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O DON TRANQUILO 4º Volume / Mikhail Cholokhov
O DON TRANQUILO 4º Volume / Mikhail Cholokhov

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O DON TRANQUILO

4º Volume / Primeira Parte

 

A insurreição do Alto-Don, que afastara da frente Sul importantes efectivos vermelhos, permitira ao comando do Exército do Don não só reagrupar sem pressa as suas forças na frente que protegia Novotcherkassk, como também concentrar no sector das stanitsas Kaménsskaia e Ust-Belokalitvénsskaia um poderoso grupo de choque constituído por regimentos mais sólidos e experientes isto é, sobretudo regimentos do Baixo-Don e Kalmuks. A missão destes era entrar em acção no momento oportuno e, combinando os seus esforços com os das unidades do general Fkskhalaurov, desbaratar a 12.ª Divisão que fazia parte do 8.º Exército vermelho. Depois abririam caminho para o Norte, operando no flanco e na retaguarda da 13.ª Divisão do Ural, indo juntar-se aos insurrectos do Alto-Don.

O plano de concentração do grupo de choque, elaborado pelo general Dénissov na altura em que era comandante-chefe do Exército do Don, e pelo seu chefe de Estado-Maior, o general Poliakov, estava cumprido na sua quase totalidade em fins de Maio. Cerca de dezasseis mil soldados de infantaria e cavalaria tinham sido transferidos para Kaménsskaia juntamente com trinta e seis peças de artilharia e cento e quarenta metralhadoras. Estavam agora a ser transportadas as últimas unidades de cavalaria e os regimentos de elite do “exército jovem”, como lhes chamavam, constituído no Verão de 1918 pelos jovens cossacos em idade de serem incorporados.

Entretanto, os insurrectos, cercados, continuavam a repelir os ataques das tropas vermelhas que os assediavam. Ao sul, na margem esquerda do Don, duas divisões insurrectas aguentavam-se teimosamente nas trincheiras e impediam o inimigo de atravessar o rio, apesar do fogo violento e quase contínuo das numerosas baterias vermelhas dispostas ao longo da frente; as outras três divisões, que protegiam o território insurrecto a oeste, ao norte e a leste, estavam sofrendo perdas colossais, sobretudo a nordeste, sem contudo recuarem, mantendo-se sempre no limite do distrito de Khopr.

Certo dia, o esquadrão de Tatársski, instalado em frente da aldeia, cansado daquela forçada inactividade, pôs o Exército Vermelho em estado de alerta: no meio da escuridão da noite, alguns cossacos que se haviam oferecido como voluntários atravessaram de barco para a margem direita do Don, indo atacar de improviso o posto de vigia; mataram quatro soldados vermelhos e apoderaram-se de uma metralhadora. No dia seguinte os vermelhos enviavam uma bateria de Viochénsskaia a qual abriu um fogo rápido sobre as trincheiras cossacas. Logo às primeiras deflagrações dos shrapnels sobre a floresta, o esquadrão evacuou a toda a pressa as trincheiras, e afastou-se do Don, internando-se na espessura dos bosques.

Vinte e quatro horas depois, a bateria retirava e os homens de Tatársski retomavam as suas posições. O canhoneio causara algumas baixas no esquadrão: dois jovens pertencentes a um reforço há pouco enviado para a frente morreram e ficou ferido o impedido do chefe do esquadrão, um rapaz acabado de chegar de Viochénsskaia.

Depois disto, estabeleceu-se uma calma relativa e a vida das trincheiras regressou à rotina habitual. As mulheres apareciam por ali muitas vezes à noite, trazendo pão e aguardente; de resto os cossacos não tinham falta de mantimentos: haviam degolado duas porcas extraviadas e todos os dias pescavam no lago. Khrisstónia desempenhava o cargo de chefe pescador.

Tinham-lhe confiado uma rede de dez ságenas, abandonada pelas tropas em retirada, que caíra nas mãos do esquadrão.

Ao cabo de oito dias passados a pescar sem descanso a sua camisa e as calças estavam tão impregnadas do cheiro a peixe que Anikuchka acabara por se recusar terminantemente a dormir no mesmo abrigo, declarando:

- Cheiras pior do que uma latrina. Se fico perto de ti mais um dia nunca mais serei capaz de comer peixe na vida.

Dali em diante, Anikuchka passou a dormir ao lado do abrigo, apesar dos mosquitos. Antes de se deitar, varria com expressão de nojo as escamas de peixe espalhadas na areia, bem como as tripas que exalavam um cheiro nauseabundo. Mas na manhã seguinte, ao regressar da pesca, Khrisstónia sentava-se, imperturbável e com ares importantes, à entrada do abrigo, pondo-se a escamar e a estripar os peixes que pescara. Em volta dele, enxameavam moscas verdes e surgiam de todos os lados as vorazes formigas amarelas. Anikuchka acorria, esbaforido, berrando-lhe de longe:

- Não arranjaste outro lugar? Malandro, não te engasgares tu com uma espinha! Vai-te daqui, com mil raios! É aqui que eu durmo e tu vens encher isto de tripas de peixe para atrair as formigas! O cheiro que aqui fica ainda é pior do que o da astracã!

- Deves ter lombrigas na barriga, Anikei, para não poderes suportar o cheiro a peixe. Já experimentaste comer alho em jejum?

Anikuchka ia-se embora a praguejar e a cuspir.

Estas escaramuças repetiam-se todos os dias. Mas, fora isso, o esquadrão vivia em boa paz. A marmita bem farta punha toda a gente de bom humor, com excepção de Stepane Astakhov.

Teria ele sabido através dos homens da aldeia que Akcínia se encontrava com Grigóri em Viochénsskaia? Ou adivinhara-lho o coração? A verdade é que se tornou subitamente macambúzio, discutia sem quê nem para quê com o chefe do pelotão recusando-se terminantemente a fazer rondas.

Ficava deitado tempo sem fim no abrigo, debaixo de uma manta remendada, a suspirar e a fumar avidamente o seu tabaco caseiro. Quando soube que o chefe do esquadrão encarregara Anikuchka de ir buscar cartuchos a Viochénsskaia saiu pela primeira vez do abrigo ao fim de dois dias. Piscando os olhos lacrimejantes, inchados pela insónia, examinou com ares desconfiados a folhagem verdejante e despenteada do arvoredo, as nuvens brancas que o vento esfarrapava, escutou o murmúrio da floresta e deu a volta ao abrigo em cata de Anikuchka.

Não queria falar diante dos outros, por isso chamou-o de parte.

- Procura Akcínia em Viochénsskaia e diz-lhe da minha parte que venha ver-me. Informa-a que estou cheio de piolhos, que não tenho quem me lave as ceroulas há muito tempo e diz-lhe mais...

Stepane calou-se uns momentos, escondendo sob o bigode um sorriso envergonhado, e concluiu:

- Diz-lhe que ando muito aborrecido e que fico à espera dela.

Anikuchka, chegando de noite a Viochénsskaia, informou-se acerca do paradeiro de Akcínia. Esta, desde que se zangara com Grigóri, fora de novo viver com a tia. Anikuchka transmitiu-lhe conscienciosamente o recado de Stepane, acrescentando por sua conta, para fazer mais efeito, que Stepane ameaçava vir pessoalmente a Viochénsskaia, no caso de Akcínia não aparecer no esquadrão.

A rapariga ouviu o recado, começando logo a preparar-se.

A tia fez uma massa a toda a pressa e meteu as broínhas no forno; dali a duas horas Akcínia, como esposa obediente, partia com Anikuchka a caminho do acampamento do esquadrão de Tatársski.

Stepane acolheu a mulher com mal disfarçada emoção.

Perscrutou-lhe atentamente o rosto afilado, interrogou-a com prudência, mas não arriscou uma palavra no sentido de apurar se ela voltara ou não a ver Grigóri. Contentou-se em inquirir, no decorrer da conversa e baixando os olhos, de cara voltada para o lado:

- Porque foste tu para Viochénsskaia por esta margem? Porque não atravessaste em frente da aldeia?

Akcínia respondeu secamente que não era possível atravessar o rio com pessoas estranhas e que não quisera pedir auxílio aos Melekhov. Deu-se imediatamente conta de que isto equivalia a dizer que os Melekhov não eram estranhos para ela, mas sim pessoas íntimas. E sentiu-se perturbada porque Stepane podia pensar o mesmo. E foi isso provavelmente o que sucedeu. Passou-lhe nos sobrolhos um leve estremecimento e o seu rosto tornou-se sombrio.

Ergueu para Akcínia um olhar interrogador e ela, compreendendo a pergunta muda, corou, subitamente confusa e irritada consigo própria.

Stepane, com pena dela, orientou a conversa para os assuntos respeitantes ao casal, inquirindo se tivera tempo de esconder alguma coisa antes de deixar a casa e se tudo ficara bem oculto.

Akcínia, apreciando esta generosidade do marido, respondeu, sem no entanto deixar de sentir uma dolorosa confusão. No intuito de o convencer de que o que se passara entre eles não tivera importância e para ocultar também a atrapalhação, falava propositadamente devagar, num tom seco e reservado, como quem trata de negócios.

Encontravam-se dentro do abrigo. Os cossacos estavam sempre a incomodá-los, ora entrava um, ora outro. Khrisstónia não tardou a vir deitar-se para dormir. Vendo que não conseguiam falar sem testemunhas, Stepane interrompeu a conversa, contrariado.

Akcínia ergueu-se, toda contente, desfez o embrulho que trazia, ofereceu ao marido as broínhas feitas na stanitsa, tirou a roupa suja do saco de Stepane e saiu para ir lavá-la no charco, ali perto.

O silêncio que precede a aurora e um nevoeiro azulado envolviam a floresta. As ervas pesadas de orvalho inclinavam-se para o chão. As rãs nos charcos soltavam o seu grasnido rouco, e algures, junto ao abrigo, atrás de um arbusto frondoso, um ralo cantava com a sua voz penetrante. Akcínia passou em frente do arbusto. Estava todo ele, de cima abaixo, envolto num espesso emaranhado de ervas e de teias de aranha. Os fios, cobertos de minúsculas gotas de orvalho, cintilavam como pérolas. O ralo calou-se um momento, mas, antes que as ervas pisadas pelos pés de Akcínia tivessem tempo de se erguer de novo, voltou a cantar, e logo lhe respondeu a voz triste de um pavoncino que levantou voo do charco.

Akcínia, despindo a blusa e o colete que lhe tolhiam os movimentos, meteu-se na água até aos joelhos e pôs-se a lavar. Por cima dela esvoaçavam moscardos e as melgas zumbiam-lhe aos ouvidos. Ela enxotava-os passando no rosto o braço roliço e tostado. Não cessava de pensar em Grigóri e na bulha que tivera com ele antes deste partir para o esquadrão.

“Talvez já ande à minha procura. Vou regressar ainda esta noite à stanitsa”, resolveu logo ali. E sorriu ao pensar que iria em breve voltar a vê-lo e reconciliar-se com ele.

Caso estranho: havia algum tempo, sem saber porquê, quando pensava em Grigóri, não se recordava do seu aspecto exterior, tal como era ultimamente. O que surgia aos seus olhos não era o Grigóri actual, o cossaco alto e viril, conhecedor da vida e rico de experiência, com os olhos engelhados de fadiga e o bigode preto de pontas arruivadas, os cabelos prematuramente brancos nas têmporas, as rugas severas da testa vestígios inapagáveis das privações que sofrera durante todos aqueles anos de guerra, mas sim o Grichka Melekhov de outros tempos, com a sua rudeza, a sua inépcia de adolescente nas carícias, o seu pescoço redondo e fino de rapazinho e a expressão descuidada dos seus lábios sempre a sorrirem.

Sentia por ele um amor ainda maior, uma ternura quase maternal. Uma vez mais, depois de ter reconstituído na memória, com grande precisão, as feições daquele rosto infinitamente querido, começou a respirar a custo, sorriu, atirou ao chão a camisa do marido que ainda não acabara de lavar. Subiu-lhe à garganta uma onda escaldante de soluços deliciosos e inesperados. Murmurou:

- Entraste dentro de mim, maldito, para toda a vida!

As lágrimas aliviaram-na, mas o mundo azul da manhã que a rodeava era como se tivesse perdido as cores. Limpou as faces com as costas da mão, afastou os cabelos da testa húmida e, sem pensar em nada, seguiu durante muito tempo com os olhos embaciados uma pequena garça cinzenta que, deslizando à tona de água, desaparecia na espuma rosada do nevoeiro que o vento dispersava

Acabando de lavar a roupa estendeu-a a secar nos arbustos e regressou ao abrigo.

Khrisstónia, que acordara, estava sentado junto da entrada, a remexer os dedos nodosos e torcidos dos pés, tentando estabelecer conversa com Stepane. Este fumava em silêncio, estendido debaixo da manta, opondo às perguntas do outro um mutismo obstinado.

- Achas que os vermelhos são capazes de passar para este lado? Não dizes nada? É isso, ficas calado. Cá por mim penso que o que eles fazem é tentar atravessar os vaus. Não pode deixar de ser. Noutro ponto não é possível. Ou julgas que tentarão passar a cavalaria a nado? Porque não dizes nada, Stepane? Isto está a dar as últimas e tu ficas para aí, calado como um pataco.

Stepane, sobressaltando-se, respondeu irritado:

- Mas que ideia é essa de te agarrares a mim? Eu cá não entendo estes tipos! A minha mulher veio visitar-me e não há maneira de me ver livre deles... Chateiam-me com as suas palermices. Já um homem não pode trocar duas palavras com a mulher.

- Se achas que és capaz de falar com uma mulher, tu...

Khrisstónia ergueu-se, aborrecido, enfiou os chinelos cambados nos pés nus e saiu, batendo com a cabeça na trave da porta

- Aqui não nos deixam conversar, vamos para o bosque - propôs Stepane.

E, sem esperar pela resposta de Akcínia, saiu. Ela seguiu-o docilmente.

Regressaram ao abrigo era meio-dia. Os homens do segundo pelotão, que gozavam o fresco debaixo de um amieiro, poisaram as cartas, trocando olhadelas cúmplices, risadas e suspiros irónicos.

Akcínia passou diante deles com uma expressão de desprezo, enquanto compunha o lenço orlado de renda branca que se tinha amarrotado. Eles deixaram-na passar em silêncio, mas, quando Stepane chegou junto dos cossacos que estavam deitados, Anikuchka separou-se do grupo. Fez uma profunda vénia a Stepane com um respeito hipócrita e disse em voz alta:

- Isso é que foi gozar... depois do jejum!

Stepane sorriu, satisfeito. Era-lhe agradável o facto de os cossacos o terem visto voltar da floresta com a mulher. Isso podia contribuir para fazer calar os rumores que corriam acerca da desavença entre eles... Chegou mesmo a sacudir os ombros com ar superior, a mostrar a camisa molhada de transpiração nas costas.

Os cossacos, animados com isto, desataram a falar sem rebuço, rindo às gargalhadas:

- Aquilo é que é uma mulher, caramba. A camisa do Stepane até se pode torcer, está colada às costas... Ela fê-lo galopar um bocado, vem coberto de espuma.

Um rapazola, que seguira Akcínia até à entrada do abrigo com um olhar admirativo e perturbado, largou esta:

- Por mais que se procure, não se encontra no mundo outra mulher como ela. Eu seja cego se não é verdade!

Anikuchka objectou-lhe, e com razão:

- Já procuraste?

Akcínia, que empalidecera levemente ao ouvir aquelas observações obscenas, entrou no abrigo com uma careta enojada, tanto por causa da intimidade que acabara de ter com o marido, como pelas palavras indecentes dos homens. Num relance, Stepane, compreendendo os sentimentos dela, disse num tom conciliador:

- Não te zangues, Ksiúcha. Os machos andam chateados.

- Não há razão para a gente se zangar seja com quem for retorquiu Akcínia numa voz velada, enquanto remexia no seu saco de linhagem para tirar de lá as coisas que trouxera ao marido E acrescentou ainda mais baixo:

- Comigo é que eu devia zangar-me, mas não tenho coragem...

A conversa esmorecia. Ao cabo de dez minutos, Akcínia levantou-se. “Vou já dizer-lhe que volto para Viochénsskaia”, mas lembrou-se de repente de que não tinha tirado a roupa que pusera a enxugar.

Esteve muito tempo sentada à porta do abrigo a remendar as camisas e as ceroulas do marido, repassadas de suor, enquanto lançava repetidos olhares para o sol que ultrapassara o zénite.

...Não se foi embora nesse dia, faltou-lhe a coragem.

Mas no outro pela manhã, mal despontou o sol, erguendo-se, começou a preparar-se. Stepane tentou retê-la, pediu-lhe que ficasse mais um dia, mas ela repeliu teimosamente a insistência dele, e o homem desistiu. Este contentou-se em lhe perguntar à partida:

- Contas ficar em Viochénsskaia?

- De momento, sim.

- Talvez fizesses melhor em ficar comigo.

- Não me sinto bem aqui... com todos estes cossacos.

- Lá isso é verdade... - concordou Stepane. Mas despediu-se dela com frieza.

Soprava um vento forte de sudoeste. Vinha de longe, um pouco fatigado da noite, mas trazia consigo, pela madrugada, o calor dos desertos transcaspianos e, ao varrer a planície da margem esquerda, secara o orvalho, dissipara o nevoeiro e envolvera numa bruma rosada e abafadiça os contrafortes barrentos das colinas que se erguiam nas margens do Don.

Akcínia descalçou-se e, erguendo com a mão esquerda a saia (as ervas da floresta ainda estavam orvalhadas), foi seguindo num passo ligeiro o atalho abandonado. A terra húmida refrescava-lhe agradavelmente os pés nus e o vento ia-lhe beijando com os lábios ávidos e ardentes o pescoço e as pernas roliças.

Numa clareira, junto de um silveiral florido, sentou-se a descansar. Ali perto, num lago que ainda não secara, alguns patos selvagens chapinhavam entre os juncos e um macho chamava com voz rouca pela companheira. Na outra margem do Don, as metralhadoras crepitavam numa cadência lenta, mas quase sem descanso; o canhão troava de quando em quando.

As explosões dos obuses repercutiam-se como um eco na margem de cá.

Depois os tiros calaram-se e o mundo revelou-se a Akcínia na sua secreta sonoridade: as falhas verdes dos freixos, debruadas de branco, as dos carvalhos, recortadas em arabescos, estremeciam e murmuravam com o vento; das moitas de um choupal novo escapava-se igual ruído; longe, muito ao longe, a voz triste e indistinta de um cuco adivinhava os anos que restavam a um desconhecido qualquer para viver; um pavoncino todo enfunado, voando por cima do pequeno charco, “repetia sem cessar a mesma pergunta: “Quem és tu? Quem és tu?”; um passarito cinzento, pertinho de Akcínia, bebia água num rego do caminho, com a cabecita deitada para trás e os olhos piscos de volúpia; os besouros de veludo, cobertos de pó, zumbiam; as abelhas escuras baloiçavam-se nas corolas das flores campestres, depois iam-se embora levando consigo para os seus frescos redutos uma colheita perfumada. Gotejava a seiva dos ramos dos choupos. De sob um tufo de pilriteiro vinha o odor capitoso e acre das folhas apodrecidas do ano anterior.

Sentada e imóvel, Akcínia aspirava sem se fartar os perfumes variados da floresta. Cheio de uma sonoridade maravilhosa e múltipla, o bosque regurgitava de uma vida forte e primitiva. O sol repassava a planície encharcada das águas primaveris, fazia brotar e crescer tal infinidade de plantas que os olhos de Akcínia se perdiam naquele emaranhado fantástico de ervas e flores.

A sorrir e a mover silenciosamente os lábios, ia juntando com precaução as hastes de umas flores azuis e anónimas, e depois, ao inclinar o busto, que se tornara agora mais opulento, para lhes aspirar o aroma, sentiu o perfume langoroso e suave do muguet. Procurou-o às apalpadelas, acabando por encontrá-lo: um pé que brotara na sombra impenetrável de um arbusto. As suas folhas largas, outrora verdes, teimavam em defender do sol a pequena haste torcida, revestida de cálices pendentes, brancos como a neve. Porém as folhas cobertas de orvalho e de ferrugem amarela já estavam murchas e as próprias flores começavam a apodrecer; dois dos cálices inferiores haviam engelhado e enegrecido, e apenas os de cima, cobertos de lágrimas cintilantes de orvalho, brilharam subitamente ao sol com uma brancura dormente de prisioneiros.

Sem saber porquê, nesse curto instante, enquanto examinava a flor através de um véu de lágrimas, Akcínia recordou-se da sua mocidade, da vida pobre de alegrias que sempre levara.

Sim, envelhecera, sem duvida... Uma mulher jovem chora, porventura, quando uma lembrança qualquer lhe atravessa o coração?

Adormeceu assim, com o rosto coberto de lágrimas, apertando contra o rosto tumefacto o lenço enrolado numa bola.

O vento soprava com mais força, inclinando para oeste o cimo dos choupos e dos salgueiros. O tronco pálido de um freixo baloiçava-se, envolvido pelo turbilhão rumorejante da sua folhagem agitada. O vento descia, açoutava o silveiral florido sob o qual dormia Akcínia, e então, qual bando assustado de pássaros fabulosos, as falhas rodopiaram com um murmúrio inquieto, e as pétalas rosadas caíram como penas. Akcínia dormia sob essa chuva de flores murchas, não ouvindo nem o barulho triste da floresta, nem o canhoneio que recomeçara na outra margem, nem sentindo sequer na cabeça descoberta a queimadura do sol que atingira o zénite. Despertou-a uma voz de homem e o resfolegar de um cavalo por cima dela. Ergueu-se subitamente.

Um jovem cossaco de bigode loiro e dentes brancos estava de pé na sua frente, segurando pela arreata um cavalo selado de narinas brancas. O homem sorria, agitava os ombros, esboçava um passo de dança e entoava, com uma voz de tenor um bocado rouca, mas agradável, os versos de uma canção alegre:

 

           Caí no chão

           E busquei por aqui, por ali,

           Alguém que me desse a mão.

           Quando vi, quando vi

           Um cossaco a meu lado...

 

- Eu cá posso bem levantar-me sozinha disse Akcínia sorrindo E pôs-se logo de pé, a consertar a saia enrugada.

- Bom dia, pequena. Foram os teus pezinhos que se recusaram a andar ou isso é preguiça? inquiriu o alegre cossaco à laia de saudação.

- Deu-me o sono.

- Vais para Viochénsskaia?

- Vou.

- Queres que te leve?

- Que me leves, como?

- Vais tu a cavalo e eu a pé. Toma lá dá cá...

E o cossaco piscou o olho com ares entendidos e brejeiros.

- Na, segue o teu caminho que eu cá me arranjo.

Mas o cossaco parecia prático em coisas de amor e também teimoso. Aproveitando o momento em que Akcínia punha o lenço na cabeça, enlaçou-a com o braço curto, mas vigoroso e, puxando-a para si, quis beijá-la.

- Não te faças esperto! exclamou Akcínia, e deu-lhe uma forte cotovelada na base do nariz.

- Não te zangues, minha linda. Olha que bonito está tudo à nossa volta!... Até os bichinhos andam aos pares!... Não te parece que também nós devemos fazer o mesmo? - murmurava o cossaco, piscando os olhitos risonhos e fazendo cócegas com os bigodes no pescoço de Akcínia.

Esta esticava os braços para a frente, sem cólera, mas com toda a força e, apoiando as palmas das mãos no rosto moreno e suado do rapaz, tentava libertar-se.

- Palerma. Olha que eu tenho uma doença má... Deixa-me! - dizia ela, ofegante, julgando ver-se livre dele com esta manha inocente.

- Ora... qual de nós a teria apanhado primeiro? - resmungou o cossaco entre dentes. De súbito, levantou Akcínia ao ar.

Percebendo de súbito que a brincadeira acabara e que as coisas começavam a levar um mau caminho, deu um murro com toda a força no nariz do homem e arrancou-se ao seu abraço de ferro.

- Olha que eu sou a mulher de Grigóri Melekhov. Atreve-te a aproximar-te, filho de uma cadela... Se eu lhe digo...

Ainda desconfiada da eficácia destas palavras, agarrou num grande pau seco. Mas o cossaco perdera todo o entusiasmo.

Enquanto limpava à manga da camisa caqui o sangue que lhe escorria em fio das narinas para cima do bigode, exclamou num tom despeitado:

- Estupor! Estupor de mulher! Não podias ter dito isso mais cedo? Olha como eu fiquei a escorrer sangue! Ainda é pouco aquele que a gente derrama diante do inimigo, só faltavam as mulheres para virem também sangrarmos!...

O rosto dele tornara-se de súbito irritado e hostil. Enquanto ele se lavava com a água de uma poça, Akcínia, afastando-se do caminho, atravessou rapidamente a clareira. Dali a cinco minutos o cossaco passava-lhe à frente. Lançou-lhe um olhar de viés, sorrindo em silêncio, ajustou com ares muito atarefados a bandoleira da espingarda e afastou-se num trote rápido.

 

Nessa noite, o regimento vermelho atravessou o Don em jangadas feitas de tábuas e traves, perto da aldeia de Máli Grometchénok.

O esquadrão de Gromok foi apanhado desprevenido, pois a maior parte dos cossacos andavam na paródia. À noite, as mulheres tinham vindo visitar os maridos trazendo-lhes aguardente em bilhas e barris. Cerca da meia-noite, estavam todos bêbados. O abrigo ressoava com as canções, os guinchos das mulheres ébrias e os assobios dos homens... os vinte cossacos de sentinela tinham tomado parte na patuscada, deixando apenas junto da metralhadora dois artilheiros com um barril de aguardente.

As jangadas carregadas de soldados vermelhos haviam largado da margem direita do Don num silêncio total. Assim que atravessaram o rio, dispuseram-se em formação de atiradores e marcharam, calados, em direcção aos abrigos situados a umas cinquenta ságenas do Don. .

Os sapadores que haviam construído as jangadas remaram vigorosamente para irem buscar novo grupo de vermelhos que esperavam para fazerem a travessia.

Durante cinco minutos nada se ouviu na margem, além das canções confusas dos cossacos. Depois rebentaram as granadas de mão, uma metralhadora crepitou, ao mesmo tempo que começava uma fuzilaria desordenada e se ouvia ao longe um grito: “Hurra-a-a-a! Hurra-a-a-a! Hurra-a-a-a!”

O esquadrão de Gromok foi destroçado, só escapando ao aniquilamento total porque a perseguição se tornava impossível no meio do negrume da noite.

Os soldados de Gromok, que haviam sofrido poucas perdas, corriam através dos prados, em pânico, na direcção de Viochénsskaia. Entretanto, as jangadas traziam da margem direita novos grupos de soldados vermelhos; metade de uma companhia do primeiro batalhão do Regimento, com duas espingardas metralhadoras, operava já no flanco do esquadrão insurrecto de Bázki

Os reforços precipitaram-se através da brecha que se abrira. O seu avanço era bastante prejudicado pelo facto de ninguém do lado dos vermelhos conhecer a região. As unidades não tinham guia e, avançando assim às cegas, encontravam a todo o passo, no escuro, lagos e fossos profundos cheios de água deixada pela enchente que se tornava impossível transpor.

O comandante da brigada que dirigia a ofensiva resolveu adiar a perseguição até ao romper do dia a fim de juntar as reservas, concentrando as suas tropas nos arredores de Viochénsskaia para prosseguir a ofensiva depois de uma preparação de artilharia.

Em Viochénsskaia, porém, já se tomavam medidas para colmatar a brecha. Assim que o agente de ligação chegou a toda a brida a anunciar a travessia dos vermelhos, o oficial de serviço do Estado-Maior mandou chamar Kudínov e Melekhov.

Das aldeias de Tchórni, Gorókhovka e Dubrovka mandaram vir esquadrões a cavalo pertencentes ao Regimento de Karguínsskaia. Grigóri Melekhov assumiu o comando-geral das operações. Mandou para Erinsski trezentos cavaleiros com o fim de reforçarem o flanco esquerdo e ajudarem os esquadrões de Tatársski e de Lebiági a deter o inimigo no caso deste tentar envolver Viochénsskaia pelo lado leste; no intuito de ajudar o esquadrão de Bázki, enviou para montante a legião não cossaca de Viochénsskaia e um dos esquadrões a pé do Tchir; mandou igualmente instalar oito metralhadoras nos sectores ameaçados e ele próprio tomou posição, com dois esquadrões a cavalo, cerca das duas da manhã, na orla do bosque de Goréli, à espera que rompesse o dia, pois decidira atacar os vermelhos a cavalo

As Plêiades brilhavam ainda no céu quando a legião não cossaca de Viochénsskaia, que se internara na floresta em direcção ao flanco de Bázki em retirada, atacou esta coluna pensando tratar-se do inimigo, e fugiu após uma rápida troca de tiros. Os legionários atravessavam a nado o extenso lago que separa Viochénsskaia da curva do rio, depois de abandonarem na margem, com a precipitação, calçado e vestuário.

Em breve se deram conta do engano, porém a notícia da chegada dos vermelhos às imediações de Viochénsskaia difundiu-se com surpreendente rapidez. Os refugiados que ali se haviam instalado nas caves puseram-se em fuga a toda a pressa em direcção ao Norte, espalhando por toda a parte a informação de que os vermelhos haviam atravessado o Don, rompendo a frente, e que estavam a atacar Viochénsskaia...

O dia mal começava a romper quando Grigóri, avisado da fuga) da legião não cossaca, partiu a galope em direcção ao Don. Os legionários, após terem esclarecido o mal-entendido, regressavam já às trincheiras, a falarem muito alto. Grigóri, dirigindo-se a um dos grupos, inquiriu ironicamente:

- Então beberam muitos pirolitos ao atravessarem o lago?

Um atirador todo encharcado, que ia a torcer a camisa, respondeu, atrapalhado:

- Nadamos que nem peixes. Não há perigo de que alguém se afogue...

- Um engano qualquer tem respondeu judiciosamente outro, em ceroulas. Mas cá o nosso chefe de esquadrão é que se ia afogando de verdade. Não quis descalçar-se porque as grevas levavam muito tempo a tirar. Então, enquanto nadava, uma das grevas desatou-se dentro de água, indo enrolar-se-lhe nos pés... Aquilo é que ele gritava! Tenho a certeza de que se ouvia em Elánsskaia.

Tendo encontrado o comandante da legião de Viochénsskaia, Kramskov, Grigóri ordenou-lhe que conduzisse os seus atiradores para a orla da floresta, instalando-se aí a fim de poderem, em caso de necessidade, dirigir um fogo de flanco contra as filas dos atiradores vermelhos. Depois retirou-se para junto dos seus esquadrões.

Cruzou-se a meio caminho com um agente de ligação do Estado-Maior. Este, detendo o cavalo cujos flancos arfavam, soltou um suspiro de alívio:

- Custou-me a encontrá-lo!

- Que queres tu?

- O Estado-Maior manda dizer que o esquadrão de Tatársski abandonou as trincheiras. Tiveram medo de ficar cercados e bateram em retirada para as areias... Kudínov quer que o senhor lá vá imediatamente...

Acompanhado por um meio pelotão que possuía os cavalos mais rápidos, Grigóri meteu-se à estrada, depois de ter atravessado a floresta. Ao fim de vinte minutos de galope, ele e os seus soldados chegaram ao lado de Goli Ilmeno. À esquerda, os homens de Tatársski, tomados de pânico, fugiam em debandada pela planície. Os veteranos da frente e os homens já experimentados avançavam sem pressa, rodeando o lago, ocultos pelos juncos da margem; a maior parte, porém, apenas guiados pelo desejo de alcançar a floresta o mais cedo possível, marchavam a direito, sem fazerem caso do fogo pouco denso das metralhadoras.

- Agarrem-nos! Chicoteiem-nos! - berrava Grigóri, cego de raiva. Foi ele o primeiro a lançar o cavalo em perseguição dos homens da sua aldeia.

Atrás de todos, Khrisstónia manquejava a trote, bamboleando-se todo. Na véspera, fizera um golpe com uma cana num calcanhar quando andava à pesca, por isso não podia correr tanto como lho permitiriam as suas enormes pernas. Grigóri foi atrás dele, de chibata erguida. Khrisstónia, ao ouvir o ruído das ferraduras do cavalo, olhou para trás, aumentando a velocidade.

- Aonde vais tu? . Pára! Pára, já te disse!... - gritava emvão Grigóri.

Mas Khrisstónia não queria ouvir nada. Acelerou mais ainda o passo, que se transformou num galope desvairado de camelo.

Então Grigóri, louco de furor, proferiu com voz rouca uma horrível praga obscena, estimulou com um grito o cavalo e, chegando junto do fugitivo, vibrou-lhe, deliciado, uma enorme chicotada nas costas suadas. Khrisstónia deu um salto formidável para o lado, semelhante ao pulo de uma lebre, e, sentando-se no chão, pôs-se a apalpar com todo o cuidado as costas.

Os cossacos do pelotão de Grigóri, à medida que iam alcançando os fugitivos, obrigavam-nos a parar, sem contudo se servirem das chibatas.

- Chicoteiem-nos!... Chicoteiem-nos!... - exclamava Grigóri numa voz de falsete, agitando o pingalim.

O cavalo dele dava voltas sobre si mesmo, empinava-se, recusando-se teimosamente a avançar. Grigóri, após tê-lo dominado com dificuldade, prosseguiu atrás dos fugitivos. Num relance, avistou Stepane Astakhov, a sorrir em silêncio, imóvel junto de uma moita; viu Anikuchka, dobrado ao meio pelo riso, fazendo porta-voz com as mãos para gritar na sua voz de palhaço:

- Meus irmãos! Salve-se quem puder! Os vermelhos!... Raspem-se!... Raspem-se!

Grigóri perseguia um homem vestido com um casaco acolchoado que corria depressa e sem fadiga. A sua silhueta curvada era-lhe estranhamente familiar, mas, sem tempo para reflectir, gritou-lhe de longe:

- Pára, filho de uma cadela!... Pára ou racho-te com o sabre!

De súbito, o homem do casaco acolchoado abrandou a corrida, parando por fim; quando ele começou a voltar-se com um movimento característico que Grigóri conhecia muito bem desde a infância, o qual traduzia sempre o auge da sua excitação, Grigóri reconheceu o pai, mesmo antes de lhe ter visto o rosto

As faces de Pantelei Prokófievitch estavam repuxadas pelos espasmos

- É ao teu pai que tu estás a chamar filho de uma cadela? É ao teu pai que tu queres rachar com o sabre? - Gritou ele numa voz de falsete.

Os seus olhos luziam com um furor irreprimível e tão familiar que a indignação de Grigóri esfriou de repente. Refreando de súbito o cavalo, exclamou:

- Não te reconheci pelas costas, pai. Porque berras assim?

- O quê? Não me reconheceste? Já não reconheces o teu pai?

Esta manifestação de amor-próprio da parte de um velho era tão estranha e descabida que Grigóri, depois de desatar a rir, adiantando o cavalo, proferiu numa voz conciliadora:

- Não te zangues, pai. Trazes um casaco que eu não conhecia, galopavas como um cavalo de corrida e nem sequer coxeavas. Como havia eu de te conhecer?

Mais uma vez, como outrora em casa, Pantelei Prokófievitch acalmou-se e, ainda ofegante mas já tranquilo, concordou:

- Tens razão, este casaco é novo, troquei-o pela minha peliça as peliças são pesadas e, quanto a coxear, alguém tem tempo para ser coxo, nestas alturas? Aqui, meu rapaz, não se pode ser coxo... Vemos a morte diante dos olhos e tu vens-me falar na minha perna coxa...

- Isso sim! A morte ainda vem longe! Volta para trás, pai. Ao menos não deitaste fora os cartuchos?

- Para onde queres tu que eu volte? - indignou-se o velhote.

Desta vez foi Grigóri quem levantou a voz. Destacando bem cada palavra, comandou:

- Ordeno-te que voltes para trás. Sabes o que te pode acontecer, segundo o regulamento, se desobedeceres a uma ordem?

Estas palavras produziram o efeito desejado: Pantelei Prokófievitch, ajeitando a espingarda no ombro, arrepiou caminho, sem entusiasmo. Ao alcançar outro velho que marchava ainda mais devagar do que ele, suspirou:

- Os nossos filhos, hoje em dia, chegaram a isto. Mostrar respeito aos pais, ou, por exemplo, isentar-nos do combate, é coisa que já se não usa, antes pelo contrário; mandam-nos para lá a toque de caixa! Pois então!... Na, o meu falecido Pedro, que Deus tem, valia bem mais do que este. Tinha uma alma pura, ao passo que este safado, este Grigóri muito embora esteja a comandar uma divisão, tenha muito valor, etc., etc., não é a mesma coisa. Sempre nas suas tamanquinhas, ninguém lhe pode tocar. Velho como sou, é capaz de me tratar por cima da burra.

Não foi difícil convencer os homens de Tatársski.

Grigóri em breve reuniu todo o esquadrão; levou-o para um sítio seguro e, sem se apear do cavalo, declamou rapidamente:

- Os vermelhos atravessaram o Don e vão tentar apoderar-se de Viochénsskaia. Lutaremos junto do Don. Não se trata de nenhuma brincadeira e não vos aconselho a fugirem sem motivo. Se isto torna a acontecer darei ordem à cavalaria que está em Erinsski para vos correr à sabrada como se fossem traidores.

Grigóri fitou a multidão vestida de trajos diferentes dos homens da sua aldeia, terminando com mal disfarçado desprezo:

- Neste esquadrão não faltam patifes e são eles que espalham o pânico. Fogem a sete pés, borram-se todos de medo, e são isto soldados! E ainda se dizem cossacos! Sobretudo vocês os velhos, tomem muita atenção! Se querem combater, não é altura de esconderem a cabeça entre as pernas. Agora já, divididos em pelotões, vão marchar direitos àquela linha, lá adiante, e depois desde aqueles arbustos até ao Don! Caminham seguidamente ao longo do rio, até encontrarem o esquadrão de Semionóvsskaia! Então, juntamente com ele, atacam os vermelhos pelo flanco. Em frente, marchar! E aviem-se!

Os homens de Tatársski, após terem escutado em silêncio, dirigiram-se para os arbustos. Os velhos gemiam, acabrunhados, enquanto viam Grigóri afastar-se à rédea solta à frente dos cossacos que o acompanhavam. O velho Obnízov, que caminhava ao lado de Pantelei Prokófievitch, exclamava com admiração:

- O Senhor deu-te como filho um herói. Uma águia! Que valente chicotada ele aplicou nas costas do Khrisstónia! Meteu tudo na ordem num abrir e fechar de olhos!

Lisonjeado nos seus sentimentos paternos, Pantelei Prokófievitch concordou prontamente:

- Lá isso é verdade! Filhos como este há poucos. Traz ao peito um estendal de medalhas. Isso não é brincadeira nenhuma!, pois então! O meu falecido Petro que Deus tenha na sua divina presença, embora fosse o mais velho e pertencesse ao meu sangue, não era a mesma coisa que este! Sossegado de mais... como é que eu hei-de dizer? Faltavam-lhe certas coisas. No fundo, tinha alma de mulher. Ao passo que este é o meu retrato chapado. Ainda me passou as marcas!

Grigóri e o seu meio pelotão tentavam esgueirar-se para o vau dos Kalmuks. Chegados à floresta já se imaginavam em segurança, mas tinham sido vistos de um ponto de observação situado na outra margem do Don. Uma secção de artilharia abriu fogo. O primeiro obus passou por cima dos salgueiros, indo cair com um ruído surdo sobre um pântano coberto de moitas. O segundo atingiu, perto da estrada, as raízes descarnadas de um choupo velho, lançando chispas de fogo, chapadas de terra e lascas de madeira carunchosa para cima dos cossacos, que envolveu num barulho ensurdecedor.

Atordoado, Grigóri, levando instintivamente a mão aos olhos, inclinou-se sobre o pomo da sela, e pareceu-lhe que o cavalo acabava de apanhar no flanco uma pancada surda e molhada.

Ao ouvirem esta explosão que abalara a terra, os cavalos dos cossacos agruparam-se todos, como obedecendo a uma ordem, e depois atiraram-se para a frente. O de Grigóri empinou-se pesadamente, recuando, depois, a inclinar-se de lado.

Grigóri saltou a toda a pressa para o chão, sem largar as rédeas. Passaram-lhe por cima mais dois obuses, seguindo-se-lhe um silêncio tranquilo ao longo da orla do bosque. Um fumo leve, de pólvora, caía sobre a relva; pairava no ar um cheiro a terra remexida de fresco e a madeira apodrecida; ouvia-se ao longe, na espessura da floresta, o cacarejar inquieto das pegas.

O cavalo de Grigóri agonizava, dobrando as patas dianteiras. Os seus dentes amarelos saíam-lhe fora da boca num esgar doloroso. Esticava o pescoço. O veludo cinzento do focinho estava coberto de uma espuma rosada. Uma tremura violenta sacudiu-lhe todo o corpo e uma onda de arrepios: enrugou-lhe o pêlo baio.

- Já tem a sua conta, o bicho? - inquiriu um cossaco que chegava a galope.

Grigóri não respondeu, fitava os olhos do cavalo que se iam apagando. Nem sequer olhava para a ferida, e só se afastou um pouco quando o animal, tomado de uma misteriosa urgência, se ergueu de súbito para cair de joelhos, como se quisesse pedir perdão ao dono. Depois deitou-se de lado, com um gemido surdo, tentando levantar a cabeça, mas as forças tinham-no abandonado: as tremuras tornavam-se cada vez mais raras, os Olhos apagavam-se-lhe e o suor brotava-lhe do pescoço.

Somente algumas pequenas veias latejavam ainda por cima dos jarretes, logo a seguir aos cascos. O coiro gasto da sela vibrava imperceptivelmente.

Grigóri lançou um olhar de esguelha à virilha esquerda do cavalo e viu uma ferida profunda donde o sangue negro e quente jorrava em borbotões; a gaguejar e sem enxugar as lágrimas, pediu ao cossaco que se apeara:

- Mata-o com uma bala.

E estendeu-lhe a Mauser.

Depois, montando no cavalo do cossaco, galopou para o local onde deixara o esquadrão. O combate era renhido.

Os vermelhos haviam atacado de madrugada. As suas vagas de assalto tinham surgido da névoa estratificada, avançando silenciosamente em direcção a Viochénsskaia. Na ala direita, haviam perdido um certo tempo para transporem uma ravina cheia de água. Mas mergulharam nela até ao peito, erguendo ao alto as cartucheiras e as espingardas. Na outra margem, ao cimo da falésia, em breve quatro baterias começaram a trovejar majestosamente. Assim que os obuses desataram a cair em leque sobre a floresta, os insurrectos abriram fogo. Os vermelhos já não marchavam, corriam, de baioneta calada. Os shrapnels caíam na floresta, com um ruído seco, a uma distância de meia verstá adiante deles; as árvores tombavam, escavacadas pelos obuses, o fumo erguia-se, em nuvens esbranquiçadas. Duas metralhadoras cossacas desataram a disparar em rajadas curtas. Os vermelhos da primeira vaga começaram a cair. Aqui e ali, cada vez com mais frequência, as balas derrubavam os homens que traziam os capotes enrolados à cintura, e eles tombavam de bruços ou de costas, porém os outros não se deitaram no chão, e a distância que os separava da floresta era cada vez menor.

Precedendo a segunda vaga, um homem de alta estatura, um pouco curvado para a frente, de capote arregaçado, corria ligeiro e em cabelo, dando grandes passadas: era o comandante. Os homens afrouxaram um pouco o movimento, mas o comandante, voltando-se sem parar, gritou qualquer coisa e eles continuaram a correr. E o seu hurra!, rouco e terrível, aumentou de volume, cada vez mais furioso.

Todas as metralhadoras cossacas entraram em acção ao longo da floresta, os tiros deflagravam sem cessar. Algures, atrás de Grigóri, que se colocara com os seus homens logo à entrada do bosque, a metralhadora dos soldados de Bázki pôs-se a disparar em longas rajadas. As vagas de assalto estremeceram e, deitando-se no chão, começaram a ripostar. O combate durou hora e meia, mas o fogo dos insurrectos, que haviam regulado o tiro, era tão baixo que a segunda vaga, sem aguentar mais, levantando-se, foi reunir-se à terceira, que progredia em saltos. Não tardou que a planície ficasse cheia de soldados vermelhos fugindo em desordem. Foi então que Grigóri, mandando sair a trote os seus esquadrões, os lançou, depois de formados, em perseguição dos vermelhos. O esquadrão do Tchir, que chegava a toda a brida, cortou-lhes a retirada para as jangadas. Perto da floresta, junto à margem, travou-se uma luta corpo a corpo. Somente parte dos vermelhos conseguiu abrir caminho até às jangadas. Apinharam-se todos lá dento e afastaram-se da margem. Os outros combatiam, empurrados para o Don.

Grigóri, após ter dado ordem aos esquadrões para desmontarem e aos guardas dos cavalos para não saírem da floresta, conduziu os cossacos até à margem. Estes avançavam de uma árvore para outra. Cerca de quinhentos soldados vermelhos tinham até ali contido a pressão da infantaria insurrecta à força de granadas de mão e de rajadas de metralhadora. As jangadas tentaram regressar à margem esquerda), porém os homens de Bázki liquidaram a tiro quase todos os remadores. A situação dos que ainda se encontravam na margem esquerda era desesperada. Os menos aguerridos, atirando fora as espingardas, quiseram atravessar o rio a nado. Os insurrectos, deitados ao nível da água, disparavam contra eles. Muitos afogaram-se, sem conseguirem transpor o rápido. Apenas dois alcançaram a outra margem. Um destes, de blusa de marinheiro, às riscas, decerto nadador experimentado, atirara-se de cabeça do alto da margem, mergulhara e só voltara à superfície no meio do rio.

Escondido atrás de um salgueiro de ramos copados, Grigóri via o marinheiro aproximar-se em grandes braçadas da margem oposta. Quanto ao outro, depois de haver esgotado todos os cartuchos, metido na água até à cintura, arremessou qualquer coisa e, depois de ameaçar os cossacos com o punho fechado, afastou-se em diagonal. As balas crivaram a água em seu derredor, mas nenhuma o atingiu. Pôs pé em terra no sítio de um antigo bebedouro, sacudiu-se todo e começou a subir vagarosamente a ladeira em direcção às herdades.

Os vermelhos que tinham ficado à beira do Don deitaram-se ao abrigo de uma duna. A sua metralhadora crepitou até a água começar a ferver dentro do radiador.

- Sigam-me! - comandou Grigóri a meia voz logo que a metralhadora se calou. E dirigiu-se para a duna, de sabre desembainhado.

Atrás dele, resfolegando ruidosamente, os cossacos martelavam a terra com as suas passadas.

Distanciavam-nos apenas umas cinquenta ságenas dos vermelhos. Depois de disparar três salvas, o comandante, um homem alto, de tez bronzeada e bigodes negros, pôs-se de pé.

Uma mulher de casaco de cabedal amparava-o por debaixo dos braços. O comandante estava ferido. Segurando na perna partida, desceu a duna, a empurrar a espingarda de baioneta calada, e comandou numa voz rouca:

- Camaradas! Para a frente! Morram os brancos!

Um punhado de valentes, entoando a Internacional, marchou para o contra-ataque. Para a morte.

Os cento e dezasseis homens que caíram por último nas margens do Don eram todos comunistas da Companhia Internacional.

 

Grigóri voltou tarde ao seu alojamento depois de ter saído do Estado-maior. Prokhor Zikov esperava-o junto à cancela.

- Sabe-se alguma coisa de Akcínia? - perguntou com fingida indiferença.

- Não, não se sabe onde se meteu retorquiu Prokhor bocejando. E disse consigo, aterrado: “Oxalá ele não se lembre de me mandar outra vez à procura dela... Parece que ando com azar.”

- Traz água para eu me lavar. Estou alagado em suor. Anda, despacha-te! - repetiu Grigóri já irritado.

Prokhor foi buscar água dentro de casa. Despejou-a de um jarro para as mãos de Grigóri, juntas em concha. Grigóri lavou-se com visível prazer.

Despiu a blusa que tresandava a suor e disse:

- Despeja-me água nas costas.

A água fria caindo-lhe nas costas ardentes fez-lhe soltar um grito e sacudiu-se todo. Depois esfregou com força os ombros fatigados pelas correias e o peito cabeludo. Enquanto se enxugava com uma toalha limpa, disse a Prokhor numa voz já mais animada:

- Esta manhã devem vir trazer-me um cavalo. Recebe-o, Pensa-o e trata de lhe arranjar aveia. Não me acordes, deixa-me dormir A não ser que me mandem algum recado do Estado-Maior. Percebes?

Entrando no telheiro, foi deitar-se num carro e mergulhou logo num sono profundo. De madrugada, sentindo frio, enroscou-se debaixo do capote húmido de orvalho e, já o sol tinha nascido, adormeceu de novo. Pelas sete horas, despertou-o o ruído forte de um tiro de canhão. Por cima da stania no céu azul e puro, voava em círculos um aeroplano com reflexos baços. Na outra margem, disparavam sobre ele com o canhão e a metralhadora.

- São muito capazes de o abater! - disse Prokhor enquanto escovava furiosamente um enorme garanhão avermelhado que estava preso a uma estaca. - Olha, Panteleievitch, que lindo macho te mandaram!

Grigóri inspeccionou rapidamente o animal, inquirindo com ar satisfeito:

- Não vi que idade tinha. Andará pelos seis anos?

- Seis anos, sim, deve ser isso.

- Oh, que bonito! Olha-me para essas pernas afuseladas, calçadas de branco! Lindo cavalinho... Anda, sela-o, quero ir ver o que nos vem do céu...

- Lá que é bonito não se pode negar! Agora veremos como corre. No entanto, parece-me muito vivo - resmungou Prokhor enquanto apertava os arreios.

Explodiu um novo shrapnel ao lado do aeroplano, soltando uma pequena nuvem de fumo branco.

Depois de escolher o lugar de aterragem, o piloto desceu rapidamente. Grigóri, transpondo a cancela, galopou em direcção às cavalariças da stanitsa, atrás das quais ele poisara.

Mais de oitocentos prisioneiros vermelhos achavam-se encerrados nas cavalariças dos garanhões da stanitsa um comprido edifício de pedra na extremidade da aldeia. As sentinelas não os deixavam sair para satisfazerem as suas necessidades e não tinham pia de retrete. Um cheiro pesado e denso a excrementos humanos envolvia a cavalariça como se fosse um muro. Um rio de urina pestilenta, sobre a qual esvoaçava um enxame de moscas verdes, corria por baixo das portas...

Dia e noite, ouviam-se gemidos abafados nessa prisão para condenados à monte. Centenas de prisioneiros sucumbiam de fraqueza, tifo e disenteria, doenças que grassavam entre eles. Por vezes deixavam lá ficar os mortos dias inteiros sem os retirarem

Grigóri deu a volta à cavalariça e ia apear-se quando o canhão se fez de inovo ouvir surdamente na outra margem do Don. O chiar do obus que se aproximava, aumentando de intensidade, juntou-se ao estampido da explosão.

O piloto e o oficial que o acompanhava mal tiveram tempo de sair da carlinga e logo ficaram rodeados pelos cossacos.

Imediatamente todas as peças da bateria da colina entraram em acção. Os obuses caíam, certeiros, em volta da cavalariça.

O piloto voltou a subir a toda a pressa para a carlinga, mas o motor recusava-se a trabalhar.

- Levem-no à mão! - comandou com voz de estertor o oficial que vinha da outra margem do Donetz. E ele próprio se pôs imediatamente a empurrar uma asa.

O aeroplano foi levado com facilidade para debaixo dos pinheiros, num passo leve e ondulante. A bateria acompanhava-o com o seu fogo rápido. Um dos obuses caiu sobre a cavalariça cheia de prisioneiros. Um dos ângulos do edifício desabou no meio de uma fumarada espessa e de um turbilhão de poeira calcária. As paredes tremeram com o grito dos vermelhos, transidos de pânico. Três prisioneiros saltaram pela brecha aberta e os cossacos, acorrendo, crivaram-nos de balas à queima-roupa.

Grigóri afastou-se a galope.

- Vão matar-te! Esconde-te dentro do pinhal! – gritou um cossaco que fugia à desfilada, com o medo estampado no rosto e nos olhos piscos, esbranquiçados.

“É certo que podem atingir-me com estas coisas nem o Diabo brinca”, pensou Grigóri. E regressou sem pressa ao abrigo.

Nesse dia, Kudínov convocou uma conferência secreta no Estado-Maior, não convidando Grigóri. O oficial do Exército do Don que viera de aeroplano anunciou em poucas palavras que, de um dia para o outro, a frente vermelha seria rompida pelas unidades do grupo de choque concentrado perto da stanitsa Kaménsskaia e que uma divisão de cavalaria do Exército do Don, sob o comando do general Secretev se desviaria para se vir juntar aos insurrectos. O oficial propôs que preparassem sem demora os meios necessários à travessia a fim de lançarem os regimentos insurrectos a cavalo na margem direita do Don, mal estes conseguissem juntar-se à divisão de Secretev: aconselhou que se concentrassem as reservas o mais próximo possível do rio e, no fim da conferência, depois de ter sido elaborado o plano da travessia e o movimento das unidades de perseguição, inquiriu:

- Porque é que vocês conservam os prisioneiros em Viochénsskaia?

- Não temos outro sítio para os guardar, não há lugar nas aldeias respondeu um dos oficiais do Estado maior.

O oficial limpou demoradamente o crânio rapado, coberto de suor, desabotoando a gola do uniforme caqui, e disse, com um suspiro:

- Mandem-nos para Kaménsskaia.

Kudínov ergueu as sobrancelhas com ar espantado.

- E depois?

- Depois, tragam-nos outra vez para Viochénsskaia... - explicou o oficial num tom condescendente, piscando os olhos azuis e frios.

E terminou duramente, de lábios cerrados:

- Não compreendo, meus senhores, porque se faz tanta cerimónia com tal gente. Creio que não estamos em tempo disso. Essa cambada é um foco de toda a espécie de doenças, tanto físicas como sociais, e é preciso exterminá-la. Não nos merece contemplações. No vosso lugar, faria isso.

No dia seguinte, o primeiro contingente de duzentos prisioneiros era conduzido às dunas. Lívidos, desarmados, com a pele acinzentada, mal podiam pôr um pé à frente do outro.

Uma escolta a cavalo rodeava o grupo em desordem... Durante o percurso de dez verstás que separava Viochénsskaia de Dubrovka, aqueles duzentos homens foram passados a fio de sabre do primeiro ao último. Antes da noite, o segundo grupo seguia o mesmo caminho. A escolta recebera ordens formais: utilizar a arma branca contra todos os que ficassem para trás e só disparar em casos extremos. De cento e cinquenta homens, só dezoito chegaram a Kaménsskaia... Um desses era um jovem soldado de tipo cigano, que enlouquecera pelo caminho.

Enquanto ia andando cantava, dançava e chorava, a apertar contra o peito um ramo de alecrim perfumado que colhera.

Caía muitas vezes de bruços na areia escaldante, o vento agitava-lhe os farrapos sujos da camisa de algodão, e os homens da escolta viam-lhe então a pele esticada das costas ossudas e as plantas negras, cheias de gretas, dos pés afastados. Erguiam-no, despejavam-lhe em cima água dos cantis, e ele então abria os olhos negros e brilhantes de loucura, ria baixinho e retomava a marcha vacilante.

Numa das aldeias, algumas mulheres compadecidas rodearam os homens da escolta.

- Vais soltar esse tipo aciganado. Perdeu o juízo, aproximou-se de Deus e seria um grande pecado matá-lo.

O chefe, um tenente de compleição atlética e bigodes ruivos, respondeu sorrindo:

- Nós cá, tiazinha,, não receamos sobrecarregar a alma com mais um pecado. Assim como assim, nunca faremos parte dos justos...

- Vais soltá-lo, não digas o contrário - teimava a velhota. - A morte espreita-vos a todos...

As outras mulheres apoiaram em uníssono e o chefe concordou.

- Cá a mim não me faz diferença nenhuma. Fiquem lá com ele. Dali não vem mal ao mundo, de resto. Mas em troca desta boa acção vocês vão oferecer a cada um de nós uma caneca de leite gordo.

A velha levou o louco para casa, deu-lhe de comer e deitou-o na sua cama. Ele dormiu vinte e quatro horas a fio e, ao acordar, levantou-se, começou a cantar baixinho, de costas para a janela. A velha entrou no quarto e foi pôr-se, de cara apoiada na mão, a observar demoradamente, com o olhar penetrante, o rosto emaciado do rapaz. Depois declarou em voz baixa:

- Parece que os teus camaradas não andam longe daqui...

O louco calou-se uns segundos, mas recomeçou logo a cantilena, agora mais baixo ainda.

Então a velha disse severamente:

- Olha, meu amigo, vais acabar com a cantiga e com essa comédia toda que me queres impingir. Não nasci ontem e a mim ninguém me faz o ninho atrás da orelha. Tu tens o juízo todo, sei-o perfeitamente. Ouvi-te falar enquanto dormias e falavas acertado.

O soldado vermelho continuou a cantar, mas cada vez mais em surdina. A velha prosseguiu:

- Não tenhas medo de mim, não te quero mal. Tive dois filhos que morreram na guerra contra os alemães e o último que me restava morreu agora nesta luta, em Tcherkassk. Trouxe-os a todos no meu seio... Criei-os e eduquei-os. Tantas noite sem dormir, quando era nova... É por isso que lamento todos os rapazes que andam na guerra...

Calou-se um momento.

O soldado vermelho calou-se também. Fechando os olhos, subiu-lhe ao rosto tisnado uma vermelhidão imperceptível. Uma veiazinha azulada começou a latejar-lhe no pescoço fino e negro.

Ficou um momento assim, numa silenciosa expectativa, depois entreabriu os olhos negros e inteligentes. Ardia tal impaciência neles que a velha sorriu de leve.

- Sabes o caminho para Chumiilínsskaia?

- Não, tiazinha - respondeu o soldado vermelho quase sem mover os lábios.

- Então como hás-de ir-te embora daqui?

- Não sei...

- É isso. Que hei-de eu fazer agora de ti?

A velha esperou durante muito tempo uma resposta, prosseguindo depois:

- E de caminhar, és capaz?

- Hei-de ser, ou mal ou bem.

- Nestas alturas não se pode caminhar “mal ou bem”. Tens de partir de noite e de andar o mais depressa possível. Ficas ainda aqui uma noite e vou dar-te mantimentos. O meu neto ensina-te o caminho e, depois, seja o que Deus quiser! Os teus camaradas vermelhos estão por detrás de Chumiilínsskaia, sei-o de fonte segura. É aí que vais ter com eles. Mas não devem seguir a estrada principal, atravessam a estepe, seguem pelos valados e pelos bosques, longe dos caminhos. De contrário, os cossacos deitam-vos a mão e não ficareis lá com muita saúde. Está combinado, meu amigo.

No dia seguinte, ao cair da noite, a velha abençoou o neto, um garoto de doze anos, e o soldado vermelho que disfarçara com um capote cossaco. No momento da partida, disse-lhes severamente:

- Vão com a graça de Deus! Mas tratem de não encontrar soldados . Não tem de quê, meu amigo, não tem de quê. Não é a mim que deves agradecer, mas sim ao bom Deus. Não sou só eu que assim procedo. Nós, as mães, somos todas boas... Temos compaixão de vocês, embora sejam malditos. Bem, bem, ide lá, e que Deus vos acompanhe!

E bateu com a porta oscilante, pintada de argila amarela.

 

Ilínitchna acordava todos os dias de madrugada, ia ordenhar a vaca e começava a cozinhar. Não se servia do fogão, acendia uma fogueira na cozinha de Verão, fazia o almoço e voltava a casa a tratar das crianças.

Natália restabelecia-se pouco a pouco do tifo. No dia a seguir à festa da Trindade, levantou-se da cama pela primeira vez deu a volta ao quarto, arrastando com dificuldade as pernas secas, e catou durante muito tempo os piolhos da cabeça dos filhos. Depois, sentada num banco, tentou mesmo lavar-lhes as roupas.

O sorriso não lhe abandonava o rosto pálido, um ligeiro rubor cobria-lhe as faces cavadas, e os seus olhos, que a doença tornara enormes, cintilavam com um brilho trémulo e luminoso, como acontece a seguir a um parto.

- Poliúchka, minha queridinha, diz lá: Michatka não te arreliou muito enquanto estive doente? - perguntou ela com voz fraca, pronunciando as palavras lentamente, a passar a mão nos cabelos negros da filha.

- Não, mãezinha. Michatka só me bateu uma vez, e com pouca força, fora isso brincámos sempre os dois - respondeu a pequena num sopro, apoiando com força o rosto nos joelhos da mãe.

- E a avó, deu-vos muito mimo? - informou-se Natalia sorrindo.

- Muito.

- E os estrangeiros, os soldados vermelhos, não vos fizeram nada?

- Degolaram a nossa porca, os malditos! - respondeu com a sua vozinha grossa Michatka, que se parecia extraordinariamente com o pai.

- Não se deve maldizer ninguém, Michatka. Sempre me saíste um grande chefe de família! É feio dizer mal das pessoas grandes observou Natalia sentenciosamente, disfarçando um sorriso.

- Foi o avô que disse, pergunte à Poliúchka – replicou com ares rancorosos o pequeno Melekhov para se justificar.

- É verdade, mãezinha. E as nossas galinhas, também as mataram todas, até à última.

Poliúchka animou-se: os seus olhitos negros brilhavam enquanto contava a chegada dos vermelhos à herdade e dizia que tinham morto as galinhas e os patos e que a avó Ilínitchna lhes pedira que deixassem o galo amarelo de crista prateada, para fazer criação. E um soldado vermelho, todo brincalhão, respondera pegando no galo: “Este galo, tiazinha, cantava contra o poder dos Sovietes, está condenado à morte. Por mais que faças, vai para a panela. Em troca dele, deixamos-te as nossas velhas botas.”

E Poliúchka explicava, abrindo os braços:

- Deixou cá umas botas desta altura. Altas, muito grandes, e todas cheias de buracos.

A rir e a chorar, Natalia ia acariciando os filhos e murmurava alegremente, sem desprender os olhos encantados do rosto da filha:

- Ah, minha Grigórievna! És mesmo filha do Grigóri! O retrato chapado do teu pai!

- E eu? - perguntou Michatka, com ciúmes, encostando-se timidamente à mãe.

- Tu também és parecido com ele. Mas tem cuidado, quando fores grande, não sejas tão maroto como ele foi...

- Maroto? Maroto, porquê? - inquiriu Poliúchka, intrigada.

Uma sombra de tristeza cobriu o rosto de Natalia. Não respondeu, levantando-se com esforço do banco.

Ilínitchna, que assistira à conversa, voltou as costas, descontente. Natalia já não ouvia os filhos. De pé, junto à janela, ficou-se a contemplar as portadas corridas da casa dos Astakhov. Suspirava, enquanto ia puxando nervosamente pela orla da blusa esfiapada.

No dia seguinte, acordando com a aurora, ergueu-se devagarinho para não acordar os filhos, arranjou-se, tirou da arca uma saia limpa, uma blusa e um lenço branco. Estava visivelmente comovida e, pela maneira como se vestia, pelo seu silêncio triste e severo, Ilínitchna calculou que ela se preparava para ir visitar a campa do avô Grichaka.

- Aonde vais tu? - inquiriu para se certificar.

- Vou visitar o meu avô - retorquiu Natalia sem erguer a cabeça, pois receava desatar aos soluços.

Sabia que ele tinha morrido e que Kochevói queimara a casa e as dependências.

- Estás ainda muito fraca, não deitas até lá.

- Descanso pelo caminho. Dê de comer aos meninos, mãe. Talvez me demore.

- Sabe-se lá o que pode acontecer! Que necessidade tens tu de te demorar por lá? Podes muito bem dar de caras com esses demónios, Deus me perdoe. Fazias melhor em não ir, minha filha.

- Não, quero ir.

De sobrolho franzido, Natalia estendeu a mão para o trinco da porta.

- Então espera, não podes ir em jejum. Queres leite coalhado?

- Não, minha mãe. Deus lhe pague, mas não quero... Como quando voltar.

Ao ver a firme resolução da nora, Ilínitchna aconselhou:

- É preferível que atravesses os pomares acima do rio. Não te arriscas tanto a seres vista.

A névoa flutuava como uma cortina acima do Don. O sol não se erguera ainda, mas a orla do céu, para as bandas de leste, riscada pelos choupos, ardia numa aurora cor de púrpura e, de trás das nuvens, soprava um ventinho frio, percursor da manhã.

Natália transpôs a cerca derrubada, onde se entrelaçavam corriolas, e entrou no jardim dos Korchunov. com as mãos apertadas sobre o peito, deteve-se junto de um pequeno montículo de terra remexida de fresco.

As ortigas e as silvas invadiam impetuosamente o jardim.

Cheirava ali aos juncos húmidos de orvalho e a terra molhada, a nevoeiro. Um estorninho solitário, de penas eriçadas, estava empoleirado em cima da velha macieira, crestada pelo incêndio.

A terra da sepultura abatera. Aqui e ali, entre os montes de barro seco, apareciam já as pontinhas verdes da erva a despontar.

Perturbada pelas recordações que lhe afluíam à mente, Natalia ajoelhou-se em silêncio, poisou o rosto na terra áspera, desde sempre impregnada da podridão mortal...

