Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ENIGMA DO QUATRO / Ian Caldwell
O ENIGMA DO QUATRO / Ian Caldwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Acho que, como muitos de nós, meu pai passou toda a sua vida reunindo fragmentos de uma história que nunca compreen­deria. Essa história começou quase cinco séculos antes de eu ir para a universidade, e terminou muito após a sua morte. Em novembro de 1497, dois mensageiros cavalgaram, certa noite, das sombras do Vaticano até uma igreja chamada San Lorenzo, fora dos muros da cidade de Roma. O que aconteceu naquela noite mudou seus desti­nos, e meu pai acreditava que poderia mudar o seu também.

Nunca coloquei muita fé em suas crenças. Um filho é a promessa que o tempo faz a um homem, a garantia que cada pai recebe de que tudo quanto considera precioso será algum dia visto como tolo, e que a pessoa que mais ama no mundo o inter­pretará mal. Mas meu pai, um estudioso da Renascença, nunca se assustou com a possibilidade de renascimento. Ele contou com tanta freqüência a história dos dois mensageiros que jamais pude esquecê-la, por mais que tentasse. Ele sentia que nela havia uma lição, uma verdade que acabaria por nos atrair.

 

Os mensageiros haviam sido enviados a San Lorenzo para entregar uma carta a um nobre, sendo advertidos para não abri-Ia sob pena de morte. A carta estava lacrada quatro vezes com cera preta, e supostamente continha um segredo que o meu pai levaria três décadas tentando descobrir. Mas a escuridão havia caído sobre Roma naqueles dias, sua glória tinha surgido e desaparecido e ainda não havia retomado. Um céu estrelado ainda estava pintado no teto da Capela Sistina, e chuvas apo­calípticas inundaram o rio Tibre, em cujas margens apareceu, segundo reclamações de velhas viúvas, um monstro com corpo de mulher e cabeça de burro. Os dois ávidos cavaleiros, Rodrigo e Donato, não prestaram atenção ao aviso de seu senhor. Eles aqueceram os lacres de cera com uma vela e abriram a carta para conhecer seu conteúdo. Antes de partir para San Lorenzo, torna­ram a lacrar a carta de maneira impecável, copiando o sinete do nobre com tanto cuidado que a adulteração ficava impossível de ser detectada. Se seu mestre não fosse um homem extremamente sábio, os dois mensageiros certamente teriam sobrevivido.

Porque não seria o lacre a arruinar Rodrigo e Donato e sim, a cera preta onde os lacres haviam sido pressionados. Quando chegaram a San Lorenzo, os mensageiros foram recebidos por um maçom que sabia o que havia na cera: um extrato de uma erva venenosa chamada erva-moura mortal, que, quando aplicada aos olhos, dilata a pupila. Hoje o composto é empregado na medi­cina, mas naqueles tempos era utilizado pelas mulheres italianas como cosmético, uma vez que pupilas dilatadas eram tidas como sinal de beleza. Foi essa prática que deu à planta seu outro nome: "mulher bonita" ou beladona. Durante o tempo em que Rodrigo e Donato ficaram a derreter cada lacre, a fumaça da cera ardente aderiu-lhes aos olhos. Quando chegaram a San Lorenzo, o maçom os conduziu até um candelabro próximo ao altar. E como suas pupilas não se contraíram, ele soube o que haviam feito. E embora os homens se esforçassem para reconhecê-lo com seus olhos desfocados, o maçom fez como lhe havia sido dito: pegou sua espada e os decapitou. Era um teste de confiança, tinha dito seu senhor, e os mensageiros haviam falhado.

O que aconteceu com Rodrigo e Donato, meu pai só soube por meio de um documento que descobriu pouco antes de morrer. O maçom cobriu os corpos dos homens e os arrastou para fora da igreja, absorvendo seu sangue com tecido grosseiro de algodão e trapos. Colocou as cabeças em duas sacolas, uma de cada lado da sela de seu cavalo de montaria; os corpos, ele os amarrou no dorso dos cavalos dos dois mensageiros, e em seguida prendeu os ani­mais a reboque do seu próprio cavalo. Encontrou a carta no bolso de Donato e queimou-a, porque era uma fraude e não havia des­tinatário real a quem entregá-la. Então, antes de partir, curvou-se em penitência diante da igreja, horrorizado com o pecado que havia cometido em nome de seu senhor. Aos seus olhos, as seis colunas de San Lorenzo formavam dentes negros por causa dos vãos entre elas e o simplório maçom admitiu que tremeu quando viu isso, porque em criança ele ficou sabendo, no colo das viúvas, como o poeta Dante tinha visto o inferno e como a punição do maior dos pecadores foi a de ser mastigado para todo o sempre pelas mandíbulas de lo'mperador del doloroso regno.

É possível que o velho São Lourenço, de sua tumba, ao ver o sangue nas mãos do pobre homem, tenha arregalado os olhos e, por fim, o tenha perdoado. E pode ser que não houvesse perdão a ser dado e, como os santos e mártires de hoje, Lourenço tenha per­manecido impenetravelmente silencioso. Naquela mesma noite, mais tarde, o maçom, seguindo as ordens de seu senhor, levou os corpos de Rodrigo e de Donato a um açougueiro. É melhor não adivinhar o destino de suas carcaças. Seus restos foram espalhados pelas ruas e recolhidos pelas carroças de lixo, espero, ou devorados por cães antes que pudessem ser assados como recheio de torta.

Mas o açougueiro deu outro destino às duas cabeças dos homens. Um padeiro que vivia na cidade, um homem com um toque do demônio em si, levou as cabeças e as colocou em seu próprio forno, onde as deixou durante a noite. As viúvas do lugar tinham o costume de emprestar o forno do padeiro, ao anoitecer, enquanto as brasas do dia ainda estavam quentes; naquela oca­sião, quando lá chegaram, as mulheres começaram a gritar e quase desmaiaram diante da visão grotesca que as aguardava.

À primeira vista este parece ser um destino vulgar, ser usado como meio de pregar uma peça em mulheres idosas. Mas imagino que Rodrigo e Donato ficaram muito mais famosos morrendo dessa maneira do que se tivessem permanecido vivos. Porque as viúvas, em todas as civilizações, são as mantenedoras da memória, e as que encontraram as cabeças no forno do padeiro certamente nunca esquecerão o acontecido. Mesmo quando o padeiro confessou o que havia feito, as viúvas devem ter continuado a contar a história de sua descoberta para as crianças de Rom , as quais, durante toda uma geração, se recordaram do conto da cabeças milagrosas tão vividamente quanto do monstro expelido pelas enchentes do Tibre.

E, embora a história dos dois mensageiros fosse eventual­mente esquecida, uma única coisa era certa. O maçom executou seu trabalho a contento. O segredo de seu senhor, qualquer que fosse, jamais deixou San Lorenzo. Na manhã seguinte ao assassinato de Rodrigo e Donato, quando o lixeiro ajuntou lixo e vísceras em seu carrinho de mão, pouco se soube sobre a morte de dois homens. O lento ciclo que avança da beleza para o declínio e de novo para a beleza prosseguiu e, como os dentes da serpente que Cadmus semeou, o sangue do mal regou a terra romana e provocou o Renascimento. Quinhentos anos decorreram antes que alguém descobrisse a verdade. Quando os cinco séculos se passaram, e a morte encontrou um novo par de mensageiros, eu estava termi­nando o meu último ano na universidade de Princeton.

 

 

 

 

 

                                       Capítulo 1

Que estranho, o tempo. Ele pesa mais sobre os que menos o têm. Nada é mais leve do que ser jovem com o mundo sobre os ombros; isso nos dá um sentimento de possibilidade muito sedu­tor, nos tornamos conscientes de que deve haver algo mais impor­tante que poderíamos estar fazendo do que estudar para exames acadêmicos.

Posso ver agora a mim mesmo, na noite em que tudo come­çou. Estou deitado no velho sofá vermelho em nosso dormitório, lutando com Pavlov e seus cães no meu livro de introdução à psi­cologia, procurando entender por que nunca preenchi meu reque­rimento de conhecimento teórico e prático quando calouro, como os demais colegas. À minha frente, sobre a mesa do café, duas car­tas, cada uma trazendo em sua proposta a perspectiva do que eu poderia vir a fazer no ano seguinte. Sob o frio de abril que fazia em Princeton, New Jersey, a noite de Sexta-Feira da Paixão havia che­gado, e, a apenas um mês de terminarem as aulas não sou diferente de qualquer outro da classe de 1999: é difícil não pensar no futuro.

Charlie está sentado no chão perto da geladeira, jogando com o Shakespeare Magnético que alguém esqueceu em nosso quarto na semana anterior. A novela de Fitzgerald que ele deveria estar lendo para seu trabalho final no curso de inglês está aberta no chão, a lombada dobrada como uma borboleta que tivessem pisoteado, e ele está formando e reformulando sentenças com os ímãs das palavras shakespearianas. Se lhe perguntarem por que não está lendo Fitzgerald, ele resmungará e dirá que não há inte­resse. Para ele, a literatura é como um jogo de apostas do homem culto, um jogo de trapaça de três cartas para a turma de universi­tários, no qual o que se vê nunca é o que se obtém. Para um rapaz com propensão científica como Charlie, isso é o cúmulo da per­versidade. Ele vai para a escola de medicina no outono, mas todos nós ainda estamos ouvindo a respeito da nota apenas suficiente que ele alcançou em seu teste de inglês em março, no meio do semestre.

Gil relanceia o olhar sobre nós e sorri. Finge estar estu­dando para um exame de economia, mas na tevê estão passando Bonequinha de Luxo e Gil tem uma queda por filmes antigos, especialmente aqueles com Audrey Hepburn. Seu conselho para Charlie foi direto: se você não quer ler o livro, então alugue o filme. Eles nunca saberão. Provavelmente ele está certo, mas Charlie vê nisso algo de desonesto, e de todo modo isso o impediria de quei­xar-se sobre a fraude que é a literatura; assim em lugar de Daisy Buchanan estamos assistindo a Holly Golightly mais uma vez.

Resolvo reagrupar algumas das palavras de Charlie até que a sentença no alto da geladeira mostre fracassar ou não fracassar: eis a questão. Charlie levanta a cabeça e lança-me um olhar desaprovador. Sentado no chão ele é quase tão alto quanto eu no divã. Quando estamos perto um do outro ele parece um Otelo que tomou esteróides, um negro de 100 quilos que raspa no umbral da porta com seus 2 metros. Por contraste eu tenho 1,70 metro, de sapatos. Charlie gosta de nos chamar de Gigante Vermelho e Pigmeu Branco, porque um gigante vermelho é uma estrela extraordinariamente grande e brilhante, enquanto um pigmeu branco é pequeno, compacto e embotado. Tenho de lembrá-lo que Napoleão tinha somente 1,57 metro, mesmo se Paul estiver certo ao dizer que, se convertermos a medida de pés ingleses para pés franceses, o imperador seria, na verdade, mais alto.

Paul é o único que não está no quarto agora. Ele desapare­ceu logo cedo e não foi visto desde então. As coisas entre nós esti­veram meio complicadas no mês que passou, e com toda a pressão acadêmica nos últimos tempos, Paul optou por estudar durante a maior parte do tempo em Ivy, o clube-restaurante do qual ele e Gil são membros. Ele está trabalhando em sua tese de último ano, que todo estudante de Princeton que não colou grau deve apre­sentar para se formar. Charlie, Gil e eu teríamos de fazer o mesmo, salvo que a data-limite do nosso departamento já havia passado. Charlie identificou uma nova interação de proteína em certos neu­rônios que sinalizam caminhos; Gil conseguiu algo no ramo tribu­tário. Eu terminei o meu trabalho no último minuto entre reque­rimentos e entrevistas, e estou certo de que as bolsas de estudo da Fundação Frankenstein continuarão sempre as mesmas.

A tese de colação de grau é uma instituição que quase todos desprezam. Ex-alunos falam sobre suas teses saudosamente, como se não pudessem lembrar de nada mais divertido do que escrever trabalhos de pesquisa de cem páginas enquanto assistem a aulas e escolhem seu futuro profissional. Na verdade, uma tese de colação de grau é uma coisa miserável, um verdadeiro sufoco para escrever. É uma introdução para a vida adulta, disse um dia um professor de sociologia para mim e Charlie, daquele jeito chato que professores têm de fazer preleção depois que a aula expositiva ter­minou: é sobre assumir algo tão grande que não se consegue esqui­var. Chama-se responsabilidade, ele disse. Experimente para ver se lhe serve. Não importa se a única coisa que ele estava experimentando, para ver lhe servia, era uma bela estudante que estava orientando chamada Kim Silverman. Tudo era sobre responsabilidade. Tenho que concordar com o que Charlie disse na época. Se Kim Silverman é o tipo de coisa da qual os adultos não podem se esquivar, então eu topo. Caso contrário, arriscarei permanecer criança para sempre.

Paul foi o último a terminar sua tese, e não há dúvida de que a sua será a melhor do grupo. De fato, provavelmente a melhor de toda a nossa classe de formandos no departamento de história ou qualquer outro. A magia da inteligência de Paul reside em que ele é mais paciente do que qualquer outra pessoa que conheci e simplesmente vence os problemas. Contar cem milhões de estrelas, disse-me ele uma vez, à velocidade de uma por segundo, parece um trabalho que ninguém é capaz de completar durante uma vida. Na verdade, levaria só três anos. A chave é concentração, uma disposi­ção para não se distrair. E esse é o talento de Paul: uma intuição de quanto exatamente uma pessoa pode fazer lentamente.

É talvez por isso que todos têm tantas expectativas sobre a sua tese - eles sabem quantas estrelas Paul poderia contar em três anos, embora esteja trabalhando em sua tese já há quase quatro. Enquanto o estudante médio pensa em um tema, para sua tese, no outono do ano de graduação e trabalha nele na primavera seguinte, Paul vem lutando com seu tema desde o tempo de calouro. Faltando somente poucos meses para nosso primeiro semestre de outono, ele decidiu se centrar em um raro texto da Renascença intitulado Hypnerotomachia Poliphili, um nome labiríntico que consigo pronunciar apenas porque meu pai gastou muito tempo de sua carreira, como historiador da Renascença, estudando-o. Três anos e meio mais tarde, e só vinte e quatro horas antes de seu último prazo, Paul tem suficiente material para deixar babando até mesmo o programa de graduação mais crítico.

O problema é que, segundo ele, eu deveria estar também desfrutando das honras. Trabalhamos juntos no livro durante alguns meses no inverno, e progredimos bem como equipe. Só então compreendi algo que minha mãe costumava dizer: que os homens em minha família têm uma tendência para apaixonar-­se por certos livros quase tão fortemente quanto se apaixonam por uma mulher. O Hypnerotomachia pode não ter muito encanto visível, mas ele tem a astúcia da mulher feia, a lenta e crescente atração pelo mistério interior que vicia. Quando me peguei resva­lando no mesmo caminho de meu pai, consegui me desvencilhar e admitir derrota antes que pudesse arruinar a minha relação com uma namorada que merecia algo melhor. Desde então as coisas entre mim e Paul não foram mais as mesmas. Um estudante for­mado, Bill Stein, o tem ajudado em sua pesquisa desde que eu pedi dispensa. Agora que o último prazo para sua tese se aproxima, Paul tornou-se estranhamente reservado. Não raro ele é muito mais acessível para falar de seu trabalho, mas desde a semana pas­sada, está fugindo não só de mim mas de Charlie e também de Gil, recusando-se a comentar qualquer coisa com alguém sobre sua pesquisa.

"Então, por qual caminho você está optando, Tom?", per­gunta Gil.

Charlie dá uma olhadela por cima da geladeira. "Sim”, diz ele, "todos estamos na expectativa".

Gil e eu suspiramos. Expectativa foi uma das palavras que Charlie não acertou no seu exame de meio de semestre. Ele a atri­buiu a Moby Dick em vez de a Adventures of Roderick Random de Tobias Smollett sob pretexto de que soava mais como uma espé­cie de isca de pescaria do que como uma palavra para Suspense. Agora ele não quer se desvencilhar dela.

"Ele vai se conformar", diz Gil.

"Diga o nome de um médico que saiba o que é um gancho para esticar tecidos", desafia Charlie.

Antes que qualquer um de nós possa responder, um som sussurrante vem do quarto que eu divido com Paul. Repentinamente, parado na porta diante de nós, vestindo somente uma cueca folgada e camiseta, lá está o próprio Paul.

"Só um?”, pergunta, esfregando os olhos. "Tobias Smollett. Ele era um cirurgião”.

Charlie olha de novo para os ímãs. "Imagine!"

Gil ri pra valer, mas não diz nada.

"Pensamos que você tinha ido para Ivy”, comenta Charlie, quando o silêncio se torna perceptível.

Paul sacode a cabeça, retomando ao quarto para pegar seu notebook. Seu cabelo cor de palha está alisado de um lado, e há marcas de travesseiro em seu rosto. "Não há privacidade sufi­ciente", ele diz. "Eu estava trabalhando de novo no meu beliche. Caí no sono."

Ele mal tira um cochilo faz já duas noites, talvez mais. O orientador de Paul, doutor Vincent Taft, pressionou-o para apre­sentar mais e mais documentação a cada semana - e, ao contrário de muitos orientadores, que ficam felizes em deixar os estudantes de último ano pendurados pela corda de suas próprias expectati­vas, Taft deu uma mão a Paul desde o início.

"Mas, e então, Tom?" pergunta Gil, preenchendo o silêncio. "Qual é a sua decisão?".

Dou uma olhada na mesa. Ele está falando das cartas diante de mim, às quais eu dirijo um rápido olhar entre uma sentença e outra que leio em meu livro. A primeira carta é da Universidade de Chicago, oferecendo-me admissão para um programa de doutorado em inglês. Os livros estão no meu sangue, da mesma maneira que a medicina está no de Charlie, e um grau de doutorado da Universidade de Chicago me conviria muito bem. Tive de lutar pela carta de aceitação um pouco mais do que eu queria, em parte porque minhas notas em Princeton foram medíocres, mas sobretudo porque não sei exata­mente o que quero fazer da vida e um bom programa de graduação pode pressentir indecisão como um cão é capaz de farejar medo.

"Pegue o dinheiro", diz Gil, sem tirar os olhos de Audrey Hepbum.

Gil é filho de um banqueiro de Manhattan. Princeton nunca foi seu local de destino, só um assento perto da janela com vista privilegiada, uma parada no caminho para Wall Street. Ele é uma caricatura de si mesmo sob este aspecto, e consegue sorrir sempre que o fazemos passar momentos difíceis por causa disso. Ele continuará a sorrir durante toda a sua trajetória para o banco, sabemos disso; mesmo Charlie, que tem certeza de fazer uma pequena fortuna como médico, não chegará aos pés do que Gil conseguirá em termos de salário.

"Não dê bola pra ele", diz Paul do outro lado do quarto. "Siga seu coração."

Levanto os olhos, surpreso por ele estar ciente de outra coisa além de sua tese.

"Siga o dinheiro", diz Gil, levantando para pegar uma gar­rafa de água na geladeira.

"O que eles ofereceram?", pergunta Charlie, ignorando os ímãs por um segundo.

"Quarenta e um", chuta Gil, e algumas palavras elisabeta­nas caem da geladeira quando ele a fecha. "Bonificação de cinco. Mais opções."

O semestre de primavera é a época de busca de empregos, e 1999 é um mercado comprador. Quarenta e um mil dólares por ano representam algo impressionante como o dobro do que eu esperava ganhar com o meu modesto diploma de inglês, mas, com­parado com algumas das transações que tenho visto companheiros de classe fazer, qualquer um deles consideraria esse valor irrisório.

Peguei a carta de Daedalus, uma firma de internet em Austin que afirma ter desenvolvido o software mais avançado do mundo para tornar mais eficiente a burocracia interna dos ban­cos. Não sei quase nada sobre a empresa, muito menos sobre o que é essa burocracia interna, mas um companheiro sugeriu que eu fizesse uma entrevista com eles, porque circulara um rumor sobre os altos salários iniciais nessa firma desconhecida que fora aberta no Texas, e assim eu fui, com a cara e a coragem. A Daedalus, seguindo a tendência geral, não se importava que eu não soubesse nada sobre eles ou seu negócio. Se eu pudesse apenas resolver alguns problemas difíceis na entrevista, e parecesse razoavelmente articulado e amigável no processo, o emprego seria meu. Assim, bem no estilo de César, eu vim, vi e venci.

"Conclusão”, eu digo, lendo na carta. "Quarenta e três mil por ano. Bonificação garantida de três mil. Opção de mil e quinhentos".

"É uma mosca no mel", acrescenta Paul do outro lado do quarto. Ele é o único que age como se fosse mais sujo falar sobre dinheiro do que tocá-lo. "Vaidade das Vaidades.”

Charlie está outra vez mudando os ímãs. Em um barítono fulgurante ele imita o pregador de sua igreja, um negro baixinho da Geórgia que concluiu sua graduação no Seminário Teológico de Princeton. "Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade.”

"Seja honesto com você, Tom”, diz Paul com um toque de impaciência na voz, embora, como sempre, sem olhar para mim. "Qualquer empresa que pense que você merece um salá­rio desses não vai estar disponível por muito tempo. Você nem sabe o que eles fazem!”. Ele retoma para seu notebook digitando agora ininterruptamente. Como muitos profetas, seu destino é ser ignorado.

Gil continua atento na televisão, mas Charlie ergue o olhar, sentindo a rispidez na voz de Paul. Esfrega a mão ao longo da barba curta em seu queixo, depois fala: "Muito bem, parem todos. Penso que é hora de tomar um pouco de vapor”.

Pela primeira vez Gil desvia os olhos do filme. Ele deve ter ouvido o que ouvi: a débil ênfase na palavra vapor.

“Agora?”, pergunto.

Gil olha o relógio, atraído pela idéia. "Temos talvez cerca de meia hora livre”, diz, e para mostrar seu apoio desliga a televi­são, deixando Audrey Hepbum desaparecer da tela.

Charlie arremessa, com um gesto travesso, seu Fitzgerald fechado. A lombada antes dobrada pula aberta em protesto, mas o livro cai em cima do sofá.

"Estou trabalhando”, objeta Paul. "Preciso terminar isso aqui”.

Olha de relance para mim de maneira estranha.

“O que?”, indago.

Mas Paul permanece silencioso.

"Qual é o problema, garotas?", Charlie pergunta impa­cientemente.

"Ainda está nevando lá fora”, lembro a todos.

A primeira tempestade de neve do ano chegou hoje à cidade uivando, bem quando a primavera parecia empoleirada no pico de cada árvore. Agora há avisos de acúmulos de neve de cerca de 30 centímetros, talvez mais. A semana de festividades de Páscoa no campus, que este ano inclui uma preleção de Sexta- Feira da Paixão pelo orientador da tese de Paul, Vincent Taft, foi reorganizada. Este tempo não é apropriado para o que Charlie tem em mente.

"Você não deve se encontrar com Curry antes das oito e trinta, certo?" Gil se dirige a Paul tentando convencê-lo. "Teremos terminado até lá. Você pode trabalhar mais hoje à noite."

Richard Curry, um velho excêntrico amigo de meu pai e de Taft, tem sido o mentor de Paul desde que este entrou na uni­versidade. Ele colocou Paul em contato com os mais proeminentes historiadores de arte do mundo, e financiou muito de sua pes­quisa sobre o Hypnerotomachia.

Paul avalia o peso do notebook em sua mão. Só de olhar para ele, o cansaço volta aos seus olhos.

Charlie sente que ele está se tornando disponível. "Teremos terminado por volta de sete e quarenta e cinco”, diz.

"Quais são as equipes?”, pergunta Gil.

Charlie pensa um pouco, depois decide, "Tom está comigo."

 

O jogo que estamos prestes a disputar é uma nova inter­pretação de um velho passatempo favorito: uma partida rápida de paintball (jogo em que os participantes simulam um combate militar usando revólveres de ar para atirar, um no outro, cápsulas de tinta) em um labirinto de túneis de vapor debaixo do campus. Lá embaixo, os ratos são mais comuns do que lâmpadas incan­descentes, a temperatura atinge quase quarenta graus em pleno inverno, e o terreno é tão perigoso que mesmo os seguranças do campus estão proibidos de perseguir alguém por ali. Charlie e Gil surgiram com a idéia durante um período de exames do segundo ano, inspirados por um velho mapa que ambos encontraram no clube onde almoçam, e por um jogo com que o pai de Gil e seus companheiros costumavam se divertir nos túneis quando estavam no último ano.

Essa nova versão manteve sua popularidade até ter, como participantes, cerca de doze membros de Ivy e muitos dos amigos de Charlie, da turma de para-médicos. Surpreendeu a todos quando Paul tornou-se um dos melhores navegadores do jogo; somente nós quatro compreendíamos isso, sabendo quão freqüentem ente Paul usava os túneis em seus percursos solitários de ida e volta a Ivy. Mas gradualmente diminuiu o interesse de Paul pelo jogo. Ficava frustrado porque ninguém mais percebia as possibilidades estratégicas dele, o bailado tático. Ele não estava lá quando um disparo errado perfurou um cano de vapor durante uma grande partida no solstício de inverno; a explosão arrancou a caixa de segurança de plástico deixando descobertos cabos de força por cerca de 3 metros em cada direção, e teria torrado dois calouros meio bêbados, se Charlie não os tivesse arrastado para fora. Os bedéis e o conselho de segurança do cam­pus de Princeton aprovaram, e em poucos dias o reitor elaborou uma lista com inúmeros castigos. Em razão disso, Charlie substi­tuiu as pistolas de cápsulas de tinta por algo mais rápido mas menos arriscado: um velho conjunto de revólveres com ponta de laser que ele conseguiu em um bazar de objetos usados. Além disso, como a formatura se aproximava, a administração impôs uma diretriz de tolerância zero para as infrações disciplinares. Ser surpreendido hoje à noite nos túneis poderia significar suspensão ou coisa pior.

Charlie entra no quarto que divide com Gil e volta tra­zendo uma grande mochila, e depois outra, que entrega para mim. Finalmente coloca seu boné.

"Credo, Charlie”, se admira Gil. "Só estamos saindo por meia hora. Eu levei menos coisas nas férias de primavera”.

"Sempre alerta!", diz Charlie, amarrando a maior das duas mochilas em seus ombros. "É o meu lema."

"Você e os escoteiros”, resmungo.

"Escoteiros águias", retruca Charlie, porque ele sabe que eu nunca pratiquei com novatos no passado.

"Vocês, damas, estão prontas?" interrompe Gil, parado na porta.

Paul respira profundamente, saindo do torpor, e aprova com a cabeça. Apanha seu pager e prende-o ao cinto.

Na frente do Dod Hall, nosso dormitório, Charlie e eu nos separamos de Gil e Paul. íamos entrar nos túneis em diferentes locais e ficar sem nos ver até que uma dupla encontrasse a outra no subterrâneo.

"Eu não sabia que existiam escoteiros negros", digo para Charlie quando ficamos sozinhos e nos dirigimos para o campus.

A neve estava mais profunda e fria do que eu esperava. Vesti minha jaqueta de esqui e coloquei as luvas.

"Tudo bem", concorda ele. "Antes de conhecê-lo, eu não sabia que existiam xoxotas brancas”.

A travessia pelo campus foi feita sob denso nevoeiro. Durante dias, com a formatura tão próxima e minha própria tese agora uma questão já superada, o mundo parecia como uma arremetida de movimentos desnecessários - calouros apressando-se para os semi­nários da noite, formandos transpirando sobre os computadores dos laboratórios para digitar seus capítulos finais, e flocos de neve por toda parte no céu, dançando em círculos antes de alcançar o solo.

Enquanto andamos pelo campus, minha perna começa a doer. Há anos a cicatriz em minha coxa prediz o mau tempo seis horas depois de ele chegar. A cicatriz é uma lembrança de um velho acidente. Logo depois do meu décimo sexto aniversário sofri um acidente de carro que me deixou no hospital por quase todo o meu verão de calouro. Os detalhes me parecem confusos agora e a única memória nítida que tenho daquela noite é a do meu fêmur esquerdo exposto, sua extremidade branca a me olhar fixa­mente através da pele rasgada. Mal tive tempo de me deter nessa visão antes de entrar em choque. Os dois ossos do meu antebraço esquerdo também estavam fraturados, e três costelas do mesmo lado. De acordo com os para-médicos, o sangramento de minha artéria parou bem a tempo de eles me salvarem. Quando eles me tiraram dos destroços, no entanto, meu pai, que dirigia o carro no momento da colisão, estava morto.

O acidente me trouxe mudanças, é claro: depois de três cirurgias, dois meses de reabilitação e o começo de dores fantasmas, com suas seis horas de atraso para indicar o tempo, ainda tenho pinos de metal em meus ossos, uma cicatriz ao longo da perna e um estranho vazio em minha vida que parece tornar-se maior com o passar do tempo. No começo havia roupas diferentes - vários tamanhos de calças e shorts até eu ganhar peso suficiente, depois estilos variados para cobrir o enxerto na minha coxa. Mais tarde percebi que minha família também tinha mudado: primeiramente minha mãe se retraiu, e em seguida também mudaram minhas duas irmãs mais velhas, Sarah e Kristen, que passavam então cada vez menos tempo em casa. Por último, foram os meus amigos que mudaram - ou, acho, finalmente fui eu que os troquei. Não tenho certeza se eu queria amigos que me compreendessem melhor, ou me vissem de maneira diferente, ou o que exatamente, mas os anti­gos amigos, como minhas roupas velhas, não me convinham mais.

O que as pessoas gostam de dizer para as vítimas é que o tempo é um grande curandeiro. O grande curandeiro é o que elas dizem, como se o tempo fosse um médico. Mas depois de pensar seis anos sobre o assunto, tenho uma impressão diferente. Tempo é o cara no parque de diversões que pinta camisetas com aerógrafo. Ele borrifa a cor em névoa fina até que fiquem somente partículas flutuando no ar, esperando para se fixar em algum lugar. E o resultado disso tudo, o desenho na camiseta no fim do dia, é que tem muito pouco para ser visto. Suspeito que aquele que comprou aquela camiseta, o único grande freguês do perpétuo tema do parque, seja quem for, acorda de manhã e se pergunta o que foi que viu nela. Somos a pintura nessa analogia, como tentei explicar para Charlie quando mencionei isso um dia. O tempo é o que nos dissipa.

Talvez a melhor maneira de colocar tudo isso seja como Paulo fez, pouco tempo depois que nos conhecemos. Mesmo então ele era um renascentista fanático de dezoito anos e já con­vencido de que a civilização tem estado em queda pronunciada desde a morte de Michelangelo. Ele leu todos os livros de meu pai sobre aquele período, e apresentou-se a mim poucos dias depois de eu ter ingressado na universidade, ao reconhecer o meu nome do meio no livro de calouros. Tenho um segundo nome peculiar, e durante parte de minha infância o carreguei como uma melancia ao redor do pescoço. Meu pai tentou me dar o nome de seu compositor favorito, um italiano do século XVII levemente obscuro sem o qual, dizia ele, Haydn não pode­ria ter existido, e portanto Mozart também não. Minha mãe, por outro lado, recusou-se a ter a certidão de nascimento impressa do jeito que ele queria, insistindo até o momento da minha che­gada que Arcângelo Corelli Sullivan era uma coisa horrível de se impingir a uma criança, como se fosse o nome de um monstro de três cabeças. Ela queria que eu me chamasse Thomas, como seu pai, e, sem levar em conta a falta de imaginação, a escolha era compensada pela discrição.

Assim, quando as dores de minha mãe começaram, ela se agüentou em uma cama de parto isolada, cujo acesso era proibido, mantendo-me fora deste mundo até que meu pai concordasse com a solução. Em um momento mais de desespero do que de inspi­ração, tornei-me Thomas Corelli Sullivan, e para o melhor ou o pior, o nome chocava. Minha mãe esperava que eu fosse capaz de esconder o meu segundo nome entre os outros dois, como se faz às vezes varrendo a sujeira para debaixo do tapete. Mas meu pai, que acreditava existir muito significado em um nome, sempre dizia que Corelli sem Arcângelo era como um Stradivarius sem cordas. Segundo ele, só havia concordado com minha mãe porque os interesses envolvidos eram muito maiores do que ela revelou. Sua safadeza, ele costumava dizer com um sorriso, se encenava na cama de casal, não na cama de parto. Ele era o tipo de homem que pensava que um pacto feito com paixão era a única boa desculpa para uma má decisão.

Contei tudo isso para Paul alguns meses depois que nos conhecemos.

"Você está certo", disse, quando lhe falei sobre minha pequena metáfora do aerógrafo. "Tempo não é da Vinci." Ele pen­sou por um instante, então sorriu na sua maneira gentil. "Nem mesmo um Rembrandt. Somente um Jackson Pollock barato."

Ele pareceu me compreender desde o começo. Aliás, todos os três: Paul, Charlie e Gil.

 

                                       Capítulo 2

Agora Charlie e eu estamos parados ao lado de uma boca-­de-lobo na entrada do ginásio de esportes Dillon, próximo à parte sul do campus. O adesivo de Filadélfia 76 em seu boné está pen­durado por um fio, flutuando ao vento. Acima de nós, sob o olhar alaranjado de uma lâmpada de vapor de sódio, os flocos de neve se movem rapidamente em uma vasta nuvem. Estamos esperando. Charlie começa a se impacientar porque as duas novatas do outro lado da rua estão nos fazendo perder tempo.

"O que vamos fazer?", pergunto a Charlie.

Uma luz pulsa em seu relógio e ele olha para baixo. "São sete e sete. Os bedéis trocam de turno às sete e trinta. Temos vinte e três minutos”.

"Você acha que vinte minutos são suficientes para pegá-los?"

"Claro", diz ele. "Se pudermos calcular onde vão estar”. Charlie olha de novo para o outro lado da rua. "Vamos, meninas”.

Uma delas está andando com passo miúdo e afetado em meio às rajadas de vento, em um vestido de primavera, como se a neve a tivesse pego de surpresa enquanto se vestia. A outra, uma garota peruana que conheci por causa de sua participação em uma competição interna, veste um casaco com capuz laranja, marca registrada do time de natação e mergulho.

"Esqueci de telefonar para Katie", acabo de me lembrar nesse momento.

Charlie se volta.

"É o aniversário dela". Fiquei de avisar quando eu fosse aparecer.

Katie Marchand, uma estudante do segundo ano, vagarosa­mente tornou-se o tipo de namorada que eu não me considerava digno de merecer. Sua crescente importância em minha vida é um fato que Charlie aceita ao se lembrar que mulheres inteligentes freqüentemente têm um gosto horrível para homens.

"Você comprou algo para ela?”, ele quer saber.

"Sim." Faço um retângulo com minhas mãos. "Uma foto da galeria em..."

Ele faz que sim com a cabeça. "Então é bom que você não tenha telefonado". Segue-se um som de grunhido, uma espécie de gar­galhada. "De todo jeito, ela deve ter outras coisas em mente agora."

"O que você quer dizer?"

Charlie estica a mão, pegando um floco de neve. "Primeira neve do ano. Nu Olímpico."

"Caramba! Eu me esqueci completamente."

O Nu Olímpico é uma das tradições mais populares de Princeton. Todos os anos, na noite da primeira nevasca, as calouras se juntam no pátio do Holder Hall, que é cercado por dormitórios e onde, nessa ocasião, apinham-se espectadores provenientes de todo o campus. Lá elas se mostram em bando, centenas e centenas delas, e com a despreocupação heróica dos lemingues tiram suas roupas e correm em círculo de maneira selvagem. É um ritual que deve ter surgido nos primeiros anos da faculdade, quando Princeton era uma instituição masculina e a nudez em massa, uma expres­são da prerrogativa masculina, assim como urinar em pé ou par­tir para a guerra. Mas foi quando as mulheres ingressaram ali que essa aglomeração animada tomou-se o evento mais visto do ano acadêmico. Mesmo a mídia aparecia para registrá-lo, com vans de satélite e câmeras de vídeo que vinham de Filadélfia e Nova York. O mero pensar sobre o Nu Olímpico quase sempre acende um fogo sob os frios meses de faculdade, mas este ano, com a vez de Katie chegando, estou mais interessado em manter queimando os fogos domésticos.

"Está pronto?", pergunta Charlie quando finalmente as duas calouras acabam de passar.

Esfrego os pés na tampa da boca-de-lobo, para remover a neve.

Charlie ajoelha-se e engancha os dedos indicadores nas fendas da tampa. A neve amortece levemente o ruído da tampa de aço sobre o asfalto quando ele a puxa para trás. Olho mais uma vez à nossa volta.

"Você primeiro", diz ele colocando uma mão em minhas costas.

"E as mochilas?"

"Esqueça. Vá."

Ajoelho e pressiono as palmas das mãos nas bordas do buraco aberto. Um calor denso emana lá debaixo. Quando tento descer pela passagem, o bojo de minha jaqueta de esqui engancha na beira da entrada.

"Droga, Tom, até um morto se move mais rápido! Procure em volta com o pé até encontrar um degrau de ferro. Há uma escada na parede."

Sentindo então meu sapato prender nesse primeiro degrau, começo a descer.

"Muito bem", diz Charlie. "Pegue isto."

Ele empurra minha mochila através da abertura e a sua logo em seguida.

Uma rede de canos estende-se no escuro em ambas as dire­ções. A visibilidade é pouca e o ar está cheio de silvos e estrépitos metálicos. Esse é o sistema circulatório de Princeton, os corredo­res que distribuem o vapor de uma caldeira central para os dor­mitórios e os edifícios acadêmicos mais ao norte. Charlie diz que o vapor dentro dos canos está pressurizado a cento e quinze qui­los por polegada quadrada. Os cilindros menores contêm cabos de alta tensão ou de gás natural. Ainda assim, nunca vi nenhum aviso de perigo nos túneis, nem um só triângulo fosforescente ou mesmo alguma advertência dos procedimentos de segurança uni­versitária. A faculdade gostaria de esquecer que esse lugar existe. A única mensagem nessa entrada, escrita há muito tempo em tinta vermelha, é: LASCIATE OGNI SPERANZA, VOI CH'ENTRATE (Inscrição que Dante encontra nas portas do inferno, na Divina Comédia). Paul, que sempre deu a impressão de não temer nada nesse lugar, sorriu na primeira vez que a viu. Abandonai toda esperança, disse ele, traduzindo Dante para nós, ó vós que entrais aqui.

Charlie desce, colocando a tampa da boca-de-lobo no devido lugar. Quando pisa no degrau mais baixo, ele tira seu boné. O brilho da luz dança nas gotas de suor de sua fronte. O cabelo afro, que ele está deixando crescer há quatro meses, fica raspando no teto. Não é um afro, ele esclareceu, é só um meio-afro.

Ele inala algumas vezes o ar viciado, depois tira um tubo de Vick Vaporube de sua mochila. "Passe um pouco sob o nariz. Você não vai sentir cheiro de nada."

Digo que não com um aceno. Esse é um truque que ele aprendeu, como interno durante o verão, com o examinador médico local, uma maneira de evitar o cheiro dos cadáveres durante as autópsias. Depois do que aconteceu com meu pai, nunca mais considerei a profissão médica com uma opinião muito favorável; os doutores são parasitas para mim, opiniões duvidosas com rostos que se alternam. Mas ver Charlie em um hospital é uma coisa completamente diferente. Ele é o homem forte do pelo­tão de ambulâncias locais, o sujeito que sai rápido para atender casos espinhosos, e aquele que consegue a vigésima quinta hora em qualquer dia para dar a pessoas que nunca viu uma chance de açoitar o que ele chama de Ladrão.

Charlie retira um par de pistolas de laser listradas de cinza, depois o conjunto de tiras de velcro com saliências de plás­tico negro no meio. Enquanto ele fica remexendo na mochila, começo a abrir o zíper de minha jaqueta. O colarinho da camisa já estava grudado ao meu pescoço.

"Cuidado", avisa ele, estendendo uma mão antes que eu pudesse atirar meu casaco sobre o cano maior. "Lembra o que aconteceu com a velha jaqueta de Gi1?"

Eu tinha esquecido completamente. Um cano de vapor derreteu a parte externa do náilon e pôs fogo no enchimento.

"Vamos deixar os casacos aqui e pegá-los na saída”, sugere Charlie, arrancando a jaqueta de minha mão e enrolando-a junto com a dele. Depois as enfia em uma maleta de lona e suspende-a por uma das alças em um prego do teto.

"Assim os ratos não a alcançam”, esclarece ele, tirando mais alguns objetos da mochila.

Depois de me dar uma lanterna e um rádio que transmite e recebe sinais, Charlie ainda puxa para fora duas grandes garrafas de água, gote­jantes por causa do calor, e coloca-as no bolso de rede de sua mochila.

"Lembre”, diz ele, "se nos separarmos, não vá rio abaixo. Se vir água correndo, siga contra a corrente. Você não vai querer ter­minar em um cano de esgoto ou em uma cachoeira, se o curso de água aumentar. Esse não é como o rio Ohio, que passa onde você mora. O nível da água aqui sobe rápido”.

Esse é o meu castigo por ter me perdido da última vez em que eu e ele fomos companheiros de equipe. Abano minha cami­seta para ventilar. "Charlie, o rio Ohio não vai para lugar algum perto de Columbus."

Sem me dar atenção, ele me passa um dos receptores e espera que eu o prenda ao redor do peito.

"Então, qual é o plano?", pergunto. "Que caminho vamos fazer?"

Ele sorri. "Aí é onde você entra."

"Por quê?"

Charlie dá tapinhas na minha cabeça. "Porque você é o guia."

Ele diz isso como se os guias fossem uma espécie de raça mágica de anões navegadores, tal qual os hobbits.

"O que você quer que eu faça?"

"Paul conhece os túneis melhor do que nós. Vamos preci­sar de uma estratégia”.

Procuro pensar sobre isso. "Qual é a entrada mais próxima para os túneis do lado deles?"

"Existe uma atrás do Clio."

O Cliosophic é um antigo edifício da sociedade de debate.Tento ver cada posição claramente, mas o calor está embotando meus pensamentos. "Qual delas levaria direto até onde estamos parados? Um deslocamento direto em direção ao sul. Correto?"

Charlie procura raciocinar, brigando com a geografia. "Correto”, concorda.

"E Paul nunca opta pelo deslocamento direto”.

"Nunca."

Imagino Paul, sempre dois passos à frente.

         "Então é isso o que ele vai fazer. Um deslocamento direto.Vai percorrer um caminho a partir do Clio e nos atingir antes que estejamos prontos."

Charlie avalia a situação. "Sim", ele diz por fim, concen­trando-se na distância. Os cantos de seus lábios começam a esbo­çar um sorriso.

"Então nós vamos circular ao redor dele", sugiro. "Pegá-lo por trás."

Aparece um brilho nos olhos de Charlie. Ele me bate nas costas com tanta força que quase caio sob o peso de minha mochila. "Vamos”.

Começamos a andar pelo corredor, quando um assobio chega através do bocal do rádio. Puxo o receptor que estava preso no meu cinto e aperto o botão.

"Gil?"

Silêncio.

"Gil?.. não consigo ouvi-lo..”. Mas não há resposta.

"É um defeito", sugere Charlie. "Eles estão muito longe para enviar um sinal."

Repito tudo outra vez no microfone e aguardo. "Você disse que esses aparelhos têm um alcance de três quilômetros", digo dirigindo-me a Charlie. "Não estamos afastados deles nem a metade disso."

"Um alcance de três quilômetros através do ar", pondera Charlie. ''Através de concreto e lama o alcance é muito menor."

Mas os rádios são para emergências. Tenho certeza de ter ouvido a voz de Gil.

Continuamos em silêncio por cerca de cem metros, evi­tando poças de lama e montinhos de excremento. De repente, Charlie me agarra pela gola da camiseta e me puxa para trás.

"Que diabo...?", digo de mau humor, quase perdendo o equilíbrio.

Ele passa o feixe de luz de sua lanterna por uma prancha de madeira que serve de ponte sobre uma vala profunda no túnel.

       Nós a tínhamos atravessado em jogos anteriores.

"Qual é o problema?"

Ele coloca cuidadosamente um pé na prancha.

"Está em boas condições", diz Charlie, visivelmente ali­viado. ''A água não causou estragos."

Enxuguei minha testa, molhada de suor.

"O.k.”, diz ele. "Vamos."

Charlie atravessa a prancha com duas grandes passadas. E isso é tudo o que também consigo fazer para manter o equilíbrio e chegar ileso do outro lado.

"Tome." Charlie me passa uma das garrafas de água. "Beba." Tomo um gole rápido, depois continuo seguindo Charlie para o interior do túnel. Estamos em um paraíso de agentes fune­rários, a mesma vista como a de um caixão em todas as direções, paredes escuras afunilando levemente em direção a um obscuro ponto de convergência na escuridão.

"Será que toda essa parte do túnel se parece com uma cata­cumba?': pergunto. O rádio de mão parece estar zumbindo sinais de estática entre meus pensamentos.

“Como o que?”

"Uma catacumba. Uma tumba”.

"Na verdade, não. As partes mais novas são um imenso cano ondulado", diz ele, movimentando sua mão em um padrão ondulatório, como uma onda, para sugerir a superfície. "É como andar sobre costelas. Faz você pensar que foi engolido por uma baleia. Mais ou menos isso..."

Ele estala os dedos buscando uma comparação. Algo bíblico. Algo melvilliano2, do curso de inglês.

"Como Pinocchio."

Charlie olha para mim, procurando conseguir uma gargalhada.

"Não devem estar muito longe", comenta, quando percebe que a piada não provocou o efeito esperado. Desistindo, dá uma pancadinha no receptor preso ao seu peito. "Não se preocupe. Vamos virar a esquina, disparar algumas vezes, e ir para casa."

Bem nessa hora o rádio passa a produzir novos estalidos.

Dessa vez não há dúvida: é a voz de Gil.

Final de partida, Charlie.

Paro na hora. "O que isso quer dizer?"

Charlie franze o cenho. Espera a repetição da mensagem, mas tudo permanece em silêncio.

"Não caio nessa”, diz ele.

"Não cai no quê?"

"Final de partida. Significa que o jogo acabou."

"Merda, Charlie. Por quê?"

“Porque algo está errado”.

"Errado?"

Mas ele levanta um dedo silenciando-me. Posso ouvir vozes ao longe.

"São eles", afirmo.

Charlie levanta seu rifle. "Venha."

As passadas de Charlie ficam cada vez mais rápidas e lon­gas, e não tenho escolha a não ser segui-lo. Só agora, tentando acompanhá-lo, aprecio o quão habilmente ele corre no escuro. Tudo o que posso fazer é mantê-lo sob a mira de minha lanterna.

Quando nos aproximamos de um cruzamento, ele me detém. "Não vire a esquina. Apague sua lanterna. Eles vão nos ver chegar.

Aceno que sim para ele. O rádio recomeça alto.

Final de partida, Charlie. Estamos no corredor norte-sul sob Edwards Hall.

A voz de Gil está muito mais clara agora, muito mais próxima.

Começo a andar em direção ao cruzamento, mas Charlie me puxa para trás. Dois clarões de luz aparecem num movimento súbito na direção oposta. Com os olhos semi-cerrados posso dis­cernir silhuetas. Elas se viram, ao ouvir nossa aproximação. Um dos feixes de luz incide em nossa linha de visão.

"Porcaria!”, diz Charlie em tom agudo, protegendo os olhos. Ele aponta seu rifle cegamente na direção da luz e começa a pressionar o gatilho. Posso ouvir o sinal mecânico de um receptor.

"Pare!", sibila Gil.

"Qual é o problema?” grita Charlie quando nos aproximamos.

Paul está atrás de Gil, imóvel. Ambos estão parados debaixo de um fio de luz que chega através das fendas de uma boca-de-­lobo acima deles.

Gil coloca um dedo sobre seus lábios, depois aponta para a boca-de-lobo. Percebo duas figuras paradas acima de nós defronte do Edwards Hall.

"Bill está tentando falar comigo", diz Paul, segurando seu pager perto da luz. Ele está visivelmente agitado. "Preciso sair daqui."

Charlie olha perplexo para Paul, depois faz gestos para ele e Gil se afastarem da luz.

"Ele não quer se mover", fala Gil num sussurro.

Paul está diretamente debaixo da tampa de metal, olhando fixamente para seu pager enquanto neve derretida goteja através dos buracos da tampa. Lá fora pessoas estão se movimentando. "Você vai fazer com que nos peguem", cochicho.

"Ele diz que não consegue receber sinal em nenhum outro lugar", explica Gil.

"Bill nunca fez isso antes", cochicha de volta Paul.

Puxo seu braço, mas Paul se liberta rapidamente. Quando ele acende o lado prateado do pager e o mostra para nós, posso ver três números: 91l.

"O que isso quer dizer?': murmura Charlie.

"Bill deve ter descoberto alguma coisa”, diz Paul, perdendo a paciência. "Preciso encontrá-lo”.

O movimento de pés na frente do Edwards derruba mais neve através das fendas da boca-de-lobo. Charlie está ficando tenso.

"Olhe", diz ele, "é uma falta de sorte. Você não pode ter recepção aqui..."

Mas ele é interrompido pelo pager, que começa a bipar outra vez. Agora a mensagem é um número de telefone: 116-­7718.

"O que é isso?”, pergunta Gil.

Paul vira a tela de cabeça para baixo, formando um texto com os dígitos: BILL-91l.

"Estou saindo daqui agora”, diz Paul.

Charlie meneia a cabeça, em negativa. "Não dá para utili­zar essa boca-de-lobo. Tem muita gente aí em cima”.

"Ele quer usar a saída de Ivy", esclarece Gil. "Eu lhe disse que era muito distante. Podemos voltar para Clio. Ainda temos alguns minutos antes da mudança dos bedéis."

Ao longe, pequenos conjuntos de contas vermelhas vão se juntando. As ratazanas estão se posicionando sobre seus traseiros, em estado de alerta.

"O que há de tão importante?", pergunto a Paul.

"Estamos vislumbrando uma grande descoberta...", ele começa a dizer.

Mas Charlie interrompe. "Clio é nossa melhor opção", con­corda ele com Gil. Depois de olhar seu relógio, começa a andar para o norte. "São sete e vinte e quatro. Precisamos sair daqui."

 

                                           Capítulo 3

A forma do corredor continua como um caixão à medida que nos dirigimos ao norte, mas as paredes, que antes eram de concreto, são agora de pedra. Posso ouvir a voz de meu pai expli­cando a etimologia da palavra sarcófago.

Ela vem do grego e significa "comendo-carne”.. Porque os cai­xões gregos eram feitos de pedra calcária, que consumia o corpo com­pletamente - tudo menos os dentes - num prazo de quarenta dias.

Gil está à nossa frente cerca de seis metros. Como Charles, ele se move rapidamente, acostumado com o ambiente. A silhueta de Paul cintila dentro e fora da luz desigual. Seu cabelo está ema­ranhado na testa, empapado de suor, e lembro que ele mal dormiu nos últimos dias.

Cerca de trinta metros adiante, encontramos Gil à nossa espera, seus olhos se movendo de um lado para o outro enquanto nos guia para a saída. Ele está procurando um plano de segurança. Estamos demorando muito.

Fecho os olhos, tentando visualizar o mapa do campus.

Só mais cinqüenta metros", Charlie diz para Paul. "No máximo cem”.

Quando chegamos debaixo da boca-de-lobo perto de Clio, Gil se volta para nós.

"Vou empurrar a tampa e dar uma olhada. Fiquem prontos para correr de volta pelo caminho que viemos.

"Verifica as horas mais uma vez. "São sete e vinte e nove."

Ele agarra o degrau de ferro mais baixo, ergue-se e empurra o antebraço contra a tampa da boca-de-lobo. Antes de levantá-la, ele vira para trás e diz: "Lembrem que os bedéis não podem des­cer até aqui. Tudo que podem fazer é nos pedir para sair. Fiquem onde estão e não digam o nome de ninguém. Entenderam?”

Nós três acenamos que sim.

Gil respira fundo, empurra o punho para cima, e conse­gue girar a tampa contra seu cotovelo. Ela cede e abre cerca de quinze centímetros. Ele faz uma rápida inspeção - então uma voz vem de cima.

     “Não se mexam! Fiquem onde estão!”

Posso ouvir Gil silvar: "Merda!”.

Agarrando-o pela camisa, Charlie puxa Gil para trás, segu­rando-o quando ele perde o apoio.

"Vão! Por ali! Desliguem a lanterna!"

Tropeço no escuro, empurrando Paul na minha frente. Tento lembrar o caminho.

Fique à direita. Os canos estão à esquerda, fique à direita. Meu ombro resvala na parede e acabo rasgando a camisa.

Paul está cambaleante, exausto por causa do calor. Damos vinte passos tropeçando um no outro antes que Charlie nos detenha para que Gil possa nos alcançar. No túnel, ao longe, uma lan­terna é introduzida através de uma boca-de-lobo aberta. O braço de quem a segura surge logo depois, e em seguida aparece uma cabeça, que vasculha ao redor.

"Saiam daí!"

O feixe de luz se move nervosamente em ambas as dire­ções, enviando um triângulo de luz exploratória através do túnel.

Agora ouve-se uma segunda voz, de mulher.

"Este é o último aviso!"

Olho para Gil. No escuro posso ver o contorno de sua cabeça quando ele a sacode, avisando-nos para não falar.

Sinto a respiração úmida de Paul em meu pescoço. Ele se apóia contra a parede, parecendo que vai desmaiar. A voz da mulher chega de novo, deliberadamente alta enquanto fala a seu companheiro.

"Chame-os novamente. Coloquem seguranças em todas as bocas-de-lobo."

Por um momento o feixe de luz desaparece da abertura. A reação de Charlie é imediata e ele passa a nos empurrar através da escuridão. Corremos até alcançar um trecho em forma de T, seguimos por ele, viramos à direita em uma esquina e então entra­mos em território desconhecido.

"Eles não podem nos ver aqui”, sussurra Gil, sem fôlego, cli­cando o botão de sua lanterna. Um outro longo túnel se estende a perder de vista, em direção ao que me parece ser a parte noroeste do campus.

"E agora?”, pergunta Charlie.

"De volta ao Dod", sugere Gil.

Paul enxuga a testa. "Não podemos. Eles bloquearam a saída”.

"Eles vão vigiar as grades principais”, diz Charlie.

Começo a medir com passos o túnel que vai no sentido oeste. "Esse é o caminho mais rápido para o noroeste?"

“Por quê?”

"Porque acho que podemos sair perto de Rocky-Mathey.

Fica longe daqui?"

Charlie dá o resto de nossa água para Paul, que a bebe sofregamente. Algumas centenas de metros, ele responde.Talvez mais.

"Por esse túnel?"

Gil considera a pergunta durante um segundo, depois concorda.

"Não sei de nada melhor”, aceita Charlie.

Os três começam a me seguir no escuro.

Durante um tempo continuamos em silêncio pelo mesmo corredor. Charlie troca de lanterna comigo quando meu feixe de luz fica muito fraco, mas mantém seu foco em Paul, que parece cada vez mais desorientado. Quando Paul finalmente se detém para apoiar-se em uma parede, Charlie o ampara e o ajuda a con­tinuar, lembrando-o para não tocar nos canos. A cada passo, as últi­mas gotas de água produzem um som metálico nas garrafas vazias. Começo a me perguntar se perdi meus pontos de referência.

"Rapazes!", exclama Charlie atrás de nós, "Paul está desmaiando."

"Só preciso sentar”, diz Paul com a voz débil.

Repentinamente Gil direciona a lanterna para frente, ilu­minando um conjunto de barras de metais. "Que droga!"

"Portão de segurança", esclarece Charlie.

"O que faremos?"

Gil se agacha para olhar Paul nos olhos. "Ei!”, diz ele, sacu­dindo Paul pelos ombros. "Existe uma saída daqui?"

Paul aponta para o cano de vapor ao lado do portão de segurança, depois faz um movimento oscilante de descida com seu braço. "Vá por debaixo."

Examinando o local com minha lanterna percebo o isola­mento gasto no lado inferior do cano, somente a alguns centíme­tros do solo. Alguém já tentou isso antes.

"De jeito nenhum", resmunga Charlie. "Não há espaço suficiente”.

"Há um trinco de abrir do outro lado", diz Gil, apontando para um dispositivo na parede. "Só um de nós tem de ir. Depois poderemos abrir o portão." Ele se agacha outra vez próximo a Paul. "Você já fez isso antes?"

Paul acena que sim.

"Ele está desidratado", diz Charlie em voz baixa. ''Alguém tem um pouco de água?"

Gil estende uma garrafa meio vazia para Paul, que bebe de forma voraz.

"Obrigado. Estou melhor."

''Acho que devemos voltar", sugere Charlie.

"Não", retruco. "Eu vou."

"Pegue meu casaco", oferece Gil. "Para isolar do calor." Coloco uma mão sobre o cano de vapor. Mesmo através do acolchoado do casaco ele está pulsando com o calor.

"Você não vai conseguir”, opina Charlie. "Não com o casaco." "Posso me virar sem ele", digo.

Mas quando me abaixo até o chão, me dou conta de quão

apertada é a abertura. O isolamento está escaldante. Deitado, de bruços, eu me espremo entre o chão e o cano.

"Solte o ar dos pulmões e se arraste", sugere Gil.

Consigo rastejar poucos centímetros à frente, espremendo­-me o máximo que posso; mas quando alcanço a parte mais estreita, minhas mãos não encontram onde segurar, há somente poças de lama. Só então me dou conta de que estou preso debaixo do cano.

"Merda", grita Gil, ajoelhando-se.

"Tom”, diz Charlie, e posso sentir duas mãos em meus pés. Me empurre.

Forço os pés contra as palmas de suas mãos. Meu peito se esmaga fortemente contra o concreto, e uma coxa encosta no cano onde o isolamento sumiu. Espasmos reflexos surgem quando sinto a dor lancinante provocada pelo calor.

"Você está bem?", pergunta Charlie, quando rolo para o outro lado.

"Gire o trinco no sentido dos ponteiros do relógio”, diz Gil.

Feito isso, o portão de segurança destranca. Gil o empurra e começa a andar; Charlie o segue amparando Paul.

"Você tem certeza do que estamos fazendo?", pergunta Charlie, enquanto avançamos no escuro.

Eu aceno que sim. Alguns passos adiante damos de cara com um R grosseiro pintado na parede. Estamos nos aproximando de Rockfeller, uma das faculdades residenciais.

Quando calouro, eu saía com uma garota, Lana McKnight, que morava lá. Passamos boa parte do inverno sentados diante de um fogo preguiçoso, no seu dormitório, antes de fecharem as serpentinas dos aquecedores de água. As coisas que discutíamos, então, parecem muito distantes agora: Mary Shelley e as histórias macabras da faculdade e os Buckeyes. Sua mãe tinha lecionado no estado de Ohio, como meu pai. Os seios de Lana tinham a forma de berinjelas e suas orelhas ficavam da cor de pétalas de rosa quando permanecíamos muito tempo em frente ao fogo.

Logo posso ouvir vozes vindo lá de fora. Muitas delas.

"O que está acontecendo?”, indaga Gil, aproximando-se.

A tampa da boca-de-lobo está bem em cima de seu ombro. "

“Aí está, falo, a tosse tolhendo-me as palavras. !Nossa saída.

Ele olha para mim, tentando entender.

No silêncio posso ouvir as vozes mais distintamente ­desordenadas; de estudantes, não de bedéis. Inúmeras movendo­-se ao redor de nossas cabeças.

Charlie começa a sorrir. "O Nu Olímpico!», exclama ele.

Gil compreende. "Estamos bem debaixo delas.»

"Há uma boca-de-lobo no meio do pátio», lembro a eles, apoiando-me na parede de pedra e tentando recuperar o fôlego. "Tudo que temos de fazer é abrir a tampa, nos juntar ao bando e desaparecer.»

Mas, atrás de mim, a voz de Paul soa áspera. "Tudo que temos de fazer é tirar a roupa, nos juntar ao bando e desaparecer”.

Por um instante faz-se silêncio. Charlie é quem primeiro começa a desabotoar a camisa.

"Me tirem daqui”, grita ele, gargalhando enquanto se livra da camisa.

Arranco meus jeans; Gil e Paul fazem o mesmo. Começamos a enfiar nossas roupas em uma das mochilas até ela ficar estufada.

"Você consegue carregar tudo isso?”, pergunta Charlie, ofe­recendo-se para levar as duas mochilas outra vez.

Hesito. "Vocês sabem que os bedéis vão estar lá fora, não é?”

Mas agora Gil não tem mais dúvidas. Ele começa a subir os degraus da escada.

"Trezentas calouras peladas, Tom. Se você não conseguir ficar à vontade com esse tipo de diversão, então, sem dúvida, você merece ser pego”.

Ao dizer isso, ele força para abrir a tampa, deixando uma rajada de ar gelado entrar no túnel. Isso rejuvenesce Paul como se fosse um bálsamo.

"O.k., rapazes", Gil fala alto, olhando para trás mais uma vez. "Vamos oferecer esse quitute ao mercado."

A primeira coisa de que me lembro ao sair do túnel é de quão luminoso tudo ficou de repente. Lâmpadas suspensas ilumi­navam o pátio. Lâmpadas de segurança jogavam luz em forma de leque sobre o chão branco. Os clarões das máquinas fotográficas pulsavam no céu como vaga-lumes.

Em seguida veio a investida do frio: o uivo do vento, mais alto ainda do que o barulho dos pés batendo e das vozes gritando. Flocos derretiam sobre minha pele como gotas de orvalho.

Finalmente eu a vi. Uma parede de braços e pernas, girando ao nosso redor como uma serpente sem fim. Rostos entravam e saíam do nosso campo de visão - colegas de classe, jogadores de futebol, garotas que sempre atraíam o meu olhar quando atravessavam o campus -, mas todos eles se desvane­ciam como partes de um cenário de um filme em uma monta­gem. Aqui e ali vejo estranhas vestimentas - cartolas e capas de super-heróis, ilustrações de todo tipo pintadas nos peitos -, mas tudo desaparece dentro do enorme animal que serpenteia, o dra­gão de Chinatown, movendo-se com apitos e gritos e bombinhas luminosas explosivas.

“Venham!”, grita Gil.

Paul e eu seguimos, hipnotizados. Eu havia esquecido como ficava esse lugar na noite da primeira nevasca.

A longa fila, que dança conga, nos engole e por um segundo me perco até de mim mesmo, firmemente pressionado contra corpos em todas as direções, tentando manter meu equilí­brio com uma mochila nas costas e neve debaixo dos pés. Alguém me empurra por trás e sinto o zíper da mochila se abrir. Antes que eu possa fechá-lo, nossas roupas caem no chão. Em um instante todas elas desaparecem, pisoteadas na lama. Olho ao redor, com a esperança de que Charlie, atrás de mim, estivesse atento e tenha conseguido agarrar alguma delas, mas ele não está à vista.

"Peitos e bundas, bundas e peitos", um jovem está cantando, em algum lugar, num jargão meio chulo, como se estivesse ven­dendo flores no cenário de My Fair Lady. Deparo-me ainda com um estudante gordo do colegial, do meu seminário de literatura, andando às escondidas no meio das calouras, balançando a bar­riga. Ele não veste nada exceto uma prancha tipo sanduíche onde está escrito TESTE SEM ÔNUS, na frente, e INFORMAÇOES NO INTERIOR, atrás. Finalmente localizo Charlie. Ele conseguiu che­gar ao outro lado do círculo, onde Will Clay, um outro membro da turma de para-médicos, está usando um enorme sombreiro ladeado de latas de cerveja. Charlie pega uma do alto do chapéu, os dois ti começam a perseguir um ao outro pelo pátio e os perco de vista.

As gargalhadas esmorecem e aumentam em seguida. Na agitação sinto uma mão agarrar meu antebraço.

"Vamos embora."

Gil me empurra para fora do círculo.

"E agora?”, pergunta Paul.

Gil olha ao redor, reconhecendo bedéis em todas as saídas. "Por aqui”, digo a eles.

Estamos próximos das entradas dos dormitórios e nos esquivamos para o interior do Holder Hall. Uma estudante do segundo ano, bêbada, abre a porta do seu dormitório e fica parada, confusa, como se fossemos os únicos que aguardasse para saúda-­la. Ela nos avalia, e então a garrafa de Corona que traz na mão é erguida em forma de brinde.

"Viva!" Ela arrota, depois fecha a porta justo a tempo de eu ver uma de suas colegas de quarto se aquecendo próximo à lareira, vestida só com uma toalha.

“Venham”, eu digo.

Eles me seguem por um lance de escadas, depois dou um pontapé em uma das portas.

"O que você está ...", começa Gil.

Mas antes que ele possa terminar, a porta se abre e sou cumprimentado por um par de imensos olhos verdes. Os lábios de Katie se abrem levemente quando me vê. Ela veste uma cami­seta justa da marinha e um par de jeans surrados; seu cabelo ruivo está preso atrás num pequeno rabo-de-cavalo. Antes de nos deixar entrar, Katie cai numa gargalhada.

"Eu sabia que você ia estar aqui", eu digo, esfregando as mãos. Quando entro e a estreito, o abraço é caloroso e acolhedor.

"Um peladão para o meu aniversário", ela ri, me olhando de alto a baixo. Seus olhos brilham intensamente. "Então, foi por isso que você não telefonou!"

Quando Katie volta para seu quarto, vejo Paul olhando fixo para a câmera em sua mão, uma Pentax com lentes telefoto­gráficas quase do tamanho de seu antebraço.

"Pra que isso?", pergunta Gil quando Katie se volta para colocar a câmera em uma prateleira.

"Estou tirando fotos para o Prince", responde ela. "Talvez eles publiquem uma desta vez."

Deve ser por isso que ela não está correndo. Katie vem ten­tando, durante o ano todo, conseguir uma foto para a primeira página do Daily Princetonian, mas ela tem se defrontado com o sistema de antiguidade e sua vez ainda não chegou. Agora ela está virando a mesa. Só novatas e calouras têm quartos no Holder, e o dela oferece uma visão do pátio inteiro.

"Onde está Charlie?", pergunta ela.

Gil encolhe os ombros, olhando pela janela. "Lá fora, brin­cando de pega-pega com Will Clay."

Katie se volta para mim, ainda sorrindo. "Quanto tempo você levou para planejar isso?"

Eu hesito.

"Dias", improvisa Gil, enquanto eu não consigo pensar em uma maneira de explicar que o espetáculo todo não é para ela. “Talvez uma semana."

"Impressionante”, comenta Katie. “Até hoje de manhã o meteo­rologista ainda não tinha previsão de que fosse começar a nevar”.

“Horas”, corrige Gil. “Talvez um dia”.

Os olhos de Katie não desgrudam de mim. "Então devo supor que vocês estão precisando de roupas".


"Para três”.

Katie retrocede até seu armário e diz: "Lá fora deve estar muito gelado. Parece que o frio estava começando a confundir vocês':

Paul a olha como se ela provavelmente não pudesse adivi­nhar o que ele está pensando. "Você tem um telefone que eu possa usar?" pergunta, recuperando sua presença de espírito.

Katie aponta para um sem fio, sobre a cadeira. Atravesso o quarto e a abraço, empurrando-a até o closet. Ela tenta se libertar, mas quando a estreito mais forte, caímos juntos sobre uma fileira de sapatos cujos saltos finos espetam os lugares mais impróprios. Leva um segundo para nos desenredarmos, e levanto esperando queixas de Paul e de Gil. Mas o interesse deles está em outro lugar. Paul está no canto cochichando ao telefone, enquanto Gil pers­cruta lá fora através da janela. De início, penso que Gil está procu­rando por Charlie. Depois vejo um bedel em seu campo de visão, falando no rádio enquanto se aproxima.

"Olhe!, Katie", se apressa Gil, "não precisamos de roupas que combinem. Qualquer coisa serve."

"Relaxe", retruca Katie, voltando com montes de roupas penduradas em cabides. Ela tira três pares de calças de moletom, duas camisetas, e uma camisa esporte azul que eu não via desde março. "É o melhor que posso fazer em tão pouco tempo."

Atiramo-nos sobre as roupas. Repentinamente, do corre­dor da entrada, em baixo, um assobio corta o ar. A porta da frente bate com um som surdo.

Paul desliga o telefone. "Tenho de ir até a biblioteca." "Vocês, rapazes, saiam pelos fundos", diz Katie apressada­mente. "Vou dar um jeito nisso."

Pego a mão dela enquanto Gil lhe agradece pelas roupas. "Vejo você depois?", ela me pergunta, evocando algo em

seus olhos. É um olhar acompanhado de um sorriso, porque ainda não pode acreditar que me apaixonei por ela.

Gil dá um suspiro profundo e me puxa à força pelo braço para fora do quarto. Enquanto nos retiramos rapidamente do edi­fício, posso ouvir a voz de Katie chamando o bedel.

"Oficial, oficial! Preciso de sua ajuda..."

Gil olha para trás, na direção do quarto dela. Quando vê o bedel chegar até a tela de arame chumbada da janela de Katie, sua expressão relaxa. Em pouco tempo, à medida que enfrentamos o vento penetrante, Holder desaparece atrás de uma cortina de neve. O campus está praticamente vazio e descemos em direção ao Dod, e qualquer resíduo do calor do túnel parece desaparecer, levado pelas pequenas gotas de neve que deslizam pelo meu rosto. Paul anda ligeiramente à nossa frente, mantendo um passo mais determinado. Durante o tempo todo, ele não diz uma palavra.

 

                                       Capítulo 4

Conheci Paul por intermédio de um livro. De qualquer modo, provavelmente teríamos nos encontrado na Biblioteca Firestone, ou em um grupo de estudos, ou em quaisquer das aulas de literatura que ambos freqüentávamos como calouros, então, talvez não haja nada de especial sobre o livro. Mas quando se considera que o livro em questão tem quinhentos anos e que é o mesmo que meu pai estava estudando antes de morrer, a razão parece mais significativa.

O Hypnerotomachia Poliphili, que em latim quer dizer "A Luta de Poliphilo por Amor em um Sonho", foi publi­cado em 1499 por um veneziano chamado Aldus Manutius. O Hypnerotomachia é uma enciclopédia disfarçada de novela, um ensaio sobre tudo, desde a arquitetura até a zoologia, escrito em um estil9 que mesmo uma tartaruga acharia lento. É o livro mais extenso do mundo sobre um homem que tem um sonho, e faz Marcel Proust - que escreveu o livro mais extenso do mundo sobre um homem comendo um pedaço de bolo - se parecer com Ernest Hemingway. Eu arriscaria supor que os leitores renascen­tistas sentem da mesma maneira. O Hypnerotomachia era um ver­dadeiro dinossauro em seu tempo. Embora Aldus fosse o maior impressor de sua época, o Hypnerotomachia é um emaranhado de intrigas e personagens conectados somente por seu protagonista, um homem comum alegórico chamado Poliphilo. O ponto prin­cipal do enredo é simples: Poliphilo tem um sonho estranho em que ele procura a mulher que ama. Mas a maneira pela qual o sonho é contado é tão complicada que mesmo muitos estudiosos renascentistas - as mesmas pessoas que lêem Plotino enquanto esperam o ônibus - consideram o Hypnerotomachia dolorosa e fastidiosamente difícil.

Muitos, quer dizer, com exceção de meu pai. Ele marchou através dos estudos históricos renascentistas ao ritmo de seu pró­prio tambor, e quando a maioria de seus colegas virou as costas ao Hypnerotomachia, ele o enquadrou em sua mira. Quem lhe incutiu o interesse pelo assunto foi um professor chamado dou­tor McBee, que ensinava história européia em Princeton. McBee, que morreu um ano antes de eu nascer, era um homem que lembrava um camundongo, com orelhas de elefante e pequenos dentes, e cujo sucesso no mundo se devia a uma personalidade efervescente e a uma percepção astuta do que faz a história valer a pena. Embora não houvesse muito nele que chamasse a aten­ção, o pequeno homem tinha alta estatura no mundo acadêmico. A cada ano sua aula de encerramento, cujo tema era sempre a morte de Michelangelo, enchia o maior auditório do campus com espectadores - incluindo os rapazes que se formavam na facul­dade - enxugando os olhos e procurando seus lenços. Acima de tudo, McBee era um defensor do livro que todos os demais em seu campo ignoravam. Acreditava que havia qualquer coisa peculiar no Hypnerotomachia, possivelmente algo notável, e ele convencia seus estudantes a procurar o verdadeiro significado do livro antigo.

Um deles procurou ainda mais avidamente do que McBee podia esperar. Meu pai era filho de um livreiro de Ohio, e che­gou ao campus no dia seguinte ao seu décimo oitavo aniversário, quase cinqüenta anos depois de F. Scott Fitzgerald ter feito virar moda o fato de um menino do Meio-Oeste freqüentar Princeton.

Muita coisa mudou desde então. A universidade começava a se libertar do seu passado de clube de campo e, no espírito do tempo, estava se desviando do amor pela tradição. Os calouros do ano de meu pai foram os últimos a ser obrigados a assistir ao serviço reli­gioso na capela aos domingos. Um ano depois que ele se formou, as mulheres chegaram pela primeira vez ao campus como estu­dantes. A WPRB, a estação de rádio da faculdade, anunciou seu ingresso ao som da Aleluia de Handel. Meu pai gostava de dizer que o espírito da sua época de juventude foi mais bem apreendido pelo ensaio de Emmanuel Kant "O que é Iluminação?". Em sua concepção, Kant era o Bob Dylan da década de 1970.

Esse era o jeito de meu pai: apagar, na história, a fronteira além da qual tudo parece sem interesse e incompreensível. Em lugar de grandes homens e uma cronologia de eventos, a histó­ria para ele era feita de idéias e livros. Ele aceitou o conselho de McBee para ficar mais dois anos em Princeton, e, depois de se for­mar, seguiu todo o caminho de volta ao oeste para um Ph.D sobre a Renascença italiana na Universidade de Chicago. Seguiu-se um ano de trabalho como membro da universidade em Nova York, até que o estado de Ohio ofereceu-lhe um cargo de permanente no ensino de história quatrocentista, e ele vibrou com a chance de voltar para casa. Minha mãe, cujos gostos se orientam para Shelley e Blake, administrou a livraria em Columbus depois que meu avô se aposentou, e entre meu pai e meu avô eu cresci numa congre­gação de bibliófilos da mesma maneira que algumas crianças são educadas em religião.

Com a idade de quatro anos eu viajava para assistir confe­rências sobre livros com minha mãe. Com seis, sabia diferenciar melhor entre pergaminho e velino do que entre as diferentes figu­rinhas. Antes do meu décimo aniversário já tinha manuseado uma meia dúzia de cópias da maior obra-prima impressa do mundo, a Bíblia de Gutenberg. Mas não consigo me lembrar de uma época de minha vida em que eu não soubesse qual livro era a Bíblia de nossa própria pouca fé: o Hypnerotomachia.

"Esse é o último grande mistério da Renascença, Thomas”, meu pai me fazia a preleção, da mesma forma que McBee tinha feito com ele. "Mas ninguém chegou nem perto de resolvê-lo."

Ele estava certo: ninguém chegou nem perto. De fato, foi somente décadas depois de sua edição que alguém se deu conta de que ele precisava ser resolvido. Isso ocorreu quando um estudioso fez uma estranha descoberta. Ao se enfileirar em seqüência a pri­meira letra de cada capítulo do Hypnerotomachia, forma-se um acróstico em latim: Poliam Frater Franciscus Columna Peramavit, que significa "Irmão Francesco Colonna amava Polia tremenda­mente". Sendo Polia o nome da mulher que Poliphilo procura, outros estudiosos finalmente começaram a se perguntar quem era na verdade o autor do Hypnerotomachia. O próprio livro não informa, e mesmo Aldus, o impressor, nunca soube. Mas, a partir desse ponto, tornou-se prática corrente supor que o autor era um monge italiano chamado Francesco Colonna. Da mesma forma, em um pequeno grupo de pesquisadores profissionais, principal­mente naquele inspirado por McBee, também se passou a aceitar que o acróstico era apenas uma dica para os segredos contidos no livro. Esse grupo de pesquisadores deveria descobrir o resto.

A pretensão que meu pai tinha de renome, em tudo isso, foi em virtude de um documento que ele encontrou durante o verão em que fiz quinze anos. Naquele ano - o ano anterior ao acidente de carro - ele me levou em uma viagem de pesquisa a um mosteiro no sul da Alemanha e depois às livrarias do Vaticano. Dividíamos uma quitinete com duas camas de rodinhas e um sis­tema estereofônico pré-histórico, e a cada manhã, durante cinco semanas, com a precisão de um castigo medieval, ele escolhia uma nova obra-prima de Corelli da coleção que havia trazido, e então me acordava com o som de violinos e espinetas exatamente às sete e meia, lembrando-me que a pesquisa nos esperava.

Eu levantava e o encontrava fazendo a barba em frente à pia, ou passando suas camisas, ou contando as notas em sua car­teira, sempre cantarolando com o disco. De estatura baixa, procu­rava zelar por cada pequeno aspecto de sua aparência, arrancando fios brancos de seu espesso cabelo castanho, do jeito como as flo­ristas arrancam as pétalas de rosas que não estão firmes. Essa era uma vitalidade interior que tentava preservar, uma vivacidade que ele pensava estar diminuindo por causa dos pés de galinha nos cantos dos olhos e das rugas em sua testa, e sempre que minha imaginação ficava entorpecida diante das intermináveis prateleiras de livros onde passávamos nossos dias, ele rapida­mente procurava me animar. Na hora do almoço saíamos para tomar sorvete e comer doces; todas as noites íamos até a cidade dar uma volta. Uma noite, em Roma, levou-me para ver as fon­tes da cidade, dizendo-me que jogasse uma moeda em cada uma delas para dar sorte.

"Uma para Sarah e Kristen", ele disse na Barcaccia. "Para ajudar a reparar seus corações partidos."

Minhas duas irmãs tinham se separado dos namorados justo antes de viajarmos. Meu pai, que nunca dava muita bola para os rapazes, considerava isso mais como uma benção disfarçada.

"Uma para sua mãe", ele sugeriu na Fontana del Tritone. Por me suportar.

Quando o pedido de fundos que meu pai fez para a uni­versidade foi negado, minha mãe manteve a livraria aberta aos domingos para ajudar a pagar nossa viagem.

"E uma para nós", disse ele na Quattro Fiumi. "Para encon­trarmos o que estamos procurando."

O que realmente estávamos procurando, eu nunca soube - pelo menos até nos depararmos com a coisa. Tudo o que eu sabia é que meu pai acreditava que o conhecimento sobre o Hypnerotomachia tinha chegado a um beco sem saída, sobretudo porque todos estavam tomando as partes pelo todo. Batendo com D punho sobre a mesa de jantar, insistia que os estudiosos que não concordavam com ele tinham suas cabeças enfiadas na areia. O próprio livro era demasiado difícil para se entender apenas a partir dele mesmo, declarava; uma aproximação mais acertada seria pesquisar documentos que indicassem quem o autor era realmente e por que havia escrito o livro.

Em realidade, meu pai indispunha muitas pessoas com sua visão estreita da verdade. Se não fosse pela descoberta que ele fez naquele verão, minha família logo se veria dependendo somente da livraria para sua subsistência. Em vez disso, o destino sorriu para meu pai, apenas um ano antes de tirar-lhe a vida.

Em uma seção do terceiro andar de uma das bibliotecas do Vaticano, em uma ala oculta com prateleiras que até mesmo os monges que tiram o pó nunca haviam espanado, enquanto estáva­mos parados, de costas um para o outro, procurando pelo indício que ele perseguia havia anos, meu pai encontrou uma carta inse­rida entre as páginas de um grosso livro de história de linhagens. Datada de dois anos antes de o Hypnerotomachia ser publicado, a carta havia sido enviada a um confessor de uma igreja local, e contava a história de um jovem de uma família de alta linhagem. Seu nome era Francesco Colonna.

É difícil reproduzir a excitação de meu pai quando viu esse nome. Os óculos de armação metálica que ele usava, que escorre­gavam vagarosamente de seu nariz à medida que lia, ampliavam seus olhos o suficiente para revelar sua curiosidade, a primeira e a última coisa que as pessoas sempre lembram a respeito dele. Naquele momento, quando ele considerou a extensão do que havia encontrado, toda a luz da sala pareceu convergir para os seus olhos. A carta que segurava fora escrita por uma mão desajeitada, em um toscano grosseiro, como se fosse de um homem pouco acostumado com aquela linguagem, algumas vezes dirigida a nin­guém em particular, outras vezes, a Deus. O autor se desculpava por não escrever em latim ou grego, que eram desconhecidos para ele. Depois, por fim, exprimia pesar pelo que havia feito.

Perdoe-me, Santo Padre, porque matei dois homens. Foi minha própria mão que desferiu o golpe, mas a intenção nunca foi minha. Foi o Mestre Francesco Colonna quem me ordenou. Julgue-nos com clemência.

A carta alegava que os assassinatos faziam parte de um plano intricado, plano este que nenhum homem tão simples quanto o próprio autor poderia ter idealizado. As duas vítimas eram homens que Colonna considerava suspeitos de traição, e sob sua ordem foram enviados em uma missão pouco comum. Foi dada a eles uma carta para ser entregue em uma igreja fora dos muros de Roma, onde um terceiro homem os esperaria para­ recebê-la. Sob pena de morte os dois homens estavam proibidos de ler a carta, perdê-la, ou mesmo de tocá-la com mãos sem luvas. Assim começou a história do simples maçom romano que decapi­tou os mensageiros em San Lorenzo.

A descoberta que eu e meu pai fizemos naquele verão che­gou a ser conhecida, nos círculos acadêmicos, como O Documento Beladona. Meu pai estava confiante de que esse documento iria renovar sua reputação na comunidade de estudiosos, e depois de seis meses ele publicou um pequeno livro sob aquele título suge­rindo a conexão entre a carta e o Hypnerotomachia. O livro era dedicado a mim. Nele, meu pai argumentava que o Francesco Colonna que havia escrito o Hypnerotomachia não era o monge veneziano, como muitos professores universitários acreditavam, mas sim o aristocrata romano mencionado em nossa carta. Para fundamentar essa afirmação, ele adicionou um apêndice incluindo todos os registros conhecidos da vida de ambos: do monge vene­ziano, que ele chamava de Simulador, e do romano Colonna, para que os leitores pudessem comparar. Apenas o apêndice foi sufi­ciente para que Paul e eu acreditássemos nele.

Os detalhes eram claros. O mosteiro em Veneza, onde o falso Francesco vivia, era um lugar impensável para um escritor filósofo; na maior parte do tempo) meu pai contava, o lugar era ~ma combinação profana de música barulhenta) muita bebida e sensacionais travessuras sexuais. Quando o papa Clemente VII tentou, à força, reprimir os irmãos) eles replicaram que prefeririam se tornar luteranos a aceitar disciplina. Mesmo em tal ambiente, a biografia do Simulador se lê como uma ficha crimina1. Em 1477 ele foi exilado do mosteiro por violações indescritíveis. Voltou quatro anos mais tarde só para cometer um crime isolado pelo qual quase foi exonerado da ordem. Em 1516, declarou que não iria se defender de estupro e foi banido de vez. Sem se intimidar) chegou ainda a voltar, e de novo foi exilado, desta feita por um escândalo envolvendo um joalheiro.

Misericordiosamente, a morte levou-o em 1527. O veneziano Francesco Colonna - acusado de ladrão, estuprador confesso, dominicano durante toda sua vida - tinha noventa e três anos.

O Francesco romano, por outro lado, parecia ser um modelo de todas as sábias virtudes. De acordo com meu pai, ele nascera em uma família nobre e poderosa, que o criou em meio à melhor sociedade da Europa e fez com que fosse educado pelas mentes intelectuais mais elevadas da Renascença. Próspero Colonna, o tio de Francesco, era não somente um venerado patrono das artes e um cardeal da Igreja, mas também um humanista tão renomado a ponto de poder ter servido de inspiração para o Próspero de Shakespeare, em A Tempestade. Esses eram os tipos de conexões, argumentava meu pai, que tornaram possível a um único homem escrever um livro tão complexo como o Hypnerotomachia - e certamente seriam essas conexões que assegurariam sua publica­ção por uma editora de vanguarda.

O que legitimou completamente o assunto, ao menos para mim, foi o fato de esse Francesco de sangue-azul ter sido membro da Academia Romana, uma fraternidade de homens completamente leais aos ideais pagãos da velha República romana, ideais expressos com muita admiração no Hypnerotomachia. Isso explicaria por que Colonna se identificava no acróstico secreto como "Fra": o título de Irmão, que outros estudiosos tomaram como um sinal de que Colonna fosse monge, era também uma saudação comum na Academia.

O argumento de meu pai, porém, que parecia tão lúcido para mim e Paul, agitou as águas acadêmicas. Meu pai mal viveu o sufi­ciente para enfrentar a tempestade em copo de água que ele incitou no pequeno mundo de estudiosos do Hypnerotomachia, mas ela quase o destruiu. Praticamente todos os colegas de meu pai rejeitaram sua obra; Vincent Taft se deu até mesmo o trabalho de caluniá-lo. Nessa altura, os argumentos em favor do Colonna veneziano tinham se tor­nado tão fortes que, quando meu pai malogrou em chamar a atenção para um ou dois deles em seu breve apêndice, a obra inteira ficou desacreditada. A idéia de ligar dois assassinatos obscuros a um dos livros mais valiosos do mundo, escreveu Taft, "nada mais é do que uma tentativa de autopromoção sensacionalista e patética”.

Meu pai, é claro, ficou arrasado. Para ele era a essência de sua carreira que estavam rejeitando, o fruto da pesquisa que empreendia desde seus tempos com McBee. Ele nunca entendeu a violenta reação contra sua descoberta. O único fã permanente de seu Documento Beladona, até onde sei, era Paul. Leu o livro tantas vezes que mesmo a dedicatória ficou em sua memória. Quando ele entrou em Princeton e encontrou um Tom Corelli Sullivan no livro com a lista dos calouros, reconheceu imediatamente o meu segundo nome e decidiu localizar-me.

Se ele esperava se deparar com uma versão mais jovem de meu pai, deve ter ficado desapontado. O calouro que Paul encon­trou, que andava mancando levemente e parecia embaraçado por causa do seu segundo nome, havia feito o impensável: renunciara ao Hypnerotomachia e se tornara o filho pródigo de uma famí­lia que fez da leitura sua religião. O impacto do acidente ainda se refletia em minha vida, mas a verdade é que, mesmo antes da morte de meu pai, eu já vinha perdendo fé nos livros. Tinha começado a perceber a existência de um preconceito velado entre pessoas versadas em livros, uma convicção secreta que todas elas parecem compartilhar de que a vida como a conhecemos é uma visão imperfeita da realidade, e que somente a arte, como um par de óculos de leitura, pode corrigi-la. Os estudiosos e intelectuais que conheci ao redor de nossa mesa de jantar sempre pareciam manter um ressentimento em relação ao mundo. Não podiam nunca se reconciliar com a idéia de que nossas vidas não seguem a curva dramática que um bom autor dá a um grande personagem literário. Apenas em casos acidentais de pura perfeição o mundo se torna verdadeiramente um palco. E isso, eles pareciam achar, era uma vergonha.

Nunca ninguém disse nada dessa forma, exatamente, mas quando os colegas e amigos de meu pai - todos menos Vincent Taft - vieram me visitar no hospital, parecendo encabulados pelas resenhas que haviam escrito sobre o livro dele, murmu­rando elogios compostos na sala de espera, comecei a ver sua falta de consistência. Percebi no momento em que chegaram perto de minha cama: cada um deles trouxe um punhado de livros.

"Este me ajudou quando meu pai morreu”, disse o chefe do departamento de história, colocando a Montanha dos Sete Patamares, de Thomas Merton, na bandeja de comida ao meu lado.

"Encontrei grande conforto em Auden”, disse a jovem estu­dante graduada que escreveu sua tese sob a orientação de meu pai. Ela deixou uma edição tipo brochura com um canto cortado para remover o preço.

"O que você precisa é de algo que o ponha de pé", cochi­chou um senhor quando os outros saíram. "Não dessas tolices sem energia”.

Eu nem mesmo o reconheci. Deixou uma cópia de O Conde de Monte Cristo, que eu já tinha lido, e só pude me admirar que ele realmente pensasse que a vingança poderia ser a melhor emoção para me encorajar naquele momento.

Nenhuma daquelas pessoas, percebi, podia enfrentar a rea­lidade melhor do que eu. A morte de meu pai foi uma terrível con­tribuição para isso, e ela zombou das leis pelas quais eles viviam: em que cada fato pode ser reinterpretado, cada final pode ser mudado. Dickens reescreveu Grandes Esperanças de maneira que Pip pudesse ser feliz. Ninguém poderia reescrever esse outro final.

Quando encontrei Paul, então, eu era cauteloso. Tinha passado os dois últimos anos do colegial forçando certas mudan­ças em mim mesmo: sempre que sentia dor em minha perna, continuava a andar; sempre que o instinto me dizia para passar em frente a uma porta sem me deter - a porta do ginásio de esportes, ou do carro de um novo amigo, ou da casa de uma garota de quem estava começando a gostar -, eu me obrigava a parar e bater, algumas vezes me permitia entrar. Mas aqui, com Paul, via o que eu podia ter sido.

Ele era baixo e pálido e sob o cabelo descuidado mais pare­cia um menino do que propriamente um homem. Um de seus :aços de sapato estava desatado, e ele carregava um livro na mão como se fosse uma capa de proteção. Na primeira vez em que se apresentou, ele citou o Hypnerotomachia. Senti que já o conhecia melhor do que desejava. Ele me levou para um café perto do cam­pus exatamente quando o sol começava a se pôr, nos primeiros dias de setembro. Meu instinto me dizia para ignorá-lo naquela noite, e evitá-lo sempre depois disso.

