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O DOSSIÊ ODESSA / Frederick Forsyth
O DOSSIÊ ODESSA / Frederick Forsyth

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O DOSSIÊ ODESSA

 

O Odessa do título não se refere nem à cidade desse nome no Sul da Rússia, nem à pequena cidade homônima dos Estados Unidos. É uma sigla formada pelas iniciais de seis palavras que querem dizer em alemão "Organisation Der Ehemaligen SS-Angehorigen". Traduzido, isso significa "Organização dos Ex-Elementos das SS".

As SS, como o deve saber a maioria dos leitores, foram o exército dentro do exército, o estado dentro do estado, que Adolf Hitler criou, Heinrich Himmler comandou e que foi incumbido de tarefas especiais pelos nazistas, que dominaram a Alemanha de 1933 a 1945. Essas tarefas se relacionavam em teoria com a segurança do Terceiro Reich; na prática, abrangeram o cumprimento da ambição de Hitler de livrar a Alemanha e a Europa de todos os elementos que ele considerava "indignos da vida", de escravizar perpetuamente as "raças subumanas das terras eslavas" e de exterminar da face do continente todos os judeus, homens, mulheres e crianças.

Na realização dessas tarefas, as SS organizaram e executaram o assassinato de cerca de quatorze milhões de seres humanos, compreendendo aproximadamente seis milhões de judeus, cinco milhões de russos, dois milhões de poloneses, meio milhão de ciganos e meio milhão de elementos diversos, inclusive, embora isso raramente seja mencionado, perto de duzentos mil alemães e austríacos que não eram judeus. Estes eram infelizes portadores de deficiências mentais ou físicas ou os chamados inimigos do Reich, como os comunistas, os social-democratas, os liberais,  jornalistas, repórteres e sacerdotes que falavam de maneira inconveniente, homens de consciência e coragem e, posteriormente, oficiais do exército sobre os quais recaíam suspeitas de falta de lealdade a Hitler.

Antes de sua destruição, as SS tinham feito das duas iniciais de seu nome e do símbolo de um duplo raio do seu estandarte sinônimos de desumanidade a um ponto jamais igualado antes ou depois por qualquer outra organização.

Antes do fim da guerra, os seus elementos mais categorizados, absolutamente certos de que a guerra estava perdida e sem quaisquer ilusões sobre a opinião que os homens civilizados teriam de suas ações quando chegasse o ajuste de contas, tomaram providências diversas para desaparecer numa vida nova, deixando para todo o povo alemão o ônus de assumir e dividir a culpa pelos criminosos desaparecidos. Para esse fim, vastas quantidades do ouro das SS foram levadas clandestinamente para fora do país e depositadas em contas bancárias numeradas, falsificaram-se documentos de identidade e abriram-se rotas de fuga. Quando os Aliados conquistaram afinal a Alemanha, o grosso dos assassinos em massa tinha fugido.

A organização que formaram para efetuar a sua fuga foi a Odessa: Depois de cumprida a primeira tarefa de assegurar a fuga dos assassinos para climas mais hospitaleiros, as ambições desses homens cresceram. Muitos nunca chegaram a sair da Alemanha, preferindo continuar sob a proteção de nomes e documentos falsos enquanto os Aliados governavam; outros voltaram, convenientemente protegidos por uma nova identidade. Foram bem poucos os homens da alta direção que continuaram no exterior para manobrar a organização da segurança de um exílio confortável.

Os objetivos da Odessa eram e continuam a ser cinco: reabilitar homens que pertenciam às SS nas profissões liberais da nova República Federal criada em 1949 pelos Aliados, infiltrar-se ao menos nos escalões inferiores da atividade político-partidária, pagar os melhores advogados para qualquer assassino das SS levado à barra dos tribunais e invalidar de todas as maneiras possíveis a ação da justiça na Alemanha Ocidental contra algum antigo Kamerad, assegurar a ex-homens das SS o estabelecimento no comércio e na indústria a tempo de aproveitar-se do milagre econômico que reconstruiu opaís depois de 1945 e, por fim, realizar propaganda junto ao povo alemão no sentido de que os assassinos das SS nada mais eram na realidade senão soldados patrióticos comuns que cumpriam o seu dever para com a Pátria e não mereciam absolutamente a perseguição a que a justiça e a consciência ineficazmente os submetiam.

Em todas essas tarefas, com o apoio de seus consideráveis fundos, têm sido assinaladamente bem sucedidos, especialmente quanto a reduzir a uma pilhéria a punição oficial pelos tribunais da Alemanha Ocidental. Mudando de nome diversas vezes, a Odessa tem procurado negar a sua própria existência como uma organização, em conseqüência do que muitos alemães são levados a dizer que a Odessa não existe. A resposta sucinta é a seguinte: existe e os Kameraden da insígnia da Caveira ainda estão ligados dentro dela.

Apesar dos êxitos alcançados em quase todos os seus objetivos, a Odessa sofre de vez em quando uma derrota. A pior que já sofreu se verificou no começo da primavera de 1964, quando um maço de documentos chegou inesperada e anonimamente ao Ministério da Justiça em Bonn. Esse maço ficou sendo conhecido para os poucos funcionários que chegaram a ver a lista de nomes constante de suas folhas como o "Dossiê Odessa".

 

*                         *                         *

 

Parece que não há quem não se lembre com muita clareza do que estava fazendo no dia 22 de novembro de 1963, no exato momento em que soube da morte do Presidente Kennedy. Kennedy foi ferido àS 12:22, hora de Dallas, e a notícia de sua morte foi dada às 13:30 no mesmo fuso horário. Eram 14:30 em Nova York, 19:30 em Londres e 20:30 de uma noite fria e chuvosa em Hamburgo.

Peter Miller voltava de carro para o centro da cidade depois de uma visita a sua mãe, na casa dela em Osdorf, um dos subúrbios da cidade. Visitava sempre a mãe às sextas-feiras, não só para ver se ela tinha tudo aquilo de que precisava para o fim de-semana, mas também porque achava de seu dever ir la uma vez por semana. Preferiria telefonar-lhe se ela tivesse telefone, mas, desde que não tinha, tomava o carro e ia vê-la. Era por isso que ela se negava a ter um telefone.

Como de costume, Miller tinha o rádio ligado e estava escutando um programa musical transmitido pela Rádio do Norte da Alemanha Ocidental. Às oito e meia, ele ia pela estrada de Osdorf,

a dez minutos do apartamento de sua mãe, quando a música parou de repente no meio de um compasso e a voz do locutor fez-se ouvir, cheia de emoção:

"Achtung, Achtung! Vamos dar uma notícia. Morreu o Presidente Kennedy. Vamos repetir. Morreu o Presidente Kennedy". Miller tirou os olhos da estrada e olhou para a faixa de freqüências fracamente iluminada na parte superior do rádio, como se seus olhos pudessem desmentir o que os seus ouvidos tinham escutado e assegurar-lhe que ele estava sintonizado com a estação errada, capaz de transmitir semelhantes disparates.

- Meu Deus! - exclamou ele em voz baixa, pisou no freio e virou á direção para a direita da estrada. Alongou a vista. Pela estrada longa, larga e reta que atravessava Altona rumo ao centro de Hamburgo, outros motoristas tinham ouvido o mesmo programa e estavam levando os carros para o lado da estrada como se dirigir e escutar o rádio se tivessem tornado coisas incompatíveis, o que de certo modo tinha acontecido.

Podia ver no seu lado as luzes dos freios acesas enquanto os motoristas paravam no meio-fio a fim de escutar as informações suplementares que vinham dos rádios. À esquerda, os faróis dos carros que vinham da cidade dançavam desvairadamente enquanto eles viravam também para a beira da estrada. Dois carros o alcançaram. O primeiro buzinou nervosamente e Miller viu de relance o motorista que batia na cabeça olhando para ele no habitual gesto rude que indica falta de juízo e que um motorista alemão sempre faz para outro que o atrapalhou.

"Ele não tarda a saber", pensou Miller.

A música leve no rádio tinha parado, sendo substituída pela Marcha Fúnebre, que era evidentemente a única coisa que o disc jockey tinha à mão. De vez em quando, lia pequenos trechos de novas informações chegadas pelo teletipo e que lhe eram levadas da sala de redação. Os detalhes começaram a chegar: o desfile em carro aberto na cidade de Dallas, o homem armado de fuzil na janela do Depósito de Livros Escolares. Não se falava de prisão.

O motorista do carro à frente de Miller saltou e se aproximou dele. Chegou pela janela do lado esquerdo, viu então que a direção estava inexplicavelmente à direita e deu a volta. Usava uma ja pona de nylon com gola de peles. Miller baixou a vidraça do carro. – Ouviu? - perguntou o homem, debruçando-se na janela. – Ouvi - disse Miller.

- É uma coisa fantástica, - disse o homem.

Por toda a Hamburgo, pela Europa, pelo mundo, as pessoas se estavam aproximando de gente completamente desconhecida para comentar o acontecimento.

- Teriam sido os comunistas? - perguntou o homem. - Não sei.

- Se foram eles, isso pode dar guerra, sabe disso?

- É possível, - disse Miller, desejando que o homem se fosse embora.

Como repórter, podia imaginar a agitação que havia através dos jornais do país, quando todo o pessoal era requisitado para ajudar a preparar uma edição extra. Seria preciso escrever o necrológio, obter e relacionar centenas de declarações e atender os telefones, bloqueados por gente nervosa que queria saber de mais detalhes, tudo porque um homem estava estendido com o pescoço dilacerado numa mesa de mármore, numa cidade do Texas.

Desejou estar de novo, como em outros tempos, na redação de um jornal diário, mas desde que se tornara três anos antes um freelance, especializara-se em reportagens especiais no interior da Alemanha, relacionadas principalmente com crimes, polícia e criminosos. A mãe dele detestava aquele serviço, dizendo que ele o fazia conviver com gente muito "desagradável" e os argumentos dele de que se estava tornando um dos mais solicitados repórteres-investigadores do país não conseguiam demovê-la da convicção de que aquele serviço de repórter não era digno de seu filho único.

Depois de ouvir o noticiário do rádio, seu espírito trabalhava febrilmente, tentando pensar em outro "ângulo" que pudesse ser seguido dentro da Alemanha e pudesse fazer uma boa seqüela para o assunto central. A reação do governo de Bonn poderia ser coberta de Bonn pelo pessoal das redações e as recordações da visita de Kennedy a Berlim em junho daquele ano seriam cobertas também de lá. Não parecia haver uma boa reportagem gráfica que ele pudesse arrumar para vender a qualquer das várias revistas alemãs que eram a melhor clientela para essa espécie de jornalismo.

O homem debruçado na janela do carro sentiu que a atenção de Miller estava em outro lugar e presumiu que fosse de pesar pelo presidente morto. Deixou prontamente de falar numa guerra mundial e assumiu o mesmo ar de gravidade do outro.

- Ja, ja, ja, - murmurou ele com convicção, como se tivesse certeza de tudo. - Gente violenta esses americanos, veja bem o que estou dizendo, gente violenta. Há neles uma tendência à violência que nós aqui nunca poderemos compreender.

- Claro, - disse Miller, com o pensamento ainda a quilômetros de distância. O homem percebeu afinal a insinuação.

- Bem, tenho de ir chegando para casa, - disse ele, aprumando o corpo. - Gruss Gou.

Começou a caminhar em direção ao seu carro e Miller tomou conhecimento de que ele se estava afastando.

- Ja, gute Nacht, - disse ele pela janela aberta. Levantou então a vidraça para proteger-se do vento frio que soprava do rio Elba. A música do rádio tinha sido substituída por uma marcha lenta e o locutor disse que naquela noite não haveria mais música leve, mas apenas boletins de notícias entremeados de música apropriada à situação.

Miller recostou-se no confortável estofamento de couro do seu Jagnar e acendeu um Roth-Handl, um cigarro de fumo preto sem filtro e com um cheiro horrível, outro dos motivos de queixa da mãe dele contra o filho decepcionante.

É sempre tentador pensar no que poderia ter acontecido se... Em geral, é um exercício frívolo porque o que poderia ter sido é o maior dos mistérios. Mas é talvez exato dizer que, se Miller não estivesse com o rádio ligado naquela noite, não teria encostado o carro ao lado da estrada pelo espaço de meia hora. Não teria ouvido a ambulância, não teria sabido de Salomon Tauber ou Eduard Roschmann e, provavelmente, quarenta meses depois, a república de Israel teria deixado de existir.

Acabou de fumar o cigarro ainda escutando o rádio, abaixou a vidraça e jogou a ponta fora. Ao toque de um botão, o motor de 3,8 litros sob o longo capô inclinado do Jaguar XK 150 S roncou forte e acomodou-se ao seu rugido habitual e reconfortante como um animal zangado que tenta sair de uma jaula. Miller ligou os dois faróis, olhou para trás e entrou no trânsito cada vez mais intenso da Estrada de Osdorf.

Tinha chegado ao sinal da Stresemann Strasse e estava parado diante do sinal vermelho quando ouviu o barulho da ambulância atrás dele. Esta passou por ele à esquerda, com o gemido da sirene subindo e descendo, diminuiu um pouco a marcha antes de entrar no cruzamento avançando o sinal vermelho, atravessar à frente de Miller e descer para a direita, entrando em Daimler Strasse. Miller teve uma reação exclusivamente reflexa. Embreou o carro e o Jaguar arrancou atrás da ambulância com vinte metros de diferença.

Logo depois de fazer isso, achou que talvez tivesse sido melhor ir diretamente para casa. Não devia ser nada, mas nunca se sabia. Ambulâncias significam problemas e os problemas poderiam significar uma boa reportagem, principalmente quando se era o primeiro a chegar ao local e tudo poderia estar resolvido antes que os repórteres dos jornais chegassem. Podia ser um grande desastre de carros, um grande incêndio no porto ou uma casa de cômodos em chamas com crianças presas lá dentro. Podia ser qualquer coisa. Miller levava sempre uma pequena Yashica com apêndice de flash no porta-luvas do carro porque nunca se sabia o que ia acontecer bem debaixo dos olhos.

Conhecia um homem que estava esperando um avião no aeroporto de Munique no dia 6 de fevereiro de 1958 quando o avião que levava a equipe de futebol inglesa do Manchester Uníted caiu a al gumas centenas de metros do lugar onde ele estava. O homem não era sequer um fotógrafo profissional, mas tirou do ombro a máquina que estava levando para as suas férias de esquiagem e bateu as primeiras fotos exclusivas do avião em chamas. As revistas ilustradas tinham-lhe pago 5.000 libras por elas.

A ambulância entrou pelo labirinto de ruas pequenas e miseráveis de Altona, deixando a estação de estrada de ferro de Altona à esquerda e tomando o rumo do rio.

Quem estava dirigindo aquela ambulância Mercedes de nariz chato e carroçaria alta conhecia Hamburgo muito bem e sabia guiar. Mesmo com a sua maior aceleração e a sua suspensão ajustada, Miller sentia as rodas traseiras do Jaguar derraparem nas pedras da calçada, molhadas pela chuva.

Miller viu passar por ele o depósito de peças de carros de Menck e, duas ruas depois, a sua pergunta original teve uma resposta. A ambulância entrou por uma rua pobre, mal iluminada e triste sob a chuva oblíqua, marginada de velhos pardieiros e casas de cômodos. Parou diante de uma delas, onde já estava uma viatura da polícia, com a luz azul do alto a girar lançando a sua claridade lívida através dos rostos dos curiosos agrupados em torno da porta.

Um corpulento sargento de polícia Vestido de capa fez o grupo recuar e abrir espaço para a ambulância diante da porta. Aí a Mercedes parou. O motorista e o ajudante saltaram imediatamente e correram para a traseira e tiraram de lá uma padiola vazia. Depois de trocar breves palavras com o sargento, os dois subiram às pressas. Miller parou o Jaguar junto ao meio-fio do outro lado a cerca de vinte metros de distância e franziu as sobrancelhas. Nem desastre, nem incêndio, nem crianças presas. Talvez um ataque cardíaco apenas. Saiu do carro e se aproximou do grupo que o sargento estava mantendo a distância num semicírculo em torno da porta da casa de cômodos a fim de dar um espaço livre até à traseira da ambulância. - Posso subir? - perguntou Miller.

- Claro que não. Não tem nada que fazer lá em cima.

- Imprensa, - disse Miller, exibindo sua carteira de jornalista da Prefeitura de Hamburgo.

- Que tem isso? - exclamou o sargento. - Ninguém sobe. A escada é muito estreita e não lá muito segura. O pessoal da ambulância já vai descer e isso poderia atrapalhar.

Era um homem enorme, como tinha de ser um sargento de polícia nos distritos de má fama de Hamburgo. Devia ter um metro e noventa e, metido na capa com os braços abertos para afastar os curiosos, parecia tão intransponível quanto uma porta sólida bem trancada.

- Que é que há? - perguntou Miller.

- Não posso fazer declarações. Passe pela delegacia para se informar.

Um homem em trajes civis desceu da casa e apareceu na calçada. A luz que girava no alto do Volkswagen de patrulha bateu-lhe no rosto e Miller reconheceu-o. Tinham feito o curso juntos na Escola Secundária Central de Hamburgo. Era agora detetive da polícia de Hamburgo, estacionado na Chefatura de Altona.

- Alô, Karl.

O jovem detetive se voltou ao ouvir seu nome e correu os olhos pelo grupo atrás do sargento.

Na passagem seguinte do farol giratório do carro da polícia, avistou Miller e levantou em saudação a mão direita. O rosto se abriu num sorriso em que havia tanto prazer quanto exasperação. Disse então ao sargento:

- Está certo. Ele é mais ou menos inofensivo.

O sargento baixou o braço e Miller se apressou em passar. Apertou a mão de Karl Brandt.

- Que é que está fazendo aqui? - Segui a ambulância.

- O velho instinto do abutre. Que é que está fazendo agora? - O mesmo de sempre. Jornalismo avulso.

- E vai indo muito bem, ao que tudo indica. Vejo sempre seu nome nas revistas.

- Vai-se vivendo. Já soube de Kennedy?

- Já. Que coisa, hem? Devem estar virando Dallas pelo avesso esta noite. Felizmente não é no meu distrito.

Miller apontou com um gesto de interrogação para as escadas mal iluminadas da casa de cômodos onde uma lâmpada fraca e sem abajur lançava uma claridade amarela sobre o papel de parede meio despregado.

- Suicídio. Gás. Os vizinhos sentiram o cheiro e chamaram a polícia. Foi uma felicidade ninguém se ter lembrado de riscar um fósforo.

- Não foi uma estrela de cinema, foi?

- Claro, elas sempre vivem em lugares assim. Não, foi um velho. Parecia já estar morto desde muitos anos. Há um caso destes quase todas as noites.

- Bem, o lugar para onde ele foi não pode ser pior do que este em que vivia.

O detetive teve um breve sorriso e se voltou ao ver os dois homens da ambulância que desciam os sete últimos degraus da escada rangedora e chegavam à entrada com a sua carga. Brandt virou-se para o sargento.

- Abra um pouco de espaço para eles passarem.

O sargento obedeceu próntamente e fez o grupo de curiosos recuar ainda mais. Os dois homens da ambulância saíram para a calçada e deram a volta para as portas abertas da Mercedes. Brandt se guiu-os, acompanhado de Miller. O repórter não queria de modo algum ver o morto. Estava apenas seguindo Brandt. Quando os homens da ambulância chegaram às portas do veículo, um deles encaixou as duas pontas da padiola nos trilhos que havia lá dentro e o segundo se preparou para empurrá-la.

- Esperem, - disse Brandt, levantando a ponta da manta que cobria o rosto do morto. Disse por cima do ombro. - É apenas uma formalidade. Tenho que dizer no meu relatório que acompanhei o corpo até à ambulância e, depois, até ao necrotério.

As luzes do interior da ambulância eram fortes e Miller conseguiu ver pelo espaço de dois segundos o rosto do suicida. A impressão que teve foi de que nunca vira nada mais velho e horrível. Ainda que se levassem em conta os efeitos do gás, as manchas da pele e o tom azulado dos lábios, o homem não devia ter sido uma beleza quando estava vivo. Alguns fios de cabelo estavam colados à cabeça quase calva. Os olhos estavam fechados. O rosto se mostrava encovado até à emaciação e, devido à falta da dentadura, as faces estavam chupadas para dentro como se quase se tocassem lá dentro, dando-lhe o aspecto de um duende num filme de horror. Os lábios azulados quase não existiam e estavam ambos sulcados de fendas verticais, fazendo Miller lembrar-se de uma caveira encolhida da bacia do Amazonas que vira certa vez, com os lábios cosidos pelos índios. Para completar o efeito, o homem parecia ter duas cicatrizes brancas e irregulares que lhe desciam pelo rosto, partindo ambas da têmpora ou do alto da orelha até ao canto da boca.

Depois de um breve olhar, Brandt tornou a cobrir o rosto com a manta e fez um sinal para o servente da ambulância que estava atrás dele. Recuou enquanto o homem empurrava a padiola, trancava as portas e voltava para a frente a fim de sentar-se ao lado do companheiro. A ambulância partiu e a multidão começou a dispersar-se, acompanhada pelas exclamações do sargento:

- Pronto, acabou tudo. Não têm mais nada para ver. Por que não vão para casa?

Miller olhou para Brandt e arqueou as sobrancelhas. - Encantador.

- É verdade. Pobre coitado. Para você, não há nada, não é mesmo?

Miller parecia decepcionado.

- Claro. Como você diz, há um caso assim todas as noites. Muita gente está morrendo no mundo esta noite e ninguém está-se importando na mesma ocasião em que Kennedy está morto.

O detetive Brandt riu zombeteiramente. - Vocês, jornalistas, são incorrigíveis.

- A verdade é que todo o mundo quer saber é de Kennedy e é por isso que compra os jornais.

- Está bem. Tenho de voltar para a delegacia. Adeus, Peter. Apertaram-se as mãos de novo e despediram-se. Miller voltou de carro até à estação de Altona, tomou a estrada principal para o centro da cidade e, vinte minutos depois, deixava o Jaguar na garagem subterrânea perto da Praça Hansa, a duzentos metros do edifício onde ficava o seu apartamento de cobertura.

Era caro guardar o carro numa garagem subterrânea durante todo o inverno, mas era uma das extravagâncias que ele se permitia.

Gostava do seu apartamento caro porque ficava bem alto e de lá ele podia olhar para o movimentado bulevar de Steindamm. Não ligava muito a roupas e a comida e, de qualquer maneira, tendo vinte e nove anos, boa altura, cabelos castanhos crespos e os olhos castanhos que as mulheres apreciam, não tinha muita necessidade de roupas caras. Um amigo invejoso tinha-lhe dito uma vez: "Você é capaz de fazer freiras fugirem do convento". Ele tinha rido, mas ficara satisfeito porque sabia que era verdade.

A verdadeira paixão de sua vida eram carros esporte, a reportagem e Sigrid, embora ele às vezes reconhecesse, intimamente envergonhado, que se tivesse de decidir entre Sigi e o Jaguar, Sigi teria de ir procurar o seu amor em outro lugar.

Depois de estacionar o Jaguar, saltoú e olhou para ele à luz da garagem. Não se cansava de olhar para o carro. Ainda quando se aproximava dele no meio da rua, parava a fim de admirá-lo, de vez em quando em companhia de alguém que passava e que, sem saber que ele era de Miller, lhe dizia: "Belo carro, hem?" Normalmente, um jovem repórter avulso não pode dirigir um Jaguar XK 150 S. Era quase impossível conseguir peças em Hamburgo, tanto mais que a produção da série XK, da qual o modelo S fora o último feito, tinha cessado em 1960. Fazia pessoalmente a manutenção, passando horas aos domingos deitado de macacão embaixo do chassi     ou curvado sobre o motor. A gasolina especial que o motor usava lhe pesava no bolso, mais ainda porque os preços da gasolina eram muito altos na Alemanha, mas ele pagava sem reclamar. A recompensa era ouvir o ronco furioso das descargas quando ele pisava no acelerador na autohalin desimpedida e sentir o arranco do carro quando ele saía de uma curva numa estrada de montanha. Tinha mesmo apertado a suspensão nas duas rodas dianteiras e, como o carro tinha suspensão independente atrás, dobrava as esquinas firme como uma rocha, deixando os outros motoristas a rolar nas molas de seus bancos quando tentavam acompanhá-lo. Logo depois de comprá-lo, tinha mandado pintá-lo de preto com um longo filete amarelo embaixo de cada lado. Desde que fora feito em Coventry, na Inglaterra, e não era um carro de exportação, a direção era do lado direito, o que lhe causava de vez em quando um problema nas ultrapassagens, mas lhe permitia mudar de marcha com a mão esquerda enquanto segurava a direção com a direita, o que tinha vindo a preferir.

Ainda quando pensava na maneira pela qual o comprara, admirava-se de sua sorte. No começo daquele verão, folheava sem muito interesse numa barbearia uma revista de música pop enquanto esperava a sua vez de cortar o cabelo. Não tinha hábito de coisas sobre cantores ou músicas pop, mas não havia outra disponível. A página central falava da ascensão meteórica ao estrelato e à fama internacional de quatro jovens cabeludos ingleses.

O rosto no canto direito da página, o do camarada com o nariz grande, nada significava para ele, mas os outros três lhe despertaram um eco na memória.

Os nomes dos dois discos que tinham levado o quarteto às culminâncias, Please Please Me e Love Me Do nada significavam também para ele, mas aqueles três rostos o intrigaram durante dois dias: Lembrou-se então deles, cantando dois anos antes, no começo de 1961, no show de um pequeno clube da Reeperbahn. Levou mais um dia para lembrar-se do nome do clube, pois só passara por ali daquela vez para conversar com um elemento do mundo do crime de quem ele precisava de informações a respeito da quadrilha Sankt Pauli. Era o Star Club. Foi até lá, verificou a escrita e descobriu-os. Eram cinco então, os três que ele reconhecera e mais dois, Pete Best e Stuart Sutcliffe.

Saindo dali, foi procurar o fotógrafo que fizera as fotos de publicidade para o empresário Bert Kaempfért e comprara os direitos de todas as fotos que ele tinha. A sua reportagem intitulada "Como Hamburgo Descobriu os Beatles" tinha sido publicada em todas as revistas de música pop da Alemanha e em muitas do estrangeiro. Com o dinheiro que ela lhe rendera, havia comprado o Jaguar que vira num vendedor de carros, o qual o comprara de um oficial do exército inglês, cuja mulher estava grávida a um ponto que não podia mais entrar nele. Comprara ainda em sinal de gratidão alguns discos dos Beatles, mas só quem os tocava era Sigi.

Deixou o carro na, garagem subterrânea, subiu a rampa até à rua e foi para o seu apartamento. Era quase meia-noite e, embora a mãe lhe tivesse dado às seis horas a refeição copiosa que preparava sempre quando ele ia visitá-la, estava com fome. Preparou um prato de ovos mexidos e escutou o último boletim de notícias. Só falava de Kennedy e era fortemente inclinado para o lado alemão, desde que não havia muitas notícias mais vindas de Dallas. A polícia ainda estava procurando o assassino. O speaker se estendeu muito nos comentários a respeito da amizade de Kennedy à Alemanha, de sua visita a Berlim no verão anterior e de sua afirmação em alemão: "Ich bin ein Berliner".

Havia uma declaração gravada do Prefeito de Berlim Ocidental, Willy Brandt, cuja voz estava trêmula de emoção, e do ex-Chanceler Konrad Adenauer, que se havia afastado do cargo a 15 de outúbro último.

Peter Miller desligou e foi para a cama. Desejou que Sigi estivesse em casa porque ele sempre gostava de se aconchegar a ela quando se sentia deprimido e, depois, ele ficava com vontade e os dois se amavam, depois do que ele caía num pesado sono sem sonhos, coisa que muito afligia Sigi, pois era sempre depois que fazia amor que ela mais gostava de conversar sobre casamento e sobre filhos.

Mas o clube em que ela dançava só se fechava quase às quatro da madrugada, podendo até fechar-se mais tarde nas noites de sexta-feira, quando provincianos e turistas enchiam a Reeperbahn e estavam sempre dispostos a pagar um champanha dez vezes mais caro a qualquer mulher que tivesse seios grandes e decote baixo. E Sigi era quem tinha seios maiores e decotes mais baixos.

Assim, fumou mais um cigarro e adormeceu sozinho a um quarto para as duas, sonhando então com o rosto horrendo do velho que se suicidara com gás nos pardieiros de Altona.

Enquanto Peter Miller estava comendo os seus ovos mexidos à meia-noite em Hamburgo, cinco homens estavam sentados bebendo na confortável sala-de-estar de uma casa anexa a uma escola de equitação perto das Pirâmides, nos arredores do Cairo. A hora ali era uma da madrugada. Os cinco homens tinham jantado bem e tinham uma disposição jovial, causada pela notícia de Dallas que tinham ouvido quatro horas antes.

Três dos homens eram alemães e os outros dois, egípcios. A mulher do dono da casa e proprietário da escola de equitação, que era um ponto de encontro favorito da melhor sociedade do Cairo e da colónia alemã de vários milhares de pessoas, tinha ido dormir, deixando os cinco homens empenhados em conversa até à madrugada.

O homem que estava sentado na poltrona de couro ao lado da janela com as persianas descidas era Peter Bodden, que tinha sido perito em assuntos judaicos no Ministério da Propaganda Nazista do Dr. Joseph Goebbels. Vivendo no Egito desde pouco depois de terminada a guerra e com a sua fuga providenciada pela Odessa, Bodden tinha adotado o nome egípcio de El Gumrd e trabalhava como perito sobre judeus no Ministério da Orientação do Egito. Tinha na mão um copo de uísque. À sua esquerda, estava outro ex-perito do estado-maior de Goebbels, Max Bachmann, que também trabalhava no Ministério da Orientação. Tinha-se convertido à fé muçulmana, fizera uma viagem a Meca e era chamado El Hadj. Em deferência à sua nova religião, tinha na mão um copo de suco de laranja. Os dois homens tinham sido e ainda eram nazistas fanáticos.

Os dois egípcios eram o Coronel Chams Edine Badrane, ajudante-de-ordens do Marechal Abedel Hakim Amer, que seria depois Ministro da Defesa do Egito antes de ser condenado à morte por traição depois da Guerra dos Seis Dias em 1967. O Coronel Badran estava destinado a perder o prestígio com ele. O outro era o Coronel Ali Samir, chefe do Moukhabarat, o serviço secreto egípcio.

Tinha havido outra pessoa presente ao jantar, o convidado de honra, que tinha voltado às pressas para o Cairo, quando chegou a notícia às nove e meia, hora do Cairo, de que o Presidente Kennedy fora morto. Era o presidente da Assembléia Nacional do Egito, Amuar Al Sadat, colaborador muito próximo do Presidente Nascer e que depois seria seu sucessor.

Peter Bodden levantou o copo.

- Kennedy, amigo dos judeus, está morto. Bebamos à saúde disso.

- Mas nossos copos estão vazios, - protestou o Coronel Samir.

O dono da casa se apressou em dar um jeito nisso, enchendo os copos vazios com uma garrafa de scotch no bufê ao lado.

A referência a Kennedy como amigo dos judeus não causou estranheza a nenhum dos homens presentes na sala. No dia 14 de março de 1960, quando Dwight Eisenhower ainda era Presidente dos Estados Unidos, o Primeiro-Ministro de Israel, David BenGurion, e o Chanceler da Alemanha, Konrad Adenauer, tinham-se encontrado secretamente no Hotel Waldorf-Astoria, em Nova York, uma reunião que dez anos antes seria considerada impossível. O que se considerava impossível mesmo em 1960 foi o que aconteceu nessa reunião e foi esse o motivo pelo qual os detalhes da mesma levaram anos para transpirar e pelo qual, mesmo em fins de 1963, o Presidente Nascer não quis levar a sério a informação que a Odessa e o Moukhabarat puseram em sua mesa.

Os dois estadistas haviam assinado um acordo pelo qual a Alemanha Ocidental concordou em abrir a Israel um crédito de cinqüenta milhões de dólares por ano livres de quaisquer condições.

Ben-Gurion logo descobriu, porém, que ter dinheiro era uma coisa e ter uma fonte de armas segura e certa era outra. Seis meses depois, o acordo do Waldorf foi completado por outro, assinado entre os ministros da Defesa da Alemanha e de Israel, Franz-Josef Strauss e Shimon Peres. Segundo as suas condições, Israel poderia usar o dinheiro alemão para comprar armas na Alemanha.

Adenauer, ciente da natureza muito mais discutível do segundo acordo, adiou a decisão durante meses até que, em novembro de 1961, chegou a Nova York a fim de conferenciar com o novo presidente, John Fitzgerald Kennedy. Este fez pressão. Não queria uma entrega direta de armas dos Estados Unidos a Israel, mas desejava que as mesmas chegassem de qualquer maneira lá. Israel precisava de aviões de caça e de transporte, obuses, peças de artilharia de 105 mm, carros blindados, viaturas blindadas de transporte de pessoas e tanques, principalmente tanques.

A Alemanha tinha tudo isso, principalmente de fabricação americana, ou comprado aos Estados Unidos para contrabalançar as despesas de manutenção de tropas americanas na Alemanha dentro do acordo da OTAN ou fabricado na Alemanha sob regime de licenciamento.

Sob a pressão de Kennedy, o acordo Strauss-Peres foi fechado. Os primeiros tanques alemães começaram a chegar a Haifa em fins de junho de 1963. Era difícil manter a notícia secreta por muito tempo; havia gente demais envolvida. A Odessa descobriu tudo em fins de 1962 e informou prontamente os egípcios com os quais seus agentes no Cairo tinham contato muito estreito.

Em fins de 1963, as coisas começaram a mudar. No dia 15 de outubro, Konrad Adenauer, a Raposa de Bonn, o Chanceler de Granito, renunciou e afastou-se da política. O lugar de Adenauer foi tomado por Ludwig Erhard, muito simpático aos eleitores como o pai do milagre econômico alemão, mas fraco e vacilante em matéria de política externa.

Ainda quando Adenauer estava no poder, havia um grupo dentro do gabinete da Alemanha Ocidental explicitamente favorável ao arquivamento da transação de armas com Israel e à suspensão das remessas antes mesmo que começassem. O velho Chanceler reduzira-os ao silêncio com algumas palavras enérgicas e o grupo ficara calado.

Erhard era um homem bem diferente e por isso mesmo ganhara o apelido de Leão de Borracha. Logo que ele assumiu o cargo, o grupo contrário à transação das armas, concentrado no Ministério do Exterior sempre empenhado em manter excelentes relações com o mundo árabe e em melhorá-las, entrou de novo em ação. Erhard vacilou. Mas por trás de tudo estava a determinação de John Kennedy de que Israel devia conseguir suas armas por intermédio da Alemanha.

E então ele fora assassinado. A grande questão na madrugada de 23 de novembro era simplesmente essa: iria o Presidente Lyndon Johnson atenuar a pressão americana sobre a Alemanha e deixar

o indeciso chanceler de Bonn cancelar a transação? Na realidade, ele não fez isso, mas foram grandes as esperanças no Cairo de que o fizesse.

O dono da casa na reunião amistosa nos arredores do Cairo naquela noite, depois de encher o copo de seus hóspedes, voltou-se para o bufê a fim de encher o seu. Era ele Wolfgang Lutz, nascido em Mannheim em 1921, ex-major do exército alemão e inimigo fanático dos judeus, que emigrara para o Cairo em 1961 e ali fundara a sua academia de equitação. Louro, de olhos azuis e perfil aquilino, gozava de muito prestígio não só nos círculos políticos do Cairo mas também na comunidade de exilados alemães, principalmente nazistas, às margens do Nilo.

Virou-se para a sala e deu a todos um amplo sorriso. Se havia alguma coisa falsa naquele sorriso, nenhum deles notou. Mas o sorriso era falso. Ele nascera em Mannheim, mas emigrara para Israel em 1933, aos doze anos de idade. O nome dele era Zeev e ele tinha o posto de RavSeren (major) no exército israelense. Era também naquela época o mais alto agente do serviço secreto israelense no Egito. No dia 28 de fevereiro de 1965, depois de uma batida em sua casa, durante a qual um transmissor de rádio foi descoberto na balança do banheiro, foi preso. Julgado a 26 de junho de 1965, foi condenado à prisão perpétua com trabalhos forçados. Libertado depois da guerra de 1967 como parte de uma troca contra milhares de egípcios prisioneiros de guerra, ele e sua mulher pisaram de novo o solo da pátria no aeroporto de Lod a 4 de fevereiro de 1968.

Mas, na noite em que Kennedy morreu, tudo isso ainda pertencia ao futuro, a prisão, as torturas, o estupro múltiplo de sua mulher. Ergueu o copo para os quatro rostos sorridentes à sua frente.

Na realidade, estava ansioso para que os convidados saíssem, porque uma coisa que um deles tinha dito durante o jantar era de importância vital para seu país e ele queria, desesperadamente ficar

sozinho, ir para o banheiro, tirar o transmissor da balança do banheiro e mandar uma mensagem para Tel Aviv. Mas se forçou a continuar sorrindo.

- Morram os amigos dos judeus! - disse ele num brinde. - Sieg Heil.

Peter Miller acordou pouco antes das nove na manhã seguinte e virou o corpo voluptuosamente sob o enorme edredom que cobria a cama de casal. Ainda meio sonolento, sentiu o calor do corpo de

Sigi estendido na cama e, por puro reflexo, aproximou-se, de modo que as nádegas dela se lhe acomodaram na base do estômago. Começou a ter automaticamente uma erecção.

Sigi, ainda ferrada no sono depois de apenas quatro horas na cama, resmungou aborrecida e se deslocou mais para a beira da cama.

- Chegue para lá, - murmurou ela, sem acordar.

Miller deu um suspiro, virou o corpo e levantou o relógio para vê-lo na penumbra do quarto. Saiu então da cama pelo outro lado, enrolou uma toalha de banho pelo meio do corpo e foi descalço até

à sala a fim de levantar as persianas. A luz metálica de novembro invadiu a sala, fazendo-o piscar os olhos. Concentrou a vista e olhou para o Steindamm. Era uma manhã de sábado e o tráfego era leve pelo asfalto escuro e molhado. Bocejou e foi até à cozinha a fim de preparar a primeira de inúmeras xícaras de café.

Tanto a mãe  quanto Sigi censuravam que ele se sustentasse quase exclusivamente de cigarros e café.

Enquanto tomava o café e fumava o primeiro cigarro do dia na cozinha, ficou pensando se havia alguma coisa especial que ele tivesse de fazer naquele dia e chegou à conclusão de que não havia. Em primeiro lugar, todos os jornais e as próximas edições das revistas tratariam quase exclusivamente do Presidente Kennedy durante dias ou talvez semanas. Depois, não havia qualquer reportagem especial de que ele estivesse cuidando na ocasião. Além disso, o sábado e o domingo são dias em que só dificilmente se poderia pegar alguém no escritório e não havia quem gostasse de ser incomodado em casa. Concluíra pouco antes uma série de boa repercussão sobre a constante infiltração de gangsters austríacos, parisienses e italianos na verdadeira mina de ouro que era a Reeperbahn, uma extensão de um quilômetro em Hamburgo de clubes noturnos, bordéis e vício, e ainda não recebera um tostão de pagamento. Pensou em cobrar da revista que havia comprado a série, mas desistiu. Pagariam no devido tempo e ele não estava precisando de dinheiro no momento. De fato, o demonstrativo de sua conta bancária que chegara três dias antes mostrava que ele tinha um saldo de 5.000 marcos, o que lhe daria para viver durante algum tempo.

- O problema que há com você hoje, camarada, - disse ele para o seu reflexo nas panelas bem areadas de Sigi enquanto lavava a xícara de café na pia, - é simplesmente preguiça.

Uma vez, um oficial lhe perguntara ao fim de seu serviço militar, dez anos antes, o que ele pretendia ser na vida. "Um rico ocioso", tinha respondido e, aos vinte e nove anos, embora não tivesse conseguido isso e não visse muita probabilidade de conseguilo, continuava a julgar a sua ambição perfeitamente legítima.

Levou o rádio de pilha para o banheiro, fechou a porta para não incomodar Sigi e escutou onoticiário enquanto tomava um banho de chuveiro e fazia a barba. O ponto mais importante era que um homem fora preso pelo assassinato do Presidente Kennedy. Como ele esperava, não havia outras notícias além das relacionadas com a morte de Kennedy.

Depois de se enxugar, voltou à cozinha e fez mais café, dessa vez duas xícaras. Levou-as para o quarto, colocou-as na mesinha de cabeceira, tirou o robe e tornou a se deitar sob o edredom ao lado de Sigi, cuja cabeça loura emergia pousada no travesseiro.

Sigi tinha vinte e dois anos e na escola secundária se distinguira como campeã de ginástica, podendo facilmente chegar a ter categoria olímpica se os seios não se tivessem desenvolvido tanto que, por fim, não houve mais jeito de contê-los dentro de um maiô. Quando deixou a escola, foi ser professora de educação física numa escola de moças.

Um ano depois, deixara o cargo para ser dançarina  de striptease pela mais simples e melhor das razões econômicas. O salário era cinco vezes melhor do que o de professora.

Apesar de sua ausência de constrangimento em tirar as roupas até ficar nua em pêlo num clube noturno, sentia-se terrivelmente envergonhada quando ouvia algum comentário obsceno sobre o seu corpo feito por alguém a quem ela pudesse ver.

- O que acontece, - dissera ela um dia muito séria ao atônito Peter Miller, - é que quando eu estou no palco, não vejo ninguém além das luzes e, por isso, não fico envergonhada. Se eu pudesse ver o público, sairia do palco às carreiras.

Isso não a impedia de tomar mais tarde o seu lugar numa das mesas quando estava novamente vestida e esperar que um dos fregueses a convidasse para beber alguma coisa. A única bebida permitida era champanha em meias-garrafas ou, de preferência, garrafas inteiras. Recebia por elas uma comissão de 15%. Embora quase sem exceção os fregueses que a convidavam para tomar champanha esperassem conseguir muito mais do que contemplar durante uma hora em atônita admiração o desfiladeiro profundo entre os seus seios, jamais o conseguiam. Era bondosa e compreensiva e sua atitude para com as atenções inequívocas dos fregueses era de delicada compaixão e não de desprezo e de ódio como a que as outras escondiam sob os seus sorrisos de néon.

- Tenho tanta pena desses pobres homens! - dissera ela uma vez a Miller. - Deviam ter uma boa mulher em casa.

Pobres homens coisa nenhuma, - protestava Miller. - São um punhado de devassos que não sabem o que fazer com o dinheiro que têm nos bolsos.

- Bem, não estariam nessa situação se tivessem uma boa mulher para tomar conta deles, - replicara Sigrid e isso, dentro de sua lógica feminina, era irrespondível.

Miller a conhecera por acaso numa visita ao bar de Madame Kokett, logo abaixo do Café Keese na Reeperbahn, quando tinha ido ter uma conversa e tomar um gole com o proprietário, que era velho amigo e contato seu. Era uma pequena muito alta e com uma corpulência correspondente à altura e que seria desproporcionada numa mulher mais baixa. Ela tirou as peças de roupa com os habituais gestos supostamente sensuais e ao compasso da música, com o ar levemente surpreso de todas as dançarinas de strip. Miller já estava farto de ver tudo isso e continuou a bebericar sem demonstrar maior interesse.

Mas quando ela tirou o soutien, teve de parar e olhar com o copo a meio caminho da boca. O proprietário olhou-o ironicamente.

- Um pedaço, hem?

Miller teve de reconhecer que ela realmente fazia as pequenas escolhidas por Playboy como o Corpo-do-Mês parecerem casos perdidos de subnutrição. E ela tinha músculos tão firmes que o busto se estendia para fora e para cima sem um só vestígio de apoio.

Ao fim do número, quando os aplausos começaram, a moça deixou a sua pose meio entediada de dançarina profissional, fez uma reverência ao público e deixou o rosto abrir-se num sorriso satisfeito como o de alguém que, contra toda a expectativa, conseguiu uma coisa difícil. Foi o sorriso que encantou Miller, não a dança, nem o corpo. Perguntou se ela poderia tomar um drinque com ele e o proprietário mandou chamá-la.

Desde que Miller estava em cómpanhia do patrão, ela evitou uma garrafa de champanha e pediu um gin fizz. Com surpresa, Miller descobriu que ela era uma pessoa de convívio muito agradável e perguntou se podia levá-la para casa depois do show. Ela aceitou com evidentes reservas. Fazendo o seu jogo friamente, Miller não teve um só gesto equívoco para com ela naquela noite. Era no começo da primavera e ela saiu do cabaré quando este se fechou com um casaco de lã que nada tinha de elegante, fazendo-o presumir que aquilo era intencional.

Tomaram um café juntos e conversaram. Ela abandonou toda a sua tensão anterior e se mostrou muito alegre e divertida. Miller ficou sabendo que ela gostava de música pop, de pintura, de passeios pelas margens do Alster, do trabalho de casa e de crianças. Depois disso, começaram a sair juntos na única noite de folga que ela tinha por semana. Ele a levava para jantar ou para algum espetáculo, mas sem levá-la para a cama.

Ao fim de três meses, dormiram juntos e Miller sugeriu depois que ela se mudasse para o apartamento dele. Com sua atitude de firmeza em relação às coisas importantes da vida, Sigi havia chegado à decisão de que queria casar-se com Peter Miller e o único problema era saber se podia chegar a esse fim dormindo na cama dele ou não. Notando a capacidade que ele tinha de colocar outras pequenas na outra metade da cama quando houvesse necessidade, ela decidiu mudar-se para o apartamento e tornar a vida dele tão confortável que ele quisesse casar-se com ela. Naquele fim de novembro, fazia seis meses que moravam juntos.

O próprio Miller, que não estava muito habituado aos confortos do lar, teve de reconhecer que ela sabia tomar conta de uma casa e fazia amor com um prazer sadio e enérgico. Nunca falava diretamente em casamento, mas tentava transmitir a sua mensagem de outras maneiras. Miller fingia não perceber. Quando passeavam ao sol pelo lago do Alster, ela fazia às vezes amizade com um garotinho, sob os olhos benévolos dos pais.

- Não é um anjo, Peter?

- É, sim, maravilhoso, - resmungava Peter.

Depois disso, ela lhe dava um gelo durante uma hora por não haver querido aceitar a insinuação. Mas eram felizes juntos, especialmente Peter Miller, para quem a situação tinha todos os confortos do casamento e os deleites do amor regular sem os laços conjugais.

Bebendo metade de seu café, Miller se meteu na cama e pôs os braços em torno dela por trás, acariciando-a delicadamente entre as pernas, o que ele sabia que iria acordá-la. Ao fim de alguns minutos, ela começou a dar murmúrios de prazer e rolou o corpo para ficar deitada de costas. Ainda massageando-a, ele se curvou e começou a beijar-lhe os seios. Como se ainda estivesse dormindo, Sigi emitiu uma série de longos gemidos e começou a mover languidamente as mãos pelas costas e pelas nádegas de Miller. Dez minutos depois, faziam amor, gritando e tremendo de prazer.

- É uma maneira infernal de acordar alguém, - murmurou ela depois.

- Há maneiras piores, - disse Miller. - Que horas são?

- Quase meio-dia, - disse Miller mentindo, sabendo que ela jogaria alguma coisa nele se soubesse que eram apenas dez e meia e ela não tivera mais de cinco horas de sono. - Não tem importância. Durma mais um pouco, se ainda estiver com sono.

- Humm. Muito obrigada, querido, você é tão bonzinho comigo, - disse Sigi e pegou no sono outra vez.

Miller estava a caminho do banheiro depois de ter bebido o resto de seu café e o de Sigi também, quando o telefone tocou. Foi até à sala e atendeu.

- Peter?

- Sim, quem é?

- Karl.

A cabeça ainda estava meio confusa e ele não reconheceu a

voz.

- Karl?

A pessoa estava impaciente.

- Karl Brandt. Que é que há? Está dormindo ainda? Miller se recobrou.

- Claro, Karl. Desculpe. É que me levantei agora. Alguma novidade?

- Escute, é a respeito daquele judeu que morreu. Preciso falar com você.

Miller não entendia nada. - Que judeu?

- O que se suicidou com gás ontem à noite em Altóna. Não se lembra mais?

- Claro que me lembro da noite passada. Não sabia é que era judeu. Que é que há com ele?

- Quero conversar com você, - disse o detetive da polícia. - Mas não pelo telefone. Não nos podemos encontrar?

O espírito de repórter de Miller engrenou imediatamente. Qualquer pessoa que tivesse alguma coisa para dizer mas não quisesse falar pelo telefone devia julgar a coisa da maior importância. No caso de Brandt, era difícil imaginar que um homem da polícia fosse mostrar tantas precauções em torno de alguma insignificância. - Claro, - disse ele pelo telefone. - Pode almoçar comigo? - É possível, - disse Brandt.

- Ótimo. Pago o almoço se você acha que é alguma coisa que valha a pena.

Marcou encontro num pequeno restaurante no Mercado do Ganso, à uma hora da tarde, e desligou. Ainda estava meio desconcertado, pois não podia perceber interesse algum no suicídio de um velho, judeu ou não, num pardieiro de Altona.

Durante o almoço, o jovem detetive pareceu evitar o assunto que servira de motivo para o encontro, mas na hora do café disse simplesmente:

- O homem da noite passada...

- Sim, - disse Miller. - Que é que há com ele?

- Você deve ter ouvido, como todos nós, o que os nazistas fizeram com os judeus durante a guerra e antes dela?

- É claro. Meteram-nos essas coisas pela cabeça adentro na escola, não foi?

Miller estava confuso e embaraçado. Como muitos jovens alemães, haviám-lhe ensinado na escola quando ele tinha nove ou dez anos que ele e o. resto de seus compatriotas tinham sido culpados de imensos crimes de guerra. Naquela época, aceitara tudo, sem ao menos saber de que se tratava.

Mais tarde, tinha sido difícil apurar o que os professores tinham querido dizer no período imediatamente posterior à guerra. Não havia ninguém a quem se pudesse perguntar, ninguém que quisesse falar, nem os professores, nem os pais. Só ao chegar à idade adulta, pudera ler um pouco a esse respeito e, embora o que lesse o enchesse de desgosto, não podia achar que aquilo realmente lhe interessasse. Tinha sido outra época, outro lugar, tudo muito distante. Não estava presente quando aquelas coisas tinham acontecido, seu pai não estava presente, sua mãe não estava presente. Alguma coisa dentro dele lhe dizia que nada daquilo tinha qualquer relação com Peter Miller e ele não tinha querido saber de nomes, datas ou detalhes. Não sabia por que Brandt estava tocando no assunto.

Brandt mexia o café, sem saber como prosseguir.

- O velho da noite passada era um judeu alemão, - disse ele afinal. - Esteve num campo de concentração.

Miller pensou no cadáver que vira na padiola na noite anterior. Era assim que eles acabavam? Era ridículo. O homem devia ter sido libertado pelos Aliados dezoito anos antes e tinha vivido até morrer velho. Mas o rosto não lhe saía da lembrança. Nunca vira antes alguém que tivesse estado num campo, pelo menos tendo consciência disso. Do mesmo modo, nunca chegara a conhecer nenhum dos assassinos em massa das SS, tinha certeza disso. Afinal de contas, tinha-se de perceber alguma coisa. O homem não podia deixar de ser diferente.

Pensou então na publicidade que cercara o julgamento de Eichmann em Jerusalém dois anos antes. Os jornais tinham estado cheios disso durante muitas semanas. Lembrou-se do rosto do acusado dentro da sua cabina de vidro e de que a sua impressão na época tinha sido a de um rosto bem comum, acabrunhadoramente comum. Fora ao ler a cobertura jornalística do julgamento que ele tivera pela primeira vez a idéia de como as SS tinham feito aquilo, sem que nada lhes acontecesse. Mas só se falava de coisas acontecidas na Polônia, na Rússia, na Hungria, na Checoslováquia, muito longe e havia muito tempo. Não era possível sentir que havia alguma coisa de pessoal.

Voltou com os seus pensamentos ao presente e percebeu a nota de inquietação que havia nas palavras de Brandt.

- Está muito bem. Que é que há? - perguntou ao detetive. Em resposta, Brandt tirou da pasta um embrulho e colocou-o em cima da mesa.

- O velho deixou um diário. Na realidade, não era tão velho assim. Cinqüenta e seis anos. Parece que tomou notas na época e guardou-as nos panos que lhe envolviam os pés. Depois da guerra, reproduziu as notas. São elas que constituem o diário.

Miller olhou com pouco interesse para o embrulho. - Onde foi que achou isso?

- Estava ao lado do corpo. Peguei-o e levei-o para casa. Li-o ontem à noite.

Miller olhou para o ex-colega. - Que tal?

- Horrível. Eu não fazia idéia de que as coisas tivessem sido tão ruins, o que fizeram com eles.

- Por que foi que me trouxe isso?

Brandt pareceu embaraçado e encolheu os ombros. - Pensei que isso lhe poderia dar uma reportagem. - A quem pertence isso agora?

- Tecnicamente, aos herdeiros de Tauber. Mas nós nunca os encontraremos. Assim, creio que pertence ao Departamento de Polícia. Mas lá se limitariam a guardá-lo num arquivo. Pode ficar com ele, se quiser. Basta que não diga a ninguém quem foi que lhe deu o diário. Não quero problemas comigo na repartição.

Miller pagou a conta e os dois saíram do restaurante.

- Está bem. Vou ler a coisa. De qualquer maneira, não lhe prometo ficar entusiasmado. Pode ser que, ao fim de tudo, não dê mais que um artigo para uma revista.

Brandt olhou-o com o esboço de um sorriso. - Você é um sujeito frio, hem?

- Nada disso. O que acontece é que, como quase todo o mundo, o que me interessa é o que sucede aqui e agora. E você? Depois de dez anos na polícia, era de esperar que você fosse um tira duro e empedernido. Isto o arrasou, não foi mesmo?

Brandt ficou sério. Olhou para o embrulho que Miller sobraçava e assentiu lentamente.

- Foi, sim. Nunca pensei que tivesse sido tão ruim. E há mais uma coisa, nem tudo é história antiga. Esse caso terminou aqui em Hamburgo ontem à noite. Adeus, Peter.

O detetive virou-se -e afastou-se, sem saber até que ponto estava errado.

 

Peter Miller levou o embrulho para casa, e ali chegou pouco depois das três horas da tarde. Jogou o embrulho na mesa da sala e foi fazer um grande bule de café antes de sentar-se para ler.

Abriu o embrulho sentado na sua poltrona favorita com uma xícara de café ao lado e um cigarro aceso. O diário era escrito em folhas soltas dentro de uma pasta de cartolina revestida de um plástico preto e presa na lombada por uma série de ganchos que permitiam extrair as folhas do livro ou inserir novas, caso fosse necessário.

O conteúdo consistia em cento e cinqüenta páginas datilografadas, certamente batidas numa máquina muito velha, pois algumas letras estavam fora do alinhamento, ao pàsso que outras ou estavam defeituosas ou apagadas. A maioria das páginas pareciam ter sido escritas anos antes ou pelo espaço de alguns anos, desde que as páginas, embora cuidadas e limpas, tinham o amarelado inconfundível do papel velho. Mas no começo e no fim havia várias folhas novas, evidentemente escritas alguns dias antes. Havia um prefácio de algumas folhas novas no início e uma espécie de epílogo no fim. Uma verificação das datas do prefácio e do epílogo mostrava que ambos tinham sido escritos a 21 de novembro, dois dias antes. Miller supôs que o morto os escrevera depois de ter tomado a decisão de pôr termo à vida.

Um rápido olhar a alguns dos parágrafos na primeira página surpreendeu-o, porque a linguagem era um alemão claro e preciso, indicando um homem com boa instrução e cultura. Do lado de fora, na capa, fora colado um quadrado de papel branco sob um quadrado maior de celofane a fim de conservá-lo limpo.

No quadrado de papel estava escrito a tinta preta em grandes maiúsculas o seguinte: "DIÁRIO DE SALOMON TAUBER".

Miller se acomodou na poltrona, virou a primeira página e começou a ler.

 

DIÁRIO DE SALOMON TAUBER

 

PREFÁCIO

Meu nome é Salomon Tauber. Sou judeu e vou morrer. Resolvi terminar minha vida porque esta não tem mais valor algum e nada mais me resta fazer. As coisas que procurei fazer com minha vida deram em nada e meus esforços não surtiram efeito. O mal que tenho visto sobreviveu e floresceu e só o bem desapareceu envolto em pó e ridículo. Os amigos que tive, sofredores e vítimas, estão todos mortos e só os perseguidores andam por toda a parte em torno de mim. Vejo-lhes os rostos nas ruas durante o dia e à noite vejo o rosto de minha mulher, Esther, que morreu há muito tempo. Só continuei vivo tanto tempo porque havia mais uma coisa que eu queria fazer, uma coisa que eu queria ver e agora sei que nunca acontecerá.

Não tenho ódio nem amargura pelo povo alemão, porque é um bom povo. Os povos nunca-são maus; só os indivíduos o são. O filósofo inglês Burke tinha razão quando disse: "Não conheço os meios pelos quais se possa decretar a culpa de toda uma nação". Não há culpa coletiva, pois a Bíblia conta como o Senhor desejou destruir Sodoma e Gomorra em vista da perversidade dos homens que ali viviam, com as mulheres e os filhos, mas desde que havia entre eles um homem justo este foi poupado porque era justo. Por conseguinte, a culpa é individual como a salvação.

Quando saí dos campos de concentração de Riga e Stutthof, quando sobrevivi à Marcha da Morte para Magdeburgo, quando os soldados ingleses libertaram meu corpo ali em abril de 1945, deixando apenas minha alma acorrentada, eu odiava o mundo. Odiava as pessoas, as árvores e as pedras porque tudo conspirara contra mim e me fizera sofrer. E mais que tudo odiava os alemães. Perguntava então, como tinha perguntado muitas vezes nos quatro anos anteriores, por que o Senhor não os feria, todos os homens, mulheres e crianças, destruindo-lhes para sempre as cidades e as casas da face da terra. E quando Ele não fez isso, odiei-o também, dizendo em lágrimas que Ele havia abandonado a mim e ao meu povo, a quem fizera acreditar que era o povo eleito, e cheguei a dizer que Ele não existia.

Mas, com o correr dos anos, aprendi de novo a amar, a amar as pedras e as árvores, o céu no alto e o rio que passava pela cidade, os cães e os gatos vadios, e as crianças que fogem de mim na rua porque eu sou tão feio. Não têm culpa. Há um provérbio francês que diz: "Compreender tudo é perdoar tudo". Quando se pode compreender as pessoas, a sua credulidade e o seu medo, sua cobiça e sua sede de poder, sua ignorância e sua docilidade diante do homem que grita mais, pode-se perdoar. Sim, pode-se perdoar até o que eles fizeram. O que não se pode é esquecer.

Há alguns homens cujos crimes ultrapassam a compreensão e. portanto, o perdão e essa é a verdadeira falha. De fato, eles estão ainda entre nós, caminhando pelas cidades, trabalhando nos escritórios, almoçando nos restaurantes, sorrindo, apertando mãos e chamando homens de bem de Kamerad. Que eles continuem a viver, não como réprobos, mas como cidadãos conceituados, para poluir perpetuamente uma nação com a sua perversidade individual, essa é que é a verdadeira falha. E nisso nós falhamos, todos nós, e falhamos miseravelmente.

Por fim, à medida que o tempo passava, vim a amar de novo o Senhor e a pedir-lhe perdão das coisas que fiz contra Suas leis e foram muitas.

SHEMA YISROEL, ADONAI ELOHENU, ADONAI EHAD...

 

O diário começava com vinte páginas nas quais Tauber descrevia o seu nascimento e a sua infância em Hamburgo, a vida de seu pai, um herói de guerra da classe operária e a morte de seus pais pouco depois da subida de Hitler ao poder em 1933. Em fins da década de 1930, casou-se com uma moça chamada Esther, trabalhava como arquiteto e se livrou de ser arrebanhado até 1941 em vista da intercessão de seu patrão. Por fim, foi capturado em Berlim, numa viagem que fizera para conversar com um cliente. Depois de passar algum tempo num campo de trânsito, foi jogado com outros judeus no vagão de carga de um trem de gado que se destinava ao Leste.

 

Não me posso lembrar ao certo da data em que o trem parou finalmente numa estação de estrada de ferro. Creio que seis dias e sete noites eram passados desde que tínhamos sido trancados naquele vagão em Berlim. De repente, o trem parou. As frinchas de luz branca mostravam que era dia lá fora. A cabeça me rodava de exaustão e o mau cheiro era intenso.

Houve gritos lá fora, ferrolhos foram corridos e as portas se abriram.

Era até bom que eu não me pudesse ver, embora estivesse bem vestido no momento da prisão, com camisa limpa e calças bem  passadas. A gravata e o paletó tinham rolado havia muito pelo chão. A vista dos outros já era mais que suficiente...

Quando a luz brilhante do dia invadiu o carro, os homens cobriram os olhos com os braços e gritaram de dor. Quando eu vira as portas começarem a abrir-se, tinha apertado os olhos a fim de protegê-los. Sob a pressão dos corpos, metade do vagão se esvaziou na plataforma numa massa escachoante de humanidade malcheirosa. Desde que meu lugar tinha sido no fundo do vagão, a um lado das portas centrais, evitei a pressão dos outros e, abrindo cautelosamente os olhos, passei diretamente para a plataforma.

Os guardas das SS que tinham aberto as portas, homens de rosto mau e aspecto brutal que falavam e gritavam numa linguagem que eu não podia compreender, recuaram com expressões de nojo. Dentro do vagão, trinta e um homens estavam estendidos e pisoteados no chão. Nunca mais se levantariam. Os restantes, famintos, quase cegos, fumegantes e cheirando mal dos pés à cabeça nos seus andrajos, se esforçavam por ficar de pé na plataforma. A sede nos colava as línguas enegrecidas e inchadas ao céu da boca e os lábios estavam ressecados e rachados.

Pela extensão da plataforma, quarenta outros vagões de Berlim e dezoito de Viena estavam vomitando os seus ocupantes, metade dos quais eram mulheres e crianças. Muitas mulheres e quase todas as crianças estavam nuas, sujas de excrementos e em condições tão más quanto as nossas. Muitas mulheres carregavam nos braços os corpos sem vida dos filhos ao saírem tropegamente para a luz.

Os guardas corriam para baixo e para cima pela plataforma, organizando à força de pancadas com os cassetetes uma coluna dos deportados, antes de fazê-los marchar para a cidade. Mas que cidade? E que língua aqueles homens estavam falando? Eu descobriria mais tarde que a cidade era Riga e que os guardas das SS eram letões recrutados localmente, tão ferozmente anti-semitas quanto os homens das SS na Alemanha, mas de inteligência muito mais baixa, sendo virtualmente animais em forma humana.

Atrás dos guardas, estava um grupo intimidado de camisa e calções sujos, cada um deles com um pedaço quadrado de pano preto no peito e nas costas, no qual se via um grande "J". Era um co mando especial do gueto levado para tirar os mortos dos vagões de gado e enterrá-los fora da cidade. Eram guardados também por meia dúzia de homens que tinham o " J" no peito e nas costas, mas usavam uma braçadeira e carregavam um cabo de picareta.

Eram Kapos judeus, que recebiam melhor comida do que os outros internados para fazerem o serviço que faziam.

Havia alguns oficiais alemães das SS que estavam à sombra do toldo da estação e que eu só pude distinguir depois que meus olhos se habituaram à claridade. Um estava no alto de uma caixa de

embalagem, olhando para os milhares de esqueletos humanos que saíam do trem com um sorriso leve mas satisfeito. Batia na bota com um chicote preto de montaria de couro trançado. Vestia o uniforme verde com raios pretos e prateados das SS como se tivesse sido feito para ele e levava na gola do lado direito os duplos relâmpagos das Waffen-SS. No lado esquerdo da gola, sua patente era indicada como capitão.

Era alto e magro, com cabelos louros bem claros e olhos azuis desbotados. Aprenderia mais tarde que era um fervoroso sádico, já conhecido pelo nome que os Aliados usariam também para ele depois - o Açougueiro de Riga. Foi essa a primeira vez que vi o Capitão Eduard Roschmann, das SS...

Às 5 horas da manhã do dia 22 de junho de 1941, 130 divisões de Hitler, repartidas em três grupos de exército, rolaram através da fronteira para invadir a Rússia. Na retaguarda de cada grupo de exército, vinham enxames de turmas de extermínio das SS que tinham recebido de Hitler, Himmler e Heydrich a incumbência de suprimir os comissários comunistas e as comunidades rurais judaicas das extensões de terra que o exército fosse dominando e encurralar as grandes comunidades judaicas urbanas nos guetos de cada cidade para "tratamento especial" posterior.

O exército tomou Riga, capital da Letônia, a 1º de julho de 1941, e em meados do mesmo mês os primeiros comandos das SS apareceram. A primeira unidade local das seções SD e SP das SS se estabeleceu em Riga a 1º de agosto de 1941 e iniciou o programa de extermínio que se destinava a livrar de judeus a Ostland, que era o novo nome dado aos três estados bálticos ocupados.

Foi então decidido em Berlim usar Riga como o campo de

trânsito para a morte dos judeus da Alemanha e da Áustria. Em 1938, havia 320.000 judeus alemães e 180.000 judeus austríacos. Em julho de 1941, dezenas de milhares tinham sido colocados nos campos de concentração da Alemanha e da Áustria, especialmente Schisenhausen, Mauthausen, Ravensbruck, Dachau, Bucliensvald, Belsen e Theresienstadt, na Boêmia. Mas estavam ficando superlotados e as terras obscuras a leste pareciam um local excelente para liquidar o resto. Iniciou-se o trabalho de expansão ou abertura dos seis campos de extermínio de Auschwitz, Treblinka, Belec, Sobibor, Clielino e Maidanek. Enquanto não ficassem prontos, porém, tinha de ser encontrado um lugar para exterminar o maior número possível e "armazenar" o resto. Riga foi o lugar escolhido.

Entre 1º de agosto de 1941 e 14 de outubro de 1944, quase 200.000 judeus exclusivamente alemães e austríacos foram mandados para Riga. Oitenta mil morreram ali,  120.000 foram mandados para os seis campos de extermínio do Sul da Polônia mencionados acima, e 400 saíram de lá vivos, morrendo a metade destes em Stuttlu ou na Marcha da Morte de volta a Magdeburgo. O transporte de Teutber foi o primeiro que chegou a Riga vindo da Alemanha do Reich, às 3:45 da tarde de 18 de agosto de 1941.

O gueto de Riga era parte integrante da cidade e tinha sido a residência dos judeus de Riga, dos quais só existiam algumas centenas ao tempo em que cheguei lá. Em menos de três semanas, Rosch mann e seu ajudante, Krause, tinham presidido ao extermínio da maior parte deles.

O gueto ficava na extremidade norte da cidade e, além dele, estendia-se o campo aberto. Havia um muro do Indo do sul; os outros três lados eram fechados com cercas de arame farpado. Ha via um portão do lado norte, pelo qual tinham de ser feitas todas as saídas e entradas. Era guardado por duas torres de vigia guarnecidas por homens letões das SS. Desse portão, estendendo-se diretamente até o centro do gueto no muro do sul, ficava Mase Kalnu leia ou Rua da Pequena Colina. Do lado direito dessa rua, para quem olhava do sul para o norte na direção do portão principal, ficava a Blech Platz ou Praça do Chumbo, onde se faziam as seleções para as execuções, juntamente com chamadas, seleção de grupos de trabalho escravo, açoites e enforcamentos. As forcas com os seus oito ganchos de aço e os laços permanentes que se balançavam ao vento ficavam no centro da praça. Eram ocupadas todas as noites por seis infelizes pelo menos e muitas vezes diversos turnos de enforcamentos eram efetuados nos vários ganchos das forcas antes que Roschmann se desse por satisfeito com o trabalho do dia.

Todo o gueto devia ter um pouco menos de cinco quilômetros quadrados, uma comunidade onde tinham vivido de 12.000 a 15.000 pessoas. Antes de nossa chegada, os judeus de Riga, ao menos os 2.000 que restavam, tinham feito o trabalho de levantar os muros com tijolos, de modo que a área deixada para nosso transporte de pouco mais de 5.000 homens, mulheres e crianças era espaçosa. Mas, depois que nós chegamos, os transportes continuaram a chegar diariamente até que a população de nossa parte do gueto subiu a 30.000 ou 40.000 e, com a chegada de cada novo transporte, um número de habitantes correspondente ao número dos recém-chegados sobreviventes tinha de ser executado para abrir espaço aos novos. Do contrário, a superlotação se tornaria uma ameaça à saúde dos que trabalhavam entre nós e com isso Roschmann não concordava.

Assim, na primeira noite, procuramos instalar-nos nas casas mais bem construídas, um quarto para cada pessoa, aproveitando cortinas e os casacos para cobrir-nos,  dormindo em camas  de verdade. Depois de beber à vontade de uma pipa de água, meu vizinho de quarto me disse que talvez as coisas não fossem tão ruins assim. Ainda não conhecíamos Roschmann...

Enquanto o verão se transformava em outono e o outono em inverno, a situação no gueto foi piorando. Todas as manhãs, a população inteira, principalmente homens, pois as mulheres e crian ças eram exterminadas à chegada em percentagens muito maiores do que os homens aptos para o trabalho, era reunida na Praça do Chumbo, todos empurrados e impelidos pelas coronhas dos fuzis dos letões, realizando-se então a chamada. Chamada é modo de dizer, pois não se chamavam nomes. Éramos apenas contados e divididos em grupos de trabalho. Quase toda a população, homens, mulheres e crianças, saía do gueto todos os dias em colunas para fazer doze horas por dia de trabalhos forçados num número cada vez maior de oficinas próximas.

Eu dissera no começo que era carpinteiro, o que não correspondia à verdade, mas, como arquiteto, vira muito os carpinteiros trabalharem e sabia o suficiente para me ajeitar. Havia com razão calculado que nunca deixaria de haver necessidade de carpinteiros. Mandaram-me trabalhar numa serraria, rróxima, onde os pinheiros locais eram serrados e aparelhados a fim de preparar alojamentos pré-fabricados para as tropas.

O trabalho era estafante e bastaria para arruinar a constituição de um homem sadio, pois trabalhávamos no inverno e no verão quase sempre do lado de fora, sob o frio e a umidade das regiões baixas perto da costa da Letônia...

Nossas rações de comida eram meio litro do que se chamava de sopa e não passava de água suja às vezes com um pedaço de batata antes de marchar para o trabalho de manhã e outro meio litro com uma fatia de pão preto e uma batata mofada quando voltávamos para o gueto à noite.

Levar comida para o gueto era uma transgressão punida com enforcamento imediato perante a população reunida para a chamada noturna na Praça do Chumbo. Não obstante, assumir esse risco era a única maneira de permanecer vivo.

Quando as colunas se arrastavam de volta pelo portão principal à tardinha, Roschmann e alguns dos seus homens costumavam ficar à entrada, fazendo inspeções salteadas nos que passavam. Chamavam ao acaso um homem, uma mulher ou uma criança, ordenando-lhe que saísse da coluna para despir-se ao lado do portão. Se se encontrava uma batata ou um pedaço de pão, a pessoa ficava esperando enquanto os outros marchavam para a chamada da noite na Praça do Chumbo.

Quando estavam todos reunidos, Roschmann descia pela rua, seguido pelos outros guardas das SS e por uma dúzia mais ou menos de condenados. Os homens subiam para a forca e ficavam à espera com a corda ao pescoço enquanto a chamada era completada. Roschmann caminhava então diante da fila dos condenados, rindo para as caras acima dele e afastando com um pontapé as cadeiras em que estavam sentados, uma por uma. Gostava de fazer isso de frente para que as pessoas que iam morrer o vissem. Às vezes, fingia dar um pontapé na cadeira, mas recolhia o pé a tempo. Ria desabaladamente ao ver o homem na cadeira tremer pensando que já estava pendurado da corda para descobrir que ainda estava sentado na cadeira.

Às vezes, os condenados rezavam ao Senhor, às vezes pediam misericórdia. Roschmann gostava de ouvir isso. Fingia-se de surdo, levava a mão em concha-ao ouvido e dizendo:

- Não pode falar um pouco mais alto? Que foi que disse? Depois de ter dado um pontapé na cadeira, que quase sempre era um caixão, virava-se para os companheiros e dizia:

- Acho que tenho mesmo de comprar um aparelho de audição...

Dentro de alguns meses, Eduard Roschmann se tornara para nós, prisioneiros, uma verdadeira encarnação do Diabo. Havia poucas maldades que ele não fosse capaz de imaginar.

Quando uma mulher era apanhada levando comida para o campo, tinha de assistir primeiro ao enforcamento dos homens, especialmente se um deles era seu marido ou irmão. Roschmann fazia-a então ajoelhar-se em frente de todos nós, formados em torno de três lados da praça, enquanto o barbeiro do campo lhe raspava a cabeça.

Depois da chamada, a mulher era levada para o cemitério do lado de fora do arame farpado. Era então obrigada a cavar uma sepultura rasa e a ajoelhar-se ao lado dela, enquanto Roschmann ou um dos outros disparava uma bala de sua Lüger à queima-roupa na base do crânio da mulher. Não se permitia que ninguém assistisse a essas execuções, mas se sabia por intermédio dos guardas letões que ele muitas vezes disparava a pistola perto do ouvido da mulher para fazê-la cair dentro da sepultura com o choque, depois do que tinha de sair e ajoelhar-se na mesma posição. Em outras ocasiões, ele atirava com a pistola descarregada, de modo que só havia um estalo quando a mulher pensava que ia morrer. Os letões eram uns brutos, mas Roschmann conseguia, apesar de tudo, assombrá-los...

Havia uma certa moça em Riga que ajudava os prisioneiros por sua conta e risco: Chamava-se Olli Adler e era, segundo creio, de Munique. A irmã dela, Gerda, fora fuzilada no cemitério por levar comida. Olli era uma mulher de excepcional beleza e Roschmann se interessou por ela. Fez dela sua concubina - a designação oficial era de criada porque as relações entre um homem das SS e uma judia eram proibidas. Olli costumava levar remédios para o gueto furtivamente, quando tinha permissão para visitá-lo, tendo roubado os remédios dos depósitos das SS. Isso sem dúvida era passível de morte. A última vez em que a vi foi quando embarcamos no navio no cais de Riga...

Ao fim daquele primeiro inverno, eu estava certo de que não poderia sobreviver por muito tempo mais. A fome, o frio, a umidade, o excesso de trabalho e as constantes brutalidades tinham reduzido a minha constituição dantes bem forte a um montão de pele em cima dos ossos. Quando olhava para o espelho, o que via era um velho macilento e barbado de olhos avermelhados e faces encovadas. Tinha acabado de fazer trinta e cinco anos e parecia ter o dobro dessa idade. Mas o mesmo se dava com todos os outros.

Eu havia presenciado a partida de dezenas de milhares para a floresta das sepulturas coletivas, a morte de centenas de frio, exposição às intempéries e exaustão e de dezenas em conseqüência de enforcamentos, fuzilamentos e espancamentos a chicote ou cacete. Mesmo depois de sobreviver cinco meses, eu tinha vivido além da conta. A vontade de viver que eu tinha começado a mostrar no trem se havia dissipado, sem deixar em seu lugar senão uma rotina mecânica de continuar a viver, a qual mais cedo ou mais tarde tinha de se quebrar. Mas em março aconteceu uma coisa que me deu mais um ano de força de vontade.

Ainda me lembro da data. Foi a 3 de março de 1942, o dia do segundo comboio de Dunamunde. Cerca de um mês antes, tínhamos visto pela primeira vez a chegada de um estranho veículo. Era do tamanho de um ônibus comprido, pintado de um cinzento de aço, mas sem janelas. Parou bem em frente aos portões do gueto e, na chamada da manhã, Roschmann disse que tinha uma comunicação a fazer. Disse que havia uma nova fábrica de conservas de peixe que começara a funcionar pouco antes na cidade de Dunamunde, à margem do riu Duna, a cerca de 130 quilômetros de Riga. Acrescentou que o trabalho era leve, com comida abundante e boas condições de vida. Desde que o trabalho era tão leve, a oportunidade só podia ser oferecida aos velhos e às mulheres, aos fracos, aos doentes e às criancinhas.

Como era natural, muitos se mostraram ansiosos em pegar um trabalho tão confortável. Roschmann passou por diante da fila escolhendo quem devia ir e, dessa vez, os velhos e os doentes, em vez de se esconderem no fundo para serem arrastados sob protestos e gritos para as marchas forçadas rumo à colina das execuções, pareciam fazer questão de mostrarem-se. Por fim, mais de cem foram escolhidos e todos embarcaram no ônibus sem janelas. As portas foram então fechadas e os que observavam notaram como as mesmas se ajustavam firmemente. O ônibus saiu, sem emitir fumaça pelo cano de descarga. Mais tarde, espalhou-se a notícia do que o ônibus realmente era. Não havia nenhuma fábrica de conserva de peixe em Dunamunde. O ônibus era uma câmara de gás. Na gíria do gueto, "Comboio de Dunamunde" passou a significar morte pelos gases.

No dia 3 de março, correu pelo gueto o rumor de que ia haver outro comboio de Dunamunde e, de fato, durante a chamada da manhã, Roschmann deu a notícia. Mas não houve mais ninguém que se apresentasse ansiosamente e, com um largo sorriso, Roschmann começou a passar por entre as filas, batendo com o chicote no peito dos que deviam ir. Começou astutamente pela quarta e última fila, onde esperava encontrar os fracos, os velhos e os inválidos.

Havia uma velha que tinha previsto isso e fora colocar-se na primeira fila. Devia ter quase sessenta e cinco anos, mas no seu esforço por permanecer viva tinha calçado sapatos de salto alto, meias de seda preta, saia curta acima dos joelhos e um chapéu elegante. Além disso, tinha passado ruge e pó no rosto e pintara os lábios. Destacava-se com tudo isso em qualquer grupo de prisioneiros do gueto, mas tinha a idéia de que assim poderia passar por uma mocinha.

