pegou carona num helicóptero da EVAC. Eles transportaram corpos o dia todo.

Borgia olha com frieza para o capitão.

—        Espero que não comande seu navio como vigia seus prisioneiros, capitão.

Loos devolve o olhar.

—        Isto não é um serviço de babás, secretário. Duvido que um de meus homens se arriscasse a apodrecer na cadeia pra libertar o seu biruta.

—        Quem mais poderia tê-lo libertado?

—        Não sei. Temos equipes de cientistas a bordo, e mais chegando todo dia. Poderia ter sido um deles, ou até alguém da equipe do vice-presidente.

Borgia ergue as sobrancelhas.

—        Como falei, ainda estamos investigando. Também alertamos a polícia mexicana sobre a fuga.

—        Nunca vão encontrá-lo. O Gabriel tem amigos demais em Yucatán. E a garota? O que ela sabe sobre o objeto alienígena?

—        Ela diz que só se lembra do minissubmarino sendo sugado por um túnel. Um dos nossos geólogos a convenceu de que a embarcação foi apanhada pela corrente de um canal de lava, criado por um vulcão subterrâneo dormente que está voltando à atividade. — Loos sorri. — Ele explicou que o brilho é causado por um rio de lava subterrâneo que pode ser visto fluindo pelo abismo no fundo do mar. Até mostrou a ela algumas fotos infravermelhas de satélite do redemoinho, todas falsas, dizendo que o vórtice foi causado pelo desabamento de bolsões subterrâneos sob o leito do oceano. Ela acredita que foi isso que afundou o barco do pai, matando ele e os dois amigos.

—        Onde ela está agora?

—        Na enfermaria.

—        Me dê alguns minutos pra falar com o diretor psiquiátrico a sós, depois traga a garota. Enquanto falamos com ela, mande costurar isto na roupa dela. — Ele entrega a Loos um pequeno aparelho do tamanho de uma bateria de relógio.

—        Um rastreador?

—        Um presentinho da Agência de Segurança Nacional. Ah, capitão, quando trouxer a garota pra falar comigo, coloque algemas.

 

Dois marinheiros armados conduzem uma Dominique Vazquez algemada e nervosa por vários corredores estreitos, depois sobem três lances de escada até uma cabine com o escrito SALA DE REUNIÕES DO CAPITÃO. Um dos guardas bate na porta, depois abre e a leva para dentro.

Dominique entra na pequena sala de conferências.

—        Meu Deus...

Anthony Foletta ergue os olhos da mesa e sorri.

—        Residente Vazquez, entre. — A voz rouca tem um tom paternal. — Secretário, as algemas são mesmo necessárias?

O caolho fecha a porta atrás dela, depois toma o seu lugar à mesa, diante de Foletta.

—        Temo que sim, dr. Foletta. A srta. Vazquez ajudou um condenado perigoso.

Ele olha para Dominique e pede que ela se sente.

—        Sabe quem eu sou?

—        Pierre Borgia. Eu... achei que o senhor vinha para cá três dias atrás.

—        Bem, tivemos um probleminha na Austrália que exigiu nossa atenção.

—        Está aqui pra me prender?

—        Isso depende totalmente da senhorita.

—        Não é você que queremos, Dominique — diz Foletta. — É o Mick. Você sabe onde ele está, não sabe?

—        Como eu iria saber? Ele fugiu enquanto eu estava inconsciente.

—        Ela é bonita, não acha, doutor? — O olhar de Borgia faz suor brotar do lábio superior de Dominique. — Não admira que o Mick tenha se encantado. Me diga, srta. Vazquez, o que a motivou a ajudá-lo a fugir do hospital?

Foletta interrompe antes que ela possa responder.

—        Ela estava confusa, secretário. O senhor sabe o quanto o Gabriel é esperto. Ele usou o trauma de infância da Dominique para coagi-la a ajudá-lo.

—        Isso não é totalmente verdade — diz ela, achando difícil não fitar o tapa-olho permanente de Borgia. — O Mick sabia que havia algo no Golfo. E sabia sobre a transmissão vinda do espaço...

Foletta põe a mão suada no antebraço dela.

—        Residente, você precisa encarar a realidade. O Mick Gabriel te usou. Estava planejando fugir desde o momento em que te conheceu.

—        Não, não acredito nisso...

—        Talvez apenas não queira acreditar — diz Borgia. — A verdade é que o seu pai ainda estaria vivo se o Mick não tivesse te coagido a ajudá-lo.

Os olhos de Dominique se enchem de lágrimas.

Borgia retira uma ficha de sua pasta e a examina por um momento.

—        Isadore Axler, biólogo, residente na ilha de Sanibel. Tem uma lista de credenciais bem extensa. Não era seu pai biológico, certo?

—        Era o único pai que conheci na vida.

Borgia continua examinando a ficha.

—        Ah, aqui está. Edith Axler. Sabia que eu a conheci? Uma boa mulher.

Dominique sente calafrios sob o agasalho da Marinha.

—        O senhor falou com a Edie?

—        Só o suficiente para dar a ela voz de prisão.

As palavras a fazem pular de pé.

—        Edie não tomou parte na fuga do Mick! Fui só eu. Eu planejei tudo...

—        Não estou interessado numa confissão, srta. Vazquez. O que eu quero é o Michael Gabriel. Se eu não puder pegá-lo, vou simplesmente trancafiar vocês duas por muito tempo. Naturalmente, no caso da Edith, não vai ser tanto tempo assim. Ela já está em idade avançada, e a morte do marido, obviamente, teve um impacto.

O coração de Dominique dispara.

—        Já falei, não sei onde ele está.

—        Se a senhorita diz. — Borgia se levanta e vai até a porta.

 

—        Espere, me deixe falar com ela — diz Foletta. — Me dê cinco minutos.

Borgia olha para o relógio.

—        Cinco minutos. — Ele sai da cabine.

Dominique apóia a cabeça na mesa, suas entranhas tremendo, suas lágrimas formando uma poça sobre o tampo de aço.

—        Por que tudo isso está acontecendo?

—        Shh. — Foletta afaga-lhe o cabelo, sua voz um sussurro calmante. — Dominique, o Borgia não quer prender você e a sua mãe. Ele só está com medo.

Ela levanta a cabeça.

—        Medo de quê?

—        Do Mick. Ele sabe que o Mick quer se vingar, que nada o impedirá de matá-lo.

—        O Mick não faria isso...

—        Você está enganada. O Borgia o conhece melhor do que você ou eu. A história deles é bem antiga. Sabia que o Borgia foi noivo da mãe do Mick? O Julius Gabriel roubou a noiva dele na véspera do casamento. Existe muito ressentimento entre as famílias.

—        O Mick não se importa com vingança. Está mais preocupado com essa profecia maia.

—        O Mick é esperto. Não vai contar a você nem a ninguém seu verdadeiro motivo. Eu acho que ele está escondido em Yucatán. Sua família tinha muitos amigos lá que podem ajudá-lo. Vai ficar na moita por uns tempos e depois vai pegar o Borgia, provavelmente em alguma aparição pública. Pense nisso, Dominique, você acha mesmo que o secretário de Estado dos Estados Unidos viria até aqui te ver se não estivesse apavorado? Daqui a alguns anos, ele vai concorrer à presidência. A última coisa com que vai querer se preocupar é um paranóico-esquizofrênico com QI 160 planejando o seu assassinato.

Dominique enxuga os olhos. Será que é verdade? Será que o Mick realmente usou a pesquisa da família pra me enganar?

—        Suponhamos que eu acredite no senhor. O que acha que devo fazer?

Os olhos de Foletta piscam para ela.

—        Me deixe te ajudar a entrar num acordo com o Borgia. Imunidade total pra você e sua mãe se você levar as autoridades até o Mick.

—        A última vez que fizemos um acordo, o senhor mentiu. Nunca teve nenhuma intenção de reavaliar o Mick ou dar a ele o tratamento necessário. Por que eu deveria acreditar agora?

—        Eu não menti! — Ele fica de pé, gritando as palavras. — Eu ainda não tinha sido oficialmente nomeado pro emprego em Tampa, e quem diz o contrário é um mentiroso descarado! — Ele enxuga o suor da testa, depois alisa o cabelo grisalho, seu rosto rechonchudo e rubro. — Dominique, estou aqui pra te ajudar. Se não quiser minha ajuda, sugiro que arranje um bom advogado.

—        Eu quero sua ajuda, doutor, só não sei se posso confiar no senhor.

—        A imunidade será providenciada pelo Borgia, não por mim. O que estou oferecendo é sua vida como ela era.

—        O que está dizendo?

—        Já falei com sua orientadora na universidade. Estou te oferecendo um cargo de residente no novo hospital em Tampa, perto da casa da sua mãe. Seu trabalho será chefiar a equipe de terapia do Mick, com um cargo permanente e benefícios integrais depois que você se formar.

A oferta traz lágrimas de alívio.

—        Por que está fazendo isso?

—        Porque me sinto culpado. Eu jamais devia ter indicado o Mick como seu paciente. Você vai ser uma excelente psiquiatra um dia, mas não estava preparada pra lidar com um paciente tão manipulador como o Michael Gabriel. A morte do seu pai, as atribulações que sua família está passando. Tudo isso é culpa minha. Eu sabia do perigo, mas resolvi arriscar. Vi em você uma mulher forte que seria perfeita pra minha equipe, mas precipitei o seu desenvolvimento. Me desculpe, Dominique. Me dê a chance de compensar você.

Ele estende a mão roliça.

Dominique olha para ela por um longo momento, depois a aperta.

 

                     6 DE DEZEMBRO DE 2012, WASHINGTON, DC

O vice-presidente Ennis Chaney ergue os olhos do relatório, acompanhando a entrada dos membros do gabinete de Segurança Nacional do presidente na sala de guerra da Casa Branca. Eles se sentam ao redor da mesa oval de conferências. Meia dúzia de assessores militares e científicos entram em seguida, ocupando as cadeiras dobráveis extras dispostas ao redor da sala.

Ennis fecha o documento quando o presidente entra, com o secretário de Estado atrás dele. Borgia passa por seu lugar à mesa e se dirige a Chaney.

—        Você e eu precisamos conversar.

—        Secretário, podemos começar?

—        Sim, presidente. — Borgia acha o seu lugar, lançando um olhar perturbado para Chaney.

O presidente Maller esfrega os olhos injetados, depois lê um fax.

—        Hoje à tarde, o Conselho de Segurança das Nações Unidas vai emitir um comunicado condenando o teste de armas de fusão pura como contrário à moratória de fato nos testes de armas nucleares e aos esforços globais de não proliferação e desarmamento nuclear. Além disso, o Conselho vai procurar a ratificação imediata de uma nova resolução para invalidar a chicana da tecnologia de fusão pura.

Maller mostra um relatório com o carimbo UMBRA, um código usado para classificar arquivos acima de TOP SECRET.

—        Presumo que todos tenham examinado este documento. Pedi que seu autor, o dr. Brae Roodhof, diretor do Laboratório Nacional de Ignição em Livermore, Califórnia, estivesse conosco nesta manhã, pois tenho certeza de que todos nós queremos respostas às nossas perguntas. Doutor?

O dr. Roodhof tem 50 e poucos anos, é alto, grisalho e tem um rosto bronzeado, enrugado e apaziguador.

—        Presidente, senhoras e senhores, quero começar declarando enfaticamente que não foram os Estados Unidos que detonaram essa arma de fusão pura.

As entranhas de Ennis Chaney estão reviradas desde que ele terminou de ler o arquivo UMBRA. Seus olhos lançam chispas quando ele fita o físico nuclear.

—        Doutor, vou lhe fazer uma pergunta, mas quero que saiba que ela é dirigida a todas as pessoas nesta sala. — O tom do vice-presidente silencia todos os movimentos ao redor. — O que eu quero saber é por que, doutor. Por que os Estados Unidos da América estão conduzindo essa porcaria de pesquisa suicida?

Os olhos do dr. Roodhof correm pela mesa.

—        Senhor, eu... sou só o diretor do projeto. Não é minha função determinar a política do país. Foi o governo federal que patrocinou a pesquisa de fusão pura nos laboratórios de armas nucleares na década de 1990, e foram os militares que pressionaram para que as bombas fossem projetadas e construídas...

—        Não reduzamos essa questão a uma mera imputação de culpa, vice-presidente — interrompe o general Fecondo. — A realidade da situação é que outras potências estavam pesquisando a tecnologia, e isso nos obrigou a fazer o mesmo. O LMJ, o complexo Laser Megajoule em Bordeaux, na França, faz experimentos com fusão pura desde o início de 1998. Os britânicos e os japoneses têm trabalhado com fusão magnética não explosiva há anos. Qualquer um desses países poderia fechar as lacunas de viabilidade para criar dispositivos termonucleares de não fissão.

Chaney se vira para encarar o general.

—        Então por que o resto do mundo, incluindo cientistas do nosso país, parece pensar que somos os responsáveis pela detonação na Austrália?

—        Porque todos na comunidade científica acreditavam que nossa pesquisa era a mais avançada — responde o dr. Roodhof. — O Instituto de Pesquisas de Energia e Meio Ambiente publicou recentemente um relatório declarando que os Estados Unidos estavam a dois anos de testar um dispositivo de fusão pura.

—        E estavam certos?

—        Ennis...

—        Não, me desculpe, presidente, mas eu quero saber.

—        Vice-presidente, agora não é hora...

Chaney ignora Maller, seus olhos penetram nos de Roodhof.

—        Quão perto estamos, doutor? Roodhof desvia o olhar.

—        Catorze meses.

A sala irrompe numa dúzia de conversas paralelas. Borgia sorri ao ver a expressão do presidente se transformar em raiva. Isso mesmo, Chaney, continue jogando merda no ventilador.

Ennis Chaney cai sobre a cadeira, exausto. Ele não está mais combatendo moinhos de vento, está enfrentando a loucura globalizada.

O presidente Maller bate com a palma da mão na mesa, restabelecendo a ordem.

—        Já chega! Sr. Chaney, agora não é a hora nem o lugar para entrarmos num debate aberto sobre as políticas deste governo ou dos anteriores. A realidade da situação é que outro governo detonou uma dessas armas. Quero saber quem foi e se a escolha da data teve algo a ver com a escalada militar iraniana no estreito de Hormuz.

O diretor da CIA, Patrick Hurley, é o primeiro a responder.

—        Senhor, podem ter sido os russos. Os estudos de fusão magnetizada conduzidos em Los Alamos foram realizados em cooperação com a Rússia.

O dr. Roodhof balança a cabeça.

—        Eu discordo. Os russos abandonaram os estudos quando a economia deles entrou em colapso. Só podem ter sido os franceses.

O general Mike Costolo, comandante dos Fuzileiros Navais, ergue uma mão roliça.

—        Dr. Roodhof, pelo que li, essas armas de fusão pura liberam muito pouca radiação, correto?

—        Sim, senhor.

—        O que quer dizer, general? — pergunta Dick Przystas. Costolo se vira para o secretário de Defesa.

—        Um dos motivos de o Departamento de Defesa ter pressionado para que essas armas fossem desenvolvidas, no início, foi termos descoberto que a Rússia e a China estavam fornecendo armas nucleares ao Irã. Se uma guerra nuclear eclodisse no Golfo Pérsico, a fusão pura não só daria ao seu possuidor uma vantagem tática, mas a falta de radiação permitiria que a produção de petróleo continuasse. Na minha opinião, não importa se os franceses ou os russos atingiram a tecnologia primeiro. A única coisa que importa é saber se os iranianos possuem a arma. Nesse caso, só a ameaça já mudaria o equilíbrio de poder no Oriente Médio. Se o Irã detonasse uma dessas armas no Golfo Pérsico, a Arábia Saudita, o Kuwait, o Bahrein, o Egito e outros regimes árabes moderados se veriam obrigados a recusar o apoio do Ocidente.

Borgia balança a cabeça, concordando.

—        Os sauditas ainda hesitam em permitir nosso acesso aos suprimentos que preparamos. Eles perderam a confiança na nossa capacidade de manter o estreito de Hormuz aberto.

—        Onde estão os porta-aviões? — O presidente pergunta a Jeffrey Gordon.

—        Em preparação para os iminentes exercícios nucleares na Ásia, mandamos o Harry S. Truman e sua frota para o Mar Vermelho. O grupo de batalha do Ronald Reagan deve chegar ao Golfo de Omã daqui a três dias. O William J. Clinton vai permanecer em patrulha no oceano Indico. Estamos mandando uma mensagem para o Irã, clara e simples, de que não temos intenção de permitir que o estreito de Hormuz seja fechado.

—        Só para constar, presidente — declara Chaney —, o embaixador francês nega veementemente qualquer responsabilidade nessa explosão.

—        O que você esperava? — Borgia reage. — Não enxergue só as negativas. O Irã ainda deve bilhões de dólares à França, mas os franceses continuam apoiando os iranianos, como fazem a Rússia e a China. Também quero salientar que a Austrália é um dos países que continuou a dar ao Irã taxas de juros subsidiadas, que eles usaram para aumentar seu arsenal nuclear, químico e biológico. Você acha mesmo que é só uma coincidência a arma ter sido testada na região de Nullarbor?

—        Não se precipite culpando os australianos — Sam Blumner intervém.

—        Lembre-se de que foram os créditos maciços dos Estados Unidos ao Iraque no final dos anos 1980 que levaram Saddam Hussein a invadir o Kuwait.

—        Concordo com o Sam — diz o presidente. — Conversei bastante com o premier da Austrália. Os partidos Liberal e Trabalhista se uniram para declarar que o incidente foi um ato de guerra. Duvido que eles teriam permitido esse teste.

O general Fecondo esfrega as palmas das mãos na careca bronzeada.

—        Presidente, o fato de essas armas de fusão pura existirem não muda nada. Testar uma arma e usá-la em combate são duas coisas distintas. Nenhuma nação vai desafiar os Estados Unidos para um confronto nuclear.

Costolo olha para o chefe do Estado-Maior.

—        Me diga, general, se tivéssemos um míssil de cruzeiro capaz de dizimar todas as plataformas de mísseis terra-ar da costa iraniana, o senhor o usaria?

Dick Przystas ergue as sobrancelhas.

—        Uma idéia tentadora, não é? Eu me pergunto se os iranianos ficarão menos tentados a desintegrar o Ronald Reagan e sua frota.

—        Vou dizer o que eu penso — diz o ossudo chefe de Operações Navais.

—        Interpreto essa ação como uma salva de alerta. Os russos estão nos infor¬mando que possuem armas de fusão pura, esperando que sua demonstraçãozinha nos convença a cancelar o Escudo Antimíssil.

—        Que é algo que não podemos fazer — declara Przystas. — O número de nações renegadas com acesso a armas nucleares e biológicas dobrou nos últimos cinco anos...

—        Enquanto nós continuamos gastando mais e mais dinheiro na tecnologia de armas nucleares — interrompe Chaney —, mandando uma mensagem inequívoca ao resto do mundo de que os Estados Unidos estão mais interessados em manter a postura do ataque nuclear preventivo do que em continuar a redução das armas, o mundo segue avançando pelo caminho do confronto nuclear. Eles sabem, nós sabemos, mas estamos todos ocupados demais culpando uns aos outros para mudarmos nosso rumo. Estamos todos agindo como se tivéssemos bosta na cabeça, e antes de nos darmos conta do que aconteceu, vamos todos meter os pés na merda.

Borgia está à espera de Ennis Chaney no corredor quando a reunião é encerrada.

—        Preciso de um minuto.

—        Diga.

—        Falei com o capitão da Boone.

—        E então?

—        Me diga, Chaney, por que o vice-presidente dos Estado Unidos ajudaria um criminoso fugitivo?

—        Não sei do que você está falando...

—        É o tipo de coisa que pode arruinar uma carreira política. Os olhos de guaxinim penetram em Borgia.

—        Quer me acusar de alguma coisa? Vá em frente. Aliás, por que nós dois não lavamos toda a nossa roupa suja pra ver qual sai mais limpa?

Borgia abre um sorrisinho nervoso.

—        Calma, Ennis. Ninguém está pedindo um processo judicial. Eu só quero o Gabriel de volta ao lugar dele, sob os cuidados de um hospital psiquiátrico.

Chaney passa pelo secretário de Estado, sufocando uma risada.

—        Tudo bem, Pierre, vou ficar de olho pra ver se o encontro.

 

                         7 DE DEZEMBRO DE 2012 GOLFO DO MÉXICO

4h27

O toque incessante interrompe o sono de Edmund Loos. Ele procura o telefone e limpa a garganta.

—        Capitão falando. Prossiga.

—        Lamento acordá-lo, senhor. Detectamos atividade no leito do oceano.

—        Estou a caminho.

 

O mar começou a se agitar quando o capitão entra no Centro de Informação de Combate.

—        Relatório, comandante.

O oficial executivo aponta para uma mesa de luz, onde uma holografia cúbica tridimensional do mar e do fundo do mar em tempo real está sendo projetada no ar. Posicionado na parte de baixo da imagem fantasmagórica, enterrado dentro da topografia calcária estriada está o objeto alienígena ovóide, marcado com uma cor laranja brilhante. Um círculo de energia verde-esme¬ralda brilha acima da superfície dorsal do ovóide, fazendo uma coluna de luz subir através de um túnel vertical que leva até o fundo do mar. A imagem da Boone pode ser vista flutuando na superfície.

Enquanto o capitão e seu oficial executivo observam, intrigados, o raio verde parece se alargar à medida que um turbilhão se forma. Em segundos, o fluxo rodopiante de água se estreita num poderoso funil submarino, subindo do buraco no leito até a superfície da água.

—        Meu Deus, é como ver um tornado se formando — murmura Loos. -— É exatamente como o Gabriel falou.

—        Perdão, senhor?

—        Nada. Comandante, nos mantenha longe do redemoinho. Peça comunicação com o NORAD e mande os LAMPS decolarem. Se alguma coisa sair desse redemoinho, quero ficar sabendo.

—        Sim, senhor.

 

O primeiro-tenente Johnathan Evans corre pelo deque traseiro, de capacete na mão, seu co-piloto e tripulação já a bordo do helicóptero antissubmarino LAMPS. Bufando, ele sobe até o cockpit do Seasprite e afivela os cintos de segurança.

Evans olha para o co-piloto enquanto luta para recuperar o fôlego.

—        O maldito cigarro ainda vai me matar.

—        Quer café?

—        Deus te abençoe, meu filho. — Evans pega o copinho de isopor. — Há três minutos eu estava deitado no meu beliche, sonhando com a Michelle, e quando dou por mim, o segundo em comando está gritando comigo, perguntando por que ainda não estou no ar.

—        Bem-vindo à aventura da Marinha.

Evans puxa o manche. O helicóptero se ergue do heliporto, virando para o sul enquanto sobe para 90 metros. O piloto posiciona o LAMPS diretamente sobre o mar esmeralda e rodopiante.

—        Puta merda... — Evans e sua tripulação olham para o redemoinho em expansão, hipnotizados por sua beleza, apavorados com sua intensidade. O vórtice é um monstro, um funil espiralado digno da Odisséia de Homero, suas paredes ondulando com a força das cataratas do Niágara. Olhando para baixo, com as águas escuras ao seu redor, o olho esmeralda e brilhante do redemoinho parece uma galáxia verde luminescente; seu aglomerado de estrelas fica mais brilhante à medida que a boca do funil se escancara.

—        Meu Deus. Eu queria ter minha câmera.

—        Não se preocupe, tenente, estamos tirando uma porção de fotos aqui.

—        E eu lá quero saber de infravermelho? Quero uma foto de verdade, algo que eu possa mandar por e-mail pra casa.

Enquanto Evans olha, o centro do redemoinho se abre de repente, expondo uma esfera de luz cegante que dispara para cima como um sol esmeralda, saindo do leito rachado.

—        Protejam os olhos...

—        Tenente, dois objetos estão saindo do funil!

—        Quê? — Evans vira para o operador de radar. — Que tamanho?

—        Grandes. Duas vezes o tamanho do LAMPS.

O piloto puxa o manche quando dois objetos escuros e alados flutuam para fora do funil. Os mecanismos sem rosto passam dos dois lados do Seasprite. O tenente vislumbra rapidamente um disco âmbar brilhante, e o manche fica mole em sua mão.

—        Merda, perdemos velocidade...

—        Motores inoperantes, tenente. Tudo parado!

Evans tem uma sensação nauseante quando a aeronave despenca do céu. O helicóptero bate na parede do redemoinho com um tranco violento. As hélices se despedaçam, o pára-brisa do cockpit se parte e o helicóptero é jogado na coluna vertical de água como se estivesse num liquidificador. A força centrífuga prega Evans de lado contra o assento, seus gritos são abafados pelo rugido ensurdecedor que enche seus ouvidos.

O mundo gira fora de controle quando o funil engole o LAMPS.

A última coisa que o tenente Johnathan Evans sente é a estranha sensação de suas vértebras se partindo no abraço sufocante, como se seu corpo estivesse sendo esmagado num compactador de lixo gigante.

 

             8 DE DEZEMBRO DE 2012

             PARQUE NACIONAL DE CUNUNG MULU

             SARAWAK, FEDERAÇÃO DA MALÁSIA

5h32, HORA DA MALÁSIA (13 HORAS DEPOIS)

Sarawak, situado na costa noroeste de Bornéu, é o maior estado da Federação da Malásia. Gunung Mulu, o maior parque nacional do Estado, tem 880 quilômetros quadrados de área e sua paisagem é dominada por três montanhas: Gunung Mulu, Gunung Benarat e Gunung Api.

Gunung Api é uma montanha formada por calcário, um mineral que não só domina todo o estado de Sarawak, mas também a ilha vizinha de Irian Jaya/ Papua-Nova Guiné, e quase todo o sul da Malásia. O desgaste dessa paisagem calcária pela chuva levemente ácida formou notáveis esculturas na superfície e formações subterrâneas.

À meio caminho na encosta do monte Api, apontando para o céu como um campo de estalagmites fragmentadas, está uma floresta petrificada de afiadas agulhas de calcário cinza-prateado, algumas das quais se erguem mais de 45 metros acima da floresta tropical. Sob o solo, cavado na rocha calcária por rios subterrâneos, fica um labirinto contendo mais de 640 quilômetros de cavernas, representando o maior sistema de cavernas calcárias do mundo.

 

O estudante Wade Tokumine, de Honolulu, está estudando as cavernas de Sarawak há três meses, coletando dados relativos à estabilidade dos blocos subterrâneos de carste do mundo para a sua tese de mestrado. O carste é um relevo criado pelo desgaste químico de rocha calcária contendo no mínimo 80% de carbonato de cálcio. A rede de passagens subterrâneas de Sarawak é formada inteiramente por carste.

A viagem de hoje marca a nona visita de Wade à caverna da Água Clara, a mais longa passagem subterrânea de todo o sudeste da Ásia e uma das quatro cavernas Mula abertas ao público. O geólogo se inclina para trás na canoa, apontando a lanterna química para o teto de alabastro da caverna. O facho de luz corta a escuridão, revelando uma miríade de estalactites pingando umidade. Wade admira as formações antigas da rocha, maravilhando-se com os desígnios da natureza.

 

Há 4 bilhões de anos, a Terra era um mundo muito jovem, hostil e sem vida. A medida que o planeta esfriava, vapor d'água e outros gases eram lançados para o céu em violentas erupções vulcânicas, criando uma atmosfera rica em dióxido de carbono, nitrogênio e compostos de hidrogênio, condições similares àquelas encontradas em Vênus.

A vida no nosso planeta começou na sopa química do mar, organizando-se em estruturas complexas — quatro moléculas de aminoácidos básicos em cadeia — animadas por um catalisador externo, talvez um relâmpago. As duplas hélices animadas de aminoácidos começaram a se reproduzir, levando à vida monocelular. Esses organismos rapidamente aumentaram em abundância e começaram a esgotar os compostos de carbono do oceano, facilmente utilizáveis como alimento. Então, uma família peculiar de bactérias evoluiu para produzir uma nova molécula orgânica chamada clorofila. Essa substância de cor verde era capaz de armazenar a energia da luz do sol, permitindo que os organismos monocelulares criassem carboidratos de alta qualidade a partir do dióxido de carbono e hidrogênio, liberando oxigênio como subproduto. Nascia a fotossíntese.

À medida que os níveis planetários de oxigênio aumentavam, o carbonato de cálcio era retirado do mar e preso a formações rochosas por organismos marinhos, reduzindo drasticamente o nível atmosférico planetário de dióxido de carbono. Essa rocha — o calcário — se tornou o depósito de dióxido de carbono da Terra. Em decorrência disso, o nível de dióxido de carbono armazenado na rocha sedimentar é hoje mais de seiscentas vezes o conteúdo total de carbono do ar, água e todas as células vivas do planeta somadas.

 

Wade Tokumine aponta o facho de luz para a superfície da água escura da caverna. O rio subterrâneo está carregado com uma concentração de dióxido de carbono dez vezes acima do normal. Essa parte do ciclo de carbono ocorre quando o CO2 dissolvido atinge o ponto de saturação no calcário. Quando isso acontece, o dióxido de carbono se precipita como carbonato de cálcio puro, criando as estalactites e estalagmites que se espalham pelas cavernas de Sarawak.

Wade se vira na canoa para falar com seu guia, Andrew Chan. O nativo da Malásia e explorador profissional de cavernas guia excursões pelas cavernas de Sarawak há 17 anos.

—        Andrew, quanto falta para essa sua passagem virgem?

A luz da lanterna mostra o sorriso de Andrew, ao qual faltam dois dentes da frente.

—        Não muito. Esta parte da caverna fica ruim logo à frente, e aí nós continuamos a pé.

Wade balança a cabeça, depois cospe para eliminar o fedor da fumaça da lanterna. Somente 30% das cavernas de Sarawak foram exploradas, e a maioria delas só é acessível a alguns dos guias mais experientes. Quando o assunto é mapear passagens inexploradas, Wade sabe que Andrew não perde para ninguém. O guia transpira a "síndrome da descoberta", uma condição psicológica incurável comum entre os fanáticos por cavernas.

Andrew leva a canoa até uma plataforma, segurando-a para que Wade possa desembarcar.

—        É melhor pôr o capacete, tem muitas pedras soltas ali.

Wade prende o capacete na cabeça enquanto Andrew amarra uma ponta de um longo rolo de corda no barco, jogando o resto sobre o ombro.

—        Fique perto. A passagem vai estreitando. Tem muitas pontas afiadas nas paredes, cuidado com a roupa.

Andrew vai na dianteira, guiando-os através de uma catacumba escuta como breu. Ele escolhe uma passagem apertada e inclinada e entra nela, desenrolando a corda para marcar o itinerário. Depois de vários minutos de subida constante, a passagem se estreita até ficar claustrofóbica, forçando-os a avançar de quatro.

Wade escorrega no calcário úmido, cortando a pele dos nós dos dedos.

—        Quanto falta?

—        Por quê? Está com a febre das cavernas?

—        Um pouco.

—        É porque você é um explorador de teclado.

—        O que é isso?

—        Um explorador de teclado é alguém que passa mais tempo lendo o fórum dos exploradores de cavernas do que realmente indo... Espere aí. O que é isso?

Wade avança rastejando, apertando-se ao lado de Andrew para olhar.

O túnel se abriu num enorme poço. Olhando para cima, eles vêem as estrelas ainda brilhando no céu da madrugada, a superfície uns bons 23 metros acima de suas cabeças. Andrew aponta o facho para baixo, revelando o fundo de um enorme buraco, outros 9 metros abaixo.

Um luminoso brilho âmbar lança sombras bizarras de dentro do poço.

—        Está vendo aquilo?

Wade se curva para a frente para ver melhor.

—        Parece que tem alguma coisa brilhando lá embaixo.

—        Esta dolina não existia há algumas horas. O teto da caverna deve ter acabado de desabar. O que está lá embaixo deve ter caído de lá de cima no poço.

—        Será que é um carro? Alguém pode estar preso.

Wade vê seu guia malásio tirar da mochila um Knobbly Dog, uma escada de mão feita de um só cabo com os degraus trançados no meio.

—        O que você vai fazer?

—        Fique aí, vou descer e dar uma olhada. — Andrew prende uma ponta da escada na plataforma, depois desenrola o Knobbly Dog na escuridão abaixo.

O céu acima deles está cinza quando o explorador pisa no fundo do poço. A luz da madrugada mal penetra na escuridão e nos filetes de poeira calcária.

Andrew olha para a criatura imóvel que se agiganta ao seu lado no poço subterrâneo.

—        Ei, Wade, não sei o que é isto, mas não é um carro.

—        O que parece?

—        Não se parece com nada que eu já tenha visto. E enorme, parece uma barata gigante, só que tem grandes asas e uma cauda, com um monte de tentáculos esquisitos saindo da barriga. Está de pé em cima de um par de garras. Devem estar bem quentes, porque o calcário está fumegando em volta delas.

—        É melhor você sair daí. Vamos chamar os guardas do parque...

—        Calma, esta coisa não está viva. — Andrew estica a mão e toca um dos tentáculos.

Uma onda eletromagnética azul neón o joga contra a parede oposta.

—        Andrew, você está bem? Andrew?

—        Estou, cara, mas esse filho da puta me deu o maior choque. Cacete... — Andrew pula para trás quando a cauda mecânica da criatura se ergue, apontando para o céu.

—        Andrew?

—        Estou saindo, não precisa me dizer de novo. — O guia começa a subir pela escada.

O disco âmbar no corpo do ser começa a piscar, ficando avermelhado e mais escuro.

—        Vai, cara, sobe mais rápido!

Fumaça branca sai debaixo das garras da criatura, preenchendo o poço. Wade começa a ficar zonzo. Ele se vira e desliza de cabeça pelo túnel escorregadio, enquanto Andrew sobe na plataforma.

—        Andrew? Andrew, você está aí atrás? — Wade freia sua descida e aponta o facho para o alto do túnel. Ele consegue ver o guia deitado de bruços na passagem estreita.

Dióxido de carbono!

Wade estica o braço e segura o pulso de Andrew. Ele o puxa para baixo enquanto a rocha ao seu redor fica mais quente, queimando sua pele.

Que diabos está acontecendo?

Wade fica de pé, trôpego, quando a passagem se alarga. Ele joga o guia inconsciente sobre o ombro e cambaleia até a canoa. Tudo parece estar girando, ficando mais quente. Ele fecha os olhos, usando os cotovelos para tatear as paredes escaldantes de calcário.

Wade ouve um bizarro som borbulhante ao chegar ao rio subterrâneo. Dobrando um joelho, joga o corpo de Andrew na canoa, depois entra nela desajeitadamente, quase virando-a. As paredes da caverna estão fumegando, e o calor intenso está fazendo o rio ferver.

Os olhos de Wade estão ardendo, suas narinas são incapazes de inalar a tórrida atmosfera. Ele dá um grito sufocado, agitando-se ferozmente enquanto sua carne queima e se destaca dos ossos, e seus globos oculares pegam fogo.

 

                         Diário de Julius Gabriel

Chichén Itzá — a cidade maia mais magnífica de toda a Mesoamérica. A tradução do nome é: à beira do poço onde moram os Sábios da Água.

Os Sábios da Água.

A própria cidade é dividida em duas partes, a velha e a nova. Os maias se estabeleceram primeiro na Velha Chichén em 435 d.C., e mais tarde a tribo Itzá se juntou à sua civilização, por volta de 900 d.C. Pouco se sabe sobre os rituais diários, e o estilo de vida desses povos, embora saibamos que eles eram governados por seu deus-rei, Kukulcán, cujo legado como grande mestre maia domina a antiga cidade.

Maria, Michael e eu passaríamos muitos anos explorando as ruínas antigas e as selvas das cercanias de Chichén Itzá. No final, ficamos convencidos da importância esmagadora de três estruturas em especial: o cenote sagrado, o Grande Campo Maia do Jogo de Bola e a pirâmide de Kukulcán.

Em poucas palavras, não existe nenhuma outra estrutura no mundo como a pirâmide de Kukulcán. Erguendo-se majestosamente sobre a Grande Esplanada de Chichén Itzá, a precisão e a localização astronômica dessa estrutura de mil anos ainda assombram arquitetos e engenheiros do mundo inteiro.

Maria e eu acabamos concordando que era a pirâmide de Kukulcán que o desenho de Nazca representava. O jaguar invertido dentro do ícone, as colunas da serpente na entrada para o corredor norte do templo, os desenhos do macaco e das baleias — tudo parecia se encaixar. Em algum lugar, dentro da cidade, deveria haver uma passagem secreta para a estrutura interna da pirâmide. A pergunta era: onde?

A primeira e mais óbvia solução que nos ocorreu foi que a entrada estaria escondida dentro do cenote sagrado, um poço natural localizado ao norte da pirâmide. O cenote era mais um símbolo do portal para o Mundo Inferior maia, e nenhum cenote em todo o Yucatán era mais importante do que o poço sagrado em Chichén Itzá, pois fora ali que tantas virgens haviam sido sacrificadas depois da partida abrupta de Kukulcán.

 

Mais importante ainda era a possível conexão entre o cenote e o desenho da pirâmide em Nazca. Vistas de cima (como em Nazca), as paredes circulares e estriadas do poço sagrado poderiam facilmente ser interpretadas como uma série de círculos concêntricos. Além disso, as cabeças de serpentes maias entalhadas, localizadas na base norte da pirâmide de Kukulcán, apontam diretamente para o poço.

Intrigados e empolgados, Maria e eu preparamos uma expedição de mergulho para explorar o cenote maia. No final, a única coisa que encontramos foram os restos dos esqueletos dos mortos — nada mais.

Infelizmente, seria outra estrutura em Chichén Itzá que mudaria nossas vidas para sempre.

 

Existem dúzias de antigos campos de jogo na Mesoamérica, mas nenhum se compara ao Grande Campo do fogo de Bola em Chichén Itzá. Além de ser o maior em todo o Yucatán, o Grande Campo, como a pirâmide de Kukulcán, é uma estrutura que foi cuidadosamente alinhada com o céu, nesse caso, com a Via Láctea. À meia-noite de todo solstício de junho, o eixo longo do campo em forma de I aponta para o lugar em que a Via Láctea toca o horizonte, e a fenda escura da galáxia, de fato, espelha a posição do campo.

É impossível dar o merecido destaque ao significado astronômico por trás desse projeto incrível, pois, como já falei antes, a fenda escura da Via Láctea é um dos símbolos mais importantes da cultura maia. De acordo com o Popol Vuh, o livro maia da criação, a fenda escura é considerada a estrada que leva ao Mundo Inferior, ou Xibalba. Foi por ela que o herói maia, Um Hunahpu, viajou para o Mundo Inferior para desafiar os deuses malignos, um desafio heróico, embora malfadado, ritualizado pelos maias no antigo jogo de bola. (Todos os membros do time perdedor eram condenados à morte.)

De acordo com o calendário maia, o nome Um Hunahpu equivale a 1 Ahau, o primeiro dia do quinto ciclo — e o seu último —, o dia profetizado do Juízo Final. Usando um sofisticado programa astronômico, mapeei a aparência dos céus no ano 2012. O Grande Campo estará mais uma vez alinhado com a fenda escura, só que desta vez no dia do solstício de inverno — 4 Ahau, 3 Kankin —, o dia do fim da humanidade.

 

Foi num dia frio do outono de 1983 que uma equipe de arqueólogos mexicanos chegou a Chichén Itzá. Armados com pás e picaretas, os homens seguiram para o Grande Campo em busca de um artefato conhecido como marco central — a pedra ornamental enterrada no ponto central de muitos outros campos de jogo na Mesoamérica.

Maria e eu ficamos vendo os arqueólogos desenterrarem o antigo artefato. O recipiente era diferente de todos que já havíamos visto — de jade e não de pedra, oco, do tamanho de uma lata de café, com o cabo de uma lâmina de obsidiana saindo de uma extremidade, como uma espécie de "espada na pedra" maia. Apesar de muitas tentativas para removê-la, a arma continuou presa.

Imagens simbólicas da eclíptica e da fenda escura adornavam as laterais do objeto de jade. Tintado no fundo da peça, o rosto detalhado de um grande guerreiro maia.

Maria e eu fitamos essa última imagem, absolutamente chocados, pois não tinha como não reconhecer o rosto do homem. Relutantemente, devolvemos o marco central ao líder da expedição e voltamos para o nosso trailer, esmagados pelas potenciais implicações do objeto que acabáramos de ter em nossas mãos.

Maria foi quem finalmente quebrou o silêncio entre nós. "Julius, de alguma forma... de alguma forma o nosso destino está diretamente ligado à salvação da nossa espécie. A imagem no marco é um sinal de que devemos continuar nossa jornada, de que precisamos encontrar uma entrada para a pirâmide de Kukulcán."

Eu sabia que minha esposa tinha razão. Com vigor renovado, forjado dos nossos trepidantes sentimentos, continuamos nossa busca, passando os três anos seguintes revirando cada pedra, explorando cada ruína, pegando cada folhinha na selva, investigando cada caverna na região.