O que mudou tudo isso foi algo que ele disse pouco antes que eu me despedisse.

"De alguma forma", declarou, "sinto como se ele também fosse meu pai."

Eu ainda não tinha lhe contado sobre o acidente, mas era exatamente a coisa errada para ser dita.

"Você não sabe nada sobre ele."

"Eu sei, tenho cópias de todo o seu trabalho."

“Ouça-me...”

"Até achei sua exposição..."

"Ele não é um livro, você não pode apenas lê-lo."

Mas era como se ele não pudesse me ouvir.

"A Roma de Rafael, 1974. Ficino e o Renascimento de Platão, 1979. Os Homens de Santa Croce, 1985."

Ele começou a enumerá-los nos dedos.

"'O Hypnerotomachia Poliphili e os Hieróglifos de Horapollo', na revista Renascença Quadrimestral, junho de 1987. 'O Médico de Leonardo', no Diário da História da Medicina, 1989."

Cronologicamente, sem se embaraçar.

"'O fabricante de culotes.' Diário de História Interdisciplinar, 1991."

"Você esqueceu o artigo BARS”, lembrei.

O Boletim da Sociedade Renascentista Americana.

"Isso foi em 1992."

"Foi em 1991."

Ele franziu o cenho. "Mil novecentos e noventa e dois foi o primeiro ano em que aceitaram artigos de não-membros. Era o segundo ano do colegial. Lembra? Naquele outono."

Houve um silêncio. Por um instante ele pareceu aborrecido.

Não que estivesse errado, mas porque eu estava.

"Talvez ele o tenha escrito em 1991': concordou Paul. "Só o publicaram em 1992. É isso que você quer dizer?"

Acenei que sim.

"Então foi em 1991. Você estava certo." Ele mostrou o livro que trazia consigo. "E depois houve este."

A primeira edição de O Documento Beladona.

Ele o sopesou com deferência: "De longe é o seu melhor trabalho. Você estava junto quando ele a encontrou? A carta sobre Colonna?':

"Sim."

"Eu queria ter podido vê-lo. Deve ter sido maravilhoso." Olhei por cima de seus ombros, através de uma janela atrás de Paul. Lá fora as folhas estavam vermelhas. Tinha começado a chover. "Foi”, eu disse.

Paul acenou com a cabeça. "Você tem muita sorte."

Seus dedos viravam as páginas do livro de meu pai, gentilmente.

"Ele morreu há dois anos", contei. "Tivemos um acidente de carro."

"O quê?"

"Ele morreu logo depois de ter escrito isso."

A janela atrás dele estava ficando encoberta nos cantos.

Um homem passou segurando um jornal sobre a cabeça na tenta­tiva de se manter seco.

"Alguém colidiu com vocês?"

"Não. Meu pai perdeu o controle do carro."

Paul passou o dedo sobre a imagem na sobrecapa do livro.

Um emblema simples, um golfinho com uma âncora. O símbolo da Aldine Press em Veneza.

"Eu não sabia..:: murmurou ele.

"Tudo bem:'

O silêncio então foi o mais longo que jamais houve entre nós.

"Meu pai morreu quando eu tinha quatro anos", contou

ele. "Teve um infarto."

"Sinto muito”.

"Obrigado."

"O que faz sua mãe?”, perguntei.

Ele encontrou uma dobra na contracapa e começou a alisá-la com os dedos. "Ela morreu um ano depois."

Tentei lhe dizer algo, mas todas as palavras que eu estava acostumado a ouvir pareciam erradas em minha boca.

Paul tentou sorrir. "Sou como Oliver", continuou ele, formando uma tigela com as mãos. "Por favor, senhor, quero um pouco mais.

Soltei uma gargalhada, sem ter certeza se era o que ela esperava de mim.

"Só queria que você soubesse o que eu tenho para dizer", disse ele. "Sobre seu pai..."

"Compreendo”.

"Eu só disse por quê..."

Guarda-chuvas passavam flutuando pela parte inferior da janela como certos tipos de caranguejos na maré. O burbu­rinho no café estava mais alto então. Paul começou a falar na tentativa de remendar as coisas. Contou-me que, depois que seus pais morreram, ele foi criado em uma escola paroquial que alojava órfãos e fugitivos; que, após passar quase todo o colégio em companhia de livros, entrou na faculdade determinado a fazer algo melhor de sua vida; e que estava procurando ter amigos com quem conversar. Finalmente calou-se, com um olhar emba­raçado no rosto, sentindo que havia encerrado a conversa.

"Então, em qual dormitório você está?", perguntei-lhe, sabendo como se sentia.

"No Holder. Como você”.

Ele tirou uma cópia de um livro com fotografias de calou­ros e mostrou-me a página bem manuseada.

"Há quanto tempo você está procurando por mim?”,   indaguei. ''Acabei de encontrar o seu nome”.

Olhei pela janela. Um único guarda-chuva vermelho pas­sou flutuando. Ele parou na janela do café e pareceu hesitar antes de prosseguir.

Voltei-me para Paul. "Você toma mais uma xícara?" "Claro. Obrigado."

E assim tudo começou.

Que coisa estranha, construir um castelo no ar. Travamos amizade a partir do nada, porque nada era a essência do que tínha­mos em comum. Depois daquela noite pareceu cada vez mais natu­ral conversar com Paul. Em pouco tempo até comecei a sentir como ele a respeito de meu pai: que talvez também o repartíamos.

"Sabe o que ele costumava dizer?", perguntei-lhe uma noite

em seu dormitório quando falávamos sobre o acidente.

"O quê?"

"O forte tira do fraco, mas o astuto tira do forte."

Paul sorriu.

"Havia um velho treinador de basquete que costumava dizer isso", contei-lhe. "Quando estava no segundo ano do cole­gial, tentei jogar basquete. Meu pai me levava para praticar todos os dias, e quando eu reclamava por ser o mais baixo de todos, ele me dizia 'Não importa quão mais altos eles são, Tom. Lembre: O forte tira do fraco, mas o astuto tira do forte'. Sempre o mesmo dis­curso." Um estremecimento me percorreu o corpo. "Deus, aquilo chegava a me dar enjôo."

"Você acha que é verdade?"

"Que o astuto tira do forte?"

"Sim."

Eu gargalhei. "Você nunca me viu jogar basquete." "Bem, eu acredito", disse ele. "Definitivamente acredito”. "Você está brincando..."

Durante o colegial, ele havia ficado metido em quartos e tinha sido intimidado por mais valentões do que qualquer outro garoto que conheci. ­

"Não. Nada disso." Ele ergueu as mãos. "Nós estamos aqui, não estamos?"

Ele colocou uma leve ênfase em nós.

No silêncio que se fez, olhei para os três livros sobre sua escrivaninha. Tratado do Estilo Literário, a Bíblia, O Documento Beladona. Princeton era um presente para ele. Ali podia esquecer todo o resto.

 

                                        Capítulo 5

Paul, Gil e eu continuamos a andar para o sul do Holder em direção ao centro do campus. Para o leste, as janelas estreitas e altas da Biblioteca Firestone produzem riscos cor-de-fogo na neve. À noite o edifício escuro parece um antigo forno, as paredes de pedra isolando o mundo exterior do calor e do rubor da erudi­ção. Uma vez, em um sonho, visitei Firestone no meio da noite e encontrei-a cheia de insetos, milhares de traças usando minúscu­los óculos e toucas de dormir, alimentando-se magicamente ao ler histórias. Elas insinuavam-se de página em página, excursionando através das palavras, e quando as tensões aumentaram e os aman­tes se beijaram e os vilões encontraram o seu fim, a parte traseira das traças começou a brilhar, até que por fim a livraria inteira se transformou em uma igreja com velas que oscilavam suavemente da esquerda para a direita.

"Bill está esperando por mim aqui", diz Paul, parando abruptamente.

"Quer que a gente vá com você?", pergunta Gil.

Paul sacode a cabeça. "Não, estou bem:' Mas escuto a leve indecisão em sua voz. "Vou com você”, digo.

"Encontro com vocês de novo no quarto", diz Gil. ''Acham que vão voltar para a aula de Taft, às nove?"

"Sim”, responde Paul. "É claro."

Gil acena e segue seu caminho. Paul e eu continuamos andando em direção a Firestone.

Assim que ficamos sozinhos me dou conta de que nenhum de nós sabe o que dizer. Vários dias se passaram desde a nossa última conversa verdadeira. Como irmãos que desaprovam as esposas um do outro, não podemos nem tentar uma conversa superficial sem tropeçar em nossas diferenças: ele pensa que eu abandonei o Hypnerotomachia para estar com Katie; ou penso que ele se entregou ao Hypnerotomachia mais do que admite.

"O que Bill quer?': pergunto quando nos aproximamos da entrada principal.

"Não sei. Ele não quis dizer."

''Aonde vamos encontrá-lo?"

"Na sala de Livros Raros”.

Onde Princeton guarda sua cópia do Hypnerotomachia.

''Acho que ele descobriu algo importante."

“Como o quê?”

"Não sei", Paul hesita, como se estivesse procurando as palavras certas. "Parece que o livro contém muito mais do que pensávamos. Tenho certeza disso. Bill e eu sentimos que estamos à beira de uma grande descoberta”.

Fazia semanas que eu não via Bill Stein. Atolado em um programa de graduação, que parecia sem fim no sexto ano, Stein tinha vagarosamente montado uma tese sobre a tecno­logia da impressão renascentista. Com a aparência que o fazia assemelhar-se mais a um esqueleto desarmônico, ele almejava tornar-se um bibliotecário profissional até que uma ambi­ção maior o conquistou: direito de estabilidade no emprego, magistério, promoção - todas as obsessões que aparecem com o querer servir aos livros, depois gradualmente com o querer que os livros sirvam a você. Cada vez que o vejo fora de Firestone ele me lembra um fantasma que fugiu, uma coleção de ossos eretos, demasiado tesos, com olhos desbotados e um estra­llilo cabelo vermelho encaracolado de meio judeu, meio irlandês. Ele cheira a mofo de biblioteca, de livros que todos esqueceram, e depois de falar com ele muitas vezes tenho pesadelos em que Tejo a Universidade de Chicago ser invadida por exércitos de Bill Steins, estudantes graduados que trazem para o seu trabalho um drive robótico que eu nunca tive, cujos olhos cor de níquel olham diretamente através de mim.

Paulo o vê de modo diferente. Diz que Bill, impressionante como é, tem um defeito intelectual: a ausência de uma faísca vivente. Stein rasteja pela livraria como uma aranha num sótão, comendo livros mortos e transformando-os em fios finos. O que faz com eles é sempre mecânico e sem inspiração, dirigido por uma simetria que nunca consegue mudar.

"É por aqui?”, pergunto.

Paul me conduz pelo corredor. A Sala de Livros Raros fica numa ala lateral de Firestone, é fácil passar sem percebê-la. Lá dentro, onde alguns dos livros mais novos têm centenas de anos, a escala de idade se torna relativa. Terceiranistas de curso secun­dário ou graduandos são trazidos aqui como crianças em passeios de campo, seus lápis e canetas confiscados, seus dedos sujos moni­torados. Podem-se ouvir bibliotecários ralhando com professores universitários para que olhem sem tocar. Aposentados da faculdade vêm aqui para se sentir jovens de novo.

"Ela deve estar fechada”, diz Paul, olhando para seu relógio digital. "Bill deve ter pedido para a senhora Lockhart deixá-la aberta”.

Estamos agora no mundo de Stein. A senhora Lockhart, ama eterna bibliotecária, provavelmente cerziu meias com a mulher de Gutenberg. Ela tem uma pele branca lisa que cobre uma cons­tituição física miúda feita para flutuar entre as estantes. Na maior parte do dia pode-se encontrá-la murmurando em línguas mortas para os livros ao seu redor, uma taxidermista cochichando com seus animais de estimação. Passamos por ela sem olhá-la, assinando em uma prancheta com uma caneta presa em sua escrivaninha.

"Ele está lá dentro", diz ela para Paul, reconhecendo-o. Para mim apenas acena.

Através de uma área de conexão estreita chegamos diante de uma porta que eu nunca abri. Paul se aproxima, bate duas vezes e aguarda.

"Senhora Lockhart?”, vem a resposta numa voz alta e desigual. "Sou eu", esclarece Paul.

Uma fechadura estala do outro lado, e a porta se abre vaga­rosamente. Bill Stein aparece diante de nós, quinze centímetros mais alto do que eu ou Paul. A primeira coisa que percebo são seus olhos injetados, frios como um cano de revólver. A primeira coisa que eles percebem sou eu.

“Tom veio com você”, diz ele, esfregando o rosto. ..”O.K. Sem problemas."

Bill fala de maneira obscura, algo se perde entre sua mente e sua fala. A impressão é enganosa. Depois de alguns minutos de conversa convencional, percebem-se lampejos de sua capacidade.

"Foi um mau dia", comenta, fazendo-nos entrar. "Uma     má semana. Não um bom negócio. Eu estou bem."

"Por que não podíamos falar pelo telefone?”, pergunta Paul.

A boca de Stein se abre, mas não há resposta. Agora ele está retirando alguma coisa de entre os dentes da frente. Abre o zíper de sua jaqueta e em seguida vira-se para Paul. "Será que alguém está pegando seus livros?", pergunta.

"O quê?"

"Porque tem alguém pegando os meus."

"Bill, acontece..."

"Meu ensaio de William Claxton? Meu microfilme de Aldus?"

"Claxton é uma figura importante”, diz Paul.

Nunca ouvi falar de William Claxton em minha vida.

"O artigo de 1877 sobre ele?", esclarece Bill. "Só existe no Anexo Forrestal. E as Cartas de Santa Catarina de Aldus..." Ele se volta para mim. "Não é, como geralmente se crê, o primeiro uso do itálico..." Em seguida volta-se de novo para Paul. "O microfilme foi visto pela última vez por alguém, além de nós dois, só nos anos 1970. Setenta e um, setenta e dois. Alguém o reservou ontem. Isso não está acontecendo com você?"

Paul franze o cenho. "Você falou com a Circulante?" "Circulante? Falei com Rodha Carter. Lá eles não sabem de nada."

Rhoda Carter, a bibliotecária mais importante de Firestone.

É com ela que todos os livros vão parar.

"Não sei", diz Paul, tentando não deixar Bill mais excitado.

"Provavelmente não é nada. Eu não ficaria preocupado com isso."

"Sei lá. Não estou. Mas vamos ao que interessa." Bill cami­nha agora até o canto distante da sala, onde o espaço entre a parede e a mesa parece muito estreito para deixar alguém passar. Ele desliza pelo espaço sem produzir som e passa a mão pelo bolso de sua velha jaqueta de couro. "Recebi esses telefonemas. Atendo... desligam. Atendo... desligam. Primeiro no meu apartamento, depois no meu trabalho." Ele sacode a cabeça. "Não tem impor­tância. Vamos aos negócios. Encontrei algo." Olha então nervosa­mente para Paul. "Talvez o que você precisa, talvez não. Não sei. Mas acho que vai ajudar você a terminar seu trabalho."

De dentro da jaqueta ele tira algo do tamanho aproximado de um tijolo, envolto em camadas de tecido. Colocando o pacote delicadamente sobre a mesa, começa a desembrulhá-lo. Esta é uma peculiaridade de Stein que eu nunca tinha notado antes, que seus gestos se tornam mais moderados quando ele segura um livro entre as mãos. A mesma coisa acontece agora: enquanto ele desenrola o tecido, suas mãos mostram-se mais controladas. Ao terminar, surge um volume usado, com não mais de cem páginas. Dele exala um odor caracteristicamente acre.

"De que coleção é?", pergunto, não vendo título algum na lombada.

"De nenhuma coleção", diz ele. "Nova York. Encontrei-o em um antiquário.

Paul está silencioso. Lentamente estende a mão para o livro. A encadernação de couro cru é grosseira e está rachada, cos­turada com cordel de couro. As páginas foram cortadas à mão. Um artefato primitivo, talvez. Um livro feito por um pioneiro.

"Deve ter uns cem anos", eu digo, quando Stein não nos dá nenhum detalhe. "Cerito e cinqüenta."

Um olhar irritado passa pelo rosto de Stein, como se um cachorro tivesse acabado de emporcalhar seu tapete. "Errado", berra. "Errado." Parece-me evidente que sou o cachorro. "Quinhentos anos”.

Focalizo o livro novamente.

"De Gênova': continua Bill, olhando para Paul. "Cheire-o."

Paul está silencioso. Ele tira um lápis não apontado de seu bolso, vira-o em sentido contrário e cuidadosamente abre o volume usando a parte mais suave da borracha. Bill tinha mar­cado uma página do livro com uma fita de seda.

"Cuidado", alerta Stein, protegendo o livro com as mãos espalmadas. Suas unhas estão roídas até a carne. "Não deixe mar­cas. É um empréstimo:' Ele hesita. "Tenho de devolvê-lo quando terminar”.

"A quem pertence?", pergunta Paul.

"À Argosy Book Store", esclarece Bill. "Em Nova York. Isso é o que você precisa, não é? Agora podemos terminar”.

Paul não parece perceber a mudança de pronomes no lin­guajar de Stein.

"O que é isso?”, pergunto mais agressivamente.

"É o diário da capitania do porto de Gênova", diz Paul.

Sua voz soa baixa, seus olhos envolvem o que está escrito em cada página.

Fico surpreso. "É o diário de Richard Curry?"

Paul faz que sim. Trinta anos atrás Curry estava traba­lhando em um antigo manuscrito genovês que, segundo ele, iria desvendar o Hypnerotomachia. Pouco depois que falou a Taft sobre o livro, este foi roubado de seu apartamento. Curry insis­tia que Taft era o ladrão. Qualquer que fosse a verdade, Paul e eu aceitamos desde o início que o livro estava perdido para nós. Continuamos nosso trabalho sem ele. Agora, com Paul se apres­sando para terminar sua tese, o diário poderia ser inestimável.

"Richard me disse que no livro havia referências a Francesco Colonna", diz Paul. "Francesco estava esperando um navio entrar no porto. O portuário anotou ingressos diários sobre ele e seus homens. Onde ficavam. O que faziam”.

"Fique com ele por um dia", sugere Bill, interrompendo. Ele se levanta e vai até a porta. "Faça uma cópia, se você precisar. Uma cópia à mão. Qualquer coisa que o ajude a terminar seu tra­balho. Mas eu preciso que me devolva depois”.

A concentração de Paul se rompe. "Você já está indo embora?"

"Tenho de ir."

“Vemos você na aula expositiva de Vincent?"

''Aula expositiva?", Stein parou. "Não. Não posso”.

A inquietação exagerada de Bill já começa a me deixar nervoso.

"Vou estar em meu escritório”, continua ele, enrolando um cachecol de xadrez vermelho ao redor do pescoço. "Lembre, eu preciso do livro de volta."

"É claro”, concorda Paul, puxando o pequeno pacote para mais perto de si. "Vou examiná-lo hoje à noite. Posso tomar notas”.

"E não diga a Vincent”, acrescenta Stein, fechando o casaco. "Isso fica somente entre nós."

"Eu lhe devolvo amanhã", promete Paul. "O último prazo para trabalhar meu texto é até meia-noite”.

''Amanhã, então”, concorda Stein, fazendo o cachecol esvoaçar atrás de si e retirando-se de maneira furtiva. Suas saídas, eram sempre muito abruptas, com um quê de dramático. Com seu porte magri­cela, a passos largos ele atravessa a soleira da porta, onde a senhora Lockhart ocupa lugar de destaque, e desaparece. A velha livreira apóia a mão enrugada em uma cópia desgastada de Victor Hugo, como se acariciasse o pescoço de um antigo namorado.

"Senhora Lockhart”, ouve-se a voz de Bill, já longe do nosso campo de visão. ''Até logo."

"É realmente o diário?", pergunto logo que ele sai. "

“Ouça só”, responde Paul.

Ele se volta de novo para o livro e começa a ler em voz alta. A tradução se faz com pausas, Paul luta com o dialeto ligúrio, a lín­gua da Gênova de Colombo, misturada com palavras dispersas de pronúncia francesa. Mas gradualmente suas pausas diminuem.

"No alto-mar na última noite. Um navio... quebrado perto da costa. Um tubarão foi levado à praia pelas ondas, um bem grande. Marinheiros franceses vão aos bordéis. Um mouro... pirata?... visto em águas próximas."

Ele vira várias páginas, lendo ao acaso.

"Belo dia. Maria está se recuperando. Sua urina está melho­rando, diz o doutor. Curandeiro caro! O... doutor das ervas... diz que a trataria pela metade do preço. E duas vezes mais rápido!" Paul se detém, olhando para a página. "Excremento de morcego", ele con­tinua, "não curará coisa alguma..."      .

Eu o interrompo. "O que isso tudo tem a ver com o Hypnerotomachia?"

Mas ele continua folheando as páginas.

"Um capitão veneziano bebeu demasiado na última noite e começou a se vangloriar. Nossa fraqueza em Fornovo. A velha derrota em Porto fino. Os homens o trouxeram para... o estaleiro... e o dependuraram num mastro alto. Ele ainda estava dependurado lá nesta manhã."

Antes que eu pudesse repetir minha pergunta, os olhos de Paul se arregalam.

"O mesmo homem veio outra vez de Roma na última noite'; ele lê. "Vestido mais ricamente do que um duque. Ninguém sabe o que vem fazer aqui. Por que ele vem? pergunto aos outros. Os que sabem alguma coisa não querem falar. Parece que um navio dele está vindo para o porto, espalha-se o rumor. Ele veio averiguar se o navio chega em segurança.

Sento-me mais na beirada da cadeira. Paul vira a página com um movimento rápido e prossegue.

"O que pode ser tão importante para que um homem como esse venha averiguar? Que carregamento? Mulheres, diz o Barbo beberrão. Escravos turcos, um harém. Mas tenho visto esse homem, chamado Mestre Colonna por seus empregados, Irmão Colonna por seus amigos: ele é um cavalheiro. E vi o que há em seus olhos. Não é desejo. É medo. Ele parece um lobo que viu um tigre."

Paul se interrompe, olhando as palavras. Curry repetiu essa última frase para ele muitas vezes. Mesmo eu a reconheço. Um lobo que viu um tigre.

O livro se fecha nas mãos de Paul, e partículas de um pig­mento negro espalham-se no envoltório de tecido. Um cheiro acre enche o ar.

"Meninos”, a voz parece chegar até nós de lugar nenhum. "O tempo de vocês acabou”.

"Estamos indo, senhora Lockhart", Paul começa a se mover, envolvendo o livro no tecido e empacotando-o bem comprimido.

“E agora?”, pergunto.

"Temos de mostrar isso a Richard", responde ele, colo­cando o pequeno embrulho debaixo da camiseta que Katie lhe emprestara.

"Hoje à noite?", quero saber.

Quando saímos, a senhora Lockhart resmunga, mas não olha para nós.

"Richard precisa saber o que Bill encontrou", diz Paul, olhando para o relógio.

"Onde ele está?"

"No museu. Há um evento ali hoje, para curadores de Museu”.

Hesito. Eu supunha que Richard Curry estivesse na cidade para celebrar o término da tese de Paul.

"Vamos celebrar amanhã”, acrescenta ele, compreendendo a minha expressão.

Um pedaço do diário aparece debaixo da camiseta, um filete de couro negro envolto em tiras de tecido. De cima chega até nós o eco de uma voz, quase o som de risada.

"Weh! Steck ich in dem Kerker noch? Verfluchtes dumpfes Mauerloch, Wo selbst das liebe Himmelslicht Trüb durch gemalte Scheiben bricht!"

"Goethe", diz Paul. "Ela sempre fecha com Fausto." Segurando a porta na saída, ele grita de volta, "Boa noite, senhora Lockhart”.

Sua voz vem ondulando através do vão da biblioteca.

"Sim”, diz ela. "Boa noite."

 

                                                         Capítulo 6

Do que pude juntar a partir dos relatos de meu pai e de Paul, Vincent Taft e Richard Curry encontraram-se em Nova York quando tinham vinte e poucos anos, em uma noite em que com­pareceram à mesma festa em um bairro residencial de Manhattan. Taft era um jovem professor da Universidade de Cólumbia, uma versão mais magra do que veio a se tornar depois, mas com a mesma energia interior e a mesma determinação rude. Autor de dois livros, durante os breves dezoito meses depois que terminou sua tese, ele era o predileto dos críticos, um intelectual elegante dando suas voltas em círculos sociais seletos. Curry, por outro lado, que havia sido dispensado do serviço militar por causa de um sopro no coração, estava apenas começando sua carreira no mundo da arte. De acordo com Paul, ele estava se relacionando com as pessoas certas, construindo devagar uma reputação no cenário de Manhattan, que muda rapidamente.

O primeiro encontro deles se deu naquela festa, já quase no fim, quando Taft, que ficou levemente embriagado, derramou um coquetel em um sujeito de aparência atlética que estava ao seu lado. Era um acidente típico, contou-me Paul, pois Taft já era conhecido como um bêbado naquela época. Curry, no início, não se ofendeu muito - até perceber que Taft não tinha a intenção de desculpar-se. Seguindo-o até a porta, Curry começou a pedir satis­fação; mas Taft, tropeçando até o elevador, ignorou-o. Enquanto os homens desciam dez andares, Taft é quem mantinha a con­versa, lançando um ataque de insultos ao jovem vistoso, urrando, quando eles cambalearam em direção à saída, que sua vítima era "medíocre, horrível, bestial e limitado”.

Para sua inesperada surpresa, o jovem sorriu.

"Leviatã”, disse Curry, que havia escrito um artigo, como estudante da terceira série do colégio, sobre Hobbes enquanto estava em Princeton. "E você esqueceu solitário. 'A vida de um homem é solitária, medíocre, horrível, bestial e limitada.'''

"Não", replicou Taft, balbuciando com um amplo sor­riso, bem antes de desmoronar debaixo de um poste de luz, "eu não esqueci. Simplesmente reservo solitário para mim mesmo. Medíocre, horrível, bestial e limitado, no entanto, são todos seus."

E com isso, contou Paul, Curry chamou um táxi, empur­rou Taft para o interior do veículo, e levou-o para o seu próprio apartamento, onde, durante as doze horas seguintes, Taft perma­neceu na letargia profunda da embriaguez.

A história conta que quando ele acordou, confuso e emba­raçado, os dois homens iniciaram uma conversa desajeitada. Curry expôs sua linha de trabalho, o mesmo fez Taft, e parecia que o embaraço da situação poderia destruir o encontro, quando, em um momento de inspiração, Curry mencionou o Hypnerotomachia, um livro que ele tinha estudado sob indicação de um professor popular de Princeton chamado McBee.

Posso imaginar a resposta de Taft. Não só ele tinha ouvido falar do mistério que envolvia o livro, mas deve ter percebido a centelha que havia surgido nos olhos de Curry. De acordo com meu pai, os dois homens começaram a discutir as circunstâncias de suas vidas, constatando rapidamente o que tinham em comum. Taft desprezava os demais acadêmicos, achando o trabalho deles trivial e sem visão, Curry via seus colegas comuns como persona­lidades sem consistência, entorpecidas e unidimensionais. Ambos detectavam uma ausência de vitalidade nos outros, uma ausência de propósito. E talvez isso explicasse a determinação que usaram para superar suas diferenças.

Porque havia diferenças, e não pequenas. Taft era uma cria­tura instável difícil de entender e, mais difícil ainda, de amar. Bebia em grande quantidade quando estava em companhia, e quase o mesmo tanto quando sozinho. Sua inteligência era implacável e selvagem, um fogo que nem ele podia controlar. Devorava livros inteiros, durante o tempo de uma reunião, encontrando falhas em argumentos, brechas em evidências, erros em interpretações, em assuntos muito diferentes do seu próprio. Paul disse que Taft não possuía uma personalidade destrutiva, mas sim uma mente destrutiva. O fogo aumentava quanto mais era alimentado, não deixando nada atrás de si. Quando havia queimado tudo em seu caminho, só restava uma coisa para ele fazer. No devido tempo, virava-se contra si mesmo.

Curry, em contraste, era um criador, não um destruidor - um homem de possibilidades mais do que de fatos. Tomando emprestado de Michelangelo, ele diria que a vida era como escul­pir: uma possibilidade de ver o que outros não conseguiam per­ceber na pedra e depois talhar fora o resto. Para ele o velho livro era apenas um bloco de pedra esperando para ser esculpido. Se ninguém em quinhentos anos o havia compreendido, então era chegada a hora para novos olhos e novas mãos, e as ossadas do passado que se danassem.

Apesar de todas essas diferenças, no entanto, não demo­rou muito até que Taft e Curry encontrassem algo em comum. Além do livro antigo, eles compartilhavam um profundo interesse em abstrações. Acreditavam na noção de grandeza - grandeza de espírito, destino, grandes projetos. Como espelhos idênticos colocados face a face, um refletindo o outro, eles viram a si mes­mos com sinceridade pela primeira vez, e mil vezes mais fortes. Era a estranha mas predizível conseqüência de sua amizade, que os deixou mais solitários depois que eles a iniciaram. O rico e humano cenário de fundo dos mundos de Taft e de Curry – seus colegas e amigos da faculdade, suas irmãs e mães e paixões ante­riores - desapareceu em um palco vazio com um único refletor. Certamente, suas carreiras floresceram. Em pouco tempo Taft era um historiador de grande renome e Curry, o proprietário de uma galeria que o tornaria famoso.

Mas, a loucura em pessoas eminentes não passa desperce­bida. Os dois homens levavam uma existência escravizante. Sua única fonte de alívio surgia sob a forma de encontros semanais no sábado à noite, quando se reuniam no apartamento de um ou de outro, ou em um jantar vazio em que transformavam o único interesse que tinham em comum em uma diversão compartilhada: o Hypnerotomachia.

O inverno havia chegado naquele ano quando Richard Curry finalmente apresentou Taft para o único amigo que nunca o decepcionara - aquele que Curry havia encontrado muito tempo antes no curso do professor McBee em Princeton, e que nutria seu próprio interesse pelo Hypnerotomachia.

Tenho dificuldade em imaginar meu pai naqueles dias. O homem que conheço já está casado, marcando a altura de seus três filhos na parede de seu escritório, curioso em saber quando seu filho único começará a crescer, extasiado em meio a velhos livros em línguas mortas enquanto o mundo desmorona e gira ao seu redor. Mas esse era o homem que construímos, minha mãe, minhas irmãs e eu, não o homem que Richard Curry conhecia. Meu pai, Patrick Sullivan, tinha sido o melhor amigo de Curry em Princeton. Os dois se consideravam os reis do campus e imagino que tinham o tipo de amizade que lhes permitia sentir-se dessa maneira. Meu pai jogou uma temporada na principal equipe des­portiva de basquete do colégio na categoria juvenil, passando cada minuto desse tempo no banco de reservas, até que Curry, como capitão da equipe de futebol da categoria júnior, o convocou para jogar em campo, onde meu pai se saiu melhor do que o esperado. Os dois dividiram o mesmo quarto no ano seguinte, comparti­lhando quase todas as refeições; como juniores, eles até namoraram duas irmãs gêmeas de Vassar: Molly e Martha Roberts. O relacio­namento, que meu pai uma vez comparou com uma alucinação em uma sala de espelhos, terminou na primavera seguinte, quando as irmãs vestiram roupas idênticas para uma festa e os dois homens, tendo bebido demasiado e prestado pouca atenção, fizeram avanços isolados em direção à irmã que o outro estava namorando.

Tenho de acreditar que meu pai e Vincent Taft simpatiza­ram com diferentes aspectos da personalidade de Richard Curry. O menino do Meio-Oeste, relaxado, de formação católica, e o espan­toso, bem cuidado nova-iorquino eram animais diferentes, e eles devem ter sentido isso desde o primeiro aperto de mãos, quando a de meu pai foi engolida pelo aperto de açougueiro de Taft.

Dos três, Taft era quem tinha a mente mais sombria. As partes do Hypnerotomachia que o fascinavam eram as mais san­grentas e enigmáticas. Ele maquinava sistemas de interpretação para compreender o significado dos sacrifícios na história – a maneira pela qual os pescoços dos animais eram cortados, de que modo as pessoas morriam - para dar um significado à violên­cia. Trabalhava com afinco sobre as dimensões dos edifícios men­cionados na história, manipulando-as para encontrar padrões numerológicos, cruzando as informações com tabelas astrológicas e calendários da época de Colonna, esperando encontrar corres­pondências. No ponto em que se encontrava, a melhor aproxi­mação era confrontar o livro de frente, igualar-se em perspicácia com o autor, e derrotá-lo. De acordo com meu pai, Taft sempre acreditou que um dia superaria Francesco Colonna em astúcia. Esse dia, até onde sei, nunca chegou.

A aproximação de meu pai não poderia ser mais diferente. O que mais o fascinava no Hypnerotomachia era sua ingênua dimen­são sexual. Nos séculos mais puritanos, depois de sua publicação, as fotografias do livro eram censuradas, escurecidas, ou completa­mente removidas, da mesma maneira que muitos nus renascentistas foram repintados com folhas de figueira quando os gostos muda­ram e as sensibilidades foram ofendidas. No caso de Michelangelo, parece razoável protestar. Mas, mesmo hoje, algumas das gravuras do Hypnerotomachia parecem um pouco chocantes.

Desfiles de mulheres e homens nus é somente o começo.

Poliphilo persegue um bando de ninfas em uma festa de primavera - e lá, pairando no meio das festividades, está o enorme pênis de Priapo, o ponto focal da ilustração inteira. Antes, a rainha mitoló­gica Leda é surpreendida no auge da paixão com Zeus, que é mos­trado alojado entre as coxas dela sob a forma de um cisne. O texto é ainda mais explícito, descrevendo encontros demasiado bizarros para as gravuras. Quando Poliphilo é dominado pela atração física que sente pela arquitetura que vê, ele admite fazer sexo com edifí­cios. Pelo menos uma vez, ele afirma, o prazer foi mútuo.

Tudo isso fascinava meu pai, cuja visão do livro com­preensivelmente tinha pouco a ver com a de Taft. Em lugar de considerá-lo um tratado matemático, rígido, meu pai encarava o Hypnerotomachia como um tributo ao amor de um homem por uma mulher. Era a única obra de arte que ele conhecia que imitava o belo caos daquela emoção. A qualidade sonhadora da história, a confusão incessante de seus personagens e o perambular desespe­rado de um homem em busca do amor, tudo repercutia nele.

Como resultado, meu pai - e, no começo de sua pesquisa, Paul- sentiu que a abordagem de Taft estava mal orientada. No dia em que você descobrir o que é o amor, meu pai disse uma vez, compreenderá o que Colonna quis dizer. Meu pai acreditava que se houvesse verdadeiramente algo para se conhecer acerca do livro, deveria ser encontrado fora dele: em diários, cartas e documentos de família. Ele nunca me contou, mas penso que sempre suspeitou que havia um grande segredo encerrado dentro daquelas páginas. No entanto, ao contrário das formulações de Taft, meu pai sen­tia que era um segredo sobre o amor: um caso entre Colonna e uma mulher abaixo de sua posição social; um barril de pólvora político; um herdeiro ilegítimo; um romance que os adolescentes imaginam antes que a horrenda noiva da idade da razão chegue e apague os acontecimentos infantis.

No entanto, por mais que sua abordagem fosse diferente da de Taft, quando meu pai chegou em Manhattan, para um ano de pesquisa longe da Universidade de Chicago, ele percebeu que os dois homens estavam fazendo progresso. Curry insistiu em que o velho amigo se juntasse a eles em seu trabalho, e meu pai concordou. Como três animais em uma única jaula, os homens se esforçaram para se adaptar, um rodeando o outro com suspeitas até que novos planos foram esboçados e uma nova harmonia atin­gida. Não obstante, o tempo era aliado deles naqueles dias, e os três compartilhavam a fé no Hypnerotomachia. Como um ombudsman cósmico, o velho Francesco Colonna zelava por eles e os guiava, encobrindo discordâncias com camadas de esperança. E durante um tempo, pelo menos, a aparência de concórdia perdurou.

Durante mais de dez meses, Curry, Taft e meu pai traba­lharam juntos. Só então Curry fez a descoberta que seria fatal para a parceria deles. Nessa época ele tinha gravitado para fora das galerias e para dentro das casas de leilões, onde se arriscam as maiores quantias de dinheiro do mundo da arte; e foi quando preparava sua primeira venda de espólio que ele se deparou com um caderno de apontamentos em farrapos que havia pertencido a um colecionador de antiguidades, recentemente falecido.

O caderno de apontamentos pertencera a um portuário genovês, um velho homem com uma escrita pequena e difícil de entender que tinha o hábito de anotar a condição do tempo e sua saúde precária, mas que também manteve um registro diário de todas as idas e vindas nas docas, na primavera e verão de 1497, inclusive os eventos peculiares que cercaram a chegada de um homem chamado Francesco Colonna.

O portuário - que Curry chamava de Genovês, porque ele nunca revelou seu nome - reuniu os rumores sobre Colonna que circulavam no cais. Ele fez questão de ouvir, embora aparen­tando desinteresse, as conversas que Colonna mantinha com seus homens, e ficou sabendo que o abastado romano tinha vindo a

Gênova para supervisionar a chegada de um importante navio, cujo carregamento só ele conhecia. O Genovês começou a levar informações sobre os navios que chegavam aos aposentos de Colonna, onde uma vez o surpreendeu escrevendo algo às pressas, que o romano escondeu tão logo o Genovês entrou.

Se tudo acabasse ali, o diário do portuário teria lançado pouca luz sobre o Hypnerotomachia. Mas o portuário era um homem curioso, e quando ficou impaciente, esperando o navio de Colonna chegar, percebeu que a única maneira de descobrir as intenções do aristocrata era conseguir ver os documentos de embarque em poder de Francesco que registravam os conteúdos do carregamento. Por fim ele foi procurar seu cunhado, um merca­dor que algumas vezes traficava mercadoria pirateada, e lhe pediu para contratar os serviços de um ladrão que deveria entrar nos aposentos de Colonna e copiar tudo o que fosse encontrado por lá. Antonio, em troca da ajuda do Genovês em um outro esquema de embarque, concordou em cooperar.

O que Antonio descobriu foi que mesmo o homem mais desesperado recusava o trabalho quando era mencionado o nome de Colonna. O único que quis aceitá-lo foi um batedor de car­teiras analfabeto. No entanto este, por acaso, desempenhou bem seu trabalho. Copiou todos os três documentos que estavam em poder de Colonna: o primeiro era parte de uma história, que o portuário achou sem interesse e nunca descreveu completamente; o segundo, um pedaço de couro com o desenho de um diagrama complicado, completamente inescrutável para o Genovês; e o ter­ceiro, uma espécie de mapa peculiar, que consistia das quatro dire­ções cardeais, cada uma seguida por um conjunto de unidades, que o Genovês se esforçou em vão por compreender. O portuá­rio estava começando a se arrepender de ter contratado o ladrão, quando ocorreu um fato que o fez temer por sua vida.

Certa noite, ao voltar para casa, o Genovês encontrou sua mulher chorando. Ela contou que o irmão, Antonio, tinha sido envenenado durante o jantar, em sua própria casa, e que seu corpo fora descoberto por um menino de recado. Um destino similar tivera o batedor de carteira: enquanto bebia na taverna, o ladrão havia sido apunhalado na coxa por um desconhecido ali de pas­sagem. Antes mesmo que o taverneiro percebesse, o homem tinha sangrado até morrer, e o estranho havia desaparecido.

O Genovês viveu os dias seguintes em aflição, quase sem conseguir realizar suas tarefas nas docas. Ele nunca mais retomou aos aposentos de Colonna, mas em seu diário registrou cada detalhe útil do que o ladrão encontrou, e esperou impacientemente a che­gada do navio de Colonna, com a esperança de que o nobre partisse com seu carregamento. Suas preocupações se tornaram tão terríveis que grandes navios mercantes entraram e saíram do porto quase sem qualquer menção. Quando o navio de Francesco finalmente chegou ao porto, o velho Genovês mal podia crer em seus olhos.

Por que um aristocrata se preocuparia com uma embarcação pequena e medíocre como essa, ele escreveu, esse barco sujo e feio? O que ele poderia estar carregando para atrair o interesse de um homem importante como aquele?

E quando o Genovês soube que o barco tinha vindo por Gibraltar, trazendo mercadorias do norte, foi quase tomado de fúria. Encheu seu pequeno caderno com palavrões obscenos, dizendo que Colonna era um louco sifilítico, e que só um bronco ou um lunático acreditaria que algo de valor pudesse vir de um lugar como Paris.

Segundo Richard Curry, somente dois outros apontamen­tos se referiam a Colonna. No primeiro, o Genovês recordava uma conversa que ouvira por acaso entre Colonna e um arquiteto flo­rentino, o único a visitar o romano regularmente. Nela, Francesco aludia a um livro que estava escrevendo, no qual narrava cronologi­camente o tumulto dos últimos dias. O Genovês, ainda dominado pelo medo, anotou tudo isso cuidadosamente.

O segundo apontamento, feito três dias depois, era mais enigmático, mas lembrava mais a carta que encontrei com meu pai. Por essa ocasião o Genovês já havia se convencido que Colonna estava realmente louco. O romano se recusava a deixar seus homens descarregar o navio à luz do dia, insistindo que o carregamento só podia ser transportado com segurança ao anoi­tecer. Muitas das caixas de madeira, observou o portuário, eram suficientemente leves para ser carregadas por uma mulher ou um ancião, e ele se esforçou para se lembrar de uma especiaria ou de um metal que pudesse ser embarcado dessa maneira. Aos poucos o Genovês começou a suspeitar que os sócios de Colonna – o arquiteto e os dois irmãos, também de Florença - fossem com­panheiros de crimes ou mercenários metidos em alguma conspi­ração obscura. Quando um rumor pareceu confirmar seu receio, febrilmente ele o anotou.

Dizem que Antonio e o ladrão não são as primeiras víti­mas desse homem, que Colonna já matou dois outros homens por um simples capricho. Não sei quem eles são, e não ouvi ninguém falar seus nomes, mas tenho certeza de que isso se relaciona com esse carregamento. Eles conheciam seu conteúdo, e ele temia que o denunciassem. Estou convencido disso agora: o medo é a única coisa que move esse homem. Seus olhos o traem, mesmo se seus homens não o fazem.

De acordo com meu pai, Curry utilizou o segundo apon­tamento menos do que o primeiro, que ele acreditava que pudesse ser uma referência à composição do Hypnerotomachia. Se isso é verdade, então a história que o ladrão descobriu entre os perten­ces de Colonna, cujos detalhes o Genovês não se incomodou em registrar, podia ter sido um primeiro esboço do manuscrito.

Mas Taft, que nessa ocasião estava pesquisando o Hypnerotomachia a partir do seu próprio ponto de vista, reunindo vastos catálogos de referências textuais dentro de uma concordân­cia, de modo que cada palavra de Colonna podia ser investigada até suas origens, malograva em ver qualquer possível relevância naque­las notas que o portuário dizia ter visto Colonna rabiscar às pres­sas. Uma história tão ridícula, dizia ele, nunca poderia lançar luz no profundo mistério do grande livro. Ele rapidamente tratou a des­coberta da mesma maneira que fez com cada um dos outros livros que leu sobre o assunto: como gravetos para acender uma fogueira.

Acho que sua frustração estava enraizada em algo mais do que suas impressões sobre o diário. Ele tinha visto o equilíbrio de forças escapar de seu controle, a química do seu trabalho com Richard Curry se desintegrara quando meu pai atraiu Curry para novas abordagens e possibilidades alternativas.

E assim uma luta se seguiu, uma batalha de influências, na qual meu pai e Vincent Taft conceberam o ódio mútuo que iria durar até o fim da vida de meu pai. Taft, sentindo que não tinha nada a perder, difamou o trabalho de meu pai em uma tentativa de atrair Curry de volta para o seu lado. Meu pai, percebendo que Curry estava enfraquecendo sob a pressão de Taft, retribuiu na mesma moeda. Em um mês, o trabalho dos dez meses anteriores foi desfeito. Por mais que os três homens tivessem progredido jun­tos, eles se desmembraram como proprietários diferentes, nem Taft nem meu pai querendo ter algo a ver com a contribuição do outro.

Curry, no meio disso tudo, apegou-se ao diário do Genovês. Não podia entender como seus amigos tinham deixado rancores mesquinhos comprometer seu centro de interesse. Ele possuía, em sua juventude, a mesma virtude que iria mais tarde descobrir e admirar em Paul: um compromisso com a verdade, e uma grande impaciência com a distração. Dos três homens, penso que foi Curry quem mais se impressionou pelo livro de Colonna e era quem mais queria decifrá-lo. Talvez porque meu pai e Taft ainda fossem acadêmicos, eles encaravam o Hypnerotomachia particularmente sob essa perspectiva. Eles sabiam que um estudioso podia passar sua vida trabalhando num único livro e isso entorpecia seu senso de urgência. Só Richard Curry, o negociante de arte, mantinha seu ritmo impetuoso. Ele deve ter percebido seu futuro nessa ocasião. Sua vida com livros era transitória.

Não apenas um, mas dois eventos levaram a situação a um amadurecimento. O primeiro ocorreu quando meu pai foi para Columbus para desanuviar a mente. Três dias antes de retor­nar para Nova York ele tropeçou, literalmente, em uma aluna da Universidade de Ohio. Ela e suas irmãs da fraternidade Pi Beta Phi estavam se esforçando para vender livros, solicitando donativos das lojas locais como parte de um evento anual de caridade, e na porta da livraria do meu avô seus caminhos se cruzaram antes que qualquer um deles se apercebesse disso. Em uma explosão alada de páginas e de livros, meu pai e minha mãe caíram no chão, e a agulha do destino firmou os pontos de costura indo e vindo.

Quando voltou para Manhattan, meu pai estava irremedia­velmente perdido, atordoado pelo seu encontro com a moça da fra­ternidade de irmãs, de olhos azuis e longos cabelos, que o chamava de Tigre aludindo a William Blake e não a Princeton. Mesmo antes de encontrá-la, ele sabia que estava farto de Taft. Sabia também que Richard Curry havia tomado seu próprio rumo, obcecado pelo diá­rio do portuário. Agora a vontade de retomar ao lar o atormentava. Com seu pai doente, e com uma mulher à sua espera, meu pai voltou para Manhattan somente para reunir seus pertences e se despedir. Seus anos na Costa Leste, que tinham começado tão promissora­mente em Princeton, com Richard Curry, estavam chegando ao fim.

Quando chegou ao lugar do encontro semanal, no entanto, preparado para contar as novidades, meu pai encontrou uma situação devastadora. Durante sua ausência, Taft e Curry discu­tiram na primeira noite, e confrontaram-se num corpo-a-corpo na segunda. O antigo capitão de futebol provou não estar à altura de um páreo com Vincent Taft, que, tão grande quanto um urso, deu um soco no mais jovem e quebrou-lhe o nariz. Então, na noite anterior ao retorno de meu pai, Curry deixou seu aparta­mento, com os olhos roxos e o nariz enfaixado, para jantar com uma mulher que trabalhava em sua galeria. Quando ele voltou ao seu apartamento naquela noite, os documentos da casa de leilões, juntamente com toda a sua pesquisa sobre o Hypnerotomachia, haviam desaparecido. Sua posse mais cuidadosamente guardada, o diário do portuário, também já não estava lá.

Curry foi rápido nas acusações, mas Taft negou cada uma delas. A polícia, mencionando uma seqüência de roubos locais, deu pouca importância ao desaparecimento de alguns livros antigos. Mas meu pai, chegando nesse meio tempo, tomou imediatamente o partido de Curry. Ambos disseram a Taft que não desejavam mais manter nenhum contato com ele; meu pai explicou que tinha uma passagem para voltar a Columbus pela manhã, e que não preten­dia retomar de lá. Ele e Richard Curry despediram-se ao anoitecer, enquanto Taft os observava silenciosamente.

Assim terminou o período de formação na vida de meu pai, o único ano que pôs em movimento todo o mecanismo de sua futura identidade. Pensando de novo no passado, me pergunto se não ocorre o mesmo com todos nós. A idade adulta é uma geleira que invade silenciosamente a juventude. Quando ela chega, a qua­lidade peculiar da infância subitamente congela, capturando-nos para sempre na imagem do nosso último ato, a postura que assu­mimos quando a idade do gelo se inicia.

Depois do roubo do diário do portuário, Taft desapareceu da vida de meu pai, para só ressurgir como a mutuca de sua car­reira, mordendo por detrás do disfarce de estudioso. Curry não teve contato com meu pai por mais de três anos, até o casamento de meus pais. A carta que ele escreveu na época foi embaraçosa, estendendo-se demasiado principalmente sobre a tristeza dos dias. mais obscuros. As primeiras palavras congratulavam os noivos; depois tudo era sobre o Hypnerotomachia.

O tempo passou: os mundos divergiram. Para Taft, susten­tado pelo ímpeto daqueles primeiros anos, foi oferecida uma par­ticipação no prestigioso Instituto para Estudos Avançados, onde Einstein havia trabalhado no tempo em que morava perto de Princeton. Era uma honra que meu pai certamente invejava, e que liberava Taft de todas as obrigações como professor de faculdade; além de concordar em orientar Bill Stein e Paul, o velho urso nunca tolerou um outro estudante ou ensinou em alguma outra classe. Curry conseguiu um emprego proeminente na Casa de Leilões Skinner, em Boston, e progrediu profissionalmente. Na livraria de Columbus, onde meu pai aprendeu a caminhar, três novas crian­ças mantinham-no suficientemente ocupado para esquecer, por um tempo, que sua experiência em Nova York havia deixado uma impressão permanente. Os três homens, separados por orgulho e circunstâncias, encontraram substitutos para o Hypnerotomachia, um caso de amor sucedâneo para substituir uma pesquisa dei­xada incompleta. O relógio da vida completou mais um ciclo, e o tempo transformou amigos em estranhos. Francesco Colonna, que detinha a chave que daria corda ao relógio, deve ter pensado que seu segredo estava a salvo.

 

                                           Capítulo 7

“Para qual lado?", pergunto a Paul quando a biblioteca desaparece atrás de nós.

“Em direção ao museu de arte", responde ele, curvando-se para manter seco o tecido que envolvia o livro.

Para chegar lá passamos por Murray-Dodge, um edi­fício cuja forma lembra uma bolha de pedra, na parte mais movimentada, ao norte do campus. Lá dentro, um estudante de teatro está representando Arcádia de Tom Stoppard, a última peça que Charlie tinha de ler para o seu curso de inglês, e a primeira a que eu e ele assistiríamos juntos. Tínhamos entradas para a sessão de domingo à noite. Murmurando através das paredes do palco, que parecia um caldeirão, che­gava até nós a voz de Thomasina, o prodígio da peça de treze anos de idade, que me fez lembrar de Paul na primeira vez que a li.

Se você puder parar cada átomo em sua posição e direção, ela estava dizendo) e se sua mente puder compreender todas as ações assim suspensas, então se você for realmente, realmente bom em álgebra, poderá escrever a fórmula para todo o futuro.

Sim, balbucia seu professor particular, que está exaurido pela engenhosidade da sua mente. Sim, até onde posso perceber, você é a primeira pessoa que pensou sobre isso.

Ao longe, a entrada da frente do museu de arte parece estar aberta, um pequeno milagre em uma noite de feriado. Os cura­dores de museu são um grupo estranho, metade deles silenciosa como bibliotecários, a outra metade caprichosa como artistas, e fiquei com a impressão de que muitos prefeririam deixar alu­nos do jardim-de-infância pintar com os dedos sobre quadros de Monet do que permitir a entrada de um estudante não graduado no museu, quando não era estritamente necessário.

McCormick Hall, o edifício do departamento de histó­ria, situa-se quase em frente ao próprio museu e a parede de sua entrada é revestida de vidro. Quando nos aproximamos, os guar­das de segurança nos olham através do aquário. Como uma das exibições de vanguarda que Katie me levou para ver, que eu nunca entendi, todos eles parecem reais, mas estão perfeitamente, silen­ciosamente imóveis. Uma tabuleta na porta anuncia ENCONTRO DOS CURADORES DO MUSEU DE ARTE DE PRINCETON. Em letras menores está escrito: Museu Fechado ao Público. Eu hesito, mas Paul precipita-se para dentro.

"Richard”, ele grita no saguão principal.

Um punhado de patronos se volta para olhar, mas nenhum rosto familiar. Quadros realçam as paredes do andar principal, janelas coloridas nessa casa branca lúgubre. Vasos gregos recons­truídos assentam-se em pilares que chegam até a cintura em uma sala próxima.

"Richard", repete Paul, mais alto agora.

A cabeça calva de Curry gira sobre seu longo e grosso pes­coço. Ele é alto e magro e está usando um terno risca-de-giz feito sob medida e uma gravata vermelha. Quando avista Paul vindo em sua direção, seus olhos negros são pura afeição. A esposa de Curry morreu há mais de dez anos, não tiveram filhos, e agora ele olha para Paul como se fosse seu filho único.

"Rapazes", diz calorosamente, estendendo os braços, como se tivéssemos a metade de nossa idade. Voltando-se para Paul: "Não esperava vê-lo tão cedo. Pensei que só ficaria livre mais tarde. Que boa surpresa!". Seus dedos estão acariciando as abotoaduras, os olhos cheios de prazer. Ele estende a mão para alcançar a mão estendida de Paul.

"Como tem passado?"

Nós sorrimos. A energia na voz de Curry desmente sua idade, mas de outras maneiras a perseguição do tempo se apro­xima. Desde a última vez que o vi, somente seis meses atrás, sinais de rigidez apareciam em seus movimentos, e uma leve depressão também se fazia notar na carne de seu rosto. Richard Curry é agora o proprietário de uma grande casa de leilões em Nova York, e curado r de museus maiores do que este - mas, segundo Paul, depois que o Hypnerotomachia desapareceu de sua vida, a car­reira que o substituiu nunca se tornou mais do que uma ocupa­ção secundária, um esforço para esquecer o que aconteceu antes. Ninguém parecia mais surpreso pelo seu sucesso, e menos impres­sionado por ele, do que o próprio Curry.

       "Ah", diz ele agora, voltando-se como se fosse apresentar alguém. "Vocês viram os quadros?"

Atrás dele está uma tela que nunca vi antes. Olhando em volta, percebo que a arte nas paredes não é a que está usualmente exposta no museu.

       "Essas telas não são da coleção da universidade", comenta Paul.

Curry sorri. "Não, de forma alguma. Cada um dos curado­res trouxe algo para esta noite. Fizemos uma aposta para ver quem de nós podia colocar mais telas emprestadas no museu”.

       Curry, o antigo jogador de futebol, ainda guarda um resquí­cio, em sua linguagem, de jogos e disputas e apostas de cavalheiros.

“Quem ganhou?”, pergunto.    

"O museu de arte", diz ele desviando a questão. "Princeton sai ganhando quando disputamos."

No silêncio que se segue, ele examina os rostos dos patronos que não saíram do grande saguão depois da nossa interrupção.

"Eu ia lhe mostrar isso depois da reunião de curadores': diz ele a Paul, "mas não há motivo para não fazê-lo agora."

Ele faz um gesto convidando-nos para segui-lo, e começa a andar em direção à sala da esquerda. Dou uma olhada para Paul, como que perguntando o que ele pretende, mas Paul parece não saber.

"Sir George Carter trouxe esses dois...", diz Curry, mos­trando-nos ilustrações ao longo do percurso. Dois pequenos qua­dros de Dürer estavam em molduras tão antigas que pareciam ter a textura de madeira flutuante. "E o Wolgemut na parede mais distante." Ele aponta transversalmente ao chão. "Philip Murray trouxe aqueles dois maneristas muito bonitos”.

Curry nos conduz para a segunda sala, onde as obras de arte do fim do século XX foram substituídas por pinturas impressionistas. "A família Wilson trouxe quatro: um Bonnat, um pequeno Manet e dois de Toulouse- Lautrec." Ele nos dá um tempo para apreciá-los. "Os Marquands acrescentaram este Gauguin”.

Atravessamos o saguão principal e na sala de antiguidades ele nos diz: "Mary Knight trouxe somente um, mas é um grande busto romano, e ela disse que ele pode tornar-se uma doação per­manente. É uma mulher muito generosa."

"E os seus?”, pergunta Paul.

Curry nos leva para um grande círculo no primeiro andar, de volta ao primeiro salão. "Este é o meu", diz ele, acenando com a mão.

"Qual deles?", pergunta Paul.

"Todos eles."

Eles trocam um olhar. O saguão principal continha mais de doze trabalhos.

"Venham deste lado”. Curry nos diz, voltando-se para os quadros em uma parede próxima ao lugar onde o encontramos”. “Estes são os que quero lhes mostrar.

Ele nos conduz diante de cada quadro na parede, um de cada vez, mas não diz nada.

"O que eles têm em comum?': ele pergunta, depois de nos deixar apreciá-los.

Sacudo a cabeça, mas Paul percebe de imediato.

"O tema. Todos representam a história bíblica de José."

Curry acena concordando. "José Vendendo Trigo para o Povo”, ele começa, apontando para o primeiro. "Por Bartholomeus Breenbergh, cerca de 1655. Convenci o Instituto Barber a emprestá-lo para nós."

Ele nos dá um momento para apreciá-lo, depois vai até o segundo quadro. "José e seus Irmãos, por Franz Maulbertsch, 1750. Vejam o obelisco em segundo plano”.

"Ele me lembra uma estampa no Hypnerotomachia", eu digo.

Curry sorri. "Também pensei isso no início. Infelizmente, parece não haver conexão entre os dois”.

       Ele caminha em direção a um terceiro.

       "Pontormo", exclama Paul antes que Curry possa dizer alguma coisa.

"Sim. José no Egito."

"Como você conseguiu este?"

"Londres não queria deixá-lo vir diretamente para Princeton. Tive de consegui-lo através do Metropolitan."

Curry está prestes a dizer mais alguma coisa, quando Paul reconhece os dois últimos quadros da série. São um par de painéis com dimensões de vários pés, muito coloridos. A emoção trans­parece em sua voz.

"Andréa del Sarto. Histórias de José. Eu os vi em Florença:' Richard fica silencioso. Ele pagou para que Paul passasse nosso verão de calouros na Itália pesquisando o Hypnerotomachia, a única vez em que Paul saiu do país.

"Tenho um amigo no Palazzo Pitti”, conta Curry, cruzando os braços sobre o peito. "Ele tem sido muito bom para mim. Emprestou-os por um mês."

Paul fica paralisado de assombro por um instante, como­vido e em silêncio. Seu cabelo está todo emaranhado, ainda molhado pela neve, mas um sorriso aparece em seus lábios quando ele se volta de novo para os quadros. Ocorre-me, final­mente, depois de observar sua reação, que os quadros haviam sido montados nessa ordem por alguma razão. Eles formavam um cres­cendo de significado que só Paul podia entender. Curry deve ter insistido nesse arranjo, e os curadores tiveram de concordar, gratos ao curado r que havia trazido mais obras de arte do que todos os outros juntos. A parede à nossa frente é um presente de Curry para Paul, congratulações silenciosas pelo término de sua tese.

"Você leu o poema de Browning sobre Andréa del Sarto?", pergunta Curry, tentando esclarecer.

Eu o li, para um seminário de literatura, mas Paul nega com a cabeça.

"Você faz aquilo com que muitos sonham durante toda a vida", recita Curry. "Sonho? Lute para realizá-lo, e agonize para fazê-lo, e definhe fazendo-o”.

Paul finalmente se volta e coloca uma mão no ombro de Curry. É nesse momento que dá três passos para trás e tira um pacote envolto em tecido de debaixo de sua camisa.

"O que é isso?”, pergunta Curry.

"Algo que Bill acabou de me trazer." Paul vacila, e sinto que está inseguro quanto a como Curry reagirá. Cuidadosamente desembrulha o livro. "Penso que você deve ver isto."

"Meu diário", diz Curry surpreso. Ele o revira em suas mãos. "Não posso acreditar..."

       "Eu vou usá-lo”, explica Paul. "Para terminar a tese."

       Mas Curry o ignora; quando olha para o livro, seu sorriso desaparece. "Onde você o conseguiu?"

"Com Bill."

"Sim. Onde ele o encontrou?"

Paul hesita. Uma rispidez apareceu na voz de Curry.

"Em uma livraria em Nova York”, digo. "Um antiquário."

"Impossível", murmura o homem. "Procurei por este livro em todo lugar. Cada biblioteca, cada livraria, cada casa de penho­res em Nova York. Todas as maiores casas de leilões. Ele havia desaparecido. Durante trinta anos, Paul. Ele simplesmente desa­parecera.

       Ele vira as páginas, examinando-as cuidadosamente com os olhos e as mãos. "Sim, veja. Esta é a seção sobre a qual lhe falei. Colonna é mencionado aqui" - ele avança para um outro apon­tamento, depois para um outro - "e aqui." Abruptamente levanta os olhos. "Bill não o encontrou por acaso justamente nesta noite. Não na noite anterior à entrega do seu trabalho."

"O que quer dizer?"

"E o desenho?': pergunta Curry. "Bill também o deu a você?"

"Que desenho?"

"O pedaço de couro." Curry forma dimensões com seus polegares e indicadores, de cerca de trinta centímetros quadrados. "Estava encartado no centro do diário. Havia um desenho nele. Uma cópia heliográfica."

"Não estava aí", diz Paul.

Curry de novo revira o livro em suas mãos. Seus olhos estão frios e distantes.

"Richard, tenho de devolver o diário para Bill amanhã”, diz Paul. "Vou lê-lo hoje à noite. Talvez ele possa me esclarecer sobre a seção final do Hypnerotomachia."

Curry estremece e volta ao presente. "Você não terminou seu trabalho?"

A voz de Paul se enche de ansiedade. "A última seção não é como as demais."

       "Mas e o último prazo para entrega amanhã?"

Quando Paul não responde, Curry passa a mão sobre a capa do diário, depois desiste. "Termine. Não comprometa o que você já conseguiu. Há muita coisa em jogo."

       "Não vou comprometer. Acho que quase encontrei. Estou muito próximo."

"Se você precisar de alguma coisa, é só dizer. Uma autori­zação para escavar. Inspetores. Se houver alguma coisa ali, nós a encontraremos."

       Olho para Paul, me perguntando o que Curry quer dizer.

       Paul sorri nervosamente. "Não preciso de mais nada. Vou encontrar sozinho, agora que tenho o diário."

"Não o perca de vista. Ninguém fez algo como isso antes. Lembre de Browning. 'Aquilo com que muitos sonham durante toda a vida.'''

"Sir", chega uma voz de detrás de nós.

Quando nos viramos, um administrador do museu está vindo em nossa direção.

"Senhor Curry, o encontro dos curadores vai começar logo.

Posso lhe pedir para ir ao andar de cima?"

"Falaremos sobre isso mais tarde”, diz Curry, preparando­-se para subir. "Não sei quanto tempo vai durar essa reunião."

Ele dá um tapinha no braço de Paul, aperta minha mão, e vai em direção às escadas. Quando ele sobe, ficamos sozinhos com os guardas.

"Eu não devia ter mostrado a ele", diz Paul quase que para si mesmo, quando nos dirigimos para a porta.

Ele faz uma pausa para olhar as imagens mais uma vez, de modo a formar uma memória à qual pudesse voltar quando o museu estivesse fechado. Depois saímos.

"Por que Bill mentiu quanto ao lugar onde encontrou o diário?”, pergunto quando estamos de novo na neve.

"Não acho que ele mentiria", responde Paul.

"Então sobre o que Curry estava falando?"

"Se ele soubesse mais, teria nos contado;'

"Talvez ele não quisesse contar na minha presença." Paul me ignora. Ele gosta de fazer de conta que somos iguais aos olhos de Curry.

"O que ele quis dizer quando falou que o ajudaria a obter autorização para escavar?", pergunto.

Paul olha com irritação, por sobre seu ombro, para um estudante que saiu logo depois de nós. "Não aqui, Tom."

Sei que é melhor não pressioná-lo. Depois de um longo silêncio pergunto: "Você pode me explicar por que todos os qua­dros têm a ver com José?”.

A expressão de Paul se desanuvia. "Gênesis 37." Ele se detém para recordar. "Agora Jacó ama José mais do que todos os seus filhos, porque ele era o filho de sua velhice. E fez para ele um manto de muitas cores."

Levei um segundo para compreender. A dádiva das cores. O amor de um velho pai por seu filho favorito.

"Ele está orgulhoso de você”, eu digo.

Paul acena concordando. "Mas eu ainda não terminei. O trabalho não está pronto."

"Não é por causa disso", eu lhe digo.

Paul sorri superficialmente. "É claro que é."

Voltamos para o dormitório, e observo um tom desa­gradável no céu: ele está escuro, mas não perfeitamente negro. Toda a abóbada está matizada de nuvens de neve de horizonte a horizonte, e elas são de um cinza brilhante e pesado. Não se vê nenhuma estrela.

Na porta dos fundos do Dod, percebo que não temos como entrar. Paul faz sinais para um sênior do andar de cima, que nos lança um olhar esquisito antes de nos emprestar seu cartão de identidade. Um pequeno sensor registra o cartão com um bip, depois destranca a porta com um som que lembra o de uma espin­garda sendo destravada. No porão duas juniores estão dobrando roupas em uma mesa aberta, vestindo camisetas e shorts curtos no calor opressivo da lavanderia. Nunca falha: andar na lavande­ria no inverno é como entrar em uma miragem no deserto, o ar trêmulo de calor, corpos fantásticos. Quando está nevando fora, a visão de pernas e ombros nus é melhor do que um trago de uísque para bombear o sangue de novo. Estamos em algum lugar perto do Holder, mas parece que nos encontramos na sala de espera do Nu Olímpico.

Subo para o primeiro andar e me dirijo para o setor norte do edifício, na última ala, onde fica nosso quarto. Paul se arrasta silencioso atrás de mim. Quanto mais nos aproximamos, mais penso sobre as duas cartas em cima da mesa de café. Mesmo a des­coberta de Bill não é suficiente para distrair-me. Durante semanas pensei no que uma pessoa poderia fazer com quarenta e três mil dólares por ano. Fitzgerald escreveu uma história curta sobre um diamante do tamanho do Ritz, e nos momentos antes de cochilar, quando as dimensões das coisas são instáveis, posso me imaginar comprando um anel com aquele diamante, para uma mulher que também está no sonho. Em algumas noites penso em comprar artigos encantados, do mesmo modo que as crianças fazem nos jogos que brincam, como um carro que nunca fosse destruído, ou uma perna que sempre se curaria. Charlie me mantém com o pé no chão quando me deixo arrebatar. Diz que devo comprar uma coleção de sapatos muito caros com grossas solas de couro, ou dar entrada para adquirir uma pequena casa.

"O que eles estão fazendo?", pergunta Paul, apontando para o saguão.

Charlie e Gil estão parados, lado a lado, no final do cor­redor. Pela porta aberta do nosso quarto, acompanham com o olhar alguém que se encontra lá dentro. Um segundo olhar me diz tudo: a polícia do campus está aqui. Alguém deve ter visto quando saímos dos túneis.

"O que está acontecendo?'~ indaga Paul, acelerando os passos. Eu me apresso em segui-lo.

A inspetora está pegando alguma coisa no chão. Posso ouvir Charlie e Gil argumentando, mas não consigo distinguir as palavras. Quando eu já preparava desculpas para explicar o que fizéramos, Gil nos vê e diz. "Está tudo bem. Nada foi levado".

"O quê?"

Ele aponta para a porta. O quarto, percebo agora, está em desordem. Travesseiros no chão, livros jogados das prateleiras. No dormitório que divido com Paul, as gavetas de roupas estão abertas.

"Oh Deus...", sussurra Paul, abrindo caminho entre mim e Charlie.

       "Alguém arrombou", explica Gil.

       "Alguém entrou", corrige Charlie. "A porta não estava fechada."

Virei-me para Gil. No último mês Paul nos pediu para manter o quarto fechado enquanto terminava sua tese. Gil foi o único que esqueceu.

       "Olhe", disse ele defensivamente, apontando para a janela.

"Eles entraram por ali. Não pela porta."

Uma poça de água tinha se formado debaixo da janela, na face norte da saleta. Seu caixilho foi completamente forçado e a neve se acumula no peitoril, na parte de fora da janela. Há três grandes cortes na grade.

Entro em meu dormitório com Paul. Seus olhos estão pers­crutando os cantos da gaveta de sua escrivaninha, depois percor­rem os livros colocados em uma prateleira de parede que Charlie construiu para ele. Os livros sumiram. Ele se vira de um lado para o outro tentando encontrá-los. Sua respiração está ruidosa. Por um instante voltamos para os túneis; onde nada é familiar a não ser as vozes.

Não importa, Charlie. Não foi assim que eles entraram. Não importa para você, porque eles não tiraram nada de seu. A inspetora ainda está andando pelo quarto.

"Alguém deve ter percebido...", murmura Paul consigo mesmo.

       "Olhe aqui embaixo”, eu digo apontando para o colchão da parte inferior do beliche.

       Paul se vira. Os livros estão salvos. Com as mãos tremendo, ele começa a checar os títulos.

Verifico os meus próprios pertences, encontrando tudo em ordem. A poeira nem chegou a ser tocada. Alguém deu uma espiada em meus papéis, mas só uma reprodução emoldurada da página da frente do Hypnerotomachia, um presente de meu pai, foi tirada da parede e aberta. Um lado está torto, mas fora isso não houve nenhum dano. Seguro-a em minhas mãos. Olhando ao redor, localizo um único livro meu fora do lugar: a prova ini­cial de A Carta de Beladona, antes que meu pai decidisse que O Documento Beladona produziria uma associação mais adequada.

       Gil pára no vestíbulo entre os quartos e nos chama. "Eles não mexeram em nada meu ou de Charlie. E quanto a vocês, rapazes?"

       Há um pouquinho de culpa em sua voz, uma esperança de que, apesar da bagunça, nada realmente tivesse desaparecido.

       Quando olho em sua direção, percebo o que quer dizer. O outro dormitório permanece exatamente como antes.

       "Minhas coisas estão em ordem", digo a ele.

"Eles não acharam nada", me diz Paul.

Antes que eu pudesse perguntar o que ele quer dizer, uma voz vinda do vestíbulo nos interrompe.

"Posso fazer algumas perguntas a vocês?"

A inspetora, uma mulher com pele coriácea e cabe­los ondulados, nos lança um olhar examinador quando saímos de nosso quarto, encharcados pela neve. A calça de moletom de Katie que Paul está usando e a camisa de nado sincronizado que emprestei de Katie chamam a sua atenção. A mulher, identificada como tenente Williams pela etiqueta no bolso de sua camisa, puxa uma esferográfica do casaco.

"Vocês dois são...?"

"Tom Sullivan”, eu digo. "Ele é Paul Harris."

''Alguma coisa de vocês foi roubada?"

Os olhos de Paul ainda estão examinando seu quarto, igno­rando a inspetora.

"Não sabemos”, respondo. .

Ela relanceia os olhos rapidamente. "Vocês olharam por toda parte?"

"Ainda não percebemos nada que pudesse estar faltando."

"Quem foi a última pessoa que deixou o quarto esta noite?"

“Por quê?”

Williams pigarreia. "Porque sabemos quem deixou a porta destrancada, mas não quem deixou a janela aberta”.

Ela se detém sobre as palavras porta e janela, lembrando-nos que nós mesmos havíamos provocado os fatos.

Paul percebe a janela de repente. Ele empalidece. "Devo ter sido eu. Estava muito quente dentro do dormitório, e Tom não queria a janela aberta. Eu então vim trabalhar aqui e depois devo ter esquecido de fechá-la."

"Olhe", diz Gil à inspetora, vendo que ela não estava se esforçando para nos ajudar, "podemos acabar com isso? Penso que não há mais nada para ver."

Sem esperar por uma resposta, ele força para fechar a janela e conduz Paul até o sofá, sentando-se ao lado dele.

A inspetora faz um rabisco final em seu bloco de apon­tamentos. "Janela aberta, porta destrancada. Nada foi tirado. Alguma coisa mais?"

Ficamos em silêncio.

Williams sacode a cabeça. "Os roubos são difíceis de resol­ver", diz ela, como contestando nossas altas expectativas. "Vamos prestar queixa na delegacia. Da próxima vez, tranquem tudo antes de sair. Com isso podem evitar alguns contratempos. Manteremos contato se tivermos qualquer outra informação”.

Ela caminha em direção à saída, as botas fazendo barulho a cada passo. A porta bate e tranca sozinha.

Dirijo-me até a janela para dar uma outra olhada. A neve derretida no chão está perfeitamente límpida.

"Eles não vão fazer nada", diz Charlie, balançando a cabeça.

"Não importa", comenta Gil. "Nada foi roubado."

Paul está silencioso, mas seus olhos ainda estão inspecio­nando o quarto.

Levanto o caixilho da janela, deixando o vento entrar de novo no quarto. Gil se volta para mim, aborrecido, mas estou olhando para os cortes na grade. Eles seguem as bordas da mol­dura em três lados, deixando a grade agitar-se no vento como uma porta de cachorro. Olho de novo para o chão. Há lama apenas nos meus sapatos.

"Tom", me chama de volta Gil, "feche a droga da janela." Paul se volta para olhar também.

O batente foi forçado para fora, como se alguém tivesse saído pela janela. Mas algo está errado. A inspetora não se preocu­pou em verificar.

"Venham ver", digo, passando meus dedos sobre as fibras da grade na borda de cada corte. Como o batente, todos os pontos de incisão apontam para fora. Se alguém tivesse cortado a grade para entrar, as beiradas cortadas apontariam para nós.

Charlie já está dando uma olhada pelo quarto.

"Também não há lama", diz ele, apontando para a poça no chão.

Ele e Gil trocam um olhar, que Gil parece tomar como uma acusação. Se a grade foi cortada a partir de dentro, então voltamos à porta destrancada.

"Isso não faz sentido", diz Gil. "Se sabiam que a porta estava aberta, não iriam sair pela janela."

"De todo jeito não faz sentido”, eu digo. "Uma vez que você está dentro, sempre pode sair pela porta."

"Devíamos falar com a inspetora a respeito", diz Charlie, movimentando-se de novo. "Não posso acreditar que ela nem        percebeu isso."

Paul não diz nada, mas passa a mão pelo diário.

Volto-me para ele. "Você ainda vai para a palestra de Taft?"

"Acho que sim. Ainda falta uma hora para começar”.

Charlie está recolocando os livros na prateleira de cima, onde só ele alcança. "Vou parar em Stanhope no caminho", diz ele. "Para contar aos bedéis o que eles não perceberam."

"Foi provavelmente uma brincadeira", comenta Gil para ninguém em particular. "Participantes do Nu Olímpico divertindo-se."

Depois de mais alguns minutos de arrumação, todos deci­dimos já ser o bastante. Gil começa a se trocar, atirando a camiseta de Katie num saco de roupa para lavagem a seco e colocando um conjunto de lã. "Podemos comer algo em Ivy, no caminho."

Paul concorda, virando as páginas de sua cópia de O Mundo Mediterrâneo na Época de Felipe II, de Braudel, como se as páginas pudessem ter sido roubadas. "Preciso conferir meus per­tences no clube."

"Vocês devem querer se trocar", acrescenta Gil, olhando para nós.

Paul está muito preocupado para ouvi-lo, mas eu sei o que Gil quer dizer, então volto para o dormitório. Ivy não é o tipo de lugar em que posso ser surpreendido vestido dessa maneira. Só Paul, um fantasma em seu próprio clube, vive sob regras diferentes.

O que percebo quando examino minhas gavetas é que quase todas as roupas estão sujas. Depois de uma inspeção minu­ciosa no fundo do meu armário, encontro um par enrolado de calças cáqui e uma camisa que esteve dobrada por tanto tempo que as dobras tornaram-se vincos e os vincos, pregas. Ao procurar minha jaqueta de inverno, lembro que ela ainda está pendurada na sacola de lona de Charlie nos túneis de vapor. Então pego o casaco que minha mãe me deu no Natal e me dirijo para a saleta, onde Paul está sentado à janela, com os olhos nas prateleiras, o ar enigmático.

"Está levando o diário com você?", pergunto.

Ele dá um tapinha no pacote envolto em tecido, em seu colo, e acena que sim.

"Onde está Charlie?': indago, olhando ao redor.

"Já foi”, diz Gil, conduzindo-nos para fora do saguão. "Para encontrar os bedéis."

Ele pega as chaves do seu Saab e as coloca dentro do casaco. Antes de fechar a porta atrás de nós, verifica seus bolsos.

"Chaves do quarto... chaves do carro... Carteira de identidade..."

Ele está tão cauteloso que chego a me sentir desconfor­tável. Essa não é a maneira habitual de Gil de preocupar-se com detalhes. Olhando de novo para a saleta, vejo minhas duas car­tas sobre a mesa. Depois Gil tranca a porta com a mesma preci­são enfadonha, experimentando a maçaneta duas vezes para ter certeza de que ela não cede. Vamos para o seu carro, e agora o silêncio está pesado. Quando ele dá a partida, os bedéis trocam de turno ao longe, sombras nas sombras. Nós os observamos durante um momento, depois Gil arranca com velocidade e des­lizamos no escuro.

 

                                                Capítulo 8

Depois do quiosque da segurança, na entrada norte do cam­pus, viramos à direita para a rua Nassau, a maior de Princeton. A essa hora ela está deserta, patrulhada por duas máquinas de remo­ver neve e um caminhão de sal que alguém tirou da hibernação. Butiques esparsas brilham na noite, a neve se juntando debaixo de suas janelas fronteiras. A Talbot e a Micawber Books estão fechadas a essa hora, mas a Pequod Copy e os cafés parecem agitados, cheios com os seniores apressados em completar suas teses na décima pri­meira hora antes do último prazo do departamento.

"Feliz por ter terminado?”, Gil pergunta para Paul, que de novo se fechou em si mesmo.

"Minha tese?"

Gil olha no espelho retrovisor.

"Ela ainda não está terminada", diz Paul.

"Ora essa! Ela está pronta. O que falta fazer?"

A respiração de Paul embaça o vidro de trás. "Falta bas­tante", ele responde.

No farol, viramos na Washington Road, depois seguimos em direção à Prospect Avenue com seus restaurantes. Gil acha melhor não fazer mais perguntas. Quando nos aproximamos da Prospect, sei que seus pensamentos já gravitam em outro lugar. No sábado à noite é o baile anual do Ivy Club, e cabe a ele, como presidente do clube, supervisionar a organização. Depois de negli­genciar a preparação do baile enquanto terminava sua tese, ele tomou como hábito fazer pequenos passeios até Ivy só para se convencer de que tudo estava sob controle. De acordo com Katie, amanhã à noite, quando eu chegar para acompanhá-la, terei difi­culdade em reconhecer o interior do clube.

Paramos ao lado da sede do clube, no espaço que parece estar reservado para Gil, e quando ele tira a chave da ignição um silêncio frio ecoa dentro do carro. Sexta-feira é o dia de calmaria em meio ao tumulto do fim de semana, uma ocasião para ficar sóbrio entre as tradicionais noites de festa da terça e do sábado. A neve recente amorteceu até o zumbido de vozes que freqüentemente flutua no ar quando juniores e seniores voltam para o campus depois do jantar.

De acordo com os administradores, os clubes-restaurantes de Princeton são uma "opção para jantar das classes superiores". A realidade é que os clubes-restaurantes são quase a única opção que temos. Nos primeiros tempos da faculdade, quando o calor dos refeitórios e os estalajadeiros carrancudos forçaram os estudantes a prover sua própria subsistência, pequenos grupos se reuniram para fazer suas refeições sob o mesmo teto. Princeton sendo o que era naqueles dias, os tetos sob os quais comiam, e os clubes que eles construíram para sustentar aqueles tetos, não foram pequenos negócios; alguns deles são até maiores do que uma casa de campo de grandes dimensões. E até hoje o clube-restaurante permanece uma instituição típica de Princeton: um lugar, como uma frater­nidade de alunos, onde juniores e seniores fazem festas e tomam refeições, mas não residem. Quase cento e cinqüenta anos depois que a instituição foi fundada, a vida social em Princeton é fácil de explicar. Ela está firmemente assentada nas mãos dos clubes.

Ivy é de uma austeridade assustadora a essa hora. ­

Escondida no negrume da noite, a construção em pedras escu­ras com suas extremidades aguçadas não é convidativa. O Cottage Club, ao lado, com pedras brancas e realces redondos, facilmente o ofusca. Esses dois clubes irmãos, mais antigos do que os outros dez na Prospect Avenue, são os mais exclusivos de Princeton. A rivalidade entre eles para atrair o melhor de cada classe já perdura desde 1886.

Gil espia o relógio. "Não há mais lugares para jantar. Vou conseguir alguma comida para nós”. Ele mantém a porta da frente aberta, depois nos guia pelas escadas principais.

Faz algum tempo desde minha última visita aqui, e as pare­des revestidas de carvalho escuro, com seus quadros de aparência severa, sempre me deixam hesitante. À esquerda fica a sala de jan­tar de Ivy com suas longas mesas de madeira e cadeiras inglesas com cem anos de idade; à direita, a sala de bilhar, onde Parker Hassett está jogando uma partida sozinho. Parker é o idiota da comunidade, o pateta de uma família abastada que é bastante esperto para perceber quão imbecil os outros acham que ele é e suficientemente estúpido para culpar todos os demais por isso. Ele joga bilhar com ambas as mãos, movendo o taco como um ator de teatro de variedades que estivesse dançando com uma taquara. Embora ele nos olhe quando passamos, eu o ignoro enquanto subimos a escada para a sala da administração do clube.

Batendo duas vezes na porta, Gil entra sem esperar res­posta. Nós o seguimos para dentro da sala, iluminada de maneira agradável, onde Brooks Franklin, o corpulento vice-presidente de Gil, está sentado a uma longa mesa de mogno que se estende lon­gitudinalmente quase até a porta. Sobre a mesa há um abajur da Tiffany e um telefone. À sua volta estão colocadas seis cadeiras.

"Estou contente por vocês terem aparecido", diz Brooks dirigindo-se a todos nós, ignorando educadamente o fato de Paul estar vestindo roupas de mulher. "Parker estava me contando os seus planos sobre os trajes para amanhã à noite, e eu estava come­çando a pensar que também preciso de ajuda."

Não conheço Brooks muito bem, mas desde que freqüen­tamos juntos as aulas introdutórias de economia, no segundo ano, ele se relaciona comigo como com um velho amigo. Estou achando que os planos de Parker dizem respeito a uma reunião dançante no sábado, que é tradicionalmente, em Princeton, um baile temático à fantasia.  ­

"Gil, seu sacana, eu quero que você se dane", diz Parker, vindo inesperadamente do andar térreo. Ele segura um cigarro em uma mão e um copo de vinho na outra. "Pelo menos você tem senso de humor."

Ele fala diretamente com Gil, como se eu e Paul fossemos invisíveis. Lá na mesa posso ver Brooks menear a cabeça.

"Decidi vir como JFK”, continua ele. "E minha acompa­nhante não será Jackie. Vai ser Marilyn Monroe”.

Parker deve ter notado a confusão em meu rosto, porque apaga seu cigarro no cinzeiro sobre a mesa. "Sim, Tom", diz ele, "Kennedy se formou em Harvard. Mas passou aqui o seu ano de calouro."

Último rebento de uma família de produtores de vinhos da Califórnia, que durante gerações enviou um filho para Princeton e para Ivy, Parker ultrapassou essas duas barreiras somente gra­ças ao que Gil, caridosamente, chama de momentum da família Hassett.

Antes que eu consiga responder, Gil se inclina para a frente. "Olhe, Parker, não tenho tempo para isso. Se você quer vir como Kennedy, é assunto seu. Tente somente demonstrar bom gosto.

Parker, que parecia esperar algo melhor, atira um olhar carrancudo para todos nós e sai, levando seu copo de vinho.

"Brooks”, diz Gil agora, "será que você pode descer e per­guntar ao Albert se sobrou alguma coisa para jantar? Ainda não comemos e estamos com pressa.

Brooks concorda. Ele é o perfeito vice-presidente: pres­tativo, incansável, leal. Mesmo quando o favor que Gil pede soa mais como uma ordem, ele nunca parece ficar contrariado. Hoje foi a única vez em que me pareceu cansado, e gostaria de saber se ele terminou sua tese.

"Pensando bem", acrescenta Gil, erguendo os olhos, "vou pedir para trazerem dois pratos aqui para cima e eu irei comer o meu na sala de jantar. Podemos falar sobre a encomenda de vinho para amanhã enquanto janto."

Brooks se volta para mim e Paul. "Foi bom ver vocês, rapa­zes", diz ele. "Peço desculpas pelo Parker. Não sei o que dá nele algumas vezes."

"Algumas vezes?", digo baixinho.

Brooks deve ter ouvido, porque sorri antes de sair.

''A comida deve ficar pronta em alguns minutos", diz Gil.

"Vou estar lá embaixo, se vocês precisarem de mim." Ele se con­centra em Paul. "Podemos ir para a aula logo que vocês tiverem terminado."

Por um segundo, depois que eles saíram, não posso deixar de sentir que Paul e eu estamos cometendo algum tipo de fraude. Estamos sentados a uma mesa antiga de mogno, em uma casa do século XIX, esperando que nos tragam nossos jantares. Se eu ganhasse uma moeda por cada vez que isso me aconteceu desde que entrei em Princeton, teria de conseguir mais uma para poder esfregar as duas juntas. Cloister Inn, o clube do qual eu e Charlie somos sócios, é uma construção em pedra, simples e pequena, mas muito acolhedora. Quando os assoalhos estão encerados e a relva aparada, é um lugar respeitável para se tomar uma cerveja ou jogar bilhar. Mas tratando-se de proporções e pompa parece um anão perto de Ivy. A prioridade principal de nossos chefes é a quantidade, não a qualidade, e, diferentemente de nossos amigos de Ivy, comemos onde temos vontade, em vez de nos sentarmos por ordem de chegada. Metade de nossas cadeiras é de plástico, todos os nossos talheres são descartáveis, e, algumas vezes, quando as festas que damos são muito dispendiosas, ou as bebidas alcoóli­cas rolam à vontade, encontramos hot dogs na bandeja do almoço na sexta-feira. Somos semelhantes à maioria dos outros clubes. Ivy sempre foi uma exceção.

"Vamos lá para baixo comigo", diz Paul abruptamente.

Sem ter certeza do que ele quer, sigo atrás. Descemos pas­sando pelas janelas com vitrais coloridos ao longo da plataforma entre os dois lances de escadas, depois por uma outra escada até o porão do clube. Paul me conduz através do saguão para a sala do presidente. Só Gil deveria ter acesso a essa sala, mas quando Paul começou a se preocupar por ter cada vez menos privacidade em sua sala privada na biblioteca, enquanto tentava terminar sua tese, Gil lhe prometeu uma cópia da chave, esperando atraí-lo de volta para o clube. Na época, Paul não se deixou seduzir por tão pouco, obcecado pelo trabalho como estava. Mas a sala do presi­dente, ampla, silenciosa e diretamente acessível para Paul através dos túneis de vapor, era uma benção que ele não podia recusar.

Outros protestaram dizendo que Gil tinha transformado a sala mais exclusiva do clube em uma hospedaria, mas Paul neutrali­zava toda a controvérsia sobre a sala chegando quase sempre através dos túneis. Parecia que os incomodados se aborreciam menos quando não o viam ir e vir.

Quando chegamos diante da porta, Paul a abre rapida­mente com sua chave. Entrando atrás dele, sou apanhado de sur­presa. Passaram-se semanas desde a última vez em que estive no local. A primeira coisa que lembro é de como faz frio nessa sala. Ali, no que é efetivamente o porão do clube, a temperatura baixa quase ao ponto de congelar. Exclusiva ou não, a sala parece ter sido atingida por um furacão de textos. Livros estão dispostos em toda sua extensão como montes de entulho: as prateleiras de Ivy, revesti das com os clássicos europeus e americanos, ficaram quase escondidas pelos livros de referência de Paul, revistas de história, mapas náuticos e desenhos dispersos em cópias heliográficas.

Ele fecha a porta atrás de si. Ao lado da escrivaninha há uma lareira bastante ampla, e a desordem de papéis ali é tão grande que alguns dos títulos estão jogados no piso próximo a ela.

No entanto, quando Paul examina a sala, parece satisfeito; tudo está como ele deixou. Ele anda em meio à desordem e apanha do chão A Poesia de Michelangelo, remove alguns fragmentos de tinta da capa e coloca o livro cuidadosamente sobre a escrivaninha. Encontrando um palito de fósforo longo sobre a cornija da lareira, ele o acende e logo uma chama azul aparece no meio de velhos jornais prensados sob pedaços de madeira.

"Você trabalhou bastante", eu digo, olhando para uma­ das cópias heliográficas, bem detalhada, separada em cima da escrivaninha.

Ele franze o cenho. "Isso não é nada. Fiz dúzias dessas, e pro­vavelmente estão todas erradas. Eu as fiz quando queria desistir”.