Quando ia passando por ela, Roschmann parou e encarou-a atentamente. Uma careta de alegria se lhe espalhou então pelo rosto. - Ora, ora, quem é que nos aparece aqui! - Exclamou ele, apontando-a com o chicote para chamar a atenção dos que montavam guarda no centro da praça aos cem já escolhidos. - Não quer dar um passeio a Dunamunde, minha jovem?

Trêmula de medo, a velha murmurou: - Não, senhor.

- Maravilhoso! - exclamou Roschmann. - Sempre tive uma queda pelas moças bonitas. Venha para o centro para que todos possamos admirar sua mocidade e sua beleza!

Ao mesmo tempo que dizia isso, agarrou-a pelo braço e levoua para o centro da Praça de Chumbo. Uma vez ali, fê-la ficar no espaço aberto e disse:

- Bem, mocinha, já que você é tão jovem e bonita, por que não dança para nós?

Ela ficou ali, tremendo tanto do vento frio que soprava quanto de medo. Murmurou alguma coisa que não pudemos ouvir.

- Como? - gritou Roschmann. - Não sabe dançar? Ora essa, não posso crer que uma coisinha linda e jovem como você não saiba dançar!

Os companheiros dele das SS alemãs estavam rindo às gargalhadas. Os letões não entendiam nada, mas começavam a sorrir. A velha sacudiu a cabeça. O sorriso de Roschmann desapareceu.

- Dance! - gritou ele.

Ela fez alguns movimentos desajeitados e então parou. Roschmann tirou a Lüger, engatilhou-a e atirou no chão a dois centímetros dos pés da mulher. Ela deu um salto de pavor.          .

- Dance... dance... dance para nós, cadela judia imunda, - gritou ele, 'dando um tiro no chão entre os pés dela cada vez que dizia "dance".

Colocando um pente sobressalente atrás do outro até usar os três que levava na sacola. Roschmann fez a velha dançar durante meia hora, saltando cada vez mais alto, com as saias a esvoaçarem-lhe à altura dos quadris a cada salto, até que afinal se estendeu na areia, incapaz de qualquer movimento, quer isso representasse a vida, quer a morte. Roschmann disparou as suas últimas três balas no chão bem perto, do rosto dela, jogando-lhe areia nos olhos. Entre os estampidos, a respiração estertorosa da velha podia ser ouvida através de toda a praça.

Quando não teve mais munição, Roschmann gritou "Dance!" e deu um pontapé na barriga da velha. Tudo isso tinha sido assistido por todos nós em completo silêncio até que o homem que es tava ao meu lado começou a rezar. Era um hussid, pequeno e barbado, e ainda vestia os farrapos de seu longo casaco preto. Apesar do frio que nos forçava quase todos a cobrir os ouvidos sobre os nossos gorros, ele tinha o chapéu de abas largas de sua seita. Começou a recitar o "Shema", repetindo-o numa voz trêmula que se foi tornando cada vez mais forte. Sabendo que Roschmann estava num dos seus dias mais ferozes, comecei também a rezar em silêncio para que ele se calasse. Mas o hussid continuava.

- Ouvi, Israel...

- Cale-se, - sussurrei pelo canto da boca. - Adonui elolienu... o Senhor é nosso Deus. - Fique calado. Você nos matará a todos. - O Senhor é o único... Adonui Elru-a-ud.

Como um cantor de sinagoga, ele prolongou a última sílaba à maneira tradicional, como o Rabino Akiva tinha feito ao morrer no anfiteatro de Cesaréia sob as ordens de Tínio Rufo. Foi exatamente nesse momento que Roschmann parou de gritar com a velha. Levantou a cabeça como um animal que fareja o vento e voltou-se para nós. Como eu era um pouco mais alto do que o hussid, olhou para mim.

- Quem era que estava falando'? - gritou ele, marchando para mim através da areia. - Você aí... saia da fila.

Não havia a menor dúvida de que ele estava apontando para mim. Pensei então: "É o fim. Que tem isso'? Pouco importa, pois tinha mesmo de acontecer agora ou em outra ocasião." Dei um passo à frente quando ele chegou ao ponto onde eu estava.

Não disse nada, mas contraía o corpo todo como um maníaco. Por fim, acalmou-se e teve o seu sorriso calmo de lobo que enchia de pavor todo o mundo no gueto. inclusive os letões das SS.

Moveu a mão tão depressa que ninguém pôde vê-la. Senti apenas uma espécie de pancada no lado esquerdo do rosto, juntamente com um tremendo barulho como se uma bomba tivesse explodido perto de meus tímpanos. Tive então a impressão clara mas distante de que a pele se rasgara como um pano podre da têmpora até à boca. Antes mesmo que o sangue começasse a correr, Roschmann tornou a mover a mão e dessa vez o seu chicote me rasgou o outro lado da cara com o mesmo barulho de explosão em meus ouvidos e a mesma impressão de coisa que se despedaçava. Era um chicote de cerca de meio metro, reforçado com uma vareta de aço na parte do cabo e com o resto feito de tiras de couro trançadas sem aço. Quando era vibrado contra a pele humana, podia despedaçá-la como o papel fino. Eu já tinha visto isso acontecer.

Poucos segundos depois, senti o sangue quente começar a pingar na frente de meu casaco, caindo do queixo em duas pequenas fontes vermelhas. Roschmann afastou-se um pouco de mim e apontou para a velha que continuava caída a soluçar no centro da praça. - Pegue aquela bruxa velha e leve-a para o ônibus! - gritou ele.

E assim, alguns minutos antes da chegada das outras cem vítimas, peguei a velha e carreguei-a pela Rua da Pequena Colina até ao portão e ao ônibus que esperava; com o sangue de meu queixo a pingar sobre ela. Sentei-a no fundo do ônibus e preparei-me para sair, deixando-a ali. Nesse momento, ela me agarrou o pulso com os dedos murchos com uma força que eu não tinha pensado que ainda possuísse. Puxou-me para ela, sentada no chão do ônibus da morte e com um lenço de cambraia que devia ser uma relíquia de tempos mais felizes, limpou o sangue que ainda me corria do rosto.

Olhou-me do fundo de um rosto manchado de sômbra, ruge, lágrimas e areia, mas com olhos que brilhavam como estrelas.

- Judeu, meu filho, - disse ela, - você tem de viver. Jure para mim que vai viver. Jure pára mim que vai sair vivo daqui. Tem de viver para dizer aos outros, aos que estão do outro lado do mun do, o que aconteceu ao nosso povo aqui. Prometa, jure pela Seder Tora!

E eu jurei que eu viveria de algum modo, fosse qual fosse o preço. Ela então me largou. Voltei tropegamente pela estrada do gueto e no meio do caminho, perdi os sentidos...

Logo depois que voltei ao trabalho, tomei duas decisões. Uma delas foi manter um diário secreto, tatuando todas as noites palavras e datas com um alfinete e tinta preta na pele dos pés e das pernas, para que um dia eu fosse capaz de reproduzir tudo o que havia acontecido em Riga e dar um testemunho preciso contra os responsáveis.

A segunda decisão foi passar a ser um kapo, um elemento da polícia judaica.

A decisão era difícil, pois os kapos eram os homens que conduziam os seus companheiros judeus para o trabalho e de volta do mesmo e muitas vezes para o local das execuções. Além disso, carregavam um cabo de picareta e de vez em quando, em presença de um oficial alemão das SS, faziam um uso muito liberal dele para forçar os outros judeus a trabalharem ainda mais. Não obstante, no dia 1º de abril de 1942, fui procurar o chefe dos kapos e me apresentei como voluntário, tornando-me assim um réprobo para os meus companheiros judeus. Havia sempre lugar para um kapo a mais, porque, apesar das rações melhores e de condições de vida mais suaves e da dispensa do trabalho escravo, eram bem poucos os que queriam ser um kapo...

Vou descrever agora o método das execuções dos elementos inválidos para o trabalho, porque dessa maneira de 70.000 a 80.000 judeus foram exterminados em Riga por ordem de Eduard Rosch mann. Quando um trem de gado chegava à estação com um novo carregamento de prisioneiros, geralmente em número de 5.000, havia sempre perto de mil que tinham sucumbido durante a viagem. Era muito raro haver apenas algumas centenas de mortos entre os cinqüenta vagões.

Quando os recém-chegados eram colocados em fila na Praça do Chumbo, as seleções para o extermínio se realizavam, não apenas entre os que tinham chegado, mas entre todos nós. Era essa a finalidade das contagens que se faziam pela manhã e à noite. Entre os recém-chegados, os fracos, os velhos e os doentes, muitas mulheres e quase todas as crianças, eram postos de lado como inaptos para o trabalho. Os restantes eram então contados. Se totalizavam 2.000, então 2.000 dos internados eram escolhidos, de modo que chegavam 5.000 e iam 5.000 para a colina de execuções. Dessa maneira, não havia superlotação.

Um homem podia sobreviver a seis meses  de trabalho escravo, raramente a mais, e então, quando a sua saúde estava arruinada, o chicote de Roschmann lhe batia no peito um dia e ele ia engrossar as fileiras dos mortos...

A princípio, essas vítimas marchavam em coluna para a floresta fora da cidade. Os letões lhe chamavam a floresta de Bickernicker, mas os alemães deram-lhe o nome de Hochwald ou Floresta Alta. Ali, nas clareiras entre os pinheiros, valas enormes tinham sido cavadas pelos judeus de Riga antes de morrerem. E ali os guardas letões das SS, sob os olhos e as ordens de Eduard Roschmann, os abatiam de modo que eles caíssem dentro da vala. Os judeus de Riga restantes jogavam então terra bastante para cobrir os corpos, depois do que se jogavam outras camadas de corpos até que a vala ficasse cheia. Passavam então a outra.

Ouvíamos do gueto o crepitar das metralhadoras quando cada novo carregamento era trucidado e víamos Roschmann voltar pela ladeira e passar pelos portões do gueto no seu carro aberto, quando tudo acabava...

Depois que passei a ser um kapo, todos os contatos sociais entre mim e os outros prisioneiros cessaram. Não adiantava explicar por que eu fizera isso, dizendo que um kapo a mais ou a menos não fazia qualquer diferença e não aumentava de um só o número de mortos, mas que uma única testemunha sobrevivente era da maior importância, não para salvar os judeus da Alemanha, mas para vingá-los. Eram ao menos esses os argumentos que eu me repetia, mas era essa a verdadeira razão? Ou eu estava apenas com medo de morrer? Fosse como fosse, o medo logo deixou de ser um fator porque em agosto daquele ano sucedeu uma coisa que fez a alma morrer dentro de meu corpo, deixando apenas a carcaça na luta pela sobrevivência...

Em julho de 1942, chegou de Viena mais um grande transporte de judeus austríacos. Era evidente que todos estavam marcados sem exceção para receber "tratamento especial", pois todo o carregamento nunca chegou ao gueto. Não os vimos, pois foram todos levados da estação para a Floresta Alta e ali abatidos a metralhadora. Mais tarde, quatro caminhões desceram a ladeira carregados de roupas, que foram levadas para a Praça do Chumbo a fim de serem separadas. Formaram um montão da altura de uma casa até que foram divididas em pilhas de sapatos, meias, cuecas, calças, vestidos, paletós, pincéis de barba, óculos, dentaduras, alianças, anéis de sinete, bonés e assim por diante.

Sem dúvida, o processo era comum para os executados. Todos os que eram mortos na colina das execuções eram despidos ao lado das valas e os seus pertences eram trazidos para baixo depois. Tudo era então separado e mandado de novo para o Reich. Roschmann tomava conta pessoalmente do ouro, da prata e das jóias...

Em agosto de 1942, houve outro transporte de Theresienstadt, um campo na Boêmia onde dezenas de milhares de judeus alemães e austríacos ficavam antes de serem mandados para o extermínio no leste. Eu estava num lado da Praça do Chumbo, olhando para Roschmann enquanto ele fazia as suas seleções. Os recém-chegados estavam já de cabeça raspada, o que fora feito no campo de onde tinham vindo, e não era fácil distinguir os homens das mulheres, salvo pelos vestidos que as mulheres usavam. Uma mulher do outro lado me chamou a atenção. Havia em suas feições um quê que me lembrava alguém, embora ela estivesse emaciada, magra como um espeto e tossisse sem parar.

Chegando diante dela, Roschmann bateu-lhe no peito e passou adiante. O letão que o seguia agarrou-a imediatamente pelos braços e tirou-a da fila para juntá-la aos outros condenados no centro da praça. Havia muitas pessoas daquele transporte que não eram aptas para o trabalho e a lista de seleções era grande. Isso queria dizer que poucos dos que já estavam no gueto seriam escolhidos para completar o número, embora para mim o caso fosse destituído de importância. Como kapo, eu usava uma braçadeira e levava um cacete, estando com as forças aumentadas graças às rações de comida mais fartas. Embora Roschmann tivesse visto meu rosto, não parecia lembrar-se dele. Ele havia retalhado tantas caras, que uma a mais ou a menos não lhe chamava a atenção.

Quase todos os escolhidos naquela tarde de verão foram formados em coluna e levados até os portões do gueto pelos kapos. A coluna foi então levada pelos letões nos últimos seis quilômetros para a Floresta Alta e para a morte.

Mas, como havia um ônibus de gases parado diante dos portões, um grupo de cerca de cem dos mais fracos foi separado da coluna. Eu ia escoltar os outros condenados até aos portões quando um te nente das SS, Krause, apontou para quatro ou cinco kapos, dizendo: - Vocês aí, levem estes outros para o comboio de Dunamunde. Depois que os outros saíram, nós cinco levamos as últimas cem pessoas, que na sua maioria coxeavam, arrastavam-se ou tossiam, para o portão onde o ônibus estava esperando. A mulher magra estava entre elas, com o peito flagelado pela tuberculose.

Ela sabia para onde ia, como todos sabiam, mas se arrastou com o resto em resignada obediência para a porta traseira do ônibus. O estribo era muito alto e ela estava fraca demais para subir. Voltou-se então para mim pedindo ajuda. Foi então que olhamos um para o outro em atónito espanto.

Ouvi alguém aproximar-se atrás de mim e os outros dois trapos que estavam perto junto ao estribo se perfilaram em posição de sentido, ao mesmo tempo que tiravam o boné da cabeça com uma das mãos. Compreendendo que devia ser um oficial das SS, fiz o mesmo. A mulher continuava a olhar para mim, sem bater os olhos. O homem que vinha às minhas costas surgiu à frente. Era o Capitão Roschmann: Fez um sinal para que os outros dois kapos continuassem e voltou para mim os aguados olhos azuis. Pensei que isso só podia significar que eu levaria algumas chibatadas naquela noite por ter demorado a tirar o boné.

- Como é seu nome? - perguntou ele com voz suave.

- Tauber, Herr Capitão, - disse eu, ainda em posição rígida de sentido.

- Bem, Tauber, você parece um pouco lento. Acha que devemos dar-lhe um pouco mais de pressa esta noite?

Não me cabia dizer coisa alguma. A sentença fora proferida. Roschmann olhou então para a mulher, apertando os olhos como se suspeitasse de alguma coisa e então o seu lento sorriso de lobo se lhe espalhou pelo rosto.

- Conhece essa mulher'? - perguntou ele. - Conheço. Herr Capitão.

- Quem é ela? - perguntou ele, mas eu não pude responder. Sentia a boca fechada como se estivesse grudada com cola. - É sua esposa?

Fiz um sinal afirmativo e o sorriso dele se tornou ainda maior. - Ora, meu caro Tauber, que é feito de sua educação? Ajude a senhora a embarcar.

Continuei ali, incapaz de fazer qualquer movimento. Ele aproximou o rosto do meu e disse num sussurro:

- Tem dez segundos para fazê-la entrar. Depois, irá você também.

Estendi lentamente o braço e Esther se apoiou nele. Com essa ajuda, embarcou no ónibus. Os outros dois trapos esperavam para fechar as portas. Quando estava dentro do ônibus, ela se voltou e olhou para mim. Duas lágrimas lhe surgiram. uma de cada olho, e rolaram pelas faces. Não me disse nada, não havíamos trocado uma só palavra. As portas foram então fechadas e o ônibus se afastou. A última coisa que vi dela foram os olhos voltados para mim.

Passei vinte anos tentando compreender esse último olhar. Era amor ou ódio, desprezo ou compaixão, espanto ou compreensão? Nunca saberei.

Quando o ônibus se afastou, Roschmann voltou-se para mim, ainda sorrindo.

- Pode continuar vivendo até que nos convenha liquidá-lo, Tauber, - disse ele, - mas você está morto a partir deste momento. Tinha razão. Foi esse o dia em que minha alma morreu, 29 de agosto de 1942.

Depois de agosto daquele ano, virei um robô. Nada mais me importava. Não sentia mais frio nem dor; não havia mais qualquer espécie de sensação. Assistia às brutalidades de Roschmann e de seus companheiros das SS sem bater sequer as pálpebras. Eu já me habituara a tudo o que pode tocar o espírito humano e a quase tudo o que pode afetar o corpo. Limitava-me a tomar nota de tudo até aos menores detalhes, arquivando os fatos na cabeça ou registrando os dados de que me poderia esquecer na pele de minhas pernas. Os transportes chegavam, eram levados para a colina das execuções ou para os ônibus, morriam e eram enterrados. Olhava às vezes para os olhos deles enquanto passavam e eu os acompanhava até aos portões do gueto, com minha braçadeira e o cacete. Isso me fazia pensar num poema que eu lera de um poeta inglês, que dizia como um velho marinheiro condenado a viver tinha olhado para os olhos de seus companheiros que morriam de sede e lera neles uma maldição. Para mim não havia maldição, pois eu estava imune até ao sentimento de culpa. Isso eu saberia muitos anos depois. O que havia naquele tempo era o vazio de um morto que ainda caminhava...

 

Peter Miller leu até tarde da noite. O efeito da narração das atrocidades sobre ele foi ao mesmo tempo monótono e fascinante. Várias vezes, acomodou-se na poltrona e respirou fundo para recuperar a calma. Voltou a ler então.

Uma vez, perto da meia-noite, largou o livro e fez mais café. Chegou à janela antes de fechar as cortinas e olhou para a rua. Mais abaixo, o brilhante cartaz  de gás néon do Café Keese fulgurava do outro lado do Steindanne e ele viu uma das moças que o freqüentavam avulsamente para melhorar a sua renda sair de braço dado com um homem de negócios. Desapareceram numa pensão próxima, onde o homem iria desfazer-se de cem marcos por meia hora de cópula.

Miller fechou de novo as cortinas, acabou o seu café e voltou ao diário de Salomon Tauber.

 

No outono de 1943, veio ordem de Berlim para desenterrar dezenas de milhares de corpos na Floresta Alta e destruí-los mais permanentemente com fogo ou cal. Era um serviço mais fácil de dizer do que de fazer, principalmente com a aproximação do inverno, que  endurecia o solo. Roschmann ficou furioso durante alguns dias, mas os detalhes administrativos da execução da ordem deram-lhe trabalho suficiente para que ele ficasse afastado de nós.

Dias a fio, as turmas de trabalho que então se formaram subiam a ladeira com suas picaretas e pás e dias a fio as colunas de fumaça negra se erguiam acima da floresta. Usavam como combustível os pinheiros da floresta, mas os corpos em estado adiantado de decomposição não queimam com facilidade, de modo que o trabalho era lento. Acabaram mudando para a cal, cobrindo com ela cada camada de cadáveres e na primavera de 1944 quando a terra amoleceu enterraram tudo de novo. (1)

As turmas que fizeram esse trabalho não eram do gueto. Ficavam totalmente isoladas de outros contatos humanos. Eram compostas de judeus, mas estes ficavam aprisionados num dos piores campos das redondezas, Salas Pils, onde foram depois exterminados por não receberem qualquer espécie de comida até morrerem todos de inanição, apesar do canibalismo a que muitos recorreram...

Quando o trabalho foi mais ou menos completado na primavera de 1944, o gueto foi finalmente liquidado. A maior parte de seus 30.000 habitantes foram levados para a floresta, a fim de serem as últimas vítimas que os pinheiros estavam destinados a receber. Cerca de 5.000 fomos transferidos para o campo de Kaiserwald, enquanto atrás de nós o gueto foi incendiado, passando-se então um rolo compressor sobre as cinzas. Do que tinha havido ali nada mais restava senão uma área de cinzas esmagadas que cobriam dezenas de hectares... (2)

 

* (1) Esse processo queimava de fato os cadáveres, mas não destruía os ossos. Os russos descobriram mais tarde esses 50.000 esqueletos.

(2) A ofensiva russa da primavera de 1944 levou a maré da guerra para oeste a tal ponto que as tropas soviéticas passaram ao sul dos países bálticos e através do Mar Báltico a oeste deles. Isso separou do Reich toda a Ostland e determinou uma acesa divergência entre Hitler e os seus generais. Estes haviam previsto o avanço e pleitearam de Hitler a retirada das quarenta e cinco divisões que estavam no enclave. Ele tinha recusado, reiterando o seu grito papagueado de "Vitória ou Morte". o que estava oferecendo aos 500.000 soldados dentro do enclave era a morte. Com as rotas de reabastecimento bloqueadas, lutaram com as munições que escasseavam para adiar um destino certo e acabaram capitulando. Da maioria, aprisionados e transportados para a Rússia no inverno de

1944-1945, poucos voltaram dez anos depois para a Alemanha.

Em mais vinte páginas datilografadas, o diário de Tauber descrevia a luta pela sobrevivência no campo de concentração de Kaiser wald sob o impacto da fome, da doença, da estafa e da brutalidade dos guardas do campo. Durante esse tempo, não se viu nenhum sinal do Capitão das SS, Eduard Roschmann. Mas evidentemente ele ainda estava em Riga. Tauber contou como em princípios de outubro de 1944 os homens das SS, já então tomados de pânico ante a idéia de que poderiam ser capturados vivos pelos russos vingativos, prepararam-se para uma desesperada evacuação de Riga por mar, levando um punhado dos últimos prisioneiros sobreviventes como sua passagem de volta para o Reich, a oeste.

Foi na tarde de 11 de outubro que chegamos, já então reduzidos a apenas 4.000 pessoas, à cidade de Riga e a coluna se encaminhou diretamente para o cais. Ouvíamos ao longe um ronco surdo no horizonte, como uma trovoada. Durante algum tempo, ficamos sem saber de que se tratava, pois nunca tínhamos ouvido o estampido de canhões ou de bombas. Por fim, embora com o espírito embotado pela fome ou pelo frio, compreendemos. Os morteiros russos estavam caindo nos subúrbios de Riga.

Quando chegamos ao cais, toda aquela área estava coalhada de oficiais e soldados das SS. Eu nunca tinha visto tantos num só lugar ao mesmo tempo: Eram mais numerosos talvez do que nós. Fomos dispostos_ em fila diante de um dos armazéns e quase todos nós pensamos que era ali que íamos morrer sob o fogo das metralhadoras. Mas não ia ser assim.

Era evidente que as SS iam usar-nos, os que restávamos das centenas de milhares de judeus que haviam passado através de Riga, como seu alibi para escapar do avanço russo, como a sua passagem de volta ao Reich. O meio de transporte estava encostado ao Cais Seis, um cargueiro que era o último a sair do enclave cercado. Enquanto ali estávamos, começou o embarque de alguns das centenas de feridos do Exército Alemão que estavam deitados em padiolas em dois dos armazéns mais adiante no cais...

Estava quase escuro quando o Capitão Roschmann chegou e estacou ao ver que já estavam fazendo embarques no navio. Gritou então para os homens do Corpo de Saúde que levavam as padiolas para baixo:

- Parem com isso!

Encaminhou-se para eles através do cais e deu uma bofetada num dos padioleiros. Voltou-se então para nós, prisioneiros, e gritou: - Vamos, canalha! Entrem naquele navio e tirem aqueles homens de lá. Tragam todos para cá. Aquele navio é nosso.

Empurrados pelos canos das armas dos homens das SS que tinham vindo conosco, dirigimo-nos para a prancha. Centenas de outros soldados inferiores e suboficiais das SS que até então tinham ficado de parte olhando o embarque entraram em ação e seguiram os prisioneiros até ao navio. Quando chegamos ao convés, começamos a pegar as padiolas e carregá-las de volta para o cais. Ou, melhor, estávamos começando a fazer isso quando outro grito nos fez parar.

Eu tinha chegado à prancha e já ia subir quando ouvi o grito e voltei-me para ver o que estava acontecendo.

Um capitão do exército vinha correndo pelo cais e parou bem perto de mim ao lado da prancha. Olhando para os homens no alto que carregavam as padiolas que iam tirar do navio, gritou:

- Quem deu ordem para que esses homens fossem desembarcados?

Roschmann se aproximou por trás dele e disse: - Fui eu. Esse navio é nosso.

O capitão voltou-se para encará-lo. Meteu a mão no bolso da túnica e tirou um pedaço de papel.

- Esse navio foi mandado para recolher os feridos do exército, - disse ele. - E vai levar os feridos do exército.

Depois disso, voltou-se para os padioleiros militares e disse-lhes que continuassem o embarque dos feridos. Olhei então para Roschmánn. Estava tremendo, pensei com raiva. Depois, vi que estava apavorado. Tinha medo de ficar ali para enfrentar os russos. Ao contrário do que acontecia conosco, eles estavam armados.

Começou a gritar aos padioleiros:

- Não liguem para ele. Este navio está requisitado por mim em nome do Reich.

Os padioleiros não lhe deram atenção e obedeceram ao capitão da Wehrmacht. Vi-lhe bem o rosto, pois estava apenas a dois metros de mim. Estava cinzento de exaustão, sombreado por olheiras profundas. Havia rugas dos dois lados do nariz e uma barba de várias semanas no queixo. Vendo que o embarque dos feridos recomeçava, dispôs-se a passar por Eduard Roschmann a fim de dirigir os padioleiros.

Entre as padiolas estendidas na neve do cais, ouvi uma voz exclamar em dialeto de Hamburgo:

- Muito bem, Capitão. Deu uma lição a esse porco.

Quando ele ia passando pela frente de Roschmann, o oficial das SS agarrou-o pelo braço, fê-lo rodar e bateu no rosto do homem do exército com a mão enluvada. Já o tinha visto esbofetear homens mais de mil vezes, mas nunca com o mesmo resultado. O capitão recebeu a bofetada, sacudiu a cabeça, fechou o punho e acertou um maravilhoso soco de direita no rosto de Roschmann. Este cambaleou alguns metros para trás e foi cair de costas na neve, com um filete de sangue a escorrer-lhe da boca. O capitão encaminhou-se então para onde estavam os seus padioleiros.

Enquanto eu olhava, Roschmann sacou da capa a sua pistola Lüger de oficial das SS, fez pontaria cuidadosamente e atirou entre os ombros do capitão. Toda a atividade cessou quando se ouviu o tiro da pistola. O capitão do exército cambaleou e virou-se. Roschmann atirou de novo e a bala atingiu o pescoço do capitão. O homem rodou de costas e estava morto antes que seu corpo batesse no cais. Uma coisa que ele usava em volta do pescoço voou longe quando a bala o atingiu. Quando passei pelo objeto, depois de receber ordem de carregar o corpo e lançá-lo ao mar, vi que se tratava de uma medalha presa a uma fita. Nunca soube o nome do capitão, mas a medalha era a Cruz de Cavaleiro com Palmas de Carvalho...

 

Miller leu essa página do diário com crescente assombro, passando sucessivamente à incredulidade, à dúvida, de novo à convicção e, por fim, a uma profunda indignação. Leu a página uma porção de vezes para certificar-se de que não estava enganado e então prosseguiu na leitura do diário.

 

Depois disso, recebemos ordem de desembarcar os feridos da Wehrmacht e deixá-los estendidos na neve cada vez mais densa do cais. Houve um momento em que ajudei um jovem soldado a descer a prancha para o cais. Estava cego e em torno de seus olhos fora passada uma bandagem suja feita com uma fralda de camisa. Estava meio delirante e perguntava a cada instante pela mãe. Não devia ter mais de dezoito anos.

Por fim, foram todos desembarcados e nós, prisioneiros, recebemos ordem de subir a bordo. Fomos levados todos para os dois porões, um à proa e outro à ré, até que tudo ficou tão repleto que mal nos podíamos mover. Depois, as escotilhas foram fechadas e os homens das SS começaram a embarcar. Partimos pouco antes da meia-noite, pois o comandante queria evidentemente estar bem longe no golfo da Letônia para evitar a possibilidade de que os Stormoviks russos em patrulha vissem e bombardeassem o navio...

Levamos três dias para chegar a Dantzig, bem na retaguarda das linhas alemãs. Foram três dias de inferno a bordo de um navio que jogava desesperadamente, sem que nos dessem água, nem comida. Durante a viagem, morreu um quarto dos 4.000 prisioneiros. Não havia comida para vomitar, mas todos vomitavam em seco, enjoados com o balanço do navio. Muitos morreram de exaustão dos vômitos, outros de fome ou de frio, alguns de sufocação e vários porque perderam simplesmente a vontade de viver, estenderam o corpo e se  entregaram à morte. Por fim, o navio atracou de novo, as escotilhas foram abertas e as lufadas do ar gelado do inverno invadiram de roldão os porões fétidos.

Quando fomos desembarcados no cais de Dantzig, os corpos dos mortos foram arrumados em fila ao lado dos vivos a fim de ser verificado se o número coincidia com o dos homens que tinham sido embarcados em Riga. Os homens das SS foram sempre muito escrupulosos em matéria de contagens e de números.

Soubemos que Riga tinha caído em poder dos russos a 14 de outubro, quando ainda estávamos no mar...

A penosa odisséia de Tauber se aproximava do fim. De Dantzig, os prisioneiros sobreviventes foram levados em barcaças para o campo de concentração de Stutthof, nos arredores de Dantzig,

e até às primeiras semanas de 1945 ele trabalhou nas oficinas de submarinos de Burggraben durante o dia e ia dormir à noite no campo. Milhares de homens morreram de desnutrição em Stutthof. Tauber via-os morrer todos, mas de algum modo continuava vivo.

Em janeiro de 1945, quando os russos no seu avanço se aproximavam de Dantzig, os sobreviventes do campo de Stutthof foram levados para oeste na famosa Marcha da Morte sobre a neve de inverno rumo a Berlim. Através de toda a Alemanha Oriental, essas colunas de fantasmas, que eram usados pelos seus guardas das SS como um penhor de segurança ante a hipótese de caírem em mãos ocidentais, foram tangidas para oeste. Morriam pela estrada como moscas sob a neve e o frio.

Tauber sobreviveu até a isso e, por fim, os remanescentes da coluna atingiram Magdeburgo, a oeste de Berlim, onde os homens das SS finalmente os abandonaram e foram cuidar da própria segurança. O grupo de Tauber foi alojado na prisão de Magdeburgo, sob a vigilância dos velhos confusos e inofensivos da Guarda Nacional. Sem ter comida para dar aos prisioneiros, aterrados com o que os Aliados que avançavam diriam quando os encontrassem, a Guarda Nacional permitia que os mais capazes saíssem para procurar comida nos arredores.

 

A última vez que eu tinha visto Eduard Roschmann fora quando estávamos sendo contados no cais de Dantzig. Estava embarcando num carro, bem agasalhado do frio do inverno. Pensei que nunca mais iria vê-lo, mas ainda tive oportunidade de vê-lo uma vez. Foi a 3 de abril de 1945.

Eu tinha ido naquele dia até perto de Gardelegen, uma aldeia

a leste da cidade, e tinha juntado um saquinho de batatas com mais três companheiros.

Estávamos voltando com o produto de nossas andanças quando um carro apareceu atrás de nós na direção do oeste. Diminuiu a marcha para ultrapassar na estrada uma carreta com um cavalo e eu olhei sem particular interesse para ver o carro passar. Iam nele quatro oficiais das SS, que fugiam evidentemente para oeste. Eduard Roschmann estava sentado ao lado do motorista e enfiava no momento a túnica de um cabo do exército.

Ele não me viu porque minha cabeça estava quase toda escondida por um capuz recortado de um velho saco de batatas, como uma proteção contra o vento frio da primavera. Mas eu o vi. Não tenho a menor dúvida disso.

Os quatro homens estavam evidentemente trocando de uniforme mesmo enquanto o veículo se dirigia para oeste. Quando o carro desapareceu na estrada, uma peça de roupa foi jogada dele e rolou pelo chão. Era uma túnica de oficial das SS, trazendo na gola o símbolo dos relâmpagos duplos de prata das Waffen-SS e as insígnias de capitão. O Roschmann das SS desaparecera...

Vinte e quatro dias depois, ocorreu a libertação. Tínhamos cessado por completo de sair, preferindo passar fome na prisão a nos aventurarmos pelas ruas, onde havia a mais desenfreada anarquia. Por fim, na manhã de 27 de abril, tudo era silêncio na cidade. No meio da manhã, eu estava no pátio da prisão conversando com um dos velhos guardas, que parecia apavorado e passou quase uma hora tentando explicar-me que ele e seus colegas nada tinham que ver com Adolf Hitler e sem dúvida nada com a perseguição dos judeus.

Ouvi um veículo parar diante dos portões trancados e então começaram a bater. O velho da Guarda Nacional foi abrir. O homem que entrou cautelosamente com um revólver na mão era um soldado num uniforme de campanha completo, que eu nunca tinha visto.

Era evidentemente um oficial porque estava acompanhado de um homem com um capacete redondo e chato que levava um fuzil. Pararam em silêncio, correndo os olhos pelo pátio da prisão. Num canto, estavam amontoados cerca de cinqüenta cadáveres de homens que tinham morrido nas duas semanas anteriores e ninguém tivera forças para enterrar. Outros, semimortos, encostavam-se às paredes, tentando receber um pouco do sol da primavera, cobertos de feridas que cheiravam mal.

Os dois homens se entreolharam e então olharam para o velho de setenta anos da Guarda Nacional. Este estava todo confuso e então disse uma coisa que devia ter aprendido na Primeira Guerra Mundial:

- Alô, Tommy.

O oficial olhou para ele, correu de novo os olhos pelo pátio e disse claramente em inglês:

- Miserável kraut imundo! De repente, comecei a chorar...

Não sei bem como foi que voltei para Hamburgo, mas voltei. Queria ver se ainda restava alguma coisa de minha vida antiga. Não, não restava mais nada. As ruas onde eu nascera e me criara tinham desaparecido na grande tempestade de fogo dos bombardeios aéreos aliados. O escritório onde eu trabalhava, o apartamento onde eu morava, tudo tinha desaparecido...

Os ingleses me puseram durante algum tempo no hospital de Magdeburgo, mas eu saí espontaneamente e voltei para minha terra pedindo carona pelo caminho. Mas, quando lá cheguei e vi que nada mais restava, sofri, por fim, um colapso completo. Passei um ano internado num hospital em companhia de outros que vinham de um lugar chamado Bergen-Belsen e, depois, mais um ano trabalhando no hospital como atendente, cuidando daqueles que estavam em pior estado do que eu estivera.

Quando saí, procurei um quarto em Hamburgo, a fim de ali passar o resto de meus dias...

 

O livro terminava com mais duas folhas de papel novo, evidentemente datilografadas pouco antes e que formavam o epílogo.

 

Vivo neste pequeno quarto em Altona desde 1947. Logo depois que saí do hospital, comecei a escrever a história do que acontecera a mim e aos outros em Riga.

Mas, muito antes de chegar ao fim, percebi com perfeita clareza que outros haviam sobrevivido também, mais bem informados e mais capazes do que eu de dar testemunho do que fora feito. Já apareceram centenas de livros que descrevem o holocausto e, portanto, ninguém se vai interessar pelo meu. Nunca dei estas páginas a ninguém para ler.

Olhando para trás, vejo que tudo foi um desperdício de tempo e de energia, a batalha para sobreviver e poder escrever todas as provas dos fatos, quando outros já o fizeram muito melhor. Lamento agora que não tivesse morrido em Riga com Esther.

Até meu último desejo de ver Eduard Roschmann diante de um tribunal para eu então dar testemunho de tudo o que ele fez, nunca será realizado. Sei disso agora.

Ando às vezes pelas ruas e me lembro dos velhos tempos que passei aqui, mas nunca mais pode ser a mesma coisa. As crianças riem de mim e fogem quando tento mostrar-lhes amizade. Uma vez, comecei a falar com uma meninazinha que não fugiu, mas a mãe logo apareceu aos gritos e levou-a. Por isso, não falo com quase ninguém.

Uma vez, uma mulher veio procurar-me. Disse que era do Escritório de Reparações e que eu tinha direito a uma indenização. Disse-lhe que não queria dinheiro algum. Ela ficou muito desconcertada e disse que eu tinha o direito a ser indenizado pelo que me tinham feito. Continuei a recusar. Mandaram outra pessoa para me convencer e eu tornei a recusar. Essa pessoa me disse que era uma coisa muito irregular não querer receber a indenização. Compreendi que isso iria atrapalhar a escrita deles. Mas só recebo deles o que me é devido.

Quando eu estava no hospital inglês, um dos médicos me perguntou por que eu não emigrava para Israel, que dentro em breve iria conseguir a independência. Como eu podia explicar-lhe minha situação? Não podia dizer-lhe que nunca posso ir para a Terra, depois do que fiz a Esther, minha mulher. Penso muito nisso e chego a sonhar com minha ida, mas não sou digno de ir.

Mas, se estas linhas forem lidas um dia na terra de Israel, que eu nunca hei de ver, alguém quer fazer o favor de dizer o khaddish (oração dos mortos) por mim?

 

SALOMON TAUBER Altona, Hamburgo, 21 de novembro de 1963.

 

Peter Miller largou o diário e ficou sentado na poltrona durante muito tempo, olhando para o teto e fumando. Pouco antes das cinco da manhã, ouviu a porta do apartamento se abrir e Sigi chegou do trabalho. Ficou surpresa de encontrá-lo ainda acordado.

- Que é que está fazendo até uma hora destas? - perguntou

ela.

- Estava lendo, - respondeu Miller.

Mais tarde, estavam na cama quando os primeiros raios de sol tocavam a flecha de St. Michaelis. Sigi estava com sono e contente como uma mulher jovem que acabou de ser amada. Miller continuava a olhar para o teto, silencioso e preocupado.

- Em que está pensando? - perguntou Sigi ao fim de algum tempo.

- Estou apenas pensando.

- Disso eu sei e está-se vendo. Mas em quê?

- Na minha próxima reportagem.

Ela se virou na cama e olhou para ele.

- Que é que vamos fazer? - perguntou ela.

Miller inclinou-se e apagou o cigarro. Disse então:

- Vou seguir a pista de um homem.

 

Enquanto Peter Miller e Sigi dormiam nos braços um do outro em Hamburgo, um gigantesco Comet IV das Aerolineas Argentinas sobrevoava as montanhas ainda escuras de Castela e começava as manobras para o pouso no aeroporto de Barajas, em Madri.

Sentado junto à janela na terceira fila da seção de passageiros de primeira classe, ia um homem de pouco mais de sessenta anos, de cabelos grisalhos e bigode bem aparado.

Só uma fotografia existira em qualquer tempo daquele homem, que o mostrava aos quarenta anos, com cabelo rente, sem bigode para cobrir-lhe a boca de ratoeira e com uma risca fina partindo o cabelo do lado esquerdo da cabeça. Dificilmente, qualquer pessoa do pequeno grupo de homens que já haviam visto aquela fotografia reconheceria o homem que ia no avião, cujo cabelo farto era penteado para trás sem risca. A fotografia do passaporte correspondia à sua nova aparência.

O nome no passaporte identificava-o como Ricardo Suertes. cidadão argentino, e esse nome era como uma pilhéria sinistra do homem contra o mundo. De fato, Suerte em espanhol significa Sorte e Sorte em alemão é Glueck. O passageiro do avião naquela noite de janeiro nascera com o nome de Richard Gluecks e se tornara depois general das SS, chefe do Escritório Central de Administração Econômica do Reich e Inspetor Geral dos Campos de Concentração de Hitler. Nas listas de homens procurados da Alemanha e de Israel, ele era o terceiro nome, depois de Martin Bormann e do chefe da Gestapo, Heinrich Muller. Tinha ainda mais importância nessas listas do que o Dr. Josef Mengele, o Médico Diabólico de Auschwitz. Na Odessa, ele vinha em segundo lugar, como ajudante direto de Martin Bormann, sobre quem recaíra o manto do Fuehrer depois de 1945.

O papel que Richard Gluecks tinha desempenhado nos crimes das SS fora excepcional e só se podia comparar com a maneira pela qual ele conseguira efetuar o seu desaparecimento completo em maio de 1945. (Mais ainda do que Adolf Eichmann, Gluecks tinha sido um dos dirigentes intelectuais máximos do holocausto. embora nunca tivesse puxado o gatilho.

Se se tivesse dito a um passageiro sem informação quem era o homem ao seu lado, ele poderia estranhar que o ex-chefe de um escritório de administração econômica tivesse uma posição tão alta na lista de homens procurados.

Caso fizesse perguntas, poderia saber que dos crimes contra a humanidade cometidos do lado da Alemanha entre 1933 e 1945 talvez 95% podiam ser com exatidão atribuídos às SS. Destes. uma percentagem entre 80% e 90% podiam ser atribuídos a dois departamentos dentro das SS, o Escritório Central de Segurança do Reich e o Escritório Central de Administração Econômica do Reich.

Se parece estranha a idéia de uma repartição econômica envolver-se em assassinatos em massa, deve-se compreender como se tinha a intenção de que o trabalho fosse feito. Não só se pretendia exterminar todos os judeus existentes na Europa, bem como a maior parte das raças eslavas, mas também se julgava que as vítimas deviam pagar por esse privilégio. Antes que as câmaras de gás começassem a funcionar, as SS já haviam executado o maior roubo da história.

No caso dos judeus, o pagamento foi feito em três etapas. Primeiro, foram roubados de suas empresas, casas, fábricas, contas bancárias, móveis, carros e roupas. Foram então embarcados para os campos de trabalho escravo e de morte, pensando que se destinavam a recolonizar outras terras. Muitos acreditaram nisso e levaram tudo o que podiam transportar. geralmente em duas maletas. No pátio dos campos, as maletas lhes eram tomadas, juntamente com as roupas que usavam.

Dessa bagagem de seis milhões de pessoas, milhares de milhões de dólares de saque foram arrancados, pois os judeus europeus daquele tempo viajavam em geral levando toda a sua riqueza, especialmente os da Polônia e das terras a leste. Dos campos, trens cheios de enfeites de ouro, brilhantes, safiras, rubis, barras de prata, luíses de ouro, dólares de ouro e notas de toda espécie e descrição foram despachados para o comando das SS na Alemanha. Através de toda a sua história, as SS lucraram com as suas atividades. Parte dos lucros obtidos, sob a forma de barras de ouro marcadas com a águia do Reich e o símbolo do duplo relâmpago das SS. foi depositada perto do fim da guerra nos bancos da Suíça, Liechtenstein, Tânger e Beirute para formar a fortuna que posteriormente serviu de base à Odessa. Grande parte desse ouro ainda se encontra sob as ruas de Zurique, confiada à guarda dos banqueiros complacentes e farisaicos da cidade.

A segunda etapa da exploração estava nos corpos vivos das vítimas. Possuíam calorias de energia que poderiam ser proveitosamente usadas. Nesse ponto, os judeus se equiparavam aos russos e aos poloneses, que tinham sido capturados sem um tostão. Os incapazes para o trabalho em todas as categorias eram exterminados como inúteis. Os que podiam trabalhar eram contratados ou para as fábricas das SS ou por empresas industriais alemãs como Krupp, Thyssen, von Opel e outras a três marcos por dia para os operários não-qualificados e quatro marcos para os artesãos. A expressão "por dia" significava tanto trabalho quanto era possível extrair de um corpo vivo com um mínimo de comida durante um período de vinte e quatro horas. Centenas de milhares de pessoas morreram dessa maneira no seu local de trabalho.

As SS eram um estado dentro do estado. Tinham fábricas próprias, oficinas, uma divisão de engenharia, uma seção de construção, oficinas de reparos e manutenção e um departamento de roupas. Faziam por si mesmas quase tudo de que poderiam precisar e usavam para fazer o trabalho os trabalhadores escravos, que por decreto de Hitler eram propriedade das SS.

A terceira fase da exploração se exercia nos corpos dos mortos. As pessoas iam nuas para a morte, deixando cargas enormes de sapatos, meias, pincéis de barba, óculos, paletós e calças. Deixavam também os cabelos, que eram remetidos para o Reich para serem transformados em botas de feltro para a luta de inverno, e as obturações de ouro que eram arrancadas com alicates dos cadáveres e depois fundidas, para serem depositadas como barras de ouro em Zurique. Fizeram-se tentativas para usar os ossos como adubos e aproveitar as gorduras do corpo para fazer sabão, mas se chegou à conclusão de que isso era antieconômico.

Encarregado de todo o setor econômico ou de lucros do extermínio de quatorze milhões de pessoas, o Escritório Central da Administração Econômica do Reich era subordinado às SS e chefiado pelo homem que ocupava a cadeira 3-B do avião naquela noite.

Gluecks preferia não arriscar a vida ou a liberdade regressando à Alemanha depois de sua fuga. Não tinha necessidade disso. Muito bem provido de fundos secretos, poderia viver confortavelmente na América do Sul até ao fim da vida. A sua dedicação ao ideal nazista não fora abalada pelos acontecimentos de 1945 e isso, combinado com o seu antigo prestígio, lhe assegurava um lugar destacado e de honra entre os fugitivos nazistas da Argentina, de onde a Odessa era dirigida.

O avião pousou normalmente e os passageiros passaram pela alfândega sem problemas. O espanhol fluente do passageiro de primeira classe da Fila Três não fez ninguém erguer as sobrancelhas, pois havia muito que ele conseguia fazer-se passar por sul-americano.

Saindo do edifício terminal, tomou um táxi e, graças a um longo hábito, deu um endereço a uma rua de distância do Motel Zurburan. Pagando o táxi no centro de Madri, pegou a maleta e andou a pé os 200 metros que ainda faltavam para o hotel.

Tendo feito a reserva pelo telex, passou pela portaria e subiu para o seu quarto a fim de tomar banho e fazer a barba. Eram nove horas em ponto quando bateram discretamente por três vezes na sua porta, seguindo-se uma pausa e mais duas pancadas. Foi abrir a porta e deixou entrar o visitante depois que o reconheceu.

O recém-chegado fechou a porta depois de passar, ficou em posição de sentido e levantou o braço direito com a palma da mão para baixo na velha saudação.

- Sieg Heil! - disse o homem.

O General Gluecks teve um sinal de aprovação para o homem mais moço e levantou também o braço direito.

- Sieg Heil, - disse ele mais suavemente.

Apontou uma cadeira ao visitante. O homem diante dele era outro alemão, ex-oficial das SS, que era presentemente chefe da rede da Odessa dentro da Alemanha Ocidental. Estava muito sensibilizado com a honra de ser chamado a Madri para uma conferência com um elemento tão importante e suspeitava de que isso tivesse alguma relação com a morte do Presidente Kennedy trinta e seis horas antes. Não estava errado.

O General Gluecks serviu-se de uma xícara de café de uma bandeja que estava ao lado dele e acendeu cuidadosamente um grande Corona.

- Deve ter imaginado a razão desta minha visita súbita e arriscada à Europa, - disse ele. - Desde que não me agrada ficar neste continente mais tempo do que é necessário, entrarei logo no assunto e serei breve.

O subordinado da Alemanha inclinou ansiosamente o corpo na cadeira.

- Kennedy está morto, o que foi para nós um golpe de sorte excepcional, - continuou o general. - Temos de tirar todas as vantagens possíveis desse fato, sem que haja a menor falha. Está prestando atenção?

- Certamente e em princípio, Herr General, - disse pressurosamente o homem mais moço. - Mas de que forma especificamente? - Estou-me referindo ao acordo secreto de armas entre a quadrilha de traidores de Bonn e os porcos de Tel Aviv. Sabe desse acordo de armas?

Sabe dos tanques, dos canhões e das outras armas que estão sendo agora mesmo remetidas da Alemanha para Israel?

- Claro que sei.

- E sabe também que nossa organização está fazendo tudo ao seu alcance para ajudar a causa dos egípcios, de modo que eles possam um dia ser completamente vitoriosos na luta que virá?

- Certamente. Já organizamos o recrutamento de numerosos cientistas alemães para esse fim.

O General Gluecks fez um sinal de assentimento.

- Tratarei disso depois. Estava falando era de nossa política de manter nossos amigos árabes tão bem informados quanto possível dos detalhes desse traiçoeiro acordo, de modo que eles possam fazer as representações mais enérgicas junto ao governo de Bonn pelos canais diplomáticos. Os protestos dos árabes determinaram a formação na Alemanha de um grupo fortemente contrário ao acordo das armas por motivos políticos, desde que o mesmo aborrece os árabes. Esse grupo está sem saber fazendo o nosso jogo, ao exercer pressão até em nível ministerial sobre o idiota que é Erhard para cancelar o acordo das armas.

- Sim. Estou compreendendo, Herr General.

- Ótimo. Erhard não cancelou até agora as remessas de armas, mas vacilou várias vezes. Os que desejam ver completado -o acordo de armas germano-israelense têm apresentado até agora como principal argumento o fato de que o acordo tem o apoio de Kennedy e Erhard faz tudo o que Kennedy quer.

- Bem, isso é verdade.

- Mas Kennedy agora está morto.

Os olhos do homem que viera da Alemanha rebrilharam de entusiasmo à medida que as perspectivas do novo estado de coisas se lhe abriam ao espírito. O general das SS jogou dois centímetros de cinza do charuto na xícara de café e gesticulou brandindo a ponta acesa na direção de seu subordinado.

- Durante o resto deste ano, portanto, a base da ação política dentro da Alemanha que nossos amigos e partidários devem empreender será agitar a opinião pública na maior escala possível con tra esse acordo das armas e em favor dos amigos verdadeiros e tradicionais da Alemanha, os árabes.

- Sim, sim, isso se pode fazer, - disse o homem mais moço, sorrindo amplamente.

- Certos contatos que temos no governo do Cairo manterão um fluxo constante de protestos diplomáticos por intermédio da embaixada do Egito e das de outros países, - continuou o general. - Outros amigos árabes promoverão manifestações pelos estudantes árabes e pelos amigos alemães dos árabes.

O seu trabalho será coordenar a publicidade de imprensa através das várias publicações  nos principais jornais e revistas, pressão sobre os funcionários mais chegados ao governo e sobre os políticos, que devem ser persuadidos a seguir a corrente cada vez mais forte de opinião contra o acordo das armas.

O homem mais moço franziu a testa.

- É muito difícil hoje em dia na Alemanha promover sentimentos hostis a Israel, - murmurou ele.

- Mas não há a menor necessidade disso, - replicou o outro causticamente. - O ãngulo é muito simples: por motivos práticos, a Alemanha não pode alienar oitenta milhões de árabes com essas remessas de armas supostamente secretas. Muitos alemães darão ouvido a esses argumentos, especialmente os diplomatas. Podemos conseguir o apoio de conhecidos amigos nossos no Ministério do Exterior. Esse ponto de vista prático é inteiramente permissível. É claro que haverá fundos à disposição. O importante é que, com Kennedy morto e com Johnson sem probabilidade de adotar os mesmos métodos internacionalistas e favoráveis aos judeus, Erhard deve ser submetido a uma pressão constante em todos os níveis, inclusive em seu próprio ministério, para cancelar esse acordo de armas. Se pudermos mostrar aos egípcios que fizemos a política externa de Bonn mudar de rumo, a nossa cotação no Cairo subirá inevitavelmente muito.

O homem da Alemanha assentiu repetidamente, vendo já o seu plano de campanha tomar forma diante dele.

- Isso será feito, - disse ele.

- Excelente, - replicou o General Gluecks. O homem à frente dele levantou a cabeça.

- Herr General, falou nos cientistas alemães que estão agora trabalhando no Egito...

- Ah, sim, eu disse que trataria disso depois. Eles representam a segunda frente de nosso plano para destruir os judeus de uma vez por todas. Tem conhecimento dos foguetes de Helwan, não é mesmo?

- Tenho, sim. Ao menos, nos detalhes principais.

- Mas não sabe qual é realmente a finalidade deles'? ' - Bem, presumi naturalmente...

- Presumiu que seriam usados para lançar algumas toneladas de explosivos de alta potência contra Israel? - perguntou o General Gluecks com um amplo sorriso. - Não poderia estar mais errado. Entretanto, creio que já está em tempo de lhe dizer por que esses foguetes e os homens que os construíram são na verdade de importância tão vital.

O General Gluecks recostou-se na poltrona, olhou para o teto e contou ao seu subordinado a verdadeira história dos foguetes de Helwan.

Logo depois da guerra, quando o Rei Faruk ainda governava o Egito, milhares de nazistas e ex-elementos das SS fugiram da Europa e foram encontrar um refúgio seguro nas areias do Nilo. Entre os elementos que foram para o Egito havia vários cientistas. Antes mesmo do golpe de estado que alijou Faruk, dois cientistas alemães tinham sido encarregados por Faruk dos primeiros estudos para a instalação de uma fábrica de foguetes. Isso aconteceu em 1952 e os dois professores eram Paul Goerke e Rolf Engel.

O projeto ficou em suspenso durante alguns anos depois que Gamal Abdel Nasser assumiu o poder, mas depois da derrota militar das forças egípcias na campanha do Sinai em 1956, o novo ditador do Egito fez o juramento de que um dia Israel seria totalmente destruído.

Em 1961, quando recebeu o "Não" final de Moscou aos seus pedidos de foguetes pesados, o projeto Goerke-Engel de uma fábrica egípcia de foguetes foi revitalizado com raiva e, durante aquele ano, trabalhando contra o relógio e sem qualquer freio quanto às despesas de dinheiro, os professores alemães e os egípcios construíram e puseram em funcionamento a Fábrica 333 em Helwan, ao norte do Cairo.

Abrir uma fábrica é uma coisa; projetar e construir foguetes é outra. Desde muito tempo, os partidários mais importantes de Nasser, principalmente os que tinham antecedentes favoráveis aos na zistas desde a Segunda Guerra Mundial, tinham estado em estreito contato com os representantes da Odessa no Egito. Foi deles que veio a solução para o grande problema dos egípcios, a aquisição dos cientistas necessários para fazer os foguetes.

Nem a Rússia, nem os Estados Unidos, nem a Inglaterra, nem a França forneceriam um só homem para ajudar. Mas a Odessa salientou que os foguetes de que Nasser precisava eram muito semelhantes em tamanho e alcance aos foguetes V-2 que Wernher von Braun e sua equipe tinham outrora fabricado em Peenemunde para pulverizar Londres. E muitos elementos de sua antiga equipe ainda estavam disponíveis.

Em fins de 1961, começou o recrutamento dos cientistas alemães. Muitos deles estavam empregados no Instituto de Pesquisa Aeroespacial da Alemanha Ocidental, em Stuttgart. Mas foram frustrados porque o Tratado de Paris de 1954 proibia a Alemanha de entregar-se à pesquisa ou à fabricação em certos setores, especialmente a física nuclear e os foguetes. Lutavam também com uma falta crônica de fundos de pesquisa. Para muitos desses cientistas, a oferta de um lugar ao sol, de dinheiro para pesquisas em abundância e a oportunidade de projetar verdadeiros foguetes era por demais tentadora.

A Odessa designou um chefe de recrutamento na Alemanha, que por sua vez empregou como seu assistente um ex-sargento das SS, Heinz Krug. Os dois esquadrinharam a Alemanha procurando homens dispostos a ir para o Egito e construir os foguetes de Nasser.

Com os salários que podiam oferecer, não tiveram falta de excelentes recrutas. Destacava-se entre eles o Professor Wolfgang Pilz, que tinha sido recuperado da Alemanha de pós-guerra pelos franceses e se tornara depois o pai do foguete Vervnique francês, que foi a base do programa aeroespacial de De Gaulle. O Professor Pilz partiu para o Egito em princípios de 1962. Outro recrutado foi o Dr. Heinz Kleinwachter. O Dr. Eugen Saenger e sua mulher Irene, que tinham feito parte da equipe da V-2 de von Braun, também foram, bem como os Drs. Josef Eisig e Kirmayer, todos peritos em técnicas e combustíveis de propulsão.

O mundo viu os primeiros resultados dos seus trabalhos num desfile realizado nas ruas do Cairo a 23 de julho de 1962, a fim de celebrar o oitavo aniversário da queda de Faruk. Dois foguetes, El

Kahira e El Záfira, com alcances de 500 e 300 quilômetros respectivamente, foram rolados diante de multidões entusiásticas. Embora esses foguetes fossem apenas as cápsulas, sem ogivas e sem combustível, estavam destinados a ser os primeiros de 400 que seriam um dia lançados contra Israel.

O General Gluecks fez uma pausa, tirou uma fumaça de seu charuto e voltou ao presente.

- O problema é que, embora tenhamos resolvido a questão da fabricação das cápsulas, das ogivas e do combustível, a chave de um míssil teledirigido está no seu sistema de teledireção.

Apontou o charuto na direção do alemão.

- E isso não conseguimos fornecer aos egípcios. Por pouca sorte, embora houvesse cientistas e técnicos em sistemas de teledireção trabalhando em Stuttgart e em outros pontos, não consegui mos convencer um só a emigrar para o Egito. Todos os técnicos que mandamos para lá eram especialistas em aerodinâmica, propulsão e desenho de ogivas.

"Mas tínhamos prometido ao Egito que lhe daríamos os foguetes e temos de dá-los. O Presidente Nasser está empenhado em que haja um dia guerra entre o Egito e Israel e vai haver guerra. Acredita ele que seus soldados e seus tanques bastarão para dar-lhe a vitória. As informações que temos não são tão otimistas assim. Os egípcios talvez não vençam apesar de sua superioridade numérica. Mas imagine só qual seria a nossa posição se, quando todos os armamentos soviéticos adquiridos a um preço de bilhões de dólares falhassem, fossem os foguetes elaborados pelos cientistas recrutados por intermédio de nossa rede que ganhassem a guerra.

Teríamos então uma  ação inexpugnável. Teríamos executado o duplo golpe de ganhar a gratidão eterna do Oriente Médio e um refúgio seguro permanente para nossa gente, conseguindo ao mesmo tempo a destruição final e completa do porco estado judeu, cumprindo assim o último desejo de nosso Fuehrer ao morrer. É um desafio magnífico, no qual não devemos falhar e não falharemos.

O subordinado viu o general passear pelo quarto e não podia dissimular o seu respeito e a sua perplexidade.

- Perdão, Herr General. mas julga que 400 ogivas médias de mísseis acabarão de fato com os judeus de uma vez por todas? Os prejuízos podem ser tremendos, mas haverá mesmo completa destruição?

Gluecks voltou-se e olhou para o outro com um sorriso triunfante.

- É que você não sabe que ogivas serão empregadas! Acha mesmo que iríamos desperdiçar explosivos de alta potência apenas com aqueles imundos? Propusemos ao Presidente Nasser, que aceitou pressurosamente, que as ogivas dos Kahiras e dos Zafiras sejam de tipo diferente. Algumas conterão culturas concentradas de bacilos da peste bubônica, ao passo que as outras explodirão bem acima do solo fazendo chover sobre todo o território de Israel estrôncio 90 irradiado. Dentro de horas, todos eles estarão morrendo de peste ou mortalmente contaminados pelos raios gama. É isso que lhes está reservado.

O outro olhou-o estupefato e exclamou:

- Fantástico! Lembro-me agora de ter lido alguma coisa sobre um julgamento que se realizou na Suíça no verão passado. Só foram divulgados resumos, pois a maior parte dosdepoimentos foram prestados em segredo de justiça. É verdade então. Mas é uma idéia brilhante. General!

- Decerto, brilhante e inevitável desde que nós da Odessa possamos equipar os foguetes com os sistemas de teledireção necessários para levá-los não só no rumo certo, mas também aos lugares exatos em que queremos que ocorra a explosão. O homem que controla todas as atividades de pesquisa destinadas a proporcionar um sistema de teledireção a esses foguetes trabalha atualmente na Alemanha Ocidental. O nome de código dele é Vulkan (Vulcano). Deve-se lembrar de que na mitologia grega Vulcano era o ferreiro que forjava os raios dos deuses.

- É um cientista? - perguntou, cheio de espanto, o homem da Alemanha Ocidental.

- Não, certamente não. Quando ele foi forçado a desaparecer em 1955, deveria normalmente ter voltado para a Argentina. Mas nós pedimos a seu antecessor que lhe fornecesse imediatamente um passaporte falso para que ele pudesse continuar na Alemanha.

Foram-lhe então fornecidos fundos retirados de Zurique na importância de um milhão de dólares para que ele abrisse uma fábrica na Alemanha. A intenção original era usar a fábrica como um disfarce para outra espécie de pesquisa em que estávamos interessados na época, mas que agora foi posta de lado em favor dos novos sistemas de teledireção para os foguetes de Helwan.

"A fábrica dirigida atualmente por Vulkan fabrica rádios transistorizados. Mas isso também é um disfarce. No departamento de pesquisa da fábrica, um grupo de cientistas trabalha agora mesmo no processo de planejamento dos sistemas de teledireção que serão um dia adaptados aos foguetes de Helwan.

- Não seria melhor que eles fossem diretamente para o Egito? - perguntou o outro.

Gluecks sorriu de novo e continuou a passear pelo quarto.

- Aí é que está o golpe de gênio por trás de toda a operação. Eu lhe disse que havia na Alemanha homens capazes de produzir esses sistemas, mas não podiam ser persuadidos a emigrar. O grupo que trabalha agora no departamento de pesquisa da fábrica de Volkan acredita que está trabalhando sob contrato, em condições naturalmente de máximo segredo, para o Ministério da Defesa de Bonn.

Dessa vez, o subordinado deu um pulo da cadeira e derramou um pouco de café no chão.

- Deus do céu! Como isso pôde ser conseguido?

- No fundo, foi muito simples. O Tratado de Paris proíbe que a Alemanha faça pesquisas sobre foguetes. Os homens que trabalham para Vulkan prestaram juramento de guardar absoluto segredo perante um funcionário autêntico do Ministério da Defesa de Bonn, que acontece ser um dos nossos. Estava acompanhado de um general cujo rosto os cientistas podiam reconhecer da última guerra. Todos eles são homens dispostos a trabalhar pela Alemanha, mesmo contrariando as cláusulas do Tratado de Paris, mas que não estariam necessariamente dispostos a trabalhar para o Egito. Acreditam que estão trabalhando para a Alemanha.

"É claro que as despesas são fantásticas. Pesquisas dessa natureza só poderiam normalmente ser empreendidas por uma grande potência. O resultado é que esse programa tem feito baixar muito os nossos fundos secretos. Compreende agora a importância de Vulkan?

- É claro, - disse o chefe da Odessa na Alemanha. - Mas se alguma coisa acontecesse a ele, não poderia o programa prosseguir?

- Não. A fábrica e a companhia são de propriedade e de direção exclusivamente dele. Ele é o presidente e o gerente geral, único acionista e o tesoureiro.

Só ele pode continuar a pagar os salários dos cientistas e custear as enormes despesas de pesquisa  necessárias. Nenhum dos cientistas teve jamais qualquer espécie de relações com alguém da firma e ninguém na firma sabe a verdadeira natureza da sua avantajada seção de pesquisa. Pensam que os homens na seção fechada estão trabalhando em circuitos de microondas a fim de efetuar uma revolução no mercado dos rádios de pilha. O segredo é explicado como uma precaução em face da espionagem industrial. O único laço entre as duas seções é Vulkan. Se ele fosse afastado, todo o projeto se desmoronaria.

- Pode dizer-me o nome da fábrica?

O General Gluecks pensou por um momento e, então, disse um nome. O outro homem olhou para ele, cheio de assombro.

- Mas eu conheço esses rádios, - disse ele.

- É claro. É uma fábrica de boa fé e produz rádios de boa fé. - E o diretor gerente... é ele?

- Sim, é Vulkan. Agora, você sabe da importância do homem e do que ele está fazendo. Por essa razão, aqui estão as suas instruções. Veja...

O General Gluecks tirou uma fotografia do bolso e entregou-a ao homem da Alemanha. Depois de um Longo olhar perplexo para o retrato, virou-o e leu o nome escrito nas costas.

- Pensei que ele estivesse na América do Sul! Gluecks sacudiu a cabeça.

- Muito ao contrário. Ele é Vulkan. No momento, o trabalho dele atingiu uma fase crítica. Por conseguinte, se você souber de qualquer maneira que alguém está fazendo perguntas inconvenientes a respeito desse homem, essa pessoa deve ser... desestimulada. Uma advertência e, em seguida, uma solução permanente. Está compreendendo, Kamerad? Ninguém, torno a dizer, ninguém deve sequer aproximar-se da possibilidade de revelar quem é realmente Vulkan.

O general das SS levantou-se. O visitante da Alemanha fez o mesmo.

- É só, - disse Gluecks. - Já tem as suas instruções.

- Mas você não sabe nem se ele ainda está vivo.

Peter Miller e Karl Brandt estavam sentados no carro de Miller à frente da casa do detetive, onde Miller o fora encontrar depois do almoço do domingo, no seu dia de folga.

- Não sei de fato. E isso é a primeira coisa que tenho de apurar. Se Roschmann morreu, não se fala mais nisso. Pode-me ajudar?

Brandt pensou um pouco e então sacudiu lentamente a cabeça. - Não. Infelizmente, não posso.

- Porquê?

- Escute aqui, eu lhe entreguei o diário fazendo um favor. Foi uma coisa entre nós dois. Mas só fiz isso porque a coisa me revoltou e eu pensei que você pudesse fazer uma reportagem com o diário. Mas nunca pensei que você fosse ter a idéia de procurar Roschmann. Por que não se limita a escrever uma série de artigos com base no diário?

- Porque não há interesse jornalístico no caso, - disse Miller. - Que é que acha que eu posso dizer: "Surpresa. surpresa! Encontrei o diário de um velho que acaba de suicidar-se e contou tudo o que sofreu durante a guerra"? Acha que alguma revista vai comprar isso? Creio que se trata de um documento horripilante, mas isso é apenas uma opinião pessoal. Escreveram-se já centenas de memórias desde que a guerra acabou. Todo o mundo já está farto delas. O diário só não será comprado por nenhum editor  na Alemanha.

- Que é que vai fazer então?

- Apenas isso. Provocar uma grande caçada policial de Roschmann na base deste diário e aí, sim, eu terei uma boa reportagem.

Brandt bateu a cinza do cigarro no cinzeiro do Jaguar.

- Não vai haver caçada policial, Peter. Escute aqui, você pode conhecer jornalismo, mas eu conheço a polícia de Hamburgo. Nossa tarefa é impedir tanto quanto possível crimes em Hamburgo agora, em 1963. Ninguém vai destacar detetives sobrecarregados de trabalho para caçar um homem pelo que ele fez em Riga vinte anos atrás. Não é possível.

- Mas você não pode nem levantar a questão? Brandt sacudiu a cabeça.

- Não. Não posso. - Mas, porquê?

- Porque não me quero envolver nisso. Com você é diferente. Você é solteiro, livre de compromissos. Pode andar à procura de suas fantasias pelo tempo que quiser. Eu, não. Tenho mulher, dois filhos, um bom emprego e não quero pôr em risco essa situação.

- Em que era que isso poderia pôr em risco a sua situação na polícia? Roschmann é um criminoso, não é? A polícia tem obrigação de procurar criminosos, não é? Qual é o problema?

Brandt apagou o cigarro.

- É difícil de explicar. Mas há uma espécie de atitude na polícia. Não há nada de concreto. É apenas uma impressão. E a impressão é que investigar com muita energia os crimes de guerra das SS é uma coisa que não pode absolutamente trazer vantagens para um jovem polícia. De qualquer maneira, seria impossível. As autoridades superiores recusariam qualquer pedido nesse sentido. Mas o pedido seria registrado e, com isso, todas as chances de promoção estariam perdidas. É uma coisa que ninguém diz mas todos sabem. Se você quer fazer sua investigação sozinho, vá em frente. Mas não conte comigo.

Miller olhou por muito tempo através do pára-brisa.

- Está bem, - disse ele por fim. - É o que vou fazer, desde que não há outro jeito. Mas preciso de um ponto de partida, seja lá onde for. Tauber não deixou mais nada além do diário?

- Bem, deixou uma breve carta, - disse Brandt. - Dizia nela apenas que ia suicidar-se. Ah, sim, havia mais uma coisa. Deixava tudo o que tinha para um amigo dele, um tal Herr Marx.

- Já é um começo. Onde está esse Marx?

- Como é que eu vou saber? - perguntou Brandt.

- Quer dizer que a carta falava apenas em Herr Marx? Não dava o endereço?

- Não. Apenas Marx sem qualquer indicação do lugar onde ele

vive.

- Bem, ele deve estar em algum lugar. Não o procuraram? Brandt deu um suspiro.

- Escute aqui, quer meter isto em sua cabeça? Nós na polícia temos trabalho demais. Você faz uma idéia de quantos Marx há em Hamburgo? Só no catálogo de telefone há milhares. Não podemos perder algumas semanas procurando esse Marx em particular. Além do mais, o que o velho deixou não valia nem dez pfennigs.

- Só isso então? - perguntou Miller. - Nada mais? - Nada. Se quer procurar Marx, o problema é seu. - Obrigado. É o que eu vou fazer.

Os dois homens se despediram e Brandt voltou para a sua mesa de almoço.

Miller começou na manhã seguinte fazendo uma visita à casa onde Tauber tinha vivido. A porta lhe foi aberta por um homem de meia-idade que usava calças enxovalhadas amarradas com barbante, uma camisa sem colarinho aberta e uma barba de três dias na cara. - Bom dia. É o encarregado?

O homem olhou Miller dos pés à cabeça e fez um sinal afirmativo. Cheirava a chucrute.

- Um homem se suicidou aqui com gás há algumas noites, - disse Miller.

- É da polícia?

- Não, da imprensa, - disse Miller, mostrando-lhe o seu cartão de repórter.

- Nada tenho a dizer.

Miller passou sem muita dificuldade uma nota de vinte marcos às mãos do homem.

- Quero apenas ver o quarto dele. - Já está alugado de novo.

- Que foi que fez das coisas dele?

- Joguei tudo no pátio. Não servia mais para nada.

O montão de coisas que haviam pertencido ao velho estava a um canto do pátio sob a chuva fina. Tudo ainda estava com cheiro de gás. Havia uma velha máquina de escrever, dois pares de sapatos bem gastos, algumas roupas, uma pilha de livros e uma écharpe de seda branca de franjas, que Miller julgou que tivesse alguma relação com a religião judaica. Examinou tudo o que havia no montão, mas não encontrou qualquer sinal de um caderno de endereços e nada que fosse endereçado a Marx.

- Está tudo aqui?

- Está tudo aí, - respondeu o homem, olhando-o com desconfiança da porta do pátio.

- Há qualquer inquilino aqui chamado Marx? - Não.

- Conhece algum Marx?

- Não.

- O velho Tauber tinha algum amigo?

- Que eu saiba, não. Era muito fechado. Não tinha hora de sair, nem de entrar e passava quase o tempo todo andando lá por cima. Dava a impressão de que era meio gira. Mas pagava o aluguel pontualmente e não criava problemas.

- Teve ocasião de vê-lo com alguém, na rua, é claro?

- Nunca. Parecia não ter um só amigo. E não era de estranhar, pois vivia falando sozinho. Gira, eu já lhe disse.

Miller saiu e começou a perguntar num canto e noutro da rua. Muita gente se lembrava de ter visto o velho, andando sozinho, de cabeça baixa, metido num grande sobretudo que lhe batia nos tornozelos, com um boné de lã na cabeça e com luvas de lã, das quais saíam as pontas dos dedos.

Durante três dias, percorreu as ruas vizinhas da casa onde Tauber morava, perguntando na leiteria, no armazém, no açougue, na loja de ferragens, na cervejaria, na tabacaria e interceptando o leiteiro e o carteiro. Era quarta-feira à tarde e ele encontrou um grupo de garotos que jogavam futebol perto do muro de um depósito.

- Quem? O judeu velho? Solly Maluco? - perguntou o líder do grupo em resposta à sua pergunta. Os outros se reuniram em volta.

- Esse mesmo, - disse Miller. - Solly Maluco.

- Era doido mesmo, - disse um garoto do grupo. - Era assim que ele andava.

O garoto curvou a cabeça para o peito, juntou o casaco em torno do corpo com as mãos e deu alguns passos arrastando os pés, murmurando alguma coisa para si mesmo e olhando para os lados. Os outros deram gargalhadas e um deles deu no imitador um empurrão, que o fez rolar por terra.

- Algum de vocês algum dia o viu com outra pessoa? - perguntou Miller. - Falando com alguém, com outro homem?

- Para que quer saber? - perguntou o líder, muito desconfiado.

- Nós nunca mexemos com ele, - disse outro.

Miller sacudiu displicentemente uma moeda de cinco marcos na palma da mão. Oito pares de olhos acompanharam avidamente os movimentos da moeda. Oito cabeças foram lentamente sacudidas. Miller deu-lhes as costas e afastou-se.

- Moço.

Parou e voltou-se. O menor do grupo o havia alcançado.

- Eu vi o velho uma vez com um homem. Estavam conversando. Sentados e conversando.

- Onde foi isso?

- Perto do rio. Nos bancos que ficam ali em cima da grama. Estavam sentados num banco conversando.

- Qual era a idade do outro?

- Era muito velho. A cabeça era toda branca.

Miller jogou-lhe a moeda, convencido de que era um desperdício. Mas foi até o rio e olhou para a margem gramada nos dois sentidos. Havia uma dúzia de bancos por ali, mas estavam todos vazios. No verão, haveria muita gente ali às margens do Elba, vendo a entrada e saída dos grandes vapores, mas não nos fins de novembro. À esquerda, ficava o porto dos pescadores, com meia dúzia de traineiras do Mar do Norte atracadas, descarregando as suas pescas de arenque e cavala ou preparando-se para fazer-se ao mar de novo.

Em garoto, ele tinha voltado para a cidade em ruínas, vindo de uma fazenda para onde fora evacuado durante os bombardeios e se criara entre destroços e ruínas. O seu ponto favorito de brincadeiras tinha sido o porto dos pescadores à margem do rio em Altona.

Gostava dos pescadores, homens rudes e bons que cheiravam a alcatrão, sal e fumo barato. Pensou em Eduard Roschmann em Riga e ficou sem saber como era que o mesmo país podia produzir ambos os tipos de homens.

Tornou a pensar em Tauber e no problema que tinha pela frente. Onde poderia ele encontrar-se com seu amigo Marx? Sabia que havia um ponto quase ao seu alcance, mas não podia apreendê-lo. Só depois de estar de volta no seu carro e de ter parado a fim de encher o tanque no posto perto da estação ferroviária de Altona foi que teve a solução. Como quase sempre acontece, tudo resultou de uma observação fortuita. O homem do posto disse que tinha havido mais um aumento no preço da gasolina de primeira qualidade e acrescentou, só para puxar conversa com o freguês, que o dinheiro cada vez valia menos. Entrou para fazer o troco e deixou Miller pensando, com a carteira aberta na mão.

Dinheiro... Onde Tauber conseguia dinheiro? Não trabalhava e tinha-se negado a receber qualquer indenização da parte do Estado da Alemanha. Entretanto, pagava regularmente o aluguel e devia ficar ainda com alguma coisa para poder comer. Tinha cinqüenta e cinco anos de idade e, portanto, não podia ser uma pensão de velhice, mas poderia receber uma pensão por invalidez. Recebia provavelmente.

Miller guardou o troco, ligou o motor do Jaguar e foi até à agência do correio de Altona. Aproximou-se do guichê marcado "Pensões".

- Pode dizer-me quando os pensionistas recebem o dinheiro? - perguntou à moça gorda que estava do outro lado do guichê.

- No último dia do mês, naturalmente, - disse ela. - No próximo sábado então?

- Não se fazem pagamentos nos fins-de-semana. O pagamento este mês vai ser na sexta-feira, depois de amanhã.

- Isso inclui as pensões por invalidez?

- Todas as pessoas que têm direito a uma pensão recebem no último dia do mês.

- Aqui neste guichê?

- Sim, desde que a pessoa tenha residência em Altona. - A que horas?

- Desde que a agência se abre. - Muito obrigado.

Miller voltou na manhã de sexta-feira, observando a fila de velhos e velhas começar a entrar pelas portas da agência logo que esta se abriu. Tomou posição do outro lado da rua para observar a direção que as pessoas tomavam quando saíam. Muitos tinham cabelos brancos, mas a maioria usava chapéu em vista do frio. O tempo estava seco de novo, ensolarado - mas frio. Por volta das onze horas, um velho com uma cabeleira branca de algodão saiu da agência do correio, contou o dinheiro para certificar-se de que não tinha havido engano, guardou-o no bolso de dentro do paletó e correu os olhos em torno como se estivesse à procura de alguém. Alguns minutos depois, virou-se e começou a afastar-se em passos lentos. Na esquina, tornou a olhar para cima e para baixo, tomando em seguida a Rua do Museu em direção à margem do rio. Miller abandonou o seu posto de observação e seguiu-o.

O velho levou vinte minutos para vencer a distância aproximada de um quilómetro que o separava da margem do Elba, onde atravessõu a parte gramada e se sentou num dos bancos. Miller aproximou-se lentamente pelas costas.

- Herr Marx?

O velho se voltou no momento em que Miller dava a volta por trás do banco e chegava diante dele. Não mostrou surpresa, como se fosse freqüente ser reconhecido por homens completamente desconhecidos.

- Sim, sou Marx, - disse ele gravemente. - Meu nome é Miller.

Marx inclinou solenemente a cabeça, aceitando a comunicação.

- Está... está esperando Herr Tauber?

