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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ENTERRO DO ANÃO / Chico Anísio
O ENTERRO DO ANÃO / Chico Anísio

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ENTERRO DO ANÃO

 

                   «ENQUANTO O LÁBIO TRÊMULO GARGALHA»...

O importante, neste novo livro de Chico Anísio, não é apenas o evidente progresso que mostra na sua arte de escrever; o mais importante, creio, entre o primeiro livro e este segundo, é a evolução do showman que punha no papel praticamente a ma­téria-prima do seu trabalho no palco e na TV — as suas anedotas — para a revelação do escritor de seu direito, o ficcionista, o autor. Que se goste ou não se goste desse autor, o caso é outro; que se considere Chico Anísio um escritor da ala conservadora, indiferente ou ignorante das novidades em moda, preferindo a forma linear de narrativa às acrobacias de tema e texto que os novidadeiros exigem, é outro assunto. O fato indiscutível é que, neste seu novo livro, Chico Anísio assume a sua posição de escritor, liberado completamente do humorista profissional, ainda tão aparente em O Batizado da Vaca.

Note-se bem que eu não me incluo entre os possíveis desgostantes da prosa do novo colega. Acho este O Enterro do Anão um excelente livro de contos ou pequenas histórias, muitíssimo bem narradas, numa linguagem onde o coloquial é uma constante ótima, representando uma das positivas "transferências de ca­pital" do homem do palco para o homem da pena. Outra trans­ferência são os flagrantes pessoais, um dos maiores trunfos de Chico para a criação dos seus extraordinários tipos humanos no palco e na TV (alguns deles já considerados clássicos, como o Santelmo, o Coronel Limoeiro, o Urubulino, a Dedé, o Bimbim, o Pantaleão, o "emancipador", o Prefeito de Chico City); é a capacidade de desenhar às vezes com um gesto, com uma palavra, com uma simples linha de diálogo, algum tipo humano inesque­cível; esse dom do homem do palco, Chico Anísio o transporta integral para o livro, onde igualmente vem a representar um dos seus grandes trunfos.

Quer dizer que em nada se deve lamentar, no escritor Chico Anísio, a existência prévia do humorista teatral Chico Anísio. O essencial era que cada um deles tivesse a sua vida indepen­dente, sem subordinação recíproca, o que foi obtido. Pois o efeito de vaso comunicante não subordina, enriquece, mormente quando consegue ser dosado com sabedoria, e mormente quando há dotes reais para o segundo ofício, que lhe garantam exis­tência própria e autonomia.

Quanto ao verso que serve de título a estas notas, tirei-o de um soneto cearense, famoso nos meus tempos de menina, cujo autor é o Padre Antônio Tomás. Cantava um palhaço que, fiel à férrea lei do "espetáculo continua", vai para o picadeiro, apesar de lhe terem ficado em casa a esposa morta e a filha doente, e a chave de ouro arremata:

 

               ...Enquanto o lábio trêmulo gargalha

                 Dentro do peito o coração soluça.

 

Sim, lembrei-me do soneto célebre do Padre Antônio Tomás à leitura destes contos de Chico Anísio, quase todos confirmando a tese de que o homem engraçado é um homem triste.

Tratando-se de um dos homens que melhor e mais finamente têm feito rir o Brasil, nos seus vinte anos de vida profissional, Chico Anísio é na realidade um homem de inspiração amarga, irônica e pessimista. O que aliás não é nenhuma novidade, sendo o grande humorismo, quase sempre, apenas uma forma amena de sátira. Desde Swift que se sabe disso. A diferença entre o humorista e o satírico é que o satírico tem a sua finalidade mora­lista, o castigat ridendo mores, enquanto o humorista é mais gra­tuito, mais gracioso, mais descompromissado, essencialmente um artista. Mas vendo-se liberto da obrigação de fazer rir, verifica-se que ele tem o olho e o ouvido muito mais atentos à tristeza que à alegria, aos desencontros do mundo que aos seus acertos.

Como remate, quero insistir em que este livro, não é lícito recebê-lo como obra esporádica de amador de outras artes, simples capricho de homem muito dotado, desejoso de repente de experimentar a mão em novas áreas. Temos aqui um escritor que deve ser tratado como tal; nada do sorriso complacente com que os fãs do showman admirável que ele é se sentem ten­tados a receber o que ele escreve: "Mais uma do Chico!"

Não, O Enterro do Anão não é "mais uma do Chico". É "outra do Chico" e, pois, muitíssimo diversa.

Para mim é uma honra e uma alegria aparecer aqui a apresentá-lo como companheiro de ofício — eu, sua conterrânea, sua velha admiradora, sua amiga, que lhe quero tanto bem e dele tanto me orgulho.

                                                                                                   Rachel de Queiroz

 

 

                   DOMINGO EM MADUREIRA

Depois do primeiro galo, cantaram todos da rua. Era domingo, no entanto, um dia em que os galos não têm necessidade de acordar tão cedo assim.

Cocorocó!... fez o galo de Climério, o primeiro, sempre, a cantar.

Climério acordou com o canto, habituado que estava. E era domingo. Domingo! O dia da sua folga. Serem cinco da manhã não tinha tanta importância quanto a importância que tinha o fato de ser domingo.

Climério abriu a bocarra num bocejo longo e bom. Emitiu um som grunhido na espreguiçada comprida, reconfortante chia­do, botando fim no bocejo. Coçou a perna ao comprido, deu mais jeito nos cabelos. Um comecinho de dia entrava pela janela, duvidando da cortina falha da veneziana. A mulher abriu os olhos e lembrou que era domingo.

Dorme, Climério, ainda é cedo.

Cinco horas.

É domingo.

Ele fez que não ouviu. Achou o par de chinelos debaixo de sua cama, vizinho ao urinol mau hábito que a mulher insistia em preservar e, a arrastá-los sem pressa, dirigiu-se ao banheiro.

A mulher ficou na cama, forçando a volta do sono.

A torneira despejou uma água quase morna. Era janeiro. Um domingo de janeiro em Madureira. Climério, de mãos em concha, lavou o rosto três vezes. Não fez barba. Era domingo, dia de folga pra cara. Gargarejou com escândalo. Urinou e urinou-se.

Esqueceu de dar descarga.

Depois, voltou para o quarto, onde a mulher já se sentava na cama, na oração de acordar. Persignou-se ao final da prece.

O despertador barato indicava cinco e quinze. A mulher, por se acordar, iria à missa das seis.

Climério abriu a janela para o dia que nascia. O dia entrou no quarto, espalhando-se sem pressa, por saber que era domingo.

Climério desamarrou o cadarço do pijama. Deixou que as calças caíssem. Saiu delas, que ficaram amarrotadas no chão. Vestiu uma roupa velha. Era domingo, não iria trabalhar, não teria que bater ponto na repartição.

Julieta, sua esposa, sugeriu que ele acordasse as meninas e Julinho. Foi, depois, para o banheiro, onde sentou confortável para o primeiro xixi de jato que acalentava. Deu descarga, no final.

De longe chegaram os cantos de outros galos. Ou dos mesmos. Segundo aviso do dia. Climério se espreguiçou, bateu na barriga enorme.

São gases... — sentenciou, para explicar o ruído muito oco e um tanto surdo, quase baticum de bumbo, que as pancadas produziam.

Julieta pôs-se nua. Climério estendeu-lhe lerdo a combi­nação pendida e que ela pôs sobre a pele. Julieta não usava nem calça nem sutiã. Tinha cara de sofrida a lhe aumentar a idade. Era magra c agrisalhada. Sofria de reumatismo e era dada a varizes, por tanto ficar de pé no seu trabalho diário. Em casa fazia tudo, inclusive os uniformes dos meninos que estudavam num colégio estadual.

Climério empurrou os sapatos para debaixo da cama. Sentiu os pés confortáveis no velho chinelo gasto. Saiu do quarto. Tirava resto de sono dos olhos.

De cama em cama seguiu, acordando os filhos: as três meninas e Júlio, o filho do seu encanto que servia na Aeronáutica.

Que horas são?

São cinco e meia.

As filhas se levantaram. Não queriam perder a missa das seis. Muito mais aproveitavam o dia lindo que vinha. Podiam até ir à praia. A de Ramos, como sempre.

Julinho demorou mais. Tinha tempo. Ronronou. A pelada a ser jogada no campo do Confiança só começaria às oito. Dormiu o resto do sono. Podia. Era domingo. Dia de glória! Uma pena que sempre fosse tão curto e um só por semana.

Climério foi à cozinha no automatismo de hábito. O café de ontem à noite requentou em banho-maria. Julieta entrou de­pois, tentando, com o polegar, coçar as costas no ponto em que sentia coçar. Acompanhava a coceira com um bocejo pro­longado. Pediu socorro ao marido.

Coça aqui.

Ele coçou. Custou a achar o lugar.

Todo mundo já acordou?

As meninas. Júlio, não.

Você já viu o leitão? perguntou, sem interesse, en­quanto tirava a tampa do bule que requentava o café feito de véspera, preguiça que cultivava num comodismo idiota. O leitão cabe no forno?

Hum, hum ela fez que sim.

Do banheiro vinha o ruído de dentes que se escovavam. Quase às seis entraram as filhas, já vestidas para a missa. En­traram as três em vestidos cor-de-rosa. Cada uma fez a parte que lhe cabia fazer. O leite foi recolhido por uma, o pão, por outra. Dircinha acendeu o fogo que aqueceria a leiteira. Café com leite tomavam somente ao voltar da missa. Climério sabia o momento de pôr o leite no fogo. Só que hoje anteci­para uma hora esse costume, por ter levantado às cinco, e não às seis, tempo certo de levantar aos domingos.

Julieta e as três mocinhas tomaram um cafezinho e, depois, apressadas, saíram à procura de Jesus. No domingo comungavam.

Climério foi ao quintal, reparando no que havia a ser feito. A tela do galinheiro... a cerca que separava o terreno do vizinho... a velha calha do alpendre... uma torneira enjam­brada ... Havia sempre umas coisas a arrumar no domingo.

O filho apareceu com a chuteira escondida numa sacola "Adidas".

Vai jogar?

Bater uma bola.

Perguntou por perguntar. Respondeu por responder.

Saíram antes que as filhas regressassem da igreja. Julinho pegou o ônibus, Climério entrou no bar.

Duas garrafas de pinga! mandou ao botequineiro, também recém-acordado, olho inchado, cara marcada de tra­vesseiro.

Duas?

Duas. Praianinha. É pra fazer uma batida. Tem limão aí, Seu Severo?

Tinha, e do sumarento. Ele levou uma dúzia.

Fazia muito calor, e o sol já tinha chegado, prometendo 38, na hipótese mais mansa.

Climério guardou os limões, já cortados, na panela. O re­lógio consultado informou que era hora de pôr o leite a ferver.

Ele fez. Deu de comer aos passarinhos queridos, com beijos es­peciais a cada um que servia. Assobiou agudo, fez cantar o sabiá.

Sete e meia a mãe e as filhas retornaram da igreja com o Jornal dos Sports, que nunca se esqueciam de comprar para Climério.

— Você tem que consertar a tela do galinheiro — era a esposa lembrando o que ele já sabia.

O leite chiou no fogo, transbordante. Ele correu. Tomaram café com leite, e o pão os cinco comeram, barrado de margarina.

— Mamãe, nós vamos na praia — avisaram as três filhas, sumindo no corredor para vestir os biquínis, sem esperar que a mãe concordasse ou desse contra.

Julieta recolhia a louça do desjejum. Climério chupando os dentes, palito inútil na boca, checava a escalação dos times pra logo mais.

O compadre apareceu eram quase nove horas. Trazia na cara a cara que a gente usa aos domingos. Com ele, vinha a mulher — comadre Emerenciana — muito alegre, como sempre; como sempre muito gorda.

— Quem é vivo sempre chega! — Climério estreitou o compadre num abraço comovido.

— Bote água no feijão — disse Juca a Julieta e depois mandou risada.

Num canto, as duas comadres contavam suas mazelas.

— E o reumatismo, comadre?

— No verão não incomoda. As pernas é que me doem, que já nem sei o que faça.

— Eu sei de uma receita que o caboclo da Onilda ensinou.

A chegada dos compadres endomingou mais a casa.

— Como é? Tem um leitão? — era Juca quem falava. — É leitão mesmo, ou vocês mataram um gato e assaram? — e gargalhou de dobrar, engasgando-se.

— São Brás! São Brás! — invocava a mulher com afli­ção, enquanto Climério, rindo, lhe dava tapas nas costas.

— Esse Juca não tem remédio — comentava Julieta, en­quanto se dirigia, com a comadre, à cozinha para cuidar do almoço.

— Deixe, que eu faço a batida — disse Juca, já tirando o paletó e a gravata.

Às dez horas tudo havia mudado um pouco de jeito. Eme­renciana usava um vestido amarfanhado Julieta emprestara — e Juca vestia um short.

Uma garrafa e dois copos acompanharam os compadres, que se foram pro quintal com pregos, martelo, arame, apetre­chos de conserto. Juca ia dar u'a mão nos consertos a fazer.

— O galinheiro é comigo! — gritou Juca.

— Manda brasa!

A disposição de Juca cresceu com a batida que Climério lhe estendeu. Comentou:

— Tá de lascar! Vira aqui.

E ele bebeu a oitava de um só gole.

O vizinho apareceu com um prato de bolinhos — batata com bacalhau — tira-gosto que chegava no momento mais preciso.

Deu onze horas na igreja. O filho voltou suado, restos de lama no corpo.

— 5x2 — comunicou. — Eu fiz os dois, de cabeça.

Ficou, ainda sem banho, ajudando a Juca e ao pai, que trabalhavam o possível na cerca e na batidinha.

— Tá demais, essa batida.

As galinhas, irritadas, ciscavam sem precisão. Cacarejavam e voavam, odiando o toque-toque do barulho do conserto que os compadres faziam. A cerca não deu trabalho. Em meia hora acabaram.

As filhas, vindas da praia no Nash verde de Rui, namorado de uma das três, chegaram quinze pras duas.

— Boa tarde, Seu Climério — Rui cumprimentou solene, sem nenhuma intimidade.

Rui juntou-se à mão-de-obra dos três que já trabalhavam — Juca, Julinho e Climério — e a torneira foi tirada para o reparo preciso.

— Um pedacinho de sola — pediu Seu Juca, entendido.

Climério providenciou, cortando um velho sapato.

Comé? Não se bebe nada? — inquiriu Juca, risonho, voz já saindo difícil, pastosa, meio embrulhada.

— Tamos aqui, cidadão! — e Climério encheu o copo de modo desajeitado, batida caindo farta pelas bordas, pela mão.

Na cozinha, as comadres. Entremeando a conversa sobre a vida, cortavam as frutas a usar na salada costumeira.

A filha mais velha — Irene — secando o cabelo ao sol, cantava Roberto Carlos com uma voz desagradável. A do meio, no banheiro, fazia qualquer coisinha antes de encarar o chuveiro. A mais nova, Suzaninha, molhava o sofá de plástico com o maiô ainda úmido.

Rui despediu-se e se foi para voltar pro leitão. O forno aceso trazia à cozinha o cheiro bom do leitão que já dourava.

Júlio brigava e brigava pedindo prioridade para usar o banheiro.

A calha velha do alpendre, como num esfregar de olhos, Juca deixou como nova. Fez por merecer o prêmio: a batida de limão que Climério lhe estendia.

— Nessa aqui eu caprichei.

Provou.

— Está uma brasa!

Julinho reapareceu com a camisa justa, manga curta e mais dobrada, dando jeito no topete — cabeleira demodée que in­sistia em usar. Mostrou que ia sair.

— Não vai almoçar, Julinho?

— Não dá, mãe, tou com pressa. Como um troço por aí.

Pegou o rádio de pilha e saiu para o estádio. Ia ver o Olaria enfrentar o Madureira.

Às quatro Rui retornou, trazendo numa sacola meia dúzia de garrafas que foram pra geladeira. Santas Brahmas do domingo!

O leitão foi posto à mesa. Copos cheios de batidas eram fácil devorados em goles longos e frios.

Na tevê, o animador pregou um sorriso na cara. Era do­mingo, dia bom pra sorrir.

Na mão de Emerenciana surgiram as Brahmas geladas.

— Vira, vira, vira. . .

— Vira, vira, vira. . .

Beberam as seis e mais seis que Rui pegou no boteco.

Na rua, as crianças jogavam um racha com o gol demar­cado por tijolos. Era domingo, quase não passavam carros.

Comeram falando muito e muito desencontrado. Ninguém prestava atenção ao que os outros falavam e cada um respondia à pergunta que queria, sem se importar se a resposta levava endereço certo.

Saíram Rui e as moças para um cinema provável.

O arroto de Climério avisou que ele acabara.

— Saúde — lhe disse Juca, rindo de cuspir farofa.

As comadres, na cozinha, rasparam os pratos no lixo. Con­versavam sobre o aumento que os maridos garantiam receber dentro de pouco tempo. Depois, então, se ensinaram novos pon­tos de tricô.

— Um cafezinho, compadre — ofereceu Julieta, com um sorriso maroto.

Era tarde. Já dormiam. Climério e Juca, os compadres, já não prestavam atenção ao que se passava em volta. Dormiam...

— Dormindo!

— Deixa.

Afinal, era domingo.

 

                     IMPOSSIBILIDADE

Quer ir ao circo?

O filho pula de alegria. Achou que o pai simplesmente adivinhava seu desejo.

Peça à sua mãe pra lhe vestir.

A mãe enfeita o menino. Ele põe uma roupa mais à vontade.

Vamos na geral. Circo é bom é na geral.

O menino concorda.

Saem de mãos dadas. Gérson tem sete anos. Há sete espera a irmã que lhe prometem. O ônibus está vazio. Podem escolher lugar. O menino muda de banco seguidamente. De uma janela para outra, atrás, na frente, perturba o motorista.

Fica bonzinho aí.

Vem pra cá, Gérson.

O garoto senta ao seu lado. Está inquieto, excitado pelo circo que o espera e que ele tanto esperava.

Tem fera?

Não sei. Lá a gente vê.

Tem trapézio?

Deve ter, deve ter...

O menino levanta, anda pelo corredor esfregando a mão no encosto dos bancos vazios. Esbarra nas costas do motorista.

Fica quieto, oh garoto!...

Vem cá, Gérson, não atrapalha o moço.

Ele vai, mas não consegue ficar sentado mais do que cinco minutos. Já enfia a cabeça pelas janelas, desliza no corredor, mexe na caixa de colocar as fichas.

Oh, garoto chato.

O motorista reclama e bate na mão do menino. O garoto chora e olha o pai.

Não bate no meu filho, não.

O pai e o filho são, agora, os únicos passageiros. O mo­torista diz um palavrão, em resposta à advertência. O menino olha o pai. É sua única defesa. Ele sabe que o menino sabe disto. O motorista, um crioulo forte, não se arrepende do tapa que deu na mão do menino.

Vê se fica quieto aí.

O menino já não olha o pai. Limita-se a sentar no banco da frente, humilhado, cerceado, proibido.

Ele levanta e caminha inseguro pelo corredor. Senta junto do filho e lhe segura a mão, estreitando-a, forte, entre suas mãos suadas. Percebe, nas costas da mão do menino, a marca dos dedos. O motorista o olha pelo retrovisor. Ele percebe um sorriso no rosto do crioulo.

Covardia, bater no menino.

Não aporrinha!

O menino vira o rosto, fazendo de conta que espia a cal­çada. Nada percebe, porém, da paisagem que vai passando. Ele nota que o filho chora.

Deixa, filho... educação não é todo mundo que tem. Cavalo é cavalo.

O motorista breca e se levanta. Tem os olhos avermelhados pela noite mal dormida, tem a alma moída pela briga de ontem com sua negra amante.

Quem é cavalo?

O menino afasta-se para o canto do banco. Está tremendo. Ele levanta e se põe à frente do crioulo, menor e mais magro.

É isso mesmo.

O tapa o derruba no chão do corredor. Ele se levanta com a ajuda do filho. Descem sem pagar. O motorista não se im­porta. Há coisas mais sérias com que se preocupar. Da calçada ele vê o ônibus sumir, dobrando na Avenida Suburbana. Tem sangue saindo do nariz. Enxuga com a manga da camisa. Quer coragem para olhar o filho. Andam sem saber para onde.

Vamos pra casa, pai.

E o circo?    

No outro domingo a gente vai. Eu hoje nem estava com muita vontade...

Os dois choram enquanto cruzam a rua para esperar o ônibus de volta. Ele sabe que precisa falar, mas não consegue imaginar que frase deva dizer. Limita-se a pousar a mão no ombro do filho. Sente que um dente está abalado e que o nariz talvez tenha tido uma fratura. Resiste à dor física. Está cho­rando por causa de uma dor diferente. Pior. Pior. Muito pior.

 

                   FRUSTRAÇÃO

Não posso, Miriam. Hoje é impossível. Liga amanhã.

Regina Célia é o seu nome. Está de vestido azul-claro e com os nervos em pandarecos. Toma um copo de água com açúcar, à falta de um tranqüilizante alopático. Acredita ter me­lhorado. Precisa dos nervos, hoje, mais do que nunca.

O verão incendeia o subúrbio de Regina Célia. A rua des­calça onde mora avermelha-se pela poeira que o vento joga. Mastiga o almoço sem vontade ou prazer. Belisca, apenas, o que põe no prato.

Come, menina!

Tou sem fome, mãe.

Que sem fome. Come!

Dá mais duas garfadas e repudia o almoço, afastando o prato da sua frente. Nem aceita sobremesa.

Mais me sobra diz o pai, puxando pra seu lado a goiabada com queijo de Regina Célia.

Chega a colega. Igualmente de azul, igualmente Regina.

Vamos?

É cedo a colega adverte.

Lugar de esperar a missa é na igreja.

A colega concorda. Despede-se dos pais com um beijo sem carinho, automático.

Veja lá a hora que vai chegar.

Oh, mãe, até parece...

Antes das onze em casa.

Tá certo concorda, aborrecida.

Não gosta de ser tratada como criança na frente das co­legas. Afinal, já tem 17 anos.

Saem de braços dados, sorrindo, felizes, as duas Reginas.

Olavo as espera no ponto do ônibus. Três pontos à frente sobe Reinaldo. Cada um com sua Regina. Viajam em pé até a Praça da Bandeira, onde o ônibus se esvazia da gente que vai para o Maracanã.

Tá nervosa?

Hum, hum.

Bobagem.

Mas está. Não consegue se controlar. Regina Segunda morde e é mordida, no banco de trás.

Que horas são?

Quatro horas. É cedo à beça.

Lugar de esperar a missa é na igreja.

Olavo concorda. Têm as mãos dadas quando o ônibus en­gole o Aterro.

Agora estou mais calma.

Respira fundo três vezes.

Ela respira cinco. É a mesma coisa. Mas diz-se mais calma. De noite estará segura de si, forte, tranqüila, como precisa.

Saltam defronte ao cinema. Olavo espia os cartazes de um filme de bangue-bangue, enquanto esperam que o sinal feche para poderem atravessar a rua. Regina Segunda despreza o claro da tarde, preferindo uma atitude de anoitecer, junto com Reinaldo, cabelo liso e penteado para trás.

Há muita gente em volta para que Regina Segunda, agora, continue comportando-se como no ônibus, como em frente ao cinema. Controla-se e controla Reinaldo, impulsivo, faminto.

Calma. Aqui, não.

Que que tem?

Reinaldo tem fome, não quer esperar. Regina Célia transpira debaixo do braço, deixando nascer uma mancha antiestética no vestido azul-claro.

Tá suando às pampas comenta Olavo.

Um pouquinho.

O homem ordena que o sigam. Esta ordem não é dirigida a Olavo, Reinaldo, Regina Segunda.

Tchau, bem.

Tchau.

Regina Célia desaparece pela porta de vidro. Os três vão ao bar.

Três cachorros e três laranjadas.

Comem e bebem o que será jantar.

Oito horas.

Tá na hora.

Vamos.

Os três se acomodam o melhor que conseguem. Estão, agora, tão nervosos quanto Regina Célia. Agora, sim, entendem o que ela deve estar sentindo.

Dá um beijinho.

Reinaldo pede, Regina Segunda concede. Olavo repreende aquele comportamento. Ainda mais agora, num momento tão importante. Os dois se controlam. Cada um num canto da pol­trona, evitando, principalmente, que as pernas se toquem.

Trono das cantoras...

Prendem a respiração. O homem de chapéu engraçado faz graça com Regina Célia, tentando acalmá-la.

O que é que você vai cantar, minha filha?

"Triste Madrugada".

Na platéia há três respirações presas. O conjunto faz a introdução e ela entra fora do tempo. Escuta-se uma buzina.

Salve, salve, salve...

O animador muda de assunto, ignorando Regina Célia, que sai chorando do palco.

Na casa da rua descalça, mais do que Regina Célia, mais do que Olavo e do que o casal que se beija, os pais, aborre­cidos, desligam a televisão, repudiando o que consideram uma injustiça.

 

                   CAMARADA BRIJINSKY

Na rua, nas arquibancadas, em bares e bilhares, Justino, quando solteiro, foi-não-foi, quebrava o pau. Até entradas na polícia! Quatro, e todas elas por arruaça ou resistência à prisão. Mesmo por desacato à autoridade.

Até que casou.

Foi o reverso da medalha.

A mulher, Dona Jandira, cantava de galo, enquanto Justino punha os ovos.

Justino não era um cabra frouxo, mas ficou. Pelo menos, em casa. Na rua, ainda dava para quebrar o galho. Quando os amigos do escritório faziam uma brincadeira (trabalhava num negócio de importação ilegal e exportação inexistente), Justino tinha sempre pronto um revide em palavras ou atos. Não se demorava para chegar ao desforço físico. Isso, na rua. Em casa, era um Ferdinando manso e pacato. Ainda mais do que o touro que cheirava flores.

Justino, venha cá comandava Dona Jandira.

Espere. Eu estou . . .

Eu disse venha cá!

E lá vinha ele, humílimo marido de uma insuportável mulher uma gorda senhora de 57 anos que lhe colocara uma coleira para melhor levá-lo, à corda curta, pelos dias da vida. Dias de 72 horas, porque desse tamanho pareciam ser os dias de Justino, sob o jugo dá ditadura.

Morava em São Cristóvão e torcia pelo Vasco. Aquele tor­cedor de rádio, porque a mulher jamais lhe dera o direito de ir ao campo. Ao campo, ele ia antes de casar. Do casamento pra cá, adeus Vasco. Ficava ouvindo o Waldir Amaral e lambia os beiços. Estava certo. Numa dessas, Dona Jandira podia irri­tar-se e gritar um "desliga a droga desse rádio", e aí, nem mel, nem cabaça. Por isso, o rádio era ouvido no menor volume, com o Justino de orelha encostada ao falante, quase precisando adivinhar a descrição do locutor.

Ah, vida sem gosto a do Justino! Via os amigos saindo de casa para o bilhar, e ele na janela sem poder participar da­quela santa sinuquinha depois do jantar, prazer que tanto culti­vara nos tempos de solteiro quando, fazendo merecida fé no seu taco, ganhara muito dinheirinho no Lamas e no Salão Palácio. E nem o papo na esquina sobre as virtudes e os defeitos do seu time podia contar com a sua participação. Tudo era proi­bido, mesmo tomar uma cervejinha no bar do Maurício, no domingo de manhã, de paletó de pijama, nas previsões do que aconteceria no jogo de logo mais, jogo que ele iria apenas escutar. Com o menor volume.

Era como se sua vida não fosse sua, mas de Dona Jandira. O que não deixava de ser verdade.

Quando pela vizinhança um marido chegava tarde para jantar ou dormir, a esposa do faltoso usava Justino como exem­plo, numa explosão de ira:

— Eu devia te tratar como a Jandira trata o marido. Você merecia que eu fosse igual a ela.

Justino Oliveira dos Prazeres. Oliveira, está certo, mas quais os prazeres que pode sentir na vida um Justino tão frouxo?

De vez em quando, lembrava das brigas. Não as de agora, no escritório, que deviam ser mais colocadas na conta de pe­quenas revoltas, mas as brigas pra valer do tempo de solteiro, quando não havia cabresto curto nem gorda Jandira.

Ah, meus tempos. Um dia, na Galeria Cruzeiro, saiu na mão com Madame Satã e quase quebraram o Bar Nacional. Tiveram que chamar três carros da RP para segurar os dois. E os tapas que trocou com o crioulo que ofendeu o Vasco, no campo do Bangu? E o chofer de ônibus da Tijuca, com quem rolou pelo asfalto da Conde de Bonfim, deixando-o sem dois dentes e com o braço quebrado? Ah, tempo que não volta mais, sem Jandira e sem coleira!

Uma coisa, nem ele entendia: por que não brigava com a mulher? Ocasião não faltava. No dia do aniversário do "do meio", quando, na frente dos parentes e convidados, ela o fez se pôr de quatro para limpar o guaraná inocentemente derra­mado, era um ótimo exemplo. Podia haver momento melhor para o revide? Ela falara com ele como se fala a um cão leproso:

— Fez porcaria? Pois fique de quatro e lamba.

Lamber, ele não lambeu, mas à vista de todos, que fizeram silêncio para testemunhar sua obediência, ficou de quatro e limpou. Queria morrer, enquanto limpava. Pedia que o mundo se acabasse, na mesma rapidez com que procurava enxugar a poça com uma página do Jornal dos Sports. Tinha pensado em berrar: "Limpe você, sua vaca gorda!" — mas, e a coragem para falar essa verdade? De vez em quando, num momento de desabafo, enquanto sofria a viagem de volta a casa, com o Pimentel, seu amigo da Praça Argentina, Justino botava suas manguinhas de fora.

Pimentel, minha mulher é um bicho.

— Por que você não se manda? — sugeria Pimentel, que já não agüentava mais esse papo chato, na volta ao lar.

— Me mandar como? Se eu me mandar, ela me acha.

— Acha nada — dizia Pimentel, já querendo cortar o assunto para ler as estórias em quadrinhos do jornal.

— Acha! Eu posso ir para o inferno, que ela me acha. Aquilo tem gênio de onça e faro de cachorro.

— Sabe de uma coisa, Justino? Você tem que dar duro nela. Minha mulher, vai lá em casa que tu vê. Minha mulher eu trato ali, debaixo de vara.

— Porque não é como a Jandira — esfriava Justino. — A Jandira é uma vaca ditatorial. Taí! — alegrava-se. — Eu agora consegui explicar: vaca, como as vacas, e ditatorial, como os ditadores.

— Dá um cacete nela. Desce-lhe o braço.

— De que jeito? — e ainda segredava. — Ela é que me bate.

— Mentira! — comentava Pimentel bem que acreditando.

— Ela se serve! Você já apanhou de mulher, Pimentel? É humilhante. Eu com as mãos cobrindo a cara, e ela mandando bala. Eu gritando e ela dando. E a vizinhança escuta tudo, Pimentel, porque quando ela bate é de repente, nem dá tempo de fechar a janela.    

— Mas por que você não revida?

— Quanto mais tento, mais ela me cobre. Posso te falar com franqueza? Quando ela não me bate, eu já sinto falta.