Agora observo o desenho de um edifício criado por Paul. Ele foi reconstituído a partir de ruínas de construções mencio­nadas no Hypnerotomachia: arcos quebrados foram restaurados; os alicerces estão firmes de novo; colunas e remates, outrora des­pedaçados, estão agora reparados. Há toda uma pilha de cópias heliográficas debaixo dessa, cada uma montada da mesma maneira segundo a miscelânea da imaginação de Colonna, uma diferente da outra. Paul criou um cenário para viver aqui em baixo, uma Itália que inventou. Nas paredes estão presos outros esboços, alguns escondidos debaixo de notas que ele afixou em cima. Em cada um deles as linhas são estudadamente arquitetôni­cas, medidas em unidades que não compreendo. Um computador parece ter produzido todas elas, as proporções são muito perfeitas, a letra muito exata. Mas Paul, que diz suspeitar de computadores, nunca, na verdade, foi capaz de ter o seu próprio, e educadamente recusou a oferta de Curry de comprar-lhe um. Tudo aqui foi dese­nhado à mão.

“O que os esboços representam?”, perguntou.

"O edifício que Francesco está projetando."

Eu quase havia esquecido o hábito de Paul de referir-se a Colonna no tempo presente, usando sempre o seu primeiro nome.

"Que edifício?"

"A cripta de Francesco. A primeira parte do Hypnerotomachia diz que ele a está desenhando. Lembra?"

       "É claro. Você acha que se parece com isso?", pergunto, apontando para o desenho.

       "Não sei. Mas vou descobrir”.

       "Como?" Lembro então do que Curry dissera no museu. "É para isso que precisa de um laudo de inspeção? Você vai exumá-lo?"

       "Talvez”.

       "Então você descobriu onde Colonna a construiu?"

Essa fora a questão-chave à qual chegamos, bem quando o nosso trabalho juntos chegou ao fim. O texto do Hypnerotomachia aludia misteriosamente a uma cripta que Colonna estava cons­truindo, mas eu e Paul nunca conseguimos concordar sobre sua natureza. Paul a vislumbrava como um sarcófago renascentista para a família Colonna, que pretendia possivelmente rivalizar com as tumbas papais do tipo que Michelangelo projetava mais ou menos no mesmo período. Tentando com muito empenho relacionar a cripta ao O Documento Beladona, imaginei-a como um lugar de repouso final para as vítimas de Colonna, uma teoria que se mantinha por causa do grande sigilo do Hypnerotomachia sobre o projeto. O fato de que Colonna nunca descreveu comple­tamente a construção, ou onde poderia ser encontrada, permane­cia como a maior lacuna no trabalho de Paul no momento em que abandonei nossa parceria.

Antes que ele possa responder a minha pergunta, uma batida soa na porta.

"Vocês decidiram vir para cá?", pergunta Gil, entrando com o garçom do clube.

Ele pára abruptamente, avaliando a sala de Paul como um homem que entra em um banheiro de mulher, embaraçado mas intrigado. O garçom coloca duas guarnições com guardanapos de tecido sobre a mesa) descobrindo espaços entre os livros. Entre elas, põe dois pratos de porcelana do Clube de Ivy, uma jarra de água e um cesto de pão.

"Pão quente feito em casa”, diz o garçom, colocando o cesto.

"Filé ao molho de pimenta", complementa Gil, imitando o garçom. “Algo mais?”

Sacudimos a cabeça e Gil dá uma última espiada pela sala, depois se retira.

O garçom coloca água em nossos copos. "Vocês gostariam de outra coisa para beber?"

       Quando dizemos que não, ele também desaparece.

Paul se serve rapidamente. Observando-o comer lembro-me da impressão de Oliver Twist que ele me causou na primeira vez que nos encontramos, a pequena tigela que formou com as mãos.

Algumas vezes me pergunto se a primeira lembrança que Paul tem da infância é a de fome. Na escola paroquial onde foi criado, ele dividia a mesa com seis outras crianças, e as refeições eram sempre assim: quem chegava primeiro era servido primeiro, até a comida acabar. Não estou certo de que tenha jamais se livrado dessa men­talidade. Em uma noite do nosso ano de calouro, quando todos comíamos juntos no salão da faculdade, Charlie brincou que Paul engolia tudo tão depressa que se poderia achar que comer não era um ato digno. Mais tarde, na mesma noite, Paul explicou o motivo e nenhum de nós voltou a brincar sobre o assunto.

Paul estica o braço para apanhar um pedaço de pão, tomado pelo prazer de comer. O odor da comida compete com o fedor dos velhos livros embolorados e com a fumaça do fogo, de uma maneira que eu até poderia apreciar em outras circunstân­cias. Mas aqui, agora, com diferentes memórias reunidas, torna-se desagradável. Como se pudesse ler minha mente, Paul se dá conta do seu gesto e parece inseguro.

Empurro o cesto para ele. "Coma", eu digo, cortando o filé.

Atrás de nós, o fogo crepita. No canto da sala há uma aber­tura na parede, do tamanho de um criado-mudo enorme: é a entrada para os túneis de vapor, a que Paul prefere.

"Não acredito que você ainda rasteja por eles”.

Ele pousa seu garfo. "É melhor do que lidar com qualquer um aí em cima”.

"Isso se parece com um calabouço."

"Antes não o incomodava."

Percebo um velho argumento vindo à tona. Paul limpa apressadamente a boca no guardanapo. "Esqueça", diz ele, colo­cando o diário sobre a mesa entre nós dois. "Isso é o que importa agora." Ele tamborila com dois dedos na capa e depois empurra o pequeno livro em minha direção. "Temos a chance de terminar o que começamos. Richard acredita que isso poderia ser a chave!'

Eu esfrego uma mancha na escrivaninha. "Talvez você deva mostrá-lo ao Taft”. .

Paul olha boquiaberto para mim. "Vincent acha que tudo que desco1?ri com você é sem valor. Ele tem me pressionado para apresentar relatórios sobre meus avanços duas vezes por semana, só para provar que não desisti. Estou cansado de dirigir até o Instituto cada vez que necessito de sua ajuda e ouvi-lo dizer que este é um trabalho não original”.

"Não original?"

"E ele ameaçou contar ao departamento que eu estou atolado."

"Depois de tudo que descobrimos?"

"Tanto faz”, diz ele. "Não ligo para o que Vincent pensa." Seus dedos tocam no diário mais uma vez. "Quero terminar." "O seu último prazo é amanhã”.

"Fizemos mais em três meses juntos do que eu sozinho em três anos. O que é mais uma noite?" Baixinho, ele acrescenta: "Além do mais, não é o último prazo que importa”.

Fico surpreso ao ouvi-lo dizer isso, mas o choque da rejei­ção de Taft é o que demora a desaparecer. Paul deve saber que seria assim. Sinto mais orgulho pelo trabalho que fiz no Hypnerotomachia do que por todo o trabalho em minha própria tese.

"Taft está doido", eu digo. "Nunca ninguém descobriu tanto no livro. Por que você não pediu uma troca de orientador?"

Paul começa a picar o pão, remexendo os pedacinhos entre os dedos: "Tenho me feito a mesma pergunta': diz ele, olhando a dis­tância. "Você sabe quantas vezes ele se gabou de arruinar a carreira acadêmica de 'algum retardado mental' com a sua crítica cuidadosa ou recomendação de estabilidade? Ele nunca mencionou seu pai, mas existiram outros. Você lembra do professor Macintyre de filologia clás­sica? Lembra do livro dele sobre Keats, Ode sobre uma Urna Grega?"

Acenei que sim. Taft escreveu um artigo sobre o que lhe parecia ser o declínio da qualidade de erudição nas maio­res universidades, e usou o livro de Macintyre como referência principal. Em três parágrafos Taft identificou mais erros reais, prerrogativas ruins e omissões do que duas dúzias de estudiosos encontraram em suas críticas literárias. A desaprovação implí­cita de Taft parecia dirigi da aos críticos, mas foi Macintyre quem se tornou tal alvo de risos que a universidade, por ocasião da revi­são de estabilidade, acabou por afastá-lo do cargo que ocupava no­ departamento. Taft admitiu depois que só estava querendo vingar-se do pai de Macintyre, um historiador renascentista que havia escrito uma crítica confusa sobre um de seus livros.

"Vincent contou-me uma história certa vez", continua Paul, abaixando a voz. "Era sobre um garoto que ele viu cres­cer, chamado Rodge Lang. As crianças na escola o chamavam de Epp. Um dia um cachorro perdido seguiu Epp da escola até sua casa. Epp correu, mas o cachorro continuou a segui-lo. Epp jogou parte do seu lanche para o cachorro, mas este não quis deixá-lo. Finalmente ele tentou assustar o cachorro com um bas­tão, mas o animal continuou a ir atrás dele.

"Depois de algumas milhas, Epp começou a ficar admi­rado. Ele conduziu o cachorro por um caminho de arbustos espi­nhosos. O animal o seguiu. Ele atirou uma pedra no cachorro, mas este não foi embora. Finalmente, Epp chutou o cachorro muitas e muitas vezes. Mas ele continuou ali. Epp chutou o cachorro até matá-lo. Depois o pegou e o levou até sua árvore favorita, onde o enterrou."

Estou quase espantado demais para indagar. "Caramba!, qual é a moral disso?"

"Segundo Vincent, foi só então que Epp soube que havia encontrado um cachorro leal."

Segue-se um silêncio.

"Era essa a idéia que Taft fazia de uma brincadeira?"

Paul concorda com a cabeça. "Vincent contou-me muitas histórias sobre Epp. Elas são todas assim."

"Credo! Por quê?"

"Penso que ele acredita que elas sejam uma espécie de parábola."

"Parábolas que ele mesmo criou?"

"Não sei." Paul hesita. "Mas acontece que Rodge Epp Lang é também um anagrama. Um rearranjo das letras em 'doppelganger'." (doppelganger: trata-se um espírito imaginário que se parece sobremaneira com uma pessoa viva mas se comporta muito diferentemente).

Senti-me mal. "Você acha que Taft faz coisas assim?"

"Com o cachorro? Quem sabe? Ele pode ter feito. Mas, no seu modo de ver, ele e eu temos o mesmo relacionamento. E eu sou o cachorro."

"Mas que droga!, por que você continua trabalhando com ele?"

Paul começa a remexer no pão outra vez. "Tomei uma deci­são. Permanecer com Vincent era a única maneira de conseguir terminar minha tese. Estou lhe dizendo, Tom, estou convencido de que isso que estamos prestes a descobrir é muito maior do que pen­samos. A cripta de Francesco está muito próxima. Ninguém fez um achado como esse em muitos anos. E depois de seu pai ninguém trabalhou mais no Hypnerotomachia do que Vincent. Eu preciso dele”. Paul atira a crosta do pão em seu prato. "E ele sabe disso."

Gil aparece na porta. "Terminei lá em cima", diz ele, como se estivéssemos apenas esperando-o desocupar-se de seus encar­gos. "Podemos ir agora."

Paul parece feliz em terminar a conversa. O comporta­mento de Taft é uma vergonha para ele. Levanto-me e começo a empilhar os pratos.

"Não se dê o trabalho", diz Gil, fazendo sinais para irmos embora. "Eles vão mandar alguém para cuidar disso."

Paul esfrega as mãos animadamente. Migalhas de pão grudam em suas palmas, e ele as tira como se fossem pele velha. Seguimos Gil para fora do clube.

A neve está caindo mais forte do que antes, tão densa que pareço estar observando o mundo através de fragmentos de está­tica. Enquanto Gil dirige o carro para oeste, aproximando-se do auditório, olho para Paul pelo espelho lateral, perguntando-me há quanto tempo ele está guardando tudo isso para si. Passamos entre postes de luz no escuro, e durante curtos espaços de tempo, não consigo vê-lo de jeito nenhum. Seu rosto é só uma sombra.

O fato é que Paul sempre guardou segredos. Durante anos­ escondeu a verdade sobre sua infância, os detalhes de seu pesadelo na escola paroquial. Agora está escondendo a verdade sobre sua relação com Taft. Embora sejamos muito próximos, existe agora uma distância entre nós, um sentimento de que, apesar de ter­mos muito em comum, boas cercas ainda fazem bons vizinhos. Leonardo escreveu que um pintor deveria sempre iniciar uma tela com um banho de preto, porque todas as coisas na natureza são pretas exceto quando expostas à luz. Muitos pintores fazem o oposto, começam com um banho branco e acrescentam a sombra no final. Mas Paul, que conhece Leonardo tão bem que se poderia pensar que o velho homem dorme na parte debaixo do seu beli­che, compreende o valor de começar com as sombras. As únicas coisas que as pessoas podem sempre saber sobre você são aquelas que você as deixa ver.

Eu não teria percebido isso muito bem, se não fosse um episódio interessante que aconteceu no campus alguns anos antes da nossa chegada, e que chamou tanto a minha atenção quanto a de Paul. James Hogue, um ladrão de bicicleta de vinte e nove anos de idade, entrou em Princeton afirmando ser o que não era: um rancheiro de dezoito anos de Utah. Hogue disse que havia apren­dido Platão sob as estrelas, e treinado para correr uma milha, do começo ao fim, em quatro minutos. Quando o time de corrida o levou para uma excursão de recrutamento, ele disse que era a pri­meira vez, em uma década, que dormia dentro de casa. O gabinete de admissão ficou tão encantado que o aceitou na mesma hora. Quando ele adiou sua entrada por um ano, ninguém se preocu­pou com isso. Hogue disse que estava cuidando de sua mãe na Suíça; na verdade, estava cumprindo pena na prisão.

O que tornou o embuste tão intrigante foi que, enquanto aproximadamente metade dele era uma mentira deslavada, a outra metade era mais ou menos verdade. Hogue era tão bom corredor quanto afirmava ser, e durante dois anos foi uma estrela no time de corrida. Também era um craque na sala de aula, acei­tando a dificuldade de um curso sobrecarregado que eu não faria por nada, e, além de tudo, tirando a nota máxima. Ele era mesmo tão encantador que Ivy o escolheu como membro na primavera do seu segundo ano. Parece quase uma vergonha que sua car­reira tenha terminado do jeito que terminou. Por mero acaso, um espectador em uma corrida o reconheceu por causa de uma ocor­rência passada. Quando o rumor se espalhou, Princeton conduziu uma investigação e o prendeu no meio de uma aula de laborató­rio. Foram feitas acusações formais e Hogue foi considerado cul­pado de fraude. Em poucos meses estava de volta à prisão, onde lentamente desapareceu na obscuridade.

Para mim a história de Hogue foi o acontecimento mais original daquele verão; a única coisa que podia rivalizar com ele foi a minha descoberta de que a Playboy havia publicado a foto de uma mulher da Liga de Ivy na edição da primavera anterior. Para Paul, no entanto, esse episódio significou muito mais. Como alguém que sempre insistiu em passar um verniz de ficção em sua própria vida, fazendo de conta que tinha comido bem quando não tinha, ou fingindo que não possuía computador porque não gostava de usá-lo, Paul podia se identificar com um homem que se sentia ameaçado pela verdade. Uma das poucas vantagens de vir do nada, como James Hogue e Paul fizeram, é a liberdade de reinventar a si mesmo. De fato, quanto melhor conheço Paul, mais compreendo que aquela atuação era menos uma liberdade e mais uma espécie de compromisso.

Entretanto, vendo o que aconteceu com Hogue, Paul tem que repensar o limite entre reinventar a si mesmo e enganar todo mundo. Começando no dia em que chegou a Princeton, ele cuidou desse limite muito diligentemente, mantendo segredos em lugar de contar mentiras. Um velho medo me toma quando considero isso. Meu pai, que compreendia a maneira pela qual o Hypnerotomachia o havia seduzido, uma vez comparou o livro a um caso com uma mulher. Ele o faz mentir, disse ele, até para você mesmo. A tese de Paul pode ser exatamente essa mentira: nesses quatro anos com Taft, Paul trabalhou intensamente para compreender o livro, mui­tas vezes nem se deitou e perdeu o sono por causa dele, e apesar de todo o seu suor o livro revelou-se muito pouco.

Olhando de novo pelo espelho lateral, posso vê-lo obser­vando a neve. Existe uma falta de expressão em seu olhar e seu­ rosto parece pálido. Ao longe um sinal está piscando no amarelo. Meu pai me ensinou algo sem dizer uma única palavra: nunca se entregue de maneira tão profunda a alguma coisa cujo fracasso possa lhe custar a felicidade. Paul venderia sua última vaca por um punhado de feijões mágicos. Só agora ele está começando a se perguntar se a haste do feijão vai crescer.

 

                                         Capítulo 9

Creio que foi minha mãe quem disse que um bom amigo nos acompanha em situações de perigo no momento em que lhe pedimos - mas um grande amigo o faz sem que lhe peçamos nada. São tão poucas as vezes em que aparece um único grande amigo na vida de uma pessoa, que parece quase contrário às leis da natureza quando três surgem ao mesmo tempo.

Nós quatro nos encontramos pela primeira vez em uma noite fria no outono do nosso ano de calouro. Paul e eu já pas­sávamos muito do nosso tempo juntos, e Charlie - que se apre­sentou no primeiro dia de aula no quarto de Paul, oferecendo-se para ajudá-lo a desempacotar as coisas - estava vivendo em um quarto para uma pessoa embaixo, no saguão. Por acreditar que nada podia ser pior do que ficar sozinho, Charlie estava sempre procurando novos amigos.

Paul imediatamente teve receio dessa personalidade sel­vagem, imponente, que nunca parava de esmurrar em sua porta com novas aventuras em mente. Algo na compleição atlética de Charlie parecia evocar o fascínio do medo em Paul, como se ele, quando criança, tivesse sido torturado por um valentão de mesma aparência. De minha parte, eu me surpreendia que Charlie não se cansasse de nós, tranqüilos como éramos. Na maior parte daquele semestre, eu estava convencido de que ele iria nos abandonar por companheiros mais afins. Eu o imaginava como um esportista pertencente a uma minoria abastada - o tipo que tinha uma mãe neurocirurgiã e um pai executivo, que passou com facilidade por uma escola preparatória regional com mais professores particula­res do que preocupações, e que chegou a Princeton sem nada de especial em mente, exceto divertir-se um pouco e formar-se de maneira segura com notas médias.

Tudo isso parece engraçado agora. A verdade era que Charlie crescera no coração de Filadélfia, percorrendo com a ambulância do pelotão voluntário os piores distritos de crime da cidade. Ele era um garoto de classe média que freqüentava a escola pública. Seu pai era representante de vendas para uma fábrica de produtos químicos da Costa Leste e sua mãe ensinava ciência para o sétimo grau. Quando quis fazer faculdade, seus pais deixaram claro que ele deveria arcar com qualquer quantia além da mensalidade esco­lar. Quando Charlie chegou ao campus, ele tinha assumido mais empréstimos, e estava mais endividado, do que qualquer um de nós estaria quando formado. Para Paul, que tinha menos recursos, foi dada uma bolsa de estudos integral por causa de sua carência.

Foi talvez por isso que, diferentemente de Paul durante seu mês de insônia, à medida que o último prazo para sua tese se aproximava, nenhum de nós fez mais nem dormiu menos do que Charlie. Ele esperava grandes coisas pelo seu dinheiro e, para justificar seu sacrifício, ele se sacrificava ainda mais. Não era fácil manter um sentido de identidade em uma escola onde só um em cada quinze estudantes era negro, e só metade deles era homem. Mas para Charlie, de todo modo, a identidade nunca se desenvol­veu ao longo de linhas completamente convencionais. Ele tinha uma personalidade que o fazia ser o melhor naquilo a que se pro­punha e um senso irresistível de determinação, e desde o início senti que estávamos vivendo no mundo dele, não no nosso.

É claro que não sabíamos de nada disso naquela noite do final de outubro, só seis semanas depois que o conhecemos, quando ele veio até a porta de Paul com a intenção de marcar uma data para seu plano mais ousado. Desde aproximadamente a Guerra Civil, os estudantes em Princeton tinham o costume de roubar o badalo do sino que ficava no alto de Nassau Hall, o edi­fício mais antigo do campus. A idéia original era que se o sino não pudesse anunciar o início de um novo ano acadêmico, então o novo ano acadêmico não poderia começar. Se alguém acredi­tava ou não nisso, não sei, mas sei que roubar o badalo tornou-se uma tradição, e que os estudantes tentavam de tudo, desde roubar cadeados até escalar paredes, para consegui-lo. Depois de mais de cem anos, a administração ficou tão cansada dessas façanhas, e tão aborrecida pela ação judicial, que finalmente anunciou que o badalo havia sido removido. Só Charlie tinha informação do con­trário. A remoção era um embuste; o badalo estava intacto. E hoje à noite, com a nossa ajuda, ele iria roubá-lo.

Não preciso explicar que assaltar um marco histórico com um molho de chaves roubadas e depois escapar dos bedéis com minha perna doente, tudo em nome de um badalo de sino impres­tável e quinze minutos de fama no campus, não me impressionava como sendo a melhor idéia do mundo. Mas quanto mais Charlie argumentava a favor, mais eu via crescer o interesse pelo assunto: se juniores e seniores têm suas pesquisas e teses, e os estudantes de segundo ano escolhem seu tema principal de estudo e os clubes onde comem, então tudo o que sobra para os calouros é enfrentar os riscos de um empreendimento ou ser presos durante a tenta­tiva. Os decanos nunca serão mais indulgentes, argumentou ele, do que agora. E quando Charlie insistiu que isso exigiria três pes­soas - não menos -, eu e ele decidimos que a única maneira justa de fazer as coisas seria pelo voto. Em um teste tranqüiliza­dor de democracia, conseguimos uma pequena maioria sobre Paul, e Paul, nunca sendo aquele que complica a situação, cedeu. Concordamos em servir de vigias para Charlie e, depois de plane­jar nosso procedimento de ataque, nós três vestimos o máximo possível de roupa preta e fomos para o Nassau Hall à meia-noite.

Ora, eu tinha dito antes que o novo Tom - aquele que sobre­viveu ao terrível desastre de automóvel e viveu para lutar por um novo dia - era um tipo mais valente, mais intrépido do que o rapaz tímido que havia sido o velho Tom. Mas vamos ser claros. Velho ou novo, eu não era Evel Knievel. Durante uma hora após termos chegado em Nassau Hall, fiquei em meu posto transpirando tenso, temendo cada sombra e estremecendo a cada som. E então, um pouco depois da uma hora, aconteceu. Logo que o primeiro dos clubes-restaurantes fechou seus bares, começou uma migração, vinda da parte ocidental, de estu­dantes e de seguranças que voltavam ao campus. Charlie havia pro­metido que estaríamos fora do Nassau Hall nessas alturas, mas agora ele se encontrava em algum lugar fora do nosso campo de visão.

Voltei-me e assobiei para Paul: "Por que está demorando tanto?"

       Mas não houve resposta.

       Dando um passo para a frente no escuro, chamei de novo, olhando de soslaio para as sombras.

       "O que ele está fazendo lá em cima?"

       Mas quando observei atentamente ao redor, não havia sinal de Paul. A porta da frente do edifício estava entreaberta.

Corri para a entrada. Espiando lá dentro, pude perceber Paul e Charlie em uma conversa distante. "Ele não está lá em cima”, dizia Charlie.

       "Depressa!", falei, "Eles estão chegando."

       Repentinamente uma voz surgiu da escuridão atrás de mim. "Segurança do campus! Pare bem aí!"

       Voltei-me aterrorizado. A voz de Charlie silenciou. Devo ter ouvido mal porque pensei ter ouvido Paul dizer um palavrão.

       "Coloque as mãos nos quadris”, disse a voz.

       Minha mente tornou-se confusa. Imaginei liberdade con­dicional; advertência dos decanos; expulsão.

       "Coloque as mãos nos quadris", repetiu a voz, num tom mais alto.

       Obedeci.

       Durante um momento fez-se silêncio. Eu me esforcei para identificar o bedel na escuridão, mas não pude ver nada.

O som que veio a seguir foi o da sua risada.

"Agora rebole, boneca. Dance.”

A figura que emergiu das sombras era um estudante. Ele riu outra vez e, levemente embriagado, mostrou alguns passos de rumba enquanto se aproximava. Tinha cerca de 1,90 metro de altura e cabelos pretos que caíam sobre o rosto. Seu blazer preto, feito sob medida, cobria uma camisa branca engomada com mui­tos botões abertos.

Charlie e Paul saíram silenciosa e cuidadosamente do edi­fício atrás de mim, de mãos vazias.

O jovem caminhou até eles, sorrindo. "Então é verdade?", perguntou.

       "O quê?", Charlie resmungou, olhando para mim.

       O jovem apontou para a torre do sino. "O badalo. Eles realmente o tiraram?"

       Charlie não disse nada, mas Paul acenou que sim, ainda excitado com a aventura.

       Nosso novo amigo pensou por um segundo. "Mas vocês foram lá em cima?"

Comecei a perceber no que isso iria dar.

"Bem, vocês não podem simplesmente ir embora”, disse ele.

A travessura brilhou em seus olhos. Charlie estava se unindo mais a ele a cada segundo. Pouco depois eu me vi de volta ao meu posto, vigiando a porta do leste, enquanto os três desapa­reciam no interior do edifício.

       Quando voltaram, quinze minutos depois, não estavam vestindo calças.

       "O que vocês estão fazendo?", perguntei.

       Vieram em minha direção, de braços dados, rebolando em suas cuecas. Olhando para cima, em direção à cúpula, pude ver seis pernas de calças oscilando presas ao cata-vento.

Gaguejei que deveríamos ir para casa, mas eles olharam uns para os outros e me vaiaram. O estranho insistiu que voltássemos a um dos clubes-restaurantes para celebrar. Há tempo para alguns brindes em Ivy, disse ele, sabendo que a essa hora, na Prospect Avenue, as calças seriam opcionais. E Charlie concordou feliz.

Enquanto íamos para o leste, em direção a Ivy, o nosso novo amigo contou-nos histórias de suas travessuras no colegial: colorindo a piscina de vermelho no dia de São Valentim; soltando baratas na aula de inglês quando o calouro estava lendo Kafka; escandalizando o departamento de teatro ao inflar um pênis gigante sobre o teto do teatro na noite de abertura de Titus Andronicus. Dava para impressionar. Ele também, por coincidência, era um calouro. Um diplo­mado em Exeter, disse ele, com o nome de Preston Gilmore Rankin.

"Mas", acrescentou ele, de um jeito que lembro até hoje, "chamem-me Gil."

Gil, é claro, era diferente de nós. Penso que chegou em Princeton tão habituado à riqueza de Exeter que a fortuna e as dis­tinções que ela impõe na vida tinham se tornado invisíveis para ele. O único padrão de medida a seus olhos era o caráter, e foi talvez por isso que, durante nosso primeiro semestre, Gil se sentiu imediata­mente atraído por Charlie e, através de Charlie, por nós. Seu encanto sempre conseguia remover as diferenças, e eu não podia me impedir de experimentar que estar com Gil era estar no centro das coisas.

Nas refeições e nas festas, ele sempre reservava um lugar para nós, e enquanto Paul e Charlie de imediato decidiram que a idéia que ele tinha de vida social não era exatamente a deles, eu descobri que desfrutava da companhia de Gil sobretudo quando estávamos ao redor de uma mesa de jantar ou lado a lado em um bar no Clube de Ivy, com amigos ou sozinhos. Enquanto Paul ficava à vontade em uma sala de aula ou com um livro, e Charlie se sentia da mesma maneira em relação a uma ambulância, Gil, por sua vez, ficava per­feitamente confortável em qualquer parte onde houvesse uma boa conversa, e o resto do mundo que se danasse. Muitas das melhores noites em Princeton, que eu me lembro, foram com ele.

No fim de nossa primavera de calouros, chegou o momento de escolhermos os clubes-restaurantes - e de os clubes nos esco­lherem. Naquela ocasião, muitos dos clubes estavam usando um sistema de loteria para determinar a seleção: os candidatos coloca­vam seus nomes em uma lista aberta, e os novos adeptos do clube eram escolhidos ao acaso. Mas alguns mantinham o antigo sistema conhecido como debate. O debate parece conduzir a uma fraterni­dade e, assim, os clubes que usam esse sistema escolhem seus novos membros baseados no mérito e não no acaso. E como fraternidades, as definições de mérito que eles usam tendem a não ser as mesmas que se pode encontrar, digamos, em um dicionário. Charlie e eu colocamos nossos nomes na loteria do Cloister Inn, onde nossos amigos em comum pareciam estar se reunindo. Gil, é claro, decidiu debater. E Paul, sob a influência de Richard Curry, ele mesmo um velho membro de Ivy, lançou a cautela ao vento e debateu também.

Desde o início, Gil foi um membro emérito em Ivy. Ele satisfez todos os requisitos possíveis para admissão, desde o fato de ser filho de um antigo membro de Ivy, até o de ser um membro proeminente em todos os grupos de pessoas certas do campus. Ele era vistoso de um jeito não forçado - sempre elegante, nunca espalhafatoso; espirituoso mas de maneira gentil; inteligente mas não pedante. O fato de seu pai ser um corretor de títulos abastado que dava a seu filho único uma mesada escandalosa não prejudi­cou em nada suas oportunidades. Não surpreendeu o seu ingresso em Ivy naquela primavera, como não surpreendeu a sua eleição para presidente um ano depois.

A meu ver, a aceitação de Paul em Ivy seguiu uma lógica diferente. Ele foi ajudado pelo fato de que Gil e Richard Curry, este mais à distância, sempre o defendiam em grupos onde Paul nunca poria os pés. Mas o sucesso que ele obteve não se deveu só a isso. Paul foi também, naquela época, reconhecido como um dos eruditos acadêmicos da nossa classe. Diferentemente das tra­ças que nunca se arriscavam fora de Firestone, Paul era impul­sionado por uma curiosidade que fazia com que encontrá-lo e conversar com ele fosse um prazer. As pessoas de classe superior em Ivy pareciam descobrir um certo encanto em um estudante de segundo ano que não estava habituado com as piadas gastas do processo de seleção, mas se referia a autores mortos pelo seu primeiro nome, e parecia conhecê-los muito bem. Paul nem se surpreendeu quando foi aceito. Quando ele voltou naquela noite, ensopado com o champanhe da celebração, pensei que havia encontrado um novo lar.

Durante certo tempo, Charlie e eu tememos que o mag­netismo do clube afastaria os dois de nosso convívio. Isso não aconteceu e, na ocasião, Richard Curry se tornou uma influên­cia importante na vida de Paul. Os dois tinham se encontrado no começo do nosso ano de calouros, quando concordei em jantar com Curry numa das raras viagens para Nova York. O interesse que o homem demonstrou por mim depois da morte de meu pai sempre me chocou como algo estranho, interesseiro - eu nunca soube qual de nós foi o substituto, a criança sem pai ou o pai sem criança -, então pedi a Paul para juntar-se a nós no jantar, esperando usá-lo como uma espécie de amortecedor. Funcionou melhor do que eu esperava. A ligação entre eles foi instantânea: a visão que Curry parecia ter sobre meu potencial pessoal, que ele dizia que meu pai compartilhava, foi de imediato transferida para Paul. O interesse de Paul pelo Hypnerotomachia trouxe de volta lembranças dos dias de glória de Curry quando este trabalhava com meu pai e Vincent Taft, e foi só um semestre depois que ele se ofereceu para enviar Paul à Itália para um verão de pesquisa. Já então, a intensidade da assistência que o homem dava para Paul tinha começado a me preocupar.

Mas se Charlie e eu temíamos estar perdendo nossos amigos, bem depressa nos sentimos tranqüilizados. No final do nosso ano como juniores, foi Gil quem sugeriu que nós quatro passássemos a viver juntos como seniores, uma decisão que significava que ele estava desistindo de viver em Ivy, no quarto do presidente, para ficar como nosso colega de quarto no campus. Paul imediatamente concordou. E então, sem muita escolha, utilizando um sistema de loteria, optamos por uma casa no lado norte do Dod. Charlie argumentou que uma casa de quatro andares nos obrigaria a fazer mais exercícios, mas a conveniência e o bom senso prevaleceram, e uma casa térrea, bem mobiliada graças a Gil, tornou-se nosso lar no nosso último ano de Princeton.

Agora, quando Gil, Paul e eu alcançamos o pátio entre a capela da universidade e o salão de conferências, somos acolhidos por um estranho espetáculo. Mais de uma dúzia de tendas havia sido colocada na neve, ao ar livre, e sob cada uma delas havia uma mesa com comida. Eu soube imediatamente o que isso significava, mas simplesmente não podia acreditar no que via: os organizado­res da conferência pretendiam servir os refrescos ao ar livre!

Como em um país de carnaval, imediatamente antes de começar a folia, as mesas estão completamente desertas. O chão debaixo das tendas está todo remexido com lama e tufos de grama. A neve está escorrendo pelas beiradas e as toalhas brancas, agita­das pelo vento, esvoaçam desajeitadas, fixadas por grandes máqui­nas que logo mais oferecerão chocolate quente ou café, e por ban­dejas frias de cookies e petits-fours envolvidas em papel filme. Esse arranjo forma uma cena estranha no pátio silencioso, como a de uma cidade extinta, em pleno movimento, por uma calamidade, uma evocação de Pompéia.

"Isso deve ser uma brincadeira”, diz Gil quando estaciona­mos. Saímos do carro, e ele se encaminha para o salão de conferên­cias, parando para sacudir as estacas que sustentam a tenda mais próxima. A estrutura inteira treme. "Espere até Charlie ver isso."

Como numa deixa, Charlie aparece na porta do salão de conferências. Por alguma razão está se preparando para ir embora.

"Ei!, Chuck", eu chamo quando nos aproximamos, mos­trando o pátio. "O que você acha disso tudo?"

       Mas Charlie tem outras coisas em mente.

"Como esperam que eu entre no auditório?", ele diz rís­pido para Gil. "Vocês idiotas puseram uma garota na entrada e ela não quer me deixar passar”.    ­

Gil segura a porta para nós. Ele compreende que por "idio­tas" Charlie está se referindo a Ivy. Como co-presidentes do maior campus do grupo cristão, três mulheres seniores do clube estão coordenando as cerimônias de Páscoa.

"Relaxe", diz Gil. "Elas só pensaram que os membros do Cottage poderiam tentar algum tipo de brincadeira. E só estão tentando cortar o mal pela raiz”.

Charlie se agarra às calças expressivamente. "Sim, bem, eu quase lhes disse para cortar isto pela raiz."

"Beleza", eu digo, dirigindo-me para o calor do salão de conferências. Meus sapatos estão encharcados. "Podemos entrar?"

No alto da escada, uma estudante do segundo ano, com seu cabelo loiro molhado pela neve e um bronzeado de esquia­dora, está sentada atrás de uma mesa longa, e já a vemos sacudir a cabeça. Quando Gil chega atrás de nós no topo da escada, no entanto, tudo muda.

A segundanista olha timidamente para Charlie. "Eu não sabia que você estava com Gil...”, ela começa.

Do interior posso ouvir a voz da professora Henderson, do departamento de literatura comparada, introduzindo Taft para a audiência.

"Esqueça", diz Charlie, passando pela mesa e indo para a entrada. Nós o seguimos.

O auditório está completamente cheio. Ao longo das pare­des e na parte de trás do salão, perto da entrada, os que não conse­guiram lugar estão de pé. Reconheço Katie em uma fileira de trás junto com duas outras estudantes do segundo ano, mas, antes que eu possa chamar sua atenção, Gil me empurra para a frente, pro­curando um lugar onde nós quatro possamos ficar. Ele coloca um dedo sobre os lábios e aponta para o palco. Taft está se dirigindo para o pódio.

 

A conferência da Sexta-Feira da Paixão é uma tradição com profundas raízes em Princeton, a primeira das três celebra­ções da Páscoa que se tornaram permanentes na vida social de muitos estudantes, independentemente de serem eles cristãos ou não-cristãos. Conta a lenda que os eventos foram introduzi­dos em 1758 por Jonathan Edwards, o veemente padre da Nova Inglaterra que tinha um trabalho extra como terceiro presidente de Princeton. Edwards conduziu os estudantes em um sermão na noite da Sexta-Feira da Paixão, seguido por uma refeição religiosa no sábado à noite e um serviço à meia-noite quando o Domingo de Páscoa começou. De alguma forma esses rituais foram, desde então, transmitidos intactos até o presente, valendo-se daquela imunidade em relação a sina e a tempo que a universidade, como um velho buraco no asfalto, confere a todas as coisas que involun­tariamente caem pesadamente dentro dele e morrem.

Uma dessas coisas, por acaso, foi o próprio Jonathan Edwards. Logo depois de sua chegada a Princeton, foi feita em Edwards uma inoculação potente de varíola, e em conseqüência disso o velho homem veio a falecer três meses depois. Não obs­tante o fato de que provavelmente ele estava demasiado fraco para ter inventado as cerimônias que lhes foram atribuídas, ainda assim juízes eclesiásticos da universidade recriaram as três, ano após ano, no que é eufemisticamente chamado "um contexto moderno".

Suspeito que Jonathan Edwards nunca se interessou muito por eufemismo ou contextos modernos. Considerando que sua mais famosa metáfora em relação à vida humana envolvia uma ara­nha dependurada acima do buraco do inferno, ali suspensa por um Deus irado, o velho homem deve revirar-se em seu túmulo a cada primavera. O sermão da Sexta-Feira da Paixão agora nada mais é do que uma conferência dada por um dos membros da Faculdade de Ciências Humanas; o único tema mencionado menos freqüen­temente do que Deus, durante a conferência, é inferno. A refeição religiosa original, que deve ter sido rigorosa e calvinista em sua con­cepção, é agora um banquete no mais elegante dos salões de jantar dos não-graduados. E o serviço da meia-noite, que estou certo de que outrora fazia as paredes tremerem, é atualmente uma celebra­ção de fé não pertencente a uma congregação eclesiástica, onde nem mesmo ateus e agnósticos se sentem incomodados. Talvez por esse motivo, estudantes de todas as origens assistem às cerimônias de Páscoa, cada um por motivos diferentes, e todos saem felizes, com suas expectativas reforçadas e suas sensibilidades respeitadas.

Taft está parado no pódio, gordo e cabeludo como sempre. Vendo-o, lembro de Procrustes, o mitológico bandido que tortu­rava suas vítimas esticando-as em uma cama se fossem muito bai­xas, ou cortando-as para caber na cama se fossem muito altas. Cada vez que olho para esse homem penso em quão desafortunado ele é, com sua cabeça demasiado grande e sua pança redonda demais, e em como a gordura se dependura de seus braços, dando a impressão de que a carne foi totalmente puxada dos ossos. No entanto, existe uma qualidade lírica na figura recortada no palco. Com sua camisa branca enrugada e seu paletó de tweed gasto, ele é maior do que seus próprios limites, uma mente notável na sua figura humana. A professora Henderson vai até ele, tentando ajustar o microfone em sua lapela, e Taft permanece silencioso, como um crocodilo cujos dentes estivessem sendo limpos por um pássaro. Esse é o gigante no topo da haste de feijão de Paul. Lembrando da história de Epp Lang e o cachorro, sinto meu estômago revirar de novo.

Quando encontramos um lugar para ficar em pé na parte de trás do auditório, Taft já começou, deixando para trás a conversa fiada usual da Sexta- Feira da Paixão. Ele está exibindo slides, e sobre a ampla tela branca de projeção aparece uma série de imagens, cada uma mais terrível que a outra. Santos sendo torturados. Mártires sendo assassinados de maneira violenta. Taft está dizendo que a fé é mais fácil de dar do que a vida, mas que é mais difícil tirá-la. Ele tinha trazido exemplos para ressaltar o que queria dizer.

"São Denis", diz ele, a voz pulsando através dos microfones suspensos no alto, "foi martirizado por decapitação. De acordo com a lenda, seu cadáver se levantou e levou embora sua cabeça."

A pintura de um homem cego com a cabeça em um cada­falso aparece acima do apoio para livros. O carrasco está bran­dindo um enorme machado.

"São Quentin", ele continua, avançando para a imagem seguinte. "Pintado por Jacob Jordaens, 1650. Foi esticado na roda, depois açoitado. Ele rogou a Deus para ter forças, e sobreviveu, mas depois sofreu julgamento como feiticeiro. Foi torturado e espancado, e sua carne perfurada com fio de arame farpado dos ombros até as coxas. Pregos foram cravados em seus dedos, cabeça e corpo. Por fim foi decapitado."

Charlie, não conseguindo perceber o interesse disso tudo, ou talvez não impressionado depois dos horrores vistos com a equipe de ambulância, vira-se para mim.

"Então, o que Stein queria?”, ele sussurra.

Na tela aparece uma imagem escura de um homem, ves­tindo apenas uma tanga e sendo forçado a deitar contra uma superfície de metal. Um fogo está sendo aceso debaixo dele. "São Lourenço", continua Taft, suficientemente familiarizado com os detalhes para não necessitar de anotações. "Martirizado em 258. Queimado vivo em uma grelha."

"Ele encontrou um livro que Paul necessita para a sua tese”, respondo.

Charlie aponta para o pacote na mão de Paul. "Deve ser importante", ele diz.

Eu espero alguma coisa mais cáustica nas palavras, uma lembrança de como Stein interrompeu nosso jogo, mas Charlie faz o comentário com respeito. Ele e Gil ainda pronunciam mal o título Hypnerotomachia, cinco vezes em cada dez que o fazem, mas Charlie pelo menos consegue reconhecer o quão arduamente Paul trabalhou e quanto essa pesquisa significa para ele.

Taft pressiona de novo um botão atrás do apoio para livros, e uma imagem ainda mais estranha surge na tela. Um homem está deitado em uma prancha de madeira, com um buraco no lugar do abdome. Um cordão que sai do buraco está gradualmente sendo enrolado em um espeto por dois homens, um de cada lado.

"Santo Erasmo", diz Taft, "também conhecido como Elmo. Ele foi torturado pelo imperador Deocleciano. Embora espan­cado com chicotes e porretes, ele sobreviveu. Embora envolvido por alcatrão e colocado sobre o fogo, ele viveu. Embora lançado na prisão, ele escapou. Foi recapturado e forçado a sentar em uma cadeira de ferro incandescente. Finalmente foi morto ao ter o estômago rasgado e os intestinos enrolados em um molinete."

Gil se volta para mim. "Isso é definitivamente diferente." Alguém na fila de trás se dirige a nós para pedir silêncio, mas parece desistir depois de reconhecer Charlie.

"Os bedéis nem mesmo quiseram me ouvir a respeito da grade", Charlie sussurra para Gil, procurando puxar conversa.

Gil se vira de novo para o palco, sem querer continuar o assunto.

"São Pedro", continua Taft, "por Michelangelo, em torno de 1550. Pedro foi martirizado sob as ordens de Nero, crucificado de cabeça para baixo a seu próprio pedido. Ele era muito humilde para ser crucificado da mesma maneira que Cristo”.

No palco, a professora Henderson parece desconfortável enquanto esfrega nervosamente uma mancha em sua manga. Sem qualquer argumento que estabeleça alguma relação entre um slide e outro, a apresentação de Taft está começando a se parecer menos com uma conferência e mais com uma orgia sadista. O ruído habitual de conversa no auditório em uma Sexta-Feira da Paixão se dissolveu em um silêncio excitado.

"Ei!", diz Gil puxando Paul pela manga da camisa, "Taft sempre fala sobre esse assunto?"

Paul concorda mais uma vez meneando a cabeça, mas não diz nada.

"Ele está um pouco por fora, não está?", murmura Charlie.

Os dois, tendo se mantido fora da vida acadêmica de Paul por tanto tempo, estão percebendo isso pela primeira vez.

Paul faz que sim com a cabeça, mas dessa vez, ainda, não diz nada.

"Chegamos, então”, continua Taft, "na Renascença. O berço de um homem que adotou uma linguagem de violência que venho tentando transmitir. O que quero compartilhar com vocês esta noite não é uma história que ele criou ao morrer, mas algo da misteriosa história que concebeu enquanto ainda estava vivo. O homem era um aristocrata de Roma chamado Francesco Colonna. Ele escreveu um dos livros mais raros jamais impressos: o Hypnerotomachia Poliphili”.

Os olhos de Paul estavam fixados em Taft, as pupilas dila­tadas no escuro.

       "De Roma?", murmuro.

Paul olha para mim, incrédulo. Antes que ele possa res­ponder, no entanto, inicia-se um tumulto na entrada atrás de nós. Uma discussão, violenta e afiada, irrompeu entre a garota na porta e um homem alto, ainda não distinguível. Suas vozes estão se espa­lhando através do salão de conferência.

Para minha surpresa, quando o homem surge na luz, reconheço-o de imediato.

 

                                         Capítulo 10

Sem levar em conta os sonoros protestos da estudante loira que atende à porta, Richard Curry entra no auditório. Inúmeras cabeças, na parte de trás da sala, se voltam para olhar. Curry exa­mina a audiência, depois se volta para o palco.

Esse livro, continua Taft, abstraído da comoção, é talvez o maior mistério remanescente da impressão ocidental.

De todos os lados, olhares desagradáveis se dirigem ao intruso. Curry parece desgrenhado: gravata frouxa, jaqueta na mão, um olhar perturbado. Paul começa a abrir caminho no meio de uma pequena multidão de estudantes.

Ele foi publicado pela imprensa mais famosa de toda a Renascença italiana, mas ainda assim a identidade de seu autor per­manece intensamente em discussão.

"O que esse cara está fazendo?", cochicha Charlie.

Gil sacode a cabeça. "Aquele não é Richard Curry?" Agora Paul está na fila de trás, tentando chamar a atenção de Curry.

Ele é considerado por muitos não só como o livro mais incompreendido do mundo, mas também - talvez só superado pela Bíblia de Gutenberg - o mais valioso do mundo.

Agora Paul está ao lado do homem. Ele coloca uma mão nas costas de Curry, quase cautelosamente, e sussurra algo, mas o velho homem sacode a cabeça.

"Eu estou aqui", diz Curry, em voz bastante alta para que as pessoas na fila da frente se virem para dar uma olhada, "para dizer algo por minha conta."

Agora Taft parou de falar. Todos os rostos no auditório estão fixos no estranho. Ele se endireita e passa a mão pela cabeça. Olhando de modo penetrante para Taft, ele fala de novo.

''A linguagem da violência?", diz ele, numa voz aguda, não familiar. "Ouvi essa conferência trinta anos atrás, Vincent, quando você pensava que eu era a sua audiência:' Ele se vira para a mul­tidão e estende os braços, dirigindo-se a todos. "Ele lhes contou sobre São Lourenço? São Quentin? Santo Elmo e o molinete? Você não mudou em nada, Vincent?"

Há murmúrios vindos da audiência quando as pessoas registram o desprezo de Curry. De um canto ouve-se uma risada.

"Esse, meus amigos", continua Curry, apontando para o palco, "é um charlatão. Um louco e um trapaceiro." Ele se volta para focalizar Taft. "Mesmo um impostor pode enganar um homem duas vezes, Vincent. Mas você? Você tenta influenciar inocentes." Ele coloca os dedos sobre os lábios e forma um beijo. "Bravissimo, il Fraudolento!" Levantando os braços, ele encoraja a audiência a ficar de pé. "Uma ovação, meus amigos. Três vivas para São Vincent, o santo patrono dos ladrões."

Taft recebe o intruso rispidamente. "Por que você veio aqui, Richard?"

       "Eles se conhecem?”, cochicha Charlie.

       Paul está tentando distrair Curry, dizendo-lhe para parar, mas Curry insiste.

"Por que você veio aqui, velho amigo? Isto é um teatro ou um local de erudição? O que você quer roubar desta vez, agora que o livro do portuário não está mais em suas mãos?"

Ao ouvir isso, Taft investe para a frente e explode: "Pare com isso. O que você está fazendo?"

Mas a voz de Curry escapa como a de um espírito evocado. "Onde você guardou o pedaço de couro do diário, Vincent? Responda e vou embora. Você pode continuar com essa sua farsa."

As sombras do salão de conferência se movem lentamente pela face de Curry. A professora Henderson finalmente se apressa e grita: "Alguém chame a segurança!”.

Um bedel já está se aproximando de Curry quando Taft lhe acena para parar. Sua presença de espírito retomou.

"Não", ruge o ogro. "Deixe-o ir. Ele irá embora por sua própria vontade, não é, Richard? Antes que tenham de prendê-lo?"

Curry está imóvel. "Olhe para nós, Vincent. Vinte e cinco anos se passaram e ainda estamos lutando a mesma guerra. Diga-me onde está a cópia heliográfica e não me verá de novo. Esse é o único negócio que ainda temos. O resto" ­Curry varre com seus braços o salão de leitura, abarcando tudo     - "é sem valor."

"Vá embora, Richard", diz Taft.

"Você e eu tentamos e falhamos", continua Curry. "O que dizem os italianos? Não há pior ladrão do que um mau livro. Vamos ser homens nesse caso e nos conformar. Onde está a cópia heliográfica?"

Há murmúrios por toda parte. O bedel introduz-se entre Curry e Paul - mas para minha surpresa, Curry subitamente abaixa a cabeça e começa a caminhar em direção à saída distante. A animação em seu rosto desaparece.

       "Você, seu velho louco", diz Curry, dirigindo-se a Taft mesmo estando de costas para o palco. "Faça alguma coisa”.

Estudantes que estão contra a parede se empurram em direção a frente do auditório, mantendo distância. Paul fica plan­tado no local, observando a partida de seu amigo.

       "Vá, Richard", Taft ordena lá do pódio. "E não volte mais."

       Todos seguimos o lento progresso de Curry em direção à saída. Na porta, a segundanista observa com olhos receosos, arregalados. Depois de um instante ele passa pelo umbral, entra na ante-sala e some de vista.

 

"Um murmúrio intenso emerge no salão de conferências logo que o homem desaparece.

"Que diabos foi isso?”, pergunto, olhando de volta para a saída.

No nosso canto, Gil pára perto de Paul.

"Você está bem?"

Paul está confuso. "Não compreendo..."

Gil coloca um braço sobre seus ombros. "O que você disse a ele?"

"Nada", responde Paul "Tenho de ir atrás dele." Suas mãos estão tremendo, o diário ainda apertado entre elas. "Tenho de falar com ele”.

Charlie começa a protestar, mas Paul está muito des­norteado para argumentar. Antes que qualquer um de nós possa insistir, ele se dirige para a porta.

"Eu vou com ele”, digo para Charlie.

Ele faz que sim com a cabeça. A voz de Taft começa a res­soar no palco, e quando olho para lá, enquanto me encaminho para a saída, o gigante parece estar me encarando diretamente. Do seu lugar, Katie prende minha atenção. Ela movimenta os lábios formu­lando uma pergunta sobre Paul, mas não posso compreender o que está dizendo. Fechando meu casaco, saio do auditório.

No pátio, as tendas balançam como esqueletos no escuro, dançando em suas pernas-de-pau. O vento diminuiu, mas a neve continua, mais densa do que antes. Aproximando-me da esquina, ouço a voz de Paul.

"Você está bem?"

Viro a esquina. A menos de três metros está Richard Curry, a jaqueta esvoaçando ao vento.

"O que está errado?”, pergunta Paul.

"Volte para dentro”, diz Curry.

Dou um passo à frente para ouvir melhor, mas a neve que se esmaga sob meus pés faz barulho. Curry levanta o olhar, e a conversa deles se interrompe. Espero urna centelha de reconheci­mento em seus olhos, mas não encontro nada. Depois de colocar a mão sobre o ombro de Paul, Curry lentamente se afasta.

"Richard! Podemos conversar em algum lugar?”, grita Paul.

Mas o velho homem, enfiando as mãos dentro da jaqueta, se distancia rapidamente. Ele não responde.

Levo um segundo para recuperar o fôlego e ir para perto de Paul. Juntos vemos Curry desaparecer na sombra da capela.

"Preciso descobrir onde Bill conseguiu o diário", diz ele.

"Agora?"

Paul faz que sim.

"Onde ele está?"

"No escritório de Taft, no Instituto."

Olho o pátio. O único transporte de Paul é um velho Datsun que ele comprou com o salário que recebe de Curry. O Instituto é bem longe daqui.

"Por que você saiu da conferência?", ele pergunta

"Pensei que você talvez precisasse de ajuda."

Meu lábio inferior está tremendo. A neve vai se acumu­lando no cabelo de Paul.

"Vou ficar bem", diz ele.

Mas ele é o único que está sem casaco.

"Vamos. Podemos sair juntos daqui."

Ele olha para seus sapatos. "Tenho que falar com ele a sós."

"Tem certeza?"

Ele faz que sim com a cabeça.

"Pelo menos leve isto", eu ofereço, abrindo o casaco.

Ele sorri. "Obrigado."

"Telefone se precisar de alguma coisa."

Paul coloca o casaco e enfia o diário embaixo do braço. Um instante depois ele começa a andar na neve.

"Você tem certeza de que não quer ajuda?”, grito antes que ele esteja fora do alcance de minha voz.

Ele se vira, mas só para fazer que não.

Boa sorte, digo, quase que para mim mesmo.

E quando o frio entra por baixo do colarinho de minha camisa, sei que não há mais nada a fazer. Quando Paul desaparece ao longe, volto para dentro.

No meu caminho de volta ao auditório, passo pela estu­dante loira sem dizer palavra e descubro que Charlie e Gil perma­necem no mesmo lugar no fundo do salão de conferências. Eles não prestam atenção em mim; Taft conquistou seu interesse. Sua      voz é hipnótica.

"Está tudo bem?”, cochicha Gil.

Aceno com a cabeça, não querendo entrar em detalhes.

''Alguns intérpretes modernos", Taft está dizendo, "fica­ram contentes em aceitar que o livro obedece a muitas regras de um antigo gênero renascentista, o romance bucólico. Mas se o Hypnerotomachia é só uma história de amor convencional, então por que há apenas trinta páginas dedicadas ao romance entre Poliphilo e Polia? Por que as outras trezentas e quarenta páginas formam um labirinto de enredos secundários, encontros estranhos com figuras mitológicas, dissertação sobre assuntos esotéricos? Se somente uma de cada dez palavras pertence ao próprio romance, então como explicar os noventa por cento restantes do livro?"

       Charlie se volta de novo para mim. "Você conhece todo esse material?"

       "Sim." Ouvi a mesma conferência uma dúzia de vezes em casa, durante o jantar.

"Em suma, ele não é uma mera história de amor. Poliphilo e sua 'luta por amor em um sonho' - como o título em latim diria - é muito mais complexo do que um-garoto-encontra-uma-­garota. Durante quinhentos anos os estudiosos têm exposto o livro aos meios de interpretação mais poderosos de sua época, e nenhum deles encontrou um caminho para fora do labirinto.

"Qual o grau de dificuldade do Hypnerotomachia? Considerem como seus tradutores se saíram. O primeiro tradutor francês condensou a sentença de abertura, que originalmente conti­nha mais de setenta palavras, em menos de doze. Robert Dallington, um contemporâneo de Shakespeare que tentou uma tradução mais fiel, simplesmente se desesperou. Ele desistiu antes de chegar à metade. Desde então nenhuma tradução em inglês foi tentada. Os intelectuais ocidentais consideraram o livro uma máxima, por causa da obscuridade, quase desde a sua publicação. Rabelais zom­bou dele. Castiglione aconselhou os homens da Renascença a não falar como Poliphilo quando cortejassem as mulheres.

"Por que, então, ele é tão difícil de entender? Porque con­tém hieróglifos não só em latim e italiano, mas também em grego, hebraico, arábico, caldeu e egípcio. O autor escreveu em vários deles ao mesmo tempo, algumas vezes de modo intercambiável. Quando essas línguas não eram suficientes, ele inventava palavras.

"Além do mais, existem mistérios cercando o livro. Para começar, até muito recentemente ninguém sabia quem o havia escrito. O segredo da identidade do autor era tão cuidadosamente guardado que nem mesmo o grande Aldus, ele mesmo, seu editor, sabia quem tinha composto sua obra mais famosa. Um dos edito­res do Hypnerotomachia escreveu uma introdução para ele na qual pede às Musas que revelem o nome do autor. Elas se recusam, e explicam que 'é melhor ser cauteloso, proteger as coisas divinas de serem devoradas pela inveja vingativa'.

"Então, minha pergunta para vocês é esta: Por que o autor passaria por um tal transtorno se tudo que queria escrever nada mais era do que um bucólico romance? Por que tantas línguas? Por que duzentas páginas sobre arquitetura? Por que dezoito pági­nas sobre um templo de Vênus ou doze sobre um labirinto sub­merso? Por que cinqüenta sobre uma pirâmide? Ou outras cento e quarenta sobre pedras preciosas e metais, balé e música, alimento e arrumação da mesa, flora e fauna?

"Talvez o mais importante seja: que romano poderia ter aprendido tanto sobre tantos assuntos, dominado tantas línguas e convencido o maior impressor da Itália a publicar seu misterioso livro sem nem mesmo mencionar o seu nome?

"Acima de tudo, quais eram as 'coisas divinas', citadas na introdução, que as Musas se recusaram a divulgar? Qual era a inveja vingativa que elas temiam que tais coisas pudessem inspirar?

''A resposta é que esse não é um romance. O autor deve ter pretendido algo mais - algo que nós, os estudiosos, até agora fracas­samos em compreender. Mas onde começar a procurar por isso?

"Não tenho a intenção de responder a essa questão por vocês. Em vez disso, os deixarei com um quebra-cabeça para medi­tar. Resolvam isso e estarão um passo mais perto de compreender o que o Hypnerotomachia significa”.

Com isso, Taft faz funcionar a máquina de slides com uma batida de mão sobre o controle remoto. Três imagens aparecem na tela, desconcertantes em sua severidade branco e preto.

"Essas são três gravuras do Hypnerotomachia descrevendo um pesadelo por que passa Polia mais tarde na história. Como ela relata, a primeira mostra um menino dirigindo um carro de batalha romano, em chamas, puxado por duas mulheres nuas que ele açoita como animais. Polia olha para elas de seu lugar escondido na floresta.

''A segunda gravura apresenta o menino libertando as mulheres, cortando suas correntes incandescentes com uma espada de ferro. Em seguida, enfia a espada em cada uma delas, e, quando estão mortas, ele as desmembra.

"Na última gravura, o menino arranca os corações dos cadáveres de ambas as mulheres, ainda pulsando, e com eles ali­menta aves de rapina. As vísceras, ele dá para as águias. Então, depois de esquartejar os corpos, o menino joga os restos para os cães, lobos e leões que se juntaram à sua volta.

"Quando Polia acorda do seu sonho, sua governanta explica que a criança é Cupido, e que as mulheres eram jovens donzelas que o ofenderam por recusar os afetos de seus preten­dentes. Polia deduz que esteve errada ao repelir Poliphilo."

Taft faz uma pausa, virando-se de costas para a audiência a fim de contemplar as enormes imagens que parecem flutuar no ar sobre o palco.

"Mas e se supormos que o significado explícito não é o significado real?", diz ele, ainda virado de costas para nós, em uma voz desincorporada que ressoa através dos microfones presos em seu peito. "E se a interpretação que a governanta deu ao sonho não é, de fato, a correta? E se tivermos que usar a punição infligida a essas mulheres para decifrar quais eram realmente seus crimes?

"Considerem uma punição legal, por alta traição, que sobre­viveu entre certas nações européias, durante séculos, antes e depois que o Hypnerotomachia foi escrito. Um criminoso sentenciado por alta traição era primeiro arrastado - o que significava atá-lo ao rabo de um cavalo e arrastá-lo pelo chão através da cidade. Ele era levado dessa maneira ao patíbulo, onde ficava pendurado até estar quase morto. Nessa hora ele era cortado, e as entranhas removidas de seu corpo e queimadas diante dele pelo carrasco. Seu coração era arrancado e exibido para a multidão reunida. O carrasco decapitava então o infeliz, esquartejava o restante e exibia os pedaços em lanças com pontas de aço colocadas em locais públicos, para servir como intimidação para futuros traidores:'

Taft dirige sua atenção para a audiência quando diz isso, para ver a reação. Depois se volta de novo para os slides.

"Com isso em mente, vamos considerar nossas ilustrações. Vemos que muitos detalhes correspondem à punição que acabo de descrever. As vítimas são arrastadas aos locais de suas mortes - ou melhor, talvez um pouco ironicamente, elas arrastam a biga do carrasco. Elas são desmembradas, e seus membros exibidos para a população, que nesse caso consiste de animais selvagens.

"Em vez de serem enforcadas, no entanto, as mulheres são assassinadas de maneira violenta com uma espada. O que pode­mos deduzir disso? Uma possível explicação é que a decapitação, seja por machado ou espada, era uma punição reservada para aqueles de alta posição social, para os quais ser enforcado era con­siderado um ato por demais abjeto. Podemos então inferir que essas, provavelmente, fossem damas eminentes.

"Finalmente, os animais que aparecem para comer os res­tos farão muitos de vocês se lembrarem das três bestas do canto de abertura do ‘Inferno' de Dante, ou do sexto versículo de Jeremias”.

       Taft relanceia o olhar pelo salão de conferências.

"Eu quase ia dizer que...", Gil sussurra com um sorriso.

Para minha surpresa, Charlie o silencia.

"O leão significa o pecado da soberba", continua Taft. "E o lobo representa a cobiça. Esses são os vícios de um grande traidor - um Satã ou um Judas -, assim como a punição parece sugerir. Mas aqui o Hypnerotomachia diverge: a terceira besta de Dante é um leopardo, representando a luxúria. No entanto, Francesco Colonna inclui um cachorro no lugar de um leopardo, sugerindo que a luxúria não era um dos pecados pelos quais as mulheres estão sendo punidas”.

Taft se detém, deixando que a audiência pondere tudo isso por um momento.

"O que estamos começando então a compreender", ele recomeça, "é a linguagem da crueldade. Apesar do que muitos de vocês podem pensar, ela não é puramente uma linguagem bár­bara. Como todos os nossos rituais, ela é rica de significado. Vocês devem simplesmente aprender a lê-la. Por isso darei uma infor­mação adicional que vocês podem usar para interpretar a imagem - depois vou colocar uma questão e deixar o resto com vocês.

"A chave final é um fato que muitos de vocês provavel­mente conhecem, mas negligenciaram, ou seja, que Polia identi­ficou mal o menino simplesmente por desconsiderar a arma que ele carregava. Porque se o menino no pesadelo fosse realmente Cupido, como Polia acreditava, então sua arma não seria a espada e sim, o arco e flecha."

Há murmúrios de aquiescência na platéia, centenas de estudantes passando a ver o dia de São Valentim sob uma luz completamente nova.

"Por isso eu lhes pergunto: quem é o menino que brande uma espada, força as mulheres a puxar seu carro de batalha atra­vés de uma floresta intrincada, depois as massacra como se elas fossem culpadas de traição?"

Ele aguarda, como se estivesse se preparando para dar a res­posta, mas, em vez disso, diz: "Resolvam isso e começarão a entender a verdade escondida no Hypnerotomachia. Talvez vocês também comecem a compreender o significado não só da morte, mas da forma que a morte toma quando vem. Todos nós - os que têm fé e os que não têm - estamos muito acostumados com o sinal-­da-cruz para entender o significado do crucifixo. Mas a religião, o cristianismo em particular, tem sido sempre a história da morte no meio da vida, de sacrifícios e de martírios. Nesta noite, e em todas as outras, quando comemorarmos o sacrifício do mais famoso dos mártires, esse é um fato que deveríamos relutar em esquecer”.

Tirando os óculos e colocando-os no bolso, Taft inclina a cabeça e diz: "Eu confio isso a vocês, e coloco minha fé em vocês". Com um lento passo para trás, ele acrescenta: "Obrigado a todos, e boa noite".

Aplausos estouram de todos os cantos do salão - pri­meiro de maneira discreta, mas logo num crescendo. Apesar da interrupção anterior, a audiência foi sendo seduzida por esse homem estranho, magnetizada por sua fusão de intelecto com sangue coagulado.

Taft acena com a cabeça e se arrasta em direção à mesa do pódio, querendo sentar, mas os aplausos continuam. Algumas pessoas da audiência se levantam e continuam a aplaudir.

"Obrigado”, diz ele novamente, ainda em pé, as mãos pres­sionadas na parte alta do espaldar de sua cadeira. Enquanto fala, o velho sorriso retorna às suas feições. É como se ele estivesse obser­vando a audiência continuamente, nunca o oposto.

A professora Henderson se levanta e avança a passos largos até o apoio para livros, silenciando os aplausos.

"Segundo a tradição", diz ela, "estaremos oferecendo refres­cos esta noite no pátio entre este auditório e a capela. Sei que a manutenção e o pessoal de apoio instalaram um certo número de aquecedores debaixo das mesas. Por favor, juntem-se a nós”.

Voltando-se para Taft, ela acrescenta: "Dito isso, deixem-me agradecer ao doutor Taft por esta memorável palestra. O senhor certamente nos impressionou." Ela sorri, mas com uma certa restrição.

A audiência aplaude mais uma vez, depois lentamente começa a sair.

Taft observa as pessoas que se retiram, e eu, por minha vez, o observo. Essa é uma das poucas vezes que vi esse homem, por­que vive recluso. Agora finalmente compreendo por que Paulo acha tão fascinante. Mesmo quando você sabe que Taft o está ridi­cularizando, é quase impossível tirar os olhos de cima dele.

Taft começa a mover-se bem devagar pelo palco. Quando a tela branca se retrai mecanicamente para dentro de uma fenda no teto, os três slides viram um toque de cinza no quadro-negro que está atrás. Mal posso discernir os animais selvagens devorando os restos das mulheres e o menino flutuando no ar.

"Você vem?", Charlie pergunta, desaparecendo atrás de Gil na saída.

Apresso-me a segui-los.

 

                                 Capítulo 11

"Você não encontrou Paul?", pergunta Charlie quando os alcanço.

"Ele não quis minha ajuda."

Mas quando conto o que ouvi lá fora, Charlie olha para mim como se eu não devesse tê-o deixado ir. Alguém pára ao nosso lado para cumprimentar Gil, e Charlie se volta para mim.

"Paul foi atrás de Curry?", ele indaga.

Sacudo a cabeça. "Bill Stein”.

"Vocês, rapazes, estão vindo para a recepção?", grita Gil, temendo uma rápida fuga. "Podíamos utilizar o desvio."

"É claro", digo, e Gil parece apaziguado. Já está pensando em outra coisa; estamos retomando ao que lhe é familiar.

"Teremos de evitar Jack Parlow e Kelly - eles só querem falar sobre o baile", diz ele, voltando para perto de nós. "Mas isso não seria má idéia."

Ele nos conduz pelas escadas até o pátio azul-pálido, onde todas as pegadas feitas por Curry e Paul na neve tinham sumido.

As tendas estão transbordando de estudantes, e quase imediata­mente lembro quão fútil é tentar evitar alguém com Gil por perto. Andamos na neve até um pavilhão quase abaixo da capela, mas ele exerce uma força de atração social inescapável.

A primeira a aparecer é a loira que estava na porta.

"Tara, como vai?", diz Gil afavelmente quando ela entra debaixo do teto de lona. "Um pouco mais excitante do que você esperava, não é?"

Charlie não se interessa pela companhia dela. Para evitar uma cena, ele se concentra na mesa, onde a máquina de prata está servindo chocolate quente feito na hora.

"Tara", apresenta Gil, "você conhece Tom, não é?"

Ela encontra uma maneira cortês de dizer que não.

"Ah, bem”, diz Gil superficialmente. "Classes diferentes”. Levo um segundo para perceber que ele está se referindo a calouros e seniores.

"Tom, esta é Tara Pierson, um membro da seção 2001", continua ele, vendo que Charlie está nos evitando. "Tara, este é meu bom amigo Tom Sullivan”.

A introdução só serve para nos embaraçar. Logo que Gil acaba de nos apresentar, Tara encontra um momento em que podemos falar sem que ele veja e aponta para Charlie.

"Estou tão arrependida pelo que disse ao seu amigo", começa ela. "Eu não tinha idéia de que vocês..."

E etc. etc. Seu ponto principal parece ser que nós mere­cemos um tratamento melhor do que outras nulidades que ela nunca conheceu, só porque eu e Gil escovamos nossos dentes em cima da mesma pia. Quanto mais a estudante fala, mais me pergunto como ela conseguiu não ser motivo de chacota em Ivy. Existe uma lenda - verdadeira ou não, não sei - que calouras como Tara, que não têm nada para recomendá-las, a não ser sua aparência, algumas vezes passam a fazer parte do grupo dos sócios graças a um processo especial chamado "debate no terceiro andar". Elas são convidadas ao secreto terceiro andar do clube e lhes é dito que não serão admitidas sem uma demonstração especial de boa vontade. Só posso adivinhar a natureza exata da façanha, e Gil, é claro, nega existir qualquer coisa parecida com esse processo. Mas suponho que a magia de um mito como o debate no terceiro andar é: quanto menos é dito, mais indescritível se torna.

Tara deve perceber o que estou pensando, ou então ela só se dá conta de que não estou mais prestando atenção, porque final­mente encontra uma desculpa e sai caminhando pela neve, com passo de modelo. Que bom livrar-me dela, penso, observando-a retirar-se para uma outra tenda, o cabelo esvoaçando ao vento.

Avisto Katie. Ela está parada no outro extremo da tenda do lado oposto, exausta de tanto falar. A xícara de chocolate quente em sua mão ainda está fumegando, e sua câmera está pendurada no pescoço como um talismã. Levei alguns segundos para per­ceber para onde ela estava olhando. Poucos meses atrás, eu teria suspeitado o pior, procurando por algum outro homem em sua vida, aquele que encontrava tempo para ela quando eu passava minhas noites com o Hypnerotomachia. Agora a conheço melhor. Ela só está olhando para a capela, que parece um rochedo íngreme à beira de um mar branco, o sonho de um fotógrafo.

Há uma coisa curiosa a respeito da atração, algo que só agora começo a perceber. Na primeira vez em que vi Katie, pen­sei que um olhar para ela faria parar o trânsito. Nem todos con­cordavam comigo (Charlie, preferindo mulheres mais carnudas, gostava mais da determinação de Katie do que de sua aparência), mas eu estava apaixonado. Nós nos enfeitávamos um para o outro - nossas melhores roupas, melhores maneiras, melhores histó­rias - e por fim cheguei à conclusão de que devia ser o fato de eu ter dois anos a mais, e de ser amigo do presidente do seu clube-­restaurante, que me emprestava a pequena atmosfera de mistério que eu tinha e me fazia manter essa vantagem. Naqueles dias, a idéia de tocar sua mão ou cheirar seu cabelo era suficiente para me mandar suando para um chuveiro frio. Éramos um o troféu do outro, e passávamos nossos dias sobre pedestais.

Desde aquelas primeiras semanas eu a tirei do marasmo. Ela fez o mesmo comigo. Discutimos porque mantenho meu quarto muito aquecido e porque ela dorme com sua janela aberta; ela me repreende por comer duas sobremesas - porque algum dia, diz ela, até os homens pagam por suas pequenas transgressões. Gil brinca que fui domesticado, deixando-me com a impressão de que eu costumava ser uma criatura selvagem. O fato é que sou demasiado dotado para economia doméstica. Aumento a tempe­ratura do meu termostato quando não sinto frio e como sobre­mesa quando não estou com fome, porque na sombra de cada censura de Katie se esconde a alusão de que ela não tolerará essas coisas no futuro, porque haverá um futuro. As fantasias que eu costumava ter, alimentadas pelo frisson potencial que existe entre estranhos, estão mais fracas agora. Gosto mais de Katie do jeito que ela está no pátio.

Seus olhos parecem tensos, sinal de que um longo dia está chegando ao fim. Os cabelos estão soltos, e as rajadas de vento brincam com eles na altura de seus ombros. Não me importaria em ficar de longe apenas olhando-a, me deixando embeber intei­ramente nela. Mas quando dou um passo à frente, diminuindo a distância entre nós, Katie me vê e acena para juntar-me a ela.

"O que quer dizer tudo isso?”, ela pergunta. "Quem estava na conferência?"

"Richard Curry."

"Curry?" Ela coloca minha mão entre as suas, ao mesmo tempo que mordisca seu lábio inferior. "Está tudo bem com Paul?"

"Acho que sim."

O silêncio se instala por um momento enquanto observa­mos a multidão. Homens com anoraques estão oferecendo suas jaquetas para namoradas com vestimentas sumárias. Tara, a loira da mesa, fez um estranho lhe emprestar o dele.

Katie aponta para o auditório. "Então, o que você achou?" "Da conferência?"

Ela faz que sim, começando a prender seus cabelos em um coque.

       "Um pouco manchada de sangue." O ogro não recebeu meus cumprimentos.

       "Mas mais interessante do que de costume", diz ela, esten­dendo sua xícara de chocolate quente. "Segura pra mim?"

Ela enrola os cabelos em uma espiral e os prende com duas longas varetas que tira do bolso. A grande habilidade de suas mãos, dando forma a algo que ela não pode ver, me fez lembrar a maneira pela qual minha mãe ajustava a gravata de meu pai, pos­tada atrás dele.

"Algo errado?”, diz ela, percebendo minha expressão.

"Nada. Só estava pensando em Paul."

"Será que ele vai terminar a tempo?"

O último prazo da tese! Mesmo agora, ela mantém um olhar vigilante sobre o Hypnerotomachia. Amanhã à noite ela pode pôr minha velha amante de molho.

"Espero que sim."

Um outro silêncio se segue, esse menos bem-vindo. Enquanto estou pensando em algo para mudar de assunto – algo sobre seu aniversário, sobre o presente que está esperando por ela no quarto -, a má sorte ataca. Ela chega na forma de Charlie. Depois de umas trinta voltas ao redor da mesa de refrescos, ele finalmente decidiu juntar-se a nós.

       "Cheguei tarde", ele anuncia. "Posso conseguir um resumo?"

De todas as coisas singulares sobre Charlie, a mais curiosa é como ele pode ser um gladiador intrépido entre homens, mas um estúpido idiota perto de mulheres.

       "Um resumo?”, pergunta Katie, divertida.

       Ele enfia um petit-four na boca, depois outro, examinando a multidão para ver se encontra alguma coisa. "Você sabe. Como vão as aulas. Quem está saindo com quem. O que você vai fazer no ano que vem. O de sempre”.

Katie sorri. "As aulas vão bem, Charlie. Tom e eu ainda estamos namorando." Ela lhe lança um olhar desaprovador. "E eu só vou me tornar júnior. Ainda estarei aqui no ano que vem."

"Ah", diz Charlie, porque ele nunca se lembrava da idade dela. Exibindo um cookie em sua mão enorme, ele tenta encontrar um jeito amigável de deixar fluir uma conversa entre uma caloura e um sênior. "O ano júnior é provavelmente o mais difícil", ele diz, optando pelo pior: uma recomendação. "Dois trabalhos como júnior. Pré-requisitos para a tese. E bastante distância desse rapaz", diz ele, apontando para mim com uma mão e com a outra levando a comida à boca. "Não é fácil." Passa a língua em torno dos lábios, saboreando o gosto de tudo o que está mastigando, e ruminando também nosso futuro. "Não posso dizer que estou com ciúmes."

Ele faz uma pausa, dando-nos o tempo de digerir. Em um milagre de economia, Charlie tornou as coisas piores com menos de vinte palavras.

"Você queria ter podido correr esta noite?”, diz ele agora.

Katie, ainda na expectativa de algo mais reconfortante, espera que ele se explique. Mais acostumado com a forma pela qual a cabeça de Charlie trabalha, eu sei o que me espera.

"O Nu Olímpico", diz ele ignorando meus sinais para mudar de assunto. "Você não gostaria de ter corrido?"

A pergunta é um golpe de mestre. Posso vê-lo sendo des­ferido, mas sou incapaz de qualquer defesa. Para mostrar sua compreensão pelo fato de Katie ser uma caloura e de morar em Holder, Charlie está perguntando se minha namorada está abor­recida por não ter podido se exibir nua na frente do resto do cam­pus hoje à noite. O elogio oculto, acredito, é que uma mulher com os dotes físicos de Katie devia estar morrendo de vontade de mos­trá-los. Charlie parece não ter a mínima intuição sobre o quanto isso pode dar errado.

O rosto de Katie fica tenso, revelando aonde a sucessão de seus pensamentos iria levar. "Por quê? Eu deveria estar?"

"Não há muitas estudantes de segundo ano que conheço que deixariam passar a oportunidade': diz ele. E por esse seu tom mais diplomático, sinto que ele deve ter percebido que deu um tremendo fora.

"Que oportunidade seria essa?”, pressiona Katie.

Tento ajudá-lo, buscando eufemismos para "nudez embria­gada”, mas minha mente parece uma revoada de pombos em fuga. Todos os meus pensamentos resumem-se a penas e excrementos.

"A oportunidade de tirar suas roupas uma vez em quatro anos?", Charlie atrapalha-se.

Lentamente, Katie olha para nós dois. Avaliando a roupa de Charlie, a mesma que este usara no túnel de vapor, e meu con­junto retirado do fundo do armário, ela não desperdiça palavras.

"Bem, então, acho que estamos quites. Porque não há mui­tos seniores que eu conheço que deixariam passar a oportunidade de trocar suas roupas pelo menos uma vez em quatro anos”.

Luto contra o impulso de alisar as rugas em minha camisa.

Charlie, percebendo a situação, se afasta para ir mais uma vez até a mesa de refrescos. Sua missão foi cumprida.

"Vocês, rapazes, formam um par encantador", diz Katie. "Sabia disso?"

Ela tenta parecer divertida, mas há um traço de aflição que não consegue esconder. Katie se levanta e passa as mãos pelos meus cabelos, tentando apaziguar as coisas, quando uma garota de Ivy chega diante de nós, de braço dado com Gil. Pela expressão de pesar em seu rosto, percebo que essa é a tal Kelly que ele nos avisou para evitar.

"Tom, você conhece Kelly Donner, não é?"

Antes que eu possa dizer que não a conheço, o rosto de Kelly se transforma. Ela olha com raiva para o outro lado do pátio.

''Aqueles estúpidos merdas", ela blasfema, jogando seu copo de papel no chão. "Eu sabia que eles tentariam fazer algo desse tipo justo esta noite”.

Todos nos viramos. Vindo dos clubes em nossa direção, surge uma companhia de artistas, todos homens, em túnicas e togas.

       Charlie ri alto, dando um passo à frente para ver melhor.

       "Diga-lhes para sair daqui", pede Kelly para ninguém em particular.

O grupo se torna mais distinguível através da neve. Agora fica evidente que é isso exatamente o que Kelly temia: uma façanha coreográfica. Cada toga traz uma série de letras no peito, escritas em duas fileiras distintas. Embora não possa ainda distinguir a fileira de baixo, a de cima é composta de duas letras: "T.I."

T.I. é a abreviação para Tiger Inn, o terceiro dos clubes mais antigos, e o único lugar no campus onde os lunáticos dirigem o hospício. Raramente Ivy parece tão vulnerável como quando T.I.

concebe uma nova brincadeira prática para provocar seu venerá­vel clube irmão. Hoje à noite é a oportunidade perfeita.

Uma gargalhada isolada irrompe no pátio, mas tenho de manter os olhos semi-cerrados para descobrir o porquê. O grupo inteiro se fantasiou com longas barbas cinza e asas. Ao nosso redor, as tendas mais próximas estão se enchendo de estudantes que aos gritos, querem ver o espetáculo.

Depois de um breve tumulto, os homens de T.I. se orde­nam em uma longa fila única. Assim que o fazem, posso final­mente distinguir a segunda fileira de palavras escritas em cada toga. No peito de cada homem há uma única palavra, e cada pala­vra, eu reconheço, é um nome. O nome do mais alto deles, parado no meio, é Jesus. À sua esquerda e direita ficam os doze apóstolos, seis de cada lado.

Já as gargalhadas e os vivas se tornaram mais altos.

Kelly aperta os maxilares. Não posso dizer pela expressão de Gil se ele está tentando reprimir seu divertimento para não ofendê-la, ou se está tentando dar a impressão que está se diver­tindo, quando não está.

A figura de Jesus dá um passo à frente do grupo e ergue as mãos para acalmar a audiência. Quando o pátio se torna silen­cioso, ele dá um passo atrás, emite um comando e a fila se divide em uma formação de coral. Jesus se dirige ao lado. Tirando uma pequena gaita de sua toga, ele sopra uma nota única. A fila sentada responde murmurando. A fila ajoelhada se junta fazendo uma terceira voz. Finalmente, quando as duas filas parecem estar per­dendo o fôlego, os apóstolos em pé contribuem com uma quinta.

A multidão, impressionada pelo esforço de preparação que eles devem ter feito, aplaude e dá vivas mais uma vez.

       "Linda toga!", grita alguém em uma tenda próxima.

Jesus gira a cabeça, levanta uma sobrancelha na direção da voz e volta a reger. Finalmente, levantando sua batuta no ar por três vezes com um movimento leve do punho, joga seus braços para trás de modo teatral, impele-os de novo à frente, e o coro explode em uma canção. Suas vozes, com a melodia do "Hino de Guerra da República", se espalham pelo pátio.

 

Viemos contar a história da faculdade do Senhor,

Mas as vinhas da ira fermentaram na adega onde foram armazenadas,

Então perdoem-nos se estamos todos um pouco embriagados. Nós santos continuamos nossa marcha.

 

Glória, Glória, somos os fósseis

De todos os apóstolos de Nazaré. Se não fossemos pró-Cristo, seríamos Apenas pescadores da Galiléia, Então ouçam nossa história.

 

Ora, Jesus era nosso macho típico do antigo Médio Oriente. Ele foi para a escola pública, mas possuía um santo graal especial:

Preferia queimar no Inferno do que ir para Harvard ou Yale,

Então sua escolha era muito clara.

 

Glória, Glória, Deus O convenceu, Jesus Cristo, Ele foi para Princeton. Ele tomou a decisão certa

Quando Ele se especializou em religião E o resto é conversa.

 

Então Cristo chegou ao campus no outono do ano 18,

O Maior Homem no Campus que o mundo jamais viu. Ele fez os outros clubes ficarem com inveja, Ivy ficou doente Quando Jesus escolheu T.I.

 

Agora dois apóstolos da primeira fila ficam de pé e dão um passo à frente. O primeiro abre um rolo de pergaminho onde se lê "Ivy”, e o segundo um onde se lê "Cottage". Depois de levantarem o nariz para o alto, olharem um para o outro e se empinarem com convencimento em torno de Jesus, a canção continua.

 

Coro: Glória, Glória, Jesus argumentou,

Todos os bárbaros pagãos riram disfarçadamente. Yvy: Não podemos aceitar um judeu;

Cottage: Um carpinteiro não dará certo;

Coro: Então o Senhor, Ele juntou-se a T.I.

 

Kelly aperta os punhos com tanta força que quase chega a se ferir.

Agora os doze apóstolos desmancham a formação em coral e se unem em uma linha de protesto: com Jesus no centro, braços entrelaçados, erguem as pernas desafiadoramente no ar e concluem:

 

Jesus, Jesus, Ele é um rapaz divertido.

Graças a Ele somos todos ex-alunos.

Não há nada tão divino

Quanto transformar água em vinho,

Sua verdade continua.

 

Com isso, os treze homens se viram e, com precisão coreográ­fica, levantam a parte de trás de suas togas para revelar uma mensa­gem escrita em seus traseiros, uma letra em cada nádega:

 

                   FELIZ PÁSCOA: VOTOS DE TIGER INN

 

Uma combinação desordenada de aplausos selvagens, vivas impetuosos e vaias se seguem. E então, exatamente quando os treze homens estão se preparando para ir embora, um estouro súbito atravessa o pátio, seguido pelo barulho de vidro quebrando.

As cabeças se viram na direção do estrondo. No andar de cima do Dickinson, o edifício do departamento de história, brilha um clarão. Uma das vidraças do escritório está despedaçada. Na escuridão, posso ver movimento.

Um apóstolo T.I. começa a dar vivas ruidosamente.

"O que está acontecendo?", pergunto. Forçando os olhos posso distinguir alguém perto da vidraça estilhaçada.

"Isso não é engraçado", Kelly resmunga para Judas, que está dentro do alcance de sua voz.

       Ele mostra desdém.

       "O que ele está fazendo?", ela pergunta, apontando para a janela.

       Judas pensa por um momento.

       "O cara vai urinar." Ele sorri levemente embriagado, depois repete: "Ele vai urinar para fora da janela."

Kelly grita para a figura de Jesus.

"Que diabos está acontecendo, Derek?", ela pergunta.

O vulto no escritório aparece e depois some. Pelo seu jeito de andar, percebo que está embriagado. Num dado momento parece que vai tocar nos vidros quebrados, depois desaparece.

"Acho que há mais alguém lá em cima", comenta Charlie. Repentinamente o homem aparece de corpo inteiro. Ele está apoiado de costas contra o vidro da janela.

"Ele vai urinar”, repete Judas.

Do meio dos apóstolos surge um babaca gritando: "Pula! Pula!".

Kelly se vira para eles. "Cale-se, idiota! Vá fazê-lo descer!"

De novo o homem desaparece da nossa vista.

"Não acho que ele seja do T.I", diz Charlie preocupado. "Acho que é algum rapaz embriagado do Nu Olímpico."

       Mas o homem estava vestindo roupas. Olho no escuro tentando discernir as formas. Dessa vez o homem não volta.

       Ao meu lado, o apóstolo embriagado vaia.

       "Pula!", um deles grita de novo, mas Derek o puxa,   mandando-o ficar quieto.

       "Saiam daqui", ordena Kelly.

       "Calma, garota", diz Derek, começando a reunir os discípulos.

Gil observa tudo isso com o mesmo olhar inescrutá­vel de divertimento que tinha quando os homens chegaram. Olhando seu relógio, ele diz: "Bem, parece que já assimilamos toda a graça dis..."

"Santa merda!", grita Charlie.

Sua voz quase abafa o eco do segundo estouro. Dessa vez ouvi o estampido distintamente. É um tiro.

Gil e eu nos voltamos a tempo de ver. O homem é ati­rado para trás através do vidro, e por alguns segundos sua ima­gem parece congelar em queda livre. Com um barulho surdo, seu corpo bate na neve, e o impacto absorve todo o barulho e a exci­tação do pátio.

Depois não há nada.

A primeira coisa de que me lembro é do som dos pés de Charlie quando ele se lança em direção ao corpo na neve. Depois uma grande multidão o segue, convergindo ao redor da cena, blo­queando minha visão.

"Oh!, meu Deus”, murmura Gil.

Vozes desordenadas gritam: "Ele está bem?". Mas não há sinal algum de movimento.

Finalmente escuto a voz de Charlie. "Alguém chame uma ambulância. Digam que temos um homem inconsciente no pátio perto da capela!"

Gil pega seu telefone, mas, antes que possa discar, dois seguranças do campus chegam ao local. Um deles abre caminho na multidão. O outro começa a dirigir os curiosos para trás. Por um momento vejo Charlie curvado sobre o homem, fazendo compressões no peito - movimentos perfeitos, como alguém tocando pistão. Quão estranho é, repentinamente, vê-lo na profissão que ele exerce de noite.

"Uma ambulância já está a caminho!"

Indistintamente, posso ouvir sirenes ao longe.

Minhas pernas começam a tremer. Experimento uma sen­sação crescente de que algo tenebroso está se passando.

A ambulância chega. Suas portas traseiras se abrem, e dois para-médicos descem para colocar o homem na maca. O movi­mento diminui, os espectadores oscilam para dentro e para fora do meu campo de visão. Quando as portas se fecham, posso ver o lugar onde o corpo caiu. A marca nas pedras de pavimentação tem uma aparência indecente, como um aranhão na capa de um livro de histórias de princesas. O que achei que fosse lama respingada com o impacto, percebo mais nitidamente agora. Os pretos são vermelhos; o lodo é sangue. No escritório acima só há escuridão.

A ambulância vai embora, suas luzes e sirene enfraque­cendo quando ela entra na Nassau Street. Olho de novo para o local. Ele está deformado, como um anjo de neve quebrado. O vento assobia e eu envolvo meu corpo num abraço. Só quando a multidão no pátio começa a dispersar percebo que Charlie foi embora. Ele seguiu com a ambulância, e um silêncio desagradável se fez no lugar em que eu esperava ouvir sua voz.

Bem lentamente os estudantes vão deixando o pátio em silêncio. "Espero que ele esteja bem”, diz Gil, colocando uma mão em meu ombro.

Por um segundo penso que ele se refere a Charlie.

“Vamos para casa”, diz ele, “vou lhe dar uma carona.”

Eu aprecio o calor de sua mão, mas fico ali, só olhando. Na minha mente visualizo o homem caindo outra vez, colidindo com o chão. A seqüência se fragmenta, e posso ouvir o estouro do vidro quebrando, depois o tiro.

Meu estômago começa a revirar.

"Venha", repete Gil. "Vamos sair daqui."

E como o vento recrudesce de novo, concordo. Katie desa­pareceu em algum lugar na confusão da ambulância, e uma amiga que estava perto dela me conta que ela voltou ao Holder com sua companheira de quarto. Decido lhe telefonar de casa.

Gil coloca uma mão gentil em meu ombro e me conduz ao Saab que está perto da entrada do auditório. Com aquele instinto infalível de quem sabe o que é o melhor, ele regula a temperatura até um nível confortável, sintoniza o rádio em uma balada de Sinatra até que o vento se tome uma lembrança, e com um pequeno aumento de velocidade, que garante nossa impunidade em face dos elementos, ele dirige pelo campus. Tudo atrás de nós se desvanece na neve.

"Você viu a pessoa que caiu?", ele pergunta calmamente quando o carro começa a andar.

"Não pude ver nada."

"Você não acha...", Gil se movimenta para a frente em seu banco.

''Acho o quê?"

"Será que devemos telefonar para Paul e ver se está tudo bem?"

Gil me dá seu celular, mas ele está descarregado.

"Tenho certeza que ele está bem", digo enquanto mexo no telefone.

