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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ESPIÃO QUE SABIA DEMAIS - P.2 / John Le Carre
O ESPIÃO QUE SABIA DEMAIS - P.2 / John Le Carre

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

"Nossa sombra de ministro do Exterior", assim o chamava Haydon. Os porteiros o apelidaram de Branca de Neve, por causa de seus cabelos brancos. Toby Esterhase vestia-se como um modelo, mas no momento em que baixava os ombros e fechava seus minúsculos punhos parecia, sem dúvida, um lutador. Acompanhando-o através do corredor do quarto andar e tornando a reparar na má­quina de fazer café e na voz de Lauder Strickland expli­cando que "ele" não podia atender, Guillam pensou: "San­to Deus, estamos de volta a Berna e em fuga".

Passou-lhe pela cabeça dizer isso a Toby, mas con­cluiu que a comparação seria imprudente.

 

 

 

 

Sempre que pensava em Toby, era isso que lhe vinha à lembrança: a Suíça de oito anos passados, quando Toby era apenas um olheiro qualquer, com uma reputação cada vez maior de escutar as coisas como quem não queria nada. Guillam estava à toa no norte da África, por isso o Circus despachou os dois para Berna a fim de realizarem determinada operação: estragar os planos de uns belgas, negociantes de armas, que estavam se utilizando dos suíços para distribuir sua mercadoria em lugares inconvenientes. Alugaram uma villa ao lado da casa que estava em sua mira e, na mesma noite, Toby abriu uma caixa de ligação telefônica e adaptou-a, de sorte que eles ouviam as con­versações dos belgas no próprio telefone dos pobres ho­mens. Guillam era o chefe e Toby seu informante. Duas vezes por dia Toby deixava as fitas gravadas na agência de Berna, usando um carro estacionado, que servia de caixa de correio. Com a mesma facilidade Toby subornou o carteiro local para que lhe permitisse ver em primeira mão a correspondência dos belgas antes que a entregasse aos seus destinatários, e subornou a faxineira para que colocasse um microfone na sala de visitas onde eles reali­zavam a maior parte de suas conversações. Em matéria de diversões, iam ao Crikito, e Toby dançava com as ga­rotas mais jovens. De vez em quando trazia uma delas para casa, mas a moça sempre se retirava antes de o dia raiar, e Toby conservava as janelas abertas para livrar-se do perfume.

Viveram assim durante três meses, mas Guillam, no final desse período, não o conhecia melhor do que no pri­meiro dia, nem mesmo sabia qual seu país de origem. Toby era um esnobe e sabia onde comer e ser visto. Lavava a própria roupa e, para dormir, prendia os cabelos com uma rede. No dia em que a polícia deu uma batida na villa, e Guillam teve de pular o muro dos fundos, encontrou Toby no Bellevue Hotel, mastigando pâtisseries e apre­ciando o thé dansant. Ele ouviu o que Guillam tinha a dizer, deu gorjetas primeiro ao chefe da orquestra, depois a Franz, chefe dos porteiros, em seguida caminhou à frente de Guillam, percorrendo uma série de corredores e escadas até chegar à garagem, no subsolo, onde ocultara o carro para sua fuga e os passaportes. Também aí, escrupulosa­mente, pediu a conta. Os corredores eram intermináveis, com as paredes cobertas de espelhos e cheios de candela­bros de Versalhes, de sorte que Guillam não estava se­guindo apenas um Esterhase, mas uma delegação inteira de sósias dele.

Essa visão lhe voltou à lembrança naquele momento, embora a estreita escada de madeira que levava à sala de Alleline estivesse pintada de verde-iodo, e apenas um abajur de pergaminho, em mau estado, fizesse recordar os can­delabros.

Ver o chefe anunciou Toby, num jeito agou­rento, dirigindo-se ao jovem porteiro que os deixou passar com um insolente sinal de cabeça. Na ante-sala do quarto andar, diante de quatro máquinas de escrever cinzentas, estavam sentadas as quatro matronas grisalhas, com seus colares de pérolas e conjuntos de lã. Cumprimentaram Guillam com um aceno de cabeça mas não tomaram co­nhecimento de Toby. Um aviso à porta de Alleline dizia: "Ocupado". Ao lado dele, erguia-se um cofre-armário de um metro e oitenta, novo em folha. Guillam perguntou-se como o piso agüentava aquela carga. Em cima do cofre, umas garrafas de xerez sul-africano, copos e pratos. Terça-feira, ele se lembrou, era dia da reunião informal e do al­moço da Estação de Londres.

— Não vou atender a ninguém no telefone — gritou Alleline quando Toby abriu a porta. — Diga isso a eles.

— O chefe não atenderá o telefone, por favor — disse Toby num tom rebuscado, segurando a porta para Guillam entrar. — Estamos em conferência.

Uma das mulheres disse: — Nós ouvimos.

Foi uma reunião belicosa.

Alleline estava sentado à cabeceira da mesa, em sua cadeira lavrada, de megalomaníaco, lendo um documento de duas páginas, e não se moveu quando Guillam entrou. Limitou-se a resmungar:

— Você fique lá. Ao lado de Paul! Além do sal. — E continuou sua leitura, profundamente absorvido.

A cadeira à direita de Alleline estava desocupada e Guillam sabia que era a de Haydon por causa da almofada curva — que se acomodava à sua postura — nela amarrada por um cordão. À esquerda de Alleline sentava-se Roy Bland, que também estava lendo mas levantou os olhos quando Guillam passou por ele, e disse: "Cuide-se, Peter", seguindo-o com seus olhos claros e esbugalhados através de toda a extensão da mesa. Ao lado da cadeira vazia, de Bill, estava Mo Delaware, a mulher-símbolo da Estação de Londres, de cabelos curtos e vestindo um terninho de tweed, marrom. Em frente a ela ficava Phil Porteous, chefe da administração interna, homem rico e poderoso, que tinha uma grande casa num subúrbio. Quando avistou Guillam, parou de ler, fechou ostensivamente sua pasta, pôs as nédias mãos sobre ela e abriu-se num sorriso afe­tado, dizendo:

— "Além do sal" quer dizer ao lado de Paul Skordeno — e continuou a sorrir afetadamente.

— Obrigado. Estou entendendo — disse Guillam.

Em frente a Porteous estavam os russos de Bill, os últimos a serem vistos no banheiro dos homens, no quarto andar, Nick Silski e seu amigo, Kaspar. Eram incapazes de sorrir, tanto quanto Guillam sabia, e deviam ser analfabe­tos, porque não havia documentos diante deles. Eram os únicos que não os tinham. Estavam sentados com suas qua­tro mãos gordas apoiadas sobre a mesa, como se alguém estivesse apontando um revólver às suas costas. Limitaram-se a fitar Guillam com seus quatro olhos castanhos.

Mais além de Porteous sentava-se Paul Skordeno, tido então como o braço direito de Roy Bland junto às redes satélites, embora outras pessoas afirmassem que ele exercia essas funções para Bill. Paul era magro e insigni­ficante, tinha quarenta anos e um rosto moreno, coberto de marcas, braços compridos. Guillam havia certa vez chegado às vias de fato com ele numa dura partida de golfe, e quase se tinham matado.

Guillam afastou a cadeira de Paul e sentou-se. Por isso, Toby sentou-se ao lado dele, com a outra metade da guarda pessoal. "Que diabo estão esperando que eu faça?", pensou Guillam. "Dar uma corrida a fim de esca­par?" Todos estavam observando Alleline, que enchia seu cachimbo, quando Bill Haydon se postou atrás dele. A porta se abriu e Bill apareceu, segurando uma xícara de café com as duas mãos, tapada com o pires. Levava uma pasta listrada debaixo do braço e tinha os óculos sobre o nariz, para variar, pois deveria ter feito sua leitura em algum outro lugar. Todos tinham lido o documento, exceto Guillam, que não sabia do que se tratava. Imaginou que talvez fosse o mesmo documento que Esterhase e Roy haviam lido na véspera e concluiu, sem qualquer prova disso, que assim era. O documento chegara no dia anterior. Toby o trouxera a Roy. O documento os perturbara, tor­nando-os imediatamente possuídos de grande excitação, se é que excitação seria a palavra certa.

Alleline ainda não levantara os olhos de sua leitura. No extremo da mesa, Guillam só conseguia ver sua vasta cabeleira negra e um par de ombros largos enfiados num tweed. Mo Delaware torcia um cacho de cabelos da testa enquanto lia. Percy tinha duas mulheres, lembrou-se Bill, no momento em que Camila mais uma vez perpassou sua mente, que pululava de idéias, e ambas eram alcoólatras, o que deveria significar alguma coisa. Guillam só havia conhecido a edição de Londres; Percy estava organizando seu clube de fãs e dera uma festa em seu amplo aparta­mento coberto de lambris, nas Mansões do Palácio de Buckingham. Guillam chegara atrasado e estava tirando o sobretudo no vestíbulo quando uma loura pálida veio timidamente em sua direção, estendendo-lhe a mão. Ele pensou que fosse a empregada querendo segurar seu casaco.

"Eu sou Joy", disse ela, com uma voz teatral, como se estivesse declarando "eu sou a Virtude", ou "eu sou a Continência[1]." Não era o sobretudo que ela queria, mas um beijo. Acedendo ao pedido, Guillam aspirou o duplo prazer de Je Reviens e de uma alta concentração de xerez barato.

Bem, meu jovem Peter Guillam disse Alleline —, você estará finalmente à minha disposição, ou tem outras visitas a fazer a minha casa?

Ele erguera parcialmente a cabeça e Guillam reparou em dois minúsculos triângulos róseos em cada uma de suas faces descoradas. E Alleline prosseguiu, virando uma página do documento:

O que você tem estado fazendo lá na filial, nesses últimos dias? Além de andar atrás das virgens do lugar, se é que existem virgens em Brixton, o que eu duvido muito, se você me perdoa esta liberdade, Mo. E gastando o di­nheiro do Estado em almoços caros?

Esses gracejos eram o instrumento de comunicação de Alleline, e poderiam ser cordiais ou hostis, impregnados de censura ou de louvor. Mas, no final, pareciam um mar­telar constante no mesmo ponto.

Uns dois ou três trabalhos árabes parecem bas­tante promissores. Cy Vanhofer obteve uma dica de um diplomata alemão. É sobre isso.

Árabes repetiu Alleline, empurrando a pasta para o lado e sacando do bolso um cachimbo rústico. Qualquer idiota é capaz de queimar um árabe, não é isso, Bill? Você compra todo um maldito gabinete árabe por meia coroa, se quiser.

Alleline tirou do outro bolso um estojo de fumo, jogando-o displicentemente em cima da mesa, e continuou:

Ouvi dizer que você andou privando com nosso falecido e lamentado irmão Tarr. Como vai ele ultima­mente?

Uma porção de pensamentos acudiram à mente de Guillam quando ouviu sua própria resposta. A vigilância de seu apartamento não havia começado até a noite ante­rior, disso ele tinha certeza. Durante o fim de semana estivera livre; a menos que Fawn, a "babá" cativa, tivesse se desdobrado em dois, o que teria sido muito penoso para ele. Roy Bland era muito parecido com o falecido Dylan Thomas. Roy sempre o fizera lembrar-se de alguém, mas até aquele momento nunca conseguira definir a seme­lhança. E Mo Delaware tinha sido aceita, apesar de ser mulher, por causa de sua masculinidade trigueira. Guillam ficou imaginando se Dylan Thomas teria aqueles extraor­dinários olhos azul-claros de Roy. Toby Esterhase estava tirando um cigarro de sua cigarreira de ouro e Alleline não permitia, via de regra, que ninguém fumasse cigarros, apenas cachimbo. Por isso, Toby deveria estar com pres­tígio junto a Alleline. Bill Haydon parecia estranhamente jovem, e os rumores que corriam no Circus a respeito de sua vida amorosa não seriam, afinal de contas, motivo para alguém rir. Diziam que ele não fazia discriminação de sexo. Paul Skordeno estava com a palma da mão mo­rena apoiada sobre a mesa e com o polegar ligeiramente erguido, de um jeito que endurecia o dorso da mão. Guil­lam pensou também em sua mala de lona: teria Alwyn despachado a mala no trem ou saído para o almoço e deixado a mala no registro, para ser examinada por um da­queles novos e jovens porteiros, ansiosos por obterem uma promoção? Guillam pensou então, pela primeira vez, exa­tamente há quanto tempo Toby estivera rondando o regis­tro antes de haver reparado nele.

Guillam optou pelo seu tom brincalhão.

É verdade, chefe. Tarr e eu tomamos chá em Fortnum's todas as tardes.

Alleline estava sugando o cachimbo vazio, para veri­ficar se tinha fumo.

Peter Guillam disse ele num tom decidido, com seu sotaque incisivo. Você talvez não tenha cons­ciência disso, mas eu tenho um temperamento muito capaz de perdoar. Estou positivamente cheio de boa vontade. Tudo quanto lhe exijo é o assunto de sua conversa com Tarr. Não estou pedindo a cabeça dele, nem qualquer outra parte de sua maldita anatomia, e conterei meus im­pulsos de eu próprio estrangular esse homem. Ou você. — Riscou um fósforo e acendeu o cachimbo, fazendo uma enorme chama. E prosseguiu: — Eu chegaria mesmo a pensar em dependurar uma corrente de ouro em seu pes­coço, Peter, e trazê-lo para o palácio, tirando você daquela odiosa Brixton.

— Nesse caso eu não posso esperar que ele apareça — disse Guillam.

— E Tarr será amplamente perdoado até que eu ponha as mãos nele.

—- Eu direi isso a Tarr. Ele ficará emocionado.

Uma espessa nuvem de fumaça rolou sobre a mesa.

— Estou muito desapontado com você, meu jovem Peter. Dando ouvidos a grandes calúnias de natureza divisionista e insidiosa. Eu lhe pago um dinheiro honesto e você me apunhala pelas costas. Considero uma retribuição muito insatisfatória para que eu o conserve com vida. Ape­sar dos rogos em contrário de meus assessores, devo dizer.

Alleline adotara um novo maneirismo, que Guillam muitas vezes já observara em homens vaidosos, de meia-idade: segurava uma dobra de carne debaixo do queixo e ficava massageando-a entre o polegar e o indicador, na esperança de reduzi-la.

— Conte-nos mais alguma coisa sobre as circuns­tâncias ligadas a Tarr. Faça-o agora — declarou Alleline. — Fale-nos acerca de seu estado emocional. Ele tem uma filha, não é verdade? Uma filha pequenina, chamada Danny. Tarr fala nela?

— Costuma falar.

— Regale-nos com algumas histórias sobre ela.

— Eu não sei nenhuma. Ele gosta muito da filha, isso é tudo que eu sei.

— Gosta dela de maneira obsessiva? — indagou Alleline, cuja voz se alteou subitamente, impregnada de cólera. — Para que esse dar de ombros, Guillam? Por que diabo você está fazendo isso comigo? Estou lhe falando sobre um desertor e sua maldita seção. Estou acusando você de estar tramando com ele às minhas costas, de estar participando de malditos e idiotas jogos de salão quando sabe o que se acha em causa. E tudo quanto você faz é dar de ombros, lá da ponta da mesa? Há uma lei, Peter Guillam, contra a associação com agentes do inimigo. Talvez você não saiba disso. Estou com muita vontade de atirar um livro em você.

— Mas não o tenho visto — disse Guillam, e a cólera também veio salvá-lo. — Não sou eu quem tem estado praticando jogos de salão. É você. Por isso, deixe-me em paz.

No mesmo instante percebeu um movimento de descontração em torno da mesa, semelhante a uma descaída muito discreta para o tédio, como se Alleline tivesse usado toda sua munição e o alvo estivesse limpo de marcas. Skordeno estava manipulando entre os dedos um pedaço de marfim, um amuleto que trazia sempre consigo. Bland lia novamente e Bill Haydon tomava seu café, achando-o hor­rível pois fizera uma careta para Mo Delaware, descansan­do a xícara no pires. Toby Esterhase, segurando o queixo com a mão, franzira as sobrancelhas e estava olhando para a lareira vitoriana. Somente os russos continuavam a observar Guillam, sem pestanejar, como se fossem dois terriers que não queriam acreditar que a caçada terminara.

— Então ele costumava conversar com você sobre Danny, hem? E lhe disse que gostava muito dela — decla­rou Alleline, que voltara a examinar o documento que tinha diante de si. — Quem é a mãe de Danny?

— Uma eurasiana.

Foi então que Haydon falou pela primeira vez, in­dagando:

— Eurasiana sem sombra de dúvida, ou ela poderia passar por alguma coisa mais chegada à nossa pátria?

— Tarr parece considerá-la totalmente européia. E também à menina.

Alleline leu em voz alta: — "Doze anos de idade, ca­belos louros, compridos, olhos castanhos". — E indagou:

— Danny é assim?

— Eu acho que poderia ser. Parece ela.

Houve um longo silêncio e nem mesmo Haydon pare­cia inclinado a rompê-lo.

— E se eu lhe dissesse — recomeçou Alleline, es­colhendo as palavras com extremo cuidado que Danny e a mãe dela deveriam chegar ao aeroporto de Londres há três dias, num vôo direto, de Cingapura? Presumo que você compartilharia nossa perplexidade.

Sem dúvida.

E que você ficaria de bico calado, quando saísse daqui. Não contaria isso a ninguém, nem mesmo aos seus doze melhores amigos?

Ouviu-se, vindo de não muito longe, o ronronar de Phil Porteous:

A fonte é extremamente secreta, Peter. Poderá parecer a você uma informação comum a respeito de vôos, mas não se trata disso, absolutamente. É ultra, ultra-especial.

Bem, nesse caso, eu procurarei conservar minha boca ultrafechada declarou Guillam a Porteous, que enrubesceu, ao passo que Bill Haydon deu outro arremedo de riso de menino de escola.

Alleline voltou à carga:

Então, o que você faria com essa informação? Vamos, Peter e novamente gracejando: Vamos, você era o patrão dele, o guia, o filósofo, o amigo. Onde está sua psicologia, pelo amor de Deus? Por que Tarr voltou para a Inglaterra?

Não foi isso, absolutamente, o que você disse. Você disse que a mulher de Tarr e a filha, Danny, eram esperadas há três dias. Talvez ela tenha vindo visitar uns parentes. Talvez tenha arranjado outro amigo. Como hei de saber?

Não seja obtuso, homem. Não ocorre a você que Tarr não possa estar muito longe de onde Danny esti­ver? Se ele já não estiver aqui, o que eu me sinto incli­nado a acreditar, porque os homens costumam vir primeiro e trazer a bagagem depois. Eu peço desculpas a você, Mo Delaware, foi um lapso.

Pela segunda vez, Guillam se permitiu ficar um tanto irritado:

Não. Até agora isso não me tinha ocorrido. Até agora Tarr era um desertor. É a norma dos administradores da casa já há sete meses. Estou certo ou errado, Phil? Tarr estava plantado em Moscou e tudo quanto ele soubesse deveria ser julgado sabido pelo inimigo. Certo, Phil? E tal­vez isso tenha sido considerado um motivo suficiente para "apagar as luzes" de Brixton, e dar uma boa fatia das nossas responsabilidades de trabalho à Estação de Londres, e outra aos informantes de Toby. O que Tarr estaria fa­zendo agora: tornando a desertar para o nosso lado?

Desertar de novo seria uma forma desgraçadamen­te caridosa de considerar as coisas. Eu vou informar a você, de graça replicou Alleline, voltando ao papel que tinha diante de si. Escute exatamente o que eu vou dizer, e lembre-se disso. Porque você, como o resto do meu pessoal, tem uma memória igual a uma peneira, disso eu não tenho a menor dúvida. Todas as prima-donas são assim. Danny e a mãe dela estão viajando com passa­portes ingleses, falsos, com o nome de Poole, o mesmo que tem a tal baía. Os passaportes foram falsificados pelos russos. Um terceiro passaporte foi entregue ao pró­prio Tarr, o conhecido Mr. Poole. Tarr já se encontra na Inglaterra, mas nós não sabemos onde. Partiu antes de Danny e da mãe dela, e aqui chegou por uma rota dife­rente. Nossos investigadores sugerem que foi uma rota secreta. Ele instruiu a mulher, a amante, ou lá o que seja Alleline disse isso como se não tivesse uma também. Você me perdoe outra vez, Mo. E ela veio uma se­mana depois dele, segundo tudo leva a crer. Tal informa­ção só nos chegou ontem, por isso ainda temos de tra­balhar muito, de nos mexer um bocado. Tarr deu instruções a Danny e à mãe dela para que, se acaso ele não entrasse em contato com elas, apelassem para a mi­sericórdia de um certo Peter Guillam. Trata-se de você, eu acredito.

Se elas eram esperadas há três dias, o que lhes aconteceu?

Algum atraso. Perderam o avião. Mudaram de planos. Perderam as passagens. Como hei de saber?

Ou então a informação está errada sugeriu Guillam.

Não está declarou Alleline incisivamente.

Ressentimento, perplexidade. Guillam aferrou-se às duas coisas.

Está bem. Os russos devolveram Tarr. E mandaram a família dele, só Deus sabe por quê. Eu pensei que o tinham posto na prisão, mas eles o mandaram também. Por que tudo isso há de ser tão excitante? Que espécie de espião ele poderá ser, plantado aqui, se nós não acre­ditamos numa única palavra do que ele diz?

Dessa vez Guillam observou, com satisfação, que as pessoas que o ouviam estavam voltadas para Alleline, observando-o. E este pareceu-lhe estar hesitando entre dar-lhe uma resposta indiscreta ou fazer papel de tolo.

— Não se preocupe com o tipo de espião. Pôr lama nuns lagos, envenenar uns poços. Coisas assim malditas. Dar-nos uma rasteira quando todos nós estivermos em casa, em sossego.

As circulares de Alleline também tinham esse estilo, pensou Guillam. As metáforas perseguindo-se umas às ou­tras através da página.

— Mas lembre-se disso — continuou Alleline. — Antes do primeiro pio, ao primeiro murmúrio que você ouvir sobre ele ou a mulher dele e a filha, meu jovem Peter Guillam, você nos procure, porque somos pessoas cres­cidas. Todas as que você está vendo nesta mesa. Mas não procure outra maldita criatura. Você está entendendo per­feitamente o que quero dizer? Há mais coisas em jogo do que você possa imaginar ou tenha o direito de saber...

Tudo subitamente tornou-se uma conversação cheia de gestos: Bland metera as mãos nos bolsos e caminhava de ombros caídos pela sala, apoiando-se à porta que fi­cava mais distante, Alleline voltara a acender o cachimbo e estava apagando o fósforo com um longo movimento do braço, ao mesmo tempo que olhava irritadamente para Guillam por entre a fumaça.

— Quem você está namorando atualmente, Peter? Quem é a felizarda? — perguntou.

Porteous estava fazendo circular uma folha de papel em torno da mesa, para ser assinada por Guillam, e disse:

— É para você, Peter, por favor.

Paul Skordeno murmurava alguma coisa ao pé do ouvido de um dos russos e Esterhase estava junto à porta, dando ordens às matronas. Somente os olhos castanhos e despretensiosos de Mo Delaware ainda continuavam a fitar Guillam.

— Leia primeiro, você não quer? — aconselhou Por­teous de um modo insinuante.

Guillam já tinha lido a metade do documento, que dizia o seguinte: "Declaro haver sido informado, hoje, acerca do conteúdo do relatório n.° 308, da Operação Bruxaria, Fonte Merlin". E aqui terminava o primeiro pa­rágrafo. E mais: "Comprometo-me a não divulgar a exis­tência da Fonte Merlin. Comprometo-me, igualmente, a informar imediatamente a respeito de qualquer assunto que chegue a meu conhecimento e que possa ter relação com o material dessa fonte".

A porta permanecera aberta e, no momento em que Guillam assinou o papel, o segundo escalão da Estação de Londres entrou na sala em fileira, vindo à frente as matro­nas, trazendo bandejas de sanduíches: Diana Dolphin, Lauder Strickland, parecendo tão retesado que poderia estourar a qualquer momento, as meninas da distribui­ção e um antigo veterano de guerra, de fisionomia agres­siva, chamado Haggard, que era o suserano de Ben Thruxton. Guillam saiu lentamente da sala, contando quantas pessoas se encontravam ali, pois tinha certeza de que Smiley haveria de querer saber quem ali estivera. Chegan­do à porta, viu, com surpresa, que Haydon viera juntar-se a ele, parecendo haver decidido que o resto da festividade não era para ele.

— Cabaré mais estúpido — comentou Bill, apontan­do vagamente para as matronas. — Percy está ficando cada dia mais insuportável.

— Parece que é isso mesmo — disse Guillam caloro­samente.

— Como vai Smiley? Você tem estado muito com ele? Você era um bocado chegado a ele, não era?

O mundo de Guillam, que estava até então apresen­tando indícios de firmar-se num ritmo razoável, desabou de maneira violenta.

— Não — declarou ele. — Smiley anda desapa­recido.

— Não me venha dizer que você levou a sério todas aquelas asneiras — resmungou Bill. Os dois haviam che­gado à escada. Haydon tomou a dianteira.

— E você? — indagou Guillam. — Tem se encon­trado muito com ele?

— E Ann bateu a rica plumagem — disse Bill, não tomando conhecimento da pergunta. — Levada por um moço marinheiro, um garçom ou coisa que o valha. Isso é certo?

A porta da sala de Haydon achava-se totalmente aber­ta, e sua mesa de trabalho estava coberta por um monte de arquivos secretos.

— Eu não sabia. Pobre George.

— Quer café?

— Obrigado. Eu acho que vou andando.

— Tomar chá com o irmão Tarr?

— É isso mesmo. Em Fortnum's. Até a vista.

Alwyn voltara do almoço e estava na seção de ar­quivos.

— A mala seguiu — disse ele jovialmente. — A estas horas deve estar em Brixton.

— Que diabo — praguejou Guillam, disparando seu último cartucho. — Nela havia alguma coisa de que eu estava precisando.

Uma idéia repugnante lhe ocorrera: parecia tão claro e tão horrivelmente óbvio, que só podia ficar imaginando por que motivo aquilo lhe viera à mente tão tarde. Sand era o marido de Camila. Ela estava levando uma vida dupla. Agora, abria-se para ele todo um quadro de em­bustes. Seus amigos, seus amores, até mesmo o próprio Circus se associavam e formavam reiteradamente um infi­nito calidoscópio de intrigas. Uma frase de Mendel voltou-lhe à lembrança; tinha sido pronunciada duas noites antes, quando eles estavam tomando cerveja num lúgubre bote­quim de subúrbio: "Ânimo, Peter, meu filho. Jesus Cristo só teve doze discípulos, e um deles era traidor".

"Tarr", pensou ele. "Aquele bastardo Ricki Tarr."

 

O quarto de dormir era comprido e baixo, um antigo quarto de empregadas, e ficava no sótão. Guillam estava de pé junto à porta, e Tarr, sentado na cama, imóvel, com a cabeça inclinada para trás apoiada no teto inclinado, as mãos ao longo do corpo e os dedos separados. Havia uma lucarna que se abria acima dele e, do ponto em que Guillam se achava, podia avistar longos trechos do campo escuro de Suffolk e uma fileira de árvores negras dese­nhadas de encontro ao céu. O papel da parede era marrom, com flores grandes e vermelhas. Uma única lâmpada pendia de uma trave preta de carvalho, iluminando seus rostos e dando-lhes estranhas formas geométricas. Quan­do um deles se mexia, Tarr na cama ou Smiley na cadeira de cozinha, feita de madeira, parecia que seus movimentos levavam a luz com eles a uma certa distância até que novamente tornasse a fixar-se.

Guillam teria sido muito áspero com Tarr se lhe fosse permitido agir sozinho. Não tinha a menor dúvida a esse respeito. Seus nervos estavam à flor da pele e ao guiar o carro pela alameda ele chegara a fazer cento e trinta quilômetros, até que Smiley o advertiu rispidamente para que dirigisse direito. Entregue a seus impulsos, teria sido tentado a arrancar os olhos de Tarr e, se necessá­rio, trazido Fawn para ajudá-lo. Enquanto dirigia o car­ro, imaginara nitidamente o quadro: abrir a porta da frente da casa onde Tarr morava, golpeá-lo no rosto várias vezes e trazer-lhe lembranças de Camila e de seu ex-mari­do, o famoso doutor da flauta. E talvez, na tensão com ele compartilhada por Smiley, naquele dia, este último captara telepáticamente aquele mesmo quadro, pois o pou­co que falara tinha sido claramente orientado no sentido de acalmar Guillam. "Tarr não mentiu para nós, Peter. Sob nenhum aspecto material. Ele fez simplesmente o que fazem os agentes no mundo inteiro: não nos contou a história completa. Por outro lado, foi bastante inteli­gente." Longe de compartilhar a perplexidade de Guillam, Smiley parecia estranhamente confiante, até mesmo com­placente, a ponto de permitir-se um sentencioso aforismo de Steed Asprey acerca da arte de trair: alguma coisa a respeito de não se buscar a perfeição, mas uma vanta­gem, o que levou Guillam mais uma vez a pensar em Camila. "Karla nos admitiu em seu tabernáculo", anun­ciou Smiley, e Guillam soltou a infeliz piada de que eles poderiam trocar de carro em Charing Cross. Depois disso Smiley contentou-se em dar instruções sobre o rumo a ser tomado e em observar o espelho lateral.

Tinham-se encontrado no Palácio de Cristal, numa camioneta de entregas dirigida por Mendel. Seguiram até Bansbury, diretamente para uma oficina de consertos de carroçarias, que ficava no extremo de uma viela calçada de pedras arredondadas, cheia de crianças. Foram rece­bidos com discretas manifestações de entusiasmo por um velho alemão e seu filho, que removeram a lataria da ca­mioneta quase antes de eles dela saírem, e os conduziram a um Vauxhall com seu motor superalimentado, pronto para ser posto em movimento e ir em frente pelo outro extremo da oficina. Mendel lá ficou com a pasta da Operação Testemunho, que Guillam trouxera de Brixton em sua maleta. Smiley dissera: "Procure a A-12". Havia muito pouco tráfego, mas perto de Colchester eles encon­traram uma fila de caminhões e Guillam subitamente per­deu a paciência. Smiley foi obrigado a mandar que ele forçasse a ultrapassagem. A certa altura, encontraram pela frente um velho que ia a quarenta quilômetros, na pista de alta velocidade. No momento em que o ultrapassaram, pelo lado direito, o homem deu uma guinada de louco em direção a eles: estaria embriagado ou doente, talvez apenas aterrorizado. E também encontraram mais além uma mu­ralha de neblina, que surgiu sem qualquer aviso prévio, parecendo cair do céu sobre eles. Guillam atravessou-a, com receio de usar os freios por causa do gelo compacto que havia na estrada. Além de Colchester eles tomaram pequenas estradas. Nos sinais de tráfego liam-se nomes como Little Horkesley, Wormingford e Bures Green. De­pois desapareceram os sinais de tráfego e Guillam teve a sensação de não estar em parte alguma.

— Vire à esquerda agora, e novamente à esquerda, e continue até onde puder — disse Smiley.