Dali a uma hora, saía furtivamente do jardim e encaminhava-se de novo, com o coração apertado, para o sítio onde outrora florira a sua juventude; no pátio deserto, tudo era negro: as traves carbonizadas dos telheiros, os escombros fuliginosos das lareiras e dos alicerces. Saiu devagarinho para a rua.

Natalia ia-se restabelecendo dia a dia. As pernas ganhavam forças, os ombros arredondavam-se-lhe, a saúde tornava-lhe o corpo mais cheio. Em breve foi capaz de ajudar a sogra na cozinha. Enquanto lidavam junto do fogão, mantinham longas conversas.

Um dia, Natalia inquiriu, irritada:

- Quando acabará isto? Já não posso mais!

- Vais ver, os nossos não tardam em passar o Don - respondeu Ilínitchna num tom confiante.

- Como é que o sabe, mãe?

- Diz-me o coração.

- Se ao menos os homens voltassem sãos e salvos! Queira Deus que nenhum seja morto ou ferido. O Grichka é um esturrado! - suspirou Natalia.

- Não tenhas medo, nada lhe sucederá. Deus é misericordioso.

- O nosso velho prometeu atravessar outra vez o rio para nos trazer notícias, mas se calhar teve medo. Se ele cá viesse, tu podias voltar para junto da nossa gente, fugindo ao perigo. Os nossos defendem-se em frente da aldeia. Outro dia, quando ainda estavas de cama e não davas conta de nada, fui até ao Don buscar água de manhã cedo e ouvi o Anikuchka a gritar do outro lado: “bom dia, avozinha! O seu velho manda-lhe saudades!”

- E o Grichka, onde está ele? - inquiriu prudentemente Natalia.

- Comanda-os a todos de longe - respondeu ingenuamente Ilínitchna.

- Mas comanda-os donde?

- De Viochénsskaia. Donde queres tu que seja?

Natalia ficou um grande bocado sem falar. Ilínitchna lançou os olhos para ela, perguntando, assustada:

- Mas que tens tu? Porque choras?

Sem responder, Natalia apertava o avental sujo sobre o rosto, soluçando baixinho.

- Não chores,, minha pequena Chorar de nada serve. Se Deus quiser, ainda o veremos outra vez com vida e saúde. Mas toma cuidado contigo. Não saias para o pátio sem ser preciso. Senão aqueles anticristos podem ver-te, começam a olhar para ti...

Principiava a escurecer na cozinha. Lá fora, um vulto tapou a janela. Ilínitchna, voltando-se, soltou um grito:

- São eles, são os vermelhos! Natáliuchka! Vai depressa meter-te na cama e finge que estás doente... Esconde-te debaixo da roupa.

A tremer de medo, Natalia mal teve tempo de se enfiar na cama. O trinco da porta deu um estalido, entrando um soldado vermelho, muito alto, que baixou a cabeça ao transpor os umbrais. As crianças agarraram-se às saias de Ilínitchna, que se fizera muito pálida. Deixou-se cair no banco, junto do fogão, derrubando uma bilha de leite coalhado sobre o lume.

O soldado vermelho percorreu a cozinha com um olhar rápido, dizendo numa voz forte:

- Não tenham medo que eu não vos como. Bons dias!

Natalia soltava gemidos a fingir, com a cabeça escondida dentro dos cobertores. Michatka, que observara de soslaio o homem, anunciou num tom triunfante:

- Avó! Foi este que matou o nosso galo, lembras-te?

O soldado vermelho tirou o boné de caqui, deu um estalo com a língua e sorriu.

- Reconheceste-me, patife. Quem te mandou falar no galo, hem? Ora muito bem, patroa, o caso é este: és capaz de nos cozer pão? Farinha temos nós.

- Sou capaz... sim senhor... Vou já tratar disso... – respondeu prontamente Ilínitchna sem olhar para o homem, enquanto ia enxugando o leite que se entornara sobre o banco.

O vermelho, sentando-se junto da porta, tirou a bolsinha do tabaco da algibeira e, ao mesmo tempo que enrolava um cigarro, meteu conversa:

- Pode ser esta noite?

- Pode ser ainda esta noite, se vocês estão com pressa.

- Na guerra, tiazinha, há sempre pressa. Quanto ao galo, não fique zangada connosco.

- Oh, nem me lembro disso! - retorquiu Ilínitchna toda aflita. Foi aquele malandro. Só se lembra do que não deve...

- Tu és muito avarento, pequeno... - disse a Michatka o expansivo visitante, com um sorriso bonacheirão. Porque olhas tu para mim com esses ares de lobo atrevido? Anda cá, vamos lá conversar a respeito do teu galo.

- Vai lá, querido - murmurou Ilínitchna, empurrando-o com o joelho.

O garoto, porém, desprendendo-se da saia da avó, tentou esgueirar-se para fora da cozinha e conseguiu alcançar sorrateiramente a porta. com o braço comprido, o soldado atraiu-o a si e perguntou:

- Ficaste zangado, ou quê?

Não respondeu Michatka num murmúrio.

- Bom, antes assim. Um galo não faz ninguém rico. Onde está o teu pai? Na outra margem do Don?

- Sim.

- Então luta contra nós?

Cativado pelas maneiras insinuantes do homem, Michatka declarou, entusiasmado:

- É ele quem comanda todos os cossacos.

- Ah, seu mentiroso!

- Pergunte à minha avó!

Esta, porém, não conseguiu fazer mais do que juntar as mãos e soltar um gemido, de tão aterrada que ficara com a tagarelice do neto.

- É ele quem comanda todos os cossacos? - perguntou de novo o soldado vermelho, perplexo.

- Bem, todos não... - respondeu Michatka, já menos senhor de si, perturbado pelos olhares desesperados da avó.

O soldado vermelho calou-se um momento e depois disse, enviesando os olhos para o lado de Natalia:

- A rapariga está doente, hem?

- É o tifo respondeu Ilínitchna de mau humor.

Dois soldados vermelhos entraram trazendo um saco de farinha que poisaram junto à soleira da porta.

- Acende o forno, patroa. Logo à noite vimos buscar o pão. Mas cautela, que tenha o peso todo, senão estás mal da vida.

- Vou fazer o pão como sei - respondeu Ilínitchna toda satisfeita pelo facto de os recém-chegados terem interrompido a conversa perigosa e por Michatka se ter esgueirado para fora da cozinha.

Um deles inquiriu, designando Natalia com um gesto da cabeça:

- Está com o tifo?

- Está.

Os vermelhos trocaram algumas palavras a meia voz e saíram. Mal o último voltara a esquina, quando se ouviram tiros do outro lado do Don.

Dobrados ao meio, alcançaram, correndo, o muro baixo meio destruído, deitaram-se atrás dele e, fazendo estalar todos ao mesmo tempo as culatras, começaram a responder.

Ilínitchna, aterrada, saiu para o pátio à procura de Michatka.

Detrás do muro, eles gritaram-lhe:

- Hé, avozinha! Entra para dentro de casa. Senão matam-te!

- O nosso menino está no pátio! Michenka! Meu amor! - gritava a velha com lágrimas na voz.

Correu até ao meio do pátio e imediatamente deixaram de disparar na outra margem. Os cossacos tinham-na avistado.

Mal ela entrou em casa, levando ao colo Michatka que viera ao seu encontro a correr, a fuzilaria recomeçou, prosseguindo até os vermelhos terem deixado a quinta dos Melekhov.

Ilínitchna amassou o pão, enquanto ia conversando a meia voz com Natalia, mas não teve tempo de o cozer.

Cerca do meio dia, os soldados vermelhos dos ninhos de metralhadoras que se encontravam na aldeia abandonaram de repente as herdades e começaram a trepar a toda a pressa a colina, seguindo pelas ravinas, com as metralhadoras a arrastar atrás de si.

A companhia que ocupava as trincheiras lá no alto, formando, dirigiu-se em marcha rápida para a estrada dos hetmans.

Um grande silêncio estendeu-se de súbito sobre toda a região. Nas estradas e nos atalhos de Verão invadidos pelas ervas, os carros e as baterias vindos das aldeias formavam bichas intermináveis em direcção à estrada dos hetmans; a infantaria e a cavalaria partiram em colunas.

Ilínitchna espreitava à janela os últimos vermelhos a treparem as escarpas barrentas e, limpando as mãos às cortinas, benzeu-se com emoção:

- Foi Deus que assim o quis, Natáliuchka: os vermelhos vão-se embora.

- Ai, minha mãe, deixam a aldeia para irem esconder-se nas trincheiras das colinas, mas à noite voltam...

- Então porque correm com tanta pressa? Os nossos chegaram-lhes a roupa ao pêlo. Estão a recuar, os malditos! Vão-se embora, os anticristos! rejubilava Ilínitchna. E voltou a amassar o pão.

Natalia, saindo do vestíbulo, parou na soleira com a mão em pala e pôs-se a observar demoradamente a colina barrenta Inundada de sol e os seus contrafortes enegrecidos pelo fogo.

Atrás desta, no silêncio majestoso que anuncia a tempestade, erguiam-se os dorsos espumosos das nuvens brancas. O sol do meio-dia queimava a terra. Os ratos do trigo bufavam nas pastagens, e esse ruído calmo e melancólico combinava-se estranhamente com o canto alegre das toutinegras. O silêncio que se seguira ao troar dos canhões era tão agradável para o coração de Natalia que se pôs a escutar, imóvel e avidamente, a canção ingénua das toutinegras, o chiar do poço, o murmúrio do vento repassado do cheiro amargo dos absintos.

Era acre e perfumado, esse vento de leste, o vento das estepes, um vento alado. Exalava o calor da terra negra a escaldar, os perfumes capitosos de todas as ervas derrubadas pelo sol; mas já se vinha sentindo a aproximação da chuva: uma humidade bafienta subia do Don; as andorinhas, rasando a terra com as pontas das asas abertas, traçavam arabescos no ar; e longe, muito ao longe, na atmosfera azul, vogava uma águia das estepes, fugindo à borrasca iminente.

Natalia deu alguns passos no pátio. Os cartuchos vazios amontoavam-se em pequenos montículos doirados atrás do muro. Os vidros e as paredes caiadas da casa estavam furados pelas balas. À frente de Natalia, uma galinha que escapara fugiu a esvoaçar, cacarejando, para o telhado da granja.

Aquele silêncio suave não se manteve durante muito tempo sobre a aldeia. O vento começou a soprar; as portas e os postigos abertos das casas abandonadas desataram a bater. Uma nuvem de saraiva, branca como neve, cobriu subitamente o sol e vogou para oeste.

A segurar os cabelos despenteados pelo vento, Natalia entrou na cozinha de verão, donde contemplou mais uma vez a colina. No horizonte, envoltas numa nuvem de poeira lilás, as carroças partiam a trote, precedidas de alguns cavaleiros isolados a galope. “Sempre é verdade, eles vão-se embora”, pensou ela com alívio.

 

Não entrara ainda no vestíbulo quando algures, ao longe, começaram a reboar surdamente tiros de canhão e, como a fazer-lhes eco, o som alegre dos carrilhões das duas igrejas de Viochénsskaia flutuou sobre o Don.

Na outra margem, os cossacos tinham surgido da floresta numa multidão compacta. Arrastavam atrás de si ou levavam a braço alguns barcos que punham a flutuar no Don. Os remadores, de pé à popa, manejavam habilmente os remos. Umas trinta barcas dirigiam-se rapidamente para a aldeia.

- Natáliuchka! Minha querida! São os nossos que lá vêm! - gritou chorando Ilínitchna que saíra a correr da cozinha.

Natalia, pegando em Michatka ao colo, ergueu-o bem alto. Os seus olhos brilhavam febrilmente, e sentia-se sufocar, a voz quebrava-se-lhe.

- Olha, meu amor, olha tu, que vês bem... Talvez o teu pai venha com os cossacos... Não estás a vê-lo? Não é ele, ali, na primeira barca? Ah, mas tu não estás a olhar para onde eu digo!...

No desembarcadoiro, só encontraram Pantelei Prokófievitch muito emagrecido. O velho quis logo saber se os bois estavam bem e pediu notícias da herdade e do trigo. Depois verteu algumas lágrimas ao beijar os netos. Quando entrou, a coxear num passo rápido, no pátio, empalideceu e caiu de joelhos. Depois, prostrou-se no chão, voltado para o Oriente, persignando-se num gesto largo, permaneceu muito tempo sem erguer da terra ardente o rosto seco e a cabeça desgrenhada.

Um grupo de três mil cavaleiros do Exército do Don, comandados pelo general Secretev, com seis peças de cavalaria e dezoito metralhadoras puxadas por cavalos, rompeu a frente a 10 de Junho, junto da stanitsa de Ust-Belokalitvénsskaia num golpe fulminante e seguiu ao longo do caminho-de-ferro na direcção da stanitsa de Kaménsskaia.

Dali a dois dias, de manhã cedo, uma patrulha de oficiais do 9.º Regimento do Don deparou, junto ao rio, com um posto avançado insurrecto. Ao avistarem o destacamento a cavalo, os cossacos precipitaram-se para uma ravina, porém o capitão cossaco que comandava a patrulha, reconhecendo os insurrectos pelas fardas, agitou um lenço branco na ponta do sabre enquanto gritava numa voz de estentor:

- São amigos!... Não fujam! É a nossa gente!...

A patrulha avançou sem tomar precauções até à entrada da ravina. O chefe do posto insurrecto avançou, a abotoar pelo caminho o capote manchado de orvalho. Desmontaram oito oficiais, e o capitão, ao aproximar-se do ajudante, tirando o boné de caqui, no qual brilhava uma insígnia de oficial, disse, sorrindo:

- Ora bom dia, amigos! Abracemo-nos segundo o velho costume cossaco.

Beijou o ajudante nas duas faces, depois, enquanto limpava com o lenço os beiços e o bigode, a sentir pesar sobre si os olhares atentos dos companheiros, inquiriu lentamente, franzindo a cara num sorriso entendido:

- Com que então voltaram! Viram que os vossos compatriotas valem mais do que os bolchevistas?

- Sim, Vossa Nobreza. Resgatamos o nosso pecado... Andamos a combater há três meses, já não contávamos mais consigo.

- Levaram tempo, mas acabaram por compreender. O que lá vai, lá vai. Diabos levem quem guardar rancor. Qual é a vossa stanitsa?

- Kazánsskaia, Vossa Nobreza.

- A vossa unidade está na outra margem do Don, não é verdade?

- Sim, Vossa Nobreza.

- Para que lado foram os vermelhos?

- Para montante, sem dúvida em direcção de Donétsskaia Slobódka.

- A vossa cavalaria ainda não atravessou?

- Ainda não, Vossa Nobreza.

- Porquê?

- Não sei, Vossa Nobreza. Nós fomos os primeiros a atravessar para este lado.

- Eles tinham aqui artilharia?

- Duas baterias.

- Quando se foram embora?

- Ontem, ao cair da noite.

- É preciso ir em perseguição deles. Vamos, cambada de palermas! disse o capitão num tom de censura.

Dirigindo-se ao cavalo, tirou da mochila um bloco de notas e um mapa.

O ajudante mantinha-se em posição de sentido, com o dedo mindinho a tocar na costura das calças. Os cossacos tinham-se agrupado atrás dele e observavam com um misto de alegria e receio inconsciente os oficiais, as selas, os cavalos, que eram de boa raça, mas vinham esgotados da corrida.

Os oficiais, envergando túnicas inglesas muito justas, com dragonas, e largos calções de montar, para desentorpecerem as pernas, iam e vinham ao lado dos cavalos, enquanto lançavam aos cossacos olhares de viés. Nenhum deles trazia já os galões desenhados a tinta, como no Outono de 1918. Botas, selas, cartucheiras, binóculos, as carabinas presas nos selins, tudo isso era novo e de origem estrangeira. Apenas um, o que parecia mais idoso, envergava uma tcherkesska de belo pano azul, um barrete de caracul castanho dourado de Bukhara e botas de montanhês sem tacão. Foi o primeiro a aproximar-se dos cossacos num passo vagaroso, enquanto tirava da sacola um elegante maço de cigarros com o retrato do rei Alberto da Bélgica.

- Vai uma cigarrada, rapazes! ofereceu.

Os cossacos estenderam as mãos ávidas para os cigarros. Os outros oficiais aproximaram-se.

- Então, como é que correram as coisas enquanto cá estiveram os bolchevistas? - inquiriu um sargento de cabeça grande e ombros largos.

- Foi um bocado duro... - respondeu num tom reticente um cossaco vestido com uma velha túnica, a chupar gulosamente no cigarro. Não tirava os olhos das botas altas, atacadas até ao joelho, que apertavam as pernas gordas do sargento.

As botas dele estavam todas cambadas e rotas e mal se lhe seguravam nos pés. As suas meias de lã branca, muito remendadas, que puxara para cima das dobras das calças, encontravam-se em farrapos. Por isso não conseguia despregar os olhos encantados das botas inglesas do oficial, que o atraíam com a espessura das solas e os ilhós de cobre reluzente. Sem poder conter-se mais, exprimiu a sua admiração.

- Ena! Vocês andam bem calçados!

O sargento, porém, não estava interessado numa conversa pacífica. E disse perfidamente, num tom provocante:

- Vocês preferiram ao equipamento estrangeiro o calçado de casca de tília proveniente de Moscovo, por isso não têm razão para sentirem inveja.

- Foi uma asneira. Estávamos iludidos... - respondeu um cossaco atrapalhado, olhando para os companheiros, à espera de apoio.

O sargento continuava a perorar num tom irónico:

- Vocês têm tanta inteligência como os bois. Os bois fazem sempre o mesmo: avançam um passo, depois param, reflectem. Foi uma asneira. No Outono passado, quando vocês abriram a frente, qual era a vossa ideia? Queriam ser todos comissários. Que belos defensores da pátria!

Um jovem tenente murmurou ao ouvido do sargento que ele estava a ir demasiado longe: “Cala-te! Já basta!” O sargento, depois de esborrachar o cigarro com o pé, cuspiu e aproximou-se dos cavalos, a bambolear-se todo.

O capitão, entregando-lhe um bilhete, disse-lhe qualquer coisa a meia voz.

Com uma ligeireza extraordinária, o sargento saltou para a sela, deu uma meia volta brusca e partiu a galope em direcção a oeste.

Os cossacos agrupavam-se, perturbados. O capitão, aproximando-se, perguntou alegremente, a fazer soar as notas baixas da sua voz sonora de barítono:

- Quantas verstás são daqui até Varvárinsski.

- Trinta e cinco - responderam ao mesmo tempo vários cossacos.

- Ora bem, amigos. Têm de ir dizer aos vossos chefes que as unidades de cavalaria devem atravessar o rio, vindo para aqui sem perda de um minuto. Um dos nossos oficiais vai acompanhar-vos até ao vau, será ele quem conduzirá depois a cavalaria. A infantaria deve efectuar um movimento na direcção de Kazánsskaia em formação de marcha. Entendido? Bem, então, vamos a isto! À esquerda, à esquerda, em frente, marchar!

Os cossacos desceram a encosta em desordem. Percorreram uma centena de ságenas em silêncio, como se estivessem combinados, e então o cossaco da túnica, um baixinho mal encarado que respondera ao sargento atrevido, abanou a cabeça e disse tristemente:

- Pronto, rapazes. Sempre se fez, essa tal junção...

E outro acrescentou:

- Tanto faz ser rábano, como rabanete, é tudo duro de roer.

E largou uma praga.

 

Assim que se soube em Viochénsskaia da fuga precipitada dos vermelhos, Grigóri Melekhov, depois de atravessar o Don a nado com dois regimentos de cavalaria, mandou à frente algumas patrulhas reforçadas e dirigiu-se para o sul.

Combatia-se atrás da falésia do Don. O trovejar contínuo do canhoneio rugia surdamente, como se tudo se passasse debaixo da terra.

- Os cadetes parece que não poupam os obuses. É fogo rápido! - disse com admiração um comandante de unidade, aproximando-se de Grigóri.

Este não respondeu. Seguia à frente da coluna, observando atentamente os arredores. Desde o Don até à aldeia de Bázki, num percurso de três verstás, milhares de carroças e carros jaziam abandonados pelos insurrectos. Por toda a parte, na floresta, via-se espalhada toda a casta de objectos: baús quebrados, cadeiras, fatos, arreios, loiça, máquinas de coser, sacos cheios de grão, coisas armazenadas ali pela grande avidez dos seus proprietários quando da retirada para o Don. Em certos pontos, o caminho estava coberto de levedura doirada onde as pessoas se enterravam até ao joelho. A par disto, jaziam cadáveres putrefactos de bois e de cavalos, inchados, deformados pela decomposição.

- Foi isto o que eles ganharam! - exclamou Grigóri, impressionado; de cabeça descoberta, esforçando-se por não respirar, contornou um monte de grão apodrecido, a fim de não pisar o corpo de um velho de barrete cossaco e blusa ensanguentada. - Esteve até ao fim de guarda aos seus bens, o velhote. Aqueles diabos encurralaram-no aqui declarou um cossaco num tom compadecido. Por certo custava-lhe muito largar o produto do seu trabalho...

- Vamos! A trote! Isto cheira mal que se farta!... - gritaram, indignadas, algumas vozes nas últimas filas do esquadrão

Meteram a trote. As conversas cessaram. Só se ouvia na floresta a cadência das ferraduras dos cavalos e o tilintar do equipamento bem ajustado dos cossacos.

Travaram luta a pouca distância do domínio Listnítsski.

Os vermelhos corriam em massa no fundo do vale sem água, um pouco ao largo de Iagodnói. Os shrapnels rebentavam por cima das cabeças deles, as metralhadoras disparavam-lhes contra as costas e um regimento Kalmuk descia a cavalo ao longo do cabeço para lhes cortar a retirada.

Grigóri chegou com os seus regimentos quando o combate estava a chegar ao fim. As duas companhias vermelhas que haviam coberto a retirada através do desfiladeiro de Viochénsskaia, unidades dispersas da 14.ª divisão, tinham sido destroçadas pelo 3.º Kalmuk, que as aniquilara por completo.

Chegando ao cabeço, Grigóri passou o comando a Ermakov, dizendo-lhe:

- Arranjaram-se sem nós. Vai tu até ao ponto de junção enquanto eu dou um salto à propriedade.

- Porquê? - estranhou Ermakov.

- Hum... como hei-de dizer... trabalhei aqui quando era novo e quero ir dar uma vista de olhos a isto...

Grigóri, chamando Prokhor, desviou-se para os lados de Iagodnói. Ao cabo de meia verstá viu subir e flutuar à frente do esquadrão da vanguarda um grande pano branco que um cossaco previdentemente se lembrara de levar.

“Como se eles pensassem em se render”, disse consigo tomado de uma angústia vaga, ao ver a coluna que descia lentamente, como que de má vontade, para o vale sem água, ao passo que um grupo de cavaleiros de Secretev vinha ao seu encontro a trote, através dos prados verdes.

Um vento de tristeza e abandono soprou sobre Grigóri quando, ao transpor o portão em ruínas, penetrou no pátio invadido pelas silvas. Iagodnói estava irreconhecível. Em tudo eram evidentes os terríveis vestígios da incúria e da destruição.

A casa, outrora alegre, parecia baça e mais pequena. O telhado há muito não via pintura achava-se coberto de ferrugem amarela, as goteiras quebradas juncavam o chão junto ao alpendre, as persianas arrancadas dos gonzos pendiam de esguelha.

O vento entrava a assobiar pelas janelas partidas que exalavam já o cheiro um pouco adocicado do caruncho, próprio das casas desabitadas.

O ângulo do nascente e o alpendre haviam sido demolidos por um obus de três polegadas. A copa de um ulmeiro abatido também pelo obus entrara pela janela à italiana do corredor, arrombando-a. O ulmeiro jazia derrubado, com o tronco em cima de um monte de tijolos arrancados aos alicerces. Ao longo dos seus ramos murchos começava já a trepar um emaranhado de lúpulo bravo, que crescera impetuosamente, invadindo em voltas caprichosas os caixilhos que tinham ficado intactos e trepava já até ao beiral.

O tempo e as intempéries iam cumprindo a sua missão.

As dependências em ruínas pareciam estar há longos anos abandonadas pela mão diligente do homem. Na cavalariça, a parede, repassada pelas chuvas da Primavera, desmoronara; o temporal arrancara o telhado do alpendre onde se guardavam as carroças, e aqui e ali, sobre as trevas e ripas, esbranquiçadas como ossos, viam-se apenas alguns fiapos de palha apodrecida.

Três galgos, que o afastamento dos homens tornara selvagens, estavam deitados nos degraus das dependências. Ao verem os cossacos, ergueram-se, desaparecendo no vestíbulo, a rosnar surdamente. Grigóri, aproximando-se de uma janela escancarada exclamou, enquanto se curvava na sela:

- Vive aqui alguém?

A casa permaneceu silenciosa durante um grande bocado, depois uma voz desafinada de mulher respondeu:

- Espere, pelo amor de Deus, já vou!

Lukéria, muito velha, a arrastar os pés, surgiu no patamar; examinou demoradamente Grigóri, a piscar os olhos por causa do sol.

- Não me conheces, tia Lukéria? - perguntou Grigóri, desmontando.

Só então o rosto enrugado de Lukéria estremeceu e a sua estúpida indiferença deu lugar a uma forte emoção. Desatou a chorar, ficando muito tempo sem conseguir dizer palavra.

Grigóri, depois de prender o cavalo, aguardou pacientemente.

- Sofri tudo quanto se pode sofrer e não desejo o mesmo a ninguém... - começou Lukéria, enxugando as faces com o avental sujo. - Pensei que eles tinham voltado... Oh, Grichenka, o que aconteceu aqui!... Nem se pode descrever!... Fiquei cá sozinha...

- E o tio Sachka, onde está ele? Foi-se embora com os patrões?

- Se houvesse feito isso, talvez ainda estivesse vivo a estas horas!

- O quê! Morreu?

- Mataram-no... Está na cave há mais de dois dias... Era preciso enterrá-lo, mas eu adoeci... Mal me podia levantar... E morria de medo se fosse lá abaixo e visse o cadáver!...

- Mas porque é que eles?... - inquiriu Grigóri numa vozabafada, sem erguer os olhos.

- Por causa de uma égua... Os nossos patrões partiram a toda a pressa. Só levaram o dinheiro, mas os bens deixaram-nos quase todos à minha guarda.

Lukéria pôs-se a falar em segredo:

- Escondi tudo, até à última ponta de linha. O que foi enterrado lá continua debaixo da terra. Quanto a cavalos, só levaram os três garanhões de Orei. Os outros deixaram-nos ao tio Sachka. Logo que começou a revolta, os cossacos e os vermelhos vieram buscá-los. Ainda te lembras do Vendaval, o garanhão preto? Levaram-no os vermelhos na Primavera. Custou-lhes muito pôr-lhe os arreios. Parecia que nunca tinha andado com uma sela em cima. Mas não tiveram muito tempo para o montar nem para se gozarem dele. Foram os cossacos de Karguínsskaia que chegaram dali a oito dias quem nos contou a história. Tinham encontrado os vermelhos na colina e desataram a atirar contra eles. Mas nisto uma égua dos cossacos pôs-se a relinchar. Então o Vendaval, sem perceber nada, levou o vermelho que o montava até junto dos cossacos. Galopava à desfilada e o soldado não conseguia fazê-lo parar. Quando viu que todos os seus esforços eram baldados, quis saltar para o chão em pleno galope. Lá saltar, saltou ele, mas o pé ficou-lhe preso no estribo. E o Vendaval arrastou-o direitinho até aos cossacos.

- Bem feito! - exclamou Prokhor, num tom de admiração.

- Agora é um sargento de Karguínsskaia quem o monta - prosseguiu gravemente Lukéria. - Prometeu trazê-lo de novo para a cavalariça logo que os patrões voltarem. Tinham portanto levado todos os cavalos e só restava a Flecha, a pequena tratadora, filha do Primeiro e da Prometida. Estava cheia e por isso ninguém lhe tocava. Pariu há pouco tempo e foi o tio Sachka quem tratou do poldrozinho, e tão bem que só visto!... Levava-o ao colo, dava-lhe leite num biberão, e também chás de ervas, para lhe fortalecer as pernas. Mas foi então que sucedeu a desgraça... Antes de ontem, ao cair da noite, chegaram três homens a galope. O velho andava a ceifar erva no jardim. Eles gritaram-lhe: “Anda cá, monte de esterco!” O tio Sachka largou a foice e veio. Deu-lhes as boas-tardes, mas os malditos nem sequer olharam para ele. Estavam a beber leite e perguntaram: “Tens cavalos?” Ele vai então e respondeu: “Tenho um, mas não pode servir para a guerra: É uma égua e ainda para mais tem um poldro de mama.” O pior dos três, só queria que visses como ele gritava, ordenou: “Isto não é da tua conta. Vai lá buscar a égua, malandro. O meu cavalo está com os rins avariados e tenho de o substituir.” Ele devia ter cedido e não se agarrar à égua, mas tu sabes que o velho era de força... Até ao patrão ele respondia, recordas-te, hem!

- Então ele recusou? - quis saber Prokhor, metendo-se na conversa.

- Hé! Qual recusou? Disse-lhes simplesmente isto: “Já cá vieram outros cavaleiros que levaram os cavalos todos, mas deixaram esta égua, ao passo que vocês...” Eles então ficaram furiosos: “Ah! lacaio!”, gritaram. “Estás a guardá-la para o teu patrão?” E atiraram-se a ele. Houve um que foi buscar a égua e começou a selá-la, mas o poldro continuava a querer mamar na mãe. O velho então suplicou-lhes: “Não a levem, tenham caridade, que vai ser do poldro?” “Já vais ver o que vai ser dele!”, disse outro. Afastou-o da mãe e deu-lhe um tiro. Eu pus-me a chorar... Desatei a correr, supliquei, puxei o velho pela manga, quis arrancá-lo à desgraça, mas ele, quando viu o poldro, começou com a barbicha a tremer e pôs-se branco como a cal da parede. E disse: “Se é assim, então mata-me também a mim, filho de uma cadela!” Atirou-se ao vermelho e não o queria deixar pôr os arreios na égua. Os outros então, enraivecidos, executaram-no. Eu cá perdi a cabeça quando vi dispararem sobre ele. E agora não sei o que há-de fazer. Era preciso arranjar um caixão, mas, assim como assim, não é trabalho para uma mulher.

- Dá-nos duas enxadas e um bocado de oleado – disse Grigóri.

- Queres enterrá-lo? - perguntou Prokhor. - Não precisas de estar com esse trabalho, Grigóri Panteleiévitch!

- Se quiseres vou arranjar homens. Eles fazem uma urna e abrem-lhe uma cova decente...

Prokhor não estava nada interessado em tratar do enterro de um velho que nem conhecia, mas Grigóri recusou teimosamente a proposta.

- Nós é que vamos abrir a cova e enterrá-lo com as nossas mãos. Este velho era um bom homem. Vai para o jardim e espera-me junto do tanque, que eu cá vou ver o defunto.

Debaixo do velho choupo de ramos alargados, junto do tanque coberto de lentilhas de água, no mesmo local onde outrora fora enterrada a filha de Grigóri e de Akcínia, o tio Sachka encontrou também a última morada. Meteram na cova O seu corpo ressequido, envolto num lençol limpo que cheirava a lúpulo, e cobriram-no de terra. Ao lado da pequena sepultura ficou outra, cuidadosamente calcada com as botas a que a greda brilhante, húmida e fresca, dava ar festivo.

Acabrunhado pelas recordações, Grigóri deitou-se na erva daquele pequeno cemitério grato ao seu coração, deixando-se ficar durante muito tempo a contemplar o céu azul que se estendia, majestoso, por cima da sua cabeça. Lá no alto, no espaço sem limites, circulavam os ventos e flutuavam nuvens frias iluminadas pelo sol. E naquela terra, que acabava de receber o corpo do tio Sachka, bêbado jovial, grande amador de cavalos, a vida continuava a fervilhar furiosamente: na estepe, sobre as águas verdes da enchente que alcançavam os limites do jardim, nos prados de cânhamo selvagem junto à cerca da velha eira, ouvia-se continuamente o barulho das codornizes às bulhas, os ratos do trigo bufavam, os besoiros zumbiam, a erva murmurava, acariciada pelo vento, as cotovias cantavam na bruma trémula, e uma metralhadora crepitava muito ao longe, no vale sem água, obstinada, pérfida, num matraquear surdo, a proclamar ante a natureza o poder do homem.

 

O general Secretev, chegando a Viochénsskaia com os seus oficiais do Estado-Maior e o esquadrão cossaco da sua escolta pessoal, foi acolhido com a oferta do pão e do sal e com o repicar do carrilhão das igrejas. Durante todo o dia os sinos tocaram como na Páscoa. Os cossacos do Baixo-Don circulavam nas ruas montando cavalos esqueléticos, esgotados pela caminhada. Os galões azuis cintilavam como um desafio nos ombros dos homens. As ordenanças agruparam-se no largo, junto da casa de um comerciante onde se alojara o general Secretev. Sempre a mascarem pevides de girassol, metiam conversa com as raparigas da stanitsa que passavam, ataviadas com os seus mais belos trajes.

Pelo meio-dia, três Kalmuks a cavalo trouxeram para a casa ocupada pelo general meia dúzia de prisioneiros vermelhos. Atrás deles, vinha uma carroça cheia de instrumentos de sopro. Os vermelhos vestiam de maneira invulgar: calças de fazenda cinzenta e casacos iguais, com uma banda vermelha nos punhos. Um Kalmuk de certa idade, abeirou-se de uma das ordenanças que berrava com todas as suas forças em frente do portal, depois de desmontar, meteu na algibeira o pequeno cachimbo de barro.

- Trazemos connosco alguns cornetins vermelhos, compreendes?

- Compreendo o quê? - respondeu desdenhosamente uma sentinela, de má catadura, cuspindo as pevides de girassol para cima das botas poeirentas do Kalmuk.

- O quê., o quê o quê... Pega nos prisioneiros! És muito importante, meu cabeçudo. Falas e não dizes nada.

- Eh lá! Eh lá! Vê se queres que eu te ensine a falar, cara de cu! - respondeu a ordenança, vexada. - Mas lá foi anunciar a chegada dos prisioneiros.

Um capitão gorducho, vestido com um bechmet (Espécie de caftan de origem tártara) castanho, apertado na cintura, saiu cá para fora. com as gordas pernas abertas e os punhos na cinta, como se vê nas gravuras, observou os vermelhos, murmurando em voz baixa:

- Vocês tocavam para divertir os comissários, seus piolhosos?

- Donde vieram essas fardas cinzentas? Roubaram-nas aos alemães?

- Não, meu capitão respondeu um vermelho que se colocara à frente dos outros, a piscar continuamente os olhos.

E explicou, desembaraçado:

- Recebemos estas fardas quando mandava Kerénsski, pouco antes da ofensiva de Junho... Usamo-las desde então.

- Comigo não a usarás durante muito tempo. Podes estar certo. Comigo não a usarás durante muito tempo.

O capitão atirou para trás o boné chato do Kúbano, pondo a descoberto, sobre a cabeça rapada, uma cicatriz ainda fresca, cor de framboesa. Depois, girando subitamente nos tacões altos e cambados, voltou-se para o Kalmuk:

- Quem te mandou trazer para aqui os prisioneiros, idiota? Que raio! Não podias tê-los liquidado pelo caminho?

O kalmuk, que se endireitara] imperceptívelmente, juntou as pernas arqueadas, respondendo, sem tirar a mão da pala do boné de caqui:

- O chefe do esquadrão disse que era preciso trazê-los para cá.

“Era preciso trazê-los para cá!”repetiu arremedando-o, a torcer desdenhosamente os beiços finos. Deu a volta ao grupo dos vermelhos, movendo pesadamente as pernas inchadas, a fazer estremecer as nádegas a cada passada. Examinava-os demorada e atentamente, como um alquilador a apreciar cavalos.

As ordenanças riam à socapa. Os rostos dos kalmuks da escolta mantinham a sua eterna impassibilidade.

- Abram o portão. Façam-nos entrar no pátio! - ordenou o capitão.

Os vermelhos e a carroça carregada de instrumentos pararam em frente da entrada.

- Quem é o mestre da banda? - perguntou o capitão, a acender um cigarro.

- Não há - responderam algumas vozes ao mesmo tempo.

- Para onde foi ele? Pôs-se ao fresco?

- Não, mataram-no.

- Só teve o que merecia. Vocês passam bem sem ele. Vamos, peguem nos instrumentos.

Os vermelhos dirigiram-se para a carroça. Misturando-se ao repicar obcecante dos sinos, as vozes de cobre dos instrumentos ressoaram no pátio, tímidas e desafinadas.

- Preparem-se. Vamos lá, toquem: Deus proteja o Czar.

Os músicos entreolharam-se em silêncio. Nenhum principiou.

Esse silêncio penoso durou bem um minuto. Por fim, um deles, sem botas mas com as grevas cuidadosamente enroladas, disse, de olhos pregados no chão:

- Nenhum de nós conhece esse hino...

- Nenhum? É curioso... Eh! Vocês que aí estão! Venha daí meio pelotão de ordenanças com as espingardas.

O capitão batia com a biqueira da bota um compasso inaudível As ordenanças alinharam no corredor, fazendo ruído com as espingardas. Atrás do jardinzinho, piavam pardais nas ramadas espessas das acácias. O zinco super aquecido dos telhados e o suor azedo dos homens enchiam o pátio de um odor escaldante. O capitão retirara-se para a sombra, quando o músico descalço disse em voz baixa, lançando aos camaradas um olhar de angústia:

- Saiba Vossa Nobreza que só temos aqui músicos novos.

- Nunca os mandaram tocar músicas antigas... A maior parte das vezes tocavam hinos revolucionários...

O capitão dava voltas distraidamente com os dedos à fivela dourada do cinto. Mantinha-se calado.

As ordenanças haviam-se alinhado ao longo do telheiro e esperavam ordens. Abrindo caminho por entre o grupo dos soldados vermelhos, um músico mais velho, com uma névoa branca num dos olhos, adiantando-se até à primeira fila, disse, tossicando:

- Dá licença? Eu sei tocar.

E, sem esperar resposta, levou aos lábios trémulos o trombone aquecido pelo sol.

Os sons roufenhos e melancólicos que se ergueram, ecoando Solitariamente por cima do vasto pátio da casa do comerciante, provocaram no capitão um esgar de cólera. Fez um gesto com a mão gritando:

- Cala-te! Pareces um mendigo a tocar sanfona. Então isso é música?

Nas janelas apareceram os rostos sorridentes dos oficiais do Estado-maior e os ajudantes-de-campo.

- Diz-lhe para tocar uma marcha fúnebre! - gritou de uma das janelas a voz fina de tenor de um tenente, todo debruçado para fora.

O carrilhão desenfreado dos sinos calou-se um minuto e o capitão, erguendo as sobrancelhas, inquiriu numa voz insinuante:

- E a Internacional, sabes tocar? Espero que sim. Vá, não tenhas medo sou eu que mando!

E, no meio do silêncio súbito e do calor tórrido do meio-dia, como um apelo ao combate, reboaram de repente, harmoniosas e cheias de majestade, as notas indignadas da Internacional.

O capitão estava imóvel como um toiro em frente do obstáculo, de cabeça baixa e pernas afastadas, imóvel à escuta. O pescoço musculoso e os globos azulados dos olhos semicerrados injectaram-se-lhe de sangue.

- Basta! - gritou, furioso, sem poder mais.

A orquestra calou-se de repente, com excepção de um coro de harmónica que se atrasou um pouco e cujo apelo apaixonado ficou a flutuar muito tempo, inacabado, no ar tórrido.

Os músicos lambiam os beiços ressequidos e limpavam-nos com a manga ou a palma da mão suja. Os seus rostos pareciam fatigados e indiferentes. Apenas um se traiu vertendo uma lágrima que lhe escorreu pela face onde deixou um risco húmido...

Foi então que o general Secretev, que jantara em casa de um dos seus camaradas da guerra russo-nipónica, apareceu na praça, amparado pelo ajudante-de-campo, embriagado. O calor e a aguardente haviam-lhe subido à cabeça. À esquina da praça, em frente do edifício de tijolos do liceu, o general, fraquejando, tropeçou e caiu de borco sobre a lama escaldante.

O ajudante-de-campo, atrapalhado, esforçava-se por o agarrar.

Alguns homens que se encontravam perto correram a auxiliá-lo. Dois cossacos mais velhos ergueram-no o mais respeitosamente possível por debaixo dos braços e o general vomitou em público. Porém, entre dois vómitos, tentava ainda gritar belicosamente, agitando os punhos. Por fim lá o convenceram a deixar-se levar para o quarto.

Os cossacos que se encontraram um pouco mais longe acompanharam-no com os olhos, trocando a meia-voz os seus comentários:

- Ena, está que nem um cacho, pobre homem. Apesar de ser general, não sabe comportar-se.

- A aguardente não quer saber de patentes nem de galões!

- Não devia emborcar quanto lhe põem na frente...

- Eh, compadre! Nem todos sabem segurar-se. Há muitos, quando estão bêbados, que juram a pés juntos nunca mais se embebedarem na vida... Mas lá diz o ditado: quem bebeu beberá...

- Isso é certo... Mas vai dizer àqueles garotos que saiam dali para fora. Passam diante dele e olham, os malandros, como se nunca tivessem visto um bêbado!

Os sinos repicaram e bebeu-se aguardente em toda a stanitsa até ao cair da noite. Ao serão, na casa onde haviam instalado o círculo dos oficiais, o comando insurrecto ofereceu um banquete aos recém-chegados.

Sekretev, que era um verdadeiro cossaco, alto e bem constituído, natural de uma aldeia da stanitsa Krasnókutsskaia, tinha a paixão dos cavalos de sela. Montava maravilhosamente, era um intrépido general de cavalaria, mas não possuía dotes oratórios.

O discurso que pronunciou no banquete estava cheio de fanfarronadas de bêbado, terminando com censuras e ameaças claramente dirigidas aos homens do Alto-Don.

Grigóri, também presente, escutava com uma atenção reservada e furiosa as palavras de Sekretev. O general, que não tivera tempo de curar a bebedeira, pusera-se de pé, apoiado à mesa com as pontas dos dedos, a entornar o copo de aguardente perfumada; e declamara, pronunciando cada frase com excessiva firmeza:

- Não, não somos nós quem vos deve agradecer o auxílio prestado, mas sim vocês que nos devem agradecer a nós. Sim, é preciso dizê-lo francamente. Sem nós, os vermelhos ter-vos-iam aniquilado. Sabei-lo perfeitamente. Ao passo que nós, sem a vossa ajuda, poderíamos ter esmagado essa malandragem. E é isso que fazemos e continuaremos a fazer até conseguirmos limpar a fundo a Rússia inteira. No Outono passado, vocês abandonaram a frente, deixando os bolchevistas na terra cossaca... Quisestes viver em paz com eles, mas isso não deu resultado. Então revoltaste-vos a fim de conservar os vossos bens e as próprias vidas. Por outras palavras, para salvardes a vossa pele e a pele dos vossos bois. Se estou a recordar o passado não é para censurar os vossos pecados... Não digo isto para vos magoar. Mas nunca é de mais afirmar a verdade. Já perdoamos a vossa traição. Viemos até vós como irmãos no momento mais difícil para vós, no intuito de vos socorrer. Mas é preciso agora que resgateis esse vergonhoso passado. Entendido, senhores oficiais? Resgatareis com os vossos feitos de armas e servindo sem uma falha o Don Tranquilo. Entendido?

- Muito bem, à saúde do resgate dos nossos pecados! - exclamou um tenente-coronel cossaco, já idoso, que estava sentado em frente de Grigóri. com um sorriso imperceptível e sem olhar para ninguém em particular, foi o primeiro a esvaziar o copo, sem esperar pelos outros.

Tinha um rosto enérgico, levemente picado das bexigas, e uns olhos negros e irónicos. Durante o discurso de Sekretev, os seus lábios esboçaram, por mais de uma vez, um sorriso vago, fugidio, e nessa altura os seus olhos escureciam, tornando-se quase pretos. Ao observar esse tenente-coronel Grigóri descobriu que ele tratava Sekretev por tu e mantinha na sua presença uma atitude de independência, mostrando-se no entanto ostensivamente frio em face dos outros oficiais. De todos os participantes no banquete, era ele o único a ostentar dragonas de caqui num blusão da mesma fazenda, bem como os galões dos soldados de Komilov cosidos na manga. “Um homem com ideias, provavelmente um voluntário”, pensou Grigóri. Não comia, mas aguentava sem se embebedar; apenas, de tempos a tempos, alargava o cinto à inglesa.

- Quem é aquele que está na minha frente, o bexigoso - perguntou Grigóri a Bogatíriov, sentado ao seu lado.

Este, aborrecido, mandou-o passear:

- Sei lá!

Kudínov não regateava a aguardente aos seus hóspedes Apareceram na mesa garrafas de bebidas alcoólicas vindas Deus sabe donde e Sekretev, depois de terminar com dificuldade o discurso, deixou-se cair na cadeira. Um jovem tenente de tipo mongol muito pronunciado murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido.

- Vai para o diabo! - exclamou Sekretev que, fazendo-se escarlate, esvaziou de um trago o pequeno copo que Kudínov lhe enchera amavelmente.

- E o outro dos olhos piscos, quem é? Um ajudante-de-campo? - voltou a inquirir Grigóri de Bogatíriov.

O outro retorquiu com a mão diante da boca:

- Não, é o seu pupilo. Trouxe-o da Manchúria ainda garoto, quando foi da guerra com o Japão. Educou-o e mandou-o para a escola militar. Fez-se alguém, o chinesito. Um valentão. Ontem, em Makêievka, foi ele quem tirou a caixa do regimento aos vermelhos. Surripiou-lhes dois milhões! Olha, traz maços de notas a sair de todas as algibeiras. Teve sorte, o malandro. Um verdadeiro tesouro! Mas porque estás tu a olhar para ele? Bebe!

Foi Kudínov quem respondeu ao discurso, mas quase ninguém lhe prestou atenção: A bebedeira aumentava cada vez mais. Sekretev, que despira o casaco da farda, estava em camisa interior. A sua cabeça rapada brilhava de transpiração a camisa de tela impecavelmente limpa fazia sobressair mais intensamente o seu rosto carmesim e o tom bronzeado do pescoço.

Kudínov dizia-lhe qualquer coisa em voz alta, mas Sekretev repetia obstinadamente, sem o olhar:

- Na não, desculpa. Peço-te perdão. Temos confiança em vocês, mas desde que A vossa traição não será esquecida tão depressa. Àqueles que se passaram para os vermelhos em Outubro já sabem com o que podem contar...

“Bem, bem. Também nós vos serviremos desde que...”, pensou com fria raiva Grigóri, que agora já estava também bêbado. Ergueu-se.

Em cabelo, saiu para o terraço e aspirou com alívio, a plenos pulmões, o ar fresco da noite.

À beira do Don, as rãs coaxavam como que a anunciar chuva e os insectos zumbiam melancolicamente. Sobre a língua de areia, os maçaricos reais trocavam apelos lamentosos e ao longe, num prado algures à beira do rio, um poldro que havia perdido a mãe relinchava debilmente, já sem fôlego. “É triste termos necessidade de nos unirmos; sem isso não precisaríamos de vocês para nada. Maldita coisa! Julgam-se superiores, fazem-nos censuras, e não ainda uma semana que nos ponham a rata em cima Está feito, está feito. Não há outra saída. De resto, eu bem dizia... Era fatal. Os cossacos vão agora ficar contentes! Já tinham perdido o hábito de fazer continência, de se porem em sentido diante de Suas Nobrezas”, pensava Grigóri enquanto descia os degraus e alcançava o portão às apalpadelas.

Também sobre ele o álcool produzira o seu efeito: andava-lhe a cabeça à roda, tinha os movimentos pesados e incertos Ao transpor a paliçada, vacilou, e, depois de enterrar o boné na cabeça, seguiu rua abaixo, a arrastar os pés.

Chegado à altura da casinha da tia de Akcínia, parou um minuto, indeciso, depois avançou resolutamente para o alpendre.

A porta do vestíbulo não estava fechada. Grigóri, entrando sem bater, viu Stepane Astakhov sentado à mesa mesmo na sua frente. A tia de Akcínia cirandava em volta do fogão. Sobre a mesa coberta por uma toalha limpa via-se uma garrafa de aguardente já vazia; um peixe seco, cortado às postas, avultava numa mancha cor-de-rosa dentro de um prato.

Stepane, que acabava de esvaziar o copo, preparava-se sem dúvida para comer; porém, ao avistar Grigóri, empurrou o prato e encostou-se à parede.

Por muito bêbado que estivesse, Grigóri reparou que o rosto de Stepane se tornara de uma palidez mortal e que os seus olhos tinham começado a brilhar como, os de um lobo. Aterrado com aquele encontro, ainda teve forças para dizer, numa voz rouca:

- Boas noites.

- Boas noites - respondeu a dona da casa com ar assustado pois decerto estava ao corrente das relações da sobrinha com Grigóri e não esperava nada de bom deste encontro inesperado entre o marido e o amante.

Stepane alisava silenciosamente o bigode com a mão esquerda, sem desfitar de Grigóri os olhos ardentes.

Este, de pé na soleira, com as pernas alargadas, sorria de esguelha. E disse:

- Passei por aqui e vim ver-vos. Peço desculpa...

Stepane tinha-se calado. Este silêncio incomodou até ao momento em que a dona da casa arranjou coragem para convidar Grigóri.

- Entre e sente-se.

Já não era possível esconder nada. A vinda dele a casa de Akcínia explicara tudo a Stepane. Foi direito ao fim:

- Onde está a tua mulher?

- Tu... foi a ela que vieste visitar? - inquiriu Stepane com uma voz fraca mas audível, baixando os olhos de pálpebras trémulas

- Sim, foi a ela - respondeu Grigóri com um suspiro.

Naquele momento esperava tudo de Stepane e, já livre de embriaguez, estava pronto a defender-se. Mas Stepane entreabriu os olhos (a chamazinha que há pouco ali se acendera acabava de se extinguir) e disse:

- Mandei-a buscar vodka, deve estar a chegar. Senta-te e espera por ela.

Foi mesmo ao ponto de se levantar, alto e desempenado, para oferecer uma cadeira a Grigóri; sem olhar para a dona da casa, disse:

- Minha tia, traga um copo lavado.

- É para Grigóri:

- És servido?

- Pode ser, obrigado.

- Então senta-te.

Grigóri abancou... Stepane, depois de encher os copos, em partes iguais, com o que restava na garrafa, ergueu para Grigóri os olhos velados por uma espécie de bruma.

- À saúde de tudo quanto é bom!

- À nossa saúde!

Tocaram os copos e beberam. Ficaram algum tempo sem falar. A dona da casa, ligeira como um rato, apresentou ao visitante um prato e um garfo de cabo lascado.

- Coma peixe. Não está salgado de mais.

- Muito obrigado.

A mulher animava-o, já mais desanuviada:

- Sirva-se à vontade.

Estava muito contente ,por tudo se ter passado na calma, sem rixas, nem gritos, nem loiça quebrada. Terminara a conversa inquietante. O marido estava pacificamente sentado à mesma mesa que o amante da mulher. Amável, a dona da casa tirou da arca uma toalha de mãos limpa cujas extremidades estendeu sobre os joelhos de Stepane e de Grigóri, como que para os unir.

- Porque não estás no esquadrão? - inquiriu Grigóri achupar uma espinha de peixe.

- Vim cá também para a ver respondeu Stepane após um silêncio. E ninguém poderia dizer, ao ouvi-lo, se falava a sério ou de troça.

- O esquadrão está de folga, não é verdade?

- Foram todos passar um bocado à aldeia. Então, vamos a isto?

- Se quiseres...

- Cá vai à nossa!

- A tudo quanto é bom!

O trinco da porta estalou no vestíbulo. Grigóri, já completamente sóbrio, lançou um olhar de soslaio para Stepane e viu uma onda de palidez cobrir-lhe novamente o rosto.

Akcínia, envolta num xaile bordado, aproximou-se da mesa, a princípio sem reconhecer Grigóri. Porém, ao lançar-lhe um olhar de viés, o terror derramou-se-lhe pelos olhos negros e dilatados. com a respiração opressa, mal pôde murmurar:

- Boas noites, Grigóri Panteleiévitch.

As enormes mãos nodosas de Stepane, poisadas sobre a mesa, começaram de súbito a estremecer e, ao ver isto, Grigóri saudou Akcínia em silêncio.

Enquanto poisava as duas garrafas de aguardente, ela lançou um novo olhar cheio de inquietação e de secreta alegria para Grigóri, depois, dirigindo-se a um canto escuro da sala, foi sentar-se em cima da arca, a compor os cabelos com as mãos a tremer. Dominando a emoção, Stepane desabotoou a camisa que o afogava, encheu os copos até cima e voltou-se para a mulher:

- Senta-te à mesa e vem beber um copo.

- Não quero.

- Vem.

- Mas eu não bebo, Stepane.

A voz de Stepane tremia:

- Senta-te, vizinha -, disse Grigóri com um sorriso animador.

Ela fitou-o com um olhar suplicante e dirigiu-se rapidamente para um pequeno armário. Um pires caiu da prateleira e estilhaçou-se com ruído.

- Ah! Que desgraça! - exclamou a dona da casa, juntando as mãos com um ar desolado.

Akcínia apanhou os cacos em silêncio.

Stepane serviu-lhe também a ela um copo cheio, e de novo os seus olhos brilharam de angústia e ódio.

- Então bebamos...-começou ele. E calou-se.

Ouviu-se distintamente no meio do silêncio a respiração impetuosa e entrecortada de Akcínia que acabava de se sentar à mesa.

- Bebamos, mulher, à nossa separação. O quê, não queres beber?

- Tu bem sabes...

- Eu sei tudo. Então, à nossa separação! E à saúde do nosso querido hóspede Grigóri Panteleievitch!

- À saúde dele, bebo! - disse Akcínia com voz sonora, esvaziando o copo de um trago.

- Pobre cabecinha louca! murmurou a dona da casa fugindo para a cozinha.

Encolheu-se toda num canto, de mãos apertadas sobre o peito, à espera: de um momento para o outro a mesa seria derrubada com estrondo, ouvir-se-ia um tiro ensurdecedor...

Porém, na sala, reinava um silêncio de morte. Apenas as moscas zumbiam no tecto, despertadas pela luz, e os galos, atrás da janela, chamavam uns pelos outros a saudar a meia-noite.

 

As noites de Junho são escuras no Don. No céu, negro como ardósia, no meio de um silêncio angustiante, acendem-se fulgurações douradas e as estrelas cadentes reflectem-se no curso rápido do rio. Da estepe, o vento quente e seco traz aos habitantes o perfume adocicado do alecrim em flor e sobre os prados flutua um odor insípido a erva molhada, a limos, a humidade. Os ralos cantam sem descanso e a floresta ribeirinha está toda ela coberta por um brocado de névoa prateada.

Prokhor, acordando à meia-noite, perguntou ao proprietário da casa onde se tinham aboletado:

- Ele ainda não voltou?

- Isso sim! Anda na paródia com os generais.

- Aquilo é que eles devem emborcar vodka! - murmurou Prokhor com um suspiro de inveja. E começou a vestir-se, bocejando.

- Aonde vais tu?

- Levar os cavalos ao bebedoiro e dar-lhes aveia. - Grigóri Panteleiévitch disse que partíamos para Tatársski ao romper da manhã. Passamos lá o dia todo e depois temos de nos ir reunir às nossas unidades.

- A manhã ainda vem longe. É melhor esperares.

Prokhor respondeu, mal humorado:

- Vê-se bem, tiozinho, que não andaste na tropa quando eras novo. Se não déssemos de comer aos cavalos, se não tratássemos bem deles, talvez já não estivéssemos vivos a esta hora. Ou julgas que se pode ir longe em cima de uma pileca? Quanto melhor for o cavalo, mais depressa fugimos do inimigo. Eu cá sou assim: não me interessa nada andar atrás deles, mas, quando as coisas começam a ficar fuscas e eles vêm sobre nós, sou o primeiro a pôr-me na alheta! Há que anos ando a fugir às balas! Estou farto disto. Acende a luz, tiozinho. Não sou capaz de dar com as grevas. Obrigado. Pois, pois, o nosso Grigóri Panteleiévitch ganhou cruzes e galões. Passou a vida metido no barulho, mas eu cá não sou parvo; não lhe tenho inveja. Bem, aí está ele, é o diabo que o traz. E bêbado como um cacho, tenho a certeza.

Tinham batido devagarinho à porta.

- Entre! - gritou Prokhor.

Um cossaco, que ele não conhecia, com divisas de sargento no blusão de caqui e um boné agaloado, entrou na casa:

- Sou ordenança do Estado-Maior do grupo do general Sekretev. Posso falar com Sua Nobreza, o senhor Melekhov? - perguntou ele fazendo a continência, em posição de sentido, à entrada da porta.

- Não está cá - respondeu Prokhor, impressionado com a bela apresentação e com as maneiras da ordenança. - Que lhe queres?

- Venho buscar o senhor Melekhov da parte do general Sekretev. - Mandam-lhe que se apresente imediatamente no círculo dos oficiais.

- Ele ainda ontem lá esteve.

- Pois sim, mas depois foi para casa.

Prokhor, soltando um assobio, piscou o olho ao dono da casa que se encontrava sentado em cima da cama.

- Estás a perceber, tiozinho? Pelos vistos raspou-se para casa da amiga... Bem, podes ir embora, rapaz. Eu vou à procura dele e levo-o lá ainda quente.

Encarregou o velho de dar aveia e de beber aos cavalos e dirigiu-se à casa da tia de Akcínia.

No meio da escuridão impenetrável, a stanitsa dormia.

Na outra margem do Don os rouxinóis cantavam ao desafio.

Prokhor dirigiu-se sem pressas para a casa que conhecia tão bem, penetrou no vestíbulo e, ao agarrar no trinco da porta, ouviu a voz de baixo de Stepane. “É o que se chama cair como a sopa no mel”, pensou Prokhor. “Ele vai perguntar-me que venho eu cá fazer e não sei responder-lhe. Vamos, seja o que Deus quiser, já me vi noutros assados piores. Direi que vim comprar aguardente e que foram os vizinhos quem me disse que ele estava cá.”

Animado de nova coragem, entrou. Abriu então a boca, estarrecido, sem proferir palavra: Grigóri estava sentado à mesa com Stepane, como se nada se tivesse passado, e bebia uma aguardente esverdeada e turva.

Stepane, olhando para Prokhor, disse com um sorriso forçado:

- Porque estás tu para aí de boca aberta, sem dares as boas-noites? Viste alguma coisa de espantar?

- Mais ou menos... - retorquiu Prokhor, a remexer os pés, pois não voltara ainda a si do espanto.

- Anda, senta-te, não tenhas medo - convidou Stepane.

- Não tenho tempo de me sentar. Venho chamar-te, Grigóri Panteleiévitch. Trago ordens para te apresentares imediatamente ao general Sekretev...

Várias vezes antes da chegada de Prokhor, Grigóri tivera vontade de se ir embora. Afastava o copo, erguia-se, mas voltava a sentar-se, receando que Stepane interpretasse a sua retirada como uma confissão de medo. O orgulho não lhe permitia deixar Akcínia, cedendo o lugar a Stepane. Bebia, mas a aguardente deixara de produzir efeito nele. E, considerando a sangue-frio a ambiguidade da situação, aguardava o desenlace.

Julgou a certa altura que Stepane iria bater na mulher, quando esta bebeu à saúde dele, Grigóri. Mas enganava-se: Stepane ergueu o braço, esfregou com a palma da mão rugosa a testa queimada pelo sol e disse com admiração, após um curto silêncio, fitando Akcínia: “É uma valentona, a minha mulher! É por isso que gosto dela.”

E nisto Prokhor entrou.

Reflectindo bem, Grigóri resolveu não partir logo, para dar a Stepane tempo de dizer o que lá tinha dentro.

- Vai-te embora e diz-lhes que não me encontraste, percebeste?

- Lá perceber, percebi. Mas era melhor que fosses lá, Panteleievitch.

- Mete-te na tua vida, ouviste?

Prokhor ia a caminhar para a porta, quando Akcínia se meteu inesperadamente na conversa. Disse secamente, sem olhar para Grigóri:

- Não, para quê? Vai com ele, Grigóri Panteleiévitch.

- Obrigada por teres cá vindo fazer-nos esta visita e passar uns momentos connosco... Mas é tarde, os galos já cantaram pela segunda vez. Não tarda que nasça o dia e eu e o Stepane temos de ir de manhã cedo para nossa casa... Além disso, já bebeste o suficiente. Basta.

Stepane nada fez para reter Grigóri e este levantou-se.

Ao despedir-se, Stepane demorou a mão de Grigóri na sua, fria e rude, como se quisesse ainda dizer-lhe qualquer coisa, mas guardou silêncio. Acompanhou-o com os olhos até à porta e depois estendeu a mão para a garrafa de aguardente que ainda tinha um resto...

Mal saiu para a rua, Grigóri sentiu-se tomado de um cansaço enorme. Quase não conseguia pôr um pé à frente do outro. Na primeira encruzilhada disse a Prokhor, que caminhava atrás dele:

- Vai selar os cavalos e volta aqui. Eu não vou..

- Não seria melhor anunciar-lhes que partes?

- Não.

-Nesse caso, espera que eu volto já.

E, caso raro, o preguiçoso Prokhor partiu num passo rápido.

Grigóri agachou-se junto a uma sebe e acendeu um cigarro. Ao recordar o seu encontro com Stepane, pensou, indiferente: “Ora bem, agora ele já sabe tudo. Oxalá ao menos que não bata na Akcínia.” Depois a fadiga e a emoção por que passara obrigaram-no a deitar-se e começou a dormitar.

Prokhor não tardou a regressar com os cavalos.

Atravessaram o Don na jangada e depois meteram os cavalos a trote largo.

Chegaram de madrugada a Tatársski. Grigóri desmontou junto ao portão da sua casa, atirou com as rédeas a Prokhor e encaminhou-se para a habitação a toda a pressa e muito emocionado.

Natalia saíra por acaso para o átrio, ainda meio vestida. Ao ver Grigóri, os seus olhos sonolentos brilharam com uma alegria tão viva e impetuosa que o coração de Grigóri estremeceu, os olhos humedeceram-se-lhe de repente, sem ele esperar.

Natalia abraçou em silêncio o seu único amor, apertando todo o corpo contra ele e, pelos estremecimentos dos ombros, Grigóri percebeu que ela chorava.

Entrou, abraçou os velhos e as crianças que dormiam no quarto.

De pé, no meio da cozinha, ofegante de emoção, perguntou:

- Então, como vai isto por cá? Tudo bem?

- Sim, graças a Deus, meu filho - respondeu prontamente Ilínitchna. - Tivemos muito medo, mas não se pode dizer que acontecesse qualquer desgraça.

Lançou um olhar de viés a Natalia, ainda toda chorosa, e exclamou severamente:

- Então, em lugar de estares contente, choras, minha palerma? Vamos, não fiques aí sem fazer nada. Traz cavacos para acender o lume.

Enquanto Natalia e Ilínitchna preparavam o almoço a toda a pressa, Pantelei Prokófievitch trouxe ao filho uma toalha limpa.

- Lava-te, que eu deito-te água nas mãos. Isso refresca-te a cabeça... Cheiras a vodka. Ontem, na festa, devias ter bebido uma boa dose.

- Sim, mas não se sabe ainda se é caso para festejarmos ou para nos afligirmos...

- Que me dizes? - inquiriu o velho, com um espanto incrível.

- É que o Sekretev não nos perdoa...

- Ora, isso não tem importância. Mas será possível que ele tenha bebido a par contigo?

- Olá se bebeu!

- Não me digas! Que grande honra, Grichka! Tu sentado à mesma mesa que um grande general! Imagina só!

E Pantelei Prokófievitch contemplava o filho com ternura, dando estalos de admiração com a língua.

Grigóri sorriu. Estava longe de partilhar o entusiasmo ingénuo do velhote.

Enquanto o interrogava demoradamente a fim de se inteirar se tinham conservado o gado e as alfaias e que porção de trigo se estragara, Grigóri verificou que a conversa acerca dos negócios agrícolas já não interessava o pai como outrora.

Tinha qualquer outra coisa mais grave a preocupá-lo. E não tardou a perguntar:

- Como vai ser isto agora, Grigóri? Temos de voltar para a tropa?

- A quem te referes?

- Aos velhos. A mim, por exemplo.

- Por enquanto não se sabe.

- Terei de partir outra vez?

- Tu, podes ficar.

-Que me dizes? - exclamou o velhote! E, todo contente, começou a andar pela cozinha, de um lado para o outro,a coxear.

- Senta-te, diabo coxo. Não andes a Varrer a casa com os pés. Quando está contente põe-se a correr como um cachorro ralhou Ilínitchna.

O velho, porém, não lhe ligou. Sempre a coxear, fez várias vezes o percurso entre a mesa e o fogão, a sorrir e a esfregar as mãos. De repente, assaltou-o a dúvida:

- Mas tu podes arranjar uma excepção para mim?

- Claro que posso.

- E dás-me um papel?

- Dou, sim senhor!