Ficamos em silêncio por vários minutos, tentando não pensar sobre o assunto. Finalmente Gil dirige a conversa para um outro ponto.

"Conte-me sobre a sua viagem", diz ele. Eu tinha ido para Columbus, no começo da semana, para celebrar o término da minha tese. "Como estão as coisas em casa?"

Conseguimos ter uma conversa cheia de remendos, pulando de um tópico ao outro, tentando ficar acima do fluxo dos nossos pensamentos. Eu lhe conto as últimas novidades sobre minhas irmãs, uma delas veterinária, a outra se dedicando a uma escola de comércio, e Gil pergunta sobre minha mãe, de cujo aniversário se lembrava. Ele me conta que, apesar de todo o tempo que dedicou ao planejamento do baile, conseguiu terminar sua tese naqueles últimos dias, antes do prazo-limite do departamento de economia, enquanto estive fora. Gradualmente, passamos a nos perguntar se Charlie tinha sido aceito para a escola de medicina, tentando adivi­nhar para qual delas ele teria intenção de ir, uma vez que esses são assuntos sobre os quais Charlie não conversa nem conosco.

Seguimos em direção ao sul, e na noite escura os contor­nos dos dormitórios se delineiam dos dois lados. As novidades sobre o que aconteceu na capela devem estar se espalhando atra­vés do campus, porque nenhum pedestre está visível, e os úni­cos carros estão estacionados, em grupo, nas áreas apropriadas. A ida até o estacionamento, cerca de um quilômetro após o Dod, parece quase tão longa quanto o retorno. Não se vê Paul em lugar nenhum.

 

                                       Capítulo 12

Dos estudos que cercam o tema Frankenstein extraiu-se uma máxima que diz que o monstro é uma metáfora para a novela. Mary Shelley, que tinha dezenove anos quando come­çou a escrever o livro, encorajava essa interpretação chamando-a de sua criatura horrenda, uma coisa morta com vida própria. Tendo perdido uma criança aos dezessete anos, e tendo causado a morte da própria mãe quando nasceu, ela devia saber o que queria dizer com aquilo.

Durante algum tempo pensei que Mary Shelley era tudo que o tema de minha tese tinha em comum com a de Paul: ela e o romano Francesco Colonna (que tinha apenas catorze anos, segundo alguns estudiosos, quando o Hypnerotomachia foi escrito) formavam um belo par: dois adolescentes com inteligência acima do normal para a sua idade. Para mim, naqueles meses antes de eu encontrar Katie, Mary e Francesco eram amantes constantes, igualmente jovens, em diferentes épocas. Para Paul, que se rela­cionava com estudiosos da geração de meu pai, eles eram um emblema do poder da juventude em oposição à obstinada força viva da idade.

Muito curiosamente, foi o argumento de que Francesco Colonna parecia ser um homem de idade, e não um jovem, que levou Paul a fazer seu primeiro progresso no Hypnerotomachia. Ele começou a estudar com Taft como um simples novato, e o ogro podia perceber a influência de meu pai sobre Paul. Embora dissesse que havia parado de estudar o antigo livro, Taft estava ansioso para mostrar a Paul a tolice das teorias de meu pai. Ainda favorecendo a noção de um Colonna veneziano, ele explicava a prova em prol do Simulador.

O Hypnerotomachia foi publicado em 1499, disse Taft, quando o romano Colonna tinha quarenta e cinco anos; isso estava fora de dúvida. Mas a página final da história real, que o próprio Colonna compôs, afirma que o livro foi escrito em 1467 - quando o Francesco de meu pai teria apenas catorze anos. Por mais improvável que fosse um monge ter escrito o Hypnerotomachia, era também completamente impossível que um adolescente o tivesse feito.

E então, como o perverso rei inventando novos trabalhos para o jovem Hércules, Taft deixou que Paul assumisse o fardo da prova. Até que seu novo protegido pudesse concluir que a questão da idade de Colonna não era importante, Taft se recusou a ajudar na pesquisa prometida sobre o autor romano.

É quase impossível explicar a maneira pela qual Paul se recusou a curvar-se sob a lógica daqueles fatos. Ele se sentiu ins­pirado não só pelo desafio de Taft, mas pelo próprio Taft: embora Paul rejeitasse a sua interpretação rígida sobre o Hypnerotomachia, ele examinou suas fontes com a mesma implacabilidade. Enquanto meu pai deixou a inspiração e a intuição guiá-lo, pesquisando principalmente em locais exóticos como mosteiros e bibliotecas papais, Paul adotou a abordagem mais completa de Taft. Nenhum livro era demasiado simples, nenhuma situação demasiado enfa­donha. E pouco a pouco sua concepção inicial sobre os livros mudou, da mesma forma que a concepção sobre a água de um menino que sempre viveu ao lado de uma lagoa fica destronada por sua súbita exposição ao oceano. A coleção de livros de Paul, no dia em que ele entrou na faculdade, chegava a pouco menos de seiscentos. A coleção de livros de Princeton, incluindo mais de oitenta quilômetros de prateleiras só na Biblioteca Firestone, ultrapassava seis milhões.

No início a experiência amedrontou Paul. O quadro fan­tástico que meu pai expôs, de cruzar quase que por acaso com documentos-chave, instantaneamente irrompeu. Mais dolo­roso, penso eu, foi o questionamento a que Paul se viu forçado, a introspecção e a incerteza que o fizeram duvidar se o seu gênio era simplesmente um talento provinciano, uma estrela embotada num canto escuro do céu. Esse terceiranista, em seus avanços, admitia que estava muito longe de alcançar resultados, e o fato de que seus professores lhe concediam quase um apreço messiânico nada significava para Paul se ele não pudesse fazer progressos no Hypnerotomachia.

Então, durante seu verão na Itália, tudo isso mudou. Paul descobriu o trabalho dos estudiosos italianos, cujos tex­tos ele era capaz de decifrar graças a quatro anos de latim. Trabalhando arduamente na biografia italiana definitiva do Simulador veneziano, ele ficou sabendo que alguns elementos do Hypnerotomachia se deviam a um livro chamado Cornucopiae, publicado em 1489. Como um detalhe na vida do Simulador, ele parecia sem importância - mas Paul, chegando ao problema com o romano Francesco em mente, viu muito mais nisso. Não impor­tava quando Colonna dizia ter escrito o livro, agora havia provas de que este havia sido composto depois de 1489. Nessa época o romano Francesco teria ao menos trinta e seis anos, não catorze. E embora Paul não pudesse imaginar por que Colonna teria men­tido a respeito do ano em que escreveu o Hypnerotomachia, ele percebeu que havia respondido ao desafio de Taft. Para o melhor ou para o pior, ele havia entrado no mundo de meu pai.

O que se seguiu foi um período de grande confiança. Armado com quatro línguas (a quinta, o inglês, era inútil a não ser para fontes secundárias) e com um extenso conhecimento sobre a vida e a época de Colonna, Paul lançou-se sobre o texto. Ele dedi­cava, a cada dia, mais e mais tempo para o projeto, tomando uma postura em relação ao Hypnerotomachia que achei desconfortavel­mente familiar: as páginas eram um campo de batalha onde ele e Colonna mediriam forças em relação à compreensão, o vencedor levando tudo. A influência de Taft, adormecida nos meses antes de sua viagem, voltou. A medida que o interesse de Paul pouco a pouco ganhou a coloração de obsessão, Taft e Stein se tornaram, de modo crescente, importantes em sua vida. Se não fosse pela intervenção de um homem, penso que teríamos perdido Paul para eles irremediavelmente.

Esse homem foi Francesco Colonna e seu livro não foi a moleza que Paul esperava. Embora forçasse seu músculo mental, ele verificou que a montanha não se movia. A medida que seu progresso tornou-se mais lento, e o outono do ano de calouro virou inverno, Paul tornou-se irritável, impaciente, expressando-se com comentários cortantes e maneirismos bruscos que ele só poderia ter aprendido com Taft. Em Ivy, contou-me Gil, os membros estavam começando a zombar de Paul quando ele se sentava sozinho à mesa de jantar rodeado por montes de livros sem falar com ninguém. Quanto mais eu observava sua confiança diminuir, mais com­preendia algo que meu pai dissera certa vez: o Hypnerotomachia é uma sereia, uma canção encantada em uma margem distante, toda feita de garras e presas. Você a corteja correndo riscos.

E o tempo não parou. Veio a primavera; alunos no alto dos tanques lançavam Frisbeel (Peça de plástico em forma de prato) debaixo de sua janela; esquilos e flores curvavam os ramos das árvores; bolas de tênis ecoavam no pátio; e ainda assim Paul continuava sentado em seu quarto, sozinho, na penumbra, a porta trancada, com uma mensagem do lado de fora: NÃO PERTURBE. Tudo de que eu gostava trazido pela nova estação, ele considerava uma distração - os cheiros e os sons, uma sensação de ansiedade depois de um longo e livresco inverno. Sabia que mesmo eu estava me tornando uma distração para ele. Tudo o que ele me contava parecia soar como uma informação sobre o tempo de um país estrangeiro. Eu o visitava pouco.

Passei o verão sozinho para deixá-lo à vontade. No começo de setembro do ano sênior, depois de três meses de um campus vazio, ele de novo nos deu as boas-vindas. Repentinamente estava aberto para interrupções, ansioso por passar mais tempo com os amigos, menos fixado no passado. Nos meses de abertura daquele semestre, eu e ele desfrutamos de um renas cimento em nossa amizade melhor do que qualquer coisa que eu pudesse esperar. Ele se importava menos com os espectadores em Ivy que aguar­davam suas palavras, esperando por algo injurioso; gastava menos tempo com Taft e Stein; saboreava as refeições e gostava de passear nos intervalos entre as aulas. Ele podia até apreciar o humor na maneira pela qual os lixeiros esvaziavam o contêiner de lixo todas as terças-feiras às sete da manhã. Eu achava que ele estava melhor. Mais do que isso: achava que tinha renascido.

Foi apenas quando Paul veio até mim em outubro do ano sênior, tarde da noite depois de nossos últimos testes do semestre, que compreendi o que era a outra coisa que nossas teses tinham em comum: os nossos temas eram ambos coisas mortas que se recusavam a permanecer enterradas.

"Existe alguma coisa que possa fazer você mudar de idéia sobre trabalhar no Hypnerotomachia?", perguntou-me Paul naquela noite - e por sua expressão tensa eu soube que ele havia encontrado algo importante.

"Não", respondi, em parte porque eu achava isso, e em parte para que ele ficasse sabendo de minhas intenções.

"Acho que fiz uma descoberta importante no verão, mas preciso de sua ajuda para compreendê-la."

"Me fale sobre ela”, eu disse.

E por mais que isso tivesse começado por causa de meu pai, por mais estimulante que fosse sua curiosidade pelo Hypnerotomachia, foi assim que começou para mim. O que Paul disse naquela noite deu uma nova vida ao livro de Colonna morto havia muito tempo.

"Vincent apresentou-me a Steven Gelbman, de Brown, no ano passado, quando eu disse que estava ficando frustrado", come­çou Paul. "Gelbman faz pesquisa com matemática, criptografia e religião, tudo ao mesmo tempo. Ele é um especialista na análise matemática da Torá. Você já ouviu sobre isso?"

“Parece que tem a ver com a cabala.”

"Exatamente. Você não estuda só o que a palavra bíblica diz; você estuda o que os números dizem. Cada letra no alfabeto hebraico tem um número atribuído a ela. Usando a ordem das letras, você pode procurar padrões matemáticos.

"Bem, eu fiquei indeciso no começo. Mesmo depois de ficar sentado por dez horas lendo sobre as correspondências sefi­róticas, eu não me convenci. Pareciam simplesmente não ter rela­ção com Colonna. Mas no verão terminei as seções secundárias do Hypnerotomachia e comecei a trabalhar no próprio livro. Era impossível. Eu tentava forçar uma interpretação para ele e ele me lançava tudo de volta. Assim que eu achava que algumas páginas estavam sugerindo uma certa direção, usando uma determinada estrutura, fazendo um certo sentido, de repente a sentença termi­nava e na seguinte tudo mudava.

"Gastei cinco semanas só tentando entender o primeiro labi­rinto que Francesco descreve. Estudei Vitruvius (Marco Vitrúvio, arquiteto romano contemporâneo de Augusto, autor da obra De Architectura) para compreender os termos arquitetônicos. Consultei todos os antigos labirintos que conhecia - o egípcio, na Cidade dos Crocodilos, os de Lemnos e Clusium e Creta, mais meia dúzia de outros. Depois percebi que no Hypnerotomachia havia quatro labirintos diferentes - um em um templo, um na água, um em um jardim e um em um subter­râneo. Justo quando eu achava que estava começando a entender um nível de complexidade, ele se quadruplicava. Poliphilo até se perde no começo do livro e diz: Meu único recurso foi implorar a piedade da cretense Ariadne, que deu o fio para que Teseu escapasse do difícil labirinto. É como se o livro entendesse o que ele estava fazendo para mim.

"Finalmente me dei conta de que a única coisa que eu conhecia que definitivamente funcionava era o acróstico com a primeira letra de cada capítulo. Então fiz o que o livro me disse para fazer. Implorei a piedade da cretense Ariadne, a única pessoa que podia ser capaz de esclarecer o labirinto."

"Você voltou para Gelbman."

Ele fez que sim. "Reconheci o erro. Eu estava desesperado.

Em julho, Gelbman deixou que eu ficasse com ele em Providence, depois que Vincent insistiu que eu estava fazendo progressos com o método. Ele passou o fim de semana me indicando técnicas de decodificação mais sofisticadas, e foi então que as coisas começaram a se encaixar”.­

Eu me lembro de ficar olhando para fora da janela por sobre os ombros de Paul, enquanto ele falava, observando as mudanças da paisagem. Estávamos sentados em nosso dormitório no Dod, sozinhos em uma sexta-feira à noite; Charlie e Gil se encontravam nos túneis de vapor, jogando paintball com um grupo de ami­gos de Ivy e da equipe de para-médicos. No dia seguinte eu teria que trabalhar em um ensaio e estudar para um teste. Uma semana depois eu viria a encontrar Katie pela primeira vez. Mas, naquele momento, Paul tinha toda a minha atenção.

"O conceito mais complicado que ele me ensinou", conti­nuou Paul, "foi como decodificar um livro baseado em algo ritmos ou criptogramas do próprio texto. Nesses casos a chave está embu­tida dentro dele. Você resolve o criptograma, como uma equação ou um conjunto de instruções, depois você usa o criptograma para desvendar o texto. O livro, na verdade, interpreta a si mesmo”.

Eu sorri. "Isso soa como uma idéia que poderia arruinar o departamento de inglês”.

"Eu também estava cético", disse Paul. "Mas acontece que existe uma longa tradição a respeito. Os intelectuais durante o Iluminismo costumavam escrever tratados similares a esse como um jogo. Os textos pareciam histórias comuns, novelas epistola­res, esse tipo de coisa. Mas, se você conhecesse a técnica correta - talvez descobrir erros que se revelavam intencionais, ou resol­ver enigmas nas ilustrações -, era possível encontrar a chave.

Algumas vezes era 'usar apenas números primos e quadrados per­feitos, e letras que toda décima palavra tem em comum; excluir as palavras de Lord Kinkaid e quaisquer perguntas da criada'. Você deveria seguir a direção e haveria uma mensagem no final. Na maior parte do tempo era uma espécie de poema humorístico ou uma piada suja. Mas um desses rapazes realmente deixou seu testamento dessa maneira. Quem quer que conseguisse decifrá-lo herdaria sua fortuna."

Paul puxou uma única folha de papel do interior de um livro. Nela estava anotado, em dois blocos distintos, o texto de uma passagem escrita em código, e abaixo dele a curta mensagem decodificada. Como uma se transformava na outra não pude ver.

"Depois de um tempo, comecei a achar que podia trabalhar. Talvez o acróstico com as letras dos capítulos do Hypnerotomachia fosse apenas uma pista. Talvez estivesse lá para mostrar que tipo de interpretação funcionaria no resto do livro. Um grande número de humanistas estava interessado em cabala, e a idéia de dispu­tar jogos com linguagem e símbolos era popular na Renascença. Talvez Francesco tivesse usado algum tipo de criptograma para o Hypnerotomachia.

"O problema era que eu não sabia onde procurar pelo algo ritmo. Comecei a inventar meus próprios criptogramas, ape­nas para ver se algum deles funcionaria. Eu me debatia com isso dia após dia. Quando acreditava ter chegado em algo, gastava uma semana indo atrás de uma resposta na Sala de Livros Raros - só para concluir que ela não fazia sentido, ou era uma armadilha, ou um caminho sem saída.

"Então, no fim de agosto, fiquei três semanas em uma única passagem. É o ponto na história em que Polophilo está examinando um conjunto de templos em ruínas e encontra uma mensagem esculpida em um obelisco. A frase de abertura é: Para o divino e sempre augusto Júlio César, governador do mundo. Nunca vou esquecer disso - quase me deixou maluco. As mesmas pou­cas páginas, dia após dia. Mas foi então que a encontrei."

Ele abriu uma pasta em sua escrivaninha. Dentro havia uma reprodução de cada página do Hypnerotomachia. Virando até um apêndice que ele criou no final, mostrou-me uma folha de papel na qual grampeou a primeira letra de cada capítulo obtendo o que se parecia com uma nota de redenção, formando a famosa mensagem sobre Fra Francesco Colonna. Poliam Frater Franciscus Columna Peramavit.

"Minha suposição inicial era simples. O acróstico não podia ser apenas um truque, um meio fácil de identificar o autor. Ele devia ter um propósito maior: as primeiras letras não seriam importantes para decodificar apenas a mensagem inicial, elas seriam importantes para decifrar o livro todo.

"Então tentei. A passagem que eu estava estudando se iniciava com um hieróglifo especial em um dos desenhos - um olho': Ele virou várias páginas até chegar finalmente à figura.

"Visto que ele era o primeiro símbolo naquela xilogravura, decidi que devia ser importante. O problema era que eu não podia fazer nada com ele. A definição que Poliphilo deu ao símbolo ­que o olho significa Deus, ou divindade - não me levou a nada.

"Foi quando tive sorte. Certa manhã eu estava trabalhando no Centro do Estudante e não tinha dormido muito, então decidi comprar uma soda. Só que a máquina teimava em devolver meu dólar. Eu estava muito cansado, não conseguia descobrir por que aquilo estava acontecendo, até que finalmente olhei para baixo e percebi que estava pondo a nota de maneira errada. O verso da nota estava para cima. Eu estava prestes a colocá-la de novo e tentar outra vez, quando o vi. Bem na minha frente, no verso da nota”.

"O olho”, eu disse. "Bem acima da pirâmide."

"Exatamente. Ele faz parte do grande brasão. E foi então que ele me impressionou. Na Renascença houve um famoso humanista que usava o olho como seu símbolo. Ele até o estam­pou em moedas e medalhas”.

Ele esperou como se eu pudesse saber a resposta.

''Alberti”, Paul apontou para um pequeno volume na pra­teleira. A lombada mostrava De re aedificatoria. "Era isso que Colonna queria dizer com o olho. Ele estava prestes a emprestar uma idéia do livro de Alberti e queria que quem o lesse percebesse isso. Se o leitor pudesse apenas imaginar o que era, o resto entra­ria em seu lugar.

"Em seu tratado, Alberti cria equivalentes latinos para palavras arquitetônicas derivadas do grego. Francesco faz essa mesma substituição por todo o Hypnerotomachia - exceto em um lugar. Eu percebi isso na primeira vez em que traduzi a seção, porque comecei a me deparar com termos vitruvianos que não via fazia já um longo tempo. Mas nunca pensei que eles fossem significativos.

"O truque, percebi, está em que você tem de encontrar todos os termos arquitetônicos gregos naquela passagem e substituí-los pelos seus equivalentes latinos, eles aparecem do mesmo modo no resto do texto. Se você fizer isso, e usar a regra acróstica - ler a primeira letra de cada palavra em uma fileira, uma após a outra, da mesma maneira que você faz com a primeira letra de cada capítulo -, o enigma se decifra. Você encontra uma mensagem em latim. O único problema é que, se você cometer um único engano ao traduzir do grego para o latim, toda a mensagem fica arruinada. Substitua entasi por ventris diametrum no lugar de pôr apenas venter, e o 'D' extra no começo de diametrum altera tudo."

Paul então mudou de página, falando mais rapidamente. "Cometi erros, é claro. Felizmente, não foram tão grandes que eu não pudesse ordenar o latim. Levei três semanas, até um dia antes de vocês voltarem ao campus. Mas finalmente consegui. Você sabe o que ele diz?" Ele coçou o rosto de maneira nervosa. "Diz: Quem corneou Moisés?"

Ele deu uma sonora gargalhada. "Juro por Deus, posso ouvir Francesco rindo para mim. Sinto como se o livro todo se resumisse a uma grande brincadeira às minhas custas. Falo seria­mente. Quem corneou Moisés?"

"Não entendi."

"Em outras palavras, quem trapaceou Moisés?"

"Eu sei o que significa um corno."

"Na verdade, ele não diz literalmente corno. Ele diz: 'Quem deu chifres para Moisés?'. Chifres, desde o tempo de Artemidorus, são usados para sugerir adultério. Ele vem de..."

"Mas o que isso tem a ver com o Hypnerotomachia?"

Esperei que ele explicasse, ou dissesse que cometeu um erro ao ler o enigma: Mas quando Paul ficou em pé e começou a andar, pude perceber que isso era mais complicado.

"Eu não sei. Não posso imaginar como combina com o resto do livro. Mas eis a coisa estranha. Acho que posso ter solu­cionado o enigma."

"Alguém corneou Moisés?"

"Bem, mais ou menos. De início, pensei que fosse um erro. Moisés é uma figura demasiado importante no Velho Testamento para estar associada com infidelidade. Até onde sei, ele tinha uma ­esposa - uma mulher madianita chamada Zipporah -, mas ela mal apareceu no Êxodo, e não pude encontrar nenhuma referên­cia a ela cometendo adultério.

"Depois, em Números 12: 1, acontece algo incomum. O irmão e a irmã de Moisés se manifestam contra ele em razão de seu casamento com uma mulher cuchita. Os detalhes nunca são explicados, mas alguns estudiosos argumentam que pelo fato de Cushe e Midian serem áreas geográficas completamente diferen­tes, Moisés pode ter tido duas esposas. O nome da esposa cuchita nunca aparece na Bíblia. Mas um historiador do primeiro século, Flavius Josephus, faz o seu próprio relato sobre a vida de Moisés e diz que o nome da mulher cuchita ou etíope com quem ele casou era Tharbis."

Os detalhes estavam começando a me oprimir. "Então ela o enganou?”

Paul sacudiu a cabeça: "Não. Ao tomar uma segunda esposa Moisés enganou a ela, ou a Zipporah, aquela com quem se casou primeiro. A cronologia é difícil de ser estabelecida, mas, segundo alguns costumes, os chifres do adultério aparecem tam­bém na cabeça de quem engana, não apenas na cabeça da esposa enganada. Isso deve ser o que os enigmas tentam explicar. A res­posta é Zipporah ou Tharbis".

"Mas pra que tudo isso vai lhe servir?"

Sua excitação pareceu ter se dissipado. "Foi aqui que me depa­rei com um obstáculo. Tentei usar Zipporah e Tharbis como soluções de todas as maneiras possíveis, aplicando-as como criptogramas para ajudar a desvendar o resto do livro. Mas nada funcionou."

       Ele fez uma pausa, como se esperasse que eu fosse ajudá-lo de alguma forma.

       "O que Taft acha disso?", foi tudo o que consegui dizer.

       "Vincent não sabe. Ele acha que estou perdendo meu tempo. Assim que ele decidiu que as técnicas de Gelbman não estavam produzindo descobertas novas e importantes, ele me disse para voltar a seguir sua orientação. Focalizar mais as fontes venezianas iniciais”.

"Você não vai lhe contar sobre isso?"

Paul olhou para mim como se não tivesse entendido. "Estou contando para você", disse ele.

"Eu não faço idéia."

"Tom, isso não pode ser um acidente. Era atrás disso que o seu pai estava. Tudo o que temos de fazer é pensar sobre o pro­blema até encontrar uma solução. Quero que me ajude."

“Por que?”

Então uma certeza curiosa se fez sentir em sua voz, como se ele tivesse compreendido algo sobre o Hypnerotomachia que havia negligenciado antes. "O livro recompensa diferentes linhas de pensamento. Algumas vezes a paciência funciona, a atenção ao detalhe. Mas outras vezes instinto e inventividade são necessários. Li algumas de suas conclusões sobre Frankenstein. Elas são boas. São originais. E você nem mesmo teve de suar. Apenas pense sobre isso. Pense no enigma. Talvez você encontre algo. É isso que estou lhe pedindo”.

 

Eu rejeitei a oferta de Paul naquela noite por uma simples razão. No cenário da minha infância, o livro de Colonna era como uma mansão deserta em uma colina, uma sombra agourenta sobre qualquer pensamento. Todos os mistérios desagradáveis da minha juventude pareciam ter sua origem naquelas mesmas pági­nas impossíveis de ser lidas; as incontáveis ausências de meu pai em nossos jantares, enquanto trabalhava em sua escrivaninha; as antigas discussões em que ele e minha mãe sempre acabavam se envolvendo, como santos caindo em pecado; até mesmo a extrava­gância inóspita de Richard Curry, que se enamorou pelo livro de Colonna mais do que qualquer outro homem, e pareceu nunca se recuperar. Eu não podia entender o poder que o Hypnerotomachia exercia sobre aqueles que o liam, mas segundo minha experiên­cia aquele poder parecia representar sempre o pior. Observar Paul trabalhar tanto por três anos, mesmo culminando nessa nova des­coberta, só me ajudou a manter distância.

Se parece surpreendente, então, que eu tenha mudado de idéia na manhã seguinte, e me juntado a Paul em seu traba­lho, isso se deve a um sonho que tive depois que ele me contou sobre o enigma. Existe uma xilogravura no Hypnerotomachia que sempre permanecerá na lembrança da minha primeira infância, uma estampa com que me deparei muitas vezes depois de mexer às escondidas no escritório de meu pai para descobrir o que ele estava estudando. Não é todo dia que um garoto vê uma mulher nua reclinada sob uma árvore olhando para ele, enquanto ele retribui a gentileza. E imagino que ninguém, fora do círculo dos estudiosos do Hypnerotomachia, pode dizer que viu um sátiro nu aos pés dessa mulher, com um pênis enorme dirigido como uma agulha de bússola em direção a ela. Eu tinha doze anos quando vi o quadro pela primeira vez, estava sozinho no escritório de meu pai e pude repentinamente imaginar por que ele muitas vezes se atrasava para o jantar. O que quer que isso fosse, estranho e mara­vilhoso, o bife caseiro não era um estímulo suficiente.

Naquela noite, lembrei da xilografia da minha infância ­a mulher reclinada, o sátiro à espreita, o membro exuberante - e devo ter me revirado bastante em meu beliche, porque ouvi Paul perguntar da cama de cima: “Você está bem, Tom?”

Acordando, levantei e fui procurar nos livros em sua escri­vaninha. Aquele pênis, aquele chifre fora de lugar, me lembrava algo. Deveria haver uma conexão. Colonna sabia do que estava falando. Alguém tinha dado chifres a Moisés.

Encontrei a resposta na História da Renascença de Hartt. Já havia visto a ilustração antes, mas não me impressionara em nada.

"O que é isso?", perguntei a Paul, erguendo o livro até seu beliche e apontando para a página.

Ele se inclinou para ver. "A estátua de Moisés de Michelangelo", disse ele, olhando fixamente para mim como se eu tivesse ficado louco. "O que há de errado com ela, Tom?"

Então, antes mesmo que eu pudesse explicar, ele se calou e acendeu seu abajur.

“É claro...”, ele murmurou. “Oh, meu Deus, é claro”. 

Distintamente, na foto que mostrei a Paul, duas pequenas protuberâncias se destacavam no alto da cabeça da estátua, como chifres de um sátiro lascivo.

Paul pulou do beliche, com tanto estardalhaço que pensei que Charlie e Gil fossem aparecer. "Você conseguiu", disse ele, de olhos arregalados. "Deve ser isso".

Ele continuou assim por algum tempo, até que comecei a sentir uma desconfortável sensação de desarticulação, me pergun­tando por que Colonna teria posto a resposta ao seu enigma em      uma escultura de Michelangelo.

"Então por que eles estão aí?", perguntei finalmente.

Mas Paul já estava bem à frente. Ele puxou o livro do seu beliche e mostrou-me a explicação no texto. "Os chifres não tem nada a ver com ser um corno. O enigma era literal: quem deu chifres a Moisés? Isso vem de uma má tradução da Bíblia. Quando Moisés desce do Monte Sinai, diz o Êxodo, seu rosto brilha com raios de luz. Mas a palavra hebraica para 'raios' tam­bém pode ser traduzida como 'chifres' - karan versus keren. Quando São Jerônimo traduziu o Antigo Testamento para o latim, ele achou que ninguém além de Cristo deveria brilhar com raios de luz - então ele sugeriu uma tradução secundária.

E foi assim que Michelangelo esculpiu seu Moisés. Com chifres."

No meio de toda a excitação, nem mesmo percebi o que estava acontecendo. O Hypnerotomachia entrou, furtivamente, outra vez em minha vida, transportando-me através de um rio que eu não tinha a intenção de cruzar. Tudo o que cruzava o nosso caminho estava relacionado com o significado de São Jerônimo, que tinha aplicado a palavra cornuta a Moisés, atribuindo-lhe dessa maneira cornos. Mas, durante a semana seguinte, esse foi um fardo que Paul assumiu alegremente. A começar naquela noite, e durante ainda algum tempo, eu era apenas uma arma empres­tada, seu último recurso contra o Hypnerotomachia. Eu pensava que essa era uma posição que podia manter, uma distância que poderia guardar do livro, deixando Paul representar o interme­diário. E assim, quando ele retomou ao Firestone, super-excitado com as possibilidades que descortinamos, eu continuei e fiz outra descoberta sozinho. Ainda todo orgulhoso, depois de meu encon­tro com Francesco Colonna, só posso imaginar a impressão que causei em Katie.

Nós nos encontramos num lugar ao qual não pertencía­mos, mas onde nos sentíamos em casa: Ivy. No meu caso, havia passado tantos fins de semana lá quantos em meu próprio clube. Quanto a ela, já era uma das favoritas de Gil, meses antes que os debates no início de suas aulas de segundo ano começassem, e a primeira intenção dele foi a de nos apresentar.

"Katie”, ele disse, depois de nos levar ao clube naquela noite de sábado, "esse é meu companheiro de quarto, Tom”.

Dei um sorriso indolente, achando que não devia gastar meus músculos para encantar uma garota do segundo ano.

Então ela falou. E como uma mosca em uma planta car­nívora, esperando néctar e encontrando a morte, percebi quem estava caçando quem.

"Então você é o Tom", disse ela, como se eu correspondesse à descrição de um criminoso na parede de uma agência postal. "Charlie me falou de você”.

O que havia de melhor em ser descrito por alguém como Charlie é que as coisas só podiam se tornar melhores a partir de então. Aparentemente ele havia encontrado Katie algumas noites antes, em Ivy, e quando percebeu que Gil queria nos apresentar, ele zelosamente intrometeu-se com detalhes.

"O que ele lhe disse?", perguntei, tentando não parecer preocupado.

Ela pensou por alguns segundos, procurando as pala­vras exatas.

"Algo sobre astronomia. Sobre as estrelas."

''Anão branco”, contei a ela. "É uma brincadeira.

" Katie franziu as sobrancelhas.

"Também não entendo", admiti, tentando desfazer minha primeira impressão. "Não sou muito dado a esse tipo de bobagem”.

"Você está se especializando em inglês?", ela perguntou, como se soubesse.

       Fiz que sim. Gil tinha me contado que ela fazia filosofia.

       Ela me olhou de modo suspeito. "Quem é seu autor   favorito?"

       "Questão impossível. Quem é o seu filósofo favorito?"

       "Camus", ela respondeu, embora eu tivesse dito aquilo de modo retórico. "E meu autor favorito é H.A. Rey”.

As palavras saíram como um teste. Nunca tinha ouvido falar de Rey, ele parecia ser um modernista, um T.S. Elliot mais obscuro, um C.C. Cummings maiúsculo.

       "Ele escreveu poesia?", arrisquei, porque podia imaginá-la lendo francês à luz de vela.

       Katie pestanejou. Então, pela primeira vez desde o momento em que nos encontramos, ela sorriu.

       "Ele escreveu George, o Curioso", ela esclareceu, e riu alto quando tentei não ficar vermelho.

A meu ver, essa foi a receita do nosso relacionamento. Demos um ao outro o que nunca esperamos encontrar. Nos meus primeiros dias em Princeton, aprendi a nunca falar de negócios com minhas namoradas; mesmo a poesia podia matar o romance, segundo Gil, se você a confundir com conversa. Mas Katie tinha aprendido a mesma lição, e nenhum de nós havia gostado. No seu ano de caloura ela saiu com um jogador de hóquei, que encontrei em um dos meus seminários de literatura. Ele era talentoso, opi­nando sobre Pynchon e DeLillo de uma maneira que nunca con­segui, mas recusava-se a falar uma palavra sobre eles fora da aula. Ele a deixou maluca, os limites que impôs em sua vida, os muros que levantou entre trabalho e diversão. Em vinte minutos de con­versa naquela noite, em Ivy, descobrimos algo de que gostávamos, uma disposição para não ter paredes, ou talvez para deixá-las onde estavam. Gil ficou contente por ter combinado um bom par. Logo me peguei esperando pelos fins de semana, desejando estar com ela entre as aulas, pensando nela antes de dormir, no chuveiro, no meio dos exames. Antes de um mês estávamos namorando.

Sendo eu o mais velho do nosso relacionamento, imagi­nei durante algum tempo que coubesse a mim a tarefa de aplicar a sabedoria de minha experiência em tudo que fazíamos. Íamos a lugares familiares e a grupos amistosos, porque tinha aprendido com minhas namoradas anteriores que a familiaridade sempre chega no despertar de uma paixão passageira: duas pessoas que pensam que estão enamoradas podem descobrir, quando sozinhas, o quão pouco sabem uma sobre a outra. Então eu insistia em ir a lugares públicos - fins de semana nos clubes-restaurantes, as noites, durante a semana, no centro estudantil - e concordei em encontrá-la nos dormitórios e nos cantos de bibliotecas só quando detectei algo mais na voz de Katie, os indícios provocantes que eu me gabava de poder ouvir.

Como de hábito, foi Katie quem teve de me colocar na linha. "Venha", disse ela uma noite. "Vamos jantar juntos”.

“No clube de quem?”, perguntei.

"Num restaurante. Você escolhe."

Estávamos juntos fazia menos de duas semanas; ainda havia muitas particularidades dela que eu não conhecia. Um longo jantar, sozinhos, parecia arriscado.

"Você quer convidar Karen ou Trish para vir conosco?", perguntei. As duas companheiras de quarto dela, no Holder, eram perfeitas companhias. Trish, em particular, que nunca parecia comer, seguramente falaria durante a refeição inteira.

Katie estava de costas para mim. "Podíamos convidar Gil também”, disse ela.

"É claro." Isso me pareceu uma curiosa combinação, mas eu me sentia seguro com um número maior de pessoas.

"E Charlie?", ela perguntou. "Ele está sempre tão faminto."

Finalmente percebi que ela estava sendo sarcástica.

"Qual é o problema, Tom?", disse ela, voltando-se para mim. "Você tem medo que os outros nos vejam sozinhos?"

"Não."

"Eu aborreço você?"

"É claro que não."

"Então qual é o problema? Você acha que poderemos des­cobrir que não nos conhecemos muito bem?"

Hesitei. "Sim."

Katie pareceu surpresa de que fosse isso.

"Qual é o nome da minha irmã?': disse ela por fim.

"Não sei”.

"Eu sou religiosa?"

"Não tenho certeza:'

"Será que eu tiro dinheiro da caixa de gorjetas no café quando estou dura?"

"Provavelmente."

Katie se recostou em mim sorrindo. "Viu. Você sobreviveu”.

Nunca estive com ninguém que tivesse tanta certeza de me conhecer. Ela parecia nunca duvidar de que tudo se ajustaria.

''Agora vamos jantar", disse ela, puxando-me pela mão.

Nunca olhamos para trás.

 

Oito dias depois do meu sonho com o sátiro, Paul che­gou com novidades. "Eu estava certo", disse ele orgulhosamente. ''Algumas partes do livro estão escritas em criptograma”.

"Como você descobriu?"

"Cornuta - a palavra que Jerônimo usou para dar cornos a Moisés - é a resposta que Francesco queria. Mas a maioria das técnicas normais para usar uma palavra como criptograma não funciona no Hypnerotomachia. Olhe..."

Ele me mostrou uma folha de papel que havia preparado, com duas linhas de letras paralelas entre si.

 

a b c d e f g h i j k 1 m n o p q r s t u v w x y z C O R N U T A BD E F G H I J K L M P Q S V W X Y Z

 

"Esse é um alfabeto criptográfico básico”, disse ele. ''A linha de cima é o que chamam de texto puro, a linha de baixo é o texto criptografado. Você percebe como o texto criptografado começa com a nossa palavra-chave, cornuta? O que sobra é apenas um alfabeto regular, com as letras da palavra cornuta removidas para não aparecerem duplicadas."

"Como funciona?"

Paul pegou um lápis de sua escrivaninha e começou a tra­çar círculos em volta de algumas letras. "Vamos supor que você queira dizer 'olá' usando o criptograma cornuta. Você começa com o alfabeto de texto puro e procura 'O', depois olha para o equi­valente no texto criptografado que está na linha de baixo. Nesse caso, 'O' corresponde a 'J'. Você faz o mesmo com as demais letras e 'olá' se transforma em 'jgc'."

"Foi assim que Colonna usou cornuta?"

"Não. Nos séculos XV e XVI, as cortes italianas tinham sistemas muito mais sofisticados. Alberti, que escreveu o tratado de arquitetura que eu lhe mostrei na semana passada, também inventou uma criptografia polialfabética. O alfabeto cifrado muda depois de algumas palavras. É muito mais difícil."

Apontei para sua folha de papel. "Mas Colonna não pode­ria ter usado nada parecido com isso. Ele apenas fez linguagem inarticulada. Caso contrário o livro inteiro estaria cheio de pala­vras como ‘jgc’”.

Paul levantou os olhos. "Exatamente. Os métodos de crip­tografia complexos não produzem textos de boa leitura. Mas o Hypnerotomachia é diferente. O seu texto criptografado ainda pode ser lido como um livro."

"Então Colonna usou enigmas em lugar de um cripto­grama:'

Ele assentiu. "É chamado esteganografia. Ele oculta enig­mas dentro de uma história que parece normal, em um lugar onde eles não deveriam sobressair. Depois ele usa os enigmas para criar técnicas de decifração, para dificultar a compreensão de sua mensagem. Nesse caso, tudo o que você deve fazer é contar o número de letras da palavra cornuta, que é sete, depois enfileirar cada sétima letra do texto. Isso não é muito diferente de usar a primeira palavra de cada capítulo. Trata-se apenas de conhecer os intervalos corretos."

"Isso funcionou? Cada sétima letra no livro?"

Paul sacudiu a cabeça. "Não no livro todo. Só em parte. E não, não funcionou no começo. Eu continuo me deparando com absurdos. O problema é descobrir onde começar. Se você escolhe cada sétima letra começando pela primeira, você obtém um resul­tado completamente diferente do que se você escolhe cada sétima letra começando com a segunda. É aí que a resposta ao enigma desempenha um papel outra vez."

Ele puxou outra página de sua pilha, essa era uma fotocó­pia de uma página original do Hypnerotomachia.

"Bem aqui, no meio deste capítulo, está a palavra cornuta, soletrada no texto do próprio livro. Se você começar com 'C' em cornuta, e juntar cada sétima letra dos três capítulos seguintes, encontrará dessa maneira o texto puro de Francesco. O original estava em latim, mas eu o traduzi:' Ele me estendeu uma outra folha. "Olhe."

Bondoso leitor, esse ano que passou foi o mais árduo que suportei. Separado de minha família, tive apenas a bondade dos homens para meu conforto, e enquanto atravessava as águas pude ver quão imperfeita essa bondade pode ser. Se é verdade o que disse Pico, que o homem está repleto com todas as possibilidades, que ele é um grande milagre, como dizia Hermes Trismegistus, então onde está a prova? Estou cercado, por um lado, pelo ganancioso e o ignorante, que esperam tirar proveitos seguindo-me, e por outro lado pelos invejosos e os falsos piedosos, que esperam tirar proveito de minha destruição.

Mas você, leitor, confia naquilo em que acredito, ou "não encontraria o que escondi aqui. Você não está entre aqueles que destroem em nome de Deus, porque meu texto é inimigo deles, e eles são meus adversários. Viajei muito em busca de um receptáculo para o meu segredo, uma maneira de preservá-lo contra o tempo.

Nasci romano e fui educado em uma cidade construída para durar para sempre. As paredes e pontes dos imperadores estavam de pé depois de mil anos, e as palavras de meu antigo compatriota se multiplicaram, reimpressas hoje por Aldus e seus colegas em suas impressoras. Inspirado por esses autores do velho mundo, escolhi os mesmos receptáculos: um livro e um grande trabalho de pedras. Juntos eles abrigam o que darei a você, leitor, se puder compreender o meu propósito.

Para descobrir o que quero contar, você deve conhecer o mundo como o conhecemos, nós o estudamos mais do que qualquer homem em nosso tempo. Você deve provar ser um amante da sabe­doria, e um homem de potencial, para que eu possa saber que você não é inimigo. Porque existe um demônio andando por aí, e mesmo nós, os príncipes de nossos dias, o tememos.

Continue, então, leitor. Lute inteligentemente pelo conheci­mento. A jornada de Poliphilo se torna mais difícil, como a minha, mas tenho muito mais para contar.

Virei a folha de papel, procurando por mais. "Onde está o resto do texto?"

"Isso é tudo", disse Paul. "Temos que decifrar mais para conseguir o resto”.

Olhei para o texto, depois para ele, perplexo. Do fundo da minha mente, de um canto com pensamentos em desordem, res­soou o barulho de uma pancada leve, o som que meu pai produzia quando estava excitado. Seus dedos batiam o ritmo do Concerto de Natal de Corelli, duas vezes mais rápido do que qualquer movi­mento alegro, em qualquer superfície que pudesse encontrar.

"O que você vai fazer agora?': perguntei, tentando manter-me à tona, no presente.

Mas ocorreu-me um pensamento que colocou a desco­berta em perspectiva: Arcângelo Corelli terminou seu concerto nos primórdios da música clássica, mais de cem anos antes da Nona Sinfonia de Beethoven. Já nos dias de Corelli, no entanto, a mensagem de Colonna estava esperando pelo seu primeiro leitor por mais de dois séculos.

"A mesma coisa que você", disse Paul. "Vamos procurar o próximo enigma de Francesco."

 

                                 Capítulo 13

Todos os corredores do Dod estão vazios quando eu e Gil voltamos ao dormitório, entorpecidos pela longa caminhada desde o estacionamento. Um leve silêncio predomina no edifício. Durante o intervalo que separa o Nu Olímpico e as festividades da Páscoa, todos ficaram sabendo o que havia ocorrido.

Ligo a tevê para ver se há alguma notícia sobre o acidente. A rede local mostra o Nu Olímpico no último noticiário, depois que tiveram tempo de editar o evento, e os que correram em Holder Courtyard circulam na tela em uma confusão de brancos, cintilando atrás do vidro da tevê como vaga-lumes em um frasco.

Por fim a jornalista volta à tela.

"Estamos interrompendo com novas notícias."

Gil sai do seu quarto para escutar.

"Noticiamos ainda hoje uma ocorrência ligada à Universidade de Princeton. Neste momento o acidente em Dickinson Hall, que algumas testemunhas descrevem como uma proeza da associação de estudantes que deu errado, teve um trá­gico desfecho. Funcionários do Centro Médico de Princeton con­firmam que o homem, que parece ser um estudante universitário, morreu. Em sua declaração, o chefe de polícia de Borough, Daniel Stout, repetiu que os investigadores continuarão a examinar a pos­sibilidade de fatores não acidentais terem desempenhado algum papel no acidente. Enquanto isso, os administradores da universi­dade pedem aos estudantes que permaneçam em seus quartos, ou que saiam em grupos se houver necessidade."

No estúdio, o âncora se volta para sua colega. "É uma situa­ção muito difícil, dado o que presenciamos antes em Holder Hall”. Voltando-se para a câmera, acrescenta: "Retomaremos mais tarde com novas notícias a respeito':

"Ele morreu?”, repete Gil, incapaz de acreditar. "Mas pen­sei que Charlie..." Deixou o pensamento silenciar.

"Um estudante universitário”, eu digo.

       Gil levanta os olhos para mim depois de um longo silên­cio. "Não pense nisso, Tom. Charlie teria avisado."

Na parede, a fotografia emoldurada que eu trouxe de Katie está colocada num canto. Tento ligar para o escritório de Taft, justo quando Gil volta do seu quarto e me dá uma garrafa de vinho.

"O que é isso?", pergunto.

O telefone no Instituto chama repetidas vezes e nada.

       Gil vai até o bar improvisado que ele mantém no canto da sala, pegando dois copos de vinho e um saca-rolhas. "Preciso relaxar”.

Ainda ninguém responde no escritório de Taft, então relu­tantemente desligo o telefone. Estou prestes a dizer a Gil o quanto me sinto mal, mas quando o olho de relance percebo que ele parece ainda pior.

“O que está errado?”, pergunto.

Ele enche os copos. Pegando um, levanta-o para brindar, depois toma um gole.

“Tome um pouco", diz ele. “Está bom”.

“Claro", eu digo, me perguntando se ele apenas deseja uma companhia para beber. Mas só de pensar em vinho meu estômago dá voltas.

Ele aguarda, então eu molho os lábios. O Borgonha desce ardendo, mas tem efeito oposto sobre Gil. Quanto mais ele bebe, mais sua fisionomia parece melhorar.

Seguro o copo com as pontas dos dedos. A neve cai em pequenas áreas de luz debaixo dos postes de iluminação a distân­cia. Gil engole seu segundo copo.

"Devagar, chefe", eu digo, tentando não parecer desagradá­vel. "Você não quer ter uma ressaca no baile."

"Sim, certo", diz ele. "Tenho de estar no fornecedor de ali­mentos para o clube por volta das nove da manhã. Devia ter avi­sado que nem à aula eu chego tão cedo."

Isso soa ríspido, e Gil parece se recompor. Pegando o con­trole remoto do chão, diz: "Vamos ver se há alguma notícia nova”.

Três diferentes redes de tevê estão transmitindo de algum lugar no campus, mas quando parece não haver nenhuma infor­mação nova, Gil desiste e começa a ver um filme.

"A princesa e o plebeu", diz ele, sentando-se. Um certo alí­vio aparece em seu rosto. Audrey Hepburn de novo. Ele larga o copo de vinho.

À medida que o filme se desenrola, acabo aceitando que Gil está certo. Por mais opressivos que sejam meus pensamentos, cedo ou tarde acabo me interessando por Audrey. Não consigo desviar meus olhos dela.

Depois de um tempo, o interesse de Gil parece desvanecer um pouco. Por causa do vinho, acho. Mas quando ele esfrega a testa e fixa o olhar em suas mãos por um tempo demasiado longo, percebo que há algo mais. Talvez esteja pensando em Anna, que rompeu com ele quando eu estava viajando. A pressão do prazo de entrega da tese e o planejamento do baile fizeram com que eles desmanchassem o namoro, contou Charlie, mas Gil nunca quis falar sobre isso. Anna foi um mistério para nós desde o começo; ele quase nunca a trouxe para o quarto, embora em Ivy, ouvi dizer, ficassem sempre juntos. Ela foi a primeira de suas namoradas que não conseguia reconhecer quem de nós estava atendendo ao tele­fone, a primeira que algumas vezes esqueceu o nome de Paul, e nunca parava no quarto se sabia que Gil não estava lá.

"Você sabe quem se parece um pouco com Audrey Hepburn?", pergunta Gil subitamente, pegando-me de surpresa.

"Quem?”, digo, enquanto disco mais uma vez para o escri­tório de Taft.

Ele me surpreende. "Katie."

"O que fez você pensar isso?"

"Não sei. Eu estava observando vocês hoje à noite. Vocês são formidáveis juntos”.

Ele diz isso como se tentasse lembrar de algo fidedigno. Quero dizer-lhe que eu e Katie também tivemos altos e baixos, que ele não é o único que tem problemas em um relacionamento, mas essa não seria a coisa certa a dizer.

"Ela é o seu tipo, Tom", continua ele. "Ela é esperta. Mais da metade do tempo não entendo o que ela está dizendo."

Desligo o telefone quando ninguém responde. "Onde está Paul?"

"Ele vai ligar." Gil respira profundamente, tentando igno­rar as possibilidades. "Há quanto tempo você está com Katie?"

       "Vão fazer quatro meses na próxima quarta-feira."

       Gil balança a cabeça. Ele desmanchou três namoros desde que eu e Katie estamos juntos.

"Você se pergunta se ela é a eleita?"

Essa é a primeira vez que alguém me coloca essa pergunta. ''Algumas vezes eu gostaria que tivéssemos mais tempo juntos na escola. Estou preocupado com o próximo ano."

       "Você precisa ouvir como ela fala sobre você. Parece que vocês se conhecem desde crianças."

       "Como assim?"

       "Eu a encontrei em Ivy uma vez, gravando da tevê uma partida de basquete para você. Ela disse que fazia isso por­que você e seu pai costumavam assistir juntos aos jogos entre Michigam e Ohio."

       Eu nunca tinha pedido para ela fazer isso. Até me conhecer ela nunca havia assistido a uma partida de basquete.

       "Você é sortudo", ele diz.

       Concordo com a cabeça.

Falamos um pouco mais sobre Katie, depois Gil lenta­mente volta para Audrey. Sua expressão se ilumina, mas eventual­mente posso perceber os antigos pensamentos voltando. Paul. Anna. O baile. Em seguida ele pega de novo a garrafa. Estou prestes a lhe dizer que já bebeu bastante, quando um som arrastado vem do cor­redor. A porta se abre, e Charlie aparece na luz amarela do corredor.

Ele parece mal. Há manchas de sangue nos punhos de sua camisa.

"Você está bem?", pergunta Gil, levantando-se.

"Precisamos conversar", diz Charlie, com certa rispidez na voz.

Gil desliga a tevê.

Charlie vai até a geladeira e pega uma garrafa de água. Bebe metade dela, depois joga um pouco nas mãos para molhar o rosto. Sua concentração parece oscilar. Finalmente ele senta e diz: "Quem caiu do Dickinson foi Bill Stein".

"Deus do céu!", murmura Gil.

Sinto meu corpo gelar. "Não compreendo."

Charlie confirma o que disse com o olhar. "Ele estava em seu escritório, no departamento de história. Alguém entrou e ati­rou nele."

“Quem?”

"Eles não sabem”.

"O que você quer dizer com 'eles não sabem'?"

Um silêncio se instala. Charlie se concentra em mim. "Qual era a mensagem do Pager? O que Bill Stein queria de Paul?"

"Já contei. Ele queria dar a Paul um livro que encontrou. Não consigo acreditar nisso, Charlie”.

"Ele não disse mais nada? Onde estava indo, quem iria encontrar?"

Faço que não com a cabeça. Depois, lentamente, me vem à mente o que eu tinha confundido com paranóia: os chamados telefônicos que Bill havia recebido, o livro que mais alguém estava examinando. Uma onda de medo se apossa de mim enquanto lhes conto tudo isso.

"Merda", resmunga Charlie. Ele pega o telefone.

"O que você vai fazer?", pergunta Gil.

"A polícia vai querer falar com você, Tom", diz Charlie. "Onde está Paul?"

"Oh Deus! Não sei, mas temos de encontrá-lo. Eu continuo       tentando o escritório de Taft no Instituto. Mas não há resposta."

       Charlie nos olha com impaciência.

       "Ele deve estar bem”, diz Gil, e posso ouvir o vinho falando. "Acalmem -se."

       "Eu não estava falando com você", Charlie interrompe.

       "Talvez ele esteja na casa de Taft”, sugiro. "Ou no escritório de Taft no campus."

       "Os policiais vão encontrá-lo quando precisarem", diz Gil, endurecendo o rosto. "É melhor ficarmos fora disso."

       Charlie se volta. "Dois de nós já estão nisso."

       Gil escarnece. "Dá um tempo, Charlie. Desde quando você está nisso?"

       "Não eu, cretino. Tom e Paul. Nós não é só você."

       "Não dê uma de santinho pra cima de mim. Estou cheio de você se intrometendo nos problemas dos outros."

       Charlie se inclina para a frente, pega a garrafa da mesa e a atira no lixo. "Você já bebeu muito."

Por um instante receio que o vinho faça Gil dizer algo que todos lamentaremos depois. Mas, depois de encarar Charlie com raiva, ele se levanta do sofá. "Meu Deus!", ele exclama. "Eu vou para a cama."

Fico olhando enquanto ele se retira sem dizer mais nada. Um segundo depois, a luz que aparecia debaixo da porta se apaga.

Minutos transcorrem e eles parecem horas. Tento o Instituto de novo, mas sem sorte, então eu e Charlie ficamos sen­tados na saleta, em silêncio. Minha cabeça está a mil, mas meus pensamentos não fazem sentido. Olho para fora da janela e de novo ouço a voz de Stein em minha memória.

       Eu recebi essas chamadas telefônicas. Atendo... desligam. Atendo... desligam.

Finalmente Charlie se levanta. Encontrando uma toalha no armário, ele começa a arrumar seu nécessaire. Sem uma palavra se dirige para a porta de cuecas. O banheiro dos homens é no andar de baixo no saguão, e há uma meia dúzia de moças do terceiro ano morando entre o banheiro e o nosso dormitório, mas Charlie vai assim mesmo, com a toalha pendurada no pescoço, nécessaire na mão.

Sentando de novo no sofá, pego o Daily Princetonian de hoje. Para me distrair, folheio as páginas procurando por um cré­dito de foto de Katie em algum lugar no canto inferior do jornal, onde as contribuições dos novatos vão parar. Sempre fico curioso sobre as fotos que ela tira, os novos assuntos que escolhe, aqueles que ela acha pouco importantes para mencionar. Depois de namo­rar alguém por algum tempo, você começa a imaginar que a outra pessoa vê tudo da mesma maneira que você. As fotos de Katie são um corretivo, um vislumbre do mundo através de seus olhos.

Pouco depois vem um som da porta, é Charlie voltando do chuveiro. Mas quando a chave gira na fechadura, percebo que é uma outra pessoa. A porta se abre e é Paul quem entra no quarto. Seu rosto está pálido, e os lábios roxos por causa do frio.

“Você está bem?”, pergunto.

Charlie volta nesse momento. "Onde você esteve?", ele pergunta.

Paul leva quinze minutos para nos fornecer os detalhes, por causa do seu estado.

Depois de sair da conferência, ele foi ao Instituto procu­rar Bill no laboratório de computação. Uma hora depois, quando Stein não apareceu, Paul decidiu voltar ao dormitório. Começou a retomar em seu carro, mas teve de abandoná-lo num farol verme­lho a cerca de dois quilômetros do campus; depois precisou voltar a pé pela neve.

O restante da noite é, diz ele, um borrão. Ele chegou ao norte do campus para encontrar os carros de polícia perto do escri­tório de Bill em Dickinson. Depois de ser bastante interrogado, foi levado ao centro médico, onde alguém lhe pediu para identificar o corpo. Taft apareceu no hospital pouco depois, fazendo uma segunda identificação, mas antes que ele e Paul pudessem falar, os policiais os separaram para interrogatório. A polícia o inqui­riu sobre sua relação com Stein e Taft, sobre a última vez que viu Bill, sobre onde ele estava no momento do crime. Paul cooperou em um estado de torpor. Quando eles finalmente o soltaram, lhe disseram para não sair do campus, e também que manteriam con­tato. Por fim ele voltou ao Dod, mas permaneceu do lado de fora, por um tempo, querendo ficar sozinho.

Por último discutimos a conversa que tivemos com Stein na Sala de Livros Raros, a qual Paul diz ter sido registrada na ínte­gra pelo policial. Enquanto ele fala de Bill, da agitação deste na biblioteca, sobre o amigo que ele perdeu, Paul dá poucos sinais de emoção. Ele ainda não se recuperou do choque.

"Tom”, diz ele por fim, quando entramos em nosso dormitó­rio, "preciso de um favor”.

“Claro”, eu digo. “Pode falar”.

"Preciso que você venha comigo."

Eu hesito. "Onde?"

"No museu de arte”.

Ele está trocando suas roupas por outras secas.

“Agora? Por que?”

Paul põe a mão na testa como se estivesse com dor de cabeça. "Eu explico no caminho."

Quando voltamos para a saleta, Charlie nos olha como se tivéssemos ficado malucos. ''Agora?'', ele se espanta. "O museu está fechado."

"Sei o que estou fazendo”, diz Paul, já saindo para o corredor.

Charlie me lança um olhar cheio de reprovação, mas não diz nada quando sigo Paul.

O museu de arte se ergue como um velho palácio mediter­râneo, do outro lado do pátio do Dod. Visto de frente, por onde entramos poucas horas antes, ele é apenas um edifício baixo e moderno com uma escultura de Picasso no gramado da frente lembrando uma gloriosa tigela de pedra para passarinhos se banharem. Quando nos aproximamos pela lateral, no entanto, os novos elementos dão lugar aos antigos, lindas janelas com peque­nos arcos em estilo romântico, e telhas vermelhas que espreitam debaixo da cobertura de neve. Sob outras circunstâncias, a vista daqui seria encantadora. Sob outras circunstâncias, poderia ser uma foto que Katie quisesse tirar.

"O que estamos fazendo?", pergunto.

Paul está abrindo um caminho na minha frente com suas botas usadas de trabalhador.

"Descobri que o ponto de vista de Richard estava no diário”, ele murmura.

Isso soa como a metade de um pensamento cujo início ele guardou para si mesmo.

       ''A cópia heliográfica?"

       Ele sacode a cabeça. "Vou lhe mostrar quando estivermos lá dentro."

Estou andando sobre suas pegadas tentando manter a neve longe das pernas das minhas calças. Meus olhos estão gru­dados nas botas dele. Paul trabalhou no museu como carregador, no verão de calouro, enchendo e esvaziando caminhões à medida que as exposições entravam e saíam. Naquela época as botas eram necessárias, mas esta noite elas deixam manchas escuras na bran­cura do pátio. Ele parece um menino com sapatos de homem.

Chegamos à porta pelo lado oeste do museu. Junto à porta há um pequeno teclado eletrônico. Paul digita sua senha de guia e espera para ver se funciona. Ele costumava guiar excursões pelo museu, mas por fim teve de arrumar um emprego na biblioteca de slides porque os guias não eram pagos.

Para minha surpresa a porta se abre com o som de um bip e a seguir de um clique. Estou tão acostumado com os sons medievais de ferrolho nas portas dos dormitórios, que quase não os ouço. Ele me conduz a uma antecâmara, uma sala de segurança supervisionada por um guarda atrás de uma janela de vidro, e, subitamente, me sinto preso em uma armadilha. No entanto, depois de assinar um formulário de visita em uma prancheta e pressionar nossas carteiras de identidade contra o vidro, estamos livres para entrar na biblioteca dos guias atrás da porta seguinte.

"É só isso?", pergunto, esperando que fosse mais difícil entrar a essa hora.

Paul aponta para uma câmera de vídeo na parede, mas não diz nada.

A biblioteca dos guias não impressiona - umas poucas prateleiras com livros de história doados por outros guias para ajudar a preparar os passeios -, mas Paul continua até um ele­vador no canto da sala. Uma grande tabuleta, colocada nas por­tas corrediças de metal, avisa: APENAS PARA O PESSOAL DA FACULDADE, FUNCIONÁRIOS E SEGURANÇA. ESTUDANTES E GUIAS NÃO SÃO PERMITIDOS SEM ESCOLTA. As palavras estudantes e guias foram sublinhadas em vermelho.

Paul está olhando para outro lugar. Ele tira um molho de chaves do bolso e enfia uma delas em uma fenda na parede. Quando ele a gira para a direita, a porta corrediça de metal se abre.

"Onde você conseguiu isso?"

Ele me faz entrar no elevador e pressiona um botão. "Meu trabalho", ele diz.

A biblioteca de slides lhe permite o acesso às salas de arqui­vos do museu. Ele é tão cuidadoso em seu trabalho que ganhou a       confiança de quase todo mundo.

       "Onde estamos indo?", pergunto.

       "Lá em cima, na sala de imagem. Onde Vincent guarda alguns de seus carrosséis de slides."

O elevador nos deixa no andar principal do museu. Paul me guia por ele, ignorando os quadros que me havia mostrado antes uma dúzia de vezes - o vasto Rubens com o seu Júpiter de testa escura, a inacabada Morte de Sócrates com o velho filósofo tentando alcançar seu copo de cicuta. Só quando passamos pelas pinturas que Curry trouxe para a mostra dos curadores é que os olhos de Paul passeiam por elas.

Alcançamos a porta da biblioteca de slides e ele pega as chaves de novo. Uma delas se ajusta silenciosamente à fechadura e entramos no escuro.

"Por aqui”, diz ele apontando para um corredor de prate­leiras enfileiradas com caixas cobertas de poeira. Cada caixa con­tém um carrossel de slides. Atrás de uma outra porta fechada, em uma sala que só vi uma vez, fica a maior parte da coleção de arte da universidade em slides.

Paul encontra o conjunto de caixas que está procurando, depois tira uma da pilha e a coloca na prateleira à sua frente. Uma anotação colada na lateral, escrita com letra ruim, mostra: MAPAS: ROMA. Ele tira a parte de cima e carrega a caixa até o pequeno espaço aberto perto da entrada. De uma outra prateleira ele pega o projetor de slides e o liga em uma tomada próxima ao chão. Por fim, com um clique no interruptor, uma imagem borrada aparece na parede oposta. Paul ajusta o foco até a imagem ficar nítida.

"Muito bem", eu digo. "Agora me conte o que estamos fazendo aqui."

"E se Richard estava certo?", ele diz. "E se Vincent roubou o diário dele trinta anos atrás?"

       "Ele provavelmente fez isso. Mas o que importa agora?"

       Paul me explica. "Imagine que você está na posição de Vincent. Richard continua dizendo que o diário é o único meio para compreender o Hypnerotomachia. Você pensa que ele está tentando enganá-lo, apenas um garoto de faculdade com um diploma em história da arte. Então uma outra pessoa aparece. Um outro estudante."

Paul diz isso com um certo respeito. Desconfio que está se referindo ao meu pai.

"De repente você é o excêntrico. Ambos dizem que o diá­rio é a resposta. Mas você se encurralou. Você disse a Richard que o diário é inútil, que o portuário era um charlatão. E, mais do que tudo, odeia estar errado. O que você faz agora?"

       Paul está tentando me convencer de uma possibilidade que eu nunca tive problemas em aceitar: a de que Vincent Taft é um ladrão.

       "Compreendo", eu digo. "Continue”.

       "Então, de alguma maneira você rouba o diário. Mas não pode fazer nada com ele, porque tudo o que você esteve ten­tando fazer com o Hypnerotomachia está errado. Sem as men­sagens critptografadas de Francesco, você não sabe o que fazer com o diário. Então o que você faz?"

"Não sei”.

"Você não vai jogá-lo fora”, ele diz, ignorando-me, "só por­ que não o compreende".

Eu aceno concordando.

"Então você o guarda. Em algum lugar seguro. Talvez no cofre do seu escritório."

"Ou em sua casa”.

"Certo. Então, anos mais tarde, esse garoto reaparece e ele e seu amigo começam a fazer progressos. De fato, mais do que você fez em sua juventude. Ele começa a encontrar as mensagens de Francesco."

"E aí você começa a pensar que, no fim das contas, o diário pode ser útil."

       "Exatamente."

       "E não conta ao garoto sobre isso, porque senão ele vai ficar sabendo que você o roubou."

       "Mas", continua Paul, chegando ao ponto que queria, "vamos dizer que um dia alguém o encontra".

       "Bill”.

       Paul faz que sim. "Ele está sempre no escritório de Vincent, na casa de Vincent, ajudando em todos os pequenos projetos que Vincent o faz executar. E ele sabe o que o diário significa. Se ele o encontrou, não o teria deixado onde estava."

"Ele o teria trazido para você."

"Certo". E nós o pegamos e fomos mostrá-lo a Richard.

"Depois Richard confrontou Taft na conferência”.

       Tenho minhas dúvidas. "Mas Taft não percebeu que o diá­rio havia desaparecido antes disso?"

       "Claro que sim. Ele devia saber que Bill o tinha levado. Mas qual foi a sua reação quando percebeu que Richard também sabia? A primeira coisa em que pensou foi em ir se encontrar com Bill."

       Agora compreendo. "Você acha que ele foi ao escritório de Stein depois da conferência."

       "Vincent ficou para a recepção?"

       Pensei que fosse uma pergunta retórica até lembrar que Paul não estava lá; ele tinha ido procurar Stein.

       "Não que eu visse."

       "Existe um corredor ligando Dickinson ao auditório", diz ele. "Vincent nem precisava sair do prédio para ir até lá."

Paul deixa essa hipótese me invadir. A possibilidade flu­tua pelos meus pensamentos chocando-se com eles, ligando-se a milhares de outros detalhes. "Você realmente acha que Taft o matou?", eu pergunto. Uma estranha silhueta se forma nas sombras da sala, Epp Lang enterrando um cachorro debaixo de uma árvore.

Paul olha para os contornos escuros projetados na parede.

       "Acho que ele é capaz disso:"

       "Por ódio?"

       "Não sei." Mas ele dá a impressão de já ter percorrido todas as possibilidades em sua mente. "Ouça”, ele diz, "quando eu estava esperando por Bill no Instituto, comecei a fazer uma leitura mais atenta do diário, procurando todas as menções de Francesco".

Paul abre o diário e junto à contra capa da frente há uma página com anotações que ele fez em um papel do Instituto.

"Encontrei a anotação onde o portuário registra o con­junto de direções que o ladrão copiou dos papéis de Francesco. O Genovês diz que estavam escritas em um pedaço de papel e for­mavam uma espécie de rota náutica, que deveria ser o caminho percorrido pelo navio de Francesco. O portuário tentou imaginar de onde o carregamento havia saído, traçando a rota no caminho inverso a partir de Gênova".

       Quando Paul abre o papel do Instituto, posso ver uma configuração de setas desenhadas perto de uma bússola.

       "Essas são as direções. Elas estão em latim. Dizem: Quatro sul, dez leste, dois norte, seis oeste. Depois, De Stadio”.

       "O que é De Stadio?"

       Paul sorri. "Acho que essa é a chave. O portuário conseguiu isso com seu primo, que lhe disse que De Stadio era a escala que acompanhava as direções. Pode ser traduzido como 'De Estádio', significando que as direções eram medidas em estádios".

"Não entendi."

"O estádio é uma unidade de medida antiga, que está baseada no comprimento das pegadas dos pés nos Jogos Olímpicos da Grécia. Foi daí que se originaram as medidas que são usadas atualmente. Cerca de seiscentos pés é o tamanho de um estádio, então há entre oito e dez estádios em um quilômetro e meio, mais ou menos”.

''Assim, quatro sul significa quatro estádios ao su1".

"Depois dez leste, dois norte e seis oeste. Essas são as qua­tro direções. Isso faz você lembrar alguma coisa?"

Sim: em seu último enigma, Colonna se refere ao que chama de Regra do Quatro, um estratagema que conduziria os leitores até a sua cripta secreta. Mas abandonamos isso quando o texto deixou de apresentar qualquer coisa remotamente geográfica.

"Você acha que se refere a isso? Àquelas quatro direções?"

       Paul faz que sim. "Mas o portuário estava procurando por algo em uma escala maior, uma viagem de centenas e cente­nas de quilômetros. Se a direção de Francesco era em estádios, então o navio não poderia ter saído da França ou dos Países Baixos. Ele deve ter começado sua viagem a cerca de meio qui­lômetro a sudeste de Gênova. O portuário sabia que isso não poderia estar certo."

Posso ver o contentamento de Paul, achando que se saiu melhor que o portuário. "Você está dizendo que as direções signi­ficam outra coisa."

       Ele mal se contém. "De Stadio não precisa significar 'De Estádio'. Pode também ser traduzido como 'proveniente de'”.

       Ele me olha esperançoso, mas não consigo desfrutar da beleza dessa nova tradução.

"Talvez as medidas não sejam apenas em estádios, ou medi­das naquelas unidades", diz ele. "Talvez elas sejam também tomadas a partir de um estádio. O estádio poderia ser o ponto de partida. De Stadio poderia ter um duplo significado - você segue as direções a partir de um estádio existente, em unidades estádios”.

O mapa de Roma projetado sobre a parede está sendo foca­lizado. A cidade está repleta de antigas arenas. Colonna a conhecia melhor do que qualquer outra cidade do mundo.

"Isso resolve o problema que o portuário tinha em relação à escala", continua Paul. "Não se pode medir a distância entre paí­ses em alguns estádios. Mas pode-se medir a distância de um lado a outro de uma cidade dessa maneira. Pliny diz que a circunfe­rência dos muros da cidade de Roma em 75 d.C. era de cerca de vinte quilômetros. A cidade inteira tinha cerca de vinte e cinco a trinta estádios."

“Você acha que isso nos levará até a cripta?", eu pergunto.

"Francesco fala em construir onde ninguém pode ver. Ele não quer que ninguém saiba o que há dentro. Essa pode ser a única maneira de encontrar a localização”.

Meses de especulação retomam à minha mente. Passamos noites imaginando por que Colonna construiria sua cripta fora da cidade, nas florestas de Roma, escondida de sua família e amigos, mas Paul e eu nunca concordamos em nossas conclusões.

"E se a cripta significa mais do que pensamos?", diz ele. "E se o local é secreto?"

"Então o que há dentro dela?", pergunto, reavivando a questão.

O comportamento de Paul agora denota frustração. "Eu não sei, Tom. Ainda não consegui descobrir."

       "Só estou dizendo, você não acha que Colonna teria...".

"Nos dito o que há na cripta? É claro. Mas toda a segunda metade do livro depende do último criptograma, e não consigo resolvê-lo. Não sozinho. Então esse diário é isso. Está certo?"

       Eu recuo.

“Então, tudo que temos de fazer", Paul continua, "é olhar alguns desses mapas. Começamos com os estádios de maior área - o Coliseu, o Circus Maximus e assim por diante - e nos movemos quatro estádios ao sul, dois ao norte e seis para oeste. Se alguma dessas localizações tiver sido uma floresta na época de Colonna, nós a assinalamos”.

“Vamos olhar”, sugiro.

Paul pressiona o botão avançar, passando por uma série de mapas feitos nos séculos XV e XVI. Eles têm a característica de caricaturas arquitetônicas, construções desenhadas sem estar em proporção com seus arredores, amontoadas umas contra as outras até tornar impossível avaliar os espaços entre elas.

“Como você vai medir as distâncias entre elas?", pergunto.

Ele me responde acionando o controle manual várias vezes.

Depois de mais três ou quatro mapas da Renascença, um mapa atual aparece. A cidade se parece mais com aquela que lembro de ter visto nos mapas que meu pai me deu antes de nossa viagem ao Vaticano. A parede de Aurélio ao norte, leste e sul e o rio Tibre no oeste criavam o perfil da cabeça de uma mulher de frente para o resto da Itália. A igreja de San Lorenzo, onde Colonna mandou matar dois homens, pairava como uma mosca bem atrás do arco do nariz da velha senhora.

"Esse mapa é feito na escala certa”, diz Paul apontando para a medida no canto esquerdo superior. Oito estádios estão marca­dos ao longo de uma única linha, rotulada MILHA DA ANTIGA ROMA.

Ele caminha para uma imagem na parede e coloca a mão ao lado da escala. A partir da base de sua palma até a ponta do dedo médio, ele abrange os oito estádios completos.

"Vamos começar com o Coliseu." Ele se ajoelha e coloca a mão perto de uma oval escura no meio do mapa, próximo à bochecha da velha senhora. "Quatro ao sul", ele diz, movendo a palma de sua mão, "e dez ao leste." De novo movimenta a palma da mão nessa direção e acrescenta metade do dedo indicador. "Depois dois ao norte e seis para oeste”.

Quando termina, ele está apontando para um ponto inti­tulado M. CELIUS no mapa.

       "Você acha que é ali que ela está?"

"Não ali", ele diz, menos confiante. Apontando para um círculo negro no mapa bem a sudeste do seu ponto final, ele diz: "Bem aqui há uma igreja. San Stefano Rotondo". Ele vira o dedo em direção ao nordeste. "Aqui tem uma outra, Santi Quatro Coronati, E aqui" - o dedo agora se move para o sudeste ­"fica San Giovanni Laterano, onde os papas viveram até o século XIV. Se Francesco construiu sua cripta aqui, ele o fez dentro de cerca de quatrocentos metros entre três diferentes igrejas. Não há outro jeito."

Ele começa outra vez. "O Circus Flaminius", ele diz. "Esse mapa é velho. Acho que Gatti o colocou perto daqui." Ele move o dedo para perto do rio, depois repete as direções.

"Boa ou ruim?", eu digo, olhando para a localização, em algum lugar no alto de Palatine Hill.

Ele franze o cenho. "Ruim. Isto é quase bem no meio de San Teodoro”.

"Uma outra igreja?"

Ele faz que sim.

"Você tem certeza que Colonna não a construiria perto de uma igreja?"

Ele olha para mim como se eu tivesse esquecido a regra principal. "Cada mensagem diz que ele está aterrorizado com a possibilidade de ser preso pelos zelotes. Os 'homens de Deus'. Como você interpreta isso?"

Perdendo a paciência, ele tenta duas outras possibilidades - o Circus de Hadrian e o velho Circus de Nero, sobre o qual o Vaticano foi construído -, mas, nos dois casos, o retângulo de vinte e dois estádios o conduz quase ao meio do rio Tibre.

"Existe um estádio em cada canto desse mapa", eu digo. "Por que não pensamos sobre a possível localização da cripta e depois trabalhamos para ver se existe um estádio perto dela?"

Ele pondera sobre isso. "Preciso examinar alguns outros Atlas em Ivy”.

       "Podemos voltar aqui amanhã."

       Paul, cujo estoque de otimismo está diminuindo, olha para o mapa por mais um instante, depois concorda. Colonna conseguiu enganá-lo mais uma vez. Mesmo o portuário espião levou a melhor.

“E agora?”, pergunto.

Ele fecha seu casaco e desliga o projetor. "Quero examinar a escrivaninha de Bill na biblioteca do andar térreo." Ele recoloca o aparelho de slides na prateleira, tentando deixar tudo do jeito que encontrou.

"Por quê?"

"Para ver se há algo mais do diário lá. Richard insiste que havia uma cópia heliográfica dentro dele."

       Ele abre a porta e me deixa passar, dando mais uma olhada na sala antes de fechá-la.

       "Você tem a chave da biblioteca?"

       Ele sacode a cabeça. "Bill me revelou o código de acesso para o poço da escadaria."

Voltamos ao corredor escuro, por onde Paul me guia. As luzes laranja da segurança piscam no escuro como aviões cru­zando a noite. Chegamos a uma porta que dá para o poço da esca­daria. Abaixo da maçaneta há uma caixa com cinco botões nume­rados. Paul reflete por um segundo, depois começa a digitar uma seqüência curta. Quando a maçaneta se abre em sua mão, ambos gelamos. No silêncio podemos ouvir um arrastar de pés.

 

                                           Capítulo 14

"Vá”, eu murmuro, cutucando Paul em direção à porta da biblioteca.

Uma lâmina de vidro de segurança forma uma pequena janela na almofada da porta e espiamos dentro da escuridão da sala.

Uma sombra está se movendo sobre uma das mesas indi­viduais. O raio de luz de uma lanterna incide sobre sua superfície.

       Posso perceber uma mão abrindo uma das gavetas.

"Aquela é a escrivaninha de Bill”, Paul sussurra.

Sua voz ecoa pelo poço da escadaria. A trajetória da lan­terna se interrompe, e depois a luz se move em nossa direção. Empurro Paul para baixo da janela.

“Quem era?” , pergunto.

"Não pude ver”.

Ficamos à espera, prestando atenção aos passos. Quando os ouvimos se afastar, espio outra vez dentro da sala. Ela está vazia.

Paul empurra a porta. Todo o recinto está mergulhado nas sombras das estantes de livros. A luz da lua entra por uma das janelas ao norte. As gavetas de Stein ainda estão abertas.

"Existe uma outra saída?" sussurro quando nos aproximamos. Paul faz que sim e aponta para uma série de prateleiras altas perto do teto.

Subitamente ouvimos o ruído .de passos outra vez, indo em direção à saída, seguido por um clique. A porta suavemente se fecha e tranca.

Eu me movo em direção ao som.

"O que você está fazendo?”, cochicha Paul. Ele me faz sinais para voltar para perto dele, na escrivaninha.

Espio de novo pelo vidro de segurança, mas não consigo ver nada.

Paul já está vistoriando os papéis de Stein, deslocando sua pequena lanterna sobre uma confusão de anotações e car­tas. Ele aponta para uma gaveta antes trancada e que agora havia sido arrombada. As pastas foram tiradas e estão espalhadas sobre a escrivaninha. Beiradas de papéis se enrolam como grama des­cuidada. Parece haver uma pasta para cada professor do departa­mento de história.

 

RECOMENDAÇÃO: PRESIDENTE WORTINGTON

REC (A-M): BAUM, CARTER, GODFREY, LI

REC (N-Z): NEWMAN, ROSSINI, SACKLER, WORTHINGTON

(PRÉ-CATEDRA)

REC (OUTROS DEPARTAMENTOS): CONNER, DELFOSSE, LUTKE,

MASON, QUINN

CORRESPONDÊNCIA ANTIGA: HARGRAVE, WILLIAMS, OXFORD

CORRESPONDÊNCIA ANTIGA: APPLETON, HARVARD

 

Isso não significa nada para mim, mas Paul está interes­sado nelas.

"O que há de errado?", pergunto.

Paul movimenta a lanterna pela superfície da mesa. "Para que ele precisa de todas essas recomendações?"

Duas outras pastas permanecem abertas. Uma se inti­tula REC/CORRESPONDÊNCIA: Taft. A outra é PROMOÇÃO/ COLOCAÇÃO.

A carta de Taft foi colocada em um canto, separada das outras. Paul enrola a camisa entre os dedos e empurra o papel até seu campo de visão.

William Stein é um rapaz competente. Trabalhou comigo durante cinco anos, e foi especialmente útil em assuntos administra­tivos e eclesiásticos. Tenho certeza de que se sairá bem em um traba­lho similar em qualquer outro lugar.

"Céus", murmura Paul. "Vincent acabou com ele", ele lê outra vez. "Bill é descrito como uma secretária."

Quando Paul desdobra a parte de baixo do papel, a data é do último mês. Há um post-scriptum feito à mão.

Bill: estou escrevendo essa recomendação, apesar de tudo. Você merece menos. Vincent.

"Bastardo..”, murmura Paul. "Bill estava tentando se afas­tar de você”.

Ele passa a lanterna pela pasta PROMOÇÃO/ COLOCAÇÃO. Vários rascunhos de cartas, escritas por Stein com diferentes canetas, estão por cima. Linhas foram inseridas e tira­das, dificultando a leitura. À medida que Paul as lê, posso perceber que a lanterna começa a tremer em sua mão.

Don Hargrave, começa a primeira carta, tenho o prazer de informá-lo que minha pesquisa sobre o Hypnerotomachia Poliphili está quase completa. Meus resultados estarão disponíveis no fim de abril, ou mesmo antes. Asseguro-lhe que eles valem a demora. Como não recebi nada de você nem de Mestre Williams desde minha carta de 17 de janeiro, por favor confirme se o a posição que discutimos permanece disponível. Eu me inclino por Oxford, mas pode aconte­cer de eu não conseguir recusar outras universidades quando minha tese for publicada e aparecerem outras ofertas.

Paul vira a página. Posso ouvi-lo respirar mais forte agora.

Presidente Appleton, escrevo com boas notícias. Meu traba­lho no Hypnerotomachia chega ao fim com sucesso. Os resultados lançarão uma sombra sobre todos os outros estudos históricos sobre a Renascença - ou sobre quaisquer outros estudos - neste ano ou no seguinte. Antes de eu publicar meus resultados, gostaria de confirmar se a posição de professor assistente ainda está disponível. Tenho uma preferência por Harvard, mas posso não conseguir recusar outras propostas tentadoras depois que minha tese for publicada e aparece­rem outras ofertas.

Paul lê a carta uma segunda vez, depois uma terceira.

"Ele ia tentar roubar a tese de mim", ele murmura debil­mente, afastando-se da escrivaninha para encostar-se à parede. "Como isso é possível?"

"Talvez ele tenha pensado que ninguém iria acreditar que fosse o trabalho de um estudante universitário não graduado."

       Volto minha atenção para a carta. "Quando ele se ofereceu para datilografar sua tese?"

"No mês passado, não sei ao certo o dia."

"Ele estava achando que ia levar esse tempo todo?"

Paul olha para mim enquanto move sua mão pela escri­vaninha. "Obviamente. Ele vem escrevendo para essas pessoas desde janeiro."

Quando ele coloca as cartas sobre a escrivaninha, uma última página de correspondência aparece debaixo das cartas de Oxford e de Harvard. Quando Paul vê o destinatário, ele a puxa.

Richard, ela começa, espero que essa carta o encontre bem. Talvez você tenha mais sorte na Itália do que teve em Nova York. Se não, bem, nós dois conhecemos a situação em que você se encontra. Também conhecemos Vincent. Acho que ele tem seus próprios planos

para tudo o que está surgindo. Por isso, tenho uma proposta para você. Aqui há material mais do que suficiente para servir a nós dois, e cheguei a uma divisão de trabalho que penso que você achará justa. Por favor, entre em contato logo para resolvermos tudo. Deixe-me também o seu número de telefone em Florença e Roma - o correio para lá não é confiável e prefiro pôr em ordem tudo isso tão depressa quanto possível - B.

A resposta, com caneta e letra diferentes, foi escrita no fim da carta original e reenviada. Há dois números de telefone nela, um precedido pela letra F, o outro por R. Uma nota final foi acres­centada depois:

Conforme o solicitado. Chame depois do horário comercial. E Paul? - Richard.

Paul está sem fala. Ele examina as páginas de novo, mas não há mais nada. Quando tento consolá-lo, ele me empurra.

"Você deve mostrar isso ao reitor", digo por fim.

"Para lhe dizer o quê? Que fomos remexer nas coisas de Bill?"

Repentinamente, uma curva luminosa se reflete na parede oposta, seguida por luzes coloridas piscando através da janela de vidro. Um carro de polícia chegou ao pátio da frente do museu com a sirene desligada. Dois policiais saem do carro. As luzes ver­melha e azul se apagam um instante antes que chegue um segundo carro e mais dois policiais apareçam.

"Alguém deve ter dito que estávamos aqui", eu falo.

A nota de Curry está tremendo na mão de Paul. Ele está parado no lugar, observando as formas escuras correndo para a entrada principal.

"Venha." Eu o empurro para as estantes perto da saída de trás.

Mas, nesse momento, a porta da frente da biblioteca se abre e o feixe de luz de uma lanterna vasculha a sala. Nós nos escondemos num canto. Dois policiais entram na sala.

"Lá no fundo", diz o primeiro policial, fazendo gestos em nossa direção.

Agarro a maçaneta e pressiono, e a porta de trás se abre. Paul se lança rapidamente para o corredor enquanto o primeiro policial se aproxima. De cócoras, eu me arrasto para fora até con­seguir ficar de pé. Afastamo-nos, encostados contra a parede, e Paul nos conduz para as escadas, disparando para o andar térreo. Quando voltamos para o espaço aberto do saguão principal, posso ver a luz de uma lanterna examinando uma parede próxima.

"Para baixo”, diz Paul. "Há um elevador de serviço”.

Entramos na ala asiática do museu. Esculturas e vasos estão colocados atrás de paredes de vidro algo fantasmagóricas. Rolos de pergaminho aparecem desenrolados ao lado de corpos expostos em tumbas. A sala tem uma cor verde sombria.

"Por aqui”, Paul se apressa quando os passos se aproximam.

Ele me empurra para um canto, num lugar sem saída, onde a única possibilidade é um par de portas de metal do elevador de serviço.

As vozes se tornam mais altas. Posso distinguir dois poli­ciais parados ao pé da escada, tentando encontrar o caminho no escuro. Repentinamente todo o andar fica iluminado.

"Conseguimos luz...", chega a voz de um terceiro oficial.

Paul coloca sua chave na fenda da parede. Quando as por­tas do elevador se abrem, ele me empurra para dentro. Barulhos de passos se seguem, movendo-se em nossa direção.

"Venham, venham..."

As portas permanecem abertas. Por um segundo penso que cortamos a energia elétrica do elevador. Então, justo quando o primeiro policial vira a esquina do corredor as portas de metal se fecham. A mão do policial ainda chega a bater contra as portas, mas o som enfraquece e a cabine começa a se mover.

"Para onde estamos indo?”, pergunto.

"Para os galpões de carga”, diz Paul, tentando recuperar o fôlego.

Saímos em uma espécie de área de conservação e Paul força a abertura da porta que leva a uma sala imensa e fria. Espero meus olhos se ajustarem. As portas da garagem do compartimento de carga aparecem indistintamente diante de nós. O vento lá fora está muito próximo e faz estremecer os painéis de metal. Imagino passos correndo em nossa direção, mas nada é audível através da espessura da porta.

Paul corre para um interruptor na parede. Quando ele aciona o botão, um mecanismo se movimenta e a porta começa a subir.

"É o bastante", eu digo, logo que a abertura é suficiente para passarmos deitados de costas.

Mas Paul sacode a cabeça e a porta continua a subir.

"O que você está fazendo?”

A abertura entre o chão e a base da porta aumenta até podermos ter a visão de toda a parte sul do campus. Por um segundo fico paralisado por sua beleza, quão vazio ele está.

Repentinamente Paul aciona o botão do motor na direção contrária e a porta começa a se fechar.

“Corra!” , ele grita.

Ele corre da parede até a abertura do galpão, e eu me atra­palho tentando deitar de costas. Paul já está na minha frente. Ele rola debaixo da porta, depois me puxa um instante antes de a estrutura metálica tocar o chão.

Fico de pé, tentando recuperar o fôlego. Quando começo a me mover na direção do Dod, Paul me puxa de volta.

"Eles vão olhar para fora lá de cima.” Paul aponta para as janelas do lado oeste do edifício. Depois de examinar o caminho do lado leste, ele diz: "Por aqui”.

       "Você está bem?”, pergunto, seguindo-o.

       Ele faz que sim com a cabeça e nos arrastamos pela noite, para longe do pátio quadrangular e fora da linha de visão. Posso sentir o vento sob a gola de meu casaco, refrescando o suor do pescoço. Quando olho para trás, Dod e Brown Hall estão quase completamente às escuras, como todos os demais dormitórios ao longe. A noite atingiu todos os recantos do campus. Só as janelas do museu de arte ainda estão acesas.

Continuamos para o leste através de Prospect Gardens, um país das maravilhas botânico no coração do campus. As pequenas plantas de primavera estão salpicadas de branco, quase invisíveis sob os pés, mas a faia americana e o cedro-do-líbano se mantêm como anjos guardiões acima delas, braços estendidos para susten­tar a neve. Um carro de polícia patrulha uma das ruas laterais, e apressamos nossos passos.

Meus pensamentos estão inquietos, minha mente trabalha para tentar compreender o que vimos.

Talvez tenha sido Taft quem vimos na escrivaninha de Stein, remexendo em seus papéis, apagando qualquer conexão entre eles. Pode ter sido ele quem chamou a polícia para nos apa­nhar. Olho para Paul, me perguntando se o mesmo pensamento atravessou sua mente, mas sua expressão estava vazia.

Ao longe, o novo departamento de música dá sinais de vida.

"Podemos ficar lá por algum tempo", sugiro.

"Onde?"

"Nas salas de ensaio no porão. Até resolvermos o que fazer."

Notas esparsas flutuam no ar quando nos aproximamos. Músicos notívagos vêm para Woolworth para ensaiar com priva­cidade. Indo para a Prospect, um outro carro de polícia do cam­pus derrapa, espalhando neve e pedras de sal na curva. Trato de andar mais depressa.

A construção de Woolworth é recente e o edifício que sur­giu quando retiraram os andaimes é curioso, parece uma fortaleza do lado de fora mas é vítreo e frágil visto de dentro. Seu saguão se curva como um rio através da biblioteca de música e das salas de aula do andar térreo, e a partir daí sobem três andares até a clarabóia. O vento se lamenta ciosamente ao redor dele. Paul des­tranca a entrada para o edifício com sua carteira de identidade, segurando a porta para eu passar.

"Para que lado?", ele pergunta.

       Eu o levo até a escada mais próxima. Gil e eu estivemos aqui duas vezes desde que o edifício foi inaugurado, em ambas depois de alguns drinques em uma noite de sábado maçante. A segunda mulher do pai de Gil insistia para que ele aprendesse a tocar algo de Duke Ellington, da mesma maneira que meu pai pedia para que eu aprendesse algo de Arcângelo Corelli, e, juntos, nós dois tínhamos oito anos de aulas e quase nada para mostrar. Batucando nossas garrafas sobre um majestoso piano de cauda, Gil acabaria com "A Train", eu massacraria "La Folia”, e fingiría­mos bater um ritmo que nenhum de nós tinha aprendido.