Chegaram a um lugar que parecia uma pequena al­deia, mas não havia luzes, habitantes visíveis, nem lua. Quando saíram do carro sentiram frio, e Guillam aspirou o cheiro de um campo de críquete e de fumaça de lenha, o que imediatamente lhe evocou o Natal. Ficou pensando que nunca estivera num lugar tão quieto, frio e remoto. A torre de uma igreja alteava-se em frente a eles; uma coroa branca estendia-se num dos lados, e no alto de uma encosta erguia-se uma construção que julgou ser uma rei­toria. Era baixa e irregular, em parte coberta de colmo, e ele reparou na silhueta do telhado, recortada de encontro ao céu. Fawn estava à espera deles. Aproximou-se quando pararam o carro, e nele entrou silenciosamente, acomodando-se no banco traseiro.

— Hoje Ricki foi muito melhor — informou ele. Era evidente que vinha prestando muitas informações a Smiley nos últimos dias. Era um rapaz calmo, de fala macia e grande empenho em ser agradável, mas o resto do pessoal de Brixton parecia ter medo dele, Guillam não sabia por quê. — Não está tão nervoso, mais descontraído, eu diria. Hoje de manhã ele fez suas apostas costumeiras. Ricki aprecia mesmo o jogo. E esta tarde nós cortamos uns abetos para Miss Ailsa, para que ela possa levá-los ao mercado. E de noite jogamos uma boa partida de cartas e fomos cedo para a cama.

— Ele tem saído sozinho? — indagou Smiley.

— Não, senhor.

— Tem usado o telefone?

— Não, santo Deus! Não, enquanto eu fico por aqui. E tenho certeza de que não usou o telefone enquanto Miss Ailsa andou por perto.

A respiração deles embaciara as janelas do carro, mas Smiley não quis ligar o motor e, por isso, o aquecedor e o limpador de pára-brisa não funcionavam.

— Ele mencionou a filha, Danny?

— Falou muito nela, no final da semana. Agora, ele parece ter se acalmado quanto a isso. Eu acho que ele afastou as duas da lembrança, por causa do aspecto emo­cional.

— Ele não falou em vê-las de novo?

— Não, senhor.

— Nada a respeito de providências para encontrá-las quando tudo isto estiver terminado?

— Não, senhor.

— Nem em trazê-las para a Inglaterra?

— Não, senhor.

— Nem em arranjar-lhes documentos?

— Não, senhor.

Guillam interrompeu a conversa, irritado:

— Então sobre o que ele falou, pelo amor de Deus?

— Falou sobre a russa, Irina. Ele gosta de ler o diário dela. Diz que, quando o toupeira for apanhado, ele vai fazer o Centro trocá-lo por Irina. Então nós arran­jaremos um lugar bom para ela, como o de Miss Ailsa, mas na Escócia. Lá é melhor. Ele diz que vai também acertar minha vida. Me dar um empregão no Circus. Ele me tem animado a aprender uma língua estrangeira para aumentar meu campo.

Não seria preciso dizer, ao som daquela voz monó­tona que ouviam por detrás deles, na escuridão, o que Fawn fizera a respeito desse conselho.

— Onde ele está, agora?

— Na cama.

— Feche as portas sem fazer barulho.

Ailsa Brimley estava à espera deles na varanda da frente: era uma mulher grisalha, de sessenta anos, com uma expressão decidida e inteligente. Pertencia aos velhos qua­dros do Circus, assim dissera Smiley. Era uma das encar­regadas dos códigos que trabalharam com Lorde Landsbury, no tempo da guerra. Agora estava aposentada, mas ainda era temível. Vestia um costume marrom, elegante. Apertou a mão de Guillam, dizendo: "Como tem passado?", passou o ferrolho na porta e, quando Smiley tornou a olhar, ela já havia desaparecido. Smiley subiu ao primeiro andar, à frente dos outros. Fawn deveria ficar aguardando no primeiro patamar, para o caso de sua presença ser necessária.

— É Smiley — disse ele, batendo à porta de Tarr. — Eu quero ter uma conversa com você.

Tarr abriu a porta sem demora. Deveria ter ouvido que eles se aproximavam e estaria à sua espera, do outro lado da porta. Abriu-a com a mão esquerda, segurando o revólver com a direita e olhando para o corredor, para além de Smiley.

— É só o Guillam — declarou Smiley.

— Os filhotes também mordem — disse Tarr. — Isso é o que eu estou pensando.

Os dois entraram no quarto. Tarr estava enfiado numas calças largas e agasalhado numa espécie de manta malaia, ordinária. Havia umas fichas contendo letras, es­palhadas pelo chão, e o ar estava impregnado do cheiro de caril, de algum prato que ele havia preparado num fogareiro.

— Lamento importuná-lo — disse Smiley num tom de sincera comiseração. — Mas preciso perguntar-lhe no­vamente o que o senhor fez com aqueles dois passaportes suíços que levou para Hong Kong.

— Por quê? — indagou Tarr.

O desembaraço dele havia desaparecido. Mostrava aquela palidez das prisões, tinha perdido peso e, enquanto ficava ali, sentado na cama, com o revólver a seu lado sobre o travesseiro, seus olhos os interrogavam nervosa­mente, fitando um de cada vez, sem confiar em coisa alguma.

— Escute — prosseguiu Smiley. —- Eu quero acre­ditar em sua história. Nada se modificou. Depois que nós soubermos tudo, respeitaremos sua vida íntima. Mas pre­cisamos saber certas coisas. Isso é muitíssimo importante. Todo o seu futuro está em jogo.

"E muito mais ainda", pensou Guillam, que o obser­vava: todo um conjunto de deduções e cálculos pendia de um fio, se é que Guillam conhecia Smiley.

— Eu lhe disse que queimei os passaportes. Não faço a menor idéia dos números. Eu acho que eles eram conhecidos. Usar aqueles passaportes seria a mesma coisa que pôr uma placa no pescoço: "Procura-se Tarr, Ricki Tarr".

As perguntas de Smiley sucediam-se de um modo terrivelmente lento. Até para o próprio Guillam era penoso ficar à espera dessas perguntas, em meio ao profundo silêncio da noite.

— Como você os queimou?

— Que importância tem isso?

Mas Smiley não parecia disposto a declarar as razões de suas perguntas, preferindo que o silêncio produzisse seus efeitos, e parecia confiar em que isso acontecesse. Guillam já assistira a interrogatórios inteiros conduzidos desse modo: um longo questionário envolto em espessas roupagens de rotina, pausas cansativas durante o tempo em que cada resposta era escrita por extenso, o cérebro do suspeito ficando assediado por mil indagações para cada pergunta de seu inquiridor. Assim, a firmeza com que um acusado se aferrava à sua história ia se tornando cada dia mais débil.

— Quando você comprou seu passaporte britânico com o nome de Poole? — indagou Smiley, transcorri­da outra eternidade. — Você comprou outros passaportes na mesma fonte?

— Por que eu haveria de fazer isso? — indagou Tarr. — Pelo amor de Deus! Eu não sou colecionador de passaportes. Tudo quanto eu queria era sair do buraco.

— E proteger sua filha — sugeriu Smiley, com um sorriso de compreensão. — E proteger também a mãe dela, se pudesse. Tenho certeza de que você pensou muito nisso — acrescentou num tom de louvor. — Afinal de contas, você não poderia deixá-las à mercê daquele francês que vivia a procurá-lo, não é isso mesmo?

Enquanto aguardava uma resposta, Smiley parecia estar examinando as fichas do dicionário, lendo as palavras de cima para baixo e da esquerda para a direita. Nelas nada havia: eram palavras reunidas ao acaso. Uma estava escrita errado, observou Guillam — "epístola", com as duas últimas letras invertidas. O que Smiley tinha estado fazendo, imaginou Guillam, naquele hotel nauseabundo, um verdadeiro ninho de pulgas? Que secretos estreitos ca­minhos a mente de Smiley teria estado palmilhando, trancafiado, com garrafas de molhos e caixeiros viajantes?

— Está bem — declarou Tarr num tom soturno. — Eu obtive os passaportes para Danny e a mãe dela. Mrs. e Miss Poole. E o que vamos fazer agora? Ficar arrebata­dos de alegria?

Novamente o silêncio tornou-se acusador.

— Por que você não nos disse isso antes? — per­guntou Smiley, no tom de um pai desapontado. — Nós não somos uns monstros. Não desejamos nenhum mal a elas. Por que você não nos contou tudo? Talvez até pu­déssemos ter ajudado a você. — E Smiley voltou a exa­minar as fichas. Tarr deveria ter usado dois ou três grupos dessas fichas, pois estavam espalhadas no tapete de fibra de coco. — Não é crime cuidar das pessoas de quem a gente gosta.

"Se elas deixarem", pensou Guillam, lembrando-se de Camila.

Com o propósito de facilitar as respostas de Tarr, Smiley começou a fazer-lhe algumas sugestões úteis:

— Foi porque você comprometeu suas despesas ope­racionais na compra desses passaportes britânicos? Foi esse o motivo que o induziu a não nos dizer nada? Meu Deus! Aqui ninguém está preocupado com dinheiro. Você nos trouxe uma informação de caráter vital. Por que nós have­ríamos de discutir sobre dois ou três mil dólares? — E o tempo ia passando sem que ninguém o aproveitasse. — Ou então foi porque você estava envergonhado... — sugeriu Smiley. Guillam endireitou-se, esquecendo-se de seus proble­mas. — Envergonhado com razão, de certo modo, suponho eu. Afinal, não foi um ato de grande bravura deixar Danny e a mãe com passaportes de números conhecidos à mercê daquele francês que estava procurando Mr. Poole com tanto empenho. Enquanto isso, você escapou para ter todo esse tratamento de pessoa muito importante. É horrível pensar numa coisa dessas — afirmou Smiley, como se Tarr, e não ele próprio, tivesse feito aquela observação. — É horrível imaginar a que extremos iria Karla para obter seu silêncio, Tarr. Ou seus serviços.

O suor que escorria pelo rosto de Tarr era insuportá­vel. Tão abundante que ele parecia estar coberto de lágri­mas. As fichas já não interessavam a Smiley, e seu olhar se fixara num jogo diferente. Era um brinquedo, feito de dois bastões de aço, como as hastes de uma pinça. O jogo consistia em rolar por eles uma esfera de aço. Quanto mais longe ela rolasse, maior número de pontos seriam ganhos quando essa esfera caísse dentro de uns orifícios que havia sob as hastes. Smiley continuou:

— A outra razão que terá levado você a nada nos dizer, creio eu, é que você queimou os passaportes. Você queimou os passaportes britânicos, quero dizer, e não os suíços.

"Vá devagar, George", pensou Guillam, dando cal­mamente um passo à frente para cobrir a distância entre os dois homens. "Vá devagar."

— Você sabia que o nome Poole era conhecido, por isso queimou os passaportes que havia comprado para Danny e a mãe — prosseguiu Smiley. — Mas guardou o seu, porque não lhe restava outra alternativa. Em seguida, reservou as passagens para duas pessoas em nome de Poole para convencer a todos que ainda acredi­tava nos passaportes de Poole. Falando em "todos", acho que quero dizer os bandidos de Karla. Você falsificou os passaportes suíços, adulterou-os, um para Danny e outro para a mãe, e correu o risco de os números deles não serem notados, e fez outra série de arranjos que não divulgou. Esses arranjos ficaram prontos mais cedo do que os outros que você fez para os Poole. Como teria sido possível isso? Por exemplo, permanecendo no Oriente, só que em algum outro lugar, como Jacarta. Um lugar onde você tivesse amigos.

Mesmo de onde estava Guillam foi demasiado lento. As mãos de Tarr já se agarravam ao pescoço de Smiley, a cadeira tombara e Tarr estava caído no chão, esganando Smiley. Guillam segurou o braço direito de Tarr e pren­deu-o atrás das costas, chegando quase a parti-lo. Fawn surgiu então, apanhou o revólver que estava sobre o tra­vesseiro e dirigiu-se a Tarr como se fosse ajudá-lo a le­vantar-se. Logo Smiley estava endireitando a roupa, ao passo que Tarr, novamente em cima da cama, limpava o canto da boca com um lenço.

— Eu não tenho a menor idéia de onde elas estão — declarou Smiley. — Tanto quanto eu saiba, não lhes acon­teceu mal algum. Você acredita nisso, não é mesmo?

Tarr estava de olhos fitos em Smiley, à espera de alguma coisa. Tinha um olhar de fúria, mas Smiley mos­trava-se novamente tranqüilo, e Guillam percebeu que se tratava da confiança que Smiley estava novamente pro­curando conquistar.

— Era melhor que você tomasse mais conta de sua maldita mulher e deixasse a minha em paz — sussurrou Tarr, tapando a boca com a mão. Guillam deu um salto para a frente, exclamando qualquer coisa, mas Smiley o conteve.

— Desde que você não procure comunicar-se com elas — prosseguiu Smiley —, provavelmente será melhor que eu não saiba onde elas estão. A menos que você queira que eu faça alguma coisa por elas. Dinheiro, pro­teção ou algum conforto?

Tarr sacudiu a cabeça. Sua boca estava sangrando muito, e Guillam percebeu que Fawn deveria ter-lhe dado um murro, mas não conseguia imaginar quando.

— Não vai demorar muito — declarou Smiley. — Talvez uma semana. Até menos, se eu puder. Procure não pensar demais.

Quando eles saíram, o homem já estava rindo outra vez, por isso Guillam pensou que a visita, o insulto a Smiley ou o murro na cara tinha feito bem a Tarr.

— Esses talões das apostas — falou Smiley tranqüi­lamente, dirigindo-se a Fawn no momento em que entra­vam no carro —, você os põe no correio em qualquer lugar?

— Não, senhor.

— Bem, vamos ter a esperança de que Deus não o faça um ganhador — comentou Smiley, num acesso de comicidade muito fora do comum, que despertou uma gargalhada geral.

A memória prega estranhas peças a um cérebro exaus­to e sobrecarregado. Guillam, enquanto dirigia o carro, mantinha uma parte de seu consciente atenta à estrada e outra miseravelmente aferrada a suspeitas ainda mais bárbaras em relação a Camila. Estranhas imagens desse e de outros dias passavam livremente por sua memória: dias de terror absoluto, no Marrocos, quando seus agentes lhe chegavam mortos, um após outro, e cada ruído de passos, na escada, o fazia correr até a janela e inspecionar a rua; dias de ociosidade, em Brixton, quando ficava a olhar esse pobre mundo prosseguir sua marcha, e se punha a imaginar há quanto tempo havia nele ingressado. E de repente, lá estava aquele relatório diante dele, em sua mesa de trabalho, escrito com um estilete em papel de cópia azul porque era informação provinda de fonte des­conhecida e provavelmente indigna de confiança. E cada palavra do relatório voltava à sua lembrança, escrita em letras de trinta centímetros.

Segundo um prisioneiro recentemente libertado da Lubianka, o Centro de Moscou realizou uma execução secreta, em julho, no prédio onde são aplicadas as penas. As vítimas foram três de seus próprios fun­cionários. Um deles era uma mulher. Todos foram mortos com tiros na nuca.

Tinha o carimbo de "interno" declarou Guillam num tom acabrunhado.

Eles haviam parado o carro no acostamento, ao lado de uma hospedaria cheia de lanternas de vidro.

Um funcionário da Estação de Londres havia es­crito no papel: "Poderá alguém identificar os corpos?" acrescentou Guillam.

À luz colorida das lanternas, Guillam reparou que o rosto de Smiley contraiu-se de repugnância.

Sim concordou ele finalmente. Sim, nós sabemos que a mulher era Irina, não é isso? E os homens eram Ivlov e Boris, o marido dela. Eu suponho que foram esses dois. O tom de voz de Smiley conservou-se extre­mamente natural. Tarr não deve saber disso pros­seguiu ele como se estivesse se libertando de um sentimen­to de lassitude. É fundamental que ele não tenha a menor suspeita disso. Deus sabe o que faria, ou não faria, se soubesse que Irina está morta.

Durante alguns momentos nenhum dos dois se moveu: talvez, por diferentes razões, não tivessem forças nem âni­mo para isso.

Eu preciso dar um telefonema declarou Smi­ley, mas não fez a menor tentativa para sair do carro.

George?

Eu tenho de dar um telefonema murmurou ele. Para Lacon.

Então dê.

Estendendo o braço diante dele, Guillam abriu a porta do carro. Smiley saiu do automóvel com dificuldade, ca­minhou sobre a pista asfaltada, até uma certa distância, mas pareceu mudar de idéia e retornou.

Vamos comer alguma coisa disse, enfiando a cabeça através da janela, no mesmo tom preocupado. Não acredito que o pessoal de Toby nos seguisse aqui.

 

Aquele lugar havia sido um restaurante. Agora era um café para motoristas e preservava uns restos de sua antiga grandeza. O cardápio era revestido de uma capa de couro, manchada de gordura. O garçom que o trouxe estava quase dormindo.

Dizem que o coq au vin é sempre uma boa pedida declarou Smiley num lamentável esforço para ser en­graçado, ao voltar da cabina telefônica, que ficava num dos extremos da sala. E num tom de voz mais tranqüilo, que não alcançou seu objetivo nem despertou o menor eco, acrescentou: — Diga-me, o que você sabe a respeito de Karla?

Mais ou menos o que sei sobre a Operação Bru­xaria e a Fonte Merlin, e também o que se diz no do­cumento que assinei para Porteous.

Bem, isso parece uma resposta muito boa. Você pensou nela como uma censura, eu espero, mas acontece que a analogia foi muito pertinente.

O rapaz reapareceu, sacudindo uma garrafa de borgonha como se fosse um taco de golfe. Smiley disse:

Deixe o vinho respirar um pouco, por favor.

O garçom fitou-o como se Smiley estivesse louco.

Abra a garrafa e deixe-a ficar na mesa disse Guillam num tom ríspido.

Smiley não contou a história inteira. Posteriormente Guillam reparou que nela havia diversas lacunas. Mas fora o bastante para elevar-lhe o ânimo daquele estado de abatimento, na ocasião em que se separaram.

 

— É costume as pessoas que dirigem agentes se­cretos transformarem-se em mitos — começou a dizer Smiley, como se estivesse fazendo uma palestra de instrução na Nursery. — Eles assim procedem, em primeiro lugar, para impressionar seus agentes. Posteriormente, experi­mentam fazer o mesmo com os colegas e, segundo minha experiência pessoal, em conseqüência disso eles se portam como uns asnos fora do comum. Alguns vão ao ponto de tentar proceder da mesma maneira consigo mesmos: são uns charlatães e nós devemos nos livrar deles depressa. Não há outro jeito. No entanto, os mitos se formam, e Karla era um deles. Até sua idade constituía um mistério. Muito provavelmente Karla não era seu verdadeiro nome. Dezenas de anos de sua vida não eram conhecidos e, pro­vavelmente, jamais o seriam, pois as pessoas com quem trabalhava tinham um jeito de sumir ou conservar as bocas fechadas. Dizem que o pai dele esteve na Okhrana e que, mais tarde, reapareceu na Tcheca. Não acredito que isso seja verdade, mas é possível que tenha acontecido. Dizem também que ele trabalhou como ajudante de cozinha num trem blindado que operava contra as tropas japonesas de ocupação, no Oriente. Afirma-se que aprendeu seu ofício com Berg, e que foi, de fato, a menina dos olhos dele, o que significa, até certo ponto, ter aprendido música com um grande compositor. Tanto quanto eu saiba, sua carreira começou na Espanha, em 1936, porque pelo me­nos isso está documentado. Passava por ser um jornalista russo branco, favorável à causa de Franco, e recrutou um bando de agentes alemães. Isso foi uma operação muitís­simo complicada, notável, tratando-se de um jovem. Em se­guida, surgiu na contra-ofensiva soviética, em Smolensk, no outono de 1941, como agente do serviço de espiona­gem, sob a direção de Konev. Tinha a incumbência de dirigir redes de partisans, na retaguarda das linhas alemãs. Nesse meio tempo, descobriu que seu operador de rádio se bandeara para o inimigo e lhe estava transmitindo men­sagens. Karla o afastou e, a partir de então, praticou um verdadeiro jogo pelo rádio, que levou o inimigo a movi­mentar-se em todas as direções.

Isso constituiu outra parte da lenda, segundo decla­rou Smiley. Em Yelnya, graças a Karla, os alemães bom­bardearam suas próprias linhas avançadas.

— E entre essas duas aparições — prosseguiu Smiley —, em 1936 e 1941, Karla esteve na Grã-Bretanha, e acreditamos que ali permaneceu durante seis meses. Mas até mesmo hoje não sabemos, isto é, eu não sei, que nome ele usou ou que atividade suposta exerceu. Isso não signi­fica que Gerald não o saiba. Mas não é provável que nos diga qualquer coisa, pelo menos deliberadamente.

Smiley nunca havia conversado com Guillam dessa maneira. Não era dado a confidências nem a longas pales­tras. Guillam sabia que ele era um homem retraído, a despeito de todas as suas vaidades, e que esperava comu­nicar-se o menos possível com as pessoas. Mas ele con­tinuou:

— Em meados da década de 40, tendo lealmente servido a seu país, Karla passou uma temporada na prisão e, depois disso, algum tempo na Sibéria. Não houve nada de pessoal. Aconteceu, simplesmente, que pertencia a uma das seções do serviço de espionagem dos vermelhos que deixou de existir durante algum expurgo.

— E certamente — prosseguiu Smiley — após ser reintegrado, quando Stálin já havia morrido, foi para os Estados Unidos, isso porque, no verão de 1955, quando as autoridades da Índia o prenderam, em Délhi, vaga­mente acusado de ter infringido as leis de imigração, ele acabara de lá chegar de avião, vindo da Califórnia. Dizia-se no Circus que estaria ligado a grandes escândalos, em matéria de traição, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.

Smiley sabia ainda mais: — Karla caíra novamente em desgraça. Moscou andava atrás de sua cabeça, e nós julgávamos que poderíamos persuadi-lo a desertar. Por isso é que fui de avião a Délhi para ter uma conversa com ele.

Houve uma pausa quando o cansado garçom se aproximou negligentemente, indagando se eles estavam sa­tisfeitos. Smiley lhe assegurou, com grande solicitude, que estava plenamente satisfeito.

— A história do meu encontro com Karla — conti­nuou Smiley — integrou-se em grande parte no estado de espírito dominante naquela época. Em meados da década de 50, o Centro de Moscou estava desmantelado. Seus funcionários mais antigos estavam sendo fuzilados ou submetidos a expurgos em grande escala, e os que per­tenciam aos graus inferiores da hierarquia se encontravam dominados por uma paranóia coletiva. Como primeiro resultado disso, houve uma quantidade de defecções entre os funcionários do Centro que serviam no além-mar. Em toda parte, em Cingapura, Nairobi, Estocolmo, Camberra, Washington, observou-se esse mesmo fluxo constante, pro­vindo das agências: não apenas os graúdos, mas também informantes, motoristas, decifradores de códigos, datilógrafos. Foi preciso reagir a isso de algum modo, e nem sempre se percebe o quanto a indústria estimula sua própria inflação. Num abrir e fechar de olhos, tornei-me uma es­pécie de caixeiro-viajante, voando para uma capital e, no dia seguinte, para um sujo posto avançado de fronteira, certa vez até mesmo para um navio que se achava no mar, tudo isso para contratar desertores russos, para semear, peneirar, estabelecer condições, fazer os interrogatórios e dispor finalmente dessas pessoas.

Guillam ficara observando-o durante todo o tempo, mas, até mesmo sob aquela impiedosa luz de gás néon, a fisionomia de Smiley nada revelava, exceto um ar de concentração ligeiramente marcado de ansiedade.

— Nós estabelecemos — prosseguiu Smiley —, como você poderia dizer, três tipos de contratos para aqueles cujas histórias faziam nexo. Se o acesso não fosse interes­sante, nós poderíamos mandá-lo para outro país e esque­cê-lo. Comprá-lo pelo preço do mercado, como você diria, muito à maneira como hoje procedem os caçadores de escalpos. Ou poderíamos recambiá-lo à Rússia, isto é, des­de que presumíssemos que sua defecção ainda não tivesse sido notada. Ou, então, se ele tivesse sorte, nós o tomaría­mos a nosso serviço: obtínhamos todas as informações que ele possuísse e tornávamos a estabelecê-lo no Ocidente. Geralmente Londres é que tomava as decisões. Não era eu. Naquele tempo, Karla, ou Gerstmann, como ele pró­prio se chamava, era apenas mais um cliente. Eu lhe contei a história dele do fim para o começo; não quis ser reservado com você, mas agora você precisa pensar, diante de tudo quanto aconteceu entre nós dois, ou do que não aconteceu, e isso é mais importante, que tudo quanto eu ou qualquer pessoa do Circus sabia, quando eu voei para Délhi, era que um homem, que chamava a si próprio Gerstmann, estabelecera uma ligação radiofônica entre Rudnev, chefe das redes ilegais do Centro de Moscou, e o aparelho dirigido pelo mesmo Centro, na Califórnia, o qual estava ficando abandonado por falta de meios de comunicação. Isso é tudo. Gerstmann contrabandeara um transmissor através da fronteira canadense e estivera em San Francisco durante três semanas, treinando o novo operador. A intenção era essa, e havia uma série de transmissões feitas a título de provas, que lhe davam apoio. Para essas transmissões de provas entre Moscou e a Cali­fórnia — explicou Smiley — foi empregado um código. Um belo dia, Moscou enviou uma ordem incisiva.

— Ainda nesse código? — indagou Guillam.

— Precisamente. Essa é a questão. Devido a uma desatenção momentânea dos criptógrafos de Rudnev, nós já estávamos adiante deles, no jogo. Os espiões do primeiro time decifraram o código e foi por isso que nós obtivemos as informações. Gerstmann deveria sair de San Francisco imediatamente e dirigir-se a Délhi para encontrar-se com um correspondente da Agência Tass, um localizador de talentos que havia conhecido um chinês de valor e neces­sitava de orientação imediata. Por que eles arrastaram Karla de San Francisco até Délhi e por que tinha de ser ele e não outro qualquer... bem, isso é uma história que fica para outro dia. A ordem foi enviada pessoalmente por Rudnev. Era assinada com o nome de guerra de Rudnev e era meio rude, até mesmo para os padrões russos. O único fato que interessa é que na ocasião do encontro de Gerstmann com o homem da Agência Tass, em Délhi, este lhe entregou uma passagem de avião e lhe disse que fosse imediatamente para Moscou. Depois disso o homem da Agência Tass tomou o avião e deixou Gerstmann de pé, na calçada, com uma porção de perguntas a fazer e vinte e quatro horas de espera até seu avião decolar. Não fazia muito tempo que ele estava lá quando as autoridades india­nas o prenderam a nosso pedido e o despacharam para o presídio de Délhi. Tanto quanto eu me lembro, tínhamos prometido aos indianos uma parte do produto que colhêsse­mos. Acho que o trato foi esse — observou Smiley e, como alguém subitamente chocado por uma falha de sua própria memória, permaneceu em silêncio e ficou olhando distraí­do para o chão da sala coberto de umidade. — Ou talvez nós tenhamos dito que eles poderiam ficar com o homem depois que nós tivéssemos acabado de lidar com ele.

— Isso de fato não tem importância — declarou Guillam.

— Pelo menos uma vez durante a vida de Karla, como eu estou lhe dizendo, o Circus se adiantara a ele — prosseguiu Smiley, tendo tomado um pequeno gole de vinho e assumido uma expressão amarga. — Karla não poderia sabê-lo, mas a rede de San Francisco, à qual ele havia acabado de prestar um serviço, tinha sido comple­tamente desmantelada, no dia em que ele seguiu para Délhi. Logo que Control foi informado da história, ele a transmi­tiu aos americanos, dando a entender que haviam deixado de agarrar Gerstmann, mas pegariam o restante da rede de Rudnev, na Califórnia. Gerstmann voou para Délhi sem saber disso, e ainda nada sabia quando eu cheguei ao pre­sídio de Délhi para vender-lhe Um seguro, conforme Con­trol o denominou. A escolha de Karla era muito simples. Não poderia haver a menor dúvida, em face das condições então predominantes, de que a cabeça de Gerstmann estava condenada, em Moscou, onde, para salvar a própria pele, Rudnev empenhava-se em denunciá-lo pela destruição da rede de San Francisco. O caso tinha despertado grande rebuliço nos Estados Unidos, e Moscou mostrava-se muito indignada com a publicidade que isso tivera. Eu levava comigo fotografias da prisão, tiradas pela imprensa ameri­cana, até mesmo do rádio que Karla havia importado e dos planos de sinais que ele ocultara antes de partir. Você sabe como todos nós ficamos irritados quando as coisas são publicadas nos jornais.

Guillam ficara irritado e, num sobressalto, lembrou-se da pasta do arquivo da Operação Testemunho, que havia deixado com Mendel naquela noite, pouco tempo antes.

— Em resumo — prosseguiu Smiley — Karla era o proverbial órfão da guerra fria. Saíra de seu país para exe­cutar uma tarefa no exterior. Essa tarefa foi desbaratada debaixo de seu nariz, mas ele não poderia voltar à Rússia: sua pátria era-lhe mais hostil do que aquele país estrangei­ro. Nós não tínhamos poderes para obter sua prisão em ca­ráter permanente, por isso competia a Karla solicitar nossa proteção. Eu acredito nunca haver lidado com um caso mais claro de exigência de deserção. Bastaria convencê-lo da prisão da rede de San Francisco, mostrar-lhe as foto­grafias e os recortes dos jornais, retirados de minha pasta, conversar um pouco com ele sobre a inamistosa conspira­ção do irmão Rudnev, em Moscou, e enviar um telegrama para os inquisidores de Sarratt, que estavam um tanto assoberbados de trabalho. Se eu tivesse um pouco de sorte, poderia chegar a Londres até o fim da semana. Eu acho que tinha comprado umas entradas para o Sadlers Wells. É isso mesmo: foi o grande ano de balé para minha mulher.

Guillam também já ouvira falar nisso; um Apolo galês de vinte anos. A temporada daquele jovem maravilhoso. A companhia estava entusiasmando Londres, havia alguns meses.

— O calor era horrível na prisão — prosseguiu Smi­ley. — A cela tinha ao centro uma mesa de ferro e cor­rentes embutidas na parede. Eles o trouxeram algemado, o que me pareceu tolo, pois Karla era tão fraco! Pedi que lhe soltassem as mãos e, quando eles assim o fizeram, Karla pôs as algemas em cima da mesa e ficou reparando no sangue que lhe refluía às mãos. Deve ter sido doloroso, mas não fez qualquer comentário. Já estava preso havia uma semana e vestia uma túnica de morim. Era vermelha. Eu não lembro o que significava o vermelho: alguma coisa da ética da prisão.

Sorvendo um pouco de vinho, Smiley novamente ficou de rosto abatido. Em seguida, recompôs a expressão de sua fisionomia quando as recordações mais uma vez o domi­naram.

Bem, à primeira vista ele não me impressionou muito. Seria muito difícil, para mim, reconhecer naquele homem tão pequeno, diante de mim, o mestre da astúcia do qual ouvimos falar na carta de Irina, pobre mulher. Suponho que meus nervos sensíveis tinham ficado muito abalados por causa de tantos encontros parecidos com aquele, ocorridos nas últimas semanas, e também por causa de minhas viagens e por causa... das coisas em casa.