O velho hesitou um momento, acabando por perguntar:

- Mas um papel, como?... Sem carimbo? Ou trazes o carimbo contigo?

- A coisa arranja-se sem carimbo - respondeu Grigóri sorrindo

- Nesse caso, está bem disse o velhote outra vez satisfeito Deus te dê saúde. E tu, quando pensas partir?

- Amanhã.

- As tuas tropas foram à frente? Para Usst-Medvéditsskaia?

- Sim. Quanto a ti, pai, não te preocupes. De resto, vocês, os velhos, em breve regressarão a casa. Já fizeram o vosso tempo de serviço.

- Deus queira!

Pantelei Prokófievitch persignou-se e pareceu ficar definitivamente tranquilo.

As crianças tinham acordado. Grigóri pegou-lhes ao colo, sentou-as nos joelhos e ficou muito tempo a ouvi-las tagarelar alegremente, beijando ora uma ora outra, a sorrir.

O perfume daqueles cabelos de criança! Um cheiro a sol, a erva, a travesseiro ainda quente e a outra coisa ainda, infinitamente familiar. Aquelas crianças, a carne da sua carne, eram passarinhos da estepe. Como pareciam desastrados os grandes traços do pai em volta deles! E ele próprio, como destoava naquele quadro pacífico, ele, o cavaleiro, separado por um dia da sua montada, ainda todo impregnado pelo cheiro acre da soldadesca e do suor do cavalo, o odor amargo das campanhas e dos arreios de coiro...

Uma névoa de lágrimas obscurecia os olhos de Grigóri, os seus lábios tremiam debaixo do bigode... Por duas ou três vezes deixou sem resposta as perguntas do pai, só se sentando à mesa quando Natalia lhe tocou na manga do blusão.

Não, não, decididamente Grigóri já não era o mesmo.

Nunca fora muito sensível e, mesmo em criança, raramente chorava. Agora, porém, estas lágrimas, estas pancadas surdas precipitadas do coração, este sino a tocar-lhe sem barulho dentro da garganta... Afinal de contas talvez fosse por ter bebido muito e dormido pouco naquela noite...

Daria, que voltava de levar as vacas ao pasto, entrou em casa. Apresentou a Grigóri os lábios sorridentes e, quando ele aproximou dela o rosto, depois de ter enxugado o bigode num gesto brincalhão, a rapariga fechou os olhos e ele viu-lhe as pálpebras tremerem como que agitadas pelo vento, aspirou um momento o perfume picante a pomada que emanava das suas faces viçosas como dantes.

Daria não mudara. Dava a impressão de que nenhuma desgraça podia quebrá-la nem sequer vergá-la. Vivia no mundo como um ramo de salgueiro: flexível, bela e acessível.

- Então, sempre florescente?

- Como a erva dos caminhos - respondeu Daria com um sorriso deslumbrante e semicerrando os olhos luminosos.

Dirigiu-se imediatamente ao espelho para compor as madeixas que se lhe escapavam do lenço.

Daria era assim mesmo. Não havia nada a fazer. A morte de Petro como “que a espevitara e, mal se recompôs do desgosto, parecia ainda mais ávida de viver, mais atenta ao seu aspecto exterior...

Foram acordar Duniachka que dormia na granja e, depois da oração, sentaram-se todos à mesa.

- Oh, como estás acabado, irmãozinho! - disse Duniachka num tom enternecido. Estás todo grisalho, como um lobo!

Grigóri fitou-a por cima da mesa, calado e sem sorrir, e acabou por dizer:

- Tenho a parte que me cabe. A mim compete-me envelhecer e a ti arranjar um marido... Mas ouve bem o que te digo: a partir de hoje não penses mais em Michka Kochevói. Se venho a saber que andas atrás dele, agarro-te numa perna, puxo-te pela outra e rasgo-te em duas como se faz a uma rã. Percebeste?

Duniachka corou como uma papoila e fitou Grigóri através das lágrimas.

Este fixara nela um olhar mau e o seu rosto agora cruel, com os dentes à mostra por baixo do bigode e os olhos contraídos, revelava mais do que nunca aquela semelhança com um animal feroz, que era a marca dos Melekhov.

Duniachka, porém, pertencia à mesma raça: voltando a si do embate e da ofensa que sofrera, disse baixinho mas com firmeza:

- Ninguém manda no coração. Deves sabê-lo melhor do que eu, mano.

- Se o coração não te obedecer arranca-o - respondeu friamente Grigóri.

“Ninguém tem menos autoridade do que tu para falar, meu rapaz “ pensou Ilínitchna.

Mas Pantelei Prokófievitch meteu-se na conversa. Deu um murro na mesa e gritou:

- Cala-te, filha de uma cadela. Senão sou eu quem te trata do coração até te arrancar os cabelos todos da cabeça. Minha desavergonhada. Espera que já vou buscar uma rédea.

- Pai, já só temos uma. Eles levaram-nas todas - interrompeu Daria num tom humilde.

Pantelei Prokófievitch, lançando-lhe um olhar furibundo, prosseguiu no seu desabafo, sem baixar de tom:

- Agarro numa cilha e...

- Os vermelhos levaram também as cilhas - disse Daria um pouco mais alto, sem deixar de fitar no sogro os seus olhos inocentes.

Aquilo era de mais para Pantelei Prokófievitch. Vermelho de raiva, olhou para a nora um segundo, de boca aberta (lembrava um peixe fora de água) e acabou por exclamar numa voz rouca:

- Cala-te, maldita! Diabos te levem! Não me deixam falar. Que quer isto dizer? E tu, Duniachka, fica sabendo. Isso tem de acabar. É o teu pai quem o diz. O Grigóri tem razão; se pensas nesse patife, mereces bem a morte. Não encontrou coisa melhor, vejam lá! Andar atrás de um malandrim! Será aquilo um homem? Não faltava mais nada senão aquele Judas para ser meu genro! Se o apanho, mato-o! E não digas nem mais uma palavra, porque eu vou buscar uma vara e...

- Uma vara! Podes bem ir à procura dela no pátio – disse Ilínitchna suspirando. Não resta nada. Nem sequer um cavaco para acender o lume. Chegámos a isto.

Naquela observação sem malícia Pantelei Prokófievitch julgou ver uma má intenção. Olhou para a mulher de olhos fixos, levantou-se como louco e correu para o pátio.

Grigóri largou a colher, tapou a cara com o guardanapo, sacudido por um riso mudo. A sua fúria desaparecera e ria como há muito não fazia. Todos riam, menos Duniachka. Reinava em volta da mesa uma alegre animação. Mas, assim que ouviram nos degraus os passos pesados de Pantelei Prokófievitch, todos os rostos se tornaram subitamente sérios. O velho entrou como um furacão, arrastando atrás de si uma comprida vara de ulmeiro.

- Olhem, aqui está. Esta chega para todas, suas miseráveis!

- Para todas aquelas que têm a língua comprida de mais. Grandes bruxas! Ah, com que então não há varas? E isto o que é? Tu também, meu velho estupor, vais apanhar. Verás...

A vara não cabia na entrada da cozinha e o homem, depois de atirar com ela para o vestíbulo, veio sentar-se à mesa a resfolegar ruidosamente.

Passara-lhe o mau humor. Fungava e comia sem dizer nada. Os outros calavam-se também. Daria não erguia os olhos da mesa com medo de desatar a rir e Ilínitchna suspirava, murmurando numa voz que mal se ouvia: “Oh, Senhor, Senhor! Que mal teríamos nós feito!” Só Duniachka não sentia vontade de rir e Natalia, que se esforçara por sorrir na ausência do velho, retomara o seu ar triste e absorto.

- Passem-me o sal! Dêem-me pão! - rugia de quando em quando Pantelei Prokófievitch com uma voz sinistra, poisando em toda a família um olhar coruscante.

Esta questão familiar teve um desfecho inesperado. No meio do silêncio geral, Michatka fez ao avô nova desconsideração. No meio das disputas ouvira muitas vezes a avó dirigir ao velho toda a casta de nomes injuriosos e a sua calma de criança, profundamente impressionada por ver aquele disposto a bater em toda a gente e encher a casa de gritos, declarou de súbito numa voz sonora, com as narinas a tremer:

- Lá estás tu outra vez, diabo coxo. Tu é que precisavas de uma boa paulada na cabeça, que era para aprenderes a não nos meteres medo a todos, até à avó.

- Então tu dizes uma coisa dessas ao teu avô?

- Digo, pois! - confirmou corajosamente Michatka.

- Mas isso são coisas que se digam ao avô?

- E tu, quem te manda fazer tanto barulho?

- Ora vejam, este diabrete!

Cofiando a barba, Pantelei Prokófievitch olhava para todos com um ar admirado.

- Tudo isto, velha bruxa, as palavras que ele diz, aprendeu-as contigo. Foste tu quem lhas ensinaste!

- Ensinei-lhe o quê! Ele é que é igualzinho a ti e ao pai! Tem um génio levado dos diabos! - replicou Ilínitchna furiosa, para se desculpar.

Natalia, levantando-se, deu alguns sopapos em Michatka e disse:

- Isso são maneiras de falares ao teu avô?

Michatka desatou a berrar, com a cabeça escondida nos joelhos de Grigóri. Quanto a Pantelei Prokófievitch, que era louco pelos netos, saiu bruscamente da mesa e, sem enxugar as lágrimas que lhe escorriam para a barba, exclamou alegremente:

- Grichka, meu filho! A tua mãe tem razão. A velha disse a verdade! Ele é cá dos nossos. Tem o sangue dos Melekhov... Aquele nunca terá medo de responder... Meu rico neto... Meu rico menino... Anda, bate neste velho imbecil até te Apetecer... Puxa-lhe as barbas...

E o velho, tirando Michatka dos braços de Grigóri, ergueu-o no ar acima da cabeça.

Terminado o almoço, levantou-se a mesa. As mulheres começaram a lavar a loiça. Pantelei Prokófievitch acendeu um cigarro e disse a Grigóri:

- Custa-me um bocado pedir-te isto, estás de visita, mas não há outro remédio... Ajuda-me a consertar as vedações e a fazer uma cerca nova em volta da eira. Está tudo por terra e não adianta pedir auxílio aos outros. Estão tão atrapalhados como nós.

Grigóri acedeu de boa vontade e foram ambos trabalhar para o pátio até à hora do jantar.

Na horta, enquanto enterravam as estacas, o velho disse:

- Está a chegar o tempo da ceifa e não sei se devemos ou não comprar erva. E a respeito da quinta, que dizes tu? Valerá a pena cultivá-la? E se os vermelhos voltam por aí e derrotam tudo?

- Não sei, pai confessou francamente Grigóri. Não sei as voltas que as coisas levarão e quem ficará a ganhar. Arranja maneira de não haver nada que preste na granja nem nos pátios. Nos tempos que vão correndo, é o melhor. Vê o que aconteceu ao meu sogro. Andou toda a vida a suar e a fazer suar os outros e vê lá o que ele ganhou com isso! Apenas ficaram as traves queimadas!

- Também é essa a minha opinião - aprovou o velho com um suspiro.

E não voltou a falar nos assuntos da quinta. Só uma única vez, à tarde, ao reparar que Grigóri andava a fazer com todo o cuidado a cerca da eira, disse com despeito e uma certa amargura:

- Faz isso seja lá como for. Porque te esmeras tanto? Não é preciso que dure eternamente.

O velho confessava enfim como eram vãos os seus esforços para fazer a vida retomar o curso normal...

Pouco antes do pôr do sol, Grigóri, largando o trabalho, entrou em casa. Natalia estava sozinha no quarto. Paramentara-se como se fosse a uma festa. Vestira uma elegante saia de fazenda azul e uma blusa azul-claro com renda no peitilho e nas mangas. O seu rosto estava rosado e um pouco brilhante, pois acabara de o lavar com sabão. Andava à procura de qualquer coisa na arca, mas, ao ver o marido, fechando a tampa, ergueu-se, sorridente.

Grigóri sentou-se em cima da arca e disse:

- Senta-te aqui um momento. Vou-me embora amanhã e assim nem temos tempo de conversar.

Ela sentou-se docilmente ao pé dele, a observá-lo de soslaio, com os olhos um pouco assustados. Ele porém pegou-lhe na mão coisa que ela não esperava e disse com ternura:

- Estás gordinha... nem parece que estiveste doente.

- Já estou fina.. Nós, as mulheres, somos como os gatos, temos sete fôlegos - respondeu ela com um sorriso tímido, baixando a cabeça.

Grigóri viu-lhe a ponta rosada da orelha e a pele amarelada da nuca, entre as madeixas do cabelo. Inquiriu:

- Está a cair-te o cabelo?

- Caiu-me quase todo, estou a pelar-me, vou ficar careca.

- Queres que to rape? - ofereceu de repente Grigóri.

- Que ideia! - exclamou ela assustada. - O que é que eu parecia com o cabelo rapado?

- Tens de rapar o cabelo, senão não volta a crescer.

- A tua mãe prometeu cortar-mo à tesoura - respondeu Natalia, sorrindo contrafeita. E apressou-se a cobrir a cabeça com um lenço branco como a neve, que fora lavado com anil

Estava ali sentada ao lado dele, a sua mulher, a mãe dos seus filhos, Michatka e Poliúchka. Fizera-se bonita por sua intenção, lavara o rosto. Pusera o lenço a toda a pressa para que ele não lhe visse a cabeça alterada pela doença. E assim, levemente curvada, era comovente e feia, no entanto bela, irradiante de uma espécie de beleza interior muito pura! Trazia sempre uma gola alta para esconder de Grigóri a cicatriz que lhe deformara o pescoço. Tudo por causa dele... Uma enorme vaga de ternura inundou o coração de Grigóri. Quis dizer-lhe uma palavra de amizade e meiguice, mas não conseguiu encontrar os termos e, atraindo-a a si, beijou-lhe a testa branca e fugidia, os olhos tristes.

Não, ele nunca lhe prodigalizara carícias. Akcínia metera-se sempre entre os dois. Perturbada com esta manifestação de ternura e toda vermelha de emoção, Natalia, pegando-lhe na mão, levou-a aos lábios.

Ficaram um minuto calados. O sol poente derramava no quarto os seus raios avermelhados. As crianças faziam barulho no alpendre. Ouvia-se Daria a retirar do forno os pãezinhos, enquanto dizia à sogra, num tom rabugento:

- Nem parece que se tira o leite às vacas todos os dias. Só pergunto por que motivo a velha está a dar menos leite...

O rebanho regressava do pasto, mugindo. Os garotos faziam estalar os chicotes de crina. O toiro comunal soltava mugidos roucos e arquejantes. O seu cachaço sedoso e o lombo descaído vinham a escorrer sangue das picadas das varejeiras. Agitava a cabeça com fúria dando marradas com os pequenos cornos curtos, muito afastados, na cerca da quinta dos Astakhovs até a derrubar. Natalia olhou através da janela e disse:

- O toiro também atravessou o Don. A mãe disse-me. Quando ouviu os tiros, saiu do estábulo e foi para a outra margem. Esteve todo o tempo escondido atrás da curva do rio.

Grigóri calou-se, pensativo. Porque tinha ela uns olhos tão dolorosos? Havia neles qualquer coisa de imponderável e secreto, que ora se mostrava ora desaparecia. Mesmo quando queria parecer alegre, continuava triste e incompreensível... Teria ela ouvido falar das relações dele com Akcínia, em Viochénsskaia? Por fim disse:

- Porque estás hoje tão triste? Que tens tu no coração, Natalia? Não me queres dizer?

Esperava que ela desatasse a chorar, ou lhe dirigisse censuras

Mas Natalia respondeu, assustada:

- Não, não, isso é ideia tua, não tenho nada... A verdade é que não estou ainda bem de todo. Sinto a cabeça à roda e, quando me curvo para apanhar qualquer coisa, varre-se-me a vista.

Grigóri, olhando-a atentamente, prosseguiu:

- Na minha ausência ninguém te tocou?

- Não, podes crer! Estive sempre na cama doente...

Fitou Grigóri nos olhos e sorriu de leve. Após um instante de silêncio, inquiriu:

- Partes muito cedo, amanhã?

- De madrugada.

- Não podes passar o dia aqui?

Tremia-lhe na voz uma esperança tímida e insegura.

Mas Grigóri abanou a cabeça, e Natalia disse suspirando:

- Nesse caso., é preciso pores já os galões?

- Pois claro.

- Bem, então despe a camisa para que eu os cosa enquanto ainda é de dia.

Grigóri despiu o blusão a resmungar. Estava ainda húmido de suor, com manchas mais escuras nas costas e nos ombros, onde se viam as marcas brilhantes do roçar das correias. Natalia tirou da arca os galões de caqui desbotados pelo sol.

- São estes?

- São estes, sim. Tinha-los guardado?

- Enterrámos a arca - respondeu Natalia com uma voz sumida, enquanto enfiava a linha no buraco da agulha. Depois levou rapidamente ao rosto o blusão cheio de pó e aspirou avidamente aquele cheiro tão familiar e um pouco salgado do suor...

- Que estás tu a fazer? - perguntou Grigóri, espantado.

- É o teu cheiro - respondeu Natalia com os olhos brilhantes e, baixou a cabeça para esconder o rubor, começando a coser a toda a pressa.

Grigóri voltou a vestir rapidamente o blusão, de sobrolhos franzidos e a agitar os ombros.

- Assim ficas melhor - declarou Natalia, contemplando o marido com mal disfarçada admiração.

Ele enviesou os olhos para o ombro esquerdo e disse suspirando.

- Por mim, preferia não voltar a vê-los. Tu não compreendes.

Ficaram ainda muito tempo sentados no quarto, sobre a arca, de mãos dadas, cada um perdido em silêncio nos seus pensamentos.

Depois, quando a noite desceu e as sombras lilases das casas se estenderam sobre a terra arrefecida, foram para a cozinha cear.

E a noite passou-se. Os relâmpagos de calor tinham brilhado no céu até nascer o dia, quando surgiram os primeiros alvores da aurora e os rouxinóis começaram a cantar no pomar das cerejeiras. Grigóri acordou e manteve-se muito tempo deitado, de olhos fechados, atento ao canto melodioso e suave dos rouxinóis. Depois ergueu-se devagarinho, para não acordar Natalia, vestiu-se e saiu para o pátio.

Pantelei Prokófievitch, que dava de comer ao cavalo, propôs amavelmente:

- Queres que o leve ao banho antes de partires?

- Ele passa bem sem isso - respondeu Grigóri, a quem a humidade da manhã arrepiava.

- Dormiste bem? - perguntou o velho.

- Lindamente. Foram os rouxinóis que me acordaram. Cantaram durante toda a noite.

Pantelei Prokófievitch retirou o saco-manjedoura da cabeça do cavalo e disse sorrindo:

- Não têm mais nada que fazer, meu rapaz. A gente às vezes até inveja aos passarinhos... Não sabem o que é a guerra nem a ruína...

Prokhor chegou a cavalo. Vinha todo bem barbeado e como sempre alegre e prolixo. Atou as rédeas a um pilar e dirigiu-se para Grigóri. A sua camisa de tela grossa estava bem passada a ferro e trazia galões novos.

- Também puseste os galões, Grigóri Panteleiévitch disse ao aproximar-se. Agora vêem-se ao longe, os malditos. Temos de os trazer até ao fim, até à morte. Eu cá disse à minha mulher. Não os cosas muito, palerma, basta que o vento não os leve. Se formos feitos prisioneiros eles vêem logo que, embora eu não seja oficial, era pelo menos quartel-mestre. E diriam: “Vamos patife, já que foste soldado, são alturas de mostrares quem é valente.” Vês para que servem os meus galões? Isto é uma farsa!

Os galões de Prokhor, de facto, estavam seguros apenas por um fio.

Pantelei Prokófievitch deu uma gargalhada. Os seus dentes brancos, que o tempo respeitara, brilhavam no meio da barba grisalha.

- Então isso é que é um soldado? À menor sarrafusca, fora com os galões?

- Então que julgas tu? chasqueou Prokhor.

Grigóri, sorrindo, disse para o pai:

- Estás a ver, pai, que raio de ordenança eu fui arranjar? Com um tipo destes, se houver sarilho, uma pessoa safa-se sempre.

- A verdade, Grigóri Panteleiévitch, é que, se tu morresses hoje, eu não resistia nem mais um dia declarou

Prokhor para se justificar. E arrancou displicentemente os galões, metendo-os na algibeira. Quando chegarmos perto da frente coso-os outra vez.

Grigóri almoçou à pressa e despediu-se dos seus.

- Que a Rainha dos Céus te proteja - murmurou apaixonadamente Ilínitchna, beijando o filho. - És só tu que nos restas...

- Vamos, as despedidas prolongadas são lágrimas inúteis. Adeus - disse Grigóri numa voz a tremer, dirigindo-se para o cavalo.

Natalia, que pusera na cabeça o lenço negro da sogra, saiu para junto do portão. As crianças penduravam-se-lhe na saia.

Poliúchka chorava desesperadamente, sufocada, e suplicava à mãe:

- Não o deixes partir! Não o deixes partir. Na guerra matam as pessoas, pai. Não vás para lá!

Os lábios de Michatka tremiam, mas esse não chorava.

Dominava-se virilmente e dizia, furioso, à irmã:

- Não digas tolices, idiota! Eles não matam toda a gente!

Não se esquecia do que lhe dissera o avô: um cossaco nunca chora; chorar, para um cossaco, é uma grande vergonha. Mas, quando o pai, já sobre o cavalo, o ergueu até à sela e o beijou, notou com espanto que as pálpebras dele estavam húmidas. Desta vez a prova era demasiado rude: brotaram-lhe dos olhos torrentes de lágrimas. Escondeu o rosto no peito do pai, atravessado pelas correias, e gritou:

- Mais valia que fosse o avô para a guerra... Para aquilo que ele serve... Não quero que tu vás...

Grigóri poisou cuidadosamente o filho no chão, limpou o rosto com as costas da mão e pôs o cavalo em andamento sem dizer nada.

Quantas vezes o animal, depois de dar meia volta a escavar o chão, ali, junto do alpendre da casa paterna, o não levara, através das grandes estradas e da estepe sem caminhos, para a frente de batalha onde a morte negra marca os homens e onde, como diz a canção cossaca “a cada hora de cada dia, se encontra o medo e a desgraça”! Mas nunca Grigóri, até então, deixara a aldeia com o coração tão apertado como nessa manhã suave.

Atormentado por vagos pressentimentos, uma angústia e uma inquietação profundas, cavalgou até ao cabeço sem olhar para trás, com as rédeas poisadas no pomo da sela. Na encruzilhada, quando a estrada poeirenta corta para o moinho de vento, voltou-se. Só Natália ficara junto ao portão, e o vento fresco da manhã fazia adejar nas suas mãos o lenço negro e fúnebre.

No golfo azul flutuavam as nuvens que o vento dispersava. Uma névoa húmida condensava-se acima da orla ondulada do horizonte. Os cavalos seguiam a passo Prokhor dormitava, a baloiçar-se na sela. Grigóri, de dentes cerrados, olhava muitas vezes para trás. Viu primeiro os renques verdes dos salgueiros e a fita prateada do Don que serpenteava caprichosamente, as asas do moinho que giravam com lentidão Depois, a estrada virou para o sul Os lameiros, o Don, o moinho, tudo desapareceu atrás dos trigais pisados . Grigóri, assobiando baixinho, fitava obstinadamente o pescoço ruivo do cavalo coberto de gotículas de suor. Deixou de olhar para trás. Maldita guerra!

Tinham lutado no Tchir, tinham lutado no Don e agora a guerra ia estalar no Khopr, em Médvéditsa, no Buzuluk “Se uma bala inimiga me abater ali, em vez de ser na minha terra, que importância tem isso, afinal de contas?”, pensou.

 

Combatia-se nas imediações da stanitsa Usst-Medvéditsskaia.

Ao deixar o atalho de Verão para meter pela estrada dos hetmans, Grigóri ouviu o troar surdo do canhão.

Ao longo do percurso viam-se vestígios da retirada precipitada dos vermelhos. O que mais se notava eram as charretes de duas rodas e os carros abandonados. Atrás da aldeia de Maíveiévsski, numa ravina, via-se um canhão de eixo partido por um obus e com o cano avariado. Os varais tinham sido virados para trás. A meia verstá da ravina, nas terras de sal, sobre a erva baixa requeimada pelo sol, jaziam cadáveres de soldados em mangas de camisa e calças de caqui, com grevas botas grossas ferradas. Eram vermelhos, que a cavalaria cossaca alcançara e passara a fio de sabre.

Grigóri, ao passar ao lado deles, não teve dificuldade em o verificar pela abundância de sangue seco nas camisas e pela posição dos corpos, jaziam como se fosse erva cortada. Os cossacos não haviam tido tempo de os despir, provavelmente pela simples razão de quererem continuar a persegui-los.

Um cossaco morto tombara de costas ao lado de uma moita de pilriteiro. As bandas vermelhas das calças destacavam-se nas pernas alargadas. Perto dele, achava-se um cavalo morto, de pelagem baia, com uma velha sela pintada a ocre.

Os cavalos de Grigóri e de Prokhor estavam fatigados. Era preciso dar-lhes de comer, mas Grigóri não queria parar naquele sítio onde se havia lutado pouco tempo antes. Percorreu ainda uma verstá, desceu por uma ravina e ali parou o cavalo. Via-se a pouca distância uma lagoa cujo dique fora minado pela água até à base. Prokhor aproximou-se das margens de terra batida e gretada, mas voltou logo o cavalo.

- Que foi? - inquiriu Grigóri.

- Vem ver.

Grigóri avançou até ao dique. Numa brecha deste jazia uma mulher morta. A orla da saia azul cobria-lhe a cabeça. As suas pernas brancas e roliças, de tornozelos bronzeados, com covinhas nos joelhos, estavam impudicamente alargadas, numa posição horrível. Tinha o braço esquerdo dobrado para trás das costas.

Grigóri, desmontando rapidamente, tirou o boné, curvou-se e puxou a saia sobre o corpo da defunta. O seu rosto, jovem e queimado do sol, permanecia belo mesmo depois de morta. Os olhos semicerrados da rapariga tinham um brilho apagado sob as sobrancelhas negras dolorosamente arqueadas A sua boca de desenho delicado entreabria-se num esgar, e os dentes apertados luziam como pérolas. Uma fina madeixa de cabelos colava-se-lhe à face que repousava sobre a erva. E as formigas, afadigadas, iam e vinham por cima daquela face que a morte tingira já com a sua tinta pálida cor de açafrão.

- Que linda coisa eles mataram, os malditos! – exclamou a meia voz Prokhor.

Ficou um momento em silêncio, depois cuspiu, furioso

- Se fosse eu... a malandros destes, mandava-os fuzilar.Vamos embora, pelo amor de Deus. Não posso olhar para ela, despedaça-me o coração.

- Não seria melhor enterrá-la? - propôs Grigóri.

- O quê? Achas que podemos enterrar todos os mortos - indignou-se Prokhor. - Em Iagodnói já sepultámos um velho, agora esta mulherzinha... Se quiséssemos enterrá-los a todos não havia braços que chegassem. E com que havíamos de abrir a cova? Os sabres para isso não servem. Além disso, o calor é tanto que a terra está dura a um palmo de profundidade.

Prokhor, cheio de pressa, não acertava com o pé no estribo.

Depois de voltarem a subir a colina, disse após intensa reflexão:

- Diz lá, Panteleiévitch, não te parece que já se derramou sangue suficiente?

- Eu acho que sim.

- E até quando calculas que isto vai durar?

- Até eles darem cabo de nós

- Isso é que se chama uma linda vida. O Diabo deve estar contente! Se ao menos eles se despachassem! Quando foi da guerra com os alemães, por vezes os feridos cortavam um dedo a si próprios e então mandavam-nos para casa. Mas agora, nem que uma pessoa decepasse o braço inteiro, obrigavam-na a ir para a tropa. Os coxos, os estropiados, os vesgos, os herniados, tudo serve desde que possam arrastar as pernas. Mas o diabo irá acabar esta guerra? Raios os partam! - disse Prokhor com desespero.

Saiu da estrada, saltou em terra e posse a desaparelhar o cavalo enquanto resmungava.

Grigóri chegou ao cair da noite à aldeia de Khovansski, perto de Usst-Medvéditsskaia. Um posto de guarda colocado à entrada da aldeia fê-lo parar, mas, reconhecendo a voz do seu chefe, os cossacos informaram Grigóri de que o Estado-Maior da Divisão se encontrava precisamente naquela aldeia estando o tenente Kopylov, chefe do Estado-Maior, à espera dele. O chefe do posto, um homem prolixo, depois de ter encarregado um cossaco de acompanhar Grigóri ao Estado-Maior, disse por fim a este:

- Eles estão muito bem entrincheirados, Grigóri Panteleiévitch; acho que não conseguiremos tomar tão cedo Usst-Medvéditsskaia. Mas nunca se sabe, claro está... Nós também temos muita força. Parece que as tropas inglesas começaram já a chegar a Morozovskaia. Não está informado disso?

A casa ocupada pelo Estado-Maior tinha os postigos hermeticamente fechados. Grigóri disse consigo que não devia estar lá ninguém, mas ao entrar no corredor ouviu um barulho de vozes abafadas falando com animação. Na obscuridade da noite, sentiu-se encandeado pela luz de uma lanterna pendurada no tecto, enquanto o cheiro espesso e amargo do tabaco grosso lhe chegava às narinas.

- Até que enfim! - disse animadamente Kopylov, emergindo de uma nuvem de fumo azulado que se acumulara por cima da mesa. - Fizeste-te esperar!

Grigóri saudou toda a gente e, depois de tirar o capote e o boné, aproximou-se da mesa.

- Ena, que fumarada! Não se pode respirar. Abram ao menos uma janela! Que ideia é essa de se calafetarem assim? - disse ele fazendo uma careta.

Kharlampi Ermakov, sentado ao lado de Kopylov, sorriu:

- Estamos habituados, já não sentimos.

- Os homens dizem que os Aliados estão por aí a chegar. É verdade?

- Corre o boato de que algumas baterias inglesas de tanques partiram de Tchernychevskaia. Mas o caso é este: como é que os tanques vão atravessar o Don? Na minha opinião, essa história dos tanques é uma treta. Há muito tempo que se fala nisso. .

Instalou-se na sala um prolongado silêncio.

Kopylov, após ter desabotoado o blusão castanho de oficial, apoiou nas palmas das mãos as faces balofas cobertas por uma penugem castanha e ficou-se a mascar pensativamente o cigarro apagado. A. fadiga tornava-lhe mais pequenos os olhitos escuros e redondos, muito afastados um do outro; as noites de insónia haviam-lhe enrugado o rosto belo.

Noutros tempos fora professor na escola paroquial. Aos domingos costumava ir visitar os comerciantes da stanitsa, jogava o loto com as senhoras e os senhores, quase de graça, e tocava guitarra que era uma maravilha; era um rapaz alegre e sociável; mais tarde casara-se com uma professora muito jovem e teria continuado a viver assim na stanitsa se não houvesse sido mobilizado quando rebentou a guerra. Ao sair da escola militar mandaram-no para a frente ocidental, integrado num regimento cossaco. A guerra não modificara o carácter de Kopylov nem o seu aspecto exterior. Havia algo de inofensivo, de profundidade civil, na sua silhueta larga e baixa, no seu rosto bonacheirão, na sua maneira de trazer o sabre e de se dirigir aos subordinados. Faltava à sua voz o timbre do comando, na sua conversa não se notava aquele laconismo que é habitual, no exército, a farda assentava-lhe mal e os três anos que passara na frente de combate não lhe haviam ensinado a rigidez militar; tudo, nele. revelava o guerreiro feito à pressa.

Lembrava mais um pequeno burguês barrigudo mascarado de oficial do que um militar a sério, mas apesar disso os cossacos sentiam por ele consideração, davam-lhe ouvidos nas conferências do Estado-Maior, e o comando insurrecto apreciava o espírito lúcido, o seu feitio acomodatício e a coragem real de que por várias vezes dera provas durante os combates.

Antes de Kopylov, Grigóri tivera como chefe de Estado-Maior um homem iletrado e pouco inteligente, o tenente Krujíline. Mas este fora morto num dos combates do Tchir, e Kopylov à testa do Estado-Maior, agira inteligentemente, com prudência e habilidade. Gastava tanto tempo a elaborar os planos das operações como outrora a corrigir os exercícios dos alunos. No entanto, quando havia necessidade, bastava uma palavra de Grigóri para ele montar a cavalo, deixar o Estado-Maior e assumir o comando do regimento, levando-o ao combate.

No princípio, Grigóri alimentara certas reservas a respeito de Kopylov, mas em dois meses aprendera a conhecê-lo, e um dia, no fim de um combate, disse-lhe espontaneamente: “Eu fazia de ti uma triste ideia, Kopylov, mas vi que me enganava, por isso peço-te desculpa.” Kopylov sorriu, não disse nada, mas esta confissão brutal lisonjeara-o sem dúvida.

Desprovido de ambições, sem pontos de vista políticos assentes, Kopylov considerava a guerra como um mal inevitável e esperava com impaciência pelo seu fim. Por isso não se preocupava absolutamente nada com a maneira como evoluiriam as operações para a tomada de Usst-Medvéditsskaia; só pensava nos seus, na sua stanitsa natal, e dizia consigo que seria uma grande coisa se lhe concedessem uma licença de dez semanas para a ir gozar à terra...

Grigóri, depois de ter estado a olhar muito tempo para Kopylov, levantou-se.

- Vamos, meus irmãos. Toca a dormir. Não nos compete a nós matar a cabeça para sabermos como haveremos de tomar Usst-Medvéditsskaia. Agora são os generais que pensam e decidem em nosso lugar. Amanhã vamos encontrar-nos com Fitzklaaurov para ele nos dar uma lição, a nós, pobres mortais... Quanto ao Segundo Regimento, a minha opinião é esta: enquanto temos poder para isso, devemos destituir imediatamente Dudárev e retirar-lhe a patente e as condecorações...

- E também a sua ração de kacha -acrescentou Ermakov.

- Não, fora de brincadeira - prosseguiu Grigóri -, é preciso fazê-lo baixar imediatamente ao posto de chefe de esquadrão e nomear Kharlampi para o lugar dele. Vamos, Ermakov, trata de ir assumir o comando do Regimento e espera as nossas instruções amanhã de manhã. Kopylov vai redigir imediatamente a ordem de destituição de Dudárev, leva-a contigo. Estou a ver que Dudárev não poderá escapar. Não percebe nada e não me admira que meta os seus homens num sarilho qualquer. Quando se combate a pé, é assim mesmo... Se o chefe não tem nada dentro da cabeça é fácil deixar massacrar os seus homens.

- Precisamente. Também sou pela destituição de Dudárev - apoiou Kopylov.

- E tu, Ermakov, és contra? - inquiriu Grigóri, ao descortinar um certo descontentamento no rosto de Ermakov.

- Não, eu cá não disse nada. Não terei o direito de erguer as sobrancelhas?

- Bem, antes assim. Ermakov não é contra. O seu regimento a cavalo passará provisoriamente para Riáhtchikov. Escreve, Mikhail Grigóritch, redige essa ordem e depois vai dormir uma soneca. Às dez horas temos de estar a pé. Iremos ter com o general. Levo comigo quatro ordenanças.

Kopylov ergueu as sobrancelhas com espanto:

- Porquê tanta gente?

- Para impressionar. Nós também não somos novatos, comandamos uma divisão.

Grigóri sacudiu os ombros com um risinho, atirou o capote para as costas sem enfiar as mangas e saiu.

Deitou-se debaixo do telheiro sem se descalçar nem tirar o capote. As ordenanças ficaram muito tempo a fazer barulho no pátio; algures, ali perto, os cavalos sacudiam-se e ruminavam cadenciadamente. Cheirava a lama seca e à terra ainda mal arrefecida do calor do dia. Numa meia sonolência, Grigóri escutava as vozes e os risos das ordenanças. Uma delas um jovem a avaliar pela voz suspirava, enquanto ia selando o cavalo:

- Eh, rapazes! Estou farto disto! Ter de ir levar um bilhete.

- A meio da noite! Uma pessoa nunca dorme, nunca descansa...

- Chó! Pára lá com isso, maldito! Dá cá a perna, já te disse, dá cá a perna!

Outro pôs-se a cantar, numa voz rouca e em surdina:

O tempo de serviço é longo, ninguém aguenta mais

Os nossos belos cavalos andam todos estoirados...

 

E prosseguiu, volúvel e atarefado, num tom quezilento:

- Passa-me para cá a onça, Prochka. Que unhas de fome! Já te esqueceste das botas que eu te dei, tiradas aos vermelhos? Malandro! Por umas botas como aquelas outros ficariam gratos durante a vida inteira, mas tu nem sequer me dás com que enrolar um cigarro!

O freio tilintou e rangeu sobre os dentes do cavalo. O animal, depois de bufar com toda a força, arrancou, fazendo estalar as ferraduras na terra seca e dura como sílex. “Todos dizem a mesma coisa... O serviço militar é demorado, não aguentamos mais” repetiu mentalmente Grigóri sorrindo. E adormeceu. Visitou-o logo um sonho que já tivera antes: várias vezes: filas de soldados vermelhos a avançarem por entre o colmo alto de um campo negro. A primeira vaga estendia-se a perder de vista e, atrás desta, vinham ainda seis ou sete. Aproximavam-se no meio de um silêncio esmagador. Os vultos negros cresciam, aumentavam de volume a ponto de se distinguirem já os homens com bonés de orelhas, de bocas abertas e mudas, a marcharem, a marcharem num passo rápido e saltitante, mas, ao chegarem a um metro de distância, punham-se a correr, de baioneta calada.

Grigóri está deitado numa pequena trincheira pouco profunda, manobra convulsivamente a culatra da espingarda e dispara com intervalos regulares, os vermelhos caíam de costas sob os seus tiros; mete novo carregador, mas, lançando rapidamente os olhos em roda, verifica que os cossacos saltam para fora das trincheiras vizinhas. Voltam as costas e fogem, com o rosto desfigurado pelo pavor. Grigóri ouve as pancadas furiosas do seu coração e grita: “Disparem! Patifes! Aonde vão vocês? Parem, não fujam!” Grita com toda a força, a sua voz porém é estranhamente débil, mal se ouve. Apodera-se dele o terror. Ergue-se também: de pé, atira sobre um vermelho, já de certa idade, de pele tisnada, que corre na sua direcção, mas vê que falhou o tiro. O rosto do vermelho, muito grave, reflecte cólera e intrepidez. Corre de leve, quase sem poisar os pés no chão, franze os sobrolhos e leva o boné atirado para a nuca, as abas do capote arregaçadas. Grigóri examina durante um instante o inimigo a correr, vê-lhe os olhos brilhantes, as faces lívidas, cobertas por uma barba frisada que lhe dá um ar jovem, vê os canos largos e curtos das botas, o olho negro da espingarda que ele mal abaixara, a ponta da baioneta escura a oscilar ao ritmo da corrida. Um medo incrível assalta Grigóri. Agarra na alavanca da culatra, mas esta não lhe obedece, encravada. Grigóri bate desesperadamente com ela no joelho, em vão! E o vermelho está já a cinco passos dele! Grigóri, então, volta-se e deita a correr. O campo escuro e nu, na sua frente, está coalhado de cossacos em fuga. Grigóri escuta o respirar ofegante do homem que o persegue, o ruído sonoro dos seus passos, mas não pode acelerar mais a corrida. É-lhe preciso um esforço terrível para obrigar as suas pernas que dobram, sem vontade, a correrem mais depressa. Chega finalmente a um lúgubre cemitério quase em ruínas, salta o muro escalavrado, corre por entre as sepulturas desfeitas, as cruzes e as capelas derrubadas. Um derradeiro esforço e ficará a salvo. Mas nesse momento o martelar dos passos torna-se mais forte e sonoro. O hálito quente do perseguidor queima a nuca de Grigóri, sente-se agarrado pela romeira e pelas abas do capote. Solta grito abafado e acorda. Está deitado de costas. As suas pernas, apertadas dentro das batas justas, ficaram entorpecidas, suor frio escorre-lhe da testa, dói-lhe o corpo todo, como se o tivessem espancado. “Caramba!” disse em voz rouca, feliz por se ouvir a si próprio e quase sem acreditar ainda que aquilo por que acabara de passar era apenas um sonho. Depois deita-se de lado, cobre a cabeça com o capote e diz mentalmente: “O que havia a fazer era deixá-lo aproximar, aparar o golpe, derrubá-lo com uma coronhada e fugir só no fim...”

Durante um minuto reflecte nesse sonho que tivera pela segunda vez e sente uma alegre emoção ao pensar que fora apenas um pesadelo e que de momento nada, na realidade, o ameaça.

“É curioso, porque será que estas coisas são dez vezes mais horríveis nos sonhos do que na vida? Nunca até hoje senti um medo assim, apesar dos maus bocados por que passei”, disse ele consigo antes de adormecer, estendendo com delícia as pernas ancilosadas.

Foi Kopylov quem o veio acordar de madrugada.

- Levanta-te, são horas de nos prepararmos para partir. Temos ordem para nos apresentarmos às seis.

O chefe do Estado-Maior acabava de se barbear, de engraxar as botas e de vestir um blusão engelhado mas limpo. Via-se que tinha pressa; a navalha fizera dois golpes nas suas faces moles. Emanava dele um ar de rigidez elegante que lhe não era habitual.

Grigóri, enquanto o examinava dos pés à cabeça com um olhar crítico, disse consigo: “Aperaltou-se todo! Não quer aparecer de qualquer maneira ao general...”

Como se lhe houvesse adivinhado os pensamentos, Kopylov declarou:

- Não é conveniente aparecermos sujos. Aconselho-te a arranjares-te um bocado também.

- Não é preciso! - resmungou Grigóri espreguiçando-se.... - Dizes então que temos ordem de lá estarmos às seis? Já começam a dar-nos ordens!

Kopylov encolheu os ombros com um sorriso.

- Outros tempos outras modas. Do ponto de vista hierárquico somos obrigados a ceder. Fitzkhalaurov, como general, não lhe compete vir ter connosco.

- Isso é verdade, tivemos aquilo que queríamos – murmurou Grigóri levantando-se para se ir lavar ao poço.

A dona da casa acorreu com uma toalha limpa e bordada que apresentou a Grigóri, inclinando-se. Este esfregou vigorosamente a ponta da toalha na cara cor de tijolo, queimada pela água fria e disse a Kopylov que se aproximara:

- Sim, evidentemente, mas os senhores generais deviam saber uma coisa: o povo tornou-se diferente depois da revolução; é como se tivesse renascido. E eles continuam a medir coisas pela antiga bitola. Mas esta pode deixar de servir de um momento para o outro... Eles não sabem fazer a viragem, era preciso untar-lhes os cérebros com sebo para não rangerem nas curvas.

- A que propósito dizes tu isso? - inquiriu Kopylov, distraído, soprando sobre a manga para sacudir um grão de poeira.

- A propósito de que, para eles, tudo continua como dantes. No meu caso, ganhei os galões na frente alemã, conquistei-os com o meu sangue. Mas, quando entro numa assembleia de oficiais, é como se fosse para a rua em cuecas no Inverno. Sinto frio, arrefecem-me as costas.

Os seus olhos lançavam chispas e erguera a voz sem dar por isso.

Kopylov, olhando em redor com ar descontente, murmurou:

- Fala mais baixinho, as ordenanças estão a ouvir-te.

- Porque será isto, não me dirás? - prosseguiu Grigóri, baixando a voz. Para eles, eu sou um bicho raro. Os tipos têm mãos, ao passo que eu uso ferraduras, por causa dos calos. Enquanto suas Excelências fazem passos de dança, eu agarro-me às coisas. Os fidalgos cheiram a sabonete e a toda a casta de cremes de beleza, ao passo que eu tresando a mijo e a suor de cavalo. Eles são uns sabichões e eu tive dificuldade em fazer a escola primária. Somos diferentes da cabeça aos pés. É assim mesmo! Quando estou na sua companhia tenho a impressão de que anda uma teia de aranha na cara a fazer-me cócegas. Sinto medo e dá-me vontade de me ir lavar.

Grigóri atirou com a toalha para cima do telhado do poço. Desembaraçou os cabelos com um bocado de pente de corno. A parte branca da testa não queimada pelo sol destacava-se por cima do rosto moreno.

- Eles não querem compreender que o passado já não conta declarou em voz mais baixa. Pensam que somos feitos doutra massa e que as pessoas sem instrução, os homens simples, são uma espécie de gado. Julgam que, na arte militar, eu e os meus companheiros somos menos competentes do que eles. Mas do lado dos vermelhos quem é que comanda? Budionny será por acaso oficial? Não senhor. Foi ajudante no exército. No entanto quem é que tem derrotado os generais do Estado-Maior? É ou não é ele quem tem feito marcar passo aos regimentos comandados por oficiais? Gusselchtchikov é o mais valente e o mais célebre dos generais cossacos e, apesar disso este Inverno teve de fugir em cuecas de Urst-Khoperskaia. E sabes tu quem era o gajo que o obrigou a fazer isso? Um simples operàriozito de Moscovo, que comanda um regimento vermelho. Foram os prisioneiros que me falaram dele. Isto é que eles têm de compreender. E nós, os oficiais sem instrução, não conduzimos bem os cossacos, quando da insurreição? E os generais, ajudaram-nos alguma coisa nisso?

- Ajudaram sim, e não foi pouco - respondeu Kopylov com um ar entendido.

- Bem talvez tivessem ajudado o Kudínov, mas cá a mim não me serviram de nada, e venci os vermelhos sem ter pedido conselho a ninguém.

- O quê, negas então a ciência na arte militar?

- Não, não nego a ciência. Mas na guerra, meu caro, não é isso o principal.

- Então que pensas tu ser o principal?

- A causa que se defende...

- Ah, isso é outra coisa... - murmurou Kopylov. E acrescentou com um sorriso prudente: - Isso já se sabe... O principal, nestas coisas, é a causa pela qual lutamos, é ter fé nessa causa. Eis uma verdade tão velha como o mundo e fazes mal em a apresentar como se fosses tu a descobri-la. Eu cá sou pelos tempos antigos. Se assim não fosse não teria mexido um dedo para fazer a guerra. Todos aqueles que estão connosco são pessoas que defendem pela força das armas os seus velhos privilégios e querem dominar o povo revoltado. Nós pertencemos ao número dos dominadores, tu e eu. Mas há muito que ando a observar-te, Grigóri Panteleiévitch, e não consigo compreender-te...

- Mais tarde compreenderás, vamos embora – exclamou Grigóri, dirigindo-se para o telheiro.

A dona da casa, que lhe espiava todos os gestos, propôs, para lhe ser agradável:

- Quer beber uma pinga de leite?

- Obrigado, tiazinha, não temos agora tempo de beber leite, fica para a outra vez.

Prokhor Zikov, junto do telheiro, sorvia conscienciosamente uma tigela de leite coalhado. Não perdendo a calma, ao ver Grigóri, desprendeu o cavalo. Depois de limpar os beiços à manga, perguntou:

- Vais para longe? Queres que te acompanhe?

Grigóri, irritando-se, respondeu com fria cólera:

- Não sabes as tuas obrigações, monte de esterco? Porque é que esse cavalo não está aparelhado? Quem é que mo deve apresentar? Estupor! Passas a vida a comer, nunca te fartas. Vamos larga a colher, não sabes o que é disciplina, labrego!?

- Que mosca te mordeu? - resmungou Prokhor, ofendido... bem instalado na sela. - Estás sempre a barafustar sem razão. Quem julgas tu que és? Então já não tenho o direito de comer qualquer coisa antes de me pôr a caminho? Porque berras assim?

- Porque tu me fazes perder a cabeça, meu safado. Que maneira é essa de me falares? Vamos ter com o general, por isso toma bem conta no que te digo. Tens o costume de me tratar tu cá tu lá. Esqueces o lugar que ocupo em relação a ti. Segue-me a cinco passos de distância! - ordenou Grigóri quando transpunham o portão.

Prokhor e as três outras ordenanças ficaram um pouco para trás, enquanto Grigóri, que seguia na frente em companhia de Kopylov, retomava a conversa, inquirindo com ironia:

- Diz lá então o que é que tu não compreendes, talvez eu te consiga explicar.

Sem notar a ironia do tom, Kopylov respondeu:

- O que eu não compreendo é a tua posição dentro da nossa causa. Por um lado, lutas pelo antigo regime; por outro desculpa a minha franqueza és uma espécie de bolchevista.

- Em que é que eu sou um bolchevista? - perguntou Grigóri, irritado, fazendo um movimento brusco sobre a sela.

- Não digo que sejas bolchevista, mas sim uma espécie de bolchevista.

- Vem a dar na mesma. Em quê, pergunto eu?

- Bem, naquilo que dizes acerca dos oficiais e das suas relações contigo. Que queres tu deles? Que queres tu afinal de contas? - inquiriu Kopylov sorrindo, bonacheirão, a brincar com a chibata.

Lançou um olhar para as ordenanças, que discutiam com animação, e prosseguiu com mais vigor:

- Irrita-te o facto de não te aceitarem como seu igual, de te tratarem de cima para baixo. Mas eles têm razão do seu ponto de vista. É preciso compreendê-los. Tu és oficial, é certo, mas só por acaso. É certo que ostentas galões, mas continuas a ser, desculpa que to diga, um cossaco bastante grosseiro. Não sabes o que são boas maneiras, exprimes-te de uma forma incorrecta, não possuis qualquer das qualidades de um homem culto. Por exemplo, em lugar de te servires do lenço de assoar, como qualquer pessoa bem educada, assoas-te aos dedos; durante as refeições, limpas as mãos às botas ou aos cabelos; no fim de te lavares, não te importas de te enxugares à manta do cavalo; quando precisas de cortar as unhas, ou as róis ou as aparas com a ponta do sabre. Mais ainda, lembras-te de que este Inverno, em Karguínsskaia, quando estavas a conversar com uma mulher instruída, cujo marido fora preso pelos cossacos, apertaste a braguilha diante dela...

- Querias talvez que a tivesse deixado ficar aberta? – perguntou Grigóri com um sorriso carrancudo.

Os cavalos seguiam a par, e Grigóri olhava de soslaio para Kopylov, para o seu rosto bonacheirão, e escutava-lhe as palavras com uma certa amargura.

- Não é isso! - exclamou Kopylov fazendo uma careta despeitada. - Mas, enfim, como foste tu capaz de receber essa mulher, tendo apenas as calças vestidas e estando descalço? Lembro-me muito bem que nem sequer te deste ao trabalho de pôr o blusão pelas costas. São tudo pequenas coisas, bem sei, mas que fazem de ti um homem... como direi...

- Bem, diz de uma vez!

- Olha, um homem absolutamente inculto. E essa tua maneira de falar! É horrível! Em lugar de dizeres domicílio, dizes domecílio; em vez de evacuar, dizes evascuar; quando queres dizer parece que, dizes está-me a pracer; dizes, em vez de artilharia, antelharia. E, como iletrado que és, tens uma paixão inexplicável pelas palavras estrangeiras que soam bem e emprega-las a torto e a direito, deforma-las de uma maneira incrível e, quando alguém pronuncia diante de ti, nas conferências do Estado-Maior, certos termos da gíria militar, tais como deslocão disposição, concentração, etc., olhas para a pessoa com pasmo, direi mesmo, com inveja.

- Oh, quanto a isso, estás a mentir! - exclamou Grigóri, alegre e animado. Acariciava o cavalo entre as orelhas, coçando-lhe o pêlo quente e sedoso, por baixo das crinas. E prosseguiu: - vá, anda, continua a cascar no teu chefe...

- Escuta, não é preciso continuar. Já deves ter compreendido que, sob este aspecto, não estás à altura. Além disso irritas-te com os oficiais por te não tratarem de igual para igual. Quanto às boas maneiras e à instrução, convence-te de que não vales um caracol!

Depois de ter proferido levianamente estas palavras ofensivas, Kopylov ficou cheio de medo. Sabendo como Grigóri dominava mal a ira, receava uma explosão, mas bastou lançar-lhe um olhar rápido para ficar tranquilo: Grigóri, todo deitado para trás, na sela, sacudia-se num riso mudo, com os dentes deslumbrantes a brilharem por baixo do bigode. O efeito que tiveram as suas palavras foi para Kopylov tão imprevisto, a hilaridade de Grigóri tão contagiosa, que por sua vez, desatando a rir, disse:

- Estás a ver, outro qualquer mais sensato teria chorado, ao passo que tu gozas... Serás maluco?

- Dizes então que eu não valho um caracol? Pois bem, raios te partam! - exclamou Grigóri quando acabou de rir. - Não tenho a mínima vontade de aprender as vossas boas maneiras e as vossas convenções. Não preciso delas para lidar com os meus bois! E, se Deus permitir que conserve a vida, não irei fazer-lhes salamaleques, dizendo: “Chegue-se para lá um pouco, senhor careca. Peço-lhe desculpa, senhor malhado! Dá-me licença que lhe aperte a canga? Meu caro senhor boi, peço-lhe o obséquio de não se afastar do rego.” com eles, dizem-se frases mais curtas. Basta: Oh! Eh lá! Para eles, a disclocação é isso.

- Qual disclocação, deslocação... - corrigiu Kopylov. Bem, vamos lá pela deslocação. Mas há um ponto em que não concordo contigo.

- Qual é?

- Quando dizes que eu não valho um caracol. Junto de vocês é que eu não valho um caracol. Mas deixa-me ir para o lado dos vermelhos, e verás que valho tanto como um leão. Nessa altura, não me apareçam pela frente, seus parasitas bem educados e sabichões. Abato-vos como tordos! - declarou Grigóri, meio a rir, meio a sério, metendo o cavalo a trote.

A manhã nascia sobre as terras do Dom, no meio de um silêncio tão frágil que qualquer som, mesmo abafado, o vinha quebrar, despertando ecos. Só as alvéolas e as codornizes reinavam na estepe, mas nas aldeias vizinhas ouvia-se esse zumbido fraco e incessante que acompanha habitualmente a passagem das grandes unidades militares. As rodas dos canhões e das carroças pesadas rangiam nas valetas; os cavalos relinchavam perto dos poços; o passo das unidades de infantaria cossaca martelava cadenciadamente o solo, com um ruído surdo e mole; os carros e as charretes requisitadas que transportavam munições e equipamento para a frente de batalha rodavam com estrépito; perto das cozinhas de campanha, cheirava bem a sopa, a carne cozida temperada com folhas de loiro, a pão fresco.

 

Perto de Usst-Medvéditsskaia, crepitava uma fuzilaria cerrada e, de tempos a tempos, rebentava um tiro de canhão, sonoro e preguiçoso. O combate iniciava-se naquele momento.

O general Fitzkhalaurov estava a almoçar quando um ajudante-de-campo, já de certa idade e com aparência gasta, lhe veio anunciar:

- Melekhov, comandante da Primeira Divisão insurrecta: Kopylov, chefe do Estado-Maior.

- Manda-os entrar para o meu quarto.

Com a manápula coberta de veias salientes, Fitzkhalaurov empurrou o prato cheio de cascas de ovo; bebeu sem pressa um copo de leite fresco, dobrou cuidadosamente o guardanapo e levantou-se da mesa.

De estatura gigantesca, embora a idade o tivesse tornado mais gordo e espesso, parecia enorme naquele exíguo quarto cossaco de empenas tortas e janelinhas minúsculas. Enquanto endireitava a gola dura da farda de corte impecável, o general passou à sala vizinha, deu uma tossidela, fez um cumprimento breve a Grigóri e a Kopylov, que se tinham levantado, e, sem lhes estender a mão, convidou-os com um gesto a sentarem-se à mesa.

Grigóri instalou-se com precaução, a segurar o sabre, na borda de um banquinho, enquanto lançava um olhar de soslaio a Kopylov.

Fitzkhalaurov deixou-se cair numa cadeira de verga que rangeu com o seu peso, dobrou as pernas compridas, poisou as mãos nos joelhos, começando numa voz sonora e profunda:

- Convoquei-vos, senhores oficiais, para arrumar umas certas questões... Terminou a guerra de guerrilhas. As vossas unidades deixam de existir como um todo independente, que de resto nunca foram. Uma pura ficção! Ficam integradas no Exército do Don. Estamos a empreender uma ofensiva metódica, é tempo de compreenderem bem tudo isto e de se submeterem sem reservas às ordens do Alto Comando. Por que motivo, façam favor de me dizer, o vosso regimento de infantaria não apoiou ontem o ataque do batalhão de assalto? Porque é que esse regimento se recusou, a despeito das minhas ordens, a tomar parte no ataque? Quem comanda a vossa pseudo-divisão?

- Eu - retorquiu Grigóri em voz baixa.

- Faça favor de responder à minha pergunta.

- Só regressei ontem à divisão.

- Onde é que estava?

- Tinha ido a casa.

- Um comandante de divisão que se dá ao luxo de ir ver a família em período de operações! A sua divisão é um bordel! Não há disciplina, é monstruoso!

A voz de baixo do general trovejava cada vez com mais força na sala acanhada; atrás da porta, os ajudantes-de-campo caminhavam nos bicos dos pés e cochichavam, rindo; as faces de Kopylov empalideciam cada vez mais, ao passo que Grigóri ao contemplar as faces rubras do general e os seus punhos cerrados, se sentia invadido por uma fúria irresistível.

Fitzkhalaurov ergueu-se com uma rapidez inesperada, agarrou nas costas da cadeira e berrou:

- Isso que vocês lá têm não é uma unidade militar, mas sim uma cambada de guardas vermelhos!... Não são cossacos, é uma canalha! O senhor, Melekhov, em vez de comandar uma divisão, devia ser uma simples ordenança!... Só tem competência para engraxar botas! Porque é que a minha ordem não foi executada? Não houve tempo de convocar uma reunião? De a discutir? Convençam-se de uma vez para sempre que isso de camaradas aqui não conta, que não vos permitimos a prática dos processos bolchevistas. Não vos permitimos isso!

- Peço-lhe o favor de não gritar - disse Grigóri com voz surda. Ergueu-se e empurrou o banco com o pé.

- Que está para aí a dizer? - inquiriu Fitzkhalaurov engasgado pela emoção e numa voz rouca, todo curvado sobre a mesa.

- Peço-lhe que não grite - repetiu Grigóri com mais força. - O senhor convocou-nos para...

Ficou calado um segundo, baixou os olhos e, sem despregar a vista das mãos de Fitzkhalaurov, acrescentou quase num murmúrio:

- Se tentar tocar-me, Excelência, nem que seja só com um dedo, espeto-o imediatamente com o sabre.

Estabeleceu-se na sala um silêncio tal que se ouvia distintamente a respiração entrecortada de Fitzkhalaurov. Esse silêncio durou perto de um minuto. A porta rangeu de leve. Um ajudante-de-campo espreitou, assustado, através da fisga, fechando-a em seguida devagarinho. Grigóri ficara de pé, sem tirar a mão do punho do sabre. Uma leve tremura agitava as pernas de Kopylov e o seu olhar errava vagamente pela parede.

Fitzkhalaurov deixou-se cair pesadamente na cadeira, soltou um débil gemido de velho e resmungou:

- Muito lindo!

E prosseguiu, já calmo, mas sem fitar Grigóri:

- Sente-se. Estamos exaltados, basta de tolices. Agora escute se faz favor: ordeno-lhe que transfira sem demora todas as suas unidades de cavalaria... Mas sente-se...

Grigóri, depois de se sentar, limpou à manga o suor abundante que lhe inundara subitamente o rosto.

- Portanto, transfira todas as suas unidades de cavalaria para o sector sudeste e passe logo à ofensiva. O seu flanco direito deverá tomar contacto com o segundo batalhão do tenente-coronel Tchumakov...

- Não conduzirei para aí o meu batalhão – declarou Grigóri com uma voz cansada, enquanto metia a mão no bolso das calças para tirar o lenço.

Limpou de novo a fronte com o lenço de renda que lhe dera Natalia e repetiu:

- Não conduzirei para aí o meu batalhão.

- Porquê?

- O reagrupamento levará tempo de mais...

- Isso não é da sua conta. Eu é que sou responsável pelo resultado da operação.

- É da minha conta, sim senhor. E não é Vossa Excelência o único responsável...

- Recusa-se a executar uma ordem? - perguntou Fitzkhalaurov com voz rouca, fazendo um visível esforço para se conter.

- Recuso.

- Nesse caso queira entregar o comando. Compreendo agora por que motivo a minha ordem de ontem não foi executada.

- Seja como o senhor quiser, mas a verdade é que não entrego o comando.

- Que quer isso dizer?

- Aquilo que eu disse.

Grigóri sorriu imperceptivelmente.

- Retiro-lhe o comando.

Fitzkhalaurov elevara a voz. Grigóri pôs-se de pé imediatamente.

- Não sou vosso subordinado, Excelência.

- De uma maneira geral, você é subordinado de alguém?

- Sou, do comandante em chefe das forças insurrectas, Kudínov. Quanto ao senhor, deixe-me dizer-lhe que estou admirado de o ouvir falar desse modo... Até ver, temos os mesmos direitos. O senhor comanda uma divisão, eu também. E para já peço-lhe o favor de não berrar comigo... Ah! depois de me terem feito baixar de posto para chefe de batalhão, nessa altura, sim. Mas quanto a bater-me...

Grigóri ergueu o indicador sujo e sorriu, ao mesmo tempo que os seus olhos cintilavam de furor. E terminou:

- Quanto a bater-me, nem depois disso consinto.

Fitzkhalaurov levantou-se, compôs a gola que o afogava e disse com um ligeiro curvar de cabeça:

- Nada mais temos a dizer um ao outro. Faça como entender.

- Vou imediatamente informar da sua atitude o Estado-Maior do Exército e garanto-lhe que os resultados não se farão esperar. Até agora nunca tivemos razão de queixa acerca do funcionamento do nosso tribunal militar.

Sem dar atenção aos olhares desesperados de Kopylov, Grigóri enterrou o boné na cabeça e dirigiu-se para a porta.

Parou na soleira para dizer:

- Pode informar quem quiser, mas não tente assustar-me, não sou daqueles que se deixam amedrontar... E por enquanto não me toque.

Reflectiu um momento, acrescentando:

- Se o fizesse creio bem que os cossacos lhe dariam uma sova.

Abriu a porta a pontapé e atravessou o vestíbulo em grandes passadas, fazendo tilintar o sabre.

Kopylov, aterrado, veio alcançá-lo no patamar.

- Endoideceste, Grigóri Panteleiévitch - murmurou ele, juntando as mãos com desespero.

- Tragam os cavalos! - berrou Grigóri, a torcer a chibata entre as mãos.

Prokhor chegou às escadas como uma flecha.

Uma vez transposto o portão, Grigóri, voltando-se, viu três ordenanças que se afadigavam ajudando o general Fitzkhalaurov a montar num cavalo bastante alto, elegantemente arreado...

Percorreram a galope cerca de meia verstá, em silêncio.

Kopylov calava-se, compreendendo que Grigóri não ia disposto a falar e que, naquele momento, discutir com ele teria os seus perigos. Por fim, Grigóri não pôde mais:

- Porque vais tão calado? - inquiriu bruscamente.

- Porque vieste comigo? Para servires de testemunha? Estiveste a fazer de mudo?

- Olha, meu caro, sempre nos pregaste uma destas partidas...

- E ele?

- Admito que ele também andou mal. O tom com que nos falou era absolutamente revoltante.

- Achas que aquilo era falar? Desatou logo aos gritos, como se lhe tivessem espetado uma agulha no cu.

- Mas tu também és fresco! Insubordinação em face de um superior... em tempo de guerra... Isso, meu amigo...

- Isso não é nada. Só é pena que o tipo não tenha levantado a mão para mim. Dava-lhe uma sabrada que lhe rebentava os cornos!

- Tu já tens feito muitas destas e não podes esperar que “aqui saia nada de bom - respondeu Kopylov descontente, detendo o cavalo a passo. - Tudo leva agora a crer que eles vão pisar-te os calos, espera e verás.

Os cavalos seguiam a passo, sacudindo-se e enxotando com a cauda as vespas. Grigóri contemplou Kopylov ironicamente, e disse:

- E tu, porque vieste tão bem ataviado? Pensavas que te iam oferecer chá? Fizeste a barba, escovaste a farda, engraxaste as botas... Vi-te molhar o lenço com cuspo para tirar as nódoas dos joelhos.

- Cala-te, por favor! - pediu Kopylov, corando.

Mas Grigóri continuava a troçar dele.

- Os teus esforços não serviram de nada. Já não falo do resto, mas o gajo nem sequer te deixou beijar-lhe a mão.

- Indo contigo, não se podia esperar outra coisa – resmungou Kopylov muito depressa.

Piscara os olhos e, de súbito, exclamou com alegre espanto:

- Olha! Aqueles não são dos nossos, são Aliados!

Na estreita viela onde se encontravam vinham ao encontro deles seis machos atrelados a um canhão inglês. Um oficial da mesma nacionalidade acompanhava-os, cavalgando um alazão de cauda cortada. O condutor, montado no primeiro macho, vestia também a farda inglesa, mas com o distintivo dos oficiais russos e galões de tenente.

A poucas ságenas de Grigóri, o oficial levou dois dedos ao capacete de cortiça e pediu, com um gesto, que o deixassem passar. A viela era tão estreita que isso só seria possível encostando os cavalos de sela aos muros de pedra.