"O hábito é uma segunda natureza", já dizia quem inven­tou essa frase. E sob essa segunda natureza, Justino deixava a vida seguir. Durante as surras torturantes, não era raro um moleque dar calço a outro que subia na janela, pelo lado de fora, especialmente para o gozar.

— Vocês nunca se deram, como é que agora estão brigando?

Só que não era briga: era surra mesmo. Justino apanhando e pedindo, com as mãos a cobrir o rosto:

— Na cara, não, que fica marca. Na cara, não.

Dona Jandira livrava a cara e esquentava o resto. Justino Oliveira dos Prazeres era um personagem do Nelson Rodrigues, como Jandira também o era.

 

Um dia, Justino chegou em casa às três da tarde. Dona Jandira estava no tanque, lavando uma combinação, com o rádio ligado. Ela cantava o bolero junto com Ângela Maria. Quando se voltou para pendurar a combinação no varal, deu de cara com Justino na porta da cozinha. Primeiro, o susto e depois, a briga:

— Por que em casa a essas horas? Tá doente? — per­guntou num tom que não admitia outra hipótese para aquela volta do trabalho antes da hora (ele só chegava às sete e meia).

Despedido, não podia ser. Ele não era homem para se atrever a ser despedido. Insistiu na pergunta:

— Tá doente, cachorro?

O que Justino falou foi uma declaração de guerra:

— Entrei para o partido. Agora eu sou comunista.

Não caiu por falta de espaço. Balbuciou:

— Comunista?

— Fichado. Fiz ficha, com retrato e tudo. Sou comunista praticante. Tou no partido.

E para zombar mais do pavor que já notava na mulher, ainda gritou: "Viva Prestes!"

Aquele Justino que se encontrava meio sarcástico no portal da cozinha não era o mesmo que saíra de manhã. Claro que não era. De manhã, saíra um pacífico e humilhado Justino, um pobre homem submisso e achincalhado, e o que estava domi­nando a cena era um comunista. Comunistaço. Fichado e prati­cante — como ele próprio confessara.

Foi água na fervura. Dona Jandira, acostumada desde me­nina a temer os comunistas, era agora mulher de um. Comunista é fogo, ela sabia. E, sendo casada com um, teria que o suportar. Quis chamar o marido de cachorro novamente, mas o marido não era o mesmo, era um comunista. Ainda trocaram algumas palavras:

Justino, Justininho.. . Você, comunista?

— Ativo — acrescentou Justino, cuspindo no chão da cozinha, coisa que sonhava fazer há um monte de anos.

— Fichado mesmo?

— Já não disse? Fichado, com retrato. Sabe aquele retrato com data? Tirei um de cinco minutos, e tá lá na ficha. De frente e de perfil.

— Mas Justino, comunista é... é...

— É o quê? — perguntou ele, crescendo na direção da mulher: — Comunista é o quê? Diz, se tu é homem! Sou comuna, e com muito orgulho! Comuna, e acabou a conversa.

Era o que faltava. Ter que dar satisfação à mulher. Mulher de comunista não tem vez. E se tiver, o cara não é comunista.

Foi como se a vida fosse virada pelo avesso.

— Boa noite, Justino.

— Cala a boca. Comunista não cumprimenta ninguém.

Oh, Justino...

Justino o escambau. No partido, meu nome é Brijinsky. Eu sou o camarada Brijinsky! — e ainda acrescentava, com voz inflamante pelo prazer: — Secretário de célula. Decora o nome: Brijinsky.

Daí pra frente, cadê autoridade sobre o marido? As amigas davam força para uma reação.

— Não se humilhe, Jandira.

— Pra quê? Pra ele me espancar?

— Não me diga, que ele lhe bate.

— E o meu corpo está todo roxo de quê? Olha, olha...

E exibia marcas arroxeadas nas costas, braços, seios e coxas. Mal aquelas marcas saíam, Brijinsky inventava outro mo­tivo banal para dele fazer qualquer coisa de transcendental:

Jandira, cadê o Jornal dos Sports?

— Não sei, Justino (tapa) Brijinsky.

— Ah, não sabe, né?

Pronto. Aí estava o motivo para uma surra sem compaixão. Até de cinturão Dona Jandira apanhou. Enquanto batia, Brijinsky falava as coisas todas que pensara falar nos tempos idos de Justino.

— Toma, vaca gorda. Isso é pra aprender a não discutir com Brijinsky. Toma mais esta e mais esta, vaca prenha. Toma, sargento de milícias. Tá pensando que eu sou o quê? Eu sou o Brijinsky, sua baleia encardida. Como é meu nome?

— Brijinsky — murmurava Dona Jandira, agarrada nas per­nas do comunista.

— Decorou, bucho? Então, toma mais esta, de parabéns! — e o cinturão descia no lombo da mulher do Brijinsky, que apenas chorava. Uma virtude Dona Jandira tinha: não gritava nunca.

A Rua Bela, em São Cristóvão, teve, durante muito tempo, uma repetição de comentários. Não se falava de outra coisa que as surras de Brijinsky, o comunista. Bateu de cinto, de escova, de sapato, de panela, de frigideira. Bateu como quis e quando entendeu. Comunista é comunista. Houve um tempo em que chegou a dar pena ver aquela senhora gorda e suada lavando os pratos do jantar, com um pé repousado sobre a outra perna — de longe parecia uma siriema criada a vitamina — e Brijinsky, de banho tomado e roupa trocada — parar na porta rescendendo a "Cambridge", acender um "Petit Londrinos" e dizer, nem se gabe se desafiante, provocador ou irônico:

— Vou para a reunião do Partido.

— Vai demorar, Brijinsky? — ousava perguntar a humi­lhada mulher.

— Sei a que horas vou e não sei a que horas volto! — respondia e ainda gritava: — Aliás, nem sei se volto. Se eu for preso, não me procure — que o partido me ajuda a fugir.

Ela consentia sem palavras — e nem precisava o seu con­sentimento, porque ele ia mesmo.

E lá se ia Brijinsky, batendo a porta com estrondo, tentando demolir a casa.

Seus passos ressoavam como batidas de Estacas Franki pelos paralelepípedos da Rua Bela. Andava pelo meio da rua, que comunista não anda pela calçada. Na Praça Argentina pegava o bonde e ia até Benfica, onde o Pimentel o esperava no "Café Bar e Bilhares Nossa Senhora da Aparecida". Ali, ele colocava um avental, escolhia um taco (que era sempre o mesmo), e disputavam partidas de sinuca até duas, três da manhã. Entre uma partida e outra, enquanto devorava em três goles o copo de cerveja espumante, Justino costumava comentar:

Pimentel, não há dinheiro que te pague essa idéia de me fingir de comunista.

E jogavam mais uma, sempre com a conta paga pelo Bri­jinsky. Era um dinheirinho que podia fazer certa falta, mas quanto vale a independência, camarada?

 

                   A MULHER DE PRETO

— Olha a mulher de preto!

Poucos sabem que se chama Fátima. A maioria nem se interessa por saber se tem nome, sequer. Chamam-na "mulher de preto" e isto basta para que qualquer um saiba a quem se referem.

Tem 39 anos de vida e 14 de Brasil, onde chegou de Por­tugal, solteira. Nasceu no Vizeu, o que lhe dá ao "s" um sabor de "x", considerado cômico.

— O xenhor xabe que não aprexio exa mania de paxar o dia a olhar pro xéu. Xi o trabalho o chama, que o faxa.

O menino, seu empregado no bar, volta ao trabalho por um momento. Não é tão eficiente quanto o bar precisa, mas custa salário pequeno. E não é dos que gostam de responder às admoestações. De boa paz, o menino.

— Xegura cá a xerveja, m'nino.

No bar, o menino é o único homem, desde que Teófilo morreu, num acidente de ônibus na Rio—Petrópolis, três anos depois do casamento.

Fátima, pelo choque, perdeu o filho que começava a gerar. Esteve à beira da morte. Escapou. Mas ficou mais só do que devia. Não tinha tido tempo de fazer amigos, e o marido, ciumento, sempre evitou associar-se às casas portuguesas e a qualquer clube. Viviam um para o outro. Depois, Fátima viu-se obrigada a viver sozinha.

Na parede do bar, atrás do caixa, o retrato do marido: tripeiro de barba cerrada, azulada, que começava ao pé dos olhos, confundindo-se com os pêlos do peito. Tinha feições finas, o marido: um homem bem apessoado. Foi enterrado no Cemi­tério São Francisco Xavier, onde, todos os domingos, Fátima comparece, levando as flores da saudade. Não chora, todavia. Apenas, triste e solene, deita os cravos sobre o cimento e, após dizer umas poucas rezas, volta ao bar na Rua Salvador de Sá, único patrimônio que lhe ficou.

A mulher de preto. Colarinho fechado, mangas compridas, punhos invariavelmente abotoados, sempre de meias nada trans­parentes, rosto pálido onde nunca tocaram o ruge e o batom. Faz questão de viver no hábito português do luto eterno. Tem os cabelos escondidos pelo lenço de seda preta que não esquece de atar à cabeça, dando-lhe um jeito de camponesa de Vila Franca do Xira. As pernas, brancas demais, acinzentam-se pelos cabelos que deixa crescer, descuidada, esquecida da vaidade — coisa de gente moça. Imagina-se que nas axilas também os haja.

O bar é pequeno e antigo. São cinco mesas com pés de ferro e tampo de mármore malhado. Cadeiras pequenas, de ma­deira de lei, fabricadas pelo marido, marceneiro no Porto. Além das mesas, há o balcão onde o mármore, de beiradas comidas e quebradas, serve de pouso aos cálices de cachaça e conhaque ou xícaras de cafezinho.

— Me dá um Cinzano Tinto.

— Acabou. Tem branco, serve?

— Não.

Perde mais um freguês. O negócio não vai bem. Fala-se na desapropriação do bar, para a abertura de uma rua nova, acabando na Presidente Vargas. Nas prateleiras, um fim de estoque.

— Um Dreher.

— Acabou.

Outro freguês para o bar moderno que se abriu na esquina, concorrência desigual. Para ela restam os da cachaça, que di­videm a pinga com o "santo" e não economizam palavrões no vocabulário. Já está acostumada aos nomes que escuta. Antes chamava os brasileiros de "Boca Xuja". Agora aceita-os. Deles vem o dinheiro diário.

O menino-ajudante lê a página esportiva do jornal, sentado na caixa de refrigerantes. Ela se aborrece com a inércia do aju­dante que não tem a décima parte da sua disposição.

— Eu não te pago para que tu paxes o dia xentado, m'nino. Anda cá a ajudar-me.

Fátima vigia, ensina, comanda, compra, vende, evita.

— Sabe que a senhora, com uma roupinha mais leve, uma blusinha estampada, um penteadozinho maneiro... Não sei não. Tá sozinha porque quer, sabia?

Ela nem sorri, temendo alimentar qualquer esperança sem o menor sentido, impossível mesmo. Desde que o marido se foi, jurou solidão eterna.

— Dois vermutes.

— Xó tem uma dóje. Xerve?

— Não, obrigado.

Vão-se mais dois para beber no bar da esquina. Ah, quanto tempo falta para acabar com tudo isso?

Mora num quarto alugado, em casa de família, com café da manhã e almoço aos domingos. Junta dinheiro. O que con­segue economizar, ao fim de cada mês, amealha, sonhando com o dia em que poderá comprar a passagem de volta ao Vizeu, onde tem parentes que escrevem cartas prometendo coisas me­lhores do que a vida que o bar lhe permite.

— Por que não casa de novo?

Responde ao dono da casa onde mora, com indisfarçável contrariedade:

— Faxa o favor de não me tocar nexe axunto...

Às vezes cora, à simples idéia de nova união. Considera esses comentários um desrespeito ao luto que esfrega na cara do mundo. Então não vêem que a uma viúva não se devem falar certas coisas? Temendo a continuação do assunto, volta ao quarto, onde mantém acesa uma lâmpada sobre a imagem de Nossa Senhora de Fátima, sob a qual há um copo com água, molhando um cravo. Os outros onze, da dúzia, deitou-os domingo sobre o túmulo do finado. Amanhã mudará o cravo do copo.

Reza, dorme e trabalha. Sua vida resume-se à conjugação desses três verbos. Não sabe de cinemas ou teatros e mesmo a Copacabana só foi uma vez, passear pela calçada da praia. O mar nunca lhe tocou o corpo.

Hoje é domingo. Está saindo do cemitério, depois de cumprir a tarefa habitual. Há um vento forte que a faz andar tomando conta da saia que, vez por outra, sobe, deixando que se veja o nó no alto das meias, no começo da coxa.

Tem o marido à sua frente, dc tanto que pensa nele. Re­memora o acidente. Relembra conversas. No dia seguinte à sua morte iriam ao Pão de Açúcar.

A roupa que usa, o comportamento a que se determinou, a cara fechada e o passo cadenciado são os responsáveis pelos gracejos que ouve. Os galanteios são infinitamente menores do que merece. Isso atribua-se também à roupa, comportamento, cara e passo.

O Pão de Açúcar! Imagina que não será nenhum absurdo fazer o passeio hoje, domingo. Admite, inclusive, ser uma home­nagem póstuma a Teófilo. Despreza o táxi que se oferece, pre­terindo o ônibus.

Há uma fila grande para o bondinho. A mulher de preto, no entanto, sente-se num deserto. É a única a não mostrar alegria. Não há prazer no passeio. Age no tom que se determi­nou: homenagem póstuma. Qualquer atitude diferente disto, en­carará como pecado, quase heresia, nem sabe definir.

Turistas esbarram nela que, da janela do bondinho, olha a cidade sem maior interesse. Vê as praias repletas, os auto­móveis que mais parecem formigas, de tão pequeninos. Teme, por um momento, que se quebre o cabo, e o carro despenque. Afasta os olhos da paisagem, virando-se para o interior. Examina os companheiros da viagem. As famílias e os casais, alegres, ti­rando fotografias, fazendo piadas que imaginam engraçadas.

— O cabo vai quebrar... vai quebrar... vai quebrar...

Ridículos. Um menino faz cócegas na tia, provocando-lhe um grito, de susto.

— Xi exe miúdo foxe meu, eu o enxinava... — pensa.

Está quase arrependida do passeio.

Seus olhos param num homem sentado no canto do bondinho. Comporta-se diferente dos demais, porque se comporta igual a ela. Está só, o homem. Igual a ela. O homem lhe sorri, de modo simpático. Ela retribui e depois se arrepende. Volta à paisagem. Mas já não vê os carros nem as praias. U'a mão invisível torce-lhe o pescoço, obriga-a a virar o rosto para o canto, onde Geraldo continua sorrindo, sorrindo, sorrindo, adulto, compenetrado, cara de trabalhador, respeitável, simpático, apa­rentemente honesto.

Saltam no morro da Urca para trocar de bondinho. As crian­ças correm na frente, querendo lugar na janela. Os pais tentam alcançá-las. Os casais têm menos pressa. No fim do grupo, Fátima e Geraldo. Olham-se com respeito, com esperança, com temor e quase carinho. Ele lhe dá passagem. Ela entra no bon­dinho, já admitindo comprar uma blusinha estampada que viu anteontem numa vitrine, no Estácio.

Geraldo sorrindo, sorrindo, sorrindo, adulto, compenetrado, cara de trabalhador, respeitável, simpático, aparentemente ho­nesto, sorrindo, sorrindo...

 

                     MESTRE-DE-OBRAS

31 de dezembro. Há 3 dias São Paulo não fala noutra coisa que a Corrida de São Silvestre.

— Deve ganhar um holandês desses...

Há corredores da Holanda, realmente, como os há da Bél­gica, dos EUA, da França, da Argentina. Até da Etiópia há um, que corre descalço. Um de cada país. Do Brasil há 75.

— Boa sorte.

Josué, um dos 75, agradece à namorada o que ela lhe deseja.

É um mulato atarracado, de pernas finas. Nordestino dos que ajudaram a construir São Paulo. Foi pedreiro em muitas obras, fiscal em tantas outras. Hoje, é Mestre, na construção de um prédio na Avenida Ipiranga.

— Obrigado.

Ele agradece à sua neguinha o desejo de boa sorte. Iolanda sorri e lhe põe um beijo na testa. Iolanda é cozinheira, no Morumbi. Conseguiu licença dos patrões para ver seu homem correr. Seria melhor ter ficado em casa, acompanhando pela televisão. Ali, verá a partida e nada mais. Mas achou que sua presença era muito importante. Assim como um estímulo para o namorado.

Josué aquece-se, balançando as pernas de músculos tão di­ferentes das pernas francesas, inglesas, holandesas, que se põem ao lado.

Mantém-se entre os primeiros no começo da maratona. Há dois louros na frente, além de um japonês pequenino, de sapatilha azul.

As pernas começam a pesar, tornam-se impotentes. O louro da Inglaterra parece máquina. Tum-tum... tum-tum... tum... tum... não muda o passo, não arrefece um segundo. Tem um francês nos seus calcanhares. Quinze metros atrás, o japonês calçado de azul, com muita torcida nas calçadas. Depois, Josué, com a camisa da Força Pública, esperança brasileira, na sua opinião.

— Manda brasa, baiano.

Josué, da Paraíba, tem melado na boca, o coração pulsa na veia do pescoço escondido. Josué sabe que o belga sabe que na hora em que desejar vai superá-lo. Pensa em Iolanda, ten­tativa de arregimentar forças.

Estão na subida da Rua da Consolação. Josué olha longe. A rua não tem os quilômetros que pensava, mas talvez mais de doze. Sente a perna grossa, os pés começando a doer.

O louro da Inglaterra já está pequenino, pela distância que aumenta. Na esquina da Caio Prado começam as cãibras.

Pelo menos quinto...

Josué não tem grandes pretensões. Sabe que não come o que os outros comem, que não vive no mar de rosas dos estran­geiros. Ele é mestre-de-obras, trabalha pra ganhar a vida. É trabalha pesado, não vive em moleza.

O belga o supera. Josué percebe que o belga sorri quando lhe passa à frente. E já há um argentino e um venezuelano a persegui-lo de perto.

Vamos, Josué.

Não sabe de onde partiu a voz, mas sente refrigério no incentivo que escuta. A subida é íngreme apenas para ele. Lá se vão os sul-americanos passando à frente. Calcula estar em oitavo lugar.

Pelo menos décimo. . .

Josué tem as coxas medindo dois palmos de diâmetro. Dor­mentes, inclusive. Sente o cheiro do seu suor. Diferente do da obra. Agora, é um cheiro de atleta. Pensa um instante nos irmãos, em Sousa, na Paraíba, que nem sabem que ele é atleta. Pensa em Iolanda, certamente junto a um rádio. Será que estão fa­lando o seu nome?

O sueco o suplanta, como também o holandês. Vão virar na Avenida Paulista.

A noite estava tão fresca, antes da corrida. Agora é esse inferno, essa sufocação que quase não o deixa respirar. Ele bufa a cada passo, morre um pouco a cada pisada. Passa por ele um brasileiro do Corinthians, bastante aplaudido.

Nem o primeiro brasileiro eu vou ser.

Dobra na Avenida Paulista em vigésimo sexto. Mas há de chegar na frente de muita gente boa. Como estarão suas pernas amanhã? Josué sente o suor escorrer pelas coxas. Está cansado e sofrido. Padece mais, cada vez que um lhe passa à frente. Muitos, aliás, brasileiros. Passa Altamiro, também da Força Pública. Josué não percebe, mas já não corre, passeia. Vão passando muitos. O colombiano é o 78º a superá-lo.

Subdesenvolvido como eu pensa Josué, agora em frente do Conjunto Nacional.

Agora, tudo o que deseja é chegar. Qualquer coisa, menos parar no meio, como a maioria dos brasileiros. Chegar. Precisa chegar. Nem que seja em último Mas tem que ir até o fim. Falta quanto? Deseja tão pouco: chegar. Não pede demais, meu Deus do Céu.

Andando, até eu.

A voz de gozo que sai da calçada o magoa. Pensa um palavrão que não pode falar. Da boca já sai, pelos cantos, uma espuma branca, um creme de cansaço. Faltam 400 metros. Chegar. Iolanda. Os irmãos na Paraíba. Chegar. Os amigos que arran­jaram um jeito dele correr, defendendo a Força Pública. Iolanda.

Chegar.

Duzentos metros, Josué.

Continuam a passar por ele. Está incapacitado de saber em que colocação se encontra. Só saberá o lugar que tirou amanhã, pelos jornais.

Corre, que dá pra tirar terceiro.

Zombam, na calçada. Josué pensa em lhes dizer que se ponham no seu lugar. Não é atleta, é mestre-de-obras, seus idiotas, que só sabem dizer besteira.

As pernas param de resistir. Faltam cem metros. Ele cai. O asfalto queima-lhe a cara. Retiram-no da avenida. Não há ar no mundo. Josué tenta o ar que não existe. A boca aberta, com dentes de ouro, busca o ar impossível. É tarde. O ar acabou, para ele, pelo menos.

No podium colocam uma coroa de louros na cabeça do inglês.

 

                   OPÇÃO

Está chovendo há dois dias. Os carros passam devagar pela rua, temendo o buraco possivelmente encoberto pela água em­poçada. A chuva começou farta, afinou na primeira madrugada, recrudesceu o dia seguinte inteiro, amainou às primeiras horas da noite e agora voltou a cair caudalosa, insistente, ininterrupta, bastarda. Há 48 horas chove, e o céu, pesado de cinzento, não promete estiagem para tão cedo. As nuvens grossas encobrem a cidade, entristecendo-a. O sol, tão esperado para o fim de semana, fica para outra ocasião. O sábado será também chovido, como também o domingo, é de se imaginar. Há ruas que já se transformaram em pequenos riachos e há as que já são rios. Passa um homem de calças arregaçadas, sapatos na mão, lenço inútil na cabeça. Tem a água pelos joelhos e a chuva dentro da alma, molhando-lhe o espírito, esfriando-lhe a vida.

O homem vai devagar. Seus joelhos afastam a água, graças aos passos arrastados, sem levantar o pé do chão. Tem a camisa colada ao corpo, transparente, de molhada. Vê-se o bico do peito, enrijecido pelo frio que a chuva lhe traz. O relógio, guardado no bolso, na fuga da água, está tão encharcado quanto estaria se o levasse no pulso.

O homem está chovido, como a cidade. E triste. Mais do que a cidade, que a esta hora lamenta o fim-de-semana inutilizado pelas águas.

Chuva fora de tempo...

É julho, mês seco, via de regra. Mas chove há dois dias. Chove o que Deus dá como comentam na cidade.

O jogo de domingo já foi cancelado, e o serviço de me­teorologia não acena com possibilidades de melhora. Ao contrário.

O homem está voltando do trabalho. É ourives, na Rua Uruguaiana. Mora no Catumbi, onde a chuva molha mais, insiste em permanecer, não apenas na rua, na calçada, mas dentro das casas, pela ineficiência dos bueiros.

Ele abre a porta, entra e continua na chuva. Sua casa é um lago. A água supera a mancha antiga da parede, fabricada pela chuva de janeiro. Os móveis, previamente colocados sobre estrados, já têm os pés molhados.

Não há ninguém para o ajudar a remover a água. Os baldes são despejados no pequeno quintal. A água do quintal aumenta e volta à casa.

A madrugada o encontra exausto, dentro da água, vencido pela chuva. O vidro quebrado da janela da sala permite que por ali entre mais chuva. Ele cola um jornal ao vidro. Por algum tempo a água não entrará por ali.

Que chuva!

Lá fora, por um momento, a chuva arrefece seu ímpeto.

Acho que vai parar...

Meia hora depois chove mais do que antes. Quase não escuta o motor de carros, na rua. Todos em casa, fugindo da chuva, com medo da água que desaba do céu, sem piedade, sem cuidado, sem pedir licença.

O homem nota a primeira goteira. Depois percebe que as goteiras são dez, trinta, o teto da casa tem, neste momento, a utilidade de um pára-quedas num submarino.

E agora?

Está dois palmos acima da mancha, a água da chuva. Já não é da chuva, é água da casa, alagadiço em que mora há 17 anos, esperando um aumento que lhe permitirá o apartamento sonhado.

Da janela vê um conjunto residencial na quadra seguinte. Inveja os que lá estão, secos, enxutos, saudáveis, sadios.

O balde, esquecido, está sobre a cômoda do quarto. Nada há a ser feito. E chove mais, há ainda o que chover.

Faz 50 horas que este aguaceiro desaba.

De onde vem tanta água?

As gavetas foram retiradas e empilhadas sobre os móveis mais altos, tentativa de salvaguardar suas coisas.

Maria, agora, faz mais falta do que nunca. Não que ela pudesse conter a chuvarada, mas o ajudaria com as palavras antigas de incentivo.

Um dia a gente muda.

O homem está sozinho, no meio da chuva, que cai, em casa, na rua. A cidade molhada acorda mais tarde. Até agora não passaram mais de dez carros na rua. O sábado vai em meio. A fibra do homem caminha para o fim. A chuva das goteiras incerta molha pior. A água sobe pela parede, apodrece os móveis velhos, inunda o armário, esfria a vida, refrigera os nervos.

Chove. De noite se vê que chove mais forte. O lampião da calçada mostra os pingos caindo na diagonal, assim postos pelo vento que açoita.

— Haja água.

É o que há. O étager, submerso, é adivinhado pelo homem que caminha idiota pela casa, com água à cintura. Anda sem destino, caminhando autômato pelos três cômodos da casa-lagoa. Senta sobre a cômoda, pernas levantadas para não ter os pés enfiados na água. Tem frio. Põe, nas costas, um cobertor úmido e enrola no pescoço um velho cachecol que era de Maria.

— Maria... Maria... por que você foi embora?

Pela primeira vez o homem fica triste. Deixa as lágrimas caírem do rosto, juntarem-se à água da sala, que é tanta quanto a do mundo.

— Maria... você fez bem em ir embora. Se estivesse aqui...

Não havia esta chance. Maria mudara para o morro, na companhia de um mulato, trabalhador do cais do porto. Trocara o conforto de uma casa no Catumbi pela insegurança de um barraco. O primeiro a cair, quando a chuva começou.

 

                   DIAGNOSTICO DIFÍCIL

– Acho que estou tuberculoso!

Foi o que pensou ao se olhar no espelho. Olheiras cinzentas, rosto pálido, olhar baço.

A compra do apartamento o obrigara a emendar noite com dia na direção do táxi, causa do estado em que se encon­trava, denunciado pelo espelho do banheiro.

— Acho, não, eu estou. Eu sou um tuberculoso — concluiu, fechando o tubo de creme de barbear, sentando desconsolado no vaso sanitário, mãos entrelaçadas no meio das pernas trêmulas.

A mulher dormia. Não acordava antes das oito. Teria que providenciar tudo antes da mulher acordar, para evitar um alarme. Olhou-se de novo no espelho, forçando ver-se de perfil, apertando as bochechas, emagrecendo de propósito o rosto já afinado.

— Estava demorando. Não como nem durmo direito. Eu não estava em condições de me meter a comprar merda de apartamento nenhum. Agora me machuquei. Tuberculoso da silva.

Pegou o Chevrolet na garagem, desceu a bandeira "livre" e saiu de Olaria para um hospital qualquer, longe de casa, onde não houvesse o perigo de um amigo o encontrar.

No trajeto, pensou na luta inútil pela vida. Que adiantava tudo que fizera? O carro comprado com dificuldade, o aparta­mento, adquirido num esforço suicida, o dinheiro que teve que gastar na batida do mês passado quando por pouco escapou da morte.

— Era melhor ter morrido na trombada — pensou alto.

E nem seguro de vida tinha. Mas como fazer seguro, se o dinheiro que ganhava dava mal e porcamente para a comida e as prestações do imóvel?

Vidigal, modéstia à parte, você sifu — disse pra si.

Dinheiro medido, contas atrasadas, trabalho dobrado para compensar a falta da grana, os meninos morando com a avó — tentativa de diminuição de despesas apartamento a amor­tizar...

Vou logo tirar uma chapa. Se não der nada, fico tran­qüilo; se estiver, dane-se — falava sozinho enquanto o Che­vrolet comia asfalto na Rua Jardim Botânico.

Vou maneirar um pouco. Trabalho de 7 às 5 e dou o carro de noite pro meu cunhado. Não dou, não. Aquele cara vai me arrebentar o carro. São mais seis meses. Mas... e se for o que penso?

Com 37 graus à sombra, parou no estacionamento e entrou no Miguel Couto, de mãos e corpo suados. Muito pelo calor que estava de sufocar e um pouco pelo cagaço.

U'a mão lhe bateu no ombro.

Voltou-se, num salto, e deu de cara com o Dória, amigo de velhos tempos, desde a época em que fora servente, no Botafogo F. R.

Por aqui, Vidigal?

Antes de qualquer coisa, numa fração de segundo, chegou à conclusão de não ser mau negócio confessar tudo ao amigo. Afinal, o Dória morava por ali, não teria a menor chance de contar aos amigos de Olaria o estado deplorável em que se encontrava. E, sendo o Dória enfermeiro, era válido ouvir sua opinião.

Tuberculoso falou, como se revelasse um alto segredo de estado.

Algum amigo, é? perguntou Dória, com a naturali­dade dos enfermeiros.

Eu, Dória. Eu estou tuberculoso. Seu amigo está ferrado.

Dória esboçou um sorriso que não foi do seu agrado.

Sorriso que ele entendeu como deboche. Mas Dória estava tranqüilo.

Corta essa, Vidigal. Com esse corpo, esse aspecto, agüentando essa vida que você agüenta? Você tem cansaços extemporâneos?

O que é extemporâneo?

Tem cansaços?

Não. Quer dizer, tenho. De madrugada...

De madrugada, não vale. Cansaço que eu digo, no caso, é assim... acordar cansado, ficar estafado sem motivo, fati­gado sem mais nem menos...

Não. Não chega a esse ponto.

Tem febre de tarde? Assim, à tardinha. Tem?

Não sei e encostou a mão debaixo do queixo.

Tosse seca?

Seca, não.

Então você não tem nada. Vai por mim, Vidigal. Você está melhor do que eu.

Era de dar risada. Um enfermeirinho, que não sabe mais do que passar mercurocromo em feridas e algodãozinho em nádegas, meter-se a diagnósticos que os próprios médicos não se atrevem a dar sem os Raios X. Quem era o Dória pra se arvorar em saber das coisas. Perdeu a paciência.

Você não entende nada de tuberculose. Olhe meus olhos e puxava as pálpebras exageradamente. Onde você já viu olho assim? Só no cinema mudo. E as olheiras?

Os dedos, abertos em V, batiam embaixo dos olhos, en­quanto subia a voz em tom e meio, no mínimo.

Pensa que eu sou o Carlitos? E essa palidez? Se eu fosse chinês, está certo, mas é que eu sou carioca. Eu sou carioca, Dória.

Eu sei disse Dória, baixo, tentando acalmá-lo um pouco.

Não sabe porra nenhuma. Carioca tem cor de sol, não tem essa cor de queijo, e se agredia com tapas nas faces, muito nervoso. Pegue na minha mão.