- Estou, sim, - disse o velho, ainda sem mostrar surpresa. - Posso sentar-me?

- Faça o favor.

Miller sentou-se ao lado dele, de modo que ambos ficaram de frente para o rio Elba. Um cargueiro gigantesco, o Kora Maru, de Yokohama, estava descendo o rio com a maré.

- Infelizmente, Herr Tauber morreu.

O velho continuou a olhar para o navio que passava. Não mostrou nem surpresa, nem pesar, como se recebesse tais notícias com freqüência. Talvez fosse mesmo.

- Compreendo, - murmurou ele.

Miller falou-lhe brevemente sobre o que acontecera na noite da sexta-feira anterior.

- Não parece surpreso com o fato do suicídio dele.

- Não, - disse Marx. - Era um homem muito infeliz. - Sabe que ele deixou um diário?

- Sim, ele me falou nisso.

- Chegou a ler o diário? - perguntou Miller.

- Não, ele nunca mostrou o diário a ninguém. Mas me falou sobre ele.

- Descreveu nele o tempo que passou em Riga durante a guerra. - Sim, ele me disse que esteve em Riga.

- E o senhor? Esteve em Riga também?

O homem virou-se e fixou nele os olhos velhos e tristonhos. - Não. Estive em Dachau.

- Escute, Herr Marx, preciso de sua ajuda. No diário que escreveu, seu amigo mencionou um homem, um oficial das SS chamado Roschmann, Capitão Eduard Roschmann. Alguma vez ele lhe falou nele?

- Sim, ele me falou a respeito de Roschmann. Foi isso realmente que lhe deu forças para viver. Esperava que um dia pudesse dar o seu testemunho contra Roschmann.

- Foi o que ele disse no seu diário que eu li depois da morte dele. Sou jornalista e estou disposto a procurar Roschmann a fim de que ele seja submetido a julgamento. Compreende?

- Compreendo.

- Mas não adianta fazer nada se Roschmann já morreu. Pode lembrar-se se Herr Tauber soube algum dia que Roschmann estava ainda vivo e livre?

Marx olhou durante alguns minutos para a popa do Kora Maru que desaparecia.

- O Capitão Roschmann ainda vive, - disse ele simplesmente. - E está livre.

Miller inclinou-se ansiosamente para a frente. - Como sabe?

- Tauber o viu.

- Eu li isso. Foi em princípios de abril de 1945. Marx sacudiu lentamente a cabeça.

- Não. Foi no mês passado.

Durante mais alguns minutos, houve silêncio, enquanto Miller olhava para o velho e este olhava para a água.

- No mês passado? - disse Miller por fim. - Disse ele como foi que o viu?

Marx deu um suspiro e voltou-se para Miller.

- Sim. Ele estava caminhando tarde da noite pela rua como costumava fazer, quando não conseguia dormir. Estava voltando para casa e passava pela ópera Estadual quando uma porção de gente começou a sair do teatro. Parou quando eles chegaram à calçada. Disse-me que eram gente rica, os homens de smoking, as mulheres com peles e jóias. Havia três táxis encostados ao passeio à espera deles. O porteiro do teatro fez as pessoas pararem no passeio até que todos embarcassem. Foi então que ele viu Roschmann.

- Entre as pessoas que saíam do teatro?

- Sim. Ele entrou num táxi com mais duas pessoas e todos se afastaram.

- Escute, Herr Marx, porque isto é muito importante. Tinha ele absoluta certeza de que era Roschmann?

- Ele disse que tinha.

- Mas já fazia dezenove anos que ele não o via. O homem devia ter mudado muito. Como seu amigo podia ter tanta certeza?

- Disse que ele sorriu.

- Ele o quê?

- Sorriu. Roschmann sorriu. - E isso é importante?

Marx assentiu energicamente.

- É, sim. Ele me disse que quem via Roschmann sorrir uma vez daquela maneira nunca mais esquecia. Não me pôde descrever o sorriso, mas disse que seria capaz de reconhecê-lo entre milhões em qualquer lugar do mundo.

- Compreendo. Acredita nele?

- Sim, acredito que ele viu Roschmann.

- Sim, vamos partir do princípio que eu também acredito. Será que ele tomou nota do número do táxi?

- Não. Disse ele que ficou tão atordoado que se limitou a ver o táxi afastar-se.

- Muito ruim isso, - disse Miller. - O táxi deve ter ido para um hotel. Se eu soubesse o número, poderia perguntar ao motorista para onde levou o grupo. Quando Herr Tauber lhe contou isso?

- No mês passado, quando recebemos as nossas pensões. Conversamos aqui neste banco.

Miller levantou-se e deu um suspiro.

- Sabe que ninguém-poderia acreditar no que ele contou?

Marx deixou de olhar para o rio e voltou-se para o repórter. - Sim, ele sabia disso. Não foi por outro motivo que se suicidou.

Naquela noite, Peter Miller fez a sua habitual visita de fimde-semana a sua mãe e, como de costume, ela lhe perguntou a cada instante se estava comendo o suficiente, quantos cigarros estava fumando por dia e se havia muita roupa suja em casa.

Era uma senhora baixa, gorda e amatronada de pouco mais de cinqüenta anos, que ainda não se habituara de todo à idéia de que seu filho único quisesse ser um repórter.

Em dado momento, no decorrer da visita, ela perguntou o que ele estava fazendo no momento. Miller lhe contou resumidamente o caso, mencionando a sua intenção de descobrir o desaparecido Eduard Roschmann. Ela ficou aflitíssima com isso.

Peter continuou a comer calmamente, deixando que a onda de censuras e recriminações lhe desabasse sobre a cabeça.

- Já não chegava você andar metido com criminosos e toda essa gente desclassificada, - dizia ela. - Agora, vai mexer com os tais nazistas. Não quero nem pensar no que diria seu pai, se fosse vivo...

Miller teve uma idéia. - Mamãe.

- Sim, querido?

- Durante a guerra... as coisas que as SS faziam às pessoas nos campos de concentração... chegou a saber... ou a suspeitar do que estava acontecendo?

Ela se ocupou muito atentamente em arrumar coisas em cima da mesa. Por fim, falou depois de alguns segundos.

- Foram coisas horríveis. Os ingleses nos fizeram ver os filmes depois da guerra. Não quéro mais falar sobre essas coisas. Levantou-se e saiu. Peter a acompanhou até à cozinha.

- Lembra-se de 1950, quando eu tinha dezesseis anos e fui a Paris numa excursão da escola?

Ela parou por um instante, enquanto abria a torneira da pia. - Lembro-me, sim.

- Em Paris, fomos levados para ver uma igreja chamada Sacré Coeur. Quando chegamos, estavam terminando uma cerimônia. Era um ofício fúnebre em memória de um homem chamado Jean Moulin. Algumas pessoas saíram da igreja e me ouviram falando em alemão com outro colega. Um dos homens do grupo virou-se e cuspiu em mim. Ainda me lembro de que o cuspe me rolou pelo paletó. Quando voltei para casa, contei-lhe esse fato. Lembra-se do que foi que a senhora me disse naquela ocasião?

A Sra. Miller estava tratando de lavar a louça do jantar.

- A senhora me disse que os franceses eram assim mesmo. Tinham hábitos porcos.

- E têm mesmo. Nunca pude gostar deles.

- Escute, Mamãe, sabe o que foi que nós fizemos a Jean Moulin antes que ele morresse? Não foi a senhora que fez isso, não foi Papai, não fui eu. Mas fomos nós, os alemães, ou antes a Gestapo, que para milhões de estrangeiros parece ser a mesma coisa.

- Já lhe disse que não quero saber de nada disso e você bem pode encerrar essa conversa.

- Bem, não lhe posso dizer o que fizeram a Jean Moulin porque não sei. Deve estar registrado em algum lugar. Mas o que eu quero dizer é que cuspiram em mim não porque eu fosse da Gestapo, mas porque sou alemão.

- E devia ter orgulho disso!

- E tenho, pode crer que tenho. Mas isso não quer dizer que eu tenha de ter orgulho dos nazistas, das SS e da Gestapo.

- Ninguém tem, mas ninguém vai melhorar a situação falando sobre isso.

Ela estava muito vermelha, como sempre ficava quando o filho discutia com ela, e enxugou nervosamente as mãos na toalha dos pratos antes de voltar para a sala. Ele a seguiu.

- Escute, Mamãe, procure compreender. Até eu ler esse diário, não fazia a menor idéia de qual poderia ser nosso dever. Agora, pelo menos, estou começando a ter uma noção. E é por isso que quero achar esse homem, esse monstro, se ele ainda anda por aí. Nada mais justo do que ele ser submetido a julgamento.

Ela se sentou no sofá, quase em pranto.

- Por favor, Peterkin, deixe-os de lado. Não comece a remexer o passado que isso não pode dar bom resultado. O que passou está passado.É  E melhor deixar tudo assim e esquecer.

Peter Miller estava de frente para a lareira, dominada pelo relógio e pelo retrato do pai. Estava com a sua farda de capitão do exército e olhava da moldura com o sorriso bondoso e triste de que Peter se lembrava tão bem. O retrato tinha sido tirado antes que ele voltasse para a frente depois de sua última licença.

Peter se lembrava do pai com espantosa clareza, olhando para o seu retrato dezenove anos depois, enquanto a mãe lhe pedia que desistisse das investigações em torno de Roschmann. Lembrava se do tempo antes da guerra, quando tinha cinco anos e o pai o levara ao Zoológico de Hagenbeck e lhe mostrara todos os animais um por um, lendo pacientemente os detalhes das placas de metal de cada jaula em resposta à interminável torrente de perguntas do garoto.

Lembrava-se de como ele voltara para casa depois de alistar-se em 1940. A mãe chorara muito e ele havia pensado que as mulheres eram muito tolas de chorarem por uma coisa maravilhosa como era ter um pai com uma farda.

Lembrava-se do dia, em 1944, em que um oficial do exército tinha ido à casa dele para dizer à mãe que o pai era um herói de guerra, tendo morrido na frente oriental.

- Além disso, ninguém quer mais saber dessas horríveis revelações. Esses terríveis julgamentos, em que tudo é de novo expósto à luz, já cansaram. Ninguém lhe vai agradecer isso, ainda que você

o encontre. Você será apontado no meio da rua porque a verdade é que ninguém quer saber mais de julgamentos. É tarde, é muito tarde. Desista disso, Peter, por minha causa.

Lembrava-se da coluna tarjada de preto no jornal com a lista de nomes do mesmo tamanho todos os dias, mas que naquele dia, em fins de outubro, fora diferente porque nela se lia, mais ou menos no meio, o seguinte:

"Tombado pelo Fuehrer e pela Pátria. Miller, Erwin, Capitão, a 11 de outubro. Em Ostland".

Só isso. Nada mais. Nenhuma indicação de onde, quando ou por quê. Apenas um nome entre dezenas de milhares que se derramavam de leste para encher as colunas tarjadas de preto cada vez maiores até que o governo tinha deixado de publicá-las porque isso afetava o moral.

- O que eu quero dizer, - disse a mãe atrás dele, - é que você podia ao menos pensar na memória de seu pai. Acha que ele havia de querer o filho mexendo nas cinzas do passado, tentando promover mais um julgamento por crimes de guerra? Acha que era isso que ele ia querer?

Miller voltou-se, atravessou a sala até onde estava a mãe, colocou as mãos nos ombros dela e encarou os seus assustados olhos azuis de porcelana. Inclinou-se e beijou-lhe de leve a testa.

- Sim, Mutti, - disse ele, - acho que era exatamente isso que ele havia de querer.

Saiu em seguida, tomou o seu carro e voltou para Hamburgo, com a raiva a ferver dentro dele.

Todos os que o conheciam e muitos que não o conheciam de perto eram unânimes em reconhecer que Hans Hoffmann tinha o físico do papel. Tinha perto de cinqüenta anos e era juvenilmente belo, com cabelos grisalhos bem cortados e penteados e com unhas bem tratadas. O seu terno cinza era de Savile Row e a pesada gravata de seda era de Cardin. Havia um ar de bom gosto caro em torno dele da espécie que o dinheiro pode comprar.

Se a aparência física fosse a sua única qualidade, ele não teria sido um dos mais ricos e vitoriosos diretores de revistas da Alemanha Ocidental. Tendo começado depois da guerra com um prelo manual, imprimindo prospectos para as autoridades inglesas de ocupação, havia fundado em 1949 um dos primeiros semanários ilustrados. A sua fórmula era simples - expor os fatos com palavras incisivas e até chocantes, documentadas com fotografias que faziam todos os seus competidores parecerem principiantes às voltas com as suas primeiras máquinas de caixão. Deu resultado. A sua cadeia de oito revistas, que iam de histórias de amor para adolescentes à crônica brilhante do que faziam os ricos e os sexy , tinha feito dele um milionário. Mas Komet, a revista noticiosa e dos fatos correntes, era ainda a sua predileta.

O dinheiro lhe havia dado uma luxuosa mansão em Othmarschen, um chalé nas montanhas, uma vila à beira-mar, um RollsRoyce e uma Ferrarí. Colhera no caminho uma linda esposa cujos vestidos vinham de Paris e duas belas filhas a quem raramente via. O único milionário na Alemanha cuja sucessão de jovens amantes, discretamente mantidas e freqüentemente substituídas, nunca era fotografada na sua revista de indiscrições sociais era Hans Hoffmann. Era também muito astuto.

Naquela tarde de quarta-feira, ele fechou o diário de Salomon Tauber depois de ler o prefácio, recostou-se na cadeira e olhou para o jovem repórter à sua frente.

- Muito bem. Posso imaginar o resto. Que é que você quer? - Isso é na minha opinião um grande documento, - disse Miller. - Nele se menciona constantemente um homem chamado Eduard Roschmann, capitão das SS, que foi durante todo o tempo comandante do gueto de Riga. Matou 80.000 homens, mulheres e crianças. Acredito que ele está vivo e aqui na Alemanha Ocidental. Quero encontrá-lo.

- Como sabe que está vivo?

Miller contou-lhe em breves palavras. Hoffmann franziu os lábios.

- Como prova, é bem fraca.

- Sem dúvida. Mas digna de uma verificação. Já fiz muitas reportagens que começaram com menos.

Hoffmann sorriu, pensando no talento que tinha Miller para desencavar reportagens que magoavam o estabelecimento. Hoffmann tinha tido prazer em publicá-las, depois de verificar a sua exatidão. Faziam a circulação dar verdadeiros pulos.

- É de presumir então que esse homem - Roschmann, não é? - já esteja na lista dos homens procurados pela polícia. E, se a polícia não pode encontrá-lo, por que é que você acha que pode?

- A polícia estará realmente procurando? - perguntou Miller.

Hoffmann encolheu os ombros.

- É de crer que sim. É para isso que nós lhe pagamos.

- Acha que haveria algum mal em ajudá-la um pouco? Apenas para verificar se ele está realmente vivo, se algum dia ele foi apanhado e, neste caso, o que lhe aconteceu.

- E o que é que você quer de mim?

- Sua autorização para tentar a reportagem. Se não der resultado, eu desisto e nada feito.

Hoffmann fez rodar a sua cadeira e olhou pelas janelas que se abriam para o porto, que se estendia por quilômetros e mais quilómetros de guindastes e armazéns, vinte andares abaixo e a um quilômetro de distância.

- Isso está um pouco fora de sua linha, Miller. Por que todo esse súbito interesse?

Miller tentou concentrar as idéias. Tentar vender um assunto era sempre o mais difícil. Um repórter freelance tinha de vender a reportagem ou a idéia da reportagem ao diretor ou editor da revista em primeiro lugar. O público vinha muito depois.

- É uma boa reportagem cheia de interesse humano. Se Komet pudesse encontrar o homem depois que as forças policiais do país falharam, seria um sucesso. É alguma coisa que o público teria interesse em saber.

Hoffmann olhou para o céu de dezembro e sacudiu lentamente a cabeça.

- Está errado. É por isso que não lhe vou dar autorização. Creio que é a última coisa que as pessoas terão interesse em saber. - Mas este caso é diferente, Herr Hoffmann. As pessoas que Roschmann matou não eram poloneses, nem russos. Eram alemães, judeus alemães se quiser, mas alemães apesar de tudo. Por que não haverá interesse em saber disso?

Hoffmann rodou a cadeira da janela, pôs os cotovelos em cima da mesa e descansou o queixo nos punhos.

- Miller, você é um bom repórter. Gosto do jeito pelo qual você cobre uma reportagem e acho que você tem estilo. E tem principalmente iniciativa. Posso contratar vinte, cinqüenta, cem homens nesta cidade pegando esse telefone aí. Farão tudo o que eu mandar, cobrirão bem os assuntos de acordo com as ordens que receberem. Mas não podem ter a iniciativa de uma reportagem. Você pode. Por isso, tem trabalhado muito para mim e ainda vai trabalhar muito mais. Mas, nisso não.

- Mas por quê? É um bom assunto.

- Escute aqui. Você é moço e eu lhe posso dizer alguma coisa sobre jornalismo. Metade do jornalismo é escrever boas reportagens. A outra metade é vendê-las. Você pode fazer a primeira

parte muito bem, mas quem entende da outra sou eu. É por isso que eu estou aqui e você aí. Você acha que isso é uma reportagem que todo o mundo vai querer ler porque as vítimas de Riga eram judeus alemães.

Pois fique sabendo qe é exatamente por isso que ninguém vai querer ler a reportagem. É mesmo a última coisa no mundo que o público quer ler. E, enquanto não houver neste país uma lei que obrigue as pessoas a comprarem revistas e lerem o que é bom para elas, continuarão a comprar revistas para ler o que querem. E é isso o que lhes dou, o que querem ler.

- Por que não vão querer ler a respeito de Roschmann?

- Ainda não percebeu? Pois vou-lhe dizer. Antes da guerra, quase todo o mundo na Alemanha conhecia pelo menos um judeu. A verdade é que, antes de Hitler, ninguém odiava os judeus na Alemanha. Tínhamos a melhor história de tratamento de nossa minoria judaica entre todos os países da Europa. Melhor do que a da França, melhor do que a da Espanha, infinitamente melhor do que a da Polônia ou da Rússia, onde os pogroms eram diabólicos.

"Foi então que Hitler começou a dizer ao povo que os judeus eram culpados da primeira guerra, do desemprego, da pobreza e de tudo o que estava errado. O povo ficou sem saber no que devia acreditar. Quase todo o mundo conhecia um judeu que era um bom sujeito ou, quando nada, inofensivo. As pessoas tinham amigos judeus que eram bons amigos, patrões judeus que eram bons patrões, empregados judeus que eram bons trabalhadores. Respeitavam as leis e não faziam mal a ninguém. Mas aqui estava Hitler dizendo que eles eram culpados de tudo.

"Por isso, quando os caminhões apareceram e os levaram, ninguém fez nada. Todos se limitaram a sair da frente e manter silêncio. A maioria acabou acreditando em quem gritava mais. Porque assim é que são as pessoas, especialmente os alemães. Somos um povo muito obediente. É a nossa maior força e a nossa maior fraqueza. Permite-nos construir um milagre econômico enquanto os ingleses estão à beira da falência e nos permitiu seguir um homem como Hitler a uma grande sepultura coletiva.

"Há anos, ninguém pergunta o que aconteceu aos judeus da Alemanha. Desapareceram apenas. Já foi bem penoso _tomar conhecimento a cada julgamento de crimes de guerra do que aconteceu aos judeus anônimos e sem rosto de Varsóvia, Lublin e Bialystok, aos judeus desconhecidos e sem nome da Polônia e da Rússia. Agora, você quer dizer, citando capítulo e versículo, o que aconteceu aos seus vizinhos da casa ao lado. Será que não pode compreender isso? Esses judeus de que fala este diário eram pessoas que eles conheciam, a quem cumprimentavam nas ruas e em cujas lojas faziam compras, mas que foram levadas para serem liquidadas pelo seu Herr Roschmann, enquanto os outros alemães se alheavam do caso. Acha que eles têm interesse em saber disso? Você não poderia ter escolhido uma reportagem que o povo alemão tivesse menos vontade de ler.

Tendo acabado, Hans Hoffmann recostou-se na cadeira, escolheu um charuto na caixa em cima da mesa e acendeu-o com o seu Dupont laminado a ouro. Miller continuou sentado a digerir as idéias a que não pudera chegar por si mesmo.

- Deve ter sido isso o que minha mãe me quis dizer, - murmurou ele afinal.

Hoffmann resmungou. - É bem provável.

- Ainda assim, quero encontrar o canalha.

- Não pense nisso, Miller. Desista. Ninguém lhe vai agradecer.

- A reação do público não pode ser a única razão. Há outra, não há?

Hoffmann olhou-o muito sério por entre as baforadas do charuto e disse:

- Há, sim.

- Será que ainda tem medo deles? - perguntou Miller. - Não, mas não quero criar problemas. Só isso.

- Que espécie de problemas?

- Escute, já ouviu falar de um homem chamado Hans Habe? - perguntou Hoffmann.

- O romancista? Sim, que é que há com ele?

- Bem, ele dirigia uma revista em Munique, por volta de 1950. Era uma boa revista e ele era um excelente repórter, como você. A revista se chamava Eco da Semana. Ele odiava os nazistas

e publicou uma série de reportagens sobre ex-homens das SS que viviam à solta em Munique.

- Que foi que lhe aconteceu?

- A ele pessoalmente, nada. Um dia, recebeu mais correspondência do que de costume. Metade das cartas eram de anunciantes que cancelavam a sua publicidade na revista. Havia também uma carta do banco que pedia o comparecimento dele. Quando chegou lá, o gerente lhe disse que ia fechar a sua conta sem limite e que ele tinha de entrar imediatamente com o dinheiro correspondente aos seus cheques a descoberto. Dentro de uma semana, a revista fechava as portas. Ele agora escreve romances, muito bons por sinal. Mas não dirige mais uma revista.

- É isso então o que todos nós temos de fazer? Viver amedrontados, com o rabo entre as pernas?

Hoffmann tirou o charuto da boca e disse com os olhos fuzilantes:

- Não aceito esse insulto de sua parte, Miller! Odiava aqueles patifes quando estavam por cima e ainda os odeio. Mas conheço os meus leitores. E sei que eles não se interessam absolutamente por Eduard Roschmann.

- Está bem. Sinto muito, mas, apesar de tudo, vou tratar do

caso.

- Sabe de uma coisa, Miller? Se eu não o conhecesse, poderia até pensar que havia alguma coisa de pessoal em tudo isso. Nunca se deve deixar que os sentimentos pessoais interfiram no jornalismo.

É ruim para a qualidade do jornalismo e ruim para o repórter. Por falar nisso, como é que você vai financiar-se?

- Tenho algumas economias, - disse Miller, levantando-se para sair.

- Muitas felicidades, - disse Hoffmann, levantando-se e dando volta à mesa. - Sabe o que é que eu vou fazer? No dia em que Roschmann for preso pela polícia da Alemanha Ocidental, eu lhe darei autorização para cobrir a reportagem. O caso será notícia e, portanto, de interesse público. Se eu resolver não publicar, pagarlhe-ei de meu bolso. É o máximo que posso fazer. Mas, enquanto você estiver fazendo suas investigações, não poderá dizer que está trabalhando para minha revista, a fim de ter autoridade e proteção. Miller fez um sinal de assentimento e disse:

- Eu vou voltar.

 

Naquela mesma manhã de quarta-feira, realizou-se também a reunião semanal das cinco seções do apparat do serviço secreto israelense.

Em quase todos os países, é tradicional a rivalidade entre os vários ramos separados do serviço secreto. Na Rússia, o KGB detesta o GRU; nos Estados Unidos, o FBI não coopera de modo algum com a CIA. O Serviço Britânico de Segurança considera a Seção Especial da Scotland Yard um grupo de tiras broncos e há tantos marginais na SDECE francesa que os peritos dizem não saber se o serviço secreto francês faz parte do governo ou do mundo do crime.

Mas Israel é feliz. Uma vez por semana, os chefes das cinco seções se reúnem para uma conversa amistosa sem atrito entre os departamentos. É uma das vantagens de ser um país cercado de inimigos. Nessas reuniões, servem-se café e refrigerantes, todos se tratam pelo primeiro nome, a atmosfera é descontraída e trabalha-se mais do que se poderia conseguir por intermédio de uma avalancha de memorandos escritos.

Era para essa reunião que o coordenador do Mossad, centro dos cinco serviços conjuntos do serviço secreto israelense, General Meir Amit, se dirigia na manhã de 4 de dezembro. Além das vidraças da sua límusíne longa e preta com chofer, resplandecia uma bela manhã de primavera sobre a branca extensão de Tel Aviv. Mas a disposição do general não correspondia à beleza da manhã, pois ele estava profundamente preocupado.

A causa de sua preocupação era uma informação que lhe havia chegado naquela madrugada.

Era um fragmento de conhecimento  que devia ser acrescentado às imensas pastas existentes nos arquivos, mas de importância vital porque a pasta em que cabia aquela comunicação de um de seus agentes no Cairo se referia aos foguetes de Helwan.

O rosto impassível do general de quarenta e dois anos não traía nenhuma de suas emoções quando o carro deu a volta no Circo Zina e se dirigiu para os subúrbios da zona norte da capital. Reclinou-se no banco do carro e pensou na longa história daqueles foguetes que estavam sendo fabricados ao norte do Cairo e que já tinham custado a vida de vários homens e o cargo de seu antecessor, o General Isser Harel...

No decurso do ano de 1961, muito antes que os dois foguetes de Nasser fossem exibidos publicamente nas ruas do Cairo, o Mossad israelense sabia da existência deles. Desde o momento em que a informação tinha chegado do Egito, tinham mantido a Fábrica 333 sob constante vigilância.

Tinham pleno conhecimento do recrutamento em grande escala pelos egípcios, por intermédio dos bons ofícios da Odessa, de cientistas alemães para trabalharem nos foguetes de Helwan. Era um caso grave naquela época; tornou-se infinitamente mais grave na primavera de 1962.

Em maio daquele ano, Heinz Krug, o recrutador alemão de cientistas, fez sondagens junto ao físico austríaco, Dr. Otto Yoklek, em Viena. Em vez de submeter-se ao recrutamento, o professor austríaco entrara em contato com os israelenses. O que ele tinha para dizer eletrizou Tel Aviv. Disse ao agente do Mossad que foi encarregado de conversar com ele que os egípcios pretendiam armar os seus foguetes com ogivas que conteriam resíduos nucleares irradiados e culturas de bacilos da peste bubônica.

A notícia era tão importante que o Coordenador do Mossad, o General Isser Harel, o homem que escoltara pessoalmente Adolf Eichmann de Buenos Aires a Tel Aviv, tomou o avião para Viena

a fim de falar com Yoklek. Convenceu-se de que o professor estava certo, sendo a sua convicção corroborada pela notícia de que o governo do Cairo comprara por intermédio de uma firma de Zurique uma porção de cobalto radioativo equivalente a vinte e cinco vezes as possíveis necessidades médicas do país.

De volta de Viena, Isser Harel foi ver o Primeiro-Ministro David Ben-Gurion e pediu permissão para iniciar uma campanha de represálias contra os cientistas alemães que estavam trabalhando

ou estavam dispostos a ir para lá. O velho primeiro-ministro se via num dilema. De um lado, compreendia o terrível perigo que representavam para seu povo os novos foguetes e suas ogivas genocidas; do outro lado, apreciava o valor dos tanques e canhões alemães que deveriam chegar a qualquer momento. Represálias israelenses nas ruas da Alemanha poderiam ser o suficiente para convencer o Chanceler Adenauer a dar ouvidos à facção existente no seu Ministério do Exterior e cancelar o acordo das armas.

Dentro do gabinete de Tel Aviv, desenvolvia-se uma cisão semelhante à que havia no gabinete de Bonn em torno da venda das armas. Isser Harel e a Ministra do Exterior Golda Meir eram favoráveis a uma política enérgica em relação aos cientistas alemães; Shimon Peres e o exército estavam apavorados ante a idéia de perderem os preciosos tanques alemães. Ben-Gurion estava indeciso entre os dois grupos.

Adotou por fim uma solução conciliatória: autorizou Harel a empreender uma campanha silenciosa e discreta para dissuadir os cientistas alemães de irem para o Cairo ajudar Nasser a fabricar os seus foguetes. Mas Harel, com seu ardente ódio visceral da Alemanha e de tudo o que era alemão, passou da conta.

No dia 11 de setembro de 1962, Heinz Krug desapareceu. Tinha jantado na noite anterior com o Dr. Kleinwachter, o perito em propulsão de foguetes que ele estava querendo recrutar, e com um egípcio não identificado. Na manhã do dia 11, o carro de Krug foi encontrado abandonado perto da casa dele, num subúrbio de Munique. A mulher dele afirmou imediatamente que fora raptado por agentes israelenses, mas a polícia de Munique não encontrou vestígio algum nem de Krug, nem da identidade de seus raptores. Na realidade, fora raptado por um grupo de homens chefiados por um tipo equívoco chamado Leon e seu corpo foi lançado no lago de Starnberg, ajudado a afundar até o leito cheio de vegetação por um colete de correntes de elos pesados

A campanha voltou-se então contra os alemães que já estavam no Egito. No dia 27 de novembro, uma encomenda postal registrada, remetida de Hamburgo e endereçada ao Professor Wolfgang Pilz,

o cientista de foguetes que trabalhara para os franceses, chegou ao Cairo. Foi aberta pela secretária dele, Hannelotie Wenda. Na explosão subseqüente, a moça foi mutilada e ficou cega pelo resto da vida.

No dia 28 de novembro, outra encomenda, também remetida de Hamburgo chegou à Fábrica 333. Já então, os egípcios tinham organizado uma turma de segurança para tratar das encomendas que chegavam. Foi um funcionário egípcio quem cortou os cordões na sala de correspondência. Houve cinco mortos e dez feridos. No dia 29, uma terceira encomenda foi desarmada sem que houvesse explosão.

No dia 20 de fevereiro de 1963, os agentes de Harel tinham voltado a atenção de novo para a Alemanha. O Dr. Klein

ham achter, ainda sem saber se ia para o Cairo ou não, estava voltando para casa de carro de seu laboratório em Loerrach, perto da fronteira da Suíça, quando um Mercedes preto lhe fechou o caminho. Jogou-se ao chão enquanto um homem esvaziava a sua automática através do pára-brisa. A polícia descobriu depois o Mercedes preto abandonado. Tinha sido roubado naquele mesmo dia. No porta-luvas, foi encontrada uma carteira de identidade com o nome do Coronel Ali Samir. As investigações revelaram que era esse o nome do chefe do Serviço Secreto do Egito. Os agentes de Isser Harel tinham transmitido a sua mensagem, com um toque sombrio de humorismo por sinal.

Já então, a campanha de represálias estava fazendo manchetes na Alemanha. Tornou-se um escândalo com o caso Ben Gal. No dia 2 de março, a jovem Heidi Geerke, filha do Professor Paul Goerke, pioneiro dos foguetes de Nasser, recebeu um telefonema em sua casa em Freiburg, na Alemanha. Uma voz de homem lhe sugeria que fosse encontrar-se com ele no Hotel dos Três Reis em Basiléia, na Suíça, do outro lado da fronteira.

Heidi informou a polícia alemã, que entrou em entendimento com a polícia suíça. Colocaram-se microfones no quarto que fora tomado para o encontro. Durante o mesmo, dois homens de óculos escuros disseram a Heidi Geerke e a seu-jovem irmão que deveriam convencer o pai a retirar-se do Egito se tinha amor à vida. Seguidos até Zurique e presos naquela mesma noite, os dois homens foram julgados em Basiléia no dia 10 de junho de 1963. Foi um escândalo internacional. O chefe dos dois agentes era Yossef Ben Gal, cidadão israelense.

O julgamento correu bem. O Professor Yoklek depôs mencionando as ogivas de peste e resíduos radioativos e os juízes ficaram escandalizados. Aproveitando da melhor maneira uma situação des favorável, o governo israelense usou o julgamento para denunciar a intenção egípcia de cometer genocídio. Chocados, os juízes absolveram os dois acusados.

Mas em Israel houve um ajuste de contas. Embora o Chanceler Adenauer da Alemanha houvesse prometido pessoalmente a Ben-Gurion que tentaria impedir que os cientistas alemães tomassem parte na fabricação de foguetes em Helwan, Ben-Gurion foi humilhado pelo escândalo. Cheio de raiva, censurou o General Isser Harel pelos excessos que cometera na sua campanha de intimidação. Harel reagiu vigorosamente e entregou o seu pedido de demissão. Com surpresa para ele, Ben-Gurion aceitou o pedido, provando o seu conceito de que ninguém em Israel é indispensável, nem mesmo o Coordenador do Serviço Secreto.

Naquela noite de 20 de junho de 1963, Isser Harel teve uma longa conversa com seu amigo íntimo, o General Meir Amit,  que era naquela época chefe do serviço secreto militar. O General Amit ainda se lembrava claramente da conversa e do rosto fechado e furioso do lutador nascido na Rússia e cognominado Nasser, o Terrível.

- Tenho a informar-lhe, meu caro Meir, que de hoje em diante Israel não está mais no caminho do revide. Os políticos tomaram conta de tudo. Apresentei a minha demissão e ela foi aceita. Pedi que você fosse nomeado meu sucessor e acho que vão concordar com isso.

O comitê ministerial que preside em Israel as atividades das redes dos serviços secretos concordou. Em fins de junho, o General Meir Amit se tornou Coordenador do Serviço Secreto.

Mas o fim tinha chegado também para Ben-Gurion. Os falcões de seu gabinete, chefiados por Levi Eshkol e pela Ministra do Exterior Golda Meir, forçaram a sua renúncia e a 26 de junho de 1963, Levi Eshkol foi nomeado Primeiro-Ministro. Sacudindo de raiva a cabeça branca, Ben-Gurion foi para o seu Obbutz no Neguev, muito desgostoso. Mas continuou como membro do Knesset.

Embora o novo governo tivesse afastado David Ben-Gurion, nem por isso reintegrou Isser Harel no cargo. Talvez julgasse que Meir Amit era um general com mais probabilidade de obedecer às ordens do que o colérico Harel, que se tornara ainda em vida uma figura lendária para o povo israelense e não se aborrecia com isso. As últimas ordens de Ben-Gurion também não foram revogadas. As instruções do General Amit continuaram as mesmas. Tinha de evitar mais escândalos na Alemanha em torno dos cientistas dos foguetes. Sem ter outro remédio, ele voltou a campanha de terror contra os cientistas que já estavam no Egito.

Esses alemães moravam no subúrbio de Meadi, onze quilômetros ao sul do Cairo, na margem norte do Nilo. Era um subúrbio muito agradável, mas vivia cercado pelas tropas de segurança egípcias e os seus habitantes alemães viviam quase como prisioneiros numa gaiola dourada. Para atingi-los, Meir Amit usou o seu agente principal dentro do Egito, o proprietário da escola de equitação Wolfgang Lutz, que, de setembro de 1963 em diante, se viu forçado a assumir riscos suicidas que acabaram por arruiná-lo dezesseis meses depois.

Para os cientistas alemães, já abalados com a série de encomendas com bombas, o outono de 1963 foi um verdadeiro pesadelo. No coração de Meadi, cercados pelos guardas de segurança egípcios, começaram a receber cartas de ameaças à sua vida, despachadas do centro do Cairo.

O Dr. Josef Eisig recebeu uma carta que descrevia sua esposa, seus dois filhos e o tipo de trabalho em que estava empenhado com notável precisão, depois do que o aconselhava a sair do Egito e voltar para a Alemanha.

Todos os outros cientistas receberam cartas  da mesma espécie. No dia 27 de setembro, uma carta explodiu no rosto do Dr. Kirmayer. Para alguns dos cientistas, isso foi a gota de água. Em 15 de setembro, o Dr. Pilz partiu do Cairo para a Alemanha, levando a infortunada Freuulein Wenda.

Outros fizeram o mesmo e os egípcios furiosos foram incapazes de impedi-los, desde que não podiam protegê-los das cartas de ameaça.

O homem que viajava na limusine naquela manhã luminosa de 1964 sabia que o seu agente, Lutz, supostamente alemão e nazista, era o autor das cartas e o remetente dos explosivos.

Mas sabia também que o programa dos foguetes não fora interrompido. A informação que acabara de receber era uma prova disso. Passou os olhos mais uma vez pela mensagem decifrada. Confirmava apenas que uma casta virulenta de bacilos de bubônica fora isolada no laboratório de doenças contagiosas do Instituto Médico do Cairo e que o orçamento do departamento empenhado na atividade fora decuplicado. A informação não deixava dúvida de que, apesar da publicidade negativa que o Egito recebera por ocasião do julgamento de Ben Gal em Basiléia no verão anterior, o programa genocida ia prosseguir.

Se Hoffmann tivesse observado, teria dado decerto uma cotação alta a Miller em matéria de atrevimento. Saindo do gabinete do diretor no último andar, desceu do elevador no quinto andar e foi procurar Max Dorn, chefe da seção de assuntos jurídicos da revista. - Acabo de falar com Herr Hoffmann, - disse ele, sentando-se numa cadeira diante da mesa de Dorn. - Preciso agora de alguns dados. Pode ser?

- Vá em frente, - disse Dorn, presumindo que Miller tivesse sido encarregado de alguma reportagem para Komet.

- Quem investiga os crimes de guerra na Alemanha? A pergunta colheu Dorn de surpresa.

- Crimes de guerra?

- Sim, crimes de guerra. Quais são as autoridades responsáveis pela investigação do que aconteceu nos vários países que dominamos durante a guerra e encarregados de procurar e processar os indivíduos culpados de homicídios em massa?

- Ah, já seio que você quer. Fundamentalmente, a ação cabe aos gabinetes dos Procuradores Gerais das províncias da Alemanha Ocidental.

- Quer dizer, todos eles?

Dorn recostou-se na cadeira, à vontade no campo de sua especialidade.

- Há dezesseis províncias na Alemanha Ocidental. Cada qual tem uma capital e um Procurador Geral do Estado. Em cada gabinete, há um departamento responsável pela investigação dos "crimes de violência cometidos durante a era nazista", como são chamados. A cada capital de estado é atribuída uma área do antigo Reich ou dos territórios ocupados como sua responsabilidade especial.

- Por exemplo? - perguntou Miller.

- Bem, por exemplo, todos os crimes cometidos pelos nazistas e pelas SS na Itália, na Grécia e na Galícia Polonesa são investigados em Stuttgart. O maior dos campos de extermínio, Auschwitz,

está sob a jurisdição de Frankfurt. Talvez tenha ouvido dizer que em maio haverá em Frankfurt o julgamento de vinte e dois ex-guardas de Auschwitz. Os campos de extermínio de Treblinka, Chelmno, Sobibor e Maidanek são investigados por Dusseldorf e Colônia. Munique é responsável por Belzec, Dachau, Buchenwald e Flossenburg. Quase todos os crimes na Ucrânia Soviética e na área de Lodz da antiga Polônia cabem a Hanover. E assim por diante. Miller notou a informação, assentindo.

- Quem deve investigar o que aconteceu nos três estados bálticos? - perguntou ele.

- Hamburgo, - disse prontamente Dorn, - juntamente com os crimes na área de Dantzig e no setor de Varsóvia da Polônia. - Hamburgo? - exclamou Miller. - Aqui mesmo em Hamburgo?

- Sim. Porquê?

- É em Riga que eu estou interessado. Dorn fez cara feia.

- Ah, os judeus alemães. Bem, isso cabe ao gabinete do Procurador Geral aqui mesmo.

- Se houve um julgamento ou mesmo uma prisão de algum culpado de crimes em Riga, teria sido aqui em Hamburgo?

- O julgamento, sim, - disse Dorn. - A prisão poderia ser feita em qualquer lugar.

- Qual é o processo seguido para as prisões?

- Bem, há um livro de registro das pessoas procuradas. Constam dele os nomes e qualificações de todos os criminosos de guerra procurados. Em geral, o gabinete do Procurador Geral responsável pela área onde o homem cometeu os crimes passa anos preparando o caso antes da prisão. Quando tudo está pronto, pede à polícia do estado onde o homem está vivendo que ele seja preso. Dois detetives vão até lá e trazem-no.

Se um homem muito procurado é descoberto, pode ser preso onde for descoberto e o gabinete do Procurador Geral interessado é então informado. O problema é que muitos dos homens importantes das SS não estão vivendo com o seu nome verdadeiro.

- Certo, - disse Miller. - Já houve algum julgamento aqui em Hamburgo de alguém culpado de crimes cometidos em Riga? - Que eu me lembre, não, - disse Dorn.

- Se tivesse havido, estaria no arquivo de recortes?

- Claro. Isto é, se foi depois de 1950, o ano em que iniciamos o arquivo de recortes.

- Posso dar uma olhada? - Não há problema.

O arquivo ficava no porão e era manejado por cinco arquivistas de guarda-pó cinzento. Ocupava uma área enorme, cheia de estantes de aço nas quais se viam fichas de referênçia de toda espécie, em volta das paredes, do chão até ao teto, havia arquivos de aço com gavetas cujo conteúdo era indicado por fichas de cartolina.

- Que é que você quer? - perguntou Dorn quando o chefe do arquivo se aproximou.

- Roschmann, Eduard, - disse Miller.

- Seção de índices de pessoas, por aqui, - disse o arquivista, levando-os para outra parede. Abriu uma gaveta marcada ROA-ROZ e folheou rapidamente as fichas.

- Nada sobre Roschmann, Eduard, - disse ele. Miller pensou um pouco e perguntou:

- Há alguma coisa. sobre crimes de guerra?

- Sim, - disse o arquivista. - Crimes de guerra e julgamentos de crimes de guerra, por aqui.

Caminharam por mais dezenas de metros de arquivos. - Veja o que há em relação a Riga, - disse Miller.

O homem subiu uma escada portátil, procurou e voltou com uma pasta vermelha que trazia o rótulo: "Riga - Julgamentos de Crimes de Guerra".

Miller abriu a pasta. Havia apenas dois recortes de jornal do tamanho quase de selos do correio. Um deles dizia que três soldados das SS iam ser julgados por atrocidades cometidas em Riga entre 1941 e 1944. O outro dizia que os três soldados tinham sido condenados a penas longas de prisão. Não tão longas assim. Os três deviam ter sido postos em liberdade em fins de 1963.

- Só isto? - perguntou Miller.

- Só isto, - respondeu o arquivista.

- Quer dizer, - disse Miller, voltando-se para Dorn, - que uma seção do gabinete do Procurador Geral trabalha há quinze anos ganhando o dinheiro que eu pago de impostos para só apresentar como resultado esses dois miseráveis recortes?

Dorn respeitava um pouco o estabelecimento.

- Tenho certeza de que se esforçaram ao máximo, - disse ele um pouco solenemente.

- Isso é que eu não sei, - replicou Miller.

Despediram-se no grande hall dois andares acima e Miller saiu sob a chuva que caía.

O edifício nos subúrbios do norte de Tel Aviv onde fica a sede do Mossad não chama a atenção, nem mesmo de seus vizinhos mais próximos. A entrada para a garagem subterrânea do bloco é flanqueada por lojas bem comuns. No térreo há um banco e, no hall de entrada, diante das portas de vidro que se abrem para o banco, há um elevador, um indicador das companhias que funcionam nos diversos andares e a mesa do porteiro, onde podem ser pedidas informações.

O indicador revela que no bloco funcionam os escritórios de várias companhias comerciais, duas firmas de seguros, um arquiteto, um escritório de engenharia e, no último andar, uma companhia de importação e exportação. As indagações a respeito de qualquer das firmas dos outros andares serão gentilmente atendidas. Mas se alguém fizer perguntas sobre a companhia do último andar só encontrará evasivas. A companhia do último andar é a fachada que esconde o Mossad.

A sala onde se reúnem os chefes do serviço de Israel é simples e fresca, pintada de branco, com uma longa mesa e cadeiras junto às paredes. Sentam-se à mesa os cinco homens que dirigem as seções do serviço secreto. Atrás deles, nas cadeiras encostadas às paredes, ficam secretários e estenógrafas. Pessoas estranhas podem ser convocadas para depoimento ou esclarecimento, mas isso é muito raro. Todas as reuniões são consideradas secretas, porque todas as confidências são proferidas em voz alta.

À cabeceira da mesa, senta-se o Coordenador do Mossad. Fundado em 1937 e tendo o nome completo de Mossad Aliyah Beth ou Organização da Segunda Imigração, o Mossad foi o primeiro órgão de serviço secreto israelense. A sua primeira finalidade foi tirar os judeus da Europa para fazê-los desembarcar em segurança na terra da Palestina.

Depois da fundação do estado de Israel em 1948, tornou-se o mais importante órgão do serviço secreto e o seu coordenador foi automaticamente o chefe dos cinco serviços.

À direita do coordenador, senta-se o chefe do serviço secreto militar, o Aman, cuja função principal é manter Israel informado da preparação para a guerra de seus inimigos. O homem que exercia o lugar na ocasião era o General Aharon Yaariv.

À esquerda, está o chefe do Shabak, chamado às vezes erradamente de Shin Beth. Essas letras querem dizer Sherut Bitachon ou Serviço de Segurança em hebreu. O título completo do órgão que

cuida da segurança interna de Israel e só da segurança interna, é Sherut Bitachon Klali e é dessas três palavras que é formada a abreviação Shabak.

Além desses dois homens ficam os dois últimos dos cinco. Um é o diretor geral da divisão de pesquisa do Ministério do Exterior, encarregado especificamente da avaliação da situação política nas

capitais árabes, assunto de importância vital para a segurança de Israel. O outro é o diretor de um serviço que se ocupa exclusivamente com o destino dos judeus nos "países de perseguição". Estão compreendidos nessa categoria todos os países árabes e todos os países comunistas. Para que não haja duplicação de atividades, as reuniões semanais permitem a cada chefe saber o que os outros departamentos estão fazendo.

Dois outros homens estão presentes como observadores, o Inspetor Geral de Polícia e o Chefe da Seção Especial, a divisão executiva do Shabak na luta contra o terrorismo dentro do país.

A reunião do dia 2 de fevereiro era perfeitamente normal. Meir Amit tomou o seu lugar à cabeceira da mesa e a discussão começou. Amit guardou a sua bomba até o fim. Quando fez a declaração,

houve silêncio, desde que os presentes, inclusive os auxiliares espalhados pela sala, tiveram uma visão mental do aniquilamento de seu país quando as ogivas radioativas e da peste atingissem o alvo.

- O importante, - disse por fim o chefe do Shabak, - é que esses foguetes nunca cheguem a voar. Se não pudermos impedi-los de fazer ogivas, teremos de impedir que as ogivas sejam disparadas.

- De acordo, - disse Amit, lacônico como sempre. - Mas como?

- Atacando-os, - disse Yaariv. - Atacando-os com tudo o que tivermos. Os jatos de Ezer Weizmann podem arrasar a Fábrica 333 num só assalto.

- Com isso, provocaremos uma guerra na qual nada teremos com que lutar, - disse Amit. - Precisamos de mais aviões, mais tanques e mais canhões antes de podermos enfrentar o Egito. Creio,

meus senhores, que todos nós sabemos que a guerra é inevitável. Nasser está empenhado nela, mas não a fará enquanto não estiver pronto. Mas, se o forçarmos à guerra agora, o que vai acontecer simplesmente é que, com os armamentos russos de que dispõe, ele estará mais preparado do que nós.

Houve silêncio de novo. Por fim, o chefe da seção árabe do Ministério do Exterior falou.

- A informação que temos do Cairo é que eles pensam que estarão prontos em princípios de 1967, com foguetes e tudo.

- Por essa época, teremos nossos tanques e canhões, bem como nossos novos jatos franceses, - replicou Yaariv.

- Sim, e eles terão os foguetes de Helwan. Quatrocentos ao todo. Só há uma conclusão, senhores. Na ocasião em que estivermos prontos para enfrentar Nasser, esses foguetes estarão guardados em silos através de todo o Egito. Serão então inatingíveis. De fato, desde que estejam nos silos e prontos para serem disparados, teremos que destruir não apenas noventa por cento, mas todos eles. E nem mesmo os pilotos de caça de Ezer Weizmann poderão destruílos a todos, sem exceção.

- Temos então de destruí-los na fábrica em Helwan - disse Yaariv convictamente.

- De acordo, - disse Amit, - mas sem ataque militar. Teremos apenas de tentar forçar os cientistas alemães a renunciarem antes que tenham terminado o seu trabalho. Não se esqueçam de que a fase das pesquisas está quase terminada. Temos seis meses à nossa disposição. Depois desse tempo, os alemães não interessarão mais. Os egípcios poderão construir os foguetes, pois eles estarão projetados até o último parafuso. Em vista disso, vou acelerar a campanha contra os cientistas no Egito e mantê-los-ei informados de tudo.

Durante vários segundos, houve silêncio de novo enquanto uma pergunta não formulada corria pelo espírito de todos. Foi um dos homens do Ministério do EXterior quem finalmente a externou:

- Não poderíamos dissuadi-los de novo dentro da Alemanha? - Não. Isso é questão encerrada dentro do clima político vigente. As ordens de nossos superiores continuam as mesmas; não haverá mais táticas violentas dentro da Alemanha. Para nós, de hoje em diante, a chave para os foguetes de Helwan está dentro do Egito. O General Meir Amit, Coordenador do Mossad, não costumava errar. Mas dessa vez estava errado. A chave para os foguetes de Helwan estava numa fábrica dentro da Alemanha Ocidental.

 

Miller gastou uma semana para conseguir ser recebido pelo chefe de seção no departamento do gabinete do Procurador Geral de Hamburgo responsável pela investigação dos crimes de guerra. O homem com quem conversou estava nervoso e inquieto.

- Deve compreender que só concordei em recebê-lo diante de seus insistentes pedidos, - começou ele.

- Ainda assim, não deixa de ser gentil de sua parte, - disse Miller, simpaticamente. - Quero saber de um homem a quem presumo que seu departamento deve manter sob permanente investigação. Chama-se Eduard Roschmann.

- Roschmann? - perguntou o homem.'

- Sim, Roschmann. Capitão das SS. Comandante do gueto de Riga de 1941 a 1944. Quero saber se está vivo; caso contrário, onde está enterrado. Se o encontraram, se ele foi algum dia preso ou submetido a julgamento. Se não, desejo saber onde está agora. O homem da Procuradoria estava abalado.

- Mas eu não lhe posso dizer isso!

- Por quê? É um assunto de interesse público, de grande interesse público.

O homem havia recuperado a sua pose.

- Não posso pensar assim. Do contrário, estaríamos recebendo constantes indagações dessa natureza. Mas, tanto quanto me lembro, o primeiro pedido que nos chega... do público é o seu.

- Na verdade, sou da imprensa, - disse Miller.

- Não duvido. Mas, infelizmente, no que diz respeito a essa espécie de informação, os seus direitos são iguais aos de qualquer cidadão.

- E isso significa exatamente o quê?

- Significa que não temos autorização para dar informações sobre o andamento de nossas investigações.

- Em primeiro lugar, isso não me parece direito, - disse Miller.

- Ora essa, Herr Miller, não pode certamente esperar que a polícia lhe dê informações sobre o progresso de suas investigações num caso penal.

- Certamente que espero e é isso o que em geral acontece. A polícia é muito solícita em emitir boletins sempre que espera efetuar uma prisão desde cedo. E não tem a menor dúvida em informar

à imprensa se sabe se o seu principal suspeito está vivo ou morto. Isso contribui muito para o estabelecimento de boas relações com o público.

O funcionário esboçou um sorriso.

- Tenho certeza de que o senhor exerce uma função muito importante nesse particular. Mas este departamento não pode dar informação alguma sobre o andamento dos nossos trabalhos. Vamos

e venhamos, se os criminosos procurados tivessem conhecimento do que estamos fazendo para completar a acusação contra eles, desapareceriam decerto.

- É possível, - replicou Miller. - Mas os fatos mostram que seu departamento só submeteu a julgamento três soldados que eram guardas em Riga. E isso aconteceu em 1950, de modo que é de presumir que os homens já estivessem presos quando os ingleses fizeram entrega deles. Assim sendo, não parece que os criminosos procurados corram muito perigo de serem forçados a desaparecer. - Essa sua afirmação é inteiramente sem base.

- Está bem. Então as suas investigações estão em marcha. De qualquer maneira, não sei em que poderá prejudicar o seu trabalho dizer-me simplesmente se Eduard Roschmann está sob investigação e onde se encontra neste momento.

- Só lhe posso dizer é que todos os assuntos dentro da jurisdição e da responsabilidade de meu departamento estão sob constante investigação, torno a dizer, constante investigação. E agora, Herr Miller, creio que nada mais poderei fazer para servi-lo. Levantou-se e Miller fez o mesmo.

- Não é preciso incomodar-se, - disse ele e saiu.

Mais uma semana passou até que Miller agisse de novo. Passou o tempo principalmente em casa lendo-seis livros que tratavam parcial ou totalmente da guerra na Frente Oriental e das coisas que tinham sido feitas nos campos nos territórios orientais ocupados. Foi o encarregado da biblioteca regional quem lhe falou da Comissão Z.

- Fica em Ludwigsburg, - disse ele a Miller. - Li tudo a respeito dela numa revista. O nome completo é Agência Central Federal Para Elucidação dos Crimes de Violência Cometidos durante a Era Nazista. É um nome muito comprido e o povo começou a chamar-lhe a Zentrale Stelle e, abreviando ainda mais, a Comissão Z. É a única organização no país que caça nazistas em escala nacional e até em nível internacional.

- Obrigado, - disse Miller, saindo. - Vou ver se me podem ajudar.

Miller foi ao seu banco na manhã seguinte, fez um cheque para o seu senhorio para cobrir os três meses de aluguel de janeiro a março e sacou o resto do seu saldo, deixando apenas dez marcos para não fechar a conta.

Beijou Sigi quando ela saiu para ir trabalhar no clube, dizendo que ia ficar ausente durante uma semana ou talvez mais. Depois, tirou o Jaguar da garagem subterrânea e tomou o caminho do sul, rumo à Renânia.

As primeiras neves tinham começado, vindo sibilantemente do Mar do Norte e caindo em rajadas através das amplas extensões da autobahn que passava ao sul de Bremen e se estendia pela planície da Baixa Saxônia.

Parou uma vez para tomar café depois de duas horas e, em seguida, tocou através de Norte do Reno-Vestfália. Apesar do vento, gostava de dirigir na autobahn com mau tempo. Dentro do XK 150 S, tinha a impressão de estar na carlinga de um avião rápido, com as luzes do painel a brilhar fracamente e, lá fora, a escuridão que caía de uma noite de inverno, as lufadas oblíquas de neve captadas por um momento pela luz forte dos faróis e que logo passavam pelo pára-brisa e se desfaziam.

Manteve-se na pista de alta velocidade, puxando o Jaguar até a 150 quilômetros por hora, observando os vultos dos grandes caminhões que ficavam à sua direita quando ele os ultrapassava.

Às seis horas da noite, tinha passado o Cruzamento de Hamm e as brilhantes luzes do Ruhr começaram a ser fracamente avistadas à sua direita através da escuridão. Nunca deixava de impressionar-se com o Ruhr, quilômetros intermináveis de fábricas e chaminés, de cidades e aldeias tão próximas que formavam na verdade uma só cidade gigantesca de cento e cinqüenta quilômetros de comprimento e oitenta de largura. Quando a autobahn subiu por um viaduto, olhou para a direita e viu tudo estender-se dentro da noite de dezembro, milhares de hectares -de luzes e de usinas, acesas em mil fornos onde se gerava a riqueza do milagre econômico. Quatorze anos antes, quando passara por ali de trem durante a excursão de sua escola a Paris, aquilo tudo eram destroços e o coração industrial da Alemanha deixara quase de bater.

Era impossível não sentir orgulho do que seu povo fizera desde aquele tempo.

"Tudo está muito bem desde que eu não tenha de viver aí", pensou ele quando os gigantescos sinais do Anel de Colônia começaram a surgir à luz dos faróis. De Colônia, tomou o rumo de sudeste, passou Wiesbaden e Frankfurt, Mannheim e Heilbronn e já era bem tarde naquela noite quando parou diante de um hotel em Stuttgart, que era a cidade mais próxima de Ludwigsburg, a fim de ali passar a noite.

Ludwigsburg é uma cidadezinha de feira tranqüila e inofensiva, plantada nas belas colinas ondulantes do Württemberg, vinte e cinco quilômetros ao norte da capital do estado que é Stuttgart. Instalada numa rua quieta perto da Rua Principal, para extrema confusão dos honestos moradores da cidade, encontrava-se a sede da Comissão Z, um grupo pequeno, carente de pessoal, mal pago e sobrecarregado de trabalho de homens, cujo serviço e interesse na vida se cifravam em caçar os nazistas e os homens das SS culpados de crimes de homicídio em massa durante a guerra. Antes que o Estatuto de Limitações eliminasse todos os crimes das SS à exceção de homicídio e homicídio em massa, aqueles a quem a Comissão procurava podiam ser culpados de extorsão, roubo, lesões corporais graves, inclusive tortura, e várias outras formas de atos odiosos.

Mesmo com o homicídio como a única acusação que podia ser formulada, a Comissão Z ainda tinha 110.000 nomes nos seus fichários. Como era natural, o seu esforço principal se concentrava em achar a pista de alguns milhares dos piores culpados de homicídios em massa, sempre e em qualquer lugar onde fosse possível. Privados de qualquer poder de efetuar prisões, podendo apenas solicitar à polícia dos vários estados da Alemanha que fizesse a prisão quando se conseguira uma identificação positiva, incapazes de extrair todos os anos do Governo Federal em Bonn mais que algumas verbas escassas, os homens de Ludwigsburg trabalhavam apenas porque tinham entusiasmo e dedicação pelo que faziam.

Havia oitenta detetives no corpo de pessoal e cinqüenta procuradores e investigadores. Todos os homens do primeiro grupo eram jovens, com menos de trinta e cinco anos, de modo que não poderiam ter qualquer implicação nos casos que eram investigados. Os procuradores eram em geral mais velhos, mas tinham sido submetidos a uma triagem destinada a provar que não se tinham envolvido em quaisquer fatos anteriores a 1945.

Os procuradores eram principalmente homens saídos da prática da advocacia e que um dia a ela voltariam. Os detetives sabiam que a sua carreira estava encerrada.

Nenhuma polícia na Alemanha queria ver em suas fileiras um detetive que tivesse trabalhado em Ludwigsburg. Para os detetives dispostos a caçar os homens das SS na Alemanha Ocidental, era impossível a promoção em qualquer outra força policial do país.

Habituados a ver os seus pedidos de cooperação desatendidos em mais de metade dos estados, a ver as fichas que emprestavam à polícia regular desaparecerem inexplicavelmente, a ver o homem a quem procuravam desaparecer subitamente graças a um aviso anônimo, os homens da Comissão Z trabalhavam da melhor maneira possível numa tarefa que sabiam que não correspondia aos desejos da maioria de seus compatriotas.

Até nas ruas da risonha cidade de Ludwigsburg, os homens da Comissão Z não recebiam cumprimentos nem aceitação dos cidadãos que tinham com a presença deles uma notoriedade indesejada.

Peter Miller foi encontrar a Confissão no número 258 da Schorndorfer Strasse, que era uma antiga casa particular enorme, construída por trás de um muro de dois metros e meio. Dois portões de aço compactos fechavam a entrada para carros. Ao lado, havia um cordão de campainha que ele puxou. Um postigo foi corrido e um rosto de homem apareceu. O inevitável porteiro.

- Sim?

- Gostaria de falar com um dos procuradores, - disse Miller. - Qual deles?

- Não sei de nomes. Qualquer deles. Aqui está o meu cartão. Passou o seu cartão de jornalista pelo postigo, forçando o homem a recebê-lo. Sabia que, ao menos, entraria no prédio. O homem fechou o postigo e afastou-se. Quando voltou, foi para abrir o portão. Miller foi levado aos cinco degraus de pedra diante da porta de entrada, que estava fechada ao ar claro mas frio do inverno. Lá dentro, o ambiente estava abafadamente quente em virtude do aquecimento central. Outro porteiro emergiu de uma gaiola de vidro à direita e levou-o para uma pequena sala de espera.

- Alguém virá já falar com o senhor - disse ele, fechando a porta.

O homem que apareceu três minutos depois devia ter pouco mais de cinqüenta anos e tinha um jeito calmo e cortês. Devolveu o cartão de jornalista de Miller e disse.

- Estou às suas ordens.

Miller começou do princípio, explicando sucintamente Tauber, o diário e as suas indagações a respeito do que havia acontecido a Eduard Roschmann. O procurador escutou a tudo com muita atenção.

- Fascinante, - disse ele por Fim.

- O que eu desejo saber é o seguinte: pode ajudar-me?

- Eu bem que gostaria, - disse o homem e, pela primeira vez desde que começara semanas antes a fazer perguntas sobre Roschmann em Hamburgo, Miller acreditou que havia encontrado um funcionário que tinha o desejo sincero de ajudá-lo. - Mas a verdade é que, embora eu esteja pronto a aceitar as suas perguntas como inteiramente autênticas, tenho os pés e mãos amarrados pelas regras que governam a continuação de nossa existência aqui. E estas dizem que nenhuma informação pode ser dada sobre qualquer criminoso procurado das SS senão a quem trouxer uma ordem expedida por um número específico de autoridades.

- Por outras palavras, não me pode dizer nada, não é? - perguntou Miller.

-. Faça o favor de compreender, - disse o procurador. - Esta comissão sofre um ataque constante. Esse ataque não é franco, pois ninguém se atreveria a tanto. Mas, particularmente, nos corredores do poder, somos incessantemente mutilados em nossas verbas, em nossas atribuições, em nossos meios de ação. Não nos permitem o menor afastamento das regras rígidas dentro das quais temos de trabalhar. Pessoalmente, eu apreciaria muito uma aliança com a imprensa alemã, mas isso é proibido.

- Compreendo, - disse Miller. - Há aqui um bom arquivo de referência de recortes de jornais?

- Não, não há.

- Onde se pode encontrar na Alemanha um bom arquivo de recortes de jornais que esteja aberto à consulta do público?

- Os únicos arquivos de recortes são os dos vários jornais e revistas. O que tem fama de ser o mais completo é o da revista Der Spiegel. Depois dele, o de tionrei é muito bom também.

- Acho isso muito estranho, - disse Miller. - Onde na Alemanha um cidadão comum pode obter informações sobre o andamento das investigações dos crimes de guerra e consultar material sobre criminosos das SS procurados?

O procurador pareceu um tanto contrafeito.

- Infelizmente, creio que um cidadão comum não pode fazer

isso.

- Está certo, - disse Miller. - Onde estão na Alemanha os arquivos que se referem aos homens das SS?

- Temos um conjunto aqui no porão, - disse o procurador. - Tudo em cópias fotostáticas. Os originais de todo o fichário das SS foram capturados em 1945 por uma tropa americana. No último minuto, um pequeno grupo das SS foi deixado num castelo na Baviera onde eram guardados os fichários e tentou queimar tudo. Conseguiram destruir cerca de dez por cento até que os soldados americanos chegaram e os impediram de continuar.

O resto estava todo misturado. Os americanos levaram dois anos, com alguma ajuda alemã, para dar um pouco de ordem ao resto.

"Durante esses dois anos, muitos dos piores elementos das SS conseguiram fugir depois de terem ficado temporariamente sob custódia dos Aliados. As fichas deles não puderam ser encontradas na confusão. Depois da classificação final, o fichário das SS ficou em Berlim, onde ainda está de posse e sob direção dos americanos. Até nós temos de recorrer a eles quando precisamos de alguma coisa mais. Mas eles são muito prestimosos e gentis; não temos o menor motivo de queixa quanto à cooperação desse setor.

- Só isso? - perguntou Miller. - Apenas dois arquivos em todo o país?

- Sim, - disse o procurador. - Torno a dizer que gostaria muito de poder ajudá-lo. Por falar nisso, se conseguir alguma coisa a respeito de Roschmann, teríamos muita satisfação em saber disso. Miller pensou.

- Se eu conseguir alguma coisa, só há duas autoridades que poderão fazer alguma coisa, o Procurador Geral em Hamburgo e os senhores aqui, certo?

- Sem dúvida.

- E os senhores farão alguma coisa mais positiva do que os homens de Hamburgo, disso eu tenho certeza.

Miller tez essa afirmação de maneira categórica e o procurador se limitou a levantar os olhos para o teto. Mas disse um instante depois:

- Nada de real valor que vem parar aqui fica esquecido nas gavetas.

- Sei disso, - murmurou Miller, levantando-se. - Mais uma coisa aqui entre nós. Ainda estão procurando Eduard Roschmann?

- Aqui entre nós, muito.

- Se ele fosse capturado, não haveria problema em obter uma condenação?

- Absolutamente. As provas contra ele são compactas. O mínimo que ele pegaria seria prisão perpétua com trabalhos forçados. - Pode-me dar o número de seu telefone? - perguntou Miller.

O procurador escreveu num pedaço de papel que entregou a Miller.

- Tem aí meu nome e dois telefones, o de minha casa e o do escritório. Pode-me telefonar a qualquer hora do dia ou da noite. Se conseguir alguma coisa nova, ligue para mim de qualquer cabina

telefônica em discagem direta. Há na polícia de todos os estados homens a quem posso telefonar para que entrem em ação,  se houver necessidade. E há outros que devem ser evitados. Telefone-me antes, sim?

Miller guardou o papel.

- Não me esquecerei disso, - disse ele, saindo. - Felicidades, - disse o procurador.

A viagem de carro de Stuttgart a Berlim é longa e Miller gastou nela a maior parte do dia seguinte. Felizmente, o tempo estava seco e o Jaguar bem sintonizado devorou os quilômetros em direção ao norte, passando pelo vasto tapete de Frankfurt, por Kassel e Gottingen até ao Hanover. Seguiu ali a bifurcação da direita da autobahn para a fronteira com a Alemanha Oriental.

Houve um atraso de uma hora na barreira de Marienborn enquanto ele preenchia os inevitáveis formulários de declarações de dinheiro e de vistos de trânsito pára percorrer 180 quilômetros da Alemanha Oriental até Berlim Ocidental e enquanto os guardas da Alfândega de uniforme azul e a Polícia do Povo de capote verde e gorro de peles por causa do frio examinavam o Jaguar por dentro e por fora. O homem da Alfândega pareceu meio dividido entre a cortesia gelada que devia ter um servidor da República Democrática da Alemanha para com um nacional da Alemanha Ocidental revanchista e o seu desejo curioso de examinar o carro esporte do outro.

Trinta quilômetros além da fronteira, chegou à grande ponte sobre o Elba, onde em 1945 os ingleses, obedecendo honestamente às regras estabelecidas em Yalta, haviam parado no seu avanço para Berlim. À direita, Míller olhou para a planície de Magdeburgo e teve vontade de saber se a velha prisão ainda existiria. Houve nova demora na entrada para Berlim Ocidental, onde de novo seu carro foi revistado, sua maleta esvaziada no banco da Alfândega e sua carteira aberta para verificarem se ele não havia dado todos os seus marcos ocidentais ao povo do paraíso dos trabalhadores durante a sua marcha pela estrada. Passou por fim e o Jaguar transpôs o circuito do Avus rumo às luzes de Kurfurstendamm, toda rebrilhante de decorações do Natal. Era a noite de 17 de dezembro.

Resolveu não ir procurar às cegas o Centro Americano de Documentação, como tinha feito no escritório do Procurador Geral em Hamburgo e na Comissão Z em Ludwigsburg. Chegara a compreender que, sem alguma ajuda oficial, não era possível conseguir nada dos, arquivos nazistas na Alemanha.

Na manhã seguinte, telefonou do correio central para Karl Brandt. O detetive ficou aborrecido com o seu pedido.

- Não posso, - disse ele pelo telefone. - Não conheço ninguém em Berlim.

- Pense bem. Você deve ter conhecido alguém da polícia de Berlim Ocidental num dos cursos de aperfeiçoamento que fez. Preciso de que alguém me ajude a conseguir o que eu quero.

- Já lhe disse que não me quero envolver nesse caso.

- Bem, envolvido você já está, - disse Miller e esperou alguns segundos antes de aplicar o seu golpe. - Ou posso consultar esses arquivos oficialmente ou digo que foi você quem me mandou. - Você não pode fazer uma coisa dessas!

- Posso e vou fazer. Estou cansado de ser empurrado de um lado para outro neste país. Procure, portanto, quem possa introduzirme' oficialmente nos arquivos. Não se esqueça de que o caso não tem a menor importância e ninguém pensará mais nisso depois que eu consultar os arquivos.

- Tenho de pensar - disse Brandt, procurando ganhar tempo. - Tem uma hora para pensar. Voltarei então a lhe telefonar. Desligou o telefone. Uma hora depois, Brandt estava tão aborrecido como sempre e talvez um pouco mais amedrontado. Estava sinceramente arrependido de ter apanhado o diário e, ainda mais, de não o ter jogado fora.

- Há um homem com quem estudei no colégio de detetives, - disse ele pelo telefone. - Não o conheço bem, mas sei que ele está no Primeiro Distrito da polícia de Berlim Ocidental. Trata do mesmo assunto.

- Como é o nome dele'.'

- Schiller, Volkmar Schiller, detetive-inspetor. - Vou procurá-lo, - disse Miller.

- Não, deixe isso comigo. Vou telefonar para ele e apresentá-lo. Depois disso, poderá ir vê-lo. Se ele não concordar, nada feito. Não conheço-mais ninguém em Berlim.

Duas horas depois, Miller tornou a telefonar para Brandt. Este parecia muito satisfeito.

- Está em férias, - disse ele a Miller. - Disseram-me que só voltará a trabalhar na segunda-feira, a tempo de fazer serviço pelo Natal.

- Mas hoje é ainda quarta-feira, - disse Miller. - Vou passar cinco dias aqui sem fazer nada?

- Que é que vou fazer'? Ele só voltará na segunda-feira. Telefonarei então para ele.

Miller passou cinco dias terríveis trocando pernas em Berlim Ocidental à espera de que Schiller voltasse das férias. Berlim estava inteiramente empolgada nas proximidades do Natal de 1963 com a possibilidade de que pela primeira vez desde que o Muro fora levantado, em agosto de 1961, as autoridades de Berlim Oriental concedessem passes para que os berlinenses ocidentais pudessem transpor o Muro para visitar parentes no setor oriental.

O andamento das  negociações entre os dois lados tinha ocupado havia vários dias o noticiário dos jornais. Miller passou um _de seus dias naquele fim de semana transpondo a barreira da Heine Strasse a fim'de chegar à parte oriental da cidade (como cidadão da Alemanha Ocidental pôde fazer isso com o seu passaporte apenas) e foi procurar um conhecido, o correspondente da Agência Reuter em Berlim Oriental. Mas o homem estava muito atarefado com a história dos passes para o Muro e, assim, depois de uma xícara de café, despediu-se e voltou para a parte ocidental.

Na manhã de segunda-feira, foi procurar o Detetive-Inspetor Volkmar Schiller. Para sua grande satisfação, Schiller era um homem mais ou menos de sua idade e que parecia, sendo isso excepcional para um funcionário de qualquer espécie na Alemanha, ter o mesmo desprezo que ele tinha pelas praxes burocráticas. Talvez não pudesse fazer muito, pensou Miller, mas esse problema era seu. Explicou em resumo o que desejava.

- Creio que não haverá dificuldade, - disse Schiller. - Os americanos são muito prestativos conosco aqui no Primeiro Distrito. Desde que fomos encarregados por Willy Brandt de investigar os crimes nazistas, vamos quase todos os dias lá.

Tomaram o Jaguar de Miller e foram para os subúrbios da cidade, para as florestas e os lagos. À beira de um dos lagos, chegaram a Wasser Kafer Stieg, Número Um, no subúrbio de Zehlendorf, Berlim 37.

Era um edifício comprido de um só andar, que ficava entre as árvores.

- É aqui? - perguntou Miller sem acreditar.

- É aqui, sim, - respondeu Schiller. - Não impressiona muito, não é mesmo? O que acontece é que há oito andares abaixo do nível do solo. É onde os arquivos estão guardados em câmaras à prova de fogo.

Entraram pela porta da frente e chegaram a uma pequena sala de espera onde havia à direita o inevitável balcão do porteiro. O detetive se aproximou e apresentou a sua carteira da polícia. O porteiro

entregou-lhe um formulário e os dois foram preenchê-lo numa mesa. O detetive escreveu seu nome e seu cargo, perguntando então:

- Como é mesmo o nome do camarada?

- Roschmann, - disse Miller. - Eduard Roschmann.

O detetive escreveu o nome e entregou o formulário a um dos funcionários.

- Leva cerca de dez minutos, - disse o detetive.

Passaram para uma sala maior, onde havia filas de cadeiras e de mesas. Um quarto de hora depois, outro funcionário apareceu com uma pasta e colocou-a em cima da mesa.

Tinha cerca de três centímetros de altura e apenas o nome gravado na capa: "Roschmann, Eduard".

Volkmar Schiller levantou-se e disse:

- Se não se incomoda, vou seguindo. Não se incomode com a condução, que eu dou um jeito. Não posso ficar tanto tempo ausente depois de minhas férias. Se precisar de alguma cópia fotostática, é só pedir ali ao funcionário.

Apontou para um homem sentado num estrado do outro lado da sala de leitura e cuja função era evidentemente fiscalizar os consulentes para que ninguém tentasse retirar folhas das pastas. Miller levantou-se e apertou-lhe a mão.

- Muito obrigado. - De nada.

Sem tomar conhecimento de mais três ou quatro pessoas sentadas a outras mesas, Miller pôs a cabeça entre as mãos e começou a examinar o dossiê das SS sobre Eduard Roschmann.

Estava tudo ali, o número de matrícula no Partido Nazista, o número nas SS, os requerimentos de matrícula nos dois casos, preenchidos e assinados pelo próprio, resultado do exame médico, um parecer sobre ele depois de seu período de treinamento, currículo da vida escrito do próprio punho, papéis de transferência, nomeação de oficial, certificados de promoção, tudo em dia até abril de 1945. Havia também duas fotografias para os registros das SS, uma de frente e outra de perfil. Mostravam um homem de 1 m 82, com os cabelos cortados bem rente e com uma risca do lado esquerdo, que olhava para a objetiva com uma expressão sombria, um nariz pontudo e uma boca de lábios muito finos. Miller começou a ler...

Eduard Roschmann nascera no dia 25 de agosto de 1908 na cidade de Gratz, na Áustria, cidadão austríaco e filho de um homem muito respeitável e honesto que trabalhava numa fábrica de cerveja. Fizera o jardim de infância, o primário e o secundário em Gratz. Matriculara-se na universidade para fazer o curso de Direito, mas fora reprovado. Em 1931, aos vinte e três anos de idade, começara a trabalhar na mesma fábrica de cerveja do pai, e em 1937 fora transferido para o departamento administrativo. Nesse mesmo ano, ingressara no Partido Nazista e nas SS da Áustria, organizações que eram proibidas nessa ocasião pelo governo neutro da Áustria. Um ano depois, Hitler anexou a Áustria e recompensou os nazistas austríacos, dando-lhes promoções rápidas.

Em 1939, no começo da guerra, apresentou-se como voluntário para as Waffen-SS, foi mandado para a Alemanha, recebeu treinamento no inverno de 1939 e, na primavera de 1940, serviu numa unidade das Waffen-SS que participou da vitória sobre a França. Em dezembro de 1940, foi transferido da França para Berlim -  Alguém tinha escrito à margem a palavra "Covardia?" - e em janeiro de 1941 foi transferido para o SD, Seção 3 do ReiSH.

Em julho de 1941, instalou o primeiro posto do SD em Riga e no mês seguinte passou a ser comandante do gueto de Riga. Voltou à Alemanha por mar em outubro de 1944 e, depois de entregar o resto dos judeus de Ríga ao SD de Dantzig, voltou a Berlim para apresentar-se. Voltou à sua mesa na sede das SS em Berlim e ficou ali à espera de nova designação.

O último documento das SS jamais fora completado, talvez porque o meticuloso funcionário da sede das SS em Berlim resolvera tomar outro rumo apressadamente em maio de 1945.

Havia outra folha, evidentemente acrescentada por um americano depois da guerra. Nela estavam escritas a máquina as seguintes palavras:

"As autoridades britânicas de ocupação fizeram indagações sobre este dossiê em dezembro de 1947".

Abaixo havia a assinatura de algum escriturário militar americano já esquecido e a data de 5 de maio de 1948.

Miller tirou da pasta os dados biográficos, as duas fotografias e a última folha. Aproximou-se então do funcionário do outro lado da sala.

- Poderia ter fotocópias destes documentos? - Decerto.

O homem pegou a pasta e colocou-a em cima da mesa para esperar a volta das três folhas depois de copiadas. Outro homem entregou também uma pasta e dois documentos para serem copiados. O funcionário pegou também esses documentos e colocou tudo numa bandeja às suas costas, de onde as folhas foram levadas por mãos invisíveis.

- Tenham a bondade de esperar. Deve durar cerca de dez minutos, - disse o funcionário a Miller e ao outro homem.

Os dois voltaram para suas mesas e ficaram esperando. Miller teve vontade de fumar um cigarro, o que, porém, não era permitido. O outro homem, grisalho e bem vestido com um capote cinza escuro de inverno, sentou-se com as mãos cruzadas no colo.

Dez minutos depois, houve um barulho às costas do funcionário e dois envelopes deslizaram por uma abertura. O homem pegou os dois envelopes. Tanto Miller quanto o homem de capote cinza se levantaram para receber o que haviam pedido. O funcionário olhou rapidamente para dentro de um dos envelopes.

- O material sobre Eduard Roschmann? - perguntou ele. - É para mim, - disse Miller, estendendo a mão.

- Isto deve ser para o senhor - disse o funcionário para o outro homem, que estava olhando de lado para Miller. O homem pegou o seu envelope e os dois caminharam lado a lado para a porta.