Um tique nervoso agitou as faces de Grigóri. De dentes cerrados, avançou para o oficial. Este, erguendo as sobrancelhas com um ar espantado, afastou-se ligeiramente. Cruzaram-se com muita dificuldade e para isso foi preciso que o oficial inglês passasse a perna direita, apertada dentro da polaina, por cima da garupa luzidia e bem almofaçada do seu cavalo de raça.

Um dos serventes, sem dúvida um oficial russo, lançou a Grigóri um olhar de rancor.

- Parece-me que podias ter recuado um pouco. Havia necessidade de te mostrares mais uma vez grosseiro?

- Segue o teu caminho e deixa-me, monte de esterco. Senão verás como é que eu recuo! - disse Grigóri a meia voz.

O oficial, erguendo-se sobre os estribos, voltou-se para ordenar:

- Meus senhores, prendam esse safado!

Grigóri, a agitar a chibata com ares ameaçadores, avançava a passo na viela. Os artilheiros, todos oficiais novos e sem bigode, cansados, cobertos de pó, examinavam-no com olhares hostis, mas nenhum deles se atreveu a prendê-lo. A bateria de seis peças desapareceu à esquina da rua e Kopylov veio juntar-se a Grigóri, mordendo os lábios.

- Só fazes asneiras, Grigóri Panteleiévitch. Portas-te como um garoto.

Grigóri mostrou-lhe os dentes:

- Ouve lá, vieste para me pregar sermões?

- Compreendo que te tenhas irritado contra Fitzkhalaurov - disse Kopylov encolhendo os ombros , mas esse inglês não tinha culpas nenhumas. Ou foi o capacete dele que te desagradou?

- O que me desagradou foi vê-lo aqui, em Usst-Medvéditsskaia...

- Acho melhor que vá mostrar o capacete para outro lado. Quando dois cães estão à bulha, é escusado vir outro meter-se de permeio, não sabes isso?

- Ah, pelos vistos és contra a intervenção estrangeira? Pois eu cá digo que, quando se está com a corda no pescoço, aceita-se ajuda seja de quem for.

- Bem, nesse caso, deves estar contente. Pois eu nunca os teria deixado pôr o pé no nosso território.

- Mas tu não viste chineses entre os vermelhos?

- E então?

Achas que não é a mesma coisa? Também é auxílio estrangeiro.

- Não devias dizer isso. Os chineses eram voluntários.

- E estes, achas que vieram à força?

Grigóri não encontrou nada para responder. Ficou muitotempo calado, imerso numa penosa reflexão; por fim disse num tom de despeito mal disfarçado:

- Vocês, os homens instruídos, são sempre assim... Saltam para a direita e para a esquerda, como as lebres sobre a neve.

- Olha, meu caro, sinto que tu não tens razão, mas não sou capaz de te levar à parede... Deixemos isso. Não me confundas, pois confundido já eu estou.

Kopylov calou-se, aborrecido, e não trocaram mais palavra até ao aquartelamento, apesar de Prokhor, que se aproximara, cheio de curiosidade, ter inquirido:

- Grigóri Panteleiévitch, Vossa Nobreza, diz-me lá, por favor, que bichos são aqueles que os cadetes atrelaram às peças. Têm orelhas de burro, mas; quanto ao resto, são tal e qual como os cavalos. A gente nem sabe o que aquilo é. Que diabo de raça será aquela? Explica-nos, por favor. Cá a malta até apostou dinheiro...

Foi bem uns cinco minutos atrás de Grigóri. Por fim, parou sem ter recebido resposta e, quando as outras ordenanças o alcançaram, disse-lhes em voz baixa:

- Os gajos não dizem nada. Parece que também eles ficaram estúpidos sem saberem donde vieram aqueles bicharocos...

 

Os esquadrões cossacos tinham-se erguido pela quarta vez das trincheiras abertas à superfície da terra, para se deitarem de novo sob o fogo mortífero das metralhadoras vermelhas.

As baterias inimigas, ocultas entre a floresta da margem esquerda, martelavam sem descanso, desde a aurora, as posições cossacas e as reservas agrupadas nas ravinas.

As pequenas nuvens dos shrapnels, a desfazerem-se, brancas como o leite, vinham rebentar por cima dos cabeços do Don. Atrás e à frente da linha quebrada das trincheiras cossacas as balas levantavam uma poeira acastanhada.

Cerca do meio-dia, a batalha atingira o auge e o vento oeste transportava para longe, ao longo do Don, o ribombar dos tiros da artilharia.

Do posto de observação da bateria insurrecta, Grigóri contemplava com o binóculo o desenrolar do combate. Via as companhias de oficiais, apesar das baixas, atacar em vagas, com persistência. Quando o fogo se intensificava, deitavam-se no chão, depois davam novo salto para a frente; contudo, à esquerda, para os lados do mosteiro, a infantaria insurrecta não conseguia levantar-se. Grigóri escrevinhou à pressa um bilhete destinado a Ermakov, que mandou entregar por um estafeta.

Meia hora depois, Ermakov, furioso, chegava a galope.

Apeou-se de um salto junto dos piquetes de cavalos da bateria e subiu, ofegante, até à trincheira do posto de observação.

- Não consigo pôr de pé os cossacos. Não querem levantar-se! - gritou ele de longe, agitando os braços. Já perdemos vinte e três homens. Viste o massacre que os vermelhos fizeram com as metralhadoras?

- Os oficiais avançam e tu não consegues fazer marchar os teus homens? - sibilou Grigóri, de dentes cerrados.

- Mas repara: eles têm uma metralhadora para cada secção e cartuchos a dar com um pau. E nós, que é que temos?

- Vá, vá. Nada de discursos. Ao ataque, imediatamente! Senão corto-te a cabeça!

Ermakov, depois de proferir uma obscenidade, desceu o cabeço a correr. Grigóri foi atrás dele. Resolvera levar ele próprio ao ataque o 2.º” Regimento de Infantaria.

Junto da última peça, habilmente camuflada com ramos de espinheiro, foi abordado pelo comandante da bateria.

- Admira o trabalho dos ingleses, Grigóri Panteleiévitch. Agora vão começar a disparar sobre a ponte. Subimos ao cabeço?

Com o binóculo, distinguia-se apenas a linha ténue da ponte de barcos que os sapadores vermelhos haviam instalado através do Don. Sobre ela passava uma vaga contínua de viaturas.

Ao cabo de dez minutos, a bateria inglesa, instalada numa depressão do terreno, atrás de uma crista rochosa, abriu fogo. O quarto obus cortou a ponte quase ao meio. A fila de viaturas de teve-se. Viam-se os vermelhos a atirarem ao rio a toda a pressa os carros demolidos e os cadáveres dos cavalos.

Logo quatro barcaças de sapadores largaram da margem direita; mas, assim que estes haviam consertado a ponte demolida, a bateria inglesa disparou nova série de obuses. Um destes rebentou com o dique de acesso da margem esquerda, outro fez brotar uma coluna de água verde mesmo junto da ponte, e o tráfego, que se restabelecera através desta, cessou de novo.

- Aquilo é que é pontaria! Filhos da mãe! - exclamou o comandante da bateria com admiração. - Agora, daqui até à noite, nunca mais os deixam passar. A ponte foi-se à viola!

Grigóri inquiriu, sem despregar o binóculo dos olhos:

- E tu, porque não falas? Fazias melhor se apoiasses a nossa infantaria. Estás a vê-los, os ninhos de metralhadoras inimigas.

- Isso queria eu, mas já não tenho nem um obus. Disparei o último há meia hora; desde então estou a jejuar.

- Mas nesse caso que estás tu aqui a fazer? Pega nas carretas e põe-te a andar.

- Mandei pedir munições aos cadetes.

- Eles não tas dão respondeu Grigóri categoricamente.

- Recusaram da primeira vez e eu então mandei um estafeta. Talvez agora se mostrem mais amáveis. Bastava-me coisa de uns vinte para destruir essas metralhadoras!... Não é nenhuma brincadeira: já nos deram cabo de vinte e três homens. E quantos mais não matarão ainda? Olha só como elas chovem...

Grigóri dirigiu o olhar para as trincheiras cossacas. As balas caíam sempre na terra seca das margens. Nos sítios onde acertava a rajada das metralhadoras erguia-se um rasto de pó, como se uma mão invisível estivesse traçando, com fulgurante rapidez, um risco cinzento que logo se desvanecia ao longo das trincheiras. Estas, em toda a sua extensão, pareciam fumegar.

Grigóri não prestava atenção aos estragos causados pela bateria inglesa. Escutou durante um minuto o fogo incessante da artilharia e das metralhadoras, depois, descendo do cabeço, foi ter com Ermakov.

- Não ataques enquanto eu não der ordem. Nunca conseguiremos derrotá-los se não formos apoiados pela artilharia.

- Que te dizia eu? - perguntou Ermakov num tom cheio de censura, enquanto montava de novo no seu cavalo, excitado pela corrida e pelo tiroteio.

Grigóri viu-o galopar intrepidamente pelo meio das balas. Pensou com inquietação: “Que necessidade tem ele de seguir a direito? Vai ser atingido por uma metralhadora. Devia descer a ravina e subir ao longo do vale, reunindo-se aos seus homens, sem perigo, atrás do outeiro.” Ermakov alcançou a ravina a toda a brida e não voltou a aparecer. “Bem, já percebeu. Agora é capaz de passar”, disse consigo Grigóri, aliviado. Deitou-se junto ao cabeço e enrolou vagarosamente um cigarro.

Invadira-o uma estranha indiferença. Não, não conduziria os cossacos sob o fogo das metralhadoras. Não valia a pena.

As companhias de oficiais que o fizessem, se assim o entendessem. E que tomassem Usst-Medvéditsskaia! Foi ali, deitado no sopé daquele cabeço, que Grigóri, pela primeira vez, se absteve de tomar parte directa num combate. Não por cobardia, nem por medo da morte ou das perdas inúteis. Pouco tempo antes, não poupava a vida nem a dos cossacos sob o seu comando. Porém algo se quebrara dentro de si. Nunca até então sentira tão claramente o absurdo do que se estava passando. Seria isto efeito da conversa com Kopylov ou da cena com Fitzkhalaurov, ou talvez das duas coisas: o certo é que o estado de espírito que se apoderara dele, sem que desse por isso, fê-lo tomar a decisão de nunca mais ir para as linhas de fogo. Compreendia confusamente que não poderia reconciliar os cossacos com os bolcheviques e que nem ele próprio, no fundo, se poderia reconciliar com estes, mas defender aquela gente que lhe era estranha e hostil, todos esses Fitzkhalaurov que o desprezavam profundamente e a quem pagava na mesma moeda, isso nunca mais queria nem podia fazer. E de novo, imperiosas como nunca, se ergueram dentro de si as velhas contradições. “Que façam eles a guerra que eu fico a ver. Quando me retirarem a minha divisão pedirei para ser enviado para a retaguarda. Estou farto!” pensava. E, recordando outra vez a discussão com Kopylov, surpreendeu-se a procurar argumentos a favor dos vermelhos. “Os chineses vão para os vermelhos com as mãos vazias, alistam-se, arriscam todos os dias a vida por um soldo miserável. De resto, que interessa o soldo? Nada podem fazer com ele, além de jogar às cartas... Isto quer dizer que lhes interessa outra coisa... Os aliados, esses, enviam tanques, canhões, oficiais e até mulas. E depois vão exigir uma grande porção de rublos em troca de tudo isso. Aí é que está a diferença! Bem, voltaremos a falar nisto logo à noite. Quando regressar ao Estado-Maior, chamo-o de parte e digo-lhe: “Há uma diferença, Kopylov. Não me venhas com histórias!”

Mas tal conversa nunca teve lugar. Nessa tarde, quando se dirigia ao acantonamento do 4.º Regimento, que estava de reserva, Kopylov foi morto por uma bala perdida. Grigóri soube-o duas horas depois.

Na manhã seguinte, Usst-Medvéditsskaia era tomada, ao cabo de uma luta renhida, pelas unidades da 1.ª Divisão do general Fitzkhalaurov.

 

Três dias depois da partida de Grigóri, Mitka Korchunov chegava a Tatársski. Não vinha só; acompanhavam-no dois colegas do destacamento disciplinar. Um deles era um Kalmuk não muito jovem, oriundo do vale do Manytch; o outro, um pequeno cossaco mal-encarado, natural da stanitsa Raskokaia Mitka alcunhara desdenhosamente o kalmuk de “chinês” e tratava como a um senhor o bêbado malandro de Raskapinskaia.

Dentro do destacamento disciplinar, Mitka prestara, ao que parece, grandes serviços ao Exército do Don, visto ter sido promovido a ajudante, depois, durante o Inverno, a tenente, e entrara na aldeia em todo o esplendor da sua nova farda de oficial Tudo fazia crer que levara uma rica vida durante a retirada para lá do Donetz, pois os seus ombros largos esticavam o blusão de caqui e as suas faces rosadas faziam refegos de gordura por cima da gola alta; as suas calças azuis quase lhe rebentavam sobre as nádegas. Se não fosse aquela maldita revolução, com o seu físico, Mitka teria feito parte sem dúvida do Regimento atamanski da GuardaImperial, viveria no palácio e velaria pela augusta pessoa de Sua Majestade. Mas mesmo assim não tinha de que se queixar.

Também ele obtivera a patente de oficial, mas não como Grigóri Melekhov, que arriscara a vida e despendera tesouros de heroísmo. Para se triunfar num destacamento disciplinar são necessárias outras qualidades. E essas tinha-as ele para dar e vender: não confiava nos seus homens, por isso conduzia ele próprio à execução os suspeitos de bolchevismo, não desdenhava ajustar pessoalmente contas com os desertores, à chicotada ou à coronhada; quanto aos interrogatórios dos prisioneiros, não havia outro que lhe levasse a palma em todo o destacamento, e o próprio tenente-coronel Prianichnikov dizia, encolhendo os ombros: “Não, meus senhores! Por mais que me digam, esse Korchunov é imbatível. Ele não é um homem, é um dragão!” Ainda outra qualidade notável de Mitka: quando os soldados do destacamento não tinham o direito de fuzilar um prisioneiro, mas também não estavam dispostos a deixá-lo sair com vida das suas mãos, condenavam-no aos açoites e a tarefa era confiada a Mitka. Este de tal modo se havia que, ao cabo de quatro açoites, o supliciado começava a vomitar sangue e, no fim de cem, mesmo sem o auscultarem, podiam embrulhá-lo com toda a segurança numa esteira de tília.

Nem um único condenado a açoites saíra com vida das mãos de Mitka. Ele próprio costumava dizer, a rir: “Se eu tivesse tirado as calças ou as saias a todos os vermelhos que matei, teria com que vestir toda a aldeia de Tatársski!”

A crueldade natural que Mitka revelara desde a infância encontrara digna aplicação no destacamento disciplinar; além disso, como nada o inibia, desenvolvera-se monstruosamente.

Posto em contacto, pela própria natureza da sua tarefa, com a escumalha do corpo de oficiais cocainómanos, violadores de mulheres, ladrões e outros patifes instruídos , Mitka assimilava avidamente, com o seu zelo de aldeão, tudo o que essa gente lhe ensinava, inspirado no ódio aos vermelhos, e ele próprio dentro em pouco levava a palma aos mestres.

Quando um oficial neurasténico se cansava do sangue e do sofrimento alheio, Mitka não resistia, piscava os olhos amarelos palhetados e ia até ao fim.

Assim se transformara Mitka depois de ter trocado a sua unidade cossaca pela doce existência do destacamento disciplinar comandado pelo tenente-coronel Prianichnikov.

Mal chegou à aldeia, assumindo um ar importante e respondendo por favor aos cumprimentos das mulheres que encontrava, dirigiu-se, a cavalo, à quinta da família. Apeou-se junto ao portão meio carbonizado, negro de fumo, entregou as rédeas ao kalmuk e entrou no pátio, com as pernas afastadas. Acompanhado por Silanti, o pequeno cossaco, deu em silêncio a volta aos muros, tocou com a ponta do chicote numa bola de vidro derretido pelo incêndio, que apresentava reflexos azulados, e disse, numa voz rouca de emoção:

- Queimaram tudo. No entanto isto era uma bela quinta. A melhor da aldeia. E foi um homem daqui, o Michka Kochevói quem a queimou. Foi ele também que matou o avô. Estás a ver silanti Pétrovitch, é assim que eu venho encontrar a minha casa...

- Ainda existe alguém na aldeia pertencente à família Kochevói? - perguntou o outro com vivacidade.

- Creio que sim. Havemos de ver isso... Mas agora vamos visitar os sogros da minha irmã.

Pelo caminho, Mitka, encontrando a nora dos Bogatíriov, perguntou-lhe:

- A minha mãe já voltou da outra margem do Don?

- Creio bem que não, Mitri Mironyevitch.

- E o Melekhov, está cá?

- O velho?

- Sim

- O velho está em casa. Toda a família está em casa, excepto o Grigóri. O Petro morreu este Inverno, sabias?

Mitka fez que sim com a cabeça e meteu o cavalo a trote.

Percorria as ruas desertas. Dos seus olhos amarelos, de gato, frios e indiferentes, desaparecera todo o vestígio de emoção. Ao chegar à quinta dos Melekhov, disse a meia voz, sem se dirigir em especial a nenhum dos dois companheiros:

- É assim que me recebe a minha aldeia! Até tenho de ir pedir de jantar aos parentes . Vamos, no fim é que se há-de ver quem fica por cima...

Pantelei Prokófievitch estava debaixo do telheiro a consertar a segadora. Ao ver os homens a cavalo, e reconhecendo entre eles Korchunov, veio ao portão:

- Ora muito bons dias! - exclamou alegremente.

- Muito prazer em ver-te! Sejam bem-vindos!

- Bons dias, compadre. Como vai a saúde?

- Graças a Deus bem. E tu, estás-me a parecer que já és oficial?

- Então julgavas que só os teus filhos é que usavam dragonas brancas? - respondeu Mitka todo satisfeito, estendendo ao velho a sua mão comprida e nodosa.

- Os meus não tinham grande desejo delas - respondeu sorrindo Pantelei Prokófievitch, seguindo à frente, a indicar o sítio onde deviam ir prender os cavalos.

A hospitaleira Ilínitchna ofereceu jantar aos hóspedes e só no fim se estabeleceu a conversa. Mitka fazia perguntas, a esmiuçar tudo o que dizia respeito à família; estava taciturno e não revelava cólera nem tristeza. Perguntou, como que por acaso, se na aldeia ainda existia alguém da família Kochevói.

Ao ouvir dizer que a mãe de Michka ficara com as crianças, dirigiu a Silanti uma breve piscadela de olho que os outros não notaram.

Os visitantes despediram-se dali a pouco, e Pantelei Prokófievitch, enquanto os acompanhava à porta, perguntou a Mitka:

- Contas ficar muito tempo na aldeia?

- Uns dois ou três dias.

- Vais visitar a tua mãe?

- Se calhar.

- E agora, vais para longe?

- Hum... Vou visitar uma pessoa na aldeia. Não nos demoramos.

Mitka e os companheiros não haviam regressado ainda a casa dos Melekhov, já a notícia se espalhara por toda a aldeia: “Korchunov apareceu aí com uns kalmuks e estrangularam toda a família Kochevói.”

Pantelei Prokófievitch, que nada ouvira dizer e regressara da forja com a foice da segadora, ia recomeçar o trabalho quando Ilínitchna o chamou.

- Anda cá, Prokófievitch, anda cá depressa.

A voz da velha traduzia susto e Pantelei Prokófievitch, admirado, entrou logo em casa.

Natalia, lívida e toda chorosa, estava de pé junto ao fogão. Ilínitchna indicou com os olhos a mulher de Anikuchka, que também ali se encontrava, e inquiriu numa voz surda:

- Já sabes a notícia, homem?

- Ah!, aconteceu alguma coisa ao Grigóri!...

“Deus nos acuda e nos perdoe!”, pensou Pantelei Prokófievitch. Tinha a impressão de que acabava de sofrer uma queimadura. Fez-se pálido e, como ninguém dissesse nada, gritou, cheio de medo e cólera:

- Desembuchem, malditas! Que aconteceu? Foi o Grigóri?

E, como se o seu grito o tivesse esgotado, deixando-se cair sobre um banco, passou as mãos pelas pernas trémulas.

Duniachka, a primeira a compreender que o pai temia más notícias de Grigóri, apressou-se a responder.

- Não, pai, não se trata do Grichka... Foi o Mitri que massacrou os Kochevói.

- Massacrou, como?

Pantelei Prokófievitch ficara de repente aliviado e, sem perceber ainda as palavras de Duniachka, repetiu:

- Os Kochevói? O Mitri?

A mulher de Anikuchka, que trouxera a novidade, explicou atrapalhando tudo:

- Eu tinha ido buscar a minha vitela, sabes tu? E, ao passar em frente da casa dos Kochevói, vejo Mitri com mais dois outros militares chegarem ao pátio e entrarem por ali dentro. Vou eu então e disse comigo: “Só tenho de levar a vitela até ao moinho, pois não é a minha vez de guardar o gado.”

- Quero lá saber da tua vitela! - exclamou Pantelei Prokófievitch, furioso.

- Eles então entraram todos na casa - prosseguiu a mulher com a voz entrecortada. - Eu fiquei ali, à espera. “Isto cheira-me a esturro”, disse comigo. Então comecei a ouvir gritar dentro de casa e barulho de pancadas. Fiquei morta de medo e quis ir-me embora, mas, ao afastar-me da cerca, senti passos atrás de mim. Voltei-me e vi o vosso Mitri. Tinha atado a barra de uma saia ao pescoço da velha e arrastava-a pelo chão, como se fosse uma cadela, Deus me perdoe! Arrastou-a até ao telheiro. Ela não dizia nada, pobrezinha; devia ter desmaiado. O kalmuk que vinha com ele saltou para cima da trave... Olhei, e vi o Mitri a atirar-lhe com a ponta do trapo e a gritar: “Puxa e dá um nó!” Que medo eu tive! Enforcaram-na ali, à minha vista, pobre velha! No fim montaram nos cavalos e saíram para a rua. Foram decerto para a Administração. Não me atrevi a entrar na casa... Mas vi o sangue a correr por baixo da porta do vestíbulo, até aos degraus doalpendre. Deus me livre de voltar a ver coisas daquelas!

- Que ricos hóspedes que Deus nos mandou! – disse Ilínitchna, fitando o velho com um ar interrogador.

Pantelei Prokófievitch escutara a narrativa com uma tremenda emoção. Sem dizer palavra, saiu logo para o vestíbulo Não tardou que Mitka e os seus acólitos aparecessem ao portão. Pantelei Prokófievitch dirigiu-se prestamente ao encontro deles a coxear.

- Pára! Gritou-lhes de longe. Não entres com os cavalos para dentro do meu pátio!

- Que é isso, compadre? - exclamou Mitka admirado.

- Volta para trás!

Pantelei Prokófievitch avançou até junto de Mitka e declarou numa voz firme, fitando-lhe os olhos amarelos e cintilantes:

- Não te irrites, compadre, mas não quero ver-te na minha herdade. É melhor ires-te embora para onde te apetecer.

- Ah! - retorquiu lentamente Mitka, com um ar entendido.

- Empalidecera. Nesse caso pões-me fora?...

- Não quero que sujes a minha casa - prosseguiu o velho categoricamente. - Não quero que voltes a pôr aqui os pés. Nós, os Melekhovs, não pertencemos a nenhuma família de carrascos. É como te digo.

- Já percebi. Mas estás a mostrar-te muito compadecido, compadre!

- E tu, pelos vistos, não sabes o que é a compaixão, uma vez que matas mulheres e crianças. Oh, Mitri, que triste ofício! O teu pai, que Deus lá tem, não gostaria de te ver fazer uma coisa destas.

- E tu, velho idiota, querias que eu andasse com eles nas palminhas? Mataram o meu pai e o meu avô, e eu havia de os beijar como quem lhes dá as boas-festas? Vai para o raio que te parta!

Mitka puxou furiosamente pelas rédeas e fez passar o cavalo para o outro lado da cerca.

- Não berres, Mitri. Tu podias ser meu filho. Mas nada temos de comum, por isso vai-te embora!

Cada vez mais pálido, agitando o bengalim com um ar ameaçador, Mitka gritava numa voz rouca:

- Não me faças perder a cabeça, peço-te! Se não fosse por ter pena da Natália, havias de ver, meu coração tenro!... Bem vos conheço a todos, e sei o que trazeis dentro dessas cabeças. Não foram vocês que seguiram a retirada para lá do Donetz? E que depois se venderam aos vermelhos? Ah, foi isso mesmo!. . Era preciso alguém limpar-vos o sebo a todos, como fizemos aos Kochevói. Vamos embora, rapazes. Mas toma sentido, cão tinhoso, não te atravesses no meu caminho. Não me escapas. Hei-de recordar-me da tua hospitalidade. Às vezes também me acontece ajustar contas com os parentes.

Pantelei Prokófievitch fechou a cancela e correu o ferrolho com as mãos trémulas, regressando a casa a coxear.

- Acabo de pôr fora o teu irmão - declarou dirigindo-se a Natalia sem a fitar.

Natalia não respondeu, embora no seu íntimo aprovasse a atitude do sogro. Ilínitchna depois de se persignar à pressa, declarou com satisfação:

- Louvado seja Deus! Foi-se embora. Desculpa-me que te diga, Nataliúchka, mas o teu Mitka é um verdadeiro demónio e que ofício ele foi arranjar! Em vez de servir num batalhão honesto, entrou para um destacamento de carrascos. Será porventura digno de um cossaco, enforcar velhas e matar crianças inocentes? Que obrigação tinham elas de pagar pelos actos do Michka? Se assim fosse, os vermelhos deviam-nos ter passado a fio de sabre a todas, a mim e a ti, bem como à Poliúchka e ao Michatka, por causa do Gricha, e eles não o fizeram, tiveram piedade de nós. Não, Deus me perdoe, mas não aprovo aquelas coisas.

- Não desculpo o meu irmão, mãe - limitou-se a dizer Natalia, a enxugar as lágrimas com a ponta do lenço.

Mitka abandonou a aldeia naquele mesmo dia. Disse-se que fora reunir-se ao seu destacamento algures para as bandas de Karguínsskaia e que andara a restabelecer a ordem nas povoações ucranianas do distrito do Doraetz, cuja população se achava comprometida em actividades destinadas a abafar a insurreição do Alto-Don.

Depois de ele se ter ido embora, toda a aldeia comentou durante uma semana o que se passara. A maior parte das pessoas condenava aquele acto de justiça sumária. As vítimas foram enterradas à custa da comunidade; quiseram vender o casinhoto dos Kochevói, mas não apareceu comprador. Por ordem do atamane da aldeia, os postigos foram fechados com tábuas pregadas em cruz e durante muito tempo as crianças evitavam brincar perto daquele lugar terrível; contudo, os velhos e as velhas, ao passarem em frente da casa deserta, persignavam-se e oravam por alma dos supliciados.

Depois começou a recolha do feno na estepe e os acontecimentos recentes foram caindo no esquecimento.

Como de costume, a vida da aldeia dividia-se entre o trabalho e as notícias da frente. Os que haviam conservado o gado intacto lamentavam-se e vociferavam quando eram obrigados a fazer transportes. Quase todos os dias era preciso tirar do trabalho os bois e os cavalos que andavam nas terras e mandá-los à stanitsa. Enquanto desatrelavam o gado da charrua os velhos costumavam lançar invectivas contra aquela guerra interminável Mas não havia remédio senão fazer chegar à frente de batalha os obuses, os cartuchos, os rolos de arame farpado e os víveres. E eles lá seguiam. Por ironia do destino, fazia um tempo maravilhoso, que convidava a ceifar, a recolher o feno bem maduro e excepcionalmente rico.

Pantelei Prokófievitch, que se preparava para a recolha do feno, estava furioso contra Daria. A rapariga tinha ido levar cartuchos no carro puxado pela junta de bois e já devia estar de volta, porém, decorrida uma semana, não dava notícias. Ora nada se podia fazer na estepe sem essa velha junta de bois que eram de uma solidez a toda a prova.

A verdade é que nunca devia ter consentido naquela viagem de Daria. Pantelei Prokófievitch só a custo lhe confiara os bois, sabendo que ela só queria era divertir-se e pouca atenção prestava aos animais, mas não havia ninguém a quem entregar a missão. Enviar Duniachka, nem pensar nisso: não era negócio para uma rapariga, fazer essa viagem na companhia de cossacos estranhos; Natalia tinha os filhos; e não competia ao velho ir levar esses malditos cartuchos!

Quanto a Daria, oferecera-se logo. Para ela era sempre um prazer sair de casa: quer fosse para ir ao moinho, quer para aviar qualquer outro recado doméstico, simplesmente porque se sentia incomparavelmente mais livre lá fora do que dentro de casa. Todas as viagens lhe proporcionavam distracção e alegria. Longe das vistas da sogra, podia tagarelar à vontade com as suas comadres e, segundo dizia “ter amores passageiros” com qualquer atrevido que lhe agradasse. Em casa, porém, depois da morte de Petro, a severa Ilínitchna não a deixava pôr o pé em ramo verde. Era como se Daria, que em vida do marido tantas vezes o enganara, tivesse agora a obrigação de lhe guardar fidelidade depois de morto.

Pantelei Prokófievitch bem sabia que os bois não seriam tratados como o eram pelo próprio dono, mas não havia nada a fazer e deixara partir a nora. Sim, deixara-a partir, mas passara uma semana aflito e preocupado. Acordava de noite e exclamava, entre fundos suspiros: “Vai dar-me cabo dos bois!”

Daria regressou no décimo segundo dia pela manhã. Pantelei Prokófievitch acabava precisamente de voltar dos campos. Andara a ceifar na companhia da mulher de Anikuchka e deixara-a na estepe com Duniachka para vir a casa buscar água e comida. Os dois filhos e Natália estavam a almoçar quando ouviram o ruído familiar das rodas do carro a passar por baixo das janelas. Natalia correu a espreitar e viu Daria embrulhada no xaile até aos olhos a fazer entrar no pátio os bois cansados e emagrecidos.

- É ela? - perguntou o velho, engasgando-se ao engolir.

- É a Daria!

- Já não contava voltar a ver os meus bois! Enfim, graças a Deus! Maldita cabra! Não tinhas pressa nenhuma de voltar para casa! - resmungou o velhote, benzendo-se. Depois arrotou, satisfeito.

Após ter desatrelado os bois, Daria entrou na cozinha, poisou na soleira da porta o oleado dobrado em quatro partes e deu os bons-dias.

- Olha, minha querida, já agora podias por lá ter ficado mais uma semana - disse Pantelei Prokófievitch com ironia, olhando Daria de soslaio, sem corresponder ao cumprimento dela.

- Fosse lá o senhor! - retorquiu ela num tom azedo, enquanto desapertava o lenço coberto de pó.

- Mas porque te demoraste tanto? - perguntou Ilínitchna conciliadora.

- Não me deixaram vir mais cedo, foi só por isso.

Pantelei Prokófievitch abanou a cabeça com ar incrédulo.

- Então deixaram vir a mulher do Khrisstónia e a ti não?

- A mim não.

Os olhos de Daria luziam, furiosos, e acrescentou:

- Se não acredita, vá perguntar ao chefe do comboio.

- Não preciso de ir tirar nada a limpo a teu respeito, mas para a outra vez ficas em casa. Só és boa para ires buscar a morte.

- Está a ameaçar-me? Pode falar à vontade. Para a outra não irei nem que me mandem.

- E os bois, vêm bons? - quis saber o velho, já num tom mais conciliador.

- Vêm bons, vêm. Não sucedeu mal nenhum aos seus bois...

Daria respondia de má vontade, aborrecida.

“Devia ter deixado um apaixonado pelo caminho, por isso vem tão furiosa”, pensou Natália. Sempre nutrira um sentimento de piedade e nojo por Daria, pelos seus amores pouco limpos.

Após o almoço, quando Pantelei Prokófievitch se preparava para regressar ao trabalho no campo, viu entrar pela porta dentro o atamane da aldeia.

- Gostaria de te desejar boa viagem, Pantelei Prokófievitch, mas peço-te que não saias.

- Vens mais uma vez pedir-me essa chatice do transporte? - perguntou o velho com uma fingida resignação, enquanto a ira lhe tirava o fôlego.

- Não, agora é outra música. Recebemos hoje a visita do comandante de todo o Exército do Don, o general Sidórine em carne e osso. Estás a perceber? O atamane da stanitsa enviou-me um papel com ordem para eu reunir os velhos e todas as mulheres sem excepção para a assembleia da aldeia.

- Mas eles estão doidos! - exclamou Pantelei Prokófievitch.

- Alguém se lembra de fazer reuniões com um calor destes? E o meu feno para o Inverno, é o teu general Sidórine que o vai recolher?

- O general é tanto meu como teu - retorquiu tranquilamente o atamane. Só faço aquilo que me ordenam. Vá, desatrela os bois! Temos de o ir receber e oferecer-lhe o pão e o sal. Diz-se para aí que vêm com ele uns generais aliados.

Pantelei Prokófievitch ficou calado um momento junto do carro dos bois, reflectiu e depois começou a desatrelar os animais. Ao ver que as suas palavras tinham produzido efeito o atamane disse num tom mais alegre:

- E a tua égua, não poderias emprestá-la?

- Para quê?

- Disseram-nos para enviarmos duas troicas ao encontro dele, raios os partam! Até ao Vale Maldito. Mas onde queres tu que eu vá buscar os carros e os cavalos? Não faço a mais pequena ideia! Levantei-me de madrugada e tenho andado numa sarabanda. Já molhei cinco vezes a camisa de suor e só consegui arranjar quatro cavalos. Andam todos a trabalhar. É uma tragédia.

Pantelei Prokófievitch concordou em emprestar a égua e ofereceu até a sua pequena charrette de molas. Afinal de contas quem vinha de visita era o comandante-chefe com generais estrangeiros e Pantelei Prokófievitch sempre nutrira pelos generais um sentimento de comovido respeito .

Graças aos esforços do atamane arranjaram-se duas troicas e mandaram-nas para o Vale Maldito ao encontro dos ilustres visitantes. O povo reuniu-se na praça. Muitos, deixaram em meio a colheita do feno e apressaram-se a regressar à aldeia.

Renunciando ao trabalho, Pantelei Prokófievitch preparou-se, vestindo camisa lavada, umas calças com listas dos lados, o boné que Grigóri lhe oferecera, e dirigiu-se gravemente para a praça do mercado, depois de dizer à mulher que mandasse Daria levar água e mantimentos a Duniachka.

Não tardou que a estrada principal ficasse coberta por um espesso turbilhão de pó que se precipitou em direcção à aldeia. Através dele, viu-se cintilar qualquer coisa metálica, ouvindo-se ao longe o som cantante de uma buzina. Os hóspedes esperados viajavam em dois automóveis novinhos em folha, cuja pintura azul brilhava; atrás deles, muito longe, ultrapassando os ceifeiros que regressavam dos campos, as troicas vazias chegavam a galope, e as campainhas (que o atamane arranjara para esta ocasião tão solene) tilintavam melancolicamente nos arcos por cima dos cavalos do meio.

Despontou um grande alvoroço entre a multidão que estava na praça. Toda a gente falava, enquanto as crianças soltavam gritos. O atamane, desorientado, andava de um lado para o outro a reunir os decanos da aldeia, a quem incumbia a honra de oferecer o pão e o sal. Atentou em Pantelei Prokófievitch, recorreu a ele, aliviado.

- Ajuda-me, pelo amor de Deus! Tu és um homem experiente, conheces os usos... Sabes como se deve apertar a mão, e tudo o resto... E além disso foste membro da Assembleia Regional, tens um filho que... Peço-te que te encarregues do pão e do sal, eu cá, como vês, tenho medo, sinto as pernas a tremer.

Pantelei Prokófievitch, muito lisonjeado com esta honra, recusou a princípio por delicadeza, mas, em seguida, metendo a cabeça entre os ombros, persignou-se à pressa, pegando logo no prato coberto com uma toalha bordada, que continha o pão e o sal; abriu passagem com os cotovelos por entre a multidão, e avançou.

Os automóveis aproximavam-se rapidamente da praça seguidos por uma verdadeira matilha de cães de todas as raças, roucos de tanto ladrar.

- Então, que tal? Não tens medo? - segredou o atamane muito pálido a Pantelei Prokófievitch.

Era a primeira vez que via pessoas tão importantes. Pantelei Prokófievitch lançou-lhe um olhar de esguelha, que fez brilhar os globos azulados dos seus olhos, e disse numa voz abafada pela emoção:

- Toma, segura isto enquanto dou uma penteadela na barba.

O atamane apressou-se a segurar no prato, enquanto Pantelei Prokófievitch alisava o bigode e a barba, a fazer peito; até que, apoiando-se na ponta do pé esquerdo, para se não ver que era coxo, pegou de novo no prato. Mas este tremia de tal maneira nas suas mãos que o atamane lhe perguntou, assustado:

- Vê lá se o deixas cair, tem cuidado!

Pantelei Prokófievitch encolheu desdenhosamente os ombros.

- Ele, deixar cair o prato! Mais que tolice! Ele, que fora membro da Assembleia Regional! Ele que apertava a mão a toda a gente no palácio do atamane eleito, podia lá recear um general qualquer? Não havia dúvida de que este pobre atamane da aldeia estava doido varrido.

- Eu cá, meu caro, quando estava na Assembleia Regional, tomava chá em casa do próprio atamane eleito, e com açúcar.. - começou a dizer Pantelei Prokófievitch, mas não prosseguiu.

O automóvel da frente detivera-se a uns dez passos dele. Um motorista de cara rapada, que usava um boné de grande pala e tinha uns galões estrangeiros na túnica, apeou-se agilmente, indo abrir a porta. Dois militares com farda de campanha desceram devagar do automóvel, dirigindo-se para a multidão. Encaminhava-se a direito para Pantelei Prokófievitch, que estava em posição de sentido.

Adivinhava que os generais eram precisamente esses dois homens modestamente vestidos, ao passo que os outros que se viam atrás, de aspecto mais elegante, não passavam de simples membros do séquito. Fitava-os sem pestanejar, mas os seus olhos traduziam uma surpresa cada vez maior. Onde estariam as grandes dragonas caídas? Onde estariam as agulhetas e as condecorações? E que espécie de generais seriam esses, se não era possível distingui-los exteriormente dos simples soldados-secretários? Pantelei Prokófievitch sentiu-se de súbito amargamente decepcionado. Chegava a lamentar ter feito preparativos tão solenes para esta recepção, e, ao mesmo tempo, sentia uma certa animosidade contra estes generais que amesquinhavam a patente. Meu Deus! Se soubesse que se tratava de generais desta espécie, nunca se teria vestido com tanto esmero, não os teria aguardado com tanta emoção, ou pelo menos, não se encontraria nesse momento ali, como um imbecil, de prato na mão, esse prato que continha um pão mal cozido por uma velha ranhosa. Não, Pantelei Melekhov nunca se prestara ao ridículo, mas eis que isso sucedia agora pela primeira vez: um minuto antes, ouvira os garotos a rirem-se nas suas costas, chegando um desses diabretes a berrar muito alto: “Eh, rapaziada! Olhem o Melekhov coxo a fazer-se importante. Como se tivesse engolido um pau de vassoira.” Ainda se servisse para alguma coisa fazer todos estes fretes e esforçar tanto a perna doente, esticada como a corda de um arco!

Pantelei Prokófievitch fervia por dentro de indignação. E o culpado de tudo isto era esse maldito cagarolas do atamane!

Fora procurá-lo a casa, moera-lhe os ouvidos, atrelara a égua à caleche correra a aldeia de ponta a ponta, com a língua de fora, à procura dos guizos e campainhas para as troicas.

Não havia dúvida de que o povo tinha razão: em terra de cegos quem tem um olho é rei Em toda a sua vida, Pantelei Prokófievitch nunca vira generais assim. Na revista imperial, por exemplo, apresentavam-se alguns com o peito cheio de cruzes, de medalhas, todos cobertos de oiro; até consolava a alma um espectáculo assim: não eram generais, eram ícones!

Mas estes, todos de verde, como gaios! Nem sequer um boné na cabeça, apenas uma espécie de tacho coberto de musselina, com o focinho tão rapado que nem com uma lanterna se conseguiria avistar um pêlo Pantelei Prokófievitch, franzindo as sobrancelhas, esteve a ponto de cuspir com desprezo, mas alguém o empurrou por detrás, enquanto lhe segredava imperiosamente:

- Anda, apresenta o prato.

Pantelei Prokófievitch lançou por cima da sua cabeça um rápido olhar à multidão, exclamando numa voz sonora:

- Cumprimento-vos, meus senhores

- E nós também o estamos cumprimentando, Excelência! - responderam atabalhoadamente os habitantes da aldeia O general recebeu com ares benevolentes o pão e o sal das mãos de Pantelei Prokófievitch, agradeceu e passou o prato ao ajudante-de-campo.

Um coronel inglês, alto e magro, que estava ao lado de Sidórine, examinava os cossacos com fria curiosidade por baixo do capacete profundamente enterrado na cabeça até aos olhos. Por ordem do general Rreeves, chefe da missão militar britânica no Cáucaso, acompanhava Sidórine na sua viagem de inspecção através da zona do Exército do Don, limpa de bolcheviques, e, assistido por um intérprete, analisava conscienciosamente o estado de espírito dos cossacos, informando-se da situação nas diversas frentes.

O coronel estava farto das privações da viagem, da paisagem monótona das estepes, das conversas fastidiosas e de todos os complicados deveres que incumbiam ao representante de uma grande potência, porém os interesses de Sua Majestade estavam acima de tudo! Ouvia atentamente os discursos dos oradores da stanitsa, compreendendo quase tudo, pois sabia russo, embora ocultasse esse facto aos outros. Examinava com uma fleuma bem britânica os rostos, todos uniformemente queimados pelo sol, mas no entanto diferentes uns dos outros, desses filhos das estepes, surpreendido com essa mistura de raças que impressiona sempre quem observa uma multidão cossaca: junto de um cossaco, de tipo exilado, avistava um verdadeiro mongol; ao lado deste, um jovem cossaco negro como a asa de um corvo, tendo um braço envolto em ligaduras sujas, conversava em voz baixa com um patriarca bíblico de cabelos brancos. Podia apostar-se que nas veias desse patriarca apoiado no seu cajado, o qual envergava uma antiga túnica cossaca, corria, puro, o sangue dos montanheses do Cáucaso.

O coronel sabia um pouco de história; enquanto observava os cossacos, ia dizendo consigo que nem estes bárbaros nem os seus netos poderiam marchar contra a índia sob o comando de um novo Plaitov. Após a vitória sobre os bolcheviques, a Rússia, arruinada pela guerra civil, ficaria durante muito tempo impossibilitada de alinhar entre as grandes potências de forma que nada ameaçaria, nas futuras décadas, as fronteiras das possessões orientais da Grã-bretanha. Quanto à derrota dos bolcheviques, o coronel considerava-a absolutamente certa. Era um homem de espírito lúcido, vivera muito tempo na Rússia antes da guerra e, claro está, não podia acreditar no triunfo das ideias utópicas do comunismo nesse país meio selvagem...

A atenção do coronel foi atraída pelas mulheres que conversavam em voz alta. Sem voltar a cabeça, examinou os seus rostos tisnados, de maçãs do rosto salientes, e um sorriso desdenhoso, quase imperceptível, aflorou-lhe aos lábios duramente apertados.

Depois de ter oferecido o pão e o sal, Pantelei Prokófievitch misturou-se com a multidão. Não estava disposto a ouvir o palrador de Viochénsskaia que saudava os visitantes em nome da população cossaca da stanitsa; contornando a turba, aproximou-se das troicas, estacionadas a certa distância.

Os cavalos estavam cobertos de espuma e respiravam com esforço. O velho acercou-se da sua pequena égua que estava atrelada no meio, esfregou-lhe as ventas com a manga e suspirou. Apetecia-lhe dizer pragas, desatrelar imediatamente a égua e levá-la para casa, tamanha fora a sua decepção.

Entretanto, o general Sidórine dirigia um discurso aos habitantes da aldeia de Tatársski. Após ter elogiado as suas acções militares na retaguarda dos vermelhos, declarou:

- Vós combatestes generosamente os nossos inimigos comuns. Os vossos serviços não serão esquecidos pela pátria, que se vai libertando pouco a pouco dos bolcheviques e do seu terrível jugo. Eu desejaria distribuir recompensas às mulheres da vossa aldeia que, como muito bem sabemos, se distinguiram particularmente na luta armada contra os vermelhos. Peço às nossas heroínas cossacas, cujos nomes vamos ler, que avancem.

Um oficial leu uma lista curta. Daria Melekhov era a primeira citada; as outras eram viúvas de cossacos mortos no início da insurreição, as quais haviam participado, tal como Daria, na execução sumária dos prisioneiros comunistas levados para Tatársski após a rendição do regimento de Sardóbsk.

Daria não tinha ido para o campo conforme lhe ordenara Pantelei Prokófievitch. Estava ali, no meio do grupo das mulheres da aldeia, e preparara-se como para uma festa.

Assim que ouviu o seu nome, empurrando as outras, avançou pausadamente, enquanto compunha o lenço branco debruado a rendas. Piscava os olhos e sorria com um ar levemente perturbado. Apesar de fatigada pela longa viagem e pelas aventuras amorosas, estava bonita a valer. As faces pálidas, que o sol não queimara, contrastavam com o brilho vivo dos olhos piscos e penetrantes; a curva artificial das sobrancelhas pintadas e a prega dos lábios sorridentes ocultavam qualquer coisa de provocante e de impuro.

Um oficial que voltava as costas à multidão tapava-lhe o caminho. Ela, empurrando-o levemente, disse:

- Deixa passar a família do noivo!

Aproximou-se de Sidórine.

Este recebeu das mãos do ajudante de campo uma medalha presa a uma fita e espetou-a, com os dedos inábeis, na blusa de Daria, do lado esquerdo. Depois fitou a rapariga nos olhos e sorriu:

- É a viúva do sargento Melekhov, que morreu em Março?

- Sou.

- Vai receber dinheiro, quinhentos rublos. Este oficial é quem lhos entrega. O atamane regional Afrikan Pétrovitch Bogaiévsski e o Governo do Don felicitam-na pela grande coragem de que deu provas e apresentam-lhe condolências... Sentem muito o seu desgosto.

Daria não compreendera todo o discurso do general. Agradeceu com um aceno de cabeça, recebeu o dinheiro das mãos do ajudante-de-campo e, também a sorrir, fitou o general de frente. Era um homem ainda novo, mais ou menos da sua altura, e Daria examinava sem se acanhar o rosto amaciado do general!. “Nem por isso foram muito generosos, pagaram pelo meu Petro o mesmo que por uma junta de bois... mas este generalzinho não é nada feio, pelo contrário”, pensava ela com o seu cinismo habitual. Sidórine supunha que ela iria retirar-se imediatamente. Daria, porém, deixou-se ficar. O ajudante-de-campo e os oficiais colocados atrás de Sidórine indicavam uns aos outros com franzidelas de sobrolho esta viúva descarada; acendiam-se alegres lampejos nos seus olhos; o próprio coronel inglês, reanimando-se, ajustou o cinto, a apoiar-se ora numa perna ora na outra, e algo de semelhante a um sorriso espraiou-se-lhe pelo rosto impassível.

- Posso ir-me embora? inquiriu Daria.

- Pode sim senhora disse Sidórine todo pressuroso.

Desajeitadamente, Daria enfiou o dinheiro no decote da blusa, indo juntar-se à multidão. Todos os oficiais, fartos de discursos e de cerimónias, seguiram com os olhos o seu caminhar leve e ondulante.

A viúva de Martine Chamil aproximou-se de Sidórine num passo hesitante. Assim que a medalha ficou presa à sua velha blusa, pôs-se de súbito a chorar, com um tal desespero, uma amargura tão feminina, que a expressão jovial desapareceu imediatamente dos rostos dos oficiais, deixando-os sérios e compungidos.

- O seu marido também morreu? - inquiriu Sidórine, franzindo a testa.

A mulher, a chorar, escondeu a cara nas mãos, confirmando silenciosamente com a cabeça.

- Ela tem tantos filhos que não cabem num carro! - observou uma voz grossa de entre a multidão dos cossacos Sidórine, voltando-se para o inglês, disse-lhe alto:

- Recompensamos as mulheres que deram provas de uma coragem insigne na luta contra os bolcheviques. A maioria delas perderam o marido no início da insurreição e, para vingar a sua morte, aniquilaram por completo um forte destacamento de comunistas locais. A que condecorei em primeiro lugar é viúva de um oficial e matou, com a sua própria mão, um comissário comunista, célebre pelas suas crueldades.

O oficial intérprete traduziu isto para inglês muito depressa.

O coronel ouviu-o, inclinando a cabeça, e disse:

- Admiro a coragem destas mulheres. Diga-me, meu general, elas bateram-se como os homens?

- Sim - respondeu laconicamente Sidórine e, com um gesto impaciente, convidou a terceira viúva a aproximar-se.

Pouco depois da distribuição das recompensas, os visitantes partiram para a stanitsa. A multidão dispersou rapidamente, desejosa de regressar às ceifas e, poucos minutos após os automóveis terem desaparecido, escoltados pelo ladrido dos cães, só ficaram na praça três velhos junto ao adro da igreja.

- Que tempos estranhos estes! declarou um deles, abrindo os braços num largo gesto de impotência. Outrora, na guerra, dava-se a cruz de São Jorge ou a medalha para premiar acções de grande mérito, de heroísmo. E poucos a recebiam! Só os mais valentes, os mais atrevidos. Não havia muitos voluntários que quisessem andar a correr atrás das cruzes. Por isso se dizia dantes: “Ou regressas com a cruz, ou não tornes a aparecer.” Agora, então, até oferecem a medalha às mulheres E ainda se fosse por qualquer coisa de importante, mas por isto . Trouxeram prisioneiros para a aldeia e elas mataram-nos à paulada. Homens desarmados! Onde está o heroísmo? Deus me perdoe, mas não percebo!

Outro velho, paralítico e quase cego, arrastou uma perna, tirou da algibeira uma bolsa de tabaco enrolado em forma de canudo e disse:

- Em Tcherkassk os chefes vêem mais longe. Disseram lá consigo: é preciso também entusiasmar as mulheres para lhes dar ânimo, de forma a que elas ajudem também na guerra. E toca a dar-lhes uma medalha, a entregar-lhes quinhentos rublos. Assim nenhuma resiste. Qualquer cossaco que não queira ir para a frente, que pense em fugir à guerra, agora não pode ficar em sua casa. A mulher não o deixa descansar. E ninguém aguenta uma cegarrega a moer de noite e de dia. Talvez até elas digam consigo: “E se eu ganhar uma medalha também?”

- Não deves dizer essas coisas, compadre Fiódor - observou o terceiro velho. - Era justo condecorá-las e assim fizeram. São todas viúvas e aquele dinheiro faz-lhes um grande arranjo. Quanto às medalhas, receberam-nas como prémio de valentia. A primeira, a Dachka Melekhov, limpou o sebo ao Kotliairov. E foi muito bem feito. O Senhor é quem nos julga a todos, mas nada temos que censurar às mulheres. A voz do sangue clama por vingança...

Os velhos ficaram ali a discutir e a criticar até ao toque das trindades. Às primeiras badaladas ergueram-se todos três tiraram os barretes e entraram cerimoniosamente na igreja.

 

Que mudança na família Melekhov! Pouco tempo antes, Pantelei Prokófievitch sentia-se senhor absoluto em sua casa, todos lhe obedeciam sem resmungar, o trabalho fazia-se na perfeição, partilhavam-se alegrias e desgostos e toda a vida da casa respirava uma antiga e forte harmonia. Era uma família bem unida. Mas, a partir da Primavera, tudo se modificara. Duniachka fora a primeira a afastar-se. Não desobedecia abertamente ao pai, mas executava de má vontade todas as tarefas, como se não trabalhasse para si e fosse apenas uma assalariada; parecia estar sempre absorta, ausente, e era raro ouvir-se o seu riso despreocupado.

Após a partida de Grigóri para a frente, Natalia também se desligara dos velhos; passava quase todo o tempo na companhia dos filhos, só com eles é que conversava e trabalhava de boa mente. Adivinhavam que sofria no fundo da alma um grande desgosto, porém não dizia uma palavra à família a tal respeito, nunca se lamentava, escondia o seu mal por todas as formas.

Quanto a Daria, não é bom falar: nunca mais fora a mesma desde que regressara da entrega dos obuses. Fazia frente ao sogro cada vez com mais frequência, não ligava importância a Ilínitchna, irritava-se contra todos sem motivo aparente, não punha os pés no campo pretextando andar mal disposta e portava-se como se estivesse apenas de passagem em casa dos Melekhov.

A família desagregava-se sob as vistas de Pantelei Prokófievitch. Estava só com a sua velha. De repente, sem que ninguém o esperasse, quebraram-se os laços de parentesco, perdeu-se todo o calor nas relações mútuas; durante as conversas transpareciam cada vez com mais frequência sintomas de irritação e indiferença. Já ninguém se sentava à mesa como outrora, não era uma família unida e solidária, mas sim um grupo de pessoas reunidas por acaso.

Fora a guerra a causa de tudo isto. Pantelei Prokófievitch compreendia-o muito bem. Duniachka queria mal aos pais por lhe terem tirado toda a esperança de se casar um dia com Michka Kochevói, o único homem que amara com toda a sua indomável paixão de juventude; Natalia nada dizia mas, com o seu feitio fechado, sofria atrozmente com o regresso de Grigóri aos braços de Akcínia. E Pantelei Prokófievitch via tudo isto mas nada podia fazer no sentido de restabelecer dentro da família a antiga ordem. Mesmo assim, não iria consentir, depois de tudo quanto se passara, no casamento da filha com um bolchevista inveterado e, de resto, de que teria servido esse consentimento, quando o pretendente maldito se encontrava algures na frente e, ainda por cima, numa unidade do Exército Vermelho? Quanto a Grigóri, o motivo era o mesmo: se este não fosse oficial, Pantelei Prokófievitch ter-lhas-ia cantado, e de tal maneira que ele nunca mais se atreveria sequer a olhar para as bandas da herdade dos Astakhovs. Porém a guerra, confundindo tudo, privara o velho da possibilidade de viver e de mandar na sua casa como entendesse. A guerra arruinara-o, roubara-lhe o ardor pelo trabalho, arrebatara-lhe o filho mais velho, trouxera a discórdia e o caos para o seio da família. A guerra atravessara a sua vida como uma tempestade devasta um campo de trigo, porém o trigo, no fim da tempestade, ergue-se de novo e resplandece ao sol; o velho, esse, nunca mais poderia levantar-se. No seu foro íntimo considerava tudo morto e quem quisesse que se arranjasse!

Depois de haver recebido a recompensa das mãos do general Sidórine, Daria ficara toda contente. Regressou a casa muito feliz, cheia de animação. com os olhos a brilhar, mostrara a medalha a Natalia.

- Porque é que te deram isso? - espantou -se a cunhada.

- Foi por causa do meu compadre, Iváne Alekceiévitch, Deus o tenha em descanso, filho de uma cadela! E isto foi pelo meu Petro...

E, para se dar ares, desdobrou o maço de notas do governo do Don.

Daria não foi para o campo. Pantelei Prokófievitch queria mandá-la levar a merenda, mas ela recusou terminantemente.

- Deixe-me em paz, pai. Estou cansada da viagem!

O velho mostrou-se mal-encarado. Então Daria, para atenuar esta grosseira recusa, declarou meio a sério meio a rir:

- Num dia como este até seria pecado mandarem-me para o campo. Para mim foi um dia de festa.

- Nesse caso irei eu - concordou o velho. - Mas quanto ao dinheiro?

- Quanto ao dinheiro, o quê?

Daria erguera ligeiramente as sobrancelhas, com um ar espantado.

- O dinheiro, estou-te a perguntar o que vais fazer dele?

- Isso é comigo. Hei-de fazer aquilo que eu quiser.

- O quê? Foi por causa do Petro que te deram esse dinheiro.

- Deram-mo a mim Não é o senhor que se deve aproveitar dele.

- Mas tu fazes parte da família. É ou não é verdade?

- E por fazer parte da família? Quer tirar-me o dinheiro?

- Todo não. Mas enfim, Petro era nosso filho, não é verdade? Eu e a minha velha devemos ter a nossa parte.

As pretensões do velho não tinham grande fundamento e Daria marcou resolutamente a sua posição. Replicou com fingida calma:

- Não faço tenção de lhes dar nada. Nem um rublo. Nada disto lhe pertence. Se assim fosse, tinham-lho dado a si. Onde foi buscar essa ideia de querer a sua parte? Nem pensar nisso é bom. Escusa de estender a mão que não leva nada.

Pantelei Prokófievitch fez uma derradeira avançada:

- Tu vives connosco, comes o nosso pão, isso significa que devemos ter tudo em comum. Era bonito se cada um governasse a sua vida à parte. Nunca eu consentiria numa coisa dessas!

Daria, porém, repudiou mais esta tentativa, tal como fizera com as precedentes. E declarou com um sorriso atrevido:

- Eu não estou casada consigo, pai. Hoje vivo aqui, mas amanhã, se me casar de novo, vou-me embora. E não vos devo nada pela comida. Há dez anos que trabalho para a família sem levantar cabeça.

- Trabalhas para ti, cadela desavergonhada! - gritou o velho com indignação.

Gritou ainda outras coisas, porém Daria já não o ouvia.

Voltara-lhe as costas fazendo um balão com a saia e dirigira-se para o seu quarto. “Não querias mais nada!”, murmurava ela com um sorriso irónico.

A conversa ficou por ali. Na verdade, Daria não era tão parva que cedesse qualquer coisa de seu com medo da ira do velho.

Antes de ir para o campo, Pantelei Prokófievitch teve uma breve conversa com Ilínitchna.

- Vigia a Daria... disse ele.

- Porquê? admirou-se a velha.

- Porque ela é capaz de se pôr a andar levando qualquer coisa que nos pertença. Estou certo que não é sem motivo que ela agora levanta a grimpa... A meu ver descobriu alguém que lhe agrada e qualquer dia casa-se mesmo.

- Talvez concordou Ilínitchna. É como um assalariado de passagem, nada a satisfaz, nada está a seu gosto... É como um bocado que se parte de um pão, depois de cortado, nunca mais se une ao resto.

- Não temos nada que unir. Toma sentido, minha velha estúpida, não te lembres de a segurar se ela se quiser ir embora.

- Que vá! Estou farto de a aturar.

Pantelei Prokófievitch, subindo para o carro, concluiu, enquanto espicaçava os bois:

- Ela foge do trabalho como o demónio da cruz, escolhe sempre o melhor bocado para encher a pança e só pensa na paródia. Agora que o Petro morreu (Deus o tenha na sua companhia!), não temos necessidade de conservar uma mulher destas na família. Isto não é uma mulher, é uma estrumeira!

As desconfianças dos dois velhos eram falsas. Daria estava muito longe de pensar no casamento. Era outra a preocupação que a atormentava...

Mostrou-se alegre durante o dia inteiro e conversou com toda a gente. Nem mesmo a discussão acerca do dinheiro lhe alterou o bom humor. Dava reviravoltas em frente do espelho, examinava a medalha por todos os lados, mudou cinco vezes de vestido para ver sobre qual deles ficava melhor a fita às riscas de São Jorge, e gracejava: “Agora tenho de ver se ganho mais algumas!” Em seguida chamou Ilínitchna de parte, meteu-lhe na manga duas notas de vinte rublos e, enquanto apertava contra o peito, nas mãos escaldantes, a manápula enrugada da sogra, murmurou: “Isto é para mandares rezar um ofício em memória do Petro... Mãe, encomenda um grande ofício e prepara a kútia...” E desatou a soluçar... Dali a um minuto, ainda com os olhos brilhantes de lágrimas, brincava com Michatka, cobria-o com o xaile de ir às festas e ria como se nunca tivesse chorado, como se desconhecesse o gosto salgado das lágrimas.

A sua alegria atingiu o auge quando Duniachka chegou.

Descreveu-lhe como recebera a medalha, imitou a solenidade com que falava o general, o ar de espantalho com que a olhava o inglês, e depois, dirigindo a Natalia uma piscadela de olhos maliciosa, começou a afirmar muito séria a Duniachka que dentro em breve, -na sua qualidade de viúva de um oficial e condecorada com a medalha de São Jorge, lhe iriam conceder também a ela o grau de oficial e dar-lhe o comando de um esquadrão de velhos cossacos.

Natalia, que escutava enquanto ia remendando as camisas dos filhos, reprimia um sorriso, ao passo que Duniachka, desolada, juntava as mãos com ar suplicante, dizendo:

- Daria, minha querida, pelo amor de Deus não me contes mais mentiras! Nunca sei quando mentes nem quando falas verdade. Deixa-te de brincadeiras!

- Não me acreditas? És uma parvinha. Estou a dizer a verdade. Os oficiais estão todos na frente. Quem é que há-de ensinar os velhos a marchar e a fazerem tudo quanto é preciso no exército? É para isso que os põem sob o meu comando, e tu verás como os hei-de fazer marchar, àqueles malditos velhos. Verás como saberei comandá-los!

Daria fechou a porta da cozinha para que a sogra a não visse, puxou, num gesto rápido, a barra da saia por baixo das pernas, apanhando-a por detrás, e desatou a marchar para cá e para lá no quarto, descobrindo as barrigas das pernas luzidias.

Deteve-se ao lado de Duniachka e comandou em voz baixa: “Eh... velhotes! Erguer... as barbas! Meia volta à esquerda, à esquerda!”

Duniachka, não resistindo, desatou a fungar de riso, a esconder a cara nas mãos. Natalia disse, rindo também:

- Pára lá com isso, não sabes o que fazes! Não estou a adivinhar nada de bom.

- Não adivinhas nada de bom! Saberás tu, por acaso, o que é bom? Se uma pessoa não faz uma brincadeira vocês até morrem de pasmo!

Porém aquele acesso de alegria acabou tão depressa como começara. Meia hora mais tarde, Daria retirava-se para o seu quarto, arrancava, desesperada, a incómoda medalha que trazia ao peito e meteu-a no fundo da arca; com as faces apoiadas nas palmas das mãos, ficou-se por largo tempo à janela.

À noite saiu e só voltou de madrugada.

E a seguir a isto, trabalhou afincadamente no campo durante quatro dias.

Prosseguia-se com a colheita do feno e havia falta de braços. Não se conseguia ceifar mais do que duas deciatinas por dia. A chuva molhara as marachas e isso duplicara o trabalho: era preciso espalhar o feno e deixá-lo secar ao sol. Mal se haviam acabado de fazer os palheiros, choveu novamente durante toda a noite, com a teimosia e a constância das chuvas do Outono. Depois voltou o bom tempo, o vento recomeçou a soprar e de novo se ouviu o crepitar das ceifadoras na estepe; um cheiro acre-doce a bafio subia dos palheiros enegrecidos. A estepe estava envolta em vapor e, através dessa bruma azulada, mal se conseguiam distinguir os contornos imprecisos das guaritas das sentinelas, o leito glauco das ravinas e as cúpulas verdes dos salgueiros por cima dos pântanos longínquos.

No quarto dia Daria resolveu ir à stanitsa assim que regressou do campo. Anunciou-o à família no momento em que se sentavam à mesa para a refeição do meio-dia.

Pantelei Prokófievitch inquiriu, entre descontente e irónico:

- Porquê tanta pressa? Não podes esperar para domingo?

- Aquilo que eu tenho a fazer talvez não sofra demoras.

- Nem sequer de um dia?

Daria respondeu entre dentes:

- Não.

- Bem, nesse caso, se estás assim tão apertada que não podes esperar um minuto, vai. Mas afinal que negócio é esse tão urgente? Pode saber-se?

- Quem quer saber tudo morre antes do tempo.

Como sempre, Daria encontrou a resposta pronta; Pantelei Prokófievitch cuspiu, despeitado, e não fez mais perguntas.

No dia seguinte, ao regressar da stanitsa, Daria passou por casa. Ilínitchna estava só com as crianças. Michatka correu para a tia, mas esta repeliu-o friamente com a mão e perguntou à sogra:

- Onde está Natalia?

- Está no quintal, a sachar as batatas. Que lhe queres tu? Foi o velho que a mandou chamar? Deve estar doido. Podes dizer-lho.

- Ninguém a mandou chamar. Eu é que quero falar com ela.

- Vieste a pé?

- Vim.

- A nossa gente está quase a acabar a ceifa?

- Talvez amanhã.

- Espera aí. Aonde vais tu com tanta pressa? A chuva estragou muito os fenos? insistia a velha, seguindo atrás de Daria que descia já os degraus da entrada.

- Não estragou muito. Mas agora estou com pressa..

- Quando voltares do quintal vem buscar uma camisa para o velho, ouviste?

Daria fez orelhas moucas e seguiu num passo rápido para a cerca do gado. Parou em frente do embarcadoiro e fitou, com os olhos semicerrados, a imensidade esverdeada do Don, do qual subia uma humidade bafienta; depois dirigiu-se lentamente para o quintal.

O vento soprava sobre o Don e as asas das gaivotas brilhavam no ar. As vagas vinham bater, preguiçosas, na margem plana. As colinas argilosas, envoltas numa névoa lilás e transparente, pareciam baças à luz do sol, mas as florestas da outra margem, lavadas pela chuva, eram de um verde fresco e novo, como na Primavera.