Paul e eu descemos para a entrada do porão, para desco­brir que só havia um piano tocando. Alguém em uma sala distante estava ensaiando "Rhapsody in Blue". Entramos em um pequeno estúdio à prova de som, e Paul vai para detrás do piano, sentando-se no banquinho. Ele olha para as chaves do piano, misteriosas para ele como chaves de computador, e não as toca. As luzes na parte de cima emitem um chiado e se apagam.

"Não posso acreditar”, ele diz afinal, respirando profundamente. "O que eles vão fazer?", pergunto.

Paul passa o dedo indicador em uma chave, roçando no ébano. Quando percebo que ele não ouviu a pergunta, eu repito.

"O que você quer que eu diga, Tom?"

"Talvez seja por isso que Stein quisesse ajudar." "Quando? Hoje com o diário?"

"Meses atrás."

"Quer dizer, quando você parou de trabalhar no Hypnerotomachia?"

A cronologia é como um soco na cara, um lembrete que o envolvimento de Stein, em última análise, se deve a mim.

"Você acha que é minha culpa?"

"Não”, diz Paul calmamente. "É claro que não."

Mas a acusação paira no ar. O mapa de Roma, como o diá­rio, lembrou-me do que deixei para trás, quanto progresso fize­mos antes que eu o abandonasse, o quanto eu desfrutei. Olho para minhas mãos, torcidas sobre o colo. Foi meu pai quem disse que tenho mãos preguiçosas. Cinco anos de aulas não produziram uma única sonata de Corelli apresentável; foi quando me incenti­vou para o basquete.

O forte tira do fraco, Thomas, mas o esperto tira do forte.

"E a nota para Curry?", eu digo, olhando para a parte de trás do piano. A madeira não foi envernizada e está em estado natural em toda a parte de trás, que se supõe ficar contra uma parede. Isso me choca como uma economia estranha, como um professor que não escova o seu cabelo na parte de trás porque não pode vê-lo no espelho. Meu pai costumava fazer isso. Eu sempre achei que fosse uma falha de perspectiva - o engano de alguém que só podia ver o mundo de uma maneira. Seus alunos devem ter percebido isso tão freqüentemente quanto eu. Todas as vezes que ele lhes voltava as costas.

"Richard nunca tentaria tirar alguma coisa de mim': diz Paul, roendo uma unha. ''Acho que deixamos passar algo sem perceber”.

Um silêncio se estabelece. O local está aquecido e quando ficamos quietos não há som algum, além de um zum­bido ocasional vindo da sala onde Gershwin foi substituído por uma sonata de Beethoven que sussurra ao longe, Isso me lembrou de quando fiquei sentado, quando criança, durante uma tempestade de verão. A casa estava quieta e nada podia ser ouvido além do ribombar do trovão. Minha mãe estava lendo à luz de velas - Bartholomeu Cubbins ou um Sherlock Holmes ilustrado - e a única coisa que passava por minha cabeça é como as melhores histórias sempre parecem ser sobre homens com chapéus engraçados.

''Acho que era Vincent quem estava lá dentro", diz Paul. "Na delegacia de polícia ele mentiu sobre sua relação com Bill. Disse que Bill era o melhor estudante formado que já conhecera em muitos anos."

Nós dois conhecemos Vincent, dizia a carta de Stein. Acho que ele tem seus próprios planos para tudo o que está surgindo.

"Você acha que Taft quer a tese para si mesmo?", per­gunto. "Já há anos que ele não tem tentado publicar nada sobre o Hypnerotomachia."

"Não se trata de publicar, Tom."

"Então se trata do quê?"

Paul permanece quieto por um tempo, depois diz: "Você ouviu o que Vincent disse hoje à noite. Ele nunca admitiu antes que Francesco era de Roma". Paul olha para os pedais do piano, que se projetam da moldura de madeira como minúsculos sapatos dourados. "Ele está tentando tirar isso de mim."

“Tirar o que de você?”

Mas de novo Paul hesita. "Não importa. Esqueça”.

"E se fosse Curry no museu?", sugiro quando Paul se volta. A carta de Stein para Curry abalou a opinião que eu tinha sobre ele. Lembrou-me que ele estava mais enfeitiçado pelo Hypnerotomachia do que qualquer um dos outros.

"Ele não está envolvido, Tom."

"Você viu como ele agiu quando lhe mostrou o diário. Curry ainda acredita que o diário lhe pertence."

"Não, eu o conheço, Tom. Certo? Você não."

"O que você quer dizer com isso?"

"Você nunca confiou em Richard. Mesmo quando ele ten­tou ajudá-lo."

"Não precisei de sua ajuda”.

"E você só odiou Vincent por causa de seu pai." Voltei-me surpreso para ele. "Ele levou meu pai..:'

''A quê? A sair da estrada?"

“Levou-o à perturbação mental. O que há de errado com você?"

"Ele escreveu uma crítica, Tom”.

"Ele arruinou a vida de meu pai."

"Ele arruinou sua carreira. Há uma diferença nisso."

"Por que você o está defendendo?"

"Não estou. Estou defendendo Richard. Mas Vincent nunca lhe fez nada."

Estou prestes a avançar sobre Paul, quando vejo o efeito de nossa conversa sobre ele. Ele passa a mão pelo rosto, enxugando-o. Por um momento só posso enxergar faróis na estrada. Uma buzina está tocando.

"Richard sempre foi bom para mim", Paul está dizendo.

Não lembro de meu pai emitir som algum. Nem uma só vez durante aquele passeio de carro, nem mesmo quando der­rapamos para fora da estrada.

"Você não os conhece", diz ele. "Nenhum dos dois."

Não me lembro quando a chuva começou – enquanto estávamos indo encontrar minha mãe na feira de livros, ou a cami­nho do hospital quando eu estava sendo levado na ambulância.

"Encontrei uma vez uma crítica literária sobre o primeiro trabalho importante de Vincent", continua Paul. "Um artigo que escreveram, no início dos anos setenta, quando ele era um sujeito bem-sucedido em Columbia - antes que viesse para o Instituto e sua carreira despencasse. Era brilhante, o tipo de coisa com que os professores sonham. No final dizia: 'Vincent Taft já começou o seu próximo projeto: uma história definitiva sobre a Renascença italiana. Julgando a partir do seu trabalho já conhecido será real­mente uma obra importante; uma rara espécie de realização em que o escrever a história se transforma em fazer a história'. Lembro disso, palavra por palavra. Encontrei esse artigo na primavera do meu segundo ano, antes de vir realmente a conhecê-lo. Essa foi a primeira vez que comecei a compreender quem ele era."

Uma crítica literária. Como aquela que ele enviou a meu pai, apenas para estar seguro de que meu pai a veria. O Embuste do Beladona, por Vincent Taft.

"Ele era uma estrela, Tom. Você sabe disso. Ele tinha gal­gado mais degraus do que todos os professores daqui juntos. Mas ele perdeu isso. Ele não se apagou, ele apenas perdeu isso:'

As palavras estão adquirindo força viva, aglomerando-se no ar como se um equilíbrio pudesse ser tocado entre o silêncio no exterior e a pressão no interior. Sinto como se estivesse nadando, agitando os braços à medida que a maré me puxa. Paul começa a falar outra vez sobre Taft e Curry, e eu digo a mim mesmo que eles são apenas personagens em um outro livro, homens com cartolas, invenções da imaginação cega. Mas quanto mais o ouço falar, mais começo a vê-los do jeito que Paul os vê.

 

Como conseqüência do fiasco envolvendo o diário do portuário, Taft se mudou de Manhattan para uma casa branca de madeira perto do Instituto, um quilômetro e meio a sudeste do campus de Princeton. Talvez tenha sido por causa da solidão que o envolveu, da ausência de colegas com quem debater, mas o certo é que, em poucos meses, rumores sobre suas crises de embriaguez começaram a circular na comunidade acadêmica. A história defi­nitiva que ele planejava expirou silenciosamente. Sua paixão e seu domínio sobre seu talento pareciam desintegrar-se.

Três anos mais tarde, por ocasião de sua nova publicação - um livro bastante fino sobre o papel dos hieróglifos na arte da Renascença -, tornou-se claro que a carreira de Taft estava parali­sada. Sete anos depois disso, quando seu artigo seguinte foi publi­cado em um jornal de menor importância, um crítico classificou o seu declínio como uma tragédia. De acordo com Paul, a perda do que Taft tinha com Curry e meu pai continuava a persegui-lo. Nos vinte e cinco anos que decorreram entre sua chegada ao Instituto e seu encontro com Paul, Vincent Taft publicou apenas quatro tra­balhos, preferindo passar o tempo a criticar o trabalho de outros estudiosos, especialmente o de meu pai. Nem uma só vez ele recu­perou a genialidade que possuía em sua juventude.

Foi quando Paul foi procurá-lo em sua casa, durante a pri­mavera do nosso ano de calouro, que o Hypnerotomachia voltou à sua vida. Depois que Taft e Stein começaram a ajudar em sua tese, Paul me falou dos lampejos de brilhantismo de seu mentor. Durante muitas noites o velho urso trabalhou árdua e impetuo­samente com ele, narrando longas passagens de textos primitivos obscuros quando Paul não podia encontrá-los na biblioteca.

"Foi naquele verão que Richard financiou minha viagem para a Itália”, diz Paul, esfregando a palma da mão contra a beirada do banquinho do piano. "Estávamos todos excitados. Até mesmo Vincent. Ele e Richard ainda não se falavam, mas eles sabiam que eu tinha uma pista, que estava começando a descobrir algo.

"Eu estava morando em um apartamento que Richard alu­gara, todo o andar de cima de um velho palácio da Renascença. O local era maravilhoso, deslumbrante. Havia quadros nas paredes,

quadros nos tetos, quadros por todo lado. Em nichos, acima das escadas. Tintorettos, Carraccis, Peruginos. Era um paraíso, Tom. Realmente excitante, era bonito demais! E Richard acordava de manhã e dizia, bem metódico: 'Paul, precisamos produzir algum trabalho hoje'. Então começávamos a falar e meia hora mais tarde ele afrouxava sua gravata e dizia: 'Ao inferno com isso. Vamos tirar férias hoje'. Acabávamos passeando pelas praças e apenas conver­sando. Nós dois andávamos e falávamos durante horas.

"Foi quando ele começou a me contar sobre seus dias em Princeton. Sobre Ivy, e todas as aventuras que teve, todas as coisas doidas que fez, pessoas que conheceu. Seu pai, sobretudo. Era tão intenso, tão vívido. Quero dizer que não era parecido com o que Princeton significava para mim. Eu estava completamente fasci­nado. Era como viver um sonho, um sonho perfeito. Richard até o chamava assim. O tempo todo em que ficamos na Itália, ele pare­cia estar andando sobre nuvens. Richard estava saindo com uma escultora de Veneza e falava em pedi-la em casamento. Achei que ele até poderia se reconciliar com Vincent depois daquele verão."

"Mas eles nunca se reconciliaram."

"Não. Quando voltamos aos Estados Unidos, tudo deu para trás. Ele e Vincent nunca se falaram. A mulher com quem estava saindo desmanchou o namoro. Richard começou a vir ao campus, tentando recordar o entusiasmo que sentia quando ele e seu pai estudavam com McBee. Desde então, ele vive cada vez mais no passado. Vincent tentou fazer com que eu ficasse afastado dele, mas neste ano foi de Vincent que me afastei, tentando evitar o Instituto, procurando trabalhar em Ivy sempre que podia. Não queria lhe contar o que encontramos até ser obrigado a fazê-lo.

"Foi então que Vincent começou a me forçar a mos­trar minhas conclusões, pedindo relatórios semanais. Talvez tenha pensado que essa seria sua única chance de conseguir o Hypnerotomachia de volta:' Paul passa uma mão por seus cabe­los. "Eu devia ter sido mais esperto. Devia ter escrito uma tese de formatura de menor importância e depois ter saído daqui. São as maiores casas e as árvores mais altas que os deuses derrubam com raios e trovões. Porque os deuses amam opor-se ao que é maior que o resto. Eles não suportam o orgulho em ninguém a não ser neles mesmos. Heródoto escreveu isso. Devo ter lido essas linhas umas cinqüenta vezes e nunca lhes dei importância. Foi Vincent quem as mostrou para mim. Ele sabia o que elas significavam."

"Você não acredita nisso."

"Não sei mais no que acredito. Eu deveria ter observado Vincent e Bill mais de perto. Se eu não tivesse prestado tanta aten­ção em mim mesmo, teria visto tudo o que estava para acontecer."

Olhei para a luz debaixo da porta. O piano tinha silenciado.

Paul se levanta e começa a andar em direção à entrada. "Vamos cair fora daqui", diz ele.

 

                                         Capítulo 15

Permanecemos praticamente em silêncio enquanto saímos de Woolworth. Paul caminha um pouco à minha frente, deixando certo espaço entre nós, e ao longe posso entrever a torre da capela. Os carros de polícia estão estacionados próximo a ela, protegendo-se das intem­péries como sapos debaixo de um carvalho. Filas de policiais formam uma barreira ao vento que começa a se extinguir. O anjo de neve de Bill Stein deve ter ido embora, não há ondulação alguma na neve.

Chegamos ao Dod e encontramos Charlie se preparando para dormir. Ele fez faxina na saleta, ordenando papéis dispersos e arrumando a correspondência fechada em pilhas, tentando esque­cer o que vira na ambulância. Depois de consultar o relógio, ele nos lança um olhar de desaprovação, mas está demasiado cansado para nos repreender. Ouço Paul explicar o que vimos no museu, sabendo de antemão que Charlie vai insistir para que chamemos a polícia. Depois que esclareço que estávamos examinando os per­tences de Stein quando encontramos as cartas, até mesmo Charlie parece rever sua posição.

Paul e eu entramos no quarto e trocamos de roupa em silêncio, depois vamos para as nossas respectivas camas. Enquanto estou deitado, lembrando a emoção em sua voz quando ele descreve Curry, me ocorre algo que nunca havia compreendido antes. Havia, ainda que de maneira efêmera, uma tranqüila perfeição na relação entre eles. Curry nunca havia conseguido compreender o Hypnerotomachia até Paul entrar em sua vida e aclarar-lhe as dúvidas, sob a condição de que pudessem ter isso em comum. E Paul havia passado por muitas privações, até que Richard Curry entrou em sua vida e proporcionou-lhe o que ele nunca tinha tido, sob a condição de que pudessem usufruir disso juntos. Como Della e James na velha história de O. Henry - James que vendeu seu relógio de ouro para comprar pentes para o cabelo de Della, e Della que vendeu seus cabelos para comprar uma corrente para o relógio de James -, seus presentes e sacrifícios combinavam perfeita­mente. Mas dessa vez há uma troca feliz. O que um tem para dar é o que o outro precisa.

Não posso recriminar Paul por ele ter esse tipo de sorte. Se alguém a merece, é ele. Paul nunca teve família, um rosto em um retrato, uma voz do outro lado da linha. Mesmo depois da morte de meu pai, eu tive todas essas coisas, por mais imperfeitas que fos­sem. Há aqui, todavia, algo maior em jogo. O diário do portuário pode provar que meu pai estava certo sobre o Hypnerotomachia - que ele percebeu corretamente, através da poeira do tempo, através da floresta de línguas mortas e das xilogravuras. Eu não acreditei nele, achando que era ridícula, vã e limitada a idéia de. que pudesse haver algo especial em um livro velho e maçante. E durante todo aquele tempo, enquanto o acusava de erro de perspectiva, o único errado era eu.

"Não faça isso com você, Tom", diz Paul inesperadamente, da cama de cima, tão baixo que mal o ouvi.

"Fazer o quê?"

"Sentir pena de você mesmo."

"Eu estava pensando em meu pai."

"Eu sei. Tente pensar em outra coisa."

“Que coisa?”

"Eu não sei. Em nós."

"Não compreendo”.

"Nós quatro. Tente ser grato pelo que temos." Ele hesita. "E o ano que vem? Para onde você quer ir?"

"Não sei”.

"Texas?"

"Talvez. Mas Katie deve voltar para cá."

Seus lençóis fazem ruído quando ele se vira. "E se eu lhe disser que posso ir para Chicago?"

"O que você quer dizer?"

"Para um Ph.D. Recebi minha carta um dia depois da sua”. Estou espantado.

"Para onde você pensou que eu estava indo no ano que vem?", ele pergunta.

“Para trabalhar com Pinto em Yale. Por que Chicago?"

"Pinto está se aposentando este ano. E de qualquer forma Chicago é melhor. Melotti ainda está lá”.

Melotti. Um dos outros poucos estudiosos do Hypnerotomachia que eu lembro de meu pai ter mencionado.

“Além disso", acrescenta Paul, "se foi bom o bastante para o seu pai, também será para mim, certo?"

A mesma idéia me ocorreu antes da minha requisição, mas o que significava para mim era, se meu pai pôde entrar, então também posso.

       "Suponho que sim."

“Então, o que você acha?”.

"De você ir para Chicago?"

Ele hesita outra vez. Acho que não percebi algo.

"Sobre nós irmos para Chicago."

As tábuas no asso alho estalam no piso superior.

"Por que você não me contou?"

"Não sabia como você iria se sentir a respeito”. ele diz.

"Você tem seguido o mesmo programa que ele fez”.

''Até onde pude."

Não tenho certeza de que poderia suportar seguir as pegadas de meu pai por mais cinco anos. Eu o veria na sombra de Paul mais ainda do que o vejo agora.

"É essa a sua primeira escolha?"

Um longo tempo se passa antes que ele responda.

"Taft e Melotti foram os únicos que sobraram." Estudiosos do Hypnerotomachia, é o que ele quer dizer.

"Eu poderia trabalhar com um não-especialista aqui", diz ele. "Batali ou Todesco."

Mas para um não-especialista escrever uma dissertação sobre o Hypnerotomachia seria a mesma coisa que um surdo escrever sobre música.

"Você deve ir para Chicago", eu digo, tentando colocar entusiasmo em minhas palavras.

"Isso significa que você vai para o Texas?"

''Ainda não resolvi."

"Você sabe, não é necessário decidir sempre por causa dele." "Não é assim."

"Bem”, diz Paul, decidindo não pressionar, "acho que tive­mos o mesmo prazo final."

Os dois envelopes estão onde os deixei, lado a lado sobre a escrivaninha. A escrivaninha, penso, onde Paul começou a desven­dar o Hypnerotomachia. Por um instante imagino meu pai pairando sobre ela, um anjo guardião, guiando Paul em direção à verdade, a cada noite desde o começo. Estranho pensar que eu estava bem ali, muito perto, adormecido quase na maior parte do tempo.

"Descanse", diz Paul, e posso ouvi-lo virar em seu beliche dando um longo suspiro. O constrangimento pelos acontecimen­tos de hoje está voltando.

"O que você vai fazer de manhã?", pergunto, sem saber se ele quer falar sobre isso.

"Tenho que perguntar a Richard sobre aquelas cartas”, diz ele.

"Você quer que eu vá com você?"

"Tenho de ir sozinho."

Não falamos mais nesta noite.

Paul adormeceu rapidamente, a julgar por sua respiração. Eu queria poder fazer o mesmo, mas minha mente está abarrotada demais para que eu possa dormir. Gostaria de adivinhar o que meu pai iria pensar se soubesse que encontramos o diário do por­tuário depois de todos esses anos. Talvez isso fosse aliviar a solidão que eu sempre achei que ele sentia, ao trabalhar tanto em algo que significava tão pouco para poucas pessoas. Acho que as coisas iriam mudar para meu pai se soubesse que seu filho finalmente concorda com ele.

"Por que você chegou tarde?", perguntei-lhe uma noite, depois que ele apareceu no terceiro quarto da minha última par­tida de basquete.

"Sinto muito”, ele disse. "Demorou mais do que eu esperava”.

Ele caminhava à minha frente na volta para o carro, está­vamos indo para casa. Olhei para a parte do cabelo que ele sem­pre esquecia de pentear, aquela que não podia ver no espelho. Estávamos na metade de novembro, mas ele tinha vindo ao jogo com uma jaqueta de primavera, tão absorvido em seu escritório que errara de cabide.

“O que você fez?”, cutuquei. Trabalho?”

Trabalho era o eufemismo que eu usava, evitando o título que me causava tanto embaraço junto a meus companheiros.

"Trabalho não”, disse ele calmamente. "Barganha."

No caminho para casa, ele manteve o velocímetro em cinco ou seis quilômetros por hora, acima do limite de velocidade, como sempre fazia. A pequena desobediência, a maneira pela qual ele se recusava a ser limitado por regras, mas não conseguia nunca quebrá-las, me irri­tava cada vez mais depois que consegui minha carteira de motorista.

"Você jogou bem, acho", disse ele, olhando para mim no banco do passageiro. "Vi você acertar as duas cestas de falta."

"Eu estava muito bem nos dois primeiros tempos do jogo. Depois, disse ao treinador Ames que não queria mais jogar."

O fato de ele não reagir me mostrou que tinha percebido o que eu sentia.

       "Você saiu? Por quê?"

       "O esperto tira do forte", eu disse, sabendo que seria o que ele iria dizer em seguida. "Mas o mais alto tira do mais baixo”.

Ele pareceu culpar-se depois disso, como se o basquete fosse o grande problema entre nós. Duas semanas depois, quando voltei da escola, a cesta e a bandeja de basquete haviam sido retiradas do jardim e doadas para uma obra de caridade. Minha mãe disse que não sabia direito por que ele tinha feito aquilo. Porque pensava que aliviaria as tensões, foi tudo o que ela conseguiu dizer.

Com isso em mente, tento imaginar qual seria o maior presente que poderia dar ao meu pai. E quando o sono chega, a resposta parece estranhamente clara: minha fé em seus ídolos. Foi o que ele sempre quis - sentir que estávamos unidos por algo permanente, saber que enquanto eu e ele acreditássemos nas mes­mas coisas, nunca ficaríamos separados. Que belo negócio eu fiz, ao assegurar que isso nunca aconteceria. O Hypnerotomachia não era diferente das aulas de piano, do basquete, e da maneira pela qual ele dividia seus cabelos: seu erro. Então, exatamente como ele sabia que iria acontecer, a partir do momento em que perdi a fé naquele livro, ficamos cada vez mais separados, até quando sen­tados ao redor da mesma mesa de jantar. Ele fez tudo o que podia para dar um nó que nunca se desfaria, e eu consegui desfazê-lo.

Esperança, Paul disse uma vez, que foi soprada da caixa de Pandora só depois que todas as calamidades e mágoas escapa­ram, é a melhor e a última de todas as coisas. Sem ela só existe o tempo. E o tempo empurra nossas costas como um centrifugador, nos forçando para fora e para longe, até nos conduzir ao esque­cimento. Essa, eu acho, é a única explicação do que aconteceu a mim e a meu pai, como também aconteceu com Curry e Taft, da mesma maneira que vai acontecer conosco aqui no Dod, por mais inseparáveis que pareçamos ser. É uma lei de movimento, um fato da física que Charlie poderia enunciar, não diferente dos anões brancos e gigantes vermelhos. Como todas as coisas no Universo, estamos destinados, desde o nascimento, a divergir. O tempo é simplesmente o padrão de medida da nossa separação. Se somos partículas em uma distância incomensurável, explodidas a partir de uma única origem, então há uma ciência para a nossa solidão. Somos solitários proporcionalmente aos nossos anos.

 

                                       Capítulo 16

No verão depois da sexta série, meu pai me enviou para um acampamento, por duas semanas, para ex-escoteiros indisci­plinados, cujo propósito, me dou conta agora, era o de me per­mitir usar de novo o emblema dos escoteiros. Eu tinha perdido esse direito no ano anterior por ter acendido fogos de artifício na tenda de Willy Carlson, e mais especificamente por dizer que achava isso divertido, mesmo depois que me advertiram sobre a constituição frágil e a bexiga solta de Willy. O tempo passou, e meus pais confiavam que as indiscrições haviam sido esquecidas. No tumulto dos doze anos, quando Jake Ferguson, cujo negócio de histórias pornográficas em quadrinhos havia transformado a experiência moralmente obstrutiva do acampamento dos esco­teiros em .uma empresa lucrativa de grandes perspectivas, eu fui rebaixado para uma categoria ainda mais baixa. Catorze dias na costa sul do Lago Erie, achavam meus pais, me trariam de volta à categoria anterior.

Menos do que noventa e seis horas foram suficientes para provar que eles estavam errados. No meio da primeira semana, o chefe de um grupo de escoteiros levou-me de volta para casa e largou-me lá num acesso de ira silenciosa. Eu havia sido desonro­samente mandado embora, dessa vez por ensinar aos companhei­ros de acampamento uma canção imoral. Uma carta de três pági­nas do diretor do acampamento, cheia de adjetivos rebuscados e correcionais, me colocava entre os piores escoteiros reincidentes da maior central de Ohio. Sem saber direito o que seria um reinci­dente, contei a meus pais o que havia feito.

Um grupo de escoteiras juntou-se a nós para um dia de canoagem, cantando uma canção que eu conhecia dos dias em que minhas irmãs freqüentavam acampamentos e usavam emblemas: Faça novos amigos, mas conserve os velhos; um é prata, o outro é ouro. Tendo herdado uma série de alternativas líricas, compartilhei-as com meus colegas homens.

Não faça amigos, e chute os velhos sem pudor. Tudo que quero é prata e ouro com fulgor.

Só essas linhas dificilmente seriam motivo para expulsão, mas Willy Carlson, em uma brilhante façanha de retribuição, deu um chute no conselheiro mais velho do acampamento quando ele se curvou para acender uma fogueira, e depois disse que se comportara assim por influência minha, os versos líricos tinham, como que por mágica, empurrado seus pés no traseiro do conse­lheiro. Depois de poucas horas, todo o mecanismo de justiça dos escoteiros foi posto em ação e nós dois fizemos nossas malas.

Só duas coisas sobraram dessa experiência, além do meu afastamento permanente dos escoteiros. A primeira foi que me tornei amigo de Willy Carlson, cuja bexiga solta nada mais era do que uma mentira que contou aos escoteiros para me afas­tar. Ele era bem amável! E a segunda foi que recebi um severo sermão de minha mãe, cujo motivo não compreendi até quase o final dos meus anos em Princeton. Ela não fazia objeção à primeira linha do poema lírico, apesar do fato de que, na prá­tica, chutar pessoas velhas era o que tinha me posto para for a do acampamento. O que ela não gostou foi da estranha obsessão contida na segunda linha.

"Por que prata e ouro?", disse ela, fazendo-me sentar na pequena sala atrás da livraria, onde mantinha o estoque e os arquivos mortos.

"O que a senhora quer dizer?", perguntei. Havia um calen­dário antiquado na parede, do Columbus Museum of Art, virado no mês de maio, mostrando um quadro de Edward Hopper de uma mulher sentada em sua cama. Eu não podia parar de olhar para ele.

"Por que não fogos de artifícios?", perguntou ela. "Ou fogueiras?"

"Porque isso não dá certo." Lembro de me sentir aborrecido; as respostas pareciam muito óbvias. "Era tudo por causa da rima”.

"Ouça, Tom." Minha mãe colocou a mão em meu queixo e fez com que eu a encarasse. Seu cabelo parecia ouro sob aquela luz, da mesma maneira que o cabelo da mulher no quadro de Hopper. "Isso não é natural. Um menino da sua idade não deve se preocupar com prata e ouro”.

"Não me preocupo. Que importância tem isso?"

"Porque cada desejo tem seu objeto próprio”.

Isso soava como algo que me disseram uma vez na escola dominical. "O que isso quer dizer?"

"Significa que as pessoas passam a vida toda desejando coisas que não deveriam. O mundo as deixa confusas fazendo com que amem e aspirem a coisas que não lhes competem." Ela ajeitou a gola do seu vestido de verão, depois se sentou perto de mim. "Tudo o que é preciso para ser feliz é gostar das coisas certas e nas quantidades certas. Não de dinheiro. Não de livros. De pessoas. Os adultos que não compreendem isso nunca se sentem preenchidos. Não quero que você fique como eles."

Por que significava tanto para ela o propósito correto das minhas paixões, nunca compreendi. Eu apenas concordei de maneira solene, prometi que nunca mais cantaria sobre metais preciosos de novo, e senti que minha mãe tranqüilizou-se.

Mas os metais preciosos nunca foram o problema. O que percebo agora é que minha mãe estava travando uma batalha maior, tentando me proteger de uma coisa pior: tornar-me como meu pai. A obsessão de meu pai pelo Hypnerotomachia era para ela a essência de uma paixão mal orientada, e lutou contra ela até o dia da morte de meu pai. Ela acreditava, acho eu, que o amor dele pelo livro nada mais era do que uma perversão, um desvio indecoroso do seu amor por sua mulher e sua família. Nem coerção, nem persua­são podiam corrigir isso, e suponho que quando minha mãe se deu conta de que havia perdido a batalha para endireitar a vida de meu pai é que ela direcionou suas armas para mim.

Se me mantive fiel ou não à minha promessa, tenho receio de dizer. A obstinação dos meninos em seu modo infantil deve ser um assombro para as mulheres, que aprendem mais depressa do que os anjos a não se comportar mal e causar problemas.

Ao longo de minha infância houve um monopólio de erros em minha casa, e eu fui seu Rockefeller. Nunca imaginei a magnitude do erro contra o qual minha mãe me advertia, até que tive a infelicidade de incorrer nele. Na época, no entanto, foi Katie, e não minha família, quem teve de sofrer por isso.

Chegou janeiro, e o primeiro enigma de Colonna deu lugar a um outro, depois a um terceiro. Paul sabia onde procurá-los, tendo descoberto um padrão no Hypnerotomachia: seguindo um ciclo regular, os capítulos cresciam em extensão de cinco ou dez pági­nas, para vinte, trinta, ou até quarenta. Os capítulos curtos vinham um após o outro, três ou quatro por vez, enquanto os mais longos eram mais isolados. Quando diagramados, os longos períodos de pouca intensidade eram interrompidos por aumentos significa­tivos no tamanho do capítulo, criando um perfil visual que nós dois chegamos a conceber como o pulso do Hypnerotomachia. O padrão continuou até o término da primeira metade do livro, ponto no qual uma seqüência estranha e confusa começou, nenhum capítulo excedia onze páginas.

Paul rapidamente deu sentido a isso, utilizando nosso sucesso com Moisés e seus cornos: todo aumento de tamanho de capítulos isolados proporcionava um enigma; a solução dos enig­mas, seu criptograma, era então aplicado à seqüência de capítulos curtos que se seguiam, produzindo a parte seguinte da mensagem de Colonna. A segunda metade do livro, Paul deduziu, deve ser recheio, do mesmo modo que os capítulos de abertura da primeira metade pareciam ser: uma distração para manter a impressão de narrativa, sem o que seria apenas uma história fragmentada.

Dividimos o trabalho entre nós. Paul procurava os enig­mas nos capítulos longos, deixando cada um deles para que eu decifrasse. O primeiro que tentei resolver foi este: Qual é a menor harmonia de uma grande vitória?

"Isso me faz pensar em Pitágoras", disse Katie quando lhe contei sobre o enigma por cima de um bolo inglês com chocolate quente no Small World Coffee. "Tudo para Pitágoras eram har­monias. Astronomia, virtude, matemática..”

"Penso que está relacionado com combate", eu contrapus, depois de ter passado algum tempo em Firestone procurando textos da Renascença sobre manobras. Leonardo, em uma carta ao Duque de Milão, disse que podia construir carros de batalha impenetráveis, como tanques da Renascença, junto com mortei­ros transportáveis e grandes catapultas para usar em cercos. A filosofia e a tecnologia estavam se fundindo: havia uma matemá­tica para a vitória, um conjunto de proporções para aperfeiçoar a máquina de guerra. Da matemática para a música era apenas um pequeno passo.

Na manhã seguinte, Katie acordou-me às 7h30 para ir cor­rer antes de sua aula das 9 horas.

"Combate não faz sentido", disse ela, começando a anali­sar o enigma como só uma especialista em filosofia seria capaz. "Existem duas partes nessa questão: menor harmonia e grande vitória. A grande vitória pode não significar nada. Você deve se concentrar na parte mais clara. A menor harmonia tem pequeno número de significados concretos."

Eu resmunguei quando passamos a estação de trem de Dinky no nosso caminho para a parte oeste do campus, inve­jando os passageiros dispersos que esperavam pelo trem das 7h43.

Correr e pensar não eram coisas naturais a se fazer ao nascer do sol) e ela sabia que a confusão mental em que me encontrava não se desfaria até o meio-dia. Ela estava tirando vantagem) punindo-me por não levar Pitágoras a sério.

"Então o que você sugere?”, perguntei.

Ela nem parecia estar respirando com dificuldade. "Vamos parar em Firestone na volta. Vou lhe mostrar onde acho que você deve investigar”.

E as coisas continuaram assim por duas semanas) acor­dando cedo para fazer exercícios físicos e resolver problemas difíceis) contando para Katie minhas idéias ainda imaturas sobre Colonna, de modo que ela precisasse parar e me escutar) depois me forçando a correr bem depressa para que ela tivesse menos tempo para me dizer de que maneira eu estava errado. Estávamos passando juntos os finais de muitas noites e os começos de muitas manhãs, e eu achava que, racional como Katie era, finalmente iria achar que dormir no Dod seria mais eficiente do que enfrentar a volta para o Holder. Todas as manhãs, ao vê-la em suas roupas esportivas, eu pensava em uma nova maneira de estender o con­vite, mas ela sempre se fazia de desentendida. Gil me contou que o antigo namorado de Katie, o jogador de hóquei de um dos meus seminários, caçoou dela desde o começo, não exercendo pressão sobre ela nas poucas ocasiões em que esteve embriaga da, de modo que se enternecesse com gratidão quando sóbria. Ela levou tanto tempo para perceber o tipo de manipulação que ele usava, que acabou trazendo a impressão dessa relação para o primeiro mês do nosso relacionamento.

"O que devo fazer?”, perguntei uma noite depois que Katie saiu, quando a frustração era demasiada. Eu estava conseguindo um leve beijo no rosto depois de cada corrida, o que, considerando tudo, mal pagava meus sacrifícios; e agora que eu estava passando cada vez mais tempo com o Hypnerotomachia, e tendo apenas de cinco a seis horas de sono por noite, um tipo inteiramente novo de obrigação estava surgindo. Tantalus e suas uvas não me satis­faziam: quando eu queria Katie, tudo que conseguia era Colonna; quando tentava me concentrar em Colonna) tudo em que conse­guia pensar era em dormir; e quando, por fim adormecia, uma pancada na porta me despertava e era hora de uma outra corrida com Katie. A comédia de estar constantemente atrasado para a minha própria vida me incomodava. Eu merecia coisa melhor.

Por uma vez, no entanto, Gil e Charlie estavam de acordo: "Seja paciente", disseram. "Ela vale a pena."

E, como sempre, eles tinham razão. Uma noite' depois da nossa quinta semana juntos, Katie ofuscou a todos nós. Voltando de um seminário de filosofia, ela parou no Dod com uma idéia.

"Ouçam isto", disse ela, tirando uma cópia da Utopia de Thomas More de sua bolsa e lendo um trecho do livro.

Os habitantes da Utopia têm dois jogos parecidos com o xadrez. O primeiro é um tipo de torneio aritmético, no qual certos números "capturam" outros. O segundo é uma bata­lha de arremesso entre virtudes e vícios, que ilustra muito engenhosamente como os vícios tendem a conflitar entre si, mas se aliam contra as virtudes. Isso mostra o que, basica­mente, determina a vitória de um lado ou de outro.

Ela me fez segurar o livro, esperando que eu lesse de novo. Dei uma olhada na capa de trás. "Foi escrito em 1516", eu disse, "menos de vinte anos depois do Hypnerotomachia." O espaço de tempo era adequado.

"Uma batalha de arremesso entre virtudes e vícios': ela repe­tiu, "mostrando o que determina a vitória de um lado ou de outro”.

E algo começou a se agitar em mim achando que ela podia estar certa.

Lana McKnight costumava obedecer a uma regra nos dias de encontro. Nunca misturar livros e cama. No espectro da excita­ção, sexo e pensamento estavam em extremidades opostas, ambos para serem desfrutados, mas nunca ao mesmo tempo. Sempre me deixava perplexo como uma garota esperta podia se tornar tão completa e subitamente estúpida no escuro, agitando os braços em seu négligé que imitava leopardo, como uma mulher das caver­nas em quem eu tivesse batido com uma clava, vociferando coisas que teriam horrorizado até o bando de lobos que a criou. Nunca ousei dizer a Lana que se ela gemesse menos isso significaria mais, mas desde a primeira noite senti que coisa maravilhosa seria se minha mente e meu corpo pudessem ser estimulados ao mesmo tempo. Provavelmente percebi essa possibilidade com Katie desde o começo, depois de todas as manhãs que juntos passamos exerci­tando nossos músculos. Mas foi só naquela noite que aconteceu: quando desenvolvemos as implicações da sua descoberta, o último resquício do seu antigo jogador de hóquei finalmente sumiu, se apagou, deixando-nos livres para começar de novo.

O que lembro com maior clareza sobre aquela noite foi que Paul tinha ido dormir em Ivy, e que as luzes pareciam seguir Katie o tempo todo. Nós as mantivemos acesas enquanto líamos Sir Thomas More, tentando descobrir a que jogo ele se referia, no qual as grandes vitórias eram possíveis quando as virtudes estavam em harmonia. Elas continuaram acesas quando descobrimos que um dos jogos que More mencionou, chamado o Jogo dos Filósofos, ou Rithmomachia, era precisamente o tipo que Colonna teria pre­ferido, mais desafiador que qualquer outro jogado pelos homens medievais ou da Renascença. Nós as deixamos acesas quando ela me beijou dizendo que, no fim das contas, eu concordava que ela estava certa, porque a Rithmomachia, como verificamos, só podia ser vencida pela criação de uma harmonia de números, a mais per­feita das quais produzia um raro resultado chamado grande vitória. E nós as deixamos acesas no momento em que ela me beijou de novo, quando admiti que minhas outras idéias deviam estar erradas e que eu devia tê-la escutado desde o começo. Percebi, finalmente, o equívoco que persistiu desde a manhã de nossa primeira corrida: enquanto eu me esforçava para ficar ao lado dela, ela arremetia para ficar sempre um passo adiante. Ela estava tentando provar que não ficava intimidada pelos seniores, que merecia ser levada a sério - e nunca lhe ocorreu, até aquela noite, que havia conseguido.

Meu colchão estava apinhado de livros quando fomos nos deitar, sem nem mesmo fazer de conta que queríamos ler algo mais. É provável que o quarto estivesse muito aquecido para o tipo de malha que ela estava usando. E é provável que o quarto ainda continuaria demasiado aquecido para a malha que ela ves­tia mesmo se o ar-condicionado estivesse ligado e houvesse neve caindo como no fim de semana da Páscoa. Ela usava uma cami­seta debaixo da malha e um sutiã preto sob a camiseta, mas foi observando Katie se despir e vendo a desordem que isso provocou em seus cabelos, com fios flutuando numa auréola de eletricidade estática, que me deu o sentimento que Tantalus nunca alcançara completamente: de que um sensacional futuro havia finalmente se superposto a um presente intenso e auspicioso, acionando a chave que completa o circuito do tempo.

Quando chegou a minha vez de tirar a roupa, de compar­tilhar com Katie os destroços da minha perna esquerda, cicatrizes e tudo mais, eu não hesitei; e quando elas as viu, também não hesitou. Se tivéssemos passado aquelas horas no escuro, eu nunca teria chegado a ter certeza de nada. Mas nunca ficamos no escuro. Rolamos, um sobre o outro, sobre Sir Thomas More e as páginas de sua Utopia, iniciando um novo relacionamento, e as luzes fica­ram acesas o tempo todo.

O primeiro sinal de que eu não compreendia as forças que atuavam na minha vida veio na semana seguinte. Paul e eu pas­samos boa parte do domingo e da terça-feira debatendo o signi­ficado do enigma mais recente: Quantos braços desde o seu pé até o horizonte?

"Penso que tem a ver com geometria", disse Paul.

"Euclides?"

Mas ele sacudiu a cabeça. "Medida da Terra. Eratóstenes calculou aproximadamente a circunferência da Terra medindo os diferentes ângulos das sombras lança das em Siena e Alexandria ao meio-dia durante o solstício de verão. Depois ele usou os ângulos..."

Percebi só mais tarde, por meio de sua explicação, que ele estava usando um sentido etimológico para a palavra geometria -literalmente, como ele disse, "medida da Terra”.

"Então, conhecendo a distância entre as duas cidades, ele podia medir por triangulação a curvatura da Terra."

       "O que isso tem a ver com o enigma?", eu quis saber.

       "Francesco está perguntando qual é a distância entre você e o horizonte. Calcule quão distante ele está de qualquer ponto dado, no mundo, até a linha onde a Terra se curva e você obterá a resposta. Ou então apenas procure por ela em qualquer livro de física. Ela é provavelmente uma constante”.

       Ele disse isso como se a resposta fosse algo que já se soubesse de antemão, mas eu suspeitava que fosse de outra maneira.

       "Por que Colonna perguntaria essa distância em braços?", eu indaguei.

Paul inclinou-se e apagou os braços sobre a minha cópia, substituindo-o por algo em italiano. "Isso deveria provavelmente ser braccia”, ele disse. "É a mesma palavra, mas braccia era a uni­dade de medida florentina. Um braccio é mais ou menos o com­primento de um braço."

Pela primeira vez, eu estava dormindo menos do que ele, a súbita intensidade de minha vida me espicaçando para que eu continuasse a forçar minha sorte, para seguir misturando meus drinques, porque esse coquetel de Katie e Francesco Colonna parecia ser exatamente o que o médico prescrevera. Tomei isso como um sinal, o fato de que meu retorno ao Hypnerotomachia havia trazido uma nova estrutura ao mundo em que eu vivia. Rapidamente comecei a cair na armadilha de meu pai, aquela sobre a qual minha mãe havia me alertado.

Na quarta-feira de manhã, quando mencionei a Katie que havia sonhado com meu pai, ela fez algo que nunca havia feito antes, enquanto corríamos: ela parou.

"Tom, não quero continuar a falar sobre isso”, ela disse.

“Sobre o que?”

''A tese de Paul. Vamos falar de outra coisa”.

"Eu estava falando sobre meu pai."

Eu havia me acostumado, nas conversas com Paul, a invo­car o nome de meu pai em qualquer situação, esperando que isso diminuísse qualquer crítica.

"O seu pai trabalhou no livro que Paul está estudando", disse ela. "É a mesma coisa."

Eu me enganei ao interpretar o sentimento por trás de suas palavras como medo: medo de que seria incapaz de resolver um outro enigma da maneira que havia solucionado o primeiro, e de que meu interesse por ela pudesse enfraquecer.

"Ótimo", eu disse, pensando que assim a estava protegendo daquilo tudo. "Vamos falar sobre outra coisa”.

E assim começou um período de muitas semanas agradá­veis, construído sobre um equívoco tão completo quanto aquele com o qual começamos. Do primeiro mês em que começamos a namorar até a noite em que Katie dormiu no Dod, ela assumiu uma postura quando estava comigo, tentando criar algo que acreditava ser o que eu queria; no segundo mês eu lhe devolvi a gentileza evi­tando mencionar o Hypnerotomachia na sua frente, não porque a importância dele tivesse diminuído em minha vida, mas porque eu achava que os enigmas de Colonna a deixavam apreensiva.

Se soubesse a verdade, Katie teria motivos para preocupar-se. O Hypnerotomachia estava lentamente começando a ameaçar os meus outros pensamentos e interesses, deixando-os desfocados. O equilíbrio que eu pensava ter atingido entre a tese de Paul e a minha - a valsa entre Mary Shelley e Francesco Colonna, que eu imaginava mais distintamente quanto mais tempo passava com Katie - estava se transformando em uma batalha, que Colonna gradualmente venceu.

De forma tranqüila, antes que Katie e eu nos déssemos conta disso, trilhas haviam se formado em cada canto de nossa experiência em comum. Percorríamos os mesmos caminhos todas as manhãs e parávamos nos mesmos cafés antes da aula; eu a fazia entrar às escondidas no meu clube-restaurante quando os meus convites terminaram. Nas noites de terça dançávamos com Charlie no Cloister Inn; sábado à noite jogávamos bilhar com Gil em Ivy; e nas noites de sexta, quando os clubes na Prospect ficavam fecha­dos, íamos ver os amigos em peças de Shakespeare ou concertos musicais ou shows no campus. A aventura dos nossos primeiros dias juntos pouco a pouco floresceu em algo mais: um sentimento que eu nunca tinha tido com Lana ou qualquer de suas predeces­soras, que só posso comparar com a sensação de voltar para casa, de encontrar um equilíbrio que não necessita de ajustes, como se tudo em minha vida estivesse esperando por ela.

Na primeira noite em que Katie percebeu que eu não con­seguia dormir, ela me contou uma história de seu autor favorito, e eu segui George, o Curioso, até o final da Terra, onde o peso em minhas pálpebras me derrubou. Depois disso, houve muitas noi­tes em que tossi e me revirei, e Katie encontrou uma solução para cada uma delas. Episódios de M*A*S*H tarde da noite; longas lei­turas de Camus; programas de rádio que ela costumava ouvir em casa e que agora eram transmitidos em outros estados. Às vezes deixávamos as janelas abertas, para ouvir a chuva no final de feve­reiro, ou a conversa de calouros embriagados. Havíamos até inven­tado um jogo rítmico para as noites vazias, algo que Francesco Colonna podia não achar tão edificante quanto o Rithmomachia, mas que desfrutávamos do mesmo modo.

"Existiu um homem chamado Camus”, eu dizia, guiando-a.

Quando Katie sorria de noite, ela parecia o gato Cheshire (O gato de Alice no País das Maravilhas) no escuro.

"Que fez U. Algiers ficar sem luz", ela respondia.

"Ele tem muito potencial”.

"Mas não era existencial."

"O que deixou o velho Jean-Paul Sartre mal."

Mas apesar de todas as maneiras que Katie encontrou para me fazer dormir, o Hypnerotomachia ainda me mantinha tempo demais acordado. Eu descobri qual era a menor harmonia de uma grande vitória: no Rithmomachia, onde a meta consiste em esta­belecer padrões de números que contenham harmonias aritméti­cas, geométricas ou musicais, apenas três seqüências produzem as três harmonias ao mesmo tempo - o requisito para uma grande vitória. A menor dessas, a que Colonna desejava, era a seqüência 3-4-6-9.

Paul rapidamente pegou os números e fez um criptograma com eles. Ele leu a terceira letra, depois a quarta em seqüência, seguida pela sexta e a nona, dos capítulos apropriados; e depois de uma hora obtivemos uma nova mensagem de Colonna:

Começo minha história com uma confissão. Para manter esse segredo muitos homens morreram. Alguns pereceram na construção de minha cripta, a qual, imaginada por Bramante e executada pelo meu irmão romano Terragni, é uma invenção inigualável para seu propósito, impenetrável a todas as coisas, mas principalmente à água. Essa constru­ção fez muitas vítimas, mesmo entre os homens mais expe­rimentados. Três morreram no deslocamento de grandes pedras, dois na queda de árvores, cinco no próprio processo de construção. E outros cuja morte não menciono, porque morreram vergonhosamente e serão esquecidos.

Aqui vou tornar conhecida a natureza do inimigo com o qual me defronto, cujo poder crescente jaz no centro de minhas ações. Leitor, você se perguntará por que coloquei a data de 1467 neste livro, cerca de trinta anos antes de eu ter escrito estas palavras. Foi por esta razão: naquele ano começou a guerra que ainda estamos lutando, e que esta­mos agora perdendo. Três anos antes Sua Santidade, Paulo 11, despediu os abreviadores da corte, deixando claras suas intenções para com minha confraria. Embora os membros da geração de meu tio fossem homens poderosos, com muita influência, os irmãos expulsos congregaram-se na Academia Romana, sustentada pelo bom Pomponio Leto. Paulo viu que o nosso número persistia e sua fúria aumentou. Naquele ano, 1467, ele aniquilou a Academia. Para que todos conhecessem a força de sua determinação, aprisionou Pomponio Leto e conseguiu acusá-lo como sodomita. Outros do nosso grupo foram torturados. Um, pelo menos, morreria.

Agora somos desafiados por um velho inimigo, que subita­mente renasceu. Esse novo espírito cresce em poder, e encon­tra uma voz mais poderosa, não me deixando escolha senão construir, com a ajuda de amigos mais sábios do que eu, esse invento cujo segredo escondo aqui. Nem mesmo o sacer­dote, por mais filósofo que seja, está à altura dele.

Continue, leitor, e lhe contarei mais.

"Os abreviadores da corte eram os humanistas", explicou Paul. "O papa achava que o humanismo provocava corrupção moral. Ele nem queria que as crianças ouvissem as obras dos antigos poetas. O Papa Paulo transformou Leto em um exemplo. Por alguma razão Francesco tomou isso como uma declaração de guerra."

As palavras de Colonna permaneceram comigo naquela noite, e em cada noite seguinte. Pela primeira vez deixei de correr com Katie pela manhã, cansado demais para sair da cama. Algo me dizia que Paul estava enganado a respeito do enigma - Quantos braços desde o seu pé até o horizonte? - e que Eratóstenes e a geo­metria não eram a solução. Charlie confirmou que a distância até o horizonte depende do peso do observador; e mesmo que pudés­semos encontrar uma única resposta e calculá-la em braccia, me dei conta que a resposta seria enorme, demasiado grande para ser útil como criptograma.

“Quando Eratóstenes fez esse cálculo?”, perguntei.

"Por volta de 200 a.C."

Isso confirmou o que eu pensava.

“Acho que você está errado”, eu disse. "Todos os enigmas até agora estão relacionados com o conhecimento que havia na Renascença, com as descobertas na Renascenya. Ele está nos tes­tando sobre o conhecimento que os humanistas teriam em torno de 1400."

"Moisés e cornuta têm a ver coma lingüística': disse Paul, tentando ver se a idéia servia. "Correção de traduções malfeitas, como Valia fez com a Constituição de Constantino."

"E o enigma de Rithmomachia se relaciona com a mate­mática': continuei. "Então Colonna não usaria matemática de novo. Acho que ele utiliza uma disciplina diferente a cada vez."

­Foi só quando Paul me olhou, surpreso pela clareza do meu raciocínio, que eu percebi como o meu papel havia mudado. Éramos iguais agora, parceiros no empreendimento.

Começamos a nos encontrar em Ivy todas as noites, como naqueles dias em que Paul mantinha a sala do presidente mais arrumada, esperando a visita inesperada de Gil. Eu jantava no andar de cima com Gil e Katie, que iria começar o procedimento de admissão por debate em poucas semanas, e depois descia para juntar-me a. Paul e Francesco Colonna. Eu achava que não havia problema em deixá-la sozinha, porque ela estava se esforçando para ser admitida no clube. Ocupada com os rituais, ela parecia não ligar muito para os meus sumiços.

Mas na noite depois que perdi minha terceira corrida mati­nal, tudo mudou. A meu ver, a solução do enigma estava muito próxima, e foi então que, por puro acidente, ela descobriu onde eu estava passando meu tempo.

"Isso é para você", disse ela, entrando em nosso quarto no Dod.

Gil havia deixado a porta destranca da outra vez, e Katie não batia mais quando achava que eu estava sozinho.

Era uma vasilha de sopa que comprara em uma rotisseria local. Ela achava que eu tinha estado muito ocupado com a minha tese todo aquele tempo.

       "O que você está fazendo?”, perguntou. "Mais Frankenstein?"

       Depois ela viu os livros espalhados ao meu redor, cada um trazendo no título uma referência à Renascença.

Nunca pensei que fosse possível mentir sem nem perceber. Eu a tinha enganado durante semanas sob uma série de pretex­tos - Mary Shelley; insônia; as pressões que ambos estávamos enfrentando, o que dificultava passarmos mais tempo juntos -, e, em conseqüência, isso me manteve afastado, levando-me para longe da verdade tão lentamente que a distância a cada dia não parecia maior do que a do dia anterior. Katie sabia que eu estava trabalhando na tese de Paul, era o que eu achava; ela só não queria ouvir falar a respeito. Este era, para mim, o acordo a que tínhamos chegado sem mesmo ter de expressá-lo em palavras.

A conversa que se seguiu foi toda feita de silêncios, que se entremeavam com a maneira pela qual ela me olhava e o jeito com que eu tentava sustentar seu olhar sobre mim. Finalmente, Katie colocou a vasilha de sopa sobre o aparador e abotoou seu casaco. Olhou ao redor do quarto, como que para lembrar-se dos detalhes e dos locais dos objetos, depois saiu e fechou a porta.

Eu ia lhe telefonar naquela mesma noite - pois sabia que era o que ela esperava que eu fizesse, quando voltou sozinha ao seu quarto e esperou do lado do telefone, como suas colegas de quarto me contaram depois -, só que algo me impediu. Aquele livro era uma amante fantástica, atraindo-me nos momentos certos. Assim que Katie foi embora, a solução do enigma de Colonna se tornou evidente; e então como o cheiro de perfume e os seios de uma mulher muito sedutora, ela me fez perder tudo o mais de vista.

O horizonte em uma pintura era a solução: o ponto de convergência em um sistema de perspectiva. O enigma não era sobre matemática e sim sobre arte. Isso se ajustava ao perfil dos outros enigmas, apoiando-se sobre uma disciplina pecu­liar à Renascença, desenvolvida pelos mesmos humanistas que Colonna parecia estar defendendo. A medida que necessitávamos era a distância, em braccia, entre o primeiro plano da pintura, onde ficavam as figuras, e a linha teórica do horizonte, onde a Terra encontrava o céu. E lembrando a preferência de Colonna por Alberti, na arquitetura, quando Paul usou De re aedificatoria para decifrar o primeiro enigma, foi para Alberti que me voltei primeiro. Na superfície que eu tinha a intenção de pintar, Alberti escreveu no tratado que encontrei no meio dos livros de Paul, decidi o tamanho que as figuras deveriam ter no primeiro plano. Dividi a altura do homem em três partes, que seriam proporcio­nais à medida comumente chamada de um "braccio"; porque, como pode ser visto a partir da relação de seus membros, três "braccia" é mais ou menos a altura média do corpo de um homem. A posição apropriada para o ponto central não é mais alta, a partir da linha de base, do que a altura do homem a ser representado na pintura. Então desenhei uma linha através do ponto central, e essa linha é um limite ou uma divisa para mim, que nenhuma quantidade excede. É por isso que os homens que ficam mais distantes são muito menores do que os que ficam mais próximos.

A linha central de Alberti, como a ilustração mostrava, era o horizonte. De acordo com o seu sistema, ela estava colocada na mesma altura que o homem em pé desenhado no primeiro plano, que por sua vez tinha três braccia de altura. A solução do enigma - o número de braccia desde o pé do homem até o horizonte - era apenas este: três.

Paul levou só meia hora para descobrir como aplicar isso. A primeira letra de cada terceira palavra nos capítulos seguintes, quando enfileiradas, revelaram o trecho seguinte de Colonna.

Agora, leitor, vou lhe revelar a natureza da composição desta obra. Com a ajuda de meus irmãos, estudei os textos cripto­grafados de livros dos árabes, judeus e dos antigos. Aprendi dos cabalistas a prática chamada gematria, de acordo com a qual, quando está escrito no Gênese que Abraão trouxe 318 servos para ajudar Lot, vemos que o número 318 sig­nifica apenas o servo Eliezer de Abraão, porque ele é a soma das letras hebraicas do nome de Eliezer. Aprendi as práticas dos gregos, cujos deuses falam por meio de enig­mas, e cujos generais, conforme o Mythmaker descreve em sua História, ocultavam seus significados astuciosamente, como quando Histiaeus tatuou uma mensagem no escalpo do seu escravo, de modo que Aristágoras pudesse raspar a cabeça do homem e lê-la.

Vou lhe revelar agora os nomes daqueles homens estu­diosos cuja sabedoria criou os meus enigmas. Pomponio Leto, mestre da Academia Romana e aluno de Valla, velho amigo de minha família, instruiu-me na importância das línguas e da tradução, onde meus próprios olhos e ouvi­dos fracassavam. Na arte e na harmonia dos números,1ui guiado pelo francês Jacques Lefivre d'Etaples, admirador de Roger Bacon e Boethius, que conhecia todos os métodos de numeração que o meu próprio intelecto não podia elu­cidar. O grande Alberti, que por sua vez aprendeu sua arte dos mestres Masaccio e Brunelleschi (possa a genialidade deles ser para sempre lembrada), instruiu-me faz muito tempo na ciência dos horizontes e pinturas; eu o abençôo agora e sempre. O conhecimento dos escritos sagrados de Hermes Trismegistus, primeiro profeta do Egito, devo ao sábio Ficino, mestre das línguas e das filosofias, que é sem igual entre os seguidores de Platão. Finalmente é a Andrea Alpago, discípulo do venerável Ibn al-Nafis, que sou deve­dor por assuntos ainda não revelados; e possa essa contri­buição ser vista como sendo mais favorável do que todo o resto, porque é no estudo do homem em si mesmo, dentro do qual todos os outros estudos encontram sua origem, que ele mais de perto contempla a perfeição.

Esses, leitor, são os meus mais sábios amigos, com os quais aprendi o que não sabia, o conhecimento que em tempos anteriores eram estranhos a todas as pessoas. Um por um eles concordaram com o meu singular pedido: cada homem, sem o conhecimento dos outros, inventou um enigma para o qual só eu e ele tínhamos a solução, e que apenas um outro amante da sabedoria poderia solucionar. Esses enigmas, por sua vez, eu os coloquei dentro do meu texto sob forma de fragmentos, de acordo com um padrão que não revelei a ninguém; e cuja solução, unicamente, pode reproduzir minhas verdadeiras palavras.

Tudo isso fiz, leitor, para proteger meu segredo, mas tam­bém para transmiti-lo a você, para que descobrisse o que escrevi. Solucione mais dois enigmas e eu começarei a reve­lar a natureza de minha cripta.

Katie não me acordou na manhã seguinte para ir correr. No resto da semana, de fato, falei com suas colegas de quarto e com a secretária eletrônica, mas nunca com ela mesma. Obcecado pelo progresso que estava fazendo com Paul, não percebi como o cenário de minha vida estava se desgastando. As corridas e os cafés foram abandonados à medida que a distância entre nós crescia.

Katie já não comia mais comigo no Cloister, mas mal percebi, porque durantes semanas eu mesmo mal tive tempo de ir até lá: Paul e eu andávamos feito ratos pelos túneis entre o Dod e Ivy, evitando a luz do dia, ignorando os sons dos debates acima de nossas cabeças, comprando café e sanduíches prontos no Wa Wa, que ficava aberto a noite inteira no campus, de maneira que pudéssemos trabalhar e comer sem horário fixo.

Durante todo aquele tempo, Katie estava separada de mim apenas por um andar, tentando não roer suas unhas, enquanto transitava de grupinho em grupinho, buscando o equilíbrio cor­reto entre positividade e complacência, para que os alunos do ter­ceiro ano a olhassem de maneira favorável. Desde o começo eu tinha chegado à conclusão de que ela não queria minha interferên­cia em sua vida naquele momento, o que era uma outra desculpa para passar longos dias e noites até bem tarde com Paul. Que ela apreciasse um pouco de convivência, um rosto amigo para olhar à noite, um companheiro para correr nas manhãs que se torna­vam mais cinzentas e frias - que ela esperasse meu apoio, ainda mais agora que havia chegado à sua primeira encruzilhada em Princeton - era algo que eu estava ocupado demais para consi­derar. Nunca imaginei que os debates pudessem ser uma provação para ela, uma experiência que testava sua tenacidade muito mais do que seu encanto. Eu era um estranho para ela; não percebi o quanto ela estava sofrendo naquele momento.

O clube a aceitou, Gil me contou na semana seguinte. Ele estava enfrentando uma noite difícil, pois tinha que dar as notícias, boas ou más, para cada candidato. Parker Hassett atirou algumas pedras no caminho de Katie, encontrando nela um objeto especial para o seu ódio, provavelmente porque sabia que ela era uma das favoritas de Gil; mas mesmo Parker teve de ceder no final. A ceri­mônia de admissão dos novos membros era na semana seguinte, depois das iniciações, e o baile anual de Ivy estava previsto para o fim de semana da Páscoa. Gil anunciou os eventos tão cautelo­samente que percebi que estava querendo me dizer algo. Aquelas eram minhas chances de ajeitar as coisas com Katie. Aquele era o calendário da minha reabilitação.

Neste caso, então, eu era um namorado tão ruim quanto havia sido um mau escoteiro. O amor se desviava do seu objeto próprio, havia descoberto um novo. Nas semanas seguintes eu estive com Gil cada vez menos, e não encontrei mais com Katie. Soube que ela havia se interessado por um estudante do terceiro ano que também freqüentava Ivy, uma nova versão do seu antigo jogador de hóquei, um homem com um boné amarelo. Na época Paul havia encontrado um novo enigma, e começávamos a nos perguntar que segredo estava escondido na cripta de Colonna. Um antigo mantra, adormecido por muito tempo, levantou-se de sua inatividade e preparou-se para um outro período ativo.

Não faça amigos, e chute os velhos com furor. Tudo que quero é prata e ouro com fulgor.

 

                                           Capítulo 17

Acordo com o som do telefone. O relógio marca 9h30. Saindo da cama, atendo o aparelho antes que Paul acorde.

"Você estava dormindo?", é a primeira coisa que Katie me diz.

"Mais ou menos."

"Não posso acreditar que tenha sido Bill Stein."

“Nem eu. O que esta acontecendo?”

"Estou na sala de redação. Você pode vir até aqui?"

"Agora?"

"Você está ocupado?"

Percebo algo em sua voz de que não gosto. Um certo distanciamento.

"Vou tomar uma chuveirada. Estarei aí em quinze minutos”.

Já estou tirando a roupa quando ela desliga.

Enquanto me apronto, tenho duas coisas em mente: Stein e Katie. Eles se alternam em meus pensamentos como quando alguém fica acendendo e apagando uma lâmpada para testá-la.

Quando a luz se acende eu a vejo, mas no escuro vejo apenas o pátio de Dickinson, coberto de neve, no silêncio depois que a ambulância foi embora.

De volta do banho, jogo minhas roupas na saleta, tentando não acordar Paul. Ao procurar meu relógio, percebo algo: o quarto está mais arrumado do que quando fui para a cama. Alguém endireitou os tapetes e esvaziou os cestos de lixo. Um mau sinal. Charlie não dormiu aqui na noite passada.

Depois avisto uma mensagem escrita em uma lousa branca.

 

Tom­ -

Não consegui dormir. Fui para Ivy trabalhar mais um pouco. Telefone quando acordar.

- P.

 

Volto ao quarto. O beliche de Paul está vazio. Olhando de novo para a lousa branca, percebo os números acima do texto: 2hl5. Ele saiu durante a noite inteira.

Levanto o fone outra vez, para discar para a sala do presi­dente, quando ouço a voz da secretária eletrônica.

Sexta-feira, diz a voz automática quando eu pressiono os dígitos. Vinte e três horas e cinqüenta e quatro minutos.

O que se seguiu foi o telefonema que perdi, aquele que chegou quando eu e Paul estávamos no museu.

Tom, aqui é Katie. Uma pausa. Não sei onde você está. Talvez você já esteja a caminho. Karen e Trish querem servir o bolo de aniversário agora. Eu lhes disse para esperar por você. Espero vê-lo dentro em pouco.

O telefone queima em minha mão. A foto em preto-e-­branco que comprei para o aniversário parece sem graça em sua moldura, um artigo que se depreciou de ontem para hoje. Para citar o nome de um fotógrafo que não Ansel Adams ou Mathew Brady, tenho de me informar. Nunca aprendi o suficiente sobre o passatempo de Katie para conhecer bem o seu gosto. Pensando nisso, decidi não levar a foto comigo.

Caminho rapidamente até o escritório do jornal Prince. Katie me encontra na entrada e me leva para a câmara escura, abrindo e fechando portas à medida que passamos. Está vestida da mesma maneira que em Holder: uma camiseta e jeans surrados. Seu cabelo está puxado para trás de um jeito casual, como se não estivesse esperando companhia, e a gola de sua camiseta está torta. Posso ver uma corrente de ouro pendendo de um dos lados do pescoço, e em sua coxa um buraco no jeans mostra a brancura da sua pele.

"Tom", diz ela, apontando para alguém sentado frente a um computador, "há alguém que quero que você conheça. Essa é Sam Felton."

Sam sorri para mim como se me conhecesse. Está ves­tida com calças de abrigo de jogador de hóquei e uma camiseta de mangas compridas com os dizeres SE JORNALISMO FOSSE FÁCIL, O NEWSWEEK O FARIA. Depois de apertar um botão no pequeno gravador ao seu lado, ela tira um dos terminais de fone de ouvido de uma das orelhas.

"É o seu par de hoje à noite?", ela pergunta para Katie, só para ter a certeza de que ouviu direito.

Katie diz que sim, mas não acrescenta o que eu esperava: é   o meu namorado.

       "Sam está trabalhando na história de Bill", diz ela.

       "Divirta-se no baile", diz Sam, antes de ligar o gravador outra vez.

"Você não vai ao baile?", pergunta Katie.

Acho que elas se conhecem de Ivy.

"É provável que não." Sam se volta para o computador, onde fileiras de palavras aparecem na tela, como formigas atrás do vidro. Ela me faz lembrar de Charlie em seu laboratório: entu­siasmado com o que ainda há por fazer. Sempre haverá mais notí­cias para escrever) mais teorias para provar) mais fenômenos para observar. A deliciosa futilidade das tarefas impossíveis é o atrativo dos que trabalham muito para ter sucesso.

Katie lhe lança um olhar simpático, e Sam volta a transcrever.

"Sobre o que você queria conversar?”, pergunto.

Mas Katie me conduz de volta para a câmara escura.

"Está um pouco quente aqui”, diz ela, abrindo uma porta e afastando as grossas cortinas pretas. "Talvez você queira tirar seu casaco.”

Tiro o casaco, e ela o pendura em um gancho escondido pela porta. Tenho evitado entrar nessa sala desde que a conheci, com medo de arruinar seu filme.

Katie caminha até uma corda de varal esticada ao longo de uma parede. Fotografias estão presas ao varal com pregadores de roupa. "Não pode ficar quente demais aqui”, diz ela, "ou a umi­dade deixa o negativo reticulado.”

Parece que ela está falando em grego comigo. Há uma velha regra que minhas irmãs me ensinaram. Sempre que você se encontrar com uma garota, faça-o em algum lugar bem conhe­cido. Os restaurantes franceses não impressionam se você não conseguir ler o menu, e filmes intelectuais são um tiro pela culatra se você não compreende a trama. Aqui, na câmara escura, as pos­sibilidades de fracasso parecem espetaculares.

"Espere um segundo” diz ela, indo e voltando de um canto a outro da sala, rápida como um beija-flor. "Eu quase terminei.”

Ela abre a tampa de um pequeno tanque, traz o filme para debaixo de uma torneira e o deixa sob água corrente. Começo a me sentir oprimido. A câmara escura é pequena e atravancada, os aparadores estão sobrecarregados com tachos e bandejas, prate­leiras cheias de fixadores de revelação. Katie parece muito hábil e à vontade ali. Lembro da maneira que ela ajeitou o cabelo na recepção, prendendo-o com varetas como se pudesse ver o que estava fazendo.

"Devo acender as luzes?”, pergunto, começando a me sentir inútil.

"Não a menos que você queira. Os negativos estão fixados”.

Então fico parado como um espantalho no meio da sala.

"Como está Paul?", ela pergunta.

"Ele está bem”.

Um silêncio respeitoso se segue, e Katie parece perder o fio da conversa, cuidando de um outro conjunto de fotos.

"Eu parei no Dod logo após à meia-noite e meia", ela começa de novo. "Charlie disse que você estava com Paul”.

Há uma simpatia inesperada em sua voz.

"Foi bom você ficar com ele", diz ela. "Isso deve ter sido terrível para Paul. Para todos”.

Eu quero lhe contar sobre as cartas de Stein, mas percebo o quanto isso teria de ser explicado. Ela volta para perto de mim com um punhado de fotografias.

"Que fotos são essas?"

"Revelei nosso filme”

"Do campo cinematográfico?"

Ela acena que sim.

O campo cinematográfico é um lugar que Katie me levou para conhecer, uma clareira no Princeton Battlefield Park que parece estender-se ao longe mais plana do que qualquer outra superfície plana a oeste de Kansas. Um único carvalho ergue-se no meio dela, como uma sentinela que não quer abandonar seu posto, imitando o último gesto de um general que morreu debaixo dos ramos de uma árvore durante a Guerra da Revolução. Katie viu esse lugar pela primeira vez em um filme de Walter Matthau, e desde então a árvore tem sido como um encantamento para ela. Essa paisagem tornou-se um dos pou­cos lugares que ela visitava com freqüência, sua vista era como um refúgio ao qual ela sempre voltava. Uma semana depois da sua primeira noite no Dod, ela me levou até lá, e era como se o velho carvalho fosse um parente seu e nós três estivéssemos tendo um primeiro encontro importante. Eu tinha levado uma manta, uma lanterna e um cesto de piquenique; Katie levou um filme e uma câmera.

As fotografias são um artefato que não me provocam emoções, uma pequena parte de nós aprisionada em âmbar. Examinamos as fotografias, passando-as de um para o outro.

"O que você acha?”, pergunta ela.

Vendo-as, lembro como o vento estava cálido. A luz desva­necida de janeiro é quase da cor do mel, e aqui estamos, ambos ves­tidos com malhas leves, com casacos e chapéus e luvas e ninguém à vista. Os sulcos na árvore atrás de nós têm a textura da velhice.

"Elas são maravilhosas”, digo para Katie.

Ela sorri embaraçada, sem saber como aceitar um cumpri­mento. Percebo algumas manchas nas pontas de seus dedos, da cor de texto impresso em jornal, deixadas por uma das garrafas que estão na prateleira da câmara escura. Seus dedos são longos e finos, mas com um toque de artesão, o resíduo de inúmeros fil­mes imersos em muitos banhos químicos. Isso éramos nós, ela está dizendo, significando milhares de palavras de uma vez. Lembra?

"Sinto muito", eu digo.

A pressão com que eu segurava as fotos relaxa, e ela busca meus dedos com a outra mão.

"Não é por causa do meu aniversário”, ela diz achando que eu não tinha compreendido direito.

       Aguardo sem dizer nada.

       "Para onde você e Paul foram ontem à noite, depois que saíram do Holder?"

       "Fomos procurar Bill Stein."

       Ela se detém à menção do nome, mas continua. "Era sobre a tese de Paul?"

“Era urgente.”

"E quando eu passei pelo seu quarto depois da meia-noite?"

"Estávamos no museu de arte."

"Por quê?"

Fico desconfortável com o rumo que a conversa está tomando. "Sinto muito por não ter aparecido. Paul pensou que podia encontrar a cripta de Colonna e precisava consultar alguns mapas antigos."

Katie não parece surpresa. Uma calma transparece por detrás das palavras que ela diz a seguir, e percebo que essa era a conclusão que ela estava formando.

"Pensei que a tese de Paul já havia terminado", diz ela.

"Eu também”.

"Você não pode esperar que eu passe por isso tudo de novo, Tom. Da última vez não nos falamos durante semanas:' Ela hesita, não sabendo como dizer. "Eu mereço mais do que isso”.

O jeito de um garoto argumentar é encontrar uma posição defensiva e mantê-la, mesmo quando ela não é sincera. Posso sen­tir os argumentos acumulando-se em minha boca, os pequenos estímulos da auto-preservação, mas Katie me detém.

"Não diga nada", ela interrompe. "Quero que você pense sobre isso."

Katie não precisa explicar mais nada. Nossas mãos se separam; ela deixa as fotografias comigo. O zunido da câmara escura retoma. Como um cachorro que chutei, o silêncio sempre parece ficar do lado dela.

A escolha está feita, quero dizer a ela. Não preciso pensar mais sobre isso. É simples: meu amor por você é muito maior do que por aquele livro.

Mas dizer isso agora seria uma tática errada. Porque não se trata apenas de responder corretamente; trata-se de mostrar que eu posso me corrigir; que, embora torto, eu posso ser endi­reitado. Doze horas atrás eu faltei ao seu aniversário por causa do Hypnerotomachia. Minhas promessas pareceriam vazias neste momento, mesmo para mim.

“Está bem”, digo.

Katie leva uma mão à boca e rói uma unha, depois se recompõe.

"Eu tenho que trabalhar", diz ela, tocando meus dedos de novo. "Vamos falar mais sobre isso hoje à noite”.

Olho para a sua unha roída, desejando poder inspirar mais confiança.

Ela me empurra em direção às cortinas pretas, devolve meu casaco e voltamos ao escritório principal. "Preciso terminar os meus outros rolos antes que os fotógrafos seniores se apossem da câmara escura", diz ela enquanto caminhamos, mais para que Sam ouça do que para mim. "Você me tira a concentração."

O artifício é inútil. Sam ainda está com os fones de ouvido; absorvida em sua digitação, ela nem percebe minha saída.

Na porta, Katie retira a mão de minhas costas. Ela parece se preparar para falar, mas desiste. Em vez disso, inclina-se e me dá um beijo no rosto, o tipo de beijo que me dava nos primeiros dias, como uma recompensa por ir correr com ela. Depois segura a porta para eu sair.

 

                                        Capítulo 18

O amor vence tudo.

Quando eu estava na sétima série, comprei, em uma pequena loja de lembranças em Nova York, um bracelete de prata com esse lema gravado para dar a uma garota chamada Jenny Harlow. Eu achava que ele poderia representar, de uma maneira atraente, o retrato de um jovem que ela gostaria de namorar: cosmopolita, com sua linhagem de Manhattan; romântico, com seu lema soando poeticamente; e com classe, com seu esplendor moderado. Deixei o bra­celete, anonimamente, na gaveta de Jenny no dia de São Valentim, depois esperei o dia inteiro por uma resposta, achando que ela certa­mente identificaria quem o havia deixado.

Cosmopolita, romântico e de classe, infelizmente não for­mavam uma trilha de migalhas de pão que levava diretamente a mim. Um estudante da oitava série chamado Julius Murphy deve ter essa combinação de virtudes num grau muito maior do que eu, porque foi ele quem ganhou um beijo de Jenny Harlow no final do dia, enquanto não ganhei nada a não ser uma forte suspeita de que as férias familiares em Nova York não tinham valido a pena.

Essa experiência, assim como muitas das coisas que acontecem na infância, estava baseada em um equívoco. Só me ocorreu muito mais tarde que o bracelete não havia sido feito em Nova York e que também não era de prata. Mas naquela mesma noite de São Valentim, meu pai explicou o equívoco caracterís­tico que ele achou mais revelador, e que era o fato de o lema, que soava poeticamente, não ser tão romântico quanto Julius, Jenny e eu pensávamos.

"Você deve ter tido uma impressão errada de Chaucerl", começou ele, com um sorriso sábio e paternal. "Há mais no 'amor vence tudo' do que apenas o broche da prioresa."

Eu percebi que essa ia ser uma conversa como aquela que tivemos sobre bebês e cegonhas alguns anos antes: bem-inten­cionada, mas baseada em uma má interpretação do que eu tinha aprendido na escola.

Seguiu-se uma longa explicação sobre a décima poesia pastoril de Virgílio e omnia vincit amor, com digressões sobre as neves sitonianas e as ovelhas da Etiópia, o que me importava muito menos do que o porquê de Jenny Harlow não achar que eu fosse romântico e de eu ter encontrado uma maneira tão inútil de queimar doze dólares. Se o amor vencia tudo, decidi, então o amor nunca se encontrou com Julius Murphy.

Mas meu pai era um homem sábio, à sua maneira, e quando percebeu que não estava me ajudando, abriu um livro e mostrou-me uma pintura que ilustrava o que ele queria dizer.

''Agostino Carracci fez essa gravura, chamada O Amor Vence Tudo", disse ele. "O que você vê?"

Do lado direto da pintura havia duas mulheres nuas. Do lado esquerdo, um menino estava batendo em um sátiro muito maior e musculoso.

"Não sei”, eu disse, sem saber de qual lado da pintura eu deveria aprender algo.

"Esse”, meu pai disse, apontando para o menino, "é o Amor”.

Ele deixou que eu o gravasse em minha memória.

"Não se espera que ele fique do nosso lado. Você luta com ele; tenta desfazer o que ele faz aos outros. Mas é demasiado pode­roso. Não importa o quanto sofremos, diz Virgílio, nossa miséria não o comove.

Não tenho certeza de ter compreendido inteiramente a lição que meu pai estava me dando. Acho que só consegui per­ceber uma parte: ao tentar fazer Jenny Harlow perder a cabeça por mim, eu entrava num braço-de-ferro com o Amor, disputa esta que meu bracelete barato estava me dizendo ser inútil. Mas eu percebia, mesmo naquela época, que meu pai estava apenas usando Jenny e Julius como pretextos para uma lição. O que ele realmente queria me dar era um pouco da sabedoria que obteve de maneira árdua e que esperava que eu aprendesse enquanto os riscos do meu fracasso fossem ainda pequenos. Minha mãe havia me advertido contra o amor mal orientado, como o amor de meu pai pelo Hypnerotomachia que não lhe saía da mente; e agora meu pai estava oferecendo seu contraponto, propondo enigmas baseado em Virgílio e Chaucer. Ele dizia saber exata­mente como minha mãe se sentia; podia até concordar com isso. Mas como ele poderia parar, que poder possuía contras as forças que o prendiam, quando o Amor vencia tudo?

Eu nunca soube qual dos dois estava certo. A meu ver, o mundo é uma Jenny Harlow; somos apenas pescadores contando histórias sobre o peixe que escapou. Mas até hoje não estou seguro a respeito de como a prioresa de Chaucer interpretou Virgílio, ou como Virgílio interpretou o amor. Tudo o que me sobrou foi a pintura que meu pai havia me mostrado, a parte sobre a qual nunca disse uma só palavra, aquela em que as duas mulheres nuas estão olhando o Amor intimidar o sátiro. Eu sempre me pergun­tava por que Carracci colocou duas mulheres naquela gravura, quando só precisava de uma. De alguma maneira essa foi a moral da história que retive: na geometria do amor, tudo é triangular. Para cada Tom e Jenny existe um Julius; para cada Katie e Tom, um Francesco Colonna; e a língua do desejo é bifurcada, beijando dois mas amando um só. O amor desenha linhas entre nós como um astrônomo delineando uma constelação a partir das estrelas, juntando pontos em padrões que não têm fundamento na natu­reza. A extremidade de cada triângulo tornando-se o coração de um outro, até o cume da realidade tornar-se um mosaico de casos de amor. Vistos juntos, eles apresentam o padrão de uma rede e por detrás, creio eu, fica o .amor. O amor é o único pescador perfeito, aquele que lança a rede mais ampla, aquela que não deixa nenhum peixe escapar. Sua recompensa é se sentar sozinho na taverna da vida, permanecendo sempre um garoto no meio de homens, espe­rando contar algum dia a história daquele peixe que escapou.

 

Correu o rumor de que Katie havia encontrado um outro namorado. Fui substituído por um júnior chamado Donald Morgan, um rapaz alto e magro que preferia usar um blazer quando uma simples camiseta seria mais adequado, e que já estava se preparando para ser sucessor de Gil como presidente de Ivy. Encontrei o novo casal certa noite, no fim de fevereiro, no Small World Coffee, o mesmo lugar onde conheci Paul três anos antes, e uma conversa fria seguiu-se. Donald deu um jeito de dizer só duas ou três coisas inócuas, antes de perceber que eu não era um votante em potencial nas eleições do clube, e, quando se deu conta, conduziu Katie para fora do café e para dentro do seu velho Shelby Cobra estacionado na calçada.

O carro não deu partida, e ele teve de tentar mais três vezes antes que pegasse. Não pude concluir se foi em minha honra ou por vaidade que ele ficou à toa, parado, por mais um minuto até que a rua ficasse completamente vazia antes de ir embora. Tudo que percebi foi que Katie não olhou para mim, nem mesmo quando partiram; pior ainda, ela parecia estar me ignorando mais por raiva do que por embaraço, como se tivéssemos nos separado por culpa minha e não dela. A ofensa disso me exasperou até eu decidir que não havia mais nada a fazer senão resignar-me. Deixe-a ter seu Donald Morgan, pensei. Deixe-a fazer sua cama em Ivy.

É claro que Katie tinha razão. Era tudo culpa minha. Eu tinha estado me debatendo durante semanas com o quarto enigma - O que um escaravelho cego, uma coruja noturna e uma águia de bico torcido têm em comum? - e senti que minha sorte havia terminado. Os animais no mundo intelectual da Renascença eram assuntos traiçoeiros. No mesmo ano em que Carracci fez sua gravura, Omnia Vincit Amor, um professor italiano chamado Ulisses Aldrovandi publicou o primeiro de seus catorze volumes sobre História Natural. Em um dos exemplos mais famosos de sua maneira de classificar, Aldrovandi usou apenas duas páginas para identificar as várias espécies de galinhas, depois acrescentou outras trezentas páginas sobre a mitologia das galinhas, receitas de galinhas e até tratamentos cosméticos à base de galinhas.

Enquanto isso Pliny, o Velho, a antiga autoridade mundial sobre animais, colocou os unicórnios, os basiliscos e os mantídeos na página entre os rinocerontes e os lobos, e ofereceu suas próprias razões sobre como os ovos de galinha podiam predizer o sexo da criança de uma mulher grávida. Depois de me debruçar dez dias sobre o enigma, me senti como os golfinhos que Pliny descrevia, encantados com a música dos humanos mas incapazes de produ­zir qualquer som próprio. Certamente Colonna tinha algo claro em mente com o seu enigma; eu estava apenas fechado à sua magia.

O primeiro prazo final da minha tese, o qual deixei passar, chegou três dias mais tarde, quando percebi, meio enfiado em uma pilha de fotocópias de Aldrovandi, que um esboço do meu capí­tulo final sobre Frankenstein estava inacabado em minha escriva­ninha.Meu orientador, doutor Montrose, um astuto professor de inglês, percebeu meus olhos injetados de vermelho e soube que eu estava no encalço de algo. Não suspeitando que fosse alguma outra coisa que não Mary Shelley que me mantinha acordado por tantas noites, deixou meu último prazo atrasar um pouco. Acabei perdendo também o prazo seguinte, e então, muito silenciosa­mente, começou a época mais fraca do meu ano como sênior, um período de semanas em que ninguém parecia perceber meu lento afastamento de minha própria vida.

Eu dormia nas aulas matinais e passava as tardes traba­lhando soluções de enigmas em minha cabeça. Por mais de uma noite observei Paul interromper seus estudos cedo, por volta das onze, e ir com Charlie até Hoagie Haven para comer um sanduíche. Eles sempre me convidavam para ir, depois me per­guntavam se eu queria que me trouxessem um lanche, mas eu sempre recusava, primeiro por me sentir orgulhoso pela qua­lidade monástica que minha vida tinha assumido, depois por sentir um toque de negligência na maneira pela qual eles pare­ciam ignorar seu trabalho. Na noite em que Paul foi buscar sor­vete com Gil em lugar de pesquisar mais no Hypnerotomachia, imaginei pela primeira vez que ele não fazia tudo o que podia em nossa parceria.

"Você perdeu seu foco", eu lhe disse. Minha visão estava piorando porque tinha de ler no escuro, e isso não podia ter ocorrido em um momento mais inapropriado.

"Eu o quê?", disse Paul, virando-se antes de subir no beli­che. Ele achou que houvesse entendido mal.

"Quantas horas você está gastando na pesquisa por dia?"

"Não sei. Talvez oito."

"Eu gastei dez horas todos os dias dessa semana. E é você quem sai para buscar sorvete?"

"Eu só saí por dez minutos, Tom. E progredi bastante esta noite. Qual é o problema?"

"Estamos quase em março. E nosso prazo expira em um mês.”

Ele deixou o pronome passar. "Vou conseguir estender o prazo.

"Talvez você devesse trabalhar mais."

Aquela foi provavelmente a primeira vez que alguém lhe disse tais palavras. Eu o vi furioso muitas vezes, mas nunca como naquela ocasião.

"Eu estou trabalhando duro. Com quem você pensa que está falando?"

"Estou quase descobrindo o enigma. E você, onde está?"

"Quase?" Paul sacudiu a cabeça. "Você não está armando tudo isso porque está prestes a descobri-lo. Você está agindo assim porque está perdido. Esse enigma não deveria demorar tanto. Não deveria ser tão difícil. Você perdeu a paciência!"

Olhei com raiva para ele.

"É isso mesmo", disse ele, como se estivesse esperando havia dias para me dizer tudo aquilo. "Eu quase resolvi o enigma seguinte, e você ainda está trabalhando no anterior. Mas estou ten­tando não me exasperar. Cada um de nós trabalha em seu ritmo e você nem quer minha ajuda. Então está bem, trabalhe sozinho. Mas não desconte em mim."

Não nos falamos mais naquela noite.

Se eu tivesse lhe dado ouvidos, poderia ter aprendido minha lição mais cedo. Mas continuei tentando provar que Paul estava errado. Comecei a trabalhar até mais tarde e a acordar mais cedo, habituando-me a colocar o meu despertador quinze minu­tos antes a cada dia, esperando que ele percebesse a firme disci­plina que me impunha naquele trimestre. Cada dia eu encontrava uma nova maneira de passar mais tempo com Colonna, e cada noite eu controlava as minhas horas como um contador de moe­das sovina. Oito no domingo; nove na terça; dez na quarta e na quinta; e quase doze na sexta.

O que um escaravelho cego, uma coruja noturna e uma águia de bico torcido têm em comum? Besouros com chifres são pendu­rados nos pescoços de crianças como remédio contra doenças, escreveu Piny; os escaravelhos dourados dão um mel venenoso e são incapazes de sobreviver em uma localidade perto da Trácia . chamada Cantharolethus; escaravelhos pretos se juntam em can­tos escuros e são encontrados principalmente em banheiros. Mas escaravelhos cegos?

Eu conseguia ganhar mais tempo não indo até o Cloister para as refeições: cada ida até a Prospect Avenue levava meia hora, e comer acompanhado em vez de ir sozinho me custava mais meia hora. Parei de trabalhar na sala do presidente em Ivy, tanto para evitar encontrar-me com Paul quanto para poupar os minutos que gastava em trânsito. Reduzi os telefonemas a um mínimo, me barbeava e banhava apenas o necessário, deixava Charlie e Gil atender a porta, e bolei uma ciência das economias que conseguia fazer dispensando algumas coisas em minha vida.

O que um escaravelho cego, uma coruja noturna e uma águia de bico torcido têm em comum? Sobre as criaturas que podem voar e são cruéis, Aristóteles escreveu, algumas são coleópteros ou cobertas de asas como os escaravelhos; dos pássaros que voam à noite, alguns têm garras curvas, como os corvos e as corujas; e antigamente o bico superior das águias crescia mais comprido e mais curvo, de modo que o pássaro morria lentamente de inani­ção. Mas o que os três têm em comum?

Katie, eu decidi, era uma causa perdida. O que quer que tenha sido para mim, tornara-se então alguém para Donald Morgan. Como eu os via tão freqüentemente, se saía tão pouco do meu quarto? A resposta deve ser buscada em meus pensamen­tos e nos sonhos onde eu sempre os ridicularizava. Em cantos e alamedas, em sombras e névoas, lá estavam eles, dando as mãos, beijando-se, falando futilidades, tudo isso para meu benefício, ostentando a maneira pela qual um coração superficial se parte facilmente, mas também se recupera da mesma forma. Havia um sutiã preto que Katie esquecera em meu quarto muito tempo atrás e que eu nunca lembrava de devolver. Ele se tornou um troféu para mim, um símbolo da parte de si mesma que ela deixou para trás e que Donald não poderia ter. Eu tinha visões dela em pé, nua, no meu quarto, lembranças do dia em que desfrutamos tanto a companhia um do outro, que ela se esqueceu de si mesma, esque­ceu que eu era uma outra pessoa e abandonou suas inibições. Cada detalhe de seu corpo permanecia comigo, cada sarda das suas costas, cada gradação de sombra debaixo de seus seios. Ela dançava ao som da música do meu despertador, passando a mão pelos cabelos, mantendo uma mão sobre um microfone invisível diante da boca, e eu era sua única platéia.

O que um escaravelho cego, uma coruja noturna e uma águia de bico torcido têm em comum? Todos voam - mas Pliny diz que os escaravelhos algumas vezes vivem em toca. Todos respiram ­mas Aristóteles diz que insetos não inalam. Eles nunca aprendem de seus erros, apesar de Aristóteles dizer que muitos animais têm memória... mas nenhuma criatura além do homem pode lembrar do passado à vontade. Mas mesmo os homens fracassam em aprender do passado. Por esse padrão de medida, somos todos escaravelhos cegos e corujas noturnas.

Na quinta-feira, 4 de março, alcancei a marca mais alta de tempo gasto com o Hypnerotomachia. Naquele dia passei catorze horas relendo textos de seis especialistas em história natural da Renascença e preenchi vinte e uma páginas com anotações. Não assisti a nenhuma aula, comi as três refeições em minha escrivaninha e dormi exatamente três horas e meia naquela noite. Não mexi com Frankenstein durante semanas. Os únicos pensamentos alheios que cruzaram minha mente foram a respeito de Katie, e eles me compeliram a fazer da minha vida um campo de batalha. Foi compulsivo o poder da mudança de rumo que tomei. E eu quase não progredi no enigma.

