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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ENIGMA DE COMPOSTELA / A. J. Barros
O ENIGMA DE COMPOSTELA / A. J. Barros

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

"Muitas vezes, à janela, nas noites de luz baça, quando a Terra, em redondo, parece a boca dum cesto enorme, suspenso ao firmamento pelo aro luminoso da Via Lác­tea, em que tudo soçobra, homens, coisas e loisas, metia a mão no seio a procurar. Achava espinhos, remorsos, uma que outra flor imarcescível, e a gente que aí vai, alguma celestial e sobre-humana, da muita que eu via andando, andando Estrada de Santiago fora."

 

 

 

 

                                                              A VIA LÁCTEA

 

                                 CAPÍTULO 1

Os primeiros raios do sol brindavam o céu azul com uma luminosidade amarelada, naquele início de setembro, enquanto pássaros sos­segados faziam longos círculos com os bicos apontados para o chão em busca de algum pequeno ser que não teria mais o direito de participar dos quotidianos festejos da vida.

O peregrino esgueirou-se por uma pequena mata e se escondeu entre as ramas de folhagens e espinheiros que sobreviviam à sombra das árvores com o pouco sol que lhes sobrava. Agia como se já tivesse estado ali antes e conhecesse a antiga trilha que acompanha a borda do precipício. Na verda­de, não era bem um precipício, mas um barranco íngreme que se inclinava até o fundo do vale, onde se encontrava com o silencioso riacho encoberto pela mata ciliar.

Sabia que o homem do burrico ia passar por ali. Mandara a mulher na frente e vinha conduzindo a filha, uma menina bonita de doze anos, mon­tada no animal. Fazia esforços imensos para não se distrair com os pensa­mentos que o torturavam, quando se lembrava da menina. Aquela coisinha bonita, tenra como uma folha de alface, mas já entrando na juventude, logo ia ficar à sua mercê, sozinha.

Procurava, no entanto, controlar seus instintos porque a Ordem lhe dera uma missão e tinha de cumpri-la. Conhecia a severidade do castigo quando um membro falhava. Ele próprio ajudara a supliciar alguns que não segui­ram corretamente as instruções e tiveram morte horrível.

Concentrou-se e manteve os ouvidos atentos para o ruído característico dos passos do burrico, pois não tinha certeza se conseguiria vê-los através das folhagens quando estivessem chegando. O Caminho fazia uma longa e suave curva para vencer o morro até onde ele estava.

Esperava pacientemente entre os arbustos, com o enganoso cajado que tinha na base uma lâmina de ferro forte e afiada. Ninguém desconfiaria dele, porque estava vestido como um peregrino comum: bermudas, boti­nas, mochila e um gorro que encobria as orelhas, o pescoço, e ajudava a esconder o rosto. A vieira sobre a mochila e o cajado completavam a camu­flagem de um piedoso peregrino dirigindo-se para o túmulo de São Tiago, em Compostela.

De repente, ouviu arfar um animal. Ajeitou-se com cuidado e olhou por entre os vãos das folhas. Conseguiu ver o burrico, cansado e suado, que subia o morro com sua carga, levantando para cima e para baixo a enorme cabeça, como se procurasse dar ritmo aos passos. Era o momento de sair dali e andar meio devagar como se estivesse economizando energia para subir o resto dos Pireneus, porque o normal seria estar na trilha quando o outro aparecesse.

Sentiu o animal mais próximo e, como seria natural que qualquer um fizesse, olhou de esguelha para trás e subiu a saliência do Caminho pelo lado de cima do barranco onde ficou em pé, para dar passagem, mas com a ponta do cajado escondida numa pequena touceira de capim.

Era o mesmo homem que espreitara antes: um espanhol, nos seus qua­renta anos, barba curta, espessa e preta, um tipo forte, atlético; parecia mais disposto que o animal. Foi bom ter pensado em tudo com detalhes. Preci­sava dar a aparência de um acidente, como se o burrico tivesse se assustado com alguma coisa e caído no barranco.

Tinha de ser preciso e rápido, porque ali era passagem de peregrinos e algum deles poderia aparecer e atrapalhar o seu trabalho. Sabia, no en­tanto, que a maioria não usava aquele atalho, mas o homem o preferia porque levava carga e a criança. Pelo menos tinha sido esse o trajeto feito por ele no sábado anterior e por sorte não errara em ficar ali, na tocaia, saboreando por antecipação o sofrimento do outro, enquanto repassava na memória os golpes que deveria dar.

Traçara uma estratégia que julgara inteligente. Tinha de acertar o burri­co, na perna direita traseira, para que ele sentisse a dor horrível e se assus­tasse, pondo em perigo a vida da menina. Com certeza o espanhol estaria armado, mas ficaria aturdido com a cena e, até que saísse da dúvida entre se salvava a filha ou puxava a arma, ele o atacaria.

O homem passou por ele, olhou-o com atenção e cumprimentou:

Buenos dias.

Ele também respondeu em espanhol:

Buenos dias.

O animal andou mais rápido, assustado com a presença inesperada do intruso, e assim abriu espaço para ele erguer o bastão e baixá-lo impiedosamente. A lâmina cortante entrou na perna direita traseira do animal, logo abaixo do joelho, quebrando-lhe o osso. O burrico deu um urro assustador, agachou-se sobre a perna cortada, tentou firmar-se de pé, mas pendeu para o lado do barranco e derrubou a menina, que desmaiou ao bater a cabeça no chão.

O homem voltou-se com rapidez e viu o peregrino avançar sobre ele com o bastão levantado em direção à sua cabeça. Tentou pegar o revólver que trazia escondido na cintura, mas não havia tempo. Levantou o braço para amparar a pancada, mas não sabia que o bastão era como uma espa­da afiada e, num instante, seu braço foi separado do corpo. O peregrino aproveitou o aturdimento que a dor causou na sua vítima e deu-lhe uma rasteira, derrubando-o.

O homem caiu de costas, gemendo, e, quando tentou se levantar, o pe­regrino o pressionou contra o solo com o pé direito sobre o peito e a ponta do bastão na sua garganta. O espanhol sabia que aquele assassino não ia ter piedade. Tentou virar o rosto para ver a filha, mas estava imobilizado por aquela arma no pescoço.

Se quiser que ela viva, diga-me: quem é o seu chefe? Para quem você trabalha?

O assassino insistiu com rudeza, com a ponta de ferro na garganta do homem, que perguntou quase num gemido:

Mas, quem é você? Sou um homem inocente. Não sei quem me contra­tou. Apenas me pagaram para seguir um peregrino. Nem sei o nome dele.

Não é verdade. Sabemos que faz parte de uma sociedade que usurpou a insígnia dos antigos templários, mas vocês são falsos e ajudam os inimi­gos da Ordem. Diga quem é o seu Mestre, se quiser que a sua filha viva. Você vai morrer, mas pode salvá-la.

O homem estava estendido no chão, imobilizado com a lâmina na gar­ganta e sentindo a dor horrível do braço cortado do qual o sangue esgui­chava sobre a grama.

Não minta! Você ganha para isso. Não é um Cavaleiro do Templo e desta vez recebeu instruções especiais. Quais são essas instruções? Va­mos! Diga!

O espanhol fechou os olhos e começou a rezar. Falhara na sua missão e agora sua filha e sua esposa também estavam em perigo. A mulher seguira na frente para observar o brasileiro e esperaria por ele no descanso da Vir­gem do Horizonte. Agora estava com medo de que esse assassino também a perseguisse. Pedia a Deus que o levasse, mas as deixasse vivas e sem perigo. Rezava para que algum peregrino passasse por ali, naquele momento, mas Deus queria dele um sacrifício maior.

O sangue continuava a escorrer das veias expostas no braço decepado, que doía terrivelmente.

Mas quem é você? Por que fez isso comigo? Sei que vou morrer, mas não faça nada à minha mulher e à minha filha, se tem amor a Deus.

Sou um mensageiro de Deus para vingar o que vocês fizeram contra Ele.

O pavor aumentou com o som daquela voz que parecia sair das chamas escuras do inferno e não escondia a raiva por não ter nenhuma informa­ção. O assassino olhou para o lado e aquele corpinho, de bruços, com a saia levantada até a cintura, despertou de novo os seus instintos animalescos e, com um gesto brusco, forçou a ponta do cajado, que penetrou fundo na garganta do homem, matando-o.

Não podia perder tempo porque, apesar de ser uma curva que desviava um pouco do Caminho, havia sempre o risco de outros peregrinos passa­rem por ali. Arrastou o corpo até a beira do barranco e jogou-o no preci­pício. Livrou-se do braço decepado e cortou uns ramos para tentar limpar o chão. O burrico arrastava-se ladeira abaixo, soltando urros que ecoavam pelo vale.

O peregrino voltou para onde estava a menina e sorriu. Era bonita, quase moça, com as curvas e saliências que o faziam se lembrar das outras. Mas recebera ordens para fazer um serviço rápido e limpo. Não podia deixar o homem vivo e tinha de sair dali o mais depressa possível. Pegou-a no colo e quase não resistiu. Pensou em levá-la para o meio da mata onde não seria visto. Mas, e se ela gritasse? Alguém poderia ter ouvido o barulho do burrico. Pensou no rigor da pena aplicada àqueles que não obedeciam às ordens e pegou-a por baixo dos braços, perto dos ombros. Colocou-a entre os joelhos, apertando-a para que não se movesse. Ainda hesitava, quando, naquele instante ela abriu os olhos que se dilataram apavorados e ia gritar, mas, ele agiu rápido. Com a duas mãos enormes e calosas apertou a cabeça da menina perto das orelhas e num movimento brusco, da esquerda para a direita, quebrou-lhe o pescoço.

Estava tenso como um animal feroz encurralado e levantou-se com um grunhido. Suspendeu-a nos braços e, soltando um urro quase igual ao do burrico, como se assim enganasse os instintos bestiais que não pudera satis­fazer, lançou o pequeno corpo no precipício, para que acompanhasse o pai.

Embrenhou-se na mata e desapareceu.

 

                                             CAPÍTULO 2

Sentado numa pedra, no mirante da Virgem do Horizonte, no alto dos Pireneus, Maurício contemplava a paisagem que se estendia ao longe. Sinais luminosos nos picos das montanhas refletiam a luz do sol nas faces lisas das pedras. Seu olhar descia até as montanhas que o acompa­nharam desde lá debaixo e que agora escondiam muitas das paisagens que apreciara na subida.

Aquelas montanhas pareciam perenes, como as convicções. Algumas têm seus montes cobertos de florestas verdes como uma mensagem de es­perança. Outras estão cobertas de neve e lançam seus picos esbranquiçados contra as nuvens azuis do céu como um incessante pedido de paz. Existem aquelas cujos picos secos, feitos de rochas pontiagudas e esqueléticas, des­mentem com a sua nudez a ilusão das impressões.

"Sim! As montanhas são perenes, como as convicções que cada pessoa cria", pensou Maurício, sem entender direito esse seu rasgo filosófico.

Sossegados grupos de ovelhas dividiam as pastagens, guiados pelos pas­tores e vigiados pelos cães, enquanto aves serenas descreviam curvas man­sas sob o céu. Nuvens brancas se espreguiçavam e a tranqüila paisagem que se assentava sobre aqueles campos verdes perdia-se na distância.

"É isso!" pensou, "A paz dessas montanhas está me deixando piegas".

Há seis anos, sentara-se ali, naquela mesma pedra. Sua mulher estava viva, mas não quisera segui-lo. Precisava cuidar dos dois meninos, do filho e da filha, já adolescentes, que não podiam ficar sozinhos, mas o apoiara e até mesmo insistira para que fizesse a peregrinação.

Lembrou-se de que também ficara observando os pastores, cada um com o seu cão, que às vezes saía latindo para trazer de volta ao grupo uma ou outra ovelha que se afastava. Parecia uma vida agradável, a de pastor. Ali, no alto dos Pireneus, ovelhas, cães, pastores, aves e paisagem formavam uma harmonia onde a felicidade parecia supérflua.

Agora não tinha mais a sua companheira, e o Caminho ficara mais triste. Não deveria ter vindo. Não tinha mais nada a provar e a peregrinação a San­tiago é uma invocação da tristeza. Mas tinha sobrevivido a momentos peri­gosos no Brasil e estava ainda viva em sua memória a cerimônia misteriosa dentro de uma sala subterrânea no Real Forte Príncipe da Beira, à margem do Rio Guaporé, no interior da Amazônia, que o colocara no centro de uma perigosa conspiração para separar os Estados amazônicos do Brasil.

Gostava do silêncio e, mesmo quando ainda tinha sua família e todos viviam no mesmo apartamento, procurava um cantinho da casa, longe das discussões e dos ruídos de liqüidificador, máquina de lavar pratos e seca­dores de cabelo, embora não conseguisse se livrar do barulho da rua e da campainha do telefone.

O Caminho era uma nova oportunidade para repor o seu estoque de silêncio. Estava assim pensando quando reparou na mulher que havia che­gado junto com ele ao alto do morro.

Ela tomou água sofregamente e depois abriu uma embalagem de onde tirou o lanche. Estava cansada, mas conseguira acompanhá-lo na subida. Seguira-o de perto, desde os pés dos Pireneus, e agora estava ali, sentada, com o olhar para os morros que acabara de subir, como se esperasse alguém com quem dividir o silêncio e a beleza curvilínea das montanhas. Toda aquela paisagem lhe entrava pelos olhos e ele sentia também a beleza da alma, como se os sentimentos fluíssem agora para uma paisagem interna, que os olhos não veem e o espelho não mostra.

Uma viatura da polícia apareceu ao longe, subindo as curvas da estrada e dando a sensação de um pequeno barco jogado, ora para um lado ora para o outro, pelas ondas de um mar encrespado. O veículo vinha com a sirene ligada, destoando da calma paisagem, e parou perto da mulher. Um policial ficou ao volante e outro, de uniforme azul, bonito e impecável, com algu­mas divisas nos ombros, desceu e se dirigiu a ela.

Senhora Marina, desculpe interromper a sua peregrinação, mas vim pedir-lhe para me acompanhar de volta.

Ela levou as duas mãos ao rosto, tomada pela angústia.

Aconteceu alguma coisa, sargento?

O sargento notou a presença de Maurício, mas respondeu:

Houve um acidente e o burrico caiu no precipício. Um peregrino avisou pelo telefone celular de alguma coisa suspeita e achamos melhor ir até lá.

Precipício? O burrico caiu num precipício? Oh! Meu Deus! — excla­mou ela, com voz desesperada.

Decididamente, é difícil ser diplomático numa emergência dessas.

Acho melhor voltar comigo. Não vou mentir. Seu marido e a menina morreram.

A mulher empalideceu, pareceu meio estonteada, e desmaiou. Os poli­ciais a colocaram na viatura e desceram o morro de volta.

Por que teria a paisagem mudado, de repente? Os raios do sol ficaram quentes e as nuvens brancas não tinham mais a leveza de antes. Em vez de ovelhas pastando silenciosas sobre o gramado verde dos montes, ele via agora uma criança morta no fundo de um precipício.

 

                                                   CAPÍTULO 3

Saíra da Porta de Espanha, em Saint-Jean-Pied-de-Port, no sul da França, que os peregrinos já cruzavam desde a Idade Média, às sete horas da manhã, e já passava das onze. O primeiro trecho do Caminho, que vai até Roncesvalles, no norte da Espanha, estende-se por uma distância de 27 quilômetros e é considerado o mais difícil dos 800 quilômetros do percurso. Nessa etapa, o peregrino vence um aclive de mais de 20 quilômetros de mor­ros cheios de curvas, quando então começa sua descida até Roncesvalles.

Ele já andara uns 15 quilômetros e agora pensava no espanhol que en­contrara na saída de Saint Jean Pied de Port.

O homem tomara a iniciativa de cumprimentá-lo:

Buenos dias. Brasileno, no?

Sim, brasileiro — respondera em português. — Vai fazer o Caminho?

No, ahora. Me voy con mi hija a Roncesvalles en un borrico. Ella tiene solamente 12 anos, pero mi mujer ya fue adelante.

De fato, logo mais à frente passara por uma peregrina, mas não lhe ocor­rera que poderia ser a mulher do espanhol. Muitas peregrinas fazem so­zinhas o Caminho, porque é uma caminhada segura e um dos mais belos passeios que o ser humano tem à sua disposição. Mas, como aquele espanhol adivinhara que ele era brasileiro? Usava um gorro verde, com uma pequena bandeira brasileira do lado esquerdo, mas o homem estava do lado direito, quando o cumprimentou.

Não tinha se dado conta antes, mas com a notícia desse acidente ele lembrou que, após tê-la ultrapassado, a mulher o seguira mantendo uma distância de uns 30 metros. Na hora não dera importância a isso, achando apenas que a mulher tinha bom preparo físico. Veio-lhe à memória aquela corrida no Parque da Cidade, em Brasília, quando fora seguido por dois seguranças e, por causa dessa corrida, envolvera-se numa aventura cheia de perigos. Mas agora não estava no Brasil, nada ali lhe dizia respeito. Era livre para seguir despreocupado o Caminho de Compostela.

Depois que a viatura se perdeu numa curva da descida, ainda ficou sen­tado na pedra, olhando os peregrinos que surgiam lá embaixo e formavam uma fila que parecia não ter começo e nem fim.

Alguns tinham o cajado que ajudava a descer os morros e a espantar ca­chorros. Quase todos ostentavam nas costas, sobre a mochila, a concha do mar, que também chamam de vieira, o mais antigo símbolo do Caminho.

Diz a lenda que um barco se aproximava da praia na região de Padron, antiga Liberon, quando o mar encrespou-se, colocando os tripulantes em perigo. Um rapaz estava a cavalo e entrou no mar para ajudar a pequena bar­ca, mas foi engolido pelas águas. Pediu então ajuda a Deus, e o mar se acal­mou. Ele e o cavalo conseguiram romper as ondas e saíram do mar cobertos de conchas, que passaram então a simbolizar o Caminho, porque o barco que ele tentara salvar era o barco que trazia o corpo do apóstolo. É possível, no entanto, que no início da peregrinação a vieira tivesse sido usada como um utensílio, para beber ou comer, na falta de talheres nos albergues.

Levantou-se hesitante, como se uma dúvida o corroesse, mas respirou fundo, criou coragem e passou a ser mais um naquela interminável fila, que vinha do fundo do vale. Havia jovens, mulheres, homens de todas as idades, a maioria hum passo cadenciado, para não quebrar o encanto do próprio silêncio. Outros iam mais rápidos, como aquele peregrino de cabeça baixa e coberta com um gorro escuro, que passou apressado como se estivesse fugindo da própria consciência.

Tinha ainda de ver o monumento a Rolando que parecia ter um signi­ficado especial para o Mestre daquela Confraria, lá no meio da Amazônia brasileira. Na caminhada anterior enfrentara uma descida de mais de qua­tro quilômetros, inclinada, pedregosa e perigosa, com as raízes das árvores invadindo a trilha. Tinha agora seguido pelo caminho indicado no mapa recebido no albergue em Saint-Jean, tomando a estrada asfaltada, na altura do porto de Lepoeder, até Ibaneta.

Toda a região dos Pireneus está impregnada das lendas que cercam a fi­gura histórica do imperador Carlos Magno e seus Doze Pares, à semelhan­ça das lendas sobre o Rei Artur e os Doze Cavaleiros da Távola Redonda. Foram muitas as batalhas, derrotas e vitórias, terminando com a expulsão dos árabes da Espanha, em 1492. Os Pireneus se tornaram um limite na­tural, além do qual os árabes tiveram dificuldade de se fixar. Depois de derrotados em Poitiers por Carlos Martel, avô de Carlos Magno, e por este em Lourdes, preferiram ficar mais ao sul.

Ao chegar a Ibaneta, o peregrino se depara com um pequeno monu­mento. Trata-se de um monólito, ali colocado em 1967, em homenagem a Durindana, a espada de Rolando, e lembra um episódio que teria ocorrido no ano de 778. Ao ver que ia morrer, o heróico sobrinho de Carlos Magno, num gesto de desespero, bateu a espada com força numa rocha para que ela quebrasse e não caísse em mãos do inimigo, mas a rocha partiu-se ao meio e Durindana virou lenda.

Uma igreja solitária e estranha, que dizem estar no mesmo local onde antigamente era o hospital de peregrinos, se interpunha entre o monumento e a estrada asfaltada que chega a Roncesvalles, apenas um quilômetro abaixo. Indeciso e com uma sensação que não soube definir, dirigiu-se à Colegiata.

 

                                           CAPÍTULO 4

Muito tempo antes de Cristo, o vale de Roncesvalles já exer­cia uma atração mágica para a celebração de funerais. Diversos dolmens de pedra ali existentes, como o dólmen de Lindux, anterior à era cristã, testemunham ainda essa estranha vocação, e, mesmo depois da invasão romana, o vale continuou sendo cultuado como destino dos mortos. Os druidas, sacerdotes celtas, construíam os dólmens nas florestas para o culto às divindades naturais, colocando duas ou mais pedras em posição verti­cal e, assentadas sobre elas, outras pedras achatadas, formando um recinto fechado. O vale coberto de florestas, nos pés dos Pireneus, despertava um profundo respeito à natureza e, durante o período áureo da peregrinação, a Colegiata de Roncesvalles era como um grande cemitério, com inúmeros túmulos, que foram destruídos por incêndios e pelas reformas do edifício.

O ser humano se atormenta quando se aproxima dos esconderijos da morte, mas Maurício estava contente, porque vencera a primeira etapa da longa jornada, da qual restavam ainda centenas de quilômetros. Mas, era como se estivesse entrando num túnel do tempo para desvendar um passa­do que se ocultava em lendas e mistérios.

Caminhou firme até o escritório da Colegiata, onde entregou o seu "pas­saporte" para ser carimbado. O passaporte do peregrino é uma identifica­ção que lhe permite dormir nos albergues e, ao final da caminhada, receber a Compostelana, o certificado de que fez o Caminho. Para receber esse cer­tificado, no entanto, precisava carimbá-lo em cada albergue onde dormisse, ou também nas prefeituras e igrejas. O selo de cada cidade é como um brasão e traz um profundo significado histórico.

A importância do Caminho na Idade Média era tão grande, que quem tivesse a Compostelana era respeitado e obtinha benefícios da Igreja e dos nobres. Surgiu então o comércio de certificados falsos, vendidos como pro­va de que a pessoa fizera a peregrinação. A solução para evitar a fraude foi o passaporte do peregrino, que deveria ser carimbado nos lugares por onde passava. Cada cidade criou o seu próprio selo, com emblemas locais, o que faz do passaporte uma espécie de coleção de carimbos, como se fosse uma coleção heráldica.

Estava com as pernas e as solas dos pés doloridas. Dirigiu-se ao albergue, onde escolheu uma cama e marcou-a com a mochila. Roncesvalles mudara um pouco. No lugar do antigo abrigo de peregrinos, havia agora um ho­tel de turismo, e uma igreja de pedra do século XII fora transformada em albergue. Os banheiros tinham água quente e, durante o banho, lavou as bermudas, camiseta, meias e lenço, para que chegassem secos ao próximo destino, onde então lavaria as peças que iria usar no dia seguinte. Sabia que não era conveniente deixar para tomar banho de manhã, porque o banho deixa úmida e sensível a sola do pé, facilitando o aparecimento das bolhas que infernizam a vida do caminhante.

A Colegiata de Roncesvalles é palco de uma das mais marcantes solenidades do Caminho. A Missa do Peregrino é celebrada todos os dias às 20 horas, e essa cerimônia vem sendo repetida desde o século XI. A Bênção ao Peregrino é dada em espanhol, alemão, latim, inglês, português e ou­tros idiomas.

Na peregrinação anterior, estava cansado e não resistira à cerveja gelada, chegando atrasado para a missa. O que ele não entendia era como o mestre daquela Confraria lá da Amazônia tinha ficado sabendo disso. Alguém ti­nha investigado a sua vida para saber de coisas que ele próprio certamente havia contado, em uma dessas ocasiões em que as pessoas perguntam sobre as experiências do Caminho. Perdera a missa dos peregrinos por causa da cerveja e também não tirara as fotografias do túmulo de São Tiago porque colocara na máquina um filme já usado. Hoje, são comuns as máquinas digitais, mas naquele ano ele havia trazido uma de filme de rolo e colocara um filme já usado, perdendo as fotos.

Estava ansioso para assistir agora a toda aquela cerimônia religiosa. Saiu do albergue com as sandálias ainda molhadas que colocara para tomar ba­nho e dirigiu-se à igreja, arrastando as pernas e um forte pressentimento. A missa foi comovente. O padre fez um sermão como se pregasse para pe­regrinos da Idade Média, que iam enfrentar um caminho desconhecido e cheio de perigos. Naquela época certamente havia mais fé e todos rezavam com fervor, pedindo ajuda aos céus, porque sabiam dos perigos que os es­peravam. Muitos iam em busca de milagres ou de perdão para os seus pe­cados e aquela cerimônia ainda despertava emoções que traziam lágrimas aos olhos.

Não se assiste mais a tantas curas pela fé, porque os santos foram substitu­ídos pelo antibiótico, pela cortisona e pelas vacinas, enquanto os transplantes ressuscitam mortos. Apesar desses raciocínios que o deixavam em dúvida se Deus apenas mudara a forma dos milagres, substituindo a fé pela ciência, teve inveja dos peregrinos que comungaram e rezaram como se ainda estives­sem na Idade Média, mas não se sentia católico bastante para tanta contrição. A alma pesada o acusava de que não estava fazendo o Caminho como uma busca, mas como uma fuga.

 

                                               CAPÍTULO 5

Nem todos conseguem chegar a tempo para a missa. Às vezes saem tarde de Saint-Jean-Pied-de-Port ou não estão preparados para a travessia dos Pireneus e se atrasam.

Não parecia ser o caso daquele peregrino alto, forte, com um cajado maior que o comum. Ele entrou na igreja, já na hora da comunhão, quando todos estavam voltados para si mesmos, e acomodou-se num dos bancos de trás, do lado direito. Deitou o cajado com cuidado no chão, embaixo do banco, à sua frente. Estava sem mochila, e um observador atento poderia estranhar que ele entrasse com o cajado na igreja. Era uma noite fresca, mas não fazia frio. Vestia uma capa de plástico, que tirou e colocou sobre a ponta do cajado, como se quisesse escondê-la.

Examinou com cuidado a parte interior da igreja. Estudava disfarçadamente uma planta da Colegiata, onde anotou a residência dos padres e as outras dependências: o refeitório, os corredores internos, a sala de lazer, o pátio e as saídas. Os peregrinos presentes à missa ocupavam os bancos perto do altar, de maneira que a parte de entrada da igreja estava vazia. Já sabia que grossas paredes ocultavam um corredor que ficava no piso supe­rior e passava sobre a porta de entrada, terminando em uma longa escada que acompanhava a lateral esquerda da igreja e chegava até a sacristia. Para celebrar a missa, os padres teriam de chegar e sair por esse corredor, sem entrar na nave da igreja.

Seis padres participavam da missa e um deles, de estatura mediana, pele clara e meio calvo, com aparência de 40 anos, auxiliava o celebrante e ajudou a distribuir as hóstias na hora da comunhão. Não podia ver que o peregrino o examinava, como se quisesse confirmar as suas feições. No final da missa, antes do ide in pace, os padres desceram e se postaram um ao lado do outro de costas para a entrada, na frente dos fiéis, abaixo do altar. Como em to­dos os dias, nesse momento, as luzes se apagaram e os padres cantaram em latim a Salve Rainha (Ave Regina), uma oração composta pelo bispo Pedro Mezonzo, de Santiago de Compostela, no fim do século X, para pedir o apoio da Santa Virgem, quando o general muçulmano Almanzur cercava a cidade.

Momento comovente, quando as lágrimas chegam aos olhos e os cora­ções se aproximam de Deus. O peregrino olhou para a porta da parede da direita, que dava acesso ao pátio interno e se levantou lentamente. Esperava por aquele momento. Protegido pela grossa coluna, ficou de pé diante da porta, como se estivesse também atento à cerimônia e, com as mãos nas costas, introduziu uma chave. O trinco cedeu e as fechaduras não rangeram ao abrir uma das folhas e ele entrou no pátio do claustro. Fechou a porta com cuidado, trancou-a, e, por uma escada medieval que ficava no fundo do claustro, subiu até um patamar de onde podia observar os padres vol­tarem da igreja. Pela planta, concluiu que o corredor da direita era a área de lazer e que no corredor do outro lado ficava o refeitório. No piso de cima, estava o dormitório, onde cada padre tinha um apartamento, com sala e banheiro privativo. Também sabia que os padres deveriam voltar pelo corredor da frente, o mesmo que passava por cima da porta de en­trada da igreja.

Havia uma portinhola com cadeado que impedia o acesso pela escada até o piso superior onde estava o dormitório, mas ele não teve dificuldade de abri-lo. Protegido por uma coluna, consultou a planta e confirmou que havia uma ala destinada aos clérigos visitantes e outra aos residentes. Não demorou e ouviu os passos dos padres que passaram por uma escada inter­na, subindo cada um para os seus aposentos.

Observou o padre que auxiliara o celebrante. Ninguém desconfiou da sua presença e, alguns minutos depois, eles começaram a sair para o refeitório.

Eram de novo os seis e, portanto, todos os apartamentos estavam vazios. Depois de alguns minutos de silêncio, ele ouviu as vozes das orações para a refeição e entrou no apartamento do padre que observara. Fechou a porta e esperou um pouco, antes de acender a pequena lanterna. A porta dava para uma sala e, entre ela e o quarto de dormir, havia um corredor com banheiro e um pequeno closet. Procurava um lugar para esconder-se. Na sala, um li­vro fechado sobre a escrivaninha, mas marcado por uma espátula, indicava que o padre tinha por hábito ler antes de dormir.

No dormitório, uma cama simples não servia de esconderijo, porque o cajado era maior que ela, mas havia ali um grande armário ainda da época medieval, escuro, alto e com várias portas. Abriu-o e respirou, aliviado. O espaço era suficiente. Apenas paramentos que mais pareciam peças de mu­seu do que vestimenta para o uso quotidiano. Mas essa mania de guardar roupas usadas por aqueles que consideravam santos lhe seria útil.

Calculou o tempo e, quando imaginou que faltavam apenas uns quinze minutos para o padre chegar, abriu a janela e prendeu do lado de fora um gancho no qual estava amarrada uma corda fina, mas firme e com nós para poder descer. Já tinha estudado a parte externa da parede e observado que alguns vãos nas pedras serviriam de apoio para os pés até alcançar o terre­no atrás da igreja. Fechou novamente a janela, deixando o gancho e a corda do lado de fora. Voltou para o dormitório e se escondeu no velho armário.

Esperou com paciência. A sua profissão exigia isso. Logo começou a ou­vir conversas e barulho de passos vindos do corredor. O trinco da porta movimentou-se e o padre entrou. Como imaginara, ele ficou lendo até as 11 horas aproximadamente e depois se preparou para dormir. O padre foi ao banheiro, colocou o pijama, ajoelhou-se ao pé da cama, rezou por uns 15 minutos, deitou-se e apagou a luz da cabeceira. O silêncio tomou conta do edifício e já fazia algum tempo que não se ouviam as conversas dos peregrinos, que deviam estar cansados e tinham se recolhido no albergue.

Era meia-noite quando abriu a porta do armário, segurando o cajado na mão direita, mas calculou mal a altura e pisou forte no chão. O padre acor­dou assustado e acendeu a luz:

Quem é você?

Sou um peregrino e preciso fazer uma confissão especial. Só o senhor pode me perdoar.

Você...! — exclamou o padre, horrorizado. — Você é o demônio.

E você estava me espionando.

Sem esperar mais, lançou o cajado contra o padre, que pôs as duas mãos na frente do peito para proteger-se, mas não conseguiu evitar que a lâmina entrasse sem piedade em seu corpo, atravessando-o.

Um grito agudo ecoou pela noite adentro. O vulto abriu a janela e desceu pela corda que havia deixado presa pelo gancho do lado de fora.

 

                                     CAPÍTULO 6

Depois da missa, Maurício foi até o restaurante do hotel. Outra das tradições do Caminho é o prato do peregrino, normalmente uma salada, duas opções de prato principal, uma garrafa de vinho, pudim de caramelo ou iogurte de sobremesa. Restaurado com a ceia e mais animado com o efeito do vinho, voltou para o albergue.

Tinha comprado um guia na livraria da Colegiata e estudou o trajeto para o dia seguinte, que terminaria em Larrasoana. Nem sempre se encon­tra leito livre nos albergues indicados pelo guia, porque a maioria dos pe­regrinos acaba indo para os mesmos lugares. Massageou a sola do pé com um creme bactericida, para se prevenir contra as bolhas e se aconchegou no travesseiro.

A noite era uma orquestra com roncos de todos os sons. Mas quem chegava ali, depois de ter atravessado os Pireneus a pé, não se importava com roncos e acomodações simples. O sono era pesado e o dia seguinte seria outro árduo dia de caminhada. Adormeceu, mas, de repente, acor­dou assustado.

Que barulho teria sido aquele?

"Um grito? Será que ouvi um grito?"

Uma mulher com aparência de 30 anos tinha tentado se levantar para ir ao banheiro, mas tropeçara em alguma coisa e caíra. Logo em seguida, acendera uma pequena lanterna e fora saindo devagar por entre as camas. Não mancava e, portanto, não fora nada grave. Teria sido uma infelicidade machucar-se logo no início do Caminho. Mas por que será que ela não acendera a lanterna, antes de se levantar? Um dos equipamentos mais im­portantes do peregrino é a pequena lanterna para quando se levanta muito cedo, ou então para ir ao banheiro, sem ter de tropeçar nas mochilas deixa­das ao lado das camas nos albergues. Por que ainda a idéia de correr a luz pelas camas como se ela quisesse conferir alguma coisa?

"Presságios." Não gostava de presságios. Se não bastassem aqueles acontecimentos nos Pireneus, agora vinham os tropeços dessa mulher atrapalhar o seu sono. Esticou-se na cama e tentou dormir. Quem teria se deitado naquele leito na noite anterior? Aquela cama o aceitara com uma indiferença de quem já tinha recebido pessoas desconhecidas durante séculos. Ruminava estra­nhas preocupações e viu o vulto da mulher de retorno ao seu lugar.

O cansaço e o silêncio venceram seus receios e voltou a dormir. Acordou com a sensação de que dormira o suficiente. Melhor assim. Mas não fora um sono tranqüilo, desses que deixam o corpo e a alma concorrendo em bem-estar no dia seguinte, porque tinha a confusa lembrança de vultos pa­rados perto de seu beliche.

Amanhecia, e é uma boa estratégia levantar-se cedo para aproveitar a parte da manhã, por causa do sol inclemente nessa época do ano. Não eram ainda seis horas quando se levantou. O albergue oferecia um café simples, mas o bar no pátio da Colegiata tinha uma refeição completa.

A botina havia cumprido bem o primeiro percurso. Comprara uma de cano alto, para evitar que pedregulhos e grãos de areia entrassem dentro dela. Tomara também a precaução de escolher um número maior e usar duas meias, dessas de corrida, para que o pé ficasse apoiado sobre um acolchoado e não sofresse tanto.

Deixou para pôr a mochila nas costas quando estivesse lá fora. Conferiu o dinheiro, os documentos e saiu. "Mas o que será que aconteceu?" Notou que alguma coisa agitava o ambiente e alguns peregrinos andavam apressa­dos, enquanto outros estavam parados, como se não pudessem ir embora. O que poderia ter acontecido?

Viaturas da polícia ocupavam o grande pátio do monastério e, enquanto ele hesitava se ia ao bar tomar café, um policial se aproximou:

O senhor não pode sair sem prestar depoimento.

Depoimento? O que houve?

O policial não deu detalhes, mas deixou-o ir até o bar ao lado da Colegiata, e ali soube que o padre Augusto, que participara da missa da noite anterior, havia sido assassinado naquela madrugada. Alguém entrara no quarto dele e o matara.

Tomou café e esperou pacientemente, porque compreendia a gravidade da situação. "Mais um crime. Agora um padre", pensava, absorto. Depois de quase duas horas de espera, foi conduzido a uma sala, onde se encontravam um detetive, um oficial militar graduado e o escrivão concentrado num laptop. Ao lado deles estava o abade, superior da irmandade.

O oficial pediu seus documentos e conferiu o nome que estava no passa­porte de peregrino, que a Associação dos Peregrinos de Santiago de Compostela no Brasil havia lhe fornecido, com o passaporte oficial.

Maurício da Costa e Silva. Brasileiro.

Em seguida, apontou para o cajado que havia matado o padre:

Obviamente, o senhor não vai dizer que esse cajado lhe pertence, mas por acaso teve a oportunidade de ver alguém com ele? Digo, no trajeto de ontem, vindo para cá? Sabemos que na hora do crime o senhor estava dormindo e não poderia tê-lo praticado, mas talvez pudesse nos ajudar a identificar o dono desse cajado.

"Estranha maneira de começar uma investigação", pensou, enquanto lembrava vagamente de um peregrino alto e forte que passara por ele no alto dos Pireneus.

Não, senhor. Nunca vi esse cajado antes, mas isso aí não é um cajado, é uma arma.

Quem está sendo interrogado é o senhor. Limite-se a responder as perguntas.

Foi uma censura ríspida, mas na verdade era melhor mesmo ficar quieto. Estava começando o Caminho e não queria problemas com as autoridades de outro país. Lembrou-se da sensação de ambiente fúnebre, que tivera ao entrar em Roncesvalles, e esta já era a terceira morte desde que saíra de Saint-Jean-Pied-de-Port, porém, foi tomado por um medo inoportuno.

Desculpe-me perguntar, mas será que esse crime não estaria ligado ao outro, de ontem, na subida dos Pireneus?

Devia ter mordido os lábios e ficado quieto, mas já era tarde. O oficial ia novamente reagir do alto da sua autoridade, quando o detetive o interrompeu:

Houve um acidente ontem na subida dos Pireneus. Um homem e uma menina morreram. Disso, nós estamos informados. Mas de onde tirou a conclusão de que aquele acidente foi outro crime? E que conexão tem aque­le episódio com o assassinato do padre?

Imaginou a ciumeira entre a polícia francesa e a espanhola ali na frontei­ra. Os policiais espanhóis estavam com receio de pedir informações do lado de lá dos Pireneus, sem um motivo razoável. Fosse isso, a polícia espanhola não sabia exatamente o que ocorrera com o homem do burrico e a menina. O mais sensato era sair logo dali e não se envolver em nada, mas o instinto lhe dizia que precisava saber mais coisas. Não podia ser mera coincidência ter iniciado o Caminho e no mesmo dia ocorrerem três crimes.

Talvez fosse melhor esclarecer essas dúvidas.

Desculpe mais uma vez, mas não me parece que o assassino tenha feito esse cajado apenas para matar um padre dormindo. É uma arma apro­priada para alvos mais fortes. Pelo que sei, o homem morto nos Pireneus vinha subindo o morro puxando um burrico com a filha montada nele. Talvez valesse a pena perguntar à polícia francesa. Tenho a impressão de que a perna do burrico foi cortada com esse cajado. Desculpem-me, mas acho que não foi acidente.

O detetive olhou-o por uns instantes e perguntou:

Pois volto a perguntar: de onde o senhor tirou essa conclusão?

Maurício não quis dizer que o espanhol o havia cumprimentado na saída de Saint-Jean-Pied-de-Port e parecia um atleta, com condições de oferecer resistência ao assassino, mas deu uma explicação:

Aquele burrico já devia estar acostumado com o Caminho, assim como o homem. Vi quando a polícia veio buscar a esposa dele, lá no alto dos Pireneus. Era uma mulher jovem. Imagino que ele devia ser apenas um pouco mais velho que ela e, portanto, ainda novo. Além disso, a mulher subiu o morro como se fosse uma rotina. Era gente acostumada a andar.

O abade sentiu um arrepio como se a brisa fria das montanhas tivesse entrado naquela sala para testemunhar mais duas mortes.

Queiram desculpar-me novamente, mas acho que uma investigação está ligada a outra. Pretendo seguir o Caminho e os senhores me encontra­rão nos albergues, se precisarem de mim.

O oficial engoliu a isca e consultou o detetive:

Inspetor Sanchez, por mim o depoimento do Sr. Maurício já é suficiente.

O detetive balançou a cabeça concordando, mas não parecia satisfeito. O oficial deu, porém, o interrogatório por encerrado:

Não vamos precisar do senhor. Assine o Termo de Declarações. Nós já te­mos a sua identificação e o encontraremos onde estiver e quando quisermos.

O escrivão completou o Termo de Declarações que ele assinou. Voltou- se para a saída, mas um novo temor levou-o a comentar:

É esquisito que ele tenha deixado a sua arma.

O oficial pareceu ofendido e falou no mesmo tom ríspido:

Sabemos disso. Não precisa dizer o óbvio.

Não parecia, porém, tão óbvio para o detetive:

Por favor, comandante Perez! Gostaria de saber o que o Sr. Maurício quis dizer com isso.

Percebeu que o detetive já o tratava com respeito. Não era apenas o "depoente" ou "testemunha", mas o "o Sr. Maurício".

Ele deixou o cajado, porque poderia identificá-lo. Isso significa que ou ele completou o trabalho e desapareceu, ou continua no Caminho, disfarçado. Penso que haverá mais mortes. Ele pode ter uma missão, que não completou.

O abade, quieto até então, exclamou apavorado:

É o demônio. Ele matará mais sacerdotes para impedir a assistência aos peregrinos.

Um silêncio fúnebre tomou conta do ambiente. A vocação funerária de Roncesvalles influía na mente das pessoas. O padre o olhava fixamente, como se através dele visse um bando de demônios, mas tinha a fisiono­mia de quem ocultava alguma coisa. Por que o demônio era o culpado por aqueles crimes? O demônio tinha meios mais eficazes de impedir a ajuda aos peregrinos.

Maurício olhou para o sacerdote com firmeza:

Por acaso o senhor saberia se o padre Augusto disse alguma coisa antes de morrer?

O oficial olhou para ele, furioso:

Como se atreve a fazer essa pergunta a uma autoridade eclesiástica res­peitada em meu país? Posso prendê-lo por desacato. É o senhor quem está sendo interrogado e esses seus comentários são suspeitos e inoportunos.

Peço mil perdões, comandante.

Virou-se e começou a sair quando ouviu a voz do detetive:

Desculpe, mais uma vez, comandante, mas quem está conduzindo a investigação aqui sou eu e essa questão é interessante.

E, sem esperar qualquer comentário:

Suas observações são embaraçosas. Nosso prior é um homem muito respeitado. Então, primeiramente, gostaria que esclarecesse a acusação de que o abade Anselmo está escondendo alguma coisa. Caso, porém, ele te­nha algo que possa interessar às investigações é claro que tem a obrigação de fazer isso.

O abade estava nervoso. Maurício aproveitou a interferência do detetive e insistiu:

Padre, não foi o senhor quem atendeu o padre Augusto logo após o grito dele, foi?

O prior respondeu depressa, como se com a sua resposta pudesse se li­vrar de mais esclarecimentos.

Não, foi o padre Juliano, que dorme no quarto ao lado. O meu é mais afastado. Ele abriu a porta, viu o padre Augusto naquele estado e veio cor­rendo me avisar, mas quando cheguei, ele já estava morrendo. Era pouco mais da meia-noite.

Lembrou-se da mulher que se levantara durante a noite no albergue. Ele olhara no relógio e faltavam alguns minutos para a meia-noite. Todas as camas estavam ocupadas e, portanto, o comandante tinha razão. Nenhum peregrino que estivesse dormindo no albergue podia ser o assassino.

Entendo, entendo. — E Maurício comentou, com aparente displicência:

Imagino o esforço e o sofrimento do padre Augusto para lhe dizer suas últimas palavras. O senhor poderia repeti-las?

O abade reagiu como se tivesse ficado perturbado com a pergunta:

Eu não disse isso. O senhor está colocando palavras em minha boca e isso é um insulto. O comandante tem razão.

Mas Maurício não deu tempo para o comandante falar nada, ainda porque talvez ele não se atrevesse, diante das interferências anteriores do detetive.

Padre Anselmo, melhor do que todos nós, aqui presentes, o senhor sabe que Deus quer a verdade. É preciso capturar esse assassino antes que ele cometa outros crimes. Não precisa dizer na minha frente, se preferir, mas diga depois às autoridades as últimas palavras do padre Augusto.

Fez um movimento de despedida com a cabeça e ia saindo, quando ouviu:

"A prata não pode refletir a luz", foi só o que falou antes de morrer.

Mas o senhor não declarou isso para nós — admoestou-o o oficial, indignado porque o padre estava passando para um estrangeiro uma infor­mação que deveria ser sigilosa.

O senhor não me perguntou — respondeu o padre, bastante nervoso.

O detetive mostrou novamente a sua habilidade na busca dos objetivos.

Comandante! Mais tarde conversaremos sobre isso.

E, voltando-se para Maurício:

Essas palavras trazem algum significado para o senhor?

Estava se envolvendo demais naquele assunto, mas já não havia retorno.

Acho que esse assassino tem uma missão a cumprir e não é matar padres, a não ser que eles interfiram, ainda que involuntariamente, nessa missão. Talvez o padre Augusto soubesse de alguma coisa. Provavelmente estava no lugar errado e viu ou ouviu o que não podia ser passado adiante. Em minha opinião, o espanhol era um dos alvos dessa missão, não o padre.

O oficial parecia mais humilde e o detetive o olhava como se esperasse mais informações. Entendeu o silêncio do policial, que lhe pareceu bastante perspicaz e falou:

Ao que sei, a menina também morreu. Se o pai a puxava no burrico, é porque ia na frente. Então, pelo que deduzo, o assassino esperou o ani­mal passar e deu-lhe um golpe na perna direita traseira, que pela lógica devia estar na beira do declive. O assassino deve ter previsto que, com a dor e o susto, o animal pularia, pondo a vida da menina em perigo, e que a preocupação instintiva do pai seria com ela. Era o tempo que precisava para atingi-lo.

Suas deduções eram lógicas e os outros não contestaram.

Por isso penso que essa arma não foi feita para matar o padre, mas, sim, para cortar a perna do burrico e em seguida para matar o homem. Se­ria interessante saber se ele molestou a menina. Isso lhe daria material para estudar o perfil do assassino.

O oficial começou a olhar para o peregrino com outros olhos e Mau­rício aumentou a tensão que já tomava conta do ambiente, dirigindo-se ao detetive:

Haverá mais mortes, e o senhor pode ser uma das vítimas, se a sua investigação puser em risco a missão do assassino.

O abade começou a rezar em voz alta.

E por que a sua vida não corre risco?

Era mais fácil me matar do que o espanhol e o padre. Estive sozinho e isolado em várias situações. Também não vejo interesse em matarem um brasileiro aqui, quando lá no Brasil seria simples e não despertaria suspeita. Mas agora, se me permitem, gostaria de seguir a sugestão do comandante e continuar a minha peregrinação.

 

                                           CAPÍTULO 7

Com um gesto de reverência para as autoridades, dirigiu-se para a porta, em passos cadenciados, como se nada houvesse acontecido. Ia pensando nesse crime sem explicação em que o moribundo enviara uma mensagem. Veio-lhe à lembrança a estranha figura daquele peregrino forte, com um cajado maior que o normal, andando apressado. Se fosse o assassi­no, estava dirigindo-se a Roncesvalles. Mas para quê? Matar um padre em condições tão arriscadas? Não parecia lógico.

Não resistiu à tentação de olhar para trás, quando chegou perto da porta. O que viu o deixou intrigado. Os policiais e o comandante estavam entretidos com o inquérito, mas o abade lançava sobre ele um olhar de súplica, com a testa franzida e a mão direita no bolso da batina. Fitaram-se por al­guns minutos. O detetive parou de examinar papéis e o comandante estava por perguntar por que ele não ia embora logo, mas percebeu a cena.

Em vez de sair, voltou-se e caminhou lentamente até o padre. O próprio escrivão não se atreveu a mexer nos papéis ou nos objetos da mesa do in­quérito para não quebrar o silêncio perturbador. Maurício aproximou-se do superior da irmandade e apenas estendeu a mão direita.

O comandante teve ímpetos de segurar o religioso para que ele não ti­rasse do bolso uma arma que pudesse ter às escondidas, mas o abade es­tava visivelmente tenso, aturdido e suava. Contemplou por pouco tempo a mão estendida por aquele estrangeiro, em quem passara a confiar mais do que nas autoridades do seu país, e lentamente tirou do bolso uma folha de papel dobrada.

Maurício pegou-a e entregou ao comandante, sem ler, porque era um documento que deveria ser visto antes pelas autoridades policiais, e estas é que decidiriam se ele poderia ou não conhecer o conteúdo. O comandante já estava prestes a explodir, e agora com razão, mas se conteve diante da atitude correta de Maurício, e tomou o papel às pressas da sua mão. Olhou feio para o padre e dirigiu o seu olhar furibundo para Maurício, que apenas o encarou respeitosamente. O detetive quebrou as tensões fortes do mo­mento com apenas uma palavra:

Comandante! — e estendeu a mão.

O comandante não teve pressa e ficou olhando para o papel, como se fosse em outra língua. Depois de alguns minutos, sem fazer comentários, entregou-o ao detetive, que o leu com o rosto sombrio e passou-o a Maurí­cio, perguntando em seguida:

O senhor entende de charadas?

Em vez de responder, Maurício começou a estudar o papel em voz alta.

Folha de bloco, tinta vermelha, letra de calígrafo.

Olhou para o abade:

Isso, suponho, estava na cama do padre Augusto. O senhor acha que foi deixado pelo criminoso, não é?

O abade benzeu-se com tanta força, que quase bateu as mãos no nariz. Estava vermelho e tremia. O comandante poderia ter ficado quieto, mas tinha o vício da autoridade:

Isso parece óbvio, o senhor não acha? E agora? O que o senhor me diz de ele não ter vindo aqui para matar padres, se deixou uma mensagem no corpo do padre, que assassinou com tanta crueldade?

O detetive interrompeu o comandante:

O senhor poderia explicar esse seu comentário sobre o papel e a letra?

Papel de bloco. Sugere que vamos receber outras mensagens do mes­mo tipo. Tinta vermelha. Não gosto disso. Normalmente escreve-se em azul. O vermelho sugere sangue.

Ficou em silêncio como se pensando no que poderia acontecer, mas o comandante interrompeu seus presságios:

E o senhor acha que ele é um calígrafo? Se for isso, é só descobrirmos os calígrafos do país.

Maurício levantou a cabeça e deu uma resposta perturbadora:

É muito difícil identificar o autor de uma letra artificial. O senhor sabe disso. A tecnografia compara letras para verificar se elas são do mesmo pu­nho que escreveu o modelo levado para exame. Quando a escrita é comum, o trabalho é simples. Não sei se me fiz entender.