Está fria Dória admitiu.

Fria, não; está gelada. Passe a mão no meu rosto.

Dória tocou-lhe a face com o dorso da mão esquerda e não se deu ao trabalho de fazer um comentário. Percebeu que o amigo sofria um ataque de hipocondria. Para tranqüilizá-lo, teria que expor as provas. Levou-o à seção de Raios X.

Tire a camisa e deite aí.

Pra quê?

Você não bateu com o carro? Não esteve aqui pra ver se tinha quebrado uma costela? Eu vi a sua ficha no arquivo. Primeiro, vamos ver a costela. Pode ser que tenha qualquer galho na espinha, e isso tenha deixado você com o estado geral aba­lado. Tire a camisa e deite.

E o pulmão, Dória? O Pulmão? mencionou o pulmão com P maiúsculo.

Tem tempo finalizou o enfermeiro, sempre sereno.

Obediente como os desenganados, Vidigal tirou a camisa suada de se torcer e deitou de costas na mesa onde o alumínio gelava, pela sala refrigerada. Sentiu um frio que parecia o da morte.

Se eu não estava tuberculoso, fiquei agora pensou.

O enfermeiro dava as ordens mecânica e friamente. De bruços. De lado. De costas. De frente. De bruços. Cada ordem era acompanhada por um splac do aparelho. Vidigal, a cada posição em que se punha, já imaginava o futuro terrível. Entre­garia o Chevrolet ao cunhado, aquele safado, e era a única saída. Quanto ao apartamento, entraria num acordo e o devolveria. Por motivo de doença, o dono iria entender. A mulher, coitada dela, iria juntar-se aos filhos na casa da sogra, durante o tempo em que ele estivesse envergando uma camisola de morim, em Curicica.

Deu vontade de tossir. Ele reprimiu. Pensou: "a tal tossezinha seca". Não pôde evitar o espirro.

— Saúde — disse o enfermeiro.

— A puta que o pariu — pensou Vidigal.

Mais dois ou três splacs, e a chapa sumiu por um buraco na parede que ligava à sala do lado.

— Pode vestir a camisa?

— Ainda não. Tá com pressa?

— Tá um friozinho chato.

— E o pulmão? Não quer uma radiografia? Fique em pé e encoste aqui.

Novas ordens do enfermeiro. Automáticas, como as ante­riores, geladas como a sala.

— Respire. Prenda. Não respire. Solte.

Vidigal soltou um arzinho além do que respirara. Era medo, mas isso não evitou que ficasse encabulado. Ainda mais pelo "saúde" que Dória lhe desejou. E aí, mais ordens.

— Não respire. Pode respirar. Prenda. Não respire. Splóct. Pode respirar. Prenda. Splóct.

A chapa sumiu igualmente pelo buraco da parede.

— Pode vestir agora.

Com olhar inexpressivo, Dória acompanhou Vidigal no vestir da sua blusa. Houve alguns momentos de silêncio entre os dois. De um lado, Vidigal: suado, sofrido e cismado. Do outro, o enfermeiro: calado, cético, cretino, cínico, cachorro.

— E daí? — inquiriu Vidigal, disposto a acabar com aquilo de uma vez para sempre.

— Daí, tem que esperar um pouco. Estás morando onde? — quis saber o enfermeiro, sem obter resposta alguma.

Ora, se aquilo era momento de conversinha. A espera era angustiante. E também sem necessidade. Como se alguém per­guntasse a um matemático a soma de dois mais dois, e ele pedisse prazo para responder.

— Sente ali naquele banco — ordenou o enfermeiro, já de volta ao corredor.

O banco indicado era a preliminar da morte. De um lado, a sexagenária com o braço envolto em mercúrio, sofrendo tre­muras; do outro, um crioulo grande com um túnel aberto na coxa, certamente provocado por uma 45.

Ao longe, viu a enfermeira. Mulata de fazer gosto.

— Que mulataço! — pensou, e logo se arrependeu. Quem está com os dias contados lá tem direito de imaginar essas coisas de pecado!

A enfermeira vinha certa, dirigindo-se ao banco. Era tra­zida por passos que tinham que ser adivinhados. "As enfermeiras, como a tuberculose, não fazem ruído algum" — ousou filosofar.

— Se ela falar comigo, esqueço que estou doente e...

Era com os vizinhos que a moça tinha assunto.

— A senhora pode ir — falou à sexagenária. — O senhor, também — disse, dirigindo-se, agora, ao negrão. — Quanto ao senhor — era com ele — por favor queira esperar mais um pouco.

Pronto. Caso liquidado. A dispensa daqueles dois corro­borava a moléstia. Não seria mal, chegou a admitir, que a he­moptise acontecesse agora.

Ele tossiu de repente. Foi como se em meio à missa tivesse berrado MENGO!

Sentiu que todos olhavam.

De fato, muitos o olhavam, mas não era pela tosse, era por ter esquecido de abotoar a braguilha.

Mas quem o convenceria de que os olhares não eram pela tosse? Tosse cava, como pensava, frisando. Tosse de tuberculoso.

E a tosse, diga-se de passagem, não fora tão cava assim; e nem era assim tão tosse.

Um velho tossiu, no banco em frente.

— Coleguinha — pensou Vidigal, oferecendo ao velho um sorriso de "estou contigo".

O velho retribuiu e repetiu a tossida, como se alguém no recinto tivesse pedido bis.

Passou o Dr. Lídio Toledo. Vidigal tentou esconder-se para não ser enxergado.

— Espere — falou o Dr. Lídio, numa tentativa de des­cobrimento —, você não trabalhou no Botafogo? Como é mesmo o seu nome?

Vidigal — ele respondeu como se estivesse num confessionário.

Vidigal, isso mesmo. Como vai?

Mal! — entregou-se.

Algum problema com você?

Tuberculina falou ao ouvido do médico pra não chamar atenção.

Mesmo assim, a gravidade da voz fez com que a palavra chegasse ao ouvido de uma senhora pobre, de pernas inchadas, que, imediatamente, afastou-se 30 centímetros no banco, levando um lenço ao nariz.

Dr. Lídio o encorajou.

Que besteira, Vidigal. Você está ótimo. Tussa. Vamos ver. Tussa e colou a orelha às costas do Vidigal-Quase-Morto.

Tossir, era a coisa mais simples que lhe podiam pedir. E, como era ordem médica, e todos tinham escutado, ele tossiu a vera.

Está ótimo — foi o parecer do Dr. Lídio Toledo.

E a tosse?

Normal! disse, e foi embora depois de uma batidinha amistosa sobre o ombro.

O médico sumiu, Dória reapareceu.

A radiografia da costela está pronta.

Tem... tem... como é mesmo? Como é mesmo o nome?

Fissura? Não. Mas a chapa está molhada. Vamos deixar secar.

Ele levou o enfermeiro a um canto isolado e então fez a pergunta. A única que interessava.

E em matéria de pulmão?

O enfermeiro, com um gesto, mandou que ele esperasse.

Nova espera. Mais espera. Outra espera. Só espera. Já faltava paciência, nascia aborrecimento, crescia mais a aflição.

Não devem ter passado mais do que quatro minutos. Pra ele foram 30. O fato é que o enfermeiro voltou trazendo um sorriso. Riso claro como a aurora de um verão em Ipanema. Um riso feito de luz. Levantou o polegar num gesto muito comum.

Positivo.

Positivo? lamuriou-se o doente, caindo, arriado, tonto, sentando sem saber onde.

Positivo. Não deu nada.

Então, não é positivo. É negativo, Dória.

Positivo. Negativo.

Mentira ele duvidava.

Nada. Você não tem nada garantiu o enfermeiro, jun­tando à frase uma pancada em meio às costas que, além de mostrar amizade, esfregava-lhe na cara que os pulmões estavam em ordem.

Vidigal sorriu feliz. Daí, foi à gargalhada. Repetia o enfer­meiro na frase que achou bacana.

Positivo, negativo. Muito boa, muito boa. Positivo. Ne­gativo. Esse Dória...

Não disse? Está melhor do que eu, que estou com unha encravada.

Ninguém consegue explicar o que o Vidigal sentiu. Uma coisa parecida com algo que se assemelhasse a nascer de novo!

Nada! Nada! Nada! repetia e repetia, com um sorriso de vitória. Estou enxuto. Enxutinho!

Olhou o velho de frente. O velho tossiu. Isto lhe deu vontade de pôr um lenço no nariz. Olhou a mulher do lenço e, estribado no "nada" categórico do enfermeiro, dedicou-lhe uma tossida caprichada e especialmente dirigida às narinas abertas da velhota. Tossiu de novo, de propósito.

Nem sombra, doutor? perguntou ao amigo Dória, nessa altura promovido, e muito merecidamente.

Que é isso? Que sombra, o quê? Nada, Vidigal. Nada é nada repetiu o enfermeiro, já de um jeito que mostrava ter aceito o doutorado que Vidigal lhe dedicara.

Apertaram-se as mãos.

Posso te dizer um troço?

Pode, claro.

Dória, modéstia à parte, você é uma sumidade. Você é uma competência. Você é autoridade. Você, Dória. . . — pro­curou a palavra melhor e, à falta dela, disse mesmo a imagi­nada —... você, Dória, é do cacete!

Bateu no peito. Sentiu músculos e não cavernas, como antes pressentia. Estufou o tórax de modo exibicionista. Um potro. Estava um cavalo. Um puro-sangue de saúde.

De vez em quando, tem gente que fica com essas cismas disse Dória, olhando a chapa contra a luz fluorescente do teto do corredor.

Bobagem! Vidigal vociferou com uma voz de Sargentelli.

Fora da fossa, vibrava.

Tou legal.

E caprichava no grave, acentuando a verdade.

Tou legal. Legal demais. É isso aí, malandro!

Saiu do hospital como os absolvidos deixam o tribunal.

A manhã era azul como a terra. Trabalhar, não ia mais. Em hora de comemoração só trabalha quem é burro. Tomou uma decisão.

— Vou comprar um short e vou pegar uma praiazinha de leve.

O dia cheirava a vida.

Atravessou a avenida sem nem olhar para os lados. Se um carro o pegasse, muito pior para o carro. Com a saúde que estava, entre ele e um Corcel, Vidigal era mais ele.

Passava do meio-dia.

Enquanto andava, ia achando explicação para os sintomas que motivaram o mau pensamento. O suor? Era o calor, andava muito abafado, um janeiro de ferver. Depois de pagar o apar­tamento, o primeiro dinheirinho seria para um ar condicionado. A mão fria? Talvez fome. A última vez que comera fora um misto, em Madureira, quando levou uns grã-finos para o ensaio do Império Serrano. Os calafrios? Sistema nervoso. A tosse? O cigarro. Aquele maldito Continental sem filtro que não con­seguia largar. Falar nisso, acendeu um. Não precisava parar de fumar. Estava bom. Ponta dos cascos. Não fumam os tu­berculosos.

O bar o convidou a entrar. Não era o bar em si, mas um vistoso display, mostrando uma Coca-Cola coberta de gelo. Mas, para os saudáveis, isto é pouco.

— Um chope — comandou, vitorioso — estupidamente gelado.

Era o chope da desforra. O chope a que antes pensava ter perdido o direito de pedir e de beber.

— Com ou sem colarinho? — indagou o homem do bar.

— Sem. Bem tiradinho.

O português tirou um chope que merecia um ministro para o engolir. Vidigal segurou o copo como se fosse um troféu e o levou à boca, tomando o chope de golpe, esfriando a serpentina, equilibrando o metabolismo.

Tremeu.

Arrepio de alegria misto com forra. Soltou um "ahhh" pro­longado, como o dos anúncios de creme dental.

— Mais um.

Foi quando chegou o amigo, um tal de Batalha.

— Até as pedras se encontram! — foi a frase inteligente do Batalha, ao enxergar o Vidigal, antigo companheiro de noi­tadas memoráveis na gafieira do Cabral.

Vidigal encontrava quem precisava encontrar: alguém a quem contar tudo. E outra coisa não fez. Contou tudinho. Desde os sintomas até a conclusão do Dória.

— ... e ele disse: nada.

Batalha, voz rouca, usando terno e gravata:

— Se a chapa da costela estava molhada... a do pulmão também não estava?

Vidigal suspendeu o chope que já tinha encomendado. Pediu um leite morninho, que sorveu em pequenos goles. Daí, voltou tossindo ao Miguel Couto, para novos Raios X e uma esculham­bação em regra no Dória, aquele filho da puta, enfermeirinho metido a fazer diagnósticos.

 

                   SÁBADO DE ALELUIA

Tomava dois banhos por ano, na fonte da praça.

Sapucaia! os garotos gritavam, quando ele passava, exalando um mau cheiro desagradabilíssimo.

Não respondia mal aos meninos. Limitava-se a sorrir, quando lhe gritavam o apelido. Talvez por isso os gritos se repetissem pela rua inteira, à sua passagem malcheirosa.

Sapucaia!

Não era velho. Poderia ter 35 anos, calculando-se por cima. Os cabelos crescidos, sebosos, caíam-lhe pelos ombros, mistura­vam-se com a barba nunca cortada; o bigode, jamais aparado, entrando pela boca. A roupa, um amontoado de molambos, ras­gões nas calças, sapatos furados.

Aqui e ali alguém se apiedava e lhe dava um prato de comida, que ele devorava como bicho. Não usava a colher que lhe estendiam. Comia com a mão, fazendo bocados disformes.

No sábado de Aleluia os meninos fizeram um judas que era um réplica dele. De barba e bigode, além da cabeleira onde nunca um pente deslizara, supunha-se.

De longe, viu-se malhado. Os garotos corriam e davam pauladas no boneco de pano que era ele. Furavam os olhos do judas, rasgavam-lhe a roupa, deixando a palha saindo. De longe, ele via a malhação do judas, quase sofrendo na carne o que acontecia com o bruxo pregado no poste. Doeu-lhe muito quando atearam fogo ao boneco. Os gritos da garotada saudando a queimação do judas feriram-lhe os tímpanos. Com as mãos nos ouvidos, correu. Escondeu-se debaixo da ponte, canto onde mo­rava, e chorou.

Um cachorro velho, cego de um olho, aproximou-se. Lam­beu-lhe a mão, e isto lhe deu conforto. Puxou o cachorro, estreitando-o nos braços. O cachorro deixou-se ficar ali, esquecido, livre do frio que vinha do rio. Dormiram.

À noite saiu, na cata de comida. Não. Não passaria pela rua onde lhe tinham feito aquela maldade. Andou pela praça, estendendo a mão, no pedido da esmola.

Vai trabalhar.

Sai, fedor!

O cachorro o acompanhava. Ele quis enxotá-lo, não conse­guiu. Por mais que tentasse, o cachorro não se afastava. Quando o espezinhava, o cão retirava-se alguns metros e depois voltava a segui-lo. Deixou de o expulsar. Admitiu-o como amigo. Como companheiro, pelo menos. Temeu a presença do cachorro.

Outra boca pra alimentar...

Mas o cão, fiel como um velho amigo, seguia-o, manso e cativo.

No bar ganhou um pão. Com esforço, dividiu ao meio. Sentou no meio-fio, dando metade do pão ao cachorro. Comeram com sofreguidão. Negaram-lhe a água que pediu.

Depois eu tinha que quebrar o copo... comentou o dono do botequim, explicando a negativa.

Todos ficaram de acordo.

Tinha sede. O portão da casa estava aberto e ele viu a torneira, no jardim. Ninguém por perto. O cachorro entrou pri­meiro. Ele abriu a bica e esperou que o cachorro bebesse. Depois, com a mão em concha, serviu-se da água, quase gelada, re­confortante.

Um ladrão!

O grito do menino assustou o cachorro. O pulo do animal foi tão rápido que ele não pôde evitar. Cravou os dentes na perna do menino que, aos gritos, correu para casa. Ele fugiu para debaixo da ponte. O cachorro já estava lá.

Você fez muito mal. Então, é certo morder uma criança? O que foi que o menino lhe fez, pra você dar aquela mordida nele? Eu devia bater em você.

O cachorro parecia entender. Abria e fechava os olhos, boca escancarada, língua de fora, arfando.

Pensava no menino. O que estaria sofrendo, coitadinho, àquela hora?

O menino escondeu dos pais a mordida. Tratou, ele pró­prio, de passar mercurocromo na ferida da perna. Estava com medo de ser castigado. A vizinha vira o molambento no jardim. Imaginou que fosse roubar.

Vou avisar a polícia disse o dono da casa.

Considerou um abuso aquele mendigo entrar na sua casa, mesmo não tendo passado do jardim. Não sabia o que fazer ali. Talvez roubar, como a vizinha supunha. Era preciso que tomasse uma providência.

Recebeu adesões. Todos, na rua, de acordo. Tinham raiva dele, do cheiro dele, do aspecto dele, do perigo enorme que ele representava para a sociedade. Aquele bicho!

— Lincha! — berrou uma voz, menos humana.

Apanharam lanternas e saíram na busca do monstro.

— Eu sei onde ele mora — ofereceu-se uma mulher.

Cercaram a ponte. O mendigo quis falar, tentou correr.

Fecharam as saídas possíveis. Tinha gente com achas de lenha e barras de ferro. Não lhe davam tempo para explicações, nem jeito de fuga. Tentou alcançar o alto da ponte. Bateram-lhe nos dedos. Ele caiu na terra onde antes dormia. Fizeram um cerco em volta dele. Eram mais de quarenta, ninguém poderia ser culpado. Deram e espancaram como de manhã tinham feito com o judas.

Foram atirados no rio os dois: o cachorro e ele. A cor­renteza os levou. O cachorro morreu, certamente, sem sentir. O mendigo sofreu muito antes de morrer. Queria ter tido tempo de avisar que o cão estava hidrófobo.

Quando o pai chegou de volta, satisfeito com o que fizera, tinha tanta alegria que nem notou que o filho estava com febre.

 

                     MUDANÇA

Era em São Paulo, mais precisamente na Rua Traipu. Fecha­vam-se as portas da mansão, cerrando-se, à mesma hora, alguns anos de mistério e melindrosas estórias.

O último objeto a ser colocado no caminhão-ônibus da trans­portadora foi um vaso chinês.

— Cuidado. É relíquia — disse ao mulato que levava a peça no ombro.

O mulato, carioca como companhia de transportes, sorriu-lhe.

— Tô sabendo. Tá comigo, tá com Deus.

Chamava-se Gualberto, mas preferia que o chamassem de Guga, diminutivo que o agradava, e que supunha estar de acordo com a sua personalidade. Estava. Sempre cuidadoso, tratando de suas coisas com exagerado esmero, limpando e polindo o que os empregados já tinham polido e limpado.

— Olhe o pó que está no aparador!

Talvez fosse melhor se, em lugar de empregados, preferisse as empregadas. Mas não se dava a esta preferência.

— Mulher só serve para desarrumar — justificava com uma voz grave e viscosa.

Obeso, branco, quase láteo, tinha mãos gordas e dedos ab­surdamente curtos. Os óculos, aros de tartaruga, insistiam em descer à ponta do nariz, sem que ele se preocupasse em recolocá-los no lugar devido, o que mais o enfeava.

Tomava sol todas as manhãs, inclusive as de frio intenso. Sem nenhuma vergonha, estendia uma vistosa toalha vermelha no jardim e ali se deitava, facilmente visto por quem passasse na rua.

Poderia enganar a idade, coisa que, aliás, fazia. Dizia ter 45 anos, mas já dobrara os 50 há alguns meses. Agradava-lhe sentir-se mais jovem.

— Adivinha minha idade — pedia demais.

— 42 — iludiam.

— E cinco, nenen. E cinco! — repetia, vibrando.

E sungava as calças com os cotovelos, rindo sem entreabrir os lábios. Puxava a barriga e inflava o tórax, na inútil tentativa de transformar em músculos a gordura quase seio. Apesar disso, pisava leve, invulgarmente suave. Poder-se-ia dizer que deslizava.

— O carro está pronto, Doutor.

Era o chofer, que era louro.

— Já vou, Tommy — falava ao motorista.

E Tomaz ia esperá-lo no carro, nada gostando daquele modo agringalhado como o patrão o chamava.

— Rua Augusta, Tommy.

Vestia-se no Minelli, sempre exorbitando na juvenilidade das roupas. O alfaiate, de início, tentara vesti-lo à maneira dos cinqüentões. Desistiu quando percebeu que Gualberto preferia que soubessem que era Guga. A camisa não variava de cor. Invaria­velmente preta.

— Negro emagrece — explicava, com mingau na voz. Sempre dizia "negro". Dia algum chamou de "preto" a cor por que optava.

— Preto é pobre — definia, dando nojo à palavra. Tratava os rapazes na segunda pessoa. As moças, chamava de você.

— Oi, Margot, você está bem? E tu, Waldir?

Mudava o tom pra ele, sentindo e exibindo que o "tu" era mais íntimo. Apreciava a felicidade de poder ser íntimo de um pequeno time de jovens. Os jovens a quem — não se cansava de falar — adorava.

— Odeio gente usada.

Era dado a formar frases que imaginava viessem a ficar na história. E foi dos primeiros a usar bolsa.

— Homem tem que usar bolsa. As calças, hoje, não têm lugar pra gente guardar nossas coisinhas.

Suas "coisinhas" eram o cartão do CBC e um pente. Fazia uso dos dois com freqüência. As contas pagava ele. E era um bom pagador. De gordas gorjetas. A propina, não a deixava no pires; entregava-a, mão-com-mão, ao garçom, que, via de regra, encabulava-se pelo discreto apertar que sentia.

Ele se ria do acanhamento do moço. Não sabia rir. Precisava, após a risada, enxugar-se. Como não usasse lenço, secava o canto da boca com a manga da camisa. Sem pejo da atitude contrastante com sua educação.

— Aceita um licorzinho?

Era o primeiro oferecimento aos moços que traziam as compras que fizera de tarde. Muitas, desnecessárias. Havia os que aceitavam. Guga, menos só, ficava mais alegre.

Lia Fernando Pessoa para os rapazes que lhe levavam os embrulhos. Entontecia-se discretamente com o lança-perfume que misturava à colônia forte em que embebia o lenço. Usava lenço em casa apenas. E unicamente enquanto lia Fernando Pessoa.

— "Eu, que tenho sentido o piscar dos olhos dos moços de fretes, / eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, / eu, que quando a hora do soco surgiu me tenho agachado. / Para fora da possibilidade do soco".

Banhado pela luz vermelha do abajur que Guga escolhera acender, sem entender coisa alguma, o moço de fretes escutava. Sem entender, mas tudo percebendo. Muitos percebiam, nos dois sentidos.

E agora se ia de mudança. O caminhão da Fink já dobrava na Avenida São João, enfrentando o tráfego difícil do meio-dia. Ele, como um cão que zela pelo dono, seguia atrás, na vigia dos seus pertences.

Cortaria a Via Dutra atrás do caminhão. Sempre temeroso de que a porta se abrisse e por ela caíssem suas relíquias, seus quadros, sua cama, suas coisinhas.

O chofer do seu carro não era mais Tommy. Era um rapaz do Rio. Guga, como sempre, não viajava atrás, mas na boleia. No colo, o livro de Fernando Pessoa.

 

                   SEIS MESES DEPOIS

Guido pertencera ao corpo (e corpo é o termo certo) de Polícias Especiais, de motocicleta Harley Davidson e chapeuzinho ver­melho. Mesmo neste agrupamento de homens-touros, chegava a se destacar.

— O Guido é um trator — diziam seus colegas de corpo­ração, num misto de orgulho e inveja.

Um "D-14" da Caterpillar, movido a gemada matinal, que não dispensava, e engrossado pela ginástica que todos os dias suportava para se pôr em condições de fraturar mandíbulas e clavículas, nas porradinhas que dava a cada batida pelos antros do crime.

Às cinco e meia, quando o sol apenas começava a botar a testa lá longe, quem chegasse à Praia do Inferno, já o encontrava em meio à centésima flexão. O preparo físico era sua obsessão, e tinha que ser assim, porque aí acabavam as virtudes. Do corpo para a mente a diferença era a do preto para o branco. Feito uma coisa que fosse parida por um bicho, em parceria com gente.

Diariamente media o bíceps e o tórax, crendo ainda ser possível aumentar aquela estupidez de musculatura, um centí­metro que fosse.

A namorada não era maior do que uma menina. Um metro e cinqüenta, medidos até com boa vontade, e o peso de um catálogo. Os amigos brincavam, chamando aquele namoro de "tentativa de homicídio", conceito que não podia ser encarado como mentiroso. Os dois, quando juntos, pareciam um PI tra­duzido: 3,1416. Ela era a vírgula. Ele a chamava de Tina, que Albertina — o nome da peça — lhe soava como nome de portuguesa.

— "Daquelas de perna cabeluda e mata no sovaco" — ex­plicava aos colegas, entremeando as palavras da frase idiota com sorrisos alvares.

Guido podia fazer a folga de um guindaste do cais, mas não tinha capacidade cultural de substituir um bicheiro.

Do fim da PE em diante Guido passou a ser encontrado todas as noites — menos segunda, que era folga — à porta de uma boate, em Copacabana, onde o serviço era tão maneiro que o que mais lhe exigiam era, vez por outra, dar uns tapinhas nos fregueses. Mas era tapa em bêbado, não em bandido.

Se por um lado isso tranqüilizava Tina e amansava a barra da vida de Guido, por outro foi desastroso.

Entrou na roda viva da vida do boêmio: acordava na hora do almoço, almoçava na hora do lanche, jantava na hora de dormir e dormia na hora de acordar. Esse ritmo de vida não favorece os músculos. E, daí, eles foram discretamente sendo expulsos pelas banhas que chegavam pedindo vaga. Principal­mente os da barriga. Dois anos depois era outro. Como se lhe tivessem inflado, sabe-se lá por onde. Antes, Guido-touro; hoje, Guido-boi — homenagem póstuma à castração muscular.

No Beco da Fome, além da cervejinha acompanhando o ragu, já exigia "uma" para abrir o apetite. E deu de fumar. Deste modo, em 24 meses, não mais, o "D-14" se fez "D-8" ou menos.

Foi quando apanhou pela primeira vez.

Bigode era o apelido do que bateu. Era, igualmente, leão-de-chácara de uma boate — a única que não fechava às se­gundas-feiras.

Quando Tina pediu para ir a uma boate, Guido não a podia levar a outra. Folgava no dia em que apenas a boate do Bigode abria as portas. Não sei se os motivos foram bastante fortes para uma briga, mas o pau comeu.

— Você pensa que é o quê?

— Não folga, que eu te cubro.

— Tem que ser muito homem.

— Então vem, que tu encontra.

— Olha que eu te dou uma porrada.

— Dá uma, leva duas.

Ou não aconteceu o bate-boca. Mas — contou quem viu — de um momento para outro Guido fez referência à esposa do pai do Bigode, e o uppercut saiu. Seco, curto e grosso. Ponta de queixo. 135 quilos desabaram sobre o que na boate ainda insistiam em chamar de tapete com uma surpreendente ausência de barulho.

— Levanta o homem.

— Levantar como? Ele pesa uma tonelada.

— Que pancada!

Pegou no queixo. E tu notou? Quando ele caiu nem fez barulho.

Foi as banha que amorteceu.

Com esforço quatro ajudando foi levado para fora e depositado no banco da rua. Tina sentia-se culpada. Cuidou de arranjar explicação para a derrota inusitada.

Ele te pegou desprevenido.

Tu viu, né? perguntou Guido numa demonstração de ter aceito a desculpa que a noiva inventara. Eu vou pegar o Bigode, tu vai ver. E vou pegar "às traição", como ele me pegou, aquele safado.

Não fora nada "às traição", já que o bate-boca eliminava esta possibilidade. E, mesmo admitindo-se que não tivessem tro­cado palavras, é indiscutível que, a partir do momento em que se puseram frente a frente, com sangue nos olhos e beiços roxos, nada que acontecesse a seguir podia ser levado em conta de "às traição".

Foi lindo e triste, feito incêndio. O uppercut, de uma perfeição de Rocky Marciano, e a queda, parecia a de um prédio desabando. Lindo o soco, triste a queda.

Ele merecia, pra deixar de ser folgado já começou a comentar a voz do povo, o que nem era verdadeiro. Mas o mundo é uma selva: ao vencedor, os louros; ao vencido, as pedras.

Não te falei sempre? É frouxão. Só tem tamanho e safadeza.

Um amigo meu me contou que ele é mesmo meio co­varde. Numa batida, na Favela do Esqueleto, um negrão en­grossou com ele, e ele botou o galho dentro.

Agora, o Bigode...

E os elogios ao vencedor deslizavam como se descessem de um tobogã de mil léguas.

Guido chorou. Olhava-se no espelho. "Como pode? Como é que um troço desse acontece? Tá certo isso? Num homem como eu alguém pode bater? Existe? Um cara parra como eu, levar uma bomba e cair? Cair? Mas isto não vai ficar assim".

Ficou de perfil para xingar a barriga, que já quase cobria a fivela do cinto. Estufou o tórax e já não percebeu a diferença outrora marcante dos músculos. Fez pose de Mr. América, e o bíceps parecia que se recusava a aparecer. Ali estava a razão.

Estou fora de forma.

Era isso. E a boate era a responsável. A noite foi feita pra dormir, não para tomar conta de bêbado.

Babá de cachaceiro, é isso o que eu sou!

E, além de parar com a bebida, uma decisão que só toma quem é homem!

Vou parar com essa merda de cigarro.

Primeira providência: pedir as contas na boate. Foi ser massagista de um time de subúrbio. Depois a rentrée na Praia do Inferno, onde as flexões chegaram a ser duzentas. Não se soube mais dele no Beco da Fome, nem no Grego, da Barata Ribeiro. A barriga fugia, e o corpo voltava a ficar como o do tempo da PE. A cor que a noite deixa no rosto deu lugar a um saudável bronzeado. Parecia um cacique.

Foram seis meses de treinamento, repouso, vegetais, vita­minas, ginástica e pouco amor. Tina entendia que agora não podia ser mais todos os dias, mas apenas de vez em quando. O touro ia voltar à arena. Que viessem Dominguim e Manolete e Paco Camino e El Cordobés. Touro, na ponta dos cascos, com sangue na boca e fumaça nas narinas.

Não tinha contado nada a ninguém, e esta é a explicação, para que somente Tina soubesse que era chegada a hora da desforra.

Dormiu cedo na véspera. Pela manhã tomou uma gemada reforçada, almoçou rosbife e salada de batatas, pouco líquido, dormiu à tarde. Estava concentrado.

O táxi parou à porta da boate do Bigode, era meia-noite e bocadinho. Chegava à mesma hora em que chegara na noite fatal. Queria repetir tudo, igual. Até Tina estava com ele. Só que desta vez não ia pedir mesa, ia pedir revanche.

Olhou o porteiro, como se o simpático negrinho fosse um inimigo.

Diga ao Bigode que o Guido está aqui. Diga que eu vim arrebentar-lhe os cornos:

O Bigode tá de folga.

Pronto. Com essa ele não contava. Mas não foi esta pe­quena decepção que o arrefeceu.

De araque. Nessa boate não tem folga.