“Feche os livros”, disse Charlie finalmente na sexta-feira à noite, num tom firme. Empurrou-me pelo colarinho para a frente do espelho. "Olhe para você."

"Estou bem...”, comecei, ignorando a coisa semelhante a um lobo que me olhava de volta, os olhos injetados e o nariz vermelho.

Mas Gil se manteve ao lado de Charlie. "Tom, você está parecendo um demônio." Ele tinha entrado no quarto, coisa que não fazia havia semanas. "Ouça, ela quer falar com você. Pare de ser tão teimoso."

"Não estou sendo teimoso. Só que tenho outras coisas para fazer."

       Charlie fez uma careta. "O que, a tese de Paul?"

Fiquei zangado, esperando que Paul me ajudasse. Mas ele ficou parado atrás dos outros, em silêncio. Por mais de uma semana ele esperou que uma resposta estivesse prestes a surgir, que eu estivesse progredindo com o enigma, que fosse apenas um avanço doloroso.

       "Estamos indo ver o coral em Blair Arch", disse Gil, referindo-se ao concerto da sexta-feira ao ar livre.

       "Nós quatro”, acrescentou Charlie.

       Gil amavelmente fechou o livro que estava ao meu lado."Katie vai estar lá. Eu disse a ela que você iria”.

Mas quando abri o livro de novo e disse que não ia, lem­bro o olhar que surgiu em seu rosto. Foi um olhar que Gil nunca me dirigiu antes - um que ele reservava para Parker Hassett ou para o engraçadinho ocasional em sala de aula que nunca sabia quando parar.

       "Você vem sim", disse Charlie, dando um passo em minha direção.

       Mas Gil lhe fez um sinal. "Esqueça. Vamos embora."

       Depois fiquei sozinho.

Não era a teimosia, ou o orgulho, nem mesmo a devoção por Colonna que me mantinham longe de Blair Arch. Era angús­tia, creio eu, e derrota. O fato é que eu amava Katie e, de uma maneira estranha, também amava o Hypnerotomachia, e falhei em conquistar os dois. O olhar no rosto de Paul, quando ele saiu, significava que sabia que eu tinha perdido minha chance com o enigma, quer eu estivesse ciente disso ou não; e o olhar de Gil queria dizer que ele sabia que o mesmo havia ocorrido em relação a Katie. Olhando para uma série de gravuras no Hypnerotomachia - as mesmas que Taft usaria em sua conferência um mês depois, aquelas do Cupido dirigindo as mulheres para a floresta em um carro de batalha em chamas -, pensei na gravura de Carracci. Ali estava eu, sendo nocauteado pelo menininho enquanto as duas damas olhavam para ele. Isso era o que meu pai queria dizer, a lição que esperava que eu aprendesse. Nossa miséria não o comove. O amor vence tudo.

As duas coisas mais difíceis de enfrentar na vida, disse Richard uma vez para Paul, são a derrota e a idade; e as duas são a mesma coisa. A perfeição é a conseqüência natural da eternidade: espere o tempo suficiente e qualquer coisa realizará seu poten­cial. O carvão se transforma em diamante, a areia em pérolas, os macacos em homens. Simplesmente não nos é dado, em vida, contemplar essas transformações, e então todo fracasso se torna uma lembrança da morte.

Mas, a meu ver, o amor é um tipo especial de derrota. É a lembrança de que alguma consumação, por mais desejada que seja, nunca chegará; que alguns macacos nunca se transforma­rão em homens, em época alguma. Será que o macaco pode pen­sar que, se possuir uma máquina de escrever e a eternidade, ele poderá se sair como Shakespeare? Ouvir Katie dizer que ela quer pôr um ponto final na nossa relação, que tudo está acabado entre nós, impediria toda esperança de possibilidade. Observá-la sob o Blair Arch, aquecendo-se nos braços de Donald Morgan, roubaria as pérolas e os diamantes do meu futuro.

E então aconteceu: quando eu atingia o auge da auto-piedade, ouvi uma batida na porta. Ela foi seguida por um girar da maçaneta e, da mesma maneira, como centenas de vezes antes, Katie entrou. Sob seu casaco eu podia ver que ela vestia a malha de que eu mais gostava, a de cor de esmeralda que combinava com seus olhos.

"Você deveria estar no coral", foi a primeira coisa que consegui dizer, e de todas as possíveis combinações escritas pelo macaco, essa foi certamente a pior.

"Então, aí está você", disse ela, olhando-me de alto a baixo. Eu sabia como devia estar parecendo. O lobo que Charlie me mostrou no espelho era o que Katie estava vendo agora.

"Por que você está aqui?", eu disse olhando para a porta. "Eles não vão vir." Ela me obrigou a prestar atenção nela. "Estou aqui para você poder se desculpar”.

Por um segundo pensei que Gil a havia metido nisso, inven­tando algo sobre quão mal eu me sentia, como eu não sabia o que dizer. Mas uma nova olhadela mostrou-me outra coisa. Ela sabia que eu não tinha a intenção de dizer que estava arrependido.

"Bem?"

"Você acha que é minha culpa?", perguntei.

"Todos acham."

"Todos quem?"

"Tom, peça desculpas”.

Argumentar com ela só me deixava com mais raiva de mim mesmo.

"Muito bem. Eu amo você. Gostaria que as coisas tivessem dado certo. Sinto muito."

"Se você queria que as coisas dessem certo, por que não fez nada?"

"Olhe para mim”, eu disse. A barba por fazer, o cabelo ema­ranhado. "Isso foi o que eu fiz”.

"Você fez isso por causa do livro."

"É a mesma coisa”.

"Eu sou a mesma coisa que o livro?"

"Sim”.

Ela olhou para mim como se eu tivesse cavado meu próprio buraco. Mas ela sabia o que eu ia dizer; só que nunca aceitou.

"Meu pai passou sua vida trabalhando com o Hypnerotomachia”, eu disse. "Nunca me senti mais excitado do que quando estou trabalhando nele. Eu perco o sono, não como por causa dele, sonho com ele." Eu me vi olhando em volta, à procura de palavras. "Não sei mais o que dizer. É como você ir até a clareira para ver a sua árvore. Ficar perto dele me dá a sensação de acon­chego, de que tudo está em seu lugar, como se eu não estivesse mais perdido:' Mantive os olhos afastados dela. "Se você é a mesma coisa que o livro para mim? Sim. É claro que é. Você é a única coisa que significa o mesmo que o livro para mim”.

Eu me enganei. Pensei que poderia ter vocês dois. Eu estava errado.

"Por que estou aqui, Tom?"

"Para me lembrar."

“Por quê?”

"Para eu me descul..."

“Tom”.   Ela me interrompeu com um olhar. “Por que estou aqui?"

Porque você sente da mesma maneira que eu sinto.

Sim.

Porque isso era importante demais para deixar só para mim.

Sim.

"O que você quer?", perguntei.

"Quero que você pare de trabalhar no livro”.

"Isso é tudo?"

"Isso é tudo? Isso é tudo?"

Agora, subitamente, a emoção eclode.

"Você quer que eu sinta pena de você porque você desistiu de nós para agir como um estúpido e viver só em função do livro? Seu imbecil, eu passei quatro dias com as venezianas fechadas e a porta trancada. Karen chamou meus pais. Minha mãe veio de New Hampshire."

"Sinto mui..."

"Cale a boca. Não é a sua vez de falar. Fui até a clareira para ver minha árvore e não pude. Não pude, porque agora ela é a nossa árvore. Não posso escutar música, porque cada canção é algo que cantamos no carro, ou no meu quarto, ou aqui. Levo uma hora para ficar pronta para a aula, porque me sinto entor­pecida na maior parte do tempo. Não consigo achar minhas meias, nem meu sutiã preto predileto. Donald está sempre perguntando: 'Querida, o que está errado? Querida, o que está errado?'. Nada está errado, Donald." Ela puxa os punhos de suas mangas e enxuga os olhos.

"Isso não é jus...”, comecei.

Mas ainda não era minha vez.

"Ainda com Peter eu podia entender. As coisas não eram perfeitas entre nós. Ele gostava mais do hóquei do que de mim. Ele me queria na cama e depois perdia o interesse." Ela passou a mão pelos cabelos, tentando afastar as mechas que ficaram molhadas com as lágrimas. "Mas você. Eu lutei por você. Esperei um mês para deixar você me beijar pela primeira vez. Chorei na noite em que dormimos juntos, porque pensei que iria perdê­-lo." Ela parou, amargurada pelo pensamento. "E agora estou per­dendo você por causa de um livro. Um livro! Pelo menos diga que não é o que estou pensando, Tom. Diga que você está vendo alguma outra durante todo esse tempo. Diga que é porque ela não faz as coisas estúpidas que eu faço, não dança nua na sua frente como uma idiota só porque pensa que você gosta de ouvi-­la cantar, ou o acorda às seis horas da manhã para correrem jun­tos porque quer ter a certeza, cada manhã, que você ainda está com ela. Diga algo."

Ela olhou para mim, fragilizada de uma maneira que eu sabia que a envergonhava, e eu só pude pensar em uma coisa. Houve uma noite, pouco depois do acidente, em que acusei minha mãe de não se incomodar com meu pai. Se você o amasse, eu disse para ela, você teria suportado o seu trabalho. O olhar que apareceu em seu rosto, que eu não posso nem mesmo descrever, mostrou-me que não havia nada mais vergonhoso no mundo do que aquilo que eu acabara de dizer.

"Eu amo você", disse para Katie, indo até ela para que ela pudesse pressionar o rosto em minha camisa e tornar-se invisível por um momento. "Eu sinto tanto!"

E houve um momento, eu acho, em que a maré começou a mudar. Minha condição terminal, o caso de amor que eu achava que estava em meus genes, vagarosamente começou a soltar suas garras de mim. O triângulo estava se desfazendo. No seu lugar um par de pontos, uma estrela composta de duas partes, separadas pela menor distância possível.

Seguiu-se uma confusão de silêncios, todas as coisas que ela precisava dizer mas sabia que não devia, todas as coisas que eu queria dizer mas não sabia como.

"Vou dizer a Paul", falei, da maneira melhor e mais confiá­vel que pude, "que quero parar de trabalhar no livro."

Redenção. A percepção de que eu estava terminando uma briga, de que estava finalmente descobrindo o que era melhor para a minha própria felicidade, foi o suficiente para que Katie fizesse algo que estava guardando para muito depois, quando eu estivesse de novo a salvo no vagão. Ela me beijou. E aquele momento de contato, como o raio que deu ao monstro sua segunda chance de vida, criou um novo começo.

Não me encontrei com Paul naquela noite. Passei-a com Katie e acabei contando minha decisão no dia seguinte, no Dod. Ele também não pareceu surpreso. Eu tinha sofrido tanto com Colonna que ele sentia que eu podia entregar os pontos ao pri­meiro sinal de indulto. Ele foi persuadido por Gil e Charlie de que era a melhor coisa a fazer e de alguma maneira não ficou ressentido comigo. Talvez achasse que eu voltaria. Talvez tivesse progredido o suficiente para acreditar que poderia resolver os enigmas sozi­nho. Seja o que for, quando finalmente lhe contei meu raciocínio - a lição de Jenny Harlow e a gravura de Carracci -, ele pare­ceu concordar. Pude perceber por sua expressão que ele sabia mais do que eu sobre Carracci, mas não me corrigiu nem uma só vez. Paul, que tinha mais motivos do que qualquer outra pessoa para acreditar que algumas interpretações são melhores do que outras, e que as corretas fazem toda a diferença, foi generoso a respeito da minha interpretação das coisas, como sempre fora. Mais do que seu modo de mostrar respeito, eu acho, era a sua maneira de demonstrar amizade.

"É melhor amar alguma coisa que possa amá-lo também", disse ele.

Essa era a única coisa que ele precisava dizer.

O que começou como a tese de Paul tornou-se novamente, então, a tese de Paul. A primeira vista parecia que ele poderia continuá-la sozinho. O quarto enigma, que me deu a maior surra, foi resolvido por ele em quatro dias. Suspeito que durante todo o tempo ele já tinha a resposta, mas escondeu de mim porque sabia que eu não queria o seu conselho. A resposta estava em um livro chamado Hieroglyphica, escrito por Horapollo, que apareceu na Renascença italiana em 1420 pretendendo resolver os antigos pro­blemas de interpretação dos hieróglifos egípcios. Horapollo, consi­derado pelos humanistas como uma espécie de antigo sábio egípcio, era de fato um estudioso do século V que escreveu em grego e que provavelmente conhecia tanto de hieróglifos quanto os esquimós de verão. Alguns dos símbolos no Hieroglyphica se referem a animais que nem são egípcios. Ainda assim, no meio do fervor humanista sobre o novo conhecimento, o texto tornou-se amplamente popu­lar, pelo menos nos pequenos círculos em que a popularidade selva­gem e as línguas mortas não eram mutuamente exclusivas.

A coruja noturna, de acordo com Horapollo, é um sím­bolo de morte, porque a coruja noturna repentinamente desce sobre o

filhote do corvo na noite, assim como a morte subitamente desce sobre o homem. Uma águia que tem o bico torcido, escreveu Horapollo, significa um homem velho morrendo de fome, porque quando a águia fica velha, ela torce seu bico e morre de fome. O escaravelho cego, finalmente, é um hieróglifo que significa que um homem morreu de insolação, porque um escaravelho morre quando cego pelo sol. Por mais enigmático que fosse o raciocínio de Horapollo, Paul soube imediatamente que tinha conseguido a fonte correta. E ele percebeu muito rápido o que os três animais tinham em comum: a morte. Aplicando a palavra latina para ela, mors, como seu criptograma, ele descobriu a quarta mensagem de Colonna.

Você que chegou tão longe se junta com os filósofos de meus dias, que no seu tempo são talvez a cinza das épocas, mas que no meu eram os gigantes da humanidade. Estou pronto para colocar sobre você o fardo do que persiste, porque há muito para contar e temo que meu segredo se espalhe muito facilmente. Mas primeiro, como uma deferência para a sua realização, vou lhe oferecer o início da minha história, para que você possa saber que não o arrastei tão longe em vão.

Existe um pregador na terra de meus irmãos que causou uma grande destruição entre os amantes da sabedoria. Lutamos com ele com toda a nossa perspicácia e influên­cia, mas esse único homem recrutou os compatriotas contra nós. Ele ameaçava gritando nas esquinas e nos púlpitos, e os homens simples de todas as nações pegaram em armas para nos atacar. Exatamente como Deus, ofendido, derrubou a torre de Babei na planície de Shinar, que os homens cons­truíram em direção ao céu, assim Ele levantou Seu punho contra nós, que tentamos o mesmo. Muito tempo atrás eu nutria a esperança de que os homens desejassem ser liberta­dos da ignorância, assim como os escravos desejam ser liber­tados da servidão. Essa é uma condição inconveniente para a nossa dignidade e contrária à nossa natureza. No entanto, agora, acho que a raça dos homens é uma coisa covarde, uma perversão como a coruja do meu enigma, que, embora possa desfrutar da luz, prefere a escuridão. Você não mais ouvirá de mim, leitor, sobre a conclusão da minha cripta. Ser um príncipe de pessoas como essas é ser uma espécie encastelada de mendigo. Este livro será meu único filho; possa ele viver muito tempo e lhe servir bem.

Paul mal parou para contemplá-lo; ele continuou com o quinto e último enigma, que ele havia encontrado enquanto eu lutava com o quarto: Onde o sangue e o espírito se encontram?

"É a questão filosófica mais antiga do livro", disse ele, enquanto eu andava pelo quarto, me preparando para passar a noite com Katie.

"O que é?"

"A intersecção da mente com o corpo, a dualidade carne­ espírito. Pode-se encontrá-la em Santo Agostinho, em contra Manichaeos. Ou na filosofia moderna. Descartes pensou que podia identificar, com precisão, a alma perto da glândula pineal no cérebro."

Ele continuou assim, folheando um livro que emprestou de Firestone e falando de modo confuso sobre filosofia, enquanto eu empacotava minhas coisas.

"O que você está lendo?", perguntei, pegando da estante minha cópia do Paraíso Perdido.

"Galen”, respondeu Paul.

“Quem?”

"O segundo pai da medicina ocidental, depois de Hipócrates."

Eu me lembrei. Charlie estudou Galen em uma aula de his­tória da ciência. Pelos padrões da Renascença, no entanto, Galen não era um passarinho recém-saído do ovo: ele morreu mil e tre­zentos anos antes de o Hypnerotomachia ser publicado.

"Por quê?”, perguntei.

"Acho que o enigma é sobre anatomia. Francesco deve ter acreditado que existe um órgão real no corpo onde o sangue e o espírito se encontram."

Charlie apareceu na porta trazendo na mão os restos de uma maçã. "Sobre o que vocês, amadores, estão conversando?", perguntou ele ao ouvir falar sobre assuntos médicos.

"Sobre um órgão como este", disse Paul, ignorando a gozação. "O rete mirabile." Ele apontou para um diagrama no livro. "Uma rede de nervos e artérias na base do cérebro. Galen achou que é nesse ponto que os espíritos vitais se transformam em espíritos animais."

"E o que há de errado com isso?", perguntei, sacudindo meu relógio.

"Não sei. Isso não funciona como um criptograma."

"É porque isso não existe nos humanos”, explicou Charlie. "O que você quer dizer?"

Charlie levantou o olhar e deu uma última mordida em sua maçã. "Galen só dissecou animais. O rete mirabile é algo que ele encontrou em um boi ou em uma ovelha."

A expressão de Paul murchou.

"Ele também trabalhou um bocado sobre anatomia cardíaca", continuou Charlie.

"Não há septo?", disse Paul, como se soubesse o que Charlie queria dizer.

"Há. Só que não existem poros nele."

"O que é um septo?”, perguntei.

"A membrana de tecido entre os dois lados do coração." Charlie foi até onde estava o livro de Paul e virou as páginas até encontrar um diagrama do sistema circulatório. "Galen concluiu errado. Ele disse que havia pequenos furos no septo por onde o sangue circulava entre as cavidades."

"E não existem?"

"Não”, Paul falou ríspido e rápido, começando a mostrar que tinha trabalhado nisso mais tempo do que eu pensava. "Mas Mondino cometeu o mesmo erro sobre o septo. Vesalius e Servetus descobri­ram isso, mas não antes de meados de 1500. Leonardo seguiu Galen. Harvey descreveu o sistema circulatório só em 1600. Esse enigma é do final de 1400, Charlie. Deve ser o rete mirabile ou o septo. Ninguém sabia que o ar se misturava com o sangue nos pulmões”.

Charlie replicou. "Ninguém sabia no Ocidente. Os árabes descobriram isso duzentos anos antes de esse seu amigo escrever seu livro."

Paul começou a procurar em seus papéis. Pensando que o assunto estava encerrado, me virei para sair. "Tenho de correr. Vejo vocês mais tarde”.

Mas enquanto me movimentava em direção ao cor­redor, Paul encontrou o que estava procurando: o texto em latim que ele havia traduzido semanas antes, a terceira men­sagem de Colonna.  

"O médico árabe", ele disse. "Seu nome era Ibn al-Nafis?"

Charlie fez que sim. "É esse mesmo."

Paul ficou todo excitado. "Francesco deve ter conseguido o texto de Andrea Alpago."

"Quem?"

"O homem que ele menciona na mensagem. Discípulo do venerável Ibn al-Nafis." Antes que qualquer um de nós pudesse falar, Paul já dialogava consigo mesmo. "Qual é a palavra em latim para pulmão? Pulmo?"

Voltei para a porta.

"Você não vai esperar para ver o que ele diz?" perguntou Paul, levantando os olhos.

"Tenho que estar com Katie em dez minutos."

"Isso só vai demorar quinze. Talvez trinta minutos." Acho que só naquele momento lhe ocorreu o quanto as coisas tinham mudado.

"Vejo vocês de manhã", eu disse.

Charlie, que compreendera, sorriu e me desejou sorte.

Foi uma noite marcante para Paul. Ele se deu conta de que eu havia desistido. Também sentiu que qualquer que fosse a men­sagem final de Colonna, ela provavelmente não poderia conter o segredo completo sobre o homem, quando tão pouco tinha sido revelado nas primeiras quatro partes do livro. A segunda metade do Hypnerotomachia, que para nós parecia ser apenas enchimento, devia em realidade conter mais texto criptografado. E por mais consolo que Paul houvesse obtido com o conhecimento médico de Charlie, ou com a resolução do quinto enigma, essa sensação se dissipou rapidamente quando ele viu a mensagem de Colonna e percebeu que tinha razão.

Temo por você, leitor, como temo por mim mesmo. Como você percebeu, era minha intenção no começo deste texto revelar-lhe meus propósitos, não importa quão profunda­mente os tenha dissimulado em códigos. Desejei que você encontrasse o que procura, e agi como seu guia.

Agora, no entanto, descubro que não tenho suficiente con­fiança em minha própria criação para continuar dessa maneira. Talvez eu não possa avaliar a verdadeira dificul­dade dos enigmas aqui contidos, mesmo que seus criadores me assegurem que ninguém, a não ser um verdadeiro filó­sofo, possa resolvê-los. Talvez esses sábios homens também invejem meu segredo e me deram informações falsas ou incompletas de maneira a poder roubar o que por direito é nosso. Ele é realmente astuto, esse pregador, com seguidores em todos os acampamentos; temo que ele volte meus solda­dos contra mim.

É assim uma defesa para você, leitor, que eu prossiga meu atual método. Onde você se acostumou a encontrar um enigma dentro de meus capítulos, daqui em diante não encontrará nenhum, e nenhuma solução para conduzi-lo. Só utilizarei minha Regra do Quatro durante a jornada de Poliphilo, mas não lhe darei sugestão alguma sobre sua natureza. Só sua inteligência o guiará agora. Possa Deus e o gênio, amigo, zelar por você com acerto.

Foi apenas a confiança em si próprio, a meu ver, que impediu Paul de perceber, durante vários dias, que tinha sido abandonado. Eu o havia deixado; Colonna o deixara; agora ele navegava sozi­nho. Ele tentou, a princípio, me envolver outra vez no processo. Tínhamos solucionado tantas coisas em conjunto que ele achou que seria egoísmo deixar que eu saísse naquela hora. Estávamos tão próximos; havia sobrado tão pouco para fazer!

Então se passou uma semana, depois uma outra. Eu estava recomeçando com Katie, reaprendendo com ela, amando-a de novo. Tantas coisas haviam acontecido nas semanas que ficamos separados, que eu estava muito ocupado tentando recuperar tudo. Alternávamos refeições em Ivy e em Cloister. Ela tinha novos ami­gos; estabelecemos novas rotinas. Comecei a me interessar pelos assuntos familiares dela. Senti que, depois que Katie recuperara a confiança em mim, havia coisas que ela queria que eu soubesse.

Tudo o que Paul havia aprendido sobre os enigmas de Colonna, entretanto, começou a falhar. Como um corpo vagaro­samente declinando em suas funções, o Hypnerotomachia resistia a todos os remédios de confiança. A Regra do Quatro era evasiva; Colonna não deu nenhuma indicação de sua origem. Charlie, o herói do quinto enigma, permaneceu com Paul algumas noites, preocupado com o efeito que minha partida havia causado. Ele nunca me pediu para ajudar, sabendo o que o livro já tinha feito comigo, mas percebi o modo pelo qual vigiava Paul, como um doutor que cuida de um paciente que teme estar evoluindo mal. Uma escuridão estava se estabelecendo, o amante do livro sofria, Paul estava indefeso contra isso. Ele iria sofrer, sem minha ajuda, até o fim de semana de Páscoa.

 

                                           Capítulo 19

No caminho de volta ao Dod, ordeno as fotos de Katie tira­das no Princeton Battlefield. Em uma seqüência de fotos eu a peguei em movimento, correndo em minha direção, o cabelo para trás, a boca entreaberta, suas palavras captadas em algum lugar nos regis­tros da experiência além do alcance da câmera. O prazer de imagi­nar a voz dela no momento em que foram tiradas é o encanto dessas fotos. Dentro de doze horas eu a verei em Ivy, a acompanharei ao baile que ela está esperando desde antes de nos conhecermos, e eu sei o que ela espera que eu diga. Que eu fiz uma escolha que posso manter; que eu aprendi. Que não vou voltar ao Hypnerotomachia.

Quando volto para o quarto espero encontrar Paul em sua escrivaninha, mas seu beliche está vazio e os livros sobre o apa­rador se foram. Colada no alto da porta há uma nota em letras grandes e vermelhas.

 

Tom­ -

Por onde você anda? Voltei para procurá-lo. Descobri 4S-10E-2N-6W!. Fui pegar um mapa topográfico em Firestone, depois vou ao McCosh. Vincent diz que está com a cópia heliográfica. 10h15.

- P.

 

Leio a mensagem de novo, juntando as partes. O porão de McCosh Hall é onde fica o escritório de Taft no campus. Mas a última linha me deixa gelado: Vincent diz que está com a cópia heliográfica. Pego o telefone e ligo para a casa da equipe de para­ médicos. Charlie atende em poucos segundos.

"O que está acontecendo, Tom?"

"Paul foi se encontrar com Taft."

"O quê? Pensei que ele estivesse indo encontrar o reitor para falar sobre Stein”.

"Precisamos encontrá-lo. Você pode conseguir alguém para substit..."

Antes que eu possa terminar a frase, um som abafado interrompe a chamada e ouço Charlie falando com outra pessoa.

"Quando Paul saiu?", pergunta ele, voltando a falar comigo.

"Há dez minutos."

"Estou saindo. Vamos alcançá-lo”.

O Karmam Ghia 1973 de Charlie aparece na parte de trás do Dod quinze minutos depois. O velho carro lembra um sapo metálico oxidado no meio de um pulo. Antes mesmo que eu me sente no banco do passageiro, Charlie dá marcha à ré.

"Por que você demorou tanto?”, pergunto.

"Apareceu uma repórter quando eu estava saindo”, ele diz. "Ela queria conversar sobre a noite passada."

"E então?"

"Alguém do departamento de polícia contou-lhe o que Taft disse em seu interrogatório." Pegamos a Elm Drive, onde peque­nos montinhos com neve derretida dão ao asfalto uma impressão de superfície encapelada, como a água do oceano à noite. "Você me contou que Taft conhecia Richard Curry há muito tempo, não é?"

"Sim. Por quê?"

"Porque ele disse aos tiras que só veio a conhecer Curry por intermédio de Paul”.

Assim que entramos no campus norte, avisto Paul no pátio entre a biblioteca e o departamento de história, andando em dire­ção ao McCosh.

"Paul!", chamo pela janela.

"O que você está fazendo?", Charlie grita rispidamente para ele, parando na curva.

"Eu resolvi o enigma!", diz Paul, surpreso em nos encontrar. "Tudo. Só me falta a cópia heliográfica. Tom, você não vai acredi­tar. É a coisa mais espant...”.

“O que? Conte”.

Mas Charlie não está escutando a nenhum de nós. "Você não vai se encontrar com Taft”, diz ele.

       "Você não compreendeu. Está resolvido..."

       Charlie se inclina sobre a buzina do carro, enchendo o pátio com barulho.

       "Me ouça", Charlie interrompe. "Paul, entre no carro. Estamos voltando para casa”.

       "Ele tem razão”, eu digo. "Você não devia vir aqui sozinho”.

       "Estou indo encontrar Vincent", diz Paul calmamente, e começa a andar em direção ao escritório de Taft. "Sei o que estou fazendo."

Charlie manobra o carro em sentido contrário, enquanto fala com Paul. "Você acha que ele simplesmente vai lhe dar o que você quer?"

       "Ele admitiu que o roubou de Curry?”, pergunto. "Por que ele lhe daria a cópia heliográfica agora?"

       "Paul", diz Charlie, parando o carro. "Ele não vai dar nada a você”.

       Paul se detém, por causa do jeito como Charlie falou.

       Charlie abaixa a voz e conta o que ouviu da repórter. "Quando a polícia perguntou para Taft, na noite passada, se ele sabia de alguém que pudesse ter feito aquilo com Stein, ele disse que podia pensar em duas pessoas."

A expressão no rosto de Paul começa a desvanecer, a exci­tação de sua descoberta vai diminuindo.

''A primeira seria Curry”, diz Charlie. ''A segunda, você." Ele faz uma pausa, deixando a ênfase surtir efeito em Paul. "Então não me importa o que o velho lhe contou pelo telefone. Você precisa ficar longe dele."

Uma pick-up branca produz um ronco prolongado enquanto passa por nós, triturando neve debaixo de seus pneus.

       "Então me ajudem", diz Paul.

       "Nós vamos fazer isso." Charlie abre a porta. "Vamos levá­-lo para casa."

Paul ajusta o casaco em torno de si. ''Ajudem-me vindo comigo. Depois que eu conseguir a cópia heliográfica de Vincent, não preciso mais dele."

       Charlie arregala os olhos para Paul. "Você ao menos ouviu o que dissemos?"

Mas existem aspectos que Charlie não compreende. Ele não sabe o que significa o fato de Taft ter escondido a cópia helio­gráfica todo esse tempo.

"Eu estou muito próximo de tê-la em minhas mãos, Charlie", diz Paul. "Tudo que tenho de fazer é defender o que encontrei. E você está me dizendo para ir para casa?"

Mas eu interrompo. "Paul, nós vamos com você."

"O quê?”, se espanta Charlie.

"Venha." Abro a porta do passageiro.

Paul se vira, não esperando por isso.

"Se ele está indo conosco ou sozinho", digo para Charlie baixinho, recostando-me no carro, "então também estou indo."

       Paul começa a caminhar para McCosh enquanto Charlie reconsidera sua posição.

       "Taft não pode fazer nada se estivermos os três lá”, eu digo. "Você sabe disso."

       Charlie expira lentamente, enviando uma nuvem de vapor para o ar. Por fim, estaciona o carro e tira a chave da ignição.

A caminhada até o escritório de Taft leva uma eternidade, vamos passo a passo, na neve, até o edifício cinzento. A sala fica na parte mais baixa de McCosh, onde os corredores são tão apertados e as escadas tão inclinadas, que temos de descer em fila indiana. É difícil acreditar que Vincent Taft consiga respirar aqui, quanto mais se mover. Mesmo eu tenho a sensação de ser demasiado grande para o local. Charlie deve se sentir como se estivesse preso em uma armadilha.

Olho para trás só para ter certeza de que ele não foi embora. Saber que Charlie está atrás de nós, obstruindo as portas e cobrindo nossa retaguarda, me dá confiança suficiente para con­tinuar andando. Percebo agora o que não quis admitir antes por ser fanfarrão: se Charlie não tivesse vindo conosco, eu não seria capaz de enfrentar isso.

Paul nos conduz para a única sala no final de um corredor. Por causa do fim de semana e do feriado, todos os outros escritórios estão fechados e escuros. Só debaixo da porta branca, que tem uma placa com o nome de Taft, é que percebo uma réstia de luz. A pintura da porta está lascada, formando ondulações na beirada, próxima ao batente. Na parte mais baixa da porta há uma linha de descoloração, a marca de água de uma velha inundação proveniente dos túneis de vapor que serpenteiam logo abaixo do chão do porão, uma mancha sem pintura que está aí desde a chegada de Taft, há muito tempo.

Paul ergue sua mão para bater, quando se ouve uma voz do interior. "Você está atrasado", Taft resmunga.

A maçaneta estala quando Paul a gira. Sinto Charlie bater em minhas costas.

“Vá”, ele sussurra, empurrando-me para a frente.

Taft está sozinho, sentado atrás de uma grande escrivani­nha antiga, afundado em uma cadeira de couro. Ele havia jogado sua jaqueta de tweed nas costas da cadeira, e, com as mangas da camisa enroladas, está corrigindo páginas manuscritas com uma caneta vermelha que parece minúscula em sua mão.

"Por que eles estão aqui?", ele pergunta.

"Me dê a cópia heliográfica", diz Paul, indo direto ao assunto.

Taft olha para Charlie, depois para mim. "Sentem-se”, diz ele, apontando para um par de cadeiras com dois dedos gordos.

Olho ao redor, tentando ignorá-lo. Prateleiras de madeira revestem o escritório de todos os lados, cobrindo as paredes bran­cas. Marcas aparecem na poeira das prateleiras onde alguns volu­mes foram retirados para leitura. O carpete está gasto no caminho que Taft faz para ir da porta até sua cadeira.

“Sentem-se” , repete Taft .

Paul está prestes a recusar, quando Charlie o empurra para a cadeira, querendo acabar logo com isso.

Taft faz uma bola com um trapo em suas mãos e limpa a boca com ele. "Tom Sullivan”, ele diz, quando se lembra da semelhança.

Concordo com um aceno de cabeça, mas não falo nada. Há uma reprodução de um antigo pelourinho, preso na parede acima de sua cabeça, montado com suas mandíbulas abertas. Os únicos sinais de cor na sala são o vermelho marroquim das encaderna­ções dos livros e o dourado das bordas das páginas.

"Deixe ele em paz", diz Paul, inclinando-se para a frente. "Onde está a cópia heliográfica?"

Fico surpreso com a autoridade que ele demonstra.

Taft mostra desaprovação, enquanto leva uma xícara de chá à boca. Há uma expressão desagradável em seus olhos, como se ele estivesse esperando que iniciássemos uma luta. Finalmente ele se ergue da cadeira de couro, puxa as mangas da camisa para cima e caminha penosamente até um espaço entre as prateleiras onde um cofre foi embutido na parede. Ele digita a combinação com uma mão cabeluda, depois gira a alavanca e a porta se abre. Procurando lá dentro, Taft retira um caderno de apontamentos de couro.

"É isso?", pergunta Paul timidamente.

Quando Taft o abre e entrega algo para Paul, no entanto, é apenas uma folha do Instituto datilografada, datada de duas semanas atrás.

"Quero que você saiba como estão as coisas”, diz Taft. "Leia."

Quando vejo o efeito que a folha produz em Paul, me inclino sobre ele para lê-Ia também.

 

Reitor Meadows:

Prosseguindo nossa conversa de 12 de maio referente a Paul Harris, aqui incluo as informações que o senhor solicitou. Como é do seu conhecimento, o Sr. Harris requereu várias extensões de prazo e tem sido altamente reservado em relação ao con­teúdo de seu trabalho. Apenas quando, sob minha insistência, ele submeteu um relatório de progresso final, na última semana, compreendi o motivo. Estou anexando uma cópia do meu pró­ximo artigo, "Desvendando o Mistério: Francesco Colonna e o Hypnerotomachia Poliphili”, programado para o número de outono da revista Renascença Quadrimestral. Também incluo uma cópia do relatório de progresso final do Sr. Harris, para fins de comparação. Estou disponível para quaisquer informações adicionais.

Sinceramente, Dr. Vincent Taft

 

Ficamos sem fala.

O ogro volta-se para mim e Charlie. "Trabalhei nisso durante trinta anos”, diz ele, com uma estranha uniformidade na voz. "Agora os resultados nem mencionam meu nome. Você nunca foi grato a mim, Paul. Nem mesmo quando o apresentei a Steven Gelbman. Nem quando lhe foi dado acesso especial para a Sala de Livros Raros. Tampouco quando lhe concedi múltiplas extensões para o seu trabalho intelectual. Nunca!"

Paul está muito atordoado para responder.

"Não vou deixar você tirar isso de mim", continua Taft. "Esperei tempo demais."

       "Eles têm meus outros relatórios de progresso", gagueja Paul. "Eles tem os registros de Bill”.

       "Eles nunca viram um relatório de progresso seu", diz Taft, abrindo uma gaveta e tirando um conjunto de formulários. "E certamente não têm os registros de Bill”.

"Eles vão saber que isso não é seu. Você não publicou nada sobre Francesco durante vinte e cinco anos. Você nem mesmo tra­balha mais no Hypnerotomachia."

Taft alisa sua barba. "Enviei à revista Renascença Quadrimestral três esboços preliminares do meu artigo. E recebi vários telefonemas de congratulações sobre a minha conferência de ontem."

Lembrando das datas das cartas de Stein, percebo a antiga procedência dessa idéia, os meses de desconfiança entre Taft e Stein para ver quem roubaria primeiro a pesquisa de Paul.

"Mas ele tem as conclusões sobre o seu trabalho", eu digo, quando Paul parece incapaz de falar qualquer coisa. "Ele não as contou para ninguém”.

Eu esperava que Taft reagisse de maneira ruim, mas ele parece divertido. "Conclusões tão cedo, Paul?", pergunta ele. "A que podemos atribuir esse súbito sucesso?"

Ele sabe sobre o diário.

"Você deixou Bill encontrá-lo", diz Paul.

"Você ainda não sabe o que ele descobriu”, eu insisto.

"E você", diz Taft, voltando-se para mim, "está tão iludido quanto seu pai estava. Se um garoto pode deslindar o significado daquele diário, você acha que eu não posso?"

Paul está aturdido, os olhos se movendo ao redor da sala.

"Meu pai achava que você era um imbecil", eu digo.

"Seu pai morreu esperando que uma Musa assoprasse em seu ouvido” Ele ri. "O conhecimento é rigor, não inspiração. Ele nunca deu ouvidos ao que eu dizia, e sofreu as conseqüências disso”.

"Ele estava certo a respeito desse livro. Você estava errado."

O ódio parece dançar nos olhos de Taft. "Eu sei o que ele fez, garoto. Você não deveria ficar tão orgulhoso”.

Olho para Paul, sem compreender, mas ele está dando alguns passos para longe da escrivaninha, aproximando-se das prateleiras.

Taft se inclina para a frente. "Você pode censurá-lo? Fracassado, desacreditado. A rejeição do seu livro foi o golpe de misericórdia."

Viro de costas, atordoado.

"E ele cometeu seu ato com seu próprio filho dentro do carro”, Taft continua. "Que engenhoso!"

"Foi um acidente...", eu digo.

Taft sorri, e há milhares de dentes nesse sorriso.

Avanço para ele. Charlie coloca uma mão em meu peito, mas eu a empurro. Taft se ergue vagarosamente de sua cadeira.

"Você provocou isso nele", eu digo, vagamente ciente de que estou gritando. A mão de Charlie me segura outra vez, mas eu me desvencilho dela e dou um passo à frente até a beirada da cadeira machucar minha cicatriz.

Taft dá a volta, ficando ao meu alcance.

"Ele está provocando você, Tom", fala Paul calmamente, do outro lado da sala.

"Ele fez isso para si mesmo”, diz Taft.

E a última coisa de que me lembro, antes de golpeá-lo com toda a força que podia, é do sorriso em seu rosto. Ele cai, seu peso desmoronando sobre si mesmo, e há um estrondo quando atinge as tábuas do assoalho. Tudo parece explodir, vozes gritando, visões indistintas, e as mãos de Charlie estão outra vez sobre mim, puxando-me para trás.

"Venha”, ele diz.

Eu tento me libertar, mas a força de Charlie é maior.

"Venham", ele repete para Paul, que ainda está olhando para Taft no chão.

       Mas é tarde demais. Taft consegue se pôr de pé, depois se move com dificuldade na minha direção.

       "Fique longe dele", grita Charlie, estendendo uma mão para impedir que Taft se aproxime.

Taft olha para mim, mantido à distância pelos braços estendidos de Charlie. Paul está observando em redor da sala, absorto, procurando por algo. Finalmente Taft recobra a razão e pega o telefone.

Uma sombra de medo passa pelo rosto de Charlie. "Vamos embora, diz ele, dando alguns passos para trás. “Agora”.

Taft disca três números que Charlie conhece bem. "Polícia”, diz ele, olhando diretamente para mim. "Por favor, venham ime­diatamente. Estou sendo atacado em meu escritório."

Charlie está me empurrando para fora da porta. "Corra", ele grita.

Nesse momento, Paul se lança sobre o cofre aberto e começa a pegar o que sobrou lá dentro. Depois passa a atirar ao chão papéis e livros que estão nas prateleiras, arrancando os suportes para livros, desarrumando tudo que está ao seu alcance. Quando então ele consegue juntar nas mãos uma pilha de papéis de Taft, dá um passo para trás e sai pela porta, sem olhar para mim ou para Charlie.

Nós disparamos atrás dele. A última coisa que escuto vindo do escritório é a voz de Taft anunciando os nossos nomes para a polícia. Sua voz se espalha através da porta aberta, ecoando pelo corredor.

Nós nos deslocamos rapidamente, através do corredor, para as escadas escuras do porão, quando uma corrente de ar frio chega até nós vindo de cima. Dois seguranças do campus já estão à nossa espera nas escadas do andar térreo.

"Não se mexam!”, um deles grita através da escada estreita.

Paramos abruptamente.

"Polícia do campus! Não se movam!"

Paul está olhando sobre meu ombro para o final do cor­redor, agarrando os papéis com a mão esquerda.

"Façam o que eles mandam”, diz Charlie.

Mas eu sei o que atraiu o olhar de Paul. Há um armário de bedel ali, e dentro dele uma entrada para os túneis.

       "Não é seguro por ali”, diz Charlie baixinho, indo para perto de Paul para impedi-lo de correr. "Eles estão constru..."

       Os seguranças tomam o movimento por fuga, e um deles chega barrando o acesso às escadas, exatamente quando Paul está diante da porta.

"Pare!", grita o segurança. "Não entre aí!"

Mas Paul já está na entrada, abrindo a porta de madeira. Ele desaparece lá dentro.

Charlie não hesita. Antes que os seguranças percebam, ele dá dois passos à frente, dirigindo-se rápido para a porta. Escuto um barulho surdo quando ele pula para o chão do túnel, tentando deter Paul. Depois, sua voz, gritando o nome de Paul, ecoa de baixo.

"Saia daí!", o segurança berra, empurrando-me para a frente.

Em seguida ele se inclina no túnel e chama de novo, mas só se ouve o silêncio.

"Chame outra ve...", o outro segurança começa a dizer, quando um barulho ensurdecedor sobe dos túneis como o ribombar de um trovão, e a sala da caldeira debaixo de nós começa a assobiar. Imediatamente sei o que aconteceu: um cano de vapor explodiu. E agora posso ouvir Charlie gritando.

Em menos de um segundo já estou diante da abertura do armário do bedel. A boca-de-lobo é pura escuridão, de maneira que me arrisco num salto impensado. Quando atinjo o chão, a adrenalina faz meu corpo todo vibrar, pronta para agir como um raio, e a dor da aterrissagem desaparece antes de se espalhar. Faço força para levantar. Charlie está gemendo ao longe, o que me orienta para chegar até ele; acima de mim, o segurança continua a berrar. A presença de espírito de um dos homens faz com que ele perceba o que está acontecendo.

"Estamos chamando uma ambulância", ele grita para o interior do túnel. "Você pode me ouvir?"

Estou me movimentando através de um nevoeiro denso. O calor aumenta, mas a única coisa que tenho em mente é Charlie. De tempos em tempos, durante alguns segundos, o assobio do cano abafa todos os demais sons.

Os gemidos de Charlie estão mais altos agora. Caminho para a frente, tentando chegar até ele. Finalmente, num lugar em que os canos mudam de direção, consigo localizá-lo. Ele está no chão, o corpo totalmente encurvado, sem conseguir se mexer. Suas roupas se rasgaram e o cabelo está todo emaranhado. Mesmo à distância, quando meus olhos se adaptam, posso ver um buraco enorme em um dos canos próximos ao chão.

"Hmm!", Charlie geme.

Eu não consigo entender.

"Hmm..."

Percebo então que ele quer dizer o meu nome.

Seu peito está ensopado. O vapor o atingiu bem na altura dos intestinos.

"Você pode ficar em pé?", pergunto, tentando colocar seu braço ao redor do meu ombro.

       "Hmm...”, ele geme, num estado de semi-consciência.

       Cerrando os dentes, faço força para levantá-lo, mas é como tentar mover uma montanha.

       "Venha, Charlie", eu peço, sacudindo-o um pouco. "Não desmaie em cima de mim."

Mas então me dou conta de que estou falando e que Charlie percebe cada vez menos. Seu corpo agora está mais pesado e difícil de sustentar.

“Socorro!” , grito. “Por favor, me ajudem!”.

Posso ver feridas profundas em seu peito, onde a pressão de vapor rasgou o tecido, encharcando-o. Mal consigo sentir sua respiração.

"Mmm...”, ele gorgoleja, tentando segurar minha mão com um dedo.

Agarro seus ombros e o sacudo novamente. Finalmente ouço passos. Um feixe de luz atravessa o nevoeiro e posso ver um para-médico - dois deles - correndo até nós.  '"

Em um segundo eles estão perto o bastante para eu conse­guir ver seus rostos. Mas quando, enfim, o feixe de luz cai sobre o corpo de Charlie, ouço um deles dizer: "Oh Jesus!”

"Você está ferido?", o outro me pergunta, apalpando meu peito com as mãos.

Olho para ele, sem compreender. Só quando observo meu estômago iluminado por sua lanterna é que compreendo. Não era água o que encharcava o peito de Charlie. Estou coberto com o seu sangue.

Os dois para-médicos estão com ele agora, tentando levantá­-lo. Um terceiro para-médico chega e procura me tirar do local, mas luto com ele para ficar ao lado de Charlie. Lentamente sou tomado pela sensação de estar sumindo. No calor e no escuro, estou per­dendo meu senso de realidade. Um par de mãos me guiam para fora dos túneis, e vejo os dois seguranças, agora acompanhados por outros dois, todos observando a equipe da ambulância puxar-­me para cima.

A última coisa de que me lembro é do olhar no rosto do segurança parado ali, observando enquanto eu me ergo no escuro, ensangüentado da cabeça aos pés. A princípio ele parece aliviado, vendo-me cambalear para fora dos destroços. Depois sua expres­são muda e o alívio desaparece de seus olhos, quando percebe que o sangue não é o meu.

 

                                     Capítulo 20

Recupero os sentidos em uma cama, no Centro Médico de Princeton, várias horas após o acidente. Paul senta-se ao meu lado, contente por me ver acordado, e um policial está do lado de fora do quarto, parado junto à porta. Alguém trocou minhas roupas por uma camisola descartável de hospital, cuja textura, semelhante a um guardanapo de papel, provoca ruídos quando me sento. Há sangue sob minhas unhas, escuro como lodo, e o ar está impregnado de um odor familiar, algo que lembro do tempo que passei em um hospital. O cheiro de doença lavada com desin­fetante. O cheiro de remédio.

"Tom", diz Paul.

Eu me apoio sobre os cotovelos para olhá-lo, mas a dor se espalha pelo meu braço.

       "Cuidado", diz ele, curvando-se sobre mim. "O médico disse que você machucou o ombro."

       Agora, que estou ficando mais consciente, posso sentir a dor debaixo das faixas. "O que aconteceu com você lá embaixo?"

"Agi feito um idiota. Eu apenas reagi. Não consegui vol­tar até onde Charlie estava depois que o cano explodiu. Todo o vapor estava vindo em minha direção. Fui para fora pela saída mais próxima e a polícia me trouxe para cá."

"Onde está Charlie?"

"Na UTI. Eles não deixam ninguém entrar para ver como ele está”.

Sua voz torna-se débil. Depois de esfregar os olhos, ele olha pela porta. Uma anciã passa em sua cadeira de rodas, ágil como uma criança em um andador. O tira a observa, mas não sorri. Há uma tabuleta amarela, em forma de sanduíche, apoiada sobre o piso de cerâmica onde se lê: ATENÇÃO: PISO MOLHADO.

“Ele está bem?”, pergunto.

Paul mantém o olhar em direção à porta. "Não sei. Will diz que ele estava bem atrás do cano que estourou quando o encontraram."

"Will?"

"Will Clay, amigo de Charlie." Paul coloca uma mão na grade da cama. "Ele o puxou para fora”.

       Tento me lembrar do que aconteceu, mas tudo o que me vêm à mente são silhuetas nos túneis, emolduradas pela luz das lanternas.

       "Ele e Charlie trocaram de turnos quando vocês foram me procurar", acrescenta Paul.

       Há um grande pesar em sua voz. Ele se culpa por tudo.

       "Quer que eu ligue para Katie e diga que você está aqui?", ele pergunta.

       Faço que não com a cabeça, porque quero sentir-me mais forte primeiro. "Eu ligo para ela depois”.

A anciã na cadeira de rodas passa mais uma vez, e agora noto o gesso em sua perna esquerda, do joelho até os dedos do pé. Ela traz o cabelo em desalinho e suas calças estão enroladas acima do joelho, mas há um brilho em seus olhos, e ela dá um sorriso provocativo quando passa pelo tira, como se tivesse quebrado a lei em vez da perna. Charlie me contou certa vez que pacientes geriátricos ficam aliviados quando sofrem uma pequena queda ou são acometidos por uma doença não muito importante. Perder uma batalha faz com que se lembrem que ainda estão ganhando a guerra. Fico repentinamente chocado pela ausência de Charlie, pelo vazio onde eu esperava ouvir sua voz.

"Ele deve ter perdido muito sangue", eu conto.

Paul olha para as mãos. No silêncio posso ouvir uma res­piração ofegante através da separação entre a minha cama e a seguinte. Nesse momento, uma médica entra no quarto. O policial na porta toca na manga do seu avental branco e, quando ela pára, eles trocam algumas palavras em voz baixa.

"Thomas?", ela diz, aproximando-se da cama com uma prancheta e um olhar de censura.

       "Sim”.

       "Sou a doutora Jansen”. Ela vai até o outro lado da cama para examinar meu braço. "Como você se sente?"

       "Bem. Como está Charlie?"

Ela apalpa o meu ombro um pouco, apenas o suficiente para que eu me contorça de dor. "Não sei. Ele está na UTI desde que chegou aqui”.

       Não estou lúcido o bastante para saber o que significa ela reconhecer Charlie pelo seu primeiro nome.

"Ele vai ficar bem?"

"É muito cedo para saber", diz ela, sem olhar para mim.

"Quando podemos vê-lo?”, pergunta Paul.

       "Uma coisa de cada vez", diz ela, colocando uma mão entre as minhas costas e o travesseiro e me erguendo. "Sente alguma coisa aqui?"

"Não."

"E aqui?"

Ela pressiona dois dedos na minha clavícula.

"Não”.

A apalpação continua ao longo de minhas costas, coto­velo, pulso e cabeça. Ela usa o estetoscópio para se assegurar de que não há nada de errado, depois finalmente se senta. Os médicos são como jogadores, estão sempre atrás das combinações certas. Os pacientes são como papa-níqueis: pressione os seus braços durante bastante tempo e você poderá ganhar uma bolada.

"Você teve sorte, porque poderia ter sido pior", ela diz. "Não há fratura, mas o tecido mole foi machucado. Você vai sentir dor quando passar o efeito do remédio. Coloque gelo duas vezes por dia durante uma semana, depois volte aqui para eu dar mais uma olhada."

Ela tem um odor mundano, uma mistura de suor com sabonete. Espero até que pegue um bloco de receituário, lem­brando a batelada de drogas que tive que tomar depois do aci­dente, mas em vez disso, ela diz: "Há alguém lá fora que gostaria de falar com você."

Por um segundo, por ela ter dito isso de um modo bas­tante agradável, imagino que um amigo esteja lá fora - talvez Gil, voltando do clube-restaurante, ou mesmo minha mãe, que veio de Ohio. De repente não sei mais ao certo quanto tempo se passou desde que me tiraram do túnel.

Mas um rosto diferente aparece na porta. De alguém que eu nunca vi antes. Uma outra mulher, mas não uma médica, e definitivamente não a minha mãe. Ela é baixa e gorda, está com uma saia preta rodada que lhe chega um pouco abaixo dos joelhos e usa meias pretas opacas. A blusa branca e a jaqueta vermelha que está vestindo lhe dão um ar maternal, mas meu primeiro pensa­mento é que ela deve ser uma administradora da universidade.

A médica e a mulher trocam um olhar, depois mudam suas posições, uma entra e a outra sai. A mulher de meias pretas se detém assim que entra e acena para Paul, cumprimentando-o. Eles entabulam uma conversa que não consigo ouvir - depois, inespe­radamente, ele pergunta se estou bem, espera que eu confirme, e então sai com um outro homem que está parado junto à porta.

"Policial", diz a mulher, "você poderia, por favor, fechar a porta?"

Para minha surpresa ele assente ao pedido, deixando-nos a sós.

A mulher se aproxima gingando, dando uma parada para olhar a outra cama atrás da cortina.

"Como está se sentindo, Tom?" Ela se acomoda na cadeira onde Paul estivera antes, fazendo-a desaparecer. Suas bochechas são como as de um esquilo, parecendo estar cheias de nozes con­forme ela fala.

"Não muito bem", digo com cuidado. Mostro-lhe meu lado direito para que veja que está enfaixado.

"Posso fazer algo por você?"

"Não, obrigado."

"Meu filho esteve aqui no mês passado", diz ela de modo distraído, procurando alguma coisa no bolso de sua jaqueta. ''Apendicite”.

Estou prestes a perguntar quem ela é, quando a mulher puxa uma pequena carteira de couro do bolso. "Tom, eu sou a detetive Gwynn. Gostaria de falar com você sobre o que aconteceu hoje”.

Ela abre a carteira para me mostrar o distintivo, depois o enfia de volta em seu bolso.

       "Onde está Paul?"

       "Falando com o detetive Martin. Gostaria de lhe fazer algumas perguntas sobre William Stein. Você sabe quem ele era?"

       "Ele morreu na noite passada."

       "Ele foi assassinado”. Ela deixa o silêncio destacar a última palavra. ''Algum de seus colegas de quarto o conheciam?"

       "Paul o conhecia. Trabalhavam juntos no Instituto para Estudos Avançados."

       Ela puxa uma caneta e um bloco do bolso de sua jaqueta.

"Você conhece Vincent Taft?"

       "Mais ou menos", eu digo, percebendo algo importante no horizonte.

"Você esteve no seu escritório hoje um pouco mais cedo?"

Sinto uma pressão em minhas têmporas. "Por quê?"

"Vocês tiveram uma briga?"

"Eu não chamaria de briga."

Ela faz algumas anotações.

"Você e seu colega de quarto estiveram no museu ontem à noite?", ela pergunta, procurando algo em uma pasta de papéis que trouxe consigo.

A pergunta parece ter milhares de conseqüências. Penso rápido. Paul cobriu suas mãos com as mangas da camisa quando tocou nas cartas de Stein. Ninguém conseguiu ver nossos rostos no escuro.

"Não."

A detetive faz um trejeito com os lábios, como algumas mulheres quando passam batom. Não consigo ler sua linguagem corporal. Finalmente ela tira uma folha da pasta e me entrega. É uma fotocópia do papel de ingresso que eu e Paul assinamos para o guarda do museu. A data e a hora estão estampadas ao lado de cada nome.

"Como vocês entraram na biblioteca do museu?"

"Paul tinha o código para a perfuração do cartão", eu digo, sem me defender. "Ele o conseguiu com Bill Stein."

''A escrivaninha de Stein fazia parte da nossa cena do crime. O que vocês estavam procurando?"

"Não sei”.

A detetive me lança um olhar simpático. ''Acho que o seu amigo Paul", diz ela, "está envolvendo você em problemas muito sérios”.

Espero que ela dê um nome a esses problemas, algo legal, mas ela não o faz. Em lugar disso, pergunta: "É o seu nome que está nesta folha de papel que o guarda da segurança me entregou, não é?" Ela pega o papel e o guarda de novo. "E foi você quem   atacou o doutor Taft”.

"Não o ata..."

"É curioso, o seu amigo Charlie foi quem tentou res­suscitar William Stein."

"Charlie é um para-médico...”

"Mas onde estava Paul Harris?"

Por um segundo a fachada simpática some. Uma cortina se ergue em seus olhos e a gentil matrona desaparece.

"Você precisa começar a se preocupar consigo mesmo, Tom”.

Não consigo perceber se é um conselho ou um aviso.

"Seu amigo Charlie está no mesmo barco”, diz ela. "Se ele se safar dessa." Ela espera o efeito que isso vai surtir em mim. "Diga apenas a verdade."

"Eu disse."

"Paul Harris deixou o auditório antes de terminar a confe­rência do doutor Taft?"

"Sim”.

"Ele sabia onde era o escritório de Stein?"

"Eles trabalhavam juntos. Sim”.

"Foi idéia dele invadir o museu de arte?"

"Ele tinha as chaves. Não invadimos."

"E foi idéia dele examinar a escrivaninha de Stein?"

Acho melhor não continuar respondendo. Não há respos­tas certas agora.

"Ele fugiu do segurança do campus quando vocês estavam fora do escritório do doutor Taft, Tom. Por que ele faria isso?"

Mas ela não entenderia, e não quer entender. Sei para onde isso está se encaminhando, mas tudo o que posso pensar é no que       ela disse sobre Charlie.

       Se ele se safar dessa.

       "Ele é um estudante de bom nível, Tom. Tenho aqui o seu histórico. E então o doutor Taft descobriu o plágio. Quem você acha que contou para Taft?"

       Ela coloca tijolo por tijolo, como se fosse para levantar uma parede entre amigos.

"William Stein", diz ela, sabendo que eu tinha passado do ponto de ajudá-la. "Imagine como Paul se sentiu! Como ele deve ter ficado bravo!"

       De repente, batem à porta. Antes que qualquer um de nós possa responder, ela se abre.

       "Detetive?", diz um outro policial.

“O que é?”

"Tem alguém aqui que quer falar com você ."

“Quem?”.

O policial olha o cartão em sua mão. "Um reitor da faculdade."

A detetive permanece sentada por um instante, depois se levanta e vai até a porta.

Há um silêncio tenso depois que ela sai. Passado algum tempo, e vendo que ela não volta, sento-me na cama à procura de minha camisa. Basta de hospital, estou bastante bem para cuidar de meu braço sozinho. Quero ver Charlie; quero saber o que dis­seram para Paul. Vejo minha jaqueta pendurada no cabide e me preparo para sair da cama.

Nesse momento, a maçaneta gira e a porta se abre. A dete­tive Gwynn retoma.

"Você está livre para sair", ela diz abruptamente. "Alguém do escritório do reitor entrará em contato com você."

Estou curioso para saber o que aconteceu lá fora. A mulher me entrega um cartão e olha atentamente para mim. "Mas quero que você pense sobre o que eu lhe disse, Tom."

Eu faço sinal que sim.

Parece que ela quer acrescentar algo, mas resolve se calar.

Sem dizer mais nada, ela se vira e sai.

Logo em seguida, uma outra mão gira a maçaneta da porta e ela se abre. Fico gelado, esperando o reitor entrar. Mas dessa vez é um rosto amigável. Gil entra, trazendo presentes. Na mão esquerda ele carrega exatamente o que preciso agora: uma muda de roupas limpas.

“Você está bem?”, ele pergunta.

“Sim. O que está acontecendo?”

"Recebi um telefonema de Will Clay. Ele me contou o que está acontecendo. Como vai seu ombro?" "Bem. Ele falou algo sobre Charlie?"

“Um pouco”.

"Ele está bem?"

"Melhor do que quando chegou aqui”.

Percebo um certo embaraço no jeito como Gil diz isso.

“Há algo errado?”, pergunto.

"Nada”, responde ele por fim. "Os tiras falaram com você?"

"Sim. Paul também. Você o viu lá fora?"

"Ele está na sala de espera. Richard Curry está com ele”.

Eu me atrapalho para sair da cama. "Ele está onde? Por quê?"

Gil dá de ombros, dando uma olhada para a comida do hospital. "Você quer ajuda?"

"Para quê?"

"Para se vestir."

Não sei se ele está brincando. "Acho que consigo sozinho."

Ele sorri quando luto para me livrar da camisola do hos­pital. "Vamos ver Charlie", eu digo, me acostumando a ficar em pé de novo.

Mas agora ele hesita.

"O que há de errado?"

Um olhar estranho aparece em seu rosto, embaraçado e furioso ao mesmo tempo.

"Ele e eu tivemos uma briga ontem à noite, Tom."

"Eu sei”.

"Foi depois que você e Paul saíram. Eu disse coisas que não deveria ter dito."

       Acabo de lembrar de como o quarto estava arrumado hoje de manhã. Foi por isso que Charlie não dormiu lá.

"Não importa", digo. "Vamos vê-lo."

"Ele não vai querer me ver agora."

"É claro que ele vai querer:'

Gil passa um dedo sob o nariz, depois diz: "Os médicos não querem que ele seja perturbado neste momento. Prefiro vol­tar depois".

       Ele tira as chaves do bolso e dá para notar uma certa tris­teza em seus olhos. Finalmente, coloca a mão na maçaneta.

       "Telefone-me em Ivy se precisar de alguma coisa”, ele diz isso e, quando a porta se abre, silenciosamente, sai para o corredor.

O policial não está mais na porta, e também não vejo a mulher na cadeira de rodas. Alguém sumiu com a tabuleta ama­rela. Espero em vão que Gil olhe para trás. Antes que eu possa dizer qualquer coisa, ele vira no corredor e desaparece.

Charlie me descreveu certa vez o dano que as epidemias causavam às relações humanas nos séculos passados, como as doenças faziam o homem se afastar do infectado e temer o sau­dável, a ponto de pais e filhos não desejarem sentar juntos à mesa e toda a estrutura política começar a se deteriorar. Você não fica doente se ficar isolado, eu lhe disse, simpatizando com aqueles que se escondiam nos morros. Então Charlie olhou para mim, e em dez palavras expressou o melhor argumento em favor dos médicos que jamais ouvi, que acho que se aplica também às amizades. Talvez não, ele disse. Mas você também não se torna saudável desse jeito.

O sentimento que experimentei observando Gil sair ­aquele que me fez pensar no que Charlie dissera - é o mesmo que experimento quando vou até a sala de espera e encontro Paul ali sentado, completamente só: cada um de nós está sozi­nho nisso agora, e para o pior. Paul tem uma aparência estra­nha ali, uma figura solitária, no meio de assentos de plástico branco, segurando a cabeça enquanto olha para o chão. Essa é uma pose que ele sempre usa quando está pensando profunda­mente: fica inclinado, com os dedos entrelaçados atrás da nuca e os dois cotovelos sobre os joelhos. Inúmeras noites eu acordei para encontrá-lo sentado em sua escrivaninha daquela maneira, com uma caneta entre os dedos, um velho abajur iluminando as páginas de seu caderno de apontamentos.

Minha primeira reação instintiva ao lembrar disso é a de perguntar a ele o que descobriu no diário. Mesmo depois de tudo o que aconteceu, quero saber; quero ajudar; quero lembrá-lo de nossa antiga parceria para que ele não se sinta sozinho. Mas vendo-o cur­vado dessa maneira, lutando consigo mesmo em cima de uma idéia, acho melhor não perguntar. Lembro de como ele trabalhou duro sobre sua tese depois que desisti, quantas manhãs veio tomar café com os olhos vermelhos, quantas noites trouxe seus copos de café preto do Wa Wa. Se alguém pudesse contar os sacrifícios que ele fez pelo livro de Colonna, calculando da maneira que os prisioneiros fazem em suas celas, raspando marcas nas paredes, eles mostrariam quão pouco esforço adicionei a esse trabalho. Parceria era o que ele queria meses atrás, quando me recusei a dar. Tudo o que posso lhe oferecer agora é minha companhia.

"Ei!", digo baixinho, caminhando até ele.

"Tom..”, ele diz, levantando-se.

Seus olhos estão vermelhos.

"Você está bem?", pergunto.

Ele esfrega o rosto com a manga da camisa. "Sim. E você?"

"Estou bem."

Ele olha para meu braço.

"Vou ficar bom", eu digo.

Antes que eu possa lhe falar de Gil, um jovem médico com uma barba rala aparece na sala de espera.

Observando o médico, sinto um impacto, como o de estar sobre os trilhos quando um trem colide. Ele está vestindo calças e camisa verde-claras, a mesma cor do hospital onde fiz minha reabilitação depois do acidente. Uma cor de aparência triste, como azeitonas misturadas com limão-galego. A fisioterapeuta me dizia para parar de olhar para baixo, que eu nunca aprenderia a andar de novo se não parasse de olhar para os pinos em minha perna. Olhe para a frente, dizia ela. Sempre para a frente. Então eu olhava para o verde das paredes.

"Sua condição é estável", diz o homem na roupa verde.

Estável, eu penso. Uma palavra que os médicos usam bas­tante. Dois dias depois que eles pararam o sangramento em minha perna, fiquei estável. E isso só queria dizer que eu estava morrendo mais lentamente do que antes.

"Podemos vê-lo?", pergunta Paul.

"Não", diz o homem. "Charlie ainda está inconsciente."

Paul hesita, como se inconsciente e estável devessem ser mutuamente exclusivos. "Ele vai ficar bom?"

       O doutor nos lança um olhar, algo gentil e positivo, e diz: "Acho que o pior já passou".

Paul sorri debilmente para o homem e depois agradece. Não digo a Paulo que isso realmente significa. Na sala de emer­gência eles estão lavando as mãos e esfregando o chão, esperando a próxima maca da ambulância. O pior acabou, para os médicos. Para Charlie, ele apenas começou.

"Graças a Deus", diz Paul, quase para si mesmo.

E olhando para ele agora, observando o alívio que se espalha sobre seu rosto, percebo algo. Nunca acreditei que Charlie morreria em razão do que aconteceu. Nunca achei que ele pudesse morrer.

Paul não diz muita coisa enquanto assino minha saída, exceto para resmungar algo sobre a crueldade das coisas que Taft disse para mim em seu escritório. Tenho que preencher pouca coisa, apenas assinar um ou dois formulários, tirar uma fotocópia da carteira de identidade, e, enquanto luto para assinar meu nome com a mão machucada, me dou conta que o reitor passou antes por lá, tornando, de antemão, as coisas mais fáceis para mim. De novo fico querendo saber o que foi dito aos detetives para que libertassem Paul e a mim.

Então lembro do que Gil me contou. "Curry esteve aqui?"

"Ele saiu um minuto antes de você chegar. Não parecia estar bem."

"Por que não?"

"Estava vestindo a mesma roupa de ontem”.

"Ele sabia sobre Bill?"

"Sim. Era quase como se ele achasse..”, Paul deixa o pensa­mento sumir. "Ele disse: 'Nós nos compreendemos, filho”.

"O que isso quer dizer?"

"Não sei. Acho que estava me perdoando."

"Perdoando você?"

"Ele disse que eu não deveria me preocupar. Tudo vai dar certo."

Estou perplexo. "Como ele pôde pensar que você faria isso? O que você lhe disse?"

"Eu lhe disse que não fiz”, Paul hesita. "Eu não sabia mais o que dizer, então lhe contei o que descobri”.

"No diário?"

"Foi tudo em que consegui pensar. Ele parecia tão excitado. Me disse que não conseguia dormir, estava muito preocupado”.

“Preocupado com o que?”.

"Comigo."

"Olhe”, eu digo, porque estou começando a ouvir em sua voz o quanto Curry o influenciou. "Ele não sabe do que está falando”.

“Se eu soubesse o que você iria fazer, eu teria feito as coi­sas de modo diferente. Essa foi a última coisa que ele me disse”.

Minha vontade é de acabar com Curry, mas lembro que o homem que disse tais coisas é aquele mesmo que, para Paul, mais se assemelha a um pai.

"O que a detetive disse para você?”, ele pergunta, mudando de assunto.

"Ela tentou me assustar”.

"Ela pensou o mesmo que Richard?”.

"Sim. Eles conseguiram fazer você admitir isso?”

"O reitor apareceu antes que eles pudessem perguntar e me disse para não responder às perguntas."

"O que você vai fazer?”

"Ele disse que devo procurar um advogado."

Paul diz isso como se fosse mais fácil encontrar um basilisco ou um unicórnio.

"Vamos encontrar alguém", digo a ele. Depois que ter­mino de assinar todos os papéis, saímos. Um policial, parado perto da entrada, nos olha quando começamos a andar em sua direção. Um vento frio nos atinge no instante em que pomos o pé para fora do edifício.

Começamos a breve volta para o nosso campus. As ruas estão vazias, o céu parece sombrio, e uma bicicleta passa pela calçada levando um entregador de pizza. Ele deixa um rastro de odor atrás de si, uma nuvem de fermento e vapor, e quando o vento fica mais forte, jogando a neve no ar como se fosse poeira, meu estômago ronca, uma lembrança de que estamos de volta entre os vivos.

"Venha comigo até a biblioteca”, diz Paul quando nos apro­ximamos da Nassau Street. "Quero lhe mostrar uma coisa."

Ele pára no cruzamento. Para além de um pátio branco fica Nassau Hall. Eu penso nas pernas de calças oscilando na cúpula, no badalo de sino que não estava lá.

"Me mostrar o quê?"

As mãos de Paul estão enfiadas nos bolsos e ele caminha com a cabeça baixa, lutando contra o vento. Passamos por Fitz Randolph Gate sem olhar para trás. Você pode entrar pelo portão do campus quantas vezes quiser, diz a lenda, mas se sair por ele uma só vez, nunca irá obter seu diploma.

"Vincent me avisou para nunca confiar em amigos", diz Paul. "Ele acredita que amigos são volúveis."

Um guia conduz um pequeno grupo pelo pátio. Eles pare­cem ser cantores de cânticos natalinos. Nathaniel Fitz Randolph cedeu esse terreno para construir Nassau Hall, é o que o guia está dizendo. Ele está enterrado onde atualmente fica Holder Courtyard.

"Eu não sabia o que fazer quando aquele cano explodiu", diz Paul. "Não percebi que Charlie só entrou no túnel para me procurar.

Atravessamos em direção a East Pyne, dirigindo-nos para a biblioteca. Ao longe podemos ver os salões de mármore das antigas sociedades de debate. Whig, o Clube James Madison, o Cliosophic, o de Aaron Burr. A voz do guia nos alcança através do vento e experimento uma sensação crescente de ser um visitante aqui, um turista, de ter estado caminhando em um túnel escuro desde o primeiro dia em que cheguei a Princeton, da mesma maneira que fizemos através das entranhas de Holder Courtyard, rodeados por túmulos.

"Depois ouvi você vir atrás dele. Você não se importou com o que estava acontecendo lá embaixo. Só se preocupou com o fato de que ele estava ferido."

Paul olha para mim pela primeira vez.

"Eu pude ouvir você pedindo socorro, mas não conseguia enxergar nada. Estava muito assustado para me mexer. Tudo o que podia pensar era: que tipo de amigo eu sou? Eu sou o amigo volúvel”.

"Paul", eu digo, para cortar de vez o assunto. "Você não precisa ficar se culpando."

Estamos no pátio de East Pyne, um edifício cuja estrutura lembra um convento e onde a neve entra através da abertura do pátio interno, localizado no centro da construção. A lembrança de meu pai ressurgiu inesperadamente, como uma sombra na parede, porque me dei conta de que ele percorreu esses caminhos antes que eu tivesse nascido e viu esses mesmos edifícios. Estou andando sobre suas pegadas sem ter consciência disso, porque nenhum de nós deixou a mais leve impressão neste lugar.

Paul se vira ao me ver parar, e por um segundo somos os únicos seres vivos entre estas paredes de pedra.

"Sim, eu preciso", diz ele referindo-se ao que eu acabara de lhe dizer. "Porque quando eu lhe contar o que encontrei no diário, todo o resto parecerá insignificante. E todo o resto não é insignificante."

"Diga apenas se é tão importante quanto esperávamos que fosse."

Então, se for, pelo menos saberei que o pressentimento de meu pai foi de grande alcance.

Olhe para a frente, diz a fisioterapeuta ao meu ouvido. Sempre para a frente. Mas agora, como naquela época, estou cer­cado por paredes.

"Sim”, repete Paul, sabendo exatamente o que quero dizer. "É uma grande descoberta."

Há um brilho em seu rosto ao pronunciar essas palavras, e eu me sinto surpreso, arrebatado pela própria sensação que espe­rava encontrar. É como se meu pai conseguisse se sair bem, como se ele voltasse e fosse reabilitado com uma única frase.

Não sei o que Paul está prestes a me dizer, mas a idéia de que possa ser algo muito maior do que imaginei é suficiente para me proporcionar um sentimento de que venho sentindo falta há muito tempo. Isso me faz olhar para a frente de novo e realmente ver algo diante de mim, algo diferente de uma parede. Sinto-me outra vez confiante.

 

                                         Capítulo 21

No caminho para Firestone avistamos Carrie Shaw, uma estudante de terceira série do colégio, que reconheço por causa de uma aula de inglês que assisti no ano passado. Ela passa diante de nós e nos cumprimenta. Nós trocamos olhares de longe durante algumas semanas antes de eu conhecer Katie. Fico curioso em saber o quanto as coisas mudaram para ela desde aquela época. Gostaria de saber se ela notou o quanto eu mudei.

"É como se num acidente eu tivesse sido sugado para den­tro do Hypnerotomachia", diz Paul enquanto nos dirigimos para leste, em direção à biblioteca. "Tudo aconteceu de um modo tão indireto, tão coincidente. Do mesmo jeito que foi com seu pai”.

"Encontrar McBee, é o que você quer dizer?"

"E Richard. E se eles nunca tivessem se encontrado? E se não tivessem assistido juntos àquela mesma aula?E se eu nunca tivesse lido o livro de seu pai?"

"Não estaríamos aqui, agora."

A princípio, Paul acredita que estou falando só por falar, depois percebe o que quero dizer. Sem Curry, McBee e O Documento Beladona, Paul e eu nunca nos teríamos encontrado. Teríamos cruzado pelo campus da mesma maneira que eu e Carrie fizemos agora, trocando um cumprimento e tentando lembrar onde já nos teríamos visto antes, pensando, de certo modo, como era vergonhoso, mesmo depois de quatro anos, ainda encontrar-se com tantos rostos não familiares.

''Algumas vezes”, diz ele, "me pergunto: por que tive de conhecer Vincent? E me encontrar com Bill? Por que tenho sempre que percorrer o caminho mais longo para chegar aonde quero?”

"O que você quer dizer?”  

"Você percebeu que as direções do portuário também nunca vão direto ao ponto? Quatro em direção ao sul, dez a leste, dois ao norte e seis a oeste. Elas se movem em um grande círculo. Por pouco não se termina onde se começou”.

Finalmente compreendi a conexão: o amplo alcance das circunstâncias) a maneira pela qual sua jornada) com o Hypnerotomachia) havia se deslocado através do tempo e do espaço) de dois amigos em Princeton na época de meu pai) para três homens em Nova York) para um pai e filho na Itália) e de novo para outros dois amigos em Princeton - tudo isso se assemelha ao estranho enigma de Colonna) as direções que se curvam sobre si mesmas.

"Você não acha que faz sentido o fato de ter sido seu pai a me iniciar no Hypnerotomachia?”, pergunta Paul.

Quando chegamos à entrada, Paul abre a porta da biblio­teca para mim, e assim nos esquivamos da neve. Estamos no cora­ção do campus agora, um lugar feito de pedras. Nos dias de verão; quando os carros passam com seus vidros abaixados e os rádios ligados, e todos os estudantes vestem camisetas e shorts, edifícios como Firestone, a capela e Nassau Hall assemelham-se a grutas no meio de uma metrópole. Mas quando a temperatura abaixa e a neve cai, nenhum lugar é mais tranqüilizador do que este.

"Na noite passada comecei a pensar”, continua Paul, "os amigos de Francesco o ajudaram a elaborar os enigmas, certo? Agora nossos amigos estão nos ajudando a resolvê-los. Você desco­briu o primeiro. Katie solucionou o segundo. Charlie, o último. Seu pai descobriu O Documento Beladona. Richard achou o diário”.

Ele faz uma pausa na catraca da entrada, mostrando aos guardas nossas carteiras de identidade do campus. Enquanto espe­ramos o elevador para o andar C, que é a parte mais baixa do edifí­cio, Paul aponta para uma placa de metal na porta do elevador. Há um símbolo gravado nela que eu nunca tinha percebido antes.

"The Aldine Press”, eu digo, reconhecendo-o como o mesmo símbolo que havia no escritório de meu pai em nossa casa.

O impressor de Colonna, Aldus Manutius, copiou o famoso emblema do _golfinho e da âncora, um dos mais famosos na história da impressão, do Hypnerotomachia.

Paul faz que sim com a cabeça, e sinto que isso tem a ver com seu assunto. Para qualquer direção que ele se volte, ao longo desses últimos quatro anos, é como se sentisse uma mão em suas costas o tempo todo. Todo mundo que o cerca, mesmo sem dizer nada, o tem estimulado, ajudando-o a penetrar no livro de Colonna.

A porta do elevador se abre e entramos.

"De qualquer forma, eu estava refletindo sobre isso tudo na noite passada", diz ele, apertando o botão para o andar C. "Sobre como tudo parece completar o círculo. E isso me chocou."

Uma campainha soa acima de nossas cabeças e a porta se abre para a área mais deserta da biblioteca, muito abaixo do andar térreo. As prateleiras perto do teto, no andar C, estão tão repletas de pacotes comprimidos que parecem destinadas a suportar o peso dos cinco andares acima de nós. À nossa esquerda se encontra o Microform Services, a caverna escura onde professores e estudantes formados se acotovelam ao redor de micro-filmadoras, mantendo os olhos semi-cerrados bem próximos dos painéis de luz. Paul começa a me guiar através das estantes de livros, correndo o dedo ao longo de lombadas de livros empoeiradas à medida que passamos por elas. Percebo que está me conduzindo para sua pequena escrivani­nha em uma saleta trancada.

"Há uma razão pela qual tudo retoma para onde começou nesse livro. Os inícios são a chave para o Hypnerotomachia. A pri­meira letra de cada capítulo cria o acróstico sobre Fra Francesco Colonna. As primeiras letras dos termos arquitetônicos soletram o primeiro enigma. Não é uma coincidência o fato de Colonna fazer tudo voltar aos inícios”.

Ao longe posso ver as longas fileiras de portas metáli­cas verdes, quase tão perto umas das outras quanto os armários dos estudantes. As salas que elas fecham não são maiores do que armários. Mas centenas de estudantes do último ano se trancam em seu interior durante semanas para escrever suas teses em paz. A saleta de Paul, que eu não visitava havia vários meses, fica no canto mais afastado.

"Talvez eu esteja apenas ficando cansado, mas pensei, e se ele soubesse exatamente o que estava fazendo? E se fosse possível desco­brir como decifrar a segunda metade do livro concentrando-se em algo que está no primeiro enigma? Francesco disse que não deixava quaisquer soluções, mas não disse que não deixava pistas. E eu tenho as direções do portuário para me ajudar”.

Chegamos diante de sua pequena saleta e ele começa a digitar a combinação que trava a porta. Folhas de papel preto foram coladas na pequena janela retangular, tornando impossível enxergar lá dentro.

"Eu pensava que a direção dizia respeito a uma localiza­ção física. Como se mover de um estádio até uma cripta, medida em estádios. Até mesmo o portuário pensou que as direções fos­sem geográficas:' Ele sacode a cabeça. "Eu não estava pensando como Francesco”.

Paul destrava a porta e a escancara. A saleta está repleta de livros, pilhas e pilhas deles, uma versão menor da sala do presidente em Ivy. Embalagens de comida espalham -se pelo chão. Folhas de papel estão grudadas nas paredes, numero­sas como plumagens, cada uma contendo uma mensagem. Phineus filho de Belus não era Phineus rei de Salmydessus, lê-se em uma delas. Verificar Hesíodo: Hesperethousa ou Hesperia e Arethousa?, está escrito em uma segunda. Comprar mais biscoi­tos, em uma terceira.

Levanto uma pilha de fotocópias de uma das duas cadeiras abarrotadas dentro da saleta e tento sentar sem derrubar nada.

"Então, voltei aos enigmas”, diz ele. "Sobre o que era o pri­meiro enigma?"

"Moisés. A palavra latina para cornos."

"Certo." Ele vira de costas para mim para fechar a porta. "Tratava-se de uma má tradução. Filologia, lingüística histórica. Era sobre linguagem."

Paul começa a procurar numa pilha de livros sobre sua cadeira. Finalmente ele encontra o que quer: História da Arte Renascentista, de Hartt.

"Por que tivemos sorte com o primeiro enigma?", ele pergunta.

“Porque eu tive aquele sonho”.

"Não", diz ele, achando a página com a escultura do Moisés de Michelangelo, a foto que iniciou nossa parceria. "Tivemos sorte porque o enigma era sobre algo verbal, e estávamos procurando algo físico. Francesco não se interessava por cornos físicos, reais; ele se interessava por uma palavra, uma má tradução. Tivemos sorte porque aquela má tradução, no fim, manifestou-se fisicamente. Michelangelo esculpiu seu Moisés com cornos e você se lembrou disso. Se não fosse pela manifestação física, nunca teríamos encon­trado uma resposta lingüística. Mas esta era a chave: as palavras."

"Então você procurou uma representação lingüística para as direções."

"Exatamente. Norte, sul, leste e oeste não são indícios físi­cos, são indícios verbais. Quando olhei para a segunda metade do livro, soube que estava certo. A palavra estádio aparece bem no início do primeiro capítulo. Olhe", diz ele, encontrando uma folha de papel onde representou algo. Há três sentenças escritas na página: Charlie e Paul foram ao estádio para ver um jogo de vôlei. Lá entrando ventanias uivavam e espalhavam a poeira por toda área levantando uma densa nuvem. Paul grita vendo o Tom.

"Fascinante", eu digo.

"À primeira vista não parece muito, não é? São apenas escritos desconexos, como a história de Poliphilo. Mas coloque-os em uma grade': ele diz, virando o papel. "E você obtém isto:"

 

C HA R L I E E PAU L F O R A M AO E STÁDIO PARA VER UM JOGO DE VOLEI. LÁ EN T R A

QUANDO VENTANIAS UIVAVAM E ESPALHAVAM A POEIRA POR TODA ÁREA LEVANTANDO UMA DENSA NUVEM. PAUL GRITA V E N D O O TOM

 

Fico esperando que algo estupendo salte do papel, mas nada acontece.

       “É isso?", pergunto.

       “É isso. Siga apenas as direções. Quatro para o sul, dez para leste, dois ao norte, seis para oeste. De Stadio - 'a partir do está­dio'. Comece com o 's' em 'estádio'."

Achei uma caneta em sua escrivaninha e tratei de percor­rer o caminho, movendo-a quatro para baixo, dez à direita, dois para cima e seis à esquerda.

 

C HA R L I E E PAU L F O R A M AO ESTÁDIO PARAVER UM JOGO DE VOLE I .LÁ ENTRA ND/ VENTAVA ME SPALHAVAM POEAOLEVANTRANDOUMADE PAULGRITAN SA NU V EMV E N D O O TOM

 

Escrevo as letras S-O-L-U- T.

"Depois repita o processo", ele diz, "começando com a última letra."

Começo de novo do T.

 

C H AR L IE E PAU L F OR A M AOE ST Á D IOP A R A V E RUM J

O

G

I

D

E

V O

L

E

I

.

L

Á

E

N

T

R

A

N

D

I

v

E

N T -

-

-

- - U

I

V

A

V

A

M

E

I

5

P

A

I

H

A

V

A

M

I

P

O

E

I

R

A

P 0---+----- L E

V

A N

T

A

N

D

O U M I

D

E

N

5

A N U V

E

I

 

P

A

U

L G

R

1---------0

M

                                   

 

E então aparece, escrita na página, a palavra S-O-L-U­T-I-0-N.

"Essa é a Regra do Quatro”, diz Paul. "É tão simples, depois que se compreende a maneira como trabalha a mente de Colonna. Quatro direções dentro do texto. Apenas repita isso muitas e mui­tas vezes, depois descubra onde estão as palavras que são pausas”.

"Mas Colonna deve ter levado meses para escrever isso”.

Paul concorda. "O engraçado é que sempre notei que exis­tem certas linhas no Hypnerotomachia que parecem mais desorga­nizadas do que outras - lugares onde as palavras não se ajustam, onde as orações estão em lugares estranhos, onde os neologismos mais esquisitos aparecem. Faz sentido agora. Francesco escreveu o texto para se adaptar ao padrão. Isso explica por que ele utili­zou tantas palavras. Se a palavra do vernáculo não se ajustava nos espaços, ele tentava uma palavra em latim, ou inventava uma ele mesmo. Ele até fez uma má escolha com o padrão. Olhe”.

Paul aponta para a linha onde aparece O, L e N.

"Veja quantas letras codificadas existem nessa única linha. E haverá outra mais quando você for de novo seis para oeste. O padrão 'quatro para o sul, dois ao norte' faz uma volta e retoma pelo caminho já trilhado, então uma linha sim outra não, no Hypnerotomachia, Francesco tem que encontrar um texto que encaixe quatro letras diferentes. Mas isso funcionou. Ninguém em quinhentos anos desvendou o enigma:'

"Porém as letras no livro não são impressas dessa maneira”, eu digo, querendo saber como ele aplicou a técnica ao texto verda­deiro. "As letras não estão espaçadas de maneira uniforme como em uma grade. Como se consegue descobrir o que é exatamente norte ou sul?"

Ele acena com a cabeça. "Não se consegue, porque é difícil dizer que letra está diretamente acima ou abaixo de outra. Eu tive que trabalhar matematicamente em vez de graficamente."

Ainda me espanta a maneira pela qual ele expressa a sim­plicidade e a complexidade da mesma idéia.

"Considere o que escrevi, por exemplo. Neste caso há - ele conta algo - dezoito letras por linha, certo? Se você pensar, isso significa que 'quatro para o sul' sempre será quatro linhas para baixo, que é o mesmo que setenta e duas letras para a direita, contando do ponto de partida original. Usando a mesma matemática, 'dois ao norte' será o mesmo que trinta e seis letras para a esquerda. Uma vez que se conhece o comprimento da linha standard de Francesco, pode-se apenas usar a matemática e fazer tudo com ela. Depois de um tempo, passa-se a contar as letras bem rapidamente."

Na nossa parceria, me ocorre agora, a única coisa que posso comparar à velocidade do raciocínio de Paul é a minha intuição - sorte, sonhos, associações felizes. Não parece justo para com ele que tenhamos trabalhado todo esse tempo como iguais.

Paul dobra a folha de papel e a coloca no cesto de lixo. Por um momento olha em torno da saleta, então levanta uma pilha de livros e a coloca em meus braços, e em seguida apanha uma outra para si mesmo. O comprimido contra dor ainda deve estar fazendo efeito, porque meu ombro não se contrai com o peso.

"Estou admirado que você tenha resolvido o problema", eu comento. "O que você descobriu?"

"Antes me ajude a guardar estes livros nas estantes”, ele res­ponde. "Quero esvaziar este lugar."

"Por quê?"

"Para não correr riscos”.

"De quê?"

Ele me dá um meio sorriso. "A biblioteca está vazia?"

Saímos da saleta e Paul me guia por um longo corredor que se estende ao longe no escuro. Há estantes de ambos os lados, ramificando-se em corredores laterais, sem saída. Estamos em um canto da biblioteca visitado tão raramente que as luzes ficam apa­gadas, os próprios visitantes é que acendem a luz de cada estante quando chegam aqui.

"Nem pude acreditar, quando terminei", ele disse. "Mesmo antes de decodificar, eu estava tremendo. Eu tinha conseguido. Depois de todo esse tempo, tinha conseguido."

Ele pára em frente a uma das estantes, bem ao fundo, e só

posso perceber a silhueta do seu rosto.

"E valeu a pena, Tom. Eu nem percebi que estava me apro­ximando da solução, do que estava na segunda metade do livro. Você lembra do que vimos na carta de Bill?"

"Sim."

''A maior parte daquela carta era uma mentira. Você sabe que o trabalho é meu, Tom. O máximo que Bill fez foi traduzir alguns caracteres arábicos. Tirou algumas cópias e examinou alguns livros. Tudo o mais, fiz sozinho”.

"Eu sei", digo.

Paul cobre a boca com a mão por um segundo.

"Isso não é verdade. Sem tudo o que seu pai e Richard encontraram, e tudo o mais que vocês resolveram - você prin­cipalmente -, eu não teria conseguido. Eu não conseguiria fazer tudo sozinho. Vocês me mostraram o caminho."

Paul evoca o nome de meu pai e o de Richard Curry como se eles fossem um par de santos, dois mártires das pinturas de Taft na conferência. Por um momento me sinto como Sancho Pança ouvindo Don Quixote. Os gigantes que ele vê nada mais são do que moinhos de vento, eu sei, e no entanto ele é o único que enxerga claramente no escuro, e sou o único que duvida de meus olhos. Talvez esse tenha sido o impedimento durante todo o tempo: somos animais de imaginação. Só um homem que avista gigantes pode ser auto-suficiente.

"Mas Bill estava certo a respeito de uma coisa", diz Paul. "Os resultados lançarão uma sombra sobre todos os outros estu­dos históricos. Durante um longo tempo."

Ele pega a pilha de livros das minhas mãos, e repentina­mente me sinto leve. O corredor atrás de nós estende-se até uma luz distante, abrindo-se em alas laterais dos dois lados. Mesmo no escuro, posso perceber o jeito de Paul sorrir.

 

                                         Capítulo 22

Começamos um entra-e-sai da saleta, trazendo dezenas de livros, muitos dos quais vamos colocando em prateleiras que não lhes correspondem. Paul parece querer que eles não fiquem à mostra.

"Você se lembra do que estava acontecendo na Itália logo antes de o Hypnerotomachia ser publicado?", ele perguntou.

"Só do que se encontra no livro do Vaticano para turistas”.

Paul me entrega uma outra pilha de livros e voltamos para a escuridão.

''A vida intelectual da Itália nos dias de Francesco gira em torno de uma única cidade", ele diz.

"Roma."