Daria descalçou as botas, lavou os pés e ficou ali sentada durante muito tempo, sobre os calhaus tépidos da margem. Protegia os olhos contra o sol com a mão, atenta aos gritos melancólicos das gaivotas e ao marulho ritmado das vagas.

O silêncio e o grito pungente das aves entristeciam-na, davam-lhe vontade de chorar, tornando ainda mais pesado e amargo o desgosto que subitamente lhe caíra em cima...

Natalia, depois de endireitar as costas com esforço, encostara o sacho à vedação. Ao avistar Daria veio ao seu encontro.

- Vieste procurar-me, Dachka?

- Vim contar-te a minha desgraça...

Sentaram-se uma ao lado da outra. Natalia tirou o lenço, compôs os cabelos e olhou para Daria. Ficou impressionada com a mudança que se operara no rosto da cunhada em tão poucos dias: as faces estavam cavadas e mais escuras, uma profunda ruga atravessava-lhe a fronte, os olhos tinham um brilho ardente e angustiado.

- Que tens tu? Parece que até a tua pele está mais escura - disse Natalia, compungida.

- Não te admires...

Daria sorriu, constrangida, e ficou um momento calada.

- Ainda tens muito que sachar?

- Devo acabar logo à noite. Mas que te aconteceu?

Daria engoliu convulsivamente a saliva e começou com uma voz rápida e abafada:

- Olha... estou doente... Apanhei uma doença ruim... Apanhei-a da última vez, naquela viagem... Foi aquele maldito oficial que ma pegou...

- Tinha que acontecer!...

Natalia juntara as mãos, cheia de susto e consternação.

- Sim, tinha que acontecer... Não me posso queixar, ninguém teve culpa... Foi a minha fraqueza... Ele insinuou-se, o miserável, fez-me a cabeça doida. Tinha os dentes brancos, mas por dentro era podre... Agora estou perdida.

- Mas como, minha querida? Que vais tu fazer agora?

Natalia fitou Daria com terror, mas esta, recuperando o domínio, prosseguia, de olhos baixos:

- Vinha a caminho, sabes tu, quando comecei a notar qualquer coisa... Primeiro pensei: não deve ser nada... Às vezes, como sabes, a coisa vem de muitas maneiras... Ainda na Primavera passada, depois de pegar num saco de fermento, andei com as regras para cima de três semanas. Mas desta vez vi logo que não era a mesma coisa... apenas uma amostra... Ontem fui consultar o oficial de saúde à stanitsa. Quase morri de vergonha... Mas acabou-se...

- Agora tens de te tratar, mas que horror! Parece que essas doenças têm cura.

- Não minha querida. Esta não se cura.

Daria, com um sorriso amargo, ergueu pela primeira vez os olhos desde o início da conversa:

- Tenho sífilis. É um mal sem remédio. Fica-se com um buraco no lugar do nariz... Sabes como era a tia Andrónikha, viste-a?

- Mas que vais tu fazer? inquiriu Natalia com voz comovida, os olhos rasos de lágrimas.

Daria ficou muito tempo calada. Arrancou uma flor de corrida, agarrada a um pé de milho, e aproximou-a dos olhos.

A frágil corola, de bordos rosados, dessa flor leve e diáfana, quase sem peso, destilava um odor pesado e carnal à terra aquecida pelo sol. Daria contemplava-a com avidez, e espanto, como se nunca tivesse visto essa florinha simples e sem pretensões; aspirou-lhe o cheiro, dilatando muito as narinas frementes, depois poisou-a delicadamente no chão ressequido pelos ventos e disse:

- Perguntas o que vou fazer. No regresso da stanitsa vim a pensar, a reflectir... Mato-me, é isso o que vou fazer. É pena, mas não há outra saída... De qualquer forma, mesmo que me trate, toda a gente ficaria a saber na aldeia, seria apontada a dedo, voltar-me-iam as costas, seria escarnecida... Ninguém quereria falar-me. A minha beleza vai desaparecer, fico seca por completo, apodreço em vida... Não, isso não quero.

Era como se falasse consigo própria, não prestava atenção aos gestos de protesto de Natalia.

- Antes de ir à stanitsa, pensava que, se tivesse uma doença má, havia de me tratar. Foi por isso que não quis dar o dinheiro ao pai, pensava que me serviria para pagar aos médicos... Mas agora resolvi outra coisa. Estou farta de tudo, não quero mais saber de nada...

Proferiu um palavrão tremendo, escarrou no chão como os homens e limpou com as costas da mão uma lagrimazinha que lhe ficara presa às pestanas.

- Que estás tu para aí a dizer?... Então não temes a Deus?

- Quero lá saber de Deus! Durante toda a minha vida. Ele não fez outra coisa senão chatear-me... .

Daria sorriu e nesse sorriso descarado, malicioso, Natalia entreviu por momentos a antiga Daria.

- Isto é pecado, aquilo é pecado. Sempre o receio do pecado e do juízo final... Ninguém descobrirá castigo mais duro do que aquele que eu arranjei para mim própria. Estou farta de tudo, Natachka. Tudo me aborrece... As minhas contas fazem-se depressa... Não deixo ninguém, nem atrás de mim nem à minha frente. O meu coração não está preso a nada... É assim mesmo.

Natalia começou a exortá-la calorosamente, pedindo-lhe que reflectisse, que não pensasse em matar-se, porém Daria, que a princípio a escutara distraída, caiu em si e interrompeu-a no meio de uma palavra:

- Deixa lá isso, Natachka. Não vim aqui para me deixar convencer pelas tuas súplicas. Vim contar-te a minha desgraça e prevenir-te para que não deixes os teus filhos aproximarem-se de mim. A minha doença é contagiosa, disse-o o oficial de saúde, e de resto eu já o sabia. As crianças não devem apanhá-la, percebes, minha palerma? Tu é que tens de informar a velha . Eu cá tenho vergonha. Mas... não penses que me vou enforcar já, tenho muito tempo. Vou viver ainda mais uns tempos, divertir-me a ver o mundo. Sabes bem como é, não? Enquanto a coisa não nos toca de perto, andamos de um lado para o outro, sem ver nada à nossa volta... Andei cega toda a vida, por assim dizer, mas, ao regressar da stanitsa, pela margem do Don, pensei que em breve ia deixar tudo e foi como se abrisse os olhos. Olhei o rio, a água encrespada a brilhar ao sol que parecia prata, a ponto de fazer doer a vista. Voltei-me e vi como tudo aquilo era lindo, santo Deus! E eu que nunca me tinha dado conta!

Sorriu timidamente e calou-se, com as mãos juntas, a dominar os soluços que lhe subiam à garganta. Depois prosseguiu numa voz mais alta, mais intensa:

- No caminho chorei, mais de uma vez... Ao chegar à aldeia vi as crianças a tomarem banho no Don... Olhei-as e o coração apertou-se-me. Pus-me outra vez a chorar como uma maluca. Fiquei durante duas horas deitada sobre a areia. Muito custa tudo isto, quando me ponho a pensar...

Levantou-se, sacudiu a saia e compôs o lenço num gesto habitual.

- A minha única consolação, ao pensar na morte, é dizer comigo que vou encontrar o Petro lá na outra vida... Então dir-lhe-ei: “Olha, meu amiguinho, olha, Petro Panteleiévitch, aqui está a tua má mulher!” E acrescentou com cínica ironia: - No outro mundo ele não poderá bater-me, não deixam entrar gente má no Paraíso, não é verdade? Então adeus, Natachenka, não te esqueças de contar à velha a minha desgraça.

Natalia continuava sentada, a tapar a cara com as mãos.

Por entre os seus dedos escorriam lágrimas, como pingos de resina numa sangria de pinheiro. Daria chegou à cancela de ramos entrelaçados e, voltando-se para trás, acrescentou num tom prático:

- A partir de hoje como numa tigela à parte. Avisa a mãe. E, outra coisa: que ela não fale nisto ao velho. Ficaria furioso e ainda era capaz de me pôr fora de casa. Só me faltava isso! vou daqui direita à ceifa. Adeus!

 

No dia seguinte, os ceifeiros regressaram dos campos, e Pantelei Prokófievitch resolveu começar a transportar o feno da parte da tarde. Duniachka levou os bois ao rio enquanto Ilínitchna e Natalia punham a mesa.

Daria, chegando em último lugar, sentou-se lá no fundo.

Ilínitchna pôs-lhe na frente uma tigela de sopa de couves, uma colher e uma fatia de pão. Para os outros, encheu, como de costume, a grande terrina comum.

Pantelei Prokófievitch lançou um olhar à mulher e, designando Daria com os olhos, inquiriu:

- Que quer isto dizer? Por que razão a serves à parte? Ela já não pertence à nossa religião?

- Que te importa a ti? Come!

O velho olhou ironicamente para Daria e sorriu:

- Ah, estou a perceber! Desde que ganhou a medalha já não quer comer na mesma gamela que nós. Diz lá, Dachka, tens nojo de comer na nossa terrina?

- Não é nojo, não posso - respondeu Daria numa voz rouca.

- Não podes porquê?

- Estou doente da garganta.

- E que tem isso?

- Na stanitsa o oficial da saúde recomendou-me que comesse numa tigela à parte.

- Eu também estive doente da garganta, nunca comi à parte e, graças a Deus, a minha doença não se pegou a ninguém. Que doença de garganta é essa?

Daria empalideceu, limpou os lábios com a palma da mão e poisou a colher. Indignada com o interrogatório do velho, Ilínitchna exclamou:

- Que é que tu queres à rapariga? Nem a comer a deixas em paz. És uma carraça, não largas as pessoas.

- Mas que mal fiz eu? - resmungou Pantelei Prokófievitch.

- Cada um pode comer como quiser.

Despeitado, enfiou na boca uma colher de sopa a ferver, queimou-se, cuspiu a sopa para a barba e berrou, furioso:

- Vocês não sabem fazer nada, malditas mulheres! Então já se viu servir a sopa tão quente?

- Se falasses menos à mesa já não te queimavas - retorquiu Ilínitchna à laia de consolação.

Duniachka ia rebentando de riso ao ver o pai, vermelho como um pimentão, a retirar da barba pedaços de couve e batata. Os outros, porém, estavam tão sérios que ela conteve-se, voltando a cara para não se rir fora de propósito.

No fim da refeição o velho e as noras foram buscar o feno em duas carroças. Pantelei Prokófievitch carregava-o com um forcado muito comprido e Natalia recebia-o. Vinha impregnado de um cheiro a podridão. A rapariga regressou a casa na companhia de Daria. Pantelei Prokófievitch, com os seus velhos bois que andavam num passo rápido, viera à frente.

O sol punha-se atrás do túmulo de vigia. O cheiro amargo do absinto que subia da estepe acentuara-se com o cair da noite, mas tornara-se também mais suave, mais agradável, ao perder a intensidade asfixiante do meio-dia. O calor diminuíra. Os bois caminhavam sem esforço e a poeira que as patas dos animais levantavam no caminho ia poisar-se sobre os cardos. As cabeças vermelhas destes brilhavam como chamas e os besoiros esvoaçavam à volta deles. Os pavoncinos voavam, interpelando-se uns aos outros, em direcção a um charco Já ao longe.

Daria ia deitada de bruços na carroça oscilante. Apoiava-se nos cotovelos e olhava de quando em quando para Natalia.

Esta, mergulhada nos seus pensamentos, observava o sol poente; no seu rosto puro e calmo brilhavam reflexos doirados. “Natália, essa, é feliz. Tem o marido e os filhos, não lhe falta nada, todos gostam dela, ao passo que eu sou uma criatura liquidada. Quando morrer ninguém soltará sequer um suspiro”, pensava Daria. E, de repente, sentiu o desejo de magoar Natalia, de lhe fazer mal. Porque havia de ser só ela, Daria, a sofrer as agonias do desespero, ao pensar na sua vida desfeita, sofrendo assim tão cruelmente? Lançou novo olhar à cunhada e disse, esforçando-se por dar à voz um tom sincero:

- Natalia, quero pedir-te desculpa de uma coisa...

A outra não respondeu logo. Ao contemplar o sol, recordava-se daquele dia longínquo (estava noiva de Grigóri), em que este viera visitá-la. Ela fora acompanhá-lo ao portão; e, como hoje, o sol escaldava, como hoje também, uma bruma roxa erguia-se a oeste e as gralhas grasnavam nos salgueiros...

Grigóri afastava-se, meio voltado para trás sobre a sela, e ela seguia-o com o olhar molhado de lágrimas de comovida alegria.

Com as mãos apertadas sobre o peito juvenil, sentia as pancadas impetuosas do coração... Foi-lhe desagradável ouvir a voz de Daria, que de súbito veio perturbar o silêncio, e respondeu contrariada:

- Desculpa, porquê?

- Sinto-me culpada para contigo... Recordas-te quando Grigóri veio de licença, na Primavera? Nessa noite, lembro-me muito bem, tinha eu ido ordenhar a vaca e, quando entrava em casa, ouvi a Akcínia a chamar-me. Fez-me entrar para a casa dela, ofereceu-me este anel e obrigou-me a aceitá-lo...

Daria fazia girar o anel em volta do dedo.

- Pediu-me que lhe mandasse o Grigóri... Que podia eu fazer?... Dei-lhe o recado. Então ele, durante toda a noite... Lembras-te?, disse-te que o Kudínov tinha vindo e que estivera com ele. Tudo mentira. Esteve em casa da Akcínia.

Aterrada, lívida, Natalia quebrava entre os dedos uma haste seca de ervilhaca.

- Não te voltes contra mim, Natalia. Custou-me muito confessar-te isto... - declarou Daria num tom insinuante, tentando fitar Natalia nos olhos.

Natalia engolia as lágrimas em silêncio. O novo desgosto que a feria era tão inesperado, tão grande, que não encontrava em si a força de responder a Daria. Mal se voltou, a fim de esconder o rosto alterado pela dor.

Ao aproximarem-se da aldeia, Daria, furiosa contra si própria, pensou:

“Foi o diabo que me tentou para eu dizer isto. Agora vai pôr-se a chorar durante um mês. Era melhor nunca o ter sabido. As vacas leiteiras ganham mais em ser cegas.” A fim de atenuar um pouco a impressão causada pelas suas palavras, acrescentou:

- Mas não te rales. Isso não vale nada! A minha desgraça é bem pior do que a tua e conservo o bom humor. Afinal de contas talvez ele não tenha ido a casa dela, mas sim à do Kudínov. Não fui espreitá-los. Quando a gente não vê...

- Eu desconfiava... - disse baixinho Natalia, a limpar os olhos com a ponta do lenço.

- Então, se desconfiavas, porque não lho perguntaste? Ah! que idiota! Se fosse comigo, as coisas não ficavam assim. Havia de o moer até mais não!

- Eu tinha medo de saber a verdade... Julgas que é fácil? - respondeu Natalia com os olhos brilhantes, a gaguejar de emoção. Tu, com o Petro... podias viver assim... Mas eu, quando penso, quando eu penso em tudo o que sofri... tenho ainda mais medo.

- Bem, não penses mais nisso - aconselhou ingenuamente Daria.

- Mas isto é coisa que se possa esquecer?... - exclamou Natalia numa voz rouca e estranha.

- Eu, cá por mim, esquecia, ora essa é boa!

- Então tenta esquecer a tua doença.

Daria desatou a rir:

- Isso queria eu, mas a maldita é que se faz lembrar. Escuta, Natachka, queres que eu tente saber alguma coisa através da Akcínia? Ela dizia-me logo tudo. Deus me perdoe, mas não há mulher nenhuma que resista a contar os seus amores. Sei-o por mim.

- Não preciso dos teus serviços. Isto já me basta - retorquiu secamente Natalia. - Não sou cega, bem vejo porque me falaste nisso. Não foi por piedade que me confessaste o teu papel de alcoviteira, mas sim para me tornares mais infeliz...

- É certo - concordou Natalia suspirando. - Mas tens de compreender que eu não podia sofrer sozinha.

Daria desceu da carroça, pegou na soga e conduziu pela encosta acima os bois que trocavam as pernas de fadiga.

Ao entrar na aldeia, aproximou-se da carroça:

- Diz lá, Natalia! Queria perguntar-te uma coisa... Amas assim tanto o teu homem?

- O mais que é possível - respondeu Natalia numa voz que mal se ouvia.

- Nesse caso é muito - suspirou Daria. - Eu cá nunca soube amar assim. Amava como os cães, ao acaso... Se começasse hoje a vida outra vez, talvez fosse diferente...

A escuridão da noite seguiu-se ao curto crepúsculo de Verão. Descarregaram o feno às escuras. As mulheres trabalhavam em silêncio e Daria nem sequer respondia às interpelações de Pantelei Prokófievitch.

 

Perseguindo rapidamente o inimigo em retirada desde Usst-Medvéditsskaia, as unidades reunidas do Exército do Don e os insurrectos do Alto-Don progrediam para o Norte. Junto da aldeia de Cháchkime, nas margens do rio Medvéditza, os regimentos desmantelados do 9.º Exército Vermelho tentaram deter os cossacos, mas foram de novo derrotados, recuando até ao caminho-de-ferro de Griázi-Tzaritssyne, quase sem oporem resistência.

Grigóri tomara parte, com a sua divisão, no combate de Cháchkine e apoiara solidamente a brigada de infantaria do general Sutúlov, atacada de flanco. O regimento de cavalaria de Ermakov, que se lançara ao ataque por ordem de Grigóri, aprisionara duzentos vermelhos, apoderara-se de quatro metralhadoras pesadas e de onze carroças de cartuchos.

À noitinha, Grigóri entrava em Cháchkine com um grupo de cossacos do Primeiro Regimento. Os prisioneiros, em mangas de camisa e ceroulas de algodão, estavam apinhados numa turba espessa e branca sob a guarda de meio esquadrão cossaco, junto de uma casa ocupada pelo Estado-Maior da divisão. Tinham sido quase todos obrigados a despirem-se e a descalçarem-se e só de longe em longe, no meio dessa multidão branca, se avistava a mancha verde de um blusão sujo.

- São tão branquinhos que lembram patos! – exclamou Prokhor Zikov, apontando para os prisioneiros.

Grigóri puxou as rédeas e fez o cavalo dar a volta; ao avistar Ermakov no meio dos cossacos, fez-lhe sinal com o dedo.

- Vem cá. Porque é que te escondes atrás dos outros?

Ermakov aproximou-se, a tossir por trás da mão. Tinha sangue coagulado nos lábios gretados, por baixo do bigode ralo; a face direita estava inchada, coberta de numerosos arranhões Durante o ataque, o cavalo dera um passo em falso em pleno galope e caíra; saltando-lhe pela cabeça Ermakov deslizara sobre a barriga no chão áspero durante uns quatro metros. Pusera-se de novo a pé ao mesmo tempo que o cavalo e, dali a um minuto, já montado, sem barrete, com a cara toda em sangue, mas de sabre desembainhado, alcançava os outros cossacos que desciam a encosta à desfilada...

- Porque me havia eu de esconder? - perguntou ele com fingida surpresa ao chegar junto de Grigóri. E revirava, arvorando uma expressão confusa, os olhos furiosos, injectados de sangue, que ainda não (haviam acalmado depois da batalha.

- O gato sabe bem a quem pertencia a carne que comeu. Porque ficaste para trás? - inquiriu Grigóri, irritado.

Sorrindo a custo com os lábios inflamados, Ermakov dirigiu os olhos para os prisioneiros:

- A que carne te referes? Não me faças perguntas a que não sei responder. Acabo de cair do cavalo abaixo...

Grigóri apontou com o bengalim para os vermelhos:

- Aquilo é obra tua?

Ermakov, fingindo vê-los pela primeira vez, simulou um grande espanto:

- Ah! Grandes filhos de uma cadela! Despiram-nos! Mas quando tiveram eles tempo de fazer uma coisa destas?... Hem? Eu afastei-me uns momentos e tinha dado ordens severas para ninguém lhes tocar, mas os malandros depenaram-nos, aos desgraçados.

- Não te faças idiota. Porque te finges mais burro do que o és na verdade? Foste tu que os mandaste despir?

- Deus me livre! Tu estarás doido, Grigóri Panteleiévitch?

- Sabes quais são as ordens?

- Sei, dizem que não devemos .

- Que não devemos, precisamente...

- Ora se sei as ordens! Sei-as de cor, como os versos que nos ensinavam na escola.

Grigóri sorriu involuntariamente. Curvou-se na sela e agarrou Ermakov pela correia do cinturão. Estimava aquele chefe audacioso, de uma bravura louca.

- A sério, Kharlampi, porque deixaste fazer isto? O novo coronel que nos mandaram para o Estado-Maior em substituição de Kopylov irá fazer queixa e temos de responder. com certeza que não gostas de ser interrogado.

- Não consegui resistir, Grigóri Panteleiévitch - respondeu Ermakov gravemente e com simplicidade. - Tudo o que eles traziam vestido era novinho em folha, acabavam de o receber em Usst-Medvéditsskaia, ao passo que os meus rapazes tinham as fardas todas às tiras. Entre eles parece que também não há fartura de vestuário. E depois, de qualquer maneira, lá na retaguarda, iriam rapinar-lhes tudo. Nós é que os fazemos prisioneiros e a malandragem da retaguarda é que se abotoa com os fatos! Na! Mais vale que sejam os nossos a aproveitar. Vou responder por isso, mas daqui não levam nada. E tu também, deixa-me em paz, por favor. Não quero ouvir nada e nada sei acerca deste assunto.

Aproximaram-se dos prisioneiros. Estes deixaram de conversar em voz baixa. Os das primeiras filas tentavam afastar-se dos cavaleiros e fitavam-nos com receio e apreensão. Um dos vermelhos, reconhecendo em Grigóri o chefe, aproximou-se dele e tocou-lhe no estribo:

- Camarada comandante, diz aos teus cossacos que nos restituam ao menos os capotes, por favor. As noites são frias e, como vês, estamos nus.

- Não te aflijas. No Verão não corres o risco de gelar, minha toupeira - respondeu severamente Ermakov. Empurrou o vermelho com o cavalo e voltou-se para Grigóri.

- Não fiques preocupado. Vou mandar que lhes dêemroupas velhas. Arredem-se, vamos, arredem-se, militares! Mais valia terem ficado a matar os percevejos das calças do que virem fazer guerra aos cossacos.

No Estado-Maior, interrogavam um prisioneiro, comandante de companhia. O novo chefe do Estado-Maior, o coronel Andreianov, um oficial de certa idade, de nariz carnudo e temporas grisalhas, que as enormes orelhas descoladas faziam parecer um garoto, estava sentado a uma mesa coberta por um oleado velho. O comandante vermelho encontrava-se de pé na frente dele, a dois passos da mesa. Um dos oficiais do Estado-Maior, o tenente Súline, que viera para a divisão ao mesmo tempo que Andreianov, tomava nota das declarações por escrito.

O prisioneiro, um homem alto, de bigodes ruivos, cabelos esbranquiçados cortados à escovinha, estava descalço, com os pés sobre o sobrado cor de ocre, e apoiava-se ora numa perna ora na outra, fitando de tempos a tempos o coronel. Os cossacos haviam-lhe deixado uma camisa de soldado em algodão amarelo, mal lavada, e tinham-lhe dado, em substituição das suas, umas calças cossacas todas rotas, de listas desbotadas e cosidas.

Ao aproximar-se da mesa, Grigóri notou que ele compunha, com um gesto rápido e confuso, as calças rotas atrás, para esconder a pele nua.

O coronel lançou ao prisioneiro um olhar breve por cima dos óculos e inquiriu:

- Pelo comissariado da guerra do Governo de Orei, diz você?

Baixou de novo os olhos, encarquilhou as pálpebras e examinou um papel que fez girar entre os dedos, sem dúvida um documento de identificação.

- Sim.

- No Outono passado?

- No fim do Outono.

- Está a mentir

- Estou a dizer a verdade.

- Afirmo que está a mentir.

O prisioneiro encolheu os ombros sem acrescentar mais nada. O coronel, olhando para Grigóri, observou, com um gesto de desprezo em direcção ao prisioneiro:

- Ora veja isto: um antigo oficial do exército imperial, hoje bolchevique, como vê. Depois de apanhado, afirma que andava com os vermelhos por acaso, que tinha sido mobilizado. Mente estupidamente, e imagina que vamos acreditá-lo, quando a verdade é que ele não tem. simplesmente a coragem cívica de confessar que traiu a pátria... Está com medo, o patife.

O prisioneiro voltou a falar, executando movimentos penosos com a maçã-de-adão:

- E eu verifico, meu coronel, que o senhor tem a coragem cívica de insultar um prisioneiro...

- Não discuto com patifes.

- Eu, neste momento, sou obrigado a isso.

- Cuidado não me irrite, porque eu posso injuriá-lo fisicamente

- Na sua situação isso não será difícil e, sobretudo, não oferece perigo.

Sem ter pronunciado uma palavra sequer, Grigóri sentou-se à mesa. Olhava com um sorriso cheio de simpatia esse prisioneiro pálido de indignação que replicava intrepidamente. “Agora é que ele amolou o coronel!” pensou com satisfação. E observou com pérfida alegria as bochechas carnudas de Andreianov, agitadas por um tique nervoso.

Grigóri tomara de ponta o seu Estado-Maior logo depois do primeiro encontro. Andreianov fazia parte daqueles oficiais que nunca tinham posto os pés na frente durante a grande guerra, mantendo-se prudentemente na retaguarda graças às suas habilidades e às relações de serviço e de parentesco. O coronel Andreianov, arranjara também maneira, durante a guerra civil, de trabalhar pela defesa, conservando-se em Novotcherkassk, e só depois do atamane Krassnov ser afastado do poder é que fora obrigado a partir para a frente.

Em duas noites que passara na mesma casa que Andreianov, Grigóri ficou sabendo por ele próprio que se tratava de um homem muito piedoso, que não conseguia falar dos ofícios solenes da igreja sem que lhe brotassem lágrimas dos olhos, que não havia no mundo mulher mais exemplar do que a sua, a qual se chamava Sofia Alekssandrovna, e que o próprio atamane designado, o barão von Grabbe, lhe fizera sem êxito a corte. Além disso, o coronel dava-lhe amavelmente a saber, com muitos pormenores, as terras que o seu pai possuíra, de que forma ele, Andreianov, alcançara a patente de coronel, e com que altas personalidades tivera a honra de caçar em 1916. Informou também Grigóri de que, em sua opinião, não havia nenhum jogo superior ao whist; que o cognac de tomilho era o melhor licor do mundo e a intendência, o mais lucrativo dos serviços.

Os tiros de canhão demasiado próximo faziam estremecer Andreianov; montava a cavalo de má vontade, pretextando uma doença de fígado; insistia constantemente no reforço da guarda do Estado-Maior; quanto aos cossacos, tratava-os com mal dissimulada hostilidade; na sua opinião, todos haviam traído em 1917, e, após esse ano, passara a odiar todos os postos subalternos, sem distinção. “Só a nobreza conseguirá salvar a Rússia!” dizia o coronel, e recordava acidentalmente que ele próprio era de origem nobre, sendo a família Andreianov uma das mais antigas e valorosas de todo o Don.

O principal defeito de Andreianov consistia sem dúvida na prolixidade, essa prolixidade senil, irresistível, assustadora de que sofrem as pessoas demasiado tagarelas e pouco inteligentes, a partir de certa idade, quando se habituaram desde novas a apreciar tudo com desenvoltura e superficialidade.

Grigóri, durante a sua vida, encontrara mais de uma vez pessoas dessa raça, sem nada dentro da cabeça, e sempre lhe tinham inspirado uma profunda repugnância. No dia seguinte ao seu primeiro encontro com Andreianov, começou a evitá-lo, mas, embora o conseguisse durante o dia, em contrapartida, mal se instalavam para passar a noite, Andreianov, vindo reunir-se-lhe, perguntava-lhe a toda a pressa: “Vamos passar o serão juntos?” Sem aguardar a resposta, principiava: “Estava então a dizer-me, meu caro, que os cossacos revelam falta de firmeza nos combates de infantaria. Ora bem, eu cá, no tempo em que servia como oficial junto de Sua Excelência... Olá! Tragam-me daí a minha mala e a cama!” Grigóri deitava-se, fechava os olhos, e ouvia-o durante algum tempo de dentes cerrados, depois, voltando grosseiramente as costas ao inesgotável narrador, tapava a cabeça com o capote e dizia consigo numa raiva muda: “Assim que seja transferido, atiro-lhe com qualquer coisa à cabeça: talvez perca assim a vontade de falar durante uma semana.” “Está a dormir, tenente?” Inquiria Andreianov. “Sim, estou”, respondia surdamente Grigóri. “Peço desculpa, mas ainda não acabei.” E a narrativa prosseguia. Através do sono, Grigóri ia pensando: “Foi de propósito que me puseram à perna este papagaio. Foi com certeza partida de Fitzkhalaurov. Como é que se pode aguentar uma cavalgadura destas?” E, enquanto mergulhava no sono, continuava a escutar a voz aguda de tenor do coronel, semelhante ao barulho da chuva num telhado de lata.

Por isso Grigóri se regozijou cruelmente ao ver o prisioneiro meter na ordem com tanto desembaraço o loquaz chefe do Estado Maior.

Andreianov manteve-se silencioso durante um minuto, de olhos semicerrados; os lóbulos pendentes das suas orelhas separadas do crânio estavam ao rubro, e a sua mãozinha branca e rechonchuda, cujo indicador ostentava um grande anel de oiro, tremia sobre a mesa.

- Escuta, mostrengo disse ele numa voz que a emoção tornava rouca , não te mandei vir aqui para nos estarmos a picar um ao outro. Já percebeste que não tens safa nenhuma?

- Compreendi muito bem.

- Melhor para ti. Ao cabo e ao resto, quero lá saber que te tenhas juntado aos vermelhos voluntariamente ou que hajas sido mobilizado. Não é isso o que interessa, mas sim que, partindo de considerações de honra mal compreendidas, te recusas a dizer...

- É evidente que nós não temos a mesma concepção de honra.

- Isso acontece porque não te restam sequer vestígios dela.

- Pelo que lhe diz respeito, coronel, a sua atitude para comigo leva-me a acreditar que o senhor nunca soube o que isso é.

- Verifico que fazes empenho em apressar o desfecho

- Acha que eu teria algum interesse em o retardar? Não tentes meter-me medo, seria em vão.

Andreianov abriu a cigarreira com as mãos a tremer, acendeu um cigarro, aspirou avidamente duas baforadas e dirigiu-se de novo ao prisioneiro:

- Por conseguinte, recusas-te a responder às minhas perguntas?

- Na minha opinião já respondi.

- Vai para o diabo. A tua opinião não me interessa para nada. Fazes favor de responder à seguinte pergunta: que unidades receberam vocês da estação de Sebriákovo?

- Já lhe disse que não sei.

- Sabes, sim senhor.

- Está bem. Dou-Lhe essa satisfação: sei mas não digo.

- Mando-te açoitar com as varetas das espingardas, isso há-de soltar-te a língua.

- Duvido - retorquiu o prisioneiro sorrindo com superioridade, levando a mão esquerda ao bigode.

- O regimento de Kamiohine participava desse combate?

- Não.

- Mas o vosso flanco esquerdo estava coberto por uma unidade de cavalaria. Qual era?

- Deixe-me em paz. Já lhe disse que não respondia a essa espécie de perguntas.

- Escolhe: ou soltas imediatamente a língua, cão, ou mando-te fuzilar dentro de dez minutos. Hem?

Então, numa voz subitamente forte e sonora como a de um jovem, o prisioneiro disse:

- Estás a chatear-me, velho idiota. Besta. Se me tivesses caído nas mãos, ter-te-ia interrogado doutra maneira.

Andreianov, empalidecendo, levou a mão ao estojo do revólver. Nessa altura, Grigóri, levantando-se sem pressa, ergueu a mão num gesto de advertência:

- Oh! Acabem lá com isso. Já trocaram as explicações suficientes. Basta. Estou a ver que são ambos muito exaltados... Uma vez que não conseguiram pôr-se de acordo, de que serve discutirem? Ele tem razão em não querer trair os seus. Em meu entender faz muito bem. Não contava com isso.

- Não, dê-me licença... - berrou Andreianov, que tentava em vão abrir o estojo.

- Não consinto! - disse Grigóri com jubilosa animação, avançando para a mesa, a fim de proteger o prisioneiro com o seu corpo. É fácil matar um prisioneiro. Como é que a sua consciência lho permite? Um homem desarmado, cativo, até a roupa lhe tiraram, e o senhor...

Andreianov, empurrando violentamente Grigóri, empunhou o revólver.

- Basta! Esse patife insultou-me.

O prisioneiro voltou-se rapidamente para a janela agitando os ombros como se tivesse frio. Grigóri observava Andreianov com um sorriso. O coronel, ao sentir o contacto rugoso do revólver na palma da mão, brandiu-o com um gesto absurdo, e em seguida, depois de baixar o cano, voltou-se.

- Não quero sujar as mãos... disse ele numa voz rouca, a arfar enquanto passava a língua pelos lábios secos.

Grigóri não conseguiu evitar um sorriso, mostrando os dentes brancos como a espuma a brilharem por baixo do bigode. Declarou:

- Também não era possível. O revólver não estava carregado.

- Repare. Ao acordar, de manhã, ao vê-lo em cima da cadeira, peguei-lhe e examinei-o: nem um cartucho tinha dentro, e há mais de dois meses que não é limpo. O senhor cuida muito mal do seu armamento particular.

Andreianov baixou os olhos, fez girar com o dedo grande o tambor do revólver, sorriu.

- Oh diabo! É verdade...

O tenente Súline, que observara toda a cena em silêncio e com um ar irónico, dobrou o auto de declarações do interrogatório e disse, carregando agradavelmente nos rr.

- Estou farto de lhe dizer, Sémione Polikárpovitch, que o senhor trata as suas armas de uma maneira monstruosa. O que acaba de se passar provou-o mais uma vez.

Andreianov, amuando, exclamou:

- Eh! Venham cá!

Dois plantões e o chefe de guarda surgiram logo.

- Levem-no - disse Andreianov, apontando o prisioneiro com a cabeça.

Este, voltando-se para Grigóri, cumprimentou-o em silêncio e dirigiu-se para a porta. Grigóri julgou divisar nos seus lábios o esboço de um sorriso de reconhecimento, por baixo do bigode arruivado.

Quando se extinguiu o ruído dos passos, Andreianov tirou os óculos num gesto cansado, limpou-os cuidadosamente com um pedaço de pele de camurça e disse num tom sarcástico:

- O senhor defendeu brilhantemente esse safado, mas isso é lá consigo. No entanto diga-me o que significa referir-se ao meu revólver diante dele e colocar-me numa situação desagradável?

- Não me parece que isso tenha grande importância - retorquiu Grigóri, conciliador.

- Ainda assim, afigura-se-me que teria sido desnecessário. Sabe que estive mesmo prestes a matá-lo? Um indivíduo repugnante.

- Discutimos durante uma boa meia hora antes da sua chegada. O sujeito fartou-se de mentir, de baralhar as coisas, de fugir à verdade, de dar falsas informações, é terrível. E quando o encostei à parede, recusou-se pura e simplesmente a responder. Parece que a sua honra de oficial lhe não permite, imagine, revelar segredos militares ao inimigo. Aquele filho de uma cabra não se lembrou da sua honra de oficial quando se pôs ao serviço dos bolcheviques... Acho que é preciso fuzilá-lo sem alarido, com os dois outros membros do comando que fizemos prisioneiros. Não podemos ter esperança de tirar deles qualquer informação importante. São tipos calejados e incorrigíveis, não vale a pena ter contemplações com eles. Que acha?

- Como soube que ele comandava uma companhia? - inquiriu Grigóri à laia de resposta.

- Foi um dos soldados dele que o revelou.

- Acho que esse é que devia ser fuzilado e os chefes deviam ser deixados em paz - respondeu Grigóri, fitando Andreianov com um olhar interrogador.

Este encolheu os ombros e sorriu, como quem sorri de uma brincadeira fora de propósito.

- Não, diga a sério, que é que pensa?

- Aquilo que disse.

- Mas porquê, não me dirá?

- Porquê? Porque é preciso salvaguardar a disciplina e a ordem no exército russo. Ontem quando nos deitámos, você próprio expôs qual o regime que se deveria introduzir no exército após a derrota dos bolcheviques, a fim de arrancar a juventude ao contágio dos vermelhos. Eu estava plenamente de acordo consigo, recorda-se?

Grigóri alisava os bigodes, atento à expressão do coronel, enquanto dizia sentenciosamente:

- Mas agora que é que você propõe? Dessa maneira iria espalhar a desordem. Então acha que os soldados devem trair os seus chefes? É isso que se lhes ensina? E se eu e o senhor nos encontrássemos na mesma situação, hem? Não, desculpe mas sou contra isso, não transijo.

- Como queira, - respondeu friamente Andreianov, olhando muito fixo para Grigóri.

Ouvira dizer que o comandante da divisão insurrecta era um indivíduo caprichoso e original, mas nunca esperara uma coisa destas. Contentou-se em acrescentar.

- É assim que costumamos proceder quando se trata de chefes vermelhos prisioneiros, sobretudo oficiais. Você traz-nos processos novos... E eu não compreendo lá muito bem a sua atitude em face desta questão que poderia parecer indiscutível.

- Cá pela nossa parte costumamos trespassá-los com uma sabrada quando os enfrentamos em combate, mas não estamos habituados a fuzilar prisioneiros - respondeu Grigóri, fazendo-se muito vermelho.

- Está bem, pronto, mandamo-los para a retaguarda - concordou Andreianov. - Outra coisa: parte dos prisioneiros (camponeses mobilizados pelo Governo de Saratov) exprimiu o desejo de combater nas nossas fileiras. O nosso Terceiro Regimento de infantaria não chega a contar trezentos homens. Acha possível que, depois de uma meticulosa selecção, se incluam nele os voluntários a que me refiro? Temos instruções exactas do Estado-Maior a esse respeito.

- Não quero um único camponês na minha divisão. Preencheremos as lacunas com cossacos - declarou categoricamente Grigóri.

Andreianov tentou convencê-lo:

- Escute, não vamos zangar-nos por causa disto. Compreendo o seu desejo de só contar na sua divisão com um efectivo cossaco homogéneo, a necessidade, porém, leva-nos a não desprezar estes prisioneiros. Mesmo no Exército Voluntário, alguns regimentos foram completados com prisioneiros.

- Que façam como quiserem, eu recuso-me a ficar com camponeses sob o meu comando. Não falemos mais nisso - cortou Grigóri.

Pouco depois dava ordem para a partida dos prisioneiros.

Durante a refeição do meio-dia Andreianov declarou-lhe com uma voz comovida:

- Está visto que não poderemos adaptar-nos um ao outro...

- Também assim penso - respondeu Grigóri com indiferença

Sem fazer caso do sorriso de Súline, pegou com dois dedos num bocado de carneiro cozido e pôs-se a cortar com os dentes, como um lobo, uma cartilagem mais dura. Mas tão violentamente que Súline fez uma careta como se sentisse uma dor e fechou os olhos por momentos.

Dali a dois dias o grupo do general Salmikov retomava a perseguição das unidades vermelhas em retirada, enquanto Grigóri era convocado com urgência para ir ao Estado-Maior do grupo. O chefe do Estado-Maior, um general idoso, de aspecto respeitável, comunicou-lhe uma ordem do comandante-chefe do Exército do Don que dissolvia o Exército insurrecto, declarando-lhe sem rodeios:

- Na luta de guerrilheiros contra os vermelhos o senhor comandou com êxito uma divisão, mas não podemos confiar-lhe agora, nem sequer um regimento. O senhor não possui instrução militar e não seria capaz de comandar uma grande unidade numa frente vasta, segundo os processos modernos de combate. Está de acordo?

- Estou - retorquiu Grigóri. - Era mesmo meu desejo renunciar ao comando.

- Acho que faz muito bem em não atribuir demasiado valor às suas possibilidades. Essa qualidade é rara nos oficiais dos nossos tempos. Portanto, de acordo com uma ordem do comandante da frente, o senhor fica encarregado do quarto esquadrão do Décimo Primeiro regimento. Este regimento encontra-se actualmente em marcha a umas vinte verstás daqui, algures nos arredores da aldeia de Viáznikov. Parta hoje mesmo, o mais tardar amanhã. Ia a dizer qualquer coisa?

- Gostaria de ser afectado ao serviço da intendência.

- Isso é impossível. Precisamos de si na frente.

- Durante as duas guerras fui catorze vezes ferido com gravidade.

- Isso não entra em linha de conta. Você é novo, tem bom aspecto, pode ainda combater. Quanto aos ferimentos, qual o oficial que os não sofreu? Pode ir-se embora. Felicidades.

Sem dúvida para evitar o descontentamento que não poderia deixar de causar a dissolução do Exército insurrecto entre os cossacos do Alto-Don, muitos cossacos, alguns simples soldados, que se haviam distinguido durante a insurreição, receberam galões logo a seguir à tomada de Usst-Medvéditsskaia; todos os ajudantes passaram a alferes e os oficiais foram promovidos e condecorados.

Grigóri não ficou esquecido: nomearam-no tenente, sendo citado na ordem do exército, a qual mencionava os seus altos méritos na luta contra os vermelhos.

A dissolução levou alguns dias a efectuar. Os comandantes de divisão e de regimento que eram iletrados foram substituídos por generais e coronéis, puseram à testa dos esquadrões oficiais experimentados, o comando das baterias e dos Estados-Maiores foi totalmente renovado, e os simples cossacos serviram para completar os regimentos do Exército do Don, dizimado pelos combates do Donetz.

À noitinha, Grigóri reuniu os seus homens, anunciou-lhes a dissolução da divisão e disse à laia de despedida:

- Não fiquem com tristes recordações de mim, cossacos! Fomos obrigados a servir juntos. A partir de hoje cada um sofrerá as suas desgraças separadamente. O mais importante é conservarmos as cabeças e evitarmos que os vermelhos façam buracos nelas. As nossas cabeças talvez não fossem lá muito boas, mesmo assim não as devemos expor inutilmente às balas. Também precisamos delas para reflectir, reflectir muito naquilo que iremos fazer depois. .

Os cossacos mantinham um silêncio depressivo, depois puseram-se a falar todos ao mesmo tempo. As suas vozes misturavam-se em surdina.

- Voltamos aos tempos antigos?

- Para onde iremos agora?

- Fazem de nós aquilo que muito bem lhes apetece, malandragem!

- A gente não quer a dissolução. Que novo sistema é esse?

- Mas a fusão já está feita, para nosso mal, rapazes.

- E Suas Nobrezas vão começar a apertar a tarraxa.

- Vais ver. O que eles querem é consertar-nos as articulações...

Grigóri, depois de se restabelecer a calma, declarou:

- Vocês estão a protestar em vão. Acabaram-se os bons tempos em que se podia discutir as ordens e fazer frente aos chefes. Dispersem-se pelos acantonamentos e bico calado; nos tempos que vão correndo quem não segurar a língua pode ir parar ao tribunal militar e aos esquadrões disciplinares.

Os cossacos vinham em pelotões, apertavam a mão a Grigóri e diziam:

- Adeus, Panteleiévitch. Não digas também mal de nós.

- Para nós também vai ser duro, muito duro, servir debaixo das ordens de outros.

- Fizeste mal em nos abandonar. Nunca devias ter concordado em entregar o comando da divisão.

- Vais fazer-nos falta, Melekhov. Talvez os outros chefes sejam mais sábios do que tu, mas contigo tudo era mais fácil. O contrário será pior.

Apenas um cossaco, natural da aldeia de Nopolóvski, e que era o animador do esquadrão, declarou:

- Não acredites neles, Grigóri Panteleiévitch. Tanto em família como na tropa, o trabalho é sempre duro quando o não fazemos de coração.

Grigóri passou a noite a beber aguardente com Ermakov e outros comandantes. Pela manhã, levando consigo Prokhor Zikov, foi reunir-se ao Décimo Segundo Regimento.

Mal lhe entregaram o comando do seu esquadrão e tomou contacto com os soldados, foi chamado ao comando do regimento.

Era muito cedo, Grigóri andava a inspeccionar os cavalos, e portanto demorou-se, apresentando-se só dali a uma meia hora. Esperava que o comandante do regimento, que era severo e exigente para os oficiais, lhe fizesse qualquer observação, porém, o outro cumprimentou-o com cordialidade e disse:

- Então que tal acha o esquadrão? Tudo homens sólidos?

E, sem esperar resposta, prosseguiu, evitando olhá-lo:

- Olhe, meu caro, tenho que lhe anunciar uma triste notícia . Aconteceu uma desgraça em sua casa. Recebemos esta noite um telegrama de Viochénsskaia. Concedo-lhe um mês de licença para organizar a sua vida. Vá

- Deixe-me ver o telegrama - pediu Grigóri empalidecendo.

Pegou no papel dobrado em quatro e desdobrou-o, leu-o e apertou-o na mão subitamente húmida de suor. Fez apenas um pequeno esforço para se dominar e gaguejou ligeiramente ao dizer:

- Sim, por isto é que eu não esperava. Sendo assim vou partir. Adeus, meu comandante.

- Não se esqueça de levar a guia de marcha.

- Não, obrigado, não me esquecerei.

Saiu para o vestíbulo, com um passo firme, a segurar no sabre, como de costume. Mas, no momento em que começava a descer os degraus da entrada, deixou de repente de ouvir os seus próprios passos e sentiu penetrar-lhe no coração uma dor aguda, como uma baioneta. No último degrau, cambaleando, segurou-se ao corrimão oscilante com a mão esquerda, enquanto com a direita desabotoava rapidamente a gola do blusão. Ficou assim uns momentos, a respirar muito depressa, profundamente. Durante esse minuto sentiu-se como que ébrio de sofrimento e, quando conseguiu largar o corrimão e se dirigia para o cavalo preso à balaustrada, caminhava num passo pesado e um pouco incerto.

 

Durante vários dias a seguir à conversa com Daria, Natalia viveu com a sensação de estar a ser esmagada por um pesadelo do qual não tinha forças para acordar. Procurava um pretexto verosímil para ir a casa da mulher de Prokhor Zikov e tentar saber o que fizera Grigóri em Viochénsskaia, durante a retirada, e se se encontrara ou não com Akcínia. Queria certificar-se da culpa do marido. Acreditava e não acreditava no que Daria lhe dissera.

Certa noite, já tarde, chegou à quinta dos Zikov, com uma vergasta na mão e um ar descontraído. A mulher de Prokhor, terminada a lida, sentara-se no rebate da porta.

- Viva, comadre, não viste por aí o nosso vitelo? - disse Natalia.

- Olá, minha querida. Não vi, não.

- É um vadio, aquele maldito, anda sempre a fugir de casa, não sei já onde o procurar.

- Espera, descansa um bocadinho, ele acaba por aparecer. Queres sementes de girassol?

Natalia senta-se. Trava-se uma conversa simples, entre vizinhas.

- Tens notícias do teu soldado? inquiriu Natalia.

- Nada, não dá sinal de vida, aquele patife. E o teu, tem escrito?

- Não. Prometeu escrever, mas nada. Ouvi dizer que se encontram algures, para as bandas de Usst-Medvéditsskaia, mas não sei mais nada.

Natalia puxou a conversa para a retirada recente na outra margem do Don e pôs-se a fazer perguntas cautelosas acerca da vida que levavam os cossacos em Viochénsskaia, procurando saber quem os fora visitar da gente da aldeia. A mulher de Prokhor era esperta. Adivinhando a causa da visita de Natalia, dava-lhe respostas secas e reservadas.

O marido contara-lhe tudo acerca de Grigóri e ela sentia comichões na língua mas teve medo de falar, pois recordava-se da advertência de Prokhor: “Toma sentido, se disseres uma palavra a este respeito seja a quem for, ponho-te a cabeça em cima de um cepo, puxo-te a língua cá para fora e corto-a. Se chegar aos ouvidos de Grigóri o menor rumor acerca disto ele mata-me. De ti estou eu farto, mas da vida ainda não. Percebeste? Então cala-te tão caladinha como se estivesses morta.”

- E a Akcínia Astakhov, o teu Prokhor nunca a viu em Viochénsskaia? - acabou por perguntar claramente Natalia, já desesperada.

- Como queres que a tenha visto? Julgas que eles tinham vagar para essas coisas? Santo Deus, não sei nada disso, Mironnovna, escusas de me perguntar. Ninguém arranca uma palavra sensata àquele estupor do meu marido. “Toma lá”, é a única coisa que ele sabe dizer.

Natalia teve de se ir embora sem apurar nada, por isso se sentia cada vez mais inquieta e despeitada. Mas, não podendo suportar mais aquela incerteza, foi procurar Akcínia.

Sendo vizinhas, encontravam-se muitas vezes nestes últimos anos.

Cumprimentavam-se em silêncio e trocavam de longe em longe algumas palavras. Já ia longe o tempo em” que não se falavam, limitando-se a dirigir uma à outra olhares ferozes; o seu ressentimento mútuo atenuara-se e, ao dirigir-se a casa de Akcínia, Natalia esperava que esta a recebesse. E nesse caso de quem lhe falaria ela senão de Grigóri?

E não se enganava.

Sem esconder o seu espanto, Akcínia mandou entrar Natália para o quarto grande, correu as cortinas das janelas, acendeu a luz e inquiriu:

- Que boas notícias me trazes?

- Não tenho boas notícias para te dar.

- Então, se são más, diz depressa. Aconteceu alguma coisa a Grigóri Panteleiévitch?

Na pergunta de Akcínia transparecia uma inquietação tão profunda e reveladora que Natalia compreendeu tudo. Akcínia traíra-se, confessando assim a natureza das suas preocupações e receios. De facto, depois disto, inútil se tornava interrogá-la acerca das relações dela com Grigóri. Mas Natalia não se retirou logo. Demorando a resposta, disse por fim:

- Não, o meu marido está vivo e de saúde, não te aflijas.

- Eu não me aflijo, que queres tu dizer com isso? Quem se deve afligir com a saúde dele és tu. Eu cá por mim já tenho preocupações que bastam.

Akcínia falava sem esforço, mas, ao sentir o rosto em fogo, aproximou-se da mesa e, de costas para Natalia, pôs-se a espevitar o candeeiro, que de resto ardia perfeitamente.

- E tu, tens notícias do teu Stepane?

- Mandou-me recados há pouco.

- E está de saúde?

- Acho que sim.

Akcínia encolheu os ombros.

Também desta vez Akcínia não conseguiu mentir, dissimular os seus sentimentos: a indiferença que sentia pelo destino do marido transparecia tão claramente na sua resposta que Natalia sorriu involuntariamente.

- Vejo que não te preocupas muito com ele... Bem, isso é lá contigo. O que vim cá saber foi isto: correm por aí boatos de que o Grigóri anda outra vez metido contigo e que vocês se encontram quando ele vem à aldeia. Isso é verdade?

- Estás bem informada, - retorquiu Akcínia, trocista. - Também eu te podia perguntar a mesma coisa.

- Tens medo de dizer a verdade?

- Não, não tenho medo.

- Então di-la para eu ficar sabendo e não me atormentar mais. Porque me torturas inutilmente?

Akcínia encarquilhou muito os olhos e cerrou as sobrancelhas negras.

- Seja como for, não vou ter contemplações contigo declarou ela duramente. As coisas são assim: quando tu estás contente, estou eu triste; quando tu sofres, estou eu feliz. Disputamos o mesmo homem, não é verdade? Pois então vou dizer-te tudo para ficares sabendo de uma vez para sempre; é certo, não são boatos. Ando outra vez com o Grigóri e desta feita não conto deixá-lo fugir. Pronto, e agora que pretendes fazer? Partir os vidros da minha casa, dar-me uma facada?

Natalia ergueu-se, deu um nó na varinha que trazia na mão e atirou-a para o lume. Depois falou com uma severidade que lhe não era habitual:

- Hoje não tenciono fazer-te mal nenhum. Espero pelo regresso de Grigóri e conversarei com ele. Depois veremos o que devo fazer pelo que respeita a vocês dois. Tenho filhos e hei-de lutar por eles e por mim também.

Akcínia sorriu:

- Então, de momento nada tenho a recear?

Sem ligar importância à ironia de Akcínia, Natalia tocou-lhe no braço:

- Akcínia, andaste toda a vida a atravessar-te no meu caminho, mas hoje não vou suplicar-te como fiz das outras vezes, recordas-te? Eu então era mais nova e dizia comigo: tanto lhe hei-de pedir que ela terá pena de mim e deixar-me-á em paz, renunciará ao Gricha. Mas não torno a fazer isso. Agora sei uma coisa; tu não o amas, agarras-te a ele por hábito. Alguma vez o amaste como eu o amo? Creio bem que não. Andaste metida com o Lisstnítzki. Tens andado metida com todos, minha desavergonhada. Quando se ama alguém não se faz isso.

Akcínia empalideceu e, empurrando Natalia com a mão, levantou-se da arca:

- Ele nunca me censurou e tu agora é que vens pedir-me contas? Tens alguma coisa com isso? Está bem, eu sou má e tu és boa. E daí?

- Pronto. Não te irrites. Vou-me embora. Obrigada por me teres dito a verdade.

- Não tens de quê. Não me agradeças, de qualquer modo vinhas a sabê-lo. Espera aí, eu acompanho-te para fechar as portadas.

No alpendre, Akcínia parou um instante e disse:

- Estou contente por nos termos separado sem discutir. Mas para terminar quero dizer-te uma coisa, cara vizinha; se tiveres genica, podes reconquistá-lo. Se o não conseguires, não me queiras mal. Também eu não renunciarei a ele de boa mente. Já não sou nova. Chamaste-me desavergonhada, mas eu não sou como a vossa Daria, nunca brinquei com estas coisas...

- Ao menos tu tens os teus filhos, mas eu - a voz de Akcínia, começando a tremer, tornou-se mais surda e abafada - só o tenho a ele no mundo. Mais nada. Escuta, não falemos de Grigóri.

- Se ele não morrer, se a rainha dos Céus o proteger, há-de voltar e então escolherá uma de nós...

Natalia não dormiu nessa noite. Pela manhã foi sachar o meloal com Ilínitchna. A trabalhar sentia-se menos oprimida.

Enquanto baixava com regularidade o sacho por cima dos montículos de terra arenosa, secos pelo sol e que se desfaziam em pó, não pensava tanto; de tempos a tempos, erguia-se para respirar fundo, limpar o suor com a manga ou beber um gole de água.

Nuvens brancas esfarrapadas pelo vento flutuavam e desfaziam-se no céu azul. Os raios do sol queimavam a terra escaldante. Para leste havia sinais de chuva. Sem erguer a cabeça, Natalia sentia sobre as costas cada uma das nuvenzinhas que obscureciam o sol na passagem: o ar refrescara havia momentos: uma nuvem cinzenta estendera-se bruscamente sobre a terra negra que exalava calor, sobre os braços ramificados das melancias, sobre os pés altos dos girassóis; cobria os meloais dispersos pela encosta, as ervas murchas, tombadas pelo calor, as moitas de espinheiro e de silvas com as folhas pendentes, sujas de caca de pássaro; o grito estridente das codornizes tornara-se mais sonoro, o canto suave das cotovias mais distinto e o próprio vento, agitando as ervas quentes, parecia menos escaldante. Porém o sol furava de novo a orla branca e deslumbrante da nuvem que vogava para oeste; liberto, precipitava sobre a terra as torrentes doiradas e cintilantes da sua luz.

Longe, muito ao longe, nos contrafortes azulados das colinas do Don, a sombra que acompanhava a nuvem devassava e manchava a terra, ao passo que sobre os meloais reinava uma luminosidade cor de âmbar que cintilava, tremeluzia, enquanto no horizonte se formava uma neblina vaga e da terra, das ervas subia um perfume cada vez mais sufocante.

Ao meio-dia Natalia foi ao poço cavado na ravina buscar uma bilha de água gelada. Bebeu dela com Ilínitchna, lavaram ambas as mãos e sentaram-se ao sol a comer. Ilínitchna cortou cuidadosamente o pão sobre o avental estendido, tirou do saco as colheres e uma taça, retirou debaixo da blusa uma caneca de leite coalhado que guardara ao abrigo do sol.

Natalia comia sem apetite e a sogra perguntou-lhe:

- Há muito tempo que não pareces a mesma... Houve alguma coisa entre ti e o Grichka?

Os lábios de Natalia, gretados pelo vento, começaram a tremer:

- Anda outra vez metido com a Akcínia.

- Mas... como soubeste?

- Fui ontem a casa dela.

- E a descarada confessou-te?

- Confessou.

Ilínitchna não disse nada, ficou-se a reflectir. No seu rosto engelhado cavaram-se rugas severas aos cantos dos lábios.

- Talvez dissesse isso para se gabar, a maldita...

- Não, mãe. É verdade. Não há nada a fazer...

- Tu não o guardaste bem... - disse prudentemente a velha. Um homem daqueles não se pode deixar à solta.

- Mas uma pessoa não consegue ver tudo! Eu confiei nele... Não podia trazê-lo debaixo da saia.

Natalia teve um sorriso amargo e acrescentou, numa voz quase imperceptível:

- Não tem a idade do Michatka para eu o prender. Está com os cabelos quase brancos, mas não esqueceu o passado...

Ilínitchna lavou e enxugou as colheres, passou a taça por água, meteu tudo dentro do saco e disse por fim:

- E é isso que te desgosta?

- Acha pouco, mãe? Basta para estragar a vida a uma pessoa.

- E que tencionas fazer?

- Só há uma coisa a fazer: pego nos filhos e vou para a minha gente. Não volto a viver com ele. Que a traga para casa se quiser. Cá por mim já sofri bastante.

- Quando eu era nova também tive ideias dessas - observou Ilínitchna suspirando. - O meu não era dos melhores nesse capítulo. Nunca poderei contar-te os desgostos que passei. Mas não é assim tão fácil deixar um marido. E depois, de que serve?

- Reflecte e verás. E como é que se hão-de tirar os filhos ao pai?

- Não, não digas tolices. Não penses mais nisso, sou eu que to proíbo.

- Não, mãe, não viverei mais com ele. Não perca o seu tempo.

- Como, “não perca o seu tempo”? - indignou-se Ilínitchna.

- Tu pertences ou não à família? É verdade ou não que eu tenho pena de vocês, seus malvados! É a mim, que sou mãe, que sou uma mulher velha, que tu vens com essas coisas?

- Já te disse, tira essa ideia da cabeça. Tu pensaste: “Vou-me embora”.

- Mas para onde irás tu? Quem é que precisa de ti na tua família? O teu pai morreu. Queimaram-vos a casa e a tua mãe vai ser obrigada a pedir asilo a estranhos. É para isso que queres arrastar os meus netos juntamente contigo? Não, minha querida, não pode ser. Quando o Grichka voltar veremos o que se há-de fazer. Mas de momento não me fales mais do assunto porque não te darei ouvidos.

Tudo aquilo que há muito tempo se vinha acumulando no coração de Natalia explodiu de súbito num acesso de soluços convulsivos. Arrancou o lenço da cabeça, a gemer, bateu com o rosto na terra dura e impiedosa, esmagou contra ela o peito e soluçou sem verter lágrimas.

Ilínitchna, que era uma mulher de idade, prudente e corajosa, não fez um gesto. Envolveu cuidadosamente na blusa a caneca com o resto de leite coalhado, colocou-a à sombra, depois despejou água na taça e veio sentar-se ao lado de Natalia Sabia que as palavras de nada servem em face de uma dor semelhante, sabia também que as lágrimas são preferíveis aos olhos secos, aos lábios cerrados. Depois de haver deixado chorar Natalia, Ilínitchna poisou-lhe a mão sobre a cabeça, aquela mão que o trabalho endurecera, e disse severamente, enquanto acariciava os cabelos negros e brilhantes da nora:

- Pronto! Nunca chegarás a esgotar as lágrimas, guarda algumas para a outra vez. Olha, bebe um gole de água.

Natalia acalmou-se. De tempos a tempos os seus ombros erguiam-se e uma leve tremura percorria-lhe o corpo. De súbito, pôs-se em pé de um salto, empurrou Ilínitchna que lhe oferecia a taça cheia de água e, voltada para o oriente, unindo as palmas húmidas de lágrimas como se estivesse a orar, exclamou muito depressa, numa voz entrecortada:

- Meu Deus! Ele despedaçou-me a alma. Já não tenho mais forças para viver assim. Meu Deus, castigai esse maldito! Dai-lhe a morte! Que ele não viva muito tempo! Que não me torture mais!

Uma nuvem negra e esfarrapada aproximava-se vinda de leste. A trovoada rugia surdamente. Um relâmpago branco, incandescente, ziguezagueou no céu, furando o cimo das nuvens.

O vento inclinava para oeste as ervas murmurantes, trazia da estrada uma poeira amarga, dobrava quase até ao chão as cabeças dos girassóis, pejadas de sementes.

O vendaval despenteava os cabelos de Natalia, secava-lhe o rosto molhado, enrolava-lhe em volta das pernas a saia de trabalho, cinzenta e rodada.

Durante uns segundos Ilínitchna observou a nora com um terror supersticioso. Sobre o fundo escuro da nuvem de tempestade que cobria metade do céu, ela afigurava-se-lhe estranha e assustadora.

A chuva aproximava-se com rapidez. O silêncio precursor da borrasca durou pouco. Um falcão que descia obliquamente soltou um grasnido angustiado; um rato do trigo soprou pela última vez diante da toca; uma rajada de vento atirou à cara de Ilínitchna uma lufada de areia fina e seguiu estepe fora, a uivar. A velha ergueu-se a custo. Tinha o rosto de uma palidez mortal. E gritou numa voz rouca, através do rugido da tempestade em fúria:

- Acalma-te! Deus seja contigo! Para quem estás tu a pedir a morte?

- Meu Deus, castigai-o! Meu Deus, castigai-o! - gritava Natalia revirando os olhos dementes, voltados para o sítio onde se amontoavam majestosa e ferozmente as nuvens revoltas da tempestade, iluminadas pelas cintilações deslumbrantes dos relâmpagos.

Um trovão reboou de súbito por cima da estepe com um estalido seco. Tomada de pânico, Ilínitchna persignou-se. Aproximando-se de Natalia num passo vacilante, segurou-a pelos ombros:

- Ajoelha-te, ouves, Natachka?

A rapariga, a fitar a sogra com um olhar desvairado, deixou-se cair de joelhos contra vontade.

- Pede perdão a Deus! ordenou-lhe imperiosamente Ilínitchna. Pede-lhe que não oiça o teu pedido. A quem desejaste tu a morte? Ao pai dos teus filhos. Oh! Isso é um grande pecado! Benze-te, curva-te até ao chão: Diz: “Meu Deus, perdoai o meu pecado, que sou maldita.”

Natalia benzeu-se, murmurou qualquer coisa com os lábios descorados e, cerrando os dentes, caiu desajeitadamente para o lado.

A estepe, lavada pelo aguaceiro, verdejava, magnífica. Um arco-íris alto e cintilante brotava de um charco longínquo, encurvando-se até ao Don. A trovoada rugia em surdina para oeste. Soltando gritos de águia a água barrenta das montanhas precipitava-se na ravina. Regos escumantes atravessavam o meloal, vindos da encosta, a caminho do rio. Arrastavam consigo folhas arrancadas pela chuva, raízes de ervas desenterradas, espigas de centeio partidas. Iam-se acumulando enormes montes de areia que soterravam os braços das melancias e dos melões; a água circulava em redemoinhos ao longo dos carreiros, cavando sulcos. Uma meda de feno incendiada por um raio acabava de se consumir no sopé de uma colina, lá ao longe. A coluna de fumo lilás subia muito alto, quase até tocar no arco-íris.

Ilínitchna e Natalia desciam para a aldeia, poisando com cuidado os pés nus no chão escorregadio e lamacento, com as saias muito arregaçadas. Ilínitchna ia dizendo:

- Vocês, os novos, têm uma grande força de génio. A menor coisa perdem a cabeça! Se tivesses vivido a minha vida, que terias tu feito? Grichka nunca te tocou nem com um dedo e tu não estás satisfeita. Só pensas em o deixar, e desmaias, e pintas o caneco!... Até vens meter Deus no meio dessa trapalhada toda... Dize-me lá, minha pobre pequena, achas que isso está certo? Cá por mim, o meu coxo bateu-me sempre por dá cá aquela palha. Ele é que fazia as porcarias e quem as pagava era eu. Quando entrava de madrugada e eu, a chorar lágrimas amargas, lhe dirigia censuras, respondia-me com murros... Por vezes cheguei a andar um mês toda pisada, da cor da tinta de escrever, mas nem por isso morri. Criei os meus filhos e nunca me passou pela cabeça ir-me embora de casa. Não estou a defender o Grichka, mas, ainda assim, ele não é um homem com quem seja impossível viver-se. Se não fosse aquela víbora, podia considerar-se o melhor homem da aldeia. Foi ela quem o embruxou, não há dúvida...

Natalia caminhou durante muito tempo sem responder, perdida nos seus pensamentos, e depois disse:

- Mãe, não falemos mais misto. Quando o Grigóri vier então se verá Talvez seja eu a ir-me embora, talvez ele me ponha na rua; mas de momento não sairei da sua casa.