Não importa! Se recebermos outra mensagem, teremos duas letras para identificar esse calígrafo. Não existem muitos calígrafos e com esse papel tudo fica mais fácil.

Teve, porém, um súbito momento de lucidez, que não demonstrara an­tes, e compreendeu que não era tão simples.

O senhor acha que as novas mensagens serão escritas por calígrafos diferentes?

Não sei se serão, se já foram ou de que países seriam esses calígrafos.

O detetive voltou à charada.

O senhor tem idéia do que o texto significa?

Ele leu:

"O Caminho tem um começo e um fim"

E como se estivesse apenas pensando em voz alta:

O princípio da dualidade. Um começo e um fim ligados por uma li­nha que os mantém cúmplices. É assim a vida. Ela é um caminho no qual a gente gasta as nossas reservas de energias e emoções. A vida é apenas um intervalo, como o Caminho de Compostela.

Não era sua intenção filosofar, mas falava de modo misterioso, e os ou­tros não se atreveram a interromper.

A mensagem é clara: o que aconteceu aqui foi apenas o começo.

O abade parecia caminhar para o desespero.

E qual será o fim? O senhor sabe, tenho certeza disso!

Maurício respirou fundo. O medo do padre o contagiou. Olhou para o detetive, que também estava impressionado com suas observações.

O fim é sempre um mistério. Mas os senhores me perdoem. Preciso seguir.

 

                                       CAPÍTULO 8

Já eram 10 horas quando se livrou do interrogatório e preten­dia dormir em Larrasoana, 28 quilômetros adiante. Sabia que era um traje­to difícil, subindo morros e descendo escarpas de pedras lisas, mas estava contente por sair daquele lugar.

O Caminho é um estranho exercício em que as pernas se alegram com a chegada e a alma com a saída. Pensava em ter o mês inteiro para reviver lendas e histórias reais que começaram nos tempos de Cristo, mas agora o Caminho tornara-se uma longa linha de cumplicidade entre um perigo e outro.

Gostava de charadas, porque elas ajudam a exercitar o cérebro. A cha­rada que o assassino deixara no corpo do padre não parecia difícil. Ela trazia a dualidade do começo e fim. Mas, dualidade em relação a quê? O começo era Roncesvalles, mas o fim? Onde é o fim? O fim não é em San­tiago de Compostela. Não iriam criar um mistério desses para simplificar o fim. No começo não há mistério, apenas revelação. O fim, porém, é uma suprema incógnita.

"No que será que vai dar tudo isso? Crimes? Presságios? Charadas? Mis­tério? Logo no início do Caminho?", pensou, com a testa franzida.

"Não pode ser. Algo estava errado. O assassino não iria correr o risco de entrar na Colegiata e matar um padre em circunstâncias tão complicadas, apenas para deixar uma mensagem misteriosa. O mais provável é que, por algum motivo, teve de matar o padre e acabou tendo um cenário mais apro­priado para semear o medo. Mas o que teria feito o padre para merecer essa morte violenta?"

Não podia deixar que essas preocupações estragassem a sua peregrina­ção. Investigação é trabalho da polícia. Estava ali para peregrinar até o tú­mulo de São Tiago, o apóstolo do Trovão, irmão de São João, o Evangelista, autor do Apocalipse, e o melhor a fazer era seguir em frente.

Não se sabe com precisão a data, mas consta que no ano de 814 foi desco­berto na região de Finisterre, na Galícia, um túmulo que, pelas coincidências que apresentava, passou a ser considerado como sendo o túmulo do apóstolo São Tiago.

Um monge eremita chamado Pelágio começou a ver luzes que vinham das estrelas e iluminavam mais intensamente e de modo anormal um de­terminado lugar perto da localidade de Iria Flávia, no norte da Espanha. Enquanto via essas luzes, Pelágio ouvia músicas angelicais. Não teve co­ragem de ir até lá sozinho, mas informou o bispo Teodorico, que passou a ter revelações em sonhos de que, no local iluminado pelas estrelas, estava enterrado o apóstolo São Tiago.

Parece que essas luzes foram também observadas por outros pastores e daí o lugar passou a se chamar campus stellarum, ou campo de estrelas, de onde alguns concluem que se originou a palavra compostela. Há referências a outras origens para esse nome, inclusive de que se trata de um topônimo de compositum tellus, ou monte de terra, em referência aos montículos que rodeavam o sepulcro.

O bispo Teodorico mandou fazer pesquisas e escavações no local e aca­baram descobrindo uma pequena capela com um sepulcro e um oratório. Ao lado da pequena capela havia dois túmulos menores.

A descoberta comoveu todo o mundo ocidental. Multidões começaram a se deslocar em direção à Península Ibérica para venerar o apóstolo, e as­sim foi se definindo essa instituição que passou a ser chamada de "Cami­nho de Santiago".

Mas, quem foi São Tiago?

Entre os doze apóstolos, havia dois com o nome de Tiago. Existia Tiago Menor, filho de Alfeu, e Tiago Maior, irmão de São João, o Evangelista. Tiago Maior, ou São Tiago, depois da morte de Cristo, chegou até a Penín­sula Ibérica, mas não tendo muito êxito em sua evangelização, retornou à Palestina, onde foi decapitado a mando de Herodes Agripa I, no ano 42 da era cristã. A intenção de Herodes não era apenas conter a nova religião, mas agradar a romanos e judeus, e mandou prender São Tiago e São Pedro. Pe­dro conseguiu fugir da prisão, com a ajuda de um anjo, que não conseguiu libertar os dois, e Tiago foi morto. Seu corpo foi jogado em um terreno bal­dio, fora da cidade de Jerusalém, onde seria devorado pelos cães e serviria de exemplo para o povo.

Dois discípulos de São Tiago, Atanásio e Teodoro, conseguiram re­colher o corpo e o levaram através do Mediterrâneo até Finisterre, na Galícia, mais precisamente em Iria Flávia, na desembocadura do Rio Ulla, depois de escaparem milagrosamente da perseguição dos soldados de Herodes.

Esses fatos ocorreram no século I, e a descoberta do túmulo no final do primeiro milênio, quando o cristianismo passava por sérias dúvidas, modi­ficou a história ocidental.

Tendo chegado à conclusão de que as estrelas iluminavam o túmulo do apóstolo, o bispo Teodorico informou o fato ao rei Alfonso II, o Casto. No ano de 834, juntamente com a família real e toda a sua corte, o rei dirigiu- se de imediato para lá, onde mandou construir uma igreja e declarou São Tiago patrono de seu reino.

Foi assim lançada a pedra fundamental de Compostela, com a consa­gração de um movimento de centenas de milhões, talvez bilhões de pessoas, através dos séculos, como a história nunca tinha visto e não mais viu. A Europa comovida começou a se deslocar em visita ao túmulo do apóstolo e o Caminho foi-se definindo até receber seu primeiro guia no ano de 1140, conhecido como Código Calixtino, escrito pelo abade francês Aymeric Picaud.

Na verdade, o Código Calixtino é o quinto livro do Líber Sancti Jacobi (Livro de São Tiago), escrito por várias pessoas, mas que leva o nome de Calixtino, em homenagem ao Papa Calixto II.

 

                                      CAPÍTULO 9

Maurício não queria perder esse espírito de misticismo histó­rico ao iniciar a grande jornada que tomaria um mês de meditação, visitas a monastérios, catedrais seculares ricas em artes góticas e românicas, lugares lendários e monumentos, enquanto se deliciaria com o amanhecer ou o en­tardecer bucólico dos campos. Não podia deixar-se levar por preocupações que não lhe diziam respeito, e procurou viver o espírito da peregrinação.

Devido às guerras, às perseguições religiosas e ao materialismo do sécu­lo XX, o Caminho foi perdendo importância e os sinais que orientavam os peregrinos desapareceram, até que nos anos 1980 o Pároco de O Cebreiro, Elias Valina Sampedro, sinalizou-o com flechas amarelas, que ainda são mantidas e representam a mais segura indicação para o peregrino.

Mas essas flechas não são como as sinalizações indiferentes do trânsito. Elas têm vida própria e, depois de alguns dias vendo-as em pedras, árvores, arbustos, muros, casas, latões de lixo, esquinas e encruzilhadas e por elas guiando-se, o peregrino a elas se apega. São fiéis companheiras que trazem emoções e despertam sensações de esperança, como a que sentiu ao ver uma delas apontando para Burguete, um agradável vilarejo três quilôme­tros adiante.

Logo na saída de Roncesvalles está um dos muitos emblemas do Cami­nho, que chamam de Cruz do Peregrino, uma cruz do século XIV, com a figura de Sancho, o Forte, com 2,2 metros — que teria sido a sua altura — e da sua esposa, Clemência. O corpo do monarca, que venceu batalhas im­portantes para o cristianismo e morreu em 1234, está numa capela ao lado do claustro da Colegiata.

Com a mochila nas costas, cajado e a máquina fotográfica pendurada no pescoço, voltou para a trilha e apressou o passo para tentar chegar a Larrasoana antes do escurecer, mas, para isso, precisava recuperar o tempo perdido com o depoimento.

Durante centenas de anos milhões de pessoas irrigaram aquele mesmo trajeto com suor, esperanças e temores. O cansaço, o desespero dos que se perdiam, o medo das sombras que ocultavam todo tipo de perigo, as curas e os relatos de fatos misteriosos foram gerando lendas e milagres.

Essa percepção de que estava iniciando um roteiro único no mundo to­mou conta dele e o fez esquecer o assassinato do padre. Sentia-se privilegia­do e orgulhoso por enfrentar de novo o desafio dessa caminhada, como se a energia de todos aqueles que por ali passaram o contagiasse. Um peregrino o saudou com o cumprimento tradicional do Caminho:

Ultreia et suseia!

E ele respondeu:

Ultreia!

Essas expressões originam-se do latim. Ultreia é formada por duas pala­vras, "ultra" (mais) e "eia" (lá), enquanto que suseia significa mais alto, para cima. São expressões tiradas de uma antiga canção basca, citada no Código Calixtino, de Aymeri.

Hoje, no entanto, a saudação que os peregrinos ouvem durante várias vezes ao dia é: Buen Camino.

 

                                       CAPÍTULO 10

Da solidão e do medo, surgem os fantasmas, e antigamente os peregrinos se assustavam com as bruxas que acompanhavam o ruído dos ventos que vinham dos bosques de Irati. Os locais acreditavam que, quan­do o vento soprava através do bosque, apareciam bruxas com um sudário acompanhando um esqueleto que trazia sobre o crânio uma coroa real. Quando a mãe de Henrique IV foi envenenada em Paris, seu corpo foi to­mado pelas lãmias, monstros com corpo de dragão e rostos de mulheres bonitas, e desde então elas fazem cavalgadas no bosque de Irati, carregando o corpo da rainha.

O peregrino não atravessa esses bosques, que ficam à esquerda do Ca­minho, mas a sua proximidade desperta receios que se escondem no fundo da mente e escolhem momentos turvos para vir à tona. Havia uma ameaça implícita naquela charada e a insegurança o mantinha alerta.

Depois de passar por Burguete e Espinhal, atravessou os bosques do Meskiritz, saboreando de novo a solidão da trilha monótona escondida sob o arvoredo das montanhas. Os ruídos da floresta e as sombras, que se mo­viam com o balançar dos galhos, às vezes o assustavam, mas aos poucos foi se acostumando com os códigos da natureza. Perto das quatro horas da tarde chegou a Zubiri, vilarejo que significa "povo da Ponte" em euskera, a língua basca. Logo na chegada, o peregrino atravessa uma ponte gótica cha­mada Ponte da Raiva, porque os antigos criadores acreditavam que, fazen­do os animais dar três voltas ao redor dela, eles se livravam dessa doença.

Teria ainda mais cinco quilômetros até Larrasoana, onde pretendia che­gar antes do escurecer. Vencera as trilhas difíceis do Alto de Meskiritz e do Alto do Erro. Atravessara bosques onde antigamente se escondiam bandi­dos e animais selvagens, e respirara o ar puro de um dia agradável, parando às vezes para comer um pouco de amoras silvestres da beira do Caminho e contemplar as paisagens distantes das quais ia em breve fazer parte.

Desde que se envolvera na trama do O Conceito Zero e denunciara o grupo que pretendia proclamar a independência da Amazônia, separando-a do Brasil, pensava que ainda poderia ser vítima de alguma represália. Passara a ficar mais atento e tudo lhe parecia suspeito. A organização que havia tentado a divisão do Brasil não era composta apenas das pessoas que foram presas.

Não conseguia também tirar da cabeça a menina de 12 anos que pode­ria ter sido brutalmente violentada pelo assassino. Sim, sem dúvida que o espanhol não caíra no precipício por algum descuido, e aquele cajado, com ponta de metal como se fosse uma espada, levava à suspeita de que fora preparado para eliminar o pobre homem. Mas por quê? Só para violentar a menina? Um assassino comum faria isso.

Havia muitos bosques e lugares ermos, onde um estuprador poderia sa­tisfazer seus instintos. Mas, e se a menina fora simplesmente morta sem ter sido tocada? Seria uma informação que não poderia ser desprezada, porque o perfil do assassino não seria de um tarado, mas de alguém que tinha outros planos. Tinha certeza de que saberia isso no fim do Caminho: o começo e o fim. Entre esses dois pontos, o perigo o acompanharia.

A flecha amarela estava bem visível e ele caminhava pensativo, quando passou por um pequeno vilarejo onde viu um homem forjando ferramen­tas de uso rural. Um raciocínio lhe passou pela cabeça. Aquele peregrino não devia ter comprado o ferro para o cajado em Saint-Jean-Pied-de-Port. O crime contra o espanhol fora cometido em território francês, então seria mais seguro comprar a arma na Espanha, para dificultar as investigações. Precisava chegar a Larrasoana antes do anoitecer, mas a curiosidade foi mais forte.

Chegou ao barracão, onde um homem suado malhava ferros já quentes pelo fogo. Dois rapazes que pareciam seus filhos o ajudavam. Observou o estoque de produtos feitos por eles. A maioria eram vitrais, portões, estribos para arreios, argolas para laços, ferraduras e outros objetos de uso comum na região. Havia também foices, machados, facões, garfos enormes para levantar o capim e colocar no cocho. Reparou melhor na maneira como o cabo de madeira era encaixado no vão superior da foice.

O homem parou de malhar o ferro e limpou a testa suada com um lenço sujo. Maurício aproveitou e cumprimentou-o em português:

Boa tarde.

Buenas tardes.

O senhor poderia, por acaso, me informar se seria difícil afinar o cabo de uma foice dessas e encaixá-la dentro de um bastão mais reforçado? — e fez gestos para facilitar a sua explicação em português.

A surpresa foi grande. Não esperava por aquela resposta.

Si, senor. Usted es el segundo que me lo pide en una semana.

Outro peregrino, com um capuz que encobria o rosto, havia pedido para que ele reduzisse a largura de uma foice e a deixasse um pouco mais reta, sem tirar toda a curva. Ele atendeu ao pedido e fixou a ponta da foice no cajado. O peregrino explicara que tinha medo de cachorros.

Devia ser um homem muito forte para carregar um bastão desses por 800 quilômetros, o senhor não acha?

Si, si, era un hombre enorme. Joven, cuarenta anos, hablaba poco e despacio. Usted también quiere uno?

Respondeu que não, agradeceu e seguiu o Caminho ainda mais pensativo. Comprar a arma na Espanha para cometer um crime na França era coerente, porque seria fácil para o assassino sumir naquelas montanhas dos Pireneus e chegar a algum destino previamente estudado. O que aca­bara de descobrir, no entanto, era que o assassino comprara a arma em Roncesvalles e fora na direção contrária à do Caminho, com a intenção de ir à França matar o espanhol. Para Maurício, não fazia sentido ele ter voltado para matar o padre, correndo o risco de ser identificado.

O que o levara a voltar a Roncesvalles? Encontrar-se com alguém para informar sobre a morte do espanhol? Receber novas instruções? Como é que conseguira entrar tão facilmente na Colegiata? E por onde saíra? Eram muitas as indagações que teriam de ser respondidas.

Escurecia, quando Maurício atravessou a Ponte dos Bandidos, na en­trada de Larrasoana, um vilarejo do século XI. Instintivamente apressou o passo e foi direto ao albergue onde a animação dos peregrinos o ajudou a encontrar outros assuntos.

 

                                             CAPÍTULO 11

Desde Larrasoana até Pamplona, o grande companheiro do peregrino é o rio Arga. A sombra dos arvoredos, suas águas cristalinas seguem a histórica trilha em direção a Pamplona, a cidade da corrida dos touros, restaurantes e monumentos históricos, fundada 75 anos antes de Cristo, pelo pró-cônsul romano Pompeu, de onde deriva o seu nome.

O albergue ficava perto da catedral, no prédio de um antigo colégio da Irmandade das Adoradoras, que cuidava de moças desajustadas. Depois de acomodar-se, Maurício saiu para visitar a catedral, entrando por uma porta lateral à direita, que dá para o claustro, um grande pátio interno com corredores sustentados por colunas góticas de rara beleza.

Após as cerimônias religiosas na igreja, os monges saíam por essa porta e entravam no claustro por outra porta que ficava no ângulo oposto, quan­do então cantavam o salmo Pretiosa in conspectu Domini mors sanctorum ejus ("A morte dos santos é preciosa no conceito de Deus") e por causa desse salmo a porta ficou conhecida como "Preciosa". Em cima dela existe uma moldura que representa a morte e assunção de Nossa Senhora, com os anjos afugentando alguns judeus que queriam profanar o seu corpo já sem vida. Esse simbolismo mostra a divisão que havia na cidade, onde os bairros dos navarros, judeus e burgueses eram separados por muros e pelo ódio. Conflita também com a tradição católica de que Nossa Senhora não morreu, mas caiu num sono profundo (dormitio), aos 72 anos de idade, e foi levada aos céus de corpo e alma.

Depois de visitar o pequeno museu que fica onde antes eram o restau­rante e a cozinha do monastério, Maurício entrou na igreja e se deslumbrou com sua beleza. Esculturais colunas góticas se elevando até o alto da nave e vitrais coloridos contrastavam com o silêncio que preenchia todos os es­paços. Caminhava devagar para não perder os detalhes dos quadros, das capelas laterais e dos altares com colunas barrocas, e chegou ao altar-mor, onde a imagem da padroeira, Santa Maria Real, era protegida por grades. Absorto em seu deslumbramento, não percebeu o tempo passar e quase se assustou com o som nostálgico de um órgão que substituiu o pesado silên­cio da igreja. Um grupo de homens saiu de uma sala que ficava à direita da porta de entrada, em filas de dois, carregando uma vela acesa e um estan­darte de Nossa Senhora.

A vela e o estandarte foram levados até o altar e o grupo sentou-se nos bancos diante do órgão. As luzes da igreja se acenderam, trazendo uma luminosidade suave e fria. Um homem de pé, em frente do altar, puxou o Ora pro nobis domine e o Terço cantado, que o grupo respondia ao som do órgão.

O rapaz com a vela e o homem do estandarte encaminharam-se para a lateral da igreja, e as pessoas que estavam nos bancos se levantaram e os acompanharam em procissão. A cena e o cântico despertavam emoções, e assim que terminou a procissão, o coro continuou a ladainha com o miserere nobis. Ao final, quando os cantores começaram a se levantar, Maurício não resistiu e perguntou para um deles sobre a cerimônia.

O homem se mostrou solícito:

Não somos clérigos, mas leigos, e fazemos parte da Congregação do Rosário dos Escravos de Santa Maria. Há 403 anos, nós repetimos essa ce­rimônia da mesma maneira como o senhor viu.

Há 403 anos...?! A mesma cerimônia todos os dias?!...

Sim. Antes, nós dávamos a volta na catedral, do lado de fora, mas a cidade cresceu e hoje rezamos o Terço aqui dentro.

Era um privilégio usufruir da beleza daquele templo e participar de ceri­mônias centenárias como a que assistira, mas iam fechar a igreja e ele teve de sair. O anoitecer estava chegando e estava cansado. Saiu com a sensação de que 403 anos iriam aumentar o peso da sua mochila.

Caminhou até a rua do encierro. Todos os anos, durante as festas de São Firmino, no período de 6 a 24 de julho, a rua do encierro é palco da famosa corrida de Pamplona, quando pessoas arriscam a vida correndo um trajeto de 800 metros na frente de touros enfurecidos.

Não sabia por que a procissão na catedral não saía da sua cabeça, quando passou em frente de uma livraria. Hesitou uns minutos e entrou. Os livros estavam dispostos por assunto e depois de várias perguntas ao vendedor, comprou um opúsculo sobre as heresias da Idade Média.

 

                                    CAPÍTULO 12

No dia seguinte, levantou-se bem cedo porque, embora até Puente la Reina fosse apenas 23,5 quilômetros, era um trecho difícil. Tão difícil como vencer a subida do Monte dei Perdon era descer os fortes declives escorregadios e pedregosos.

Uma das lendas mais bonitas do Caminho teve origem na subida do Per­don. Naquela época, os povoados eram muito distantes uns dos outros, e um peregrino se viu sem água na subida do morro. Já não agüentava mais seguir em frente e se sentia desfalecer sob o sol inclemente. Rezava para que Deus o ajudasse a chegar a uma fonte ou que alguém aparecesse com um pouco de água. Estava esgotado, sem forças, quando o Diabo apareceu diante dele e prometeu que, se renegasse a sua fé e desistisse da peregrina­ção, uma fonte de água cristalina e fresca ia jorrar daquele lugar. A tentação era grande e o peregrino já quase não agüentava mais o sofrimento, mas resistiu e não aceitou. O Diabo usou de todos os recursos para convencê-lo, mas o peregrino respondia que preferia morrer de sede a renegar a sua fé.

O Diabo ficou furioso e desapareceu no meio de uma explosão, soltando um forte cheiro de enxofre. Depois que o Diabo se foi, o peregrino agra­deceu a Deus por ter resistido à tentação. Nesse instante, outro peregrino se aproximou e lhe mostrou a fonte. Sedento e quase sem conseguir andar, arrastou-se até o lugar e viu a água fresca jorrando de uma pedra. Depois de matar a sede, agradeceu o bondoso peregrino, que sorriu para ele e seguiu o Caminho.

Dias depois, chegou a Compostela. Entrou na igreja para assistir à Missa dos Peregrinos e quando olhou para a imagem de São Tiago reconheceu o peregrino que lhe mostrara a fonte de água. Fora o próprio santo que lhe aparecera, porque não renegara a sua fé e não desistira da peregrinação. A fonte passou a ser conhecida como Fuente del Reniego, Fonte da Renegação.

Maurício também estava cansado e com sede, mas tinha água suficiente. Sabia que a Fuente del Reniego havia secado e o Caminho tinha às vezes longas distâncias, por isso tomava precauções para evitar a fome e a sede em trechos desabitados e longos. Mas o lugar parecia mesmo amaldiçoado e o Diabo estava ali esperando por ele, como se quisesse testá-lo também.

Encostado no barranco, perto de onde antes era a fonte, um peregri­no aproveitava a sombra para descansar. E o cheiro forte do enxofre que o Diabo deixara na lenda entrou pela sua alma, assim que o reconheceu. Aproximou-se. O peregrino continuou sentado, sem nada dizer, e o olhava com um sorriso inexpressivo. Maurício chegou mais perto, tirou a mochila das costas, colocou-a no chão e se sentou.

Tinha mesmo a impressão de que ia encontrá-lo pelo Caminho. Mas o senhor escolheu um lugar apropriado para a gente falar do Diabo.

Entendi que havia um recado, quando me mandou verificar se o assassino havia judiado da menina. O perfil do assassino. Lembra-se da sua preocupação?

Maurício respirou fundo e respondeu com outras perguntas:

O assassino não mexeu na menina? Nem tentou? Descobriram algu­ma pista?

Não há sinais de violência sexual. Nem mesmo a calcinha dela foi tirada.

 

                                       CAPÍTULO 13

Embora já esperasse por essa resposta, a informação o assus­tou. Baixou a cabeça e o cheiro de enxofre espalhou-se por toda a paisagem. Passaram-se uns minutos e o inspetor mostrou-lhe uma foto da garota.

Esta fotografia foi tirada em Majorca, no mês de julho, onde ela estava de férias com os pais.

Uma menina bonita, de biquíni, com o corpo já salientando as curvas da adolescência e cheia de sonhos na sua face sorridente, fazia pose, perto de uma barraca fincada na areia da praia.

Só damos valor ao repouso quando estamos cansados. Maurício tirou o gorro de pano verde e amarelo da cabeça e enxugou o rosto com o lenço. Encostado no barranco, sem a mochila nas costas, que vinha carregando como se fosse uma corcunda, olhava para aqueles campos amarelos de trigo já ceifado, sem saber no que pensar.

Ao longe, os Pireneus exibiam seus majestosos picos contra o horizonte, mas o detetive não estava interessado em paisagem.

Sua percepção no caso é que o assassino pode ter uma missão, pois um tipo violento como ele somente conteria os seus instintos animalescos em relação à menina por alguma razão superior. Se ele ficasse ali para satisfazer seus instintos sexuais, poderia surgir alguém e prejudicar a sua missão. Acho que foi esse o seu raciocínio em Roncesvalles.

Maurício não respondeu. Olhava para as elevações no meio do vale, onde pequenos vilarejos pareciam se esconder à sombra de suas imensas igrejas.

Podemos ir conversando, se aceitar minha companhia. Admito que o comandante não gostaria de eu estar aqui, trocando idéias com um peregrino estrangeiro sobre matéria de investigação criminal em curso, mas seu racio­cínio me trouxe questionamentos que não posso desprezar.

Havia qualquer coisa de misterioso naquele encontro com o detetive, que parecia ao mesmo tempo agradecido e desconfiado. Era melhor tê-lo por perto e conseguir informações.

Caminharam até o alto do morro, onde uma linha de grandes torres de ventiladores gigantes para a geração de energia eólica, fora instalada no espigão do Monte del Perdon, e ali ficaram como se fossem D. Quixote e Sancho Pança se preparando para investir contra moinhos de vento. Um estranho monumento, com peregrinos dispostos como se fossem cavaleiros andantes, justificava a inscrição que dizia: "O caminho do vento se cruza com o caminho das estrelas".

O policial retomou o assunto que o levara àquele encontro:

Tenho a impressão de que alguma coisa mais o incomoda. Em Ron­cesvalles, o senhor desenvolveu um raciocínio de quem não estava apenas dando uma opinião. Já temos três homicídios, e a sua conclusão de que o assassino deu o golpe na perna traseira do burrico foi comprovada. Chegou mesmo a adivinhar que era a perna direita.

Não estava orgulhoso com os elogios. Um novo perigo, ainda desconhe­cido, parecia estar surgindo diante dele. Talvez fosse mais prudente coope­rar com o Chefe de Investigação do Distrito de Pamplona.

Era previsível que ele queria que o burrico caísse no precipício. O ani­mal era muito pesado para um homem sozinho erguê-lo ou mesmo arrastá-lo. Com certeza levantou os corpos do homem e da menina e os jogou no precipício, mas não podia fazer isso com o burrico. Por outro lado, não po­dia deixar o burrico ali, com a perna cortada porque era arriscado, então ele preparou as coisas de modo que o burrico se arrastasse barranco abaixo.

O calor era abrandado por uma brisa fresca que descia o morro e corria pelos prados cultivados.

Ia saindo de Saint-Jean-Pied-de-Port quando ouvi alguém dizer: "brasileno, no?" Sei que o Caminho é cheio de brasileiros, mas de qual­quer forma registrei o fato. Depois, uma mulher subiu o morro, no mesmo ritmo que eu, e estava quase morta de cansaço quando paramos. Parecia que estava me seguindo ou fugindo de alguma coisa. Adquiri o hábito de observar detalhes.

Ele reconheceu a bandeira brasileira no seu gorro, imagino.

A questão é que a bandeira estava do lado oposto, e é um emblema pequeno, difícil de ser identificado na distância em que o espanhol estava, como pode ver.

E tirou o gorro da cabeça, passando-o para o detetive.

Tem razão. Então, em sua opinião, ele já o estava esperando. Mas, por quê?

Não sei se era por mim que esperava ou por outra pessoa, mas estava prevenido. Seria interessante saber o que esse padre fez naquele dia. Se, por exemplo, ele teve de visitar algum doente ou executar alguma tarefa que o fez sair da cidade e percorrer uma parte do Caminho. Não pode ter ido a lugar distante. Acredito que ele possa ter visto ou ouvido alguma coisa e o assassino o seguiu para saber quem era aquele intruso.

Por acaso está sugerindo que o padre não se afastara muito de Ron­cesvalles porque, se o tivesse feito teria sido morto fora da cidade? É um raciocínio interessante.

Não era conveniente falar, por enquanto, sobre as suas descobertas com o ferreiro em Zubiri. Estava se intrometendo numa investigação policial em território estrangeiro e já cometera o erro de sugerir que o espanhol estava esperando por ele. Por outro lado, já estava sendo vigiado, como indicava o aparecimento desse detetive, e era melhor mostrar cooperação.

Uma nova dúvida o intrigava. Por que o inspetor não se interessara em saber sua opinião sobre como o assassino entrara no claustro para matar o padre?

 

                                   CAPÍTULO 14

Ao descerem o Monte dei Perdon, o detetive fez um comentário enigmático.

O Caminho é uma homenagem à morte e ao sofrimento.

O senhor já fez o Caminho?

É o lugar predileto das minhas férias. Já fiz o trajeto de Roncesvalles a Santiago onze vezes.

Onze vezes! — exclamou Maurício, impressionado.

Sim. Onze vezes. Mas não foi só a passeio. Minha mulher é professora de arquitetura e defendeu tese de mestrado sobre a influência muçulmana na construção das igrejas do Caminho. A primeira vez que fiz o Caminho tinha dezoito anos. Éramos um grupo de universitários fazendo pesquisas para trabalho escolar. Naquela época o percurso era mal sinalizado e havia menos peregrinos.

Apoiando-se no cajado para não escorregar no terreno pedregoso da descida, trocavam opiniões sobre a influência que a simples descoberta de um túmulo teve sobre a humanidade. Calcula-se que durante o perío­do que vai do século X ao XIV aproximadamente quinhentos mil pessoas desciam anualmente de todos os cantos da Europa para visitar as relíquias de São Tiago.

Minha mulher diz que o Caminho foi um fenômeno histórico e histé­rico ao mesmo tempo. Ainda hoje, para quem o faz, o Caminho é uma coisa inexplicável e inesquecível.

Dois conceitos interessantes. Gostei.

O albergue! O albergue criou o Caminho, marcou o seu trajeto e re­cebia os peregrinos que passaram a ter onde repousar e se recuperar para enfrentar a jornada seguinte.

É bem possível que tenha razão. Deve-se ao albergue a definição do Caminho.

Uma das coisas que mais me impressionam é a importância do Cami­nho para o progresso da humanidade.

Progresso da humanidade? — os pensamentos de Maurício se afasta­vam para outro raciocínio e a pergunta não saiu com naturalidade.

Mas é claro! Enquanto os cristãos viviam obcecados pelo medo do inferno, os árabes avançaram nos estudos da matemática, da física, da ar­quitetura, filosofia, literatura, medicina e astronomia. Quando invadiram a Península Ibérica, em 711, textos de Sócrates, Platão, Aristóteles, Ptolomeu, Hipócrates, Galeno e grandes médicos árabes, como Avicena e Ali Abbas, escritos em árabe e hebreu, vieram para a Espanha. Com a reconquista da cidade de Toledo em 1085, esses textos chamaram a atenção de cristãos e judeus. O bispo da época criou um grupo de tradutores que ficou conheci­do como Escola de Tradutores de Toledo.

Como um arauto de toda a sabedoria da Idade Média, ele parou e virou-se para Maurício:

Entendeu agora? Ao chegarem à Península Ibérica os peregrinos en­travam em contato com essas traduções e as levavam de volta para Paris, Roma, Amsterdã e outros centros europeus. A cultura clássica havia desa­parecido e o Caminho a ressuscitou.

De fato, a Escola de Tradutores provocou uma revolução cultural no continente. Um peregrino levava na mochila uma tradução de Sócrates, outro, de Platão, e assim a Europa recompôs a cultura clássica. Sob esse aspecto, é inegável o mérito da peregrinação.

Não podemos esquecer que o cristianismo deteve o progresso da humanidade por mais de mil anos e, se não fosse o Caminho, esse atraso seria maior.

A queda do Império Romano deixara a Europa sem lei e sem ordem. Não havia mais uma força organizada para proteger a ordem pública, e o comércio e a vida urbana enfraqueceram. Consequentemente, escolas e atividades culturais também diminuíram e o que restou girava em torno do cristianismo.

Havia a crença de que o mundo desapareceria no fim do primei­ro milênio e, então, reis e nobres começaram a construir igrejas, para serem enterrados dentro delas. Acreditavam que, assim, ficavam mais perto de Deus.

Felizmente, o mundo não acabou com o fim do milênio, mas o poder religioso se consolidara, e igrejas e monumentos continuaram sendo cons­truídos em toda a Europa como prova de devoção, levando catedrais e monastérios a concorrer em grandiosidade para atrair peregrinos e doações.

Até então, as igrejas eram construções menores e os grandes templos foram um desafio novo que levou os construtores a buscarem inspiração nos edifícios de Roma, dando origem ao estilo que passou a chamar-se românico.

Não se aborreça com minhas explicações, pois elas são importantes para se entender o Caminho. A quantidade de monumentos românicos forma uma rica esteira de arte. O estilo românico se aperfeiçoou e surgiu o arco de tensão, em que uma pedra se apóia noutra, possibilitando maior abertura dos vãos e dando origem ao estilo gótico, que permitiu naves mais altas e janelas maiores com vitrais coloridos, trazendo a luminosidade para dentro das igrejas.

Maurício tinha por hábito tentar descobrir o que de mais sério poderia existir dentro de uma conversa simples. Inquietava-o que um policial gra­duado, envolvido numa investigação de crimes misteriosos, perdesse tem­po em tantas divagações.

Não simpatizava com aquele homem, não o conhecia e estranhava o diálogo.

Aliás, os dois estilos mostram maneiras diferentes de se ver Deus. Sim, é verdade! No românico, o interior das igrejas tem pouca luz, para que a pessoa medite e sinta a plena força da divindade. Já o gótico é alegre, nele as janelas são maiores, e a claridade mostra o ser humano como parte da divindade. No românico, o homem fica na escuridão e Deus desce até ele. No gótico, é o homem que se eleva até a presença de Deus, através da luz que inunda o ambiente.

"O que será que poderia estar por trás dessa pregação?", pensou Maurí­cio, olhando no alto do morro o pequeno vilarejo de Obanos.

 

                                           CAPÍTULO 15

Obanos foi palco de um dos mais tristes episódios da história do Caminho. Por coincidência, naquele dia, o vilarejo fazia uma represen­tação teatral do misterioso drama dos irmãos Felícia e Guilherme, filhos do Duque de Aquitânia.

Eis aí outro mistério inacessível do passado — voltou o inspetor, com suas infelizes explicações. A Igreja transformou assassinos em santos e deu a reis poderes para governar os céus, canonizando muitos deles. O assassinato de Felícia pelo seu irmão é outra curiosidade. Se ele fosse um plebeu, seria enforcado, mas Guilherme era o poderoso Duque de Aquitânia e, então, virou santo.

Depois de peregrinar a Santiago, Felícia abdicou das riquezas, preferindo ficar em Obanos para se dedicar aos pobres e aos peregrinos. Seu irmão Guilherme tentou convencê-la a voltar para se ocupar do palácio, mas dian­te da resistência da irmã ficou tão indignado, que a degolou, num gesto impensado do qual se arrependeu. Cheio de remorsos, fez a peregrinação e mandou construir a Ermida de Arnotegui, perto de Obanos, conhecida como Ermida de São Guilherme. Felícia foi santificada e seu túmulo fica na cidade de Labiano, nas imediações de Pamplona. Guilherme passou o resto dos seus dias acudindo peregrinos e ajudando os pobres.

Chegaram ao centro da cidade onde dois enormes bonecos na frente da igreja simbolizavam Felícia e Guilherme. Entraram em um bar, tomaram água e café e descansaram um pouco para continuar até a ermida de Nossa Senhora de Eunate. Quem vem de Roncesvalles, precisa andar mais uns três quilômetros até esse misterioso templo cuja visita é obrigatória.

O Caminho tem dois pontos de origem. Um deles é a cidade de Saint- Jean-Pied-de-Port, onde começa o chamado Caminho francês, que passa por Roncesvalles; o outro é o alto de Somport, de onde sai o Caminho aragonês, assim chamado por causa do rio Aragão. Em Puente la Reina, os dois se encontram e o Caminho continua em um único trajeto. Na peregri­nação anterior, Maurício tinha tomado um táxi em Puente la Reina para voltar a Somport e fazer também esse trajeto a pé, mas agora não estava disposto a tanto.

Já eram duas horas daquela tarde de sol inclemente e sentia-se reconfortado por estar equipado de óculos escuros, mangas compridas e filtro solar nas partes expostas, apesar de as plantas dos pés arderem sobre o solo quente.

A igreja de Eunate, que em euskera significa "cem portas", dá aos adeptos do esoterismo razões para longos estudos. Sua arquitetura evoca mistérios do Além. Vestígios de construções anteriores mostram sucessivos elementos octogonais em volta de um ponto central e teria sido construída inicial­mente como túmulo para uma misteriosa rainha que ninguém sabe de onde viera.

Sua estrutura é similar à do Santo Sepulcro, com o quadrado indicando a ordem terrestre e o círculo simbolizando a vida eterna, e por isso chamou a atenção dos iniciados em ciências secretas.

Era impossível ver aquela construção e não se lembrar dos Cavaleiros Templários e sua lendária existência.

O senhor está vendo aquela figura esquisita? Aquele é o bafomet.

Figuras de seres estranhos rodeavam o beiral, e o inspetor apontava para uma delas.

Veja o senhor que injustiça o papa fez com os templários. Eles foram os criadores do gótico a partir dos estudos que fizeram do Templo de Sa­lomão e introduziram essas gárgulas como canaletas para escoamento de água. Para acusá-los, inventaram que o bafomet era o Diabo e que os tem­plários o adoravam.

Maurício procurava ser cortês e o inspetor entendia essa cortesia como uma demonstração de interesse. Ele dava voltas para chegar ao assunto principal, como se quisesse pegar o interlocutor de surpresa, e trouxe do fundo dos séculos um dos temas mais delicados da história do catolicismo.

A Igreja não poupava os inocentes, quando eles ameaçavam o seu po­der. Veja o que aconteceu com os cátaros. Eles eram considerados hereges apenas porque praticavam um cristianismo puro e por isso o papa lançou contra eles uma Cruzada, a chamada Cruzada Albigense. Sabe qual era o crime dos cátaros? Eles viviam bem no centro da peregrinação, em torno da cidade de Albi.

Acabaram de dar a volta da igreja e estavam diante da entrada principal, admirando a simetria da construção.

O senhor vai passar por Estella. Não deixe de notar o erotismo disfar­çado que brota da cena em que o Sagitário aponta sua flecha para o umbigo de uma sereia, na igreja de São Pedro de la Rua.

"Bafomet, umbigo de sereia, cátaros! O que estaria por trás dessas ob­servações extemporâneas?" — pensava Maurício, mas nesse momento uma senhora chegou correndo, assustada.

Ela estacionara o carro para visitar a igreja e, quando voltou, o vidro à direita do motorista estava aberto e uma bolsa que tinha deixado no banco da frente desaparecera. O inspetor se identificou e foram até o veículo.

Olhem que coisa mais esquisita! Levaram a minha bolsa e deixaram isso aí. Parece coisa de feitiçaria.

A porta estava semi-aberta e o inspetor examinou o carro, não dando muita importância às reclamações da mulher, que se lamentava por ter fica­do sem documentos e dinheiro. Em seguida, ligou pelo celular para o posto policial mais próximo, o de Puente la Reina.

Maurício tinha ficado afastado porque era assunto para o inspetor, mas a mulher abriu toda a porta para revistar melhor o carro, na esperança de encontrar a bolsa, e ele pôde ver os objetos que estavam no banco dianteiro do motorista.

Sua exclamação foi espontânea e demonstrava preocupação:

O barrete vermelho! Mas, tecido de cor púrpura!?...

O inspetor ficou intrigado com aquela reação.

Isso lhe diz alguma coisa?

Maurício não respondeu e, com a ponta do cajado, levantou o tecido e o examinou.

Material antigo.

Trouxe para mais perto do rosto.

Cheiro de mofo, corte feito com faca. Não foi tesoura.

Os dois o olhavam, intrigados.

A senhora tem certeza de que esses objetos não estavam aí quando saiu do carro?

Sim, tenho. Nunca tinha visto isso antes. Será que o ladrão estava fu­gindo e deixou essas coisas?

Não seria muita esperteza da parte dele esconder o resultado de um furto dentro do carro que acabava de assaltar, penso eu.

O inspetor deu o seu palpite.

De fato, não faz sentido. A dúvida é se ele abriu o vidro para roubar a bolsa e aproveitou para deixar esses objetos ou se, ao contrário, queria desfazer-se deles e aproveitou para levar a bolsa. Nessa hipótese, deve ter cometido outro assalto antes de chegar aqui.

O zelador de Eunate vinha chegando e o inspetor pediu um saco plástico para guardar os dois objetos. Ele se comportava como se não tivesse gosta­do de Maurício ter interrogado a mulher e procurava agora tomar iniciati­vas. Para Maurício, porém, aquilo não fora um simples roubo. O inspetor tentava acalmar a mulher.

Assim que a viatura chegar, a senhora poderá formalizar a ocor­rência e serão tomadas as providências para encontrar a bolsa com os seus documentos.

Maurício olhou mais uma vez para o saco plástico e depois se aproxi­mou do carro. Uma idéia, que de início achou absurda, começou a tomar vulto e ele se voltou para a comprida alameda que vinha da rodovia até o estacionamento.

"Esse assassino pode ter feito isso, sim, pode ter feito."

Enquanto o inspetor tranqüilizava a mulher, ele começou a caminhar pela alameda, examinando os arbustos e as árvores que ladeavam o asfalto. O inspetor o observava, inquieto, com receio de ser desprestigiado. A mu­lher parara de falar e pouco depois eles o viram agachar-se perto de uma árvore e pegar um objeto que de longe parecia uma bolsa.

Lá do outro lado da alameda, despontou uma viatura policial que che­gou até o pátio de estacionamento. Maurício começou a voltar, tão devagar quanto tinha ido, e trazia na mão uma bolsa de tamanho médio, de couro, parda, que entregou à mulher.

Mas, essa é minha bolsa! Como o senhor sabia que ela estava escon­dida perto das árvores?

O ladrão devia estar de motocicleta. A bolsa é meio grande e seria um estorvo. Imaginei que ele a jogaria em algum lugar próximo daqui. Acredi­to que não teve tempo para retirar qualquer coisa.

A mulher abriu a bolsa e sorriu aliviada. O dinheiro e os documentos estavam ainda lá.

Era uma situação desconcertante para o inspetor, que se lembrava do desempenho de Maurício em Roncesvalles e que agora, como num passe de mágica, devolvia os pertences da mulher. Entretanto, ficou agradecido por ele não dizer mais nada na frente dela e dos policiais, que a acompa­nharam à delegacia, levando o saco plástico contendo os objetos encontra­dos no carro.

Logo que se distanciaram, o detetive não aguentou:

Nenhum ladrão jogaria fora essa bolsa sem pegar o dinheiro.

Certas intuições não se traduzem facilmente em palavras. Era preciso cuidado para explicar a esse policial que a mulher tinha razão quando lem­brou que aquilo parecia feitiçaria. Um ladrão não deixa no lugar do roubo dois objetos emblemáticos como aquele barrete e o tecido purpúreo.

A lógica não cria um conhecimento novo, como a botânica ou a quí­mica. Ela apenas se aproveita de dados já existentes. No caso desse estranho roubo, cheguei à conclusão de que a bolsa não era o objetivo do ladrão, que queria apenas completar o serviço de Roncesvalles.

O policial quase caiu ao se virar bruscamente para interrogá-lo.

O quê? O assassino de Roncesvalles aqui? Perto de mim e eu o deixei escapar? De onde o senhor tirou essa idéia? Ou está querendo complicar mais ainda essa investigação? Por que aquela sua reação diante de um bar­rete vermelho e um pedaço de pano?

O homem estava nervoso e era melhor não enfezá-lo ainda mais.

Bem, primeiramente e o senhor sabe disso melhor do que eu, nesse tipo de roubo, o ladrão normalmente quebra o vidro, pega rapidamente um objeto e desaparece. Nesse caso, porém, não agiu assim, porque o barulho chamaria a atenção. Sua intenção era só deixar os dois objetos, mas havia o risco de a mulher simplesmente se livrar deles. Ele precisava que a reação dela o fizesse ver o barrete e o tecido. Para sua sorte, a mulher cometera a imprudência de deixar a bolsa. Sem a bolsa e os documentos, ela chamaria a polícia.

Não tinha pressa e aguardou algum comentário, que não veio, e então fez uma curta observação para provocar o raciocínio do detetive.

É fora de propósito um ladrão vir até Eunate, com a intenção de praticar um furto, e deixar como lembrança do seu feito dois objetos tão misteriosos.

Coisa esquisita! Mas o senhor foi muito direto ao lugar da bolsa, como se já soubesse que ela estava lá.

Era quase uma acusação que Maurício desconsiderou com um sorriso desdenhoso, mas procurou ser cortês.

Acredito que, como eu, assim que o senhor viu os dois objetos, tam­bém teve a impressão de que não se tratava de mero furto.

O inspetor pigarreou com o elogio, sem responder, e esperou o resto da história.

Esse assassino é tinhoso e planeja tudo com cuidado. Essa questão da bolsa é significativa. Se a polícia não encontrasse a bolsa, iria parecer um furto e a mensagem que ele queria enviar não seria entendida. Por isso a deixou num lugar fácil de ser encontrada.

Continuou na sua estratégia de não melindrar o inspetor:

O senhor deve estar lembrado das suas leituras de criança. As crianças leem contos de fadas. O barrete vermelho é um duende do folclore inglês, que assombra ruínas e castelos. Ele tem esse nome porque tinge o seu bar­rete com o sangue das vítimas. Quando o vi, fiquei na dúvida. O Caminho é cheio de castelos e ruínas. Cheguei a pensar que o assassino estaria indican­do o lugar onde outros crimes seriam cometidos. Mas isso não combinava com o tecido púrpura.

O policial manteve uma suspeita humildade.

Desculpe se não alcanço o seu raciocínio, mas de que maneira o fol­clore inglês o levou a essas idéias?

Já tive a curiosidade de estudar a roupagem dos cerimoniais religiosos. No século XIII, o Papa Bonifácio VIII deu aos cardeais o título de Príncipes da Igreja, incluindo-os na Ordem dos Príncipes. No fim do século XV, eles passaram a usar a cor púrpura e o barrete vermelho, vindo a ser chamados de Eminência no século XVII, com Urbano VIII.

Mas essa informação é preocupante. Por essa sua digressão histórica, esse assassino está pensando em atingir os escalões mais elevados da Igreja. Mas então não seria coisa de uma só pessoa. Teria de haver uma organização.

E, sem sair do seu estado de estupefação:

Ainda falta o senhor me dizer por que esses objetos o lembraram do crime de Roncesvalles.

"Esse homem está se fingindo de bobo. Em todo caso, é melhor manter um diálogo normal" — pensou Maurício, já cheio de cismas.

Quem melhor do que o assassino de Roncesvalles teria a oportuni­dade de conseguir roupas do clero? Assim que os vi, lembrei-me de que o crime da Colegiata fora cometido no interior de um monastério. O senhor esteve no quarto do padre Augusto. Suponho que ele tinha um armário onde guardava paramentos antigos.

Sim! No quarto havia um grande armário onde ele conservava coisas desse tipo. Parecia um colecionador de objetos que considerava sagrados.

Pois então esteja certo de que o assassino ficou escondido nesse ar­mário, onde teve a idéia de levar esses objetos como uma espécie de troféu, para serem exibidos na primeira oportunidade. O tecido foi cortado com um punhal ou coisa parecida. Ele o está desafiando, inspetor Sanchez.

Esperava que essas conclusões fizessem o seu indesejado companheiro voltar a Roncesvalles, mas o inspetor mandou para lá outro investigador e acompanhou-o até Puente la Reina. Estava mudo e acabrunhado porque vinha dando aulas de religião a Maurício que, de repente, se mostrara en­tendido em roupagens do clero para com isso descobrir a bolsa da mulher atrás de uma árvore.

 

                               CAPÍTULO 16

Na entrada de Puente la Reina existe um hotel com uma área reservada para peregrinos. O preço era razoável, o hotel tinha também um bom restaurante e decidiram hospedar-se ali mesmo.

O desvio para Eunate aumentara a distância, cansando-os mais que o normal. Agora o barrete vermelho e o tecido púrpura traziam a esses cri­mes um ingrediente novo: o ritualismo. Qual seria a misteriosa missão des­se assassino e sob as ordens de quem estaria ele?

Não tinha certeza de ter convencido o inspetor de que o desafio lançado pelo bandido se dirigia à polícia, porque tudo indicava que o alvo do roubo de Eunate era ele próprio. Seus pressentimentos provocavam dúvidas que preferia não ter, mas que seriam rapidamente confirmadas.

Um pouco de repouso depois do banho poderia ajudá-lo a pensar com mais objetividade, pois tudo levava a crer que novos episódios viriam e nunca gostara de ser pego desprevenido. Depois do descanso, teria também tempo para visitar Puente la Reina e a ponte mais simbólica do Caminho.

Deitado com as mãos sob o travesseiro, Maurício olhava para o teto. Es­tava de frente para a entrada do albergue e olhava os vultos dos peregrinos que chegavam com olhar inexpressivo e tiravam a mochila das costas, quan­do viu o rapaz alto, forte, com uma longa cabeleira e fisionomia simpática, parado na porta, como se procurasse alguém. Depois de percorrer as camas com seus simpáticos olhos azuis, perguntou num português carregado:

Algum de vocês é brasileiro?

O inspetor sentou-se imediatamente na cama e Maurício esperou para ver se outro peregrino se manifestava. O rapaz segurava um envelope:

Procuro um brasileiro chamado Maurício. Tenho este envelope para lhe entregar. Pousei no albergue de Cizur Menor e um peregrino que esta­va com o pé machucado pediu-me para ver se o encontrava em Puente la Reina. Disse que o envelope tinha uma mensagem urgente, que não podia se atrasar.

Maurício respirou fundo. Levantou-se e respondeu:

Deve ser comigo. Sou brasileiro e me chamo Maurício, mas você não é brasileiro. Onde aprendeu a falar português?