Mas Paul nega com a cabeça. "Menor do que ela. Do tama­nho do campus de Princeton, não da cidade."

Percebo quão encantado ele está pelo que descobriu, quão real isso se tornou para ele.

"Naquela cidade”, ele continua, "havia tantos intelectuais que ninguém sabia o que fazer com eles. Gênios. Polímatas. Pensadores em busca de grandes respostas para grandes questões. Autodidatas que aprenderam, sem ajuda, línguas antigas que ninguém mais conhece. Filósofos procurando correspondências entre temas religiosos na Bíblia e idéias nos textos gregos e romanos, mis­ticismo egípcio, manuscritos persas tão antigos que ninguém consegue datá-los. O estágio mais avançado do humanismo. Pense nos enigmas. Os professores de universidade jogando Rithmomachia. Os tradutores interpretando Horapollo. Os ana­tomistas corrigindo Galen."

Em minha imaginação focalizo a abóbada de Santa Maria del Fiore. Meu pai costumava chamá-la de cidade-mãe da sabedo­ria moderna. “Florença”, eu digo.

“Certo. Mas isso é apenas o começo. Em todas as disciplinas contamos com os maiores nomes da Europa. Na arquitetura tive­mos Brunelleschi, que projetou o que foi a maior cúpula de cate­dral durante mil anos. Na escultura houve Ghiberti, que criou um conjunto de relevos de tal beleza que são conhecidos como as por­tas do paraíso. E houve ainda o assistente de Ghiberti, que se apri­morou, tornando-se o pai da escultura moderna – Donatello”.

“Os pintores também não eram ruins”, eu digo.

Paul sorri. ''A única e maior concentração de gênios na his­tória da arte ocidental, tudo naquela pequena cidade. Aplicando novas técnicas, inventando novas teorias de perspectiva, transfor­mando a pintura de artesanato em ciência e arte. Deve ter havido dezenas e dezenas deles, como Alberti, que chegou a ser conside­rado excelente em todos os lugares do mundo. Mas nessa cidade eles eram considerados inferiores. É por isso que competem com os gigantes. Masaccio. Botticelli. Michelangelo."

Nos momentos em que suas idéias se aceleram, Paul se move mais rapidamente pelos corredores escuros.

“Você quer cientistas?”, pergunta ele. “Que tal Leonardo da Vinci? Você quer políticos? Machiavelli. Poetas? Boccaccio e Dante. E muitos deles foram contemporâneos. No topo de tudo isso estão os Médicis, uma família tão rica que podia se dar ao luxo de patroci­nar tantos artistas e intelectuais quanto a cidade pudesse produzir.

"Todos eles juntos, na mesma cidadezinha e basicamente ao mesmo tempo. Os maiores heróis culturais em toda a histó­ria ocidental, cruzando um com o outro nas ruas, chamando-se pelo primeiro nome, falando um com o outro, trabalhando jun­tos, competindo, influenciando e estimulando-se mutuamente de modo a ir cada vez mais adiante. Tudo isso em um lugar onde a beleza e a verdade eram soberanas, onde famílias importantes rivalizavam para patrocinar a grande arte, para subsidiar os pen­sadores mais brilhantes, para possuir a maior biblioteca. Imagine isso. Tudo isso. É como um sonho. Uma impossibilidade."

Voltamos para a sua saleta e ele finalmente se senta. "Então nos últimos anos do século XV, logo antes de o Hypnerotomachia ser escrito, algo ainda mais surpreendente acon­tece. Algo que todo estudioso da Renascença conhece, mas que ninguém relacionou com o livro. O enigma de Francesco continua falando sobre um poderoso pregador na terra dos seus confrades. Eu não conseguia imaginar que conexão isso poderia ter."

       "Pensei que Lutero só apareceria em 1517. Colonna estava escrevendo seu livro em 1490."

"Não Lutero", diz ele. "No final de 1400, um monge domi­nicano foi enviado para Florença para fazer parte de um mosteiro chamado San Marco”.

       Subitamente torna-se evidente. "Savonarola."

       O grande pregador evangélico que eletrizou Florença na virada do século, ao tentar restaurar a fé da cidade a todo custo.

"Exatamente", diz Paul. "Savonarola é uma pessoa que segue as normas sociais, é a mais correta que alguém já conhe­ceu. E quando chega em Florença, começa a pregar. Diz às pessoas que seu comportamento é pecaminoso, sua cultura e arte são pro­fanas, seu governo é injusto. Diz que Deus olha insensivelmente para elas. Que devem se arrepender”.

Eu meneio a cabeça.

"Sei como isso soa", continua Paul, "mas ele está certo. De certa maneira, a Renascença é uma época ímpia. A Igreja é cor­rupta. O papa é um nomeado político. Prospero Colonna, o tio de Francesco, morre supostamente de gota, e algumas pessoas acreditam que o papa Alexandre o envenenou porque ele vinha de uma família rival. Era esse o tipo de vida da época, em que as pes­soas suspeitavam que o papa fosse um assassino. E isso era apenas o começo - elas o tinham como suspeito de sadismo, incesto e outras coisas mais.

"Enquanto isso, apesar de seu estágio avançado de desen­volvimento na arte e no conhecimento, Florença está em constante motim. Diferentes facções lutam entre si nas ruas, famílias proe­minentes conspiram umas contra as outras em busca de poder, e, embora a cidade seja supostamente uma república, os Médicis controlam tudo. A morte é um acontecimento comum, a extorsão e a coerção são mais comuns ainda, a injustiça e a desigualdade são regras de vida. É um belo lugar agitado, se levarmos em consi­deração todas as coisas lindas que surgem ali.

"Então Savonarola chega em Florença e vê o mal onde quer que olhe. Ele conclama os cidadãos a purificar suas vidas, a parar de jogar, a começar a ler a Bíblia, a ajudar os pobres e a alimentar os famintos. Em San Marco ele começa a obter adeptos. Mesmo alguns humanistas proeminentes o admiram. Percebem que ele leu bastante e que conversa com facilidade sobre filosofia. Pouco a pouco Savonarola está em alta."

Eu o interrompo: "Eu achava que tudo isso tinha aconte­cido enquanto os Médicis ainda controlavam a cidade?”

Paul sacode a cabeça. "Infelizmente para eles, seu her­deiro, Piero, era um louco. Ele não conseguia governar a cidade. O povo começou a clamar por liberdade, um grito consagrado em Florença, e finalmente os Médicis foram expulsos. Você lembra das quarenta e oito xilogravuras? A da criança no carro de com­bate, massacrando as duas mulheres?"

"Aquela que Taft mostrou em sua conferência?"

"Isso. Foi assim que Vincent sempre a interpretou. A puni­ção era por causa de uma suposta traição. Ele disse o que achava que isso significava?"

"Não. Ele queria que a audiência achasse o significado." "Mas ele fez perguntas sobre a criança? Por que ela tinha uma espada - algo assim?"

Posso rever Taft parado debaixo da imagem, com sua som­bra projetada sobre a tela. "Por que ele faz as mulheres puxarem seu carro através da floresta, para matá-las daquela maneira?”, eu repito.

"A teoria de Vincent era de que a figura do Cupido repre­sentaria Piero, o novo herdeiro dos Médicis. Piero se compor­tava como uma criança e por isso o artista o representou dessa maneira. Por sua causa os Médicis perderam sua forte influência em Florença e foram expulsos. Assim, as xilogravuras retratam-no

       retirando-se para a floresta."

"Então quem são as mulheres?"

"Florença e Itália, é o que Vincent diz. Por agir como criança, Pedro destruiu as duas."

“Parece possível” .

"Essa é uma interpretação razoável", concorda Paul, pas­sando a mão por baixo de sua cadeira à procura de alguma coisa, "mas não é a correta. Vincent se recusava a aceitar que a regra acróstica era a chave. Ele nunca acreditaria que a primeira dessas imagens é que era importante. Ele só podia enxergar as coisas à sua maneira.

"A questão é que, quando os Médicis foram expulsos, as outras famílias importantes se puseram a discutir um novo governo para Florença. O único problema era que ninguém con­fiava em ninguém. No final concordaram em deixar Savonarola ocupar um cargo de autoridade. Ele era o único que todos sabiam ser incorruptível.

"Então a popularidade de Savonarola cresceu ainda mais. As pessoas começaram a levar os seus sermões muito a sério. Os lojistas passaram a ler a Bíblia nas suas horas vagas. Os jogadores se tornaram mais discretos em relação aos seus jogos. A bebida e a desordem pareciam declinar. Mas Savonarola via que o mal persistia. Então ele estabeleceu seu programa para uma melhoria cívica e espiritual."

Paul procura mais embaixo de sua cadeira. Há o som de uma fita sendo descolada e ele apanha um envelope simples feito de cânhamo-de-manilha. Dentro dele há um calendário que Paul fez à mão. Quando ele o folheia, posso perceber festas religiosas pouco conhecidas marcadas com caneta vermelha - dias de san­tos, dias de festa - e em preto uma série de anotações que não sei o que são.

"É fevereiro de 1497", diz ele, apontando para a página aberta do calendário, "dois anos antes de o Hypnerotomachia ser publicado, e a quaresma está se aproximando. Ora, a tradição era esta: como a quaresma era um período de jejum e de abne­gação, os dias anteriores constituíam um período de celebração, um imenso festival, para que as pessoas pudessem se divertir antes que a quaresma começasse. Como atualmente, aquele período era chamado Carnaval. Uma vez que os quarentas dias de quaresma sempre se iniciam a partir da Quarta-feira de Cinzas, o Carnaval termina no dia anterior - na terça-feira gorda, ou na terça-feira de Carnaval."

Lampejos do que ele está me contando soam familiares. Meu pai deve ter me falado algo a respeito, antes de ter desistido de mim, ou eu dele. Ou talvez eu tenha escutado algo na igreja, antes de ter idade suficiente para escolher onde passar meus domingos de manhã.

Paul desentoca um outro desenho. O título mostra FLORENÇA, 1500.

"O Carnaval em Florença era um período de grande desor­dem, bebedeira, libertinagem. Bandos de rapazes barravam as entradas das ruas e forçavam as pessoas a pagar um pedágio para passar a salvo. Então gastavam o dinheiro com bebidas e jogos."

Ele aponta para um grande espaço no meio do desenho.

"Quando estavam todos completamente bêbados, eles acampavam ao redor de fogueiras na praça principal e termina­vam a noite com uma briga terrível, os grupos atirando pedras uns nos outros. Todos os anos algumas pessoas ficavam feridas e até mesmo morriam.

"Savonarola, é claro, é o maior oponente oral do Carnaval. Aos seus olhos um desafio foi lançado contra o cristianismo, fazendo as pessoas de Florença cair em tentação. E ele reconhece que existe uma força mais poderosa do que as demais, contri­buindo para a corrupção da cidade. Ele ensina aos homens que as autoridades pagãs podem rivalizar com a Bíblia, que a sabedoria e a beleza podem ser veneradas em coisas não cristãs. Savonarola leva os homens a acreditar que a vida humana que se dedica à busca por conhecimento mundano e satisfação os distrai do único assunto que importa: a salvação. A força que leva à corrupção é o humanismo. E seus maiores advogados são os intelectuais impor­tantes da cidade, os humanistas.

"É quando Savonarola surge então com a idéia que pode-se considerar, talvez, o seu maior legado à história. Ele decide que na terça-feira gorda, o dia culminante do Carnaval, encenará um grande evento - algo que mostrará o progresso e a transforma­ção da cidade, mas ao mesmo tempo lembrará aos florentinos seus pecados. Savonarola permite que os bandos de jovens perambu­lem pela cidade, mas lhes dá agora um propósito. Pede a eles que coletem os objetos pagãos de cada bairro e depois os tragam para a praça principal. Ele empilha todos os objetos em uma enorme pirâmide. E naquele dia, terça-feira de carnaval, quando os bandos de rua estariam sentados em volta de fogueiras atirando pedras uns nos outros, Savonarola os faz acender um outro tipo de fogo." Paul olha para seu mapa, depois fixa os olhos em mim.

"A fogueira das vaidades", eu digo.

"Certo. Os bandos retornam com carretas e carroças. Voltam com cartas de baralho e dados. Tabuleiros de xadrez. Sombra para os olhos, potes de ruge, perfumes, redes de cabelo, jóias. Máscaras de carnaval e roupas. Mas o mais importante são os livros pagãos. Manuscritos de escritores gregos e romanos. Esculturas clássicas e pinturas."

Paul guarda seu desenho no envelope de cânhamo-de-­manilha. Sua voz está sombria.

"Na terça-feira de Carnaval, em 7 de fevereiro de 1497, a cidade foi às ruas para observar. Os registros dizem que a pirâ­mide tinha cerca de dois metros de altura e oitenta metros em sua base. E toda ela queimou.

"A fogueira das vaidades transformou-se em um fato ines­quecível na história da Renascença:' Paul faz uma pausa, olhando por cima de mim para as páginas grudadas na parede. Elas se des­locam ligeiramente quando o vento entra na saleta. "Savonarola se tornou famoso. Em pouco tempo ficou conhecido em toda a Itália e mesmo fora dela. Seus sermões foram impressos e lidos em meia dúzia de países. Ele era admirado e odiado. Michelangelo estava fascinado por ele. Machiavelli considerava-o um charlatão. Mas todos tinham uma opinião, e todos admitiam seu poder. Todos."

Percebo para onde Paul está me conduzindo. "Incluindo Francesco Colonna."

"E é aqui que entra o Hypnerotomachia."

"Então ele é um manifesto?"

"Um tipo de manifesto. Francesco não suportava Savonarola. Para ele, este último representava o pior tipo de fanatismo, tudo que estava errado dentro do cristianismo. Savonarola era destrutivo. Vingativo. Não queria permitir que os homens utilizassem os dons que Deus lhes havia dado. Francesco era um humanista, um amante da Antiguidade. Ele e os primos passaram seus primeiros anos estu­dando poesia e prosa antiga com grandes instrutores. Quando tinha trinta anos, ele havia acumulado uma das mais importantes cole­ções de manuscritos originais em Roma.    .

"Muito antes da primeira fogueira das vaidades, ele havia juntado obras de arte e livros, empregando mercadores em Florença para comprar tudo o que pudessem conseguir e enviar por navio para uma das propriedades da família em Roma. Isso provocou uma grande briga entre Francesco e sua família, por­que acreditavam que ele estivesse desperdiçando seu dinheiro com bugigangas florentinas. Mas quando Savonarola adquiriu mais poder, Francesco tornou-se mais determinado: ele não suportava pensar na pirâmide se transformando em fumaça, sem contar que o que possuía lhe havia custado uma fortuna. Bustos de mármore, pinturas de Botticelli, centenas de objetos inestimáveis. E sobretudo os livros. Os livros raros e insubstituíveis. Ele se situava do lado oposto ao do universo intelectual de Savonarola. Para ele, a maior violência no mundo era contra a arte, contra o conhecimento.

"No verão de 1497, Francesco viaja para Florença, para ver os fatos por si mesmo. E aquilo que qualquer outro admira em Savonarola - sua santidade, sua habilidade para não pensar em nada que não seja a salvação - faz Francesco sentir o tipo mais profundo de ódio e de temor. Ele vê o que Savonarola é capaz de fazer: destruir os maiores artefatos do primeiro ressurgimento do aprendizado clássico desde a queda da Roma antiga. Ele vê a morte da arte, do conhecimento, do espírito clássico. E a morte do humanismo: o fim da busca para ultrapassar os limites e superar as limitações, para compreender a possibilidade integral do pen­samento”.

"Foi sobre isso que ele escreveu na segunda metade do livro?”

Paul faz que sim. "Lá Francesco escreveu sobre tudo isso, todas as coisas que ele temia que aparecessem na primeira metade. Ele registrou o que viu em Florença e o que temia. Que a influên­cia de Savonarola estava crescendo. Que de alguma maneira ele obteria a atenção do rei da França. Que ele tinha admiradores por toda a Alemanha e Itália. Você pode ver isso ir crescendo à medida que Francesco escreve. Ele tornou-se cada vez mais convencido de que havia legiões de protetores atrás de Savonarola, em cada país da cristandade. Esse pregador, ele escreveu, é apenas o início de um novo espírito do cristianismo. Haverá revoltas de pregadores fanáticos, erupções de fogueiras das vaidades através da Itália. Ele diz que a Europa está à beira de uma revolução religiosa. E com a Reforma se aproximando, ele está certo. Savonarola não estará por perto para ver isso acontecer, mas, como você sabe, quando Lutero iniciou seu movimento alguns anos mais tarde, ele se lembrou de Savonarola como de um herói”.

"Então, Colonna viu tudo isso ir tomando forma”.

"Sim. E depois de ver Savonarola por si mesmo, Francesco assume uma posição. Ele decide usar suas amizades para fazer o que poucos em Roma, ou em qualquer outro lugar do Ocidente, poderiam fazer a respeito disso. Utilizando uma pequena rede de amigos confiáveis, começa a colecionar cada vez mais obras de arte importantes e manuscritos raros. Ele entra em contato com uma grande rede de humanistas e pintores para colecionarem, juntos, o maior número possível de tesouros e artefatos relativos às realizações e ao conhecimento humanos. Francesco suborna abades e livreiros, aristocratas e comerciantes. Mercadores via­jam para todas as cidades do continente a seu serviço. Eles vão até as ruínas do Império bizantino, onde o antigo saber ainda está preservado. Seguem para as terras dos infiéis em busca de tex­tos árabes. Visitam mosteiros na Alemanha, na França e mais ao norte. E durante todo esse tempo Francesco mantém sua iden­tidade secreta, protegido por seus amigos mais próximos e por seus irmãos humanistas. Apenas eles sabem o que o aristocrata pretende fazer com todos esses tesouros."

Repentinamente me lembro do diário do portuário. O Genovês, que se perguntava qual poderia ser o carregamento de um navio tão pequeno, que vinha de um porto tão obscuro. Espantado com o fato de que um nobre como Francesco Colonna pudesse estar interessado em tal embarcação.

"Ele descobre verdadeiras obras-primas", continua Paul. "Obras que não tinham sido vistas durante centenas de anos. Títulos que ninguém sabia que existiam. Eudemus, Protrepticus e Gryllus de Aristóteles. Algumas imitações greco-romanas de Michelangelo. Todos os quarenta e dois volumes de Hermes Trismegistus, o profeta egípcio que se acreditava ser mais velho do que Moisés. Ele encontra trinta e oito peças de Sófocles, doze de Eurípides, vinte e três de Aeschylus, todas elas considera­das perdidas hoje em dia. Em um único mosteiro alemão são encontrados tratados filosóficos de Parmênides, Empédocles e Demócrito, todos mantidos a salvo durante séculos pelos mon­ges. Um explorador, no Adriático, localiza obras do antigo pintor Apelles - o retrato de Alexander, o da Aphrodite Anadyomene, e o desenho de Protógenes -, e Francesco fica tão excitado com esse achado que diz ao descobridor para comprar tudo, mesmo que possam ser falsificações. Um livreiro de Constantinopla lhe vende os Oráculos Caldeus por um pequeno lingote de prata - e Francesco acha que é uma pechincha porque o autor dos oráculos, Zoroastro, o persa, é o único profeta mais velho do que Hermes Trismegistus. Sete capítulos de Tacitus e um livro de Livy aparecem no final da lista de Francesco como se fossem de pouca importância. Ele quase esqueceu de mencionar meia dúzia de obras de Botticelli."

Paul sacode a cabeça imaginando tudo isso. "Em menos de dois anos, Francesco Colonna reúne uma das maiores bibliotecas de literatura e de arte antiga do mundo renascentista. Ele traz dois marinheiros para dentro de seu círculo de confiança, para coman­dar seus navios e transportar seu carregamento. Ele emprega os filhos dos membros confiáveis da Academia Romana para pro­teger as caravanas que atravessam a Europa. Ele testa os homens suspeitos de deslealdade, registrando todos os seus movimentos de maneira a poder retraçar seus passos. Francesco sabia que podia confiar seu segredo apenas a poucas pessoas selecionadas, e fazia tudo o que era necessário para protegê-lo."

Percebo, agora, o pleno significado daquilo com que meu pai e eu nos deparamos: um único fio perdido em uma trama de comunicação entre Colonna e seus assistentes, uma rede estabele­cida com o exclusivo propósito de proteger o segredo do nobre.

"Talvez Rodrigo e Donato não tenham sido os únicos que ele testou”, sugiro. "Talvez existam mais cartas com beladona”.

"Provavelmente", diz Paul. "E quando Francesco termi­nou, ele colocou tudo o que reuniu em um lugar que ninguém pensaria em olhar. Um lugar onde seus tesouros estariam a salvo de seus inimigos."

Eu soube onde era antes que ele dissesse.

"Ele faz uma solicitação aos membros mais velhos de sua família para ter acesso à imensa área de terra que eles possuíam fora de Roma, sob o pretexto de montar uma empresa privada. Mas em lugar de construir acima do solo, no meio da floresta onde seus ancestrais costumavam caçar, ele desenha sua cripta. Uma enorme câmara mortuária subterrânea. Apenas cinco de seus homens conhecem sua localização.

"Então, quando o ano de 1498 se aproxima, Francesco toma uma decisão crucial. Em Florença, Savonarola parece ser mais popular do que nunca. Ele declara que na terça-feira de Carnaval construirá uma fogueira das vaidades ainda maior do que a do ano anterior. Francesco registra parte do seu discurso no Hypnerotomachia. Diz que a Itália inteira está super-excitada com essa nova espécie de religião demente - e ele teme por seus tesou­ros. Francesco já gastou praticamente toda sua fortuna e, com Savonarola ganhando apoio dos intelectuais da Europa Ocidental, ele percebe que fica cada vez mais difícil deslocar e esconder suas posses. Então ele reúne tudo o que colecionou, coloca na cripta e a lacra para sempre”.

Um pouco tarde me ocorre que um dos detalhes mais estranhos da segunda mensagem finalmente faz sentido. Minha cripta, escreveu Colonna, é um dispositivo inigualável para o seu propósito, impenetrável a todas as coisas, mas principalmente à água. Ele impermeabilizou a cripta, sabendo que, se não o fizesse, seus tesouros se deteriorariam trancados no subterrâneo.

"Francesco decidiu que, alguns dias antes de a fogueira das vaidades ser acesa”, continua Paul, "ele viajaria para Florença. Iria para San Marco. E, em uma tentativa final para defender sua causa, confrontaria Savonarola. Apelando para o seu amor pela erudição, seu respeito pela verdade e pela beleza, Francesco o per­suadiria a remover os objetos de valor permanente da fogueira. Ele impediria o pregador de destruir aquilo que os humanistas consideravam sagrado.

"Mas Francesco é um realista. Depois de ouvir os ser­mões de Savonarola, ele percebe quão irascível é o homem, quão convencido está de que a fogueira das vaidades é procedente. Se Savonarola não se juntar a ele, Francesco sabe que só tem uma escolha. Deve mostrar para Florença que o profeta é na realidade um bárbaro. Irá até a fogueira das vaidades para remover ele mesmo os objetos da pirâmide. Se ainda assim Savonarola tentar acender o fogo, Francesco será martirizado na pira, na frente da cidade inteira. Ele forçará Savonarola a tornar-se um assassino. Só isso, diz ele, fará com que Florença se volte contra o fanatismo - e com Florença, o resto da Europa."

"Ele estava querendo morrer por isso", digo, mais para mim mesmo.

"Ele estava querendo matar por isso”, diz Paul. "Francesco tinha cinco amigos humanistas próximos em sua confraria de irmãos. Um era Terragni, o arquiteto. Havia Matteo e Cesare, dois irmãos de sangue e filhos da realeza. Os outros dois eram Rodrigo e Donato, e eles morreram porque o traíram. Ele era capaz de tudo para proteger aquilo em que acreditava."

Por um instante o minúsculo espaço da saleta parece demasiado deformado, ângulos colidindo como fragmentos de tempo se cruzando. Vejo meu pai novamente, em seu escritório, datilografando o manuscrito de O Documento Beladona em sua velha máquina de escrever. Ele sabia exatamente o que aquela carta significava, ele apenas não conhecia o seu contexto. Agora Paul havia descoberto o seu lugar. Embora eu experimentasse uma súbita satisfação por causa disso, também sentia uma tristeza cres­cente à medida que Paul continuava a sua história. Quanto mais eu ouvia sobre Francesco Colonna, o homem desesperado que não podia confiar nem em seus amigos, mais pensava em Paul, trabalhando como um escravo no Hypnerotomachia da mesma maneira que Francesco o fez, cada um deles de um lado de um mesmo fio no tempo, um escritor e um leitor. Vincent Taft pode ter tentado envenenar Paul contra nós, dizendo-lhe que seus ami­gos eram volúveis, mas quanto mais vejo o que Paul fez por esse livro - como ele viveu durante anos, da maneira pela qual vivi só uns poucos meses -, melhor eu compreendo. Foi Francesco Colonna, tanto como qualquer homem vivo, quem o fez duvidar.

 

                                     Capítulo 23

"Nos meses anteriores à sua partida para Florença", diz Paul, "Francesco toma a única medida que acha ser totalmente segura. Decide escrever um livro. Um livro que revelaria a loca­lização da cripta, mas só para alguns poucos estudiosos – não para um leigo, e, acima de tudo, não para os fanáticos. Ele estava convencido de que ninguém poderia resolvê-lo a não ser que fosse um verdadeiro amante do conhecimento - um que temesse tanto Savonarola quanto Francesco o teme, e que nunca permitiria que os tesouros fossem queimados. E ele sonha com um tempo em que os humanistas reinariam outra vez, e a coleção estaria a salvo.

"Assim, ele termina o livro e pede para Terragni enviá­-lo anonimamente a Aldus, por mensageiro. Fingindo ser seu patrono, Francesco diz que recomendaria com insistência a Aldus para manter o livro em segredo. Ele não se identificaria como o autor, de modo que ninguém suspeitasse do que havia nele.

"Então, quando o Carnaval se aproxima, Francesco recruta o arquiteto e os dois irmãos, os três únicos membros remanes­centes do Círculo da Academia Romana, e viaja para Florença. São homens de princípio, mas Francesco compreende quão difícil é a tarefa que eles têm em mãos, por isso insiste para que cada homem jure morrer, se necessário, na Piazza della Signoria.

"Um dia antes de a fogueira das vaidades ser acesa, à noite, Francesco pede aos três amigos para juntar-se a ele para comer e rezar. Eles relembram histórias de suas aventuras juntos, suas via­gens, as coisas que fizeram durante suas vidas. Naquela noite, no entanto, o tempo todo Francesco diz poder avistar uma sombra negra formando-se acima de suas cabeças. Ele não dorme naquela noite. Na manhã seguinte vai se encontrar com Savonarola.

"A partir daqui, todo o texto é escrito pelo arquiteto. Francesco diz que Terragni é o único homem a quem pode confiar essa tarefa. Sabendo que ele precisará de alguém para vigiar seus interesses, se algo acontecer em Florença, ele dá a Terragni um amplo voto de confiança. Ele entrega ao arquiteto seu último criptograma e lhe pede para acrescentar um post-scriptum, em código, no capítulo final, para descrever o que aconteceu com os amigos da Academia Romana. Dá a Terragni a responsabilidade de supervisionar o Hypnerotomachia depois que ele estiver com Aldus, para ter certeza de que será impresso. Francesco diz que teve uma visão de sua pró­pria morte e sabe que não poderá cumprir tudo o que quer sozinho. Ele leva Terragni consigo para registrar o encontro com Savonarola.

"Savonarola está esperando por eles em sua cela, no mosteiro. O encontro havia sido organizado de antemão, de modo que os dois lados estão preparados. Francesco, tentando ser diplomático, diz que admira Savonarola e que os dois partilham dos mesmos objetivos, o mesmo ódio ao pecado. Cita Aristóteles sobre a virtude.

"Savonarola responde citando Santo Tomas de Aquino, em uma passagem quase idêntica. Pergunta para Francesco por que ele prefere uma fonte pagã em vez de uma cristã. Francesco elogia Aquino, mas diz que este emprestou a idéia de Aristóteles. Savonarola perde a paciência. Ele pronuncia uma passagem do Evangelho de Paulo: Estou indo destruir a sabedoria do sábio e redu­zir a nada a compreensão de qualquer um que compreende. Você não vê como Deus apresentou a sabedoria humana como insensatez?

"Francesco escuta com terror. Pergunta a Savonarola por que ele não aceita a arte e o conhecimento, por que está decidido a destruí-los. Ele diz a Savonarola que devem se unir contra o pecado, que a fé é a fonte da verdade e da beleza, que elas não podem ser inimigas. Mas Savonarola sacode a cabeça. Ele diz que a verdade e a beleza são apenas servidoras da fé. Quando são algo diferente disso, o orgulho e o proveito conduzem o homem ao pecado.

"'E assim: diz ele a Francesco, não serei dissuadido. Há mais maldade naqueles livros e naquelas telas do que em todo o resto que será queimado. Pois enquanto jogar cartas e dados pode distrair o tolo, a sua 'sabedoria' é a tentação do poderoso e do forte. As maio­res famílias desta cidade disputam entre si para se tomarem seus patronos. Seus filósofos pregam aos poetas, cujas obras são ampla­mente lidas. Vocês contaminam os pintores com suas idéias, e as pin­turas deles estão penduradas nos palácios dos príncipes, enquanto seus afrescos se amontoam nas paredes e nos tetos de cada igreja. Vocês influenciam duques e reis porque eles se cercam com os seus seguidores, pedindo conselhos a astrólogos e engenheiros que estão comprometidos com vocês, empregando seus sábios para traduzir seus livros. Não', ele diz, 'não deixarei que o orgulho e o proveito continuem a governar Florença. A verdade e a beleza que você ama são falsos ídolos, vaidades, e conduzirão os homens à maldade”.

"Francesco está a ponto de ir embora, ciente de que sua causa nunca se conciliará com a de Savonarola, mas, num acesso de fúria, ele se volta e diz para Savonarola o que pretende fazer. 'Se não aceder aos meus pedidos', diz Francesco, 'então mostrarei ao mundo que você é um louco, não um profeta. Vou tirar cada livro e quadro da sua pirâmide até que o fogo me destrua, de modo que o meu sangue estará em suas mãos. E o mundo se voltará contra você”.

"Francesco se prepara para sair, quando Savonarola diz algo que ele não esperava. 'Minha opinião não pode ser mudada', ele diz, 'mas se você quer morrer por essas convicções, então lhe ofereço meu respeito, e o considero como um filho. Qualquer princípio que for legítimo aos olhos de Deus renascerá, e qualquer mártir que é sincero a uma causa santa se erguerá de suas próprias cinzas e será transportado ao paraíso. Não desejo ver morrer um homem com suas convicções, mas os homens que você representa, que possuem os objetos que você pretende salvar, são movidos ape­nas por ganância e vaidade. Eles nunca se conciliarão com a vontade de Deus, exceto à força. Algumas vezes é intenção de Deus sacrificar o inocente para testar o fiel, e talvez seja esse o caso agora”

"Francesco está prestes a contradizê-lo, a argumentar que o conhecimento e a beleza não deveriam ser sacrificados para sal­var almas de homens corruptos, quando se lembra de seus pró­prios homens, Donato e Rodrigo, e enxerga a verdade nas palavras de Savonarola. Percebe que a vaidade e a cobiça existem mesmo entre os humanistas, e compreende que não chegarão a uma solu­ção. Savonarola lhe pede para sair do mosteiro, porque os monges devem preparar a cerimônia, e Francesco obedece.

"Quando ele regressa com as novidades até o local onde se encontram seus homens, eles começam a cuidar dos atos finais. Os quatro homens, Francesco, Terragni, Matteo e Cesare, vão para a Piazza della Signoria. Enquanto os assistentes de Savonarola pre­param o fogo, Francesco, Matteo e Cesare começam a retirar tex­tos e quadros da pirâmide, como Francesco prometera. Terragni fica parado ao lado, observando e registrando. Os assistentes per­guntam a Savonarola se devem interromper os preparativos, mas ele diz para continuarem. Enquanto Francesco e os irmãos fazem viagem após viagem, com os braços carregados de livros que tiram do monte e colocam em uma pilha distante, Savonarola lhes diz que a fogueira das vaidades será acesa. Ele anuncia que eles mor­rerão se não pararem. Os três homens o ignoram.

"Agora, toda a população da cidade juntou-se na praça esperando para ver o fogo. A multidão está cantando. As chamas começam na base da pirâmide e crescem. Francesco e os dois irmãos ainda estão fazendo viagens. Quando o fogo fica mais forte, eles enrolam panos ao redor do rosto para não inalar fumaça. Usam luvas para proteger as mãos, mas o fogo queima através delas. Na terceira ou quarta viagem seus rostos já estão escurecidos por causa da fumaça. Mãos e pés estão negros de tanto remexerem no fogo. Os homens sentem que a morte se aproxima, e nesse momento, o arquiteto escreve, eles compreendem a glória do martírio.

"Quando a pilha deles cresce, Savonarola ordena a um monge com um carrinho-de-mão que devolva os objetos às cha­mas. Assim que os homens trazem os livros e os quadros, o monge os pega e os leva de volta. Depois de seis ou sete viagens, tudo que Francesco tirou do fogo já voltou e foi queimado. Matteo e Cesare desistiram dos quadros porque as telas já foram destruídas. Os três batem nas capas dos livros com as mãos para apagar as cha­mas, de modo a não queimar as páginas. Um deles começa a gritar em agonia, clamando por Deus.

"Já agora não há esperança de salvar nada. Todas as obras de arte na pirâmide estão arruinadas e muitos dos livros, enegreci­dos. O monge, com o carrinho-de-mão, ainda está carregando tudo o que pode da pilha deles de volta para a fogueira. Cada uma de suas viagens desfaz o que os três fizeram juntos. Pouco a pouco a multidão vai ficando silenciosa. Os assobios e as vaias se aquietam. Aqueles que gritavam com Francesco, chamando-o de louco por tentar salvar os livros, agora estão em silêncio. Algumas pessoas cla­mam para os homens pararem. Mas os três continuam em suas idas e vindas, enfiando as mãos na fogueira, pisando nas brasas, desapa­recendo por alguns segundos, depois reaparecendo. Por ora o som mais alto na praça é o ruído do fogo. Os três homens estão ofegan­tes. Inalaram fumaça demais e não conseguem sequer gritar. Cada vez que eles vão até sua pilha, diz o arquiteto, vocês podem entrever a carne vermelha de suas mãos e pés, onde o fogo queimou a pele.

"O primeiro deles desmaia nas cinzas, o rosto voltado para baixo. É Matteo, o mais jovem. Cesare se detém para ajudar, mas Francesco o arranca de lá. Matteo não se move. O fogo o envolve e seu corpo mergulha na pirâmide. Cesare tenta chamá-lo, pede-lhe que se levante, mas Matteo não responde. Finalmente, Cesare tro­peça no lugar onde seu irmão caiu. Quando está quase conseguindo se erguer, por cima do corpo de Matteo, ele também desmaia.

Francesco assiste a tudo isso à beira da fogueira. Quando ouve a voz de Cesare chamando por Matteo, e depois a percebe extinguir-se sob o fogo, Francesco empreende que está sozinho e cai de joelhos. Por um segundo não se move.

"Quando a multidão começa a achar que ele está morto, Francesco se força a levantar. Remexendo pela última vez na fogueira das vaidades, ele enche as duas mãos com cinzas e cambaleia em direção a Savonarola. Um dos assistentes de Savonarola bloqueia seu caminho, mas Francesco logo pára. Abre os dedos e deixa que as cinzas escorram entre eles como areia. Depois diz: 'Inde ferunt, totidem qui vivere debeat annos, corpore de patrio parvum phoenica renasci: É de Ovídio. Significa: ' Uma pequena fênix renasceu sob nova forma do corpo de seu pai, destinada a viver o mesmo número de anos'. Depois cai aos pés de Savonarola e morre.

"A narrativa de Terragni termina com o enterro de Colonna. Francesco e os dois irmãos receberam funerais quase imperiais proporcionados por suas famílias e seus amigos huma­nistas. E sabemos que o seu martírio teve êxito. Depois de algumas semanas a opinião pública se volta contra Savonarola. Florença está cansada de seu extremismo, de sua reprovação e tristeza cons­tantes. Inimigos espalham rumores sobre ele, tentando provocar sua queda. O papa Alexandre o excomunga. Quando Savonarola resiste, Alexandre o declara culpado de heresia e sedição. Ele é sen­tenciado à morte. Em vinte e três de maio, exatamente três meses depois de Francesco morrer queimado, Florença levanta uma nova pira na Piazza della Signoria. Bem ali, no meio das duas fogueiras, eles enforcam Savonarola e queimam seu corpo em um poste."

"O que aconteceu com Terragni?”, pergunto.

"Tudo que sabemos é que ele honrou sua promessa a Francesco. O Hypnerotomachia foi publicado por Aldus no ano seguinte, 1499”.

Levanto de minha cadeira, excitado demais para permane­cer sentado.

"Desde então", diz Paul, "todos os que tentaram interpretar o livro usaram ferramentas dos séculos XIX ou XX para abrir uma fechadura do século XY." Ele se inclina para trás e respira profun­damente. "Até agora”.

Ele pára, sem fôlego, e fica em silêncio. Passos ressoam no corredor, amortecidos pela porta fechada. Olho para ele, atordoado. Lentamente as coisas da realidade, do exterior, começam a me penetrar de novo, recolocando Savonarola e Francesco Colonna em uma prateleira na minha mente. Mas permanece uma inquie­tante interação entre os dois mundos. Olho para Paul, e percebo que de alguma forma ele se tornou a encruzilhada entre esses mundos, a liga que os une.

"Não posso acreditar", eu digo.

Meu pai deveria estar aqui. Meu pai, e Richard Curry, e McBee. Todos que souberam desse livro e sacrificaram algo para desvendá-lo. Esse é um presente para todos eles.

"Francesco deu direções para a cripta a partir de três dife­rentes pontos de referência", diz Paul. "Será difícil encontrar a localização. Ele até fornece as dimensões, e cataloga tudo que há nela. A única coisa que falta é a cópia heliográfica da fechadura da cripta. Terragni desenhou uma fechadura cilíndrica especial para a entrada. Ela é tão hermética, diz Francesco, que manterá afasta­dos os ladrões e a umidade durante todo o tempo que levar para alguém solucionar o seu livro. Ele continua dizendo que está pres­tes a dar a cópia heliográfica da fechadura e as instruções para abri-­la, mas sempre se distrai, falando de Savonarola. Talvez ele tenha dito a Terragni para incluí-Ia nos capítulos finais, mas Terragni tem tantas outras coisas com as quais se preocupar, que não o fez:'

"E é isso que você estava procurando no escritório de Taft”.

Paul acena que sim. "Richard diz que havia uma cópia heliográ­fica no diário do portuário quando o descobriu trinta anos atrás. Penso que Vincent ficou com ela quando deixou Bill encontrar o diário.

"Você a conseguiu de volta?"

Ele nega com a cabeça. "Tudo que consegui foi um punhado de velhas anotações de Vincent, escritas à mão."

"Então o que você vai fazer?", pergunto.

Paul começa a procurar mais uma vez debaixo de sua cadeira. "Estou à mercê de Vincent."

"O que você contou para ele disso tudo?"

Quando sua mão fica visível, ela está vazia. Perdendo a paciência, empurra a cadeira para trás e fica de joelhos. "Ele des­conhece todos os detalhes sobre a cripta. Só sabe que ela existe:'

Percebo manchas fracas no chão, que correspondem às marcas deixadas pelos pés da cadeira.

"Na noite passada comecei a fazer um mapa com tudo o que Francesco disse sobre a segunda metade do Hypnerotomachia. A loca­lização, as dimensões, os pontos de referência. Eu sabia que Vincent poderia vir procurar o que encontrei, então coloquei o mapa no lugar onde costumava guardar o melhor do trabalho que fiz aqui”.

Ouço um som de metal contra metal, e, do outro lado da cadeira, Paul tira uma chave de fenda. A longa tira de fita isolante que a prendia debaixo da cadeira está dependurada em sua mão. Ele arranca a fita, depois gira a cadeira em nossa direção. As pernas da frente deslizam ao longo dos sulcos do ladrilho, e repentinamente o dueto da ventilação se torna visível. Quatro parafusos mantêm a grade presa à parede. A pintura está lascada em todos eles.

Paul começa a retirar a grade. Um canto de cada vez, dei­xando descoberto um orifício. Paul examina o ducto com a mão e tira de lá um envelope cheio de papéis. Meu primeiro instinto é olhar pela janela da saleta, para ver se há alguém espiando. Agora compreendo por que ela está coberta com uma folha de papel preto.

Paul abre o envelope. Primeiro tira um par de fotografias bastante manuseadas. A primeira é de Paul e Richard na Itália. Eles estão parados no meio da Piazza della Signoria em Florença, bem diante da Fonte de Netuno. Indistinta, ao fundo, há uma cópia do David de Michelangelo. Paul está de shorts e tem uma mochila nas costas; Richard está de terno, mas sua gravata está frouxa e seu colarinho, desabotoado. Ambos estão sorrindo.

A segunda fotografia é de nós quatro, no nosso ano de calouro. Paul está ajoelhado no meio da foto, usando uma gravata emprestada e segurando uma medalha. Nós três estamos à sua volta, e dois professores ao fundo parecem estar se divertindo. Paul acabou de ganhar o torneio anual de ensaio literário da Princeton Francophile Society. Nós três aparecemos como figuras da histó­ria francesa para apoiá-lo. Eu sou Robespierre, Gil é Napoleão e Charlie, com um imenso vestido que encontramos em uma loja de fantasias, é Maria Antonieta.

Paul não faz nada com as fotos, colocando-as com deli­cadeza na cadeira como se estivesse habituado a olhá-las. Agora esvazia o resto do envelope. O que achei que fossem vários papéis é, na verdade, uma única folha grande dobrada diversas vezes para caber dentro do envelope.

''Aí está", diz ele, desdobrando-a em cima da escrivaninha.

Lá, em detalhes minúsculos, há um mapa topológico feito à mão. Linhas de altitude traçadas em círculos desiguais, com marcações grosseiras de direções em um quadriculado apagado. Quase no meio do mapa, traçada em vermelho, há uma figura angular em forma de cruz. De acordo com a escala na lateral, é aproximadamente do tamanho de um dormitório.

"Essa é a cripta?”, pergunto.

Ele acena que sim.

É enorme. Durante um segundo, ambos ficamos em silên­cio, tentando assimilar os fatos.

"O que vamos fazer com o mapa?", pergunto, agora que a saleta está vazia.

Paul abre a mão. Os quatro pequenos parafusos do dueto de ventilação rolam como sementes em sua palma. "Colocá-lo em um lugar seguro”.

"De volta na parede?"

"Não”.

Paul se abaixa para aparafusar a grade do dueto, e parece estar completamente calmo. Quando ele se levanta e começa a arrancar as folhas de papel que estão grudadas na parede, as men­sagens desaparecem uma após a outra. Reis e monstros, nomes antigos, anotações que não queria que ninguém mais visse.

"Então, o que você vai fazer com isso?", eu digo, olhando para o mapa.

Ele amassa as folhas em sua mão. As paredes estão brancas de novo. Depois de sentar e dobrar o mapa, como estava antes, diz muito suavemente: "Eu o estou dando para você”.

“O quê?”.

Paul coloca o mapa no envelope e o entrega a mim. Guarda as fotos para si.

"Prometi que você seria o primeiro a saber. Você merece isso?”.

Ele diz isso como se estivesse apenas mantendo sua palavra.

"O que você quer que eu faça com isso?"

Ele sorri. "Não o perca."

"E se Taft vier procurá-lo?"

"É isso mesmo. Se ele vier, virá procurá-lo comigo." Paul faz uma pausa antes de falar de novo. "E, além do mais, quero que você se acostume a tê-lo por perto."

"Por quê?"

Ele se senta. "Porque quero que trabalhemos juntos. Quero que encontremos a cripta de Francesco juntos."

Finalmente compreendo. "No ano que vem."

Ele acena que sim. "Em Chicago. E Roma."

O respiradouro zumbe mais uma vez, assobiando atra­vés da grade.

       "Isso é seu”, é tudo que consigo dizer. "Sua tese. Termine-a você”.

"Isso é tão maior do que uma tese, Tom."

"É também muito maior do que uma tese de Ph.D”.

"Exatamente”.

Agora percebo a ansiedade em sua voz. Esse é apenas o começo.

"Não quero fazer isso sozinho", ele diz.

“O que eu posso fazer?”

Ele sorri. "Por enquanto tome conta do mapa. Guarde-o com você, durante um tempo”.

O mapa me irrita, o envelope é muito leve, me inquieta a impermanência do que estou segurando. Parece argumentar con­tra a realidade de tudo isso, que a sabedoria do Hypnerotomachia possa caber na concavidade da minha mão.

"Venha", diz Paul finalmente, olhando para seu reló­gio. "Vamos para casa. Precisamos pegar algumas coisas para Charlie”.

Ele apanha tudo o que sobrou de seu trabalho com uma só mão. Não há mais vestígios de Paul ou de Colonna na saleta, ou da longa trilha de idéias conectadas durante quinhentos anos. A folha de papel preto na janela desapareceu.

 

                                     Capítulo 24

A última questão que o recrutador da Daedalus perguntou durante minha entrevista para o emprego foi um enigma: Uma rã cai num poço de cinqüenta metros e tem de subir para sair; se ela subir três metros a cada dia, mas escorregar dois metros a cada noite, em quantos dias escapará?

A resposta de Charlie foi que ela nunca escapa, porque uma rã que cai cinqüenta metros não se levanta. A resposta de Paul teve a ver com um antigo filósofo que morreu ao cair num poço, quando estava andando e olhando para as estrelas. A res­posta de Gil foi que nunca ouviu falar de uma rã subindo paredes e, de qualquer modo, o que isso tudo tinha a ver com desenvolver software no Texas?

A resposta correta, acho, é que leva quarenta e oito dias para a rã sair, ou dois dias a menos do que se espera. O truque é perceber que a rã sobe um metro por dia no fim das contas - mas que no quadragésimo oitavo dia ela sobe três metros e alcança o alto do poço antes de escorregar de novo.

Não sei o que me fez pensar nisso bem agora. Talvez esse seja o tipo de momento em que enigmas têm um brilho próprio, uma sabedoria que ilumina os limites da experiência quando nada mais pode fazê-lo. Em um mundo onde a metade dos aldeões sem­pre mente e a outra metade sempre diz a verdade; onde a lebre nunca pega a tartaruga porque a distância entre elas diminui por uma infinidade de metades que nunca desaparecem; onde a raposa nunca pode ser deixada do mesmo lado da margem do rio que a galinha, ou a galinha do mesmo lado que a semente, porque com perfeita regularidade a primeira irá consumir a segunda, e nada do que você fizer impedirá isso: nesse mundo tudo é conhe­cido, exceto a premissa. Um enigma é um castelo construído no ar, perfeitamente habitável se você não olhar para baixo. A grande impossibilidade naquilo que Paul me contou - que uma antiga rivalidade entre um monge e um humanista deixou uma cripta cheia de tesouros debaixo de uma floresta esquecida - reside na impossibilidade muito mais básica de que um livro como o Hypnerotomachia, escrito em código, impenetrável, ignorado pelos estudiosos durante quinhentos anos, pudesse existir. Ele não podia; no entanto, aos meus olhos ele é tão real quanto eu sou para mim mesmo. E se aceito sua existência, então o alicerce fica estabelecido, e o castelo impossível pode ser construído. O resto é apenas argamassa e pedras.

Quando a porta do elevador se abre, e o saguão da biblio­teca parece sem importância na luz invernal, é como se emergís­semos de um túnel. Cada vez que penso no enigma da Daedalus, imagino a surpresa da rã quando, pela primeira vez, no seu último dia, três passos para a frente não são seguidos de dois passos para trás. Existe uma rapidez no alto do poço, uma velocidade ines­perada no final do dia, que sinto agora. O enigma que eu conhe­cia desde criança - o enigma do Hypnerotomachia - havia sido resolvido em menos de um dia.

Passamos pela catraca, na entrada da biblioteca, e o frio cortante do vento passa por debaixo da porta de entrada. Paul mantém a porta aberta e eu fecho o meu casaco. Há neve por todo lado, nada de pedras, paredes ou sombras, apenas brilhantes flocos de neve. Ao meu redor rodopiam Chicago e Texas; a formatura; o Dod e a minha casa. Aqui estou, subitamente, vivo, na Terra.

Seguimos em direção ao sul. No caminho de volta ao dor­mitório, um contêiner de lixo havia sido derrubado. Pequenos sacos de lixo aparecem no meio de montinhos de neve, e os esquilos já estão sobre eles, pegando caroços de maçã e garrafas vazias de loção, cheirando tudo antes de começar a comer. Eles são pequenas criaturas discriminadoras. A experiência lhes mos­trou que ali há sempre comida, porque o estoque é reabastecido todos os dias, de modo que por toda parte nozes e bolotas ficam desenterradas. Quando um abutre aparece ao lado do contêiner virado mostrando primazia, os esquilos apenas chiam e mordis­cam, ignorando-o.

"Você sabe no que o abutre me faz pensar?”, pergunta Paul.

Sacudo a cabeça e o pássaro voa com fúria, estendendo suas asas incrivelmente longas, escapando com um único saco de migalhas de pão.

       "Na águia que matou Aeschylus atirando uma tartaruga    em cima dele", diz Paul.

       Tenho que olhar para ele para ver se está falando sério.

       "Aeschylus era calvo", ele continua. "A águia estava ten­tando quebrar o casco atirando-o sobre uma pedra. Ela não podia discernir a diferença."

Isso me lembra de novo do filósofo que caiu no poço. A mente de Paul está sempre fazendo isso, juntando o presente com o passado, ordenando o passado.

       "Se você pudesse estar em qualquer lugar que quisesse agora”, pergunto a Paul, "onde estaria?"

Ele olha divertido para mim. "Em qualquer lugar?"

Faço que sim com a cabeça.

"Em Roma, com uma escavadeira."

Um esquilo olha por cima de um pedaço de pão que está segurando, observando-nos.

Paul se vira para mim. "E você? No Texas?”

"Não.”

"Chicago?”

"Não sei”.

Passamos pelo pátio atrás do museu de arte, aquele que o separa do Dod. Há pegadas aqui, para a frente e para trás em ziguezagues.

"Você sabe o que Charlie me contou?': diz ele olhando para as pegadas na neve.

“O quê?”.

"Se alguém dá um tiro, a bala alcança o chão tão rápido quanto se essa pessoa a deixasse cair”.

       Isso se parece com algo que aprendi em física introdutória.

       "Nunca se pode exceder a gravidade”, diz Paul. "Não importa quão rápido a gente caminhe, ainda estaremos caindo como uma pedra. Isso nos faz indagar se o movimento horizontal é uma ilusão. Se nos movemos apenas para nos convencer que não estamos caindo”.

"Aonde você quer chegar?”

"Ao casco da tartaruga”, ele diz. "Isso fazia parte de uma profecia. Um oráculo disse que Aeschylus morreria de uma pancada do céu.”

       Uma pancada do céu, penso. Minha nossa!, sem poder evi­tar de sorrir.

"Aeschylus não podia escapar ao oráculo”, continua Paul. "Nós não podemos escapar da gravidade”. Ele entrelaça os dedos, um encaixe perfeito. "Céu e Terra, falando em uníssono.”

       Seus olhos estão bem abertos, tentando captar tudo, como uma criança em um zoológico.

       "Você provavelmente diz isso a todas as meninas”, eu digo.

       Ele sorri. "Sinto muito. Sensibilidade exacerbada. Estou todo confuso. Não sei por quê.”

Eu sei. Há alguém mais para se preocupar com a cripta agora, alguém mais para se preocupar com o Hypnerotomachia. Atlas se sente mais leve sem o mundo em seus ombros.

       "É como sua pergunta”, ele diz, caminhando na minha frente quando nos dirigimos para o quarto. "Se você pudesse estar em qualquer lugar, onde estaria?" Ele estende as mãos, e a verdade parece pousar nelas. "Resposta: não importa, porque para qual­quer lugar que se caminhe, ainda se estará caindo."

Ele sorri quando diz isso, como se não houvesse nada deprimente na idéia de que estamos em queda livre. A eqüidade final de ir a qualquer lugar, fazer qualquer coisa, Paul parece que­rer dizer, é que estar comigo no Dod é tão bom quanto estar em Roma com uma escavadeira. À sua maneira, acho, e com suas pró­prias palavras, o que ele está dizendo é que está feliz.

Ele pega sua chave e a enfia na fechadura. O aposento está silencioso quando entramos. Esse local foi palco de tanta ação desde ontem, arrombamento, a presença de seguranças e policiais, que é inquietante encontrá-lo vazio e escuro.

Paul vai até o dormitório para pendurar sua jaqueta. Instintivamente, vou até o telefone para pegar os recados.

Oi, Tom, começa a voz de Gil, misturada com muita estática. Vou tentar. entrar em contato com vocês mais tarde mas... parece que não vou conseguir voltar ao hospital depois, então... Charlie para mim... Tom... black tie. Você pode alugar... precisa.

Black tie! O baile.

Começa a segunda mensagem.

Tom, é Katie. Só para avisá-lo que estou indo ao clube para ajudar na organização, assim que eu terminar aqui na câmara escura. Acho que você disse que iria com Gil. Uma pausa. Então con­versamos à noite.

Há uma hesitação antes de ela desligar, como se não estivesse segura de ter colocado suficiente ênfase nas últimas palavras, o lem­brete de assuntos não terminados.

"O que está acontecendo?", Paul grita do quarto.

"Tenho que me aprontar”, digo calmamente, percebendo a direção que as coisas estão tomando.

Paul sai do quarto. "Para quê?"

"O baile”.

Ele não compreende. Nunca lhe contei sobre o que eu e Katie conversamos na câmara escura. O que vi hoje, tudo o que ele me contou, virou o mundo de cabeça para baixo. Mas no silên­cio que se segue, encontro-me no ponto em que estava antes. A antiga amante, repudiada, retomou para me tentar. Há um ciclo aqui, no qual, até este momento, tenho estado muito interessado para romper. O livro de Colonna me estimula com visões de per­feição, uma irrealidade que posso habitar pelo minúsculo preço de minha louca devoção, meu afastamento do mundo. Francesco, tendo inventado esse estranho intercâmbio, também inventou seu nome: Hypnerotomachia, a luta por amor em um sonho. Se alguma vez houve um tempo para permanecer com os pés no chão, para resistir àquela luta e seu sonho - se alguma vez houve um tempo para lembrar um amor que se dedicou a mim loucamente, para lembrar a promessa que fiz a Katie - esse tempo é agora.

"O que está errado?", pergunta Paul.

Não sei como lhe dizer. Nem mesmo sei o que lhe dizer.

"Tome", eu digo, estendendo o braço.

Mas ele não se move.

"Pegue o mapa”.

"Por quê?" De início ele me olha perplexo, muito excitado para compreender.

"Não posso fazer isso, Paul. Sinto muito."

Seu sorriso se apaga. "O que você quer dizer?"

"Não posso mais trabalhar nisso." Coloco o mapa na mão dele. "Ele é seu."

"É nosso", diz ele, não entendendo o que está aconte­cendo comigo.

Mas não é. Ele não nos pertence; desde o começo, nós é que pertencemos ao livro.

"Sinto muito. Não posso fazer isso."

Nem aqui; nem em Chicago; nem em Roma.

"Mas você já fez”, diz Paul. "Está feito. Tudo de que precisa­mos é da cópia heliográfica para a fechadura."

A certeza disso, no entanto, já está entre nós. Um olhar novo começa a aparecer em seus olhos, um olhar de afogado, como se a força que antes o fazia boiar tivesse, subitamente, desa­parecido, e o mundo estivesse de pernas para o ar. Passamos tanto tempo juntos que posso me dar conta disso sem ele dizer uma única palavra: a liberdade que sinto, minha emancipação de uma cadeia de eventos que começou antes de eu nascer) está refletida nele ao contrário.

"Não se trata de uma coisa ou outra”, diz ele, recuperando-se. "Você pode ter ambas, se quiser”.

"Eu não acho."

"O seu pai teve."

Mas ele sabe que meu pai não teve.

"Você não precisa da minha ajuda", eu afirmo. "Você já conseguiu o que precisa”.

Mas eu sei que ele ainda não conseguiu.

Um silêncio incômodo se segue, cada um de nós sentindo que o outro está certo, mas que nenhum de nós está errado. A matemática da moralidade é incerta. Paul dá a impressão de que­rer argumentar comigo, defender seu ponto de vista uma última vez, mas é sem esperança e ele sabe disso.

Então, em vez disso, Paul calmamente repete uma piada que ouvi Gil contar milhares de vezes. Ele não sabe expressar de outra maneira o que está sentindo.

"O último sobrevivente da Terra entra em um bar", ele murmura. “O que ele diz?”

Paul vira a cabeça para a janela, mas não pronuncia a frase ­clímax da piada. Ambos sabemos o que o último sobrevivente diz. Ele olha para a sua caneca de cerveja, desolado e estupefato, e diz: "Caneca, eu gostaria de um outro barman”.

"Sinto muito”, eu digo.

Paul, no entanto, já está em algum outro lugar agora. "Preciso encontrar Richard”, ele murmura.

"Paul?"

Ele se vira. "O que você quer que eu diga?"

“O que você quer e Curry?”

"Lembra do que lhe perguntei quando íamos para Firestone?", ele diz. "O que teria acontecido se eu nunca tivesse encontrado o livro de seu pai? Você lembra o que me respondeu?"

"Eu disse que nunca teríamos nos encontrado”.

Milhares de contingências se acumularam de maneira que pudéssemos nos encontrar - que estivéssemos aqui, agora. O des­tino, a partir da desordem e confusão de quinhentos anos, formou um castelo no ar de modo que dois colegas pudessem tornar-se reis. É assim que eu penso, ele quis dizer.

"Quando você encontrar com Gil”, diz Paul, pegando sua jaqueta, "diga-lhe que pode ter de volta a sala do presidente. Não preciso mais dela.”

Lembro do seu carro, quebrado em uma rua lateral perto do Instituto, e o imagino caminhando na neve para encontrar Curry.

"Não é seguro ir sozinho...”, comecei.

Mas ele sempre foi sozinho. E já está saindo pela porta.

Eu podia ter ido com ele, se não tivessem ligado do hospi­tal um minuto depois para me passar uma mensagem de Charlie.

"Ele está acordado e falando”, diz a enfermeira. "E está cha­mando por você.”

       Já estou colocando o boné e as luvas.

       No meio do caminho para o hospital pára de nevar. Durante algumas quadras há até um tímido sol acima do hori­zonte. As nuvens por toda parte tomam a forma de mesas pos­tas - sopeiras e pratos de sopa e jarras, um garfo e uma colher embrulhados em um guardanapo - e percebo como estou faminto. Espero que Charlie esteja tão bem quanto disse a enfer­meira. Espero que estejam dando comida para ele.

Chego ao hospital e encontro a porta do quarto bloqueada por uma pessoa que é mais assustadora do que Charlie: sua mãe. A Sra. Freeman está explicando ao médico que depois de tomar o primeiro trem que saía de Filadélfia para estar aqui, e ouvir um homem do escritório do reitor dizer que Charlie está perigosa­mente perto de uma suspensão, e tendo sido ela mesma uma enfer­meira durante dezessete anos antes de se tornar professora, não está disposta a ouvir um médico ser condescendente ao lhe falar a respeito de seu filho. Por causa da cor de sua roupa reconheço-o como o homem que disse a Paul e a mim que Charlie estava em condição estável. Ele diz palavras convencionais e tem um sorrido enlatado. Não parece se dar conta do efeito desse sorriso.

Assim que me viro para entrar no quarto de Charlie, a Sra. Freeman me avista.

”Thomas", ela diz, deslocando seu peso.

Há sempre uma sensação que surge ao redor da Sra. Freeman de que você está observando um efeito geológico e que, se não for cuidadoso, poderá ser esmagado. Ela sabe que minha mãe cuida de mim sozinha, então acha que deve contribuir para minha educação.

"Thomas!", ela repete. É a única pessoa que me chama dessa maneira. "Venha cá”.

Dou um passo até ela.

"Aonde você meteu meu filho?”, ela pergunta.

"Ele estava tentan..."

Ela dá um passo à frente, cobrindo-me com o seu vulto. "Eu o avisei sobre esse tipo de coisa, não foi? Depois daquele negócio no teto daquele edifício, lembra?"

O badalo! "Senhora Freeman, aquilo foi idéia dele..."

"Ah, não. Não de novo. O meu Charlie não é um gênio, Thomas. Ele deve ter sido tentado”.

Mães! A Sra. Freeman acha que seu filhinho não pode fazer nada de errado. Ela olha para nós três e nos considera como más companhias. Eu só tenho minha mãe, Paul não tem pais e Gil tem uma madrasta, não temos modelos positivos em nossas famílias, e Charlie é o único com um lar equilibrado. E, por alguma razão, sou o único com um forcado e um rabo. Se ela soubesse a verdade! Moisés também tinha cornos.

"Deixe-o em paz", vem uma voz ofegante lá de dentro.

Como a Terra em seu eixo, a Sra. Freeman se vira.

"Tom tentou me tirar lá de dentro", diz Charlie, mais fraco agora.

Um silêncio súbito se segue. A Sra. Freeman olha para mim como se dissesse: Não ria, não há nada de esperto em tentar tirar o meu filho do lugar onde você o enfiou. Mas quando Charlie começa a falar de novo, ela me diz para entrar e falar com seu filho antes que ele saia da cama e se arraste pelo quarto. Ela tem assuntos para tratar com o médico.

"E, Thomas", diz, antes de eu poder passar por ela, "não ponha nenhuma idéia na cabeça daquele menino."

Eu aceno que sim. A Sra. Freeman é a única professora que conheço que faz as idéias soarem como uma palavra ofensiva.

Charlie está escorado em uma cama de hospital com uma grade de cada lado, do tipo que não é suficientemente alta para impedir um sujeito grande de cair da cama numa noite má, mas é exatamente da altura certa para permitir que um auxiliar de enfermagem deslize um cabo de vassoura entre as grades para.manter você preso àquela cama para sempre, um convalescente permanente. Tive mais pesadelos no hospital do que o número total de histórias contadas por Sherazade, e mesmo o tempo não os apagou de minha memória.

"A hora de visita termina dentro de dez minutos", diz a enfermeira sem olhar para o relógio. Ela segura uma cuba em forma de rim em uma mão e um espanador na outra.

Charlie observa como ela se move. Com uma voz lenta e rouca ele diz: "Acho que ela gosta de você”.

Do pescoço para cima ele parece quase bem. Há um pou­quinho de pele rosada aparecendo na altura de sua clavícula; fora isso só parece cansado. Foi em seu peito que aconteceu o estrago. Ele está envolto em gaze até o ponto da sua cintura que está leve­mente coberta, e há lugares nos quais o pus manchou a gaze.

"Você pode ficar por aqui para ajudá-los a me trocar”, diz Charlie, chamando minha atenção.

Seus olhos estão amarelados como os de alguém com icte­rícia. Há uma umidade em seu nariz que provavelmente enxuga­ria se pudesse.

Como você se sente”, pergunto.

Como eu pareço”?

"Bastante bem, considerando tudo."

Charlie procura sorrir. Quando ele tenta se olhar, no entanto, percebo que não tem idéia de sua aparência atual. Ele apenas sabe que não deve confiar em seus sentidos.

"Alguém mais veio vê-lo?", pergunto.

Ele demora um pouco para responder. "Gil não veio, se é o que você quer saber."

"Quero saber se veio alguma outra pessoa."

"Talvez você não tenha visto minha mãe, lá fora", Charlie sorri, e repete sem se dar conta. "É fácil ela passar desapercebida."

Olho novamente para a porta. A Sra. Freeman ainda está falando com o médico.

"Não se preocupe", diz Charlie, interpretando mal. "Ele virá”.

Agora a enfermeira já avisou a todos os que se importam com Charlie que ele está consciente. Se Gil ainda não apareceu é porque não virá.

"E você", diz Charlie mudando de assunto. "Você se sente bem com o que aconteceu antes?"

"Onde?"

"Você sabe. Aquilo que Taft disse”.

Tento lembrar as palavras. Estivemos no Instituto horas antes. Essa é provavelmente a última coisa de que ele se recorda.

"Sobre o seu pai”, Charlie tenta mudar de posição e estre­mece.

Olho para as grades, que estão presas. A Sra. Freeman inti­midou tanto o médico que ele a levou para uma sala reservada para conversar. Os dois desapareceram atrás de uma porta dis­tante, e agora o corredor está vazio.

"Olhe", diz Charlie fracamente, "não deixe uma pessoa como aquela confundir sua cabeça."

Isso é o que Charlie faz à beira da morte. Ele pensa sobre meus problemas.

"Estou contente que você está bem”, eu digo.

Sei que ele está prestes a dizer algo espirituoso, quando sente a pressão que estou colocando em sua mão e desiste.

"Eu também."

Charlie sorri de novo para mim, depois gargalha. "Estou danado”, ele diz, e sacode a cabeça. Seus olhos se concentram em algo atrás de mim. "Estou danado", ele repete.

Ele está desmaiando, eu acho. Mas quando me volto, Gil está parado na porta, com um buquê de flores na mão.

"Roubei essas flores da arrumação do baile", ele diz de maneira hesitante, como se não tivesse certeza de ser bem rece­bido. "É melhor você achá-las bonitas."

"Sem vinho?”, a voz de Charlie está fraca.

Gil dá um sorriso sem graça. "Só uma bugiganga barata para você." Ele se aproxima e estende a mão para Charlie.

''A enfermeira me disse que só temos dois minutos", avisa Gil. "Como você está se sentindo?"

       "Já estive melhor", diz Charlie. "Já estive pior”.

       "Acho que vi sua mãe aqui", Gil replica, procurando uma maneira de quebrar o gelo.

       Charlie está começando a ficar tonto, mas consegue sorrir.

"É fácil ela passar desapercebida”.

       "Você não vai pagar as nossas contas hoje à noite, não é?", pergunta Gil calmamente.

       "Fora do hospital?", diz Charlie, sem saber o que a per­gunta queria dizer.

       "Sim”.

       "Talvez", ele murmura. ''A comida aqui”, ele desabafa, "é terrível."

Sua cabeça recai sobre o travesseiro, bem na hora que a enfermeira retorna para dizer que o nosso tempo acabou, que Charlie precisa descansar.

       "Durma bem, chefe”, diz Gil, colocando o buquê na mesa­-de-cabeceira.

       Charlie não o escuta. Ele já está respirando pela boca.

Enquanto saímos, olho de novo para ele, escorado em sua cama, todo enfaixado e tomando soro. Lembro de um livro com histórias em quadrinhos que costumava ler quando criança. Sobre o gigante quebrado que a medicina reconstruiu. A mis­teriosa recuperação do paciente que espantou os médicos. A escuridão cai sobre a aldeia de Gotham, mas as manchetes são sempre as mesmas. Hoje um super-herói lutou contra as forças da natureza e viveu para queixar-se da comida.

"Ele vai ficar bom?", pergunta Gil, quando chegamos ao estacionamento. Só o Saab está estacionado ali, com seu motor ainda bastante quente para derreter a neve que cai sobre ele.

"Acho que sim”.

"O seu peito parece bastante machucado”.

Não sei como é a reabilitação para vítimas de queima­dura, mas se acostumar de novo com sua própria pele não deve ser fácil.

"Achei que você não fosse aparecer", digo a ele.

Gil hesita. "Eu queria ter estado lá com vocês."

"Quando?”

"Durante o dia todo."

"Você está brincando?"

Ele se volta para mim. "Não. O que você quer dizer?"

Paramos perto do carro. Percebo que estou furioso com ele, furioso porque havia sido tão difícil para ele encontrar algo para dizer a Charlie, furioso porque, durante a tarde, ele parecia ter medo de visitar Charlie.

"Você estava onde queria estar”, eu digo.

"Vim logo que eu soube."

"Você não estava conosco."

"Quando?': ele pergunta. "De manhã?"

"Durante esse tempo todo."

"Credo, Tom..”.

"Você sabe por que ele está aqui?", eu pergunto.

"Porque ele tomou a decisão errada”.

"Porque ele tentou ajudar. Ele não quis que fossemos sozinhos ao escritório de Taft. Ele não quis que Paul se ferisse nos túneis”.

"O que você quer, Tom? Um pedido de desculpas? Mea culpa. Não posso competir com Charlie. Essa é a maneira de ser dele. Ele sempre foi assim."

"Essa era a maneira de ser de vocês. Sabe o que a senhora Freeman me disse lá dentro? A primeira coisa que ela lembrou? Foi o roubo do badalo de Nassau Hall."

Gil passa os dedos pelos cabelos.

"Ela me responsabiliza por isso. Sempre o fez. Você sabe por quê?"

"Porque ela pensa que Charlie é um santo”.

"Porque ela não pode acreditar que você seja o tipo de pes­soa capaz de fazer algo assim."

Ele desabafa. "E daí?"

"Você é o tipo de pessoa capaz de fazer algo desse tipo. Você o fez.

Ele parece não saber o que dizer. "Será que lhe ocorreu que naquela noite eu talvez tivesse bebido meia dúzia de cervejas, antes de me encontrar com vocês? Talvez eu não estivesse pen­sando direito”.

"Ou talvez você fosse diferente então."

"Sim, Tom. Talvez eu fosse”.

Um silêncio se instala. Os primeiros montinhos de neve estão se formando sobre o motor do Saab. De alguma forma, as palavras equivalem a uma confissão.

"Olhe”, diz ele. "Sinto muito."

"Pelo quê?"

"Eu devia ter ido ver Charlie na primeira vez. Quando encontrei você e Paul”.

"Esqueça."

"Eu sou teimoso. Sempre fui teimoso”.

Ele acentua o sempre, como para dizer: Olhe, Tom, algu­mas coisas não mudaram.

Mas tudo mudou. Em uma semana, um dia, uma hora. Charlie, depois Paul. Agora, subitamente, Gil.

"Não sei", eu digo.

"Você não sabe o quê?"

"O que você tem feito todo esse tempo. Por que tudo está diferente. Meu Deus!, nem sei o que você vai fazer no ano que vem”.

Do seu bolso traseiro Gil tira a chave do carro e destranca a porta.

“Vamos”, ele diz. “Antes de congelar”.

Estamos parados na neve, sozinhos no estacionamento do hospital. O sol quase se pôs, trazendo a escuridão, dando a tudo uma textura de cinzas.

"Entre", diz Gil. "Vamos conversar”.

 

                                             Capítulo 25

Naquela noite tive a oportunidade de conhecer Gil de novo, como se fosse pela primeira vez e, provavelmente, também a última. Ele estava quase tão encantador quanto eu lembrava: divertido, interessado, astuto no que lhe interessava e complacente com o que não lhe dizia respeito. Voltamos para o dormitório, ouvindo Sinatra, a conversa fácil, e antes que eu pudesse me per­guntar o que iria vestir para ir ao baile, abri a porta de meu quarto e encontrei um smoking esperando por mim em um cabide, limpo e passado, com uma nota pregada no envoltório de plástico. Tom - se não servir, você tem de encolher. - G. No meio de tudo o mais, ele achou tempo para levar um dos meus ternos até uma loja de aluguel e alugar um smoking do meu tamanho.

"Meu pai acha que tenho que ficar um tempo sem fazer nada", ele diz, respondendo à minha questão anterior. "Viajar durante algum tempo. Europa, América do Sul”.

É estranho lembrar-se de alguém que sempre conhecemos. Não é o mesmo que voltarmos para a casa onde fomos criados e percebermos o quanto a forma dela está gravada em nós, como as paredes entre as quais crescemos e as portas que sempre abrimos continuam sendo como eram antes. É mais envolvente voltarmos para casa e ver nossa mãe ou irmã, que têm idade suficiente para não ter crescido desde a última vez em que as vimos, mas que são também bastante jovens para não ter envelhecido, e percebermos pela primeira vez que impressão elas causam para os outros, quão lindas seriam se não as conhecêssemos, o que nosso pai e nosso cunhado viam quando as apreciavam mais e conheciam menos.

"Honestamente?", diz Gil, "não me decidi. Não sei se meu pai é a pessoa indicada para me dar conselhos. O Saab foi idéia dele, e foi um equívoco. Ele o escolheu pensando no que ele queria ter quando tinha a minha idade. Ele fala comigo como se eu fosse outra pessoa."

Gil tem razão. Ele não é mais o calouro que deixou as calças penduradas no teto de Nassau Hall. Ele é mais cuidadoso agora, mais circunspecto. Quando as pessoas o vêem pensam que ele é criterioso, comprometido socialmente. A autoridade natural no seu falar e na sua linguagem corporal está mais pronunciada agora, uma qualidade que Ivy tem cultivado. As roupas que usa são mais discretas, e seu cabelo, antes sempre bastante comprido para ser notado, está o tempo todo bem aparado agora. Há uma ciência nisso, porque nunca se percebe que ele acabou de ser cor­tado. Ele aumentou um pouquinho de peso, o que o torna bonitão de uma maneira diferente, um tantinho mais sossegado, e o pouco da afetação que trouxera de Exeter - o anel que usava em seu dedo rosado, o brinco em sua orelha - desapareceu sorrateiramente.

"Acho que vou esperar até o último minuto. Vou decidir durante a formatura - algo espontâneo, algo inesperado. Talvez venha a me tornar um arquiteto. Talvez volte a navegar”.

Aí está ele, trocando de roupa, tirando as calças na minha frente, sem perceber que eu sou um perfeito estranho, uma pessoa que ele nunca conheceu. Percebo que talvez eu seja um estranho para mim mesmo, que nunca tenha sido capaz de compreender a pessoa por quem Katie esperou durante a noite inteira ontem, nem a versão mais nova, o eu que está aqui, agora. Há um enigma aqui em algum lugar, um paradoxo. A história da rã e da parede e o curioso caso de Tom Sullivan, que olhava no espelho e via o passado.

"Um homem entra em um bar", diz Gil, voltando para um terreno já conhecido. "Completamente nu. E há um pato sentado em sua cabeça. O garçom lhe diz: ‘Carl, você está diferente hoje'. O pato sacode a cabeça e responde: 'Harry, você não acreditaria se eu lhe contasse'."

Fico me perguntando por que ele escolheu essa piada. Talvez ele esteja querendo indicar a mesma coisa, durante todo o tempo. Todos nós estamos falando com ele como se se tratasse de uma outra pessoa. O Saab nos deu uma impressão sobre ele, e foi esse o nosso equívoco. O Gil, ele mesmo, é uma coisa inesperada, algo espontâneo. Um arquiteto, um navegador, um pato.

"Você sabe o que eu estava ouvindo no rádio no outro dia?” ele pergunta. "Depois que Anna e eu rompemos?"

       "Sinatra." Mas eu sei que estou errado.

"Samba", ele me diz. "Eu estava procurando uma rádio para ouvir e a WPRB estava tocando uma seleção latina. Algo ins­trumental, sem vozes. Um belo ritmo. Um ritmo maravilhoso."

WPRB. A estação de rádio do campus, que tocava o Messias de Handel na época em que as mulheres entraram em Princeton pela primeira vez. Lembro de Gil na primeira noite que o encontrei, do lado de fora da torre onde estava o sino de Nassau Hall. Ele saiu das sombras, dando uns passos de rumba, dizendo: "Agora, mexa-se, meu amor. Dance”. Sempre ouve música ao seu redor, o jazz que ele está sempre tentando tocar ao piano, desde o primeiro dia em que nos encontramos. Talvez haja algo velho no meio do novo, afinal.

"Não sinto falta dela", ele diz, experimentando pela pri­meira vez falar a respeito comigo. "Ela punha aquela meleca em seu cabelo. Pomada. Seu cabeleireiro recomendava. Você sabe o cheiro que fica depois que alguém faz a limpeza e passa o aspira­dor? Uma espécie de quente e limpo?"

"Claro."

"Era o mesmo cheiro. Ela devia secar os cabelos com seca­dor até eles queimarem. Cada vez que encostava sua cabeça em meus ombros, eu pensava que ela cheirava como o meu carpete”.

Ele agora está em plena associação livre.

"Você sabe quem mais cheira desse jeito?”, ele pergunta.

"Quem?"

"Pense um pouco. Nos anos de calouro”.

Quente e limpo. A lareira em Rockfeller me vem imediata­mente à mente.

"Lana McKnight”, eu digo.

Ele faz que sim. "Nunca entendi como vocês ficaram tanto tempo juntos. A química era tão estranha. Eu e Charlie apostáva­mos tentando acertar quando vocês iriam romper."

"Ele me disse que gostava de Lana."

"Lembra da garota que ele namorou no segundo ano?", pergunta Gil, andando pelo quarto.

"Charlie?"

"O nome dela era Sharon, acho”.

"Aquela com um olho de cada cor?"

"Ela mesma, tinha um cabelo com cheiro gostoso. Lembro que ela sentava em nosso quarto para esperar por Charlie. O quarto todo ficava com o mesmo cheiro da loção que minha mãe costumava usar. Eu nunca soube o que era, mas gostava dele."

Reparo que antes Gil só havia mencionado sua madrasta para mim, nunca sua mãe verdadeira. O afeto o entregou.

"Você sabe por que eles pararam de namorar?”, ele pergunta.

“Porque ela o largou”.

Gil sacode a cabeça. "Porque ele ficou cansado de apanhar coisas dela depois que ela saía. Ela esquecia as coisas no ,nosso quarto - malhas, bolsas, qualquer coisa -, e Charlie tinha de devolvê-las. Ele não percebia que isso era apenas uma jogada. Ela estava lhe dando um motivo para visitá-la de noite. Mas Charlie pensava que ela era uma relaxada.

Eu me esforço, tentando dar o nó em minha gravata no meio das pontas do colarinho. Bom velho Charlie. Asseio próximo da religiosidade.

"Ela não rompeu com ele", continua Gil. "As garotas que se apaixonam por Charlie nunca o fazem. É sempre ele que as abandona."

Há uma leve sugestão em sua voz de que esse fato sobre Charlie merece ser lembrado, um traço de caráter importante, esse jeito de censurar. Como se isso ajudasse a explicar os problemas que Gil tinha tido com ele.

"Ele é um bom rapaz", conclui Gil, ao perceber o que estava fazendo.

Ele parece satisfeito de parar por aí. Durante um segundo não se ouve som algum no quarto exceto o roçar de tecido con­tra tecido quando arranco a gravata para começar de novo. Gil está sentado em seu colchão, passando os dedos pelos cabelos. Ele adquiriu esse hábito quando seus cabelos eram longos. Suas mãos ainda não se adaptaram à mudança.

Por fim consigo dar um nó na gravata, uma espécie de noz com asas. Olho no espelho e decido que está bastante bom. Visto o paletó do smoking. Ele se ajusta como uma luva, melhor do que o do meu próprio terno.

Gil ainda está silencioso, olhando-se no espelho, como se sua imagem fosse uma pintura. Aqui estamos, no fim do seu período como presidente. É a sua despedida de Ivy. Amanhã o clube será dirigido por administradores do próximo ano, os membros que ele educou com os debates, e Gil se tornará um fantasma em sua própria casa. O melhor do que viveu em Princeton está chegando ao fim.

"Gil", eu digo, andando até sua cama. "Tente ter uma grande noite hoje."

Ele parece não me ouvir. Coloca o seu telefone celular no carregador, observando a sua vibração. "Eu não queria que as coi­sas fossem desse jeito”, ele diz.

"Charlie vai ficar bom", eu afirmo.

Mas ele apenas olha para sua caixa de jóias, a pequena caixa de madeira onde guarda seus objetos de valor, e passa a mão pela tampa, limpando a poeira. Tudo na metade do quarto habi­tado por Charlie é gasto mas limpo: um par de tênis do seu ano de calouro está em um dos cantos do armário, os cordões enfiados do lado de dentro; os tênis do último ano ainda estão sendo usa­dos nos fins de semana. Mas tudo na metade do quarto que Gil usa parece não ter um passado, é novo e empoeirado ao mesmo tempo. De dentro da caixa ele tira um relógio de prata, aquele que usa em ocasiões especiais. Suas mãos param de se mover, depois ele sacode o relógio gentilmente, girando-o.

"Que horas são?", ele pergunta. Mostro-lhe o meu relógio, e ele acerta o seu.

Lá fora, a noite cai. Gil pega seu molho de chaves e tira o telefone celular do carregador. "O dia favorito de meu pai na faculdade foi o dia do baile de Ivy no seu último ano”, ele diz. "Ele sempre falava sobre isso”.

Penso em Richard Curry, nas histórias que contou para Paul sobre Ivy.

       Ele disse que era como um sonho, um sonho perfeito.

Gil aproxima o relógio do ouvido. Ele escuta como se houvesse algo milagroso no som, um oceano capturado em uma concha.

       "Você está pronto?”, ele pergunta, colocando a corrente do relógio em volta do pulso e apertando o fecho.

       Ele se concentra em mim agora, verificando se o smoking caiu bem.

"Nada mal", ele diz. ''Acho que ela vai aprovar."

"Você está bem?", eu pergunto.

Gil ajusta seu paletó e faz que sim.

"Não acho que vou contar para os meus filhos sobre hoje à noite. Mas sim. Estou bem."

Na porta lançamos uma última olhada para o quarto antes de trancá-lo. Com as luzes apagadas, ele fica escuro. Quando olho pela janela pela última vez e vejo a lua, imagino Paul, sozinho, caminhando penosamente pelo campus em seu casaco de inverno surrado.

       Gil olha para seu relógio e diz: "Estamos em cima da hora”.

       Então eu e ele, em nossos paletós e sapatos pretos, nos diri­gimos para o Saab no meio da noite colorida pela neve.

Em traje de gala!, Gil exclama. E era de fato um traje de gala. Chegamos e encontramos o clube esplêndido, o centro de todas as atenções na Prospect Avenue. Altos montes de neve se erguem como trincheiras ao longo das paredes de tijolo que cir­cundam o clube, mas o caminho que leva à porta da frente foi limpo, e a passagem está coberta com uma fina camada de pedras pretas. Com sal-gema eles abriram um faixa através do gelo. Para fazer efeito há quatro longos panos drapejados entre os vãos da entrada do clube, cada um deles com uma listra vertical de hera verde ladeada por finos pilares dourados.

Quando Gil estaciona o Saab no seu lugar, membros do clube e alguns.convidados estão se aproximando de Ivy aos pares, cada entrada separada da seguinte por intervalos polidos, cui­dando para não se misturarem. Os alunos do último ano chegam no final, porque são costumeiras as recepções calorosas para os membros que se formam, me conta Gil enquanto apaga os faróis.

Entramos e encontramos o clube em alvoroço. O ar está pesado com o calor dos corpos, o odor doce do álcool e da comida preparada, as conversas indistintas que se fazem e desfazem pelo salão. A entrada de Gil é recebida com aplausos e vivas. Calouros e estudantes do segundo ano que estavam no andar de cima viram-se para a porta para saudá-lo, alguns gritando o nome de Gil, e parece por um segundo que essa pode ser a noite pela qual ele esperava, uma noite como a que seu pai teve.

"Bem", ele diz para mim, ignorando os aplausos que con­tinuam, "é isso aí."

Olho ao redor para apreciar a transformação do clube. O trabalho que Gil fez, as compras e o planejamento e as conver­sas com os floristas e os fornecedores de mantimentos, repen­tinamente parece muito mais do que meras desculpas para sair do quarto quando as coisas não estavam indo bem. Tudo está diferente. As cadeiras de braços e as mesas habituais desapare­ceram. Em seu lugar, os cantos do saguão foram rodeados por mesas em quarto-de-círculo, todas cobertas com longas toalhas de seda verde-escuras e enfeitadas com pratos de porcelana cheios de comida. Atrás de cada uma delas, como atrás do bar à nossa direita, há um garçom com luvas brancas. Arranjos de flores se espalham por toda parte, sem uma mancha de cor neles: apenas lírios brancos e orquídeas pretas e algumas variedades que nunca vi antes. No turbilhão de smokings e vestidos de noite pretos, fica impossível perceber o castanho das paredes.

"Senhor", diz um garçom de gravata branca, surgido não sei de onde com uma bandeja cheia. "Cordeiro", diz ele apontando para os canapés, "e chocolate branco", apontando para as trufas.

"Coma", diz Gil.

Obedeço e toda a fome que senti durante o dia vem à tona, as refeições que perdi e as fantasias sobre a comida do hospital, tudo retoma instantaneamente. Quando um outro garçom circula com uma bandeja com copos de champanhe, me sirvo de novo. As bolhas sobem direto para minha cabeça, ajudando-me a manter os pensamentos longe de Paul.

Nesse momento, um quarteto musical começa a tocar na antecâmara da sala de jantar, um lugar onde costumava haver espreguiçadeiras de couro. Um piano e um conjunto de tambo­res foram colocados no canto, com espaço para um contrabaixo e uma guitarra elétrica entre eles. Por ora estão tocando blues. Mais tarde, acho, conhecendo Gil, haverá jazz.

"Volto já", ele diz, e repentinamente sai do meu lado, subindo as escadas. A cada passo algum membro o pára para dizer algo gentil, para sorrir e apertar sua mão, para abraçá-lo. Vejo Donald Morgan colocar cuidadosamente sua mão nas cos­tas de Gil quando ele passa, uma congratulação sincera e afável do homem que se tornará rei. As moças, depois de terem tomado alguns drinques, olham para Gil com olhos enevoados, lamen­tando a perda do clube, a perda delas. Nessa noite, Gil é um herói, é ao mesmo tempo o anfitrião e o convidado de honra. Em todo lugar que for ele terá companhia. Mas de alguma forma, sem nin­guém ao seu lado - Brooks ou Anna ou um de nós -, ele já parece estar sozinho.

"Tom!”, escuto uma voz atrás de mim.

Viro-me, e sinto uma fragrância, a mesma que a mãe de Gil e a namorada de Charlie devem ter usado, porque ela tem o mesmo efeito sobre mim. Se eu imaginava que preferia Katie quando a via desarrumada, com seu cabelo preso com displicência e sua camiseta solta, eu estava doido. Porque neste momento, com um vestido preto longo, os cabelos arrumados e um belo decote, ela me deixa pasmo.

"Uau!"

Ela coloca a mão em minha lapela e limpa um vestígio de poeira que, na verdade, é um floco de neve, ainda não derretido neste calor.

"O mesmo para você", diz ela.

Há algo maravilhoso em sua voz, um acolhimento afável. "Onde está Gil", ela pergunta.

"Ele subiu."

Ela pega mais duas taças de champanhe de uma bandeja que passa.

"Viva", ela diz, dando uma para mim. "Então, do que você está fantasiado?"

"Sua fantasia. Você veio de quê?"

Nesse momento chega Gil.

"Olá", diz Katie. "Faz tempo que não o vejo."

Gil olha para nós dois, depois sorri como um pai orgulhoso. "Vocês dois estão muito bonitos:'

Katie ri. "E você está vestido de quê?", ela pergunta.

Com um floreio, Gil mostra a lateral de seu paletó. Só agora percebo o que ele foi fazer lá em cima. Ali, pendurado entre o lado esquerdo de seu peito e o quadril direito, há uma correia de couro preta. Na correia um coldre de couro, e no coldre uma pistola com coronha de marfim.

"Aaron Burr", diz ele. "Classe de 1772”.

"Vistoso", diz Katie, observando a coronha nacarada do revólver.

"O que é isso?", deixo escapar.

Gil parece perplexo. "Minha fantasia. Burr atirou em Hamilton em um duelo."

Ele coloca um braço em minhas costas e me leva até o parapeito no patamar entre o primeiro e o segundo andar.

"Você está vendo os broches que Jamie Ness está usando na lapela?" Ele aponta para um sênior loiro cuja gravata está bor­dada com notas musicais.

Na lapela esquerda posso ver um objeto de forma oval marrom; na direita, um ponto preto.

"O da esquerda se refere a futebol”, diz Gil, "e o outro é um disco usado no hóquei sobre gelo. Ele é Hobey Baker, da seção de Ivy de 1914. O único homem convocado tanto para o futebol quanto para o hóquei. O Hobey freqüentava um grupo de canto aqui - é por isso que a gravata de Jamie tem notas bordadas."

Agora Gil aponta para um sênior bem alto de cabelos vermelhos. "Chris Bentham, que está ao lado de Doug: James Madison, classe de 1771. Você pode verificar isso pelos botões da camisa. O botão de cima é um brasão de Princeton - Madison foi o primeiro presidente da associação de alunos. E o quarto botão é uma bandeira americana..."

Há algo mecânico em sua voz, uma inflexão de guia turís­tico, como se ele estivesse lendo um roteiro em sua cabeça.

"Apenas invente uma fantasia”, Katie acrescenta, juntando-se à nossa conversa lá do começo das escadas.

Olho para ela, e a distância me permite apreciar melhor como o vestido se ajusta a seu corpo.

"Ouçam", diz Gil, olhando para além dela. "Tenho de tratar de um probleminha. Vocês podem ficar sozinhos por um segundo?"

Do outro lado do bar, Brooks está apontando para um gar­çom de luvas brancas, que se apóia na parede.

       "Um dos empregados está bêbado", diz Gil.

       "Não se precipite", eu digo, percebendo como o pescoço de Katie parece incrivelmente fino de onde estou, como a haste de uma flor.

       "Se você precisar de qualquer coisa é só pedir”, diz ele.

       Lado a lado, começamos a descer. A orquestra está tocando Duke Ellington, as taças de champanhe estão retinindo quando se tocam, e o batom de Katie tem um brilho vermelho, da cor de um beijo.