Mesmo assim... nada encontramos.

No verão de 1985, nossa frustração chegara ao ponto em que sabíamos que uma mudança de paisagem era necessária simplesmente para preservar o pouco de sanidade que nos restava. Nosso plano original era viajar para o Camboja para explorar as ruínas magníficas de Angkor, um sítio que considerávamos ligado tanto a Gizé quanto a Teotihuacán. Infelizmente, o acesso à área continuava sendo negado a todos os estrangeiros pelo governo do Khmer Vermelho.

Maria tinha outras idéias. Supondo que nossos anciãos extraterrestres jamais teriam criado uma entrada na pirâmide de Kukulcán que pudesse ser encontrada por saqueadores, ela acreditava que o melhor a fazer era voltar a Nazca e tentar decifrar o resto da antiga mensagem.

Por mais que eu abominasse a idéia de voltar para aquela paisagem peruana, não podia argumentar com a lógica da minha esposa. Evidentemente, não estávamos chegando a lugar nenhum em Chichén Itzá, apesar do fato de ambos estarmos convencidos de que a cidade estava destinada a ser o local da batalha final.

Antes de partir, havia uma última empreitada que eu precisava completar, antes de embarcar naquela que provaria ser nossa última e fatídica jornada juntos.

Armado com um pé de cabra e uma máscara, arrombei o trailer dos arqueólogos de madrugada... e resgatei o marco central do Grande Campo de seus raptores.

— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,

Ref. Catálogo 1981-84 páginas 08-154

Diário Fotográfico, Disquetes 7 & 8: Nome do arquivo: MESO, Fotos 223, 328, 344

 

                 9 DE DEZEMBRO DE 2012 , CHICHÉN ITZÁ, MÉXICO

13h40

O táxi aéreo salta duas vezes sobre o asfalto rachado, taxia brevemente, depois para pouco antes de a pista acabar num campo cheio de mato.

A onda de calor atinge em cheio o rosto de Dominique quando ela sai do Cessna, colando a camiseta já empapada de suor ao seu peito. Ela joga a mochila sobre um ombro e segue os outros sete passageiros através do pequeno terminal, depois até a estrada principal. Numa placa apontando para a esquerda se lê "Hotel Mayaland", e na outra, para a direita, "Chichén Itzá".

—        Táxi, señorita?

O motorista, um homem magrinho de uns 50 anos, está apoiado num velho Fusca branco. Dominique pode ver os traços maias em seu rosto escuro.

—        A que distância fica Chichén Itzá?

—        Dez minutos. — O motorista abre a porta do passageiro.

 

Dominique entra, e a espuma exposta do velho banco de vinil cede sob o seu peso.

—        Já esteve em Chichén Itzá, señorita?

—        Só quando eu era criança.

—        Não se preocupe. Pouca coisa mudou nos últimos mil anos.

Eles atravessam uma aldeia pobre, depois seguem por uma estrada pedagiada de duas pistas, recém-pavimentada. Minutos depois, o táxi para diante de uma moderna entrada pata visitantes, o estacionamento lotado de carros alugados e ônibus de turismo. Dominique paga a corrida, compra um ingresso e entra no parque.

Ela passa por várias lojas de lembranças, seguindo vários turistas por uma larga estrada de terra que corta a selva mexicana. Depois de cinco minutos de caminhada, a estrada se abre numa clareira incrivelmente ampla, plana e verde, rodeada por uma folhagem densa.

Dominique arregala os olhos e absorve a paisagem. Ela acaba de voltar no tempo.

Ruínas enormes, brancas e cinza, pontilham a paisagem. À sua esquerda fica o Grande Campo Maia do Jogo de Bola, o maior de toda a Mesoamérica. Com o formato de um "I" gigante, a quadra mede mais de 167 por 70 metros, é fechada por todos os lados e seus dois muros centrais têm a altura equivalente a três andares. Ao norte da estrutura fica o Tzompantli, uma enorme plataforma esculpida com fileiras de crânios enormes e coroada por corpos de serpentes. A distância, à sua direita, ela vê um enorme quadrilátero — o Complexo do Guerreiro —, os restos do que foi um palácio e uma praça de mercado, parcialmente delimitados por centenas de colunas isoladas.

Mas é a atração principal que apequena todas as ruínas e prende a atenção de Dominique — um zigurate incrivelmente preciso e imponente de calcário, localizado no meio da cidade antiga.

—        Magnífica, não é, señorita?

Dominique se vira e vê um homenzinho usando o uniforme do parque, uma camiseta laranja manchada de suor e um boné de beisebol. Ela nota a testa alta e inclinada e os fortes traços maias do guia.

—        A pirâmide de Kukulcán é a estrutura mais magnífica de toda a América Central. Que tal fazer um tour particular? Somente 35 pesos.

—        Na verdade, procuro uma pessoa. É um americano alto, forte, de cabelo castanho e olhos bem escuros. O nome dele é Michael Gabriel.

O sorriso do guia desaparece.

—        Você conhece o Mick?

—        Lamento, não posso ajudá-la. Bom passeio. — O homenzinho gira sobre os calcanhares e se afasta.

—        Espere... — Dominique o alcança. — Você sabe onde ele está, não sabe? Me leve até ele, você vai ser bem recompensado. — Ela lhe enfia um maço de notas na mão.

—        Lamento, señorita, não conheço a pessoa que procura. — Ele empurra o dinheiro de volta.

Ela tira várias notas.

—        Tome isto...

—        Não, señorita...

—        Por favor. Se você o encontrar, ou se conhece alguém que possa entrar em contato com ele, mande dizer que Dominique precisa vê-lo. Diga que é questão de vida ou morte.

O guia maia vê o desespero nos olhos dela.

—        A pessoa que procura é seu namorado?

—        É um grande amigo.

O guia olha para longe por alguns momentos, pensativo.

—        Aproveite o dia em Chichén Itzá. Almoce, depois espere anoitecer. O parque fecha às dez. Se esconda na selva antes que a segurança faça a última ronda. Quando a última pessoa sair e os portões forem fechados, suba na pirâmide de Kukulcán e espere.

—        O Mick estará lá?

—        É possível.

Ele lhe devolve o dinheiro.

—        Compre um poncho de lã nas lojas da entrada do parque, vai precisar dele hoje à noite.

—        Quero que aceite o dinheiro.

—        Não. Os Gabriel são amigos da minha família há muito tempo. — Ele sorri. — Quando o Mick te encontrar, avise que o Elias Forma mandou dizer que a señorita é bonita demais pra ficar sozinha na terra do relâmpago verde.

 

O zumbido incessante de mil mosquitos enche os ouvidos de Dominique. Ela puxa o capuz do poncho sobre a cabeça e se encolhe na escuridão, a selva acordando ao redor dela.

Que diabos estou fazendo aqui? Ela coça os insetos imaginários que lhe sobem pelos braços. Eu devia estar terminando a minha residência. Devia estar me formando.

A floresta murmura ao seu redor. Um bater de asas perturba a copa de folhas acima de sua cabeça. Em algum lugar a distância, um bugio guincha na escuridão. Ela olha o relógio — 22h23 —, depois puxa o poncho de lã sobre a cabeça novamente e muda de posição sobre a pedra.

Espere mais dez minutos.

Ela fecha os olhos, deixando que a selva a abrace, como fazia quando era criança. O cheiro pesado do musgo, o som de folhas de palmeira dançando na brisa — e ela está de volta à Guatemala, com apenas 4 anos, parada ao lado da parede de taipa, sob a janela do quarto da mãe, ouvindo sua avó chorando lá dentro. Ela espera sua tia sair acompanhando a velha senhora antes de entrar pela janela.

Dominique olha para o corpo sem vida esticado na cama. Dedos que alisaram seu longo cabelo apenas horas antes estão com as pontas azuladas. A boca está aberta, os olhos castanhos semicerrados, voltados para o forro. Ela toca as maçãs do rosto altas, sentindo a pele fria e úmida.

Esta não é a sua madre. É outra coisa, uma figura de carne sem vida que sua mãe usou enquanto fez parte do seu mundo.

Sua avó entra. Ela está com os anjos agora, Dominique...

O céu noturno explode acima de sua cabeça com os sons caóticos de mil morcegos-vampiros batendo as asas. Dominique salta de pé, seu coração batendo forte, tentando afastar os mosquitos e as lembranças.

— Não! Aqui não é a minha casa. Esta não é minha vida!

Ela empurra sua infância de volta para o sótão e tranca a porta, depois desce da pedra e abre caminho no mato até sair na boca do cenote sagrado.

Dominique olha para as paredes verticais do poço, que descem diretamente até a superfície de suas águas escuras, infestadas de algas. A luz da Lua minguante revela camadas de sulcos geológicos esculpidos no interior do túnel de calcário, branco feito giz. Ela olha para cima, concentrando-se numa estrutura fechada de pedra suspensa sobre o lado sul do cenote. Mil anos atrás, os maias, desesperados com a partida repentina de seu deus-rei, Kukulcán, recorreram a sacrifícios humanos num esforço para adiar o fim da humanidade. Virgens foram trancadas nesse banho de vapor primordial para serem purificadas, depois levadas para a plataforma sobre o teto pelos sacerdotes cerimoniais. Despindo as jovens, eles as deitavam sobre a estrutura de pedra e usavam seus punhais de obsidiana para extirpar-lhes o coração ou cortar-lhes a garganta. Os corpos das virgens, carregados de jóias, eram então lançados cerimoniosamente dentro do poço sagrado.

O pensamento faz Dominique estremecer. Ela dá a volta no poço e desce pelo Sache, um caminho largo e elevado de terra e pedra que corta a densa selva até chegar à fronteira setentrional da antiga cidade.

Quinze minutos e meia dúzia de tropeções depois, Dominique emerge do caminho. Diante dela está a face norte da pirâmide de Kukulcán, sua silhueta escura e angulosa elevando-se nove andares sob o céu estrelado. Ela se aproxima da base, que é guardada de ambos os lados pelas cabeças esculpidas de duas enormes serpentes.

Dominique olha ao seu redor. A cidade antiga está escura e deserta. Um calafrio corre-lhe pela espinha. Ela começa a subir.

Na metade da subida, ela está ofegante. Os degraus da pirâmide são bem estreitos, a subida é íngreme, e não há nada para se segurar. Ela se vira e olha para baixo. Uma queda dessa altura seria o fim.

—        Mick? — Sua voz parece ecoar pelo vale. Ela espera uma resposta, e então, sem ouvir nada, continua a subir.

Ela leva mais cinco minutos para chegar ao topo, uma plataforma plana sustentando um templo de pedra quadrado de dois andares. Sentindo-se zonza, ela se apóia na parede norte da estrutura para retomar o fôlego, seus quadríceps ainda queimando com o esforço da subida.

O panorama é espetacular, sem nenhum corrimão de segurança. O luar revela detalhes sombreados de cada estrutura na parte norte da cidade. Nos seus confins, a cobertura vegetal da selva se espalha pelo horizonte como a margem escura de uma pintura.

A calçada ao redor da estrutura tem só um metro e meio de largura. Ficando longe da borda precária, ela enxuga o suor do rosto e para diante da larga entrada do corredor norte do templo. Um imenso portal, formado por um lintel ladeado por duas colunas em forma de serpente, se agiganta acima de sua cabeça.

Ela dá um passo para dentro do breu interior.

—        Mick, você está aí dentro?

Sua voz parece abafada. Ela pega da mochila a lanterna que comprou mais cedo e entra na câmara úmida de calcário.

O corredor norte é uma câmara dupla, fechada, um santuário central precedido por um vestíbulo. O interior acaba abruptamente numa imensa parede central. O facho de sua lanterna revela um teto abobadado e um chão de pedra, sua superfície enegrecida pelas fogueiras cerimoniais. Saindo da câmara vazia, ela contorna a plataforma à esquerda e entra no corredor oeste, uma passagem nua que ziguezagueia para se ligar aos corredores sul e leste.

O templo está deserto.

Dominique olha a hora: 23h20. Será que ele não vem?

O ar frio da noite a faz tremer. Procurando se aquecer, ela volta a se refugiar na câmara norte e se apóia na parede central, a pedra maciça ao seu redor bloqueando o vento e amortecendo todos os ruídos.

A atmosfera lá dentro parece pesada, como se tivesse alguém no escuro, esperando para atacá-la. Ela usa o facho da lanterna para percorrer o interior, acalmando sua mente.

A exaustão ganha terreno. Ela se deita no chão de pedra e se encolhe, fechando os olhos, seus pensamentos atormentando-lhe o sono com imagens de sangue e morte.

 

A extensão ao redor da pirâmide é um mar de corpos pardos e ondulantes e rostos pintados, iluminados pelo brilho laranja de 10 mil tochas. De sua posição dentro do corredor norte, ela consegue ver o sangue escorrendo escada abaixo como uma cascata escarlate, empoçando ao redor de um monte de carne mutilada entre as duas cabeças de serpente ao pé da pirâmide.

Mais uma dúzia de mulheres estão no templo com ela, todas vestidas de branco. Elas se apertam como ovelhas assustadas, fitando-a com olhos vazios.

Dois sacerdotes entram. Cada um usa um cocar cerimonial de penas verdes e uma tanga recortada do couro de um jaguar. Os sacerdotes se aproximam, seus olhos escuros grudados em Dominique. Ela recua, seu coração batendo forte, quando eles a seguram pelo punho, arrastando-a à força para a plataforma do templo.

O ar noturno está carregado do fedor do sangue, suor e fumaça.

De frente para a multidão inebriada há um imenso Chac Mool, a estátua de pedra de um semideus maia inclinado. No colo do Chac Mool há uma bandeja cerimonial transbordando com os restos mutilados de uma dúzia de corações humanos.

Dominique grita. Ela tenta fugir, mas dois outros sacerdotes avançam e a agarram pelos tornozelos, levantando-a alto do chão. A multidão geme quando aparece o sacerdote-mor, um ruivo musculoso cujo rosto está escondido pela máscara de uma cabeça de serpente emplumada. Um sorriso amarelo e demoníaco aparece dentro da boca aberta e dentuça da máscara.

—        Olá, gatinha.

Dominique grita quando Raymond arranca o pano branco de seu corpo, desnudando-a, depois levanta o punhal negro de obsidiana para a multidão. A turba sedenta de sangue entoa um canto lúbrico.

—        Kukulcán! Kukulcán!

A um gesto de Raymond, os quatro sacerdotes a deitam no chão, prendendo-a à plataforma de pedra.

—        Kukulcán! Kukulcánl

Dominique grita novamente quando Raymond brande o punhal de obsidiana. Ela arfa, incrédula, ao vê-lo erguer a lâmina acima da cabeça, depois mergulhá-la com força em seu seio esquerdo.

—        Kukulcán! Kukulcán!

Ela uiva, agonizante, retorcendo seu corpo estendido...

—        Dom, acorde...

... enquanto Raymond enfia a mão na ferida e arranca seu coração, ainda batendo, erguendo-o para o céu para que todos o vejam.

—        Dominique!

Dominique dá um grito apavorante e desfere socos e pontapés na terrível escuridão, atingindo a sombra em cheio no rosto. Desorientada, ainda nas garras do pesadelo, ela rola para o lado e salta em pé, correndo cegamente para fora da câmara, rumo à queda de 27 metros.

Uma mão a alcança e puxa seu tornozelo. Ela bate com o peito na plataforma e a dor a acorda.

—        Meu Deus, Dominique, o maluco aqui sou eu.

—        Mick? — Ela se senta, esfregando as costelas machucadas e recuperando o fôlego.

Mick se aproxima dela.

—        Você está bem?

—        Você quase me matou de susto.

—        Somos dois. Deve ter sido um pesadelo e tanto. Você quase pulou do alto da pirâmide.

Ela olha para o precipício, depois se vira e o abraça, ainda tremendo.

—        Meu Deus, eu odeio este lugar. Estas paredes cheiram a fantasmas maias. — Ela se afasta e olha para o rosto dele. — Seu nariz está sangrando. Fui eu que fiz isso?

—        Me acertou com um cruzado de direita. — Ele tira uma bandana do bolso de trás e estanca a hemorragia. — Meu nariz nunca vai sarar.

—        Bem feito. Por que precisamos nos encontrar logo aqui, e no meio da noite, porra?

—        Sou um fugitivo, lembra? Por falar nisso, como conseguiu escapar da Marinha?

Ela desvia o olhar.

—        Você é o fugitivo, não eu. Contei ao capitão que te ajudei porque estava confusa com a morte do Iz. Acho que ele sentiu pena de mim, porque me liberou. Vamos, podemos falar sobre isso depois. Agora só quero descer desta pirâmide.

—        Ainda não posso ir embora. Tenho trabalho a fazer.

—        Trabalho? Que trabalho? No meio da noite...

—        Estou procurando uma passagem pro interior da pirâmide. É vital que a gente encontre...

—        Mick...

—        Meu pai tinha razão sobre a pirâmide de Kukulcán. Descobri uma coisa, algo realmente incrível. Vou te mostrar. — Mick tira da bolsa um pequeno aparelho eletrônico.

—        Isto é um espectrômetro ultrassônico. Ele emite ondas sonoras de baixa amplitude pra descobrir imperfeições em sólidos.

Mick liga a lanterna, puxa-a pelo braço e a leva de volta para dentro do templo até a parede central. Ele ativa o espectrômetro, dirigindo as ondas sonoras para o meio da pedra.

—        Olhe só. Está vendo estes comprimentos de onda? São um sinal claro de que tem outra estrutura escondida atrás desta parede. Seja o que for, é metálica e atravessa toda a pirâmide, indo até o teto do templo.

—        Certo, acredito em você. Agora podemos ir embora?

Mick olha para ela, incrédulo.

—        Ir embora? Você não entende? Está aqui, dentro destas paredes. Só precisamos descobrir uma via de acesso.

—        O que tem aí dentro? Um pedaço de metal?

—        Um pedaço de metal que pode ser o instrumento que vai salvar a humanidade. Aquele que Kukulcán nos deixou. Precisamos... ei, espere, aonde está indo?

Ela continua indo para a plataforma.

—        Você ainda não acredita em mim, não é?

—        Acreditar no quê? Que todo homem, toda mulher e criança do planeta vai morrer nas próximas duas semanas? Não, sinto muito, Mick, ainda tenho algumas dificuldades em lidar com isso.

Mick a segura pelo braço.

—        Como ainda pode duvidar de mim? Você viu o que está enterrado no Golfo. Nós dois estivemos lá juntos. Você mesma viu.

—        Vi o quê? O interior de um canal de lava?

—        Canal de lava?

—        Isso mesmo. Os geólogos a bordo da Boone me explicaram tudo. Até me mostraram fotos infravermelhas de satélite de toda a cratera de Chicxulub. O que parece um brilho verde é só um rio subterrâneo de lava passando por baixo daquele buraco no leito do oceano. O buraco se abriu quando um vulcão subterrâneo ficou ativo em setembro passado.

—        Vulcão? Dominique, que história é essa?

—        Mick, o nosso minissubmarino foi sugado por um dos canais de lava quando uma parte do subsolo desabou. A gente deve ter flutuado pra superfície quando a pressão diminuiu. — Ela balança a cabeça. — Você me enganou direitinho, não foi? Provavelmente ouviu falar do vulcão na CNN ou em algum outro lugar. Foi o barulho dele que o Iz ouviu com o SOSUS.

Ela soca o peito dele.

—        Meu pai morreu explorando uma droga de vulcão subterrâneo...

—        Não!

—        Você me enganou, não foi? Só queria fugir!

—        Dominique, escute...

—        Não! Meu pai morreu porque te escutei. Agora me escuta. Te ajudei porque sabia que você estava sendo maltratado e porque eu precisava da sua ajuda pra descobrir o que aconteceu com o Iz. Agora sei a verdade. Você me enganou!

—        Besteira! Tudo o que a Marinha te contou é mentira. Aquele túnel não era nenhum canal de lava, era um duto de entrada artificial. O que o seu pai ouviu foram os sons de um conjunto de turbinas gigantes. Nosso minissubmarino foi sugado por um duro de entrada. O submarino emperrou as lâminas da turbina. Você não se lembra de nada disso? Eu sei que estava ferida, mas você ainda estava consciente quando eu saí do submarino.

—        O que você disse? — Ela olha para ele, confusa de repente, incomodada por uma lembrança distante. — Espera... eu te dei um tanque de oxigênio?

—        Sim! Ele salvou minha vida.

—        Você saiu mesmo do submarino? — Ela se senta na beira da plataforma. Será que a Marinha mentiu? — Mick, você não pode ter saído do submarino. A gente estava debaixo d'água...

—        A câmara estava pressurizada. O minissubmarino bloqueou a entrada.

Ela sacode a cabeça. Pare com isso. Ele está mentindo! Isso é loucura!

—        Eu enfaixei a sua cabeça. Você estava com medo. Me pediu um abraço antes que eu saísse do submarino. Me fez prometer que eu voltaria.

Uma vaga lembrança gira em sua mente.

Mick se senta na plataforma.

—        Ainda não acredita numa palavra do que estou dizendo, não é?

—        Estou tentando lembrar. — Ela se senta ao lado dele. — Mick... me desculpe por ter batido em você.

— Eu avisei pra não deixar que o Iz fosse investigar no Golfo.

—        Eu sei.

—        Eu nunca trairia você. Nunca.

—        Mick, digamos que eu acredite em você. O que você viu quando saiu do submarino? Aonde ia dar essa sua turbina?

—        Localizei uma espécie de tubo de drenagem e consegui subir por ele. A passagem levava até uma câmara enorme. A atmosfera lá dentro era escaldante. Chamas vermelhas subiam pelas paredes.

Mick olha para as estrelas.

—        Lá no alto, em cima da minha cabeça, girava um... um vórtice de energia esmeralda magnífico. Ele se movia como uma galáxia em miniatura. Era tão bonito.

—        Mick...

—        Espere, tem mais. Na minha frente tinha um lago de energia líquida, ondulante, como um mar de mercúrio, só que a superfície parecia um espelho. E então ouvi a voz do meu pai falando comigo de longe.

—        Seu pai?

—        É, só que não era o meu pai, era alguma forma de vida alienígena. Eu não conseguia vê-la, estava dentro de uma câmara complexa, flutuando sobre o lago derretido numa enorme cápsula. Ela me olhou com uns olhos vermelhos brilhantes, demoníacos. Morri de medo...

Dominique expira. Aí está. Demência clássica. Meu Deus, o Foletta tinha razão. Era evidente o tempo todo e eu me recusei a enxergar. Ela o vê com o olhar perdido ao longe.

—        Mick, vamos falar sobre isso. Essas imagens que você viu são muito simbólicas, sabe? Vamos começar com a voz do seu pai...

—        Espere! — Ele a olha de frente, seus olhos arregalados, como duas poças negras. — Acabei de perceber uma coisa. Eu sei quem era a forma de vida.

—        Continua. — Ela percebe o cansaço em sua própria voz. — Quem você acha que viu?

—        Era Tezcatilpoca.

—        Quem?

—        Tezcatilpoca. A divindade maligna que te falei no barco. É um nome asteca que significa "Espelho Enfumaçado", uma descrição da arma da divindade. De acordo com a lenda, o Espelho Enfumaçado dava a Tezcatilpoca a capacidade de enxergar dentro da alma dos homens.

—        É, eu me lembro.

—        O ser olhou dentro da minha alma. Falou comigo como meu pai, como se me conhecesse. Estava tentando me enganar.

Ela põe a mão em seu ombro, enrolando os cachos escuros de cabelo que lhe cobrem o pescoço.

—        Mick, sabe o que eu acho? Que a colisão do submarino deixou nós dois atordoados, e...

Ele afasta a mão dela.

—        Não faça isso! Não me tf ate como seu paciente. Eu não estava sonhando, e não estou tendo ilusões esquizofrênicas. Toda lenda possui sua realidade. Você não sabe nada sobre as lendas dos seus ancestrais?

—        Não são meus ancestrais.

—        Bobagem. — Mick a segura pelo pulso. — Goste você ou não, tem sangue maia quiche correndo nessas veias.

Ela liberta o seu braço.

—        Fui criada nos Estados Unidos. Não acredito nessas idiotices do Popol Vuh.

—        Apenas me ouça...

—        Não! — Ela o segura pelos ombros. — Mick, pare um momento e me escute. Por favor. Eu gosto de você. Sabe disso, não sabe? Acho você uma pessoa inteligente, sensível e extremamente talentosa. Se me permitir, se confiar em mim, posso te ajudar.

Seu rosto se acende.

— Mesmo? Que bom, porque realmente preciso de ajuda. Só temos 11 dias até...

—        Não, você não entendeu. — Seja maternal. — Mick, vai ser muito difícil ouvir isto, mas preciso dizer. Você está exibindo todos os sintomas de um caso grave de esquizofrenia paranóica. Está tão confuso que só vê as árvores, mas não a floresta. Isso pode ser congênito, ou simplesmente o efeito de 11 anos na solitária. Seja como for, você precisa de ajuda.

—        Dom, o que eu vi não era alucinação. O que vi foi o interior de uma espaçonave muito complexa e muito alienígena.

—        Uma espaçonave? — Meu Deus, esse caso é areia demais pro meu caminhão.

—        Acorde, Dominique. O governo também sabe que aquilo está lá...

Ilusões paranóicas típicas...

—        Aquelas bobagens que te contaram a bordo da Boone eram histórias falsas pra te despistar.

Lágrimas quentes de frustração lhe escorrem pela face ao perceber os erros devastadores que cometeu. A dra. Owen tinha razão desde o princípio. Ao abrir o coração para o seu paciente, ela destruiu sua própria objetividade. Tudo o que aconteceu foi culpa dela. Iz estava morto, Edie presa, e o homem que ela tentou salvar, o homem por quem ela sacrificou tudo, não passava de um paranóico-esquizofrênico cuja mente acabava de entrar em colapso.

Um pensamento passa por sua mente de repente. Quanto mais nos aproximarmos do solstício de inverno, mais perigoso ele vai ficar.

—        Mick, você precisa de ajuda. Perdeu o contato com a realidade. Mick olha para o bloco de calcário perfeitamente cortado sob seus pés.

—        Por que você está aqui, Dominique?

Ela segura a mão dele.

—        Estou aqui porque me importo. Estou aqui porque posso te ajudar.

—        Mais uma mentira. — Ele a olha, seus olhos negros brilhando ao luar. — O Borgia falou com você, não é? Ele tem um ódio mortal pela minha família. É capaz de dizer ou fazer qualquer coisa pra se vingar de mim. Como ele te ameaçou?

Ela desvia o olhar.

—        O que ele prometeu? Me conte o que ele disse.

—        Quer saber o que ele disse? — Ela o olha intensamente, a raiva aumentando em sua voz. — Ele prendeu a Edie. Disse que nós duas vamos passar muito tempo na cadeia por termos ajudado a te libertar.

—        Merda. Eu sinto muito...

—        O Borgia prometeu que retiraria as acusações contra nós duas se eu te encontrasse. Ele me deu uma semana. Se eu não conseguisse, a Edie e eu iríamos pra prisão.

—        Desgraçado.

—        Mick, nem tudo está perdido. O dr. Foletta concordou em me nomear pra cuidar de você.

—        O Foletta também? Meu Deus do céu...

—        Você vai ser levado pro novo hospital em Tampa. Chega de isolamento. De agora em diante, uma equipe de psiquiatras e clínicos indicada pelo Conselho vai trabalhar com você. Eles vão te dar todo o tratamento necessário. Antes do que imagina, vamos começar a terapia com medicamentos, e você vai retomar o controle dos seus pensamentos. Nada de hospícios, nem de viver na selva mexicana como fugitivo. No fim, você vai conseguir levar uma vida normal e produtiva.

—        Nossa, você faz tudo parecer tão maravilhoso — diz ele, sarcasticamente. — E Tampa é tão pertinho da ilha de Sanibel. O Foletta te ofereceu plano de saúde com cobertura total também? E que tal uma vaga privativa no estacionamento?

—        Não estou fazendo isso por mim, Mick, mas por você. Pode ser a melhor coisa pra gente.

Ele balança a cabeça tristemente.

—        Dom, é você que não consegue enxergar a floresta. — Ele a puxa de pé, apontando para o céu. — Está vendo aquela linha escura, paralela ao Grande Campo? É a fenda escura da Via Láctea, o equivalente galáctico do nosso equador. A cada 25.800 anos, o Sol fica alinhado com o ponto central dela. A data exata desse alinhamento é daqui ali dias. Onze dias, Dominique. Nesse dia, o dia do solstício de inverno, um portal cósmico vai se abrir, dando a uma força maligna acesso ao nosso mundo. No fim desse dia, você, eu, a Edie, o Borgia, e todos os seres vivos deste planeta vão morrer. A menos que a gente encontre a entrada secreta desta pirâmide.

Mick a olha nos olhos, com o coração apertado.

—        Eu... eu te amo, Dominique. Te amo desde o dia em que a gente se conheceu, desde o dia em que você me fez uma simples gentileza. Também estou em dívida com você e com a Edie. Mas agora preciso levar essa coisa até o fim, mesmo que isso signifique te perder. Talvez você tenha razão. Talvez tudo isso seja uma grande ilusão esquizofrênica que meus pais psicóticos me passaram. Talvez eu esteja tão fora da realidade que nem consiga mais ver o que está na minha frente. Mas você não entende? Quer isso seja real, quer seja produto da minha imaginação, não posso parar agora, preciso ir até o fim.

Ele pega o espectrômetro, com os olhos cheios de lágrimas.

—        Juro pela alma da minha mãe que se eu estiver errado, vou voltar pra Miami no dia 22 de dezembro e vou me entregar às autoridades. Até lá, se você realmente quer me ajudar, e se realmente se importa, pare de ser minha psiquiatra. Seja minha amiga.

 

                 10 DE DEZEMBRO DE 2012

                 EDIFÍCIO DAS NAÇÕES UNIDAS, NOVA YORK

O auditório lotado se cala, as câmeras de TV gravan¬do, quando Viktor Ilyich Grozny se dirige à tribuna para falar com os membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas e o resto do mundo.

— Senhora presidente, senhor secretário-geral, membros do Conselho de Segurança, convidados de honra. Hoje é um dia triste. Apesar dos mandados e avisos da Assembléia Geral e do Conselho de Segurança, apesar dos esforços exaustivos da diplomacia preventiva e do trabalho de pacificação do secretário-geral e de seus enviados especiais, uma nação renegada, mas muito poderosa, continua a ameaçar o resto do mundo com a arma mais perigosa da história da humanidade.

"A guerra fria acabou, ao menos é o que nos dizem, e as virtudes do capitalismo triunfaram sobre os males do comunismo. Enquanto as economias do Ocidente continuam a crescer, a Federação Russa luta para se reconstruir. Nosso povo está destituído e milhares passam fome. Culpamos o Ocidente por isso? Não. Os problemas da Rússia foram criados pelos russos, e é nossa responsabilidade nos salvarmos."

Os olhos azuis angelicais projetam uma inocência infantil para a câmera.

—        Sou um homem de paz. Com a diplomacia das palavras, convenci nossos irmãos árabes, sérvios e coreanos a depor armas contra seus inimigos vitalícios, porque sei e acredito de coração que a violência não resolve nada e que os erros do passado não podem ser desfeitos. A moralidade é uma escolha pessoal. Cada um de nós será julgado pelo Criador quando chegar a hora, mas nenhum homem tem o direito divino de infligir dor e sofrimento a outro ser humano em nome da moralidade.

Os olhos de Grozny se tornam duros.

—        Quem não tiver pecados que atire a primeira pedra. A guerra fria está morta, mas os Estados Unidos, em virtude de sua economia forte e de seu poderio bélico, continuam a policiar o mundo, decidindo se as políticas dos outros países são moralmente íntegras. Como o valentão da escola, a América cerra os punhos, ameaçando violência, tudo em nome da paz. Como os hipócritas mais poderosos do mundo, os Estados Unidos armam os oprimidos até que eles se tornem opressores. Israel, Coréia do Sul, Vietnã, Iraque, Bósnia, Kosovo, Taiwan, quantos mais precisam morrer antes que os Estados Unidos percebam que a ameaça de violência gera apenas mais violência, que a tirania, disfarçada pelas melhores intenções, continua sendo tirania?

Os olhos se abrandam.

—        E agora, o mundo testemunha um novo tipo de ameaça. Possuir a força bélica mais sofisticada da História não é o bastante. A dominação do espaço não é o bastante. A implementação do Escudo Antimíssil não é o bastante. Agora, os capitalistas têm uma nova arma que muda as regras do impasse nuclear. Por que os Estados Unidos continuam a testar essas armas e negar sua responsabilidade? Será que o presidente americano acha que somos todos estúpidos? Suas desculpas acalmam os nervos frágeis dos povos australiano e malásio? Onde acontecerá a próxima detonação? Na China? Na Federação Russa? Ou talvez no Oriente Médio, onde três porta-aviões americanos e suas frotas estão prontos para atacar, tudo em nome da justiça?

Grozny faz uma pausa.

—        A Federação Russa se junta à China e ao resto do mundo na condenação a essas novas ameaças de violência — diz ele. — Hoje damos este aviso, e quero ser perfeitamente claro, para evitar que nossa moralidade seja julgada. Não viveremos com medo. Não cederemos mais às táticas intimidatórias do Ocidente. A próxima detonação de fusão pura será a última, pois vamos interpretá-la como uma declaração de guerra nuclear!

A assembléia irrompe num pandemônio, e os protestos dos representantes dos Estados Unidos não são ouvidos, enquanto os seguranças de Viktot Grozny o escoltam para fora do edifício.

 

         Cidade de Pisté, (2 quilômetros a Oeste de Chichén Itzá)

         Península de Yucatán

Dominique Vazquez abre os olhos ao ouvir o som de galinhas cacarejando. A luz da manhã penetra pelas tábuas apodrecidas acima de sua cabeça, revelando um balé de partículas flutuantes dançando no ar. Ela se espreguiça no saco de dormir, depois rola para o lado.

Mick já está acordado, encostado num monte de feno, estudando o diário do pai. Os raios solares iluminam os traços angulosos de seu rosto. Ele ergue os olhos negros, que brilham para ela.

—        Bom dia.

Ela sai do saco de dormir.

—        Que horas são?

—        Umas 11. Está com fome? Os Forma deixaram café da manhã pra você na cozinha — Ele aponta para a porta aberta do celeiro, de onde se vê a casa de taipa rosada. — Pode ir lá e se servir. Eu já tomei café.

Descalça, ela anda pelo chão sujo de palha e esterco e se senta ao lado dele. — O que você está estudando aí?

Ele aponta para o desenho da pirâmide de Nazca.

—        Este símbolo é a chave pia encontrar a entrada secreta da pirâmide de Kukulcán. O animal é um jaguar, e o símbolo está invertido pra indicar descida. Os maias antigos consideravam a boca aberta do jaguar ligada tanto às cavernas terrestres quanto ao Mundo Inferior. As cavernas mais próximas daqui estão em Balancanché. Meus pais e eu passamos anos vasculhando, mas não encontramos nada.

—        E esse padrão de círculos concêntricos?

—        Essa é a parte da equação que ainda me intriga. Primeiro, pensei que o padrão pudesse simbolizar uma caverna subterrânea. Círculos idênticos estão entalhados em todos os sítios antigos que os meus pais exploraram. Até voltei às cavernas de Balancanché quando cheguei aqui, mas não encontrei nada.

Dominique tira o mapa de Chichén Itzá do seu bolso de trás. Ela olha para a planta das ruínas, as fotografias tiradas à grande altura sobre a cidade antiga.

—        Fale mais desse Mundo Inferior maia. Como você o chamou?

—        Xibalba. De acordo com o mito maia da criação, a fenda escura da Via Láctea é Xibalba Be, a Estrada Negra pro Mundo Inferior. Está escrito no Popol Vuh que Xibalba é onde o nascimento, a morte e a ressurreição acontecem. Infelizmente, as palavras do Popol Vuh requerem um pouco de interpretação. Tenho certeza de que a maior parte do significado original se perdeu pelos séculos.

—        Por que você diz isso?

—        O Popol Vuh foi escrito por volta do século XVI, muito depois da ascensão e queda da civilização maia e do desaparecimento de Kukulcán. Por causa disso, as histórias tendem a pender mais para a mitologia do que para os fatos. Por outro lado, depois do que vi no Golfo, não tenho mais certeza. — Ele olha para ela, sem saber se deve continuar.

—        Continue, estou ouvindo.

—        Com mente aberta ou isso só faz parte da minha terapia?

—        Você disse que precisava de uma amiga. Bem, aqui estou. — Ela lhe aperta a mão. — Mick, esse alienígena que você diz que se comunicou com você. Você disse que ele falou com a voz do seu pai?

—        É. Ele me enganou, me atraiu mais pra perto.

—        Bem, não se irrite, mas na história da criação do Popol Vuh, você não me contou que a mesma coisa aconteceu com, hã, qual o nome dele?

—        Um Hunahpu. — Seus olhos se arregalam.

Excelente, ele está reconhecendo as origens da sua demência.

—        Você continua achando que eu imaginei tudo isso, não é?

—        Eu não disse isso, mas você precisa admitir que é um paralelo bem estranho. O que aconteceu com Um Hunahpu depois que os deuses do Mundo Inferior o enganaram?

—        Ele e o irmão foram torturados e mortos. Mas a derrota dele fazia parte de um plano maior. Depois que os Senhores do Mundo Inferior o de¬capitaram, eles deixaram sua cabeça no ramo de um cabaceiro pra manter os invasores longe de Xibalba. Mas um dia uma linda mulher, Lua de Sangue, decidiu desafiar os deuses e visitar a árvore da morte. Ela esticou a mão pra tocar o crânio do Um Hunahpu, que cuspiu magicamente em sua mão, deixando-a grávida. Lua de Sangue fugiu, voltando para o Mundo Médio, que é a Terra, pra dar à luz os Gêmeos Heróis Hunahpu e Xbalanque.

—        Hunahpu e Xbalanque?

—        Filhos gêmeos. Os Gêmeos Heróis. Os rapazes cresceriam e se tornariam grandes guerreiros. Ao chegar à idade adulta, voltaram pra Xibalba pra desafiar os Senhores do Mundo Inferior. Mais uma vez, os deuses malignos tentaram vencer usando a ilusão, mas dessa vez os Gêmeos Heróis prevaleceram, derrotando seus inimigos, vencendo o mal e ressuscitando seu pai. A ressurreição de Um Hunahpu leva à concepção e ao renascimento celestial da nação maia.

—        Conte mais sobre essa Estrada Negra falando com Um Hunahpu. Como uma estrada pode falar?

—        Não sei. De acordo com o Popol Vuh, a entrada da Estrada Negra era simbolizada pela boca de uma grande serpente. A fenda escura também era considerada uma serpente celestial.

Vá em frente. Pressione-o.

—        Mick, me escute apenas um segundo. Você passou a vida toda perseguindo fantasmas maias, absorto nas lendas do Popol Vuh. Não seria remotamente possível que...?

—        O quê? Que eu tenha imaginado a voz do meu pai?

—        Não fique nervoso. Só estou perguntando porque a história da jornada de Um Hunahpu parece um paralelo de tudo o que você me contou sobre essa câmara subterrânea. Além disso, acho que você tem umas questões mal resolvidas com o seu pai.

—        Pode ser, mas não imaginei aquele ser alienígena. Não imaginei a voz do meu pai. Foi real.

—        Ou talvez só tenha parecido real.

—        Está bancando a psiquiatra de novo.

—        Só estou tentando ser sua amiga. Ilusões paranóicas são muito poderosas. O primeiro passo pra se ajudar é aceitar o fato de que você precisa de ajuda.

—        Dominique, pare...

—        Se você deixar, posso te ajudar...

—        Não! — Mick a empurra e sai do celeiro. Ele fecha os olhos, respirando fundo, aquecendo seu rosto no sol do meio-dia e tentando recuperar o controle.

Já é o suficiente. Plantei a semente, agora preciso reconquistar a confiança dele. Ela dirige novamente a atenção para o mapa de Chichén Itzá. Por algum motivo, a imagem aérea do cenote lhe chama a atenção. Ela pensa na noite passada, na sua caminhada através da selva.

As paredes do cenote... brilhando ao luar. Os sulcos no calcário...

—        O que foi?

Assustada, ela olha para cima, surpresa ao vê-lo ao seu lado.

—        Ha, nada, acho que não é nada.

—        Diga. — Os olhos de ébano são intensos demais para serem enganados.

—        Veja este mapa. A imagem aérea do cenote lembra o padrão de círcu¬los concêntricos encontrado dentro do desenho da pirâmide de Nazca.

—        Meus pais chegaram à mesma conclusão. Passaram meses mergulhando em cada cenote, explorando cada poço e caverna subterrânea da região. As únicas coisas que encontraram foram alguns esqueletos, restos mortais dos sacrifícios, mas nada que se parecesse com uma passagem.