Desde o tempo em que Guillam conhecera Smiley, fora essa a primeira vez que ele reconhecera as infide­lidades de Ann.

Por algum motivo, aquilo me doeu muito pros­seguiu. Os olhos de Smiley ainda continuavam abertos, mas seu olhar se fixara num mundo interior. A pele de sua testa e de seu rosto ficara lisa como se em conseqüência do esforço de sua memória. Todavia, nada poderia ocultar de Guillam a solidão evocada por aquela única vez em que Smiley admitira a infidelidade da mulher. Eu tenho uma teoria que suspeito seja bastante imoral disse Smi­ley, já num tom mais alegre. Cada um de nós possui um certo grau de compaixão. Se voltarmos nossas preo­cupações para todos os gatos perdidos, jamais poderemos chegar ao centro das coisas. O que você pensa sobre isso?

Qual era o aspecto de Karla? indagou Guillam, tratando a questão como se fosse de caráter retórico.

Parecia um tio de alguém. Modesto, com cara de tio. Teria ficado bem vestido de padre: esse tipo de padre meio sujo, nanico, que a gente vê nas pequenas cidades italianas. Um homem baixo, magro, mas vigoroso, de ca­belos grisalhos, olhos castanhos e brilhantes, cheio de ru­gas. Ou então seria um professor de escola secundária. Teria sido um bom mestre: duro, o que quer que isso possa significar, e sagaz, dentro dos limites de sua expe­riência. Mas, de qualquer modo, uma figura menor. Ele não me causou qualquer outra impressão inicial, exceto que seu olhar era firme e que ele não tirou os olhos de mim desde o começo de nossa conversa. Se é que se po­dia chamar aquilo de conversa, pois Karla jamais pronun­ciou uma única palavra. Nem uma palavra, durante todo o tempo em que estivemos juntos. Nem uma sílaba. Além disso, fazia um calor insuportável e eu estava morto de tanto viajar.

Mais por uma questão de educação do que por ape­tite, Smiley começou a comer, levando o garfo à boca sem o menor prazer, antes de recomeçar sua narrativa. Isso murmurou ele é para não magoar o cozinheiro. Na verdade eu estava um tanto predisposto contra Gerstmann. Todos nós temos nossos preconceitos, e eu os tenho para com os operadores de rádio. Segundo minha experiência, eles são um bando de pessoas que nos enfadam por com­pleto. Não prestam para os trabalhos de campo, são ex­cessivamente tensos e não merecem confiança quando rea­lizam suas tarefas. Tive a impressão de que Gerstmann era apenas mais um membro desse clã. Talvez eu esteja procurando desculpas por haver trabalhado junto dele com menos Smiley hesitou cuidado, menos prudência do que, dados os seus antecedentes, teria sido apropriado. E Smiley subitamente tornou-se mais resoluto, dizendo: Embora eu não tenha a menor impressão de que preciso apresentar quaisquer desculpas.

Nessa altura, Guillam percebeu um impulso de cólera fora do comum, no sorriso espectral que assomou aos lá­bios pálidos de Smiley, que murmurou:

Que isso vá para o inferno.

Guillam ficou aguardando o resto, cheio de perplexi­dade.

— Lembro-me também continuou Smiley -de que a prisão parecia tê-lo quebrado muito depressa, naque­les sete dias. Ele tinha uma camada cinzenta sobre a pele e não estava transpirando. Eu suava copiosamente. Recitei meu papel, como já o fizera uma dúzia de vezes naquele ano, mas não havia, obviamente, a menor possibi­lidade de Karla ser recambiado à Rússia na qualidade de agente nosso. "Você não tem outra alternativa. O proble­ma é seu, de mais ninguém. Venha para o Ocidente que nós podemos oferecer-lhe, dentro do razoável, uma vida decente. Depois de um interrogatório, para o qual espera­mos que você coopere, nós o ajudaremos a recomeçar a vida: um novo nome, uma situação de isolamento e uma certa quantia em dinheiro. Por outro lado, você poderá ir para seu país, e eu suponho que eles irão fuzilá-lo, ou então jogá-lo num campo de concentração. No mês pas­sado, eles mandaram Bykow para um desses campos, como também Shur e Muranov. Por que você não me diz seu verdadeiro nome?" Eu falei mais ou menos assim. Depois fiquei sentado, enxugando o suor, à espera de que ele dis­sesse: "Está bem, muito obrigado". Ele nada disse. Nem uma palavra. Ficou simplesmente sentado, empertigado e miúdo, sob um ventilador grande, mas que estava para­do, olhando para mim com aqueles olhos castanhos e vivos, e com as mãos estendidas diante do corpo. Estavam muito calejadas. Eu me lembro de ter pensado que deveria per­guntar-lhe onde havia feito tantos trabalhos manuais. Karla conservava as mãos assim, apoiadas sobre a mesa, com as palmas voltadas para cima e os dedos um pouco dobrados, como se ainda estivesse algemado.

O rapaz do restaurante, pensando que Smiley, fazendo aquele gesto, estivesse mostrando que precisava de alguma coisa, aproximou-se num passo arrastado. Mas Smiley as­segurou-lhe que tudo estava ótimo: o vinho, de modo espe­cial, era muito fino, e ele realmente estava pensando onde o haviam obtido. O garçom se afastou, rindo entre dentes, intimamente divertido, e bateu com seu guardanapo na mesa vizinha.

— Foi então, creio eu, que um extraordinário senti­mento de mal-estar começou pouco a pouco a apoderar-se de mim. O calor de fato me estava fazendo mal. O cheiro era insuportável e eu me lembro de ouvir o gotejar do meu próprio suor, que caía em cima da mesa de ferro. Não era apenas o silêncio dele: sua imobilidade física começou a atacar-me os nervos. Eu já conhecia desertores que leva­vam tempo para falar. Às vezes é preciso um grande es­forço para que uma pessoa, treinada a guardar segredos até dos amigos mais íntimos, de repente abra a boca e despeje esses segredos para seus inimigos. Também me passou pela lembrança que as autoridades da prisão talvez tivessem pensado, a título de cortesia, em amaciá-lo um pouco antes de o trazerem à minha presença. Elas me garantiram que não haviam feito isso; mas, naturalmente, a gente nunca sabe. Por isso, a princípio eu atribuí seu silêncio a um estado de choque. Mas sua imobilidade, aquela imobilidade total e vigilante, era coisa diferente. De modo especial porque tudo, em mim, encontrava-se em grande agitação: Ann, as batidas do meu coração, os efei­tos do calor e da viagem...

— Eu compreendo — declarou Guillam serenamente.

— Você compreende mesmo? Ficar sentado é coisa eloqüente, qualquer ator lhe dirá isso. Nós nos sentamos conforme nossa natureza. Nós nos estiramos e nos escar­rapachamos, descansamos como lutadores de boxe entre um assalto e outro, mostramo-nos irrequietos, ficamos em­poleirados, cruzamos e descruzamos as pernas, perdemos a paciência, perdemos a resistência. Gerstmann não fez nada disso. Sua postura era firme e irredutível, e seu pe­queno corpo anguloso parecia um promontório de rochas. Ele poderia ficar sentado daquele jeito o dia inteiro, sem mover um músculo. Ao passo que eu... — Desatando numa risada contrafeita e embaraçada, Smiley tornou a pro­var o vinho, que não estava melhor do que antes. — Estava ansioso por ter alguma coisa diante de mim: papéis, um livro, um relatório. Acho que sou uma pessoa desassos­segada, irrequieta, instável. Pelo menos pensei assim, na­quela ocasião. Achei que não tinha capacidade de repouso filosófico. Que não tinha filosofia, se você quiser. Meu trabalho estava me atormentando mais do que eu havia até então percebido. Mas naquela cela imunda eu de fato me senti aflito. Senti que toda a responsabilidade da guer­ra fria caíra sobre meus ombros, o que era uma tolice, naturalmente. Eu estava simplesmente exausto e meio adoentado.

Smiley tornou a beber um pouco de vinho, e pros­seguiu, num tom insistente:

— Eu lhe digo uma coisa — declarou ele, novamen­te bastante irritado consigo mesmo: — Ninguém tem de pedir desculpas pelo que eu fiz.

— O que você fez? — indagou Guillam, dando uma risada.

— De certo modo houve uma brecha — prosseguiu Smiley, sem dar importância à pergunta. — Não se poderia dizer que foi obra de Gerstmann, pois o homem era uma brecha só. Então, foi minha. Eu tinha recitado meu papel; havia exibido as fotografias, de que ele nem tomou conhecimento. Posso afirmar que ele parecia perfeitamente dis­posto a aceitar minhas palavras quanto ao fato de a rede de San Francisco ter sido desbaratada. Eu tornei a expor esse aspecto da coisa, depois outro; falei empregando cer­tas variações e, finalmente, minha garganta secou. Ou melhor, fiquei lá sentado, transpirando como um animal. Bem, qualquer imbecil sabe que quando uma coisa dessas acontece, a pessoa se levanta e vai embora, dizendo: "É pegar ou largar". Ou qualquer outra coisa como, por exemplo, "Eu virei ver você amanhã de manhã", ou então "Vá embora e pense no assunto durante uma hora". Mas a primeira coisa em que eu reparei estar falando era a respeito de Ann. E Smiley não deu a Guillam tempo para que este soltasse uma exclamação entre dentes. Não prosseguiu ele. Não foi sobre minha Ann, não com estas palavras. Foi sobre a Ann dele. Eu presumi que ele teria uma Ann. Eu havia perguntado a mim mes­mo, sem dúvida por preguiça mental, o que um homem pensaria numa situação daquelas, e o que eu pensaria. E veio à minha cabeça uma resposta subjetiva: a mulher dele. Isso se chama projeção ou substituição? Detesto tais termos, mas tenho certeza de que um deles poderia ser aplicado. Troquei minha situação pela dele, essa é a ques­tão. E então, percebe? comecei a fazer um interrogatório a mim mesmo. Ele nada disse. Você pode imaginar? Havia certas condições externas, é bem verdade, às quais eu li­guei minha abordagem. Ele parecia ter um ar conjugal; parecia uma união pela metade; parecia completo demais para ter vivido sozinho a vida inteira. E havia o passaporte dele, que o descrevia como casado, sendo um hábito de todos nós fazer de nossa história falsa, da personalidade que assumimos, pelo menos um paralelo com a realidade. Smiley novamente mergulhou numa reflexão momen­tânea, e acrescentou: Eu pensei nisso muitas vezes, e até falei a respeito com Control: nós deveríamos levar mais a sério as histórias aparentes de nossos adversários. Quanto maior o número de identidades que uma pessoa tem, mais elas expressam aquilo que essa pessoa oculta. O homem de cinqüenta anos que reduz sua idade de cinco anos; o homem casado que se declara solteiro; o que não é pai e diz ter dois filhos... Ou o que faz um interroga­tório e se projeta na vida de um homem que se recusa a falar. Poucas pessoas são capazes de resistir ao impulso de dar expressão a seus anseios quando estão fantasiando a respeito de si mesmas.

Smiley estava novamente perdido e Guillam ficou pa­cientemente à espera de que ele voltasse ao assunto. En­quanto Smiley havia fixado sua atenção em Karla, Guil­lam se concentrara em Smiley. E, naquele momento, teria ido a qualquer lugar com ele, dobrado qualquer es­quina para permanecer a seu lado e ouvir toda a história.

Eu também sabia prosseguiu que os re­latórios dos observadores americanos informavam que Gerstmann fumava uma certa marca de cigarros: Camel. Mandei buscar vários maços deles. Tive a impressão de que Gerstmann vira algo de simbólico na transação mone­tária entre mim e o indiano. Naquele tempo eu usava uma cinta para levar meu dinheiro. Tive de tatear e puxar uma nota, retirando-a de um maço. O olhar de Gerstmann fez-me sentir um opressor imperialista de quinta classe. Smiley sorriu. O que eu não sou, sem dúvida alguma. Bill será isso, se você quiser. Ou Percy. Mas eu não. Smiley chamou o garçom, com o propósito de afastá-lo de perto deles. E lhe disse: Poderia nos trazer um pouco de água? Um jarro e dois copos? Obrigado. E recomeçou a história: Por isso eu indaguei a ele a respeito de Mrs. Gerstmann. Perguntei onde ela estava. Foi uma indagação que gostaria muito de ver respondida quanto a Ann. Ele não respondeu coisa alguma, mas con­servou aquele olhar firme. Os olhos dos dois guardas, um de cada lado dele, pareciam tão insignificantes, compara­dos aos daquele homem! "Ela terá de começar vida nova", eu disse. "Não haverá outro jeito." Ele não teria um amigo com quem pudesse contar, capaz de cuidar dela? Talvez nós pudéssemos encontrar um meio de entrar em contato com ela, secretamente. Fiz ver a ele que regressar a Mos­cou nada adiantaria para ela. Eu estava ouvindo a mim mesmo, e continuei a falar. Não conseguia parar. Talvez eu não quisesse fazer isso. Eu estava realmente pensando em deixar Ann, você compreende, eu julgava que havia chegado a hora de assim proceder. Regressar seria um ato quixotesco, declarei a ele, destituído de qualquer valor ma­terial para sua mulher, ou para qualquer pessoa. Muito pelo contrário. Ela seria banida. Na melhor das hipóteses, permitiriam que ela o visse durante uns breves momentos, antes de o fuzilarem. Por outro lado, se ele tentasse a sorte do nosso lado, nós poderíamos trocá-la por alguém; nós possuíamos um grande número de espiões deles presos por nós, naquela época, lembre-se disso, Guillam, e uma parte dessa gente iria voltar para a Rússia, através de trocas. Entretanto, por que motivo, em nome de Deus, nós devería­mos usar uma troca para aquela finalidade que eu estava propondo? Isso estava além da minha compreensão. Eu disse que ela, sem dúvida, preferia saber que ele se encon­trava em segurança e em boa situação, no Ocidente, haven­do razoáveis probabilidades de que ela viesse para a compa­nhia dele; antes isso do que vê-lo fuzilado ou morto de fome, na Sibéria. Eu realmente fiquei martelando sobre ela: a expressão de Gerstmann me encorajou a isso. Eu poderia jurar que estava sensibilizando o homem, que tinha en­contrado uma brecha em sua armadura, quando tudo que eu realmente estava fazendo era mostrar-lhe onde havia uma brecha em minha armadura. E quando mencionei a Sibéria, toquei em algum ponto sensível. Eu senti isso, como se fosse um nó em minha garganta; percebi em Gerstmann um arrepio de repugnância. Bem, eu natural­mente toquei num ponto sensível — comentou Smiley com azedume —, pois não havia muito, ele ainda era um pri­sioneiro. Finalmente o guarda voltou com os cigarros, uma porção deles debaixo do braço, atirando-os ruido­samente sobre a mesa de ferro. Eu conferi o troco, dei uma gorjeta ao guarda e enquanto assim fazia reparei na expressão dos olhos de Gerstmann. Imaginei ter observado que ele estava achando graça naquilo, mas eu já não me encontrava em condições de saber o que se passava. Obser­vei que o rapaz recusou a gorjeta; suponho que ele não gostava dos ingleses. Abri um maço e ofereci um cigarro a Gerstmann. "Tome", disse, "você fuma esta marca, todos sabem. É sua marca predileta." Minha voz soou num tom forçado e tolo, e eu não consegui falar de outro modo. Gerstmann levantou-se e indicou polidamente aos guardas que gostaria de voltar para sua cela.

Fazendo uma pausa, Smiley empurrou para o lado o prato que deixara pelo meio e sobre o qual brancos flocos de gordura se haviam formado como se fossem uma geada própria da estação.

— Quando ele ia saindo da cela — prosseguiu Smi­ley — mudou de opinião e apanhou um maço de cigarros e o isqueiro, que estavam sobre a mesa. Meu isqueiro, um presente de Ann: "Para George, de Ann, com todo o meu amor". Eu jamais havia sonhado em deixar que ele levasse o isqueiro como coisa normal. Mas aquele jeito dele não era normal. Na verdade eu achei absolutamente certo que ele levasse o isqueiro de Ann. Eu pensei, Deus me perdoe, que aquilo era o símbolo de um vínculo entre nós dois. Ele pôs o isqueiro e os cigarros no bolso de sua túnica vermelha e estendeu as mãos para as algemas. Eu disse o seguinte: "Acenda um cigarro, se você quiser". E declarei aos guardas: "Deixem que ele acenda um cigarro, por favor". Ele, porém, não fez o menor movimento. "Eles pretendem pôr você no avião de amanhã com destino a Moscou, a menos que concorde com nossas condições", acrescentei. Talvez ele não me tenha ouvido. Fiquei observando os guardas conduzi-lo e, depois, regressei a meu hotel. Alguém me levou de carro, mas até hoje eu não poderia dizer quem foi. Eu já não sabia quais os meus sentimentos e estava mais confuso e doente do que eu admitiria até a mim mesmo. Jantei mal, bebi demais e tive um febrão. Fiquei deitado, banhado em suor, e Gerstmann surgia em meus pesadelos. Eu queria desesperadamente ficar lá. Em minha leviandade, eu tinha realmente me de­cidido a não perdê-lo, a refazer-lhe a vida, se possível organizar de novo a vida daquele homem ao lado da mu­lher, em condições idílicas. Torná-lo um homem livre; re­tirá-lo para sempre da guerra. Eu queria desesperadamente que ele não voltasse para a Rússia. — Smiley levantou os olhos com uma expressão de ironia para consigo mesmo, e acrescentou: — O que eu estou dizendo, Peter, é o se­guinte: Smiley, e não Gerstmann, estava saindo da guerra naquela noite.

— Você estava doente — insistiu Guillam.

— Digamos que eu estivesse cansado. Durante a noi­te inteira, entre aspirinas, quinino e visões do casamento de Gerstmann, que tornava a existir, uma imagem se repe­tia em mim. Era a de Gerstmann, plantado no peitoril da janela, olhando para a rua lá embaixo, com aqueles olhos castanhos e fixos, ao passo que eu lhe falava, reiterada­mente: "Fique. Não pule". Sem perceber, naturalmente, que eu estava sonhando com minha própria insegurança, e não com a dele. De manhã cedo um médico me aplicou uma injeção para baixar a febre. Eu deveria ter abando­nado aquele caso, telegrafado pedindo que fosse substituí­do. Deveria ter aguardado um pouco antes de ir até a pri­são, mas na minha mente só existia uma idéia: Gerstmann. Eu precisava saber qual a decisão dele. Por volta das oito horas eu já estava sendo acompanhado às celas onde os presos passam as noites. Ele estava sentado, ereto como uma vareta de fuzil, num banco de madeira. Pela primeira vez eu reparei no soldado que havia nele, e sabia que ele, como eu, não dormira a noite inteira. Não havia feito a bar­ba e seu queixo estava coberto de uma penugem prateada que lhe dava à fisionomia o aspecto de um velho. Nos outros bancos dormiam uns indianos, e ele, com sua túnica ver­melha e aquela cor prateada, parecia muito alvo no meio deles. Tinha o isqueiro de Ann na mão e o maço de cigar­ros estava a seu lado, sobre o banco, não tendo sido to­cado. Eu concluí que ele aproveitara a noite e os cigarros desprezados para decidir se poderia enfrentar a prisão, os interrogatórios e a morte. Um olhar para sua expressão me informou que ele decidira ser capaz disso. Eu nada implo­rei a ele — declarou Smiley, e prosseguiu: — Ele jamais seria movido por gestos histriônicos. Seu avião decolaria pelas dez horas da manhã, e eu ainda dispunha de duas horas. Eu sou o pior advogado do mundo, mas durante aquelas duas horas procurei reunir todas as razões a meu alcance para que ele não voasse para Moscou. Eu julgava, você compreende, ter visto alguma coisa em seu rosto que era superior a um simples dogma, sem perceber que aquilo era um reflexo de mim mesmo. Eu me convencera de que Gerstmann seria, em última instância, acessível aos argu­mentos humanos comuns, provenientes de um homem de sua idade e que tinha a mesma profissão que ele e, bem, a mesma resistência. Eu não lhe prometi mulheres, for­tuna, Cadillac e manteiga barata. Admitia que essas coisas não teriam valor para ele. Naquela altura eu pelo menos tive o bom senso de não tocar no assunto da mulher dele. Não lhe fiz discursos sobre a liberdade, o que quer que isso signifique, ou sobre a boa vontade fundamental do Ocidente. Além disso, aqueles tempos não eram favoráveis para tentar vender uma história desse tipo, e eu próprio não me achava num estado de clareza ideológica. Segui o critério de nossas afinidades, e disse: "Veja, nós estamos ficando velhos, e passamos nossas vidas procurando en­contrar as debilidades dos nossos sistemas. Eu sou capaz de reconhecer os valores do Leste exatamente como você percebe os do Oeste. Nós dois, estou certo disso, experi­mentamos ad nauseam as satisfações de ordem técnica dessa miserável guerra. Mas agora o seu próprio lado vai matá-lo. Você não acha que chegou a hora de reconhecer que há tão pouca coisa valiosa do seu lado como do meu? Repare, em nossa profissão nós temos somente uma visão negativa das coisas. Nesse sentido, nenhum de nós dois tem para onde ir. Quando éramos jovens, nós endossávamos grandes visões..." — novamente eu senti nele um impulso, a Sibéria, eu havia tocado no ponto nevrálgico — "mas nós não fazemos mais isso. Não é certo?" Instei com ele para que respondesse apenas a essa pergunta. Não lhe ocorreu que ele e eu poderíamos muito bem ter alcançado as mes­mas conclusões a respeito da vida, através de caminhos diferentes? Ainda que minhas conclusões fossem o que ele chamaria de preconceituosas, não seria certo dizer que nos­sos meios eram idênticos? Ele não acreditava, por exem­plo, que as generalidades políticas não tinham sentido? E que, agora, só o particular, na vida, tinha valor para ele? Que os grandes projetos, nas mãos dos políticos, não al­cançam qualquer objetivo a não ser novas formas da velha miséria? E que salvar sua vida, por conseguinte, de outro pelotão de fuzilamento sem sentido era mais importante, moralmente, eticamente mais importante do que o senti­mento de dever, obrigação ou compromisso, ou o que quer que fosse que o mantinha em seu caminho atual rumo à autodestruição? Não lhe ocorrera pôr em dúvida, após to­das as andanças de sua vida, a integridade de um sistema que se propunha matá-lo a sangue-frio, isso por erros que ele nunca havia cometido? Eu lhe supliquei, sim, implorei, nós estávamos a caminho do aeroporto e ele ainda não me tinha dirigido uma única palavra que demonstrasse no que realmente acreditava; se a fé no sistema que servira seria para ele honestamente possível naquele momento. Du­rante uns momentos Smiley permaneceu sentado, sem nada dizer. Eu tinha atirado a psicologia às urtigas, a minha psicologia. E minha profissão também. Você pode imagi­nar o que me disse Control. Minha história o divertiu, de qualquer maneira. Ele gostava de conhecer as debilidades das pessoas. E, por algum motivo, minhas debilidades, de modo especial.

Smiley retomara seu tom objetivo, e prosseguiu:

Nós lá estávamos. Quando o avião chegou, fui a bordo com ele e voei uma parte do caminho: naquele tempo nem todos os aviões eram a jato. Não consegui um argumento que o demovesse. Desisti de falar, mas lá estava eu, se ele quisesse mudar de opinião. Ele preferia morrer a repudiar o sistema político com o qual estava compro­metido. A última coisa que vi dele, tanto quanto eu me lembro, foi seu rosto sem expressão, emoldurado pela ja­nela da cabina do avião, observando-me a descer a escada. Dois facínoras com cara de russos tinham se chegado para junto de nós e estavam acomodados nos assentos atrás dele, e já não tinha sentido minha permanência. Tomei o avião para a Inglaterra e Control disse o seguinte: "Bem, espero em Deus que eles o fuzilem", e me reconfortou com uma xícara de chá. Aquela repugnante beberagem chinesa que ele toma, limão e jasmim, ou seja lá o que for, que manda buscar na mercearia da esquina. Eu quero dizer, mandava buscar. Em seguida, deu-me três meses de licença, sem direito de recusá-la, declarando o seguinte: "Eu gosto que você tenha dúvidas. Isso me informa em que posição você está. Mas não faça dessas dúvidas um culto, porque você se tornaria um chato". Aquilo era uma advertência, e eu a ouvi. Control me aconselhou a parar de pensar tanto nos americanos, assegurando-me que mal se lembra­va deles.

Guillam olhou para Smiley, à espera da resolução, indagando:

Mas o que você fez com essa advertência? num tom que sugeria haver sido logrado por não saber o final da história. Karla alguma vez pensou realmente em ficar na Inglaterra?

Tenho certeza de que isso jamais passou pela ca­beça dele declarou Smiley num tom de revolta. Eu me portei como um louco manso. O verdadeiro arquétipo do frouxo liberal do Ocidente. Mas, apesar de tudo, pre­firo ser o tipo de louco que sou a ser o tipo de louco que ele é repetiu Smiley com vigor —, pois nem meus argu­mentos nem a situação difícil em que ele se encontrava, junto ao Centro de Moscou, teriam, em última instância, ao menos feito o homem hesitar. Presumo que ele tenha pas­sado a noite pensando em como sacar a arma antes de Rudnev fazê-lo, quando chegasse a seu país. Rudnev foi fuzilado um mês depois, devo dizer, antes que me esqueça. Karla obteve o cargo de Rudnev e começou a trabalhar, reativando seus antigos agentes. Entre eles Gerald, sem a menor dúvida. É estranho pensar que durante todo o tem­po em que ficou olhando para mim poderia estar pensando em Gerald. Espero que eles tenham dado boas gargalhadas por causa disso.

O episódio teve ainda outro resultado, conforme de­clarou Smiley. Desde sua experiência em San Francisco, Karla nunca mais se utilizou do rádio clandestino, cortando esse tipo de atividade por decisão própria. E Smiley pros­seguiu :

As ligações com a Embaixada são outra coisa. Mas, nos trabalhos de campo, os agentes dele não podem aproximar-se do rádio. E Karla ainda conserva o isqueiro de Ann.

Seu isqueiro corrigiu Guillam.

Sim, naturalmente, meu isqueiro. E diga-me uma coisa prosseguiu ele: Tarr estava se referindo a alguém em particular quando fez aquela referência desa­gradável sobre Ann?

Acho que sim.

Os rumores são assim tão precisos? indagou Smiley. E chegam até o pessoal subalterno? Mesmo até Tarr?

- Sim.

E o que se diz, precisamente?

Que Bill Haydon é amante de Ann Smiley de­clarou Guillam, sentindo uma frieza apoderar-se dele, o que constituía uma atitude de defesa quando dava más notícias como por exemplo: "Você foi descoberto", "Está demitido", "Está à morte".

— Ah, compreendo. Obrigado.

Houve um silêncio constrangedor.

— E havia uma Mrs. Gerstmann? — indagou Guil­lam.

Karla casou-se com uma jovem, em Leningrado, uma estudante. Ela se suicidou quando ele foi mandado para a Sibéria.

— Então Karla é à prova de fogo — disse Guillam, finalmente. — Não pode ser comprado e não pode ser batido.

Eles voltaram para o carro.

— Eu devo dizer que foi bem caro pelo que nós comemos — confessou Smiley. — Você acha que o gar­çom me furtou?

Mas Guillam não estava disposto a conversar sobre o custo de más refeições na Inglaterra. Novamente ao volante do carro, aquele dia outra vez se tornou para ele um pesadelo, uma estonteante confusão de perigos e sus­peitas mal percebidos.

— Então quem é a Fonte Merlin? — indagou. — De onde poderia Alleline ter obtido aquelas informações se­não dos próprios russos?

— Ele as obteve exatamente dos russos.

— Pelo amor de Deus! Mas se os russos enviaram Tarr. . .

— Eles não fizeram isso. Nem Tarr usou os passa­portes britânicos, usou? Os russos se enganaram. O que Alleline obteve constituiu uma prova de que Tarr os tinha logrado. Essa é a mensagem vital que nós aprendemos de toda essa tempestade em copo d'água.

— Então que diabo Percy quer dizer com "poços de lama"? Ele deve ter falado sobre Irina, meu Deus!

— E sobre Gerald — concordou Smiley.

Eles novamente continuaram a rodar em silêncio, e o abismo que havia entre ambos subitamente pareceu in­transponível.

— Escute, Peter. Eu não estou exatamente por dentro. Mas quase. Karla virou o Circus pelo avesso. Isso eu entendo, e você também. E se você quiser um sermão, eu lhe digo que Karla não é à prova de fogo porque é um fanático. E algum dia, se eu estiver envolvido nisso, essa falta de moderação será a ruína dele.

Estava chovendo quando eles chegaram à estação do metrô de Stratford. Um grupo de pedestres estava aglo­merado debaixo do abrigo.

Peter, de agora em diante eu quero que você relaxe um pouco.

— Três meses de licença, sem outra opção?

— Descanse, mantendo-se em seu posto.

Fechando a porta do carro, Guillam teve ímpetos de dar boa noite a Smiley ou desejar-lhe boa sorte. Por isso inclinou-se no assento, abriu a janela e tomou fôlego para falar. Mas Smiley já desaparecera. Guillam não co­nhecia uma pessoa capaz de sumir tão depressa em meio à multidão.

 

Durante o resto daquela noite, a luz da lucarna do sótão de Mr. Barraclough, no Islay Hotel, permaneceu acesa ininterruptamente. Sem trocar de roupa e sem fazer a barba, George Smiley ficou debruçado sobre a mesa do major, lendo, comparando, anotando, consultando referên­cias cruzadas, tudo isso com uma intensidade que, tivesse ele sido um observador de si próprio, certamente o teria feito lembrar-se dos últimos dias de Control, do quinto andar de Cambridge Circus. Espalhando os documentos, consultou as escalas de licenças e as listas dos doentes que remontavam ao ano anterior e as dispôs ao lado dos pla­nos de viagens a Moscou, de suas viagens para fora de Londres, conforme os relatórios enviados ao Ministério do Exterior pelo departamento especializado e pelas autori­dades de imigração. Tornou a compará-las com as datas nas quais Merlin aparentemente fornecera suas informa­ções e, sem saber claramente o que estava fazendo, clas­sificou os relatórios da Operação Bruxaria, os que eram evidentemente de caráter tópico na época em que foram recebidos, e aqueles que poderiam ter sido feitos e guar­dados um ou dois meses antes, por Merlin ou seus con­troladores, no propósito de preencher períodos vazios, tais como documentos opinativos, estudos a respeito de membros importantes da administração, fragmentos de me­xericos do Kremlin, que poderiam ter sido coletados em qualquer época e guardados para dias de penúria de in­formações. Tendo feito uma lista dos relatórios de caráter tópico, lançou suas datas numa única coluna e deixou de lado os restantes. Nessa altura, seu estado de espírito po­deria ser comparado ao de um cientista que percebe, ins­tintivamente, estar à beira de fazer uma descoberta e que fica aguardando alguma conexão lógica a surgir a qualquer momento. Mais tarde, em conversa com Mendel, ele deno­minou a isso "jogar tudo num tubo de ensaio e ver se irá explodir". O que mais o fascinava, declarou ele, era a observação que Guillam havia feito a respeito da lúgubre advertência de Alleline em relação aos poços enlameados. Em outras palavras, estava à procura do "último e inteli­gente nó" que Karla havia feito e tentando obter uma expli­cação das suspeitas precisas que tinham adquirido forma com a carta de Irina.