A boate não fecha, mas, às quartas, o leão é o Biju. Serve o Biju?

Não servia. O Biju, ele nem conhecia. Ele queria o Bigode, aquele filho das unhas do uppercut "às traição". Mas o Biju sabia quem ele era.

Você não é o Guido, da PE? Prazer. Biju.

— Não tenho nada contra si. Eu vim aqui pra pegar o Bigode de pau. Cadê o Bigode?

— Ele folga às quartas.

— Onde ele mora?

— Na Rodolfo Dantas, perto de onde era o Jirau — ex­plicou o negrinho porteiro.

— Então liga pra casa dele e diz que o Guido tá aqui. Diz que eu vim pra dar um cacete nele.

Não houve quem conseguisse tirar isso da cabeça do touro ferido. Nem pedido nem conselho. E tantos eram os conselhos e os pedidos, que a própria Tina já admitia a desistência como um bom negócio.

— Deixa isso pra lá, Guido.

— Me larga! — e empurrou a noiva sobre o balcão.

Já havia raiva, além do ranço, e isso era muito bom. Pas­sava a mão no queixo seguidamente, como se esse gesto o aju­dasse a lembrar o uppercut seco, curto e grosso. E bem que ajudava.

— Liga pro Bigode -— ameaçou, segurando o negrinho da portaria pelo colarinho da farda. — Liga pro Bigode, antes que eu te dê uma bomba.

Foi o gerente quem telefonou.

Bigode dormia desde nove e meia da noite. Acordou quando o telefone chamava pela décima vez.

— Alô — disse a voz rouca e potente que açoitou os ouvidos do gerente.

— Bigode? Aqui é o Pacheco, da boate.

— Que é que manda, Seu Pacheco? O Biju faltou?

— Não. Biju tá aqui.

— Então, pra que tá me acordando?

O gerente explicou com medo, como se fosse ele o homem que procurava o leão.

— Diz pra ele voltar amanhã.

Com a mão trêmula, o gerente tapou o bocal do telefone e, falando baixo, transmitiu ao desafiante a sugestão do desafiado.

— Ele teve uma boa idéia. Disse pra você voltar amanhã.

Guido tomou o telefone da mão fria do gerente.

— Amanhã volta a sua velha. Se você é homem, como pensa que é, vem cá. Vem pra ser arrebentado, seu safado.

Oh, Guido — falou manso o sonolento Bigode — eu tou dormindo! — e bocejou sincero, mostrando que não inventava.

— Tu tá tremendo.

— Esquece aquele negócio, procurava contemporizar o Bi­gode, homem que, no fundo, era bom, tanto que criava passa­rinhos. — Esquece aquilo, Guido. Eu tava de porre. Eu sou teu amigo, rapaz. Até parece!

— Meu amigo é os tomates. Vem, que eu vou te dar o troco.

Guido, escuta, tu parece menino.

— E tu parece puta.

— Não tou a fim de brigar, meu velho.

— Teu velho é o cara que tu pensa que é teu pai. E quem falou que tu vai brigar? Tu vai apanhar nessa cara, pra deixar de ser folgado.

Guido...

— Vem ou não vem, Maria Mijona?

Bigode não podia recuar.

— Tá OK. Vou tomar um banho e vou. Em meia hora tou aí.

— 15 minutos! — exigiu Guido, achando-se no direito de dar ele as ordens, na qualidade de desafiante.

— Vou ver o que posso fazer — prometeu Bigode.

Levantou-se, esticou os braços curtos e fortes, a patativa cantava, pensando que o dia nascera. Tinha água. Vestiu uma camisa de colarinho puído — camisa de briga como nós, que não brigamos, definimos — e foi.

 

Na calçada, uma platéia de Fla-Flu.

Tina comia um misto quente no bar ao lado da boate. A torcida dividida.

— Eu sabia que o Guido, um dia, ia "às forra".

— Quem não sabia?

— Fica falando aí. Tu até chegou a dizer que ele era bicha.

— Fala baixo, rapaz. Parece que tá fazendo comício.

— Eu sou mais o Bigode, quer valer uma Brahma?

— Tá falado.

— Meu amiguinho, o que vai voar de pena! Vê lá se não vai sobrar nada pra gente.

— Tu pensa que eu sou doido? Na hora do pau eu vou subir na marquise, pra ver de cima.

Guido estalava os dedos, comprimindo-os contra a palma da mão. Seis meses, meu nego! Sem farra, sem álcool, sem sexo. Ou quase sem. E, nesses seis meses, que ninguém esqueça de uns 15 dias de dieta macrobiótica. E o melhor é que pelo menos uns vinte caras que tinham presenciado a covarde agres­são do Bigode estavam presentes. Viram o verso? Pois iriam ver o reverso.

Bigode veio de ônibus. O pagamento ainda não tinha saído.

Olhou para os dois lados da rua antes de atravessá-la. Isto provava que não estava fora da sua razão. Podia até mostrar tranqüilidade.

Os olhos do Guido faiscavam, como se fabricassem zaraba­tanas de fogo. O sanduíche de Tina descansou no balcão, e suas mãos se juntaram, num entrelaçamento de dedos que tanto podia ser prece como dúvida. Bigode parou a dois metros.

Guido...

Não tem papo.

Foi a última vez que Bigode tentou contemporizar, contor­nar aquela situação até certo ponto ridícula. Daí, fez o seguinte: caminhou, chegou pertinho e deu um uppercut. Um só, no queixo, Guido caiu como um Gabinete Francês: sem ruído.

A torcida não entendeu. Foi um impacto semelhante ao de um gol aos 10 segundos. O gerente abriu e fechou os olhos, querendo checar se estava mesmo acordado; o negrinho porteiro acendeu um Continental; Tina mordeu o sanduíche; e Bigode pegou o ônibus para voltar pra casa. Quando entrou no apar­tamento, a patativa dormia no poleiro. Sono mais tranqüilo do que o de Guido, que se esparramava na calçada. Um sono de seis meses jogados fora.

Tina não o ajudou a acordar. Foi embora de táxi, dormir na casa da mãe. Para sempre, aliás.

 

                   O INSPETOR DO GINASIAL

Não ligam para o fato de o nome dele ser Cícero. Consideram um nome mais importante do que o merecido. Chamam-no Pi­poca, pondo ódio no apelido. No colégio, onde exerce a função de Inspetor, é repudiado.

Peguei o milho grita um aluno, escondido atrás da pilastra, começando a brincadeira.

Botei na panela! adiciona outro...

Joguei a banha! grita o terceiro. ..

Virou pipoca...

E todos, em coro:

Pipoca... Pipoca... Pipoca...

Ele avermelha-se, tenta descobrir o iniciador ou, pelo menos, alguns dos que deram continuidade à gozação. Quando os en­contra, baba-se de felicidade:

Você, você, você, você e você... ficam até seis e meia.

Isso, quando não os suspende por dois ou três dias, além de chamar os pais ao colégio para contar a delinqüência abjeta.

É solteiro. Talvez por ser tão exigente, não tenha conse­guido encontrar uma mulher que o satisfizesse nas minúcias de que faz questão.

Copie de novo o trabalho. Está muito borrado.

Substitui os professores que faltam. Isso aumenta, nos alunos, o ódio que já lhe dedicam. Tira-lhes o direito de uma horinha extra de folga. Sabe lecionar todas as matérias. Ecletismo que exerce com prazer.

Não dispensa o paletó. No bolso de cima, quatro esferográ­ficas de cores variadas. Sabe de cor os nomes de todos os alunos e suas deficiências. Arvora-se em psicólogo, querendo inventar traumas que julga possuírem os rapazes e as moças. Agora foi nomeado diretor do ginasial. A tristeza dos ginasianos é gri­tante. Promete-lhes aula extra aos sábados.

Quem se comportar mal durante a semana, tem que com­parecer sábado de manhã, para uma aula de recuperação.

Diz isso, como sempre, falando de modo que não move o lábio superior, onde se põe o bigode retilíneo e antigo, correta­mente aparado, um hífen sobre o lábio.

Hoje tomou uma medida que provoca protestos: proibiu a entrada das moças com minissaias. Considera imoral. Elas não gostam. Os rapazes odeiam ainda mais.

— Qual é?

— Pipoca é um quadrado.

Fazem protesto junto ao Diretor-Geral. Ele mantém a proi­bição. Pipoca tem carta branca. Diante do que chamou de motim, obriga o curso ginasial completo a comparecer sábado pela manhã.

Os meninos já são homens e as moças são mulheres, mas parece que ele não se apercebe disso. Entende pouco da ju­ventude. É um antigo solteirão.

Está voltando para casa. Feliz em excesso, pela manutenção da sua portaria — proibição de trajes sumários — por parte da alta direção da escola.

Vai pegar o ônibus da rua comercial do bairro. Os alunos motorizados o gozam.

— Vai pra lá?

— Vou.

— O ônibus já vem aí.

Seguem nos seus carros. Pipoca não os esquecerá. Como guarda-civil, já lhes decorou os números. Eles que esperem.

Viaja em pé. Nunca tem chance de um lugar sentado, pe­gando o ônibus em meio de linha. Leva o dinheiro da passagem já trocado, providência que julga ser obrigatória por parte de todos os passageiros. Tem um jornal sob o braço e alguns livros, como sempre. Não se separa do guarda-chuva, mesmo que o dia seja de sol. É previdente.

Mora sozinho num conjugado da Av. Copacabana, em prédio onde a maioria dos apartamentos são usados por firmas comer­ciais. A banheira sempre cheia, prevenindo-se contra uma falta de água que pode ocorrer a qualquer momento.

Entra em casa irritado.

— Bando de idiotas. Juventude perdida.

Seu ódio aos jovens é quase ponto de honra. Vinga-se neles pelos seus 50 anos mal vividos, desaproveitados. É bedel há 26 anos, sem nunca ter conseguido um lugar oficial de professor.

No fogão, como todos os dias, as panelas com a comida que a arrumadeira faz.

Requenta o feijão, frita um pouco mais o bife.

— Se os pais se preocupassem com elas, não se perderiam tão cedo — lembra das mocinhas a quem proibiu as saias curtas. — Perdidas. Irrecuperáveis. Mas comigo vão cortar uma volta.

O feijão borbulha. Despeja-o sobre o arroz frio e lhe acres­centa o bife. Não tem prazer na refeição. Faz aquilo por ne­cessidade de sobrevivência. Raspa o resto do prato na lata de lixo e põe o que usou na pia, despejando-lhe água. Não tem geladeira nem televisão. Liga o rádio na estação que programa Tchaikowsky. Apaga as luzes, pega o binóculo e vai para a janela semi-aberta, vigiar os quartos dos apartamentos fronteiros, onde moram quatro alunas da terceira série.

 

                   TELEFONEMA

Eu vou matar a minha mulher.

O detetive pensou ter ouvido errado o que lhe dizia a voz ao telefone. Pediu que repetisse.

Estou dizendo que vou matar a minha mulher repetiu a voz, calma demais, para a notícia que dava.

Quem fala? inquiriu o detetive.

Meu nome é Felinto. Acho que o senhor está desacredi­tando o que ouve, mas garanto que é verdade.

Bem.. .

Eu estou telefonando para o distrito porque resolvi matar a minha mulher. Entendeu agora?

Não era admissível o que acontecia. O detetive teve vontade de dizer que não aborrecesse, que deixasse de ser idiota, fosse cuidar de outra coisa, em vez de ficar passando trotes para o distrito.

Isso pode lhe custar caro advertiu o policial.

Não esqueça que eu avisei. Não gostaria de matar minha mulher sem que ela tivesse uma chance. A oportunidade que lhe dou é esta: avisar a polícia meia hora antes. Dentro de trinta minutos ela estará morta.

Antes de desligar, apresentou-se:

Meu nome é Felinto. Escutou?

Felinto, Felinto repetiu o detetive. — Mas por que é que o senhor...

Ele desligara.

Um colega ao lado quis saber do que se tratava. Ao tomar conhecimento se riu à beça. Achou que era brincadeira.

Mas, e se for verdade?

Se for verdade é simples. Em 30 minutos você terá, apenas, que localizar, no Rio de Janeiro, um cara chamado Felinto. Como há muitos, você reunirá aqui todos os Felintos que encontrar e fará uma pesquisa. Depois de descobrir quais os Felintos que apresentam motivos para matar a mulher, você...

O detetive concordou que era bobagem tentar qualquer coisa. Mas era evidente que acreditava no telefonema.

A noite, até aquela hora, tinha corrido calma. Seriam onze, de uma segunda-feira, dia de poucos delitos. O detetive foi ao botequim ao lado, tomar um café. Comentou com um amigo o telefonema insólito, e que não conseguia esquecer.

Deve ter transa de mulher no meio. Só um problema de marido e mulher pode gerar uma atitude assim.

A cabeça do detetive estalou. O colega notou sua palidez. Correu ao distrito e, aflito, discou o número da zona norte que sabia de cor. Aguardou um minuto. Ninguém atendeu.

Será que ela saiu?

Ficou um tempo sem saber o que fazer. Lembrou de uma amiga de Violeta, a mulher casada com quem tinha encontros vespertinos. Ligou. A amiga respondeu.

Lúcia?

Ela. Quem fala?

Paraíso. Olha...

Contou. Lúcia não sabia de Violeta. O nome do marido dela, sim, sabia: Felinto.

Desligou, lívido. Agora já localizara o Felinto que ia matar e, pior, sabia quem era a mulher que seria morta. Comunicou ao delegado.

Problema seu. Quem mandou se meter com mulher casada?

Como encontrar Violeta àquela hora? Podia ter ido ao ci­nema, perto de casa. Não dava tempo de ir ao Cine Melo, fazer suspender a sessão, procurá-la entre os espectadores...

Telefonou mais uma vez pra casa dela. Atendeu um homem.

Três zero quatro sete oito...

Quem fala? perguntou, antes que ele dissesse o número completo.

O dono da casa.

Seu nome, por favor.

Não interessa o meu nome. Quer falar com quem?

Dona Violeta, por favor.

Saiu. Quem quer falar com ela?

Desligou. Tinha 20 minutos para chegar à Penha e ficar na porta do prédio, evitando que Violeta entrasse. O delegado cedeu uma viatura. Com a sirena ligada, a RP zuniu, cantando os pneus.

O homem, do outro lado, sorria. Esperou novo telefonema, que não houve.

— Que pena... não dá mais tempo...

O homem não estava nervoso. Bateram na porta. Era a vizinha.

— Boa noite, Seu Felinto. Dona Violeta está?

— Foi ao cinema.

— Quando ela chegar o senhor pede pra ela dar uma chegada na minha casa? É urgente.

— Se for possível, ela irá, Dona Lúcia.

Ela saiu. Ele abriu a gaveta e tirou um revólver. Um Smith and Wesson, 38. Verificou se as balas estavam no tambor. Fechou o tambor com cuidado. Espalhou no sofá as fotografias que tinha, da mulher com o detetive.

Calmo como nunca, ficou sentado, arma apontada para a entrada. Dez minutos depois a porta foi aberta. Dona Violeta entrava, com um sorriso fingido. Não viu a arma, fechava a porta.

— O filme foi péssimo. Alguma novidade?

— Dona Lúcia quer falar com você, mas eu acho que não vai dar tempo.

A viatura da polícia freou, gritante, na rua. ü detetive desceu e entrou correndo no prédio. Também não dava tempo.

 

                   O ENTERRO DO ANÃO

— O anão morreu! O anão morreu!

O grito de Felisberto anunciou à rua inteira que acabava de morrer o tipo mais conhecido de todo o Grajaú.

— Quem morreu? — perguntou Seu Tadeu, morador de um sobrado, enquanto chupava a sopa com ruído extraordinário.

— O anão — disse a mulher.

— Ah, o Primo Camera? Que Deus o tenha, coitado.

Quando o velório acabou e o corpo foi levado para a Kombi funerária parada à porta da casa onde o corpo fora velado, a mulher do anão, um palmo a mais do que ele, ouviu outra vez as frases de consolo desnecessárias.

— Deus só leva quem é bom...

— Você tem que ser forte, Horácia.

Os homens da funerária, desligados do problema, segura­ram o caixão com a maior facilidade. Era um caixão de menino, só que no negro dos adultos. Pesava o quê? 30 quilos?

Dentro, vestido de cinza, Primo Camera partia para a últi­ma viagem.

Na rua, Seu Felisberto, com cara muito safada, comentou com Carlos Paulo, num tom de comediante.

— Pra que enterrar em caixão? Usava uma caixa de sapatos.

Primo Camera, em vida, tentara a tevê e o circo, pouso certo dos anões, más nunca conseguiu lugar nem numa nem noutra. Seu emprego era: carteiro. Seu nome era Geraldo, mas ninguém sabia disso, a não ser a Dona Horácia e os filhos Lúcio e Múcio, esquisitamente grandes, estranhamente normais.

A anomalia dos pais era de estranheza maior, porque o pai do anão media um metro e setenta, altura igual à da mãe, que tinha, até, um jeitão de modelo de desfile, por ser alta e muito fina. Quanto aos pais de Horácia, esses, sim, tinham problemas. A mãe, não, era crescida, mas o pai, apequenado, tinha até um monte às costas, onde irritantemente passavam a mão desconhe­cidos, achando que isso traz sorte.

O pai de Horácia, na rua, era chamado de "Berloque de Chaveiro" e, cada vez que ouvia o apelido, pulava e dava ba­nanas aos que lhe gritavam a alcunha.

Eu sou pequeno na altura, mas aqui, ó... aqui, ó... E segurava o imaginado com a mão pequena, tendo, para isto, que se curvar, pois a mão e braço acabavam um pouco abaixo do peito.

O cortejo foi formado.

A Kombi preta na frente, com Primo Camera, findo. Atrás o carro de Horácia, com os dois filhos do lado. A seguir, um Pontiac onde iam os pais do morto, chorando mais que o es­perado. Depois, um carro de praça com "Berloque de Chaveiro" e a esposa, ela chorando, de cara lambuzada. Então, os carros vários, de parentes afastados, amigos ou conhecidos e a gente toda da rua que queria acompanhar até o fim o enterro, coisa que achavam gozada.

Eu nem sabia que anão morre.

Morre. Anão não pode é morar em cobertura.

Faz mal?

Não; cansa. O dedo não alcança o botão do elevador.

Esta conversa existia no nono da fila que já andava nas ruas à procura do Caju, onde Primo Camera seria depositado.

Gente, na rua, descobria-se à passagem do cortejo. Havia os que isolavam até em caixas de fósforos, mulheres se persig­navam vendo a passagem do morto, meninos paravam o racha e, por um instante, olhavam, naquele ar inexpressivo de criança, que não dá valor à morte.

Na Rua da Cancela a Kombi estancou.

Os carros (eram 22) pararam atrás, calados, certamente esperando que se abrisse o sinal.

Mas, pelos lados do cortejo, seguiam os outros carros, in­diferentes ao fato. Sinal fechado não era.

A Kombi tinha enguiçado.

O motorista da Kombi, de terno convenientemente preto, desceu e abriu o motor, agachando-se sem graça, querendo achar o defeito que lhe punha o carro inútil, tal qual o Primo Camera, o principal ocupante.

Lúcio, o filho mais novo do falecido Geraldo (Primo Camera esclarece mais), botou a cabeça de fora.

Algum problema?

Parou respondeu o motorista, num desconsolado abrir de braços.

Parou, a Kombi parou esclareceu Lúcio aos ocupan­tes do carro: o chofer, a mãe e Múcio.

Múcio, da outra janela, virou para o carro de trás e gritou ao motorista que a Kombi tinha enguiçado.

O pai do anão abriu a porta e veio à Kombi, enquanto o aviso do enguiço seguia, de carro em carro, informando aos 22 do problema que surgira.

Que foi? perguntou Ivanildo, o pai do anão.

Não sei. Deu um treco aí, a Kombi não anda.

E aí?

E aí não anda completou o motorista, já tirando o paletó.

Mas tem que andar. Isto é um absurdo. Meu filho está aí dentro. Temos que ir pro cemitério. O enterro é às cinco.

Eu sei, amigão, mas pifou.

Ivanildo, o pai do anão, passou pelo carro da viúva e enfiou a cabeça pelo vidro dianteiro.

Mandaram uma Kombi de merda, desculpe o termo. Dito isto, voltou ao carro onde a mulher esperava notícias do acontecido.

Quebrou mesmo, Ivanildo?

Em vez de mandarem um carro direito, mandam isso. Do carro a seguir, onde estavam os pais de Horácia, che­garam os ocupantes.

Chato, isso.

Está vendo? Meu filho, até na morte, tem que passar vexame. Tá certo isso? Não tá! Tá certo isso? Não tá!

Já havia gente em volta. Os mais curiosos, pondo-se de pontas de pé, vasculhavam o interior da Kombi, querendo ver o caixão, descobrir quem era o morto.

É um caixãozinho assim disse um dos que olhavam.

Uma criança falou, triste, outra senhora, transeunte.

Só que o caixão é preto estranhou o descobridor.

O motorista remexia em coisas do motor. Apertava uma, batia noutra, bulia num fiozinho, calcava o dedo nas velas, torcia uma coisa aqui, reapertava parafusos, fazia o que era possível.

Vê se pega, Mirandinha... — ordenava ao auxiliar.

A Kombi gemia um nhém-nhém-nhém-nhém enfadonho, mas do nhém-nhém-nhém não saía.

Dona Horácia levantou-se e quis ver de perto o caso.

Uma anã! descobriu um mulato.

Risos pelas calçadas, prantos superados nos carros, suores nas mãos e na testa do motorista ajoelhado, pedindo perdão à Kombi.

Dona Horácia, avermelhada, pequeno dedo em riste, avisava irritada, com uma voz de querubim que diminuía a ênfase.

Não vou pagar um centavo. Estou avisando em tempo. Meu dinheiro vocês não vão ver.

Eu tenho culpa, dona? A Kombi enguiçou, né?

Não enguiçasse. Nunca vi carro fúnebre enguiçar.

Máquina é máquina.

Vá à merda.

E voltou ao seu assento, entre os filhos Lúcio e Múcio, os dois muito envergonhados.

Uma voz de um sobrado próximo gritou coisa parecida com "leva de bicicleta", o que irritou profundamente familiares e amigos.

De bicicleta leva a tua mãe, veado! berrou Seu Belisário, num ato de grande solidariedade para com o Primo Camera, aliás assim chamado por apelido que Belisário lhe pusera e do que já se arrependia.

Um crioulo muito forte, de olho mais pro vermelho, encostou a bicicleta, querendo dar uma mão ao motorista da Kombi.

Já viu o carburador? aventou, aproximando-se.

Eu não manjo nada disso confessou o motorista.

Os cheiros de cravo e morte já se faziam sentir.

O pai do anão fervia.

Uma esculhambação! Esse enguiço não existe. Não sou­beram escolher uma funerária decente.

A sogra do anão gemia.

Sacanagem... sacanagem... Pobrezinho do meu filho. Tá certo isso? Não tá. Tá certo isso? não tá.

Já eram mais de quatro e meia.

É melhor ligar pra funerária, pedindo outro carro.

Não se soube de quem partira a idéia, mas era a solução certa. Do armazém telefonaram. Quem ligou foi Seu Tadeu, o mesmo que voltou ao grupo formado em volta da Kombi, muito desesperançado.

Vão mandar?

Ninguém atende. Esperei chamar 20 vezes. Ninguém atende.

É que hoje é feriado lembrou Mirandinha, ajudante do chofer, já preenchendo um volante da Loteria Esportiva.

E o que é que tem ser feriado? Não se morre em feriado, não? Essa funerária é uma bosta.

Não tenho nada com isso, doutor. Eu sou funcionário.

Então, arruma esse carro, em vez de ficar jogando. Desrespeito ao falecido.

Um guarda desviava o trânsito que passava ao lado. Dos carros vinham piadas.

No botequim, os amigos, num devorar de batidas, começa­vam a se desinteressar do enterro do anão.

Esse enterrinho já era.

Vamos dar os pêsames aqui e vamos se mandar de leve.

Junto aos carros que avançavam pelo trânsito desviado, o pai do anão percebeu que passava gente conhecida.

Alá. Tem gente indo embora.

Fica calmo, Ivanildo.

Estão indo embora. Olha pra trás. Vê quantos carros tem?

A mulher contou 14, o que significava que 8 já tinham mesmo abandonado o cortejo.

O cemitério vai fechar lembrou alguém de avisar.

Havia esse perigo. O pai do anão, expedito, achou por bem mandar um carro ao campo-santo avisar o ocorrido, pedir que esperassem o corpo do Primo Camera. Gustavinho ofereceu-se, vendo nisso uma ótima saída para não ficar ali, esperando que a Kombi se resolvesse a andar, ouvindo as muitas chacotas, participante que era do que achava um desastre.

Começava a escurecer. Um friozinho incomodava, fazendo com que os acompanhantes entrassem nos carros, subissem os vidros.

Dá um empurrãozinho, pra ver se pega implorou o motorista.

Horácia, a anã viúva, foi contra, mas Lúcio e Múcio em­purraram, com a ajuda dos poucos que ainda ficavam. A Kombi corcoveou, ameaçou, enganou, mas nada. No cortejo só seis carros.

Belisário, muito sério, tentando evitar o bafo com a mão discretamente cobrindo os lábios, apresentou-se na janela do carro de Dona Horácia.

A senhora vai desculpar, mas eu pego às seis na Light...

Saiu.

Tá de porre disse Múcio pra Lúcio, levando o dedo ao nariz.

O motorista fez parar um táxi, de onde um português desceu para ajudar.

— Não xerá a bomba d'água? — perguntou com sotaque de Vizeu.

— Que água? Isso é uma Kombi. Não usa água, galego.

O português, irritado, entrou no seu Chevrolet, ainda gri­tando ao sair:

— Pega exa Kombi e enfia...

Sumiu na esquina.

De repente, nem mais os curiosos. O enguiço da Kombi já dera o que tinha de dar. Se fosse possível olhar de uma altura de 50 metros, a bordo de um helicóptero, o que se veria era uma Kombi, com 3 carros parados atrás. Junto à Kombi, o motorista, olhando, desconsoladamente, o capô aberto, mos­trando o motor inútil.

Mirandinha, o ajudante, cochilava na boleia.

Lúcio e Múcio, disfarçando, tomavam uma cervejinha no "Bar São Benedito".

Dona Horácia, só, no carro, rezava com um fervor que merecia a atenção da santa a quem implorava.

Ivanildo, o pai do morto, foi à farmácia um instante.

— Posso usar o banheiro?

Voltou, explicando à esposa.

— Esse troço me estragou. Tou com uma caganeira que não está no gibi. Você sabe como eu sou. Todo aborrecimento me reflete no intestino.

Cinco e dez acharam o defeito! Falta de gasolina.

O bujão de plástico despejou dez litros no tanque, e a Kombi roncou o motor. Gritos e vivas na rua, palmas vinham dos sobrados.

Saiu, afinal, após um tranco, acompanhada por dois carros, rumo ao cemitério onde os coveiros, irritados, ao ver descer o caixão guardando Primo Camera, ainda cometeram o pecado de fazer um comentário.

— Esperar tanto por isso.

O enterro correu sem lágrimas e sem a presença de Ivanildo que, à porta do cemitério, acometido por outra cólica, ficou mesmo no posto de gasolina, rezando e cagando, cagando e rezando...

 

                   EXCESSO DE PROVAS

— Trim... Trim... Trim...

Por mais que ele insistisse, a porta do 604 não se abrh. E há muito tempo que ele ali estava a apertar a campainha que, estranhamente, ainda não se tinha quebrado.

— Trim... Trimmmm...

Fazia uma pausa, tentando adivinhar, com o ouvido colado à porta, algum movimento lá por dentro e, após perceber que mais este toque tinha sido em vão, voltava a calcar o dedo na campainha, com crescente violência.

— Trimmmmm... Trimmmmm... Trimmmmmmmni...

Tinha a barba por fazer, os cabelos despenteados. A maleta ao lado mostrava que voltava de uma viagem. Isto igualmente insinuava a gravata afrouxada no colarinho, deixando aparecer, junto ao pescoço, os fios longos do cabelo do peito.

— Trim... trim...

Abriam-se, vez por outra, as portas de serviço do 601 e do 602, de onde surgiam caras de empregadas e patroas, inco­modadas pelo irritante grito da campainha que, realmente, passava demais da conta.

E, ao toque inútil, não poucas vezes juntou socos — inicial­mente discretos, na porta, além de pancadas com o pé. Primeiro de bico, depois com o calcanhar, por comodismo e dor nos dedos.

O elevador parou no sexto andar, e a porta abriu-se. O homem voltou-se na esperança de que do elevador saísse... Não era. Era Normandes, roupa de praia, esteira enrolada sob o braço, óculos escuros no alto da cabeça, sandálias japonesas.

O homem esqueceu Normandes e voltou à campainha.

Trimmm — era só o que a campainha dizia ao ser acionada.

— Acho que ela não está — disse Normandes ao passar pelo homem, enquanto seguia e entrava no 603, seu apartamento.

O homem da campainha acompanhou Normandes com o olhar até o momento em que a porta do 603 fechou-se, tirando Normandes da sua vista. Então, ele abandonou a campainha do 604 e tocou a do 603. O próprio Normandes abriu.

— Pois não.

— Eu sou... — e apontou a porta do 604, identificando-se como o cara a quem Normandes acabara de falar.

— Sim, eu sei.

— O senhor, quando passou, disse que ela saiu.

— Não — corrigiu Normandes. — Eu disse "acho" que ela saiu.

Era patente que Normandes queria tirar o corpo de qualquer mal-entendido, razão pela qual frisara o acho.

— Ah — fez o homem, num desalento muito grande, en­quanto lançava um olhar triste em direção à porta fechada do 604.

Normandes o observou, enquanto ele observava a porta. Na sala, o cuco saiu, avisando que passava meia hora de uma hora.

— Imagino é que esteja em casa e não queira abrir a porta — aventou o desconhecido.

— Não acredito. Ela deve estar fora mesmo.

— É... Deve ter saído.

— Pois é — pensou finalizar Normandes.

— Posso esperar por ela aqui?

— Bem...

Normandes morava só e, por ter que tomar banho e sair para almoçar (aos domingos não tinha empregada), não achou lá muito indicado que concordasse com a presença daquele des­conhecido no seu apartamento, durante o tempo em que estivesse no chuveiro. O homem da campainha percebeu-lhe o pensamento.

— Eu sou o marido dela — explicou, num esclarecimento que provocou certo espanto a Normandes.

— Marido? E o senhor esqueceu a chave?

— Não, é que — o homem atrapalhou-se — é que o certo seria dizer "noivo".

— Entendo — disse Normandes sem nada entender. — O senhor é noivo com direitos de marido, ó isso?

— Mais ou menos. Eu, por mim, me considero mais noivo do que marido, apesar da verdade ser o oposto. É que nós dois, eu e ela, já há algum tempo...

Normandes não quis detalhes. Preferiu deixá-lo entrar. Mes­mo porque as madames do 601 e 602 já fingiam esperar o ele­vador com os ouvidos estendidos à conversa dos dois. Normandes, por maldade, preferiu ouvir os detalhes sozinho.