- Já devias ter resolvido isso há mais tempo! – respondeu Ilínitchna com alegria. - Se Deus o permitir tudo se há-de arranjar. Por nada no mundo ele seria capaz de te pôr fora, não penses uma coisa dessas! Ele que é tão teu amigo e dos filhos! Nem pensar nisso é bom! Não, não, nunca ele te trocaria pela Akcínia. Não podia fazer tal! Ora, são coisas que acontecem em todas as famílias Desde que ele volte são e salvo

- Não lhe desejo a morte. Disse aquilo num momento de desespero Não me queira mal por isso Não pretendo expulsá-lo do meu coração, mas é bastante duro viver assim

- Minha querida filha! Julgas que não avalio? Mas não devemos fazer nada impensadamente. Se queres que te diga, não se fala mais no assunto. E, pelo amor de Deus, não contes ao velho. Ele não tem nada a ver com isto.

- Queria falar-lhe ainda doutra coisa Não sei se fico ou não a viver com o Grigóri, mas não desejo mais ter filhos dele. Nem sei mesmo o que hei-de fazer a estes . Além disso estou grávida

- Há quanto tempo?

- Vou no terceiro mês.

- Que é que hás-de fazer? Quer queiras quer não, tens de o parir.

- Não! - retorquiu resolutamente Natalia. - Vou hoje mesmo procurar a tia Kapitonovna. Ela há-de livrar-me dele.. Já o tem feito a outras.

- Será que pretendes matar o teu filho? E atreves-te a Falar-me nisso, miserável?

Ilínitchna parou no meio da estrada, de mãos postas. Queria dizer mais qualquer coisa, mas ouviu atrás de si um chiar de rodas, as patas de um cavalo a chuparem ruidosamente a lama e uma voz a incitar o animal.

Ilínitchna e Natalia afastaram-se do caminho, deitando abaixo as saias arregaçadas. Era o velho Filipe Aguêieviteh Beskhlebnov, que regressava do campo. Ao chegar junto delas parou a égua fogosa.

- Subam, tiazinhas, que eu levo-as a casa. Para que hão-de ir a patinhar na lama?

- Obrigada, Aguêievitch. Na verdade já estávamos fartas de escorregar na estrada - respondeu Ilínitchna, toda contente, subindo em primeiro lugar para a carroça.

Depois do jantar, Ilínitchna quis conversar com Natalia, provar-lhe que não era necessário fazer um aborto; enquanto lavava a loiça, ia tentando encontrar os argumentos mais convincentes a seus olhos, pensava mesmo em informar o velho a fim de que ele a ajudasse a persuadir aquela mulher enlouquecida pela dor. Neste meio tempo, Natalia, após ter feito em silêncio alguns preparativos, saíra.

- Onde está a Natalia? - perguntou Ilínitchna a Duniachka.

- Fez uma trouxa e saiu.

- Para onde foi? Que te disse ela? Uma trouxa de quê?

- Sei lá, mãe! Embrulhou uma saia limpa num lenço com mais outras peças e saiu sem dizer palavra.

Com grande espanto de Duniachka, Ilínitchna, começando a chorar com grandes soluços desesperados, deixara-se cair sobre o banco.

- Que aconteceu, minha mãe? Deus lhe acuda, porque chora assim?

- Deixa-me em paz, descarada. Não é da tua conta. Que te disse ela? Porque não me avisaste quando a viste fazer a trouxa?

Duniachka respondeu irritada:

- É um verdadeiro inferno falar consigo! Como podia eu adivinhar que era preciso avisá-la? Não se foi embora para sempre! Deve ter ido visitar a mãe. Mas porque está a chorar? Não percebo nada disto!

Ilínitchna esperou, com grande inquietação, o regresso de Natália. Resolveu não dizer nada ao velho, receando as queixais e as censuras dele.

Ao pôr do sol, a manada dos cavalos voltou da estepe.Caíra o crepúsculo breve. Na aldeia acenderam-se algumasluzes e Natalia sem aparecer. Sentaram-se à mesa para a refeição da noite. Ilínitchna, pálida de emoção, serviu massa com cebola frita em azeite. O velho pegou na colher, tirou as migalhas de pão duro que lá estavam dentro, meteu-as na boca enquadrada pela barba, e inquiriu, depois de lançar um olhar distraído em volta da mesa:

- Onde está a Natalia? Porque não a chamaram para a mesa?

- Não está cá respondeu Ilínitchna a meia voz.

- Aonde foi ela?

- Deve ter ido a casa da mãe.

- Está-se a demorar. No entanto já tem idade para saber aquilo que faz - resmungou Pantelei Prokófievitch, descontente.

Comia com método, recolhido, como sempre; de quando em quando poisava a colher sobre a mesa. Lançou a certa altura um olhar oblíquo, cheio de admiração, para Michatka, que estava sentado ao seu lado, e disse com uma voz rude:

- Volta-te para cá, pequeno, para eu te limpar a boca. A tua mãe anda para aí na passeata e ninguém olha por vocês...

E, com a palma da mão negra, calejada, limpou os lábios tenros e rosados do neto.

A ceia terminou em silêncio. Levantaram-se da mesa e Pantelei Prokófievitch ordenou:

- Apaguem a luz. Há falta de petróleo, não devemos desperdiçá-lo.

- Fecha-se a porta? perguntou Ilínitchna.

- Fecha.

- E a Natalia?

- Ela que bata. Talvez se demore até pela manhã. Isto agora é moda nova... E tu não lhe dizes nada, minha velha bruxa! Esta agora, ir fazer uma visita e ficar até de noite... Amanhã hei-de dizer-lhe duas coisas. Se segue o exemplo da Daria...

Ilínitchna deitou-se vestida. Ficou assim meia hora, a dar voltas em silêncio, e estava já resolvida a levantar-se para ir a casa da Kapitonovna, quando ouviu por baixo da janela uns passos arrastados e incertos. Saltando da cama com uma ligeireza que não era para a sua idade, correu para o vestíbulo, a abrir a porta.

Pálida como a morte, a segurar-se ao corrimão, Natália vinha a subir os degraus. A lua cheia iluminava-lhe o rosto emagrecido, os olhos cavados, as sobrancelhas dolorosamente arqueadas. Cambaleava como um animal gravemente ferido e no lugar onde punha os pés ficava uma poça de sangue negro.

Ilínitchna abraçou-a sem dizer nada e fê-la entrar no vestíbulo. Encostando-se à porta, Natalia murmurou numa voz rouca:

- Estão todos a dormir? Mãe, limpe o sangue por onde eu passo... Está a ver que deixo rasto...

- Mas que foste tu fazer? - inquiriu Ilínitchna a meia voz, estrangulada pelos soluços.

Natalia tentou sorrir mas, em vez disso, o que lhe deformou o rosto foi uma careta lastimosa.

- Não faça barulho, mãe, vai acordar toda a gente... Agora pronto, fiquei livre desta... tenho a alma tranquila... Mas estou a perder muito sangue. . Corre como se me tivessem degolado... Dê cá a mão . anda-me a cabeça à roda.

Ilínitchna fechou a porta com o trinco e esteve muito tempo a tactear à procura da tranca, como se se tratasse de uma casa estranha. Nos bicos dos pés, conduziu Natalia para o quarto grande, acordou Duniachka e mandou-a sair dali. Depois chamou Daria e acendeu um candeeiro.

A porta da cozinha estava aberta e ouvia-se o ressonar forte e cadenciado de Pantelei Prokófievitch; a pequena Poliúchka dava estalidos com os lábios e resmungava a dormir.

- O sono das crianças é pesado, nada o perturba.

Enquanto Ilínitchna ajeitava as travesseiras e preparava a cama, Natalia, sentando-se no banco, poisou a cabeça, sem forças, sobre a mesa. Duniachka queria entrar, mas Ilínitchna disse-lhe severamente:

- Vai-te embora, atrevida, e não me apareças cá. Não tens nada a fazer aqui.

Daria, de rosto carregado, pegou num rodilho húmido e foi para o vestíbulo Natalia ergueu a cabeça com esforço e disse:

- Tirem os lençóis lavados e ponham uma cobertura grossa De qualquer modo vou sujá-la.

- Cala-te! - ordenou Ilínitchna. Despe-te e deita-te. Sentes-te mal? Queres água?

- Estou fraca. Dêem-me uma camisa lavada e quero água.

Natalia, erguendo-se com dificuldade, dirigiu-se para a cama num passo vacilante. Só então Ilínitchna notou que a saia dela, empapada em sangue, se lhe colava às pernas. Viu com terror a nora agarrar-se à cama para se despir. Curvando-se, torceu a barra da saia que estava encharcada como se viesse da chuva.

- Mas tu estás a esvair-te em sangue! - exclamou Ilínitchna num soluço.

Natalia despiu-se com os olhos fechados, a respiração rápida e entrecortada. Ilínitchna Observou-a e depois dirigiu-se à cozinha num passo resoluto. Acordou com grande dificuldade Pantelei Prokófievitch. Disse-lhe:

- A Natalia está doente Está muito mal, receio que venha a morrer Atrela os cavalos depressa e vai procurar um médico à stanitsa

- Sempre inventas cada uma! O que tem ela? Está doente? Faria bem melhor se não andasse de noite por fora de casa...

A velha explicou-lhe em poucas palavras do que se tratava. Furioso, Pantelei Prokófievitch, dando um salto, dirigiu-se ao quarto, a abotoar as calças.

- Ah! Desavergonhada! Ah! Filha de uma cadela! De que raio ela se havia de lembrar! Hem! Foi obrigada a isso? Deixa que eu já lhas canto

- Estás doido, desgraçado! Não vás meter-te onde não és chamado Não és lá preciso para nada Vais acordar as crianças. Põe-te a mexer e atrela depressa os cavalos - Ilínitchna tentava segurar o velho, mas este, sem lhe dar ouvidos, dirigindo-se para a porta do quarto, abriu-a com um pontapé:

- Arranjaste um lindo sarilho, hem, filha do diabo! - berrou ele da entrada da porta.

- Não entre, pai! Não entre! Em nome de Cristo, nãoentre! exclamou Natalia com uma voz aguda, apertando contra o peito a camisa que acabava de despir.

Sempre a praguejar, Pantelei Prokófievitch pôs-se à procura do capote, do boné e dos arreios do cavalo. Demorava-se tanto que Duniachka, não conseguindo dominar-se mais, correu para o quarto, e disse ao pai a chorar:

- Despacha-te! Andas para aí a esgaravatar como um escaravelho no esterco. A Natachka está a morrer e ele leva, uma hora a preparar-se. Isto é que é um pai! Se não queres ir sê franco Eu própria atrelo os cavalos e vou.

- Estás doida! Não sabes o que dizes! Só me faltavas tu! Meu estupor! Voltas-te contra o teu pai, monte de esterco!

Pantelei Prokófievitch amaldiçoou-a de capote em punho, saindo depois para o pátio a praguejar.

Após a sua partida, toda a gente se sentiu mais aliviada.

Daria lavava o soalho mudando furiosamente de lugar as cadeiras e os bancos; Duniachka, a quem Ilínitchna permitira entrar no quarto após a saída do velho, compunha a travesseira, trazia água; de quando em quando, Ilínitchna ia dar uma olhadela às crianças que dormiam no quarto ao lado, e, no regresso, fitava demoradamente Natália a abanar dolorosamente a cabeça, de face apoiada na mão.

Natalia estava silenciosa, a rebolar na travesseira a cabeça de madeixas despenteadas, húmidas de transpiração. Perdia sangue. De meia em meia hora, Ilínitchna erguia-a com cuidado, e substituía o lençol encharcado.

Natalia ia enfraquecendo de hora a hora. Pouco antes da meia-noite, abrindo os olhos, inquiriu:

- Falta muito para amanhecer?

- Não - murmurou a velha para a tranquilizar. E disse com os seus botões: “Deve estar por pouco. Tem medo de perder os sentidos e de não voltar a ver os filhos...”

Como que para confirmar esta suposição. Natalia pediu suavemente:

- Mãe, acorde o Michatka e a Poliúchka...

- Nem pensar nisso, minha querida! Acordámos, porquê, assim a meio da noite? Até ficavam com medo se te vissem e punham-se para aí aos gritos Acordá-los para quê?

- Quero vê-los... Sinto-me mal.

- Meu Deus! Que estás tu a dizer? O pai não tarda aí com o médico e ele vai curar-te. Era bom que dormisses, minha querida.

- Como se eu pudesse dormir! - respondeu Natalia com uma voz um pouco irritada.

Após isto, conservou-se um longo instante silenciosa, tornando-se-lhe mais regular a respiração.

Ilínitchna saiu devagarinho para o alpendre, deixando correr livremente as lágrimas. Regressou ao quarto, de rosto vermelho e inchado, na altura em que a aurora começava a nascer. Ao sentir ranger a porta, Natália abriu os olhos, inquirindo de novo:

- Falta muito para amanhecer?

- Está a clarear.

- Cubram-me as pernas com uma peliça...

Duniachka lançou-lhe por cima das pernas uma peliça de pele de carneiro e aconchegou-lhe o cobertor. Natália, depois de lhe agradecer com o olhar, chamou Ilínitchna e disse-lhe:

- Sente-se ao meu lado, mãe, e vocês, Duniachka e Daria, saiam durante um momento. Quero falar a sós com a mãe... Elas já saíram? - perguntou sem abrir os olhos.

- Já.

- O pai ainda não voltou?

- Não tarda aí. Estás a sentir-te pior?

- Não, é sempre a mesma coisa... Queria dizer-lhe... Queria dizer-lhe, mãe, que vou morrer... É o coração que mo adivinha. Fartei-me de perder sangue. Diga a Daria quando ela acender o lume, que ponha muita água a aquecer... A mãe é que me prepara, não quero que as outras...

- Natalia! Minha querida! Porque falas tu em morrer? Deus é misericordioso. Hás-de pôr-te boa.

Com um débil gesto da mão, Natalia fez calar a sogra, dizendo:

- Não me interrompa... Já me custa falar, e queria dizer-lhe... Sinto outra vez a cabeça à roda... Já lhe recomendei por causa da água? Eu era sem dúvida muito forte... A Kapitonovna fez-me isto há muito tempo, ao princípio da tarde, logo que eu cheguei... Ela também se assustou... O sangue que eu perdi . Deus queira que consiga resistir até de manhã... Mande aquecer muita água... Quero morrer bem lavada... Mãe... vista-me a saia verde... aquela que tem a barra bordada... O Grichka gostava de me ver essa saia... E a blusa de popelina... Está na arca, ao cimo, no canto à direita, debaixo do xale... Quando eu morrer, quero que levem os meus filhos para casa da minha mãe Era melhor mandá-la chamar que venha depressa... quero despedir-me... Tire o lençol debaixo de mim. Está todo encharcado...

Ilínitchna, erguendo Natalia por baixo dos rins, tirou o lençol e, o melhor que pôde, colocou-lhe outro enxuto. Natalia ainda teve tempo de dizer:

- De lado... Volte-me de lado.

E perdeu os sentidos.

A luz azul da madrugada começava a clarear as janelas.

Duniachka lavou o balde e foi tirar o leite às vacas. Ilínitchna abriu as portadas de par em par e a frescura áspera e reconfortante da manhã penetrou no quarto impregnado do cheiro pesado a sangue fresco e a petróleo queimado. O vento fez cair no parapeito da janela algumas lágrimas de orvalho arrancadas às folhas de uma cerejeira; ouviam-se as vozes matinais dos pássaros, os mugidos das vacas, os estalos sonoros e sincopados de um chicote de pastor.

Natalia voltou a si, abriu os olhos, passou a ponta da língua sobre os lábios amarelos, secos e exangues, e pediu de beber. Não voltou a falar dos filhos nem da mãe. Deixava tudo, para sempre, sem dúvida.

Ilínitchna fechou a janela e aproximou-se da cama. Que mudança terrível no espaço de uma noite! Na véspera, parecia uma macieira em flor, bela, sã, forte; agora, tinha as faces mais brancas do que a greda das falésias do Don, o nariz tornara-se-lhe aguçado, os lábios haviam perdido a frescura de outrora; estavam finos e pareciam ter dificuldade em cobrir as duas filas afastadas dos dentes. Só os olhos mantinham o brilho, mas já com uma expressão diferente. Algo de novo, de desconhecido, de terrível, transparecia no olhar de Natalia todas as vezes que, cedendo a uma necessidade inexplicável, erguia as pálpebras azuladas, percorria o quarto com os olhos e detinha-os um instante sobre Ilínitchna.

Pantelei Prokófievitch chegou quando o sol nascia. O oficial de saúde, todo ensonado, morto de fadiga pelos cuidados que era obrigado a prestar constantemente aos tifosos e aos feridos, desceu da tarantass (Carroça rústica de quatro rodas usada na Rússia. (N. do T) a espreguiçar-se, tirou um embrulho de baixo do assento e entrou. No patamar despiu o impermeável de oleado grosseiro e, curvado sobre a balaustrada, lavou durante muito tempo as mãos cabeludas, enquanto lançava olhares de soslaio a Duniachka, chegando até a piscar-lhe o olho uma vez ou duas. Depois penetrou no quarto e demorou-se uns dez minutos junto de Natalia, após ter mandado sair toda a gente.

Pantelei Prokófievitch e Ilínitchna aguardavam, sentados na cozinha.

- Então - perguntou o velho em voz baixa, logo que saíram do quarto.

- Está muito mal

- Foi ela que fez aquilo a si própria?

- Foi ela que teve a ideia - respondeu Ilínitchna, iludindo a resposta.

- Água quente, depressa! ordenou o delegado de saúde, metendo a cabeça hirsuta pela porta entreaberta.

Enquanto esperava pela água fervida, veio até à cozinha. À pergunta muda do velho respondeu com um gesto que não dava lugar a qualquer esperança.

- Vai morrer antes do meio-dia. Foi uma perda de sangue terrível. Não há nada a fazer. Já preveniram Grigóri Panteleiévitch?

Pantelei Prokófievitch, sem responder, saiu para o vestíbulo. Daria viu-o passar por detrás da ceifadora, que estava debaixo do telheiro, poisar a cabeça sobre um monte de estrume seco do ano anterior e pôr-se a soluçar...

O delegado de saúde demorou-se ainda uma meia hora, sentado no alpendre, a dormitar sob os raios do sol nascente. Depois de a água ter fervido no samovar, entrou no quarto, deu uma injecção de cânfora a Natalia, saiu e pediu leite. Depois bebeu dois copos de chá, reprimindo dificilmente um bocejo, e disse:

- Preciso que me levem embora imediatamente. Tenho doentes e feridos à minha espera na stanitsa e aqui não estou a fazer nada. É tudo inútil. Gostaria muito de ter sido prestável a Grigóri Panteleiévitch, mas nada posso fazer, digo-o francamente. A nossa ciência é limitada: só sabemos curar os doentes, ainda não conseguimos ressuscitar os mortos. E esta dama arranjou as coisas de maneira que já não tem o que lhe é preciso para viver... A matriz ficou completamente rasgada, não tem um único ponto vivo. Dá a impressão de que a velha utilizou um gancho de ferro. A nossa ignorância é essa não podemos fazer nada.

Pantelei Prokófievitch atirou com um braçado de feno para dentro da tarantass e disse a Daria:

- És tu que o vais levar. Não te esqueças de dar de beber à égua quando chegares ao Don.

Quis pagar ao delegado de saúde, mas este recusou categoricamente e ainda se mostrou ofendido:

- Não tens vergonha de fazer uma coisa dessas, Pantelei Prokófievitch? Somos amigos e tu vens falar em dinheiro? Não, não, guarda lá isso. Como é que me hás-de agradecer? Nem fales numa coisa dessas. Se eu tivesse conseguido salvar a tua nora seria diferente.

Pelas seis horas da manhã Natalia sentiu-se nitidamentemelhor. Pediu para se lavar, penteou-se diante de um espelho seguro por Duniachka e, fitando a família com os olhos como que iluminados por nova luz, sorriu a custo:

- Parece que estou a melhorar. Tive tanto medo... Julguei que era o fim.. Mas as crianças estão a dormir até muito tarde. Vai ver se elas acordaram, Duniachka.

Lukínitchna chegou com Gripachka. A velha pôs-se a chorar quando viu a filha, mas Natalia disse com emoção, a falar muito depressa:

- Porque chora, mãe? Eu não estou assim tão doente .

- Vocês não vieram ao meu enterro, pois não? Então porque choras?

Gripachka deu discretamente uma cotovelada à mãe; esta compreendeu, limpou a toda a pressa os olhos e disse num tom tranquilizador:

- Que estás tu para aí a dizer, minha filha? Foi por estupidez que me pus a chorar. Impressionei-me quando te vi... Estás tão desfigurada...

Um ligeiro rubor animou as faces de Natália quando ouviu a voz de Michatka e o riso de Poliúchka.

- Chama-os aqui. Chama-os depressa... - pediu ela. Eles que se vistam depois.

Poliúchka foi a primeira a entrar e parou na soleira, a limpar com o punho minúsculo os olhos ensonados.

- A tua mãe está doente... - disse Natalia com um sorriso. Vem cá, minha queridinha.

Poliúchka observou com espanto as pessoas grandes sentadas muito sérias nos bancos. Ao aproximar-se disse numavoz amimada:

- Porque é que não me acordaram? Porque estão todos aqui?

- Vieram saber notícias minhas... Mas para que te havíamos de acordar?

- Eu podia trazer-te água. E ficava ao pé de ti...

- Anda vai, vai arranjar-te, penteia-te e reza. Depois voltas para o pé de mim.

- Levantas-te para o almoço?

- Não sei. Talvez não.

- Bem, se assim for venho eu trazer-to. Queres, mãezinha?

- É o vivo retrato do pai, mas tem melhor coração, é mais meiguinha...disse Natalia com um leve sorriso, enquanto deitava a cabeça para trás e puxava a manta para as pernas, cheia de frio.

Dali a uma hora o seu estado agravava-se. Chamou os filhos com o dedo, beijou-os, abençoou os e pediu à mãe que os levasse consigo. Lukínitchna encarregou Gripachka de tomar conta das crianças e ficou junto da filha.

Natalia fechou os olhos e disse, como se estivesse a sonhar alto:

- Nunca mais o verei...

Depois, parecendo lembrar-se de qualquer coisa, soergueu-se de chofre:

- Tragam-me o Michatka.

Gripachka, com as lágrimas a correr pela cara abaixo, empurrou a criança para dentro do quarto e ficou na cozinha a murmurar lamentações numa voz quase imperceptível.

Um pouco amuado, com o ar rebarbativo dos Melekhov, Michatka aproximou-se timidamente da cama. A mudança brusca que se operara no rosto da mãe tornava-a quase irreconhecível, uma estranha. Natália atraiu a si o filho, até sentir bater o coraçãozinho da criança, como o de um pardal prisioneiro.

- Chega-te cá, meu filho. Mais perto! - disse Natalia.

Murmurou qualquer coisa ao ouvido de Michatka, depois afastou-o de si, fitou-o nos olhos com um ar perscrutador e inquiriu com um sorriso levemente constrangido:

- Não te esqueces? Prometes dizer-lho?

- Não me esqueço...

Michatka agarrou no dedo indicador da mãe, conservou-o um momento apertado na mãozita escaldante e depois largou-o, afastando-se da cama nas pontas dos pés, de braços afastados, como um equilibrista...

Natalia seguiu-o com os olhos até à porta e depois, em silêncio, voltou a cara para a parede.

Morreu ao meio-dia.

 

Durante os dois dias que durou a sua viagem da frente até à aldeia, Grigóri foi assaltado por uma multidão de pensamentos e de recordações... Para não se encontrar sozinho com o seu desgosto e com a lembrança de Natália, levou consigo Prokhor Zikov. Mal deixaram o acampamento do esquadrão, Grigóri desatou a falar da guerra, recordando o tempo em que pertencera ao 12.º Regimento na frente austríaca, e também na Roménia, e dos combates contra os alemães. Falava sem descanso, contava toda a espécie de histórias cómicas que se tinham passado no seu regimento e ria...

Prokhor, muito ingénuo, começara por lançar de soslaio olhares perplexos, admirado com esta tagarelice desusada, mas acabou por adivinhar que, ao evocar o passado, Grigóri pretendia afastar os pensamentos dolorosos. Começou então a alimentar a conversa, talvez com demasiado zelo. No momento em que relatava com todos os pormenores uma estadia que fizera no hospital de Tchemigov, olhou para Grigóri e viu as lágrimas abundantes que lhe corriam pelas faces tisnadas....

Por discrição deixou-se distanciar durante meia hora, depois alcançou Grigóri e tentou falar de coisas sem importância, mas ele fez cair a conversa. Seguiram assim a trote até ao meio-dia, lado a lado, com os estribos a tocarem-se.

Grigóri seguia com uma pressa louca. Apesar do calor, lançava o cavalo ora a trote largo, ora a galope e só raramente metia a passo. Ao meio-dia, porém, quando os raios verticais do sol começavam a queimar de modo intolerável, Grigóri parou numa ravina, desaparelhou o cavalo, deixou-o pastar e retirou-se para a sombra, deitando-se de bruços até passar o calor. Deram uma vez aveia aos cavalos, mas Grigóri não observava as pausas necessárias e os animais, embora habituados às longas caminhadas, haviam emagrecido logo no primeiro dia e já não possuíam o mesmo infatigável vigor. “Assim vamos dar cabo dos cavalos. Isto não é maneira de viajar! Ele não se rala, o patife. Quando estoirar este arranja logo outro, mas eu, onde hei-de ir buscá-lo? Assim ainda acabamos por terminar a viagem a pé, ou numa carroça de aldeia!”, pensava Prokhor furioso.

No dia seguinte pela manhã, ao chegarem a uma localidade da stanitsa de Fedosseivsskaia, Prokhor não se conteve e disse a Grigóri:

- Dir-se-ia que nunca foste dono de cavalos... Enfim, ninguém galopa desta maneira dia e noite, sem descanso. Olha como os cavalos abateram. Deixa-os ao menos fartar esta noite.

- Anda, vamos embora - respondeu Grigóri, distraído.

- Não consigo alcançar-te. E o meu cavalo já não pode mais. Não seria melhor descansarmos?

Grigóri não respondeu. Seguiu a trote durante meia hora sem proferir palavra. Por fim Prokhor declarou energicamente:

- Então! Deixa respirar os animais. Eu cá não vou mais longe, ouviste?

- Vamos, vamos!

- Vamos até onde? Até ele perder as ferraduras?

- Não discutas.

- Tem caridade, Grigóri Panteleiévitch. Não quero estafar o meu cavalo, e é isso o que vai acontecer...

- Então pára, que te leve o diabo! Procura um lugar onde haja boa erva.

O telegrama que andara perdido pelas stanitsas do distrito de Khopr à procura de Grigóri, chegara demasiado tarde.

Grigóri entrou em casa três dias depois do enterro de Natalia.

Apeou-se junto à cancela, beijou na passagem Duniachka que saíra a soluçar e disse-lhe num tom lúgubre:

- Passeia bem o cavalo... e nada de choros.

Voltou-se para Prokhor:

- Quando precisar de ti mando-te chamar.

Trazendo pela mão Michatka e Poliúchka, Ilínitchna saíra para o alpendre ao encontro do filho.

Grigóri abraçou as duas crianças enquanto lhes dizia numa voz trémula:

- Não quero gritos! Não quero choros! Meus filhos queridos!

- Estais órfãos! A vossa mãe sempre vos pregou uma partida...

Dominando a custo os soluços, entrou em casa para cumprimentar o pai.

- Não pudemos conservá-la em casa mais tempo... declarou Pantelei Prokófievitch, saindo logo para o vestíbulo.

Ilínitchna levou Grigóri para o quarto e contou-lhe com todos os pormenores o que se passara. A velha queria dizer tudo, mas Grigóri inquiriu:

- Por que razão se lhe meteu em cabeça não ter este filho? Sabes?

- Sei.

- Então?

- Antes disso ela tinha ido a casa da... dessa... Akcínia, e a Akcínia contou-lhe tudo...

- Ah, ah... foi isso?

Grigóri fez-se vermelho e baixou os olhos.

Saiu do quarto pálido e envelhecido. Agitando silenciosamente os lábios trémulos e azulados, sentou-se à mesa, a acariciar longamente os filhos, que colocara sobre os joelhos, depois tirou da mochila um pedaço de açúcar coberto de pó, partiu-o em dois com uma faca sobre a palma da mão e disse a sorrir melancolicamente:

- Eis o único presente que vos trago. Isto é que é um pai. hem?... Vamos, corram ao pátio e chamem o avô.

- Vais ao cemitério? - perguntou Ilínitchna.

- Hei-de ir, mais tarde. Os mortos não se ofendem...

- Como se portaram o Michatka e a Poliúchka?

- No primeiro dia choraram muito, sobretudo a Poliúchka. Agora nenhum deles fala nela diante de nós, como se estivessem combinados. Contudo a noite passada ouvi o Michatka a chorar baixinho... Tinha escondido a cabeça debaixo do travesseiro para que o não ouvíssemos. Eu fui lá e disse-lhe: “Que tens tu, meu querido, queres vir para a minha cama?” Vai ele respondeu: “Não foi nada, avó. Devo ter sonhado...” Conversa com eles e anima-os... Ontem de manhã ouvi-os a falarem um com o outro no vestíbulo. A Poliúchka dizia: “Ela há-de voltar. Era nova, e as pessoas novas não morrem para sempre.” Por ora não têm entendimento, mas sentem o desgosto como as pessoas grandes... Aposto que estás com fome! Vou arranjar alguma coisa para comeres. Porque não dizes nada?

Grigóri entrou no quarto. Como se o fizesse pela primeira vez, observou as paredes, depois o seu olhar deteve-se na cama feita de novo, nas travesseiras bem cheias. Fora ali que Natalia morrera, fora ali que a sua voz soara pela última vez... Grigóri imaginou a mulher a despedir-se dos filhos, a beijá-los, a abençoá-los talvez, e de novo, como quando recebera o telegrama, voltou a sentir no peito uma dor aguda, penetrante, e um zumbido surdo nos ouvidos.

Na casa, os mais pequenos pormenores lembravam-lhe Natalia. Eram recordações indestrutíveis e dolorosas. Percorreu todos os compartimentos sem saber porquê e depois saiu para o alpendre a toda a pressa, quase a correr. O suor escorria-lhe da testa. Desceu os degraus a comprimir com a mão o lado esquerdo do peito e pensou assustado: “Não há dúvida, já não sou o que era dantes...”

Duniachka andava a passear o cavalo no pátio. Em frente do celeiro o animal pôs-se a puxar a rédea, estendeu o pescoço erguendo o beiço superior, a descobrir os dominós amarelos dos dentes, cheirou a terra, depois sacudiu-se e começou a dobrar desajeitadamente as patas dianteiras. Duniachka esticava as rédeas, mas o cavalo, sem lhe obedecer, começava a estender-se no chão.

- Não o deixes deitar-se! - gritou da estrebaria Pantelei Prokófievitch. Não vês que ele está selado? Porque não lhe tiraste os arreios, minha estúpida do diabo?

Sem se apressar, atento ainda ao que sentia dentro do peito, Grigóri aproximou-se do cavalo, tirou-lhe a sela e, à custa de um enorme esforço, sorriu para Duniachka:

- O pai continua com a mania de berrar?

- É sempre a mesma coisa - respondeu a rapariga, sorrindo por sua vez.

- Obriga-o a caminhar mais um bocado, mana.

- Posso continuar, mas ele já está enxuto.

- Deixa-o espojar-se no chão se ele quiser.

- Então, mano, ficaste muito triste?...

- Se te parece... - respondeu Grigóri com a garganta contraída.

Compadecida, Duniachka beijou-o no ombro, depois voltou-lhe rapidamente as costas, comovida até às lágrimas, e levou o cavalo para a cerca do gado.

Grigóri acercou-se do pai, que estava a tirar o esterco da cavalariça com um ancinho, muito compenetrado. .

- Ando a arranjar espaço para o teu cavalo.

- Porque não mo disseste? Podia encarregar-me disso.

- Que ideia! Julgas que já não presto para nada? Eu cá, meu rapaz, sou como uma espingarda de pederneira. Não me gasto. Ainda consigo fazer umas coisas. Amanhã vou ceifar o centeio. Demoras-te por cá?

- Um mês.

- Ainda bem. Se fôssemos os dois? A trabalhar sentes menos o desgosto...

- Já me tinha lembrado disso.

O velho largou a forquilha, limpou a testa suada e disse, com um tom de intimidade na voz:

- Vamos para casa jantar. Ao desgosto não podes tu fugir, estejas onde estiveres... De nada serve uma pessoa correr nem esconder-se... As coisas são assim mesmo...

Ilínitchna pôs a mesa e trouxe um guardanapo limpo.

Grigóri pensou: “Dantes era a Natalia quem me servia...” Para não dar a perceber a sua comoção, pôs-se a comer muito à pressa e olhou reconhecido para o pai quando o viu ir ao aparador buscar uma bilha de aguardente tapada com uma rolha de palha.

- À memória da defunta, que Deus guarde a sua alma! - disse com firmeza Pantelei Prokófievitch.

Cada um emborcou o seu copo. O velho encheu-os de novo, lentamente, e declarou, suspirando:

- Num ano a nossa família viu partir duas pessoas... A morte parece que gostou desta casa.

- Não falemos nisso, pai! - pediu Grigóri.

Bebeu o segundo copo de um trago e ficou muito tempo a mastigar um bocado de peixe seco, à espera que o álcool lhe subisse à cabeça e lhe adormentasse os pensamentos obcecantes.

- O centeio está bem bonito este ano. O nosso campo distingue-se dos outros - disse Pantelei Prokófievitch sem modéstia.

Por esta gabarolice, pelo tom com que fora dita, Grigóri percebeu que o pai escondia qualquer intenção pouco natural.

- E o trigo?

- Estragou-se um bocado, mas nada de monta, devemos recolher uns trinta e cinco a quarenta pudes. A garnovka (Variedade de levedura) dá-se na terra dos outros que é uma maravilha, mas nós, logo por azar, não podemos semeá-la. Enfim, não tenho muito de que me queixar. No meio de toda esta confusão, que achas tu que devemos fazer do trigo? Não podemos ir levá-lo a casa do Paramónov e também não podemos guardá-lo no celeiro. Se a frente chegar até aqui, os camaradas rapinarão tudo, mas tu podes estar descansado, mesmo sem esta colheita, temos trigo suficiente para dois anos. Graças a Deus o que ainda conservamos no celeiro chega-nos até ao pescoço, fora o que está noutros lugares...

O velho piscou maliciosamente o olho.

- Pergunta à Daria quanto é que escondemos à espera dos maus dias. Enchemos até às bordas uma cova onde tu caberias de pé e com quatro archines de largura. Se não fosse esta vida desgraçada que nos tem arruinado seríamos hoje uns grandes proprietários...

O velho, animado com as suas próprias graçolas, deu uma gargalhada de bêbado, mas logo a seguir, compondo a barba, declarou num tom prático e sério:

- Talvez tu estejas preocupado com a tua sogra, mas vou dizer-te uma coisa; não me esqueci dela e tenho-a ajudado nas suas infelicidades. Nunca teve razão de queixa de mim. Sempre lhe enchi a carroça de trigo sem fazer contas e levo-lha a casa. A Natalia que Deus lá tem ficou muito contente e até chorou quando o soube... Anda, meu filho, vai mais um copito? Só tu és ainda a minha alegria.

- Pode ser respondeu - Grigóri estendendo o copo.

Nesse momento Michatka aproximou-se timidamente da mesa. Sem se tornar notado trepou para os joelhos do pai e passou-lhe desajeitadamente o braço em volta do pescoço, beijando-o em seguida com força nos lábios.

- Que queres tu, meu filho? - perguntou-lhe Grigóri comovido, fitando os olhos do rapazinho com os seus marejados de lágrimas. Esforçava-se para não lhe bafejar o rosto com o hálito da aguardente.

Michatka respondeu em voz baixa:

- A mãe, quando estava na cama... quando ainda era viva, chamou-me e encarregou-me de te dizer: “Quando o teu pai voltar, disse ela, beija-o com muita força e diz-lhe que seja sempre muito vosso amigo”. Disse-me ainda outra coisa mas eu esqueci-me do que era...

Grigóri poisou o copo e voltou-se para a janela. Um penoso silêncio invadiu a sala.

- Bebes mais um copo? - perguntou baixinho Pantelei Prokófievitch.

- Não quero, obrigado.

Grigóri levantou-se, tirando o filho dos joelhos, e saiu à pressa para o vestíbulo.

- Espera, meu filho. E a carne? Temos ainda uma galinha cozida e filhos.

Ilínitchna correra para o fogão, mas Grigóri já tinha batido com a porta. Pôs-se a andar de um lado para o outro no pátio, a examinar a cerca do gado e a cavalariça. Ao olhar para o cavalo, pensou: “Preciso de lhe dar um banho.” Depois entrou no telheiro. Ao lado da segadoura, já pronta, descobriu aparas de madeira de pinho no chão e uma tábua cortada em viés. “Foi aqui que o pai fez o caixão da Natalia”, pensou. E voltou ao alpendre num passo rápido.

Cedendo às instâncias do filho, Pantelei Prokófievitch preparou-se rapidamente, atrelou os cavalos à segadoura, pegou num barril de água e, ao cair da noite, partiram para o campo.

 

Grigóri sofria não só porque amara Natalia à sua maneira e se acostumara a ela durante seis anos de vida em comum, mas também porque se sentia culpado da sua morte. Se acaso Natalia, em vida, houvesse cumprido a ameaça, se tivesse ido viver para casa da mãe levando consigo os filhos, se lá morresse, intratável e cheia de ódio contra esse marido infiel, Grigóri não teria sentido tanto a sua falta e o remorso não o faria sofrer tão cruelmente. Sabia, porém, através de Ilínitchna, que Natalia lhe perdoara tudo, que o amava, que pensara nele até ao último instante. Isso aumentava-lhe o tormento, fazia-lhe pesar na consciência uma censura contínua, obrigava-o a considerar sob um novo aspecto a sua conduta passada.

No princípio, Grigóri não nutrira pela mulher senão uma fria indiferença e mesmo uma certa hostilidade. Contudo, nos últimos anos, esta atitude modificara-se e a causa principal dessa mudança tinham sido os filhos.

Também para com eles não experimentara de início aquele sentimento paternal que mais tarde viria a sentir. Quando regressava da frente para gozar uma curta licença em casa, ocupava-se deles e fazia-lhes festas como que por obrigação, para dar prazer à mãe, e não só não considerava isto uma coisa necessária, como via com um espanto desconfiado as demonstrações tumultuosas dos sentimentos maternais de Natália. Não compreendia como era possível amar com tamanha abnegação esses serzinhos que choravam continuamente. E mais do que uma vez, durante a noite, enquanto ela os amamentava, dissera à mulher num tom irritado e trocista: “Porque saltas tu da cama como uma maluca? Mal ele começa a berrar, acodes logo. Deixa-o lá gritar. Descansa que não vai verter lágrimas de oiro.” Os filhos pagavam-lhe com igual indiferença. Mas à medida que foram crescendo começaram a afeiçoar-se ao pai.

O amor das crianças fez nascer nele um sentimento recíproco e foi esse sentimento que, como um fogacho, se estendeu a Natalia.

Depois que rompera com Akcínia, Grigóri não mais pensou a sério em se separar da mulher; e, mesmo depois de reatar as relações com a amante, nunca lhe passara pela cabeça que esta pudesse vir um dia a substituir a mãe dos seus filhos.

Não se teria recusado a viver com as duas, visto que as amava a ambas de maneira diversa, porém a perda da mulher fez brotar de súbito dentro dele uma sensação de afastamento em relação a Akcínia e depois uma cólera surda: fora esta quem revelara as relações que havia entre eles, provocando com isso a morte de Natalia.

Por mais que Grigóri se esforçasse por esquecer o seu desgosto, nos campos, este voltava-lhe constantemente à ideia. Atirava-se ao trabalho, andava horas e horas em cima da ceifadora, sem que por isso a recordação de Natalia o abandonasse um só instante. A memória fazia-lhe reviver constantemente certos episódios longínquos, muitas vezes insignificantes, da vida de ambos, algumas conversas. Bastava-lhe soltar por momentos as rédeas à imaginação, para que Natalia surgisse logo, viva e sorridente. Revia-lhe a silhueta, o andar, a maneira de compor os cabelos, o sorriso, o tom da voz...

No terceiro dia começaram a cortar a cevada. A meio da tarde, no momento em que Pantelei Prokófievitch fazia descansar os cavalos, Grigóri desceu da ceifadora, poisou a forquilha no atrelado e declarou:

- Apetece-me ir um bocado até casa, pai.

- Para fazeres o quê?

- Estou com saudades dos meninos...

- Então vai concordou logo o velho. Entretanto ficamos nós a formar as medas.

Grigóri desatrelou um cavalo, montou-o e partiu a passo através das palhas eriçadas e amarelas, em direcção à estrada.

“Diz-lhe que seja sempre muito vosso amigo.” Soava-lhe aos ouvidos a voz de Natalia. Fechou os olhos, soltou as rédeas, e mergulhado nos seus pensamentos, deixava o cavalo sair para fora da estrada.

No azul intenso do céu viam-se algumas nuvens quase imóveis que o vento ia dispersando. As gralhas bamboleavam-se sobre a palha cortada. Bandos inteiros delas haviam-se instalado nas medas; os pais alimentavam com os bicos os filhos ainda implumes, que mal se aguentavam apoiados nas asas. As vozes todas juntas formava um clamor imenso sobre os campos acabados de ceifar.

O cavalo de Grigóri teimava em caminhar pelas valetas, arrancava de tempos a tempos um pé de ervilhaca que trincava, fazendo tilintar o freio. Uma ou duas vezes parou a relinchar porque avistara ao longe outros cavalos. Grigóri voltava a si, obrigava-o a prosseguir, fitava com o olhar vago a estepe e o caminho poeirento, as medas espalhadas pelos campos, as filas verde-escuro do milho a amadurecer.

Mal entrara em casa, recebeu a visita de Khrisstónia, muito sorumbático, que, apesar do calor, envergava uma túnica inglesa de fazenda e umas calças tufadas. Apoiava-se a um enorme cajado de freixo acabado de descascar. Cumprimentou Grigóri:

- Vim visitar-te, soube do desgosto que sofreste. com que então a vossa Natalia Mironnovna foi a enterrar?

- Como é que vieste da frente? - inquiriu Grigóri, fingindo não ter escutado a pergunta. Examinava com prazer o corpo desajeitado de Khrisstónia, um pouco curvado.

- Estou a convalescer da minha ferida. Apanhei duas balas ao mesmo tempo, que me furaram a barriga! Ainda as cá tenho, ao pé das tripas. Ficaram-se a meio do caminho, as malditas. Por isso é que ando agarrado a um pau, estás a ver?

- Onde foi isso?

- Em Balachov.

- Vocês tomaram Balachov? Como é que arranjaste essa trapalhada?

- Durante o ataque Tomámos Balachov e depois Povorino.

- Estive lá.

- Conta-me tudo isso. com quem estavas tu? Em que unidade? Quem mais lá andava da nossa aldeia? Senta-te. Toma lá tabaco.

Grigóri sentia-se feliz por ver uma cara nova, por poder conversar de assuntos estranhos ao seu desgosto. Khrisstónia teve a inteligência de compreender que Grigóri não precisava da sua compaixão e pôs-se a contar sem se fazer rogado, mas lentamente, a tomada de Balachov e a história do seu ferimento.

Enquanto fumava um enorme cigarro que ele próprio enrolara, ia dizendo com a sua voz grossa de baixo:

- Avançámos a pé, no meio dos girassóis. Eles disparavam contra nós com as metralhadoras e os canhões e também com as espingardas, claro está. Eu cá sou um homem que se vê bem ao longe; no meio dos outros parecia um pato ganso no meio das patas. Por mais que me curvasse ficava sempre a descoberto, até que as balas vieram ter comigo. Mas ainda bem que sou tão grande, se fosse mais pequeno teria apanhado com elas na cabeça Eram balas perdidas, está visto, mas fizeram-me cá um estrago na pança, e vinham quentes, as malvadas, como se tivessem acabado de sair do forno. Apalpei com a mão e senti-as lá dentro, a rebolarem debaixo da pele como bolas de gordura, aí a meio pé uma da outra. Carreguei-lhe com os dedos e deixei-me cair por terra. Disse comigo: isto é um raio de uma chatice, caramba! Mais vale ficar deitado, senão ainda vem outra que me fura de lado a lado. Não me mexi mais, portanto. De tempos a tempos, apalpava-as, às malditas. Lá estavam ambas, uma ao lado da outra. Então assustei-me e disse com os meus botões: E se elas começam a rebolar e me caem para o meio das tripas, as danadas? Como é que os médicos as lá hão-de ir buscar, hem? Oh, não me sentia nada contente! O corpo dos homens, até o meu, é uma coisa mole, e as balas, se começam a caminhar, vão ter à tripa grossa; então, quando eu andar, fazem um barulho que parece um chocalho de uma diligência. Será a destruição completa. Deixei-me ficar deitado. Tinha arrancado um girassol e pus-me a comer-lhe as sementes. E estava cheio de medo. Os outros já iam longe. Então, logo que tomaram Balachov arrastei-me para essas bandas. Levaram-me na ambulância de Tichamsskaia. Havia lá um doutor esperto como um pardal. Passava a vida a perguntar-me: “Então essas balas, extraem-se ou não?” Mas eu continuava na minha e um dia perguntei-lhe: “Diga-me, vossa nobreza, as balas podem cair para o fundo?” “Não”, respondeu o doutor, “não podem”. Então eu disse cá de num para mim que nunca as deixava tirar. Já os conheço de ginjeira Extraem-nos as balas e antes de termos a ferida cicatrizada, toca a andar para a frente. “Não”, declarei eu, “Vossa Nobreza não me tira as balas. Gosto de as cá trazer. Quero ir com elas a casa para as dar a apalpar à mulher. Cá a mim não me incomodam, pesam pouco.” O tipo berrou comigo mas acabou por me dar oito dias de licença.

Grigóri ouvira, a sorrir, esta narrativa sem malícia, e no fim inquiriu:

- Em que regimento estás tu?

- No Quarto, de Infantaria.

- Cá da terra, está lá mais alguém?

- Estão muitos: Anikuchka, o Capado, Beskhlebnov, Koloveidine Akim, Mírochnikov Siomka, Gorbatchov Tifchom.

- E que dizem os cossacos, não se queixam?

- Não podem com os oficiais, está visto. Puseram-nos aqueles tipos à perna, isto é que é uma vida! E são quase todos russos, não são cossacos.

Enquanto falava, Khrisstónia ia puxando pelas mangas demasiado curtas da túnica e, como se não acreditasse no que via, contemplava e passava a mão sobre o aveludado das calças inglesas que lhe cobriam as pernas.

- Botas que me servissem é que eles não arranjaram. Lá no Estado inglês as pessoas não têm os pés assim tão fortes... Nós cá, semeamos e comemos bom trigo, mas eles, tenho a certeza de que é como na Rússia, só comem pão de centeio. Como queres tu que tenham pés do tamanho dos nossos? Deram fardas e botifarras a todo o regimento, e cigarros que cheiram bem, mas há qualquer coisa que soa falso...

- O que é que soa falso? - quis saber Grigóri, interessado.

- Por cima tudo vai bem, no fundo, a coisa não está certa. Esta guerra não pode dar nada. Dizia-se que não se iria mais longe do que o distrito do Khopr...

Mal Khrisstónia se foi embora, Grigóri tomou uma decisão, depois de reflectir rapidamente: “Fico cá só mais oito dias e volto para a frente Aqui morre-se de aborrecimento.” Demorou-se em casa até à noite. Lembrando-se dos seus tempos de criança, fez para Michatka um pequeno moinho de vento, teceu com crinas de cavalo uma rede para apanhar pardais, fabricou para a filha uma carruagem minúscula com rodas que giravam e um timão fantasticamente ornamentado; quis mesmo confeccionar-lhe uma boneca de trapos, mas disso saiu-se mal; quem a acabou foi Duniachka.

As crianças, a quem Grigóri nunca prestava dantes tanta atenção, observaram primeiro estas actividades com um olhar céptico, mas não tardaram a andar sempre atrás dele e quando, à noite, Grigóri se preparava para regressar ao campo, Michatka declarou, retendo as lágrimas:

- Fazes sempre isto. Vens aqui por uma hora e deixas-nos outra vez... Podes levar contigo a tua rede dos pardais, o teu moinho e a tua cegarrega. Leva tudo. Não preciso disso para nada!

Grigóri tomou nas suas mãos enormes as mãozinhas do filho e disse-lhe:

- Se assim é, fazemos uma coisa: tu és um cossaco, portanto acompanhas-me ao campo. Vamos cortar o centeio e atá-lo. Podes andar em cima da segadoura com o avô, a tocar os cavalos. Se visses os gafanhotos que andam na erva! E os pássaros que há na ravina! A Poliúchka essa, fica com a avó a tomar conta da casa. Não nos deve levar isto a mal. É uma rapariga e o trabalho dela é varrer o chão e ir buscar água ao Don com a avó num baldezinho. Não falta trabalho para as mulheres. Estás de acordo?

- Pois não havia de estar? exclamou Michatka, entusiasmado.

Os seus olhos brilhavam, de antecipado prazer.

Ilínitchna começou por contrariar a ideia:

- Para onde queres tu levá-lo? Já não sabes que mais inventar! E onde há-de dormir? Quem é que toma conta dele? Se se aproxima de mais dos cavalos ainda pode apanhar um coice. E se é mordido por alguma cobra? Deus nos defenda! Não queiras ir com o teu pai, meu menino, fica em casa.

A criança, porém, mostrou logo nos olhos semicerrados um brilho mau (tal e qual como o avô Pantelei nos seus acessos de cólera), e, cerrando os punhos, gritou numa voz de birra:

- Calas-te, avó!... Vou, sim senhor. Pai, não faças caso do que ela diz!

Grigóri, a rir, pegou no filho ao colo e disse para tranquilizar a mãe:

- Dorme comigo. Levo o cavalo a passo para não cair.

- Arranje-lhe a roupa, mãe, e não tenha receio: nada lhe acontecerá e amanhã à noite trago-o a casa.

Assim começou a amizade de Grigóri com Michatka.

Durante os quinze dias que passou em Tatársski, Grigóri só vira Akcínia três vezes, e de fugida. com o tacto e a inteligência que a caracterizavam, a rapariga procurara evitá-lo, preferindo não se mostrar. O seu instinto de mulher fizera-lhe adivinhar o estado de alma de Grigóri e compreendia que qualquer manifestação imprudente e intempestiva dos seus sentimentos corria o risco de o voltar contra si, de alterar as relações entre ambos.

Esperava que Grigóri tomasse a iniciativa de lhe falar. Na véspera da partida dele para a frente, ao regressar a casa com uma carroça de trigo, um pouco mais tarde do que o costume, ao lusco-fusco, deu de caras com ela ao fundo da última ruela que ia desembocar na estepe. A rapariga cumprimentou-o de longe, com um sorriso cheio de angústia e expectativa. Grigóri correspondeu ao cumprimento e não teve coragem de passar adiante sem dizer nada.

- Como estás? disse ele, esticando um pouco as rédeas a fim de travar o passo ligeiro dos cavalos.

- Estou bem, obrigada, Grigóri Panteleiévitch.

- Não te tenho visto.

- Andei no campo... Sou sozinha a trabalhar nas terras.

Michatka vinha na carroça e foi talvez por isso que Grigóri, não parando, deixou cair a conversa. Depois de se ter afastado algumas ságenas, ouviu chamar e voltou-se. Era Akcínia, de pé junto a uma cerca:

- Demoras-te muito tempo na aldeia? inquiriu ela desfolhando nervosamente um malmequer.

- Vou-me embora amanhã.

Akcínia hesitou um segundo. Quis dizer mais qualquer coisa, mas ficou calada, a fazer um gesto fatigado com a mão, e partiu num passo rápido em direcção ao prado, sem se voltar para trás.

 

O céu apresentava-se coberto de nuvens. Caía uma chuva fina que parecia peneirada. As sementeiras, as ervas ruins, os novos rebentos, as moitas de ameixoeiras bravas dispersas pela estepe, tudo brilhava.

Muito desgostoso com a partida antecipada, Prokhor cavalgava em silêncio e durante toda a viagem não trocou uma única palavra com Grigóri. Ao ultrapassarem a aldeia de Sevastionóvsski, viram três cossacos a cavalo que vinham ao encontro deles. Avançavam a par, esporeando os cavalos, e conversavam com animação. Um deles, já de certa idade e com a barba ruiva, vestido com um casacão cinzento de fabrico caseiro, reconheceu de longe Grigóri, e disse para os companheiros:

- Olha o Melekhov!

Quando chegaram junto um do outro, o ruivo deteve o seu cavalo baio e disse:

- Viva, Grigóri Panteleiévitch!

- Viva! respondeu Grigóri, procurando em vão recordar-se onde vira já aquele cossaco de barba ruiva e ar taciturno.

Este devia ter sido nomeado sargento havia pouco e, com receio de que o tomassem por um simples cossaco, cosera os galões por cima do capote.

- Não me estás a reconhecer? - perguntou aproximando-se.

Estendeu a Grigóri uma manápula enorme, coberta de pêlos de um vermelho-vivo, e o hálito dele empestava a vodka. Todo o seu rosto exprimia uma obtusa auto-suficiência, os olhitos azuis brilhavam e um sorriso esticava-lhe os lábios por baixo do bigode ruivo.

O aspecto absurdo deste oficial de capote de camponês dispôs bem Grigóri, que respondeu, sem ocultar a ironia:

- Não me lembro de quem és. Provavelmente conheci-te ainda quando eras apenas um simples cossaco... Foste nomeado sargento há muito?

- Acertaste em cheio. Fui promovido há oito dias. Encontrámo-nos no Estado-Maior de Kudínov, na véspera da Anunciação.

- Nesse dia livraste-me de boa, lembras-te? Eh, Trifon! Vão andando devagar que eu já vos alcanço! gritou ele para os companheiros que haviam parado a certa distância.

Grigóri recordou-se, não sem alguma dificuldade, das circunstâncias em que conhecera aquele homem ruivo, e veio-lhe mesmo à ideia a alcunha por que era conhecido: o “Dois patacos”, bem como o que Kudínov dissera a seu respeito: “Tem boa pontaria, o malandro. Acerta numa lebre em corrida, é valente no combate, dá um excelente batedor, mas quanto a cérebro não passa de uma criança.” Colocado à testa de um esquadrão, o “Dois-Patacos” cometera uma falta pela qual Kudínov queria castigá-lo, porém Grigóri intercedera por ele e o sujeito conservara o comando.

- Vens da frente? - interrogou Grigóri.

- Exacto. Acabo de chegar de Novokhoprssk, estou de licença. Fiz um pequeno desvio de cento e cinquenta verstás para passar por Slachtchovsskaia onde vivem os meus velhotes. Nunca esqueço o bem que me fizeram, Grigóri Panteleiévitch. Quero oferecer-te um presente, não o recuses. eh? Tenho duas garrafas de álcool puro no meu saco. Vamos esvaziá-las já?

Grigóri recusou-se a beber, mas aceitou uma garrafa de presente.

- Se visses! Os soldados e os oficiais encheram-se que nem odres! - gabava-se o “Dois-Patacos”. - Também estive em Balachov. Assim que tomámos a cidade, corremos para a estação do caminho-de-ferro. Todas as vias estavam ocupadas, uma confusão. Num dos vagões havia açúcar, noutro artigos de equipamento, noutro ainda toda a espécie de coisas. Houve cossacos que chegaram a levar quarenta fardas completas. Dali fomos dar um salto ao bairro dos judeus. Aquilo é que foi gozar! No meu meio-esquadrão há um tipo que teve a habilidade de apanhar dezoito relógios aos judeus, dos quais dez eram de oiro. Pendurou-os todos ao peito, aquele filho de uma cabra. Parecia um vendedor ambulante, mas dos mais ricos. E anéis? Nem se podiam contar! Trazíamos dois e três em cada dedo...

Grigóri apontou para a mochila, a abarrotar, do “Dois-Patacos”.

- Que trazes tu ali?

- Trago... toda a espécie de coisas.

- Também roubadas?

- Oh, que maneira de dizer! Roubadas?!... Não as roubei, apoderei-me legalmente delas. O comandante do nosso regimento tinha-nos dito: “Se vocês tornarem esta cidade será vossa durante dois dias.” Não sou pior do que os outros. Apanhei o que me vinha à mão. Há quem tenha feito mais...

- Que lindos soldados!

Grigóri considerou com desprezo aquele homem tão ávido de rapina e declarou:

- Os tipos como tu são bons para andarem a assaltar pelas estradas, para fazerem esperas debaixo das pontes, mas não prestam na guerra. Vocês transformaram a guerra numa ladroeira. Ah! Cambada de patifes! Aprenderam um belo ofício! E julgas que não hão-de ser um dia esfolados vivos, tu e o teu coronel?

- Mas porquê?

- Precisamente por isso.

- E quem é que nos esfolará?

- Os que se encontram acima de vocês.

O “Dois-Patacos” fez um sorriso trocista, retorquindo:

- Mas se eles fazem a mesma coisa... Nós limitamo-nos a encher os nossos sacos, mas eles levam comboios inteiros.

- Tu viste?

- Vi, pois! Eu próprio acompanhei um desses comboios até laryjensskaia. Só um dos furgões ia cheio de baixelas de prata. De vez em quando deparávamos com oficiais que nos perguntavam: “Que levam vocês aí? Andem, mostrem!” Mas logo que eu declarava ser aquilo propriedade do general fulano, eles faziam logo marcha-atrás.

- Quem era o general? - perguntou Grigóri de olhos encarquilhados, puxando nervosamente pelas rédeas.

O “Dois-Patacos” riu-se com ar manhoso:

- Esqueci-me do nome dele. Deixa ver como era... Deus me restitua a memória! Não, passou-me, já não me recordo. Podes protestar à vontade, Grigóri Panteleiévitch. Fazem todos o mesmo, esta é que é a verdade. Eu ao pé deles não passo de um cordeirinho. Agarro aquilo que posso, é certo, mas há outros que atacam as pessoas na rua, que violam todas as judias que lhe passam ao alcance. Eu cá não faço isso. Tenho uma mulher legítima. E que mulher! Aquilo não é uma mulher, é um cavalo. Não, não, fazes mal em ralhar comigo. Mas espera aí, aonde vais tu?

Grigóri despediu-se friamente de “Dois-Patacos” com um aceno de cabeça e disse a Prokhor:

- Vamos.

Meteram os cavalos a trote. Pelo caminho cruzavam-se cada vez mais frequentemente com cossacos sozinhos ou em grupos que regressavam de licença. Não era raro encontrarem também carros puxados por dois cavalos, cuja carga, protegida por oleados ou panais de linhagem estava cuidadosamente atada com cordas. Os cossacos seguiam a trote, ou erguiam-se de pé nos estribos, envergando túnicas de Verão novas e calças de caqui do Exército Vermelho. Os seus rostos poeirentos e tisnados mostravam-se contentes, mas ao encontrarem Grigóri afastavam-se logo. Seguiam em silêncio, levando a mão à pala do boné como era sua obrigação, e só voltavam a conversar uns com os outros a uma distância respeitável.

- Comerciante em viagem! - dizia Prokhor em ar de troça, sempre que avistavam ao longe uma carroça de objectos pilhados.

Nem todos, porém, vinham carregados com o produto dos seus roubos. Na aldeia onde pararam, junto de um poço, para dar de beber aos cavalos, Grigóri ouviu uma canção vinda de um pátio vizinho. A avaliar pelas vozes, puras como se fossem de criança, os cantores deviam ser cossacos muito jovens.

- É sem dúvida uma festa de despedida de algum soldado - disse Prokhor, que tinha ido buscar um balde de água.

Depois da garrafa de álcool ingerida na véspera, sentia vontade de beber um trago a fim de se pôr em forma, e, depois de dar água aos cavalos, alvitrou sorrindo:

- Ouve lá, Panteleiévitch, se fôssemos até lá? Talvez tenhamos direito ao copo da despedida? A casa tem tecto de vimes, mas parece abastada.

Grigóri concordou em assistir à despedida do “novato”.

Prenderam os cavalos à vedação e entraram no pátio. Debaixo do telheiro viam-se quatro cavalos selados. Um adolescente, transportando um alqueire de ferro cheio de aveia até às bordas, saiu da granja. Lançou na passagem um olhar para Grigóri e dirigiu-se para os cavalos que relinchavam. A canção vinha do outro lado da esquina da casa. Uma vozinha trémula de tenor entoava:

- Neste caminho, neste caminho ninguém seguia a pé...

Uma voz grossa de baixo, rouca pelo tabaco, juntou-se ao tenor depois de haver repetido as últimas palavras. A seguir entraram na melodia mais vozes melodiosas, e a canção prosseguiu, triste e majestosa. Grigóri não quis interromper os cantores com a sua aparição. Tocando no braço de Prokhor, murmurou:

- Espera, não te mostres, deixa-os acabar.

- Isto não é uma despedida. Os tipos de Elánsskaia cantam sempre assim. É a maneira deles. Cantam bem, os malandros - declarou Prokhor, escarrando de despeito, pois tudo levava a crer que sairia gorada a esperança que alimentara de beber uns copos.

O tenor suave pôs-se então a contar toda a história do cossaco que fora infeliz na guerra:

 

         Lá vai a cavalaria,

         Estrada fora à desfilada,

         Numa louca correria,

         Sem deixar rasto ou pegada.

         Mais atrás, forte e garboso

         Crinas soltas a adejar,

         Segue um cavalo fogoso

         Que se não deixa agarrar.

         Pára, pára, cavalinho,

         Leva-me contigo à guerra;

         Sou cavaleiro cossaco,

         Não posso ficar em terra.

         Tomou o freio nos dentes.

         Ninguém o pode domar;

         As duas rédeas pendentes

         São serpentes a arrastar.

 

         Seus olhos são duas brasas

         A luzir na noite escura,

         Os cascos de prata fina

         O pêlo de seda pura.

         Cavalinho, cavalinho,

         Não me deixes sem defesa;

         Se fico só no caminho

         Serei morto com certeza.

 

Cativado pela melodia, Grigóri deixara-se ficar encostado ao rodapé da casa, sem prestar atenção ao relinchar dos cavalos nem ao chiar de uma carroça que passava na viela...

Quando a canção terminou, um dos cantores, depois de clarear a voz, disse, do outro lado da esquina:

- Esta foi mesmo arrancada lá do fundo! Cantámos o melhor que pudemos, tiazinhas, mas vocês faziam bem se dessem mais qualquer coisa cá aos soldados. Ficámos bem comidos, graças a Deus; agora quanto a farnel não temos nada para levar...

Voltando a si, Grigóri deu a volta à esquina e viu quatro jovens cossacos sentados no primeiro degrau do alpendre.

Crianças e mulheres, novas e velhas, vindas das herdades vizinhas, formavam uma multidão compacta em volta deles. Todas choravam e se assoavam, limpando as lágrimas à ponta do lenço. Uma velhota alta, de olhos negros, cujas feições gastas conservavam vestígios de uma beleza de imagem, proferia lentamente, enquanto Grigóri se aproximava:

- Que bem que vocês cantam, meus meninos! Até faz chorar! Cada um de vós deve ter mãe e estou certa de que ela, quando pensa que vocês vão para a guerra, chora também.

Os bugalhos amarelados dos seus olhos puseram-se a luzir quando avistou Grigóri, que a cumprimentou, e disse numa voz subitamente colérica:

- É esta juventude em flor que tu levas para a guerra, que tu conduzes para a morte, Vossa Nobreza!

- Nós também lá morremos, tiazinha -respondeu Grigóri, carrancudo.

Os rapazes, perturbados pela chegada desse oficial desconhecido, ergueram-se com presteza, repelindo com o pé os pratos poisados nos degraus, os quais ainda continham restos de alimentos, e trataram de ajustar os cinturões e as bandoleiras sobre as túnicas. Tinham estado a cantar sem ao menos poisarem as espingardas. O mais velho de todos não teria ainda vinte e cinco anos.

- Donde são vocês? - perguntou Grigóri, examinando-lhes as caras jovens e frescas.

- Do Regimento de... - começou a dizer numa voz hesitante um rapazola de nariz arrebitado e olhos risonhos.

- Estou a perguntar de que terra sois, qual é a vossa stanitsa. Não sois de cá?

- Somos de Elánsskaia, viemos de licença, Vossa Nobreza.

Grigóri, reconhecendo pela voz o primeiro cantor, perguntou-lhe sorrindo.

- Eras tu que conduzias o canto?

- Era.

- Bem, tens uma linda voz. Mas por que motivo cantavam vocês? Era de alegria ou de tristeza? Não me parece que estejam bêbados.

Um jovem alto e loiro, de topete atrevido, cinzento de pó, de faces vermelhas e tisnadas, com um sorriso atrapalhado, disse, atravessando os olhos para as velhas:

- Qual de alegria!... É a miséria que nos faz cantar. Nesta terra ninguém nos dá nada de graça: nem uma côdea. Por isso tivemos a ideia de nos pormos a cantar canções e então as mulheres todas vêm ouvir-nos. Cantamos qualquer coisa de comovente, elas sentem-se emocionadas, e dão-nos um naco de toucinho, uma caneca de leite e outras coisas de comer.

- Somos como os popes, meu tenente, cantamos e recolhemos as esmolas declarou o primeiro cantor, com uma piscadela de olho maliciosa para os camaradas.