Ele obteve alguns curiosos achados preliminares. Em primeiro lugar, em nove ocasiões em que Merlin enviou relatórios de caráter tópico, Polyakov havia estado em Londres ou Toby Esterhase tinha feito uma rápida viagem ao exterior. Em segundo lugar, durante o período crítico que sucedeu à aventura de Tarr em Hong Kong, Polyakov encontrava-se em Moscou, realizando urgentes consultas de natureza cultural; e que pouco depois surgia Merlin com alguns de seus mais espetaculares informes de fatos cor­rentes, versando sobre a "penetração ideológica" dos Es­tados Unidos, incluindo uma apreciação da cobertura feita pelo Centro, abrangendo os principais alvos do serviço de espionagem americano.

Novamente realizando suas investigações retrospecti­vas, ele estabeleceu que o inverso também era verdadeiro: os relatórios que havia posto de lado, sob o fundamento de não terem ligação íntima com os acontecimentos recen­tes, eram aqueles geralmente distribuídos enquanto Po­lyakov estava em Moscou ou de licença.

Então Smiley chegou à sua conclusão.

Não foi uma revelação espetacular, nenhuma ilumi­nação, nenhum brado de "eureka", nem telefonemas a Guil­lam, a Lacon, ou afirmações de que "Smiley era um cam­peão mundial". Simplesmente estava diante dele, nos regis­tros que examinara e nas notas que havia compilado, a corroboração de uma teoria que ele, Smiley, Guillam e Ricki Tarr viram demonstrada, naquele dia, a partir de seus pontos de vista diferentes: havia entre Gerald e a Fonte Merlin uma influência recíproca que não poderia mais ser negada; a proverbial versatilidade de Merlin lhe permitia agir como instrumento de Karla e também de Alleline. Ou — diria Smiley, refletindo sobre o assunto, atirando uma toalha ao ombro e caminhando alegremente em direção ao corredor a fim de tomar um banho em comemoração de sua descoberta — na qualidade de agente de Karla? Além disso, no âmago dessa trama havia um recurso tão simples que o deixou verdadeiramente alvoroçado por sua simetria: a trama possuía até uma presença material, ali, em Lon­dres, uma casa, paga pelo Tesouro, e todas aquelas ses­senta mil libras, freqüentemente cobiçada, sem dúvida, por muitos infortunados contribuintes que passavam dia­riamente por ela, certos de que nunca teriam dinheiro para possuí-la e sem saber que já a tinham pago. Foi com o coração mais leve, como não o tinha há muitos meses, que se debruçou sobre a pasta do arquivo, por ele furtada, da Operação Testemunho.

 

Deve-se reconhecer que a inspetora estivera preocupa­da com Roach durante a semana inteira, desde que o en­controu sozinho no lavatório, dez minutos depois de os demais alunos terem descido do dormitório para o café da manhã, ele ainda de pijama, debruçado sobre uma pia, a escovar os dentes obstinadamente. Quando ela o interro­gou, Roach evitou seu olhar. "É aquele desgraçado do pai dele", informou ela a Thursgood. "Está arrasando o me­nino de novo". E na sexta-feira, acrescentou: "O senhor precisa escrever à mãe dele, e dizer-lhe que o rapaz está tendo uma crise".

Mas nem mesmo a inspetora, apesar de toda a sua per­cepção de mãe, teria chegado a fazer o diagnóstico de que se tratava de puro e simples terror.

Que poderia ele fazer, ele, uma criança? Esse era seu sentimento de culpa. Esse o fio que remontava diretamente à infelicidade de seus pais. Essa a situação de transe que atirava sobre seus ombros curvados a responsabilidade de preservar, noite e dia, a paz do mundo. Roach, o observa­dor — "o melhor olheiro de todo este maldito lugar", para repetir as palavras de Jim, que ele guardara como um tesouro —, finalmente tinha observado bem demais. Roach teria sacrificado tudo quanto possuía, dinheiro, o estojo de couro onde guardava as fotografias dos pais, tudo quanto o valorizava neste mundo, se isso pudesse livrá-lo do que sabia e o consumira desde a noite de domingo.

Ele havia revelado os sintomas. Na noite de domingo, uma hora depois de terem sido apagadas as luzes, dirigira-se ao banheiro ruidosamente, enfiara o dedo na garganta, provocando náuseas e, afinal, vomitara. Mas o monitor do dormitório, que deveria estar acordado e ter dado o alarma — "Inspetora, Roach ficou doente" —, dormiu teimosa­mente durante toda essa figuração. E Roach voltou mise­ravelmente para a cama. Na tarde do dia seguinte, indo até a cabina telefônica que ficava em frente à sala dos professores, discara sem propósito e sussurrara de maneira estranha no bocal do aparelho esperando ser ouvido por algum dos professores e julgado louco. Mas ninguém lhe deu a menor atenção. Havia procurado misturar a reali­dade e o sonho, na esperança de que isso iria converter-se em algo que tinha imaginado. Mas todas as manhãs, ao passar pelo Buracão, via a figura torta de Jim, curvada sobre a pá; via a sombra escura do rosto dele, debaixo da aba de seu velho chapéu, e ouvia o grunhido que ele sol­tava ao fazer esforços para cavar a terra.

Roach nunca deveria ter ido lá. Isso também ele julga­va ser uma culpa: aquilo que ele sabia fora adquirido atra­vés de um pecado. Após uma lição de violoncelo, lá nos confins da vila, voltara à escola com deliberado vagar a fim de chegar atrasado para as vésperas e receber o olhar de censura de Mrs. Thursgood. Toda a escola estava fazendo suas orações, todos estavam rezando, exceto ele e Jim. Roach ouviu que cantavam o Magnificat, ao passar pela igreja, tomando o caminho mais longo para que pudesse rodear o Buracão, onde brilhava a luz de Jim. Postando-se de pé no lugar de costume, ficou observando a sombra de Jim a mover-se lentamente do outro lado da janela pro­tegida pela cortina. Aprovou o fato de Jim ter voltado cedo para casa, no momento em que a luz se apagou subitamente, pois Jim ultimamente andava por demais au­sente para o gosto dele, Roach, saindo no Alvis depois das partidas de rugby e só voltando quando Roach estava dor­mindo. Então abriu-se e fechou-se a porta do reboque, e lá estava Jim, de pé, junto ao canteiro de verduras, com uma pá na mão. E Roach, com grande perplexidade, ficou imaginando o que ele estaria pretendendo cavar naquela escuridão. Legumes para a ceia? Por um momento Jim permaneceu absolutamente imóvel, ouvindo o Magnificat. Em seguida, olhou lentamente em derredor e voltou os olhos para Roach, embora este não fosse visível, no escuro das ondulações do terreno, à sua retaguarda. Roach che­gou a pensar em chamá-lo, mas sentiu-se cheio de pecado por haver faltado à capela.

Finalmente Jim começou a tomar umas medidas. Pelo menos pareceu a Roach. Em vez de cavar o chão, ele se ajoelhara num canto do canteiro e colocara a pá so­bre a terra, como se a estivesse pondo em alinhamento com alguma coisa fora do campo de visão de Roach: por exemplo, a torre da igreja. Isso feito, Jim encaminhou-se rapidamente para o ponto onde ficava a lâmina da pá, marcou-o com um golpe do calcanhar, tomou a pá nas mãos e começou a cavar o terreno rapidamente. Roach contou que ele assim fez doze vezes. Em seguida levan­tou-se e tornou a examinar o terreno. Na igreja, o silêncio. Depois, preces. Curvando-se rapidamente, Jim pegou um embrulho do chão, ocultando-o imediatamente nas dobras de seu casaco de baeta. Transcorridos alguns segundos, muito mais depressa do que pareceria possível, a porta do reboque fechou-se com ruído, a luz foi nova­mente acesa e, no momento mais audacioso de sua vida, Bill Roach desceu pelo Buracão pé ante pé até chegar a um metro da janela mal vedada pela cortina, valendo-se da encosta para ter a altura de que precisava a fim de espiar para dentro do reboque.

Jim estava de pé junto à mesa. No beliche, atrás dele, havia um monte de cadernos, uma garrafa de vodca e um copo vazio. Ele deveria tê-los atirado lá para conseguir espaço. Estava com um canivete aberto, mas não ia usá-lo. Jim jamais cortaria um cordão, se pudesse evitá-lo. O em­brulho tinha uns trinta centímetros de comprimento, feito de um material amarelo, semelhante ao de uma bolsa de tabaco. Abrindo o embrulho, ele retirou o que parecia uma chave-inglesa, embrulhada em pano de saco de aniagem. Mas quem haveria de enterrar uma chave-inglesa, mesmo para o melhor carro que já se fabricou na Inglaterra? Os parafusos ou porcas estavam num envelope à parte, ama­relo. Ele os espalhou em cima da mesa, examinando um de cada vez. Não eram parafusos: eram pontas de canetas. Não eram também pontas de canetas, mas haviam desapa­recido da visão de Bill.

E não era uma chave-inglesa, nem uma chave de porca, nada, absolutamente nada para o carro.

Roach subira aos tropeções até o alto do Buracão. Correu entre as ondulações do terreno, em direção à es­trada, mas o fez mais devagar do que nunca; correndo sobre areia e fundas poças de água, arrancando a relva, aspirando ofegante o ar da noite, expelindo-o a soluçar, correndo enviesado como Jim fazia, ora dando mais im­pulso a uma perna, ora a outra, estirando a cabeça para ganhar mais velocidade. Não tinha a menor idéia do ponto aonde se dirigia. Tudo quanto sabia estava à sua retaguar­da, fixado no revólver preto e nas faixas de camurça; nas pontas de canetas que se haviam transformado em balas no momento em que Jim as enfiara metodicamente no tambor da arma, com o rosto sulcado de rugas, voltado em direção à luz da lâmpada, pálido e um tanto vesgo por causa daquele brilho ofuscante.

 

— Eu não quero que meu nome seja mencionado, George — advertiu o ministro com seu jeito arrastado de falar. — Nada de atas, nada de rotinas. Eu tenho de lidar com os eleitores, e você não tem. Nem Oliver Lacon, não é isso, Oliver?

— Sim, eu sinto muito sobre isso — declarou Smiley.

— Você ainda sentiria mais se tivesse meu eleitorado — replicou o ministro.

Seria de prever que a simples questão do lugar onde teriam de encontrar-se deveria inflamar uma discussão tola. Smiley observara a Lacon que seria imprudente realizar-se o encontro na sala dele, em Whitehall, pois estava sujeita a constantes investidas da parte do pessoal do Circus, por­teiros a entregar caixas contendo despachos, ou Percy Alleline a entrar para discutir o problema da Irlanda. O ministro recusou o Islay Hotel e a Bywater Street, sob a arbitrária alegação de que eram lugares inseguros. Ele apa­recera recentemente na televisão e tinha orgulho em ser reconhecido. Ao cabo de várias visitas, decidiram-se pela residência de Mendel, uma casa geminada, em estilo Tudor, onde o ministro e seu luzidio automóvel ficaram salientes como um polegar machucado. Lá estavam eles sentados, Lacon, Smiley e o ministro, na elegante sala da frente, com suas cortinas de renda, diante de sanduíches de salmão, feitos na hora, ao passo que o anfitrião permanecia no andar de cima, observando as vias de acesso à casa. Na pequena rua, umas crianças instavam com o motorista para que lhes dissesse quem era seu patrão.

Por detrás da cabeça do ministro havia uma fileira de livros sobre abelhas. Elas eram a paixão de Mendel, lem­brava-se Smiley. Ele empregava a palavra "exóticas" para as abelhas que não eram do Surrey. O ministro era um homem ainda moço, e tinha as mandíbulas escuras e que pareciam haver sido esmurradas em alguma improvável rixa. Era calvo no alto da cabeça, o que lhe dava injusti­ficado aspecto de maturidade, e falava com um terrível sotaque de Eton.

— Muito bem. Quais são as decisões? — indagou ele, que também possuía aquela arte de dialogar, própria dos arrogantes.

— Bem, em primeiro lugar, suponho eu, o senhor deverá desencorajar quaisquer recentes negociações que venham sendo realizadas com os americanos. Eu estava pensando no anexo secreto e sem título que o senhor guar­da em seu cofre — disse Smiley —, o que discute maiores explorações do material da Operação Bruxaria.

— Nunca ouvi falar nisso — declarou o ministro.

— Eu naturalmente compreendo quais sejam os in­centivos, sem a menor dúvida. É sempre tentador pôr as mãos no que se diria a nata do enorme serviço de infor­mantes americano, e percebo o argumento em favor de negociar o material da Operação Bruxaria em troca dessas informações.

— E quais serão os argumentos em contrário? — indagou o ministro como se estivesse discutindo com seu corretor de títulos.

— Se Gerald existir — começou Smiley. Entre todos os seus primos, Ann certa vez dissera, cheia de orgulho, que apenas Miles Sercombe não possuía um único traço que o redimisse. Pela primeira vez Smiley realmente acre­ditou que ela tinha razão. Ele parecia não só idiota mas também incoerente. — Se Gerald existir — prosseguiu Smiley —, o que eu presumo seja a opinião geral entre nós... — Smiley ficou à espera, mas ninguém o contes­tou. — Se Gerald existir — repetiu ele —, não será apenas o Circus que irá duplicar seus lucros com as negociações junto aos americanos. O Centro de Moscou também o fará, porque obterá de Gerald tudo quanto o senhor obtiver dos americanos.

Num gesto de quem se sentia frustrado, o ministro bateu com a mão na mesa de Mendel, deixando no verniz uma marca úmida.

— Eu não compreendo coisa alguma — declarou ele. — Esse material da Operação Bruxaria é maravilhoso! Há um mês nós seríamos capazes de comprar até a Lua com ele. Agora estamos enfiando o rabo entre as pernas e afir­mamos que os russos estão cozinhando o material para nós. Que diabo está acontecendo?

— Bem, na realidade eu não acho que isso seja tão ilógico quanto parece. Afinal de contas, nós mantivemos aquela estranha rede russa de tempos a tempos, e, embora eu próprio diga isso, nós o fizemos razoavelmente bem. Nós lhes demos o melhor material de que dispúnhamos. Foguetes, planos de guerra. Você esteve envolvido nisso — declarou Smiley, nessa altura dirigindo-se a Lacon, que fez um rápido sinal de assentimento. — Nós lhes envia­mos os agentes que pudemos dispensar, demos boas comu­nicações, tornamos seguros seus correios, limpamos os ares para seus sinais a fim de poder ouvi-los. Esse foi o preço que pagamos para ser da oposição. E quais foram suas palavras, ministro? "Para sabermos como eles davam ins­truções aos seus comissários." Tenho certeza de que Karla faria a mesma coisa por nós se estivesse administrando nossas redes. E faria mais, não é verdade? se estivesse de olho também no mercado americano. — Smiley parou de falar e olhou para Lacon. — Ele faria mais, muito mais — prosseguiu Smiley. — Uma ligação americana, quero dizer, um grande dividendo americano, colocaria Gerald imedia­tamente na mesa alta. E o Circus também, por procuração, naturalmente. Se um homem fosse russo, daria quase tudo aos ingleses se... bem, se pudesse, em troca, comprar os americanos.

— Obrigado — disse Lacon rapidamente.

O ministro se retirou, levando uns sanduíches para comer no carro, sem despedir-se de Mendel, presumivel­mente porque ele não era seu eleitor.

Lacon deixou-se ficar e, finalmente, disse o seguinte:

— Você me pediu que procurasse tudo quanto hou­vesse acerca de Prideaux. Bem, verifiquei que nós de fato temos alguns papéis sobre ele.

Aconteceu que Lacon estivera examinando umas pas­tas a respeito da segurança interna do Circus — explicou ele próprio — simplesmente para dar uma limpeza em seu convés. E assim fazendo, encontrara por acaso alguns antigos e positivos relatórios sobre vetos. Um deles referia-se a Prideaux.

— Ele foi considerado absolutamente limpo, você compreende. Sem a menor reserva. No entanto — uma estranha inflexão de sua voz levou Smiley a olhar para ele — eu acho que isso poderia interessar a você do mesmo modo. Houve alguns discretos rumores a propósito do tempo em que ele esteve em Oxford. Nós todos tínhamos o direito de ser um pouco simpatizantes dos vermelhos, naquela época.

— Sim, de fato.

Voltou a reinar o silêncio, apenas interrompido pelos leves passos de Mendel no andar superior.

— Prideaux e Haydon eram de fato muito íntimos, você sabe — confessou Lacon. — Eu não tinha percebi­do isso.

Subitamente Lacon mostrou estar com grande pressa de retirar-se. Enfiando a mão em sua pasta, dela sacou um grande envelope liso, que pôs nas mãos de Smiley, saindo para aquele mundo mais altivo de Whitehall. E Mr. Barraclough encaminhou-se para o Islay Hotel, voltando à sua leitura da Operação Testemunho.

 

Era a hora do almoço, no dia seguinte. Smiley tinha lido e dormido durante algum tempo, voltado à leitura e, em seguida, tomado um banho. Estava então subindo os degraus daquela bonita casa de Londres, e sentia-se con­tente porque gostava de Sam.

A casa, de tijolos marrons, era georgiana e ficava junto a Grosvenor Square. Eram quatro os degraus e havia uma campainha de bronze, numa reentrância debruada por um festão. A porta era preta, ladeada por umas colunas. Ele tocou a campainha e poderia ter puxado a porta, que se abriu imediatamente. Smiley penetrou num saguão cir­cular, que tinha uma porta no outro extremo, onde esta­vam postados dois homens corpulentos, vestidos de preto, que poderiam ter sido porteiros da Abadia de Westminster. Sobre uma chaminé de mármore, havia duas esculturas re­presentando cavalos empinados; poderiam ser de Stubbs. Um dos homens permaneceu junto à porta enquanto Smi­ley tirava o casaco e o outro o conduziu a uma mesa dessas onde se colocam bíblias, para que assinasse um livro.

Hebben — murmurou Smiley ao assiná-lo, dando seu nome de guerra de que Sam poderia lembrar-se.

— Eu sou amigo de Mr. Collins — declarou Smiley. — Se ele puder falar comigo... Creio que talvez esteja à minha espera.

O homem que lhe segurava o capote repetiu o nome num telefone interno:

— Mr. Hebben, Mr. Adrian Hebben.

— Se o senhor não se importar de aguardar um se­gundo, Mr. Hebben — disse o homem que estava perto da mesa de bíblias.

Não havia música, e Smiley achava que deveria haver, e também uma fonte.

O homem que estava ao telefone murmurou "Obri­gado" e desligou. Acompanhou Smiley até a porta interna, abrindo-a. A porta não fez o menor ruído.

— Mr. Collins está ali — murmurou respeitosamen­te. — As bebidas são cortesia da casa.

As três salas de recepção haviam sido unidas por umas colunas e uns arcos e eram revestidas de lambris de mogno. Havia uma mesa em cada sala, ficando a terceira mesa a quase vinte metros de distância da primeira. As luzes brilhavam sobre uns quadros insignificantes, repre­sentando frutas, com imensas molduras douradas, e ilumi­navam as toalhas das mesas, de baeta verde. As cortinas estavam cerradas, e um terço das mesas se achava ocupa­do, havendo quatro ou cinco jogadores em cada uma, todos eles homens. Mas o único som que se ouvia era o estalido da esfera da roleta, e o das fichas ao serem redistribuídas, ao lado do murmúrio quase inaudível dos crupiês.

Adrian Hebben — disse Sam Collins, num tom efusivo. — Há quanto tempo!

— Viva, Sam — disse Smiley.

E os dois apertaram-se as mãos.

— Venha até meu covil — continuou Sam, fazendo um sinal de cabeça para o único homem, além deles, que estava de pé na sala, um tipo muito alto, que devia sofrer de hipertensão e tinha um rosto inexpressivo. O homem também acenou com a cabeça.

— Você gostou da casa? — indagou Sam enquanto atravessavam um corredor coberto de cortinas de seda vermelha.

— Causa uma forte impressão — declarou Smiley polidamente.

— Essa é a palavra certa — disse Sam. — Impres­são. É isso mesmo.

Ele estava de dinner jacket. A sala era revestida de pelúcia eduardina, e a mesa de Sam tinha tampo de már­more e pés de esferas e garras. Mas a sala era muito pe­quena e mal ventilada, assemelhando-se mais a um cama­rim de teatro, pensou Smiley, mobiliado com acessórios de peças já levadas à cena.

— Eles poderiam mesmo ter deixado que eu inves­tisse algum dinheiro meu, mais tarde, no ano que vem. Eles são duros, mas muito avançados, você compreende.

— Com certeza são isso mesmo — disse Smiley.

— Como nós éramos, nos velhos tempos.

— Exatamente.

Sam era elegante e de maneiras despreocupadas. Ti­nha um bigode preto, aparado. Smiley não poderia imaginá-lo sem esse bigode. Teria provavelmente uns cinqüenta anos. Passara muito tempo no Oriente, onde os dois tinham agido juntos, num trabalho contra um operador de rádio, chinês. Os cabelos dele estavam se tornando grisalhos, mas ainda aparentava ter trinta e cinco anos. Tinha um sorriso acolhedor e uma cordialidade confiante. Mantinha as duas mãos apoiadas na mesa, como se estivesse num jogo de cartas, e olhava para Smiley com um ar de amizade pos­sessiva que era paternal, filial, ou as duas coisas ao mesmo tempo.

— Se aquele camarada passar de cinco — disse ele —, telefone para mim, Harry. Está bem? Do contrário, fique de boca fechada. Eu estou conversando com um rei do petróleo. — Sam falava num aparelho que se encon­trava sobre sua mesa. — Onde está ele, agora?

— Passou de três — disse uma voz de cascalho.

Smiley adivinhou que era a voz do homem de rosto inex­pressivo e que tinha pressão alta.

— Então ele ainda tem oito a perder — disse Sam afavelmente. — Segure o homem naquela mesa. É só isso. Faça dele um herói. — Sam desligou o aparelho e deu um sorriso, que Smiley retribuiu.

— Realmente, é uma vida muito boa — Sam asse­gurou a Smiley. — Melhor do que vender máquinas de lavar roupa, em todo caso. Um pouco estranha, sem a menor dúvida. A gente põe um dinner jacket às dez horas da manhã. Faz lembrar que se está passando por diplo­mata. Também é honesta, você acredite ou não — acres­centou Sam sem mudar de expressão. — A gente obtém toda a ajuda de que precisa, com os cálculos que faz.

— É claro — disse Smiley, sorrindo e mais uma vez falando de um jeito muito polido.

— Você gosta de música?

Era música de fita, e provinha do teto. Sam ligou o aparelho, o mais alto que eles poderiam suportar.

— Então em que posso ser útil a você? — indagou Sam efusivamente.

— Quero conversar com você sobre a noite em que Jim Prideaux levou aqueles tiros. Você estava de serviço.

Sam fumava uns cigarros escuros que tinham cheiro de charuto. Acendendo um deles, deixou que sua ponta se inflamasse bem, observando-a até que ela ficou em brasa. E indagou:

— Escrevendo suas memórias, meu velho?

— Nós estamos reabrindo o caso.

— Que nós é esse, meu velho?

— Eu, eu e eu também; com um empurrão de Lacon e um puxão do ministro.

— Todo poder corrompe, mas alguém há de gover­nar e, nesse caso, o irmão Lacon vai avançar de gatinhas e relutantemente até o alto da montanha.

— A coisa não mudou — disse Smiley.

Sam tirou pensativamente uma baforada do cigarro. A música acabara, ouvindo-se umas frases de Noel Coward.

— Isso é um sonho meu, na verdade — disse Sam Collins em meio àquele barulho. — Um dia desses Percy Alleline vai cruzar aquela porta, carregando uma maleta surrada, e pedir para fazer uma "fezinha" na roleta. Vai pôr tudo no vermelho e perder.

— Os arquivos foram mutilados, cortaram páginas deles — disse Smiley. — É uma questão de procurar pes­soas e perguntar-lhes tudo quanto lembram. Nos arquivos não há praticamente quase nada.

— Isso não me surpreende — disse Sam.

Pediu uns sanduíches pelo telefone. E explicou que se alimentava assim. Sanduíches e canapés. Uma de suas vaidades.

Ele estava servindo café quando a luz vermelha se acendeu entre os dois, na mesa.

— O camarada está pau a pau — declarou a voz de cascalho.

— Então comece a contar — disse Sam, desligando a tomada.

Sam contou sua história de maneira simples, mas pre­cisa, como um bom soldado ao recordar uma batalha, não mais para perder ou ganhar, mas apenas para lembrar as coisas. Havia acabado de chegar do exterior, de uma tem­porada de três anos de privações no Vientiane. Tinha sido submetido às perguntas do pessoal e acertado contas com Dolphin. Ninguém parecia ter qualquer plano com relação a ele, por isso estava pensando em seguir para o sul da França, numa licença de três meses, quando MacFadean, aquele velho porteiro que era, praticamente, o criado parti­cular de Control, agarrou-o no corredor e o conduziu à sala daquele.

— Em que dia foi isso, exatamente? — indagou Smiley.

— Foi no dia 19 de outubro.

— Quinta-feira.

— Quinta-feira. Eu estava pensando em voar para Nice na segunda-feira. Você estava em Berlim. Eu quis convidá-lo para um drinque, mas as matronas disseram que você estava ocupado, e quando eu fui verificar isso na seção de movimento de pessoal, eles me disseram que você tinha ido a Berlim.

— Sim, é verdade — disse Smiley. — Control me tinha mandado até lá.

"Ele me afastou do caminho", poderia Smiley ter acrescentado. Ele tivera essa impressão até mesmo naquela época.

— Eu procurei Bill, mas ele também estava sendo negaceado. Control o despachara para algum ponto do país — declarou Sam, evitando o olhar de Smiley.

— Caçando gansos selvagens — murmurou Smiley.

— Mas voltou.

Sam lançou um olhar agudo e inquisidor na direção de Smiley, mas não acrescentou coisa alguma sobre a na­tureza da viagem de Bill Haydon.

— Todo o Circus parecia morto. Eu quase peguei o primeiro avião de volta para o Vientiane.

— Estava de fato morto — Smiley confessou, pen­sando o seguinte: "Exceto quanto à Operação Bruxaria".

E Sam disse que Control tinha o aspecto de haver apanhado uma febre maligna. Estava rodeado de um mar de pastas do arquivo, tinha a tez amarela e, enquanto fa­lava, fazia umas pausas para enxugar o suor da testa, com o lenço. Mal prestou atenção àquela habitual dança de seus fãs, acrescentou Sam. Não lhe deu parabéns pelos três anos de trabalhos de campo, nem fez qualquer refe­rência hipócrita à sua vida particular, que estava bem en­crencada naquele tempo. Simplesmente lhe disse que dese­java que trabalhasse no fim de semana, no lugar de Mary Mastermann, se Sam pudesse dar um jeito.

— "Sem dúvida" — declarei. — "Se você quiser que eu seja o responsável pelo dia, eu serei." Ele declarou que me falaria sobre o resto da história no sábado. Enquanto isso, eu não deveria dizer nada a ninguém. Não deveria fazer a menor referência ao assunto, em parte alguma do prédio, mesmo que ele próprio me pedisse que eu assim fizesse. Precisava de alguém competente para lidar com a mesa telefônica, caso houvesse uma crise. Mas teria de ser alguém que trabalhasse fora do Circus, ou alguém como eu, que estivera afastado do escritório central por muito tempo. E teria de ser um veterano. Por isso — prosseguiu Sam —, procurei Mary Mastermann e contei-lhe a história do meu azar, que não havia conseguido tirar o inquilino do meu apartamento antes de entrar em licença, na segunda-feira. Que tal se a substituísse e economizasse o dinheiro do hotel? Assim cheguei ao serviço às nove da manhã de sába­do, armado de minha escova de dentes e de seis latas de cerveja, trazidas numa maleta que ainda tinha coladas, num de seus lados, etiquetas mostrando umas palmeiras. Geoff Agate estava designado para render-me na noite de do­mingo.

Mais uma vez Sam comentou como o Circus estava morto. Nos velhos tempos, os sábados eram muito pa­recidos a qualquer outro dia, disse ele. A maioria das se­ções regionais tinha um homem de plantão nos fins de semana, algumas até mesmo pessoal da noite. E se alguém andasse pelo edifício teria a impressão de que aquilo era uma engrenagem que estava funcionando para valer. Mas naquela manhã de sábado, o edifício poderia parecer que tinha sido evacuado, declarou Sam, o que, em certo sen­tido, segundo ouviu dizer mais tarde, tinha mesmo aconte­cido, por ordem de Control. Dois ou três espiões do pri­meiro time estavam trabalhando no segundo andar, as salas do rádio e de controle estavam a todo vapor, mas aqueles rapazes trabalhavam sempre durante todas as horas do dia. Ele ficou sentado, aguardando que o telefone tocasse, mas nada aconteceu. Encheu mais uma hora implicando com os porteiros, que considerava o grupo mais vadio de todo o pessoal do Circus. Ficou controlando suas listas de fre­qüência e verificou que duas datilógrafas e um funcionário estavam assinalados como presentes mas se encontravam ausentes. Por isso fez uma representação contra o porteiro-chefe, um empregado novo, chamado Mellows. Finalmente subiu até o quinto andar para ver se Control ali se en­contrava.

Ele estava sentado, completamente só, exceto quanto a MacFadean. Não havia matronas nem você, mas apenas o velho Mac espiando as coisas com seu chá e simpatia. E Sam indagou se não estaria falando demais.

Não, continue, por favor.

Então Control despiu outro véu. Um meio véu. Alguém estava realizando um trabalho especial para ele. Era de grande importância para o serviço. E Control ficou batendo nessa tecla: para o serviço. Não para Whitehall, a libra esterlina ou o preço do peixe, mas para nós. Mesmo quando tudo estivesse acabado, eu não deveria dizer uma palavra sobre o assunto. Nem mesmo a você, Bill, ou Bland, ou qualquer outra pessoa.

Nem a Alleline?

Ele não mencionou Percy uma única vez.

É concordou Smiley. Dificilmente poderia fazer isso.

Eu deveria considerá-lo, naquela noite, um diretor de operações. E me considerar um intermediário entre ele e tudo quanto ocorresse no resto do prédio. Se chegasse qualquer coisa, um sinal, uma chamada telefônica, embora parecesse trivial, eu teria de aguardar até que a "barra ficasse limpa", em seguida subir direto as escadas e trans­mitir a ele o que tivesse havido. Ninguém deveria saber, então ou posteriormente, que Control era o homem que estava no gatilho. Em hipótese alguma eu deveria telefonar para ele, ou enviar-lhe algum memorando, e até as linhas internas eram tabu. Na verdade, George, foi assim mesmo disse Sam, e serviu-se de um sanduíche.

Eu acredito em você declarou Smiley com em­penho.

Se houvesse necessidade de expedir telegramas, Sam teria mais uma vez de portar-se como o representante de Control. Não deveria esperar que acontecessem muitas coisas naquela noite. E até mesmo era muito improvável que algo acontecesse. Quanto aos porteiros e pessoal desse tipo, conforme as palavras de Control, Sam teria de fazer o máximo esforço para agir com naturalidade e dar a impressão de estar atarefado.

Terminada a conversa, Sam voltou para a sala de trabalho, mandou buscar um jornal vespertino, abriu uma lata de cerveja, escolheu um telefone externo e afrouxou a camisa. Havia uma corrida de cavalos com obstáculos em Kempton, coisa a que ele não assistia há muitos anos. No começo da noite, tornou a inspecionar as linhas e testou os dispositivos de alarma do arquivo geral. Dos quinze, três não funcionavam. Nessa altura, os porteiros já estavam morrendo de amores por ele. Cozinhou um ovo e, depois de comê-lo, subiu as escadas para tomar uma libra do velho Mac e dar-lhe uma cerveja.

Ele me pedira para apostar uma libra num cavalo que tinha três pernas quebradas. Conversei com ele duran­te dez minutos, voltei para o meu canto, escrevi umas cartas, assisti a um filme horroroso na televisão e fui dor­mir. A primeira chamada veio exatamente no momento em que eu ia ferrando no sono. Exatamente às onze e vinte. Os telefones não pararam de tilintar durante as dez horas que se sucederam. Eu pensei que a mesa telefônica fosse explodir em minha cara.

Arcadi desceu cinco pontos anunciou uma voz no telefone interno.

Com licença disse Sam, com seu habitual riso abafado. E deixando Smiley sozinho com a música, subiu ligeiramente as escadas para enfrentar a situação.

Ali sentado, sem companhia, Smiley ficou observando o cigarro marrom de Sam que ardia lentamente, no cin­zeiro. Ficou aguardando, mas Sam não voltou, e Smiley pensou se não deveria apagar o cigarro. Não é permitido fumar em serviço, lembrou-se. É norma da casa.

Tudo acabado declarou Sam. A primeira chamada foi do funcionário que estava de serviço no Mi­nistério do Exterior, que falou através da linha direta — continuou. Na corrida de Whitehall, você poderia dizer que o Ministério do Exterior ganhou por focinho. O chefe da Reuters em Londres tinha acabado de telefonar para aquele funcionário, contando a história de um homem ba­leado, em Praga. Um espião britânico havia sido alvejado pelas forças de segurança russas, que estavam à procura de seus agentes. Estaria o Ministério do Exterior interes­sado? O funcionário de serviço nos transmitia isso e pedia informações. Eu disse que a coisa parecia conversa fiada, e desliguei no momento em que Mike Meakin, do grupo dos espiões do primeiro time, telefonou para dizer que todo aquele inferno tinha sido divulgado pelo rádio tcheco: a metade das informações eram em código, mas a outra metade fora divulgada às claras. Ele continuava a receber descrições deturpadas sobre uns tiros, perto de Brno. "Pra­ga ou Brno?", perguntei. "Ou os dois lugares?" "Só em Brno." Eu disse que ele ficasse à escuta e, naquela altura, os cinco telefones estavam tilintando. No momento em que eu ia saindo da sala, o agente voltou a ligar, na linha direta. O homem da Reuters corrigira sua versão e dis­sera: "Em vez de Praga, entenda Brno". Eu fechei a porta: era como se tivesse deixado um ninho de vespas numa sala de estar. Control estava de pé, diante de sua mesa, quando eu entrei na sala dele. Tinha ouvido meus passos, na es­cada. A propósito, Alleline pôs um tapete naquela escada?

Não respondeu Smiley, que permanecia abso­lutamente impassível. "George é igual a um lagarto", dis­sera Ann a Haydon, certa vez, e Smiley ouvira. "Ele reduz a temperatura do corpo até que fique igual à do meio ambiente. Assim ele não perde energia, porque não pre­cisa ajustar-se."

Você sabe como Control era rápido quando olha­va para uma pessoa. Reparou em minhas mãos para ver se eu levava algum telegrama para ele, e eu gostaria de estar levando alguma coisa, mas minhas mãos estavam vazias. "Eu acho que está havendo um certo pânico", disse. Dei-lhe a essência da coisa e ele consultou o relógio. Suponho que ele estava procurando imaginar o que deveria estar acontecendo se tudo tivesse dado certo. Eu declarei o seguinte: "Você é capaz de me dar uma informação, por favor?" Ele se sentou. Eu não conseguia vê-lo muito bem porque ele estava com aquela luz verde acesa, em cima da escrivaninha. Eu repeti: "Eu preciso de uma informa­ção. Você vai me recusar isso? Por que eu não posso ser informado?" Ele não me respondeu. Repare bem, não havia informação a dar, mas eu ainda não sabia disso. "Eu preciso de uma informação." Nós poderíamos ouvir o rumor de passos no andar de baixo e eu sabia que os operadores do rádio estavam à minha procura. "Você quer descer e tratar do assunto pessoalmente?", perguntei. Eu rodeei a mesa dele, inclinando-me para aquelas pastas do arquivo, todas elas abertas em diversos lugares. Você po­deria pensar que ele estivesse compilando uma enciclopé­dia. Algumas deveriam ser de antes da guerra. Control estava sentado assim Sam juntou os dedos, colocou suas pontas na testa e ficou de olhos fixos na mesa. A outra mão de Sam estava aberta, segurando o imaginário relógio de bolso de Control, que era desses que têm cor­rente. Ele falou o seguinte: "Diga a MacFadean que me arranje um táxi e encontre Smiley". Eu indaguei: "E a Operação?" Tive de esperar a noite inteira por uma res­posta. Ele disse: "É contestável. Os dois homens eram portadores de documentos estrangeiros. Ninguém poderia saber, nessa altura, que eles eram ingleses". Eu retruquei: "Estão falando apenas sobre um homem". E acrescentei: "Smiley está em Berlim". Em todo caso eu acho que foi isso que eu disse. Houve outros dois minutos de silêncio. Ele disse: "Qualquer pessoa serve. Não faz a menor dife­rença". Eu devia ter ficado com pena dele, mas acho que, naquela hora, não pude ter o menor sentimento de com­preensão. Eu tinha de carregar o fardo às costas e não sabia como. MacFadean também não estava por perto, por isso achei que Control poderia encontrar um táxi sozinho, e na hora em que cheguei aos últimos degraus da escada deveria estar parecido com Gordon, em Kartum. A megera que se achava de serviço, na seção de controle das trans­missões de rádio, estava agitando uns boletins em minha direção como se fossem bandeiras e dois porteiros esta­vam esbravejando, dirigindo-se a mim, ao passo que o rapaz do rádio estava agarrado a uma porção de sinais. Os telefones tocavam, não apenas os meus, mas uma dúzia de telefones de linhas diretas, do quarto andar. Eu segui imediatamente para a sala de serviço, e desliguei todas as linhas enquanto procurava pôr a cabeça em or­dem. A controladora das transmissões de rádio, como era o nome daquela mulher, pelo amor de Deus? aquela que costumava jogar bridge com Dolphin.

— Purcell. Molly Purcell.

— Isso mesmo. A história que ela tinha para contar era pelo menos coerente. A Rádio de Praga prometera um boletim extraordinário para dali a meia hora. Isso tinha sido feito um quarto de hora antes. O boletim dizia respeito a um ato de grande provocação da parte de uma potência ocidental, uma violação da soberania da Tchecoslováquia e um ultraje aos povos amantes da liberdade, ao mundo inteiro. Além disso — acrescentou Sam — ia haver gar­galhadas durante todo o tempo. Eu naturalmente liguei para a Bywater Street, em seguida enviei uma transmissão pelo rádio a Berlim, pedindo que encontrassem você e o despachassem de volta, de avião, o mais depressa possível. Dei a Mellows os principais números de telefones e man­dei que ele fosse arranjar uma linha externa e agarrasse qualquer pessoa que estivesse ao lado do chefão. Percy encontrava-se na Escócia passando o fim de semana, e tinha ido jantar fora. A cozinheira dele deu a Mellows um número de telefone; ele ligou para esse número e falou com o anfitrião de Percy, que acabara de sair.

— Você me desculpe — interrompeu Smiley. — Você ligou para a Bywater Street para quê? — Smiley estava segurando o lábio superior entre o indicador e o polegar, puxando-o até deformá-lo, fitando um ponto a meia distância.

— Talvez você tivesse chegado de Berlim mais cedo — disse Sam.

— E eu tinha chegado?

— Não.

— Então com quem você falou?

— Com Ann.

Ann está ausente de casa, agora — declarou Smi­ley. — Você me poderia dizer como foi sua conversa com ela?

– Eu perguntei por você e ela me disse que você estava em Berlim.

— E foi apenas isso?

– Foi um rompante, George — respondeu Sam num tom de advertência.

— Como assim?

– Eu perguntei se por acaso sabia onde estava Bill Haydon. Era urgente. Eu imaginava que ele estivesse de licença, mas talvez andasse por perto. Alguém me disse, certa vez, que eles eram primos. Além disso, é amigo da família, eu assim pensei — acrescentou Sam.

— É mesmo. Mas o que ela disse?

— Disse um "não" irritado e desligou. Eu sinto mui­to, George. Mas guerra é guerra.

— Qual foi o tom da voz dela? — indagou Smiley, depois de deixar que o aforisma ficasse entre eles durante algum tempo.

— Eu já lhe disse: irritado.

Roy estava na Universidade de Leeds, em busca de talentos, e não foi encontrado.

Entre uma chamada telefônica e outra, tudo estava sendo atirado em cima dele. Ele poderia ter invadido Cuba, em vez disso.

— Os militares estavam esbravejando a respeito de movimentos de tanques tchecos ao longo da fronteira da Áustria, os espiões do primeiro time não conseguiram fazer ouvir o que estavam dizendo por causa do controle das transmissões radiofônicas em torno de Brno, e, quanto ao Ministério do Exterior, o funcionário de plantão estava sofrendo de depressão e febre amarela ao mesmo tempo. Primeiro Lacon e depois o ministro apareceram acuando-nos diante da porta e, à meia-noite e meia, tivemos o pro­metido boletim de notícias dos tchecos, com vinte minutos de atraso, mas que não foi nada pior por causa disso. Um espião britânico, chamado Jim Ellis, portador de falsos documentos tchecos e auxiliado por contra-revolucionários, tentara seqüestrar um general tcheco, cujo nome não foi mencionado, numa floresta perto de Brno, e levá-lo atra­vés da fronteira austríaca. Ellis levara uns tiros, mas eles não diziam se tinha morrido, e eram iminentes outras pri­sões. Eu consultei o índice dos nomes de guerra e verifi­quei que Ellis era Jim Prideaux. E pensei o seguinte, exa­tamente como Control deve ter pensado: se Jim é portador de documentos tchecos, como eles sabem seu nome de guerra, e também que ele é inglês? Então Bill Haydon chegou, branco como cera. Tinha sabido da história no telégrafo de seu clube. Saiu dele imediatamente e foi para o Circus.

— A que horas foi isso, exatamente? — indagou Smiley, franzindo discretamente a testa. — Deve ter sido bem tarde.

Sam deu a impressão de que preferia tornar as coisas mais amenas, e disse:

— Uma e quinze.

— O que é tarde para ler a fita do telégrafo de um clube, não é mesmo?

— Não, meu velho.

Bill é sócio do Savile, não é?

— Eu não sei — disse Sam, obstinadamente. E to­mou um pouco de café. — O que eu lhe posso dizer é que foi uma beleza ficar observando como ele agiu. Eu pen­sava que Bill era uma espécie de demônio caprichoso. Mas não naquela noite, você pode crer. Bem, ele estava aba­lado. Quem não haveria de estar? Chegou sabendo que tinha havido uma fuzilaria dos diabos, e isso era quase tudo. Mas quando lhe contei que Jim é quem tinha levado os tiros, ele ficou olhando para mim como um louco. Pen­sei que fosse me agredir. "Levou uns tiros? Uns tiros, como? Foi morto?" Eu enfiei os boletins nas mãos dele, que os leu, um por um.

— Ele já não teria sabido disso, ouvindo a fita do telégrafo do clube? — indagou Smiley em voz baixa. — Pensei que a notícia, àquela altura, estivesse correndo por toda parte: Ellis levou uns tiros. Isso era o tópico mais importante, não era?

— Depende do noticiário que ele viu, creio eu — disse Sam, dando de ombros. — De qualquer maneira, Bill tomou conta do painel das transmissões e, pela manhã, tinha captado o pequeno número de informações que havia e, com isso, trouxe para nós algo de bem parecido com a tranqüilidade. Ele disse ao Ministério do Exterior que fi­casse quieto e agüentasse a mão, agarrou Toby Esterhase e mandou que ele fosse buscar dois agentes tchecos que eram alunos da Escola de Economia de Londres. Bill tinha deixado que eles ficassem de molho até então, e estava planejando fazê-los voltar para trabalhar na Tchecoslováquia. Os auxiliares de Toby pegaram os dois agentes e os trancaram em Sarratt. Em seguida, Bill telefonou para o chefe da agência tcheca em Londres e falou com ele como se fosse um sargento-mor: ameaçou deixá-lo nu e tornar-se motivo de chacota para sua profissão, se tocassem num fio de cabelo de Prideaux. E insistiu com ele para que transmitisse isso aos seus patrões. Eu me senti como se estivesse assistindo a um acidente de rua em que Bill fosse o único médico em ação. Ligou o telefone para um con­tato da imprensa e o informou, de maneira rigorosamente confidencial, de que Ellis era um mercenário tcheco, contra­tado pelos americanos, e que esse contato poderia utilizar-se da informação, sem citar-lhe a fonte. Essa informação de fato fez as edições de última hora. Logo que pôde, Bill foi sorrateiramente até os aposentos de Jim para certificar-se de que ele não deixara algo por lá, que um jornalista pudesse recolher, se algum repórter fosse bastante inteli­gente para fazer a ligação entre Ellis e Prideaux. Acho que Bill fez uma completa operação de limpeza. Dependentes. Tudo.

— Não havia dependentes — declarou Smiley. — A não ser Bill, eu suponho — acrescentou num sussurro.

— Às oito horas, Percy Alleline chegou: tinha men­digado um avião da Força Aérea. Todo sorrisos. Eu achei que isso não era muito inteligente de sua parte, conside­rando o humor de Bill, mas a coisa foi assim. Queria saber por que eu estava de serviço, por isso eu lhe contei, sem tirar nem pôr, a mesma história que contara a Mary Mastermann. Ele usou meu telefone para marcar um en­contro com o ministro, e ainda estava falando quando Roy Bland entrou, aos trancos e meio bêbado, querendo saber quem se metera na seara dele, praticamente me acusando. Eu disse o seguinte: "Homem de Deus, e o velho Jim? Você poderia ter tido pena dele enquanto você estava por lá". Mas Roy é um sujeito egoísta e gosta mais dos vivos do que dos mortos. Eu lhe entreguei o painel das ligações de rádio com todo o meu afeto e fui até o Savoy para fazer minha primeira refeição e ler os jornais do domingo. O máximo que todos faziam era reproduzir os relatórios da Rádio de Praga e uma contestação ridicularizadora do Ministério do Exterior.

Finalmente, Smiley disse o seguinte:

Você depois foi para o sul da França?

Passei lá dois meses encantadores.

Alguém o interrogou novamente, acerca de Con­trol, por exemplo?

Só quando eu voltei. Então você se encontrava fora e Control estava doente, no hospital. A voz de Sam tornou-se um pouco mais grave ao indagar: Ele nada fez que fosse idiota, fez?

Ele morreu. Foi só isso. Que aconteceu?

Percy era o chefe interino. Ele me chamou e quis saber por que eu tinha substituído Mastermann e que co­municações havia tido com Control. Eu me agarrei à minha história e Percy me chamou de mentiroso.

Então foi por isso que eles mandaram você em­bora. Por haver mentido?

Foi por alcoolismo. Os porteiros se vingaram um pouco de mim. Contaram seis latas de cerveja na cesta de papéis, no covil do encarregado do dia, e comunicaram o fato às secretárias. Há uma ordem permanente: não se embriagar no local de trabalho. Transcorrido o devido tempo, uma comissão disciplinar me considerou culpado de atear fogo nas docas da rainha e, por esse motivo, eu fui encostado. Que aconteceu com você?

Mais ou menos a mesma coisa. Parece que não consegui convencê-los de que não estava envolvido no caso.

E enquanto acompanhava Sam, transpondo uma porta lateral e levando-o até um bonito conjunto de edifícios de apartamentos, este acrescentou:

Bem, se você quiser que eu corte o pescoço de alguém, ligue o telefone para mim. Se você quiser con­tinuou Sam, mergulhado em seus pensamentos —, traga algum dos elegantes amigos de Ann.

Escute, Sam disse Smiley. Bill estava fazen­do amor com Ann, naquela noite. Você telefonou para ele e Ann lhe disse que Bill não estava com ela. Logo que desligou o telefone, tirou Bill da cama e ele apareceu no Circus uma hora depois, já sabendo que alguém tinha le­vado uns tiros, na Tchecoslováquia. Se você estivesse me contando a história num cartão-postal, o que diria?

Mais ou menos a mesma coisa.

Mas você não contou a Ann o caso da Tchecos­lováquia quando telefonou para ela...

Bill parou no clube, a caminho do Circus.

Se é que o clube estava aberto. Muito bem. Então por que ele não sabia que Jim Prideaux tinha levado uns tiros?

Sam parecia ter ficado velho de repente, à luz do dia, embora aquele arremedo de riso ainda estivesse estampado em seu rosto. Deu a impressão de que ia dizer alguma coisa e mudara de opinião. Tinha um jeito irritado e, em seguida, pareceu novamente inibido, sem ter o que dizer. Afinal exclamou:

Até a vista. Cuide-se bem. E voltou à atividade noturna permanente da profissão que escolhera.

 

Quando Smiley saiu do Islay Hotel e se dirigiu para Grosvenor Square, naquela manhã, as ruas tinham sido banhadas por um sol impiedoso e o céu estava azul. Mas enquanto ia guiando o Rover que havia alugado, e pas­sava pelas desgraciosas fachadas da Edgware Road, o o vento cessara e o céu se tornara negro e coberto de nuvens que prometiam chuva. O que restava do sol era um tom avermelhado que se obstinava em permanecer sobre o asfalto. Smiley estacionou o carro na St. John's Wood Road, diante de um edifício de apartamentos em forma de torre, com uma varanda envidraçada. Não entrou por essa varanda. Passando diante de uma grande escul­tura que representava, segundo lhe pareceu, nada mais do que uma perturbação cósmica, foi caminhando debaixo de uma fria garoa até uma escada externa que dava para um porão e onde se lia um aviso: Só para sair. O pri­meiro lance da escada era revestido de pedaços irregula­res de mármore e tinha um corrimão de madeira. Nos lances inferiores, desaparecera a generosidade do constru­tor. Uma argamassa rústica substituía o luxo anterior, e o mau cheiro, proveniente de lixo não retirado, impregnava o ar. O jeito de Smiley seria mais cauteloso do que furtivo. Quando, porém, chegou junto a uma porta de ferro, parou antes de segurar com as duas mãos uma comprida maça­neta, e retesou o corpo como se fosse enfrentar uma pro­vação. A porta se abriu uns trinta centímetros e não foi adiante, batendo de encontro a alguma coisa, com um ruído surdo. Um brado de fúria se fez ouvir, reboando como um grito soltado numa piscina coberta: "Por que não presta atenção?"

Smiley esgueirou-se através da abertura. A porta ba­tera no pára-choque de um automóvel muito brilhante, mas Smiley não olhou para ele. Do outro lado da garagem dois homens de macacão estavam lavando um Rolls-Royce com uma mangueira, num boxe. Ambos olhavam em di­reção de Smiley.

— Por que o senhor não veio pelo outro caminho? — indagou a mesma voz irritada. — O senhor é inquilino deste edifício? Por que não usou o elevador dos inquili­nos? Esta é a escada de incêndio.

Seria impossível dizer-se qual dos dois estava falan­do, mas quem quer que fosse tinha forte sotaque eslavo. A luz do boxe ficava por detrás deles. O mais baixo dos dois estava com a mangueira na mão.

Smiley adiantou-se, prestando atenção para não pôr as mãos nos bolsos. O homem que segurava a mangueira voltou ao seu trabalho, mas o mais alto continuou a ob­servar Smiley, na escuridão que reinava. Estava vestido com um macacão branco e tinha virado para cima as pontas da gola, o que lhe dava um ar petulante. Seus ca­belos negros e bastos eram penteados para trás.

— Eu não sou um inquilino — admitiu Smiley. — Mas será que posso falar com alguma pessoa a respeito de alugar uma vaga? Meu nome é Carmichael! — explicou, erguendo a voz. — Eu comprei um apartamento nesta rua. — Fez um gesto como se fosse tirar um cartão de visita; talvez seus documentos falassem mais alto do que sua aparência insignificante. — Pagarei adiantado — prometeu. — Posso assinar um contrato, ou o que for necessário, sem dúvida. Gostaria que tudo fosse bem cor­reto, naturalmente. Posso dar referências, fazer um depó­sito, tudo que for razoável. Desde que seja correto. É um Rover. Um carro novo. Eu não quero me valer dos serviços da companhia porque não acredito nisso. Mas farei tudo mais que seja razoável. Eu trouxe o carro, mas não desejo me prevalecer disso. Bem, eu sei que isso há de parecer meio tolo, mas não gostei do aspecto da rampa. O carro é tão novo, o senhor compreende.

Durante toda essa longa declaração de seus propó­sitos, que Smiley fez com um ar de exagerada preocupa­ção, ele permaneceu sob o foco de uma forte lâmpada que pendia de um caibro do teto. Parecia uma figura de supli­cante, muito abjeta, como qualquer um teria pensado, facilmente visível através daquele espaço desimpedido. Sua atitude produziu efeito. Saindo do boxe, o homem de bran­co encaminhou-se para uma cabina envidraçada, construída entre duas colunas de ferro, e fez um sinal de cabeça uma bela cabeça para que Smiley o seguisse. Enquanto ia andando, tirou as luvas de couro, feitas a mão e bas­tante caras, dizendo:

O senhor precisa usar o elevador, entendeu? ou talvez pagar duas libras. Usar elevador não pode criar nenhum problema.

Max, eu quero falar com você declarou Smiley logo que os dois entraram na cabina. A sós. E longe daqui.

Max era corpulento e forte, tinha um rosto de me­nino, pálido, mas sua pele era sulcada de rugas, como a de um velho. Era um homem bonito e seus olhos tinham uma expressão muito tranqüila. Todo ele tinha um ar de absoluta tranqüilidade.

Agora? Você quer conversar agora?

No carro. Estou com um carro aí em frente. Se você for até o alto da rampa vai entrar direto nele.

Fazendo uma concha com a mão em redor da boca, Max gritou alguma coisa para o outro lado da garagem. Era uma cabeça mais alto do que Smiley, e seu vozeirão ecoou como um tambor. Smiley não conseguiu entender as palavras dele. Talvez fossem em tcheco. Não houve qualquer resposta, mas Max já estava desabotoando o macacão.

É a respeito de Jim Prideaux declarou Smiley.

Eu sei disse Max.

 

Eles foram até Hampstead e ficaram sentados no lus­troso Rover, olhando para uns meninos que estavam que­brando o gelo de um lago. A chuva tinha passado, afinal. Talvez porque estivesse muito frio.

Max vestia um terno azul e uma camisa da mesma cor. A gravata era também azul, mas de um tom bem dife­rente dos outros: ele tivera muito cuidado para conseguir isso. Usava anéis nos dedos e calçava botas de aviador, com zíper dos lados.

Eu não estou mais no serviço. Eles disseram isso a você? indagou Smiley.

Max deu de ombros.

Eu pensei que eles tivessem contado a você acrescentou Smiley.

Eles nada me contam declarou Max.

Eu fui posto na rua continuou Smiley. Creio que mais ou menos na mesma ocasião em que você também foi.

Max deu a impressão de retesar o corpo ligeiramente, mas se acomodou de novo, dizendo:

Isso foi horrível, George. O que você fez? Furtou dinheiro?

Eu não quero que eles saibam, Max.

Você é particular, eu também disse Max, e ofereceu a Smiley um cigarro, que tirou de uma cigarreira de ouro, e foi recusado.

Eu quero ouvir de você o que aconteceu prosseguiu Smiley. Eu quis descobrir tudo antes que eles me despedissem, mas não houve tempo.

Por isso é que chutaram você?

Talvez.

Então você não sabe muita coisa, hem? disse Max, olhando displicentemente para as crianças.

Smiley falava com muita simplicidade, sempre pres­tando atenção em Max, caso ele não o entendesse. Po­deriam ter falado em alemão, mas Max não admitiria isso. Smiley bem sabia. Por isso falou em inglês e ficou obser­vando a fisionomia de Max.

Eu não sei de nada, Max. Não tomei parte na coisa, absolutamente. Estava em Berlim quando tudo acon­teceu. Eu nada sabia a respeito do plano ou de seus ante­cedentes. Eles telegrafaram para mim, mas quando cheguei a Londres era tarde demais.

Plano repetiu Max. Houve um planeja­mento. Seu queixo e seu rosto tornaram-se de repente uma só massa de rugas, e seus olhos apertaram-se numa careta ou num sorriso. Então você agora tem muito tempo, hem, George? Meu Deus, houve um planejamento.

Jim deveria realizar um trabalho especial. Ele pediu sua ajuda.

— Sem dúvida, Jim pediu a Max para ser sua "babá".

— Como ele arranjou você? Apareceu em Acton, falou com Toby Esterhase e disse: "Toby, eu preciso do Max"? Como ele obteve sua ajuda?

As mãos de Max estavam apoiadas nos joelhos. Eram tratadas e longas, com exceção dos nós dos dedos, muito grossos. Quando Smiley mencionou Esterhase, ele voltou as palmas das mãos para dentro e fez com elas uma con­cha como se tivesse apanhado uma borboleta.

— Que diabo! Por que tinha de ser assim?

— Então o que houve?

— Foi particular — disse Max —, Jim é particular. Eu sou particular. Como agora.

— Vamos adiante, por favor — disse Smiley.

Max falou como se se tratasse de uma dificuldade qualquer: de família, negócios ou amor. Tinha sido numa segunda-feira, em meados de outubro. Sim, no dia 16. Era uma época de pouco trabalho. Ele não tinha viajado para o exterior durante várias semanas e estava muito chateado. Passara o dia inteiro fazendo uma operação de reconhecimento de certa casa em Bloomsbury onde mora­vam dois estudantes chineses, e os agentes estavam pen­sando em arrombar os quartos deles. Max estava prestes a voltar para Acton e escrever seu relatório, quando Jim o apanhou na rua, num encontro de rotina, e o levou de carro até o Palácio de Cristal, onde ficaram sentados no carro e conversaram, como agora, só que falaram tcheco. Jim declarou que havia um trabalho especial em andamento, alguma coisa tão grande, tão secreta que mais ninguém, no Circus, nem mesmo Toby Esterhase, poderia saber que aquilo estava acontecendo. Vinha lá de cima, do chefe, e era coisa espinhosa. Max estaria interessado?

— Eu disse: "É claro. Max está interessado". Então ele me orientou: "Peça uma licença. Vá procurar Toby e diga a ele: 'Toby, minha mãe está doente, eu preciso tirar uma licença' ". Eu não tenho mãe nenhuma. "Certamente", disse eu. "Eu tiro a licença. Quanto tempo, Jim, por fa­vor?" "O trabalho não deve ir além de um fim de semana", disse Jim.

Eles deveriam começar no sábado e terminar no do­mingo. Em seguida, Jim perguntou a Max se ele tinha à mão uma identidade falsa para ele. Seria melhor que fosse de austríaco, pequeno comerciante, e que tivesse carteira de motorista. Se Max não dispusesse de nenhuma em Acton, ele, Jim, conseguiria algo em Brixton.

— É claro que tenho — disse: — Hartmann, Rudi, de Linz, emigrado sudeto.

Então Max contou a Toby o caso de uma encrenca com uma garota, em Bradford, e Toby lhe pregou um ser­mão de dez minutos sobre os costumes sexuais dos ingle­ses. E, na quinta-feira, Jim e Max encontraram-se numa casa de segurança que os caçadores de escalpos mantinham naquele tempo, uma casa velha e barulhenta, em Lambeth. Jim tinha trazido as chaves. "Vai ser uma operação de três dias", repetiu Jim, "uma reunião clandestina perto de Brno." Jim trouxera um grande mapa e eles o estudaram. Jim viajaria na qualidade de sueco; Max, na de austríaco. Iriam separadamente até Brno. Jim seguiria de avião, de Paris até Praga, e tomaria um trem nessa cidade. Não disse que documentos ele próprio levaria; Max presumiu que fossem tchecos, pois a outra "nacionalidade" de Jim era tcheca, e Max já tinha visto que ele a usara. Max seria um certo Rudi Hartmann, negociante de vidros e louça refratária. Deveria cruzar a fronteira da Áustria numa ca­mioneta, perto de Mikulov, depois dirigir-se para o norte até Brno, com tempo bastante para terem um encontro na noite de sábado, numa rua transversal que ficava perto do campo de futebol. Ia haver um grande jogo naquela noite, que começaria às sete horas. Jim viria caminhando junto com a multidão até a tal rua transversal e entraria na camioneta. Eles combinaram as horas, os lugares de retirada e as outras contingências habituais. Além disso, declarou Max, eles conheciam de cor a maneira de agir um do outro.

Depois de saírem de Brno seguiriam juntos, no carro, pela estrada de Bilovice até Krtiny, onde dobrariam para leste, em direção a Racice. Em algum ponto, na estrada de Racice, passariam à esquerda de um carro preto, que estaria estacionado, provavelmente um Fiat. Os dois pri­meiros números da placa do carro seriam nove e nove. O motorista estaria lendo um jornal. Eles parariam a camioneta, Max se aproximaria do homem e perguntaria se ele estava bem. O homem responderia que seu médico o proibira de dirigir mais de três horas seguidas. Max diria que as longas viagens de fato forçavam o coração. Então o motorista lhes indicaria onde poderiam estacionar a camioneta e os levaria até o ponto de encontro, em seu próprio carro.

— Quem você iria encontrar, Max? Jim lhe disse isso também?

— Não. Jim só me falara aquilo. Até Brno — de­clarou Max — as coisas correram bem parecidas com o que havia sido planejado.

Quando iam de carro, de Mikulov, foram seguidos durante algum tempo por dois motociclistas civis, que se revezavam de dez em dez minutos. Max atribuiu isso ao número da placa do carro, que era austríaca, e não se preocupou. Chegou facilmente em Brno pelas três horas da tarde e, para fazer as coisas como deveriam ser feitas, registrou-se num hotel e tomou dois cafés no restaurante. Um indivíduo se aproximou dele e Max conversou com o homem sobre as vicissitudes do comércio de vidros e acerca de sua garota, de Linz, que fugira com um ame­ricano. Jim não compareceu ao primeiro encontro, mas foi até o ponto de retirada, uma hora depois. Max a prin­cípio imaginou que o trem estivesse atrasado, mas Jim limi­tou-se a dizer: "Dirija devagar", e Max soube então que estava havendo algum problema.

A coisa seria assim, disse Jim. Tinha havido uma alteração no plano. Max teria de ficar de fora. Deixaria Jim perto do ponto de encontro, depois permaneceria em Brno até a manhã de segunda-feira. Não deveria entrar em contato com nenhuma das ligações do Circus: com ninguém da Operação Agravar nem da Operação Platão, e muito menos com a agência de Praga. Se Jim não desse as caras no hotel até as oito horas da manhã de segunda-feira, Max deveria ir embora da maneira que pudesse. Se Jim aparecesse, a tarefa de Max seria levar uma men­sagem de Jim para Control: a mensagem poderia ser muito simples, talvez não tivesse mais de uma palavra. Quando chegasse a Londres, deveria procurar Control pessoalmente, marcar um encontro com ele por intermédio de MacFadean e entregar-lhe a mensagem. Estava entendido? Se Jim não aparecesse, Max voltaria à sua vida de costume, no mesmo lugar, e negaria tudo, no Circus ou fora dele.

— Jim disse por que o plano havia sido modificado?

— Ele estava preocupado.

— Então alguma coisa tinha acontecido com ele quando se dirigia ao seu encontro.

— Talvez. Eu disse a Jim: "Escute, Jim. Eu vim com você. Você está preocupado. Eu sou sua 'babá', dirijo o carro para você, mando bala por você, que diabo?!" Jim ficou furioso, entendeu?

— Entendi — declarou Smiley.

Eles foram de carro até a estrada de Racice e encon­traram um automóvel parado, de luzes apagadas, diante de um caminho que cortava um campo. Era um Fiat preto, com os algarismos nove e nove em sua chapa. Max parou a camioneta e Jim desceu. Quando Jim se encaminhou em direção ao Fiat, o motorista abriu um pouco a porta para acender a luz. Estava com um jornal aberto sobre o vo­lante.

— Você conseguiu ver o rosto dele?

— Estava na sombra.

Max ficou à espera. Os dois homens presumivelmente trocaram as palavras do código, Jim saiu do carro e este se afastou, ainda com as luzes apagadas. Max voltou para Brno. Estava sentado, tomando aguardente no restaurante, quando a cidade inteira começou a retumbar. Ele pensou a princípio que o fragor proviesse do estádio de futebol, mas percebeu depois que era causado por caminhões, um comboio que corria em disparada pela estrada afora. Per­guntou à garçonete o que estava se passando e ela disse que tinham sido disparados uns tiros na floresta e que os contra-revolucionários eram os responsáveis por isso. Ele saiu, dirigiu-se à camioneta, ligou o rádio e ouviu o comu­nicado de Praga. Foi a primeira vez que ouviu falar num general. Calculou que houvesse barreiras em toda parte e, de qualquer maneira, recebera instruções de Jim para que permanecesse no hotel até a manhã de segunda-feira.

— Talvez Jim enviasse a mensagem. Talvez alguém da resistência fosse me procurar.

— Trazendo aquela única palavra? — comentou Smiley num tom tranqüilo.

— Sem dúvida.

— Ele não disse que espécie de palavra era?

— Você está maluco — declarou Max. — Seria uma palavra afirmativa ou uma pergunta.

— Palavra tcheca, inglesa ou alemã?

— Não veio palavra de espécie alguma — disse Max, sem se incomodar em responder a perguntas tolas.

Na segunda-feira ele queimou o passaporte com que entrara no país, mudou a chapa da camioneta e usou seu passaporte alemão com o qual deveria escapar. Em vez de dirigir-se para o sul, foi para o sudoeste, abandonou a camioneta e atravessou a fronteira de ônibus rumo a Freistadt, pela rota mais fácil que conhecia. Em Freistadt tomou um drinque e passou a noite com uma mulher porque estava perplexo e irritado e precisava acalmar os nervos. Seguiu para Londres na noite de terça-feira e, apesar das instruções de Jim, julgou ser melhor procurar estabelecer contato com Control: "Isso foi um bocado difícil", comentou ele.

Tentou telefonar, mas só conseguiu chegar até as matronas. MacFadean não se encontrava por lá. Pensou em escrever, mas lembrou-se da recomendação de Jim, de que mais ninguém do Circus deveria saber das coisas. Concluiu que seria muito perigoso escrever. Corria em Acton que Control estava doente. Ele procurou descobrir em que hospital Control estaria internado, mas não con­seguiu.

— O pessoal de Acton parecia saber onde você tinha estado? — indagou Smiley.

— Não sei.

Max ainda estava pensando nisso quando as secre­tárias mandaram chamá-lo e pediram para ver seu passa­porte emitido em nome de Rudi Hartmann. Max disse que o havia perdido. Por que não comunicara isso? Ele não soube dizer o motivo. Quando o tinha perdido? Ele não sabia. Quando tinha visto Jim pela última vez? Ele não se lembrava. Max foi despachado para a Nursery, de Sarratt, mas teve uma crise de irritação e, ao cabo de dois ou três dias, os homens que o interrogaram cansaram-se dele ou alguém os chamou.

— Eu voltei para Acton. Toby Esterhase me deu cem libras e mandou que eu fosse para o inferno.

Ouviram-se exclamações de aplauso junto ao lago. Dois meninos tinham afundado uma grande placa de gelo e a água estava borbulhando do buraco.

— Que aconteceu a Jim, Max?

— Que diabo você quer saber?

— Vocês ouvem falar nessas coisas. Circulam entre os emigrados. Que aconteceu a ele? Quem tratou dele? Como Bill Haydon conseguiu comprar a volta de Jim à Inglaterra?

— Os emigrados não falam. Nem Max.

— Mas você ouviu falar nisso, não ouviu?

Dessa vez aquelas mãos brancas disseram tudo a Smiley. Ele viu que Max abriu os dedos, cinco de uma das mãos e três da outra. E começou a sentir-se mal antes de Max falar.

— Eles atiraram em Jim pelas costas. Talvez Jim estivesse fingindo, ou que diabo aconteceu? Eles puseram Jim na prisão. Isso não foi nada bom para ele. Nem para meus amigos. Nada bom. — E Max começou a fazer as contas: — Pribyl — segurando o polegar. — Bukova Mirek, irmão da mulher de Pribyl — agora segurando um dedo. — Também a mulher de Pribyl — pegando num segundo dedo e num terceiro. — Kolin Jiri, também irmã dele. Mortos. Eram da rede Agravar. — Max mudou de mão, continuando: — Depois da rede Agravar veio a rede Platão. O advogado Rapotin, o Coronel Landkron, e as datilógrafas Eva Krieglova e Hanka Bilova. Também mortos. Isso foi um preço muito alto, George — acres­centou Max, erguendo os dedos bem perto do rosto de Smiley. — Foi um preço desgraçadamente muito alto para um inglês com um buraco de bala. — Max tinha perdido a calma. — Por que você se preocupa com isso, George? O Circus não é nada bom para a Tchecoslováquia. Os aliados não são nada bons para a Tchecoslováquia. Ne­nhum sujeito rico tira um pobre da cadeia! Você quer saber de uma história? Como se diz "Märchen", por favor, George?

— Conto de fadas — declarou Smiley.

— Bem, não me conte nenhum outro conto de fadas sobre como os ingleses conseguiram salvar a Tchecoslováquia!

Talvez não tenha sido Jim disse Smiley após um longo silêncio. Talvez alguma outra pessoa tenha entregado as redes. Não foi Jim.

Max já estava abrindo a porta do carro, e indagou:

Que diabo foi aquilo?

Max insistiu Smiley.

Não se preocupe, George. Eu não tenho nada para vender a você. Está certo?

Certo.

Ainda sentado no carro, Smiley ficou observando Max, que acenava para um táxi. Ele fez um gesto brusco com a mão, como se estivesse chamando um garçom. Deu o endereço ao chofer sem se preocupar em olhar para o homem. E se foi, novamente sentado de um jeito muito teso, olhando para a frente como faz a realeza que não toma conhecimento da multidão.

Quando o táxi desapareceu, o Inspetor Mendel levan­tou-se lentamente do banco, dobrou seu jornal e encami­nhou-se para o Rover, dizendo:

Você está limpo, Smiley. Nada sobre seus om­bros, nada em sua consciência.

Não tendo tanta certeza disso, Smiley entregou-lhe as chaves do carro e dirigiu-se para a parada do ônibus, atravessando a estrada, pois desejava ir em direção oeste.

 

Seu destino era uma adega no térreo, na Fleet Street, cheia de tonéis de vinho. Em outras zonas da cidade, três e trinta seria considerada uma hora um pouco tardia para um aperitivo, antes do almoço, mas Smiley empurrou brandamente a porta, enquanto algumas pessoas, que se achavam à sombra, voltaram seus olhares para ele, do bar. E numa mesa de canto, tão despercebida como as arcadas de prisão, feitas de plástico, ou as imitações de mosquetes que pendiam das paredes da sala, estava sentado Jerry Westerby, diante de um imenso pink gin.

Oh, meu velho! exclamou Jerry Westerby timi­damente, numa voz que parecia vir do chão. Muito bem, Jimmy! A mão dele segurava o braço de Smiley enquanto fazia, com a outra, um sinal, pedindo mais be­bida. Era enorme e forrada de músculos, pois Jerry tinha sido guardião de um time de críquete do condado. Ao contrário dos outros guardiães, era um homenzarrão, mas os ombros dele ainda eram curvados de tanto manter as mãos para baixo. Tinha uma cabeleira grisalha e amare­lada, um rosto corado, usava a famosa gravata de seu clube de esporte e uma camisa de seda creme. Ao ver Smiley, ficara muito alegre e estava rindo de satisfação.

Ora veja só! repetiu ele. Já se viu coisa mais surpreendente! O que você anda fazendo? in­dagou Jim, arrastando Smiley para que este se sentasse a seu lado. Tomando banho de sol no corpinho? Cuspindo para o teto? Escute — tratava-se de uma pergunta muitíssimo urgente —, o que você vai tomar?

Smiley pediu um Bloody Mary.

Mas que coincidência, Jerry confessou Smiley. Houve uma breve pausa, que Jerry subitamente cuidou de interromper:

— Como vai sua encantadora mulher? Vai bem? Isso é o que se quer. Um dos grandes casamentos, o seu, eu sempre digo.

Jerry se tinha casado várias vezes, mas poucas lhe haviam dado alegria.

— Eu faço um trato com você, George — prosse­guiu ele, inclinando um de seus largos ombros em direção a ele. — Vou buscar Ann e ficar cuspindo para o teto, e você fica com meu emprego e põe em dia o pingue-pongue com as mulheres. Que tal? Benza-me Deus!

— Saúde! — disse Smiley de bom humor.

— Eu não tenho visto muitos dos rapazes e moças há algum tempo, para falar a verdade — confessou Jerry meio contrafeito, enrubescendo de novo, inexplicavelmente.

— Um cartão de Natal, do velho Toby, no ano passado, foi isso que me tocou. Acho que eles me puseram na geladeira. Eu não os censuro. — Jerry deu uma pancadinha na beira do copo. — Foi isso mesmo, a coisa foi essa. Eles pensam que eu dou com a língua nos dentes. Que eu me abro.

— Eu tenho certeza de que eles não pensam assim — declarou Smiley, e o silêncio caiu novamente sobre eles.

— Muita miçanga não serve para os bravos — can­tou Jerry solenemente. Há vários anos eles ouviam aquela piada dos peles-verme-lhas, lembrou-se Smiley com um aperto no coração. — Saúde! — disse Jerry.

— Saúde! — repetiu Smiley. E os dois beberam um trago. — Eu queimei sua carta logo que acabei de ler — prosseguiu Smiley, num tom de voz absolutamente tran­qüilo. — Caso você se preocupe com isso. Não falei com ninguém sobre ela. De qualquer maneira, eu a recebi tarde demais. Estava tudo acabado. — Diante dessas palavras, o rosto corado de Jerry ficou escarlate. — Por isso não foi a carta que você me escreveu que fez os homens mandarem você embora — continuou Smiley no mesmo tom de voz brando —, se era isso que você pensava. Afi­nal de contas, você me entregou a carta em mãos.

— Muito decente de sua parte — murmurou Jerry. — Obrigado. Eu não deveria ter escrito aquilo.

— Tolice — disse Smiley, pedindo mais dois drin­ques. — Você fez aquilo para o bem do serviço.

Smiley teve a impressão de estar falando do jeito de Lacon, ao dizer aquelas palavras. Mas a única maneira de conversar com Jerry era falar como o jornal dele: frases curtas, opiniões complacentes.

Jerry soprou uma baforada de ar dos pulmões, car­regada de fumaça de cigarro. E lembrou, com um novo tom de jovialidade:

— A última tarefa aconteceu há um ano. Ou mais. Entregar uns pequenos pacotes em Budapeste. Realmente não foi nada. Na cabina telefônica. A saliência no lado de cima. Levantar a mão. A esquerda. Brincadeira de criança. Você não vai pensar que eu errei alguma coisa. Estudei primeiro. Sinais de segurança. "Cabina pronta para ser esvaziada. Sirva-se." Do jeito que eles ensinam a gente, você compreende. Vocês ainda sabem melhor as coisas, não é mesmo? Vocês são os crânios. Cada um deve cum­prir sua pequena tarefa. Não é capaz de mais do que isso. Tudo faz parte de um todo. Planejado.

— Qualquer dia desses eles vão estar batendo à sua porta — declarou Smiley num tom de consolo. — Espero que estejam dando um descanso a você por uma tempo­rada. Eles fazem isso, você sabe.

— Espero que sim — declarou Jerry, com um sor­riso franco e humilde. Seu copo tremeu um pouco, en­quanto tomou mais um trago.

— Que viagem você fez imediatamente antes de es­crever a mim? — indagou Smiley.

— Foi de fato a mesma viagem. Budapeste e depois Praga.

— E foi em Praga que você ouviu aquela história? A história a que você se referiu na carta dirigida a mim?

No bar, um homem espalhafatoso, vestido de preto, estava predizendo o colapso da nação. Dava três meses para isso, dizia ele, depois, tudo acabado.

— Tipo esquisito aquele Toby Esterhase — disse Jerry.

— Mas um bom sujeito — declarou Smiley.

— Meu Deus, um veterano, e de primeira. Brilhante, na minha opinião. Mas esquisito, você sabe. Saúde! — Eles tornaram a beber, e Jerry Westerby espetou um dedo atrás da cabeça, imitando uma pena de índio apache.

"O problema", dizia o homem espalhafatoso lá do bar, sorvendo seu drinque, "é que nem vamos saber que isso aconteceu."

Eles decidiram almoçar imediatamente, porque Jerry tinha de entregar sua crônica para a edição do dia seguinte. Foram a um restaurante especializado em pratos com caril, onde o gerente concordava em servir cerveja à hora do chá, e combinaram que se alguém viesse falar com eles Jerry apresentaria George como o gerente de seu banco, uma idéia que o divertiu várias vezes durante sua farta refeição. Havia música de fundo, que Jerry definiu como o vôo nupcial do mosquito. A música às vezes ameaçava abafar as notas mais baixas de sua voz rouca, o que, no fim, teria dado no mesmo. Durante algum tempo Smiley fez uma corajosa demonstração de entusiasmo diante do caril, e Jerry, após sua relutância inicial, foi induzido a contar uma história bem diferente acerca de um tal Jim Ellis. História que o velho e querido Toby Esterhase se recusara a permitir que ele levasse ao jornal.

Jerry Westerby era uma criatura extremamente rara, a testemunha perfeita. Não possuía a menor fantasia, a menor malícia, qualquer opinião pessoal. Apenas o se­guinte: a coisa tinha sido esquisita. Ele não conseguia tirá-la da cabeça, e não havia falado com Toby desde então.

— Apenas aquele cartão, você compreende, "Feliz Natal, Toby", uma imagem da Leadenhall Street sob a neve. — Jerry ficou olhando para o ventilador, tomado de grande perplexidade. — Não há nada de especial a respeito da Leandenhall Street, não é, meu velho? Não há uma casa de espiões, um ponto de encontro, não é fato?

— Que eu saiba, não — declarou Smiley, rindo-se.

— Eu não consegui imaginar por que ele escolheu a Leadenhall Street para um cartão de Natal. Um bocado estranho, você não acha?

— Talvez ele quisesse apenas mandar uma figura de Londres coberta de neve — sugeriu Smiley. Afinal de contas, Toby era bastante estrangeiro, sob muitos aspectos.

— Jeito esquisito de se comunicar com a gente, isso eu lhe digo. Ele costumava me mandar uma caixa de uís­que, regularmente como o tique-taque de um relógio. — Jerry franziu o rosto e tomou um trago. — Não é pelo uísque, isso eu não me importo — explicou com aquela perplexidade que freqüentemente sombreava as visões mais importantes de sua vida. — Eu sempre compro meu próprio uísque. Mas quando uma pessoa está do lado de fora, acha que tudo tem uma significação, e os presentes são importantes por causa disso. Você percebe o que eu estou querendo dizer? — E Jerry prosseguiu: — Tinha sido há um ano, em dezembro. O Restaurante Sport, de Praga, era um pouco fora de mão para os jornalistas ocidentais. Quase todos se reuniam no Cosmo ou no International, falando aos cochichos e conservando-se todos juntos por­que andavam nervosos. Mas o meu ponto era o Sport, e desde o dia em que eu levei lá o goleiro Holotek, depois da vitória do jogo contra o Tartars, consegui tudo do homem do bar, que se chamava Stanislaus ou Stan. Stan é um perfeito príncipe. Só faz o que quer. Leva a gente a pensar, repentinamente, que a Tchecoslováquia é um país livre.

Restaurante, explicou Jerry, significava bar. Ao passo que bar, na Tchecoslováquia, queria dizer night club, o que era esquisito. Smiley concordou que aquilo deveria causar confusão.

Mas Jerry sempre ficava atento quando ia lá. Afinal de contas, era a Tchecoslováquia, e uma ou duas vezes ele conseguiu levar uma pequena informação a Toby ou colocá-lo no rasto de alguma pessoa.

— Ainda, que fosse apenas uma questão de troca de moeda, ou coisas do mercado negro. Tudo era útil, na opinião de Toby. Essas pequenas informações se iam acumulando, isso era o que Toby dizia.

— É isso mesmo — admitiu Smiley. — A coisa fun­cionava assim.

— Toby era o crânio, não é fato?

— Sem dúvida.

— Eu costumava trabalhar diretamente com Roy Bland, você compreende. Depois Roy foi levado para o último andar e Toby tomou conta de mim. De fato as coisas ficaram um pouco instáveis. Mudanças. Saúde.

— Há quanto tempo você estava trabalhando para Toby quando houve aquela viagem?

— Uns dois anos, não foi mais que isso.

Houve uma pausa enquanto vieram os pratos, e os canecos foram enchidos novamente. E Jerry Westerby, com aquelas mãos enormes, espalhou um pouco de farinha de lentilhas no prato de caril mais quente do cardápio, e depois um molho vermelho por cima de tudo. O molho, disse ele, era para tornar o prato mais picante. E expli­cou: — O velho faz esse molho especialmente para mim. Guarda o troço bem escondido.

E Jerry prosseguiu dizendo que naquela noite havia um jovem com um corte de cabelo que parecia uma taça de pudim, invertida, de braço dado com uma garota bo­nita. E Jerry pensou: "Fique de olho, Jerry, aquilo é corte de cabelo do Exército". — Não é isso, Smiley?

— Isso mesmo — repetiu Smiley, pensando que Jerry de certo modo também era um crânio.

O fato é que o rapaz era sobrinho de Stan, e tinha muito orgulho do seu inglês. Jerry acrescentou:

— É surpreendente o que as pessoas contam à gente, se a gente lhes der uma oportunidade de exibir seus co­nhecimentos lingüísticos.

O rapaz estava em gozo de licença do Exército e se apaixonara por aquela pequena. Tinha oito dias pela frente e o mundo inteiro era amigo dele, Jerry inclusive. De fato, Jerry era um amigo muito especial, porque estava pagando a bebida.

— Nós estávamos sentados, bem escondidos, naquela mesa grande, no canto da sala: estudantes, as garotas bo­nitas, toda uma cambada. O velho Stan tinha vindo do bar, e um rapaz estava dando um bom recado, tocando uma sanfona. Era um fartão de Gemütlichkeit, uma bebe­deira só, e um barulho dos diabos.

O barulho tinha uma importância especial, explicou Jerry, porque permitia que ele conversasse com o rapaz sem que ninguém prestasse atenção a isso. O rapaz estava sentado ao lado de Jerry: tinha gostado dele desde o co­meço. Estava com um braço passado em torno da garota e o outro em torno de Jerry.

— Era um desses camaradas que podem tocar na gente sem que a gente fique arrepiado. Em geral eu não gosto que ponham a mão em mim. Os gregos fazem isso. Eu detesto essa coisa, pessoalmente.

Smiley declarou que também detestava aquilo.

— Eu cheguei a pensar que a moça era um pouco parecida com Ann — continuou Jerry. — Maliciosa, você entende o que eu quero dizer? Uns olhos de Greta Garbo, muito atraente.

Enquanto todos estavam cantando, bebendo e se bei­jando, o rapaz perguntou a Jerry se ele gostaria de saber a verdade sobre Jim Ellis.

— Eu fiz de conta que nunca tinha ouvido falar nele — explicou Jerry a Smiley. E disse: "Eu gostaria muito de saber". E continuei: "Quem é esse Jim Ellis quando está no país dele?" O rapaz olhou para mim como se eu fosse um idiota, e disse: "É um espião inglês". Ninguém mais nos ouviu. Eles estavam todos gritando e cantando músi­cas maliciosas. A cabeça da garota estava deitada sobre o ombro dele, mas a menina estava meio "apagada", no sétimo céu. Por isso ele continuou a conversar comigo, orgulhoso de seu inglês, você compreende.

— Estou entendendo — disse Smiley.

— Um espião inglês — prosseguiu Jerry. — E o rapaz falou em altos brados, dentro do meu ouvido. Tinha lutado ao lado dos patriotas tchecos, durante a guerra. Fora para lá com o nome falso de Hajek e levou uns tiros da polícia secreta russa. Eu dei de ombros e disse apenas: "Isso é novidade para mim". Sem forçar, você compreende. Nunca se deve forçar a mão. Isso es­panta as pessoas.

— Você está com toda a razão — declarou Smiley sinceramente. E, durante um intervalo, desviou paciente­mente outras perguntas acerca de Ann, de declarações so­bre o que significava amar, amar realmente uma outra pes­soa por toda a vida.

"Eu sou um recruta", começou o rapaz, segundo as palavras de Jerry Westerby. "Tenho de servir no Exército, do contrário não posso entrar para a universidade." Em outubro o rapaz estava participando de manobras de trei­namento básico nas florestas perto de Brno. Sempre havia muitos soldados nessa floresta. No verão, toda a área permanecia fechada ao público durante um mês. Ele estava fazendo um exercício de infantaria muito chato, que deve­ria levar duas semanas, mas, no terceiro dia, foi cancelado sem qualquer motivo, e a tropa recebeu ordem de voltar para a cidade. A ordem era a seguinte: arrumar as tralhas e voltar para o quartel. A floresta inteira deveria ficar desimpedida até o anoitecer.

— Dentro de algumas horas, começaram a circular todos os tipos de boatos sem pé nem cabeça — pros­seguiu Jerry. — Alguns disseram que o centro de pesquisas balísticas de Tisnov tinha voado pelos ares. Outros afirma­ram que uns batalhões de recrutas que estavam em trei­namento se haviam amotinado e estavam atirando nos soldados russos. Novos levantes em Praga, os russos tinham assumido o governo, os alemães haviam atacado, só Deus saberia o que acontecera. Você sabe como são os sol­dados. A mesma coisa em toda parte. Ficam tagarelando até o amanhecer.

A referência ao movimento de tropas levou Jerry Westerby a perguntar por alguns conhecidos que ele tinha, dos seus tempos de quartel, pessoas que Smiley conhecera vagamente, e das quais já se esquecera. Finalmente, Jerry recomeçou a falar no assunto:

— Eles levantaram acampamento, amontoaram-se nos caminhões e ficaram sentados, esperando que o comboio começasse a mover-se. Tinham feito meio quilômetro quan­do pararam novamente e o comboio recebeu ordem de sair da estrada. Os caminhões tiveram de meter-se entre as árvores. Ficaram atolados na lama, nas valas, em não sei mais o quê. Parecia o caos.

"Eram os russos", prosseguiu Westerby. "Estavam chegando da direção de Brno, muito apressados. E tudo quanto foi tcheco teve de sair da frente ou sofrer as conseqüências. Primeiro, veio um grande número de motocicletas, rasgando a pista com seus faróis acesos, e os motoristas a gritar para os tchecos. Em seguida passou um carro do Estado-Maior e vários civis. O rapaz identi­ficou seis civis ao todo. Depois, vieram dois caminhões transportando tropa especial, armada até os dentes. Final­mente, chegou um caminhão cheio de cães policiais. Tudo aquilo fazendo o barulho mais infernal. Eu não estou cha­teando você, meu velho?"

Westerby enxugou o suor do rosto com um lenço e pestanejou como alguém que estivesse recobrando os sen­tidos. O suor também atravessara sua camisa, que pare­cia ter apanhado uma chuvarada. Como o caril não era coisa de que gostasse, Smiley pedira mais dois canecos para tirar o gosto da comida.

— Essa foi a primeira parte da história — conti­nuou. — As tropas tchecas saíram e as tropas russas chegaram. Você percebeu?

Smiley disse que sim, e pensou que havia até então compreendido tudo.

De volta a Brno, porém, o rapaz logo soube que a parte que cabia à sua unidade naquela ação não estava terminada. Ao seu comboio veio juntar-se um outro e, na noite seguinte, durante oito ou dez horas, eles ficaram pelo campo sem qualquer destino aparente. Dirigiram-se para oeste até Trebic, onde ficaram aguardando até que a seção de rádio completou uma longa transmissão; em seguida, retrocederam para sudoeste chegando quase a Znojmo, na fronteira austríaca, transmitindo mensagens como uns loucos, enquanto prosseguiam. Ninguém sabia quem havia ordenado aquela rota, ninguém explicou coisa alguma. A certa altura, receberam ordem de calar baione­tas, mais tarde receberam instruções para acampar e, em seguida, juntaram novamente todo seu equipamento e se­guiram adiante. Em vários pontos encontraram outras unidades: perto dos pátios de manobras de Breclav viram uns tanques deslocando-se em movimentos circulares, e dois canhões montados sobre automotrizes, nuns trilhos previamente instalados. Por toda parte a história era a mesma. Uma atividade caótica, sem propósito. Os vetera­nos diziam que aquilo era um castigo dos russos por eles serem tchecos. De retorno a Brno, novamente, o rapaz ouviu explicações diferentes. Os russos estavam à procura de um inglês, chamado Hajek. Ele estivera espionando um centro de pesquisas e havia tentado raptar um general. Os russos tinham atirado nele.

— Então o rapaz perguntou... — disse Jerry. — Diabo de rapaz atrevido! Perguntou ao seu sargento o se­guinte: "Se Hajek já levou os tiros, por que nós temos de ficar rodando pelo campo, fazendo um barulho desses?" E o sargento disse a ele: "Porque isto é o Exército". Os sargentos são iguais no mundo inteiro, não é mesmo?

Smiley indagou, com muita calma:

— Nós estamos falando sobre duas noites, Jerry. Em que noite os russos entraram na floresta?

Jerry franziu o rosto, perplexo:

— Isso é o que o rapaz queria me dizer, George. Isso é que ele estava tentando explicar, no bar de Stan. Quais eram os boatos. Os russos vieram na sexta-feira. Só atira­ram em Hajek no sábado. Por isso os rapazes estavam comentando. A história foi a seguinte: os russos estavam à espera de que Hajek aparecesse. Sabiam que ele viria. Sabiam da coisa. Ficaram à espera. Uma história feia, você está compreendendo? Má para nossa reputação, você me entende? Má para o chefão. Má para nossa tribo. Viva!

— Saúde! — disse Smiley, com a cara enfiada em sua cerveja.

— Foi o que Toby também achou, repare nisso. Nós vimos a coisa no mesmo dia, mas apenas reagimos de ma­neira diferente.

— Então você contou tudo a Toby — disse Smiley num tom despreocupado, passando a Jerry um grande prato de ervilhas. — De qualquer maneira, você precisava vê-lo e dizer-lhe que tinha deixado o pacote em Budapeste para ele. Por isso você lhe contou também a história de Hajek.

— Bem, foi exatamente isso — disse Jerry. Fora isso que o tinha preocupado, aquela coisa esquisita, a coisa que de fato o levara a escrever a George. — O velho Toby disse que aquilo era bobagem. Ficou todo irritado. Pri­meiro, foi um veludo, bateu em minhas costas e disse que eu era o tal. Voltou para o escritório dele e, na manhã seguinte, soltou os cachorros em cima de mim. Uma reunião de emergência. Rodou comigo de carro pelo parque, esbravejando que aquilo era um assassinato pelas costas. E disse que eu andava tão tonto que não sabia distinguir a realidade da ficção. Toda essa espécie de coi­sas. Ele de fato me fez ficar um bocado furioso.

— Eu espero que você tenha ficado imaginando com quem ele havia conversado entre um encontro e outro — disse Smiley num tom compreensivo. — Mas o que ele disse exatamente? — indagou Smiley, não de maneira ve­emente, mas como se apenas quisesse que tudo ficasse per­feitamente claro em seu espírito.

— Ele disse que quase certamente eu era cúmplice daquilo. O rapaz era um agente provocador. Tinha feito um trabalho de sapa para fazer com que o Circus quisesse morder a própria cauda. Puxou minhas orelhas porque eu estava espalhando boatos sem fundamento. Eu disse a ele, George: "Toby, meu velho. Eu estava apenas fazendo um relatório. Você não precisa esquentar a cabeça. Ontem você pensou que eu era o tal. Não adianta fazer meia-volta e dar um tiro em seu mensageiro. Se você decidiu que não gostou da história, isso é com você". Eu não queria ouvir mais nada, você está me entendendo? Ilógico, foi o que eu pensei. Um indivíduo daquela espécie. Fer­vendo, e gelado um minuto depois. Não foi o melhor desempenho dele, você entende o que eu quero dizer? — Jerry esfregou a fronte com a mão esquerda, como um menino de escola fingindo estar refletindo. — "Está certo", eu disse a ele, "esqueça tudo. Vou escrever a história para o meu pasquim. Não aquela parte de os russos terem che­gado primeiro. A outra parte: Trabalho sujo na floresta. Um troço dessa natureza." Eu disse a Toby: "Se a história não serve para o Circus, servirá para meu jornaleco". Ele subiu pelas paredes outra vez. No dia seguinte, algum crânio telefonou para o velho Toby. "Conserve essa besta do Westerby afastado da história do Ellis. Esfregue o focinho dele no aviso de que será despedido." Advertên­cia formal: "Qualquer outra referência a Jim Ellis, ou seja, Hajek, é contrária aos interesses nacionais. Ponha isso de lado". E eu voltei para o pingue-pongue com as mulheres. Saúde!