Do lado de fora, Miller desceu os degraus de entrada e embarcou no Jaguar. Afastou-se do meio-fio e tomou o caminho do centro da cidade. Uma hora depois, telefonou para Sigi.

- Estarei em casa para passar o Natal, - disse a ela.

Duas horas depois, estava a caminho para sair de Berlim Ocidental. Quando o seu carro se aproximava da primeira barreira em Drei Linden, o homem de capote cinza estava sentado no seu elegante apartamento da Savigny Platz, discando o telefone para um número na Alemanha Ocidental. Apresentou-se brevemente ao homem que atendeu.

- Estive no Centro de Documentação hoje, fazendo as pesquisas normais que sabe que eu faço. Havia outro homem lá. Estava consultando o dossiê de Eduard Roschmann. Depois, pediu fotocópias de três folhas. Em vista da mensagem transmitida recentemente, achei bom informá-lo disso.

Houve uma porção de perguntas do outro lado do fio.

- Não, não pude saber o nome dele. Saiu depois num carro esporte preto com placa de Hamburgo.

Falou lentamente. enquanto o outro homem tomava nota.

- Sim. foi melhor. Nunca se sabe, com esses bisbilhoteiros... Sim, muito obrigado, muita gentileza sua... Está bem, deixarei com você... Feliz Natal. KoPnerad.

 

O dia de Natal foi na quarta-feira daquela semana e só depois do período de Natal foi que o homem na Alemanha Ocidental que recebera a notícia a respeito de Miller de Berlim transmitiu-a ao seu superior máximo.

O homem que recebeu o telefonema agradeceu ao informante, desligou o telefone do escritório, recostou-se na sua confortável cadeira de couro estofado e olhou pela janela para os tetos cobertos de neve da Cidade Velha.

- Verdammt! - murmurou ele. - Por que logo agora? Por quê?

Para todos os habitantes da cidade que o conheciam, ele era um advogado competente e próspero. Para cerca de vinte dos seus principais auxiliares espalhados pela Alemanha Ocidental e pela parte ocidental de Berlim, era o principal diretor da Odessa dentro da Alemanha. O seu telefone não constava da lista e o seu nome de código era Werwolf, o Lobisomem.

Ao contrário da figura monstruosa da mitologia de Hollywood e dos filmes de horror ingleses ou americanos, o lobisomem alemão não é um homem estranho a quem os cabelos crescem nas costas das mãos nas noites de lua cheia. Na velha mitologia germânica, o lobisomem é uma figura patriótica que permanece na pátria quando os heróis guerreiros teutônicos são forçados a partir para o exílio pelo invasor estrangeiro e que chefia a resistência ao invasor da sombra das grandes florestas, atacando à noite e desaparecendo, para só deixar na neve um rastro de lobo.

Ao fim da guerra, um grupo de oficiais das SS, convencidos de que a destruição dos invasores aliados era apenas uma questão de meses, treinaram e deram instruções a grupos de adolescentes ultrafanáticos para sabotar os ocupantes aliados. Esses grupos se formaram na Baviera, sendo então desbaratados pelos americanos. Foram esses os Lobisomens originais. Felizmente para eles, nunca chegaram a pôr seu treinamento em prática, porque, depois de descobrirem Dachau, os soldados americanos estavam mesmo ansiosos para que alguém tentasse alguma coisa.

Quando a Odessa começou, em fins da década de 1940, a reinfiltrar-se na Alemanha Ocidental, o primeiro chefe da organização foi um dos homens que tinham treinado os lobisomens adolescentes de 1945. Assumiu o título. Tinha a vantagem de ser anônimo, simbólico e suficientemente melodramático para satisfazer a eterna ânsia alemã pelo espetáculo. Mas nada havia de teatral com a dureza com que a Odessa tratava quem se lhe atravessava no caminho.

O Lobisomem de fins de 1963 era o terceiro que detinha o título e a posição. Fanático e astuto, em contato constante com seus superiores na Argentina, o homem cuidava dos interesses de todos os antigos elementos das SS dentro da Alemanha Ocidental, especialmente os que tinham alta patente ou os que tinham alta prioridade na lista de homens procurados.

Olhou pela janela de seu escritório e recordou a imagem do General Gluecks, das SS, diante dele no quarto de um hotel em Madri trinta e cinco dias antes. Nessa ocasião, o general lhe advertira que era de vital importância manter a qualquer preço o anonimato e a segurança do proprietário da fábrica de rádios que, sob o nome de código de Vulkan, preparava os sistemas de orientação para os foguetes egípcios. Era o único na Alemanha que também sabia que, numa fase anterior de sua vida, Vulkan fora mais conhecido pelo seu verdadeiro nome de Eduard Roschmann.

Olhou para o bloco onde havia escrito o número do carro de Miller e apertou um botão de cigarra em cima de sua mesa. A voz de sua secretária fez-se ouvir da sala ao lado.

- Hilda, como era o nome do investigador particular que nós empregamos no mês passado naquele caso de divórcio?

- Um momento... - Houve um barulho de papéis enquanto ela consultava o fichário. - Era Memmers, Heinz Memmers.

- Quer-me dar o telefone dele? Não, não é preciso ligar. Basta dar-me o número.

Anotou o telefone debaixo do número do carro de Miller e então tirou o dedo da chave do interfone.

Levantou-se, atravessou a sala e foi até um cofre embutido num bloco de concreto que fazia parte da parede do escritório. Tirou do cofre um livro grosso e pesado e levou-o para sua mesa. Folheando as páginas, encontrou o que queria. Só havia dois Memmers relacionados, um chamado Heinrich e o outro, Walter.

Correu o dedo pela página relativa a Heinrich, nome comumente abreviado para Heinz. Notou a data do nascimento, calculou a idade do homem em fins de 1963 e recordou a cara do investigador particular. As idades combinavam. Marcou mais dois números assinalados ao lado do nome de Heinz Memmers, pegou o telefone e disse a Hilda que queria uma linha para fora.

Discou então o número que ela lhe tinha dado. O telefone foi atendido do outro lado por uma voz de mulher.

- Investigações Particulares Memmers.

- Quero falar pessoalmente com Herr Memmers.

- Quem é que quer falar com ele?

- Ligue para ele. Depressa!

Houve uma pausa. O tom de voz surtiu efeito. - Sim, senhor -  disse ela.

Um minuto depois, uma voz grossa se fez ouvir ao telefone. - Memmers.

- É Herr Heinz Memmers quem está falando? - É, sim. Quem fala?

- Não interessa saber meu nome. Não é importante no momento. Só lhe quero fazer uma pergunta: o número 245.718 significa alguma coisa para o senhor?

Houve um silêncio de morte ao telefone, quebrado apenas por um suspiro de Memmers ao conscientizar o fato de que lhe haviam acabado de citar o seu número nas SS. O livro que estava aberto em cima da mesa do Lobisomem era uma relação completa de todos os antigos membros das SS. A voz de Memmers voltou, carregada de suspeita.

- Deve significar alguma coisa?

- Escute, significaria se eu lhe dissesse que meu número correspondente tinha apenas cinco algarismos... Kamerad?

A transformação foi elétrica. Cinco algarismos correspondiam a um oficial de alta patente.

- Sim, senhor - exclamou Memmers do outro lado da linha. - Muito bem, - disse o Lobisomem. - Preciso de um pequeno serviço seu. Um abelhudo está fazendo perguntas sobre um dos Kameraden. Preciso de saber quem é.

- Zu Befehl! (Às suas ordens! ) - disse o outro pelo telefone. - Excelente! Mas entre nós, Kamerad bastará. Afinal de contas, somos todos camaradas de armas.

A voz de Memmers voltou, mostrando a sua evidente satisfação. - Sím, Kamerad!

- Gostaria de que fosse a Hamburgo. Só sei desse homem o número de seu carro, com placa de Hamburgo. O número é o seguinte. O Lobisomem leu lentamente o número pelo telefone.

- Tomou nota?

- Certo, Kamerad.

- Como lhe disse, vá a Hamburgo. Quero saber nome e endereço, profissão, família e dependentes, posição social... a ficha completa em suma. Quanto tempo isso deve demorar?

- Mais ou menos quarenta e oito horas, - disse Memmers. - Muito bem. Vou-lhe telefonar daqui a quarenta e oito horas. Mais uma coisa. Não faça contato de modo algum com a pessoa. Se possível, tudo deve ser feito de uma maneira que não o leve a desconfiar de que está havendo indagações sobre a sua pessoa. Entendeu bem?

- Perfeitamente. Isso não é problema.

- Quando tiver acabado, faça a sua conta das despesas e me diga em quanto importa quando falar comigo pelo telefone. Mandarlhe-ei a importância pelo correio.

Memmers protestou.

- Nada disso. Não haverá conta, Kamerad. Afinal de contas, o caso envolve o velho grupo.

- Muito bem então. Vou-lhe telefonar daqui a dois dias. O Lobisomem desligou o telefone.

Miller partiu de Hamburgo na mesma tarde, seguindo pela mesma autobahn em que viajara duas semanas antes, passando por Bremen, Onasbrück e Munster, rumo a Colônia e à Renânia. Dessa vez, o seu destino era Bonn, a pequena e um tanto enfadonha cidade à beira do rio que Konrad Adenauer escolhera como capital da República Federal porque era a terra dele.

Logo ao sul de Bremen, o seu Jaguar passou pelo Opel de Memmers que ia para Hamburgo, ao norte. Indiferentes um ao outro, os dois homens passaram velozmente, empenhados nas suas missões diferentes.

Já estava escuro quando Miller entrou na longa rua principal de Bonn e, vendo o quepe branco de um guarda do tráfego, parou ao lado dele.

- Pode dizer-me o caminho para a embaixada inglesa? - perguntou ele.

- Vai-se fechar daqui a uma hora, - disse o guarda, um perfeito renano.

- Por isso mesmo, tenho de ir mais depressa, - disse Miller. - Onde é que fica?

O guarda apontou para o sul.

- Vá em linha reta, seguindo os trilhos do bonde. A tua passa a ter o nome de Friedrich Ebert Alee. Mas siga os trilhos do bonde. Quando estiver para sair de Bonn e entrar em Bad Godesberg,

verá a embaixada à sua esquerda. Está toda iluminada e a bandeira inglesa fica hasteada em frente.

Miller agradeceu e seguiu. A embaixada inglesa ficava onde o guarda tinha dito, entre um local onde estavam construindo do lado de Bonn e um campo de futebol do outro, tudo um mar de lama den tro do nevoeiro de dezembro que subia do rio nos fundos da embaixada.

Era um edifício longo, baixo e cinzento de concreto. Miller saiu da estrada e estacionou o carro num dos lugares reservados para visitantes.

Transpôs as portas de vidro com armação de madeira da entrada e chegou a um pequeno vestíbulo, com uma mesa à esquerda, atrás da qual estava sentada uma recepcionista de meia-idade. Atrás dela, havia uma pequena sala na qual se viam dois homens de terno azul, que traziam a marca inconfundível de ex-sargentos do exército.

- Gostaria de falar com o adido de imprensa, - disse Miller, falando no seu inglês penoso dos tempos da escola.

A recepcionista pareceu preocupada.

- Não sei se ele ainda está. Hoje é sexta-feira, sabe?

- Tenha a bondade de verificar, - disse Miller, apresentando o seu cartão de jornalista.

A recepcionista olhou para o cartão e discou um número no telefone interno. Miller estava com sorte. O adido de imprensa se estava preparando para sair. Com toda a certeza, pedira alguns minutos para tirar o chapéu e o sobretudo. Miller foi levado para uma pequena sala de espera adornada com várias gravuras de Rowland Hilder que mostravam as montanhas de Cotswolds no outono. Havia numa mesa vários números atrasados do TImes e diversas brochuras que mostravam a marcha da indústria britânica. Segundos depois, porém, foi chamado por um dos ex-sargentos e levado para um pequeno escritório no andar superior.

Teve o prazer de ver que o adido de imprensa tinha pouco mais de trinta anos e estava ansioso por servir.

- Estou às suas ordens, - disse ele.

Miller resolveu entrar diretamente no assunto.

- Estou fazendo investigações para escrever uma reportagem para uma revista. É a respeito de um ex-capitão das SS, um dos piores, que ainda está sendo procurado pelas nossas autoridades. Creio que ele esteve na lista de pessoas procuradas pelas autoridades inglesas quando esta parte da Alemanha estava sob administração inglesa. Pode dizer-me como eu posso verificar se os ingleses chegaram a capturá-lo e, neste caso, que foi que aconteceu a ele?

O jovem diplomata se mostrou perplexo.

- Palavra que não sei. Entregamos todos os nossos arquivos e registros ao governo alemão em 1949. Os alemães prosseguiram do ponto onde nossos homens pararam. Creio que tudo deve estar com eles.

Miller procurou evitar ter que dizer que as autoridades alemãs lhe negavam toda e qualquer ajuda.

- É verdade, - disse ele. - Entretanto, todas as minhas pesquisas até agora indicam que ele nunca foi submetido a julgamento na República Federal desde 1949.

Isso indica também que ele não foi capturado desde 1949. Entretanto, o Centro Americano de Documentação em Berlim Ocidental revela que uma cópia do dossiê do homem foi solicitada pelos ingleses em 1947. Deve ter havido uma razão para isso, não lhe parece?

- De fato, é o que parece, - disse o adido, que tinha evidentemente absorvido a notícia de que Miller procurara a cooperação das autoridades americanas em Berlim Ocidental e franziu a testa pensativamente.

- Quem, do lado inglês, devia ser a autoridade encarregada da investigação durante o período de ocupação... quer dizer, de administração?

- Bem, devia ter sido o chefe de polícia militar do exército naquela época. A não ser no caso de Nuremberg, que foram os julgamentos dos principais crimes de guerra, os aliados faziam as suas investigações separadamente, embora houvesse naturalmente cooperação entre todos, salvo no caso dos russos. Essas investigações levaram a julgamentos zonais de crimes de guerra. Está compreendendo?

- Estou.

- As investigações eram feitas pela polícia militar, sendo os julgamentos preparados pela seção jurídica. Mas, em todos os casos, os arquivos foram entregues em 1949. Compreende?

- Compreendo, mas não acha que os ingleses devem ter guardado cópia de tudo? - perguntou Miller.

- Com toda a certeza. Mas essas cópias devem estar guardadas nos arquivos do exército.

- Seria possível vê-los'?

O adido pareceu atônito.

- Duvido muito. É possível que os pesquisadores intelectuais requeiram uma consulta desse material, mas isso levaria muito tempo. E não creio que dêem permissão a um repórter... desculpe, não tive a intenção de ofender, compreende?

- Compreendo, -disse Miller.

- Acontece - disse o adido ansiosamente, - que o senhor não é oficial, entende? E não queremos dar motivo de queixa às autoridades alemãs, não é mesmo?

- Claro que não. O adido se levantou.

- Não me parece que haja muito que a embaixada possa fazer para ajudá-lo.

- OK. Ainda uma coisa. Havia alguém aqui naquele tempo que ainda esteja por aqui?

- Na embaixada? Claro que não. Foram todos mudados muitas vezes. - Levou Miller até à porta.

- Espere um pouco. Há Cadbury. Acho que ele já estava aqui naquele tempo.

Está aqui há séculos.

- Cadbury?

- Sim, Anthony Cadbury. Correspondente estrangeiro. É uma espécie de decano da imprensa inglesa aqui. Casou-se com uma alemã. Acho que ele estava aqui depois da guerra, logo depois. Pode perguntar a ele.

- Vou tentar, - disse Miller. - Onde poderei encontrá-lo? - Bem, hoje é sexta-feira, - disse o adido. - Ele deve estar no seu ponto predileto, o bar do Cercle Français. Sabe onde é? - Não. É a primeira vez que venho a Bonn.

- Bem, é um restaurante de franceses. A comida é excelente, sabe? É muito afreguesado. Fica em Bad Godesberg. Mais adiante, nesta estrada.

Miller encontrou o restaurante a cem metros da margem do Reno numa estrada chamada Am Schwimmbad. O homem do bar conhecia Cadbury, mas ainda não o vira naquele dia. Disse a Miller que se o decano dos correspondentes estrangeiros ingleses em Bonn não aparecesse naquela noite, quase com certeza estaria ali na hora dos aperitivos antes do almoço no dia seguinte.

Miller registrou-se no Hotel Dreesen na mesma rua, um grande prédio do princípio do século que tinha sido o hotel favorito de Adolf Hitler na Alemanha, escolhido por ele para o seu primeiro encontro com Neville Chamberlain, da Inglaterra, em 1938. Miller jantou no Cercle Français e ficou por ali fazendo hora, na esperança de que Cadbury aparecesse. Mas às doze horas não havia ainda qualquer sinal do inglês e ele foi dormir no hotel.

Cadbury chegou ao bar do Cercle Français poucos minutos antes do meio-dia no dia seguinte, falou com alguns conhecidos e se sentou no seu banco favorito a um canto do bar. Depois que o viu tomar o primeiro gole do seu Richard, Miller se levantou de sua mesa perto da janela e se aproximou dele.

- Sr. Cadbury?

O inglês voltou-se e olhou-o. Tinha cabelos brancos bem penteados e um rosto que tinha sido evidentemente muito belo. A pele

ainda era vigorosa e mostrava um fino traçado de pequenas veias na superfície de cada uma das faces. Os olhos eram de um azul bem vivo sob bastas sobrancelhas grisalhas. Examinou Miller cautelosamente.

- Sim.

- Meu nome é Miller, Peter Miller. Sou um repórter de Hamburgo. Poderia falar-lhe um instante?

Anthony Cadbury apontou o banco ao lado dele.

- Acho melhor conversarmos em alemão, não acha? - perguntou ele, passando a falar em alemão.

Miller ficou muito satisfeito de poder falar em sua língua e essa satisfação devia ter-se-lhe estampado no rosto. Cadbury sorriu. - Em que posso servi-lo?

Miller olhou para os olhos astutos do outro e resolveu confiar plenamente nele. Começou do princípio, contando tudo desde o momento da morte de Tauber. O inglês era um homem que sabia escutar e não o interrompeu uma só vez. Quando Miller terminou, fez um gesto para o homem do bar pedindo-lhe que repetisse o seu Richard e servisse outra cerveja para Miller.

Ficou impressionado, não foi?

Miller fez um sinal de assentimento e pegou a garrafa para encher o copo com a cerveja espumante.

- Viva, - disse Cadbury. - Bem, você está às voltas com um problema e tanto e eu não posso deixar de dizer que admiro a sua coragem.

- Coragem?

- Bem, isso não é propriamente o melhor tipo de reportagem para despertar o entusiasmo de seus patrícios no estado de espírito em que atualmente se encontram e isso você mesmo vai descobrir no seu devido tempo.

- Já descobri - disse Miller.

- Era o que eu pensava, - murmurou o inglês e sorriu subitamente. - Vamos almoçar juntos? Minha mulher está passando o dia fora.

Durante o almoço, Miller perguntou a Cadbury se ele estava na Alemanha ao fim da guerra.

- Estava, sim. Era correspondente de guerra. Muito mais moço, é claro. Tinha mais ou menos a idade que você tem hoje. Vim com o exército de Montgomery. Não para Bonn, é claro, pois naquele tempo ninguém falava em Bonn. O quartel-general era em Luneberg. Depois, fui ficando. Cobri o fim da guerra, a assinatura da rendição e o jornal me pediu que continuasse aqui.

- Cobriu também os julgamentos zonais dos crimes de guerra? Cadbury levou à boca um pedaço de filé e fez um sinal de assentimento enquanto mastigava.

- Sim, todos os que se realizaram na zona inglesa. Chamamos um especialista para cobrir os julgamentos de Nuremberg. Isso foi na zona americana. Os criminosos de maior cartaz em nossa zona foram Josef Kramer e Irma Grese. Já ouviu falar neles?

- Não, nunca.

- Bem, esses dois foram chamados as Feras de Belsen. Aliás, eu é que lhes dei esses nomes. Pegaram. Sabe de alguma coisa a respeito de Belsen?

- Muito vagamente. Minha geração nunca esteve muito a par dessas coisas. Nunca houve quem nos quisesse dizer.

Cadbury lhe lançou um olhar astuto por entre as cerradas sobrancelhas.

- Mas agora quer saber?

- Temos de saber mais cedo ou mais tarde. Posso-lhe fazer uma pergunta? Odeia os alemães?

Cadbury mastigou durante alguns minutos, pensando seriamente na pergunta.

- Logo depois da descoberta do campo de Belsen, um grupo de jornalistas credenciados junto ao exército inglês foi até lá fazer uma visita. Nunca senti maior repugnância em toda a minha vida e olhe que numa guerra a gente vê algumas coisas terríveis. Mas nada havia que se comparasse a Belsen. Acho que naquele momento odiei todos os alemães.

- E agora?

- Não, agora não os odeio mais. A verdade é que me casei com uma moça alemã em 1948. Ainda estou vivendo aqui. Já estaria muito longe se sentisse o mesmo que senti em 1945. Teria voltado para a Inglaterra há muito tempo.

- Qual foi a causa da mudança?

- O tempo, a passagem do tempo e a compreensão de que nem todos os alemães eram como Josef Kramer. Ou como esse Roschmann, não é? Mas note bem que ainda não me posso livrar de uma desconfiança visceral em relação a todas as pessoas de minha geração em sua terra.

- E as de minha geração? - perguntou Miller, rodando o copo de vinho e olhando para a refração da luz através do líquido vermelho.

- Vocês são melhores, - disse Cadbury. - Para dizer a verdade, não podem deixar de ser melhores:

- Está disposto a me ajudar nas minhas investigações sobre Roschmann? Não encontro mais ninguém que esteja.

- Se eu puder, - disse Cadbury. - Que é que quer saber? - Lembra-se de ter sido ele submetido a julgamento na zona inglesa?

Cadbury sacudiu a cabeça.

- Não. De qualquer maneira, você disse que ele era austríaco de nascimento. A Áustria estava também naquela época sob a acusação das quatro potências. Mas tenho certeza de que não houve julgamento contra Roschmann na zona inglesa da Alemanha. Do contrário, eu me lembraria do nome.

- Mas, neste caso, por que as autoridades inglesas solicitaram aos americanos em Berlim uma cópia do dossiê dele?

Cadbury pensou por um momento.

- Roschmann deve ter atraído de uma maneira ou de outra a atenção dos ingleses. Naquele tempo, ninguém sabia de nada a respeito de Riga. Os russos estavam no auge da sua arrogância no fim da década de 40. Não nos davam informação de espécie alguma sobre o que tinha acontecido na zona oriental. Entretanto, foi lá que ocorreram os piores crimes de homicídio em massa. Estávamos assim na posição anômala de que, conquanto cerca de oitenta por cento dos crimes contra a humanidade tivessem sido cometidos a leste do que é agora a Cortina de Ferro, os responsáveis por eles estavam nas três zonas ocidentais e nós não podíamos agir contra eles porque de nada sabíamos.

Foi assim que centenas de culpados escaparam de nossas mãos porque desconhecíamos o que eles tinham feito mil quilômetros a leste. Mas, se foi feita alguma investigação sobre Roschmann em 1947, ele deve ter chamado a nossa atenção de alguma maneira.

- É o que eu penso, - disse Miller. - Onde podemos começar a procurar entre os registros ingleses?

- Podemos começar pelos meus arquivos. Estão em minha casa. Vamos até lá que não é longe daqui.

Felizmente, Cadbury era um homem metódico e tinha guardado todos os seus despachos desde o fim da guerra. O seu escritório tinha duas das paredes revestidas de arquivos de aço. Havia ainda dois fichários cinzentos num canto.

- Trabalho como correspondente num escritório na cidade, - disse ele, entrando no escritório. - Isto aqui é o meu arquivo particular e funciona por um sistema que só eu compreendo. Vou lhe mostrar.

Apontou para os arquivos.

- Um destes tem os recortes sobre pessoas, catalogados pelos nomes em ordem alfabética. O outro está fichado por assuntos, também em ordem alfabética. Vamos começar pelo primeiro e procurar alguma coisa sobre o nome de Roschmann.

A procura foi breve. Não havia ficha alguma com o nome de Roschmann.

- Muito bem, - disse Cadbury. - Agora, vamos tentar por assuntos. Há quatro que nos podem ajudar. Há um com o título de Nazistas e outro com o de SS. Depois, há uma seção muito grande

intitulada Justiça, com subseções, e recortes sobre os julgamentos realizados. Mas a maioria  se refere a julgamentos criminais efetuados na Alemanha Ocidental depois de 1949. O último título que pode dar resultado é o de Crimes de Guerra. Vamos começar a correr tudo.

Cadbury lia mais depressa do que Miller, mas ficaram ambos até à noite lendo as centenas de recortes guardados nos quatro arquivos. Por fim, Cadbury se levantou dando um suspiro, fechou as pastas referentes aos Crimes de Guerra e guardou-as no arquivo próprio.

- Acho que tenho de sair para jantar, - disse ele. - Só falta agora procurar ali.

Apontou algumas pastas que enchiam prateleiras estendidas ao longo de duas paredes.

Miller fechou a pasta que estava examinando e perguntou: - Que pastas são essas?

São dezenove anos de despachos que mandei para o jornal, - disse Cadbury. - São as pastas que estão na prateleira de cima. A segunda contém dezenove anos de recortes do meu jornal de notícias e artigos sobre a Alemanha e a Áustria.

É evidente que muita coisa da primeira prateleira torna a aparecer na segunda. São os meus trabalhos que foram publicados. Mas há trabalhos na segunda prateleira que não são de minha autoria. Afinal de contas, outros colaboradores conseguiam também publicar coisas no jornal. E muito material que eu mandei não foi publicado. Há cerca de seis pastas de recortes por ano. É um bocado de papel que temos de examinar. Felizmente, amanhã é domingo e poderemos passar o dia inteiro nisso, se você quiser.

- É muita bondade sua estar tendo todo esse trabalho, - disse Miller.

Cadbury deu de ombros.

- Não tenho mais nada para fazer neste fim de semana. De qualquer maneira, os fins-de-semana em Bonn por esta época não são muito alegres. Minha mulher só deve voltar amanhã à noite. Vamos marcar amanhã às onze e meia no Cercle Français para tomar um drinque.

Foi no meio da tarde do domingo que encontraram o que procuravam. Anthony Cadbury estava chegando ao fim da pasta que continha os seus despachos de novembro a dezembro de 1947. Gritou de repente "Eureka!", abriu o gancho de mola da pasta e tirou uma folha de papel amarelado datilografada e marcada com a data de " 23 de dezembro de 1947".

- Não é de admirar que o jornal não o tivesse publicado, - disse ele. - Não havia muito interesse em saber de um homem das SS capturado às vésperas do Natal. Além disso, com a falta de

papel que havia naquela época, até a edição de Natal deve ter sido bem pequena.

Colocou o papel em cima da mesa e acendeu o abajur. Miller se inclinou para ler.

 

"Governo Militar Inglês, Hanover, 23 de dezembro-

Um ex-capitão das negregadas, SS foi preso pelas autoridades militares inglesas em Gratz, na Áustria, e está sendo detido para outras investigações, segundo declarou hoje um porta-voz do governo Militar Inglês.

O homem, Eduard Roschmann, foi reconhecido nas ruas da cidade austríaca. por um antigo prisioneiro de um campo de concentração de que Roschmann teria sido comandante na Letônia. Depois da identificação na casa onde o ex-prisioneiro o seguiu, Roschmann foi preso por elementos do Serviço de Segurança Local Inglês em Gratz.

Disse o porta-voz que foram pedidas informações sobre o campo de concentração de Riga, na Letônia, ao comando da Zona Soviética em Potsdam, ao mesmo tempo que se iniciou a procura de testemunhas. Enquanto isso, o homem capturado foi positivamente identificado como Eduard Roschmann pela sua ficha pessoal em poder das autoridades americanas no arquivo das SS em Berlim".

Miller leu o breve despacho quatro ou cinco vezes. - Epa! - exclamou ele. - É isso mesmo!

- Acho que isso merece um drinque, - disse Cadbury.

Quando tinha falado com Memmers na manhã de sexta-feira, o Lobisomem não havia pensado que quarenta e oito horas depois seria domingo. Apesar disso, tentou de sua casa no domingo um telefonema para o escritório de Memmers, no exato momento em que os dois homens faziam a sua descoberta em An Schwimmbad. Ninguém atendeu.

Mas Memmers estava no escritório na manhã seguinte às nove horas em ponto. O telefonema do Lobisomem foi feito às nove e meia.

- Foi muito bom ter telefonado, Kammerad - disse Memmers. - Cheguei de Hamburgo bem tarde ontem à noite.

- Já tem a informação'?

- Certamente. Quer tomar nota?

- Pode falar, - disse o Lobisomem.

No seu escritório, Memmers pigarreou e começou a ler as suas notas.

- O dono do carro é um repórter freelance chamado Peter Miller. Descrição: vinte e nove anos de idade, quase um metro e oitenta de altura, cabelos e olhos castanhos. Filho de uma mãe viúva

que mora em Osdorf, nos arredores de Hamburgo. Ele mora num apartamento em Steindamm, no centro de Hamburgo.

Memmers deu então o endereço e o número do telefone de Miller. - Vive em companhia de uma moça, uma dançarina que faz shows de striptease  chamada Sigrid Rahn. Trabalha principalmente para as revistas ilustradas e é evidente que ganha bem. Especializa-se em jornalismo de investigação. Como disse muito bem, Kamerad, trata-se de um abelhudo.

- Tem qualquer idéia de quem o encarregou das pesquisas que está realizando? - perguntou o Lobisomem.

- Não e isso é o mais curioso. Ninguém parece saber o que ele está fazendo no momento, nem para quem está trabalhando. Falei com a pequena que vive com ele dizendo que falava da redação de uma grande revista. Pelo telefone, é claro. Ela me disse que não sabia onde ele estava, mas que esperava um telefonema dele naquela tarde antes de sair para o trabalho.

- Mais alguma coisa?

- Só o carro. Chama muito a atenção. É um Jaguar preto, modelo inglês, com uma listra amarela dos lados. É um carro esporte de dois lugares, chamado XK 150. Verifiquei na garagem local. O Lobisomem digeriu isso e disse:

- Quero saber onde ele está agora.

- Em Hamburgo não está, - apressou-se em dizer Memmers. - Partiu de lá na sexta-feira mais ou menos na hora do almoço, pouco antes de minha chegada. Passou o Natal em Hamburgo. Antes disso, esteve em outro lugar.

- Sei onde foi, - disse o Lobisomem.

- Posso tentar saber o que é que ele está investigando, - disse Memmers.

- Não fiz muitas investigações nesse sentido porque o senhor me recomendou que não o deixasse saber que estava sendo objeto de uma investigação.

- Eu sei o que é que ele está fazendo. Está querendo denunciar um de nossos camaradas. Não pode descobrir onde ele está agora?

- Acho que posso, - disse Memmers. - Vou telefonar para a pequena hoje à tarde, dizendo que sou de uma grande revista e preciso entrar em contato urgentemente com Miller. Ela me pareceu pelo telefone uma pessoa muito simples.

- Faça isso então, - disse o Lobisomem. - Vou-lhe telefonar às quatro da tarde.

Cadbury estava no centro de Bonn na manhã de segunda-feira para fazer a cobertura de uma reunião ministerial. Telefonou para Miller no Hotel Dreesen às dez e meia.

- Foi muito bom encontrá-lo antes de sua partida, - disse ele ao alemão. - Tenho uma idéia. Espere-me no Cercle Français às quatro horas da tarde.

Pouco antes do almoço, Miller telefonou para Sigi e lhe disse que estava hospedado no Dreesen.

Quando se encontraram, Cadbury pediu chá.

- Tive uma idéia enquanto estava na reunião chata desta manhã, - disse ele a Miller. - Se Roschmann foi capturado e identificado como um criminoso procurado, o caso teria de ficar sob as vistas das autoridades inglesas em nossa zona da Alemanha naquela época. Todos os documentos eram copiados e permutados entre ingleses, franceses e americanos tanto na Alemanha quanto na Áustria.

Já ouviu falar num homem chamado Lord Russell de Liverpool? - Não. Nunca.

- Ele era o consultor jurídico do Governo Militar Inglês em todos os nossos julgamentos de crimes de guerra durante a ocupação. Posteriormente, escreveu um livro intitulado O Flagelo da Suástica. Pode imaginar muito bem de que era que tratava. Não fez muito sucesso na Alemanha, mas é terrivelmente exato. Fala minuciosamente das atrocidades. Vi-o funcionar como procurador nos julgamentos de Belsen.

- Ele é advogado? - perguntou Miller.

- Foi. E muito brilhante. Por isso é que foi escolhido. Vive agora aposentado em Wimbledon. Não sei se ele ainda se lembra de mim, mas posso dar-lhe uma carta de apresentação.

- Ele se lembraria de fatos passados há tanto tempo?

- É bem possível. Já não é moço, mas sempre teve fama de possuir uma memória prodigiosa, arrumada como um arquivo. Se o caso de Roschmann passou pelas mãos dele a fim de ser preparado para julgamento, ele deve lembrar-se de todos os detalhes. Tenho certeza disso.

Miller fez um sinal de assentimento e tomou um gole de chá. - Bem, eu poderia tomar o avião para Londres e falar com ele.

Cadbury meteu a mão no bolso e tirou um envelope.

- Já escrevi a carta, - disse ele, entregando a Miller a carta de apresentação e levantou-se. - Felicidades.

Memmers tinha a informação para o Lobisomem quando este lhe telefonou pouco depois das quatro da tarde.

- A pequena recebeu um telefonema dele, - disse Memmers. - Está em Bad Godesberg, hospedado no Hotel Dreesen.

O Lobisomem desligou o telefone e folheou um caderno de endereços. Acabou encontrando um nome, pegou de novo o telefone e ligou para um número na área de Bonn/Bad Godesberg.

Miller voltou para o hotel e telefonou para o aeroporto de Colônia e reservou passagem para Londres num vôo no dia seguinte, terça-feira, 31 de dezembro. Quando chegou ao balcão de recepção,

a moça que ali trabalhava sorriu para ele e apontou uma saleta envidraçada aberta para o Reno.

- Um senhor está ali à sua espera, Herr Miller.

Miller olhou para o grupo de cadeiras e mesinhas na saleta. Numa das cadeiras, esperava um homem de meia-idade num capote preto de inverno, chapéu de feltro preto e um guarda-chuva enrolado. Encaminhou-se para lá, estranhando que alguém soubesse da presença dele ali.

- Quer falar comigo? - perguntou Miller. O homem se levantou.

- Herr Miller? - Sim.

- Herr Peter Miller? - Sim.

O homem inclinou a cabeça na saudação breve e brusca dos alemães antiquados.

- Meu nome é Schmidt, Dr. Schmidt. - Muito bem. Que deseja?

O Dr. Schmidt olhou pelas janelas onde a massa negra do Reno corria sob a luz viva que banhava o terraço deserto.

- Soube que é um jornalista, independente e muito bom. - Acrescentou com um sorriso amplo. - Tem fama de ser muito completo e muito persistente.

Miller ficou em silêncio, esperando que ele entrasse no assunto. - Alguns amigos meus souberam que está atualmente empenhado numa investigação sobre fatos que aconteceram... vamos dizer, há muito tempo.

Miller pensou rapidamente, tentando saber quem eram os "amigos" e como poderiam ter sabido. Compreendeu então que andara fazendo perguntas sobre Roschmann por todo o país.

- Sim, estou fazendo investigações sobre um tal Eduard Roschmann, - disse ele. - E daí?

- Sim, sobre o Capitão Roschmann, - disse o homem, deixando de olhar para o rio e fitando bondosamente Miller. - Sabendo disso, achei que poderia dar-lhe uma ajuda. O Capitão Roschmann já morreu.

- Morreu? Disso eu não sabia.

O Dr. Schmidt sorriu satisfeito.

- De fato, não podia saber. Não havia motivo algum para isso. Mas é verdade e acontece simplesmente que está perdendo o seu tempo.

Miller pareceu desapontado e perguntou ao homem: - Pode-me dizer quando foi que ele morreu?

- Não conseguiu apurar as circunstâncias da morte dele? - perguntou o homem.

- Não. O último traço que pude encontrar dele foi em abril de 1945. Foi visto vivo nessa época.

- É verdade, - disse o Dr. Schmidt, parecendo muito feliz em poder dar a informação. - Mas ele foi morto pouco depois disso. Voltou para a Áustria, de onde era natural, e ali morreu em combate com os americanos em 1945. O corpo foi identificado por várias pessoas que o tinham conhecido em vida.

- Ele deve ter sido um homem notável, - disse Miller. - De fato era. Muitos entre nós assim pensávamos.

- O que eu quero dizer, - continuou Miller, como se a interrupção não tivesse ocorrido, - é que ele deve ter sido notável, pois do contrário não teria sido o primeiro homem depois de Jesus Cristo a ressuscitar dos mortos. Foi capturado vivo pelos ingleses a 20 de dezembro de 1947 em Gratz, na Áustria.

Os olhos do doutor refletiram a neve rebrilhante que se acumulava na balaustrada do outro lado das janelas.

- Miller, você está sendo leviano, muito leviano mesmo. Permita-me dar-lhe um conselho de um homem velho para um homem mais moço, muito mais moço. Desista dessas investigações.

- Acho que devia agradecer-lhe, não?

- Se tomar meu conselho, deve, sim, - disse o homem.

- Mais uma vez, não compreendeu o que eu quis dizer, - disse Miller. - Roschmann foi visto em Hamburgo em meados de outubro deste ano. Essa segunda presença de Roschmann não tinha sido confirmada. Mas agora foi. A sua conversa comigo acaba de confirmá-la.

- Torno a dizer que será uma leviandade sua não desistir dessas investigações.

Os olhos do homem continuavam frios, mas havia neles uma ponta de ansiedade. Tinha havido um tempo em que as pessoas não discutiam as ordens dele e ele ainda não se habituara de todo à mudança da situação.

Miller começou a se zangar num calor de raiva que lhe subia do pescoço ao rosto.

- Eu o acho nojento, Herr Doktor, - disse ele ao velho. - Acho nojenta também toda a sua quadrilha. A sua fachada é respeitável, mas a sua presença é uma sujeira lançada à face de minha terra.

No que me diz respeito, vou continuar a fazer perguntas até descobrir o homem.

Já ia saindo, mas o velho agarrou-o pelo braço. Encararam-se a alguns centímetros de distância.

- Você não é judeu, Miller. Você é ariano como nós. Que foi que nós lhe fizemos, pelo amor de Deus?

Miller desvencilhou o braço e disse:

- Se ainda não sabe, Herr Doktor, nunca vai compreender. - Ach, vocês da nova geração são todos assim. Por que nunca fazem o que se manda?

- Porque é assim que nós somos. Ou, quando nada, é assim que eu sou.

O velho olhou para ele, apertando os olhos.

- Você não é destituído de inteligência, Miller. Mas está procedendo como se fosse. Como se fosse uma dessas criaturas ridículas: constantemente governadas por aquilo a que chamam de consciência. Mas estou começando a duvidar disso. Até parece que você tem algum interesse pessoal em todo esse caso.

Miller virou-se para sair.

- Talvez tenha, - disse ele e se afastou do velho.

 

Miller encontrou sem dificuldade a casa numa tranqüila rua residencial do bairro londrino de Wimbledon. Foi o próprio Lord Russell quem lhe abriu a porta. Era um homem de quase setenta anos que usava um pulôver de lã e uma gravata borboleta. Miller apresentou-se.

- Estive em Bonn ontem, - disse ele ao par inglês, - e almocei com o Sr. Anthony Cadbury. Deu-me seu nome e uma carta de apresentação. Gostaria de conversar com o senhor.

Lord Russell olhou-o com perplexidade.

- Cadbury? Anthony Cadbury? Não creio que me lembre...

- Um correspondente inglês, - disse Miller. - Estava na Alemanha logo depois da guerra. Cobriu os julgamentos dos crimes de guerra em que o senhor funcionou como procurador. Os acusados foram Josef Kramer e os outros de Belsen. Com certeza, se lembra desses julgamentos...

- Claro que me lembro. Não havia de me lembrar? Sim, Cadbury, um camarada de jornal. Lembro-me dele agora. Há anos que não o vejo. Bem, não fique parado aí fora. Está fazendo frio e eu já não sou moço como era. Entre, entre.

Sem esperar mais, voltou-se e atravessou o vestíbulo. Miller seguiu-o, fechando a porta ao vento frio do primeiro dia de 1964. Pendurou o sobretudo num cabide do vestíbulo a convite de Lord Russell e seguiu-o para os fundos da casa, onde um fogo convidativo crepitava na lareira da sala-de-estar.

Miller fez entrega da carta de Cadbury. Lord Russell leu-a rapidamente e arqueou as sobrancelhas.

- Hum... Ajuda para descobrir um nazista? É isso que está querendo? - disse ele, olhando para Miller. Antes que o alemão pudesse responder, exclamou: - Bem, sente-se. Não adianta nada ficar de pé aí.

Sentaram-se nas duas poltronas cobertas de um estampado florido e que ficavam uma de cada lado da lareira.

- Como é que um jovem repórter alemão está empenhado na tarefa de caçar nazistas? - perguntou Lord Russell sem preâmbulos. Miller achou sua maneira direta meio desconcertante.

- É melhor explicar tudo desde o princípio, - disse Miller. - É melhor mesmo, - disse o velho, inclinando-se para bater o cachimbo na grade da lareira. Enquanto Miller falava, encheu o cachimbo, acendeu-o e estava tirando baforadas placidamente quando o alemão chegou ao fim.

- Espero que meu inglês seja suficientemente bom, - disse Miller por fim ao ver que nenhuma reação parecia vir do procurador aposentado.

Lord Russell pareceu despertar de algum devaneio particular. - Sem dúvida, sem dúvida. Melhor do que meu alemão depois de todos esses anos. A gente vai indo e esquece...

- O caso Roschmann... - começou Miller.

- Interessante, muito interessante. E você quer encontrar o homem? Por quê?

A última pergunta foi feita a Miller com um olhar direto e franco do velho.

- Bem, tenho minhas razões. Julgo que o homem deve ser encontrado e submetido a julgamento.

- Todos nós achamos isso. A questão é saber se isso será possível.

- Se eu o encontrar, ele será julgado. Dou-lhe minha palavra. O inglês não pareceu impressionado com a veemência de Miller. Pequenos anéis de fumaça se desprenderam de seu cachimbo, elevando-se para o teto numa série perfeita. O silêncio se prolongou. - O que eu quero saber é se se lembra dele.

Lord Russell pareceu levar um susto.

- Se eu me lembro dele? Lembro-me, sim. Do nome, pelo menos. Do rosto, não. A memória vai desaparecendo com os anos, sabe? E havia tanta gente naquele tempo...

- A polícia militar inglesa capturou-o em Gratz no dia 20 de dezembro de 1947, - disse Miller.

Tirou do bolso as duas fotocópias da fotografia de Roschmann e passou-as às mãos de Lord Russell. Este pegou as duas fotografias, uma de frente e outra de perfil, levantou-se e começou a passear pela sala, pensando.

- Sim, - disse ele afinal. - Já sei quem é. Posso vê-lo muito bem. A cópia do dossiê foi mandada da Segurança Local de Gratz para mim em Hanover alguns dias depois. Foi onde Cadbury colheu

a notícia para o seu despacho. De nosso escritório em Hanover. Virou-se para Miller.

- Diz que esse Tauber o viu a 24 de abril de 1945 viajando num carro com outros de Magdeburgo para o oeste?

- É o que ele diz no seu diário.

- Humm... Dois anos e meio antes de ser capturado por nós. E sabe onde ele ficou esse tempo todo?

- Não.

- Num campo inglês de prisioneiros de guerra. Corajoso, não foi? Está bem, meu jovem, vou ver se posso preencher os claros...

O carro que levava Eduard Roschmann e seus colegas das SS atravessou Magdeburgo e tomou o rumo do sul para a Baviera e a Áustria. Foram até Munique antes do fim de abril e então se separaram. Roschmann vestia então uma farda de cabo do exército alemão e era portador de documentos com seu nome mas que o descreviam como um homem do exército.

Ao sul de Munique, as colunas do exército americano avançavam pela Baviera, preocupadas principalmente não com a população civil, que se tornara apenas um problema administrativo, mas com os rumores de que a hierarquia nazista pretendia entrincheirar-se numa fortaleza de montanha nos Alpes Bávaros em torno da casa de Hitler em Berchtesgaden e ali resistir até ao último homem. As centenas de soldados alemães errantes e desarmados quase não mereciam atenção enquanto as colunas de Patton rolavam através da Baviera.

Viajando à noite através do campo, escondendo-se durante o dia em cabanas de lenhadores e em galpões, Roschmann atravessou a fronteira da Áustria que tinha deixado de existir desde a anexa ção em 1938 e seguiu para o sul em direção a Gratz, que era sua cidade natal e onde conhecia gente em quem podia confiar para dar-lhe um refúgio.

Tinha passado em torno de Viena e estava quase chegando quando foi chamado à ordem por uma patrulha inglesa no dia 6 de maio. Tentou impensadamente fugir. Quando se jogou no mato à beira da estrada, uma saraivada de balas foi disparada e uma delas atingiu-o, varando-lhe um pulmão. Depois de uma rápida busca na escuridão, a patrulha inglesa passou, deixando-o ferido e escondido numa moita. Dali, ele rastejou até uma casa de fazenda a um quilômetro de distância.

Ainda consciente, disse ao fazendeiro o nome de um médico que ele conhecia em Gratz e o homem cobriu a distância de bicicleta dentro da noite e apesar do toque de recolher, para ir buscar o médico. Durante três meses, foi tratado pelos amigos, primeiro na casa do fazendeiro e depois em outra casa em Gratz. Quando se recuperou suficientemente para poder andar, a guerra já terminara havia três meses e a Áustria estava sob a ocupação das quatro potências. Gratz estava no coração da zona inglesa.

Todos os soldados alemães tinham de passar dois anos num campo de prisioneiros de guerra e Roschmànn, julgando que era esse o lugar mais seguro onde podia ficar, entregou-se. Durante dois anos, de agosto de 1945 a agosto de 1947, enquanto se desenrolava a caçada aos piores assassinos das SS, Roschmann ficou tranqüilamente no campo. De fato, quando se entregara, tinha dado outro nome, o de um antigo amigo que era do exército e morrera na África do Norte.

Havia tantas dezenas de milhares de soldados alemães sem quaisquer documentos de identidade que o nome dado pelo próprio homem era aceito pelos aliados como genuíno. Não tinham tempo, nem condições para realizar uma investigação completa dos cabos do exército. No verão de 1947, Roschmann foi posto em liberdade e se sentiu em segurança para deixar a proteção do campo. Estava errado.

Um dos sobreviventes do campo de Riga, natural de Viena, tinha jurado uma vingança pessoal contra Roschmann. Esse homem vagueou pelas ruas de Gratz, esperando que Roschmann voltasse para sua terra, para os pais"que deixara em 1939 e para a esposa, Hella Roschmann, com quem se casara durante uma licença em 1943. O velho vigiava constantemente a casa dos pais e a casa da esposa, indo de uma para outra, à espera da volta do homem das SS.

Depois de solto, Roschmann ficou nos arredores de Gratz, trabalhando nos campos como lavrador. Por fim, no dia 20 de dezembro de 1947, foi para casa a fim de passar o Natal com a família. O velho estava esperando. Escondeu-se atrás de uma pilastra quando viu o homem alto e magro, com cabelos louros claros e frios olhos azuis aproximar-se da casa da esposa, olhar algumas vezes para um lado e para outro e então bater e entrar.

Uma hora depois, guiados pelo ex-prisioneiro do campo de Riga, dois robustos sargentos ingleses do Serviço de Segurança Local, confusos e incrédulos, chegaram à casa e bateram. Depois de uma rápi da busca, Roschmann foi descoberto embaixo de uma cama. Se ele tivesse tentado livrar-se sob a alegação de um engano de identidade, poderia ter feito os sargentos acreditarem que o velho estava errado. Mas o fato de esconder-se embaixo de uma cama foi quase uma confissão. Foi levado para ser interrogado pelo Major Hardy,  do serviço de Segurança, que prontamente mandou prendê-lo numa cela enquanto o seu dossiê era pedido aos americanos em Berlim.

A confirmação chegou dentro de quarenta e oito horas. Mas, enquanto se pedia a Potsdam a ajuda dos russos para estabelecer a prova de seus crimes em Riga, os americanos pediram que Roschmann fosse transferido temporariamente para Munique a fim de prestar depoimento em Dachau, onde os americanos estavam julgando outros homens das SS que tinham agido na rede de campos em torno de Riga. Os ingleses concordaram.

Às seis horas da manhã de 8 de janeiro de 1948, Roschmann, acompanhado por um sargento da Real Polícia Militar e por outro da Segurança Local, foi embarcado num trem em Gratz, rumo a Salzburgo e a Munique.

Lord Russell fez uma pausa, foi até à lareira e bateu as cinzas de seu cachimbo.

- Que aconteceu então? - perguntou Miller - Ele fugiu, - disse Lord Russell.

- Fugiu como?

- Saltou da janela da privada do trem em movimento depois de se queixar de que a alimentação da prisão lhe dera disenteria. Quando os dois homens que o escoltavam arrombaram a porta da privada, ele havia desaparecido na neve. Não foi mais encontrado. Fizeram-se buscas naturalmente, mas ele desapareceu por entre os montões de neve para entrar em contato com uma das organizações que ajudavam a fuga dos ex-nazistas. Dezesseis meses depois, em maio de 1949, foi fundada a nova república alemã e nós entregamos a Bonn todos os nossos arquivos.

Miller acabou de escrever e deixou de lado o seu caderno de notas.

- E agora? - perguntou ele. - Que rumo devo tomar? Lord Russell disse:

- Bem, agora terá de procurar seu povo. Já sabe da vida de Roschmann desde o nascimento até o dia 8 de janeiro de 1948. O resto compete às autoridades alemãs.

- Quais? - perguntou Miller, receoso da resposta que ia receber.

- No que se refere a Riga, o Procurador Geral de Hamburgo, se não estou enganado, - disse Lord Russell.

- Já estive lá.

- Não o ajudaram muito? - Não ajudaram nada. Lord Russell sorriu.

- Não é de admirar, não é de admirar. Já tentou Ludwigsburg?

- Já. Foram muito gentis, mas não puderam fazer muito, para não se afastarem dos regulamentos, - disse Miller.

- Bem, isso esgota os canais oficiais. Só há mais um homem. Já ouviu falarem Simon Wiesenthal?

- Wiesenthal? Já ouvi falar vagamente. Desperta um eco em minha memória, mas não consigo situá-lo bem.

- Mora em Viena. É um camarada judeu, natural da Galícia Polonesa. Passou quatro anos numa série de campos de concentração, doze ao todo. Resolveu passar o resto da vida caçando criminosos nazistas procurados. Nada de violência, note bem. Limita-se a coligir todas as informações possíveis e então, quando está convencido de que encontrou um criminoso, que em geral usa um nome falso, informa a polícia. Quando esta não age, convoca uma entrevista coletiva de imprensa e revela todos os fatos aos jornalistas. Não é preciso dizer que não é visto com muita simpatia nos círculos oficiais da Alemanha e da Áustria. Ele não se cansa de afirmar que as autoridades não estão fazendo o que devem para julgar os assassinos nazistas conhecidos, nem para caçar os que estão escondidos. Os homens que eram das SS têm verdadeiro ódio dele e já tentaram várias vezes matá-lo, os burocratas acham que ele deveria deixá-los em paz e muitas óutras pessoas julgam-no um grande sujeito e o ajudam de todas as maneiras possíveis.

- Ah, agora me lembro. Não foi ele que descobriu Adolf Eichmann?

Lord Russell assentiu.

- Identificou-o como Ricardo Klement, que vivia em Buenos Aires. Os israelenses se encarregaram do caso daí por diante. Já descobriu várias centenas de outros criminosos nazistas. Se alguém sabe de mais alguma coisa sobre o seu Eduard Roschmann, é ele.

- O senhor o conhece? - perguntou Miller. Lord Russell fez um sinal afirmativo.

- É melhor eu lhe dar uma carta. Ele é procurado por muita gente que quer informação. Uma apresentação deverá facilitar as coisas. Foi até sua mesa, escreveu rapidamente algumas linhas numa folha de papel com timbre, dobrou o papel e colocou-o num envelope que fechou.

- Felicidades. Você vai precisar muito disso, - murmurou ele, levando Miller até à porta.

Na manhã seguinte, Miller tomou o avião de volta a Colônia, onde pegou o seu carro e iniciou a viagem de dois dias através de Stuttgart, Munique, Salzburgo e Linz até Viena.

Passou a noite em Munique, não tendo podido correr muito pelas estradas incrustadas de gelo, muitas vezes reduzidas a uma só pista enquanto um trator especial procurava remover a neve que caía firmemente.

No dia seguinte, partiu bem cedo e teria chegado a Viena na hora do almoço se não fosse a longa demora em Bad Tolz, logo ao sul de Munique.

A autobahn passava por densas florestas de pinheiros quando uma série de sinais que diziam "Devagar" começou a retardar o trânsito. Um carro da polícia, com a luz azul do alto a girar em sinal de advertência estava estacionado na beira da estrada e dois guardas de casaco branco estavam no meio da estrada fazendo parar o trânsito. Na pista da esquerda que ia para o norte, o processo era o mesmo. A direita e à esquerda da autobahn, um caminho estava aberto entre os pinheiros e dois soldados com uniforme de inverno, cada qual com um bastão de sinais com lâmpadas alimentadas por pilhas, se postavam às entradas, esperando alguma coisa escondida nas florestas ao lado da estrada.

Miller ficou impaciente e acabou baixando o vidro para chamar um dos guardas.

- Que é que há? Por que essa demora?

O guarda se aproximou a passos lentos e sorriu.

- O Exército, - disse ele. - Está em manobras. Uma coluna de tanques deve passar a qualquer momento por aqui.

Quinze minutos depois, o primeiro tanque apareceu, com um longo cano de canhão que se alongava entre os pinheiros, como um paquiderme que farejasse o ar à procura de sinais de perigo. Em se guida, o corpo blindado do tanque emergiu das árvores e marchou barulhentamente para a estrada.

O Primeiro-Sargento Ulrich Frank era um homem feliz. Aos trinta anos de idade, havia alcançado a grande ambição de sua vida, comandar o seu próprio tanque. Ainda se lembrava do dia em que essa ambição nascera dentro dele. Tinha sido a 10 de janeiro de 1945 quando, ainda garotinho na cidade de Mannheim, fora levado ao cinema. O jornal cinematográfico estava cheio do espetáculo dos grandes tanques Tigre Real de Hasso von Manteuffel que rolavam para enfrentar os americanos e os ingleses.

Olhara com respeito os vultos embuçados dos comandantes, de capacete de aço e grandes óculos, observando das torres. Para Ulrich Frank, que tinha então dez anos, o fato representara um marco decisivo. Ao sair do cinema, fez o juramento de que um dia havia de comandar o seu tanque.

Levara dezenove anos, mas conseguira. Nas manobras de inverno daquele ano nas florestas em torno de Bad Tolz, o Primeiro-Sargento Ulrich Frank comandava o seu primeiro tanque; um Patton M-48 de fabricação americana.

Era a sua última manobra com o Patton. À espera das tropas no campo, estava toda uma série de tanques novos e rebrilhantes.

Eram os AMX-13 com que a unidade ia ser reequipada. Mais rápido e com um armamento mais pesado do que o Patton, um AMX passaria a ser dele dentro de uma semana.

Olhou para a cruz preta do novo exército alemão ao lado da torre e para o nome particular do tanque pintado logo abaixo com uma ponta de pesar. Embora só o tivesse comandado durante seis meses, seria sempre seu primeiro tanque, seu predileto. Dera-lhe o nome de Drachenfels, a Rocha do Dragão, do nome do rochedo sobre o Reno onde Martinho Lutero, traduzindo a Bíblia para o alemão, vira o Diabo e jogara o seu tinteiro em cima dele.

Com uma última pausa do outro lado da autobahn, o Patton e sua guarnição galgaram a elevação e desapareceram na floresta.

Miller chegou afinal a Viena no meio da tarde aquele dia, 4 de janeiro. Sem se hospedar num hotel, dirigiu-se para o centro da cidade e perguntou o caminho para a Praça Rudolf.

Encontrou com facilidade o número sete e olhou para a lista dos inquilinos. No terceiro andar, havia um cartão que dizia: "Centro de Documentação". Subiu e bateu na porta de madeira pintada com tinta creme. Pareceu que alguém o observava pelo olho mágico antes que abrissem o trinco. Uma loura jovem e bela apareceu na porta. - Pronto!

- Meu nome é Miller, Peter Miller. Gostaria de falar com Herr W iesenthal. Tenho uma carta de apresentação.

Tirou a carta e entregou-a à moça. Ela olhou a carta incertamente, sorriu e pediu-lhe que esperasse.

Alguns minutos depois, reapareceu no fundo do corredor a que a porta dava acesso e chamou-o.

- Tenha a bondade de acompanhar-me.

Miller fechou a porta da frente e seguiu-a pelo corredor, dobrando depois para outro até aos fundos do apartamento. À direita, havia uma porta aberta. Quando ele entrou, um homem se levantou para cumprimentá-lo.

- Faça o favor de entrar, - disse Simon W iesenthal.

Era maior do que Miller tinha esperado, um homem corpulento que vestia um paletó grosso de tweed e tinha o corpo encurvado como se estivesse perpetuamente procurando um papel perdido. Tinha na mão a carta de Lord RUssell.

O escritório era tão pequeno que dava a impressão de que ninguém podia mexer-se lá dentro. Uma das paredes estava cheia de ponta a ponta e do chão até ao teto de estantes repletas de livros. A parede em frente era decorada com manuscritos com iluminuras e testemunhos de uma dezena de organizações de ex-vítimas das SS. A parede dos fundos tinha um longo sofá também com livros e à esquerda da porta uma pequena janela se abria para um pátio. A mesa estava afastada da janela e Miller se sentou na cadeira dos visitantes diante dela. O Caçador de Nazistas de Viena sentou-se e releu a carta de Lord Russell.

- Lord Russell diz que o senhor está tentando caçar um exassassino das SS, - disse ele sem preâmbulos.

- É verdade.

- Posso saber o nome?

- Roschmann. Capitão Eduard Roschmann.

Simon Wiesenthal arqueou as sobrancelhas e deu um assobio. - Já ouviu falar nele?

- O Açougueiro de Riga? Um dos cinqüenta primeiros nomes da lista dos homens a quem procuro. Posso saber por que está interessado nele?

Miller começou a explicar brevemente.

- Acho que é melhor começar do princípio, - disse Wiesenthal.

- Tudo começou com um diário.

Contando o homem de Ludwigsburg, Cadbury e Lord Russell, era a quarta vez que Miller tinha de narrar toda a história. De cada vez ficava um pouco mais comprida, com mais um período acrescentado ao seu conhecimento da vida de Roschmann. Começou então de novo e foi até à ajuda que lhe fora dada por Lord Russell.

- O que tenho de saber agora, - disse ele, concluindo, - é para onde ele foi quando fugiu do trem.

Simon Wiesenthal estava olhando para o pátio dos edifícios e vendo a neve cair pelo espaço estreito até o chão, três andares abaixo. - Tem o diário aí? - perguntou ele afinal.

Miller tirou o diário da pasta e colocou-o em cima da mesa. Wiesenthal olhou-o atentamente.

- Fascinante, - murmurou, depois do que levantou os olhos e sorriu.

- Muito bem, aceito sua história, - disse ele. Miller arqueou as sobrancelhas.

- Havia alguma dúvida?

- Há sempre alguma dúvida, Herr Miller. A história que me contou é muito estranha. Ainda não consegui compreender o motivo pelo qual está querendo encontrar Roschmann.

- Ora essa, é uma boa reportagem e eu sou repórter.

- Mas duvido muito de que consiga vender uma reportagem dessas a qualquer publicação. E isso mal justifica que esteja-gastando as suas economias. Tem certeza de que não há nada de pessoal nisso?

Miller não respondeu diretamente.

- É a segunda pessoa que sugere isso. Hoffmann me fez a mesma pergunta no Komet. Que motivo pessoal poderia ter? Tenho apenas vinte e nove anos. Tudo isso foi antes do meu tempo.

- É claro, - disse Wiesenthal. Olhou para o seu relógio e levantou-se. - São cinco horas e nestas noites de inverno gosto de chegar cedo a casa para ficar ao lado de minha mulher. Posso levar o diário para ler em casa?

- É claro, - disse Miller.

- ótimo. Volte então na manhã de segunda-feira e eu lhe direi o que sei da história de Roschmann.

Miller chegou às dez horas da segunda-feira e encontrou Simon Wiesenthal às voltas com uma pilha de cartas. Olhou para o repórter e lhe indicou uma cadeira. Houve silêncio durante algum

tempo enquanto o caçador de nazistas cortava cuidadosamente, a beira dos envelopes antes de tirar as cartas.

- Coleciono selos, - disse ele. - Por isso, não quero estragar os envelopes.

Continuou nesse trabalho por mais alguns minutos.

- Li o diário na noite passada em casa. É um documento notável.

- Ficou surpreso? - perguntou Miller.

- Surpreso, não. Todos nós passamos mais ou menos pelas mesmas coisas. Com variações, naturalmente. Mas muito preciso. Tauber teria sido uma testemunha perfeita. Notava tudo, até os detalhes mais insignificantes. E os anotava... na ocasião. Isso é muito importante para obter uma sentença nos tribunais alemães ou austríacos. E agora está morto.

Miller pensou por um momento e então levantou a cabeça.

- Herr Wiesenthal, tanto quanto me lembro é o senhor o primeiro judeu com quem falo demoradamente e que realmente passou por tudo isso. Houve uma coisa que Tauber disse no seu diário que

me surpreendeu. Ele disse que não havia culpa coletiva. Mas nós, alemães, ouvimos dizer há vinte anos que todos nós somos culpados. Acredita nisso?

- Não, - disse categoricamente o caçador de nazistas. - Tauber tinha razão.

- Como pode dizer isso se nós matamos milhões de pessoas?

- Porque o senhor não estava pessoalmente lá. O senhor não matou ninguém. Como Tauber disse, a tragédia é que os assassinos específicos não tenham tido de responder perante a justiça.

- Quem foi então que realmente matou toda essa gente? Simon Wiesenthal olhou atentamente Miller.

- Sabe das várias ramificações das SS? Das seções dentro das SS que foram realmente responsáveis pela morte desses milhões?

- Não.

- Vou-lhe dizer então. Já ouviu falar no Escritório Central de Administração Econômica do Reich, que era encarregado de explorar as vítimas antes de morrerem?

- Li alguma coisa a esse respeito.

- A função dele era de certo modo a parte média da operação.

"Isso deixava a tarefa de identificar as vítimas no meio da população, de arrebanhá-las, transportá-las e, quando a exploração econômica estava concluída, eliminá-las. Essa tarefa cabia ao RSHA, o Escritório Central de Segurança do Reich, que de fato matou os milhões já mencionados. O uso um tanto estranho da palavra "Segurança" na denominação desse serviço vem da extravagante idéia nazista de que as vítimas constituíam uma ameaça para o Reich, o qual tinha de ter segurança contra elas. Constava também das funções do RSHA capturar, interrogar e encarcerar em campos de concentração outros inimigos do Reich , tais como comunistas, social-democratas, liberais, quukers, jornalistas e sacerdotes que externavam a sua opinião de maneira inconveniente, combatentes da resistência nos países ocupados e, posteriormente, oficiais de alta patente como o Marechal-de-Campo Erwin Rommel e o Almirante Walter Canaris, que foram ambos assassinados como suspeitos de nutrir sentimentos anti-hitleristas.

"O RSHA era dividido em seis departamentos, cada qual chamado de Amt. O Amt Um cuidava de administração e pessoal; o Amt Dois de equipamento e finanças. O Amt Três era o temido Serviço de Polícia e Segurança, cujo chefe foi Reinhard Heydrich, assassinado em Praga em 1942, e depois Ernst Kaltenbrunner, executado pelos aliados. Pertenciam a esse departamento as turmas que elaboravam as torturas destinadas a fazer os suspeitos falarem, tanto dentro da Alemanha quanto nos países ocupados.

"O Amt Quatro era a Gestapo, sob a chefia de Heinrich Müller, ainda desaparecido, e cuja Seção Judaica, departamento B-4, era chefiada por Adolf Eichmann, executado pelos israelenses em Jerusalém, depois de ter sido raptado da Argentina. O Amt Cinco era a Polícia Criminal e o Amt Seis, o Serviço Secreto Exterior. "Os dois chefes sucessivos do Amt Três, Heydrich e Kaltenbrunner, eram também os chefes gerais de todo o RSHA e, durante o reinado dos dois homens, o chefe do Amt Um foi um homem da confiança deles. É ele o general de três estrelas das SS, Bruno Streckenbach, que hoje tem um emprego bem remunerado numa loja de departamentos de Hamburgo e reside em Vogelweide 17 B, Hamburge 22, Alemanha Ocidental.

"Se formos, portanto, especificar as culpas, estas recaem nesses dois departamentos das SS e o número dos culpados é de milhares e não dos milhões que integram atualmente a Alemanha. A teoria da culpa coletiva de sessenta milhões de alemães, inclusive milhões de crianças, mulheres, aposentados, soldados, marinheiros e aviadores que nada tiveram a ver com o holocausto, partiu dos aliados, mas depois foi extremamente conveniente para os ex-participantes das SS. A teoria é a melhor ajuda que podem ter desde que compreendem, como poucos alemães parecem fazê-lo, que enquanto a teoria da culpa coletiva permanecer incontestada, ninguém irá procurar os assassinos específicos, ao menos com muito empenho. Os assassinos das SS escondem-se, portanto, ainda hoje, por trás da teoria-da culpa coletiva.

Miller pensou no que tinha acabado de ouvir. De algum modo, as próprias cifras em jogo o perturbavam. Não era possível pensar em quatorze milhões de pessoas individualmente. Era mais fácil pensar num só homem, morto numa padiola, debaixo de chuva, numa rua de Hamburgo.

- Acredita na razão que Tauber teve para suicidar-se? - perguntou ele a Wiesenthal.

O outro examinou dois belos selos africanos num envelope. - Acredito que ele teve razão de pensar que ninguém acreditaria nele quando dissesse que tinha visto Roschmann na saída da ópera. Se era isso o que ele pensava, estava certo.

- Mas ele nem foi à polícia, - disse Miller.

- Bem, tecnicamente ele devia ter feito isso, Mas não creio que adiantasse nada, pelo menos em Hamburgo.

- Que é que há em Hamburgo?

- Esteve no gabinete do Procurador Geral de Hamburgo, não esteve?

- Estive e eles não mostraram muito interesse em me ajudar. - Escute, - disse Wiesenthal, - o gabinete do Procurador Geral de Hamburgo tem muito má reputação aqui neste escritório. Veja, por exemplo, o homem mencionado no diário e por mim ainda há pouco, o chefe da Gestapo e general das SS, Bruno Streckenbach. Lembra-se?

- Claro que sim. Quê é que há com ele?

Em resposta, Simon Wiesenthal procurou numa pilha de papéis em cima da mesa, tirou um deles e disse:

Aqui está. Conhecido na justiça da Alemanha Ocidental como o Documento 141 JS 747/61. Quer ouvir?

- Por que não?

Está bem. Antes da guerra, foi chefe da Gestapo em Hamburgo. Subiu depois disso rapidamente, para uma posição de destaque na SD e na SP,  as seções do Serviço de Segurança e da Polícia de  Segurança do RSHA. Em 1939, recrutou turmas de extermínio na Polônia sob ocupação nazista. Em fins de 1940, era chefe das seções de SD e SP das SS em toda a Polônia, o chamado Governo Geral com sede em Cracóvia. Milhares de pessoas foram exterminadas pelas unidades do SD e da SP na Polônia durante esse período, especialmente por intermédio da Operação AB.

"No começo de 1941, voltou para Berlim, promovido a chefe do pessoal do SD. Era o Amt Três do RSHA. O seu chefe era Reinhard Heydrich, de quem se tornou substituto. Pouco antes da invasão da Rússia, ajudou a organizar as turmas de extermínio que acompanharam o exército. Escolheu todo o pessoal, porque todos eram do SD. "Foi então promovido de novo, dessa vez a chefe do pessoal dos seis departamentos do RSHA e continuou a ser chefe substituto do RSHA, primeiro com Heydrich, que foi assassinado em 1942 em Praga por guerrilheiros tchecos - fato esse que deu margem às represálias de Lídice - e depois com Ernst Kaltenbrunner. Assim, tinha ele plena responsabilidade pela escolha do pessoal das turmas volantes de extermínio e das unidades fixas do SD através de todos os territórios orientais ocupados pelos nazistas até o fim da guerra. - E onde está ele agora? - perguntou Miller.

- Em Hamburgo, livre como o ar. Miller se mostrou assombrado.

- Quer dizer que não o prenderam? - Quem?

- A polícia de Hamburgo, é claro.

Em resposta, Simon Wiesenthal pediu à sua secretária que apanhasse uma bojuda pasta com a marca de "Justiça - Hamburgo" e tirou dela um papel. Dobrou a folha de tal modo que só o lado esquerdo da mesma fosse visível e mostrou-a assim a Miller

- Conhece esses nomes?

Miller leu com a testa franzida a lista de dez nomes.

- Sem dúvida. Fui repórter de polícia em Hamburgo durante muitos anos. Todos esses são oficiais importantes na força policial de Hamburgo. Por quê?

- Abra a folha toda.

Miller assim fez. O papel dizia o seguinte:

 

NomE, N° P. NAZ.  N° SS POSTO, DATA PROMOÇÃO:

            A.                    455.336         Capt.  1/3/43

            B.        5.451.195      429.339         I ° Ten.           9111142

            C.        -           353.004         1.11 Ten.       1111/41

            D.        7.039.564      421.176         Cap.   2116144

            E.                    421.445         1.11 Ten.       9/11142

            F.        7.040.3025    174.902         Major  21/6/44

            g.         426.553         Cap.   119/42

            H.        3.1325.7925 311.870         Cap.   30/1/42

            i.          1.867.976      424.361         1.11 Ten.       20/4/44

            J.         1..063.331     309.825         Major  9/11/43

 

- Deus do céu! - exclamou Miller, levantando os olhos.

- Está começando a compreender por que um general das SS anda livre hoje em dia por Hamburgo.''

- Compreendo. Deve ter sido isso o que Brandt quis dizer quando me afirmou que as indagações sobre os homens que tinham pertencido às SS não eram muito bem vistas na polícia.

- Com certeza, - disse Wiesenthal. - E o gabinete do Procurador Geral de Hamburgo está também muito longe de ser o mais dinâmico da Alemanha. Há ali um procurador que procura trabalhar, mas certas partes interessadas de vez em quando tentam conseguir-lhe a demissão.

A bela secretária meteu a cabeça pela porta e perguntou: - Chá ou café?

Foi depois do intervalo para o almoço que Miller voltou ao escritório. Simon Wiesenthal tinha à sua frente várias folhas de papel extraídas de sua pasta sobre Roschmann. Miller sentou-se diante dele, preparou o seu caderno de notas e esperou.

Simon Wiesenthal começou a relatar a história da vida de Roschmann depois de 8 de janeiro de 1948.

Tinha sido combinado entre as autoridades inglesas e americanas que, depois de Roschmann prestar depoimento em Dachau, seria transferido para a Zona Inglesa da Alemanha, provavelmente em Hanover, para ali esperar o julgamento e a quase certa sentença de enforcamento. Ele tinha começado a planejar a sua fuga desde que estava na prisão em Gratz.

Tinha entrado em contato com uma organização nazista de ajuda a fugas que agia na Áustria e era chamada a "Estrela de Seis Pontas", não em vista de qualquer relação com o símbolo judaico da Estrela de Davi, mas porque a organização nazista estendia os seus tentáculos a seis das principais cidades provinciais da Áustria.

Às 6 horas da manhã do dia 8, Roschmann foi acordado e levado para o trem que esperava na estação de Gratz. Uma vez no compartimento, houve uma discussão entre o sargento da Polícia Militar, que queria conservar as algemas em Roschmann durante toda a viagem, e o sargento da Segurança Local, que achava que deviam ser tiradas.

Roschmann influiu na discussão dizendo que estava atacado de disenteria em conseqüência da alimentação da prisão e tinha de ir à privada. Foi levado até lá, tiraram-lhe as algemas e um sargento esperou do lado de fora da porta até que ele tivesse acabado. Enquanto o trem seguia pelos campos cobertos de neve, Roschmann fez mais três pedidos para ir à privada.

Sem dúvida, foi nessa ocasião que ele afrouxou a janela da privada, de modo que a mesma corresse facilmente pelo caixilho.

Roschmann sabia que tinha de fugir antes de ser entregue em Salzburgo aos americanos para ser levado de carro para a prisão em Munique, mas as estações iam passando e o trem andava muito de pressa. Houve uma parada em Hallein e um dos sargentos saltou para comprar comida na plataforma. Roschmann disse que queria ir de novo à privada. Foi o sargento mais displicente da Segurança quem o acompanhou, com a recomendação de que não usasse o vaso enquanto o trem estivesse parado. Quando o trem partiu em marcha lenta de Hallein, Roschmann saltou da janela para os montões de neve à beira da linha. Só dez minutos depois, os sargentos arrombaram a porta e já então o trem estava descendo velozmente as montanhas em direção a Salzburgo.

As investigações da polícia apuraram depois que ele andara pela neve até uma cabana de camponeses e se refugiara ali. No dia seguinte, atravessara a fronteira da Alta Áustria para a província de Salzburgo e entrara em contato com a organização da Estrela de Seis Pontas. Levaram-no para uma fábrica de tijolos, onde ele trabalhou como operário enquanto se faziam entendimentos com a Odessa para uma passagem para o sul e para a Itália.

Naquela época, a Odessa tinha relações muito estreitas com a seção de recrutamento da Legião Estrangeira da França, para a qual tinham fugido dezenas de elementos das SS. Quatro dias depois dos entendimentos, um carro com placas francesas estava à espera nos arredores da aldeia de Ostermieting e nele embarcaram Roschmann e mais cinco fugitivos nazistas. O motorista da Legião Estrangeira, munido de papéis que permitiam ao carro atravessar as fronteiras sem ser revistado, levou os seis homens das SS através da fronteira até Merano, onde recebeu uma boa soma em dinheiro pelo transporte de seus passageiros das mãos do representante da Odessa ali.

De Merano, Roschmann foi levado para um campo de internação em Rimini. Ali, no hospital do campo, teve amputados os cinco dedos do pé direito, porque tinham sido congelados na caminhada que ele fizera pela neve depois de fugir do trem. Desde então, usa um sapato ortopédico.

A mulher dele em Gratz recebeu uma carta escrita do campo em Rimini em outubro de 1948. Pela primeira vez, usava o nome da nova identidade que lhe tinham dado, Fritz Bernd Wegener.

Pouco depois, foi transferido para o mosteiro franciscano de Roma e, quando seus papéis ficaram prontos, embarcou em Nápoles para Buenos Aires. Durante a sua permanência no mosteiro na Via Sicilia, ficara entre dezenas de camaradas das SS e do Partido Nazista, aos quais nada faltava graças aos cuidados pessoais do Bispo Alois Hudal.

Na capital argentina, foi recebido pela Odessa e hospedado com uma família de nome Vidmar na Calle Hippolito Irigoyen. Viveu ali durante meses num quarto mobiliado. No começo de 1949, recebeu a soma de 50.000 dólares dos fundos de Bormann e se estabeleceu como exportador de madeiras sul-americanas para a Europa Ocidental. A firma era chamada Stemmler e Wegener, porque os seus papéis falsos do Vaticano em Roma o estabeleciam firmemente como Fritz Bernd Wegener, nascido na província italiana do Tiro( Meridional.

Contratou também como sua secretária uma moça alemã, Irmtraud Sigrid Muller, e no começo de 1955 se casou com ela, embora sua primeira mulher Hella ainda estivesse viva em Gratz. Mas Roschmann estava ficando nervoso. Em julho de 1952 Eva Perón, esposa do ditador da Argentina e o poder atrás do trono, tinha morrído de câncer. O regime de Perón estava condenado e Roschmann percebeu isso. Se Perón caísse, grande parte da proteção por ele concedida aos ex-nazistas poderia ser retirada. Com sua nova esposa, Roschmann partiu para o Egito.

Passou três meses ali no verão de 1955 e, no outono, foi para a Alemanha Ocidental. Ninguém teria sabido de nada se não fosse a cólera de uma mulher traída. Sua primeira esposa, Hella Roschmann, remeteu para ele de Gratz naquele verão uma carta aos cuidados da família Vidmar em Buenos Aires. Os Vidmars, que não tinham o novo endereço do seu ex-inquilino, abriram a carta e responderam à mulher em Gratz, dizendo-lhe que ele tinha voltado para a Alemanha, mas se casara com sua secretária.

A mulher de Roschmann informou então à polícia sua nova identidade. Em conseqüência disso, a polícia começou a procurar Roschmann como acusado do crime de bigamia. Distribuiu-se imediatamente um alarma para que fosse procurado na Alemanha Ocidental um homem chamado Fritz Bernd Wegener.

- Conseguiram prendê-lo? - perguntou Miller. Wiesenthal sacudiu a cabeça.

- Não, tornou a desaparecer. Quase com certeza tem um novo conjunto de documentos falsos e quase com certeza está na Alemanha. É por isso que acredito que Tauber poderia tê-lo visto. Está de acordo com todos os fatos conhecidos.

- Onde está a primeira mulher dele, Hella Roschmann? - perguntou Miller.

- Ainda mora em Gratz. - Vale a pena procurá-la? Wiesenthal abanou a cabeça.

- Duvido muito. Não é preciso dizer que, depois de ter sido denunciado por ela, não é muito provável que Roschmann volte a revelar-lhe o seu paradeiro e, muito menos, seu novo nome.