O homem entrou, depositou a maleta junto ao sofá e es­tendeu a mão, apresentando-se.

Ubaldino, muito prazer.

— Meu nome é Normandes. Sente-se, por favor.

Ele fez.

Normandes abriu a janela, e a luz entrou com força. Morava do lado do sol. O homem da campainha mudou de lugar no sofá. O sol o encandeava. Era preciso achar um modo de reatar a conversa, e isso era o que Normandes procurava. Ubaldino notou esta ansiedade e lhe ofereceu o prato pedido.

— Somos noivos oficialmente. Mas já... já... — procurou as palavras que pudessem explicar o que Normandes já sabia desde a soleira da porta.

— E está de chegada...? — instigou Normandes, enquanto servia Old Eight em dois copos onde se liam os nomes das doses (for ladies, for men, for horses. Serviu for horses).

Ubaldino misturou o gelo com o indicador e lá o deixou um pouco, tentando, assim adormecê-lo. Doía-lhe muito o dedo.

— Estou trabalhando em Vitória — começou a explicar — e tenho recebido muitas cartas contando certas coisinhas da minha... minha — hesitou mais do que o lógico — minha noiva.

— Diga "sua senhora" que eu entendo — Normandes foi gentil.

— Obrigado. Sabe como é. Cartas contando fatos que são incontestáveis. Detalhes, horários. Até fotografias me mandam, o senhor acredita?

— Pode me chamar de você, Ubaldino.

— Você vai ver — disse Ubaldino aceitando o oferecimento.

Tirou do bolso do paletó uma carteira e dela apanhou as fotos onde a noiva aparecia com um homem ao lado. As fotos não eram nítidas. Amadoristicamente colhidas. De longe, algu­mas delas. Mas o suficientemente claras para que Normandes reconhecesse sua vizinha do 604. Dava até para perceber algo mais.

— Estou notando, Ubaldino, é que o homem...

— Não é o mesmo — reconheceu o noivo. — Percebe?

— Percebo — murmurou Normandes muito atento no exa­me das fotos.

— É sempre um homem diferente — completou Ubaldino, chupando o dedo gelado e colocando o outro indicador no gelo. — Isso é muito pior, não acha? Se ela me tivesse trocado por outro, eu entenderia. Bolas. Deixou de gostar de mim, está gostando de Fulano ou de Sicrano, certo. Mas a variedade é insu­portável.

— É. Pelas fotos, ela está gostando de Fulano, Sicrano, Beltrano, Zé, João... — Normandes foi perverso.

— Por isso é que eu digo. A variedade é constrangedora; é sem-vergonhice. Ou você não acha?

— Acho — concordou Normandes, enquanto devolvia as fotos ao homem, muito feliz por não se ter visto em nenhuma delas. — E o senhor, desculpe, e você veio ao Rio...

— Vim matá-la.

Normandes entendeu, mas quis que tivesse ouvido errado.

— Você disse... — pediu bis.

— Vim matá-la. Matá-la! — e fez um gesto com o indi­cador inchado, imitando o puxar de um gatilho e afastando o paletó para que Normandes visse o Taurus que trazia ao cinto.

Normandes nunca se imaginara nesta situação. Reabasteceu o copo do calculista criminoso, enquanto buscava um modo de contornar aquela situação.

— Mas qual a vantagem de matar?

— Nenhuma. Eu mato e depois vou preso — falou o homem.

— E qual é o seu lucro? Que vantagem você leva nessa transa? Mata a moça e pega uma cadeia por dez ou doze anos, sei lá. Tem graça, isso?

— Você acha, então, que eu devo perdoar uma mulher que me faz isso?

Ao dizer isso, mostrava, abertas em leque, as várias fotografias.

— Não digo perdoar porque, no seu caso, eu não sei se perdoaria, mas, sei lá... esquecer. Deixa pra lá.

— Você, no meu lugar, deixaria pra lá?

— Acho que sim.

— Questão de temperamento. Eu admito que haja homens que perdoem, em situação igual. Há os homens como você que simplesmente deixam pra lá e não se fala mais nisso. Mas eu, Ubaldino Fragoso Batista, tenho outro temperamento — e arru­mou o Taurus melhor.

— Tem razão — concordou Normandes. -— Ninguém deve forçar a barra. Só que...

Escutaram nitidamente que era batida a porta do aparta­mento ao lado — o 604, o dela. Calaram-se automaticamente.

— É ela — disse o homem, afastando o copo de uísque e segurando a maleta.

Normandes, lívido, não conseguiu articular uma frase. Ubal­dino estendeu a mão numa despedida silenciosa. Normandes apertou-lhe a mão, com força de emoção. Ubaldino agradeceu o uísque, a hospitalidade e saiu.

À noite, quando passou de braços com ela, Ubaldino fingiu não ver Normandes que, na portaria, conversava com o zelador. Mas levava as orelhas muito vermelhas, o homem da campainha.

 

                   BECO

A culpa não era dele, mas o patrão não quis ouvir explicações.

- Está despedido!

Isto foi há três meses. Daí pra cá, tentou o que pôde uma nova colocação. Comprava o jornal às cinco e saía tentando uma vaga de motorista. Sempre chegava depois do lugar já tomado. Quando não, exigiam referências que não tinha.

Usou o dinheiro da caderneta de poupança e vendeu o relógio, para alimentar a família. Heloísa estimulava-o.

— Quem sabe amanhã.. .

Amanhã era igual. Quantos amanhãs teria que esperar? Estava desesperado, quando o convidaram para dirigir o auto­móvel. Sabia do erro, do perigo, das possibilidades de prisão, mas aceitou. Viu aí a saída do beco.

— Eu te aviso no dia.

Passou a ter, em casa, comportamento diferente. Ficou ner­voso, excitado, sem conseguir a naturalidade antiga.

— Que é que você tem?

— Eu?

— É. Está nervoso.

— Nada. Não tenho nada.

E saía da sala para cortar o assunto no nascedouro.

O carro era um Volkswagen verde, como milhares. A bala da polícia o atingiu no estômago.

— Pé embaixo.

Achou que voava, quando partiu da porta do banco à pro­cura da estrada. O abdômen queimava, um suor frio banhava-lhe a testa.

— Acho que não agüento...

— Pé embaixo e cala a boca. Quem mandou descer do carro?

Com ele, mais três. Tinham-lhe prometido a quarta parte do dinheiro. Queria poder calcular a quanto iria a sua parcela, mas as dores eram grandes demais, a cara parecia torrar. Sentiu sangue na boca. Achou que explodiria.

— Não posso continuar.

Entravam na Rio—São Paulo. Antes de Nova Iguaçu parou o carro no acostamento.

— Que idéia é essa?

— Não agüento... não agüento...

Jogaram-no do carro e sumiram.

Tinha chovido e o asfalto molhou sua cara. Sentiu grande conforto no frio que a água lhe pôs no rosto. Sabia que podia levantar, mas preferiu ficar deitado, cara no chão, onde um rio de sangue começava a nascer, caindo na terra depois do acos­tamento.

Roncavam forte os motores que passavam. Ele dava as costas para a estrada como dera as costas para a vida desde o momento em que aceitara o convite.

 

— Vinte e cinco por cento.

— Você vai apenas dirigir: o carro, deixa comigo que eu puxo um, no dia.

— Não saia do carro.

— Não saia do carro.

— Não saia.

— Fique no carro, com o motor ligado.

 

O guarda que apareceu na esquina foi que o fez saltar. Achou que poderia haver problemas com a chegada da polícia. Se não fosse aquele guarda...

Apertou a barriga e achou que sentiu o contato da bala sob a pele. Cuspiu vermelho. Arrastou-se para o mato e deitou de cara na terra. Doía muito, doía tudo. Admitiu morrer ali e quase desejou que assim fosse. Com esforço, levantou a cabeça e viu gente entrando na padaria 300 metros à frente. A mão se confundia com a camisa, com o sangue. Quis levantar-se mas as pernas não obedeceram.

— Quem sabe amanhã...

O otimismo da esposa chegou-lhe para aumentar o deses­pero. Considerou que lhe tinha faltado paciência.

— Quem sabe amanhã...

Rezou. Pediu a Deus que lhe desse um amanhã. Um, pelo menos. Chegou à conclusão de que nada mais lhe restava que hoje. Hoje. Hoje, apenas. A dormência da perna preocupou-o ainda mais. Escutou risadas. Eram meninos que passavam à procura de um campo de futebol. Teve vontade de gritar por socorro. Prendeu a respiração para que não dessem conta de que ali havia um homem. Encolhendo-se, comprimindo o estô­mago. Assim ficou até o anoitecer total. Apoiou-se num poste de luz e cobriu com o paletó a camisa encarnada de sangue. Juntou o resto das forças, simulando uma naturalidade impossível de ser conseguida.

— Um táxi. Preciso de um táxi...

Andou cambaleante para o lado oposto à estrada. Via as coisas com dificuldade. Como se lhe tivessem posto uma cortina de plástico à frente.

Passou um soldado abraçado à mulata. Abaixou-se, fingindo abotoar o sapato. Não foi notado. Levantou-se com esforço so­bre-humano e caminhou o que calculou terem sido 100 metros. Na boca, um gosto acre, uma coisa pegajosa que o incomodava mais do que a bala no bucho. Não tinha destino. Como não tinha futuro — adivinhava.

Deu numa rua de casas de porta e janela. Conseguiu passar despercebido. A bala que o pegara parecia crescer pelo ardor que provocava. O sangue agora já manchava o paletó cinzento; mas era noite, ninguém notaria. Um cinema anunciava Giuliano Gema. Pensou em entrar, mas a dor aumentava. Doía-lhe a barriga, fervia-lhe a cabeça, ardia-lhe o peito, desagradava aquela coisa quente que lhe enchia a boca, de minuto a minuto. Ele cuspia.

— Quem sabe amanhã...

E eles, onde estariam? Em Aparecida do Norte, como tinham planejado, ou já teriam tido a sorte de terem sido apanhados?

— Preciso de um carro...

E aí? Para onde iria? Que explicação daria no hospital? A mulher o imaginava procurando emprego.

Escorou-se no portão de uma casa verde. Percebeu que o sangue corria pelas pernas, tingia os sapatos. Limpou-os na calça o que foi possível. Era uma dor de enlouquecer. Tivesse uma faca e arrancaria o estômago, com bala, com tudo.

Na esquina avistou o carro. Apertou os olhos, procurando descobrir que carro era aquele. Era um carro preto e branco, com uma luz vermelha na capota. Mesmo assim, ele gritou.

 

                   A MOÇA DA VILA

"Vila Santa Cecília" eram as palavras que ocupavam, com letras góticas, o alto do arco que servia de entrada para a vila de 12 casas de porta e janela — seis de cada lado — onde moravam famílias pobres, porém honradas. Não ficava num su­búrbio, mas numa travessa da Rua do Catete, perto do Palácio. Não era incomum um garoto chegar correndo com a notícia.

Paiê. Vi o Presidente.

— O Dr. Getúlio? — desacreditava o pai. — Viu mesmo?

— Na janela do Palácio. Tava de pijama.

Se ver Presidente já era uma coisa que pouca gente no Rio tinha oportunidade, ainda mais de pijama.

Quando o carro preto passava, com batedores à frente, quem viajava nos carros ou nos bondes abaixava a cabeça numa tentativa de descobrir o Presidente no banco traseiro e nem sem­pre conseguia essa glória. E o menino da vila, voltando do ar­mazém com um quilo de açúcar, vira-o. E de pijama!

Seu Olegário, um dos moradores da "Vila Santa Cecília", motorneiro à beira da aposentadoria, fazia disso um bicho de sete cabeças.

— Viu mesmo?

— De pijama — sublinhava o pai do menino a quem Deus dera a subida honra de ser testemunha da intimidade presidencial.

— Mentira.

— De pijama, colega! De terno, qualquer um pode ter visto. Até eu já vi.

— Eu também vi — incluiu-se Olegário.

— Mas de pijama só quem viu foi o meu filho — vangloria­va-se. — De pijama, só ele. Olegarinho! — gritava. — Vem contar. Como foi que tu viu o Dr. Getúlio?

E o garoto recontava o que contara mil vezes, acrescentando, como já se habituara, qualquer coisinha no final.

— De pijama, na janela. Fazendo ginástica, como a gente faz na escola. Abrindo e fechando os braços, assim. Ginástica, sabe, moço?

Na casa 4 da vila morava Seu Pacheco, um homem mais antigo do que essa estória. Ainda usava colarinho engomado, postiço, que mandava lavar e engomar numa pequena loja da Galeria Cruzeiro. Trabalhava na Caixa Econômica fazia 19 anos. Qual a sua ocupação, ninguém sabia, mas, pela importância que se dava, calculava-se que era o homem que dizia "sim" ou "não" aos empréstimos solicitados. Creio que nem a mulher tinha conhe­cimento do seu serviço real. Se a própria mulher ignorava, muito menos sabiam seus filhos, que eram cinco: quatro homens e uma moça.

Esta, a moça da vila, que dá nome à estória.

 

Maria da Glória tinha 18 anos. Era professora primária e ensinava advérbios e conjunções, numa escola pública de La­ranjeiras. Morena, com a cor do sapoti e o gosto da cor. O corpo não ficava nada a dever àquele da moça sentada numa motoci­cleta que enfeitava a folhinha que o dono do açougue não se cansava de olhar, com pensamentos delicadamente malévolos.

Na folhinha estava o corpo de uma moça de Hollywood; em Maria da Glória, um corpo ao alcance não apenas dos olhos, mas, quem sabe... Tudo dependia de uma conversa. O homem do açougue não era dono. Viria a ser, depois que o pai morresse e ele, filho do dono, passasse a dono real das alcatras e das rabadas.

Tinha 26 anos, uma sombra azulada de barba, como os portugueses finos, e um jeito que, com boa vontade, chegava a lembrar Tyrone Power em Sangue e Areia.

— Me dá um quilo de contrafilé, Seu Nequinho — co­mandava Maria da Glória, na ida diária ao açougue.

— Prontinho. Pesado com carinho.

— Quanto é?

— Nada. Você pediu que eu desse, estou dando. É presente. Presentinho pra você — falava Nequinho, mexendo muito com a boca, numa tentativa de charme.

Oh, Seu Nequinho, deixa de coisa — pedia sem von­tade a moça da vila.

— Deixar de coisa, como? — acrescentava Nequinho, já de olhar prometendo pecado. — Eu quero é começar...

De início, Maria da Glória levou na brincadeira. Mas Ne­quinho não se incomodava. Um dia, ela iria entender que as intenções dele eram as melhores. Ou não seriam? Tinha que insistir, persistir, incomodar. Dizia, sempre, uma frase:

— De uma boa conversa ninguém escapa.

Tenta de cá, busca de lá, procura daqui, insiste dali, joga indiretas hoje, concede contrafilé amanhã, convida agora, insiste depois, propõe uma, propõe duas, um dia deu pé.

Marcaram um passeio a Paquetá, de onde Maria da Glória, a moça da vila, voltou mulher.

Acontecesse isto hoje, talvez desse para ser contornado. — Mas era 1951. E, para Seu Pacheco, 1951 ainda cheirava a trinta e poucos. Basta que se diga que ainda contava lances da revo­lução paulista como um fato acontecido ontem.

Maria da Glória contou para a mãe, que mãe é para essas coisas. Também e principalmente.

— Minha filha, o que que você foi fazer?

— Agora está feito — resumiu Maria da Glória.

— Tá feito, tá feito — resmungou a futura vovó — é só o que você diz. E quando seu pai souber? Ele te mata de pancada.

— Mas meu pai não vai saber.

— Quem disse?

— Eu que tou dizendo.

— O jeito é você casar.

— Casar, eu não caso.

— E por que não?

— Só caso com um homem que eu goste.

Aí é que a mãe não entendia mais nada. Se ela não gostava do Nequinho, como foi que deixou que ele...? E se não foi por amor, então por que foi que ela...? E se era só brincadeira, como é que...?

— Essas coisas acontecem, mãe — falou Maria da Glória, com uma tranqüilidade que merecia o tapa que a mãe ameaçou.

— Acontecem, sim, mas não com filha minha.

Uma filha dela não era de se levar em conta. O diabo é que tinha acontecido com uma filha do Seu Pacheco, provável proprietário da Caixa Econômica Federal do Rio de Janeiro.

— Quem é que já sabe — quis saber a mãe, numa aflição compreensível. Era 1951.

— Nós três, mãe.

— Nós três, quem? Eu, você e quem mais? Quem é mais que sabe dessa desgraça, menina?

— Nequinho, né?

Claro que Nequinho sabia. Antes de D. Guiomar, inclusive. Sabia e temia; tanto, que contou ao pai cardíaco.

— Pai, estou perdido. Sabe a Maria da Glória? Aquela moça da "Vila Santa Cecília"?

— Sei. Que é que tem?

— Foi comigo domingo a Paquetá e...

— E o quê? — indagou o pai, mostrando, pela total falta de inteligência, que se morresse não faria muita falta ao mundo.

— E aí eu... entendeu?

— Você o quê, Nequinho? — redargüiu o pai, pondo em néon sua burrice.

— Executei.

O pai sentou na banqueta de dividir o boi. Sentado, ficava devendo, na altura.

— Tirou? — perguntou, lacônico.

— Os três — respondeu, safado.

O pai de Nequinho, a quem chamavam no bairro de "Me­tade", andou de um lado para o outro, do boi ao porco, seguidas vezes, antes de chegar à conclusão.

— Você vai pra Minas.

— Pra quê?

— Pra não casar. Ou você quer casar com ela?

— Ninguém tá falando em casar.

— Ninguém aqui em casa. Você pensa que Seu Pacheco... ela não é filha de Seu Pacheco?

— É, acho que é.

— Acha, uma ova. Você sabe que é. Você pensa que Seu Pacheco...? Você vai pra Minas e, qualquer coisa, eu nego. Nego até morrer.

— Pois pode tirar Minas da idéia, que eu não vou — exclamou Nequinho, já meio arrependido de ter feito o pai de confidente.

— Não vai? Então, casa. Pode preparar seu enxovalzinho, porque do altar você não escapa.

Realmente, à primeira vista, não havia outra solução: casar ou fugir. A não ser que Maria da Glória — moça muito evoluída e compreensiva até demais — tivesse algo melhor a sugerir.

— Mamãe, vou para os Estados Unidos.

— Pronto. Além do mais, ficou maluca. Como é que você vai pros Estados Unidos? Você pensa que seu pai é o dono do Lóide? Pensa que ele pode pagar uma passagem, te dar e acabou?

— Já resolvi. Vou pros Estados Unidos.

— Eu posso saber com que roupa?

— Não sei. De que jeito, não sei, mas eu vou, eu vou.

Pessoa alguma ficou sabendo o jeito que deu. Mas antes que a barriguinha se fizesse notar, Maria da Glória tinha passa­porte, passagem, alguns dólares e as malas arrumadas.

Seu Pacheco aceitou a idéia da filha ir para aquela "terra de gente louca", graças à invejável catequese de D. Guiomar.

Maria da Glória tinha que agradecer à mãe não apenas a compreensão pela desgraça, mas o auxílio enorme para o con­sentimento do pai. Iria, mesmo sem o "sim" do Seu Pacheco, mas assim, com o beneplácito dele, era melhor.

E foi de avião.

A "Vila Santa Cecília", em peso, compareceu ao bota-fora, no aeroporto. E também foram duas pessoas do "Açougue Modelo".

 

Seu Pacheco recebia duas cartas por mês. Lia-as no banheiro para que ninguém o visse chorar. As cartas contavam apenas novidades da terra. Dizia dos aparelhos elétricos, das máquinas formidáveis, do conforto excepcional, das majestosas estradas de alta velocidade, dos filmes que ela já entendia (já falava inglês) e dos teatros onde "você nem pode calcular quanta coisa divina apresentam". Falava da Broadway.

— "Comparada à Broadway, a Cinelândia é um deserto" — escrevia numa das cartas, o que fez Seu Pacheco calcular a claridade que havia, pois em 1951 a Cinelândia era a Broadway do Brasil.

— Deve ser dia.

— Só pode ser! — concordava D. Guiomar, preparando o guisado. — Não foram eles que inventaram a luz, Pacheco? Luz, lá, ninguém paga. Eles inventaram a luz, a luz, pra eles, é de graça.

— Mas você já notou uma coisa? Maria da Glória fala de tudo, mas não fala dela.

— Ora, Pacheco — desconversava a mãe da ex-moça — não fala porque não tem o que falar. Ou você quer que a me­nina invente que é artista de cinema? Você tem cada idéia, Pa­checo! Maria da Glória ser artista.

Seu Pacheco bem que já tinha admitido esta hipótese: a filha nas telas. Não estava na terra onde se fazem filmes? Não havia nada de espantar se, um dia, na rua, um homem do cinema olhasse para a filha...

Nas vezes em que ia ao Politeama ou ao São Luís, quando era filme passado em Nova Iorque, ele perdia o enredo, a tentar descobrir, no meio dos transeuntes, a figura da filha.

Capaz dela estar por aí catucava D. Guiomar, sem saber que há muito ela procurava também descobrir a filha no povo da rua, que o filme ia mostrando.

Acho que não respondia da boca pra fora. Achava que não, mas o fato é que desejava vê-la ali ainda mais do que o marido. Por dentro, tinha certeza de que ali a filha nunca seria vista. A não ser que fosse cena noturna.

 

Primeiro chegou a carta em que Maria da Glória contava do desejo de voltar. Depois veio outra em que ela falava que não suportava mais a saudade. A terceira já trazia a data da chegada.

No dia em que ela ia retornar, a "Vila Santa Cecília" botou roupa de festa. Seu Pacheco, fugindo ao padrão de economia em que pautava seus gestos, mandou até fazer um terno de S-120, no "London Taylor's".

O irmão mais velho, casado e pai de dois meninos, que já não morava na vila, mas num quarto-e-sala, no Rio Comprido, compareceu para a recepção.

Chegou sem os filhos. D. Guiomar intrigou-se.

Por que não trouxe meus netos?

Porque não.

Ela entendeu a curta resposta.

O dono do botequim emprestou o carro que, dirigido pelo filho do seu Olegário (o que vira Dr. Getúlio de pijama), con­duziu a família ao cais do porto.

Seu Pacheco ficava na ponta dos pés, querendo descobrir a filha no convés. Lembrou, por um segundo, do tempo em que procurava descobri-la na multidão, nos filmes.

Ali, perto do padre gritou uma voz.

Não é ela. A não ser que tenha engordado contestou outra voz.

Lá! aponta a D. Guiomar. Lá, junto do co­mandante.

Já vi. Está de vestido branco e chapéu afirmou o filho do Seu Olegário, homem que se vira o Dr. Getúlio na janela, por que não veria Maria da Glória no convés?

Onde? perguntava sem parar Seu Pacheco. Onde, que só eu não vejo?

Perto da escada, papai indicou o irmão mais velho, sem o menor entusiasmo.

Ah, já vi. É ela, sim. Está dando adeus.

E todos os braços se ergueram no aceno de boas-vindas. D. Guiomar agitava o lenço o mesmo que usava para aparar as lágrimas que insistiam em cair. Seu Pacheco desa­botoou o paletó, para que a filha visse que ele já usava gravata colorida.

Maria da Glória gritava de lá, a vila gritava daqui, e os gritos caíam no mar onde o navio deslizava lerdamente, na atracação. Desceram a escada, e Maria da Glória não chegou para os abraços.

Está a mesma coisa.

Como vai, minha filha?

Glorinha, é verdade que lá tudo que a gente ganha vai pro Governo?

Trouxe o meu gravador?

E o rádio?

O que foi que você trouxe?

Quantas malas?

Você viu o Marlon Brando?

Como é a televisão colorida?

Maria da Glória não disse uma palavra do porto até a vila. Não havia tempo de responder às perguntas que se sucediam, num metralhar histérico e incontrolável. Ela apenas segurava a mão da mãe, num aperto tão forte que contava a verdade.

Até menininho de dois anos fala inglês, não é?

Tu sabe falar inglês, mesmo?

Fala ai, pra gente ver.

E a moda?

Por que você veio de chapéu?

Não é verdade que lá só se come cachorro-quente?

Quando o carro parou na entrada da vila, parecia que era um deputado quem estava chegando. O povo fez um corredor por onde ela passou sob palmas e perguntas.

Lá faz frio?

Você pisou na neve?

Cinema lá também tem letreiro?

Veio pra voltar ou veio de vez?

Ela entrou em casa no silêncio em que vinha. Sentou na poltrona da sala sem notar que o estofamento tinha sido mudado, e, de repente, como se todos tivessem combinado, na casa 4 da vila só estava a família. Seu Pacheco, de terno novo, D. Guiomar de lenço nos olhos e os 4 irmãos: 3 com um sorriso de esperança e o mais velho sentado de costas descascando uma tangerina. Seu Pacheco foi quem quebrou o silêncio.

Glorinha, você, nas suas cartas tá tudo guardado na gaveta da sua mãe nunca disse o que era que fazia lá. Você era o quê, menina?

Maria da Glória olhou para o irmão mais velho, que se levantou em direção à cozinha; depois passou o olhar pela mãe, que lhe sorriu a compreensão materna; espiou os três irmãos, que se afligiam de expectativa pelos presentes e, por fim, encarou o pai.

Eu trouxe o gravador, Julinho. E trouxe o rádio japonês, também, José. Pra você, Mário, eu trouxe 5 discos de música de juventude. Trouxe uma torradeira pra mamãe. Uma torradeira que a torrada pula, quando está pronta. E pro senhor, papai, sabe o que eu trouxe? Um relógio que marca a data.

Como é? perguntou o irmão com cabelo de recruta.

Estou dizendo. Tem os ponteiros, que marcam as horas, e, num canto, um quadradinho que marca o dia. O dia que for o relógio marca. Deixa abrir as malas que eu mostro.

Mas você não me respondeu insistiu Seu Pacheco. Você lá era o quê, Glorinha?

Foi D. Guiomar quem respondeu.

Modelo, Pacheco. Eu nunca disse, porque podia ser que você não gostasse. Glorinha era modelo.

Não gostar por quê? É uma profissão muito decente!

E repetia: "muito decente, muito decente", já agora abrindo os presentes que a filha trouxera.

 

                   A MUDA

O pai, homem aquém de remediado, morrera atropelado no aterro do Flamengo.

A mãe, viúva, ficou pra tomar conta do estudo e, muito mais, do proceder das filhas que cresceram em despudor, depois do pai sumido.

Teresa, a mais novinha, passara dos dezoito anos há coisa de três semanas; Cristina, mais morena, pele curtida ao sol do Castelinho, freqüentadora assídua dos bares do Leblon, eterna viajante de noites mal dormidas, fizera 20 anos no domingo de Páscoa. A outra era Maria Auxiliadora, de honra entregue a um moço de vasta cabeleira, dono de um Porsche, eterno vencedor na Curva do Calombo. As curvas de Maria há muito ele fre­qüentava.

A mãe das três menininhas perdera o dom da fala e, em sua mudez, doença contraída de um modo repentino e nunca explicado, sofria, sem palavras, o feio que as meninas faziam pela vida, nas voltas do pecado.

Depois que o velho Andrade morreu no asfalto quente, as três meninas, que nunca foram santas, partiram por completo pra vida de deslizes. Eram tão fáceis de se porem deitadas que até nos dias rubros saíam para o amor. As filhas professoras, o sonho de Andrade, estava pra sempre relegado a não passar de sonho.

A mãe, no seu silêncio, escrevia conselhos que depositava na cama das mocinhas. Em cada travesseiro palavras de adver­tência, que nem eram lidas, apenas amassadas. E os papéis ras­gados, jogados nas janelas, faziam-se confetes caindo pelo espaço.

Mudaram-se pra Tijuca.

Pensava Conceição que, assim, mudasse o procedimento das filhas.

Mudou o itinerário dos carros que as pegavam e, céleres, partiam pras bacanais em belas coberturas, as mesmas freqüen­tadas nos tempos recentes em que ainda moravam na Rua Paissandu.

Sozinha, noite adentro, a mãe das três vaquinhas mais muda se tornava, pedindo que os milagres também lhe aconte­cessem e que Deus transformasse as filhas em moças de decência; que os homens esquecessem ao menos de Alaria, por quem a mãe nutria certa preferência. Teresa, pobrezinha, não era tão culpada. As outras a levaram à vida pela noite e ela, inocente, espírito tão fraco, foi indo, foi gostando, ficou igual às duas. A culpa principal era de Cristina que, desde pequenina, botava o olhar nos homens, andara de xodó até com Seu Tavares, homem velho pra ela, àquela altura com 14 anos.

A noite era comprida, o dia não chegava. Comprida na Tijuca, pra mãe sempre em vigília. Pras moças, cada noite passava num minuto. Eram noites lindas, de beijos incontáveis, procura e encontro loucos de corpos adolescentes, em camas diferentes, caras variadas, copos transbordantes de uísque, incrementando mais a fúria pelo sexo que, mesmo sem bebida, seria furiosa.

Se a noite era extensa, calcule a madrugada.

Na cama encimada por uma cruz de Cristo, a velha Con­ceição chorava, perscrutando a porta, implorando que as meninas ao menos retornassem a tempo dos vizinhos, saindo pro trabalho, não serem testemunhas.

Família a quem contar o transe que passava a pobre Con­ceição não tinha. Era de Minas. E, sozinha, agüentava o baque. Que Deus tomasse conta do destino das moças, e Ele que fi­zesse o que achasse justo. Mas não pregava os olhos sem que as três entrassem.

Depois de adormecidas, chegava ao quarto delas, puxava os cobertores, cerrava as cortinas, juntava seus sapatos jogados pelo quarto, desamassava as roupas caídas e, então, depositava um beijo em cada testa e, ali, rezava ainda a reza derradeira.

Depois voltava ao quarto e olhava pra dentro. Aí, a velha dormia.

 

Um dia, foi Teresa que não voltou pra casa. Chegaram, de automóvel, Cristina e Maria. A velha Conceição achou estranho e escreveu:

Por onde anda Teresa?

Ficou sem ter resposta. Maria deu de ombros; Conceição, nem se deu.

Vestiram-se ou despiram-se na bela minissaia e, sem falar com a mãe, sumiram.

Teresa, onde estava? A mãe não entendia. Havia um telefone que ela pouco usava. Falar, não falaria, mas saberia ouvir "mamãe, não vou dormir, vou ficar com uma amiga". Havia o telefone. Mas ele não tocava.

Depois, então, Cristina não voltou. Maria chegou só, trazida por um louro de barba, cabelos grandes. A velha Conceição, no papel de embrulho, escreveu a pergunta que deu para Maria:

Por onde anda Cristina?

Maria deu risada.

Tá pelai.

E nada mais falou.

Teresa e Cristina já tinham apartamento montado em Ipa­nema, em rua junto à praia, e pago com o dinheiro que arreca­davam ao fim das suas noites, agora já vendidas.

Maria Auxiliadora, que era a mais gostada, ficou com sua mãe por mais um mês ou dois. Após o que também deixou de aparecer.

Um dia, no jornal, saíram os três retratos. Um carro per­dera a direção em meio a Niemeyer, e o mar levara junto o carro e os ocupantes. Havia seis no carro: três moços e as três filhas da velha Conceição, que olhava os três retratos.

No fogão, somente uma panela, onde fazia a sopa, pra almoço e jantar.

A mão da dona velha torceu o botão, fazendo o gás sumir, o fogo se apagando...

Andou feito fantasma, olhando o quarto, as camas...

Fechou as cortinas. Na cama de Maria sentou meio sem jeito, assim como se estivesse em casa desconhecida. A ponta do avental secou-lhe o choro. Os olhos já sem brilho olharam mais o quarto. A falta das bonecas, a ausência dos pertences, a privação total de vida.

Depois, voltou à sala, dobrou o porta-retratos com três caras iguais às do jornal.

Abriu mais a janela, deixando entrar o dia, deitou-se no sofá, e sua boca muda pareceu falar:

Graças a Deus.

 

                   A CRIANÇA PERDIDA

Fazia aquele sol que, de tão forte, os jogadores de futebol chamam de "lua". Na esquina, o sinal fechou, e o ônibus, con­trariando as leis que os cariocas criaram para o trânsito, cometeu a imprudência de parar. Na freada extemporânea aconteceu tudo. Desarrumaram-se os passageiros, descontrolou-se o trocador, saiu gente pela porta traseira e alguns, os menores, saíram mesmo pelas janelas, sem que fosse observado se, na hora em que saíram os vidros estavam fechados ou não. É de se supor que sim, por haver estilhaços pelas calçadas e nos ouvidos de alguns passageiros. Juntou gente, como é lógico. E começaram as re­clamações.

Nesse sinal ninguém pára, idiota!

O motorista, um vasto senhor de parco bigode, tentou ar­gumentar que, na hora da freada, passava uma cadeira de rodas lotada e que sendo assim...

Foi quando escutou-se uma voz de mulher.

Perdi meu filho.

Procura daqui e dali, cadê que se achava o menino? (ou seria menina?) A mãe, sem voz e sem cor além de sem me­nino já tinha sido levada para uma farmácia, quando a polícia chegou. Não era bem polícia, mas um guarda que entregava o seu talão na loteria em frente ao local onde se deu o evento e que, sem nada mais importante a fazer no momento, achou de bom alvitre ir ver o bicho que estava dando, onde tanta gente se amontoava, falando, todos ao mesmo tempo.

Qual foi o ocorrido? perguntou, ao chegar.

Contaram do menino perdido, e a autoridade quis saber como era a criança.

Era lourinho, assim feito o Zanata falou um.

Que lourinho? Era moreno, seu guarda disse outro.

Louro afirmou um terceiro.

Nem louro nem moreno, era mulato, que eu vi.

Crioulo!

Cada um tinha visto o menino e o descrevia ao seu modo.

Vamos perguntar à mãe, não é melhor? sugeriu alguém.

A idéia não era de se desprezar. Procuraram a mãe que, na farmácia, sorvia um copo de água com açúcar.

Preciso falar com a mãe disse a autoridade, entrando na drogaria, acompanhado pela multidão.

Não vai falar com ninguém esbravejou o farma­cêutico.

Fala! Fala! Fala! respondeu um coro, na farmácia.

Eu falo, se eu quiser; eu sou autoridade! gritou a autoridade, querendo mostrar autoridade e, por isso, levando uma sonora vaia.

Úúúúúú...! O guarda não é mais aquele... O que é que faz com ele? perguntava a turba e, inclusive, respondia o habitual.

Uma zorra. O farmacêutico tentava expulsar a multidão da farmácia onde alguns meninos, aproveitando a balbúrdia, enchiam os bolsos de sabonetes e cibalenas.

Não está vendo a situação da moça? Não está vendo que ela não pode falar? expôs o farmacêutico, irritado.

Só ela pode descrever o menino lembrou a autoridade, já muito arrependido de não ter apanhado o Circular que passava quando ele saiu da Loteria Esportiva.

Um senhor de meia-idade deliberou que seria ele o cara a resolver aquela parada.

Com licença. Eu vou liquidar este problema. Eu sou o Souza!

Ser o Souza não significava grande coisa, mas todos acei­taram como se ser o Souza fosse algo realmente importante. Houve quem consentisse, de cabeça baixa, num comentário de concordância.

Ah, bem. Sendo o Souza...

O Souza pediu o silêncio que se fez imediatamente. Deram-lhe passagem com o maior respeito, e o Souza, que, no duro mesmo, chamava-se Nascimento, foi à pobre mãe inconsolável.

Minha senhora tinha a voz grave, nesta hora —, é sobre o menino.

Meu filho! reacendeu a mãe. Perdi o meu filho! gritou com voz trêmula, como se isto fosse uma coisa ainda ignorada por todos, repetindo: "perdi o meu filho", no entremeio de outro copo o quinto de água açucarada.

Isso, já sabemos seguiu o Souza. Quero saber o seguinte: como é o menino, que idade tem, a roupinha que trajava, a altura, por qual clube torcia, a cor dos cabelos, dos olhos, se tinha olhos, se tinha cabelos... esses pequenos detalhes que ajudam na identificação.

Silenciaram para escutar.

Não sei. Como é que eu posso saber?

Pequenos murmúrios e a volta do silêncio.

Sei lá, moço! continuou a infeliz mãezinha. Eu tinha feito há uns quarenta minutos.

Dito o que, bebeu mais um copo d'água (agora com Suita, porque o açúcar acabara) e voltou ao escritório de José An­tonio Boaventura corretor de telefones para fazer outro.

No que, aliás, obrou bem.

 

                   JÚNIOR

Tem obsessão pelo filho, a quem chama de Júnior. Nada lhe nega, achando que age de modo correto ao lhe satisfazer os me­nores desejos.

Pai, me dá uma prancha?

À tarde traz-lhe não apenas a prancha pedida, mas outras coisas que não tinham sido solicitadas. A mulher acha errado acostumar o filho desse modo.

Presente, agora, só no aniversário e no Natal.

A promessa à mulher fica na promessa. Cada noite traz uma coisa para o garoto.

Comprei um tênis lindo, pro Júnior.

Quase ofende o garoto entregando-lhe um par de tênis de mau gosto.

Que tal?

Bacana.

O garoto põe o tênis a contragosto e sai, sem conseguir esquecer que se calça de azul. Depois que o garoto sai, vai para a janela esperar que ele apareça na calçada, lá embaixo.

Está um homenzinho.

É. Precisa é melhorar as notas.

Paciência.

Poupa o menino de queixas e reclamações. Tem sempre uma explicação para os erros.

Coisa de menino... é uma criança.

Aceita os defeitos e os rotula de "coisa natural da idade". É seu filho único e seu único amigo. A mulher, um pouco por ciúme, critica este modo de proceder.

O Júnior está mal acostumado. E você...

Eu sei o que estou fazendo, Petrônia.

Mudou, recentemente, para uma rua do Encantado. Quer que o filho cresça com a liberdade que ele tinha na idade do menino: jogando peladas na rua, soltando pipa, fazendo bucha para balão. Argumenta, explicando a mudança:

Quero que o Júnior tenha uma infância feliz como a que eu tive.

A mulher não tem opinião. Quando tem, evita emiti-la. É dominada pelo dominante. No caso da mudança, nem ao menos foi consultada.

Copacabana é uma perdição. Meu filho não vai ser criado neste inferno.

A mulher conformou-se. Arrumou as malas, encaixotou a louça e, submissa como sempre, trocou o apartamento da zona sul pela casa do Encantado, com 64 metros quadrados de terra mal cuidados a que ele chama de quintal.

Copacabana era tão bom...

Foi a única ponderação da mulher. Inútil.

Eu é que sei. Garoto gosta de espaço. Eu, que fui garoto, é que sei. Nada vale o que ele vai ter aqui na rua. Não é, Júnior? Espaço! enche a boca.

Júnior, 14 anos, confirma sem palavras. Em cada casa da rua há, pelo menos, três meninos. O filho, agora, terá uma "tur­ma", igual à do pai, no passado.

Ali estão há duas semanas. O menino ainda não fez amizades. Prefere a janela, de onde acompanha a pelada.

Que tal morar aqui, Júnior?

Ele abraça o filho na janela, incomodando-o com o aperto. O menino demora a responder:

Bom.

Bate nas costas do garoto, instigando-o a fazer amigos, na rua cheia de espaço e tristeza.

Anda, Júnior. Vai brincar com a molecada.

O garoto não se move. Fica na janela. Dali ele vê o pai meter-se na pelada e conversar com o pretinho que joga melhor.

Vem, filho. Tem vaga pra você.

O menino vai. Por obediência, apenas. A mulher, na cozi­nha, faz um bolo de chocolate, para encher o tempo. Agora é ele quem está na janela.

Olha o ponta desmarcado. Levanta a cabeça quando pegar a bola, Júnior.

O garoto joga mal. É mantido no time pelos picolés que o pai compra para os 14 da pelada. Desembrulha o picolé do filho, dando-o já sem papel e sem perguntar se era de groselha que ele queria.

A televisão desligada aumenta as horas do domingo.

Amanhã o homem vem instalar a antena.

A mulher gosta da noticia. Vai recomeçar a acompanhar a novela. Não têm mais telefone.

Sem telefone é outra coisa, não é? Outro sossego...

A mulher olha a mesa onde, em Copacabana, havia um tele­fone e concorda. Ele senta na sala, no sofá forrado de plástico, com o rádio ligado no futebol. O filho volta com um pequeno corte na perna.

O que foi isso?

Nada.

Nada, como? Está sangrando.

Foi a unha de um garoto que...

A mulher consegue evitar que ele vá tomar satisfações. É difícil fazer com que ele não se meta nos problemas dos garotos. Demora, mas convence. Ele fica, porém, visivelmente aborrecido. Faz curativo na perna do Júnior.

Está ardendo?

Não está, mas ele sopra forte, segurando a perna do garoto onde colocara o mertiolate. Atribui à contusão a tristeza do filho.

Vamos fazer um galinheiro? propõe.

O garoto consegue evitar o convite que lhe soara como de­terminação. Mete-se no quarto e se deita sem intenção de dormir. Chega da cozinha o ruído do liquidificador.

Em Copacabana mora-se em gavetas. Aqui, mora-se no chão. Aqui há chão. O Júnior gosta de espaço.

A mulher não responde. Ele recebe o silêncio como con­cordância.

Daqui a uma semana está enturmado...

Vai ao portão. O paletó de pijama aberto permite que ele acaricie os pêlos do peito, fazendo círculos com a mão aberta. Quase se felicita pela idéia de mudar para aquela rua.

Boa tarde.

O vizinho que passa não responde.

Não ouviu — diz-se, explicando.

Os dedos, livres dentro do chinelo folgado, abrem-se con­fortavelmente. O palito do fósforo passeia nos lábios, vez por outra chupado, quase sempre mordido.

Petrônia põe o bolo no forno, faz um café. A tarde entra em coma, o domingo prepara-se para dormir.

Cafezinho, Haroldo.

Opa. Chegou na hora; estava pensando nele.

A mulher serve o café na bandeja, como se ele fosse patrão.

O Júnior não quer um cafezinho?

Ele não gosta, Haroldo.

— Quem disse? Põe uma xicrinha pra ele...

A mulher faz.

— Cafezinho, filho?

Estende a bandeja para o garoto, onde a xícara fumaça. O rapaz bebe, sem o menor desejo. Chega a repudiar o último gole. Apressa a explicação, temeroso.

— Tinha pouco açúcar.

— Sua mãe ainda não aprendeu que...

Júnior não escuta a acusação que Haroldo faz. Volta a se enfiar no travesseiro. Está quente, abafado. A mulher vigia o bolo. Haroldo, da janela, olha a única árvore da rua, defronte à sua casa, tentando adivinhar que árvore é aquela. Júnior, no quarto, expira forte o ar quente que engolira. O calor das quatro e meia convida a uma praia. Mas a praia está tão longe do chão onde hoje mora... Vai para a janela.

— Oi, filho. Tarde bonita, né?

O filho, da outra janela, concorda. Ficam os dois assim olhando o chão, a rua, o espaço.

 

                     AÇÃO ENTRE AMIGOS

Perácio era o que se pode chamar de um chato. No escritório onde trabalhava todos corriam de suas brincadeiras. Pregava rabo de papel nas antigas funcionárias — inclusive em Dona Miloca, chefe da secção — agachava-se por debaixo das mesas preparando mosquitos que enfiava nos sapatos dos colegas. Pas­sava trotes para moças dos outros andares do prédio ou fabricava aviõezinhos de papel que atirava pela janela ou para o interior da sala, mesmo, se assim fosse o seu gosto no momento. Um chato de galocha.

— Cadê o Tavares? — foram suas primeiras palavras ao entrar no escritório naquela manhã — atrasado, como de hábito.

— Está nos arquivos — informou o chefe, enquanto escon­dia a revista de Palavras Cruzadas para que Perácio não lhe desse esse perigosíssimo flagrante.

Tavares, apesar de moço, era um antigão. Usava suspen­sórios de elástico (que Perácio costumava puxar e soltar pelo menos vinte vezes cada dia) a segurar as calças folgadas, afu­niladas na boca. E ligas.

Perácio, desde que o procurara, alguma lhe estava pre­parando.

Da porta sorriu, ao ver Tavares sozinho, de costas, entretido no arquivo, procurando uma ficha. Tirou do bolso uma coisa parecida com uma caixa de fósforos, mas que era apenas uma caixinha de bombas de São João. Acendeu uma e a atirou sem ruído. A bombinha caiu a dez centímetros de Tavares. Bum!

A explosão provocou um pulo de Seu Tavares, que o fez dar com a testa na gaveta aberta do arquivo e um estouro de gargalhadas no Perácio. Urinou-se, de tanto rir.

— Grande! Grande! — dizia, entremeando as gargalhadas que pareciam não se acabar.

Seu Tavares não teceu o menor comentário. Levou a mão à testa onde um corte se fizera. Perácio percebeu. Arrependeu-se de ter magoado o colega.

Machucou, Tavares? Desculpe. Eu fiz de brincadeira... Não leve a mal.

Tirou um lenço do bolso, previamente embebido em molho de pimenta malagueta, e gentilmente o comprimiu contra a testa ferida do amigo.

Uai!

O berro do Tavares divertiu Perácio de um modo inacredi­tável. Segurava-se nas entrepernas, enquanto se contorcia de dar risadas.

— Gênio!... Essa foi de gênio!...

Perácio era um pândego como diria um contemporâneo de Machado de Assis ou, se preferem uma definição mais atual, era um bom filho da puta.

Cortava cinturões, roubava a carga de esferográficas, serrava pés de cadeiras, dava nó nas fitas das máquinas. Enfim, se Deus se lembrasse de levar Perácio, aquele escritório rasgaria catálogos e jornais e atiraria o papel picado pelas janelas, com todos em coro cantando: "Eu te amo, meu Brasil".

Tendo deixado creio todos sabendo quem é Perácio e também tendo explicado a humana e infeliz figura de Tavares, acredito que possam imaginar o que tenha sido o diálogo dos dois quando Perácio, interrompendo uma conferência de notas que Tavares fazia, apareceu-lhe exibindo um talão que folheava com o polegar de unhas sujas. Era uma rifa.

Comé, Tavares? Que número vai querer?

Oh, Perácio — desculpou-se timidamente Tavares, olhando-o sobre os óculos e mostrando a mão esquerda separando uma das folhas que conferia não tá vendo que não é hora?

A sorte não marca hora, gente boa disse Perácio, enquanto tirava a mão de Tavares da folha, significando isto que Tavares tinha que recomeçar todo o trabalho.

Você desmarcou tudo, Perácio.

Deixa isso pra lá. Trabalho não bota ninguém pra frente. Se trabalho desse pé, burro ganhava medalha e riu-se a expelir perdigotos. Escolhe um numerozinho, e pronto.

Depois a gente trata disso Tavares quase implorava.

— 37 está bom, ou você prefere algum número especial? voltou Perácio com o bilhete da "ação entre amigos" escanda­losamente à sua frente, no número 37.

Oh, Perácio, tem paciência.

Escutaram-se gritos de socorro e batidas fortes numa porta. Tavares levantou-se preocupado. Perácio o fez sentar, acalmando-o.

Não liga. É Dona Miloca. Tranquei a velha por fora, no banheiro. Só pra perturbar um pouco o cocozinho que ela fazia. Comé? Fica no 37? 37 é coelho, tá sabendo?

Quanto é? perguntou Tavares, vendo que a compra era a única maneira de se livrar do coleguinha tão desagradável.

Vintinho.

Vinte contos? — assustou-se Tavares, olhos escancara­dos, óculos apenas não caindo pela providência tomada de o empurrar para o alto do nariz com o indicador.

Vinte, porque você compra quatro elucidou, enquanto por quatro vezes puxava e soltava o suspensório do Tavares, provocando quatro "splacs" doloridos, o último dos quais exa­tamente sobre a espinha que Tavares cultivava sobre o peito.

Dona Miloca aproximou-se, vermelha.

Foi você? perguntou ela, olhando pra cima, único modo de encarar Perácio.

Tá falando comigo, Dona Miloca? Perácio tinha cara de anjo nesta hora.

Na próxima você vai ver o que eu faço.

Se fizer aqui o que estava fazendo no banheiro, vai ser uma graça e dobrou a risada.

Dona Miloca deu-lhe as costas e seguiu. Seguiu já levantando um rabo que Perácio, antes, por medida de segurança, aprontara, com um pedaço de jornal e um clips. Era muito habilidoso, o sacaneta. Daí, voltou ao Tavares, que já recomeçara a conferência que fazia.

Mas voltando à vaca fria... falou, retirando o dedo do Tavares, desmarcando novamente as folhas conferidas.

Oh, Perácio.

Cinco cada uma, malandro avisou, já arrancando a rifa do 37 e enfiando-a no bolso da camisa do Tavares, en­quanto a outra mão se abria para receber a nota.

Tavares pagou, empurrou o talão mais para o fundo do bolso e pediu.

Agora posso continuar?

Pelo amor de Deus, vai em frente. Desculpe se eu te atrapalhei. Longe de mim essa intenção.

Deu as costas e foi embora, cuidando de, en passant, segurar na costeleta do Juvenal, perguntando "par ou ímpar". E não esqueceu de conferir.

Par. Tu é um cagão.

Escutavam-se suas gargalhadas que seguiam até o elevador — onde, certamente, estaria àquela hora, apertando todos os botões, enquanto distraía o ascensorista.

Tavares não sabia que rifa comprara. E nem lhe interessava saber. Queria apenas ver-se livre da incomodativa presença do alegre coleguinha.

O bom Tavares morava na Aldeia Campista, na Rua Pereira Nunes. Exatamente onde estava, no domingo, quando o caminhão parou à porta, com Perácio na boléia e um elefante na carroceria.

— Eu não disse que a sorte estava contigo, malandro? — era Perácio gritando, ao mesmo tempo em que apeava.

Tavares, de short, lavava o seu Gordini. Perácio deu-lhe um abraço muito efusivo, enquanto enfiava a mangueira no cós do short do amigo. Nesta hora o elefante, através de uma prancha posta atrás do caminhão, era descido.

— Olha aí! Tu ganhou, malandro. Tanta gente de olho nessa prenda e olha aí, saiu pra você. Tu é um aberto!

Somente nesta hora Tavares ficou sabendo do que tratava a rifa. Sendo um ser humano, nada há de espantar, no fato de Tavares ter perdido a voz, acompanhando a manobra de descida do elefante. Já havia crianças ajudando.

— Cuidado.

— Mais pra esquerda.

— Desce agora.

O elefante foi levado para o quintal. Perácio ainda tentou pô-lo na sala, mas a porta, infelizmente, não era larga o suficiente para que o bichinho passasse.

— Parabéns — ainda disse Perácio antes de sair. — E nem vou cobrar o carreto. Agora vou na casa da Dona Miloca jogar umas cabeças-de-negro pela janela. Vai ser um barato.

Foi embora, no caminhão, cujo ronco era encoberto pelas sonoras gargalhadas.

Ficaram, então, na casa da Pereira Nunes somente Tavares e o elefante. Os dois muito sérios e profundamente calados. Uma hora ou outra Tavares se perguntava, olhando o bicho.

— Um elefante?

Mas o elefante não dizia que sim nem que não. Limitava-se a pisar nas flores.

Começaram a chegar os vizinhos, avisados pela garotada. Ia ser um bom domingo, tudo indicava.

Oh, Seu Tavares, eu soube que... — e calou-se Dona Marieta, ao dar de cara com o elefante que virava e desvirava a tromba, olho pequenino fitando-a.

— O que é? — irritou-se Seu Tavares. — Nunca viu um elefante?

— Mas é um elefante mesmo.

— Não tem gente que cria gato, cachorro? Eu crio ele­fante, pronto.

Dona Marieta, espantada pela reação do vizinho, recuou. Pelo espaço aberto por seu recuo, entrou a família que voltava da missa.

— O que é isso? — perguntou a esposa do Tavares, ao dar de cara com o elefante que arrancava, com a ponta da tromba, as flores preferidas do seu canteiro.

— É um elefante — respondeu Tavares, esclarecedoramente.

— Que elefante é esse?

— Ganhei na rifa.

A mulher, desmaiada, foi levada para a cozinha. O elefante ficou no quintal, apesar de ter feito menção de a acompanhar, o que foi evitado pelo tanque de lavar roupa que, aliás, arre­bentou com o delicado pezinho.

Os filhos queriam subir no elefante.

— Sai de perto do elefante, menino!

— Ele não é meu?

— É nosso — esclarecia Tavares. — Mas ele não sabe que é. Chega perto, ele te dá uma trombada.

O elefante balançou a cabeça. Foi por acaso, mas o me­nino aceitou como concordância de que faria o que o pai alertava. Afastou-se.

— Amestra, Tavares — aconselhou um vizinho de tempe­ramento muito parecido com o de Perácio. — Ou vais me dizer que não sabes amestrar elefante?

— O melhor é vender para o circo — sugeriu Seu Batista, da casa ao lado, já com o paletó de pijama que usaria à tarde no Maracanã.

— Quanto é que vale um troço desses?

— Uma nota. Isso aí vale uma nota sentida — elucidou Seu Batista.

— Tavares — falou o Guimarães da padaria — eu, no seu lugar, dava de presente ao Estado. Dá pro Jardim Zoológico.

— Dar por quê? — reagiu Seu Vicente, com tanta autoridade que parecia ser o dono do elefante. — Não vai dar coisa nenhuma. Era o que faltava. Um elefante lindo desses, dar de presente. Na melhor das hipóteses, troca-se. Troca-se, por exemplo, por um tigre e dois jacarés.

— O elefante vale mais do que isso.

— Um tigre e dois jacarés está de bom tamanho.

— Você não manja lhufas de elefante.

Saíram discutindo para ir beber uma cervejinha na esquina. Ao passarem pelo molecote que estava olhando de longe, sentado no muro, instigaram-no ao grito que o moleque soltou:

— Bota uma coleira e sai passeando.

Tavares olhou para ver quem tinha sido o engraçadinho. A filha o fez voltar-se.

— Pai, onde é que ele vai dormir?

— O que é que elefante come? — perguntou o outro filho, longe o suficiente para não ser alcançado pela tromba que ia e vinha, meio embalde.

— E quando chover, pai? Ele vai ficar todo molhadinho.

A menina começou a chorar. Duas vizinhas a acudiram com muita paciência, não chora, minha filha, se molhar a gente enxuga, ninguém vai deixar seu elefantinho encharcado, vem cá.

A mulher, na cozinha, à custa do vinagre, recuperava os sentidos, comadres à volta, conselhos e pedidos de calma.

— Ele ainda está aí?

Ele era o elefante, mas as comadres não entenderam.

— Ele quem? O Tavares?

— Não perguntei pelo burro, perguntei pelo elefante — falou delicadamente a esposa.

Da janela olhou e recuou, gritando com a mão à boca para melhor dirigir o berro.

— Ou eu, ou o elefante, está escutando, Seu Tavares? Ou ele, ou eu. Tem cinco minutos para decidir.

E olhou as comadres que lhe erguiam o polegar, todas de acordo em que cinco minutos era um prazo razoável para que ele se desfizesse do elefante.

— Como vai ser o nome dele? — perguntou o filho.

Tavares, o olhou como se o filho não fosse seu, nem da sua esposa, mas filho de qualquer outra coisa.

Desfilaram sugestões de nomes, enquanto o elefante se des­fazia do pouco que tinha comido.

— Alá — berrou a filha — é um montão de cada vez.

— Se cai no pé dum, aleija. Vou te contar. Esse elefante é uma fábrica de estrume que não está no gibi — comentou o Guimarães da padaria, impressionadíssimo não apenas com o volume, mas também com o formato.

Foi quando Seu Altino chegou. À sua presença fizeram si­lêncio. É de se esclarecer que Seu Altino merecia o respeito que lhe davam. Ex-funcionário do Jardim Zoológico, 35 anos lidando com elefantes, inclusive, sua vinda não era apenas necessária, mas salvadora.

– Já viu, Altino? — perguntou Seu Batista.

Ele fez que sim.

– Faltam 3 minutos, Tavares — chegou a voz da mulher que, na cozinha, era acudida pelas comadres, bebendo uma dose de maracujina.

Seu Altino, compenetrado, profundo entendedor do assunto, limpou os óculos na camisa de Seu Batista, espiou direitinho e disse que não era elefante.

— O quê?

— É elefanta.

Entreolharam-se todos. Isto mudava muito pouco a situação, mas reagiram como se Seu Altino tivesse dito que aquele elefante era tatu.

— Elefanta, sim senhor — continuou Seu Altino, circun­dando o paquiderme, entregue às mais profundas observações. — Elefanta, meu chefinho.

Murmúrios correram. Chegaram à cozinha. A mulher soube dos murmúrios. Continuou renitente.

— Elefante ou elefanta, deixei de saber. Ou essa coisa ai, ou eu.

Seu Altino ficou debaixo da elefanta, corajoso como Tarzã, entendido como Seu Altino.

— Digo-lhe mais. Elefanta... e está grávida.

— Grávida?

A mulher soube. Parou na porta da cozinha com um olhar diferente.

Tavares sorriu, sentindo-se avô.

 

                   FAZEDOR DE SANTINHOS

Pesava 54 quilos e media perto de um metro e oitenta. Usava constantemente um terno preto e, por ser curvado, era justo que o tivessem apelidado de "Guarda-Chuva". Pés enormes, em volta de 43, usualmente calçados numas botinas que ganhara de presente de um padre. Fazia estatuinhas de barro. Santos, via de regra, que vendia na feira. Gostava, preferencialmente, de esculpir Santo Antônio. Pintava com esmero o marrom da rou­pinha do santo e caprichava o possível na carinha redonda do Menino Jesus. Um artista.

Que beleza de Santo Antônio! Quanto custa?

Barato.. .

Evitava dizer o preço. Tinha vergonha de cobrar pelo tra­balho. Julgava-se roubando a Deus, ao receber dinheiro por ter esculpido uma imagem. Os fregueses praticamente tinham que adivinhar quanto custava.

Vendia de vinte a trinta imagens cada vez que ia à feira comerciar. Pena que não tivesse tempo material para fabricar tantas quantas desejava. Por isso, apenas uma vez, cada mês, freqüentava o mercado. Tudo que levasse, vendia.

Sugeriram-lhe que abrisse uma lojinha. Relutou. Havia tanta coisa a fazer, tantas licenças, esse negócio de alvará. Um amigo ofereceu-lhe sociedade. Um com o trabalho, outro com o capital.

Alugaram um boxe numa galeria, na Tijuca. Pequeno e escondido. Dois meses depois inauguraram. Puseram o nome de "Santo Cristo".

Já tinha um rapazola que o ajudava, estudante de Belas-Artes, que apenas executava o que ele determinava. Trabalhavam madrugada adentro na fabricação de imagens. Recebia enco­mendas.

Eu queria uma Pombagira.

Recusava. Nada de macumba. Era católico. Em setembro, sim, ganhava triplicado. Fazia Cosme e Damião, que ele aceitava como santinhos católicos. Concessão que julgou comercialmente perfeita.

Ia bem o negócio. Mas o trabalho estafante, o excesso de serões, fizeram-no emagrecer. Perdeu três quilos. Nele, represen­tavam 20. Covas profundas no rosto, abatimento geral, enfraque­cimento crescente. Quase não comia.

Pensou em fechar a loja e voltar à feira, onde vendia somente o que conseguia fazer sem grandes esforços e com maior capricho. Dava pra viver.

Descansa um pouco. Eu tomo conta. Tire um mês de férias — sugeriu o moço que o ajudava.

Não quis. Tinha medo de ser roubado. Aceitou, todavia, a idéia de chegar mais tarde. Passou a aparecer na loja apenas depois das dez. Tossia. Tinha tonteiras. Inapetência crescente.

A festa da Penha é no mês que vem lembrou o ajudante.

Tem razão. Tinha esquecido.

Deixaram de lado as estatuinhas de São Benedito e São Judas Tadeu e puseram-se a fabricar imagens de Nossa Senhora da Penha, dinheiro garantido. Queriam fazer, na pior das hipó­teses, duas centenas de pequeninas imagens de 15 centímetros. O rapaz pintava, ele esculpia. Voltou aos serões. Era inevitável, diante do trabalho grande que tinham a realizar. Para a freguesia da loja, apenas as imagens já prontas que enfeitavam as prate­leiras. Aceitavam encomendas, todavia. Sempre avisando que só seriam atendidas depois da festa da santa do monte. Desde que não fosse coisa de macumba.

Nós dois, sozinhos, não damos conta do recado. Concordou com o rapaz. Admitiram outro, igualmente da Belas-Artes. Fizeram-se sócios. O amigo que lhe tinha ajudado com o dinheiro para a montagem da loja concordou em vender sua parte. Na sociedade, ele tinha 60 por cento. Os outros dois, vinte cada um.

No dia da festa tinham aprontado mais de duzentas imagens. Calcularam cobrar um preço acessível.

Quem vai vender?

Você sugeriu o rapaz recém-admitido.

Ele não podia. Tossia muito, sentia calafrios, uma pontinha de febre, ao anoitecer. O outro iria.

Não. Então, vai você, Belmiro. Belmiro era o sócio mais novo. Aceitou.

Alugaram uma Kombi onde armazenaram as estatuinhas, de modo que não se quebrassem. Ajeitadas o melhor possível em caixas, com palha.

Você vai lá de tarde? perguntou o sócio.

— Não sei. Não estou me sentindo bem.

— Eu vou por lá depois de quatro horas. Se puder, dá uma passada por lá.

— Não sei (tossiu). Não sei. Estou muito fraco (tossiu). — Ligue pra mim de noite, contando como foi o negócio.

— Tudo vai sair bem.

— Será que... (tossiu)... dá pra vender tudo?

— Claro. E mais tivéssemos, mais venderíamos.

A Kombi já tinha ido. O rapaz fechou a loja. Haviam com­binado fechar naquele dia. Ele foi pra casa. As pernas fraque­javam, o corpo moía-se, na febre.