"Que tal dançarmos?", eu digo, quando desço as escadas.

Katie sorri e segura minha mão.

Ouçam... chega o som do piano... No trem “A”.

Ao pé da escada, meus passos e os de Gil divergem.

 

Capítulo 26

No salão de dança a temperatura está dez graus mais quente do que no resto do clube, pares agarrados, girando e desaparecendo, como em uma região de asteróides, mas instantaneamente me sinto confortável. Katie e eu fomos dançar muitas vezes desde a primeira vez que nos encontramos em Ivy. Em todos os fins de semana há orquestras para todos os gostos na Prospect Avenue, e em poucos meses experimentamos dança de salão, dança latina e todos os gêne­ros intermediários. Com nove anos de sapateado atrás de si, Katie tem uma elegância suficiente que daria para três ou quatro dança­rinos, o que significa que nós dois conseguimos dançar quase tanto quanto um outro casal qualquer. Ainda assim, por causa de sua tole­rância, acabei fazendo progresso. Ficamos mais atrevidos, à medida que o tempo passa, sucumbindo ao champanhe. Dou um jeito de me inclinar sobre ela sem derrubá-la, ela consegue girar segurando meu braço bom sem deslocar nada, e logo nos tornamos audazes.

"Decidi quem eu sou", digo a ela, puxando-a em minha direção.

Há um contato maravilhoso entre nós, a região entre seus seios ficando apertada, os seios erguendo-se.

       "Quem?", ela pergunta.

       Estamos ambos ofegantes. Minúsculas gotas de suor estão se formando no alto de sua testa.

       "F. Scott Fitzgerald."

       Katie balança a cabeça e sorri, passando rapidamente a lín­gua pelos lábios. "Você não pode”, diz ela. "Scott Fitzgerald não é permitido."

       Estamos falando alto, nossas bocas cada vez mais próximas de nossos ouvidos para podermos escutar com a música tocando.

"Por que não?", pergunto, com meus lábios colados em seus cabelos. Ela tem uma gota de perfume em seu pescoço, como tinha na câmara escura, e a continuidade entre ali e aqui - a idéia de que realmente somos as mesmas pessoas, apenas vestidas dife­rentemente - já basta.

"Porque ele era membro do Cottage", ela diz, inclinando-se para a frente. "Isso é uma blasfêmia."

Eu sorrio. "Então, quanto tempo isso vai durar?"

"O baile? Até que comecem a servir”.

Levo um segundo para lembrar que amanhã é Páscoa.

"Até meia-noite?", pergunto.

Ela acena que sim. "Kelly e os outros estão preocupados com o comparecimento à capela."

Exatamente nesse momento, damos outra volta no salão e Kelly Danner passa por nós, apontando o seu indicador para uma caloura em um vestido de gala espalhafatoso, com uma linguagem corporal de uma bruxa transformando um príncipe em sapo. A todo-poderosa Kelly Danner, a mulher com quem nem mesmo Gil graceja.

       "Eles estão pedindo para todos irem?", pergunto, pensando que até mesmo Kelly teria dificuldade de conseguir isso.

       Katie balança a cabeça. "Eles estão fechando o clube e suge­rindo às pessoas para irem até a capela."

       Há uma certa rispidez quando ela se refere a Kelly, então decido não pressioná-la. Observando os casais em torno de nós, não posso deixar de pensar em Paul, que sempre pareceu sozi­nho aqui.

Então o ritmo da festa se desfaz quando um casal apa­rece na porta, tarde o bastante para chamar a atenção de todos. É Parker Hasset e seu par. Mantendo sua palavra, Parker tingiu seu cabelo de castanho, repartiu-o rigidamente para a esquerda, e vestiu um smoking, inaugurando um estilo, com colete branco e gravata branca, em prol de uma semelhança estranhamente con­vincente com John Kennedy. Seu par, a sempre dramática Verônica Terry, também veio como tinha anunciado. Com um cabelo plati­nado desmanchado pelo vento, batom da cor da maçã-do-amor e um vestido que se ergue sem a ajuda de uma saída de ar de metrô para levantá-lo até o céu, ela é a sósia de Marilyn Monroe. O baile à fantasia começou. Em um salão cheio de simuladores, estes dois ficam com a coroa.

No entanto, a recepção que Parker consegue é de arrasar. O silêncio cai sobre a sala; de cantos esparsos surgem assobios. E quando Gil, do patamar do segundo andar, mostra que é o único capaz de aquietar a multidão, sinto que a honra de chegar por último deveria ter sido sua, e que Parker quis se fazer de presi­dente no próprio baile do presidente.

Por insistência de Gil, o clima na sala se acalma. Parker se dirige rapidamente ao bar, depois traz Verônica Terry e seus copos de vinho, um em cada mão, para o salão de baile. Ele se apro­xima, caminhando com ares de superioridade; sua expressão não dá nenhum indício de que ele é a pessoa menos popular da sala. Quando ele chega suficientemente perto, percebo como ele conse­gue isso. Ele está viajando em uma nuvem de vapores, já comple­tamente embriagado.

Katie fica mais perto de mim quando ele se aproxima, mas não percebo nada até ver o olhar que eles trocam. Parker lhe lança um olhar significativo: malicioso, sexual e agressivo, tudo ao mesmo tempo, e Katie puxa minha mão com força, arrastando-me para fora do salão de baile.

"O que significa isso?", pergunto, quando nossas vozes já se tornam audíveis.

A orquestra está tocando Marvin Gaye, as guitarras acom­panhando suavemente e os tambores a toda, tudo isso tendo como principal motivo a chegada de Parker. John Kennedy está se esfregando com Marilyn Monroe, o estranho espetáculo da his­tória entre os dois, e todos os outros casais lhes deram um espaço amplo, a quarentena dos leprosos sociais.

Katie parece aborrecida. Toda a magia da nossa dança evaporou.

"Aquela besta", ela diz.

"O que ele fez?"

Então, de repente, ela solta tudo: a história que eu não estive por perto para ouvir, aquela que ela só tinha a intenção de me contar mais tarde.

"Parker tentou me desorientar no debate. Ele disse que me daria um voto contrário a não ser que eu dançasse uma dança erótica para ele. Agora ele diz que isso foi uma piada."

Estamos parados no meio do saguão principal, perto o bastante do salão de baile para ver as mãos de Parker nos quadris de Verônica.

"Aquele filho-da-mãe. O que você fez, então?"

"Contei para Gil." Quando ela pronuncia o nome dele, seus olhos se dirigem às escadas onde Gil está conversando com dois calouros.

"Isso foi tudo?"

Espero que ela invoque o nome de Donald, que ela me lem­bre que eu deveria ter estado com ela, mas ela não faz nada disso.

"Sim", é tudo o que ela diz. "Ele tirou Parker do debate”.

Sei que Katie quer que eu abandone esse assunto, porque não foi dessa maneira que ela quis que eu soubesse. Ela já agüen­tou bastante. Mas estou ficando louco da vida.

"Vou dizer algumas coisinhas ao Parker", eu digo.

Katie olha para mim de maneira penetrante. "Não, Tom. Não hoje."

"Ele não pode simplesmente agi...”.

"Olhe", diz ela interrompendo. "Esqueça isso. Não vamos deixar que ele arruíne a nossa noite."

"Eu estava apenas tentand..."

Katie põe um dedo sobre meus lábios. "Eu sei. Vamos para outro lugar."

Ela olha em volta, mas há smokings por todo lado, conver­sas e copos de vinho e homens com bandejas de prata. Essa é a magia de Ivy. Nunca estamos sozinhos.

"Quem sabe podemos usar a sala do presidente”, eu digo.

Ela concorda. "Vou perguntar para Gil."

Percebo a confiança que transparece em sua voz quando ela pronuncia o nome dele. Gil tem sido decente com ela, mais que isso, sem nenhuma segunda intenção. Ela pediu ajuda a ele quando eu andava desaparecido. Agora, Gil é a primeira pessoa em quem ela pensa quando precisa de algo. Talvez seja importante para ela que eles conversem durante o café da manhã, no clube, mesmo que depois ele esqueça o assunto. Gil tem sido como um irmão mais velho, como ele foi para mim no ano de calouro. Tudo o que é bom para ele é bom para nós também.

"Tudo bem", diz Gil. "Ninguém irá para lá agora”.

Então desço atrás de Katie, observando as mudanças em seus músculos por baixo do vestido, a maneira pela qual suas per­nas se movem, a rigidez de seus quadris.

Quando as luzes se acendem, vejo a sala onde eu e Paul tra­balhamos durante tantas noites. O lugar não mudou, as prepara­ções para o baile o deixaram intocado e as superfícies estão abar­rotadas de anotações, de desenhos e de livros empilhados, que se alinham e enfileiram pela sala, em montes quase da nossa altura.

"Não faz calor aqui", eu digo, procurando algo para falar. Parece que diminuíram o termostato no edifício todo de maneira a não superaquecer o salão de baile.

Katie olha ao redor. As anotações de Paul estão gruda­das nas saliências da lareira; seus diagramas cobrem as paredes. Estamos rodeados por Colonna.

"Talvez não devêssemos ficar aqui", ela diz.

Não posso discernir se ela está preocupada em se introme­ter em algo de Paul, ou se Paul vai se intrometer em algo nosso. Quanto mais ficamos parados, avaliando a sala, mais posso sentir uma distância se formando entre nós. Não é esse o lugar de que precisamos.

"Você ouviu falar no gato de Schrõdinger?", eu digo por fim, porque é a única maneira que encontro de expressar o que estou sentindo.

"Na filosofia?”, ela pergunta.

“Em qualquer lugar”.

Em minhas aulas de física, o professor usava o gato de Schrõdinger como um exemplo em mecânica ondulatória, quando muitos de nós estávamos demasiado cansados para v = -e2 / r. Um gato imaginário é colocado em uma caixa fechada com uma dose de cianureto, que será dada apenas se um contador Geiger for dis­parado. A astúcia reside no fato, acho eu, de que é impossível dizer se o gato está vivo ou morto antes de abrir a caixa; até lá, a proba­bilidade exige que você diga que a caixa contém partes iguais de gato vivo e gato morto.

"Sim”, diz ela. "E daí?"

"Sinto como se o gato não estivesse vivo ou morto bem nesse instante”, eu digo. "Ele é nada."

Katie fica desconcertada com o que estou dizendo. "Você quer abrir a caixa", ela diz por fim, sentando sobre a mesa.

Digo que sim, enquanto me aproximo dela. A enorme prancha de madeira nos aceita silenciosamente. Não sei como lhe dizer o resto do que penso: que nós, individualmente, somos o cientista que fica do lado de fora; que juntos, somos o gato.

Em lugar de responder, ela passa um dedo pela minha têm­pora direita empurrando meu cabelo para detrás da orelha, como se eu tivesse dito algo encantador. Talvez ela já saiba como resolver o meu enigma. Somos maiores do que a caixa de Schrõdinger, ela está dizendo. Como qualquer bom gato, temos sete vidas.

"Neva dessa maneira em Ohio?", ela pergunta, mudando de assunto intencionalmente. Lá fora, começou a nevar de novo, com mais força do que antes, parece que o inverno todo se con­centra nessa única tempestade.

"Não em abril", eu digo.

Estamos lado a lado na mesa, separados por poucos centí­metros. "Em New Hampshire também não", diz ela. "Pelo menos não em abril."

Aceito o que ela está tentando fazer, onde está tentando me levar. Para qualquer lugar que não aqui. Eu sempre quis saber mais sobre como é a vida em sua casa, o que sua família faz ao redor da mesa de jantar. Na minha imaginação Upper New England são os Alpes americanos, montanhas por todo lado, com São Bernardo carregando presentes.

"Eu e minha irmã caçula costumávamos fazer isso na neve", diz ela.

       "Mary?"

       Ela faz que sim. "Todos os anos, quando a lagoa perto de casa congelava, íamos abrir buracos na neve."

"Por quê?"

Ela sorri, linda. "Para os peixes poderem respirar."

Os membros do clube que passam pelo alto das escadas são como pequenos acúmulos de calor em movimento.

"Nós pegávamos os cabos de vassouras", ela diz, "e fazíamos buracos por todo o lago. Era como perfurar buracos na tampa de um vidro”.

       "Para vaga-lumes”, eu digo.

       Ela faz que sim e pega minha mão. "Os patinadores costu­mavam nos odiar."

       "Minhas irmãs costumavam me levar para andar de trenó", eu conto.

       Os olhos de Katie brilham. Ela se dá conta de algo a nosso respeito: que ela é a irmã mais velha, e eu o irmão menor.

       "Não há muitas colinas altas em Columbus", eu continuo, então, íamos sempre na mesma.

"E elas puxavam você, no trenó, até lá em cima?"

"Eu já lhe contei isso?"

"Não, mas é como as irmãs mais velhas fazem."

Não posso imaginar Katie puxando um trenó morro acima. Minhas irmãs eram fortes como cães de carga.

"Já lhe contei sobre Dick Mayfield?", pergunto a ela.

“Quem?”.

"O rapaz que minha irmã namorava."

“O que tem ele?”

"Sarah me proibia de usar o telefone cada vez que Dick ficava de ligar."

Dá para perceber a recriminação no que estou dizendo. Isso também é algo que as irmãs mais velhas fazem.

"Não acho que Dick Mayfield tenha meu número." Ela sorri, entrelaçando seus dedos nos meus.

Não consigo parar de pensar em Paul, a maneira de ele entrelaçar os dedos.

"Dick tinha o número de minha irmã", eu digo. "E a van­tagem que levava é que tinha um Camaro vermelho com chamas pintadas nas laterais."

Katie balança a cabeça de maneira desaprovadora.

"O atraente Dick e sua Máquina", digo a ela. Eu lhe conto sobre uma noite em que Dick veio nos visitar e minha mãe me mandou para a cama sem jantar.

Dick Mayfield apareceu um dia como por magia. Ele me chamava de Pequeno Tom. Saímos para passear no Camaro e ele me contou um segredo. Não importa o seu tamanho. Tudo o que importa é a potência da sua máquina.

"Mary namorou uni rapaz que dirigia um Mustang 64", diz Katie. "Perguntei a ela se eles faziam alguma coisa no banco traseiro. Ela disse que ele tomava cuidado o tempo todo para não sujar o carro."

Histórias sobre fazer sexo em carro era uma maneira de falar sobre tudo sem dizer nada de coisa nenhuma.

"Minha primeira namorada dirigia um Volkswagen dani­ficado pela água”, eu conto. "Quando você se deitava no banco de trás o cheiro subia, como um sushi. Não dava para fazer nada lá atrás."

Ela se volta para mim. "Sua primeira namorada sabia dirigir?"

       Eu fico sem jeito, percebendo o que havia revelado.

       "Eu tinha nove", eu digo, limpando a garganta. "Ela tinha dezessete."

Katie ri e um silêncio se segue. Finalmente, o momento parece ter chegado.

"Contei a Paul”, digo a ela.

Ela me olha.

"Não estou mais trabalhando no livro."

Durante algum tempo ela não diz nada. Depois esfrega os ombros com as mãos para aquecê-los. Percebo, depois de tantas pistas, depois de muitos toques, que ela está com frio.

"Você quer meu paletó?”, pergunto.

Ela faz que sim. "Eu estou ficando arrepiada."

É impossível não olhar. Seus braços estão cobertos por minúsculas bolinhas. As curvas dos seus seios estão pálidas, a pele como a de uma dançarina de porcelana.

"Vista", eu digo, tirando o paletó e colocando-o em seus ombros.

Meu braço direito toca seu ombro apenas por um segundo, mas ela o pega e o mantém preso ali. Eu fico meio cur­vado sobre Katie, esperando, ela se inclina também. O odor de seu perfume me atinge de novo, emanando de seus cabelos. Essa é sua resposta.

Katie levanta a cabeça e eu enfio a mão por dentro do paletó, no espaço onde ele pende de seus ombros, colocando-a sobre um dos seus seios. Meus dedos agarram o tecido de seu vestido e eu prendo a respiração por causa de um atrito inesperado, percebo que seguro Katie ao mesmo tempo firmemente e sem esforço. Uma mecha de cabelos cai em seu rosto, mas ela não a puxa para trás. Há uma mancha de batom logo abaixo do seu lábio, tão minúscula que só pode ser vista muito de perto. Fico surpreso por tê-la notado. Então ela se encontra demasiado próximo para que eu possa pensar em outra coisa, e há um calor sobre minha boca, os lábios se tocando.

 

                                         Capítulo 27

Bem na hora em que o beijo fica mais profundo, ouço a porta de vaivém se abrir. Estou prestes a falar rispidamente com o intruso, quando vejo Paul parado diante de nós.

"O que está acontecendo?", pergunto, dando um passo atrás.

Paul olha ao redor da sala, amedrontado. "Vincent foi levado para um interrogatório", ele consegue dizer. O choque que ele demonstra por encontrar Katie nesta sala é refletido pelo cho­que dela de vê-lo ali.

Espero que eles estejam atribuindo o assassinato a Taft. "Quando?"

"Uma ou duas horas atrás. Acabo de falar com Tim Stone no Instituto."

Segue-se um momento embaraçoso.

"Você encontrou Curry?", pergunto, limpando o batom de minha boca.

Mas no intervalo antes que ele responda, ficamos silencio­samente revendo nossos argumentos sobre o Hypnerotomachia, sobre as prioridades que coloquei para mim.

"Vim aqui falar com Gil”, diz ele, cortando a conversa.

Katie e eu ficamos observando enquanto Paul vai até a parede atrás da escrivaninha, apanha alguns de seus croquis anti­gos, aqueles nos quais durante meses desenhou a cripta, e depois desaparece tão rapidamente quanto chegou. Papéis se espalham pelo chão, no turbilhão que ele deixa atrás de si, e formam uma espécie de pequena trilha perto da porta.

Quando Katie desce da mesa, posso quase ler o que se passa em sua mente. Não se pode escapar desse livro. Nem todas as decisões do mundo farão com que eu me esqueça dele. Mesmo aqui em Ivy, onde ela pensava que ele poderia ficar de fora, o Hypnerotomachia está em todo lugar: nas paredes, no ar, pene­trando em nós quando menos esperamos.

Mas, para minha surpresa, ela está concentrada nos fatos que Paul transmitiu. "Vamos': ela diz com uma explosão de ener­gia. "Preciso encontrar Sam. Se eles prenderem Taft, ela vai ter de mudar o cabeçalho."

Lá em cima, no saguão principal, encontramos Gil e Paul conversando em um canto. A sala parece ter ficado mais silenciosa diante do espetáculo do recluso do clube aparecendo nesse evento público.

"Onde ela está?", pergunta Katie ao acompanhante de Sam.

Estou muito distraído para ouvir a resposta. Durante dois anos imaginei Paul como o alvo de todas as piadas de Ivy, a curiosidade acorrentada ao porão onde ele ficava. Mas agora os estudantes mais velhos estão atentos, como se um dos retratos antigos tivesse se tornado vivo. A expressão no rosto de Paul é de quem está necessitado, quase desesperado; se está ciente de que o clube inteiro o está observando, ele não dá o menor sinal. Vou para perto deles, tentando ouvir, quando Paul estende para Gil um papel familiar, todo dobrado. O mapa da cripta de Colonna.

Quando os dois se viram para deixar o local, os membros observam a saída de Gil do saguão principal. Os mais velhos perce­bem primeiro. Um por um, nas mesas, nos parapeitos e nas paredes castanhas, todas as pessoas com posição de destaque no clube come­çam a bater os nós dos dedos. Brooks, o vice-presidente, é o primeiro, depois Carter Simmons, o tesoureiro do clube; e finalmente, de todos os lados, surge essa batida, esse ritmo, esse som de despedida. Parker, ainda no salão de baile, começa a bater mais alto do que os outros, esperando salientar-se pela última vez. Mas é muito tarde. A saída de Gil, como sua entrada quando chegamos, ocorre no momento exato, a ciência do passo de dança deve ser realizada só uma vez. Quando o barulho da multidão finalmente se acalma, eu os sigo.

"Estou levando Paul até a casa de Taft", diz Gil quando os encontro na Sala da Administração.

"O quê?”.

"Ele precisa pegar algo. Uma cópia heliográfica."

"Vocês estão indo agora?"

"Taft está na delegacia de polícia”, ele diz, repetindo o que Paul explicou. "Precisamos levá-lo até lá."

Posso ver os dentes da engrenagem rodando. Ele quer aju­dar, da mesma maneira que Charlie o fez; ele quer refutar o que eu disse no estacionamento do hospital.

Paul não diz nada. Posso ver por sua expressão que preten­dia ir sozinho com Gil até lá.

Estou prestes a explicar para Gil que eu não posso sair, que eles terão de ir sem mim, quando tudo se torna mais complicado.

       Katie aparece na porta.

"O que está acontecendo?", ela pergunta.

"Nada", respondo. "Vamos descer”.

"Não consegui falar com Sam", diz Katie. "Ela precisa saber sobre Taft. Você se importa se eu for até o escritório do Prince?"

       Gil percebe a oportunidade. "Tudo bem. Tom está vindo conosco ao Instituto. Podemos nos encontrar de novo na capela."

       Katie está quase concordando, quando a expressão em meu rosto nos desmascara.

"Por quê?”, ela pergunta.

Gil simplesmente diz: "É importante”. Em uma das poucas vezes, desde que somos amigos, seu tom sugere que a importância à qual se refere é muito maior do que ele mesmo.

"Está bem", diz Katie com prudência, tomando minhas mãos nas dela. "Eu o encontro na capela”.

Ela está a ponto de acrescentar algo, quando um enorme estrondo vem de baixo, seguido por uma explosão de vidro.

Gil corre para as escadas; corremos todos atrás dele para encontrar um cenário com grande confusão e estragos. Um líquido, cor de sangue, está se espalhando em todas as direções, trazendo consigo cacos de vidro. Parado no centro de tudo isso, em um perímetro que todos os demais esvaziaram, está Parker Hassett, vermelho e irado. Ele acabou de jogar o bar inteiro no chão, prateleiras, garrafas e todo o resto.

"Que diabos está acontecendo?", pergunta Gil a um calouro que observava tudo.

"Ele acaba de explodir. Alguém o chamou de dipsomaníaco e ele ficou louco”.

Verônica Terry está levantando a saia pregueada de seu vestido branco, agora debruada de rosa e salpicada de vinho. "Eles o importunaram a noite toda", ela chora.

"Pelo amor de Deus", reclama Gil. "Como você deixou ele ficar tão bêbado?"

Ela olha para ele confusamente, esperando piedade e rece­bendo fúria. Participantes da festa cochicham entre si, escondendo sorrisos de satisfação.

Brooks está dizendo a um funcionário para levantar o bar e renovar o estoque das prateleiras com vinho da adega, enquanto Donald Morgan, com ares de presidente, tenta acalmar Parker no meio dos oponentes. Do grupo chegam gritos de Beberrão! e Ébrio! E coisa pior. Ressoam risos como insultos. Parker está do outro lado da sala, cortado em meia dúzia de lugares pelos estilhaços das garrafas, parado no meio de um grande caos de bebidas diversas, como uma criança, misturando os resíduos. Quando finalmente se volta para Donald, está louco da vida.

Katie leva a mão à boca quando a ação começa a se desen­rolar. Parker dá um soco em Donald, e os dois caem ao chão, um agarrando o outro, depois se socando com os punhos. Esse é o show que todos esperavam ver, a reprimenda que Parker merecia por um milhão de pequenas ofensas, justiça pelo que ele aprontou no terceiro andar, violência para finalizar dois anos de ódio cres­cente. Um funcionário chega com um esfregão e uma pá, criando o espetáculo, em torno da luta, de um homem juntando os cacos. No asso alho de madeira as poças de vinho e licores se formam, uma ultrapassando a outra, espelhando as paredes de carvalho, e nenhuma gota é absorvida por nada, nem esfregão, nem tapete, nem mesmo pelos smokings, enquanto os dois homens continuam a lutar, há uma grande confusão de braços e pernas negras, como um inseto tentando endireitar o corpo antes de se afogar.

"Vamos", diz Gil, conduzindo-nos para longe da briga que, agora, é uma bagunça para outro alguém se preocupar.

Paul e eu o seguimos, sem falar, movendo-nos através do rastro de uísque, conhaque e vinho.

As ruas que percorremos são como uma fina malha preta sobre um grande vestido branco. O Saab é seguro, mesmo com Gil acelerando e o vento assobiando à nossa volta. Na Nassau Street dois carros bateram, as luzes estão acesas, os motoristas gritando, sombras tremeluzindo em um par de reboques na curva. Um fun­cionário surge de um quiosque ao norte do campus, avermelhado no meio da neblina iluminada pelo lampião de segurança, sinali­zando para nós que a entrada está fechada - mas Paul já está nos indicando um caminho para longe do campus, em direção à parte ocidental. Gil coloca em terceira marcha, depois quarta, passando as rodas pelas faixas.

"Mostre a carta para ele", diz Gil.

Paul tira algo de dentro do seu casaco e estende para mim, no banco traseiro.

"O que é isso?"

O envelope está rasgado no alto, mas o canto esquerdo superior tem estampado o nome do Reitor dos Estudantes.

"Ela estava na nossa caixa de correio hoje à noite”, diz Gil.

 

Sr. Harris:

Esta carta é para notificá-lo que meu gabinete está lide­rando uma investigação por causa das alegações de plágio depositadas contra o senhor pelo seu conselheiro de tese, doutor Vincent Taft. Devido à natureza das alegações, e seu efeito sobre sua colação de grau, uma reunião especial do Comitê de Disciplina será realizada na próxima semana para considerar o seu caso e tomar uma decisão. Entre em contato, por favor, para efetuarmos uma reunião prelimi­nar e para confirmar o recebimento desta carta.

Sinceramente, Marshall Meadows

Reitor Associado dos Estudantes Não-Formados

 

"Ele sabia o que estava fazendo", diz Paul, quando acabo de ler.

"Quem?”.

"Vincent. Hoje de manhã."

"Ameaçando-o com a carta?"

"Ele sabia que não tinha nada contra mim. Então ele come­çou com seu pai."

Posso ouvir em sua voz uma acusação furtiva. Tudo retoma ao momento em que empurrei Taft.

       "Foi você quem correu”, digo baixinho.

       Neve derretida se espalha sobre o chassi do carro quando a suspensão dança em um grande buraco.

"Também fui eu quem chamou a polícia", ele diz.

"O quê?"

"Foi por isso que a polícia chamou Vincent”, diz ele. "Eu disse que vi Vincent perto de Dickinson quando atiraram em Bill."

"Você mentiu para eles!"

Estou esperando Gil reagir, mas ele mantém os olhos na estrada. Olhando para a parte de trás da cabeça de Paul, tenho a estranha sensação de olhar a mim mesmo pelas costas, de estar dentro do carro de meu pai outra vez.

"É por aqui?”, pergunta Gil.

As casas diante de nós são feitas de tábuas brancas. No endereço de Taft, todas as janelas estão às escuras. Logo depois das casas fica o limite do bosque do Instituto, sua parte de cima enfeitada de branco, por causa da neve.

"Ele ainda está na delegacia”, diz Paul, quase que para si mesmo. "As luzes estão apagadas."

"Meu Deus, Paul”, eu digo. "Como você sabe que a cópia heliográfica está aqui?"

"É o único outro lugar onde ele poderia tê-la escondido."

Gil nem mesmo nos escuta. Abalado pela visão da casa de Taft, ele suaviza a pressão sobre os breques, e ficamos andando em ponto morto, preparados para voltar atrás. Mas assim que seu pé começa a engrenar a embreagem, no entanto, Paul empurra a maçaneta da porta e salta do carro na curva.

"Maldição”, Gil pára o Saab e sai. "Paul!"

O vento assobia ao redor da porta quando ele a abre, amortecendo suas palavras. Posso perceber Paul dizendo algo para nós e apontando para a casa. Ele começa a andar na neve em direção a ela.

"Paul...”. Saio do carro, tentando manter a voz baixa. Uma luz se acende em uma das casas vizinhas, mas Paul não presta atenção. Ele continua em direção à varanda da frente da casa de Taft e encosta o ouvido na porta, batendo suavemente.

O vento açoita através das colunas da fachada, soprando lufadas de neve do beiral do telhado. A janela perto da porta está escura. Quando Paul não recebe resposta, ele tenta girar a maça­neta, mas a porta não se abre.

"O que vamos fazer?", diz Gil, ao lado dele.

Paul bate outra vez, depois puxa um molho de chaves de seu bolso e enfia uma no buraco da fechadura. Apoiando um ombro na porta ele a empurra para a frente. A dobradiça range.

"Não podemos fazer isso", eu digo, indo até onde eles estão e tentando mostrar um pouco de autoridade.

Mas Paul já está lá dentro, examinando o primeiro andar.

Sem uma palavra, ele penetra na casa.

"Vincent?", ele chama, no escuro. "Vincent, você está em casa?"

As palavras ficam distantes. Ouço passos na escada, depois nada.

"Onde ele foi?”, pergunta Gil, vindo para perto de mim.

Há um odor estranho aqui, distante mas forte. O vento açoita nossas costas, levantando nossos paletós e eriçando o cabelo de Gil. Eu me viro e fecho a porta. O celular de Gil começa a tocar.

Pressiono com o dedo um interruptor na parede, mas a sala permanece escura. Meus olhos estão começando a se ajustar. A sala de jantar de Taft está na minha frente, a mobília é barroca e as paredes são escuras, as pernas das cadeiras são curvas. Do outro lado da sala há uma escada.

O telefone de Gil toca outra vez. Ele está atrás de mim, cha­mando por Paul. O odor fica mais intenso. Três objetos estão joga­dos em um móvel perto da escada. Uma carteira de notas bastante gasta, um molho de chaves, um par de óculos. Repentinamente tudo parece se encaixar.

Eu me viro. "Responda ao telefone”.

Enquanto Gil procura em seu bolso, eu já estou subindo as escadas.

"Katie...?, posso ouvi-lo dizer.

Tudo está envolto em sombras. A escada parece rachada, como a escuridão passando através de um prisma. A voz de Gil se torna mais alta.

O quê? Meu Deus...

Depois ele corre escada acima, empurrando-me pelas cos­tas, gritando para eu me apressar, contando o que já adivinhei.

Taft não está na delegacia. Ele foi solto há mais de uma hora.

Alcançamos o patamar da escada a tempo de ouvir Paul gritar.

Gil está me empurrando para cima, forçando-me em dire­ção ao som. Como a sombra de uma onda no instante antes do impacto, ele verifica que estamos muito atrasados, que já aconte­ceu. Gil me empurra e passa na frente, entrando em um corredor à direita, e eu estou ciente de mim por lampejos, nos intervalos entre percepções instintivas. Minhas pernas estão em movimento. O tempo está ficando lento: O mundo está girando em marcha lenta.

Oh Deus, murmura Paul. Ajude-me.

As paredes do quarto estão iluminadas pelo luar. A voz de Paul vem do banheiro. O cheiro vem de lá, de balas de revól­ver detonadas, de tudo fora do lugar. Há sangue nas paredes. Na banheira há um corpo. Paul está de joelhos inclinado sobre a borda de porcelana.

Taft está morto.

Gil cambaleia para fora do quarto, mas meus olhos pas­seiam pelo banheiro. Taft está deitado de costas na banheira, suas vísceras esparramadas sobre o corpo. Levou um tiro no peito e outro entre os olhos, o sangue ainda lhe escorre da testa. Quando Paul estende sua mão trêmula, sinto uma súbita necessidade de rir. A sensação vem, depois vai embora. Sinto-me sonolento, quase embriagado.

Gil está chamando a polícia. Uma emergência, ele diz. Em

Olden Street. No Instituto.

Sua voz soa alta no silêncio. Paul murmura o número da casa, e Gil o repete para a polícia.

       Depressa.

       Subitamente Paul se levanta do chão: "Precisamos sair daqui”.

       "O quê?"

       Meus sentidos estão retomando. Coloco uma mão no ombro de Paul, mas ele se lança pelo quarto, olhando por toda parte - o espaço debaixo da cama, a fenda entre as portas do armário de Taft, ripas estranhas nas prateleiras mais altas.

"Não está aqui...", diz. Depois ele se volta, chocado com outra coisa. "O mapa”, ele grita. "Onde está meu mapa?"

Gil olha para mim como se esse fosse um sinal de que Paul estava perdendo o juízo.

"No cofre em Ivy", ele diz, segurando Paul pelo braço. "Onde nós o colocamos."

Mas Paul o empurra e corre sozinho em direção às escadas. Ao longe ouve-se o som de sirenes.

       "Não podemos sair”, digo.

       Gil olha para mim, mas vai atrás de Paul. As sirenes estão mais próximas agora - distantes alguns blocos, mas avançando. Olhando para fora, pela janela, as colinas têm a cor de metal. Em uma igreja, em algum lugar, é Páscoa.

"Menti para a polícia sobre Vincent", grita Paul. "Não posso estar aqui quando o encontrarem."

Eu os sigo até a porta da frente, correndo para o Saab. Gil dá partida, acelerando, e o carro faz barulho bastante para que as luzes se acendam na casa vizinha. Colocando em primeira, ele acelera outra vez. Quando os pneus encontram o asfalto, o carro se move rapidamente. Bem quando Gil vira num caminho con­tíguo, o primeiro carro de patrulha chega do lado oposto da rua. Observamos quando ele pára na frente da casa de Taft.

       "Para onde vamos?", pergunta Gil, olhando para Paul pelo espelho retrovisor.

       "Ivy", diz Paul.

 

                                     Capítulo 28

O clube está silencioso quando chegamos. Alguém empi­lhou panos de limpeza no chão do saguão principal para enxugar o álcool que Parker derramou, mas poças de bebida ainda brilham. Cortinas e toalhas de mesa estão manchadas. Não há ninguém. Kelly Danner parece ter esvaziado o clube até a última alma.

O carpete na escada para o segundo andar está úmido nos lugares onde os participantes da festa pisaram com as solas dos sapatos molhadas em álcool. Na entrada da Sala da Administração, Gil fecha a porta e bate de leve na lâmpada suspensa. Os restos do bar quebrado estão amontoados em um canto. Um fogo foi dei­xado na lareira para se extinguir, mas as brasas ainda estão verme­lhas, emitindo chamas e aquecendo a sala.

Vendo o telefone na mesa, penso no número que não pude lembrar quando o celular de Gil ficou mudo, e subitamente fica claro para mim o que tudo isso significa. Uma falha de memória; uma má comunicação. A linha que conectava Richard Curry com Paul estava cheia de estática, e de alguma maneira a mensagem

de Curry foi perdida. No entanto, Curry fez suas exigências de maneira clara.

Diga-me onde está a cópia heliográfica, Vincent, ele pediu na Sexta-Feira da Paixão, e você não me verá de novo. Esse é o único assunto que ainda temos em comum. Mas Taft recusou.

Gil pega uma chave e abre o cofre de mogno. "Aqui está", diz ele, entregando o mapa a Paul.      .

Posso visualizar Curry, indo em direção a Paul no pátio, depois voltando para a capela rumo a Dickinson Hall e ao escri­tório de Bill.

"Meu Deus!”, exclama Gil. "Como vocês vão lidar com isso?"

"Chame a polícia", eu digo. "Curry pode tentar vir atrás de Paul."

       "Não”, diz Paul. "Ele não me faria mal”.

       Mas Gil tem em mente outra coisa: lidar com o que nós fize­mos, fugindo da casa de Taft. "Curry matou Taft?”, ele pergunta.

       Eu tranco a porta. "E também matou Stein."

A sala, subitamente, parece à prova de ar. Os escombros do bar, trazidos de baixo, deixam o lugar com um odor adocicado, de algo em decomposição.

Gil está parado na cabeceira da mesa, incapaz de falar. "Ele não me faria mal", repete Paul.

       Mas eu lembro da carta que encontramos na escrivaninha de Stein. Tenho uma proposta para você. Há mais do que o suficiente aqui para satisfazer a nós dois. Seguida pela réplica de Curry, que não havia compreendido até agora: E o que acontece com Paul?

"Ele vai machucar você”, eu digo.

"Você está enganado, Tom", Paul fala rispidamente.

Mas estou vendo cada vez mais claramente para onde tudo isso leva.

       "Você mostrou a Curry o diário quando fomos ver a expo­sição", eu relembro. "Ele sabia que Taft o havia roubado."

       "Sim, mas..."

       "Stein até lhe contou que eles iam roubar sua tese. Curry queria consegui-la antes que o fizessem."

       "Tom..."

"Então, no hospital, você lhe contou tudo o que descobriu. Até mesmo que estava procurando a cópia heliográfica."

Pego o telefone, mas Paul coloca uma mão sobre o recep­tor, mantendo-o no lugar.

"Pare, Tom”, diz ele. "Escute-me."

"Ele os matou."

Agora é Paul que se apóia, parecendo estar de coração par­tido, para dizer algo que nem eu nem Gil esperávamos.

"Sim. É isso que estou tentando contar para vocês. Vocês podem escutar? Isso é o que ele quis dizer no hospital. Lembra? Logo antes de você entrar na sala de espera? Nós nos compreendemos, filho. Ele contou que não podia dormir porque estava preocupado comigo.

"E então?"

A voz de Paul treme. "Então ele disse, Se eu soubesse o que você iria fazer, eu teria feito as coisas de maneira diferente. Richard pensava que eu sabia que ele havia matado Bill. Ele quis dizer que faria as coisas de modo diferente se soubesse que eu ia sair da con­ferência de Vincent mais cedo. Dessa maneira a polícia não teria vindo me procurar”.

Gil começa a andar pela sala. Do outro lado, um cepo estala na lareira.

"Você lembra do poema que ele mencionou na exposição?"

“Browning. ‘Andrea del Sarto’”.

"O que ele dizia?"

"Você faz aquilo com que muitos sonham durante toda a vida", eu digo. “Sonho? Lute para realizá-lo, e agonize para fazê-lo, e definhe fazendo-o".

"Por que será que ele escolheu esse poema?"

"Porque ele combinava com a pintura de del Sarto."

Paul bate a mão na mesa. "Não! Porque nós solucionamos o que ele, seu pai e Vincent nunca conseguiram esclarecer. O que Richard sonhou fazer, durante toda sua vida. O que ele lutou, e agonizou, e definhou para fazer."

Surge uma frustração nele que eu nunca havia visto quando trabalhávamos juntos, quando ele parecia esperar que pudéssemos agir como um único organismo, pensar como um único pensamento. Você não deveria levar tanto tempo. Não deve­ria ser tão difícil. Estamos decifrando outra vez, deslindando o sig­nificado de um homem que ele acha que devemos conhecer de maneira idêntica. Eu nunca compreendi Colonna, ou Curry, sufi­cientemente bem para Paul.

"Não compreendo", diz Gil, percebendo que algo surgiu entre nós, fora do alcance de sua experiência.

''As pinturas", diz Paul, ainda para mim, tentando fazer com que eu perceba. ''As histórias de José. Eu até lhe contei o que significavam. Nós apenas não sabíamos o que Richard queria dizer com elas. Agora Jacó amava José mais do que qualquer outro filho, porque ele era o filho de sua velhice. E fez para ele um manto de muitas cores”.

Paul espera que eu lhe dê algum sinal, que diga que com­preendo, mas não posso.

"É um presente”, ele diz por fim. "Richard pensa que está me dando um presente."

"Um presente”, pergunta Gil. "Você perdeu a cabeça? Que presente?"

"Isso", diz Paul abrindo os braços e abarcando tudo. "O que ele fez para Bill. O que fez para Vincent. Ele os deteve para que parassem de tirar de mim o que descobri. Ele está me dando o que encontrei no Hypnerotomachia”.

Há uma terrível serenidade quando ele diz isso, medo, orgulho e tristeza circundando uma certeza silenciosa.

"Vincent roubou o diário dele trinta anos atrás", diz Paul. "Richard não quis deixar o mesmo acontecer comigo”.

"Curry mentiu para Stein”, eu disse, não querendo deixá-lo ser trapaceado por um homem que explorava a fragilidade de um órfão. "Ele mentiu para Taft. Está fazendo a mesma coisa com você”.

Mas Paul ultrapassou o ponto da dúvida. Por debaixo do horror e da descrença em sua voz, há algo que se aproxima da gratidão. Aqui estamos, em uma outra sala que exibe quadros emprestados, uma outra exposição que o papai Curry montou, no museu, para o filho que nunca teve, e os gestos se tornaram tão grandiosos que os motivos são insignificantes. É um ato final. Isso me lembra, repentinamente, que eu e Paul não somos irmãos. Que acreditamos em coisas diferentes.

Gil começa a falar, interpondo-se entre nós, para trazer a discussão de volta à realidade, e nesse instante ouvimos um som de pés que se arrastam vindo de fora. Nós três nos voltamos.

"O que será isso?”, pergunta Gil.

Então chega até nós a voz de Curry.

"Paul”, ele murmura, bem do outro lado da porta.

Nós todos gelamos.

"Richard”, diz Paul, indo até a porta. E, antes que eu ou Gil possamos detê-lo, ele alcança a fechadura da porta.

"Saia daí”, diz Gil.

Mas Paul já destrancou a porta, e uma mão do outro lado girou a maçaneta.

Ali, parado na soleira, usando o mesmo terno escuro da noite anterior, está Richard Curry. Ele tem um olhar desvairado, chocado. Há algo em sua mão.

"Preciso falar com Paul sozinho”, ele diz com uma voz rouca.

Paul percebe o que todos vemos: uma mancha de sangue perto do colarinho da sua camisa.

"Saia daqui!”, grita Gil.

"O que você fez?”, pergunta Paul.

Curry olha para ele, depois levanta um braço, segurando algo na mão estendida.

Gil se move para a frente indo para a entrada. "Saia”, ele repete.

Curry o ignora. "Eu consegui Paul. A cópia heliográfica. Pegue-a”.

"Você não vai se aproximar dele”, diz Gil, com voz trêmula. "Estamos chamando a polícia”.

Meus olhos estão fixados sobre o objeto escuro na mão de Curry. Paro na entrada ao lado de Gil, de modo que nós dois ficamos na frente de Paul. Bem no momento em que Gil agarra seu telefone, no entanto, Curry nos pega de surpresa. Num único movimento ele se lança entre nós, empurrando Paul para dentro da Sala da Administração, e bate a porta com força. Antes que eu e Gil possamos impedir, a porta é trancada.

Gil esmurra a madeira com os punhos. "Abra!", ele grita enquanto me puxa para trás e bate com o ombro na porta. A porta, de madeira grossa, não sai do lugar. Nós dois arremetemos, ao mesmo tempo, até que a fechadura parece se deslocar. A cada investida, ouço sons do outro lado.

"Mais uma vez", grita Gil.

Na terceira arremetida, a fechadura de metal salta fora e a porta se abre com um som de tiro.

Entramos rapidamente na sala para ver Curry e Paul dos lados opostos da lareira. O braço de Curry ainda está estendido. Gil se lança na direção deles, batendo em Curry com toda força, derrubando-o no chão, perto do piso da lareira. A cabeça de Curry arrebenta a grade de metal da lareira, fazendo faíscas voarem e as brasas se espalharem repentinamente.

"Richard", chama Paul, correndo para ele.

Paul puxa Curry para longe do piso da lareira e o apóia contra o bar. Da profunda ferida em sua cabeça escorre sangue sobre seus olhos, enquanto ele tenta se orientar. Só agora vejo a cópia heliográfica na mão de Paul.

"Você está bem?", pergunta Paul, sacudindo os ombros de Curry. "Ele precisa de uma ambulância!"

       Mas Gil está atento. ''A polícia cuidará dele."

       Nesse momento sinto um grande afluxo de calor. As costas do paletó de Curry pegaram fogo. Agora todo o bar está em chamas.

       "Vão para trás!", grita Gil.

Mas eu estou pregado no lugar. O fogo está subindo para o teto através das cortinas. Acelerado pelo álcool, o fogo se espalha com rapidez, engolindo tudo ao seu redor.

       "Tom!", grita Gil. "Faça com que eles saiam daqui! Vou procurar um extintor!"

Com a ajuda de Paul, Curry está tentando ficar de pé. Num repente, o homem empurra Paul e vai cambaleando para o corredor, tirando seu paletó.

"Richard”, suplica Paul, seguindo-o.

Gil volta com o extintor e começa a esguichar nas corti­nas. Mas o fogo está crescendo muito rápido para ser apagado. A fumaça sobe em rolos desde a entrada até o teto.

Finalmente recuamos para a porta, forçados pelo calor e pela fumaça. Cubro a boca com a mão, sentindo os pulmões com­primidos. Quando me viro para as escadas, posso ver Paul e Curry lutando através de uma grossa nuvem de fumaça negra, suas vozes estão alteradas.

Grito o nome de Paul, mas as garrafas no bar começam a explodir, abafando minha voz. Gil é atingido pelos primeiros estilhaços. Empurro-o para que fique fora do caminho, enquanto procuro ouvir uma resposta de Paul.

Então, através da fumaça, eu o ouço. "Vá, Tom! Saia daqui.

As paredes estão borrifadas de fogo. Uma garrafa passa arremessada com força pelos ares; ela paira acima de nós, espa­lhando chamas, depois cai para o primeiro andar.

Por um segundo não há nada. Depois o vidro pousa sobre a pilha de panos, ensopados com uísque, conhaque e gim, e o chão inteiro pega fogo. Do andar de baixo chegam sons de explosão, de madeira queimando, de fogo se espalhando. A porta da entrada já está bloqueada. Gil berra no seu celular, pedindo ajuda. O fogo está subindo para o segundo andar. Minha mente parece estar ilu­minada com faíscas, com uma luz branca quando fecho os olhos. Estou flutuando, boiando no calor. Tudo parece tão lento, tão pesado! Vislumbro a pista de baile como uma miragem.

"Como vamos sair daqui?", eu grito.

"Pelas escadas de serviço", responde Gil. "Vamos para cima”.

"Paul", eu berro. Mas não há resposta. Movo-me lenta­mente em direção às escadas, e agora suas vozes desapareceram, Paul e Curry sumiram.

"Paul", eu urro.

As labaredas engoliram a Sala da Administração e come­çam a vir para o nosso lado. Sinto um estranho torpor em minha coxa. Gil se volta para mim, apontando para a perna. A minha calça está rasgada. Sangue escorre através do tecido, negro sobre negro. Ele tira seu paletó e o amarra ao redor da ferida. O túnel de fogo parece agora muito próximo em volta de nós, empurrando-nos para as escadas. O ar está quase negro.

Gil me empurra para o terceiro andar. Lá no alto, nada é visível, há apenas níveis de sombra. Uma réstia de luz brilha embaixo de uma porta no fim do saguão. Seguimos em frente. O fogo chegou ao pé da escadaria, mas parece permanecer por lá.

Nesse momento escuto. Um gemido alto de desabafo, vindo de dentro da sala.

O som nos congela momentaneamente. Então Gil se lança para a frente e abre a porta. Quando o faz, a sensação de embria­guez do baile retorna. O calor do corpo, como um formigamento de êxtase. Katie está me tocando, sinto sua respiração em mim, seus lábios sobre os meus.

Richard Curry está argumentando com Paul atrás de uma longa mesa do outro lado da sala. Há uma garrafa vazia em sua mão. Sua cabeça pende sobre o ombro, o sangue continua a escor­rer. Não há nada além do odor de álcool aqui, o que sobrou de uma garrafa está entornado sobre a mesa, um armário aberto revela uma outra garrafa de licor escondida, um segredo do pre­sidente de Ivy. O comprimento da sala é da largura do edifício, emoldurada em prata pelo luar. Prateleiras de livros cobrem as paredes, com suas lombadas de couro que podem ser vistas nas sombras atrás da cabeça de Curry. Na parede ao norte há duas janelas. Há poças por toda parte.

"Pau!!", grita Gil, "Ele está bloqueando a escada de serviço, atrás de você."

Paul se volta para olhar, mas os olhos de Curry estão fixos em mim e em Gil. Fico paralisado ao vê-lo. Os sulcos em seu rosto estão tão profundos que parecem estar sendo atraídos pela gravi­dade, puxados para baixo.

"Richard", Paul diz firmemente, como se falasse com uma criança, "nós temos que sair daqui."

"Saia da frente”, grita Gil, dando um passo adiante.

Mas quando ele avança, Curry quebra a garrafa na mesa e se move, subitamente, batendo com o casco quebrado no braço de Gil. O sangue começa a escorrer entre os seus dedos como tiras negras. Ele cambaleia para trás, olhando o sangue fluir de seu braço. Vendo isso, Paul cai contra a parede.

"Aqui", eu chamo, tirando um lenço do bolso.

Gil se move lentamente. Quando ele estica o braço para pegar o lenço, vejo que o corte é bastante profundo. O sangue escorre pelo sulco assim que a pressão desaparece.

"Vá!", eu digo, empurrando-o para a janela. "Pule! Os ramos vão amortecer sua queda."

Mas ele está paralisado de assombro, olhando para a garrafa quebrada na mão de Curry. Agora a porta da biblioteca está estremecendo, o ar quente aumentando do outro lado. Rolos de fumaça começam a entrar por debaixo da porta, e posso sentir os olhos lacrimejando e meu peito ficando pesado.

"Paul”, eu grito através da fumaça. "Você tem de sair!"

"Richard”, grita Paul por sua vez. "Venha”.

"Deixe ele ir!”, eu berro para Curry - mas agora o fogo já está crepitando, querendo entrar. Do outro lado chega um som terrível, o da madeira cedendo sob o seu próprio peso.

Subitamente Gil desmaia perto da parede ao meu lado. Corro até a janela e a abro, empurrando-o através dela, lutando para mantê-lo em pé.

"Ajude Paul", murmura Gil, a última coisa que ele diz antes que a luz se apague de seus olhos.

Um vento glacial penetra na sala, trazendo a neve que está acumulada nos ramos lá fora. Tão suavemente quanto posso, coloco-o em posição de pular. Ele parece angelical sob a luz, pas­sivo. Olhando para o lenço ensangüentado, enrolado em torno de seu braço, começo a sentir tudo desaparecer ao meu redor. Com uma última olhada, eu o solto. Em um instante, Gil desaparece.

"Tom", chega a voz de Paul, tão distante que parece vir de uma nuvem de fumaça. "Vá."

Viro-me e vejo Paul lutando nos braços de Curry, tentando empurrá-lo para a janela, mas o homem é muito mais forte. Ele não quer que o tirem dali. Em vez disso, Curry empurra Paul para a escada de serviço.

"Pule!", escuto abaixo de mim, vozes que chegam através da janela aberta. "Pule para baixo!"

Os bombeiros estão me localizando aqui dentro.

Mas me volto outra vez. "Paul!”, eu grito. "Venha!"

"Vá, Tom", eu posso ouvi-lo dizer, uma última vez. "Por favor”.

As palavras se tornam distantes muito rapidamente, como se Curry o tivesse levado para dentro da fumaça. Os dois estão se afastando em direção à antiga fogueira das vaidades, combatendo como anjos no transcurso da vida humana.

"Para baixo" é a palavra final que ouço de dentro do quarto, dita por Curry. "Para baixo”.

E de novo, de fora: "Depressa! Pule!".

"Paul”, eu grito, recuando para a beirada da janela quando as chamas começam a me acossar. A fumaça quente pressiona como um punho contra meu peito. Do outro lado da sala, a porta da escada de serviço continua fechada. Não se pode enxergar mais nada. Eu pulo.

Essas são as últimas coisas de que me lembro antes que a neve meio derretida me engula. Depois há uma explosão, como uma súbita aurora à meia-noite. Um cano de gás estourou e der­rubou todo o edifício. A fuligem começa a cair.

No silêncio, eu estou gritando. Para o bombeiro. Para Gil. Para qualquer um que queira me ouvir. Eu vi, grito alto: Richard Curry, abrindo a porta para a escada de serviço, empurrando Paul por ela.

Ouçam-me.

E de início, eles o fazem. Dois bombeiros, ouvindo meus gritos, aproximam-se do edifício. Um estudante de medicina está ao meu lado, tentando entender. Que escadas?, ele pergunta. Aonde elas vão dar?

Nos túneis, eu conto. Elas terminam perto dos túneis.

Então a fumaça diminui e as mangueiras tornam a fachada do clube visível, e tudo começa a mudar. Há menos busca, eles estão menos atentos. Não sobrou nada, dizem, andando devagar. Não há ninguém aí dentro.

Paul está vivo, eu grito. Eu o vi.

Mas cada segundo que passa age contra ele. Cada minuto se transforma em um punhado de areia. Pela maneira que Gil está olhando para mim agora, percebo o quanto tudo mudou.

"Estou bem", diz ele para o médico que está examinando seu braço. Ele enxuga um dos lados do rosto, depois aponta para mim. "Ajude meu amigo."

A Lua paira sobre nós como um olhar vigilante, e estou sentado ali, olhando para além dos homens silenciosos que diri­gem os jatos de água sobre o clube destruído, imaginando a voz de Paul. De algum modo, ele diz, distante, olhando para mim por cima da xícara de café, sinto como se ele também fosse meu pai. Acima da cortina preta do céu posso ver seu rosto, tão pleno de certeza que acredito nele mesmo agora.

Então, o que você acha?, ele me pergunta.

Sobre você ir a Chicago?

Sobre nós irmos a Chicago.

Para onde fomos levados naquela noite, que perguntas nos fizeram, não consigo lembrar. O fogo continuou queimando diante de mim, e a voz de Paul murmurava em meu ouvido, como se ele ainda pudesse surgir das chamas. Vi mil rostos antes do nas­cer do sol, trazendo mensagens de esperança: amigos que saíram de seus quartos por causa do fogo; professores despertados pelo barulho das sirenes; o próprio serviço da capela que parou no meio por causa do espetáculo do fogo. E eles se juntaram ao nosso redor como um tesouro itinerante, cada rosto uma moeda, como se fosse declarado no céu que devemos sofrer nossas perdas con­tando o que sobrou. Talvez eu soubesse então que era uma rica, rica pobreza que estávamos admitindo. Que negra comédia os deuses permitiram, os que fizeram isso. Meu irmão Paul, sacrifi­cado na Páscoa. A ironia do casco da tartaruga, deixado cair sobre nossas cabeças.

Naquela noite três de nós sobrevivemos. Nós nos encon­tramos no hospital, Gil, Charlie e eu, companheiros de quarto outra vez. Nenhum de nós falou. Charlie tocou com os dedos o crucifixo pendurado em seu pescoço, Gil dormiu e eu fiquei olhando as paredes. Sem notícias de Paul, todos investíamos no mito da sua sobrevivência, no mito da sua ressurreição. Eu devia saber, em vez de acreditar, que não há nada indivisível em uma amizade, do mesmo modo que em uma família. E no entanto esse mito sustentou-me na época. Naquela época e também depois.

Mito, eu digo. E nunca esperança.

Porque o compartimento da esperança está vazio.

 

                                                   Capítulo 29

O tempo, como um médico, nos deu alta. Mesmo antes de Charlie sair do hospital, não éramos mais notícia. Companheiros de classe olhavam para nós como se estivéssemos fora de contexto, memórias fugi dias com uma aura de significado anterior.

Depois de uma semana, a nuvem de violência que assolou Princeton acalmou-se. Os estudantes começaram de novo a atra­vessar o campus depois de escurecer, primeiro em grupos, depois sozinhos. Incapaz de dormir, eu ia sozinho para o Wa Wa no meio da noite, para encontrá-lo cheio de pessoas. Richard Curry era o centro das conversas. Igualmente Paul. Mas aos poucos os nomes que eu conhecia foram desaparecendo, substituídos por exames e jogos de hóquei da universidade, bem como pela conversa anual de primavera: um formando que dormiu com sua orientadora de tese, o episódio final de um programa favorito de tevê. Mesmo as manchetes que eu lia enquanto esperava na fila para a inscrição, aquelas que me impediam de permanecer sozinho quando todos pareciam estar com amigos, sugeriam que o mundo tinha ido para a frente sem nós. No décimo sétimo dia depois da Páscoa, a pri­meira página do Princeton Packet anunciava que um plano para um estacionamento subterrâneo na cidade havia sido rejeitado. Apenas no final da página dois estava anunciado que um aluno rico havia doado dois milhões de dólares para a reconstrução de Ivy.

Em cinco dias Charlie estava fora da cama do hospital, mas passou mais duas semanas em reabilitação. Os médicos sugeriram uma operação plástica em seu peito, onde os enxertos de sua pele tornaram-se grossos e cartilaginosos, mas Charlie recusou. Eu o visitei no centro médico todos os dias, exceto um. Charlie queria que eu lhe levasse batatas fritas do Wa Wa, livros de suas aulas, os resultados de todos os jogos dos Sixers. Ele sempre me arrumava um pretexto para voltar.

Mais de uma vez fez questão de me mostrar suas queima­duras. De início pensei que fosse para provar algo para si mesmo, que ele não se sentia desfigurado, que era muito mais forte do que aquilo que lhe havia acontecido. Depois achei que o oposto era verdade. Ele queria assegurar-se que eu sabia que ele tinha mudado por causa disso. Charlie parecia temer ter parado de fazer parte da minha vida, ou da de Gil, depois do instante em que cor­reu atrás de Paul nos túneis de vapor. Estávamos continuando sem ele, reparando sozinhos nossas perdas. Ele sabia que tínha­mos começado a nos sentir estranhos em nossas próprias peles, e queria que soubéssemos que ele estava na mesma posição, que ainda estávamos juntos nisso.

Surpreendeu-me que Gil o visitasse bastante. Eu presen­ciei algumas de suas visitas e o mesmo embaraço esteve presente em todas elas. Ambos se sentiam culpados de uma maneira que se intensificava quando se encontravam. De uma forma irracio­nal, Charlie se sentia culpado por não ter estado conosco em Ivy. Algumas vezes, ele até via o sangue de Paul em suas mãos, jul­gando a morte do amigo como o preço de sua própria fraqueza. Gil parecia sentir que tinha nos abandonado havia muito tempo, de um modo que era mais difícil de ser expressado. O fato de Charlie se sentir tão culpado depois de ter feito tanto, só fazia com que Gil se sentisse pior.

Uma noite, antes de irmos para a cama, Gil desculpou-se. Disse que desejaria ter feito as coisas de modo diferente. Nós mere­cíamos mais. Desde aquela noite nunca mais o vi assistindo filmes antigos. Ele almoçava em restaurantes cada vez mais distantes do campus. Cada vez que o convidava para almoçar no meu clube, ele encontrava algum motivo para não comparecer. Apenas depois de quatro ou cinco recusas compreendi que não era a minha com­panhia que ele recusava; era o pensamento de ver Ivy no caminho para lá. Quando Charlie saiu do hospital, eu e ele comíamos jun­tos no café, almoço e jantar. Cada vez mais Gil passou a beber e comer sozinho.

Lentamente nossas vidas pararam de ser examinadas. Se nos sentíamos como párias, no início, quando todos não se can­savam de falar sobre nós, depois passamos a nos sentir como fantasmas, quando começaram a nos esquecer. A cerimônia em memória de Paul foi realizada na capela, mas poderia ter sido feita em uma saleta de aula pelo pequeno número de pessoas que a assistiu, quase o mesmo tanto de professores e de estudantes, e muitos desses eram apenas os membros do pelotão de para-mé­dicos ou de Ivy, mostrando simpatia por Charlie ou por Gil. O único membro da faculdade que se aproximou de mim depois da cerimônia foi a professora LaRoque, a mulher que apresentou Paul a Taft - e mesmo assim ela só pareceu estar interessada no Hypnerotomachia e não no próprio Paul. Eu não lhe disse nada e fiz o mesmo cada vez que o Hypnerotomachia era mencionado. Eu achei que era o mínimo que podia fazer, não contando a estranhos o segredo pelo qual Paul tanto lutou e fez questão de manter só entre seus amigos.

O que por um curto período de tempo fez ressurgir um certo interesse foi a descoberta, uma semana depois da man­chete sobre o estacionamento subterrâneo, de que Richard Curry havia liquidado seus bens antes de deixar Nova York para ir a Princeton. Ele havia colocado o dinheiro em uma fundação par­ticular, com o restante dos bens de sua casa de leilões. Quando o banco recusou-se a revelar os termos do depósito em custódia, Ivy reivindicou ter direito a esse dinheiro, como uma recompensa por seus danos. Apenas quando o conselho do clube decidiu que nem uma pedra do novo edifício seria colocada com o dinheiro de Curry, o tumulto cessou. Enquanto isso, os jornais repetiam as notícias de que Richard Curry havia deixado todo o seu dinheiro para um curador desconhecido, e alguns sugeriram mesmo aquilo em que eu acreditava - que todo o dinheiro deveria ir para Paul.

Ignorando tudo sobre a tese de Paul, no entanto, o grande público não podia compreender as intenções de Curry, assim eles cavoucaram na sua relação de amizade com Taft até os dois homens se tornarem uma farsa, uma explicação para toda a des­graça que não tinha explicação nenhuma. A residência de Taft no Instituto tornou-se uma casa assombrada. Novos membros do Instituto recusavam-se a habitá-la, e adolescentes caipiras desafia­vam um ao outro para passar por lá.

O único benefício trazido pelo novo clima, o de teorias fantásticas e manchetes sensacionalistas, foi que logo se tornou impossível sugerir que Gil, Charlie e eu tínhamos feito qualquer coisa de errado. Não éramos suficientemente brilhantes para desempenhar um papel no que havia acontecido, por mais estra­nho que todos pensassem que fosse, nem mesmo quando os noti­ciários locais puderam preencher suas coberturas dos aconteci­mentos com fotos de Taft, considerado como um Rasputin, e do lunático Curry que o matou. A polícia e a universidade concorda­ram que não tinham a intenção de prosseguir qualquer ação con­tra nós, e suponho que tenha sido bom para nossos pais o fato de nos formarmos sem desonra. Nada disso importou para Gil, uma vez que ele nunca ligava para esse tipo de coisa, e eu também não dei a menor importância a isso tudo.

No entanto, acho que tirou um peso da cabeça de Charlie. Ele viveu de modo crescente à sombra do que aconteceu. Gil cha­mou isso de complexo de perseguição, o modo pelo qual ele espe­rava que acontecesse uma desgraça a cada curva, mas eu acho que Charlie tinha simplesmente se convencido de que ele poderia ter salvo Paul. Quaisquer que fossem as razões, haveria um ajuste de contas por suas falhas - senão em Princeton, depois no futuro.

Não era tanto a perseguição que Charlie temia; era o julgamento.

O único vestígio de prazer nos meus últimos dias de uni­versidade veio de Katie. No começo ela trazia comida para mim e Gil, enquanto Charlie estava ainda no hospital. Como conse­qüência do incêndio, ela e outras colegas de Ivy começaram uma cooperativa, comprando seu próprio alimento e preparando suas próprias refeições. Achando que não estávamos comendo, ela sempre cozinhava para três. Depois, ela me levava para passear, insistindo que o sol possuía poderes curativos, que havia vestígios de lítio nos raios cósmicos que você só podia absorver na aurora. Ela até tirou fotografias de nós, como se visse algo naqueles dias que valia a pena lembrar. A fotógrafa que havia nela parecia con­vencida de que a solução estava de alguma maneira ligada a uma correta exposição à luz.

Sem Ivy em sua vida, Katie parecia corresponder melhor ainda ao que eu queria que ela fosse, e se parecia menos com aquela faceta de Gil que nunca cheguei a compreender. Seu astral estava sempre alto, e os cabelos sempre soltos. Na noite antes da formatura, ela me convidou de novo para ir ao seu dormi­tório, depois de um filme, com a desculpa de que queria que eu me despedisse de suas colegas de quarto. Eu sabia que ela tinha outra coisa em mente, mas naquela noite eu disse que não podia. Haveria uma porção de fotos das certezas que ela carregava con­sigo, família e velhos amigos e o cachorro ao lado de sua cama em New Hampshire. Uma última noite, rodeado por todas as suas estrelas fixas, apenas me faria lembrar do quanto minha própria vida estava em mutação contínua.

Estivemos atentos naquelas semanas finais, enquanto a investigação sobre o fogo em Ivy chegava a uma conclusão. Por fim, na sexta-feira antes da colação de grau, como se o anúncio estivesse planejado para finalizar o ano escolar, as autoridades locais reconheceram que Richard Curry, "de uma maneira coin­cidente com os relatos de primeira mão, ativou o fogo dentro do Clube Ivy, causando a morte de dois homens que estavam no

edifício." Como prova disso, eles apresentaram dois fragmentos de maxilar humano, que correspondiam aos registros da arcada dentária de Curry. A explosão do cano mestre do gás não havia deixado mais nada.

No entanto, a investigação permaneceu em aberto e nada mais específico foi dito sobre Paul. Eu sabia por quê. Apenas três dias depois da explosão, um investigador confessou a Gil que eles tinham esperança de que Paul houvesse sobrevivido: os restos que encontraram eram meros fragmentos e, ainda assim, os poucos dentre eles identificáveis pertenciam a Curry. Durante os dias seguintes, então, aguardamos com esperança o retorno de Paul. Mas quando ele não voltou, não cambaleou para fora da floresta nem apareceu subitamente em um lugar familiar, depois de ter perdido a memória durante um tempo, os investigadores parece­ram achar que era melhor ficar em silêncio do que nos importu­nar com falsas esperanças.

A formatura chegou cálida e verde, sem um sopro de vento, como se aquele fim de semana de Páscoa nunca pudesse ter acontecido. Havia até borboletas no ar, esvoaçando como um emblema deslocado, quando sentei no pátio de Nassau Hall, rodeado por colegas em nossas togas e barretes com borla, espe­rando que nossos nomes fossem pronunciados. Lá em cima, na torre, eu imaginava um sino badalando silenciosamente sem badalo: Paul celebrando nosso sucesso, bem além das desordens

do mundo.    .

Havia fantasmas por todo lado à luz do dia. Mulheres em vestidos de noite, do baile de Ivy, dançando no céu como anjos natalinos, anunciando uma nova estação do ano. Nus olímpicos correndo pelos pátios, sem vergonha de sua nudez, como um espectro da estação que terminou. O orador da solenidade de colação de grau gracejou em latim, piadas que não entendi, e por um instante imaginei que era Taft quem estava lá se dirigindo a nós; Taft e atrás dele Francesco Colonna, e atrás deles um coro de filósofos enrugados, todos entoando um refrão solene, como apóstolos bêbados cantando o "Hino de Guerra da República”.

Nós três voltamos para o quarto mais uma vez depois da cerimônia. Charlie estava indo para Filadélfia para trabalhar em ambulâncias, durante o verão, antes de cursar a escola de medi­cina no outono. Ele havia escolhido a Universidade da Pensilvânia, nos disse por fim, depois de hesitar por muito tempo. Queria ficar perto de casa. Gil estava pegando as bugigangas sobre sua cama com um toque de impaciência que eu de certa forma já esperava. Ele disse ter uma passagem para sair de Nova York naquela mesma noite. Estava indo para a Europa por um tempo. Para a Itália, mais do que qualquer outro lugar. Precisava de um tempo para pôr as coisas no lugar.

Pegamos, juntos, nossas últimas correspondências, Charlie e eu, uma vez que Gil já havia ido embora. Dentro da caixa havia quatro pequenos envelopes, idênticos em tamanho. Eles conti­nham papeletas de inscrição para a comissão diretora de alunos, uma para cada um de nós. Coloquei a minha no bolso e peguei também a de Paul, percebendo que ele não tinha sido excluído da lista de nossa classe. Por um momento imaginei que tinham feito um diploma para ele também e que agora estaria em algum lugar, não reclamado. Mas no quarto envelope, o dirigido para Gil, seu nome havia sido riscado, e o meu escrito com sua letra. Abri-o e li. Dentro havia o endereço de um hotel na Itália. Caro Tom, estava escrito, na parte interna do envelope. Deixei o de Paul aqui para você. Achei que gostaria de ficar com ele. Diga a Charlie que sinto muito sair correndo. Sei que você compreende. Se aparecer na Itália, telefone. - G.

Abracei Charlie antes de partir. Uma semana depois, ele telefonou para minha casa para perguntar se eu tinha a intenção de ir à nossa reunião de classe no ano seguinte. Era o tipo de pretexto que só Charlie inventaria para um telefonema. Falamos durante horas. Finalmente perguntou se eu podia lhe dar o endereço de Gil na Itália. Contou que havia encontrado um cartão-postal que Gil gostaria de ver, o qual tentou descrever para mim. Percebi, por trás de suas palavras, o que ele estava realmente querendo dizer: que Gil não havia lhe dado o seu endereço. As coisas entre eles nunca voltaram ao normal.

Não fui para a Itália, naquele verão ou posteriormente. Gil e eu nos encontramos três vezes nos quatro anos seguintes, sem­pre em uma reunião de classe. Havia cada vez menos coisas para serem ditas entre nós. Os fatos da sua vida gradualmente se reu­niram com a graciosa pré-ordenação das palavras em uma litania. Por fim ele retomou a Manhattan; como seu pai, tornou-se ban­queiro. Diferentemente de mim, ele parecia envelhecer bem. Aos vinte e seis anos anunciou seu noivado com uma linda moça um ano mais nova, que me lembrava uma estrela de filme antigo. Vendo-os juntos, eu não podia mais negar o padrão de vida de Gil.

Charlie e eu continuamos mais próximos. Para ser honesto, ele não me deixava desaparecer. Mantinha a preferência em minha vida por ser o amigo mais constante que eu tive, aquele que se recusava a abandonar um companheiro só por causa da distância crescente ou do desbotar da memória. No primeiro ano da escola médica casou-se com uma mulher que me lembrava sua mãe. Sua primeira filha levou o nome de sua mãe. Seu segundo filho cha­mou-se Thomas. Sendo um solteirão, posso honestamente apre­ciar Charlie como pai, sem me preocupar em me comparar com ele. A única maneira de fazer justiça é dizer que Charlie é ainda um melhor pai do que amigo. Na maneira pela qual cuida de seus filhos há um vestígio da proteção natural, da incrível energia, da enorme gratidão pelo privilégio da vida, que ele sempre demons­trou em Princeton. Hoje ele é pediatra. Um excelente médico. Sua mulher conta que em alguns fins de semana ele ainda sai com a ambulância. Espero que algum dia, como ele acredita, Charlie Freeman venha a comparecer ao céu na hora do julgamento. Nunca conheci um homem melhor.

Acho difícil contar o que aconteceu comigo. Depois da formatura voltei para Columbus. Mora uma única viagem para New Hampshire, passei os três meses de verão em casa. Não sei se foi porque minha mãe compreendeu minha perda melhor do que eu, ou porque ela não podia se impedir de ficar contente com

o fato de que Princeton não mais fizesse parte de minha vida ­ ou da nossa vida -, ela se abriu. Conversávamos; ela brincava. Comíamos juntos, só nós dois. Sentávamos na velha colina onde eu andara de trenó, aquela em que minhas irmãs costumavam me levar para passear, e minha mãe me contava o que se passava com ela. Tinha planos de abrir uma segunda livraria em Cleveland. Explicou seu plano, a maneira pela qual estava dirigindo seu negócio, a possibilidade de vender a casa agora que ela ia ficar vazia. Compreendi só a parte mais importante disso tudo: que ela estava finalmente começando algo novo.

Para mim, no entanto, o problema não era começar algo novo. Era compreender. A medida que os anos passavam, as outras incertezas da minha vida pareciam ter se esclarecido de uma maneira que meu pai nunca conseguiu na sua. Posso imagi­nar o que Richard Curry estava pensando naquele fim de semana de Páscoa: que Paul estava na mesma posição em que ele estivera uma vez, que seria insuportável deixar seu filho órfão tornar-se um outro Bill Stein ou Vincent Taft, ou mesmo Richard Curry. O velho amigo de meu pai acreditava na dádiva de uma situação livre de compromissos, um cheque em branco com crédito ilimitado; apenas levamos muito tempo para compreendê-lo. Mesmo Paul, nos dias em que eu ainda acreditava na sua sobrevivência, me deu razões para pensar que ele simplesmente abandonara a todos nós, escapando pelos túneis sem nem mesmo olhar para trás; o reitor o havia deixado com pouca esperança de que se formaria e eu o deixei sem nenhuma esperança de que iria para Chicago. Quando lhe perguntei onde ele gostaria de estar naquele momento, me res­pondeu honestamente: em Roma, com uma escavadeira. Nunca pude perguntar a meu pai questões desse tipo, ainda que, em retrospecto, ele fosse o tipo de homem que responderia honesta­mente a elas.

Suponho, então, olhando para trás, que a única maneira que tenho de explicar por que me tornei uma autoridade em inglês depois de ter perdido a fé nos livros - uma vez que eu tivera a possibilidade de trabalhar no livro de Colonna depois de rejeitar o amor de meu pai por ele - é que eu estava procurando pelas peças que pensava que meu pai devia ter deixado para mim, aquelas que poderiam fazer com que eu o compreendesse de novo. Porque enquanto convivi com Paul, durante o tempo da nossa pesquisa no Hypnerotomachia, a resposta parecia estar quase ao meu alcance. Enquanto trabalhávamos juntos, sempre havia espe­rança de que eu pudesse eventualmente compreender.

Quando essa esperança desapareceu, honrei meu con­trato e me tornei analista de software. O emprego que consegui resolvendo um enigma, eu o aceitei porque falhei em resolver um outro. O tempo no Texas passou muito rapidamente. O calor do verão ali não me recordava nada do que havia conhecido antes, por isso fiquei. Katie e eu nos correspondemos quase semanalmente durante os seus dois últimos anos em Princeton, cartas pelas quais eu passei a esperar, mesmo quando se tornaram menos freqüen­tes. A última vez que a vi foi durante uma viagem que fiz a Nova York para celebrar o meu vigésimo sexto aniversário. No final dessa viagem, acho que até Charlie podia sentir que nossa relação havia chegado ao fim. Enquanto eu andava pelo Prospect Park sob o sol do outono, perto da Brooklyn Gallery, onde Katie trabalhava, comecei a compreender que as coisas que outrora apreciávamos tinham ficado para trás, em Princeton, e que o futuro falhou em substituí-Ias com uma visão de coisas ainda por vir. Katie, eu sabia, esperava começar algo novo naquele fim de semana, pro­jetar uma nova trajetória para uma nova série de estrelas. Mas a possibilidade de renascimento, que havia sido a tábua de salvação de meu pai por tanto tempo, e que tinha preservado sua fé em seu filho, era um artigo de fé do qual pouco a pouco passei a duvidar. Depois daquele final de semana, comecei a sair completamente fora da vida de Katie. Pouco depois disso ela me telefonou pela última vez. Ela sabia que eu tinha problema para pôr um ponto final nas coisas, que eram as minhas cartas que haviam se tornado menores e mais distantes. Sua voz trouxe de volta uma dor inespe­rada. Ela me disse que eu não ouviria falar nela até que eu tivesse decidido em que pé estávamos. Finalmente, me deu seu número de telefone em uma nova galeria e disse para eu ligar quando as coisas se tornassem diferentes.

As coisas nunca ficaram diferentes. Não para mim, pelo menos. Pouco tempo depois a nova livraria de minha mãe cresceu e ela me chamou para cuidar da que ficava em Columbus. Disse-lhe que era muito difícil deixar o Texas, agora que eu tinha criado raízes. Minhas irmãs me visitavam, e Charlie o fez uma vez com sua famí­lia, todos se retirando no final com conselhos de como eu pode­ria me livrar desse baixo-astral, como poderia superar isso, o que quer que fosse. A verdade é que eu estava apenas observando as coisas mudarem ao meu redor. Os rostos eram mais jovens a cada ano, mas eu via as mesmas formulações em todos eles, reimpressas como dinheiro, novos padres em velhas seitas. Lembro que na aula de economia que tive com Brooks aprendemos que um único dólar, circulando por bastante tempo, poderia comprar tudo no mundo. Mas vejo o mesmo dólar agora em cada permuta. Os bens que ele compra, não necessito mais deles. Em muitos dias eles nem mesmo se parecem com bens.

Foi Paul quem melhor expôs a passagem do tempo. Ele sempre permaneceu ao meu lado, jovem e brilhante, como um incorruptível Dorian Gray. Acho que foi quando o meu relacionamento com uma professora assistente na Universidade do Texas começou a perder força - uma mulher que me lembrava, percebo agora, meu pai, minha mãe e Katie, todos de uma vez - que eu passei a falar com Charlie todas as semanas e a pensar em Paul cada vez mais. Achava que ele estava certo em cair fora como o fez. Lutando. Jovem. Enquanto eu, como Richard Curry, sofria a depredação da idade, o desapontamento de uma juventude promissora. Acho que a morte é apenas uma evasão do tempo. Talvez Paul soubesse que ele estava superando tudo: o passado, o pre­sente,-e qualquer distinção entre eles. Mesmo agora, ele parece estar me conduzindo para a conclusão mais importante de minha vida. Eu ainda o considero meu amigo mais próximo.

 

                                     Capítulo 30

Talvez eu tivesse tomado minha decisão antes mesmo de ter recebido o pacote pelo correio. Talvez o pacote tenha sido ape­nas um acelerador, como o álcool que Parker espalhou no chão do clube naquela noite. Eu ainda não tinha trinta anos e me sentia como um velho. Era a véspera de nossa quinta reunião e pareciam ter se passado cinqüenta anos.

Imagine, disse Paul um dia, que o presente seja simples­mente um reflexo do futuro. Imagine que passamos nossas vidas inteiras olhando em um espelho com o futuro nas nossas costas, vendo-o somente no reflexo do que está aqui e agora. Alguns de nós vão começar a acreditar que podem ver melhor o amanhã virando-se para olhar diretamente para ele. Mas os que assim fize­rem, sem mesmo perceber, perderão a chave para a perspectiva que antes possuíam. Porque a única coisa que eles nunca serão capazes de ver no futuro é a si mesmos. Voltando suas costas ao espelho, eles se tornarão o único elemento do futuro que seus olhos nunca poderão encontrar.

Na época pensei que Paul estivesse repetindo algum tipo de sabedoria que recebeu de Taft, que este, por sua vez, havia roubado de algum filósofo grego, a idéia de que passamos nossas vidas dando as costas para o futuro. O que não pude perceber, porque eu estava voltado para o lado errado, era que Paul falava para mim, sobre mim. Durante anos tenho estado determinado a prosseguir com minha vida perseguindo obstinadamente o futuro. É o que todos me disseram que eu tinha de fazer, esquecer o passado, olhar para a frente, e afinal fiz tudo isso melhor do que qualquer um esperaria. Quando o consegui, no entanto, comecei a imaginar que eu sabia exatamente o que meu pai sentia, que eu podia me identificar com a maneira pela qual as coisas pareciam se voltar contra ele sem nenhuma explicação.

O fato é que não compreendo o início disso tudo. Estou mudando de posição agora, em direção ao presente, e descubro que não sinto nada parecido com os desapontamentos que ele experimentou. Não sei nada a respeito de negócios, que nunca me interessaram. Fiz as coisas direito. Meus superiores admira­ram meu comportamento: eu era sempre o último homem a sair do escritório, durante cinco anos nunca tirei um dia de folga. Desconhecendo os motivos, eles acharam que fosse por devoção.

Olhando para isso agora, e comparando com a maneira pela qual meu pai nunca fez algo de que não gostasse, chego a uma certa compreensão. Não o conheço melhor do que conhe­cia antes, mas sei agora algo sobre a posição que tenho tomado durante todos esses anos, virando-me para olhar o futuro. É uma maneira cega de encarar a vida, uma postura que permite que a vida passe por nós, justamente quando pensamos estar lutando corpo a corpo com ela.

Esta noite, bem depois de sair do escritório, abandonei meu emprego no Texas. Olhei o sol desaparecer em Austin, perce­bendo que não nevou nem uma vez enquanto estive aqui, nem em abril, nem mesmo no meio do inverno. Eu quase esqueci como é entrar em uma cama muito fria, desejando que haja mais alguém nela. Texas é tão quente que nos faz acreditar que é melhor dormir sozinho.

O pacote estava em minha casa quando voltei do traba­lho hoje. Um pequeno tubo marrom do correio, apoiado contra minha porta, tão inesperadamente leve que pensei que estivesse vazio. Não havia nada do lado de fora, exceto meu endereço. Nenhum endereço de remetente, apenas um número escrito à mão no canto esquerdo, um tanto avariado. Lembrei de um pôster que Charlie disse que iria me enviar, uma pintura de Eakins com um remador solitário no Schuylkill River. Ele estava tentando me convencer a mudar para mais perto de Filadélfia, dizendo que era a cidade certa para um homem como eu. Seu filho veria mais o seu padrinho, ele dizia. Charlie achava que eu estava escapando aos poucos.

Então abri o tubo, tratando de preservá-lo para uso pos­terior. Dentro não havia nada que os cartões de crédito oferecem, nem prêmios de aposta em corrida de cavalos, nem nada que se parecesse com uma carta de Katie. À luz da tevê, o cilindro pare­cia vazio, nenhum pôster de Charlie, nenhuma mensagem. Só quando enfiei o dedo dentro do tubo é que encontrei algo fino enrolado. Um dos lados parecia ser de papel brilhante, o outro lado áspero. Puxei-o para fora menos gentilmente do que deveria, considerando do que se tratava.

Enrolada dentro do pequeno pacote havia uma pintura a óleo. Eu a desenrolei, pensando por um segundo que Charlie havia se excedido e comprado um original para mim. Mas, quando vi a imagem na tela, percebi melhor o que era. O estilo era muito mais antigo que o do século XIX americano. Era uma tela européia, dos primórdios da pintura.

É difícil explicar o sentimento de segurar o passado em suas mãos. O cheiro da tela era muito mais forte e complexo do que qual­quer coisa no Texas, onde até o vinho e o dinheiro são jovens. Havia um traço do mesmo odor em Princeton, possivelmente em Ivy, com certeza nas salas mais antigas de Nassau Hall. Mas o odor era muito mais concentrado aqui, nesse pequeno cilindro, um cheiro de enve­lhecido, resistente e denso.

A tela estava escura, encardida, mas pouco a pouco fui decifrando o assunto. No plano de fundo havia esculturas do antigo Egito, obeliscos, hieróglifos e monumentos desconhecidos. Em primeiro plano via-se um único homem, em direção a quem outros tinham vindo em submissão. Vendo um detalhe do pig­mento, olhei mais de perto. A roupa do homem estava pintada com uma paleta mais brilhante que o restante da cena. Na poeira do deserto ele parecia radiante. Neste homem diante de mim eu não havia pensado durante anos. Era José, agora um grande ofi­cial no Egito, recompensado pelo faraó por ter interpretado seus sonhos. José revelando-se a seus irmãos que vieram comprar grãos, os mesmos irmãos que o abandonaram para morrer tantos anos antes. José, com seu manto de muitas cores restituído.

Nas bases das esculturas haviam sido pintadas três inscri­ções. A primeira dizia: CRESCEBAT AUTEM COTIDIE FAMES IN OMNI TERRAAPERUITQUE IOSEPH UNIVERSA HORREA. Havia fome em todo o mundo. Então José abriu seus silos. Depois: FESTINAVITQUE QUIA COMMOTA FUERANT VISCERA EIUS SUPER FRATRE SUO ET ERUMPEBANT LACRIMAE ET INTROIENS CUBICULUM FLEVIT. José precipitou-se para fora; era tão forte o afeto que sentia por seus irmãos que queria chorar. Na base da terceira escultura havia simplesmente uma assinatura. SANDRO DI MARIANO - melhor conhecido pelo apelido que seu irmão mais velho lhe deu: "pequeno barril", ou Botticelli. Pela data debaixo de seu nome, a tela tinha mais de quinhentos anos.

Olhei para a pintura, essa relíquia que só um par de mãos havia tocado desde o dia em que fora lacrada sob o chão. Bela de uma maneira que nenhum humanista poderia resistir, com sua estatuária que Savonarola nunca poderia tolerar. Aqui estava ela, quase destruída pelo tempo, mas de algum modo ainda intacta, ainda vibrante debaixo da sujeira. Viva, depois desse tempo todo.

Deixei-a sobre a mesa quando as minhas mãos se tornaram trêmulas demais para segurá-la, e peguei o tubo outra vez, procu­rando por algo que eu não tivesse percebido. Uma carta, uma nota, até mesmo apenas um símbolo. Mas ele estava vazio. A escrita à mão do meu endereço, na parte de fora, foi feita com muito cui­dado. Mas não havia nada além disso. Somente o carimbo postal e um código de despacho no canto.

Então me interessei pelo código de despacho: 39-055­210185-GEN4519. Havia um padrão nele, como a lógica de um enigma. Ele também formava um número de telefone no exterior.

Bem na extremidade de uma prateleira de livros encontrei um volume que alguém me deu no Natal de alguns anos atrás, um almanaque, com seu catálogo de temperaturas e datas, e códi­gos de endereçamento postal, subitamente úteis. Na parte de trás havia uma lista de prefixos no exterior.

39, o código para a Itália.

055, o código de área para Florença.

Olhei para o restante dos números, começando a sentir o meu pulso outra vez, o velho rufar em meus ouvidos. 21 01 85, um número de telefone local. GEN4519, provavelmente o número de um quarto, um ramal. Ele estava em um hotel, em um apartamento.

Havia fome em todo o mundo. Então José abriu seus silos.

Olhei de novo a pintura, depois o tubo do correio. GEN4519.

José precipitou-se para fora; era tão forte o afeto que sentia por seus irmãos que queria chorar.

GEN4519. GEN45:19.

Na casa que eu tinha montado era mais fácil encontrar um almanaque do que uma Bíblia. Tive que remexer em velhas caixas em meu sótão antes de me deparar com uma Bíblia que Charlie dizia ter esquecido por acaso depois de sua última visita. Ele pen­sava ser capaz de partilhar sua fé comigo, as certezas que o acom­panhavam. Infatigável Charlie, sempre esperançoso.

Eu a tenho agora, na minha frente. Gênesis 45: 19 está na conclusão da história que Botticelli pintou. Após revelar-se a seus irmãos, José torna-se um doador de dádivas, exatamente como seu pai antes dele. Depois de tudo o que ele sofreu, diz que acolherá seus irmãos de volta, aqueles que agora morrem de fome em Canaã, e os deixará participar da generosidade de seu Egito. E eu, que durante a maior parte de minha vida cometi o equívoco de tentar deixar meu pai para trás, de pensar que eu podia seguir adiante mantendo-o no passado, compreendo José perfeitamente.

Pegue seu pai e venha, diz o verso. Não se preocupe com suas posses, porque o melhor de todo o Egito será seu.

       Apanho o telefone.

       Pegue seu pai e venha, penso, curioso em saber como ele chegou a essa compreensão que eu não alcancei.

Recoloco o telefone no gancho e pego minha agenda, para copiar o número antes que qualquer coisa possa acontecer a ele. Nessas páginas desoladas, o H de Paul Harris e o velho M de Katie Marchand são os únicos ingressos. Parece estranho acrescentar um nome agora, mas estou lutando com a sensação de que tudo o que tenho é esse conjunto de números no tubo do correio, uma única chance que poderia ser apagada por um simples engano, uma oportunidade que poderia dar em nada debaixo de uma sim­ples gota d'água.

Há suor em minhas mãos quando levanto o fone de novo, sem me dar conta do tempo que passou enquanto estou sentado aqui, tentando pensar em como explicar tudo isso. Da sacada de meu quarto, na resplandecente noite texana, só posso ver o céu.

Não se preocupe com suas posses, porque o melhor de todo o Egito será seu.

Aguardo o sinal de linha e começo a discar os números do telefone. Um número que nunca pensei que meus dedos fos­sem formar, uma voz que nunca pensei ouvir de novo. Escuto um zumbido distante, o soar do telefone em uma outra zona. Então, depois de tocar quatro vezes, ouço uma voz.

       Você telefonou para Katie Marchand na Hudson Gallery, Manhattan. Por favor deixe uma mensagem.

       Depois o som de um bip.

       "Katie", eu digo, no silêncio que se segue, "aqui é Tom. É quase meia-noite aqui no Texas."

       O silêncio do outro lado é assustador. Ele poderia ter me subjugado, se eu não soubesse exatamente o que queria dizer.

       "Estou indo embora de Austin amanhã de manhã. Vou ficar fora por um tempo; não sei ao certo por quanto tempo."

       Há uma foto nossa em uma pequena moldura em minha escrivaninha. Estamos um pouco fora de centro, ambos segurando um lado da câmera e apontando-a para nós. A capela está atrás de nós, impassível e silenciosa, Princeton sussurrando no plano de fundo mesmo agora.

"Quando eu voltar de Florença”, digo para ela, a caloura em minha foto, meu presente inesperado, até antes de a máquina de Nova York romper as nossas relações, "quero tornar a vê-la."

Depois recoloco o fone no gancho e olho outra vez para além da sacada. Haverá malas para fazer, contatar agente de via­gens, tirar novas fotos. Exatamente quando começo a perceber a magnitude do que estou fazendo, um pensamento me ocorre. Em algum lugar na cidade do renascimento, o próprio Paul está levantando da cama, olhando para fora de sua janela e esperando. Há pombos arrulhando no telhado, sinos de catedrais badalando em torres distantes. Estamos sentados aqui, separados por conti­nentes, da mesma maneira que sempre fizemos: nas beiradas de nossos colchões, juntos. Nos tetos do lugar para onde estou indo haverá santos e deuses e vôos de anjos. Em todo lugar que eu for haverá lembranças de tudo que o tempo não pode afetar. Meu coração é um pássaro em uma gaiola, agitando suas asas com a dor da expectativa. Na Itália, o sol está surgindo. 

 

                                                                  Ian Caldwell & Dustin Thomason

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades