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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ESCÂNDALO LHE CAI BEM / Shirlee Busbee
O ESCÂNDALO LHE CAI BEM / Shirlee Busbee

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                   Inglaterra, 1804

O amor é mais doce quando é inesperado...

Nell Anslowe e Julian Weston, o conde de Wyndham, são um casal improvável em todos os aspectos. Ferida em uma queda de cavalo há dez anos, Nell foi abandonada pelo noivo e ficou com uma perna defeituosa e a convicção de que nunca se casaria.

Depois de um casamento infeliz, Julian toma a resolução de permanecer solteiro pelo resto da vida. Mas quando sai em busca de sua irmã e é surpreendido por uma tempestade de verão, ele procura abrigo em uma cabana e a encontra ocupada por Nell, que está fugindo de um caça-dotes. Ao serem descobertos sozinhos na cabana pela família de Nell, um casamento precipitado é a única maneira de salvar Nell de um escândalo.

Contudo, a união civilizada que ambos esperavam logo se transforma em algo bem mais poderoso e arrebatador...

 

 

 

 

                                               Capítulo I

O pesadelo surgiu das profundezas de seu sono sem sonhos. Em um segundo Nell estava mergulhada num sono tranqüilo, e em outro estava presa naquele pesadelo. Lutando contra as cobertas em sua cama, ela tentava esca­par das horríveis imagens que atravessavam seu cérebro, porém era inútil, assim como nas outras noites.

Como acontecera antes, ela assistia indefesa aos ter­ríveis atos praticados à sua frente. O cenário era sempre o mesmo, um lugar escuro, parecido com uma masmorra escondida sob as fundações de uma antiga construção. As paredes e o chão eram compostos por pedras cinzas e pesadas, a luz fraca que vinha das velas revelava os instrumentos de tortura de uma outra época, de uma Inglaterra mais selvagem, instrumentos que eram usados por ele de acordo com seu humor.

A vítima naquela noite, como das outras vezes, era uma mulher, jovem e amedrontada. Seus enormes olhos azuis estavam tomados pelo terror, um terror que parecia agra­dar seu carrasco. A luz das velas sempre iluminava o rosto das mulheres, enquanto o homem permanecia nas som­bras, a face oculta, embora cada ato seu sobre a jovem ficasse muito claro para Nell. No fim, após ele ter fei­to o que havia de pior e jogar o corpo em um buraco na masmorra, a luz se apagava e Nell conseguia sair daque­le pesadelo.

Dessa vez não foi diferente. Livre daquelas ima­gens, um grito surgiu em sua garganta. Nell levantou-se de repente, cornos olhos verdes brilhando por causa das lágrimas não derramadas e do horror. Lutando para não gritar, ela olhou ao redor e sentiu-se aliviada ao perceber que tudo tinha sido apenas um pesadelo. Estava segura na casa de seu pai em Londres, a mobília em seu quar­to tomando forma com a luz que vinha do fogo na larei­ra e a claridade suave que se infiltrava pelas cortinas. Do lado de fora das janelas vinham os sons familiares de Londres, o tropel de cavalos, o rodar de carruagens e os gritos distantes de vendedores, oferecendo produtos como vassouras, leite, legumes e flores.

Nell sentiu um arrepio e cobriu o rosto com as mãos, pensando se aqueles pesadelos nunca iriam terminar. Respirou fundo, afastou para trás uma mecha do cabelo castanho-claro e inclinou-se para apanhar a jarra de água que sua criada havia deixado sobre a mesa de mármore perto de sua cama. Derramou um pouco no copo ao lado e bebeu a água em um único gole.

Sentindo-se melhor, sentou-se na cama e, olhando para a agradável penumbra do quarto, tentou colocar os pen­samentos em ordem e sentir algum conforto por saber que estava a salvo, ao contrário da pobre criatura em seu pesadelo.

Eleanor "Nell" Anslowe nunca fora incomodada na infância por pesadelos. Sonhos ruins nunca haviam per­turbado seu sono até aquele trágico acidente, no qual ela quase perdera a vida, quando tinha dezenove anos.

Era estranho como sua vida fora maravilhosa antes da tragédia e como isso mudara nos meses que se seguiram. A primavera daquele ano horrível fora testemunha de seu triunfo na temporada em Londres e de seu noivado com o herdeiro de um ducado.

Nell retorceu os lábios. Tendo acabado de celebrar seu vigésimo nono aniversário em setembro, e olhando para trás, dez anos antes, parecia incrível que um dia ela fora uma jovem alegre e confiante, que tinha ficado noiva do melhor partido daquela temporada, o filho mais velho do duque de Bethune. Quando Aubrey Fowlkes, marquês de Giffard e herdeiro do duque, declarou que pretendia se casar com a filha de um mero barão, mesmo que bas­tante rico, houve muito falatório sobre aquele noivado, na primavera de 1794.

E isso não foi tudo, pensou Nell, contrafeita. O noi­vado fora rompido naquele ano, o mesmo ano era que ela sofreu uma queda do cavalo que quase a matou e a deixou com uma perna que nunca havia curado de todo. Até agora, ela ainda andava mancando, principalmente quando estava cansada.

Nell levantou-se da cama e foi até uma das enormes janelas com vista para o jardim da casa. Afastou as cor­tinas e abriu a porta dupla que dava para a sacada. De lá olhou para o terraço de pedra e para as esculturas que o rodeavam, a suave luz do sol da manhã começava a tocar as roseiras mais altas. Seria um adorável dia de outubro.

Ela se levantara cedo naquela manhã, dez anos antes, e correra para os estábulos. Ignorando os conselhos de seu pai para não cavalgar sozinha pelos rochedos, ela nem mesmo chamou o cavalariço, uma vez que sua montaria favorita, Firefly, já estava selada. E assim, galopou para longe da casa.

Ela e a égua estavam ansiosas para passear nas pradarias, sentindo o ar fresco da manhã e o calor gostoso dos primeiros raios de sol.

Nunca ficou claro o que causara o acidente de Nell, pois após recobrar a consciência, ela não se lembrava de nada. Aparentemente, a égua tinha tropeçado e ambas foram atiradas para o fundo de um penhasco. A única coi­sa que evitou que Nell morresse naquele dia foi ela ter caído numa saliência do rochedo. Firefly morreu nas pedras, lá embaixo.

O desaparecimento de Nell não foi percebido por algu­mas horas, e quando ela foi encontrada já estava come­çando a escurecer. Um dos homens munidos de lanternas a avistou e gritou, chamando os companheiros. Levou horas para que conseguissem trazê-la para cima, e foi uma sorte ela ter ficado inconsciente durante toda a operação de resgate. Ela não acordou nem mesmo ao chegar em casa e ser atendida pelo médico, que cuidou dos ossos quebrados de seu braço e de sua perna. Naqueles primei­ros dias, todos temiam que ela nunca se recuperasse.

Aubrey foi avisado imediatamente, e Nell reconhecia que tinha de dar crédito a ele por ter vindo tão rápido, e ter permanecido por duas longas semanas em Meadowlea, enquanto esperavam que ela acordasse, imaginando se isso aconteceria.

Vários dias se passaram antes que ela recobrasse total­mente a consciência e compreendesse o que estava aconte­cendo. Mesmo assim, estava bastante confusa, e ouvia os comentários sussurrados de que talvez a pancada na cabe­ça a tivesse deixado abobada. Diante dessa possibilidade, ninguém estranhou quando sir Edward disse a Aubrey e ao duque que entenderia perfeitamente se eles achassem melhor cancelar o noivado.

Aubrey não pensou duas vezes. Afinal, sua espo­sa um dia seria uma duquesa, e aquela criatura abatida e inerte deitada lá em cima não era a mulher que ele tinha em mente quando a pedira em casamento.

Naquele mês de novembro, o noivado foi termina­do discretamente, apenas cinco meses depois de ter sido anunciado.

A recuperação de Nell foi lenta, mas na primavera seguinte, a confusão mental tinha desaparecido, o braço tinha sarado, e ela conseguia caminhar pela propriedade com a ajuda de uma bengala. Com o passar do tempo, as únicas conseqüências da queda quase fatal eram sua perna e os pesadelos.

Muito do que acontecera durante a recuperação, Nell não se lembrava. A única coisa clara em sua mente era o pesadelo que a assombrava. O primeiro deles passava pela sua cabeça repetidamente e fora diferente dos que ela tinha agora. A vítima era um homem, e o crime acon­tecera numa floresta. Mas o desfecho fora o mesmo de sempre: uma morte horrível pelas mãos de alguém ocul­to pelas sombras. Só depois é que as vítimas passaram a ser mulheres, e uma masmorra o cenário da brutalidade e do assassinato.

Enquanto sua recuperação progredia, Nell espera­va que os pesadelos desaparecessem, que fossem apenas uma estranha conseqüência de sua queda.

No verão, eles finalmente cessaram. Ela passou o outono e o inverno contente e aliviada, desfrutando noite após noite um sono tranqüilo e reparador.

Até aquela noite, quando o pesadelo voltara a assombrá-la.

Suspirando, Nell desviou a vista do jardim e foi avivar o fogo na lareira. Assim como sua perna defei­tuosa, os pesadelos haviam se tornado uma parte dela, com a diferença de que a perna a incomodava constan­temente, enquanto os pesadelos aconteciam de vez em quando. Às vezes, um ano inteiro podia se passar sem que ela tivesse um único pesadelo. Após cada um deles, ela rezava para que tivesse sido o último, porém, mais cedo ou mais tarde, ele reincidia, com poucas mudan­ças apenas, o rostos das mulheres e o grau de selvageria. No mais, era sempre igual, aterrador.

Nell se deu conta de que era a terceira vez naquele ano que ela tinha o pesadelo. Mas dessa vez fora pior, por­que ela tinha a impressão de que conhecia a moça, de que já tinha visto aquele rosto antes.

Nell pegou o robe que estava no encosto da poltrona e o vestiu, tentando se livrar da sensação desconfortável do sonho. Como podia achar que conhecia a moça que estava sendo assassinada? Não era possível, não fazia sentido. Talvez estivesse com aquela impressão porque já tivesse sonhado alguma vez, antes, com aquele mes­mo rosto.

Sim, só podia ser isso.

Não totalmente convencida, ela foi para o quarto de vestir e colocou a água de uma jarra de porcelana numa bacia. Lavou o rosto, tentando afastar da mente aqueles pensamentos. Tinha um dia atarefado pela frente, todos iriam para Meadowlea no decorrer daquela semana, e havia muito a ser feito.

Quando Nell chegou à sala do café, não ficou surpre­sa ao encontrar seu pai, apesar de ser tão cedo. Depois de passar por onde ele estava sentado e dar-lhe um beijo na face, ela foi até o aparador e serviu-se de uma torrada, geleia, um bolinho e uma xícara de café, para então sen­tar-se à mesa com o pai.

Aos sessenta e nove anos, a não ser pela cabeça calva, sir Edward ainda era um homem bonito. Nell havia herda­do seus olhos, a estatura e o físico esbelto, mas os cabe­los castanhos e as belas feições eram de sua mãe, Anne, assim como o riso espontâneo e melodioso que ilumina­va os olhos verdes. Naquela manhã, porém, eles estavam anuviados. Edward olhou para ela e franziu a testa.

— Teve outro pesadelo, querida? — perguntou, conhe­cendo muito bem a filha.

Nell fez uma careta e assentiu.

— Ainda bem que, pelo menos, foi já de manhãzinha. Consegui dormir boa parte da noite antes disso.

Por um momento, a expressão dele ficou triste. A esposa havia morrido havia catorze anos, e ele ainda sen­tia falta dela, especialmente quando ficava preocupado com Nell. Anne saberia o que fazer. Uma moça precisa­va da mãe...

A porta da sala se abriu e ele viu o filho entrar.

— Levantou cedo, rapaz. Alguma coisa importante para fazer hoje?

Robert sorriu e respondeu por sobre o ombro, enquan­to se servia de presunto e ovos:

— Prometi a Andrew que iria com ele olhar alguns cavalos puro-sangue. Não tive escolha senão concordar em sair de Londres não depois das oito da manhã! Não sei onde estava com a cabeça...

Robert tinha trinta e dois anos e era o herdeiro e mais velho dos filhos de Edward. A seguir vinham os gêmeos, Andrew e Henry, Nell era a caçula.

Robert parecia-se muito com o pai, era alto e magro, tinha a mesma cor de olhos, o queixo quadrado e os maxilares angulosos. Os fartos cabelos castanhos, ele agradecia constantemente por ter herdado da mãe.

Lançando um olhar para a irmã enquanto tomava seu café, Robert perguntou:

— Andrew comentou com você sobre esse cavalo que está tão interessado em comprar?

Nell meneou a cabeça afirmativamente.

— Ele não fala sobre outra coisa nas duas últimas semanas.

— Você acha que existe alguma chance de o animal ter pelo menos a metade do potencial que Andrew alega?

— Eu o vi no primeiro dia em que o proprietário o trouxe para a cidade. É um garanhão muito bonito de se olhar, mas não tem personalidade. Andrew ficou atraído pela beleza do cavalo.

— Eu sabia! Esperava que ele tivesse aprendido a lição depois da última compra.

— Dê algum crédito ao menino — interveio Edward. — Ele não tem culpa de não ter os mesmos olhos que Nell quando se trata de cavalos.

— Menino? — Nell riu. — Papai, esqueceu que Andrew e Henry têm trinta anos? Nenhum deles é mais um menino.

O assunto da conversa acabara de entrar na sala, e bastava um olhar para saber que os dois eram gêmeos.

Andrew era apenas um pouco mais alto e dez minutos mais velho que o irmão, Henry. Poucas pessoas, a não ser aquelas que os conheciam muito bem, podiam distingui-los: os dois possuíam nariz aquilino, queixo firme, olhos e cabelos castanhos. Eram um pouco mais baixos que Robert e tinham o mesmo tipo físico do resto da família. Andrew era major da cavalaria e estava servindo com o coronel Arthur Wellesley na Índia. Tendo sido ferido durante os últimos dias da batalha contra os Mahrattas, ficara em Londres alguns meses para se recuperar. Henry também era major, mas não tão audacioso quan­to o irmão, escolhera o regimento de infantaria. Ele havia participado de batalhas na Europa, mas agora servia na cavalaria de Londres.

— Ah — Andrew comentou com um sorriso no rosto,

— Você está acordado. Eu apostei com Henry que tería­mos que acordá-lo.

— Você perdeu — Robert respondeu ao levantar-se da mesa. — Estou pronto. Vamos ver esse incrível cavalo que você encontrou.

— Perda de tempo — murmurou Henry para Robert. Os três saíram, deixando Edward e Nell na sala.

— E o que você pretende fazer hoje, minha querida? — indagou Edward.

— Nada tão excitante como comprar um cavalo — respondeu Nell. — Se formos partir na segunda, como o combinado, devo fazer os planos finais com a sra. Fields e Chatham. O senhor vai deixar alguns criados aqui, ou vai todo mundo conosco para Meadowlea?

— Você vê algum motivo para alguém ficar para trás?

— Ladrões?

Edward balançou a cabeça.

— Nós levaremos toda a prataria, e a não ser pela mobília, ficará pouquíssima coisa para ser roubada.

— E a adega?

— Está segura atrás de uma porta forte e bem trancada. Chatham assegurou que meus vinhos estarão seguros.

— Muito bem, então, vou arrumar o que fazer — ela disse ao se levantar. — Eu é que não quero discutir com Chatham.

Ao passar pelo pai, ele segurou uma das mãos dela. Nell o fitou, surpresa.

— O que foi?

— Você é feliz, Nell? Sei que esta foi a primeira vez que você veio comigo para Londres em anos. Tem sido muito ruim? — Ele tinha uma expressão preocupada. — Foi difícil ver Bethune e a esposa?

— Bethune? — ela perguntou, atônita. Demorou alguns segundos para registrar que o pai se referia a Aubrey, atual duque de Bethune. — Oh, não, eu o esqueci há mui­to tempo! Afinal, já faz dez anos.

Vendo que ele não ficara totalmente convencido, beijou-o na cabeça.

— Papai, eu estou bem. Meu coração não está parti­do, mesmo que uma vez eu tenha chegado a pensar que sim. — Ela sorriu. — E quanto àquela esposa dele, ele teve o que merecia. Aubrey não deveria ter concordado tão depressa em me dispensar.

— Em parte, a culpa foi minha. Eu o deixei à vontade para terminar o compromisso. Se eu não tivesse feito isso, hoje você poderia ser uma duquesa, uma grande dama dá sociedade.

— E profundamente entediada e infeliz. Não, papai, o senhor fez o que devia fazer. Ele é que não teria aceitado tão depressa, se gostasse de mim de verdade. Se ele concordou tão rápido, é porque não se importa­va comigo como eu pensava. Sendo assim, estou muito melhor sem ele, mesmo sem ter um título.

— Para mim, a sua felicidade sempre esteve acima de qualquer outra coisa, minha filha. Claro que eu estava orgulhoso com seu noivado, mas o título é o que menos importa. Ainda assim, confesso que eu gostaria de ver meus filhos casados e cada um com sua própria família. — Ele suspirou. — Honestamente, Nell, me incomoda que nenhum de vocês tenha se casado ainda. Robert é meu herdeiro... Ele já deveria estar casado, e com filhos. Eu gostaria de segurar pelo menos um ou dois netos no colo antes de morrer. Quanto aos gêmeos... pensei que pelo menos um deles estaria casado agora.

Nell não conseguia pensar em nada para dizer. Afinal ela mesma ainda estava solteira. Sabia que, mesmo com sua herança, poucos homens se casariam com uma mulher deficiente. Não importava que atualmente o seu mancar fosse quase imperceptível. E ainda havia o fato de ela ter ficado um pouco estranha depois de ter recu­perado a consciência. Nenhum cavalheiro iria querer uma esposa candidata a um hospício.

Seu olhar endureceu ao pensar que quem tinha espa­lhado aquilo fora o próprio Aubrey, para se livrar de qualquer culpa pelo término do noivado.

Tocada pela preocupação de seu pai, ajoelhou-se ao lado dele, inclinou-se e disse com sinceridade:

— Papai, o senhor sabe que eu não desejo me casar. Nós já discutimos isso várias, vezes, e não por causa do que aconteceu com Aubrey. Eu nunca encontrei um rapaz que me interessasse. — Ela sorriu. — Com minha fortuna, não há necessidade de eu me casar. Mesmo depois que o senhor se for, o que eu espero que demore muitos anos, eu ficarei bem. O senhor não precisa se preocupar comigo.

— Mas não é natural que você permaneça solteira — ele resmungou. — Você é uma moça bonita, rica, e embora não tenha um grande título, nossa linhagem é tão digna quanto qualquer outra na Inglaterra.

— Bem, ainda há lorde Tynedale...

— Aquele canalha! Ele perdeu toda a fortuna com jogo e mulheres. Tem tantas dívidas que pode até ir para a cadeia. — Edward balançou o dedo para a filha. — Todo mundo sabe que ele está desesperado para encontrar uma esposa rica. Ouvi de lorde Vinton que ele tentou raptar a herdeira de Arnett. O pai dela a salvou a tem­po, antes que acontecesse alguma coisa. Tenha cuidado quando estiver perto dele, ou você poderá se encontrar na mesma situação. — Ele agitou o dedo com mais vigor. — Eu não sou cego, eu o vi cercando você! Provavelmente ele pensa que sua fortuna irá ajudá-lo. Você não conside­rou essa possibilidade?

— Papai! Claro que não vou me atirar nos braços de um homem como ele... Estou ciente de sua reputação e asseguro que serei muito cuidadosa. Se algum dia eu me casar, não será com alguém como Tynedale.

Edward relaxou e sorriu.

— Você não deveria provocar seu velho pai dessa maneira, minha querida — ele deu-lhe uma bronca. — Você me mataria antes do tempo.

— Papai, o senhor se preocupa demais. Robert vai aca­bar, se casando logo, e tenho certeza de que os gêmeos também não demorarão muito. O senhor terá os netos que tanto quer. Espere e verá.

 

Do outro lado da cidade, algumas horas mais tarde, na casa do conde de Wyndham, uma conversa semelhante se desenvolveu.

O atual lorde Wyndham, o décimo da linhagem, depois de um casamento infeliz pelo bem de seu título, não estava disposto a fazer o sacrifício novamente, não impor­tava o quanto sua madrasta chorasse ou fizesse cena.

Olhou para os restos de seu café da manhã e depois fitou-a nos olhos, que estavam rasos d'água.

— Deixe-me ver se entendi direito. Você quer que eu me case com sua afilhada e tenha um herdeiro, para que, caso eu venha a morrer, ela garanta o seu futuro?

A condessa de Wyndham fitou Julian Weston com ressentimento. Era uma mulher linda, com grandes e expressivos olhos castanhos e cabelos cacheados que emolduravam seu rosto delicado. Com trinta e cinco anos, era três anos mais moça que o enteado.

— Não sei por que você tem que usar esse tom comi­go — queixou-se ela. — É tão difícil assim entender minha posição? Se você morrer sem um herdeiro, seu primo Charles irá ocupar seu lugar. E você sabe que ele vai colocar a mim e minha filha na rua.

— Pensei que você gostasse de Charles — disse Julian, inocentemente.

— Eu gosto dele — Diana admitiu. — Ele é muito divertido, mas não tem um pingo de juízo. E as mulheres que ele tem! Você bem sabe que se Charles se tornar o herdeiro, não vai querer Elizabeth e a mim sob o mesmo teto.

Julian sorriu.

— Provavelmente ele faria isso mesmo. Deixaria vocês em algum lugar onde pudessem pegar uma carruagem e seguir para Dower House, em Wyndham.

Os dedos dela apertaram a xícara.

— Sim, é verdade que poderíamos viver lá... Enterradas no campo, numa casa que está vazia há décadas e preci­sa de reparos. Também é verdade que seu querido e santo pai me deu uma ótima soma em dinheiro quando nos casa­mos. — Ela inclinou-se para a frente. — Mas não é só o dinheiro, Julian. Você deve se lembrar de que talvez Charles não chegue a ser o herdeiro. Não esqueça que ele quase não escapou quando aquele barco afundou, e hou­ve também aquele acidente com seus cavalos no mês pas­sado. Com a maneira descuidada de Charles viver, talvez ele morra antes de você, e nesse caso Raoul herderá tudo.

Ela ficou pensativa antes de continuar:

— Eu gosto de Sofia Weston, mas você tem que admi­tir que a mãe de Raoul tem um gênio forte. Se o filho her­dasse tudo, ela faria com que se casasse rapidamente e controlaria tudo. Seja Charles ou Raoul o herdeiro, eu nunca mais poderia pôr os pés nesta casa. A mesma casa para onde seu pai me trouxe há cinco anos. Mas tudo seria diferente se você se casasse com Georgette. Eu seria sempre bem-vinda, e Elizabeth também. Isso se ela não fugir e se casar com o capitão Carver. Você sabe quem é — acrescentou Diana. — Aquele homem asqueroso que vive com o braço pendurado dentro de uma tipoia, se achando a criatura mais romântica e irresistível do mundo. Aposto que ele nem precisa daquilo. Deve ser tudo encenação, só para impressionar a pobrezinha da Elizabeth.

Julian suspirou. Seguir o raciocínio da madrasta era sempre exaustivo, mas naquela manhã, os pensamentos dela pareciam mais confusos que de costume.

Ele olhou para os traços delicados e não foi difícil imaginar por que seu pai ficara cativado por ela. Só que havia uma diferença básica entre ele e o pai: ele teria tido um caso com uma jovem viúva, mas não teria se casado com ela.

Não que ele culpasse o pai. Fazia vinte anos que sua mãe morrera, e o pai tinha ficado sozinho por muito tempo antes de pôr os olhos em Diana Forest e deslum­brar-se com ela.

A sociedade ficara atônita quando o nono duque de Wyndham se casara de repente com a jovem viúva de um tenente da infantaria. Além de pobre, ela já tinha uma filha de doze anos.

Mas o estranho casamento funcionou, e seu pai foi feliz. Fora uma pena que ele tivesse morrido dois anos depois do casamento. Isso acontecera três anos antes, e Julian ficara responsável por Diana e sua filha Elizabeth. Não que a menina lhe desse trabalho, ao contrário, ela o adorava. O afeto fraternal era recíproco, e ele também estimava Diana, mesmo quando ela lhe tirava a paciência.

— Você quer que eu fale com alguém da Guarda, sobre esse tal de capitão Carver? Talvez ele possa ser transferido para outro lugar. Calcutá, por exemplo?

— Você poderia fazer isso? Julian sorriu.

— Sim, eu posso, se isso deixar você feliz.

Diana olhou para ele, incerta.

— Bem, eu não acho que Calcutá seria saudável para um homem que foi ferido, você não concorda? Eu me sen­tiria mal se alguma coisa acontecesse com ele. Na ver­dade, ele não precisaria ir para tão longe, contanto que se ocupasse com outra coisa e deixasse minha filha em paz. Será que você tem como pedir aos seus amigos da Guarda que o mantenham distraído com algo que o afas­te de Elizabeth? — Ela fez uma pausa e franziu a tes­ta, já com uma nova preocupação em mente. — Se bem que acho melhor não fazer isso... Imagine se os dois des­cobrem que você está por trás desse plano. Podem até tomar uma atitude drástica.

A voz dela se encheu de horror.

— Oh, Julian, você acha que Elizabeth seria capaz de fugir para se casar com aquele rapaz? Ela é tão ingênua e doce, talvez ele consiga convencê-la a fazer isso!

Sentindo que sua paciência se esgotava, Julian levan­tou-se. Precisava sair dali antes que ele fizesse alguma coisa drástica.

— Não se preocupe, Diana. Eu darei um jeito. Como sempre.

Como era sábado, Julian duvidava que encontrasse seu amigo, o coronel Stanton, no quartel. Por isso, dei­xou de lado a tarefa de decidir o futuro do capitão Carver. O problema poderia esperar até o começo da semana. Mas Diana não se convencia tão facilmente, e para evi­tar a histeria que já podia prever que viria, antes de sair ele escreveu para Stanton, solicitando um encontro na segunda-feira à tarde.

Ele não estava preocupado. Não acreditava que Elizabeth fosse perder a cabeça a ponto de fugir com o capitão, por mais que estivesse encantada com ele, era uma menina sensata e equilibrada, ao contrário da mãe, que era completamente amalucada.

Diana só podia estar maluca mesmo, Julian pensava, algumas horas mais tarde, enquanto descia a St. James Street, se achava que ele se casaria novamente só para agradar a família. Seu casamento com Catherine lhe ensinara muito bem a lição...

Catherine era uma herdeira rica, filha única do conde de Bellamy, e muito bonita. O pai dela ficou feliz com o noivado, e o pai de Julian também. Ele estava com vin­te e nove anos na época, e para desespero de seu pai, até então não mostrava interesse nenhum em se casar. O pai sempre lhe pedia que pensasse no título, que quando ele se fosse queria ter pelo menos um neto, para futuramen­te herdar o título. E gostaria que esse neto fosse filho de Julian, não de Daniel.

Quando a encantadora lady Catherine cruzou o cami­nho dele alguns meses mais tarde, para agradar ao pai, Julian propôs a ela casamento. A cerimônia foi o acon­tecimento mais esperado do ano pela sociedade. E quan­do ele e sua noiva se retiraram da recepção, seu pai transbordava de alegria ao pensar nos netos que estavam por vir daquela união.

Mas lorde Wyndham estava enganado, lembrou-se Julian. Catherine não estava ansiosa para ter filhos, e Julian descobriu rapidamente que por trás daquele ros­to bonito existia uma criança mimada e petulante. Em poucos meses, os dois já estavam se destratando, e antes de um ano de casados só apareciam na companhia um do outro se fosse estritamente necessário. Nenhum dos dois foi feliz, e Julian reconhecia que Catherine devia considerá-lo tão insípido e irritante quanto ele a achava.

Mas eles levaram a situação adiante, apesar de tudo, como tantos outros casais da sociedade, que, por como­didade, sustentavam um casamento morto. E talvez ain­da estivessem juntos se Catherine não tivesse morrido em um acidente de carruagem. Ela estava grávida e, ao con­trário de Julian, revoltada por isso.

Embora o casamento tivesse sido um erro, Julian nunca desejara que ela morresse, e sua morte repentina e prematura o deixou chocado. Ele se sentiu culpado e triste.

Tudo isso acontecera seis anos antes, e a cada ano a determinação de Julian em não se casar aumentava. Deixe que Charles ou Raoul tome o lugar, ele pensava amarga­mente.

Estava resmungando ao entrar no Boodle's. Sem se dar conta da expressão carregada de seu semblante assustou-se quando um amigo, Adrian Talcott, aproxi­mou-se dele no salão.

— Por Deus, rapaz! Que cara é essa? — Ele estudou o rosto de Julian. — O que houve? Sua madrasta falou ou fez alguma coisa? — Os olhos azuis de Adrian brilharam. — Ela é uma coisinha linda, não posso negar, mas cinco minutos ao lado dela bastariam para me enlouquecer...

Julian riu, e seu mau humor desvaneceu.

— Muito astuto de sua parte. Agora junte-se a mim para tomar um drinque e diga que você é meu convidado para ficar em Wyndham Hall.

Eles estavam saindo do salão quando Julian avistou um homem loiro, e perguntou, irritado:

— Desde quando o Boodle's começou a permitir que a ralé se junte as pessoas de classe?

Adrian o fitou, surpreso, e então seguiu o olhar de Julian.

— Tynedale! Ele está abusando da sorte, não está? — Reparando num homem que estava ao lado de Tynedale, ele acrescentou: — Bem, isso explica tudo... Ele está acompanhado de Braithwaite.

Julian deu um passo à frente, mas o amigo o segurou pelo braço e puxou-o para um nicho no salão.

— Não seja tolo! Você já duelou com ele e venceu. Esqueça. Desafiá-lo novamente não irá trazer Daniel de volta.

Julian não desviava o olhar de Tynedale.

— Ele o matou — rosnou. — Foi como se tivesse segurado a pistola contra a cabeça do garoto...

— Eu concordo. Tynedale arruinou Daniel, mas ele não foi o primeiro jovem inexperiente a cair nas garras de um canalha inescrupuloso e perder sua fortuna numa mesa de jogo. Nem o primeiro a se matar por isso, e nem o último.

Julian olhou o amigo com uma expressão que mescla­va fúria e angústia.

— Eu me lembro do dia em que Daniel nasceu e John pediu que eu fosse o guardião dele, caso alguma coisa lhe acontecesse. — Ele suspirou. — Nós estávamos meio bêbados, comemorando o nascimento do filho dele, e nenhum de nós imaginava que algo pudesse de fato acon­tecer. John tinha vinte e dois anos, e eu ainda não tinha dezoito. Quem poderia imaginar que meu primo seria assassinado quando o filho ainda não tinha completado onze anos? E que eu realmente me tornaria o guardião de Daniel? John confiou em mim para manter seu filho a salvo. E eu fiquei tão preocupado que Charles o corrom­pesse que falhei em protegê-lo de Tynedale.

— Pare de se culpar, homem! — ralhou Adrian. — Como você poderia supor que Tynedale o roubaria, e que ele se mataria? Eu sei que você gostava muito do pai de Daniel, que ele era seu primo favorito e que você ficou arrasado quando ele foi morto. Mas nada disso foi cul­pa sua! Você nem estava em Londres quando Tynedale colocou suas garras no garoto. — Seus dedos apertaram o ombro de Julian. — Você não tem do que se culpar, deixe isso para lá. Você venceu Tynedale em um duelo e marcou o seu lindo rosto, e não vamos esquecer que você possui os meios para arruiná-lo. Isso já não é vin­gança suficiente?

De repente Julian sorriu, como um enorme predador antecipando o ataque à sua presa.

— Que bondade sua lembrar-me desse detalhe. Por um momento eu havia me esquecido. Eu suspeito que ele já sabe que eu sou o dono de suas promissórias. Deve estar desesperado, imaginando quando irei cobrar a dívida, e sabe que eu não prorrogarei os prazos. — Julian ficou pensativo. — Achei que teria prazer em vê-lo se contorcer antes de exigir o pagamento, mas acho que mudei de idéia. Falarei com ele amanhã. Vamos — ele disse para o amigo. — Esqueçamos Tynedale esta noite. Eu preciso de um drinque.

 

As noites de Nell consistiam em jantar cedo com o pai e depois passar algumas horas tranqüilas na biblioteca, lendo um livro. Durante suas raras viagens para Londres, ela gostava de visitar livrarias e museus, e não se interessava pelos bailes. Mas como ela tinha aceita­do, mesmo que relutante, o convite para o último baile da temporada na casa de lorde e lady Ellingson, sua noite não seguiu a rotina.

Os Ellingson eram velhos amigos de seu pai, o que foi um dos motivos para ela ter aceitado o convite, e também porque o pai a acompanharia.

Quando Edward viu que a filha estava entre outras damas e que lorde Ellingson tinha terminado sua obriga­ção como anfitrião, os dois homens seguiram para salão de carteado. Só depois de algumas horas é que Edward foi para o salão de baile à procura de Nell.

Levou algum tempo para encontrá-la, ela estava con­versando com um cavalheiro loiro. Ao reconhecer lor­de Tynedale, ele franziu o cenho. O que aquele traste estava fazendo ali? Então ele se lembrou, Tynedale era parente de lady Ellingson. Lorde Ellingson reclamara muitas vezes por ter de fazer sala para o malandro por causa da esposa.

Edward tinha de admitir que Tynedale era um homem bonito, vestido com um casaco azul-escuro, calça preta e camisa de linho brilhante. Tinha cabelos loiros e olhos azuis. Seus traços eram aristocráticos, nariz reto e um queixo esculpido, tinha um sorriso confiante e uma ele­gância treinada. Apesar da cicatriz no rosto, não era de admirar que as mulheres o achassem atraente.

Enquanto ia ao encontro da filha, Edward se lembrou da conversa que os dois haviam tido naquela manhã e hesitou. Nell não ficaria contente se ele agisse como um pai ultrajado. Além disso, pensou consigo mesmo, ela era capaz de cuidar de si mesma.

Pelo canto do olho, Nell viu o pai se aproximando e respirou, aliviada. Não agüentava mais o cerco de Tynedale. Reconhecia que era um homem bonito e char­moso, mas sabia que o interesse dele era por sua herança e não por ela.

— Ah, ali está meu pai. Acho que ele está pronto para ir embora. Que bom, porque estou cansada... Com licença.

— Você já tem que ir? — Ele a fitou com ternura. — Temo que esta noite se torne sem-graça sem a sua encan­tadora presença — disse Tynedale com uma expressão vitoriosa.

Nell sorriu docemente.

— Será? Mesmo havendo mais duas herdeiras no recinto?

A expressão dele endureceu.

— Por que você acha que meu único interesse é na sua fortuna? Não lhe ocorreu que entre todas as damas aqui presentes esta noite, você foi a única que despertou meu interesse?

— Você tem razão. Como eu poderia pensar de manei­ra diferente? Que tolice de minha parte... Eu só sou um pouco lesada da cabeça e manco de uma perna. — Ela ficou pensativa. — É claro que tenho também uma enor­me fortuna. — Nell sorriu ao ver a expressão espantada de Tynedale. — É natural que seja eu a encabeçar a sua lista de candidatas a noiva.

Ele cerrou os punhos, furioso.

— Este não é o momento nem o lugar para discutir, o assunto, mas nós poderíamos nos dar bem juntos. Não nego que poderia fazer bom uso de sua fortuna... mas em contrapartida, você teria ter um marido. — Tynedale inclinou-se para a frente e havia urgência em sua voz. — Você deveria considerar essa possibilidade, seria algo vantajoso para você. Lembre-se que eu também tenho um título valioso.

— Obrigada, mas não — respondeu ela, insultada. — Prefiro morrer a ter que me casar com você.

— Você vai se arrepender dessas palavras. — Ele hesitou. — Você precisa entender que eu recebi notícias desagradáveis, minha necessidade é grande e eu sou um homem desesperado. E homens desesperados tomam ati­tudes desesperadas. Fique sabendo que não vou desistir!

— Tire sua mão de cima de mim! Eu lhe darei um pequeno conselho... Deixarei Londres na segunda-fei­ra. Não sei quando voltarei para cá, mas quando voltar, fique longe de mim. Eu não desejo sua companhia!

Tynedale soltou o braço dela.

— Veremos. — Ele fez uma reverência. — Até nosso próximo encontro.

Nell girou o corpo, fazendo com que as saias de cor creme com detalhes bordados em dourado de seu vestido flutuassem atrás dela.

Enquanto o pai a acompanhava até a carruagem, Nell percebeu que estava chovendo e colocou o casaco ao redor dos ombros. Se aquela chuva continuasse, a viagem na segunda-feira seria úmida, lamacenta e muito cansativa.

Momentos mais tarde, Nell e o pai entravam em casa correndo para escapar da chuva. Depois de dizer boa-noite a Edward, ela subiu para o quarto, ansiosa por tro­car de roupa e dormir.

 

Vinte minutos depois, Nell estava aconchegada entre as cobertas, numa confortável camisola de algodão. Não teve dificuldade para adormecer.

A princípio teve um sono sem sonhos, mas depois, pouco a pouco começou a se sentir desconfortável, a res­piração tornou-se pesada, os membros pareciam presos. No estado de semiconsciência em que se encontrava, Nell gemeu, achando que estava começando a ter outro pesadelo. De repente sentiu um peso concreto demais em cima de seu corpo e acordou, em pânico.

— Fique quieta — ordenou uma voz que ela reconhe­ceu imediatamente.

— Tynedale! — ela ofegou. — Você está louco? Meu pai irá matá-lo por isso, se eu não o fizer primeiro!

— Vou me arriscar. Quando você for minha mulher, acho que seu pai mudará de idéia.

— Mas eu não! — ela revidou e aumentou seus esforços para escapar.

Nell perdeu o fôlego quando foi jogada no ombro de Tynedale, que a segurou firme e saiu do quarto.

Completamente desperta agora, Nell pensava depres­sa. Havia uma única maneira pela qual ele podia ter entrado na casa, que era pela porta de vidro da sacada de seu quarto. Certamente, ele os seguira, depois do baile, e ficara escondido no jardim, espionando a casa. Devia ter imaginado que seu pai não se recolheria de imediato, mas ela, provavelmente, sim. Tudo o que ele tinha a fazer era observar o andar superior e esperar até que as velas fossem apagadas e o quarto ficasse às escuras.

Sabendo que cada minuto contava, e ciente de que, uma vez que estivesse fora da casa e longe da proteção de seu pai, estaria tudo perdido, Nell começou a gritar. Tynedale assustou-se e quase caiu da sacada.

— Cadela! Faça isso de novo e eu a jogo daqui de cima!

Nell apertou os olhos, aterrorizada ao ser balançada no ar sem o menor cuidado. Com certeza, ele usara uma corda e a amarrara na grade de ferro da sacada, e agora iriam descer por ela.

Assustada com a possibilidade de cair nas pedras embaixo do terraço, ela não se mexeu e mal respirava enquanto eles desciam. No instante em que pisaram no chão, Nell começou a gritar e espernear sobre o ombro dele.

— Eu avisei você, criatura dos infernos! — ele vociferou.

No instante seguinte, ela sentiu uma explosão na cabeça e o mundo escureceu.

Mas os gritos de Nell não passaram despercebidos.

Sob o som da chuva, Robert mal ouviu o primeiro grito. Mas ele ouviu alguma coisa e, ao entrar em casa, parou por um instante na soleira da porta, atento. Já esta­va achando que fora apenas impressão e ia entrar, quan­do novamente escutou alguma coisa, mas não conseguiu discernir o que era.

Entrou em casa com o cenho franzido. Seu pai esta­va saindo do salão principal para o hall, e sorriu na dire­ção dele.

— Andrew comprou o cavalo? — perguntou Edward, com uma sobrancelha arqueada.

Robert riu.

— Quase! Foi por pouco, mas Henry e eu o conven­cemos de que não seria um bom negócio. — Ele voltou a franzir a testa. — O senhor ouviu alguma coisa estranha hoje à noite?

— Estranha? Não. Que tipo de coisa?

— Eu pensei ter escutado algo... Provavelmente não é nada, mas acho que vou dar uma olhada antes de ir me deitar.

Minutos depois, não tendo encontrado nada fora do normal, Robert resolveu bater na porta do quarto de Nell. O pai dissera que ela tinha ido se deitar assim que che­garam em casa, de volta da festa, mas não custava nada verificar se estava tudo bem. Afinal, sua irmã tinha pesa­delos com freqüência e, se fosse o caso, ele só queria garantir que não havia mais nada além disso.

Quando Nell não respondeu, Robert girou a maçaneta devagar e empurrou a porta, só para espiar e se certificar de que ela estava dormindo.

De um relance, ele notou duas coisas: primeiro, que a cama de Nell estava vazia, segundo, que as portas da sacada estavam abertas. Ele a chamou pelo nome e atravessou o quarto, até a sacada.

Uma sensação pavorosa se apossou dele ao lembrar-se daquelas noites em que ela acordava a casa inteira com seus gritos, por causa dos pesadelos. Será que ela se levantara da cama, atordoada e apavorada, correra até a sacada e caíra?

Olhou para baixo e ficou aliviado ao ver que não havia nada no amontoado de pedras que ficava abaixo da sacada.

Mas seu alívio durou poucos segundos. Se Nell não estava na cama, então onde estaria? Era estranho que as portas da sacada estivessem abertas, com aquela chuva, e Nell não se encontrasse em parte alguma...

Robert chamou-a várias vezes, dentro do quarto, da sacada para o jardim, e por fim no corredor. Sem obter resposta, desceu correndo as escadas, Encontrou o pai na biblioteca, servindo-se de uma dose de conhaque.

— Tem certeza de que Nell foi se deitar?

— Ela me disse que ia — respondeu Edward, surpreso com a preocupação de Robert. — Ela não está no quarto?

— Não. Não está em parte alguma. E as portas da sacada estavam abertas.

O expressão de Edward se tornou alarmada. Com Robert atrás dele, subiu até o quarto de Nell. O aposento estava mergulhado na penumbra, porém havia claridade suficiente para se ver marcas de lama no chão.

— Eu sabia! Eu sabia que ele estava planejando algu­ma coisa! Foi aquele bastardo do Tynedale! — Edward explodiu, seu semblante uma mistura de horror e fúria. — Ele a raptou! E neste exato instante, provavelmente está indo para Gretna Green. Precisamos detê-lo.

— Espere!, — disse Robert.— Eu sei que parece sus­peito, mas como o senhor sabe que Tynedale a levou? Concordo que aparentemente Nell foi levada por alguém, mas devemos procurar na casa toda, primeiro. Passaremos por tolos se sairmos feito loucos à procura dela e ela estiver em algum lugar da casa. Talvez haja alguma expli­cação lógica...

Olhando para o filho como se este tivesse perdido o juízo, Edward ergueu as sobrancelhas.

— Acorde todos os criados e mande-os procurar — ordenou. — Eu chamarei a carruagem e mandarei uma mensagem para seus irmãos. Talvez precisemos da ajuda deles. Não podemos perder tempo.

Andrew e Henry chegaram logo, com perguntas e mais perguntas. Depois de ouvir o que temiam, ficaram revol­tados e com ódio de Tynedale. Fizeram todos uma rápi­da busca pela casa e nada foi encontrado, além de um pedaço do tecido da camisola de Nell em um dos arbustos mais afastados da casa.

Poucos momentos depois de encontrar o pedaço de pano, Edward e Robert estavam na carruagem da família, seguindo pelas ruas de Londres. Andrew e Henry vestiram casacos grossos para se protegerem da chuva e acompa­nharam a carruagem montados a cavalo.

 

Tynedale não tinha mais sua carruagem, fazia uma semana que a vendera, para pagar algumas dívidas mais urgentes. Estava conduzindo um cabriolé simples, de duas rodas, mas mesmo com a capota levantada, ele e Nell eram atingidos pela chuva, enquanto ele tentava apres­sar os cavalos.

Tynedale não acreditava que alguém pudesse ouvir os gritos de Nell, mas não iria arriscar. Além disso, pre­cisava escondê-la antes que amanhecesse. Ele sabia, des­de o início, que Gretna Green, na fronteira com a Escócia, não era uma boa escolha, pois, além de tudo, seria o primeiro lugar onde a família a procuraria. Ele sorriu. Havia outras maneiras de forçar um casamento... Tinha certeza de que, assim que comprometesse Nell, seria uma questão de dias até se casarem. Tudo o que ele tinha a fazer era sobreviver às próximas vinte e quatro horas. Depois disso, todos os seus problemas estariam resolvidos.

Tynedale olhou para Nell, sentada a seu lado. Ela estava imóvel, com o olhar fixo nos cavalos. Coberta da cabeça aos pés pelo manto que ele jogara em cima dela, ninguém a reconheceria... se é que alguém se aventura­ria a sair com um tempo daqueles. A escuridão da noite, por si só, os protegia, mas a tempestade ajudava.

Ele gostaria de ter planejado o rapto com mais cui­dado, mas a notícia de que Nell deixaria Londres na segunda-feira o obrigara a antecipar seus planos. Isso, e também saber que Wyndham tinha adquirido todas as pro­missórias de suas dívidas. Maldito bastardo! Não fora suficiente para Wyndham tê-lo vencido no duelo e o dei­xado marcado para o resto da vida? Não era sua culpa que o priminho protegido de Wyndham fosse um fracote, incapaz de encarar a perda de sua fortuna. Quem mandara se meter a jogador, se não estava preparado para perder?

Ele, Tynedale, dava sempre um jeito de sair das situações difíceis. Casar-se com uma herdeira, por exem­plo, era a solução perfeita.

E Eleanor Anslowe não era mais uma jovenzinha ino­cente. Já atingira a maioridade e controlava a própria fortuna, que seria dele assim que se casassem. Sir Edward poderia gritar e esbravejar, mas não havia mais nada que pudesse fazer. Uma vez que Nell estivesse casada com ele, todas suas preocupações terminariam.

A coragem de Nell se esvaía à medida que se afas­tavam de Londres. Ela estava exausta, e perscrutava a noite chuvosa, sentindo a dor na perna aumentar cada vez mais. Ainda assim, não estava derrotada. Não faci­litaria as coisas para Tynedale. Sabia o que ele estava planejando, e não seria capaz de impedir que ele a vio­lentasse, mas jurou a si mesma que, ainda que tivesse de esconder seu rosto de vergonha pelo resto da vida, não se casaria com ele!

De qualquer forma, ainda tinha esperança de conseguir fugir, antes, que o pior acontecesse.

Como ninguém havia escutado seus gritos, não dariam por sua falta até o amanhecer, portanto ela teria que dar um jeito de fugir sozinha. Ela olhou mais uma vez para a chuva e para os relâmpagos. Não tinha idéia de a que distância estavam de Londres, e no escuro tudo parecia diferente. Duvidava que Tynedale parasse tão cedo, mas estava decidida que, quando ele finalmente parasse, os cavalos seriam sua melhor chance de escapar. E se hou­vesse outras pessoas ao redor, melhor ainda.

A chance de Nell surgiu antes do que ela esperava. Um relâmpago riscou o céu e caiu cerca de quinze metros à frente dos cavalos. O solo tremeu, bem como a carrua­gem. O raio foi seguido pelo estrondo ensurdecedor de um trovão. Os cavalos se assustaram, e Tynedale tentou controlá-los. Um dos cavalos escorregou na lama e ficou enroscado nas rédeas, enquanto o outro lutava para se soltar. Tynedale não conseguiu retomar o contro­le, e o cabriolé derrapou para fora da estrada enlamea­da. Enquanto o veículo cambaleava, um dos cavalos se soltou e saiu galopando na escuridão.

Nell quase foi atirada para fora, mas conseguiu se segu­rar. Tynedale não teve a mesma sorte, e caiu na estrada.

Nell não hesitou nem por um momento. No instante em que o cabriolé parou, ela ignorou a dor na perna e correu em direção a um arvoredo. Ouviu Tynedale gritar atrás dela, o que apenas a fez correr mais rápido.

As árvores a escondiam, e ela agradeceu pela noi­te escura e pela tempestade. Desviando-se dos galhos, e segurando a barra da camisola que se enroscava em seus pés, ela se embrenhou cada vez mais na floresta. O manto que Tynedale colocara em cima dela era grosso e pesado, e impedia seu progresso, porém ao mesmo tem­po a protegia do frio e da chuva, e ajudava a escondê-la na escuridão. Se o tirasse, a camisola branca poderia atrair a atenção dele, caso ele a estivesse seguindo.

Nell parou atrás do tronco de uma árvore e apurou os ouvidos, mas tudo que conseguia ouvir eram os batimen­tos acelerados de seu coração e sua respiração ofegante. Aos poucos, foi se acalmando. Não fazia a menor ideia de onde estava, mas isso era o de menos, bem como o fato de estar toda molhada. O importante era que tinha conseguido escapar.

A fúria da tempestade não abrandava, e Nell estava consciente do perigo que corria. Usando o manto para cobrir a cabeça e proteger-se da chuva, deixou o abri­go da árvore frondosa e iniciou a árdua tarefa de sair daquele lugar. Não era nada fácil, tinha de andar com todo o cuidado para não escorregar no solo lamacento e não tropeçar nos galhos caídos no chão. O fato de estar des­calça, a chuva, os raios e trovões não ajudavam, tampou­co a escuridão da noite e o vento que açoitava as copas das árvores.

Nell perdeu toda a noção de tempo e o senso de dire­ção. Tinha a impressão de estar andando em círculos, e teve medo de acabar indo parar nos braços de Tynedale.

A euforia inicial por ter escapado dele logo desa­pareceu. Ela ficava cada vez mais ensopada e cansa­da, e a dor na perna se tornava insuportável. Um trovão ensurdecedor explodiu acima de sua cabeça, fazendo-a agachar-se, assustada. No instante seguinte, porém, ela se levantou, animada por um frágil fio de esperança. O for­te relâmpago que precedera o trovão iluminara a escuri­dão ao redor, e Nell tivera o vislumbre de uma cabana, em meio às árvores, cerca de cinqüenta metros à frente.

Ela começou a andar naquela direção, já imaginan­do que explicação iria dar aos moradores da cabana e rezando para que eles a deixassem ficar lá dentro até de manhã, quando então pensaria em como voltar para casa.

Um novo relâmpago confirmou que ela já estava bem mais perto da cabana, que se encontrava completamente às escuras, dando indicações de que estava desabitada.

Nell apressou o passo, impaciente para chegar, e suspi­rou, agradecida, quando empurrou a porta e esta se abriu. Outro relâmpago revelou que no interior da cabana havia somente uma mesa, três ou quatro cadeiras e uma cama perto da parede. O lugar era pequeno, composto apenas por dois cômodos. Havia uma lareira rústica de pedra e alguns galhos no chão, mas que não eram de grande ajuda, já que ela não tinha como acender o fogo.

Nell se aproximou de uma das janelas e espiou para fora, valendo-se dos relâmpagos para enxergar os arre­dores. Ao notar que a cabana ficava à margem de uma estradinha que cortava a floresta, concluiu que se tratava da moradia de um guarda florestal, embora as condições do lugar indicassem que fazia já algum tempo que esta­va abandonada.

Aliviada por ter, finalmente, encontrado um abrigo para passar a noite, sentou-se na cama e encostou-se à parede, exausta. Estava encharcada, com frio, com dor na perna, os pés cobertos de lama, mas isso era insignificante quando ela pensava que estava protegida da tempestade e livre de Tynedale. Ao menos era o que ela esperava, pois ainda existia a possibilidade de ele aparecer por ali, à sua procura. Mas não havia muito o que fazer. Ela não con­seguiria dar mais um único passo, mesmo que quisesse, e de qualquer forma, não havia para onde ir, perdida como estava, àquela hora da noite e com aquele temporal. Só lhe restava rezar para que Tynedale não aparecesse e esperar o dia amanhecer. No momento, estava cansada demais, até para pensar.

Nell bocejou e piscou, sonolenta. Encolheu-se den­tro do manto, tremendo de frio, mas à medida que seus olhos se fechavam de novo, sentia-se aquecida pelo teci­do grosso de lã. Sua cabeça pendeu para o lado, e logo em seguida, seu corpo também, conforme ela caía num sono profundo.

 

Amaldiçoando a tempestade, sua madrasta, e princi­palmente sua irmã, Julian apressou o cavalo. Ainda não conseguia acreditar que estava galopando numa noite como aquela, fora de Londres, embaixo de uma tempes­tade torrencial. Se Elizabeth queria fugir para se casar com Carver, por que não escolhera, pelo menos, uma linda manhã de sol?

Era para ele estar em sua cama àquela hora, embai­xo das cobertas, com a lareira acesa aquecendo o quarto. Isso, se Diana não tivesse corrido para ele no instan­te em que entrara em casa, berrando histericamente, dizendo que ele tinha de encontrar Elizabeth. Este fato, por si só, não seria incomum, se toda a criadagem não estivesse reunida no hall, o que levou Julian a deduzir que havia, de fato, algo errado. Dibble, o mordomo, deu um passo à frente e declarou que não sabia nada sobre o que estava acontecendo, a criada pessoal de Elizabeth ergueu as mãos e disse que apenas tinha obedecido à ordem da srta. Elizabeth para entregar um bilhete a lady Wyndham ainda naquela noite.

Depois de muita agitação e tumulto, Julian finalmen­te conseguiu acalmar Diana e fazê-la contar, de maneira clara, o que havia acontecido.

Aparentemente, a história era a seguinte: Elizabeth fora ao baile dos Ellingson, acompanhada por lady Milliard, tia-avó de Julian, e ainda não voltara para casa. Diana tinha ido a outro evento social e chegara em casa pou­cos minutos antes. Não estranhara o fato de Elizabeth não ter voltado, pois ainda não era tão tarde. Mas ficara mais que alarmada quando a criada lhe entregara um bilhe­te, no qual Elizabeth avisava que ia fugir para se casar com o capitão Carver.

Julian não estava nem um pouco inclinado a iniciar uma busca àquela hora da noite, ainda mais com aque­la tempestade. Se Elizabeth era tola o suficiente para estragar seu futuro com Carver, era problema dela. Ela que aprendesse com os próprios erros. Mas Diana não o deixou em paz. Não desgrudou dele nem por um segun­do, suplicando que ele fosse procurar a menina a quem considerava como uma irmã de verdade, repetindo que era sua obrigação impedir aquele casamento.

Contrariado, Julian finalmente não teve escolha senão ordenar que trouxessem seu cavalo. Subiu para trocar de roupa e, em questão de minutos, estava com um chapéu e uma capa, galopando para fora de Londres. Enquanto o clima tornava sua cavalgada um pesadelo, seus pensamentos não eram dos mais brandos, em relação à irmã. Sua raiva era tanta que estava admitindo a possibi­lidade de dar uma surra naquela desmiolada e no jovem Carver, quando os apanhasse.

O tempo continuava a piorar, e Julian pensou em procurar um lugar para se abrigar até que a tempesta­de passasse, mas, naquelas circunstâncias, cada segundo contava. Não podia dar tempo aos fugitivos para que se distanciassem demais.

O tempo e as condições da estrada, cada vez mais escorregadia, tornavam o caminho perigoso, e Julian amaldiçoou de novo o destino que o fizera sair numa noite como aquela. Seu único conforto era saber que Carver e Elizabeth também estavam enfrentando o temporal.

Ao avistar um cabriolé parado ao lado da estrada, seu coração acelerou. Será que a sorte estaria do seu lado?

Julian fez o cavalo parar e ficou observando o coche, desgostoso. Somente um idiota apaixonado poderia ter escolhido um veículo precário como aquele para fugir, ainda mais numa noite como aquela. Ele estudou a cena iluminada pelos raios. Os cavalos que puxavam o coche haviam desaparecido, bem como os passageiros. O veícu­lo fora abandonado.

Foi então que Julian percebeu que havia uma estrada estreita saindo da via principal e enveredando para dentro da floresta. Um sorriso involuntário curvou-lhe os lábios. Com que então, os dois pombinhos tinham largado o veículo à beira da estrada e se abrigado em algum lugar na floresta...

Provavelmente estavam em alguma cabana, ou taverna, esperando a chuva parar. Julian conduziu o cavalo pela estradinha, olhando para os lados à procura de algu­ma construção onde os dois pudessem estar. Mas depois de percorrer uma distância razoável, deu-se conta de que estava num lugar ermo e desabitado, e sua confiança começou a desaparecer. A estradinha se embrenhava cada vez mais dentro da floresta, que pare­cia adensar-se. Era muito improvável que houvesse por ali algum resquício de civilização, e praticamente impos­sível que Elizabeth e Carver tivessem percorrido aquele trajeto a pé, embaixo daquele temporal.

Julian decidiu voltar antes que se perdesse de vez dentro da mata, mas ao puxar as rédeas do cavalo, este escorregou na lama e caiu, levando Julian consigo para o chão. Instintivamente, Julian rolou para o lado, para evi­tar que o animal caísse em cima dele. Retraiu-se ao sen­tir a dor da pancada em seu ombro ao cair no chão. O cavalo levantou-se rapidamente. Ignorando a dor, Julian tentou segurar as rédeas, mas não conseguiu, e observou, desolado, o animal desaparecer na escuridão.

— Maldição! Era só o que me faltava! — praguejou.

Todos os pensamentos sobre Elizabeth desapareceram. Encontrar um abrigo e verificar a extensão do ferimento em seu ombro eram as prioridades agora. Mesmo saben­do que o lugar habitado mais próximo estava a milhas de distância, Julian começou a caminhar, resignado. Suas botas atolavam na lama, a chuva penetrava em suas rou­pas, e o vento o enregelava. Preparando-se psicologica­mente para enfrentar uma dura caminhada de pelo menos duas ou três horas até encontrar uma estalagem, Julian curvou-se para a frente e prosseguiu, encolhendo-se cada vez que um trovão explodia sobre sua cabeça.

Um forte relâmpago riscou o céu, subdividindo-se em faíscas azuladas e iluminando a floresta, quase como se fosse dia. Julian quase não acreditou quando avistou os contornos de uma cabana logo adiante, à margem da estrada. Encorajado, ele percorreu os poucos metros que o separavam da cabana e a contornou, até alcançar a porta.

O lugar parecia abandonado, com o mato crescido ao redor, e uma alegria repentina o invadiu quando a porta se abriu facilmente. Não importava que fosse pouco mais do que uma choupana, e sim que ele não estava mais à mercê da natureza. Fechou a porta, deixando para trás a fúria da tempestade.

Atravessando o cômodo, foi até uma das cadeiras e sentou-se em frente à lareira apagada. Esperou alguns minutos, apreciando o som do temporal do lado de fora, sentindo-se protegido pelas paredes de madeira.

Ele tremia de frio, mas fez um esforço para se levan­tar. Precisava acender o fogo. A velha lenha estava resse­cada, e com os fósforos que carregava no bolso do casaco logo conseguiu fazer uma fogueira. A pouca lenha que havia ali não duraria muito, e ele logo teria que sacrificar uma das cadeiras para manter o fogo aceso.

Julian puxou uma cadeira para mais perto da larei­ra e sentou-se diante do fogo, esfregando as mãos para se aquecer. Deu uma olhada ao redor do cômodo, a úni­ca mobília além da mesa e das cadeiras era uma cama encostada à parede, com alguns panos sobre ela, talvez roupas velhas, que também poderiam servir para alimen­tar o fogo, se fosse necessário.

Ele tirou o casaco molhado e o estendeu no encosto de uma outra cadeira, voltado para o fogo, para que secasse.

Tirou as botas e as meias, e checou a faca escondida na bota direita. Carregar uma faca era uma prática adquiri­da em uma de suas missões no continente para o duque de Roxbury, de uma das quais ele quase não havia retornado. Enfiou a faca cuidadosamente no cós da calça e colocou as botas diante do fogo, ao lado da cadeira com o casaco. Aproximou os pés enregelados do fogo, comprazendo-se com o calor que se espalhava por seu corpo. Não conse­guia examinar o ombro, mas aparentemente o ferimento não fora externo. Talvez tivesse deslocado alguma coisa, mas a dor já estava passando, então não devia ser grave. Suspirou aliviado, desfez o nó da gravata, atirou-a sobre a mesa e desabotoou a camisa.

Seu último pensamento foi de que tudo o que precisa­va naquele momento era de uma torta de carneiro, uma garrafa de vinho do Porto e uma mulher carinhosa. Em poucos minutos, sua cabeça pendeu para o lado e ele adormeceu.

 

Para o pai e os irmãos de Nell, a noite estava longe de terminar. Eles haviam saído de Londres bem antes de Julian, e encontraram o cabriolé tombado à beira da estrada. Sobressaltados, haviam desmontado para ins­pecionar o veículo, temendo que pudesse haver alguém ferido. Felizmente não havia ninguém, os cavalos tam­bém não estavam ali, e juntos, os quatro homens recolo­caram o cabriolé sobre as rodas e o empurraram para mais longe da estrada, em direção à floresta, para evitar um possível acidente.

Depois seguiram em frente. Não havia nada que indi­casse que aquele coche pertencia a Tynedale, poderia ser de qualquer pessoa.

Edward e os filhos prosseguiram viagem, os sentimen­tos alternando entre a ansiedade e a fúria. Tudo o que Edward queria era encontrar a filha e levá-la de volta para casa, sã e salva. E uma vez que pegassem Tynedale, e não havia dúvidas de que o pegariam, o sujeito teria sorte se vivesse para ver outro pôr do sol.

Eles procuraram em cada cabana, taverna e estalagem, até mesmo em algumas casas, onde Tynedale poderia ter se escondido. A medida que as horas passavam, eles ficavam mais cansados e desencorajados. A confiança dos gême­os começava a enfraquecer. Como eles estavam a cava­lo, sofriam mais do que o pai e Robert, que estavam na carruagem. Dariam tudo para poder parar um pouco.

Havia uma taverna localizada perto da estrada, semiescondida pelas árvores, e se não fosse pela luz amarela que vinha das janelas, eles teriam passado sem perceber. Alguns cavalos magros estavam amarrados debaixo da chuva.

Deixando os cavalos aos cuidados do cocheiro, os quatro entraram na taverna. A freqüência não era das melhores, mas eles estavam cansados demais para se preocuparem com isso. Tudo o que queriam era um lugar para se aquecer perto do fogo, beber e comer alguma coisa.

A chegada de quatro cavalheiros atraiu a atenção e alguns olhares furtivos. Alguns dos clientes desaparece­ram pela porta dos fundos. Os que ficaram observavam os recém-chegados com curiosidade. Edward começou a tirar o casaco quando viu um homem sentado numa mesa próxima ao fogo.

— Tynedale! — ele gritou, atravessando o salão.

Os três filhos o avistaram quase no mesmo instante, e seguiram o pai, apressados, com uma expressão assassi­na no rosto.

Ao ouvir o som de seu nome, Tynedale ergueu os olhos e levantou-se. Olhou ao redor, procurando uma saída, mas não encontrou nenhuma. Enquanto os Anslowe o cerca­vam, os outros fregueses olhavam com interesse, porém ninguém se moveu para intervir.

Robert levou uma mão ao pescoço de Tynedale, o rosto vermelho de fúria.

— Onde ela está?! — esbravejou. Ele sacudiu Tynedale com força. — Fale! Se quer continuar vivendo, diga-nos o que fez com ela!

Robert o soltou com um safanão. Tynedale olhou para todos os lados, menos para os quatro homens que estavam à sua frente.

— Vocês estão loucos? Por que me atacaram?

— Você sabe muito bem por quê, maldito! — respon­deu Robert. — Onde ela está?

— Posso ver que está descontrolado, por isso não darei queixa contra você. — Tynedale ergueu uma sobran­celha, petulante. — Temo não fazer a menor idéia do que está falando. E quanto a essa mulher sobre quem está perguntando, não faço a menor idéia. Estou viajando sozi­nho. Você deve ter visto meu coche na estrada, algumas milhas para trás. — Ele inclinou a cabeça na direção do taverneiro que estava atrás do balcão, assistindo a tudo. — Se não acredita em mim, pergunte a ele. Ele lhe dirá que cheguei aqui há uma hora mais menos, sem ninguém.

Robert avançou novamente para Tynedale e inclinou-se sobre ele, segurando-lhe o pescoço com as duas mãos.

— O que você fez com ela?! Diga-me ou vou estrangular você aqui mesmo!

— Com licença... sir — interveio o dono da taverna. — Nós não temos muitos cavalheiros parando por aqui e eu não quero interferir nos seus assuntos, mas posso assegu­rar que esse cavalheiro está dizendo a verdade. Ele che­gou aqui sozinho.

Não satisfeito com o testemunho do taverneiro, Edward insistiu em vasculhar o estabelecimento. Não demo­rou para descobrir que não havia sinal de Nell. Nem nos fundos, nem no estábulo, nem nas proximidades.

Tynedale continuava declarando sua inocência, mes­mo sob as ameaças de Robert e dos gêmeos. Depois de procurar em todos os cantos, Edward começou a ter dúvi­das. Talvez tivesse cometido um grande engano ao jul­gar que Tynedale era o culpado. Nell fora levada de seu quarto, disso ele não tinha dúvida, e Tynedale era, natu­ralmente, suspeito. Mas e se não tivesse sido ele?

Os pelos em sua nuca se arrepiaram de medo. E se sua filha tivesse sido raptada por um bandido, por um sujei­to ainda mais nefasto que Tynedale, com intenções ainda mais malignas do que apenas forçá-la a se casar?

Diante daquela dúvida, tudo era possível, pensou Edward, estremecendo. Nell podia nunca ter saído de Londres... Podia estar à mercê de algum sujeito inescrupuloso, sendo forçada a fazer sabe-se lá o quê... Podia estar sendo ameaçada, torturada...

O pensamento era insuportável. Resignados, os qua­tro homens finalmente foram se sentar a uma mesa o mais distante possível de Tynedale, para discutir a situação. Concordaram em não abandonar de todo a suspeita sobre Tynedale. Combinaram que os quatro sairiam juntos da taverna, mas Edward e Robert voltariam para Londres, procurando por algum sinal de Nell no caminho, e Andrew e Henry continuariam nas redondezas para seguir e obser­var Tynedale. Era possível que ele tivesse escondido Nell em algum lugar ali perto. E se ele tivesse feito isso... era um homem morto.

 

Foi a dor na perna que acordou Nell. Ela abriu os olhos e demorou um segundo para se lembrar de onde estava. Uma claridade cinzenta invadia a cabana, e ela se ergueu com dificuldade. A tempestade havia passado, mas um chuvisco fraco persistia.

O primeiro pensamento de Nell foi que Tynedale não a havia encontrado, o que era um alívio. Ela se espreguiçou e esfregou os olhos, desorientada com os acontecimen­tos da noite anterior. Olhou para sua camisola e fez uma careta. Mesmo, protegida pelo manto de Tynedale, a peça estava rasgada em vários lugares e toda suja de lama.

Então, Nell ouviu um som que a alertou para o fato de que não estava sozinha. Não sabia ao certo se era um som de tosse, ou um gemido, mas decididamente era um som humano!

Arregalando os olhos, ela se sentou de supetão na cama. Viu um casaco pendurado em uma cadeira e um par de botas, e então os cabelos escuros de um homem que dormia em uma cadeira em frente ao fogo, que estava quase no fim.

Bem, pelo menos não era Tynedale! Se bem que ela não sabia o que era pior, se ficar à mercê de Tynedale ou de um completo desconhecido, que poderia ser um ladrão, estuprador ou assassino.

Ela mal tinha feito barulho, mas foi o suficiente para que o homem se levantasse num movimento rápido. Ele virou-se para encará-la, com uma faca prateada em uma das mãos.

Nell caiu para trás, na cama, tão apavorada que não conseguia nem gritar. Olhou para o homem alto, ago­ra de pé, que a encarava, e refletiu que nunca vira um rosto tão perigoso em toda a sua vida. Os olhos dele eram de um verde brilhante, as sobrancelhas, espessas e escuras, e os cabelos pretos estavam desalinhados e caídos sobre a testa.

Ela não deveria achá-lo bonito, mas havia algo naqueles traços de granito que fez com que Nell pensasse que em outras circunstâncias ela talvez o achasse atraente. Ele tinha feições aristocráticas e uma elegância natural.

Enquanto ela o observava, a expressão assustadora se suavizou, e o homem sorriu.

— Perdoe-me — ele disse, com uma voz educada e culta. — Eu não queria assustá-la. — Apressou-se a guar­dar a faca no cós da calça. — Eu não percebi que alguém morava aqui. Me desculpe...

— Ah, eu não... — Ela hesitou, pensando que não seria sensato contar a verdade a um completo desconhecido.

— Eu não moro aqui. Eu... Meu coche se acidentou ontem à noite, na estrada, durante a tempestade. Os cavalos fugi­ram, e não havia nada que eu pudesse fazer a não ser ficar aqui enquanto meu cocheiro ia procurar ajuda.

— Entendi — murmurou Julian, reparando nas feições graciosas, na pala de renda da camisola que ela usava por baixo do manto e nos cabelos castanho-claros espa­lhados sobre os ombros.

— E o senhor? Por que está aqui?

— Eu também fui vítima da tempestade — contou ele. — Meu cavalo fugiu e eu encontrei esta cabana. Não percebi que a senhorita estava aqui.

— Bem, essas coisas acontecem. Agora, se me der licença, eu vou embora... — Nell se levantou, com a inten­ção de sair da cabana e afastar-se daquele homem que, por alguma razão, estava lhe dando nos nervos.

— Não vai me dizer seu nome?

— Para quê? Nós somos estranhos. Vamos deixar assim. — Nell tentou passar, mas ele a impediu, dando um passo para o lado.

— Por favor, permita que eu me apresente. — Ele fez uma reverência, — Sou Julian Weston — ele deu seu nome de família —, ao seu dispor.

— Obrigada— ela respondeu timidamente. — Mas isso não será necessário. Meu cocheiro chegará a qual­quer momento. O senhor pode ir...

O som distante de um coche se aproximando deu cré­dito às palavras dela, mas Julian não prestou atenção. Sabia que deveria se afastar daquela moça, mas, estranha­mente, não conseguia. Estava fascinado pela beleza dela.

— Não seria cavalheiresco de minha parte deixá-la sozinha neste lugar — insistiu.

— Eu lhe asseguro que ficarei perfeitamente bem.

— Será? — ele perguntou, com o olhar fixo na boca de Nell. — Devo mostrar o quanto sua posição é perigosa?

Ela arregalou os olhos quando ele caminhou em sua direção. Julian não tinha a menor intenção de fazer mal à moça. Nunca tomara uma mulher à força, e não era ago­ra que o faria. Mas estava se divertindo com o medo dela e, maldosamente, querendo prolongar o que, para ele, não passava de uma brincadeira. Ela era jovem, mas já não era uma adolescente, embora parecesse bastante tímida e inexperiente para a idade.

Ela deu um passo para trás, mas sua perna machucada a fez tropeçar, e Julian a segurou pelos ombros. Mesmo assim, ela caiu de costas na cama, levando-o consigo. Ao sentir o peso do corpo de Julian sobre o seu, Nell entrou em pânico.

— Solte-me! — ela ofegou. — O senhor é tudo menos um cavalheiro! Meu pai vai acabar com o senhor, se ousar me tocar!

Julian ergueu a cabeça e sorriu para ela, achando a sensação daquele corpo esguio sob o seu a mais delicio­sa que ele já experimentara. A tentação de beijá-la era grande, mas seu caráter não permitia que fizesse isso. E seu amor-próprio também não. Havia centenas de mulhe­res dispostas a beijá-lo, a um simples estalar de dedos, se ele quisesse, a última coisa que precisava era de uma mulher relutante e histérica.

— Saia de cima de mim, seu animal! — Nell se forçou a gritar o mais alto que pôde.

Aquele estranho, bandido ou não, era o homem mais atraente que ela já vira na vida, mas o orgulho, bem como o bom-senso, exigiam que ela o repelisse.

— Eu insisto que me solte... Agora!

Ela começou a se debater e a socar as costelas de Julian, e ele decidiu que já bastava daquela brincadeira.

Apoiou um joelho na cama, e já ia se levantar, quando uma voz soou às suas costas:

— Eu não faria isso se fosse você! Faça como a dama pede, ou terei de atirar em você.

— E se ele errar — acrescentou Robert, ao lado do pai —, eu não erro. Se dá valor à sua vida, solte-a imediatamente.

 

Julian já se vira em situações arriscadas antes, mas nunca em uma que o deixasse se sentindo tão tolo. Ele saiu de cima da moça e caiu sentado no chão, olhando apalermado para as duas pistolas apontadas para seu pei­to, pensando no que fazer para sair dali com vida e, se possível, com a dignidade intacta.

Não reconhecia os dois homens que o olhavam ameaçadoramente. Por um momento, considerou a possibilidade de usar sua faca, porém hesitou. Os dois homens tinham aspecto nobre e culto, e provavelmente tinham um bom motivo para estarem tão indignados. Qual seria a ligação deles com aquela moça?

A resposta veio dela própria. Ela se levantou, mancan­do, e se atirou nos braços do homem mais velho.

— Papai! O senhor me encontrou! — ela exclamou, em lágrimas.

Os lábios de Julian se apertaram. Dessa vez ele tinha se metido numa grande confusão. Que pai aceitaria uma situação como aquela? Como explicar que não era nada do que parecia? Quem acreditaria que ele nunca tivera intenção de fazer mal algum à moça?

Por outro lado, o que ela estava fazendo num lugar como aquele, de camisola?

Era tudo muito estranho e confuso...

Os dois homens se esqueceram de Julian enquanto se asseguravam de que ela não estava machucada. Como não estavam prestando atenção nele, ele se levantou e se sentou numa das cadeiras. O mais novo dos dois homens de repente se voltou para ele.

— Não se mexa, seu idiota! Como ousa pôr as mãos na minha irmã?

Julian o olhou com a expressão confusa.

— Eu o conheço?— perguntou Robert. — Você me parece familiar... Tenho a impressão de que já o vi antes. Talvez em Londres...?

— O sobrenome dele é Weston — anunciou Nell, virando-se nos braços do pai para olhar para Julian com ar preocupado.

— Weston! — exclamou Robert. — Você é parente de Wyndham?

Julian sorriu, levemente embaraçado.

— Apesar da minha situação nada elegante, e da neces­sidade de tomar um banho e me barbear, sim, sou. O próprio.

— Não me diga! — exclamou Edward, observando-o com atenção. — Sim, eu o reconheço agora. Nós fomos apresentados, em Londres.

Ele podia estar confuso, mas a educação prevale­ceu. Colocando a pistola de lado, fez um gesto para que Julian se levantasse.

— Sou sir Edward Anslowe. Este é meu filho Robert, e minha filha, srta. Eleanor Anslowe.

Julian pôs-se de pé e fez uma reverência.

— Muito prazer, embora eu ficasse feliz em encontrá-lo em circunstâncias mais agradáveis.

Com uma careta, Edward olhou da filha para Julian.

— Eu não entendo — ele começou devagar —, por que razão você estava atacando minha filha? Não acredito que um cavalheiro de sua categoria agiria de manei­ra tão desonrosa. — Parecendo mais zangado e confuso, ele exigiu: — Se estava interessado nela, por que não falou comigo? Não somos tão ricos e poderosos quanto sua família, mas nosso nome é importante, e minha filha é herdeira por direito. Você certamente sabe que eu teria aprovado sua corte.

Nell ofegou e olhou aterrorizada para o pai.

— Papai, eu não conhecia este cavalheiro antes des­ta manhã! E não foi ele quem me levou ontem à noite, foi Tynedale.

Julian ficou tenso.

— O que Tynedale tem a ver com isto?

— Acho que a pergunta correta — interveio Robert —, seria o que você tem a ver com o rapto de Nell?

Julian encostou-se na mesa e cruzou os braços.

— Eu não tenho nada a ver com o rapto da srta. Nell — respondeu. — Foi uma desafortunada série de eventos que nos colocou juntos neste lugar. — Ele olhou para Edward. — Minha presença aqui foi um acidente, meu cavalo fugiu durante a tempestade ontem à noite, aqui perto, e eu procurei abrigo nesta cabana. Não tinha a menor idéia de que havia alguém aqui.

Edward olhou preocupado para Nell.

— Se foi Tynedale quem a raptou, como é que encontra­mos você aqui sozinha esta manhã com lorde Wyndham? E numa posição comprometedora?

Esquecendo sua precária posição, Julian observou o turbilhão de emoções que surgia no rosto de Nell. Ela lançou-lhe um olhar furioso.

— Não é minha culpa o senhor ter nos encontrado daquela maneira!

Julian sorriu para ela, pensando que ela realmente parecia uma pequena fada de cabelos castanhos. O que era estranho, já que tinha a forte impressão de saber para onde as coisas estavam se encaminhando.

Ele suspirou. Havia jurado não se casar novamente, mas o destino parecia ter outros planos. Naquele momento ele não via nenhuma maneira honrosa de sair daque­la situação a não ser pelo casamento. Naturalmente, fora essa a intenção de Tynedale, que unira o útil ao agradá­vel, comprometendo-se a se casar com uma mulher rica e também muito desejável. Só que Nell conseguira escapar e se esconder ali, na cabana abandonada.

Quanto a ele próprio, era uma agridoce ironia do des­tino que se encontrasse naquela situação, forçado a se casar novamente e, ao mesmo tempo, tendo a oportunida­de de vingar-se de Tynelade, roubando-lhe a tão sonhada noiva!

Nell cerrou os dentes ao ver o sorriso de Julian. Virando as costas para ele, foi falar com seu pai e o irmão. Depois de assegurá-los de que havia escapado com sua virtude intacta de Tynedale, terminou de relatar a seqüência de eventos que a trouxera até aquela cabana.

— Estava dormindo tão profundamente que não o ouvi entrar. — Ela lançou um olhar indignado para Julian. — Só percebi que ele estava aqui quando acordei hoje de manhã.

Edward esfregou o queixo, olhando descontente de Julian para Nell. Julian sabia o que estava se passan­do pela cabeça dele. Suspirando, endireitou os ombros e disse:

— Sir Edward, eu entendo sua situação, e embora isso não seja culpa de ninguém exceto de Tynedale, estou preparado para tomar a atitude mais honrada e me casar com sua filha.

— Casar?! —Nell gritou. — Eu creio que não, meu senhor! Eu nem o conheço...

Eu acho que você não tem escolha, filha — inter­rompeu Edward.

— O que o senhor quer dizer? — ela indagou, olhando para os rostos que a encaravam.

— Nell, você passou a noite sozinha com ele — expli­cou Robert. — Não importa que nada tenha acontecido. O problema é que você esteve com ele numa situação íntima, sem uma acompanhante. Se isso vier à tona, sua reputação estará arruinada.

— A minha reputação só diz respeito a mim, eu não me importo com o que os outros vão pensar!

— Mas eu me importo — acrescentou Julian com voz aveludada. — Não quero que digam por aí que seduzo moças solteiras e arruíno a reputação delas. E muito menos trazer um escândalo sobre o nome de minha família.

Nell cerrou os punhos.

— Eu não faria nada que desonrasse minha família — ela disse entre os dentes —, mesmo que isso significas­se ter de me casar com o senhor. Mas não se esqueça que ninguém sabe o que aconteceu. — Ela lançou um olhar nervoso para os homens. — E como nenhum de nós falará sobre o assunto, ninguém precisa saber.

— E quanto a Tynedale? — perguntou Julian. — Ele saberá.

— Ele só sabe que eu escapei dele. Não sabe para onde eu fui, nem sobre o senhor...

Robert e Edward se entreolharam.

— Nós cuidaremos de Tynedale — disse Edward. — Ele deverá pagar pelo crime que cometeu.

— E como o senhor fará isso?— indagou Julian. — O senhor não pode colocá-lo diante de um magistrado, não se quiser que os acontecimentos desta noite permaneçam em segredo. E se o senhor escolher um duelo para resolver o assunto, isso dará motivo para especulação. Mais cedo ou mais tarde, o motivo teria de vir à tona. E Tynedale poderia fazer chantagem.

— Chantagem? Mas como? — questionou Nell. — É claro que ele poderia ameaçar contar que me raptou, mas com que objetivo? E se ele revelasse o que fez, ele teria de enfrentar a rejeição e o escárnio. Ele não ousaria.

— A senhorita tem certeza disso? — perguntou Julian, com uma sobrancelha erguida. — Ele é um homem desesperado e vingativo. Talvez não se importe com as conseqüências.

— Tem razão, não podemos correr o risco de que ele consiga arrancar dinheiro de nós — concordou Edward. — E nós certamente o pagaríamos para mantê-lo calado.

— Isso não faz sentido algum! — protestou Nell. — Nós ficaríamos aqui o dia inteiro e não chegaríamos a uma conclusão. Papai, eu estou muito cansada, congela­da até os ossos, suja e com fome. Por favor, podemos ir para casa e esquecer esta horrível experiência?

O som de um veículo se aproximando congelou a todos. Era inconfundível o tropel dos cavalos e o som de rodas no solo acidentado. Um momento depois o veículo dimi­nuiu o ritmo e Nell prendeu a respiração, escondendo-se atrás do pai. Por favor, permita que eles só estejam de passagem, rezou.

Mas sua prece não foi atendida. A voz de um homem gritou:

— Olá? Sir Edward, o senhor está aí? Edward ficou indeciso e olhou para os outros. — É Humphries. Ele deve ter reconhecido minha carruagem parada do lado de fora.

— Não é o lorde Humphries que é casado com lady Humphries? — perguntou Julian.

Uma voz feminina estridente foi ouvida.

— É claro que ele está aqui. Você é cego? Esta é a car­ruagem dele, e este é o seu cocheiro, Travers. Não ima­gino o que sir Edward esteja fazendo aqui... Ajude-me a descer, assim poderemos investigar.

Edward sorriu sem graça para Julian.

— A própria, e pela sua expressão você conhece a fama dela como a maior fofoqueira de Londres. Temo que isso mude as coisas, meu caro.

Julian deu de ombros.

— Eu já me ofereci para me casar com sua filha, sir. A chegada de lady Humphries não muda nada.

— Eu não vou me casar com o senhor! — Nell sibilou.

— A senhorita não tem escolha — replicou Julian, com um sentimento de satisfação.

No instante seguinte, um cavalheiro bem-vestido e uma mulher baixinha e miúda, também bem vestida mulher entraram na sala.

— Ah! Aí está você, meu amigo — disse lorde Humphries, olhando para Edward com bondosos olhos azuis. Deu uma olhada ao redor e cocou a cabeça. — Alguma coisa errada?

Lady Humphries deu uma espiada em Nell e, ao ver sua aparência, deu um amplo sorriso. Aquilo seria um escândalo. Seus olhos de águia pousaram em Julian e se arregalaram. Wyndham! Aquilo era mesmo interessante... Ela marchou na direção de Nell.

— O que aconteceu com você, querida? Está com uma aparência horrível!

Enquanto Nell olhava para a mulher, aterrorizada, Julian deu um passo à frente.

— Peço que tome cuidado com suas palavras, lady Humphries — Julian murmurou, fazendo uma reverên­cia e beijando a mão da dama. — A senhora está falando com minha futura noiva.

— Futura noiva! — ela exclamou. — Oh, muitos cora­ções ficarão partidos com essa notícia! — Ela olhou ao redor. — Mas diga-me, por que estão todos aqui?

A pergunta paralisou os Anslowe. Porém, ainda segu­rando a mão de lady Humphries, Julian explicou:

— Foi um acidente. A tempestade, a senhora sabe. Sir Edward me deu permissão para passear com sua filha e pensei que o campo seria o lugar ideal para declarar meus sentimentos à srta. Anslowe. Depois de receber a resposta que esperava, estávamos voltando para Londres quando fomos pegos pela tempestade. Uma roda escapou do coche e fomos forçados a procurar abrigo nesta cabana. — Ele acenou para a família Anslowe. — Felizmente, antes que soubessem que estávamos aqui e presos pela tempestade, sir Edward e Robert chegaram. Nós passa­mos a noite aqui juntos. Estávamos nos preparando para sair quando vocês chegaram.

— Entendi — murmurou lady Humphries.

Ela sabia muito bem que estava ouvindo uma tremen­da mentira. Não conseguiria mais nada de Wyndham, mas o que descobrira era fascinante. E ela espalharia para todos sobre o novo casal. Seria a pessoa mais procurada em Londres naquele inverno. Ela sorriu ao comentar:

— Bem, se não há nada que possamos fazer por vocês, nós vamos embora. Espero encontrar o anúncio de seu casamento no Times.

Com todo o entusiasmo de um condenado à forca, Nell observou lady e lorde Humphries partir. O olhar de Nell caiu sobre Julian, que sorria enigmaticamente. Estava noiva. Dele!

— Acredito que a presença deles encerre a questão — afirmou Julian para Edward. — A partir deste momento, sua filha e eu estamos noivos, e o senhor pode estar cer­to de que lady Humphries espalhará a notícia para toda a cidade. Sugiro irmos para Londres imediatamente, antes que recebamos mais visitas. Deixe que eu comunique a redação do Times.

Edward concordou, e logo eles estavam na carruagem dos Anslowe, seguindo para Londres. Apesar dos protes­tos de Nell, ficou, decidido que o casamento se realiza­ria em breve. A não ser por isso, a maior parte do trajeto transcorreu em silêncio, com Nell sem conseguir desviar os olhos de Julian, e este se perguntando repetidamen­te se teria enlouquecido. Depois da morte de Catherine, jurara a si mesmo que nunca mais se casaria, e até então, nada o fizera vacilar quanto a isso. Agora, ali estava ele, noivo de Eleanor Anslowe, e apreciando a idéia de casar-se com ela.

A animação de Julian desapareceu no instante em que ele desceu da carruagem dos Anslowe e viu-se diante dos degraus para o pórtico de sua casa, os eventos da noi­te anterior retornando à sua mente. Sua madrasta estaria lá dentro, ansiosa por notícias da filha. Infelizmente, ele não tinha nada para contar sobre Elizabeth e tinha cer­teza de que a novidade sobre seu casamento não seria bem recebida.

Diana queria que ele se casasse, mas já tinha alguém em mente, e Julian duvidava que ela aprovasse a srta. Anslowe. Sua vida doméstica seria bastante agitada durante as semanas seguintes. Sem saber ao certo se devia rir ou se amaldiçoar, ele entrou na casa.

Julian esperava ser recebido por Diana, e ficou atô­nito quando a primeira pessoa que veio ao seu encontro foi Elizabeth.

— Oh, Julian!— ela exclamou com a expressão preocu­pada, enquanto o abraçava. — Eu sinto muito que mamãe tenha mandado você atrás de mim! Quando eu voltei de Ranelagh Garden... — Ela parou ao ver o olhar dele e sor­riu, sem-graça. — Sim. Era onde eu estava a noite passa­da, e não no baile dos Ellingson. Foi para lá que o capitão Carver me levou, e não para Gretna Green! Mesmo sem a tempestade, eu sabia que nos atrasaríamos e que mamãe não aprovaria o horário ou o lugar. Eu deixei um bilhe­te dizendo para ela não se preocupar. — Ela suspirou. — Nunca imaginei que ela pudesse me achar tão tola para fugir com o capitão, nem que ela fosse mandar você atrás de mim. Estou agradecida por tê-lo feito assim mesmo... Mas você deveria saber que eu não seria capaz de fazer uma asneira dessas.

Julian explodiu numa gargalhada.

— Eu passei a pior noite da minha vida por sua cau­sa, mas estou feliz por saber que minha opinião sobre você estava correta.

Elizabeth sorriu e segurou o braço de Julian.

— Imagino que você não veja a hora de tomar um banho quente, fazer um belo desjejum e depois se dei­tar em sua cama, mas primeiro diga a mamãe que está tudo bem. Ela estava com medo que você chegasse nervoso quando descobrisse que suas galantes ações foram em vão. — Olhando para ele, perguntou: — O tempo estava muito ruim? Você está muito zangado com mamãe?

O mais surpreendente era que ele não estava zangado com Diana. No fundo, sentia-se grato a ela, e mais uma vez imaginou se não estava enlouquecendo.

— Não estou zangado com sua mãe. E sim, o tempo estava péssimo.

Elizabeth o deteve.

— Devo dizer, Julian, que você está aceitando tudo isso muito bem. Eu estaria furiosa se tivesse que passar a noite cavalgando debaixo de uma tempestade. Estou feliz que Flint o tenha encontrado com a mensagem de mamãe pedindo para você voltar. — Ao ver a surpresa no rosto de Julian, ela acrescentou: — Você achou que nós não o mandaríamos avisar? Flint o encontrou, não foi?

— Não. Só espero que ele goste da Escócia...

— Não se preocupe. Eu disse a ele que se não o encon­trasse, que retornasse pela manhã. Eu sabia que você também voltaria, quando não me encontrasse. Só lamen­to que tenha se preocupado sem necessidade e passado a noite fora com o temporal que caiu.

— Foi uma noite complicada, sem dúvida. — Julian suspirou. Esperara poder adiar as explicações para mais tarde, quando estivesse mais descansado, mas já via que seria impossível. — Vamos falar com sua mãe, tenho um comunicado a fazer que irá afetar a todos nós.

Quando Julian entrou, Diana levantou-se da poltrona onde estava sentada. Seu rosto estava pálido.

— Eu sei que você tem o direito de estar furioso comigo, Julian, mas por favor, tente entender o meu lado. Fui uma tola, mas no coração de uma mãe desesperada não há lugar para a razão. Me perdoe...

— Está tudo bem, mamãe, Julian não está bravo com a senhora — Elizabeth apressou-se a dizer.

Diana ignorou a filha, olhou.para Julian e continuou, dramática:

— Se você nunca mais me dirigir a palavra, eu não o culparei. Nós não temos para onde ir, mas se você não puder me perdoar, nós sairemos da sua vista ainda esta tarde.

— Não diga bobagens, Diana — pediu Julian. — Não estou com humor para você transformar um simples mal-entendido numa tragédia. Em parte eu tenho culpa, deveria ter lido o bilhete. Estou certo que o teria inter­pretado de maneira diferente e não teria saído naquela tempestade. Não estou bravo com você, e entendo seus motivos. Eu a perdôo. Então eu lhe peço, vamos esque­cer isso.

— É muito nobre de sua parte — disse Diana, a cor voltando ao rosto enquanto ela se sentava de novo.

Foi Elizabeth quem mudou de assunto.

— O que você queria nos dizer? Você disse que tinha um comunicado importante para fazer.

De repente, as paredes da sala pareceram se estreitar em torno de Julian. Ele sentiu um aperto no peito. Diana e Elizabeth olhavam ansiosas para ele.

— Eu vou me casar com Eleanor Anslowe. Na próxima quarta-feira.

— O quê?! — Diana gritou, dando um pulo. — Certamente, meus ouvidos me enganam. Você não disse que vai se casar com Eleanor Anslowe!

— Casar?! Você? — perguntou Elizabeth, fitando-o com os olhos arregalados. — E com a srta. Anslowe? Eu nem sabia que vocês se conheciam...

— Eu já a vi algumas vezes... mas até esta manhã eu não pensava em me casar novamente — admitiu Julian. Olhou para o rosto estupefato de Diana. Não gostava de mentir, mas não via razão para contar todos os fatos para as duas mulheres. — Na verdade, foi idéia de sua mãe.

— Minha idéia! — Diana arregalou ainda mais os olhos. — Você. ficou louco, Julian?! Eu mencionei a pos­sibilidade de você se casar com Georgette, não com uma mulher que ficou esquecida por anos e ainda por cima é aleijada.

— Se eu fosse você, não me referiria à minha futu­ra noiva como aleijada — Julian disse, em tom de adver­tência.

— É claro! — concordou Elizabeth. — Perdoe mamãe, foi o choque...

— Sim, foi um choque e tanto... — balbuciou Diana. — Mas como isso foi acontecer? Você nunca deu nenhum indício de que pretendia se casar novamente.

Por várias vezes, Julian pensara que espionar para o duque de Roxbury era uma tarefa perigosa, ele havia pas­sado por inúmeras situações nas quais tivera de pensar rápido para escapar com vida. Mas nada se comparava à implacável inquisição das duas mulheres à sua frente.

Ele reafirmou que fora a observação de Diana que o fizera tomar a decisão de se casar, que, como já era um homem maduro, preferia uma noiva que não fosse muito jovem, já havia encontrado a srta. Anslowe várias vezes ao longo dos anos, e seu jeito calmo e sensato de ser havia lhe chamado a atenção. Quando Diana tentou argu­mentar, ele encerrou a discussão com o fato irrefutável de que os Anslowe eram uma família respeitável, e a srta. Anslowe era uma herdeira.

Depois de escapar do interrogatório, Julian foi para seus aposentos. Diana estava resignada, Elizabeth, que havia encontrado Nell várias vezes e tinha simpatizado com ela, estava intrigada, e pelo brilho em seus olhos, Julian suspeitava que ela estivesse desconfiada de toda aquela história.

Apesar do cansaço, Julian estava feliz com os acon­tecimentos. Havia amenizado a história o máximo possí­vel e contado a verdade, pelo menos a parte que deveria ser de conhecimento público. Os fatos estavam de acor­do como que os Humphries tinham presenciado. Haveria muita fofoca e especulação, mas ninguém poderia provar que ele ou os Anslowe estavam mentindo. Uma vez que ele e Nell estivessem casados, ninguém ousaria duvidar das circunstâncias.

Seus pensamentos se voltaram para Tynedale. Ele devia estar inconformado por ter deixado a herdeira escapar por entre seus dedos. E ficaria ainda mais furioso quando descobrisse nas mãos de quem ela havia caído.

Julian sorriu, mas o sorriso não chegou a seus olhos. Frustrar os planos de Tynedale era motivo suficiente para ele se casar com Nell Anslowe, mas havia também aque­le inesperado fascínio que sentira por ela. E deu-se con­ta, surpreso, de que este sentimento, por si só, talvez o levasse a querer se casar com ela, independentemente do prazer de enfurecer Tynedale.

Ele franziu o cenho diante de seu vinho. Precisava ter cuidado. Ele se casaria com Nell, mas não seria tolo o suficiente para cometer a tolice de se apaixonar.

 

                                                   Capítulo II

— Papai, eu preciso mesmo me casar com ele? Era manhã de terça-feira, e ela e o pai esta­vam na biblioteca onde Edward tinha o hábito de ler o jornal. O conde, ele notou com aprovação, não tinha per­dido tempo e colocara a notícia sobre seu noivado com Eleanor Anslowe a tempo para publicação na edição daquele dia.

— O que você disse, minha querida? — perguntou Edward, distraído.

Nell odiava desapontar o pai e os irmãos, e era cla­ro que eles estavam orgulhosos com o evento. Ao chega­rem em casa, seu pai enviara um criado ao encontro de Andrew e Henry para dizer-lhes que retornassem a Londres. Os gêmeos chegaram tarde naquela noite, can­sados e sujos, mas depois de tomar um banho e trocar de roupa, juntaram-se ao pai, ao irmão e a Nell para brindar à felicidade da irmã. Os homens da família estavam radiantes e ignoravam seu mau humor, sem se pôr em seu lugar. Como ela poderia estar, feliz com a idéia de se casar com um estranho?

Nell não podia negar que o achara bonito e atraente, e que era um ótimo partido, pois pertencia a uma famí­lia tradicional e tinha um título de prestígio. Era respeita­do na cidade, e muito rico. Mas isso não significava que ela quisesse se casar com ele. Seu pai e os irmãos esta­vam empolgados com a idéia de ela se tornar condessa de Wyndham, mas Nell não se sentia nem um pouco con­fortável com a idéia de se casar naquelas circunstâncias. Sabia que o próprio conde se prontificara a pedir sua mão por mero senso de honra e dever. Mas casamento era um compromisso para a vida inteira, e não seria justo, com nenhum dos dois.

Talvez houvesse algum outro meio para sair daquela situação.

Fora com isso em mente que ela fora procurar o pai na biblioteca, após o desjejum.

Quando ele a olhou com expressão vaga, Nell repetiu a pergunta:

— Eu preciso mesmo me casar com ele?

— É claro que sim, minha filha! Além de tudo o que aconteceu e da inesperada chegada dos Humphries numa hora inconveniente, a notícia já está no jornal. Qual é o problema com você, menina? É o conde de Wyndham! Todas as mães das moças solteiras têm andado atrás dele desde que a esposa faleceu. E pensar que é a minha filha quem vai ficar com ele, bem debaixo do nariz de todas as outras... não deixa de ser uma satisfação.

— Está... no jornal?! — ela balbuciou, sentindo o sangue fugir de seu rosto.

Edward virou para ela a página com o anúncio. Trêmula, Nell leu a pequena notícia e, na hora, perdeu qualquer esperança de evitar aquele casamento.

Deixou-se cair sentada numa poltrona ao lado do pai, desamparada.

— Será um casamento e tanto, minha querida. Você deveria estar feliz. É o tipo de casamento que eu sem­pre quis para você. Nell, você sabe que sua felicidade é importante para mim, sempre foi. Se eu pensasse por um instante que Wyndham seria um marido indiferente, um escândalo seria o de menos! Eu não concordaria com essa união. Mas ele é um bom homem. Nós talvez não freqüentemos as altas rodas da sociedade, mas seus irmãos e eu conhecemos a reputação dele. Nossos amigos em comum sempre falaram muito bem dele, e eu não conheço nenhuma razão para que ele seja inaceitável, até mesmo que não tivéssemos de evitar um escândalo.

Nell sabia que seu pai só queria o seu bem, e que a intenção dele era a melhor possível.

— Mas, papai, eu não o conheço. Como vou me casar com um homem que não conheço e não amo?

Edward suspirou.

— Minha querida, o meu casamento com sua mãe foi arranjado no momento em que ela e eu nascemos. Nenhum de nós opinou sobre o assunto. Nossos pais eram amigos, com terras vizinhas, e queriam muito aproximar mais as famílias.

Quando Nell tentou interromper, ele ergueu a mão, impedindo-a.

— Sim, nós crescemos juntos, sabendo que um dia nos casaríamos, mas não estávamos apaixonados quando nos casamos. Nós nos gostávamos e nos respeitávamos, e nossa união deixou nossas famílias felizes, e isso foi razão suficiente para nós. — O olhar de Edward se perdeu nas lembranças dos dias felizes do passado. — O amor veio com o tempo. Alguns meses depois do casamento, já não podíamos imaginar a vida um sem o outro. Eu nun­ca me arrependi do dia em que me casei com sua mãe. Eu ainda sinto falta dela.

Derrotada, Nell olhou para o pai, com o sentimento de estar presa em uma armadilha. Não tinha argumentos contra as palavras dele. Conhecia o pai o suficiente para saber que ele não mudaria de idéia.

Edward segurou suas mãos.

— Nell, não será tão ruim quanto você pensa. Wyndham me parece um homem sensato e equilibrado, e mesmo que você não o ame, lembre-se de que o amor não é essen­cial para a realização de um casamento. — Ele tocou o rosto dela e sorriu. — Você pode se surpreender e acabar se apaixonando por ele.

Ela o fitou, alarmada.

— E se isso nunca acontecer?

— Eu não posso prever o futuro, minha querida. Seu casamento será aquilo que você fizer dele. Você pode tirar dele felicidade ou tristeza. A escolha é sua.

 

Julian nunca associara as palavras "amor" e "casamen­to". E agora, menos ainda. Ele era realista sobre seu casa­mento. E olhando a situação de modo prático, só podia ver várias vantagens em se casar com Eleanor Anslowe.

Quando Adrian Talcott chegou naquela manhã, incon­formado com o erro cometido pelo Times, ele expli­cou a situação assim que conseguiu acalmar o amigo. Normalmente, Julian contaria toda a história para Adrian. Ele confiava no amigo, não tinha segredos para com ele. Dessa vez, porém, a reputação de uma dama esta­va envolvida, e quanto menos pessoas soubessem a verdade, melhor.

Levou alguns minutos para que Julian convencesse Adrian de que não houvera erro por parte do jornal, e de que ele iria, sim, casar-se com Eleanor Anslowe na quar­ta-feira da semana seguinte, e que era óbvio que o amigo estava convidado.

— Mas você estava tão determinado a não se casar outra vez! E vai fazer isso justamente com uma moça a quem mal conhece?

— Eu admito que outro casamento não estava nos meus planos, mesmo que isso resultasse em meu primo Charles herdar o título e tudo o que vem com ele, e o que ele em pouco tempo perderia no jogo.

Adrian deu um sorriso irônico.

— Bem, estou feliz em ver que pelo menos sua opinião sobre ele não mudou... Tive medo que você tivesse vira­do a cabeça de vez!

— Não, meu caro. Se você pensar bem, esse casamen­to pode ser uma boa coisa. A rigor, eu preciso de um her­deiro, e seria bom ter alguém para cuidar de minha casa. Tenho propriedades que precisam da mão de uma mulher. Diana até que se sai bem, mas é ainda muito jovem, e é bem provável que torne a se casar. E então, como eu ficaria? Ter minha própria esposa resolveria o problema antes que ele surgisse.

Quando Adrian ia interromper, ele ergueu a mão e acrescentou:

— Eu sei o que você vai dizer: por que, então, não esco­lher uma noiva mais jovem e mais importante? — Julian coçou o queixo.

— Porque não consigo me ver envolvi­do com uma menina inexperiente e cheia de vontades. Só de imaginar, tenho vontade de entrar para um mosteiro. A srta. Anslowe é uma candidata perfeita para mim, tal­vez a única candidata. Pense nisso, Adrian! Ela poderá me dar filhos e é madura o suficiente para saber como o mun­do funciona. Sua família possui um nome respeitável, e não se esqueça de que ela é uma herdeira. Quanto mais eu penso, mais eu acredito que tomei a decisão certa.

— Devo estar sonhando, Senhor, não é, possível... Certamente não estou falando com a mesma pessoa que, durante anos, declarou que o casamento é o pior destino que pode cair sobre um homem?

— Haverá compensações, sabe? — prosseguiu Julian, ignorando a indignação do amigo. — Quando ela me der um herdeiro, Charles não terá mais nenhuma chance de ser conde, e lembre-se ainda de que será minha mulher quem terá de lidar com Diana e seus chiliques. Finalmente me verei livre desse fardo...

— Um motivo pobre para se prender a uma mulher que foi deixada de lado há anos. E não se esqueça dos rumo­res sobre ela...

— Que rumores? — perguntou Julian, num tom que deixou Adrian preocupado.

— Você sabe que ela foi noiva de Bethune há alguns anos?

Julian assentiu com um gesto de cabeça.

— É de conhecimento público que ela sofreu um aci­dente que a deixou aleijada... Mas a razão pela qual Bethune se safou do compromisso foi que começaram a correr boatos de que ela também ficou com problemas mentais.

Julian recordou o momento em que vira Nell na cabana, suja e desarrumada, porém com um inequívoco brilho de inteligência e lucidez nos olhos verdes. Nell podia ser qualquer coisa, menos louca, nem mesmo perturbada.

— Você tem noção de que está falando da mulher com quem eu vou me casar? — indagou suavemente.

Adrian engoliu em seco, de repente sentindo o colari­nho apertado demais.

— Não fique bravo comigo, só estou repetindo o que ouvi. Não tenho nada contra a moça, mas sou seu amigo, e...

— Então não faça mais isso, se quiser continuar sen­do meu amigo. E sugiro, para seu próprio bem, que você avise a quem puder para que não faça o mesmo.

— Sim, claro. Pode ter certeza.

— Eu sei. E sei que você quer me ver feliz — acrescen­tou Julian, com seu mais charmoso sorriso.

— Naturalmente. Não desejo outra coisa. — Adrian sentou-se em uma cadeira. — O problema é que foi um choque. Foi tudo muito rápido. Esse assunto vai ser um prato cheio para fofocas.

— As pessoas fazem fofocas a meu respeito há anos. Qual a diferença de mais uma?

— Talvez não faça diferença para você, mas e para ela?

Julian pensou a respeito, e reconheceu que o amigo tinha razão. Ele poderia lidar com a maledicência das pessoas, mas num inesperado sentimento de proteção, deu-se conta de que não queria que a cidade inteira colo­casse suas garras em Nell.

— O que você sugere? Vou me casar com ela na próxima quarta-feira.

— Talvez se nós... déssemos algum tipo de explica­ção? E lógico que lady Humphries vai espalhar a notí­cia de como ela encontrou vocês naquela cabana. E conhecendo a tal senhora como conhecemos, sabemos que é muito provável que ela aumente a história. Você precisa estar preparado para desmentir as fofocas.

— Você tem alguma coisa em mente?

— Acho que sim. Você pode alegar que guardou segre­do do seu interesse na srta. Anslowe para não preocu­par lady Wyndham com a possibilidade de outra dama assumir o título.

— Pode ser uma boa desculpa. Diana tem o maior orgu­lho em ser a condessa de Wyndham. Ela não gostaria nem um pouco de perder o título.

— Isso explicaria por que você manteve segredo. Para dar tempo a lady Wyndham de se acostumar com a idéia.

— Mas, sendo assim, por que eu decidiria contar sobre essa crescente paixão pela srta. Anslowe justamente agora?

— Porque, meu caro amigo, depois do incidente com o coche você ficou tão próximo da srta. Anslowe que não pôde mais controlar sua paixão. Então você decidiu que não podia mais esperar, que tinha chegado a hora de falar, e que se danassem as conseqüências!

— Tem razão. Isso manteria as fofoqueiras ocupadas, dando tratos à bola, pelo fato de eu ter sido flechado por um amor arrebatador. E elas veriam a srta. Anslowe como uma espécie de deusa da vingança, ou coisa assim, que finalmente me fez cair de joelhos por uma mulher.

— E isso é verdade? — perguntou Adrian, curioso.

— Não sei. Acredite, eu mesmo não sei a resposta para essa pergunta.

— Diga-me, por que um casamento tão repentino? Quero dizer, além da sua falta de controle sobre sua cres­cente paixão. Por que não esperar a primavera para se casar com ela?

Julian não podia contar todos os fatos que o levaram àquela situação. Além do mais, os Anslowe não sabiam de sua ligação com Tynedale, e ele gostaria que continuas­se assim. Julian suspirou. Seria melhor que se casassem o quanto antes para acabar com qualquer tipo de suspei­ta ou fofoca.

— Não há nada de suspeito em um casamento repen­tino. Quero evitar o máximo possível as fofocas sobre minha noiva. É melhor que acabemos com isso agora do que ter de esperar até a primavera.

Adrian não conseguiu arrancar mais nada do amigo, e teve de se dar por satisfeito. Os dois se despediram e Adrian brincou, avisando que estava indo ao Boodle's para lamentar o destino de Julian.

Na residência dos Anslowe, Julian foi conduzido pelo mordomo até a biblioteca, onde encontrou o futuro sogro sentado atrás de uma escrivaninha.

— Lorde Wyndham. É um prazer. Sente-se, por favor. Aceita uma bebida?

Enquanto alguns pontos haviam sido discutidos, outros ainda não tinham sido mencionados, como dinhei­ro e outras questões. Tudo isso foi resolvido sem nenhum problema pelos, dois homens. Ficou decidido que a for­tuna de Nell ficaria sob os cuidados de Julian depois que eles se casassem.

Como Nell não tinha muito o que palpitar sobre o assunto, ela nem sabia que o futuro noivo estava em sua casa até que o criado bateu à porta de seu quarto avisando que o pai estava convocando sua presença na biblioteca, onde lorde Wyndham a aguardava.

Por um breve momento ela considerou pedir ao mor­domo que dissesse ao pai e ao noivo que ela estava indis­posta, mas logo desistiu, sabendo que de nada adiantava postergar o problema. Deu uma olhada no espelho, e ajeitou o vestido e os cabelos, satisfeita com sua apa­rência, que estava muito melhor do que a primeira vez em que o conde a vira. Ao mesmo tempo, repreendeu-se por se importar com o que lorde Wyndham pudesse pensar dela.

Ao chegar na biblioteca, Nell respirou fundo, abriu a porta e entrou. Julian parou com a mão a meio cami­nho de levar o copo aos lábios e ficou olhando para ela, paralisado.

— Milorde. — Nell o cumprimentou com uma vênia graciosa.

Julian respondeu educadamente, tentando colocar os pensamentos em ordem. Mal podia acreditar que aquela criatura encantadora era a mesma que ele havia encon­trado vinte e quatro horas atrás. Era mais alta do ele se lembrava, mas do corpo esguio com curvas delicadas e da boca rosada e tentadora, ele se recordava muito bem. Os olhos verdes ainda tinham a mesma expressão cuidadosa. Só que, agora, era uma moça fina e bem-vestida.

Onde diabos, ele pensou, ela andara escondida todo aquele tempo?

— Obrigado por juntar-se a nós, minha querida — agradeceu Edward, estendendo a mão para trazer a filha para seu lado.

Nell obedeceu, tentando não deixar transparecer sua surpresa diante daquele cavalheiro que se encontrava agora ao lado de seu pai. De seu primeiro encontro, ela tinha a lembrança de um homem alto, com a barba por fazer e um olhar duro, um homem que a fazia se lembrar de um bandido ou um rufião, estava sendo difícil associar essa imagem ao homem que estava ali agora. Ele estava impecavelmente penteado e barbeado, e o casaco azul-escuro e a calça preta lhe caíam muito bem, assim como a gravata. Era um cavalheiro elegante, bonito e atraente, como poucos que ela já conhecera.

Nell baixou o olhar, incapaz de continuar enfrentando o olhar dele, que parecia querer engolfá-la. Percebendo o clima tenso entre ambos, Edward disfarçou um sorriso.

— Vou deixá-los alguns minutos sozinhos — anun­ciou sir Edward. — Acredito que lorde Wyndham queira conversar com você em particular.

Nell viu o pai deixar a sala, e seu coração disparou. Não estava se sentindo nem um pouco à vontade ali sozi­nha com lorde Wyndham. E naquele momento, nem esta­va pensando no casamento em si, mas no fato de que o achava muito atraente. Ao ver que ele a encarava fixamen­te, encheu-se de coragem e ergueu o queixo.

— O que foi? Por que está olhando para mim?

— Perdoe-me — disse Julian, com um tom divertido na voz. — Eu não pude evitar, eu não esperava que... A senhorita é muito bonita, muito mais bonita do que eu pensava.

Ela arqueou uma sobrancelha, forçando-se a ignorar a alegria que as palavras dele lhe proporcionavam.

— Não precisa me cortejar, milorde. Meu pai já dei­xou bem claro que vamos nos casar na quarta-feira, e que nem a morte vai impedir que isso aconteça.

Edward comentara que a filha não estava muito feliz com a situação, mas Julian não acreditara. Sem vaida­de alguma, ele sabia que era um ótimo partido. Mas os modos e as palavras de Nell demonstravam que o pai dela não havia se enganado, ela de fato não parecia impressionada, nem com ele, nem com seu título, nem com sua fortuna.

Por um momento, ocorreu a Julian o pensamento de que ele poderia muito bem estar cortejando alguma moci­nha doce e cordata, em vez daquela mulher briguenta e mal-humorada. E isso, considerando-se que ele havia jurado nunca mais cair na armadilha do casamento...

Como a vida era irônica! Contendo-se para não sorrir, ele a olhou de cima a bai­xo e depois voltou a fixar o olhar em seu rosto, no queixo teimoso, no narizinho empinado, na boca tentadora. Sua futura noiva, ele decidiu, seria um grande desafio...

— Então a senhorita prefere a morte a se casar comigo? — ele perguntou.

— Claro que não! Não sou idiota.

— Então não aja como uma.

— O q... — Nell franziu a testa e enrubesceu. — Como... assim?

— Quero dizer, minha querida, que estamos nisso jun­tos. Nossas vidas mudaram de uma maneira que nenhum de nós poderia imaginar. Não se esqueça de que não é a única que está sendo forçada a se casar. Se a senhorita não me conhece, eu também não a conheço. Nós podemos tirar o máximo proveito possível da situação, ou então passar o resto do tempo tentando deixar um ao outro infe­liz. A escolha é sua. De minha parte, não tenho a menor intenção de passar o resto da minha vida infeliz.

— Mas o senhor não está furioso com isso tudo? Além de não me conhecer, está prestes a se casar com uma mulher considerada meio louca pela sociedade, e que também é aleijada, como o senhor já deve ter percebido.

Julian tocou o queixo dela com o dedo, a mão quen­te dele contra sua pele. Os olhos dele brilhavam com uma emoção que ela não conseguia decifrar.

— Sabe que eu quase briguei com um amigo por ele ter se referido à senhorita nesses termos?

Nell arregalou os olhos, e seu coração saltou dentro do peito.

— O senhor... fez isso?

Julian fez que sim com um gesto de cabeça.

— Com ele, eu estava preparado para duelar por conta disso. E com a senhorita? O que vou fazer com a senhorita por falar dessa maneira sobre a moça com quem vou me casar?

Nell não conseguia pensar. Ele estava perto demais, e a consciência daquela proximidade a perturbava. Era evidente que sua reação não passava despercebida a Julian, e isso a incomodava ainda mais. Ele, por sua vez, sentiu-se tocado ao vê-la tão afetada por ele. Cedendo ao desejo que sentira desde a primeira vez em que a vira, deu um último passo à frente e capturou-lhe os lábios com os seus.

Desde o início, Julian soubera que seria bom beijar Nell. Nunca tivera dúvidas quanto a isso, mas não ima­ginara que seria os lábios dela seriam tão deliciosamente macios, doces e quentes, e que o beijo mexeria tão pro­fundamente com ele.

Instintivamente, Nell envolveu o pescoço de Julian com os braços e pressionou o corpo ao dele. Seu coração batia alucinado dentro do peito, e ela podia sentir o dele batendo no mesmo ritmo também.

O efeito daquele contato era igualmente devastador para Julian, ele nunca havia sentido um desejo tão explo­sivo, e reconheceu os sinais... e o perigo. Se não se contro­lasse, não poderia mais parar, e as conseqüências seriam desastrosas. Com um imenso esforço, ele interrompeu o beijo e a afastou.

— Não foi para isso que seu pai nos deixou sozinhos — ele falou com a voz rouca.

Lutando contra as sensações provocadas pelo beijo, Nell perguntou:

— Por quê ele nos deixou sozinhos?

— Para permitir que eu peça sua mão formalmente. — Os cantos dos lábios dele se curvaram num pequeno sorriso. — Nós achamos que isso seria apropriado.

Nell afastou-se e respondeu sem olhar para ele:

— Nesse caso, está perdendo seu tempo. Eu serei honesta: não quero me casar com o senhor, nem com qual­quer outro homem. E um pedido formal não mudará a minha opinião.

Julian segurou-lhe o queixo e obrigou-a a encará-lo.

— Tem tanta certeza assim de que não quer se casar comigo? Me acha tão detestável?

— Eu poderia citar os nomes de vários cavalheiros que não acho detestáveis, mas nem por isso quero me casar com eles.

Julian fez uma careta. Ciente de seu valor e de como era apreciado pelo sexo oposto, não sabia se ficava surpreso ou insultado pela recusa dela. Só sabia de uma coisa: ele a queria. Desejava aquela mulher, e a recusa dela apenas incitava seu instinto de caçador. A resistên­cia de Nell era uma novidade para ele. Não conseguia se lembrar de algum dia na vida ter sido repelido por uma mulher.

Ele sorriu pela antecipação do que estava por vir. Teria muito trabalho para conquistar sua relutante noiva, e previa que iria gostar imensamente disso.

Julian aguardava o casamento com uma impaciência que o surpreendia. Dizia a si mesmo que era apenas para ver toda aquela agitação acabar, mas no fundo sabia que mal podia esperar para estar a sós com Nell e ter uma chance de tentar seduzi-la.

Diana pensava em Nell como um monstro que iria fazer com que ele se livrasse dela e da filha. Já Elizabeth, menos dramática que a mãe, não estava exatamente insa­tisfeita com a nova adição à família, mas sabia que o que ela e a mãe tinham com Julian mudaria para sempre.

A princípio, Adrian Talcott também tivera suas reser­vas sobre aquele casamento tão precipitado, mas depois de encontrar Eleanor Anslowe num jantar na casa de Julian, ele se descobriu inesperadamente encantado por ela, e passou a enxergar toda a situação com outros olhos. Na verdade, reconheceu que, se seu amigo ia se casar, não poderia encontrar uma noiva melhor do que a herdei­ra Anslowe.

Dia após dia, os amigos de Julian e os familiares que moravam fora de Londres vinham à cidade para conhe­cer a incrível mulher que conseguira amolecer o coração do conde.