— Mas nessa ocasião você me escreveu — lembrou Smiley.

Jerry Westerby enrubesceu fortemente:

— Eu lamento muito — disse ele. — Fiquei inteira­mente xenófobo e cheio de suspeitas. Isso é porque a gente vive por fora: não confia nos melhores amigos. Eu pensei apenas que o velho Toby estava ficando meio destrambelhado. Eu não deveria ter feito aquilo, não é mes­mo? Contra o regulamento. — Em meio ao seu embaraço, Jerry conseguiu dar um sorriso forçado. — Depois eu ouvi dizer, em segredo, que a firma tinha dado o bilhete azul a você, por isso eu me senti um idiota ainda maior. Você não está caçando sozinho, meu velho, ou está? Não...

Jerry não chegou a formular a pergunta, mas talvez ela não tenha ficado sem resposta.

No momento em que se despediram, Smiley segurou Jerry pelo braço, brandamente:

— Se Toby entrar em contato com você, acho melhor não dizer a ele que nós nos encontramos hoje. Ele é um bom sujeito, mas de fato tem uma certa tendência para pensar que as pessoas estão conspirando contra ele.

— Eu jamais pensaria em contar coisa alguma a ele, meu velho.

— E se ele de fato entrar em contato com você nesses próximos dias — continuou Smiley —, embora isso seja uma possibilidade remota, me avise. Então eu poderei dar apoio a você. Não ligue para o meu telefone, lembre-se disso, mas para este telefone.

Subitamente Jerry Westerby mostrou-se apressado: a crônica para a edição do dia seguinte não podia esperar. Mas quando pegou o cartão de Smiley, indagou, olhando embaraçadamente para um ponto qualquer:

— Não estará acontecendo alguma coisa errada lá no Circus, meu velho? Não há nenhum trabalho sujo pelas encruzilhadas, eu espero. A tribo não está brigando ou qualquer coisa dessa natureza?

O esgar de riso de Jim era terrível. Smiley riu-se e descansou levemente a mão no enorme ombro meio cor­cunda de Jerry.

— Estou aqui, sempre às ordens — disse Westerby.

— Eu me lembrarei disso.

— Eu pensei que tivesse sido você, está me enten­dendo? Que você tivesse telefonado para o velho Toby.

— Eu não.

— Talvez tenha sido Alleline.

— Eu acho que foi ele.

— Estou sempre às ordens — repetiu Westerby. — Sinto muito. — E acrescentou, de um jeito hesitante: — Lembranças para Ann.

– Vamos, Jerry, desembuche — disse Smiley.

— Toby me falou numa história sobre ela. Eu disse a ele que enfiasse a viola no saco. Não há nada, eu espero.

— Obrigado, Jerry. Até a vista. Saúde!

– Eu sabia que não havia nada — disse Jerry, muito satisfeito E levantando um dedo para fazer de conta que era uma pena de índio apache, encaminhou-se para a sua reserva.

 

Naquela noite, no Islay Hotel, sozinho na cama e sem poder dormir, Smiley tomou novamente a pasta de arquivo que Lacon lhe entregara na casa de Mendel. Referia-se à segunda metade dos anos 50, quando o Circus, como outros departamentos de Whitehall, estava sendo pres­sionado pela competição para que investigassem seria­mente a lealdade de seu pessoal. Quase todos os registros eram de rotina: telefonemas interceptados, relatórios sobre operações de vigilância, intermináveis entrevistas com pro­fessores universitários, amigos e pessoas recomendadas. Um documento, porém, atraiu a atenção de Smiley como se fosse um ímã: ele não conseguia extrair dele nada que o satisfizesse. Era uma carta, registrada simplesmente no índice como: "De Haydon a Fanshawe, 3 de fevereiro de 1937". Mais precisamente, uma carta manuscrita, do es­tudante Bill Haydon para seu tutor, Fanshawe, um des­cobridor de talentos ligado ao Circus, na qual Haydon apresentava o jovem Jim Prideaux como um candidato que tinha qualificações para ser recrutado pelo serviço de informações britânico. A carta era precedida por uma oblíqua explication de texte. O Optimates era um "clube de Christ Church, gente da elite social, principalmente antigos alunos de Eton", escrevia o autor desconhe­cido. Fanshawe (P. R. de T. Fanshawe, membro da Legião de Honra, portador da comenda da Ordem do Império Britânico, dados pessoais, etc.) havia sido o fun­dador desse clube, e Haydon (um número infinito de refe­rências cruzadas) era, naquele ano, a figura principal do clube. A feição política do Optimates o pai de Haydon também pertencera a esse grupo, no seu tempo era abertamente conservadora. Fanshawe, que já estava morto há muitos anos, era um apaixonado defensor do Império, e o Optimates constituía o seu grupo particular, devotado à seleção de "talentos para a Grande Aventura", dizia o prefácio. Era bastante curioso que Smiley se lem­brasse vagamente de Fanshawe, no seu tempo de estudante: um homem franzino e cheio de vivacidade, que usava óculos sem aro, um guarda-chuva à Neville Chamberlain, e que tinha um rubor fora do comum, como se ainda lhe estivessem nascendo os primeiros dentes. Steed Asprey o chamava de sua fada madrinha.

 

Meu caro Fan. Eu sugiro que você se ponha em campo e faça algumas investigações a respeito do jovem cujo nome se acha no fragmento anexo. (Nota supérflua dos encarregados dos interrogatórios: "Prideaux".) Você provavelmente conhece Jim se é que de fato o conhece como sendo um athleticus que já conquistou alguns triunfos. O que você não sabe, mas precisa saber, é que ele não é um lingüista vulgar, nem um completo idiota...

 

(Seguia-se um resumo biográfico de surpreendente exatidão:... Liceu Lakanal, de Paris, inscrito em Eton, jamais foi para lá, externato dos jesuítas, em Praga, dois semestres em Estrasburgo, os pais pertencem à classe dos banqueiros europeus, pequena aristocracia, vivem sepa­rados...)

 

Disso decorre a grande familiaridade de Jim com as coisas estrangeiras, e seu ar de não ter pais, que eu con­sidero irresistível. A propósito, embora ele seja constituí­do de todos os diversos fragmentos da Europa, não se engane: a versão final é devotadamente a nossa. Atual­mente ele anda um pouco contestador e perplexo porque acabou de reparar que existe um mundo para além da linha lateral do rugby, e esse mundo sou eu.

Mas primeiro você precisa saber como eu o conheci. Como você sabe, é meu hábito (por sua ordem) vestir de vez em quando roupas de árabe e ir aos bazares, ficando lá sentado entre os grandes que não se lavam, e prestar atenção à palavra de seus profetas, para que eu possa, no devido momento, confundi-los. O intelectual en vogue na­quela noite viera do âmago da própria Mãe Rússia: um certo acadêmico Khlebnikov, então ligado à Embaixada soviética em Londres, homem miúdo e de humor conta­giante, divertido, que conseguia dizer certas coisas de es­pírito em meio às tolices habituais. O bazar em questão era um clube de debates de nome Populars, nosso rival, meu caro Fan, e bem conhecido seu por causa de ou­tras incursões que eu por vezes nele realizei. Depois do sermão, foi servido um café desvairadamente proletário, acompanhado de uns bolinhos terrivelmente democráticos. E eu reparei num homenzarrão que estava sentado sozinho, no fundo da sala, parecendo excessivamente tímido para misturar-se aos demais. A fisionomia dele era-me um tanto familiar no campo de críquete. Acontece que nós dois jogávamos no mesmo time, sem trocar palavra um com o outro. Eu não sei bem como descrevê-lo. Ele tem perso­nalidade, Fan. Agora estou falando sério.

 

Nessa altura, a caligrafia, até então laboriosa, tor­nou-se desenvolta como se seu autor tivesse ganho ímpeto:

 

Ele possui aquela sólida tranqüilidade que inspira confiança. É o que se diria, sem favor, uma pessoa que sabe o que quer. Uma dessas criaturas sagazes que lideram um grupo sem que ninguém repare nisso. Fan, você sabe como representar é difícil para mim. Você me advertiu sempre, advertiu-me intelectualmente que, se eu não con­seguisse experimentar os perigos da vida, jamais conhece­ria seus mistérios. Mas Jim age por instinto... é funcional. Ele é a outra metade do meu ser. Nós dois juntos faríamos um homem maravilhoso, exceto que nenhum de nós sabe cantar. E ainda, Fan, você conhece aquilo que acontece quando uma pessoa simplesmente tem de sair em campo e encontrar alguém novo, senão o mundo morrerá dentro dela?

 

A caligrafia tornava-se novamente caprichada.

 

"Yavas Lagloo", eu disse, o que sei significar, em russo, "encontre-se comigo no depósito de lenha", ou coisa parecida. E ele respondeu: "Alô", o que penso teria dito para o arcanjo Gabriel se este estivesse passando por ali.

"Qual é seu dilema?", eu indaguei.

"Eu não tenho nenhum", respondeu ele, depois de pensar durante uma hora.

"Então o que é que você está fazendo aqui? Se você não tem um dilema, como entrou aqui?"

Ele deu um tranqüilo sorriso e nós nos aproximamos do grande Khlebnikov, apertamos a mãozinha dele durante algum tempo e depois seguimos a pé para meus aposentos. Aí nós bebemos. E como bebemos. Fan, ele bebe tudo que aparecer. Ou talvez tenha feito isso, eu não me lembro. Veio a madrugada, e você sabe o que ele fez? Nós fomos andando solenemente até o parque, eu fiquei sentado num banco com um cronômetro na mão, ao passo que o grandão do Jim enfiou sua roupa de atleta e deu vinte voltas no parque. Vinte. Eu fiquei exausto.

Nós podemos ir procurá-lo a qualquer hora. Ele só pede para ficar em minha companhia, ou na dos meus perversos e divinos amigos. Em suma, ele me elegeu seu Mefistófeles e eu estou muito lisonjeado com essa cortesia. A propósito, ele é virgem, tem mais ou menos dois metros e meio de altura e foi feito pela mesma firma que cons­truiu Stonehenge. Não fique alarmado.

 

A pasta novamente secou. Sentando-se na cama, Smiley virava suas páginas impacientemente, procurando algu­ma coisa mais forte. Os tutores dos dois afirmaram (vinte anos depois) ser inconcebível que as relações entre ambos fossem "mais do que puramente cordiais"... Nunca soli­citaram o testemunho de Haydon... O tutor de Jim a ele se refere como sendo "intelectualmente onívoro após um longo período de fome" e afasta qualquer sugestão de que fosse um simpatizante dos vermelhos. O interroga­tório que se realizou em Sarratt começou com longas des­culpas, especialmente tendo em vista a soberba ficha de guerra de Jim. As respostas dele possuíam uma agradável sobriedade, após a extravagância da carta de Haydon. Um dos representantes do interrogatório estava presente, mas raramente sua voz foi ouvida. Não, Jim nunca mais se encontrara com Khlebnikov ou com qualquer pessoa que o representasse na qualidade de emissário seu... Não, nunca falara com ele, exceto naquela única oportunidade. Não, nunca tivera qualquer outro contato com comunistas ou com russos, naquela ocasião, nem conseguia lembrar-se do nome de um só membro do Populars...

Pergunta (Alleline): Eu não acho que isso lhe tire o sono, ou tira?

Resposta: De fato, não (risos).

Sim, ele tinha sido sócio do Populars, do mesmo modo que havia sido sócio do clube dramático de seu colégio, da Sociedade Filatélica, da Sociedade de Línguas Modernas, da União e da Sociedade Histórica, da Socie­dade Ética e do Grupo de Estudos Rudolph Steiner... Era a maneira de assistir a conferências interessantes e de conhecer pessoas, especialmente isso. Não, nunca distri­buíra literatura de esquerda, embora durante algum tempo houvesse assinado o Soviet Weekly... Não, nunca contri­buíra para os cofres de qualquer partido político, em Oxford ou posteriormente. Na verdade nunca exercera o direito de voto... Um motivo que o levara a entrar para tantos clubes, em Oxford, era o fato de que, após uma educação desordenada, no exterior, ele não tinha contem­porâneos ingleses dos seus dias de escola...

Nessa altura, os inquisidores estavam unanimemente a favor de Jim. Todos estavam a seu lado, contra aquele interrogatório e suas intromissões burocráticas.

Pergunta (Alleline): Por uma questão de interesse, desde que você esteve durante tanto tempo fora do país, você se importaria de nos dizer onde aprendeu a jogar críquete? (risos).

Resposta: Ah, de fato um tio meu tinha uma casa fora de Paris. Ele era doido por críquete. Tinha rede e todo o equipamento. Quando eu ia passar as férias com ele, o tio me treinava sem parar.

(Nota do inquisidor: Conde Henri de Sainte-Yvonne, dez. de 1941, PF. AF64-7.) Fim da entrevista. O repre­sentante do serviço gostaria de convocar Haydon como testemunha, mas Haydon está fora do país e não pode ser chamado a depor. Adiado sine die...

Smiley estava quase dormindo quando leu o último registro da pasta do arquivo, nela atirado acidentalmente muito depois da aprovação formal de Jim, após aquele interrogatório. Era um recorte de certo jornal de Oxford, contendo uma crítica da exposição individual de Haydon, em junho de 1938, sob o título "Realista ou surrealista? Uma visão de Oxford". Tendo reduzido a exposição a farrapos, o crítico assim terminou sua nota hilariante: "Sabemos que o ilustre Mr. James Prideaux afastou-se de seu críquete para ajudar a dependurar as telas. Teria pro­cedido melhor, em nossa opinião, se tivesse permanecido na Bambury Road. Todavia, como seu papel de Dobbin das artes foi o único aspecto sincero de todo o aconteci­mento, talvez seria preferível não elevar demais nosso tom escarninho..."

Smiley começou a cochilar, com a cabeça cheia de uma porção de dúvidas, suspeitas e certezas. Pensou em Ann e, em meio ao cansaço, sentiu profunda ternura por ela, desejando muito proteger-lhe a fragilidade com sua própria fragilidade. Como se fosse um jovem, murmurou o nome dela em voz audível e imaginou que seu belo rosto estivesse inclinado para o dele, àquela meia luz, ao passo que Mrs. Pope Graham bradava "Isso é proibido", pelo buraco da fechadura. Pensou em Tarr e Irina, e refletiu inutilmente sobre o amor e a fidelidade. Pensou em Jim Prideaux e naquilo que reservava o dia de amanhã. Tinha consciência de um moderado sentimento de se estar aproximando do triunfo. Percorrera uma longa distância, navegara para diante e para trás. No dia seguinte, se tivesse sorte, poderia avistar terra: uma pacífica e pequena ilha deserta, por exemplo. Algum lugar de que Karla jamais tivesse ouvido falar, Só para ele e Ann. E adormeceu.

 

No mundo de Jim Prideaux, a quinta-feira havia trans­corrido como qualquer outra, exceto que, por vezes, pela madrugada, a ferida do seu ombro começava a supurar; isso porque, assim pensou ele, tinha havido uma competição entre os alunos da escola na tarde de quarta-feira. Desper­tou por causa da dor e da corrente de ar em suas costas molhadas, por onde escorria o pus. Da outra vez que isso acontecera, Jim fora de carro ao Hospital Geral de Taunton, mas as enfermeiras olharam para ele e o jogaram na sala de emergência para que ficasse à espera de um certo doutor e lhe fosse feita uma radiografia. Por esse motivo Jim apanhou furtivamente suas roupas e se retirou. Estava farto de hospitais, farto de médicos. Hospitais ingleses, outros hospitais. Jim estava farto de todos eles. Davam à supuração o nome de vazamento.

Ele não conseguia alcançar a ferida para tratá-la. Mas, depois da última vez que ela começara a vazar, Jim cortara uns pedaços de linho, prendendo uns cordões em suas ex­tremidades. Depois de colocá-los à mão e de ter preparado um remédio, aqueceu água, acrescentou-lhe um pouco de sal e tomou um banho de chuveiro improvisado, curvando-se para que suas costas recebessem o jato de água. Embebeu o pano no remédio, colocou-o sobre as costas, amarrou-o na frente do corpo e deitou-se de bruços no beliche, com uma dose de vodca à mão. A dor melhorou e ele mergulhou numa sonolência. Mas sabia que se esse torpor o vencesse iria dormir o dia inteiro; por isso levou a garrafa de vodca para a janela e sentou-se à mesa, começando a corrigir os trabalhos de francês da Quinta Série B, enquanto a aurora veio se esgueirando pelo Buracão e as gralhas começaram sua algazarra no alto dos olmos.

Às vezes ele pensava que aquela ferida era uma recordação que não conseguia afastar. Tentou o mais que pôde cobri-la com o curativo e esquecê-la, mas foram em vão todos os seus esforços.

Jim corrigiu os trabalhos lentamente, porque gostava dessa atividade: mantinha suas idéias no lugar certo. Pelas seis e meia ou sete horas, ele concluiu as correções. Enfiou umas velhas calças de flanela e um paletó esporte e foi caminhando calmamente até a igreja, cujas portas nunca se fechavam. Ajoelhou-se durante uns momentos na passagem central da entrada da capela Curtois, um monumento man­dado erigir por certa família em memória dos mortos de duas guerras, raramente visitado. A cruz do pequeno altar fora esculpida por uns sapadores, em Verdun. Ainda ajoe­lhado, Jim tateou cuidadosamente sob o banco até que as pontas de seus dedos encontraram uma linha formada de vários pedaços de esparadrapo; acompanhando essa linha, deu com uma caixa fria de metal. Terminada sua devoção, ele subiu até o alto de Combe Lane, andando num passo meio acelerado no propósito de transpirar, porque o calor lhe fazia um bem enorme e aquele ritmo acalmava seu ânimo de vigilância. Após uma noite sem dormir e por causa da vodca que bebera logo cedo, pela manhã, estava sentindo a cabeça meio vazia. Por isso, quando avistou os pôneis lá embaixo, no vale, olhando para ele com aquelas caras de tolos, Jim esbravejou, num forte sotaque do So-merset: "Dêem o fora daí, seus desgraçados! Tirem esses olhos de cima de mim!" Em seguida, veio descendo pesa­damente a ladeira, para tomar café e trocar o curativo.

A primeira aula após as orações era de francês, para a Quinta Série B, e nela Jim quase perdeu a paciência: aplicou um pequeno castigo a Clements, o filho do nego­ciante de fazendas, mas teve de voltar atrás no fim da aula. Na sala dos professores, cumpriu outro trabalho de rotina, igual ao que fizera na igreja: rapidamente, naturalmente, sem se atrapalhar. A idéia era bastante simples; controlar sua correspondência. Mas dava certo. Nunca tinha ouvido dizer que algum dos profissionais, seus colegas, a tivesse empregado, mas os profissionais não falam a respeito de seu jogo. "É assim", ele diria. "Se os adversários nos estão vigiando, com certeza estarão vigiando nossa corres­pondência, porque a correspondência é a coisa mais fácil de ser vigiada. Ainda mais fácil se os adversários perten­cerem à nossa pátria e tiverem a cooperação do serviço postal. Então o que teremos de fazer? Todas as semanas, na mesma caixa postal, à mesma hora e com o mesmo ritmo, colocamos um envelope endereçado a nós mesmos e outro dirigido a uma pessoa diferente para o mesmo en­dereço. Colocamos na caixa postal alguma coisa sem valor impressos de Natal, pedido de auxílio para alguma insti­tuição de caridade, folhetos do supermercado do lugar —, não nos esquecendo de fechar os envelopes. Depois é só fi­carmos à espera e comparar as horas da chegada da corres­pondência. Se nossa carta for entregue depois da carta dirigida à outra pessoa, imediatamente sentiremos o hálito quente de alguém em cima de nós, nesse caso o de Toby."

Em seu vocabulário estranho e incisivo, Jim cha­mava a isso prova da água, e, mais uma vez, a tempera­tura mostrou-se perfeita. As duas cartas chegaram juntas, mas Jim chegou muito atrasado e não pôde surripiar a que fora endereçada a Marjoribanks, que deveria servir como companheiro do jogo, sem o saber. Portanto, tendo posto sua carta no bolso, adormeceu e ficou a ressonar sobre o Daily Telegraph, ao passo que Marjoribanks excla­mava irritadamente "Que vá para o inferno!", rasgando um convite impresso para que ingressasse na Sociedade de Leitura da Bíblia. Em seguida, a rotina da escola tornou a ocupá-lo até a hora da partida de rugby dos menores contra a escola St. Ermin, para a qual estava escalado como juiz. Foi um jogo rápido e, quando terminou, suas costas recomeçaram a doer. Por isso ficou bebendo vodca até a hora em que tocou o primeiro sino, pois havia prometido substituir o jovem Elwes. Não conseguia lembrar por que fizera essa promessa, mas os professores mais moços valiam-se muito dele para esses trabalhos ocasionais, e Jim permitia que isso acontecesse. O sino era um velho sino de navio que o pai de Thursgood descobrira em algum lugar e agora fazia parte da tradição. No momento em que Jim tocava o sino, percebeu que o pequeno Bill Roach estava de pé bem a seu lado, olhando para ele com um sorriso inocente, querendo sua atenção, o que desejava obter meia dúzia de vezes por dia.

Olá, Jumbo! Qual é a dor de cabeça desta vez?

— Por favor.

— Vamos, Jumbo. Fale logo.

— Alguém anda perguntando onde o senhor mora — disse Roach.

Jim largou o sino.

— Que alguém é esse, Jumbo? Vamos, Jumbo, eu não vou morder você, vamos, ande... ande! Que alguém é esse? Algum homem? Uma mulher? Um feiticeiro? Vamos, amigo velho — disse Jim com brandura, curvando-se para ficar da mesma altura que Roach. — Não precisa chorar. O que é que há? Você está com febre? — Jim tirou um lenço da manga. — Quem é esse alguém? — repetiu em voz baixa.

— Ele andou fazendo perguntas na casa de Mr. McCullum. Disse que era um amigo. Depois entrou nova­mente no carro. Tinha parado no cemitério. Ficou lá sen­tado. — E Roach derramou outras lágrimas.

— Vão saindo, vocês — exclamou Jim, dirigindo-se a um grupo de alunos do último ano que estavam rindo junto à porta. — Vão saindo daí! — E voltou a Roach. — Um amigo alto? Um tipo alto e meio desleixado, Jumbo? Com sobrancelhas espessas e curvado? Ou era magro? Bradbury, venha cá e pare de ficar me olhando! Venha cá e leve Jumbo à inspetora! Era um tipo magro? — Jim tornou a perguntar, com um jeito afável, mas muito firme.

Mas Roach perdera a fala. Já não tinha mais memó­ria, nem senso de tamanho ou perspectiva. Sua capacidade de selecionar, no mundo dos adultos, havia desaparecido. Homens altos, baixos, velhos, moços, corcundas, emperti­gados, todos eram uma só legião de perigos que não po­deriam ser distinguidos. Dizer não a Jim estava acima de suas forças; e dizer sim seria assumir toda a terrível respon­sabilidade de desapontá-lo. Percebeu que Jim tinha o olhar pregado nele, viu desaparecer aquele sorriso e sentiu que aquela mão, grande e compassiva, estava pousada em seu braço.

— Mas que rapaz, esse Jumbo! Nunca houve um olheiro igual a você, não é isso mesmo?

Apoiando a cabeça desanimadamente no ombro de Bradbury, Bill Roach fechou os olhos. Quando os abriu, enxergou, por entre lágrimas, a figura de Jim que já estava no meio da escada, subindo ao andar de cima.

 

Jim sentiu-se mais calmo, quase tranqüilo. Durante vários dias, soubera que havia alguém. Isso também fazia parte de sua rotina: ficar observando os pontos onde os vigias faziam perguntas. A igreja, onde o ir e vir da popu­lação do lugar é um assunto sempre presente; o edifício-sede do condado, o registro dos eleitores; os negociantes, desde que os fregueses tivessem contas com eles; os bares, se as presas acaso não os freqüentavam. Ele sabia que, na Inglaterra, essas eram as armadilhas naturais que os olhei­ros automaticamente percorriam antes de cair sobre uma pessoa. E em Taunton, sem dúvida, conversando agradavel­mente com o bibliotecário assistente, Jim encontrara as pegadas que estava procurando descobrir. Um estranho, aparentemente de Londres, mostrara-se interessado nos arquivos da vila. Era um político, mais da linha das pes­quisas políticas, isso se podia perceber. E uma das coisas que ele queria, imagine só, eram os registros atualizados da própria villa de Jim. Sim: a relação dos eleitores. Estava pensando em fazer um inquérito de casa em casa, numa comunidade realmente afastada, especialmente acerca de seus novos moradores. Sim, imagine só, concordou Jim. E a partir daquele momento Jim tomou suas medidas: com­prou passagens de trem para vários lugares: Taunton— Exeter, Taunton—Londres, Taunton—Surindon, todas vá­lidas por um mês, porque sabia que, se voltasse novamente, seria difícil obter as passagens. Ele apanhara seus velhos documentos de identidade e seu revólver, colocando-os à mão; pôs uma valise cheia de roupas na mala do Alvis, e encheu o tanque do carro. Tais precauções tornaram o sono uma possibilidade, ou o teriam tornado.

— Quem ganhou o jogo, professor?

Era Prebble, um calouro, que se dirigia à enfermaria, enfiado num roupão e carregando um tubo de pasta de dentes. Às vezes os rapazes falavam com Jim sem qual­quer motivo. O tamanho dele e sua corcunda os estimula­vam a isso.

— O jogo, professor. O jogo contra St. Ermin!

— St. Vermin — disse outro rapaz. — Sim, professor. Quem ganhou?

— Eles ganharam — esbravejou Jim. — Vocês sa­beriam se tivessem assistido ao jogo. — E atirando um enorme punho em direção a eles, como se fosse um lento murro simulado, empurrou os dois rapazes pelo corredor até a enfermaria da inspetora.

— Boa noite, professor.

— Boa noite, criaturas desprezíveis — disse Jim, encaminhando-se no outro sentido e entrando na enfermaria onde ficavam os doentes, no propósito de observar a igreja e o cemitério. A enfermaria estava com as luzes apagadas e tinha um aspecto e um odor que ele detestava. Doze rapa­zes estavam ali deitados, no escuro, dormitando entre a ceia e a febre.

— Quem é? — indagou uma voz rouca.

— É o Rino — disse outra voz. — Escute, Rino, quem ganhou o jogo contra St. Vermin?

Chamar Jim pelo apelido era um ato de insubordina­ção, mas os rapazes que estavam doentes, na enfermaria, sentiam-se isentos da disciplina.

— Rino? Quem é Rino? Eu não o conheço. Não sei que nome é esse — resfolegou Jim, esgueirando-se entre duas camas. — Apague essa lanterna, isso não é permitido. Foi uma barbada para quem ganhou. Vermin. Dezoito a zero.

Aquela janela chegava quase até o chão. Uma velha grade dessas que se colocam diante das lareiras a protegia dos rapazes.

— Houve muita atrapalhação na linha — murmurou Jim, espiando para fora.

— Eu detesto rugby — declarou um rapaz chamado Stephen.

O Ford vermelho estava estacionado à sombra da igreja, sob os olmos. Não seria visível do andar térreo, mas não dava a impressão de estar escondido. Jim ficou muito quieto, um pouco afastado da janela, estudando o carro em busca de algum sinal denunciador. A luz do dia estava di­minuindo muito depressa, mas ele tinha boa vista e sabia o que queria ver: uma discreta antena, um segundo espelho interno para o informante, marcas de substâncias queimadas sob o cano de descarga. Percebendo que Jim estava tenso, os rapazes começaram a fazer-se de engraçados:

— É alguma garota, professor? Ela vale a pena? — indagou um deles.

— O que é que está pegando fogo? — perguntou outro.

— Como são as pernas dela? — insistiu um terceiro.

— Meu Deus, professor, não diga que é Miss Aaronson — falou um deles. Diante disso todos começaram a rir, num riso abafado, porque Miss Aaronson era velha e feia.

— Calem a boca! — ordenou Jim desabridamente, muito irritado. — Seus porcos mal-educados. Calem-se.

No andar térreo, na assembléia, Thursgood estava fa­zendo a chamada dos alunos do último ano, antes do estudo:

"Abercrombie?" "Presente." "Astor?" "Presente." "Blakeney?" "Está doente."

Jim, ainda em seu posto de observação, viu que a porta do carro se abriu e que George dele saiu cautelosamente, enfiado numa grossa capa de chuva.

Soaram no corredor os passos da inspetora. Ele ouviu o ranger dos seus saltos de borracha e o chocalhar dos termômetros no pote de cerâmica.

— Meu querido Rino, o que está fazendo em minha enfermaria? Feche essa cortina, seu desmiolado, senão to­dos eles vão morrer de pneumonia. William Merridew, vamos, sente-se logo.

Smiley estava fechando à chave a porta do carro. Sozinho, não tinha nas mãos nem mesmo uma pasta.

— Estão chamando você em Grenville, Rino.

— Estou indo. Já fui — replicou Jim num tom ani­mado. — Boa noite para todos. — E dirigiu-se com suas costas arqueadas para o dormitório Greenville, onde havia prometido acabar um conto de John Buchan. Lendo em voz alta, reparou que tinha dificuldade em pronunciar alguns sons, que ficavam de certo modo presos em sua garganta. Sabia que estava transpirando e percebeu que a ferida de suas costas supurava. E, quando terminou a lei­tura, sentiu uma rigidez no queixo, que não era apenas conseqüência de haver lido em voz alta. Mas tudo aquilo não passava de sintomas sem importância, ao lado do ódio que se apoderou dele ao mergulhar no gélido ar da noite. Durante um momento hesitou, no terraço atapetado de ve­getação, ficando a olhar firmemente para a igreja. Levou três minutos, menos do que isso, para retirar o revólver que estava sob o banco, enfiá-lo na cintura, do lado esquerdo, com a coronha para dentro, colada à virilha...

Mas o instinto o desaconselhou. Por isso dirigiu-se diretamente para o reboque, cantando Hey diddle diddle o mais alto que sua voz desafinada pudesse alcançar.

 

No quarto do motel a agitação era constante. Mesmo quando o tráfego, lá fora, atravessava um de seus raros momentos de calma, as janelas continuavam a vibrar. No banheiro, os copos de lavar os dentes também vibravam, e de cada parede, como também dos quartos que ficavam no andar de cima, eles ouviam música, baques surdos e fragmentos de conversas e risos. Quando algum carro en­costava diante do pátio fronteiro ao motel, o bater de sua porta parecia estar acontecendo dentro do quarto, e o ruído de passos também dava a mesma impressão. Quanto aos móveis, tudo neles combinava. As cadeiras amarelas com­binavam com os quadros amarelos e com o tapete amarelo. As colchas de chenille combinavam com a pintura cor de laranja das portas e, por coincidência, com a etiqueta da garrafa de vodca. Smiley havia arrumado devidamente as coisas. Aumentara o espaço entre as cadeiras e pusera a garrafa de vodca sobre a mesa baixa e, agora, enquanto Jim permanecia sentado, olhando fixamente para ele, Smi­ley estava tirando um prato de salmão defumado e pão preto já com manteiga da minúscula geladeira. Seu ânimo, em contraste com o de Jim, era visivelmente alegre, e seus movimentos eram ágeis e decididos.