Um deles tirou do bolso do peito um papel ensebado que estendeu a Grigóri.

- Aqui está a nossa licença.

- Porque é que ma dás?

- Para que não desconfies de nós. Não somos desertores...

- Deves mostrar isso quando encontrares um destacamento punitivo - respondeu Grigóri despeitado.

Porém, antes de partir, aconselhou:

- Viagem de noite e escondam-se durante o dia. Esse papel não vale grande coisa. É preferível não fazerem uso dele... Não tem carimbo?

- No nosso esquadrão não há carimbo.

- Pois então, se não quiserem que os kalmuks vos encham de vergastadas, sigam o meu conselho.

A cerca de três verstás da aldeia, distante umas cinquenta ságenas de um pequeno bosque que pegava com a estrada, Grigóri avistou de novo dois cavaleiros que vinham na sua direcção. Pararam um minuto a observá-lo, depois internaram-se bruscamente no bosque.

- Aqueles não têm papel. Viste-os meter pelo bosque? Porque diabo viajarão eles de dia?

Mais dois homens, à vista de Prokhor e de Grigóri, deixaram a estrada e apressaram-se a desaparecer. Um soldado de infantaria cossaca, já de certa idade e que regressava a casa à socapa, esgueirou-se para um campo de girassóis, escondendo-se ali como uma lebre num rego. Ao passar, Grigóri, erguendo-se nos estribos, gritou-lhe:

- Eh, pá, estás mal escondido. Tapaste a cabeça mas vê-se-te o cu!

E berrou com fingida raiva:

- Vamos! Sai daí para fora. Mostra-nos os documentos.

O cossaco, erguendo-se, desatou a correr pelo meio dos girassóis, dobrado ao meio. Prokhor deu uma gargalhada e quis lançar o cavalo em perseguição do fugitivo, mas Grigóri deteve-o:

- Deixa-te de brincadeiras. Que vá para o diabo. Há-de correr enquanto lhe durar o fôlego. Até pode morrer de susto...

- Ora! Isso sim! Nem um galgo o apanhava mais. É capaz de percorrer dez verstás a galope. Viste como saltou para o meio dos girassóis? Só pergunto onde é que um homem vai buscar tanto fôlego numa ocasião destas!

De um modo geral, Prokhor censurava os desertores:

- Vão em bandos. Parece que saíram todos do mesmo saco. Cautela, Grigóri Panteleiévitch. Se isto assim continua, acabamos por ficar só tu e eu para mantermos a frente.

Quanto mais Grigóri se aproximava das linhas, mais se avolumava a seus olhos o espectáculo da decomposição do exército do Don. Decomposição essa que principiara no momento exacto em que, completado pelas tropas insurrectas, o

Exército alcançara a sua maior vitória na frente norte. As unidades tinham-se tornado incapazes não só de passar à ofensiva e de quebrar a resistência do inimigo, como também de fazer frente a um ataque a valer.

Nas stanitsas e nas aldeias onde se encontravam os reforços, os oficiais estavam constantemente bêbados; as viaturas de todas as espécies arreavam sob o peso dos despojos que não houvera tempo de fazer passar para a retaguarda; as unidades mantinham apenas cerca de sessenta por cento dos seus efectivos; os cossacos entravam de licença por sua alta recreação e os destacamentos punitivos, formados por kalmuks, que percorriam a estepe, não eram suficientes para conter essa “deserção em massa. Nas aldeias ocupadas pelo regimento de Saratov, os cossacos agiam como se estivessem em país conquistado: pilhavam a população, violavam as mulheres, destruíam as reservas de cereais, degolavam o gado. Eram incorporados indistintamente rapazes muito jovens e velhos de cinquenta anos. Nos esquadrões de marcha, os homens afirmavam abertamente que não queriam combater mais E, nas unidades transferidas para os sectores de Voronej, os cossacos davam provas de manifesta insubordinação em face dos oficiais. Corria o boato de que se tornavam cada vez mais frequentes nas primeiras linhas os assassinatos de superiores.

Perto de Balachov, ao crepúsculo, Grigóri deteve-se para passar a noite numa pequena aldeia. O quarto esquadrão especial de reserva, formado por cossacos das classes mais antigas e por uma companhia de sapadores do Regimento de Taganrog, ocupava todas as casas da aldeia. Grigóri levou muito tempo para conseguir alojamento. Podiam dormir ao ar livre, como costumavam fazer, mas o tempo ameaçava chuva, e Prokhor estava com um ataque de malária. Tinham de passar a noite debaixo de telha. À saída da aldeia, perto de uma casa grande rodeada de choupos, descobriram um carro blindado que fora atingido por um obus Na passagem, Grigóri leu sobre a blindagem uma inscrição que ainda não fora coberta pela pintura: “Morra a canalha branca!” E mais abaixo: “O Feroz”. No pátio, os cavalos sacudiam-se e ouviam-se vozes de homens; no jardim, atrás da casa, ardia uma fogueira cujo fumo se espalhava pelo cimo verde das árvores; ao lado do braseiro, agitavam-se silhuetas de cossacos iluminadas pelas chamas. O vento trazia um cheiro a palha queimada e a cerdas de porco chamuscadas.

Grigóri, saltando do cavalo abaixo, entrou:

- Onde está o dono da casa? - inquiriu ao penetrar num compartimento baixo, cheio de gente.

- O dono sou eu. Que me queres? - indagou um camponês baixinho que estava encostado ao fogão.

- Podemos passar a noite em tua casa? Somos dois.

- Já estamos apertados como sementes de melancia resmungou um cossaco velho, deitado sobre um banco.

- Não quero recusar, mas aqui já há gente a mais murmurou o dono da casa, como que a desculpar-se.

- Nós cá nos arranjamos Não podemos passar a noite à chuva! insistiu Grigóri A minha ordenança vem doente.

O homem que estava deitado no banco afinou a garganta, poisou os pés no chão e disse já noutro tom, fitando Grigóri:

- Contando os donos da casa, somos catorze em dois compartimentos muito pequenos, Vossa Nobreza. O terceiro quarto está ocupado por um oficial inglês com duas ordenanças e mais um oficial dos nossos

- Vocês podiam ir ficar junto deles - propôs amavelmente outro cossaco, cuja barba abundante se estriava de inúmeros pelos brancos e que usava galões de primeiro sargento.

- Não, prefiro ficar aqui. Não ocuparemos muito espaço. Durmo no chão, não vos incomodarei.

Grigóri despiu o capote, alisou os cabelos e sentou-se à mesa.

Prokhor saiu para ir tratar dos cavalos.

No quarto ao lado deviam ter ouvido a conversa. Dali a cinco minutos entrava um tenente baixinho, vestido com elegância:

- Procuram abrigo para passar a noite? inquiriu de Grigóri.

- E, depois de lançar um olhar furtivo para os galões deste, propôs com um sorriso amável:

- Fique connosco, no nosso quarto, tenente. O tenente Campbell, do exército inglês, e eu convidamo-lo a partilhar o nosso quarto. Ficará melhor. Chamo-me Chtchéglov. E o senhor?

Apertou a mão a Grigóri.

- Regressa da frente? Ah, volta de licença! Venha, entre. É com todo o prazer que lhe oferecemos hospitalidade. Deve ter fome e aqui há com que lha matar.

Sobre o casaco de boa fazenda do tenente, de um tom verde-claro, baloiçava a cruz de São Jorge. A risca dos seus cabelos, na cabeça pequena, era impecável. Trazia as botas cuidadosamente engraxadas. A cara bem barbeada, morena e tisnada, assim como toda a sua figura esbelta, respiravam asseio e exalava-se dele um leve perfume de água-de-colónia. No vestíbulo, deixando delicadamente passar Grigóri à sua frente, disse-lhe:

- É a porta à esquerda. Cuidado, há aí uma arca, não se esbarre.

Um tenente alto e forte ergueu-se à entrada de Grigóri.

Um bigode de penugem preta barrava-lhe o lábio superior, cortado por uma cicatriz em diagonal. Tinha uns olhos cinzentos muito juntos. Chtchéglov apresentou-lhe Grigóri, dizendo-lhe qualquer coisa em inglês. O tenente, depois de apertar a mão de Grigóri, falou, ora voltado para um, ora para outro. Depois convidou Grigóri a sentar-se.

Havia quatro camas de campanha alinhadas no meio do quarto e num canto amontoavam-se malas de coiro, caixotes e sacos de viagem. Sobre uma arca viam-se uma espingarda-metralhadora de um sistema desconhecido para Grigóri, um estojo de binóculo, caixas de cartuchos, uma carabina de coronha escura e cano novo azulado.

O tenente falava com uma voz velada e agradável, enquanto lançava a Grigóri olhares cordiais. Este não compreendia aquela língua estranha, mas, adivinhando que se tratava da sua pessoa, sentia-se pouco à vontade. Chtchéglov, a vasculhar dentro de uma mala, escutava, a sorrir. Por fim disse: Mister Campbell diz que estima muito os cossacos, que os considera extraordinários como cavaleiros e como soldados.

- Tem fome? Quer beber alguma coisa? Ele é de opinião que o perigo aproxima os homens... Eh! Caramba! Está farto de dizer disparates!

Chtchéglov tirou da mala algumas latas de conserva, duas garrafas de conhaque e voltou a curvar-se lá para dentro, enquanto continuava a traduzir:

- Diz ele que os oficiais cossacos o receberam muito bem em Usst-Medvéditsskaia: esvaziaram um barril de aguardente do Don e por fim estava tudo completamente bêbado; divertiram-se imenso com as estudantes do liceu. Pois é assim mesmo. Ele declara que tem o maior prazer em retribuir essa hospitalidade o melhor que puder. Já vê que não pode esquivar-se e lamento-o por isso... Quer beber qualquer coisa?

- Bebo, sim, obrigado - respondeu Grigóri, contemplando à socapa as suas mãos sujas de poeira e do contacto com as rédeas

Chtchéglov colocou as latas de conserva sobre a mesa e abriu-as habilmente com a faca, enquanto declarava suspirando:

- Acredita que estou farto dele, desse cevado inglês? Bebe desde manhã à noite. Empiteira-se a um ponto... Eu cá, “bem vê, não vou contra isso, mas assim não sou capaz. O tipo...

Olhou para o inglês a sorrir, largando uma praga obscena, com grande surpresa de Grigóri, que não esperava nada aquilo, e prosseguiu:

- O tipo bebe a toda a hora: antes, e depois das refeições.

O inglês sorria, abanando a cabeça, e declarou num russo macarrónico:

- Sim, sim, está bem. . Nós beber à sua saúde.

Grigóri desatou a rir, a ponto de ficar todo despenteado.

Aqueles dois tipos tinham piada, não havia dúvida. O tenente inglês, com o seu sorriso absurdo e a sua língua de trapos, era uma maravilha.

Enquanto limpava os copos, Chtchéglov ia dizendo:

- Há quinze dias que ando a aturá-lo, que me diz a isto? Veio para aqui como instrutor de condução dos tanques que foram atribuídos ao nosso segundo Corpo do Exército e puseram-me à disposição dele como intérprete. Falo correntemente inglês e foi essa a minha desgraça... Nós cá também bebemos, mas tanto, não! Aquilo passa das marcas. Vai ver do que ele é capaz. Não dispensa quatro ou cinco garrafas de conhaque por dia. Emborca-as pouco a pouco, sem nunca ficar bêbado a cair, e no fim é mesmo capaz de trabalhar. Tem dado cabo de mim. Sinto dores de estômago, ando de mau humor e 'estou tão encharcado em álcool que até já tenho medo de me sentar ao pé de um candeeiro aceso. . Ah! com mil raios!

Enquanto falava, ia enchendo dois copos até às bordas e depois, para si, deitou apenas uma gota.

O tenente inglês olhou a rir para o copo e pôs-se a falar com animação. Chtchéglov poisou a mão sobre o peito, numa atitude suplicante, e correspondeu com um sorriso discreto, porém nos seus olhos negros e bondosos luziam de quando em quando chispas de ódio. Grigóri pegou no copo, tocou nos dos companheiros e bebeu de um trago.

- Oh! comentou o inglês num tom de aprovação.

Sorveu um gole do seu copo e fitou Chtchéglov com desdém.

O tenente inglês tinha as mãos grosseiras de operário poisadas sobre a mesa. Nas costas destas, os poros estavam negros de óleo lubrificante e os dedos apresentavam-se descascados pelo contacto frequente da gasolina, cobertos de arranhões secos. A contrastar com isto, o rosto mantinha-se bem conservado, vermelho e redondo. A discrepância era tamanha, que Grigóri teve por um instante a sensação de que o tenente usava uma máscara.

- Você salvou-me murmurou Chtchéglov, enchendo de novo os dois copos até às bordas.

- O quê? Ele não é capaz de beber sozinho?

- Não. De manhã, sim, mas à noite, não. Vamos a isto!

- É forte...

Grigóri provou, depois, sob o olhar do inglês, esvaziou o copo.

- Ele diz que você é um compincha. Dá gosto vê-lo beber.

- Cá por mim ocupava de boa vontade o seu lugar - declarou Grigóri sorrindo.

- Estou certo de que desertava ao fim de quinze dias.

- Desertava deixando coisas tão boas?

- Pois é isso o que eu vou fazer.

- A frente é pior.

- Isto também é frente. Lá corremos o risco de nos acertar uma bala ou um estilhaço de obus. Aqui, arriscamo-nos a apanhar o delirium tremens. Prove esta fruta de conserva. Quer presunto?

- Quero, obrigado.

- Os ingleses são uns ases nestas coisas. Alimentam o seu exército melhor do que nós.

- Nós alimentamo-lo, por ventura? O nosso exército abastece-se por onde passa.

- Isso é verdade, infelizmente. Mas por esse processo não vamos longe, sobretudo se autorizarem os soldados a pilharem a população...

Grigóri fitou atentamente Chtchéglov: :

- Você faz tenção de ir longe?

- Seguimos ambos o mesmo caminho. Porque me faz essa pergunta?

Chtchéglov não reparara que o inglês se tinha apoderado da garrafa, enchendo-lhe o copo.

- Agora tem de o esvaziar observou Grigóri, sorrindo.

- Lá começa ele! - gemeu Chtchéglov, olhando para o copo, enquanto as suas faces se tingiam de um delicado rubor.

Entrechocaram os copos e beberam todos três em silêncio.

- Seguimos o mesmo caminho, mas cada um à sua maneira - observou Grigóri, de testa franzida, a tentar em vão apanhar com o garfo um caroço de alperche que escorregava dentro do prato. Uns apeiam-se logo, outros vão até mais longe, é como nos comboios...

- Você não faz tenção de ir até ao término?

Grigóri sentia apossar-se dele a embriaguez, mas tentava resistir. Respondeu com um sorriso:

- Não tenho dinheiro que chegue para comprar um bilhete até ao término. E você?

- Oh! Comigo o caso é outro. Ainda que me obrigassem a descer à força, seguiria a pé pela linha fora.

- Nesse caso, boa viagem! Vamos beber o resto?

- Que remédio! Só custa começar.

O inglês tocava com o seu copo no de Grigóri e de Chtchéglov, bebendo em silêncio, quase sem comer. O rosto dele assumira um tom de tijolo cozido, tinha os olhos embaciados e os gestos haviam-se-lhe tornado deliberadamente mais vagarosos.

Antes de esvaziar a segunda garrafa, erguendo-se pesadamente, dirigiu-se para junto das malas, num passo seguro, e tirou de lá duas garrafas de conhaque. Poisou-as sobre a mesa, sorriu com o canto dos lábios e disse qualquer coisa na sua voz de baixo.

- Mr. Campbell afirma que devemos prolongar este prazer. Diabos o levem! Que diz você?

- Sou da mesma opinião Tratemos de o prolongar - concordou Grigóri.

- O tipo é de força, hem? Dentro daquele corpo inglês está uma alma de negociante russo. Cá por mim, acho que já tenho a minha conta...

- Quem tal diria observou maliciosamente Grigóri.

- Santo Deus! Eu cá sou fraco como uma donzela Mas, no entanto, ainda me aguento, sim, ainda me aguento muito bem!

Depois de esvaziar o copo, Chtchéglov caiu nitidamente numa espécie de torpor: os seus olhos negros brilhavam como azeite e começou a trocar ligeiramente a vista. Tinha os músculos da cara descaídos, os lábios não lhe obedeciam, uma contracção repuxava-lhe ritmicamente as faces, sob as maçãs do rosto tisnadas. O conhaque dera conta dele Mostrava a mesma expressão do boi a quem vibram uma martelada na cabeça antes de o abaterem,

- Você ainda aguenta muito Está habituado, já não lhe faz diferença afirmava Grigóri.

Também ele se encontrava francamente ébrio, mas sentia que era capaz de beber ainda muito mais.

- Acha que sim?

Chtchéglov animou-se:

- Não, não. A princípio fui-me um pouco abaixo, mas já passou, agora posso beber o que quiserem. Na verdade, o que quiserem O senhor caiu-me no goto, meu tenente. Nota-se em si, garanto-lhe, uma grande força e uma grande sinceridade. Gosto disso. Vamos fazer uma saúde à pátria desse bêbado imbecil. Evidentemente, ele não passa de um animal, mas a sua pátria é uma boa pátria “Reina sobre os mares, ó Bretanha!”

- Bebemos? Não, cheio, não. À saúde da sua pátria, Mr. Campbell!

Chtchéglov bebeu um golo, a piscar desesperadamente os olhos e comeu um bocado de presunto.

- Que país o dele, meu tenente! Nem pode imaginar! Eu já lá estive... Vamos, à saúde!

- Seja lá o que for a nossa mãe, sempre a estimamos mais do que a mãe dos outros...

- Não vamos agora discutir! À saúde!

- À saúde!

- Quanto à nossa pátria, precisamos de a limpar, nem que seja a ferro e a fogo, mas não temos força para isso. Afinal de contas, é como se não tivéssemos pátria. Bom, que ela vá para o diabo! O Campbell não acredita que sejamos capazes de vencer os vermelhos.

- Não acredita?

- Não, não acredita. Tem má opinião acerca do nosso exército e diz bem do dos vermelhos.

- Ele combateu? Eu compreendo-o. Esteve quase a cair nas mãos dos vermelhos. Maldito conhaque!

- É forte. Isto parece álcool puro!

- Um pouco mais fraco. Foi a cavalaria quem tirou Campbell daquela enrascada, de contrário estaria frito. A coisa passou-se em Jukov. Nesse dia, os vermelhos apanharam-nos um tanque... Você parece estar triste. Que lhe aconteceu?

- A minha mulher morreu há pouco.

- Isso é horrível. Tem filhos?

- Tenho.

- À saúde dos seus filhos. Eu cá não tenho filhos, ou por outra, devo ter, andam para aí a vender jornais... O Campbell tem noiva em Inglaterra. Escreve-lhe regularmente duas vezes por semana. Deve mandar-lhe dizer cada baboseira! Quase lhe tenho ódio. Que diz você?

- Eu cá não digo nada. Mas porque tem ele simpatia pelos vermelhos?

- Quem disse uma coisa dessas?

- Foi você.

- Isso não é possível. O gajo não tem, não pode ter simpatia nenhuma por eles. Está enganado. De resto, vou perguntar-lho.

Campbell escutou com atenção Chtchéglov, pálido com a bebedeira, e respondeu-lhe também demoradamente. Sem esperar que ele acabasse, Grigóri inquiriu:

- Que está ele a dizer?

- Diz que os viu atacar os tanques a pé, de sapatilhas de corda. Isso basta-lhe? É de opinião que não podemos vencer o povo. Idiota! Não acredito no que ele diz.

- Porquê?

- De um modo geral, não ligo às balelas dele.

- Que significa isso?

- O tipo está bêbado, só diz asneiras. Que significa isso:

“Não podemos vencer o povo!” Podemos exterminar uma parte e reduzir a outra à execução... Que é que eu disse? À execução... que disparate! À submissão. Quantos copos já bebemos?

Chtchéglov deitou a cabeça nas mãos, derrubando com o cotovelo uma lata de conservas. Ficou assim uns dez minutos de peito apoiado na mesa, aos soluços.

Escurecera por completo lá fora. A chuva tamborilava nas janelas. Ouvia-se ao longe um ribombar surdo, e Grigóri não conseguia perceber se era, trovoada ou o troar do canhão.

Campbell, envolto numa nuvem azulada de fumo de charuto, beberricava o conhaque. Grigóri, depois de abanar Chtchéglov, disse-lhe, a vacilar sobre as pernas:

- Escuta. Pergunta-lhe lá por que razão ele acha que os vermelhos nos devem vencer.

- Vai para o diabo! - resmungou o outro.

- Anda, pergunta-lhe.

- Vai para o diabo, já te disse!

- Pergunta-lhe, vá!

Chtchéglov, após ter fitado Grigóri durante um minuto com um ar idiota, gaguejou qualquer coisa a Campbell, que o ouviu atentamente, acabando por apoiar a cabeça nas mãos em concha. O inglês olhava-o com um sorriso de desprezo. Depois de tocar no braço de Grigóri, lançou-se numa explicação muda: empurrou para o meio da mesa um caroço de alperche, poisou a mão perpendicularmente ao lado deste, como que a compará-los, depois pô-la sobre o caroço e deu um estalo com a Língua.

- Também és dessa opinião! Isso já eu tinha descoberto antes de ti... - murmurou Grigóri, pensativo.

Abraçou, a cambalear, o amável inglês, apontou para a mesa com um gesto largo e fez-lhe a continência.

- Obrigado pela ceia. Adeusinho. Queres que te diga uma coisa? Volta depressa para a tua terra antes que te torçam o pescoço. Percebeste? Não precisas de andar a meter o nariz nos nossos assuntos. Estás a compreender? Vai-te embora, por favor, se não queres que dêem cabo de ti.

O inglês levantou-se, fez também a continência e começou a falar animadamente, lançando de vez em quando um olhar de desânimo para Chtchéglov, enquanto dava palmadas nas costas de Grigóri.

Este teve uma certa dificuldade em abrir o trinco da porta e saiu lá para fora a cambalear. Uma chuvinha oblíqua fustigou-lhe o rosto. Um relâmpago iluminou o pátio vasto, a cerca molhada, a folhagem brilhante das árvores do jardim.

Ao descer as escadas, Grigóri escorregou, caiu e ao levantar-se ouviu alguém a dizer no vestíbulo ao mesmo tempo que riscava um fósforo:

- Os oficiaizitos continuam a beber, não é verdade?

Respondeu-lhe uma voz rouca, num tom de ameaça velada:

- Tanto hão-de beber... tanto hão-de beber que acabarão por rebentar.

 

Logo que transpôs os limites do Khopr, tal como em 1918, o Exército do Don perdeu a sua força ofensiva. Os cossacos insurrectos do Alto Don e uma parte dos do Khopr teimavam na sua recusa de combater fora dos limites do Don.

Além disso aumentava a resistência das unidades vermelhas, que haviam recebido reforços e operavam agora num território cuja população lhes era favorável. Os cossacos encontravam-se mais uma vez inclinados a passar à guerra defensiva e nenhum sacrifício do comando seria capaz de os convencer a lutarem com a mesma obstinação que haviam demonstrado pouco antes na sua própria (terra. Contudo, encontravam-se em situação favorável naquela zona da frente: o 9.º Exército Vermelho, muito massacrado pelos combates e que contava onze mil soldados de infantaria, cinco mil cavaleiros e quarenta e dois canhões, tinha pela frente um conjunto de unidades cossacas representando um total de catorze mil e quatrocentos soldados de infantaria e dez mil e seiscentos cavaleiros, com cinquenta e três canhões.

As operações mais activas tinham lugar nos flancos compostos pelas unidades do Exército Voluntário do Kúbano. Ao penetrar com êxito na Ucrânia, uma parte desse exército, sob o comando do general Wrangel, exercia forte pressão sobre o 10.º Exército Vermelho, obrigando-o a recuar em direcção a Saratov, à custa de renhidos combates. A 28 de Julho, a cavalaria do Kúbano alcançava Kamichine e aprisionava a maior parte das tropas que defendiam a cidade. O contra-ataque lançado pelas unidades do 10.º Exército foi repelido. Uma audaciosa manobra da divisão de cavalaria de Kúbano-Terek ameaçava alcançar-lhe pela retaguarda o flanco esquerdo, por isso o comando do 10.º Exército fez recuar as suas tropas na direcção de Borzenkhovo-Latichev-Krasni lar-Kamenka-Bannóié.

Nesse momento, o 10.º Exército compunha-se de dezoito mil soldados de infantaria, oito mil cavaleiros e cento e trinta e duas peças de artilharia. O Exército Voluntário do Kúbano era constituído, por seu lado, apenas por sete mil e seiscentos soldados de infantaria, dez mil setecentos e cinquenta cavaleiros e sessenta e oito peças de artilharia. Porém os brancos possuíam além disto unidades de tanques e dispunham de importante número de aviões que realizavam um trabalho de reconhecimento e tomavam parte nos combates. Mas tanto os aviões franceses como os tanques e as baterias inglesas não prestaram grande serviço a Wrangel: este não conseguiu ultrapassar Kamichine. Travaram-se nesse sector longas e rudes batalhas que poucas modificações trouxeram à linha da frente.

Nos fins de Julho, os exércitos vermelhos começaram os preparativos para uma vasta 'ofensiva em todo o sector central da frente sul. Nesse intuito, o 9.º e o 10.º Exército fundiram-se num grupo de choque sob o comando de Ohórine.

Esse grupo devia ter como reserva a 28.ª Divisão, além de uma brigada do antigo distrito fortificado do Kazane, a 23.ª Divisão e ainda outra brigada do antigo distrito fortificado de Saratov. O comando da frente sul reforçava além disto o grupo de choque com tropas da reserva táctica e da 56.ª Divisão de atiradores. Devia ser lançado um ataque auxiliar em direcção a Vorónej pelas forças do 8.º Exército, apoiado pela 31.ª Divisão de atiradores retirada da frente de Leste e da 7.ª Divisão de atiradores.

O início da ofensiva geral devia efectuar-se entre o dia 1 e o dia 10 de Agosto. Segundo os planos do Alto-comando vermelho, os ataques do 8.º e do 9.º Exército seriam acompanhados por movimentos envolventes dos exércitos colocados nos flancos; deste modo, incumbia ao 10.º Exército uma missão particularmente importante, a de, operando na margem esquerda do Don, cortar a ligação com o Cáucaso do Norte às principais forças do inimigo. A oeste, uma parte das forças do 14.º Exército estava encarregada de efectuar um enérgico movimento demonstrativo no sentido da linha TchapJino-Lozoivaia.

Enquanto se faziam os necessários reagrupamentos nos sectores dos 9.º e 10.º Exércitos, o comando branco terminava a formação do corpo do Exército Mamontov, a fim de fazer abortar a ofensiva preparada pelo inimigo, romper a frente e obrigar Mamontov a executar uma incursão em profundidade na retaguarda dos exércitos vermelhos. O êxito de Wrangel no sector de Tsanitsine permitia estender a frente do exército deste para a esquerda, o que vinha encurtar a frente do exército do Dom e permitia que dele fossem retiradas algumas divisões de cavalaria. A 7 de Agosto, estavam concentrados na stanitsa de Uriiupinskaia seis mil cavaleiros, dois mil e oitocentos soldados de infantaria e três baterias de quatro peças, e a 10 de Agosto o corpo de exército recentemente formado sob o comando do general Mamontov rompia marchando de Novokhoprssk sobre Tambov a frente no ponto de reunião do 8.º com o 9.º Exército vermelhos,

O plano inicial do comando branco previa o lançamento sobre a retaguarda vermelha, além do corpo de exército de Mamontov, do corpo de cavalaria do general Konovailov.

Porém haviam-se travado combates no sector mantido por Konovailov e não foi possível retirar essas forças da frente.

Assim se explica a pequena amplitude da missão confiada a Mamontov, a quem fora recomendado que não devia entusiasmar-se, nem pensar em ir até Moscovo, mas sim reunir-se ao grosso do exército após haver desorganizado a retaguarda e as comunicações do inimigo. Quando a verdade é que as primeiras ordens consistiam em vibrar um golpe fulminante com todos os efectivos de cavalaria nos flancos e na retaguarda dos exércitos vermelhos do Centro, internando-se em seguida no coração da Rússia, de forma a engrossar pelo caminho as forças mercê de um apelo feito às camadas anti-soviéticas da população, e depois prosseguir no movimento até Moscovo.

O 8.º Exército conseguiu restabelecer a situação no flanco esquerdo lançando as suas reservas na batalha. O flanco direito do 9.º Exército ficou gravemente desorganizado. As medidas tomadas por Chorine, que comandava o principal grupo de choque, permitiram que se unissem as alas contíguas dos dois exércitos, mas não lograram deter a cavalaria de Mamontov. Por ordem de Chorine, a 56.ª Divisão de reserva foi enviada do distrito de Kirsanov ao encontro de Mamontov. Porém um dos seus batalhões de viaturas foi destruído por um dos destacamentos laterais de Mamontov. Uma brigada da 36.ª Divisão, colocada na dianteira com o fim de cobrir o troço da linha férrea Tatrabov-Bailainchov, teve a mesma sorte: foi chocar contra toda a cavalaria de Mamontov e volatilizou-se ao cabo de um breve combate.

A 18 de Agosto, Mamontov tomava Tambov na passagem. Isso, contudo, não impedia o grosso das forças do grupo de Chorine de dar início à sua ofensiva, embora a luta contra Mamontov houvesse imobilizado quase inteiramente as duas divisões de infantaria. Ao mesmo tempo, começava também a ofensiva no sector ucraniano da frente Sul.

A frente, que seguia uma linha mais ou menos recta a norte e a noroeste, desde Stári-Oskol até Balachov, com uma saliência por alturas de Tsanitsine, começou a reorganizar-se.

Os exércitos cossacos recuavam para o sul sob a pressão do inimigo, lançando frequentes contra-ataques e procurando fixar-se em todas as fronteiras naturais. Ao regressarem a terras do Don, haviam recuperado a antiga combatividade; as deserções diminuíam bruscamente; das stanitsas do médio Don chegavam reforços: à medida que as unidades do grupo de choque de Chorine penetravam no território da região do Don, a resistência tornava-se mais forte e mais aguerrida. As stanitsas do Alto-Don decidiram de moto próprio, nas suas assembleias, a mobilização geral. Celebrava-se um ofício e seguia-se imediatamente para a frente de batalha. Uma vez que o progresso na direcção do Don e do Khopr só se fazia à custa, de incessantes combates, visto ser necessário vencer a resistência encarniçada dos brancos num território onde a população se revelava nitidamente hostil aos vermelhos, o grupo de Chorine ia perdendo pouco a pouco a força ofensiva inicial.

Durante esse tempo, no sector da stanitsa de Kotlubane, o comando branco formava um poderoso grupo de manobra com três corpos do exército do Kúbano e a 6.ª Divisão de infantaria, com o fim de atingir o 10.º Exército, cujo avanço ia de vento em popa.

 

No espaço de um ano, a família Melekhov ficara reduzida a metade dos seus membros. Pantelei Prokófievitch tinha razão quando afirmava que a morte tomara o gosto pela sua casa. Mal haviam acabado de enterrar Natalia, e já o enorme quarto se encontrava de movo impregnado pelo cheiro a incenso e a miosótis. Dez dias depois da partida de Grigóri para a frente, Daria afogava-se no Don.

Era um sábado. Ao regressar do campo, resolvera ir tomar banho na companhia de Duniachka. Despiram-se junto aos pomares e ficaram muito tempo sentadas sobre a erva macia e calcada. Daria andava de mau humor desde manhã. Queixara-se de dores de cabeça e mal-estar e chorara por várias vezes às escondidas Antes de entrar na água, Duniachka enrolou os cabelos e cobriu-os com um lenço. Olhando Daria de esguelha, observou com ar compadecido:

- Estás tão magra, Daria. Tens as veias todas à flor da pele

- Dentro em pouco ficarei boa.

- Já não te dói a cabeça?

- Não. Anda tomar banho, que se faz tarde.

Tomou impulso e atirou-se à água, depois veio à tona, a resfolegar ruidosamente, e nadou para o meio do rio. A corrente forte, apanhando-a, começou a arrastá-la.

Enquanto admirava as largas braçadas masculinas de Daria, Duniachka foi entrando na água até à cintura, depois lavou-se, molhou o peito e os braços femininos, roliços mas fortes, queimados pelo sol. No pomar vizinho, as duas noras de Obzínov andavam a regar as couves. Ouviram Duniachka que gritava, a rir, para Daria:

- Volta, Dachka! Ainda te deixas apanhar por algum bordalo!

Daria voltou para trás, nadou cerca de três ságenas, depois, emergindo até meio corpo, juntou as mãos acima da cabeça e gritou: “Adeus, minhas queridas!” e afundou-se como uma pedra.

Dali a um quarto de hora, Duniachka, lívida, em fralda de camisa, chegava a casa a correr:

- A Daria afogou-se, mãe!... - murmurou num sopro.

Só no dia seguinte de manhã conseguiram retirar Daria, presa num gancho. O velho Arkhip Peskóvatsskov, o mais hábil pescador de Tatársski, atravessara de madrugada seis cordas na corrente do rio abaixo do local onde Daria se afogara.

Foi retirá-las acompanhado de Pantelei Prokófievitch. Juntara-se na margem uma turba de mulheres e crianças, entre as quais se encontrava Duniachka. Quando Arkhip, depois de prender a quarta corda com a pá do remo, se afastou mais dez ságenas, Duniachka ouviu-o nitidamente dizer a meia voz: “Parece-me que a encontrei.” com visível esforço, começou a puxar cautelosamente a linha, que mergulhava verticalmente.

Por fim surgiu qualquer coisa branca junto da margem direita, os dois velhos curvaram-se, a barca meteu um pouco de água e por fim chegou até ao grupo silencioso o baque de um corpo a cair no fundo de madeira do barco. Soltou-se um suspiro de todas as bocas. Algumas mulheres começaram a soluçar baixinho.

Khrisstónia, que se encontrava ali perto, gritou para as crianças: “Ponham-se a andar daqui para fora! Depressa!”

Através das lágrimas, Duniachka via Arkhip, de pé à popa, remando para a margem, a manejar habilmente o remo.

A barca tocou em terra, a raspar os torrões de argila da rampa.

Daria jazia com a face apoiada no fundo molhado da barca, de pernas encolhidas. No seu corpo branco, apenas azulado, viam-se alguns rasgões profundos: eram as marcas dos ganchos. Na barriga da perna bronzeada, um pouco abaixo do joelho, junto a uma liga de pano que ela por certo se esquecera de tirar, sangrava um arranhão. A ponta do gancho deslizara pela perna abaixo traçando uma linha curva, aos ziguezagues. Duniachka, a amarfanhar o avental, foi a primeira a acercar-se de Daria para a cobrir com um saco rasgado ao longo da costura. Pantelei Prokófievitch, arregaçando prontamente as calças, puxou a barca para fora de água. Dali a pouco chegou uma carroça que levou Daria para a quinta dos Melekhov.

Vencendo o terror e a repugnância que sentia, Duniachka ajudou a mãe a lavar aquele corpo gelado que conservava a frialdade das águas profundas do Don. Notava-se um certo ar estranho, uma espécie de severidade, no rosto um pouco tumefacto de Daria, no brilho baço dos seus olhos desbotados pela agua. A areia do rio cintilava como prata nos seus cabelos, os limos colavam-se-lhe às faces em filamentos verdes e húmidos. Os seus braços inertes, caídos para fora do banco, traduziam um apaziguamento tão grande que Duniachka não podia contemplá-los sem se afastar imediatamente, impressionada por ver a que ponto Daria, depois de morta, era diferente daquela rapariga que gracejava, ria e tanto amava a vida. Muito mais tarde, ao recordar a frialdade dos seios e do ventre de Daria, os seus membros inertes, outrora tão nervosos, Duniachka tremia ainda e esforçava-se por esquecer tudo aquilo o mais rapidamente possível. Temia que Daria, depois de morta, viesse persegui-la em sonhos e, antes de se deitar, orava a Deus, suplicando-lhe: “Senhor, faze com que eu a não veja em sonhos. Protege-me, Senhor!”

Se não fosse a tagarelice das mulheres da família Obnizov, que tinham ouvido Daria gritar “Adeus, minhas queridas”, a afogada iria a enterrar tranquilamente e sem barulho; porém aquele grito, revelando que ela procurara voluntariamente a morte, chegou aos ouvidos do Pope Vissarione, o qual declarou com decisão que não celebraria ofícios por uma suicida.

Pantelei Prokófievitch indignou-se:

- O quê? Não queres celebrar os ofícios? Então ela não era baptizada?

- Não posso fazer o enterro dos suicidas. É proibido pela lei.

- No teu entender, portanto, ela deve ser enterrada como um cão?

- No meu entender podes enterrá-la como quiseres, mas nunca no cemitério, onde repousam os bons cristãos.

Pantelei Prokófievitch tentou levá-lo pela persuasão:

- Ora, faz-me este favor, peço-te! Na nossa família nunca houve uma vergonha assim.

- Não posso. Tenho-te amizade, Pantelei Prokófievitch. És um paroquiano exemplar, mas não posso fazer o que me pedes. Se o vigário diocesano o viesse a saber, eu pagava-o caro teimava o Pope.

Aquilo era uma vergonha para a família. Pantelei Prokófievitch tentou por todos os meios convencer o Pope teimoso, prometeu pagar-lhe um preço mais elevado, em boas notas com a efígie de Nicolau, propôs oferecer-lhe uma ovelha de um amo, mas, ao verificar por fim que todas as suas exortações ficavam sem resposta, ameaçou:

- Não hei-de enterrá-la atrás da igreja. Não se trata de uma sujeita qualquer, é a minha nora. O marido dela foi morto na luta contra os vermelhos, era oficial; ela própria recebeu a cruz de São Jorge e tu vens-me agora com idiotices! Não, padre, isto não fica assim! Vais enterrá-la em nome do respeito que me deves. Para já, ela pode ficar em minha casa, vou fazer queixa ao atamane da stanitsa e com ele é que te hás-de entender.

Pantelei Prokófievitch saiu da casa do Pope sem se despedir e até bateu com a porta, furioso. Contudo, a ameaça produziu efeito; dali a meia hora, vinham dizer-lhe por mandado do Pope que este e o seu ajudante não tardariam a chegar.

Daria foi enterrada como devia ser, no cemitério, ao lado de Petro. Enquanto abria a cova, Pantelei Prokófievitch escolheu também um lugar para si. Observara o local e achou que não valia a pena procurar mais. E depois, para quê? Um jovem olmo, plantado havia pouco, rumorejava por cima da campa de Petro; no alto da copa, o Outono começava já a colorir-lhe as folhas do amarelo acre das coisas murchas. Penetrando através da cerca arruinada, as vitelas haviam cavado carreiros entre os túmulos; passava ali perto o atalho que conduzia ao moinho de vento; faias, choupos, acácias e também ameixoeiras bravas, plantadas por famílias saudosas, formavam um maciço de verdura, fresco e acolhedor; em volta proliferavam corriolas, colzas serôdias, de uma tonalidade amarela, tufos de aveia brava e grama. As cruzes estavam entrelaçadas de cima a baixo por grinaldas de corriolas azuis. O sítio era na verdade seco e aprazível...

O velho cavava, largando por vezes a enxada, sentava-se na terra húmida e argilosa, enquanto fumava a pensar na morte. No entanto, não chegara ainda o tempo em que os velhos podiam morrer tranquilos nas suas herdades e repousar no sítio onde os seus pais e avós haviam encontrado o derradeiro asilo.

Após o enterro de Daria, a casa dos Melekhov tornou-se ainda mais silenciosa. Recolheu-se o trigo, este foi malhado, fez-se uma bela colheita de melões. Estava-se à espera de notícias de Grigóri, pois nada mais se soubera a seu respeito desde que partira. Ilínitchna dizia muitas vezes: “Nem ao menos manda lembranças para os filhos, o miserável. A mulher morreu, e nós para ele não somos nada...” Depois começaram a aparecer cada vez com mais frequência, em Tatársski, homens fardados. Corria o boato de que os cossacos haviam sido derrotados na frente de Balachov e que recuavam para o Dom, a fim de resistirem aí durante o Inverno, utilizando o obstáculo natural do rio. Acerca do que se passaria nesse Inverno, os homens da frente eram os primeiros a declarar abertamente: “Assim que o Don ficar gelado, os vermelhos empurram-nos até ao mar.”

Pantelei Prokófievitch trabalhava com afinco na malha do trigo e parecia não ligar importância ao que se dizia, mas não podia manter-se indiferente aos acontecimentos. Sucedia-lhe gritar frequentemente com Duniachka e Ilínitchna, e fez-se ainda mais irascível quando soube que a frente se aproximava.

Muitas vezes, ao consertar qualquer alfaia da herdade, se as coisas não lhe calhavam bem, largava tudo, furioso, cuspia no chão, praguejava e refugiava-se na eira para acalmar um pouco. Duniachka foi por mais de uma vez testemunha desses acessos de furor. Um dia, quando começava a reparar a canga, o trabalho correu-lhe mal. O velho pegou no machado e, com a fúria, fez a canga em cavacos. Alguns dias mais tarde a coleira dos bois teve a mesma sorte. Foi à noite, à luz do candeeiro. Pantelei Prokófievitch tinha torcido um fio de sapateiro e começara a coser a coleira. Seria que o fio estava podre? Ou o velho demasiado nervoso? O certo é que o fio partiu-se duas vezes de seguida. Foi o bastante: Pantelei Prokófievitch deu um salto, praguejando horrivelmente, deitou o banco por terra, atirou com ele na direcção do lume com um pontapé e, a uivar como um cão, desatou a rasgar o coiro à dentada. Em seguida, atirou com a coleira ao chão e pôs-se a espezinhá-la, pulando como um galo. Ilínitchna, que fora cedo para a cama. Levantou-se, assarapantada com o barulho e, ao ver do que se tratava, não pôde deixar de censurar asperamente o velho:

- Estarás a enlouquecer, maldito, com essa idade? Que mal te fez a coleira?

Pantelei Prokófievitch fitou a mulher com os olhos esgazeados e berrou:

- Cala-te, estupor!

Agarrou num bocado da coleira e atirou-a à velha. A rir como uma maluca, Duniachka fugiu para o vestíbulo. O velho praguejou ainda um bocado, depois, acalmando, pediu perdão à (mulher pelas palavras duras que lhe dirigira, e ficou-se durante muito tempo a coçar a nuca, enquanto se lamentava em frente das ruínas da infeliz coleira, perguntando a si próprio que serventia lhes poderia dar. Estes acessos de fúria repetiam-se muitas vezes, porém Ilínitchna, instruída por uma amarga experiência, adoptara nova táctica.

Assim que Pantelei Prokófievitch começava a destruir qualquer coisa, dizia-lhe humildemente, mas numa voz bastante forte: “Anda, Prokófievitch! Parte para a frente! Estamos mesmo em condições de comprar novo!” Fingia até tomar parte no massacre. Então Pantelei Prokófievitch acalmava-se de repente, fitava a mulher durante um minuto com um olhar vago, depois procurava nos bolsos com as mãos trémulas, tirava a bolsa do tabaco e sentava-se à parte, durante uns momentos, a fumar e a acalmar os nervos, maldizendo lá no íntimo o seu mau génio, enquanto deitava contas ao prejuízo.

Um leitãozito de três meses, que se metera num canteiro, foi vítima de um desses acessos de cólera. Pantelei Prokófievitch partiu-lhe a espinha com uma picareta. Dali a cinco minutos, enquanto raspava com um prego as cerdas do animal, dizia num tom arrependido, a lançar olhares amáveis para o rosto carrancudo de Ilínitchna:

- Este porquinho... era uma catástrofe! De qualquer maneira estava condenado. Nesta idade apanham todos a moléstia. Assim, ao menos, sempre se come, aproveita-se, não é, velhota? Que tens tu para me olhares com essa cara de semana? Maldito, três vezes maldito seja ele! Se ao menos se tratasse de um porco a valer, mas é um esqueleto! Nem era preciso dar-lhe com a picareta, ele acabava por morrer com o mormo. É mau como o diabo, ainda por cima. Desenterrou-me quarenta batateiras!

- O canteiro nem chegava a ter trinta - disse calmamente Ilínitchna.

- Pois sim, mas se fossem quarenta ele estragava-as à mesma. Graças a Deus, ficamos livres dele - replicou sem hesitar Pantelei Prokófievitch.

As crianças andavam tristes depois da partida do pai.

Ilínitchna, ocupada com os trabalhos da casa, não podia dar-lhes suficiente atenção. Entregues a si mesmos, passavam dias inteiros a brincar no quintal ou na eira. Um dia, depois do almoço, Michatka desapareceu, só voltando ao pôr do sol. Ilínitchna perguntou-lhe onde estivera, e Michatka respondeu que andara a brincar com outros meninos perto do Don, mas Poliúchka desmascarou-o logo:

- Ele mente, avó. Esteve em casa da tia Akcínia!

- Como é que sabes? - perguntou Ilínitchna, surpreendida e descontente.

- Vi-o furar pela cerca do pátio dos Astakhovs.

- É certo teres lá estado? Anda, diz, porque te fizeste tão vermelho?

Michatka fitou a avó nos olhos e respondeu:

- Eu menti, avó... Não fui ao rio, estive em casa da tia Akcínia.

- Que foste lá fazer?

- Ela chamou-me e eu fui.

- E porque mentiste, dizendo que tinhas ido brincar com os outros meninos?

Michatka baixou a cabeça um momento, mas logo ergueu o seu olhar franco, murmurando:

- Tive medo que me ralhasses...

- E porque havia eu de te ralhar? Não... Mas que te queria ela? Que estiveste lá a fazer?

- Nada. Ela viu-me e gritou: “Anda cá, vem visitar-me!” Então eu fui, ela levou-me para casa e sentou-me numa cadeira...

- E depois? - interrogou com impaciência Ilínitchna, a esconder a sua preocupação.

- Deu-me a comer filhós frias e isto...

Michatka tirou do bolso um bocado de açúcar, que mostrou com orgulho, voltando-o a guardar.

- Que te disse ela? Fez-te perguntas, com certeza.

- Pediu-me para a visitar porque se aborrecia muito sozinha e prometeu dar-me coisas boas. Pediu também para não dizer que lá tinha estado. “Se o disseres, a tua avó ralha contigo”, avisou ela.

- Ah, com que então ela disse isso! - exclamou Ilínitchna, a rebentar de indignação.- E depois? Fez-te perguntas?

- Fez.

- Acerca de quê? Que te perguntou ela? - Responde, meu queridinho, não tenhas medo.

- Perguntou se eu tinha saudades do meu paizinho. Eu disse que sim. Perguntou ainda quando é que ele voltava e se tínhamos notícias dele. Eu respondi que não sabia, que ele andava na guerra. Depois sentou-me no colo e contou-me uma história.

Michatka, com os olhos a brilharem de entusiasmo, sorria:

- Uma linda história. A história de Vaniúchka, quando os cisnes a levaram nas suas asas, e também a história de Babaniaga.

Ilínitchna escutava, de lábios cerrados, a confissão de Michatka. E declarou severamente:

- Não voltes a casa dela, meu filho. Não tornes a fazer isso. Se o teu avô sabe dá-te vergastadas. Deus queira que ele -nunca o venha a saber, tirava-te a pele. Não voltes lá, meu querido!

Apesar desta proibição severa, Michatka voltou dali a dois dias a casa dos Astakhovs. Ilínitchna ficou a sabê-lo mal deu com os olhos na camisa do neto: a manga rota que ela não tivera tempo de remendar de manhã estava cosida e no colar brilhava um botão novo. Sabendo que Duniachka, ocupada com a malha do trigo, não pudera ocupar-se durante o dia das roupas das crianças, Ilínitchna perguntou ao pequeno num tom de censura:

- Voltaste a casa dos vizinhos?

- Voltei... - respondeu Michatka, atrapalhado. E acrescentou logo: - Mas não voltarei lá, avó, não ralhes comigo...

Ilínitchna resolveu então ir falar com Akcínia, pedir-lhe para deixar Michatka em paz, não tentando conquistar-lhe a estima por meio de presentes e de histórias. “Foi aquela maldita que matou a Natalia e agora quer insinuar-se junto das crianças, servir-se delas para enfeitiçar o Grigóri. Que víbora! Pretende tornar-se minha nora com o marido ainda vivo... Mas isso nunca ela conseguirá. Como se fosse possível o Grichka querer alguma coisa dela depois de semelhante pecado!” pensava.

O seu olhar de mãe, atento e cioso, não deixara de notar que Grigóri evitara encontrar-se com Akcínia durante a sua estadia em casa. Compreendia que isso não se devia ao facto de recear os comentários das vizinhas, mas sim porque considerava Akcínia culpada da morte da mulher. Ilínitchna esperava secretamente que o suicídio de Natalia viesse a afastar definitivamente Grigóri de Akcínia, de forma que esta nunca viesse a entrar para a família.

Nessa mesma tarde, avistou Akcínia à beira do Don. Chamou-a:

- Vem cá, preciso de te falar...

Akcínia, poisando os baldes, aproximou-se calmamente.

Cumprimentou Ilínitchna.

- Escuta, menina começou Ilínitchna, fitando o belo rosto da vizinha que detestava , porque procuras tu seduzir os filhos dos outros? Que pretendes deles, chamando-os para tua casa e dando-lhes guloseimas? Quem te mandou remendar-lhe a camisa e oferecer-lhe toda a espécie de presentes? Que imaginas tu? Que os outros não podem passar sem ti? Não tens vergonha nessa cara?

- Mas eu não fiz mal nenhum! Porque me insultas, tiazinha? - respondeu Akcínia muito vermelha.

- Como, não fizeste mal nenhum? Achas que tens o direito de tocar no filho da Natalia, quando foste tu que a empurraste para a sepultura?

-Que está para aí a dizer, tiazinha? Deus lhe perdoe! Quem é que a empurrou para a sepultura! Ela fez aquilo porque quis.

- E não foi por tua causa?

- Isso, não sei.

- Mas sei eu! exclamou Ilínitchna, indignada.

- Não grite, tiazinha. Não sou sua nora para poder ralhar comigo assim. Para isso lá está o meu marido.

- Bem sei o que tu queres! Estou a ver o que tu tens dentro dessa cabeça! Não és minha nora, mas estás morta por vir a sê-lo. Primeiro seduzias as crianças para chegares até junto de Grigóri

- Nunca pensei em ser sua nora. Deves estar louca, tiazinha.

- O meu marido ainda não morreu.

- Pois é isso mesmo. Ainda não morreu, mas tu já queres agarrar outro.

Akcínia, empalidecendo muito, disse

- Não sei que mosca lhe mordeu para me cair em cima desta maneira a dizer disparates. Eu não agarrei ninguém nem faço tenções de agarrar. Se dei guloseimas ao seu neto, que mal tem isso? Não tenho filhos, sabe-o muito bem, e gosto de ver os filhos dos outros, sinto-me feliz junto deles, foi por isso que chamei o pequeno para minha casa E que grandes presentes lhe dei Um bocado de açúcar. Chama a isso um presente? Porque faço eu isso? A senhora não sabe o que diz.

- Quando a mãe dele era viva não o chamavas tu lá para casa, não. Só depois que ela morreu começaste a querer-lhe bem .

- Ele já me visitava ainda em vida da Natalia - declarou Akcínia com um sorriso ténue.

- Não mintas, desavergonhada!

- Pergunte-lho, e depois diga se estou a mentir.

- Quer seja verdade quer não, proíbo-te de voltares a chamar o menino para tua casa. E não penses que o Grigóri te aprecia mais por causa disso. Nunca serás a mulher dele, fica sabendo!

Com o rosto alterado pela cólera, Akcínia disse numa voz rouca:

- Cala-te! Ele não te vai pedir licença para isso! Não te metas na vida dos outros!

Ilínitchna queria ainda dizer qualquer coisa, mas Akcínia, voltando-lhe as costas, pegou nos baldes, pôs a vara ao ombro e desatou a andar pelo carreiro acima, entornando água pelo caminho.

Desse dia em diante não voltou a dar os bons-dias a ninguém da família dos Melekhovs. Passava, orgulhosa como o Diabo, de narinas dilatadas. Mas, ao avistar Michatka, olhava em volta com receio e, no caso de não haver por ali ninguém, corria para ele, apertava-o ao peito, beijava-lhe as faces queimadas, os olhos negros e atrevidos dos Melekhovs, murmurando palavras desconexas, a rir e a chorar ao mesmo tempo: “Meu pequeno Grigórievitch! Meu queridinho! Que saudades eu tinha de ti! Ah, que estúpida que é a tia Akcínia! É muito estúpida!”

Ficava a bailar-lhe nos lábios um sorriso trémulo e os seus olhos brilhavam de felicidade, como os de uma rapariga.

Nos fins do mês de Agosto, Pantelei Prokófievitch foi mobilizado. Todos os cossacos capazes de pegarem em armas deixaram Tatársski ao mesmo tempo que ele. Na aldeia só ficaram os inválidos, os adolescentes e os homens de muita idade. Foi uma mobilização em massa e as comissões médicas só concediam reforma aos que sofriam de doença indiscutível.

Quando Pantelei Prokófievitch recebeu do atamane a ordem de se apresentar no ponto de reunião, despediu-se rapidamente da mulher, de Duniachka e das crianças, ajoelhou-se a gemer e prosternou-se duas vezes diante dos ícones, dizendo enquanto se persignava:

- Adeus, meus bem-amados. Pelos vistos não nos tornaremos a encontrar. Deve ter chegado a minha derradeira hora.

A ordem que vos deixo é a seguinte: malhem o trigo dia e noite, tentem acabar o trabalho antes das chuvas... Se for preciso contratem um homem para vos ajudar. Se eu não estiver de volta no Outono, arranjem-se sem mim. Façam as lavras do Outono enquanto tiverem forças, semeiem pelo menos uma deciatina de centeio. Tu, velha, faz a tua obrigação, não te deixes ficar de braços caídos. Quer regressemos quer não, eu e o Grigóri, vocês vão ter cada vez mais necessidade de pão.

A guerra é a guerra, mas sem pão a vida não tem graça nenhuma.

- Vamos, que Deus vos guarde!

Ilínitchna foi acompanhar o seu homem até à praça e viu-o pela última vez a manquitar ao lado de Khrisstónia, atrás de uma carroça. Depois, a limpar os olhos inflamados ao avental, voltou para casa sem se virar para trás. Aguardava-a na eira um monte de trigo para malhar, tinha leite no forno, as crianças estavam sem comer desde manhã. Não faltavam cuidados à velha, por isso caminhava depressa, sem parar, cumprimentava em silêncio as mulheres que encontrava, não se deixando levar em conversas, e contentava-se em responder com um aceno de cabeça afirmativo quando alguma pessoa conhecida lhe perguntava em tom compadecido: “Vens de acompanhar o teu cossaco, não é verdade?”

Alguns dias depois, de madrugada, quando acabava de tirar o leite às vacas e de as soltar para a viela, preparando-se para entrar no pátio, chegou-lhe aos ouvidos um ribombar pesado e surdo. Olhou em redor e não avistou uma única nuvem no céu. Pouco depois, o ruído repetia-se.

- Estás a ouvir aquela música, tiazinha? - perguntou-lhe um velho pastor que tocava o seu rebanho.

- Qual música?

- Aquela que só dá notas baixas.

- Ouvir, oiço eu, mas não sei do que se trata.

- Não tarda que venhas a saber. Quando começarem a bombardear a nossa aldeia do outro lado do rio percebes logo.

- É o canhão. Estão a estripar os nossos velhos...

Ilínitchna, persignando-se, entrou no pátio sem responder.

O canhoneio durou quatro dias. Ouvia-se sobretudo de madrugada. Porém, quando o vento soprava de Nordeste, a tempestade dos combates longínquos soava pelo dia adiante.

Nas eiras, o trabalho interrompia-se um minuto, as mulheres persignavam-se, suspirando tristemente a pensarem nos seus homens, e murmuravam uma oração, depois os cilindros de pedra voltavam a rugir, as crianças estimulavam de novo os cavalos e os bois, as tararas recomeçavam o chinfrim, o trabalho retomava os seus direitos. Aquele fim de Agosto estava belo e maravilhosamente seco. O vento fazia voar a moinha através da aldeia, o ar achava-se impregnado de um perfume suave a centeio malhado, o sol brilhava implacavelmente, mas tudo anunciava já a aproximação do Outono. O absinto descorado tornara-se branco nos prados; na outra margem do Don, as copas dos choupos começavam a amarelar; o cheiro às maçãs tornava-se mais forte nos quintais; os longínquos horizontes mostravam-se mais nus; surgiam os primeiros bandos de gralhas nos campos desertos.

Todos os dias rolavam comboios que vinham do Oeste pela estrada dos hetmans, transportando munições para os pontos de passagem do Don. Apareceram os primeiros refugiados nas ladeiras ribeirinhas. Contavam que os cossacos batiam em retirada sempre a combater. Alguns afirmavam que esse recuo, premeditado, tinha o objectivo de atrair os vermelhos a uma cilada para em seguida os cercarem e aniquilarem. Alguns habitantes de Tatársski começavam em segredo a preparar-se para partida, aumentavam a ração dos bois e dos cavalos, enterravam de noite o trigo, as arcas e os objectos mais valiosos. O canhoneio, que se interrompera durante algum tempo, recomeçara a 5 de Setembro com renovada força. Era agora mais distinto e mais ameaçador. Os combates travavam-se a umas quarenta verstás a nordeste de Tatársski. No dia seguinte, o canhão principiou a troar a montante, lá para Oeste. A frente aproximava-se irresistivelmente do Don.

Ilínitchna, sabendo que a maior parte dos habitantes da aldeia se preparavam para partir, propôs a Duniachka que seguisse a retirada. Sentia-se confusa e perplexa, sem saber que destino dar à quinta e à casa: deveria abandonar tudo e seguir com os outros ou ficar ali? Antes de partir para a frente, Pantelei Prokófievitch falara em malhar o trigo, lembrara as sementeiras do Outono, os animais que era preciso tratar, mas nada dissera do que se deveria fazer se a frente se aproximasse de Tatársski. À cautela, Ilínitchna decidiu mandar Duniachka e as crianças para a retaguarda, na companhia de qualquer pessoa da aldeia, levando os objectos mais valiosos; quanto a ela, ficaria, mesmo que os vermelhos ocupassem a aldeia.

Na noite de 16 para 17 de Setembro, Pantelei Prokófievitch regressou inesperadamente a casa. Vinha a pé desde a stanitsa de Kazánsskaia, extenuado e furioso. Depois de repousar meia hora, sentou-se à mesa e comeu como Ilínitchna nunca o vira comer. Engoliu meia panela de sopa de couves cozidas, depois atirou-se à kacha de milho. Ilínitchna juntava as mãos de espanto:

- Meu Deus, Prokófievitch! Parece que não comias há três dias!

- E julgas que não é verdade, velha tonta? Há precisamente três dias que não provo uma migalha.

- O quê? Então lá não vos dão de comer?

- Só queria que o diabo os alimentasse com aquilo que eles lá nos dão! respondeu Pantelei Prokófievitch com a boca cheia, a ronronar como um gato. Por lá, cada um come aquilo a que pode deitar a mão, mas eu cá ainda não consegui habituar-me a roubar. Isso é bom para os novos que não têm nem sequer dez réis de consciência... Nesta maldita guerra tornaram-se todos gatunos encartados e isso assustava-me; assustava-me até ao dia em que comecei a habituar-me. Aquilo é olho vê, pé vai, mão tira... Isto deixou de ser uma guerra, é um Calvário!

- Fizeste mal em comer tanto de uma só vez. Pode fazer-te mal. Olhem só para ele, tão inchado que até parece uma aranha.

- Cala-te! Vai-me buscar leite. Uma grande malga -, Ilínitchna não podia conter as lágrimas ao ver o seu velho tão esfomeado.

- Então regressaste de todo? inquiriu ela quando o homem acabou de comer a kacha.

- Vamos ver... - respondeu ele evasivamente.

- Mandaram embora os velhos?

- Não mandaram embora ninguém. Não podem fazer uma coisa dessas no momento em que os vermelhos estão a chegar ao Don! Eu vim-me embora por minha conta.

- Mas não terás de responder por isso? - perguntou Ilínitchna assustada.

- Se me apanharem, talvez.

- Então vais esconder-te?

- Julgas que vou meter-me por aí na paródia ou fazer visitas? Pfff! Velha idiota!

Pantelei Prokófievitch cuspiu com fúria, mas a mulher não se deu por vencida:

- Oh, que asneira! Isso vai acarretar-nos ainda mais desgraças!

- Serás perseguido...

- Pois então fica sabendo uma coisa! Prefiro que me apanhem e me metam na cadeia a andar a arrastar-me pela estepe com a espingarda às costas - declarou Pantelei Prokófievitch numa voz cansada. - Já não tenho idade para fazer quarenta verstás por dia, andar a cavar trincheiras, correr ao ataque, rastejar pelo chão a fugir das balas. Essas, às vezes, não se lhes escapa. Tive um camarada de Krivaia Retchka que apanhou uma debaixo da omoplata esquerda e nunca mais se mexeu. A vida militar não é nenhuma brincadeira.

O velho foi esconder a espingarda e a cartucheira dentro do palheiro, mas, quando Ilínitchna lhe perguntou onde estava o capote, ele retorquiu, num tom reticente e macambúzio:

- Vendi-o. Ou antes, abandonei-o. Cercaram-nos tão de perto, em Chumílinsskaia, que largamos tudo e corremos como loucos. Nem sequer tive cabeça para pensar no capote... Alguns tinham peliças curtas e também as deixaram ficar por lá... Mas, Santo Deus! Que querias tu fazer do meu capote? Porque me perguntas por ele? Ainda se prestasse para alguma coisa, mas um trapo...

Na realidade o capote era novo e de boa fazenda, porém o velho negava qualquer valor àquilo que perdia. Adquirira o costume de fazer isso para se consolar. Ilínitchna bem o sabia, portanto absteve-se de falar mais no capote.

À noite decidiu-se em conselho de família que Ilínitchna e Pantelei Prokófievitch ficariam em casa enquanto pudessem a fim de protegerem os seus bens e enterrarem o trigo malhado, ao passo que Duniachka iria com a junta dos bois e com as arcas para casa de uns parentes que tinham no Tchir, em Latichev.

Este projecto não viria a cumprir-se inteiramente. Duniachka partiu, efectivamente, pela manhã, mas ao meio-dia chegava a Tatársski um destacamento punitivo de cossacos Kalmuks de Salsk. Alguém da aldeia devia ter visto Pantelei Prokófievitch a esgueirar-se para dentro de casa, porque uma hora depois da chegada do destacamento punitivo entravam quatro Kalmuks a galope na herdade dos Melekhovs. Ao avistar os cavaleiros Pantelei Prokófievitch trepou para o sótão com uma agilidade espantosa. Ilínitchna foi ao encontro dos Kalmuks.

- Onde está o teu velho? -perguntou um kalmuk já de certa idade que trazia galões de sargento. Depois entrou na herdade sem se preocupar mais com Ilínitchna.

- Está na frente. Onde querias tu que estivesse? - respondeu agressivamente a velha.

- Deixa-me entrar em tua casa. Ando a passar revista.

- Em busca de quê?

- Do teu homem! Oh, que vergonha! Tão velha e a mentir dessa maneira! - declarou o belo kalmuk, abanando a cabeça em ar de censura, enquanto descobria uma fileira de dentes brancos e regulares.

- Escusas de mostrar os dentes, meu porcalhão! Se eu te digo que ele não está é porque não está mesmo!

- Basta de palavreado! Deixa-nos entrar em casa, senão fazemo-lo à força - disse com severidade o Kalmuk, enquanto caminhava, irritado, em direcção à escada, dando grandes passadas com as pernas tortas.

Percorreram cuidadosamente os quartos, trocando uns com os outros algumas palavras em Kalmuk, em seguida dois dos soldados foram inspeccionar as dependências do pátio enquanto outro, mais baixote, bexigoso e de nariz achatado, tão moreno que parecia quase preto, arregaçava as calças e entrava no vestíbulo. Através da porta entreaberta, Ilínitchna viu-o dar um salto e agarrar-se à trave, subindo depois agilmente para o sótão.

Dali a cinco minutos saltava de novo para o chão. Atrás dele descia com cautela Pantelei Prokófievitch, a resmungar, todo sujo de caliça, com teias de aranha presas à barba. Olhou para a velha, que apertava muito os lábios, e disse

- Deram comigo, os malditos. Alguém me denunciou, com certeza...

Pantelei Prokófievitch foi conduzido sob escolta até à stanitsa de Karguínsskaia, sede do tribunal militar, Ilínitchna verteu algumas lágrimas, prestou atenção ao ruído do canhoneio que recomeçara e ao crepitar nitidamente perceptível das metralhadoras do outro lado do Don, depois foi até ao pátio a fim de esconder ao menos parte do trigo.

 

Havia quatro desertores à espera de julgamento. A justiça era rápida e impiedosa. O capitão, já muito idoso, que presidia às sessões, perguntava aos acusados o nome e apelido, a sua patente e a unidade a que pertenciam, informava-se do número de dias que o acusado andara fugido e, depois de trocar algumas palavras com os membros do tribunal um tenente maneta e um alferes de bigodaças e cara bolachuda, que engordara por não fazer nada proferia a sentença. A maior parte dos desertores eram condenados a levar vergastadas, castigo esse administrado pelos Kalmuks numa casa deserta, especialmente destinada a isso. Havia demasiados desertores no belicoso Exército do Don para que pudessem ser vergastados publicamente, como sucedera em 1918...