Uma semana após o anúncio no jornal, Marcus Sherbrook apareceu na biblioteca. Encontrou Julian sozinho, sentado em uma cadeira perto do fogo, pensativo.

— Arrependido, primo? Só faltam dois dias para o casamento...

Um sorriso iluminou o rosto de Julian, e ele levantou-se para abraçar o primo.

— Marcus! Não pensei que o veria na cidade tão cedo.

— O quê?! E perder as bodas mais comentadas do ano? Nunca!

Julian sorria abertamente.

— Aposto que você pensou que esse dia nunca chegaria.

Os olhos cinzentos de Marcus brilharam, divertidos.

— Acertou, rapaz! Mal posso esperar para conhe­cer esse modelo de perfeição que capturou o homem que jurava que nunca mais cairia na armadilha do casamen­to outra vez...

— Às vezes nem eu mesmo acredito, sabe? Mas quando você a conhecer, vai entender... — Um sorriso torto curvou a boca de Julian. — Ou então vai me amaldi­çoar por tê-la encontrado primeiro.

Sentando-se diante de Julian, Marcus o observou com atenção, procurando por algum significado oculto em suas palavras. Ele conhecia Julian muito bem e o que viu devia tê-lo deixado satisfeito, pois relaxou e sentou-se confortavelmente numa poltrona, esticando as longas pernas.

Marcus era filho da irmã mais velha do pai de Julian, e apenas dois anos mais novo que o primo. Os dois se conheciam praticamente desde a hora em que nasceram, e haviam crescido numa convivência constante. Além do tipo físico, da cor dos cabelos e da estatura, os dois rapa­zes não tinham muitos traços em comum, uma vez que Marcus herdara as feições da família do pai, um nobre de linhagem impecável.

— Suponho que você tenha lido a notícia no jornal — disse Julian, servindo ao primo um cálice de conhaque.

— Na verdade, não. Fiquei sabendo por Charles. Ele leu a notícia no jornal e foi correndo me contar.

— Espero que Charles tenha um mínimo de bom-senso para não pensar que estou me casando para pre­judicá-lo. — Ele balançou a cabeça com uma expressão infeliz. — Se ao menos nosso tio não tivesse cismado que meu pai roubou o título dele e envenenado Charles contra mim, não haveria essa amargura entre nós.

— Para pôr um fim de uma vez por todas nas esperan­ças de Charles, vamos torcer para que sua futura esposa lhe dê muitos filhos! — exclamou Marcus, erguendo seu cálice.

Julian retribuiu o brinde.

— Como você disse, vamos esperar.

— Então, fale-me sobre essa moça maravilhosa e seu namoro relâmpago. Tenho tentado me lembrar se já a encontrei em algum lugar, mas acho que não.

Julian contou ao primo a mesma história que conta­ra para Adrian. Só ao perceber o sorrisinho irônico de Marcus foi que compreendeu que ele não estava acredi­tando numa única palavra.

— Hum, sei... — murmurou ele, quando Julian termi­nou. — Um tanto vago, não? Vamos lá, agora conte-me a verdade, e não esse conto de fadas.

Julian riu.

— Temo que meus lábios estejam selados, mas saiba que não estou infeliz com o rumo dos eventos, e acho que você vai gostar de Nell e da família dela. Sir Edward é um cavalheiro distinto e afável, assim como os três irmãos dela. Sua origem e fortuna estão acima de qualquer cen­sura. Não vou ter de me preocupar com eles correndo atrás do meu dinheiro. Os Anslowe são uma família boa e respeitável, muito mais do que alguns membros da nossa.

— Ah, então a dama vem de uma longa linhagem de modelos de virtude?

— Claro que sim. O conde de Wyndham se contentaria com menos que isso?

— E sua adorada madrasta? Como ela vê tudo isso?

— Nem me fale! Tenho sido testemunha de lágrimas e dramas que você não pode nem imaginar. Diana tem certeza absoluta de que Nell vai jogá-la na rua, junto com Elizabeth, só com as roupas do corpo.

— E ela vai? — perguntou Marcus.

— Eu duvido muito. Nell não me parece insensível, ou cruel. Talvez haja algumas mudanças, mas ela não fará nada drástico.

— Bem, meu caro, eu não o invejo pela guerra domés­tica que você está por enfrentar.

— Talvez você esteja certo, mas desde que Diana e Elizabeth decidiram ficar aqui na cidade indefinidamen­te, quando elas voltarem para Wyndham Hall, Nell já estará bem estabelecida como a senhora da casa.

— E nesse meio tempo? Presumo que você irá trazer sua noiva aqui pelo menos por um dia ou dois antes de ir para a mansão. Não seria uma boa idéia, considerando as atitudes de Diana?

— Já foram tomadas providências nesse sentido. Logo após a recepção do casamento, na casa de sir Edward, minha noiva e eu iremos para o campo pôr uma semana. Adrian muito gentilmente me ofereceu seu bangalô em Surrey. Se eu tiver sorte, Diana e minha esposa não se enfrentarão por algumas semanas, talvez meses.

— Não me diga que Diana não irá ao casamento!

— Não, ela e Elizabeth estarão lá, eu lhe asseguro. — A expressão de Julian endureceu. — Depois de um vale de lágrimas que você não pode nem imaginar, eu disse a Diana que se ela pretende ter um relacionamento amigá­vel comigo e com minha esposa, é bom que ela compareça ao casamento. Ela entendeu meu ponto de vista e acres­centou que, já que eu estava mandando Dibble e outros criados para Wyndham Hall no inverno, ela teria carta branca para contratar seus próprios empregados. Espero que na próxima primavera ela já esteja estabelecida em sua própria casa e que Nell e eu tenhamos o lugar só para nós.

Os dois primos ficaram em silêncio por um momento antes que Marcus mudasse de assunto:

— Você tem notícias de Stacey? Não posso imaginá-lo perdendo seu casamento.

Stacey Bannister era o filho caçula da irmã predileta do pai de Julian.

— Faz algum tempo que não o vejo, mas espero que ele apareça na minha porta a qualquer momento, assim como você.

— E quanto a Charles e Raoul e a querida tia Sofia? E se eles aparecerem em sua porta também?

Julian cerrou os lábios.

— Apesar de nossas outras diferenças, Charles sabe que considero que ele tem uma parcela de culpa na mor­te de Daniel. Eu sei que ele gostava do garoto, e tenho certeza de que, em sua mente, ele não viu nada de errado em apresentar Daniel a Tynedale. Provavelmente achou que estava fazendo um favor, porém um favor que levou Daniel ao suicídio. Duvido que Charles ou qualquer outro membro de sua família compareça ao casamento.

Os pensamentos de Julian voaram, recordando a tra­gédia com Daniel e seu difícil relacionamento com o pri­mo Charles. Ele sacudiu a cabeça para afastar aqueles pensamentos obscuros e perguntou de repente:

— Onde você está hospedado? Imagino que não tenha reaberto sua casa em Londres só para esta curta estada.

— Não, reservei um quarto no Stephens's e ficarei lá até quinta-feira.

Os dois se levantaram e caminharam até a porta.

Você aceita ser meu padrinho? — convidou Julian.

— Eu ficaria insultado se você não tivesse me pedido.

 

O dia do casamento amanheceu chuvoso. Nell achou que o tempo estava de acordo com seu humor. Os últi­mos dias haviam passado depressa por causa dos prepa­rativos, mas agora estava tudo pronto. A licença especial fora conseguida, a igreja escolhida, e seu pai encarre­gara Chatham de organizar o almoço que seria servido logo após o casamento.

A cerimônia estava marcada para as onze e meia da manhã, e Nell entrou em pânico. Ela tivera uma participação pequena, deixando que seu pai e o conde fizessem todos os planos que quisessem. Estava se casan­do contra a sua vontade, e não tinha desejo algum de opinar.

Ao entrar na carruagem para ir até a igreja, catedral ela ouviu seu pai reclamar da chuva. O interior da igre­ja estava frio, mas Nell tirou a capa de lã, ajeitou o ves­tido lilás-claro e o buquê com pequenos botões de rosa amarelos, e, com o pai a seu lado, entrou na nave em direção ao homem que seria seu marido.

A recepção do casamento foi íntima. Estavam apenas os noivos, Edward, os irmãos de Nell, Marcus Sherbrook, e Elizabeth e Diana, que chorava sem parar. Alguns membros da sociedade também compareceram à cerimô­nia, que passou rápida e nebulosa para Nell. Ela tinha a sensação de estar sonhando, o anel em seu dedo, o homem alto e circunspecto a seu lado, a expressão de orgulho de seu pai e de seus irmãos, o sorriso simpático do padri­nho de Julian, tudo parecia irreal.

A sensação perdurou durante o almoço, e enquan­to recebia os cumprimentos dos convidados, ela se per­guntava se aquilo seria outro pesadelo, diferente dos que ela tinha habitualmente, porém não menos aterrorizante.

Finalmente, chegou a hora de partir. Com a capa esvoaçando ao vento, e o capuz cobrindo a cabeça por causa da chuva, Nell aceitou a mão que Julian lhe esten­dia e subiu na carruagem dos Wyndham, que os leva­ria para a casa de campo de Adrian Talcott, a algumas milhas de Londres. Ela e Julian passariam lá uma sema­na, tempo suficiente para que o mordomo de seu marido, Dibble, e os outros criados do conde, retornassem para Wyndham Hall, sua nova casa no campo, e deixassem tudo pronto para a nova senhora da casa.

De repente, ao se lembrar da noite que estava por vir, Nell engoliu em seco e arriscou um olhar para o cavalhei­ro alto e de cabelos escuros sentado à sua frente. Aquele homem que ela mal conhecia iria dividir a cama com ela naquela noite, e provavelmente, todas as noites de sua vida.

Julian sorriu para ela.

— Tudo deve parecer um pouco estranho para você.

— Um pouco — Nell admitiu e olhou para as luvas em suas mãos.

— Eu sinto muito por isso, pela pressa do nosso casamento.

— Só a pressa? — ela perguntou secamente.

— O nosso casamento não foi uma união normal, mas também não é a primeira vez que estranhos se casam.

Quando Nell não respondeu e desviou o olhar para a paisagem chuvosa, ele se inclinou para a frente e ela se afastou, fazendo questão de manter distância entre eles. Julian percebeu, e seus lábios se estreitaram.

— Como eu lhe disse uma vez, nós podemos fazer do nosso relacionamento o que quisermos. Eu não posso forçá-la a ficar contente com essa união. Só você pode fazer isso.

— É muito fácil para o senhor falar... Sua vida não está sendo virada de cabeça para baixo. É na sua casa que eu vou morar, com os seus criados, todos estranhos para mim, acostumados a ter como patroa a sua madrasta, num lugar que ela chamou de lar por anos! Além de minha criada pessoal Becky e minhas roupas, não haverá mais nada de familiar para mim. Deixei para trás tudo que eu conhecia, meu pai, meus irmãos, minha casa... E para quê? Para viver com um homem que não conheço. O senhor vê alguma razão para eu ficar feliz, com isso tudo?

— Eu concordo com você — admitiu Julian. — Mas acredito que, com o tempo, você deixará de pensar nas coisas como sendo minhas, e sim nossas.

— O senhor é sempre assim, tão racional? — pergun­tou Nell, irritada com a calma e o bom-senso dele.

— Nem sempre. — Julian inclinou-se para a fren­te, segurou uma das mãos de Nell e fitou-a nos olhos. — Eu sei que isso não é fácil para você. Também não é fácil para mim. Mas estamos casados, e por mais que isso pareça estranho agora, temos uma vida inteira para aprender um sobre o outro.

— O senhor não está nem um pouco contrariado com essa situação? — perguntou ela, com curiosidade. — Nem um pouco aborrecido por ter se casado com uma completa desconhecida?

— Não quando ela é charmosa e simpática como você. — ele respondeu com um brilho no olhar.

— Mas que mentiroso! A última coisa que eu tenho sido nos últimos dias é charmosa e simpática.

— Bem, e agora, como poderei responder a isso?... Sou muito educado para chamar minha esposa de men­tirosa, nem eu ousaria dizer, se valorizo minha vida, que você é antipática.

— Um verdadeiro problema, meu senhor, mas um do qual um cavalheiro de sua categoria poderia resolver rapidamente e sozinho — ela respondeu com um sorriso no rosto.

Julian riu, e inexplicavelmente, Nell sentiu seu humor melhorar da água para o vinho. Começou até a achar a paisagem cinzenta mais bucólica, e quando o coche parou em frente a um charmoso bangalô, algum tempo depois, Nell desceu, se não feliz com a situação, menos deprimida.

O conde conhecia os criados, pois já se hospeda­ra várias vezes na casa de Talcott. Parada na ampla sala de estar, Nell olhava ao redor, encantada com a decora­ção aconchegante e de bom gosto. O fogo crepitava na lareira, e o mordomo não poderia ser mais solícito.

— Diga-me, Hurst, meu valete e a criada de minha esposa já chegaram? — perguntou Julian.

— Sim, milorde, há algumas horas. Julian virou-se para Nell.

— Você não gostaria de ver seu quarto, refrescar-se e mudar de roupa antes do jantar?

Nell acatou a sugestão, agradecida. Becky espera­va por ela no quarto, e era difícil dizer qual das duas estava mais nervosa.

— Senhorita... Senhora, estou tão feliz em vê-la! Tive medo de ter que esperá-la no quarto do conde, e estava pronta para desaparecer se ele entrasse!

Nell riu, sentindo-se mais relaxada. Olhou ao redor do quarto, maravilhada com a combinação dos tons de marfim e dourado.

— Já pedi para trazerem seu banho, e separei a camisola de renda creme... — O rosto de Becky ficou vermelho.

— Obrigada — respondeu Nell, enquanto andava inquieta pelo quarto.

Tentava disfarçar, mas sentia-se indefesa e assustada, temendo a noite que estava por vir. Não era mais crian­ça e sabia o que esperava por ela. O conde era um homem bonito e atraente, pelo que ela se sentia grata, mas apesar disso, não estava ansiosa para dormir com ele. Lembrou-se dos breves momentos que haviam vivenciado na cabana, da sensação do peso dele sobre seu corpo, do olhar sensual e sedutor.

Alguma coisa se contraiu dentro de seu ventre, e ela não sabia definir se a sensação era agradável ou não. Tampouco queria saber, ou entender o que estava acon­tecendo consigo mesma. Só esperava que Julian fosse compreensivo e paciente. Quem sabe, assim, ela viesse a sentir algum entusiasmo.

Julian e Nell compartilharam um suntuoso banquete, servido para eles na sala de jantar.

Não foi uma refeição agradável. A conversa entre eles foi difícil, e por mais que a comida estivesse delicio­sa, Nell sentia dificuldade para engolir e não conseguiu comer tudo o que estava no prato. Recusou até mesmo a sobremesa, imaginando que, em outras circunstâncias, apreciaria sobremaneira o pudim de claras com calda de chocolate.

Quando o jantar terminou, os dois se levantaram da mesa, aliviados. Julian conduziu Nell até a sala de estar, e depois que Hurst fechou discretamente as portas, Julian ficou olhando para um aparador com várias garrafas e taças de cristal. Então virou-se para Nell, que estava sentada na beirada de um sofá estofado de cetim florido.

— Gostaria de uma taça de vinho branco? — ofere­ceu ele.

Nell fez que sim com a cabeça, mais para poder ocu­par as mãos segurando a taça do que por qualquer outro motivo.

Depois de servi-la, Julian pegou sua bebida e foi se sentar numa cadeira diante dela. Um silêncio constran­gedor caiu sobre eles. Nell respirou fundo, tomou um gole de vinho e começou a falar:

— Eu... queria lhe falar sobre... esta noite.

— Sim? O que tem esta noite? — ele perguntou, tomando um gole de vinho. Nell enrubesceu.

— Eu não o quero em minha cama.

Disfarçando a consternação, Julian respondeu:

— A menos que me falhe a memória, nós somos mari­do e mulher, e até onde sei, as alegrias do leito conju­gal são amplamente apregoadas. — Ele sorriu, cheio de charme. — E estou ansioso para confirmar, por mim mesmo, se essas loas são justificadas.

— O senhor se importaria de não ficar ansioso esta noite, então?

Julian a estudou, reparando na postura tensa e no bri­lho dos olhos de Nell, que mesclava medo e desafio. Já se preparara para lidar com uma noiva relutante, mas não imaginara quão relutante ela estaria.

— Você está sugerindo que o casamento nunca seja consumado?

— Não é isso. — Nell balançou a cabeça. — Só peço que nos conceda algum tempo para que possamos nos conhecer melhor, antes... — Ela engoliu em seco.

— E quanto tempo seria isso? Uma semana? Um mês? Seis meses?

— Eu não sei, mas acredito que possamos definir uma data limite. — Ela deu um sorriso trêmulo. — Imagino que o senhor também não queira se deitar com uma mulher que mal conhece.

Julian bem que gostaria de esclarecer aquele equívoco de Nell e afirmar que o que mais queria era levá-la para a cama o quanto antes, e teria feito isso se não soubes­se que tal declaração faria com que ela saísse corren­do. Estava habituado às mulheres se atirando a seus pés, desejosas de ir para a cama com ele, não se lembrava da última vez em que tivera de agir com cautela. Mas reco­nhecia que o pedido de Nell fazia sentido. Eles fica­riam casados por muito tempo. O que era uma semana ou um mês de espera, quando teriam uma vida inteira pela frente juntos?

Ele a fitou com os olhos semicerrados. Ela não tinha idéia de quanto era atraente, ali sentada, tão pouco à vontade, com a luz de vela lançando reflexos dourados em seus cabelos. Podia imaginar a sensação de tê-la em seus braços, de beijá-la e acariciá-la, mostrar como era experiente na arte de fazer amor, todos os seus instin­tos o impeliam a ignorar a relutância virginal de sua noi­va e possuí-la, iniciá-la nos prazeres do sexo, mas o medo de destruir alguma coisa que ele não sabia exatamente o que era falava mais alto.

Desconfortável com aquele escrutínio silencioso, Nell tossiu discretamente.

— E então, milorde?

Julian suspirou, levantou-se e aproximou-se dela. Segurou-lhe uma das mãos e levou-a aos lábios, num gesto carinhoso.

— Primeiro, pare de me chamar de "milorde" e de "senhor"... E segundo, sim, talvez você tenha razão, minha querida. Vamos esperar...

Ele deu um sorriso melancólico diante da expressão de alívio no rosto de Nell. Quem visse poderia imaginar que ela havia escapado de um destino pior do que a morte.

— Ah, milor... Julian, muito obrigada! — exclamou ela, levantando-se de um pulo. e retirando a mão, tão rápido que poderia ter ofendido um homem de menor envergadura. — Fico feliz que tenhamos chegado a um acordo... e já que foi um longo dia, acho que devo me recolher. Boa noite.

Ela girou nos calcanhares para sair da sala quando Julian a chamou de volta:

— Espere, Nell!

Ela parou, ficou paralisada por um segundo, e então virou-se para ele, com ar de indagação. Julian deu um passo à frente e acariciou-lhe o rosto com a ponta de dois dedos.

— Prometo que não forçarei minha presença em sua cama... mas em troca você deve permitir que eu lhe faça a corte.

— A corte? Como assim?

— Como... se fôssemos namorados. Já que não tive­mos esse período para nos conhecermos, teremos ago­ra. — Ele enlaçou a cintura dela e puxou-a para mais perto. — Isso significa que de vez em quando poderei abraçá-la, acarinhá-la... e beijá-la.

Nell viu o rosto de Julian inclinar-se sobre o seu, e no instante seguinte os lábios dele estavam em sua boca, pressionando, forçando a passagem da língua, apertando-a contra seu corpo forte e rijo.

Foi um beijo longo, demorado, e ao mesmo tempo cal­mo e gentil. Quando ele se afastou, Nell abriu os olhos, os quais nem tinha se dado de que havia fechado, e o fitou, com o olhar fora de foco e a respiração irregular.

Satisfeito consigo mesmo, Julian a soltou e sussurrou em seu ouvido:

— Boa noite, minha querida. Durma bem.

Como se estivesse sendo seguida por demônios, Nell subiu correndo as escadas para seu quarto, entrou e fechou rápido a porta. Seu coração batia enlouquecido, e suas pernas tremiam enquanto ela tirava o vestido e vestia a camisola de cetim que Becky deixara estendida sobre uma poltrona para ela.

Deitada na imensa cama de dossel, sozinha no quar­to escuro, fechou os olhos, tentando afastar a lembran­ça do beijo, sem conseguir. Já tinha sido beijada antes, afinal fora noiva de Aubrey durante alguns meses, e hou­vera alguns abraços mais calorosos e beijos roubados, no jardim ou em algum recanto escondido, mas... como comparar os beijos desajeitados e tímidos de Aubrey ao beijo que Julian lhe dera naquela noite?! Era o mes­mo que comparar água a champanhe! E pensar que hou­vera um tempo em que estivera loucamente apaixonada por Aubrey! Então, como o beijo de um homem que ela mal conhecia, com o qual não desejara se casar, de quem ela nem mesmo tinha certeza se gostava, fazia com que se sentisse nas nuvens?

Nell não conseguiu encontrar uma resposta antes de conseguir conciliar o sono, muito tempo depois.

Como num acordo tácito, Nell e Julian faziam o desjejum juntos todas as manhãs e programavam as ativida­des do dia. Passavam a maior parte do tempo cavalgando e desfrutando a beleza da paisagem campestre de Surrey. Assim como Nell, Julian também tinha paixão por cava­los, e durante os passeios, conversavam sobre as raças e seus cuidados. Algumas tardes, eles passeavam pelos jardins que cercavam a casa. As rosas ainda floresciam, apesar da chegada do outono, e eles chegaram a fazer um piquenique à beira do lago.

As noites eram calmas, e terminavam cedo, com cada um seguindo para seu próprio quarto. Mas, com o passar dos dias, Nell ficava cada vez até mais tarde na sala de jantar, rindo e conversando com Julian.

Ao longo de uma semana, os dois se conheceram bem melhor, e Julian já estava, se não satisfeito, resignado com a imposição de Nell de adiar a noite de núpcias. Depois daquele beijo, na primeira noite, ele passara a evitar qualquer contato físico entre ambos, temendo ser incapaz de se controlar. Nell não sabia se ficava feliz ou aborrecida com isso.

Quando chegou o dia de ir embora para Wyndham Hall, ela não lamentou deixar o bangalô, embora a estada ali tivesse sido muito mais aprazível do que ela imaginara.

Para sua própria surpresa, estava curiosa para conhecer seu novo lar e assumir a direção da casa como sua nova senhora.

O clima agradável prevaleceu, e nenhuma tempestade tornou lenta a viagem para Wyndham Hall, que transcor­reu sem nenhum incidente. Nell estava ansiosa para che­gar ao seu destino, mas quando finalmente a carruagem parou diante da suntuosa residência, ela teve um inespe­rado ataque de nervosismo.

Em poucos dias, deixara de ser a srta. Anslowe para se tornar a condessa de Wyndham, e a grandiosidade da situação a deixou assustada.

Até então, ela e Julian haviam estado em território neutro, mas como seriam as coisas dentro da casa dele? Ele a trataria de maneira diferente? E se ele fosse um tirano, que apenas escondera durante uma semana sua verdadeira natureza atrás de um sorriso educado e maneiras corteses, e agora, estando em seus domínios, se revelasse uma outra pessoa?

Nell sabia que provavelmente estava sendo tola, mas não conseguia se livrar da ansiedade. Afinal, uma semana não era tempo suficiente para se conhecer o caráter de alguém.

Quando a carruagem parou, Julian ajudou-a a descer e conduziu-a até os degraus do pórtico de entrada. A casa era enorme e estava toda iluminada, e a porta da frente se abriu antes que fosse preciso bater.

Nell sentiu-se apreensiva ao deparar com todos os criados, desde o mordomo Dibble até o mais simples dos serviçais, de pé em uma longa fila, esperando para cum­primentá-la. Com um sorriso caloroso, ela cumprimentou cada um deles, imaginando se conseguiria se lembrar da metade dos nomes e das funções que exerciam. Era olha­da por alguns com curiosidade, observada com atenção por outros, mas de maneira geral, sentiu-se bem-vinda e acolhida. Estava sendo mais fácil do que ela imaginara.

Depois de apanhar o casaco e as luvas de Nell, Dibble levou-os até uma sala charmosa, onde uma refeição aguardava por eles, numa mesa em frente a uma larei­ra de mármore. Nell apreciou o calor do fogo e gostou imensamente das panquecas, das frutas e das sobreme­sas, tudo muito leve e saboroso, preparado com esmero. Queria, assim que pudesse, conhecer melhor a cozinheira e elogiá-la.

Colocando de lado o prato vazio, observou o ambiente à sua volta, decorado em tons de verde e creme.

— Sua casa é linda, Julian...

— É sua casa também, agora. Você gostaria de conhe­cer o resto da casa? Se eu conheço Dibble, ele deve estar mais do que ansioso para lhe mostrar.

— Bem, nesse caso, não vamos deixar que digam que eu desapontei seu mordomo. Pode chamá-lo, se você quiser.

Julian puxou uma cordinha de veludo.

— Ele também é seu mordomo, minha querida. Nell fez uma careta.

— Eu me esqueço o tempo todo. Acho que vai demorar um tempo para eu me acostumar.

Dibble apareceu no mesmo instante, e quando Julian explicou do que se tratava, fez uma reverência e disse que seria um prazer mostrar a mansão para sua nova senhora. Julian acompanhou-os, divertindo-se com a evi­dente alegria e os elogios de Nell, que chegou a bater palmas, entusiasmada, quando entrou no jardim de inverno, realmente um aposento dos mais aconchegan­tes, repleto de vasos de plantas e todo envidraçado, com uma lareira de pedra e tapetes orientais espalhados pelo assoalho polido.

Depois de visitar todos os cômodos da mansão, Nell agradeceu ao mordomo e a Julian.

— Foi um longo dia, e você deve estar exausta — dis­se ele. — Becky deve estar esperando por você — acres­centou, beijando as mãos dela. — Se você me der licença, há alguns assuntos que preciso resolver. Nos veremos pela manhã.

Nell sorriu, agradecida, e seguiu Dibble pela escada­ria de mármore.

— Seu quarto, milady — disse ele, abrindo uma por­ta dupla de madeira e afastando-se para ela entrar. Se precisar de qualquer coisa é só tocar a campainha.

Depois de agradecer mais uma vez ao mordomo, Nell entrou em sua suíte e fechou a porta. Olhando para a saleta decorada em tons de rosa e dourado, recostou-se na porta.

Ali estava ela. Em sua casa. Era estranho pensar naquela enorme mansão como sendo sua casa, mas ela viria com o tempo a se acostumar com isso. Andou até a porta que dava para o quarto de dormir e imaginou quanto tempo levaria para não se. sentir mais uma visita naquele lugar.

Becky estava desfazendo algumas malas quando Nell entrou, e abriu um sorriso.

— Oh, milady, já tinha visto um lugar como este? Nell riu.

— Sim, mas nunca esperei morar em um.

Ela deu mais uma olhada ao redor. Ao lado do quar­to de vestir havia uma outra porta, dupla. Ao abri-la, viu-se num dormitório sóbrio e masculino, que obviamente era o quarto de Julian. Sentindo-se uma bisbilhoteira, fechou rapidamente as portas.

— Você já se acomodou? — perguntou à criada. — Os outros empregados a estão tratando bem?

— Sim, senhorita... senhora. Todos têm sido mui­to amáveis. — Becky olhou para ela com uma expressão intimidada. — Imagine só, eles têm quatro empregadas só para a cozinha!

Nell sorriu. A vida em Wyndham Hall seria muito diferente.

Ela olhou para a cama. Seu marido estava sendo mui­to paciente, ela sabia que muitos homens teriam exigi­do seus direitos matrimoniais. Mas agora que estavam na casa dele, entre sua gente, ele continuaria sendo tão compreensivo?

Um calafrio lhe percorreu a espinha ao pensamento de Julian em sua cama, beijando-a como fizera na primeira noite, tocando-a...

Um ruído no corredor chamou a atenção de Becky.

— Deve ser seu banho, eu o pedi antes de subir.

Algum tempo depois, Nell se afundou entre os len­çóis macios e perfumados. A princípio, achou que teria dificuldade para adormecer, naquele novo ambiente, mas minutos depois,de encostar a cabeça no travesseiro, ela caiu no sono.

Dormia profundamente quando foi tomada sem aviso por um pesadelo.

Era o mesmo lugar de sempre, uma masmorra cinza, com a mesma figura sombria de um homem que prati­cava um ato cruel e selvagem contra uma mulher, que chorava e implorava por clemência. Era uma mulher dife­rente naquela noite, Nell assimilou, com a parte consciente de seu cérebro. Era mais velha, e seu cabelo era escuro em vez de loiro, mas, como as outras, era esguia e frágil.

Quando o brilho da lâmina apareceu no escuro, Nell soltou um grito abafado, debatendo-se entre os lençóis, balançando a cabeça, tentando escapar das visões de brutalidade. E o sangue? Meu Deus, quanto sangue! Com os olhos abertos, porém sem enxergar, ela gritou várias vezes, incapaz de parar.

Ao som do primeiro grito, Julian sentou-se na cama, confuso e assustado, preparado para lutar com quem quer que fosse. O segundo grito fez seu sangue conge­lar, e imediatamente ele localizou a origem dos gritos. Sem atentar naquele momento para o fato de que estava completamente nu, a única coisa de que se lembrou foi de pegar sua faca, antes de atravessar a porta que separa­va seu quarto do de Nell.

Mesmo na penumbra, ele localizou a cama e os gritos aterrorizados de Nell. Afastou o cortinado da cama e viu a esposa se debatendo, enquanto gritava e chorava.

— Por favor, pare! — ela suplicava. — Por favor... Ao perceber que era um pesadelo, Julian pôs a faca debaixo do travesseiro e deitou-se na cama, ao lado dela.

— Calma, Nell. Está tudo bem, é só um pesadelo... Shhh...

Ele tentou abraçá-la, mas ao primeiro toque da mão dele em seu ombro, ela gritou e lutou contra ele. Suas unhas o atingiram seu rosto, e ela o arranhou como uma gata selvagem, lutando desesperadamente para escapar.

— Nell, acorde! É um pesadelo... Acorde!

A voz de Julian alcançou sua mente aterrorizada, e ela ficou paralisada. Em seguida piscou e finalmente acordou.

— Julian?

Ele se levantou, acendeu uma vela e voltando para o lado dela, sentando-se na cama.

— Você está bem? — perguntou, notando as lágrimas, a palidez do rosto e as mãos trêmulas.

Totalmente desperta, Nell concordou com a cabeça e esfregou o rosto.

— Sim, agora eu estou. — Consciente da gloriosa masculinidade do corpo dele, sentado a apenas pou­cos centímetros de distância, ela desviou o olhar. — Eu acordei você. Desculpe-me.

— Você teve um pesadelo e tanto, eu cheguei a pensar que você estivesse sendo atacada.

— Alguém estava. Alguém sempre está.

— O que você quer dizer? — ele perguntou, intrigado. — Sempre? Você tem esses pesadelos com freqüência?

— Não exatamente. Quero dizer, mais ou menos... mas por um longo tempo... — Ela olhou para o espaço vazio.

— Por um longo tempo...?— ele a encorajou.

Nell olhou para Julian e prendeu o fôlego ao ver como ele era bonito. A chama bruxuleante da vela produzia efeitos de luz e sombra no rosto másculo, ressaltando a pele onde ela o arranhara e concedendo-lhe uma aura de mistério e sensualidade. Ele era alto, forte, tinha um porte elegante, e os cabelos desalinhados só o deixavam ainda mais irresistível.

Insuportavelmente ciente de sua presença, até do menor movimento de sua respiração, Nell desviou o olhar.

— Desculpe-me por ter arranhado você. Eu não que­ria machucá-lo... Eu pensei... — Ela engoliu com esforço. — Pensei que você fosse ele.

— Você não me machucou. Machuquei-me muito mais quando caí de meu cavalo.

Nell assentiu com a cabeça, mas sua expressão estava pensativa, distante.

— Quem é ele? Algum homem que aparece nos seus pesadelos? Você quer falar sobre isso?

Nell mordeu o lábio e baixou os olhos para as próprias mãos.

— Eu não costumava ter esses pesadelos antes. Eles começaram depois que sofri a queda de cavalo e machuquei a perna. Desde então, eles me atormentam... Às vezes fico meses seguidos sem tê-los, mas então eles recomeçam, e... são sempre os mesmos... Quero dizer, são muito parecidos. No primeiro, era um homem que esta­va sendo assassinado, numa floresta... Mas depois disso, em todos os outros, as vítimas são mulheres, e sempre numa masmorra...

— Uma masmorra? — perguntou Julian, inclinando-se para a frente, fitando-a intensamente.

Nell ergueu os olhos para ele.

— É sempre o mesmo lugar, mas eu só o conheço dos pesadelos. Não me lembro de ter estado lá alguma vez, na vida. Mas nos pesadelos, é tudo muito familiar, o tama­nho, a cor das pedras, as correntes nas paredes, as man­chas de sangue... — Ela engoliu mais uma vez. — O homem que tortura as mulheres está sempre nas sombras. Eu sei que é sempre o mesmo homem, embora o rosto dele nunca apareça. Mas nos sonhos, eu sei que é sempre o mesmo...

As lágrimas corriam pelo rosto de Nell.

— Ele é um monstro... É desumano o que ele faz com elas naquele lugar horrível. E não importa o quanto elas implorem, ele nunca para. Ele gosta de torturá-las. Isso o faz sentir o poder que tem sobre elas. Ele tem prazer em judiar delas, e eu não consigo detê-lo. Eu só fico ali, parada, olhando, desesperada, sem conseguir me mexer...

— Isso não é real, Nell —, disse Julian gentilmente. — É um pesadelo...

— Mas eu tenho medo que seja real, Julian... porque numa das vezes, eu achei que conhecia a vítima.

Ele balançou a cabeça.

— Pode parecer real, minha querida, mas não é. — Ele sorriu. — A menos que eu tenha me casado com uma bruxa e você possa ver coisas além do conhecimento das pessoas normais.

— Talvez, eu veja coisas, coisas reais — disse Nell, preocupada. — Por que, então, eu acharia que conhecia uma das vítimas? Eu senti que aquela mulher era uma pessoa real e não um sonho...

— Deve ter sido alguém que você viu, alguns dias ou semanas antes, e por alguma razão sua memória a colocou em seu pesadelo.

— Você acha? — ela murmurou, não muito convencida.

— Tenho certeza — ele respondeu acariciando-lhe os cabelos, como se ela fosse uma criança assustada.

Puxou-a, então, para si, e recostou-se nos travessei­ros, aconchegando-a entre os braços. Ficaram ali deitados por alguns momentos, banhados pela luz da vela solitá­ria, e Nell sentiu o calor dele a confortando e acalmando, ajudando a dissipar os efeitos do pesadelo.

Nenhum dos dois saberia dizer, mais tarde, em que momento a atmosfera mudou. Se foi quando Julian sen­tiu que seu corpo queria oferecer mais do que confor­to, ou quando Nell tomou consciência de uma sensação diferente em seu baixo-ventre e de uma repentina curiosi­dade sobre o corpo masculino pressionado ao seu.

De uma forma ou de outra, quando Nell virou-se e os olhares de ambos se encontraram, a atmosfera ao redor deles vibrou, como que carregada de eletricidade. Foi como se um raio caísse sobre eles, e tampouco um dos dois seria capaz de dizer depois quem tomara a inicia­tiva do beijo. Não importava, na verdade. Ambos se entregaram àquela carícia, como se suas vidas dependes­sem daquela entrega.

Julian estava dividido entre a paixão e o desejo e o senso de honra, querendo cumprir a promessa que fizera a Nell, querendo desesperadamente se controlar e achan­do quase impossível fazer isso. Beijou-a profundamente, sua língua conquistando e possuindo a boca de Nell, enquanto ela correspondia com o mesmo ardor, derrubando a última barreira entre eles e o pouco controle que restava a Julian, que começou a acariciá-la, passando a mão pelos seios de Nell, pela cintura, pelos quadris, pelas pernas. Quando Nell se deu conta, ele estava tirando sua camisola, puxando-a por sua cabeça, desnudando-a por com­pleto. Ela abraçou-se a Julian, deslizando as mãos por suas costas, arqueando o corpo para trás conforme ele lhe beijava os seios, sentindo uma expectativa crescen­te por algo que não sabia muito bem definir, mas que, intuitivamente, sabia que Julian poderia suprir.

Ele levou a mão à parte interior das coxas de Nell e sentiu-lhe a virilha úmida, pronta para recebê-lo. Posicionando-se sobre ela, introduziu o membro na aber­tura estreita, devagar a princípio, tomando cuidado para não machucá-la. Mas Nell estava tão enlouquecida de prazer, contorcendo-se debaixo dele, que foi impossível ir com a calma que Julian gostaria. Sentindo que ambos estavam próximos do clímax, ele a penetrou, mergulhando no calor e na suavidade do corpo feminino, até alcançar a fina barreira de pele que impedia seu progresso.

Então, com uma estocada firme, empurrou a frágil membrana e aninhou-se dentro dela, aliviado ao perceber que não lhe causara dor, mas apenas prazer.

O êxtase final veio para ambos simultaneamente. Sentindo-se saciado de corpo e alma, Julian retirou-se de entre as pernas de Nell, com a respiração ofegante e o coração batendo forte. Deitou-se ao lado dela e puxou-a para si, deliciando-se com o calor da pele nua contra a sua.

Nell ficou ali deitada, ouvindo os batimentos do cora­ção dele, maravilhada como um simples ato podia dar tanto prazer. E pensar que poderia ter conhecido aquela agradável parte do casamento vários dias antes!

— Em que, você está pensando? — perguntou Julian.

— Que fui uma tola por querer adiar este momento. Ela sorriu, e Julian também.

Nell refletiu que, afinal, casar-se com Julian não fora um destino pior do que a morte. Poderia ter sido mui­to pior, poderia ter sido obrigada a se casar com um homem mesquinho, autoritário, violento, vingativo, que a tratasse mal e até a agredisse.

Julian, em nenhum momento, demonstrara relutância. Talvez fosse mais fácil para ele por já ter sido casado antes... Será que ele fora tão apaixonado pela primeira esposa que nenhu­ma mulher jamais conquistaria seu coração outra vez? Será que ele aceitara tão rapidamente a idéia de se casar só porque queria um herdeiro?

Ela se moveu desconfortavelmente nos braços de Julian, e ele percebeu.

— Tudo bem com você? — ele perguntou, apreensivo.

— Você amou muito sua primeira esposa? — ela. indagou, de chofre.

Julian ficou tenso no mesmo instante.

— Eu preferiria não falar sobre ela. É do passado, e não há espaço para ela dentro do nosso casamento, menos ainda em nossa cama.

— Então quer dizer que posso perguntar sobre ela amanhã durante o café? — Nell indagou em tom de brin­cadeira, tentando esconder o mal-estar que a reposta dele lhe causara.

— Não. Quer dizer que não quero falar sobre Catherine, nem agora nem nunca.

Como ele poderia falar sobre a época mais infeliz de sua vida, do desespero por ter feito um casamento terrível, da angústia de ter perdido um filho que esta­va por nascer? Ainda mais com aquela mulher incrível a seu lado, que pouco a pouco o fazia acreditar novamente que poderia encontrar a felicidade na companhia de alguém. Nell merecia uma resposta melhor, ele sabia, mas ainda não estava preparado para falar daqueles dias de tristeza. Quem sabe com o tempo...

— Por que não? — Nell insistiu, sabendo que não estava sendo muito sensata.

— Porque ela não tem nada a ver com nosso casa­mento — respondeu ele, procurando pela faca que estava embaixo do travesseiro. — E eu não vou aceitar o fan­tasma dela entre nós, seja em nossa cama, ou em nossa mesa, ou em qualquer outro lugar. — Ele desviou o olhar, mas não antes de Nell ver a dor em seu semblante. — Catherine pertence a outro tempo e a outra fase de minha vida. Não quero dividir essas lembranças com ninguém.

Ele segurou a faca, pretendendo sair antes de dizer algu­ma coisa de que pudesse se arrepender depois. Esquecera-se completamente do pesadelo de Nell e do fato de que ela não vira a faca quando ele entrara no quarto.

Ao ver a lâmina brilhar na mão dele, Nell pren­deu a respiração e se afastou para o outro lado da cama, olhando-o assustada, sem compreender.

Amaldiçoando a si mesmo, ele percebeu o que tinha feito e rapidamente levou a faca para seu quarto, voltan­do em seguida.

— Desculpe-me, eu não pretendia assustá-la. Eu trou­xe a faca comigo quando ouvi você gritar. Achei que estivesse sendo atacada, e vim para protegê-la, não para machucá-la. Quanto à minha recusa em falar do meu primeiro casamento, me perdoe, mas ainda é muito doloroso.

Esquecida da faca, com o coração congelado em seu peito, Nell olhava para ele. As memórias de sua primei­ra esposa eram tão preciosas que ele não suportava nem falar delas? Isso não combinava muito com a facilidade e tranqüilidade com que ele encarara o fato de ter de se casar novamente. Tudo levava a crer que o que importava para Julian era ter um herdeiro.

Pensando no momento em que fizeram amor, Nell sentiu um arrepio.

— Eu acho — disse ela, com uma voz que o deixou congelado — que você deveria voltar para sua cama. Você já terminou o que veio fazer aqui.

 

A conversa foi tensa no dia seguinte, quando Julian e Nell se encontraram na sala para o café da manhã. Na verdade, a semana inteira transcorreu com certo descon­forto para ambos.

Julian sabia que precisava reparar o dano que havia feito sem querer, mas a oportunidade não apareceu. O modo como Nell o tratava também não facilitou em nada a situação. Ela o evitava sempre que podia, procurando a companhia de Dibble para aprender tudo sobre o fun­cionamento da mansão, e Julian, por sua vez, também tinha vários assuntos para resolver, pois ficara afastado da propriedade durante meses.

Quando ele conseguia algum, tempo para ficar per­to da esposa, além das refeições que compartilhavam, Nell sempre estava com pressa para ir a algum lugar ou fazer alguma coisa. Julian considerou a possibilidade de abordá-la no quarto dela, mas logo descartou a idéia, con­cluindo que aparecer ao lado da cama de Nell como um pedinte não lhe faria bem algum. Ao contrário, a ideia era repugnante, especialmente quando ele se lembrava dos últimos meses de seu primeiro casamento, quando fize­ra de tudo para que Catherine ficasse mais resignada com a gravidez. Não que Julian achasse que Nell fosse igual a Catherine, mas a experiência o deixara cauteloso.

Também não lhe fazia bem algum saber que poderia ter lidado com o incidente de uma maneira muito melhor. Poderia e deveria. Ele balançou a cabeça. Era conheci­do por ser um homem racional, sensato, equilibrado, por ter sempre uma resposta rápida na mais complicada das situações, e ainda assim reagia de maneira imatura à pergunta de Nell sobre seu primeiro casamento. Aquele era um assunto pessoal demais, e doloroso para ele, e o fato de Nell ter lhe perguntado a respeito logo depois de terem feito amor de uma maneira tão gloriosa e intensa o pegara de surpresa.

Quanto à faca, fora um tremendo e infeliz mal-entendido.

Julian pensou, pela centésima vez, que não deveria ter saído do quarto da esposa com as coisas não resol­vidas entre eles. E quanto mais tempo aquela situação perdurasse, maior se tornaria a barreira que os separava.

Julian não era o único que sabia ter cometido erros. Nell sentia falta do companheirismo que existia entre eles antes daquela noite fatídica. Ela também tinha culpa. Mas lembrou-se de que Julian não parecia fazer muita questão de que se reconciliassem, e não parecia se importar que estivessem afastados. Talvez ele preferisse assim...

Sem prestar muita atenção no que Dibble falava sobre a história de uma antiga tapeçaria, Nell ficou imaginan­do se o desentendimento entre ela e Julian poderia ser reparado. Era óbvio que o assunto sobre sua primei­ra esposa era doloroso e que ele não gostava de falar a respeito. E ainda havia a questão da faca...

Sentiu um arrepio ao lembrar-se dele em pé à sua fren­te com a arma na mão. Não era normal um homem andar armado daquele jeito, em sua própria casa, ele parecia familiarizado e hábil demais com aquela faca, que aliás, também estava com ele quando o vira pela primeira vez, na cabana.

A explicação dele, de que fora a seu quarto preparado para defendê-la, até fazia sentido, mas mesmo assim, o fato de ele carregar aquela faca para todo lado a deixava inquieta. E havia o problema da primeira esposa, que parecia afetá-lo de uma maneira incomum, a ponto de ele nem querer falar no assunto.

Tudo isso incomodava Nell demais, e ela franziu o cenho ao seguir Dibble, refletindo que sua união com Julian não havia começado muito bem, e que a chance de eles serem felizes era bem pequena. Sentia-se inse­gura e enciumada de uma mulher morta. Poderia haver coisa pior?

Agradecendo a Dibble, Nell foi fazer uma caminha­da pelo jardim. Para início de novembro, o clima esta­va excepcionalmente agradável. Encontrando um banco de pedra, ela se sentou e ficou olhando, distraída, para a fonte no jardim. O som de passos chamou sua atenção, e ela ergueu o rosto para ver Julian andando em sua direção. Ignorando o coração disparado à visão daquele homem másculo e alto, ela sorriu.

— Olá... — cumprimentou. — Resolveu seus negócios?

— Sim. Eu disse a Farley que a tarde está muito boni­ta para ficar dentro de casa, analisando papeladas e livros de contabilidade — ele respondeu, sorrindo e sentando-se ao lado dela. — Seria muito melhor poder fazer algo que realmente me agradasse... como me sentar ao lado de minha esposa e aproveitar esta vista, maravilhosa.

Ele a fitou, observando-a com aqueles olhos verdes de uma maneira que deixavam suas faces rubras.

— Você não está olhando a vista — ela comentou.

— Ah, estou sim, e é muito bonita.

— Está flertando comigo, por acaso? — ela perguntou com um risinho.

— Com minha esposa? Sim, acredito que estou. Você se importa?

— De maneira alguma — ela respondeu, alisando a saia do vestido, nervosa. Então, acrescentou num impul­so: — Senti sua falta... Você tem estado muito ocupado.

Escondendo o prazer que as palavras lhe causaram, ele murmurou:

— E você também.

— Talvez não estejamos mais tão ocupados?

— Não, creio que não estamos mais tão ocupados. Um silêncio desconfortável caiu sobre eles, ambos incertos sobre o que dizer a seguir. Mas não querendo permitir que o momento passasse sem que as coisas voltassem ao normal, Julian não perdeu a oportunidade.

— Eu gostaria de explicar sobre a outra noite.

— Sobre a faca?

— Sim. Acho que a assustei, e sinto muito. — Ele ficou aliviado por ela não ter mencionado Catherine e sabia que estava sendo um covarde por não fazer o mesmo.

— Você sempre anda com aquela faca? Julian ficou sério e inclinou-se para pegar a faca que estava dentro de sua bota.

— Sim.

— Há alguma razão especial para isso? — pergun­tou Nell, encolhendo-se um pouco. — Cavalheiros não costumam andar armados. Meu pai e meus irmãos, pelo menos, não têm esse hábito, e dois deles são militares.

— Também não acredito que muitos cavalheiros escon­dam armas dentro de suas botas. Mas não há nada que você deva temer, é simplesmente um velho hábito meu.

— E isso se tornou um hábito... por quê?

— Por causa de um homem chamado Roxbury, que se acha muito inteligente por mandar jovens e aventu­reiros nobres como espiões para o continente para con­seguir informações para ele. E o maldito tinha razão. Eu mesmo trouxe a ele uma ou duas informações que o ajudaram a atrapalhar os esforços de Napoleão para conquistar o mundo.

— Você é espião? — Nell perguntou, chocada.

— Não mais. Mas não faz muito tempo que atraves­sei o canal para descobrir quais seriam os planos de Napoleão.

—Oh! Que excitante!

— Acredite-me, era um trabalho, na maior parte das vezes, enfadonho. Às vezes eu não fazia nada além de levar mensagens para nossos aliados na França, outras vezes ficava xeretando, descobrindo o que pudesse. Mas sempre havia a possibilidade de perigo, parte da atração de fazer algum trabalho para Roxbury. Foi quando surgiu o hábito de ter sempre uma arma a mão, fácil de escon­der e fácil de ser encontrada, para o caso de necessidade. — Um sorriso curvou os lábios dele. — É isso, minha senhora, a única razão pela qual fui a seu quarto com a faca foi porque, ao ouvi-la gritar, imaginei que houvesse alguém no quarto, atacando-a. — Ele segurou a mão dela e a beijou. — Você me perdoa por tê-la assustado?

— Só se você me perdoar por agir como uma tola cabeça-dura e ter reagido tão mal — respondeu Nell.

Julian a abraçou, e sua boca ficou a poucos centíme­tros da dela.

— Acho que isso pode ser arranjado sem dificuldade alguma — murmurou.

Os lábios de ambos se encontraram, e o desejo tomou conta de Julian. As lembranças da última noite juntos o assaltaram, e a reação favorável de Nell, que se cola­va a ele e enterrava os dedos em seus cabelos, o encora­jou a segurar-lhe um seio e massageá-lo, sobre o vestido. Foi necessário recorrer a toda a sua força de vontade para não levantar o vestido dela e possuí-la ali mesmo, no jardim, apenas o pensamento de que algum criado pudesse aparecer foi capaz de detê-lo.

Com os olhos lânguidos de desejo, ele se afastou.

— É uma boa coisa que estejamos casados — disse com a voz rouca. — Pois temo que, de outra maneira, estaríamos desonrados.

— Acha que é uma coisa boa, o nosso casamento? — indagou Nell, com um sorrisinho maroto.

Julian sorriu e traçou o contorno dos lábios dela com a ponta do dedo.

— Pergunte-me daqui a uns vinte anos.

Não era exatamente a resposta que Nell esperava, mas ela forçou-se a aceitá-la, por ora. O desentendi­mento entre eles parecia estar resolvido, e se as dúvidas sobre a primeira esposa ainda a atormentavam, ela deci­diu que estavam casados havia apenas algumas semanas, e que ela teria uma vida inteira pela frente para descobrir sobre Catherine.

Quando Julian foi ao quarto dela, naquela noite, Nell o recebeu em sua cama de corpo e alma, determinada a expulsar da mente dele o espectro da falecida esposa. O que ela conseguiu com sucesso, pois depois de fazerem amor, a última coisa que estava no pensamento de Julian, com Nell em seus braços, era a lembrança da mulher que lhe tinha causado tanta dor e angústia.

Embora Nell ainda estivesse se adaptando ao novo lar e à vida de casada, quando novembro deu lugar a dezembro e o inverno chegou, trazendo consigo uma chuva gelada e ventos fortes, ela já se sentia mais à vontade na mansão. Já conhecia a maior parte dos vizi­nhos e dos familiares de Julian, entre eles, Marcus e a mãe, Barbara Sherbrook, que já os haviam visitado várias vezes. Ela gostava muito de ambos e se sentia confortável na presença deles.

Quando pensava nos eventos que haviam cercado seu casamento, ficava admirada com a facilidade com que tinha assumido seu novo papel como condessa de Wyndham. Ela tinha um marido que com cada sorriso a deixava feliz e ansiosa por um toque dele. Nell admitia apenas para si mesma, ainda que relutante, que estava se apaixonando por Julian. Os mais profundos sentimen­tos do marido ainda permaneciam um mistério para ela. E sempre que a lembrança da primeira esposa de Julian ameaçava sua felicidade, ela colocava tais pensamentos de lado.

No mais, Nell sentia saudades de casa. Sentia falta de sua família, mas a cada semana que recebia uma car­ta do pai ou de um dos irmãos, tinha a sensação de que a distância diminuía. Andrew e Henry permaneciam em Londres e suas cartas eram cheias de notícias sobre a guerra. Seu pai e Robert haviam deixado Londres logo depois de seu casamento e voltaram para Meadowlea, Robert cada vez mais assumindo a administração da propriedade, para que o pai tivesse mais tempo livre.

Numa manhã fria de dezembro, quando Nell e Julian estavam lendo a correspondência e Nell tinha acaba­do de reconhecer a caligrafia do pai em um dos envelo­pes, Julian também reconheceu o remetente de sua carta, mas não ficou muito feliz com o que leu.

— Recebeu más notícias? — perguntou ela, preocupada.

— Isso depende — ele disse com cuidado —, de como você vai reagir ao saber que minha madrasta e a filha dela virão para cá dentro de algumas semanas e ficarão até que Dower House seja reformada de acordo com o gosto de Diana, o que deverá levar alguns meses.

— Eu pensei que lady Diana ficaria em Londres durante o inverno — respondeu Nell, sentindo a alegria desaparecer.

Não lhe passara despercebido que lady Diana não havia gostado dela. A condessa não tinha feito ou dito nada diretamente, mas seus modos reservados quando ela estava na companhia de Nell deixavam claro que ela não estava feliz com o casamento. Com Elizabeth, Nell achava que não havia nenhum problema. A menina era doce e vivaz, e Nell suspeitava que, sem a interferên­cia de Diana, as duas se dariam muito bem. Diana era o grande problema.

— Foi isso que eu havia entendido também, mas pare­ce que ela mudou de ideia e está ansiosa para voltar para Wyndham Hall.

— Bem, é a casa dela. — Nell forçou um sorriso.

Ele olhou para ela do outro lado da mesa e lembrou-se das palavras de Marcus sobre a guerra doméstica que estava para recair sobre ele. Nell já tinha se acos­tumado com a rotina da mansão sem dificuldade. Era firme, porém bondosa com os empregados, e como nin­guém havia reclamado, ele acreditava que todos estavam felizes com a nova patroa. Mas a chegada de sua madras­ta poderia mudar tudo.

— Não é exatamente a casa dela — retrucou. — Foi, um dia, a casa dela, e eu não gostaria que ela não se sen­tisse bem-vinda, mas agora esta é a nossa casa, e você é a senhora de Wyndham Hall, não minha madrasta. Ela e Elizabeth serão apenas nossas hóspedes.

 

Algumas horas mais tarde, Julian ainda estava pen­sando no inesperado desejo de Diana de retornar para o campo, quando Dibble anunciou a chegada de Marcus. Ele sempre ficava feliz em ver o primo, principalmen­te quando este conseguia afastar seus pensamentos dos problemas.

Os dois homens se cumprimentaram e foram se sen­tar nas poltronas estofadas em frente à lareira. Dibble os serviu com canecas de ponche de uísque quente e deixou a garrafa sobre uma mesinha, antes de se retirar e fechar a porta.

— Um dia desagradável para sair de casa, não acha? — Julian perguntou, esticando as pernas para aproximar os pés do fogo.

— Sim, mas este ponche feito por Dibble é recompen­sa suficiente para me aventurar neste tempo. — Marcus franziu o cenho. — Eu pensei em esperar, e provavelmen­te não é importante, mas... não queria que você ficasse na ignorância, como eu fiquei. Raoul, aquele inconse­qüente, acharia muito divertido, e Charles é outro que... Bem, Charles seria bem capaz de se convidar, e a mais alguém, para jantar aqui, se estiver se sentido ousado... e idiota.

— E mais alguém! — indagou Julian. — Provavelmente é alguém que eu não gostaria de ver.

— É óbvio — concordou Marcus. — Eu estava em Dawlish ontem à tarde quando encontrei Charles e Raoul na rua, acompanhados por Tynedale. Raoul com aque­le jeito afetado de sempre, discutindo como dar o nó em sua gravata, como se Tynedale soubesse fazer isso. Foi nauseante. Vou lhe dizer, Julian, eu não sabia se fazia de conta que não os tinha visto ou se acabava com a raça deles.

Desde que Julian conhecera Nell, a última coisa que ele pensava era em Tynedale. Distraído com a novidade do casamento, acabara deixando em segundo plano o fato de que fora Tynedale quem empurrara Daniel para o sui­cídio. Havia se esquecido de que tinha poder para arrui­nar Tynedale, e esse fato o fez sentir-se menos culpado. Daniel seria vingado, era apenas uma questão de tem­po. Mesmo que o rapto de Nell por Tynedale complicasse um pouco a situação. Julian não acreditava que Tynedale fosse tolo a ponto de se expor à condenação pública para denegrir a imagem da nova condessa de Wyndham. Se bem que não dava para saber do que era capaz um homem desesperado como ele.

E ainda havia Charles... Julian suspirou. Charles podia ter apresentado Daniel para Tynedale, porém mesmo com todos os defeitos de Charles, Julian nunca duvidara que Charles gostasse do garoto e nunca tivera a intenção de fazer-lhe mal. Julian suspirou novamente. Charles era um problema, porque nunca se sabia como ele reagiria. Se Charles soubesse a verdade sobre o casamento, ele poderia tanto acabar com a família como ficar do lado deles. Julian praguejou.

— Penso da mesma forma — Marcus disse. — A não ser pela morte, não sei como podemos dar fim a Tynedale. Mas claro que, se você quisesse, eu poderia acabar com ele. Devo isso a Daniel tanto quanto você.

Julian se deu conta de outro problema: Marcus não sabia das circunstâncias de seu casamento.

— E então, o que você vai fazer? — perguntou Marcus.

— Você é o chefe da família, mas duvido muito que Charles obedeceria se você o mandasse afastar-se de Tynedale.

— É mais complicado do que você pensa — Julian admitiu.

Observou o primo se esticar diante do fogo. Ele lhe confiaria a vida, então por que não confiar a ele a verdade sobre seu casamento? Porque, ele pensou ironicamente, o segredo não era só dele, mas de Nell também.

Agindo por impulso, levantou-se e tocou a sineta para chamar Dibble. Quando o mordomo entrou na sala, Julian perguntou:

— Onde está milady?

— Ela está lá em cima em seu escritório, respondendo algumas cartas, senhor.

Julian olhou para Marcus, que o observava.

— Perdoe-me — pediu Julian. — Eu não me demoro. Deixando para trás um Marcus intrigado, Julian subiu as escadas de dois em dois degraus. Chegando aos aposentos da esposa, entrou e a encontrou sentada à escri­vaninha em frente às janelas, escrevendo. Ao ouvi-lo entrar, ela se virou e sorriu.

— Julian! Já resolveu seus assuntos?