—        Já verificou o cenote depois do terremoto? — Ela se retorce toda quando as palavras escapam de sua boca.

—        O terremoto? — O rosto de Mick se ilumina. — O terremoto no equinócio de outono atingiu Chichén Itzá? Meu Deus, Dominique, por que você não me contou isso antes?

—        Não sei. Acho que não percebi que era tão importante. Quando descobri, o Foletta já tinha te transformado num vegetal.

—        Me fale do terremoto. Como ele afetou o cenote?

—        Foi só um pequeno item no noticiário. Um grupo de turistas disse ter visto as águas do poço se agitando durante o abalo sísmico.

Mick sai correndo.

—        Espere, aonde você vai?

—        Vamos precisar de um carro. Talvez a gente precise passar um ou dois dias em Mérida comprando suprimentos. Coma alguma coisa. Encontro você aqui em uma hora.

—        Mick, espere. Que suprimentos? Que história é essa?

—        Equipamento de mergulho. Precisamos verificar o cenote. Ela o vê correndo pela rua, indo para a cidade.

Muito bem, Sigmund. A idéia não era encorajá-lo.

Aborrecida consigo mesma, ela sai do celeiro e entra na casa dos Forma, uma construção de taipa com cinco cômodos, decorada com motivos mexicanos de cores vivas. Ela encontra um prato de banana frita e pão de milho sobre a mesa da cozinha e se senta para comer.

Então nota o telefone.

 

                             Diário de Julius Gabriel

Era o verão de 1985, e estávamos de volta a Nazca.

Pelos primeiros seis meses, nós três viajávamos diariamente de um pequeno apartamento em Ica, uma cidadezinha movimentada 144 quilômetros ao norte de Nazca. Mas nosso minguado orçamento logo nos obrigou a uma mudança, e eu instalei minha família numa casa de dois cômodos na aldeia rural de Ingenio.

Vendendo nosso trailer, consegui comprar um pequeno balão aerostático. Toda segunda-feira de manhã, ao nascer do Sol, Maria, Michael e eu voávamos a 300 metros de altitude sobre o deserto do pampa, fotografando as miríades de linhas e os magníficos animais entalhados no platô. O resto da semana era dedicado a uma análise meticulosa das fotos, que esperávamos nos revelassem a mensagem que poderia guiar nossa entrada na pirâmide de Kukulcán.

O que é torturante no desafio de interpretar os desenhos de Nazca é que há muito mais pistas falsas do que reais. Centenas de desenhos de animais e milhares de formas se espalham pela tela do deserto como pichações pré-históricas, a maioria das quais não foi criada pelo artista original de Nazca. Retângulos, triângulos, trapézios, aglomerados e linhas impossivelmente retas, algumas com mais de 40 quilômetros de comprimento, esparramam-se por 500 quilômetros quadrados de planície ocre. Somem-se a isso as figuras humanóides escavadas nas encostas circunstantes e será possível perceber quão desanimadora era a nossa tarefa. Apesar disso, nossos esforços acabaram nos ajudando a separar o que considerávamos as figuras mais cruciais do resto das epígrafes peruanas.

São os desenhos mais antigos e complexos que contêm a verdadeira mensagem de Nazca. Só podemos especular sobre a data de sua origem, mas sabemos que têm no mínimo 1.500 anos.

Os hieróglifos de Nazca têm duas funções distintas. ícones que denominamos "primários" são usados para descrever a história por trás da profecia do Juízo Final, enquanto as figuras "secundárias", próximas àqueles ícones, nos dão pistas importantes que ajudam a decifrar o significado deles.

O relato do artista começa no centro da tela do deserto, com uma figura que Maria apelidou de sol de Nazca, um círculo perfeito com 23 linhas estendendo-se de seu perímetro. Uma dessas linhas é mais longa que o resto, alongando-se por uns 32 quilômetros através do deserto. Doze anos depois, eu iria descobrir que essa linha interminável estava precisamente alinhada com o Cinturão de Órion. Logo depois, Michael descobriria um recipiente de irídio enterrado no meio desse miste¬rioso ponto de partida, contendo um antigo mapa do mundo (ver a anotação do dia 14 de junho de 1990). Esse pergaminho parecia identificar a península de Yucatán e o Golfo do México como o campo de batalha final do futuro Armagedom.

Bem perto do Sol está a aranha de Nazca. O seu gênero específico — Ricinuki — é um dos mais raros do mundo, e só é encontrado em algumas das áreas mais inacessíveis da floresta amazônica. Como as baleias e o macaco, a aranha de Nazca é mais uma espécie não originária do deserto peruano. Por esse motivo, nós a consideramos um ícone direcional, neste caso, celestial por natureza. Resulta que a aranha é um marco terrestre incrivelmente preciso, projetado para direcionar o observador (mais uma vez) para a constelação de Órion. As linhas retas do aracnídeo foram orientadas de forma a traçar as declinações mutáveis das três estrelas do Cinturão de Órion, as mesmas que os egípcios usaram para alinhar as pirâmides de Gizé.

Ao redor do Sol, espalhados pelo platô, há mais de uma dúzia de desenhos bizarros de predadores alados. Notem que não me refiro aos desenhos mais recentes do beija-flor ou do pelicano, duas espécies originárias da região, e sim a uma série de seres de aspecto infernal que ainda não consegui identificar. Essas criaturas misteriosas, com garras, se multiplicam pelo platô de Nazca, e ainda não tenho nenhuma idéia de sua função.

 

O maior zoomorfo do platô é a serpente de Nazca, com 188 metros. Infelizmente, muitos detalhes do animal foram obliterados pela rodovia Panamericana que lhe atravessa o corpo. A presença da serpente no pampa pode simbolizar a fenda escura da Via Láctea. Por outro lado, sua proximidade com a pirâmide de Nazca, como o macaco e as baleias, pode fazer dela um sinal que nos direciona para Chichén Itzá, cidade maia dominada pela imagem da Serpente Emplumada.

A cauda da serpente, como o sol e a aranha, foi orientada para Órion.

Vários outros desenhos se destacam como peças da profecia maia. O último que vou mencionar — e o nosso favorito — é a figura que apelidamos de astronauta de Nazca. Basta dizer que a presença desse ser extraterrestre de 2 mil anos de idade era uma visão reconfortante durante nossos dias no pampa, um convincente lembrete de que não estávamos sós em nossa busca, ao menos não em espírito. O humanóide com aspecto de coruja, adornado com uniforme e botas, tem a mão direita erguida no que só pode ser interpretado como um gesto de amizade. Claramente destacado do resto da mensagem de Nazca, o ET gigante foi escavado numa das encostas, como a assinatura de um artista na borda de um quadro.

 

                               23 DE DEZEMBRO DE 1989

Depois de mais de quatro anos de trabalho no deserto peruano, decidi levar minha família para visitar o mais impressionante dos desenhos antigos: o Tridente de Patacas. Localizado 160 quilômetros ao norte do pampa deserto, essa figura, muitas vezes chamada de El Candelabro, ou o Candelabro dos Andes, nunca foi oficialmente associada aos desenhos de Nazca, embora sua complexidade, tamanho e idade facilmente o qualificam como um trabalho do nosso artista misterioso.

O criador do Tridente decidiu esculpir esse símbolo colossal em toda uma encosta de montanha de frente para a baía de Paracas. O magnífico ícone consiste num candelabro de três pontas, parecido com o tridente de um demônio, só que as pontas, todas viradas para cima, são enfeitadas com o que parecem pétalas. Como o desenho está exposto a condições climáticas muito mais severas do que as de Nazca, o artista cavou muito mais fundo na encosta, abrindo sulcos de um metro de profundidade na superfície friável e salina da montanha. Com 180 metros de comprimento e quase 60 metros de largura, o Tridente de Paracas é fácil de ser avistado.

Eu me lembro de nós três contemplando o marco antigo do nosso barco, naquele fatídico dia de dezembro. Quando o sol poente às nossas costas ficou avermelhado, o solo cristalino do Tridente começou a cintilar no lusco-fusco, emprestando à silhueta do ícone um brilho rubro, quase luminoso. Esse efeito pareceu dar energia a Maria, que rapidamente ponderou que o Candelabro com certeza devia ter sido deixado como um sinal antigo, direcionando nossa civilização para o deserto de Nazca.

Essa idéia me fez pensar no arco de St. Louis, o portal simbólico para o coração da América. Eu ia dizer isso quando minha amada se curvou de repente, acometida de uma dor insuportável, e deu um grito lamurioso. Então, enquanto Michael e eu olhávamos, horrorizados, ela desmoronou sobre o deque, inconsciente.

— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,

Ref. Catálogo 1985-90 páginas 31-824

Diário Fotográfico, Disquetes 8 & 9: Nome do arquivo: NAZCA, Fotos 34 & 56

 

         13 DE DEZEMBRO DE 2012, A BORDO DA USS BOONE

         GOLFO DO MÉXICO

4h46

O capitão Edmund Loos recebe o vice-presidente Ennis Chaney e Marvin Teperman, que saem cambaleando do Seahawk Sikorsky SH-60B e pisam no deque da USS Boone.

O oficial em comando sorri.

—        O senhor está bem, vice-presidente? Parece um pouco enjoado.

—        Pegamos tempo ruim. Os VANTs estão posicionados?

—        Dois Predators sobrevoando o alvo, conforme o senhor pediu.

Marvin tira o colete salva-vidas, entregando-o ao piloto do helicóptero.

—        Capitão, por que seu pessoal acha que veremos outro daqueles redemoinhos esta noite?

—        Sensores indicam um aumento nas flutuações eletromagnéticas subterrâneas, como aconteceu da última vez que o redemoinho apareceu.

Loos os leva através da superestrutura, acompanhando-os até o Centro de Informações de Combate do navio.

A escura sala high-tech está em plena atividade. O comandante Curtis Broad ergue o olhar da estação sonar.

—        Chegou bem a tempo, capitão. Os sensores indicam um aumento da atividade eletromagnética. Parece que outro redemoinho está se formando.

 

Circulando acima do brilho esmeralda, em diferentes altitudes, estão dois dos Veículos Aéreos Não Tripulados de reconhecimento da USS Boone, conhecidos como Predator. Quando as águas do Golfo começam a girar no sentido anti-horário, as câmeras de TV e infravermelhas dos Predators transmitem imagens em tempo real para a fragata.

Chaney, Teperman, o capitão Loos e duas dúzias de técnicos e cientistas olham para os monitores de vídeo, seus corações acelerados ao ver o redemoi¬nho se formando diante de seus olhos.

O vice-presidente balança a cabeça, incrédulo.

—        O que, em nome de Deus, teria o poder de criar algo assim?

—        Talvez a mesma coisa que está explodindo formações de carste no oeste do Pacífico — sussurra Marvin.

O redemoinho gira mais rápido, sua força centrífuga monstruosa abrindo um funil rodopiante que desce até o leito rachado do oceano. Quando as águas se partem, o olho do vórtice libera um brilhante raio esmeralda na noite, iluminando o céu como um imenso holofote.

—        Aí está. — Marvin aponta na tela. — Subindo do centro...

—        Estou vendo — murmura Chaney, estarrecido.

Três sombras escuras levitam da luz e sobem em linha reta através do olho do redemoinho.

—        Que porra é aquela? — xinga Loos.

Uma dúzia de cientistas estupefatos gritam para que seus colegas e assistentes verifiquem se todos os dados sensoriais estão sendo gravados.

Os objetos continuam a subir do redemoinho. Pairando sobre o mar, eles se aproximam do mais baixo dos dois VANTs.

A imagem do Predator se enche de estática e depois some.

O segundo Predator continua transmitindo.

—        Quero os dois Seahawks no ar agora — ordena o capitão Loos. — Somente reconhecimento. Chefe, mantenha o outro Predator a uma distância seguia. Não perca esse sinal.

—        Sim, senhor. Senhor, que distância é segura?

—        Capitão, os Seahawks estão no ar...

—        Mantenha-os longe daquela luz — grita Chaney.

Os três objetos alienígenas sobem a uma altura de 600 metros. Com precisão robótica, executam uma pirueta, girando as enormes asas em sua total extensão horizontal e acelerando, desaparecendo instantaneamente de vista.

O capitão Loos corre para o Sistema de Rastreamento de Alvo Mk. 23. A segunda-tenente Linda Muraresku já está rastreando os objetos usando a antena de radar de rotação rápida da Boone.

—        Já localizei, senhor, por pouco. Nunca vi nada assim. Nenhum rastro de calor, nenhum som, só uma leve estática eletromagnética. Não admira que nossos satélites não os tenham detectado.

—        Qual a velocidade?

—        Mach 4 e ainda acelerando. Os três alvos estão rumando para o oeste. Melhor falar com o NORAD, capitão. Nessa velocidade, vão sumir da minha tela a qualquer momento.

 

           Comando Norte-Americano de Defesa Aeroespacial

           NORAD, Colorado

O imponente monte de granito irregular de 2.915 metros, conhecido como montanha Cheyenne, fica 6 quilômetros e meio a sudoeste do Colorado Springs. Dois túneis de acesso fortemente vigiados no sopé da montanha penetram meio quilômetro no subsolo, servindo como as únicas entradas da instalação subterrânea de quase 2 hectares, conhecida como Comando Norte-Americano de Defesa Aeroespacial, ou NORAD.

O NORAD proporciona aos militares um centro de comando unificado que liga todas as armas das Forças Armadas, os Centros Estratégicos Combinados, sistemas e estações meteorológicas. A principal função da instalação, porém, é detectar lançamentos de mísseis em qualquer parte do mundo, seja em terra, no mar ou no ar. Tais eventos se dividem em duas categorias básicas.

Avisos estratégicos são emitidos quando um ICBM é lançado contra a América do Norte, um evento que se origina a uma distância de mais de 2.100 milhas náuticas, com um tempo até o impacto de aproximadamente trinta minutos. Uma seqüência hierárquica de quatro minutos rapidamente envia informações ao presidente e a todos os Centros de Comando da Defesa dos Estados Unidos.

Alertas de teatro de operações envolvem mísseis disparados contra forças americanas e aliadas no estrangeiro. Como um míssil Scud ou de cruzeiro pode atingir o alvo em minutos, o NORAD envia os avisos diretamente aos coman­dantes locais, via satélite.

O sistema de detecção antecipada de mísseis mais importante da monta­nha Cheyenne se origina 35.900 quilômetros no espaço. É ali que os satélites do Programa de Apoio à Defesa do NORAD giram ao redor da Terra em órbi­tas geoestacionárias, fornecendo uma cobertura contínua e redundante de todo o planeta. A bordo desses satélites de 2 toneladas e meia há avançados sensores infravermelhos que detectam instantaneamente os rastros de calor criados pelo estágio de impulso de um míssil.

O major Joseph Unsinn presta continência ao PE postado diante da por­ta de vidro e sobe no bondinho que o espera. Depois de uma breve viagem por um labirinto de túneis, ele chega ao centro de comando do NORAD para começar seu turno de 12 horas.

Lançamentos de mísseis não são surpresas para o comandante do NORAD; a cada ano ele testemunha pelo menos duzentos desses "eventos". Mas este é dife­rente. Com o mundo à beira de uma guerra, as tensões estão elevadas, e milhares, talvez milhões de vidas estão em jogo.

Seu colega, o major Brian Sedio, está ocupado estudando o monitor do satélite do Programa de Apoio à Defesa. A imagem do vice-presidente Chaney pode ser vista no videocomunicador sobre o seu console.

—      O que está acontecendo?

Sedio levanta a cabeça.

—      Chegou bem a tempo. O vice-presidente está surtando. O major volta a ativar o microfone. Lamento, vice-presidente. Nossos satélites foram projetados para detectar rastros de calor, não interferências eletromagnéticas. Se esses seus objetos alienígenas continuarem cruzando o Pacífico rumo àÁsia, talvez possamos localizá-los usando nosso radar em terra, mas para os nossos satélites, eles são invisíveis.

A intensidade do olhar de Chaney é alarmante.

—      Encontre os objetos, major. Coordene as buscas que precisar. Quero ser informado assim que conseguir localizá-los.

A tela se apaga.

O major Sedio balança a cabeça.

—      Dá pra acreditar? O mundo está à beira da guerra, e o Chaney acha que estamos sendo atacados por alienígenas.

 

         14 DE DEZEMBRO DE 2012, FLORESTA DE ROCHAS DE SHILIN

         PROVÍNCIA DE YUNNAN, SUL DA CHINA

5h45 (HORA DE BEIJING)

A província de Yunnan, junto com Guizhou, forma a região sudoeste da Repú­blica Popular da China. Com uma abundância de lagos, montanhas imponen­tes e rica folhagem, poucas áreas em toda a China proporcionam aos visitantes tanta variedade de paisagens a explorar.

A cidade mais populosa da província é Kunming, a capital de Yunnan. Localizada 112 quilômetros a sudoeste da cidade fica sua mais importante atração turística: a Floresta de Pedra de Lunan, também conhecida como Floresta de Rochas de Shilin. Estendendo-se por mais de 260 quilômetros quadrados, a Floresta de Rochas é um emaranhado de bizarras e enormes agulhas de calcário que se elevam a alturas de quase 30 metros. Passarelas levam os visitantes através das fileiras de colunas, as pontes de madeira cru­zando regatos e passando por baixo de arcos naturais de pedra que abundam naquela paisagem labiríntica.

Os fatores que levaram à Floresta de Rochas começaram há uns 280 mi­lhões de anos, quando o surgimento do Himalaia fez com que a erosão escavasse formações irregulares em espiral no platô de calcário. Com o passar das eras, outros movimentos tectónicos criaram profundas fissuras no carste, que acabaram sendo alargadas pela água da chuva, formando imponentes lâminas de pedra cinza-claro.

 

Ainda não havia amanhecido quando Janet Parker, de 52 anos, e seu guia pes­soal, Quik-sing, chegam aos portões do parque público. Depois de ignorar os alertas do Departamento de Estado americano sobre viajar para a China, a despachada empresária da Flórida insistiu em visitar a Floresta de Rochas antes de partir de Kunming em seu voo matinal.

Ela segue o guia até um pagode e uma passarela de madeira que serpen­teia através das formações calcárias irregulares.

—      Espere aí, Quik-sing. Está me dizendo que é só isso? Viajamos uma hora de carro pra ver isso?

— Wo ting budong...

Em inglês, Quik-sing, em inglês.

Não entendo, srta. Janet. Isto é a Floresta de Pedra. O que esperava ver?

—      Obviamente, algo um pouco mais espetacular. Tudo o que vejo são quilômetros de rochas. Um forte brilho âmbar atrai o seu olhar. Espere, o que é aquilo? Ela aponta para a fonte, o facho dourado piscando entre várias colunas de calcário.

Quik-sing protege os olhos, surpreso pela luz.

Eu... eu não sei. Srta. Janet, por favor, o que está fazendo?

Janet sobe no parapeito.

Quero ver o que é aquilo.

Srta. Janet... Srta. Janet!

Calma, eu volto já.

De câmera na mão, ela pisa no chão, depois se aperta entre as bases de duas formações, xingando ao raspar o tornozelo na rocha afiada. Esgueirando-se ao redor da coluna, ela olha para cima, procurando a fonte da luz brilhante.

—      Que diabos é aquilo?

O objeto preto, com aparência de inseto, tem mais de 12 metros de comprimento, suas enormes asas enfiadas entre duas altas colunas de calcário. A fera imóvel está de pé sobre um par de garras incandescentes, que parecem ter perfurado o carste, fazendo-o fumegar.

—      Quik-sing, vem aqui. Janet bate outra foto quando os primeiros raios de sol tocam a cauda da criatura. O facho âmbar escurece e pisca cada vez mais rápido. — Ei, Quik-sing, eu estou te pagando pra quê?

A explosão silenciosa de luz branca e brilhante cega instantaneamente a empresária quando o dispositivo de fusão pura gera um caldeirão de energia mais quente que a superfície do Sol. Janet Parker sente um ardor breve e estranho. Sua pele, gordura e sangue fervem e se soltam dos ossos. Seu esqueleto evapora um nanossegundo depois, quando a bola de fogo incandescente se expande em todas as direções na velocidade da luz.

A combustão se espalha rapidamente pela Floresta de Pedra, o calor va­porizando o carste, liberando uma nuvem densa e tóxica de dióxido de carbo­no. Comprimidos sob um teto de ar gelado, os vapores venenosos abraçam o solo, expandindo-se como um tsunami gasoso.

A maioria da população de Kunming ainda está dormindo quando a nu­vem de gás letal e invisível invade a cidade como uma lufada quente num dia de verão. Os madrugadores caem de joelhos, segurando a garganta, sentindo o mundo rodando ao seu redor. Os que ainda estão na cama mal estremecem ao sufocar no sono.

Em minutos, todo homem, toda mulher, criança, e quaisquer outros se­res pulmonados de Kunming estão mortos.

 

                       Cidade de Lensk, República de Sakha, Rússia

5h47

Pavel Pshenichny, de 17 anos, toma o machado de seu irmão mais novo, Nikolai, e sai do chalé de troncos de três quartos, afundando os pés em 30 centíme­tros de neve recém-caída. Um vento gelado uiva em seus ouvidos, queimando seu rosto. Ele ajeita o cachecol, depois marcha através do quintal gelado até a pilha de madeira.

O sol ainda não nasceu, mas quem, senão um narivo, notaria a diferença nesta região desolada e cinzenta de permafrosti[3] Pavel limpa a neve da super­fície do tronco de árvore congelado, pega um toco de madeira da pilha e o posiciona de pé. Com um gemido, gira o machado, e a lâmina parte o bloco semicongelado de madeira em lascas menores.

Quando ele vai pegar outro pedaço, um clarão brilhante o faz olhar para cima.

O horizonte ainda escuro ao norte de Lensk é dominado por uma enor­me cordilheira de montanhas cobertas de neve, escondida por trás das nuvens cinzentas da madrugada. Pavel vê o que parece ser um relâmpago brilhante por trás das nuvens, o clarão se espalhando pelos picos irregulares, que rapidamen­te são engolidos por uma neblina crescente.

Segundos depois, um enorme estrondo, e o chão treme sob seus pés.

Avalanche?

A densa neblina impede Pavel de ver a devastação geológica que se passa diante de seus olhos. O que o adolescente consegue ver é uma nuvem cinza-claro de neve avançando, expandindo-se, a onda de energia correndo em sua direção numa velocidade incalculável.

Ele larga o machado e corre.

Nikolai! Avalanche! Avalanche!

A onda de choque nuclear levanta Pavel do chão, jogando-o de cabeça contra a porta do chalé com um vento igual ao de um tornado. Antes que ele possa sentir dor, toda a estrutura é arrancada dos alicerces como um castelo de cartas a nuvem de detritos incandescentes varrendo a planície, destruindo tudo o que encontra pela frente.

 

                       Chichén Itzá, Península de Yucatán

22h56

A picape Chevy preta e empoeirada sem o para-choque traseiro atravessa a densa selva, seus amortecedores vencidos gemendo com os buracos da estrada de terra. Ao se aproximar do portão fechado, a picape para. Michael Gabriel sai pela porta do motorista.

Ele examina a corrente de aço e começa a mexer no cadeado enferrujado, usando os faróis da picape para enxergar.

Dominique desliza para o assento do motorista enquanto Mick abre o cadeado e tira a corrente. Engatando a marcha, ela passa pelo portão, depois volta para o banco do passageiro enquanto ele se aproxima.

Impressionante. Onde aprendeu a arrombar fechaduras?

Na solitária. Claro que ter a chave sempre ajuda.

Onde arranjou a chave?

—      Tenho amigos que trabalham na manutenção do parque. É bem ridí­culo que o único trabalho disponível para os maias locais seja servir comida ou transportar lixo na cidade fundada pelos seus ancestrais.

Dominique se segura no painel enquanto Mick acelera pela esburacada estradinha.

—      Tem certeza de que você sabe aonde está indo?

—      Passei a maior parte da minha infância explorando Chichén Itzá. Co­nheço esta selva como a palma da minha mão.

Os faróis altos revelam o fim da estrada à frente.

Ele sorri.

—      Claro que isso foi há muito tempo.

—      Mick! Dominique fecha os olhos e se segura quando ele sai da estrada e dirige através da selva, enfiando a picape no meio da densa vegetação.

—      Devagar! Está tentando nos matar?

O veículo ziguezagueia, entrando e saindo da mata fechada, de alguma forma conseguindo evitar as árvores e pedras. Eles entram numa área com muitas árvores, cujas copas escondem o céu noturno.

Mick pisa no freio.

—      Fim da estrada.

—      Você chama aquilo de estrada?

Ele desliga o motor.

Mick, me diga de novo por que...

Shh. Ouça.

O único som que ela ouve são os estalos do motor da picape.

O que estou tentando ouvir?

Tenha paciência.

Aos poucos, o canto dos grilos ganha vida ao redor deles, seguido pelo resto dos sons da selva.

Dominique olha para Mick. Seus olhos estão fechados, uma expressão melancólica invade seu rosto anguloso.

Você está bem?

Estou.

No que está pensando?

Na minha infância.

Uma lembrança alegre ou triste?

Uma das poucas alegres. Minha mãe me trazia pra acampar nesta floresta quando eu era bem novo. Ela me ensinou muito sobre a natureza e o Yucatán, como a península se formou, sua geologia... Todo tipo de coisa. Era uma excelente professora. Não importava o que a gente fazia juntos, com ela sempre ficava divertido.

Mick vira para ela, suas grandes pupilas negras brilhando.

—      Sabia que toda esta área já esteve debaixo d'água? Há milhões de anos, a península de Yucatán estava no fundo de um mar tropical, sua superfície recoberta de corais, plantas e sedimentos marinhos. O fundo do mar era essen­cialmente uma grossa camada de calcário maciço, e então... bum. Uma espaçonave, ou sei lá o que, caiu na Terra. O impacto fraturou o calcário, criando ondas de 600 metros de altura, incêndios, e uma camada atmosférica de poeira que impediu a fotossíntese e dizimou a maior parte das espécies do planeta.

"A península de Yucatán acabou se elevando, tornando-se terra seca. A água da chuva corroeu as fendas do calcário, erodindo a rocha, escavando um vasto labirinto subterrâneo que se estende por baixo da península. Minha mãe dizia que, sob a superfície, o Yucatán parece um gigantesco queijo suíço."

Ele se encosta no assento, olhando para o painel.

Durante a última era glacial, o nível de água diminuiu, e os sistemas de cavernas não ficaram mais inundados. Isso permitiu que estalactites, estalagmites e outras formações de carbonato de cálcio surgissem dentro do carste.

Carste?

Carste é o nome científico de um tipo de relevo poroso de calcário. O Yucatán é todo feito de carste. O fato é que, há 14 mil anos, o gelo derreteu e o mar subiu, voltando a inundar as cavernas. Não há rios de superfície no Yucatán. Toda a água da península vem das cavernas subterrâneas. Os poços do interior são de água doce, mas à medida que nos aproximamos da costa, eles ficam mais salgados. Às vezes o teto de uma caverna desaba, formando um poço gigante...

—      Como o dzonot sagrado? Mick sorri.

Você usou o termo maia pra "cenote". Eu estava me perguntando se você o conhecia.

Minha avó era maia. Ela me contou que os dzonots, segundo a lenda, eram portais pro Mundo Inferior, pra Xibalba. Mick, você e sua mãe eram muito próximos, não é?

—      Até pouco tempo atrás, ela era a única amiga que eu tive. Dominique engole o nó em sua garganta.

—      Lá no Golfo, você começou a me contar como ela morreu. Você pa­recia sentir raiva do seu pai.

Um olhar de incerteza surge no rosto dele.

Precisamos ir andando...

Não, espere. Me conte o que aconteceu. Talvez eu possa ajudar. Se não puder confiar em mim, vai confiar em quem?

Ele se curva para a frente, os antebraços apoiados no volante, e olha para o pára-brisa sujo de restos de insetos.

—      Eu tinha 12 anos. A gente morava numa cabana de dois cômodos perto de Nazca. Minha mãe estava morrendo, o câncer se espalhou pra fora do pâncreas. Não aguentava mais radioterapia ou quimioterapia e estava fraca demais pra se cuidar sozinha. O Julius não podia pagar uma enfermeira, por isso me deixou encarregado de cuidar dela enquanto continuava seu trabalho no deserto. Os órgãos da minha mãe estavam entrando em colapso. Ela ficava deitada na cama, encolhida pela dor abdominal, enquanto eu escovava seu cabelo e lia pra ela. Tinha cabelo preto, longo, como o seu. No fim, eu nem podia mais escová-lo, saía aos chumaços.

Uma lágrima escorre por sua face.

—      Mas a mente dela continuou afiada até o final. Ela sempre estava mais forte de manhã, capaz de conversar, mas no fim da tarde ficava fraca e incoerente, a morfina a derrubava. Uma noite, o Julius chegou em casa, exausto depois de passar três dias seguidos no deserto. Mamãe tinha tido um mau dia. Estava lutando com uma febre alta e sentindo muita dor, e eu estava esgotado, depois de cuidar dela por 72 horas. Julius se sentou na beira da cama e ficou olhando pra ela. Finalmente, dei boa-noite e fechei a porta do quarto contíguo pra dormir um pouco. Devo ter desmaiado assim que minha cabeça encostou no travesseiro. Não sei quanto tempo dormi, mas algo me acordou no meio da noite, uma espécie de grito abafado. Levantei da cama e abri a porta. Mick fecha os olhos, as lágrimas escorrendo copiosamente, agora.

O que foi? Dominique sussurra. O que você viu?

Era minha mãe gritando. O Julius estava ao lado dela, sufocando-a com o travesseiro.

Meu Deus...

Fiquei ali, ainda semiconsciente, sem me dar conta do que estava acontecendo. Depois de mais ou menos um minuto, minha mãe parou de se agirar. Foi então que Julius notou a porta aberta. Ele se virou e me olhou com uma expressão horrível no rosto. Me arrastou pro meu quarto, soluçando e balbuciando que a mamãe estava sentindo tanta dor que ele não aguentava mais vê-la sofrer tanto.

Mick balança o corpo para a frente e para trás, olhando o para-brisa.

—      Seus pesadelos?

Ele assente com a cabeça, e então cerra os punhos, esmurrando com força o velho painel do carro.

—      Quem ele achava que era pra tomar essa decisão, caralho? Era eu que estava cuidando dela. Eu estava tomando conta dela, não ele!

Ele franze o cenho enquanto continua dando socos no painel, liberando a fúria acumulada.

Emocionalmente exausto, apóia a cabeça no volante.

—      Ele nem falou comigo, Dominique. Não me deu a oportunidade de dizer adeus.

Dominique o puxa para si, acariciando seu cabelo enquanto ele chora, mergulhando o rosto em seu peito. Lágrimas correm também pela sua face enquanto ela pensa em tudo o que ele sofreu, privado de uma infância nor­mal desde que nasceu, toda a sua vida adulta marcada por anos passados na solitária.

Como eu poderia ser capaz de levá-lo pra outro hospital?

Ele se acalma depois de alguns minutos, afastando-se dela e enxugando os olhos.

—      Acho que ainda preciso lidar com alguns problemas familiares.

Você teve uma vida difícil, mas as coisas vão melhorar agora.

Mick funga, contendo um sorriso.

Você acha, é?

Ela se aproxima e o beija, de leve no início, depois o puxa mais para perto, e seus lábios se fundem, suas línguas se entrelaçando, aumentando sua paixão. Excitados, eles arrancam as roupas um do outro, acariciando-se na es­curidão, lutando contra o espaço apertado da cabine, o volante e a alavanca de marchas limitando seus movimentos.

—      Mick... espere. Aqui dentro não consigo, não tem espaço. — Ela apóia a cabeça no ombro dele, ofegante, o suor escorrendo por seu rosto. — Da próxima vez, peça emprestado um carro com banco de trás.

—      Prometo que sim — diz ele, beijando sua testa.

Ela brinca com os cachos de cabelo que cobrem o pescoço dele.

—      Vamos sair daqui, senão chegaremos atrasados no encontro com seus amigos.

Eles saem da picape. Mick sobe na caçamba e solta os tanques de mergu­lho dos suportes. Ele passa para Dominique um colete com compensador de flutuação, tanque de ar e regulador já afivelados.

Você já mergulhou à noite?

Há uns dois anos. Quanto vamos ter que andar até o cenote?

—      Um quilômetro e meio. Acho que é mais fácil pôr o tanque nas costas.

Ela veste o colete e o tanque, depois pega os macacões de neoprene das mãos de Mick enquanto ele sai da caçamba. Mick afivela seu colete, joga o saco de equipamentos sobre o ombro e pega os dois tanques extras de ar.

—      Vem comigo.

Ele segue para dentro da mata, Dominique cambaleando atrás dele. Em poucos minutos, enxames de mosquitos estão zumbindo em seus ouvidos, ali­mentando-se de seu suor. Seguindo os restos de uma trilha com o mato já alto, eles vão abrindo caminho através da densa selva enquanto insetos e espinhos picam suas peles. A vegetação finalmente se abre numa área arborizada, e o solo pantanoso fica mais firme. Eles lutam para escalar uma elevação de um metro e meio, e de repente as estrelas reaparecem acima de suas cabeças.

Eles estão sobre um caminho de pedra de 4 metros e meio de largura, um antigo sacbe construído há mil anos pelos maias.

Mick põe os tanques de ar no chão, esfregando os ombros doloridos.

—      À esquerda fica o cenote sagrado, à direita, a pirâmide de Kukulcán. Você está bem?

Estou me sentindo um burro de carga. Falta muito?

Duzentos metros. Vamos.

Eles seguem para a esquerda, chegando, cinco minutos depois, à beira do imenso abismo de calcário, suas águas silenciosas e escuras refletindo o luar.

Dominique olha para baixo, estimando a profundidade em uns bons 15 metros. Seu coração dispara. Por que diabos estou fazendo isso? Ela se vira quan­do cinco velhos maias de pele morena saem da mata.

—      Eles são amigos diz Mick. São H'Menes, sábios maias. Des­cendentes da irmandade Sh’Tol, uma sociedade sagrada que escapou à ira dos espanhóis há mais de cinco séculos. Estão aqui pra nos ajudar.

Enquanto vesre o traje de mergulho, Mick fala com um maia de cabelos brancos num idioma anrigo. Os outros anciãos tiram uma corda e várias lan­ternas de mergulho do saco de equipamentos.

Dominique vira de costas para o grupo e tira a camiseta, vestindo rapida­mente o apertado traje por cima do maio.

Mick a chama, com ar preocupado.

—      Dom, este é o Ocelo, um sacerdote maia. O Ocelo diz que um ho­mem foi visto em Chichén Itzá, perguntando onde a gente estava. Ele disse que era um americano ruivo e musculoso.

Raymond? Puta merda...

Dom, diga a verdade. Você...?

Mick, juro que não falei com o Foletta, com o Borgia ou qualquer pessoa desde que cheguei aqui.

O irmão do Ocelo é segurança. Diz que viu o ruivo entrar no parque pouco antes do fechamento, mas ninguém se lembra de tê-lo visto sair. Aquele acordo que você assinou com o Borgia é a maior mentira. Você vai ter sua imunidade depois que eu for encontrado morto. Vamos, é melhor ir andando.

Eles abrem as válvulas dos tanques, verificando os reguladores. Vestindo os coletes, se aproximam da borda do cenore.

Mick calça os pés de pato, depois enrola a corda nos braços e começa a descer dentro do poço. Os maias o baixam rapidamente na água fria e estagna­da e puxam a corda para baixar Dominique.

Mick posiciona a máscara e o regulador, depois liga a lanterna e enfia a cabe­ça na água. A visibilidade no lodo marrom e fedorento é menor que meio metro.

Dominique sente seus membros tremendo ao se pendurar sobre a super­fície escura da água do cenote. Por que você está fazendo isso? Ficou louca? Ela cerra os dentes quando seus pés entram naquela fossa séptica gelada e infestada de algas. Soltando a corda, ela cai na água, sentindo ânsia com o cheiro de podridão. Ela rapidamente ajeita a máscara, enfia o regulador na boca e inspira, eliminando o fedor.

Mick reaparece, com fiapos limosos de vegetação grudados no cabelo. Ele prende uma corda amarela em sua cintura e na dela.

É bem escuro lá embaixo. Não quero que a gente se separe. Ela balança a cabeça, tirando o regulador.

O que é que estamos procurando mesmo?

Alguma espécie de portal no lado sul. Algo que nos dê acesso à pirâmide.

Mas a pirâmide fica a um quilômetro e meio daqui. Mick?

Ela o vê esvaziando o compensador de flutuação e mergulhando. Droga. Pondo novamente o regulador na boca, ela dá uma última olhada para a lua e o segue para o fundo.

Dominique começa a hiper ventilar no regulador assim que seu rosto bate na água turva. Ela nada cegamente por vários segundos, seu senso de direção falhando, até que sente o puxão de Mick. Descendo mais 6 metros, ela agita as pernas e vê o reflexo da lanterna dele na parede do cenote.

Mick está inspecionando a parede de calcário, que está recoberta por uma vegetação densa. Usando sua lanterna, ele faz sinais para que ela siga a parede à direita e espete as densas algas com o punhal.

Dominique tira o punhal da bainha no tornozelo e bate na pedra en­quanto desce de pé pela parede calcária. Seis metros abaixo, sua mão entra num buraco de um metro e seu relógio enrosca na vegetação. Sem conseguir se soltar, ela apóia os pés de pato na parede para puxar o braço.

Uma cobra-d'água de 2 metros ataca, veloz como um raio, mordendo sua máscara antes de desaparecer no lodo.

É o limite para seus nervos em frangalhos. Entrando em pânico, ela nada para a superfície e arrasta Mick junto.

Quando sua cabeça emerge, ela arranca a máscara, ofegando e tossindo.

Você está bem? O que aconteceu?

Você não disse que aqui tinha cobras, cacete! Eu odeio cobras...

Ela te mordeu?

Não, mas pra mim chega. Isso não é mergulhar, é nadar em merda líquida. — Ela solta a corda, suas mãos ainda tremendo.

Dom...

Não, Mick, chega. Meus nervos estão à flor da pele, e essa água me dá coceira. Continue sem mim. Vá achar sua passagem secreta, ou sei lá o que está procurando. Espero você lá em cima.

Mick a olha com ar preocupado e mergulha.

—      Ei, Ocelo! Jogue a corda. — Olhando para cima, ela espera impacien­temente que os anciãos apareçam na borda do poço.

Nada.

Ei, estão ouvindo? Falei pra jogar a droga da corda!

Boa noite, gatinha. — Um calafrio lhe percorre a espinha quando Raymond aparece, apontando o facho vermelho da mira laser do rifle para o seu pescoço.

 

                         Casa Branca, Washington, DC

O presidente Maller está com a sensação de que levou um soco na boca do es­tômago. Erguendo o olhar do relatório do Departamento de Defesa, ele encara o general Fecondo e o almirante Gordon, sentindo as têmporas latejarem com as batidas do seu coração. Ele está tão fraco que seu corpo já não consegue mais sustentá-lo na cadeira.

Pierre Borgia irrompe no Salão Oval, seu olho vermelho chispando de ódio.

Acabamos de receber um relatório atualizado. Vinte e um mil mortos em Sakha. Dois milhões morreram em Kunming. Uma cidade inteira foi varrida do mapa no Turcomenistão. A imprensa já está se juntando lá embaixo.

Os russos e chineses não perderam tempo em mobilizar suas forças — diz o general Fecondo. — A resposta oficial é que tudo faz parte das manobras de guerra deles, que tudo já estava previsto. Mas os números são muito supe­riores ao que tinha sido planejado.

O chefe de operações navais lê no seu laptop.

Nosso último reconhecimento por satélite rastreou 83 submarinos nucleares, incluindo todos os novos classe Borey da Rússia. Cada um deles carrega 18 mísseis SS-N-20. Some-se a essa lista mais uma dúzia de submarinos chineses com mísseis balísticos e...

Não são só submarinos — interrompe o general. — Os dois países puseram suas forças estratégicas em estado de prontidão. O avião de reconhe­cimento Darkstar está rastreando o cruzador Pedro, o Grande, que saiu de sua doca, armado com mísseis, vinte minutos depois da última detonação. Esta­mos falando de um arsenal conjunto terrestre e marítimo com capacidade para um ataque inicial que passa de 2 mil ogivas nucleares.

Meu Deus. — Maller respira fundo, lutando contra o aperto no peito. — Pierre, quanto falta para a videoconferência com o Conselho de Segurança?

Dez minutos, mas o secretário-geral diz que Grozny está falando com o Parlamento e se recusa a participar se a gente estiver na conferência. —

O rosto de Borgia está coberto de suor. — Senhor, precisamos transferir esta operação para o monte Weather.

Maller o ignora. Vira-se para um vídeo-comunicador marcado STRATCOM.

—      General Doroshow, como nosso Escudo Antimíssil afetará um ataque inicial dessa magnitude?