Fiz intercâmbio cultural com uma família em São Paulo, há cinco anos. Sou holandês. Esqueci muita coisa, mas ainda consigo falar um pouco.

A sua voz era trêmula, seus lábios estavam roxos e a pele do rosto meio branca, apesar do sol. Parecia cansado.

Você está se sentindo bem?

Estou meio cansado, meio zonzo.

É melhor deitar-se.

Olhou para os beliches e viu uma cama vazia. Ajudou o rapaz a tirar a mochila e a se deitar.

Você é capaz de descrever o peregrino que lhe entregou o envelope?

Sim, posso — respondeu o rapaz titubeante.

O inspetor olhava, desconcertado, para a cena e Maurício voltou-se para ele:

Arranje um médico com urgência. Este rapaz está com algum proble­ma sério e pode ter sido envenenado.

Envenenado? Mas como?

Pelo amor de Deus, inspetor! Chame uma ambulância. Isso me pa­rece urgente.

Ajudou o rapaz a tirar as botinas e desabotoou a camisa dele. Viu que suava frio e foi buscar água. Forçou-o a beber o mais que pôde e o rapaz vomitou uma gosma verde.

Quem lhe entregou o envelope? Por favor! Me diga.

Um peregrino. Uma figura estranha com um barrete vermelho na ca­beça. Disse que tinha torcido o pé e me pediu para tentar encontrá-lo aqui em Puente la Reina. Eu tomei veneno? Mas como? O senhor não vai abrir o envelope?

"O barrete vermelho"! Então ele entregou o envelope ao rapaz e depois saiu, certamente de motocicleta, para preparar o terreno em Eunate. Seria a mulher cúmplice dele? Não deve ser porque ela acompanhou os policiais para formalizar a queixa e seria identificada.

Os outros peregrinos se aproximavam curiosos, uns preocupados, outros querendo ajudar, mas o rapaz foi ficando mais pálido, os lábios mais roxos, os olhos vermelhos pareciam saltar das órbitas, e suava frio. Começou a tremer e Maurício olhava em volta, esperando a ambulância que o inspetor deveria chamar.

Poucos minutos depois, ouviu uma sirene e deu graças a Deus. Logo uma equipe de médicos e enfermeiros entrou no albergue e, após um exame rápido, levou o rapaz de volta a Pamplona.

O envelope ficara em cima da cama onde o rapaz estava deitado. Mau­rício pegou-o com a dobra do lençol e o abriu. Dentro estava um papel de bloco, com letras vermelhas e caligrafadas.

Leu a estranha mensagem:

"Os caminhos se unem numa só ponte para renegar o passado."

O detetive observou o cuidado que ele teve para pegar o envelope.

O senhor acha que o envelope está envenenado? Será que esse envelo­pe teria veneno suficiente para causar tanto dano assim ao rapaz?

Acho que sim. É um envelope áspero, meio esponjoso, e dependendo de quanto tempo o rapaz ficou com ele na mão, a quantidade de veneno pode ter sido fatal. O rapaz deve ter recebido alguma instrução boba, como, por exemplo, não dobrar o envelope ou segurá-lo de algum jeito apropria­do. É bem provável que não o tenha guardado no bolso, trocando-o de mãos quando suava. Foram várias horas de caminhada sob o sol.

O detetive o olhava, ainda sem acreditar.

E isso aí é para o senhor mesmo? Algum recado? Posso ver?

Maurício leu novamente e entregou o papel ao inspetor.

Alguém está fazendo uma brincadeira de mau gosto. As duas palavras-chave são ponte e destino. O senhor entende de charadas?

Tivemos um caso estranho de um serial killer que usava charadas para assustar as vítimas. Uma moça conseguiu escapar. Ela era estudante de ma­temática e nos ajudou a prender o assassino. Aprendi alguma coisa com ela e estou vendo que o senhor também entende disso.

Depois que minha mulher morreu, não conseguia fazer mais nada. Passei a comprar revistas de problemas, palavras cruzadas e charadas. Qualquer coisa que me ajudasse a passar o tempo servia.

Respirou fundo.

Alguém está nos desafiando. Acho melhor deixar o descanso para de­pois e irmos até a ponte.

"Quantos peregrinos entendem de charada?"

Mensagens em charada ou enigma só podem ser dirigidas para quem os compreende. Forçava o raciocínio para se excluir, mas não podia enganar- se: o rapaz o chamara pelo nome.

 

                                           CAPÍTULO 17

Antigamente, os peregrinos tinham de cruzar o rio Arga, utilizando-se de pequenos barcos, e muitos morriam no período das chuvas, arrastados pelas fortes correntezas. No século XI, a rainha Dona Mayor, esposa de Sancho III, mandou construir a ponte e daí derivou o nome da cidade.

A arquitetura foi a principal manifestação do desenvolvimento da Idade Média e a travessia dos rios era uma das dificuldades para o progresso. Construindo pontes, o homem mostrou a sua capacidade de dominar a natureza e comemorou a euforia de manter as comunicações entre os po­voados durante todo o ano, construindo algumas delas com esmero e arte, como a de Puente la Reina.

Seis bonitos arcos em curva sustentam a ponte, que começa num ponto elevado da cidade e cruza o rio. Um grupo de peregrinos aproveitava a sua sombra, sentados sobre um gramado, e entre eles uma mulher que Maurí­cio teve a impressão de já conhecer. Devia ter uns trinta anos, pele clara, rosto bem feito, face serena, olhos verdes, corpo esbelto com curvas harmô­nicas. Era uma mulher bonita e tinha um sorriso cativante.

Um pouco intrigado, voltou ao assunto que os levara à ponte:

O senhor é um policial bem preparado. O que acha que pode aconte­cer aqui? Se for aqui?

É possível concluir que queiram destruir a ponte, mas por quê? O Caminho não vai deixar de existir se a destruírem, e hoje a reconstrução é rápida.

Mas Maurício insistiu:

Esta é, sem dúvida, a ponte mais bonita do Caminho. Veja a beleza e a harmonia dos seus arcos romanos. E ela tem também sua lenda. A lenda do pássaro e Nossa Senhora do Puy.

Não estava satisfeito com aquilo. Esse novo tipo de mistério era dife­rente da violência clara das mortes anteriores. Pelo seu raciocínio, a vio­lência deveria continuar e essa história de charadas e derrubada de pontes era esquisita.

Em Puente la Reina, todos os caminhos se unificam antes da ponte, que passa a ser também um símbolo de união. Os templários deixaram ali re­gistros de sua presença, como a Igreja do Crucifixo, cuja primeira constru­ção data do século XII, com o nome original de Santa Maria de los Huertos. O crucifixo apresenta Cristo pregado numa árvore, e os peregrinos postavam-se diante dele, pedindo forças para poder chegar a Compostela. Com o infortúnio da Ordem do Templo, a igreja foi esquecida durante vários séculos.

O detetive interrompeu seus pensamentos.

Precisamos ir à catedral. Pode ser que haja alguma cerimônia que colocaria em perigo aqueles que a ela vierem.

Dirigiram-se à igreja de Santiago em torno da qual se desenvolveu concentricamente a cidade. A igreja foi também construída sobre uma outra do século XII, da qual se conservam as portas.

Na secretaria ficaram sabendo que no dia seguinte, domingo, haveria uma procissão às 8 da manhã até a ponte, onde uma missa seria celebrada em homenagem à Nossa Senhora do Puy, cuja imagem está hoje na catedral de São Pedro, em Estella. Antigamente, havia uma pequena torre que servia de capela para a imagem da santa e, segundo uma antiga lenda, um passari­nho esvoaçava ao seu redor e com o bico limpava a imagem. Depois descia até o rio e buscava água para lavar-lhe o rosto.

Ao saírem da igreja, o detetive começou a levantar dúvidas.

Talvez haja um atentado amanhã na hora da cerimônia e, se houver, muitas pessoas podem morrer ou sair feridas. Mas por que nos avisariam disso, se querem atingir os fiéis?

Se tivessem essa resposta, o problema poderia estar resolvido.

E quem estaria fazendo isso? Não sabemos ainda se é a mesma pessoa. Qual o propósito dessas mensagens? Pode ser uma simples brincadeira, mas depois desse aviso, se houver vítimas, a culpa passa a ser da polícia.

O inspetor continuou falando, como se pensasse em voz alta.

Podem estar nos preparando para alguma coisa mais séria. Não mata­riam o espanhol e o padre para esconder um atentado tão sem importância como destruir uma ponte, por mais histórica que seja. Estão mexendo com os nossos nervos. Tenho de informar meus superiores. Isso pode ser coisa desses terroristas bascos que estão atormentando a Espanha.

"Talvez fosse isso mesmo que esse grupo quisesse", pensou Maurício, pois assim, as forças de segurança da Espanha estariam dispersas e con­fusas. Mas preferiu não assustar o detetive, mesmo porque não adiantava fazer mais nada e o entardecer começava a trazer aos seres vivos a paz que antecede a hora do recolhimento.

 

                                       CAPÍTULO 18

O restaurante ficava no primeiro andar. Maurício estava sentado de frente para as escadas e fez um grande esforço para disfarçar o deslum­bramento que tomou conta dele quando a viu. Era a mesma mulher que estava sob a ponte e a mesma que acordara à noite em Roncesvalles. Subia agora as escadas, junto com o seu grupo de amigos.

Elegante e desembaraçada, movimentava o seu corpo escultural com aquele passo que os gatos levam anos para ensaiar. Lera essa frase não lem­brava onde, mas era bem aplicada àqueles movimentos.

Ela se aproximou com um doce sorriso que poderia servir de sobremesa:

O senhor não estava em Roncesvalles, há três dias? Acho que me lem­bro de quando entrou na igreja para a missa.

Maurício respondeu com outra pergunta, como se quisesse dizer que também se lembrava dela:

Teve sorte em não se machucar naquela noite, não foi?

Ela deixou que o seu envolvente sorriso ficasse apenas no ensaio e dirigiu-se ao inspetor:

Então, inspetor, já encontrou o assassino?

Lembrou-se de que o comandante em Roncesvalles tinha informações de que ele dormia na hora do crime. Mas, como ele sabia disso? Teria sido ela a dar essa informação? Nesse caso, a luz da lanterna percorrendo as camas não fora casual. E, sem consultar seu companheiro de mesa, convidou-a:

Não quer sentar-se conosco?

Chamava-se Patrícia e era americana. Estudara línguas neolatinas na Universidade de São Paulo e por isso falava bem o português, com um so­taque quase imperceptível. Estava fazendo o Caminho para escrever uma reportagem para uma rede de televisão que não quis dizer qual.

Na verdade, estava muito cansada naquele dia e não devia ter ido à missa dos peregrinos. Fiquei impressionada com aquela cerimônia. Não é todo mundo que está preparado para assistir a uma solenidade bonita e tão tocante no início de uma peregrinação difícil e mística como a que estamos fazendo. Todos os meus mea culpa me acusaram naquela noite e não dormi direito. Acordei meio zonza. Foi só isso.

O garçom veio com uma garrafa de vinho e eles pediram o jantar. Con­versaram sobre vários assuntos e ela comentou de maneira displicente:

Muito esquisito. A "rádio peregrino" está dizendo por aí que houve outro crime na subida dos Pireneus. Não foi só o padre.

A "rádio peregrino" são os boatos que passam de boca em boca durante a caminhada. Tem-se notícia de quase tudo e não é preciso ler jornais. O inspetor ficou quieto e Maurício respondeu:

Ouvi algo a respeito, mas espero que fique nisso. Já houve muitas mortes durante séculos no Caminho.

O detetive a olhou com curiosidade, quando ela perguntou:

Posso acompanhá-los até Estella, amanhã?

Mas e os seus amigos?

São ótimos, bons companheiros, mas vejo que vocês são mais estu­diosos do Caminho e gostaria de aprender mais coisas. Vi como se interes­saram pela ponte e depois foram visitar as igrejas. Meus amigos só querem saber de vinho e presunto.

 

                                                   CAPÍTULO 19

Logo de manhã, saíram em direção à ponte. Ao ver as ruas atulha­das de policiais e soldados, Maurício não resistiu:

Meus parabéns! Isso aqui está parecendo mais um campo de batalha do que uma pequena cidade do Caminho de Compostela.

Veículos carregados de policiais bem armados, técnicos em eletrônica, peritos de todos os tipos e um batalhão do exército. A segurança de Puente la Reina estava completa. Se alguma coisa de errado acontecesse, não seria mais culpa do detetive.

"Essa divisão de responsabilidades é bem típica dos incompetentes", pen­sou Maurício, sem resistir à filosofia barata.

A cerimônia foi adiada e a cidade continuou ocupada. Na entrada de Puente la Reina existe uma grande estátua de metal de um peregrino, na confluência do Caminho francês com o Caminho aragonês. Todos os pere­grinos foram submetidos a uma rigorosa vistoria junto à estátua.

Não adiantou o bispo interceder, considerando um ultraje ao Caminho aquele abuso contra os peregrinos que apenas buscavam o perdão dos seus pecados. A vistoria foi rigorosa. Nenhum veículo, nem mesmo ambulân­cias, pôde andar pela cidade no horário previsto para a cerimônia.

O detetive olhava desanimado para Maurício, que observava pensativo tudo aquilo. Alguma coisa tinha de acontecer, mas não se atrevia a fazer mais conjeturas. Depois do almoço, decidira seguir adiante, pois o proble­ma de segurança não era dele.

Expôs isso de forma elegante e educada, mas não conseguiu se livrar do policial, que quis acompanhá-los até Cirauqui, que na língua basca significa "ninho de cobras". Patrícia ia junto e depois de uma longa e íngreme subida, o detetive os levou ao cume de um morro, de onde se descortinava o vale do Arga com a cidade de Puente la Reina ao fundo.

Era um cenário maravilhoso até para quem já o havia apreciado onze vezes.

Essa é uma das coisas que me agradam no Caminho para Santiago. O peregrino para, olha para trás e sente uma satisfação que o ser humano não tem quando se volta para o próprio passado.

O inspetor fazia o seu monótono discurso, enquanto Maurício olhava a cidade de Puente la Reina, procurando uma resposta para a charada.

O senhor vê a torre da igreja? Não sei por que sinto certa nostalgia toda vez que vejo uma torre de igreja. Talvez seja porque se ergam solitárias buscando inutilmente a imensidão do infinito. Ou será porque os sons me­lancólicos dos sinos nos tocam a consciência lembrando a hora da oração ou o enterro de alguém? Ou quem sabe por que lá está o relógio, mostrando de longe o tempo correr inexorável em seus ponteiros? Não sei, mas gosto de ficar olhando para elas, de longe, porque também são os primeiros sinais de um agrupamento humano.

O olhar inexpressivo de Patrícia se dispersava pelo vale.

Maurício pensava se o sol quente e o cansaço da íngreme subida não teriam afetado as emoções do policial, que não parou sua estranha filosofia sobre torres de igreja.

Vejam, por exemplo, a torre da igreja de São Tiago, o padroeiro da cidade. Ela guarda segredos como a forma octogonal, que o arquiteto Ven­tura Rodrigues deu à parte superior.

Octogonal?!...

Sim! — respondeu um entusiasmado inspetor com o interesse de Maurício. Existe uma coisa curiosa no Caminho. No auge da peregrinação, a catedral de Santiago de Compostela chegou a ter receitas maiores que a diocese de Roma. Era tal a devoção ao santo, que os papas se assustaram. E, então, a Igreja começou a introduzir elementos que nada têm a ver com a tradição do Caminho, como a devoção a Nossa Senhora.

Não entendi isso aí! — exclamou Patrícia.

A devoção à Virgem Maria coincidiu com a descoberta do túmulo de São Tiago.

O homem gostava de provocações e falava novamente com aquele estilo místico que adotara em Eunate.

O Caminho estremeceu a hierarquia papal a tal ponto que o Papa Gregório IX fez uma procissão solene por toda a cidade de Roma, no ano de 1239, mostrando as cabeças de São Pedro e São Paulo — que aliás não se sabe se eram mesmo deles — apenas para mostrar que o Vaticano ainda tinha relíquias mais importantes que os ossos de São Tiago.

Credo! Do jeito que o senhor fala, a peregrinação pode ser interpre­tada como uma heresia.

É verdade. Desgostosa com os excessos da Igreja Romana, a espe­rança da cristandade se dirigiu para o túmulo de São Tiago, e a rapidez com que o movimento se consolidou despertou preocupações. Uma das maneiras de reduzir a importância do santo foi introduzir a Virgem no Caminho, como a imagem de Nossa Senhora de Nieble no século XVIII, aqui em Puente la Reina.

Maurício foi tomado de repente por uma inesperada inquietude e, me­nos interessado na história da cidade do que na interpretação da mensa­gem, perguntou:

Essa imagem ainda existe?

Sim, sim. Está na igreja de São Tiago.

São Tiago, o Caminho é de São Tiago, — começou a pensar Maurício em voz alta. A igreja é de São Tiago e a imagem de Nossa Senhora, a mãe de Deus, está na igreja de São Tiago, o dono do Caminho. Os caminhos se unem numa só ponte para renegar o passado, diz a charada. Nós nos preo­cupamos com a Nossa Senhora da ponte, mas os terroristas podem estar se referindo a essa Nossa Senhora que está na torre da igreja de São Tiago, o dono do Caminho.

O detetive pareceu atordoado, e só depois de alguns segundos de silêncio reagiu a esse comentário.

Não é possível. O que o senhor está querendo dizer agora? Que nós interpretamos a charada da maneira errada? Que eles nos induziram ao erro? Não vejo lógica em mais nada. E também não posso dar outra pista falsa para as forças de segurança do meu país. Vou cair no ridículo.

Não era momento para ter medo de ridículo. Afinal, até o exército espa­nhol já tinha sido movimentado.

Se for da sua conveniência, não precisa fazer isso. Eu falo com eles. Digo que tive uma suspeita e passo a responsabilidade para o comandante. É o mesmo do inquérito?

O detetive pegou o pequeno aparelho, hesitante. Olhou para Maurício, mas depois ele mesmo fez a ligação:

Comandante Perez. Aqui é o inspetor Sanchez. Temos quase certeza de que alguma coisa vai acontecer em Puente la Reina, envolvendo a Mãe de Deus. Pensamos que seria na ponte e na hora da cerimônia, mas pode ser que seja na igreja de São Tiago.

Mas era tarde. No mesmo instante, aquela paisagem ainda bucólica, ape­sar do sol quente, transformou-se num momento de pesadelo. Lá embaixo, nuvens negras subiam para o céu após uma explosão que se ouviu até onde estavam e, para surpresa deles, quando a fumaça desapareceu, a torre da igreja, que tantas vezes despertara o sentimento poético do detetive, conti­nuava de pé.

Eles haviam interpretado da forma correta a mensagem enviada por meio da charada. Apenas o momento da explosão fora aleatório. A ponte, que simboliza a união do Caminho e um destino único contrário a Roma, deixara de existir.

Não tinham mais o que fazer e Maurício notou a tristeza do seu com­panheiro, que lamentava não estar lá para evitar o incêndio que apareceu logo depois. O detetive teve de voltar para ajudar nas investigações, e eles continuaram.

Maurício subia, pensativo, o morro para Cirauqui. Esses atentados não tinham as características de terrorismo ou criminalidade comum. Algo mais sério e misterioso estava sendo articulado. Tinha também a impres­são de que o inspetor o alertava sobre a possibilidade de que fatos ocorridos num passado distante pudessem estar por trás desses crimes.

 

                                                                 OS CÁTAROS

 

                                   CAPÍTULO 20

Era a noite de 25 de maio de 1242 e o perfeito Olivier caminhava em silêncio por entre a vegetação à margem do rio Ariège, que serpenteia aos pés dos Pireneus na região de Sabartèz, no sul de França. As vezes, a claridade indiscreta da lua projetava sua sombra e ele recuava apressado para dentro da mata. Foram-se os tempos em que ele andava livremente pelos campos para ajudar os doentes e moribundos.

Nas noites claras, quando as estrelas e a lua embelezavam o céu, os perfei­tos costumavam sair pelos campos para tratar dos doentes e lhes adminis­trar o consolamentum, que purifica o espírito. Desde o início das persegui­ções, não podiam mais pregar nem mais caminhar livremente, e passaram a fazer suas orações em cavernas, bosques, esconderijos ou em casas de amigos, que guardassem segredo.

Os combates já duravam dezenas de anos e corpos de pessoas mortas ou moribundas se esparramavam pelos campos. Os perfeitos saíam à noite, não mais em dois como faziam antes, porque sozinho é mais fácil se ocul­tar. Caminhavam cautelosos, porque os cruzados podiam surgir de repen­te, e eram impiedosos. Um gemido ou um soluço poderia indicar pessoas ainda vivas que eles pudessem curar ou, pelo menos, com tempo ainda de serem consolados.

O choro e o desespero revelavam corpos mutilados dos que ainda vi­viam. Os mortos não reclamavam da dor e por eles nada mais podia ser feito. Olivier andava com cuidado, ocultando-se entre as folhagens, quando teve a impressão de ouvir um ruído diferente. Pareciam pisadas de alguém que vinha em sentido contrário na mesma margem do Ariège. Escondeu-se. Os passos foram se aproximando e ele viu o vulto de um homem man­cando que se apoiava num galho, que fazia de bastão.

Parecia fraco, cansado, e parou alguns metros de Olivier sem o perceber. Olhou em volta e agachou-se para beber um pouco da água do rio, mas caiu e ficou encostado no barranco, sem conseguir se levantar. Correu para ajudá-lo, e o homem o olhou como se estivesse vendo um fantasma. Olivier fez sinal de silêncio com o dedo na boca e, com jeito, arrastou-o para baixo dos arbustos. Pouco depois, o homem se recuperou e conseguiu falar:

Só um perfeito cá taro estaria aqui para ajudar um moribundo. Então me ajude. Preciso achar um Perfeito chamado Olivier. Tenho uma mensa­gem do pai dele.

Olivier levou um choque. Não via o pai desde os 8 anos de idade. Re­cebia notícias por intermédio de outros crentes ou pelos trovadores e, por essas pessoas, sabia que o pai estava bem e lhe enviava recados para se proteger. Um grande perigo pesava sobre ele, Olivier, e devia se esconder. Lembrava-se de que pouco antes de fugir, o pai lhe fizera prometer que se transformaria num perfeito. Não sabia por que, mas o pai insistiu que era muito importante e chegaria o dia de uma grande revelação. Ele e a mãe desapareceram. Soube que ela morrera de uma infecção pulmonar, mas que o pai continuava vivo.

E, então, sem pensar, perguntou:

Meu pai? Onde está ele?

Você é Olivier, o perfeito?

Sim, sou filho de Bernard e Cecille.

Oh! Senhor, Deus do Bem, eu Vos dou graças — e fizeram o melioramentum, a troca de cumprimentos entre um crente e um perfeito.

O peregrino tirou da bolsa um pergaminho e entregou-o a Olivier.

É uma carta do seu pai. Mas, preste atenção! Isso aí é um grande se­gredo e você não pode ficar aqui. Os soldados estão se aproximando.

E onde está meu pai? Por que ele não veio, como prometeu?

Não tenho tempo para explicar e sinto lhe dar uma notícia triste. Seu pai foi traído, mas ele não se entregou. Lutou contra os cruzados que foram prendê-lo e eles o mataram.

Meu pai, lutando? Mas ele é um cátaro. Não podia usar armas!

Vá embora antes que os soldados cheguem. Seu pai desconfiava que poderia ser preso a qualquer momento. Ele guardava o segredo que está no pergaminho e agora você vai compreender por que ele saiu daqui e por que usou armas. Ele sabia que podia ser preso ou morto e, se isso acontecesse, eu devia lhe entregar essa mensagem.

Olivier perguntou ao moribundo:

E você? Quem é você?

Sou seu tio, irmão do seu pai. Tínhamos de manter em segredo esse parentesco para proteger a nossa linhagem. Na carta está tudo explicado. Agora vá.

Olivier estava aturdido, sem reações. Nunca soube que tinha um tio. E que segredo seria esse que seu pai mantivera tão bem guardado?

Não posso ir. Não posso deixá-lo aqui. Você quebrou a perna, vou fazer uma tala e ajudá-lo.

É inútil, é inútil. Seremos presos os dois e nossa última esperança é você. Fuja!

E dizendo isso, puxou da cinta um punhal que estava escondido.

Não posso ser preso. Temo não resistir às torturas da Inquisição e revelar o nosso segredo, e aí então tudo estaria perdido.

Olivier nada pôde fazer. O moribundo foi rápido — agarrou o punhal com as duas mãos e o enfiou no próprio peito, na altura do coração. Arre­galou os olhos e deu um suspiro tombando de bruços.

Foi algo inesperado, sem tempo para reações. Olivier pegou seu braço e sentiu o pulso já quase desaparecendo. Deu-lhe o consolamentum e rezou pela sua alma. Pegou o pergaminho e refletia, indeciso, quando ouviu vozes e, então, voltou para o meio dos arbustos. Tinha de sair dali e andou rápido,

mas com cuidado para não movimentar a vegetação ou fazer barulho ao pisar no chão e, quando o rio fez uma curva, colocando um barranco entre ele e o lugar onde ficara o peregrino morto, entrou na água e continuou seguindo pelas margens, pisando no leito do rio para não deixar rastros.

Os soldados desconfiariam daquela morte e, ao examinar o terreno perto do morto, veriam as suas pegadas. Por sorte, ele estava descansado e apres­sou os passos, afastando-se do local.

Como imaginava, depois de alguns minutos, começou uma gritaria, in­dicando que o seguiam. Os soldados compreenderam que aquele peregrino morto significava que alguém devia ter recebido a mensagem que trazia, ou então o mataram para roubá-lo.

Mas, Olivier conhecia melhor do que qualquer outro a região monta­nhosa e cheia de cavernas do Sabartèz. Percorrera muitas vezes aquele rio, aonde vinha pescar com o seu grande amigo de infância. Chegou a um lugar onde as árvores se debruçavam sobre as águas e formavam uma mata fechada de ambos os lados. Ele subiu por um galho, como gostava de fazer quando os dois brincavam por ali, e foi passando com cuidado de árvore em árvore, afastando-se da margem do rio, em direção ao alto da montanha. Às vezes ficava quieto, tentando distinguir na sinfonia da noite algum barulho diferente, mas nada indicava que os soldados tinham desconfiado do seu ardil. Conhecia um bom esconderijo e subiu as escarpas do Montgrenier durante várias horas até chegar a uma pequena gruta oculta pela vegetação, onde se acomodou. Estava ansioso para ler a carta de seu pai e ficou de cócoras contra a parede com os olhos abertos e pro­curando não dormir, ansioso para o dia clarear.

 

                                        CAPÍTULO 21

Os primeiros raios do sol o encontraram de pé, oculto pelas árvores e com o pergaminho aberto. As palavras do peregrino, que se iden­tificou como irmão do seu pai, foram misteriosas e, quando a claridade do sol começou a chegar, ele estava trêmulo.

Mal começara a ler e levou um susto. Não podia ser! Alguma coisa estava errada. Mas era seu pai que dizia:

"Para Henry Christophe, meu filho, rei dos Francos"

 

Henry Christophe! Esse era seu verdadeiro nome. Quando seu pai fugira do Languedoc, deixara-o na casa de uns amigos que passaram a chamá-lo de Olivier. Era mais um dos misteriosos pedidos do pai: mudar de nome. Ninguém podia saber que ele era filho de Bernard e Cecille.

Olhou de novo o papel para conferir se a letra era mesmo de seu pai e não teve dúvidas. Fora o próprio pai que o ensinara a escrever e ele se lem­brava daquela caligrafia. Mas como podia ser o rei dos Francos, se o rei se chamava Luiz e estava em Paris? Seu pai, porém, continuava:

 

"Não estranhe a saudação. Você é o rei dos Francos.

Lembra-se da história do rei merovíngio Dagoberto? A Igreja aliou-se aos inimigos dele e o matou, mas ele tinha uma filha, de um casamento anterior, que era monja no Languedoc. Ela soube da trama e conseguiu salvar seu meio-irmão, Sigisberto, filho de Dagoberto, o herdeiro do trono.

O que eu vou revelar agora pode assustá-lo, mas acredite no seu pai.

Você deve estar lembrado do que lhe foi contado sobre os reis merovíngios serem os descendentes de Cristo. Eu, seu pai, sou descendente de Cristo e legítimo rei dos Francos. Se você está len­do esta carta, é porque não existo mais e, portanto, você é agora o legítimo herdeiro do trono francês. Você é um rei merovíngio e descende da Casa de Cristo."

 

Os olhos de Olivier se encheram de lágrimas. Fora de repente dominado por uma aguda saudade da mãe e do pai, que não ia ver mais. O amanhecer ainda não tinha trazido todas as suas luzes e as lágrimas turvavam as letras. Chorou e depois limpou o rosto molhado com as mãos. Estava desorientado.

Aprendera entre os cátaros que Cristo adotara forma humana, mas nunca ti­vera corpo humano, porque era um espírito enviado pelo Deus do Bem para dar exemplo e mostrar como chegar aos céus. O corpo era matéria e o mundo material tinha sido criado pelo Deus do Mal. Continuou a leitura.

 

"Nós, da linhagem de Cristo, vivíamos entre os cátaros para não sermos identificados. Agora, você é a única esperança de vin­gança do nosso povo e do povo que nos acolheu.

Sei que seguiu minhas duas recomendações: tornar-se um per­feito e manter o nome de Olivier. Fez muito bem. Perfeitos não se casam e não têm filhos, e esse disfarce evitaria uma perseguição especial a você, como a que aconteceu comigo. A Igreja suspeitava de que não tinha acabado com a linhagem merovíngia e, quando desconfiava de alguma família, matava-os a todos. Mudando de nome, não o identificariam como meu filho e, como perfeito, não poderia se casar, deforma que eles entenderiam que não estava preocupado em dar continuidade a uma linhagem. Eram duas maneiras de tentar enganar nossos perseguidores.

Estava tudo sendo preparado para que o trono fosse recuperado a partir do Languedoc, que deveria logo se transformar num país forte e rico, mas fomos traídos pelo conde de Toulouse, Raymond V, da família dos Saint Gilles. Ele pretendia ser o rei do Languedoc e enviou uma carta ao papa, pedindo apoio para acabar com a nova religião. Ele não sabia quem eram os descendentes dos mero- víngios, mas sabia que estávamos entre esses Bons Cristãos e, por isso, todos eles acabaram sendo vítimas da violência papal.

 

De onde estava, podia enxergar longe e um estranho movimento de pás­saros chamou sua atenção. Os soldados deviam ter esperado o amanhecer para recomeçar as buscas. Se os pássaros esvoaçassem apenas nas margens do rio, ele estaria seguro, mas se houvesse algum movimento de aves na su­bida do morro, tinha de sair logo dali. De fato, logo mais adiante, seguindo o curso do rio, novo movimento de pássaros indicava que seus perseguido­res seguiram em frente.

Respirou, aliviado, e voltou a ler.

 

Vou lhe contar uma coisa muito triste. Você nunca soube disso por­que o silêncio era a nossa maior proteção.

Quando nós morávamos em Bram, a cidade tentou resistir ao ata­que dos cruzados, que estavam sob o comando de Simon de Monfort, o destruidor do Languedoc. Bram foi capturada e Simon de Monfort mandou perfurar os olhos de cem pessoas. Entre essas pessoas estava minha mãe, sua avó.

Depois, ele mandou segurar meu pai, seu avô, e furou um só olho. Dando risadas de escárnio e humilhação, obrigou todos os cegos a se darem as mãos e mandou meu pai guiá-los, até o castelo do senhor de Cabaret, na região de Lastours, que também não aceitara a sub­missão a Monfort.

Ninguém pode descrever a dor de um filho ao ver perfurarem com a ponta de um punhal os olhos da mãe e depois cegarem seu pai, deixando-o ver com apenas um olho para guiar os demais por tri­lhas, rios, montanhas, no sol, na chuva, no frio, de dia e de noite, até chegarem ao castelo do senhor de Cabaret, onde foram soltos.

Essa maldade foi feita para semear o terror, como um exemplo ao povo do Languedoc. Esse seria o destino de todos aqueles que não se rendessem e não renegassem a sua fé. Nunca pude chegar perto dos meus pais durante a caminhada porque seria morto, como fizeram com todos aqueles que tentavam ajudar os próprios parentes.

De longe, eu via e ouvia. Caíam e, para se levantar, recebiam chi­batadas. Batiam em minha mãe e eu chorava em silêncio, abafava o meu soluço, esperando uma oportunidade para tirá-la de lá. Meu pai andava altivo como um rei. Caía porque tropeçava, mas guiava os demais para perto dos riachos onde podiam beber e se lavar.

Olivier já tinha ouvido relatos sobre essa barbaridade, mas não sabia que seus avós também haviam sido vítimas daquela brutalidade. Cada palavra o atingia no fundo da alma, como um martelo batendo nos pontos mais doloridos do corpo.

 

E assim chegamos a Cabaret. Os cegos foram abandonados pe­los soldados e o povo local os ajudou. Minha mãe morreu logo e meu pai ficou perto dela. Eu entrei no castelo e fiquei com eles. Chorava muito, mas meu pai me consolava. Ele dizia que eu pre­cisava ser forte e que, assim que eu me acalmasse, iria me contar um segredo.

Um dia, de manhã, nós nos afastamos dos demais e, olhando o vale grande e bonito do alto do castelo, ele me fez a mesma re­velação que estou lhe fazendo. E só então ele me explicou por que fazia questão de que eu estudasse, aprendesse a ler e a escrever. E agora você sabe por que eu fiz questão de lhe ensinar as mesmas coisas que ele me ensinou e de que você continuasse a estudar com a família que o agasalhou.

A nossa linhagem está guardada em códigos nas cavernas dos Pireneus e somente alguns sabem onde e como identificar os no­mes. Você é o primeiro da linhagem e precisa ter um herdeiro.

Esse herdeiro será cuidado pela confraria que guarda esses se­gredos. Foi por isso que estive fora todo esse tempo. Tínhamos de organizar o futuro do Sangue de Cristo.

A família que o acolheu foi escolhida pelo mesmo motivo. Eles também descendem da Casa de Cristo. Michelle é uma princesa merovíngia, e o pai dela sabe que vocês dois precisam ter um fi­lho. Ela está no Montsegur com o pai. Não existe mais lugar se­guro no Languedoc e, assim que ela estiver esperando o herdeiro, deverá sair da região.

O Perfeito Bertrand saberá como ajudá-lo.

O filho de vocês será levado para um lugar secreto. Talvez não haja esperança, nem mesmo para você, pois a perseguição não dará tréguas. Precisamos preparar um rei para se vingar do pre­sente. Quando um monge se identificar pelas três letras que você já conhece, é porque não há mais tempo a perder. Siga as instru­ções dele.

Lembre-se sempre de todos os episódios atrozes que a Igreja co­meteu contra nós, em nome do seu Deus. Os cátaros podem ter razão na existência de um Deus do Bem e um Deus do Mal, mas eles erram quando pensam que o Mal será vencido com amor. O Deus do Bem só vencerá o Deus do Mal, quando o Mal ficar enfraquecido. Esta é, agora, a sua missão eade todos os herdeiros do Sangue de Cristo: acabar com o Mal antes de praticar o Bem.

Rasgue esta carta em muitos pedacinhos e espalhe-os por vários riachos para que a tinta se apague e ninguém mais tome conheci­mento do seu conteúdo.

Seu pai, Bernard"

 

Como acabar com a tristeza quando ela chega? Mataram seu avô, ma­taram sua avó, mataram seu pai e sua mãe morreu porque vivia escondida nas cavernas úmidas dos Pireneus. E toda essa maldade havia sido feita em nome de um Deus que dizem ser cristão.

Precisava vencer o desânimo e sair dali. Mas, antes releu várias vezes a carta para mantê-la no coração e nunca se esquecer dessas crueldades. Depois, rasgou-a em pedacinhos e se sentou na beira da gruta. Enxergou ao longe o Montsegur, do outro lado do Ariège. Não podia correr o risco de voltar pelo mesmo caminho. Os soldados podiam ter ficado escondidos, esperando por isso. Seguiria as trilhas do alto do Montgrenier até fazer o contorno pelo leste e sair perto do Montsegur.

 

                                              CAPÍTULO 22

Três dias já haviam se passado desde que Olivier começara a descer o Montgrenier em direção a Montsegur. Escondia-se durante o dia em grutas ou copas de árvores e andava à noite pelas matas, evitando tri­lhas e estradas. Comia frutas silvestres e bebia a fresca água das abundantes fontes do vale.

Sua mente estava confusa. Crescera numa comunidade que só praticava o bem. Aprendera com eles que, quando o ser vivo morria sem estar prepa­rado para entrar no Paraíso, ele voltava para o reino do Mal para praticar uma vida de virtudes e se mostrar merecedor da felicidade eterna. Era no reino do Deus do Mal que se provava a virtude. Por isso, eles, os cátaros, praticavam o bem, comiam o que produziam, não acumulavam riqueza, não matavam, nem mesmo os animais, e não praticavam o sexo, embo­ra os crentes que não fossem perfeitos pudessem ter família. Não comiam carne de nenhum tipo de animal cuja reprodução era sexuada. Comiam apenas peixes porque acreditavam que eles nasciam da geração espontânea na água, sem atividade sexual. Podiam beber vinho, mas não leite.

Dividiam-se em crentes, ou "credentes", e bons homens. Eram também chamados de cristãos albigenses, porque a maior comunidade estava ao redor da cidade de Albi, mas se referiam a si mesmos como bons cristãos. Seus sacerdotes eram os bons homens, que recebiam o consolamentum e praticavam a castidade e a pobreza. A Inquisição passara a chamá-los de hereticus perfectus, para lhes impingir a acusação de que eram completamente heréticos, e dai ficaram conhecidos como perfeitos.

O consolamentum é, ao mesmo tempo, o batismo, a confirmação, a or­denação e, quando administrado na hora da morte, é também a extrema-unção, que purifica a alma para entrar no reino do Deus do Bem.

Mas eles eram puros e nem a guerra de difamação os atingira. Na Ale­manha, tinham sido acusados de adorarem Satã, dizendo que, quando re­zavam, seguravam o rabo de um gato e lhe davam um beijo. Passaram a ser chamados de cátaros, que vem da palavra Kate, do alemão provençal da Idade Média. Um monge fanático, Eckber, de Schonau, fez um sermão no ano de 1163 e os chamou de ketter, ou heréticos. Outro católico fanático, Alain de Lille, escreveu que deviam chamá-los de catus, que é gato em la­tim, o animal do Diabo.

O nome ficou, mas adquiriu sentido contrário daquele que pretendia a Igreja, pois o povo entendeu que a palavra cátaro vem do grego katharoi, que significa puro. Então, a Igreja lançou outras calúnias para afugentar o povo simples. O clero passou a dizer que eles praticavam orgias e matavam recém-nascidos em rituais de adoração ao Diabo.

Olivier aprendera também que Cristo era apenas espírito e nunca tivera forma humana, mas a carta de seu pai lhe trouxera outra verdade: Cristo fora um ser humano e tinha deixado uma dinastia de reis que a Igreja já vinha tentando extirpar.

Olivier caminhava, cuidadosamente, sob os arbustos, porque as noites primaveris eram estreladas e claras. Já vivia sobressaltado e as revelações do seu pai o pegaram de surpresa, deixando-o ainda mais nervoso.

 

                                   CAPÍTULO 23

Embora fosse um perfeito e esperasse a hora da morte para sair do mundo material e usufruir a felicidade eterna, Olivier tinha medo da dor e da morte. As cenas que presenciara durante esses anos tinham-no deixado assustado. A carta do pai aumentou ainda mais a sensação de perigo. Se desconfiassem que ele era um herdeiro merovíngio, iriam caçá-lo sem des­canso, por todas as entranhas dos Pireneus.

O Languedoc era praticamente um país autônomo e sua capital, Toulouse, era maior que Paris, ombreando com Veneza e Roma. A cultura occitana era a mais adiantada de toda a cristandade e já contagiava outras partes da Europa. O Conde de Toulouse era também Duque de Narbonne e Marquês da Provence e Vivarais, Barão de Montpellier, Gevauden, Rouergue, Béziers e Carcassone, Conde de Foix, Comminges, Quercy e Agenais e Viscon­de de Couserans. Diziam que seus domínios eram maiores que os do Rei de França.

A região tinha até língua própria, a langue d'Oc, a língua do "sim", que passara a ser empregada no sul justamente para se diferenciar da langue d'oil (também "sim", mas com outra pronúncia). Com língua própria e re­ligião independente do papado, existia de fato e direito o país d'Oc, a terra occitana, onde os senhores e nobres locais apoiavam os cátaros e adotavam formalmente a nova religião, que não concorria com eles na cobrança de impostos, como os bispos católicos.

Mas, apesar de suas riquezas, o Languedoc não tinha uma hierarquia política e uma organização que o mantivesse unido. Disputas e acordos de vassalagem com os reis de França, da Itália e de Aragão, em busca de maior poder regional, criavam condições para semear a desarmonia.

No dia 13 de janeiro de 1208, na cidade de Saint Gilles, na margem do rio Ródano, perto de Aries, o legado papal Pedro de Castelnau foi assassinado. Era uma notícia que parecia esperada, porque imediatamente o papa reagiu com ferocidade e conclamou os senhores do norte e Imperadores cristãos para uma cruzada que limpasse o Languedoc da heresia.

A quem interessava esse crime?

Os cátaros não usavam armas e não praticavam violência, mas o assas­sinato do legado papal servira de pretexto para o Papa Inocêncio III dar início ao genocídio dos cátaros, num feroz ritual de crimes inomináveis.

Uma poderosa força de mais de 50 mil soldados, chamada de Cruzada Albigense, foi entregue ao comando de Simon de Monfort, amigo do rei. Logo no primeiro assédio, a cruzada mostrou toda a sua ferocidade.

No dia 27 de junho do ano de 1209, a cidade de Béziers foi cercada e, por causa de um descuido de suas defesas, acabou dominada em poucas horas. Simon de Monfort tinha ordem para exterminar todos os hereges. Mas, como saber quem era ou não católico? Monfort mandou uma mensagem ao novo representante do papa, o abade de Cister, Arnaud-Amaury, para saber como distinguir os cátaros das outras pessoas.

A resposta do abade ficou na história:

"Mate-os a todos. Deus reconhecerá os seus."

 

Mais de 20 mil pessoas foram barbaramente assassinadas em nome de Deus, nessa cruel carnificina. Cristãos e não cristãos, católicos e judeus, mu­lheres e homens, velhos, crianças e até mesmo sacerdotes e bispos católicos foram mortos. A bela cidade de Béziers, situada numa colina à margem do Orb, foi saqueada, destruída e incendiada. A Deus coube julgar aqueles már­tires e a Ele coube também julgar quem os assassinou tão barbaramente.

Para celebrar a carnificina, o abade Amaury enviou ao papa uma mensa­gem em que dizia: "Os efeitos da vingança divina foram prodigiosos".

Depois do massacre de Béziers, o exército dos cruzados sitiou Carcassone, cidade fortificada no alto de uma colina à margem do rio Aude. Diante do terror que se espalhara pelo Languedoc após a destruição de Béziers, um grande número de pessoas buscou asilo dentro das inexpugnáveis mu­ralhas de Carcassone. Os cruzados conseguiram, porém, cortar o acesso ao rio, deixando a cidade sem água. O tempo seco ajudou os agressores e logo a sede e as doenças venceram as inexpugnáveis muralhas da cidade. O Vis­conde de Trancavel acabou assinando um acordo de capitulação pelo qual ele ficaria livre e a população seria poupada.

Não houve massacre em Carcassone, mas a população teve de abandonar a cidade, deixando todos os seus bens, até mesmo a roupa do corpo. Simon de Monfort não respeitou o acordo feito com o Visconde de Trancavel e o prendeu nas masmorras do seu próprio castelo, onde morreu assassinado alguns dias depois, e seus títulos, bens e terras passaram para Monfort.

No dia 22 de julho de 1210, a cidade de Minerva foi sitiada. O abade Amaury e Simon de Monfort decidiram que, se seus habitantes abjurassem a sua crença não-católica, seriam salvos. Viviam, em Minerva, 140 perfeitos e perfeitas que se negaram a rejeitar sua fé e foram condenados à fogueira. Assim que a madeira foi amontoada, eles se dirigiram espon­taneamente para o local e, quando o fogo foi ateado, começaram a entoar cânticos religiosos.

O castelo de Lavaur foi tomado no dia 13 de maio de 1211, após re­sistência de apenas dois meses. O exército de Cristo, como também eram chamados os cruzados, e entre eles vários nobres, bispos e abades, entrou na cidade passando a fio de espada toda a população que via pela frente. Dona Geralda, castelã de Lavaur, estava grávida e foi enterrada viva, com uma lápide em cima para que seus gemidos não fossem ouvidos. O irmão dela, junto com 80 cavaleiros, seriam enforcados, mas o cadafalso caiu. Si­mon de Monfort mandou retalhá-los à espada e cortá-los em pedaços, num acesso de raiva, porque queria vê-los pendurados pelo pescoço.

Nunca saiu da memória de Lavaur a imagem daqueles 400 crentes que seguiram o exemplo dos perfeitos e caminharam para a fogueira rezando e cantando.

Em Cassès, no mesmo ano de 1211, morreram 600 pessoas entre judeus, perfeitos e crentes. Em Moissac, foram queimados 210. E ali até os monges cistercienses, indignados com tanta maldade, esconderam alguns hereges.

Todo o território do Languedoc foi pilhado. Fogueiras imensas eram acesas e, nelas, homens, mulheres, jovens e crianças foram assassinados, numa orgia selvagem praticada em nome de Deus.

Não era mais possível apreciar a beleza das flores dos campos ou o verde das florestas. O entardecer mudara o colorido dos raios do sol para os tons escuros das nuvens negras que subiam das chamas das casas e dos trigais incendiados. Quantas vezes Olivier se escondera em grutas ou no cimo das árvores, de onde ouvia os gritos das vítimas e o barulho das armas espan­tarem as aves e os animais, que fugiam desorientados, quebrando a paz dos vinhedos e a harmonia dos bosques!...

Olivier sentiu um arrepio carregado de piedade, horror e ódio ao se lem­brar da inominável barbaridade que os cruzados cometeram na cidade de Bram, onde seus avós foram obrigados a caminhar dezenas de quilômetros com os olhos perfurados, até o castelo do Senhor de Cabaret.

 

                                         CAPÍTULO 24

Um dia, O Deus do Mal se vestiu com as roupas do Deus do Bem e veio de mansinho ao Languedoc, imitando os perfeitos.

Ele tomou o nome de Domingos de Gusmão e desceu para a cidade de Longeais vestido como um bom cristão. Andava descalço e, como os per­feitos, ia de vilarejo em vilarejo, pregando o catolicismo. Mas era um falso e, diante do fracasso de suas tentativas, criou uma organização criminosa para torturar e perseguir os bons cristãos.

No ano de 1216, ele fundou na cidade de Toulouse a Ordem dos Domi­nicanos, que passou a ser chamada de Ordem dos Cães do Senhor (Domini Carmes, em latim). Sua crueldade foi tanta, que inspirou a criação do Tri­bunal do Santo Ofício, também chamado de Inquisição, cuja missão era acabar com a heresia dos cátaros.

Temidos e odiados, os dominicanos transformaram o arrasado Languedoc numa região de terror, traição e denúncias. Só escapava da fogueira quem denunciasse o vizinho, o pai ou um amigo. Onde chegavam, mandavam desenterrar os mortos e os empilhavam na praça central sobre feixes de madeiras embebidas em betume e ateavam fogo. Gritavam para o povo:

— Isso é o que acontecerá a vocês se não confessarem suas heresias ou não denunciarem aqueles que não aceitam os sacramentos da Igreja Católica.

Para facilitar as denúncias, o Papa Inocêncio III, no Concilio de Latrão de 1215, obrigou a confissão uma vez por ano diante de um padre. Aqueles que não se confessassem eram considerados hereges ou judeus, e a Inquisição os torturava e depois os matava. Essa obrigatoriedade tinha por finalidade descobrir quem não era católico. Aos que se confessavam, eram prometidos o reino dos céus e os bens pertencentes ao herege que tivesse denunciado.

Distraído por suas lembranças, Olivier se assustou com o ruído de cavalos que vinham da direção do Montsegur. Jogou-se atrás de um barranco e pro­curou desesperadamente um caminho por onde fugir, porque o número de cavalos era grande. Mas não havia mais tempo. Ao se aproximar do Montse­gur, cometera o descuido de andar muito próximo da estrada, acreditando que não teria mais problemas. O melhor que podia fazer agora era continuar imóvel no mesmo lugar.

Os cavaleiros se aproximavam com rapidez e ele respirou, aliviado, ao ver que passaram perto dele e seguiram estrada afora. Calculou aproxima­damente uns 50 cavaleiros. Não eram soldados do rei ou cruzados do papa. Pareciam mais cavaleiros faiditas (faidifs), nobres e senhores excomunga­dos e despojados de seus bens, que apoiavam os cátaros e se refugiavam agora no Montsegur.

Esperou um pouco, porque esses cavaleiros poderiam estar sendo se­guidos, ou até mesmo perseguidos, e depois seguiu rumo à montanha que o esperava.

E lá longe, brilhando sob a lua prateada, estava o Castrum Montis Securi, como os romanos o chamavam, o Castelo do Monte Seguro, uma fortaleza solitária e emudecida pela tristeza.

Desde o início das perseguições, o Perfeito Guilhabert de Castres, tam­bém chamado de bispo, elegera o castelo de Montsegur como a nova sede da igreja cátara. O perfeito Guilhabert de Castres era o maior teólogo dos cátaros e, após sua morte, o perfeito Bertrand Marti o sucedera. Logo que as perseguições começaram, no ano de 1206, Raymond de Peyreille, na época proprietário do Montsegur, resolveu fortificar o morro. Construiu então um castrum, uma vila protegida por muralhas e bem no alto ergueu sua torre de defesa, o donjon, junto à qual construiu uma pequena mansão de pedra para sua residência.

Olivier aproximou-se pela rampa sul e os vigilantes o reconheceram. Logo que passou pela muralha, um estranho pressentimento tomou conta dele. Já era tarde da noite e muitos ainda estavam de pé. Ele foi saudado pelo perfeito Bertrand e, como estava cansado, procurou um lugar para dormir.

Na manhã seguinte, percebeu que o vilarejo estava agitado, como se aguardasse notícias de um grande acontecimento. Havia pessoas olhan­do por cima da muralha e logo vozes animadas chamaram sua atenção.

Lá embaixo, uns 50 cavaleiros tinham subido o morro, montados em seus animais até onde puderam, e agora completavam o percurso, puxando-os pelas rédeas.