Às sete da noite o rapaz viu ser vendida a última imagem. O dinheiro pesava no seu bolso e no de Belmiro, o sócio recente.

— Vamos avisar ao Nereu.

Ligaram de um bar. Ao "alô" ouvido, começou a falar alegre, grandemente efusivo.

— Diz ao Nereu que vendemos tudo. E eu tinha razão. Se tivéssemos feito mais, mais teríamos vendido. Alô... alô...

Do outro lado da linha ninguém falava. Ele apenas escutou prantos. Gente chorava, na casa de Nereu.

 

                   COTIDIANO

 

     Quem tem notícia de Helena

     Por favor queira informar.

     Quem souber desta morena

     Venha, correndo, avisar

 

Começa a nascer um samba no pinho de Leonam. Mais um a ser guardado com os demais trinta e tantos, sem que cantor algum se interesse por gravar. Esse, como os demais, é um samba inventado. Mais um pouco e pode reunir a família a quem mostrará a canção e ouvirá as opiniões de sempre:

— Tá lindo, Leonam. Dá pro Nelson Gonçalves.

— Um lixo. Só gosto de música do Roberto.

— Mentira, pai, tá bonito.

— Tem uma coisinha ou outra que dá pé.

Os filhos, jovens demais para saber da vida, não entendem muito a filosofia dos sambas, mas Lídia sabe que ele só faz coisa boa. Havia de chegar o dia em que seria reconhecido. Diz que música dá dinheiro. Não vê que tudo que é compositor tem carro?

Resolve, como das outras vezes, deixar a segunda parte para amanhã. Deita o violão no alto da cristaleira. Ajuda a mulher a recolher os pratos e as migalhas do jantar. O cachorro safado fazendo de novo no tapete.

Rinnk... ronnk...

Irrita-se com o rangido eterno da porta da cozinha que não há óleo que dê jeito. Senta-se na poltrona de estofado gasto para ler o resto do jornal, começado no trem.

Não tem ainda 40 anos e já começa a pensar na morte. Não por ele, que não é egoísta, mas pela família que, com ele morto, do que vai viver? Como e com que se alimentariam aquelas quatro bocas? Cinco, porque o cachorro safado, porção nojento, também come. E mais do que os meninos, até.

O serviço que faz — cobrador da Telefônica — não garante nada de ostentoso para o futuro, mas, com ele vivo, sempre há o dinheiro dos bicos, vendendo refresco na porta do Maracanã ou espetinho à frente do Mourisco, nos ensaios da Portela. Morto, cadê?

— Quer um cafezinho? Passei agora — oferece a mulher, 35 anos na carteira, 48 no rosto.

Ele aceita.

— Veja se está bom de açúcar.

— Está — diz, sem provar, pela confiança que tem na mão da mulher que nunca errou na conta do doce, apesar de sempre perguntar a mesma coisa.

A mesma coisa.

Isso, é a vida dele. Cotidiano que escangalha a vida.

E a porta da cozinha rangendo rinnk. .. rooonnk; o ca­chorro encharcando o tapete 2 por 1, comprado na liquidação da Sears, os meninos brigando por um lugar melhor no sofá, a ca­beça da vizinha, na janela, pedindo uma xícara de açúcar, a porta da cozinha rangendo... rinnk... ronnk...

— Chega pra lá, Helinho. Eu estava aqui antes.

— Quem vai ao vento, perde o assento.

— Mãe, olha o Helinho.

— Quer mais um cafezinho, Leonam?

— Pára de me empurrar, Luciana.

— Rinnk.. . roonnk...

— Dona Lídia, me empresta uma xícara de açúcar?

— Pai, dá um jeito no Helinho.

— Veja se está bom de açúcar.

— Rinnk... ronnk...

Parece o barulho monótono das rodas do trem. Uniforme, fastidioso, insípido. E se é ruim com ele vivo, imagina depois de morto.

Pensa na morte como um fato que se dará amanhã. De olhos fechados, vê-se morto, imaginando o caos em que a casa mergu­lhará. A família, no mínimo, terá que mudar para um barraco. E o violão? Queria ser enterrado com ele.

Faz mi menor sem pestana e puxa, do fundo do peito, um verso novo.

 

     Quero ser enterrado

     Com o meu violão,

     Companheiro adorado

     Vai comigo no caixão.

 

— Que música mais besta, Leonam. Música que fala da morte... Bate na madeira.

Ele dá três pancadas nas costas do pinho, obedecendo por obedecer. E não é isso que faz todas as horas do dia? Os filhos, sim, são autônomos.

— Vá fazer os deveres de casa, Luciana.

— Depois, mãe.

— Helinho, já fez os deveres?

— Mais tarde.

— Leoninho...

– Psiu. Tô vendo a novela.

— Rinnnk... ronnk...

Novela acabada, cada um para o seu canto, boa noite, boa noite (se não é dia de amar) e até amanhã, quando tudo vai acontecer do mesmo modo: imutável e leso.

Luz apagada, os meninos na cama, Dona Lídia cobre-se com o lençol Santista Ouro, ainda do enxoval. Deixa uma perna descoberta, de propósito.

— Boa noite, Leonam.

— Boa noite.

E dorme antes dele, como sempre.

Para ajudar o sono a chegar, Leonam fecha os olhos e fica imaginando a porta da cozinha abrindo e fechando: rinnk... ronnnk... rinnk... ronnnk... até amanhã.

Até sempre.

 

                   PAPAI NOEL

E quanto o senhor paga?

Quinze cruzeiros por dia.

Fez as contas, antes de aceitar. Trabalharia dez dias, por­tanto...

E a roupa?

Roupa é por minha conta. Aceita?

Aceitou. Começaria amanhã.

Contou à mulher que conseguiria uma coisinha até arranjar algo melhor. Explicou do que se tratava.

Vou-me vestir de Papai Noel e ficar na calçada fazendo o povo entrar na loja. Propagandista, como o homem lá disse.

A mulher achou ridículo, mas não falou o que achava. Até lhe deu força.

Qualquer trabalho honesto é bacana.

A roupa tinha sido usada, no ano passado, por um homem mais gordo. Apertou o cinto um furo ainda além do necessário para não a sentir sobrando no corpo.

Vamos entrando, meus amigos. Aqui em "Habib & Irmãos", tudo por um preço de pai para filho...

Avermelhava-se a cada grito que dava. A barba de algodão, o bigode mal feito incomodavam-no. Seguidamente procurava dar um jeito melhor na barba.

Tudo em remarcação, tudo abaixo do custo!...

As mães esticavam-lhe os filhos para que ele lhes desse um beijo, um conselho.

Olha Papai Noel, filho. Fala com Papai Noel.

Os meninos, mais encabulados do que ele, emudeciam. Ape­nas corriam os olhos pelo seu rosto, sua roupa, seus sapatos.

Papai Noel sem bota? gritavam os garotos mais espertos.

Queria esconder os pés, calçados nos seus próprios sapatos. Sugeriu que lhe comprassem umas botas.

Assim está muito bom.

O dono da loja não queria despesas maiores.

Entrem... entrem... Eu compro aqui.

Se Papai Noel comprava ali, ali deveria ser tudo mais em conta pensavam assim os donos da loja. Um homem, vestido de Carlitos, fazia a propaganda da casa em frente, rodando a bengala sem graça, caminhando sem jeito com pés abertos.

Olha Papai Noel...

Um pretinho lhe beijou no rosto. Achou desagradável o contato da boca no algodão da barba. Cuspiu os fiapos que ficaram.

Assim foi durante os dez dias do trato. Temia ser reco­nhecido por um amigo. A cada dia fazia a barba maior e aumen­tava o bigode, querendo colocar uma parede no rosto. Tornar-se irreconhecível. Os sapatos, pelo menos, estavam, no final, en­graxados. O cetim da roupa, amassado e rasgado em muitos pontos, já desbotara pelas inúmeras lavagens e pelo tempo em que ficava guardado, aguardando o Papai Noel do próximo ano. O cinto acinzentava-se na altura da fivela pelas tantas vezes em que fora aberto e fechado.

Vamos lá, minha gente... Em "Habib & Irmãos" é tudo de graça.

Balançava o sino que lhe puseram na mão a contragosto.

Badala direito advertiam os Habibs.

Chamando a atenção, agitava o sino com furor. Havia os que lhe viravam as costas e os que riam dele, achando-o tão imbecil quanto ele próprio se achava.

Tem gente que se presta a cada papel...

Entrem, entrem... "Habib & Irmãos" é a loja onde eu compro.

Onde é o circo, oh palhaço?

Tudo remarcado...

Tão grande e tão bobo... coitado.

— ... abaixo do custo.

Me dá um presente, oh Papai Noel de araque!...

Quinze cruzeiros por dia, para gritar o nome da loja, ba­dalar o sino, fazer-se ridículo. Avistou um conhecido adiante, na calçada do outro lado. Entrou na loja.

Como é?

Vou urinar, Seu Habib.

Papai Noel não urina.

O patrão o fez voltar à calçada. Ficou de costas para o amigo que passou sem vê-lo, felizmente. Mas era o último dia. Largaria às oito. Por ser véspera de Natal, a loja fechava mais tarde, na esperança dos derradeiros fregueses retardatários. De­pois das sete já não havia movimento. Sugeriu parar.

— Por quê? Só fechamos às oito. Grita e badala o sino. Vamos lá.

Sua voz e seu sino foram, por algum tempo, os únicos barulhos da rua.

— Em "Habib & Irmãos"... — recomeçava, já rouco.

Largou às oito. Devolveu a roupa e recebeu o dinheiro.

Enfiou no bolso os cento e cinqüenta cruzeiros mais sofridos que ganhara na vida e caminhou para a Central, em busca do trem que o levaria a Realengo.

Chegou em casa às dez e meia. A mulher o esperava no portão. Beijou-a na testa e ele lhe entregou, disfarçado, o pacote do trenzinho que seria colocado de noite ao lado da cama do filho.

— Tudo bom?

— Tudo bom.

O filho já fora dormir. Deitara mais cedo por medo de Papai Noel esquecer dele.

Acordou às sete com o barulho do trem de plástico correndo no quarto ao lado. Foi ver o filho. Parou na porta, feliz, vendo o menino recolocar o trem que insistia em sair dos trilhos.

— Olha, pai!

— Que bonito!

— Papai Noel que me deu...

— Foi, filho? — perguntou, fingindo surpresa.

— Olha só.

O filho mostrou a beleza que era o trem correndo.

— Lindo.

— Papai...

A mulher já estava ao seu lado quando o menino falou.

— Uns garotos na rua me disseram que Papai Noel não existe.

Foi a mulher quem respondeu:

— Existe sim, filho...

Ao responder, a mulher apertava com força o braço do homem. Foi-lhe agradável notar que a mulher falara com abso­luta convicção.

 

                   O PACOTE PARDO

No envelope pardo havia quarenta milhões antigos, dinheiro confiado a Euclides, portador da encomenda a ser entregue na firma de um irmão de seu patrão. Podia levar em cheque, que seria mais seguro, mas o irmão, ao telefone, pedira dinheiro vivo, por urgência ou coisa assim.

— Cuidado, Euclides, que aí vai grana pra sessenta: Você está carregando uma nota! — advertiu o patrão, numa frase meio em riso, mas confiando em Euclides, funcionário antigo, onze anos de carteira, responsável, consciente, de conduta irrepreensível, sem nunca faltar ao trabalho, pontual, e os etecéteras que somente homens assim, com a honestidade de Euclides, fazem por merecer.

— Entregue o dinheiro ao Júlio. Está aqui uma nota para a sua condução.

Euclides dobrou a cédula e enfiou-a no bolso da camisa, cuidando de abotoá-lo. Abraçou o pacote pardo até com certo carinho e foi ter ao rés-do-chão pelos três lances de escada, sem esperar elevador.

Na Rua Riachuelo o tempo estava melhor do que aparentava pela janela da sala. Dali ao prédio do homem que esperava os milhões eram mais de quinze quadras, mas o dinheiro do táxi achou de economizar. Não era coisa de vulto, dez cruzeiros, mas isto significava mais do que o que recebia por um dia de trabalho.

— Vou andando e guardo a grana.

Muita grana precisava para pagar as tantas contas que se tinham avolumado do casamento pra cá. Havia a geladeira, com­prada no Ponto Frio, o ferro elétrico, as panelas, os móveis do quarto, a mesa... e, um dia, se Deus quisesse, teria televisão. O dinheiro que ganhava ao final de 30 dias, somado à nota da esposa — pregadora de botões numa fábrica de calças, era a conta medida pras despesas.

Nem o direito à doença tinha qualquer um dos dois. É certo que o Instituto dá sempre sua mãozinha, mas doença é doença, exige um pouco mais.

— Duzentos contos resolviam.

Ia contra o trânsito que vinha em disparada, correndo em busca da Lapa. Contra o mundo, no que se refere ao resto. Às vezes, seguia com o olhar um carro que achava mais bonito, um desses carros chiques, importados. Apertava com mais força o pacote pardo ao peito, até o carro sumir, virando pro Bairro de Fátima.

Assobiava um samba-enredo, seguindo num passo firme, devorando os quarteirões que deveriam ser vencidos, pelo mando do patrão, a bordo de um táxi.

Euclides achava, assim, um dia a preço dobrado, dinheiro de muita ajuda, porque os enjôos de Elza eram sinais perigosos de um menino a caminho. Não podia, isso era pena, usar as mãos escondidas nos bolsos, com as quais coçava as virilhas, como lhe era costume. As mãos, as tinha no pacote, quase selado ao seu peito, aperto que incomodava.

— Olha a gilete alemã, que faz cem barbas sem precisar ser novamente amolada. Nas lojas...

O camelô, um mulato de bigode mal cortado, gritava rouco. Euclides parou. Coçou o rosto com as costas das mãos, num exame automático, depois seguiu rua abaixo, a caminho do mandado.

40 milhões antigos estavam no pacote pardo. Pensou, numa ousadia louca, em ser o dono daquilo. O que não poderia fazer com tanto dinheiro! A casa de Coelho Neto, mesmo em subida de morro, poderia ser comprada por menos do que a metade. E as contas liquidadas (talvez com abatimento pelo pagamento abrup­to), dariam a ele e Elza a alegria dos salários sem descontos que excedessem os normais, já tão extensos.

Dobrou à esquerda na Frei Caneca, passando por um sa­cerdote fazendo, por velho hábito, uma figa forte nos dedos. Sentiu que o sinal verde amarelava no meio. Deu uma corrida breve, tentando ainda passar.

Vermelho.

Euclides sentiu-se um carro esperando no sinal. 40 milhões antigos, uma nota respeitável! Um fusquinha meia-quatro, com retoque na lataria e máquina retificada, quanto rendia na praça? Calculou uns 100 por dia, tirante as despesas, poderiam muito bem render uns 80 livres. Nossa Senhora! Elza nem precisaria continuar naquela fábrica. E moraria em Copacabana, mesmo num conjugado, até nascer a criança. Aquele enjôo era sinal de que vinha coisa por aí.

Amarelo.

O melhor, mesmo, era mudar do Encantado, daquela casa de vila, onde todos se informavam das coisas que aconteciam com todos que ali moravam. Copacabana ou Catete. O táxi parado à porta, e ele só trabalharia das 8 às 5 da tarde. Não se sentia com paciência de encarar a hora do rush. E, se chovesse, também recolheria mais cedo. E as roupas que compraria! Começaria por aquela que o out-door exibia, com tantos botões na frente que mais parecia farda.

Verde.

 

Euclides cruzou a rua e seguiu para o destino: "Almeida & Guimarães — Importação e Exportação", onde deveria entregar o pardo envelope rico, com quarenta milhõezinhos de maços do­brados certos, todos em notas gordas, de cinqüenta ou de cem.

Engraçado. Já fazia mais de sete minutos que caminhava nas ruas e não vira um conhecido! Esta terra é muito grande. Por isso é que a polícia, às vezes, não encontra um cara que procura. Um cara que poderia ser quem? Poderia, por exemplo, ser ele próprio, que pegaria um ônibus para onde? Espírito Santo? Isso. Iria pra Vitória e lá compraria o táxi. Quem é que acha um Euclides num Brasil tão gigantesco? Um Euclides diferente, por­que, certamente, deixaria um bigode imenso, desses de cobrir o lábio, mudaria o penteado, cortando o cabelo rente, e ele e Elza em Vitória, com os milhões nas mãos, renasceriam, reco­meçariam a vida, como casal remediado.

O Opala de teto branco quis cortar pela direita o ônibus azul e verde. Na fechada, o Opala subiu no poste. O barulho foi terrível, com pedaços de vidro atirados a distância.

O motorista do Opala desceu com sangue na testa e as mãos apertando o peito. Aperto diferente do que Euclides imprimia ao pardo pacote cheio.

Os passageiros do ônibus desceram sem muito interesse no Opala ou no desastre. Reclamavam, até, da obrigação que teriam de tomar outra condução. Euclides juntou-se ao povo que cir­cundava o desastre.

— Que pancada!

— Eu estava tomando uma média quando escutei o barulho.

— Alguém morreu?

— A culpa foi do Opala, que cortou pela direita.

Empurrões e comentários. Um guarda aproximou-se, con­trariado. Atrás as buzinas irritantes dos carros enfileirados, im­pedidos de seguir. O trânsito encravado pela diagonal inevitável em que o ônibus ficara. Outro guarda desviava os carros por trás do ônibus, enquanto o primeiro guarda afastava os curiosos entre os quais estava Euclides — e providenciava que um carro particular levasse o dono do Opala a um hospital.

O motorista do ônibus, apesar de estar sem culpa, fugiu pela Frei Caneca, dobrou na Riachuelo, fazendo o mesmo itine­rário que Euclides fizera ao contrário, quando trazia o...

— O pacote!

Euclides olhou em volta, já molhado de suor. Numa atitude infantil, chegou a revirar os bolsos, como se em qualquer deles coubesse aquele pacote. Afastou sem gentileza um homem do seu caminho, olhos molhados no chão, agachado entre mil pernas, catando o pacote pardo.

— O pacote! O pacote!

Ninguém lhe dava atenção, todos olhando o Opala que, sanfonado, subia até um terço do poste.

— E o cara ainda vai pagar o poste! — comentou um entendido.

Euclides por algum tempo ficou parado, perdido, sem saber o que era certo: gritar, chorar, perguntar, voltar, fugir ou morrer.

— O pacote! — repetia.

— Que pacote? — quis saber uma negra gorda que tinha na mão o filho.

— Hem?

— Que pacote, moço? Estava no Opala?

Euclides não respondeu. Seguiu vasculhando o chão, por entre pernas de calças, pés calçados, pés descalços, chegou à perna do guarda.

— Qual é a tua, malandro?

— Nada, seu guarda. O pacote.

— Que pacote, gente boa? Sai pra lá. Vamos rodando, vamos rodando...

Como o homem do Opala já tinha seguido em frente, levado por um Corcel, foi-se desmanchando a roda, ficando no local da batida, além do guarda, apenas uns três ou quatro que, por absoluta falta do que fazer, ainda viam naquilo um excelente programa.

Euclides levou a mão ao bolso da camisa, apertando os dez cruzeiros, arrependido do táxi que preferira não tomar.

40 milhões antigos! Nem Vitória, nem conjugado, nem a casa de Coelho Neto (mesmo em começo de morro), nem liqui­dação de contas, nem emprego. Só cadeia. Seria preso, sem dúvida, por falta de explicações.

— Eu não lhe dei o dinheiro pro táxi?

— Deu, sim senhor.

— Então por que foi a pé?

— Sabe o que é? Eu pensei. . .

— Você roubou o dinheiro. Anda logo, vigarista. Fala onde está a grana. Mete ele no xadrez. Dá nele até confessar.

— Eu juro que não fui eu.

— E por que não pegou o táxi? E por que não voltou, pra contar que foi roubado? Tivemos que ir buscá-lo em casa. Safado, cadê o dinheiro? Leva e desce-lhe o pau. Bate até ele se abrir. Ele tem que devolver os quarenta milhões. Quarenta. Não eram dois, nem três, eram quarenta, amigo.

Pegou-se na Praça Onze, andando sem direção. Por ter pensado no roubo, sentia-se culpado. Não sabia exatamente o que era certo fazer. Ir à polícia e contar? Voltar ao escritório e dizer que tinha sido roubado? E o táxi? Por que não tomara? Diria que o roubo fora mesmo à porta do edifício. Mas isso di­ficultaria a polícia. A polícia tinha que achar o cara que lhe roubara. A policia tinha que achar. Encontrar o ladrão era a única saída. Se não, o ladrão era ele. Como é que não viu quando lhe tiraram o pacote? Foi a confusão de gente querendo espiar o Opala. E ele, o que é que tinha que ficar olhando o carro? Idiota era o que era. E isso, logo de manhã, primeiro serviço do dia.

O relógio da Central dizia que já eram onze. Fazia duas horas que saíra do escritório com o pardo pacote obeso. Pelo certo, já estaria de volta há mais de uma hora. Tomou um café num bar, sem chegar ao terceiro gole. As cutias do Campo de Santana comiam milho, indiferentes. Passou pelo hospital onde, provavelmente, costuravam, àquela hora, a testa do homem do Opala.

O Opala era o culpado. Não, a culpa era dele, que não tinha a menor necessidade de parar sua caminhada pra ficar olhando o que não era de sua conta.

40 milhões antigos. Não chorava apenas o pacote que sumira. Mortificava-se mais ainda por ter imaginado fugir com aquele dinheiro. Pra que 40 milhões, se 200 contos curavam tudo?

Afastou-se do Distrito Policial do Campo de Santana. Sentiu-se já perseguido. Virou pela Gomes Freire, sem a menor neces­sidade. Andava a esmo, imbecil, pensando no que fazer, punindo-se na caminhada. Imaginava o patrão a essa hora, ligando para o escritório do irmão perguntando por Euclides.

— Até agora não chegou ai?

— Até agora não.

— Será que aquele cachorro fugiu com o dinheiro? Eu vou ligar pra policia, deixe comigo. Vou prender esse patife nem que ele tenha fugido para o meio do inferno.

O guarda fechou o tráfego. Ele escondeu-se do guarda. O estômago refletia, numa dorzinha fina, o mal-estar que sentia. Não era gente, era um bicho perdido na multidão. Pensou em Elza um instante, acusando-o de ladrão, ou, pelo menos, duvi­dando da estória do Opala no poste. 40 milhões antigos... Vitória... Copacabana... Fusquinha 64... conjugado... 200 mil resolviam... Ponto Frio... televisão... algemas, cadeia, surras, uma luz defronte ao rosto, junto com os gritos "confessa!"

Eram 15 pras três quando entrou no escritório, com aspecto de quem chegava da guerra. Os olhos fundos contavam o drama por que passava. Os braços estendidos junto ao corpo, abando­nados, gravata preta fina, mal arrumada sobre a camisa cinza, onde a nota de dez cruzeiros já não estava. Ele a trazia entre os dedos, intacta, nova, novinha.

— Patrão... — começou dizendo numa voz de confissão.

— Já sei de tudo, Euclides.

Segurou-se no birô para não cair no tapete. Chorou muito e muito forte, a mão crispada no vidro que cobria o tampo da mesa, escondendo fotos antigas e passados calendários. Chorou solu­ços profundos, produzidos pela dor, medo, arrependimento. Chorou mais do que menino. Chorou o que nunca chorara nos 40 anos de vida. Queria contar, falar, dizer da sua inocência, garantir que era honesto, contar que economizara os dez cruzeiros, que agora devolvia, explicar o que representavam os dez cruzeiros poupados. Mas o choro era tão forte que ele não conseguia articular nem ui nem ai. Chorava, apenas, de molhar o rosto, lá­grimas correndo, a camisa ensopada de suor, um suor de deses­pero. Chorou um rio de dor, um choro de sinceridade, sob as vistas do patrão que apenas o olhava.

— Quando acabar de chorar, entrego você aos homens.

Isso era inevitável. Os onze anos na firma não o absolviam da culpa. Depois, quando o choro forte passou pra choro mais manso, sentou, sem pedir licença, na poltrona de couro preto onde nunca se sentara. E só então falou, como estendendo as mãos à algema:

— A culpa é minha.

— Que culpa? Um detetive viu quando o cara o roubou. O dinheiro está aqui — e mostrou o pacote pardo deitado na escrivaninha.

Euclides, então, olhando o pardo pacote cheio, chorou de novo e mais forte, choro, porém, diferente. Ajoelhado no tapete, juntou as mãos murmurando coisas que somente a ele naquela hora importavam.

O patrão o levantou com uma ajuda amiga.

— Vá pra casa, Euclides. Eu entendo o que você passou. Meia hora depois do roubo o pacote já estava aqui. Ainda mandei gente procurar você, coitado. Calculo o que você passou. Sabe do que a gente tinha medo? Que você se matasse, sei lá. Você sempre foi um cara bacana com a gente...

Euclides não dizia nada. Com os olhos encharcados, através dos quais via apenas a silhueta das coisas, apenas espiava e espiava o pacote pardo.

— Vá pra casa. Sua mulher deve estar louca de preocupação. Tivemos que ligar pra fábrica e contamos tudo pra ela. Ela até nos contou dos seus problemas. Não ponha culpa nela, coitada, que chegou a admitir que você tivesse... entenda... ela não o acusou, mas falou das dívidas... sabe, Euclides? Sua mulher é sua amiga. Ela ficou, realmente, foi com medo de... 200 mil, não é?

E o patrão lhe estendeu um cheque, 200 cruzeiros novos, a solução dos problemas. Euclides chorou de novo.

 

Saiu sentindo-se jovem. Menino de 15 anos, pronto a começo de vida. Pegou um táxi para a Tijuca. Iria primeiro à loja onde comprara a geladeira. O banco, na Tijuca, lhe trocaria o dinheiro que, provavelmente, seria colocado num pacote pardo. Mas num pacote dele, que ele levaria agarrado ao peito. E que houvessem desastres, ele é que não pararia.

O caixa do banco contou o dinheiro que era dele, meteu-o num pacote pardo e o entregou com um sorriso, enquanto, forte, carimbava o cheque que, espetado num troço assim feito um prego, dormiria ali na caixa até... não interessava.

Euclides seguiu no rumo da vida nova. Estava chovendo, mas ele não notou.

 

                   TERCEIRA DENTIÇÃO

Isaías era pernambucano. Em Recife deixara seus amigos, seu Náutico, seus dentes. Dos 32 restavam os incisivos, que lhe davam um aspecto meio coelho. Os amigos, no Recife, o chamavam de "Cosme-e-Damião", apelido inventado por Aldemar Paiva, para esfregar na cara do mundo que Isaías perdera 30 dentes, por motivos vários: cáries, pulpites, granulomas, mau trato (a maio­ria), ou incompetência odontológica.

O Rio era diferente. Isaías vestiu-se de Rio de Janeiro com uma gostosa sensação de liberdade. Não tinha os amigos, mas que amigos? É amigo da gente um cara que sabe o nosso nome e prefere nos humilhar com aquele apelido maltratante? No Rio, não tinha o Náutico, mas o Fluminense, que ele escolhera, po­deria ser campeão também. E, depois, no Rio, seria Isaías. Isaías Iroldo Bulhões: gente. Gente, como qualquer pessoa; como aquele senhor que saiu do cartório ou aquele policial que passou na boleia da radiopatrulha. Isaías Iroldo GENTE Bulhões, podia acrescentar ao seu nome.

Era abril. Nem calor demais, nem começo de frio.

A praia, em abril, não se enche tanto, o que dá a quem freqüenta uma aparente sensação de posse. A falta de barracas em volta, de meninos a cavar buracos, de vendedores de mate-limão, isso é gostoso para o banhista. Isaías, na praia, sentia-se como se fosse o dono de tudo. Do mar, da calçada, do vento que lhe jogava no rosto o cabelo liso, como de índio. Dono das ondas, maiores e com mais espuma do que as de Boa Viagem ou Piedade. Mergulhava espalhando água e rolava na areia, fa­zendo-se à milanesa. Faltava fazer o que faziam os rapazes: pegar jacaré com a cara fora dágua. Mas tinha tempo. Em ape­nas dois meses de Rio, até que já ia muito bem. E mergulhava e se areava e voltava ao mar, indo e vindo, como as ondas. A água é fria, mas dá gosto:

Aquela água do Recife é morna, feito mijo.

O Rio, não. Não se toma banho de mijo, mas de mar. Toma-se banho num baita mar azul, da cor do céu, adonde ele se ajunta lá nos cafundó! E cada mulher, seu menino.

Aquela acolá... eita!

Estava tão acostumado a ter as mulheres proibidas que ja­mais iria ter o descaramento de dizer uma coisinha que fosse a qualquer uma delas.

E, além da inibição, havia a inesquecível falta dos trinta dentinhos.

Ave Maria, que eu chegue junto de uma mulher dessas. Quando ela botar reparo em minha boca... vige! Vai é ficar com nojo.

A praia é de graça, e Isaías aproveitava a sua gratuidade o quanto podia. Ficava ali até que acabasse o racha do pessoal da obra, no posto quatro e meio.

Voltava pra casa já noite fechada.

Morava numa vaga, na Rua Cinco de Julho. Seu compa­nheiro de quarto era um alagoano, de Palmeira dos índios, com a disposição de se formar em Economia. Não havia diálogo entre os dois. O alagoano já cursava o primeiro científico no Educandário Ruy Barbosa, na Gago Coutinho. Não ia dar assunto para um Isaías qualquer, de cultura menor do que o número de dentes.

A diferença era que Isaías, se não tinha cultura, tinha poesia porque Isaías tinha vida. O alagoano, não. Era metade homem, metade máquina. Estudava sem parar, de um modo que parecia automático. E tinha que ser assim, para quem quer, um dia, ser Roberto Campos. Isaías, tão diferente, nem sabia o que queria ser.

Sabe, alagoano? Andei pensando puxava assunto, tentando arrancar os olhos do colega daqueles livros cheios de números.

É?

Preciso arrumar um emprego, seu menino.

Procura.      

O diacho sabe o que é? Eu não sei fazer nada.

Aprende.

Ora, aprende. Ora... Home, vai-te. E eu lá tou na idade de aprender? Vou arrumar um servicinho qualquer sem precisar aprender nada. Lavar chão, tomar conta de carro...

Toma, ué.

O dinheirinho que eu trouxe tá se acabando. Dinheiro que a gente ganha no bicho, voa. É zipt, zapt, e cadê?

É.

— Danou-se — perdia a calma Isaías. Cala tua boca senão tu acaba é rouco.

Esta era a diferença. O alagoano era prático. Isaías era teórico. O alagoano vivia para estudar, Isaías estudava um meio de viver. Mas viver sem pressa, manso, como se fosse rico.

— Eu não queria ser rico, não, tu queria, alagoano?

— Queria.

— Pra que, homem? Pra viver tomando conta de dinheiro, morrendo de medo de ser roubado? Quero lá saber disso. Sabe o que eu queria? — e deitava, com as mãos cruzadas sob a nuca, para a descrição do seu sonho tão pequeno. — Se eu arranjasse qualquer coisinha que desse pro aluguel da vaga, as refeições aqui na pensão da Djalma... Djalma o quê?