A situação deve ter ficado muito difícil para ele quando a sua identidade como Wegener foi revelada. Deve ter adquirido seus novos documentos numa correria verdadeiramente louca.

- Quem lhe poderia conseguir esses papéis? - perguntou Miller.

- A Odessa, certamente.

- Que é exatamente a Odessa? O senhor falou nisso várias vezes durante a história de Roschmann.

- Nunca ouviu falar nela? - perguntou Wiesenthal. - Não. Até agora, não.

Simon Wiesenthal olhou para o seu relógio.

- É melhor voltar amanhã. Contar-lhe-ei tudo sobre a Odessa.

 

Peter Miller voltou ao escritório de Simon Wiesenthal na manhã seguinte.

- Prometeu-me falar sobre a Odessa, - disse ele. - E eu me lembrei esta noite de uma coisa que deixei de contar-lhe ontem. Falou então do incidente com o Dr. Schmidt, que o procurara no Hotel Dreesen para adverti-lo e fazê-lo desistir das investigações. Wiesenthal franziu os lábios e disse:

- Você os está alarmando sem dúvida alguma. Não é muito comum tomarem a providência de fazer uma advertência assim a um repórter, especialmente numa fase inicial. Gostaria de saber o que Roschmann está fazendo de tão importante assim.

Em seguida, durante duas horas, o caçador de nazistas falou a Miller da Odessa, desde o seu início como uma organização destinada a levar para um lugar seguro os criminosos nazistas que estavam entre aqueles que tinham usado outrora as golas pretas e prateadas, seus ajudantes e cúmplices.

Quando os Aliados irromperam pela Alemanha em 1945 e encontraram os campos de concentração com o seu horrível conteúdo, voltaram-se naturalmente para o povo alemão a fim de saber quem havia cometido aquelas atrocidades. A resposta foi "As SS" mas não era possível encontrar em lugar algum as SS.

Para onde tinham ido os homens das SS? Estavam vivendo clandestinamente na Alemanha ou na Áustria ou tinham fugido para o estrangeiro. Num caso como no outro, o desaparecimento não resultava de uma fuga de última hora. O que os Aliados não compreenderam senão muito depois é que cada qual havia previamente tomado todas as providências para o seu desaparecimento.

O fato focaliza de maneira muito interessante o chamado patriotismo das SS, a começar do ápice com Heinrich Himmler, pois todos eles procuravam salvar a própria pele à custa de enormes sofrimentos inevitavelmente infligidos ao povo alemão. Já em novembro de 1944, Heinrich Himmler tentou conseguir um salvoconduto pessoal graças aos bons ofícios do Conde Bernadotte, da Cruz Vermelha da Suécia. Os Aliados se negaram a deixar que ele fugisse do anzol. Enquanto os nazistas e os homens das SS conclamavam o povo alemão a continuar a luta até que as Armas Miraculosas que estavam em andamento fossem completadas, preparavam-se para partir para um confortável exílio. Eles ao menos sabiam que não havia armas miraculosas e que a destruição do Reich e, com  Hitler, de toda a nação alemã era inevitável.

Na frente oriental, o exército alemão era forçado a empenhar-se em batalha cóm os russos com baixas incalculáveis, não para alcançar vitórias, mas para proporcionar um intervalo enquanto as SS concluíam os seus planos de fuga. Na retaguarda do exército estavam as SS, fuzilando e enforcando os homens do exército que recuavam um passo depois de já haverem recebido maior castigo do que em geral se espera que os militares recebam. Milhares de oficiais e soldados da Wehrmacht morreram assim nas forcas das SS.

Pouco antes da derrocada final, retardada seis meses depois que os chefes das SS souberam que a derrota era inevitável, as SS desapareceram. De um extremo a outro do país, os homens das SS abandonaram os seus postos, envergaram roupas civis, guardaram nos bolsos os seus documentos hábil e oficialmente falsificados e desapareceram nas massas caóticas de gente que formavam a Alemanha em maio de 1945. Deixaram os velhinhos da Guarda Nacional para receber os ingleses e americanos à porta dos campos de concentração, a Wehrmacht esgotada para ser recolhida aos campos de prisioneiros de guerra e as mulheres e crianças para viverem ou morrerem no áspero inverno iminente de 1945.

Os que sabiam que eram tão bem conhecidos que não poderiam passar despercebidos por muito tempo fugiram para o exterior. Foi então que a Odessa começou a funcionar. Fundada pouco antes do fim da guerra, a sua finalidade era levar em segurança para fora da Alemanha os homens procurados das SS. Já havia estabelecido laços estreitos e amistosos com a Argentina de Juan Perón, que havia emitido sete mil passaportes argentinos em branco, de modo que o refugiado tinha apenas de escrever o seu nome falso, colocar a sua fotografia e fazê-la carimbar por um solícito cônsul argentino, para então embarcar para Buenos Aires ou para o Oriente Médio.

Milhares de assassinos das SS tomaram o rumo do sul através da Áustria e chegaram à província italiana do Tirol Meridional. Passavam de uma casa segura para outra ao longo da estrada até chegarem ao porto italiano de Gênova ou, mais ao sul, a Rimini e a Roma. Várias organizações, algumas delas consideradas como empenhadas em trabalhos caritativos entre pessoas realmente desamparadas, arrogaram-se o direito, por motivos só delas conhecidos, de decidir com base em provas de sua própria imaginação, que os refugiados das SS estavam sendo perseguidos desumanamente pelos aliados.

Um dos principais coiteiros de Roma que conseguiu fazer milhares de homens fugirem para a segurança foi o Bispo Alois Hudal, o bispo alemão em Roma. O principal esconderijo dos assassinos das SS foi o enorme mosteiro franciscano de Roma, onde eram escondidos com casa e comida até que fosse possível conseguir-lhes papéis, juntamente com uma passagem para a América do Sul. Em alguns casos, os homens das SS viajavam com documentos da Cruz Vermelha, emitidos graças à intervenção da Igreja, e em muitas oportunidades a organização de caridade Caritas pagou as passagens.

Foi essa a primeira tarefa da Odessa e teve em grande parte êxito. Nunca se saberá ao certo quantos milhares de assassinos das SS que, se tivessem sido capturados pelos Aliados, teriam pago com a morte os seus crimes, conseguiram fugir, mas pode-se calcular que foram bem mais de oitenta por cento dos que mereciam a pena de morte.

Tendo-se instalado confortavelmente com o produto dos homicídios em massa transferidos dos bancos suíços, a Odessa passou a observar calmamente o declínio das relações entre os Aliados de 1945. As primitivas idéias da rápida criação do Quarto Reich foram abandonadas como pouco práticas pelos chefes da Odessa na América do Sul, mas com a fundação em maio de 1949 de uma nova república da Alemanha Ocidental, os chefes da Odessa se traçaram cinco novas tarefas.

A primeira foi a reinfiltração dos ex-nazistas em todos os setores da vida da nova Alemanha. Durante o fim dos anos 40 e nos anos 50, os nazistas se insinuaram no serviço público em todos os níveis, nos escritórios de advocacia, nos tribunais, na polícia, nos governos municipais e nos consultórios dos médicos. Dessas posições, por mais humildes que algumas fossem, conseguiam proteger-se mutuamente de investigações e de prisões, zelar pelos interesses uns dos outros e providenciar em geral para que os processos contra os antigos camaradas - chamam-se entre si de Kamerad - tivessem o andamento mais lento possível ou até nenhum andamento.

A segunda tarefa consistiu na infiltração nos mecanismos do poder político. Evitando os altos níveis, os ex-nazistas se infiltraram na base da organização do partido governante,  na base dos distritos ou das seções eleitorais. Não havia lei que impedisse que um ex-nazista se filiasse a algum partido político. Pode ser simples coincidência, embora pouco provável, mas a verdade é que nenhum político que se batesse publicamente por maior vigor na investigação e apuração dos crimes nazistas conseguiu mais eleger-se no CDU ou no CSU, ou para o parlamento federal ou para os parlamentos provinciais, também muito importantes. Um político exprimiu a situação com firme simplicidade: "E uma questão de matemática eleitoral. Seis milhões de judeus mortos não votam. Cinco milhões de ex-nazistas podem votar e votam em todas as eleições".

O objetivo principal desses dois programas era simples- Era e é retardar ou paralisar as investigações e os processos contra os ex-nazistas. Neste particular, a Odessa contou com uma grande ajuda. Foi o conhecimento secreto que tinham centenas de milhares de pessoas de que ou tinham ajudado o que fora feito, ainda que em parte mínima, ou de que tinham sabido na época o que estava acontecendo e tinham preferido guardar silêncio. Anos depois, bem estabelecidas e respeitadas nas suas comunidades e profissões, essas pessoas não poderiam achar agradável a idéia de uma investigação muito enérgica dos fatos passados e, muito menos, a possível menção de seu nome num tribunal distante onde um nazista estivesse em julgamento.

A terceira tarefa que a Odessa se traçou na Alemanha de pós-guerra foi a reinfiltração nos negócios, no comércio e na indústria. Para esse fim, alguns ex-nazistas se estabeleceram em negócios próprios no início dos anos 50, financiados com fundos dos depósitos de Zurique. Qualquer firma razoavelmente bem administrada que se fundasse com liquidez suficiente naquela época não poderia deixar de aproveitar-se plenamente do assombroso Milagre Econômico dos anos 50 e 60 para tornar-se por sua vez uma grande e próspera empresa. A importância disso era usar os fundos provenientes dos lucros dessas empresas para influenciar a cobertura jornalística dos crimes nazistas por meio da renda dos anúncios, assistir financeiramente a safra de publicações de propaganda orientadas pelas SS e que surgiam na Alemanha de pós-guerra, manter algumas editoras da extrema direita e proporcionar empregos a antigos Kameraden em dificuldades.

A quarta tarefa era e ainda é dispensar a melhor defesa legal possível a qualquer nazista forçado a julgamento. Nestes últimos anos, desenvolveu-se uma técnica mediante a qual o acusado contratava imediatamente um advogado brilhante e caro, tinha algumas sessões com ele e então anunciava que não podia pagá-lo. O advogado podia então ser designado pelo tribunal para fazer a defesa, de acordo com os dispositivos das leis de assistência judiciária. Mas até meados dos anos 50,  quando centenas de milhares de prisioneiros das SS não anistiados foram tirados dentre eles e levados para o campo de Friedland. Ali, havia moças que circulavam entre eles, entregando a cada um deles um cartão branco no qual vinha o nome do advogado que lhe fora designado.

A quinta tarefa é a propaganda. Isso toma muitas formas, que vão desde o estímulo à disseminação de folhetos direitistas até campanhas pela ratificação final do Estatuto das Limitações, de cujos dispositivos consta a terminação de toda a culpabilidade legal dos nazistas. Fazem-se esforços para assegurar aos alemães de hoje que as estatísticas de judeus, russos, poloneses e outros mortos foram apenas uma fração diminuta das citadas pelos Aliados - cem mil judeus mortos representam o total habitualmente mencionado - e para mostrar que a guerra fria entre o Ocidente e a União Soviética prova que de algum modo Hitler tinha razão.

Mas o ponto central da propaganda da Odessa é convencer os sessenta milhões de alemães atuais - e com uma grande dose de sucesso - de que os homens das SS eram na realidade soldados

patrióticos como os da Wehrmacht e que deve haver solidariedade entre ex-camaradas. Essa é a mais fantástica das ficções.

Durante a guerra, a Wehrmacht se mantinha a distância das SS, pelas quais tinha repugnância, ao passo que as SS tratavam a Wehrmacht com desprezo. No fim, milhões de homens jovens da Wehr macht foram lançados à morte ou ao cativeiro em terras russas, dos quais apenas uma pequena parte voltou, para que os homens das SS pudessem viver prosperamente em outros lugares. Milhares deles foram executados pelas SS, inclusive 5.000 em conseqüência da conspiração de julho de 1944 contra Adolf Hitler, na qual menos de cinqüenta homens estavam implicados.

É um mistério que homens que pertenceram ao Exército, à Marinha ou à Aviação da Alemanha possam julgar que os homens que foram das SS mereçam deles o título de Kamerad, para não falar em sua proteção e solidariedade em matéria de processo criminal. Entretanto, reside nisso o verdadeiro êxito da Odessa.

De um modo geral, a Odessa tem tido sucesso nas suas tarefas de impedir os esforços da Alemanha Ocidental para caçar e julgar os assassinos das SS. Esse sucesso se explica pela própria desumanidade das SS, que muitas vezes se exerce sobre os seus próprios elementos quando parecem a ponto de fazer uma confissão às autoridades, pelos erros dos Aliados entre 1945 e 1949, pela Guerra Fria e pela habitual covardia alemã em face de um problema moral, em flagrante contraste com a sua colagem diante de uma tarefa militar ou de uma questão técnica como a reconstrução da Alemanha de pós-guerra.

Quando Simon Wiesenthal terminou, Miller largou a caneta com a qual havia tomado copiosas notas e recostou-se na cadeira.

- Eu não fazia a menor idéia de nada disso, - murmurou

ele.

- Poucos alemães sabem disso - declarou Wiesehthal. - Na realidade, poucas pessoas sabem sequer da existência da Odessa. Quase não se pronuncia a palavra na Alemanha, e do mesmo modo que certos elementos do mundo do crime nos Estados Unidos negam categoricamente a existência da Máfia, qualquer ex-participante das SS negará a existência da Odessa. Para ser inteiramente franco, devo dizer que a palavra já não é usada tanto quanto antigamente. A nova palavra é a "Camaradagem", do mesmo modo como a Máfia nos Estados Unidos passou a ser chamada de "Cosa Nostra". Mas que vem a ser um nome? A Odessa ainda existe e existirá enquanto houver criminosos das SS que precisem de proteção.

- E acha que são esses os homens que estou enfrentando? - perguntou Miller.

- Tenho certeza disso. A advertência que lhe foi feita em Bad Godesberg não pode ter outra origem. Tenha cuidado que esses homens podem ser perigosos.

Mas Miller estava pensando em outra coisa.

- O senhor disse que Roschmann, quando desapareceu em 1955, precisaria de um novo passaporte?

- Certamente.

- Por que particularmente o passaporte?

Simon Wiesenthal reclinou-se na cadeira e fez um sinal de assentimento.

- Posso compreender perfeitamente a sua estranheza. Voulhe explicar. Depois da guerra, na Alemanha e aqui na Áustria, havia dezenas de milhares de homens que vagueavam sem documentos de identificação. Alguns os haviam realmente perdido e outros se tinham desembaraçado deles com motivos de sobra.

"Para obter novos documentos, seria normalmente necessário apresentar uma certidão de nascimento. Mas milhões haviam fugido de territórios alemães que tinham sido dominados pelos russos. Quem podia dizer se um homem nascera ou não numa pequena aldeia da Prússia Oriental, que estava a quilômetros atrás da Cortina de Ferro? Em outros casos, os prédios do registro civil tinham sido destruídos pelos bombardeios.

"Em vista disso, o processo era muito simples. Havia necessidade apenas de duas testemunhas que jurassem que a pessoa era o que dizia e um novo cartão de identidade pessoal era emitido. No caso dos prisioneiros de guerra, estes quase sempre não tinham documentos também.

Quando um prisioneiro deixava o campo, as autoridades inglesas ou americanas entregavam-lhe um papel que dizia  que o Cabo Johann Schumann tinha sido libertado de um campo de prisioneiros de guerra. Os soldados levavam esses papéis às autoridades civis, que expediam um cartão de identidade com o mesmo nome. Mas muitas vezes o homem tinha dito apenas aos Aliados que seu nome era Johann Schumann. Podia ser qualquer outro. Ninguém verificava. E assim o homem obtinha uma nova identidade.

"Isso foi logo depois da guerra e nessa ocasião a grande maioria dos criminosos das SS conseguiu nova identidade. Mas que poderia fazer um homem denunciado em 1955, como Roschmann? Não podia ir procurar as autoridades e dizer que perdera os seus papéis durante a guerra. Perguntar-lhe-iam certamente como ele conseguira viver sem documentos durante um período de dez anos. Precisava, portanto, de um passaporte.

- Até aí eu compreendo, - disse Miller. - Mas por que um passaporte? Não poderia conseguir uma carteira de motorista ou um cartão de identificação?

- Logo depois da fundação da república, as autoridades alemãs compreenderam que devia haver centenas de milhares de pessoas com falsas identidades. Havia necessidade de um documento que pudesse ser tão bem pesquisado que servisse de padrão a todos os outros. Escolheram então o passaporte. Para se conseguir um passaporte na Alemanha, é preciso apresentar a certidão de nascimento, várias referências e uma série de outros documentos. Tudo isso é completamente verificado antes que o passaporte seja emitido.

"Em compensação, uma vez obtido um passaporte, a garantia que o mesmo confere é absoluta. Assim é a burocracia. A apresentação do passaporte convence o funcionário público de que, desde que

outros burocratas já examinaram minuciosamente o portador do passaporte, nãohá mais necessidade de qualquer verificação. Com um novo passaporte, Roschmann podia facilmente conseguir o resto de sua documentação - carteira de motorista, contas de banco, cartões de crédito. O passaporte é o abre-te sésamo para todas as outras peças de documentação na Alemanha atual.

- Onde teria ele conseguido o passaporte?

- Na Odessa, é claro. Devem ter um falsificador muito hábil, - disse Wiesenthal.

- Se se encontrasse o falsificador, seria ele o homem capaz de identificar Roschmann como ele é hoje, não acha?

- Sem dúvida. Mas demoraria muito e seria quase impossível. Seria necessário penetrar na Odessa e só um homem que pertenceu às SS é capaz disso.

- Que é então que eu vou fazer agora? - perguntou Miller. - Creio que o seu melhor caminho é tentar entrar em contato com alguns dos sobreviventes de Riga. Não sei se eles poderiam ajudá-lo, mas sei com certeza que estariam dispostos a isso. Todos nós estamos querendo descobrir Roschmann. Veja...

Abriu o diário que estava em cima de sua mesa.

- Há uma referência aqui a uma certa Olli Adler, de Munique, que esteve na companhia de Roschmann durante a guerra. Pode ser que ela tivesse sobrevivido e voltasse para Munique.

Miller assentiu.

- Se ela voltou, onde poderia estar registrada?

- No Centro Comunitário Judaico. Ainda existe. Contém os arquivos da comunidade judaica de Munique depois da guerra. O que havia antes foi inteiramente destruído. Eu, no seu caso, tentaria lá. - Sabe o endereço?

Simon Wiesenthal procurou num caderno de endereços.

- Reichenbach Strasse, número vinte e sete, Munique - disse ele. - Creio que quer o diário de Salomon Tauber?

- Bem, naturalmente que quero.

- É uma pena. Eu gostaria de ficar com ele. É um diário notável.

Levantou-se e levou Miller até à porta.

- Felicidades, - disse ele, - e mande notícias do que conseguir.

Miller jantou naquela noite na Casa do Dragão Dourado, na Steindelgasse, que funcionava como cervejaria e restaurante sem interrupção desde 1566 e pensou na sugestão de Wiesenthal. Tinha pouca esperança de encontrar mais do que um punhado de sobreviventes de Riga na Alemanha ou na Áustria e ainda menos esperança de que pudessem ajudá-lo a descobrir a pista de Roschmann depois de novembro de 1955. Mas era de qualquer maneira uma esperança, a última.

Partiu na manhã seguinte para a viagem de carro até Munique.

 

Miller chegou a Munique no meio da manhã de 8 de janeiro e encontrou o nº  27 de Reichenbach Strasse graças a um mapa da cidade que comprara numa banca de jornal dos arredores. Estacionan do o carro na rua, observou o Centro Comunitário Judaico antes de entrar. Era um edifício de cinco andares. A fachada do térreo era de blocos de pedra nua; acima, as paredes dos óutros andares eram de cimento sobre tijolos. O último andar, o quinto, era marcado por uma série de janelas de água-furtada embutidas na cobertura de ladrilhos vermelhos. No andar térreo, havia no canto esquerdo do edifício uma porta dupla de vidro.

O edifício continha um restaurante kosher, o único em Munique, no andar térreo, além das salas de recreação do lar de velhos no andar imediatamente superior.. O terceiro andar continha os departamentos de administração e os arquivos, ao passo que nos dois últimos havia os quartos dos hóspedes e dos pensionistas do lar dos velhos. Nos fundos, havia uma sinagoga.

Todo o edifício foi destruído na noite de sexta-feira, 15 de fevereiro de 1970, quando jogaram bombas incendiárias no telhado. Sete pessoas morreram sufocadas pela fumaça. Suásticas foram pintadas nas paredes da sinagoga.

Miller subiu ao terceiro andar e apresentou-se no balcão de informações. Enquanto esperava, correu os olhos pela sala. Havia muitas estantes com livros, todos novos, pois a biblioteca original

fora muito tempo antes queimada pelos nazistas.       Entre as estantes da biblioteca, havia retratos de alguns dos líderes da comunidade judaica desde centenas de anos, professores e rabinos, que olhavam das molduras de trás de fartas barbas como as figuras dos profetas que ele tinha visto na escola nos livros de história bíblica.

Alguns usavam filactérios na fronte e todos estavam de chapéu.

Havia uma estante de jornais, alguns em alemão, outros em hebreu. Presumiu que estes últimos fossem mandados de avião de Israel. Um homem moreno e baixo estava olhando a primeira página de um deles.

- Em que posso servi-lo?

Miller se voltou para o balcão de informações e deparou com uma mulher de olhos pretos que devia andar por volta dos 45 anos. Havia uma mecha de cabelos que lhe caía sobre os olhos e que ela afastava nervosamente várias vezes por minuto.

Miller disse o que desejava. Havia qualquer indicação sobre Olli Adier ou Sally Hauser, que poderia ter voltado para Munique depois da guerra?

- De onde poderiam ter voltado? - perguntou a mulher. - De Magdeburgo. Antes disso, de Stutthof. Antes disso, de Riga.

- Oh, Riga! - exclamou a mulher. - Não creio que haja em nosso fichário ninguém que, voltasse de Riga. Desapareceram todos, sabe? Mas vou procurar.

Foi para uma sala mais ao fundo e Millerviu que ela consultava um fichário. Não era muito grande. Voltou cinco minutos depois. - Sinto muito. Mas nenhum dos nomes foi registrado aqui depois da guerra. Ambos os nomes são comuns. Mas nenhum deles está registrado.

- Compreendo. Parece que não adianta. Desculpe o incômodo. - Por que não tenta o Serviço Internacional de Busca? - perguntou a mulher. - O trabalho deles é justamente procurar pessoas desaparecidas. Eles têm listas de toda a Alemanha, ao passo que nós aqui só temos as listas das pessoas naturais de Munique que voltaram.

- Onde é esse Serviço de Busca? - perguntou Miller.

- É em Arolsen-in-Waldeck. Logo depois do Hanover, na Baixa Saxônia. É administrado pela Cruz Vermelha.

Miller pensou um pouco.

- Haveria alguém em Munique que tivesse estado em Riga? O homem que eu estou mesmo procurando é o antigo comandante de Riga.

Houve silêncio na sala. Miller percebeu que o homem que estava ao lado da estante de jornais se voltava para olhá-lo. A mulher pareceu mais bem disposta.

- É possível que haja algumas pessoas que tivessem estado em Riga e morem agora em Munique. Antes da guerra, havia 25.000 judeus em Munique. Cerca de um décimo voltou. Somos agora 5.000, a metade crianças nascidas depois de 1945.

Eu poderia encontrar alguém que tivesse estado em Riga. Mas teria de olhar toda a lista de sobreviventes. Os campos em que estiveram estão marcados na ficha de cada um. Pode voltar amanhã?

Miller pensou um pouco, sem saber se o melhor não seria desistir de tudo e voltar para casa. A procura estava chegando a um impasse

- Está bem, - disse ele afinal. - Voltarei amanhã. Muito obrigado por tudo.

Estava na rua e procurava no bolso as chaves do carro quando sentiu passos às suas costas.

- Perdão, - disse alguém.

Miller voltou-se. Era o homem que estava lendo- os jornais lá em cima.

- Está querendo informações sobre Riga? - perguntou o homem. - Sobre o comandante de Riga? Seria o  Capitão Roschmann? - De fato, - disse Miller. - Por quê?

- Estive em Riga, - disse o homem. - Conheci Roschmann. Talvez eu possa ajuda-lo.

O homem era baixo e magro, com mais de quarenta anos, olhos castanhos miúdos e o ar descabelado de um pardal molhado.

- Meu nome é Mordechai, - disse ele. - Mas todos me chamam Motti. Vamos tomar um café e conversar?

Encaminharam-se para um café próximo. Miller, um pouco vencido pelas maneiras francas do homem, explicou a sua caçada desde as ruas de Altona até o Centro Comunitário Judaico de Munique. O

homem escutou em silêncio, fazendo de vez em quando um sinal de assentimento.

- Que peregrinação! Mas posso saber por que você, um alemão, está tão empenhado em descobrir o paradeiro de Roschmann?

- E isso tem alguma importância? Já me fizeram tantas vezes essa pergunta que eu já estou ficando cansado. Que há de tão estranho em que um alemão se revolte com o que fizeram anos atrás? Motti encolheu os ombros.

- Nada. Acho apenas estranho que se tenha dado a todo esse trabalho. Quanto ao desaparecimento de Roschmann em 1955, acha mesmo que o novo passaporte dele lhe foi fornecido pela Odessa?

- Foi o que me disseram, - disse Miller. - E parece que a única maneira de encontrar o homem que falsificou o passaporte é penetrar na Odessa.

Motti olhou durante algum tempo para o jovem alemão à sua frente.

- Em que hotel está hospedado? - perguntou, afinal.

Miller disse que ainda não se hospedara em hotel algum. Mas havia um que já conhecia, pois se hospedara nele em outra ocasião. Por sugestão de Motti, foi até à caixa do café e telefonou para o hotel, reservando um quarto.

Quando voltou à mesa, Motti tinha desaparecido. Havia um bilhete preso debaixo do pires. Dizia: "Quer tenha alugado o quarto, quer não, esteja no salão de estar do hotel às oito horas da noite". Miller pagou os cafés e saiu.

Naquela mesma tarde, no seu escritório de advogado, o Lobisomem leu mais uma vez o relatório que lhe fora mandado pelo seu colega em Bonn, o homem que se apresentara uma semana antes a Miller como Dr. Schmidt.

O Lobisomem já recebera o relatório havia cinco dias, mas a sua cautela natural o levava a esperar e pensar bem antes de tomar alguma ação direta.

As últimas palavras que seu superior, o General Gluecks, lhe tinha dito em Madri em fins de novembro tiravam-lhe virtualmente qualquer liberdade de ação, mas como muitos homens de escritório tinha prazer em adiar o inevitável. Uma "solução permanente" tinham sido as ordens recebidas e ele sabia muito bem o que significava isso. E a fraseologia do "Dr. Schmidt" não lhe dava mais margem para manobras. Dizia ele:

"Um jovem teimoso, truculento e agressivo, certamente obstinado e com uma corrente de ódio pessoal e sincero sem qualquer explicação plausível para o Kamerad em questão, Eduard Roschmann. Não é provável que atenda à razão, mesmo em face da ameaça pessoal..."

O Lobisomem tornou a ler o relatório, deu um suspiro e pegou o telefone, pedindo à sua secretária Hilda uma linha para fora. Discou então um número em Düsseldorf.

Depois de várias chamadas, atenderam o telefone e uma voz disse:

- Pronto.

- Quero falar com Herr Mackensen, - disse o Lobisomem. A voz do outro lado do fio perguntou:

- Quem quer falar com ele?

Em lugar de responder diretamente, o Lobisomem deu a primeira parte de seu código de identificação.

- Quem foi maior que Frederico o Grande'? A voz do outro lado respondeu:

- Barba-Roxa. - Houve uma pausa e então a voz disse: - É Mackensen.

- Lobisomem, - disse o chefe da Odessa. - Acho que as férias acabaram. Há trabalho para fazer. Apareça aqui amanhã de manhã.

- A que horas? - perguntou Mackensen.

- Às dez horas. Diga à minha secretária que seu nome é Keller. Marcarei hora para você.

Desligou o telefone. Em Düsseldorf, Mackensen levantou-se e foi para o banheiro de seu apartamento a fim de tomar banho e fazer a barba. Era um homem corpulento e forte, que tinha sido sargento da divisão Das Reich das SS e que aprendera a matar enforcando reféns franceses em Tulle e Limoges até 1944.

Depois da guerra, havia dirigido um caminhão para a Odessa, levando cargas humanas para o sul, através da Alemanha e da Áustria, até à província italiana do Tirol Meridional. Em 1946, uma patrulha

americana desconfiada o fizera parar e ele matara os quatro ocupantes do jipe, dois deles com as mãos desarmadas. Daí por diante, vivia também escondido.

Empregado depois como guarda-costas por figuras importantes da Odessa, recebera a alcunha de "Mack da Faca", embora nunca usasse uma faca, preferindo a força de suas mãos de açougueiro para estrangular ou partir o pescoço de suas "missões".

Subindo de conceito junto aos seus superiores, tinha-se tornado por volta de 1955 o carrasco da Odessa, o homem em quem podiam confiar para eliminar tranqüila e discretamente os que se aproximavam muito dos cabeças da organização ou os companheiros que resolviam denunciar os seus camaradas. Em janeiro de 1964, tinha cumprido doze missões dessa espécie.

O telefonema chegou pontualmente às oito horas. Foi atendido pelo empregado do balcão de recepção que chegou à porta do salão de estar onde Miller estava assistindo à televisão.

Reconheceu a voz do outro lado do fio.

- Herr Miller? Sou eu, Motti. Creio que posso ajudá-lo. Ou melhor, alguns amigos podem. Quer conhecê-los?

- Quero conhecer qualquer pessoa que me possa ajudar, - disse Miller, um pouco intrigado com as manobras.

- Muito bem, - disse Motti. - Saia de seu hotel e vire à esquerda na Schiller Strasse. Duas ruas depois, no mesmo lado, há um café chamado Lindemann. Estarei à sua espera lá.

- Quando? Agora?

- Sim, agora. Eu devia ir ao hotel, mas estou com meus amigos aqui. Venha já.

Desligou. Miller pegou o sobretudo e saiu do hotel. Virou para a esquerda e seguiu pelo passeio. A meio quarteirão do hotel, sentiu que lhe chegavam alguma coisa às costas, ao mesmo tempo que um carro encostava ao meio-fio.

- Entre aí atrás, Herr Miller, - disse-lhe uma voz ao ouvido.

A porta ao lado dele foi aberta e ante uma última pressão do homem às suás costas, Miller baixou a cabeça e entrou no carro. Havia um homem sentado à direção e outro no banco de trás, que se afastou um pouco para dar lugar a Miller. O homem que estava atrás dele entrou no carro também, a porta foi fechada e o carro se afastou. O coração de Miller estava batendo aceleradamente. Olhou para os três homens que estavam no carro com ele, mas não reconheceu nenhum. O homem à sua direita, que abrira a porta para ele entrar, foi o primeiro a falar.

- Vou vendar-lhe os olhos, - disse ele. - Não queremos que veja para onde vai.

Miller sentiu uma espécie de meia preta ser-lhe enfiada pela cabeça, até cobrir-lhe o nariz. Lembrou-se dos frios olhos azuis do homem do Hotel Dreesen e pensou no que o homem de Viena lhe dissera: "Tenha cuidado que os homens da Odessa podem ser perigosos". Lembrou-se então de Motti e estranhou que um deles estivesse lendo um jornal hebraico no Centro Comunitário Judaico.

O carro rodou durante vinte e cinco minutos e então diminuiu a marcha e parou. Ouviu um portão ser aberto. O carro tornou a andar e parou novamente. Ajudaram-no a saltar e, com um homem de cada lado, foi levado através de um pátio. Por um momento, sentiu no rosto o ar frio da noite e entrou levado por alguns degraus abaixo para o que lhe pareceu um porão. Mas o ar era quente e a cadeira em que o fizeram sentar-se era estofada.

Ouviu alguém dizer: - Tirem-lhe a venda.

A meia que lhe cobria a cabeça foi retirada. Piscou os olhos enquanto se habituava à luz.

A sala era evidentemente subterrânea porque não tinha janelas. Mas um extrator de ar zumbia no alto de uma parede. A sala era bem decorada e confortável, servindo evidentemente como uma sala de reuniões porque havia uma grande mesa com oito cadeiras. O resto da sala era um espaço aberto, onde se viam cinco poltronas. No centro, havia um tapete circular e uma mesa de café.

Motti estava de pé junto à mesa, sorrindo quase como se pedisse desculpas. Os dois homens que o tinham levado, ambos fortes e de meia-idade, estavam sentados nos braços das poltronas. Bem à frente dele, do outro lado da mesa de café, estava o quarto homem. Miller pensou que o motorista devia ter ficado em cima para vigiar. O quarto homem era evidentemente quem comandava. Estava sentado calmamente na sua poltrona, enquanto os outros três ficavam de pé ou sentados nos braços das poltronas em torno dele. Miller julgou que o homem devia ter sessenta anos. Era magro, com rosto encovado e nariz fortemente aquilino. Mas os olhos é que preocuparam Miller. Eram castanhos e bem sumidos no fundo das órbitas, mas eram olhos penetrantes e vivos, os olhos de um fanático. Foi ele quem falou.

- Seja bem-vindo, Herr Miller. Peço-lhe desculpas pela estranha maneira com que foi trazido à minha casa. A razão para isso é que, se não quiser aceitar a proposta que lhe vai ser feita, será devolvido ao seu hotel e não saberá mais de nossa existência.

- Herr Miller, há quem pense que os assassinos de nosso povo devem ser levados a julgamento. Não concordamos com isso. Pouco depois da guerra, estive conversando com um oficial inglês que me disse uma coisa que tem norteado minha vida desde então: "Se tivessem assassinado seis milhões de pessoas do meu povo, eu construiria também um monumento de crânios. Não os crânios dos que morreram nos campos de concentração, mas, sim, dos que os levaram para lá". Uma lógica muito simples, Herr Miller, mas muito convincente. Eu e meu grupo somos homens que resolveram ficar na Alemanha depois de 1945 com um único objetivo em mente, vingança. Pura e simplesmente vingança. Não os julgamos, Herr Miller, nós os matamos como porcos. Não são outra coisa. Meu nome é Leon.

Leon interrogou Miller durante quatro horas até ficar convencido da autenticidade do repórter. Como outros, a motivação o deixava perplexo, mas tinha de reconhecer que era possível que a razão fosse a dada por Miller, a sua revolta em face do que as SS fizeram durante a guerra. Quando acabou, Leon recostou-se na cadeira e olhou durante muito tempo para Miller.

- Meu amigo aqui, - disse ele, apontando para Motti, - me informou que, por motivos que lhe pertencem pessoalmente, está à procura de um certo Eduard Roschmann. E também que para che gar até ele estaria disposto a penetrar na Odessa. Para fazer isso, teria necessidade de ajuda. Muita ajuda. Entretanto, talvez consultasse os nossos interesses tê-lo dentro da Odessa. Podemos, portanto, estar dispostos a ajudá-lo. Está prestando atenção?

Miller olhou-o com espanto e disse por fim:

- Escute, está tentando dizer-me que não é da Odessa? O homem ergueu as sobrancelhas.

- está vendo as coisas pelo avesso.

Inclinou-se para a frente e arregaçou a manga do braço esquerdo. Havia no braço um número tatuado com tinta preta.

- Auschwitz, - disse o homem. Em seguida, apontou para os

dois homens que ladeavam Miller. - Buchenwald e Dachau. - Apontou para Motti. - Riga e Treblinka. Desceu a manga e continuou:

- Sabe como é arriscado tentar penetrar na Odessa, Herr Miller? - perguntou ele afinal.

- Posso calcular, - disse Miller.     Antes de mais nada, sou moço demais para que possa ter pertencido às SS.

Leon sacudiu a cabeça.

- Não há a menor chance de tentar convencer os homens das SS de que era um deles com o seu nome verdadeiro. Em primeiro lugar, eles têm relações dos antigos participantes das SS e o nome de Peter Miller não consta delas. Depois, terá de ter no mínimo mais dez anos. Isso é possível, mas exige outra identidade que seja verdadeira, isto é, de um homem que tenha realmente existido e tenha sido das SS. Só isso exige muita pesquisa de nossa parte e a perda de muito tempo e trabalho.

- Acha que poderá encontrar um homem assim? Leon encolheu os ombros.

- Tem de ser um homem cuja morte não possa ser verificada. Antes que a Odessa aceite um homem, ele tem de passar por uma série de testes. Terá de passar em todos eles. Terá também de passar cinco ou seis semanas com um homem que tenha realmente pertencido às SS e que lhe poderá ensinar as crenças, os termos técnicos, a fraseologia e os padrões de comportamento. Felizmente, conhecemos um homem assim.

- Por que iria ele fazer tal coisa?

- O homem que tenho em vista é um tipo muito estranho. É um genuíno capitão das SS que se arrependeu sinceramente do que fez. Sentiu remorsos. Mais tarde, integrou-se na Odessa e transmitiu às autoridades informações sobre nazistas procurados. Estaria fazendo isso ainda, mas foi descoberto e teve sorte de escapar com vida. Vive agora com um novo nome numa casa nos arredores de Bayreuth.

- Que mais teria eu de aprender?

- Tudo sobre sua nova identidade. Onde nasceu, data de nascimento, como entrou para as SS, onde foi adestrado, onde serviu, qual a unidade, qual o comandante e toda a sua história do fim da guerra em diante. Terá de ser também abonado por alguém. Não será fácil. Muito tempo e trabalho terão de ser gastos com sua pessoa, Herr Miller. E, uma vez que tiver começado, não poderá mais recuar.

- Qual é o seu interesse nisso? - perguntou Miller, desconfiado.

Leon levantou-se e começou a passear de um lado para outro no tapete.

- Vingança. Como o senhor, queremos Roschmann. Mas queremos ainda mais. Os piores assassinos das SS estão vivendo com nomes falsos. Queremos esses nomes. Esse é que é nosso interesse.

E mais uma coisa. Precisamos saber quem é o novo encarregado do rrecrutamento para a Odessa de cientistas alemães que estão sendo mandados para o Egito a fim de trabalharem nos foguetes de Nascer. O anterior, Brandner, renunciou e desapareceu no ano passado depois que enfrentamos o assistente dele, Heinz Krug. Têm agora outro.

- Isso parece mais informação útil para o serviço secreto israelense - disse Miller.

Leon olhou-o fixamente e disse:

- E é. De vez em quando, cooperamos com eles, mas sem qualquer relação de subordinação.

- Já tentaram colocar seus homens dentro da Odessa? - perguntou Miller.

Leon fez um sinal afirmativo e disse: - Duas vezes.

- Que foi que aconteceu?

- O primeiro foi encontrado boiando num canal sem as unhas. O segundo desapareceu sem deixar vestígios. Ainda quer prosseguir?

Miller não tomou conhecimento da pergunta.

- Se têm métodos tão eficientes, por que esses homens foram apanhados?

- Eram ambos judeus, - disse Leon. - Tentamos tirar as tatuagens dos campos de concentração dos braços deles, mas as cicatrizes ficaram. Além disso, eram ambos circuncidados. Foi por isso

que fiquei interessado quando Motti me disse que um genuíno alemão ariano tinha raiva das SS. Por falar nisso, é circuncidado?

- E isso tem importãncia? - perguntou Miller.

- É claro que tem. O fato de um homem ser circuncidado não prova que ele é judeu. Muitos alemães o são também. Mas se um homem não é circuncidado, isso prova mais ou menos que não é judeu. - Não sou, - disse Miller.

Leon deu um longo suspiro de alívio.

- Desta vez, eu acho que poderemos ter sucesso, - disse ele. Já passava muito da meia-noite. Leon olhou para o relógio. - Já comeu? - perguntou a Miller. O repórter sacudiu a cabeça. - Motti, alguma coisa para nosso hóspede comer.

Motti sorriu e fez um sinal afirmativo. Desapareceu pela porta do porão e subiu para a casa.

- Terá de passar a noite aqui, - disse Leon a Miller. - Faremos uma cama para você aqui. Peço-lhe que não tente sair. A porta tem três fechaduras e todas serão trancadas pelo lado de fora.

Dê-me as chaves de seu carro e eu mandarei trazê-lo para cá. Será melhor que ele fique fora de circulação durante as próximas semanas. A sua conta de hotel será paga e sua bagagem será trazida para aqui.

Amanhã, deverá escrever cartas a sua mãe e a sua amiguinha, explicando que ficará ausente e sem escrever ou telefonar pelo espaço de algumas semanas ou mesmo de alguns meses. Entendido?

Miller assentiu e entregou as chaves de seu carro. Leon entregouas a um dos outros dois homens, que saiu calmamente.

- Amanhã, vamos levá-lo de carro para Bayreuth e ficará então conhecendo o nosso oficial das SS. Chama-se Alfred Oster. É o homem com quem vai viver. Tomarei todas as providências. Agora,

dê-me licença. Tenho de começar a procurar um novo nome e uma nova identidade para você.

Levantou-se e saiu. Motti apareceu logo depois com um prato de comida e meia dúzia de cobertores. Enquanto comia a galinha assada com salada de batatas, Miller pensou com uma ponta de receio na aventura em que se estava metendo.

Muito ao norte, no Hospital Geral de Bremen, um enfermeiro de plantão estava fiscalizando a sua enfermaria pela madrugada. Em torno de uma cama no fundo da sala, havia um biombo que isolava o doente do resto da enfermaria.

O enfermeiro, um homem de meia-idade chamado Hartstein olhou por trás do biombo o doente na cama. Estava imóvel. Sobre a sua cabeça, uma luz fraca estava acesa por toda a noite. O enfermeiro aproximou-se da cama e tomou o pulso do doente. Não o em controu.

Olhou para o rosto devastado da vítima do câncer e uma coisa que o homem tinha dito no seu delírio três dias antes fez o enfermeiro levantar dos cobertores o braço esquerdo do morto. Havia um número tatuado na axila do homem. Era o grupo sanguíneo do morto, um sinal certo de que-o mesmo havia pertencido às SS. A razão para a tatuagem era que os homens das SS eram considerados no Reich mais valiosos do que os soldados comuns, de modo que, quando feridos, recebiam sempre em primeiro lugar o plasma que estivesse disponível. Isso explicava o grupo sanguíneo tatuado.

O enfermeiro Hartstein cobriu o rosto do morto e olhou na gaveta da mesa de cabeceira. Apanhou a carteira de motorista que tinha sido colocada ali com outros objetos pessoais quando o homem fora internado depois de sofrer um colapso no meio da rua. Pertencia a um homem de cerca de trinta e nove anos, nascido a 18 de junho de 1925 e chamado Rolf Gunther Kolb.

O enfermeiro guardou a carteira no bolso de seu casaco branco e foi comunicar o óbito ao médico de plantão.

 

Peter Miller escreveu as cartas a sua mãe e a Sigi sob o olhar vigilante de Motti, tendo acabado pelo meio da manhã. A bagagem tinha chegado do hotel, a conta fora paga e pouco antes do meio dia os dois, em companhia do mesmo motorista da noite anterior, partiram para Bayreuth.

Com um instinto de repórter, Miller olhou para as placas do Opel azul que substituíra o Mercedes usado na noite anterior. Motti, ao lado dele, notou o olhar e sorriu.

- Não se preocupe, - disse ele. - É um carro alugado com um nome falso.

- É muito bom saber que se está entre profissionais, - disse Miller.

Motti encolheu os ombros.

- É preciso. Não há outra maneira de continuar com vida quando se enfrenta a Odessa.

A garagem tinha dois compartimentos e Miller viu que o seu Jaguar estava no segundo. A neve meio derretida da noite anterior tinha formado poças de água debaixo das rodas e a lustrosa carroçaria preta brilhava sob a luz elétrica.

Logo que Miller se sentou na parte de trás do Opel, a meia preta lhe foi enfiada pela cabeça e ele teve de encolher-se no chão enquanto o carro saía da garagem, transpunha o portão do pátio e chegava à rua. Motti conservou-lhe a venda até que estivessem bem longe de Munique e seguindo rumo ao norte pela autobahn E-6, para Nuremberg e Bayreuth.

Quando ficou finalmente sem a venda, Miller ficou sabendo que tinha havido durante a noite outra pesada nevada.

A ondulante região  de florestas onde a Baviera se une à Francônia estava coberta de uma camada uniforme de brancura, que arredondava as árvores sem fo lhas das florestas de faias que marginavam a estrada. O motorista era lento e cauteloso e os limpadores de pára-brisa funcionavam sen cessar para limpar os vidros dos flocos esvoaçantes e da neve arremessada pelas rodas dos caminhões.

Almoçaram numa hospedaria à beira da estrada em Ingolstadt continuaram para contornar Nuremberg e chegaram a Bayreuth uma hora depois.

Situada no coração de uma das mais belas regiões da Alemanha cognominada a Suíça Bávara, a cidadezinha de Bayreuth tinha apenas um título à fama, o seu festival anual de música wagneriana Em outros tempos, a cidade se orgulhara de hospedar quase toda a hierarquia nazista, que ali descia na esteira de Adolf Hitler, admirador intransigente do compositor que imortalizara os heróis da mitologia nórdica.

Mas em janeiro era uma cidadezinha quieta, amortalhada na neve e com as coroas de azevinho do Natal só poucos dias antes retiradas das portas de suas casas limpas e bem cuidadas. Encontraram a casa de Alfred Oster numa calma estrada secundária dois quilômetros adiante da cidade e não havia outro carro à vista na estrada quando o pequeno grupo chegou à porta da casa.

O ex-oficial das SS estava à espera deles. Era um homem gran de e rude, de olhos azuis e um chumaço de cabelos ruivos no alto do crânio. Apesar da estação, tinha o tom sadio e corado dos homens que passam a vida nas montanhas, entre o vento, o sol e o ar sem poluição.

Motti fez as apresentações e entregou a Oster uma carta de Leon,  O bávaro leu-a e fez um sinal de assentimento, olhando lon gamente para Miller.

- Bem, podemos sempre tentar, - disse ele. - Quanto tempo  ele pode ficar comigo?

- Ainda não sabemos, - disse Motti. - Evidentemente, deve ficar até estar pronto. Será necessário também encontrar uma nova identidade para ele. Nós lhe comunicaremos o que houver. Poucos minutos depois, partiu.

Oster levou Miller para a sala e fechou as cortinas ante o crepúsculo que caía antes de acender a luz.

- Quer então passar por um ex-homem das SS, não é? - perguntou ele.

- Exatamente, - disse Miller.

- Muito bem. Começaremos por alguns fatos básicos. Não sei onde foi que fez o seu serviço militar, mas deve ter sido na confusão indisciplinada e democrática que se chama agora o novo exército alemão. É este o primeiro fato.

Esse novo exército alemão teria durado exatamente dez segundos diante de qualquer regimento de elite dos ingleses, dos americanos ou dos russos durante a última guerra, ao passo que as Waffen-SS, homem por homem, podiam bater sem apelação um número de Aliados cinco vezes superior.

"E o segundo fato é este. As Waffen-SS foram o grupo de soldados mais resistente, mais bem treinado, mais disciplinado, mais enérgico e mais apto que já entrou em combate na história deste planeta. Podiam ter feito o que fizessem, mas isso é indiscutível. Portanto, aprune-se, Miller! Enquanto estiver nesta casa, o processo será este.

"Quando eu entrar numa sala, você saltará em posição de sentido. Mas saltará mesmo, ouviu? Quando eu passar, baterá os calcanhares e ficará em posição de sentido até que eu esteja a cinco passos de distância. Quando eu lhe disser alguma coisa que precise de uma resposta, dirá:

"Jawohl, Herr lauptsturmfuehrer."

"E quando eu lhe der uma ordem ou instrução, terá de dizer: "Zu Befehl, Herr Hauptsturmfuehrer".

"Entendeu bem?

Miller fez, cheio de espanto, um sinal afirmativo.

- Bata os calcanhares, - gritou Oster. - Quero ouvir o barulho do couro. Desde que não temos muito tempo, começaremos logo esta noite. Antes do jantar, estudaremos toda a hierarquia, de soldado raso a general. Tem de aprender os títulos, os tratamentos e as insígnias da gola de todos os postos e patentes que já existiram. Passaremos então aos vários tipos de uniformes usados, as diversas seções das SS e as suas diferentes insígnias e as ocasiões em que os uniformes de gala, completo, de passeio e de trabalho deviam ser usados.

"Depois disso, vou-lhe dar todo o curso político-ideológico que você teria feito no campo de treinamento das SS em Dachau, se tivesse estado lá. Depois, aprenderá as canções de marcha, as canções de bebida e as canções das várias unidades.

"Posso ensinar-lhe tudo até sua partida do campo de treinamento para o primeiro posto. Depois disso, Leon terá de me dizer qual foi a unidade em que você supostamente serviu, onde trabalhou, qual foi seu comandante, que foi que lhe aconteceu ao fim da guerra e como você passou o tempo depois de 1945. Entretanto, a primeira parte do treinamento levará de duas a três semanas e será um curso intensivo.

"Agora, um aviso. Não pense que isto é uma brincadeira. Se você conseguir entrar na Odessa, sabendo quem são os chefes, e cometer um erro por menor que seja, acabará dentro de um canal. Não sou propriamente um frouxo, mas, depois de trair a Odessa, aqui estou eu correndo deles com medo. É por isso que vivo aqui escondido, com um nome falso.

Pela primeira vez desde que começara a sua caçada de Eduard Roschmann, Miller pensou que talvez já tivesse ido longe demais.

Mackensen apresentou-se ao Lobisomem às dez horas em ponto. Quando a porta da sala onde Hilda trabalhava foi seguramente fechada, o Lobisomem fez o carrasco sentar-se na cadeira dos clientes em frente à sua mesa e acendeu um charuto.

- Há uma certa pessoa, um repórter, que está muito curioso a respeito do paradeiro e da nova identidade de um de nossos camaradas, - começou ele.

O carrasco fez um gesto de compreensão. Não era a primeira vez que via as instruções que lhe davam começarem dessa maneira.

- Na ordem natural das coisas. - continuou o Lobisomem - não daríamos maior importância ao caso, convencidos de que o repórter desistiria por falta de sucesso nas suas investigações ou por que o homem procurado não merecia que fizéssemos esforços dispendiosos e arriscados para salvá-lo.

- Mas dessa vez é diferente? - perguntou Mackensen calmamente.

O Lobisomem assentiu, com o que pareceria ser um sincero pesar. - É, sim. Por falta de sorte nossa, em vista das dificuldades causadas, dele porque perderá a vida. esse repórter tocou sem saber num nervo sensível. Em primeiro lugar, o homem que ele está procurando é de importância essencial para nós e para os nossos planos a longo prazo. Depois, o repórter de que estamos falando parece ser um tipo muito estranho - inteligente, tenaz, engenhoso e infelizmente, segundo tudo indica, empenhado em obter uma espécie de vingança pessoal do Kamerad.

- Há algum motivo para isso? - perguntou Mackensen. A perplexidade do lobisomem se lhe revelou na testa franzida. Bateu a cinza do charuto e respondeu:

- Não conseguimos compreender qual possa ser o motivo, mas é evidente que existe. O homem a quem ele está procurando tem antecedentes que poderiam suscitar certas antipatias entre o judeus e os amigos deles. Comandou um gueto em Ostland. Algumas pessoas, especialmente os estrangeiros, se negam a reconhecer a justificação que tivemos para agir como agimos. O estranho a respeito desse repórter é que não se trata de um estrangeiro, de um judeu, de um esquerdista, nem de um desses tipos reconhecidos de campeões da consciência, que falam sem conseguir produzir mais do que vento e pipi.

"Mas esse homem é diferente. É um jovem alemão, ariano, filho de um herói da guerra e nada há em seus antecedentes capaz de sugerir um ódio profundo contra nós, nem tamanha obsessão na procura de um Kamerad, mesmo depois de receber uma advertência clara e firme para desistir do caso. É com algum pesar que ordeno a sua morte. Mas não tenho outro remédio e é o que devo fazer.

- Matá-lo? - perguntou Mack da Faca. - Matá-lo.

- Onde está?

- No momento, não se sabe.

O Lobisomem pegou duas folhas datilografadas e passou-as por cima da mesa ao outro.

- É esse o homem. Peter Miller, repórter e investigador. Foi visto pela última vez no Hotel Dreesen, em Bad Godesberg. Não deve estar mais por lá, mas é um bom lugar para começar. O outro lugar seria o apartamento dele, onde vive com uma amiguinha. Você pode apresentar-se como um homem de uma das grandes revistas para as quais ele normalmente trabalha. Assim sendo, a pequena poderá dizer-lhe alguma coisa se souber do paradeiro dele. Dirige um carro que chama muito a atenção. Você encontrará aí todos os detalhes.

- Vou precisar de dinheiro, - disse Mackensen.

O Lobisomem previra a solicitação e empurrou por cima da mesa um maço de notas em que havia 10.000 marcos.

- Qúais são as ordens? - perguntou o assassino. - Encontrar e matar - disse o Lobisomem.

Só a 13 de janeiro a notícia da morte, cinco dias antes em Bremen, de Rolf Gunther Kolb chegou a Leon em Munique. A carta de seu representante no Norte da Alemanha era acompanhada da carteira de motorista do morto.

Leon verificou o posto e o número do homem na lista que tinha de homens das SS, verificou a lista de homens procurados pela Alemanha Ocidental e viu que o nome de Kolb não constava dela, passou algum tempo olhando o retrato na carteira de motorista do homem e chegou a uma decisão.

Telefonou para Motti, que estava de plantão na central telefônica onde trabalhava, e seu assistente lhe comunicou o telefonema logo que o seu turno terminou. Leon abriu a carteira de motorista de Kolb diante dele.

- É este o homem de que precisamos, - disse ele. - Era um sargento de estado-maior aos dezenove anos, tendo sido promovido pouco antes do fim da guerra. Deviam estar lutando com muita escassez de pessoal.

O rosto de Kolb e o de Miller são muito diferentes, ainda que Miller pudesse ser disfarçado, o que é um processo que não é muito de meu agrado. Por mais que se faça, a maquilagem é sempre visível quando olhada de perto.

"Mas a altura e o corpo combinam com Miller. Em vista disso, precisamos de uma nova fotografia. Isso pode esperar. Para cobrir a fotografia, vamos precisar de um carimbo do Departamento do Trânsito da polícia de Bremen. Trate disso.

Quando Motti saiu, Leon discou o número de um telefone em Bremen e deu novas ordens.

- Muito bem, - disse Alfred Oster a seu aluno. - Agora, vamos ver as canções. Já ouviu o Horst Wessel?

- É claro, - disse Miller. - Era a marcha nazista. Oster trauteou os primeiros compassos.

- Eu me lembro de tê-la ouvido muitas vezes. Só não sei a letra.

- Está bem, - disse Oster. - Tenho de lhe ensinar uma dúzia de canções, pois pode ser que lhe perguntem. Mas esta é a mais importante. Pode ser até que tenha de cantá-la em voz baixa, quando estiver entre os Kameraden. Não a conhecer seria uma sentença de morte. Agora cante comigo...

"As bandeiras estão erguidas, as fileiras estão cerradas..." Era o dia 18 de janeiro.

Mackensen tomava um coquetel no bar do lotei Schweizer Hotel em Munique e pensou na fonte de suas preocupações, Miller, o repórter, cujo rosto e cujos detalhes pessoais estavam gravados em sua cabeça. Sendo um homem metódico, Mackensen procurara até os agentes principais do Jaguar na Alemanha Ocidental e obtivera deles uma série de fotografias de publicidade do Jaguar XK 150 esporte, de modo que sabia o que estava procurando. O problema era que não conseguia encontrá-lo.

A pista em Bad Godesberg tinha prontamente levado ao aeroporto de Colônia e à informação de que Miller tinha ido a Londres de avião e voltara trinta e seis horas depois por ocasião do Ano Novo. Em seguida, ele e seu carro haviam desaparecido.

As investigações no apartamento dele tinham levado a uma conversa com sua bela e alegre amiguinha, mas ela só pudera apresentar uma carta com carimbo de Munique em que Miller dizia que estaria ausente durante algum tempo.

Havia uma semana que Munique representava um impasse. Mackensen tinha procurado em todos os hotéis, , em todos os locais de estacionamento públicos e particulares, nas garagens que prestavam serviços de mecânico e nos postos de gasolina. Nada. O homem a quem procurava parecia ter desaparecido da face da terra.

Acabando de tomar o seu coquetel, Mackensen saiu do bar e foi telefonar para o Lobisomem. Embora ele não soubesse disso, estava apenas a 1.200 metros do Jaguar preto com as listras amarelas, guardado no pátio murado da loja de antiguidades e da casa em que Leon vivia e de onde dirigia a sua organização pequena e fanática.

No Hospital Geral de Bremen, um homem de casaco branco entrou na sala do arquivo. Tinha um estetoscópio em torno do pescoço, que era quase a insígnia do cargo de um novo interno.

- Preciso de ver a ficha médica de um de nossos doentes. O nome é Rolf Gunther Kolb, - disse ele à arquivista.

A mulher não reconheceu o interno, mas isso não queria dizer nada. Havia dezenas deles que trabalhavam no hospital. Procurou o nome num fichário, teve a indicação do armário onde estava a pasta, foi buscá-la e entregou-a ao interno. Nesse momento, o telefone tocou e ela tratou de atender.

O interno sentou-se numa das cadeiras e folheou a pasta. Dizia simplesmente que Kolb tivera um colapso no meio da rua, sendo trazido pela ambulância. Um exame tinha diagnosticado uma forma virulenta e fatal de câncer do estômago. Tinha sido tomada a decisão de não operar. O paciente recebera um tratamento com vários medicamentos sem qualquer esperança, sendo-lhe depois ministrados analgésicos. A última folha da pasta dizia apenas:

"O paciente morreu na noite de 8 para 9 de janeiro. Causa nuortis: carcinoma do intestino grosso. Não se apresentaram parentes. O laudo da autópsia foi entregue ao necrotério municipal a 10 de janeiro".

A folha tinha a assinatura do médico encarregado do caso.

O novo interno tirou a última folha da pasta e colocou uma nova em seu lugar. Esta dizia:

"Apesar do estado grave do paciente no momento da admissão, o carcinoma reagiu a um tratamento quimioterápico e entrou em regressão. O paciente foi considerado em condições de ser removi do a 16 de janeiro. A seu pedido, foi levado de ambulância para convalescença na Clínica Arcádia, em Delmenhorst".

A assinatura era uma garatuja ilegível.

O interno devolveu a pasta à arquivista, agradeceu com um sorriso e saiu da sala. Era o dia 22 de janeiro.

Três dias depois, Leon recebeu uma informação que se ajustou perfeitamente no último claro de seu jogo de armar particular. Um empregado numa agência de turismo no Norte da Alemanha mandara dizer que um certo proprietário de padaria em Bremerhaven tinha confirmado a sua reserva de passagens para ele e sua mulher num cruzeiro de inverno. O casal iria fazer uma excursão de quatro semanas pelas Antilhas, devendo partir de Bremerhaven no domingo, 16 de fevereiro. Leon sabia que o homem tinha sido coronel das SS durante a guerra e, depois, um integrante da Odessa. Deu ordem a Motti de comprar um manual sobre a arte de fazer pão.

O Lobisomem estava atônito. Havia quase três semanas que havia dado aos seus representantes nas principais cidades da Alemanha a ordem de ficarem atentos à procura de um homem chamado Miller e de um Jaguar esporte preto. O apartamento e a garagem estavam sob observação e uma visita fora feita a uma senhora de meia-idade em Osdorf, que se limitara a dizer que não sabia onde o filho estava. Vários telefonemas tinham sido dados a uma moça chamada Sigi, sob o disfarce de que eram do diretor de uma grande revista que tinha um trabalho muito rendoso para Miller, mas a moça tinha dito também que não sabia onde ele estava.

Tinham sido também feitas investigações no banco dele em Munique, mas Miller não havia sacado cheques desde novembro. Em suma, tinha desaparecido. Era já o dia 28 de janeiro e, contra sua vontade, o Lobisomem se viu obrigado a dar um telefonema. Com pesar, tirou o fone do gancho e fez a lìgação.

Muito longe dali, no alto das montanhas, um homem desligou o telefone meia hora depois e praguejou violentamente durante vários minutos. Era uma noite de sexta-feira e ele mal havia chegado à sua casa de campo para dois dias de descanso quando o telefone tinha tocado.

Foi até à janela do seu escritório elegantemente mobiliado e olhou para fora. A luz da janela se estendia através do espesso tapete em torno da casa e chegava até aos pinheiros que cobriam a maior parte da propriedade.

Tinha sempre querido viver assim, numa bela casa, numa propriedade nas montanhas desde que, em criança, tinha visto durante as férias de Natal as casas dos ricos nas montanhas em torno de Gratz. Agora, estava de posse de uma casa assim e isso lhe era muito agradável.

Era melhor do que a casa de um operário de cervejaria, na qual se criara;  era melhor do que a casa de Riga onde vivera durante quatro anos; era melhor do que um quarto mobiliado em Buenos Aires ou do que um quarto de hotel no Cairo. Era o que ele sempre tinha desejado.

O telefonema que acabara de receber havia-o perturbado. Dissera à pessoa que havia telefonado que não notara ninguém perto de sua casa, nem da fábrica e que ninguém fizera perguntas a respeito dele. Mas estava preocupado. Miller? Quem diabo era esse Miller? Os protestos feitos pelo telefone de que o homem seria controlado só parcialmente lhe haviam atenuado a ansiedade. A seriedade com que a pessoa que telefonara e seus colegas encaravam a ameaça que Miller representava se traduzia na decisão de mandar-lhe um guarda-costas no dia seguinte para servir-lhe de chofer e ficar com ele até nova ordem.

Fechou as cortinas do escritório, obliterando a paisagem de inverno. A porta pesadamente acolchoada abafava todos os sons vindos do resto da casa. O único som que havia na sala era o crepitar dos troncos de pinheiros frescos na lareira, com a sua alegre claridade emoldurada pela grande lareira de ferro fundido com os seus enfeites de folhas e arabescos, uma das coisas que conservara quando tinha comprado e modernizado a casa.

A porta se abriu e sua mulher mostrou a cabeça. - O jantar está pronto, - disse ela.

- Já vou, querida, - disse Eduard Roschmann.

Na manhã seguinte, sábado, Oster e Miller foram perturbados pela chegada de um grupo de Munique. No carro, tinham vindo Leon e Motti, o motorista e outro homem com uma mala preta.

Quando chegaram à sala, Leon disse ao homem da mala: - É melhor ir ao banheiro e preparar o seu material.

O homem fez um sinal afirmativo e subiu. O motorista tinha ficado no carro.

Leon sentou-se à mesa e pediu a Oster e a Miller que tomassem os seus lugares. Motti ficou junto à porta, tendo na mão uma máquina fotográfica com fluslr.

Leon passou às mãos de Miller uma carteira de motorista sem a fotografia.

- É esse quem você vai ser, - disse Leon. - Rolf Gunther Kolb, nascido a 18 de junho de 1925. Isso lhe daria ao fim da guerra dezenove anos, quase vinte. E trinta e oito anos agora. Você nasceu e foi criado em Bremen. Entrou para a Juventude Hitlerista aos dez anos de idade, em 1935, e para ás SS em janeiro de 1944 com dezoito anos. Pai e mãe mortos. Morreram durante um ataque aéreo aos cais de Bremen, em 1944.

Miller olhou para a carteira de motorista em sua mão.

- E a carreira dele nas SS? - perguntou Oster. - Neste momento, chegamos mais ou menos a um impasse.

- Como vai ele? - perguntou Leon.

- Muito bem, - disse Oster. - Submeti-o ontem a um interrogatório de duas horas e acho que ele poderia passar, a menos que alguém lhe perguntasse detalhes específicos de sua carreira. Disso ele nada sabe.

Leon examinou alguns papéis que tinha tirado de sua pasta. - Não conhecemos ainda a carreira de Kolb nas SS, - disse ele. - Não deve ter sido muito importante, pois o nome dele não consta de nenhuma lista de homens procurados e nunca ninguém ouviu falar nele. De certo modo, isso é bom porque há probabilidades de que a Odessa nunca tenha ouvido também falar dele. Mas a desvantagem é que ele não tem motivo para procurar a ajuda e a proteção da Odessa se não o estão perseguindo. Dessa maneira, tivemos de inventar uma carreira para ele. Aqui está ela.

Passou os papéis às mãos de Oster, que começou a lê-los. Quando acabou, fez um gesto afirmativo.

- Está bom. E tudo está de acordo com os fatos conhecidos. Seria bastante para levá-lo à prisão se fosse denunciado.

Leon teve um sorriso de satisfação.

- É isso que é preciso ensinar-lhe. Mais uma coisa: encontramos um patrocinador para ele. Um homem de Bremerhaven, que foi coronel das SS, vai partir num cruzeiro marítimo a 16 de fevereiro. O homem é hoje em dia proprietário de uma padaria. Quando Miller se apresentar, o que só deve acontecer depois de 16 de fevereiro, levará uma carta desse homem que assegure à Odessa que Kolb, empregado dele, é um genuíno ex-participante das SS e está realmente em dificuldades. Nessa ocasião, o homem da padaria estará em alto-mar e não poderá ser alcançado. Por isso mesmo, - disse ele, passando um livro às mãos de Miller, você tem de aprender também a fazer pão.

Não disse que o homem da padaria ficaria apenas quatro semanas ausente e que, depois desse período, a vida de Miller estaria pendente de um fio.

- Agora, meu amigo, o barbeiro vai transformar-lhe um pouco a aparência, - disse Leon a Miller. - Depois disso, bateremos uma nova fotografia para a sua carteira de motorista.

Em cima, no banheiro, o barbeiro fez em Miller o corte de cabelo mais impiedoso que este já tivera em toda a sua vida. O couro cabeludo estava bem à mostra até quase ao alto da cabeça quando ele acabou. O ar meio desgrenhado tinha desaparecido e ele também parecia mais velho. Uma risca reta tinha sido aberta nos cabelos curtos do lado esquerdo da cabeça. As sobrancelhas tinham sido depiladas até ao ponto que tinham quase cessado de existir.

- As sobrancelhas ralas não fazem um homem parecer mais velho, - disse o barbeiro muito loquaz, - mas tornam quase impossível determinar-lhe a idade com uma margem superior a seis ou sete anos, Há mais uma coisa. Vai ter de deixar crescer um bigode. Pequeno, é claro, da mesma largura da boca. Um bigode aumenta muito a idade. O que eu não sei é se vai conseguir um bigode aceitável em três semanas.

Miller sabia como o cabelo crescia em seu lábio superior e disse:

- Não tenho dúvida, - disse ele. Olhou-se ao espelho. Aparentava ter bem trinta e cinco anos. O bigode lhe daria certamente mais uns quatro anos.

Quando desceram, Miller foi colocado diante de um lençol branco que Leon e Oster seguraram, enquanto Motti batia várias fotografias de frente dele.

- Pronto, - disse Motti afinal. - A carteira de motorista estará pronta dentro de três dias.

O grupo saiu e Oster voltou-se para Miller.

- Muito bem, Kolb, - disse ele, pois havia muito que não o tratava senão assim. - Você foi adestrado no campo de treinamento das SS em Dachau, foi designado para o campo de concentração de Flossenburg em julho de 1944 e em abril de 1945 comandou o pelotão de fuzilamento que executou o Almirante Canaris, chefe da Abwehr. Ajudou também a matar vários outros oficiais do exército suspeitos para a Gestapo de cumplicidade na tentativa de assassinato de Hitler em julho de 1944. Não é de admirar que as autoridades queiram prendê-lo, O Almirante Canaris e seus homens não eram judeus. Não pode haver o menor engano nisso. Vamos trabalhar, Segundo-Sargento.

A reunião semanal do Mossad chegava ao fim quando o General Amit levantou a mão e disse:

- Há mais uma coisa, embora eu a considere relativamente de pouca importância. Leon comunicou de Munique que há algum tempo vem adestrando um jovem alemão, um ariano, que por motivos pessoais detesta as SS e se está preparando para infiltrar-se na Odessa.

- Qual é o motivo dele? - perguntou com desconfiança um dos homens.

O General Amit encolheu os ombros.

- Por motivos pessoais, quer descobrir a pista de um ex-capitão das SS chamado Roschmann.

O chefe do Escritório dos Países de Perseguição; um ex judeu polonês, levantou a cabeça.

- Eduard Roschmann? O Açougueiro de Riga? - Esse mesmo.

- Se pudéssemos agarrá-lo, contas muito velhas seriam ajustadas.

O General Amit sacudiu a cabeça.

- Não é a primeira vez que eu digo que Israel não segue mais uma política de vingança. As ordens que tenho são absolutas. Ainda que o homem descubra Roschmann, não haverá assassinato. Depois do caso Ben Gal, uma coisa dessas faria Adenauer perder a paciência. O problema agora é que quando algum ex-nazista morre na Alemanha a culpa é atribuída a agentes israelenses. ,

- E quanto a esse jovem alemão? - perguntou o chefe do Shabak.

- Quero ver se graças a ele poderemos identificar outros cientistas alemães que poderiam ser mandados para o Cairo neste ano. Para nós, isso tem uma prioridade absoluta. Proponho mandar um agente à Alemanha só para conservar esse homem sob vigilância. Fará um serviço de observação apenas, nada mais.

- Já sabe quem vai ser o agente?

- Sei, - disse o General Amit. - E um bom homem, de, toda a confiança. Limitar-se-á a seguir o alemão e observá-lo, dando-me notícia pessoalmente de tudo. Pode passar por alemão. É natural de Karlsruhe.

- E Leon? - perguntou alguém. - Não tentará ajustar contas a seu modo?

- Leon terá de cumprir as ordens que _receber, - disse o General Amit zangadamente. - Não haverá mais ajuste de contas.

Em Bayreuth, naquela manhã, Miller foi submetido a outra sabatina por Alfred Oster.

- Muito bem, - disse Oster. - Quais são as palavras gravadas no cabo do punhal das SS?

- "Sangue e Honra", - respondeu Miller.

- Certo. Quando o punhal é entregue a um homem das SS? - Na parada de conclusão do curso, quando sai do campo de treinamento.

- Certo. Diga agora o juramento de lealdade à pessoa de Adolf Hitler.

Miller repetiu-o palavra por palavra.

- Repita o juramento de sangue das SS. Miller obedeceu.

- Qual é a significação do emblema da Caveira? Miller fechou os olhos e repetiu o que lhe fora ensinado.

- O sinal da Caveira tem sua origem na distante mitologia germânica. 

Era o emblema dos grupos de guerreiros teutônicos que juravam fidelidade a seu chefe e entre si até à morte e depois no Valhalla. Daí a caveira e os ossos cruzados, significando o mundo além do túmulo.

- Certo. Eram todos os homens das SS automaticamente membros das unidades da Caveira?

- Não. Para isso era preciso um juramento especial. Oster levantou-se e espreguiçou-se.

- Não está mau, - disse ele. - Não posso pensar em nada mais que lhe possa perguntar em termos gerais. Agora, vamos entrar em pontos específicos. Você tem de saber tudo sobre o campo de concentração de Flossenburg, que foi seu primeiro e único posto...

O homem sentado no lugar do lado da janela do vôo das Linhas Aéreas Olímpicas de Atenas para Munique parecia calmo e reservado. O homem de negócios alemão ao lado dele, depois de várias tentativas de puxar conversa, compreendeu a insinuação e se limitou à leitura da revista Pluyboy. O seu vizinho olhou da janela enquanto o Mar Egeu passava por baixo deles e o avião deixava a primavera cheia de sol do Mediterrâneo Oriental para os cumes cobertos de neve das Dolomitas e dos Alpes Bávaros.

O homem de negócios tinha pelo menos arrancado alguma coisa de seu companheiro de viagem. O homem sentado ao lado da janela era indiscutivelmente alemão, pois seu domínioda língua era fluente e natural e o seu conhecimento do país, impecável. O homem de negócios voltava de uma missão de vendas na capital da Grécia e não tinha a menor dúvida de que estava sentado ao lado de um compatriota.

Não poderia estar mais errado. O homem ao lado dele nascera na Alemanha trinta e três anos antes, com o nome de Josef Kaplan, sendo filho de um alfaiate judeu em Karlsruhe. Com três anos de idade quando Hitler subira ao poder, com sete quando seus pais tinham sido levados num caminhão preto, ficara escondido num sótão durante três anos, até que, aos dez anos de idade em 1940, fora descoberto, sendo levado também num caminhão. Passara a adolescência, usando a flexibilidade e a vivacidade da mocidade para sobreviver numa série de campos de concentração, até que em 1945, com a suspeita de um animal selvagem a arder-lhe nos olhos, arrebatara uma coisa que se chamava uma barra de chocolate da mão estendida de um homem que lhe falava pelo nariz numa língua estrangeira e correra para comer a oferta num canto do campo antes que lhe fosse tomada das mãos.

Dois anos depois, pesando mais alguns quilos, com dezessete anos de idade e esfomeado como um rato e como um animal desconfiado de tudo e de todos, embarcara num navio chamado President Warficli, aliás Evodas, para uma nova praia a muitos quilômetros de Karlsruhe e Dachau.

A passagem dos anos o havia abrandado, amadurecendo-o, ensinando-lhe muitas coisas e dando-lhe uma mulher e dois filhos bem como um posto no exército, mas sem nunca eliminar o ódio que ele sentia pelo país para o qual estava naquele dia viajando. Tinha concordado em ir, em sufocar os seus sentimentos, para assumir de novo, como já fizera duas vezes naqueles últimos dez anos, a fachada de amabilidade e bonomia que lhe era necessária para efetuar a sua transformação outra vez num alemão.

As outras coisas necessárias tinham sido fornecidas pelo Serviço: o passaporte em seu bolso, as cartas, cartões e acessórios documentários de um cidadão de um país da Europa Central, a roupa de baixo, os sapatos, os ternos e as malas de um viajante comercial alemão do ramo de tecidos.

Quando as pesadas e geladas nuvens da Europa envolveram o avião, ele pensou mais uma vez em sua missão, que lhe tinha sido incutida em dias e noites de preparação pelo coronel de fala mansa no kihbutz que produzia tão poucas frutas e tantos agentes israelenses. Tinha de seguir um homem, de manter sob suas vistas um jovem alemão quatro anos mais moço do que ele, enquanto o homem procurava fazer o que muitos tinham tentado sem resultado, infiltrar-se na Odessa. Tinha de observá-lo e medir-lhe os êxitos, notar as pessoas com quem ele fazia contato e a quem era encaminhado, verificar as coisas que ele apurasse e ver se o alemão podia descobrir o recrutador da vaga nova de cientistas alemães levados para o Egito a fim de trabalhar nos foguetes. Não se podia expor, nem tomar qualquer espécie de iniciativa. Devia então comunicar a soma total do que o jovem alemão tivesse descoberto antes de ser "queimado" ou descoberto. Uma coisa ou outra não podia deixar de acontecer. Tinha de fazer isso; não era obrigado a sentir prazer com a missão; não se exigia isso da tarefa. Felizmente, não havia quem fizesse questão de que ele gostasse de ser de novo alemão. Ninguém pedia que ele tivesse prazer em misturar-se com os alemães, em falar a língua deles, em sorrir e dizer pilhérias para eles. Se lhe tivessem pedido isso, ele teria recusado. Odiava-os todos, inclusive o jovem repórter a quem tinha ordem de seguir. Tinha certeza de que nada poderia modificar isso.

No dia seguinte, Oster e Miller receberam a sua última visita de Leon. Além de Leon e de Motti, havia outro homem, queimado de sol e com aspecto sadio, muito mais moço do que os outros. Miller calculou que o novo homem tivesse mais ou menos trinta e cinco anos.

Foi apresentado simplesmente como Josef e nada disse durante todo o tempo.

- Escute, - disse Motti a Miller, - trouxe seu carro até aqui hoje. Deixei-o num estacionamento público na cidade, perto da praça do mercado.

Entregou as chaves a Miller, acrescentando:

- Não o use quando for encontrar-se com a Odessa. Em primeiro lugar, chama muito a atenção. Depois, você terá de fazer o papel de um empregado de padaria fugitivo depois de ser descoberto

e identificado como um ex-guarda de campo de concentração. Um homem assim não pode ter um Jaguar.  Quando tiver de ir, viaje de trem.

Miller fez um sinal de aquiescência, mas intimamente não estava disposto a separar-se de seu amado Jaguar. Além disso, estava convencido de que talvez precisasse locomover-se com rapidez se as coisas não dessem certo.

- Muito bem. Aqui está a sua carteira de motorista, completa com a sua fotografia como você é agora. Pode dizer a qualquer pessoa que lhe perguntar que você dirige um Volkswagen, mas deixou-o em Bremen, pois o número poderá facilmente identificá-lo à polícia.

Miller examinou a carteira da polícia. Mostrava-se com os cabelos curtos, mas sem bigode. O bigode que ele passara a usar podia ser explicado como uma precaução, depois que ele fora identificado.

- O homem que, sem saber, é seu apresentador, partiu de Bremerhaven esta manhã num navio de cruzeiro. Trata-se de um ex-coronel das SS, que é agora proprietário de uma padaria e seu ex patrão. Chama-se Joachim Eberhardt. Aqui está uma carta dele para o homem a quem você vai ver. O papel é autêntico e foi tirado do escritório dele. A assinatura é uma falsificação perfeita. A carta diz ao destinatário que você é um bom ex-membro das SS, digno de toda a confiança e está agora em dificuldade depois de ter sido reconhecido. Pede ao destinatário que o ajude a adquirir novos documentos e uma identidade nova.

Leon entregou a carta a Miller, que a leu e tornou a guardar no envelope.

- Pode fechar o envelope, - disse Leon. Miller obedeceu.

- Quem é o homem a quem tenho de apresentar-me? - perguntou ele.

Leon tirou da pasta um papel com um nome e endereço.

- É este o homem, - disse ele. - Mora em Nuremberg. Não sabemos ao certo o que ele foi na guerra, porque tem quase com certeza um novo nome. Entretanto, de uma coisa temos certeza. Ele tem uma posição muito alta na Odessa. Pode conhecer Eberhardt, que é uma figura importante da Odessa no Norte da Alemanha. De modo que aqui está uma fotografia de Eberhardt, o padeiro. Estude-a bem, caso lhe seja pedida uma descrição do homem. Compreendeu?

Miller olhou para a fotografia de Eberhardt e tez um sinal afirmativo.

- Quando estiver pronto, - disse Leon, - será bom esperar alguns dias até que o navio de Eberhardt não possa ser alcançado pelo radiotelefone. Não quero que o homem a quem você vai ver fale pelo telefone com Eberhardt enquanto o navio ainda estiver ao largo das costas alemãs. Espere até que ele esteja no meio do Atlântico. Creio que deve apresentar-se na manhã da próxima quinta-feira.

- Está certo, - disse Miller. - Será na quinta-feira então.

- Duas coisas para concluir, - disse Leon. - Além de tentar descobrir o paradeiro de Roschmann, que é o seu desejo, gostaríamos tambêm de algumas informações. Queremos saber quem está agora recrutando cientistas para o Egito a fim de trabalhar nos foguetes de Nasser. O recrutamento está sendo feito pela Odessa aqui na Alemanha. Precisamos de saber especificamente quem é o novo chefe do recrutamento. Segunda, fique em contato conosco. Fale de telefones públicos e ligue para este número.

Entregou a Miller um pedaço de papel.

- Haverá sempre alguém junto a esse telefone, ainda que eu não esteja no momento. Telefone sempre que conseguir alguma coisa. Vinte minutos depois, o grupo tinha partido.

No banco de trás do carro, de volta a Munique, Leon e Josef sentaram-se juntos. O agente israelense estava encolhido em silêncio no seu canto. Quando deixaram para trás as luzes lucilantes de Bayreuth, Leon perguntou a Josef:

- Que cara é essa? Tudo vai correr bem. Josef olhou para ele e perguntou:

- Que confiança merece esse Miller?

- Confiança'.' Ele representa a melhor chance que nós já tivemos de penetrar na Odessa. Não ouviu o que disse Oster? Ele pode passar por um ex-homem das SS em qualquer companhia, contanto que não perca a cabeça.

Josef continuou com as suas dúvidas.

- As instruções que recebi foram no sentido de observá-lo todo o tempo. Devo estar colado com o homem quando ele se mover, vigiando-o, comunicando a que homens ele é apresentado e a posição dos mesmos na Odessa.

Creio que eu nunca devia ter concordado em deixá-lo solto para só dar notícia pelo telefone quando quisesse. E se ele não telefonar?

Leon mal podia dominar a sua raiva. Não era evidentemente a primeira vez que discutiam o assunto.

- Agora, escute mais uma vez. Esse homem é minha descoberta. A infiltração dele na Odessa foi minha idéia. Ele é meu agente. Há anos que espero colocar um homem onde ele está agora, um homem que não seja judeu. Não quero que ele seja descoberto em conseqüência da vigilância de ninguém.

- Ele é um amador. Eu sou um profissional, - disse o agente. - Mas ele é também um ariano, replicou leon. - Espero que, quando a utilidade dele terminar, já nos tenha dado os nomes dos dez principais homens da Odessa na Alemanha. Entraremos então em ação contra eles, um por um. Entre eles, deve estar o recrutador dos cientistas dos foguetes. Não se preocupe que nós saberemos o nome dele e dos cientistas que ele pretende levar para o Egito.

Em Bayreuth, Miller olhava da janela a neve que caía. Não tinha a menor intenção de dar notícias pelo telefone, pois não tinha interesse em procurar cientistas de foguetes recrutados. Tinha ainda um objetivo apenas - Eduard Roschmann.

 

Foi à noite da quarta-feira, 19 de fevereiro, que Peter Miller disse finalmente adeus a Alfred Oster em sua casa de Bayreuth e tomou o caminho de Nuremberg. O ex-oficial das SS levou-o à porta e apertou-lhe a mão.

- Muitas felicidades, Kolb. Ensinei-lhe tudo o que sei. Mas quero dar-lhe um último conselho. Não sei por quanto tempo você poderá manter o seu disfarce. É provável que não seja por muito tempo. Se perceber que alguém penetrou o seu disfarce, não discuta. Afaste-se e torne a assumir seu verdadeiro nome.

Quando o jovem repórter desceu para a estrada, Oster murmurou: "Nunca vi uma idéia mais maluca!" Depois disso, fechou a porta e foi para a sua lareira.

Miller andou cerca de dois quilômetros até à estação da estrada de ferro, caminhando firmemente ladeira abaixo e passando pelo estacionamento público. Na pequena estação, com seu telhado e águas furtadas à moda da Baviera, comprou uma passagem para Nuremberg. Foi só quando passou pelo portão das passagens para a plataforma batida pelos ventos que o homem da estação lhe disse:

- Acho que vai ter de esperar muito. O trem de Nuremberg está bem atrasado esta noite.

Miller ficou surpreso. Era um ponto de honra para as estradas de ferro álemãs funcionarem dentro do horário.

- Que foi que houve? - perguntou.

O homem apontou para a linha onde os trilhos desapareciam nas curvas compactas das montanhas e dos vales cobertos de neve recente.

- Caiu muita neve na linha. Soube que o limpa-neves já está em ação, manobrado pelos engenheiros.

Os longos anos de jornalismo tinham dado a Miller um profundo ódio de salas de espera. Tinha passado muito tempo nelas, sentindo frio, cansaço e falta de conforto. No pequeno restaurante da estação, tomou um café e olhou para a sua passagem. Já fora picotada. Pensou em seu carro estacionado ladeira acima.

Se ele o deixasse do outro lado de Nuremberg, a muitos quilômetros do endereço que lhe tinham dado... Se, depois da conversa com o homem, fosse mandado para algum outro lugar por outro meio de transporte, deixaria o Jaguar em Munique. Poderia até deixá-lo escondido numa garagem. Ninguém iria encontrá-lo antes que o serviço estivesse terminado. Além disso, não seria mau ter outro meio de tomar outro rumo com rapidez, se a ocasião o exigisse. Não tinha motivo algum para pensar que alguém na Baviera o conhecesse ou ao seu carro.

Pensou na opinião de Motti de que o carro chamava muita a atenção, mas lembrou-se também do conselho de Oster, uma hora antes, de sair o mais depressa possível caso alguém lhe descobrisse o disfarce. Era sem dúvida um risco usá-lo, mas também o era ver-se a pé numa situação difícil. Pensou mais cinco minutos no caso, deixou o café, saiu da estação e subiu a ladeira. Dez minutos depois, estava sentado ao volante do Jaguar e saía da cidade.

A viagem para Nuremberg foi rápida. Quando chegou, Miller tomou um quarto num pequeno hotel perto da estação, deixou o carro numa transversal a dois quarteirões de distância e entrou através das Portas do Rei na velha cidade medieval murada de Albrecht Dürer.

As luzes das ruas e das janelas iluminavam os belos tetos pontudos e as empenas decoradas da cidade amuralhada. Era quase possível imaginar-se alguém de volta à Idade Média, quando os reis da Francônia governavam Nuremberg, uma das mais ricas cidades mercantes dos estados germânicos. Era difícil pensar que quase todos os tijolos e pedras das construções que via em torno dele tinham sido colocados depois de 1945; numa reconstrução miraculosa baseada nas plantas originais dos arquitetos da cidade, que fora, com suas ruas calçadas de pedras e suas casas de madeira, reduzida a cinzas e a destroços pelos bombardeios aliados de 1943.

Encontrou a casa que estava procurando a duas ruas da praça do Mercado Central, quase sob as torres gêmeas da igreja de S. Sebald. O nome na placa da porta era o mesmo datilografado na carta que ele levava, a apresentação falsificada supostamente procedente do ex-coronel das SS, Joachim Eberhardt, de Bremen. Desde que ele não conhecia Eberhardt pessoalmente, era de esperar que o homem de Nuremberg também não o conhecesse.

Voltou para a praça do Mercado, à procura de um lugar para jantar. Depois de passar por duas ou três casas-de-pasto francônias tradicionais, viu a fumaça enroscar-se para o frio céu noturno do teto vermelho da pequena salsicharia num canto da praça, em frente à igreja de S. Sebald. Era um lugar muito simpático, tendo à frente um terraço marginado com caixas de urze púrpura de que o cuidadoso proprietário varrera a neve da manhã.

No interior, o calor e a animação da freguesia atingiram-no como uma onda. As mesas de madeira estavam quase todas ocupadas, mas um casal estava saindo de uma mesa no canto e ele a ocupou, cumprimentándo e sorrindo em retribuição ao casal que saía e lhe desejou bom apetite. Pediu a especialidade da casa, as pequenas salsichas condimentadas de Nuremberg, uma dúzia num prato, dando-se ao prazer de acompanhá-las com uma garrafa do vinho local.

Depois da comida, continuou sentado, tomando demoradamente o café e fazendo-o descer com dois Asbachs. Não estava com sono e era agradável ficar ali a olhar os troncos que crepitavam na lareira aberta e escutar o grupo no canto que entoava uma canção báquica francônia de braços dados, balançando-se de um lado para outro ao compasso da música, com as vozes e os copos subindo muito ao fim de cada estrofe.

Durante muito tempo, meditou se valia mesmo a pena arriscar a vida para procurar um homem que havia cometido os seus crimes vinte anos antes. Talvez fosse melhor desistir de tudo, raspar o bigode, deixar o cabelo crescer e voltar para Hamburgo e para a cama aquecida por Sigi. O garçom chegou à mesa, cumprimentou-o e depositou a conta na mesa com um cordial "Bite schën".

Meteu a mão no bolso para tirar a carteira e tocou com os dedos uma fotografia. Pegou-a e olhou-a durante algum tempo. Os olhos claros e avermelhados e a boca de ratoeira ali estavam acima da gola com as faixas pretas e os símbolos dos raios prateados. Ao fim de algum tempo, murmurou: "Sujo" e aproximou o canto da fotografia da vela acesa em cima da mesa. Quando a fotografia foi reduzida a cinzas, jogou-a no cinzeiro de cobre. Não ia precisar mais dela. Seria capaz de reconhecer aquela cara quando a visse.

Peter Miller pagou a conta, abotoou o sobretudo e voltou a pé para o seu hotel.

Nessa mesma hora, Mackensen enfrentava um Lobisomem furioso e perplexo.

- Como é que ele pode ter desaparecido? - exclamou o chefe da Odessa. - Não pode sumir da face da terra, como por um golpe de mágica. O carro dele deve ser um dos mais fáceis de reconhecer da Alemanha,  visível a quilômetros de distância. Seis semanas de busca e você não me pode dizer senão que ele não foi visto...

Mackensen esperou que essa explosão de frustração se dissipasse.

- Não obstante, essa é que é a verdade, - disse ele, afinal. - Mandei verificar o apartamento dele em Hamburgo, mandei interrogar a companheira e a mãe dele por supostos amigos de Miller, entrei em contato com colegas dele. Ninguém sabe de nada. O carro deve estar escondido todo esse tempo numa garagem. Ele também deve estar escondido. Desde que foi visto deixando o estacionamento do aeroporto de Colônia ao voltar de Londres, tomando então o rumo do sul, desapareceu.

- Temos de encontrá-lo! - exclamou o Lobisomem. - Não podemos deixar que se aproxime de nosso camarada. Seria um desastre.

- Ele vai aparecer, - disse Mackensen com convicção. - Mais cedo ou mais tarde, tem de deixar o esconderijo e então nós o pegaremos.

O Lobisomem levou em conta a paciência e a lógica do caçador profissional e disse:

- Muito bem. Mas quero você perto de mim. Hospede-se num hotel aqui na cidade e vamos esperar. Se você estiver por perto, poderei encontrá-lo com mais facilidade.

- Está certo. Depois que me hospedar no hotel, telefonarei para que o senhor saiba. Poderá encontrar-me lá a qualquer hora. Deu boa noite a seu superior e saiu.

Pouco antes das nove horas na manhã seguinte, Miller chegou diante da casa e tocou a campainha muito bem polida. Queria falar com o homem antes que ele saísse para o trabalho. Uma empregada abriu a porta, fê-lo entrar para uma sala e foi chamar o patrão.

O homem que entrou na sala dez minutos depois tinha cerca de 55 anos, com cabelos castanhos prateados nas têmporas e era controlado e elegante. Os móveis e a decoração da sala indicavam também elegância e boas rendas.

Olhou para o inesperado visitante sem curiosidade, avaliando de relance as roupas baratas e de um homem das classes trabalhadoras.

- Em que posso servi-lo? - perguntou calmamente.

O visitante se sentia visivelmente pouco à vontade no ambiente opulento da sala.

- Estava querendo que me ajudasse, Herr Doktor.

- Ora essa, - disse o homem da Odessa. - Deve saber qu o meu local de trabalho não é longe daqui. Acho melhor ir até lá e marcar hora com minha secretária.

- Não é propriamente de ajuda profissional que eu preciso - disse Miller.

Tinha começado a falar no dialeto da zona de Hamburgo e Bremen, a linguagem dos trabalhadores. Estava evidentemente confuso. Sem saber o que ia dizer, tirou uma carta do bolso.

- Trouxe uma carta de apresentação do homem que me acom selhou a vir procurá-lo.

O homem da Odessa recebeu a carta sem dizer uma palavra, abriu-a e leu-a rapidamente. Empertigou-se um pouco e olhou atentamente para Miller.

- Compreendo, Herr Kolb. É melhor sentar-se.

Indicou uma cadeira a Miller, ao mesmo tempo que se sentava numa poltrona. Passou alguns minutos olhando para o seu visitante, com a testa franzida. Perguntou então abruptamente:

- Como disse mesmo que era seu nome? - Kolb.

- Primeiro nome? - Rolf Gunther.

- Tem aí algum documento de identificação? Miller pareceu aborrecido.

- Só minha carteira de motorista. - Deixe-me vê-la, sim?

O advogado, pois era essa a sua profissão, estendeu a mão, forçando Miller a levantar-se e colocar a carteira na palma da mão do outro. O homem abriu a carteira e examinou os detalhes. Olhou para Miller, comparando a fotografia e o rosto. Combinavam. - Em que dia nasceu? - perguntou de repente.

- Meu aniversário? É... a 18 de junho. - O ano, Kolb?

- Mil novecentos e vinte e cinco.

O advogado olhou para a carteira por mais alguns minutos.

- Espere um pouco, - disse ele de repente, levantando-se. Saiu da sala, atravessou a casa e chegou à parte dos fundos que lhe servia de escritório de advocacia e à qual os clientes tinham acesso por uma rua transversal. Entrou diretamente no escritório e abriu o cofre da parede. Tirou dele um grosso livro que folheou. Por acaso, conhecia o nome de Joachim Eberhardt, mas nunca se encontrara com ele. Não tinha muita certeza do último posto de Eberhardt nas SS. O livro confirmava a carta. Joachim Eberhard fora promovido a coronel das Waffen ss no dia 10 de janeiro de 1945. Passou mais algumas páginas e procurou o nome de Kolb. Ha via sete pessoas com esse nome, mas só uma era Rolf Gunther.

Segundo-Sargento em abril de 1945. Data de nascimento, 18-6-1925. Fechou o livro, colocou-o no lugar e trancou o cofre. Voltou então para a sala. O homem ainda estava sentado desajeitadamente na cadeira.

Acomodou-se na poltrona e perguntou:

- Talvez não me seja possível ajudá-lo. Compreende isso, não é?

Miller mordeu o lábio e fez um sinal de assentimento.

- Não tenho mais ninguém a quem recorrer. Quando começaram a me procurar, fui pedir ajuda a Herr Eberhardt e ele me aconselhou a vir procurá-lo, dando-me a carta. Disse-me que se o senhor não me ajudasse, ninguém mais poderia ajudar-me.

O advogado recostou-se na poltrona e olhou para o teto.

- Não sei por que ele não me telefonou se queria falar comigo, - murmurou ele como se falasse consigo mesmo, mas evidentemente esperando uma resposta.

- Talvez ele não quisesse falar pelo telefone... Um assunto assim.

O advogado lançou um olhar desdenhoso a Miller e disse:

- É possível. Mas, em primeiro lugar, conte-me como foi que se meteu em toda essa confusão.

- Muito bem, senhor. Fui reconhecido pelo homem e disseram que iam prender-me. Fiquei então com medo e fugi. Tinha de fazer isso, não tinha?

O advogado deu um suspiro.

- Comece do princípio, disse ele com impaciência. - Quem foi que o reconheceu e como o quê?

Miller tomou fôlego e disse:

- Bem, eu estava em Bremen... Moro lá e trabalho, isto é, trabalhava até tudo acontecer para Herr Eberhardt Na padaria. Bem, eu ia pela rua vai fazer quatro meses quando comecei a passar mal. Sentia dores terríveis e perdi os sentidos no meio da rua. Levaram-me então para o hospital.

- Que hospital?

- O Hospital Geral de Bremen. Fizeram alguns exames e disseram que eu estava com câncer No estômago. Pensei que estivesse perdido, sabe?

- E não era para menos, - disse o advogado secamente.

- Foi o que eu pensei. Mas talvez estivesse bem no princípio. De qualquer maneira, fizeram um tratamento com muitos remédios e parece que ao fim de algum tempo a doença não foi adiante e comecei a melhorar.

- Pode considerar-se um homem de sorte. Que história é essa de ser reconhecido?

- Bem, foi o enfermeiro do hospital, compreende? Era judeu e olhava muito para mim. Sempre que estava de plantão, não tirava os olhos de cima de mim. Era um olhar muito esquisito e eu comecei a ficar preocupado. Ele me olhava como se estivesse me reconhecendo. Não o reconheci, mas tive a impressão de que ele já me conhecia.

- Continue, - disse o advogado, mostrando interesse.

- Há um mês mais ou menos, disseram que eu já estava em condições de ser transferido e me mandaram para uma clínica de convalescença. Foi o plano de seguros dos empregados da padaria que pagou tudo. Mas, antes de sair do hospital de Bremen, eu me lembrei dele. Do judeu, sabe'? Levei semanas, mas me lembrei. Ele tinha sido um prisioneiro em Flossenburg.

O advogado se aprumou todo na poltrona. - Esteve em Flossenburg?

- Bem, já ia chegar a esse ponto. E me lembrei que era de lá que eu conhecia o enfermeiro do hospital. Consegui o nome dele no hospital de Bremen. Mas em Flossenburg tinha feito parte da turma de prisioneiros judeus que nós usamos para queimar o corpo do Almirante Canaris e dos outros oficiais que fuzilamos porque se meteram na tentativa de assassinato do Fuehrer.

- Você foi um dos que executaram Canaris e os outros? - perguntou o advogado.

Miller encolheu os ombros e disse com simplicidade:

- Comandei o pelotão de fuzilamento. Mas eram traidores, não eram? Tentaram matar o Fuehrer.

O advogado sorriu.

- Não o estou censurando, meu caro. É evidente que eram traidores. Canaris chegou a ponto de transmitir informações aos Aliados. Eram todos traidores aqueles porcos do exército, dos ge nerais para baixo. O que eu nunca pensei foi que viesse um dia a conhecer o homem que os matou.

Miller sorriu fracamente.

- O que acontece é que o pessoal de agora gostaria de me pegar por isso. Isto é, matar judeus é uma coisa, mas hoje há muitos que dizem que Canaris e os outros foram de certo modo heróis. O advogado fez um sinal de assentimento.

- De fato, você iria passar dificuldades com as autoridades atuais da Alemanha. Mas continue com a sua história.

- Fui transferido para a clínica e não vi mais o enfermeiro judeu. Mas na sexta-feira passada recebi um telefonema na clínica de convalescença. Pensei que fosse alguém da padaria, mas o homem não quis dar o nome.

Disse apenas que estava em condições de saber das coisas e me avisava que uma certa pessoa fora dizer àqueles imundos de Ludwigsburg quem eu era e que ia ser expedido um mandado de prisão contra mim.

Eu não sabia quem podia ser o homem, mas tive a impressão de que ele sabia o que estava dizendo. Parecia a voz de alguém com autoridade, sabe como é?

O advogado teve um sorriso compreensivo.

- Deve ter sido algum amigo nosso na polícia de Bremen. Que foi que fez então?

Miller se mostrou surpreso.

- Saí de lá. Saí por minha conta, mas depois fiquei sem saber o que ia fazer. Não fui para casa, pois podiam estar à minha espera lá. Não fui nem pegar meu Volkswagen, que ainda estava estacionado diante de minha casa. Dormi mal na noite de sexta-feira e então no sábado tive uma idéia. Fui falar com meu patrão, Herr Eberhardt, em casa dele. Foi muito bom comigo. Disse que ia partir na manhã seguinte com Frau Eberhardt para fazer um cruzeiro, mas que ia procurar resolver meus problemas. Deu-me então essa carta e me disse que viesse procurá-lo.

- Por que achou que Herr Eberhardt poderia ajudá-lo?

- Bem, eu não sabia que ele tinha estado na guerra. Mas ele sempre me tratou muito bem na padaria. Um dia, há dois anos, por ocasião da festa do pessoal da padaria, todos nós ficamos um pou co altos. Fui ao banheiro e lá encontrei Herr Eberhardt, que estava lavando as mãos e cantando. Sabe o que era que ele estava cantando? O Horst Wessel. Cantei com ele. Ficamos os dois cantando ali no banheiro. Então, ele me bateu nas costas e disse: "Nem uma palavra a ninguém, Kolb". Não pensei mais no caso. Mas quando me vi em dificuldades, achei que ele poderia ter sido das SS como eu e fui procurá-lo.

- E ele mandou você falar comigo? Miller fez um sinal afirmativo.

- Como era o nome desse enfermeiro judeu? - Hartstein.

- Qual foi a clínica de convalescença para onde o mandaram? - Foi a Clínica Arcádia, em Delmenhorst, perto de Bremen. O advogado tomou algumas notas numa folha de papel e levantou-se.

- Fique aqui, - disse ele, levantando-se e saindo.

Atravessou o corredor e entrou no seu escritório. Apanhou listas de telefones e anotou os telefones da Padaria Eberhardt, do Hospital Geral de Bremen e da Clínica Arcádia, em Delmenhorst. Ligou primeiro para a padaria.

A secretária de Eberhardt se mostrou muito solícita.

- Herr Eberhardt está em férias. Não, não é possível falar com ele, pois está fazendo o seu habitual cruzeiro de inverno pelas Antilhas em companhia de Frau Eberhardt. Deve estar de volta dentro de quatro semanas. Posso servi-lo em alguma coisa?

O advogado disse que não, agradeceu e desligou.

Discou então para o Hospital Geral de Bremen e disse que queria falar com o Serviço de Pessoal.

- Quem fala é o Departamento de Seguro Social, Seção de Pensões, - disse ele. - Queria apenas ter confirmação de que há aí no hospital um enfermeiro chamado Hartstein.

Houve uma pausa enquanto a moça que o atendera consultava um fichário.

- Há, sim, - disse ela. - David Hartstein.

- Obrigado, - disse o advogado de Nuremberg e desligou. Ligou depois para o mesmo número e disse que queria falar com o Arquivo.

- Fala aqui o secretário da Companhia Panificadora Eberhardt, - disse ele. - Queria apenas verificar o estado de um de nossos empregados que esteve internado aí no hospital com um tumor no estômago. O nome é Kolf Gunther Kolb.

Houve outra pausa. A funcionária do arquivo pegou a pasta de Rolf Gunther Kolb e olhou a última página. Voltou então ao telefone.

- Já teve alta, - disse ela. - O estado dele melhorou tanto que ele pôde ser transferido para uma clínica de convalescentes.

- Excelente, - disse o advogado. - Eu estava fora nas minhas férias anuais de esquiagem e ainda não tinha feito as anotações necessárias. Pode dizer-me qual foi a clínica?

A Arcádia, em Delmenhorst.

O advogado desligou e discou para a Clínica Arcádia. Uma moça atendeu. Depois de escutar o pedido que lhe fora feito, ela se voltou para o médico ao seu lado, cobrindo o fone com a mão.

- Estão querendo saber do homem de que me falou, o tal Kolb, - disse ela.

O médico pegou o telefone.

- Sim, - disse ele. - Fala aqui o diretor da clínica, Dr. Braun.

Ao ouvir o nome de Braun, a secretária olhou com espanto para seu chefe. Com a maior calma, o médico escutou a voz do homem de Nuremberg e disse:

- Infelizmente, Herr Kolb resolveu sair daqui por conta própria na tarde da sexta-feira. Foi uma coisa muito irregular, porque não lhe demos alta, mas nada podíamos fazer. De fato, foi transferido para cá do Hospital Geral de Bremen com um tumor no estômago em via de recuperação.

Escutou por um momento e acrescentou: - De nada. Sempre às ordens.

O médico, cujo verdadeiro nome era Rosemayer, desligou e discou um número de Munique. Logo que atenderam, disse:

- Um homem me telefonou fazendo perguntas a respeito de Kolb. A verificação já começou.

Em Nuremberg, o advogado colocou o fone no gancho e voltou à sala.

- Muito bem, Kolb, você evidentemente é o que diz. Miller olhou-o com espanto.

- Apesar disso, gostaria de fazer-lhe algumas perguntas. Não se importa?

Ainda espantado, o visitante sacudiu a cabeça. - Não, senhor.

- Muito bem. Você é circuncidado? Miller olhou-o, meio apalermado. - Não, não sou, - disse afinal.

- Mostre-me, - disse o advogado calmamente. Miller continuou sentado na cadeira a olhar para ele.

- Mostre-me, Segundo-Sargento! - disse o advogado em tom de comando.

Miller deu um salto da cadeira, ficando rigidamente em posição de sentido.

- Zu Beféhl! - respondeu ele.

Manteve a posição de sentido com os polegares na costura das calças durante três segundos e então desabotoou a braguilha. O advogado olhou-o por um instante e, então, fez sinal para que ele se arrumasse.

- Pelo menos, você não é judeu, - disse ele amistosamente. De volta à sua cadeira, Miller olhava-o de boca aberta.

- Claro que não sou judeu! - exclamou ele. O advogado sorriu.

- Mas tem havido casos de judeus que se tentam fazer passar por um dos Kameraden. Não duram muito tempo. Agora, quero saber de sua vida e vou-lhe fazer algumas perguntas. É apenas uma verificação, compreenda. Onde foi que nasceu?

- Em Bremen.

- Certo. É o lugar de nascimento que consta de seu registro nas SS. Acabo de verificar isso. Esteve na Juventude Hitlerista?

- Estive, sim. Entrei com dez anos de idade em 1935. - Seus pais eram bons nacional-socialistas?

- Eram, sim. Ambos.

- Que foi que houve com eles?

- Foram mortos no grande bombardeio de Bremen. - Quando foi que se alistou nas SS?

- Na primavera de 1944, com dezoito anos de idade. - Onde fez seu treinamento?

- No campo de treinamento de Dachau.

- Tinha o seu grupo sanguíneo tatuado sob a axila direita?

- Não, senhor. E a tatuagem seria na axila esquerda. - Por que não foi tatuado?

- Bem, nós tínhamos de concluir o treinamento no campo em agosto de 1944 e ser designados para nosso posto numa unidad das Waffer-SS. Mas em julho um grande grupo de oficiais do exército se envolveu na conspiração contra o Fuehrer e foi mandado para o campo de Flossenburg. De lá pediram reforços imediatos ao campo de treinamento de Dachau a fim de aumentar o pessoal de Flossenburg. Eu e mais um grupo de dez ou quinze fomos escolhidos como casos de aptidão especial e designados diretamente para lá. Perdemos por isso a tatuagem e a parada de conclusão do treinamento. O comandante disse que o grupo sanguíneo não era necessário, desde que provavelmente nunca seríamos designados para frente.

O advogado fez um sinal de assentimento. Sem dúvida, o co mandante sabia também em julho de 1944 que, com o avanço dos Aliados na França, a guerra se estava aproximando do fim.

- Recebeu seu punhal?

- Sim, senhor. Das mãos do comandante. - Quais são as palavras que há nele?

- "Sangue e Honra".

- Que espécie de treinamento recebeu em Dachau?

- Instrução militar completa e treinamento político-ideológico para completar o da Juventude Hitlerista.

- Aprendeu as canções? - Aprendi, sim.

- Qual foi o livro de marchas de que foi tirado o Horst Wesel?

- O álbum Tempo de Luta Para a Nação.

- Onde era o campo de treinamento de Dachau?

- Quinze quilômetros ao norte de Munique. A cinco quilômetros do campo de concentração do mesmo_ nome.

- Qual era seu uniforme?

- Túnica e calções verde-cinza, botas, golas pretas, com posto na da esquerda, cinto de couro preto e fivela de metal.

- Qual era a divisa na fivela?

- Uma suástica no centro, tendo em volta as palavras: "Minha honra é lealdade".

O advogado levantou-se. Acendeu um charuto e foi até à janela.

- Fale-me agora sobre o campo de Flossenburg, Segundo Sargento Kolb. Onde era?

- Na fronteira da Baviera com a Turíngia. - Quando começou?

- Em 1934. Foi um dos primeiros para os porcos que se opunham ao Fuehrer.

- Qual era o tamanho dele'?

- Quando estive lá, tinha 300 metros por 300. Era cercado por dezenove torres de vigia, onde estavam montadas metralhadoras leves e pesadas. Tinha um pátio de 120 metros por 140. Como nos divertimos ali com os judeus...

- Não saia do assunto, - disse o advogado. - Quais eram as acomodações'?

- Vinte e quatro quartéis, uma cozinha para os prisioneiros, uma lavanderia, um sanatório e várias oficinas.

- E para os guardas das SS?

- Dois quártéis, uma cantina e um bordel.

- Que era que se fazia com os corpos dos que morriam?

- Havia um pequeno forno crematório do lado de fora das cercas de arame farpado. Era alcançado do interior do campo por uma passagem subterrânea.

- De que natureza era o principal trabalho que se fazia lá? - A exploração da pedreira. Esta ficava também do lado de fora das cercas e era rodeada de arame farpado e de torres de vigia próprias.

- Qual era a população em fins de 1944? - Cerca de 16.000 prisioneiros.

- Onde era o escritório do comandante?

- Do lado de fora das cercas, a meia encosta de uma colina que dominava o campo.

- Quem foram os sucessivos comandantes'?

- Houve dois comandantes antes que eu chegasse lá. O primeiro foi o major das SS, Karl Kunstler. O seu sucessor foi o capitão das SS, Karl Fritsch. O último foi o tenente-coronel das SS, Max Koegel.

- Qual era o número do departamento político? - Departamento Dois.

- Onde ficava?

- No bloco do comandante. - Quais eram as suas funções'?

- Providenciar para que fossem cumpridas as exigências de Berlim no sentido de que certos prisioneiros recebessem tratamento especial.

- Canaris e os outros conspiradores foram indicados para esse tratamento?

- Sim, senhor. Todos eles foram designados para receber tratamento especial.

- Quando é que isso foi feito?

- No dia 20 de abril de 1945. Os americanos estavam avançando através da Baviera e vieram ordens de acabar com eles. Um grupo foi designado para cumprir a tarefa. Eu tinha acabado de ser promovido a segundo-sargento, embora tivesse chegado ao campo como soldado. Comandei o pelotão de fuzilamento de Canaris e mais cinco. Mandamos então uma turma de judeus enterrar os corpos. Hartstein foi um deles, o miserável. Depois disso, nós queimamos os documentos do campo. Dois dias depois, recebemos ordem de marchar com os prisioneiros para o norte. No caminho, ouvimos dizer que o Fuehrer se suicidara. Sinto muito, senhor, mas os oficiais nos tinham abandonado. Os prisioneiros começaram a fugir para os bosques. Nós, sargentos, atiramos em alguns, mas parecia não haver mais sentido em continuar a marcha. Os americanos já estavam por toda a parte.

- Mais uma pergunta, Segundo-Sargento. Quando se levantava a vista de qualquer ponto do campo, que era que se via?

Miller pareceu confuso.

- O céu...

- Não, imbecil. Que era que dominava o horizonte? - Ah, o monte com o castelo em ruínas?

O advogado sorriu e disse:

- Construído no século XIV. Muito bem, Kolb. Você esteve em Flossenburg. Como saiu de lá?

- Bem, foi durante a marcha. Em dado momento, todos nos dispersamos. Encontrei um soldado do exército que estava vagueando por ali. Dei-lhe uma pancada na cabeça e tomei-lhe o uniforme. Dois dias depois, os americanos me pegaram. Passei dois anos num campo de prisioneiros de guerra, mas disse a eles que era apenas um soldado do exército. Sabe como é, senhor, corriam boatos de que os americanos estavam fuzilando sumariamente todo o mundo que tinha sido das SS. Foi por isso que eu disse que era do exército.

O advogado tirou uma baforada do charuto.

- Não foi você a única pessoa que fez isso. Mudou de nome?

- Não, senhor. Joguei fora meus papéis porque eles me identificavam como um homem das SS. Mas não cogitei de mudar de nome. Achei que ninguém iria procurar um sargento. Naquela época, o caso de Canaris não me parecia muito importante. Só depois é que começaram a fazer confusão com esses oficiais do exército e transformaram num santuário o lugar em Berlim onde foram enforcados os chefes do bando. Mas já então eú tinha papéis da República Federal com meu nome de Kolb. De qualquer maneira, nada teria acontecido se o tal enfermeiro não me tivesse reconhecido e, depois disso, não teria mesmo importância o nome que eu tivesse.

- Certo. Agora, vamos ver algumas das coisas que lhe foram ensinadas. Comece repetindo o juramento de lealdade ao Fuehrer, - disse o advogado.

E isso continuou durante mais três horas. Miller estava suando e conseguiu dizer que saíra do hospital antes do tempo e não tinha comido durante todo o dia. Já passava da hora do almoço quando afinal o advogado se considerou satisfeito.

- Que é exatamente que você quer? - perguntou ele a Miller.

- O que acontece é que, com essa gente à minha procura, vou precisar de novos documentos que mostrem que eu não sou Rolf Gunther Kolb. Posso mudar de aparência, deixar crescer o cabelo, usar o bigode um pouco mais comprido e conseguir um emprego na Baviera ou em qualquer outro lugar. Acontece que eu sou um bom padeiro e há sempre quem precise de pão, não acha?

Pela primeira vez desde o início do encontro, o advogado jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.

- Sim, meu bom Kolb, todo o mundo precisa de pão. Muito bem. Agora, escute. Normalmente, gente de sua posição na vida dificilmente merece que se gaste muito tempo e trabalho. Mas você está evidentemente em dificuldade sem ter culpa e é sem dúvida um alemão bom e leal, farei o que for possível. Não adianta conseguir-lhe apenas uma nova carteira de motorista. Isso não o habilitaria a conseguir um cartão de seguro social sem apresentar a certidão de nascimento, que você não tem. Mas um novo passaporte resolveria todos esses casos para você. Tem algum dinheiro?

- Não, senhor. Há três dias, venho viajando para o sul pedindo carona.

O advogado lhe deu uma nota de cem marcos.

- Não poderá ficar aqui e levará pelo menos uma semana até que seu passaporte fique pronto. Vou mandá-lo para um amigo meu, que lhe conseguirá o passaporte. Ele mora em Stuttgart. Convém hospedar-se num hotel comercial e ir vê-lo. Direi a ele que você irá e ele estará à sua espera.

O advogado escreveu alguma coisa num pedaço de papel.

- Chama-se Franz Bayer e aqui está o endereço dele. É melhor você tomar o trem para Stuttgart, hospedar-se num hotel e ir diretamente procurá-lo. Se precisar de um pouco mais de dinheiro, ele tomará providências nesse sentido. Mas não comece a gastar sem medida. Procure esconder-se e espere até que Bayer possa arranjar-lhe um novo passaporte. Depois, nós lhe conseguiremos uma colocação no Sul da Alemanha e ninguém irá descobri-lo.

Miller recebeu os cem marcos e o endereço de Bayer com embaraçados agradecimentos.

- Oh, muito obrigado, é um cavalheiro perfeito, Herr Doktor.

A empregada acompanhou-o até à porta e ele voltou a pé para a estação, para o seu hotel e para o seu carro estacionado. Uma hora depois, corria para Stuttgart, enquanto o advogado telefonava para Bayer e lhe recomendava que esperasse a visita de Rolf Gunter Kolb, fugitivo da polícia, naquela mesma noite.

Não havia Autobahne naquele tempo entre Nuremberg e Stuttgart e, num dia de sol forte, a estrada que corria pela planície fértil da Francônia e pelos montes e vales cobertos de vegetação do Württemberg teria sido pitoresca. Numa tarde áspera de fevereiro, em quê o gelo se formava nas depressões da superfície da estrada e com a neblina a condensar-se nos vales, a sinuosa pista macadamizada entre Ansbach e Crailsheim era perigosíssima. Duas vezes, o pesado Jaguar quase escorregou para uma vala e duas vezes Miller teve de convencer-se de que não havia pressa. Bayer, o homem que sabia como se conseguiam passaportes falsos, não ia sair do lugar.

Chegou depois do escurecer e encontrou um pequeno hotel na parte externa da cidade e que, apesar disso, tinha um porteiro para quem disse que gostava de ficar na rua até tarde e uma garagem nos fundos para o carro. Conseguiu na portaria uma planta da cidade e encontrou a rua de Bayer no subúrbio de Ostheim, uma zona próspera perto da Villa Berg, em cujos jardins os príncipes de Württemberg e suas damas tinham-se divertido outrora nas noites de verão.

Guiando-se pelo mapa, foi com o carro até o círculo de montes que cercam o centro de Stuttgart, ao longo dos quais os vinhedos chegam até aos arredores da cidade, e estacionou seu carro a meio quilômetro da casa de Bayer. Quando fechava a porta a chave do lado da direção, não notou uma senhora de meia-idade que voltava para casa depois de sua reunião semanal da Comissão de Assistentes Sociais do próximo Hospital da Villa.

Naquela noite, às oito horas, o advogado de Nuremberg achou que devia telefonar para Bayer e certificar-se de que Kolb havia chegado sem novidades. Foi a esposa de Bayer que atendeu.

- O moço? Ele e meu marido saíram para jantar na rua.

- Só telefonei para saber se ele tinha chegado bem - disse o advogado.

- É um moço muito simpático, - exclamou Frau Bayer entusiasticamente. - Passei por ele quando estava saindo do carro, exatamente quando eu voltava da reunião no hospital. Só não sei é por que ele deixou o carro tão longe daqui de casa. Com certeza, errou o caminho. É a coisa mais fácil do mundo aqui em Stuttgart... com tantas travessas e ruas secundárias...

- Perdão, Frau Bayer, - disse o advogado. - O homem não está com o Volkswagen dele. Foi para aí de trem.

- Não, não, - disse Frau Bayer, feliz de poder mostrar o seu conhecimento superior. - Ele veio de carro. Um moço tão simpático e com um carro tão bonito. Deve ser um sucesso com as moças...

- Tenha a bondade de escutar, Frau Bayer. Preste muita atenção. Que espécie de carro é o dele?

- Bem, a marca não sei. Mas é um carro esporte comprido e preto, com uma listra amarela do lado...

O advogado bateu o telefone. Depois, tirou-o novamente do gancho e discou para um número em Nuremberg. Suava profusamente. Quando atenderam do hotel, pediu ligação para um dos quartos. O telefone tocou no quarto e uma voz conhecida disse:

- Alô?

- Mackensen, - gritou o Lobisomem, - venha correndo. Já encontramos Miller.

 

Franz Bayer era tão gordo, redondo e loquaz como sua mulher. Avisado pelo Lobisomem de que devia esperar o fugitivo da polícia, recebeu Miller na porta da rua logo que o mesmo se apresentou pouco depois das oito horas.

Miller foi apresentado rapidamente à mulher dele no corredor, antes que ela fosse para a cozinha.

- Muito bem, meu caro Kolb, - exclamou Bayer. - Já esteve antes no Württemberg?

- Não, munca:

- Pois olhe que nós nos prezamos aqui de ser um povo muito hospitaleiro. Naturalmente, vai querer comer alguma coisa.

Miller confessou que nada comera naquele dia, pois não tivera tempo de almoçar e passara a tarde toda no trem. Bayer se mostrou muito aflito.

- Que horror! Vai ter de comer. Sabe que mais? Vamos jantar na cidade. Não diga mais nada, meu caro. É o mínimo que eu posso fazer.

Foi até aos fundos da casa para dizer à mulher que ia levar o hóspede para jantar na cidade. Dez minutos depois, dirigiam-se para o centro de Stuttgart no carro de Bayer.

A distância de Nuremberg a Stuttgart pela velha estrada E-12 é no mínimo de duas horas, ainda que se puxe muito pelo carro. E Mackensen puxou muito pelo seu carro naquela noite. Meia hora depois de ter recebido o telefonema do Lobisomem,  depois de receber instruções completas e armado com o endereço de Bayer,  estava na estrada. Chegou às dez e meia da noite e foi diretamente à casa de Bayer.

Frau Bayer, alertada por outro telefonema do Lobisomem de que o homem chamado Kolb não era o que parecia ser e podia ser até um espião da polícia, estava trêmula e amedrontada quando Mackensen chegou. As maneiras rudes e enérgicas dele não contribuíram de modo algum para tranqüilizá-la.

- A que horas saíram'?

- às oito e um quarto, - disse ela, gaguejando. - Disseram para onde iam?

- Não. Franz me disse apenas que o moço tinha passado o dia inteiro sem comer e que ele ia levá-lo para jantar num restaurante. Eu ainda disse que podia preparar alguma coisa aqui em casa, mas Franz gosta mesmo de jantar fora. Aproveita qualquer pretexto... - Disse que viu o tal Kolb deixar o carro dele na rua. Onde foi isso?

Ela descreveu a rua onde o Jaguar estava estacionado e como era que se podia ir da casa para lá. Mackensen pensou carrancudamente por um momento.

- Tem qualquer idéia do restaurante para o qual seu marido pode ter levado o homem?

Ela pensou um pouco e respondeu:

- Bem, o lugar onde ele mais gosta de comer é o restaurante Três Mouros. na Friedrich Strasse. Em geral, é o primeiro lugar aonde ele vai.

Mackensen saiu da casa e foi de carro até o lugar onde estava estacionado o Jaguar. Examinou-o detidamente, certo de que o reconheceria onde quer que o visse. Estava inclinado a ficar ali por perto e esperar a volta de Miller. Mas as ordens do Lobisomem tinham sido de que ele devia procurar Miller e Bayer, advertir o homem da Odessa e mandá-lo para casa, tratando depois de liquidar Miller. Por esse motivo, não havia telefonado para o restaurante. Advertir Bayer seria o mesmo que alertar Miller, revelando que ele tinha sido descoberto e dando ao mesmo a chance de desaparecer de novo.

Mackensen olhou para o seu relógio. Faltavam dez para as onze. Entrou na sua Mercedes e dirigiu-se para o centro da cidade.

Num hotel pequeno e obscuro de Munique, Josef estava deitado acordado na cama quando lhe telefonaram da portaria para dizer que um telegrama havia chegado para ele. Desceu, pegou o telegrama e voltou com ele para o quarto.

Abriu o envelope e passou os olhos pelo extenso texto. Começava assim:

"Estamos transmitindo as cotações dos seguintes artigos solicitadas pelo cliente mencionado seu último telegrama:

Aipo:   481 marcos, 53 pfennigs

Melões:          362 marcos, 17 pfennigs

Laranjas:       627 marcos, 24 pfennigs

Grapefruit:     313 marcos, 88 pfennigs..."

A lista de frutas e legumes era muito extensa, mas todos os artigos eram os habitualmente exportados por Israel e o telegrama parecia a resposta a uma consulta sobre preços de algum importador alemão. Usar a rede telegráfica internacional não era seguro, mas tantos telegramas comerciais são transmitidos através da Europa Ocidental por dia que a tarefa de conferi-los todos exigiria um exército de homens.

Deixando de lado as palavras, Josef escreveu todos os algarismos numa longa linha. Os grupos de cinco algarismos em que as quantias em marcos e pfennigs estavam divididos desapareceram. Quan do todos os algarismos estavam reunidos numa linha única, ele os dividiu em grupos de seis algarismos. De cada grupo de seis algarismos, subtraiu a data do telegrama, 20 de fevereiro de 1964, que ele escreveu como 20264. O resultado em cada caso foi outro grupo de seis algarismos.

Era um código simples, baseado na edição popular do New World Dictionary de Webster, publicado pela Popular Library de Nova York. Os três primeiros algarismos do grupo representavam

a página do dicionário. O quarto algarismo podia ser qualquer de um a nove. Sendo ímpar, significava coluna um da página; sendo par, coluna dois. Os dois últimos algarismos indicavam o número de palavras que era preciso contar do alto. Trabalhou sem parar durante meia hora, leu então a mensagem e descansou lentamente a cabeça entre as mãos.

Trinta minutos depois, estava com Leon na casa deste último. O chefe do grupo de vingança leu a mensagem e praguejou:

- Desculpe, - disse ele afinal. - Eu não podia saber.

Sem que nenhum dos dois homens soubesse, três fragmentos de informação tinham chegado ao conhecimento do Mossad nos seis dias anteriores. Um era do agente israelense residente em Buenos Aires e dizia que alguém havia autorizado o pagamento de uma soma equivalente a um milhão de marcos alemães a uma figura de nome Vulkan "a fim de que pudesse completar a etapa seguinte do seu projeto de pesquisa".

O segundo era do empregado judeu de um banco suíço que processava habitualmente as transferências de dinheiro de fundos nazistas secretos de qualquer ponto para pagar a homens da Odessa na Europa Ocidental. Informava que um milhão de marcos fora transferido de um banco de Beirute e recebido em espécie por um homem que manejava havia dez anos uma conta no banco sob o nome de Fritz Wegener.

O terceiro era de um coronel egípcio que ocupava uma posição importante no dispositivo de segurança em torno da Fábrica 333 e que, em troca de uma substancial quantia capaz de permitir lhe uma aposentadoria confortável, conversara durante várias horas com um homem do Mossad num hotel de Roma. O que o homem tinha para dizer é que só faltava ao projeto dos foguetes um sistema de teledireção merecedor de confiança, o que estava sendo pesquisado e construído numa fábrica na Alemanha Ocidental e que o projeto estava custando milhões de marcos à Odessa.

Os três fragmentos de informação, entre milhares de outros, haviam sido processados nas baterias de computadores do Professor Youvel Neeman, o gênio israelense que tinha primeiro atrelado a ciência na forma do computador à análise da inteligência e que, depois, continuou para tornar-se o pai da bomba atômica israelense. Onde uma memória humana poderia ter falhado, os microcircuitos zumbidores ligaram os três assuntos e lembraram que até ser denunciado por sua mulher em 1955, Roschmann usara o nome de Fritz Wegener, comunicando essa conclusão.

Josef disse a Leon no seu quartel-general subterrâneo:

- Vou ficar aqui de agora em diante. Não vou sair de perto daquele telefone. Consiga-me uma motocicleta bem possante e roupas protetoras. Apronte tudo dentro de uma hora. Logo que seu precioso Miller telefonar, se ele chegar a telefonar, terei de ir para junto dele com a maior rapidez possível.

- Se ele for descoberto, você nunca poderá alcançá-lo com rapidez suficiente, - disse Leon. - Não é de admirar que lhe tivessem feito a advertência. Matá-lo-ão se ele chegar a um quilômetro que seja do homem:

Quando Leon deixou o porão, Josef olhou de novo para o telegrama proçedente de Tel Aviv. Dizia:

"Alerta vermelho nova informação indica chave vital sucesso foguetes industrial alemão em ação seu território ponto Nome código Vulkan ponto Identificação provável Roschmann ponto Afaste Miller imediatamente ponto Procure elimine ponto Cormoran"

Josef sentou-se à mesa e começou a limpar e armar meticulosamente a sua automática Walther PPK. De vez em quando, olhava para o telefone silencioso.

Durante o jantar, Bayer tinha sido o anfitrião bem-humorado, prorrompendo em gargalhadas enquanto contava as suas anedotas favoritas. Miller tentou várias vezes encaminhar a conversa para a questão de um novo passaporte para ele.

Bayer invariavelmente lhe dava uma palmada nas costas, disse-lhe que não se preocupasse e acrescentou:

- Deixe comigo, meu chapa. Deixe tudo com o velho Franz Bayer.

Uma coisa Miller tinha herdado dos seus oito anos como repórter. Era a capacidade de beber sem deixar que a bebida lhe subisse à cabeça. Só não estava habituado ao vinho branco que foi servido copiosamente durante o jantar. Mas o vinho branco tem uma vantagem quando se está tentando embriagar outra pessoa. Vem para a mesa com as garrafas dentro de baldes com gelo e água fria para conservá-lo gelado e por três vezes Miller pôde despejar o seu copo dentro do balde enquanto Bayer estava olhando para outro lado.

Até à sobremesa, tinham acabado com duas garrafas de vinho do Reno e Bayer, apertado em seu jaquetão fechado até ao pescoço, suava em bicas. Isso só servia para aumentar-lhe a sede e ele pediu uma terceira garrafa.

Miller se fingiu preocupado com a impossibilidade de obtenção de um novo passaporte e de que, por isso, fosse preso em conseqüência dos acontecimentos de 1945 em Flossenburg.

- Vai precisar de algumas fotografias minhas, não vai? - perguntou ele, muito sério.

Bayer riu.

- Sim, de duas fotografias. Isso não é problema. Pode tirá-las numa das cabinas automáticas da estação. Espere até seu cabelo crescer mais e seu bigode ficar um pouco mais cheio e ninguém jamais saberá que é o mesmo homem.

- E depois? - perguntou Miller, agitado.

- Depois, mandarei as fotografias para um amigo meu e uma semana depois receberemos o passaporte. Com o passaporte, conseguiremos para você uma carteira de motorista - terá naturalmente de ser aprovado no exame - e um cartão de seguro social. No que interessa às autoridades, você será um homem que voltou ao país depois de quinze anos no exterior. Não haverá problemas, meu amigo. Deixe de se preocupar, ouviu?

Embora Bayer estivesse ficando bêbado, ainda controlava a língua, Não quis dizer mais nada e Miller teve receio de insistir, pois ele podia desconfiar de alguma coisa e fechar-se por completo.

Embora estivesse ansioso por tomar um café, Miller desistiu, pois o café poderia curar a embriaguez de Bayer.

Este pagou o jantar puxando uma carteira bem recheada e os dois se encaminharam para o balcão onde haviam deixado os sobretudos. Eram dez e meia da noite.

- Foi uma noite maravilhosa, Herr Bayer. Muito obrigado. - Franz, Franz, - murmurou o gorducho enquanto vestia o sobretudo.

- Com toda a certeza, esse excelente jantar é o máximo que Stuttgart pode oferecer em matéria de vida noturna, não é? - perguntou Miller.

- Que é isso, rapaz? Isso é apenas o que você conhece até agora. Stuttgart é uma cidade bem grande apesar do tamanho. Temos uma meia dúzia de bons cabarés. Quer ir a algum deles?

- Quer dizer que aqui há mesmo cabarés com striptease e tudo mais? - perguntou Miller, arregalando os olhos.

Bayer confirmou alegremente.

- Quer saber de uma coisa? Não me oponho de todo à idéia de ver algumas pequenas tirarem as roupas.

Bayer deu uma boa gorjeta à moça do balcão de sobretudos e se encaminhou para a rua.

- Quais são os clubes noturnos que há em Stuttgart? - perguntou Miller, inocentemente.

- Hum, deixe ver... Há o Moulin Rouge, o Balzac, o Imperial e o Sayonara. Depois, há o Madeleine na Eberhardt Strasse... - Eberhardt? - exclamou Miller. - Que coincidência! É o nome de meu patrão em Bremen, o homem que me ajudou nesta dificuldade e me mandou para o advogado de Nuremberg!

- Ótimo, ótimo! Vamos até lá então, - disse Bayer, dirigindo-se para seu carro.

Mackensen chegou ao restaurante Três Mouros quando faltava um quarto para as onze. Foi perguntar ao maitre, que observava a partida dos últimos fregueses.

- Herr Bayer? Sim, esteve aqui esta noite. Mas saiu há coisa de meia hora.

- Estava com um amigo? Um homem alto de cabelos castanhos curtos e bigode?

- Isso mesmo. Lembro-me perfeitamente. Sentaram-se naquela mesa ali no canto.

Mackensen não teve dificuldade em passar uma nota de vinte marcos para a mão do homem.

- Tenho urgente necessidade de encontrá-lo. É um caso grave, sabe? A mulher dele teve um colapso...

O maitre fechou a cara com pesar. - Que horror!

- Sabe para onde ele foi quando saiu daqui?

- Infelizmente, não, - disse o homem, que chamou então um dos garçons. - Hans, você serviu Herr Bayer e o amigo dele na mesa do canto. Disseram que iam a algum lugar?

- Não, - respondeu Hans. - Não ouvi dizerem nada.

- Pode tentar a chapeleira, - disse o maitre. - Ela pode ter ouvido alguma coisa.

Mackensen perguntou à moça. Em seguida, pegou um folheto intitulado "Turismo em Stuttgart". Na seção dos clubes noturnos estavam relacionados alguns nomes, cerca de meia dúzia. Nas páginas centrais do folheto havia uma planta do centro da cidade. Voltou para seu carro. e se dirigiu para o primeiro nome na lista dos clubes noturnos.

Miller e Bayer estavam sentados a uma mesa para dois no clube noturno Madeleine. Bayer, já no seu segundo uísque, estava de olhos arregalados para uma pequena generosamente dotada que balançava os quadris no centro, prendendo com os dedos as alças do soutien. Quando afinal o deixou cair, Bayer deu uma cotovelada em Miller, trêmulo de alegria.

- Que coisa! Já viu um par assim?

Passava muito de meia-noite e ele estava ficando completamente bêbado.

- Escute aqui, Herr Bayer, - disse Miller. - Não posso deixar de ficar preocupado. Quem corre o risco de ser preso sou eu. Não pode correr com esse passaporte para mim'?

Bayer passou o braço pelos ombros de Miller.

- Já lhe disse. Rolf, meu chapa. Não se preocupe, certo? Deixe tudo com o velho Franz. - Piscou repetidamente o olho. - De qualquer maneira, quem faz os passaportes não sou eu. Mando apenas as fotografias para o camarada que trata disso e uma semana depois ele devolve tudo pronto. Não há problema, não há mesmo. Agora, beba com seu velho amigo Franz.

Levantou a mão gorda e agitou-a no ar. - Repita a dose, garçom.

Miller refletiu. Se ele tivesse de esperar até que o cabelo crescesse suficientemente para tirar as novas fotografias, isso poderia levar semanas. Por outro lado, não poderia conseguir por meio de truques que Bayer lhe desse o nome e o endereço do homem que fazia os passaportes. Podia estar bêbado, mas não a tal ponto que fosse trair inadvertidamente o seu parceiro no negócio das falsificações.

Não pôde afastar do clube o homem da Odessa antes de terminado o primeiro rena. Quando afinal saíram para o ar frio da noite, já passava de uma hora da madrugada.

Bayer estava que não se podia manter de pé e tinha de apoiar-se em Miller com o braço  passado pelos ombros do outro. O choque súbito do ar frio da noite só serviu para piorar o seu estado.

- Vou guiar seu carro até sua casa, - disse Miller a Bayer quando se aproximaram do carro encostado ao passeio. Tirou as chaves do carro do bolso do paletó de Bayer e ajudou o gordo, que não protestava, a embarcar no lugar ao lado da direção. Fechou a porta, deu volta ao carro e entrou do lado da direção. Nesse momento, um Mercedes cinzento apareceu na esquina e veio frear cerca de vinte metros atrás deles.

De trás do pára-brisa, Mackensen, que já havia passado por cinco clubes noturnos, olhou para a placa do carro que se afastava do meio-fio à porta do Madeleine. Era o número que Frau Bayer lhe havia dado. O carro do marido dela. Engrenou o carro e seguiu-o. Miller dirigia com cuidado, lutando contra o álcool que lhe toldava a cabeça. Dirigiu-se, não para a casa de Bayer mas para o hotel onde estava hospedado. Bayer cochilou desabaladamente pelo caminho, baixando a cabeça e espalhando as suas papadas num avental de gordura sobre o colarinho e a gravata.

Chegando ao hotel, Miller sacudiu-o para que acordasse.

- Vamos subir, Franz, amigo velho, - disse ele. - Vamos tomar mais um de despedida.

O gordo abriu os olhos sonolentos e murmurou:

- Tenho de ir para casa. A patroa está esperando.

- Vamos. Só um gole para encerrar a noite. E, enquanto você tomar um uísque, conversaremos sobre os velhos tempos.

- Os velhos tempos... Grandes tempos foram aqueles, Rolf. Miller saiu do carro e deu a volta para ajudar o gordo a desembarcar.

- Grandes tempos, disse.

muito bem, - murmurou Miller, ajudando Bayer a descer e levando-o para a porta do hotel. - Vamos relembrá-los.

Mais abaixo na rua, o Mercedes apagara os faróis e se confundia com as sombras da noite.

Miller estava com a chave do quarto no bolso. Por trás de sua mesa, o porteiro da noite dormia. Bayer começou a dizer alguma coisa.

- Psiu! - disse Miller. - Temos de fazer silêncio.

- Silêncio, - repetiu Bayer, caminhando na ponta dos pés para as escadas como um elefante. Ria das próprias momices que fazia. Felizmente para Miller, seu quarto era no primeiro andar, pois do contrário Bayer nunca teria chegado lá. Miller abriu a porta, acendeu a luz e ajudou Bayer a sentar-se na única poltrona do quarto, que tinha espaldar reto e braços de madeira.

Lá fora, na rua, Mackensen estava defronte do hotel e observava a fachada às escuras.

Às duas horas da madrugada, não havia luz alguma acesa. Quando a luz de Miller se acendeu, ele notou q fora no primeiro andar, à direita do hotel em relação a ele.

Pensou se devia subir diretamente, bater na porta de Miller e matá-lo quando ele a abrisse. Duas coisas o fizeram desistir da idéia. Pela porta de vidro do hotel, podia ver que o porteiro da noite, de certo modo despertado pelos passos pesados de Bayer, se levantara e estava andando pelo vestíbulo. Perceberia, sem dúvida alguma, uma pessoa que não estivesse hospedada no hotel e que subisse as escadas às duas horas da madrugada, podendo mais tarde fornecer à polícia uma boa descrição dele. A outra coisa que o dissuadiu foi o estado de Bayer. Tinha visto o gordo atravessar o passeio ajudado e sabia que seria impossível sair às pressas com ele do hotel depois de matár Miller. Se a polícia prendesse Bayer, haveria problemas com o Lobisomem. Apesar das aparências, Bayer era um homem muito procurado pela polícia sob seu verdadeiro nome e uma figura importante dentro da Odessa.

Outra circunstância convenceu Mackensen a atirar pela janela. Em frente ao hotel, havia um edifício em construção. A estrutura e' as lajes já estavam no lugar e uma escada de concreto ainda sem acabamento levava aos andares superiores. Podia esperar, pois Miller não ia a lugar algum. Voltou ao seu carro e tirou a espingarda de caça guardada na mala.

Bayer foi tomado completamente de surpresa quando recebeu a pancada. Os seus reflexos retardados pela bebida não lhe deram chance de reagir a tempo. Miller, fingindo procurar a garrafa de uísque, abriu a porta do armário e tirou a sua segunda gravata. A primeira estava enrolada em torno de seu pescoço.

Nunca tivera oportunidade de empregar os golpes que havia aprendido com os recrutas seus companheiros no ginásio da base de treinamento do exército dez anos antes, e não tinha muita certeza da eficácia dos mesmos. O volume do pescoço de Bayer, como uma montanha rosada quando visto de costas enquanto o homem, sentado na poltrona, murmurava: "Bons tempos..." fez Miller bater com toda força.

Não foi um golpe de deixar sem sentidos, pois a quina da mão estava macia e destreinada e o pescoço de Bayer estava isolado por algumas camadas de gordura. Mas foi suficiente. Quando o homem da Odessa ficou com o cérebro mais desanuviado, seus dois pulsos estavam firmemente amarrados aos braços da poltrona.

- Que merda é essa? - murmurou ele com voz pastosa, sacudindo a cabeça para livrar-se do aturdimento. Miller tirou-lhe a gravata para prender-lhe o tornozelo esquerdo aos pés da poltrona,  enquanto o fio do telefone serviu para amarrar o tornozelo direito.

Arregalou os olhos para Miller, começando a compreender. Como todos os homens de sua espécie Bayer tinha um pesadelo do qual jamais conseguia livrar-se.

- Não me pode tirar daqui, - disse. - Não vai conseguir levar-me para Tel Aviv. Não podem provar nada. Nunca toquei em sua gente...

As palavras foram sufocadas quando Miller lhe meteu na boca um par de meias e lhe amarrou em torno do rosto uma écharpe de lã, que fora um presente de sua solícita mãe.

Miller puxou a outra cadeira que havia no quarto, virou-a e se escanchou nela, ficando com o rosto a meio metro do do prisioneiro. - Escute, montão de banha. Em primeiro lugar, não sou agente israelense. Segundo ponto: você não vai a lugar nenhum. Vai ficar aqui e abrir a boca aqui mesmo, compreendeu?

Em resposta, Franz Bayer olhou-o fixamente acima da écharpe. Os seus olhos não faiscavam mais de alegria. Estavam injetados como os de uma fera acuada.

- O que eu quero saber e vou saber antes que esta noite acabe é o nome e o endereço do homem que faz os passaportes para a Odessa.

Olhou em torno, viu o abajur na mesa de cabeceira. Tirou-o da tomada na parede e voltou com ele para junto do homem.

- Ora, Bayer ou seja lá qual for seu nome, vou-lhe tirar a mordaça. Você vai falar. Se tentar gritar, levará uma bordoada com isto na cabeça. Se eu lhe esmigalhar a cabeça ou não, é coisa que realmente não me interessa.

Miller não estava dizendo a verdade. Nunca matara ninguém e não tinha a menor vontade de começar naquela noite.

Afrouxou pouco a pouco a écharpe e tirou as meias da boca de Bayer, conservando o abajur erguido na mão direita.

- Espião imundo! - vociferou Bayer. - De mim, você não vai conseguir nada!

Mal ele disse isso, as meias lhe voltaram à boca e a écharpe foi de novo apertada.

- Não? - disse Miller. - Vamos ver. Vou começar pelos seus dedos para ver se você gosta.

Pegou o dedo mínimo e o anular da mão direita de Bayer e dobrou-os para trás até ficarem quase verticais. Bayer se torceu tanto na cadeira que esta quase caiu. Miller firmou-a e diminuiu a pressão sobre os dedos.

Tornou a tirar a mordaça.

- Posso quebrar-lhe todos os dedos da mão, Bayer. Depois, vou ligar este abajur na tomada e botar seu membro para servir de lâmpada.

Bayer fechou os olhos e o suor lhe rolou do rosto em torrentes. - Os eléctrodos não. Ali, não! - murmurou ele.

- Sabe qual é o efeito, hem? - perguntou Miller quase ao ouvido do gordo.

Bayer fechou os olhos e gemeu baixinho. Sim, sabia qual era o efeito. Vinte anos atrás, tinha sido um dos homens que haviam reduzido a um molambo o "Coelho Branco", o Brigadeiro Yeo Thomas, no porão da prisão de Fresnes, em Paris. Sabia muito bem qual era o efeito, mas nos outros.

- Fale, - disse Miller. - Quero o nome e o endereço do falsificador.

Bayer sacudiu lentamente a cabeça e sussurrou: - Não posso fazer isso. Se fizer, eles me matam.

Miller tornou a botar a mordaça. Pegou o dedo mínimo de Bayer, fechou os olhos e dobrou-o para trás uma vez. O osso estalou na articulação. Bayer se torceu na cadeira e vomitou na mordaça.

Miller tirou a mordaça antes que ele ficasse sufocado. A cabeça do gordo pendeu para a frente e o jantar caro daquela noite, acompanhado de três garrafas de vinho e vários uísques duplos lhe escorreu pelo peito, descendo para o colo.

- Fale, - disse Miller. - Ainda lhe restam nove dedos para serem quebrados.

Bayer deglutiu com os olhos fechados e disse: - Winzer.

- Quem?

- Winzer. Klaus Winzer. É quem faz os passaportes. - É falsificador profissional?

- É um tipógrafo.

- Onde? Qual é a cidade? - Eles me matarão.

- E eu o matarei, se não me disser. Qual é a cidade? - Osnabrück, - sussurrou Bayer.

Miller recolocou a mordaça em Bayer e pensou. Klaus Winzer, tipógrafo em Osnabrück. Foi até sua pasta, onde estavam o diário de Salomon Tauber e vários mapas e tirou um mapa rodoviário da Alemanha.

A autobahn para Osnabrück, que ficava muito ao norte na Renânia do Norte/Vestfália, passava por Mannheim, Frankfurt, Dortmund e Munster. Seria uma viagem de carro de quatro a cinco horas, dependendo das condições da estrada. Eram quase três horas da manhã de 21 de fevereiro.

Do outro lado da rua, Mackensen tremia no seu posto de observação no segundo andar do prédio em construção. A luz ainda estava acesa no outro quarto, no primeiro andar do hotel. Desviava constantemente o olhar da janela iluminada para a porta do hotel.

Se Bayer saísse, ele poderia atacar Miller sozinho. Também se Miller saísse, poderia atingi-lo facilmente na rua. Miller poderia também abrir a janela para deixar entrar um pouco de ar fresco. Tremeu de novo com o frio e agarrou a sua pesada Remington 300. A distância de trinta metros, não haveria problemas com uma arma como aquela. Mackensen podia esperar. Era um homem paciente.

No seu quarto, Miller arrumou calmamente o que era seu para a viagem. Era preciso que Bayer ficasse em silêncio durante seis horas no mínimo. Talvez o homem estivesse tão apavorado que não tivesse coragem de contar aos seus chefes que revelara o segredo do falsificador. Mas Miller não podia contar com isso.

Passou alguns minutos apertando os nós e a mordaça que mantinham Bayer imóvel e silencioso. Depois, deitou a cadeira de lado para que o gordo não desse alarma caindo barulhentamente com a cadeira. O fio do telefone já fora arrancado. Lançou um último olhar para o quarto e saiu, trancando a porta.

Estava quase no alto das escadas quando lhe ocorreu que o porteiro da noite podia ter visto duas pessoas subirem e poderia ficar desconfiado se o visse sair sozinho. Miller voltou pelo corredor para os fundos do hotel. Ao fim do corredor, havia uma janela que dava para a escada de incêndio. Abriu a janela e saiu pela escada. Alguns segundos depois, estava no pátio onde ficava a garagem. Uma porta dos fundos levava a um pequeno beco atrás do hotel.

Dois minutos depois, estava caminhando para o lugar onde deixara o seu Jaguar, a alguma distância da casa de Bayer. O efeito da bebida e as atividades daquela noite se juntavam para fazê-lo sentir-se terrivelmente cansado. Estava com muito sono, mas sabia que tinha de alcançar Winzer antes que fosse dado o alarma.

Eram quase quatro horas quando chegou ao Jaguar e só meia hora depois pôde, atravessando a cidade, alcançar a autobahn que seguia para o norte no rumo de Heilbronn e Mannheim.

Logo depois que ele saiu, Bayer, já então completamente recuperado do efeito da bebida, começou a lutar para ficar livre. Tentou curvar a cabeça bem para a frente a fim de usar os dentes, através da meia e da écharpe, nos nós das gravatas que lhe prendiam os pulsos à poltrona. Mas a gordura o impediu de baixar bem a cabeça e a meia dentro da boca não deixava que os dentes se juntassem. De poucos em poucos minutos, tinha de parar e respirar profundamente pelo nariz.

Fez força nos nós dos tornozelos para ver se se afrouxavam, mas não conseguiu nada. Por fim, apesar da dor que sentia no dedo quebrado e inchado, resolveu lutar para soltar os pulsos.

Quando isso não deu resultado, avistou o abajur no chão. Ainda estava com a lâmpada, mas uma lâmpada elétrica quebrada deixa lascas de vidro suficientes para cortar uma gravata.

Pode parecer fácil usar um pedaço de vidro quebrado para cortar laços que prendem os pulsos, mas não é. Pode levar horas o corte de um simples fio de pano. Os pulsos de Bayer porejavam de suor, umedecendo o pano das gravatas e fazendo que ficassem mais apertados em torno dos pulsos gordos. Eram sete da manhã e a luz estava começando a espalhar-se sobre os telhados da cidade quando os primeiros fios foram cortados em conseqüência do atrito com um pedaço de vidro quebrado. Eram quase oito horas quando o pulso esquerdo ficou livre.

A essa hora, o Jaguar de Miller estava contornando o Anel de Colônia a leste da cidade, ainda a cento e cinqüenta quilômetros de Osnabrück. Tinha começado a chover, com a chuva caindo em torrentes sobre a autobahn e o efeito hipnótico dos limpadores de párabrisa quase o fez dormir.

Diminuiu a sua marcha para não correr o risco de derrapar da estrada para a lama do lado.

Com a mão esquerda livre, Bayer precisou de alguns minutos apenas para tirar a mordaça e passar algum tempo então a aspirar sofregamente o ar. O mau cheiro dentro do quarto era horroroso numa mistura de suor, medo, vômito e uísque. Desatou os nós do pulso direito, torcendo-se sempre que a dor do dedo quebrado lhe subia pelo braço. Soltou depois os pés.

Pensou logo na porta, mas verificou que estava trancada. Tentou o telefone, arrastando-se nos pés dormentes. Por fim, cambaleou até à janela, abriu as cortinas, puxou as janelas para dentro e escancarou-as.

Do seu posto do outro lado da rua, Mackensen, que estava quase dormindo apesar do frio, viu as cortinas do quarto de Miller se abrirem. Colocando imediatamente a Remington em posição de tiro, esperou até que o vulto abrisse as janelas e então atirou bem no rosto.

A bala atingiu Bayer na base do pescoço e ele já estava morto antes que seu pesado corpo tombasse para trás. O barulho do tiro podia ser atribuído ao cano de descarga de um carro durante um minuto, mas não por mais tempo. Dentro de menos de um minuto, mesmo àquela hora da manhã, Mackensen sabia que alguém iria investigar.

Sem esperar para olhar de novo para o quarto do outro lado da rua, saiu do segundo andar da obra, desceu correndo os degraus de concreto e chegou ao solo. Saiu pelos fundos, passando por entre duas misturadeiras de cimento e um montão de pedra britada. Chegou ao seu carro sessenta segundos depois de ter atirado, guardou a espingarda na mala e correu para a direção.

Percebeu, no momento em que se sentou ao volante e meteu a chave na ignição, que tinha havido algum erro.

O homem que tinha de matar por ordem do Lobisomem era alto e magro. A rápida impressão que lhe ficara do homem à janela era de um homem baixo e , gordo. Diante do que vira naquela noite, desconfiava de que tinha atingido Bayer.

Ora, o problema não era tão grave assim. Vendo Bayer morto no tapete de seu quarto, Miller trataria com certeza de fugir o mais depressa possível. Voltaria portanto para o seu Jaguar. Mackensen dirigiu o seu Mercedes para o ponto em que havia visto o Jaguar. Só começou deveras a se preocupar quando viu que o espaço entre o Opel e o caminhão Benz, onde o Jaguar tinha estado naquela noite na sossegada rua residencial, estava vazio.

Mackensen não seria o carrasco da Odessa se fosse um homem capaz de se apavorar com facilidade. Não era absolutamente a primeira vez em que se via em situações difíceis. Ficou alguns minutos sentado ao volante de seu carro antes que se convencesse de que Miller devia estar naquele momento a centenas de quilômetros de distância.

Se Miller tinha deixado Bayer vivo, só podia ser porque nada conseguira dele ou então porque conseguira alguma coisa. No primeiro caso, não havia mal algum; ele pegaria Miller depois. Não havia pressa. Se Miller tinha conseguido alguma coisa de Bayer, só podia ser informação. Só o Lobisomem podia saber que espécie de informação Miller estava procurando e Bayer poderia dar. Por isso, apesar do receio que sentia da raiva do Lobisomem, tinha de telefonar para ele.

Só vinte minutos depois, encontrou um telefone público. Levava sempre no bolso moedas de um marco para telefonemas interurbanos. Quando atendeu o telefone em Nuremberg e recebeu a notícia, o Lobisomem teve um acesso de raiva e disse pelo telefone os maiores impropérios ao assassino a quem contratara. Levou muito tempo para se acalmar.

- Trate de achá-lo, idiota, e bem depressa. Só Deus sabe para onde ele foi agora.

Mackensen explicou ao seu chefe que tinha de saber que espécie de informação Bayer tinha dado a Miller antes de morrer.

Do outro lado da linha, o Lobisomem pensou por um momento e então exclamou:

- Meu Deus, o falsificador! Ele tem o nome do falsificador! - Que falsificador, Chefe? - perguntou Mackensen.

O Lobisomem já se havia recuperado.

- Vou tratar de avisar o homem, - disse ele rispidamente. - Miller foi para onde ele está.

Ditou um endereço a Mackensen e acrescentou:

- Você tem de ir para Osnabrück correndo como nunca correu em toda a sua vida.

Vai encontrar Miller nesse endereço que lhe dei ou em algum outro ponto da cidade. Se ele não estiver na casa que indiquei, procure o Jaguar pela cidade. E dessa vez não o perca de vista. É o único lugar a que ele sempre volta.

Desligou o telefone e ligou de novo para a telefonista de informações. Quando conseguiu o número que desejava, discou um número em Osnabrück.

Em Stuttgart, Mackensen ficou com o fone batido na mão. Encolhendo os ombros, recolocou-o no gancho e voltou para o seu carro, para enfrentar a perspectiva de uma longa e fastidiosa viagem

seguida de outro "serviço". Estava quase tão cansado quanto Miller, que já se achava então a trinta quilômetros de Osnabrück. Nenhum dos dois homens dormia havia vinte e quatro horas e Mackensen não comera coisa alguma desde a hora do almoço.

Gelado até à medula dos ossos pela vigília da noite e desejando um café bem quente com um Steinhager para fazê-lo descer, acionou o Mercedes e tomou o caminho do norte na estrada para a Vestfália.

 

Quem olhasse para Klaus Winzer não veria nada que sugerisse que ele já fizera parte das SS. Em primeiro lugar, estava abaixo da altura mínima de um metro e oitenta exigida. Depois, era míope. Aos quarenta anos de idade, era gordo e pálido, com cabelos louros crespos e maneiras tímidas.

Na realidade, tinha tido uma das mais estranhas carreiras de qualquer homem que tivesse vestido o uniforme das SS. Nascido em 1924, era filho de um certo Johann Winzer, que tinha um açougue de carne de porco em Wiesbaden e era um homem grande e impulsivo que fora desde o princípio dos anos 20 um adepto fiel de Adolf Hitler e do Partido Nazista. Desde criança, Klaus se lembrava de ver o pai voltar para casa depois de rudes brigas de rua com os comunistas e os socialistas.

Klaus tinha saído à mãe e, com desgosto para o pai, era franzino, fraco, míope e pacífico. Detestava a violência, os esportes e a sua filiação à Juventude Hitlerista. Só numa coisa se destacava: no início da adolescência, ficou por completo encantado com a arte dos calígrafos e com a preparação de iluminuras para manuscritos, uma atividade que o pai aborrecido considerava coisa para efeminados.

Com o advento de Hitler, o açougueiro prosperou, obtendo como prêmio pelos seus serviços ao partido o contrato exclusivo de fornecimento de carne ao quartel local das SS. Admirava muito os jovens arrogantes das SS e tinha a fervorosa esperança de ver um dia o filho usando o uniforme preto e prata do Schutz Staffel.

Klaus não mostrava a menor inclinação nesse sentido, preferindo viver sobre os seus manuscritos, fazendo experiências com tintas de cor e novos tipos de letras.

Começou a guerra e, na primavera de 1942, Klaus completou dezoito anos e atingiu a idade da convocação para o serviço militar. Em Contraste com o pai musculoso, brigão e inimigo dos judeus, era pequeno, pálido e tímido. Não conseguindo ser aprovado nem no exame médico necessário para um serviço burocrático dentro do exército, Klaus foi mandado para casa pela junta do recrutamento. Para o pai dele, foi a última gota.

Johann Winzer tomou o trem para Berlim e procurou um velho amigo dos seus tempos de batalhas nas ruas e que tinha passado a ocupar um alto posto nas SS, na esperança de que ele pudesse obter entrada para o filho em algum ramo de serviço ao Reich. O homem foi tão solícito quanto lhe era possível, o que não vinha a ser muito, e perguntou se havia alguma coisa que o jovem Klaus soubesse fazer bem. Cheio de vergonha, o pai confessou que ele podia fazer iluminuras em manuscritos.

O homem prometeu fazer o que pudesse, mas perguntou se, enquanto isso, Klaus poderia preparar uma saudação num pergaminho com iluminuras em honra de um certo major das SS chamado Frite Suhren.

Em Wiesbaden, o jovem Klaus fez o que lhe era pedido e uma semana depois, numa cerimônia em Berlim, o manuscrito foi oferecido a Suhren pelos seus colegas. Suhren, que era então comandante do campo de concentração de Sachsenhausen, tinha sido designado para assumir o comándo do ainda mais famoso campo de Ravensbrück.

Suhren foi executado pelos franceses em 1945.

Por ocasião da cerimônia na sede da RSHA, em Berlim, todos admiraram o pergaminho magnificamente preparado e entre os presentes estava um certo tenente das SS chamado Alfred Naujocks. Foi esse o homem que perpetrou o ataque simulado à estação de rádio de Gleiwitz, na fronteira entre a Alemanha e a Polônia, em agosto de 1939, deixando os corpos de prisioneiros de um campo de concentração vestidos com fardas do exército polonês como "prova" da agressão polonesa à Alemanha, que serviu de pretexto a Hitler para invadir a Polônia na semana seguinte.