Com a fisionomia sombria, o perfeito Bertrand Marti e os demais perfei­tos rezavam. Alguma coisa séria acontecera. Ele esperou, pacientemente, os cavaleiros entrarem para saber das novidades. À frente vinha Pedro Rogé­rio de Mirepoix, o senhor de Montsegur. Eles chegavam de Avignonet e re­latavam os fatos, como se tivessem vencido a guerra contra o rei e o papa.

Os inquisidores Guillaume-Arnaud e Etienne de Saint-Thiberi vinham percorrendo vilarejos perto do vale do Aude e do Ariège, e os boatos davam conta de que eles tinham uma lista de nomes obtida mediante confissões arrancadas sob torturas e ameaças, que os oito escrivães que os acompa­nhavam registraram cuidadosamente. Entre esses nomes, estavam parentes e amigos dos cavaleiros faidifs refugiados no Montsegur.

No dia anterior, os inquisidores tinham chegado a Avignonet e o senhor D'Alfaro, representante local de Raymond VII, o Conde de Toulouse, alo­jou-os na sala da torre do castelo. Durante a noite, quando os inquisidores já estavam dormindo, os cavaleiros faidifs, com ajuda de pessoas de Avignonet, entraram na torre e mataram os dois inquisidores e os escrivães com ma­chados, facões e foices. Depois do massacre, rasgaram todos os registros da Inquisição e roubaram o dinheiro e os pertences das vítimas.

Esse gesto de imprudência e coragem despertou a população. Palácios de bispos, igrejas e abadias foram saqueados e os franceses do Norte, que ocupavam propriedades na região, foram expulsos. Mas foi uma tentati­va frustrada de recuperar o prestígio do passado. O Conde de Toulouse, depois de chicoteado dentro da catedral de Paris, acabou assinando um tratado com o rei de França, com quem tinha parentesco, mas os cátaros não foram perdoados.

Num conclave em Béziers, no começo de 1243, os bispos decidiram que o Montsegur, a "sinagoga de Satã", não podia mais existir.

 

                                       CAPÍTULO 25

O assassinato de Avignonet também complicou os planos de Olivier.

Em vão, ele percorreu as cavernas dos Pireneus em busca de nomes com os quais pudesse identificar os demais ramos da sua família. A idéia de que era rei crescia em sua cabeça. Pela carta de seu pai, uma sociedade secreta cuidaria de educar e preparar um rei que, no futuro, restauraria a grandeza do seu povo. Mas ele se sentia frustrado. Se era o rei, então essa sociedade lhe devia satisfações.

O rei francês Luís IX dera ordens para que o Conde de Toulouse, Raymond VII, acabasse com os cátaros que ainda existiam. O conde organizou um exército, mas tinha vários parentes e cavaleiros amigos refugiados no alto do Montsegur e voltou com sua tropa, alegando que o morro era inexpugnável. Luís IX ordenou, então, ao funcionário real, Hugo de Arcyz, responsável por Carcassone, que tomasse o Montsegur e matasse todos os cátaros.

As planícies que se estendiam em torno do morro começaram a ser vi­giadas. Pequenos grupos de guerreiros vindos da Gasconha, da Aquitânia e de outras regiões armaram tendas em torno do Montsegur, e a cada dia o número dessas tendas aumentava. O dever de vassalagem reunira toda a região do Languedoc e outras à sua volta para formar um grande exército.

O perfeito Bertrand Marti olhava cismado para o sopé do morro onde pequenas nuvens de fumaça saíam das tendas dos guerreiros nelas acampa­dos. Na carta, o pai de Olivier dizia que o perfeito saberia como ajudá-lo.

Olivier saudou-o com o melioramentum e procurou ser objetivo:

O senhor sabe a respeito do meu pai?

Os olhos calmos de Bertrand pousaram sobre a sua face.

Sua família é a última descendente dos merovíngios.

Olivier não escondeu a preocupação e olhou para os lados.

Não se assuste. Sei o conteúdo da carta de seu pai. Sei o que deve fazer.

E, no mesmo tom místico, tentou se justificar:

Vocês foram enviados a este mundo como espiões do Deus do Bem para se infiltrar no reino do Deus do Mal. E é nesse sentido que eu posso ajudá-lo. Se compreendesse de outra forma, perderia todo o esforço que já fiz para purificar a minha alma.

Então as histórias que me contaram sobre o rei Dagoberto e seu filho, Sigisberto, são verdadeiras?

Os cátaros guardaram o segredo da sua família porque tinham a espe­rança de que, assumindo o trono de França, vocês permitiriam a liberdade de religião. E ainda temos essa esperança. Você é um perfeito e, no momen­to em que praticar um ato sexual, também perderá tudo aquilo que fez de bom e deverá recomeçar a sua purificação.

E, olhando passivamente para Olivier, como se já soubesse da resposta:

Qual a sua decisão?

O Deus do Bem não vencerá essa guerra se as forças do Deus do Mal não forem enfraquecidas. Vou cumprir a vontade do meu pai — respondeu com firmeza.

Bertrand balançou lentamente a cabeça para baixo e para cima durante alguns segundos e fez outra revelação.

Além do segredo da sua família, os cátaros guardam documentos pe­rigosos. Toda essa carnificina praticada contra nós teve apenas a finalidade de acabar com os descendentes merovíngios e encontrar documentos que estão em nosso poder. O papa não está preocupado em salvar almas, mas em manter o poder da Igreja e dos senhores que o apoiam.

Pouco importavam agora os motivos que levaram a Igreja de Roma a perseguir os cátaros. As esperanças se apagavam e ele tinha uma missão, mas, ouvia Bertrand com interesse.

Na época do Imperador Deocleciano, houve uma grande perseguição ao cristianismo e ele deu ordens para queimar todos os escritos cristãos. No entanto, alguns documentos foram salvos, mas só podem ser revelados quando houver condições para serem lidos e entendidos. Os evangelhos foram posteriormente reescritos por ordem do Imperador Constantino, mas é fácil deduzir que omitiram e acrescentaram o que interessava ao imperador. Muitos cristãos foram condenados como hereges, porque re­jeitaram os evangelhos de Constantino.

Bertrand não queria abordar a delicada questão da linhagem de Cristo porque não acreditava nisso, mas Olivier o olhava firme nos olhos, e o per­feito não teve escolha.

Um desses escritos é chamado de Evangelho de Maria Madalena, um evangelho incoerente com a nossa fé. Há quem acredite que ela teria sido esposa de Cristo, mas digo que não pode ser o mesmo Cristo, o Espírito da Luz, enviado por Deus para nos mostrar o Caminho.

Olivier desconsiderou a explicação.

E onde estão os escritos de Madalena?

Conforme já disse, você não os verá. Eles serão retirados do Montse­gur e entregues aos novos guardiões, junto com outros documentos.

Então os evangelhos ocultos estavam no Montsegur e a sociedade secreta confiara-os ao bispo Bertrand, que não acreditava na dinastia de Cristo e por isso seria o último a levantar suspeitas. Olivier compreendeu que os cátaros devem ter assumido um compromisso com os descendentes de Sigisberto e ainda os protegiam.

E como você pode me ajudar?

Talvez eu não possa ajudá-lo da maneira como pensa. Mas você já tomou sua decisão e tem agora uma missão a cumprir.

 

                                 CAPÍTULO 26

Aproximava-se o mês de dezembro do ano de 1243 e lá embaixo, aos pés do Montsegur, a neve se derretia com o movimento dos animais e dos soldados. Mais de 10 mil cruzados esquentavam-se em muitas fogueiras, enquanto os crentes sofriam com o gelo, a falta de roupa, alimentos e água, atrás das muralhas de pedra.

Olivier olhava com tristeza aquela paisagem desoladora da morte. Seu pai tinha razão ao dizer que o Conde de Toulouse dera início a essa violência, mas também fora vítima dela, assim como seus herdeiros, condes Raymond VI e Raymond VII.

Arbustos cobertos de neve resistiam à leve brisa que passeava pelos picos zelados dos Pireneus. A vigilância durante a noite era mais difícil e Olivier tomava conta da rampa de acesso na face sul, de onde podia contemplar o Monte de São Bartolomeu, quando teve a impressão de que alguém se arrastava sobre o solo gelado, como se não quisesse ser visto.

Em uma época de fugas e armadilhas, não era novidade que alguém se esgueirasse furtivamente na noite. Por outro lado, no alto do Montsegur não dava para plantar alimentos suficientes. Os cátaros, então, faziam pen­des de madeira, tecido, ferramentas, pães, sandálias e outros produtos artesanais para trocar por alimentos nos vilarejos vizinhos. Mesmo durante o cerco, eles conseguiam sair, porque muitos soldados foram recrutados entre moradores da região e eram amigos ou parentes dos sitiados.

Olivier ficou atento, porque podia ser um desses moradores do Montseair. Mas, por que vinha se arrastando e se escondendo como um fugitivo? Se estava só e sem armas, bastava levantar as mãos e poderia entrar. Estaria doente ou machucado? Não saiu da sua posição porque podia ser uma ar­madilha, e procurou um ângulo entre as pedras para ver melhor.

Ao mudar de lugar, porém, perdeu a visão do vulto e ficou em dúvida. Teria mesmo visto alguém? Estava pensando que se enganara, quando foi surpreendido com o vulto já perto dele, do lado de dentro da muralha. Ia perguntar como conseguira entrar, quando notou que era um monge, a cabeça coberta por um capuz e a mão direita mostrando um crucifixo com as letras L.P.D.

Na carta, o pai falara que um monge o procuraria e se identificaria por meio de três letras. Olivier sabia que aquelas letras eram o símbolo da Con­fraria Negra.

O monge perguntou em voz baixa:

— Você cuidou da dinastia?

Não soube como responder e ficou em silêncio.

Há rumores de que Hugo de Arcyz contratou montanheses gascões para subir a falésia do outro lado. Provavelmente, eles aproveitarão esta noite, que está bastante escura.

Olivier não acreditou. Ninguém conseguira até agora subir por ali. Eram cem metros de altura numa parede reta de pedra. A estratégia da defesa do Montsegur baseava-se em que os soldados não conseguiriam enfrentar o inverno rigoroso. De fato, muitos deles já queriam desistir, e o próprio Hugo de Arayz estava para reconhecer a sua derrota. Se o cerco continuas­se, não conseguiria segurar aqueles recrutas ali, ao pé do morro, suportan­do os gélidos ventos. As árvores para fogueiras estavam escasseando e os soldados debandariam. Essa era a esperança dos cátaros, mas a notícia de que os montanheses subiriam o morro mudava tudo.

Você precisa seguir a orientação do seu pai. Depois que cumprir a missão, Michelle deverá sair daqui. Não tente segui-la porque revelará o segredo. O perfeito Bertrand Marti sabe para onde ela será levada. Não se preocupe, porque ela será protegida e o herdeiro será preparado para des­truir os maus e salvar a linhagem sagrada.

Olivier não estava satisfeito. Aquilo parecia outra armadilha. Fez uma pergunta, embora soubesse de antemão que o monge teria resposta já pre­parada e por isso não ficou surpreso.

E como é que você passou pelos soldados que cercavam o morro?

Acompanhei o arcebispo Pedro Amiel, de Narbonne.

Não disse mais nada. Misteriosamente, como chegou, o monge ocultou-se nos ângulos da muralha e desapareceu.

Lembrou-se então de outra recomendação misteriosa que o pai lhe fizera antes de partir: quando encontrasse um amigo de sua inteira confiança, devia fazer com ele um pacto de lealdade. Olivier compreendia agora por que, mas não era hora de pensar no passado e saiu correndo e gritando, para acordar todo o vilarejo.

Chegou perto da torre junto à qual Pedro Rogério de Mirepoix constru­íra sua pequena fortaleza de pedra e acordou quantos pôde, mas era tarde.

Os montanheses haviam subido o morro e degolado os vigilantes desprevenidos. A tomada do posto de vigilância mudara radicalmente a situação. Os sitiantes conseguiram manter o posto e, em poucos dias, montaram uma catapulta, de onde lançavam bolas de pedra, que destruíam as casas e matavam os moradores.

O desânimo tomou conta dos sitiados e, enquanto os faiditas se prepa­ravam para uma luta ferrenha e um armistício honroso, os perfeitos anima­vam os crentes com a perspectiva de que logo estariam nos céus, chamados pelo Deus do Bem, e se reuniriam a todos os outros que foram vítimas da crueldade do papa.

Lembraram a coragem e a fé daqueles que foram martirizados, como um exemplo a ser seguido, porque o corpo era apenas o instrumento do sacri­fício e só com o sofrimento se purifica a alma.

Pedro Rogério de Mirepoix, o novo titular do castelo, tinha organizado a resistência, impedindo que os soldados do rei subissem pelas trilhas das ca­bras, ziguezagueando por entre a vegetação coberta de neve. Setas certeiras os faziam correr de volta, e foi assim que resistiram, durante nove meses, com a esperança de que a chegada do inverno desanimasse os sitiantes.

Antes do cerco, era grande a população de perfeitos e crentes que mora­vam nas casas ao seu redor. Agora a população do Montsegur se limitava a 200 cátaros, protegidos por 150 faiditas, que enfrentavam corajosamente os cruzados na defesa do castrum.

Imóvel e pensativo, Olivier contemplava por cima da muralha as tropas preparadas para cumprir as ordens do papa e jogar, todos eles, vivos em fogueiras formadas com as lenhas daqueles mesmos arbustos que um dia os esconderam.

Enquanto olhava os campos distantes, Olivier lembrava-se da carta dei­xada por seu pai. Seus olhos marejavam. Perdera a mãe, perdera o pai e iria também perder a vida.

Seu pai tinha razão: "O Deus do Bem só vencerá o Deus do Mal quando o Mal ficar enfraquecido".

 

                                   CAPÍTULO 27

Michelle espelhava toda a beleza e juventude de seus de­zoito anos. A guerra não a assustava porque ela era uma perfeita preparada para o sacrifício. Mas Michelle estava triste e confusa.

Havia três dias seu pai morrera tentando salvá-la. Ele era um crente e não podia usar armas nem lutar, mas ficava na retaguarda dando apoio aos faiditas. Ela o ajudava e não viu a enorme pedra que vinha para cima dela. Só percebeu o perigo quando sentiu o empurrão e ouviu o grito do pai. Os montanheses já haviam escalado o morro e construído uma pequena catapulta para lançar pedras contra os defensores, que se protegiam nas pequenas muralhas construídas na colina.

Lembrava-se agora com tristeza daquele momento. O pai tentou salvá-la, mas não conseguiu evitar que a enorme pedra o atingisse no peito. Ela correu para segurar a cabeça dele, que mal conseguia falar. Só a crença no Deus da Bondade impediu que naquele momento ela caísse no desespero.

O pai a olhava com o rosto angustiado, tentando falar. Ajoelhara-se len­tamente e passara as mãos pela cabeça dele. Inutilmente tentara empurrar a pedra e, antes que outras pessoas chegassem, ouvira do pai uma coisa as­sustadora. Ela era descendente direta de Jesus Cristo e logo seria informa­da de como devia dar continuidade ao Sangue Real. Ele murmurara frases estranhas, que ela não entendeu na hora, e o olhar dele fora ficando cada vez mais distante dela, até que momentos depois, não mais a viu. Queria ter dito ao pai o quanto o amava, mas o soluço, as lágrimas e o horror de tudo aquilo a emudeceram.

Depois daquele momento triste, lembrou-se da estranha revelação e pen­sou que ele estivera delirando. Ela, portadora do Sangue de Cristo? Herdei­ra de Cristo, que deveria dar continuidade ao Sangue Real? Ele conseguira ainda dizer, com voz quase inaudível, que ela fora eleita. Que ficaria surpre­sa, assustada, até mesmo indignada, que acharia tudo aquilo um absurdo, mas era a vontade de Deus. O pai dissera que ela não poderia se negar, porque o seu pecado seria ainda maior do que o pecado que ela achava que ia praticar.

Naquele momento, ela concordou chorando e, depois que o pai morreu, fechou-lhe os olhos e aguardou a chegada do Anjo Gabriel para lhe dizer em sonhos que ela era uma bem-aventurada, como a Virgem Maria.

Mas esse sonho não acontecera. Ela estava agora na muralha perto da sua casa, oculta sob os frondosos carvalhos, sem o pai para protegê-la e esperando a morte na fogueira, quando o perfeito Olivier se aproximou dis­cretamente e lhe disse para ficar acordada naquela noite. Ela deveria voltar àquele mesmo lugar e ele viria encontrá-la logo que escurecesse.

Ela também tinha recebido o consolamentum e não estranhou o pedido de Olivier. Podia ser algo relativo à vigilância do castelo, em que todos eles ajudavam. A religião proibia o uso de armas, mas juntos podiam vigiar me­lhor. Eles não eram muitos, e ficavam em duplas, a uma distância de cerca de 50 metros para essa vigilância. Estava escuro, devia ser mais de onze horas, quando ela ouviu os passos de Olivier.

Ele se aproximou bem perto dela e, meio envergonhado, perguntou se ela sabia da sua missão. Compreendeu então que aquele era o momento da revelação. Mas não foi como esperava.

Ele pediu para ela continuar de pé para não chamar a atenção, como se fossem duas sentinelas da muralha. A maneira como falava era estranha e ela não soube por que, mas começou a tremer. Ele quis saber se o pai lhe havia dado instruções antes de morrer. Respondeu que sim e, de repente, começou a compreender que o Anjo Gabriel a havia abandonado.

Não sabia o que ia acontecer, mas antevia algo diferente, para o qual não estava preparada. A mãe morrera quando ela era ainda pequena e o pai nunca lhe falara sobre nada daquilo. Fechou os olhos e começou a rezar. Ele explicou o que tinham de fazer, como uma espécie de sacrifício para cumprir a vontade de Deus. Ela estava encostada na muralha e ele disse que nunca pensara que um dia tivesse de fazer aquilo, porque era um perfeito, mas agora os dois deviam praticar sexo para salvar o sangue de Cristo.

Ela não falava. Seu coração batia acelerado e sua respiração estava descontrolada. Olivier a abraçou carinhosamente e um vento frio bateu em suas pernas, quando ele levantou as suas saias. Ela reagiu instintivamente contra aquela tentativa de invasão à sua intimidade, mas ele foi persuasivo. O mundo em que eles viveram inocentemente tinha desmoronado e era preciso revelar uma nova vida para que o sangue de Cristo, o Sangue Real, não desaparecesse.

Quando terminaram, Michelle, sufocada em sua vergonha, mal ouviu as justificativas de Olivier. Mas ela estava aturdida e envergonhada.

— Você precisa ter certeza de que tudo deu certo. Se não, vamos ter de repetir isso. Acho que sabe que o quero dizer.

Não, ela não sabia. Só o que sabia é que nunca mais seria a mesma. Nunca mais seria uma perfeita e nem entendia como permitira aquilo. Lembrou-se da dor que sentira e que chegara a chorar. Mas a morte do pai, as suas últimas palavras, a guerra, as atrocidades que amigos e parentes tinham sofrido e pelas quais eles, ali do Montsegur, também passariam, tudo isso a deixou sem reação. Não havia motivos para reagir, nem para estranhar ou para negar.

O perfeito Bertrand Marti havia ensinado que o Deus do Bem havia se submetido a assumir um corpo humano para entrar no reino material e dar o exemplo do sacrifício, que todos deviam fazer para ser aceitos por Ele. Então, o Deus do Bem iria voltar ao reino do Deus Mau por intermédio dela porque ela também era uma reencarnação de Cristo? Não fora isso que aprendera. Ensinaram-lhe que Cristo fora o primeiro dos anjos e entrara no corpo de Maria pelo ouvido, sem maculá-la e não lhe tomara nada material, porque Ele era o Verbo Divino. É por isso que o perfeito Marti dizia que Cristo nunca a chamou de mãe, mas apenas de mulher.

Mas estava tudo errado. O que ela sentira fora a matéria entrando dentro dela. Compreendeu o que seu pai quis dizer. Havia comentários de que en­tre os cátaros alguns descendiam dos reis merovíngios e eram descendentes de Cristo. Ela, então, não era uma verdadeira cátara, assim como Olivier também não era.

Mas não queria fazer de novo, embora emoções conflitantes a torturas­sem, porque um forte sentimento de realização a dominava, como se tivesse nascido para fazer aquilo. Começou a rezar todos os dias para que tudo tivesse dado certo, embora não soubesse o que seria esse "certo". A cons­ciência a acusava de não ter reagido como deveria aos instantes de doação e felicidade que sentira naquele momento, mas, se era a vontade de Deus, não podia ser pecado.

O tempo passou, e a sensação de pecado foi desaparecendo. Talvez fosse por causa das tensões da luta ou dos gritos dos campos lá embaixo. Co­meçara a sentir enjôo, perdera um pouco a vontade de comer e também percebera que seu organismo mudara.

Um dia, Olivier perguntou se eles tinham cumprido a vontade de Deus. Ela corou e abaixou a cabeça, com movimentos afirmativos.

Então, você precisa ir embora. Não pode ficar para o sacrifício final. Já providenciei tudo. Os meios para cuidar da criança e ajudar a formar a nova sociedade já foram enviados com aqueles que fugiram em janeiro.

Ela tinha sido preparada para morrer queimada junto com todos os ou­tros e agora estava recebendo ordens para fugir e salvar a linhagem sagrada. Olivier voltou a informar:

Escolhi quatro pessoas para acompanhá-la e salvar o nosso último tesouro. Eles e os outros que foram na frente sabem o que devem fazer. Se eu não me enganei na escolha, vocês terão ainda um fiel protetor.

Ela levantou a cabeça espantada com essas revelações e ele murmurou emocionado:

Faça o melhor pelo nosso filho.

"Nosso filho!", e então compreendeu que seria mãe. Quase gritou. Era preciso dar à luz um filho para que a linhagem mais perfeita e até então protegida entre os cátaros não desaparecesse. Olhou para ele com olhos brilhantes, de alegria e tristeza ao mesmo tempo, porque o seu filho nunca veria o pai.

Em janeiro, quase três meses antes da queda da fortaleza, dois perfeitos haviam escapado. Constava terem carregado consigo o tesouro material dos cátaros, como ouro, prata e moedas. Embora sua religião não permitisse o acúmulo de riquezas, os tempos ruins e a necessidade de pagar pela defesa do castelo e de comprar alimentos, obrigaram que economizassem e, assim, juntaram uma pequena fortuna, que ficara guardada no castelo.

No dia 1o de março do ano de 1244 a fortaleza no topo do Montsegur capitulou para um exército de mais de 10 mil homens fortemente armados. Na noite anterior, porém, quatro perfeitos conseguiram fugir, baixados por cordas, de uma centena de metros de altura e levando com eles o maior segredo dos cátaros.

Pelos termos da rendição, os cátaros seriam perdoados e poderiam le­var seus pertences, se renegassem a heresia. Os defensores pediram uma trégua de duas semanas para discutirem a proposta, que foi aceita, porém, mediante a entrega de reféns que seriam executados, se alguém tentasse es­capar da fortaleza. O esforço e a crueldade da guerra já haviam esgotado até mesmo os soldados da cruzada. Foram dezenas de anos da mais sangrenta carnificina, cujo único objetivo era um genocídio: matar todos os cátaros.

Os sitiantes esperavam que eles se rendessem e renegassem suas crenças, mas estavam enganados. Os cátaros queriam apenas tempo para fazer sua última cerimônia, no dia 14 de março, coincidentemente o dia da Páscoa, quando Cristo se libertara da sua forma humana e voltara aos céus.

 

                                    CAPÍTULO 28

O perfeito Olivier estava na muralha, olhando tristemen­te os vales cobertos de neve que se estendiam até o horizonte azul. Ali, no meio daquelas florestas, bem escondida numa caverna, Michelle e seu filho preservariam o Santo Graal, o Sangue Sagrado. Mas ela ia precisar de mais ajuda e ele sabia em quem confiar. Pensava no seu amigo de infância que andava com ele pelas montanhas e cavernas calcárias dos Pireneus, quando um soldado jovem e forte aproximou-se. Tinham a mesma idade e Olivier ficou parado, com os olhos distantes, como se não tivesse notado a presença do soldado, que comentou:

Você está olhando para os lados do rio subterrâneo. Costumávamos pular de um lado e sair do outro, perto da caverna. Sei que vou perder o meu melhor amigo. Nós nos conhecemos bastante.

E, em tom mais baixo:

Onde está Michelle?

Olivier voltou-se. De seu rosto, saía uma paz de cor mais branca que a neve e sua voz era mais penetrante que o silêncio da paisagem. Parecia um mensageiro de Deus, preparado para ditar salmos aos profetas.

Você se lembra da promessa que fizemos um ao outro, quando andáva­mos pelas cavernas de Ariège? Prometemos que, se um dia um precisasse do outro, ninguém no mundo seria mais leal do que você a mim e eu a você.

Sim. O soldado lembrava-se das promessas da juventude quando ambos andavam pelos campos. Ele era católico e Olivier era um cristão diferente que não podia jurar porque a sua religião era contra juramentos. Por causa disso, foram também perseguidos. A organização do Languedoc, da Aquitânia e de toda a região dos francos se baseava no juramento dos vassalos aos senhores feudais. Com o juramento, o vassalo ficava subordinado a um se­nhor, pagando impostos e ajudando na guerra, enquanto o senhor protegia as terras dos vassalos e também seus empregados. Mas os cátaros eram con­tra essa submissão terrena, porque o mundo material era do Deus do Mal.

Olivier apenas dera a sua palavra, enquanto ele jurara, porque sua Igreja permitia. Assim, selaram vários compromissos, que nasceram dessa pro­funda amizade.

É preciso que você se encarregue de uma grande missão.

Missão? Que missão?

Talvez a maior que exista hoje neste universo diabólico.

E em seguida, com olhar penetrante, como se fosse novamente Cristo na Transfiguração, falou num tom profundo:

Você foi escolhido para salvar o Sangue do Senhor.

Não entendo essa história de Sangue do Senhor, mas, se minha missão é ajudá-lo a sair daqui, acho que temos de fazer isso logo.

Olivier sorriu tristemente.

É tarde para me salvar. A minha missão é ficar aqui para enganar os perseguidores.

Não havia ninguém por perto, mas a qualquer momento poderia apa­recer algum soldado ou mesmo o seu amigo ser chamado para a guarda. Olivier compreendeu isso e foi breve:

Lembra-se de Lombrives?

A catedral? Sim, me lembro.

Lombrives, perto da aldeia de Ornolac, é considerada a maior caverna da Europa e sua cavidade interna é tão grande, que se comunica com a caverna de Nyeaus. Eles costumavam andar por aqueles montes e visitar as grutas onde os cátaros se escondiam para dali sair à noite e visitar os doentes.

Também chamada de catedral, a entrada de Lombrives tem três grupos de estalagmites cuja lenda diz serem os túmulos de Hércules e Pirene, e o trono de Bebrix. Depois que Hércules seduziu Pirene, a filha de Bebrix, ela ficou com medo da ira do pai e saiu à procura do amado, entrando pe­las florestas escuras das montanhas, onde animais ferozes a atacaram. Ela então gritou por Hércules, que veio em seu socorro, mas chegou tarde e a encontrou morta, caindo no desespero. O eco de seus soluços ressoava nas rochas e cavernas, enquanto o herói repetia o nome de Pirene. Os montanheses acreditam que ainda hoje as montanhas ecoam o nome da filha de Bebrix e por isso são chamadas de Pireneus.

Olivier confirmou:

Sim. A catedral. O que vou lhe dizer é um segredo que não pode ser revelado. Uma perfeita fugiu, levando o Sangue de Cristo. Você foi escolhi­do para cuidar da criança. Ninguém poderá saber disso. Como São Pedro, deverá abandonar tudo em nome do Senhor. Num determinado momento, alguém virá buscar Aquele que você preparou, como fez São José com o próprio Cristo.

O soldado perguntou, comovido:

O Sangue Real, o Santo Graal. Então é verdade que entre vocês havia aqueles que levavam o Sangue de Cristo?

E estupefato olhou o amigo:

Dizem que entre os cátaros havia um perfeito que era o verdadeiro rei merovíngio, o primaz da dinastia de Cristo. Então, então... — balbuciou. — Michelle está em Lombrives.

Quase se ajoelhou diante do amigo, mas compreendeu de repente que a esperança de salvação do Sangue Real era ele e não podia cometer im­prudências.

Conseguiu pronunciar em tom solene:

Doravante não farei juramentos, mas lhe prometo que não se repetirá a história de Pirene.

 

                                           CAPÍTULO 29

Na manhã do dia 14, domingo, os cátaros celebraram uma ceri­mônia na qual todos os Crentes, entre eles a esposa de Raimundo de Pireille, Corba, sua filha, Esclermonde, e outras vinte pessoas receberam o Con­solamentum Spiritus Sanetis tornando-se perfeitos e prontos para a morte. O perfeito Bertrand rezou o Pai-Nosso dos cátaros, diferente do Pai-Nosso dos católicos, e tocou a cabeça de cada um com o Evangelho de São João. Depois, deram-se o beijo da paz. Em seguida, informou o comandante dos invasores que nenhum deles havia aceitado renegar as suas convicções.

O arcebispo Pedro Amiel ficou indignado com essa sustentação de fé, porque esperava a glória de comunicar ao papa a conversão ao catolicismo dos últimos hereges. Esses fanáticos, no entanto, escolheram ser queimados vivos, numa grande afronta ao Vaticano.

O comandante das forças invasoras também esperava que eles aceitas­sem as condições da rendição e não preparara a fogueira. As árvores, que restavam do cerco e que não tinham sido queimadas para aquecer os solda­dos ou cozinhar alimentos durante o sítio, estavam úmidas.

Ao contrário do arcebispo, que queria se vangloriar da rendição dos cá­taros, os soldados ansiavam por sentir o cheiro da carne dos hereges, como compensação por terem enfrentado o inverno durante meses.

O papa havia prometido indulgência plenária a todos que levassem le­nha para as fogueiras, porque o suplício do fogo era um ato de piedade para salvar aquelas almas. Animados pela promessa, milhares de soldados per­correram o vale que se divisa do alto do Montsegur, na esperança de ganhar a vida eterna, e, em poucas horas, juntou-se um enorme monte de lenha.

Quando os primeiros sinais do amanhecer do dia 16 de março mostra­ram os contornos ainda escuros do Monte de São Bartolomeu, o Tabor cátaro, o bispo Amiel deu ordens para que os hereges fossem arrastados até as pilhas de lenha. Era o final de uma das maiores violências praticadas pelo Vaticano. Mais de 200 cátaros foram amarrados e puxados montanha abaixo para dentro de um cercado de madeira, onde vários montes de lenha esperavam por eles.

Como cordeiros, conformados com o seu destino, eles rezavam o Pai-Nosso cátaro:

 

"Pai santo, Justo Deus dos Bons Espíritos, vós que não vos enganais nunca, que jamais mentistes, que jamais errastes, que jamais tivestes dúvidas de que não morreríamos no mundo do Deus do Mal, porque não somos do mundo e ele não é do nosso mundo, ensina-nos a conhecer a sua verdade e a amar o que amais."

 

Desesperado com essa demonstração de penitência, que não via no seu rebanho, o bispo Amiel pegou uma tocha acesa e correu até o feixe de ma­deira onde estava amarrado o perfeito Bertrand Marti, gritando:

Herege maldito! Hoje ainda você estará no inferno e vai arder nas chamas do Diabo por toda a eternidade.

E ateou fogo ao monte de lenha. Quando a fumaça negra começou a su­bir, Bertrand Marti olhou para o bispo e disse, na língua occitana, a mesma frase que Cristo dissera na hora de morrer:

Pai, perdoai-os porque não sabem o que fazem!

Estalidos da madeira verde acompanharam a fumaça escura que distri­buía no ar o forte cheiro de betume. A cena, macabra e assustadora, nunca vista antes, registrou para sempre na consciência de cada soldado o receio de ter cometido um crime imperdoável.

Da madeira verde saiu uma fumaça que sufocou os cátaros e eles morre­ram de asfixia antes que o fogo os alcançasse. Os soldados viram incrédu­los os cátaros tossindo, ajoelhando-se ou caindo e ficando imóveis, mesmo quando o fogo começou a queimá-los.

Eles não morreram pelo fogo, e seus algozes então compreenderam que a afirmação de que seria preciso queimá-los aqui na terra para que não fossem para o inferno não tinha a aprovação de Deus, que poupara aquela gente desse sofrimento.

Horrorizado, o soldado amigo de Olivier ajoelhou-se e outros o segui­ram. Rezou e pediu perdão a Deus, enquanto uma brisa fria descia como suspiros dos morros brancos de neve. Havia feito uma promessa ao amigo que acabara de morrer e iria cumpri-la.

Tempos depois, começou a correr a lenda de que um homem e um me­nino andavam pela floresta, caçando, perseguindo bandidos e praticando o uso das armas. O homem seria o Deus do Mal e uma luta intensa se travava entre o que o menino aprendia com ele e o que lhe ensinava a mãe, pes­soa dócil e religiosa, que vivia numa caverna oculta no Caminho dos Bons Homens (El Cami dels Bons Homes). Segundo os camponeses que ouviam essas histórias misteriosas, ela seria o Deus do Bem.

 

                               CAPÍTULO 30

Entardecia, quando o cavaleiro viu as torres da igreja da aba­dia que ocupava o fundo do vale. Parou um instante para apreciar a beleza da construção de pedra circundada por montanhas dominadas pelo ver­de das matas. Pensou na quantidade de obreiros e no sacrifício de quantos morreram, adoeceram ou simplesmente sofreram para levantar aquela obra.

Depois de alguns minutos, respirou fundo e alisou o pescoço do ani­mal, que fungou com o carinho. Deu um toque com os joelhos e o cavalo continuou a sua descida pela estrada tortuosa, pisando firme no solo branco de neve.

Havia dezoito anos prometera a seu amigo Olivier que cuidaria do seu filho. Quando fora convocado para a tomada de Montsegur, achava que estava fazendo o bem para aquele povo. Carlos Magno convertera mui­tos árabes ao cristianismo, fazendo-os ajoelhar-se com a cabeça sobre um tronco, enquanto levantava a espada, ameaçando cortá-la, se o infiel não se convertesse. O cavaleiro lembrava que, na luta contra os cátaros, ele tam­bém imaginara um dia ser reconhecido por Deus porque estava ajudando a converter aqueles hereges e a aproximá-los do reino dos céus.

Fora uma triste surpresa encontrar o seu amigo Olivier entre aqueles que seriam sacrificados. Eram amigos desde os tempos de criança, quando saíam pelos bosques para apanhar frutas e pescar. Olivier não podia caçar porque era um cátaro. Já, naqueles bons tempos de juventude, a crueldade se espalhara por todo o Languedoc.

Num desses passeios, perguntara a Olivier por que ele não ia à missa e não comungava. Assim, ficaria livre da perseguição.

Nosso Deus é diferente do seu e nós praticamos a forma original do cristianismo. Costumamos nos reunir e dividir o pão como Cristo fez, mas não achamos que o pão é o próprio Cristo, como os cristãos. Também reza­mos a oração que ele ensinou, mas quando falamos do pão, não falamos do pão terrestre, porque esse pão não merece ser reverenciado.

Mas isso é pecado. Como pode não acreditar que Cristo está na hóstia?

Mas comer o corpo de Cristo não é canibalismo? Comer o corpo de Cristo, ainda vivo? Que barbaridade! Vocês, católicos, pegam um pedaço de pão e dizem que é Deus. Depois o colocam na boca, mordem-no e mas­tigam-no com os dentes até ficar em pedacinhos e o engolem. Será que isso está certo?

Não é isso, não! A Eucaristia é um ato de louvor a Deus. A hóstia eleva os pensamentos a Deus e vocês não são capazes de entender isso.

Olivier ria e o atormentava com mais dúvidas:

Será que um padre, uma pessoa comum, como eu e você, pode mes­mo fazer Deus descer à Terra na hora que quiser? É só ele ficar diante de uma pedra, ou um altar, como dizem, benzer um pedaço de pão e aquela massa de farinha estragada se transforma em Deus?

Apesar de ficar horrorizado com aquelas palavras e de se benzer sempre que as ouvia, admirava a vida simples que os cátaros levavam, trabalhando no campo, ajudando os pobres, cuidando dos doentes e tratando a todos com respeito. Diziam que se entendiam diretamente com Deus e não preci­savam dos padres e dos bispos como intermediários.

Sabia que não era intenção do seu amigo tentar convertê-lo ao catarismo, mas Olivier dizia coisas que o assustavam:

Se você ler o Evangelho de Marcos, verá que Jesus chama Pedro, o pri­meiro papa, de Satanás, porque Pedro não se ocupava das coisas de Deus, mas, sim, das coisas dos homens. Será que Cristo não estava prevendo tudo o que os papas estão fazendo hoje?

Ele não sabia o que responder. Olivier continuava:

Um Deus não morre tão facilmente como mataram Cristo, e um Deus não pode admitir que matem em seu nome. Então, o Deus dos papas é fal­so, ou melhor, é o Deus do Mal, o próprio demônio.

Não estava preparado para responder a essas questões, porque os cris­tãos não podiam ler a Bíblia.

Mas Olivier sabia muita coisa.

No Evangelho de São João, Cristo também já dizia que iriam nos ma­tar, porque era a vontade de Deus.

Mas isso não pode ser verdade. Ele não diria uma coisa dessas.

Está no evangelho de São João, mas se você preferir o Evangelho de São Mateus, lá também está profetizado que nós despertaríamos o ódio do papa, mas aqueles de nós que perseverarem até o fim serão salvos.

Quem fosse pego com uma Bíblia traduzida era considerado herege, mas ele tinha escondido uma das versões de Pedro Valdo e ficou horrori­zado quando leu no Evangelho de São João que "está para chegar o tempo em que todo aquele que vos matar, julgará que nisso faz o serviço de Deus."

No Evangelho de São Mateus também está escrito: "E um irmão entregará à morte o outro irmão, e o pai ao filho. E os filhos se levantarão contra os pais, e lhes darão a morte. E vós, por causa do meu nome, sereis o ódio de todos. Aquele, porém, que perseverar até ao fim, esse é o que será salvo."

Gostava do seu amigo Olivier e ficara surpreso quando o vira no Mont­segur entre aqueles, que tinha de matar. Nas brincadeiras daqueles tempos, tinham feito promessas para substituir os juramentos de vassalagem feudal e ele estava agora orgulhoso de cumprir as promessas feitas ao amigo.

 

                                      CAPÍTULO 31

Já tinha, porém, quase se esquecido do futuro do ga­roto, quando, numa tarde em que eles treinavam numa clareira, surgiu de repente, do meio da mata, um monge. Percebeu que aquele era o momento da separação, quando o monge aproximou-se, silencioso, e uma profunda tristeza tomou conta dele. Já havia dito ao garoto alguma coisa sobre a sua missão neste mundo e explicara que um dia ele teria de ir embora e não se veriam mais. Fora difícil para aquela criança entender essa separação, e a mãe chorava constantemente sabendo que logo perderia seu filho querido.

Não tinha instrução suficiente para dizer coisas mais profundas, mas já havia relatado ao menino os fatos ocorridos em Montsegur, a morte dos cátaros e do seu verdadeiro pai, que lhe confiara a missão de cuidar dele e da mãe.

O monge aproximou-se do garoto e, num gesto inesperado, ajoelhou-se:

Bendito aquele que tem o Sangue do Senhor — e, dizendo isso, persignou-se três vezes antes de se levantar.

Seguiu-se um silêncio durante o qual o monge contemplou o garoto com admiração e respeito. Depois, virou-se para o Homem da Floresta:

Nós estamos muito agradecidos pela proteção e pelo treinamento que deu ao menino, mas é preciso que ele cumpra o seu destino. A mãe será levada para um convento e o senhor deverá continuar na floresta e defen­der os peregrinos contra os salteadores, para manter a lenda do Homem da Floresta. Poderá visitá-lo uma vez por ano, vestido de Cavaleiro Templário, enquanto nós o preparamos.

Já fazia seis anos que ele vinha todo final de ano fazer a sua visita. Era um momento encantador em que os dois se abraçavam e o menino chorava de alegria. O menino gostava de contar tudo o que lhe ensinavam. Estudava latim, grego e aramaico. Sabia muitas coisas e, principalmente, aprendera a pensar e a raciocinar. Tinha nomes novos para as plantas e os animais que antes encontravam na floresta. Os dois riam quando o menino dizia que o loureiro se chamava laurus nobilis e que a flor que chamavam de amareli­nha tinha o nome de genista scorpius. Os patos e marrecos, que caçavam e sua mãe defumava para o inverno, os padres os chamavam anas clypeata, netta rufina ou tadorna ferrugina e outros nomes esquisitos.

Havia dois anos, o menino lhe contara a história dos reis merovíngios. Falava baixo, em segredo. Era assim que devia ser, segundo os seus ins­trutores, que o ensinavam em lugares escondidos, onde pessoas estranhas não podiam ouvi-los. Esses instrutores eram monges, que insistiam que ele nunca deveria contar a ninguém que estava aprendendo a história e a vida dos reis.

Mas o menino sabia o que era. No ano anterior, ele já era um rapaz alto, forte e bonito. Como estaria agora, com 18 anos?

Foi se aproximando da impressionante abadia de pedra protegida por muros altos sobre os quais despontava a torre delicada de um templo góti­co. Diziam que a construção fora orientada por um mestre templário, que tinha a sabedoria dos grandes construtores e sabia também forjar o ferro e os vidros coloridos dos grandes vitrais, através dos quais, as luzes entravam e iluminavam a nave da igreja.

O cavalo parou em frente do grande portão de entrada e olhou em volta como se quisesse lembrar-se daquele lugar. O cavaleiro desceu e o portão se abriu. Um monge pegou o animal pelas rédeas e o levou para dentro, mostrando assim que o cavaleiro gozava de prestígio. Depois de amarrar o cavalo, o monge cerimoniosamente fez sinal para que o acompanhasse. Passou pelos canteiros de verduras e flores que adornavam a entrada da abadia, cobertos agora pela neve.

Foi levado por entre corredores de pedra até chegar a um recinto, que era o único lugar onde havia uma lareira. Era um dia frio e o fogo estava aceso. O frio era uma forma de sacrifício e a lareira naquele recinto era um privilégio das visitas mais nobres.

O monge saiu e pouco depois o rapaz chegou. Uma cabeleira longa e loi­ra moldava o rosto bonito de um jovem alto e forte. Os dois se abraçaram e por uns momentos não falaram nada, para controlar a emoção.

Sinto muito orgulho de você, — e, pela primeira vez desde que come­çara a tomar conta da criança, atreveu-se a dizer — meu filho.

O rapaz apenas respondeu:

Papai.

Passado o momento de emoção, o cavaleiro notou a tristeza que tomou conta do rosto do garoto quando perguntou pela mãe.

Não tive mais notícias de sua mãe. Sei que ela está num convento e bem protegida.

Lágrimas começaram a descer e ele fechou os punhos, mordendo os lábios para se conter. Sentia falta dela e sabia que ela também estava com saudades dele, mas o destino, ou então a vontade de Deus exigira esse sacrifício.

Tenho coisas novas para contar, mas não agora. Quando estivermos andando a sós, no pátio.

E, erguendo o tom de voz para mostrar naturalidade:

O senhor será convidado para os festejos do Natal. A missa será cele­brada em canto gregoriano e eu também estarei no coro. É uma cerimônia bonita e só convidam algumas pessoas. Sei que será convidado este ano e será nosso hóspede.

Foi levado para uma cela mobiliada com uma cama de pedra, amaciada com colchões e cobertores de lã para aplacar o frio. Encostado na pare­de havia também um armário e, sobre ele, um crucifixo testemunhando a austeridade da vida monástica. Toalha e bacia com água quente eram luxo naquele lugar, e ele se lavou.

Às sete horas, foi servido o jantar, com legumes produzidos na abadia, carne de porco e toucinho cozido que cheiravam bem. Depois, serviram queijo de cabra e vinho tinto.

Quando voltou para a sua cela, já tinham retirado a bacia, e ele se deitou e dormiu. A noite pareceu curta porque logo os sinos repicaram para o amanhecer, mas se levantou bem disposto.

Ouviu batidas na porta e o monge estava lá, com uma nova bacia de água quente. Ele lavou o rosto, as mãos e se vestiu. Pouco depois, o menino che­gou e pediu a bênção, beijou a sua mão e disse em voz baixa:

— É preciso que o senhor confesse e comungue.

Não acreditava mais naquelas cerimônias, mas fora instruído para agir como um católico fervoroso para não comprometer a vida do garoto e os membros da comunidade.

Foi uma missa simples, e o celebrante fez a pregação, contando a história do Advento, do nascimento do Cristo Rei, o Cristo Redentor, aquele que veio para salvar o mundo e foi reverenciado pelos Reis Magos.

Sentiu tristeza porque a cerimônia religiosa lhe tocava o coração e era aquela religião que sua mãe também lhe ensinara. Mas a missa não combi­nava com a matança que a Igreja praticava. Havia agora a Santa Inquisição, criada pela Ordem dos Dominicanos, que também queimava cristãos, não importando se eram mulheres grávidas, velhos, doentes ou crianças.

Aqueles que tinham idéias diferentes daquilo que os padres diziam eram condenados à fogueira. Assistira a muitos espetáculos de cremação de pes­soas vivas, e naqueles momentos percebia o regozijo dos que acreditavam estar livrando o reino de Deus de hereges que não mereciam estar nele.

Quando essas cenas já não atraíam multidões, os padres acrescentavam o enforcamento ou a mutilação para mudar o cenário e continuar atraindo gente para assistir ao castigo daqueles que estavam contra a vontade do papa. Cardeais vestidos de cetim e púrpura puxavam a procissão que levava tochas acesas até o cadafalso. Um monge levava o brasão branco e preto da Inquisição enquanto as preces e os cânticos entoados pela multidão emol­duravam o cenário fúnebre. Outras vezes, os condenados usavam barretes para cobrir suas cabeças e mordaças para que não gritassem e eram em­purrados em direção à fogueira, enquanto a multidão se acotovelava para assistir ao grande evento.

Perto do cadafalso, ficavam os caixões para levar aqueles que não fossem queimados vivos, por terem confessado a heresia e, num gesto de miseri­córdia, suas cabeças eram decepadas. Um murmúrio de excitação saído da multidão indicava quando a cena estava prestes a começar. Quantas vezes ele não vira corpos que esperneavam pendurados pelos pescoços, porque os nós não deslizavam! Era a vontade de Deus que sofressem antes de mor­rer, e ninguém podia ir lá correr o nó do enforcamento. Davam a essas cenas o nome de Autos de Fé.

Outras vezes, assistira a condenados à fogueira serem arrastados vivos enquanto um capelão tentava arrancar-lhes uma confissão ou o arrepen­dimento pelos seus pecados. Depois eram queimados, os corpos se retor­ciam nas chamas e os gritos e gemidos se misturavam com os cânticos e ladainhas que a multidão delirante cantava, acompanhando os padres. Na época, achava tudo aquilo muito certo e, quando às vezes ficava horroriza­do com alguma cena ou com pena de algum amigo, pedia perdão a Deus pela sua fraqueza.

 

                                     CAPÍTULO 32

Depois da missa, saíram para caminhar na estrada que atravessava os bosques que cobriam os morros em torno do vale. O garoto estava sério, compenetrado, como se algo o preocupasse.

Aquelas duas figuras — ele vestido como um cavaleiro templário e o ga­roto, como um monge com o capuz cobrindo a cabeça, as mãos por entre as mangas e com um cordão branco amarrado à cintura — impunham respei­to pela altivez do porte e elegância do andar.

O cavaleiro notou o silêncio do rapaz.

— O que o preocupa?

O rapaz adotou uma postura de dignidade.

O destino de todos os cátaros ou de quem os oculta é a fogueira. Le­vantaram um ódio inexplicável contra nós. Chegam a santificar cátaros que renunciaram a fé e depois passaram a nos delatar e perseguir, como foi o caso de Pedro de Verona, que se tornou inquisidor. Agora o chamam de São Pedro de Verona.

E, mostrando que tinha sido bem preparado pelos seus instrutores:

O ódio contra os cátaros deriva do medo de a Igreja perder o Sacro Império Romano e eles próprios serem considerados hereges.

Sim, sei disso. Mas o que o preocupa agora?

No fim de novembro, quando o inverno já começava a se fazer sentir, o instrutor me levou para uma cela muito escura. Antes de fechar a porta, mostrou um lugar onde havia um buraco na parede e fez sinal com o dedo sobre os lábios para eu ficar quieto. Era uma cela secreta que se comunicava com os aposentos do arcebispo, que estava de visita no monastério.

Não era difícil imaginar um buraco disfarçado na parede dando para al­guma alcova pelo qual alguém pudesse ouvir segredos. O cavaleiro sabia do papel predominante que a abadia de Cister exercera para pregar a Cruzada Albigense, que exterminou os cátaros. Sentiu o peso da situação, e o rapaz continuou falando em voz baixa e fingindo rezar o terço:

Não era possível ouvir com clareza tudo o que diziam, mas a perse­guição vai continuar e todas as cavernas dos Pireneus serão tomadas pelos soldados do papa. Não só os cátaros e judeus escondidos serão queimados, mas todos os camponeses que residirem por perto, porque são considera­dos amigos deles.

Já mataram tantos, destruíram o Languedoc e cidades importantes. Não ficam nunca satisfeitos? Ainda bem que sua mãe não está mais saindo de um lugar para outro para se esconder.

A figura da mãe parecia agora distante, mas sua lembrança entristeceu os momentos de silêncio que se seguiram e o garoto continuou falando, para disfarçar a emoção.

O abade parecia um soberano e segurava o crucifixo para mostrar sua fé inabalável no Cristo Redentor crucificado. Falou de rumores sobre um menino com sangue merovíngio e pretendente à coroa do Sacro Im­pério Romano, que fora levado de Montsegur. Ele estaria vivendo com um cavaleiro renegado nas florestas dos Pireneus e teria hoje 18 anos. Nesse momento, o monge instrutor colocou a mão sobre a minha boca porque comecei a respirar forte. Era evidente que o abade se referia a nós dois.

O cavaleiro olhava fixo no horizonte. A testa franzida por essa última informação.

Já me avisaram que corro perigo e é por isso que o senhor está hoje aqui. Assim como nunca mais vi minha mãe, também não o verei mais. Fui avisado de que irão vasculhar a floresta para encontrá-lo ou encontrar alguém que informe onde está. Mas não se preocupe, porque o senhor sairá daqui para um lugar onde não o reconhecerão.

Voltaram para a abadia como se estivessem rezando. O terço aparecia ostensivamente nas mãos do garoto. O dia transcorreu normalmente e o monge levara a bacia de água quente para o seu quarto. Depois que se la­vou, foi para o refeitório, onde o jantar foi servido às sete horas.