Ulrich — ensinava o alagoano, exagerando propositada­mente num sotaque alemão que Isaías jamais teria chance de repetir.

— ... pois é. Tendo um dinheirinho certo pra vaga, a pensão e o cigarro, já estava bom demais.

Isto, para ele, era vida de rico. O resto do tempo, ele tinha onde gastar: praia. Pra que cinema ou teatro, se havia a praia!

— Por que tu não vai à praia, alagoano?

— Não gosto.

Home, vai-te. Aquilo é melhor do que cinema. Cada coxão — debruçava-se sobre o companheiro de quarto para o estimular. — Olha o coxão! E cada par de peito, seu menino, que não tem quem não babe, espiando a praga.

— É?

— Ói o tamanho dos bicho!

E mostrava com exagero, a boca cheia d’água. Ao mostrar, fazia de conta que tocava os peitinhos que via pular, na corrida das meninas para o mar. Sentia tocar, sabendo que nunca lhe seria dada esta oportunidade. Mas de sentir ninguém podia proi­bir. E mostrava de novo, de olhos arregalados, e já numa pré-masturbação.

— Ói o tamanho!

— Já vi.

— Cada peitão arretado!

Vai ver, os donos das donas dos peitões nunca tinham notado o quanto eles eram arretados. Mas Isaías estava ali pra isso: observar. E, observando, como que se aproveitava deles. Na praia, falava sozinho. Parecia que tinha gente do lado.

— Espia aquele. Aquele de maiô roxo. Tem que ver cuscuz. Égua! E aquele acolá? Menino. Antes, eu faço daquilo traves­seiro, e tiro um cochilo. E a bundinha dela? — e rolava na areia, numa alegria quase infantil. — Tá com a moléstia. Oh, bundinha jeitosa! Não tem que ver almofada de rendeira.

Se olhar não faz mal, pensar, muito menos. Isaías curtia, realmente, a cidade. Como dono de tudo: Rio, mar, praia, sol, mulheres.

Já começava a nem lembrar de Boa Viagem, do sorvete do Gemba, do programa de auditório (domingo à tarde, na TV Jornal do Comércio) até do Náutico já esquecera um pouco. Tentou, um dia, cantar o frevo que o Nelson Ferreira fizera para o seu Clube e não conseguiu passar da primeira frase, onde o nome era cantado, letra por letra:

— N... Á... U... T... I... C... O...

E mesmo a frase que os saxofones faziam, a seguir, não lhe veio à cabeça.

— Égua! Tou que não tem que ver um carioca. Isaías Carioca.

Já sentia que seus "ss" chiavam e os "rr" tinham lixa, na pronúncia que ele afetava. Carioca. Não autêntico, mas auten­ticado.

Só faltava cuidar da boca que, de fato, era um desconsolo. O lábio inferior ficava embutido, numa tentativa inglória de ocultar a falta dos de baixo.

— É — lamuriava-se — o cão da boca é que tá danado. Vê se isso é boca de gente. Home, vai-te!

Nesses momentos de reflexão dava razão aos que o chama­vam de "Cosme-e-Damião", e isso trazia uma pontinha de sau­dade da terra. O sorvete de mangaba ou de graviola como só se faz no Recife, as noitadas no "Flutuante", num convívio pro­míscuo e safado com as prostitutas do bairro do Recife, a água de coco de Boa Viagem, ali junto do hotel, ganhando dinheiro dos americanos, de quem engraxava os sapatos, cobrando o triplo, recebendo em dólar. O mesmo sapato engraxado hoje, voltava amanhã.

Arre, povo pra gastar graxa!

E lembrava os passeios com a namorada ao Parque Dois Irmãos, o siri catado no rio Doce. E o seu alvirubro.

— N-Á-U-T-I-C-O... — tentava mais uma vez a frase dos saxofones, desistia... — Como irá o Náutico? Bem capaz de ter dado uma pisa no Santa Cruz...

Mas logo procurava tirar da cabeça essas idéias bestas, esses pensamentos sem razão. Voltar, não voltaria... Pra quê? Cê besta. Estava no Rio, homem. Futuro é aqui.

E nunca mais pensava na Rua Nova ou na Ponte do Pina, até que lembrasse da boca.

— Será que isso tem jeito? — puxava o lábio inferior para um exame mais detalhado na gengiva. — Olha se isso é boca de gente. Tou lascado. Se eu não tivesse deixado arrancar...

Mas tinha deixado, e agora era como o próprio Isaías definia: "Tá na casa do sem jeito". O que ele não lembrava nunca era de arrancar também os incisivos e colocar uma dentadura.

Foi o alagoano quem o advertiu para esta possibilidade.

— Não fale perto de mim, Isaías.

— Por quê? Está com nojo?

— Tou. Vê se isso é boca que se apresente. Bota uma dentadura, homem de Deus.

A dentadura! Como não tinha pensado nisso antes? Até então só imaginava os dentes crescendo de novo; novos dentes sendo colocados, um a um, nas suas gengivas machucadas por um filé hoje, outro no dia de são nunca.

Mas a dentadura seria uma solução.

Isaías deixou até de ir à praia, imaginar pecados com os peitinhos e as bundinhas que Deus lhe deixava ver, nas meninas que corriam ao mar ou dele. Fez um pouco de tudo, para juntar dinheiro.

Lavou pratos e assoalhos; levou recados e rosas; carregou caixas e pacotes; jantou médias e guardou em meias. O alagoano o ajudaria. Ele sabia que o alagoano era gente boa e não o deixaria sozinho numa hora de tanta precisão. Já tinha vinte e sete contos. Descobriu, quando contava o dinheiro pela centési­ma vez.

Naquela noite nem saiu para olhar as empregadinhas que desfilavam no quarteirão do Metro. Ficou no quarto, esperando o alagoano. Ele só chegou quase meia-noite.

— Tá acordado, Isaías?

— Tava te esperando, alagoano. Eu queria que você me fizesse um favorzinho.

Era o primeiro favor que Isaías pedia. O alagoano ouviu aquilo pressentindo um pedido de dinheiro. Já se preparava para negar, quando Isaías apressou-se a explicar:

Ajuntei vinte e sete conto. Será que isso dá?

— Dá pra que, homem?

— A dentadura. Se lembra não? — passou o dedo nas gengivas vazias. — A dentadura, alagoano.

Ah, era isso. O alagoano reagiu como um vencedor. Afinal, Isaias lhe pedia um favor, levado pelo fato de ter aceito um con­selho seu.

— Tem quanto?

— Vinte e sete. Dá?

— Se não der, anda perto.

Combinaram que na manhã seguinte cuidariam disto.

A dentadura não podia ser sob medida, que isto custava de 50 contos pra cima, mas um amigo do alagoano, dentista, indicara uma loja na Rua Marechal Floriano onde vendiam umas "maravilhosas, que pareciam de verdade" por um precinho bem em conta. O dentista que deu o endereço foi o que — de graça, para atender ao alagoano, extraiu os dois incisivos que Isaías levou no bolso para, futuramente, fazer enfeite de um chaveiro.

Foi para a cidade de bonde. Não queria gastar em ônibus o dinheiro dos sisos.

A loja era escura como a dúvida.

Um balcão antigo, daqueles que têm a cobri-los um vidro de extremidades quebradas e através do qual as dentaduras sorriam para os prováveis fregueses.

— Eu vou se rir aquela — pensou Isaías, enquanto o homem examinava sua boca, numa tentativa de medi-la com o olhar.

— É — falou o vendedor — tenho uma aí que eu acho que vai dar na medida, amigão.

Não estava na vitrine, mas num vidro, na prateleira. Devia ser coisa especial, de tão bem guardada que estava. Isaías não podia experimentar, era lógico.

— E se não servir? — argumentava o vendedor com a dentadura num vidro.

Tinha razão.

— Vou ter que desinfetar para o próximo freguês. Olhe bem e veja se gosta.

Gostar ele gostara. Pois se gostara até mesmo daquela do mostruário!

— Primeiro me diga, seu menino, em quanto fica?

— Trinta.

Home, vai-te!

— Trinta, e não tiro um tostão.

Carioca do inferno que não se comoveu de maneira nenhuma.

Nem os pedidos de Isaías, nem os argumentos do alagoano serviram pra nada. Trinta, e trinta no duro. À vista. Enquanto o homem louvava o material usado na confecção da dentadura, Isaías se mortificava nas contas. Contava e recontava o dinheiro.

Não adiantava. Seu capital não excedia de 26 e quebrados. Foi quando, mais uma vez, Alagoas ajudou Pernambuco.

— Leve, que eu completo.

— Alagoano, mas pra te pagar...

— E quem tá falando em pagar? Gostou da chapa? Bote e leve. Eu completo. É presente.

— Alagoano...

— Leve, homem, não tou dizendo que leve?

Era de se filmar. O modo como segurou o sorriso que agora seria seu. Um olhar, com a dentadura na mão, para o dono da loja e para o alagoano, seu Amigo. Uma pausa entre a vinda do vidro para a boca e, por fim, ploc.

Doeu, no começo, mas valia a pena. Havia palavras que só pronunciaria com muita dificuldade, como havia as que jamais. A dor começava no ouvido, como se partisse do fundo da cabeça, mas que diferença! E que sorte! Tudo por 26 e quebrados, por­que o alagoano tinha dito que era presente:

— Tá boa? — perguntou o dono da loja.

Isaías confirmou com um balançar de cabeça, por achar im­prudente arriscar-se às palavras na hora exata em que vestia a dentadura.

Saiu dali como quem põe roupa nova. E ele punha muito mais: cara nova era o que usava.

Pensou nos amigos, no Náutico, no mar com temperatura de mijo, nos guaiamuns de Olinda.

Agora era que ele queria ver a cara do Aldemar Paiva, pai do apelido. Isaías Carioca. Carioca, como os outros por que passava na rua. Agora podia curtir muito mais. À vontade. Curtir o sol e as mulheres do Rio. Até namorada, se Deus quisesse e ajudasse, ia conseguir.

Procurem por ele. Mora hoje num conjugado na Rua Aires Saldanha. Conjugado que divide com um amigo alagoano, for­mado em Economia e trabalhando para ser assessor do Professor Roberto Campos. Está, todas as noites, na esquina de Miguel Lemos com Copacabana, discutindo futebol com Neném Prancha, João Saldanha, Macaé, a "turma da Miguel".

Perguntem ao Paulinho jornaleiro quem é o "Boca de Fartura".

 

                   INJEÇÃO DE ADRENALINA

Pisando macio, girou a chave na porta e se levou para o quarto sem acender as luzes. Evitava que o velho Tomás se apercebesse de que só agora chegava. O velho o acreditava dormindo desde nove e meia.

De short e sem camisa, tentava espantar o calor e chamar o sono, ao mesmo tempo em que buscava uma solução para o seu problema financeiro.

Foi quando escutou o grito.

— Depressa, a Adrenalina!

A voz do velho Tomás mais uma vez ecoava rouca pelos corredores, chamando Raulzinho no seu quarto.

— Estou morrendo!

Sucedia pelo menos duas vezes cada mês. Raulzinho levan­tava com a lepidez costumeira, tomava da seringa, previamente fervida, serrava a ampola e, em sessenta segundos, fazia o lí­quido penetrar na veia do velho Tomás, seu rico tio, salvando-o da morte.

Nessa noite teve a idéia.

— Raulzinho! — insistiu o velho, com a mão apertando o peito.

— Tou indo!

O velho respirava com dificuldade, mas agora com a tran­qüilidade a lhe chegar, por saber do sobrinho a caminho.

O velho Tomás, pequenino e simpático como um velhinho de cartoon, testa aumentada pelo constante cair dos brancos ca­belos sempre despenteados, não tinha filhos porque a mulher, falecida há alguns anos, não lhe dera nenhum. Criara Raulzinho, todavia, como se dela tivesse nascido.

Isto explicava o enorme cuidado do rapaz pela saúde do velho — magistrado aposentado — verdadeiramente tio, porém bem mais pai do que o pai o fora.

— Um segundinho, um segundinho — avisava Raulzinho, arrastando os chinelos pelo corredor de tábua corrida, Adrenalina já posta na seringa, pensamento ruim a lhe mexer na cabeça.

— Dez minutos. Se eu tivesse demorado mais um pouco...

O velho já o aguardava com a manga do pijama levantada, veia à espera do medicamento.

— Depressa, meu filho... — implorava o velho, num la­mento que já não o comovia, pelo tanto que se repetia.

— Prontinho...

O velho fechava os olhos. Incomodava-o, sempre, o enfiar da agulha.

— Puxa. Esta semana foi a segunda vez.

— Hem?

— Duas vezes, esta semana — repetiu Raulzinho, menos filho do que o habitual.

— É. Está piorando. Se não fosse você...

— Por mim você não morre nunca. Eu praticamente não durmo, de ouvido atento, pai.

Chamou-o "pai", como sempre fazia, mas desta vez de uma maneira acintosa. Já tinha retirado a seringa da veia que se do­brava a espremer o algodão. Deu um jeito melhor nos lisos ca­belos do velho, fê-lo ficar mais confortável no travesseiro, acer­tou-lhe o lençol, beijou-lhe a testa de muitas rugas.

— Eu devia dormir aqui no quarto com você.

— Não precisa — falou o velho, num fio de voz, cara rela­xada pela descontração que a Adrenalina provocara.

Raulzinho abriu a veneziana, fechou melhor a cortina mar­rom, novamente beijou o velho e voltou à cama, pensando em dinheiro. Trinta dinheiros era o que pensava.

A idéia, já tivera. Como realizá-la, o dicionário explicou: embolia. O livro policial que lera há pouco garantia a dificuldade do diagnóstico da injeção de ar na veia. Os sintomas eram os da morte por colapso. O coração do velho Tomás, com o progresso dos ataques — os vizinhos eram testemunhas — ao parar, não poderia trazer acusações a ele, santo filho, sempre atento para a aplicação da injeção salvadora.

Na mesma noite o velho Tomás sentiu o aperto no peito.

— Depressa, Raulzinho!

Não teve pressa. Gritou que já ia e tomou da seringa com um suor de mão que procurava enxugar na perna do short.

— Depressa! — repetiu o velho, mais rouco e mais tenso.

A seringa foi levada como se fosse uma arma. A diferença é que nela não havia líquido, apenas os centímetros de ar sufi­cientes para lhe dar a herança.

— Já tou indo! — gritou, enquanto derramava na privada a Adrenalina tirada da ampola, cuidando de dar a descarga.

Dissimulava a excitação o melhor possível.

— Estou aqui, pai — disse, como sempre, olhando a seringa contra a luz pequena que o abajur produzia.

— Não, Raulzinho. Não preciso de injeção. É que eu estive pensando numa coisa. Eu estou velho, no fim da vida. Pra que eu quero dinheiro? Amanhã vamos ao tabelião e eu vou passar tudo o que tenho para o seu nome. Você não necessitará mais ser empregado de ninguém, pode abrir um negocinho, sei lá...

Pensou em atirar a seringa contra a parede e, ajoelhado aos pés do velho Tomás, pedir perdão pelo que se dispunha a fazer. Não pôde, faltou-lhe chão aos pés. Os olhos, anuviados, não o deixaram ver nada além de sombras que se desmanchavam muito depressa.

Caiu, com a mão no peito. A seringa rolou para o canto da parede.

O velho Tomás levantou da cama com rapidez juvenil e, muito preocupado com o desmaio do filho, nele aplicou a injeção que Raulzinho trazia para salvar a vida do "pai".

 

                   AS TRÊS DONZELAS

Tita e Rosário eram chamadas velhas, mas não mereciam. Não tinham 50 anos. Mas procediam de um modo tão superado, que envelhecê-las no trato não lhes causava repúdio. Aceitavam o adjetivo até com certo orgulho, pois isso as distanciava desta torpe juventude que a tudo se permite.

As moças do Engenho Novo, aos beijos pelas calçadas, davam nojo às velhas, uma alegria esquisita de não pertencer ao tempo em que isso era permitido.

— No meu tempo...

— No meu tempo.. .

Assim começavam, sempre, as frases que diziam, querendo amaldiçoar o presente deletério.

O estigma da virgindade era o escudo das velhas, resguardo que transferiam à gatinha Margarida, criada com muito dengo, cuidada como uma filha, tratada a leite de cabra, comendo à mesa com as duas, que lhe davam colheradas da sopinha, do cozido, do que tivessem a comer. Comiam as três na mesa: a filha e as duas mãezinhas.

Viam em Margarida gente. Gente que não incorreria nos erros nem nos pecados que sempre presenciavam nos moços e nas mocinhas, todos muito acalorados, em chamegos sem-vergonhas, deslizar de mãos nos seios, passeios por entrepernas, beijos prolongados. Quando não era pior, pois mesmo o pior havia. Às vezes, um casal ousado pulava o muro do 30, a casa abandonada, e, deitados no jardim, faziam daquilo um hotel, onde Deus que perdoasse o que consumavam, com as velhas testemunhando pelas frestas da janela, já que as duas moravam no 32, justo ao lado.

As outras gentes da rua achavam um crime o castigo que as velhas impunham à pobre gatinha, tirando dela o melhor gosto da vida.

Quando a gata vinha à rua, apertada contra o peito de Dona Rosário ou Tita, havia em seu olhar uma tristeza muito grande. Seu olhar escorria até chegar a um dos gatos que se espalhavam na rua, esperançosos, famintos, guardando seus ape­tites para a provável escapada que um dia a gata daria.

No dia em que viajou por total necessidade pra receber dinheiro em Londrina, Paraná, Dona Rosário fez Tita prometer que dobraria seu cuidado sobre a gata.

— Veja bem, Tita. Você fica responsável pela menina.

Oh, Rosário, então você acha o quê?

— É que você é distraída, pode esquecer uma porta aberta, uma janela escancarada... A menina precisa ser defendida.

A "menina", neste dia, começava a se encrespar pela che­gada do cio. Mais um tempo de sofrer, de esfregações pelas mesas, de arrastos pelo chão, miados muito doridos, aquela coisa de sempre.

Dona Rosário se foi e, com ela, também vamos, esquecendo, assim, um pouco, a menina Margarida, tão carecida de amor, tão precisada de gato a enclausurada donzela, por sete chaves trancada, como filha de El-Rei, como vivente do tempo do cinto de castidade.

Londrina, de chão vermelho, velha cidade tão nova, recebeu Dona Rosário com ameaça de chuva. Ela se hospedou na casa de um tal Meireles, responsável pela herança que fora receber, deixada por um parente do qual nem mais se lembrava, mas que, nos seus cafezais, fizera dinheiro grosso e, à falta de mulher e filhos a quem deixar, fizera das duas velhas herdeiras universais.

— Em dois dias a senhora estará livre.

— Quanto mais cedo melhor.

— Dois dias, prometo.

No começo eram olhares, depois tocaram-se as mãos, houve apertos e arrochos nos corredores da casa, e a coisa acabou em cama, como era de se supor, desde que o Meireles apareceu na estória.

Os dois dias foram vinte, mas podiam, bem se sabe, ter sido apenas dois. Dezoito foram os outros, os dias de amor. Dona Rosário, aos cinqüenta, perdera a virgindade e, enlaçada em Meireles, parecia veterana. Meireles até estranhava — e tinha 62! — a enorme desenvoltura, os fartos conhecimentos que Rosário apresentava. Ela era dominante, estabelecendo posturas, determinando momentos, dizendo as coisas precisas que são sempre interessantes ou mesmo essenciais.

Às vezes, depois do amor, descansando o corpo antigo, Rosário, enrodilhada, menina-moça do amor, miava igualzinho à gata, vivendo as delícias de um cio inacabável. Roçava as unhas nas costas do amante, como gata e, como gata, gemia fino e longo, quando nos seios sentia as grossas mãos do Meireles, amante do amor primeiro, safado velho de guerra.

Os dias foram vinte, como já disse e repito. Daí partiram os dois, Meireles — Dona Rosário, para providências definitivas.

Com o dinheiro enfurnado na caixa-forte do banco, trans­ferido pra São Paulo, onde Meireles morava, Rosário foi ao correio e de lá, consciente, telegrafou para a irmã do Engenho Novo, numa redação lacônica, onde pensou explicar o bom que lhe acontecera.

Solte Margarida — dizia o telegrama.

E esqueceu de assinar.

 

                   UM AMIGO ANTIGO

De início, tudo são flores. Esta frase idiota era, no entanto, verdade, porque ela, Margarida, e ele, João Cravo, tinham flores nos seus nomes.

Conheceram-se na Penha quando pagavam promessa, su­bindo os dois, de joelhos, os degraus da igreja. Durante a subida, nos momentos de parada para o repouso das rótulas, ficaram sabendo das coisas que os torturavam a ponto de dar motivo às promessas. Souberam mais: os seus nomes, telefones, ende­reços, dissabores, esperanças, e também ficaram a par das imen­sas solidões que dominavam a vida que carregavam, pois o verbo era bem esse.

Entraram na igreja já um pouco mais amigos. Tinham as mãos dadas num quente apertar de dedos que se entrelaçavam, pondo isto ao bom serviço da santa que amavam. Achavam um exagero o milagre nem pedido, só de longe imaginado.

Na prece que os dois fizeram em pé (joelhos sangrando), mudamente agradeceram o encontro proporcionado pela santinha adorada, sempre de mãos em aperto, amor pingando dos poros abertos pelo esforço na subida.

Não nos atenhamos, porém, ao começo do romance, que foi igual a milhões: trocas de muitos beijos, juras de amor infindo, a constante procura e encontro de João Cravo e Margarida, pas­seios pelos jardins, encostamentos nos muros, sofá da sala da dona que, por ser desquitada, dava a João certos favores que eram retribuídos no carinho que ele dava.

Margarida nem lembrava do primeiro marido. Sumira um mês depois do casamento civil, e a última notícia era a de que ele andava em Manaus ou Belém. Sabia que era no Norte.

Como não podia casar, um mês depois do milagre os dois se juntaram.

João Cravo, querendo filhos, Margarida transferindo, acabou engravidando, botando gêmeos no mundo. Depois dos dois, a menina, que se chamou Madalena. Devia chamar-se Penha, mas João Cravo ponderou que isso não era certo. Penha só se cha­maria filha de casal casado. Esperavam pela morte do marido em Santarém, porque chegaram notícias contando ele andar doente.

Ficaram em três, todavia. Os gêmeos (Mário e Marino) e Madalena, a menina, um ano e pouco mais nova. Os três, a fuça do pai, moreno da cor de um índio, cara de linhas marcadas, um rosto anguloso, feito com régua, olho aberto a compasso.

Ponha-se em conta do encanto a boa vida levada nos quatro primeiros anos de João Cravo e Margarida. Pode ser que tenha sido a busca louca de filhos que tenha cegado João, a ponto de não lhe deixar notar a frieza da mulher. Passados cinco anos, João Cravo então se deu conta de que o amor muitas noites evitado, a busca sem proveito pelo corpo da mulher, dor de cabeça constante, um gozo chocho, sem graça, o sexo obriga­tório, de pouco ou nenhum prazer.

— O que é que você tem?

— Nada. Uma dorzinha...

— De novo?

— Dor de cabeça.

— Toda noite, Margarida?

— Mas eu não posso ter dor?

— Pode, bem, mas toda noite?

Não era assim toda noite, mas era em volta disso.

Ponha-se em conta das dores de Margarida a aceitação do amor que Suzana ofereceu.

Suzana cresceu na vida, tomando João pra si, e ele sumiu com ela, deixando assim Margarida desquitada e desamada, com 3 filhos pra criar, os gêmeos já com 3 anos, Madalena indo aos dois.

Margarida não tentou tirar esta idéia de João.

— Quer ir? A porta está aberta.

Ficou com os meninos e a máquina de costura que lhe aju­dava na criação das crianças. De noite fazia doces pra festas de aniversário. Deitava depois da uma, acordava antes das sete. Mesada João não lhe dava e nem tinha obrigação. Mesmo sendo casada, não lhe pediria nunca um centavo. Os filhos, os seus problemas, ela os resolveria. Mas tinha uma resolução tomada pra toda a vida: "Homem, nunca mais!"

As poucas jóias que tinha, de valor pequeno, dormiram nas prateleiras da Caixa, em penhor. Depois vendeu as cautelas, fazendo dinheiro. Sem contar os empréstimos tomados a juros descomunais.

Os filhos cresceram tanto quanto as dívidas contraídas. Os três eram muito certos, estudavam o necessário, e Marino, o mais esperto, arranjou um empreguinho que o ajudava a ajudar nas contas que a mãe pagava.

No quarto, luz apagada, preparada para dormir, Margarida agradecia os filhos que João lhe dera, três crianças feito ouro, três joinhas muito ricas, que um dia seriam gente e, então, ofe­recia contrita Salve-Rainha à "memória" de João Cravo, de cujo paradeiro não tinha notícia.

Passaram-se quinze anos do dia em que João se tinha ido.

Madalena, professora, ensinava em Madureira, numa escola do governo, e os irmãos, Mário e Marino, faziam cursos pra en­frentar o vestibular. Margarida emagrecia, cabeça já tão grisalha, os olhos diminuídos pela lente avantajada, via os filhos debru­çados sobre os livros e chorava a alegria de vê-los no rumo certo, a caminho do diploma.

— Meus filhos de anel no dedo, minha filha professora, a vida foi muito boa, Deus tomou conta de mim.

Foi assim que João a achou no dia em que, arrependido, apareceu de repente, na volta nunca pensada.

— Alô — foi o que falou quando a porta foi aberta.

Ela olhou e, de cabeça, retribuiu o alô, sem nenhum pasmo ou surpresa, olhando apenas nos olhos, os olhos que João trazia, embotados por um choro que era quase evidente.

— Alô — ele repetiu.

E então ela disse: "Alô".

— Quer entrar? — ofereceu, gentil e maquinalmente.

— Se você deixa... — e sorriu.

A porta escancarada deu passagem a João Cravo que, muito desajeitado, entrou, sentou no sofá, mãos fechadas entre as pernas, um jeito mais de visita do que qualquer outra coisa.

A roupa, suja e surrada, a camisa encardida, sapatos desengraxados, cabelos em desalinho, as rugas tomando os olhos, vincos fartos pela testa, um ricto de sofrimento. "Um homem meio molambo" — Margarida deduziu depois de muito o olhar no exame que fazia no homem que ali estava.

— Como vai? — João quis saber.

— Muito bem — ela falou.

— E as crianças?

— Crescidas.

— Estudando?

— Estudando. Madalena é professora.

— Que bonito!

— Também acho.

— Os meninos...

— Vão ser médicos. Vão fazer vestibular, e eu tenho plena certeza de que serão aprovados.

— Doutores... — suspirou fundo — ...doutores!

— Se Deus quiser.

— E você?

— Eu já falei. Eu vou bem, vou muito bem.

João levantou um instante, foi à janela e a abriu. Queria ficar de costas para não mostrar o pranto que descia pelo rosto. Margarida ali o deixou e foi fazer um café. Quando voltou, ele estava ainda lá na janela, olho parado na rua, como quem exa­minasse as pedras do calçamento.

— Um cafezinho, João?

Ele aceitou e sorveu o café num gole longo.

— Senta, João.

Ele sentou.

Madalena e os meninos ainda não tinham chegado. Ele voltou ao sofá. Ela, na cadeira em frente.

— Eu andei lá pelo Sul.

— É?

— Andei. Você não soube?

— Não. Se soube, não me lembro.

— Andei por lá um tempão.

— Calculo. Faz tanto tempo...

— Quinze anos.

— Tudo isso? Gozado. Parece menos.

Ele sofreu muito a frase. No modo como falara, João per­cebeu que a chance de voltar àquela casa era nenhuma. Nenhuma. Ficaram calados, mudos, por minutos infindáveis. Ele olhava a simpatia da mulher que tanto o amara, simpatia que crescia pelos cabelos cinzentos. Os óculos lhe davam um jeito de professora primária, um aspecto agradável, os óculos caíam bem.

— Você fica bem de óculos.

Ela os levantou com o dedo, chegando-os ao posto certo, e sorriu agradecida pelo elogio de João.

A porta abriu-se depressa, como se fosse empurrada por força de furacão. Madalena, muito alta, cabelos longos e lisos que deveriam dançar a lhe varrer por detrás, quando corresse ou andasse em passo mais apertado. Madalena, alta e linda, entrou e freou o passo. Seus olhos de moça nova viram João no sofá. À entrada dela ele levantara quase em salto. Madalena olhou o homem e nele viu sua cara. Depois fitou Margarida num olhar que perguntava. A resposta foi um riso escondido, disfarçado. Madalena não fez mais que dizer um boa noite e sumiu no corredor.

— Ela não me conheceu.

— Nem podia conhecer. Tinha menos de dois anos, não podia conhecer.

— É verdade.

— Quinze anos. Não lembra? Faz quinze anos.

Ele muito se lembrava. Depois chegaram os gêmeos, entran­do às gargalhadas. Beijaram a mãe na testa e nem deram atenção ao homem que, no sofá, esperava pelo menos um boa noite igual ao que ouvira da filha. Sumiram no corredor, e os dois voltaram a ficar sozinhos naquela sala.

— Dois homens!

— Vão ser doutores — reafirmou Margarida, desta vez muito orgulhosa.

Daí, por falta de assunto, ela perguntou as coisas que ele há muito queria falar, contar, explicar.

— Estou no fim.

Foi o começo da estória que contou. Estória muito sofrida, de enganos e dissabores, contou da mulher (Suzana) de mau proceder constante. Falou de amor só de carne, sem filhos, sem bem-querer, do uruguaio Manolo, com quem Suzana sumira pros lados de Uruguaiana; da ida dele à procura da mulher que o enganara. E antes houvera outros, até um negro peão, de uma fazenda de gado, andara achando em Suzana o xodó que pro­curava. Mas sempre havia o perdão ditado pelo desejo. Con­fessou que era Suzana a mulher que o atendia na justa medida, a exata, do sexo. Somente sexo. Aos poucos, foi acordando e vendo que aquilo tudo era coisa de animal. Gente não procede assim, isso não é coisa humana. Falou um quarto de hora na resposta da pergunta que era só:

— E você?

Foram essas cinco letras que provocaram o chorrilho de con­fissões tão sinceras, tardio arrependimento.

Madalena perguntou se não iriam jantar.

Margarida levantou, depois de pedir licença, e foi preparar a janta, modesta como a de sempre.

— O senhor janta conosco?

A filha, que perguntou.

— Não obrigado, filhinha. Eu já estou de saída.

Muito delicadamente Margarida despediu-se com os filhos já em volta da mesa, começando a se servir.

Da porta, João escutava o tinir de prato e faca. Margarida lhe estendeu a mão, num gesto comum. Ele lhe deu um boa noite, ela, então, fechou a porta e foi sentar-se à mesa, juntando-se aos seus três filhos.

— Quem era? — perguntou Mário.

— Um amigo antigo da mamãe, um amigo do passado — lhe respondeu Madalena, tomando o lugar da mãe na resposta que ela, tonta, procurava encontrar.

— É, meu filho. Um amigo antigo.

Comeram muito calados.

 

                                                                                Chico Anísio  

 

                      

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