— Não exatamente — disse ele, andando pelo quarto. — Eu soube que Tynedale está por perto, hospedado na casa de meu primo.

— Mas como pode ser? Não consigo imaginar Marcus associado com um homem como aquele.

— Não é Marcus. Marcus está lá embaixo, ele veio me contar. São primos que você ainda não conhece, Charles e Raoul Weston. O pai deles era irmão gêmeo de meu pai e o próximo na sucessão do título depois de mim. — Julian suspirou. — Por várias razões, além do título, nós não nos gostamos muito, embora não tenha sido sempre dessa maneira. Mas, no momento, um deles, ou os dois, talvez gostassem que um escândalo caísse sobre mim.

— Entendo — ela falou com a expressão preocupada. — Você acha que Tynedale ousaria contar a eles que me raptou naquela noite? — Algo mais ocorreu a ela. — Meus Deus, nós não teríamos que encontrá-lo socialmente?!

— Isso eu não sei. Talvez ele diga a Charles e Raoul. E quanto a encontrá-lo socialmente você tem muito pouco a temer. — Julian deu uma risada áspera. — Charles não seria tolo, ele melhor do que ninguém, sabe que Tynedale e eu não devemos ficar no mesmo lugar. Minha principal preocupação é que Tynedale tente brincar de gato e rato conosco. Eu tenho meios para des­truí-lo, por motivos particulares, dei um jeito de conseguir suas promissórias para acabar com ele financeiramen­te. Estou certo de que ele sabe disso e que ele talvez ache que pode me chantagear.

Nell segurou a mão dele com força e se inclinou ara a frente.

— Julian, você não deve aceitar! Ele é um demônio em quem não se deve confiar.

— Eu concordo. Fiquei sabendo da presença dele em Stonegate, a casa de Charles, há apenas alguns minutos, não me decidi ainda como agir nessa situação. Mas ele e um perigo para nós. E apenas matando-o eu o manteria com a boca fechada. E se ele contar sobre seu rapto para Charles ou Raoul, eu não sei quais seriam as conseqüências.

— Seus primos dão tão pouco valor para o próprio nome que não se importariam em trazer vergonha sobre ele?

Julian sorriu amargamente.

— Às vezes eu acho que a não ser pelo título e pela fortuna, Charles não tem a menor consideração pelo nome Weston, e eu não tenho como saber se ele ficaria do nosso lado ou afundaria o nome de nossa família através daquele canalha.

— Eu só lhe trouxe problemas, e você tem sido tão bondoso comigo — Nell disse com tristeza. — E agora, por minha causa, você pode ter o nome de sua família manchado. — Ela soltou a mão dele e se pôs de pé. — Se pelo menos eu não tivesse fugido e encontrado aquela cabana, nada disso teria acontecido.

— Eu não tenho sido bondoso com você — Julian falou com uma voz profunda. — Tenho sido feliz também.

Nell apenas concordou com um gesto de cabeça, indicando que não acreditava nele. Julian teve de se con­trolar para não sacudi-la.

— Sejam quais forem os motivos do nosso casamen­to, se Tynedale aparecer em nossa porta, teremos de man­ter a cabeça erguida e juntar nossas forças se quisermos passar por tudo isso com nossa reputação intacta.

— Você faz isso soar como se fosse uma batalha.

— De muitas maneiras, isso é uma batalha, que eu pretendo ganhar. Mas para isso, preciso de sua ajuda.

— E você a tem! O que você quiser eu darei a você. Nós venceremos Tynedale em seu próprio jogo.

Ele sorriu com a indignação de Nell.

— No momento, tudo que lhe peço é permissão para explicar a Marcus a participação de Tynedale em nosso casamento.

— Se isso pode ajudar a derrotar Tynedale, conte a seu primo.

O sorriso de Nell fez com que seu coração acelerasse. Tomando-a nos braços, ele a beijou. Em seguida afastou-se e fitou-a dentro dos olhos.

— Eu não sou bondoso com você.

     

                                               Capítulo III

Saindo do quarto de Nell, Julian retornou para o escri­tório. Após fechar a porta, sentou-se na cadeira perto do fogo e em frente a Marcus.

— Algo urgente? — perguntou Marcus.

— Não exatamente, mas o que tenho para lhe contar não diz respeito somente à minha pessoa, e eu precisava da permissão de minha esposa antes de falar com você.

— Por tudo o que é mais sagrado! — exclamou Marcus. — Será possível? O sujeito sentado à minha frente não é Julian Weston, destruidor de corações de toda a Inglaterra? Eu tinha de viver até o dia de hoje para ver que ele foi colocado de joelhos por uma mulher? Isso é vergonhoso...

— Não fique tão feliz. Um dia nossas posições poderão se inverter e você poderá ser o recém-casado.

— Por favor, não... eu lhe imploro! Nunca ligue meu nome à palavra "matrimônio". Gosto de minha vida do jeito que está. Ao contrário de você, não tenho um título para passar aos meus filhos.

— Mas você tem uma fortuna e terras, e algum dia alguém terá de herdá-las.

— Meu legado e minhas terras não são o assunto principal aqui, e sim a conversa com sua esposa.

O bom humor de Julian evaporou, e ele se inclinou para a frente, contando para Marcus toda a sua história com Nell. Quando terminou de falar, recostou-se na cadei­ra e esperou pela reação do primo.

Marcus tomou um gole de ponche.

— Sabe, sempre gostei de ser perspicaz, de alguma maneira, mas isso me fez desejar ser um completo idio­ta. Eu sabia que você estava me contando uma mentira quando me falou sobre seu casamento, mas nunca suspei­tei de algo assim. — Franziu o cenho. — Tynedale ficará de boca fechada? Ou você acha que esse é o único motivo para ele ter vindo até aqui ficar na casa de Charles?

— Pode ser, mas eu duvido.

— Fico imaginando se Tynedale percebe que Charles pode ser um poderoso aliado na destruição da reputação de sua esposa... Já pensou que ela seria a única a sofrer mais com essa situação? Afinal, você é o conde de Wyndham, enquanto ela, até se casar com você, não era ninguém, ainda que linda e rica. Ela será o alvo mais vul­nerável dos mexericos. As pessoas talvez sintam pena de você por ter caído nas garras dela, e alguns acham que é o marido traído que se casou com a mulher rejeitada por Tynedale. A imagem dela é a que ficará mais manchada.

— Eu tomaria cuidado com o que diz, meu amigo — Julian afirmou em um tom incisivo. — É da minha espo­sa que está falando, e eu não aprecio que se refira a ela como uma mulher rejeitada por Tynedale. Nell foi uma inocente no meio de toda essa história, e eu não permitirei que você ou qualquer outra pessoa a mencione em termos desrespeitosos. Eu acabaria com qualquer outro homem que dissesse o que você acabou de falar.

— Não fique zangado comigo! Eu não sou o inimigo! Tenho lady Wyndham na mais alta estima e ficarei do seu lado. Eu apenas apontei o ponto de vista dos outros diante da situação. — Ele sorriu para o primo. — Pessoalmente, acho que sua esposa lhe fez bem, e se não fosse ir contra a corrente dos acontecimentos, eu cumprimentaria Tynedale por ele ter feito com que ela se casasse com você.

— Nós realmente somos muito parecidos. O mesmo pensamento ou algo semelhante passou-me pela cabeça mais de uma vez.

— E então, o que vamos fazer? Detesto ficar aqui, esperando ser atacado. Prefiro enfrentar o inimigo.

— Concordo, mas não posso fazer nada no momen­to. Não sei como sair desta situação. Se eu confrontar Tynedale, ele vai acreditar que tem algum poder sobre mim. Também não posso pedir a ele que não conte para meus primos. Tynedale iria correndo revelar sua versão dos fatos. As promissórias, no momento, são inúteis para mim. Se eu as oferecesse em troca de seu silêncio, como Nell observou, assim que ele as tivesse em seu poder, nada o impediria de espalhar a história.

Julian fez uma pausa e franziu as sobrancelhas.

— Ocorreu-me, agora, que Tynedale possui as melho­res cartas.— Ao ver o olhar cético de Marcus, acrescen­tou: — Alterando apenas um pouco a história, ele pode parecer a parte prejudicada. Pode alegar que, por causa do pai de Nell, que negou seu pedido, ele e Nell esta­vam fugindo para se casar. Que não houve rapto nenhum, que ela estava de acordo e que foram separados, pela tempestade. Que minha chegada no cenário estragou os planos deles e que eu sou o vilão, pois a comprometi e a arranquei dos braços de seu verdadeiro amor. Talvez isso faça parte dos planos de Tynedale: denegrir minha ima­gem, criar um escândalo sobre Nell e fazer-se de vítima.

— Meu bom Deus! Você tem razão. Então não há mais nada que eu possa fazer a não ser matar Tynedale. — Olhando para as botas, Marcus murmurou: — E, prova­velmente Charles também, mas, devo dizer, Julian, sou contra matar um parente.

Julian explodiu em uma gargalhada.

— Fique tranqüilo. Não vou querer que você lute minhas batalhas. Ainda não sei como resolver isso, mas darei um jeito.

O tempo piorou, a chuva ficou mais forte e, a pedido de Julian, Marcus ficou para o jantar. Nell ficou obser­vando este último, pouco à vontade, quando se juntou a eles na sala de jantar, mas logo Marcus colocou um fim em seus receios. Quando terminaram a refeição, Nell soube que ele era um amigo leal e querido.

Ao deixar os dois para tomarem um licor, ela suge­riu que Marcus dormisse lá naquela noite. Contente, ele aceitou o convite.

Nell se retirou para o salão verde, nos fundos da casa. Ao contrário dos outros cômodos, esse salão era menor e mais aconchegante.

Pouco depois de sua chegada em Wyndham, aquele tinha se tornado seu lugar favorito, no qual ela passava as longas tardes de inverno.

Quando Dibble chegou com seu chá, Nell o informou que teriam um convidado para dormir. O mordomo saiu dizendo que prepararia imediatamente o quarto para o sr. Sherbrook e que designaria um dos criados para servi-lo.

Quando os cavalheiros se juntaram a ela, Nell contou a Marcus que seu quarto já estava sendo preparado.

— Espero que não se importe que um simples lacaio seja seu criado de quarto.

— Minha querida senhora, estou grato por sua hospita­lidade e agradeço por seus esforços.

— Imagino que terei de lhe emprestar algumas roupas limpas — adicionou Julian.

— Bem, você não vai querer que eu use suas roupas sujas!

A noite transcorreu de forma agradável e, algumas horas depois, Nell deixou os dois homens entretidos com um jogo e foi para o quarto. Dispensou Becky, após vestir sua roupa de dormir, e foi se deitar, sentindo-se mais cansada do que de costume. Ela sempre gostara da companhia de Marcus e, depois de vê-lo e ter seus medos dissipados, ficou mais calma.

Demorou a dormir, contudo, e ficou se revirando na cama. Sentiu-se enjoada e pensou em tocar a campainha para pedir um pouco de leite quente.

Levantar-se tão bruscamente, porém, foi um erro. O quarto começou a girar, e ela mal teve tempo de alcan­çar a jarra que ficava perto da cama antes de começar a vomitar.

A porta que ligava seu quarto ao de Julian se abriu de repente, e ele entrou.

— Nell! — exclamou, correndo para o lado, dela.

— Algum problema, querida?

Ela tentou se recompor. Foi até o quarto de vestir e jogou um pouco da água da jarra de porcelana em uma bacia, a fim de molhar o rosto. Olhou-se no espelho e fez uma careta. Estava horrível, com os olhos muito fundos e o rosto pálido e sem vida. Tudo o que um marido de poucas semanas desejaria ver...

Voltou para o quarto e endereçou a Julian um tímido sorriso.

— Eu deveria ter me lembrado de que lagosta com manteiga nunca me caiu bem.

— Devo pedir que tragam um chá quente ou leite para você? — ele perguntou, preocupado.

— Leite, por favor.

Depois de ajudá-la a ir para a cama, Julian tocou a sineta para chamar um criado. Rapidamente, este trouxe uma bandeja com um copo de leite quente e algumas torradas, que foi colocada na mesa, perto de sua cama.

Com o estômago ainda embrulhado, ela tomou o leite devagar.

Julian sentou-se na cama apenas a alguns centíme­tros de distância dela, observando-a. Nell ainda sentia-se enjoada e rezou para que o leite ficasse em seu estômago, assim ela não passaria ainda mais vergonha.

Mal o leite desceu, fez o caminho de volta. Nell se levantou de um salto da cama, e Julian, adivinhando o que ia acontecer, agarrou a jarra sobre a cômoda e a apresentou a ela em tempo. Se Nell tinha se sentido embaraçada antes, não se comparava em nada ao que sentia com Julian segurando a cabeça e ela vomitando, o corpo estremecendo com fortes espasmos.

Quando sua provação acabou, ele tirou a jarra da mão dela e a colocou de lado. Desapareceu dentro do quarto de vestir e voltou com um pedaço de pano úmido que usou para limpar seu rosto.

Sua humilhação estava completa, pensou Nell. Ela nunca mais conseguiria olhar para Julian novamente.

— Desculpe-me — murmurou com o rosto pegando fogo.

— Não precisa pedir desculpas. Qualquer um pode passar mal. Está se sentindo melhor agora?

Nell fez que sim, mas sem olhar para ele, desejando que Julian estivesse longe para que ela pudesse morrer de vergonha em paz.

Ele acariciou seus cabelos e arrumou os travesseiros para que ela se deitasse.

— Durma um pouco. Chamarei um médico amanhã, bem cedo.

— Oh, isso não será necessário, Até lá eu estarei bem — Nell protestou. — Foi apenas a lagosta com manteiga.

Julian sorriu.

— Tenho certeza de que foi, mas eu ainda acho uma boa idéia você ver o dr. Coleman, nosso médico local. Ele é muito bom, vai gostar dele.

Nell ainda discutiu com ele, mas Julian apenas sorriu e deu-lhe um beijo na testa.

— Vá dormir. Se precisar de alguma coisa é só me cha­mar. Deixarei minha porta aberta, assim escutarei você,

Nell acordou na manhã seguinte com um fraco sol de inverno infiltrando-se pelas cortinas. A tempestade tinha ido embora e seu problema de estômago também, pensou, feliz.

Tomou um demorado banho quente e desceu para tomar café. Marcus e Julian estavam na sala de jantar e ambos se levantaram quando ela entrou. Nell caminhou até onde estava a comida e encheu o prato de bacon, presunto, ovos mexidos, um pouco de salmão e duas tor­radas com manteiga.

Vendo a expressão de Marcus diante da quantidade de comida que ela pôs no prato, ela sorriu.

— É assustador, não? Mas eu sempre tive bom apeti­te, e meu pai sempre insistiu que a primeira refeição do dia deve ser reforçada.

— Vejo que já está bem melhor depois de ontem à noite... — comentou Julian.

— Sim, estou. Eu disse a você que não precisava de nenhum médico.

— Disse, mas receio que terá de vê-lo. Eu já mandei um criado buscá-lo hoje, bem cedo.

Nell torceu o nariz.

— Alguém já lhe disse que você, às vezes, pode ser um ditador arrogante?

— Que perspicaz de sua parte, senhora! — inter­veio Marcus, rindo. — Eu sempre digo isso a ele. Mas ai de mim! — Ele suspirou. — Afinal, Julian é o conde de Wyndham e não pode compreender o que nós, pobres mortais, falamos.

— Diga-me novamente: por que você é meu primo favorito mesmo? — provocou Julian.

Foi uma refeição alegre. Quando terminou, Nell ficou triste ao ver Marcus se preparar para partir. Ela e Julian acenaram para ele da porta e depois entraram.

— Eu gosto dele — comentou.

— Fico feliz com isso. Marcus é mais um irmão do que um primo para mim.

— Mas não gosta de Charles e Raoul. Julian lhe indicou o caminho do escritório.

— É difícil explicar para alguém que não sabe de meu passado com Charles. Houve um tempo em que fomos muito próximos, mas...

— Mas...?

Ele a convidou para sentar-se perto do fogo e se acomodou em uma cadeira diante dela,

— É complicado e requer um pouco de genealogia familiar. É uma longa história.

— Eu não vou a lugar nenhum... — Nell suspirou, encostando-se no assento de couro.

— Você é bem persistente, não?

— E você é um ditador arrogante. Julian riu.

— Muito bem, se quer mesmo saber... — Ele hesi­tou, e seu bom humor desapareceu. — Assim como seus irmãos, meu pai tinha um irmão gêmeo.

Nell ficou surpresa.

— Idênticos, como Andrew e Henry?

— Sim. Meu pai, Fane, e seu irmão, Harlan, nasce­ram com poucos minutos de diferença. São semelhantes na aparência, porém não na personalidade. — Ele ficou um momento olhando para o nada. — A reputação de meu avô, o velho conde, como nós o chamávamos, foi len­dária. Ele era o libertino dos libertinos. Seduzia, bebia, jogava... E temo que Harlan tenha herdado isso dele, enquanto meu pai era mais como a família de minha mãe.

— Então, se seu pai não tivesse nascido alguns segun­dos antes, Harlan teria sido o herdeiro?

— Sim, e acredite, quando já era idoso, Harlan falou muito sobre isso. Eu me lembro de uma vez quando, pouco antes de morrer, ele ousou sugerir que era o ver­dadeiro herdeiro, mas que, por razões que apenas faziam sentido a um bêbado, meu pai e ele tinham sido trocados ao nascer.

— Não tem muita lógica.

— Verdade. Mas tio Harlan nunca foi muito lógi­co. Algumas vezes ele podia ser o melhor tio do mundo, mas...

— Nem sempre — disse Nell gentilmente.

— Não, nem sempre. Quando eu era jovem, meu pai e Harlan eram muito próximos, como geralmente são os gêmeos. Discutiam e brigavam, porém havia um laço entre eles que parecia indissolúvel. Quando a primeira esposa de Harlan morreu, e John e Charles estavam sofren­do, foi meu pai que o ajudou naquele tempo. E quando minha mãe faleceu, alguns anos depois, foi Harlan que o ajudou durante aquele período triste. Até a morte de John, nossa família era inseparável.

— Você mencionou John e Charles... Onde Raoul se encaixa na família?

— Raoul é filho do segundo casamento de Harlan, com Sofia, uma francesa.

— Ah, isso explica o nome.

— O casamento dos dois causou algum tumulto na época.

— Ela ainda está viva?

— Ah, sim. Tia Sofia mora em Stonegate, e sua presen­ça até impõe um certo respeito. Sem ela por lá, na certa Charles e Raoul transformariam o lugar em um bordel.

— Eles não me parecem boas pessoas.

— São agradáveis o suficiente. Como meu tio que, por sinal, os tinha em consideração como tenho a Marcus. Na minha juventude, passei muito tempo em Stonegate com meus primos, assim como eles passaram aqui. Marcus fazia parte do grupo, nós todos crescemos jun­tos. — A voz dele endureceu. — John era o mais velho de nós cinco. John e eu éramos muito próximos. Quando seu filho, Daniel, nasceu, ele me pediu que eu fosse seu guardião se algo lhe acontecesse. Foi um pedido estra­nho. Nós dois estávamos bêbados, mas eu concordei. Nunca pensei que me encontraria naquela posição.

Enquanto Julian se lembrava, ficou em silêncio por alguns minutos.

— Aconteceu alguma coisa com John? — perguntou Nell.

— Quando Daniel estava com doze anos, ele foi assassinado.

— Assassinado! — ela exclamou. — Que coisa horrível!

— Foi a pior tragédia que já aconteceu em nossa famí­lia. Muito pior do que a perda da minha tia e de minha mãe. Ficamos todos devastados. John era... — Ele parou, tentando firmar a voz. — Não consigo explicar a angús­tia que sentimos naquela época. Penso que foi a perda de seu filho mais velho que levou Harlan para o caminho da autodestruição. Ele sempre bebeu muito, mas come­çou a beber ainda mais. E também passou a jogar... — Julian suspirou. — Harlan também sempre gastou muito dinheiro, mas, em uma questão de meses, perdeu uma enorme fortuna. Furioso por John ter me nomeado guar­dião de seu neto e herdeiro, quando ele se viu falido, culpou meu pai e a mim.

— Mas nada disso foi sua culpa. Você não matou John nem se autodenominou guardião de seu filho. Tampouco perdeu a fortuna dele no jogo.

— Está enganada. Harlan culpou a mim e a meu pai por todas as suas desgraças e, com seu veneno, cor­rompeu Charles e Raoul. Eles eram muito leais ao pai e começaram a agir do mesmo modo que o pai deles. Se Harlan tivesse vivido mais, a rixa teria sido resolvida. Tio Harlan morreu um ano depois de John... Quebrou o pescoço ao descer a escada de Stonegate, completamen­te embriagado.

— Que tragédia! — comentou Nell com simpatia. — Mas isso também não foi culpa sua, nem de seu pai. Charles e Raoul não podem culpá-los pelo que aconteceu.

— Pode ser, mas estão convencidos de que... essas foram palavras de Raoul... se meu pai não tivesse sido tão egoísta e se recusado a pagar as dívidas de Harlan, ele não teria bebido tanto e caído da escada. — Julian suspirou. — Charles se ressente principalmente por eu ter sido declarado guardião de seu sobrinho. Sentiu-se traído e profundamente magoado por John preferir que eu tomasse conta de Daniel. E ninguém sabe guardar ressentimento como Charles.

Então eles são dois tolos, e seu tio também — Nell afirmou e depois franziu o cenho. — E quanto a Daniel, seu protegido? O que aconteceu com ele?

Julian tomou fôlego e contou a ela sobre o suicídio do rapaz e os eventos que o cercavam.

— Tynedale! — ela gritou, sentando-se, rígida, na cadeira. — Não posso acreditar na infâmia daque­le homem. — Ela apoiou as mãos cerradas sobre o colo. — Precisamos fazer alguma coisa com ele. Primeiro seu primo Daniel, depois meu rapto. Que homem sem cora­ção! Eu mesma gostaria de acabar com ele.

— Eu tentei, mas tudo o que consegui foi deixar uma cicatriz em seu belo rosto — falou Julian, seco.

Nell olhou para ele, admirada.

— Foi você? Você fez nele aquela cicatriz? Julian assentiu.

— Pois fez muito bem, marido! — Nell assumiu uma expressão pensativa. — Pena que não conseguiu matá-lo.

Ele sorriu, surpreso.

— Sinto-me da mesma maneira — concordou, tris­te. — E, justamente por não tê-lo matado em nosso due­lo, planejei arruiná-lo financeiramente, comprando suas dívidas.

Ela bateu com a ponta do dedo nos lábios.

— É uma situação complicada. Agora entendo por que não pode usar as promissórias contra ele. Tem certeza de que Charles e Raoul ficariam do lado dele? Será que o senso de família não faria com que se unissem a você?

— Não sei. Nosso relacionamento anda cada vez mais difícil. Não atiramos adagas uns nos outros e ainda podemos ficar na mesma sala sem nos agredir... mas o ressentimento deles é profundo.

— E Charles é seu herdeiro?

— Sim. Até que nós dois tivermos um filho.

Nell olhou para o colo. A idéia de uma criança dela e de Julian nunca lhe ocorrera antes.

Ao se lembrar das noites apaixonadas que tinham pas­sado juntos, seu coração bateu mais rápido. Ela poderia estar grávida naquele momento.

Assustada e feliz ao mesmo tempo por pensar que poderia estar carregando um filho de Julian, Nell não pôde pensar em mais nada, a não ser na felicidade de ter uma criança em seus braços. Nada poderia ser mais maravilhoso.

Julian observava-lhe o rosto, imaginando no que ela poderia estar pensando. Catherine tinha sido totalmen­te contra ter filhos, mas aquele era um assunto que ele nunca tinha discutido com Nell. Seria ela como sua pri­meira mulher, que odiava a ideia de ficar grávida de um filho seu? Certamente ele não seria tão sem sorte para ter uma segunda esposa que também detestasse crianças...

Uma batida na porta o despertou de seus pensamentos. Com sua permissão, Dibble entrou no quarto.

— Milorde, o médico está aqui.

— Diga a ele para ir ao quarto da senhora. Ela se encontrará com ele lá.

Dibble saiu e fechou a porta. Nell lançou um olhar para Julian.

— Eu disse a você que não precisava de um médico.

— E eu disse que você deveria vê-lo — replicou Julian.

— E se eu me recusar? — ela perguntou com um brilho no olhar.

— Se você se recusar, eu serei forçado a carregá-la pela escada e a colocá-la em seus aposentos.

Nell olhou para o homem alto e sentiu um arrepio ao se imaginar nos braços fortes.

— Seu briguento — acusou com um leve sorriso.

— É para o seu próprio bem — ele respondeu com um sorriso. — Vamos, eu irei com você e a apresentarei ao dr. Coleman.

Subiram a escada juntos e entraram no quarto dela. Um homem alto, de costas para eles, estava parado, olhan­do pelas longas janelas. Ouvindo a porta se abrir, virou-se e sorriu.

O coração de Nell quase parou quando ela olhou para o belo homem à sua frente. Sua semelhança com Julian era impressionante.

Julian fez as apresentações e, depois de alguns momen­tos de conversa educada, deixou o quarto discretamente.

— Devemos ir para o quarto de vestir, milady? Pro­meto que o exame não levará muito tempo — ele disse, sorrindo.

— Isso não é realmente necessário — ela falou, relu­tante. — Foi somente meu estômago, por causa da lagosta. Minha saúde está perfeita.

— Tenho certeza de que sim. Mas, para deixarmos nos­so lorde feliz, acho que deveríamos realizar o exame.

Ela deu uma risada. Gostou dele e o guiou até o quar­to de vestir.

— Mora aqui perto?

Ele fez que sim com um gesto de cabeça, largando a maleta de couro que carregava.

— Moro a apenas algumas milhas estrada abaixo, na Rose Cottage.

— Eu me lembro do lugar. É muito bonito, rodeado por aquelas rosas.

— Obrigado. É muito confortável, e o perfume das rosas no verão é delicioso.

Nell gostaria de ter feito mais perguntas, porém o médi­co pediu que ela se sentasse.

— Farei algumas perguntas e medirei sua pulsação. Você se importa?

Nell não se importou e, de maneira gentil, ele com­pletou sua tarefa. Foi tão sutil que ela só percebeu que ele havia acabado o exame quando estavam saindo do quarto.

Ao chegar à porta, ela sorriu.

— É um homem muito esperto, dr. Coleman. Distraiu-me com sua conversa e fez exatamente o que meu mari­do pediu.

— Você me pegou. Mas não fique zangada comigo. Lorde Wyndham é um bom homem. Eu não gostaria de aborrecê-lo. E não foi, assim, um grande sacrifício, foi?

— Não, de fato. Se eu realmente precisar de um médi­co no futuro, ficarei mais tranqüila sabendo que estou em boas mãos.

— Está com ótima saúde, milady. Na verdade, exce­lente. E duvido que vá precisar de meus serviços tão cedo... mas agradeço por suas gentis palavras.

Nell ficou observando enquanto Dibble o acompanha­va até o escritório de seu marido. Pensou em acompa­nhá-lo, afinal era sobre sua saúde que eles iriam discutir, porém decidiu que não era importante. Já sábia que estava saudável, e o dr. Coleman apenas confirmara isso.

De qualquer forma, pretendia perguntar a Julian por que os dois eram tão parecidos.

Pouco mais tarde, chamou Dibble e descobriu que o médico já tinha ido embora. Foi até o escritório de Julian e o encontrou sentado atrás da mesa, com vários livros de contabilidade e muitos papéis à sua frente.

— Imagino que tenha vindo me espionar. — Ele sor­riu. — Coleman disse que sua saúde está perfeita e que se todos os pacientes dele fossem como você ele seria um homem pobre.

— Eu não disse? — ela respondeu, sentando-se perto da mesa. — Talvez da próxima vez você me escute.

— Foi tão ruim assim?

— Não, eu mal o percebi me examinando. Gostei dele.

— Achei que gostaria. Ele é muito popular com seus pacientes.

Ela não apreciava fazer rodeios, então indagou de repente:

— Ele se parece com você. Vocês bem que poderiam ser gêmeos.

— Isso porque você não conheceu meu primo Charles ainda. Há uma forte semelhança entre os membros da família Weston.

— Interessante. Mas, a menos que eu tenha perdido alguma coisa, o dr. Coleman não é um membro da família Weston. Ou ele é outro primo?

Julian hesitou. Não havia razão para que Nell não soubesse, e ela também logo descobriria através de outra pessoa.

— Ele é mais como um... tio — completou, relutante. Os olhos dela se arregalaram.

— Ele é ilegítimo?

— Lembra-se do que contei sobre o velho conde, meu avô? Receio que vá encontrar vários habitantes da região muito parecidos com a família. Coleman é um dos muitos filhos bastardos do conde. Felizmente, é um dos mais respeitáveis.

— Mas isso não é muito estranho?

— Nunca foi um segredo de família. Eu cresci sabendo que tinha vários tios e tias. Meu avô os reconheceu e lhes deu dinheiro.

Nell o olhou por um longo tempo, e Julian ficou ima­ginando se ela o estaria considerando menos por conta das indiscrições de seu avô.

— Sua família é muito mais interessante do que a minha — disse, pôr fim.

Julian deu uma gargalhada. Chegaria um tempo em que ela não o faria mais rir ou se surpreender? Tomara Deus que não.

Ao ouvir o som de rodas de carruagem, os dois se entreolharam.

— Está esperando alguém? — Nell perguntou enquanto se levantava.

— Ninguém. Ouviram uma grande comoção no hall de entrada, e Dibble dando ordens para os lacaios e empregadas, o que só aumentou sua curiosidade.

Uma figura vestida de peliça e chapéu vermelho se encontrava parada no centro daquela loucura. Olhando para Nell e Julian parados no final do corredor, a mulher deu um gritinho e se atirou nos braços de Julian.

— Oh, querido, sei que eu disse que não viria para cá antes de duas semanas, mas não pude ficar mais um minuto longe! Londres é tão horrível sem você!

Pelo visto, lady Diana havia finalmente chegado. Atrás da mãe, estava Elizabeth, com seu lindo rosto emoldurado por uma estola de chinchila.

— Desculpem-nos por chegar assim, sem avisar, mas mamãe estava mesmo querendo vir para o campo — a moça disse para Nell com um sorriso envergonhado. — Espero que não se importe, e que não tenhamos causado uma grande inconveniência.

— Mas é claro que não! — interrompeu Diana. — Acho que podemos voltar para nossa casa quando quisermos, sem causar nenhum incômodo, não é mesmo, Julian? — Ela o fitou, sorridente. — Você não seria capaz de negar um teto para sua madrasta, não é?

Julian parecia estar enfrentando um ataque de leões. Dividida entre o espanto e a contrariedade diante da atitude de Diana, Nell interveio:

— Claro que ele não faria isso. Julian tem muitas propriedades, e sempre haverá um lugar para vocês. — Tirou o braço da mulher do pescoço do marido e o tomou, sorrindo calorosamente e guiando Diana através do hall. — Enquanto isso, ficaremos muito felizes em tê-las conosco. Será tão bom ter companhia... E, depois de uma longa viagem, tenho certeza de que está ansiosa por des­cansar e se refrescar. Nós já estávamos nos preparando para sua chegada, então, com um pouquinho de esforço, tenho certeza de que os criados logo deixarão seus apo­sentos prontos. — Ela olhou para o mordomo por sobre o ombro. — Estou certa, Dibble?

— Sim, milady.

— Excelente! Mas primeiro tomaremos um chá com biscoitos que serão servidos no salão verde.

— Providenciarei imediatamente. — O homem fez uma mesura.

Nell sorriu para Diana.

— Viu? Tudo já foi arranjado. Agora, se você e Elizabeth vierem comigo, poderão me contar tudo sobre a viagem.

Deixado no hall de entrada, rodeado por uma pilha de malas e valises, Julian observou o trio se retirar com um sorriso nos lábios. Se Nell não tivesse vindo em seu socorro, ele ainda estaria lá, parado como uma lebre cercada por cães.

Preocupado em ter a madrasta e a esposa sob o mesmo teto, retirou-se para o escritório.

Mas, se houvesse qualquer batalha de vontades entre as duas mulheres, ele apostaria em Nell.

Diana podia ser uma mulher frívola, mas não era tola, e levou apenas alguns dias para perceber que aquela casa agora pertencia a Nell. Resolveu, então, voltar sua atenção para a reforma de Dower House e transformá-la em um elegante lar para ela e a filha.

A casa ficava a poucas milhas de Wyndham Hall e havia pertencido à avó de Julian. Embora as reformas na parte física progredissem lentamente por conta do clima, havia muito com que as damas pudessem se ocu­par, e Nell concordou com a tarefa de ajudar na escolha dos tecidos e da mobília.

Agradecida pelo interesse de Nell, e ao descobrir que ela, possuía um ótimo gosto para cores e estilo, Diana ficou feliz em incluí-la no trabalho. Junto com Elizabeth, elas ficaram completamente absorvidas nas mudanças.

Ao se lembrar do tratamento frio que recebera de Diana, Nell não teve a certeza de que as duas pode­riam morar na mesma casa. Mas levara menos de vinte e quatro horas para descobrir que, embora Diana fosse irri­tante e fútil, não era uma pessoa maldosa.

E Elizabeth era uma graça. Se tivesse uma irmã, pensou Nell, gostaria que fosse como ela.

A convite de Julian, Marcus veio para jantar uma noite, logo depois da chegada de Diana e Elizabeth. A refeição transcorreu em um clima agradável, e as damas deixaram os cavalheiros bebendo seu Porto na sala de jantar.

— Você sempre foi um sortudo — comentou Marcus ao ver como as mulheres estavam se dando bem — Se eu não tivesse visto com meus próprios olhos, não acre­ditaria. Meus parabéns! — Ergueu o copo na direção de Julian. — Eu tinha certeza de que agora você já teria sido feito em pedaços, e eu viria aqui para chorar sobre seu cadáver.

— É à minha esposa que você deveria dar os parabéns — respondeu Julian, irônico. — Quando elas chegaram, tudo o que fiz foi ficar parado, olhando. Foi Nell quem salvou a situação.

— Embora o assunto esteja agradável, não acredito que tenha sido por isso que fui convidado para jantar. Não me diga que Tynedale está causando problemas?

— Não. Na verdade, as coisas têm estado bem cal­mas. Não vi, nem ouvi nada sobre, Tynedale ou sobre as atividades de meus primos.

— Então o que o está preocupando?

A expressão de Julian ficou séria e ele colocou a bebida sobre a mesa.

— Já teve algum problema com caçadores invadindo suas terras?

Marcus pareceu surpreso.

— Só o habitual. Nada sério.

— Nenhuma matança sem sentido ou caça deixada para trás?

— Nunca. — Marcus franziu o cenho. — E não con­sigo imaginar que, com John Hunter cuidando de suas terras, alguém arriscaria o próprio pescoço.

— É aí que você se engana.

Julian explicou como um animal fora encontrado brutalmente morto em sua propriedade.

— Que coisa horrível — comentou Marcus.

— Eu ordenei a John que contrate alguns homens para patrulhar a área à noite. Ele pensou em colocar armadilhas, mas não quero correr o risco de matar algum homem inocente.

— Não parece coisa de um caçador.

— Nisso você tem razão. E não sei o que fazer. Minha esperança é que John apanhe esse sujeito e dê um jei­to nisso. — Ele olhou para o copo. — Eu não disse nada às mulheres. Não quero preocupá-las.

— Tem certeza? Não duvido que sua esposa fosse, ela própria, uma ótima caçadora.

— Pode ser — admitiu Julian com um sorriso. — Ela já me surpreendeu mais de uma vez.

— Mas, de maneira desagradável?

— Não. Diante de você há um homem agradecido.

— E feliz?

— Sim.

Marcus aceitou o comentário, porém a verdade era que Julian estava vagamente, preocupado. Não estava feliz nem infeliz com o casamento. Tinha uma esposa adorá­vel, que administrava bem sua casa e o satisfazia, mas, ainda assim... algo estava faltando. Quando entrava no quarto de Nell, ela o recebia apaixonadamente, como qualquer homem desejaria, mas parecia esconder uma parte dela. Havia uma espécie de barreira entre eles. Quase imperceptível, mas estava lá. Estava no modo como, às vezes, Nell o observava, como se ela estives­se procurando por algo, como se ela achasse que estava faltando alguma coisa nele. Ela era um tanto... arredia. Essa era a palavra.

Julian suspirou. Não sabia explicar, mas isso parecia aumentar a cada dia.

O medo de que Julian ainda amasse sua primeira espo­sa incomodava Nell. Ele era tudo o que uma mulher desejaria encontrar em um marido, mas isso não valia grande coisa se ela nunca conseguisse ganhar seu cora­ção. Tinha de admitir que estava apaixonada por ele, mas o fantasma de Catherine a assombrava e fazia com que ela ocultasse suas emoções. Ela não poderia amar um homem que nunca a amaria, tampouco consumir-se por alguém cujo coração estava sepultado no túmulo junto com a esposa. Não via vantagem em amar um homem que amava outra mulher, especialmente uma mulher morta.

A companhia de Diana e Elizabeth tornava mais fácil a tarefa de mostrar ao mundo, e ao seu marido, inclusive, uma postura imperturbável. Apenas à noite, depois que Julian a deixava e ela ficava sozinha naquele magnífico quarto, seu coração doía e o choro ficava preso na gar­ganta. Fazer amor com Julian acabava com sua tristeza por alguns momentos, ela podia se perder em seu abraço, mas quando ele ia embora para seu quarto, ela se sentia vazia, usada. O que eles faziam não era diferente do que um garanhão e uma égua faziam no cio, disse a si mes­ma com raiva, enxugando as lágrimas. Luxúria era o que fazia vir até ela: um instinto primitivo, com o objetivo de procriar. Era só o que existia entre eles.

Com o Natal se aproximando e todo o clima festivo, Nell ficou ainda mais triste. Seria o primeiro Natal que ela passaria sem a família, e sentia muita saudade de casa.

Em uma manhã, alguns dias antes das festas, sentin­do que a mente de Nell parecia distante dos planos dos construtores, Diana colocou os papéis de lado.

— Chega! Estou cansada de me preocupar com a reforma de minha nova casa. Vamos fazer alguma coisa diferente hoje.

Nell estava encantadora em um vestido verde-oliva de cashmere, olhando pela janela a chuva que caía.

— Uma caminhada ou cavalgada estão fora de questão. O tempo está horrível.

— Concordo. O que vamos fazer? — perguntou Elizabeth.

Diana pensou por um momento e então teve uma idéia.

— Podemos explorar a estufa. Será tão bom quanto andar lá fora em um dia de verão.

— Nós fizemos isso ontem — resmungou Elizabeth. — A senhora não se lembra?

— É mesmo. Mas deve haver alguma coisa que pos­samos fazer além de ficar olhando para essas plantas e livros.

— Eu não explorei toda a casa ainda — lembrou-se Nell. — Talvez haja algo incomum que vocês gostariam de me mostrar?

Diana e Elizabeth trocaram um olhar diabólico.

— Já viu as masmorras? — perguntou Diana.

— Masmorras? — repetiu, Nell, e um arrepio percor­reu seu corpo.

— Julian não contou a você sobre elas?! — exclamou Diana: — Que maldade da parte dele...

Inclinando-se para a frente, Elizabeth perguntou:

— Você não sabia que a mansão foi construída no terreno onde ficava um antigo castelo? E que há uma passagem secreta que leva a alguns calabouços? É um lugar aterrorizante. O primo Charles fez um passeio conosco, uma vez, e nos contou algumas histórias. Nós adoramos ouvi-las, embora mamãe tenha tido pesade­los por uma semana, e lorde Wyndham, o pai de Julian, tenha ficado zangado com o primo Charles por ele ter nos assustado. Lorde Wyndham disse que toda aquela conversa sobre tortura e assassinato era bobagem e que o primo Charles tinha inventado tudo.

Nell franziu o cenho.

— Pensei que lorde Wyndham e Charles não se des­sem bem.

— Não há como negar que esse problema aumentou, mas isso aconteceu assim que o falecido conde e eu nos casamos — explicou Diana —, e as coisas não estavam tão ruins entre eles. Charles vinha aqui com freqüência, embora nem tanto depois desse fato.

— Explorar as masmorras talvez não seja uma boa ideia, afinal — comentou Elizabeth, pensativa. — Era verão quando o primo Charles nos mostrou o lugar, e me lembro de ele dizer alguma coisa sobre o lugar ficar úmido no inverno.

— Ah, isso mesmo — concordou Diana. — Teremos de pensar em outra coisa.

— Que tal a galeria? — sugeriu Elizabeth.

— Dibble já a mostrou a mim, mas confesso que não tive a chance de olhar todos aqueles retratos de família.

— E deveria. Será uma ótima diversão. Espere até ver o retrato do primeiro conde... ele parece um vilão!

O primeiro conde de fato parecia um vilão, porém Nell pôde ver de onde Julian herdara os olhos verdes e as sobrancelhas escuras.

Elas começaram pela parte mais antiga da gale­ria e passaram um tempo agradável olhando os retratos, comentando e rindo sobre os estilos de roupas e cabelos.

Quando chegaram à seção com os retratos mais recen­tes, um deles chamou a atenção de Nell. Estava pendura­do em lugar de honra e, perto, havia um buquê de lírios frescos de uma das estufas da propriedade, em uma pequena prateleira debaixo da enorme moldura.

Ela notou as flores, mas foi a figura que chamou sua atenção e a deixou paralisada. Era o retrato de uma moça usando um vestido azul-safira, com cabelos loiros e enor­mes olhos azuis. Era a mulher mais adorável que já havia visto na vida, e não conseguia desviar o olhar do rosto em formato de coração e das formas delicadas que pare­ciam as de uma fada.

Elizabeth percebeu seu interesse e veio ficar a seu lado.

— Essa é lady Catherine, a primeira esposa de Julian. Ela não é uma Vênus perfeita? Era tão adorável... Sua morte foi uma tragédia.

— Linda, de fato — Nell confirmou com uma voz vazia.

Uma coisa era ter uma rival sem rosto, outra era saber que a mulher que havia levado o coração de seu mari­do para o túmulo era dona de uma beleza incomparável. Não que ela, Nell, fosse feia. Mas, naquele momento, odiou seus cabelos castanho-claros. E quem se impor­taria com seus olhos verdes quando poderia olhar para grandes olhos azuis, da cor do céu no verão? E aquela boca com o formato do arco de um cupido?

Sentindo-se torturada, estudou com atenção as formas perfeitas de lady Catherine. Diana se juntou a elas para observar o retrato e suspirou.

— A morte de Catherine foi terrível. Um acidente de carruagem, parece. Ela era tão jovem e tão bonita... Meu falecido marido disse alguma coisa sobre Julian ter morrido junto com ela. Ele ficou tão preocupado com o filho! Disse que tinha medo de que Julian se atirasse no túmulo junto com a esposa. — Seus dedos acariciaram as pétalas dos lírios. — Vejo que ele ainda coloca flores para ela. Fico imaginando se ele não...

Um beliscão de Elizabeth lembrou Diana de quem estava a seu lado. Rindo nervosamente, ela colocou o braço ao redor de Nell.

— Eu nunca a conheci. Ela já estava morta quando me casei, e o que conheço sobre ela eu soube através do pai de Julian... Mas agora Julian tem você, e tenho certe­za de que ele será feliz novamente.

Nell respirou fundo. Duvidava disso.

O lindo rosto de Catherine continuou gravado na mente de Nell e, naquela noite, quando Julian veio até ela, Nell o recusou pela primeira vez.

— Sinto muito — falou em voz baixa. — Não estou me sentindo bem.

Deitado ao lado dela na grande cama, Julian já havia percebido que ela estava muito quieta, e que havia uma sombra em seu olhar.

— Uma dor de cabeça, talvez? — perguntou, segurando-lhe a mão.

Nell desviou o olhar do rosto do marido e, gentilmen­te, soltou sua mão da dele.

— Um pouco.

— Eu a ofendi de alguma maneira? — ele indagou devagar, os olhos verdes atentos.

— Oh, não! — ela exclamou e forçou um sorriso. — Estou apenas um pouco cansada.

Julian aceitou a explicação, deu-lhe um beijo carinhoso na testa e voltou para seu quarto. A porta mal se fechou, e Nell enterrou o rosto no travesseiro para chorar. Sentia-se a mulher mais infeliz do mundo.

Julian não dormiu bem naquela noite. Apenas um tolo não teria percebido que Nell estava infeliz. Deitado sem sono na cama, ele vasculhou a mente, tentando se lem­brar do momento em que ela começara a mudar. Não con­seguia se lembrar de nenhum incidente, palavra ou ação sua, não importava o quão pequena fosse, que pudesse trazer a mudança que ele sentira nela. Teve o aterrorizante pressentimento de que, mesmo sem ter conseguido conquistá-la, ele a estava perdendo.

Sorriu com amargura. Primeiro Catherine, e agora Nell.

Claro que ele nunca quisera Catherine. Na verdade, em ambas as vezes ele havia se casado sob pressão. Nenhuma delas porque quisesse uma esposa. Com Catherine, ele havia se casado para agradar o pai e, no fim, o desas­tre fora total. Eles tinham sido infelizes, e a morte de seu filho ainda por nascer só aumentara sua tristeza. Embora tivesse prometido que não se casaria novamente, Nell surgira em sua vida e virara seu mundo de cabeça para baixo. E, mais uma vez, ele se casara pelas razões erradas.

Com Nell, contudo, tinha sido diferente. E agora, por motivos que ele não podia explicar, ela estava se afastan­do dele.

Que diabo ele iria fazer? Não agüentaria mais uma vez a raiva, as lágrimas, as recriminações, as discussões que tinham feito parte de seu primeiro casamento.

E comparar Nell a Catherine era injusto: as duas eram diferentes como a água e o vinho. Com a primeira esposa, ele nunca tivera o prazer que tinha com Nell.

Sentindo-se irritado e perdido, ele socou o travessei­ro, tentando deixá-lo confortável. Aquela noite não era importante, disse a si mesmo. Nell tivera apenas uma dor de cabeça, e isso não era nada com que precisasse se preocupar. Não havia nada de mais na maneira gentil como ela o rejeitara que o fizesse acreditar que as coisas haviam mudado.

Mas ela estava se afastando, podia sentir... e não sabia como evitar isso. Pelo menos ela ainda não havia se derramado em lágrimas, acusando-o de tudo de ruim que acontecera em sua vida, pensou com um suspiro.

Passaram-se as festas de fim de ano e, embora Nell sentisse falta do pai e dos irmãos, tinha aceitado o fato de Julian, Diana e Elizabeth serem agora sua família.

Era janeiro, e ela estava surpresa pela ausência de neve, porém ansiava pela primavera. Após semanas de chuva, sentia-se como um animal enjaulado.

E não estava sozinha em seus sentimentos. Diana e Elizabeth também estavam aborrecidas.

Então, para a alegria de todos, a chuva parou, as estra­das começaram a secar e o sol brilhou em um céu azul e claro. Querendo sair de casa à tarde, elas organizaram uma cavalgada, acompanhadas por dois cavalariços. Julian se encontrava em Dawlish a negócios.

Nell montava uma irrequieta égua, enquanto as outras duas mulheres escolheram animais mais dóceis. O dia estava agradável, até mesmo um pouco frio, mas, depois de semanas trancadas em casa, aquela sensação era ótima.

Quando Diana declarou que já era o suficiente, Nell suspirou. Embora tivessem cavalgado muitas milhas, sua égua mal havia se aquecido.

Num impulso, ela virou-se para a mulher.

— Se você não se importa, antes de voltarmos eu gostaria que o meu cavalo esticasse um pouco mais as pernas.

Ignorando os protestos de Diana, ela tocou a égua, e esta saiu galopando como o vento, deixando os outros para trás.

Nell respirou fundo. Adorava aquela sensação de liberdade e desejou poder cavalgar para sempre.

Por um momento, sua melancolia desapareceu. Ela se esqueceu do retrato da linda mulher sobre o buquê de lírios e o marido cujo coração nunca seria seu.

Diminuiu o ritmo, então, e começou a voltar para onde estavam os outros. Ela e a égua mal tinham começado seu retorno quando um dos cavalariços apareceu diante dela.

— Milady! Que susto a senhora deu em lady Diana... Ela está convencida de que seu cavalo disparou.

— Eu tinha oito anos da última vez que um cavalo fez isso comigo. — Nell respondeu, acariciando o pescoço do animal. — E esta égua é muito educada para fazer tal coisa.

Olhou o cavalariço com atenção. Conhecia Hodges dos estábulos, sua reputação de cavaleiro ousado e o cuidado que tinha com os animais.

— A que distância estamos dos outros? — indagou.

— Umas duas milhas.

— Então vamos ver qual de nós dois tem o melhor cavalo — decidiu com um sorriso maroto.

A um leve toque de seus calcanhares, a égua disparou. Com um grito de alegria, o jovem cavalariço a seguiu.

A égua estava em pequena vantagem, pois Hodges era mais pesado e Nell o pegara de surpresa.

De repente, a montaria de Nell perdeu o equilíbrio em uma curva. Ela tentou desesperadamente se manter sobre a sela, mas a égua foi ao chão.

Quando Nell acordou, ainda estava no solo, a cabe­ça apoiada em um peito musculoso. Podia ouvir Diana choramingando e o jovem cavalariço tentando explicar o que tinha acontecido. Confusa, olhou ao redor e sus­pirou, aliviada, ao ver a égua andando, contente, sobre a grama.

Fechou os olhos por um momento. Sua cabeça doía, e ela sabia que tinha alguns machucados. Fez um esforço para sentar-se.

— Não! Fique deitada — ordenou uma voz masculina —, e deixe-me ver se está muito machucada. E, pelo amor de Deus, não ria, tornando as coisas piores. Julian acaba­ria comigo se eu deixasse que alguma coisa lhe aconte­cesse.

Ela olhou para cima. Um estranho a segurava, porém ela o reconheceu:

— Primo Charles? — indagou com voz fraca.

Ele sorriu.

— Ao seu dispor, milady.

Era como Julian tinha falado. Charles Weston poderia passar por gêmeo dele. O homem que olhava para ela lem­brava muito seu marido, a despeito de algumas diferen­ças: ambos tinham feições severas, mas Julian era muito mais bonito. Dividiam outras particularidades a cor dos olhos, o queixo, o nariz e outros traços.

Algumas pessoas poderiam até confundi-los, mas ela não. Havia algo nos olhos de Charles que a perturbava... Talvez a falta de expressão, concluiu. Os olhos de Charles Weston eram frios e impiedosos como o mar do Norte em dezembro, completamente destituídos do calor ou do humor que o olhar de seu marido continha.

Weston sorriu para ela, e Nell percebeu que seu sor­riso não chegava até os olhos. Não achou que passaria a gostar dele, e certamente não apreciou a posição íntima em que se encontravam.

Tentou levantar-se, porém ele a segurou com firmeza.

— Fique quieta. Foi um tombo espetacular o que você levou. Descanse um pouco.

— Você me viu cair?

— Sim. Vim em sua direção alguns segundos após sua queda. Agora deixe-me dar uma olhada para ver o quanto você se machucou...

Apesar dos protestos de Nell, ele removeu o chapéu verde-esmeralda e o colocou cuidadosamente no chão. Com dedos surpreendentemente gentis, examinou sua cabeça e resmungou quando ela fez uma careta de dor, investigando a área com mais cuidado. Em seguida, deu-lhe um atraente sorriso.

— Vai sobreviver, milady. Um dia ou dois de descanso e estará como nova.

— Obrigada — ela murmurou —, mas eu mesma pode­ria ter-lhe dito isso.

Ouvindo a voz de Nell, Diana se aproximou.

— Oh, Nell, diga-me que está bem! — implorou, ansiosa. — Julian me mataria se algo acontecesse a você enquanto estivesse sob os meus cuidados. Por que saiu correndo daquele jeito?

— Quieta, mamãe — ralhou Elizabeth, lançando um olhar de desculpas a Nell. — Não foi culpa de ninguém. Foi um acidente.

— Tem certeza de que está bem? — Diana insistiu, os grandes olhos castanhos fixos no rosto de Nell.

— Estou. — Ela sorriu para a mulher. — Não há dúvi­das de que ficarei bem dolorida, mas não há nada para se preocupar. — Olhou para Weston. — Posso me levan­tar agora?

Ele a observou por um momento, então deu de ombros e se pôs de pé para ajudá-la.

— Como desejar, milady. Nell sentiu a cabeça latejar, e o mundo ao seu redor girou. Desequilibrou-se quando a perna ruim falhou e, se Charles não a tivesse erguido nos braços, teria ido ao solo novamente.

— Eu acho — começou Charles, segurando-a próximo ao peito—, que você não está tão bem quanto pensa.

— Talvez tenha razão — ela admitiu.

— O que vamos fazer? — perguntou Diana, olhan­do ao redor, desesperada. — Como vamos levá-la para casa? Ela não pode ir cavalgando até Wyndham Hall, está muito longe daqui e...

— Acho que se esqueceu, milady — interrom­peu Weston secamente —, que Stonegate fica a apenas algumas milhas. Eu levarei lady Wyndham em minha carruagem.

Diana agarrou o braço dele, alarmada.

— Charles, você está louco? Julian não vai gostar disso.

Ele riu, e não foi uma risada muito agradável, pensou Nell.

— E desde quando eu me importo com o que meu estimado primo gosta?

Diana resmungou alguma coisa e saiu de perto dele.

Concordando que Julian não gostaria de encontrá-la como hóspede de seu primo, e não dando atenção para sua cabeça que girava, Nell murmurou:

— Não será necessário ter todo esse trabalho, sr. Weston. Se me colocar no chão, tenho certeza de que, em alguns minutos, ficarei bem.

Ignorando-a, ele virou-se e disse por sobre o ombro para Elizabeth:

— Srta. Forest, queira fazer alguma coisa com sua mãe antes que eu torça o lindo pescoço dela... — Olhou para Nell, que tentava escapar de seus braços. — E quanto a você, milady, pare de sacudir-se ou a jogarei no chão por ser tão ingrata.

Nell encarou os frios olhos verdes e imediatamen­te parou de lutar. Charles faria mesmo aquilo, não tinha dúvida. Dócil como um cordeiro, ela permitiu que ele a colocasse no assento da carruagem.

Subindo no transporte, Weston apanhou as rédeas e ordenou para um dos cavalariços:

— Retorne a Wyndham e informe seu senhor do aci­dente. Diga-lhe que a senhora não sofreu nada de gra­ve, mas que tive de levá-la para Stonegate para que fique sob os cuidados de minha madrasta até que ele possa chegar com uma carruagem mais apropriada e levá-la para casa. — Voltou a atenção para Elizabeth e Diana. — Vocês e o outro criado vão nos acompanhar até Stonegate para esperar pelo meu querido primo. Ficarão com lady Wyndham, protegendo-a de minhas nefastas intenções. Afinal, todos sabem que não consigo ficar sozinho com uma dama respeitável sem arruiná-la — completou, sorrindo.

Tensa, Nell lutou para não se movimentar muito den­tro da carruagem enquanto viajavam algumas milhas pela estrada.

De repente, fizeram uma curva e passaram por um impressionante portão de pedra. Mais alguns metros e os cavalos pararam diante de uma antiga e elegante mansão de pedra.

Weston pulou do veículo e foi retirar Nell de dentro da carruagem, carregando-a sem nenhum esforço e atra­vessando o terraço em direção a um par de maciças por­tas de madeira com enormes dobradiças de ferro, seguido por Elizabeth e Diana.

Sem perder o passo, ele entrou na casa, dizendo a um homem alto:

— Encontre minha madrasta e diga a ela para vir à ala oeste. Também peça chá e refrescos para as damas.

Como se fosse perfeitamente normal seu senhor retor­nar para casa carregando uma mulher nos braços, o mordomo continuou impassível.

— Sim, milorde, assim que eu atender as senhoras. — Ele sorriu para Nell. — Posso pegar suas luvas, madame?

Ela as tirou e entregou-as a ele. Virando-se para as outras duas mulheres, o homem fez o mesmo.

— Obrigada, Garthwaite — agradeceu Diana.

Aproveitando que seu estômago e sua cabeça tinham decidido se comportar, Nell observou a decoração do lugar com mais atenção e viu que a casa era mesmo de um rico cavalheiro.

Indo para um sofá perto do fogo, Weston a soltou gen­tilmente de seus braços. Quando se afastou, ela tentou se levantar e sua cabeça começou a girar outra vez. As outras duas mulheres correram e sentaram-se a seu lado. Diana segurou as mãos dela com ansiedade.

— Está sentindo alguma dor? Talvez queira um pouco de amônia com água?

— Não, obrigada. Eu melhorarei logo. Só preciso de alguns minutos.

— Foi o que eu disse — comentou Weston, indo até uma mesa de mármore para encher um copo com uma das bebidas das garrafas de cristal. Voltou para perto de Nell e ficou diante dela. — Beba isto. É conhaque. Vai ajudar a clarear sua mente.

— Imagino que, se eu me recusar, você vá fazer com que eu a beba à força — respondeu Nell.

— Eu admiro uma mulher inteligente. Agora beba e verá que tenho razão.

Nell bebericou o líquido e fez uma careta, então, em um gole só, bebeu todo o restante do copo, que desceu queimando sua garganta.

Para seu espanto, ela começou mesmo a se sentir melhor.

A porta do salão se abriu, e uma mulher com um ves­tido de cashmere marrom-avermelhado e gola de renda creme entrou na sala. Era miúda, com uma pele clara que contrastava com os cabelos escuros, parcialmente escondidos por uma charmosa touca de musselina clara. Olhos negros, cheios de vida e inteligência, observaram a sala, iluminando-se ao pousar sobre Nell.

Era a francesa, Nell pensou: A segunda esposa de Harlan e mãe de Raoul, o meio-irmão mais jovem de Charles.

Se a mulher parecia surpresa em encontrar a condessa de Wyndham em sua casa, contudo, não demonstrou. Ela apenas se aproximou do sofá onde Nell estava.

— Até que enfim nos encontramos. Sou a sra. Weston, e você é a esposa de lorde Wyndham, oui?

— Sim, sou. Sinto muito invadir sua casa desta maneira, mas sofri uma queda de meu cavalo e seu enteado insistiu em me trazer até aqui. Espero que nossa chegada inesperada não lhe cause nenhum problema.

— É a casa de meu enteado. Ele pode fazer como desejar, mesmo que eu considere uma tolice. — Olhou para Weston. — O que estava pensando? Sabe que o conde não ficará feliz em encontrar a esposa aqui.

— Por que todo mundo pensa que a felicidade de meu primo é do meu interesse? — Weston perguntou com uma sobrancelha arqueada.

— Você é um tolo — afirmou a sra. Weston, fria.

— Pelo menos nós concordamos em alguma coisa — Weston murmurou. — Ah, aqui está Garthwaite... bem a tempo de nos impedir de discutir na frente das visitas.

O mordomo entrou carregando uma bandeja de prata, seguido por outro empregado trazendo uma ban­deja maior, contendo todos os tipos de pequenos sanduíches, biscoitos e doces.

Nell nunca ficou tão feliz com uma xícara de chá quen­te e forte como naquele momento. A sra. Weston era uma anfitriã educada e conversou sobre o campo, o clima e a última moda, deixando-a à vontade. Diana juntou-se a elas, e qualquer um que não as conhecesse pensaria que se encontravam regularmente e eram boas amigas. Weston, por sua vez, divertiu-se flertando, com Elizabeth, com quem ele parecia se dar muito bem.

Nell havia acabado de terminar sua segunda xícara de chá quando ouviu o som de vozes masculinas vindas do corredor.

Dois homens entraram no salão, ambos usando calças e botas pretas. Nell identificou Raoul, o meio-irmão mais jovem de Charles. Já o outro era um rosto do qual ela jamais se esqueceria: o de Tynedale.

Eles pararam, espantados por encontrar o lugar cheio de mulheres. Raoul se recobrou do susto rapidamente e seguiu para o sofá.

— Não me digam que a nova esposa de meu primo veio nos visitar? — indagou, sorrindo para Nell.

Diana fez uma rápida apresentação e explicou a situação.

— Quaisquer que sejam as razões para a senhora estar aqui, lady Wyndham, é um prazer finalmente encontrá-la — ele falou, caloroso. — Dê os parabéns a meu primo por ter escolhido uma dama tão adorável para esposa.

Nell murmurou algo educado, tentando ficar afasta­da de Tynedale, porém ele se aproximou com um sorriso dissimulado.

— Minha querida condessa de Wyndham... Permita-me parabenizá-la por seu casamento. Não acreditei quando ouvi a novidade. Nunca pensei que veria esse dia. — Com malícia nos olhos, ele continuou: — Todos nós pensáva­mos que lorde Wyndham tinha sepultado seu coração com a linda lady Catherine, e o que ele faz? Arruma outra linda herdeira bem debaixo do nosso nariz... Sua rapidez quase tirou meu fôlego. Muito perspicaz da parte de Julian aproveitar o momento, não concorda?

— Sim. Lorde Wyndham é um homem muito inteli­gente, e eu admiro homens sagazes, charmosos e competentes. — Ela sorriu com doçura. — Comparados a meu marido, devo dizer que os outros parecem vulgares e estúpidos.

Tynedale deu uma gargalhada.

— Bem, milady, isso precisa ser mais bem analisa­do. Alguns de nós, em certas ocasiões, parecemos tolos e cometemos erros, entretanto, eu posso lhe assegurar, muitos não cometem o mesmo erro duas vezes.

— Por que tenho a impressão de que entrei na segun­da parte de uma peça de três atos? — reclamou Weston, vindo ficar do lado deles.

Nell olhou para as mãos, encabulada. Não pretendia conversar com Tynedale tão abertamente, contudo ele a provocara.

Ela o observou enquanto ele respondia ao comentá­rio de Weston com uma risada. Era um homem mau, e ela o odiava. Se não fosse por ele, ela ainda seria a srta. Eleanor Anslowe.

Por um momento, Nell titubeou. Ela realmente deseja­va não ter encontrado Julian e se casado com ele?

Sim, já que coração do marido estava com lady Catherine em seu túmulo.

A conversa se tornou geral e Nell relaxou, deixando que os outros falassem enquanto ela só ficava escutan­do. Conforme o tempo passava, ia ficando inquieta. Julian não iria gostar nada de encontrá-la ali, mas não era ape­nas isso que a incomodava. Havia alguma coisa com as pessoas daquela casa que a aborrecia, fazendo com que não visse a hora de Julian chegar e levá-la dali.

Detestava estar na mesma sala que Tynedale. Detestava ainda mais seu sorriso e o modo educado como ele a tratava.

Passou um tempo observando Raoul. Era um homem bonito. Os traços lembravam os dos Weston, mas os olhos negros a faziam lembrar da mãe dele, assim como o for­mato da boca. Raoul era muito mais charmoso e bonito do que seu meio-irmão, porém, ao observá-lo enquan­to ele provocava Diana, Nell decidiu que preferia os modos de Charles.

Diana levantou-se do sofá para sentar-se em uma cadeira perto da sra. Weston, e Raoul saiu com Elizabeth para os jardins. Tynedale prontamente pegou o lugar que fora ocupado por Diana, e Nell sentiu-se paralisar. Teve de se esforçar muito para não fazer uma cena.

— Você tem de me dizer como se casou com o conde, minha querida — ele começou, em um tom de voz para somente ela ouvir. — Como conseguiu prendê-lo?

— E por que eu discutiria um assunto pessoal como esse com você? — ela perguntou com voz fria. — Você sabe muito bem o que aconteceu!

— Milady, assim você me magoa. Não me diga que, conseguindo o casamento da década, ainda me culpa por isso? Que vergonha!

Charles se inclinou por detrás do sofá e murmurou:

— Sabe, Tynedale, estou quase certo, ou melhor, tenho certeza, de que meu venerado primo acharia suas atenções para com a esposa dele ofensivas. — Seus olhos se fixaram nele. — Conheço Julian e, apesar das nossas mui­tas diferenças, pensamos muito parecido em algumas coisas.

Tynedale bufou com desdém.

— Parece ter se esquecido de que lorde Wyndham é conhecido por sua habilidade com a espada... — insistiu Charles com voz macia.

Tynedale estremeceu e tocou a cicatriz em seu rosto.

— Lembrou-se, pelo que vejo... — concluiu Charles. — Portanto, meu amigo, sugiro que, a menos que dese­je encontrá-lo novamente em um futuro muito próximo, saia já daqui e procure outra dama para cima da qual jogar seu charme.

Os dois homens trocaram olhares gélidos.

— Você não entendeu, Weston. Lady Wyndham e eu estávamos apenas conversando.

— Acha mesmo que ele vai acreditar nisso? — indagou Charles, seco.

Antes que Tynedale pudesse responder, Garthwaite entrou na sala e anunciou o conde de Wyndham.

Julian entrou e, poucos passos depois, parou, olhan­do para os ocupantes do recinto. Se a visão de sua esposa perto de Weston e Tynedale o perturbara, não deixou trans­parecer. Seus olhos examinaram Nell e, vendo que ela não parecia machucada, voltou a atenção para a anfitriã.

Cumprimentos foram trocados e logo lhe ofereceram algo para beber. Sorrindo, ele declinou:

— Obrigado, mas não será necessário. Se quisermos chegar em casa antes do escurecer, devemos partir logo.

— Tem medo de que possamos corrompê-lo? — Charles falou devagar enquanto andava na direção dele.

— Uma xícara de chá ou uma dose de conhaque não será impróprio antes que tire sua esposa de nós?

— Julian — interveio Diana, aproximando-se, esbaforida. — Não fique zangado... Não foi minha culpa, juro! — Ela lançou um olhar ansioso para Nell. — E não foi culpa de Nell também. A égua tropeçou e ela não conseguiu se equilibrar. Foi uma bênção o primo Charles ter aparecido. Se não fosse por isso, talvez ainda estivésse­mos na estrada.

— Eu acredito — ele replicou com calma, e olhou por sobre a cabeça de Diana para o primo. — Ainda que no futuro eu vá querer saber como Charles estava tão... à mão.

— Ah, não pense nisso — o outro respondeu com um brilho nada santo nos olhos. — Considere apenas como a minha boa sorte. Qualquer coisa para estar a serviço do chefe da família... Você sabe que não posso perder a chance de conseguir algum favor seu.

Julian deu uma gargalhada.

— Mentiroso. Às vezes penso que sua única qualida­de é seu maldito descaramento. — Sorrindo, ele estendeu a mão. — Obrigado. Estou agradecido pelos serviços prestados à minha esposa e família.

— Pelo menos você reconhece que tenho alguma qua­lidade —, disse Charles enquanto segurava a mão dele.

— E de nada.

— Por Júpiter! — exclamou Raoul, aproximando-se. — Isso quer dizer que estamos na suas boas graças novamente?

Julian esboçou um sorriso de lado.

— Só posso dizer que estou agradecido por sua ajuda e hospitalidade, e que agora temos de ir.

Ele olhou ao redor da sala novamente, parando o olhar por um momento sobre Tynedale, que ainda se encontrava sentado ao lado de Nell, e ficou tenso.

— Sinto muito não beber nada, mas a noite está che­gando e desejo retornar para casa a fim de avaliar a saúde de lady Wyndham. — Dirigindo-se para o sofá, estendeu a mão para a esposa. — Pronta para partir?

Ela estava mais do que pronta. Depois de agradecer a Sofie pela hospitalidade, deixou que Julian a levasse para fora da sala.

Diana e Elizabeth ainda estavam se despedindo, e apenas eles dois atravessavam o corredor. Percebendo que Nell mancava mais do que de costume, Julian se preocupou.

— Não está, mesmo, machucada?

— Eu fiquei tonta... Um pouco abalada. Mas seu pri­mo Charles me fez beber um pouco de conhaque e isso resolveu o problema. Com certeza, ficarei dolorida por alguns dias. — Ela hesitou. — Está zangado por nos encontrar aqui? Realmente não havia escolha.

— Como Diana disse, não foi sua culpa. — E, pensan­do em sua conversa com Charles, completou: — Talvez algo de bom surja de tudo isso.

— E quanto a Tynedale?

— Confesso que fiquei surpreso ao vê-lo sentado a seu lado.

Havia algo implícito nas palavras, e Nell ficou tensa.

— Acha que eu o encorajei? — perguntou com a voz baixa e zangada.

— Não, não acho. Apenas fiquei perplexo por ele ter se aproximado de você.

— Tynedale faz o que quer, Julian. Não tenho contro­le sobre ele, não pude fazer nada quando ele se sentou a meu lado. Não podia ficar mais agradecida quando Charles veio se juntar a nós.

— Acha que Tynedale contou alguma coisa para algum dos meus primos sobre o nosso casamento?

— Não sei... Embora eu tenha a impressão de que Charles sabe mais do que deixou transparecer.

Julian deu uma risada amarga.

— Esse, minha querida, é o primo Charles.

O som dos outros se aproximando interrompeu a con­versa, e Nell aproveitou a oportunidade para dar mais uma olhada no lugar.

Um enorme quadro estava pendurado sobre a lareira, e ela se aproximou mais. Era o retrato de um cavalheiro e um garoto de mais ou menos dez anos. O homem usa­va roupas de seda, já havia uma década fora de moda, e um incrível anel de safira adornava sua mão. Nell logo reconheceu os traços dos Weston nele e no menino, que aparecia encostado carinhosamente sobre o joelho do cavalheiro.

Hipnotizada pelas belas feições, sentiu o coração bater forte. Ela conhecia aquele rosto. Tinha visto aque­le homem sorridente antes... A única diferença era que ele não estava sorrindo. Não quando ela o tinha visto.

O lugar começou a girar, e uma onda de náusea se abateu sobre ela.

Nell se apoiou na parede, a perna esquerda tremen­do violentamente. As batidas de seu coração tornaram-se insuportáveis quando uma lembrança surgiu do lugar mais profundo de sua mente.

Deus! Ela se lembrava agora...

Não conseguiu respirar mais. Seu corpo vacilou e o mundo escureceu.

Quando Nell acordou, estava nos braços de Julian. Tentou se levantar e, ao olhar ao redor, percebeu que estava na carruagem de Wyndham.

Julian a forçou a se apoiar contra o veludo azul-escuro do assento.

— Calma, você desmaiou. — Na pouca luz que havia dentro do veículo, ele estudou seu rosto, afastando uma mecha do cabelo que havia se desprendido. — Como está se sentido agora?

— Oh, Nell, você quase nos matou de susto! — cho­ramingou Diana. — Foi horrível. Em um minuto estava de pé, no outro, caída no chão. Eu pensei que você tivesse morrido! Nunca fiquei tão aterrorizada em toda a minha vida!

Nell olhou para Diana e Elizabeth, que se encontravam sentadas do lado oposto da carruagem.

— Sinto muito por assustá-las. — Ela baixou o olhar e ficou observando as mãos enluvadas em seu colo. — Não sei o que me aconteceu. O tombo deve ter mexido comigo mais do que imaginei.

As duas mulheres levaram suas palavras em consi­deração e, durante o caminho, só falaram do acidente. Julian não disse nada, porém, por sua expressão, não acre­ditava que a queda do cavalo fosse a causa do desmaio. Um arrepio percorreu o corpo de Nell, e ela fechou os olhos. Pelo visto, os pesadelos não aconteciam somente quando ela estava dormindo.

Chegando na mansão, Nell foi para seus aposentos ansiosa pelos serviços de Becky. Um banho quente esperava por ela. Mais tarde, usando uma camisola macia e um robe de veludo, ela beliscou a comida trazida em uma bandeja.

— Coma tudo! — pediu Becky. — O que milorde irá dizer quando vir que milady mal tocou na comida?

— Estou bem — ela protestou. — Nenhum osso está quebrado. Estou só... abalada.

— Se milady diz... Vou levar tudo de volta para a cozi­nheira, que provavelmente vai ficar aborrecida quando vir que não apreciou o esforço dela.

— Becky, por favor, não brigue comigo — implorou Nell com a cabeça latejando.

A expressão da criada se suavizou.

— Muito bem, milady. Agora vá para a cama.

Nell obedeceu e, logo em seguida, Julian entrou no quarto, sentou-se na cama e segurou sua mão.

— Sente-se melhor agora?

— Sim. Sinto muito por ter causado tanta preocupação. Foi apenas um desmaio.

— Pode ter sido, mas duvido que tenha sido por cau­sa da queda.

— E não foi — ela admitiu. — Julian, aquele retrato perto de onde desmaiei, de quem é?

Ele a fitou, surpreso.

— De meu primo John e seu filho. Não se lembra? Eu falei dos dois para você. — Inclinando-se para a fren­te, ele segurou o queixo dela e a trouxe mais para perto. — O que foi, Nell? Diga-me.

— Você se lembra do que eu lhe contei sobre meus pesadelos?

Ele fez que sim com a cabeça e franziu o cenho.

— Você se lembra do primeiro, onde eu disse que um homem foi morto? — A voz de Nell tremeu.

Eles se entreolharam.

— Eu reconheci o homem do meu pesadelo. O homem que eu vi ser morto era seu primo John.

— Impossível... — Julian se levantou da cama e foi se afastando, olhando-a, incrédulo. — Foi um pesadelo. Como pode ter visto John em seu sonho?

— Eu não sei. Só sei que nunca esqueci o rosto do homem, e era o rosto de seu primo John. — Ela se incli­nou para a frente e disse com urgência na voz: — Estou dizendo, seu primo John é o mesmo homem do meu pesadelo. Julian, você tem de acreditar em mim! Eu vi o assassinato dele!

— Não diga tolices! — ele explodiu. — Como pode ser? Meu primo foi morto há dez anos ou mais. Você não conhecia nenhum de nós até se casar comigo. Como pode ter visto esse assassinato?

— Eu não sei o que dizer, nem eu mesma entendo! Só sei que, depois que fui trazida do penhasco, comecei a ter os pesadelos, e o primeiro foi de um homem sen­do assassinado. E juro a você que o homem tinha o rosto de seu primo John!

Julian não queria acreditar nela. Cada instinto seu protestava contra aquilo, mas Nell acreditava no que estava dizendo.

Aproximando-se da cama mais uma vez, ele sentou-se e segurou a mão dela.

— Nell, você não pode ter visto a morte de John. Você mesma disse que até hoje não sabia quem ele era. Como ele pode ter aparecido em um pesadelo que você teve há mais de dez anos? Como pode ter certeza de que era meu primo, ou apenas um homem parecido com ele?

— Eu não sei explicar — ela admitiu —, mas sei que é verdade: o homem era seu primo. Eu fiquei inconsciente por vários dias, mas sonhei durante todo o tempo. Alguém sendo morto... E foi tudo tão vivido que parece que eu realmente vi acontecer.

— Isso é impossível! Você não pode ter visto o assassinato de John.

— Diga-me, onde seu primo foi morto? Julian fez um gesto impaciente.

— Eu não me lembro exatamente. Perto de alguma pequena cidade. Algum lugar em Dorset, perto da cos­ta. — Ele ficou rígido, olhando para ela. — Meadowlea fica em Dorset... perto da costa — lembrou em um tom estranho. — Mas isso deve ser coincidência.

Nell não quis discutir com ele.

— E quando ele morreu?

— No dia dez de outubro de 1794.

— Meu acidente aconteceu no dia dez de outubro de 1794, e foi quando meus pesadelos começaram. Outra coincidência?

— Claro que sim! Tem de ser — ele insistiu. — Pensar de outra maneira seria loucura.

— Está bem, acredite nisso se você quiser, mas deixe-me contar os detalhes do meu pesadelo, e vamos ver se você ainda acredita que é mera coincidência.

Julian concordou, e ela começou a narrar:

— Eu estava cavalgando minha égua, Firefly, naque­le dia, mas ela perdeu uma ferradura e ficou manca. Eu a estava levando para casa. Não estávamos nem a duas milhas para baixo da estrada e vínhamos por um peque­no bosque quando, de repente, ouvi as vozes de dois homens brigando um pouco à frente. Eu não entendi o que eles diziam, só percebi que estavam nervosos. Fiquei assustada, mas aquele era o único caminho para casa, e eu continuei, pensando que, talvez, quando me vissem, eles parassem de brigar. Eu esperava passar por eles sem nenhum incidente. Quando fiz a curva na estrada, pas­sei por uma pequena carruagem fechada e, mais à fren­te, avistei os dois brigando. — Ela tomou fôlego antes de continuar: — Eles não me viram, e eu parei para obser­var. Nunca tinha visto duas pessoas brigarem com tan­ta violência. De repente o outro homem sacou uma adaga e esfaqueou seu primo duas vezes no peito, uma vez no ombro e outra no pescoço. Havia sangue por toda par­te. Eu gritei, não consegui me controlar. Foi quando me dei conta de que havia mais alguém no bosque. Percebi um movimento atrás de mim e, quando eu ia me virar, fui atingida na cabeça.

Afundando nos travesseiros, ela continuou:

— O resto da história você conhece. Eles me encon­traram no penhasco, caída numa saliência, e Firefly mor­ta nas pedras. — Ela virou a cabeça. — Acredite no que quiser, mas eu sei que o homem que eu vi sendo morto era seu primo.

A lógica de Julian refutava aquela história, porém ele não podia negar o impacto que as palavras de Nell haviam tido sobre ele.

— Em seu pesadelo, como eles estavam vestidos? Principalmente John? — ele perguntou contra a vontade.

— O homem que esfaqueou seu primo vestia um casaco verde e calças e botas marrons. Seu primo John estava usando calça preta e um casaco azul-escuro, com largos botões de prata, um colete branco e, no dedo, o mesmo anel que ele usava no retrato em Stonegate.

Julian sentiu-se como se tivesse sido golpeado no estômago. Olhou para o nada por alguns momentos, lutando para compreender.

— John estava vestido como você descreveu quan­do seu corpo foi encontrado. Ele sempre usava o anel de safira, uma relíquia de família. E eu sempre fiquei intri­gado: se foi um assalto, como foi constatado, por que o anel foi deixado para trás? — Ele esfregou a testa. — E os ferimentos que você descreveu... foram os mesmos encontrados no cadáver.

— Acredita em mim agora ou ainda acha que é tudo coincidência?

— Eu não sei no que acreditar! Isso vai além da com­preensão! O que você me disse é incrível, no entan­to você sabe de muitos detalhes para ser apenas mera coincidência. Diga-me, como você foi parar no penhasco?

— Eu não faço a menor idéia — ela respondeu. — Como eu disse, fiquei inconsciente por dias e não tinha lembranças da queda ou de ser retirada de lá.

— E o pesadelo em que John foi assassinado, você o teve há dez anos?

Ela sentiu o ceticismo na voz do marido, porém não o culpava. Dez anos era muito tempo para se lembrar de um pesadelo e de todos os seus detalhes.

— Sim, há dez anos, por várias semanas.

— E os outros pesadelos? Fale-me sobre eles.

Ela contou, com todos os detalhes de que se lem­brava, toda a brutalidade e o terrível lugar que via nas masmorras.

Julian ficou quieto por alguns minutos quando ela parou de falar.

— E você tem certeza de que é o mesmo homem em todos os pesadelos? — perguntou finalmente.

Ela fez que sim com a cabeça.

— Mas você deve se lembrar que eu nunca vi o rosto do homem. Estava escuro no bosque e, quando eles esta­vam brigando, o assassino se encontrava de costas para mim. Nos outros pesadelos, naquelas masmorras som­brias, o rosto dele estava sempre escondido.

— Então como sabe que é o mesmo homem?

— Eu sinto que é a mesma pessoa. Há alguma coisa no modo como ele se move, no formato de sua cabeça... que me convence disso. E acho mais fácil acreditar que é o mesmo homem do que pensar que pode haver mais de um monstro como esse por aí — ela admitiu.

A expressão de Julian era de frustração, horror e raiva quando sé levantou da cama.

— Se você acredita nisso... e se eu aceitar que seus pesadelos refletem a verdade... Você percebe o que isso significa?

— Que ele é real e que ainda está por aí, em algum lugar, matando as mulheres que eu vejo em meus pesa­delos. Aquelas masmorras existem de verdade Julian, eu não as imaginei... E acho que sei onde procurar por elas.

— O que está dizendo?

— Diana e Elizabeth me contaram sobre os calabouços debaixo desta casa.

— Acha que esses crimes estão sendo cometidos debaixo da minha casa?!

— Eu não sei! — ela gritou. — Eu não estou entenden­do nada disso.

Julian deitou-se na cama e ficou olhando para cima. Ficou ali por um longo tempo, lutando para aceitar as palavras da esposa.

— Eu não quero acreditar em você, porém acho que devo. — Ele virou-se para olhar para ela. — Há forças trabalhando aqui que eu não consigo apreender. Como pode ter sonhado com a morte de John? Essa situação é impossível! Devo crer que, em seu pesadelo, você viu a morte de meu primo e, de alguma maneira, tem uma conexão com o vilão que o matou. Um vilão perverso que ainda está matando mulheres inocentes em masmorras. — Com uma voz de desgosto, ele completou: — E mas­morras que você pensa que estão debaixo de minha casa!

— Eu não acho que tenha sonhado com a morte de seu primo — Nell murmurou. — Eu realmente a vi.

— E os acontecimentos voltam para você na forma de pesadelos? — ele perguntou com um brilho de interes­se no olhar.

— Isso mesmo. Os outros pesadelos são diferentes, como, se eu os estivesse assistindo através de um véu, mas com seu primo... as cores são brilhantes, vivas, e posso sentir o cheiro da floresta, sentir o ar frio daquele dia, as rédeas de Firefly nas minhas mãos.

— Se você viu mesmo o crime, como foi parar no penhasco?

— Acho que o assassino de seu primo e a pessoa que estava no bosque me jogaram lá depois que me atingiram na cabeça.

Uma pontada atingiu o coração de Julian quando ele imaginou que ela poderia ter morrido naquele dia, e que talvez ele nunca a tivesse conhecido.

— Não seria perigoso demais para eles? Afinal, sua família é conhecida naquela área. Eles deveriam saber que, depois de seu desaparecimento, alguém iria procu­rar por você...

— Tenho certeza de que eles eram estranhos no lugar e que não sabiam quem eu era. Eu não tinha um cavalariço comigo naquele dia e estava usando uma roupa velha. Não havia nada em mim que indicasse minha origem. Acho que não pensaram em ninguém, exceto talvez que um pai ou marido preocupado fosse procurar por mim.

Julian coçou a testa, os pensamentos desencontra­dos. Parecia não haver nada de bom no que ele descobri­ra naquela noite. Sua esposa, como as bruxas das lendas, aparentemente tinha um dom de visão que se mani­festava em sonhos através de imagens violentas que a faziam acordar gritando e tremendo.

— Seus pesadelos, depois da morte de John, são sem­pre nessas masmorras, e sempre quando o assassino está matando?

Nell confirmou com um gesto de cabeça. Julian estreitou os olhos.

— Se você o vê apenas nessas vezes, então deve ser a violência que a liga a ele — Julian disse mais para si mesmo do que para ela. — A morte de John forjou uma ligação, só Deus sabe como, entre vocês dois. Seus pesa­delos são sua conexão com o assassino, uma conexão que só acontece quando ele mata.

— Até hoje eu não acreditava, não de verdade, que estava sonhando com pessoas reais. Eu sabia que os pesadelos tinham uma conexão, mas creio que foi minha queda a causa deles, e não a morte de seu primo.

Julian queria fazer mais perguntas, mas desistiu. Relutante, decidiu que no dia seguinte poderia considerar as revelações daquela noite.

Levantou-se e se preparou para deixar o quarto.

— Você precisa descansar, e falar sobre esse assunto não vai ajudar você a dormir. Eu quero que o dr. Coleman a veja amanhã — declarou de repente.

— Vai adiantar se eu discutir com você sobre isso?

— De maneira alguma — Julian respondeu. — Eu não quero que nada aconteça a você. Quando Hodges vol­tou e me contou sobre sua queda... — Ele lembrou do horror que sentira, porém forçou um sorriso. — Vamos dizer apenas que não quero experimentar aquela sensação novamente.

Nell não soube o que pensar. Julian ficara irritado? Preocupado? Decerto não tinha ficado feliz em encontrá-la em Stonegate, disso ela sabia.

— Deve ter sido um choque para você nos encontrar em Stonegate esta tarde.

— Não posso negar, mas não se comparou ao choque que senti ao vê-la sentada ao lado de Tynedale.

— Como eu já disse, não tive escolha. Ele sentou-se do meu lado, não pude impedi-lo.

Julian queria acreditar nisso também, mas a imagem da esposa conversando tão calmamente com o homem que a raptara lhe despertara um ciúme mortal. Ele qui­sera atirar Tynedale para longe daquele sofá, pegar Nell em seus braços e ordenar que ela nunca mais o assustas­se daquela maneira.

Que Nell lhe tinha afeição, disso ele não tinha dúvida. Mas também tinha consciência de que ela escondia uma parte sua dele. Queria agarrá-la e sacudi-la, ordenando que o amasse... assim como ele a amava.

Atônito, Julian a fitou. Ele a amava!

Sacudiu a cabeça. Era difícil acreditar o que tinha acontecido com ele. O homem que nunca considerara a possibilidade de se apaixonar tinha cometido a maior das tolices, e justamente com sua própria esposa!

Mas ele a amava como nunca poderia imaginar que amaria outro ser humano. De uma maneira estranha, Nell havia se tornado seu mundo e, a menos que ele estivesse enganado, estava se afastando dele.

— Julian — ela falou, interrompendo seus pensa­mentos —, é lógico que você não acredita que eu tenha encorajado lorde Tynedale...

Aturdido pela recente descoberta, e sentindo pontadas de ciúme, ele respondeu:

— Eu não sei mais em que acreditar.

Nell respirou fundo, sentindo-se ultrajada.

— Então sugiro que, até que você tenha decidido acreditar em mim, é melhor que não me imponha a sua presença.

Os olhos dele faiscaram.

— Muito bem, milady, então desejo-lhe uma boa noite. Não vou lhe impor minha presença por mais tempo.

Nell o observou sair do quarto, as emoções perdidas em um turbilhão de raiva, angústia e desespero. As palavras para chamá-lo de volta, fazer as pazes, morreram em seus lábios.

E então já era muito tarde. Julian se foi, e a porta que dividia o quarto deles foi fechada com força.

Ela começou a chorar. Maldito fosse ele por duvidar de sua palavra! Como Julian podia pensar que ela tinha gostado de ficar na companhia de Tynedale?

Céus, como ela o odiava!

Enquanto Nell lutava contra seus próprios demônios, Julian andava de um lado para o outro em seus aposentos. Tirou o casaco, a gravata e as botas. Seu criado havia lhe deixado um copo e uma garrafa de uísque que ele bebeu no passar das horas.

Sua cabeça girava. A importância dos pesadelos de Nell, sua recente descoberta sobre o amor, seu ciúme e a suspeita se debatiam em sua mente.

Seria possível Nell estar apaixonada por Tynedale? Ele não queria acreditar nisso. Nunca havia duvidado das palavras dela quanto à sua história de ter sido raptada.

Deu uma volta pelo quarto, esfregando a testa, depois engoliu o restante do uísque. Afinal, ele acreditava ou não na mulher?

Lembrou-se do brilho nos olhos dela, do ultraje em seu rosto, e uma onda de remorso e vergonha caiu sobre ele. Como podia ter duvidado de Nell? Era um tolo! No momento em que o nome de Tynedale surgira, ele agira como um adolescente enciumado, permitindo que a inse­gurança tomasse conta dele.

Estava apaixonado pela primeira vez, e isso poderia servir de desculpa... Porém, não podia deixar que esses sentimentos abrissem uma distância entre eles.

Respirou fundo. Mesmo se ele não estivesse apaixo­nado por Nell, não poderia permitir que sua relação se deteriorasse. Já havia falhado em um casamento e não faria isso de novo. Não perderia Nell para Tynedale sem lutar. Ela pertencia a ele... e ele a amava.

Julian não dormiu naquela noite. Tinha muito no que pensar e não tinha planos definidos.

Uma hora mais tarde, banhado e pronto para enfren­tar o novo dia, Julian desceu as escadas e foi direto para a sala de café da manhã. Conversou com Dibble, que asse­gurou que a mensagem para o dr. Coleman fora enviada.

Depois de um rápido desjejum, ele seguiu para a biblioteca, onde continuou a andar de um lado para o outro.

O mais importante era consertar as coisas com Nell. Ele nunca se considerara um covarde, mas não importava o que seu coração sentia: não tinha coragem de confessar seus sentimentos. Não quando tinha dúvidas sobre os sentimentos de Nell.

A chegada do dr. Coleman interrompeu seus pen­samentos e, com um sorriso, ele cumprimentou o outro homem. Explicando a situação da esposa, logo mandou o doutor para vê-la.

Deu um sorriso tristonho. Seria mais uma coisa para Nell ter contra ele.

Em sua suíte, Nell não estava feliz em ver o médico. Ela também não conseguira dormir bem à noite. Exausta e com sua perna doendo, ela suportou a ajuda e broncas de Becky enquanto se banhava, pensando em passar o dia na cama, escolheu uma camisola amarela de algodão, e depois que Becky prendeu seu cabelo, ela tentou comer um pouco.

Quando estava se servindo de uma segunda xícara de chá, o dr. Coleman foi anunciado. Tentando parecer bem, Nell respondeu às perguntas e enfrentou o exame. Ela se lembrou do velho médico da família em Meadowlea, e de repente sentiu saudades de casa e de seu pai e seus irmãos. Lágrimas dançavam em seus olhos, e ela tentou por todos os meios esconder o rosto do dr. Coleman. O que realmente queria era que seu marido a amasse.

Depois do exame, ela se vestiu e, com sua dignidade intacta, mais uma vez juntou-se ao doutor na antessala de seu quarto. Com as mãos nas costas, ele estava olhando pela janela quando ela entrou e se sentou.

— Bem, milady, apesar de seu acidente de ontem, a senhora está muito bem. Só precisa de alguns dias de descanso. — Ele andou em sua direção e apontou-lhe um dedo. — Porém, nada mais de cavalgadas descuidadas por algum tempo, pois não será apenas a sua saúde que a senhora poderá colocar em risco.

— O que o senhor quer dizer?

— Se tudo estiver de acordo com os exames, acredi­to que a senhora dará ao lorde uma perfeita e saudável criança por volta do mês de julho, talvez no começo de agosto. Meus parabéns.

Nell ficou ali sentada, em choque. Estava grávida!

Com espanto, olhava para sua barriga. Era difícil acre­ditar... Ela não se sentia diferente, embora andasse cansa­da ultimamente e um tanto chorosa... E houvera também o mal-estar de estômago, que ela atribuíra à lagosta, agora se lembrava de como fora estranho, depois de uma indisposição tão forte, ter sentido tanto apetite de manhã, na hora do café.

Ela se levantou da cadeira e correu para o quarto de vestir para se olhar no espelho. Apertando a camisola no corpo, ficou desapontada quando não viu nada.

Becky bateu na porta e deu uma espiada.

— Milady? Eu vi o doutor saindo. A senhora precisa de alguma coisa?

— Não. Sim. Eu não sei — confessou Nell, ainda ana­lisando o próprio corpo. Ela fez um gesto impaciente para que Becky se juntasse a ela. — Olhe para mim — ela pediu. — Eu pareço diferente?

— Não, milady.

— Oh, Becky eu recebi uma notícia maravilhosa! Eu estou grávida!

— Senhorita! Quero dizer, senhora! Que maravilha! A senhora deve estar emocionada.

— Eu estou — Nell admitiu. — Ainda não me acostu­mei com a ideia. Eu terei o bebê em julho ou no começo de agosto. — Ela riu, abraçou Becky e começou a dan­çar pelo quarto. — Você consegue acreditar? Um bebê! Eu vou ter um bebê!

— Milorde está feliz? — Becky perguntou.

Ele não sabe ainda. Imagino que o dr. Coleman este­ja contando a ele neste momento.

Nell estava certa. Encontrando-se com Julian na biblioteca, o dr. Coleman contou que a esposa dele estava grávida e que daria à luz no verão. Como um filho era a última coisa que Julian tinha em mente naquele momen­to, ele ficou algum tempo olhando para o médico até que suas palavras fizessem sentido.

Nell estava grávida... Ele teria um filho!

As ansiedades da noite anterior desapareceram. Foi tomado pela alegria, e um enorme sorriso iluminou seu rosto.

— Vejo que minha notícia lhe agradou — disse o médico.

— Agradou? Você não tem ideia! Por Júpiter, Coleman, foi a melhor notícia que você poderia ter me dado!

— O prazer é todo meu, milorde. — Ele apanhou sua maleta e se preparou para partir. — Vou embora para deixar você e sua senhora comemorar. Mais uma vez, meus parabéns. Se precisar, é só mandar me chamar. — Ao ver o ar preocupado de Julian, ele sacudiu, a cabeça e riu novamente. — Não se preocupe, sua esposa é jovem e saudável. Não vejo nenhum problema.

— Obrigado por ter vindo tão rápido. Eu não posso acreditar... Uma criança!

Sozinho em escritório, Julian riu alto, sentido-se embriagado de alegria. Ele ia ser pai! Estava tão feliz que se sentia flutuar. Chegara a pensar que nunca mais ouvi­ria aquelas palavras novamente. Então, de repente, sentiu uma angústia, com a memória da reação de Catherine à notícia de que estava grávida, e sua alegria se apagou.

Nell e ele haviam tido uma discussão feia na noite anterior, e a culpa era dele. Sua ansiedade, ciúme, dúvi­da e orgulho, que ele geralmente mantinha sob contro­le, surgiram todos de uma vez e o fizeram descontar na pessoa que não merecia. Como ela teria reagido ao saber que estava grávida, num momento em que estavam brigados?

Uma batida na porta o distraiu de seus pensamentos e, à sua ordem, Dibble entrou.

— Milorde, seu primo, o sr. Weston, está aqui para vê-lo.

— Charles está aqui?! — Julian exclamou. Entrando na sala e afastando Dibble para o lado, Charles se manifestou:

— Sim, estou. E por que você insiste que Dibble me anuncie como se eu fosse um estranho? Isso é um sinal de como você se tornou arrogante desde que herdou o título. É bom que eu esteja por perto para que você não se torne tão insuportável.

Julian tentou não rir. Quem era ele para falar em arro­gância? E que audácia!

— Deixe-nos — Julian dispensou Dibble. — E da próxima vez, trate esse arrogante como qualquer outro membro da família.

— O que eu sou — retrucou Charles, sorrindo enquan­to andava na direção de Julian —, mesmo que você finja que não.

— Devo servir alguma coisa, milorde? — perguntou Dibble.

— É claro que sim — disse Charles, aquecendo as mãos no fogo. — Caso não tenha notado, está frio lá fora. Eu não viria até aqui esperando menos do que aquele maravilhoso ponche que você faz.

Acostumado com os modos de Charles, Dibble dis­farçou um sorriso e saiu. Era bom ver os primos juntos novamente. E quanto ao seu ponche...

Uma expressão de satisfação surgiu em seu rosto.

— Se vamos falar de arrogância... — começou Julian, sorrindo para o primo.

— Você sabe como eu detesto formalidades. Vivi nesta casa por muito tempo para ser tratado como alguém que nunca pisou aqui. — Ele parecia aborrecido. — Mas sinto muito se o ofendi.

— Meu Deus! Isto está acontecendo?... Charles Weston pedindo desculpas?

Charles encolheu os ombros, rindo.

— Eu faço isso às vezes. Apenas não com muita freqüência.

Pensando em Nell e na criança que estava por nascer, Julian desejou que seu primo estivesse bem longe dali. Se Charles viera estender a bandeira branca, ele não pode­ria ter escolhido uma hora pior. Julian estava impaciente para ver Nell, segurá-la em seus braços e compartilhar a alegria das boas-novas.

— Então, o que o traz à minha casa? Aproveitar enquan­to as coisas estão brandas?

— Você quer dizer sobre o que aconteceu ontem?

— Como você preferir.

— Como você se sentiria se eu dissesse que era verda­de? Que eu quero esquecer a discórdia que há entre nós?

Julian o estudou por um momento. Houvera um tem­po que Charles fora seu primo mais próximo. Assim como com Marcus, ele e Charles haviam crescido praticamen­te juntos. Houvera alguns momentos difíceis, porém havia um laço entre eles que não se estendia aos outros mem­bros da família. O afastamento entre eles o atingira com força, embora ele tivesse grande afeição por Marcus e gostasse imensamente de sua companhia, sentia falta da alegria e audácia de Charles e sua atitude de pouco-caso em relação às coisas.

— Houve palavras duras trocadas entre nós — Julian começou a falar devagar. — Se me lembro corretamente, você me acusou de ter usurpado seu título por direito.

Charles fez um gesto de impaciência.

— Dito em um momento de raiva. — Ele olhou para Julian. — Você não pensou que eu quis mesmo dizer isso!

— Naquela época soou como se realmente você quisesse.

Charles deu uma risada de embaraço.

— Droga! Eu imagino que eu realmente quis dizer aquilo naquela época. Mas eu não acreditava nisso. Não mesmo. — Ele desviou o olhar. — Papai e eu estávamos profundamente magoados... e zangados por John ter esco­lhido você como guardião de Daniel. — Os lábios de Charles se apertaram. — Por direito, deveria ter sido eu ou meu pai... — Ele parou, lembrando a si mesmo que tinha vindo ali para fazer as pazes. — Nós dissemos coi­sas que nunca deveriam ter sido ditas. Eu reagi muito mal. Como você sabe, eu faço isso quando as coisas não acontecem do meu jeito.

— Sim, eu sei — disse Julian. — Mas isso não jus­tifica todas as outras coisas que foram ditas e feitas ao longo dos anos.

Eu não o culpo por se sentir assim, mas não posso mudar o passado. Não posso apagar o que disse ou desfazer minhas ações. — Com uma expressão pensativa, Charles murmurou: — Quando John foi morto, papai enlouqueceu um pouco. Tudo o que nós fizemos em nossa agonia, nós fizemos cegamente e de maneira tola. E mesmo que tenhamos feito aquele comentário sobre a troca dos bebês e que sua família tenha roubado o títu­lo dele, ele sabia que isso era uma discussão sem sentido. — Ele suspirou. — Ele era meu pai, eu não tive escolha a não ser ficar do lado dele.

— Você se sente diferente agora?

— Digamos que se eu pudesse provar qualquer uma das afirmações de meu pai, tomaria a casa e título de você em um piscar de olhos, mas já que nada disso aconteceu, estou resignado a ser simplesmente o sr. Weston.

Julian riu. Ele sempre se espantava como Charles podia dizer as coisas mais ultrajantes sem que alguém quisesse cruzar espadas com ele,

— É muito bonito de sua parte, más isso não desfaz tudo o que aconteceu entre nós.

— Você está falando de Daniel — Charles disse, todos os vestígios de bom humor sumindo de seu semblante. Quando Julian confirmou com a cabeça, ele admitiu: — Eu não posso fingir que sou um bom exemplo, e sim o pior para qualquer jovem, e você tinha razão, embora eu tenha achado ruim com você por ter afastado Daniel de mim. Eu sou tudo aquilo o que você pensa de mim: selva­gem, devasso e descuidado com o que as pessoas pensam. Mas me escute, Julian: eu amava meu irmão e meu sobri­nho. Eu não teria levado deliberadamente Daniel para a ruína e para o perigo. — Com um sorriso atravessado, ele completou: — Juro pela minha honra.

— E mesmo assim você o fez.

— E me arrependo por isso como nunca ninguém se arrependeu de alguma coisa nesta vida, acredite.

Julian tendia a acreditar nele, pelo que sabia, Charles nunca mentia quando era confrontado com seus pró­prios erros. O dia anterior e aquele haviam iniciado o começo de uma reconciliação, mas ele sabia que eles tinham um longo caminho a percorrer. E enquanto ele desejava segurar a mão estendida de Charles e aceitar sua palavra, algo ainda o aborrecia.

— E ainda assim você permite que o homem que cau­sou a morte de Daniel freqüente a sua casa. E você o chama de amigo — rebateu Julian.

— Agora você me pegou, e eu não consigo explicar.

— Tente — Julian disse secamente.

Dibble bateu na porta e entrou segurando uma bandeja com um ponche de rum fumegante, evitando que Charles desse sua explicação. Ambos observaram Dibble colocar a pesada bandeja de prata na mesa e servi-los. O perfu­me de rum, limão, canela e cravo preenchia o ambiente deliciosamente.

Após beber um gole do ponche, Charles falou:

— Dibble, meu bom camarada, se você um dia deci­dir mudar de lado, procure-me imediatamente. Só esse seu ponche já o faz valer a pena, mais do que meu primo paga a você, tenho, certeza.

Dibble não disse nada, mas havia um sorriso em seu rosto quando ele fez uma reverência e saiu.

— Roubando meus empregados? — perguntou Julian.

— Se eu conseguisse.

— Não há nada a que você não se atreva?

— No momento não consigo pensar em nada — ele comentou com um sorriso irônico.

— Então me diga, por que você permite que Tynedale freqüente sua casa, sabendo que ele arruinou Daniel e causou a morte de seu sobrinho que você clama amar? Como você pode sequer suportar olhar para ele?

— A necessidade faz isso quando o demônio aparece — Charles rosnou, com um brilho estranho nos olhos.

As sobrancelhas de Julian se juntaram.

— Quanto você está encrencado? Charles lançou-lhe um olhar impaciente.

— Minhas finanças, apesar dos rumores e fofocas, estão em ordem, e eu não procurei você para me tirar das garras dos sanguessugas. Acredite, eu não tolero Tynedale porque ele me tem nas mãos dele. Eu gostaria que fosse simples assim.

— Então por quê? Eu amaldiçoo cada lugar que ele pisa, e se minha lâmina não tivesse escapado, eu poderia ter dado cabo dele. — Julian respirou fundo tentando controlar sua raiva e frustração. — Por quê?

— Porque isso me convém — ele respondeu, num tom que deixava claro que não haveria mais discussão. — Eu percebi que não estou em posição de perguntar algu­ma coisa a você, mas é verdade que você tem meios para arruinar Tynedale?

Julian olhou para ele com ar de suspeita.

— Por que eu deveria responder à sua pergunta quando você não respondeu à minha?

— Porque minha pergunta é menos complicada... Pode ser respondida com um simples "sim" ou "não".

— E por que você se importaria se eu tivesse? O que você tem a ver com isso?

— Se as fofocas estiverem corretas, você tem os meios de arruiná-lo e ainda assim não o faz. Por quê, primo?

O que o impede?

— A necessidade faz isso quando o demônio aparece? — Julian falou com sarcasmo. Charles riu, mas não havia alegria nesse gesto.

— Então nós estamos em um beco sem saída, não é mesmo? Você não responde à minha pergunta, nem eu à sua. Estamos amarrados, Julian.

— Sim, estamos — Julian concordou. Charles levantou-se.

— Tenho que ir. — Estendendo a mão, ele disse: — Eu espero poder jantar com você e sua esposa em um futu­ro próximo. — Um sorriso abrandou suas feições severas. — Para consolidar nosso renovado relacionamento.

— Como eu disse antes, somente sua alegre audácia torna você tolerável — respondeu Julian, apertando a mão de Charles. — Verei a noite que convém a Nell. Você sabe que o convite não inclui Tynedale? Em circuns­tância alguma ele irá colocar os pés na minha casa.

— Você não precisa se preocupar com isso.

Julian acompanhou Charles até a porta, e no caminho continuaram conversando.

Nell e Diana estavam descendo a escada naquele momento, e ao ver Julian e Charles saindo do escritório juntos, pararam e ficaram olhando.

— Pelos céus, Charles, é você? — perguntou Diana abruptamente, com ar incrédulo.

— Eu acredito que sim — ele respondeu em tom de brincadeira.

— Eu não posso acreditar nos meus olhos. Não me diga que meu enteado e você resolveram suas diferenças!

— Algumas — Charles disse enquanto fazia uma reverência e dava um beijo educado na mão dela. Repe­tiu o gesto com Nell. — Se a senhora não tiver nenhuma objeção?

— Por que ela teria? — indagou Diana, batendo pal­mas. — Oh, isso será ótimo! Companhia! Tem sido tão enfadonho, aqui... Traga a sra. Weston. Eu gostei tanto de visitá-la ontem! Seu irmão também. Amanhã à noite, talvez? — De repente ela se lembrou de que aquela não era mais sua casa, e lançou a Nell um olhar culpado. — Isto é, se lady Wyndham não se importar.

— Parece uma excelente idéia, mas talvez não ama­nhã. — Ela olhou para Charles. — Que tal na próxima quinta-feira? — Ele concordou e ela disse: — Eu man­darei um convite para sua mãe. Esperamos tê-los como nossos convidados.

Olhando Nell com gratidão, Diana saiu e desapareceu na direção da sala do café da manhã.

Pegando seu chapéu com Dibble, Charles sorriu para ela.

— Eu não devo deixá-la desistir, sabe, eu esperava o convite para esta semana.

— O senhor é sempre tão descarado, sr. Weston? — perguntou Nell.

— Sempre — observou Julian. Olhando para Charles, ele acrescentou: — Vá embora, primo, antes que eu mude de idéia sobre o convite para o jantar. Charles riu e foi embora.

Nell estava inquieta e curiosa para saber sobre a reação de seu marido sobre a gravidez, mas sentia-se insegura devido à briga da noite anterior.

Julian tocou a mão dela, interrompendo seus pensa-- mentos.

— Posso falar com você? — perguntou.

— É... claro — ela gaguejou.

Julian sorriu e levou Nell para escritório. Fechando a porta, ele a abraçou.

— Minha querida — murmurou, enquanto lhe dava beijos suaves no rosto. — Coleman me contou. Você está feliz com a notícia?

— Sim. Muito. E você?

Ele riu e, suspendendo-a nos braços, girou com ela pela sala.

— Feliz? — ele perguntou quando pararam de girar. — "Feliz" me parece muito pouco para descrever como me sinto no momento. Eu acho que estou embriagado de alegria. E você estar feliz faz com que eu me sinta ainda mais satisfeito.

Com Nell ainda em seus braços, ele se sentou em uma das poltronas em frente à lareira. Ela encostou a cabeça em seu ombro, e ele se pôs a acariciar os cachos sedosos.

— Eu não consigo me lembrar de um momento mais intenso em minha vida — ele confessou. — Me senti nas nuvens quando Coleman me disse que você estava grá­vida. Demorei um pouco para entender o que ele esta­va dizendo, e quando por fim compreendi, tive vontade de sair pulando pela casa! — Ele beijou o topo da cabeça de Nell. — Você me fez um homem extremamente feliz, minha querida, e sou muito grato a você por isso.

Pelo menos um dos medos de Nell fora deixado para trás: ele estava emocionado com a notícia de sua gravidez. Mas Nell não queria a gratidão de Julian, ela queria seu amor, e um pouco de sua alegria foi apagada. Embora fosse a última coisa que queria fazer, ela afas­tou-se e levantou-se. O fantasma de Catherine ainda a assombrava, acabando com sua felicidade, mas Nell esta­va decidida a não deixar que Julian soubesse como ela se sentia.

— Estou contente — falou com cerimônia —, que o nascimento de uma criança deixe você tão feliz.

Não era a reação que Julian esperava, mas ao se lem­brar da noite anterior, ele se levantou, foi para perto dela e acariciou seu rosto com a ponta do dedo.

— Ainda está zangada comigo por causa de ontem? — ele perguntou.

— Zangada, não — ela admitiu. — Desapontada, tal­vez. — Andando na direção do fogo, ela olhou por sobre o ombro. — Você duvidou da minha palavra. Julian, você não pode acreditar que eu tenha encorajado Tynedale ontem! Eu o abomino! Eu estava apenas sendo educa­da porque não tinha escolha. Você preferiria que eu pro­vocasse uma cena e ordenasse que ele saísse da minha frente?

— Você tem razão de estar zangada comigo — ele admitiu —, e fez exatamente o que deveria fazer. Sou eu quem está em falta. Eu agi como um idiota, um cabeça-dura. Você tem de me perdoar, eu estava com ciúmes e isso me cegou para a verdade.

Nell ficou boquiaberta.

— Ciúmes? Como você poderia sentir ciúmes de um canalha como Tynedale? — Ela correu para ele, agarrou as lapelas de seu casaco e o sacudiu. — Você é um homem bom, generoso e honrado, e ele é tudo o que você não é. Você não tem motivos para ter ciúmes de tipos como Tynedale.

— Eu fui um tolo. Você pode me perdoar?

— Somente porque você é o pai de meu filho, e se você prometer não agir como um cabeça-dura novamente.

Julian riu, puxou-a para si e deu-lhe um beijo apaixonado.

— Eu não posso prometer que não agirei como um tolo no futuro, afinal sou simplesmente um homem, mas eu vou tentar, minha querida.

Brincando com um botão dourado do casaco dele, ela perguntou:

— E quanto ao outro assunto? Julian suspirou.

— Seus pesadelos? As masmorras?

Ela fez que sim com um gesto de cabeça.

Eu pretendo explorá-las com Dibble e alguns criados esta tarde. Uma vez que eu tenha visto que não há perigo para você, eu a levarei até lá. E peço a Deus que elas não tenham nenhuma semelhança com as dos seus pesadelos.

Deixando o escritório de Julian, Nell seguiu para a galeria. Enquanto andava, ia observando os retratos dos ancestrais de Julian. Parou diante do retrato de lady Catherine e ficou olhando para o adorável rosto por um longo tempo. Não havia como negar que a primeira espo­sa de Julian era bonita, mas ela não conseguia ver nada mais que mantivesse Julian preso a ela. Nell sentiu von­tade de arrancar o retrato da parede e fazê-lo em peda­ços. Foi quando ela viu um vaso com rosas amarelas que vinham das estufas de Julian. Com um grunhido, agarrou o vaso e o jogou no chão.

Olhando para a porcelana quebrada e as rosas arruina­das, Nell ficou horrorizada. O que havia feito?

Envergonhada pela sua explosão, ainda que satis­feita com o ato, ela deu mais uma olhada no retrato de Catherine. Disse para si mesma que era ela quem carrega­va o filho dele e ela era agora sua esposa.

Eu estou viva, você está morta. Droga! Deixe-o em paz!

Julian manteve sua promessa e, acompanhado por alguns criados, foi até as masmorras que estavam debai­xo de sua casa naquela mesma tarde. Não encontraram nada no calabouço escuro e úmido, e decidindo que aquilo não faria mal a Nell, levou-a até lá na tarde seguinte.

Segurando no braço do marido, com a luz de uma tocha iluminando o caminho, Nell olhou à sua volta. As masmorras consistiam em duas pequenas celas que se abriam para um quarto maior, que ainda mostrava sinais de seu verdadeiro uso, um par de algemas com correntes e outros objetos de tortura estavam pendurados em ganchos enfiados nas paredes. Havia um enorme poço para o fogo. Para qualquer lado que ela olhasse, dava de frente com paredes grossas de pedra, marcadas pela umidade e pelas manchas feitas pelas tochas e fogueiras antigas. Olhando para o depressivo ambiente, viu uma escuma verde no chão, sem dúvida causada pelas inundações que aconte­ciam de tempos em tempos.

Nell estremeceu. Aquele lugar era horrível, mas não era a mesma masmorra de seus pesadelos, e ela não sabia se ficava feliz ou não com isso. Era um alívio saber que as masmorras de Wyndham Hall tinham apenas uma peque­na semelhança com o lugar que aparecia em seus sonhos, mas por outro lado, gostaria muito de descobrir onde o demônio de seus sonhos fazia seu terrível trabalho, pois assim ele poderia ser apanhado e nenhuma mulher mais morreria por suas mãos.

Olhou para o rosto sério de Julian e balançou a cabe­ça. Alívio surgiu nos olhos dele e, sem nenhuma outra palavra, eles saíram daquele lugar.

 

                                         Capítulo IV

A notícia de que a condessa estava esperando um bebê que nasceria no verão espalhou-se rapidamente pela vizinhança. Nell estava lisonjeada e feliz com a quan­tidade de congratulações que eram desejadas para ela e Julian. Todo mundo parecia encantado com sua gravidez, desde o mais simples criado até os mais altos membros da nobreza da Inglaterra. Até mesmo o príncipe de Gales mandou uma nota, desejando felicidades. Mas a mensa­gem que ela mais gostou foi a que recebeu de seu pai. Ela sabia que ele ficaria feliz, e seu orgulho e prazer trans­parecia em cada palavra escrita na mensagem. Ele dizia que pretendia visitá-la na primavera, e o coração de Nell deu um pulo de alegria com a idéia de ver o pai.

Diana também se mostrou contente com a novidade, quando Nell lhe contou.

— Minha querida! Como estou feliz por vocês dois! — Uma sombra passou por seu rosto. — Meu faleci­do marido e eu queríamos tanto ter tido um filho, mas o destino não quis. — Ela tratou de afastar a melancolia e sorriu para Nell. — Eu sei que ele ficaria feliz com a novi­dade. Lembro-me de como ele falava frequentemente de Catherine e do bebê que ia nascer, como estava eufó­rico com a idéia de ser avô, e como ficou triste quan­do aconteceu a tragédia. — Percebendo que tinha falado demais, ela ficou vermelha. — Oh, perdoe-me! Eu não queria trazer o passado de volta. Ele teria ficado emocio­nado com a sua gravidez. Muito emocionado!

Tentando interromper a tagarelice da mãe, Elizabeth deu um abraço caloroso em Nell.

— Você é tão boa para meu irmão, e agora você vai ter um filho dele! — disse, com os olhos brilhando. — É tão emocionante... E pensar que mamãe e eu estaremos logo aqui perto, em Dower House. — Ela sorriu. — Já vou avisando que essa criança vai ser a mais mimada do mundo...

O jantar oferecido para Charles, como Nell imaginara, transcorreu sem nenhum problema. Além dele, foram con­vidados o magistrado Chadbourne e a esposa, Blanche, e seu herdeiro, Piêrce, um homem alto e bonito, na fai­xa dos trinta anos. Foi mais uma noite agradável em que Nell e Julian foram muito cumprimentados e recebe­ram inúmeros brindes pela saúde da criança que estava por nascer.

Quando a refeição terminou, as damas se retiraram para o salão dourado, deixando os cavalheiros com seu vinho do Porto. Nell estava satisfeita com seu primeiro jantar como condessa de Wyndham. Também estava feliz por Julian e Charles estarem se entendendo. Quem observasse os três homens naquele momento jamais poderia imaginar que pouco tempo atrás eles mal se falavam.

Como não poderia deixar de ser, enquanto as damas saboreavam chá e docinhos servidos por Dibble, o assun­to da conversa foi a gravidez de Nell.

— Eu me lembro da minha primeira gravidez — disse a sra. Chadbourne, com seus olhos azuis pousados em Nell. — Foi uma época muito excitante. Ter um filho no verão é a melhor coisa.

— Imagine! Eu prefiro na primavera, como foi com meu Raoul — proclamou a sra. Weston. — Eu me sen­tia tão pesada e desajeitada... Uma gravidez no verão não é nada agradável! Eu não invejo você, minha querida. Suas costas irão doer e seus pés irão inchar, se você con­seguir vê-los, e o calor vai acabar com você.

Diana, sentada ao lado de Nell, deu um tapinha de leve em seu braço.

— Não preste atenção ao que ela diz — murmurou, bem baixinho. — Tudo isso é bobagem. Nada mais irá importar quando você estiver com seu filho nos braços. — Ela sorriu para Elizabeth que estava sentada numa cadei­ra diante delas. — Eu sei que no momento que minha querida filha foi colocada em meus braços, eu esqueci tudo que tinha passado, exceto a alegria de poder segurá-la. Você verá como tenho razão.

— É verdade, minha querida — comentou a sra. Chadbourne. — Não há nada que se compare à primeira vez em que você vê seu filho. Há muito tempo que estas paredes pedem pelo riso de uma criança. E tenho certeza de que seu marido está felicíssimo.

— Sim, ele está — Nell concordou.

Julian talvez não a amasse, mas ela não podia negar o quanto ele estava emocionado com a perspectiva de ser pai. Na última semana, sua alegria exuberante e puro prazer tinham acalmado seu coração e ela podia perdoá-lo por isso. Havia outra coisa também, a maneira como Julian fazia amor com ela era extremamente terna, e seu corpo tremia de prazer só de pensar.

Com os olhos fixos em Nell, a sra. Weston murmurou:

— Mas vocês devem se lembrar de que esta não é a primeira vez que o conde fica esperançoso por tal novi­dade. Vamos esperar que ele não fique desapontado como da primeira vez.

— Que coisa horrível para se dizer! — exclamou Diana, olhando para a sra. Weston.

— Ora, tenho certeza de que vocês entenderam mal, por favor! — A esposa do magistrado tentou amenizar a situação, mas com uma expressão desaprovadora no rosto, olhou para a sra. Weston. — Tenho certeza de que não foi isso que ela quis dizer.

— Então, talvez — disse Nell calmamente, olhando para a francesa —, a sra. Weston queira explicar o que ela quis dizer.

— Eu não quis dizer nada — protestou a sra. Weston. — Mas não é verdade que esta não é a primeira vez que o conde espera uma criança? E que essa criança e tam­bém sua primeira esposa morreram? Não estou inventan­do, é verdade...

— Mas aquela tragédia não tem nada a ver com o meu bebê, não é? — replicou Nell. — Tenho certeza de que não foi sua intenção me alarmar, mas que outro efeito seu comentário teria sobre mim?

— Eu já pedi desculpas! Você não me entendeu. Eu não quis magoá-la, vamos falar de outras coisas.

A sra. Chadbourne e Diana concordaram com a suges­tão, e em poucos minutos a conversa seguiu em outra direção, abordando os planos de Diana para a restauração de Dower House.

Nell, contudo, não ouvia com muita atenção, seus pen­samentos estavam no que a sra. Weston havia falado. Ela tentava com esforço gostar dos parentes de Julian, mas havia alguma coisa sobre aquela francesa que não parecia certa. E ela tinha tocado no assunto deliberadamente, Nell tinha certeza.

Quando Julian entrou em seu quarto, seus pensamen­tos tristes desapareceram. Tirou o robe preto de seda e deitou-se ao lado de Nell. O pulso dela acelerou.

— Feliz, minha querida esposa, com seu primeiro jantar em Wyndham Hall?

— Correu tudo bem, não foi? — respondeu ela, aconchegando-se ao peito do marido.

— Sim, especialmente se você considerar a sorte de Charles e eu não termos estrangulado um ao outro, sermos atormentados por Raoul ou confortados por tia Sofie — ele murmurou, bem-humorado.

— Eu gosto de seu primo Charles — confessou Nell. — Ele não é tão frio como quer que os outros acreditem, não é?

— Esse é o problema de Charles — admitiu Julian. — Ele se esconde atrás daquele rosto de pedra.

— Mas por quê?

— Eu acho que talvez seja por causa... de tia Sofie, que nunca foi bondosa com os enteados, quando seu próprio filho nasceu. Ela faria qualquer coisa por Raoul, mas John, Charles, e mais tarde Daniel, poderiam ter sido comidos por leões bem na frente dela e ela não teria notado. É difícil às vezes gostar de tia Sofie, mas sou gra­to por ela ter salvado Stonegate e por ter dado um pou­co de estabilidade àquele ramo da família. Eu realmente não sei o que teria acontecido com meu tio Harlan se Sofie não estivesse lá. E quanto a Charles... talvez nun­ca tenha existido amor entre eles, mas ela adquiriu algum controle sobre seus modos imprudentes, mesmo que com métodos não muito gentis.

— A fortuna dela?

— Oh, sim, pode ter certeza de que ela jogou isso na cara dele várias vezes. Nem sei como Charles ainda não a estrangulou. — Julian enterrou o rosto nos cabelos de Nell. — Que tal falarmos de assuntos mais interessan­tes do que meus parentes?

— Como o quê? — ela perguntou, ciente do membro dele em seu quadril.

— Como, por exemplo, como você estava boni­ta esta noite... — As mãos dele percorreram o ventre de Nell. — E como é bom meu filho estar crescendo dentro de você.

— Seu filho? Como você sabe que é menino? E se for uma menina?

Julian esfregou o nariz na orelha de Nell.

— Está bem, que seja uma menina. Não tenho nenhu­ma objeção em ter a casa cheia de lindas amazonas. Eu confio que, com o tempo, você me dará um herdeiro.

Os lábios deles se encontraram num beijo longo e apaixonado, e Julian levantou a camisola de Nell para afagar-lhe os seios.

— Enquanto isso, vamos tentando, até conseguir. Afinal, não é uma tarefa tão árdua. — Ele tirou a camisola e a jogou para o lado. — Na verdade, não consigo pensar em nada mais agradável.

Ele se inclinou e sugou um mamilo, enviando ondas de prazer pelo corpo de Nell. Quando a mão de Julian alcançou a penugem macia no meio de suas pernas, todos os pensamentos desapareceram da mente de Nell como fumaça no vento, e ela se entregou à magia de fazer amor com seu marido.

Mais tarde, deitados nos braços um do outro, com a cabeça repousando no ombro de Julian, Nell saboreava o momento. Eles eram tão prefeitos juntos, ela pensou, e mesmo assim havia um abismo entre eles. E esse abismo tinha um nome: Catherine.

A felicidade de Nell se dissipou de repente. A mera idéia da primeira esposa de Julian destruía sua paz. As pala­vras de Sofie Weston voltaram a atormentá-la, aumentando sua infelicidade, e ela começou a se mover, inquieta.

— O que foi? — ele perguntou. Nell suspirou.

— Não sei, acho que estou com coisas demais na cabe­ça. — Sua primeira esposa, os comentários de sua tia Sofie... e também saber que você nunca vai me amar, por mais que você seja bom para mim, e me trate bem, e até goste de mim.

Na escuridão, Julian franziu o rosto, sentindo que havia mais por trás das palavras dela.

— Alguma coisa está perturbando você, Nell? Os pesa­delos, talvez?

— Não são os pesadelos. Faz muito tempo que não os tenho. O que, aliás, significa que muito provavelmente terei em breve.

— O que minha tia Sofie disse, que a deixou perturbada?

— Ela me fez lembrar que esta não é a primeira vez que você espera um filho, e que da outra vez sua esperan­ça terminou em tragédia.

— Mas que inferno de mulher! — Julian exclamou, o rosto avermelhando de raiva. — Talvez eu poupe Charles do trabalho de estrangulá-la, sabe?

Nell se encolheu, quase arrependida de ter contado. Mas quando Julian tornou a falar, sua voz estava mais calma:

— Pode ter certeza de que terei uma conversa com minha tia na próxima vez em que me encontrar com ela. Enquanto isso, esqueça o que ela falou. Ela sempre foi uma pessoa negativa e sem o menor tato. Não tem nada a ver o que está acontecendo agora e o que aconteceu no passado.

Nell queria muito acreditar nele. Uma parte dela acre­ditava. E ainda assim ele estava errado. O passado tinha tudo a ver com eles, enquanto o fantasma de Catherine ficasse entre ambos.

— Você a amava muito?

— Quem?

— Catherine.

Ela sentiu que Julian enrijecia.

— O que diabos ela tem a ver conosco? Ela morreu, Nell. Esqueça-se dela.

— Você consegue esquecê-la? — ela questionou com firmeza.

A simples menção do nome de Catherine o deixa­va irritado. O que ele e Nell tinham juntos era precio­so. Catherine só o tinha feito sofrer, e ele nunca a esqueceria por tudo o que ela o fizera passar. Ela quase o destruíra.

Mas Nell fizera uma pergunta e merecia uma resposta.

— Não, eu não consigo esquecê-la. Eu sempre me lem­brarei até o dia da minha morte, dela e da criança que ela esperava quando morreu, mas ela não tem nada a ver conosco. Este é o nosso casamento, e o nosso filho. Eu peço a você que deixe o passado onde ele pertence. Aceite como eu o fato de que ela está morta e enterrada, e que nada vai mudar isso.

Afinal, ela tinha conseguido sua resposta. Julian nun­ca esqueceria a maravilhosa Catherine. O que restava para ela? Nada.

— Entendo — murmurou Nell, virando-se de costas. — Desculpe por ter tocado no assunto. Boa noite.

Julian notou o tom de voz magoado, mas falar em Catherine sempre o enfurecia. Afagou os cabelos de Nell e depois beijou-os.

— Boa noite. Durma bem.

Nell fechou os olhos, tentando não chorar. Não sabia definir ao certo quando foi que se apaixonara por Julian, só sabia que estava apaixonada. Loucamente, perdidamente apaixonada. Ele amava outra, amava uma mulher morta, mas ela tinha todo o tempo do mundo pela fren­te para mudar as coisas. E o mais importante de tudo, estava esperando um filho dele.

Nell não disse mais nada, nem se virou, mas acabou adormecendo com um leve sorriso nos lábios, sentindo o braço de seu marido ao seu redor, e a mão dele pousada protetoramente sobre seu ventre.

Não houve aviso. Num segundo ela estava dormindo, sonhando com seu filho e com o dia em que Julian decla­raria seu amor por ela. E no seguinte ela estava lá, vendo as paredes cinzentas e manchadas da masmorra, ouvindo os gritos de uma mulher.

Como sempre, ele estava nas sombras, e era impossí­vel ver seu rosto, somente os ombros e parte do corpo. Apesar disso, quando ele puxou a faca, alguma coisa des­pertou na mente de Nell, e sua respiração ficou presa na garganta. Ela o conhecia. Não tinha certeza se sabia o nome dele, mas sabia que o conhecia, já o tinha encontra­do, já falara com ele.

Em seu sono, Nell começou a se debater e a gemer. Julian acordou ao primeiro movimento da esposa, e ime­diatamente percebeu que ela estava tendo um pesadelo, Acendeu a vela ao lado da cama e tentou acordar Nell, falando com ela em voz baixa e calma, sacudindo-lhe gentilmente o ombro.

Ao sentir o toque, porém, ela gritou e o empurrou, seus olhos estavam arregalados, mas Julian percebeu que não acordara, estava ainda imersa no pesadelo.

— Nell! — ele chamou. — Acorde! Você está ,sonhando...

Mas ela não conseguia, ou talvez nem mesmo o ouvisse.

Nell sabia que estava em meio ao pesadelo que sistematicamente a assombrava, mas não conseguia sair dele. Em tantos pesadelos que já tivera, durante todos aqueles anos, nunca havia presenciado tamanha selvageria e violência.

Palavras de conforto e carícias gentis não estavam fazendo efeito em Nell, e, desesperado, Julian deu um tapa no rosto dela. Ela ficou imóvel por um momento e finalmente despertou. Sua visão clareou, e ela se atirou nos braços de Julian, chorando.

— Foi horrível! Eu não agüento mais.

— Calma, querida. Você está segura. Está comigo, e eu não deixarei ninguém machucar você. Calma...

Nell ergueu os olhos e fitou Julian, à luz tremulante da vela.

— Eu o conheço, Julian — falou, com voz trêmula. — Eu conheço o homem.

— Você viu o rosto dele desta vez? Sabe quem é?

— Não... — Ela balançou a cabeça. — Eu não vi o ros­to dele, não sei dizer quem é, mas senti instintivamen­te que o conhecia. Sei que já me encontrei com ele, já falei com ele. — Um arrepio a fez estremecer. — Tenho certeza, Julian, é alguém próximo... Talvez até já tenha estado em nossa casa.

— Mas se você não viu o rosto dele, como pode saber que é alguém que você já encontrou?

— Eu não sei explicar — admitiu ela. — É uma intui­ção, uma sensação muito forte. Eu o conheço, e bem. Eu diria até que você também o conhece. Sei que é estranho, mas é o que eu sinto...

Julian olhou para o rosto pálido dela, vendo as mar­cas deixadas pelas lágrimas, e se lembrou do horror em seus olhos. Acreditava em Nell, quando ela dizia que o homem que lhe aparecia nos pesadelos era alguém que conheciam.

— Muito bem. Ele é alguém que nós conhecemos. — Ele lançou um olhar sério para Nell. — Só que isso não nos ajuda muito, se não sabemos quem ele é.

— Eu sei... Se pelo menos conseguíssemos encon­trar as masmorras! Se soubéssemos onde elas estão, conseguiríamos saber quem é esse monstro.

— Mas também não temos idéia nenhuma de onde ficam essas masmorras. Já exploramos as que ficam aqui em Wyndham Hall. Existem centenas de masmorras velhas e esquecidas espalhadas por toda a Inglaterra. Nós podemos procurar em Devonshire, e esse louco estar na Cornualha, ou vice-versa.

— Não — Nell negou com veemência. — Eu não con­sigo identificá-lo, nem às masmorras, mas ele é desta região, e as masmorras também são daqui.

— Como você sabe?

— Não sei como, mas eu sei! — ela insistiu. — Eu já disse, não sei explicar. Só sei que eu sinto isso, a minha intuição diz que aquele lugar infernal fica aqui, nesta região. — Ela mordeu o lábio. — Os pesadelos são sem­pre terríveis, mas este de hoje foi pior ainda... Novamente não sei como explicar, mas parece que estão se tornan­do mais intensos, como se eu estivesse chegando perto da fonte, entende? É muito estranho, eu admito, mas não é imaginação minha, acredite!

— Eu acredito em você, Nell, O que você me contou sobre a morte de John me convenceu de que existe uma ligação entre você e o assassino. — Ele cobriu as mãos dela com as suas. — Nós estamos nisso juntos, Nell, e juntos encontraremos esse monstro... e essas malditas masmorras.

Nell se aconchegou a ele, precisando de seu calor e de sua força.

— Você é muito bom para mim. Poucos maridos seriam tão compreensivos.

Ruborizado de prazer com as palavras dela, Julian beijou-a na testa.

— É bom que eu seja um marido excepcional, não é?

— Está querendo receber elogios, milorde?

— Não, mas é bom ouvir você falar bem de mim. Depois de um breve silêncio, Julian suspirou.

— Eu detesto lhe perguntar isso, mas há alguma coi­sa a mais no pesadelo de hoje que você se lembre e que talvez possa nos ajudar?

— Apenas que ele estava enfurecido. Ele estava furioso.

— Eu imagino o que desencadeou essa fúria nele.

— Eu não consigo nem imaginar... — Nell enter­rou o rosto no ombro de Julian. — Aquela pobre mulher, meu Deus...

— Temos muito trabalho pela frente. — Julian sacudiu a cabeça. — E não estou muito disposto a procurar por cada lugar abandonado, sujo e úmido onde podem estar essas masmorras. Sem contar com as histórias que terei de inventar para as pessoas para fazer minha busca.

— Pelo menos você pode ficar tranqüilo sabendo que a sua masmorra não é suspeita.

— Sim, sou grato por isso. Você tem certeza de que é alguém que conhecemos?

— Não tenho a menor dúvida.

— Então vamos torcer para que nosso assassino seja o bastardo do Tynedale.

— Não é. Tynedale é loiro, e o homem do sonho é moreno. Tem cabelos pretos, como os seus...

Julian não perdeu tempo. Na manhã seguinte, sentado em sua biblioteca, redigiu uma lista das propriedades nas quais sabia que havia masmorras. Em seguida, marcou, de todas elas, as propriedades que pertenciam a pessoas com quem Nell já tinha se encontrado. O fato dele os conhecer não tinha muita importância, Nell era a chave.

Tendo nascido naquele lugar, ele estava familiariza­do com as várias propriedades. Quando sua lista inicial estava completa, Julian ficou surpreso com a quantidade de residências que haviam sido construídas em terrenos onde, em outros tempos, existiam castelos antigos, com masmorras subterrâneas. Alguns dos proprietários, como o magistrado Chadbourne, tinham um enorme orgulho de suas masmorras, ele era um que não acharia estranho se alguém quisesse visitá-las. Outros, como ele próprio, chegavam mesmo a se esquecer da existência das mas­morras, a menos que alguém as mencionasse. Ver as masmorras de Chadbourne não seria problema. Quanto aos outros...

Julian suspirou. Iriam pensar que ele era louco, a menos que ele conseguisse pensar numa desculpa plausível. Ele até podia imaginar a expressão de Charles quan­do pedisse para ver as masmorras que ficavam embaixo de Stonegate. O dr. Coleman não ficaria muito feliz em abrir as portas de Rose Cottage para deixá-lo espiar o interior do lugar. E lorde Beckworth, seu vizinho ao norte, era como o magistrado Chadbourne, tinha orgu­lho das masmorras do solar da família, e o acompanha­ria de bom grado na visita aos subterrâneos da casa, sem questioná-lo.

O último da lista era John Hunter, seu guarda de caça. Não que John possuísse uma grande propriedade, mas sua casa, cercada pelos numerosos acres que o velho, conde deixara para ele, tinha sido, em outros tempos, um lin­do alojamento de caça, e diziam que fora construída num local onde outrora havia um castelo saxão. Julian não sabia muito sobre o castelo saxão, mas sabia que as mas­morras existiam, quando garoto, ele e os primos haviam explorado várias vezes aquele lugar, até o dia em que John os descobrira e eles saíram correndo.

Julian lembrou-se que deveria incluir na lista uma for­taleza normanda abandonada nos arredores de Dawlish e as ruínas de um mosteiro da época de Henrique VIII.

Além dessas, ele não se lembrava de outras proprie­dades que possuíssem masmorras no subsolo. Decidindo que a lista estava completa, colocou-a de lado e foi pro­curar Nell. Não a encontrou em parte alguma, até que Dibble o informou de que todas as damas estavam em Dower House.

— Elas queriam ver o andamento da reforma — expli­cou Dibble —, e acredito que há um desacordo quanto à cor das cortinas que serão colocadas no salão principal.

Depois de muita discussão sobre a cor das cortinas e dos estofados da nova casa de Diana, as damas voltaram para Wyndham Hall. Nell e Julian foram os últimos a sair da casa.

— Nem sei como agradecer por sua intervenção, Julian — disse ela. — Diana tem bom gosto em mui­tas coisas, mas tem uma fixação por rosa pink com eu nunca vi igual... — Ela sorriu. — Elizabeth e eu quase não conseguimos convencê-la a não pintar a casa inteira dessa cor, por dentro e por fora! Imagine só...

— Tem sido uma provação para você? — perguntou Julian, colocando a mão dela sobre seu braço.

— Ah, não! Eu não quis dizer isso. Gosto muito de sua madrasta. Ela é muito doce, e tem bom coração.

— E um cérebro cheio de penas de ganso. Nell riu.

— Talvez o intelecto dela não seja dos mais brilhantes, mas às vezes ela me surpreende com suas observações. Quando você acha que ela é uma total cabeça-de-vento, ela diz alguma coisa que faz você pensar uma segunda vez.

Eles entraram numa parte da trilha que ainda não tinha sido arrumada. Nell tremeu um pouco, com a escuridão ao redor.

— Eu ficarei feliz quando arrumarem este trecho do caminho. É tão escuro e denso que dá quase para imaginar que há feras por aqui.

Julian beijou a mão dela.

— Devo ordenar que a vegetação seja cortada ime­diatamente. Será uma de minhas contribuições para agilizar a mudança de Diana de nossa casa.

— Você não gosta de tê-la em Wyndham Hall?

— Na verdade, não. Eu, como você, gosto de minha madrasta, e principalmente de Elizabeth. Sempre cuida­rei delas. Mas acho que, para o bem de todos, é importan­te que ela tenha sua própria casa. — Ele sorriu. — Mas eu tenho coisas mais importantes e mais agradáveis para fazer.

— Muito bem dito, milorde — Nell concordou, com um sorriso endiabrado.

— Foi o que eu pensei — ele murmurou, bem-humorado.

Completamente em harmonia, eles continuaram a caminhar. Julian contou-lhe sobre a lista que havia fei­to, e eles discutiram os diferentes métodos com os quais Julian poderia ganhar acesso às várias masmorras.

— Eu ainda acho que devo ir com você-— argumentou Nell. — Eu sei exatamente o que procurar, e você não.

— Já vai ser complicado investigar todos esses luga­res sem ter que explicar por que você está comigo. Além disso, não quero que o homem em questão suspeite que você pode estar envolvida.

— De alguma maneira eu terei de ver a masmorra, e você sabe disso.

— Sim, depois que eu eliminar todas as que puder, cer­tamente você poderá ver as que restaram com as carac­terísticas de seus pesadelos. Mas até lá, você vai ficar quietinha e segura em Wyndham Hall, entendeu? Não quero que você e o bebê corram nenhum perigo.

Nesse momento, eles viram John Hunter, montado num formoso cavalo e acompanhado por uma matilha de cães de caça, se aproximando pela trilha. Para surpresa de Julian, Marcus estava com ele, montado num garanhão preto.

Nell não tinha inclinação para ficar nervosa por qual­quer coisa, mas a visão daqueles dois homens grandes, altos e morenos, tão semelhantes na aparência, cavalgan­do na direção dela, acompanhados daqueles cachorros, fez com que ela apertasse o braço de Julian. Ela olhou para o enorme mastim que liderava a matilha e desejou estar montada em seu próprio cavalo.

Quando estavam mais próximos, Julian exclamou:

— Marcus! O que você está fazendo aqui? Que surpre­sa agradável, eu pensei que não o veria aqui por meses.

Marcus fez o cavalo parar e desmontou, curvando-se numa mesura diante de Nell.

— Mas isso foi antes da novidade de que nossa famí­lia está crescendo. Felicitações, cara prima. Espero que tudo esteja bem com você e o herdeiro.

— Por que todo mundo presume que vou ter um meni­no? Pode muito bem ser uma menina, não? — perguntou ela com um sorriso.

— É possível — concordou Marcus. — Mas existe uma forte tendência na família Wyndham para os primogênitos serem do sexo masculino.

John Hunter também desmontou e se aproximou do grupo.

— Sinto interrompê-lo, milorde, mas posso ter uma conversa em particular com o senhor? — perguntou.

— É claro que sim — respondeu Julian. — Permita-me apenas escoltar minha esposa de volta para casa e acomodar meu primo, e poderemos nos encontrar em meu escritório daqui a meia hora.

Hunter pareceu que ia protestar, mas seu olhar recaiu sobre Nell e ele aparentemente mudou de idéia. Voltou a olhar para Julian.

— Pois não, milorde. Estarei lá em meia hora.

A resposta dele soou mais como uma ameaça do que uma confirmação. Ele tornou a montar em seu cavalo e se afastou, seguido pelos obedientes cães.

— Ele estava se preparando para vir procurá-lo quan­do eu cheguei — comentou Marcus. — Ele pareceu ficar preocupado ao saber que você não estava em casa. Insistiu que tinha de achá-lo logo. Eu fiquei curioso, mas ele não revelou nada para mim.

— Suponho que você gostaria de estar presente à nossa reunião.

— Achei que você não me convidaria — retrucou Marcus, sorrindo.

— Sobre o que acha que ele quer falar com você? — indagou Nell.

Julian olhou para ela.

— Não faço idéia. Algum assunto sem importância, tenho certeza.

— Sim, também acho — concordou Marcus, segurando o outro braço de Nell e com a outra mão puxando a rédea de sua montaria. — Hunter leva suas obrigações muito a sério, sempre foi assim. Aposto que vamos descobrir que não é nada mais além de furtos de lebres ou perdizes, o que é uma ofensa, no modo de ver de Hunter.

Mas Hunter estava estranhamente contrafeito e relu­tante em explicar exatamente o que tinha acontecido quando eles chegaram na biblioteca, precisamente vin­te minutos mais tarde. Marcus estava sentado em uma cadeira perto do fogo, e Julian sentado atrás de sua escri­vaninha. Julian pediu que Hunter se sentasse, mas o homem recusou.

Parado diante de Julian, ele mal conseguia controlar sua impaciência.

— Já perdemos tempo demais, milorde. O senhor deve vir comigo imediatamente e ver com seus próprios olhos. — Ele lançou um olhar nada amigável para Marcus. — E ele também.

— É outro abate sanguinário? — perguntou Julian, apreensivo.

— Pior, milorde. Estava claro que ele não daria mais detalhes, e tão irritado quanto curioso e inquieto, Julian pediu que trouxes­sem seu cavalo, e um outro para seu primo, até a frente da casa.

Hunter, Julian e Marcus seguiram rapidamente pela estrada que levava à floresta. Quando Hunter finalmen­te parou seu cavalo, eles se viram numa parte da floresta que Julian raramente visitava.

Os três homens desmontaram, amarraram os cavalos em uma árvore, e Hunter caminhou à frente de Julian e Marcus até uma pequena clareira. Parando ao lado de Hunter, Julian prendeu a respiração e empalideceu quando seu olhar caiu sobre o que estava no centro da clareira.

— Santo Deus! Que tipo de animal faria isso?

Mas ele sabia. E o mais impressionante era que ele sabia que estava olhando para os restos da mulher que Nell tinha visto ser morta no pesadelo daquela noite.

Sentiu a bile subir-lhe à garganta, ao imaginar o que ela tivera de presenciar no sonho.

Os olhos de Marcus congelaram de horror sobre o cor­po da mulher morta, e ele também quase colocou para fora o pernil e a cerveja que tão prazerosamente saboreara numa parada na estrada, algumas horas atrás.

— Eu avisei, milorde — disse Hunter, com uma satis­fação sombria na voz. — Eu avisei que se senhor não tomasse uma providência, algo terrível aconteceria. — Eu não me lembro de você ter dito que uma mulher poderia ser esquartejada se eu não permitisse que você espalhasse armadilhas pela propriedade e soltasse seus cães ferozes em cima dos invasores — retrucou Julian, ríspido. — Isto é uma coisa que ninguém poderia prever. Isto é obra de um louco.

Nem Julian nem Marcus estavam dispostos a se apro­ximar do corpo, mas mesmo assim eles o fizeram. O que sobrara estava tão despedaçado e mutilado que era difí­cil dizer a quem pertencia, a não ser que se tratava de uma mulher e que ela que tinha sido torturada ao extremo antes de morrer.

O assassino simplesmente jogara o corpo nu ali na flo­resta, não havia nenhuma indicação de como ele chegara ali, nem de por onde fora embora. O rosto da pobre estava tão deformado que nenhum dos três homens soube dizer se a conhecia ou não, pois era impossível identificá-la.

Como Hunter era especialista em ler os sinais e as trilhas da floresta, Marcus e Julian o seguiram enquan­to ele inspecionava a área. Ele investigou cada canto e recanto minuciosamente, durante o que pareceu horas, até que encontrou pegadas de ferraduras junto a uma árvore, onde certamente o assassino amarrara seu cavalo para carregar o corpo até a clareira, onde ele poderia ser encontrado.

Cansados e desanimados, os três percorreram o cami­nho de volta para onde estava o corpo. O impacto inicial do horror havia passado, e Julian olhou para a pobre mulher, compadecido pelo que ela tinha sofrido. Em seguida a raiva o sufocou, e ele se virou para Hunter.

— Chame o oficial de justiça e o magistrado, e reúna seus melhores cães — ele ordenou. — Depois avi­se todos em casa sobre nossa demora. Diga a eles que estamos caçando um cervo raro. — Ele dirigiu um olhar severo para Hunter. — Não diga nenhuma palavra a nin­guém. Meu primo e eu ficaremos esperando aqui até que você volte. — Ele olhou de volta para o corpo. — E traga alguma coisa para cobri-la. É o mínimo que ela merece.

Era bem tarde quando Julian e Marcus finalmente retornaram para a mansão. O juiz e o magistrado ficaram muito abalados com a visão da jovem morta de manei­ra tão perversa, e ainda por cima nas terras do conde de Wyndham. Após jurarem silêncio, Julian e os outros dei­xaram o oficial lidar com a remoção do corpo. Com o magistrado, Julian, Marcus e Hunter reuniram seus cava­los e foram até onde a montaria do assassino tinha sido amarrada. Os cães de Hunter foram soltos e a caçada pelo assassino começou.

Eles continuaram depois do pôr do sol, apesar de o vento estar aumentando e do cheiro de chuva no ar, mas a noite finalmente chegou, e com a piora do tempo, eles perderam o rastro perto do rio que atravessava as ter­ras de Julian e não tiveram escolha senão interromper a caçada.

Desanimados, retornaram com seus cavalos para casa. Ficou combinado que guardariam segredo do ocorri­do, pelo menos da maneira como a mulher fora morta. Que uma jovem havia sido morta não seria segredo, mas ninguém mais precisava saber como ela tinha morrido.

Deixando os cavalos no estábulo, Julian e Marcus andaram silenciosamente para a casa. Ao entrarem, foram recebidos por Dibble.

— Milady pediu que eu preparasse um bufê de frios e saladas para os senhores. Ela imaginou que talvez chegassem tarde. A refeição está servida no escritório. Como foi a caçada? O senhor matou o cervo?

— Não. O danado conseguiu nos enganar — res­pondeu Julian, dispensando o mordomo. — Boa noite, Dibble, não precisaremos mais de seus serviços.

No escritório, os dois tiraram os casacos, afrouxaram as gravatas e removeram as botas.

Marcus sentou-se, recostou a cabeça na poltrona e suspirou.

— Isso não é nada bom, Julian.

Julian serviu dois cálices de conhaque e entregou um a Marcus, depois sentou-se na outra poltrona e esticou as pernas na direção do fogo.

— Eu concordo, e não sei o que vou fazer a respeito. Mais uma vez, Julian viu-se encurralado. Esconder informações de Marcus poderia ser perigoso, mas ele não podia dizer nada a respeito dos pesadelos de Nell, ou o que eles revelavam. Ele confiava no primo, e Nell tinha permitido que ele contasse sobre as circunstâncias do casamento deles e sobre Tynedale.

Para ele, que a amava, já fora difícil acreditar no que ela havia lhe contado, imagine para Marcus, que mal a conhecia, acreditar que ela via em sonhos assassinatos reais sendo cometidos...

— E então, o que você vai fazer? — perguntou Marcus, olhando para seu copo contra o fogo. — Como vamos encontrar esse monstro? Por onde vamos começar? Você percebeu que ele deixou de matar animais e passou a matar seres humanos?

— Eu não acredito que ele tenha simplesmente come­çado a matar pessoas. Eu acho que ele já vem fazendo isso há algum tempo, e a pobre mulher que vimos hoje não foi a primeira vítima. A morte do cervo foi mera­mente um maneira de descarregar sua fúria. Talvez ele estivesse procurando uma vítima humana e, não encon­trando, despejou sua crueldade no primeiro ser vivo que apareceu à sua frente.

— Você pode estar certo. Isso está além do meu conhe­cimento. Nunca lidei com algo assim. Deve ter sido obra de um homem louco.

— Concordo. Mas encontrá-lo e detê-lo é que é o grande problema.

Tendo terminado seu drinque, Julian levantou-se, serviu-se de outra dose e sentou-se novamente.

— Ele deve ter algum lugar onde pratica essas barba­ridades. Um lugar privado, onde ele pode cometer seus atos vis, um local onde ninguém possa ouvir os gritos das vítimas. Um lugar secreto e escondido, que ninguém possa encontrar por acaso.

— Sim. E isso nos leva a uma conclusão: esse não é o trabalho de um camponês que mora numa choupana de um cômodo só. É um homem de posses, que tem um lugar onde mata suas vítimas, ou que tem acesso irrestrito a um lugar onde sabe que não será interrompido. Ele tam­bém é livre para ir e vir quando lhe convém, sem que ninguém questione seus movimentos.

— O que significa que ele pode muito bem ser alguém como nós, um cavalheiro, com posses ou com um trabalho que permite com que se locomova livremente — obser­vou Julian.

— Meu Deus! Você percebe o que está dizendo? — Marcus ergueu as sobrancelhas. — Se você continuar com esse raciocínio, nós podemos acabar chegando à conclu­são de que o dr. Coleman, ou até mesmo John Hunter é o assassino. Ou o vigário, ou o juiz...

— Você está absolutamente correto. E não é interes­sante que todos esses que você citou, com exceção, talvez, do vigário, possuem casas construídas sobre masmorras de antigos castelos?

Marcus olhou para Julian como se este tivesse enlou­quecido. O silêncio na sala era rompido somente pelo crepitar do fogo na lareira enquanto Marcus fitava as labaredas com olhar distante. Por fim, tomou mais um gole de conhaque e olhou para Julian.

— Parece que você andou pensando um bocado sobre isso — comentou.

— De fato, sim, tenho pensado bastante. O que você acha de amanhã nós começarmos a vasculhar a área, procurando pelas masmorras?

— Digamos que eu concorde com você, como faremos isso sem levantar suspeitas?

Julian pensou por um momento.

— Não havia uma masmorra embaixo de Sherbrook Hall?

— Na qual eu dei fim há anos. Não se atreva, nem por um momento, a me considerar suspeito de ser o assassino — falou Marcus seriamente.

— Não é nada disso. Eu estava pensando que você poderia querer, quem sabe, restaurar suas masmorras. E para isso, você precisaria de informações para fazê-lo corretamente, entende? Seria natural você querer ver como algumas delas foram construídas, para compará-las com a sua.

— Você deve estar bêbado.

— Não. Um pouco embriagado, talvez, com o estôma­go vazio, sabe como é... Mas acho que minha idéia pode dar certo.

— Bêbado e louco — resmungou Marcus.

— Pode ser, mas isso não quer dizer que minha idéia não funcione — insistiu Julian. Ele se levantou e cam­baleou de leve. — Vou me deitar. Fique à vontade para comer, eu estou sem fome. — Ele sorriu como um anjo para o primo. — Temos masmorras para explorar ama­nhã. Cedo.

 

Nell jogou-se sobre Julian no momento que ele entrou no quarto. Apesar da intimidade e do fato estarem casa­dos havia quatro meses, era a primeira vez que ela se aventurava no quarto dele. Nunca lhe fora negado o acesso, mas até aquele momento não houvera uma razão para entrar ali.

Ficou esperando, andando de um lado para o outro, seus pensamentos em Julian e no comportamento estra­nho de John Hunter. Nell estava convencida de uma coisa: Julian não fora caçar nenhum cervo. De algu­ma maneira, sentia que aquela inesperada "caçada" logo após a noite em que tivera um de seus piores pesadelos estava relacionada à morte brutal da mulher que ela vira no sonho.

Nell e Julian ainda tinham muito o que aprender um sobre o outro, mas ela o conhecia o suficiente para saber que aquilo não era um hábito dele, desaparecer de casa por horas sem avisar. Esperou que Diana e Elizabeth fossem dormir, dispensou Becky depois de vestir sua roupa de dormir e, determinada, foi para o quarto do marido esperar por ele.

Ela não ouviu quando Marcus e Julian retornaram, e sobressaltou-se ao ver o marido entrar na penumbra do quarto. Eles se olharam por um segundo, ambos surpre­sos, e então ela ficou aliviada e atravessou o quarto de encontro aos braços dele.

— Oh, graças a Deus Você está em casa! — ela excla­mou, agarrando-se a ele como se nunca fosse largá-lo. — Eu estava tão preocupada...

Era maravilhoso senti-la em seus braços. Que dife­rença, pensou Julian, entre a maneira doce como Nell o recebia e Catherine, sempre mal-humorada e indiferente. A ansiedade de Nell o tocou profundamente e ele a abraçou mais forte, saboreando senti-la contra ele.

— Você comeu alguma coisa? Eu pedi que Dibble preparasse algo para vocês.

Guiando-a para a cadeira perto do fogo, Julian sentou-se e a colocou em seu colo. Nell aninhou-se a ele.

— Eu agradeço, minha esposa, mas não estávamos com fome. O uísque preencheu nossas necessidades.

— Julian, qual foi a verdadeira razão para John Hunter vir atrás de você?...— Ela ergueu a cabeça para fitá-lo.

— E por favor, não minta para mim. Julian hesitou. Queria manter o horror daquele dia lon­ge de sua casa, especialmente de Nell, mas as palavras dela tornaram isso impossível.

— Hunter encontrou o corpo da mulher que você viu no seu pesadelo. Estava jogado em uma clareira ao norte de minhas terras.

— Não pode ser! Ele nunca deixa o corpo onde pos­sa ser encontrado. Ele sempre... — Nell parou e franziu o cenho. — Tem um buraco na masmorra, e ele sempre joga os corpos lá.

— Bem, dessa vez não. A menos que haja dois mons­tros atuando, o que eu não acredito, não duvido que seja trabalho dele. A mulher estava completamente dilacera­da e abandonada naquele lugar. Não posso provar, mas estou convencido de que é a mulher que você viu ser morta no pesadelo.

— Mas ele nunca...

— Eu sei que é difícil para você, mas tente se lem­brar do pesadelo desta noite — Julian pediu gentilmente.

— Você chegou a ver o homem colocando o corpo no buraco?

— Os sonhos sempre terminam da mesma maneira, com ele colocando os corpos naquele buraco. E ontem... — Nell fez uma pausa, com um expressão confusa no rosto. — Tem razão, eu não o vi colocar a mulher no bura­co, neste último pesadelo... O que ele fez foi tão assus­tador que eu acordei antes! — Ela estremeceu. — Mas... se a mulher que você encontrou é a mesma do meu pesa­delo, por que o assassinou mudou a maneira de agir? Julian a abraçou com mais força, trazendo-a para si.

— Não tenha dúvidas de que o corpo é o mesmo. E quanto ao porquê... Talvez alguma coisa tenha aconteci­do e ele quisesse que ela fosse encontrada. Pode ser que ele tenha superestimado o conhecimento de Hunter destas terras, e achado que o lugar que escolheu para deixar o corpo nunca seria descoberto, pelo menos por alguns meses. Ou pior, ele sabia da dedicação de Hunter pela pro­priedade, e mudando sua atitude, quis que todos soubes­sem o que ele tinha feito. Pode ser que depois de tantos anos em segredo, ele queria que encontrassem o corpo e que as pessoas vissem o que ele fez.

— Eu fico imaginando por que ele deixou o corpo nas suas terras. Como John Hunter a encontrou tão rápido?

— Você precisa entender Hunter. Estas terras são o ar que ele respira. Ele trata a propriedade como uma aman­te, é um cuidado de décadas. Ele cresceu aqui, conhece cada centímetro deste lugar. Conhece a floresta de cima a baixo, o número de raposas, cervos e lebres que existem aqui, e onde podem ser encontrados. Posso estar exage­rando, mas não há uma folha que caia sem que ele saiba. Eu não perguntei o que ele estava fazendo naquela área, mas aposto que ele tinha um bom motivo.

— E o que acontece agora?

— O magistrado e o juiz foram notificados, e o cor­po foi recolhido. Na verdade, o magistrado passou a tar­de e uma boa parte da noite tentando seguir o rastro do assassino. Nós usamos os cachorros de Hunter, mas o ras­tro desapareceu perto do rio. Nós estávamos ensopados e congelados por causa da chuva e do vento, e já estava tar­de e escuro. Estávamos todos cansados e desanimados, por isso resolvemos cancelar as buscas.

— O que acontecerá com o corpo? Você acha que ela é desta região?

Eu pedi a Coleman para examiná-la. Uma vez que ela esteja... limpa, é possível que Coleman a reconheça. Ele é o único médico da região, e se ela for daqui, ele deve conhecê-la. O magistrado, assim como o juiz, vão fazer as perguntas sobre alguma mulher desaparecida. — Julian abraçou-a novamente. — Por Deus, Nell! — ele disse com a voz trêmula. — Isso é uma maldição. É aterrorizante que você esteja tão ligada a esses crimes.

— É mais difícil para você do que para mim. Eu tenho vivido com o conhecimento desse monstro por uma década ou mais, mas você... acabou de saber sobre ele.

— E eu desejaria não ter tomado conhecimento! — Os lábios dele roçaram em sua têmpora. — Mas o que eu realmente gostaria era que você nunca ficasse sujeita ao horror dos crimes desse monstro.

— Eu também gostaria que não, mas talvez exista uma razão por trás dos pesadelos. Pelo menos, podem ser uma pista para nos ajudar a parar com esses crimes.

— Esse é o único lado positivo em tudo isso. Nell levantou-se e segurou a mão dele.

— Venha para a cama — insistiu. — Eu posso ver que você está exausto.

A luz do fogo atrás iluminou a silhueta feminina, e os olhos de Julian brilharam.

— Parece-me uma ótima idéia... principalmente se você for se deitar junto comigo...

Julian se levantou e carregou Nell até a cama.

— Eu não sei como isso foi acontecer, mas eu nunca fiz amor com você em minha cama. Preciso, corrigir essa omissão.

E ele o fez. De maneira maravilhosa e completa.

Apesar da intenção de começar seu dia bem cedo na manhã seguinte, os planos de Julian foram frustrados pelo tempo, que mudou completamente, transformando-se em uma tempestade com ventos que pareciam uivar.

Após um longo e calmo café da manhã, onde Marcus fez às mulheres todos os cumprimentos extravagantes e fez com que Elizabeth corasse mais de uma vez, ele e Julian foram para o escritório.

Nell, Diana e Elizabeth se entretiveram discutindo sobre padrões e catálogos na busca de mobília para Dower House. Depois de algumas horas, já cansada daquela conversa, Nell pediu licença e foi ao encontro do marido.

Julian e Marcus ainda estavam no escritório, e pela expressão séria de seus semblantes quando ela entrou na sala, ficou óbvio que estavam falando sobre o crime da véspera.

Os dois se levantaram imediatamente quando ela entrou, mas ela fez um gesto com a mão para que voltas­sem a se sentar, e foi, ela mesma, ocupar uma poltrona mais afastada, olhando para os dois homens com ar deter­minado.

— Perdoem-me por minha intromissão, só que é ridí­culo fazer de conta que não tenho nada a ver com o assunto. — Ao ver a expressão contrariada no rosto do marido, ela acrescentou rapidamente: — Você sabe que tenho razão, Julian, e um interesse pessoal em encontrar quem está matando essas pobres jovens: Um interesse muito maior que o de vocês.

Marcus ficou chocado. Ele olhou incrédulo para Julian.

— Você contou para ela?

— Não exatamente — Julian disse severamente. Ele estudou o rosto de Nell e suspirou. Ele tinha se casado com uma mulher forte, que não iria permitir que ele a deixasse segura numa redoma, entre sedas e assuntos femininos.

— Não exatamente? Que diabos isso significa? — perguntou Marcus, olhando de um para o outro. — O que está acontecendo?

— Você conta ou eu? — indagou Julian.

Com a ajuda de Julian, Nell começou a contar sua his­tória. Foi a crença de Julian nela que acabou convencen­do Marcus. Assim como Julian, ele se mostrou cético e descrente no princípio. Pelos olhares que ele dava ocasio­nalmente para o primo, estava claro que, por um momen­to, ele julgou que os dois estivessem loucos, mas, aos poucos, ela e Julian o convenceram.

— Não posso acreditar! Você viu John ser morto? — Marcus perguntou várias vezes. — Você viu mesmo? Nos seus pesadelos?

Com paciência, Nell confirmou e tentou não ficar irritada quando ele olhava a todo instante para Julian, como a pedir que ele confirmasse o que ela dizia.

Uma vez que Marcus aceitou a idéia de que Nell vira o assassinato de John Weston, uma década antes, ficou mais fácil para ele acreditar que os crimes que ela via em seus pesadelos eram reais, cometidos pelo mesmo homem que matara seu primo.

— E o lugar é sempre o mesmo? — indagou Marcus. — Você tem certeza disso? Não há como se enganar?

— Sim, é o mesmo. Não tenho nenhuma dúvida quan­to a isso, e também nunca vi o rosto do assassino. Mas sei que é sempre o mesmo homem.

— Você percebe, Nell, que está correndo um grande perigo? — Marcus perguntou bem devagar. — Se ele sou­ber que você o observa através de seus pesadelos, ele não se deterá diante de nada para silenciá-la... Você poderá acabar na masmorra dele.

— Isso nunca vai acontecer — declarou Julian com determinação. — Eu a manterei a salvo. — Ele olhou para Marcus. — Nós a manteremos a salvo.

Marcus concordou, e pela primeira vez não havia sinal de seu habitual sorriso.

— E a melhor maneira de fazer isso é encontrando essas malditas masmorras e o louco que as habita.

— Eu concordo, mas até o tempo melhorar, nós não podemos prosseguir — observou Julian.

Marcus olhou para Nell, com expressão especulativa.

— Você acha que conseguirá reconhecer o lugar dos seus pesadelos, se nós o encontrarmos?

Ficou óbvio para Nell e Julian que Marcus ainda não estava totalmente convencido.

— Ela reconhecerá — afirmou Julian.

Julian e Marcus estavam jogando bilhar havia horas quando Dibble veio anunciar que o dr. Coleman tinha chegado. Os dois se entreolharam, largaram os tacos e saíram da sala.

— Traga seu ponche de rum, Dibble. Nós vamos preci­sar — ordenou Julian.

Coleman aguardava no escritório, olhando para o fogo, porém a entrada de Julian e Marcus o fez voltar-se. Cumprimentos foram trocados e o ponche oferecido foi aceito com prazer. Seguiu-se uma conversa educada enquanto Dibble servia a bebida. Depois que o mordomo se foi, Julian falou:

— Conte-nos tudo o que você descobriu.

— Em todos os meus anos de medicina, nunca vi algo assim — começou Coleman. — É como se uma fera a tivesse rasgado em pedaços.

— Foi uma fera — afirmou Julian, sério. — Mesmo que em forma humana, foi uma besta quem fez isso, uma besta demoníaca.

— Eu concordo — disse Coleman. — Eu não tinha certeza da causa da morte até examinar o corpo mais detalhadamente, mas ficou claro que os ferimentos não foram causados por um animal.

— Um ponto discutível — opinou Marcus.

— Sim, de fato. — Ele bebeu outro gole de ponche. — O rosto estava irreconhecível a princípio, mas depois que lavei todo o sangue, eu a reconheci. Seu nome é... era... Ann Barnes, e ela trabalhava numa pequena hospedaria, não muito longe da costa. Eu tratei dela no ano passado quando teve catapora. Pobre menina, tinha apenas dezessete anos. Que tragédia! Ela também esta­va grávida.

Diante do olhar penetrante de Julian, ele continuou:

— Eu encontrei os restos do feto. Suspeito que não tinha mais de quatro meses de gestação.

Ficou acertado que o dr. Coleman comunicaria à família de Ann Barnes sobre sua morte. Houve alguma discussão sobre o enterro e o desejo de que a família não preci­sasse ver o corpo mutilado, e Julian pediu que o médico tomasse todas as providências.

— Eu não quero que os pais vejam o que aquele monstro fez com ela e nem causar pânico na região — explicou. — Acho melhor que o corpo seja enviado para eles num caixão selado. Claro que arcarei com todas as despesas.

— Eu devo dar a eles alguma explicação para a morte da garota — lembrou o médico.

— Diga a eles que ela caiu dos penhascos — suge­riu Marcus —, e que o conde quer poupá-los da visão dos danos que ela sofreu, causados pelo choque contra as pedras e o mar.

Julian olhou pensativo para Marcus, imaginando se seu primo percebia o quanto chegara perto do que acon­tecera com Nell dez anos antes. Isso o deixou inquieto, mas ele concordou que a explicação se encaixaria bem na situação.

— Eu escreverei ao magistrado e ao juiz imediata­mente para que eles saibam o que estamos fazendo, e que Deus ajude que eles não tenham espalhado para todo mundo o modo como ela morreu — disse em voz alta.

— Eu falei com os dois esta noite e nós concordamos que quanto menos fosse falado sobre o assunto, melhor. Você não precisa se preocupar que eles falem alguma coisa. Ninguém quer assustar a população — disse Coleman, tirando do bolso seu relógio. — Eu tenho um encontro com os dois em minha casa daqui a uma hora. Ficarei feliz em poder relatar o que foi decidido aqui.

Depois que Coleman foi embora, Julian se levantou e foi até a janela que dava para a entrada. O tempo continuava horrível, e ele não invejava o caminho que Coleman teria de percorrer de volta para sua casa.

Naquela noite, depois que todos se recolheram, Julian contou para Nell tudo o que tinha sido revelado com a visita do médico. Deitada ao lado dele na cama, Nell ouviu o que ele tinha a dizer sobre a vítima. Quando ele falou sobre o feto, a mão de Nell pousou instintivamente sobre seu ventre. Machucava pensar não apenas na morte da jovem que tinha uma vida inteira pela frente, mas também na inocente criatura que crescia dentro dela.

Julian pousou a mão sobre a dela.

— Eu sei — ele disse. — Eu pensei a mesma coisa, você e a jovem Ann dariam à luz com poucas semanas de diferença.

— Nós temos que deter esse monstro de uma vez por todas! — ela falou, com veemência. — Ele não pode continuar matando.

— Não tenha medo, nós o encontraremos e o fare­mos parar. — Houve silêncio por um momento, enquan­to ambos consideravam a difícil tarefa que tinham pela frente. Então Julian disse: — Marcus e eu vamos procurar e talvez encontremos alguma coisa que nos colocará no rastro dele.

 

O mau tempo não teve clemência por quase duas sema­nas, e como não havia urgência de Marcus voltar para casa, ele aceitou o convite de Julian para ficar em Wyndham. O clima foi cruel, chovia quase todos os dias, e quando o céu clareava e o sol começava a brilhar, a chuva caía novamente.

Na última segunda-feira de fevereiro, os moradores de Wyndham Hall saudaram a visão de um sol brilhante e um céu azul. Ao se encontrarem na mesa do café naque­la manhã, todos estavam cheios de planos e impacientes para resolver seus assuntos.

Como a chuva impedira que qualquer trabalho fos­se realizado do lado de fora de Dower House, as mulhe­res tinham decidido que a reforma interna continuaria, e Diana e Elizabeth estavam ansiosas para ver o progresso das obras.

— Às vezes imagino se minha casa se tornará habitável, parece que sempre há um atraso ou outro.

As reclamações de Diana faziam sentido, pensou Julian. Apesar do tempo sobre o qual ninguém tinha con­trole, houvera outros atrasos. Ele não havia prestado mui­ta atenção às queixas de Diana, que eram sempre sobre detalhes insignificantes. Ele se lembrou de que alguns tecidos haviam sumido, bem como um tapete. Uma pala­vrinha com o carpinteiro-chefe não seria fora de propósi­to, ele decidiu, enquanto se levantavam da mesa.

Diana e Elizabeth se despediram e foram para Dower House. Enquanto isso, Julian e Marcus pegaram seus cavalos no estábulo. Seus planos incluíam uma visita ao juiz Chadbourne e a esperança de que ele lhes mostrasse as masmorras no subterrâneo de sua casa.

Virando-se para despedir-se de Nell, Julian franziu o cenho.

— Eu não gosto de deixar você sozinha.

— Não estarei sozinha — respondeu ela. — Como eu poderia, com a casa cheia de empregados? Além do mais, você não iria gostar se eu pedisse para ir com você.

Uma expressão de culpa passou pelo rosto de Julian, e isso a fez sorrir, porém foi o rosto horrorizado de Marcus que a fez explodir numa gargalhada.

— Vão — ela falou para os dois. — Não se preocupem comigo, encontrarei alguma coisa para me ocupar. Vou aproveitar um agradável dia sozinha.

Nell não estava mentindo. Apesar de o solo estar encharcado, ela queria andar pelos jardins e talvez ir até os estábulos. Depois de duas semanas dentro de casa, estava ansiosa para caminhar um pouco sob o sol.

Passou a mão pelo ventre, pensando em como estava feliz. Ela adorava o marido, um homem bom e generoso... E o filho deles iria nascer no verão.

A única coisa que ofuscava um pouco sua felicida­de era o fantasma de Catherine. Ela tentou acabar com o hábito de ir até a galeria, mas como Julian mantinha a tradição de colocar flores sob o retrato da falecida, ela resolveu continuar com suas visitas.

Sentindo-se triste, andou de volta para casa, refletin­do que deveria ter ido a Dower House com Diana, quan­do de repente avistou uma nuvem de fumaça negra sobre as árvores, na direção de Dower House.

Levou um segundo para ela entender que havia um incêndio na casa de Diana. Ela correu até a mansão e deu o alarme para os criados, que correram para ajudar a apagar o fogo.

No meio da confusão, ela viu Charles, que veio para tirá-la dali e pô-la a salvo ao lado de sua madrasta e Diana. Nell notou que Raoul fazia o mesmo com Elizabeth.

No entanto, mesmo com todos os esforços, o fogo venceu, e uma grande parte da casa foi destruída. Agora só restava procurar pelo culpado. Charles e Raoul con­versavam com o mestre de obras, dizendo que Julian faria perguntas e falaria com os trabalhadores.

— Sim, estou certa disso — comentou Sofia Weston. — Meu sobrinho não gosta de ser feito de tolo. Eu não gostaria de estar no lugar desses trabalhadores.

Alguns dias depois, em seu quarto, Nell andava de um lado para o outro, inquieta. Havia várias pequenas tare­fas a serem feitas, mas ela não estava com disposição para fazê-las. Distraída, com a mão sobre o ventre onde seu filho crescia, ela ficou em pé, olhando pelas janelas, pen­sando em Julian e no relacionamento de ambos. Seu rosto ficou corado ao se lembrar da maneira como ele fize­ra amor com ela na noite anterior. Ele deve se importar comigo, pensou pela milésima vez, e deve ser mais do que respeito e carinho o que ele sente por mim. Não pode ser apenas bondade ou luxuria que o trás para mim... Será que ela podia esperar que o domínio de Catherine sobre ele tivesse enfraquecido? Ou era por causa do bebê que ele estava tão sensibilizado? Será que ele apenas a valorizava apenas como um recipiente que gerava seu filho?

O coração de Nell se encolheu no peito. O que será que Catherine tinha e ela não, para que ele fosse tão apai­xonado pela primeira mulher, mesmo depois da morte, e por ela sentisse apenas respeito e consideração? Não que ela não valorizasse esses sentimentos, mas queria que ele a amasse, como ela o amava...

Nell cerrou os dentes, atravessou o quarto, saiu para o corredor e, sorrateiramente, foi para a galeria. Não que­ria que ninguém a visse parada olhando para o retrato da primeira esposa de Julian.

Mas alguém notou seu ar furtivo enquanto ela se encaminhava para a galeria. Intrigado, Marcus a seguiu discretamente.

Chegando ao seu destino, Nell parou diante do retra­to de Catherine. Por um segundo, seu olhar pousou sobre o vaso com enormes rosas vermelhas abaixo do quadro. Ela olhou para o retrato, como sempre, impressiona­da com a beleza de Catherine. Era daquela imagem que Julian devia se lembrar todos os dias, venerar em silên­cio, uma beleza angelical que nem de longe se compara­va à sua.

Com raiva, Nell levou a mão ao vaso de cristal e jogou-o ao chão. Vidro quebrado, água e flores se espalharam por toda parte. Sem se importar com a destruição que tinha causado, saiu da galeria. E dessa vez não ficou nem mesmo envergonhada pelo que havia feito.

Escondido nas sombras, Marcus assistira à cena. Depois que Nell saiu, ele deixou seu esconderijo e foi até o retrato de Catherine. Olhou para o retrato por alguns minutos, depois para as flores e o vaso quebrado no chão, e de volta para o belo rosto no quadro, por um longo tempo.

O que, minha linda vadiazinha, você está aprontando agora?- ele pensou.

 

                                                 Capítulo V

Em uma manhã de março, Nell suspirava diante da janela ao observar a garoa fina. A chuva já não era tão constante como havia sido no mês de fevereiro, mas tam­bém era raro que houvesse dois dias de sol seguidos.

Desviando o olhar da janela, considerou os planos para aquele dia. Diana e Elizabeth teriam muito o que fazer em Dower House. Julian e Marcus estariam, sem dúvi­da, caçando, ou entretidos em alguma outra atividade ao ar livre. Sorriu ao acariciar o ventre. Pretendia desfru­tar aqueles momentos, já que seriam raros depois que o bebê nascesse.

— Então o que farei hoje? Juntar-me às outras mulhe­res? Fazer um inventário das despensas? Costurar? Contar a prataria com Dibble? Ler? Incomodar os criados? — pensou em voz alta.

Sem decidir, deixou o olhar perder-se na paisagem. Adoraria poder cavalgar, mesmo num dia como aquele. Já estava cansada do inverno.

Embora estivesse aborrecida de ficar trancada den­tro de casa, contava ao menos com o conforto de pelo menos não ter tido mais pesadelos. Ann Barnes havia sido enterrada e a família chorava sua morte. Os morado­res da região aceitaram a história da queda dos penhascos e, apesar de lamentarem o triste e desnecessário infortú­nio, não havia muito mais o que se falar a respeito.

A chegada do correio naquela tarde ajudou a piorar seu estado de espírito. O pai tinha escrito avisando que sua visita seria adiada, pois havia caído do cavalo e que­brado uma perna. A recuperação só se daria no início do verão. Nell tentou não ficar desapontada com o adiamen­to da vinda do pai a Wyndham Hall, mas a decepção era evidente em seu semblante.

Sentia falta de sua família. Sorriu ao lembrar-se de como gostava de Diana, Elizabeth e Marcus. Além de ser um grande amigo, Marcus era também uma boa com­panhia. Quanto a Julian, amava-o mais do que a própria vida e se não fosse pela presença de Catherine no coração dele, estaria tudo perfeito.

Que criatura covarde que havia se tornado! Quase não ousava falar com o marido sobre a esposa falecida. Havia chegado ao ponto de não se importar por não ser amada, mas ansiava que ele ao menos parasse de amar Catherine.

Sempre que esses pensamentos a acometiam, Nell saía do quarto e ia para a galeria. Ao chegar ali, olhou tris­te para último buquê de rosas, incapaz de sentir a raiva que a abalara semanas atrás.

Desde o dia do vaso quebrado, Marcus tentava se deci­dir se a visita de Nell à galeria, para visitar o quadro de Catherine, tinha sido por acaso, ou se ela fazia daquilo um hábito. Espiando-a discretamente, descobriu que de fato aquilo era uma rotina nada saudável. Seu primeiro pensamento foi contar a Julian sobre aquela estranha obsessão, mas hesitou. Afinal, interferir no relaciona­mento de um casal não era uma atitude de uma pessoa de bom-senso. Assim, resolveu observar e esperar, com esperança de ter alguma inspiração que o ajudasse na tomada de decisão. O que não aconteceu.

Por fim, ao observar Nell desaparecer no corredor escuro, decidiu que não podia mais esperar. Alguma coi­sa precisava ser feita. Havia algo errado naquela situação, e Julian seria o único capaz de colocar um ponto-final. Foi quando lhe ocorreu que talvez Julian não soubesse do fascínio de Nell por sua primeira esposa. Olhando o arranjo de rosas frescas, imaginou por que razão Julian se preocupava em enfeitar o retrato da primeira mulher com flores frescas, sendo que essa mesma mulher estava morta e enterrada e fizera da vida dele um inferno...

Naquela noite, depois que as damas tinham se retira­do da sala de jantar, deixando os cavalheiros tomando vinho do Porto, Marcus não conseguiu mais se conter.

Tendo decidido que não havia uma maneira fácil de abordar o assunto, Marcus perguntou abruptamente:

— Não quero me intrometer em sua vida, mas será que poderia me explicar por que todos os dias você coloca um buquê de flores frescas diante do retrato de Catherine?

— Mas de que diabos você está falando? — Julian estremeceu como se tivesse sido esfaqueado.

— Não é você quem põe as flores lá, ou manda pôr?

— Essa é a primeira vez que ouço falar a esse respeito — revelou Julian. — Meu Deus! Ela está morta há anos, por que eu ainda estaria fazendo algo tão inusitado?

— Culpa, talvez? Ou porque você ainda se importa com ela? Honrando sua memória?

Marcus nunca antes tivera medo de Julian, porém ins­tintivamente segurou-se com força nos braços da cadei­ra, quando o primo, com o rosto contraído pela raiva, avançou em sua direção.

— Você bem sabe que, quando Catherine morreu, não tínhamos nada que honrar um para o outro. — Julian pegou um candelabro e saiu pisando duro. Marcus o seguiu à galeria.

Lá chegando, dirigiu-se para o retrato de Catherine. Sem acreditar, viu as rosas, botões que tinham acabado de abrir, perfumando o ar.

Soltando uma imprecação abafada, encontrou uma cor­da preta e a puxou com força suficiente para arrancar a cortina e o quadro da parede.

— Eu nunca mandei pôr aqui essas malditas flores, mas pretendo descobrir quem o fez! — vociferou.

Dibble apareceu alguns minutos depois, com a preocupação estampada no rosto.

— Milorde, há alguma coisa errada?

— Você poderia, por favor, explicar isto?! — pergun­tou Julian, apontando para as flores.

— É um ramalhete de rosas embaixo do retrato de lady Catherine.

— Eu sei disso. Mas quem mandou colocá-las aí? — inquiriu Julian.

— Foi milorde. E garanto que as flores são frescas, todo dia peço para que sejam substituídas.

— Estranho, pois não me lembro de ter feito tal soli­citação.

— Perdão, milorde, foi seu pai quem ordenou. — O criado sorriu afetuosamente. — Ele veio até mim um dia depois que lady Catherine foi enterrada e disse que o senhor gostaria que ela recebesse flores frescas todos os dias.

Quando Julian o encarou com surpresa, seu sorriso desapareceu.

— Fiz algo errado, milorde? Eu deveria tê-lo con­sultado depois que lorde Wyndham faleceu. No entanto, presumi... — Dibble deu uma tossidela para encobrir o mal-estar. — Achei que o senhor avisaria caso não quises­se mais flores à frente do quadro. Cometi algum erro?

Consciente de que a culpa não tinha sido do mordomo, Julian abrandou o humor.

— Não, você não cometeu, o erro foi meu. Na ver­dade, eu deveria ter cancelado essas ordens há mui­to tempo. Mas nunca me ocorreu que você continuava a cumpri-las.

— Deseja que eu pare de trazer as flores, meu senhor?

— Sim. Nada mais de flores para lady Catherine. Leve esse buquê daqui e jogue-o fora.

Dibble obedeceu e saiu em silêncio, deixando os dois homens sozinhos.

— Você acreditou nessa história? — perguntou Marcus.

— O que você acha? É claro que eu não sabia, se sou­besse teria retirado a ordem imediatamente. — Julian balançou a cabeça. — Meu pai nunca viu um defeito em Catherine. Recusava-se a enxergar problemas no meu casamento. Por me desejar feliz, ele simplesmente igno­rava qualquer coisa que fosse contra suas crenças. No entanto, eu também nunca o desiludi, deixei que pensas­se que ela e eu nos adorávamos. Tenho certeza de que ele foi para o túmulo acreditando que uma parte minha havia morrido com Catherine.

— Você acha que ele deve ter dito algo assim para lady Diana?

— Tenho certeza de que ele contou a ela esse conto de fadas de meu amor imortal por Catherine. Por quê?

— Acredito que sua esposa pense a mesma coisa — conjecturou Marcus.

— Não diga bobagens! Duvido que além de um bre­ve passeio ela tenha vindo até aqui, ou mesmo visto o retrato de Catherine. Não seja ridículo!

— É aí que você se engana. Sua esposa sabe exata­mente onde o retrato está pendurado. Eu a vi observando-o mais de uma vez.

— E por que diabos ela faria isso?

— Imagino que lady Diana e Elizabeth devem ter mostrado a ela a galeria, e que pararam para admirar o retrato e lamentar a trágica morte de lady Catherine...

Julian ficou pálido.

— Sem dúvida, uma das duas repetiu o conto de fadas de meu pai... — Ele engoliu com dificuldade e cerrou as mãos em punhos. — E as malditas flores foram o crédi­to necessário para fechar a história.

— Vamos até a biblioteca. Quero contar a você o que tenho observado.

 

Nell estava deitada na cama, olhando para alguns desenhos que haviam chegado de sua modista de Londres, quando a porta do quarto foi aberta violenta­mente. O ruído da madeira contra a parede assemelhara-se a um trovão. Ela se sentou quando Julian entrou no quarto, pálido e trêmulo. Andando a passos largos até ela, segurou-a pelos braços e a puxou para si.

— Sua pequena grande tola! Não é possível que acre­dite no meu amor por Catherine. Principalmente por­que quando apenas com o som de sua voz me tira o ar de tanta alegria! Até você entrar na minha vida, pensei que não me faltasse mais nada. Só Deus sabe como eu estava enganado. — Os lábios dele roçaram as sobrancelhas dela. — Nell, querida, eu te amo... Você é tudo para mim!

— Você não ama Catherine? — ela perguntou aflita, os dedos segurando firmemente as lapelas do casaco de Julian. — Mas todo mundo diz que sim...

— Eu não sei quem é todo mundo, mas acredite, minha querida, estão todos errados. Não amo, e nunca amei Catherine.

— Mas então, por que os buquês diários sob o quadro dela?

— Houve uma falha de comunicação. Daqui para a frente não encontrara mais nenhum vaso ali.

Nell mal acreditava no que estava ouvindo. De repente recuperou o brilho no olhar.

— Você me ama?

— Eu adoro você! Não me lembro do exato momen­to em que me apaixonei, mas você fez do meu coração a sua moradia desde o dia em que nos conhecemos. — Ele a segurou pelos ombros. — Como você pôde pensar que eu ainda amava Catherine? A maneira como fiz amor com você e meu prazer em sua companhia não lhe disse­ram nada?

Nell repousou a cabeça contra o peito forte.

— Eu pensei apenas que você quisesse fazer o melhor para o nosso casamento e que você estivesse apenas sen­do bondoso...

Julian sentou-se bem próximo a ela.

— Que boba você tem sido... Será que ainda não se convenceu de que é a melhor coisa que me aconteceu na vida?

— Não é apenas atração, ou desejo? — Nell quis saber, exibindo um pequeno sorriso no canto da boca. Sentia-se zonza de felicidade.

Ele ama a mim, e não a Catherine...

— Claro que eu desejo você, minha esposa, mas tam­bém adoro você! — Ele a puxou para junto de seu peito e cobriu-lhe os lábios com um beijo afetuoso, um carinho que revelava o quão profundas eram suas emoções.

Quando se separaram, Nell estava encantada e reparou no brilho provocador dos olhos de Julian.

— E você não tem nada a me dizer? Entreguei meu coração a você, espero que não o rejeite.

Nell deu uma risada encantadora e cobriu-lhe o rosto de beijos.

— Eu te amo! Estou louca de amor por você há meses!

O que Julian poderia fazer depois daquelas palavras senão beijá-la novamente?

E por longos minutos ficaram ali, escondidos do mun­do, em uma esfera própria cheia de palavras e gestos que só os amantes conhecem. Naquele espaço mágico, todas as dúvidas, medos e incertezas foram apagados. Não havia lugar para nada que não fosse a felicidade.

— Não consigo deixar de pensar que você tenha acreditado no meu amor por Catherine.

— O que mais eu poderia pensar? Toda vez que eu a mencionava, você ficava frio e se recusava a falar no assunto. E Diana confirmou que você a amava e que seu coração havia sido enterrado junto com Catherine.

Julian blasfemou baixinho e deixou claro o que pensa­va da opinião daquela versão da história. Nell o beliscou.

— E quanto às flores? Você concorda que quem não soubesse da história do seu pai acreditaria no seu amor por ela?

Ele virou a cabeça e sorriu preguiçosamente.

— Só uma tolinha como minha esposa querida. Qualquer um com bom-senso saberia que eu estava louco por você.

— É mesmo? — A emoção a fez corar.

— Completamente embriagado... Profunda e totalmen­te cativado por você. — Julian segurou-lhe o rosto com as duas mãos e a beijou. — Eu amarei você até o fim da minha vida. Nunca duvide disso, Nell, nunca.

 

Ficou claro para todos na mansão que algo muito importante havia acontecido na noite anterior. A mudan­ça não se dera no comportamento de Nell ou Julian, mas sim na aura que os envolvia. Havia uma leveza de espí­rito, uma alegria silenciosa que os acompanhava e enchia a casa como um perfume semelhante aos lírios na primavera.

A noite, as damas se reuniram na sala de estar. Marcus e Julian estavam mais uma vez apreciando um cálice de vinho do Porto antes de se juntarem a elas.

— Estou enganado ou o perfume da estação está mais evidente? Imagino que você e sua esposa estejam muito bem. — Marcus ergueu o cálice em um brinde ao primo.

Julian tocou o cálice de Marcus com um sorriso dife­rente nos lábios, evidenciando a alegria que vinha de sua alma.

— Pode-se dizer que sim. Nós nos amamos com a mesma intensidade.

— A, felicidade merece outro brinde. — Marcus ergueu o cálice mais uma vez.

O clima chuvoso e cinzento continuou quase que por todo o mês de março. O sol se fazia presente apenas quando seus raios atravessavam as nuvens espessas.

Naqueles dias não havia nada para se fazer a não ser especular sobre o assassino misterioso e observar a chuva caindo sobre a relva.

— Talvez eu deva ir para casa — comunicou Marcus a Julian certa noite. — Não há muito que fazer por aqui.

— Você me deixaria à mercê de uma casa cheia de mulheres? — indagou Julian.

— Mulheres que o adoram, além de imaginar que o mundo gira ao seu redor.

— É por isso mesmo você deve ficar. Imagine como ficarei insuportável sem você para me lembrar que sou um simples humano.

Marcus riu e não houve mais discussão sobre sua partida.

Abril chegou com a promessa da primavera, trazen­do esperanças de que o inverno tivesse acabado de fato.

Os dias de céu azul eram mais freqüentes, os pássaros já haviam deixados seus ninhos e passavam em revoadas pela casa. Ao final da segunda semana do mês, os habitantes da man­são dispersaram em direções distintas. Diana e Elizabeth foram para Dower House, e Julian e Marcus decidiram eliminar o velho mosteiro da sua lista de possibilidades. Decidindo que não havia perigo nessa tarefa, Julian con­vidou Nell para acompanhá-los. Um convite que foi acei­to de pronto, não dando a ele uma segunda chance para pensar. O dia estava bonito, e embora a exploração das ruínas do mosteiro não tivesse revelado nenhuma masmorra, o tempo gasto fora agradável.

Retornando para casa, Nell descobriu que a sra. Weston havia mandado um convite para um jantar em Stonegate na semana seguinte. Embora os ânimos estives­sem melhor entre Julian e Weston, a constante presença de Tynedale criava problemas.

Nell encontrou o marido na biblioteca lendo um bilhe­te. Preocupou-se ao notá-lo com o cenho franzido. Ao levantar os olhos e vê-la, a expressão de Julian se trans­formou. Seus Olhos adquiriram um brilho intenso.

— A sra. Weston dará uma festa. A vizinhança intei­ra está sendo convidada e eu odeio recusar, mas se Tynedale estiver lá... — Ela acenou com o convite.

— E certamente estará — Julian respondeu, apontan­do para o recado em sua mão. — Charles me escreveu, avisando.

— E por quê? Você acha que Charles sabe da participa­ção de Tynedale no nosso casamento?

— Não, é por causa da participação de Tynedale na morte de Daniel que ele está me avisando. Ele sabe como me sinto a respeito.

— Ele também não tem raiva de Tynedale? — Nell perguntou, curiosa. — Ele devia gostar muito de Daniel...

— Não tenho dúvidas dos sentimentos de Charles em relação a Daniel. Ele mesmo me disse que gostava mui­to do sobrinho e que também se culpava pelo aconteci­do. Pedi a Charles que explicasse a razão da intolerância por Tynedale, mas ele não me disse. Charles deve ter suas razões para ser amigo desse sujeito, mas eu não faço idéia de quais sejam.

— Então o que devemos fazer a respeito do convite?

— Não se preocupe com isso. Haverá outras festas sem Tynedale para estragar nossa diversão. — Julian saiu de trás de sua mesa e a abraçou, distribuindo beijos suaves sobre a pele alva.

— E se eu aceitasse o convite?

— Por quê? — Ele mostrou-se surpreso.

— Para provar a Tynedale que seu poder sobre nós é nulo. — Ela o beijou no queixo. — De fato, nós temos uma dívida de gratidão para com ele. Se ele não tives­se interferido, mesmo que com atos maldosos, provavel­mente nunca teríamos nos conhecido, muito menos nos casado.

Julian a olhou, com ar pensativo.

— Sabe de uma coisa? Acho que devemos ir à festa. Tynedale que se dane!

O clima continuava brando e ensolarado, e a fes­ta de Sofie Weston aconteceu em uma deliciosa noite de primavera. Com grande excitação, as damas de Wyndham Hall esperavam por aquela noite, especialmente para se encontrar com os amigos e conhecidos.

Nell estava linda em um vestido de organza e laços. A cor ressaltava o tom claro de sua pele. Seus cabelos estavam graciosamente penteados para o alto, e uma capa branca de seda cobria-lhe os ombros desnudos, ela usa­va luvas de cetim e um colar de pérolas e diamantes, que combinava com o brilho de seus brincos. A gravidez já estava aparente, porém o restante de seu corpo continua­va igual, preservando a elegância e uma verdadeira condessa. Na opinião de Julian, os sinais de gravidez apenas complementavam a beleza da esposa.

Sofie havia convidado quase toda a vizinhança. O juiz, sua esposa e o filho mais velho, lorde Beckworth e o dr. Coleman, assim como vários outros nobres, incluindo um dos maiores proprietários de terras, o sr. Blakkesley, junto com a esposa e os filhos. A sra. Chadbourne tinha uma sobrinha que estava de visita, com aproxi­madamente a mesma idade de Elizabeth, mais a esposa do vigário e a irmã mais nova e suas duas filhas mais velhas, formavam um bom número de pessoas na festa.

A Mansão Stonegate estava toda iluminada, cada can­deeiro, candelabro e lustre brilhava com as chamas bruxuleantes de centenas de velas. O baile logo teve início. Os músicos contratados estavam dispostos no canto de um salão ao lado da casa. As longas mesas ostentavam travessas longas de comidas variadas, dispostas sobre toalhas de linho branco, e entremeadas por vasos de orquídeas e lírios, colhidos nas estufas da propriedade. Os criados se moviam de maneira rápida e silenciosa entre os convidados, oferecendo variedades de canapês e bebidas.

Quando o calor começou a aumentar, as portas-balcão foram abertas e a brisa fresca da noite soprou o perfu­me da primavera para dentro do salão. O jardim passou a fazer parte do cenário. Os caminhos que cortavam os gramados estavam decorados com lanternas de papel. Após várias, danças, Julian levou Nell para uma breve caminhada por ali.

— Tudo indica que Tynedale está se comportando bem, ou pelo menos mantendo distância. Tudo indica que não teremos escândalo algum... ou derramamento de sangue — confidenciou Julian quando haviam se afastado o sufi­ciente para que ninguém os pudesse ouvir.

— Você não acha que ele seria tolo o suficiente para... Julian ergueu os ombros.

— Contanto que ele se comporte bem. Até agora hou­ve bastante discrição. Ele não participou de nenhuma roda de conversa em que eu estivesse. E o mais importan­te, não foi tolo ou descarado o suficiente para pedir para dançar com você.

— É verdade! — Nell exclamou. — Há pouco ele veio na minha direção e eu morri de medo. Acho que pen­sou melhor e acabou convidando a irmã do vigário para dançar.

— Ainda bem. Eu odiaria ter de desafiá-lo aqui. — Julian a acariciou na face e roubou um breve beijo.

— Deixando Tynedale de lado, você está se divertindo?

— Muito. Charles é um ótimo dançarino e conhece uma porção de histórias incríveis. Você realmente colocou um peixe morto na prataria quando tinha nove anos?

Julian inclinou a cabeça para trás.

— Meu Deus, eu tinha me esquecido disso! Só mesmo Charles para se lembrar... — Julian riu.

— É bom saber que os problemas entre vocês se resol­veram, não é?

— Não estou bem certo se não há mais conflito, mas uma coisa é certa, a situação está melhor do que já este­ve em anos. E isso, minha querida, é de fato algo muito bom.

Mais tarde os convidados foram levados para a sala de jantar, e uma generosa refeição foi servida. Estavam todos com o moral elevado, e os risos preenchiam o salão. Ao final dó jantar, Sophie levantou-se da mesa e regia­mente levou as damas para o salão em frente, deixando os cavalheiros para desfrutar o licor.

Nell estava cansada. Apesar de estar se divertindo, ficara ansiosa demais durante a festa. Evitar Tynedale sem que os outros percebessem e ficar de olho para saber se ele não estava muito próximo de Julian exigiu bastan­te de suas forças. Não lhe restava dúvida de que seria capaz de lidar com ele, caso ele fosse mais ousado, mas se preocupava com a reação de Julian. Ela estava apro­veitando a festa, mas não tanto quanto estaria se não fosse aquele inconveniente.

Segura quanto ao amor do marido, Nell já não estava mais preocupada com a possibilidade de um escândalo, em que Tynedale pudesse contar as reais circunstâncias sobre o casamento deles.

De qualquer forma, o homem ainda assim era uma cobra, embora sem muito do seu veneno. Como ela e Julian haviam concluído, sem expor a si mesmo como um salafrário, Tynedale não poderia falar muita coisa além de mentir dizendo que o rapto fora uma fuga, o que seria bastante embaraçoso.

Nell sorriu, pois, juntos, ela e Julian poderiam enfren­tar qualquer fofoca que surgisse. Mesmo com Tynedale representando uma ameaça para seu futuro.

Sabendo que os dois estavam juntos na sala de jantar, mesmo entre vários outros cavalheiros, ela ficou preocu­pada. Muita bebida era servida. E homens alterados pela bebida poderiam agir de maneira inapropriada.

A preocupação de Nell tinha fundamento.

Tynedale tinha encoberto seus verdadeiros sentimen­tos a noite inteira. Disfarçara o ressentimento, a raiva e a inveja atrás de maneiras refinadas e um sorriso educa­do. Sorrateiramente, ele tinha notado a cumplicidade do casal pela expressão de ternura no olhar de Julian, pelo brilho no rosto de Nell quando conduzida para a pis­ta de dança e a aura de doce intimidade que os cercava. Somente um tolo não teria reconhecido os sinais do amor. E Tynedale não era um tolo.

A visão da gravidez de Nell fez aumentar sua fúria. Se não tivesse sido por uma armadilha do destino, aquela criança seria seu herdeiro e não de um Wyndham.

Com o canto dos olhos, ele olhava para Julian, amaldiçoando-o por ser rico, mas acima de tudo por ter roubado seu herdeiro. Aquele homem o havia enganado. Deixara-o à beira da ruína, suas propriedades estavam endivida­das, sem chances de recuperação. Além do mais, Julian podia exigir o pagamento de todas as promissórias a qualquer momento.

Tynedale admitiu com amargura que se não tivesse forçado um convite de Raoul, não teria comparecido àquele evento. A situação estava tão difícil que ele não se atrevia a mostrar o rosto nas próprias terras, os cobra­dores deviam estar batendo em seus portões. O casamen­to com Nell teria mudado tudo isso, razão suficiente para nutrir o ódio por Julian. Por causa deste mesmo homem que havia roubado sua chance de fortuna, estava marcado para o restante da vida.

Inconscientemente, tocou a cicatriz no rosto.

Julian notou o movimento de Tynedale com um sorri­so frio nos lábios.

Fiz o que fiz por Daniel, pensou, enquanto degusta­va um gole de vinho e arrependendo-se por não ter fei­to mais. Em outras circunstâncias, teria deixado aquele assunto de lado. Afinal, tinha sido Tynedale que trouxera Nell à sua vida, fato pelo qual ele até poderia perdoá-lo, mas não pela morte de um jovem inocente.

— Deixe-o para lá — Marcus disse, interrompen­do seus pensamentos. — O destino de Tynedale não tem nada a ver com você agora.

— Embora seja difícil admitir, você provavelmente tem razão — respondeu Julian, outra vez olhando para a cicatriz do malfeitor. — Pelo menos a cara dele já não é mais tão bonita.

— Sim, eu concordo, mas é pena que você não tenha terminado o serviço. Ele quer morrer. — Charles vinha andando pela sala de jantar como um perfeito anfitrião, quando parou perto de onde Julian e Marcus estavam.

—, E por que você está dizendo isso? — indagou Julian com uma sobrancelha erguida.

Com os olhos fixos em outro grupo de homens,

Charles tomou um gole de uísque.

— Daniel não foi o único rapaz ingênuo que caiu sob o feitiço desse sujeito.

Julian prendeu a respiração ao ver que no final da lon­ga mesa, Raoul estava sentado com um grupo ao redor de Tynedale.

— Você está se referindo a Raoul?

— Deve haver alguma explicação para essa predileção repentina. Raoul não é um jogador como eu. — Charles sorriu. — Se tivesse que adivinhar a razão dessa apro­ximação repentina, eu diria que é por alguma dívida. — Charles olhou na direção de Raoul, que ria de alguma coisa que Chadbourne dissera. — Eu suponho que Raoul está adiando o momento em que terá de pedir à minha querida madrasta dinheiro para cobrir suas dívidas. Nesse meio-tempo, ele permite que salafrários se aproveitem da situação.

—É por isso que você queria as promissórias? Para barganhar?

— Confesso que isso me passou pela cabeça,

— Então, por que não me disse? — Julian indagou. — Você sabe que diante dessas circunstâncias eu as teria dado a você.

Charles o encarou com um sorriso estranho.

— Talvez eu apenas quisesse que você confiasse em mim para fazer a coisa certa.

— Mas quanto sentimentalismo! — explodiu Marcus e, dirigindo-se a Charles, continuou: — Você sempre foi muito arrogante e muito cheio de si para se deixar consolar.

— Posso dizer o mesmo da sua presunção — aquiesceu Charles, sorrindo para Marcus.

— Cavalheiros, poderíamos, por favor, deixar esses insultos infantis de lado? — Julian suspirou, imaginan­do a freqüência com que aqueles dois se portavam como crianças.

Marcus e Charles olharam um para o outro, nenhum deles cedeu um milímetro.

— Eu deixarei se ele deixar também — Marcus cedeu com uma careta de brincadeira.

Charles sorriu e fez uma reverência.

— Você tem minha palavra.

— Então, o que vamos fazer com Tynedale? — Julian perguntou.

— Matá-lo — sugeriu Charles.

— Eu também ficaria feliz com isso — comentou Julian —, mas assassinato... Não vejo como isso pode­ria acontecer.

— Eu poderia desafiá-lo para um duelo — ofereceu Marcus.

Tynedale deve ter sentido os olhares coletivos sobre si, porque voltou a atenção para os três cavalheiros. O sorriso treinado sumiu quando imaginou o que estariam falando a seu respeito. Como um vilão treinado, logo reas­sumiu a postura, voltando a sorrir para Pierce Chadbourne. E para evitar o desconforto de ser observado, moveu a cadeira de modo a ficar de costas. Mesmo assim, não deixou de imaginar o que estariam tramando. Sabia que não era muito querido naquele círculo, razão suficiente para ser atacado. Será? Apreensivo, emborcou o resto do cálice de vinho.

Ele não tinha problemas com Sherbrook ou Weston, mas adoraria a chance de duelar com Julian mais uma vez, e matá-lo.

As possibilidades eram muitas. Se o conde morresse e Nell perdesse a criança, ou esta nascesse morta, Weston assumiria a posição do primo, e Raoul seria o próximo a herdar o título e a fortuna.

Tynedale sorriu. Seria um prazer imenso ajudar Raoul a gastar a herança. E o melhor de tudo, Nell ficaria viú­va e muito rica. Sua primeira tentativa de se casar com ela havia falhado, mas já aprendera o suficiente para planejar melhor uma estratégia de aproximação.

Seus olhos brilharam. E por que não? O tempo esta­va contra ele. Quanto antes Julian morresse, mais rápi­do a condessa de Wyndham poderia perder a criança que carregava e tornar-se lady Tynedale.

Na esperança de que os ventos estivessem a seu favor, ele se levantou. Tudo estava se encaixando no seu devi­do lugar. Estava portando suas pistolas de duelo. Eram armas muito especiais, uma sempre puxava mais para a direita, e só ele sabia qual era. Involuntariamente, abriu um sorriso malévolo ao imaginar sua bala se cravando no peito de Julian, enquanto a de seu oponente não passaria nem perto. Com um brilho quase febril nos olhos, seguiu até onde Julian, Marcus e Charles se encontravam.

— Que reunião agradável! Sua mãe deve ser cumpri­mentada por suas habilidades como anfitriã. — Tynedale cumprimentou Charles com uma reverência e depois virou-se para Julian e sorriu. — Acho que ainda não o cumprimentei pelo seu recente casamento... Já faz seis meses, não? Congratulações pela criança também. Nell é uma moça adorável, você é agraciado pelo destino. Foi muita sorte, de fato, pois ela poderia ter escapado de suas mãos e se casado com outro homem.

Marcus teve de segurar Julian pelo braço para evitar um confronto direto.

— Se você der valor à sua vida, sugiro que saia da minha frente — ameaçou Julian, por entre os dentes.

— Mas vejam só, estou sendo insultado? — Tynedale assumiu uma expressão de desdém, embora não fosse seu plano ser o desafiante, pois queria poder escolher as armas do duelo.

— Você não possui qualidades para que eu possa ofendê-lo — zombou Julian.

As vozes exaltadas atraíram a atenção dos outros cavalheiros.

— Ah, não é bem assim. Sorte a sua de eu conseguir me controlar. Se fosse outra pessoa a me insultar, que não um plebeu como você...

Charles ficou lívido, antevendo as conseqüências daquela discussão. Marcus antecipou-se para cima de Tynedale, mas foi impedido por Julian.

— Você tem razão — aquiesceu Julian. — Eu também não me deixo atingir por insultos, especialmente quando eles são ditos por tipos como você.

Àquela altura, todos os convidados da festa os circun­davam, curiosos. O juiz se aproximou, seguido pelo vigá­rio e lorde Beckworth.

— Vamos parar por aqui — pediu o juiz, preocupado. — Isso já foi longe demais.

— Será que você está tentando forçar um duelo comi­go? — Tynedale perscrutou a sala com um sorriso nos lábios, embora seus olhos brilhassem de ódio. — Acho que o pobre Wyndham não está contente em já ter derra­mado meu sangue. Pelo visto, deseja mais.

— Você se enganou em um detalhe, seu patife! Não é só isso que eu quero, mas também a sua vida. Só assim um bastardo como você não mais enganaria e roubaria as fortunas de jovens inocentes!

— Minha nossa! — Tynedale respirou fundo para se controlar e assumir o costumeiro ar cínico. — Eu espe­rava que você já tivesse esquecido esse assunto. Vejo que milorde ainda espuma de ódio por mim. Que falta de espírito esportivo...

Com um movimento rápido, Julian reagiu jogando vinho no rosto de Tynedale.

— E você, seu canalha, é um covarde, nada mais que um verme que deveria ser exterminado sem demora!

— Seu bastardo arrogante, escolha seus padrinhos! — desafiou Tynedale, perdendo a razão e esquecendo-se de seu objetivo.

— Com prazer. Marcus? Charles? — Sem esperar pela aprovação dos primos, Julian berrou: — Como tenho o direito de escolher as armas, digo que será um duelo de espadas, aqui e agora.

— Oh, não, não podemos permitir! — exclamou o juiz, horrorizado com o rumo dos eventos. — Tynedale ainda não escolheu seus padrinhos.

— Serão os senhores Raoul Weston e Pierce Chadbourne.

Os padrinhos não ficaram muito animados com a indicação, porém dificilmente poderiam recusar. Sendo assim, os dois fizeram um gesto afirmativo com a cabeça.

— Eu estou pronto, quando lorde Wyndham estiver.

— Isso é totalmente irregular! — Beckworth protes­tou. — É preciso que os padrinhos tentem um acordo de paz.

Julian assumira uma postura relaxada, porém, como um tigre, observava sua presa de longe.

— O protocolo foi seguido, portanto... Por sorte temos um médico para prestar socorro, além das respeitáveis testemunhas, e os padrinhos. Não há nada que impeça este duelo de acontecer aqui e agora — declarou Julian.

— Eu concordo. Não há nada mais o que se discutir — completou Tynedale.

— Espero que você tenha um par de espadas excepcio­nal — Julian quis saber de Charles. — A não ser, é claro, que Tynedale e seus padrinhos tenham alguma objeção.

— Nenhuma — respondeu Tynedale.

— Enquanto Charles vai buscar as espadas, vamos nos preparar — informou Julian.

Quando Charles saiu para buscar as espadas, alguns cavalheiros reclamavam demonstrando seu desprazer, outros demonstravam ansiedade. Deu-se início a uma banca de apostas, feita pela platéia mais animada.

Os candelabros foram afastados, a mesa removida para longe, as cadeiras retiradas a fim de proporcionar um espaço no meio da grande sala.

Ao retornar, Charles estendeu as espadas para serem examinadas pelos padrinhos, que as considerou aceitá­veis. Os desafiantes e seus padrinhos se colocaram em lados opostos da sala, as testemunhas se alinharam ao longo das paredes.

— Você está louco? — indagou Marcus quando ele e os primos estavam sozinhos.

— Ora, não havíamos chegado ao acordo de que ele deveria ser morto? — Dando de ombros, Julian tirou seu casaco.

— Sim, mas não tínhamos decidido que você o mata­ria. Charles ou eu poderíamos fazer isso facilmente. Você tem responsabilidades... Ou esqueceu de sua esposa e de seu filho que está para nascer?

— Eu não esqueci, e se o pior acontecer eu confio que você e Charles cuidarão deles — Julian respondeu, empunhando a espada que Charles lhe entregava.

Uma expressão angustiada atravessou seu rosto, pensar em Nell e na sua tristeza se acaso perdesse não iria ajudar muito. E tampouco era o momento adequado para considerar se havia sido uma decisão sensata ou não. Era imperativo que mantivesse a calma, não sem antes enviar a Nell uma última palavra. — Se eu morrer, diga à minha esposa que eu a amo, que ela trouxe alegria para minha vida, e que meu último pensamento foi para ela e para nosso filho.

— Infernos! — Marcus gritou e, olhando para Charles, acrescentou: — Pelo amor de Deus, faça alguma coisa!

— Eu? Por que deveria? Se meu estimado primo não tiver sorte suficiente e morrer esta noite, eu herdarei tudo o que é dele. — Um sorriso acompanhou a observação. — Não se preocupe, eu ficarei muito triste, juro a você que cuidarei para que sua senhora fique protegida e que nenhum mal lhe aconteça.

— Engraçado que eu nunca havia notado que você tem uma atitude mais do que irreverente nas horas mais inapropriadas — observou Julian.

— Melhor do que ficar torcendo as minhas mãos como uma senhora de idade, igual a Marcus.

Marcus projetou-se para a frente, com um brilho feroz nos olhos. Com um movimento rápido, Julian evitou que outro conflito se estabelecesse.

— Acho que sou eu quem vai participar desse duelo — interveio Julian. — Quanto a vocês dois, deixem para brigar mais tarde. No momento, lembrem-se que são meus padrinhos.

Julian começou a se afastar, porém Charles segurou-o pelo braço com uma expressão grave.

— Você está ciente de que se perder o duelo, seu opo­nente não viverá por muito mais tempo, não é?

— Não duvido, apesar de todo o seu descaramento — disse Julian, sorrindo.

Dito isso, virou-se, começou a tirar o colete e o colo­cou sobre o casaco. Após enrolar as mangas da camisa de linho, pegou a espada e fez alguns movimentos. Era uma arma muito requintada, sofisticada até demais para ser usada em um homem tão vil como seu oponente.

Do outro lado da sala, Tynedale fazia o mesmo. Momentos depois, os dois se encaravam. As espadas foram erguidas e se tocaram como um prelúdio para o duelo.

Além do som de passos abafados das botas dos adver­sários sobre o tapete persa e o tilintar das espadas, não havia outro ruído na sala. Com maestria, Julian desvia­va-se das investidas de Tynedale. A luz bruxuleante das velas era refletida pelas lâminas de aço polidas.

O duelo já durava por infindáveis minutos. Eram gol­pes, contragolpes, simulações, investidas que se reve­zavam, mas nenhum dos oponentes deixava espaço para que o outro o acertasse em um golpe final. Porém, em um movimento mais ousado, Tynedale girou a espada e passou pela guarda de Julian, cortando-o no braço. No mesmo instante uma mancha de sangue surgiu no tecido branco da camisa.

— Basta! — gritou o magistrado. — Já existe um ferido.

— Mas ainda não estou satisfeito! — gritou Tynedale com rispidez, voltando ao ataque.

Com um movimento ágil naquele bailado da morte, Julian assumiu a dianteira, atacando com movimentos rápidos, breves, porém certeiros. Tynedale recuou, pro­curando se defender. Porém, em segundos já estava com a camisa ensangüentada e rasgada em dezenas de tiras. Embora estivesse com dificuldade até para respirar, sua perícia como espadachim o salvava de golpes maiores, o que dificultava a tarefa de Julian em acerta-lo com um golpe fatal. O suor corria pelo rosto de Tynedale quando sua espada mais uma vez atacava Julian. Seus ferimentos doíam e sangravam. Até então fora capaz de conter seu adversário, mas não sabia por quanto tempo mais resisti­ria. O medo se fazia presente, colocando-o em uma posi­ção diferente. Já não mais pensava em matar Julian, dali em diante, lutava para preservar sua vida.

O medo e o ódio obscureceram a mente de Tynedale, e suas defesas vacilaram por um momento. Julian apro­veitou a chance e atacou. A lâmina afiada tinha o cora­ção como alvo, contudo, no último segundo, Tynedale se moveu. Assim, em vez do golpe fatal, Julian enterrou profundamente a espada no ombro do inimigo.

Tynedale tremeu e caiu no chão, enquanto Julian retirava sua espada. Aborrecido, Julian ficou em pé diante de seu oponente caído, que se contorcia de dor. Havia falhado novamente, e o bastardo continuaria vivo. Prosseguir com o duelo seria assassinato a sangue-frio, e não era esse o plano inicial, por mais que quisesse ver aquele verme morto.

— Mais uma vez parece que você teve muita sorte — observou Julian.

— Sorte não teve nada a ver com isso, milorde. E sim habilidade — retrucou Tynedale, com Pierce e Raoul amparando-o.

— Se isso o faz sentir-se melhor, que pense assim, então. — Julian virou-se para os demais convidados e anunciou: — Tynedale não pode continuar. O duelo está terminado.

Percebendo o inimigo se afastar, conscientizando-se de que todos os seus esquemas e planos estariam acabados a menos que Julian morresse, Tynedale soltou um grito enlouquecido:

— Não! Isto não termina aqui! — E surpreendendo a todos, soltou-se dos padrinhos e ficou em pé no meio da sala.

— Mesmo o desejo de erradicar um verme como você não vai fazer com que eu cometa assassinato. — O olhar frio de Julian mediu o adversário dos pés a cabeça. Dito isso, girou sobre os calcanhares e se afastou.

Tynedale soltou um grito sufocado e avançou para cima de seu oponente. Em seu estado ensandecido, era evidente que pretendia terminar o duelo, acertando seu oponente pelas costas.

Houve um sobressalto dos cavalheiros que observavam, e Charles e Marcus se adiantaram para a frente ao mes­mo tempo.

— Julian, atrás de você! — Charles gritou.

Julian virou-se e, caindo sobre um dos joelhos, blo­queou o ataque de Tynedale. Em seguida, com um golpe rápido, acertou-lhe o coração. Com os olhos arregalados de espanto, Tynedale cambaleou para trás, balbuciando algo incompreensível para por fim cair morto no chão.

Sentindo alívio, mas nenhuma compaixão, Julian observou o corpo inerte. Por um momento chegou a pen­sar que com a morte daquele facínora seu desespero e cul­pa pela morte de Daniel acabariam, mas não foi o que aconteceu. Não havia alegria por ter eliminado o inimi­go, nem mesmo um sentimento de satisfação. Ele ape­nas sentia cansaço e uma grande necessidade de ver Nell, segurá-la em seus braços e sentir o corpo quente e macio perto do seu.

Um burburinho se iniciou na sala de jantar, alguns cavalheiros correram para cumprimentar Julian, outros balançaram a cabeça, comentando sobre a deplorável falta de decoro e modos da geração mais jovem.

Só depois de muito tempo é que a ordem foi restaura­da. O silêncio predominou quando o corpo de Tynedale foi carregado para fora da sala. Não havia dúvida de que a morte fora justificada e Julian não precisaria temer que houvesse alguma repercussão de seu ato daquela noi­te. Muitos cavalheiros tinham visto o duelo para manter segredo sobre a verdade. Quanto às fofocas, haveria mui­tas, e isso não poderia ser evitado. Ele decidiu que apenas teria de lidar com o fato.

Levou algum tempo até que o ambiente fosse colocado em ordem. Alguns sinais do duelo que ficaram no chão da sra. Weston, debaixo da mesa de mogno, foram varri­dos. O ferimento de Julian foi tratado pelo dr. Coleman, Marcus o ajudou a vestir o colete e o casaco, e Charles colocou sua gravata de volta.

— Uma situação lastimável — comentou Chadbourne, enquanto alguns cavalheiros o rodeavam.

— Eu não posso negar, e não tenho nenhum orgulho de minha participação nisso — explicou Julian.

— Mas você quis matá-lo, não quis? — indagou Beckworth.

— O destino foi justo — Julian murmurou.

— Você teve muita sorte em escapar apenas com um arranhão — disse Coleman em um tom grave. — Espero que siga meu conselho e descanse o braço por alguns dias. E procure evitar duelos por algum tempo.

— Não há com o que se preocupar — respondeu Julian, seco. — Duelar não é o meu objetivo... — Ele olhou para o outro lado, pensando em Daniel e Nell. — Em outras épocas, existiram razões — acrescentou, bebendo uma dose de uísque.

— Sempre há — comentou Beckworth. — Vamos tor­cer para que quaisquer que sejam as razões, elas valham a vida de um homem.

— Ah, elas valem — disse Charles, colocando-se ao lado de Julian.

— Sem dúvida — adicionou Marcus. Beckworth olhou para os primos.

— Assim, dessa maneira?

— Se for preciso... — concluiu Julian.

— Correu tudo bem, não foi? — Charles quis saber, quando ficou a sós com Julian e Marcus.

— Teria sido melhor se Julian não tivesse se ferido — retrucou Marcus.

Muitos estavam se preparando para deixar a sala de jantar, mas Julian não estava ansioso para sair. Em teo­ria, cavalheiros não discutiam duelos com damas, mas uma vez que os casais se reunissem, as conversas seriam inevitáveis.

Julian lamentou-se por seu comportamento. Um due­lo na sala de jantar de sua tia! Afinal, já não era mais um adolescente de cabeça quente, que agia de maneira impen­sada diante do perigo. Era um homem maduro, casado, com um filho a caminho. Por mais que Tynedale mereces­se morrer, ele poderia ter pensado em uma outra solução.

— O que houve? — Julian indagou ao perceber que Charles o observava com um sorriso nos lábios.

— Por uma vez você agiu sem pensar nas conseqüên­cias e já está arrependido.

— Está mesmo? — Marcus questionou, entrando na conversa.

— Não pela morte de Tynedale, mas eu poderia ter escolhido um lugar mais... adequado.

— A sala de jantar de minha madrasta não é um lugar suficientemente adequado para você? — perguntou Charles.

— Você sabe muito bem o que eu quis dizer — retru­cou Julian, irritado. — Você é o patife da família, eu não faço esse tipo de coisa, você sim!

— É verdade — concordou Charles, olhando por sobre o copo para Julian, com os olhos brilhantes e um sorri­so maroto. — E devo dizer, meu amigo, que eu não teria feito melhor!

 

* * *

O medo de Julian de que a notícia sobre o duelo se espalhasse como um incêndio no salão de Sofie foi infun­dado. Aparentemente, nenhum dos homens disse uma palavra a respeito do assunto para suas acompanhantes. Porém a festa havia terminado mais cedo. Julian ficou feliz em saber que seria Charles o responsável por infor­mar à anfitriã sobre o ocorrido em sua casa. Isto é, se Raoul não se antecipasse.

O ombro de Julian doía, mas ele conseguiu agir nor­malmente até que Nell se despedisse de todos e eles rumassem de volta, para casa. Se estivesse interessado em evitar qualquer intimidade, dando assim tempo para o ombro cicatrizar, Julian deixaria de contar à esposa o que havia acontecido.

Mas não era o caso.

Um sorriso preguiçoso surgiu em seu rosto enquan­to vestia animado um pesado robe de seda. Teria de ser um ferimento muito mais grave do que um arranhão para mantê-lo afastado da cama de sua esposa.

Nell ficou horrorizada quando o ouviu contar os even­tos daquela noite. Quando mostrou onde a lâmina de Tynedale o havia cortado, ela olhou por um longo momen­to para o curativo com as mãos sobre o peito.

— Você poderia ter morrido! — exclamou ela ao recu­perar-se do susto. — Você poderia ter sido morto enquan­to eu estava sentada tomando chá! Como ousa arriscar sua vida desse jeito?!

— Mas, querida, você não está feliz por Tynedale estar morto? Ele não é mais uma ameaça para nós.

— Feliz?! Como eu poderia estar feliz por você quase ter sido morto? Está louco?

O ódio de Nell se esvaiu com a mesma rapidez com que havia surgido, e ela abraçou Julian com força, recostando a cabeça no ombro largo.

— Oh, Julian, eu te amo tanto! Minha vida teria aca­bado se você tivesse morrido. — E escondendo as lágri­mas que lhe desciam pelo rosto delicado, continuou: — Prometa que nunca mais vai repetir algo tão tolo assim. Eu não suportaria se algo acontecesse a você.

Julian sorriu, beijando-lhe a testa.

— Nada vai acontecer comigo, eu juro.

— Está doendo muito? — ela perguntou ao acariciar ao redor do ferimento dele.

— Não muito... Se eu apenas pudesse me deitar aqui um pouco a seu lado...

Com gestos cheios de ternura, ela o ajudou a tirar o robe e a deitar-se em sua cama. Em seguida, cuidando para não causar mais nenhuma outra dor, aconchegou-se ao calor do corpo másculo.

— Assim está melhor? — indagou.

Com um sorriso malicioso, Julian deslizou os dedos pela bainha da camisola da esposa. Nell assentiu ao ajudá-lo a tirar o tecido que os separava.

— Assim está muito melhor... — As mãos dele inicia­ram uma viagem pelas curvas do corpo feminino, termi­nando no ponto onde as coxas macias se encontravam, revelando claramente suas intenções.

— E o seu ferimento? — Nell perguntou, com os olhos obscurecidos pelo desejo.

— Se você me ajudar, tudo vai ficar bem.

Inclinando a cabeça, Julian capturou o lábio inferior de Nell e o mordeu gentilmente, ao mesmo tempo que seus dedos penetravam-lhe a intimidade. Nell arqueou contra a mão dele, o prazer inundando-a. Procurando surpreen­dê-lo da mesma forma, procurou por ele, e seus dedos se fecharam ao redor da ereção protuberante.

Já ensandecido de paixão, Julian não esperou mui­to para possuí-la quando a percebeu encaixando-se sobre seu corpo. E, no silêncio de depois, aconteceu o que ele havia prometido, e a paz voltou a envolvê-los.

A notícia sobre o extraordinário duelo e a morte de Tynedale causaram furor, não apenas na região, mas tam­bém por toda a Inglaterra. A morte de um nobre em um duelo não passava despercebida, porém as circunstâncias e a história entre Julian e Tynedale foi tópico de gran­de especulação e interesse. Ajudou o fato de a temporada ter apenas começado, e que muitas famílias da socie­dade ainda estivessem em suas propriedades no campo, ocupados, fechando suas casas e preparando-se para vol­tar a Londres.

Os Wyndham ainda não haviam decidido sua pre­sença em Londres durante a próxima temporada, mas a decisão não demorou a ser tomada depois do duelo e do escândalo.

A família discutiu a conveniência de mudar os planos e ir a Londres, permitindo que o mundo civilizado sou­besse que nem Julian e nem sua família precisavam se esconder no campo. Nell nunca gostara das temporadas, e como seu estado avançado de gravidez lhe dava uma excelente desculpa para permanecer na mansão, ela foi inflexível: os outros poderiam ir se desejassem, mas ela ficaria em casa.

Normalmente Diana e Elizabeth se esforçariam para voltar a Londres, mas as duas estavam muito agitadas com a reforma em Dower House e nenhuma delas queria passar pela gama de fofocas que a aparição delas na cidade causaria.

Para Diana, uma coisa era ser convidada para todos os exclusivos bailes e saraus por conta de sua posição social, outra era ser convidada porque todos queriam saber cada detalhe desagradável do terrível duelo.

Na última semana de abril, uma cavalgada matinal foi arranjada entre os primos. Marcus e Raoul desistiram do programa, deixando Julian e Charles como os únicos a participarem do programa.

A manhã estava adorável, o sol quente e agradável, as árvores repletas de folhas verdes e brilhantes, flores silvestres cobriam os campos, e o canto dos pássaros completava a paisagem. Julian estava aproveitando o passeio, embora distraído, imaginando como tocar em um assunto delicado com Charles. Havia algum tempo percebera o interesse do outro por sua irmã de criação, Elizabeth. Foi só na volta do passeio que reuniu coragem para abordar o assunto diretamente:

— Você está interessado em minha irmã?

Charles parou o cavalo e encarou o primo, estarrecido.

— Ora, o que mais eu poderia pensar? Sei que nes­ta época do ano você costuma freqüentar os antros londrinos, e contrariando as expectativas, aqui está você, no campo. A menos que eu esteja muito enganado, par­te dessa mudança se deve à corte de minha irmã. Sei que muitos outros jovens a visitam, mas você, Raoul e Chadbourne parecem ser os principais alvos da atenção dela.

— Sim, notei isso também. — Charles esporeou o cava­lo, colocando-o em movimento. — Mas ela é ainda mui­to nova, tem apenas dezessete anos. A menos que esteja seguindo os passos da mãe e prefira homens mais velhos. O que me faz lembrar, você acha que lady Diana vai se tornar lady Beckworth este ano?

Ignorar uma pergunta e mudar o assunto era o estilo de Charles lidar com coisas que não queria comentar.

— Segundo minha esposa, nós teremos um casamen­to no próximo outono — Julian admitiu, sabendo que não poderia arrancar muito mais de seu primo.

— Foi o que pensei. O assédio é óbvio e ela não tem demonstrado nenhum sinal de rejeição. Você faz gosto nessa união?

Julian fez que sim com um gesto de cabeça. Tendo aceitado a idéia do possível casamento da madrasta com lorde Beckworth, ele acabou descobrindo que estava mais do que feliz. Beckworth era um bom homem. Seguro, confiável e claramente enamorado de Diana. E ela tam­bém exibia um brilho diferente, inexistente havia muito tempo, desde que seu pai havia falecido.

Sim, ele estava mais do que feliz. A começar pelo pró­prio casamento com uma mulher que o amava e era cor­respondida, logo seria pai, e a responsabilidade sobre a madrasta e a irmã seria retirada de seus ombros.

Ele deu um sorriso. Dessa forma teria mais tempo para se concentrar exclusivamente na esposa e no filho. Só havia um ponto escuro no horizonte: o assassino que ain­da estava à solta, e que ninguém sabia quem era.

Desde a morte de Tynedale, ele e Marcus vinham pro­curando masmorras por toda parte, levando algumas pessoas a erguer as sobrancelhas com ar de interrogação.

Perscrutar os subterrâneos de Stonegate foi o mais difí­cil. Julian sabia que Charles nem por um momento tinha acreditado na história de Marcus. Na tarde da visita, o primo fora um perfeito anfitrião, e enquanto Sofie os acompanhava nas dependências mais profundas da pro­priedade, ela chegara a ser rude, na certa ainda estava muito aborrecida com o duelo em sua casa.

Raoul, pensando que eles estivessem loucos, retirou-se apressadamente. Claro que as masmorras daquela pro­priedade não tinham nenhuma semelhança com as dos pesadelos de Nell. Quando o assassino era o assunto, a única coisa boa que Julian podia dizer era que sua esposa não havia tido mais pesadelos, e nem John Hunter tinha trazido mais notícias sobre mulheres mortas.

— O que você vai fazer sobre Dower House se lady Diana se casar com Beckworth? — Charles perguntou, interrompendo os pensamentos de Julian. — Parece uma pena deixar que tudo volte a ser uma ruína outra vez.

— Isso não irá acontecer — assegurou Julian. — Se eu tivesse sido um proprietário mais cuidadoso, não teria permitido que aquele lugar deteriorasse. Agora tudo ficará sempre em perfeito estado, eu mesmo vou cuidar para que seja assim.

— E a nova cozinha? O serviço está andando bem? Não há mais contratempos? Nenhum vândalo ou roubos inexplicáveis? Nenhum visitante misterioso à noite? Julian olhou para ele.

— Qual a razão da pergunta?

— Outra noite, voltando de sua casa, vi um cava­lo amarrado a uma árvore perto de Dower House. Fui investigar, mas não encontrei viv'alma.

— Não houve mais nenhum problema desde o incên­dio — Julian disse, pensativo. — Falei com os ciganos e parece ter sido um dos problemas.

— Aquele povo acampado nas terras de Beckworth?

— O líder deles chama-se César. Apesar de achar que a palavra de um cigano era suspeita, acreditei quando ele jurou que eu não teria mais problemas com sua família.

Charles sorriu.

— Você está falando da última do nosso suposto tio?

— Marcus, é claro — Julian murmurou. — Bem que eu imaginei se ele guardaria segredo.

— Ele achou que eu deveria estar avisado, caso César tentasse tirar dinheiro seu e ele não estivesse por perto para impedir.

— Acho que Marcus se preocupa muito com coisas que não são necessárias.

— Sem dúvida. Como sempre. — Eles ficaram em silêncio por alguns instantes. — Ele pretende ficar mui­to tempo com você? Eu pensei que suas obrigações com suas próprias terras ou as tentações de Londres já o teriam atraído.

— Existe um administrador competente cuidando dos negócios dele. E quanto a Londres, o canto da sereia sempre atingiu mais os seus ouvidos do que os de Marcus. Ele gosta do campo.

— Gosto do campo — Charles retrucou. — Acho que você se esqueceu de que minha madrasta deixou bem claro que não me quer debaixo do mesmo teto. Ela me atura durante o inverno, mas quando chega a primave­ra, sou colocado para fora de minha própria casa. O que mais eu posso fazer a não ser ir para Londres e me per­der por lá?

Chocado não só pela admissão, mas pela dor e frus­tração na voz do primo, Julian parou o cavalo. Ao obser­var-lhe a feição, contrariada, entendeu que muito do que o havia intrigado sobre o comportamento de Charles agora ficava claro. Sofie Weston tinha muita culpa nisso.

— É a sua casa — Julian disse em voz alta.

— Tente convencê-la disso. — Charles deu uma risa­da amarga e balançou a cabeça. — Não, é melhor que eu fique em Londres, assim estarei impedido de torcer o pescoço dela e jogar o corpo no rio.

Ao voltar para casa, a resposta à pergunta de Charles sobre o tempo da estada de Marcus na mansão foi respon­dida pelo próprio pouco tempo depois.

Após se despedir de Charles, Julian se trancou no escritório e foi examinar os livros da propriedade que Farley havia deixado em sua mesa. Era uma tarefa enfa­donha, porém necessária, que Julian executava desde jovem, quando assumira as obrigações como o senhor de uma grande propriedade. Quando Marcus bateu na porta e entrou, ele ficou feliz com a interrupção.

Colocou de lado os livros de contabilidade e sorrindo para o primo, convidou-o a se sentar na cadeira de couro na lateral de sua mesa.

— Eu não queria deixá-lo antes de resolvermos a ques­tão do nosso homem misterioso, mas receio que tenha de partir por algumas semanas — comunicou Marcus.

— Problemas?

Marcus sorriu ironicamente.

—Não. Minha mãe me pediu para acompanhá-la até Londres.

— Entendo...

Era do conhecimento de todos que a mãe de Marcus, Barbara, uma senhora charmosa e amável, pedia pouco do tempo do filho, porém uma coisa de que ela fazia ques­tão era a companhia dele sempre que se afastava para lugares mais distantes de casa. A viagem para Londres era um desses casos. Sendo assim, desde a morte do pai, Marcus escoltava sua mãe na viagem anual de ida e volta.

— Não vou me demorar muito — disse ele com uma expressão perturbada. — Não há nenhum sinal desse lou­co desde que aquela garota foi encontrada morta. Talvez ele tenha ido embora.

— Acredite-me, eu gostaria que fosse verdade, mas duvido. Infelizmente não temos como saber quando e onde ele vai atacar, embora Nell esteja convencida de que não vai demorar muito. Já faz três meses desde a mor­te de Ann Barnes e Nell teme que possa ter um pesade­lo qualquer dia desses. O problema é que você poderia ficar preso aqui em Wyndham indefinidamente. — Julian sorriu. — Estou mais do que grato pela sua ajuda, no entanto você tem outras coisas a fazer. Acompanhe sua mãe até Londres.

Marcus hesitou com uma expressão triste. Por óbvio, estava dividido.

— Eu acho que poderia escrever para minha mãe e dizer que quebrei uma perna...

— E isso a traria aqui para se certificar da gravidade dos ferimentos. Até ele, ou se ele atacar, não há nada que possa ser feito. Vá. E volte o mais rápido possível.

Marcus se levantou-se, preocupado.

— É o que farei. Vamos esperar que não haja nenhum ataque até eu voltar.

— Sim, vamos esperar — concordou Julian.

Marcus partiu naquela mesma tarde e Nell ficou surpre­sa ao perceber o quanto a casa ficou vazia sem a presen­ça dele. Ela comentou o fato com Julian à noite, enquanto caminhavam pelo jardim.

— Ele ficaria lisonjeado se soubesse que você sente sua falta.

— Ele é muito diferente de Charles, não é? — inda­gou Nell.

Julian riu.

— De fato. Marcus é sensato e seguro, enquanto Charles é um jogador libertino e sem vergonha. Enquanto um teve uma vida calma e orientada, o outro pula de um desastre para outro, acreditando que a vida é um grande jogo. Charles também tem uma sorte incomum. Como ele escapou de morrer afogado quando o barco dele sofreu um acidente, vai além da minha compreensão. Marcus ficou horrorizado com o acontecido, mas Charles encarou como uma grande aventura. Não consigo pensar em dois homens tão diferentes como aqueles dois, e também ima­gino em quaisquer outros para ter ao meu lado ao enfren­tar alguma adversidade. — Julian fez uma pausa e sorriu. — Exceto, talvez, pelo meu primo Stacey. Você se lembra de ter encontrado com ele no nosso casamento?

— Vagamente. Parece que isso aconteceu há muito tempo, não é mesmo?

— Para mim, parece que foi ontem. Já está arrependida?

— Não... principalmente agora que sei o quanto você me ama.

Julian a abraçou com grande afeto.

— E eu te amo com todo o meu coração. Com cada sopro de vida que existe no meu corpo.

Ao ouvir a declaração, Nell derreteu-se nos braços do marido.

A menção de Charles sobre encontrar um cavalo amarrado próximo a Dower House deixou Julian curioso. Por várias noites, depois que Nell adormecia, ele saía da cama sem fazer barulho, se vestia e ia para a futura casa de Diana, observar se havia algum sinal de atividade.

Certa noite, decidindo que aquilo era uma tarefa tola, ele voltou para a mansão, jurando que aquela noite seria a última em que passaria por um ladrão se esgueirando ao redor de Dower House.

A lua estava cheia e o caminho de Julian estava bem iluminado. Antes que o topo do telhado surgisse à sua frente, ele diminuiu o passo e manteve os ouvidos aber­tos. Parando junto a um arbusto de lírios, a uma curta distância da parte de trás da casa, ele não viu nada que chamasse sua atenção. Na verdade, não esperava ver nin­guém, porém ficou naquele lugar por mais de duas horas antes de decidir se aquele trabalho todo tinha alguma valia.

Já estava indo embora quando um pequeno movimen­to chamou sua atenção. Com corpo e mente em alerta, prendeu o olhar onde pensou ter visto algo. Foi então que viu um vulto alto e forte, antes de desaparecer dentro da casa. Apesar de ter visto apenas de relance-a figura, o bri­lho do brinco de ouro denunciou a identidade do estranho: César, o cigano que morava nas terras de Beckworth.

Julian seguiu até o lugar onde César havia desapare­cido. Hesitou, pois não sabia o que iria encontrar lá den­tro. O interior da casa estaria escuro e não tinha como se certificar de que César estava sozinho. Uma das alterna­tivas era esperar que ele voltasse para então confrontá-lo. Se bem que àquela altura não tinha muito do que acusá-lo, e além do mais não havia garantias de que ele saísse pelo mesmo lugar por onde entrara.

Indeciso, Julian esperou, escondido nas sombras, dese­jando estar armado com algo mais do que uma faca escon­dida na bota. Alguns minutos se passaram e ele estava quase para entrar na casa quando um barulho indicou que ele não estava sozinho. Ele se moveu, mas tarde demais, pois foi atacado pelas costas comum braço prendendo-lhe pelo pescoço, deixando-o sem ar.