Voltou à cela e não se surpreendeu de início quando viu o monge espe­rando por ele. Parecia uma sombra que o seguia, mas alguma coisa nova estava acontecendo. O monge foi discreto, mas alertou-o para preparar suas coisas, porque à meia-noite sairia do convento.

Algo errado tinha acontecido. Fora convidado para os festejos do Natal, mas provavelmente o perigo aumentara. Queria despedir-se do garoto, mas preferiu não questionar e seguiu as instruções. Arrumou suas coisas e ficou esperando. Depois de um longo tempo de espera, escutou passos furtivos no corredor. Abriu a porta da cela e viu que o monge trazia uma sacola com alimentos e uma garrafa de vinho.

Se não fosse um guerreiro acostumado com as sombras das árvores em noites escuras, teria medo daquele silêncio que brotava das pedras frias. Passaram por corredores que não tinha visto antes, até pararem diante de uma parede, que o monge tateou. Uma parte dela se abriu e entraram num corredor mais escuro, frio e úmido. A parede por trás deles se fechou.

Era um verdadeiro labirinto e somente quem estava habituado a ele sa­beria aonde chegar. Um ar mais fresco indicou que estavam perto da saída. O monge pressionou uma laje de pedra, que se moveu, e eles saíram para a noite. Já estavam dentro da floresta quando o monge entregou-lhe um mapa, com a indicação de um local onde pessoas de confiança o encontra­riam. Logo depois do Natal, um grupo de caçadores contratado pelo abade começaria a perseguição para encontrá-lo. Tinha de ficar longe do menino. Perguntou por ele e o monge respondeu apenas que não se preocupasse.

Seguiram por entre as árvores até onde estava o cavalo arreado, que pa­receu feliz ao vê-lo. Sobre a sela havia uma seteira e flechas dentro de uma sacola amarrada do lado do arreio. Sorriu porque sabia que aquilo era coisa do garoto.

Depois que o seu guia voltou para o monastério, o cavaleiro guardou o mapa. Não podia pensar apenas em sua própria segurança e iria tomar ou­tro rumo. Procurava andar por baixo das árvores mais altas e frondosas que faziam sombra durante o dia e não deixavam a vegetação crescer embaixo delas. Andar em terreno sem folhagens era mais fácil e, como estavam no mês de dezembro e nevava na região, seus rastros logo desapareceriam. Su­biria o morro e durante o dia tomaria o rumo da floresta onde tinha vivido nos últimos anos.

Era previsível que um dia iriam procurá-lo e então, durante todo o tem­po que passaram juntos, ele e o menino fizeram esconderijos, aprenderam a armazenar alimentos, a selecionar as frutas silvestres para as situações de emergência, estudaram o comportamento dos animais, os precipícios, as cavernas, e foram também armando uma ardilosa rede de armadilhas no meio da selva.

Agora precisava dirigir-se o mais depressa possível para o lugar onde vivera antes, para que a busca se concentrasse longe da abadia. Os perse­guidores viriam depois do Natal, o que lhe dava tempo para conferir as armadilhas e os locais escolhidos para atraí-los.

 

                                             CAPÍTULO 33

Os três caçadores caminhavam silenciosamente pela mata, escondendo-se entre moitas e evitando fazer ruídos que espantassem aves e animais. No inverno, os ursos desapareciam no interior das cavernas, mas corças, coelhos, raposas, lobos ou então aves como corujas, podiam assus­tar-se e alertar o misterioso Homem da Floresta.

A manhã era de sol e alguns raios de luz escorriam por entre os galhos das árvores. Um caçador fez sinal para os outros e apontou para uma mar­ca quase apagada sobre a neve do chão. Olharam o topo das árvores e as frestas das moitas de arbustos para ver se não era uma armadilha, e en­tão se aproximaram daquele sinal diferente. Um leve aprofundamento na neve, do tamanho do pé de um homem calçado, indicava que alguém tinha passado por ali, havia pouco. Logo mais adiante, viram outra marca e não tiveram dúvidas. Fosse lá quem fosse, sabia fazer suas próprias vestimentas com o couro de animais, portanto era alguém acostumado a viver no mato. Certamente haviam encontrado as pistas do Homem da Floresta.

Seguiram cuidadosamente os sinais na neve, mantendo distância um do outro para não se transformarem em alvo fácil. Se um deles fosse agredido, os outros dois estariam em condições de ajudá-lo. No entanto, se andassem juntos, um arqueiro hábil precisaria de pouco tempo para fazer a pontaria e, depois, teria apenas o trabalho de pegar as setas, porque a direção seria a mesma. Os vestígios foram ficando mais nítidos e os levava a uma trilha que passava no meio de uma pequena formação de faias.

O homem que ia à frente parecia mais afoito, mas parou subitamente, sem tempo, porém, para se desviar. Pisara em alguma coisa suspeita e um galho que estava soterrado na neve se levantou do solo com velocidade, desequilibrando-o. Os outros dois viram-no cair com uma seta no abdome. Logo outra seta o atingiu no braço esquerdo e uma terceira na altura do ombro direito. As flechas não foram mortíferas. Ele estava vivo, mas gritava desesperadamente de dor e pedia que o tirassem dali. Instintivamente, os outros dois correram para tentar ajudá-lo, sem notar o vulto, que esperava com o arco preparado, atrás de uns arbustos. Ao se abaixarem para ajudar o amigo, duas flechas atravessaram a ramagem e alcançaram cada um deles nas costas, causando ferimentos doloridos. Os dois saíram gritando pela floresta e deixaram o companheiro ainda vivo, gemendo no chão.

O vulto sorriu. O pavor seria a sua arma mais poderosa.

Os gritos foram ouvidos e os demais caçadores se dirigiram ao local. Não havia como salvá-los, porém, deixá-los feridos na floresta para serem ataca­dos por animais ou terem uma morte lenta seria ainda mais cruel. Então, o chefe do grupo deu uma ordem simples:

— Acabem com o sofrimento deles.

Sabiam agora que estavam procurando por alguém que existia realmen­te e era perigoso. O Homem da Floresta não era um fantasma e devia ter deixado rastros, que procuraram sem encontrar. Desaparecera misteriosa­mente, e os caçadores voltaram a acreditar que as histórias de um fantasma que assombrava a floresta eram verídicas.

Se tivessem prestado mais atenção, teriam notado que cipós fortes e lon­gos pendiam de árvores vizinhas e podiam ter servido para um homem fu­gir sem deixar vestígios. Mas estavam nervosos e queriam sair logo daquele lugar, onde deixaram os companheiros mortos. O chefe do grupo se impôs, mostrando mais coragem que os outros e continuaram a busca. Andavam agora cautelosamente espalhados na mata e olhavam com cuidado para o alto, para a copa das árvores. Examinavam moitas, rodeavam troncos, pedras ou arbustos, e se assustavam com qualquer ruído como se fosse o sibilo de uma flecha traiçoeira. Olhavam receosos para trás, com medo da sombra de algum arbusto.

O homem parecia ter evaporado. Nenhum rastro na neve. Vez e outra, um deles chamava a atenção para algo estranho no solo, mas não encon­traram vestígio do misterioso personagem. Começava a entardecer e pre­cisavam aproveitar a luz do dia para procurar abrigo. Eram caçadores ex­perientes e sabiam como encontrar um lugar seguro para dormir. Grandes teixos apontavam seus troncos retorcidos e avermelhados para o céu, com os galhos mergulhando até o chão e formando um abrigo dividido pelas saliências de suas raízes, que se firmavam no solo como colunas góticas in­vertidas. Nelas se protegeriam do vento e do frio. Depois de aconchegados, molhavam o pão seco na neve que derretiam com o calor do corpo e assim também faziam água.

O teixo era a árvore sagrada dos celtas. Ela guarda na seiva que corre pe­los seus galhos um veneno fatal que não alcança seus frutos. Eram homens de luta, mas supersticiosos, e acreditavam que a força mística da árvore afastaria o espírito mau da floresta.

Os caçadores se revezavam na vigilância, ficando quatro deles sempre acordados, com os olhos na escuridão da floresta e os ouvidos atentos aos menores ruídos. Um leve sonido, que parecia prenunciar uma inesperada brisa de inverno, os levou a se aconchegar mais fortemente contra o tronco para se aquecerem. De repente, o som se transformou no zumbido de cen­tenas de milhares de abelhas nervosas, que os atacaram.

As abelhas são animais fantásticos. Durante a primavera, polinizam as árvores para que tenham flores e elas possam retirar o néctar e fazer o mel. No inverno, trabalham dentro da colmeia e se reproduzem. São organiza­das e pacíficas, mas, quando molestadas, atacam com a disciplina de um exército. Não é comum as abelhas serem usadas como armas. Os falcões e os cães podem ser treinados para defender o dono ou atacar inimigos, mas nunca foi possível treinar abelhas para esse fim.

No começo, os caçadores acharam que bastava espantá-las com as mãos ou com pedaços de pano, mas elas não paravam de chegar, agressivas, esvoaçantes, entrando pelos cabelos e pelas vestes, picando todos os pontos do corpo, que doía.

Grandes colmeias, colhidas durante a noite em sacolas de pano, eram lançadas por arbustos improvisados em catapultas para o meio dos caçado­res, que não estavam preparados para aquele tipo de ataque. Vez ou outra, uma seta cortava o gélido ar e descia impiedosa sobre um deles. O pavor os levou de volta ao pé do morro, de onde antes tinham saído e se olhavam agora envergonhados por terem apanhado de um único homem.

Cabisbaixos, ouviram o chefe dizer:

— É só um homem, não um fantasma. Ele vive nessa floresta há muito tempo e a conhece melhor que nós. Durante todos esses anos, ele se pre­parou e montou essas armadilhas. Mas nós também conhecemos a vida da floresta e sabemos que os mesmos recursos que ela oferece para a defesa, também servem para o ataque. Amanhã traçaremos um plano.

Eram palavras sensatas que pareciam ter chegado até os ouvidos do cava­leiro que estava a alguns quilômetros de distância, dormindo dentro de uma caverna onde tinha guardado o cavalo e a sua vestimenta de templário.

De madrugada, ele pegou o animal pelas rédeas e deu algumas voltas ao redor da caverna para confundir os rastros e, depois, subiu o morro em di­reção a um penhasco não muito longe dali, onde as águas de uma cachoeira caíam sobre um pequeno lago. A cachoeira era bonita no verão, na prima­vera, no outono e mais ainda no inverno, quando crostas de gelo formavam uma moldura branca em suas laterais. Muitas vezes estivera ali com o meni­no e ensaiaram como escapar de perseguidores. Estudaram a profundidade da água no lugar da cachoeira e na corredeira subterrânea que se formava em seguida. A altura da queda não permitia que a água congelasse e logo adiante a correnteza cavara um túnel e o riacho descia oculto até emergir numa macega, onde a vegetação escondia suas margens.

O homem subiu até o alto da cachoeira e escondeu a vestimenta de tem­plário, descendo a ladeira até a margem do riacho, a umas centenas de me­tros depois do lago, onde deixou o animal.

Voltou para onde estava antes e procurou outra caverna, onde um antílo­pe estava amarrado com as patas envolvidas com uma espécie de sapato de couro. Soltou o animal, que saiu estranhando a maneira de andar, mas logo sentiu o gosto da liberdade e correu por entre a mata, como se soubesse para onde ir.

E assim fez com mais três animais em pontos diferentes. Agora era só esperar.

Os caçadores dividiram-se em dois grupos de vinte homens cada um e desdobravam-se em cautelas. Um grupo ficou na base do morro e o outro subiu. Depois de algum tempo, espalhados para poder estudar melhor o terreno e ainda evitar serem pegos todos numa armadilha, viram quatro rastros suspeitos.

O chefe estudou as pegadas na neve:

São várias direções, mas é estranho, porque todos eles parecem ras­tros de algum animal indeciso, que não sabe de início para onde vai. O que será que isso significa? Não são rastros humanos, mas, sim, de animais de quatro patas.

Não sabiam que atitude tomar, e os mais temerosos achavam que era mais prudente continuarem juntos e escolherem apenas um rastro. Para os outros, deviam se dividir em dois grupos e assim teriam cinqüenta por cen­to de chance e seria menos perigoso. Podia ser outra armadilha do Homem da Floresta ou podiam ser apenas animais selvagens, sem maior perigo.

Somos vinte. Formaremos dois grupos de oito pessoas. Um grupo seguirá os rastros para o leste e o outro irá para oeste. Três irão buscar os outros companheiros que ficaram na base do morro e assim que chegarem lá se dividirão em dois grupos, como estamos fazendo, para seguir os ou­tros rastros.

Olharam surpresos para o chefe, que não se incluíra em nenhum dos grupos, mas ele explicou:

Vou subir o morro. Tenho meu palpite. Quando os três, que forem chamar o grupo que ficou para trás voltarem, seguirão meus rastros.

O cavaleiro escutava os pequenos ruídos que saíam da floresta coberta de neve.

Não havia segredos naquela mata para ele. Os caçadores tomaram as di­reções indicadas pelo chefe, sentindo arrepios de medo toda vez que encos­tavam nas folhas congeladas.

 

                                     CAPÍTULO 34

Depois de caminharem pouco mais de um quilômetro, an­dando devagar e pisando cautelosamente, enquanto olhavam para cima e para os lados, um movimento estranho assustou aqueles que haviam segui­do para o leste. Alertados com o movimento inesperado das ramagens em volta deles, prepararam dardos, espadas e seteiras, mas uma corda levan­tou-se da neve e jogou vários deles ao chão. Os outros correram desorde­nadamente e outras cordas também se levantaram, derrubando-os. Aquela armadilha tinha algum propósito, porque nenhum dos homens fora ferido. Então, o perigo ainda estava por vir. Armadilhas assim tão bem-feitas não eram normais e só podiam ser obra de um fantasma. O pavor tomou conta deles, que começaram a descer o morro afundando-se na neve, caindo e se levantando para fugir do Homem da Floresta.

A oeste, o outro grupo chegou até a entrada de uma caverna. Passaram com cuidado por entre as rochas que formavam túneis escuros, onde os pingos de água estavam congelados. Camadas de gelo lisas e escorregadias, formadas pela umidade que descia das paredes, mostravam marcas de que alguém passara por ali e não fazia muito tempo. Como buscavam um fan­tasma, as formações calcárias adquiriam formas assustadoras.

Quando os olhos se acostumaram com a escuridão, vislumbraram um vulto acocorado a uns dez metros e não hesitaram. Afobados e assustados, soltaram dezenas de flechas, e um grito pavoroso repercutiu pelo imenso labirinto de gelo.

— É nosso — gritou um deles. — Pegamos o Homem da Floresta. Ele deve estar muito ferido. Vamos cercá-lo.

Na pressa, demoraram para perceber que a caverna era formada de vá­rios precipícios unidos por trilhas estreitas e escorregadias. Vários deles ca­íram e os outros assistiram, horrorizados, à queda dos companheiros, que soltavam gritos lancinantes ao baterem nas rochas pontiagudas. Surpresos, examinaram o lugar onde antes estava o vulto e viram o monte de capim. O animal, que pensavam ser o Homem da Floresta, devia estar acostuma­do àquele local e a armadilha fora bem preparada naquele emaranhado de galerias cheias de colunas que desciam da imensa abóbada, ocultando os seus precipícios.

 

                                       CAPÍTULO 35

A coragem de um homem é uma virtude que deve ser respeitada, a não ser quando ele a usa para o mal. O chefe, que ficara sozi­nho e agora subia o morro cautelosamente, era observado. Era, sem dúvida, um caçador experiente e corajoso, mas estava a serviço do Deus do Mal. Prestava atenção e procurava ouvir os ruídos da mata, mas o barulho da cachoeira não o ajudava a decifrar os códigos da floresta. De repente, parou e sorriu, quando viu um vulto sair de uma moita e correr, subindo o morro. Como imaginava, era tão-somente um homem. Forte, ágil, vestido com um uniforme velho de templário e pouco armado. Dominado pela raiva, correu atrás dele, seguindo seus passos e pisando nos mesmos lugares onde o vulto pisara, porque assim evitaria surpresas.

O vulto tomou a direção do ruído de água que parecia vir de cima do morro. Procurou manter-se próximo ao Homem da Floresta, mas a corrida o impedia de armar a seteira ou lançar com precisão a faca que trazia no cinto porque os arbustos o atrapalhavam. Sabia que aquele não era o mo­mento de pensar em perigo, mas de vencer o inimigo. Lutara muito, caçara, enfrentara a morte muitas vezes e até participara de concursos em que a vida era o prêmio.

Apesar de correr em ziguezague por entre árvores e moitas de arbustos, o Homem da Floresta parecia cansado, pois não conseguia se distanciar. O caçador aumentou a velocidade e, quando pensou que ia pegá-lo, deparou com a cachoeira. Nunca soube da existência de uma queda d'água por ali e ficou imaginando por que o outro teria escolhido aquele lugar. Ele não podia ter passado o rio, por isso não tinha mais para onde fugir. Ansioso, preparou-se para o iminente enfrentamento. Viera com a seteira armada na mão direita, ao lado da perna, porque assim podia correr melhor em meio aos arbustos, mas agora a levantara e ficara de costas para a cachoeira, olhando para o mato, árvore por árvore, arbusto por arbusto. Estava tenso e atento ao menor ruído, quando ouviu uma voz que vinha de trás de um grande tronco, a uns dez metros dele, bem em sua frente:

— Você não vai precisar dessa arma.

Não teve tempo de reagir, e uma seta veloz atravessou-lhe a garganta. O Homem da Floresta jogou o corpo sem vida do adversário na cachoeira e começou a simular uma luta, usando a espada do caçador. Gritando e xin­gando em voz alta, batia a espada contra pedras e árvores para deixar vestí­gios de uma luta feroz, e assim que ouviu passos, correu para a cachoeira e deu um grito, como se nela tivesse escorregado.

A água fria foi como um prêmio para o êxito da estratégia. Afundou no pequeno lago e ajudou a correnteza a levá-lo até onde as águas entravam no solo. Ali encontrou o corpo do caçador, preso no barranco. Trocou as rou­pas, vestindo o caçador com o uniforme de templário e tomou as mantas sujas e rasgadas do outro. Tirou-lhe as botas de cano alto e calçou-o com os seus borzeguins, que havia feito com pele de urso. Depois, desfigurou-lhe o rosto e examinou se havia algum vestígio pelo qual pudesse ser identifi­cado. Deixou o rio se encarregar do corpo e desceu a corredeira que o lan­çava contra pedras gosmentas até sair bem mais adiante, onde a vegetação cobria o riacho e o cavalo o esperava oculto numa moita. Tremia de frio e tirou logo as roupas molhadas, colocando as botas e as vestimentas de pele que tinha guardado na sela.

Lá do alto, os caçadores acreditaram compreender o que acontecera. Or­gulhosos do seu chefe, espalharam pela região a notícia de que ele matara o misterioso Homem da Floresta numa luta igual, mas perdera o equilíbrio e caíra na cachoeira. Não encontraram os corpos, mas provavelmente depois do inverno seus ossos iriam aparecer.

O cavaleiro desceu o rio com cuidado, buscando as matas densas com árvores frondosas, para não ser visto.

Precisava cuidar do garoto. Se esses caçadores tinham vindo atrás dele, com certeza tinham enviado outros para tentar encontrá-lo também. Os monges se mostraram repentinamente preocupados. Não ousariam man­dar um exército regular para invadir a abadia, porque seria uma afronta muito grande ao abade, que gozava da amizade do papa e tinha prestígio entre os nobres, mas, se desconfiassem que eles davam guarida a um mero­víngio, seriam todos denunciados à Inquisição.

A abadia era muito visitada por causa dos milagres das suas relíquias. Havia ali um pedaço da túnica que Nossa Senhora usara durante o martírio de Cristo, um pedaço da cruz do Senhor, trazido por Santa Helena, a mãe do Imperador Constantino, além de ossos de muitos santos.

O próprio abade já estava ficando conhecido por seus milagres. Era co­mum penitentes chegarem, doentes, à abadia para tocar as relíquias, pe­dindo pela cura. O abade os recebia em confissão e os acomodava. Tam­bém tinha descoberto um remédio contra a quentura. Certa vez o conde de Toulouse fora visitar a abadia. Tinha as costas das mãos inchadas, irritadas. Aquilo coçava e, quanto mais ele esfregava, mais piorava. O abade olhou e foi até a horta. Pegou folhas verdes de um tomateiro e as espremeu até obter um sumo forte, grosso, cheiroso, que misturou com mel e passou nas mãos do conde, que ficou na abadia por três dias. Durante esse perío­do, a intervalos regulares o abade fervia água, benzia, e com ela lavava as mãos do conde, antes de passar o remédio. Em cada ocasião o abade dava a bênção, colocando sua estola sobre as costas das mãos do conde, que ficou completamente curado.

Eram os chamados milagres do abade, que negava dizendo, como Cristo: "A tua fé te salvou". No entanto, a Inquisição inventara um novo tipo de perigo, o inimigo oculto. Era preciso desconfiar de gente vestida de monge ou de peregrino. Esses tinham poderes para matar em nome do abade de Cluny ou de Cister, e se matassem um inocente por engano o próprio papa já tinha aprovado a sentença de que Deus seria o juiz misericordioso que levaria para o inferno os hereges e acolheria os seus.

Mas o cavaleiro sabia hoje que não era assim. Deus era apenas bondade e não aprovava esses atos de perseguição. Graças ao Bom Homem, seu amigo Olivier, ele descobrira a verdade e comprometera-se a proteger a linhagem de Cristo, que o papa queria extinguir.

A neve tinha esbranquiçado todo o bosque, mas o horizonte cinza-escuro escondia a visão e pressagiava que o mau tempo iria continuar. Filetes de gelo pendiam dos galhos das árvores e era preciso evitá-los para não se fe­rir. No fundo do vale, surgiu a abadia, que ele pôde ver através dos troncos das árvores. Desceu do cavalo, porque um vulto maior era visto com mais facilidade. Parecia que o silêncio e a imobilidade da natureza aumentavam o frio. Via fumaça sair de chaminés, as pessoas estavam recolhidas em suas casas por causa do forte inverno. A estrada, com suas longas curvas brancas e cobertas pela neve, estava abandonada.

Tudo quieto. Não podia mais entrar lá porque sua presença seria como uma denúncia contra todos eles e, com uma prova dessas, o próprio abade seria condenado como herege e acusado de bruxaria por causa dos seus mi­lagres. Um movimento na cocheira chamou sua atenção. Parecia que uma carroça estava sendo preparada. Mas aonde iria uma carroça com um frio desses? Seria dia de feira? Mas não haveria feira com esse inverno. Iriam ao mercado? Para vender ou para comprar? Não havia verduras, nem frutas, mas, quem sabe, houvesse queijo e manteiga ou, então, chouriço e salames. Não levavam pão para o mercado ou para as feiras, porque o trigo era difícil de colher ali naquelas montanhas cheias de árvores.

Prestou atenção. Eram dois monges. Um deles subiu na carroça e foi guiando o burro com as rédeas, enquanto o outro ia na frente para abrir o portão. A carroça passou e pegou a estrada. O outro ficou olhando uns minutos, fechou o portão, ajoelhou-se e rezou.

Estranho. O que um monge iria fazer sozinho numa estrada abandonada e congelada? E por que o outro rezou de joelhos, ali na neve? Aquilo era esquisito. Orações para que o monge que saiu tivesse êxito na sua tarefa se­riam mais bem ouvidas por Deus se fossem feitas no templo e olhando para o Senhor. Olhando para o Senhor!... Era isso! O monge ajoelhara-se para o garoto, que estava partindo. Ele era o Senhor.

Precisava segui-lo, de longe, para evitar que os inimigos o sacrificassem como sacrificaram todos os bons cristãos do Languedoc. Sentiu o remorso de tantos crimes que cometera em nome de Deus. Em nome de Deus, não. Em nome do papa.

A sua vida na floresta lhe ensinara muitas coisas. Aprendera com os ani­mais a interpretar a Bíblia. Quando descobriu que as aranhas utilizam para fazer o veneno o mesmo néctar que as abelhas usam para fabricar o mel, entendeu porque existia o Bem e também o Mal. Como as aranhas, o de­mônio tirava da Bíblia o néctar para fazer o mal.

A carroça saiu da abadia e subiu por uma curva à esquerda, justamente do lado em que ele estava. Puxando o cavalo pelas rédeas, contornou o morro por dentro da floresta para se manter oculto. O branco da neve e o verde dos pinheiros traziam paz àquele ambiente, e raramente um pássaro assustado balançava o galho de uma árvore. Contornara a abadia e estava perto da estrada, mas evitou-a. Seria mais útil se continuasse sob as árvo­res, sem ser visto. Não tinha pressa, porque naquela subida e com a estrada cheia de neve, o burrinho puxava a carroça devagar. Mas, que barulho era aquele? Vozes? Ou seria alguém rindo? Apressou os passos e saiu na estrada a tempo de ver três caçadores, dois deles segurando o monge pelos braços, enquanto outro tirara o seu capuz. Era o garoto, o seu filho. Não! Era o filho legítimo de Deus que lhe fora confiado.

Os caçadores não o tinham visto, e ele pegou uma seta, que colocou com presteza no arco e soltou. Ela voou ligeira, esguia, porém firme e se­gura de que com ela ia a certeza da morte. Primeiramente subiu, esticou-se naquele ar parado, como se estivesse antegozando o cumprimento de sua missão. Depois desceu assobiando e atravessou o pescoço daquele que segurava o capuz.

Sentiu um grande orgulho do garoto, que treinava sempre com muita aplicação. Os dois que o seguravam descuidaram-se um segundo e foi o suficiente para que ele pusesse um para fora da carroça. O outro, porém, agarrou-se a ele e os dois começaram a lutar. Não podia atirar outra seta com segurança por causa da distância. Podia acertar o garoto em vez do caçador. A neve dificultava os seus movimentos e preferiu ajoelhar-se para armar de novo a seteira, esperando um momento oportuno. Confiava no garoto que a qualquer momento ia se livrar do inimigo, e ele tinha de estar preparado para essa oportunidade.

Foi quando surgiram outros caçadores e ele não teve dúvidas. Disparou setas que subiam, endireitavam e desciam raivosas, matando alguns deles, mas ele teve de esconder-se porque os caçadores também começaram a atirar. O garoto livrou-se do sujeito e tomou-lhe a espada. Mas seria uma luta desigual, porque os inimigos eram em maior número. Correu pela mata, e sempre que via uma fresta entre as árvores, enviava uma seta mor­tífera. Ainda assim, eles pegaram o garoto.

Com um grito agudo de urso ferido, que assustou até as folhas secas co­bertas de gelo, ele pegou sua espada e correu em direção à carroça. Tinha um escudo e com ele amparava as setas, enquanto andava o mais rápido que podia, com os pés afundando na neve. Urrando enlouquecido, avançava contra os caçadores, e nem percebeu que as setas diminuíam até pararem.

Foi então que viu quatro cavaleiros com uma roupa que ele conhecia bem, o uniforme dos templários. Eles apareceram do outro lado da carroça e suas flechas e lanças tinham exterminado os inimigos.

Parou, estupefato. Não sabia o que fazer. Os templários deviam obediên­cia ao papa e também eram suspeitos. Os quatro cavaleiros o olhavam com curiosidade, enquanto o garoto gritava:

Papai!

Um dos templários desceu do cavalo e veio em sua direção. Ele ficou preparado. Estava com as pernas atoladas na neve até os joelhos, mas não ia fugir da luta. Não iam levar o garoto. Sabia que aqueles cavaleiros queriam apenas a glória de terem levado com eles o último descendente do Santo Graal, o Sangue Real.

O garoto estava solto e olhava a cena. Não podia deixar que nada lhe acontecesse e, então, preparou a espada para enfrentar o templário, mas no mesmo instante os outros três cavaleiros jogaram ao chão as suas próprias armas e desceram dos cavalos. O primeiro templário aproximou-se, com as mãos longe da espada, ajoelhou-se, e ele ouviu:

O Homem Santo da Floresta! Bem-vindo seja aquele que protege o Sangue do Senhor!

Não podia ser. Estavam lhe prestando uma homenagem.

Mas vocês são templários e estão a serviço do papa.

Nós estamos a serviço de Cristo. Protegemos o seu Túmulo e prote­gemos o seu Nascimento. Pedimos perdão por chegarmos atrasados. Com essa neve, os cavalos tiveram dificuldade de galopar, mas agora vocês estão sob a proteção da Ordem.

Ainda de joelhos, o cavaleiro templário puxou a espada lentamente, com a mão esquerda, e, assim que o cabo saiu da bainha, ele passou a puxá-la pela lâmina, dando a entender que não ia lutar.

O senhor consegue ver o emblema no punho da espada?

O Homem da Floresta examinou a espada do templário, em que estava cunhada uma flor.

E, então, se lembrou de Olivier. Quando um dia os dois estavam pescan­do, ele lhe contou a história de que, na cidade de Toulouse, os partidários dos cátaros criaram uma confraria, que chamaram de Confraria Negra, para combater a Confraria Branca, chefiada pelo bispo de Toulouse, Foulques. A Confraria Negra adotara como símbolo a flor-de-lis, que era o emblema dos reis de França, porém disfarçando em suas pétalas as letras L.P.D.

A flor na espada do templário tinha três pétalas, imitando, de forma qua­se imperceptível, as letras L.P.D. Olivier lhe explicara que formavam a sigla de uma frase em latim, Lilia Pedibus Destrue, que significa "destrua a flor-de-lis", também chamada de lírio.

Naquela época, ele ainda não tinha sido convocado para lutar pelos cru­zados. Eram, então, amigos e Olivier dissera que, se um dia ele fosse procu­rado por pessoas que lhe mostrassem um símbolo com três letras, ele deve­ria seguir essas pessoas, porque o protegeriam. Com a lembrança repentina desse momento com seu amigo Olivier, ele exclamou:

A Confraria Negra!

Olivier era como Cristo, falava por parábolas. O cavaleiro templário levantou-se, e ele e o jovem monge os acompanharam pelos vales brancos dos Pireneus.

Naquele momento, terminava a missão do Homem da Floresta, que cumpriu a promessa feita ao seu amigo Olivier e entregou o Sangue Real aos novos defensores do Templo.

Durante muito tempo, ainda se falou do misterioso cavaleiro que prote­gia um jovem monge descendente direto de Cristo. Tempos depois, surgiu a lenda de um rei que havia se refugiado nas grutas do Sabartèz, e dali organizaria um exército secreto, que dominaria o mundo e vingaria a car­nificina cometida contra o seu povo.

 

                                 O ENTERRO DE CÉSAR BÓRGIA

 

                     CAPÍTULO 36

A explosão da ponte, enquanto eles apreciavam a paisagem do vale do Arga com a cidade de Puente la Reina ao fundo, deixou Maurício frustrado. A sincronização perfeita, para que eles assistissem à destruição da ponte como espectadores privilegiados, combinava com a entrega da charada dentro de um envelope envenenado, logo que eles se acomodaram no albergue. Parecia que alguém os acompanhava de longe, com um imen­so binóculo, adivinhando seus pensamentos.

Subia o morro para Cirauqui com a sensação de que a lógica daqueles acontecimentos não correspondia a seu raciocínio. Se já haviam assassi­nado o jovem holandês, por que destruir a mais tradicional e emblemática ponte do Caminho?

Ele e Patrícia conversavam por monossílabos e passaram por Cirauqui, um curioso labirinto de ruas medievais. Logo adiante, na saída da cidade, o peregrino encontra as ruínas de uma ponte romana. É um bom lugar para descanso e Maurício se sentou sobre uma das pedras milenares da amurada para dividir com ela suas cismas. Patrícia também pouco falava, sem cora­gem de quebrar o desencanto que os envolvera, e sentou-se ao lado dele.

O fim do Caminho ainda estava longe e ele tinha consciência de que de­via se preparar para novos episódios. Estava sendo empurrado para dentro de um quebra-cabeças e detalhes poderiam levar à solução. Até mesmo a presença de Patrícia entrou no universo de dúvidas que passou a inquie­tá-lo. Por que essa mulher se interessou em segui-lo, se já tinha seu grupo de amigos?

Patrícia o olhava com curiosidade, mas um dos dois precisava reiniciar o diálogo e foi o que ela fez.

O que você quis dizer com aquele "octogonal" lá atrás, pouco antes da explosão da torre?

A resposta não foi a que esperava.

As hipóteses matemáticas são infinitas. Nove algarismos dependendo de um zero. Pequenos símbolos desafiam a mente humana em formulações nas quais o homem escondeu seus maiores mistérios.

Nossa! Como você está filosófico!... Afinal, você é formado em quê? Já lhe contei que sou formada em Letras. Mas nada sei a seu respeito.

Sou formado em Direito, mas já que estudou Letras, lembra de onde vem a palavra pontifex.

Sim. É uma combinação de pons com o verbo facere, ou seja, pontífice é aquele que faz pontes. E a que vem isso?

Pois veja esse grande vale. Ele era invencível, até ser dominado por uma ponte. Elas tiveram um papel importante no progresso da humanida­de, pois se impuseram à natureza, atravessaram vales, brejos, rios, e por elas passaram as riquezas e os exércitos. Elas possibilitaram a continuação das estradas e a comunicação entre os povos. Como você disse, pons, em latim, é ponte, pontifex era o fazedor de ponte.

Aonde você quer chegar com esse pontifex?

Coisa admirável é a associação de idéias. Assim que vi essa ponte, me lembrei de um pedaço de tecido, que me levou a cardeais e papas.

Não era esse o tipo de conversa que pretendia ter com ela, mas os fatos de Puente la Reina interpunham-se entre eles. A bela mulher que ele vira na véspera transformara-se de repente em uma substituta do inspetor, e as palavras doces que podiam ajudar a desfrutar de uma bonita companhia estavam difíceis de sair.

O cansaço e a tensão do dia não ajudavam o humor, mas, ainda assim, se esforçaram para manter uma conversa amena.

Não estamos longe de Estella, um dos bonitos estágios do Caminho.

Interessante! Nas outras peregrinações não existe um Caminho. Você vai como quer e por onde quer, porque o importante é o destino, apenas chegar. Assim é a peregrinação para Roma ou para o Santo Sepulcro, em Jerusalém. Por isso, a palavra peregrino só se aplica à rota jacobina. Pere­grino é aquele que anda pelos campos, do latim "per agro". Romeiro é o que vai a Roma. Romeiro e peregrino passaram a ter o significado de todos aqueles que fazem uma peregrinação, mas a origem é distinta. Quem visita Jerusalém é chamado de palmeiro, porque, nos tempos antigos, as pessoas que visitavam o Santo Sepulcro traziam de lá uma folha de palmeira e a guardavam em um pequeno altar dentro de casa, para lembrar a entrada de Cristo em Jerusalém, no domingo anterior à sua morte.

Antes que ele fizesse qualquer comentário, ela disse, com ironia:

E não me pergunte mais nada. Sei disso porque li na internet.

 

                                         CAPÍTULO 37

Entardecia, quando atravessaram a ponte medieval sobre o rio Ega, na entrada de Estella, e foram para o albergue, cujos alojamentos eram divididos em quatro grandes quartos com beliches. Assim que subi­ram para o dormitório, Patrícia colocou sua mochila sobre a primeira cama perto da escada e Maurício optou por ficar mais no meio.

Era cedo e saíram para visitar Estella, fundada em 1090 e pródiga em monumentos que o peregrino não pode deixar de ver, como a Igreja de São Pedro de la Rua e seu claustro, palco de uma curiosa história.

Conta a lenda que um peregrino anônimo morreu nessa cidade e foi en­terrado junto com seu pequeno fardo no lugar onde é hoje o claustro. Dias depois, uma luz começou a brilhar sobre seu túmulo, e descobriu-se que o peregrino era o bispo da cidade de Patras, capital da região de Acacha, na Grécia, que peregrinou no ano de 1270 a Santiago e havia trazido com ele os ossos dos ombros de Santo André, martirizado no ano 62, em Acacha, e irmão de São Pedro.

Patrícia comentou aquela coincidência:

Não é interessante que os restos do apóstolo Santo André tenham sido transportados até aqui para serem enterrados na igreja dedicada a seu irmão, o apóstolo São Pedro?

Esse é outro mistério. Por que roubariam os ossos de Santo André, se hoje não existe mais o comércio de relíquias, como na Idade Média?

Roubaram as relíquias que o bispo trouxe da Grécia? — ela pergun­tou, espantada.

No ano de 1967, escavaram o túmulo e levaram as relíquias do apóstolo.

E por que fariam isso?

Ele fez um movimento enigmático com as mãos, como se não soubesse o que dizer, e saíram dali em busca de um restaurante para jantar. Maurício foi moderado com o vinho. Perdera o direito de sonos profundos e de beber sossegado. Durante o jantar buscaram assuntos mais leves e logo voltaram para o albergue.

Antes de se deitar, deu a volta nas camas com a desculpa de testar se as janelas estavam bem fechadas, mas na verdade queria ter uma visão de todo o quarto e eliminar algumas suspeitas. Os demais peregrinos se aco­modaram e as luzes se apagaram. Presságios disputaram com os sonhos o vazio da noite, e de madrugada ele acordou com o barulho de um grupo de alemães que se preparavam para sair, mas continuou deitado.

Patrícia era uma mulher bonita e animada. Não temia acompanhá-lo, ape­sar dos crimes que só ocorriam quando ele estava por perto, e isso era outra coisa intrigante. Os peregrinos que estavam no albergue, em Puente la Reina, viram o rapaz holandês perguntar por ele e certamente ela sabia disso.

Conhecera-a no dia anterior, e tinha até mesmo dúvidas de que se cha­mava Patrícia. O acidente no albergue de Roncesvalles e seu aparecimento repentino não podiam ser coincidência. Seus pensamentos não se acomo­davam, indo inquietos de um ponto para outro de seu cérebro, dificultando o raciocínio. O que fazer para descobrir os motivos de coisas inexplicá­veis, como a morte do padre em Roncesvalles e a do peregrino holandês, a destruição da ponte e essas misteriosas charadas, sem qualquer pista? A pergunta dela quanto aos motivos que teriam levado alguém a roubar as re­líquias de Santo André fazia sentido. Mas do quê adiantava dizer que talvez esse roubo pudesse ter sido um simples exercício?

O exercício é o instrumento da perfeição, e todos esses fatos se encaixa­vam em um cenário perfeito, sem erro, precedidos por uma longa série de exercícios, como o roubo dessas relíquias, ocorrido há tantos anos e ainda sem solução. O crime dos Pireneus foi planejado com antecedência. Sabiam que o homem do burrico ia passar por um determinado lugar e levava a me­nina no lombo do animal. E por que o estariam envolvendo nessa trama?

O inspetor era uma pessoa incômoda, porque não havia dúvidas de que o estava vigiando. Ele se fora, isso era bom, mas teria deixado em seu lugar uma mulher bonita? Melhor assim, resmungou resignado para si mesmo e levantou-se.

 

                                 CAPÍTULO 38

O Caminho é um rosário de monastérios e catedrais milenares. Cada uma dessas obras tem o encanto de uma música erudita, como o Monastério de Irache, na saída de Estella.

No ano de 958, já existia no local do mosteiro uma pequena comunidade beneditina, onde foi construído um hospital de peregrinos que lhe deu ori­gem. É um templo de singela riqueza artística. Suas colunas esbeltas susten­tam a abóbada, cujos arcos sóbrios realçam a beleza dos capitéis. No teto, o monograma de Cristo representa a vitória do cristianismo sobre o mundo.

Eram sete horas da manhã quando o zelador abriu as portas da igreja como de costume. Quase no mesmo instante, a porta do claustro que fica do lado direito do altar se abriu e um monge encapuzado, alto, de olhar dominador, entrou na igreja. O zelador se assustou e olhou para o padre como se um fantasma tivesse saído do claustro, há muitos anos sem uso. As chaves do monastério e de suas dependências ficavam com ele. Como poderia então aquele padre ter entrado lá, se havia trancado tudo na noite anterior? Uma voz imperiosa cortou-lhe as dúvidas:

Feche a porta. Nós vamos ensaiar uma cerimônia especial para os peregrinos.

Como se uma força oculta o empurrasse, fechou as duas enormes folhas de madeira da entrada da igreja, que ficou na semi-escuridão.

O padre deu outra ordem:

Pegue uma cadeira e coloque bem embaixo do monograma de Cristo.

O zelador foi até o guichê, onde costumava ficar para vender os tíquetes de visitação, e trouxe a cadeira.

Este é o momento do ensaio da cerimônia do monograma para repre­sentá-la aos peregrinos nesta manhã.

O zelador estava desorientado com o aparecimento do monge, que exer­cia sobre ele um incontrolável domínio. Ao dar as ordens, o outro o olhava como se perscrutasse sua alma e, apesar de nunca ter ouvido falar dessa cerimônia, ele obedecia como um autômato.

A cerimônia do monograma vai ser simples. Ele está no teto bem acima de sua cabeça. É um círculo de oito barras com uma margarida de oito pétalas ao centro. Localize as letras alfa e ômega, a primeira e a última letras do alfabeto grego, simbolizando, para nós, que Cristo é o início e o fim de tudo.

Aquele monograma esteve sempre ali e nenhum padre sequer chamara a atenção sobre ele. Por que, de repente, se tornava tão importante? Con­centrando-se para entender os sinais em relevo, o zelador deixou de olhar para o monge, que aproveitou aquele momento de distração e deu-lhe uma violenta joelhada no estômago. O impacto foi tão grande, que o deixou sem voz e zonzo. Imediatamente, o padre passou em sua boca uma fita larga de esparadrapo e amarrou seus braços atrás da cadeira, deixando-o imobiliza­do e sem poder gritar.

Apesar de estonteado, ele ainda se deu conta do que o padre preten­dia fazer. Debateu-se desesperadamente na cadeira, tentou gritar, bateu os pés, tentando romper as cordas que prendiam seus braços, mas não conseguiu evitar que o monge segurasse sua cabeça com uma das mãos, imobilizando-a. Aquele desespero não estava nos planos do assassino, que tinha pressa e deu-lhe um violento soco na fronte deixando-o sem sen­tidos. Pegou os instrumentos cirúrgicos que havia trazido e iniciou uma macabra operação.

 

                                         CAPÍTULO 39

Passara-se quase uma hora desse episódio, quando Maurício e Patrícia se aproximavam de Irache. Atrás deles, vinha um grupo de pere­grinos conversando animadamente e quando chegaram diante do monas­tério Patrícia comentou, desapontada:

— Que pena! Queria entrar nessa igreja. Talvez só abram às oito horas. Enquanto esperamos, podemos aproveitar para tomar um pouco do vinho que jorra desse paredão.

Em frente ao monastério, uma bodega oferece vinho gratuitamente, sau­dando os peregrinos. Mas Patrícia não teve tempo de ir até lá, porque mal dissera isso e as portas da igreja se abriram como que automaticamente. Maurício se afastou e examinou com cuidado a frente da igreja. As duas imensas portas medievais continuavam com suas centenárias dobradiças, sem mecanismos eletrônicos.

Aproximou-se da entrada e examinou o interior da igreja. Não teve tem­po para evitar que Patrícia visse o corpo de um homem cortado em oito pedaços, distribuídos em torno da cadeira no meio da igreja, e dos quais ainda escorria sangue. Seus olhos correram rapidamente por aquela cena e viram sobre a cadeira uma folha de bloco.

Chocada, quase em desespero com o inesperado da cena, Patrícia se vi­rou. Maurício correu até a cadeira e envolveu o papel em seu lenço, saindo da igreja quando os outros peregrinos se aproximavam.

A polícia precisava ser avisada, mas era melhor não se envolver nisso e transferiu o problema:

Acho melhor não entrarem na igreja. Parece que há um homem mor­to lá dentro. Alguém tem um celular para chamar a polícia?

No Caminho, o que não falta é celular. Pedir para alguém não se aproxi­mar de um lugar onde possa ter havido um crime sempre desperta a curio­sidade mórbida do ser humano. Logo se instalou a confusão entre o grupo, uns assustados, outros nervosos. Ele aproveitou para empurrar Patrícia, que ainda continuava em estado de choque e saiu discretamente dali.

Caminharam em silêncio alguns minutos, mas aos poucos ela voltou à normalidade e quis saber por que ele tinha entrado na igreja, mas não quis esperar pela polícia. Embora não a conhecesse direito, não queria levantar suspeitas. Afinal, ela o vira entrar na igreja, certamente para pegar alguma coisa, e agora se esquivava.

Ele esperou um pouco, até que ela estivesse em melhores condições, e leu em voz alta a mensagem escrita em letras gráficas, com tinta vermelha:

"Este é o meu sangue, que será derramado por muitos."

Mas essa é a frase que Cristo disse quando sugeriu que o vinho era seu sangue. Ela é repetida em milhões de missas, todos os dias. Por que matar o homem daquele jeito e deixar a frase de Cristo? Você tem alguma idéia?

Não, não tenho, e é por isso que preferi não ficar lá. Têm acontecido coisas quando estou por perto, e você sabe que não matei esse homem. Mas, se o inspetor viesse a saber que eu passei pelo monastério logo depois do crime, voltaria a me aborrecer com sua companhia.

Pouco sabiam um do outro, e caminharam sem falar, até que ela procu­rou amenizar a situação:

Com certeza, não é nada com você e a polícia sabe disso. Em Puente la Reina, quase salvou a vida do rapaz. Eu não estava presente, mas foi o que me informaram no albergue. Afinal, que culpa tem do que aconteceu nesse monastério?

E não escondeu sua aversão pelo inspetor:

Aquele policial parece insinuar coisas para descobrir o que pensamos ou estudar as nossas reações.

 

                                 CAPÍTULO 40

Ter saído de irache antes que a polícia aparecesse tinha sido uma decisão acertada, porque era mais uma ligação com os crimes an­teriores. Não carregava celular e evitava usar o de Patrícia, porque ela seria identificada. Por sorte, conseguira pegar a mensagem sem que ninguém notasse e, para todos os efeitos, eles eram agora dois peregrinos distraídos no Caminho para Santiago.

Seguindo por trilhas estreitas e pedregosas, o peregrino passa por Azqueta e divisa ao longe um grande castelo de pedra, no cimo de um morro, isolado como os castelos mal-assombrados dos contos de fadas. O castelo de Monjardim fora construído por Navarra no século IX, para defender suas fronteiras contra o reino de Castela, e hoje é apenas uma marca do tempo.

A trilha seguia as quebras das montanhas e, ao se aproximarem do caste­lo, Patrícia exclamou com melancolia na voz:

Que linda manhã para ser estragada assim!

Fora de fato um crime horrendo. O sangue ainda escorria do corpo do homem; portanto, não fazia muito tempo que o assassino saíra de lá. Para onde teria ido? Qual a direção mais lógica que ele tomaria? Além de pla­nejar todos os locais que visitava, como se o estudasse a cada passo, esse ser misterioso ainda deveria ter ajuda em suas façanhas. Sem dúvida, devia estar adiantado, mas por perto, premeditando seus atos, saboreando seu êxito e estudando as reações das pessoas.

A paisagem, no entanto, era extasiante, com o castelo de Monjardim no alto do morro, de um lado, e, na frente deles, uma grande plataforma rochosa com paredões verticais prateados, que se destacavam em meio à vegetação.

Logo na entrada de Monjardim, uma solitária fonte medieval desperta a curiosidade do peregrino. Patrícia quis chegar mais perto, e eles entraram para ver a água no fundo do poço. Quando saíram, se depararam com uma cruz de madeira com os braços quebrados, perto da porta, mas do lado de dentro, e por isso não a viram quando entraram.

Notando o interesse dele e querendo ir logo embora dali, Patrícia tentou uma explicação:

Essa cruz devia estar pendurada e caiu. Por isso está quebrada.

Não havia, porém, lugar na parede ou no madeirame do telhado onde ela pudesse estar pendurada. Ele examinou a cruz:

Madeira verde e feita agora pouco. Acho que é obra do mesmo artista do monastério de Irache.

Era o que ela temia.

Ele cometeu o descuido de deixar isso aí depois daquele crime?

Esse pessoal não comete esse tipo de descuido. Isso não foi descuido. Eles pensam em tudo.

Ela estremeceu e se afastou da fonte. Lá no alto do morro, as pedras do castelo refletiam os raios matinais do sol e um grupo de turistas admirava a paisagem que se estendia de suas muralhas.

Aposto como esse assassino está nos vigiando com um binóculo, lá do alto do castelo. Não existe álibi melhor do que um grupo de turistas de várias nacionalidades.

Ele não quis assustar Patrícia com suas suspeitas, mas os dois braços da cruz deixada na fonte lembravam a lenda da cruz quebrada, segundo a qual o rei Sancho y Garces teria escondido uma cruz de prata para que os ára­bes não a destruíssem. Tempos depois, um pastor notou que uma de suas cabras estava parada e olhava para um determinado lugar. Imaginando que fosse um animal que quisesse pegar a cabra, o pastor atirou uma pedra, mas viu depois que era uma cruz e que havia quebrado um dos braços. Arrependeu-se, e pediu então a Deus que lhe inutilizasse seu próprio braço e restaurasse a cruz.

O assassino deixara, com aquela cruz, o recado de como seria o novo ritual. Era, sem dúvida, outro desafio, como o barrete vermelho.

Caminhavam agora pelo território de Rioja, onde o peregrino não en­contra as trilhas sombreadas de Navarra. De Villamayor a Los Arcos, são 13 quilômetros em meio a pastagens e campos de cereais, sob o sol escaldante da tarde. Por causa dessas distâncias, outrora maiores e mais duras, entre um vilarejo e outro, foram sendo construídas fontes na entrada dos vilare­jos com água abundante, onde o peregrino não resiste à tentação de tirar a mochila das costas e pôr a cabeça sob a água. Passaram por Los Arcos, onde fizeram uma visita rápida à esplêndida catedral e seguiram para Torres dei Rio, pequeno vilarejo seis quilômetros adiante, datado da época romana.

O dia estava claro, e depois de se acomodarem no albergue saíram para visitar a singela igreja do Santo Sepulcro, da qual emana um mar de misté­rios. Maurício ficou de pé, no meio da porta, como se não ousasse entrar naquele pequeno templo que mais parecia um mausoléu. Patrícia, porém, não tinha tanta compulsão por símbolos e avançou até ficar bem no meio da igreja. Ele a acompanhou e olhou para o alto.

Note a simplicidade das oito linhas que se encontram no centro da cúpula octogonal. Elas têm um significado que vai além da fé. É como se a arte e o conhecimento humano se juntassem, no esforço para trazer dos céus a iluminação divina.