O rosto pálido do general da Força Aérea Eric Doroshow, comandante em chefe do Comando Aéreo Estratégico, aparece no monitor.

—      Senhor, o escudo é capaz de destruir algumas dúzias de mísseis no ápice da trajetória, mas nada no nosso arsenal de defesa foi projetado para lidar com um ataque total. A maioria dos ICBMs e mísseis lançados de submarinos russos foi programada para voar em baixa altitude. A tecnologia para eliminar essa ameaça simplesmente não era viável...

Maller balança a cabeça, revoltado.

—      A porra de 20 bilhões de dólares... e pra quê?

Pierre Borgia olha para o general Fecondo, que balança a cabeça.

Presidente, pode haver outra opção. Se tivermos certeza de que o Grozny vai atacar primeiro, pegá-lo de surpresa vai ter vantagens evidentes. O POIU-112, nosso último Plano Operacional Integrado Único, indica que um ataque preventivo com 1.800 ogivas desabilitaria eficazmente 91% de todas as plataformas terrestres de ICBMs russas e chinesas e...

Não! Não vou entrar pra História como o presidente americano que deu início à Terceira Guerra Mundial.

—      O ataque preventivo seria justificável — explica o general Doroshow.

—      Não posso justificar a matança de 2 bilhões de seres humanos, gene­ral. Continuaremos com os objetivos diplomáticos e defensivos que definimos. — O presidente se senta na borda da mesa, esfregando as têmporas. — Onde está o vice-presidente?

—      Até onde sei, senhor, estava a caminho da Boone.

Talvez devêssemos mandar um helicóptero buscá-lo e levá-lo para uma base da FEMA — diz o general Fecondo.

Não — Borgia responde, um pouco depressa demais. — Não, o vice-presidente nunca participou de manobras...

—      Mas ele é membro do Executivo.

—      Não importa. Chaney nunca foi oficialmente inscrito na lista de so­breviventes. O monte Weather tem espaço limitado...

—      Chega! — grita o presidente.

Dick Przystas entra.

—      Desculpem o atraso, a estrada está um caos. Vocês viram o que está acontecendo lá fora? Ele liga a TV na CNN.

As imagens mostram americanos apavorados, freneticamente levando seus pertences para carros abarrotados. Um microfone é enfiado na cara de um pai de três filhos.

—      Não sei que diabos está acontecendo. A Rússia diz que nós estamos de­tonando essas bombas, o presidente diz que não. Não sei em quem acreditar, mas não confio nem no Maller, nem no Grozny. Vamos sair da cidade hoje à noite...

Aparece então um close-up de manifestantes na porta da Casa Branca, carregando cartazes com mensagens do Apocalipse. VIKTOR GROZNY É O ANTICRISTO. PENITÊNCIA AGORA! O ARREBATAMENTO ESTÁ PRÓXIMO!

Cenas de saques num shopping center em Bethesda. Imagens aéreas da rodovia interestadual, os carros enfileirados nas pistas. Um caminhão capota ao tentar desviar do trânsito, rodando por uma encosta íngreme. Uma família na caçamba de uma picape, armada até os dentes.

—      Presidente, a chamada do Conselho de Segurança está pronta. VC-2.

Maller se dirige à parede oposta, onde cinco videocomunicadores estão montados. O segundo à esquerda se acende e a tela se divide em vinte quadra­dos, mostrando imagens dos chefes de governo dos membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O espaço da Rússia está vazio.

—      Secretário-geral, membros do Conselho, quero enfatizar mais uma vez que os Estados Unidos não são responsáveis por essas detonações de fusão pura. De qualquer forma, temos motivos para crer que o Irã possa estar se preparando para atacar Israel, numa tentativa de arrastar nosso país para um conflito direto com a Rússia. Quero reforçar novamente que queremos evitar a guerra a todo custo. Para que não haja mal-entendidos, ordenamos a retirada da nossa frota do golfo de Omã. Por favor, informem ao presidente Grozny que os Estados Unidos não lançarão nenhum míssil contra a Federação Russa ou seus aliados, mas não fugiremos da nossa responsabilidade em defender o Estado de Israel.

—      O Conselho dará o seu recado. Que Deus o ajude, presidente.

Que Deus ajude a nós todos, secretário-geral.

Maller vira-se para Borgia.

Onde está minha família?

Já está a caminho do monte Weather.

Certo, vamos sair daqui. General Fecondo?

Sim, senhor?

Nos passe para DEFCON-1.

 

                             Chichén Itzá

Mick mergulha de cabeça ao longo da face sul do cenote, apalpando a vegetação emaranhada, procurando qualquer coisa fora do comum. A 9 metros de profundi­dade, o ângulo da parede muda de repente, se curvando internamente a 45 graus.

Ele continua indo cada vez mais fundo no poço maia, a escuridão ficando mais cerrada ao redor de seu facho de luz, que diminui constantemente. A 27 metros, ele para a fim de equalizar a pressão em seus ouvidos, que se torna dolorosa.

Trinta e dois metros...

A face sul se nivela de novo, voltando a descer na vertical. Mick continua descendo no poço escuro, sabendo muito bem que não está equipado para mergulhar muito mais fundo.

E então ele o vê: um ponto de luz brilhando como o sinal vermelho de SAÍDA num cinema às escuras.

Ele agita mais as pernas, depois para, sua pulsação latejando em seu pes­coço quando ele avista, incrédulo, o imenso portal de 3 metros de altura por 6 de largura, o facho de sua lanterna refletido na superfície metálica branca, lisa e brilhante.

Gravado no centro da barreira há um candelabro vermelho, luminoso, com três pontas. Mick geme no seu regulador, reconhecendo instantaneamen­te o ícone ancestral.

É o Tridente de Paracas.

 

                           Bluemont, Virgínia

O helicóptero de transporte levando a primeira-dama, seus três filhinhos e os três velhos deputados vai para o oeste, sobrevoando a cidade de Bluemont e a Route 601, na Virgínia. A distância, o piloto consegue ver as luzes de uma dúzia de prédios situados dentro do conjunto cercado.

É monte Weather, uma base militar ultrassecreta a 74 quilômetros de Washington, DC. A instalação é administrada pela FEMA, a Agência Federal de Gerenciamento de Emergências. Conectado com uma rede de mais de cem Centros de Relocalização Federal, é o quartel-general operacional que abriga o programa secreto "Continuidade de Governo".

Embora o complexo de 34 hecrares seja fortemente vigiado, o verdadeiro segredo do monte Weather fica no subsolo. Muito abaixo da montanha de granito fica uma cidade subterrânea, equipada com aparramentos e dormitó­rios particulares, lanchonetes e hospitais, uma central de purificação de água e tratamento de esgotos, uma central elétrica, um sistema de trânsito, uma rede de televisão e até um lago subterrâneo. Nenhum membro do Congresso jamais alegou deliberadamente ter conhecimento da instalação, mas muitos deputa­dos e senadores veteranos são, de fato, membros efetivos do "governo de reser­va" dessa capital subterrânea. Nove departamentos federais foram reproduzidos dentro da instalação, bem como cinco agências federais. Membros de gabinete nomeados secretamente têm mandatos indeterminados, sem o consentimento do Congresso e longe dos olhos do público. Embora menor do que o complexo russo da montanha de Yamantou, a instalação de gerenciamento de crise tem a mesma função sobreviver e governar o que restar dos Estados Unidos depois de um ataque nuclear total.

Mark Davis, o capitão da Força Aérea, faz vôos de treinamento de e para o monte Weather há 12 anos. Embora o piloto do Posto de Comando Aéreo Nacional de Emergência, pai de quatro filhos, ganhe bem, nunca lhe agradou o fato de que ele e sua família não fazem parte da "lista".

Davis vê as luzes da instalação aparecerem a distância. Ele cerra os dentes.

Mais de 240 militares trabalham dentro da instalação. As suas vidas são mais importantes que a dele? E os 65 membros da "Elite Executiva"? Se uma guerra nuclear começar, a culpa poderia facilmente recair sobre muitos desses "especialistas" militares. Por que esses canalhas deveriam sobreviver, e sua família não?

No final, foi fácil para o agente russo convencer o revoltado capitão. Di­nheiro era essencial para sobreviver a uma guerra nuclear. Davis usou a maior parte da quantia para construir seu próprio bunker nas montanhas Blue Ridge, e converteu o resto em ouro e pedras preciosas. Se uma guerra nuclear come­çar, ele acredita que sua família sobreviverá. Caso contrário, o dinheiro para a universidade das crianças nunca esteve tão garantido.

Davis paira o helicóptero sobre o heliporto e pousa. Dois PEs num carri­nho se aproximam. Ele presta continência.

Sete passageiros e sua bagagem. Todas as malas foram verificadas. Sem esperar resposta, Davis abre a porta deslizante e ajuda a primeira-dama a descer.

Os PEs levam os passageiros até o carrinho, enquanto o piloto descarrega as malas. A discreta valise de camurça marrom é a terceira. Davis gira a alça no senti­do horário, seguindo as instruções do agente russo, depois a gira de volta devagar.

O mecanismo é ativado.

O piloto coloca a valise cuidadosamente no carrinho, depois se apressa para descarregar o resto da bagagem.

 

                               Chichén Itzá, Península de Yucatán

Mick se obriga a diminuir a velocidade da subida, contendo a custo sua empolgação. Ele pausa a 6 metros para liberar nitrogênio, seus pensamentos em turbilhão na cabeça.

Como será que eu entro? Deve ter algum tipo de mecanismo escondido pro­jetado pra abrir aporta. Ele verifica novamente o manómetro. Quinze minutos. Tenho que pegar outro tanque de ar e mergulhar de novo. Rápido.

Mick continua a subida, surpreso por ver as pernas de Dominique ainda dentro d'água. Ele sobe ao lado do corpo dela e sua cabeça emerge.

—      Dom, o que você...? A expressão apavorada no rosto dela o faz olhar para cima.

Quinze metros acima da superfície da água está o ruivo, o chefe da se­gurança do hospital de Miami, sorrindo para ele da borda do poço. O ponto vermelho da mira laser salta do pescoço de Dominique para o dele.

—      Olha a minha putinha. Como se atreve a deixar minha gata esperando tanto tempo?

Mick se aproxima de Dominique, procurando a mangueira do compen­sador de flutuação dela na água.

Deixe-a em paz, babaca. Deixe-a em paz e eu não vou lutar. Vai poder me levar de volta pros Estados Unidos algemado. Vai ser um herói de verdade...

Não desta vez, filho da puta. O Foletta decidiu tentar uma nova abor­dagem na sua terapia. Chama-se morte.

Mick encontra a mangueira do compensador e esvazia rapidamente o colete de Dominique.

—      Quanto o Foletta está te pagando? Ele se posiciona diante dela, a mira laser aparecendo no seu traje de mergulho. Tem dinheiro na minha picape, escondido debaixo do assento. Pode ficar com tudo. Deve ter uns 10 mil em moedas de ouro ali.

Raymond tira o olho da alça de mira.

—      É mentira...

Mick agarra Dominique e nada para o lado, arrastando-a para baixo d'água. Ela se agita, lutando ao aspirar o lodo.

Uma chuva de balas passa ao lado deles enquanto Mick enfia seu regula­dor na boca de Dominique e a puxa mais para o fundo. Dominique engasga, cospe água, depois consegue puxar um hausto de ar. Ela põe a máscara inunda­da no rosto e rapidamente a enche de ar, depois localiza o seu regulador.

Mick limpa o regulador e enche os pulmões. Ele pega a mão de Domini­que e desce cegamente. Uma bala ricocheteia no seu tanque de ar.

O coração de Dominique bate descontrolado. A 15 metros de profundida­de, ela acende a lanterna, quase derrubando-a, enquanto Mick recoloca sua más­cara e a enche de ar. Ela o olha, apavorada, sem saber o que vai acontecer a seguir.

Mick amarra novamente a corda em sua cintura e aponta para baixo.

Ela faz que não com a cabeça.

Uma nova salva de tiros encerra a discussão.

Ele a agarra pelo pulso e desce, puxando-a para baixo.

Ondas de pânico percorrem suas entranhas enquanto ela mergulha de cabeça na escuridão. O fim silencioso se aproxima, a dor em seus tímpanos indica que ela está indo fundo demais. O que ele está fazendo? Solte essa corda ou você vai morrer. Ela luta para desatar o nó.

Mick levanta o braço e a impede. Ele toma a sua mão e a acaricia, tentan­do encorajá-la, depois continua descendo.

Ela aperta o nariz e equaliza a pressão, aliviando seus ouvidos enquanto o segue para baixo. A parede inclinada se torna um teto sobre sua cabeça, a claustrofobia crescente, quase insuportável. Ela sente que está perdendo toda a orientação, sufocada pela escuridão e pelo silêncio.

Agora ela está mergulhando pelo poço em vertical. Seu medidor de pro­fundidade marca mais de 33 metros, seu coração fazendo o rosto latejar na máscara, sua mente gritando para que ela se solte.

A aparição da brilhante luz escarlate a assusta. Descendo mais, ela pisca e para, fitando o ícone luminoso. Meu Deus... ele realmente achou alguma coisa! Espere, já vi essa figura antes...

Ela vê Mick nadando ao redor da superfície branca e lustrosa, apalpando as bordas da placa metálica.

Já sei... vi no diário de Julius Gabriel...

O coração de Dominique falha quando um som trovejante e grave enche seus ouvidos. Monstruosas bolhas de ar explodem do centro da placa e envolvem Mick, e então uma corrente monstruosa a agarra, sugando-a para o centro do portal e para um vazio negro que não estava lá um momento antes.

A correnteza a puxa pelos pés para a escuridão. Ela vira de lado, presa da turbulência de um rio subterrâneo. A força puxa sua máscara para o pescoço e a cega. Ela aspira água, depois aperta o nariz e cospe no regulador enquanto rola descontroladamente no turbilhão sufocante, lutando para respirar.

O portal se fecha atrás deles, bloqueando a água.

Ela para de rolar. Limpando e recolocando a máscara, ela fica olhando em volta, hipnotizada pelo novo ambiente.

Eles estão numa imensa caverna de estranha beleza sob a água. Luzes estroboscópicas surreais, de origem desconhecida, iluminam paredes de catedtal de calcário com tons inebriantes de azul, verde e amarelo. Formações fantásti­cas de estalactites pendem do teto submerso como gigantescos filetes de gelo, suas pontas descendo para se entrelaçar numa floresta petrificada de estalagmites cristalinas que brotam do chão arenoso da caverna.

Ela olha para Mick, empolgada, estarrecida, querendo poder fazer mil perguntas. Ele balança a cabeça e aponta seu manômetro, indicando que só lhe restam cinco minutos de ar. Dominique verifica o seu e fica chocada ao saber que está nos últimos 15 minutos.

A ansiedade toma conta de seu corpo. A sensação claustrofóbica de es­tar presa numa câmara subterrânea, com um teto de pedra sobre sua cabeça, destrói sua capacidade de raciocinar. Ela empurra Mick e nada de volta para o portal, tentando desesperadamente reabri-lo.

Mick a puxa de volta pela corda. Ele a segura pelos pulsos, depois aponta para o sul, onde surge a entrada de uma caverna tortuosa. Ele forma um triân­gulo com as duas mãos.

A pirâmide de Kukulcán. Dominique respira mais devagar.

Mick toma sua mão e começa a nadar. Juntos, eles atravessam uma série de salas submersas, sua presença parecendo ativar luzes estroboscópicas adicio­nais, como se os fachos estivessem ligados a um invisível detector de movimen­tos. Acima de suas cabeças, o teto abobadado está pontilhado de dentes afia­dos, as formações de calcário criando majestosas divisórias em arco e esculturas de pedra bizarras e irregulares.

Mick sente um aperto no peito ao passar de um ambiente de um azul profundo para outro de um azul-claro luminoso. Ele verifica seu tanque de ar e vira para Dominique, pondo a mão na garganta.

Ele está sem ar. Ela lhe passa o regulador extra, preso ao seu colete, depois verifica o suprimento de ar.

Oito minutos.

Oito minutos! Quatro minutos pra cada um. Isso é loucura! Por que eu entrei no cenote atrás dele? Eu devia ter ficado na picape — devia ter ficado em Miami. Vou morrer afogada, como o Iz.

O fundo some de repente e a caverna se abre num domínio subterrâneo ilimitado. As paredes e o teto da catedral de calcário brilham com um luminoso tom rosado, a caverna submersa do tamanho de uma quadra coberta de basquete.

Você não vai morrer afogada, e sim asfixiada. Deve ser melhor do que aquilo que o pobre Iz enfrentou. Você vai perder os sentidos, vai simplesmente apagar. Acredita mesmo no paraíso?

Mick a puxa, apontando agitadamente para a frente. Ela nada mais rápi­do, rezando para que ele tenha encontrado uma saída. E então ela vê.

Ah, não... Ah, meu Deus... Puta que pariu...

 

                               Bluemont, Virgínia

O helicóptero do presidente está 29 quilômetros a norte de Leesburg, Virgínia, quando a bomba de 12 quilotons explode.

O presidente e seu séquito não veem o clarão intenso, mil vezes mais bri­lhante do que um raio. Não sentem a onda monstruosa de calor radiante que corre pelo complexo subterrâneo do monte Weather, vaporizando a primeira-dama, seus filhos, e o resto dos habitantes e das estruturas dentro dele. Tampouco experimentam o abraço esmagador dos milhões de toneladas de granito, aço e concreto da montanha desabando como um castelo de cartas.

O que eles vêem é uma bola de fogo brilhante, laranja, que transforma a noite em dia. O que eles sentem é a onda de choque, quando a força da explosão passa por eles como um trovão, e o fogo consome a floresta da Virgínia como um tapete em chamas.

O piloto vira o helicóptero bruscamente e se afasta, enquanto o presi­dente Maller uiva de agonia, o vazio dilacerando seu coração ferido, a fúria tomando conta de sua mente, rompendo as bases de sua sanidade.

 

                       Chichén Itzá

35 metros abaixo da base da Pirâmide de Kukulcán

De olhos arregalados, suas veias latejando furiosamente, Dominique olha, in­crédula, para a prodigiosa estrutura acima de sua cabeça. Engastada no teto de calcário da caverna, saindo da rocha, está a quilha de uma monstruosa espaçonave alienígena de 200 metros.

Ela suga o ar lentamente, tentando não hiper ventilar, sua pele formigan­do por baixo do traje de mergulho. Isso não é real. Não pode ser...

A superfície metálica e dourada do lustroso casco, do tamanho de um encouraçado, brilha como um espelho imaculado.

Mick segura sua mão e sobe, puxando-a para dois volumes colossais montados nas laterais do que parece ser a cauda da nave. Cada estrutura tem o tamanho e a altura de um prédio de três andares. Nadando mais para perro, eles espiam o interior de um dos motores alienígenas, suas lanternas revelando uma colméia de orifícios chamuscados, parecendo foguetes, cada um deles com mais de 9 metros de diâmetro.

Mick a puxa para longe dos monstruosos motores e nada para a proa da nave camuflada na rocha.

Dominique puxa mais ar do regulador, alarmada por não conseguir res­pirar. Meu Deus, nosso ar acabou! Ela puxa o braço de Mick, segurando a gar­ganta, vendo a caverna girando fora de controle.

Mick vê o rosto de Dominique ficar rubro. Ele também sente o aperto em seu peito, seus pulmões doendo enquanto ela o agarra.

Fugindo de seus braços, ele cospe o regulador extra, pondo o seu de volra na boca. Depois se vira e nada com todas as forças, puxando-a pela corda e procurando alguma entrada no casco.

Dominique se agita, em pânico, sufocando dentro da máscara embaçada.

Os braços e as pernas de Mick parecem de chumbo. Ele arfa no regula­dor, incapaz de puxar mais ar, seus pulmões pegando fogo. Percebe o pânico de Dominique na outra ponta da corda, seu coração doendo, sua mente lutando para se concentrar.

Em seu delírio, ele vê: um facho vermelho, brilhando 50 metros à fren­te. Com vigor renovado, ele agita os membros, seus músculos queimando, movendo-se em câmera lenta.

Ele percebe um peso morto na outra ponta da corda — Dominique não se agita mais.

Não pare...

O mundo subterrâneo gira ao seu redor. Ele morde o regulador com força, até suas gengivas sangrarem, e suga o líquido quente. O ícone brilhante do Tridente de Paracas surge à sua frente.

Só mais umas dez braçadas...

Seus braços são de chumbo. Ele para de nadar. Os olhos negros rolam nas órbitas.

Michael Gabriel perde os sentidos.

Os corpos dos dois mergulhadores inconscientes flutuam em direção ao painel de irídio brilhante, de 3 metros de altura, ativando um antigo detector de movimentos.

Com um chiado hidráulico, o portão deslizante do casco se abre. Uma onda de água invade o compartimento pressurizado, sugando os dois seres humanos para dentro da nave alienígena.

 

                 Diário de Julius Gabriel

Que criatura patética é o homem. Nasce com a consciên­cia aguda de sua mortalidade — e, portanto, está con­denado a viver sua mísera existência com medo do desco­nhecido. Guiado pela ambição, muitas vezes desperdiça os momentos preciosos que possui. Negligenciando os outros, se entrega a empreitadas egoístas em busca de fama e fortuna, permitindo que o mal o seduza e o leve a acumular desgraças sobre aqueles que realmente ama. Sua vida, tão frágil, está sempre à beira de uma morte que ele não foi abençoado com a capacidade de compreender.

A morte é a grande equalizadora. Todos os nossos po­deres e todas as necessidades, todas as nossas esperanças e to­dos os desejos acabam morrendo conosco — e são sepultados na cova. Inconscientes, viajamos egoisticamente rumo ao sono eterno, dando importância a coisas que não são impor­tantes, somente para sermos lembrados, nos momentos mais inoportunos, do quão frágil nossa vida realmente é.

 

Como criaturas emocionais, oramos para um Deus cuja existência não temos prova, nossa incontrolável fé servindo apenas para sopitar o medo primordial da morte quando tentamos convencer nossos intelectos de que deve haver vida depois dela. Deus é misericordioso, Deus é justo, dizemos a nós mesmos, e então o impen­sável acontece: uma criança se afoga numa piscina, um motorista bêbado mata um ente querido, a doença ceifa um futuro consorte.

Para onde vai nossa fé, então? Quem pode orar para um Deus que rouba um anjo? Que plano divino poderia justificar um ato tão hediondo? Foi um Deus mi­sericordioso que decidiu golpear minha Maria na flor da idade? Foi um Deus justo que determinou que ela se retorcesse de dor, agonizando, até que Ele finalmente Se dignasse a cumprir a divina tarefa de Se apiedar de sua alma torturada?

E o marido dela? Que espécie de homem eu era, para me omitir e permitir que minha amada sofresse tanto?

Com o coração pesado, eu permitia que cada dia passasse, enquanto o câncer arrastava Maria para mais perto da cova. E então, uma noite, quando eu estava chorando ao seu lado, ela me olhou com seus olhos fundos, uma criatura miserável mais morta que viva, e implorou por misericórdia.

O que eu podia fazer? Deus a abandonara, negando-lhe alívio daquela tortu­ra incessante. Me curvei, meu corpo tremendo, e a beijei uma última vez, pedindo forças a um Deus cuja existência eu agora questionava e amaldiçoava. Apertando o travesseiro sobre o seu rosto, extingui seu último suspiro, sabendo muito bem que estava extinguindo também a chama da minha alma.

Cometido o ato, me virei, chocado ao ver meu filho, um cúmplice inconscien­te, me fitando com os olhos escuros e angelicais de sua mãe.

Que espécie de ato monstruoso eu tinha cometido? Que palavras corajosas eu poderia alinhavar para reconquistar a inocência perdida daquela criança? Despi­do de toda falsidade, eu estava ali, exposto, um pai fraco e iludido. Alguém que, impensadamente, acabava de condenar a psique do filho com um gesto que, poucos minutos antes, eu pensava ser humanitário e altruísta.

Impotente, vi meu filho sair desabaladamente da nossa casa e correr no meio da noite para extravasar sua raiva.

Se eu tivesse uma arma, teria estourado meus miolos ali mesmo. Em vez disso, caí de joelhos e solucei, xingando Deus, gritando o Seu nome em vão.

Em menos de um ano, a existência da minha família havia sido transforma­da numa tragédia grega. Será que Deus manipulou esses acontecimentos, ou Ele era também apenas um espectador, observando e esperando enquanto Seu anjo caído manipulava nossas vidas como um diabólico mestre de marionetes?

Talvez tivesse sido o próprio Lúcifer, ponderei em minha dor, pois quem, se­não ele, poderia ter vitimado minha esposa, manipulando habilmente a sequência de eventos que se seguiram? Eu acreditava mesmo no Diabo? Naquele momento, sim, ou, no mínimo, acreditava na presença do mal personificada numa entidade individual.

Algo tão intangível quanto o mal poderia ser uma entidade? Minha mente torturada ponderava a questão, me concedendo um momento de alívio da dor. Se Deus era uma entidade, então, por que não o Diabo? O bem poderia existir sem o mal? Deus poderia existir sem o Diabo? E quem teria gerado quem? Pois sempre foi o medo do mal que impeliu os motores da religião, não Deus.

O teólogo que há em mim prevaleceu. Medo e religião. Religião e medo. Os dois estão historicamente entrelaçados, são os catalisadores da maioria das atrocida­des cometidas pelo homem. O medo do mal alimenta a religião, a religião alimenta o ódio, o ódio alimenta o mal, e o mal alimenta o medo nas massas. É um ciclo diabólico, e nós fazemos o jogo do Diabo.

Olhando para os céus, meus pensamentos voltaram para a profecia maia, perguntando-me, em meu delírio e minha dor, se era a presença do mal que estava orquestrando a derrocada final da humanidade, nos empurrando para a oblitera­ção da nossa própria espécie.

E então outra ideia cruzou minha mente. Talvez Deus existisse, sim, mas ti­vesse decidido assumir um papel passivo na existência do homem. Talvez Ele tenha nos proporcionado os meios de determinar nosso destino, permitindo, no entanto, que o mal exercesse uma influência mais ativa em nossa vida para testar nossa de­terminação — verificando nossas aptidões num teste para a entrada em Seu além.

Maria fora tomada de mim, ceifada na flor da existência. Talvez houves­se uma razão para a insanidade daquele momento, talvez eu estivesse me apro­ximando da verdade... de que eu estava realmente no caminho da salvação da humanidade.

Amaldiçoando o Diabo, olhei para as estrelas, com lágrimas nos olhos, e jurei pela alma da minha amada que nem o céu nem o inferno iriam me impedir de desvendar a profecia maia.

 

Mais de dez anos se passaram desde que fiz esse juramento. Agora, nos bastidores, escrevendo esta última anotação enquanto espero para ser chamado à tribuna, sor­rio amargamente para a ideia de encarar meus céticos colegas.

Mas que alternativa eu tenho? Apesar dos meus esforços, peças do quebra-cabeça da profecia continuam faltando, e a salvação da nossa espécie está em jogo. Minha saúde frágil me obrigou a passar o bastão para o meu filho antes do que eu esperava, entregando-lhe integralmente o fardo de completar essa maratona.

Ouvi dizer que Pierre Borgia vai me apresentar à multidão. Sinto meu estô­mago trepidar com a antecipação de revê-lo. Talvez os anos tenham abrandado sua ira contra mim. Talvez ele se dê conta do que está em jogo.

Espero que sim, pois precisarei de seu apoio para convencer os cientistas reuni­dos no auditório a agir. Se me ouvirem com mente aberta, só os fatos podem bastar para persuadi-los. Caso contrário, temo que nossa espécie esteja fadada a perecer, tão certamente quanto os dinossauros pereceram antes de nós.

Uma anotação final foi depositada num cofre em Cambridge com a data específica de quando seu lacre poderá ser quebrado. Se sobrevivermos ao holocausto que virá, um desafio final está à espera — para dois pequeninos que ainda não nasceram.

Quando os organizadores me chamam para subir ao palco, olho para Michael. Ele acena com aprovação, seus olhos de ébano brilhando para mim, irra­diando a inteligência de sua mãe. Privado da inocência há tantos anos, ele se tor­nou introvertido e distante, e temo que nutra afaria oculta que meu ato hediondo deve ter gerado. Ainda assim, sinto um profundo senso de propósito dentro de meu filho. Rezo para que esse propósito lhe dê forças em sua jornada pelo caminho do destino, rumo à sua própria salvação — e a de todos nós.

— Trecho Final do Diário do Professor Julius Gabriel, 24 de agosto de 2001

 

                           14 DE DEZEMBRO DE 2012

COMANDO NORTE-AMERICANO DE DEFESA AEROESPACIAL (NORAD), COLORADO

O coração do major Joseph Unsinn pula de seu peito quando os alarmes de míssil do NORAD tocam. Dezenas de técnicos vêem, horrorizados, seus grandes monitores de computador enchendo-se de uma avalan­che de dados.

 

ALERTA RÁPIDO! ALERTA RÁPIDO!

DETECTADOS LANÇAMENTOS MÚLTIPL05 DE MÍSSEIS BALÍSTICOS

 

LOCAL DO LANÇAMENTO: BÃKHTARÃN-IRÃ

ALVO: ISRAEL

 

TEMPO ATÉ O IMPACTO:

ALVO:                                                                     MÍSSEIS                                         MIN/SEG        

Megiddo                     2                                 4:12

Tel Aviv                                    3                                                           4:35

Haifa                                                                               4                                                      5:38

Colinas de Golã                       1                                   5:44

 

Os dados são instantaneamente transmitidos do centro de processamento em alta velocidade do NORAD diretamente para os comandantes americanos de campo em Israel e no Golfo Pérsico. Momentos depois, o major Unsinn está no video-comunicador, falan­do com o secretário de Defesa.

 

                           Sala de Comando de Raven Rock, Maryland

O complexo ultra-secreto, conhecido apenas como Raven Rock, funciona como um Pentágono subterrâneo. Dentro desse centro nervoso fica a "sala de comando", uma câmara circular contendo um labirinto de sistemas ultramo­dernos de comunicação e gerenciamento de dados. Dali, o presidente e seus consultores podem transmitir diretrizes para o Centro de Comando Estraté­gico dos Estados Unidos (STRATCOM), outro centro nervoso subterrâneo em contato direto com todos os satélites, aeronaves, submarinos e mísseis es­tratégicos em todo o mundo. Como o NORAD, os bunkers de Raven Rock e do STRATCOM foram isolados para proteger seus sensíveis equipamentos high-tech dos pulsos eletromagnéticos gerados durante um ataque nuclear.

O presidente Maller está sentado num sofá de couro em sua sala par­ticular, seus membros tremendo, sua mente lutando para reprimir sua dor pessoal, ainda que por poucos minutos. Fora da sala, o secretário de Defesa, Dick Przystas, e o general Fecondo confabulam com Pierre Borgia.

O presidente está em choque — sussurra Przystas. — Pierre, como membro mais graduado do gabinete, o protocolo exige que você assuma o cargo.

O NORAD detectou uma esquadrilha de caças camuflados russos rumando para o Alasca. Nossos Raptors estão indo para lá interceptá-los. Você está preparado para fornecer os códigos de lançamento...?

Não! — Maller aparece na porta da sala. — Ainda estou no comando, sr. Przystas. Ative o Escudo Global. Secretário Borgia, quero falar com Viktor Grozny e com o general Xiliang agora. Não quero saber se você tem que ir até Moscou pra fazer Grozny atender a porra do telefone. Dê um jeito.

—      Sim, senhor.

 

                                   Deserto do Sinai, Israel

O cargueiro 747-400F voa traçando um "8", 12.800 metros acima do deserto do Sinai. Apesar das aparências, esse não é um jato comum. Dentro do seu na­riz arredondado fica o Laser Aéreo YAL-1 da Força Aérea, uma arma projetada para interceptar mísseis balísticos terra-ar, de cruzeiro e táticos.

O major David Adashek olha para a sua estação enquanto o sistema di­retor de feixe e Rastreador e Localizador Infravermelho da Lockheed Martin varre os céus a nordeste.

Dez alvos aparecem na sua tela.

—      Aí está, pessoal. Dez mísseis balísticos com ogivas nucleares entrando no alcance. Trezentos quilômetros e se aproximando rapidamente.

O feixe iluminador alcançou os alvos, senhor. Estão na mira.

Ative a serpentina.

Com um clarão brilhante, o laser TRW COIL de muitos megawatts do Boeing é ativado, acendendo um raio laranja que sai de seu nariz. O feixe corta o céu noturno na velocidade da luz, transformando o primeiro míssil iraniano numa bola de fogo em queda livre.

Nos trinta segundos seguintes, todos os outros nove mísseis serão destruídos.

 

                                     Espaço

O esguio avião espacial preto e branco entra suavemente em sua nova órbita, pai­rando bem acima da Terra em silêncio e solidão. Diferente de seu primo distante da NASA o VentureStar, da Lockheed Martin, um veículo espacial reutilizável construído e lançado com grande estardalhaço —, este artefato, conhecido apenas como VME (Veículo de Manobra Espacial) por seus projetistas norte-americanos da Boeing, jamais viu a luz do dia. Concebido nos últimos dias da Iniciativa Estra­tégica de Defesa do presidente Reagan, o VME foi patrocinado em segredo pelo Escritório Militar do Avião Espacial, subordinado ao Laboratório de Pesquisas da Força Aérea, e, ironicamente, lançado sobre um foguete Protón comprado dos russos. Capaz de permanecer em serviço por até um ano, o veículo totalmente automatizado e não tripulado não leva nenhuma carga comercial, tampouco ja­mais serviu à Estação Espacial Internacional ou a interesses privados. O VME foi projerado com uma só finalidade: caçar e destruir satélites inimigos.

Uma plataforma, escondida dentro da estrutura de 7 metros e meio do VME, está montada numa armação que sustenta o laser de fluoreto de hidro­gênio de alta potência TRW Alpha e o telescópio Hughes de quatro metros de projeção de feixe.

O avião espacial se aproxima de sua primeira vítima, um satélite russo, um dos 18 posicionados em órbita geoestacionária, 35.900 quilômetros acimada América do Norte. O VME aciona seus foguetes de impulso, estabilizando sua órbita. Acompanhando o dispositivo russo, o VME abre as portas do seu nariz como uma concha, revelando sua carga secreta.

O sistema de mira da Lockheed Martin se posiciona no alvo.

Carregando-se completamente, o laser dispara, projetando seu raio in­visível sobre a superfície do satélite russo de 5 metros e meio. O fino invólu­cro protetor externo começa a se aquecer e o casco metálico ganha um brilho laranja-avermelhado. Sistemas eletrônicos sensíveis dentro do satélite entram em curto. Componentes dos sensores chiam e derretem, deixando placas de circuitos chamuscadas e carbonizadas.

A energia do laser atinge as baterias do satélite...

Com uma forte explosão, o satélite de reconhecimento se despedaça, transformando seus restos queimados em pedaços brilhantes de lixo espacial.

Capturado pelo campo gravitacional da Terra, um grande pedaço de me­tal russo se transforma numa bola de fogo ao reentrar na atmosfera do planeta.

Um garoto que mora na Groenlândia olha para o céu setentrional notur­no, empolgado com o inesperado espetáculo. Fechando os olhos, ele faz um pedido para a estrela cadente.

O nariz do VME se fecha, o avião espacial ativa os foguetes, e o assassino de satélites ruma para uma órbita mais alta, no encalço de seu próximo alvo.

 

 

 

 

 

             Laboratório de Teste de Sistemas de Laser de Alta Potência

             White Sands, Novo México

Para o transeunte desinformado, a cúpula de concreto e aço situada dentro do complexo de segurança máxima à beira do deserto do sul do Novo México não parece mais do que mais um posto de observação estelar. Mas dentro do domo retrátil não há um telescópio, e sim uma torre naval giratória de 5,1 polegadas, montada sobre uma plataforma de alta velocidade capaz de virar 360 graus.

E o MIRACL,[4] o laser mais potente do mundo. Desenvolvido pela TRW e pela RAFAEL, de Israel, o laser químico de fluoreto de deutério é capaz de emitir repetidos fachos de alta potência para o espaço na velocidade da luz.

Usando os mesmos princípios que operam um motor de foguete, o laser usa trifluoreto de nitrogênio como oxidante para queimar o combustível de etileno, que, por sua vez, libera átomos excitados de flúor. Quando deutério e hélio são injetados na descarga, a energia óptica é produzida, criando um feixe de laser de 3 centímetros por 21. O componente mais importante do assassi­no de satélites, o orientador de feixe fabricado pela Hughes, rastreia o alvo em alta velocidade, emitindo o potente laser através da atmosfera para o espaço.

A coronel Barbara Esmedina, diretora do projeto White Sands, observa im­pacientemente seus técnicos terminando de digitar as coordenadas dos sete satélites GPS russos e dos quatro norte-coreanos que pairam em algum lugar sobre a América do Norte. Esmedina, uma ex-administradora que trabalhou no protótipo X-33 do VentureStar da NASA, ganhou reputação de proponente irascível, direta e muitas vezes bizarramente franca dos lasers táticos de alta potência. Duas vezes casada e duas vezes divorciada, aposentou faz tempo sua vida sentimental para buscar financiamento para seu projeto preferido a construção de uma dúzia de bases MIRACL como meio tático de defesa contra ataques com ICBMs.

Durante oito anos, Barbara Esmedina travou uma guerra pessoal com o Departamento de Defesa, desde o dia em que o governo de Kim Jong II completou o desenvolvimento do Taepo Dong-2, um míssil de dois estágios de longo alcance, capaz de atingir a costa oeste da parte continental dos Estados Unidos. Apesar de muito respeitada por seus superiores, ela já foi criticada por ser esperta demais para seu próprio bem e bonita demais para ter um temperamento tão explosivo essa última e incontrolável característica prejudicou muitas vezes seus esforços para obter financiamento. Apesar de um intenso lobby cinco anos antes, o Departamento de Defesa preferiu financiar o novo CVN-78 da Marinha, um porta-aviões camuflado de 6 bilhões de dólares.

Barbara balança a cabeça ao lembrar, revoltada. Era tudo o que a gente precisava, mais um elefante branco de 6 bilhões de dólares.

Estamos prontos aqui, coronel.

Já era tempo. Abram a cúpula.

Um gemido hidráulico vem do alto, e a imensa cúpula de concreto se retrai, revelando o céu estrelado do deserto.

Cúpula retraída, coronel. Laser posicionado. Temos visão perfeira.

—      Disparar laser.

Em menos que um piscar de olhos, um brilhante facho vermelho vivo se acende, traçando uma linha nos céus. A coronel Esmedina e uma dúzia de técnicos se concentram num monitor de computador que indica a posição do satélite inimigo. A imagem pisca, depois desaparece abruptamente.

—      Primeiro alvo destruído, coronel. Mirando agora no segundo alvo. Esmedina reprime um sorrisinho quando a torre do laser muda de posição.

—      Isso, camarada Grozny, é o que chamamos de mandar seus brinque­dinhos pro espaço.

 

                         Sob a Pirâmide de Kukulcán, Chichén Itzá

Mick está flutuando.

Olhando as duas figuras inconscientes de bruços sobre a estranha grade, ele vê máscaras congeladas de dor, os rostos assustados azulados por baixo dos visores.

Reconhecendo os corpos, ele não sente remorso nem sofrimento, somen­te um abençoado conforto, misturado com uma estranha sensação de curiosidade. Virando-se, vê o túnel aberto à sua frente, a luz brilhante atraindo-o para dentro. Sem hesitação, ele entra, pairando como um pássaro sem asas.

Ele sente a presença do ser e registra uma onda instantânea de amor e ternura, algo que não experimentava desde a infância.

Mamãe?

A luz o abraça, envolvendo-o com sua energia.

Ainda não chegou a sua hora, Michael...

O estrondo de um trovão enche seus ouvidos quando a luz se dissipa.

 

A golfada de bílis expulsa o regulador da boca de Mick, causando-lhe con­vulsões. Ele inspira ar uma vez, depois duas, e então arranca a máscara do rosto e vira de costas, seu peito arfando enquanto ele olha para o bizarro teto abobadado.

Mãe?

—      Dominique...

Pondo-se de joelhos, ele rasteja até a garota, tirando rapidamente a más­cara de mergulho dela, o regulador já fora de sua boca. Sentindo que o coração está batendo, ele puxa a cabeça dela para trás e abre sua boca, expirando dentro dela e enchendo-lhe os pulmões.

Vamos...

A água enche a boca de Dominique. Colocando-se sobre ela, ele pressio­na seu abdômen com as duas mãos, forçando o líquido a sair. Ele esvazia a boca de Dominique e começa de novo. Outra dúzia de respirações.

O rosto de Dominique fica rosado. Ela tosse, expelindo mais água, e abre os olhos.