Inclinando a cabeça para trás com força, Julian ouviu com satisfação um grito de dor do atacante, e a pressão em seu pescoço diminuiu um pouco. Contando com o fator surpresa, Julian se inclinou para a frente em um ímpeto, impulsionando o corpo do agressor a voar por sobre sua cabeça e cair no chão à sua frente. No instante seguinte, já com a navalha na mão, Julian pulou para cima do homem, posicionando a lâmina em seu pescoço.

Com a mudança de posições, ambos foram parar em uma clareira. Quando o luar iluminou-os, Julian prague­jou e se levantou.

— Sempre soube que você era um homem perigoso, mas até esta noite eu não sabia até onde ia a verdade — disse Charles, levantando-se.

— Eu poderia ter matado você, seu tolo!

— Sim, mas não o fez, e é isso o que importa para mim no momento — respondeu Charles enquanto se levantava.

Julian o seguiu e os dois voltaram a se esconder nas sombras.

— Você o viu? — Charles perguntou.

— Sim, e o reconheci também. Era César, o chefe dos ciganos que vivem nas terras de Beckworth.

— Que decepção! E eu que pensei que descobriria algum crime notável e não temos nada além de um ciga­no furtando.

— Como você sabia que César estaria aqui esta noite? — Julian quis saber.

— Eu não sabia. Venho observando a casa há uma semana e esta noite foi a primeira vez que vi alguma coisa concreta.

— Parece que nós dois não somos experientes nisso. Eu estou vigiando a casa daquela moita há alguns dias também.

— Ah, fomos experientes o suficiente para alertar um ao outro do que fazíamos.

— Até esta noite... O que me denunciou?

— Nada. Decidi tentar um novo posto de observação e descobri você.

— E então? O que fazemos agora? — indagou Charles.

— Vamos nos separar. Vou dar a volta pela frente da casa e você por trás. Dessa forma conseguiremos capturá-lo quando ele sair para o jardim.

Antes que pudessem colocar o plano em ação, viram César saindo da casa. Como um par de leopardos, eles pularam sobre o cigano, derrubando-o ao chão. Julian usou o lenço que estava no pescoço de César para amorda­çá-lo, e a gravata de Charles para amarrar suas mãos. Em seguida o arrastaram até onde o cavalo de Charles esta­va amarrado. Jogaram-no como um saco de batatas sobre o animal e o levaram até a casa, onde o pegaram e carre­garam para o escritório de Julian.

Uma vez no escritório, Julian acendeu uma vela e o prisioneiro viu pela primeira vez seus atacantes.

— Acho que você nos deve uma explicação — amea­çou Julian, tirando a mordaça de César.

— Eu não roubei nada.

— Então o que estava fazendo na casa? —indagou Charles. — Fazendo um passeio noturno? Ou checando para ver se havia alguma coisa que você pudesse roubar?

— Se você me desamarrar, talvez possamos discutir isso como pessoas racionais — César sugeriu.

— E depois vai nos convidar para tomar um vinho? — ironizou Charles.

— O que seria uma excelente idéia. — O olhar de César observava a enorme mesa de carvalho do escritório. — Acredito que aqui tenha uma excepcional garrafa de uísque, do lado direito e debaixo da mesa.

Julian não pôde conter o riso. Havia alguma coisa em César que o fazia lembrar Charles. O mesmo descaramen­to, sem dúvida.

— Como sabe disso? Imagino o que mais você sabe e que eu desconheço — comentou Julian.

— Se você me desamarrar e servir um copo de uísque, ficarei feliz em contar.

Julian olhou para Charles com um ar divertido.

— Estou aqui pensando quem esse camarada me lem­bra — observou Julian. E sem esperar resposta, seguiu para desamarrar César.

Abrindo uma gaveta da mesa, Julian pegou uma garra­fa de uísque e três copos. Ele serviu a bebida e entregou para os outros dois homens.

— Quando você vasculhou os estábulos? — pergun­tou Julian.

— Antes do nosso encontro no pasto de Beckworth. Eu disse a verdade quando afirmei que você não precisa­va temer minha tribo.

— Então, responda: por que o encontramos bisbilhotando a propriedade a esta hora da noite?

— Não vou negar que alguns dos meus já lhe fize­ram uma visita antes e pegaram algumas coisas. Mas juro que não foram os ciganos que começaram o incêndio.

— É tudo muito interessante, porém ainda não expli­ca o que você estava fazendo esta noite — observou Charles.

César pareceu surpreso.

— Eu pensei que fosse óbvio. Eu estava seguindo o homem de casaco preto. Vocês não o viram?

Julian quase o chamou de mentiroso, mas então se lembrou de que poucos minutos antes de ver César, ele pensara ter visto alguma coisa perto da entrada dos fundos.

— Ele está mentindo! — vociferou Charles, como se tivesse lido os pensamentos de Julian,

— Não acredito. Minutos antes de ver César, pensei ter visto um movimento estranho.

— É mesmo? — Charles ergueu uma sobrancelha.

— Pensei ter visto um vulto. — Julian lançou um olhar duro para César. — Presumindo que esteja falando a verdade, por acaso reconheceria o homem que viu entran­do na casa?

— Não. Parte do rosto dele estava coberto por uma echarpe escura, além do chapéu preto, que escurecia boa parte de suas feições.

— Mesmo que tenha visto esse sujeito, ainda não explica o que você estava fazendo em Dower House — resmungou Charles.

— Ciganos ganham a vida dizendo meias verdades e às vezes mentiras completas. A reputação de sermos ladrões não é totalmente desmerecida, mas — César ergueu a cabe­ça e olhou para Julian — temos a nossa honra. Quando dis­se que não precisava ter medo de nós, era verdade. Somos ladrões, patifes se você preferir, mas não causamos incên­dios ou ameaçamos vidas. Sei que os danos causados na sua casa não foram feitos pelos ciganos, mas estou curio­so para saber a identidade do verdadeiro culpado. Foi por isso que você me descobriu na casa hoje.

— Muito-suspeito — Charles desafiou. — E mais uma coisa: para um cigano malandro você fala muito bem o nosso idioma.

— Meu pai deu à minha mãe uma quantia em dinhei­ro, insistindo para que parte fosse destinada à minha educação. Posso não ter freqüentado uma escola de pres­tígio, mas também não sou um ignorante.

— Desculpe-me, fui rude em meu comentário — con­fessou Charles, sentindo-se constrangido.

— Esta noite foi a primeira vez que você viu esse sujei­to? — indagou Julian abruptamente.

— Sim. E não pretendia perdê-lo de vista. Eu o segui para dentro da casa, mas falhei em descobrir suas inten­ções. À não ser pelos lugares onde um pouco do luar ilu­minava, o resto da casa estava totalmente às escuras. Eu o perdi no momento em que entrei. Fiquei imóvel na ten­tativa de ouvir seus movimentos, mas não ouvi nada. Não tive outra opção senão sair dali, temendo que minha presença fosse denunciada. Eu tinha acabado de deixar a casa quando vocês me pegaram.

— Quer dizer que, enquanto estávamos perdendo tempo com você, o larápio fugiu? — questionou Charles, enfurecido.

— É possível. Não fazia idéia de que ele conseguiria sumir dentro da casa em um passe de mágica.

— Não há razão para voltar para lá esta noite — comentou Julian, pensativo. — Ele provavelmente nos ouviu e fugiu. Esse sujeito pode estar em qualquer lugar agora. Pelo menos sabemos que alguém está usando Dower House para fins obscuros. Estou pensando que o incêndio na casa pode ter sido causado para parar ou atrasar o serviço, talvez para mandar minha madrasta embora. Por enquanto, devemos considerar que o homem que vimos hoje é o mesmo que provocou o incêndio.

Deixando o problema de lado, Julian não estava certo sobre como proceder com César. Em um primeiro momen­to, pensou em agradecer-lhe pela preocupação e mandá-lo embora. Por outro lado, percebeu também que, de um jei­to ou de outro, César estava interessado nos movimentos do estranho, pois por causa dele havia suspeita sobe sua gente. Além do mais, Julian não podia ficar contra alguém que queria saber a verdade.

Depois de muita discussão entre os três, ficou decidi­do que Charles e César voltariam para Dower House para pegar o cavalo de César, que estava escondido perto da floresta. Concordaram em trabalhar juntos, porém não de maneira independente. Julian sentia que devia isso a eles, e com Marcus ausente, precisaria de ajuda. Entretanto, ainda restava um problema: como poderia mandá-los caçar um monstro sem deixar de avisar o que estavam por enfrentar? Será que confiaria aos dois um segredo de Nell?

Com a cabeça cheia de preocupações, Julian caminhou lentamente para a casa principal. Tentou encarar aque­la noite de maneira positiva. Até então, não havia gran­des progressos em sua investigação particular. Ao menos tinha se certificado de que, de fato, havia alguém ron­dando a propriedade. E essa pessoa só poderia ser o assassino dos pesadelos de Nell.

Ao chegar em casa, tirou as roupas e foi para o quarto de Nell. Prometeu a si mesmo que no dia seguinte vascu­lharia cada canto de Dower House. A idéia de que as masmorras dos pesadelos de Nell poderiam estar debaixo de Dower House era aterrorizante.

Deitou-se na cama ao lado dela, puxando-a para jun­to de si. O calor daquele corpo lhe faria bem. Ela dormia profundamente, e nem se mexeu quando ganhou um bei­jo na testa. Julian acariciou-lhe o ventre onde o filho de ambos crescia. Com a família a salvo, o mal parecia bem longe dali, e ele adormeceu.

Deitada contra o corpo de Julian, Nell gemia e luta­va contra mais um pesadelo. Diferente dos anteriores, ela foi confrontada por uma total escuridão, incapaz de ver ou adivinhar onde estava. As paredes se fechavam sobre ela, dando-lhe a sensação de estar num corredor. Era possível sentir a presença do assassino pelo som da respi­ração ofegante. De alguma forma, sabia que ele a aguar­dava na escuridão.

A vontade de Nell era de gritar toda a ansiedade e o desespero que a acometiam, ao descobrir-se a próxima vítima. No entanto, havia uma presença muito forte a ampará-la, e o grito morreu em sua garganta.

O assassino estava ali, ouvindo tudo, calculando o próximo movimento. O tempo imaginário divergia do real. Um minuto parecia levar uma eternidade. Quando ele finalmente se moveu, foi para acender uma tocha. Na fraca luz, Nell comprovou que estava mesmo em um corredor, terminando em uma escadaria de pedra.

De repente, ele desceu correndo até abrir o portão de entrada da masmorra. Nell se apoiou na parede com a esperança de ver outra vítima. Para seu alívio, a não ser pelo assassino, o lugar estava vazio. O casaco preto flutuava ao redor da figura alta e de ombros largos, enquan­to outra tocha era pendurada na parede. Por um segun­do, vislumbrou o perfil do criminoso, porém um cachecol vermelho escondia a parte de baixo de seu rosto, e o cha­péu enterrado na cabeça deixava-o igual a qualquer outro homem.

Ela observava as costas do assassino, sentindo náu­seas quando o viu acariciar uma mancha de sangue no lugar onde suas vítimas haviam sido executadas.

Subitamente, ele virou a cabeça e, olhando por sobre o ombro direto, pegou-a desprevenida, vislumbrando-a por inteiro. O terror tomou conta dela quando seus olhares se cruzaram. Ficou paralisada ao se dar conta de que a partir daquele momento ele podia reconhecê-la.

No emaranhado de cenas e sensações, ela se viu apri­sionada por braços fortes. Sentiu o ar quente da respira­ção dele em seu pescoço, a voz rouca a sussurrar palavras ininteligíveis. Até que se sentou em um sobressalto e gritou em desespero.

Sintonizado com a esposa de uma maneira que nunca pensara ser possível, Julian acordou quando ela começou a se movimentar aflita. E antes mesmo de Nell se sentar e gritar, ele já sabia que outro pesadelo a afligia.

— Querida, acorde! — chamou Julian, com a mão acariciando o braço e o ombro desnudo.— Você está a salvo, estamos juntos. Acorde.

Ela engoliu um soluço e, com o corpo tremendo, jogou-se nos braços do marido. Estava tão apavorada que não conseguia dizer nada. Julian seguiu confortando-a até ela se recompor.

— Foi muito ruim? — ele perguntou com ansiedade na voz.

— Uma luz, por favor — pediu Nell, por fim. —Acho que nunca mais suportarei a escuridão.

Julian a deixou apenas pelo tempo suficiente para acender uma vela e colocá-la perto da cama, voltando em seguida para abraçá-la.

— Você está segura, querida. Encostada no corpo forte, ela tremia.

— Você não pode detê-lo — Nell ergueu a cabeça, os olhos cheios de horror. — Ele me viu... Sabe quem sou.

— O que quer dizer?

— Você não entendeu? Aquele assassino olhou dire­to para mim. Fui reconhecida, e na certa serei perseguida por saber seus segredos.

— Nell, calma, querida. Você está falando coisas sem sentido — Julian tentou convencê-la. — Você não estava escondida? Como ele a teria visto?

— Eu não sei — ela respondeu em voz baixa. — Não se esqueça de que nem tudo tem lógica em um pesa­delo. Mesmo assim, tenho certeza de que ele me viu. Olhamos diretamente um para o outro, e...

— Mas se ele olhou na sua direção, você viu o rosto dele também. Você o reconheceu?

— Não. Ele usava um cachecol que cobria metade de seu rosto e um chapéu que cobria a testa. Vi apenas aqueles olhos horríveis. Você tem de acreditar em mim!

Julian aquiesceu com a cabeça, pensando na descri­ção que César fizera do homem que ele havia seguido em Dower House naquela noite. Por mais incrível que pare­cesse, os dois haviam descrito a mesma pessoa.

— Deixe-me pegar um pouco de uísque para você em meu quarto — Julian se ofereceu enquanto acariciava as costas dela —, e voltamos a conversar. Você não foi a única que viu o homem misterioso hoje.

Quando Julian se levantou da cama, Nell agarrou seu braço.

— Não. Não me deixe nem por um momento! — ela implorou.

— Então venha comigo.

Em seu quarto, Julian vestiu um robe, atiçou o fogo e acendeu algumas velas. Enquanto Nell se acomodava em uma poltrona diante da lareira, ele serviu uma dose dupla de uísque e sentou-se em frente a ela.

— Quem vai falar primeiro? — ele indagou.

— Você — respondeu Nell rapidamente.

Julian contou tudo o que tinha acontecido naquela noite.

— E pensar que vocês estiveram tão perto de apanhá-lo! — ela exclamou ao final do relato.

— Acredite, foi pena que não soubéssemos antes que César também estava envolvido. Se ao menos tivésse­mos trabalhado juntos... — Ele balançou a cabeça. — Ao menos descobrimos uma coisa: Dower House tem algum significado para o assassino.

— Você acha que as masmorras dos meus pesadelos estão em Dower House?

— Sim, eu acho. É a única coisa que faz sentido. E amanhã eu pretendo procurar por elas.

— Deve haver alguma passagem dentro da casa — sugeriu Nell. — Quando o pesadelo começou, tive a impressão de que estávamos em um túnel, uma passa­gem muito estreita. Pelo que você me contou, o assassino estava em um lugar assim, ouvindo César. Acredito que ele tenha ficado escondido por um bom tempo, para ter certeza de que ninguém o seguiria até a masmorra.

— Tem certeza de que quer continuar falando sobre isso?— Julian indagou.

Nell tomou um gole de sua bebida antes de responder.

— Sim, é melhor. — E ela contou todos os detalhes de seu pesadelo, titubeando apenas ao relatar o momento em que ficara frente a frente com o assassino.

— Será que ele realmente a viu? — Julian perguntou ao final do relato.

— Sim, tenho certeza.

— Para mim, ainda está tudo muito confuso. Parece que a ligação de vocês não é mais unilateral. — Julian olhou para Nell e praguejou quando viu o terror no ros­to dela. Largando o drinque, ergueu-se e fez com que ela se levantasse também, para em seguida sentar-se no lugar dela e puxá-la para seu colo.

— Meu amor, não se aflija, não deixarei que ele a machuque. Eu prometo!

— A menos que me tranque em algum lugar, não vejo como pode me proteger.

— Não seja tola! Ele não vai conseguir tirá-la de dentro de sua própria casa.

— Talvez. Não se esqueça de que eu não o reconheci. Mesmo o tendo olhado bem de perto, não pude ver nada além dos olhos. Até agora sabemos apenas que trata-se de um homem alto, forte e jovem, ou seja, uma descrição que se encaixa em centenas de homens.

Não havia como contestá-la, razão suficiente para Julian ficar assustado. Com medo de que o homem sem rosto pudesse arrancá-la de seus braços, instintivamen­te ele a segurou com mais força. E jurou que a defenderia com a vida, se necessário fosse.

A semana seguinte começou tensa e frustrante. Julian se levantou cedo e procurou em todas as plantas da anti­ga construção, que tinha guardadas na biblioteca. Antes daquele dia, nunca tinha prestado muita atenção naquela papelada, mas ficou contente ao descobrir que seu tataravô fora meticuloso o suficiente para preservar o passado.

Sentiu um calafrio ao abrir a planta de Dower House, pois tinha certeza de que o mistério das masmorras logo seria revelado. Infelizmente não foi o que aconteceu. Não havia ali nada que lhe desse pelo menos uma pista da localização das masmorras.

Desapontado, mas sem desistir, Julian foi para Dower House, determinado a encontrar a entrada para as mas­morras que sabia que existiam. Ao chegar lá, encontrou os trabalhadores ocupados com a reforma e dispensou-os com uma desculpa qualquer. Em seguida, passou a exa­minar todas as paredes e qualquer coisa que escondesse uma trave, fechadura ou segredo para uma entrada secre­ta. Pelo que Nell havia contado sobre seu pesadelo, era certo que a entrada estava em algum lugar dentro da casa. No entanto, para sua crescente frustração e ansiedade, não encontrou nada.

Aqueles dias não foram menos frustrantes e ansiosos para Nell. Não era muito afeita a histerias, mas assustava-se ao mais leve movimento. A menos que Julian estivesse a seu lado, raramente saía dos cômodos principais da casa. O medo tornara-se seu companheiro, seguindo-a a cada passo. Não havia um segundo sequer em que não esti­vesse consciente do perigo, ou de que o assassino pode­ria estar por perto, talvez observando-a, planejando seu próximo movimento.

Apesar do temor, ela tentou convencer Julian a deixar que ela o acompanhasse até Dower House para procurar a entrada secreta, mas ele fora categoricamente contra.

— Não a quero fora desta casa sob nenhuma circuns­tância! — ordenou com veemência. — Essa entrada está muito bem escondida. Não vou permitir que esse assassi­no a pegue quando eu não estiver prestando atenção.

Muito a contragosto, Nell obedeceu, lembrando-se de que era responsável também pelo filho que carregava no ventre. Além do mais, estava ciente de que a gravidez a deixava perigosamente vulnerável.

Embora Julian, Charles e César se revesassem na vigi­lância de Dower House, não houve mais nenhum sinal do homem misterioso. Conforme os dias iam passando, maior era o desânimo de Charles.

Ao acompanhar a madrasta e o irmão em visita a Wyndham Hall, ele cumprimentou a todos e perguntou por Julian. Foi informado de que o primo estava em Dower House. Resolveu passar o tempo ouvindo a madrasta versar sobre as peripécias de seu maravilhoso filho Raoul quando criança. Por sua vez, o irmão flertava com Elizabeth. Antes que a situação ficasse insuportável, ele se desculpou e saiu para se encontrar com Julian.

Charles o encontrou atrás da casa, procurando as anti­gas fundações, incorporadas à nova cozinha.

— Encontrou alguma coisa? — indagou Charles. Julian sobressaltou-se.

— Será que você precisa chegar assim, de supetão?

— Não imaginei que fosse assustá-lo. — Charles ergueu as sobrancelhas.

— Não é isso — admitiu Julian. — A idéia de que o homem do casaco pode se aproximar sem ser notado é que me levou a fazer esse comentário. Desculpe-me.

— Não é necessário. — Charles olhou na direção das fundações. — O que está procurando?

Julian hesitou. Por manter a promessa de não contar o segredo de Nell, não podia contar a Charles e a César o que, na verdade, estavam enfrentando. Procurou avida­mente uma maneira de dar uma pista a ambos sem revelar tudo. Foi então que ele teve uma idéia.

— Estive pensando no que César disse sobre a manei­ra misteriosa com que o homem desaparecera naquela noite. Está certo que a casa escura favorecia o desapare­cimento, mas não poderíamos considerar a possibilidade de haver um caminho ou um compartimento secreto?

— Você andou lendo um daqueles romances góticos? — Charles perguntou, desconfiado.

— Não. Mas pense nessa hipótese. Se houver uma pas­sagem secreta, isso explicaria como ele sumiu sem dei­xar vestígios.

Charles não parecia convencido, mas ergueu os ombros, concordando.

— Muito bem. Até onde você procurou?

— Por todo lugar. Passei a última semana vasculhando todos os cantos da propriedade.

— Você pode ter deixado escapar essa tal entrada, se é que ela existe — comentou Charles, aborrecido.

— Estou certo de que há uma passagem. É a única explicação para o que aconteceu.

Observar Raoul fazer a corte a Elizabeth não era um dos passatempos favoritos de Nell, e naquela tarde não foi diferente.

Nos últimos dias, o rapaz a havia visitado, deixando evidente as suas intenções. Nell gostaria que Elizabeth se casasse com um homem que tivesse mais a oferecer do que Raoul Weston. Ele era bonito e apresentável, porém não era um cavalheiro dono de terras. Afora isso, vivia com a generosa mesada de sua mãe, o que indicava que teria de esperar muito para herdar a fortuna da família. Razão pela qual seria melhor se a moça se casasse com alguém que já tivesse, ao menos, um título. Nell riu de si mesma, entendendo pela primeira vez o desejo de seu pai de vê-la casada com um homem importante e de posição.

Foi um alívio quando as visitas se despediram. Logo depois, Diana e Elizabeth saíram para fazer uma visita à esposa do magistrado.

Após se despedir das duas, Nell percebeu que, a não ser pelos criados, estava sozinha na casa. Já não estava mais tão aterrorizada como nos dias que se seguiram ao último pesadelo, mas continuava apreensiva.

De repente desejou que Julian estivesse de volta ou que tivesse acompanhado Diana e Elizabeth. Respirando fundo, decidiu que estava sendo tola demais, pois se esquecera de contar com a presença dos criados. Pensando assim, decidiu dar uma volta pelo jardim.

Aquilo era ridículo, ela decidiu com firmeza. Estava perfeitamente segura.

Era um dia adorável para um passeio nos jardins, e descendo as escadas Nell entrou por um caminho do lado direito da casa. Alguns minutos depois de andar pela pro­priedade bem-cuidada, ela encontrou um banco de pedra perto do lago onde um salgueiro fazia sombra e se sentou, apreciando o zumbido as abelhas e o perfume dos lírios e das rosas que pairava no ar. O gentil murmúrio dos insetos e o calor do dia a afetaram sem que ela percebes­se, e Nell acabou adormecendo.

Ela acordou assustada e quase pulou quando descobriu que Sofie Weston estava sentada a seu lado no banco.

— Ah, eu não queria assustar você — disse Sofie, acariciando a mão dela.

Lutando contra os resquícios do sono, Nell tentou sentar-se direito.

— Devo ter adormecido — ela murmurou. — A senho­ra esqueceu alguma coisa?

— Foi muita sorte minha ter visto você adormecida aqui no jardim, e não ter Dibble para me anunciar. — O sorriso no rosto dela desapareceu, e com aqueles olhos de cobra pretos e brilhantes fixos em Nell, ela disse: — E agora, antes que alguém descubra que eu voltei, acho que é hora de irmos. Isso já foi muito adiado. — A voz dela endureceu. — Adiado por dez anos.

O horror tomou conta de Nell, assim como a compreensão do que estava acontecendo.

— Era você naquele dia! — ela disse com a voz bai­xa. — Foi você que me acertou por trás, na cabeça. — Os olhos dela se arregalaram. — Isso significa... — Nell não conseguiu dizer em voz alta.

Sofie se levantou.

— Teremos tempo para conversar sobre isso mais tar­de. Agora você precisa vir comigo sem fazer barulho, ou eu atirarei em você.

Nell levantou-se devagar, os olhos sobre a peque­na pistola que Sofie segurava. Apenas uma coisa estava clara para Nell: ela não iria para lugar algum com aque­la mulher. Não enquanto estivesse viva. Se ela pudesse manter a sra. Weston falando...

— Por quê? — perguntou Nell. — Por que ele matou John?

Sofie parecia impaciente.

— Porque meu enteado mais velho era um idiota e estava determinado que meu filho se casasse com uma estúpida filha de fazendeiro. A vadiazinha foi tola o suficiente para engravidar e pensar que poderia agarrar meu Raoul. — O rosto dela parecia esculpido em pedra. — Meu Raoul. Meu filho! Casado com uma simples filha de fazendeiro!

— E ele matou o irmão por isso? — Nell perguntou, incrédula.

— Isso não importa — retrucou Sofie. — Comece a andar para trás do jardim. Ele está lá esperando por nós com a carruagem.

Os pés de Nell ficaram enraizados no lugar.

— Não até a senhora responder a algumas perguntas — Nell falou com determinação, apesar do medo que esta­va sentindo.

Os dedos de Sofie apertaram a pistola e Nell temeu que pudesse levar um tiro ali mesmo onde estava. Na verda­de, era melhor do que ser retalhada por... Raoul Weston... o assassino.

Confrontada pela postura obstinada de Nell, Sofie achou a atitude dela inesperada, e parecia incerta sobre qual seria seu movimento.

— Meu filho não queria matar John. Raoul ia apenas falar com ele, fazê-lo entender que ele estava levando a honra a um ponto ridículo. Mas John não quis ouvir. Ele falou bobagens como não ter outro velho conde na famí­lia. Jurou que Raoul faria a única coisa honrosa e casar-se com ela, ou ele contaria ao pai deles. Eles brigaram e... John morreu.

— E quanto a mim? Você tentou me matar, e quase conseguiu.

— O que mais eu poderia fazer? Você foi de encontro a um assunto que não era da sua conta. Não podíamos dei­xar você viva para contar a todo mundo o que tinha visto. — Uma expressão de ódio tomou conta do rosto de Sofie.

— Você ter sobrevivido foi um milagre. Você ter reapare­cido em nossas vidas, casada com meu sobrinho, ia além da má sorte. As agonias que Raoul e eu temos sofrido, temendo que você pudesse se lembrar de alguma coisa ou reconhecê-lo... Você já deveria estar morta, e desta vez não vamos falhar. — Ela deu um passo à frente. — Ou você anda para trás do jardim ou eu atiro em você aqui mesmo.

Ter crescido numa casa com homens tinha as suas vantagens, foi o que Nell pensou quando ergueu o punho e deu um soco de direita em Sofie. A mulher girou sobre os calcanhares e caiu no chão como se fosse um saco de batatas.

Mesmo grávida, Nell foi para cima dela como um tigresa sobre sua presa e tirou a pistola da mão dela. Segurando firmemente a arma, ela tentou se levantar.

Respirando com dificuldade, ficou sobre a forma de bruços de Sofie por tempo suficiente para ver que a mulher estava desmaiada. Nell estava se virando para correr para casa, quando o mundo diante dela escureceu.

Ela tinha se esquecido de Raoul...

Nell acordou com uma forte dor de cabeça. Sentindo-se enjoada e desorientada, tateou o espaço à sua volta para ter uma ideia de sua situação. Estava deitada e fez um esforço imenso para se levantar. Ficou confusa com o fato de suas mãos estarem amarradas e de ela estar deitada no chão... um chão de pedra... e então ela soube.

O medo feria sua garganta e ela tentou não gemer. Ela estava na masmorra. Nos domínios do assassino.

O pavor fez com que o mal-estar desaparecesse, e sen­tada no chão, ela desajeitadamente fugiu para tão lon­ge quanto pôde. Somente quando suas costas tocaram a parede ela parou.

Por um instante, pensou por que não havia sido amor­daçada... e então percebeu que isso não importava. Porque como aquelas outras pobres mulheres, ela poderia gritar até o reino vir abaixo que não faria a menor diferença. Ninguém poderia ouvi-la.

O terror agitou-se dentro de seu peito. Tinha de se con­centrar em fugir. Pelo menos tentar, quando tivesse uma chance. Contra dois? Ela estremeceu. Em seus pesadelos, era apenas um homem... Raoul. Nell torceu para que sua miserável mãe não tivesse vindo com ele.

Tentando se livrar das cordas que prendiam suas mãos à frente: do corpo, ela ficou atenta para qualquer som. Pense, dizia para si mesma, pense. Raoul batera nela. Ele e sua mãe a trouxeram para a masmorra. Mas quan­to tempo fazia isso? Quanto tempo fazia que estava ali? E onde exatamente era a masmorra?

Nell tentou roer as cordas, mas não conseguiu. Os nós estavam muito apertados e depois de alguns momentos sem sucesso, ela desistiu. Com a cabeça contra a parede, olhava para a escuridão à sua frente.

Ela se esforçava para ficar em pé, mantendo-se encos­tada à parede, caminhou pela sua prisão e sobressaltou-se quando encontrou barras de ferro. De seus pesadelos, ela se lembrava vagamente que havia duas pequenas celas que ficavam naquela pequena área. Ela estava dentro de uma delas.

Mais adiante, uma cuidadosa exploração deu a ela as dimensões de sua cela, que era composta por três pare­des e as grades à sua frente. Também estava vazia, e não havia nada que ela pudesse usar como arma.

Derrotada por um momento, ela caiu bruscamente con­tra a parede próxima às barras de ferro e começou a roer as cordas de suas mãos. Libertar as mãos não iria melho­rar sua situação, mas certamente faria com que se sentisse melhor, e pelo menos não ficaria completamente indefesa. Com vigor renovado, ela recomeçou a morder as cordas.

Ela então começou a traçar uma linha de tempo. Fora no final da tarde que havia sido raptada. O maior peri­go para os Weston fora tirá-la do jardim para colocá-la na carruagem, e uma vez que conseguiram, estavam a salvo.

Ela franziu o cenho. Julian estava em Dower House, então ela duvidou que eles tivessem ido diretamente para lá. Não. Eles esperaram até que ele saísse. Era improvável que se arriscassem a movê-la da carruagem para a casa até o escurecer, então algumas horas deviam ter se passado.

Um alarme já deveria ter sido dado, e ela sentiu um fio de esperança aquecê-la por dentro. Naquele exato momento, Julian estava procurando por ela, e moveria céus e terras para encontrá-la. Esse pensamento a confor­tou e renovou suas energias.

Nell vibrou quando sentiu um dos nós se afrou­xar. Fervorosamente, trabalhou naquele nó, até que um momento depois ele se desfez. Levou mais algum tempo para que se soltasse por completo.

Sentindo-se mais confiante, ela se levantou outra vez, e com uma das mãos tocou a barriga. Havia mais uma vida correndo perigo, ela se lembrou. Julian viria salvá-la. Ela sabia. Tudo o que precisava fazer era manter a si mesma e ao bebê vivos. Julian daria o alarme e as pessoas procurariam por ela.

Nell não se enganara. Chegando de Dower House, Julian foi recebido por Diana e Elizabeth, que haviam retornado minutos antes dele de sua visita. Deixando-as na sala de estar, ele foi atrás da esposa, pensando que ela estava dormindo em seu quarto. Não a encontrando e com uma ansiedade crescente, ele correu a casa em bus­ca dela. Quando não a encontrou em parte alguma, Julian ficou ensandecido. Lutando contra o próprio medo e a náusea que o invadia, ordenou a cada homem, mulher ou criança da propriedade que procurar por Nell, deixan­do apenas Diana, Elizabeth, Dibble e alguns criados na casa.

Diana foi rápida em organizar um mapa para saber onde todas as partes envolvidas na busca estavam.

— Toda a informação deve chegar aqui — ela comu­nicou Julian. — Precisamos saber o que está acontecendo em todo o lugar, assim podemos saber de qualquer novi­dade assim que possível. — Ela sorriu gentilmente para Julian. — Não tenha medo. Nós a acharemos. Tenho cer­teza de que ela foi dar um passeio e se afastou demais, e não duvido que ficará embaraçada por ter causado tanta confusão. Não se preocupe, Julian.

Enquanto uma parte da operação estava acontecendo, Julian mandou um recado para Charles, um para o magis­trado e outro para lorde Beckworth, avisando que Nell estava desaparecida e que ele precisava desesperadamente da ajuda deles para encontrá-la. Em questão de poucas horas, um exército de voluntários das outras proprieda­des se reuniram para participar das buscas. Não querendo confiar em qualquer um com medo de falar sobre o assas­sino, ele manteve seu terror bem escondido de todos. Ninguém ao ver seu rosto preocupado, contudo, tinha dúvi­das de que havia alguma coisa mais séria acontecendo.

Charles e Raoul responderam ao chamado imediata­mente, e estavam entre os primeiros vizinhos que chega­ram. Depois de dizer para Raoul para se juntar ao grupo de pessoas que estavam para as florestas do norte e que ele os alcançaria assim que visse Julian, Charles entrou na mansão. Chegando lá dentro, ele quase colidiu com Julian no hall de entrada. Após ter feito tudo que podia na casa, Julian estava saindo para começar sua própria bus­ca. Charles deu uma olhada no rosto do primo e segurou-o pelo braço.

— Vamos achá-la. Vai ver que ela se perdeu na floresta.

— Sim, nós a acharemos... E se alguma coisa tiver acon­tecido com ela... — Ele respirou fundo. — Isso tem ligação com o homem do casaco. Estou indo para Dower House. Temos de descobrir como ele desapareceu tão facilmen­te, mesmo que eu tenha que botar aquela maldita casa abaixo, pedra por pedra.

— Você acha que ele a raptou?

— Sim. E acredite quando eu digo que Nell não esta­ria vagando por aí, não por vontade própria. — Julian pas­sou a mão pelos cabelos. — Eu não posso explicar tudo agora, porém há razões, boas razões para que eu acredi­te que isso é verdade. — Ele fechou os olhos. — Charles, se você gosta de mim, não faça perguntas, apenas saiba que a vida de minha esposa corre perigo, e que a única maneira de encontrá-la é achar uma pista que leve ao homem do casaco.

— Está bem. Vamos embora — disse Charles.

Ele se virou para um ansioso Dibbles que tinha acaba­do de entrar no hall.

— Se surgir qualquer novidade, qualquer uma, nós estaremos em Dower House.

Dibble concordou com um gesto de cabeça.

— Você está armado? — Julian perguntou ao saírem da casa.

— Como sempre.

Uma vez em Dower House, eles concentraram seus esforços na área perto da cozinha, o lugar onde César tinha perdido o homem do casaco. Com o rosto tenso, Julian agarrou a parede à sua frente, preparado se neces­sário para desmontar a casa toda.

Nell viu um fraco raio de luz no meio daquela escu­ridão e prendeu-a respiração. O homem estava vindo! Ela podia ouvir seus passos se aproximando, observava enquanto o brilho amarelo aumentava e ficava mais pró­ximo. Encolheu-se contra a parede de pedra, querendo entrar dentro dela e desaparecer.

Os passos pararam em frente à cela e a luz iluminou sua prisão. Nell piscou por causa da luz repentina. Após um momento, ela pôde ver o vulto de um homem parado atrás de uma lanterna e seu coração disparou.

— Bem, o que temos aqui? — Raoul se moveu detrás da lanterna. — Quem pode ser? — Ele riu. — Você ficará feliz em saber que seu marido está fazendo de tudo para encontrar você. — Ele riu novamente. — Mas ele não vai conseguir... pelo menos, não a tempo.

Nell se levantou devagar, lutando contra o medo.

— Eu não estaria tão certo — ela falou com uma voz fria. — Ele sabe sobre este lugar... e o que você faz. Ele encontrará este lugar e você.

— Se ele encontrar — disse Sofie, ao lado do filho —, então ele irá morrer, o que nos servirá muito bem. Raoul será um excelente conde de Wyndham.

— Você não está se esquecendo de Charles? — inda­gou Nell, nem um pouco surpresa com o louco plano deles. — Mesmo que você mate a mim, meu marido e meu filho, Charles continuará no seu caminho.

Raoul deu uma gargalhada.

— Acredite, eu não me esqueci de Charles. — Ele pare­cia pensar sobre o assunto. — Eu temo que Charles poderá sofrer um trágico acidente. Um que seja fatal, desta vez.

Alguma coisa despertou na mente de Nell. Alguma coisa sobre Charles ter a sorte de um demônio... Ela prendeu a respiração.

— O barco! Foi você quem fez aquilo!

Raoul se virou para pendurar a lanterna em um prego na parede.

— Sim, foi trabalho meu, de fato. Ele provou ser um bastardo sortudo demais para ser morto, mas isso logo será feito. — Ele fez uma pausa. — Não tão rápido, pois não queremos levantar suspeitas.

— Ele é seu irmão! Como você pode?!

— Meio-irmão — corrigiu Sofie com rispidez. — Eu me preocuparia com o próprio destino se fosse você, e não perderia tempo com a morte de meu enteado.

Nell olhou para ela e não pôde deixar de ficar feliz ao ver que Sofie estava com uma bela mancha roxa no rosto.

— Você pensa que foi muito esperta me pegando de surpresa, mas você não foi esperta o suficiente para escapar do meu filho, foi?

— Pelo menos eu não agi como uma covarde e a acer­tei pelas costas.

— Meu filho não é um covarde — retrucou Sophie, com o rosto escurecido pela fúria.

Nell imaginou se poderia usar a devoção cega dela pelo filho de alguma maneira.

— Eu discordo de você — pressionou. — Qualquer um que ataque alguém mais fraco do que ele não passa de um covarde. — Seu olhar recaiu sobre Raoul. — Um covarde repulsivo que se esconde no escuro e só é corajo­so quando sua vítima está desesperada e indefesa.

Por um momento, Nell pensou que fora longe demais. Sofie segurava as barras da cela como se fosse arrancá-las.

— Palavras corajosas. Espere até sentir a faca de meu filho, então você não será tão insolente!

— Quer apostar? — perguntou Nell para tentar espan­tar o medo que sentia. — Ou você não irá ficar para ver o grande final? É muito sujo para você?

Raoul andou até as grades.

— Sim, temo que esse seja o caso. — Ele olhou com carinho para a mãe. — Pobre mamãe, ela tem um estôma­go muito fraco.

— Você sabia o tempo todo o que ele faz aqui? — Nell questionou, horrorizada.

— Claro que sim. Eu não aprovo esse tipo de... diver­timento, mas isso dá prazer a ele. Aquelas mulheres não eram nada, apenas estúpidas criaturas da ralé. Estão melhor mortas. — Ela olhou para Nell. — Como você estará, em breve.

— Mas ela precisa me responder uma pergunta antes — interveio Raoul. Ele tinha uma expressão confusa.

— O que aconteceu entre nós naquela outra noite? Você me viu e eu vi você. Como isso é possível? Eu pude sen­tir alguém me observando e quando me virei vi seu rosto. Isso é algum tipo de mágica? Bruxaria?

— Eu não sei — respondeu Nell depois de pensar se deveria dizer a ele ou não. — Sei apenas que depois daquele dia no penhasco eu tenho esse tipo de ligação com você... Com a violência do que você faz aqui.

Ele pareceu preocupado e nervoso ao mesmo tempo.

— O que quer que seja, acaba esta noite! — ele ameaçou.

Colocando a chave na fechadura da cela, Raoul a des­trancou e abriu a porta. Nell estava tão assustada que mal conseguia respirar, tentou se afastar dele enquanto ele entrava.

Não facilite as coisas para ele, pensou. Não deixe que ele escape ileso. Chute! Morda! Arranhe! Lute por sua vida.

 

Enquanto as horas passavam, Julian e Charles não descobriram nada que pudesse ajudá-los. O medo e o ódio de Julian cresciam tanto que ele pensou que fosse explodir. Com uma marreta na mão, batia repetidamen­te na sólida parede, lutando para controlar suas emoções. Estava trabalhando num ponto promissor, perto da despensa da velha cozinha. Alguma coisa no modo como a parede fora construída chamou sua atenção. Além disso, atacar a argamassa e tijolos era a única coisa que o matinha são. Nell estava ali, em algum lugar. Como prisionei­ra, talvez sendo torturada pelo assassino naquele exato momento. Somente um rígido controle evitava que ele gritasse de medo e tristeza,

Eu tenho de encontrá-la. Eu prometi! Jurei que a manteria a salvo...

Ele e Charles desistiram de procurar cuidadosamen­te por uma entrada secreta e optaram pela força bruta da demolição. Ele já tinha perdido muito tempo, já sabia que não havia nenhuma indicação clara da entrada para a masmorra, e a demolição completa era a única solução.

E mesmo assim ninguém ficou mais espantado do que ele quando a marreta bateu contra a parede e ao invés de se encontrar em um quarto ou olhar para o lado de fora, ele se viu olhando para a total escuridão. Seu coração quase saiu pela garganta. Jogou a marreta para o lado e gritou por Charles.

O primo, que estava ocupado em outra parte da cozi­nha, correu para o seu lado. Juntos, os dois olhavam para a abertura.

— Maldição! —exclamou Charles. — Existe mesmo uma entrada secreta!

— Você achava que não? — perguntou Julian, tirando os tijolos do caminho.

— Na verdade, achava — Charles admitiu. — Mas você parecia tão convencido, e a história de César fazia sentido, então eu acreditei que poderia haver uma possibilidade.

— Bem, então me ajude a limpar essa possibilidade para que possamos descer.

Com a entrada violada, levou apenas um momento para que eles encontrassem um mecanismo que abria a porta, que se abriu devagar, revelando os degraus estreitos que Nell tinha visto em seus pesadelos.

Quando Charles pegou uma vela, Julian balançou a cabeça em negativa.

— Não. Ele não deve ter nenhuma indicação de que nós estamos chegando — avisou Julian.

— Você tem certeza de que ele está lá embaixo?

— Tenho. E ele quer matar minha esposa. — Com o pé no primeiro degrau, ele puxou a pistola de suas roupas e olhou para Charles. — Fique com sua arma preparada, nós estamos atrás de um monstro. Esse homem é um assassino. Não hesite quando lutar com ele porque ele vai nos matar se tiver a chance.

— Existe mais em tudo isso do que você me contou.

— Sim. E eu peço desculpas por isso, mas a histó­ria não era minha, apenas acredite quando digo que esse homem matou seu irmão e muitas mulheres inocentes. Ele é um monstro.

Os olhos de Charles se transformaram em gelo.

— Você sabe que ela matou John?

Quando Julian fez um gesto afirmativo com a cabeça, Charles segurou firme sua pistola.

— Então vamos — disse Charles. — Eu espero há muito tempo para encontrar esse bastardo.

 

Nell lutou bravamente, mas ela não era páreo para Raoul e Sofie. Estava determinada a não facilitar as coi­sas para eles, e seus dentes, unhas e pés deixaram mãe e filho sangrando quando Raoul tentou tirá-la da cela e jogá-la na câmara principal no meio da masmorra. Ela caiu pesadamente no chão, gemendo de dor quan­do seu corpo bateu contra uma pedra, porém podia sentir satisfação nos danos que causara. Entre os vários ferimen­tos, o belo rosto de Raoul estava agora marcado por um longo corte que sangrava onde ela o tinha arranhado, o sangue jorrava da orelha, em decorrência de uma dentada que ela lhe dera, e o lábio inferior estava partido onde ela o acertara com a cabeça. Sofie tinha um corte na sobran­celha e um olho roxo para acompanhar o enorme machu­cado no queixo. Eles teriam trabalho para explicar aqueles ferimentos, Nell pensou enquanto tentava ficar de pé.

— Cadela dos infernos! — Raoul esbravejou, tocando o corte em seu rosto. — Você vai pagar por isto, e mui­to caro, antes que eu tenha terminado com você! — Ele olhou para Sofie. — Mamãe, a senhora está machucada?

— Ela me chutou. Eu perdi o fôlego — ela informou enquanto saía da cela com dificuldade para respirar.

Lutando para ficar em pé, Nell manteve um olhar aten­to para os dois. Não tinha escapado ilesa, seus pulsos estavam machucados e sangrando por causa das cordas, suas costelas doíam, o vestido estava rasgado no ombro e sua perna estava doendo. Um arranhão no queixo doía, e ela sabia que provavelmente seu olho direito ficaria tão escuro quanto o da sra. Weston, se ela vivesse tempo suficiente para isso.

Com as costas apoiadas na parede de pedra, ela encara­va os dois, pensando no seu próximo movimento. Seu olhar se fixou no chão, no buraco que vira em seus pesadelos, onde Raoul jogava os corpos. De lá, seus olhos seguiram para a pedra manchada de sangue no meio do cômodo e ela engoliu em seco. Seus pesadelos tinham sido precisos, ela admitiu, quase histérica. Imagens das outras mulhe­res surgiam em sua mente, e ela jurou a si mesma que morreria antes que Raoul a levasse para aquela pedra para fazer com ela o mesmo que fizera com as outras.

Freneticamente, ela procurou por uma arma, ou qual­quer coisa que pudesse ser usada como arma, porém não havia nada. Exceto... Seu olhar se deteve na lanterna que estava pendurada na parede, a poucos metros de sua mão, e também nos velhos juncos sobre o chão. Seus olhos cintilaram através do cômodo para a soleira da porta, e ela soube que por ali chegaria até as escadas e alcançaria sua liberdade.

Raoul percebeu para onde ela estava olhando e riu.

— Você nunca vai conseguir. — Um sorriso horrível entortou o rosto dele. — Mas vá em frente, a caçada irá apenas acrescentar um tempero ao que está por vir.

— Mate-a de uma vez e acabe logo com isso — orde­nou Sofie. — Você não pode demorar muito, ou eles irão sentir sua falta.

Raoul tocou o próprio rosto.

— Eu terei de explicar isto. Não posso voltar com esta aparência.

— Isso tudo é culpa sua — Sofie acusou Nell. — Se você não tivesse se casado com meu sobrinho, nada disso teria acontecido. Você quase estragou tudo. Tudo!

— Eu não posso ver como isso pode ser minha culpa, além disso, foi você que me trouxe aqui — ela salientou.

— Você está no nosso caminho — explicou Sofie. — Ia ser tudo muito simples antes de você aparecer. Eu sem­pre esperei que o destino permitisse que Raoul conseguis­se o título de Wyndham um dia, mas no começo havia muita gente na frente dele para que isso se tornasse rea­lidade. Então a mulher de Julian morreu, não deixando nenhum herdeiro, depois John, meu marido e o pai de Julian morreram. A morte de Daniel foi oportuna, um gol­pe de sorte, e nos fez perceber que o sonho, estava dentro do nosso alcance, com Daniel morto e Julian sem um her­deiro. Havia apenas Charles entre Raoul e o título.

— E ninguém — completou Raoul —, ficaria surpre­so se Charles tivesse morrido no acidente de barco ou se tivesse quebrado o pescoço num acidente de caça, ou até mesmo se algum marido ciumento o matasse. Nós plane­jamos para que a morte de Julian acontecesse um ou dois anos depois, quando sentíssemos que era seguro matá-lo sem levantar suspeitas.

— Um acidente, é claro... E quando meu filho fosse o conde — disse Sofie num tom complacente, que fez com que Nell desejasse colocar as mãos no pescoço dela —, Wyndham seria dele. — Ela lançou um olhar perverso para Nell. — Então você apareceu. Você e essa criança que está na sua barriga, e quase arruinou tudo!

— Estou surpresa que você não tenha me matado antes — Nell balbuciou.

— Eu teria — admitiu Raoul —, mas tinha de parecer um acidente, e você nunca estava sozinha. Você estava sempre segura em Wyndham, com um dos meus primos, ou com lady Diana e a srta. Forest. Nunca havia uma boa oportunidade para realizar meu plano. Se não fosse por isso... Àquilo que aconteceu na outra noite, você ser capaz de me ver em seu sonho, se não fosse por isso eu teria esperado uma oportunidade melhor. — Uma expressão sonhadora brilhou nos olhos dele. — Mas não faz mui­ta diferença, eu não pretendia deixar você viva para dar à luz, então seu tempo já estava contado.

Parecia que aquela conversa estava chegando ao final, e Nell cautelosamente observava os movimentos de Raoul e de Sofie. Eles estavam se separando e vindo na direção dela. Ela deu uma olhada na lanterna na parede, tentado­ramente perto. O tempo estava se esgotando e Nell sabia que se eles colocassem as mãos nela novamente, estaria tudo acabado.

A gravidez e sua perna ruim a deixaram desajeitada, porém, com uma velocidade e agilidade surpreendentes, ela tentou pegar a lanterna na direção oposta que eles pensaram que ela usaria. O movimento os pegou de sur­presa e eles congelaram por um segundo, e foi só o tempo de que Nell precisava.

Arrancando a lanterna da parede, ela a atirou com toda a força que possuía em cima de Sofie, que estava mais perto dela. O objeto atingiu em cheio o peito da mãe de Raoul, fazendo com que ela recuasse. Fogo surgiu na par­te da frente do vestido da mulher, que ao tentar apagar as chamas deseperadamente, tropeçou e caiu no chão.

Com Nell esquecida, Raoul gritou e correu para o lado de sua mãe enquanto ela rolava no chão, espalhando o fogo nos galhos secos e sobre os escombros. A fumaça acabou se espalhando e, tirando proveito da situação, Nell correu, tropeçando em direção à saída que estava desprotegida.

Vendo o que ela estava fazendo, Raoul foi atrás dela e a agarrou pelo cabelo.

— Não! — ele berrou. — Você não vai escapar! Nell se contorceu e tentou se libertar.

— Solte-me! Solte-me! — ela gritava, mirando um chute na perna dele.

Descendo as escadas, Julian ouviu a voz de Nell e, com um bramido, e Charles bem atrás dele, pulou os últimos degraus que restavam e entrou na masmorra.

Com as pistolas em mãos, Julian e Charles pararam ao entrar, e olharam espantados para Raoul, que segurava Nell pelos cabelos.

Pondo de lado o choque e o horror ao descobrir a iden­tidade do assassino, Julian se focou na única coisa que importava: Nell.

— Solte-a — ordenou. — Solte-a agora. Charles ficou pálido e com o queixo cerrado.

— Raoul? Você matou John?

— Eu fui obrigado — Raoul respondeu. — Ele ia me forçar a casar com uma maldita filha de fazendeiro, e não queria me ouvir. Ele não me deixou escolha.

— Solte-a — Julian repetiu, com o olhar fixo em Raoul.

Raoul sorriu e puxou a cabeça de Nell.

— Ou o quê? Você vai atirar em mim? Eu não acho que você ousaria. E se você errar? Está disposto a arriscar a vida dela?

Nell estremeceu quando ele puxou seu cabelo com mais força. Enquanto Raoul a segurasse, eles estavam num impasse, Julian ou Charles não arriscariam atirar. Ela tinha de fazer alguma coisa. Colocando as mãos jun­tas, Nell bateu com o cotovelo o mais forte que podia no abdômen de Raoul. O movimento o pegou desprevenido e ele perdeu o fôlego, sendo obrigado a soltá-la. Ele não a largou de vez, mas foi o suficiente para que Nell esca­passe e corresse na direção do marido.

A pistola de Julian não se moveu enquanto ele colocava

Nell a seu lado com o outro braço.

— Eu acho que a situação mudou. — Julian tinha um sorriso perigoso no rosto.

— Você não vai atirar em mim — afirmou Raoul, enfiando a mão dentro do casaco. — Eu sou seu primo. O grande conde de Wyndham não iria querer um escân­dalo, iria?

Sofie se levantou. Ela tinha apagado as chamas, e embora tivesse algumas queimaduras dolorosas, não eram sérias, pois a roupa a protegera do pior. Aos pés dela, alguns galhos ainda queimavam, soltando um pou­co de fumaça no ar.

— Ele está certo — a sra. Weston arquejou. — Como você vai explicar que atirou nele? Vai querer que todos saibam o que ele fez aqui?

— E o que meu irmão faz aqui? — perguntou Charles num tom baixo.

— Pergunte a ela — retorquiu Raoul, apontando para Nell. — Ela parece saber de tudo.

— Eu tenho pesadelos — explicou Nell —, e neles eu tenho visto Raoul, embora não soubesse que era ele quem matou seu irmão John perto de minha casa, e mais tarde torturava e matava jovens mulheres aqui... sobre aquela pedra.

— Prove! — Raoul provocou. — Tenho certeza de que o conde irá apreciar saber que sua esposa tem sonhos, visões como uma velha bruxa. Não será uma maravilhosa história para contar para seus finos amigos?

— Você acha que vou deixar você escapar para pro­teger meu nome e minha reputação? — Julian perguntou com a pistola apontada para seu alvo.

— Não o seu nome, mas para protegê-la, sim.

Ele tinha razão, pensou Julian amargamente. Sem reve­lar os pesadelos de Nell, não haveria provas do que ele fizera, e ele não podia atirar no bastardo a sangue-frio. Para proteger Nell, ele faria qualquer coisa, até mesmo deixar uma vil criatura como Raoul viver. Porém não livre, para matar quando bem entendesse. Nunca.

A solução escapou dele quando sentiu o corpo de Nell tremer. Tudo o que queria era tirá-la dali e levá-la para longe da presença venenosa de Raoul e de sua tia. A par­ticipação dela naquilo tudo ainda não fora explicada, mas era óbvio que ela era tão culpada quanto o filho, pelo menos no seqüestro de Nell. Quanto aos outros crimes... Ele sentiu a bile subir à garganta ao pensar que Sofie sabia das condenáveis ações de Raoul.

— Então o que vai ser? — indagou Raoul. — Ou me mata ou me deixa ir.

— Deixe-nos ir — implorou Sofie. —Nós iremos para bem longe. Você nunca mais vai ouvir sobre nós.

Raoul retirou de dentro do casaco a mão que havia enfiado ali. Julian viu a pistola e colocou Nell atrás dele. O som de três disparos foi ouvido no pequeno espaço, quando Charles e Julian atiraram simultaneamente.

O tiro de Raoul acertou a parede atrás de Julian, mas os tiros de Charles e Julian acertaram seu alvo. Atingido duas vezes na parte de cima do corpo, Raoul caiu perto do buraco onde se livrava dos corpos. Com uma expressão incrédula, ele olhou para o sangue em seu colete e depois para Charles.

— Você me matou!— ele murmurou. — Eu! Seu pró­prio irmão.

— Sim... Assim como você matou o seu... nosso irmão — disse Charles.

Com um grito feroz, Sofie se atirou sobre Charles.

— Meu filho! Você o feriu! Eu vou matar você!

As mãos dela seguraram a pistola de Charles e ela ten­tou virá-la contra ele. Sofie era uma mulher forte, e a raiva lhe conferia ainda mais força, enquanto eles luta­vam pelo controle da arma. Presos numa batalha mor­tal, seus corpos moviam-se juntos como dois amantes se abraçando.

Julian empurrou Nell para o lado e pulou para se jun­tar à luta, que terminou num segundo. Entre os corpos de Sofie e Charles, a pistola disparou. Por um agonizante momento eles ficaram agarrados, e então Sofie começou a cair. Suas pálpebras piscaram uma vez e um momento depois ela estava morta.

Petrificado pelo horror, Charles olhou para o corpo sem vida de sua madrasta.

— Eu não... — ele tentou falar, respirou fundo e tentou mais uma vez. — Eu não queria... Foi um acidente.

— Ninguém irá pensar diferente — afirmou Julian, olhando para a forma sem vida da tia. — Nell e eu sere­mos testemunhas do que aconteceu. — Ele segurou o ombro de Charles. — Eu sinto muito que isso tenha acontecido. Tudo isso.

— Julian! — Nell gritou. — Olhe! Ele se foi.

Julian se virou e olhou para onde Nell estava apon­tando. Tirando vantagem da distração deles com o ataque de sua mãe, Raoul desaparecera.

Julian praguejou e correu para o lugar onde Raoul tinha caído. Atingido duas vezes e gravemente ferido, se não mortalmente, Julian pensara que ele estava fora de combate, mas enganara-se. Ele seguiu a trilha de san­gue até o enorme buraco. A beirada estava manchada com sangue fresco. Raoul preferira se atirar naquele buraco a enfrentar a Justiça... O mesmo buraco em que ele tinha jogado os corpos das jovens. Eles encontrariam o corpo dele lá embaixo, ele sabia, sobre os restos de suas vítimas. Era um final triste, um final apropriado para um monstro como ele.

Julian olhou para onde o corpo de Sofie estava. Dois monstros, na verdade, pensou.

Caminhando de volta para Nell, ele a abraçou, e com a esposa a seu lado e seguido por Charles, eles deixaram o sangue e a morte para trás e subiram as escadas.

Parada do lado de fora de Dower House e olhando para as estrelas que brilhavam no céu, Nell respirou o ar fres­co da noite. Ela sentia doer cada osso de seu corpo, mas estava a salvo. Colocou a mão sobre o ventre, e sorriu ao sentir um forte chute. O dr. Coleman apenas iria confirmar o que ela já sabia, que seu bebê estava bem. Repousando a cabeça no ombro de Julian, ela sentiu o braço dele ficar mais firme ao seu redor e suspirou de felicidade.

Eles tinham vencido. Os monstros tinham sido eli­minados. Nunca mais ela teria de enfrentar um daqueles aterrorizantes pesadelos. O futuro colocado diante dela era luminoso.

Nell olhou para Julian e o amor tomou conta de sua mente e de seu coração. Ele olhou para ela com a mes­ma expressão que ela sabia também estar estampada em seu rosto.

— Eu falhei com você, meu amor — ele murmurou.

— Eu prometi que manteria você segura e não o fiz.

— Você não falhou... você apenas chegou um pouco atrasado, e você veio no final. Tudo o que importa ago­ra é que estamos juntos, temos o nosso bebê e um futuro inteiro pela frente.

— Eu te amo, Nell — ele disse serenamente. — Você é meu mundo, minha lua, minhas estrelas, meu tudo. Eu a amarei até o dia da minha morte e além.

— E eu a você, meu querido — ela respondeu com um suave brilho no olhar.

— Tudo está bem quando acaba bem — retorquiu Charles, irritado. — Mas nós poderíamos, por favor, voltar para sua casa? Há muita coisa para resolver e eu de bom grado gostaria de acabar logo com isso.  

 

                                                                                Shirlee Busbee 

 

 

                      

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