Patrícia achou meio ridícula aquela explicação, mas já percebera que ele gostava de símbolos e de linhas octogonais, como se fosse aluno de esote­rismo. De vez em quando ele chegava a acrescentar algo interessante, como a razão de existirem igrejas do Santo Sepulcro fora de Jerusalém.

Essa igreja é do século XII e cultiva a memória dos templários, os Cavaleiros do Templo, que protegiam a peregrinação a Jerusalém. Com a conquista da Cidade Santa pelos árabes, os templários construíram igrejas do Santo Sepulcro no Caminho de Compostela.

Que interessante! Você quer dizer que, diante da frustração de o Santo Sepulcro estar sob controle dos muçulmanos, os templários começaram a fazer representações do túmulo de Cristo no Caminho de Compostela, para que essa peregrinação simbolizasse também a ida à Terra Santa?

O comentário dele a deixou nervosa:

Essas mortes e charadas parecem fazer parte de um ritual. Todo ritual traz implícitas duas coisas inseparáveis: iniciação e missão.

Não entendo desse negócio de iniciação e coisas secretas, mas estou cansada e com fome. Já devem estar servindo o jantar lá no albergue e me parece que era um macarrão, por sinal, muito cheiroso.

A noite silenciosa de Torres dei Rio cedeu seu lugar a um fresco amanhe­cer que convidava à caminhada. A saída do albergue é um dos momentos mais agradáveis do Caminho, e o peregrino parte, alegre, com a expectativa desse novo dia. Depois de cruzarem campos silenciosos, subirem escarpas íngremes e descerem morros pedregosos, avistaram ao longe a cidade de Viana, que fica no meio do trajeto até Logronho. É uma vista que engana, e eles ficaram parados alguns momentos, apreciando a bonita paisagem.

Patrícia estudou, desanimada, a distância que os separava de Viana. No alto da colina, a cidade os desafiava a descer o vale e a percorrer a longa subida até onde estava. Ela não sabia se Maurício estava quieto por causa do cansaço ou se alguma nova preocupação o atormentava. O Caminho passa ao lado da catedral e, ao se aproximarem dela, ele foi diminuindo os passos. Parou e olhou para o chão. Uma lápide quase rente ao portão, com o nome de César Bórgia, pontifício e generalíssimo dos exércitos de Navarra, servia de tapete para a entrada da igreja.

César Bórgia, enterrado aqui? Que coisa esquisita! — exclamou Pa­trícia. — Quer dizer que as pessoas que entrarem na catedral têm de pisar em seu túmulo? Vamos embora. Não quero saber de mais esse fantasma me acompanhando pelo Caminho.

Mas já que estamos aqui, vamos aproveitar as mesas em frente a esse bar para descansar um pouco e tomar um refresco.

Encostaram as mochilas na parede do bar e Patrícia teve um inesperado interesse por César Bórgia. Como se esperasse por essa reação, ele expli­cou, paciente.

Quando, há alguns anos, fiz o Caminho pela primeira vez, fiquei curioso em descobrir por que César Bórgia estava enterrado aqui. As res­postas foram perturbadoras. Hoje, até imagino que César Bórgia pode aju­dar a explicar esses crimes. — Antes que ela se recuperasse da surpresa, ele fez uma pergunta aparentemente fora de propósito:

Você sabia que a palavra cofre tem origem nas lendas do Santo Graal?

Essa não! Agora você está chutando.

Cofre vem de "coferre", inicialmente sinônimo de lugar para enterrar. O primeiro esconderijo do Santo Graal foi o túmulo de Cristo.

Mas de onde você tira essas coisas?

Ele não deu importância à pergunta e continuou, como se precisasse convencê-la de algo em que ela nunca pensara.

Segundo a lenda, José de Arimateia estava com o cálice usado na Santa Ceia e colheu algumas gotas de sangue quando desceu Cristo da cruz. Ele levou o corpo para o sepulcro de sua família, e guardou ali o cálice. Depois da Ressurreição o lugar já não era tão seguro e José o levou para a atual Escócia.

O túmulo de Cristo pode ser entendido, então, como o primeiro cofre a proteger o Santo Graal? Nunca havia pensado nisso.

Pois bem. Mil anos depois, quando surgiu a lenda do Santo Graal, o lugar onde o rei Bandemaguz foi enterrado recebeu o nome de "coferre", de onde cofre. Está percebendo o simbolismo? Não pode ser coincidência. O cálice teria sido guardado no túmulo de Cristo, e a lenda, não uma lenda comum, mas "A Demanda do Santo Graal" sugere que túmulo significa co­fre. Então, pergunto: onde estariam os túmulos mais seguros, os túmulos que serviriam de cofre?

Santo Deus! Você está dizendo que o Santo Graal poderia estar em um túmulo dentro de alguma catedral, monastério ou outro lugar sagrado?

O túmulo sempre foi considerado uma espécie de cofre-forte da alma. Em algumas civilizações, os bens mais importantes para a pessoa eram até mesmo enterrados junto com o corpo, e por isso muitas vezes colocavam um sarcófago falso, com outro corpo na frente, para iludir os ladrões. A vida dos Bórgia sempre foi um mistério. Há informações de que César se envolvera com uma organização cátara.

César Bórgia envolvido com os cátaros? Pelo que sei, na época em que ele viveu, os cátaros já não existiam.

Alguns conseguiram fugir e a seita sobreviveu. A perseguição contra os cátaros foi tão sistemática e cruel, que eles se especializaram em esconder segredos. Não se concebe uma sociedade secreta sem que ela tenha como guardar seus principais segredos.

Ai, ai! Por que não acaba logo com esse mistério?

César Bórgia era uma das pessoas mais notáveis e polêmicas da época, a ponto de sua vida ter servido de modelo para Maquiavel escrever o seu famoso livro "O Príncipe". Ele sempre comandou exércitos e instituições. Então, se realmente esteve envolvido com alguma sociedade secreta, deve ter ocupado cargo de importância e, nesse caso, o seu túmulo verdadeiro foi protegido.

A conclusão era espantosa.

Credo! Você então acha que ele estaria em outro túmulo dentro da catedral, sob uma lápide, que teria o nome de outra pessoa?

É o que penso. E, se tomaram esses cuidados, é porque alguma coisa além de seu corpo estaria nesse túmulo.

Um longo silêncio se interpôs entre os dois. Ela batia levemente o copo de refrigerante sobre o vidro da mesa, pensando nessa idéia absurda. Mas havia lógica nessa história. O primeiro lugar onde o cálice foi guardado deve mesmo ter sido o Santo Sepulcro. Agora, Maurício vinha com a inter­pretação de que, pelas lendas do Santo Graal, essa relíquia estaria escondida em algum túmulo.

Não acredito nisso! Você não vai me convencer de que um sujeito como esse César Bórgia, um criminoso que matou até membros de sua fa­mília, um corrupto nojento, possa ser comparado a cavaleiros puros como Percival ou Galaaz.

Ele pegou a mochila, sorrindo:

Vamos?

Enquanto desciam as rampas da cidade que levam de novo às planícies intermináveis, Maurício cismava. Que mistério se escondia por trás da fa­mília Bórgia, que a história se recusaria a revelar? Sua mente não conse­guia decifrar as mensagens da intuição, mas ele sabia, sim, ele sabia que o turbulento César era mais do que um fantasma. Seria ele realmente um assassino, um corrupto, o inconveniente filho de um papa, ou sua vida seria um cenário já escondido por cortinas?

Era quase uma profanação a ligação entre o túmulo de César Bórgia e o sacrário do Santo Graal. Por que o subconsciente o perturbava com ima­gens confusas e irreais? O que seu cérebro dolorido queria dizer com suas fantasias? Esforçava-se, mas era difícil acreditar que estava vivendo uma realidade alheia ao momento atual.

 

                                 CAPÍTULO 41

Corria o ano de 1501 e Lucrécia Bórgia, a mais bela e desejada mulher de Roma, alisava os longos cabelos dourados diante de um espelho que reluzia o azul cintilante de seus olhos. Ela esperava pelo car­deal Della Rovere no luxuoso aposento do pai, o Papa Alexandre VI — tão ricamente decorado, que passou para a história como os Aposentos Bórgia. Delia Rovere ficara encarregado de convencer o Sacro Colégio de cardeais a aceitá-la como substituta de seu pai, no trono de São Pedro, em sua viagem até o reino de Nápoles.

Estava ansiosa, e assim que ouviu o leve toque na porta, correu para abri- la. Diante da porta estava o cardeal Giovanni Della Rovere, concorrente de seu pai no conclave de 10 de agosto de 1492.

Lucrécia fez um gesto elegante com o braço direito, dando a entender ao cardeal que ele podia entrar, e fechou a porta atrás dele. Delia Rovere se postou diante dela sem esconder seu encantamento diante da formosura de Lucrécia, que perguntou:

E então? Como reagiram os cardeais?

Minha querida papisa, o Sacro Colégio me fez portador de suas ho­menagens. Tive alguma dificuldade, mas consegui convencê-los.

Ao mesmo tempo, ajoelhou-se e beijou a mão direita que Lucrécia lhe estendera. Ela deu-lhe a outra mão e ele se levantou.

Ficaram de pé olhando um para o outro, como se não acreditassem nessa aprovação.

Você foi muito convincente quando se apresentou ao Sacro Colégio e disse com voz vibrante: "Virgo intacta sum" (Sou uma virgem intocada).

Embora Lucrécia tivesse sido casada, o casamento não se consumara de­vido à indiferença do marido Giovanni Scorza, posteriormente assassinado por seu irmão, César Bórgia. Consta que depois ela teve um filho de outro casamento com Afonso de Biscegli, também morto por César Bórgia — e a história desse filho gerou um manto de dúvidas. Ela estava em estado de uma incipiente, e ainda imperceptível gravidez, quando designada para reger o Vaticano, na ausência do pai, e usou da artimanha de colocar várias anáguas, para evitar dúvidas.

Agradeço ao nobre cardeal a brilhante idéia de usar todas essas aná­guas. Não acredito que alguém fosse perceber o meu estado, mas foi bom não correr riscos. Puxa! Como foi difícil colocá-las sozinha! Não podia confiar em nenhuma criada.

A alegria se estampava em sua face e de seus lábios saiu uma ordem:

Continuo não confiando em criadas, e peço agora sua ajuda para tirá-las.

O cardeal suspirou com o arrepio que lhe percorreu a espinha, e desa- botoou o laço que prendia a saia que vinha da cintura até os pés. Lucrécia continuou imóvel, com o sorriso nos lábios.

Ele queria saborear aqueles momentos e desatou a primeira anágua sem pressa. Depois, as outras foram caindo aos pés de Lucrécia, que já respirava ansiosa e pedia para ele tirar tudo rapidamente. Quando ele começou a sol­tar a última anágua, ela abriu o corpete, que ele ajudou a retirar.

Lucrécia estava nua diante do cardeal Giovanni Della Rovere, mostrando um corpo esbelto de curvas sensuais, a pele cor de madrepérola, e um olhar de exasperante malícia. Ela chegou mais perto dele e o cardeal soltou um grunhido quando ela levantou a batina. Descontrolado e também ansioso, ele a carregou para o leito macio e largo, que parecia um cúmplice à espera de os dois se jogarem sobre ele.

Ah! Não acredito. Agora eu sou a mulher mais importante da Europa.

A alegria de assumir o controle do Vaticano a deixava mais excitada, e suas manifestações de prazer foram aumentando, até soltar repetidos gemidos, acompanhados de um animalesco ronco do cardeal. Os dois estavam agora estendidos ao lado um do outro e Delia Rovere a observava, triunfante.

Vencera mais uma batalha, na guerra oculta que vinha travando con­tra Rodrigo Bórgia, desde sua eleição como Papa Alexandre VI. Cometera antes o erro de incentivar o rei Carlos VIII da França a invadir o reino de Nápoles, dominado pelos turcos, e tentar destituir o papa.

A estratégia não dera certo e ele adotou outra: a de apoio à família Bór­gia. Usando de astúcia, reconquistou a confiança de Alexandre e começou a tramar sua própria eleição. Para isso, é claro, Alexandre não poderia viver mais do que ele.

Os escândalos do papa desmoralizavam o trono de São Pedro, e os refor­mistas ganhavam adeptos. A violência dos Bórgia, o luxo e as atitudes mun­danas do papa estimulavam heresias que ameaçavam o poder da Igreja.

Não havia momento mais apropriado para seu plano.

A bela e insaciável Lucrécia, a mulher mais cortejada de Roma, estava agora à sua mercê. Se ele a dividia com outros, pouco importava. Ao con­vencer o Sacro Colégio de aceitar a filha do papa como regente do trono de São Pedro, em sua viagem a Nápoles, conquistara-a definitivamente e granjeara o respeito do pai e do belicoso irmão.

O papa não confiava no Sacro Colégio e tinha receios de não mais voltar ao trono, caso indicasse um dos cardeais para administrar o Vaticano em sua ausência, e então designou a filha bastarda para substituí-lo. Fora a gota d'água. A maioria dos cardeais descendia da nobreza italiana e, embora ti­vessem recebido gordas somas para o elegerem, agora o rejeitavam.

Os cardeais italianos estavam indignados com o atrevimento do papa, que pusera uma mulher no trono de São Pedro e escandalizara toda a Euro­pa, mas preferiram agir com prudência e aceitar o conselho de Della Rovere, que prometera reverter essa situação no momento apropriado.

Della Rovere os convencera de que seria perigoso afrontar o papa em um momento desses, porque seu filho César Bórgia era o comandante da Santa Liga, o mais poderoso exército de Roma, e já matara os irmãos, os cunhados e vários nobres italianos. Até agora a estratégia vinha dando certo, e ele saboreava as manobras que havia feito para chegar ao ponto de se deitar com a filha do papa, para cumprir os desígnios que o Bom Deus lhe atribuíra. Passou as mãos levemente sobre os cabelos da doce Lucrécia e sorriu, lembrando do primeiro encontro com ela, depois de vários atos de preparação.

 

                                CAPÍTULO 42

O cardeal Della Rovere tinha três filhas e uma delas co­meçara a freqüentar o Vaticano assiduamente e fizera amizade com Lucré­cia. Ele coordenara essa aproximação e a filha deu-lhe informações sobre os lugares que Lucrécia freqüentava, de seus encontros amorosos, de suas fraquezas e preferências. A informação mais útil era que ela, às vezes, fre­qüentava uma margem arenosa do rio Tibre nos arredores de Roma, onde se estendia ao sol ou se deleitava com a sombra dos arvoredos.

Nos festins que Alexandre VI dava no salão de banquetes do palácio, Ro­vere procurava ficar perto dela e buscava um diálogo ameno, sem demons­trar muito interesse, mas alcançava os pontos fracos de Lucrécia, seguindo a orientação da filha. Não podia estragar o paciente trabalho e, aos poucos, a conversa entre os dois foi ficando mais liberal. Ela parecia ceder às suas insinuações, mas Rovere a conhecia bem. Em muitas ocasiões, ela usara sua feminilidade e beleza para destruir os inimigos dos Bórgia. Tinha certeza, porém, de que, em circunstâncias de nervosismo e emoção, Lucrécia não resistiria a seus afagos. E se preparou para o bote final.

Agora ele estava ali, no leito dos Bórgia, recordando o dia em que des­ceu até onde ela estava, na margem do Tibre. Fora preciso muito controle para que a excitação que tomara conta dele ao ver Lucrécia, nua, deitada na areia, com os pés na água, não estragasse seu plano. Ele havia encomenda­do uma serpente venenosa, que trazia dentro de um engradado, com um pequeno orifício, por onde enfiou um punhal, matando-a. Pegou-a com um pedaço de pano e desceu o barranco devagar, silenciosamente. A cor­renteza do rio ajudava a abafar seus passos, e ele deixou a serpente na areia a uns 10 metros de Lucrécia. Voltou silenciosamente para o barranco, onde pegou uma pedra e jogou em direção à cobra. Seu grito fora propositada­mente assustador:

Cuidado, Lucrécia! Uma cobra!

Quando ela se levantou, já estava pisoteando a serpente, com as botas, e seu pisoteio fazia o corpo do animal se mexer, dando autenticidade à cena. Ao ver a cobra, Lucrécia empalidecera e caíra na água. Rovere planejara tudo em detalhes e previra isso. Ele estava com uma toalha macia enrolada no pescoço e correu para retirá-la de dentro do rio. Colocou-a de pé sobre a areia e envolveu seu corpo com a toalha.

Eu estava procurando um lugar sossegado como este para me banhar e ia descendo o barranco, quando vi esse animal rastejar em sua direção.

Ela estava pálida, suas pernas tremiam e se apoiava nele, sem forças para continuar de pé, alheia ao fato de estar sem roupa. Ele começou a enxugar seu corpo nu. A toalha subia mansamente pelas costas até o pescoço e de­pois descia até a cintura, algumas vezes se descuidando e descendo mais um pouco, para depois subir novamente, em movimentos compassados. Essa leve massagem surtiu efeitos e ela foi aos poucos voltando à normali­dade e, quando o cardeal tentou passar o tecido macio por seu ventre, ela estremeceu e se afastou para que lhe enxugasse os seios. Mas, nesse movi­mento, ela viu a cobra no chão e deu um grito, agarrando-se novamente a ele, que recomeçou os movimentos nas costas com suaves pressões, e ela não resistiu. Pouco depois, ele a deitou sobre as roupas que ela deixara à sombra do arvoredo. Seu primeiro êxito.

O segundo foi conseguir sua nomeação como regente do papa. Sua vitó­ria, porém, não estava completa. Para derrotar os Bórgia, tinha de se apro­ximar do irmão dela, o perigoso César. Se conseguisse assumir o papado, acabaria com todos eles.

Aquela sensação de triunfo, misturada com o enorme prazer de saborear o corpo de Lucrécia, o revigorou. Ah! Como fora agradável aquele momento em que ela se doara inteiramente na margem do Tibre! Ele a olhava, cobiçoso, e se mexeu para apreciar suas curvas e, com esse movimento, ela desper­tou, com um cativante sorriso nos lábios sensuais. As mãos se tocaram, na busca um do outro, em carícias cada vez mais atrevidas, enquanto os corpos nus se encostavam.

 

                                         CAPÍTULO 43

Os monges, que faziam os manuscritos e cuidavam da biblioteca do Vaticano, olharam temerosos para a porta, quando o podero­so César Bórgia entrou a passos largos, pisando o solo com o ritmo próprio dos dominadores.

Conheciam o temperamento e a história do perigoso César, que aos 16 anos de idade fora nomeado cardeal por seu pai, mas não quisera seguir car­reira eclesiástica e preferira assumir o comando das forças militares da Igre­ja. O príncipe César parou diante de um monge que o olhava, assustado.

— O diário. Encontrou-o?

O monge balançou a cabeça afirmativamente, com medo de a voz sair com um tom que ofendesse o príncipe, e pegou um manuscrito antigo, que trazia sobre a capa grossa o título em letras douradas: Diário de São Remígio. César abriu o livro para conferir se estava inteiro e saiu com os calca­nhares batendo firme no piso de pedra.

No fim do dia, quando os vultos se deformam com a luminosidade opaca das velas, um monge, espadaúdo como um guerreiro, levantou-se de sua mesa e caminhou devagar, simulando procurar um livro nas estantes. Ao chegar perto do monge que ainda estava sentado, passou a mão esquerda sobre sua boca para ele não gritar e, com o braço direito por baixo do quei­xo, quebrou-lhe o pescoço, em um movimento rápido.

O assassinato de um monge na biblioteca do Vaticano, no mesmo dia em que César ali estivera, levantava dúvidas contra ele, e imediatamente Della Rovere procurou saber o que ele fora fazer lá. Da lista dos livros que ficavam sob a guarda do monge, faltava o Diário de São Remígio. O cardeal já ouvira falar desse diário, mas não sabia o que podia haver nele de importante para interessar ao filho do Papa Alexandre VI e causar a morte do bibliotecário.

Era outro assunto que precisava investigar, mas o papa já voltara de Nápoles e reassumira o trono. Era melhor continuar sua estratégia e não se imiscuir em assuntos que poderia resolver mais facilmente quando fosse eleito. Sua preocupação era eliminar Alexandre sem despertar suspeitas. Obviamente, não deveria concorrer à sua sucessão, pelo menos até que o comando das forças militares saísse das mãos de César. Não só ele, mas nenhum dos car­deais cujas famílias eram inimigas dos Bórgia podia correr esse risco.

O Sacro Colégio era constituído apenas por cardeais originários de famí­lias nobres. Por isso passaram a ser chamados — e até hoje o são — de Prín­cipes da Igreja. Delia Rovere tinha consciência de que não podia perder mais tempo, porque o papa e seu filho César tramavam a organização de um poderoso exército, para conquistar os reinos vizinhos. A oportunidade surgiu com um banquete em que o papa convidara alguns cardeais e bispos que aspiravam a promoções e a nobreza de Roma. Nada havia para celebrar, e nem o papa precisava de motivos para promover aqueles banquetes, em que o principal prato eram as formosas cortesãs de Roma. Seus maridos, pais ou amantes acabavam recebendo um bispado, com direito a cobranças de impostos.

Corria o festim na noite do dia 17 de agosto de 1503, quando o papa passou mal e foi levado para seus aposentos, morrendo no dia seguinte. O médico atestou que ele tivera uma congestão, mas Della Rovere sabia que a causa fora uma dose de arsênico. Ele já vinha estudando os membros do Sacro Colégio e descobrira que o cardeal Piccolomini tinha uma doença incurável e estava definhando rapidamente. Não fora difícil convencer os demais a elegê-lo, para evitar suspeitas. O novo papa, que tomou o nome de Pio III, morreu um mês depois. Agora era sua vez, e ele já vinha mantendo boas relações com César Bórgia, cujo apoio era ainda importante.

Giovanni Della Rovere foi escolhido com o voto unânime dos cardeais e passou a ser o Papa Júlio II. Assim que foi eleito em 1o de novembro de 1503, sua primeira providência foi encarcerar César Bórgia e confiscar todos os seus bens. Mas queria de volta o Diário de São Remígio, o bispo confessor da rainha Clotilde, esposa do rei merovíngio Clóvis.

Delia Rovere não tinha lido o diário, mas temia o que podia existir nele. César era agora prisioneiro do rei de Castela, na Espanha, e o papa mandou um enviado para falar com ele na prisão. Queria um acordo pelo qual per­doaria César e restituiria seus bens, se o diário fosse devolvido. O enviado do papa voltou com o diário, no qual faltavam algumas páginas. Na noite do dia em que o enviado saiu de Castela, um monge entrou na cela de César para lhe dar a confissão e, quando saiu, levava com ele as páginas arranca­das do Diário de São Remígio.

Dias depois César fugiu da prisão e se refugiou em Navarra, onde o rei era seu cunhado. De vez em quando, ele desaparecia e voltava diferente, com a fisionomia de um místico, como se tivesse sido tocado por forças misteriosas.

Para acompanhar os movimentos de César, o papa pediu ao abade do monastério de Saaghun, que atendia as centenas de peregrinos que passa­vam diariamente por Navarra, que o vigiasse de perto. Ninguém descon­fiaria que, disfarçados de peregrinos, alguns monges da abadia rondavam o Caminho, para descobrir o paradeiro de César durante esses misteriosos desaparecimentos. Um dia, o papa recebeu o abade.

Alguma notícia sobre o que esse assassino está planejando? — per­guntou o pontífice.

O abade não demorou nas reverências, porque o papa se mostrava ansioso.

Sim! Ele adota um comportamento estranho. Quando se ausenta de Navarra, toma precauções para não ser seguido. Às vezes, suas ausências são longas. Em uma delas, um dos nossos peregrinos seguiu-o até a cidade de Urgel, perto de Andorra, antigo reduto dos cátaros.

O abade percebeu o esforço de memória do pontífice e ajudou-o:

O bispo Félix, de Urgel, seguiu a teoria do "adocismo", criado pelo bispo Elipando de Toledo, para satisfazer os árabes e os judeus. Elipando pregava que Cristo não era filho de Deus, mas fora adotado por Ele. Os cátaros praticavam algo parecido.

Então, precisamos de outra Cruzada Albigense.

Não passou muito tempo e César Bórgia morreu em uma emboscada, perto do território de Viana. O Papa Júlio II se livrara do inimigo, mas não conseguira encontrar as páginas arrancadas do Diário de São Remígio.

Um pequeno cortejo de oito homens vestidos de preto carregou o caixão de César Bórgia até o interior da catedral de Viana e abriu uma cova pro­funda no centro da nave, onde o sarcófago foi colocado. O túmulo do seu aguerrido mestre não podia ficar exposto, por isso eles voltaram à igreja mais tarde, protegidos pela noite, abriram novamente o túmulo e sob ele escavaram uma passagem de cinco metros, até outra sepultura de um nobre recentemente morto. Rapidamente, trocaram os esquifes e apagaram todos os vestígios da mudança. Agora, só eles compartilhavam o segredo de que os restos de César Bórgia, juntamente com uma caixa lacrada de metal, re­pousavam em outro local, e não sob a lápide, no centro da igreja, que tinha seu nome e brasões.

 

                                                     O TESOURO DE EL CID

 

                       CAPÍTULO 44

Depois de Viana, o peregrino caminha por uma extensa planície e, quando olha para trás, vê a cidade no alto do morro. O peregrino não sabe por que parou e olhou para trás, nem mesmo consegue explicar o que está sentindo, por isso olha pensativo, suspira fundo e segue em frente.

Lá do alto, a imagem solitária e imóvel de Viana despertava melancolia.

Olhando daqui, dá a impressão de que a cidade está nos acusando de tê-la abandonado — disse Patrícia.

É realmente um quadro bonito.

O sol avermelhado lhe trouxe à lembrança o barrete vermelho e a sensa­ção de que, naquele episódio, o assassino o submetera a um teste, para saber se estava atento a detalhes, que fugiam da rotina da peregrinação. Teria valido a pena ter aceitado o desafio?

Não havia outro jeito. Precisava se expor, para deixar o adversário con­fiante e esperar que ele se descuidasse, como em Puente la Reina. Fora uma pequena fração de tempo, mas suficiente para ficar com a impressão de que o adversário cometera um deslize.

Vinte quilômetros adiante, encontra-se Logronho.

Dizem os incrédulos que o santo que fez mais milagres no Caminho não foi Santiago, mas o vinho. Depois de uma proveitosa jornada, era justo prestar homenagem a esse santo, e nada melhor do que em seu santuário, a capital da Rioja. Instalaram-se no albergue e saíram para caminhar pelo centro histórico e suas ruas boêmias. Cumpriram o roteiro obrigatório dos pequenos bares da Calle Laurel, também chamada de rua dos elefantes, porque de madrugada os borrachos saem andando como os elefantes, ba­lançando de um lado para outro.

Encontraram um restaurante menos movimentado, porém simpático, onde esperavam ficar mais à vontade, mas não demorou muito e o grupo de peregrinos que a vinha acompanhando ocupou algumas mesas em torno deles. "Por que esse povo me persegue?", quase resmungou. Felizmente, as mesas que os intrusos ocuparam ficavam um pouco afastadas e eles podiam conversar sem serem ouvidos.

Maurício pediu um bom vinho da Rioja e ela levantou o copo:

Vamos brindar o nosso encontro?

Ora, viva! — e bateram levemente os copos.

Aqueles peregrinos formavam um grupo heterogêneo. Alguma coisa ne­les, que Maurício não soube distinguir, chamava a atenção. Não tinham um comportamento natural e não estavam à vontade. Teve a impressão de que haviam escolhido mesas de maneira que tivessem visão da porta de entrada e das janelas, como se estivessem em um serviço de vigilância. Durante todo o Caminho, agiam como se não o conhecessem e agora adotavam uma atitude claramente suspeita.

O bom vinho da Rioja foi aos poucos melhorando seu estado de espírito e ele esqueceu os peregrinos, quando ela pôs a mão sobre as suas e sussurrou:

Vejo que você, às vezes, fica muito pensativo. Gostaria de ler seus pensamentos. Mas como não sou cartomante, o que posso dizer é que deve confiar nas pessoas. Nunca sabemos quando alguém pode nos ajudar.

Ele sorriu e ela insistiu:

É sim! Não foi bom você me explicar tudo aquilo sobre o Santo Graal e César Bórgia? Eu nunca imaginaria uma história tão interessante como aquela.

A desinibição nascida do vinho aumentou a intimidade entre os dois e, em um determinado momento, ele deu-lhe um leve beijo nos lábios, que ela aceitou, dizendo:

— Assim está melhor.

Patrícia parecia uma pessoa sincera, e as reservas que teve contra ela nos primeiros contatos desapareceram.

O vinho o fizera esquecer as dores do corpo e, quando voltaram ao alber­gue, foi tomado por um sono profundo, que aos poucos foi sendo substitu­ído por imagens estranhas e fantasmagóricas. Naquela noite, sonhou com bruxas e demônios. Alguém devia tê-lo cutucado, porque acordou assusta­do e atordoado.

Ficou imóvel e pensativo e deve ter dormido novamente, pois quando acordou vários peregrinos já se preparavam para sair, inclusive os amigos de Patrícia. Preferiu esperar que eles fossem embora. A cada dia gostava menos daquela gente esquisita. Ficou feliz ao ver que ela também só se levantou depois que eles se foram.

De Logronho a Najera são 30 exaustivos quilômetros por entre campos de cereais e vinhedos bem cuidados. Mantinha-se, porém, alerta, e olhava cuidadosamente por entre os vinhedos verdes, naquele árido trajeto em que o peregrino se esforça para engolir os quilômetros e os pensamentos, até alcançar o objetivo do dia.

 

                                    CAPÍTULO 45

Haviam cometido o erro de sair tarde de Logronho e não ti­veram disposição para visitar o monastério de Santa Maria Real, quando chegaram. Teriam tempo na manhã do dia seguinte, pois o trajeto de Najera até Santo Domingo de la Calzada é de apenas 20 quilômetros.

Conta uma bonita lenda que o rei Don Garcia soltou seu falcão para pegar uma pomba, mas, quando chegou ao lugar onde o falcão havia des­cido, encontrou uma caverna e, dentro dela, estavam a pomba e o falcão, como dois amigos, velando uma imagem de Nossa Senhora. Na pedra onde estavam os dois pássaros, foram encontrados um sino, uma lampa­rina e um vaso com açucenas. O rei, comovido, mandou construir uma igreja no local.

Grutas são sempre lugares úmidos, estranhos. Fazem lembrar morcegos, aranhas, escorpiões, lagartixas, e ainda há o perigo de escorregar e cair. Não era mais o caso da gruta onde fora construído o monastério, mas ela ainda abrigava mistérios.

O que realmente aconteceu na época com o falcão e a pomba não se sabe, mas o local é de visita obrigatória para o peregrino que, se perder esses pontos de exaltação, pode carregar uma frustração que pesará mais do que o cansaço.

Na entrada da gruta, alguns turistas ouviam uma senhora de certa idade que falava de modo ríspido, como se já estivesse cansada de cumprir aquele ritual de explicações. Assim que eles saíram, puderam visitar o lugar que deu origem à lenda e onde hoje é o panteão real. A memória esconde a maioria dos pequenos detalhes da vida, e ele não se lembrava do falcão empalhado ao lado do vaso de açucenas que já começavam a murchar. O lugar era apropriado para novos sobressaltos, e dessa vez seus pressentimentos não o enganaram. Não foi preciso examinar a gruta por muito tempo. Seus olhos deixaram o falcão e correram para o vaso, onde um papel de bloco com inscrições em letras gráficas vermelhas despontava entre as flores.

Enquanto Patrícia se sentia atraída pelos mistérios que fluíam do fundo dos séculos, ele esticou a mão até o vaso e retirou o papel, esquecendo-se das precauções que passara a tomar depois do envenenamento do rapaz holandês. Ela reagiu como se despertasse de um pesadelo:

— Por que você pegou isso?

Ele não tinha tempo para explicações. Leu a mensagem escrita em ver­melho e, no mesmo instante, saiu da gruta para encontrar o grupo de pere­grinos que estivera ali antes deles.

A guia estava diante do altar, explicando que a imagem de Nossa Se­nhora que eles estavam vendo era a imagem original encontrada por Don Garcia na gruta, mas Maurício não podia perder tempo.

Por favor! Algum de vocês se lembra de ter visto este papel no vaso de flores quando passaram pela gruta?

Estava com a folha de papel na mão e um senhor respondeu, antes que a mulher pudesse despejar tudo o que seu olhar rancoroso mostrava o que ela tinha para dizer:

Não vimos nenhum papel como esse no vaso. O senhor pegou isso agora?

Os outros concordaram e a mulher guiou o grupo para fora da igreja.

Procurava pensar rápido. Quem iria prestar atenção em um papel como aquele? Não estava satisfeito, e insistiu, antes que o grupo saísse da igreja:

Por favor, isso é urgente e importante. Nenhum de vocês viu alguém com um pedaço de papel como este na mão?

A pergunta era até um tanto ridícula, porque todo turista tem um papel na mão, como folhetos e mapas. Eles não tinham visto ninguém entrar ou sair.

Outra charada, como em Irache? — perguntou Patrícia.

Sim. Mas, aqui havia gente e ninguém viu nada.

O grupo de turistas desaparecera misteriosamente.

Vamos sair daqui!

Percorreram as ruas e praças perto do monastério, sem êxito. Não viram mais o grupo, nem quem pudesse esclarecer aquele novo mistério. Ele pro­curava um tipo especial, alguém com habilidade para colocar o papel em uma gruta cheia de gente, sem ser notado.

Curtindo uma súbita dúvida, voltou ao monastério. Ele foi direto falar com a moça do guichê:

Por favor, é urgente. Preciso saber como posso encontrar a guia que acompanhava o grupo que saiu há pouco.

Guia? — perguntou a moça. — Até agora não entrou nenhum grupo guiado, apenas pessoas sozinhas ou famílias. Acho que o senhor se enganou.

Agradeceu, pediu desculpas às pessoas da fila e saiu para a praça, onde Patrícia o esperava, sentada em um banco de pedra.

Não entendi bem sua correria, mas se estava atrás daquele grupo, não vai achar ninguém. Sumiram como se tivessem evaporado. É de fato muito esquisito, porque turistas sempre ficam por perto, vão tomar um café ou coisas assim. Será que eles sabiam de alguma coisa?

— Sim! Sabiam e não duvido que seja o mesmo grupo de turistas que estava no alto do morro, no castelo de Villamayor Monjardim.

 

                                   CAPÍTULO 46

Seu cérebro não parava de trabalhar e, sem que Patrícia entendesse mais nada, ele voltou correndo para dentro do monastério. Ao chegar ao guichê, disse para a moça que tinha esquecido a máquina foto­gráfica na gruta. Ela o olhou com estranheza, porque a história agora era outra, mas o deixou entrar.

Até então todas as mensagens eram acompanhadas de um crime e ali faltava um. Qual seria o mistério que o desafiava agora? Examinou o altar, o panteão, as estátuas, o retábulo, e não viu nada que chamasse a atenção. Não estava tranqüilo. Tinha certeza de que um crime havia sido cometido porque essa tinha sido a lógica até então, mas não via corpo ou manchas de sangue.

Lembrou-se de que o elemento místico do monastério era a gruta. O misticismo, pensou, é uma energia do passado que faz nascer fantasmas no presente. Entrou de novo na gruta e examinou detidamente. Seus olhos pousaram nas unhas do falcão e lá ele viu o fantasma que estava com medo de encontrar. Não podia, porém, fazer mais nada e apenas examinava, im­passível, as garras cobertas com unhas humanas.

Poderiam ter trazido unhas de um defunto de qualquer cemitério para cobrir as garras do falcão, mas essa conclusão não era coerente com a lógica das charadas. Cada uma delas era acompanhada de um crime e certamente alguém morrera naquela mesma noite e naquele mesmo monastério, por­que o trabalho no falcão só podia ter sido feito naquela madrugada, sem ninguém por perto.

O assassino deixara em Villamayor Monjardim o recado de que cortaria os braços de alguém, ao deixar na fonte medieval a cruz de madeira com os braços quebrados. Agora, deixara no falcão o sutil vestígio desse crime para testá-lo novamente.

Logo o monastério seria acordado com um grito de terror, quando alguém descobrisse o corpo de alguma freira. Tinha de sair dali discretamente, embora já tivesse cometido o erro de correr atrás do grupo de turistas, perguntando se tinham visto alguém deixar ali o papel da charada.

Voltou para o pátio e avisou Patrícia:

Vamos ao albergue pegar as mochilas e sair daqui.

Em um momento em que estavam isolados, caminhando e sem nenhum peregrino por perto, ela procurou saber:

E o que diz esse papel que o deixou tão preocupado?

Ele leu:

"No princípio era o Verbo"

O que significa isso? Nunca gostei de charadas, nem de matemática.

Em Irache, lembra? Lá era o evangelho de São Mateus. Agora parece que temos uma referência ao evangelho de São João. É uma mistura con­fusa de evangelhos. Qual será o critério que usam para escolher e sacrificar as vítimas?

Ela estremeceu com o arrepio que lhe passou pelo corpo e Maurício con­tinuou meditando:

Os cátaros seguiam o evangelho de São João, porque ele não men­ciona a Eucaristia e não fala na anunciação de Nossa Senhora. Cristo não teria transformado o pão e o vinho em seu corpo e em seu sangue, mas apenas pegado o pão, molhado e dado a Judas, que o traiu em seguida. Eles acreditavam que toda matéria é obra do Deus Mau e por isso também não aceitavam a natureza humana de Cristo.

Mas o que, no Caminho de Compostela, poderia estar ligado a "ver­bo"? O que São João quis afinal dizer com esse "verbo"?

"No princípio era o verbo", disse São João. Muitas têm sido as expli­cações para esse "verbo". Pode significar palavra, espírito, Deus, ou a fonte de tudo porque, se existisse alguma coisa antes, o "verbo" não seria mais o princípio.

Continuo sem entender.

Não lhe contei sobre Roncesvalles, mas as duas primeiras chara­das foram acompanhadas de um crime. Em Roncesvalles havia um papel com uma charada no corpo do padre. Em Puente la Reina, o rapaz foi envenenado. Em Irache, mataram um homem que talvez fosse o zelador da igreja.

Meu Deus! Houve outro assassinato aqui em Najera? Você viu o corpo?

Tenho certeza de que houve um crime, mas não vi o corpo e é por isso que estamos indo embora.

Ela apressou instintivamente o passo.

Você já estudou a teoria da imprevisibilidade?

Credo! Existe teoria para isso também?

Dentro do conhecimento, tudo é previsível. Todas as coisas e todos os fatos seguem um caminho lógico. Precisamos descobri-lo.

E como é que você vai descobrir lógica dentro daquilo que é ilógico?

Se uma pessoa não tem a mínima idéia do que vai fazer, ela pode praticar um ato imprevisível. No entanto, se ela repete alguns atos, ainda que não planejados, movida sempre pelos mesmos impulsos, ela passa a ser previsível. Suponha, no entanto, que uma pessoa saiba o que vai fazer e planeje para que seus atos não sejam previsíveis. Nesse caso, a investigação começa pela causa, ou pela falha.

Ela pensou um pouco, para entender o que ele queria dizer.

Você está procurando descobrir o que existe de comum nas diferen­ças, como na investigação de um serial killer.

 

                                     CAPÍTULO 47

Aos poucos, O sol quente substituiu os suaves raios da manhã e eles pararam perto do desvio que leva aos monastérios de Suso e Yuso, onde teriam sido escritas as primeiras palavras da língua espanhola.

O cansaço é como o peso na consciência: com o tempo, ele se vai e a alma se refaz. No entanto, as preocupações só desaparecem quando os fatos que as provocaram já não existem mais.

É complicado — disse Patrícia —, mas quando não são as guerras, é a preparação para elas. E a preparação para a guerra é também uma guerra.

Ele ouvia, distraído, essa introdução a um assunto que parecia novo.

A Igreja também tem seu exército. Se os cavaleiros tinham armaduras, espadas e escudos, os padres se armavam com a batina, a Bíblia, a cruz e as orações. Enquanto os cavaleiros usavam as fortalezas para defender os bens terrenos, o clero usava as igrejas, também construídas de pedra como as fortalezas, para cercar um território exclusivo de Deus.

O Caminho deixa a alma livre e nele as idéias fogem da rotina urbana. Depois de uns minutos de repouso, voltaram a andar, cada um carregando o peso de seus pensamentos. Enquanto a mente se perguntava por que ti­nha de fazer o mesmo esforço que as pernas, os olhos se alegravam com as pequenas distrações da natureza, como o colorido das flores do campo ou o esvoaçar de um pássaro fugindo quando eles se aproximavam.

Eram momentos de encantamento, em que a mente se desarmava e refle­xões traiçoeiras infiltravam novas dúvidas, como o tema inesperado trazido por Patrícia.

Foi fácil para Cristo falar em paz e pregar o amor. Durante toda sua vida não houve um martírio. Ele não viu filhos, pais, irmãos, amigos serem perseguidos e martirizados por causa das idéias que Ele pregou. Se estudar­mos a vida de Cristo apenas pela dialética, havia um motivo evidente para Ele não ter irmãos nem filhos, porque se os tivesse também seriam Deuses. E é por isso que lhe pergunto: como se explica o desinteresse dos historia­dores pela vida particular de Cristo?

Esse talvez seja o maior mistério da fé — respondeu Maurício.

Acho que esses crimes estão me levando a pensamentos aos quais nunca me atrevi em toda a minha vida. Já li a vida de Cristo várias vezes e também os evangelhos. Quanta doçura existe no Sermão da Montanha!

Ela olhava os campos à sua frente como se quisesse ver neles o lírio do Sermão da Montanha.

O Sermão da Montanha! Mas como não pensei nele antes? As bem- aventuranças! Elas são em número de oito, e para o cristianismo o número oito significa a ressurreição, significando mudança de um estado para outro.

Patrícia o olhava sem entender e ele tentou explicar sua preocupação:

A primeira igreja octogonal foi a igreja de São Pedro, em Cafarnaum, construída no lugar onde era sua casa, ao lado do templo de Cafarnaum. Ali é que Cristo teria dito ao primeiro papa: "Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja". E perto dali teria sido feito o Sermão da Monta­nha, com as oito bem-aventuranças.

Credo! Você está transfigurado. Parece Cristo no monte Tabor.

Ele completou seu raciocínio como se estivesse sentenciando alguém à pena capital.

Serão oito charadas. As bem-aventuranças inspiraram a construção octogonal, que depois os arcos góticos levaram à crença de que o ponto central representava a entrada para o céu. Foram oito as bem-aventuranças, e serão oito charadas trazendo a morte.

Meu Deus! Você pode ter razão.

Recebemos até agora quatro charadas. Faltam mais quatro, e pelo me­nos mais quatro mortos.

 

                                     CAPÍTULO 48

Eram duas horas da tarde quando chegaram a Santo Domingo de la Calzada, palco de um dos milagres mais significativos do Caminho.

São Domingos fora rejeitado pelo mosteiro por causa de sua condição humilde. Vivia na margem do rio Oja, que deu origem ao nome da pro­víncia de Rioja, e, apesar dessa rejeição, começou a agir por conta própria, construindo uma igreja e ajudando os peregrinos. A região era coberta de florestas e ele abriu trilhas, construiu pontes. Acolhia e alimentava os pe­regrinos. Ficou conhecido, e a cidade se desenvolveu em torno da estrada que ele tinha construído. São Domingos viveu 100 anos, de 1019 a 1119, e durante esses anos foi uma das personagens mais conhecidas e procuradas do Caminho. A cidade tomou o nome de Santo Domingo de La Calzada, ou São Domingos da Estrada. A torre da catedral teve de ser construída ao lado da igreja, por causa de uma nascente de água. Em torno de sua vida, muitos são os fatos e milagres.

O mais precioso deles é a história de um jovem que peregrinava com seus pais e se hospedou em uma pensão. A filha do proprietário se apaixo­nou pelo rapaz e começou a fazer insinuações. Ele, no entanto, rejeitou-a porque tinha de manter seu estado de pureza durante a peregrinação. In­dignada, ela colocou na mochila do rapaz um vaso de prata, sem que ele percebesse. No dia seguinte, depois que a família partiu ela avisou o pai que alguém roubara o vaso. A polícia foi atrás dos peregrinos e descobriu o ob­jeto na mochila do rapaz. Apesar dos protestos do jovem, ele foi condenado à forca. Os pais não quiseram assistir ao enforcamento do filho e seguiram o Caminho. Ao voltarem, depois de terem cumprido a peregrinação, fo­ram visitar o local do enforcamento, imaginando encontrar os restos de seu corpo. No entanto, ao chegarem lá, viram que o rapaz estava pendurado na corda pelo pescoço, mas ainda vivo. Ele rezara com fervor para São Do­mingos e o santo, que sabia de sua inocência, o mantivera suspenso no ar, não permitindo aquela injustiça. Os pais foram correndo avisar o juiz que o menino estava vivo, por um milagre do santo. O juiz, no entanto, já estava sentado à mesa para jantar uma galinha assada e não quis atendê-los, e com a insistência deles, se aborreceu:

— Deixem de bobagem, porque esse rapaz só pode estar tão vivo quanto esta galinha assada.

Na mesma hora, a galinha começou a criar penas, se levantou e cacarejou. O juiz e uma multidão foram até o local e constataram o milagre.

Até hoje, quem entra na catedral, pela porta sul, encontra na parede do oeste um engradado com duas galinhas brancas que são trocadas a cada 15 dias, para lembrar o milagre.

Séculos de religiosidade abraçam o peregrino quando ele entra na igreja, e Patrícia ficou emocionada.

Sabe, Maurício, eu não me sinto uma peregrina autêntica como aque­les que enfrentavam os desafios do Caminho para ver o túmulo do apóstolo São Tiago. O que ele é para nós hoje? Turismo? Esporte? Fuga dos com­promissos? Para muitos é religião, para outros, misticismo, mas para mim é uma tradição que ressuscita o passado, como se quisesse nos acusar de coisas que não fizemos.

Que pensamento estranho!

Olhe, vamos fazer pensamento positivo. Dizem que se o peregrino ouvir a galinha cantar ou encontrar uma pena branca, ele terá sorte durante o Caminho. Será que ela vai cantar para nós?

As galinhas estavam lá, silenciosas, aliás, um galo e uma galinha. Não ha­via nenhuma pena branca no chão. Desceram até a cripta para ver o mau­soléu de São Domingos, uma peça de prata, ricamente trabalhada e bonita. Alguns peregrinos entravam e saíam, mas eles preferiram ficar ali no silên­cio daquele ambiente santificado, sem saber no que pensar. Pouco depois subiram a escada, e quando estavam saindo da igreja ouviram o canto da galinha. Nitidamente, com som vibrante e agudo, a galinha encheu a igreja com um canto alegre e Patrícia sorriu, mais confiante.

É por isso que surgiu a brincadeira: Santo Domingo de la Calzada, donde la gallina canta después de asada.

Apesar da importância de Santo Domingo e de ali ter ocorrido o mais lendário milagre do Caminho, Maurício pretendia seguir até Granhon, seis quilômetros adiante, onde se encontra o pitoresco albergue da torre da igreja.

Maurício explicou para ela que, em Granhon, o alojamento está situado no alto da torre. O padre ceia com os peregrinos, e depois vão todos ao an­tigo coro do século XIV, onde rezam pelos peregrinos que se hospedaram ali. O padre calcula que, por mais que se demore, o peregrino vai chegar em 30 dias a Santiago, e durante esse tempo lembra os nomes de cada um daqueles que nos últimos trinta dias também ali se hospedaram e todos rezam por eles.

Interessante e até mesmo emocionante. Você repetiu o nome de pes­soas que não conhecia e rezou por elas. E pessoas que não o conheciam rezaram por você durante os trinta dias seguintes. Que coisa bonita! O Ca­minho é tão rico! Cada lugar tem um fato diferente.

Então, vamos. O entardecer promete ser muito bonito e Granhon não é longe daqui.

Iam saindo, quando o telefone celular dela tocou. Ele se afastou um pou­co para não ser indiscreto, mas ela veio logo para perto dele com cara de­cepcionada.

É uma amiga minha. Ela está fazendo o Caminho por minha causa. Eu insisti que viesse comigo, mas ela se atrasou. Saiu de Navarrete hoje cedo e deve chegar aqui lá pelas oito horas da noite. Tenho de esperá-la.

Ele se esforçou para esconder a contrariedade. Já estava acostumado com a companhia dela e uma esperança nova começava a mexer com seus senti­mentos. Ia propor para ficarem ali, mas ela não deu tempo.

Você se importa de me esperar amanhã em Granhon? Vou sair o mais cedo que puder e o alcanço, tá?

Com o desencanto natural de uma situação dessas, ele se despediu.

 

                                     CAPÍTULO 49

Ao chegar a Granhon, depois de seis longos quilômetros, passou em um mercado e comprou vinho e alimentos para compartilhar com os demais peregrinos.

Subiu a escada lateral da igreja de São João Batista e entrou em uma am­pla sala onde encontrou um pequeno grupo de peregrinos bastante anima­dos. Havia uma juíza inglesa, um casal alemão que tinha visto em Puente la Reina, duas mulheres australianas e um ciclista espanhol casado com uma portuguesa, com a qual aprendera esse idioma.

Como na peregrinação anterior, quando também estivera ali, o padre parti­cipou da ceia, mas estava quieto, e parecia nervoso. Alguma coisa o perturbava e o jantar não teve aquela espontaneidade comum dos encontros de peregrinos. Logo depois, o sacerdote os levou para o coro da igreja onde costumava rezar pelos peregrinos que se hospedavam no albergue e, então, Maurício compreendeu sua preocupação. Com a voz embargada, o padre informou:

— Antes de rezarmos pelos peregrinos que nos últimos 30 dias ficaram neste albergue, vamos fazer uma prece profunda pela alma da madre supe­riora de Najera. Ela foi brutalmente assassinada. Algum maníaco a matou e cortou-lhe os dedos de ambas as mãos.

"A madre superiora. Nós saímos do monastério depois das oito horas. Freiras e principalmente a superiora se levantam cedo. Para lhe tirarem as unhas em tempo de as colocarem no falcão, ela devia ter sido morta du­rante a noite. Mas que ardil o assassino teria usado para que ninguém fosse incomodá-la antes das oito horas?"

Depois de ter feito suas orações, voltaram cabisbaixos para o dormitório. O silêncio era um misterioso prisioneiro daquela torre e todos se olhavam com suspeita. Maurício resolveu que não ia precisar dos fantasmas des­conhecidos daquela torre, pois já tinha os seus. Depois que os outros se deitaram, ele pegou a mochila e desapareceu na noite.

Atravessou devagar o pequeno vilarejo, procurando com a luz da lanter­na as flechas amarelas. Fardos de capim cortado para a silagem de inverno aproveitavam a noite estrelada para projetarem suas sombras sobre os cam­pos prateados.