 

                       Estreito de Bering, Perto da Costa do Alasca

1h43 (HORA DO ALASCA)

Os sete Raptors F-22 da Lockheed Martin, os caças mais avançados do mundo, riscam o escuro céu do Alasca em velocidade supersônica. Os aviões camuflados e quase sem cauda, mais ou menos do tamanho de um F-15, não só são invisíveis ao radar, mas conseguem voar mais alto e mais rápido do que qualquer jato.

O major Daniel Barbier flexiona os músculos para se manter acordado dentro do cockpit escuro. Oito longas horas e cinco reabastecimentos no ar se passaram desde que sua esquadrilha decolou da Base Aérea Dobbins, em Marietta, Geórgia, e o líder da formação sente a fadiga nos ossos. O piloto canadense tira do bolso da jaqueta a foto de sua esposa, filha e os gêmeos de 4 anos, e dá um beijo de boa sorte em cada um, depois volta a se concentrar no painel colorido à sua frente.

O display tático do F-22 é um sistema de gerenciamento sensorial proje­tado para fornecer ao piloto o máximo de informações sem se tornar confuso. Cores e símbolos específicos distinguem os três sensores principais do caça, permitindo um reconhecimento rápido. O radar de combate APG-77 do caça, da Northrop Grumman/Raytheon, é tão poderoso que permite que o piloto mire, identifique e destrua um alvo muito antes que o inimigo perceba a sua presença. Além do radar, o F-22 é equipado com dois outros sensores, ambos passivos, sem emissões, o que ajuda a preservar a camuflagem da aeronave.

O primeiro deles é o sistema de combate eletrônico ALR-94 da Lock-heed-Sanders, um sensor que rastreia o campo de batalha, procurando sinais inimigos. Quando um inimigo é detectado, o sistema imediatamente determi­na a posição e o alcance do alvo, depois programa os mísseis AMRAAM do Raptor para interceptá-lo. Um segundo sistema passivo, chamado de datalink, coleta informações de AWACS,[5] fornecendo ao piloto do F-22 excelentes da­dos para navegação e identificação de alvos.

Apesar de toda a tecnologia da aeronave, o estômago de Barbier está apertado de medo. Em algum lugar à sua frente está uma esquadrilha de caças russos camuflados, carregando, acredita-se, armas nucleares. Enquanto a estru­tura do Raptor minimiza a imagem no radar pelo seu design angular, seu equivalente russo produz uma nuvem de plasma que envolve o avião, diminuindo os ecos de radar. Localizar o inimigo não vai ser fácil.

Lenhador para Branca de Neve, responda Branca de Neve. Barbier ajusta o fone para falar com a Base Aérea de Elmendorf.

Prossiga, Lenhador.

A Bruxa Má (NORAD) detectou os anões. Enviando coordenadas agora.

Positivo. Barbier vê seu display tático central se iluminar como uma árvore de Natal. Uma rede de dados segura dentro da esquadrilha fornece a cada um dos sete pilotos dos Raptors informações idênticas, enquanto o sis­tema analisa e coordena uma lista de alvos.

Sete círculos azuis marcam os F-22 em formação. Nove triângulos verme­lhos esrão se aproximando do noroeste, voando em formação, perto da água.

Barbier toca uma barra em seu manche. Cada inimigo recebe instanta­neamente um círculo branco com um número, os símbolos aparecendo nos displays táticos e de ataque de cada Raptot.

Na barriga do F-22 de Barbier há dois compartimentos venttais de armas e dois laterais. Os compartimentos ventrais contêm quatro mísseis avançados ar-ar de médio alcance (AMRAAM) FIAVE DASH II, armas com motores de jato êmbolo de velocidade Mach-6 capazes de perfurar 2 metros de concreto a 100 milhas náuticas de distância. Cada compartimento lateral contém um Sidewinder GM-Hughes AIM-9X, um míssil com sensor de calor capaz de atingir alvos a 90 graus da alça de mira do caça.

A palavra DISPARAR aparece simultaneamente na tela de ataque e no display de alerta montado no capacete de Barbier. O piloto acaricia o botão do manche, vendo em seu display tático o F-22 ir do círculo externo para o círculo central de ataque. A essa distância, as armas do Raptor podem atingir o inimigo enquanto ele está longe demais para contra-atacar.

—      Tenham um bom mergulho, filhos da puta murmura Barbier.

Com 40g de pressão, os lançadores pneumáticos-hidráulicos sob cada um dos F-22 ejetam uma salva de mísseis dos compartimentos de armas. Os mísseis passam ao voo autônomo em segundos, aproximando-se de seus alvos à velocidade hipersônica de 2 mil metros por segundo.

Os F-22 viram abruptamente, descendo para uma altitude menor.

 

O coração do líder da esquadrilha russa pula para a garganra quando o sistema de aviso de mísseis se acende, o alarme de bordo ecoando em seus ouvidos. A transpiração brota sob seu macacão quando ele lança apressadamente seus despistadores e sai da formação, incapaz de entender de onde partiu o ataque. Ele olha para o radar, depois se encolhe, apavorado, ao ver o jato ao seu lado se transformando numa bola de fogo.

O alerta se torna um toque fúnebre e ensurdecedor. Olhando para o ra­dar, completamente aterrorizado, o piloto luta para assimilar a ideia de que o caçador, de alguma forma, se tomou a caça.

Um segundo depois, o míssil AMRAAM viola sua fuselagem, vaporizan­do o piloto para a eternidade.

 

                         Sob a Pirâmide de Kukulcán, Chichén Itzá

Descalços, Mick e Dominique andam de mãos dadas pela nave alienígena, as partes de cima dos trajes de neoprene abertas e pendendo de suas cinturas.

O corredor ou túnel é aquecido, embora bem escuro, a única luz vindo de um brilho azul algum lugar à frente. O chão, as paredes e o teto curvo de 15 metros de altura da passagem são nus e lisos, formados por um polímero preto translúcido e reluzente.

Mick para a fim de apertar o rosto contra a parede vítrea, tentando en­xergar alguma coisa.

Acho que tem algo atrás destas paredes, mas o vidro é tão escuro que não consigo ver nada. — Ele vira para Dominique, que lhe dirige um olhar apavorado. — Você está bem?

Bem? — Ela abre um sorriso nervoso, seu lábio inferior tremendo. — Não, acho que não me sinto bem desde que te conheci. — Ela sorri, depois começa a chorar. — Acho... acho que a boa notícia é que você não está louco. Isso significa que vamos todos morrer?

Ele toma a sua mão.

Não tenha medo. Esta nave pertence a Kukulcán, ou seja lá como o humanóide se chamava.

Como vamos sair daqui?

Esta nave deve estar enterrada bem debaixo da pirâmide de Kukul­cán. Provavelmente tem algum tipo de passagem secreta que leva pro templo. Vamos achar uma saída, mas antes precisamos descobrir como impedir que a profecia do fim do mundo se confirme.

Ele a leva até o fim do corredor, que se abre numa enorme câmara em formato de cebola. Paredes arredondadas irradiam uma fraca luz elétrica azul. Bem no centro da abóbada do teto há uma passagem vertical de um metro e meio de diâmetro, como uma chaminé, que desaparece na escuridão acima de suas cabeças.

Posicionado diretamente sob a abertura há um enorme objeto em forma de banheira.

E um paralelepípedo polido de granito marrom — com 2 metros e meio de comprimento por um de largura e um de altura. Quando eles chegam perto, um fraco brilho escarlate surge na lateral da banheira de granito, ficando mais forte à medida que eles se aproximam.

Mick arregala os olhos ao ver as fileiras de hieróglifos vermelhos luminosos.

E uma mensagem, escrita em maia quiché antigo.

Você consegue traduzir?

—      Acho que sim. — Mick sente suas entranhas tremendo com a adre­nalina. — Esta primeira parte identifica o autor, e o nome dele se traduz pelo equivalente maia da palavra guardião.

—      Leia — murmura ela.

—      Eu sou Guardião, o último dos Nefilins. Não deste mundo, mas so­mos um. Os ancestrais do homem eram... nossos filhos. — Ele para de ler.

O que foi? Continue...

Nós... vossa semente.

Não entendo. Quem eram os Nefilins?

A Bíblia os chama de gigantes. O Livro do Gênesis menciona bre­vemente os Nefilins como anjos caídos, homens de inteligência superior. Os Manuscritos do Mar Morto insinuam que os Nefilins podem ter procriado com mulheres humanas antes da época do Grande Dilúvio, um período que equivale ao derretimento da última era glacial.

Espere, está dizendo que esses alienígenas cruzaram com humanos? Essa é uma idéia nojenta.

Não estou dizendo nada, mas faz bastante sentido, se você pensar bem. Já ouviu falar do elo perdido da evolução, certo? Talvez tenha sido a sín­tese de um DNA humanóide avançado que tenha feito o Homo sapiens pular degraus na escada da evolução.

Dominique balança a cabeça, estupefata.

—      Não consigo assimilar tudo isso. Continue lendo.

Mick volta a se concentrar na mensagem.

—      Os líderes Nefilins levaram vossa espécie às sociedades, guiando os traba­lhos de vossa salvação, abrindo vossas mentes para que pudésseis ver. Dois mun­dos, uma espécie, unida através do espaço e do tempo por um inimigo comum. Um inimigo que devora as almas de nossos ancestrais. Um inimigo cuja presença logo eliminará vossa espécie deste mundo.

Espere aí. Que inimigo? Aquela coisa no Golfo? O que ele quer dizer com devorar nossas almas? Está dizendo que vamos todos morrer?

Me deixe terminar, falta uma passagem. Mick enxuga as gotas de suor dos olhos e volta a se concentrar no texto incandescente da cor de sangue.

Eu sou Kukulcán, mestre do Homem. Sou Guardião, o último dos Nefilins. Perto da morte, minha alma está preparada para a jornada rumo ao mundo espiritual. A mensagem foi transcrita, todas as coisas prontas para a chegada de Um Hunahpu. Dois mundos, um povo, um destino. Somente Um Hunahpu pode selar o portal cósmico antes que o inimigo chegue. Somente Um Hunahpu pode fazer a jornada para Xibalba e salvar as almas de nossos ancestrais.

Mick para de ler.

—      E então, Mick, o que tudo isso significa? Pensei que esse Um Hu­nahpu fosse o cara do mito da criação que teve a cabeça cortada. Como é que ele pode nos ajudar? E o que o Guardião quer dizer com o portal cósmico que precisa ser selado? Mick? Ei, você está bem? Está pálido.

Ele se senta no chão, encostando-se na banheira de granito.

Qual o problema? O que foi?

Só me dê um segundo.

Ela se senta ao lado dele e lhe massageia o pescoço.

—      Desculpe. Você está bem?

Ele faz que sim, respirando fundo lentamente.

Esse é o fim da mensagem?

Ele repete o gesto da cabeça.

Qual o problema? Fale...

De acordo com o Popol Vuh, Um Hunahpu morreu há muito tempo.

E o que vamos fazer?

Não sei. Acho que estamos encrencados.

 

                 Comando Norte-Americano de Defesa Aeroespacial

                 NORAD, Colorado

23h01

O comandante em chefe do NORAD, general Andre Moreau, passa lentamente pelas fileiras de estações de radar ultramodernas, painéis de comunicação e mo­nitores de vídeo. Nenhum dos controladores levanta os olhos quando ele passa, cada homem e mulher completamente concentrados em sua estação, com os nervos à flor da pele e carregados por uma mistura de cafeína com adrenalina.

Moreau sente seu estômago se apertar ao ver o monitor piscan­do DEFCON-1. A Condição de Prontidão de Defesa é uma postura mili­tar que varia da vigilância rotineira em tempos de paz da DEFCON-5 até a DEFCON-1, condição que equivale a um ataque nuclear com represálias.

Moreau fecha os olhos. Em seus 32 anos servindo à Força Aérea e ao NORAD, o general já viveu uma boa dose de emoções. Ele se lembra daque­les apavorantes seis minutos em novembro de 1979, quando um estado de DEFCON-1 foi iniciado no seu turno. Sem o conhecimento do NORAD, um alarme falso havia sido gerado por uma fita de treinamento de computado! Convencendo seus operadores de que os soviéticos haviam lançado um grande número de ICBMs contra os Estados Unidos. Nos momentos tensos que se seguiram, os preparativos de emergência para um ataque nuclear retaliatório foram iniciados, e os aviões da Força Aérea já estavam no ar antes que o radar de alerta antecipado PAVE PAWS do NORAD detectasse o erro humano.

O general volta a abrir os olhos. Embora mais uma dúzia de apertos te­nham acontecido nos anos seguintes, nenhum causou tanta ansiedade quanto aquele de 1979.

Nenhum até agora.

O ALERTA RÁPIDO interrompe os pensamentos do general. Por um momento surreal, ele se sente caindo de um penhasco, quando todos os moni­tores de vídeo da montanha Cheyenne piscam com a horripilante mensagem.

ALERTA RÁPIDO! ALERTA RÁPIDO!

DETECTADOS LANÇAMENTOS MÚLTIPLOS DE MÍSSEIS BALÍSTICOS

ALERTA RÁPIDO! ALERTA RÁPIDO!

DETECTADOS LANÇAMENTOS MÚLTIPLOS DE MÍSSEIS BALÍSTICOS

 

Meu Deus...

—      Quero um relatório dos sistemas!

Uma dúzia de técnicos com um telefone em cada ouvido ligam freneti­camente para bases em todo o mundo, enquanto a voz feminina computado­rizada continua anunciando:

—      ALERTA RÁPIDO.

O general espera impacientemente enquanto um circuito operacional de voz ligando os sete centros funcionantes do NORAD é estabelecido.

—      General, relatório dos sistemas válido!

—      General, os satélites do Programa de Apoio à Defesa identificaram e confirmaram quatro leques de ataque. Na tela agora, senhor.

 

ALERTA DE ATAQUE COM MÍSSEIS

 

Mísseis Balísticos Intercontinentais:                                2.754

Mísseis Balísticos Lançadas por Submarinas:                   86

Quatro Leques de Ataque Identificadas:                        

Alvos: Alasca                                                                                          [17]

Havaí                                                                                                           [23]

Estadas Unidos Continentais                         [2.800]

 

TRAJETÓRIA DO ÁRTICO

17 ICBMs

TEMPO ATÉ O PRIMEIRO IMPACTO:                             18 min O8 seg

                                                                                             [Base Aérea de Elmendorf]

 

TRAJETÓRIA DO PACÍFICO

23 ICBMs

TEMPO ATÉ O PRIMEIRO IMPACTO:                               28 min 47 seg

                                                                                                       [Pearl Harbor]

 

TRAJETÓRIA DO NOROESTE DO PACÍFICO

1.167 ICBMs. 36 MÍSSEIS LANÇADOS POR SUBMARINOS

TEMPO ATÉ O PRIMEIRO IMPACTO:                               29 min 13 seg

                                                                                                             [Seattle]

 

TRAJETÓRIA DO ATLÂNTICO

1.547 ICBMs. 50 MÍSSEIS LANÇADOS POR SUBMARINOS

TEMPO ATÉ O PRIMEIRO IMPACTO:                                   20 min 17 seg

                                                                                                       [Washington OC]

 

O general fita o monitor por um longo momento, depois pega a linha direta para o Comando Estratégico dos Estados Unidos e Raven Rock.

 

             Centro Subterrâneo de Comando de Raven Rock

             Maryland

2h04

O presidente Mark Maller, de mangas arregaçadas, sua profusamente, apesar do forte ar-condicionado. Uma parede de sua sala à prova de som é recoberta por uma série de videocomunicadores que ligam o Centro de Comando di­retamente com o STRATCOM. Maller desvia o olhar da imagem do general Doroshow enquanto termina de recitar os códigos de lançamentos nucleares para o comandante, passando a tela para o secretário de Defesa.

O presidente sai de trás da mesa e desaba sobre o sofá de couro, olhando para o monitor acima de sua cabeça, impotente, enquanto o mapa computa­dorizado marca os históricos minutos finais dos Estados Unidos da América.

Isso não está acontecendo. Não pode estar acontecendo. Meu Deus, por favor, me faça acordar na cama, ao lado da minha mulher...

Maller pressiona o botão do intercomunicador pela nona vez nos últimos seis minutos.

Borgia?

Senhor, ainda estou tentando. Os assessores do Grozny juram que passaram a ligação, mas o presidente se recusa a falar com o senhor.

Continue tentando.

Um Dick Przystas de rosto cinzento desvia o olhar do monitor.

Bem, senhor, nossos pássaros estão no ar. Talvez isso traga o Grozny pro telefone.

Quanto tempo?

Nossos mísseis balísticos lançados de submarinos atingirão Moscou e Beijing dois minutos depois dos mísseis da coalizão.

Você quer dizer, dois minutos depois que todas as principais cidades das costas leste e oeste dos Estados Unidos forem varridas do mapa. — Maller se inclina para a frente, seu tronco tremendo. —Todos os nossos preparativos, todos os nossos tratados, toda a nossa tecnologia... O que aconteceu com isso tudo, cacete? Onde foi que erramos?

Mark, nós não apertamos o botão, foram eles.

O Chaney tinha razão, isso é loucura! — Maller fica de pé, sua úlcera pegando fogo. — Pura que pariu, Borgia, onde está o Grozny?

O general Joseph Fecondo se junta a eles, suas feições morenas agora com um tom esverdeado de náusea.

—      Os comandantes em chefe informam que todos os mísseis estão no ar. Vou continuar no centro de comando, presidente. Meu menino mais velho está baseado em Elmendorf. Eles... eles disseram que vão trazê-lo pro vídeo-comunicador.

Uma funcionária passa por Fecondo e entrega um fax ao presidente.

—      Senhor, os ingleses e os franceses concordaram em não lançar nenhum míssil.

Dick Przystas arregala os olhos.

—      Os franceses! Talvez sejam mais ambiciosos do que pensávamos. De­senvolvem a fusão pura em segredo, detonam os dispositivos na Rússia e na China, e assumem o controle do que resta do mundo depois que as três potên­cias se aniquilam.

Borgia olha para Maller.

—      É possível.

Filhos da puta! Maller chuta a mesa.

Outro funcionário entra.

Presidente, o vice está no VC-4. Diz que é urgente.

Maller liga o monitor de vídeo.

Fale rápido, Ennis.

Presidente, temos como provar que as três detonações de fusão parti­ram da nave alienígena.

Cristo santo, Ennis, não tenho tempo pra...

O rosto do capitão Loos aparece no comunicador.

—      Presidente, é verdade. Estamos recebendo imagens captadas há pouco por um dos nossos Predators.

A tela mostra então a imagem de um vórtice esmeralda rodopiante. To­dos os funcionários do centro de comando param para ver os três objetos escu­ros saindo do funil do redemoinho.

—      Meu Deus do céu murmura Maller, surpreso. É verdade. Borgia grita de seu painel de comunicação.

—      Senhor, VC-8, 9 e 10. Estou com o Grozny, o general Xiliang e o secretário-geral da ONU na linha!

O presidente Maller olha para o seu secretário de Defesa.

—      Eles nunca vão acreditar. Nem eu acredito, meu Deus.

—      Então faça com que acreditem. Dois bilhões de pessoas vão morrer em menos de 17 minutos, e você e aqueles dois idiotas são as únicas pessoas no mundo que podem impedir.

 

                         Sob a Pirâmide de Kukulcán, Chichén Itzá

Mick examina os lados da enorme banheira de graniro, escura agora, a não ser por uma única fileira de pontos e linhas escarlate.

O que é isso? pergunta Dominique.

Números. Números maias, de zero a dez.

—      Talvez seja algum tipo de fechadura com segredo. Tem algum código numérico entalhado nas ruínas?

Os olhos de Mick brilham.

—      Melhor que isso, tem um código numérico embutido nos projetos da Grande Pirâmide, de Angkor Wat e da cidade de Teotihuacán. O código da precessão: 4320.

Mick toca o símbolo de quatro pontos.

O número 4 maia muda de um vermelho incandescente para um pro­fundo azul elétrico.

Em seguida, ele toca os números maias 3 e 2, depois o símbolo em forma de olho que representa o 0. Cada ícone muda para um azul radiante.

E então o interior da banheira se acende com um luminoso brilho azula­do, e um objeto aparece dentro dos confins da banheira.

A luz diminui, permitindo que eles olhem dentro do recipiente aberto.

Dominique sufoca um grito.

Coberto por uma túnica branca esfarrapada, um humanóide enorme devolve-lhes o olhar; um velho com os traços faciais de um centenário. A pele exposta é branca como a de um fantasma, o longo cabelo e a barba, brancos, brilhantes como seda. A cabeça, perfeitamente preservada, é alongada, e o cor­po mede mais de 2 metros de altura. Os olhos abertos, paralisados pela morte, emanam um irreal olhar, azul como o oceano.

Diante de seus olhos, o humanóide começa a se desintegrar. A pele pálida fica marrom, depois cinza, depois se reduz a um pó fino como talco. Órgãos vitais desidratados se desmancham dentro de um forte esqueleto. Os ossos expostos enegrecem e se decompõem, todo o esqueleto vaporizando-se numa nuvem de cinzas.

Mick olha para o pano branco recoberto de cinzas, tudo o que resta den­tro da banheira de granito.

Meu Deus, que coisa esquisita — murmura Dominique. — Esse era o Um Hunahpu?

Não, eu... acho que era Kukulcán, o Guardião. — Mick se curva para a frente, examinando o interior da caixa aberta de granito.

O crânio dele era enorme.

Alongado. — Mick entra na banheira.

Mick, você está maluco? O que pensa que está fazendo?

Tudo bem...

Tudo bem nada. E se o brilho reaparecer?

Eu espero que reapareça.

Cacete, Mick, não faça isso, estou com medo... — Ela o pega pelo braço, tentando tirá-lo da banheira.

Dom, pare. — Ele tira a mão dela de seu pulso e a beija. — Eu vou ficar bem...

—      Você não sabe disso...

—      Dom, Um Hunahpu está morto. Se o Guardião nos deixou algum meio de nos salvar, preciso encontrá-lo.

—      Tudo bem, então vamos procurar na nave. Ser bombardeado por ra­diação nesse caixão não vai resolver nada.

Não é radiação. Sei que parece esquisito, mas acho que é um portal.

Um portal? Um portal para o quê?

Não sei, mas preciso descobrir. Eu te amo...

Mick, sai agora de dentro dessa merda!

Ele se deita. Quando sua cabeça toca no fundo, uma luz azul de neon parte de dentro, envolvendo-o em energia. Antes que Dominique possa protes­tar, uma força magnética invisível a atira para trás, para longe da tumba.

Ela bate as costas com força. Pondo-se de pé, olha dentro da banheira de granito, protegendo os olhos do brilho incandescente.

O corpo de Mick desapareceu dentro da luz.

 

               Centro Subterrâneo de Comando de Raven Rock, Maryland

2h19

O presidente Maller e seus principais assessores militares, de punhos cerrados, olham para a imagem de Viktor Grozny. O pálido presidente russo usa um suéter preto, com uma grande cruz vitoriana no pescoço.

Na tela à esquerda está o general Xiliang, mais velho, parecendo bastante pálido. O secretário-geral da ONU está à direita.

—      General, presidente Grozny, por favor, me ouçam — implora Maller. — Os Estados Unidos não são responsáveis por essas explosões de fusão. Ne­nhuma nação é! Me deixem provar, antes que destruamos metade do mundo!

Prove — diz o secretário-geral.

Viktor Grozny continua impassível.

Maller vira para Przystas.

Pode transmitir a imagem.

O secretário de Defesa transmite o vídeo da Boone.

Do outro lado do centro de comando, o general Joseph Fecondo luta para se controlar enquanro reza com seu filho, Adam, e os comandantes das Bases Aéreas de Elmendorf e Eielson, no Alasca, através do vídeo-comunicador.

O relógio do TEMPO ATÉ O IMPACTO: ALASCA, sobreposto aos vídeo-comunicadores, marca os últimos cinco segundos.

Adam Fecondo e os dois coronéis da Força Aérea prestam continência ao seu oficial em comando.

O general Fecondo devolve a continência, lágrimas escorrendo pelo seu rosto, enquanto a imagem de seu filho e dos dois oficiais desaparece num cla­rão de luz branca.

Maller olha para as telas, onde os rostos dos líderes russo e chinês reapa­recem no lugar do redemoinho alienígena.

—      Que bobagem é essa? — grita o general Xiliang, seu rosto contorcido de raiva.

O presidente Maller enxuga o suor dos olhos.

—      Nossos cientistas descobriram a nave alienígena no Golfo do México há dois meses. Transmitimos as coordenadas exatas. Utilizem seus satélites es­piões infravermelhos para verificar. Por favor, entendam, só ficamos sabendo há alguns minutos que foram esses objetos saindo dos destroços da nave aliení­gena que causaram as detonações.

Uma saraivada de chinês.

—      Espera que acreditemos nesse efeito especial de Hollywood?

—      General, use seus satélites! Verifique a existência da nave... Grozny balança a cabeça, enojado.

Claro que acreditamos no senhor, presidente. É por isso que 2.500 de seus mísseis nucleares estão voando rumo às nossas cidades neste exato momento.

Viktor, nós não sabíamos, eu juro! Escute, ainda temos oito minutos para impedir essa insanidade...

O líder da ONU sua profusamente.

—      Vocês têm menos de dez minutos. Destruam seus mísseis. Agora!

Vá em frente, presidente — ruge Grozny. — Demonstre sua sinceri­dade para os povos russo e chinês destruindo seus mísseis primeiro.

Não! — Fecondo atravessa a sala correndo. — Não acredite nesse assassino filho da puta...

Maller se vira, seus olhos em chamas.

Está dispensado, general...

Não faça isso! Não se...

Tirem-no daqui!

Um perplexo PE puxa o general descontrolado para fora da sala.

Maller vira para o monitor, que indica nove minutos e 33 segundos até o impacto.

—      Menos de uma hora atrás, uma bomba termonuclear foi detonada num dos nossos centros de comando subterrâneos. Trezentas pessoas morreram, inclusive minha esposa e... — a voz de Maller treme — e meus dois filhos.

Para impedir esta loucura, Grozny, eu darei o primeiro passo. Estou ordenando que nossos bombardeiros retornem à base, mas precisamos desativar nossos ICBMs juntos.

Grozny balança a cabeça, sorrindo amargamente.

—      Acha que somos burros? Suas bombas de fusão pura assassinaram 2 milhões de nossos cidadãos, e espera que acreditemos que não foram vocês, que foi um alienígena?

O líder da ONU olha para Maller.

—      Os Estados Unidos precisam fazer o primeiro gesto pela paz.

Maller vira para o secretário da Defesa.

—      Secretário Przystas, mande todos os bombardeiros voltarem para a base. Instrua todos os centros de comando de mísseis e submarinos para co­meçar a sequência de autodestruição ALFA-ÔMEGA-TRÊS. Destrua todos os ICBMs e mísseis lançados por submarinos que estão no ar a cinco minutos do impacto.

O presidente volta a olhar para Grozny e o general Xiliang.

—      Os Estados Unidos deram o primeiro passo para acabar com esta loucura. O próximo deve partir de vocês. Cancelem o ataque. Destruam seus mísseis agora. Dêem ao seu povo a chance de viver.

Uma tensão elétrica toma conta da sala. Duas dúzias de pessoas estão de pé atrás do presidente Maller, olhando, indefesas, para as imagens dos líderes da Rússia e da China, esperando por sua reação.

Grozny levanta a cabeça, seus penetrantes olhos azuis em contraste com suas feições angelicais.

—      Dar ao nosso povo a chance de viver? Todo dia, mais de mil russos morrem de fome em suas casas...

A tela pisca: SETE MINUTOS ATÉ O IMPACTO.

Aborte o ataque e podemos sentar e discutir soluções...

Soluções? — Grozny se aproxima da câmera. — De que adiantam solu­ções econômicas, quando o seu país continua a se envolver em políticas de guerra?

Os Estados Unidos estão sustentando a Federação Russa há duas dé­cadas — grita Borgia em resposta. — O motivo de seu povo passar fome está mais na corrupção do seu governo do que em qualquer política...

O presidente engole a bílis que sobe em sua garganta. Isso não vai nos levar a lugar algum. Ele faz um sinal para um dos PEs em serviço.

—      Me dê a sua arma, sargento.

Maller afasta Borgia para o lado e fica sozinho diante do vídeo-comunicador, seu rosto branco como giz.

—      Presidente Grozny, general Xiliang, escutem. Daqui a menos de um mi­nuto, nossos mísseis vão se auto-destruir. Vocês terão menos de dois minutos para fazer o mesmo com os seus. Se não o fizerem, meu secretário de Estado ordenará um ataque nuclear total aos seus países, usando até o último míssil em nossos ar­senais e submarinos. Varreremos seus países do mapa tão certamente como vocês varrerão o nosso. Cavalheiros, pelo bem do mundo, eu imploro, vamos recobrar o juízo neste momento de insanidade. Assim como choro pela morte da minha família, lamento as perdas de vocês, mas, como já falei, os Estados Unidos não foram responsáveis por aquelas explosões. Mostrem ao mundo que têm coragem de parar esta loucura. Nos dêem a chance de revelar o verdadeiro inimigo.

O presidente respira fundo.

—      Sei que o que acabo de contar é difícil de acreditar. Pra que saibam que não tenho segundas intenções, ofereço isto a vocês.

O presidente Mark Richard Maller aponta a arma calibre .45 para a pró­pria têmpora e dispara.

 

                         Sob a Pirâmide de Kukulcán, Chichén Itzá

A consciência de Michael Gabriel está subindo...

Ascendendo diretamente sobre o teto quadrado da pirâmide de Kukul­cán, saltando mais alto, onde o verde viçoso da selva do Yucatán beija as águas azuis do Golfo...

Um salto suave para a estratosfera e toda a península aparece. Mais um salto — e o Hemisfério Ocidental surge lá embaixo, a esfera da Terra aparecen­do na janela de sua mente.

O silêncio total do espaço...

Afastando-se mais rapidamente agora, a Terra se torna uma bola de gude azul enquanto a Lua passa velozmente ao lado. Um salto quântico, e a Terra desaparece, substituída pelo brilho de uma estrela amarela, todo o sistema solar entrando no campo visual.

O tempo e o espaço acelerando numa velocidade incalculável, Mick vendo de relance os nove planetas correndo ao redor do Sol em órbitas desalinhadas...

Mais um salto quântico, e o Sol se torna um ponto de luz, só uma estrela em meio a um oceano de estrelas.

A velocidade da luz, as estrelas passam ao seu lado, desaparecendo cada vez mais rápido, enquanto nuvens luminosas de gás e poeira interestelar apa­recem em sua mente.

Um último salto e ele diminui a velocidade, sua consciência fitando um vórtice espiralado de estrelas rodopiantes tão magnífico que sua luminosidade arrebatadora, sua grandeza, sua onipotência são quase avassaladoras demais para serem contempladas.

Mick sente sua alma tremer ao olhar para a Via Láctea por inteiro, sua mente inundada com a constatação de sua total insignificancia.

Meu Deus... é tão linda...

Bilhões de estrelas, trilhões de mundos, todos parte de um organismo cósmico vivo — uma ilha móvel em meio ao vasto oceano do espaço.

Mick paira sobre a saliência do centro da galáxia, subindo mais, até que está olhando de cima o coração negro da Via Láctea, um vórtice giratório de gravidade incalculável, seu orifício movimentando a galáxia ao sugar gás e poeira interestelar para sua boca monstruosa.

E então — num piscar dos olhos de sua mente — a galáxia se transforma, reaparecendo numa perspectiva totalmente alienígena para a sua espécie, uma quarta dimensão do tempo e do espaço.

O buraco negro se torna um radiante funil esmeralda, sua boca se esten­dendo sob a galáxia, se estreitando, até que finalmente se divide numa teia em expansão de cordas gravitacionais — uma treliça de rodovias quadridimensionais que se espalham pela Via Láctea como uma rede que gira lentamente, nunca tocando os outros corpos celestes, mas de alguma maneira tocando-os.

O volume de informações se torna gigantesco demais para o seu cérebro.

Mick desmaia.

Quando ele volta a abrir os olhos, está olhando de cima um dos braços da galáxia em espiral, um padrão: uma constelação se materializando à medida que ele se aproxima. Mais um salto para a frente e três estrelas aparecem: três estrelas posicionadas num alinhamento familiar.

Al Nitak, Al Nilam, Mintaka... as três estrelas do Cinturão de Órion.

A sua frente, ele vê um planeta de proporções monumentais, sua superfí­cie colorida por uma tapeçaria de verdes profundos e azuis cristalinos.

Xibalba. É como se o pensamento fosse sussurrado em sua mente.

Uma Lua solitária orbita o planeta alienígena. Quando sua consciência sobrevoa a superfície lunar, ele vê uma nave de transporte decolando de um pequeno posto, rumando para a superfície do planeta.

Sua mente pega uma carona.

A nave mergulha em densas camadas de nuvens atmosféricas, revelando um oceano derretido de pura energia. A superfície prateada e espelhada reflete o magnífico céu vermelho vivo do planeta. À frente, ao sul no horizonte, um triplo pôr do sol, a estrela binária branco-azulada de Al Nitak a primeira a se pôr, seu desaparecimento fazendo o mar adquirir tons brilhantes de lavanda e magenta.

Uma sensação deliciosa o invade quando a nave de transporte percorre o céu purpúreo. Então ele o vê um imenso continente de incrível bele­za —, praias calmas cercadas por uma rica selva tropical, cravejada de ca­choeiras magníficas, montanhas, rios...

Aproximando-se mais, ele vê um imponente habitat cristalino de beleza estonteante. Estruturas piramidais de alabastro cintilante pontilham a paisagem, interligadas por sinuosas passarelas que serpenteiam através de uma pai­sagem urbana futurista e alienígena. Lá embaixo, viçosos jardins tropicais que fariam o Éden corar de vergonha crescem em meio a rios e cascatas de argêntea energia líquida.

Não há nenhum veículo móvel, nenhum trânsito, mas a cidade está cheia de vida. Dezenas de milhares de pessoas Homo sapiens, a não ser por seus crânios alongados percorrem a colmeia humana alienígena com um senso maior de propósito e alegria.

Por um momento maravilhoso, a mente de Mick é inundada pelo amor.

E então algo monstruoso acontece.

Quando a distante bola de fogo de Mintaka se põe, o plácido oceano começa a se agitar. Ameaçadoras nuvens verde-oliva e vermelho-sangue correm pelo céu escuro enquanto o vórtice aumenta para proporções inimagináveis.

Mick vê uma secreção cinza-chumbo sair do centro do redemoinho, o elixir contaminado inundando a costa imaculada, a maté subindo mais e mais, até que se infiltra na cidade dos Nefilins.

Sua consciência registra uma presença demoníaca.

A escuridão se abate sobre a cidade, espalhando-se como a sombra de uma grande serpente sobre aquele Éden. Humanóides aterrorizados caem no chão, com as mãos no pescoço, seus olhos transformados em lagos negros va­zios e sem pupilas.

As imagens o vencem. Mais uma vez, ele perde os sentidos.

Mick volta a abrir os olhos.

O que antes era uma civilização de beleza magnífica foi agora transfor­mada num monstruoso estaleiro alienígena. Zumbis Nefilins, seus rostos cin­zentos e sem expressão, seus olhos buracos negros e vazios, pairam imóveis no ar enquanto suas mentes escravizadas montam com mãos invisíveis gigantescas placas de irídio sobre o esqueleto de um terrível casco esférico de 11 quilôme­tros de diâmetro. No âmago da nave há uma cápsula central um complexo nervoso de um quilômetro e meio de diâmetro, equipado com 23 membros tubulares.

Situada dentro dessa esfera, pendurada numa miríade de dutos aliení­genas, está uma cápsula de sobrevivência de 90 metros. Mick se concentra no abominável objeto, reconhecendo-o imediatamente.

A câmara de Tezcatilpoca...

E então um forte calafrio percorre a consciência de Mick quando a visão de sua mente tenta englobar o ser alienígena que emerge do vórtice do rede­moinho ainda em movimento.

É uma serpente, mas diferente de todas que ele já viu. O semblante do ofídio é mais demoníaco do que animal, suas pupilas fendas verticais dou­radas, rodeadas por córneas de um escarlate incandescente mais cibernético do que orgânico. O crânio é do tamanho da caçamba de um caminhão-betoneira, e o corpo da criatura do comprimento de quatro ônibus urbanos enfileirados.

A perspectiva de Mick muda quando a serpente se aproxima do comple­xo dos Nefilins. As mandíbulas da grande fera se abrem, revelando fileiras de dentes de ébano, afiados como bisturis.

Saindo da boca da serpente um humanóide.

A sombra da morte parece passar sobre a alma de Mick. Ele não consegue ver o rosto do homem, que tem a cabeça e o corpo cobertos por um manto negro, mas sabe que está olhando para a personificação do mal. O humanóide se aproxima da câmara de sobrevivência e estende um braço, apontando. Um objeto de jade do tamanho aproximado de uma bola de futebol brilha na mão do homem.

Os olhos vermelhos da serpente brilham, e as pupilas douradas desapare­cem. Cega, a criatura, hipnotizada pelo pequeno objeto, segue o ser encapuza­do como se estivesse enfeitiçada.

O animal entra no enorme casulo de sobrevivência.

A visão de Mick deixa a esfera alienígena e se aproxima da superfície do planeta. Não há sinais de floresras tropicais, de cachoeiras, do Éden. Em vez disso, há corpos corpos de crianças, imersos numa camada sólida de alcatrão cinza-chumbo. Um gemido profundo parte de sua alma. Os jovens Nefilins estão vivos, mas, de alguma forma, não estão.

A consciência de Mick se aproxima. Ele olha para o rosto de um menino.

Olhos amarelados se abrem, fitando-o em apavorante agonia.

A mente de Mick se fecha.

Mais uma vez, ele se vê orbitando Xibalba, sua alma tremendo ao obser­var um objeto que sobe da superfície do planeta. A esfera...

Da base lunar aparece outra nave, um cruzador estelar esguio e dourado. Os Nefilins sobreviventes correm atrás do inimigo, desaparecendo na cauda da esfera celestial.

 

           Centro Subterrâneo de Comando de Raven Rock, Maryland

2h27

Pierre Borgia está no meio de uma poça de sangue, pedaços do cérebro e do crânio do presidente Maller espalhados sobre sua manga.

O rosto do general Xiliang assume uma palidez cadavérica. O líder chi­nês vira para o seu segundo em comando.

—      Ativar auto-destruição.

Borgia se dirige a Viktor Grozny.

—      Os mísseis americanos se auto-destruíram. O general Xiliang fez o mesmo com os seus. O senhor só tem quatro minutos...

O rosto de Grozny está sereno.

—      É melhor morrer em combate do que sofrer na miséria. O que ganha­remos abortando o ataque? A ameaça de aniquilação nuclear fica mais forte à medida que nosso país fica mais fraco. A finalidade da guerra tem um efeito purificador, e nossas nações precisam ser purificadas.

A tela se apaga.

Um Dick Przysras visivelmente abalado entra na sala de guerra.

Os mísseis chineses se auto-destruíram.

E os mísseis de Grozny?

Nenhum, e não conseguimos falar com o vice-presidente — Przystas diz a Borgia. — Ou seja, você está no comando. Tem três minutos e meio até que várias centenas de ogivas nucleares cheguem à nossa costa.

Maldito russo filho da puta — xinga Borgia, andando de um lado para outro, as palavras de Pete Mabus ecoando em seus ouvidos. Este país pre­cisa de liderança forte, agora, não de mais um cordeirinho como Chaney como segundo em comando.

Entre em contato com o Comando Estratégico. Mande nossas forças lançarem todos os ICBMs, mísseis balísticos e TLAMs[6] com ogivas nucleares no nosso arsenal. Quero que aquele filho da puta queime no inferno.

 

                            Dentro do sarcófago do Guardião

Mick abre os olhos, surpreso ao se ver de pé na encosta de uma colina, de frente para um panorama tropical magnífico, uma cachoeira prateada criando um arco-íris ao longe.

Uma presença aparece diante dele. Ele não sente medo.

Mick ergue os olhos para o caucasiano alto. O longo cabelo e a barba do homem são brancos e sedosos, os olhos brilhanres, de um azul profundo, irreal e penetrante, porém gentis.

Guardião... eu estou morto?

Não existe morte, apenas diferentes estados de consciência. Sua mente está olhando por uma janela para uma dimensão superior. Aqueles humanóides...

Os Nefilins. Como a sua espécie, começamos como filhos da terceira di­mensão, viajantes cósmicos, cujas jornadas nos trouxeram a Xibalba. Mas as inebriações deste planeta eram um estratagema, o mundo, um purgatório quadridimensional de almas perversas, as intenções de seus habitantes, usar os Nefilins como um meio de fugir.

Não entendo. Os Nefilins, aquelas crianças. Elas são...?

As mentes dos Nefilins são mantidas em animação suspensa, seus corpos escravizados pelas almas dos condenados a cumprir sua tarefa mandar Tezcatilpoca para o sistema solar de vocês através de uma passagem de quarta dimensão, abrir um portal que leva para outro mundo tridimensional.