Pantelei Prokófievitch era o sexto. Pálido e emocionado, achava-se de pé em frente da mesa dos juízes, com a mão na costura das calças.

- O teu nome? - inquiriu o capitão sem fitar o acusado.

- Melekhov, Vossa Nobreza.

- O apelido e patronímico?

- Pantelei Prokófievitch, Vossa Nobreza.

O capitão, erguendo os olhos, observou fixamente o velho.

- Donde és tu?

- Da aldeia de Tatársski, stanitsa de Viochénsskaia, Vossa Nobreza.

- Não és pai do tenente Grigóri Melekhov?

- Exactamente, Vossa Nobreza, sou pai dele.

Pantelei Prokófievitch recobrara de súbito a coragem, afigurava-se-lhe que as vergastadas se afastavam do seu velho corpo.

- Escuta lá, como podes tu não ter vergonha? – declarou o capitão sem desviar os olhos penetrantes do rosto emagrecido de Pantelei Prokófievitch.

Então este, fugindo ao regulamento, levou a mão esquerda ao peito e disse numa voz chorosa:

- Escute Vossa Nobreza, meu capitão! Toda a minha vida hei-de pedir por vós a Deus. Não me mande vergastar. Tive dois filhos casados... Os vermelhos mataram-me o mais velho... Tenho netos! E serei vergastado, assim velho e decrépito?

- Nós também damos lições aos velhos para aprenderem o serviço. Julgavas que te íamos dar a cruz pelo facto de haveres desertado? interrompeu o tenente maneta, que tinha um tique ao canto da boca.

- Para que queria eu a cruz? Mandem-me de novo para a minha unidade e servirei lealmente... Nem sei o que me passou pela cabeça... Foi uma tentação do diabo...

Depois Pantelei Prokófievitch disse ainda algumas palavras incoerentes acerca do trigo que era preciso malhar, da sua perna coxa, da quinta abandonada. Porém o capitão mandou-o calar com um gesto, curvou-se para o sargento e falou-lhe muito tempo ao ouvido. O sargento fez que sim com a cabeça e o capitão voltou-se de novo para Pantelei Prokófievitch:

- Bem, já não tens mais nada a dizer? Conheço o teu filho e muito me espanta que ele tenha um tal pai. Quando abandonaste a tua unidade? Há oito dias? Queres então que os vermelhos ocupem a tua aldeia e vos esfolem vivos? É esse o exemplo que dás aos jovens cossacos? A lei manda que te castiguemos condenando-te a uma pena corporal, mas em atenção à patente do teu filho poupo-te a essa vergonha. Fizeste o teu serviço militar?

- Fiz, sim, Vossa Nobreza.

- Que patente tinhas?

- Cabo, Vossa Nobreza.

- Vais baixar de posto.

E o capitão tratava-o por tu e, erguendo a voz, disse severamente:

- Vais regressar imediatamente à tua unidade. Dirás ao teu chefe de esquadrão que, por ordem do tribunal militar, foste destituído da patente de cabo. Recebeste alguma condecoração nesta guerra ou nas anteriores?... Vamos, põe-te a andar!

Não cabendo em si de contente, Pantelei Prokófievitch saiu, persignou-se em frente da cúpula da igreja e seguiu em direcção da casa, através da colina. “Agora hei-de esconder-me doutra maneira! Podem correr tudo que não me encontrarão, nem que mandem três esquadrões de Kalmuks”, pensava ele, a manquitar por cima das ervas secas.

Na estepe, disse consigo que mais valia seguir pela estrada a fim de não chamar a atenção dos cavaleiros que passavam.

“Vão logo pensar que sou um desertor. Se topo algum mais zeloso, ainda apanho vergastadas sem julgamento”, raciocinava em voz alta, ao trocar a terra lavrada pelo caminho de Verão abandonado, coberto de grama; sem saber porquê, deixara de se considerar um desertor.

Quanto mais se aproximava do Don, mais carros de refugiados ia encontrando. Era a repetição do que sucedera na Primavera anterior, quando os insurrectos haviam batido em retirada na margem esquerda do Don: vindos de todos os lados, avançavam na estepe carros e carroças carregadas de trastes domésticos, de mistura com animais, rebanhos de carneiros que faziam erguer nuvens de pó como se fossem regimentos de cavalaria... O chiar das rodas, o relinchar dos cavalos, os gritos dos homens, o tropear dos inúmeros cascos, tudo isso enchia a vastidão tranquila da estepe de um contínuo e inquietante rumor.

- Aonde vais tu, avozinho? Volta para trás. Os vermelhos vêm aí! - gritou do alto de uma charrette um cossaco desconhecido, de cabeça envolta em ligaduras.

Pantelei Prokófievitch parou, desorientado.

- Estás a mangar! Os vermelhos? Onde vêm eles?

- Estão na outra margem. E aproximam-se de Viochénsskaia.

- Queres ir ao seu encontro, é isso?

Pantelei Prokófievitch passou adiante e seguiu o seu caminho. Chegou a Tatársski era já noite. Ao descer a colina, olhou atentamente para a aldeia, ficando surpreendido com o seu aspecto deserto. Ninguém nas ruas. As casas abandonadas, de postigos cerrados, estavam silenciosas. Não se ouvia qualquer voz humana ou de animal. No entanto, junto ao Don, algumas pessoas iam e vinham com animação. Ao aproximar-se, Pantelei Prokófievitch distinguiu sem dificuldade alguns cossacos armados que tiravam os barcos da água para os conduzirem à aldeia. Tatársski fora abandonada pelos habitantes, era evidente.

Penetrando com precaução na viela, o velho dirigiu-se à sua casa. Ilínitchna e as crianças encontravam-se na cozinha.

- Aqui está o avô! - gritou alegremente Michatka atirando-se-lhe ao pescoço.

Ilínitchna, chorando de alegria, disse através das lágrimas:

- Já não contava voltar a ver-te! Olha, Prokófievitch! Diz o que quiseres, mas vou-me embora! Podem queimar tudo. Já partiram quase todos, e então hei-de ficar de sentinela a uma casa vazia, com as crianças, a fazer de parva? Atrela a burra e vamos já embora daqui Soltaram-te?

- Pois.

- Para sempre?

- Até me apanharem outra vez...

- Nesse caso não é aqui que poderás esconder-te. Esta manhã, quando os vermelhos começaram a disparar do outro lado do rio, não calculas o medo que tivemos! Eu fiquei na cave com os meninos enquanto durou o tiroteio. Depois foram repelidos. Vieram cá os cossacos, pediram-me leite e aconselharam-me a partir.

- Não eram cossacos cá da terra, pois não? - inquiriu Pantelei Prokófievitch, enquanto examinava atentamente o buraco feito por uma bala no caixilho da janela.

- Não, eram de longe, de algures nas margens do Khopr.

- Nesse caso devemos ir embora - declarou Pantelei Prokófievitch, suspirando.

Ao cair da noite foi cavar um buraco na estrumeira, escondeu lá sete sacos de trigo, tapou-os cuidadosamente e amontoou-lhe por cima bosta seca. Assim que escureceu de todo, atrelou a égua à carroça, meteu lá duas peliças, um saco de farinha, milho, uma ovelha bem amarrada, prendeu atrás da carroça as duas vacas, instalou lá dentro Ilínitchna e as crianças. Disse:

- Agora vamos por conta de Deus!

Fez sair a carroça do pátio, entregou as rédeas à velha, fechou o portão e caminhou até ao outeiro ao lado da égua sempre a assoar-se e a enxugar as lágrimas à manga do blusão.

 

A 17 de Setembro, as unidades do grupo de choque de Chorine, após uma marcha de trinta verstás, alcançaram o Don. No dia 18, logo pela manhã, as baterias vermelhas começaram a troar, desde a confluência do Medvéditza e do Don até à stanitsa de Kazánsskaia. Após uma breve preparação de artilharia, a infantaria ocupou as aldeias ribeirinhas e as stanitsas de Bukanóvsskaia, Elánsskaia, e Viochénsskaia. Nesse mesmo dia, a margem esquerda ficou limpa de brancos numa extensão de cento e cinquenta verstás. Os esquadrões cossacos bateram em retirada, passando o Don em boa ordem, e regressaram às posições já preparadas. Dispunham de todos os meios para atravessar o Don, porém os vermelhos estiveram prestes a apoderar-se da ponte de Viochénsskaia. Os cossacos tinham-na revestido de palha, regando com petróleo o tabuleiro de madeira, a fim de lhe lançarem fogo antes de se retirarem, e preparavam-se para o fazer, quando chegou um estafeta a. galope, a anunciar que um dos esquadrões do 37.º Regimento, vindo da aldeia de Perevózini, estava prestes a chegar ao ponto da travessia.

O esquadrão retardatário alcançou a ponte a todo o galope no próprio momento em que a infantaria vermelha entrava na stanitsa. Os cossacos conseguiram atravessar a ponte sob o fogo das metralhadoras, incendiando-a depois da passagem, operação esta em que, entre mortos e feridos, perderam mais de dez homens e igual número de cavalos.

Até ao fim de Setembro, os regimentos da 22.ª e 23.ª Divisão do 9.º Exército vermelho mantiveram-se nas aldeias e stanitsas da margem esquerda. Os adversários encontravam-se separados pelo rio, cuja maior largura não excedia oitenta ságenas nesta altura do ano, e em certos sítios ficava mesmo reduzida a trinta. Os vermelhos não empreendiam qualquer tentativa enérgica no sentido de atravessarem para o outro lado; aqui e ali, experimentavam passar a vau, mas eram repelidos. Em toda a extensão da frente, nesse sector, houve tiroteio cerrado durante quinze dias e uma fuzilaria encarniçada.

Os cossacos, ocupando os outeiros que dominavam a região, dirigiam o seu fogo contra os grupos do inimigo concentrados nas margens do rio, impedindo-os assim de circular durante o dia; mas como os esquadrões cossacos desse mesmo sector eram compostos pelas unidades menos combativas (velhos e rapazes dos dezassete aos dezanove anos), também estes não tentavam atravessar o Don para fazerem recuar os vermelhos, atacando-os na margem esquerda.

Depois de terem recuado para a margem direita, os cossacos esperavam logo no primeiro dia ver queimar de um momento para o outro as herdades das aldeias ocupadas pelos vermelhos, mas com grande espanto verificaram que nenhuma coluna de fumo surgia na margem esquerda. Mais ainda, os habitantes da margem que atravessavam o rio durante a noite, vinham contar que os vermelhos não tocavam em nada que pertencesse à população, antes pelo contrário, pagavam em boa moeda soviética e com generosidade tudo aquilo que consumiam, até as melancias e o leite. Isso causou a maior confusão e perplexidade entre os cossacos. Afigurava-se-lhes que, depois da insurreição, os vermelhos deviam incendiar de uma ponta à outra as aldeias e as stanitsas rebeldes; pensavam que os habitantes que haviam permanecido nas aldeias, pelo menos os homens, fossem exterminados impiedosamente; porém informações fidedignas atestavam que os vermelhos deixavam em repouso os habitantes pacíficos e tudo levava a crer que não pensavam em vingar-se.

Na noite de 18 para 19 os cossacos do Khopr, instalados em frente de Viochénsskaia, resolveram informar-se acerca daquele estranho comportamento do adversário. Um cossaco, senhor de uma voz muito forte, pôs as mãos em concha e gritou:

- Eh! Barrigas vermelhas! Porque é que vocês não queimam as nossas casas? Não têm fósforos? Venham cá pedi-los!

Respondeu-lhe uma voz no escuro:

- Se vos tivéssemos apanhado aqui, tê-los-íamos queimado a vocês juntamente com as casas.

- Estão assim tão pobrezinhos? Nem sequer têm com que acender o lume? - repetiu o homem do Khopr num tom trocista.

A outra voz respondeu-lhe, tranquila e divertida:

- Vem a nado até cá, minha puta branca! Pegamos-te fogo ao cu, que hás-de andar a coçar-te toda a vida!

Os dois postos, depois de se injuriarem durante muito tempo, trocavam meia dúzia de tiros e acalmavam.

Nos primeiros dias de Outubro, o grosso das forças do Exército do Don, isto é, dois corpos de exército concentrados no sector de Kazanskaia-Pavlosvsk, passou à ofensiva.

O 3.º Corpo do Exército do Don, que contava oito mil soldados de infantaria e mais de seis mil cavaleiros, forçou a passagem do Don perto de Pavlovsk, repeliu a 56.ª Divisão vermelha e encetou um avanço vitorioso para Leste. O 2.º Corpo do Exército de Konovailov passou o Don logo a seguir. A predominância da cavalaria permitia-lhe internar-se profundamente no dispositivo do inimigo e vibrar-lhe diversos golpes importantes. Lançada na batalha, a 21.ª Divisão vermelha de atiradores, que até ali estivera de reserva, conseguiu retardar algum tempo o 3.º Corpo do Don, mas teve de bater em retirada sob a pressão dos corpos de exército cossacos que se haviam reunido.

A 14 de Outubro, o 2.º Corpo cossaco esmagava e aniquilava quase por completo a 14.ª Divisão vermelha de atiradores.

No espaço de uma semana, na margem esquerda do Don, os vermelhos foram repelidos até à stanitsa de Viochénsskaia. Tendo ocupado essa vasta testa de ponte, os cossacos repeliram O 9.º Exército vermelho até à linha Luzévo-Chirínkine-Voróbiovka, obrigando a 23.ª Divisão do 9.º Exército a refazer a toda a pressa a frente no sector Oeste, entre Viochénsskaia e a aldeia de Kruglóvski.

Mais ou menos nessa altura, o 2.º Corpo de exército do general Konovailov e o 1.º Corpo do Don forçavam a passagem do rio nesse sector.

As 22.ª e 23.ª Divisões vermelhas, colocadas na ala esquerda, encontravam-se ameaçadas de cerco. Por isso o comandante da frente Sudeste ordenou ao 9.º Exército que recuasse sobre uma frente que partia da embocadura do rio Ikorets, seguindo uma linha que passava por Buturlinovka-Uspensskaia-Tichansskaia-Kumiljensskaia. Porém a 9.ª Divisão não conseguiu manter-se nessa linha. Os esquadrões cossacos, numerosos e heterogéneos, recrutados pela mobilização geral, passaram para a margem esquerda, juntaram-se às tropas regulares do 2.º Corpo do Exército cossaco e continuaram a repelir impetuosamente os vermelhos para o Norte. Entre 24 e 29 de Outubro, os brancos ocuparam as estações de Filónovo e Povórino e a cidade de Novokhoprssk. Mas por muito consideráveis que fossem os êxitos do Exército do Don nesse mês de Outubro, os cossacos não possuíam já aquela mesma segurança que lhes dera asas na Primavera anterior, por ocasião do movimento vitorioso que haviam efectuado nas fronteiras setentrionais da região. A maior parte dos veteranos de 1914 compreendiam que este êxito era temporário e que não poderiam aguentar-se senão até ao Inverno.

Não tardou que a situação na frente Sul se modificasse de repente. A derrota do Exército Voluntário na batalha geral na frente de Ore-Kromy e os brilhantes feitos da cavalaria de Budionny no sector de Vorónej decidiram o resultado da luta; em Novembro, o Exército Voluntário seguia para o Sul, descobrindo o flanco esquerdo do Exército do Don, e arrastou este na sua retirada.

 

Pantelei Prokófievitch e a família passaram duas semanas e meia sem história na aldeia de Latichev. Porém, assim que ouviu dizer que os vermelhos se tinham retirado do Don, o velho preparou-se para regressar a casa. A cinco verstás da aldeia desceu da carroça com ar resoluto, dizendo:

- Não tenho paciência para continuar a passo. Por causa destas malditas vacas é que não podemos seguir a trote. Diabos me levem se tinha necessidade de as ter trazido! Duniachka! Faz parar os bois! Prende as vacas à tua carroça. Eu cá sigo a trote até casa. Talvez só vá encontrar as cinzas dela...

Devorado pela impaciência, mudou os netos da sua carroça para a de Duniachka, que era mais ampla, transladou também para lá o excesso de carga e, assim aliviado, obrigou a égua a trotar ruidosamente pela estrada esburacada. Logo à primeira verstá o animal ficou coberto de suor; nunca o dono a tratara de maneira tão impiedosa: não largava o chicote, incitava-a sem descanso.

- Vais matar essa égua! Que diabo tens tu para galopar assim como um possesso? - exclamava Ilínitchna, dolorosamente sacudida pelos solavancos, agarrando-se às bordas da carroça.

- De qualquer maneira não é ela que irá chorar sobre a minha sepultura... Anda! Maldita! Estás alagada em suor... Talvez vamos encontrar apenas os escombros da nossa casa - murmurava Pantelei Prokófievitch entre dentes.

Os seus terrores não se confirmaram: a casa estava de pé, mas com os vidros quase todos partidos, a porta arrancada dos gonzos, as paredes crivadas de balas. Toda a herdade era um espelho de solidão e abandono. Um canto da estrebaria fora totalmente arrancado por um obus, outro cavara um profundo buraco junto ao poço, destruíra o abrigo deste e levara o sarilho de tirar água. A guerra, da qual Pantelei Prokófievitch fugira, viera até à sua casa, deixando nela odiosos vestígios de destruição. Os desgastes mais sérios, porém, haviam sido feitos pelos cossacos do Khopr aboletados na aldeia: tinham derrubado a cerca do gado e cavado fundas trincheiras, da altura de um homem; para pouparem trabalho haviam desfeito as paredes do celeiro e aproveitado as traves para fazerem de escoras; via-se uma seteira aberta à metralhadora no muro de pedra; na estrebaria, havia uma meda de feno espezinhada pelos cavalos; a madeira das cercas fora queimada e a cozinha de Verão estava um nojo...

Depois de examinar a casa e as dependências, Pantelei Prokófievitch apertou a cabeça nas mãos. Desta vez esqueceu o velho hábito de depreciar tudo aquilo que perdera. Que diabo! Era impossível dizer que os seus antigos bens nada valiam e só prestavam para deitar fora! Uma granja não é um capote, custara muito a construir.

- É como se nunca tivéssemos possuído uma granja! - dizia Ilínitchna suspirando.

- Por aquilo que ela valia... - respondeu vivamente Pantelei Prokófievitch. Mas não acabou a frase. Fazendo um gesto de desespero, foi até à eira.

As paredes da casa, bexigosas, mutiladas pelas balas e pelos estilhaços de obus, apresentavam um ar sinistro e desolado. O vento assobiava em todos os compartimentos, uma espessa camada de pó cobria as mesas e os bancos... Era preciso muito tempo para reparar tudo aquilo.

No dia seguinte ao regresso, Pantelei Prokófievitch dirigiu-se a cavalo à stanitsa e obteve não sem dificuldade do seu amigo oficial de saúde um certificado atestando que o cossaco Melekhov, em virtude da sua perna doente, era incapaz de fazer marchas e necessitava de tratamento. Esse atestado evitou que o mandassem para a frente. Apresentou-o ao atamane e, todas as vezes que ia à administração da aldeia, apoiando-se ostensivamente numa bengala, manquitava ora de uma perna, ora da outra.

Nunca a vida em Tatársski fora tão agitada e absurda como depois daquela retirada. As pessoas andavam de herdade em herdade a fim de reconhecerem os objectos rapinados pelos soldados do Khopr e percorriam as ravinas em busca das vacas fugidas, às manadas. Um rebanho de trezentos carneiros do cimo da aldeia desaparecera logo no primeiro dia de bombardeamentos em Tatársski. No dizer do pastor, rebentara um obus à frente dos amimais na pastagem e estes, aterrorizados, tinham fugido para a estepe, agitando as caudas volumosas. Encontraram-nos a quarenta verstás da aldeia, em território da stanitsa de Elánsskaia, oito dias depois do regresso dos habitantes. Mas, ao examinarem o rebanho, verificaram que a maior parte dos carneiros vinha de longe e trazia uma marca desconhecida nas orelhas; quanto aos da terra, haviam desaparecido mais de cinquenta. A máquina de costura dos Bogatíriov encontrava-se no pomar dos Melekhovs, e Pantelei Prokófievitch foi achar o tecto de zinco da sua granja na eira de Anikuchka. O mesmo sucedia nas aldeias vizinhas. Durante muito tempo, os habitantes das aldeias ribeirinhas viriam procurar os seus pertences a Tatársski. E durante mais tempo ainda as pessoas diriam quando se encontravam: “Não viste por aí uma vaca russa com uma estrela na testa e o corno direito partido?” Ou então: “Estará por acaso em vossa casa uma vitela castanha?”

Mais do que uma vitela, decerto, sumira-se nas marmitas das cozinhas rolantes dos esquadrões cossacos; os seus donos, porém, iludidos pela esperança, percorreram a estepe durante muito tempo, até se convencerem de que nunca mais recuperariam o perdido.

Uma vez dispensado do serviço militar, Pantelei Prokófievitch entregou-se com afinco ao trabalho de reparar as vedações. Na eira, aguardava-o um monte de trigo por malhar, minado pelos ratos vorazes, mas o velho não se resolvia a encetar a faina. Como é que se podia começar a malhar quando o pátio não tinha cerca em volta, a granja não existia e toda a herdade oferecia o aspecto desolador da ruína total? De resto, o Outono estava lindo e não era preciso ninguém apressar-se a malhar o trigo.

Ilínitchna e Duniachka caiaram as paredes de branco e ajudaram com todas as suas forças Pantelei Prokófievitch a fazer uma vedação provisória, bem como noutros trabalhos.

Conseguiram com grande custo arranjar vidros, colocaram-nos nas janelas, limparam a cozinha e o poço. O velho desceu ele próprio lá ao fundo e foi sem dúvida aí que apanhou um resfriamento; durante uma semana tossiu e espirrou e a sua camisa estava sempre ensopada em suor. Mas bastou-lhe emborcar duas garrafas de aguardente e passar uns dias deitado junto ao lume para se restabelecer por completo.

Continuavam sem notícias de Grigóri. Só no fim de Outubro é que, por acaso, Pantelei Prokófievitch soube, através de um ferido de passagem na aldeia, que Grigóri se encontrava de perfeita saúde e estava com o regimento algures no distrito de Vorónej, Esta notícia deu-lhe uma grande alegria e bebeu então a última garrafa de aguardente curativa misturada com pimentas vermelhas. Depois, altivo como um galo, passeou um dia inteiro pela herdade, dizendo a quem queria ouvi-lo:

- Não sabes a novidade? O nosso Grigóri foi um dos que tomou Vorónej. Parece que o promoveram novamente e está a comandar outra vez uma divisão, ou talvez até um corpo de exército. Digam-me onde se encontram combatentes como ele! Mas vocês já deviam sabê-lo...

O velho inventava, levado pelo desejo de fazer partilhar a sua alegria e também para se dar ares.

- O teu filho é um herói - respondiam as pessoas da aldeia.

Pantelei Prokófievitch piscava o olho com ares satisfeitos:

- Tem a quem sair! Quando eu era novo, não o digo para me gabar, não valia menos do que ele. Se não fosse esta perna marota, poderia ter conservado o meu posto. E mesmo assim... Uma divisão não digo, mas era muito capaz de comandar um esquadrão. Se nós, os velhos, estivéssemos em maior número na frente, há muito que Moscovo teria sido tomada. Ao passo que eles, não saem da cepa torta e não conseguem limpar o sebo aos camponeses...

O último com quem Pantelei Prokófievitch conversou nesse dia foi o velho Beskhlebnov. Ao vê-lo passar em frente da herdade dos Melekhovs, Pantelei Prokófievitch não se conteve que o não obrigasse a parar:

- Eh, espera aí, Filipe Aguêievitch! Como vai essa saúde? Entra, vamos conversar:.

Beskhlebnov entrou e deu os bons-dias.

- Sabes das façanhas do nosso Grichka? - inquiriu Pantelei Prokófievitch.

- Então de que se trata?

- Deram-lhe outra vez uma divisão para comandar. Imagina a quantidade de homens que ele tem à sua responsabilidade.

- Uma divisão?

- Uma divisão, pois!

- Imaginem!

- Pois é assim mesmo. Não se dá uma divisão a qualquer um, que pensas tu?

- Isso já se sabe!

Pantelei Prokófievitch, fitando o interlocutor com um ar triunfante, prosseguiu o discurso que tanto lhe agradava:

- Tenho um filho que, na verdade, causa admiração a toda a gente. Possui uma enfiada de condecorações, estás a ver? E a quantidade de vezes que foi ferido ou ficou em estado de choque? Outro qualquer teria rebentado há muito: mas não ele. Essas coisas não o aquentam, nem arrefentam. É para que se veja que ainda há verdadeiros cossacos no Don Tranquilo.

- Ainda há, isso é verdade, mas não fazem nada que se aproveite - retorquiu o velho Beskhlebnov que não era falador por natureza.

- O quê, não fazem nada que se aproveite? Vê só como repeliram os vermelhos. Já passaram Vorónej e marcham sobre Moscovo.

- Mas marcham muito devagar...

- Isso é porque não lhes convém andar depressa, Filipe Aguêievitch. Deves convencer-te que a guerra não é coisa que se faça a correr. Devagar se vai ao longe! Têm de avançar devagarinho, com todos aqueles mapas e planos... Os camponeses, na Rússia;, são como as formigas, e nós, os cossacos, quantos somos? Um punhado apenas.

- Isso é certo, mas estou em crer que os nossos não se aguentam por muito tempo. Ainda vamos ter alguma surpresa este Inverno, pelo menos é o que se diz por aí.

- Se não tomarem imediatamente Moscovo, temo-los cá outra vez, isso é mais que certo.

- E tu julgas que vão tomar Moscovo?

- Assim é preciso. Mas só Deus é que o sabe. Não acredito que os nossos lá não cheguem! Os doze exércitos cossacos estão todos a postos e mal seria que o não conseguissem.

- Só o demo é que o sabe. Mas tu, que andas a fazer por aqui? Estás farto da guerra?

- Eu? Como queres tu que combata? Se não fosse a doença haviam de ver como se luta contra o inimigo. Nós, os velhos, somos uns valentões!

- Parece que esses valentões, na outra margem do Don, fugiram tanto à frente dos vermelhos que nem um só ficou com a peliça e que alguns até fugiram nus. Toda a gente goza com isso. Dizem que a estepe ficou amarela de peliças, como se estivesse coberta de túlipas.

Pantelei Prokófievitch, lançando um olhar de esguelha para Beskhlebnov, disse secamente:

- Cá no meu entender isso não passa de uma mentira. Sim, é possível que alguns largassem os fatos para correrem mais depressa, mas aumenta-se sempre cem por cento do que sucedeu.

- Olha a grande coisa, um capote! Quero dizer, uma peliça! Então a vida não vale mais do que isso? Vale ou não, pergunto-te eu? E depois, nem todos os velhos são capazes de correr com uma peliça às costas. Nesta maldita guerra é preciso ter pernas de galgo e eu, por exemplo, onde havia de ir buscá-las? E afinal de contas, com que direito te vens queixar? Deus me perdoe, mas que tens tu a ver com essas peliças? Aqui não se trata de peliças nem de capotes, mas sim de vencer o inimigo o mais depressa possível, é isso, não achas? Bem, adeus. Estou para aqui na conversa e o meu trabalho à espera. Já encontraste a tua vitela? Continuas a procurá-la? Sim, deviam ter sido esses gajos do Khopr que ta comeram, diabos os levem! Quanto à guerra, fica descansado que os nossos hão-de vencer os camponeses.

E Pantelei Prokófievitch dirigiu-se a manquitar para o alpendre com um ar imponente.

Porém não seria assim tão fácil vencer os “camponeses”... A última ofensiva dos cossacos custara muito cara.

Dali a uma hora, o bom humor de Pantelei Prokófievitch foi toldado por uma triste nova. Enquanto estava a aplainar uma prancha para a cobertura do poço, ouviu gritos e lamentos fúnebres das mulheres. Os gritos aproximavam-se. Mandou Duniachka saber do que se tratava.

- Vai ver quem morreu disse ele, enterrando o machado no cepo.

Duniachka voltou logo, anunciando que tinham trazido da frente de Filónovo três cossacos mortos: Anikuchka, Khrisstónia e um garoto da outra extremidade da aldeia. Impressionado, Pantelei Prokófievitch descobriu-se e persignou-se.

- Deus os tenha em descanso! Que famoso cossaco ele era! declarou tristemente, pensando em Khrisstónia, que fizera com ele a viagem a pé havia ainda pouco tempo, até ao lugar de reunião das tropas.

Não podia continuar a trabalhar. A mulher de Anikuchka, gritando como se a estivessem a degolar, lamentava-se tanto que o coração de Pantelei Prokófievitch se apertava. A fim de não ouvir os berros histéricos das mulheres, fugiu para dentro de casa, fechando a porta com cuidado.

Duniachka contava a Ilínitchna, numa voz entrecortada:

- Eu vi, querida mãezinha. Olhe, o Anikuchka vem quase sem cabeça; em vez dela traz uma espécie de pasta. Oh, que horror! E cheira mal a uma verstá de distância... Não sei porque os trouxeram para cá. O Khrisstónia, esse, vem deitado de costas e ocupa quase toda a carroça, com as pernas a arrastar atrás, por baixo do capote... O Khrisstónia vem limpo e branco, branco como a espuma. Só tem um buraco debaixo do olho direito, um buraquinho do tamanho de uma moeda, e um pouco de sangue coalhado atrás da orelha.

Pantelei Prokófievitch escarrou com fúria, saiu para o pátio, pegou no machado e num remo e dirigiu-se para o Don.

- Diz à avó que fui cortar lenha miúda à outra margem, ouves, pequeno? - disse, ao partir, a Michatka que brincava junto à cozinha de Verão.

As folhas secas caíam dos choupos, com um murmúrio. As moitas de rosas bravas pareciam envoltas em chamas, as bagas vermelhas, por entre a folhagem rala, lembravam pequenas línguas de fogo. Um cheiro amargo e penetrante a casca de carvalho apodrecida invadia a floresta.

A terra estava coberta por uma espessa camada de silvas e, sob o emaranhado das hastes, escondiam-se as amoras, furtando-se ao sol. Até ao meio-dia, o orvalho mantinha-se na erva morta e fazia brilhar como prata as teias de aranha.

Apenas o martelar do pica-pau e o chilrear dos melros apreciadores de fruta sorvada vinham perturbar o silêncio.

A beleza tranquila e severa da floresta exerceu sobre Pantelei Prokófievitch um efeito calmante. Caminhava devagar por entre as moitas, empurrando com os pés o tapete húmido formado pelas folhas caídas, e pensava: “Ora aqui está o que é a vida: ainda há pouco vivos e agora estão a lavar-lhes os cadáveres. Mataram um grande cossaco! Parece que foi ontem que ele nos veio visitar, que o encontrei à beira do Don, que andámos à procura da Daria. Ah, Khnistan, Knristan, também tu apanhaste uma bala inimiga... E o Anikuchka, que era tão alegre, que gostava tanto de -beber e de rir, e agora acabou-se, está morto...” Pantelei Prokófievitch recordou-se do que dissera Duniachka e, ressuscitando na memória, com uma nitidez incrível, o rosto sorridente de Anikuchka, a sua cara de castrado, não conseguia imaginá-lo como estava agora; inerme, com a cabeça esfacelada. “Fiz mal em desafiar a Deus, orgulhando-me de Grigóri!”, censurou-se a si próprio Pantelei Prokófievitch, pensando na conversa que tivera com Beskhlebnov. Talvez a estas horas Grigóri esteja caído algures, crivado de balas. Deus nos livre disso! Que nos restaria então, a nós, os velhos?”

Uma codorniz castanha, fugindo de debaixo de uma moita, fez estremecer Pantelei Prokófievitch. Seguindo-lhe maquinalmente com os olhos o voo oblíquo e impetuoso, seguiu para diante. Perto de um charco, escolhendo uns arbustos, começou a cortá-los. Enquanto ia trabalhando, esforçava-se por não pensar em nada. No espaço de um ano, a morte ceifara tantas vidas entre os seus parentes e conhecidos que o velho sentia o coração apertado só de pensar nisso. O mundo perdia o colorido, envolto num véu negro.

- Tenho de abater aquela moita. Dará um belo feixe de varas delgadas, boas para reparar a vedação - dizia consigo em voz alta, para se furtar aos pensamentos tristes.

Terminado o trabalho, Pantelei Prokófievitch despiu o casaco, sentou-se sobre um molho de lenha cortada e, aspirando avidamente o cheiro acre das folhas murchas, contemplou longamente o horizonte, envolto numa névoa opalina, as matas novas doiradas pelo Outono, ostentando os últimos lampejos de beleza. Perto dele, erguia-se um grupo de faias, brilhando sumptuosamente sob o sol frio do Outono. As suas espessas ramagens de folhas purpurinas abriam-se como as asas de um pássaro fabuloso. Pantelei Prokófievitch ficou-se largo tempo a admirá-las. Em seguida, os seus olhos, descendo até ao charco, descobriram, na água estagnada e transparente, os lombos escuros de algumas carpas gordas a nadarem tão perto da margem que se lhes distinguiam as barbatanas, as caudas vermelhas e ondulantes. Eram oito. Desapareciam de quando em quando atrás dos escudos verdes dos nenúfares, depois regressavam à água clara, mordiscando as folhas de salgueiro submersas. O charco estava quase seco, era possível agarrá-las sem dificuldade. Após uma rápida busca, Pantelei Prokófievitch, avistando junto do pântano vizinho um cesto sem fundo, voltou ao mesmo sítio, tirou as calças e pôs-se a pescar, todo encolhido com frio. A água, agora turva, chegava-lhe aos joelhos; caminhava pelo charco fora, mergulhando o cesto até ao fundo, e depois metia a mão lá dentro, na esperança de sentir um peixe grande a borbulhar na água. Os seus esforços foram coroados de êxito: conseguiu assim apanhar três carpas com o peso de umas dez libras. Não pôde continuar a pescar porque teve uma cãibra na perna doente. Satisfeito com o resultado, saiu do charco, enxugou as pernas com musgo, vestiu-se e recomeçou a cortar lenha para aquecer. Não havia dúvida de que tivera sorte. Apanhar de uma vez cerca de um pude de peixe não acontece a qualquer.

A pesca distraíra-o, afastara-lhe da cabeça as ideias negras. Procurou um esconderijo para o cesto, no intuito de vir pescar mais tarde o resto dos peixes, e olhou em redor, para se certificar de que ninguém o vira atirar para a margem as carpas doiradas, gordas como porquinhos de leite. Agarrou por fim no feixe e nas carpas enfiadas numa vara, dirigindo-se sem pressas para o Don.

Descreveu a Ilínitchna a sua pescaria, arvorando um sorriso satisfeito, e admirou uma vez mais as suas carpas com reflexos de cobre. Porém Ilínitchna pouco partilhou da sua alegria. Tinha ido rezar junto dos mortos e regressara triste, lavada em lágrimas.

- Vais ver o Anikei? inquiriu ela.

- Não. Já sei o que são mortos. Tenho visto muitos.

- Devias lá ir. Se não fores, parece mal. As pessoas vão dizer: “Ora vejam, nem sequer veio despedir-se.”

- Deixa-me em paz, pelo amor de Deus! Não sou compadre dele, não tenho razões para me ir despedir - retorquiu Pantelei Prokófievitch, furioso, de dentes arreganhados.

Também não foi assistir às exéquias. Logo pela manhã, abalou para a outra margem e por lá se ficou todo o dia.

O dobre fúnebre fê-lo tirar o barrete e persignar-se, mas irritou-se contra o pope: não havia o direito de fazer dobrar os sinos durante tanto tempo! Bastaria um toque de cada sino, mas isto durante uma hora... “Só serve para afligir as pessoas e fazê-las pensar na morte. Bem basta o Outono para nos dar essa ideia; as folhas a caírem, os voos das aves selvagens que passam a gritar no céu azul, a erva morta caída...”

De nada servia a Pantelei Prokófievitch fugir de todas as emoções desagradáveis, estava-lhe reservado um novo choque.

Um belo dia tinham acabado de jantar , Duniachka, que olhava através da janela, exclamou:

- Olha, mais um morto que trazem da frente. Vê-se atrás da carroça um cavalo preso pela arreata. Caminham devagarinho. Há um homem a segurar as rédeas e o morto vem deitado debaixo do capote. O que conduz tem as costas voltadas para cá, não posso ver se é alguém cá da terra ou não...

Duniachka olhou mais atentamente e de súbito as suas faces tornaram-se brancas como um lençol:

- Olha, é... é... - murmurou ela indistintamente. De súbito, soltou um grito lancinante: - É o Gricha!... É o cavalo dele!

E correu para o vestíbulo a soluçar.

Ilínitchna tapou os olhos com as mãos, sem se erguer da mesa. Pantelei Prokófievitch levantou-se pesadamente do banco e foi até à porta, de mãos estendidas para a frente, como um cego.

Prokhor Zikov, abrindo o portão, lançou um olhar breve a Duniachka que descera os degraus quatro a quatro, e disse tristemente:

- Trago-vos uma visita... Não esperavam por ela?

- O nosso querido! O meu rico irmão! gemia Duniachka, a torcer as mãos.

Só então, ao ver-lhe o rosto molhado de lágrimas e Pantelei Prokófievitch imóvel e mudo no alpendre, é que Prokhor se lembrou de dizer:

- Não tenham medo, não tenham medo. Ele não está morto. Vem com o tifo.

Pantelei Prokófievitch encostou-se, a cambalear, à ombreira da porta.

- Ele não está morto! gritou-lhe Duniachka, a rir e a chorar ao mesmo tempo. O Gricha está vivo, ouviste? Trouxeram-no porque está doente. Vai dizer à mãe! Então? Despacha-te!

- Não tenhas medo, Pantelei Prokófievitch. Eu trouxe-o vivo, mas não me perguntes pela sua saúde confirmou rapidamente Prokhor, obrigando os cavalos a entrar no pátio, seguros pela rédea.

Pantelei Prokófievitch deu alguns passos inseguros e deixou-se cair num dos degraus do alpendre. Duniachka passou a seu lado como um furacão para ir sossegar a mãe. Prokhor, largando os cavalos ao fundo dos degraus, fitou Pantelei Prokófievitch.

- De que estás à espera? Dá-me um cobertor para o levarmos.

O velho continuava sentado e em silêncio. Corriam-lhe dos olhos lágrimas abundantes, mas permanecia imóvel e sem mover qualquer músculo. Ergueu duas vezes a mão para se persignar, deixando-a porém cair, incapaz de a levar até à testa. Ouvia-se qualquer coisa a ferver, a estalar-lhe na garganta.

- Parece que o susto te deu volta à cabeça disse Prokhor, compadecido. Como pude eu esquecer-me de vos prevenir? Devia estar parvo, não há dúvida. Então, levanta-te, Prokófievitch, temos de levar daqui o doente. Tens por aí um cobertor? Ou queres que o levemos antes ao colo?

- Espera aí... - disse Pantelei Prokófievitch numa voz rouca. Fiquei sem pernas. Pensei que estivesse morto... Graças a Deus... Não contava com isto...

Arrancou os botões à camisa velha, abriu-a na frente e aspirou com avidez o ar.

- Levanta-te, levanta-te, Prokófievitch insistia Prokhor.

- Só aqui estamos nós dois para o transportar, ouviste?

Pantelei Prokófievitch ergueu-se com visível esforço, desceu os degraus, arredou o capote e curvou-se sobre Grigóri inconsciente. Ouviu-se de novo qualquer coisa a ferver na sua garganta, mas, dominando-se, voltou-se para Prokhor:

- Agarra-o tu pelos pés, vamos levá-lo.

Transportaram Grigóri para o quarto grande, descalçaram-lhe as botas, estenderam-no sobre a cama. Duniachka, na cozinha, soltou um grito:

- Pai! A mãe está a sentir-se mal... Vem cá!

Ilínitchna jazia no chão da cozinha. De joelhos, Duniachka borrifava-lhe com água o rosto azulado.

- Corre, vai chamar a tia Kapitonovna, depressa! Ela sabe fazer sangrias. Diz-lhe que é preciso tirar sangue à tua mãe, que traga o seu instrumento, disse Pantelei Prokófievitch.

Porém uma rapariga solteira como Duniachka não podia andar de cabeça descoberta a correr nas ruas da aldeia. Agarrou no lenço e disse, enquanto tapava a cabeça:

- Olha que assustas os pequenos. Santo Deus, que desgraça!

-. Olha por eles, pai, volto num instante.

Por sua vontade, Duniachka teria ainda deitado uma olhadela ao espelho, mas Pantelei Prokófievitch, que voltara a sentar-se, fitou-a de tal maneira que ela saiu a correr da cozinha.

Ao transpor o portão, avistou Akcínia. O seu rosto pálido estava completamente exangue. Apoiou-se à cerca, com os braços inertes e pendentes. Nem uma lágrima se via brilhar nos seus olhos negros e embaciados, mas Duniachka leu neles uma súplica muda e um sofrimento tão intenso que parou um segundo e disse sem querer, admirada consigo mesma:

- Está vivo. Está vivo. Vem com o tifo.

E partiu a correr rua abaixo, segurando com a mão os seios altos que baloiçavam

Algumas mulheres curiosas, surgindo de diversos lados, acorreram a casa dos Melekhovs. Viram Akcínia afastar-se do portão em passos lentos, depois acelerar a. marcha, e, curvando-se, tapar o rosto com ambas as mãos.

 

No fim de um mês, Grigóri estava curado, Levantou-se no dia 20 de Novembro; alto, esquelético, percorreu o quarto num passo incerto e deteve-se defronte da janela.

Sobre a terra e os tectos de colmo dos telheiros, a neve fresca cintilava com um brilho ofuscante. Viam-se rastos de trenó na viela. O gelo azulado que cobria as árvores e as cercas como uma pelagem brilhava e irisava-se sob os raios do sol poente.

Grigóri demorou-se muito tempo à janela, sorrindo pensativamente, a afiar o bigode com os dedos ossudos. Tudo se lhe afigurava insólito, novo e cheio de significado. Dir-se-ia que a doença lhe apurara a vista. Começou a descobrir objectos desconhecidos à sua volta e a descortinar mudanças naqueles que conhecia de há muito.

Revelavam-se nele novas facetas do seu carácter: uma curiosidade, um interesse por aquilo que se passava na aldeia e na herdade. Tudo para ele adquiria um sentido novo e oculto, tudo lhe atraía a atenção. Observava com uns olhos um pouco espantados esse mundo que reencontrava, e um sorriso cândido, infantil, ficou por muito tempo a pairar-lhe nos lábios, mudando-lhe de maneira estranha o aspecto do rosto, a expressão dos olhos ariscos, suavizando as pregas duras que tinha aos cantos da boca. Por vezes examinava um objecto caseiro que conhecia desde a infância, franzia as sobrancelhas com um ar preocupado, como um homem que ao regressar de um país longínquo e estranho visse aquilo pela primeira vez. Ilínitchna ficou muito surpreendida no dia em que o viu observar por todos os lados uma dobadoira. Assim que ela entrou no quarto, Grigóri afastou-se, um pouco atrapalhado. Duniachka não conseguia olhar sem se rir para o vulto dele, comprido e ossudo. Cirandava pelo quarto, em trajes menores, a segurar com a mão as ceroulas que lhe escorregavam, curvado, deslocando sem firmeza as pernas longas e secas. Ao sentar-se segurava-se sempre a qualquer coisa para não tombar. Os seus cabelos negros, crescidos durante a doença, estavam a cair e o topete frisado pendia, estriado de abundantes fios brancos.

Rapou a cabeça com o auxílio de Duniachka e, quando se voltou para a irmã, esta deixou cair a navalha no chão, apertou o ventre com as mãos e atirou-se para cima da cama a rebentar de riso.

Grigóri esperou pacientemente que ela acabasse de rir; por fim, não podendo mais, disse-lhe numa voz muito fraca e trémula:

- Tem cuidado, vê lá se te mijas! Depois terias vergonha, já não és nenhuma criança.

Tremia-lhe na voz um certo despeito.

- Oh, meu rico irmão! Meu rico irmão! Tenho de me ir embora daqui . Já não posso mais. O que tu pareces! Um verdadeiro espantalho! dizia ela entre dois ataques de riso.

- Só queria saber como tu havias de ficar, se tivesses o tifo. Apanha lá a navalha, anda!

Ilínitchna, tomando o partido do filho, disse, irritada:

- Por que diabo estás tu a relinchar assim? És uma estúpida, Duniachka.

- Mas olha, mãe, o que ele parece! - exclamou Duniachka a limpar os olhos. - Tem a cabeça toda cheia de bossas, redonda como uma melancia e tão preta como... Oh! Não posso mais!...

- Dá cá o espelho pediu Grigóri.

Viu-se num caco de espelho, rindo-se por sua vez, em silêncio.

- Mas porque rapaste a cabeça, meu filho? Era melhor ficares como estavas observou Ilínitchna descontente.

- Achas que era melhor ficar careca de todo?

- Não, mas assim é uma vergonha.

- Ora, deixa-me em paz - respondeu Grigóri despeitado, enquanto fazia espuma com o pincel da barba.

Como não podia sair, ocupava-se dos filhos durante muito tempo. Conversava com eles acerca de tudo, excepto de Natalia.

Certa vez Poliúchka perguntou-lhe, enquanto lhe ia fazendo meiguices:

- Ó pai, a mãe volta para nossa casa?

Não, minha querida, donde ela está não se volta mais...

- Donde? Do cemitério?

- Quero dizer que os mortos não voltam...

- Mas ela está mesmo morta?

- Está, pois, claro que está morta...

- Mas eu pensei que ela teria saudades nossas e que voltaria...retorquiu a pequenita num murmúrio.

- Não penses mais nela, minha querida, não deves pensar - declarou Grigóri numa voz surda.

- Como é que eu não hei-de pensar nela? Então os mortos nunca vêm saber notícias nossas? Não?

- Não. Anda, vai-te embora, vai brincar com o Michatka

Grigóri voltou as costas à filha. A doença enfraquecera-lhe a vontade; vinham-lhe lágrimas aos olhos e, para as ocultar das crianças, ficava muito tempo voltado para a janela, com a cara apoiada no vidro.

Não gostava de falar com os filhos acerca da guerra, porém Michatka interessava-se por esse assunto mais do que por qualquer outro no mundo e apertava o pai com perguntas: como é que se faz a guerra e o que são os vermelhos? Com que é que eles se matam? E porquê? Grigóri cerrava as sobrancelhas e respondia irritado:

- Lá começas outra vez! Mas que tens tu a ver com a guerra? Vamos antes falar da pesca à linha que havemos de fazer este Verão. Queres que eu te arranje uma linha de pesca?

Logo que possa ir lá para fora faço-te uma com fio de crina. Sentia-se envergonhado quando Michatka lhe falava na guerra: não conseguia responder às perguntas simples e ingénuas da criança Porquê? Não seria por se sentir incapaz de responder igualmente às suas próprias interrogações? Mas era-lhe igualmente impossível obrigar Michatka a desistir: o pequeno parecia escutar atentamente os projectos de pesca do pai e de súbito inquiria:

- Tu, pai, também mataste homens na guerra?

- Deixa-me em paz, meu chato!

- Faz impressão matar homens? Eles deitam muito sangue quando a gente os mata? Mais do que uma galinha ou um carneiro?

- Já te disse que não se fala nisso!

Michatka calava-se durante um minuto, depois tornava, pensativo:

- Eu vi ainda há pouco o avô matar um carneiro. E não tive medo Talvez tivesse um bocadinho... mas não muito.

- Manda-o embora daqui! - exclamou Ilínitchna furiosa. - Parece que tem instintos de assassino! É mesmo um malvado! Só fala na guerra, não pensa noutra coisa! Isso são assuntos que te interessem, meu desgraçado! Deus me perdoe! Anda cá, vem comer uma filhó.

Mas a guerra não permitia que alguém a esquecesse. Todos os dias vinham cossacos da frente para visitar Grigóri e falavam da derrota de Chkuro e de Mamontov em face da cavalaria de Kudínov, dos combates mal sucedidos perto de Orei, da retirada que começara em todas as frentes. Tinham morrido mais dois homens de Tatársski, em Gribanovka e em Kardaíl. Guerassomo Atvatkine regressou ferido. Mitri Golóchtchokov morreu com o tifo. Grigóri contou mentalmente todos os cossacos da aldeia mortos no decurso das duas guerras: cada família de Tatársski perdera um homem.

Grigóri ainda não tinha posto os pés na rua, já o atamane da aldeia vinha procurá-lo trazendo uma ordem do atamane da stanitsa a intimar o tenente Melekhov a apresentar-se o mais depressa possível à junta médica.

- Responde-lhe que irei por minha livre vontade, sem ser preciso convocar-me, logo que possa andar – retorquiu Grigóri de mau humor.

A frente aproximava-se do Don. Já havia quem falasse em retirada. Em breve foi lida na praça do mercado uma comunicação do atamane do distrito ordenando a todos os cossacos adultos que se juntassem à retirada.

Pantelei Prokófievitch, ao regressar a casa, informou disto Grigóri, perguntando-lhe:

- Que vamos nós fazer?

Grigóri encolheu os ombros:

- Que queres tu que façamos? Temos de partir. Há quem não tenha esperado pela ordem para o fazer.

- Não é isso o que eu pergunto. Quero saber se partimos juntos ou não.

- Não podemos partir juntos. Dentro de dois dias irei a cavalo à stanitsa para saber quais as divisões que passam por Viochénsskaia e tratarei de me juntar a uma delas. Tu deves partir com os outros refugiados. Ou preferes entrar num corpo de tropas?

- Oh, isso não! - respondeu Pantelei Prokófievitch, aterrado.

- Partirei com o tio Beskhlebnov. Ele propôs-me noutro dia irmos juntos. É um velho muito calmo e tem um bom cavalo. Fazemos companhia um ao outro. A minha égua também engordou muito. Tem comido tanto que agora dá cada parelha de coices que é de fugir!

- Bem, vai então com ele -, aprovou Grigóri. Entretanto - vamos lá combinar o teu itinerário. Talvez eu possa seguir o mesmo caminho.

Grigóri tirou do estojo um mapa do Sul da Rússia e explicou pormenorizadamente ao pai as aldeias por onde havia de passar. Começara a riscar sobre o mapa o nome dessas aldeias quando o velho, que contemplava o mapa com respeito, o interrompeu:

- Espera aí, não escrevas. É certo que, dessas coisas, sabes mais do que eu, e um mapa é uma coisa muito séria, não mente e mostra-nos o caminho mais curto. Mas como hei-de segui-lo se ele não me convier? Tu dizes que é preciso passar primeiro por Karguínsskaia, e isso compreendo eu, é mais curto o trajecto, mas de qualquer modo tenho de fazer um desvio.

- Um desvio para quê?

- Porque tenho uma prima em Latichev e em casa dela encontrarei comida de graça para mim e para os cavalos, ao passo que nas casas dos outros tenho de pagar. Dizes depois que devemos passar pela vila de Astakhovo porque é o caminho mais directo, mas a mim convém-me ir por Malakhóvsski: também lá tenho família e um camarada do regimento. Aí, igualmente, não precisarei de gastar o meu feno, sirvo-me do dos outros. Não te esqueças de que não posso levar um palheiro e, longe de casa, nunca se sabe se encontraremos alguém que nos dê feno, mesmo a troco de dinheiro.

- Não terás também alguns parentes do outro lado do Don? - inquiriu perfidamente Grigóri.

- Lá isso tenho.

- Talvez também queiras ir até lá?

- Deixa-te de brincadeiras! - explodiu Pantelei Prokófievitch.

- Falo a sério, nada de gracinhas. Não é altura de estarmos com piadas, meu palerma.

- E eu acho que não é altura de andares a visitar toda a tua parentela. Não estamos no Carnaval para andarmos pelas casas uns dos outros.

- Não preciso que me digas onde devo ir. Sei-o muito bem!

- Então, se sabes, vai para onde quiseres!

- Não és tu que me vais dizer por onde devo ir. Tens o teu mapa, não é verdade? Mas olha que só as gralhas é que voam a direito. Achas que eu devo ir enfiar-me em qualquer descampado onde talvez nem sequer haja estrada durante o Inverno, só porque é mais perto? E és tu, com a tua inteligência, que me dizes semelhante disparate? E comandas tu uma divisão, imagine-se!

Grigóri e o pai discutiram durante muito tempo. Por fim, Grigóri, reconhecendo que havia uma certa razão no que dizia o velho, terminou num tom conciliador:

- Não te zangues, pai. Não te estou a obrigar a seguir o meu itinerário. Vai por onde quiseres. Eu tentarei encontrar-me contigo na outra margem do Donetz.

- Podias ter dito isso logo de entrada! - declarou Pantelei Prokófievitch, radiante. Metes-me os teus mapas debaixo do nariz, mostras-me os teus itinerários, mas esqueces-te de que os mapas podem ser muito bons, mas os cavalos não avançam se não lhes dermos de comer.

O velho tinha começado os preparativos para a partida ainda durante a doença do filho. Alimentara a égua com particular cuidado e preparara o trenó. Mandara fazer botas de feltro e pusera-lhe ele próprio solas de coiro para não andar com os pés molhados em tempo de chuva. Arranjara com antecedência alguns fardos de boa aveia. Preparara-se para aquela retirada como um verdadeiro lavrador, munindo-se de tudo o que lhe poderia ser necessário pelo caminho. O machado, a serra, o formão, as ferramentas de sapateiro, o fio, as solas, os pregos, o martelo, um rolo de correias, cordel, bocados de cola, tudo, sem esquecer as ferraduras e os cravos, tudo isto ele embrulhou num oleado a fim de poder ser metido no trenó de um momento para o outro. Pantelei Prokófievitch levava também consigo um peso e, quando Ilínitchna lhe perguntou para que precisava ele disso pelo caminho, respondeu num tom de censura:

- Pobre mulher! Quanto mais velha, mais estúpida. Será possível que não compreendas uma coisa tão simples? O feno, os farelos, não se compram a peso? É com archines que se mede o feno?

- Então por lá não há balanças?

- E tu conhece-las, as balanças deles? - retorquiu, furioso, Pantelei Prokófievitch. - Podem estar todas mal aferidas, para nos enganarem. É assim mesmo. Conheço-os de ginjeira. Pagamos um pude (Peso correspondente a 1,38 kg) e dão-nos trinta libras. Eu cá antes quero levar comigo o peso do que sofrer uma perda dessas em cada paragem. Vocês aqui podem muito bem passar sem a balança. Para que vos serviria ela? Os militares que vão por aqui passar levam o feno sem o pesarem Mal dão tempo a que se lhes encham as carroças. Já os conheço, esses diabos sem cornos, estou farto de os conhecer.

A princípio, Pantelei Prokófievitch fizera tenção de levar uma carroça sobre o trenó para não ter de gastar dinheiro quando precisasse dela na Primavera, mas renunciou a esse projecto arriscado.

Grigóri, por seu lado, também fez os preparativos necessários. Limpou as pistolas “Mauser” e a espingarda, afiou o sabre, seu amigo fiel. Oito dias depois de se encontrar restabelecido, foi visitar o cavalo e, ao ver-lhe a garupa reluzente, não pôde deixar de ver que o velhote não se limitara a tratar bem da égua. Montou, não sem dificuldade, no animal folgado e fê-lo galopar a preceito No regresso, avistou ou pelo menos pareceu-lhe ver um lenço branco a agitar-se à janela da casa dos Astakhovs.

Na assembleia de Tatársski, os homens tinham combinado partirem todos juntos. Durante dois dias, as mulheres haviam passado o tempo a cozinharem toda a espécie de provisões.

A partida fora fixada para o dia 12 de Dezembro. Na véspera à noite, Pantelei Prokófievitch carregou o trenó com feno e aveia e, logo ao romper do dia, envergou a túnica, apertou o cinto, enfiou nele as luvas, fez as suas orações e despediu-se da família.

Dali a pouco, um cortejo enorme deixava a aldeia em direcção às colinas. As mulheres ficaram muito tempo a acenar com os lenços, mas nisto uma rajada de vento ergueu-se na estepe e uma cortina opaca de neve escondeu da vista os trenós que trepavam lentamente a encosta, bem como os homens que caminhavam ao lado destes.

Antes de partir para Viochénsskaia, Grigóri esteve com Akcínia. Foi visitá-la à noite, já com as luzes acesas. Akcínia estava a fiar. Sentada ao lado dela, a viúva de Anikuchka fazia meia e contava uma história. Ao entrar, Grigóri disse rapidamente para Akcínia:

- Vem cá fora um instante, preciso de te falar.

No vestíbulo, poisou-lhe a mão no ombro e disse-lhe:

- Serás capaz de vir comigo na retirada?

Akcínia não respondeu logo. Por fim disse baixinho:

- E a quinta? E a casa?

- Deixa alguém encarregado delas. Tens de vir.

- Quando?

- Amanhã venho buscar-te.

A sorrir no escuro, Akcínia murmurou baixinho:

- Recordas-te de eu te ter dito há muito tempo que iria contigo até ao fim do mundo. Não mudei de ideias. O meu amor por ti mantém-se fiel. Irei contigo, nada me impedirá. A que horas te espero?

- À noite. Não leves muita coisa. Alguns fatos e toda a comida que puderes, mais nada. Até manhã.

- Adeus. Podias entrar... Ela vai-se embora daqui a pouco. Há um século que te não vejo . Meu querido Grichenka! E eu a julgar que tu Não, não te digo.

- Não quero que mo digas. Agora temos de ir a Viochénsskaia.

- Adeus. Até amanhã.

Grigóri já ia ao portão e ainda Akcínia, de pé, no vestíbulo, sorria e apertava as faces com as mãos escaldantes.

Em Viochénsskaia, começara a evacuação dos serviços do distrito e dos armazéns da intendência. No gabinete do atamane do distrito, Grigóri informou-se acerca da situação na frente. Um jovem sargento que desempenhava as funções de ajudante-de-campo disse-lhe:

- Os vermelhos alcançaram a stanitsa de Alexeievsskaia. Não sabemos quais as unidades que transitarão por Viochénsskaia, nem mesmo se por cá passarão algumas. Como vê, ninguém sabe nada e todos tratam mas é de fugir. Aconselho-o a não procurar já a sua unidade. Vá primeiro a Milerovo onde poderá mais facilmente saber onde ela se encontra. Seja como for, o seu regimento deve seguir por caminho-de-ferro. Conseguiremos deter o inimigo no Don? Quanto a mim, não o creio. Viochénsskaia entregar-se-á sem combate, isso não oferece dúvidas.

Grigóri regressou à aldeia de noite, já muito tarde. Enquanto preparava a ceia, Ilínitchna disse-lhe:

- Passou por cá o teu Prokhor. Talvez uma hora depois de teres saído. Prometeu voltar mas ainda não apareceu.

Muito satisfeito, Grigóri, depois de cear rapidamente, dirigiu-se a casa de Prokhor. Este recebeu-o com um sorriso triste.

- Julguei que tinhas seguido directamente de Viochénsskaia.

- Donde raio vens tu? - inquiriu Grigóri, rindo, a bater nas costas da sua fiel ordenança.

- Donde é que havia de ser! Da frente.

- Fugiste?

- Que ideia! Benza-te Deus! Fugir, um valente guerreiro como eu? Vim de licença, não queria ir para os países quentes sem ti. Pecamos juntos, é juntos que nos apresentaremos no Juízo final. Estamos a passar um mau bocado, sabes tu?

- Bem sei. Mas conta-me como é que te deixaram sair do regimento.

- Isso é uma história muito comprida. Mais tarde conto-ta! - respondeu evasivamente Prokhor, tornando-se ainda mais pensativo.

- Onde ficou o regimento?

- O diabo é que o sabe. Ficou onde está.

- Mas quando é que o deixaste?

- Há quinze dias.

- E onde estiveste durante todo esse tempo?

- Não sei como tu és, Santo Deus... - exclamou Prokhor, mal humorado, lançando um olhar de viés para a mulher. - Onde? Como? Porquê?... Onde é que estive? Já nem sei bem... Disse que te contaria depois e hei-de contar-te. Hé, mulher? Há por aí vodka? Quando uma pessoa volta a encontrar o seu comandante deve-se beber uns copitos. Há ou não há? Não há? Então vai buscá-la, avia-te. Na ausência do teu marido perdeste a disciplina militar. Estás relaxada.

- Mas porquê tanto barulho? - respondeu, sorrindo a mulher de Prokhor. Não berres comigo. Não te ponhas a armar em mandão. Só passas em casa dois dias por ano...

- Toda a gente berra comigo. com quem hei-de eu berrar senão com a mulher? Espera que eu seja general para poder também berrar com os outros. Para já, tem paciência, põe o xale e despacha-te!

A mulher vestiu-se e saiu. Prokhor fitou Grigóri com ar de censura e disse:

- Não compreendes nada, Panteleiévitch... Não posso dizer tudo diante da mulher e tu a insistires para saberes como e porquê. Então, estás melhor do tifo?

- Sim, estou melhor. Mas fala-me antes de ti. Escondes-me qualquer coisa, meu patife... Explica-te. Como é que te arranjaste?

- Como conseguiste fugir?

- Fiz pior do que se tivesse fugido. Depois de te ter trazido a casa doente regressei à unidade. Puseram-me no terceiro pelotão. Sabes como eu gosto de fazer a guerra! Fui duas vezes ao ataque e depois disse comigo: “Aqui não tarda que te limpem o sebo. Tens de arranjar um buraquinho onde te escondas, Prochka, senão estás perdido. Isso é limpinho.” Depois, logo por azar, começou a haver daquelas batalhas... empurravam-nos para a frente, não nos deixavam descansar. Assim que se abria uma brecha, lançavam-nos para esse lado. Sempre que as coisas corriam mal algures, quem amargava éramos nós. Numa semana, a guerra roubou onze homens ao nosso esquadrão, assim sem mais nem menos. Então comecei a chatear-me a tal ponto que até criei piolhos.

Prokhor acendeu um cigarro, estendeu a bolsa do tabaco a Grigóri, prosseguindo sem se apressar:

- Depois fui mandado em patrulha para os lados de Liski. Éramos três. Avançamos a trote sobre um outeiro, olhamos para todos os lados, e eis que um vermelho sai de uma ravina e ergue os braços. Corremos para ele a galope e o tipo desata a gritar: “Cossacos, não me matem, sou dos vossos! Não me matem, passo-me para o vosso lado!” Então, não sei o que me passou pela cabeça, desato a galopar ao encontro dele e digo-lhe: “Ouve lá, filho de uma cadela, se andas na guerra não deves render-te. Grande estúpido”, digo-lhe eu. “Não vês que nós estamos mesmo a dar as últimas? E tu rendes-te e vens reforçar-nos? Ao dizer isto, prego-lhe uma lambada nas costas com a bainha do sabre. Os outros que iam comigo também lhe explicaram. “Achas que está certo andar assim a combater, ora de um lado ora do outro, sempre a virar a casaca? Se vocês se entendessem melhor uns com os outros já teria terminado a guerra.” Mas diabos me levem se eu sabia que se tratava de um oficial! E era de verdade. Quando lhe bati com a bainha do sabre com fúria, ele fez-se pálido e disse calmamente: “Eu sou oficial. Não tentem bater-me Pertencia aos hussardos e fui mobilizado pelos vermelhos. Levem-me ao vosso chefe para eu lhe contar tudo.” Nós respondemos: “Mostra cá os teus documentos.” Mas ele tornou com firmeza: “Não faço tenção de trocar palavras com vocês. Levem-me ao vosso chefe.”

- Mas porque não querias tu falar disto diante da tua mulher? - interrompeu-o Grigóri, espantado.

- Ainda não chegámos ao ponto que eu não quero referir diante dela, não me interrompas por favor. Resolvemos pois levá-lo ao esquadrão, mas foi esse o nosso mal Devíamos tê-lo morto logo ali. A verdade é que o levamos e no dia seguinte estava ele a comandar o esquadrão. Que dizes tu a isto? Começaram então os sarilhos. A certa altura, mandando-me chamar, perguntou-me: “Então isso é que é maneira de lutares pela Rússia una e indivisível, filho de uma cadela? Que é que tu me disseste quando me prenderam? Lembras-te?” Respondi-lhe isto e mais aquilo, mas ele nada quis ouvir e quando se recordou de que fora eu quem lhe batera com a bainha do sabre entrou numa grande fúria. “Sabes”, disse-me ele, “que eu sou capitão de um regimento de hussardos e pertenço à nobreza? E tu atreveste-te a bater-me, malandro?”

Mandou-me chamar uma, duas vezes, e eu vi que nada tinha a esperar da sua benevolência. Deu ordem ao chefe do pelotão para me pôr a fazer guardas e quartos de sentinela fora da minha vez e as chatices choviam-me de todos os lados. Aquela besta tornava-me a vida impossível. Tanto a mim como àqueles dois 'que estavam comigo quando o prendemos. Os tipos aguentaram, aguentaram, até que por fim me chamaram de parte e disseram: “Temos que o matar, de contrário nunca mais nos deixa em paz.” Eu pensei e resolvi falar antes ao comandante do Regimento, porque a minha consciência não me consentia que...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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