Aproximou-se de um desses fardos e estendeu sobre o solo roçado o col­chão de dormir. Deitado com a cabeça apoiada na mochila, olhava as es­trelas e deixava os pensamentos pularem de uma para outra, em busca das idéias ocultas. A alma se esticou por todo o firmamento e trouxe da imensi­dão aquela plenitude que faz o homem sentir a proximidade de Deus.

Tinha preocupações maiores do que escorpiões, aranhas ou formigas e já era hora de catalogar os elementos de que dispunha: vítimas, armas, locais, mensagens e ritual.

As vítimas não tinham nada em comum: um espanhol com a filha, um padre, um peregrino holandês, um zelador de igreja e uma madre superiora.

Por essa diversidade, podia deduzir que elas não eram o alvo do assassino, apenas foram usadas como veículo de uma mensagem, o corpo humano era só matéria como as folhas do bloco que trazia as charadas.

"Matéria e sofrimento. Aonde levam essas duas palavras?"

Para o espanhol e o padre, a arma fora um cajado com ponta de ferro. Para o peregrino holandês, o envenenamento. Nada de especial nos meios aplicados para esses dois primeiros crimes. No entanto, e era isso que o pre­ocupava, em Irache e Najera fora introduzido um elemento novo: o ritual. O corpo do zelador fora distribuído em oito partes sob o monograma de Cristo, enquanto em Najera a brutalidade ficara oculta e o assassino apenas se serviu dela para testar a capacidade de Maurício de descobrir o crime.

Esse ritual da morte sugere sectarismo. O assassino fazia parte de uma seita e tinha uma missão a cumprir, era a conclusão óbvia a que já chegara antes. Que missão seria essa e por que o envolviam nela é o que tinha de descobrir. Lembrou-se de que ao sair de Roncesvalles sentira um pouco de medo. Ia andar sozinho pelos campos e chegara a pensar que queriam atingi-lo. Estava enganado. Ele não era o alvo, mas participava de um jogo macabro no qual era desafiado por um inimigo desconhecido. Durante o Caminho, o medo foi aos poucos sendo substituído por um estado de alerta que o mantinha confiante.

O sono chegou mansamente e Maurício acordou quando a madrugada já começava a recolher as estrelas. Sonhou que era um cavaleiro errante à procura da fonte dos segredos.

 

                                 CAPÍTULO 50

Com as costas um pouco doloridas pelo desconforto da noite, levantou-se e caminhou sem pressa.

Não entendia a abrupta despedida de Patrícia. Não fora uma separação normal. Devia ter ficado assustada com tantos crimes, e preferido se afastar. Era natural que assim fosse e o jeito era esquecê-la.

Parou em Redecilla para tomar café e aproveitou para entrar na igreja de Nossa Senhora do Caminho, onde uma pia batismal do século XII, estilo românico, com influências moçárabes e bizantinas, desafia os estudiosos da arte mística. A pia se assemelha a um cálice apoiado sobre um corpo de oito colunas, representando uma cidade protegida por muralhas e torres.

"Objeto misterioso. Se fosse menor, poderia ser o próprio Graal. Nova­mente o número oito. E o que significaria uma serpente em sua base?"

Simbolismos que aumentam a ansiedade de quem procura decifrar um enigma é o que não falta no Caminho. Não dispunha de enciclopédias ou da internet para fazer pesquisas e tinha que contar apenas com as leituras que fizera desde sua última peregrinação a Santiago. Havia lido muito, des­de teses de doutorado a tratados da arquitetura jacobina, e esses conheci­mentos lhe estavam sendo úteis.

E ainda vinha usando de um artifício bem dissimulado para pedir ajuda. Não podia usar a internet para enviar um e-mail, nem mesmo os correios, pois certamente suas mensagens seriam interceptadas por essa organização e, fosse lá o que estivessem planejando, um pedido de socorro precipitaria os acontecimentos. Descobrira, porém, um meio seguro de enviar mensa­gens e esperava que as estivessem interpretando corretamente.

Com as duas mãos atrás das costas, como se apoiasse a mochila, mas se servindo dela para dar um balanço nos passos, avistou de longe a pequena ermida construída na rocha sobre o morro. A igreja de Nossa Senhora da Penha vigiava do alto da colina a pacata cidade de Tosantos.

Estava cansado, mas tomou um estreito caminho de terra que fica à di­reita da entrada da cidade e subiu a íngreme rampa até a igreja. O lugar era ermo, isolado, mas dali podia ver o longínquo horizonte e pôr ordem nas idéias. O pequeno outeiro estava fechado e ele sentou-se em um banco de pedra construído sob a rocha ao lado da igreja.

O momento recriava emoções. Patrícia era uma mulher bonita, jovem, e ele sabia que não podia continuar sozinho na vida. Mas o que havia nela que o preocupava? Era ágil, esperta, atenta. Então, como fora tropeçar no pé de uma cama em Roncesvalles e cair sem se machucar? Como consegui­ra caminhar até Puente la Reina e chegar antes dele? Pelo grito que dera, ele imaginara um tombo feio. O que a levara a permanecer em Santo Domingo de la Calzada? A história da amiga não combinava. Nunca tinha falado nessa amiga antes.

Seus pensamentos voltaram às charadas. Até agora tinham sido quatro que não diziam nada entre si, mas que, certamente, se ligariam mais tar­de a outros enigmas e dariam um significado para o qual tinha de estar preparado.

A primeira delas, em Roncesvalles, falava do início e do fim. Em Puente la Reina, quando o rapaz holandês morreu envenenado, outra dizia que os caminhos se unem para renegar o passado. Em Irache, era um texto do evangelho de São Mateus, no qual Cristo dizia que o vinho era seu sangue, que seria novamente derramado, e, por último, em Najera, o "verbo", do evangelho de João. Faltavam quatro para completar o signo octogonal e mais quatro cenas de morte.

O sol já ameaçava esconder-se e ele desceu o morro em direção ao vi­larejo. Um simpático albergue administrado pela Associação do Caminho tinha uma cama vaga, que aceitou dividir com ele suas preocupações.

 

                                 CAPÍTULO 51

A noite era austera, sem estrelas, e a lua temerosa se escondia atrás de uma espessa nuvem. No alto do morro, as muralhas e paredões testemunhavam a intensa luta da gigantesca fortaleza de pedra contra o tempo. Resistia com bravura e impunha ainda sua majestade até longín­quas distâncias.

Quem visse aquela figura com vestimentas negras, de pé entre a torre e a muralha, podia supor que era parte das ruínas do castelo. A figura perma­neceu imóvel como se esperasse por alguém, que logo passou pelas ruínas do portão de entrada e caminhou a passos estudados até ouvir a ordem.

Aí já está bom.

Não era a mesma voz, como nunca fora em todos os outros encontros. O visitante parou, ajoelhou-se e baixou a cabeça até encostar a testa no chão, com as mãos na frente, em uma postura que lembrava os gafanhotos, e com humildade fez a saudação:

Honorável mestre! Compareço obedecendo a mais uma de suas or­dens para saber se continuo o meu trabalho ou se recebo o castigo por algum deslize.

Não falaram por uns minutos em que os dois abriam os ouvidos e a men­te para estudar a normalidade da noite.

Até agora seu trabalho tem merecido o respeito da Ordem.

Humildemente, mestre, recebo esse elogio como uma admoestação de que devo dedicar-me mais.

Como ele reagiu em Irache?

Com muita frieza e rapidez de raciocínio, senhor.

E em Najera?

Da mesma forma, senhor.

Passados novamente uns minutos em que estudaram os ruídos da noite, aquele, chamado de mestre, perguntou:

Acha que ele pode atrapalhar o plano de Burgos?

A ação em Burgos foi cuidadosamente planejada. Não vejo como ele ou outra pessoa poderia interferir.

Não é uma resposta de quem está confiante. O que houve?

Respeitável mestre, ele não tem medo da noite e se alimenta do silên­cio. Em sua face neutra não aparecem emoções e seu olhar se move mais rápido que as idéias.

O que ele quis dizer com essa observação não ficou muito claro, mas logo depois o mestre desapareceu e o visitante ficou só no meio das ruí­nas. Permaneceu calado, com a testa no chão, sem levantar a cabeça para não demonstrar curiosidade em conhecer seu superior, enquanto a lua se aproveitava desse pequeno descuido para mostrar um pouco de claridade, como se ela própria quisesse saber quem era o misterioso mestre.

 

                                       CAPÍTULO 52

Villa Franca de Oca dista sete quilômetros de Tosantos. Maurício acordou cedo, bem disposto, e caminhou sem pressa, aproveitando o alvo­recer para encaixar em suas idéias as frações do tempo que ressuscitavam agora de um passado distante.

Estava ainda escuro, mas o céu estrelado prometia um dia quente. Fizera bem em sair cedo para chegar a San Juan de Ortega sem muitos sacrifícios. Já andara dois quilômetros e estava ao lado da igreja de Villambista, quando ouviu um ruído compassado. Seriam passos de algum caçador saindo com seus cães para a caça de perdizes e coelhos? Talvez o vento tivesse levantado alguma folha, ou quem sabe um pássaro na torre da igreja despertasse para o novo dia. Como o ruído não se repetiu, voltou a andar com passos firmes e batendo o cajado no chão para espantar os fantasmas. Mas parecia que eles não queriam sair dali. Novamente o barulho estranho, como se alguém tivesse corrido para esconder-se. Não! Não era fantasma.

— Quem está aí? — perguntou, na esperança de que ouvindo a própria voz, tivesse a sensação de companhia.

Mas não conseguiu iludir o indecifrável pressentimento de que estava sendo seguido e, por precaução, se aproximou da igreja, onde ficou de cos­tas para o ângulo formado pela torre e a parede lateral, tenso, mas prepara­do para qualquer surpresa. O tempo demorou a passar, até que por fim o sol surgiu como uma bola de fogo e os peregrinos apareceram como pássaros saindo do ninho.

Aliviado, voltou a caminhar.

Chegou a Villa Franca Montes de Oca mais ou menos às nove horas. A cidade tomou esse nome porque era chamada de Vila dos Francos, nome originado das franquias que os governos locais davam para estimular o repovoamento depois da Reconquista, quando os espanhóis retomaram as terras dos árabes.

Os Montes de Oca ficaram conhecidos porque os assaltantes se refu­giavam nas cavernas existentes nos montes para pilhar os peregrinos. As montanhas, as cavernas, as florestas, os assaltantes, os animais e as supers­tições tornaram os Montes de Oca o lugar mais perigoso da peregrinação.

Parou no bar da entrada de cidade para tomar um café e comprar um pouco mais de água, porque até San Juan de Ortega seriam ainda mais 13 quilômetros. Quando saía do bar, viu o grupo de peregrinos amigos de Patrícia.

"Mas de onde será que vieram esses sujeitos? Teriam dormido aqui e saído agora?"

Não os vira antes, embora tivesse saído mais cedo. Ou teriam sido eles que o assustaram em Villambista? Ao vê-los, porém, lembrou-se de Patrícia e voltou a ter a esperança de reencontrá-la.

Estava imerso nesses pensamentos quando teve outra surpresa.

Senhor Maurício, bom dia.

Era o detetive Sanchez.

Cumprimentou-o meio desconcertado, enquanto o grupo de peregrinos amigos de Patrícia continuava o Caminho. Sentira vontade de perguntar por ela, mas agora esse abelhudo aparecera.

Depois dos episódios de Puente la Reina não mais o tinha visto e não gostara desse seu aparecimento abrupto. Seu humor estava abalado e trans­formara a melancolia em companheira, mas procurou ser gentil.

Bem, detetive Sanchez. Estou feliz em vê-lo. Aceita um café?

O convite foi aceito e o policial se justificou:

Primeiro devo pedir desculpas. Estou em Montes de Oca desde ontem à noite. Achei melhor esperá-lo aqui, para não perturbá-lo durante a noite em Tosantos. Além disso, o melhor lugar para conversarmos longe das pes­soas é caminhando pelos bosques que começam logo mais.

"Então, ele está me seguindo", pensou, na dúvida se isso era bom ou ruim.

A ponte mais tradicional e mais bonita do Caminho terá de ser re­construída. Felizmente, não houve vítimas.

E, como se estivesse surpreso:

Ah! Noto que o senhor está sozinho.

Fez que não entendeu a insinuação, pois era óbvio que, se o estava se­guindo, devia saber a respeito dela.

Fizemos investigações sobre o padre. O senhor se lembra de me ha­ver dito que seria interessante saber se o padre saíra para atender alguém no dia em que morreu? Foi no nosso encontro na Fuente del Reniego. De fato, ele tinha ido rezar uma missa na igreja junto ao monumento de Roland, em Ibaneta.

Maurício fez movimentos de concordância com a cabeça e o inspetor perguntou, com certo embaraço:

O senhor parece adivinho. Como chegou à conclusão de que ele mor­reu porque ouvira alguma coisa que não podia ter ouvido?

Não sabia se deveria alimentar a imaginação desse policial com mais informações e raciocínios, mas, por outro lado, estava só e poderia precisar da polícia. O assunto já o atormentava e as charadas indicavam que de uma forma ou de outra estava sendo envolvido nesses atentados.

Não seria fácil matar o padre antes de ele chegar à Colegiata. Ali o Ca­minho é muito aberto. Por outro lado, por que ele não disse logo ao superior ou a outro padre sobre o que vira ou ouvira? Acho que ficou confuso e com receio de passar alarme infundado. Isso às vezes acontece. Na dúvida, as pes­soas deixam passar o tempo, até se convencerem de qual atitude tomar.

E aproveitou para esclarecer esses súbitos aparecimentos.

Posso concluir também que, de vez em quando, o senhor vai me sur­preender pelo Caminho. Estaria me protegendo ou tentando descobrir mais coisas a meu respeito?

O outro riu.

Quem sabe as duas coisas ao mesmo tempo? Em Roncesvalles, a ma­neira como respondeu às perguntas e fez comentários não foi mera espon­taneidade. Percebi que estava inquieto e lançou questões para eu resolver. Muito bem, estou cumprindo a tarefa, mas gostaria que fosse mais explíci­to. Alguma coisa o incomoda, tenho certeza.

Nada me incomoda, inspetor, nada me incomoda. Como o senhor vê, faço o Caminho como todo despreocupado peregrino.

Subiram em silêncio a rampa do Caminho que passa por trás da igre­ja e logo chegaram à Fuente dei Panmollado, onde os antigos peregrinos molhavam o pão para amolecê-lo. A fonte ficou então conhecida como a Fonte do Pão Molhado.

Maurício se esforçava para não demonstrar que preferia percorrer sozi­nho aquele trecho de bosques e reencontrar na musicalidade suave da na­tureza a paz que perdera. Sentira uma doce emoção quando estava sentado no banco de pedra junto à igrejinha de Nossa Senhora da Penha em Tosantos. O sol parecia saudar o nascer da lua naquele entardecer romântico e se recordou de quantas vezes caminhara por campos floridos, ouvindo o canto dos pássaros e o manso correr dos arroios nesse quadro inexplicável da natureza.

O Caminho se faz em silêncio, como uma longa meditação em que cada um se volta para dentro de si mesmo para olhar os rastros do passado. Logo chegariam a um dos pontos mais importantes da peregrinação, a abadia de San Juan de Ortega. Nos equinócios de 21 de março e 22 de setembro, um raio de sol ilumina durante dez minutos um dos capitéis localizado à esquerda do presbitério. O raio chega às cinco horas da tarde e passa da es­querda para a direita, iluminando as cenas da Anunciação, do Nascimento, da Epifania e da comunicação aos Pastores. Esse fenômeno acontece dois dias antes e se repete até dois dias depois dos equinócios.

É um dia complicado para visitar San Juan de Ortega. Hoje é 21 de setembro, — observou o policial. — Vai passar o resto do dia lá?

Programei chegar mais cedo para encontrar lugar no albergue. Pre­tendo ficar para ver o fenômeno do sol no capitel. Se não encontrar lugar para dormir, pretendo caminhar à noite.

Sabia que o senhor queria ver o equinócio e a luz refletir na imagem. Nós já estamos com camas reservadas no posto policial de lá. Cuidei para que não fosse muito desconfortável. Nesses dias o albergue fica lotado.

O detetive não disfarçou a ironia de quem o estava seguindo e começava a controlar sua vida. Em vez de agradecer, Maurício foi evasivo.

Na minha última caminhada, passei por aqui no dia 15 de setembro e não pude esperar. Era muito tempo, uma semana até o dia do equinócio. Agradeço sua gentileza. Milhares de pessoas vão estar lá no meio da igreja para ver a luz do sol refletir no...

Parou bruscamente de andar e de falar, tomado por um súbito receio.

A prata não pode refletir a luz, foi a frase do padre antes de morrer e é justamente isso que vai acontecer. Centenas de pessoas dentro de um dos mais importantes templos do cristianismo e da história da Espanha!...

Espere! O senhor não está imaginando que...

Sim, sim! Estou. O milagre da luz acontece nos equinócios da prima­vera e do outono. O raio de sol entra por uma janela existente na fachada da igreja e caminha da esquerda para a direita. E um momento carregado de misticismo e beleza que encanta os peregrinos.

Mas e a prata? Nós temos o sol que é a luz, mas em que prata vai refle­tir? Vou telefonar para o Comandante. Temos de tirar os peregrinos de lá.

Maurício abanou a cabeça.

Acho que não é o caso ainda de esvaziar a cidade. Nós temos apenas é de andar depressa e substituir as imagens. Ou será que é melhor cobri-las?

Não sei, não sei. Existem dispositivos eletrônicos que intensificam a luz e a simples cobertura pode não resolver. Além disso, o equinócio pode ser apenas a idéia do momento. Quero dizer: um terrorista com controle remoto pode aproveitar o equinócio e provocar a explosão como em Puente la Reina. Vamos precisar de técnicos em eletrônica e bombas.

Deu várias ordens pelo telefone e uma viatura policial apareceu quando já estavam chegando à igreja. Não vira Patrícia, mas estava agora mais pre­ocupado com a possível explosão.

Eram aproximadamente 14 horas e não havia muito tempo para um estudo completo da igreja, que se revelou cheia de detalhes. As pequenas imagens que faziam parte dos capitéis não podiam ser removidas e, se eles fossem quebrados, poderiam acionar algum chip eletrônico oculto. Se re­almente esses bandidos eram tão eficientes a ponto de programar uma ex­plosão acionada com a luz do sol, deveriam ter previsto cautelas contra a desarticulação do plano.

Os capitéis foram cuidadosamente examinados. Não havia fios ou folhas de metal em cima, dentro ou próximos a eles e exames cuidadosos com lentes e aparelhos especiais também nada revelaram.

Era uma bonita igreja do românico medieval com a abóbada gótica, tudo em perfeito estado. Investigadores e técnicos se perdiam em conjeturas e sugestões no esforço de salvar o templo. Alguém teve a idéia de tapar a janela e não deixar o sol aparecer, mas com certeza os terroristas haviam pensado nisso também.

Maurício olhava para as imagens onde o sol ia passar. Já eram três horas da tarde e não encontravam nada suspeito. Nem metais, nem ouro, nem prata, nem cobre, nem outro elemento que pudesse refletir a luz do sol.

A igreja já estava cheia e o padre tinha ido à sacristia, porque, no mo­mento do equinócio, havia a celebração da missa e comunhão dos fiéis. O espetáculo da iluminação dura apenas dez minutos e cria uma forte emo­ção, que atrai milhares de curiosos, turistas e peregrinos de todo o mundo. Embora o fenômeno se repetisse durante os dois dias seguintes, a lógica indicava que o atentado seria no primeiro deles.

O inspetor balançava a cabeça de um lado para o outro enquanto olhava para o capitei, quando ouviu Maurício dizer pensativo:

A luz reflete, ou seja, o raio de sol pode bater no capitel e refletir em alguma outra peça, até mesmo em peça que não esteja lá. Nesse caso, o raio de sol entraria pela janela e formaria um ângulo que iria refletir exa­tamente onde?

Ao fazer esse comentário, olhou para o baldaquino que fica logo na entra­da da igreja e não foi preciso pedir ao inspetor para chamar seus auxiliares. Logo a equipe de técnicos estudava as possibilidades de projeção da luz.

O padre não estava gostando daquilo, porque em pouco tempo teria de rezar a missa, e temia que os policiais pudessem estragar o patrimônio do santuário. Tentou demovê-los dessa idéia:

Nunca vi um raio de luz refletir no baldaquino. Acho que os senhores estão exagerando.

Porém, um dos técnicos comentou:

Não é preciso ver. Basta uma pequena sensibilidade da luz para deto­nar um dispositivo eletrônico sofisticado. Nós sabemos que o sol entra por aquela janela e se dirige ao capitel. Mas, com certeza, ao bater nele, reflete uma luz. Pelas nossas projeções, é possível que um raio atinja a imagem de São Jerônimo que está bem ali, naquela coluna do baldaquino.

Seis imagens de santos venerados pela Ordem dos Jerônimos, que ha­viam tomado conta do santuário desde o ano de 1432 até o século XIX, quando foram desalojados pelo governo espanhol, estavam colocadas junto a colunas, contornando o baldaquino. À esquerda, Santa Marcela, Santa Paula e Santo Eustáquio, e à direita São Paulino de Nola, São Jerônimo e Santo Eusébio.

O bastão de São Jerônimo — apontou Maurício, aproximando-se do baldaquino. — Foi ele que traduziu a Bíblia do hebraico para o latim. É um dos maiores teólogos da Igreja e aquele bastão é policromado.

O inspetor não esperou mais e mandou examinar a imagem de São Je­rônimo, onde um minúsculo dispositivo eletrônico estava dissimulado nas curvas em relevo da parte superior do bastão. Os peregrinos tiveram de sair da igreja e após paciente trabalho que deixou a todos tensos e preocupados, o dispositivo foi separado da imagem.

O chefe dos peritos observou:

Não estou gostando disso. É um aparelho quase invisível, uma obra de profissionais de alta especialidade.

Depois que saíram, o padre pôde celebrar a missa, enquanto um raio de luz solar se aproximou da cena da Anunciação, passou por ela lentamente e continuou sua trajetória rumo ao Nascimento de Cristo e à Adoração dos Reis Magos, provocando emoção.

Maurício estava cada vez mais desorientado. Tudo aquilo parecia bem arrumado demais. O detetive apareceu no dia do equinócio, pouco antes de San Juan de Ortega e agira como se soubesse que Patrícia não estaria lá.

Além disso, não disse uma palavra sobre Irache e Najera, embora sou­besse, porque o vinha seguindo, que ele e Patrícia passaram por esses dois locais nos dias dos crimes.

O ruído do motor de um helicóptero distraiu sua atenção e logo o técni­co e o artefato que ele desmontara foram levados de San Juan de Ortega.

O detetive se aproximou de Maurício:

O senhor está muito pensativo.

Não estamos ainda na metade do Caminho e as charadas indicam mais coisas. Bem, acho que o senhor vai voltar a Pamplona e continuar suas investigações por lá. Eu vou seguir adiante.

Por agora, então, o mais recomendável é saborear a agradável sopa de alho que fazem aqui.

 

                                   CAPÍTULO 53

No dia seguinte, Maurício se surpreendeu com a decisão do ins­petor em acompanhá-lo. Esperava ficar livre dele e não entendeu essa mu­dança de planos. O que será que ele pretendia agora? Procurou mostrar-se grato pela companhia e saíram de San Juan de Ortega pouco antes das seis horas da manhã, em direção a Atapuerca.

O inspetor gostava de exibir seus conhecimentos sobre o Caminho, e Maurício teve de agüentar com paciência algumas lições de história.

Quanto mais estudo ou percorro o Caminho, mais me impressiono com o acúmulo de fatos que o mantêm vivo e dinâmico.

Para valorizar alguma coisa que não queria dizer logo de início, o inspe­tor recorria a rodeios.

O senhor sabe o que me magoa? Esse pessoal todo passa pelo Cami­nho e nem se interessa por seu passado. Veja, por exemplo, o estrago que o protestantismo fez nessa peregrinação. Os protestantes não acreditam nas relíquias, nem em santos. Como a peregrinação é para ver uma relíquia, ou seja, o corpo do apóstolo, o número de peregrinos diminuiu muito após o protestantismo. Além disso, bastava ser alemão para a Inquisição mandar para a fogueira, porque Lutero era alemão. E a Inquisição, é bom lembrar, estava no meio do Caminho.

"Inquisição! Por que lembrar isso agora?" Quase como um reflexo, lem­brou-se dos acontecimentos do dia anterior. Fora muito oportuno o apare­cimento do inspetor antes de San Juan de Ortega.

Embora já conhecesse alguns fatos, Maurício ouvia interessado, tentan­do descobrir o que havia por trás de cada palavra.

Personagens importantíssimos na história do Caminho sequer são hoje lembrados, como o pirata Sir Francis Drake.

No ano de 1587, Sir Francis Drake, o famoso pirata inglês, ameaçou des­truir Santiago, e o arcebispo, hoje São Clemente, mandou então ocultar o corpo do santo e morreu sem contar a ninguém onde o havia enterrado. Durante 300 anos, as relíquias foram consideradas perdidas.

Ninguém medita sobre os estragos que esses dois fenômenos causa­ram ao Caminho — reclamava o inspetor. — O desaparecimento do corpo do apóstolo enfraqueceu a peregrinação e o protestantismo quase acabou com o que restava.

É verdade. Por sorte, há dois séculos, surgiu uma ciência nova, a ar­queologia. O cardeal Paya y Rico mandou fazer pesquisas, e em 1879 o tú­mulo foi encontrado no interior da igreja, removido para seu lugar anterior, onde permanece até hoje.

Parece que o inspetor esperava por essa informação, para concluir suas idéias.

O ser humano, senhor Maurício, precisa da representação material para suas crenças. A imponência das catedrais, a cruz, a pompa dos ce­rimoniais, um cálice de metal, e, principalmente, as relíquias. Veja o que aconteceu com a peregrinação a Santiago — seu desaparecimento coincidiu com o do túmulo do apóstolo —, mas foi só reencontrarem os presumíveis ossos desse homem e os peregrinos voltaram em revoada.

Uma luz vermelha acendeu no cérebro de Maurício. Por que essa crítica aos símbolos mais sagrados da Igreja? O homem devia ser ateu, porque chegou a um raciocínio inesperado.

O próprio Deus cristão se transformou em matéria que os católicos engolem.

"Aonde será que esse sujeito quer chegar? Ele sabe que sou católico e obviamente está me provocando. Ele só quer um pretexto, como um desacato, para me prender. Melhor não aceitar a provocação e mostrar interesse."

Mas essa não é a doutrina dos cátaros?

Em vez de responder, o inspetor tirou um folheto de sua pequena mo­chila e o abriu. Era um mapa da Europa com o traçado do Caminho come­çando em todos os países.

O senhor conhece esse mapa? Ele mostra os lugares de onde vinham os peregrinos. Veja que coisa impressionante era a peregrinação naquela época. Não respeitavam distância e desciam a pé lá da Finlândia, da Rússia, do extremo Norte. É notável como as religiões impulsionam, até mesmo ainda hoje, o ser humano. Pode ficar com ele. É um presente meu, para o senhor entender bem a peregrinação.

Antes de Maurício agradecer, o inspetor indicou no mapa o Caminho Português e, com uma risada sarcástica, emendou:

Ah! Sei que não vai gostar de eu ter estudado sua vida, mas descobri que gosta de ir a Oliveira do Conde, que está bem no meio do Caminho Português.

De fato, tinha amigos naquela região e não se surpreendeu com o conhe­cimento que o inspetor tinha sobre sua vida. Afinal, estava investigando crimes e, por enquanto, ele era um dos suspeitos. Ia perguntar o que mais ele sabia sobre sua vida, quando o inspetor atendeu o celular.

O quê?... Estamos indo nessa direção. Venham ao meu encontro.

Ficara de repente nervoso, e com razão.

O helicóptero caiu. Parece que não há sobreviventes.

 

                               CAPÍTULO 54

Uma viatura apareceu e logo chegaram ao local onde estava o aparelho caído no meio de um campo seco, provocando um incêndio.

"Muito estranho", pensou Maurício, olhando meditativamente para a fu­maça que subia aos céus.

Imagino que não vão encontrar vestígios do chip. Também é estra­nho que não tenha havido uma explosão, como se esperava em San Juan de Ortega.

O inspetor perguntou com voz áspera:

O senhor está querendo dizer que tudo foi uma farsa?

Quem sabe? É até mesmo possível que o chip da bomba não estivesse no helicóptero. Nessa hipótese, se for uma bomba de verdade, ela será usa­da em outra oportunidade.

E tentou livrar-se dessa incômoda companhia:

Certamente o senhor vai ficar para acompanhar a perícia. Eu vou se­guir o Caminho.

Não adianta ficar por aqui no meio de tantos técnicos e policiais. Caminharemos juntos até Atapuerca. Além disso, gostaria de lhe falar sobre as escavações arqueológicas daquele local. Já dei instruções para nos seguirem de perto, e de Atapuerca a viatura me levará a Pamplona.

"O que poderia levar esse policial a abandonar a investigação de um aci­dente suspeito como o desse helicóptero? Será que sou mais suspeito do que esse acidente?"

Maurício tolerou as explicações sobre o Homem de Atapuerca, que teria habitado a região há 250 mil anos, muito antes, portanto, do Homem de Neandertal, e estranhou que o acidente do helicóptero fosse esquecido.

"Quem sabe no albergue haja algum recado de Patrícia", pensou esperan­çoso, enquanto se dirigia para uma insinuante fonte de água fria à entrada da cidade.

O detetive tirou a mochila das costas e colocou a cabeça embaixo da água, que jorrava da parte superior. Naquele calor, a água potável e fresca é uma das satisfações que encantam o peregrino. Era quase um ritual, e eles estavam prestes a beber, quando um peregrino de bicicleta descontrolou-se e passou entre Maurício e a fonte, jogando-o no chão. O ciclista pediu desculpas, mas continuou pedalando, sem parar. Maurício levantou-se com cuidado, porque não podia correr o risco de uma distensão ou cãibra na perna. O detetive correu para ajudá-lo, mas ele já estava bem.

A patrulha que os acompanhava ia saindo atrás do ciclista que se distan­ciara, mas Maurício não deixou.

Não aconteceu nada. Estou bem e o rapaz pediu desculpas. Deixem-no ir.

Pensou que fora um acidente tão sem importância que até mesmo o pás­saro que estava no chão perto de onde caíra não se movera. Outro pássaro andava devagar, com as asas abertas, e parecia estonteado.

"Por que esses pássaros não se assustaram?" E, sem pensar mais, em­brulhou o lenço na mão, pegou um deles, depois o outro e viu que os dois estavam com o tecido em volta dos olhos arroxeado. Se ali não existia gripe aviária, então o que seria?

Dois peregrinos se aproximavam, também cansados, e iam direto para a fonte. Teve a impressão de já tê-los encontrado antes, mas não era momen­to para apresentações e gritou:

Não tomem essa água porque ela está envenenada!

O carro da polícia que os vinha acompanhando para levar o detetive Sanchez se aproximou e Maurício disse ao estupefato homem:

Veja essas aves. Parece que estão envenenadas. O senhor chegou a tomar dessa água?

Não. Não deu tempo. Ia beber com as mãos, quando essa providencial bicicleta o pegou. Felizmente, o senhor viu as aves. Vou interditar a fonte.

Um policial ficou ali junto da fonte, para que nenhum peregrino bebesse daquela água antes que fosse examinada, e o detetive despediu-se, voltando para Pamplona. Maurício procurou o albergue de Atapuerca e sorriu, feliz. Lá estava, com a letra dela, um bilhete dizendo que não encontrara lugar em San Juan de Ortega e dormira ali. Esperava-o em Burgos.

 

                                       CAPÍTULO 55

Tinha andado 30 quilômetros, de San Juan de Ortega a Bur­gos, mas, quando a cidade apareceu, ele se encheu de ânimo. A chegada a Burgos é ilusória e o peregrino tem de andar mais de uma hora para chegar ao albergue, que fica do outro lado daquele grande centro urbano.

Embora cansado, uma livraria que parecia ter um grande estoque cha­mou sua atenção. Ficou parado diante da vitrine uns minutos, olhou em volta, não viu o inspetor e ninguém suspeito. Entrou e procurou a estante de História Medieval. Folheou cuidadosamente alguns livros: A Cruzada contra o Graal, de Otto Rahn, O Graal e a heresia dos cátaros, de Stephen O'Shea. Perguntou pelo preço e depois, olhando desolado para os livros, por não poder comprá-los, lamentou:

É pena. Não vim preparado para essa despesa. Peregrino anda sem dinheiro. Desculpe e obrigado.

O rapaz riu, compreensivo, e ele deixou os dois livros em cima do balcão, com a capa virada para cima.

À medida que se aproximava do centro histórico, onde encontraria o albergue, seu coração batia mais forte e não era pelo cansaço. Não tinha gostado de ficar longe de Patrícia, nem de imaginar que poderia estar jun­to com aqueles seus companheiros. Tinha de vê-la novamente, e se não estivesse em Burgos, pegaria um táxi para ir de albergue em albergue até encontrá-la. Sentia falta de sua maneira alegre de explicar coisas sérias, suas lições de história, e, principalmente, sentia falta de sua presença física, de seu olhar irônico.

Sabia que ela preferia os albergues administrados pela Associação do Ca­minho e examinava a lista dos peregrinos hospedados, quando ouviu uma voz conhecida:

Puxa! Já estava com medo de não vê-lo mais.

Uma onda de felicidade o envolveu e ele se voltou para olhá-la, com aquele sorriso confiante de criança saindo do portão da escola quando vê a mãe esperando com os braços abertos.

Aproveitaram o resto da tarde para passear pela cidade e depois procu­raram um bom restaurante. Patrícia quis saber o que havia acontecido e ele resumiu os fatos, porque não queria perder tempo com assuntos que podiam preocupá-la. Ela nada comentou sobre a amiga de Santo Domingo de la Calzada.

O dia seguinte era domingo e não tinham ainda visitado a catedral, um dos mais impressionantes templos religiosos do mundo católico. Sua cons­trução foi iniciada no ano de 1221, em substituição ao antigo templo, e só terminou no ano 1765. Por isso é composta de diversos estilos, embora predomine o gótico.

A porta principal é a segunda mais fotografada da Espanha, só perdendo para a porta do Obradouro, da catedral de Compostela. O arco de entrada das catedrais simboliza o universo, e o cristão passa por ele para entrar no solo sagrado da igreja, que simboliza o reino de Deus.

Gostaria de assistir à missa de hoje. Uma das hospitaleiras insistiu para eu não perdê-la. As missas de domingo na catedral de Burgos são uma verda­deira ópera, com músicas de Bach tocadas no órgão, que emite sons divinos.

Deve mesmo ser uma cerimônia muito bonita.

O interior da catedral é dividido em três naves, com 19 capelas, 38 altares e 58 pilares. Suas torres medem 84 metros de altura, e tudo nela é um desta­que à parte, como a famosa escada dourada em forma de T.

Impressionante! E essa obra, como tantas outras, surgiu da peregrina­ção a Santiago de Compostela — comentou Patrícia, entusiasmada.

As igrejas eram financiadas pelos bispos, pelos reis, pelo povo, mas prin­cipalmente pela venda de túmulos no meio da nave, nas paredes e perto do altar, como se fosse um loteamento do céu. Quanto mais perto do altar, mais caro era o túmulo, pois se acreditava que seriam mais facilmente vis­tos por Deus. Esse costume teve início no fim do milênio, quando rondava a certeza de que o mundo ia acabar, e os poderosos tratavam de garantir um lugar no céu.

Um curioso objeto está guardado no museu da catedral e dizem que era o baú de El Cid, o maior herói da Espanha, que viveu no século XI. Segun­do uma lenda, quando ele foi desterrado por Afonso IV, não tendo de que viver, encheu duas arcas de pedra e areia e divulgou que era um tesouro que daria como garantia, por um empréstimo. Dois judeus teriam aceitado a oferta, mas El Cid impôs como condição que não podiam abrir as duas arcas. Somente se ele não voltasse depois de um ano com o dinheiro e os juros, eles poderiam abri-las e ficar com o tesouro.

Antes de um ano, El Cid voltou com o dinheiro e pagou os judeus, que, no entanto, quiseram ver o tesouro para se deslumbrar com as pedras preciosas que pensavam encontrar. Ao abrirem as arcas, só viram pedras sem valor, e El Cid teria dito que o tesouro era sua palavra.

Cristãos e peregrinos de todas as crenças lotaram a igreja e o som agra­dável do órgão, acompanhado do canto gregoriano do coro, aumentava a sensação de paz que reinava naquele interior.

Esqueceram o Caminho e ficaram por ali, saboreando a cerimônia como se fosse uma ópera clássica. Não se assiste a um espetáculo como aquele freqüentemente. Todo o cenário de autênticas e seculares obras de arte, as formas celestiais das abóbadas, a imponência das colunas, a entrada solene dos celebrantes com o presbítero jogando para frente e para os lados a fu­maça do incenso que saía do turíbulo em brasa, convidava à oração.

Era quase uma profanação a impressão de riqueza e poder que toda aquela encenação lhes causava. Mas não havia como evitar, e, quando o celebrante com voz de barítono entoou as primeiras sílabas, eles também se ajoelharam. Não conseguiam sair dali, embora tivessem planos de andar 25 quilômetros naquele dia. Pouco importava agora. Aquela missa valia um pouco de atraso.

Em frente ao altar estava o túmulo de El Cid, embaixo da cúpula octo­gonal e logo atrás, no coro, o túmulo de D. Maurício, bispo que iniciou a construção da igreja.

Pensamentos estranhos ressoavam em sua mente. Distraído com suas preocupações, não notara que a cerimônia da consagração, tantas vezes repetida em todo o mundo e tantas vezes levando milhões de pessoas a um respeito silencioso quebrado apenas pelo leve tocar de um pequeno sino pelos ajudantes, já tinha iniciado. Uma súbita inquietação o assaltou quando o celebrante começou a pronunciar "Este é o meu sangue que será derramado por muitos...".

 

                                       CAPÍTULO 56

Olhou para o cálice e para o arcebispo e começou a esfregar as mãos úmidas, enquanto Patrícia parecia uma santa, encantada com sua pró­pria devoção. Não a imaginava assim, mas gostou. No entanto, precisava tomar uma providência urgente. O celebrante não podia beber aquele vinho. Estava indeciso e trêmulo, mas o desconforto do medo quebrou a barreira da prudência.

Ultimamente, era comum os celebrantes darem vinho para os fiéis to­marem junto com a hóstia e de repente tudo ficou claro em sua mente. Ali estava o significado das charadas de Najera e Irache. Eram duas charadas, que também podiam ser interpretadas como uma única. Na lenda de El Cid, o vazio das arcas simboliza a mentira, mas acima de tudo a palavra. "No princípio era o verbo..." São João, que deixa de falar em seu evangelho a parte mais importante da doutrina católica: a Eucaristia, que só existe com a morte: "... o sangue que será derramado por muitos", segundo Mateus. A palavra de El Cid também foi usada para simbolizar o Verbo Divino, no caso, a Palavra.

Sim! A palavra era um tesouro que El Cid respeitara. Mas, onde estaria a ligação entre a palavra de El Cid e as charadas? Maurício não queria acre­ditar na fragilidade daquela simbologia, mas havia lido que São Remígio ajudara o papa a firmar um acordo com o rei merovíngio Clóvis I, em um momento em que o cristianismo estava para desaparecer e Clóvis conquis­tara quase toda a Europa. Quando essa dinastia enfraqueceu e a Igreja ficou forte, o papa ignorou o acordo e buscou o apoio de Carlos Magno, consagrando-o como imperador do Sacrossanto Império.

Será que não estaria exagerando? Parecia uma loucura, mas pessoas po­deriam morrer, se ele não tomasse alguma iniciativa. O momento não era para dúvidas, e sim para riscos. Entre a consagração e a comunhão havia ainda alguns minutos, tempo suficiente se agisse com rapidez, pois o arce­bispo não aceitaria a interrupção da missa a um simples pedido seu. Patrí­cia espantou-se, como se acordando de um sonho, quando ele se levantou, mas não perguntou nada. Percebeu que estava nervoso e seguiu-o.

Havia uma porta que dava para a Sacristia Maior e ele não hesitou. O inspetor Sanchez não estava ali para ajudá-lo, mas não podia deixar o ar­cebispo beber aquele vinho e ainda envenenar os católicos que quisessem comungar. A sacristia estava vazia e ele voltou para o interior da igreja, na esperança de encontrar alguém que pudesse ajudá-lo. De repente, caiu na realidade. Ninguém acreditaria nele. A missa continuava e o 'Pater Noster qui es in coelo ("Pai nosso que estais no céu"), cantado, já enchia a nave da igreja com um solene espírito de fé. Não podia invadir o altar, ou o lugar onde estavam os demais padres auxiliares, pois isso causaria pânico; a polí­cia seria chamada, ele preso, e ainda teria de dar satisfações. Além disso, o próprio inspetor Sanchez aumentaria as desconfianças que não fazia ques­tão de disfarçar.

Preciso encontrar algum encarregado da igreja com urgência.

Voltaram para a sacristia e nisso apareceu uma mulher que quis saber o que eles procuravam e Maurício deu uma desculpa:

Será que ainda há tempo de confessar antes da comunhão?

A mulher informou que havia padres nos confessionários distribuídos nos lados da igreja. Eles deveriam ir até lá. Iam saindo, mas disse discreta­mente a Patrícia:

Leve essa mulher para o fundo da sacristia e a distraia.

Patrícia dirigiu-se a uma pilha de folhetos e perguntou quais deles se aplicavam à missa daquele dia e quais orientariam a confissão. A mulher pareceu um pouco surpresa com a pergunta, mas se sentiu na obrigação de orientá-la.

Logo que Maurício saiu, notou que todo o sistema elétrico da catedral es­tava concentrado atrás da porta que separa a sacristia da nave da igreja. Era um portal de duas folhas, que encobriam os dois grandes painéis incrus­tados nas paredes, um de cada lado. Sem pensar mais, começou a desligar os disjuntores, e as luzes se apagaram, deixando o altar às escuras. Quase ao mesmo tempo um ruído ensurdecedor de alarme assustou o povo. O arcebispo continuou celebrando a missa, apesar do estado de tensão que se refletia em seu rosto. A mulher começou a rezar e correu para a porta de emergência, saindo da igreja. Era o momento apropriado e ele entrou por trás do altar e chegou perto do arcebispo. Alguns padres o olharam, assustados, e ele fez sinal com a mão direita, sossegando-os. Mas o súbito silêncio dos auxiliares chamou a atenção do celebrante, que se virou.

Maurício procurou tranquilizá-los:

Não se assustem. Fui eu quem apagou as luzes e provavelmente o sis­tema estava ligado ao alarme.

O arcebispo estava indignado:

Como o senhor se atreveu a interromper a Santa Missa?

Acredito que Vossa Eminência corre perigo se beber desse cálice. Posso estar enganado, mas penso que o vinho está envenenado, e a única maneira que encontrei para evitar que o bebesse e ainda o desse a outras pessoas, foi interromper a missa.

O arcebispo o olhava perplexo:

O senhor...?

Se entendi sua dúvida, meu nome é Maurício.

A missa foi suspensa e, como era esperado, o detetive Sanchez os pro­curou no albergue depois do almoço. Comunicou que a água da fonte em Atapuerca estava realmente envenenada e dera ordens para que todas as fontes do Caminho fossem examinadas, mas espantou-se com a iniciativa de Maurício, de interromper uma missa solene de domingo na catedral de Burgos. Era preciso agora que ficasse na cidade até a conclusão das análises do laboratório.

Espero que compreenda que foi um ato bem atrevido e não posso liberá-lo. Se o vinho não estiver envenenado, precisamos de uma boa des­culpa, porque a Igreja já está reagindo de forma emotiva a esses episódios. Para ela, o Caminho é sagrado, um fenômeno inteiramente cristão que nas­ceu com a descoberta do túmulo de um apóstolo.

A presença do inspetor não agradava a Patrícia, que não quis esperar pelo dia seguinte.

Acho que vou seguir o Caminho. Esses assuntos policiais não me agradam. Vou andando devagar e assim você me alcança em pouco tempo. Está bem?

Já estava temendo por isso. Havia uma hostilidade misteriosa entre o policial e ela. Tudo parecia dar errado, e fez então uma pergunta aparente­mente deslocada:

Vocês conhecem a lei da fatalidade? Os dois o olharam interrogativamente.

Todas as vezes que houver a possibilidade de uma desgraça, devemos contar com ela. O mal tem sempre 99% das probabilidades a seu favor e o bem, apenas 1%.

A Lei de Murphy? — perguntou Patrícia.

Não. Alexandre Dumas. Memórias de um Médico.

O policial não estava interessado em Alexandre Dumas e também não foi nada diplomático.

Logo que os resultados chegarem, tomarei por escrito suas declara­ções e o senhor estará livre para alcançar a senhora Patrícia.

Ela já estava havia dois dias em Burgos, esperando por ele, e mal conse­guiu disfarçar a contrariedade. Despediu-se, pegou a mochila e seguiu. Era uma cena constrangedora, e o detetive fingiu não ver o olhar enigmático de Maurício, que acompanhava o vulto dela se perder na distância. Os testes de laboratório confirmaram que fortes doses de arsênico e formicida esta­vam misturadas ao vinho. Essência de uva havia sido acrescentada, para que o celebrante não desconfiasse.

O detetive foi enfático:

No momento estou sem condições de acompanhá-lo, mas o senhor será seguido de perto e eu pediria que deixasse um bilhete com o encarrega­do de cada albergue em que pernoitar, com a indicação do lugar onde irá pa­rar no dia seguinte. Assim poderemos tomar alguns cuidados preventivos.

Muito obrigado por cuidar de mim.

O detetive parece que entendeu certa reticência nesse agradecimento e deixou escapar um sorriso cínico.

 

                                                         OS TEMPLÁRIOS

 

                             CAPÍTULO 57

A encruzilhada é o símbolo da dúvida e o lugar predileto do demônio. É nela que as almas assombradas se refugiam e se juntam aos monstros criados pela superstição, para urdir os pactos com o demônio.

No dia 13 de agosto do ano de 1303, o arcebispo de Bordeaux, Bertrand Got, e o rei Felipe IV da França, também chamado o Belo, marcaram um encontro na Floresta de Andely, na Normandia, perto de um lugar onde os caminhos se cruzavam. O arcebispo Got benzeu-se e pediu perdão a Deus por aquele momento de receio. Mas, ele sabia que a encruzilhada era o ni­nho das bruxas e, apesar do esforço que a Igreja fazia, queimando muitas delas para salvar suas almas e ainda dar exemplo àqueles que duvidavam da fé, seu número só aumentava.

Os pressentimentos do arcebispo, porém, se justificavam. Mal sabia ele que iria firmar um pacto com o demônio, e levar a um fim trágico o trono francês e o poder do papa. Numa época em que os reis viviam em lutas para ampliar territórios ou defender os que já possuíam, e em que as comunica­ções eram precárias, a sede real era itinerante e os soberanos vasculhavam seus domínios, à frente dos exércitos. Quando Felipe IV nasceu, em 1268, Fontainebleau não era o majestoso palácio escolhido por Napoleão como residência predileta, mas uma fortaleza rústica e sem conforto.

No meio da floresta de Andely, na Normandia, um discreto palacete era, às vezes, usado por Felipe IV, tanto para cuidar de assuntos do Estado como para suas caçadas. Já entardecia e quando a carruagem do cardeal Bertrand Got apareceu o rei o esperava em uma sala ricamente ornada. Ali estava também o primeiro-ministro, senhor Guilherme de Nogaret. Porcelanas fa­bricadas em Limoges ornavam a mesa coberta com toalhas de seda vindas do Oriente, mostrando a importância que o rei dava àquele encontro com o cardeal, que olhava as frutas secas chegadas do deserto árabe com descon­fiança. As cruzadas tiveram o grande mérito de estabelecer um comércio regular entre a Europa e o Oriente Médio, mas muitos cristãos evitavam tocar naqueles produtos oriundos das terras dos infiéis.

O trono do rei estava forrado de veludo azul e perto dele outra enorme cadeira de ébano entalhada, recém-chegada da Áustria, estava reservada para o cardeal. Um grande vaso com flor-de-lis, o símbolo dos reis da Fran­ça, completava a decoração da mesa.

Depois do jantar e já refeito da viagem, Bertrand Got sentiu um agradá­vel aroma circular pelo salão, e com pequenas inspirações tentou adivinhar o que seria. Percebeu então que, apesar do calor, a lareira estava acesa e um criado levava ao fogo uma chaleira estranha, de bico longo e delgado.

O rei sorriu com as reações do cardeal.

O senhor cardeal vai saber por que os árabes foram tão combativos contra os cruzados. Antes de cada batalha eles bebem um remédio que chamam de cahue, e ficam animados, agitados e lutam como se estives­sem dominados pelo Diabo. Bebem-no durante a noite, para ficarem acor­dados e, pela manhã, entornam uma boa quantidade, para se manterem ágeis e valentes.

O criado trouxe à mesa duas pequenas taças com um líquido escuro, que o rei experimentou, empurrando a outra taça para o cardeal:

Prove, senhor cardeal, e verá como se sentirá outro.

O cardeal, ainda cauteloso, mas não querendo desgostar o rei, levou à boca o líquido amargo, forte e feio, cujo gosto não combinava com o agra­dável aroma que sentira.

Cahue, disse Vossa Majestade?

Sim, mas os cruzados pronunciam "café". Vou adotar esse remédio para tornar invencíveis as forças da França Cristianíssima na luta contra esses outros infiéis, os ingleses.

O cardeal ponderou:

Mas se Vossa Majestade vai adquirir café para todo o exército, cer­tamente será uma grande quantidade. Não estará enriquecendo os infiéis muçulmanos?

O rei não havia pensado nisso e preferiu mudar de assunto.

Peço desculpas por ter solicitado sua presença, dizendo na mensagem que era urgente, mas descobrimos uma conspiração contra o reino da Fran­ça e contra a Igreja Católica. Trata-se, portanto, de um perigo iminente e é preciso agir em absoluto segredo, porque os conspiradores contam com as maiores forças militares organizadas que conhecemos e também com a ajuda do Papa Bonifácio.

O cardeal não revelou surpresa, apesar da acusação contra o papa.

O senhor cardeal sabe do perigo que a Igreja correu com a heresia dos cátaros. Eles não acreditavam que Cristo era Deus, e há informações de que protegiam entre eles um grupo de pessoas que se diziam descendentes de Cristo e pretendentes ao trono do Sacrossanto Império. Considerávamos que esses cátaros haviam sido eliminados no sul da França, mas há sus­peitas de que um desses ditos descendentes tenha conseguido escapar do castelo de Montsegur.