Naujocks perguntou quem havia feito o pergaminho e, depois de informado, solicitou que o jovem Klaus Winzer fosse chamado a Berlim.

Antes que compreendesse o que estava acontecendo, Klaus Winzer foi admitido nas SS sem qualquer período formal de treinamento e teve de prestar juramento de lealdade e de segredo, sendo-lhe dito então que seria transferido para um projeto ultra-secreto do Reich. O açougueiro de Wiesbaden, atônito, estava no sétimo céu.

O projeto em questão estava sendo executado sob os auspícios da RSHA, Amt Seis, Seção F, numa oficina da Dellbruck Strasse, Berlim. Basicamente, o projeto era muito simples. As SS estavam tentando falsificar centenas de milhares de notas inglesas de cinco libras e de notas americanas de 100 dólares. O papel era feito na fábrica de papel de notas do Reich em Spechthausen, nos arredores de Berlim, e o trabalho da oficina da Dellbruck Strasse era conseguir a linha-d'água correta do dinheiro inglês e americano. Klaus Winzer seria aproveitado em vista do conhecimento que tinha de papéis e de tintas.

A idéia era inundar a Inglaterra e os Estados Unidos de dinheiro falso. Em princípios de 1943, quando a linha-d'água para as notas inglesas tinha sido conseguida, o projeto de confecção das chapas de impressão foi transferido para o Bloco 19 do campo de concentração de Sachsenhausen, onde grafólogos e artistas gráficos judeus e não-judeus trabalhavam sob a direção das SS. O trabalho de Winzer era exercer o controle da qualidade, pois as SS não confiavam em que os prisioneiros não cometessem um erro deliberado no seu trabalho.

Dentro de dois anos, Klaus Winzer tinha aprendido tudo o que sabiam os homens que ele controlava e isso bastara para fazer dele um falsificador excepcional. Em fins de 1944, o projeto do Bloco 19 servia também para preparar cartões de identidade falsos para os oficiais das SS depois da queda da Alemanha.

No começo da primavera de 1945, aquele pequeno mundo à parte, feliz à sua maneira em comparação com a devastação que se alastrava pela Alemanha, chegou ao fim.

Toda a operação, sob o comando de um capitão das SS de nome Bernhard Krueger, teve ordem de deixar Sachsenhausen e transferir-se para as remotas montanhas da Áustria, onde continuaria o seu trabalho. Foram todos de carro para o sul e instalaram a oficina de falsificações na abandonada fábrica de cerveja de Redl-Zipf, na Alta Áustria. Poucos dias antes do fim da guerra, um desalentado Klaus Winzer chorou à beira de um lago enquanto milhões de libras e bilhões de dólares do seu dinheiro tão belamente falsificado eram jogados dentro da água.

Voltou então para sua casa em Wiesbaden. Depois de ter passado tanto tempo nas SS sem-que nunca lhe faltasse uma refeição, Viu com espanto que os civis na Alemanha estavam passando fome naquele verão de 1945. Os americanos tinham ocupado Wiesbaden e, embora eles tivessem muito o que comer, os alemães só conseguiam migalhas. O pai dele, que tinha passado a ser um antinazista, descera muito de categoria. O açougue, dantes bem sortido de presuntos, tinha apenas uma corda de salsichas pendente para vender das filas de ganchos vazios.

A mãe de Klaus explicou-lhe que toda a comida tinha de ser comprada por meio de cartões de racionamento, expedidos pelos americanos. Muito interessado, Klaus examinou os cartões de racionamento e notou que eram impressos ali mesmo num papel muito inferior e retirou-se para o seu quarto durante alguns dias, levando alguns cartões. Quando saiu de lá, entregou à mãe atônita pilhas de cartões de racionamento americanos, suficientes para alimentá-los a todos durante seis meses.

- Mas são falsificados! - exclamou a mãe.

Klaus explicou pacientemente o que já então sinceramente acreditava: não eram falsificados; tinham sido apenas impressos numa máquina diferente. O pai apoiou Klaus.

- Está querendo dizer, mulher de cabeça oca, que os cartões de racionamento de nosso filho são inferiores aos cartões de racionamento dos ianques?

O argumento era irrespondível, especialmente quando se sentaram à mesa naquela noite diante de uma refeição de quatro pratos.

Um mês depois, Klaus Winzer conheceu Otto Klops, espalhafatoso e confiante rei do mercado negro de Wiesbaden, e os dois iniciaram os seus negócios. Winzer produziu quantidades intermináveis de cartões de racionamento, cupons de gasolina, passes de fronteiras zonais, carteiras de motoristas, passes militares dos Estados Unidos e cartões para compras nas cantinas americanas. Klops podia assim adquirir comida, gasolina, pneus de caminhão, meias de nylon, sabonetes, produtos de beleza e roupas. Usava parte do produto para que ele e os Winzers vivessem confortavelmente e vendia o resto a preços do mercado negro. Dentro de trinta meses, no verão de 1948, Klaus Winzer era um homem rico. Cinco milhões de Reichmarks estavam depositados em sua conta bancária.

Explicava à mãe horrorizada a sua filosofia muito simples: "Um documento não é legítimo, nem falsificado, mas eficaz ou ineficaz. Se um passe se destina a permitir a passagem por uma barreira e a pessoa consegue passar pela barreira, trata-se de um bom documento".

Em outubro de 1944, foi cometida a segunda sujeira contra Klaus Winzer. As autoridades efetuaram uma reforma monetária que substituiu o velho Reichmark pelo novo Deutschmark. Mas, em vez de trocarem um pelo outro, aboliram simplesmente o Reichmark e deram a cada pessoa a soma redonda de 1.000 marcos novos. Klaus estava arruinado. Mais uma vez, toda a sua fortuna não passava de papel inútil.

O povo, não precisando mais do mercado negro, pois havia mercadorias em quantidade no mercado legítimo, denunciou Klops e Winzer teve de fugir. Munindo-se de um de seus passes zonais, dirigiu-se para o quartel-general da zona inglesa em Hanover e candidatou-se a um emprego na seção de passaportes do Governo Militar Inglês.

As suas referências das autoridades americanas em Wiesbaden, assinadas por um coronel, eram excelentes; não podiam deixar de ser, pois ele mesmo é que as havia feito. O major inglês com quem ele conversou para conseguir o lugar deixou a xícara de chá em cima da mesa e disse ao candidato:

- Espero que compreenda a importância de que as pessoas tragam sempre consigo uma documentação correta.

Com inteira sinceridade, Winzer assegurou ao major que era da mesma opinião. Dois meses depois, teve um golpe de sorte. Estava sozinho numa cervejaria tomando uma cerveja, quando um homem puxou conversa com ele. O nome do homem era Herbert Molders. Disse confidencialmente a Winzer que estava sendo procurado pelos ingleses como criminoso de guerra e precisava de sair da Alemanha. Mas só os ingleses podiam fornecer passaportes aos alemães e ele evidentemente não podia conseguir isso. Winzer murmurou que o caso poderia ser resolvido, mas custaria algum dinheiro.

Viu com espanto Molders mostrar um colar de brilhantes autêntico. Explicou que tinha estado num campo de concentração e um dos prisioneiros judeus tinha tentado comprar a sua liberdade com as jóias da família. Molders ficara com o colar, tomara providências para que o judeu fizesse parte do primeiro grupo a marchar para as câmaras de gás e, contra todas as ordens, não entregara a jóia.

Uma semana depois, armado com uma fotografia de Molders, Winzer preparou o passaporte. Não chegou nem a falsificá-lo. Não era preciso.

O sistema na seção de passaportes era simples. Na primeira seção, os candidatos apresentavam toda a sua documentação e preenchiam um formulário. Retiravam-se então, deixando os seus documentos para que fossem estudados. A segunda seção examinava as certidões de nascimento, os cartões de identificação, as carteiras de motorista, etc., para ver se eram documentos falsificados, verificava a lista de criminosos de guerra procurados e, se o requerimento era aprovado, encaminhava os documentos, acompanhados de uma aprovação assinada, à terceira seção. Esta, diante da aprovação da segunda seção, tirava um passaporte em branco do cofre onde eram guardados, preenchia-o, colava nele a fotografia do requerente e entregava o passaporte ao interessado, que se apresentava uma semana depois.

Winzer conseguiu ser transferido para a terceira seção. Muito simplesmente, preencheu um formulário de pedido de passaporte para Molders com um novo nome, escreveu uma folha com a nota de"Pedido aprovado" do chefe da segunda seção e falsificou a assinatura do funcionário inglês.

Passou pela segunda seção e pegou os dezenove formulários de requerimento e folhas de aprovação que estavam ali para serem recolhidos, colocou o formulário e a folha de aprovação de Moldes entre os outros elevou o maço para o Major Johnstone. Este verificou que havia vinte folhas de aprovação, foi até ao cofre, tirou vinte passaportes em branco e entregou-os a Winzer. Este preencheu os devidamente, apôs o carimbo oficial e entregou dezenove aos felizes requerentes que esperavam. O vigésimo foi guardado em seu bolso. Foram então arquivados vinte formulários de requerimento correspondentes aos passaportes emitidos.

Naquela noite, entregou o novo passaporte a Molders e recebeu o colar de brilhantes. Tinha encontrado a sua nova ocupação

Em maio de 1949, foi fundada a república da Alemanha Ocidental e a divisão de passaportes foi transferida para o governo estadual da Baixa Saxônia, capital Hanover. Winzer continuou no serviço de passaportes. Não teve mais clientes. Não precisava deles. Todas as semanas, armado com uma fotografia de frente de algun desconhecido comprada em algum estúdio fotográfico, Winzer preenchia cuidadosamente um formulário de requerimento, prendia uma fotografia ao formulário, falsificava uma folha de aprovação com assinatura do chefe da segunda seção, que a esse tempo já era um alemão, e se encaminhava para o chefe da terceira seção com un maço de formulários e folhas de aprovação. Desde que os números conferiam, recebia os passaportes em branco. Todos menos um eram entregues aos legítimos requerentes. O último passaporte em branco era guardado em seu bolso. Depois disso, precisava apenas do carim bo oficial. Roubá-lo seria perigoso. Levou-o para casa por uma noite e, no dia seguinte, tinha um molde do carimbo da Divisão de Passaportes do Governo Estadual da Baixa Saxônia.

Em sessenta semanas, tinha sessenta passaportes em branco e Pediu demissão do emprego, recebeu devidamente vermelho os elogios de seus superiores pelo seu trabalho meticuloso e correto, deixou Hanover, vendeu o colar de brilhantes em Antuérpia e abriu uma pequena tipografia em Osnabrück, num tempo em que ouro dólares podiam comprar qualquer coisa bem abaixo dos preços correntes no mercado.

Nunca se teria envolvido com a Odessa se Molders tivesse mantido silêncio.

Mas, logo que chegou a Madri e se viu entre amigos, Molders vangloriou-se de um contato que podia fornecer passaportes legítimos da Alemanha Ocidental sob um nome falso a quem lhe pedisse.

Em fins de 1950, um "amigo" foi procurar Winzer, que pouco antes começara a trabalhar na sua tipografia em Osnabrück. Winzer não podia deixar de concordar. Daí por diante, sempre que havia um homem da Odessa em dificuldades, Winzer fornecia um passaporte novo.

O sistema era perfeitamente seguro. Winzer precisava apenas de uma fotografia e da idade do homem. Tinha guardado uma cópia dos detalhes pessoais constantes de cada formulário de requerimento guardado nos arquivos de Hanover. Tomava então um passaporte em branco e preenchia-o com os detalhes pessoais já escritos nos requerimentos de 1949. O nome era em geral comum, o lugar de nascimento era indicado como bem atrás da Cortina de Ferro, onde seria impossível verificar coisa alguma, e a data do nascimento correspondia quase à verdadeira idade do homem da Odessa. Winzer aplicava então o carimbo da Baixa Saxônia. A pessoa assinaria o novo passaporte com seu novo nome quando o recebesse.

As renovações eram fáceis. Ao fim de cinco anos, o homem das SS procurado solicitava simplesmente a renovação na capital de qualquer estado que não fosse a Baixa Saxônia. O funcionário da Baviera, por exemplo, comunicava-se com Hanover e perguntava: "Foi emitido aí o passaporte número tal de 1950 a Waler Schumann, nascido em tal lugar e em tal data?" Em Hanover, o funcionário consultava os arquivos e respondia: "Sim". O funcionário bávaro, convencido pelo seu colega de Hanover da autenticidade do passaporte, emitia então um novo passaporte com o carimbo da Baviera.

Enquanto a fotografia no requerimento em Hanover não fosse comparada com a fotografia do passaporte apresentado em Munique, não haveria problema. Mas a conferência das fotografias é coisa que jamais se verifica. Os funcionários se baseiam em formulários corretamente preenchidos e corretamente aprovados e em números de passaportes, não em fotografias.

Só depois de 1955, mais de cinco anos depois da emissão do passaporte original de Hanover, seria necessária a renovação imediata por parte do possuidor de um passaporte de Winzer. Uma vez obtido o passaporte, o homem das SS procurado podia conseguir de novo carteira de motorista, cartão de seguro social, conta bancária, cartão de crédito, em suma, uma identidade inteiramente nova.

Na primavera de 1964, Winzer tinha já fornecido quarenta e dois passaportes do seu estoque original de sessenta.

Mas o astuto Winzer tinha tomado uma precaução. Podia ser que um dia a Odessa quisesse dispensar os seus serviços e desfazer-se dele. Por isso, tinha um registro.

Nunca sabia o verdadeiro nome  de seus clientes. Não havia necessidade disso para fazer um passaporte com nome falso. Esse ponto era destituído de importância. Assim, Winzer tirava uma cópia de todas as fotografias que lhe eram mandadas, colava o original no passaporte que enviava e ficava com a cópia. Essa cópia era colada numa folha de papel, na qual ele datilografava o novo nome, o endereço (os endereços são exigidos nos passaportes alemães) e o número do novo passaporte.

Essas folhas eram guardadas num arquivo. Representavam o seu seguro de vida. Havia o arquivo em sua casa e uma cópia con um advogado de Zurique. Se sua vida fosse um dia ameaçada pela Odessa, ele falaria da existência do arquivo e avisaria que, se alguma coisa lhe acontecesse, o advogado de Zurique remeteria a cópia para  as autoridades alemãs.

A Alemanha Ocidental teria assim uma galeria completa de nazistas procurados. Bastaria o número do passaporte conferido rapidamente em cada uma das dezesseis capitais de estado para revelar o domicílio do portador. O desmascaramento não duraria mais de uma semana. Era um plano à prova de surpresas para assegurar que Klaus Winzer continuasse vivo e em gozo de boa saúde.

Era esse, pois, o homem que estava calmamente tomando naquela manhã o seu café com torradas e geléia ao mesmo tempo que passava os olhos pela primeira página do Osnabrück Zeitung, quando o telefone tocou às oito e meia daquela sexta-feira. A voz do outro lado do fio foi primeiro autoritária e depois, tranqüilizadora.

- Não se trata absolutamente de qualquer dificuldade sua conosco, - disse o Lobisomem. - É apenas esse maldito repórter. Temos a informação de que ele vai procurá-lo. O caso não apresenta nenhum risco para você. Um dos nossos homens está no encalço dele e tudo será resolvido hoje mesmo. Mas você tem de sair daí dentro de dez minutos. Vou-lhe dizer o que quero que faça...

Trinta minutos depois, Klaus Winzer muito atarantado preparou uma maleta, lançou um olhar indeciso em direção ao cofre onde o arquivo estava guardado, chegou à conclusão de que não ia precisar dele e explicou à sua atônita empregada, Bárbara, que não Iria naquele dia à tipografia: Ao contrário, tinha resolvido tomar breves férias nos Alpes Austríacos. 'Um pouco de ar livre, não havia nada melhor para o organismo.

Bárbara ficou à porta de boca aberta enquanto o Kadett de Winzer descia em marcha à ré para a rua residencial e se afastava. Às nove e dez, Winzer chegou ao trevo seis quilômetros a oeste da cidade onde a estrada sobe para ligar-se à autobahn. Quando o Kadett subiu a rampa de um lado, um Jaguar preto descia do outro, dirigindo-se para Osnabrück.

Miller encontrou um posto de gasolina na Saar Platz logo depois da entrada oeste para a cidade. Parou no posto e saiu cansadamente do carro. O corpo todo lhe doía e o pescoço parecia duro. O vinho que bebera à noite lhe deixava na boca um gosto de gaiola de papagaio.

- Encha o tanque, - disse ele ao rapaz do posto. - Há um telefone público aí?

- Ali no canto, - disse o homem.

No caminho, Miller viu uma máquina automática de café e levou um copo para a cabina. Consultou a lista telefônica de Osnabrück. Havia vários Winzers, mas apenas um Klaus. O nome aparecia duas vezes. Na primeira, havia a indicação "Tipografia" antes do número do telefone. Na segunda, depois do nome de Klaus Winzer vinha a abreviatura "res." ou residência. Eram 9:20. Hora de trabalho. Ligou para a tipografia.

O homem que atendeu era evidentemente o chefe das oficinas. - Não, ainda não chegou. Não sei o que foi que houve, pois ele costuma estar aqui às nove horas em ponto. Mas não deve demorar. Telefone daqui a meia hora.

Miller agradeceu e pensou em ligar para a casa de Winzer, mas desistiu. Se ele estava em casa, Miller queria falar pessoalmente com ele. Anotou o endereço e saiu da cabina.

- Onde é Westerberg? - perguntou ao homem do posto, pagando a gasolina e notando que só lhe restavam 500 marcos de suas economias. O homem apontou para o lado do norte.

- É ali. É o bairro elegante onde moram todos os grã-finos. Miller comprou também uma planta da cidade e procurou a rua que desejava. Ficava a dez minutos de viagem.

A casa era evidentemente próspera e toda aquela zona sugeria gente de posses que vivia com muito conforto. Deixou o Jaguar na entrada de carros e caminhou até à porta.

A criada que veio abrir a porta era muito jovem e muito bonita. Sorriu cordialmente para ele.

- Bom dia, - disse Miller. - Quero falar com Herr Winzer. - Já saiu. Se tivesse chegado vinte minutos mais cedo, ainda o pegaria em casa.

Miller pensou que Winzer se havia atrasado por qualquer motivo, mas já estava a caminho da tipografia.

- Que pena! Eu estava certo de encontrá-lo antes que ele fosse para o trabalho.

- Mas ele não foi para o trabalho hoje. Partiu em férias, - disse a empregada.

Miller dominou um crescente sentimento de pânico.

- Férias? É estranho nesta época do ano. Além disso, tinha um encontro marcado. Ele me pediu que viesse especialmente até aqui.

- É uma pena, - disse a moça, sinceramente contristada. - E foi tudo tão repentino! Foi por causa do telefonema que ele recebeu na biblioteca. Depois que falou pelo telefone, subiu e me

disse: "Bárbara - é assim que eu me chamo, sabe? - Bárbara, vou passar férias na Áustria. Só por uma semana", disse ele. E eu nunca soube que ele estivesse querendo tirar férias. Pediu-me que telefonasse para a tipografia e dissesse que não ia aparecer lá durante uma semana. Depois, saiu. Achei isso muito estranho de Herr Winzer, que é sempre um homem muito sossegado.

No íntimo de Miller, a esperança começou a morrer. - Ele disse por acaso para que lugar da Áustria ia? - Não. Disse apenas que ia para os Alpes Austríacos.

- Não deixou endereço? Quer dizer que eu não tenho jeito mesmo de me comunicar com ele?

- Não. E eu também achei isso muito esquisito. E a tipografia? Telefonei para lá pouco antes que o senhor chegasse. O homem lá ficou muito aflito, dizendo que tem uma porção de encomendas para entregar e não sabe o que vai fazer.

Miller calculou rapidamente. Winzer tinha uma dianteira de meia hora sobre ele. Dirigindo a 80 quilômetros por hora, já devia ter coberto quarenta quilômetros. Miller poderia puxar cem quilômetros no seu carro, ganhando vinte quilômetros por hora. Neste caso, só ao fim de duas horas veria a traseira do carro de Winzer. Era tempo demais. O outro poderia estar em qualquer lugar dentro de duas horas. Além disso, ele não tinha certeza alguma de que ele estivesse indo para o sul, rumo à Áustria.

- Posso então falar com Frau Winzer? Bárbara riu e olhou maliciosamente.

- Quem foi que lhe falou em Frau Winzer? Não conhece então Herr Winzer?

- Não, nunca me encontrei com ele.

- Bem, ele não é exatamente o tipo de homem que se casa. É muito boa pessoa, mas não se interessa muito por mulheres, não sei se me entende...

- Quer dizer que ele vive sozinho aqui?

- Sozinho não, porque eutambém vivo aqui. Mas não há perigo. - E acrescentou, rindo: - Desse ponto de vista...

- Compreendo. Muito obrigado, - disse Miller e se voltou para sair.

- De nada, - disse a empregada e viu-o descer a entrada de carros e embarcar no Jaguar, que já lhe havia chamado a atenção. Desde que Herr Winzer estava ausente, pensou ela,

bem que poderia convidar um rapaz simpático para passar a noite com ela antes que o patrão voltasse. Viu o Jaguar afastar-se com uma descarga barulhenta, deu um suspiro pensando no que poderia ter sido e fechou a porta.

Miller sentiu-se dominado pela exaustão, aumentada, por aquela última decepção, segundo julgava. Calculou que Bayer tinha conseguido soltar-se e falara pelo telefone do hotel em Stuttgart a fim de avisá-lo. Tinha chegado muito perto de sua meta e quase a alcançara por uma diferença de vinte minutos. Naquele momento, sentia apenas a necessidade de dormir.

Passou pelas muralhas medievais da cidade, seguiu a planta até à Theodor Heuss Platz, estacionou o Jaguar em frente à estação e pediu um quarto no Hotel Hohenzollern do outro lado da praça.

Teve sorte, pois havia um quarto vago. Subiu, despiu-se e estendeu-se na cama. Havia uma coisa que o aborrecia, um ponto que ele desprezara, alguma coisa que deixara de perguntar. Mas ainda não sabia de que se tratava quando pegou no sono às dez e meia da manhã.

Mackensen chegou ao centro de Osnabrück à uma e meia da tarde. Antes de chegar ao centro, passara pela casa de Westerberg, mas não vira o Jaguar. Resolveu telefonar para o Lobisomem antes de entrar na casa, pois podia haver novidades e outras ordens.

Por acaso, o correio de Osnabrück, onde entrou para telefonar, fica num dos lados da Theodor Heuss Platz. Um canto e todo um lado da praça são ocupados pela estação da estrada de ferro, fican do em outro lado o Hotel Hohenzollern. Quando Mackensen parou o carro diante do correio, o seu rosto se abriu num sorriso. O Jaguar que procurava estava diante da estação.

O Lobisomem estava com melhor estado de ânimo.

- Tudo vai bem. Por enquanto, não há motivo para ter pânico, - disse ele ao assassino. - Falei com o homem a tempo e ele saiu da cidade. Acabei de telefonar novamente para a casa dele. Acho que foi uma empregada que atendeu. Disse-me que o patrão tinha saído vinte minutos antes que um moço com um carro esporte preto apareceu à procura dele.

- Tenho notícias também, - disse Mackensen. - O Jaguar está estacionado aqui na praça, bem à minha frente. O homem deve estar dormindo no hotel. Posso liquidá-lo agora mesmo no quarto, usando o silenciador.

- Não, nada disso! Para que essa pressa toda'? - disse o Lobisomem. - Estive pensando no caso. Não deve atingi-lo dentro de Osnabrück. A empregada viu o homem e o carro dele. Com toda a certeza, comunicaria o fato à polícia.

Isso poderia chamar a atenção para o falsificador e ele é do tipo que fica facilmente em pânico. Não posso envolvê-lo nisso. O testemunho da empregada iria criar-lhe muitas dificuldades. Primeiro, recebe um telefonema, sai de casa às pressas e desaparece. Depois, um homem que chega à procura dele é encontrado assassinado num quarto de hotel. É demais.

Mackensen franziu a testa e disse:

- Tem razão. Vou pegá-lo quando ele sair da cidade.

- Ele com certeza ainda ficará por aí durante algumas horas procurando uma pista do falsificador, mas não vai consegui-la. E outra coisa. Miller anda com uma pasta na mão?

- Anda, sim, - disse Mackensen. - Saiu com ela do cabaré ontem à noite. E levou-a quando subiu para o quarto do hotel.

- Por que foi que não a deixou na mala do carro? Por que não a guardou no quarto do hotel? Porque é importante para ele. Está compreendendo?

- Estou, - disse Mackensen.

- Ele agora me viu e sabe meu nome e endereço, - continuou o Lobisomem. - Sabe das ligações entre Bayer e o falsificador. E os repórteres costumam tomar nota das coisas. Essa pasta é agora da

maior Importância. Ainda que Miller morra, essa pasta não deve cair nas mãos da polícia.

- Compreendo. Quer a pasta também?

- Você tem de pegá-la ou destruí-la, - disse o homem de Nuremberg.

Mackensen pensou por um momento e disse:

- Acho que a melhor maneira de resolver tudo seria colocar uma bomba no carro. A bomba seria ligada à suspensão de modo a detonar quando houvesse um solavanco em alta velocidade na autobahne.

- Excelente, - disse o Lobisomem. - Acha que assim a pasta será destruída?

- Com a bomba que eu tenho em vista, Miller e a pasta serão envoltos em chamas e ficarão completamente destruídos. Além disso, em grande velocidade, tudo parecerá um acidente. As testemunhas dirão que o tanque de gasolina explodiu.

- Pode fazer isso? - perguntou o Lobisomem.

Mackensen sorriu. O aparelhamento que levava na mala de seu carro era um sonho de assassino. Incluía quase meio quilo de explosivo plástico e dois detonadores elétricos.

- Claro que posso. Não há problema. Mas, para chegar ao carro, tenho de esperar que anoiteça.

Parou de falar, olhou pela janela do correio e disse: - Telefono depois.

Telefonou daí a cinco minutos.

- Sinto muito. Acabo de ver Miller, com a pasta na mão, entrando no carro dele. Saiu da praça. Verifiquei no hotel e ele está hospedado lá de fato. Deixou a bagagem e isso quer dizer que vai voltar. Fique descansado. Vou preparar a bomba e colocá-la esta noite. Miller tinha acordado pouco antes de uma hora, sentindo-se descansado e de algum modo animado. Tinha-se lembrado do que o estava afligindo. Foi de carro até a casa de Winzer. A empregada sentiu visivelmente prazer em vê-lo.

- O senhor de novo? - disse ela, com um sorriso resplandecente

- Ia passando de volta para casa e pensei em lhe perguntar uma coisa. Há quanto tempo trabalha aqui?

- Ora, há uns dez meses. Por quê?

- Bem. desde que Herr Winzer não é o tipo de homem para se casar e, sendo você tão jovem, quem era que cuidava da casa antes de você?

- Ah, já sei o que está querendo dizer. Ele tinha uma governanta, Freulein Wendel.

- Onde está ela agora?

- Oh. infelizmente, está no hospital. Muito mal. Câncer do seio, sabe? Uma coisa horrível. Por isso mesmo, é ainda mais esquisito Herr Winzer viajar assim. Ele costuma ir visitá-la todos os

dias. É muito dedicado a ela, sabe? Não que houvesse alguma coisa entre os dois - sabe como é? - mas ela trabalha para ele há muito tempo, desde 1950, se não estou enganada, e Herr Winzer tem muita consideração por ela. Nunca pára de me dizer: "Freulein Wendel fazia isso assim..."

- Qual é o hospital em que ela está?

- Não me lembro. Não, espere um pouco. Está escrito no caderno dos telefones. Vou ver.

Voltou daí a dois minutos e deu-lhe o nome da clínica, uma casa de saúde particular nos arredores da cidade.

Miller achou o caminho na planta e chegou à clínica pouco depois das três da tarde.

Mackensen passou o princípio da tarde comprando os ingredientes para a sua bomba. "O segredo da sabotagem", tinha-lhe dito outrora seu instrutor, "é usar coisas simples que se possam comprar em qualquer loja".

Numa loja de ferragens, comprou um ferro de soldar e um pouco de solda, um rolo de fita isolante preta, um metro de arame fino, um alicate, uma serra para metais de trinta centímetros e um tubo de cola instantânea. Numa casa de eletricidade, comprou uma pilha de transistor de nove volts,  uma pequena lâmpada de dois centímetros e meio de diâmetro, dois pedaços de três metros de fio fino, de cabo simples, com nove amperes e encapado de plástico, um vermelho e outro azul. Era um homem meticuloso e gostava de fazer distinção entre os terminais positivos e negativos. Numa papelaria, comprou cinco borrachas grandes das que são usadas pelos colegiais, com dois centímetros de largura, cinco centímetros de comprimento e meio centímetro de grossura. Numa farmácia, comprou dois'; pacotes de preservativos de borracha, cada um com três borrachas, e' numa mercearia comprou uma lata de bom chá. Era uma lata de 250 gramas, com uma tampa que a fechava bem. Como um bom artífice, Mackensen detestava a idéia de explosivos malhados, e uma lata de  chá tem uma tampa que veda o ar, quanto mais a umidade.

Depois de feitas as compras, tomou um quarto no Hotel Hohenzollern de frente para a praça, a fim de que pudesse observar enquanto trabalhava a área de estacionamento, para a qual tinha certeza de que Miller voltaria.

Antes de entrar no hotel, tirou da mala do carro cerca de duzentos gramas do explosivo plástico, que era um material mole como a massa de modelagem das crianças, e um dos detonadores elétricos.'

Sentado à mesa diante da janela, olhando de vez em quando para a praça e com um bule de café forte ao lado para espantar o cansaço, começou a trabalhar.

Fez uma bomba simples. Primeiro, esvaziou todo o chá no vaso, ficando apenas com a lata. Abriu um buraco na tampa com a ponta do alicate. Pegou depois o fio vermelho e cortou dele um pedaço de vinte e cinco centímetros.

Uma ponta desse pedaço de fio vermelho foi soldada ao polo positivo da pilha. Ao polo negativo foi soldada uma ponta do fio azul comprido. Para que esses fios nunca se tocassem, Mackensen Pegou um dos fios de cada lado da pilha e envolveu fios e pilha com fta isolante.

A outra ponta do pedaço curto de fio vermelho foi passada em torno do ponto de contato do detonador. Nesse mesmo ponto de contato foi fixada uma ponta do outro pedaço de cerca de dois metros e meio do fio vermelho.

Depositou a pilha e seus fios no fundo da lata quadrada de chá, enterrou o detonador profundamente no explosivo plástico e alisou o explosivo na lata por cima da pilha até a lata ficar cheia.

Um circuito direto fora instalado. Um fio ia da pilha ao detonador. Outro ia do detonador para lugar nenhum, com a sua ponta a perder-se no espaço. Da pilha, outro fio também se perdia no espaço. Mas quando essas duas pontas expostas, uma do fio vermelho de dois metros e meio, a outra do fio azul, se unissem, o circuito seria completado.

A carga da bateria àcionaria o detonador que explodiria com um ruído forte, mas esse ruído se perderia no trovejar da explosão do plástico, suficiente para demolir dois ou três quartos do hotel.

Faltava ainda o mecanismo de gatilho. Para isso Mackensen embrulhou as mãos em lenços e dobrou a folha da serra até que ela se partiu pelo meio, deixando-o com dois pedaços de quinze centímetros, cada qual perfurado numa das pontas pelo pequeno orifício que em geral fixa uma serra à armação.

Empilhou as cinco borrachas de modo que formassem juntas um bloco de borracha. Usou esse bloco para separar os dois pedaços da serra, amarrando estes ao bloco de borracha, de modo que as partes de quinze centímetros da serra ficassem paralelas uma à outra e cerca de três centímetros separadas. Vistas de perfil, lembravam as mandíbulas de um crocodilo. O bloco de borracha estava numa das extremidades das peças de aço, de modo que dez centímetros das lâminas estavam separados apenas pelo ar. Para ter certeza de que havia um pouco mais de resistência do que o ar a que se tocassem, Mackensen introduziu a lâmpada elétrica para separá-las e fixou-a com uma boa porção de cola. O vidro não é condutor da eletricidade.

Estava quase pronto. Fez passar os dois pedaços de fio, um vermelho e outro azul, que saíam da lata de explosivo pelo buraco da tampa e fechou a lata, prendendo firmemente a tampa. Dos dois pedaços de fio, soldou a ponta de um à lâmina superior da serra e a do outro à lâmina inferior. A bomba estava armada.

Se o gatilho fosse pisado ou sujeito a alguma súbita pressão, a lâmpada se quebraria, os dois pedaços de aço se juntariam e o circuito elétrico da pilha se completaria. Havia uma última precaução. Para impedir que as lâminas expostas da serra tocassem o mesmo pedaço de metal ao mesmo tempo, o que também completaria o circuito, ele cobriu o gatilho com os seis preservativos um em cima do outro, até que o mecanismo foi protegido de detonação externa por seis camadas de borracha fina mas isolante. Isso, pelo menos, impediria a detonação acidental.

Terminada a bomba, guardou-a no fundo do armário, juntamente com o arame, o alicate e o resto da fita isolante de que iria precisar para prender tudo ao carro de Miller. Pediu então mais café para manter-se acordado e sentou-se junto à janela para aguardar a volta de Miller ao local de estacionamento no centro da praça.

Não sabia para onde Miller tinha ido e não se interessava muito em saber. O Lobisomem havia assegurado que ele não poderia encontrar pistas que o levassem a descobrir o paradeiro do falsificador e isso bastava. Como um bom técnico, Mackensen estava disposto a fazer a sua parte, deixando o resto para os outros. Estava preparado para ser paciente. Sabia que Miller voltaria mais cedo ou mais tarde.

 

O médico não olhou o visitante com muito boa vontade. Miller, que detestava colarinhos e gravatas e evitava usá-los sempre que podia, estava com um suéter branco de nylon e sobre ele um pulôver branco de gola rulê. Levava ainda um paletó esporte preto. A expressão do médico dizia claramente que colarinho e gravata seriam mais apropriados para visitar um hospital.

- Sobrinho? - exclamou com surpresa. - É estranho, mas não fazia idéia de que Freulein Wendel tivesse um sobrinho.

- Creio que sou o único parente vivo dela, - disse Miller. - É claro que eu deveria ter vindo mais cedo se tivesse sabido do estado de minha tia, mas só hoje Herr Winzer me telefonou, pedindo que viesse vê-la.

- Herr Winzer costuma chegar aqui a esta hora, - disse o médico.

- Mas não virá hoje, pois fez uma viagem de urgência. Pelo menos, foi o que me disse pelo telefone. Disse que estaria ausente durante alguns dias e me pediu que a visitasse em lugar dele.

- Ausente? Muito estranho isso, - disse o médico. Ficou por um momento indeciso e acrescentou: - Com licença, sim? Miller viu-o sair do vestíbulo onde estavam conversando e entrar numa saleta ao lado. Pela porta aberta, Miller ouviu retalhos de conversação enquanto o médico da clínica telefonava para a casa de Winzer.

- Viajou mesmo? ... Esta manhã? ... Vários dias? ... Oh, não, muito obrigado, Freulein, queria apenas ter confirmação de que ele não virá esta tarde.

O médico desligou e voltou ao vestíbulo.

- É estranho, - murmurou ele. - Herr Winzer tem vindo aqui regularmente desde que Freulein Wendel foi internada. É evidentemente um homem muito dedicado. Mas é melhor que ande de pressa se ainda quer vê-la. O estado dela é muito grave, sabe? Miller fez uma cara triste e murmurou:

- Foi o que ele me disse pelo telefone. Pobre tia.

Sendo parente dela, pode evidentemente fazer-lhe uma breve visita. Ela quase não sabe mais o que diz e é por isso que a sua visita deve ser bem rápida. Tenha a bondade de acompanhar-me.

O médico levou Miller através de vários corredores do que tinha sido outrora uma vasta casa particular e parou à porta de um quarto.

- É aqui que ela está, - disse ele, fazendo Miller entrar e fechando logo depois a porta. Miller ouviu os passos dele que se afastavam pelo corredor.

O quarto estava em penumbra e até que seus olhos se habituassem à luz fraca de inverno que se coava através das cortinas cerradas, Miller não pôde distinguir o vulto encolhido da mulher na cama. Estava com a cabeça e o tronco erguidos em vários travesseiros, mas tão pálida que o rosto quase se confundia com os lençóis. Os olhos estavam fechados. Miller tinha pouca esperança de obter dela alguma indicação sobre o esconderijo provável do falsificador desaparecido.

- Freulein Wendel, - sussurrou ele e as pálpebras bateram e se abriram.

Ela o olhou sem um traço de expressão nos olhos e Miller duvidou de que o estivesse mesmo vendo. Ela tornou a fechar os olhos e começou a murmurar coisas incoerentes. Miller se aproximou para perceber melhor as frases que se lhe escapavam dos lábios descorados num murmúrio monótono.

Significavam muito pouco. Havia alguma referência a Rosenheim, que ele sabia que era uma pequena aldeia da Baviera, talvez o lugar onde ela tinha nascido. Havia mais alguma coisa sobre "todas de branco, tão bonito, tão bonito". Depois, houve uma mistura confusa de palavras que não significavam nada.

Miller aproximou-se mais.

- Está-me ouvindo, Freulein Wendel?

A pobre mulher ainda estava murmurando. Miller pegou as palavras "todas de vestido branco e um livro de orações, todas tão inocentes".

Miller franziu a testa até que compreendeu. No seu delírio, ela se estava lembrando de sua primeira comunhão. Como ele, a mulher era católica.

- Está-me ouvindo, Freulein Wendel? - tornou a dizer ele sem ter muita esperança de ser compreendido.

Ela abriu os olhos de novo e olhou para ele, observando a faixa branca em torno de seu pescoço e o paletó preto. Com espanto, Miller viu-a fechar os olhos de novo enquanto o peito arfava num espasmo: Miller ficou preocupado e achou que era melhor ir chamar o médico. Então, duas lágrimas rolaram dos olhos fechados para as faces macilentas. A mulher estava chorando.

Sobre o cobertor, uma das mãos dela procurou lentamente o pulso de Miller, que se apoiava na cama, inclinado sobre ela. Com surpreendente força ou por simples desespero, ela lhe agarrava o pulso.'

Miller já ia desprender-lhe a mão e sair, certo de que ela nada lhe podia dizer a respeito de Klaus Winzer, quando ela disse de maneira muito clara:

- Abençoe-me, Padre, porque pequei.

Durante alguns minutos, Miller ficou sem compreender. Olhou então para o seu peito e percebeu a confusão que a mulher estava fazendo à luz fraca do quarto. Durante dois minutos, ficou indeciso entre deixá-la e voltar para Hamburgo ou arriscar a salvação de sua alma, tentando em desespero descobrir Eduard Roschmann por intermédio do falsificador. Inclinou-se para a frente de novo e disse: - Estou pronto a ouvi-la em confissão, minha filha.

Ela então começou a falar. Numa voz cansada e monótona, contou toda a sua vida. Nascera e se criara entre os campos e as florestas da Baviera. Nascida em 1910, lembrava-se da partida do pai para a primeira guerra e de sua volta depois do Armistício de 1918, amargo e revoltado contra os homens de Berlim que haviam capitulado.

Lembrava-se da agitação política dos anos 20 e da tentativa de putsch na vizinha Munique, quando um grupo de homens chefiados por um arruaceiro chamado Adolf HItler procurara derrubar o governo. O pai dela aderira ao homem e a seu partido e, ao tempo em que ela completara vinte e três anos, o arruaceiro e seu partido se haviam tornado o governo da Alemanha. Havia as excursões de verão com a União das Moças Alemãs, o lugar de secretária junto ao Gauleiter da Baviera e as danças com os belos jovens louros nos seus uniformes pretos.

Mas ela era feia, alta, ossuda e angulosa, com uma cara de cavalo e um buço espesso sobre o lábio superior. Com os cabelos ruivos atados para trás num coque, vestindo roupas desgraciosas e calçando sapatos enormes, ela havia compreendido desde cedo que o casamento não chegaria para ela, como tinha chegado para outras moças da aldeia. Em 1939, era uma mulher amargurada e cheia de ódio, quando foi designada para servir como guarda num campo chamado Ravensbrück.

Falou das pessoas que tinha espancado e maltratado, dos seus dias de poder e crueldade no campo de Brandenburgo, com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto e os dedos seguros no pulso de Miller para que ele não fugisse horrorizado com o que ela havia feito.

- E depois da guerra? - perguntou ele brandamente. Tinha havido anos de vida errante e incerta, em que ela se vira abandonada pelas SS e caçada pelos Aliados, trabalhando em cozinhas como servente, lavando pratos e dormindo nos albergues do Exército da Salvação. Por fim, em 1950, conhecera Winzer, que estava hospedado num hotel em Osnabrück à procura de uma casa para comprar. Ela trabalhava nesse tempo como garçonete. O homenzinho neutro comprara a casa e a convidara para sua governanta.

- Só isso? - perguntou Miller quando ela se calou. - Sim, Padre.

- Minha filha, sabe que não lhe posso dar absolvição se não confessar todos os seus pecados.

- Já disse tudo, Padre. Miller respirou fundo.

- E os passaportes falsos que ele fez para os homens das SS foragidos?

Ela ficou durante algum tempo em silêncio e Miller receou que tivesse caído em inconsciência.

- Sabe disso, Padre? - Sei disso, sim.

- Não fiz os passaportes, - disse ela.

- Mas sabia deles, sabia do trabalho que Klaus Winzer fazia. - Sim.

- Ele agora se foi, - disse Miller.

- Não, Klaus não iria deixando-me aqui. Voltará. - Sabe para onde ele foi?

- Não, Padre.

- Tem certeza? Pense bem, minha filha. Ele foi forçado a fugir. Para onde poderia ter ido?

A cabeça emaciada se balançou lentamente sobre os travesseiros.

- Não sei, Padre. Mas sei que, se ele for ameaçado, usará o arquivo. Disse-me que isso é que faria.

Miller teve um sobressalto e olhou para a mulher, que tinha os olhos fechados como se dormisse.

- Que arquivo, minha filha?

Falaram durante mais cinco minutos e então bateram de leve na porta. Miller desprendeu o pulso dos dedos da mulher e levantou-se para sair.

- Padre...

A voz era suplicante e contrita. A mulher o olhava com os olhos bem abertos.

- Abençoe-me, Padre.

Miller deu um suspiro. Era mais um pecado mortal que ia cometer. Esperava que alguém em algum lugar compreendesse. Levantou a mão direita e fez o sinal-da-cruz.

- In nomine Patris et Fili et Spiritus Sancti ego reabsolvoa peecatis..

A mulher suspirou profundamente, fechou os olhos e caiu em inconsciência.

Fora, no corredor, o médico estava esperando. - Creio que se demorou demais, - disse ele. Miller fez um sinal de assentimento.

- Sim, ela agora está dormindo, - disse o médico olhando da porta. Em seguida, voltou com Miller até o vestíbulo.

- Quanto tempo acha que ela vai resistir? - perguntou Miller.

- É difícil dizer. Dois dias, talvez três. Mais do que isso, não acredito. Sinto muito.

- Muito obrigado por me deixar vê-la, - disse Miller. O médico abriu a porta para ele. - Ah, mais uma coisa, Doutor. Somos todos católicos em nossa família. Ela me pediu um padre. Os últimos sacramentos, sabe?

- É claro.

- Tratará disso?

- Certamente. Eu não sabia. Vou providenciar hoje mesmo. Muito obrigado por me haver dito.

Era o fim da tarde e a noite estava começando a cair quando  Miller voltou à Theodor Heuss Platz e estacionou o seu Jaguar a vinte metros do hotel. Atravessou a rua e subiu para seu quarto. Dois

andares acima, Mackensen tinha observado a sua chegada. Levando a bomba numa maleta de mão desceu, pagou a conta até a manhã seguinte dizendo que ia partir bem cedo e foi para seu carro. Levou o Mercedes para um lugar de onde pudesse observar ao mesmo tempo a porta do hotel e o Jaguar e acomodou-se para outra espera.

Havia ainda muita gente pelas imediações e isso o impedia de trabalhar no Jaguar, além do que Miller podia sair do hotel a qualquer momento. Se ele saísse antes da colocação da bomba, Mackensen atiraria nele na estrada a vários quilômetros de Osnabrück e pegaria a pasta de documentos. Se Miller dormisse no hotel, Mackenson colocaria a bomba de madrugada, quando não houvesse mais ninguém na rua.

No seu quarto, Miller estava forçando a memória à procura de um nome. Via perfeitamente o rosto do homem, mas não conseguia lembrar-se do nome.

Tinha sido pouco antes do Natal de 1961. Estava na bancada reservada para a imprensa no Tribunal Provincial de Hamburgo, à espera de um julgamento em que estava interessado. Tinha pegado o fim do julgamento anterior. Havia um homenzinho no banco dos  réus e o advogado de defesa estava pedindo clemência ao juiz, lembrando que estavam na época do Natal e seu cliente tinha mulher e cinco filhos.

Miller tinha olhado para a assistência e vira na primeira fila o rosto cansado e aflito da mulher do réu. Cobriu o rosto com as mãos completamente desesperada quando o juiz, explicando que a sentença seria mais longa se não fosse o pedido de clemência do advogado, condenou o homem a dezoito anos de prisão. A acusação descrevera o prisioneiro como um dos mais hábeis arrombadores de cofres de Hamburgo.

Alguns dias depois, Miller estava num bar perto da Reeperbahn, tomando uns drinques de Natal em companhia de alguns de seus contatos no mundo do crime. Estava com dinheiro, pois recebera naquele dia uma reportagem grande que fizera para uma revista. No fundo do bar, uma mulher lavava o chão. Reconheceu imediatamente o rosto preocupado da mulher do arrombador de cofres condenado dias antes. Num impulso de generosidade de que mais tarde se arrependeu, meteu uma nota de 100 marcos no bolso do avental da mulher e saiu.

Em janeiro, recebeu uma carta da prisão de Hamburgo. A mulher devia ter perguntado o nome dele no bar e dissera ao marido. A carta fora mandada para uma das revistas para que ele trabalhava. Dizia o seguinte:

 

"Meu caro Herr Miller, minha mulher me escreveu dizendo o que o senhor fez antes do Natal. Não o conheço e não sei por que fez isso, mas quero dar-lhe meus agradecimentos. Foi um verdadeiro cavalheiro. O dinheiro ajudou Doris e os filhos a passarem bem o Natal e o Ano Novo. Se algum dia precisar de mim para alguma coisa, é só dizer. Respeitosamente..."

Mas qual era o nome que assinava a carta? Koppel! Sim, era isso. Viktor Koppel. Rezando para que ele não estivesse preso de novo, Miller pegou o seu caderno com nomes e telefones de seus contatos, colocou o telefone do homem nos joelhos e começou a chamar seus amigos no mundo do crime de Hamburgo.

Encontrou Koppel às sete e meia da noite. Era uma noite de sexta-feira e ele estava num bar com um grupo de amigos e Miller pôde ouvir no telefone a eletrola do bar. Tocava a música dos Beatles Want To Hold Your hand(Quero Segurar Sua Mão) que quase o enlouquecera naquele inverno, tal a freqüência com que era tocada.

Koppel não teve muita dificuldade em se lembrar dele e dos presentes que dera a Doris dois anos antes. Era evidente que Koppel tinha tomado alguns drinques.

- Foi muito decente o que fez, Herr Miller, muito decente. - Escute, você me escreveu da prisão dizendo que, se eu precisasse algum dia de você para alguma coisa, bastava lhe dizer. Lembra-se?

A voz de Koppel se mostrou cautelosa. - Lembro-me, sim.

- Bem, preciso de sua ajuda. Posso contar com você? O homem de Hamburgo continuava cauteloso.

- Acontece que estou meio desprevenido, Herr Miller.

- Não é dinheiro que eu quero, - disse Miller. - Quero é lhe pagar por um serviço, um pequeno serviço.

A voz de Koppel traduziu o alívio que ele sentia. - Ah, sim. De onde é que está falando?

Miller deu-lhe as suas instruções.

- Vá até à estação de Hamburgo e pegue o primeiro trem para Osnabrück. Estarei à sua espera na estação. E mais uma coisa. Traga as suas ferramentas de trabalho.

- Escute, Herr Miller, não trabalho fora de meu setor. Não conheço nada em Osnabrück.

Miller começou a falar de modo que Koppel o pudesse entender. - É uma sopa, Koppel. Casa vazia, dono ausente e um bocado de grana. Já estudei tudo e não há problema. Você poderá voltar para Hamburgo amanhã de manhã com um punhado de tutu livre, livre. O homem vai ficar fora durante uma semana, você pode dispor de tudo antes que ele volte e, quando ele chiar a polícia daqui vai pensar que foi um serviço local.

- E minha passagem de trem? - perguntou Koppel.

- Eu lhe darei o dinheiro quando você chegar aqui. Há um trem que sai de Hamburgo às nove. Você tem uma hora para se arrumar.

Koppel deu um profundo suspiro. - Está bem. Vou tomar o trem.

Miller desligou, pediu à telefonista do hotel que o chamasse às onze horas e começou a dormir.

Lá fora, Mackensen continuava a sua vigília solitária. Resolveu começar a trabalhar no Jaguar à meia-noite se Miller até então não tivesse aparecido.

Mas Miller saiu do hotel às onze e um quarto, atravessou a praça e entrou na estação. Mackensen ficou surpreso. Saiu do Mercedes e foi olhar do hall de entrada da estação. Miller estava na plataforma esperando um trem.

- Qual é o primeiro trem que parte dessa plataforma? - perguntou Mackensen a um funcionário da estação.

- O onze e trinta e três para Munster, - disse o homem. Mackensen ficou sem saber por que Miller queria tomar um trem, se tinha um carro. Ainda confuso, voltou ao seu Mercedes e continuou a esperar.

Às 11:35, o seu problema foi resolvido. Miller saiu da estação acompanhado por um homem baixo e .de aspecto miserável que levava na mão uma maleta de couro preto. Estavam empenhados em animada conversa. Mackensen praguejou. O que ele menos queria era que Miller saísse no Jaguar com outra pessoa. Isso complicaria muito a tarefa de matar Miller. Tranqüilizou-se, porém, ao ver os dois homens se aproximarem de um táxi e embarcarem nele. Resolveu esperar mais vinte minutos e então começar a trabalhar no Jaguar, ainda parado a vinte metros de distância dele.

À meia-noite, a praça estava quase vazia. Mackensen saiu de seu carro levando uma lanterna-lápis e três pequenas ferramentas. Foi até ao Jaguar, correu os olhos em torno e estendeu-se no chão para meter-se por baixo do carro.

Sabia que ia sujar e molhar o terno quase instantaneamente na lama e no resto de neve da praça. Mas isso era a menor de suas preocupações. Usando a pequena lanterna sob a dianteira do Jaguar, encontrou o fecho do capô. Gastou vinte minutos para soltá-lo. O capô subiu dois centímetros quando o fecho foi aberto. Uma simples pressão do alto prenderia de novo o fecho quando ele tivesse acabado. Ao menos, não tinha necessidade de entrar no carro para soltar de dentro o fecho do capô.

Voltou ao Mercedes e levou a bomba para o carro esporte. Um homem que trabalha sob o capô de um carro desperta pouca ou nenhuma atenção. Quem passa presume que esteja consertando alguma coisa em seu próprio carro.

Usando o arame e o alicate, prendeu a carga explosiva à parte interna do vão do motor, fixando-a diretamente em frente à posição de direção. Estaria a menos de um metro do peito de Miller quando explodisse. O mecanismo de atilho, ligado à carga central por dois fios de dois metros e meio, foi baixado por ele através da área do motor para o chão embaixo.

Escorregando por baixo do carro, examinou à luz da lanterna a suspensão dianteira. Encontrou o lugar de que precisava dentro de cinco minutos e prendeu firmemente com arame a extremidade posterior do gatilho a uma barra de reforço conveniente. As partes abertas do gatilho, envoltas em borracha e separadas pela lâmpada elétrica, foram metidas entre duas espiras da forte mola que formava a suspensão dianteira do lado de dentro.

Quando colocou o mecanismo firmemente no lugar, não podendo ser desprendido com os balanços normais do carro, afastou-se'' um pouco mais para trás. Calculou que na primeira vez em que o

carro batesse numa corcova ou numa depressão normal da estrada em grande velocidade, a suspensão do lado de dentro da roda dianteira se contrairia, forçando as partes internas do gatilho a se juntarem, esmagando a frágil lâmpada que as separava, e faria o contato entre as duas peças da lâmina de serra carregada eletricamente. Quando isso acontecesse, Miller e os documentos perigosos que levava seriam feitos em pedaços.

Por fim, Mackensen juntou os fios frouxos entre a carga explosiva e o gatilho, enrolou-os e prendeu-os com fita isolante ao lado do vão do motor para que não se arrastassem pelo chão e se gastassem pelo atrito com a superfície da estrada. Feito isso, desceu o capô e fechou-o. Voltando ao banco de trás do Mercedes, encolheu-se e dormiu. Calculava ter feito muito bom trabalho por uma noite.

Miller pediu ao motorista do táxi que os levasse à Saar Platz, pagou a corrida e dispensou-o. Koppel tinha tido o bom senso de ficar calado durante a viagem e só quando o táxi desaparecia de volta à cidade foi que ele voltou a falar.

- Espero que saiba o que está fazendo, Herr Miller. Quero dizer, é estranho ver o senhor metido numa transa dessa e tudo mais. - Não se preocupe, Koppel. Quero apenas alguns documentos que estão guardados num cofre dentro de uma casa. Ficarei com eles e você poderá passar a mão em tudo mais que houver, certo? - Bem, já que é o senhor que está dizendo, para mim está certo. Vamos a isso.

- Há mais uma coisa. No lugar para onde vamos, há uma empregada que dorme em casa.

- Não disse que a casa estava vazia? Se ela aparecer, vou dar no pé. Violência não é comigo.

- Esperaremos até às duas da manhã. Ela deverá estar ferrada no sono.

Caminharam até à casa de Winzer, olharam para um lado e para outro da rua e transpuseram rapidamente o portão. Para evitar o cascalho, caminharam pela grama que crescia dos dois lados da entrada de automóveis, atravessaram o gramado e se esconderam por trás das moitas de rododendros diante das janelas do que parecia o escritório.

Movendo-se como um animal furtivo, Koppel deu volta à casa, deixando Miller de guarda à mala de ferramentas. Quando voltou, disse num sussurro:

A criada ainda está com a luz acesa. O quarto dela é no sótão.

Sem coragem de fumar, ficaram sentados durante uma hora, tremendo  de frio sob as folhas gordas e sempre verdes dos arbustos. Um pouco antes das duas da madrugada, Koppel foi fazer outra inspeção e voltou dizendo que a luz do quarto da empregada estava apagada.

Esperaram mais noventa minutos. Por fim, Koppel apertou o pulso de Miller, pegou a mala e atravessou sob o luar o trecho do gramado até às janelas do escritório. Na rua, um cachorro latiu e,

mais ao longe, um motorista fez uma curva com os pneus rangendo. Felizmente para eles, a área embaixo das janelas do escritório estava às escuras, pois a lua não batia naquele lado da casa. Koppel acendeu uma pequena lanterna e examinou o caixilho da janela. e a barra que separava a parte de cima e a de baixo. Havia um bom fecho de segurança do lado de dentro, mas não um sistema de alarma. Koppel abriu a mala e tirou de lá um rolo de esparadrapo, uma borracha de sucção com um cabo, um corta-vidros com ponta de diamante e um martelo de borracha.

Cortou com notável perícia um círculo perfeito na superfície do vidro logo abaixo do fecho de segurança. Para maior reforço, prendeu dois pedaços de esparadrapo por cima do disco com as pontas presas à parte não cortada do vidro. Colocou a borracha de sucção entre os pedaços de esparadrapo, de tal modo que uma pequena área do disco era visível em torno dela.

Usando o martelo de borracha e segurando com a mão esquerda o cabo da borracha de sucção, deu na área exposta do círculo cortado na vidraça uma pancada seca.

À segunda pancada, houve um estalo e o disco foi cair para o lado da sala. Pararam ambos e esperaram alguma possível reação, mas ninguém tinha ouvido o barulho. Segurando ainda o cabo da borracha de sucção à qual o disco de vidro estava preso pelo lado de dentro, Koppel arrancou os dois pedaços de esparadrapo. Olhando pela vidraça, viu um espesso tapete a um metro e meio de distância e com um impulso da mão jogou o disco de vidro e a borracha paradentro, de modo que foram cair sem ruído no tapete.

Metendo a mão pela abertura, desatarraxou o fecho de segurança e levantou a parte inferior da janela. Galgou o peitoril com a agilidade de um gato e Miller o acompanhou com mais cautela. A

sala estava de uma escuridão de breu em contraste com o luar sobre o gramado, mas Koppel parecia ser capaz de ver perfeitamente bem.

- Não se mova, - disse ele a Miller, que ficou parado, enquanto o ladrão fechava em silêncio a janela e corria as cortinas sobre ela.

Atravessou a sala evitando os móveis por instinto, fechou a porta que dava para o corredor e só então acendeu a lanterna.

Fez a luz passear pela sala, iluminando uma escrivaninha, um telefone, uma grande poltrona e uma estante cheia de livros, até parar numa bela lareira, amplamente cercada de uma parede de tijolos vermelhos.

Apareceu então ao lado de Miller.

- Deve ser aqui o escritório, chefe. Não pode haver numa casa duas salas como esta, com duas lareiras de tijolos. Onde está a alavanca que abre a porta de tijolos?

- Não sei, - murmurou Miller imitando a maneira de falar do ladrão, que tinha aprendido da maneira mais difícil que um murmúrio é muito menos perceptível do que um sussurro.

- Vai ter de procurá-la.

- Não! Isso poderia levar séculos, - disse Koppel.

Fez Miller sentar-se na poltrona, recomendando-lhe que conservasse nas mãos as suas luvas de dirigir. Depois de pegar a mala, Koppel foi até à lareira, passou uma faixa em torno da cabeça e prendeu a lanterna num gancho da mesma, de modo que a luz ficasse voltada para a frente. Examinou a parede de tijolos centímetro a centímetro, procurando com os dedos sensíveis bossas ou depressões, reentrâncias ou pontos ocos. Abandonando a procura quando já havia examinado tudo, recomeçou com uma faca de paleta procurando fendas. Encontrou às três e meia da manhã.

A lâmina da faca escorregou numa fenda entre dois tijolos e houve um pequeno estalo.'Uma seção da parede, de 60 por 60 centímetros se deslocou um centímetro para fora. O trabalho tinha sido feito com tanta perícia que não era possível a olho nu distinguir a área quadrada do resto da parede.

Koppel abriu a porta, que girava do lado esquerdo em dobradiças de aço silenciosas. A área de tijolos de 60 por 60 centímetros era embutida numa bandeja de aço que formava uma porta. No fundo, a luz da lanterna de Koppel mostrava um pequeno cofre de parede.

O homem conservou a luz acesa, mas passou um estetoscópio pelo pescoço e colocou-o nos ouvidos. Depois de passar cinco minutos olhando a fechadura de segredo de quatro discos, colocou o estetoscópio no ponto em que achou que deviam estar as alavancas basculantes e começou a rodar o segredo através de suas combinações.

Da sua poltrona a três metros de distância, Miller via-o trabalhar e ficava cada vez mais nervoso. Em compensação, Koppel estava absolutamente calmo, embebido no seu trabalho. Além disso, sabia que era bem pouco provável que alguém fosse investigar o que estava acontecendo no escritório enquanto os dois ficassem completamente imóveis.

Os momentos de perigo eram a entrada, os movimentos no interior e a saída.

Koppel levou quarenta minutos até que a última alavanca cedesse. Abriu lentamente a porta do cofre e se voltou para Miller, iluminando com a lanterna que levava à cabeça dois castiçais de prata e uma velha caixa de rapé.

Sem dizer uma palavra, Miller levantou-se e foi para junto de Koppel diante do cofre. Estendeu a mão, tirou a lanterna da cabeça do outro e examinou com ela o que havia lá dentro. Encontrou vários maços de notas que pegou e passou às mãos do ladrão, o qual mostrou a sua satisfação num assobio sincero e baixo.

A prateleira superior do cofre continha apenas uma coisa. Era uma pasta de cartolina amarela. Miller tirou-a, abriu-a e examinou rapidamente as folhas que havia nela. Eram cerca de quarenta. Cada qual mostrava uma fotografia e várias linhas datilografadas. Ao chegar à décima oitava, parou e exclamou:

- Meu Deus!

- Silêncio! - murmurou Koppel nervosamente.

Miller fechou a pasta, devolveu a lanterna a Koppel e disse:

- Pode fechar o cofre.

Koppel recolocou a porta no lugar e fez girar o segredo não até que a porta fosse fechada mas até que os números estivessem na mesma ordem em que os tinha encontrado. Em seguida, fez girar a parede de tijolos e empurrou-a firmemente. Houve outro estalo e tudo ficou no lugar.

Tinha guardado no bolso as notas que representavam o produto dos quatro últimos passaportes de Winzer. Só restava guardar na mala os castiçais de prata e a tabaqueira.

Apagando a lanterna, levou Miller pelo braço até à janela, abriu as cortinas e olhou através da vidraça. O gramado estava deserto e a lua se escondera entre nuvens. Koppel abriu a janela, saltou com a mala e com tudo e esperou que Miller saltasse também. Desceu a vidraça e se encaminhou para os arbustos, seguido pelo repórter que metera a pasta por dentro do suéter.

Seguiram sob a proteção dos arbustos até bem perto do portão e saíram então para a rua. Miller sentia uma vontade quase invencível de correr.

- Ande devagar, - disse Koppel, falando em voz normal. - Ande e converse como se estivéssemos voltando de uma festa. A distância até à estação era de uns cinco quilômetros e já eram quase cinco horas. As ruas não estavam inteiramente desertas, embora fosse sábado, porque o trabalhador alemão se levanta cedo para cuidar da vida. Foram até à estação sem que ninguém os fizesse parar e interrogasse.

Não havia trem para Hamburgo antes das sete horas, mas Koppel disse que não se incomodaria de esperar na cantina da estação, tomando café e aquecendo-se com alguma bebida.

- Um golpezinho bem bom, Herr Miller, - disse ele. - Espero que tenha conseguido o que queria.

- Sem dúvida alguma.

- Bem, então bico calado. Até à vista, Herr Miller.

O ladrão encaminhou-se para a cantina da estação. Miller voltou-se, atravessou a praça na direção do hotel e não percebeu que era observado do interior de um Mercedes parado.

Era ainda muito cedo para fazer as indagações que queria, de modo que Miller se permitiu três horas de sono e pediu que o acordassem às nove e meia.

O telefone tocou na hora exata e ele pediu que lhe mandassem café com pão, o que chegou quando ele saía de um banho quente de chuveiro. Depois do café, examinou as folhas da pasta. Reconheceu alguns rostos, mas não os nomes. Tinha de convencer-se de que os nomes careciam de importância.

Voltou então à décima oitava folha. O homem estava mais velho, com o cabelo mais comprido e um bigode esportivo. Mas as orelhas eram as mesmas, uma parte da fisionomia talvez mais individual que qualquer outra e que quase sempre passa despercebida. Ainda eram iguais as narinas estreitas, a inclinação da cabeça e os olhos claros.

O novo nome era comum, mas o que lhe chamou a atenção foi o endereço. A julgar pelo distrito postal, devia ficar no centro da cidade e num edifício de apartamentos.

Às dez horas em ponto, ligou para a telefonista de informações da cidade cujo nome constava da folha. Pediu o número da portaria do edifício de apartamentos naquele endereço. Estava jogando no escuro e deu certo. Era realmente um edifício de apartamentos e de alto luxo.

Telefonou para o gerente do edifício, na realidade um simples porteiro, glorificado pelo amor que os alemães têm aos títulos, e explicou que tinha repetidamente ligado para um dos apartamentos sem que ninguém atendesse, o que era estranho, pois lhe haviam solicitado que telefonasse para o homem àquela hora. Poderia o gerente ajudá-lo? Estaria por acaso desarranjado o telefone do apartamento?

O homem foi muito solícito. O Herr Direktor devia estar na fábrica ou então ainda não voltara de sua casa de campo no interior. Qual era a fábrica? A fábrica dele naturalmente, a fábrica de rádios. Miller disse que não sabia onde estava com a cabeça por haver-se esquecido disso, agradeceu e desligou. Encontrou sem dificuldade na lista o número da fábrica.

A moça que o atendeu passou o telefonema para a secretária do chefe. Esta disse que Herr Direktor estava passando o fim-de-semana em sua casa de campo e só estaria de volta na segunda-feira pela manhã. O telefone da casa de campo não podia ser fornecido na fábrica. Miller agradeceu e desligou.

O homem que afinal lhe deu o telefone e o endereço do dono da fábrica de rádios foi um velho contato, correspondente industrial e econômico de um grande jornal de Hamburgo.

Miller olhou para a cara de Roschmann, para o seu novo nome e para o endereço particular que anotara em seu caderno. Lembrava-se agora de já ter ouvido falar no homem, que era um industrial do Ruhr. Tinha visto nas lojas os rádios que ele fabricava. Apanhou o mapa da Alemanha e descobriu a casa de campo ou, pelo menos, a área de aldeias em que a mesma era situada.

Já passava do meio-dia quando arrumou as malas, desceu para a portaria e pagou a conta. Estava com fome e entrou no salão de refeições do hotel, levando apenas a sua pasta, regalando-se com um bife bem grande.

Depois da comida, decidiu fazer a última etapa da viagem naquela tarde e só ir enfrentar o homem a quem procurava na manhã seguinte. Ainda tinha o telefone particular do homem da Comissão Z em Ludwigsburg. Poderia telefonar logo para ele, mas estava empenhado em enfrentar Roschmann primeiro. Receava que, se tentasse naquela noite, o homem poderia não estar em casa quando ele telefonasse para pedir-lhe um choque da polícia dentro de trinta minutos. A manhã do domingo seria excelente.

Eram quase duas horas quando ele finalmente saiu do hotel, guardou a bagagem na mala do Jaguar, jogou a pasta no banco de trás e sentou-se ao volante.

Não notou o Mercedes que o seguiu até à sua saída de Osnabrück. O carro que vinha atrás dele entrou na autobahn, parou durante alguns segundos enquanto o Jaguar era acelerado na pista que ia para o sul, deixou a estrada vinte metros adiante e voltou para a cidade.

De uma cabina telefônica na estrada, Mackensen telefonou para o Lobisomem em Nuremberg.

- Está pronto, - disse ele. - Deixei o homem na pista do sul correndo como um morcego que saísse do inferno.

- Leva o seu dispositivo no carro? Mackensen riu.

- Sem dúvida alguma. Na suspensão dianteira. Dentro de oitenta quilômetros, estará em pedaços e ninguém poderá sequer identificá-lo.

- Excelente! - exclamou o homem de Nuremberg. - Você deve estar cansado, meu caro Kamerad. Vá para a cidade e procure dormir.

Não era preciso mandar duas vezes. Mackensen não tinha tido uma noite de sono completa desde quarta-feira.

Miller fez os oitenta quilômetros e mais cento e cinqüenta. Mackensen tinha deixado de ver uma coisa. O seu dispositivo de gatilho teria certamente detonado se tivesse sido colocado no sistema de suspensão acolchoado de um carro continental. Mas o Jaguar era um carro esporte inglês, com um sistema de suspensão muito mais duro. Quando o carro seguia velozmente pela autobahn na direção de Frankfurt, os solavancos tinham feito as pesadas molas acima das rodas dianteiras contraírem-se um pouco, esmigalhando a pequena lâmpada do gatilho da bomba. Mas as peças de aço com a sua carga elétrica tinham deixado de tocar-se. Nos solavancos mais fortes, chegavam a milímetros uma da outra antes de se afastarem.

Sem saber como estava perto da morte, Miller passou por Munster, Dortmund e Wetzlar e Bad Homburg em direção a Frankfurt em pouco menos de três horas, virando então pela estrada de contorno para Kõnigstein e as florestas selvagens e cobertas de neve das montanhas do Taunus.

 

Já estava escuro quando o Jaguar entrou na pequena cidade que era uma estância de águas nos contrafortes orientais da serra. Miller certificou-se, depois de consultar o mapa, que estava a menos de trinta quilômetros da propriedade particular que procurava. Resolveu não prosseguir naquela noite, procurar um hotel e esperar até a manhã seguinte.

Ao norte, ficavam as montanhas, atravessadas pela estrada para Limburg, silenciosas e brancas sob o espesso tapete de neve que cobria os rochedos e amortalhava os quilômetros e mais quilômetros de florestas de pinheiros. As luzes brilhavam ao longo da rua principal da pequena cidade e a claridade delas desenhava mais acima a silhueta espectral do velho castelo em ruínas, onde outrora tinham vivido os Senhores de Falkenstein. O céu estava claro, mas um vento gelado prometia neve durante a noite.

Na esquina de Haupt Strasse com Frankfurt Strasse, Miller encontrou um hotel, o Park, e pediu um quarto. Em fevereiro, uma estação de águas não pode ter o mesmo encanto que tem nos meses de verão, e havia quartos de sobra.

O porteiro deu-lhe instruções para guardar o carro no terreno dos fundos do hotel, orlado de árvores e arbustos. Tomou um banho e saiu para jantar, escolhendo a hospedaria da Grüne Baum, na Haupt Strasse, uma de uma dúzia de velhos restaurantes com teto de vigas que a cidade tinha para oferecer.

Foi depois da comida que o nervosismo se manifestou. Notou que as mãos tremiam quando ele levantava o copo de vinho. Sabia que isso era resultado de exaustão, da falta de sono nos últimos quatro dias, em que só havia cochilado poucas horas de cada vez.

Mas era também uma reação retardada da tensão do roubo que  cometera com a ajuda de Koppel e também do assombro que sentia em ver premiado o seu instinto de voltar à casa de Winzer depois da primeira visita para perguntar à empregada quem havia cuidado do falsificador solteiro durante todos os anos anteriores.

Contudo, a causa principal era sem dúvida o desfecho iminente da procura, o encontro com o homem a quem odiava e que tinha procurado por tantos desconhecidos caminhos de pesquisa, conjugando-se com o receio de que ainda pudesse haver algum contratempo.

Pensou no homem anônimo que o procurara no hotel de Bad Godesberg e que o aconselhara a afastar-se dos Kameraden. Lembrou-se do caçador de nazistas judeu de Viena que lhe dissera: "Tenha cuidado; esses homens podem ser perigosos". Não podia compreender por que ainda não haviam atacado. Sabiam que seu nome era Miller, como provava a visita que recebera no Hotel Dreesen. E o seu disfarce como Kolb estava desfeito depois do que ele fizera com Bayer em Stuttgart. Entretanto, não vira ainda ninguém. Tinha certeza de que não podiam saber que ele tivesse chegado tão longe. Talvez lhe tivessem perdido a pista ou estivessem convencidos, em vista do desaparecimento do falsificador, de que ele havia chegado a um impasse.

Entretanto, ele tinha o arquivo, a evidência secreta e explosiva de Winzer e, portanto, a reportagem mais sensacional da década na Alemanha Ocidental. Sorriu satisfeito e a garçonete que passava pensou que fosse para ela. Balançou os quadris ao passar e ele pensou em Sigi. Não telefonava para ela desde que estivera em Viena e a carta que ele escrevera em princípios de janeiro era a última que ela recebera, seis semanas antes. Sentia naquele momento que precisava mais que nunca dela.

Era estranho, pensava ele, mas os homens precisam sempre das mulheres quando estão assustados. Tinha de reconhecer que estava assustado, tanto em vista do que já havia feito quanto pela presença do assassino que sem saber o esperava nas montanhas.

Sacudiu a cabeça para dissipar esse estado de espírito e pediu outra meia garrafa de vinho. Não era tempo para melancolia. Conseguira o maior furo jornalístico de que tinha notícia e ainda ia ajustar contas.

Passou em-revista os seus planos enquanto bebia a segunda porção de vinho. Um simples confronto com o homem, um telefonema para o homem de Ludwigsburg e a chegada trinta minutos depois de um carro da polícia que levaria o homem para a cadeia, para o julgamento e para uma sentença de prisão perpétua. Se ele fosse um homem mais cruel, trataria de matar o capitão das SS.

Ocorreu-lhe de repente que estava desarmado. E se Roschmann tivesse um guarda-costas? Estaria ele de fato sozinho,  certo de que seu novo nome o protegeria de ser descoberto? Ou teria um braço forte para entrar em ação em caso de dificuldades?

No tempo em que fizera o serviço militar, um dos amigos de Miller, tendo passado a noite no corpo da guarda por haver chegado atrasado à base, roubara um par de algemas da polícia militar. Mais tarde, preocupado com a idéia de que pudessem encontrá-las na sua mochila, tinha dado as algemas a Miller. O repórter as havia conservado apenas como uma lembrança de uma noite de farra no exército. Estavam no fundo de uma mala no seu apartamento de Hamburgo.

Tinha também uma pequena automática Sauer, que comprara legalmente na ocasião em que fazia uma reportagem sobre a exploração do vício em Hamburgo em 1960 e fora ameaçado pelos homens da quadrilha de Pauli. Estava guardada numa gaveta de sua mesa, também em Hamburgo.

Sentindo-se um pouco tonto com os efeitos do vinho, de um conhaque duplo e do cansaço, pagou a conta, levantou-se e foi para o hotel. Já ia subir para telefonar do quarto, quando viu duas ca binas telefônicas quase à porta do hotel. Era mais seguro telefonar dali.

Eram quase dez horas e ele encontrou Sigi no clube onde ela trabalhava. O barulho da orquestra perto do telefone era tanto que ele teve de gritar para que ela ouvisse o que ele dizia.

Miller interrompeu a torrente de perguntas de Sigi, que queria saber por onde ele tinha andado, por que não tinha mandado notícias e onde estava naquele momento, e disse o que queria. Ela disse que não podia afastar-se de Hamburgo, mas havia na voz dele um tom que a fez parar.

- Você está bem mesmo? - gritou ela pelo telefone.

- Estou, sim. Mas preciso de sua ajuda. Por favor, querida, não me falhe agora. Não me falhe esta noite!

Houve uma pausa e então ela disse simplesmente:

- Irei, sim. Direi aqui no clube que é um caso urgente de família.

- Tem dinheiro que chegue para alugar um carro?

- Acho que sim. Se não chegar, pedirei emprestado a uma das colegas.

Miller deu-lhe o endereço de uma garagem de aluguel de carros que ficava aberta a noite toda e de que já se utilizara várias vezes, recomendando-lhe que mencionasse o nome dele, pois o proprietário o conhecia.

- É muito longe até aÍ? - perguntou ela.

- De Hamburgo até aqui, 500 quilômetros. Você pode fazer isso em cinco horas, vamos dizer, seis horas a contar de agora.

Deverá chegar aqui às cinco da manhã. E não se esqueça de trazer as coisas que lhe pedi.

- Está bem. Pode-me esperar a essa hora. - Houve uma pausa e então ela murmurou: - Peter, meu querido...

- Que é?

- Está com medo de alguma coisa?

O telefone começou a dar sinais de que o tempo da ligação estava esgotado e ele não tinha mais moedas de um marco.

- Estou, - disse ele e pendurou o fone no gancho no momento em que a ligação foi cortada.

No hotel, perguntou ao porteiro da noite se lhe podia conseguir um envelope grande. Depois de muito procurar nas gavetas, o homem lhe apresentou um envelope encorpado em condições de acomodar folhas tamanho ofício. Miller comprou também selos em quantidade suficiente para mandar o envelope registrado pelo correio com um conteúdo bem pesado, esgotando assim o estoque de selos da portaria, que só era usado quando um dos hóspedes queria remeter um cartão-postal.

Chegando ao seu quarto, pegou a pasta, que tinha levado na mão durante toda a noite, e tirou o diário de Salomon Tauber, o maço de papéis que apanhara no cofre de Winzer e duas fotografias. Tornou a ler as duas páginas do diário que o tinham feito empreender aquela caçada de um homem de cuja existência nunca soubera, e estudou as duas fotografias lado a lado.

Pegou por fim uma folha de papel e escreveu em termos concisos e claros uma explicação do significado dos documentos do envelope. Colocou essa nota, juntamente com o arquivo do cofre de Winzer e uma das fotografias, dentro do envelope, o qual sobrescritou e selou.

Guardou a outra fotografia no bolso do paletó. O envelope selado e o diário foram guardados na pasta, que ele meteu embaixo da cama.

Levava na maleta uma pequena garrafa de conhaque. Serviu uma dose no copo que estava na pia do banheiro. Notou que as mãos estavam trêmulas, mas a bebida o descontraiu um pouco. Deitou-se com a cabeça a rodar levemente e adormeceu.

Na sala subterrânea em Munique, Josef andava de um lado para outro, aborrecido e impaciente. Sentados à mesa, Leon e Motti olhavam para as mãos. Já fazia quarenta e oito horas que o telegrama de Tel Aviv havia chegado.

As tentativas que tinham feito para descobrir o paradeiro de Miller não poderiam ter sido mais inúteis. A pedido deles pelo telefone,  Alfred Oster fora fazer uma verificação no estacionamento de carros em Bayreuth e telefonara depois para dizer que o carro fora levado.

- Se virem o carro, vão saber na certa que não pode ser de um empregado de padaria em Bremen, - disse Josef quando recebeu a notícia, - ainda que não saibam que o dono do carro é Peter Miller.

Mais tarde, um amigo em Stuttgart tinha informado a Leon que a polícia local estava procurando um homem implicado no assassinato num quarto de hotel de um cidadão chamado Bayer. A descrição do homem procurado correspondia ao disfarce de Miller como Kolb. Mas, felizmente, o nome constante do registro de hóspedes do hotel não era nem Miller, nem Kolb e não havia menção de um carro esporte preto.

- Pelo menos, ele teve o bom senso de se registrar com um nome falso, - disse Leon.