Um portal diretamente para a Terra?

Não inicialmente. As condições do seu mundo não eram adequadas. Por terem sido exilados em Xibalba, os maus não podem mais existir num ambien­te com oxigênio. O alvo deles era Vênus. A irmandade do Guardião seguiu Tezcatilpoca através do corredor quadridimensional, fazendo o seu transporte cair na Terra. O casulo de sobrevivência resistiu, com Tezcatilpoca protegido pela animação suspensa. O Guardião ficou para auxiliar a ascensão da espécie humana e planejar a chegada dos Hunahpus.

Quem são os Hunahpus?

Os Hunahpus são messias geneticamente implantados em sua espécie pelo Guardião. Somente um Hunahpupode entrar no portal cósmico e impedir que os malvados contaminem o seu mundo. Somente Um Hunahpu possui a força para fazer a jornada através do tempo e do espaço e libertar as almas de nossos ancestrais.

O corredor, sinto que está se abrindo.

O corredor aparece uma vez a cada ciclo precessional. Somente um Hunahpu pode pressentir sua chegada.

Espere... está dizendo que eu sou um Hunahpu?

Somente um Hunahpu poderia ter tido acesso à espaçonave do Guardião.

Meu Deus... Mick olha para a viçosa paisagem tropical que se estende diante dele, seu cérebro exausto lutando para compreender a informação sus­surrada em sua mente.

Guardião, a chegada de Tezcatilpoca — aquele impacto aconteceu há mais de 65 milhões de anos. Como é possível...?

O tempo não é consistente nem relevante em todas as dimensões. A ir­mandade do Guardião era formada pelos líderes sobreviventes dos Nefilins — Osíris e Merlin, Viracocha e Vishnu, Kukulcán e Quetzalcoatl —, todos ficaram em animação suspensa. Essa espaçonave permaneceu em órbita sobre o seu mundo, seus equipamentos programados para distorcer o sinal do inimigo. Apenas neste último ciclo a evolução da sua espécie foi suficiente para aceitar nossa semente. Portanto, desativamos os equipamentos, permitindo que o sinal de rádio de Xibalba despertasse Tezcatilpoca.

Vocês permitiram que Tezcatilpoca despertasse? Por quê? Por que deixar aquela... aquela coisa...

Tezcatilpoca abriga o portal para o corredor quadridimensional. Uma vez aberto, o corredor pode ser usado como meio para regressar ao passado dos Nefilins. Somente Um Hunahpu possui a força para fazer a jornada e salvar as almas dos nossos ancestrais.

Algum Hunahpu já tentou fazer essa jornada?

Apenas um. Foi na época do último ciclo precessional, antes do Grande Dilúvio. A irmandade do Guardião acordou da animação suspensa e preparou um de seus ancestrais para ter acesso ao portal cósmico de Tezcatilpoca. Quan­do o portal se abriu, dois dos Senhores do Mundo Inferior entraram no corre­dor pelo lado de Xibalba. Eles usaram truques e falsidade para derrotar esse primeiro Hunahpu, mas a bravura dele permitiu que o Guardião se apoderasse da nave de transporte que os malignos haviam usado para viajar pela Estrada Negra, o corredor quadridimensional do tempo e espaço dentro do qual você está suspenso agora.

Este sarcófago é uma nave?

Sim.

Você disse que o primeiro Hunahpu foi derrotado. O que aconteceu com os dois Senhores do Mundo Inferior que escaparam de Xibalba?

O Guardião conseguiu fechar o portal antes que o Deus da Morte e sua legião pudessem fazer a jornada através de Xibalba Be, mas o estrago no seu mundo estava feito. O mal se enraizou no jardim da humanidade.

O que isso significa?

Os dois Senhores do Mundo Inferior ficaram na Terra, refugiando-se dentro da nave de Tezcatilpoca. Embora permaneçam na quarta dimensão, continuam a exercer sua influência sobre a mente dos fracos, sua força aumen­tando à medida que quatro Ahau, três Kankin se aproxima.

Meu Deus... Vocês expuseram a humanidade ao Diabo...

Era necessário. Há mais em jogo do que você possa compreender. Um Hunahpu precisa fazer a jornada pela Estrada Negra para desfazer o estrago que foi feito. Um destino maior espera por todos nós.

Por que eu deveria acreditar em você?

Você viu Tezcatilpoca, e ele viu você. Não há escapatória. Ele precisa ser destruído.

Como? Quando esse Um Hunahpu vai chegar?

Talvez logo. Talvez nunca. O destino dele ainda não foi escolhido.

Que diabos isso significa? Onde está esse seu Messias? O que acontece se ele não aparecer? E os Gêmeos Heróis, Hunahpu e Xbalanque? Se o mito da criação é verdade, então talvez eles sejam os Escolhidos. De acordo com o Popol Vuh...

Não! A lenda dos Gêmeos é uma profecia Nefilim que talvez nunca se concretize. O nascimento e o destino dos Gêmeos dependem unicamente de Um Hunahpu fazer a jornada até Xibalba.

E se ele não aparecer?

Então o seu povo vai perecer, e o nosso também.

Não entendo...

Não é para você entender. O destino de sua espécie ainda está sendo escrito. O portal está se abrindo, o Deus da Morte e sua legião se preparando para fazer a jornada pelo tempo e espaço. Tezcatilpoca continua o processo de aclimatar o seu mundo, enquanto os dois malvados abrigados em sua nave exercem sua influência sobre o povo da Terra. Eles precisam ser detidos. Agora mesmo, armas de destruição em massa foram lançadas no seu mundo, irmão ameaçando irmão.

O que eu posso fazer?

Você é Hunahpu. Você tem a habilidade de acessar a grade do Guardião. Isso adiará o fim, mas somente a destruição de Tezcatilpoca e da Estrada Ne­gra Xibalba Be — pode evitar que os malignos passem para o seu mundo.

A Estrada Negra: onde a entrada dela vai se materializar?

O portal para Xibalba Be ascenderá em quatro Ahau, três Kankin. So­mente um Hunahpu poderá entrar. Somente um Hunahpu poderá expulsar o mal do seu jardim e salvar a sua espécie da aniquilação.

Você fala por enigmas. Onde está esse portal? A bordo daquela nave no Golfo? Vou ter que voltar para dentro dela? E como é que vou destruí-la?

O portal virá até você. Use a grade para destruir Tezcatilpoca, depois entre no portal. Os dois malvados aparecerão para desafiar você. Eles tentarão impedi-lo de selar o portal antes que Ele chegue.

E se eu selar o portal?

Os dois Senhores do Mundo Inferior serão vencidos, permitindo que sua espécie evolua. Triunfe — e dois destinos esperam por você. Fracasse — e nossos dois povos morrerão.

O que quer dizer dois destinos me esperam?

Se essa hora chegar, você saberá.

E a Dominique? Ela é Hunahpu?

Ela faz parte de um destino maior, mas não é Hunahpu. Não permita que ela entre em Xibalba Be, ou ela destruirá a vocês dois.

 

Dominique está sentada no chão da câmara, de costas para a banheira de már­more alienígena, com a cabeça nas mãos. Está com medo e sozinha, sua mente exausta aprisionada num cabo de guerra incessante entre realidade e negação.

Isso não é real. Nada disso está acontecendo. É tudo parte de uma ilusão esquizofrênica...

—      Cale a boca! Cale a boca, cale a boca, cale a boca! Ela salta de pé.

—      Aceite o fato de que está aqui e faça algo a respeito. Encontre uma saída... — Ela sai da câmara, depois volta, frenética. — Não, o Mick precisa de mim. Tenho que esperar aqui.

Ela bate novamente na lateral do sarcófago aberto, sem saber se Mick está vivo ou se foi vaporizado pela luz azul.

—      Mick, está me ouvindo? Cacete, Mick, responda!

Suas lágrimas escorrem, seu coração dói. Sua egoísta, você nunca disse a ele que o amava. Poderia ter dado isso a ele. Só porque negava pra si mesma, não significa...

—      Meu Deus... — Ela se apóia novamente na tumba de granito com a constatação repentina. Eu o amo. Eu o amo mesmo.

Ela dá mais um pontapé na lateral da banheira de granito.

—      Mick! Está me ouvindo?

A explosão repentina de um campo de força invisível a joga para o lado, e uma luz azul brilhante ilumina toda a câmara.

Da banheira surge uma silhueta escura. A figura fica de pé, levantando-se do sarcófago aberto como se estivesse flutuando, seus traços envoltos na luz alienígena.

É Mick.

 

Mick está subindo dentro de um mar de energia, movendo-se rumo à fonte da luz. Ele sente cada músculo, cada célula do seu corpo formigando com a eletricidade ao ser puxado para cima, sua alma banhada por ondas intensas de ternura e amor.

A imagem da mão do Guardião se estende para ele.

Mick estica o braço e toma a mão na sua.

 

Dominique protege os olhos, obrigando-se a olhar para a luz. Ela vê o contor­no do braço de Mick se estendendo como se fosse pegar alguma coisa.

Zap! A muralha invisível de energia a atinge como um maremoto, levantando-a do chão e lançando ondas de correntes elétricas através do seu cérebro. Ela cai no chão, seus olhos arregalados ao tentar enxergar a figura angelical.

Mick agora está suspenso acima do chão, com a mão direita estendida.

Um rugido hidráulico, e a miríade de máquinas complexas se revela ao redor dela. As paredes e o teto estão zumbindo, brilhando intensamente com a ativação dos geradores da nave espacial. Debaixo dos seus pés, ela vê um labi­rinto de circuitos de computador brilhando por baixo do chão de vidro escuro.

O som de pulsações graves aumenta, a vibração faz cócegas em seus ouvi­dos e então uma onda celestial de energia azul corre pelas paredes até o teto abobadado e sobe pelo orifício central.

 

A colossal onda de energia eletromagnética pulsa pela parede central da pirâ­mide de Kukulcán, continuando através do teto do templo por uma antena alienígena antes de se dispersar em todas as direções na velocidade da luz.

Correndo para o oeste, a carga satura a antiga cidade de Teotihuacán, energizando uma estação de retransmissão extraterrestre enterrada 800 metros abaixo da enorme Pirâmide do Sol. Continuando sua jornada pelo Pacífico, a onda carregada chega ao Camboja, disparando um dispositivo transmissor idêntico escondido nas profundezas sob o Templo de Angkor Wat.

Para o leste, o raio chegou aos Andes. Passando por dentro da rocha, ele é refletido por uma antena há muito tempo dormente enterrada sob o antigo observatório celeste conhecido como Kalasasaya, sendo redirecionado para o sul, rumo ao continente gelado da Antártida. Enterrada debaixo de toneladas de neve está outra anrena alienígena de retransmissão, um instrumento cons­truído numa época em que o território polar não tinha gelo.

Enquanto isso, a porção nordeste do tsunami eletromagnético atravessa o Atlântico até a Inglaterra, a força do sinal fazendo os enormes sarsans de Stonehenge tremerem. Outra antena alienígena está escondida no subsolo da colina de Salisbury.

Depois de dar a volta ao planeta em segundos, o campo de energia alta­mente carregado converge de todas as direções para a mais antiga das estações de retransmissão do Guardião — a Grande Pirâmide de Gizé.

Ondas de energia penetram os blocos de calcário, passando através da Câ­mara do Rei e do bloco vazio de granito marrom idêntico ao sarcófago da pirâmi­de de Kukulcán. Aprofundando-se, o raio ativa um aparato alienígena escondido sob a estrutura egípcia, um lugar onde nenhum ser humano jamais esteve.

Num nanossegundo, a rede global está completa, a atmosfera do planeta saturada, fechada dentro de uma poderosa grade de energia alienígena.

Mick cai no chão, inconsciente.

 

               Comando Norte-Americano de Defesa Aeroespacial

               NORAD, Colorado

Cento e sete técnicos apavorados fitam o enorme mapa computadorizado da América do Norte, que mostra em tempo real as trajetórias de mais de 1.500 mísseis nucleares e biológicos russos. A maioria dos presentes chora abertamen­te, reunindo-se em grupos de oração, segurando fotos dos entes queridos que, sem saber, estão a poucos minutos da morte. Outros, zonzos demais para fi­carem de pé, deitam-se no chão sob seus painéis de controle e esperam que o inimaginável aconteça.

O comandante em chefe, general Andre Moreau, enxuga as lágrimas, lutando para não ligar para seu filho e sua filha, que moram em Los Angeles. O que eu poderia dizer a eles? O que eu diria? Que os amo? Que lamento muito...?

 

Noventa Segundos para o Impacto.

 

Um uivo percorre o Centro de Comando, o som da voz feminina do computador fazendo as pernas do general Moreau fraquejarem. Ele desaba so­bre a cadeira.

E então, como que por magia, os mísseis desaparecem de repente da tela gigante.

 

Mísseis Destruídos em Vôo... Mísseis Destruídos em Vôo...

 

Gritos e vivas. Moreau ergue a cabeça. Técnicos extáticos estão apontando, gritando, se abraçando, chorando. Uma onda de euforia se espalha pela instalação.

Moreau se levanta com dificuldade, lágrimas escorrendo de seus olhos, sua voz, um murmúrio rouco quando ele pede uma análise de sistemas.

Dois operadores exuberantes e um comandante competem por sua atenção.

Todos os sistemas estão operacionais!

O que aconteceu com os mísseis?

De acordo com nossos dados, simplesmente se auto-destruíram.

Quero confirmação disso.

Estamos tentando confirmar com nossas bases na Flórida e em San Diego, mas uma onda maciça de interferência eletromagnética está bloquean­do todas as comunicações.

Um pulso eletromagnético? — O medo aperta os intestinos de Mo­reau. — Não deveria haver nenhuma interferência eletromagnética, major, a menos que tenha havido uma hecatombe nuclear.

Não, senhor, não houve nenhuma hecatombe. Nossas bases terrestres de detecção de mísseis confirmam que não houve detonações de nenhuma espécie. O que quer que esteja causando essa interferência tem outra fonte.

—      Onde? Quero saber...

Senhor, estamos tentando determinar a origem da interferência, mas vai levar algum tempo. Nossos satélites não parecem estar funcionando bem.

General! — Um técnico levanta a cabeça, com uma expressão intriga­da no rosto. — Senhor, nossos mísseis também foram destruídos.

Autodestruídos, você quer dizer.

Não, senhor. Quero dizer que foram destruídos.

 

                 Centro Subterrâneo de Comando de Raven Rock, Maryland

2h31

Os funcionários do centro de comando subterrâneo se abraçam e choram si­lenciosamente, sua transbordante emoção controlada pelo sentimento de tris­teza com as notícias da morte do presidente e das perdas no Alasca e no Havaí, que se espalham pela instalação.

Pierre Borgia, o general Fecondo e Dick Przystas estão reunidos na sala particular do presidente, ouvindo com atenção o general Doroshow, do STRATCOM.

—      O que estou dizendo é que os mísseis do Grozny não se auto-destruíram. Foi algum tipo de campo de força eletromagnética que desativou os ICBMs da Rússia e também os nossos.

—      Qual a fonte da interferência? — pergunta Borgia.

—      Ainda é desconhecida, mas, seja o que for, apagou todos os satélites que temos em órbita. E como se Deus tivesse se irritado e jogado um cobertor sobre todo o planeta.

 

                           Sob a Pirâmide de Kukulcán

— Mick, está me ouvindo? — Dominique acaricia a cabeça em seu colo, alisando-lhe o cabelo. Ela o sente se mexer. — Mick? Ele abre os olhos.

—      Dom?

Ela puxa o seu rosto para o dela, beijando-o e abraçando-o.

Caramba, Mick, você quase me matou do coração.

O que aconteceu?

—      Não se lembra? Você saiu flutuando daquele sarcófago como um fan­tasma maia e ativou esta nave.

Mick se senta e olha ao redor. Circuitos e estações de controle alienígenas pulsam com energia por trás das paredes e do chão de vidro escuro. Ondas de energia elétrica azul percorrem as paredes e o teto a cada poucos segundos, desaparecendo pelo orifício no alto.

—      Eu fiz isso?

Dominique sufoca a pergunta dele com seus lábios.

Eu te amo.

Ele sorri.

Eu te amo.

 

                 15 DE DEZEMBRO DE 2012

                 A BORDO DA USS BOONE, GOLFO DO MÉXICO

O estômago do juiz da Suprema Corte Seamus McCaffery ainda está um pouco revirado pelo voo de helicóptero da madrugada. Atravessando o deque do na­vio de guerra, ele segue o guarda-marinha para dentro da superestrutura, depois através de corredores estreitos que levam à sala de reuniões do capitão.

Sentados a uma pequena mesa de conferências es­tão o vice-presidente Ennis Chaney, o general Joseph Fecondo e o capitão Loos.

Os homens ficam de pé quando o juiz saca a sua Bíblia. Ele acena com a cabeça para Chaney.

Parece que você também dormiu pouco. Está pronto?

Vamos acabar logo com isso. — Ele coloca a mão esquerda sobre a Bíblia e levanta a direita. — Eu, Ennis William Chaney, juro solenemente cumprir com fidelidade o mandato de presidente dos Estados Unidos, e irei, o melhor que puder, preservar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos, com a ajuda de Deus.

—      E que Deus nos ajude a todos.

Um tenente entra.

—      General Fecondo, a equipe Ranger está a bordo. Os helicópteros estão à sua espera.

 

                               Pirâmide de Kukulcán, Chichén Itzá

Mick leva Dominique por um pequeno corredor que termina numa passagem fechada. Quando eles se aproximam, a porta se abre com um chiado, permitindo-lhes entrar numa câmara estanque.

Esta é a saída.

Como você sabe? — pergunta ela.

Não sei como eu sei. Apenas sei.

Mas não tem nada aqui.

Veja.

Mick põe a mão num teclado escuro localizado na parede oposta. O contorno de uma grande porta circular se materializa instantaneamente no casco metálico.

—      Meu Deus... E você não tinha idéia de que sabia disso?

—      O Guardião deve ter implantado o conhecimento no meu subcons­ciente. Só que não faço idéia de quando ele fez isso, ou como.

A porta externa se abre, revelando uma passagem estreita escavada na rocha calcária. Mick liga a lanterna e eles saem, a porta da espaçonave se fecha atrás deles.

O corredor, da largura dos ombros, está totalmente escuro, o ar carrega­do de umidade. O facho da lanterna de Mick revela os degraus estreitos de uma escada circular íngreme que sobe através do calcário, quase na vertical.

Ele estica o braço e pega a mão dela.

—      Tome cuidado, está escorregadia.

Eles levam 15 minutos para chegar ao topo, a subida cheia de curvas termina num teto de metal branco polido.

—      Tá, e agora?

Antes que Mick possa responder, quatro pistões hidráulicos levantam um painel quadrado de 2 metros, expondo seus olhos à cegante luz do dia.

Mick sai e ajuda Dominique a subir. Virando para o lado da luz, eles ficam surpresos ao se verem no corredor norte do templo de Kukulcán.

A parte de cima do painel metálico, escondida por mais de um metro de calcário sólido, volta para a sua posição, fechando a entrada da espaçonave.

—      Não admira que a gente nunca tenha encontrado a passagem — mur­mura Mick.

Dominique sai na plataforma.

Deve ser quase meio-dia, mas o parque está deserto.

Alguma coisa deve ter acontecido.

Eles ouvem o som trovejante das pás de dois helicópteros da Marinha que se aproximam, vindo do oeste.

—      Mick, é melhor a gente ir embora.

 

O ruivo está deitado, seu corpo escondido sob a densa folhagem da selva. Es­piando pela potente mira de seu rifle de caça, ele vê Mick Gabriel e a garota saindo na plataforma norte da pirâmide. Raymond destrava o gatilho, sorrindo ao posicionar a mira no coração de sua vítima.

 

O piloto do helicóptero diminui a velocidade da aeronave para pairar sobre o Grande Campo do Jogo de Bola.

—      Senhor, bem abaixo de nós.

Chaney e o general Fecondo olham para o objeto alado negro pousado quase no meio da quadra maia em forma de I.

Jesus. É outro daqueles objetos de fusão pura.

Por que não explodiu?

O som de tiros ecoa pela esplanada.

Chaney aponta para a pirâmide.

—      Vamos pra lá!

 

Mick está de costas, lutando para respirar. O sangue escorre de seu peito arden­te. Ele olha para o céu do meio-dia, a sombra do rosto de Dominique cobrindo o Sol. Ele sente as lágrimas dela caírem em seu rosto, vê sua boca se mexendo em câmera lenta enquanto ela põe a mão sobre o ferimento, mas não consegue ouvir nada além das batidas do seu coração.

Guardião?

Feche os olhos...

 


                     16 A 20 DE DEZEMBRO DE 2012

E o caos reinou...

A revelação de que a aniquilação termonuclear da humanidade foi evitada por um triz foi recebida com incredulidade e alívio, depois medo e ultraje universal. Como os líderes mundiais puderam permitir que seus egos levassem a humanidade à beira do abismo? Como puderam ser tão arrogantes? Como puderam ser tão cegos?

O ultraje logo levaria à violência. Durante dois dias e duas noites, a anarquia dominou a maior parte do globo. Prédios de governos foram destruídos; instalações milita­res, saqueadas; e as embaixadas dos Estados Unidos, Rús­sia e China, atacadas, com bilhões de pessoas por todo o planeta marchando em suas capitais, exigindo mudanças.

Em vez de tentar reprimir a violência com mais violência, o presidente Chaney preferiu canalizá-la, di­rigindo a vingança do público americano para mais de cem bunkers subterrâneos, construídos com dinheiro dos contribuintes, que haviam sido projetados para abri­gar a elite política durante o holocausto nuclear. A destruição dessas instalações ultra-secretas pareceu aplacar a fúria do público, servindo como aviso de que todos — poderosos e humildes — agora estavam no mesmo pé de igualdade, ainda que precário.

Chaney pressionou, então, o secretário-geral das Nações Unidas a in­troduzir uma resolução baseada em recomendações da Academia Nacional de Ciências, da Comissão Carnegie e do almirante Stansfield Turner, para elimi­nar todas as armas nucleares e biológicas. O país que se recusasse a cumpri­da enfrentaria uma força invasora da ONU, e seus líderes seriam caçados e executados.

Instigadas pelas massas, todas as nações-membros, com exceção do Ira­que e da Coréia do Norte, concordaram rapidamente.

Em 17 de dezembro, Saddam Hussein foi arrastado para as ruas de Bagdá e espancado até a morte. Kim Jong II se suicidou duas horas depois.

O presidente russo Viktor Grozny assinou o tratado, depois culpou pu­blicamente o Pattido Comunista pela subversiva escalada militar da Rússia nas últimas duas décadas. Depois de mais de duzentas execuções públicas, ele assegurou ao povo que a reforma do governo viria rapidamente.

Sem ninguém para desafiá-lo, continuou no governo, mais forte do que nunca.

Na manhã de 17 de dezembro, a mídia finalmente ficou sabendo da mis­teriosa grade eletromagnética, e de como ela evitara a aniquilação nuclear. Um fervor religioso tomou conta das massas. Unidas pelo medo, elas se reuniam e rezavam, correndo para as igrejas e sinagogas, esperando pelo Messias e pelo Segundo Advento de Cristo. O que encontraram, em vez disso, foram mais sinais do Apocalipse.

Na tarde do dia 18, o veterano da Guerra da Coreia Jim McWade voltava da igreja com seus quatro filhos e três caixas de cerveja. Dentro do lago calcário atrás de seu trailer estava uma imensa criatura alada. Em poucas horas, metade da cidade de White Sulphur Springs, Virgínia Ocidental, havia se juntado ao redor do lago para ver o animal imóvel, cuja superfície negra e brilhante emitia um potente campo de força invisível que impedia qualquer um de tocá-lo.

Em 24 horas, outras 29 criaturas idênticas foram encontradas em vários locais ao redor do globo. Então, na noite de 19 de dezembro, o mundo assistiu, fascinado e horrorizado, quando as câmeras de TV registraram a formação de um monstruoso redemoinho no Golfo do México. Do centro do vórtice emergiram oito criaturas aladas, e todas se dispersaram pelo Hemisfério Norte. Dois dos objetos pousariam, mais tarde naquela noite, na região sudoeste dos

Estados Unidos, mais dois na Flórida, e mais três, um na Geórgia, um em Kentucky e um em Indiana. O último objeto foi para o leste e se empoleirou numa cadeia de montanhas perto do telescópio de Arecibo, em Porto Rico.

Na manhã de 20 de dezembro, o exobiólogo Marvin Teperman confir­mou para o mundo que sete detonações de fusão pura haviam se originado nos objetos liberados pela nave alienígena enterrada sob o Golfo do México. Refe­rindo-se aos objetos como "autômatos", o exobiólogo teorizou que as 37 criaturas agora espalhadas pelo planeta continham energia de fusão suficiente para vaporizar mais de 2 milhões e meio de quilômetros quadrados de território. Teperman também declarou que os dispositivos alienígenas estavam acoplados a um detonador solar, o que explicava sua liberação à noite e as detonações pela manhã. De alguma forma, a misteriosa grade, emitida pela pirâmide de Kukulcán, conseguira bloquear os mecanismos de deronação, impedindo que os autômatos explodissem.

Se a grade fraquejasse, Teperman alertou, os autômatos seriam detonados.

E mais uma vez as massas entraram em pânico.

 

             20 DE DEZEMBRO DE 2012

             HOSPITAL DE MÉRIDA , PENÍNSULA DE YUCATÁN

Uma brisa suave passa pelas venezianas, refrescando o seu rosto. À medida que a névoa da febre se dissipa, ele ouve a voz distante de um anjo, suas palavras familia­res ecoando em sua mente.

Já se foi meu amor, marido e amigo? Eu quero que me escreva de hora em hora, pois são muitos os dias de um minuto.

Nadando contra a corrente da inconsciência, ele força seus olhos a se abrirem um pouco, só o suficiente para vê-la sentada ao seu lado, lendo um livro de bolso.

"Meu Deus, só sou vidente para o mal! Pare­ce-me que o vejo, bem distante, como um morto, no fundo de um caixão. São os meus olhos, ou você está pálido?"

"Aos meus, querida" — ele diz com a voz rouca —, "você também está".

Mick!


Ele abre os olhos, ela encosta o rosto em sua face, e ele sente suas lágrimas quentes e o peso esmagador em seu peito quando ela o abraça e sussurra:

Eu te amo.

Eu te amo. — Ele se esforça para falar, sua garganta totalmente seca. Ela encosta um copo d'água em seus lábios e ele toma alguns goles.

Onde...?

—      Você está num hospital em Mérida. O Raymond atirou em você. O médico disse que a bala parou a três milímetros do coração. Todos dizem que você devia estar morto.

Ele força um sorriso, murmurando:

"Zomba da dor quem nunca foi ferido." — Ele tenta se sentar, mas a dor o empurra para baixo de novo. — Talvez só um pouco.

Mick, tanta coisa aconteceu...

Que dia é hoje?

—      Dia 20. Amanhã é o solstício de inverno, e todo mundo está apavorado...

A porta se escancara e um médico americano entra no quarto, seguido por Ennis Chaney, uma enfermeira mexicana e Marvin Teperman. Mick nota soldados americanos fortemente armados vigiando o corredor.

O médico se curva, examinando seus olhos com uma lanterna.

—      Bem-vindo ao mundo dos vivos, sr. Gabriel. Como está se sentindo hoje?

—      Dolorido. Faminto. E um pouco desorientado.

—      Não me admira, você esteve inconsciente por cinco dias. Vamos ver essa ferida. — O médico retira o curativo. — Incrível. Absolutamente incrível. Nunca vi um ferimento cicatrizar tão rápido.

Chaney dá um passo adiante.

—      Ele está bem o suficiente para falar?

Acho que sim. Enfermeira, troque o curativo e ponha outro frasco de soro com...

Agora não, doutor — interrompe Chaney. — Precisamos de alguns minutos com o sr. Gabriel. A sós.

—      Claro, presidente.

Mick vê o médico e a enfermeira saindo, e um dos PEs no corredor fecha a porta atrás deles.

—      Presidente? Parece que o senhor é promovido cada vez que a gente se encontra.

Os olhos de guaxinim não parecem achar graça.

O presidente Maller está morto. Deu um tiro na cabeça há cinco dias, tentando fazer os russos e chineses abortarem um ataque nuclear total.

Meu Deus...

O mundo tem uma dívida de gratidão com você. Seja o que for que você ativou naquela pirâmide maia, aquilo destruiu os mísseis.

Mick fecha os olhos. Meu Deus, aconteceu de verdade. Pensei que tivesse sido um sonho...

Dominique aperta a sua mão.

—      É alguma espécie de grade eletromagnética altamente carregada — diz Marvin —, diferente de tudo que já vimos. O sinal ainda está ativo, graças a Deus, porque está impedindo aqueles autômatos de explodirem...

—      Autômatos? — Mick abre os olhos. — Que autômatos? Marvin tira uma fotografia de sua pasta e passa para ele.

—      Tinta e oito destas coisas pousaram por todo o globo desde que você foi trazido pra cá.

Ele olha para a foto da criatura negra, parecida com um morcego, empo­leirada no alto de uma montanha cinza, com as asas abertas.

—      É o objeto que vi saindo da espaçonave enterrada no Golfo do Méxi­co. — Ele olha para Dominique. — Sei onde já vi isso. Em Nazca. Imagens em tamanho natural dessas criaturas estão desenhadas por todo o platô.

Marvin olha para Chaney, hesitante.

—      Essa foto foi tirada há alguns dias numa montanha de Arecibo.

Chaney puxa uma cadeira.

—      Lembra a criatura que você disse ter visto na nave alienígena? Aquele autômato pousou na Austrália e arrasou a maior parte da planície de Nullarbor. Sabemos que cada um desses objetos possui alguma espécie de dispositivo de fusão pura, um explosivo capaz de vaporizar paisagens inteiras. Seis desses autômatos detonaram na Ásia nas últimas duas semanas. Os últimos três ma­taram mais de 2 milhões de pessoas na China e na Rússia.

Mick sente suas mãos tremerem.

—      Essas detonações precipitaram o ataque nuclear?

Chaney faz que sim.

—      Como o Marvin disse, mais 38 dessas coisas foram lançadas pela nave alienígena nas últimas cinco noites. Até agora, nenhuma explodiu.

Mick se lembra das palavras do Guardião. A ativação da grade dos Nefilins adiará o fim, mas somente a destruição de Tezcatilpoca e da Estrada Negra pode evitar que nosso inimigo passe para o seu mundo.

Preparamos uma lista dos autômatos que ainda não detonaram. Ga­briel, está me ouvindo?

Hã? Desculpe. O senhor disse que essas coisas são autômatos?

É como nossos cientistas estão se referindo a elas. A Força Aérea diz que são uma versão alienígena dos nossos Veículos Aéreos Não Tripulados.

Cada um desses autômatos é essencialmente uma bomba de fusão pura com asas explica Marvin. Como nossos VANTs, os autômatos são controlados remotamente, ligados por alguma espécie de sinal de rádio ao seu centro de controle...

A nave no Golfo?

Sim. Quando o autômato pousa na área predeterminada, um sinal de rádio é emitido, armando o explosivo. Na cauda da criatura há fileiras de sen­sores esquisitos, que acreditamos serem células fotovoltaicas de alta potência. O mecanismo de detonação usa a energia solar para deflagrar o explosivo ao nascer do Sol.

O que explica por que essas coisas são sempre lançadas à noite Chaney acrescenta. Sete autômatos detonaram antes da ativação dessa gra­de, todos os sete indo para o oeste depois de sair da nave no Golfo. A veloci­dade de voo dos autômatos era igual à da rotação da Terra, mantendo-os no escuro até que chegassem às áreas indicadas.

Vocês disseram que outros 38 desses autômatos foram lançados?

Mostre a lista pra ele, Marvin.

O exobiólogo procura na valise e entrega um impresso de computador.

 

ALVOS DOS AUTÔMATOS

 

AUSTRÁLIA

Planície de Nullarbor [D]

 

ÁSIA

Malásia [D]   Irian Jaya [D]   Papua-Nova Buiné [D]   Província de Yunnan. China [D]   Bacia de Vilyui. Rússia [D]   Cordilheira de Kugitangtau. Turcomenistão [D]

 

ÁFRICA

Argélia Botswana Egito Costa do Marfim Israel Líbia Madagascar Marrocos [Montanhas Atlas] Níger Nigéria Arábia Saudita Sudão Tunísia

 

EUROPA

Áustria Bósnia-Herzegovina Bulgária Croácia Grécia Hungria Irlanda   Itália   Espanha

 

AMÉRICA DO NORTE

Canadá: Montreal

Cuba

EUA: Arecibo [Porto Rico] Vale Appalachian Colorado Flórida [Central & Sudoeste] Geórgia Kentucky Indiana [Sul] Montanhas Ozark Novo México Texas [Noroeste]

 

AMÉRICA DO SUL

Salvador [Brasil]

 

AMÉRICA CENTRAL

Honduras Chichén Itzá [Yucatán]

 

Mick corre os olhos pela lista, parando no nome do último local.

Um autômato pousou em Chichén Itzá?

Chega de enrolação — Chaney exclama. — Gabriel, preciso de al­gumas respostas, e já. Enquanto você estava dotmindo aqui, o mundo todo ficou louco. Fanáticos religiosos alegam que esses autômatos são parte das pro­fecias apocalípticas previstas para o novo milênio. A economia mundial parou. Multidões aterrorizadas estão se preparando para o Armagedom. Grupos estão amontoando suprimentos e munições e se trancando em casa. Tivemos que instituir toques de recolher. E o que está alimentando esses incêndios, mais do que tudo, é a nossa incapacidade de acalmar a preocupação do público.

Até agora, nossas tentativas de neutralizar os autômatos foram inefi­cazes — diz Marvin. — As criaturas são mantidas dentro de uma espécie de campo de força protetor que as torna invulneráveis aos ataques. A grade maia evita que explodam, mas também está neutralizando nossos satélites. O que é ainda mais incrível é o modo como o sinal da grade está sendo difundido ao re­dor do mundo. — Ele saca seu bloco de anotações. —Já isolamos três estações globais de retransmissão, bem como sinais adicionais de várias outras antenas. Você nunca adivinharia...

A Grande Pirâmide de Gizé, Angkor Wat e a Pirâmide do Sol em Teotihuacán.

O queixo do exobiólogo cai.

Os olhos de Chaney queimam como lasers escuros.

Como diabos você sabia disso? — Ele olha para Dominique. — Você contou?

Ela não me contou — diz Mick, sentando-se na cama com esforço. — Meus pais estudaram essas estruturas durante décadas. Cada monumento tem certas semelhanças, e uma delas é que todos foram construídos em pontos integrais da grade de energia natural da Terra.

Desculpe, me perdi — Marvin diz, fazendo anotações. — Você disse grade de energia?

A Terra não é só um pedaço de pedra flutuando no espaço, Marvin, é uma esfera viva e harmônica, e no coração dela existe um núcleo magnético que canaliza energia. Certos locais da superfície do planeta, especialmente ao longo do equador, são considerados áreas energéticas, pontos dinâmicos que irradiam altos níveis de energia geotérmica, geofísica ou magnética.

E esses três monumentos antigos, eles foram todos construídos em áreas energéticas?

Isso mesmo. Cada estrutura também reflete um conhecimento avan­çado de precessão, Matemática e Astronomia em seu projeto.

Marvin para de escrever.

—      Também localizamos dispositivos alienígenas que parecem funcionar como antenas, enterrados sob Stonehenge e a cidade de Tiahuanaco. Acredita­mos que mais um possa estar enterrado debaixo da camada de gelo da Antártica.

Mick balança a cabeça. O mapa de Piri Reis. O Guardião deve ter cons­truído a antena antes que o lençol de gelo se formasse. Ele olha para Dominique.

Você contou a eles dos Nefilins?

Tudo o que sei, o que não é muito.

Uma raça avançada de humanóides? — Marvin balança a cabeça. — Eu sou o exobiólogo aqui, e estou totalmente confuso.

Marvin, os seres que criaram essa grade precisavam ter certeza de que suas estações retransmissoras e antenas permaneceriam intactas por milhares de anos. Nem enterrá-las garantiria sua segurança. Construir enormes maravilhas arquitetônicas como Stonehenge ou a Grande Pirâmide diretamente sobre o local foi uma idéia inspirada. Até o homem moderno sabia que devia deixar essas ruínas em paz.

E a grade? — pergunta Chaney. — Por quanto tempo vai evitar que os autômatos detonem?

A lembrança das palavras do Guardião ecoa em seus ouvidos. O portal para Xibalba Be ascenderá em quatro Ahau, três Kankin. Ele só pode ser destruído por dentro. Somente um Hunahpu poderá entrar. Somente um Hunahpu poderá expulsar o mal do seu jardim e salvar a sua espécie da aniquilação. Mick se sente mal.

Temos um problema. Aquela nave alienígena vai subir amanhã...

Chaney arregala os olhos.

Como você sabe?

—      Faz parte de uma profecia maia de 3 mil anos. A entidade dentro da nave... precisamos destruída. Precisamos entrar nela.

—      Como vamos entrar? — pergunta Marvin.

—      Não sei, acho que da mesma forma que a Dom e eu entramos. Pelo sistema de ventilação. — Uma onda de exaustão se apodera do seu corpo. Ele fecha os olhos.

Dominique toca a testa dele, sentindo a febre.

—      Já chega, presidente Chaney. Ele fez a parte dele pra salvar o mundo. Agora vão e façam a de vocês.

Os olhos de Chaney perdem um pouco de sua dureza.

—      Nossos cientistas concordam com você, Gabriel. Eles acham que pre­cisamos destruir a nave alienígena pra acabar com a ameaça dos autômatos. Já mandei o John C. Stennis e sua frota pro Golfo do México para fazer isso. Se aquela nave subir mesmo amanhã, vamos acabar com ela.

O novo presidente se levanta para sair.

—      Uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU foi marcada pra hoje às 19 horas, a bordo do Stennis. Esperamos representantes de todas as nações, bem como alguns dos maiores cientistas de todo o mundo. Você e a Dominique irão conosco. Um dos meus auxiliares vai trazer roupas pra vocês.

—      Espere — diz Dominique. — Conte a ele sobre o Borgia.

—      O homem que tentou te matar nos levou ao dr. Foletta. A confissão do doutor incluiu informações sobre como o Borgia conseguiu te internar num hospital psiquiátrico 11 anos atrás. Ele até nos deu uma gravação em que o secretário de Estado pede que ele te mate. — Chaney abre um sorriso amargo. — Vou pôr as mãos nele assim que as coisas se acalmarem. Enquanto isso, a Dominique e a mãe dela foram inocentadas, e você foi declarado são, portanto, é um homem livre, Gabriel, tão louco quanto todos nós.

Dominique murmura no ouvido de Mick.

—      Seu pesadelo acabou. Chega de hospitais, de confinamento. Você está livre. — Ela lhe aperta a mão. — Podemos passar o resto da vida juntos.

 

                     A Bordo do Porta-Aviões John C. Stennis

18h43

Mick olha pela janela do helicóptero enquanto a aeronave desce sobre o enor­me deque de pouso de 2 hectares do John C. Stennis, agora transformado num estacionamento de helicópteros.

Dominique aperta a mão dele.

Você está bem? Não disse uma palavra durante o vôo.

Desculpe.

Posso ver que você está preocupado com alguma coisa. Por que não me conta o que é?

Minhas lembranças da conversa com o Guardião são vagas. Ainda tem tantas coisas que eu não entendo, coisas que podem significar a diferença entre a vida e a morte.

Mas você continua convencido de que a grade do Guardião foi proje­tada pra evitar que os autômatos explodissem?

Sim.

Então o presidente tem razão. Se destruirmos a nave alienígena, aca­baremos com a ameaça.

Gostaria que fosse tão simples.

Mas por que não é?

Eles descem do helicóptero e pisam no deque cinza do porta-aviões. Do­minique aponta para a bateria de canhões do navio de guerra.

—      Olhe ao seu redor, Mick. Este navio tem poder de fogo suficiente pra destruir um pequeno país. — Ela lhe passa o braço na cintura e cochicha em seu ouvido. — Encare os fatos, você é um herói. Contra todas as probabilidades, conseguiu entrar na pirâmide e ativar a grade. Não só reabilitou o trabalho dos seus pais, mas seu esforço salvou a vida de 2 bilhões de pessoas. Está na hora de descansar. Saia de cena e deixe os peixes graúdos terminarem o serviço. — Ela o beija apaixonadamente na boca, fazendo alguns marinheiros assobiarem.

Um tenente os acompanha até a superestrutura, e eles descem por uma escada apertada para o hangar.

Eles passam por um posto de segurança fortemente vigiado, depois en­tram no hangar, um quarto do qual foi apressadamente convertido em audi­tório. Três fileiras de cadeiras e mesas dobráveis em semicírculo foram posi­cionadas diante de uma tribuna e um enorme mapa-múndi computadorizado de 6 por 12 metros, montado no alto de uma das anteparas de aço do hangar.