O cardeal sentiu um tremor interno imperceptível aos olhos do rei, como se tivesse lembrado compromissos passados. O rei fez uma pequena recapitulação da história dos merovíngios.

Tivemos informações de que o Papa Bonifácio VIII cedeu a argumen­tos de que era melhor restabelecer o pacto da Igreja com o rei Clóvis e re­colocar a dinastia merovíngia no trono da França cristã. Seria um desastre para o cristianismo e para os governos já estabelecidos na Europa.

Bertrand Got olhou para o primeiro-ministro, que sorriu, abaixando a cabeça.

O senhor de Nogaret é descendente de cátaros — explicou o rei.

Um cátaro como o principal cooperador do rei da França era surpreen­dente. O cardeal compreendeu em um relance o que poderia estar aconte­cendo. Nogaret usara de influências e se infiltrara no palácio de Anagni, en­tão sede do papado. O rei sabia que tinha diante dele uma pessoa insegura, indecisa, porém ambiciosa. Bordeaux era a capital da Aquitânia, região rei­vindicada pelos ingleses, que, por sua vez, apoiavam os cátaros e a luta dos senhores feudais do Languedoc contra o rei da França e o papa. A região nunca fora completamente dominada e, por causa disso, o cardeal preferia agir como Pilatos, para evitar confronto com qualquer dos lados.

Mas a visão do rei ia mais longe. Precisava de um papa que o apoiasse para dominar por completo a região occitana e vencer os ingleses. A vaida­de e ambição humanas não poupam nem os representantes de Deus neste mundo. O rei sabia lidar com os aspirantes ao poder.

O senhor de Nogaret usou de sua condição e se aproximou do car­deal Camerlengo.

Bertrand Got começou a transpirar. Por sorte o calor era grande e aquela bebida quente servia de disfarce para esse incômodo suor. Se o rei do prin­cipal país cristão estivesse com algum projeto, ele ficaria em uma posição muito difícil se não o apoiasse.

De início, o cardeal Camerlengo não acreditou na informação do senhor de Nogaret e ele próprio começou a investigar. O Camerlengo foi aos poucos conquistando a confiança do papa, que deixou escapar algu­mas confidências.

O que Vossa Alteza está dizendo é muito sério, porque seria uma gra­ve traição do papa para com os cardeais que o elegeram. Imagino também que as forças organizadas a que Vossa Alteza se referiu seriam o exército formado pela Ordem dos Templários. Os cavaleiros templários devem obe­diência apenas ao papa, e teriam de apoiar um empreendimento desses.

Esse é outro problema. Não podemos esquecer que na Cruzada Albigense os templários se recusaram a lutar contra os cátaros.

O cardeal era bastante racional e achava aquilo absurdo, mas o papa vi­nha demonstrando uma hostilidade anormal para com o reino da França. Desconfiava, no entanto, das intenções do rei em relação aos templários, que não aceitaram seu sobrinho na Ordem. O exército organizado e a imen­sa fortuna dessa Ordem deviam ser a principal motivação do monarca.

Além de terem suas forças espalhadas por toda a Europa, onde eram proprietários de fortalezas, castelos e imensas áreas produtivas, a Ordem dos Templários havia inventado uma maneira inteligente de as pessoas lhe confiarem seus bens e fazerem saques com um papel escrito em código. Com esse documento, o portador podia retirar seus valores em qualquer outra fortaleza, mesmo sendo de outro país. Então, se o rei conseguisse dominar os templários, teria recursos disponíveis para seus propósitos em todo o mundo cristão, inclusive dentro da Inglaterra.

O cardeal começou a entender o plano do rei, mas preferiu agir com sabedoria:

Muito me honra que Vossa Alteza me coloque a par dessa conspiração contra os dogmas da fé cristã. A divindade de Cristo é intocável e não acre­dito que o Papa Bonifácio duvide dela. Mas a hostilidade do papa para com a França Cristianíssima é de certa forma suspeita. Entendo que, quando o papa proibiu que o Estado cobrasse impostos sobre os bens da Igreja, estava cumprindo a lei canônica de interdição de os Estados lançarem tributos sobre os bens do clero. Graças ao bom Deus, a situação se resolveu com a concordância de Vossa Alteza, em ouvir previamente os bispos, quando o Estado precisar de ajuda.

Suspeitava-se que, mediante pressões e traições, Bonifácio tivesse assu­mido o trono de São Pedro obrigando seu antecessor, o Papa Celestino, a renunciar, mandando-o depois para a prisão, onde teve uma morte triste e dolorosa, em 13 de dezembro de 1294.

O cardeal ouvira rumores de que o papa discordava de certos dogmas e não se surpreendeu com as dúvidas levantadas pelo rei.

O papa é descendente da Catalunha, uma das regiões onde os cá­taros estavam assentados e temos informações de que ele é simpático a esses hereges.

Bonifácio era culto, jurista, diplomata, fundador da universidade de Roma, e agora estava enfrentando o rei da França. Não era de duvidar que tivesse feito acordos com os templários para destronar Felipe IV e nomear um descendente de São Dagoberto, o rei merovíngio que teria sido assassi­nado com o apoio da Igreja.

O rei foi conclusivo:

É preciso restabelecer o poder da Igreja sobre o cristianismo sem pre­judicar o poder do Estado. Acho que já está na hora de colocar um papa francês no trono de São Pedro, e ninguém está mais bem preparado do que o senhor arcebispo da Aquitânia. Vou começar a trabalhar nesse sentido. Bonifácio já está muito velho e precisa renunciar. Peço-lhe que se prepare, porque o número de cardeais italianos é grande.

Já passava de meia-noite quando foram dormir.

No dia seguinte, o arcebispo acordou com o agradável aroma da bebida árabe entrando pelas frestas da grande porta do quarto. Levantou-se, e o rei o esperava com uma farta mesa para o desjejum.

O criado serviu o café que o cardeal saboreou.

Às vezes o Diabo se aproveita das boas coisas que o Senhor colocou na terra e que seriam apenas para uso dos cristãos. Se Vossa Majestade tiver êxito em seus planos e seu exército adotar o hábito que veio das terras dos infiéis, o Cristianíssimo Reino da França será invencível. Por isso eu abençôo essa bebida em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Amém — completaram o rei e Nogaret.

Logo depois o cardeal despediu-se e, quando a carruagem episcopal aproximou-se da encruzilhada no meio dos bosques de Andely, um cheiro forte assustou os cavalos, que bufaram, empinaram e pisotearam réstias de alho, colocadas no lugar onde as duas estradas se cruzavam. O alho amas­sado se misturou com o pó da estrada e um cheiro estranho, mais parecido com enxofre, entrou pela portinhola da carruagem. Bertrand Got estreme­ceu e se benzeu.

 

                                     CAPÍTULO 58

Depois da encruzilhada, o cocheiro conseguiu controlar os animais e, enquanto atravessavam os bosques da Normandia em direção a Bordeaux, na Aquitânia, o cardeal teve tempo para pensar no acordo que fi­zera com o rei. O reino francês estava em dificuldades. De um lado, sentia-se o clima de uma guerra iminente com a Inglaterra e, de outro, o amplo apoio da França ao papado, dando suporte irrestrito às Cruzadas, deixara o trono francês endividado. Para sair das dificuldades, Felipe IV lançou im­postos extraordinários sobre comerciantes, banqueiros e até mesmo sobre o clero. Diante da reclamação dos bispos franceses, o Papa Bonifácio VIII promulgou a bula Clericis Laicos, em 24 de fevereiro de 1296, proibindo a cobrança desses impostos. Alegando que o Estado francês tinha autorida­de para cobrar impostos de quem quisesse, o rei proibiu a saída de ouro e prata, metais com os quais eram pagas as taxas cobradas pelo Vaticano. Felipe IV elaborou ainda uma lista de acusações contra o papa, incluindo devassidão, corrupção e outros crimes, intimando-o a renunciar. O papa replicou no mesmo tom, impondo que se justificasse perante a Santa Sé, sob pena de excomunhão.

A situação foi resolvida diplomaticamente. Em vez de fazer a cobrança de impostos, o rei pediria o dinheiro e o papa então aconselharia os bispos a pagarem. Havia, porém, a questão da canonização do rei Luís IX, avô de Felipe IV. O rei queria a santificação do avô, porque ele comandara duas cruzadas e fora mártir delas. Para aplacar os ânimos, Bonifácio canonizou o avô do rei, em 25 de agosto de 1297. Mas com essa canonização, o rei pas­sou a pensar que tinha agora mais poderes no céu do que o papa, porque seu avô, agora São Luís IX, também rei da França, estava sentado ao lado de Deus Pai Todo-Poderoso.

Por sua vez, encorajado com essa pacificação, o papa convocou o primei­ro Ano Santo para 1300, prometendo indulgência plenária para todos os pecados passados e futuros. Uma multidão estimada em mais dois milhões de pessoas compareceu a Roma, levando Bonifácio a entender que voltara a ter os poderes tradicionais da Igreja.

Nomeou, então, como núncio apostólico de Paris um inimigo do rei, que em represália, mandou prender o recém-nomeado e desencadeou nova guerra contra o papa. Era uma guerra de sobrevivência, e Bonifácio convo­cou um Concílio em Roma, durante o qual assinou a bula Unan Sanctam, em 18 de novembro de 1302, afirmando que a Igreja era santa, católica, apostólica e romana, reiterando o que seus antecessores, Gregório VII e Inocêncio III, já haviam dito antes: que o poder dos reis está subordinado ao poder papal.

Em 12 de março de 1303 o rei convocou uma Assembleia de Notáveis que se reuniu no Louvre e acusou o papa de heresia e simonia. Após a deci­são da Assembléia, o papa preparou uma bula — Supra Petri solio —, para excomungar e depor Felipe IV. O primeiro-ministro Nogaret fora informa­do pelo cardeal Camerlengo a respeito dessa bula e assustou o rei.

Majestade, existe um risco muito grande, se o papa promulgar essa bula. Ele tem as Ordens Militares, dentre as quais os templários, em espe­cial, que lhe devem obediência, e pode organizar uma cruzada contra a França. Nosso rei não pode ser excomungado, porque o trono poderá ser declarado vago e é justamente isso que os ingleses estão esperando. Boni­fácio está agindo com muita esperteza, para lançar Deus contra nós. Ele quer que o povo e os demais reis cristãos acreditem que Deus está contra Vossa Alteza.

O rei não hesitou:

Forme um exército. Vá à Itália e contrate mercenários por lá mesmo. Prenda esse impostor e traga-o para ser julgado pela Assembléia de Notá­veis, em Paris. Será queimado na fogueira como herege.

 

                                 CAPÍTULO 59

Entre os montes Ernicos e Lepinos, na região do Lácio, ao norte de Roma, ergue-se a colina de Anagni da qual se domina o verde vale do Sacco, onde seres humanos já viviam há 700 mil anos. Sobre a colina, está a cidade de Anagni, também chamada de cidade dos papas, porque ali fixaram residência desde 1198 até 1303. Com a morte e o suplício de Boni­fácio VIII, deixou de ser a sede pontifícia.

Seguindo as ordens do rei, Guilherme de Nogaret, auxiliado por dois cardeais da família Collona, Pietro e Giacomo, inimigos do papa, contra­tou um exército de mercenários na Itália e tomou o Palácio do Papa no dia 7 de setembro de 1303. O incidente passou a ser chamado de "Atentado de Anagni".

Ao entrar no palácio, Nogaret encontrou Bonifácio VIII sentado no tro­no papal e vestido com todos os paramentos pontifícios.

Nogaret o intimou:

Sei de sua tendência merovíngia e cátara. Você é um herege, e está planejando contra o rei da França. Em nome de Felipe IV, rei da França Cristianíssima, eu lhe ordeno que renuncie, para o bem da própria Igreja.

O rei da França é meu subordinado e daqui só saio morto.

Nesse momento, o cardeal Giacomo Collona, também chamado de Sciarra, esbofeteou-o, gritando:

Seu impostor mentiroso, você está preso e será julgado em Paris. Se não renunciar antes do julgamento, será condenado à morte por heresia e queimado na fogueira como todos os hereges. Todos nós sabemos que foi eleito porque comprou a peso de ouro o voto de alguns cardeais, e depois recuperou esse dinheiro esvaziando os cofres do Vaticano.

O povo, no entanto, não gostara daquela invasão da França em territó­rio italiano e cercou o palácio. Durante três dias em que o palácio ponti­fício esteve cercado pela população, Nogaret submeteu o papa a torturas e constrangimentos.

Com a rebelião do povo, Nogaret teve que negociar a liberdade do papa para poder retornar à França. Bonifácio, porém, já tinha 86 anos e foi leva­do a Roma bastante enfraquecido pelas torturas e privações de alimentos. Terminou aí o período papal de Anagni.

Trinta dias após a prisão de Bonifácio e sua soltura pelo povo, o cardeal, que exercia o posto de Camerlengo, entrou em seu quarto e saiu de lá com a notícia de que o papa morrera. Quando seu corpo foi exposto, percebeu-se que a cabeça estava rachada e faltavam pedaços dos dedos das mãos.

Uma das funções do Camerlengo era confirmar a morte do papa e só ele podia entrar no quarto do pontífice. Ao constatar que o papa tinha morri­do, o Camerlengo devia bater delicadamente na testa do pontífice com um martelo de prata, chamando-o pelo nome.

Segundo o cardeal, o papa vinha sofrendo alucinações e mordia as mãos até arrancar pedaços dos dedos. Em um desses momentos de loucura, ba­teu a cabeça na parede até que a rachou, esparramando o cérebro no chão. Circularam, porém, versões de que o papa não estava doente e nem sofria alucinações, mas, sim, era submetido a torturas para confessar os planos que tinha contra o rei da França, até que em 11 de outubro de 1303, o car­deal Camerlengo teria entrado no quarto quando ele estava dormindo e rachado seu crânio com o martelo de prata, por ordem do rei da França.

Pela primeira vez na história do cristianismo, um soberano católico en­frentara o papa e o derrotara. Esse fato teve um significado tão grande para a história da humanidade, que há quem diga que nesse momento também terminava a Idade Média. O Estado leigo assumia total autonomia e acaba­va a teocracia papal, em torno da qual se construíra a unidade européia.

Com a morte de Bonifácio, a intenção do rei era nomear o arcebispo de Bordeaux, Bertrand Got, mas o conclave escolheu o arcebispo romano Nicolau Bocasini, que tomou o nome de Bento XI e morreu envenenado logo depois, aumentando o temor dos candidatos que não fossem franceses. A situação ficou confusa, porque os cardeais relutavam em aceitar o cargo. Os cardeais franceses propuseram a mudança da eleição para outra cidade, na França, mas o povo de Perúgia, onde tradicionalmente o papa era eleito e onde estava reunido o conclave para a eleição do sucessor de Bento XI, não queria perder essa prerrogativa e cercou o lugar do conclave, impedindo a entrada de alimentos e água para os cardeais.

O povo começou a gritar:

— Elejam um papa! Elejam um papa!

Os cardeais italianos não queriam um papa francês, porque a Igreja já estava muito dependente da França, mas a pressão de Felipe era forte e o impasse perdurou por onze meses, quando, enfim, vencido pelo cansaço e pelas tensões, o conclave elegeu o arcebispo de Bordeaux, Bertrand Got, que tomou posse em 5 de junho de 1305, com o nome de Clemente V.

O Diabo, no entanto, já começava a dar demonstrações de alegria. Cle­mente V foi coroado na cidade de Lyon, na França, e quando saía da igreja para o desfile de apresentação ao povo, passou em frente a um muro que ruiu sobre o cortejo, matando o duque da Bretanha. O papa caiu do cavalo e o rei ficou ferido. Um mau presságio pairou sobre a multidão.

Não querendo voltar a Roma, por não se sentir seguro nessa cidade, e preferindo ficar na França, o papa perdera a prerrogativa de um palácio próprio e, durante vários anos perambulou pelo território francês, tendo residido no condado de Venaissin, propriedade confiscada pela Igreja ao conde de Toulouse, no priorado de Groseau e outros lugares, como um verdadeiro prisioneiro do rei, até que se asilou no convento dos domini­canos em Avignon, em área pertencente ao rei de Nápoles, fora portanto da soberania de Felipe IV. Não existia ainda o famoso Chateau Neuf, cuja construção, com o aproveitamento da antiga sede episcopal, só começou no ano de 1335, por iniciativa do Papa João XXII. Clemente V passou para a história como o papa sem palácio.

 

                             CAPÍTULO 60

O papa rezava na pequena capela anexa a seus aposentos, no convento dos dominicanos, quando foi informado de que o rei estava em Toulouse e lhe pedia uma audiência. Clemente olhou para o crucifixo acima do altar e pediu a ajuda dos céus. Solicitou ao bispo de Avignon per­missão para receber o rei no salão nobre do palácio.

Assim, alguns dias depois, o papa viu o séquito real subir a rampa do palácio episcopal. O porte nobre dos cavaleiros e os passos cadenciados dos cavalos impressionavam. Clemente estremeceu. O rei dava uma demons­tração de grandeza e força que o humilhava mais uma vez. Não seria de­mais dizer que se Cristo descesse à terra naquela hora teria de esperar para ser atendido por qualquer um daqueles clérigos embevecidos.

O soberano foi levado à sala do papa e beijou o anel da mão direita do pontífice que havia eleito. Apesar de toda sua ambição e apego ao poder, Felipe IV era considerado um católico temente a Deus e, mesmo quando utilizava a Igreja para seus propósitos, fazia-o acreditando que era a von­tade divina.

Após o ritual do cumprimento, o papa deu as boas-vindas ao rei.

Recebi a mensagem de que Vossa Alteza se dignaria a nos dar a oportunidade de abençoar mais uma vez o cristianíssimo reino que Deus lhe confiou.

Com reverência, porém, bastante objetivo, o rei foi direto ao assunto que o levara ali.

Peço humildemente perdão por meus pecados e a bênção para todo o reino da França, mas temos assuntos importantes que não foram concluí­dos e que são também do interesse da Santa Sé.

O papa imaginava outra artimanha do rei para tirar nova vantagem de sua eleição, mas fosse lá o que fosse, ele já estava comprometido.

Como Vossa Santidade sabe, Jerusalém caiu definitivamente em mãos dos infiéis e o último reino cristão naquela região foi São João D'Acre, ago­ra também em poder dos muçulmanos, desde 18 de maio de 1291. Mas a partir de 1187, os templários perderam sua finalidade porque seu grão-mestre, Gerard de Ridefort, fez uma manobra suspeita e entregou o Santo Sepulcro aos muçulmanos. As ordens militares, tanto os hospedeiros como os templários, foram transferidas para Chipre e, Vossa Santidade agiu com prudência e astúcia quando transferiu a sede dos templários para Paris.

Na verdade, essa transferência tinha ocorrido por pressão do rei. Clemen­te imaginava o que poderia querer o rei, quando foi surpreendido com a pro­posta da construção do palácio pontifício com o dinheiro dos templários.

Vossa Santidade compreende que a riqueza dos templários não per­tence a eles, mas à Igreja, que pode agora dar a esse dinheiro um destino sagrado. O papa precisa de um palácio como o de Roma, para não estar sempre de um monastério a outro.

A surpresa de Clemente V convenceu Felipe de que a presa estava na armadilha, mas era preciso relembrá-lo dos compromissos que já havia as­sumido com a França, na floresta de Andely. O rei não gostara de o papa ter saído de seu domínio, buscando refúgio na parte do território de Avignon, que ainda pertencia ao rei de Nápoles, mas precisava dele, e por isso o ten­tou com um palácio de igual pompa ao construído por Constantino sobre o túmulo de Pedro.

No ano de 64, Nero acusou os cristãos de terem ateado fogo em Roma, levando muitos deles ao martírio, inclusive Pedro, enterrado em uma necrópole perto da colina do Vaticano. O túmulo do apóstolo, também con­siderado o primeiro papa, passou a ser venerado e no ano de 160 foi cons­truída no local uma pequena capela. Em agradecimento pela vitória sobre o imperador Maxencius, na Ponte Mílvio, em 326 Constantino mandou construir, no lugar onde se acreditava ser o túmulo de Pedro, uma grande basílica que passou a se chamar de Vaticano, devido ao nome da colina. Os trabalhos foram terminados em 349, por seu filho Constâncio. Durante doze séculos, até a fuga para Avignon, a basílica foi a sede pontifícia, caindo depois no abandono.

O rei sentiu que havia alcançado a vaidade do papa e esclareceu:

O reino da França foi o que mais participou das cruzadas, para de­fender o cristianismo contra os muçulmanos e contra os hereges cátaros, e ficou por isso endividado. A Inglaterra é outra ameaça, não só para a França, mas também para a Igreja, porque se os ingleses tomarem a Fran­ça imporão um papa inglês e ritos litúrgicos semelhantes aos dos druidas celtas. Por outro lado, os templários não produziram nada que justificasse a imensa fortuna que os sustenta, já que a receberam como donativos, ou cobrando juros pelos empréstimos que faziam. Essa organização é in­digna da proteção papal porque pratica crimes como blasfêmia, heresia, usura e sodomia.

O papa adotou a mesma objetividade:

A idéia de Vossa Alteza seria então?

Os templários são contra a Igreja e se recusaram a se unir aos cruza­dos na luta contra os hereges do sul. Mas são um poderoso exército orga­nizado e têm muito dinheiro para apoiar a causa que mais lhes interessar. Vossa Santidade sabe que há templários na ilha britânica e o povo de lá quer tomar o território francês.

O papa entendeu a preocupação do rei. Se os templários apoiassem a Inglaterra, a França perderia seu poder, e a pior coisa para a Igreja seria um papa inglês que levasse para Roma as idéias novas surgidas naquela ilha.

E, então, ali, naquele momento, foi urdida a traição contra a Ordem dos Cavaleiros do Templo, os chamados Pobres Soldados de Cristo. As imensas dívidas do trono francês para com os templários, que financiaram as cruza­das e resgataram seu avô, Luís IX, quando foi preso pelos árabes, não seriam pagas, e o rei ainda teria um tesouro incalculável. Os Cavaleiros do Templo seriam integrados ao exército francês, que se tornaria imbatível, o maior do mundo, e ele, Felipe IV, o Belo, seria tão grande como Carlos Magno.

Assim pensava o rei.

O papa o acompanhou até a porta e depois que o soberano saiu, voltou à capela e ajoelhou-se. Mas não conseguiu rezar. Suas origens conflitavam com a condição de Sumo Pontífice e ele mergulhou em profundas dúvidas. Elevou os olhos ao crucifixo, de onde um Cristo com a cabeça caída para o lado direito parecia dizer que, se os templários ficassem sob o comando de Felipe IV, o papa perderia toda a sua soberania.

A Ordem havia construído uma rede de portos e se aperfeiçoara em navegação e astronomia. Ela tinha estudos que indicavam que a terra era redonda e do outro lado existiam territórios ainda não conhecidos. O rei sabia desses estudos e por isso queria a indicação de um seu sobrinho para grão-mestre. Assim ele teria um exército, o tesouro e os planos de nave­gação da Ordem para conquistar o resto do mundo. Clemente V refletia. Qual seria o motivo da ausência do senhor de Nogaret, o cátaro renegado e primeiro-ministro do rei?

 

                                     CAPÍTULO 61

Já era noite adiantada quando uma figura esquiva atraves­sou os portões da abadia de Alet, nos Pireneus, e desceu a ribanceira ín­greme do rio Aude. Seguiu apressado, protegido pela mata que escondia as margens do rio e pelo ruído das águas que encobriam os sons de seus largos passos. O hábito de monge disfarçava os trajes de um cavaleiro fortemente armado que depois de caminhar duzentos metros montou em um vistoso cavalo, que esperava arreado para emergências.

Vários mensageiros tinham deixado Avignon e tomado direções diferen­tes. Um peregrino saiu de madrugada com seu cajado e após distanciar-se da cidade, usou de todos os meios que encontrou para chegar o mais rápido que pôde à abadia Alet com uma mensagem urgente. Ao tomar conheci­mento da notícia, o cavaleiro compreendeu o perigo e saiu para se reunir com os demais mestres da Confraria Negra.

O cavalo conhecia aquelas paragens e não tinha dificuldade de se manter na estrada, apesar da escuridão que cobria as colinas das Corbières como um manto protetor. Ao chegar à curva onde tomaria a trilha para subir até a fortaleza de Rhedae, no alto do morro, o cavalo estacou. Quatro cavaleiros montavam guarda naquele ponto. Ele segurou firme as rédeas do animal, assustado com aquele aparecimento inesperado. Ao notarem que se tratava de um monge, os cavaleiros ficaram mais tranqüilos e um deles o saudou:

Boa-noite, padre. Por que essa pressa toda, o senhor vai atender al­gum doente?

Boa-noite! Foi bom encontrá-los aqui. Acho que me perdi nessa escuridão. Devo ir à abadia de Alet. Tenho compromisso com o abade amanhã cedo.

E, dizendo isso, colocou as duas mãos dentro das mangas do hábito, em sinal de paz, porém controlando o cavalo com leves toques do joelho, como sempre fazia em situações de perigo. Dera aquela resposta sem pensar mui­to, esperando ter sido convincente.

O senhor já passou a abadia de Alet.

A abadia é no sentido contrário de onde estou indo? Então devo ter pego uma rota diferente e me perdi.

A resposta, porém, não satisfez.

Mas essa é a única rota, e a abadia é enorme. O vilarejo de Alet existe naquele lugar desde os tempos dos romanos. Como é que o senhor não a viu?

O soldado, então, atentou para o cavalo do monge.

Sempre soube que padres viajavam em burricos, não em cavalos como esse. Será que pode descer para que possamos verificar se é mesmo um padre?

Ora, claro! — disse o monge que, com uma rapidez incrível, tirou as mãos das mangas e duas facas voaram em direção ao pescoço de dois sol­dados, que se contorceram e caíram ao chão.

Ele aproveitou o momento de indecisão e levantou o hábito, puxando a espada com a mão direita enquanto a esquerda já levantava o escudo. O cavalo parecia esperar por aquele momento e avançou, soltando relinchos para suportar a dor de algum ferimento que podia acontecer no ardor da luta. Mas não houve luta. Atemorizados com a agilidade do cavaleiro, os ou­tros dois voltaram suas montarias e saíram em disparada. Com os joelhos, o monge controlou o cavalo, que obedientemente ficou imóvel. Logo a seguir, duas setas se perderam na escuridão atrás dos vultos, que quase se confun­diam com a noite. O monge ouviu dois gritos e adiantou-se para verificar se os acertara. Viu os cavalos parados e dois corpos sem vida caídos perto deles. Voltou à trilha até encontrar a pequena capela nas encostas do morro sobre o qual os druidas haviam construído o vilarejo de Rhedae. Deixou o cavalo oculto sob algumas árvores e entrou na capela. Aproximou-se do altar e retirou da pequenina porta do sacrário um dos pinos que a sustenta­vam. Deu a volta e introduziu o pino em um ponto quase imperceptível da moldura de uma pedra, incrustada na parede atrás do altar, cuidadosamen­te trabalhada para disfarçar o pequeno orifício.

A pedra se movimentou, e o vulto desceu uma pequena escada, tendo antes o cuidado de fechar de novo a entrada. Tudo ficou muito escuro e ele permaneceu quieto durante alguns minutos. Caminhou tateando a parede por um longo túnel cavado na rocha, até que apareceu a luminosidade de uma tocha.

Depois que os godos foram expulsos do leste europeu pelos hunos, eles invadiram a Europa e saquearam Roma. O fruto desses saques incluía os tesouros roubados por Tito, quando tomou o Templo de Salomão no ano 70 d.C. Quando se deslocaram para o Languedoc, eles construíram uma grande carroça (rheda, ae) para transportar os tesouros provenientes de seus saques, que levaram para o alto de um monte nos Pireneus, onde cons­truíram uma fortaleza e dominaram durante muitos anos a região.

Em meados do século XII, Bertrand de Blanchefort, quarto grão-mestre da Ordem dos Templários, mandara escavar túneis no monte Rhaede, como ficara conhecida a fortaleza dos visigodos, para guardar o tesouro da Ordem, e acabara encontrando o tesouro escondido dos visigodos. Os locais dessas escavações eram mantidos em sigilo e, enquanto a Ordem so­breviveu, a região ficou isolada, dando origem a lendas e mistérios. Desde que o rei e o papa começaram a luta pela dominação da Setimânia, a maior parte desses tesouros foi discretamente retirada dali pelos templários e le­vada para lugares ignorados.

O monge chegou a um amplo salão iluminado por tochas e ali estavam sete cavaleiros de diversas idades e aparências, sentados em volta de uma mesa octogonal. Vestiam-se de negro com a grande cruz vermelha dos Po­bres Cavaleiros de Cristo sobre o peito. Todos se levantaram, mostrando assim a reverência que tinham pelo recém-chegado. O cavaleiro ficou de pé, no lugar ainda vago, e tirou o hábito de monge, ficando com as mesmas vestes que os demais. Um gesto leve da cabeça foi o único cumprimento e, como se pronunciassem uma oração, recitaram em voz alta um extrato da "Canção da Cruzada Albigense", de Guillaume de Tudèle, em que o cancio­neiro relata a morte de milhares de pessoas pelas tropas do papa, no ano de 1219:

 

"Então começaram o massacre e a terrível carnificina. Os se­nhores, as damas, as crianças, os homens, as mulheres, despoja­dos e nus, foram passados ao fio da espada. As carnes, o sangue, os miolos dos cérebros, os troncos, os membros, os corpos abertos e cortados, os fígados e os corações foram feitos em pedaços, e ossos quebrados estão jogados por todos os lugares como nunca se viu. A terra, o solo, as margens do rio, tudo ficou vermelho pelo sangue espalhado das vítimas. Não resta homem, nem mulher, nem criança, nem velho, nenhuma criatura escapou. A cidade foi destruída e queimada."

 

Era a cúpula da Confraria Negra que ficou em vigília, assim que soube que o rei estava em Toulouse.

O recém-chegado falou com apreensão:

Um mensageiro trouxe a notícia de que a Ordem dos Pobres Cava­leiros de Cristo será dissolvida e Felipe quer todos os seus documentos e bens. Os templários serão incorporados ao exército da França e deverão obediência apenas ao rei, não mais ao papa, como até agora. O senhor de Nogaret mandou espiões e esta área está sob vigilância.

E, depois de alguns segundos, explicou:

Tive de enfrentar quatro deles agora. Não fosse o meu disfarce de monge, talvez não estivesse com os senhores.

Os outros o olharam com respeito. Aquele era o rei que deveria assumir a dinastia merovíngia, um cavaleiro digno do cargo: forte, ágil, robusto, culto e inteligente. Mas não era o momento para homenagens e voltaram às suas preocupações. Sabiam das maquinações de Felipe IV para se vin­gar da Ordem, desde que suas pretensões de ser ele próprio o grão-mestre, ou colocar nessa posição um seu sobrinho, foram rejeitadas. O salão onde estavam fora escavado em uma rocha e as paredes tinham sido perfuradas para esconder documentos e parte do tesouro da Ordem. Existiam outras escavações em diferentes lugares, mas a região do Languedoc não oferecia mais segurança.

Quem visse aqueles oito homens de negro, com uma cruz vermelha na frente das vestimentas, teria motivos para receios. Não podiam ser con­fundidos com os templários, embora alguns entre eles fossem mestres re­gionais da Ordem. Alguns eram descendentes dos cavaleiros faiditas, que defenderam os cátaros. Outros eram senhores feudais que viviam discre­tamente no Languedoc. Acreditavam que em suas veias corria o sangue de Cristo e eles eram os herdeiros do sangue real, o Santo Graal, e o cavaleiro que chegara por último era o herdeiro do reino da França, o descendente direto dos merovíngios, cuja coroa fora roubada pelo papa para entregá-la a Carlos Magno.

Para eles, Cristo era um verdadeiro rei, enviado por Deus para restabele­cer Seu reino aqui na Terra. E embora muitos acreditassem que Cristo era o próprio Deus, por isso ressuscitara, para aqueles cavaleiros Ele era apenas o messias, o enviado de Deus, e fora realmente morto; mas deixara uma descendência, que se espalhou pela região do sul da França.

Os judeus mataram Cristo com o apoio dos romanos, mas sua dinas­tia não ficara na Palestina e seus descendentes já eram senhores da França quando o papa reconheceu Clóvis, o rei merovíngio, herdeiro do Sangue Real, como o imperador de todo o reino cristão. A Igreja estava enfraque­cida porque seu poder terreno vinha do apoio que recebia do imperador Constantino e, quando este morreu, o cristianismo corria o risco de desa­parecer ou se dividir em muitas facções.

A Igreja sabia das origens de Clóvis e entendeu que a aproximação com um descendente de Cristo daria maior unidade ao cristianismo. Essa união trouxe, porém, um risco inesperado para a Igreja, pois havia a cren­ça popular de que os merovíngios eram descendentes de Cristo e o clero passou a ter mais respeito pelo rei do que pelo papa. Se a Igreja pregava que Cristo era Deus e se os merovíngios eram descendentes de Cristo, a confusão estava criada em uma época em que a superstição e a falta de cultura moldavam as religiões ao sabor de cada pregador. A Igreja depen­dia da divindade de Cristo para fazer frente a Maomé, que se intitulava o Profeta e superior a Cristo.

O cavaleiro fez um pequeno relatório da situação.

O Papa Clemente não confia no rei e não confia em nós. Se Felipe controlar os bens e o exército dos templários, o papa ficará reduzido a um serviçal. Por outro lado, embora em suas veias corra sangue merovíngio, ele não confia em nós porque, depois de documentada a linhagem de Cristo, a Igreja perderá da mesma forma seu poder. Ele decidiu, então, extinguir a Ordem, para subordiná-la ao rei da França.

Essa era a situação.

Este é nosso último encontro. A Confraria será reorganizada. Não podemos mais nos expor. Será criada a Ordem do Graal, que assumirá as ações. Os membros dessa nova Ordem serão escolhidos entre pessoas de mérito e lealdade, porém, sem a linhagem sagrada.

Um funéreo silêncio foi quebrado pelas palavras do rei.

Sem o exército dos templários e com o território do Languedoc tomado pelo rei da França, nossa situação ficou momentaneamente sem esperanças.

Rugas de revolta se estampavam na fisionomia dos participantes.

Não podemos mais nem nos encontrar nem nos comunicar. Cada um de nós enviará, no código da Confraria, três nomes de sua escolha para substituí-lo na Ordem do Graal. Os nomes serão encaminhados para o Convento de São Tiago, em Paris. Essa nova organização agirá dentro do mais absoluto sigilo e os códigos mudarão constantemente. Continuará a haver oito Casas em todo o mundo, mas cada uma agirá independentemen­te, dentro do plano que receber.

Os cavaleiros compreenderam que, para o bem deles, não teriam contato com os membros da Ordem do Graal.

A reunião foi encerrada e, ao saírem dali, os oito cavaleiros andaram ocultamente por entre árvores, puxando os cavalos pelas rédeas. Cada ani­mal levava uma carga preciosa. Na caverna escavada, onde estiveram antes, ficaram objetos como metais e porcelanas deixadas pelos visigodos, mas os valores e documentos mais importantes foram levados para La Rochelle, de onde saíram alguns dias depois 18 galeras com documentos e objetos valiosos vindos de todos os templos que a Ordem tinha na França.

 

                                       CAPÍTULO 62

O rei Felipe demorou mais do que pretendia em seu retorno a Fontainebleau e encontrou o desesperado cavaleiro Guilherme de Nogaret, principal conselheiro do reino, esperando por ele no portão do palácio. Nogaret queria uma entrevista com urgência. Assim que ficaram a sós na sala do trono, o primeiro-ministro acusou o papa.

Majestade, Clemente tem parentesco com o antigo grão-mestre da Ordem Bertrand de Blanchefort. Os Blanchefort lutaram a favor dos cáta­ros e por isso suas terras foram doadas a Simon de Monfort. Segundo nos­sos informantes, eles tinham sangue merovíngio e alguns deles migraram para a Aquitânia, onde se desenvolveu uma população merovíngia. Existe uma relação de parentesco entre os Blanchefort e o papa.

O rei não acreditava no que ouvia.

Mas, isso é impossível! Tiramos Bonifácio porque ele queria colocar um merovíngio no trono da França e agora temos contra nós a nossa pró­pria cria? O grão-mestre Blanchefort tinha sangue merovíngio e o papa é parente dele? O senhor tem certeza disso?

Coloquei vigilantes em todas as rotas que levam a Santiago de Com­postela. Recebi a notícia de que quatro desses vigilantes foram mortos há alguns dias. Parece que os templários foram informados dos nossos planos. Quem, senão o papa, poderia tê-los avisado?

O rei estava aturdido.

Então é por isso que a Ordem não queria meu sobrinho como grão-mestre. Eles estavam se preparando para tomar o Languedoc e criar um reino cátaro, que já nasceria rico e com o exército mais poderoso do mun­do. A França deve uma grande fortuna à Ordem dos Templários e, se eles tiverem êxito nessa empreitada, corremos um grande perigo. O Papa Clemente preferiu ser fiel às suas origens e nos traiu. Precisamos nos apressar. Não podemos fazer nada contra o papa, mas se agirmos logo, pegaremos os templários de surpresa. Sem os templários para apoiá-lo, o papa vai fazer o que mandarmos.

Nogaret já contava com essa reação do rei e tinha preparado um plano.

— Segundo os cálculos, existem perto de 15 mil cavaleiros templários no território francês, mas estão espalhados. Se agirmos com cuidado, pode­mos levá-los para as prisões do reino. Descobrimos um templário que foi expulso da Ordem e quer vingar-se. Ele está disposto a colaborar. O sujeito não vale nada e foi expulso porque não prestava mesmo. Chama-se Esquieu de Floyran e fez acusações suficientes para levar todos os templários para a Inquisição. Ele já declarou tudo por escrito.

Entregou ao rei um relatório sobre coisas escabrosas que compromete­riam a Ordem. Estava assinado por Esquieu de Floyran. O rei sorriu, satis­feito. Agora, nem o papa ficaria a favor dos templários.

Cartas lacradas com o selo do rei foram enviadas a líderes políticos e religiosos de todas as cidades em que os templários tinham sede, com or­dem de abri-las somente no dia 12 de outubro. A ordem do soberano não admitia contestação e era ameaçadora. Os governos das principais cidades do país também receberam cartas com a mesma advertência. Jacques de Molay, o grão-mestre da Ordem, estava no palácio do Templo em Paris e era vigiado permanentemente. Coincidentemente, nesse dia morreu a cunhada do rei e de Molay foi convidado para acompanhar o enterro, sen­do pego de surpresa.

E assim, no dia seguinte, 13 de outubro de 1307, uma sexta-feira, de Molay e quase todos os templários da França foram presos e agrilhoados. O rei mandara fazer, em segredo, mais de 15 mil grilhões, com os quais os 15 mil templários da França foram presos e jogados nos subterrâneos de prisões, onde sofreram as mais bárbaras torturas para confessar o que não tinham feito.

Clemente V protestou contra essa iniciativa do rei, mas teve de se sub­meter. Os templários foram entregues à Inquisição e submetidos a torturas físicas oficializadas no "Livro das Sentenças da Inquisição", em que o padre dominicano Bernardo Guy divulgou que, para obter a confissão dos acusa­dos, podiam ser usados métodos como: arrancar unhas; arrancar os olhos; colocar ferro em brasa sob várias partes do corpo; rolar o corpo sobre lâmi­nas afiadas; as "botas espanholas" para esmagar as pernas e os pés; a "virgem de ferro", um pequeno compartimento em forma humana, aparelhado com facas e que, ao ser fechado, dilacerava o corpo da vítima; derramar chumbo derretido no ouvido e na boca — enfim, não havia limites para a crueldade. Uma das atrocidades oficializadas pelo Santo Ofício era fazer o condenado comer pedaços do próprio corpo.

Por meio dessas inomináveis torturas, só podiam ser arrancadas as mais estranhas confissões. O papa convocou o Concílio de Viena, em 1311, para extinguir a Ordem, mas como o concilio fora longe da França, os bispos se recusaram a condená-la à revelia. Diante dessa reação, o papa convocou um consistório privado, e em 22 de novembro de 1312 aboliu a Ordem. E mes­mo sem julgamento, condenou-a com a bula Vox in excelso. Semanas depois, a bula Ad providam atribuía à Ordem do Hospital os bens dos templários.

 

                                     CAPÍTULO 63

Com a abolição da Ordem e diante das confissões arrancadas a fer­ro e fogo, em 18 de março de 1314 o papa nomeou um Tribunal presidi­do pelo cardeal Marigny, da cidade de Sens, que se reuniu na Catedral de Notre-Dame de Paris para julgar os quatro cavaleiros chefes da Ordem dos Templários. Entre as evidências contra os acusados estava uma confissão de Jacques de Molay, último grão-mestre da Ordem.

Quando jacques de Molay e mais três cavaleiros foram introduzidos na sala do Tribunal, os sinais de tortura eram evidentes em todos eles, que mal conseguiam andar e parar de pé. Os dedos das mãos e dos pés do respeitado grão-mestre, de Molay, estavam esmagados e suas unhas tinham sido arran­cadas. A multidão aglomerada para assistir a mais um espetáculo ficou em respeitoso silêncio. Os quatro entraram empurrados pelos soldados do rei, mas ostentavam uma fisionomia altiva e solene. Diante das fortes torturas e já inconscientes, tinham assinado confissão de que eram hereges e haviam praticado crimes contra o cristianismo. Com ela seriam condenados à pri­são perpétua. Se não tivessem confessado esses crimes, continuariam sendo torturados até morrer ou seriam julgados hereges e mortos na fogueira.

Apesar de abatido, doente e torturado, ao ouvir a sentença que lhe era imposta, de Molay reagiu com indignação e gritou:

"— Protesto! Protesto contra essa sentença iníqua e afirmo que os crimes de que me acusam foram inventados!"

Godofredo de Charnay reagiu como de Molay e protestou:

"— Fomos vítimas de vossos planos e de vossas falsas promessas! É o ódio, seu desejo de vingança que nos condenam! Mas afirmo diante de Deus que somos inocentes e os que dizem o contrário mentem miseravelmente!"

A retratação da confissão era punida com a pena de morte e o condena­do levado à fogueira.

Diante dos protestos de Godofredo de Charnay e do grão-mestre de Mo­lay, criou-se um tumulto em meio ao qual se ouviu a voz irada do arcebispo de Marigny que, aos gritos e elevando a cruz peitoral, sentenciou:

"— Dois dos condenados reincidiram em suas heresias e rejeitaram a jus­tiça da Igreja! A Igreja os entrega à justiça do rei!"

A Inquisição apenas condenava. Cabia ao Estado a execução do réu. Era uma fórmula cínica de a Igreja legitimar o crime e não sujar as mãos.

O rei Felipe tratou logo de executar de Molay, temendo a reação da po­pulação e, assim, naquela mesma tarde, o grão-mestre, com 70 anos, e ou­tros 36 templários foram levados à fogueira, em uma ilha do Sena.

Ao ser amarrado ao poste, de Molay pediu que lhe soltassem as mãos para que pudesse morrer rezando com elas juntas, o que lhe foi concedido, e teve forças ainda para gritar:

"—Vergonha! Vergonha! Vós estais vendo morrer inocentes. Vergonha so­bre vós todos."

As chamas já o consumiam, mas ele ainda teve energias para gritar, de modo que todos ouvissem:

"— Papa Clemente... Cavaleiro Guilherme de Nogaret... rei Felipe; intimo-os a comparecerem perante o Tribunal do Juiz de todos nós dentro de um ano para receberdes seu julgamento e o justo castigo. Malditos! Malditos! Todos malditos, até a décima terceira geração!!!"

Nem bem terminou de pronunciar essas palavras, seu corpo dobrou-se e ele perdeu os sentidos.

Felipe assustou-se quando soube dessas palavras e mais tarde comentou com Nogaret:

Devia ter mandado arrancar a língua daquele imbecil.

 

                                 CAPÍTULO 64

Na pequena cidade de Roquemaure, no sul da França, existe ainda um pequeno castelo que os habitantes consideram mal-assombrado. Dizem que na madrugada de 19 para 20 de abril, o médico que aten­dia o Papa Clemente V, acometido de infecção intestinal, foi barrado na porta do quarto por um cavaleiro alto, de cerca de 70 anos, com uma vesti­menta branca coberta por uma capa que ia até os pés calçados com botas de couro. A mão esquerda segurava o cinturão e a direita pousava sobre o cabo de uma longa espada que estava diante dele, fora da bainha. Apesar da testa calva, uma longa cabeleira branca cobria o pescoço e se confundia com a barba espessa. O olhar severo e penetrante era assustador.

No hábito e na capa a cruz dos templários.

Quando o médico chegou perto, o cavaleiro disse:

Eu cuido do papa. O remédio fica comigo e você pode voltar para casa.

A voz parecia sair de um abismo e o médico entregou os frascos de re­médio e foi saindo de costas, enquanto o cavaleiro continuava ali, de pé, imóvel, vendo-o se afastar. Não acreditava que um templário estivesse ali para proteger o papa que os havia condenado, e saiu, aterrorizado.

Ninguém tinha visto aquele cavaleiro entrar e ninguém também o viu sair. Mas no dia seguinte, Clemente V não acordou. Constatou-se que ha­via ingerido uma mistura com pó de esmeraldas que cortou seu intestino, provocando uma morte dolorosa.

Nogaret e Felipe IV empalideceram quando receberam a notícia. Ainda não tinham esquecido a maldição do grão-mestre de Molay. A descrição do cavaleiro templário visto pelo médico lembrava a figura de Jacques de Mo­lay. O rei aumentou a segurança e fazia seus súditos comerem e beberem antes dele nas mesmas vasilhas, para não ser envenenado.

Guilherme de Nogaret veio a falecer em uma manhã da terceira semana de maio, envenenado por uma vela feita pelo cavaleiro Evrard, antigo tem­plário. Ele usou as cinzas da língua de um dos membros da família dAunay, também vítima de Nogaret, misturadas a um cristal esbranquiçado, que na química chamam de sulfonoreto de mercúrio e na alquimia, de "serpente do faraó". A vela foi colocada no quarto de Nogaret e, depois de acesa, sol­tou uma fumaça que se espalhou pelo quarto; Nogaret morreu vomitando sangue e se contorcendo de dor.

Logo depois da morte do primeiro-ministro, o rei começou a dar sinais de desequilíbrio. Certo dia saiu para caçar, acompanhado de seu camareiro, Hugo de Vouville, de seu secretário particular, Maillard, e de alguns fami­liares. Entraram na floresta de Pont-Sante-Maxe com seus cães favoritos em busca de um cervo de doze galhos que teria sido visto naquela área. Era um animal misterioso que ninguém conseguia matar. Em certo momento, o grupo viu um animal diferente e correu para cercá-lo, a fim de que o rei tivesse a honra de matá-lo. O rei ficou só, e contou mais tarde a estranha história de que fora guiado por um camponês que o levou até onde estava o cervo e, em seguida, desapareceu. Ficou alucinado ao ver o belo animal, com doze galhos sobre a cabeça, e se preparou para atacar, mas nisso um forte raio de sol refletiu em uma cruz, semelhante à dos templários, forma­da por dois galhos presos nos chifres do animal. Quando a comitiva real o encontrou, ele estava aturdido e passando mal. Balbuciava apenas "a cruz, a cruz...". Um grosso galho de árvore havia caído em sua cabeça e ele foi levado de volta para Fontainebleau, onde passou a perambular como louco, vindo a morrer em 29 de novembro de 1314 — cumpria-se a maldição de Jacques de Molay.

Segundo alguns documentos e relatórios, Felipe, o Belo, morreu de apoplexia cerebral em uma zona não-motora, devido a uma lesão na região da base do crânio. A maldição de de Molay passou a ser interpretada como uma ordem aos remanescentes dos templários, e outros fantasmas se junta­ram aos muitos já existentes na sociedade medieval.

Mortes misteriosas de príncipes e prelados que apoiaram a extinção da Ordem começaram a ser divulgadas pelos trovadores, os informantes da época, que as atribuíam a uma sociedade secreta que se preparava para destruir a dinastia de Felipe IV e assim fazer cumprir o castigo divino sen­tenciado por de Molay.

 

 

                                                                           CONTINUA

 

 

                                         O SEGREDO DE SÃO REMÍGIO

 

                           CAPÍTULO 65

No final do século VI antes de Cristo, o imperador Tarquínio Prisco, conhecido como Tarquínio, o Soberbo, construiu uma grande rede de esgotos, a Cloaca Maxima, para drenar as águas e o lixo da Roma antiga para o rio Tibre que atravessa a cidade e deságua no mar Tirreno. Inicial­mente, era um canal a céu aberto, que foi progressivamente coberto, em função das exigências urbanas, levando Tito Lívio a escrever erroneamente que ela foi escavada no subsolo. Suas medidas variam de 2,70 a 4,50 metros de altura e 2,12 a 3,30 metros de largura e, até hoje, seu desenho original é um desafio para os arqueólogos. Essa fabulosa rede de esgotos só foi pos­sível devido aos avanços da engenharia etrusca, povo que se instalou no Lácio, onde Roma se localiza. Era um povo progressista, e a eles os romanos devem o desenvolvimento das artes, da engenharia, da urbanização e da estratégia militar com a qual dominaram o mundo.

 

 

 

 

 

Foi no terreno drenado pela Cloaca que se desenvolveu o centro político, econômico e religioso de Roma. O local passou a ser denominado Foro Romano e mais tarde, durante o período de 46 a.C. a 113 d.C., devido à expansão urbana foram construídas outras praças que tomaram o nome de Foros Imperiais, ampliando-se o centro urbano, onde se concentra a maior riqueza arqueológica do país. Diz-se que ali uma cidade de Roma foi edificada sobre outra.

Após a queda do Império Romano, o povo passou a utilizar o material dos antigos palácios para suas próprias moradias e usavam o terreno para o plantio de cereais, vinhas, frutas e legumes, assoreando praças e enco­brindo casas. Vestígios da época atravessaram os séculos, como a muralha de Roma, o templo de Júpiter, no Capitólio, e a maior rede de esgotos até então construída.

A prefeitura de Roma concede autorizações para milhares de obras todos os anos e as escavadeiras representam um grande perigo para os tesouros subterrâneos, que a cada momento surgem de um pequeno buraco. O tra­balho mecânico é evitado sempre que possível e isso aumenta a necessidade de arqueólogos e técnicos. Em 2003, a ONG Discovering the Past contratou um grupo de pesquisadores, incluindo arqueólogos, engenheiros civis, ar­quitetos e historiadores, para levantar todos os princípios teóricos da en­genharia etrusca, em Roma. Nenhum cientista, técnico ou funcionário da Discovering the Past era... 

 

                                                                                A. J. Barros 

 

 

                                         

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