- Isso estaria de acordo com o papel de Kolb que ele estava representando, - observou Motti. - A suposição era de que Kolb estivesse fugindo da polícia de Bremen em conseqüência de crimes de guerra.

Mas esse conhecimento não dava muito conforto. Se a polícia de Stuttgart não podia encontrar Miller, o grupo de Leon também não podia e só havia o receio de que, ao contrário, a Odessa estivesse bem no encalço dele.

- Ele deve ter sabido depois de matar Bayer que o disfarce dele como Kolb estava estourando e reassumiu assim o nome de Miller, - disse Leon. - Neste caso, teve de abandonar a procura de Roschmann, a não ser que tenha conseguido de Bayer alguma informação que lhe deu a pista de Roschmann.

- Por que então não se comunica conosco? - perguntou Josef. - Será que aquele idiota pensa que pode enfrentar Roschmann sozinho?

Motti tossiu calmamente.

- É que ele não sabe a verdadeira importância que Roschmann tem para a Odessa.

- Bem, se ele se aproximar, vai saber, - disse Leon.

- E será então um homem morto e nós voltaremos à estaca zero, - exclamou Josef. - Por que aquele idiota não telefona?

Mas as linhas telefônicas estiveram em ação em outros pontos naquela noite, porque Klaus Winzer telefonara para o Lobisomem de um pequeno chalé de montanha na região de Regensburg. As notícias que recebeu foram tranqüilizadoras.

- Sim, creio que não há perigo na sua volta, - dissera o chefe da Odessa em resposta às perguntas do falsificador. - A estas horas, já devemos ter cuidado do homem que queria falar-lhe.

O falsificador agradeceu, pagou a conta na hospedaria e partiu, mesmo à noite, para o norte e para o conforto conhecido de sua cama na casa de Westerberg. Esperava chegar a tempo de tomar um bom banho, fazer uma refeição farta e pegar um sono bem comprido. Na manhã de segunda-feira, estaria de volta à tipografia, cuidando dos seus negócios.

Miller foi despertado por uma batida na porta do quarto. Abriu os olhos, viu que deixara a luz acesa e foi até à porta. O porteiro da noite estava lá e, atrás dele, estava Sigi.

Tranqüilizou o homem explicando que a senhora era sua esposa que lhe vinha trazer alguns papéis importantes de que ele precisava para resolver um negócio no dia seguinte. O porteiro, um homem simples do interior com um forte sotaque do Hesse, recebeu a sua gorjeta e se retirou.

Sigi passou os braços em torno dele enquanto Miller fechava com o pé a porta do quarto.

- Por onde tem andado? Que é que está fazendo aqui?

Ele se livrou das perguntas da maneira mais simples e, quando se apartaram, as faces frias de Sigi estavam em fogo e Miller se sentia como um galo de briga.

Tirou o casaco dela e pendurou-o no cabide atrás da porta. Sigi recomeçou a fazer perguntas.

- Temos de tratar primeiro das coisas mais urgentes, - disse ele, fazendo-a rolar na cama onde ele tinha dormido e que ainda estava quente sob o edredom.

- Você não mudou em nada, - disse ela, rindo.

Ela ainda estava com o vestido que usara no cabaré, muito decotado na frente e com um soutien sumário. Ele abriu nas costas o fecho do vestido e tirou o soutien.

- E você? Mudou? - perguntou ele, calmamente.

Ela respirou fundo e sorriu enquanto ele se inclinava sobre ela. - Não, não mudei nada. Você sabe de que é que eu gosto.

- E você sabe de que é que eu gosto, - murmurou Miller quase indistintamente.

Ela riu.

- Eu primeiro. Tenho sentido mais sua falta do que você tem sentido a minha.

Não houve resposta e o silêncio só foi quebrado pelos suspiros e gemidos de Sigi.

Só uma hora depois fizeram uma pausa, arquejantes e felizes, e Miller pegou o copo de conhaque com água. Sigi tomou um gole, pois não bebia muito apesar do seu trabalho no clube, e Miller bebeu o resto.

- Bem, - disse Sigi, - agora que as coisas urgentes foram resolvidas...

- Por enquanto, - disse Miller e ela riu.

- Está bem, mas, por enquanto, quer-me explicar aquela carta misteriosa, as seis semanas de ausência, esse corte de cabelo horroroso e este pequeno quarto num obscuro hotel do Hesse?

Miller ficou sério. Levantou-se, ainda nu, atravessou o quarto e voltou com a sua pasta. Sentou-se na cama.

- Você vai ficar sabendo agora mesmo o que andei fazendo. Saberia de qualquer maneira dentro em pouco.

Falou durante quase uma hora, a começar pela descoberta do diário, que ele lhe mostrou, e terminando com o roubo do cofre na casa do falsificador. Enquanto ele falava, ela ficava progressivamente horrorizada.

- Você está louco, - disse ela quando Miller acabou. - É uma loucura tudo isso. Poderia estar a estas horas morto, preso ou lá o que fosse.

- Tinha de fazer o que fiz, - murmurou ele, sem ter uma explicação convincente para coisas que lhe pareciam realmente insensatas.

- Tudo isso por um velho nazista carcomido? Você é louco, positivamente louco. Tudo isso passou, Peter. Para que está perdendo seu tempo com essa gente?

Ela o encarava cheia de espanto.

- É preciso, - disse ele, num tom de desafio.

Ela suspirou profundamente e sacudiu a cabeça para indicar a sua incompreensão.

- Bem, - disse ela, - agora o caso está encerrado. Você sabe quem é ele e onde está. Volte então para Hamburgo, pegue o telefone e ligue para a polícia. Ela se encarregará do resto. Para isso é que é paga.

Miller ficou sem saber o que dizer. Por fim, murmurou:

- Não é tão simples assim. Vou até lá hoje de manhã. - Até lá onde?

Miller apontou para a janela e para as montanhas ainda escuras. - Até à casa dele.

- À casa dele? Para quê? - perguntou ela, com os olhos arregalados de horror. - Vai ver mesmo esse homem?

- Vou. Não me pergunte por que, pois não lhe sei dizer. Mas sei que é uma coisa que eu não posso deixar de fazer.

A reação de Sigi assombrou-o. Ela se sentou na cama num repelão e olhou para ele, que estava fumando, recostado num travesseiro.

- Era para isso então que você queria a pistola! - exclamou ela, com o seio arfando em sua cólera. - Você vai matá-lo!

- Não, não vou matá-lo...

- Neste caso, ele o matará. E você vai até lá sozinho com uma pistolinha contra ele e sua quadrilha. Imundo, tipo desprezível e abjeto...

Miller olhou-a assombrado.

- Por que é que está tão inflamada assim? É por causa de Roschmann?

- Pouco me interessa esse velho nazista horroroso! Estou falando é de nós dois, sujeitinho cretino. Vai arriscar-se a ser morto lá em cima, só para provar alguma coisa que está dentro de sua cabeça e para ter uma reportagem para as suas revistas idiotas. E eu, como é que vou ficar? Nisso você não pensa nem por um minuto... Tinha começado a chorar e as lágrimas lhe abriam regos na sombra negra dos olhos, que fazia correr-lhe pelas faces sulcos como linhas de estrada de ferro.

- Olhe bem para mim! Quem é que você pensa que eu sou? Uma prostituta reles que não tem outro sonho na vida senão ir para a cama com um repórter imbecil para que ele se sinta satisfeito e

trate de conseguir uma reportagem maluca, que pode acabar por matá-lo? Não, meu caro cretino! O que eu quero é me casar. Quero ser Frau Miller. Quero ter filhos. Mas você vai-se deixar matar... Ó Deus!

Saltou da cama e correu para o banheiro, batendo e trancando a porta.

Miller ficou na cama boquiaberto, com o cigarro a arder entre os seus dedos. Nunca a tinha visto tão zangada e isso o surpreendeu. Pensou no que ela havia dito, ao mesmo tempo que ouvia a água correr no banheiro.

Apagando o cigarro, atravessou o quarto e foi bater na porta do banheiro.

- Sigi!

Não houve resposta. - Sigi.

A água deixou de correr. - Vá-se embora.

- Faça o favor de abrir a porta, Sigi. Quero falar com você. Houve uma pausa e então a porta foi abérta. Sigi apareceu nua e de cara fechada. Tinha lavado o rosto, tirando todos os vestígios da maquilagem.

- Que é que você quer? - perguntou ela.

- Venha para a cama. Quero falar com você. Vamos acabar gelados ficando aqui.

- Não. O que você quer é fazer amor de novo.

- Não. Dou-lhe minha palavra. Só quero é falar com você. Ele a pegou pela mão e levou-a para a cama e para o calor que esta oferecia. Ela o olhou cautelosamente do travesseiro.

- De que é que você quer falar? - perguntou ela, com desconfiança.

Ele subiu para a cama ao lado dela e lhe disse ao ouvido: - Sigrid Rahn, quer-se casar comigo?

Ela se voltou para ele e perguntou: - Está falando sério?

- Claro que estou. Nunca havia pensado nisso de verdade. Mas você também nunca ficou zangada de verdade.

- Oh, acho que devia ficar zangada mais vezes. - Você ainda não me respondeu.

- Quero, sim, Peter. Será tão bom para nós dois. Ele começou a acariciá-la e ficou com vontade. - Olhe lá, você me deu sua palavra.

- Ora, só uma vezinha. Depois, prometo que a deixarei em

paz.

Ela passou a coxa por cima dele e aproximou do alto os quadris para o corpo dele. Olhando para ele, disse:

- Não se atreva, Peter Miller!

Miller estendeu a mão e apagou o abajur enquanto ela começava a fazer-lhe amor.

Lá fora, na neve, uma débil claridade irrompia do horizonte. Se Miller tivesse olhado para o relógio, ficaria sabendo que faltavam dez minutos para as sete da manhã do domingo, 23 de fevereiro. Mas já estava dormindo.

Meia hora depois, Klaus Winzer transpunha o portão de sua casa, parava diante da porta da garagem fechada e saltava. Estava com o corpo dolòrido e cansado, mas feliz de estar em casa.

Bárbara ainda não estava de pé, aproveitando a ausência do patrão para dormir um pouco mais que de costume. Quando apareceu, depois que Winzer entrou e a chamou do pé da escada, estava com uma camisola que faria o sangue de qualquer outro homem correr mais depressa. Mas, em vez disso, ele pediu ovos fritos, torradas, geléia e um bule de café e um banho. Não teve nada disso.

A empregada lhe disse que tinha descoberto na manhã do sábado ao ir arrumar o escritório, que a janela estava quebrada e que , tinham levado os castiçais e a tabaqueira de prata.

Disse que tinha chamado a polícia e que os detetives tinham sido de opinião que ocírculo aberto na vidraça só podia ter sido obra de um ladrão profissional. Tivera de dizer que o dono da casa estava ausente e eles disseram que queriam ser avisados quando ele voltasse, pois tinham algumas perguntas a fazer-lhe sobre os objetos roubados.

Winzer ouviu em completo silêncio o que lhe dizia a empregada, embora estivesse muito pálido e as têmporas lhe latejassem.  Mandou-a ir fazer café na cozinha e entrou no escritório, fechando a porta. Trinta segundos depois, diante do cofre vazio, convenceu-se de que o arquivo com as fichas de quarenta criminosos da Odessa  tinha desaparecido.

Quando se afastava do cofre, o telefone tocou. Era o médico da clínica para informar-lhe que Freulein Wendel morrera naquela noite.

Durante duas horas, Winzer ficou sentado diante da lareira apagada, sem dar atenção ao frio que se infiltrava pelo buraco da vidraça, que fora coberto com papel de jornal, pensando no que devia fazer. Os repetidos chamados de Bárbara do outro lado da porta trancada, no sentido de que a mesa do café estava pronta, não  mereceram atenção. Mas ela o ouviu murmurar do outro lado:

- Não tive culpa. Não tive culpa...

Miller se esquecera de cancelar o chamado pelo telefone que recomendara à portaria do hotel antes de telefonar para Sigi em Hamburgo. O telefone tocou às nove horas. Miller atendeu, agradeceu e saiu da cama. Sabia que, se não se levantasse, iria dormir outra vez. Sigi estava mergulhada num sono profundo, exausta da viagem, do amor e da emoção de afinal ter sido pedida em casamento.

Miller tomou um banho de chuveiro, esfregou-se vigorosamente com uma toalha que tinha deixado durante a noite sobre o rádio do quarto e sentiu-se muito bem. A depressão e a ansiedade da noite anterior  tinham-se dissipado. Sentia-se bem disposto e confiante.

Calçou botas que iam até aos tornozelos, pôs calças esporte e  um grosso suéter de gola rulê e uma espécie de japona alemã de lã bem grossa. Tinha de cada lado bolsos bem fundos, onde podiam  ser levadas a pistola e as algemas e um bolso de dentro para a fotografiá. Tirou as algemas da mala de Sigi e examinou-as. Não havia chave e fechavam-se automaticamente, o que as tornava inúteis a não ser para manietar um homem até que ele fosse liberado pela polícia ou por uma serra.

Abriu e examinou a pistola. Nunca atirara com ela e ainda via vestígios da graxa da fábrica. O pente estava carregado e assim o deixou. A fim de familiarizar-se com o manejo, acionou várias vezes o gatilho da arma descarregada,  verificou as duas posições exatas da trava de segurança, repôs o pente no lugar, colocou uma bala na agulha e fechou a trava de segurança. Colocou no bolso da calça o número do telefone do homem de Ludwigsburg.

Pegou a pasta, tirou uma folha de papel e escreveu o seguinte bilhete para ser lido por Sigi logo que acordasse

: "Meu bem: Vou agora ver o homem que venho caçando. Tenho motivos para querer vê-lo cara a cara e para estar presente quando a polícia o levar algemado. Os motivos são bons e eu espero poder contar-lhe tudo hoje à tarde. Mas, como nunca se sabe o que pode acontecer, aqui está o que eu quero que você faça...

As instruções eram precisas e diretas. Escreveu o número do telefone em Munique para o qual ela devia ligar e o que ela devia dizer ao homem que atendesse do outro lado. Terminou com as se guintes palavras:

"Sejam quais forem as circunstâncias, não me siga na montanha. Só poderia com isso agravar a situação, seja ela qual for. Por conseguinte, se eu não estiver de volta ao meio-dia, ou não tiver ligado o telefone para este quarto, telefone para esse número, dê esse recado, deixe o hotel, deposite o envelope em qualquer caixa do correio em Frankfurt e prossiga viagem para Hamburgo. Enquanto isso, não fique noiva de mais ninguém. Com todo meu amor, Peter."

Colocou o bilhete na mesa de cabeceira ao lado do telefone, juntamente com o envelope que continha o arquivo da Odessa e três notas de cinqüenta marcos. Com o diário de Salomon Tauber debaixo do braço, saiu do quarto e desceu. Passando pela portaria, pediu que a telefonista desse outra chamada para o seu quarto às onze e meia. Saiu do hotel às nove e meia e ficou surpreso com a quantidade de neve que tinha caído durante a noite.

Foi até ao fundo do hotel, entrou no Jaguar e ligou o motor. Este levou alguns minutos para pegar. Enquanto ele se estava aquecendo, Miller tirou uma escova da mala do carro e limpou a espessa camada de neve que cobria o capô, o teto e o pára-brisa.

Sentou-se então ao volante, engrenou o carro e saiu para a rua. A neve que cobria tudo era como uma espécie de colchão e ele a sentia crepitar sob as rodas. Depois de olhar o mapa que comprara na véspera, tomou a estrada para Limburg.

 

A manhã era fria e nevoenta depois de um breve e luminoso amanhecer que ele não tinha visto. Abaixo das nuvens, a neve brilhava sob as árvores e um vento frio descia das montanhas.

A estrada subia logo depois de sair da cidade e se perdeu imediatamente no mar de árvores que formavam a floresta de Romberg. Depois da saída da cidade, o tapete de neve na estrada estava quase virgem, só havendo um rastro, talvez de alguém que saíra bem cedo para ir à igreja em Kõnigstein.

Miller entrou pela estrada lateral para Glashutten, contornou os flancos da imponente montanha de Feldsberg e tornou uma estrada que levava, segundo os sinais, para a aldeia de Schmitten. Nos flancos das montanhas, o vento gemia através dos pinheiros, com o timbre elevando-se quase a um uivo por entre os galhos pesados de neve.

Embora Miller nunca tivesse pensado até então nisso, fora daqueles e de outros oceanos de pinheiros e faias que as velhas tribos germânicas tinham irrompido para serem detidas por César às

margens do Reno. Posteriormente, convertidos ao cristianismo, os velhos germânicos fingiam durante o dia render tributo ao Príncipe da Paz, sonhando apenas nas horas de escuridão com seus velhos deuses de força, luxúria e poder. Fora esse atavismo, o culto na sombra dos deuses particulares das árvores incessantemente ululantes, que Hitler inflamara num toque de mágica.

Depois de mais vinte minutos de cautelosa marcha, Miller conferiu de novo seu mapa e começou a procurar a entrada para uma propriedade particular.

Quando a encontrou, havia um portão fechado por um ferrolho de aço, tendo ao lado o cartaz: "Propriedade Particular. Proibida a Entrada".

Deixou o motor trabalhando, saltou e abriu o portão. Subiu a entrada de automóveis. A neve estava intacta e ele seguiu em velocidade reduzida, pois havia apenas areia congelada por baixo da neve.

Duzentos metros adiante, um galho de um enorme carvalho tinha caído durante a noite, carregado de meia tonelada de neve. O galho tinha caído na vegetação rasteira e alguns dos seus ramos se espalhavam pela estrada. Derrubara também um poste fino e preto, que fora cair atravessado na estrada.

Não querendo sair e tirá-lo do caminho, Miller continuou cuidadosamente, sentindo o ligeiro choque quando as rodas da frente e depois as de trás passaram sobre o poste.

Livre dessa obstrução, dirigiu-se para a casa e foi sair numa clareira, onde ficavam a vila e os jardins, cercados por uma faixa circular de cascalho. Parou o carro diante da porta principal, saltou e tocou a campainha.

Na hora em que Miller estava saltando do carro, Klaus Winzer tomou afinal uma decisão e telefonou para o Lobisomem. O chefe da Odessa estava nervoso e irritado, pois já passara muito da hora em que ele devia ter a notícia da explosão de um carro esporte, proveniente decerto do tanque de gasolina, na autobahn ao sul de Osnabrück. Mas, quando ouviu o que lhe dizia o homem do outro lado da linha, a sua raiva não teve mais limites.

- Você fez o quê? Idiota, burro, cretino! Sabe o que é que lhe vai acontecer se esse arquivo não for recuperado?

Sozinho no seu escritório em Osnabrück, Klaus Winzer pendurou o fone no gancho depois das últimas frases do Lobisomem e voltou para a sua mesa. Estava muito calmo. Já por duas vezes, a vida fora por demais rude para ele: primeiro, quando o trabalho que fizera com tanto amor durante a guerra fora destruído, sendo lançado nos lagos; depois, quando ficara arruinado em 1948 com a desvalorização do seu dinheiro; agora, aquilo. Tirando da última gaveta uma Lüger velha mas ainda eficiente, colocou o cano na boca e puxou o gatilho. A bala que lhe dilacerou a cabeça não era falsificada.

O Lobisomem olhou com um sentimento bem próximo do horror para o telefone silencioso.

Pensou nos homens para quem tinha sido necessário obter passaportes por intermédio de Klaus Winzer e no fato de que todos eles eram homens procurados constantes da lista dos que seriam julgados se fossem capturados. A revelação do arquivo determinaria tão grande massa de prisões e julgamentos que era bem possível que a população fosse sacudida da atual apatia em relação à perseguição dos homens das SS e que todas as agências de caça redobrassem de atividade... A perspectiva era apavorante.

Mas a sua prioridade fundamental era a proteção de Roschmann, um dos que constavam da lista roubada a Winzer. Três vezes discou para a área de Frankfurt, seguido do prefixo do número particular da casa na montanha,  três vezes a ligação não se completara. Tentara por fim a telefonista, que lhe dissera que devia haver algum desarranjo na linha.

Telefonou então para o Hotel Hohenzollern, em Osnabrück, e pegou Mackensen quando este já estava para sair. Em poucas palavras, falou ao assassino do último desastre e lhe informou onde Roschmann vivia.

- Parece que sua bomba não funcionou, - disse o Lobisomem: - Vá para lá o mais depressa que lhe for possível. Esconda seu carro e fique perto de Roschmann. Há também com ele um guarda-costas chamado Oskar. Se Miller for diretamente à polícia com o que conseguiu, pegue-o vivo e faça-o falar. Temos de saber, antes que morra, o que foi que ele fez com os papéis.

Mackensen olhou para o seu mapa de estradas e calculou a distância.

- Estarei lá à uma hora da tarde, - disse ele.

A porta se abriu ao segundo toque de campainha e uma lufada de ar quente veio do interior. O homem que estava diante de Miller viera evidentemente do seu escritório, cuja porta estava aberta.

Anos de boa vida tinham aumentado o peso do ex-oficial das SS, que havia sido em outros tempos magro. O rosto estava avermelhado em conseqüência de bebida ou do ar frio da montanha e os cabelos estavam grisalhos nas têmporas. Parecia a própria imagem do homem de meia-idade próspero e sadio da camada superior da classe média. Mas, embora os detalhes fossem diferentes, a fisionomia era a mesma que Tauber vira e descrevera. Olhou para Miller sem o menor interesse.

- Que deseja?

Miller levou dez segundos para poder falar. O que havia ensaiado lhe fugiu da cabeça.

- Meu nome é Miller, - disse ele, - e o seu é Eduard Roschmann.

Ao ouvir os dois nomes, o homem diante dele teve um brilho nos olhos, mas um controle de ferro conservou imperturbáveis as suas feições.

- Não compreendo, - disse ele, afinal. - Nunca ouvi falar desse homem a que se refere.

Por trás de sua fachada de calma, a cabeça do ex-oficial das SS fervilhava. Várias vezes em sua vida depois de 1945, tinha sobrevivido graças à sua presença de espírito em momentos de crise. Reconhecia muito bem o nome de Miller e se lembrava da conversa que tivera com o Lobisomem semanas antes. O seu primeiro impulso foi bater com a porta na cara de Miller, mas se dominou.

- Está sozinho em casa? - perguntou Miller.

- Estou, - respondeu Roschmann, dizendo a verdade. - Vamos para o seu escritório, - disse Miller.

Roschmann não fez objeção, pois compreendia que era forçado a conservar Miller dentro de casa e procurar ganhar tempo até que... Rodou nos calcanhares e caminhou pelo hall. Miller fechou a porta e entrou no escritório ao mesmo tempo que ele. Era uma sala confortável com uma porta bem acolchoada que Miller fechou e um fogo de troncos a arder na lareira.

Roschmann parou no centro da sala e voltou-se para Miller. - Sua mulher está em casa? - perguntou ele. Roschmann sacudiu a cabeça.

- Foi visitar os parentes neste fim-de-semana, - disse Roschmann.

Era verdade. Ela fora chamada de repente e partira no segundo carro. O primeiro carro do casal estava por azar recolhido a uma garagem para consertos. Ela devia voltar naquela noite.

O que Roschmann não disse mas centralizava os seus pensamentos era que seu motorista e guarda-costas Oskar tinha descido de bicicleta para a aldeia meia hora antes para pedir conserto na linha telefônica. Sabia que tinha de fazer Miller falar até que o homem voltasse.

Quando olhou para Miller, viu que o repórter estava com uma automática apontada para ele. Roschmann teve medo, mas resolveu dissimular o seu medo com arrogância.

- Está-me ameaçando com uma arma dentro de minha casa? - perguntou ele.

-. Por que não telefona então para a polícia? - perguntou Miller, apontando o telefone em cima da mesa. Roschmann não fez a menor menção de aproximar-se do aparelho.

- Vejo que ainda puxa um pouco da perna, - disse Miller. - O sapato ortopédico disfarça um pouco, mas não de todo. Faltam-lhe os dedos do pé amputados no campo de Rimini.

Foi a caminhada pela neve através dos campos da Áustria que causou isso, não foi?

Roschmann apertou ligeiramente os olhos, mas nada disse. - Como vê, se a polícia chegar, será facilmente identificado, Herr Direktor. O rosto ainda é o mesmo e ainda deve ter o ferimento de bala no peito e a cicatriz na axila esquerda quando tentou apagar a tatuagem de seu grupo de sangue que atesta que pertenceu às Waffen-SS. Quer mesmo chamar a polícia?

Roschmann deixou o ar sair-lhe dos pulmões num longo suspiro. - Que é que você quer, Miller?

- Sente-se, - disse o repórter. - Não à sua mesa, mas ali na poltrona onde posso vê-lo. Ponha as mãos nos braços da poltrona. Não me dê um pretexto para atirar, pois é uma coisa que eu gostaria muito de fazer.

Roschmann sentou-se na poltrona, sem tirar os olhos da pistola. Miller se sentou parcialmente na mesa de frente para ele e disse: - Agora, conversemos.

- Sobre quê?

- Sobre Riga. Sobre oitenta mil pessoas, homens, mulheres e crianças, 'a quem você matou ali.

Vendo que ele não pretendia usar a pistola, Roschmann começou a recuperar a confiança. Um pouco de cor lhe voltou ao rosto. Fixou o olhar no rosto do jovem à sua frente.

- É mentira. Nunca houve oitenta mil pessoas eliminadas em

Riga.

- Setenta mil? Sessenta? - perguntou Miller. - Acha que tem mesmo importância saber exatamente quantos milhares você matou?

- É justamente isso, - disse ansiosamente Roschmann. - Não tinha importância naquele tempo e não tem importância agora. Escute aqui, meu jovem, não sei ao certo por que saiu à minha procura. Mas posso calcular. Encheram-lhe a cabeça com uma porção de tolices sentimentais sobre crimes de guerra e coisas assim. Tudo isso é asneira, pura e absoluta asneira. Que idade tem você? - Vinte e nove anos.

- Já fez então o seu serviço militar no exército?

- Já. Fui um dos primeiros a prestar serviço no exército nacional depois da guerra. Passei dois anos nas fileiras.

- Sabe então muito bem o que é o exército. Um homem recebe ordens e tem de cumprir essas ordens. Não quer saber se são certas ou erradas. Sabe disso tão bem quanto eu. Não fiz mais que cumprir as ordens que recebi.

- Em primeiro lugar, você nunca foi um soldado, - disse calmamente Miller.

- Era um carrasco ou, para falar em termos mais diretos, um assassino, um massacrador. Não se compare com um soldado.

- Tolice! - disse Roschmann exaltadamente. - Tudo isso é tolice. Éramos soldados como os outros. Cumpríamos ordens como os outros. Vocês, jovens alemães, são assim mesmo. Não querem compreender como era naquele tempo.

- Quer-me dizer então como era?

Roschmann, que se tinha inclinado para a frente a fim de dar mais ênfase aos seus argumentos, recostou-se então na cadeira, quase à vontade, como se o perigo imediato houvesse passado.

- Como era? Pois era como se dominássemos o mundo. Nós, alemães, dominávamos o mundo. Tínhamos derrotado todos os exércitos lançados contra nós. Durante anos, eles nos tinham oprimido

a nós, pobres alemães, e nós mostramos a todos eles que éramos um grande povo. Vocês, moços de hoje, não compreendem o orgulho de ser alemão.

"É uma coisa que acendia uma luz dentro de nós. Quando os tambores batiam e as bandas tocavam, quando as bandeiras tremulavam e toda a nação estava unida atrás de um homem, nós poderíamos ter marchado até aos confins do mundo. Isso é grandeza, jovem Miller, uma grandeza que sua geração não conhece, nem conhecerá. E nós, das SS, éramos a elite, ainda somos a elite. É claro que nos estão caçando agora, primeiro os Aliados e, depois, as velhas comadres de Bonn. É claro que nos querem esmagar porque querem esmagar a grandeza da Alemanha, de que éramos e ainda somos os representantes.

"Dizem muitas coisas imbecis a respeito do que sucedeu em alguns campos e que um mundo equilibrado já devia ter esquecido há muito tempo. Falam muito porque tivemos de limpar a Europa da poluição da sujeira judaica que impregnava todas as facetas da vida alemã e nos estava arrastando para a lama. Tínhamos de fazer isso, fique sabendo. Foi um simples episódio secundário no grande plano de uma Alemanha e de um povo alemão, puro de sangue e de ideais, dominando o mundo como é de seu direito, do nosso direito, Miller, nosso direito e nosso destino se os malditos ingleses e esses americanos eternamente cretinos não tivessem metido os seus narizes efeminados. Não tenha ilusões. Pode falar nessas coisas, mas nós estamos do mesmo lado, meu jovem, embora haja uma geração entre nós. Mas ainda estamos do mesmo lado porque somos alemães, o maior povo do mundo. E vai deixar que o seu julgamento de tudo isso, da grandeza que foi outrora a da Alemanha e voltará a ser um dia, da nossa unidade essencial, de todos nós que somos o povo alemão, vai deixar que o seu julgamento de tudo isso seja afetado pelo que aconteceu a alguns judeus?

Não pode ver, meu jovem desorientado, que estamos do mesmo lado e pertencemos ao mesmo povo e ao mesmo destino?

Apesar da pistola, Roschmann se levantou da poltrona e começou a passear pelo tapete entre a mesa e a janela.

- Quer uma prova de nossa grandeza? Veja a Alemanha de hoje. Esmagada e destroçada em 1945, completamente destruída e à mercê dos bárbaros do Leste e dos loucos do Oeste. E agora? A Alemanha se ergue novamente, com lentidão e segurança, carecendo da disciplina essencial que conseguimos dar-lhe, mas crescendo de ano para ano de poderio industrial e econômico. E também de poderio militar um dia, quando os últimos vestígios da influência dos Aliados de 1945 se tiverem dissipado e nós pudermos voltar a ser o que sempre fomos. Para isso, precisaremos de tempo e de um novo chefe, mas os ideais serão os mesmos e a glória será a mesma também.

"E sabe o que produz isso? Vou-lhe dizer, meu jovem, vou-lhe dizer. É disciplina e organização. Disciplina severa, quanto mais severa, melhor, e organização, nossa organização, a melhor qualidade que possuímos depois da coragem. Na verdade, nós sabemos organizar as coisas e temos demonstrado isso de sobra. Olhe para tudo isto. Está vendo tudo isto? Esta casa, esta propriedade, a fábrica no Ruhr, a minha e milhares como ela, produzindo diariamente poder e força, criando a cada volta das rodas outra porção de poder para que a Alemanha volte a ser poderosa como outrora.

"E quem você acha que fez tudo isso? Acha que foram pessoas dispostas a passar o tempo dizendo lugares-comuns a respeito do que aconteceu a alguns miseráveis judeus que fizeram tudo isso? Acha que os covardes e traidores que tentam perseguir bons, honestos e patrióticos soldados alemães é que fizeram tudo isso? Não! Nós é que fizemos isso, nós é que devolvemos a prosperidade à Alemanha, os mesmos homens que trabalhamos para isso há vinte, há trinta anos!

Roschmann voltou-se da janela para Miller com os olhos brilhantes. Mas media também a distância que ia do ponto do tapete que atingia no seu passeio ao pesado atiçador de ferro da lareira. Miller tinha notado esses olhares.

- Agora, você vem até aqui, um representante da nova geração, cheio de idealismo e de interesse, e aponta uma pistola para mim. Por que não volta o seu idealismo para a Alemanha, para sua pátria, para seu povo? Julga que representa o povo nessa caçada a minha pessoa? Crê que é isso o que o povo da Alemanha quer? Miller sacudiu a cabeça.

- Não, não creio, - disse ele.

- Aí está. Se chamar a polícia e me entregar, poderão submeter-me a julgamento.

Digo que poderão porque não é certo nem que consigam armar um julgamento, depois de tanto tempo e com todas as testemunhas dispersas ou mortas. Guarde, portanto, a sua pistola e volte para casa. Volte para casa e procure ler a verdadeira história daqueles tempos, aprendendo que a grandeza passada e a atual prosperidade da Alemanha têm sua origem em alemães patriotas como eu.

Miller tinha-se conservado mudo durante essa tirada, observando com espanto e crescente repulsa o homem que passeava pelo tapete à sua frente, tentando convertê-lo à velha ideologia. Queria dizer uma porção de coisas, falando das pessoas que conhecia e de milhões como elas que não viam a necessidade de comprar a glória ao preço do massacre de milhões de outros seres humanos. Mas as palavras não vieram. Quase nunca vêm quando se precisa delas. Em vista disso, continuou calado e olhando até que Roschmann acabou.

Depois de alguns momentos de silêncio, Miller perguntou: - Já ouviu falar num homem chamado Tauber?

- Quem?

- Salomon Tauber. Era alemão também. Judeu. Esteve em Riga do princípio até ao fim.

Roschmann encolheu os ombros.

- Não me posso lembrar dele. Foi há tanto tempo. Quem era

ele?

- Sente-se, - disse Miller. - E desta vez fique sentado. Roschmann voltou à poltrona com um gesto de impaciência. Cada vez mais certo de que Miller não ia atirar, estava mais preocupado com o problema de preparar-lhe uma armadilha antes que ele pudesse fugir do que com um obscuro judeu havia muito morto. - Tauber morreu em Hamburgo a 22 de novembro do ano passado. Suicidou-se com gás. Está escutando?

- Já que sou forçado, que é que eu vou fazer?

- Ele deixou um diário. Foi um relato de sua história, do que aconteceu a ele, do que você e outros lhe fizeram em Riga e em outros lugares, mas principalmente em Riga. Contudo, ele sobreviveu,

voltou para Hamburgo e ali viveu durante dezoito anos antes de suicidar-se porque se convenceu de que você estava vivo e nunca seria submetido a julgamento. O diário dele veio cair em minhas mãos. Foi o ponto de partida de minha procura até encontrá-lo aqui hoje, sob o seu novo nome.

- O diário de um morto não constitui prova, - murmurou Roschmann.

- Para um tribunal, não. Mas, para mim, é prova de sobra. - Veio então aqui discutir comigo sobre o diário de um judeu morto?

- De modo algum. Mas há uma página desse diário que eu quero que leia.

Miller abriu o diário em determinada página, separou-a e colocou-a no colo de Roschmann.

- Pegue e leia, - ordenou Miller. - Em voz alta. Roschmann pegou a folha de papel e começou a lê-la. Era a passagem em que Tauber descrevia o assassinato que Roschmann cometera de um oficial anônimo do exército alemão que usava a Cruz de Cavaleiro com Palmas de Carvalho.

Roschmann chegou ao fim da passagem e levantou a cabeça. - E daí? O homem bateu em mim. Desobedeceu às ordens. Eu tinha o direito de requisitar aquele navio para trazer os prisioneiros. Miller jogou uma fotografia no colo de Roschmann.

- Foi esse o homem que você matou?

Roschmann olhou a fotografia e encolheu os ombros. - Como é que eu vou saber? Isso foi há vinte anos.

Houve um estalo quando Miller engatilhou a pistola e apontou-a para o rosto de Roschmann.

- Foi esse o homem?

Roschmann tornou a olhar para a fotografia. - Está bem. Foi esse o homem. E daí?

- Esse homem era meu pai, - disse Miller.

A cor desapareceu do rosto de Roschmann. Abriu a boca e deixou cair o olhar no cano da pistola a meio metro de seu rosto e empunhada com firmeza.

- Oh, meu Deus, - murmurou ele, - não é por causa dos judeus que você está aqui.

- Não. Tenho pena deles, mas não a esse ponto.

- Mas como foi que pôde saber pelo diário que o homem era seu pai? Nunca soube o nome dele. O judeu que escreveu o diário também não sabia. Como é que pôde saber?

- Meu pai foi assassinado no dia 11 de outubro de 1944 na Ostland. Durante vinte anos, não soube senão isso. Li então o diário. O dia era o mesmo, a área a mesma, os dois homens tinham a mesma patente. Principalmente, ambos os homens traziam a Cruz de Cavaleiro com Palmas de Carvalho, que é a mais alta condecoração concedida por bravura no campo de batalha. Não há muitas dessas condecorações e poucas são concedidas a simples capitães do exército. As probabilidades seriam de milhões contra um de que dois oficiais morressem na mesma região no mesmo dia.

Roschmann compreendeu que estava diante de um homem que não podia ser influenciado com argumentos. Olhava para a pistola como se estivesse hipnotizado.

- Você vai-me matar. Não deve fazer isso assim a sangue-frio. Não faça isso. Por favor, Miller, não quero morrer.

Miller inclinou-se para a frente e começou a falar.

- Escute, repulsivo montão de merda. Escutei a você e a suas idéias deformadas até ter vontade de vomitar. Agora, você vai-me escutar enquanto eu decido se você deve morrer aqui ou apodrecer no fundo de uma cadeia pelo resto da vida.

"Você teve a audácia, a audácia desavergonhada de me dizer que foi, especialmente você, um alemão patriota. Pois eu vou dizer o que você é. Você e toda sua laia foram os mais imundos crápulas que já subiram das sarjetas deste país para exercer o poder. E em doze anos emporcalharam minha pátria com a sua sujeira de uma maneira como nunca aconteceu em toda a sua história.

"O que vocês fizeram enojou e revoltou toda a humanidade civilizada, deixando para minha geração um legado de vergonha que nos vai acompanhar através da vida. Vocês viveram cuspindo na Alemanha. Usaram a Alemanha e o povo alemão ao máximo e então trataram de fugir enquanto podiam. Arrasaram-nos a um ponto que seria inconcebível antes que vocês aparecessem e não estou falando dos prejuízos causados pelos bombardeios.

"Não foram nem bravos. Foram os mais lamentáveis covardes já produzidos na Alemanha ou na Áustria. Assassinaram milhões de pessoas em proveito próprio e em nome da demente sede de poder que tinham e, depois, puseram-se ao largo e deixaram que todos nós arcássemos com as conseqüências. Fugiram dos russos, enforcaram e fuzilaram os homens do exército para que a luta continuasse e, por fim, desapareceram, deixando o peso em minhas costas.

"Ainda que fosse possível esquecer o que vocês fizeram aos judeus e aos outros, não se pode esquecer que fugiram e se esconderam como cães que são. Vocês falam de patriotismo e não sabem nem o significado da palavra. E quanto a terem a coragem de chamar de Kameraden os soldados do exército e os outros que lutaram, realmente lutaram, pela Alemanha, é um insulto sem nome.

"E vou-lhe dizer uma coisa, como um jovem alemão desta geração que você evidentemente despreza. A prosperidade de que gozamos hoje nada tem a ver com vocês. É produto do trabalho árduo de milhões de pessoas que nunca assassinaram ninguém. E fique sabendo que eu e os outros homens de minha geração aceitaríamos um pouco menos de prosperidade se pudéssemos ter a certeza de que você e outros vermes de seu tipo não estavam mais presentes, coisa aliás que não vai durar por muito tempo.

- Você vai-me matar, - murmurou Roschmann. - Não, não vou.

Miller estendeu a mão para trás e puxou o telefone para junto dele na mesa. Continuou com os olhos fitos em Roschmann e com a pistola apontada. Tirou o fone do gancho, colocou-o em cima da mesa e discou.

- Há um homem em Ludwigsburg que quer ter uma conversa com você, - disse ele, levando o fone ao ouvido. Mas não havia som algum.

Tornou a pôr o fone no gancho, retirou-o e esperou o ruído para discar. Nada.

- Você cortou os fios? - perguntou ele. Roschmann sacudiu a cabeça.

- Escute, se você tirou o telefone da tomada, mando-lhe uma  bala agora mesmo.

- Não. Ainda não toquei no telefone nesta manhã. Palavra. Miller se lembrou do galho de carvalho caído e do poste atravessado na estrada para a casa. Praguejou em voz baixa e Roschmann teve um breve sorriso.

- A linha deve estar interrompida, - disse ele. - Terá de ir até à aldeia. Que é que vai fazer agora?

- Vou-lhe meter uma bala no corpo se não me obedecer, - disse Miller, tirando do bolso as algemas que tinha pensado em usar em algum guarda-costas.

Jogou as algemas para Roschmann.

- Vá até à lareira, - ordenou ele, seguindo o outro através da sala.

- Que é que vai fazer?

- Vou deixá-lo algemado à lareira enquanto vou até à aldeia para telefonar.

Estava olhando a armação de ferro fundido que cercava a lareira quando Roschmann deixou cair as algemas aos seus pés. o homem das SS abaixou-se para apanhá-las e Miller quase foi colhido de surpresa quando Roschmann apanhou, em vez das algemas, um  pesado atiçador de ferro e arremessou-o com toda a força contra os joelhos de Miller. o repórter recuou em tempo, o atiçador passou sibilando por ele e Roschmann perdeu o equilíbrio. Miller vibrou o cano da pistola contra a cabeça inclinada e se afastou, dizendo:

- Tente isso de novo e eu o matarei!

Roschmann se levantou, cambaleando da pancada que levara na cabeça.

- Feche uma das algemas em torno de seu pulso direito, - ordenou Miller e Roschmann obedeceu. - Está vendo aquele enfeite que parece uma folha à sua frente, à altura de sua cabeça? Há uma haste bem forte que sai dele. Prenda a outra algema ali. Depois que Roschmann prendeu a segunda algema, Miller se aproximou e jogou para longe com o pé os atiçadores e os outros ferros da lareira. Conservando a pistola encostada ao corpo de Roschmann, revistou-lhe os bolsos e tirou das proximidades todos os objetos que o homem acorrentado poderia arremessar para quebrar a janela.

Do lado de fora, o homem chamado Oskar chegou pedalando à porta, depois de ter ido pedir conserto para a linha telefônica. Parou surpreso ao ver o Jaguar, pois o patrão lhe havia dito antes de sua partida que não estava esperando ninguém.

Encostou a bicicleta na parede da casa e entrou sem fazer barulho pela porta da frente. Parou no hall, indeciso, sem nada ouvir do outro lado da porta acolchoada e sem ser ouvido pelos que estavam lá dentro.

Miller lançou um último olhar pela sala e ficou satisfeito.

- É bom ficar sabendo, - disse ele a Roschmann, - que não adiantaria nada se você me tivesse acertado. São onze horas e eu deixei o material completo das provas contra você nas mãos de uma pessoa que deve expedir tudo pelo correio endereçado às autoridades competentes se eu não tiver voltado ou telefonado até o meio-dia. Vou telefonar da aldeia e estarei de volta dentro de vinte minutos. Você não poderá sair daqui nesse espaço de tempo, ainda que disponha de uma serra. Quando eu voltar, a polícia estará aqui vinte minutos depois de mim.

Enquanto ele falava, as esperanças de Roschmann começaram a vacilar. Sabia que só lhe restava uma chance. Era que Oskar de volta pudesse capturar Miller vivo de modo que ele fosse forçado a ir telefonar da aldeia para impedir que os documentos fossem postos no correio. Olhou para o relógio acima de sua cabeça no consolo da lareira. Marcava dez e quarenta.

Miller abriu a porta do escritório e saiu. Viu-se então diante do pulôver de um homem ainda mais alto do que ele. Do seu canto na lareira, Roschmann reconheceu Oskar e gritou:

- Agarre esse homem!

Miller recuou um passo e sacou a pistola que havia guardado no bolso. Foi lento demais. Uma canhota da pata de Oskar fez a automática voar longe. Ao mesmo tempo, Oskar não entendeu bem

a ordem de seu patrão e acertou um soco de direita no queixo de Miller. O repórter pesava 60 quilos, mas o soco levantou-o do chão e fê-lo cair para trás. Os pés ficaram presos numa estante baixa para jornais e, quando ele caiu, bateu com a cabeça numa estante de mogno. Ficou estendido no chão como um boneco de pano, com o corpo virado de lado.

Houve silêncio durante vários segundos enquanto Oskar olhava o seu patrão algemado à lareira e Roschmann contemplava o vulto inerte de Miller, de cuja cabeça um filete de sangue escorria para o chão.

- Idiota! - gritou Roschmann ao ver o que havia acontecido, deixando Oskar confuso. - Venha cá!

O gigante atravessou a sala e ficou à espera das ordens. Roschmann procurou pensar depressa.

- Procure tirar-me essas algemas. Use os atiçadores.

Mas a lareira tinha sido feita num tempo em que os homens queriam que seu trabalho durasse por muito tempo. O único resultado dos esforços de Oskar foi entortar os atiçadores.

- Traga o homem até-aqui, - disse ele afinal a Oskar. Enquanto Oskar sustentava o corpo de Miller, Roschmann levantou as pálpebras do repórter e sentiu-lhe o pulso.

- Está vivo ainda, mas sem sentidos, - disse ele. - Vai precisar de um médico para socorrê-lo em menos de uma hora.  Vá buscar papel e uma caneta.

Escrevendo com a mão esquerda, anotou dois números de telefone enquanto Oskar ia buscar uma serra de metal na caixa de ferramentas do porão. Quando voltou, Roschmann entregou-lhe o papel.

- Desça para a aldeia o mais depressa possível. Ligue para  este número de Nuremberg e conte ao homem que atender o que foi que aconteceu. Depois, telefone para este número na aldeia e peça ao

médico que venha imediatamente. Diga-lhe que é um caso de urgência. Vá depressa.

Quando Oskar saiu correndo da sala, Roschmann tornou a Ì olhar para o relógio. Dez e cinqüenta. Se Oskar chegasse à aldeia às onze horas e estivesse de volta com o médico às onze e quinze, ,

poderiam fazer Miller recuperar os sentidos a tempo de ser levado ¡ a um telefone e deter a ação do cúmplice, ainda que o médico tivesse de trabalhar sob a ameaça das armas. Roschmann começou febrilmente a serrar as algemas.

Quando chegou à porta, Oskar pegou a sua bicicleta e então parou e olhou para o Jaguar estacionado. Aproximou-se e viu que a chave estava na ignição. O patrão lhe havia recomendado pressa.

Por isso, deixou a bicicleta de lado, entrou no carro sentando-se atrás do volante, ligou o motor e espalhou o cascalho num arco bem amplo quando arrancou do pátio para a estrada.

Saiu pisado e corria pela pista escorregadia o mais depressa possível quando chegou ao poste coberto de neve que estava atravessado no meio da estrada.

 Roschmann áinda estava serrando a corrente que ligava as duas algemas quando a ensurdecedora explosão na floresta de pinheiros o fez parar. Esticando o corpo para um lado, conseguiu olhar pela janela e, embora dali não pudesse ver nem a estrada, nem o carro, um penacho de fumaça lhe mostrou que pelo menos o carro fora destruído por uma explosão. Lembrou-se da certeza que lhe tinham dado de que dariam um jeito em Miller. Mas Miller estava estendido ali no tapete perto dele, seu guarda-costas estava morto com certeza e o tempo estava correndo de maneira irrecuperável. Encostou a cabeça no metal frio da lareira e fechou os olhos.

- Tudo está perdido, - murmurou ele.

Ao fim de vários minutos, recomeçou a serrar as algemas. Só mais de uma hora depois foi que o aço especial das algemas militares foi cortado pela serra que ficara cega. Quando se viu livre, com apenas uma algema em torno do pulso direito, o relógio marcava meio-dia.

Se tivesse tempo, poderia parar para liquidar o homem caído no tapete ou, ao menos, dar-lhe uns pontapés, mas estava com muita pressa. Abriu um cofre de parede e tirou um passaporte e vários maços de notas novas e de valores altos. Vinte minutos depois, levando isso e algumas roupas numa maleta, estava descendo de bicicleta para a aldeia e contornando o Jaguar despedaçado e o corpo ainda fumegante estendido de bruços na neve, por entre os pinheiros despedaçados e chamuscados.

Ali chegando, tomou um táxi e ordenou ao motorista que o levasse ao aeroporto internacional de Frankfurt. Encaminhou-se ali para o balcão de informações e perguntou:

- A que horas sai o primeiro vôo daqui para a Argentina? Se não houver nenhum dentro de uma hora...

 

Era uma e dez da tarde quando o Mercedes de Mackensen chegou ao portão da propriedade de Roschmann. No meio da estrada para a casa, encontrou o caminho bloqueado.

O Jaguar fora evidentemente despedaçado de dentro, mas as suas rodas não tinham saído da estrada. Estava ainda de pé, atravessado na estrada. A parte da frente e a de trás podiam ser reconhecidas como de um carro, ainda seguras pelas resistentes barras de aço que formavam o chassi , Mas a parte do centro, inclusive o lugar da direção, tinha sido despedaçada de alto a baixo. Os destroços estavam espalhados por uma extensa área em torno do carro.

Mackensen examinou o esqueleto do carro com um sorriso sinistro e se aproximou do corpo queimado e estendido no chão a cinco metros de distância. O tamanho do cadáver chamou-lhe a atenção e ele se inclinou sobre o mesmo durante alguns minutos. Levantou-se então e galgou correndo o resto da estrada até à casa. Absteve-se de tocar a campainha, mas rodou a maçaneta. A porta se abriu e ele entrou no hall. Escutou durante vários segundos, como um animal carnívoro à beira de um poço, sentindo o perigo que pudesse haver no ar. Não havia o menor ruído. Meteu a mão por baixo do braço esquerdo e tirou uma automática Lüger de cano longo, abriu a trava de segurança e começou a abrir as portas que davam para o hall.

A primeira era a da sala de jantar, a segunda, a do escritório. Embora tivesse visto imediatamente o corpo estendido no tapete, não se moveu da porta entreaberta antes de haver examinado bem o resto da sala. Já vira dois homens serem vítimas desse truque - a isca evidente e a emboscada oculta.

Antes de entrar, olhou pela fenda entre as dobradiças da porta para ter certeza de que ninguém estava escondido atrás dela.

Miller estava caído de costas, com a cabeça pendente para o lado. Durante vários segundos, Mackensen olhou para o rosto muito pálido e então curvou-se para escutar a débil respiração. O sangue empastado na parte posterior da cabeça mostrava mais ou menos o que havia acontecido.

Levou dez minutos correndo a casa, notando as gavetas abertas no quarto e o material de barba que fora levado do banheiro. De volta ao escritório, olhou para o cofre aberto e vazio. Sentou-se depois à mesa e pegou o telefone.

Escutou durante alguns segundos, praguejou em voz baixa e recolocou o fone no gancho. Não teve dificuldade em encontrar a caixa de ferramentas no porão, pois a porta do armário ainda estava aberta. Pegou aquilo de que precisava e saiu para a estrada, depois de passar pelo escritório e verificar como estava Miller. Levou quase uma hora para encontrar os fios do telefone partidos e fazer a ligação. Quando ficou satisfeito com o seu trabalho, voltou para a casa, sentou-se à mesa e tentou de novo o telefone. Ouviu o ruído e discou para o seu chefe em Nuremberg.

Tinha esperado que o Lobisomem estivesse ansioso por ouvir notícias dele, mas a voz do homem do outro lado do fio parecia cansada e pouco interessada. Deu parte do que tinha encontrado, o carro, o corpo do guarda-costas, a algema serrada ainda presa à lareira, a serra cega no tapete e Miller estendido no chão, inconsciente. Falou por último no dono da casa ausente.

- Não levou muito, chefe. Algumas peças de roupa e dinheiro do cofre aberto. Vou ajeitar tudo por aqui e ele poderá voltar quando quiser.

- Não, ele não vai voltar, - disse o Lobisomem. - Telefonou-me do aeroporto de Frankfurt. Comprou passagem num avião que deve partir para Madri daqui a dez minutos. De Madri, partirá esta noite para Buenos Aires...

- Mas não é preciso, - disse Mackensen. - Farei Miller falar e nós saberemos onde ele deixou os papéis. Não havia nenhuma pasta nos destroços do carro e não há nada com ele, a não ser uma espécie de diário no chão. Mas o resto do material não deve estar muito longe.

- Está longe demais, - disse o Lobisomem. - Está numa caixa do correio.

Disse cansadamente a Mackensen o que Miller roubara do cofre do falsificador e contou o que Roschmann lhe dissera de Frankfurt pelo telefone.

- Esses papéis estarão nas mãos das autoridades amanhã ou, o mais tardar, até terça-feira.

Depois disso, todos os que tiverem o nome nesse arquivo estarão com os seus dias de liberdade contados. Nesse meio, está Roschmann, o dono da casa onde você está, e estou eu. Passei a manhã procurando avisar a todos os interessados que devem deixar o país dentro de vinte e quatro horas.

- Que é que vamos fazer então? - perguntou Mackensen. - Você vai desaparecer. Seu nome não consta na lista. O meu está e eu tenho de ir-me embora. Vá para seu apartamento e espere até que meu sucessor entre em comunicação com você. Quanto ao resto, está tudo acabado. Vulkan fugiu e não vai mais voltar. Com a partida dele, toda a operação vai parar, a não ser que venha logo alguém que possa retomar a direção do projeto.

- Quem é Vulkan? E que projeto é esse?

- Desde que está tudo acabado mesmo, você pode saber. Vulkan era o nome de código de Roschmann, o homem a quem você devia proteger de Miller...

Em poucas palavras, o Lobisomem explicou ao carrasco por que Roschmann tinha sido tão importante e por que o seu lugar no projeto e o próprio projeto eram insubstituíveis. Quando ele terminou, Mackensen soltou uma exclamação de espanto, olhou para o vulto de Peter Miller e disse:

- Esse sujeitinho estragou sem dúvida a vida de todo o mundo.

O Lobisomem pareceu recuperar-se e um pouco da velha autoridade voltou à sua voz.

- Kamerad, você tem de arrumar tudo por aí. Lembra-se daquela turma de liquidação que você já utilizou em outras ocasiões? - Sim. E sei onde posso falar com esse pessoal. Não é longe daqui.

- Está bem. Diga a essa gente para não deixar o menor vestígio do que aconteceu. A mulher do homem deverá voltar esta noite e é preciso que ela não saiba do que foi que houve.

- Deixe comigo, - disse Mackensen.

- Depois desapareça. Ainda uma coisa. Antes de sair, acabe com esse maldito Miller. De uma vez por todas.

Mackensen olhou para o repórter inconsciente, apertando os olhos.

- Será um prazer.

- Então adeus e felicidades.

O telefone foi desligado. Mackensen colocou o fone no gancho, pegou um livro de endereços, folheou-o e discou um número. Apresentou-se ao homem que atendeu e recordou-lhe os serviços que ele tinha anteriormente prestado à Odessa. Disse qual era o lugar a que se devia dirigir e o que iria encontrar.

- O carro e o corpo na estrada têm de ser jogados num precipício. Há muita gasolina no tanque e o incêndio deve ser completo.

Não deixe nada que permita a identificação do homem. Corra os bolsos e tire até o relógio.

- Está bem, - disse o homem. - Levarei um reboque e um guincho.

- Mais uma coisa. No escritório da casa, vai encontrar outro cadáver em cima de um tapete manchado de sangue. Faça-o desaparecer. Não no carro. Sugiro um bom mergulho no fundo de um lago com pesos suficientes. Nada de vestígios, entendeu?

- Não há problema. Chegaremos às cinco horas e sairemos às sete. Não gosto de andar com essas cargas à luz do dia.

- Ótimo, - disse Mackensen. - Já terei saído quando você chegar. Mas encontrará tudo nas condições que eu lhe disse. Desligou, levantou-se da mesa e aproximou-se de Miller. Tirou a Lüger e a verificou automaticamente, embora soubesse que estava carregada.

- Sujeitinho cachorro, - disse ele para o corpo e estendeu o braço com a pistola apontada para baixo, na direção da testa. Muitos anos de vida como um animal predatório, em que sobrevivera enquanto outros, vítimas e companheiros, tinham acabado num mármore de necrotério, tinham dado a Mackensen os instintos de um leopardo. Não viu a sombra que se projetou no tapete da porta envidraçada do escritório, mas sentiu-a e voltou-se rápido, pronto a atirar. Mas o homem estava desarmado.

- Quem é você? - perguntou Mackensen, com a arma apontada.

O homem estava à porta, vestido com as perneiras de couro preto e o blusão de couro de um motociclista. Na mão esquerda, levava o capacete, encostado ao estômago. O homem lançou um olhar ao corpo aos pés de Mackensen e à pistola na mão dele e disse inocentemente:

- Mandaram-me trazer um recado. - A quem?

- A Vulkan, O Kamerad Roschmann, - disse o homem. Mackensen resmungou e baixou a pistola.

- Ele foi-se embora. - Foi-se embora?

- Sim. Fugiu para a América do Sul. Todo o projeto foi por água abaixo. E tudo por culpa deste maldito reporterzinho, - disse ele, apontando para Miller com o cano da arma.

- Vai acabar com a vida dele?

- Claro. Ele destruiu o projeto. Identificou Roschmann e mandou todos os documentos para a polícia pelo correio. Se você está no tal arquivo, é melhor dar o fora quanto antes.

- Que arquivo?

- O arquivo da Odessa...

- Meu nome não está nele, - disse o homem.

- Nem o meu, - disse Mackensen. - Mas o do Lobisomem está e ele deu ordem de liquidar este camarada antes de sairmos. - Lobisomem? - perguntou o homem.

Alguma coisa começou a tocar um pequeno alarma dentro de Mackensen. Tinha sabido pouco antes que ninguém na Alemanha salvo o Lobisomem e ele mesmo tinha conhecimento do projeto Vul kan. Os outros que sabiam estavam na América do Sul, de onde era de presumir que aquele homem tivesse vindo. Mas não podia deixar de saber do Lobisomem. Apertou levemente os olhos.

- Você. é de Buenos Aires? - perguntou ele. - Não.

- De onde é que você é então? - De Jerusalém.

Foi preciso um segundo para que o nome fizesse sentido para Mackensen. Moveu então a Lüger para atirar. Mas um segundo é tempo demais e chega de sobra para morrer.

A espuma de borracha dentro do capacete ficou chamuscada quando a Walther foi disparada. Mas a bala da parabellum de 9 mm rompeu a fibra de vidro sem parar e foi atingir Mackensen à altura do esterno com a força de um coice de mula. O capacete caiu ao chão e mostrou a mão direita do agente e de dentro da nuvem de fumaça azul a PPK foi de novo disparada.

Mackensen era um homem grande e forte. Apesar da bala que tinha no peito, poderia ter atirado se a segunda bala, entrando na cabeça dois dedos acima da sobrancelha direita, não lhe tivesse estragado a pontaria. Além disso, matou-o.

Miller foi acordar na tarde da segunda-feira num quarto particular do Hospital Geral de Frankfurt. Durante meia hora, ficou parado, tomando conhecimento pouco a pouco de que a cabeça estava toda envolta em ataduras e continha pelo menos um par de peças de artilharia. Encontrou um botão de campainha e apertou-o, mas a enfermeira que apareceu lhe recomendou que ficasse sossegado, pois ele tinha uma grave concussão.

Ficou, portanto, sossegado e reconstituiu peça a peça os acontecimentos do dia anterior até metade da manhã. Depois disso, não se lembrava de mais nada. Dormiu um pouco e, quando acordou, estava escuro lá fora e um homem estava sentado ao lado da cama. O homem sorriu. Miller olhou para ele e disse:

- Não o conheço.

- Mas eu o conheço muito bem, - disse o homem. Miller pensou um pouco e disse por fim:

- Já me lembro de você. Esteve em casa de Oster com Leon e Motti.

- Exatamente. De que é mais que se lembra? - De quase tudo. A memória está voltando. - Roschmann?

- Falei com ele, sim. Eu ià chamar a polícia.

- Roschmann fugiu para a América do Sul. Tudo está acabado. Completo. Encerrado. Compreende?

Miller sacudiu vagarosamente a cabeça.

- Ainda não. Tenho uma reportagem fora de série. E vou escrevê-la.

O sorriso do homem se desvaneceu.

- Escute, Miller. Você não passa de um danado amador e tem muita sorte em ainda estar vivo. Não vai escrever nada. Em primeiro lugar, não tem sobre que escrever. O diário de Tauber está comigo

e eu vou levá-lo para Israel, que é o lugar onde ele deve ficar. Eu o li na noite passada. Havia uma fotografia de um capitão do exército no bolso de sua japona. Era seu pai?

Miller fez um sinal afirmativo.

- Quer dizer que foi esse realmente o seu motivo? - perguntou o agente.

- Foi.

- Bem, de certo modo, sinto muito. O que aconteceu a seu pai, é claro. Nunca pensei que fosse dizer isso a um alemão. Agora, falemos do tal arquivo. O que era mesmo?

Miller explicou tudo.

- Por que foi que você não nos deu isso? Você é um ingrato, sabe disso? Tivemos um bocado de trabalho para fazê-lo chegar lá e, quando você consegue alguma coisa, entrega ao seu povo. Poderíamos ter aproveitado da melhor maneira essas informações.

- Eu tinha de mandar para alguém por intermédio de Sigi e só podia ser pelo correio. Vocês são tão hábeis que nunca me deram o endereço de Leon.

- Está muito bem, - disse Josef. - Mas, de qualquer maneira, você não pode escrever uma reportagem porque não tem qualquer espécie de prova. Nem o diário, nem o arquivo. Resta

apenas a sua palavra pessoal. Se você insistir em falar, ninguém acreditará em você senão a Odessa, que procurará atingi-lo. Ou então talvez atinjam Sigi ou sua mãe. São impiedosos, ou não sabe disso?

Miller pensou um pouco e perguntou: - E meu carro?

- Ah, você ainda não sabe e eu me esqueci de lhe dizer. Josef contou a Miller da bomba colocada no carro e como a bomba explodira.

- Como sabe, o jogo deles é duro. O carro foi encontrado todo queimado no fundo de um despenhadeiro.

O corpo encontrado nele não foi identificado, mas evidentemente não é o seu. A história corrente é que você foi assaltado por um homem a quem deu passagem no carro. O homem o atacou com uma barra de ferro e fugiu com o carro.

"O hospital confirmará que você foi trazido para cá por um motociclista que passava e telefonou pedindo uma ambulância ao encontrá-lo à beira da estrada. Não serei reconhecido, pois estava de

capacete e óculos grandes. É essa a versão oficial e é ela que deve prevalecer. Para cobrir tudo, telefonei para a Agência Alemã de Notícias há duas horas, dizendo que falava do hospital e contei a mesma história. Você foi vítima de um homem a quem deu passagem e que acabou caindo com o carro e morrendo no desastre.

Josef levantou-se, pronto para sair. Olhou para Miller.

- Você é um sujeito de sorte, embora pareça não perceber isso. Recebi o recado que sua amiguinha me transmitiu, certamente seguindo as suas instruções, ao meio-dia de ontem e, correndo na motocicleta como um alucinado, consegui chegar de Munique à casa da montanha em duas horas e meia. Se chegasse um minuto mais tarde, você estaria morto. Havia lá um camarada que se preparava para matá-lo. Consegui interrompê-lo a tempo.

Voltou-se, com a mão já na maçaneta da porta.

- Aceite o meu conselho. Receba o seguro de seu carro, compre um Volkswagen, volte para Hamburgo, case-se com Sigi, tenha muitos filhos e cinja-se à reportagem. Nunca mais se meta com profissionais.

Meia hora depois da saída dele, a enfermeira voltou. - Telefone, - disse ela.

Era Sigi, chorando e rindo ao mesmo tempo. Tinha recebido um telegrama anônimo que lhe dizia que Peter estava no Hospital Geral de Frankfurt.

- Vou já para aí, neste instante mesmo, - disse ela e desligou.

O telefone tocou de novo.

- Miller? Quem fala é Hoffmann. Acabo de ler a notícia do que lhe aconteceu. Você está bem?

- Muito bem, Herr Hoffmann.

- Ótimo. Quando é que vai sair daí? - Daqui a alguns dias. Por quê?

Tenho uma reportagem feita de encomenda para você. Há uma porção de moças filhas de papais ricos na Alemanha que estão indo para as montanhas a fim de ter encontros com os belos e jovens professores de esquiagem. Há uma clínica na Baviera que resolve o caso se houver alguma conseqüência desagradável e os papais não precisam saber de nada, desde que as contas bem salgadas sejam pagas.

Consta até que os jovens garanhões recebem comissão da clínica. Uma grande reportagem, hem? Sexo nas Neves, Orgias nas Montanhas. Quando é que pode tratar disso?

- Na semana que vem.

- Excelente. Por falar nisso, aquela coisa em que você estava interessado, a caçada aos nazistas, deu algum resultado? Encontrou o homem? Alguma reportagem?

- Não, Herr Hoffmann. Não há nenhuma reportagem.

- Foi o que eu pensei. Fique bom logo. Estou à sua espera em Hamburgo.

O avião de Josef de Frankfurt via Londres chegou ao aeroporto de Lod, em Tel Aviv, quando a noite estava caindo na terçafeira. Era esperado por dois homens num carro e foi levado para a sede a fim de entender-se com o coronel que tinha assinado o telegrama como Cormoran. Conversaram até quase duas horas da madrugada, com um estenógrafo anotando tudo. Quando tudo acabou, o coronel recostou-se na cadeira, sorriu e ofereceu um cigarro ao agente.

- Muito bem, - disse ele simplesmente. - Verificamos a fábrica e fizemos uma denúncia às autoridades, anonimamente, é claro. A seção de pesquisa será desmontada. Trataremos disso, ainda que as autoridades alemãs assim não procedam. Mas sei que vão agir. É evidente que os cientistas não sabiam para quem estavam trabalhando. Entraremos particularmente em contato com eles e quase todos concordarão em destruir os seus arquivos. Sabem que não ficariam bem se a história se divulgasse, pois o peso da opinião hoje em dia na Alemanha é pró-Israél. Conseguirão outros lugares na indústria e ficarão calados. Bonn também ficará em silêncio, assim como nós. E Miller?

- Fará a mesma coisa. E quanto aos foguetes?

O coronel soprou uma coluna de fumaça e olhou para as estrelas que cintilavam lá fora no céu noturno.

- Tenho a impressão de que nunca entrarão em ação. Nasser tem de estar pronto até ao verão de 1967 o mais tardar. Com o trabalho de pesquisa na fábrica Vulkan destruído, não poderãode modo algum montar atempo outra operação para adaptar os sistemas de teledireção aos foguetes antes do verão de 1967.

- O perigo passou então, - disse o agente. O coronel sorriu.

- O perigo nunca passa. Muda de forma apenas. Esse perigo particular pode ter passado. Mas o grande perigo prossegue. Teremos de lutar de novo e talvez ainda depois até que o perigo passe. Mas você deve estar cansado. Por que não vai para casa?

Abriu uma gaveta e tirou um saco de plástico com objetos de uso pessoal enquanto o agente depositava na mesa seu passaporte alemão falso, dinheiro, carteira e chaves. Trocou de roupa numa saleta ao lado, deixando as roupas alemãs com seu superior.

Á porta, o coronel olhou-o de alto a baixo com ar de aprovação e apertou-lhe a mão.

- Seja bem-vindo à pátria, Major Uri Ben Shaul.

O agente sentia-se melhor de volta a sua identidade, que assumira em 1947 quando chegara pela primeira vez a Israel e se alistara no Palmach.

Tomou um táxi para seu apartamento nos subúrbios e abriu a porta com a chave que lhe fora devolvida pouco antes com seus outros objetos.

Pôde divisar no quarto às escuras o vulto adormecido de Rivka, sua mulher, cuja respiração fazia ondular o leve cobertor. Espiou no quarto das crianças e viu seus dois filhos, Shlomo, de seis anos, e Dov, de dois.

Tinha muita vontade de estender-se na cama ao lado da mulher e dormir durante vários dias, mas havia ainda uma tarefa que tinha de ser feita. Largou a mala e se despiu em silêncio, tirando até a

roupa de baixo e as meias. Vestiu roupas limpas tiradas da cômoda enquanto Rivka dormia calmamente.

Tirou do armário as calças do uniforme, limpas e passadas como sempre estavam quando ele chegava em casa, e amarrou sobre elas as botas de couro preto. As camisas e as gravatas cáqui estavam no lugar de costume; as camisas tinham dobras muito finas feitas pelo ferro. Vestiu sobre elas o seu blusão de combate, adornado apenas com as cintilantes asas de aço de um oficial pára-quedista e com as cinco fitas de campanha que ele ganhara no Sinai e em incursões além das fronteiras.

O toque final foi a boina vermelha. Depois de vestido, pegou vários artigos, e colocou-os numa pequena bolsa. Havia uma leve claridade do lado do oriente quando ele saiu de casa e foi encontrar seu pequeno carro ainda estacionado em frente ao bloco de apartamentos.

Embora fosse apenas 26 de fevereiro, faltando três dias para terminar o último mês do inverno, o ar estava de novo brando e prometia uma esplêndida primavera.

Saiu de Tel Aviv para o lado de leste e tomou a estrada de Jerusalém. Havia na madrugada um silêncio que ele amava, uma paz e uma pureza que nunca deixava de admirar. Tinha visto mil vezes

em patrulhas pelo deserto o fenômeno de um nascer do sol fresco e belo antes do advento de um dia de calor escaldante e às vezes de combate e morte. Era a melhor hora do dia.

A estrada atravessava os campos lisos e férteis da planície litorânea rumo aos montes cor de ocre da Judéia, passando pela aldeia desperta de Ramleh. Depois de Ramleh, havia naquele tempo um desvio em torno da Saliência de Latroun, oito quilômetros para contornar as posições avançadas das tropas jordanianas. À esquerda, viam-se as fogueiras da refeição matinal da Legião Árabe, que faziam subir no ar finos penachos de fumaça azul.

Havia alguns árabes acordados na aldeia de Abu Gosh e, quando ele tinha galgado as últimas colinas para Jerusalém, o sol se havia elevado acima do horizonte de leste e fazia brilhar a Cúpula da Rocha na parte árabe da cidade dividida.

Parou o carro a quinhentos metros de seu destino, o mausoléu de Yad Vashem, e fez a pé o resto do caminho. Desceu a avenida marginada de árvores plantadas em memória dos cristãos que tinham procurado ajudar e chegou às grandes portas de bronze que guardam o santuário dedicado aos seis milhões de companheiros judeus mortos no holocausto.

O velho porteiro disse que era ainda muito cedo para abrir, mas ele disse o que queria e o homem o deixou passar. Entrou para o Pátio da Recordação e olhou em torno. Já estivera ali para rezar por sua família, mas os enormes blocos de granito cinzento de que era feito o pátio ainda o impressionavam.

Foi até à balaustrada e olhou para os nomes escritos em preto no chão de pedra cinzenta, em letras hebraicas e latinas. Não havia luz no sepulcro senão a da Chama Eterna, que lucilava acima da rasa concavidade negra de que jorrava.

À sua luz, podia ver os nomes alinhados no chão: Auschwitz, Treblinka, Belsen, Ravensbrück, Buchenwald... Eram inúmeros os nomes, mas ele achou o que procurava, Riga.

Não precisou de um yuriimlku para cobrir-se, pois ainda estava com a boina vermelha, que bastaria. Tirou da bolsa o xale de seda com franjas, o tallith, a mesma espécie de xale que Miller encontrara entre os objetos do velho em Altona, sem compreender. Colocou-o em torno dos ombros.

Tirou um livro de orações da bolsa e abriu-o na página certa. Avançou até à balaustrada de metal que divide o pátio em duas partes, segurou-a com uma das mãos e olhou para a chama diante dele. Não sendo um homem religioso, tinha de consultar freqüentemente o livro de orações, enquanto recitava a prece de cinco mil anos. " Yisgatídul,

Vc yiskculdusli,

Shc inav rubbali..."

E foi assim que, vinte e um anos depois de ter morrido em Riga, um major pára-quedista do Exército de Israel, numa colina da Terra Prometida, disse afinal kaddish pela alma de Salomon Tauber.

Seria agradável se as coisas deste mundo sempre acabassem sem nenhuma ponta solta. Isso raramente acontece. As pessoas continuam, vivem e morrem no tempo e no lugar próprios. Tanto quanto foi possível apurar, eis o que aconteceu aos principais personagens.

Peter Miller voltou para casa, casou-se e limitou-se a fazer reportagens sobre as coisas que as pessoas querem ler na hora do café da manhã ou no cabeleireiro. No verão de 1970, Sigi estava esperando o terceiro filho.

Os homens da Odessa se dispersaram. A mulher de Eduard Roschmann voltou para casa e depois recebeu um telegrama do marido que dizia que ele estava na Argentina. Ela se negou a acompanhá-lo. No verão de 1965, ela escreveu para ele no velho endereço de ambos, a Vila Jerbal, para pedir-lhe um divórcio perante os tribunais argentinos.

A carta foi recambiada para o novo endereço de Roschmann e ela recebeu uma resposta em que ele concordava com o pedido desde que o processo corresse perante os tribunais alemães. Juntou um documento legal em que concordava com o divórcio. O caso foi resolvido favoravelmente em 1966. Ela ainda vive na Alemanha, mas retomou o seu nome de solteira de Muller, que é muitíssimo comum naquele país. Hella, a primeira mulher, ainda vive na Áustria.

O Lobisomem fez finalmente as pazes com os seus superiores furiosos na Argentina e se instalou numa pequena propriedade na ilha espanhola de Formentera, nas Baleares, comprada com o dinheiro apurado na venda de seus bens.

A fábrica de rádios entrou em liquidação. Os cientistas que trabalhavam nos sistemas de teledireção para os foguetes de Helwan colocaram-se todos na indústria ou nos círculos universitários. Entretanto, o projeto em que estavam trabalhando sem saber para Roschmann foi abandonado.

Os foguetes de Helwan nunca voaram. As fuselagens estavam prontas, juntamente com o combustível dos foguetes. As ogivas estavam em fase de produção. Quem duvidar da autenticidade dessas ogivas deve examinar o testemunho do Professor Otto Yoklek durante o julgamento de Yossef Ben Gal, de 10 a 26 de junho de 1963 no Tribunal Provincial de Basiléia,  na Suíça. Os quarenta foguetes de pré-produção, inúteis por falta dos sistemas eletrônicos necessários para guiá-los até aos alvos em Israel, ainda estavam na fábrica abandonada de Helwan quando foram destruídos pelos bombardeiros durante a Guerra dos Seis Dias. Antes disso, os cientistas alemães tinham voltado desanimadamente para a Alemanha.

A entrega às autoridades do arquivo de Klaus Winzer estragou a vida de muita gente da Odessa.

O ano que começara tão bem para eles terminou desastrosamente. Tanto assim que, muito depois, um procurador e investigador da Comissão Z em Ludwigsburg disse: "O ano de 1964 foi de fato um ano muito bom para nós".

Em fins de 1964, o Chanceler Erhard, impressionado com as revelações, lançou um apelo de âmbito nacional e internacional para que os que tivessem conhecimento do paradeiro de criminosos

procurados das SS se apresentassem e comunicassem às autoridades. A resposta a esse apelo foi considerável e o trabalho dos homens de Ludwigsburg recebeu um enorme incentivo que se estendeu por vários anos mais.

Dos políticos que participaram da transação de armas entre a Alemanha e Israel, o Chanceler Adenauer da Alemanha viveu na sua vila de Rhõndorf, acima de seu amado Reno e perto de Bonn, tendo morrido ali a 19 de abril de 1967. O Primeiro-Ministro israelense David Ben-Gurion permaneceu como membro do Knesset (Parlamento) até 1970, quando por fim se retirou para o seu lar no kibbutz de Sede Bokef, no coração das montanhas pardacentas do Neguev, na estrada de Beer Sheba a Eilat. Gosta de receber visitas e fala com animação sobre muitas coisas, mas não sobre os foguetes de Helwan e a campanha de represálias contra os cientistas alemães que trabalharam neles.

Dos homens do serviço secreto envolvidos na história, o General Amit continuou como Coordenador até setembro de 1968 e sobre seus ombros recaiu a enorme responsabilidade de assegurar que seu país tivesse a tempo as informações necessárias para a Guerra dos Seis Dias. Como a história registra, o seu êxito foi brilhante. Quando se afastou, foi ser presidente e diretor-gerente das Indústrias Koor de Israel, de propriedade dos operários. Ainda vive muito modestamente e sua encantadora mulher Yona se nega como sempre a ter empregadas, fazendo ela mesma todo o trabalho de casa.

O seu sucessor, que ainda ocupa o posto, é o General Zvi Zamir.

O Major Uri Ben Shaul foi morto na quarta-feira, 7 de junho de 1967, à frente de uma companhia de pára-quedistas que avançava para a Velha Jerusalém. Foi atingido na cabeça por uma bala de

um homem da Legião Árabe e caiu 400 metros a leste da Porta de Mandelbaum.

Simon Wiesenthal ainda vive e trabalha em Viena, coligindo um fato aqui, uma informação ali, rastejando lentamente o paradeiro dos assassinos procurados das SS e colhendo todos os meses e anos uma safra de sucessos.

Leon morreu em Munique em 1968 e, depois de sua morte, o grupo de homens que ele havia chefiado na sua cruzada pessoal de vingança perdeu o ânimo e se dispersou.

E afinal, o Sargento Uirich Frank, o comandante do tanque que cruzou o caminho de Miller na estrada de Viena. Estava errado quanto ao destino de seu tanque, a Rocha do Dragão. Não foi para o ferro velho. Foi levado um dia e ele nunca mais o viu. De qualquer maneira, quarenta meses depois não o reconheceria.

O cinza de aço da carroçaria tinha sido substituído por uma tinta da cor pardacenta do pó para confundir-se com a paisagem do deserto. A cruz preta do Exército Alemão desaparecera da torre, sendo substituída pela Estrela de Davi, azul, de seis pontas. O nome fora mudado também, passando a ser "O Espírito de Masada".

Era comandado ainda por um sargento, um homem barbado, de nariz adunco, chamado Nathan Levy. No dia 5 de junho de 1967, o M-48 começou a sua primeira e única semana de combate desde que saíra das oficinas de Detroit, Michigan. Foi um dos tanques que o General Israel Tal lançou na batalha do Passo de Mitla dois dias depois. Ao meio-dia do sábado, 10 de junho, empastado de pó e de óleo, com muitas marcas de balas, com as. suas lagartas gastas pelas rochas do Sinai, o velho Patton fez uma parada na margem oriental do Canal de Suez.

 

                                                                                            Frederick Forsyth  

 

                      

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