Trinta e oito pontos luminosos vermelhos, outros seis azuis, indicam os locais de pouso dos autômatos no mapa.

O tenente os leva até uma mesa reservada na esquerda do semicírculo. Alguns representantes parecem reconhecer Mick, apontando quando ele passa, acenando. Aplausos esparsos rapidamente se transformam numa ovação de pé.

Marvin Teperman ergue o olhar e sorri para ele.

—      Ao menos agradeça, né?

Mick acena rapidamente, depois se senta ao lado do exobiólogo, sentin­do-se ridículo. A presidente do Conselho de Segurança da ONU, Megan Jackson, se aproxima e o cumprimenta com um sorriso cordial e um aperto de mão.

—      É uma honra conhecê-lo, sr. Gabriel. Estamos em dívida com você. Tem alguma coisa que podemos fazer para ajudá-lo?

—      Pode me dizer por que estou aqui. Não sou um político.

—      O presidente e eu esperamos que sua presença possa aplacar um pou­co a hostilidade neste recinto. Ela aponta para a delegação russa. O ho­mem do meio é o Viktor Grozny. Ouso dizer que a maior parte dos presentes preferia que ele estivesse morto. A paranóia existente agora entre a Rússia e os Estados Unidos faz a guerra fria parecer uma briguinha de família.

Ela abre um sorriso maternal, depois assume seu lugar na tribuna.

—      Vamos dar início à reunião.

Os representantes ocupam seus lugares. Marvin entrega a Dominique e Mick dois pequenos fones. Tirando-os dos invólucros de celofane, eles ajustam o tradutor para INGLÊS e põem os fones nos ouvidos.

—      Quero primeiro chamar à tribuna o prof. Nathan Fowler, diretor ad­junto do Centro de Pesquisas Ames, da NASA, e chefe da equipe internacional que investiga os autômatos alienígenas. Professor?

Um homem grisalho e de óculos, de uns 60 e tantos anos, se dirige para a tribuna.

—      Presidente, honoráveis delegados, caros colegas cientistas, estou aqui hoje para atualizá-los sobre os objetos alienígenas cujas detonações já causaram a morte de mais de 2 milhões de pessoas. Apesar dessa tragédia, as evidências que vou apresentar indicam claramente que o principal objetivo do extraterres­tre não era aniquilar a nossa espécie. Na verdade, nossa presença neste planeta é tão importante para essa inteligência alienígena quanto uma pulga é para um cachorro.

Murmúrios percorrem a sala.

—      Nossa equipe realizou uma análise comparativa completa de todos os 44 alvos identificados dos autômatos. Esses locais têm uma coisa em comum: o solo de cada um é totalmente formado por calcário. Mais que isso. Quase todos os alvos são qualificados como relevos de carste, uma densa formação calcária com altíssimos níveis de carbonato de cálcio.

"Os relevos de carste constituem um sexto da área terrestre do nosso planeta. Eles foram criados há cerca de 400 milhões de anos, quando grandes quantidades de carbonato de cálcio foram depositadas no que era, na época, o fundo do mar tropical de..."

—      Professor, no interesse da brevidade...

—      Hã? Ah, claro, presidente. Se me permitir só um momento para expli­car a importância do calcário para o nosso planeta, acho que todos compreen­derão melhor o motivo do lançamento dos autômatos.

—      Prossiga, mas seja breve.

—      As formações de carste, e o calcário em geral, desempenham um papel crucial na Terra, servindo como imensos depósitos planetários de dióxido de carbono. O carbonato de cálcio do carste absorve o dióxido de carbono dissol­vido como uma esponja, ajudando a regular e estabilizar nosso ambiente oxi­genado. A quantidade de dióxido de carbono armazenada na rocha sedimentar é mais de seiscentas vezes o carbono total contido no ar, na água e em todas as células vivas do planeta Terra.

Dominique olha para Mick, cujo rosto está mortalmente pálido. O diretor da NASA pega um teclado remoto ligado ao mapa computadorizado.

—      Presidente, vou usar nosso computador para simular o que acontece­ria se cada um dos 38 autômatos remanescentes explodisse simultaneamente. Por favor, prestem especial atenção na temperatura atmosférica e no nível de dióxido de carbono.

A platéia se cala enquanto o professor digita comandos no teclado. Dois ícones azuis aparecem na margem inferior do mapa.

 

Temperatura Média da Superfície Global: 20/12/12

70 graus F. (21 graus C.)   Conteúdo de CO2: 0,03%

 

Fowler aperta outra tecla. Os pontos vermelhos piscam simultaneamen­te, depois se acendem em círculos brilhantes de alabastro. Dentro de segundos, as explosões se dissipam num inverno nuclear global de densas nuvens alaran­jadas que se espalham rapidamente pelas áreas circunstantes, abrangendo quase um terço da superfície da Terra.

 

Temperatura Média da Superfície Global: 20/12/12

                                   (10 horas depois da detonação)

132 graus F. (55,5 graus C.) Conteúdo de CO2: 39,23%

 

Fowler ajeita os óculos.

—      O calor das explosões vaporizaria imediatamente o calcário do carste, liberando níveis tóxicos de dióxido de carbono na atmosfera do nosso planeta. As nuvens que vocês veem agora se expandindo pelo mapa são uma densa ca­mada atmosférica de CO2, suficiente para matar cada organismo pulmonado deste planeta.

Mil conversas paralelas começam ao mesmo tempo. Fowler digita no teclado novamente enquanto a líder da ONU pede ordem.

O mapa muda. Turbilhões de nuvens alaranjadas agora cobrem todo o planeta.

 

Temperatura Média da Superfície Global: 20/12/22

                              (10 anos depois da detonação)

230 graus F. (110 graus C.)   Conteúdo de CO2: 47,85%

                                      Conteúdo de SO2: 23,21%

 

A sala fica em silêncio.

Aqui vemos a progressão ambiental da Terra depois de dez anos. O que estamos vendo é a reorganização catastrófica da atmosfera do nosso planeta, o início de um efeito estufa desenfreado, similar àquele que acreditamos ter acontecido em Vênus há mais de 600 milhões de anos. Vênus, o planeta irmão da Terra, já possuiu oceanos quentes e uma estratosfera úmida. Com o acúmulo de dióxido de carbono em sua atmosfera, formou-se um grosso cobertor isolante. Isso levou ao surgimento do vulcanismo global, as erupções servindo para agravar o efeito estufa, liberando grandes quantidades de dió­xido de enxofre na atmosfera, enquanto continuavam a elevar a temperatura da superfície. No fim, os oceanos de Vênus se vaporizaram completamente, formando densas nuvens de precipitação. Parte dessa precipitação continua a envolver o planeta, enquanto o resto se dissipou no espaço.

Professor, os níveis de CO2 subiram perceptivelmente desde as explo­sões dos sete primeiros autômatos?

Sim, presidente. De fato, os níveis de dióxido de carbono aumenta­ram entre seis e sete por cento durante...

Chega disso! — Viktor Grozny está de pé, seu rosto magro rubro. — Eu vim aqui negociar as condições de um armistício, não ouvir bobagens sobre alienígenas.

A líder da ONU levanta a voz por cima de uma saraivada de protestos.

Presidente Grozny, o senhor está questionando a existência dessa ameaça alienígena?

Fomos informados de que a ameaça dos autômatos foi eliminada, que essa... essa grade impede que eles explodam. Não é verdade, sr. Fowler?

Fowler parece apreensivo.

Aparentemente, os autômatos não vão detonar enquanto a grade da pirâmide continuar intacta. Mas a ameaça ainda é...

Então por que perdemos tempo discutindo isso agora? — pergunta Grozny. — Proponho que deixemos isso para os nossos cientistas. Era meu entendimento que esta assembleia seria de natureza política. Apesar de nume­rosas ameaças à minha vida, vim para esta reunião de boa-fé. Foram cidadãos russos e chineses que morreram nesses holocaustos de fusão pura. Morte é morte, presidente, quer ela venha por aniquilação nuclear, asfixia ou inanição. Que o Ocidente e suas armas superiores destruam essa nave alienígena. Neste exato momento, milhares de meus cidadãos estão morrendo de fome. O que precisamos discutir é como iremos mudar o mundo...

E quem é você para exigir mudanças? — reage o general Fecondo, levantando-se de punhos cerrados. — Sua ideia de mudança foi declarar uma guerra nuclear contra os Estados Unidos. O Ocidente deu ao seu país bilhões de dólares em ajuda para alimentar o seu povo e estimular sua economia, e você gastou tudo em armas...

Mick fecha os olhos para a escaramuça verbal, concentrando-se em vez disso nas palavras do prof. Fowler. Ele volta a pensar em quando estava na câ­mara alienígena sob o Golfo. Ele se lembra do corte na perna.

Meu sangue estava azul. A atmosfera da câmara devia ser de dióxido de carbono.

Ele se lembra das palavras do Guardião... As condições do seu mundo não eram adequadas, o alvo era Vênus... Seu mundo está sendo aclimatado.

Você nos pede ajuda — berra Dick Przystas —, mas veja com que rapidez queria destruir a mão à qual agora pede que alimente seu povo!

Que escolha nós tínhamos? — retruca Grozny. — Vocês nos forçam a as­sinar acordos de armas estratégicas enquanto seus cientistas continuam inventando métodos de nos destruir. De que adiantam tratados quando as novas tecnologias americanas são mais letais do que os mísseis antiquados que vocês eliminaram tão graciosamente? Grozny vira para o resto da assembleia. Sim, a Rússia ata­cou primeiro, mas fomos provocados. Os Estados Unidos se valem de seu poderio militar há décadas. Nossos informantes dizem que os americanos estão a menos de dois anos de completar seus próprios explosivos de fusão pura. Dois anos! Se esses extraterrestres não tivessem atacado, os Estados Unidos o fariam.

A sala fica barulhenta de novo.

Grozny aponta um dedo acusador para Chaney.

—      Eu pergunto ao novo presidente americano: a paz é realmente o seu objetivo ou é a guerra?

Chaney fica de pé, esperando que o barulho diminua.

—      Há sangue nas mãos de todos nesta sala, presidente Grozny. Cada consciência está envergonhada pela culpa, cada mente envolvida pelo medo. Não fosse pela graça de Deus, estaríamos todos mortos. Nós nos comportamos como crianças egoístas, todos nós, e se quisermos ter qualquer esperança de sobreviver como espécie, precisamos deixar de lado nossas diferenças mesqui­nhas, de uma vez por todas, e crescer.

O presidente dá um passo à frente.

—      Concordo que mudanças, mudanças drásticas são necessárias. A hu­manidade não pode mais tolerar a ameaça da auto-destruição. Não podem mais existir poderosos e despossuídos. Precisamos reorganizar nossas economias numa só ordem mundial. Uma ordem de paz. Presidente Grozny, os Estados Unidos estão oferecendo um ramo de oliveira. Está disposto a aceitá-lo?

Uma ovação comovente toma conta do hangar quando Viktor Grozny anda até o presidente e o abraça.

Dominique está de pé, aplaudindo, com os olhos rasos d'água, quando nota que Mick se dirige à tribuna.

A sala fica em silêncio.

Mick se dirige à assembléia, a mensagem apocalíptica ardendo em sua mente.

—      O presidente Chaney é um homem sábio. A mensagem que carrego em minha mente também vem de um sábio, um homem cuja grade ajudou a nos salvar. Enquanto as nossas nações falam de política, nosso mundo está sendo preparado, aclimatado para acomodar outra espécie, infinitamente mais velha, uma espécie que não tem nenhuma aspiração de paz ou de guerra. Para esse inimigo, a Terra nada mais é do que uma incubadora, e a humanidade é seu inquilino há 2 milhões de anos, prestes a ser despejado.

"Unidos ou divididos, não podemos nos iludir. Amanhã é o Dia do Juízo Final. Ao amanhecer, um portal cósmico se abrirá. Um portal que deve ser fechado para que a nossa espécie sobreviva. Se fracassarmos, nada mais que se diga ou faça nesta sala terá importância. Amanhã, no crepúsculo do solsticio, todo ser vivo deste planeta estará morto."


 

               21 DE DEZEMBRO DE 2012

               (4 AHAU, 3 KANKIN)

               A BORDO DO JOHN C. STENMIS

00h47

Michael Gabriel olha para o mar negro pela escoti­lha aberta da pequena cabine VIP. Ele está longe demais para ver o brilho esmeralda; o porta-aviões está ancorado 3 quilômetros a leste da nave alienígena enter­rada, mas, de alguma forma, ele sente sua presença.

—      Vai ficar olhando por essa escotilha a noite toda? — Dominique sai do banheiro, coberta só por uma toa­lha. Ela esfrega o rosto no peito dele, passando-lhe os braços pela cintura.

Ele sente o calor úmido que seu corpo nu emana.

As pontas dos dedos dela descem pelos músculos do estômago de Mick até chegarem à sua virilha. Ela olha para aqueles olhos escuros e sussurra:

—      Faz amor comigo.

Ela fica na ponta dos pés e o beija, enfiando a lín­gua na boca de Mick enquanto ele arranca as roupas. Em


poucos momentos, ambos estão nus, abraçando-se como amantes separados há muito tempo, e suas emoções e seus medos acumulados se perdem no momen­to em que seus membros se entrelaçam, como se fossem as duas únicas pessoas do mundo.

Mick a deita na cama, beijando-lhe o pescoço enquanto ela o conduz para dentro de si. Dominique geme de prazer, lambendo o suor do ombro de Mick ao puxar seu rosto para seus seios, segurando os cachos em volta do seu pescoço.

 

3h22

Mick está deitado sob o lençol, nu, sua mão direita acariciando as costas de Dominique, a cabeça da jovem apoiada em seu peito enfaixado. Ele olha para o teto, sua mente exausta repetindo as palavras do Guardião como se fossem um mantra.

Xibalba Be ascenderá em quatro Ahau, três Kankin. Ele só pode ser des­truído por dentro. Somente um Hunahpu poderá entrar. Somente um Hunahpu poderá expulsar o mal do seu jardim...

Dominique se mexe, virando para o lado. Mick a cobre com o lençol, depois fecha os olhos.

Venha a mim, Michael...

—      Hã? Ele salta da cama, seu coração disparado. Desorientado, corre os olhos pela cabine, o suor frio brotando de suas costas. Tudo bem, tudo bem, foi só um sonho...

Mick volta a se deitar, de olhos arregalados, esperando que a voz demo­níaca reapareça.

Pare com isso! Desse jeito você fica louco. Ele sorri fracamente. Onze anos na solitária, e finalmente estou perdendo o juízo. Ele fecha os olhos.

Por que tem medo de mim, Michael?

—      Que merda... Ele salta de pé como um gato assustado. Tudo bem, fique calmo. Faça uma caminhada. Areje a cabeça. Ele se veste rapidamente e sai da cabine.

Depois de vinte minutos, Mick se encontra no "Beco dos Abutres", um bal­cão ao ar livre sobre o deque de vôo. O ar noturno está fresco, a brisa do mar, re­confortante. Ele tapa os ouvidos quando um caça é catapultado para o céu limpo.

Mais uma vez, sua mente repete a conversa com o Guardião. Somente um Hunahpu poderá entrar. Somente um Hunahpu poderá expulsar o mal do seu jardim e salvar a sua espécie da aniquilação.

Posso sentir você, Michael. Está muito perto...

—      O quê?

Venha a mim, Michael. Não tenha medo. Venha para o seu criador.

—      Pare! Pare com isso! Mick fecha os olhos com força e segura a ca­beça com as mãos.

Mick, você está bem? Venha a mim... pai.

Sai da minha cabeça! Mick gira, os olhos arregalados de medo. Marvin Teperman o segura pelos ombros.

Ei, você está bem?

Hã? Merda. Eu... eu não sei. Acho que estou ficando maluco.

Você e o resto do mundo. Não consegue dormir, é?

—      Não. Marvin, o autômato que pousou em Chichén Itzá, você sabe exatamente onde ele pousou?

O exobiólogo tira um pequeno computador do bolso do paletó.

—      Um minuto, está anotado aqui. Vejamos, Chichén Itzá. Sim, o autô­mato pousou num lugar chamado Grande Campo Maia do Jogo de Bola. Bem no meio, para ser exato.

Mick sente um arrepio correr-lhe pela espinha.

Bem no centro? Tem certeza?

Sim. Qual o problema?

—      Precisamos de um helicóptero! Marvin, pode nos arranjar um helicóptero?

Um helicóptero? Pra quê?

Não posso explicar, mas preciso ir pra Chichén Itzá. Agora!

 

                       Ilha de Sanibel, Costa Oeste da Flórida

5h12

Edith Axler está na praia deserta, olhando o horizonte cinza e a lancha que se aproxima rapidamente ao longe. Seu sobrinho, Harvey, acena, depois para o barco sobre a areia.

—      Algum problema pra localizar o SOSUS?

—      Não ele diz, entregando-lhe cuidadosamente o pouco que resta de um grande rolo de cabo de fibra óptica. O microfone estava ancorado exatamente onde você disse que estaria. Mas depois daquela porcaria de maré negra, foi um pouco apavorante mergulhar à noite.

Ele sai do barco e segue a tia até a porta dos fundos do laboratório. Lá dentro, Edie liga o sistema SOSUS enquanto Harvey conecta o cabo de fibra óptica ao servidor.

—      Isso vai nos dar acesso a todos os microfones do Golfo? — pergunta ele.

—      É um sistema integrado. Enquanto esse cabo aguentar, não vejo moti­vo pra não dar. Não estaremos conectados com o computador em Dan Neck, mas devemos conseguir bisbilhotar aquele objeto alienígena enterrado na costa do Yucatán.

Harvey sorri, completando a conexão.

—      Parece que estamos roubando TV a cabo.

 

                         Golfo do México

6h41

A esquadrilha de caças continua a circular em formação, seus pilotos nervosos enquanto esperam os primeiros raios de sol da aurora. Na superfície, lá embai­xo, o John C. Stennis e sua frota já se posicionaram, formando um cordão de 5 quilômetros de diâmetro ao redor da área luminosa do mar.

Manobrando a 450 metros de profundidade, circulando na escuridão abaixo da frota está o submarino de ataque Scranton, classe Los Angeles (SSN-756). Em vigília silenciosa, o capitão Bo Dennis e sua tripulação estão aler­tas. Suas ordens: pulverizar qualquer coisa que emergir do luminoso buraco esmeralda.

A bordo do John C. Stennis, o deque do porta-aviões está eletrizado pela atividade.

Baterias de mísseis terra-ar Tomahawk na popa e na proa miram no tre­cho luminoso de mar, suas cargas mortais apontadas para o céu, preparando-se para serem lançadas a um sinal. Mais três veículos aéreos não tripulados Predator são lançados e se unem a uma dúzia de outros, todos sobrevoando em círculos o alvo.

Os 6 mil homens e mulheres a bordo da cidade flutuante são uma pilha de nervos coletiva. Eles leram as notícias e viram os tumultos na televisão. Se o Apocalipse realmente está próximo, são eles que estão no seu caminho. A con­fiança gerada por milhares de horas de treinamento intensivo os desertou, uma consequência de terem evitado por pouco o holocausto nuclear. A disciplina os mantêm em seus postos de combate, mas é o medo, e não a adrenalina, que os motiva agora.

Dominique Vazquez sente outro tipo de medo. Pela primeira vez na vida, ela abriu seu coração para um homem, permitindo-se ficar vulnerável. Agora, enquanto procura pelo imenso navio, seu coração sente uma dor física, sua mente entra em pânico ao se dar conta de que Mick a abandonou, e que talvez ela nunca mais o veja.

Ela entra numa área restrita, empurrando um PE. Quando ele a agarra por trás, ela joga o surpreso sentinela contra a parede com um venenoso pon­tapé para trás. Outro soldado a intercepta quando ela tenta entrar no Centro de Informações de Combate.

Me solta. Preciso falar com Chaney!

Não pode entrar. O CIC é uma área restrita.

Preciso encontrar o Mick. Ai, você está quebrando o meu braço! A porta estanque se abre, dois oficiais saem. Ela vê o presidente.

Presidente Chaney!

Chaney ergue o olhar da fileira de monitores dos VANTs.

—      Tudo bem. Pode deixá-la entrar.

Dominique vira para o PE e o golpeia com força com as duas mãos no peito.

—      Nunca mais encoste em mim.

Ela entra no centro nervoso às escuras, agora cheio de chefes de Estado.

Dominique...

Onde ele está? O senhor sabe onde ele está, fale! Pra onde o levaram?

Chaney a puxa para um canto.

—      O Gabriel partiu de helicóptero hoje de madrugada. Ele me procu­rou. Foi um pedido dele.

—      Pra onde ele foi?

—      Ele deixou uma carta pra você. — Chaney tira o envelope dobrado do bolso do peito.

Dominique o abre.

 

                     Minha querida Dom:

Há tantas coisas que eu gostaria de te contar, tantas coisas que queria explicar, mas não posso. Vozes na minha cabeça me puxam em direções diferentes. Não sei se as vozes são reais ou se minha mente finalmente entrou em colapso.

A voz do Guardião me diz que sou um Hunahpu. Ele diz que foi o meu código genético que nos permitiu entrar na espaçonave. Talvez seja também por isso que eu consiga me comunicar com a entidade enterrada no Golfo.

Um dos autômatos da entidade pousou bem no meio do Grande Campo Maia do Jogo de Bola, em Chichén Itzá. Meu pai acreditava que há uma forte relação entre o Grande Campo e a fenda escura da Via Láctea. Como a pirâmide de Kukulcán, esse campo também foi alinhado com o céu noturno. A meia-noite de hoje, a fenda escura entrará em alinhamento diretamente acima do centro desse campo. O nexo se abrirá. Está se abrindo agora, posso sentir.

Era uma tradição maia enterrar um marco de pedra no ponto central de cada campo. Meu pai estava presente quando arqueólogos retiraram a pedra central do campo de Chichén Itzá. Antes de morrer, Julius me contou que tinha roubado o verdadeiro marco anos antes, e tempos depois voltou a enterrá-lo. Manteve isso em segredo até seu últi­mo suspiro. De alguma forma, ele sabia que eu iria precisar da pedra.

Não pode ser simples coincidência o autômato ter pousado onde pousou. Talvez a entidade do Golfo saiba que o marco está lá e não queira que o encontremos. Tudo o que sei é que a nave inimiga subirá no solstício de inverno. Quando a entidade dentro dela perceber que seus autômatos não explodiram, irá atrás da grade do Guardião, ten­tando destruí-la.

Não posso permitir que isso aconteça.

Desculpe por fugir de você assim. Esta noite foi a melhor da mi­nha vida. Não quero que seja a última.

Eu te amo, sempre vou te amar...

                       Mick

 

Ela olha para a carta.

Isso... isso não é justo. Ele acha que eu vou ficar aqui esperando? Dominique corre atrás do presidente. — Preciso ir pra Chichén Itzá...

Senhor, tem alguma coisa acontecendo lá fora.

Uma multidão se reúne em volta dos monitores dos VANTs. Dominique pega Chaney pelo braço.

Me leve até ele. O senhor me deve isso.

Dominique, ele proibiu isso especificamente. Me fez prometer...

Ele precisa de mim. Precisa da minha ajuda...

—      Presidente um técnico interrompe —, estamos registrando um abalo sísmico de 7 graus e meio na escala Richter, e aumentando...

Chaney põe uma mão sobre o ombro de Dominique.

—      Escute. De uma forma ou de outra, vamos destruir o que está nessa nave, entendeu? O Mick vai ficar bem.

—      Senhor, o Scranton está chamando diz o técnico.

 

                             A Bordo do USS Scranton

O comandante Bo Dennis levanta a voz por cima do barulho estrondoso do terremoto submarino.

—      Almirante, todo o leito do oceano está se partindo. A interferência eletromagnética está aumentando...

Um técnico de sonar aperta os fones sobre as orelhas.

—      Capitão, alguma coisa está saindo daquele buraco, alguma coisa grande!

 

Uma imensa onda de gravidade negativa explode por baixo dos restos do ob­jeto de irídio, o campo invisível repelindo a massa de seu esconderijo de 65 milhões de anos, atirando-o para cima através de um quilômetro e meio de cal­cário fragmentado. Como uma monstruosa bala de canhão, o volume titânico de irídio, com mais de 1.500 metros de diâmetro, ascende diretamente através de um bilhão de toneladas de detritos, o leito do oceano se esfacelando no vácuo do rastro do colosso. O abalo monumental destrói o fundo ao seu redor, espalhando ondas sísmicas por toda a extensão do Golfo do México, causando no atol de Campeche e no fundo do oceano circunstante o equivalente a um terremoto de grau 9,2.

A expulsão da nave alienígena faz surgir uma série de tsunamis mortais, as ondas assassinas afastando-se do epicentro em direção às praias virgens do Golfo como um anel da morte.

 

Capitão, o objeto alienígena se soltou do leito do oceano...

—      Trajetórias dos torpedos traçadas, senhor, ele é grande demais para errar.

O comandante Dennis se segura quando o submarino vira bruscamente para bombordo.

Timoneiro, nos mantenha longe dos detritos. Chefe, procedimento de disparo, preparar tubos um e dois.

Sim, senhor. Tubos um e dois prontos.

Siga a indicação do sonar. Disparar tubos um e dois.

— Sim, senhor. Disparando tubos um e dois. Torpedos lançados.

—      Dez segundos para o impacto. Sete... seis... cinco...

Os dois projéteis atravessam o mar turbulento rumo ao volume em as­censão. Quinze metros antes do impacto, os explosivos batem num campo de força invisível e são detonados.

 

                                     A Bordo do John C. Stennis

— Almirante, o Scranton diz que atingiu o alvo em cheio, mas não causou danos. O objeto parece protegido por um campo de força, e continua subindo.

Todos os olhos estão pregados nos monitores dos VANTs. Pairando a 60 metros de altura, as câmeras dos Predators revelam um anel de bolhas se formando na superfície.

—      Aí vem ela!

A massa ovóide quebra a superfície como um iceberg arredondado, sobe e desce até encontrar seu equilíbrio, flutuando no mar agitado. Close-ups dos VANTs na superfície chamuscada de irídio revelam uma rede de saliências metálicas irregulares e depressões do tamanho de crateras.

Sensores transmitem imagens computadorizadas da estrutura da nave alienígena. Dominique olha para a imagem holográfica tridimensional. Vinte e três apêndices tubulares pendem sob os restos da nave, dando-lhe o aspecto de um enorme navio de guerra mecânico.

—      Contatem os aviões — ordena o almirante. — Abrir fogo.

Os caças saem da formação e lançam uma salva de mísseis SLAMMER. Os dispositivos explodem pouco acima da enorme nave, as múltiplas detona­ções revelando por um momento a presença de um campo de força azul neon.

O oficial xinga em voz alta.

—      Essa porra está lacrada num campo protetor que nem os autômatos. Capitão Ramirez...

— Sim, senhor.

—      Mande os caças saírem de perto do alvo. Lance dois Tomahawks. Va­mos ver o quanto esse campo de força aguenta.

Dominique tapa os ouvidos quando um estrondo ensurdecedor faz o navio tremer.

Os sistemas de navegação dos dois mísseis Tomahawk foram desativados para evitar que a grade do Guardião interferisse em sua trajetória. Lançadas à queima-roupa, as ogivas batem no alvo, a explosão dupla lançando uma bola de fogo para o céu, cegando momentaneamente a imagem em tempo real das câmeras dos VANTs.

A imagem reaparece. A nave continua intacta.

E então algo acontece.

Movimentos mecânicos surgem na região central da massa flutuante, se­guidos por um intenso clarão verde.

O facho está vindo de uma abertura no casco alienígena, mas não é uma escotilha, como no alto de um submarino, tampouco um rasgo ou uma fen­da. Lâminas de irídio parecem estar se abrindo em camadas e se dobrando, afastando-se do vórtice de energia.

De dentro da luminescência esmeralda surge... um ser.

A cabeça da forma imponente aparece primeiro.

As câmeras da Marinha ajustam o foco, as imagens revelando o rosto do ser o de uma enorme víbora alienígena. O crânio monstruoso, adornado por escamas que parecem penas, é do tamanho de um outdoor. Dois olhos escarlate brilham como faróis luminescentes, as pupilas reptilianas fendas verticais âmbar, estreitando-se à luz matinal. Um par de mandíbulas bizarras se abre, estendendo individualmente duas diabólicas presas de ébano, cada uma medindo no mínimo um metro e meio, o resto da boca escancarada cheia de fileiras de dentes afiados como navalhas.

Um horripilante estertor reptiliano faz as grossas camadas de plumas ver­des e oleosas se arrepiarem sobre as costas largas do alienígena.

Espinhos afiados na barriga da criatura prendem-na à superfície de irídio quando o alienígena se empina como uma imensa cobra...

...olhando para o céu por um brevíssimo instante, como se analisasse a atmosfera.

Veloz como um raio, ele mergulha de cabeça no mar, seu corpo mons­truoso desaparecendo sob as ondas.

O presidente e seu Estado-maior olham para os monitores, estarrecidos.

Meu Deus... aquilo era real? murmura Chaney.

Um abalado especialista em comunicações ouve uma mensagem em seu

fone.

Almirante, o Scranton relata que o ET está se movendo através do termoclino, sua última velocidade registrada é... Jesus, 92 nós. A trajetória é sul-sudeste. Senhor, o ser parece estar indo diretamente para a península de Yucatán.

 

                                   Chichén Itzá

Uma agitada multidão de mais de 200 mil fanáticos se reuniu no estaciona­mento de Chichén Itzá, cantando e jogando pedras na milícia mexicana fortemente armada, tentando forçar a entrada através dos portões bloqueados da antiga cidade maia.

Dentro do parque, quatro blindados americanos Abrams M1-A2 assumi­ram posições defensivas em todos os lados da pirâmide de Kukulcán. Na selva ao redor, dois esquadrões de boinas-verdes fortemente armados estão à espera, escondidos em meio à densa folhagem.

A oeste da pirâmide de Kukulcán está o Grande Campo do Jogo de Bola de Chichén Itzá, um imenso complexo em forma de "I", fechado por todos os lados por muros de blocos de calcário.

O muro leste do campo é formado por uma estrutura da altura de um prédio de três andares, conhecida como o Templo dos Jaguares, a colunata da entrada esculpida na forma de serpentes emplumadas. A estrutura que limita o campo ao norte é chamada de Templo do Homem Barbado. A fachada desses dois muros verticais tem esculturas do grande Kukulcán emergindo das mandíbulas de uma serpente emplumada. Outras cenas retratam Kukul­cán, vestindo uma túnica, morto, sendo engolido por uma serpente de duas cabeças.

Montados no alto dos muros leste e oeste estão anéis de pedra posiciona­dos verticalmente, como aros de basquete colocados de lado. Inventado pelos olmecas, o ritual cerimonial conhecido como Jogo de Bola foi criado para sim­bolizar a batalha épica entre a luz e as trevas, o bem e o mal. Duas equipes de sete guerreiros se enfrentavam, tentando atirar uma bola de borracha através do aro vertical, usando somente os cotovelos, flancos ou joelhos. As recompensas do jogo eram simples, a motivação pura: os ganhadores recebiam prêmios, os perdedores eram decapitados.

Michael Gabriel está no centro do gramado de 95 metros, à sombra do autômato, comandando um trio de Rangers do Exército americano. Com pás e picaretas, os homens cavam um buraco de 2 metros e meio de profundi­dade, abrindo o solo friável até um ponto bem debaixo das garras do objeto alienígena.

A energia do campo de força do autômato faz o cabelo de Mick ficar de pé.

Ele levanta a cabeça quando um jipe entra pelo lado sul do campo. O coronel E. J. Catchpole salta do veículo antes que ele pare.

—      Acabamos de saber, Gabriel. A nave alienígena veio à tona, como você previu.

—      A Marinha conseguiu destruí-la?

Negativo. A nave está protegida pelo mesmo campo de força dessas porcarias. Tem mais. Um alienígena saiu...

Um alienígena? Como ele era? — O coração de Mick bate como um tambor.

Não sei. A grade da pirâmide está interferindo nas comunicações. A única coisa que consegui entender é que ele é grande, e a Marinha acha que está vindo em nossa direção. — O coronel se ajoelha ao lado do buraco. — Tenente, quero você e seus homens fora daí.

Sim, senhor.

Coronel, você não pode desistir...

Lamento, Gabriel, mas preciso de todos os homens disponíveis pra vigiar aquela grade. O que você está procurando, afinal?

Já falei, é algum tipo de pedra, um marco redondo, do tamanho de uma bola de futebol. Deve estar enterrado bem debaixo das garras do autômato.

O tenente emerge do buraco, seguido por mais dois Rangers, todos co­bertos por um pó fino e branco.

O tenente bebe água de seu cantil e cospe o último gole.

—      É o seguinte, Gabriel. Localizamos a borda de uma espécie de cilindro metálico, mas se meus homens tentarem tirá-lo, o peso do autômato vai fazer o túnel desmoronar. Se quiser tentar, deixamos uma lanterna e uma picareta lá embaixo, mas não te aconselho a fazer isso.

Os soldados sobem no jipe.

—      Sugiro que você se mande daqui antes que os fogos comecem — o coronel grita quando o veículo acelera para o oeste.

Mick fica olhando o jipe ir embora, depois desce no buraco pela escada de corda.

Os Rangers cavaram um estreito túnel horizontal por baixo do autômato. Levando a picareta numa das mãos e a lanterna na outra, Mick rasteja de joe­lhos pelo túnel, e os sons da superfície logo ficam abafados em seus ouvidos.

O túnel termina depois de 3 metros e meio. Saindo da rocha acima de sua cabeça estão as pontas das garras da criatura, afiadas como navalhas.

Engastada no teto de calcário, entre as duas garras negras, a parte de bai­xo de uma lata de metal brilhante, o mesmo recipiente de irídio que ele e seu pai encontraram há muito tempo, enterrado no deserto de Nazca.

Mick escava cuidadosamente em volta do lado exposto do recipiente, soltando-o aos poucos. O cascalho cai em suas costas, rachaduras aparecendo por todo o teto. Ele continua batendo, sentindo o objeto se soltar, sabendo que a qualquer instante o teto irá desabar, enterrando-o sob o peso da rocha e do autômato alienígena.

Fragmentos de rocha branca o cegam quando, com um último puxão, ele solta o recipiente, saltando para trás enquanto...

... uma parte do teto desaba, numa cortina cegante de poeira branca e detritos, o autômato de 900 quilos caindo dentro do túnel.

Mick rasteja de volta pelo que resta do túnel, arrastando-se sobre os de­tritos, seu corpo coberto de poeira branca, sua mão esquerda, suja de sangue, ainda segurando o recipiente de metal.

Ele sobe a escada, cuspindo e tossindo, depois desaba de costas perto da borda do buraco e inspira o ar fresco. Tateando até achar sua garrafa d'água, ele derrama o líquido morno no rosto, se enxagua, depois se senta e dirige a atenção para o recipiente.

Por um longo momento ele só olha para o objeto, reunindo suas forças, o ícone escarlate do Tridente de Paracas — o símbolo do Guardião — devol­vendo o seu olhar.

— Muito bem, Julius, vamos ver o que você escondeu de mim por tantos anos.

Ele abre a tampa, tirando o estranho objeto de dentro.

O que é isto?

É um objeto de jade, redondo e pesado, aproximadamente do tamanho de um crânio humano. Saindo de um lado, o cabo de uma imensa adaga de obsidiana. Mick tenta remover a arma, mas ela está muito bem presa.

Duas imagens estão desenhadas no outro lado do objeto. A primeira, uma épica batalha entre um caucasiano barbado e uma serpente emplumada gigante, o homem segurando um pequeno objeto, mantendo a fera a distância. A segunda imagem é de um guerreiro maia.

Mick olha para o rosto do guerreiro, sentindo arrepios percorrerem sua pele coberta de pó.

Meu Deus... sou eu.

 

                         Ilha de Sanibel, Costa Oeste da Flórida

O alarme do SOSUS acorda Edith Axler com um susto. Levantando a cabeça da mesa, ela pega os fones do terminal do computador, coloca-os e escuta.

Seu sobrinho, Harvey, entra no laboratório a tempo de ver a expressão de pavor da tia.

—      O que foi?

Ela joga longe os fones, depois liga apressadamente o sismógrafo. Harvey ouve a pena começar a riscar o papel quadriculado.

O que é...?

Um forte terremoto sob o atol de Campeche — ela diz com voz rou­ca, seu coração acelerado. — Deve ter acontecido há menos de uma hora. Esse som trovejante que você está ouvindo vem de uma série de poderosos tsunamis rasando perto do atol do oeste da Flórida...

Rasando?

Juntando forças ao diminuírem a velocidade, mudando a energia para a vertical. Essas ondas vão estar imensas quando chegarem ao litoral. Vão submergir todas as ilhas da costa.

Daqui a quanto tempo?

Acho que de 15 a vinte minutos no máximo. Vou avisar a Guarda Costeira e o prefeito, você ligue pra polícia, depois traga o carro. Precisamos sair daqui.

 

                               Golfo do México

O Seahawk Sikorsky SH-60B voa 15 metros acima das ondas gigantes, os ou­tros quatro helicópteros da Marinha seguindo-o de perto. Bem acima deles, duas esquadrilhas de caças apontam seus sensores para a veloz ondulação na água, 800 metros à frente.

Dominique olha pela janela para as monstruosas ondas. À distância, o litoral de Yucatán aparece, sob a neblina da madrugada.

Abaixo deles, a uma velocidade maior que a de um jato, propaga-se pelo leito do oceano o primeiro de uma série de tsunamis. A destruidora muralha de água diminui a marcha ao chegar aos atóis, a refração e a pouca profundidade redirecionando sua fúria assombrosa para cima, a onda arrebentando direta­mente abaixo da aeronave. O general Fecondo bate no ombro do co-piloto.

—      Por que os caças não continuam atirando?

O co-piloto olha para trás.

— Disseram que o alvo está fundo demais e nadando rápido demais. Não deixa rastros, nada que guie os mísseis. Não se preocupe, general, o ET vai ficar sem mar daqui a pouco. Nossos aviões vão arrebentado assim que chegar à praia.

O presidente Chaney se vira para Dominique, sua pele escura parecendo úmida e cinza.

—      Tudo bem aí?

Vou ficar melhor quando... — Ela para de falar, olhando para a água, sentindo o seu senso de equilíbrio vacilar ao ver o mar parecendo subir por baixo deles. — Ei, cuidado! Suba mais!

Cacete... — O piloto empurra com força o manche enquanto a onda monstruosa cresce sob o trem de pouso do helicóptero, levantando a aeronave como se fosse uma prancha de surfe.

Dominique agarra o encosto do banco à sua frente quando o Sikorsky vira para o lado. Por um momento surreal, o helicóptero dança sobre o imenso vagalhão, e então a onda de 26 metros os solta e cai, castigando a praia com um estrondoso golpe.

O helicóptero se estabiliza, pairando bem acima da paisagem submersa, seus passageiros e a tripulação respirando aliviados, enquanto a onda assassina corre para o interior, destruindo tudo em seu caminho.

Com um barulho ensurdecedor, os caças circulam acima deles.

—      General, nossos aviões avisam que perderam todo contato visual com o ET.

Ele está dentro da onda?

Não, senhor.

Então onde diabos ele está? — grita Chaney. — Uma coisa daquele tamanho não pode simplesmente desaparecer.

Ainda deve estar no mar — diz o general. — Mande os helicópteros voltarem para o local do último avistamento. Os jatos vão percorrer o litoral. Precisamos deter esse alienígena antes que ele siga para o interior.

Dez longos minutos se passam.

De seu ponto de observação, Dominique vê a onda do tsunami voltando para o mar, a água agitada arrastando com ela palmeiras desenraizadas, destroços e gado.

—      Presidente, estamos perdendo tempo...

Chaney se vira.

O ET ainda está aqui, em algum lugar.

E se não estiver? E se estiver indo para Chichén Itzá, como o Mick disse?

O general Fecondo vira a cabeça.

Temos trinta helicópteros sobrevoando o litoral do Yucatán. Assim que aquela coisa der as caras...

Esperem! O Mick disse que o subsolo da península é como uma es­ponja gigante. Há um labirinto de cavernas subterrâneas que desemboca no mar. O alienígena não está se escondendo, está viajando por baixo da terra!

 

                             Ilha de Sanibel

Edie bate na porta da casa da amiga.

—      Suz, abra!

Sue Reuben abre a porta, ainda sonolenta.

—      Ead, o que...?

Edith a agarra pelo pulso e a arrasta para o carro.

Edie, pelo amor de Deus, estou de pijama...

Entre aí. Um tsunami está vindo! — Harvey pisa no acelerador assim que as duas senhoras entram no carro, correndo loucamente por ruas residen­ciais até chegar à estrada principal.

Um tsunami? De que tamanho? E o resto da ilha?

A Guarda Costeira está percorrendo as praias e as ruas. Estão anun­ciando no rádio e na TV há dez minutos. Você não ouviu as sirenes?

Eu não durmo com o aparelho de surdez.

Harvey pisa nos freios quando eles se aproximam do cruzamento que leva para o elevado. A única ponte que sai da ilha de Sanibel está entupida pelo tráfego.

—      Parece que a notícia se espalhou — diz Harvey, gritando por cima do estardalhaço das buzinas.

Edie olha para o relógio.

Isso não é nada bom. Precisamos sair daqui.

A pé? — Sue balança a cabeça. — Edie, o pedágio fica a mais de um quilômetro e meio daqui. Estou de pantufas...

Edith abre a porta do carro, puxando a amiga do banco de trás. Harvey segura a outra mão da tia e leva as duas através das filas de carros, rumo ao outro lado da ponte.

Nos minutos seguintes, o trio ziguezagueia entre os carros, correndo so­bre a ponte até a distante cabine do pedágio.

Edie olha para cima enquanto vários adolescentes passam sobre patins motorizados. Ela protege os olhos do brilho que vem das águas calmas que vão da ilha de Sanibel até o Golfo do México.

Um petroleiro vermelho e preto percorre lentamente o horizonte.

Atrás do petroleiro, a 5 quilômetros da costa, uma indescritível muralha de água está surgindo de dentro do mar.

Sue Reuben se vira e olha a onda, incrédula.

—      Meu Deus, aquilo é de verdade?

Buzinas soam, passageiros desesperados fogem dos veículos quando a onda monstruosa arrebenta a 38 metros de altura.

O tsunami levanta o petroleiro sobre sua crista, depois engole o enorme navio de aço, arremessando-o contra o fundo do mar. O estrondoso impacto faz a ponte reverberar, enquanto a onda assassina se atira sobre o litoral de Sa­nibel, esmagando tudo o que encontra.

Edie arrasta o sobrinho e a amiga para a cabine deserta. Harvey abre a porta e puxa as duas para dentro no momento em que o tsunami arrasa as ilhas de Sanibel e Captiva, sua energia tremenda se espalhando pela baía.

Harvey fecha a porta deslizante, e Edie puxa Sue para o chão.

O tsunami corre pelo elevado, submergindo a cabine.

A estrutura de concreto e aço geme. Água do mar entra por todos os lados, enchendo o retângulo de um metro quadrado de fibra de vidro. Edie, Harvey e Sue ficam de pé na correnteza, envolvidos pela água fria e escuridão, enquanto o nível continua a subir. O tsunami ruge como um trem de carga, sua força soltando a cabine dos alicerces.

Todo o ar sai da cabine. Edie fecha os olhos com força, esperando pela morte. Seu último pensamento é para Iz, perguntando-se se irá vê-lo.

Seus pulmões queimam, o coração lateja em seus ouvidos.

E então o rugido passa e o sol volta a brilhar.

Harvey abre a porta com um pontapé.

Os três sobreviventes cambaleiam para fora, cuspindo e tossindo, apoiando-se uns nos outros num rio que bate nos joelhos e continua a correr para o interior. Edie segura Sue, sustentando-a na correnteza.

Vocês estão bem? Sue balança a cabeça.

Vamos voltar?

Não, tsunamis vêm em grupos. Precisamos fugir.

De braços dados, eles andam a passos largos e trôpegos pela rodovia inundada enquanto a onda diminui a velocidade, depois muda abruptamente de direção, ameaçando varrê-los para a baía. Agarrando-se a um sinal de trân­sito, eles se seguram e rezam, lutando para sobreviver em meio ao caudaloso rio de destroços.

 

                             Chichén Itzá

Segurando o objeto de jade, Mick olha para a imagem do guerreiro como se estivesse se vendo num espelho.

Uma brisa depois um farfalhar vindo de dentro do recipiente de irídio.

Mick enfia a mão nele, surpreso ao encontrar um pedaço de papelão desbotado. Sua mão treme quando ele lê a caligrafia familiar.

 

                           Michael:

Se o destino trouxe você até aqui, então agora você está tão cho­cado quanto sua mãe e eu ficamos quando o objeto que você tem nas mãos foi desenterrado, em 1981. Você era só uma criança inocente de 3 anos, e eu, bem, por um momento fui tolo o suficiente para acreditar que o guerreiro era eu. Então sua mãe me fez notar os olhos escuros, e ambos soubemos instintivamente que, de alguma forma, a imagem representava você.

Agora você sabe o verdadeiro motivo que fez súa-piãe e eu nos recusarmos a desistir da nossa luta — o motivo de uma infância nor­mal nos Estados Unidos ter sido negada a você. Um destino maior o aguarda, Michael, e achamos que nosso dever de pais era preparar você o melhor que podíamos.

Depois de duas décadas de pesquisa, continuo sem entender a função desse objeto de jade. Desconfio que possa ser algum tipo de arma, deixada pelo próprio Kukulcán, embora eu não consiga encon­trar nenhuma fonte de energia que possa identificar sua finalidade. Cheguei a conclusão de que a lâmina de obsidiana alojada dentro dele é um antigo punhal cerimonial de mais de mil anos, que talvez tenha sido usado para retirar os corações das vítimas dos sacrifícios.

Só me resta torcer para que você descubra o resto até o solsticio de inverno de 2012.

Peço a Deus que te ajude em sua cruzada, seja ela qual for, e também peço que um dia você possa perdoar esta alma torturada por tudo o que ela fez.

               Do seu pai que te ama, J. G.

 

Mick olha para a carta, relendo-a várias vezes, sua mente lutando para assimilar o que seu coração já sabe ser verdade.

Sou eu. Eu sou o Escolhido.

Ele fica de pé, joga a carta e o recipiente de volta no buraco, e depois, segurando o objeto de jade, corre da quadra deserta para os degraus ocidentais da pirâmide de Kukulcán.

O suor escorre do seu rosto quando ele chega ao topo. Enxugando o suor misturado ao pó da fronte, ele cambaleia para dentro do corredor norte, até o lugar da plataforma hidráulica do Guardião.

—      Guardião, me deixe entrar! Guardião...

Ele bate os pés no chão de pedra, chamando mais vezes.

Nada acontece.

 

                             Cenote Sagrado

Medindo 2 metros e pesando 136 quilos, o tenente-coronel Mike "Ming-Ding" Slayer é o mais alto boina-verde que já envergou o uniforme. O homenzarrão de voz rouca, mistura de chinês, irlandês e americano, é ex-jogador profissional de futebol e uma maravilha da medicina, que já teve quase todas as partes do corpo reparadas, substituídas ou recicladas. Ming-Ding tem a reputação de bater para machucar quando lhe falta a palavra que quer usar, ou quando desloca o ombro ou o joelho.

Usando a manga, o soldado enxuga o suor do lábio superior antes que os mosquitos pousem nele. Puta que pariu, três horas coçando o saco nesta porcaria de selva mexicana.

Ming-Ding Slayer está mais do que pronto para bater em alguma coisa. Estalos de estática enchem seu ouvido esquerdo. O tenente-coronel ajus­ta o comunicador.

—      Prossiga, coronel.

—      Satélites detectaram um fluxo magnético se aproximando da sua po­sição, vindo do norte. Acreditamos que o alienígena esteja viajando pelo aquí­fero e possa sair de dentro do poço.

Já era tempo, cacete.

—      Positivo. Estamos mais do que preparados.

Ming-Ding faz sinais ao seu pelotão para que se posicione ao redor do poço. Cada homem carrega uma OICW, a metralhadora mais letal do mundo. O dispositivo de 6 quilos tem dois canos: um que dispara balas de 5,56 mm e o outro para os cartuchos explosivos HE de 20 mm, que podem ser programados para detonar com o impacto ou depois de um curto intervalo de tempo, na frente, atrás ou acima de um alvo inimigo.

O sargento John "Ruivo Sujo" McCormack se aproxima do tenente-co­ronel e os dois homens olham para o lodo lá embaixo.

—      Cadê a porra do alienígena?

—      Lei de Murphy em combate número 16. Quando você está pronto pra atacar um objetivo, não se esqueça de avisar o inimigo.

O chão começa a tremer e anéis se formam na superfície do poço.

— Acho que falei cedo demais. — Ming-Ding faz um sinal para seus homens, depois se afasta da borda quando os tremores ficam mais fortes.

Ruivo Sujo olha através de sua mira laser. Vem, filho da puta. Vem me pegar.

O chão se agita tanto que os soldados mal conseguem mirar. A parede oposta do cenote desaba. Uma nuvem de calcário e água explo­de para fora...

O alienígena surge do cenote.

Os músculos de Ming-Ding se contraem de medo.

—      Puta que pariu... Fogo! Fogo!

Uma chuva de chumbo sai das armas dos soldados.

As balas não atingem o alienígena. Um escudo transparente de ener­gia, visível só pela sua distorção, envolve a serpente como uma segunda pele. Quando as balas entram no campo, parecem se vaporizar em pleno ar.

—      Que porra...? — Ming-Ding olha, horrorizado e confuso, enquanto seus homens continuam atirando.

Passando pelos soldados como se eles nem existissem, a entidade aliení­gena desliza pelo sacbe maia, seu corpo, da largura de uma locomotiva, abrindo caminho na selva rumo à pirâmide.

Ming-Ding ativa o transmissor do seu capacete.

—      Coronel, fizemos contato com o alienígena. Ou pelo menos tentamos. Nossas balas foram inúteis, senhor, dá a impressão que desapareceram no ar.

 

Mick pode ouvir o eco das pás do helicóptero fustigando o ar enquanto olha para o Grande Campo Maia do alto da pirâmide de Kukulcán, vendo a aeronave da Marinha pousar na grama adjacente à escadaria ocidental da pirâmide.

Seu coração bate forte quando ele vê Dominique saindo, ao lado do pre­sidente e de dois soldados.

Michael...

Mick ofega, virando para o norte. Ele sente algo se aproximando, vindo da selva.

Algo imenso!

As árvores que ladeiam o sacbe são arrancadas quando o ser se aproxima. No chão, quatro blindados Abrams M1-A2 correm pela estrada de terra em fila única, suas miras laser apontando para o meio da estrada maia. Mick arregala os olhos, seu coração palpita.

Acima das árvores, o crânio do alienígena aparece, seus olhos escarlate brilhando como rubis sob o sol vespertino.

Tezcatilpoca...

Os blindados abrem fogo, quatro projéteis irrompendo simultaneamente dos canhões de 120 mm dos veículos.

Não há contato nem explosão. Ao atingirem o couro do alienígena, as bombas simplesmente desaparecem num denso colchão de ar, com clarões cegantes e rápidos.

Continuando sua aproximação, a serpente passa por cima dos blindados. Por um momento, os Abrams desaparecem dentro do campo de energia, rea­parecendo segundos depois, seus cascos e torres de titânio irreconhecivelmente amassados.

As palavras do Guardião ecoam em seus ouvidos.

Tezcatilpoca abriga o portal para o corredor quadridimensional.

O portal para o corredor quadridimensional... é Tezcatilpoca! Tezcatilpoca é o portal!

A serpente emplumada sobe pela balaustrada setentrional, os olhos de­moníacos luminescentes irradiando energia. Nadando nas córneas cor de sangue, as fendas douradas das pupilas reptilianas se alargam, como que revelando as chamas de uma fornalha infernal.

Mick olha para a criatura, sua mente completamente tomada pelo medo. Ele quer que eu entre nisso aí?

A serpente para no topo. Ignorando Mick, ela abre a boca, exalando uma lufada vaporosa de energia esmeralda por entre as presas retraídas.

Com um grande ruído, o templo de calcário se acende em irreais chamas rubras, o fogo alienígena derretendo os blocos de pedra em segundos.

Mick recua, fugindo do calor intenso, abrigando-se nos últimos três de­graus da escadaria setentrional.

As chamas se apagam. Depois da conflagração, erguendo-se como um mastro do pouco que resta da parede central do templo — uma antena de irídio de 5 metros.

A grade!

Você é Hunahpu. Tem a habilidade de acessar a grade dos Nefilins.

O instinto repentino de sobrevivência deflagra um processo mental há muito tempo adormecido. Impulsos altamente carregados correm pelas terminações nervosas dos dedos de Mick para o objeto de jade, fazendo-o brilhar com uma energia intensa, quase cegante.

O alienígena estaca, suas pupilas de âmbar desaparecem nas fendas es­carlate dos olhos.

O coração de Mick martela como uma britadeira, seu braço tremendo com a energia emanada pelo seu corpo.

A víbora, ofuscada, fita a pedra como se estivesse em transe.

Mick fecha os olhos, lutando para conservar sua sanidade. Certo, fique calmo. Afaste-a da grade.

Mantendo o braço estendido, ele desce, um agonizante degrau de cada vez, pela escadaria ocidental.

Como se estivesse sendo puxado por uma rédea invisível, o ser o segue para baixo.

Dominique corre até ele, depois para, arregalando os olhos, chocada.

—      Meu Deus...

Chaney, o general Fecondo e os dois soldados permanecem imóveis atrás de uma das paredes curtas da quadra, suas mentes incapazes de decifrar o que os olhos estão vendo.

Dominique! — Com sua mão vazia, Mick a acorda de seu estupor. — Dom, você não pode ficar aqui!

Meu Deus... — Ela segura a sua mão, puxando-o para trás. — Venha...

Não, espere. Dom, você lembra o que eu disse? Lembra o que simbo­lizava a entrada do Mundo Inferior no Popol Vuh?

Ela se vira para encará-lo, depois olha para o monstruoso alienígena.

Não. Ah, meu Deus, não...

Dom, a serpente emplumada é o portal para a Estrada Negra...

Não...

E acho que eu sou Um Hunahpu!

Michael...

Mick sente um calafrio.

Ela o olha, completamente apavorada, seu rosto riscado pelas lágrimas levadas pelo vento.

O que você vai fazer? Não está pensando em se sacrificar, não é?

Dom...

Não! — Ela agarra o seu braço.

Estou chegando, Michael. Estou sentindo o seu medo...

—      Não vou te deixar fazer isso! Mick, por favor... eu te amo... Mick sente sua determinação fraquejar.

—      Dom, eu te amo, e estou com muito medo. Mas, por favor, se quiser me ver de novo, precisa ir embora agora. Por favor, vá, agora! — Mick se dirige a Chaney. — Tire-a daqui! Já!

O general Fecondo e os dois soldados a arrastam, chutando e gritando, de volta para o helicóptero.

Chaney se aproxima de Mick, sempre com os olhos no alienígena.

—      O que você vai fazer?

Não tenho certeza, mas, aconteça o que acontecer, mantenha a Do­minique longe daqui.

Você tem a minha palavra. Agora faça um favor a todos nós e mate essa coisa. — Chaney se afasta e entra no helicóptero.

A aeronave decola.

Uma onda de fraqueza leva Mick a dobrar um joelho, fazendo-o perder a concentração.

A luz que emana da pedra de jade diminui.

A serpente alienígena agita sua cabeça mastodôntica. Suas pupilas de âmbar reaparecem, as fendas verticais se alargam. Mais dois olhos extras en­gastados nas faces do alienígena captam a imagem térmica de Mick e o brilho fraquejante de sua arma.

Isso não é bom... Mantenha a concentração...

Tezcatilpoca levanta metade do corpo, rugindo uma horripilante sílaba alienígena, como se estivesse se declarando livre do feitiço de Mick.

Os quatro olhos viperinos perfuram Mick, concentrando-se nele como se o estivessem vendo pela primeira vez. As mandíbulas se abrem. Uma bílis negra e fumegante pinga das presas superiores retraídas, respingando como um veneno ácido sobre os degraus de calcário.

A adrenalina corre pelo corpo de Mick. Ele fecha os olhos para morrer e então — com um espasmo repentino de reconhecimento primal —, ele sente a grade em sua mente.

Tezcatilpoca abre mais as mandíbulas, desnudando suas horríveis presas e lançando a parte de cima do corpo contra o Hunahpu numa velocidade terrível.

Como um raio, a explosão de energia elétrica azul parte da antena da pirâmide, atingindo a serpente em pleno salto. Empalada pela grade, a criatura se retorce, agonizando, seu corpo desaparecendo e reaparecendo nas ondas de incandescente energia esmeralda, sua plumagem e espinhos eriçando-se em espasmos rítmicos.

Mick continua imóvel diante da monstruosidade alienígena, com os olhos fechados, direcionando seus recém-descobertos instintos de Hunahpu, concentrando o enorme poder da grade do Guardião no seu estridente inimigo.

Tremendo de raiva, Tezcatilpoca desfere um brado ensurdecedor, o ata­que verbal ecoando pela esplanada, derrubando as colunas do Complexo do Guerreiro.

Abrindo os olhos, Mick segura a pedra central acima da cabeça e usa a força de vontade para tirar a adaga de obsidiana de sua bainha fulgurante.

O objeto de jade pulsa furiosamente, irradiando uma energia incandes­cente, o calor queimando sua mão.

Ele mira e joga o objeto na boca escancarada do alienígena.

Uma erupção de pura energia como um sol transformando-se em nova.

Tezcatilpoca é tomado por espasmos -— como se tivesse sido atingido por um bilhão de watts de eletricidade.

Protegendo os olhos, Mick cai de joelhos, desativando a grade.

O ser alienígena desaba, sem vida, sobre os degraus. Seus olhos antes luminosos assumem tons de cinza, e sua boca aberta repousa entre as duas cabeças de serpente de calcário, posicionadas como capitéis dos dois lados da balaustrada setentrional.

Mick cai deitado de costas, seus membros tremendo e seus pulmões lu­tando para puxar ar.

 

Com o rosto pressionado contra a janela do helicóptero, Dominique grita de alegria, depois pula sobre o assento da frente e estrangula Chaney com um abraço de urso.

—      Tudo bem, tudo bem. Pouse o helicóptero, tenente. Esta jovem quer ver o namorado.

O general Fecondo pressiona o radiorreceptor sobre a orelha, tentando ouvir em meio à algazarra dentro da aeronave.

—      Repita, almirante Gordon...

A voz do oficial crepita nos fones.

—      Repetindo. O campo de força da nave alienígena continua ativado. Vocês podem ter matado a fera, mas sua fonte de energia continua bem ativa.

 

De olhos fechados, Mick está deitado na esplanada dura e coberta de grama, sua mente exausta lutando para restabelecer a conexão neural que de alguma forma lhe permitiu ativar a grade do Guardião.

Frustrado, ele se senta, olhando para a lâmina de obsidiana em sua mão. Eu sou Hunahpu, mas não sou o Escolhido. Não consigo acessar a Estrada Negra. Não posso selar o portal. Ele se vira e vê um pelotão de soldados fortemente armados surgindo da selva.

Ming-Ding Slayer o levanta pelos ombros.

Cacete, Gabriel, como você conseguiu?

Também queria saber.

Vários soldados atiram na cabeça imóvel do alienígena, suas balas se va­porizando antes de atingirem o alvo. Michael...

Mick levanta a cabeça, sobressaltado. A voz é diferente, familiar. Calman­te, de alguma forma. Guardião...

Fechando os olhos, ele permite que a voz guie seus pensamentos mais fundo em sua mente.

Deixe o medo de lado, Hunahpu. Abra o portal e entre. Os Senhores do Mundo Inferior que ficaram na Terra aparecerão para desafiá-lo. Eles tenta­rão impedi-lo de fechar o portal cósmico antes que o Deus da Morte chegue.

Mick abre os olhos, concentrando-se na boca hedionda de Tezcatilpoca.

A antena do Guardião dispara um raio azul de energia elétrica que atinge o crânio inanimado da serpente.

A mandíbula superior começa a se abrir; assustados, os soldados pulam para trás, vários tentando inutilmente atirar na fera morta.

Mick fecha os olhos, mantendo a concentração. As mandíbulas do aliení­gena se escancaram, expondo horríveis presas de ébano, rodeadas por centenas de dentes afiados como navalhas.

E então, uma segunda cabeça viperina aparece. Idêntica, mas um pouco menor, ela sai de dentro da boca da primeira.

Mick fecha os olhos com força, aumentando a concentração. Uma ter­ceira e última cabeça sai da boca da segunda, e as mandíbulas das três travam abertas.

A grade é desativada. Mick dobra um joelho, sua concentração esgotada, sua mente exausta com o esforço.

E então, sobre a pirâmide aparece um rodopiante cilindro esmeralda de energia, um corredor quadridimensional cósmico que atravessa o espaço e o tempo, indo dos céus escuros até a cauda da imóvel serpente alienígena.

Os soldados largam as armas. Ming-Ding cai de joelhos, estarrecido, como se estivesse vendo o rosto de Deus.

Em algum lugar à direita de Mick, o helicóptero do presidente pousa.

Mick olha para o portal aberto, ponderando sua decisão, esforçando-se para afastar o medo.

—      Mick!

Dominique desce do helicóptero.

As palavras do Guardião ecoam: Você não pode permitir que ela entre.

—      Chaney, segure ela aí!

O presidente a segura pelo pulso.

—      Me solta! Mick, o que você está fazendo...

Ele olha para ela, sentindo o peso aumentar em seu peito. Vá, agora, antes que ela venha atrás!

Segurando a adaga de obsidiana com a mão direita, ele vira para trás, depois salta as fileiras dos dentes inferiores e entra na primeira das bocas escan­caradas da serpente.

As mandíbulas reptilianas se fecham atrás dele, a ter­ceira cabeça se retraindo para dentro da boca da segunda.

Mick está na escuridão total, seu coração batendo como um tambor. De repente, a entrada parece sugá-lo para a frente sem movê-lo, uma sensação nauseante que puxa seus órgãos internos, como se seu intestino estivesse sendo desenrolado. Zonzo, ele fecha os olhos com força, apertando a lâmina de obsidiana contra o peito.

Luz.

Ele abre os olhos, livre da incômoda sensação. Não está mais na boca da serpente. Está no Grande Campo Maia, que agora está dentro de um enorme cilindro rodopiante de energia esmeralda.

Entrei no portal... Estou no limiar de outra dimensão...

É como se ele estivesse vendo o mundo através de óculos de cores vivas. Para lá dos arredores em movimen­to, ele vê um céu lavanda, a abóbada brilhando com um milhão de estrelas, cada uma liberando um caleidoscópio de ondas de energia ao percorrer a tapeçaria do universo. Diretamente acima dele está a fenda escura, correndo como um irregular rio celeste de gás averme­lhado bem no centro do cosmos magenta.

Quando ele anda, os objetos ao redor ficam borrados em sua visão peri­férica, como se ele estivesse se movimentando rápido demais para seus olhos.

A 100 metros dali, na outra extremidade da quadra fechada, ele vê a se­gunda boca da serpente, o orifício posicionado abaixo do Templo do Homem Barbado.

Saindo das mandíbulas abertas, uma figura — coberta da cabeça aos pés com uma capa preta.

Os membros de Mick tremem com a adrenalina e o medo. Ele aperta mais a adaga.

O ser se aproxima. Mangas pesadas sobem dos dois lados do capuz, mãos invisíveis puxando-o para trás, revelando o rosto...

Mick arregala os olhos, incrédulo. Os músculos de suas pernas viram gelatina. Ele cai de joelhos, a intensidade de suas emoções fazendo submergir qualquer pensamento de sua mente sobrecarregada.

Maria Gabriel olha para o seu filho e sorri.

Ela está jovem de novo, uma belíssima mulher de 30 e poucos anos. O câncer se foi, a palidez da morte substituída por um brilho sadio. Cachos es­curos pendem em volta do seu pescoço, seus olhos de ébano olhando para os dele com amor de mãe.

Michael.

Não... você não... não pode ser real. — Ele sufoca ao dizer as palavras.

Ela toca o rosto dele.

Mas sou real, Michael. E senti tanto a sua falta.

Eu também senti a sua. — Ele segura a mão dela, olhando-a nos olhos. — Mãe... como?

Há tanta coisa que você não entende. Nosso propósito na vida, a metamorfose da morte. Um processo que nos permite desfazer os grilhões materiais para que possamos evoluir e ingressar num plano superior.

Mas por que você está aqui? Que lugar é este?

Um nexo, um portal vivo que liga um mundo ao outro. Fui enviada para guiar você, Michael. Você foi enganado, meu querido, iludido pelo Guar­dião. Tudo o que te contaram era mentira. A abertura do portal é o Segundo Advento. É o Guardião que é maligno. O espírito de Xibalba está atravessando o cosmos. Vai passar pela Terra, trazendo paz e amor para a humanidade. Esse é o destino da humanidade, meu filho... e o seu.

Eu... eu não entendo.

Ela sorri para ele, afastando o cabelo de sua testa.

—      Você é Um Hunahpu, o Primeiro Pai. Você será o guia, o duto entre a carne e o outro mundo.

Maria ergue o braço graciosamente, apontando para a extremidade da quadra. Outra figura surge da boca da serpente, esta vestida de branco.

Está vendo? A Primeira Mãe te espera.

O queixo de Mick cai. É Dominique!

Sua mãe o segura.

Espere. Seja gentil, Michael. Ela está confusa, ainda está em choque.

Como assim?

Maria se vira e segura a mão de Dominique. Os olhos da garota são grandes e inocentes como os de um cordeirinho, sua beleza absolutamente encantadora.

Ela não suportou viver sem você.

Está morta?

—      Suicídio. — Mick sufoca um grito quando sua mãe afasta gentilmente o cabelo negro da têmpora direita de Dominique, revelando um buraco de bala ensanguentado.

—      Não. Meu Deus...

Enquanto ele olha, o ferimento desaparece.

—      O destino dela está entrelaçado ao seu. Ela será Eva, e você, Adão. São os espíritos de vocês que darão início a uma nova era na Terra, a um novo entendimento do mundo espiritual.

Enquanto ele olha, a expressão hipnotizada de Dominique parece mudar.

—      Mick? — Um grande sorriso se abre em seu rosto. Ela cambaleia para a frente e o abraça.

A paixão extravasa do coração de Mick quando ele consome Dominique em seu abraço.

E então ele se afasta, uma vozinha em sua mente cansada exigindo que ele se controle.

—      Espere. Como assim, nossos espíritos? Eu estou morto?

—      Não, querido, ainda não. — Maria aponta para a lâmina de obsidia­na. — Você mesmo precisa fazer esse gesto, o sacrifício definitivo para salvar o nosso povo.

Mick olha para o punhal, suas mãos tremendo.

—      Mas por quê? Por que eu tenho que morrer?

—      A morte é um conceito tridimensional. Há muitas coisas que você não pode entender, mas precisa Confiar em mim... e no Criador. — Maria toca-lhe a face. — Sei que está com medo. Não se preocupe. É só uma dor momentânea para remover os grilhões físicos da vida. Nada mais. Depois... a paz eterna. Dominique beija sua outra face.

—      Eu te amo, Mick. Agora entendo. Entrei em outro mundo. Sinto a sua presença no meu coração. Nosso destino é ficar juntos.

Ele toca a ponta afiada da adaga com seu dedo, que sangra. Seu sangue está azul!

Uma imagem subliminar da câmara de Tezcatilpoca passa por sua mente, seguida pelas palavras do Guardião, sussurradas nas profundezas de seu cérebro. Os malignos Senhores do Mundo Inferior aparecerão para desafiar você. Eles tentarão impedi-lo de selar o portal antes que Ele chegue...

Mick, você está bem? — Dominique se aproxima, um ar preocupado nos olhos. Ela aperta a mão que segura a adaga. — Eu te amo.

E eu te amo.

Ela o abraça, beijando-lhe o pescoço, segurando com mais força a mão do punhal.

—      Sacrifiquei minha vida na Terra porque não aguentei ficar sem você. De alguma forma, eu sabia que estávamos destinados a ser almas gêmeas.

Almas gêmeas? Ele se dirige a Maria.

Onde está o meu pai?

Julius está no outro plano. Você precisa morrer para poder vê-lo.

Mas estou vendo a Dominique. Estou vendo você.

A Dominique é a Primeira Mãe. Eu sou sua guia. Você verá os outros depois de sua passagem.

Em sua mente, ele vê o pai sufocando a mãe com um travesseiro. Mick levanta o punhal, olhando-o.

Mãe, Julius te amava de verdade, não amava?

Sim.

Ele sempre disse que vocês dois eram almas gêmeas, destinadas a ficar juntas. Para sempre.

Como nós dois — diz Dominique, ainda apertando sua mão. Mick a ignora, sua mente ficando mais alerta.

O que ele fez com você o destruiu. Ele sofreu pelo resto da vida.

Sim, eu sei.

—      Fui tão egoísta. Nunca me permiti entender o que ele realmente fez e por quê. — Mick olha para a mãe. — Papai te amava tanto. Estava disposto a viver o resto dos seus dias na amargura para não te ver sofrer mais um minuto.

Mas ele nunca se matou. Continuou no caminho, enfrentando tudo. Ele fez isso por mim.

Mick vira para Dominique, aproximando-se, acariciando sua face com uma mão, segurando a adaga com a outra.

—      Agora eu entendo. O que meu pai fez, matando sua alma gêmea, acabando com o sofrimento dela. Ele escolheu o caminho mais difícil. Fez o sacrifício definitivo.

Maria sorri.

—      Está na hora de você fazer o mesmo sacrifício, Michael.

Dominique solta a sua mão quando Mick aperta a ponta da lâmina no próprio peito. Ele olha para os céus, suas emoções, por tanto tempo reprimi­das, derramando-se do seu coração.

—      Pai, eu te amo! Está me ouvindo, pai? Eu te amo. Eu te perdoo!

Seus olhos escuros estão pregados nos de Dominique, dois faróis de éba­no que lhe vasculham a alma. Seu peito para de soluçar, sua garganta se contrai quando os vasos sanguíneos em seu pescoço saltam de raiva.

—      Eu sou Hunahpu — ele grita, arregalando os olhos. — E sei quem você é!

Num movimento rápido, Mick se vira e enfia o punhal na garganta de Dominique, o golpe desequilibrando-a e fazendo-a cair de costas. Mick em­purra a lâmina e uma substância negra parecida com silicone jorra do pescoço dela, enquanto ele torce a lâmina para o lado, disposto a decapitar seu inimigo.

A criatura se retorce, agonizante, grunhindo e rosnando. Sua pele enco­lhe, escurecendo até ficar vermelho-escura, o disfarce se desfazendo diante dos olhos de Mick.

Com um grito de guerreiro, Michael Gabriel separa a cabeça do demônio de seu corpo.

O ser que fingia ser sua mãe chia para ele, as fendas douradas em seus olhos vermelhos chispando ódio, sua boca cheia de presas pingando um vene­no negro.

Num só movimento, Mick gira e mergulha a lâmina de obsidiana no coração do Senhor do Mundo Inferior.

A carne do rosto de Maria queima, revelando por uma fração de segundo feições satânicas chamuscadas, antes de se desfazer em cinza.

 

Dominique grita quando o corpo da serpente alienígena se vaporiza diante de seus olhos. Ela põe a mão no peito e desmaia antes que Chaney possa segurá-la.

 

                     A Bordo do John C. Stennis

Jeffrey Gordon, o oficial em comando, corre o binóculo pelo casulo alienígena flutuante quando o último Tomahawk explode sobre o casco metálico.

Esse último míssil explodiu! O escudo desapareceu. Continuem atirando!

Uma salva de mísseis Tomahawk é lançada. O almirante vê os projéteis atingirem a nave de irídio, pulverizando-a.

O Grande Campo Maia do Jogo de Bola desapareceu. Michael Gabriel está sozinho num vórtice esme­ralda de energia, o túnel cilíndrico girando um bilhão de vezes por minuto.

À sua esquerda está a entrada do portal, sua aber­tura cada vez menor revelando a base norte da pirâmide. Ele pode ver Dominique, deitada nos primeiros dois de­graus. Chorando.

À sua direita está outro portal, a entrada para Xibalba Be — a Estrada Negra. Em seu centro, um ponto de luz branca visível na escuridão do espaço.

Uma sensação de calma o invade, aplacando seus nervos esfrangalhados.

Guardião, eu triunfei?

Sim, Hunahpu. Os dois Senhores do Mundo Infe­rior estão mortos. O portal está se fechando, o Deus da Morte mais uma vez não pode entrar no seu mundo.

Mick vê que a abertura à sua esquerda continua se fechando.

Então a ameaça à humanidade acabou? Por enquanto. Chegou a hora de escolher.


Materializando-se diante dele, um sarcófago de granito marrom. Pairan­do acima de seu interior em formato de banheira, uma cápsula lisa, do tama­nho de um caixão.

Dois destinos estão à sua espera. Você pode viver o resto dos seus dias como Michael Gabriel ou seguir para Xibalba e cumprir seu destino como Um Hunahpu — tentando salvar a alma do nosso povo.

Os Nefilins...

Há 65 milhões de anos, o Guardião... os Nefilins sobreviventes esco­lheram ficar na Terra, para salvar o futuro de uma espécie desconhecida, es­perando que seu messias genético um dia aceitasse retribuir o favor. Mick se lembra dos rostos assustados das crianças em Xibalba, suas almas presas ao purgatório.

Tão apavoradas. Tão sozinhas...

Mick olha para Dominique, desejando abraçá-la, reconfortá-la. Ele ima­gina a vida que as circunstâncias lhe negaram desde criança. Amor... casamen­to... filhos... Uma existência feliz.

Não é justo. Por que preciso escolher? Eu mereço viver minha vida.

Ele se imagina envolvido pela ternura de Dominique, nunca tendo que acordar no meio da noite no chão frio de uma cela de concreto, sentindo-se tão sozinho...

Tão vazio.

O sacrifício definitivo...

Ele se lembra da voz doce de Dominique. Mick, nenhum de nós tem con­trole sobre o jogo ou as cartas que recebemos...

Você tem livre-arbítrio, Michael. Decida logo, antes que o portal se feche. Arrancando seu coração de Dominique, ele entra na cápsula.

 

Mick abre os olhos. Ele está deitado de bruços no casco azul radiante da cápsu­la, mergulhando de cabeça no espaço através de um funil tortuoso de intensa gravidade. Embora esteja envolvido pela energia, de alguma forma ele conse­gue ver através das paredes do transporte. Para lá da luz brilhante, pode ver as estrelas, passando por ele como riscos de luz.

Por cima do ombro ele vê a Terra, o planeta azul desaparecendo de vista, o rastro cósmico do duto quadridimensional evaporando atrás dele, deixando a escuridão do espaço em seu lugar.

O vazio crescente dilacera a sua alma torturada.

Bem-vindo, Um Hunahpu. Você chegou.

Sinto falta dela.

Ela é abençoada, a semente do nosso pacto cresce em seu ventre. O destino dela está para sempre ligado ao seu.

Uma luz branca aparece à frente, seu brilho aumentando.

Dedos frios e cadavéricos de terror agarram sua mente.

Xibalba... A trepidação e o medo o esmagam.

— O que foi que eu fiz? Guardião, por favor. Eu quero voltar!

Agora é tarde. Não tema, Michael, pois jamais o abandonaremos. Você fez o sacrifício definitivo. Ao fazê-lo, devolveu a humanidade à sua espécie e deu às almas de nossos ancestrais uma chance de salvação. O caminho que você escolheu é nobre — vai revelar os próprios segredos do universo, vai pôr a própria essência do bem contra o mal, a luz contra as trevas, e há mais coisas em jogo do que você possa imaginar.

Agora feche os olhos e descanse enquanto o preparamos, pois o que virá a seguir é o mal — em sua forma mais pura.

 

EPÍLOGO

 


                         3 DE JANEIRO DE 2013

                         CASA BRANCA , WASHINGTON, DC

O presidente Ennis Chaney ergue os olhos da mesa quando sua chefe de gabinete, Katherine Gleason, entra, toda sorrisos.

—      Bom dia.

Bom dia. Mais um belo dia pra se estar vivo. A coletiva está pronta?

Sim, senhor. O púlpito está decorado com dois arranjos florais, um agradecimento dos chineses.

—      Que gentileza. Meus outros convidados já chegaram?

—      Sim, senhor, estão esperando no corredor.

 

O secretário de Estado Pierre Borgia está ajeitando a gravata quando a videoconferência começa. Ele olha o relógio, depois ativa o vídeo-comunicador em sua mesa.

A imagem de Joseph H. Randolph, Sr., lhe sorri de um lado da tela dividida na metade, o empreiteiro da defesa Peter Mabus na outra.


Aí está ele, Pete. Pierre Sortudo.

Estamos muito orgulhosos de você, filho.

Borgia abaixa o volume.

Cavalheiros, por favor, ainda não são favas contadas. O Chaney ainda não me ofereceu a vice-presidência oficialmente, embora tenhamos uma reunião marcada antes da coletiva.

Acredite, filho, minhas fontes me garantem que são favas contadas, sim. — Randolph passa uma mão manchada pelo cabelo prateado. — O que acha, Pete? Devemos dar a Pierre alguns meses pra se acostumar com o novo cargo ou vamos começar a mexer os pauzinhos pra derrubar Chaney de uma vez?

Isso é bom para as eleições do Legislativo. Até lá, a Mabus Tech vai ser maior do que a Microsoft.

A batida na porta manda uma onda de adrenalina para o estômago de Borgia.

—      Deve ser Chaney. Eu ligo depois.

Borgia desliga o vídeo-comunicador enquanto o presidente entra.

Bom dia, Pierre. Pronto pra coletiva?

Sim, senhor.

Que bom. Ah, antes de irmos para o jardim, quero que conheça al­guns cavalheiros. Eles vão te acompanhar no evento de hoje. — Chaney abre a porta, deixando entrar um homem de terno escuro e dois policiais armados no escritório de Borgia.

Este é o agente especial David Tierney, do FBI.

Sr. Borgia, está preso por...

O queixo de Borgia cai quando os policiais puxam-lhe os braços para trás e o algemam.

Que história é essa?

Conspiração para cometer homicídio. Outras acusações serão feitas. Você tem o direito de ficar calado...

Isso é loucura!

Os olhos de guaxinim estão chispando.

—      Agente Tierney, Mick Gabriel ficou preso por quase 12 anos. Quanto tempo acha que podemos manter o ex-secretário de Estado na cadeia?

Tierney sorri.

—      Com todos os crimes que ele cometeu? Acho que dá pra fazer até mais do que isso.

Os dois policiais arrastam Borgia, chutando e gritando, para fora do escritório.

Chaney sorri.

—      Passem com ele pelo púlpito para a imprensa poder tirar umas fotos. E não se esqueçam de virar o olho bom dele para as câmeras.

 

                   21 DE MARÇO DE 2013, BOCA RATON, FLÓRIDA

A limusine preta vira para o sul na Route 441, a caminho do Centro Médico West Boca. No banco de trás, Dominique Vazquez aperta a mão de Edie en­quanto ela assiste ao noticiário na pequena TV.

 

"... e assim, cientistas e arqueólogos continuam intrigados, sem saber por que, pela primeira vez em mais de mil anos, a sombra da serpente emplumada não apareceu na balaustrada setentrional da pirâmide de Kukulcán hoje, no equinócio da primavera. Mais uma vez, Alison Kieras para o Channel 7 News, falando ao vivo de Chichén Itzá."

 

Edie desliga o aparelho quando a limusine estaciona no centro médico. Um dos guarda-costas armados abre a porta de trás, ajudando Dominique e sua mãe a saírem do carro.

—      Você parece bem alegrinha hoje.

Dominique sorri.

Posso senti-lo.

—      Sentir quem?

—      O Mick. Ele está vivo. Não me pergunte como, mas sinto a presença dele no meu coração.

Edith a acompanha para dentro do hospital, achando melhor não dizer nada.

 

Dominique está deitada sobre a mesa de exames, olhando para o monitor en­quanto o médico passa o sensor pelo seu ventre inchado. Edie aperta a mão dela quando o som dos batimentos cardíacos acelerados sai da máquina.

—      Aí está a cabeça de um... e aí está o outro feto. Tudo parece ir muito bem. O médico limpa o gel da sua barriga com um pano úmido. — E en­tão, sra. Gabriel, quer saber o sexo dos seus gêmeos?

Dominique vira para Edie, com os olhos rasos d'água.

—      Eu já sei, doutor. Eu já sei.

 

 

[1] Psicopata americano que matou mais de trinta mulheres na década de 1970. Foi executado na cadeira elétrica em 24 de janeiro de 1989, aos 42 anos. (N. do T.)

[2] O livro foi escrito em 2001, sete anos antes de Barack Obama ser eleito presidente dos Estados Unidos. (N. do E.)

[3] Subsolo permanentemente congelado que existe nas regiões polares, e localmente em outras áreas de clima gélido. (N. do T.)

[4] Laser Químico Avançado de Espectro Infravermelho Médio. (N. do T.)

[5] Sistema Aéreo de Controle e Alerta. (N. do T.)

[6] Míssil Tomahawk de Ataque Terrestre. (N. do T.)

 

                                                                                Steve Alten

 

 

                      

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