— Eu julguei que nós pelo menos deveríamos ter conforto — disse ele, com um sorriso, colocando solicita­mente as coisas sobre a mesa. — Quando você tem de estar de volta à escola? Alguma hora certa? — Não obtendo resposta, sentou-se e indagou: — Você gosta de ensinar? Creio que você ensinou durante algum tempo, depois da guerra, não foi mesmo? Antes que eles chamassem você novamente? Foi também numa escola preparatória? Isso eu acho que nunca soube.

— Veja na pasta do arquivo — resmungou Jim. — Não venha aqui brincar de gato e rato comigo, George Smiley. Se você quiser saber das coisas, leia minha pasta.

Esticando o braço sobre a mesa, Smiley serviu dois drinques e passou um deles a Jim.

— Sua pasta pessoal no Circus?

— Pegue minha pasta com as secretárias. Arranje a pasta com Control.

— Acho que deveria fazer isso — declarou Smiley num tom de dúvida. — O problema é que Control está morto e eu fui despedido muito antes de você voltar. Nin­guém se preocupou em dizer isso a você quando eles con­seguiram trazê-lo de volta?

Diante disso, o rosto de Jim descontraiu-se um pouco e ele fez um vagaroso movimento, um daqueles gestos que tanto divertiam os rapazes em Thursgood.

— Meu Deus, então Control se foi — murmurou ele, passando a mão esquerda pelas pontas do bigode e, em seguida, fazendo-a correr pelos cabelos que pareciam roídos de traças. — Pobre-diabo — murmurou novamente. — De que morreu ele, George? Do coração? O coração o matou?

— Eles nem lhe disseram isso, quando o interroga­ram? — indagou Smiley.

Diante da referência a um interrogatório, Jim retesou o corpo e tornou a olhar para Smiley com irritação.

— Foi, sim — disse Smiley. — Morreu do coração.

— Quem ficou no lugar dele?

— Meu Deus, Jim — disse Smiley, rindo. — Sobre o que vocês todos falaram em Sarratt, se eles nem lhe dis­seram isso?

— Que se danem. Quem ficou no lugar dele? Não foi você. Eles o jogaram fora. Quem pegou o lugar dele, George?

— Foi Alleline — disse Smiley, observando Jim cui­dadosamente, reparando como o antebraço direito dele permanecia imóvel, apoiado num dos joelhos. — Quem você queria que fosse? Você tinha algum candidato, Jim? — E após uma longa pausa, Smiley prosseguiu: — E eles não lhe disseram o que aconteceu com a rede Agravar, por acaso? O que aconteceu com Pribyl, com a mulher dele e o cunhado? Nem o que aconteceu com a rede Platão? Com Landkron, Eva Krieglova, Hanka Bilova? Você re­crutou alguns deles, não foi mesmo? Nos velhos tempos, antes de Roy Bland. O velho Landkron até trabalhou para você durante a guerra.

Naquele momento houve algo de terrível: Jim não conseguiu mover-se nem para a frente nem para trás. Seu rosto vermelho estava contraído pelo esforço de sua inde­cisão, e o suor se acumulara em grossas bagas acima de suas espessas sobrancelhas avermelhadas.

— Para o inferno, George. Que diabo você quer? Eu tracei uma linha divisória. Isso foi o que eles me manda­ram fazer. Uma linha divisória. Começar uma vida nova. Esquecer tudo aquilo.

— Quem eram eles, Jim? Roy, Bill, Percy — Smiley ficou aguardando uma resposta. — Eles disseram a você o que aconteceu com Max, quem quer que tenham sido eles? A propósito, Max está bem. — Levantando-se da cadeira, Smiley tornou a encher o copo de Jim e sentou-se nova­mente.

— Bem, continue. Então o que aconteceu com as redes?

— Foram desbaratadas. E dizem que você as des­truiu, entregando-as para salvar a própria pele. Eu não acredito nisso. Mas preciso saber o que aconteceu. — E Smiley prosseguiu: — Eu sei que Control fez você prometer por tudo quanto há de mais sagrado, mas isso acabou. Sei que você foi interrogado até mais não poder, e sei que levou as coisas a tal ponto que dificilmente poderá dizer qual a diferença entre a verdade e a simulação. Sei que você procurou traçar uma linha divisória e dizer que aquilo não aconteceu. Eu também tentei fazer isso. Bem, a partir des­ta noite você poderá traçar sua linha divisória. Eu lhe trou­xe uma carta de Lacon e, se você quiser telefonar para ele, Lacon estará à sua espera. Eu não vou fazer com que você se cale. Prefiro que você fale. Por que você não me foi procurar em minha casa quando voltou? Você po­deria tê-lo feito. Procurou ver-me antes de partir. Por­tanto, por que não fez a mesma coisa quando regressou? Não foi somente por causa do regulamento que você se manteve afastado.

Nenhum deles escapou? perguntou Jim.

Não, parece que todos foram fuzilados.

 

Eles tinham telefonado para Lacon, e Smiley estava sentado, sozinho, sorvendo sua bebida. Ouvia o barulho de água correndo da torneira do banheiro e o grunhir de Jim, que estava lavando o rosto.

Pelo amor de Deus, vamos a algum lugar onde se possa respirar murmurou Jim, como se isso fosse uma condição para ele falar. Smiley apanhou a garrafa e cami­nhou ao lado dele, enquanto os dois atravessavam o asfalto rumo ao carro.

Rodaram durante vinte minutos, Jim ao volante. Quando pararam o carro estavam no platô, naquela manhã límpida, descortinando uma grande extensão do vale. Al­gumas luzes isoladas eram visíveis, ao longe. Jim perma­necia sentado, duro como uma pedra, com o ombro direito levantado e as mãos pendentes, a contemplar a sombra das colinas através do pára-brisa embaciado. O céu estava claro e o rosto de Jim recortava-se nitidamente de encontro a ele. Smiley formulou suas primeiras perguntas de maneira con­cisa. Já não havia ódio na voz de Jim, e ele pouco a pouco começou a falar com crescente facilidade. Em certo mo­mento, discutindo a técnica de Control, até mesmo chegou a rir, mas Smiley não se descontraiu em nenhuma ocasião, mostrando-se cauteloso como se estivesse guiando uma criança ao atravessar uma rua. Quando Jim se apressava ou se continha, ou era tomado de súbita irritação, Smiley bran­damente o fazia voltar ao ponto em que antes se encontra­vam, movendo-se no mesmo ritmo e na mesma direção. Quando Jim hesitava, Smiley o estimulava a prosseguir e a transpor o obstáculo. Inicialmente, graças a um misto de instinto e capacidade de dedução, Smiley de fato propor­cionou a Jim sua história.

Quando do primeiro interrogatório de Jim, feito por Control, sugeriu Smiley, eles se encontraram fora do Circus? Sim. Onde? Num apartamento com serviço de hotel, em St. James Park, local proposto por Control. Havia mais alguém presente? Não, ninguém. E para entrar em contato com Jim pela primeira vez, Control se tinha valido de MacFadean, seu porteiro pessoal? Sim, o velho Mac viera no trem de Brixton trazendo um bilhete em que Jim era solicitado a ter um encontro com Control, naquela noite. Jim teria de dizer sim ou não a Mac e devolver-lhe o bi­lhete. Não deveria usar o telefone, em hipótese alguma, nem mesmo uma linha interna, para discutir as coisas. Jim dissera sim a MacFadean e chegara ao encontro às sete horas.

Suponho que Control, em primeiro lugar, alertou você para que tivesse a maior cautela.

Ele me disse que não confiasse em ninguém.

Mencionou determinadas pessoas?

Posteriormente disse Jim. Não a princípio. No começo disse apenas o seguinte: não confie em nin­guém. De modo especial, ninguém que pertença ao grupo principal. George...

O que é?

Eles foram todos fuzilados, não é mesmo? Land-kron, Krieglova, os Pribyl? Fuzilados logo?

A polícia secreta desbaratou as duas redes na mes­ma noite. Depois disso ninguém soube de mais nada. Mas os parentes mais próximos foram informados de que todos tinham sido mortos. Isso geralmente quer dizer que de fato o foram.

À esquerda dos dois uma fileira de pinheiros se ele­vava do fundo do vale como um exército imóvel.

Eu suponho que Control lhe perguntou que identi­dade tcheca você tinha utilizado continuou Smiley. Não foi isso?

Smiley teve de repetir a pergunta.

Eu disse a ele que eu era Hajek declarou Jim, finalmente. Vladimir Hajek, jornalista tcheco que tra­balhava em Paris. Control me perguntou por quanto tempo ainda os documentos seriam válidos. Eu respondi que isso nunca se poderia saber. Às vezes eles são descobertos após uma única viagem. A voz de Jim tornou-se subitamente mais alta, como se tivesse perdido o controle sobre ela. Control era surdo como uma porta, quando queria.

Então ele disse o que queria que você fizesse? sugeriu Smiley.

Primeiro, nós discutimos o problema de negar as coisas. Ele disse que se eu fosse apanhado deveria deixá-lo fora de tudo. Seria um trabalho de caçador de escalpo, uma espécie de empreendimento particular. Mesmo naque­la ocasião eu me perguntei quem iria acreditar nisso. Pro­nunciou as palavras a custo, como se estivesse perdendo sangue. E durante todo o tempo eu senti a resistência dele em dizer qualquer coisa a mim. Não queria que eu sou­besse dos fatos, mas queria me ver bem esclarecido. Ele me declarou o seguinte: "Tive um oferecimento de serviço. Um funcionário que ocupa uma alta posição, cujo nome de guerra é Testemunho". Eu indaguei se era um funcio­nário tcheco. "Um militar", respondeu. E acrescentou: "Você tem mentalidade militar, Jim. Vocês dois deverão entender-se muito bem". A coisa foi assim durante todo o tempo. Eu pensei: "Se você não quiser me dizer, não diga, mas deixe de ficar perturbado".

Depois de muitos circunlóquios, Control declarou que Testemunho era um general tcheco da artilharia. Seu nome era Stevcek, sendo conhecido como um falcão pró-soviético na hierarquia da defesa de Praga, se é que isso podia ter algum valor. Tinha trabalhado em Moscou, em serviços de ligação, sendo um dos poucos tchecos em quem os russos confiavam. Stevcek havia comunicado a Control, através de um intermediário que Control entrevistara pessoal­mente, estar disposto a conferenciar com uma autoridade de alta posição hierárquica no Circus a respeito de questões de interesse mútuo. O emissário deveria falar tcheco e ser pessoa capaz de tomar decisões. Na sexta-feira, dia 26 de outubro, Stevcek estaria inspecionando o centro de pesqui­sas de armas de Tisnov, nas proximidades de Brno, apro­ximadamente a cento e sessenta quilômetros ao norte da fronteira austríaca. Iria depois visitar um alojamento para caçadores durante o fim de semana, onde estaria só. Gos­taria de aí receber um emissário, na noite de sábado, dia 21. Ofereceria também uma escolta a esse emissário, de Brno ao alojamento e de retorno a Brno.

Control deu alguma indicação acerca dos motivos de Stevcek? indagou Smiley.

Uma namorada disse Jim. Uma estudante com quem ele andava, aproveitando suas últimas primave­ras. Assim disse Control. Vinte anos de diferença entre eles. Ela foi morta durante o levante do verão de 1968. Até então, Stevcek conseguira sufocar seus sentimentos anti-russos em benefício da própria carreira. A morte da moça pôs um termo a isso: ele estava sedento do sangue deles. Durante quatro anos ele se calara, portando-se como amigo e informando-os das coisas que os prejudicassem. Logo que nós lhe demos garantias e estabelecemos as con­dições, ele se mostrou pronto a bandear-se para o nosso lado.

Control tinha verificado isso?

Na medida do possível. Stevcek era bem documen­tado. Era um general muito estudioso, com uma longa lista de comissões no Estado-Maior. Um tecnocrata. Quando não se encontrava fazendo cursos, estava afiando os den­tes no exterior: Varsóvia, Moscou, Pequim durante um ano. Uma temporada na qualidade de adido militar na África e novamente em Moscou. Era jovem para o posto.

Control lhe disse o que você deveria esperar em matéria de informações?

Material de defesa. Foguetes. Balística.

Mais alguma coisa? indagou Smiley, passando a garrafa a Jim.

Um pouco de política.

Mais nada?

Smiley teve a nítida impressão de estar tropeçan­do, não na ignorância de Jim, mas num resquício de sua decidida determinação de não se lembrar das coisas. Não era a primeira vez que isso acontecia. Naquela escuridão, Jim Prideaux subitamente começou a respirar fundo-e so­fregamente. Tinha erguido as mãos, colocando-as sobre o volante e apoiando nelas o queixo, com um olhar vazio fixado no pára-brisa coberto de gelo.

Quanto tempo eles ficaram presos antes de serem mortos? Jim quis saber.

Acho que foi durante muito mais tempo do que você confessou Smiley.

Santo Deus! exclamou Jim. E tirando um len­ço da manga, enxugou o suor e as lágrimas que lhe escor­riam do rosto.

E as informações que Control estava esperando obter de Stevcek... — continuou Smiley num tom de quem instigava uma resposta, embora de maneira branda.

Foi sobre isso que eles me interrogaram.

Em Sarratt?

Jim sacudiu a cabeça, indicando a direção dos montes.

Foi lá. Eles sabiam que tinha sido uma operação de Control. Desde o princípio. Eu nada pude dizer que os persuadisse que fosse minha. Eles começaram a rir.

Mais uma vez Smiley esperou pacientemente até que Jim estivesse em condições de prosseguir.

Stevcek declarou Jim. Control estava meio maluco: Stevcek daria a solução, Stevcek forneceria a cha­ve. "Mas que chave?", eu indaguei. Que chave? Control estava com aquela maleta, uma surrada maleta marrom de guardar músicas. Tirou de dentro dela uns velhos mapas, todos anotados a mão por ele próprio. Mapas feitos com tinta e lápis de cor. E disse: "Ajuda visual para você. Este é o homem com quem você se irá encontrar". A carreira de Stevcek estava anotada, ano a ano. Control me fez percor­rê-la toda: academias militares, medalhas, esposas que o homem teve. E disse: "Ele gosta muito de cavalos. Você também costumava montar, Jim. Lembre-se disso. É mais uma coisa em comum entre vocês". Eu pensei: "Será en­graçado! Ficar plantado na Tchecoslováquia, os cães em meu encalço, conversando sobre como domar éguas puro-sangue".

Jim riu de um jeito um tanto estranho e por isso Smiley também riu.

As marcas em vermelho eram as atividades soviéticas de ligação, exercidas por Stevcek. As verdes eram refe­rências aos seus trabalhos de espionagem. Stevcek havia participado de tudo. Era o quarto homem do serviço se­creto da Tchecoslováquia, o principal técnico em tanques, o secretário da Comissão Nacional de Segurança Interna, conselheiro militar do Presidium. Então Control chegou a um conjunto de atividades dos meados dos anos 60, duran­te a segunda vez em que Stevcek passou uma temporada em Moscou. Estavam assinaladas em verde e vermelho. Oficialmente Stevcek estava ligado ao quadro de ligação do Pacto de Varsóvia, com o posto de general, disse Con­trol, mas isso só na aparência. Nada tinha com o quadro de ligação do Pacto de Varsóvia. Sua verdadeira função era servir na seção da Inglaterra, no Centro de Moscou. Agia sob o nome de guerra de Mimin. Sua tarefa consistia em unir os esforços dos tchecos aos do Centro. "Esse é o tesouro", declarou Control. "O que Stevcek realmente nos quer vender é o nome do toupeira do Centro de Moscou que opera no Circus."

Poderia ser apenas uma palavra, refletiu Smiley, lembrando-se de Max, e sentiu novamente uma súbita onda de inquietação. Ele sabia, afinal, o que tudo iria ser: o nome de Gerald, um grito na escuridão.

Control me disse ainda continuou Jim: "Aqui há uma maçã podre, e ela está contaminando todas as outras".

Jim prosseguiu de maneira direta. Sua voz e suas ma­neiras se tornaram mais duras:

Control continuou falando sobre eliminação de nomes e, como tinha analisado pistas do passado e pesqui­sado, tinha quase chegado a uma conclusão. Eram quatro as possibilidades, disse. Não me pergunte, Smiley, de que modo ele as desencavou. O homem era um dos cinco mais graduados. Os cinco dedos da mão. Ele me ofe­receu um drinque e nós ficamos sentados como dois meninos de escola, elaborando um código. Eu e Control. Usamos os versos de Rei, soldado, capitão, ladrão. Fica­mos lá sentados, no apartamento dele, armando o código, bebendo aquele xerez barato, de Chipre, que ele sempre oferece. Se eu não pudesse escapar, se houvesse qualquer complicação depois de eu me ter encontrado com Stevcek, se eu tivesse de me esconder, deveria fazer chegar a ele aquela única palavra, mesmo que eu tivesse de ir a Praga e escrevê-la a giz na porta da Embaixada ou telefonar para o agente de Praga e gritar essa palavra para ele. Rei, sol­dado, capitão, ladrão. Alleline era o rei, Haydon era o soldado, Bland era o capitão e Toby Esterhase era o pobre. Nós deixamos de lado "ladrão" porque rimava com "capi­tão". Você era o mendigo, Smiley.

Eu era o mendigo? E como você encarou a teo­ria de Control, Jim?

Achei que era muito idiota. Uma bobagem.

Por quê?

Muito idiota, apenas isso repetiu Jim, num tom de obstinação militar. Pensar que um de vocês fosse um toupeira! Loucura.

Mas você acreditou nela?

Não. Deus é testemunha, homem. Por que você...

Por que não? Racionalmente sempre aceitamos que isso aconteça mais cedo ou mais tarde. Sempre nos advertimos mutuamente: fique em guarda. Fizemos um número suficiente de agentes virarem a casaca: rus­sos, poloneses, tchecos, franceses. Até mesmo uns esporá­dicos americanos. O que haveria de tão especial quanto aos ingleses, assim de repente? Percebendo o antagonis­mo de Jim, Smiley abriu a porta e deixou entrar no carro um pouco de ar frio. E disse: Que tal andarmos um pouco? Não há motivo para nós ficarmos aqui encarce­rados se podemos dar uma caminhada por aí.

Em conseqüência desse movimento seu, conforme havia previsto, as palavras de Jim adquiriram uma nova fluência.

Eles estavam na orla ocidental do platô, onde havia apenas algumas árvores de pé, porque várias outras tinham sido abatidas. Um banco coberto de gelo estava ali, à dis­posição deles, que não tomaram conhecimento disso. Não soprava o menor vento, as estrelas estavam muito límpidas e, quando Jim recomeçou sua história, eles foram cami­nhando lado a lado, Jim sempre ajustando seu passo ao de Smiley. Ora afastavam-se do carro, ora a ele retorna­vam. Por vezes estacavam, ombro a ombro, e ficavam a olhar para o vale lá embaixo.

Primeiro, Jim descreveu como recrutara a ajuda de Max e as manobras que realizou para dissimular sua mis­são ao resto do pessoal do Circus. Deixou transpirar que havia feito uma sondagem preliminar junto a um criptó­grafo soviético altamente situado em Estocolmo e reserva­do uma passagem para Copenhague em seu antigo nome de guerra, Ellis. Mas voou para Paris, passou a usar os documentos de identificação de Hajek e desceu no aero­porto de Praga, num vôo de carreira, às dez horas da ma­nhã de sábado. Atravessou a barreira sem encontrar a me­nor dificuldade; confirmou o horário de seu trem no ter­minal ferroviário e, em seguida, fez uma caminhada a pé porque tinha de matar o tempo durante umas duas ho­ras e pensou que poderia observar se estava sendo seguido, antes de seguir para Brno. Aquele outono havia sido de um caprichoso mau tempo. O chão estava coberto de neve, que continuava a cair.

Na Tchecoslováquia, disse Jim, essa observação ge­ralmente não constituía problema. O serviço de segurança quase nada entendia de vigiar pessoas nas ruas, provavel­mente porque nenhuma administração de que se tinha memória jamais se constrangera em fazê-lo. A tendência nesse particular, declarou Jim, consistia em empregar auto­móveis e distribuir pessoal subalterno pelas ruas, como Al Capone, e isso era o que Jim estava procurando: Skodas pretos e grupos de três homens atarracados de chapéus de feltro. Quando faz frio, localizar tudo isso é mais difícil porque o tráfego é lento, as pessoas andam mais depressa e todas estão embuçadas até o nariz. De qualquer maneira, até alcançar a Estação Masaryk, ou Central, como os tchecos gostavam de chamá-la naqueles dias, Jim não teve qualquer preocupação. Mas, nessa estação, ele desconfiou, mais por instinto do que por qualquer motivo real, de duas mulheres que haviam comprado passagens antes dele.

Então, com a fria segurança de um profissional, Jim voltou a caminhar pelas ruas. Numa galeria de lojas, ao lado da Praça Wenceslas, três mulheres passaram por ele, a do meio empurrando um carrinho de criança. A que ia junto ao meio-fio levava uma bolsa plástica, vermelha, e a que caminhava mais à direita conduzia um cão pela co­leira. Dez minutos depois, outras duas mulheres vieram em direção a ele, de braço dado, apressadas, e passou pela mente de Jim que se Toby Esterhase estivesse dirigindo aquele trabalho, um arranjo desse tipo seria de seu estilo: uma rápida troca de olhares com a mulher que empurrava o carrinho de criança; uns carros meio recuados, parados a certa distância, equipados com rádios de ondas curtas ou bleep, ao passo que uma segunda equipe estaria parada mais atrás, se acaso o grupo de vanguarda se adiantasse demais. Na Estação Masaryk, olhando para as duas mulheres que estavam em sua frente, na fila do guichê de compra de passagens, Jim adquiriu a certeza do que estava ocorrendo. Há uma coisa que os olheiros não têm tempo ou inclinação para mudar, principalmente nos lugares subárticos: os sapatos. Jim reconheceu um par de sapatos, dos dois que se ofereceram à sua inspeção na fila do gui­chê: eram pretos, de plástico forrado de pele, com zíper lateral e grossas solas marrons, que rangiam discretamente sobre a neve. Ele já os tinha visto uma vez aquela manhã, na passagem de Sterba, usados pela mulher que passava por ele empurrando o carrinho de criança e que estava com roupas diferentes. A partir de então, Jim não apenas sus­peitava, mas tinha certeza absoluta. Sabia do que se trata­va, exatamente como teria acontecido com Smiley.

Na livraria da estação, Jim comprou o Rude Pravo e embarcou no trem de Brno. Se aquelas pessoas tivessem querido prendê-lo, já o teriam feito. Deviam estar em busca das linhas auxiliares de Jim, ou seja, seguiam-no a fim de localizar seus contatos. Não havia sentido em indagar quais seriam as razões disso, mas Jim percebeu que a identidade de Hajek fora descoberta e que lhe tinham preparado uma armadilha no momento em que reservara passagem no avião. Desde que não soubessem que ele levantara a lebre, Jim pensou que ainda estaria em situação vantajosa. E du­rante uns momentos Smiley viu-se novamente de retorno à Alemanha, quando era um agente de campo, vivendo sem­pre aterrorizado, sentindo que qualquer olhar de alguma pessoa estranha o desnudava, por assim dizer.

Jim deveria pegar o trem das oito e treze, que che­garia em Brno às dezesseis e vinte e sete. Esse trem foi cancelado e, por esse motivo, Jim apanhou um ótimo trem parador, que estava correndo especialmente para o jogo de futebol, e que fazia alto nos postes de iluminação, um sim outro não. E em cada um deles Jim era capaz de iden­tificar os olheiros disfarçados. A qualidade desses olheiros era variável. Em Chocen, uma localidade mesquinha, se é que ele jamais conhecera um lugar assim, Jim desem­barcou do trem e comprou uma salsicha. Lá estavam nada menos do que cinco deles, todos homens, espalhados na minúscula plataforma, com as mãos nos bolsos, fingindo conversar uns com os outros e portando-se como verda­deiros palhaços.

— Se há uma coisa que distingue um bom olheiro de um mau — declarou Jim — é a arte de fazer tudo de maneira convincente.

Em Svitavy, dois homens e uma mulher entraram no carro de Jim e começaram a falar sobre o grande jogo de futebol. Ao cabo de algum tempo Jim entrou na conversa. Tinha lido o programa esportivo em seu jornal: era uma partida de revanche entre dois clubes, e todo mundo estava entusiasmado com isso. Até Brno nada mais aconteceu e, por isso, Jim desceu do trem e ficou perambulando no meio de lojas e por zonas apinhadas de gente onde os olheiros teriam de andar muito perto dele se não quisessem arriscar-se a perdê-lo de vista.

Jim queria tranqüilizá-los, demonstrar-lhes que não suspeitava de coisa alguma. Sabia, então, que era o alvo do que Toby denominaria uma grande e desbaratadora operação. Eram grupos de sete, agindo a pé. Os car­ros eram trocados com tanta freqüência que Jim não con­seguia contá-los. A direção geral estava instalada em uma camioneta verde e maltratada, dirigida por um sujeito com cara de facínora. A camioneta tinha uma antena de quadro e ostentava uma estrela desenhada a giz, na traseira, bem alto, de sorte que uma criança não pudesse alcançá-la. Os carros, onde Jim os localizava, identificavam-se uns aos outros por uma bolsa de mulher colocada sobre o porta-luvas, e por um visor pára-sol virado para baixo. Ele per­cebeu que havia outros sinais, mas esses dois lhe basta­vam. Sabia, pelo que Toby lhe dissera, que trabalhos iguais àquele exigiriam uma centena de pessoas e eram difíceis de conduzir se acaso a presa escapasse. Toby os detestava por esse motivo.

— Há uma loja, na praça principal de Brno, que ven­de de tudo — disse Jim. — É geralmente muito chato fazer compras na Tchecoslováquia, porque há poucos pontos de varejo para cada indústria estatal. Mas aquela loja era nova e causava boa impressão.

Ele comprou uns brinquedos para crianças, um cache­col, cigarros, e experimentou uns sapatos. Percebeu que os olheiros ainda estavam aguardando seu contato clandes­tino. Jim furtou um chapéu de pele, uma capa de chuva de plástico branco e uma bolsa para transportar tudo. De­morou-se no departamento masculino o suficiente para certificar-se de que as duas mulheres que formavam o par de vanguarda ainda estavam em seus calcanhares, mas relu­tantes em aproximar-se demais dele. Jim percebeu que haviam feito um sinal para que uns homens as substituís­sem, e estavam à espera deles. No banheiro dos homens, Jim agiu rapidamente: vestiu a capa de chuva branca so­bre o casaco, enfiou a sacola no bolso, pôs o chapéu de pele, largou os demais embrulhos e desceu desabaladamente, como um louco, pela escada de emergência. Ar­rombando essa escada, atirou-se por um beco, caminhou por outro que era de mão única, meteu a capa de chu­va branca na sacola, entrou em outra loja, que estava fechando, onde comprou uma capa de chuva preta em substituição à branca. Ocultando-se entre os fregueses que iam saindo da loja, entrou com dificuldade num bonde que estava apinhado e nele permaneceu até o penúltimo posto de parada. Em seguida, caminhou a pé durante uma hora e dirigiu-se para o ponto que combinara com Max, che­gando aí exatamente na hora certa.

Jim então descreveu seu diálogo com Max e disse que quase tinham chegado às vias de fato.

— Nunca lhe passou pela cabeça desistir do traba­lho? — indagou Smiley.

— Não — declarou Jim num tom brusco, alteando a voz ameaçadoramente.

— Embora desde o começo você tivesse achado aque­la idéia tola? — indagou Smiley. No tom de Smi­ley havia apenas deferência, e nenhum propósito de obter qualquer vantagem, de marcar pontos, mas somente o desejo de saber a verdade, toda a verdade, sob aquele céu noturno. — Você simplesmente continuou em frente. Viu o que se passava às suas costas, julgava a missão absurda, mas, apesar disso, penetrou cada vez mais na selva.

— Isso mesmo.

— Talvez você tivesse mudado de idéia a respeito de sua missão? Será que você foi impelido pela curiosidade, afinal? Terá sido isso? Você queria vivamente saber, por exemplo, quem seria o toupeira? Eu estou apenas espe­culando, Jim.

— Que diferença isso faz? Por que cargas d'água meus motivos hão de interessar numa maldita encrenca co­mo aquela?

A lua crescente estava inteiramente livre de nuvens e parecia muito próxima. Jim ficou sentado no banco, que assentava sobre cascalho solto. Enquanto falava, às vezes apanhava uma pedrinha e a atirava para trás. Smiley permaneceu sentado ao lado dele, olhando só para Jim. A certa altura, para fazer-lhe companhia, tomou um trago de vodca e pensou em Tarr e Irina, bebendo no alto de sua colina, em Hong Kong, e concluiu: as pessoas conversam melhor quando ficam contemplando a paisagem.

— As palavras do código foram trocadas sem qual­quer dificuldade através da janela do Fiat, que estava pa­rado — prosseguiu Jim. — O motorista do carro era um desses magiares tchecos, empertigados, feitos só de mús­culos, e usava um bigode eduardiano e estava com a boca cheia de alho.

Jim não gostou dele, mas não tinha esperado apreciá-lo. As duas portas traseiras estavam trancadas e eles dis­cutiram a respeito do lugar que Jim deveria ocupar. O magiar declarou que não seria seguro se Jim viajasse no banco traseiro. Além disso, não seria democrático. Jim mandou-o para o inferno. Perguntou se Jim estava armado e este lhe respondeu negativamente, embora isso não fosse verdade. Mas se o magiar não acreditou nele, não ousou dizê-lo. Indagou se Jim trouxera instruções para o general. Jim declarou que não recebera instruções de espécie al­guma. Tinha vindo para ouvi-lo.

Jim sentiu-se um pouco nervoso, assim disse. Ele e o magiar foram seguindo no carro, e este declarou o que tinha a dizer. Quando chegassem ao alojamento, as luzes estariam apagadas e nele não haveria o menor sinal de vida. O general estaria em seu interior. Se surgisse o menor indício da presença de pessoas, uma bicicleta, um carro, uma luz, um cão, qualquer indicação de que havia gente na cabana, o magiar nela entraria primeiro e Jim ficaria à sua espera, no automóvel. Caso contrário, Jim iria sozinho e o magiar ficaria aguardando. Tudo estava bem claro?

Por que eles não entrariam no alojamento juntos? indagou Jim. Porque o general não queria, respondeu o magiar.

Eles rodaram durante uma meia hora, conforme indi­cou o relógio de Jim, dirigindo-se para o norte, fazendo uma média de trinta quilômetros por hora. A estrada era cheia de curvas, íngreme e margeada de árvores. Não havia luz e Jim enxergava muito pouca coisa em derredor, a não ser, de vez em quando, outras florestas e cumes de montes recortados de encontro ao céu. A neve viera do norte, observou ele. Isso lhe seria útil. A estrada estava livre mas cheia de rodeiras, feitas por caminhões pesados. Eles prosseguiram com as luzes do carro apagadas. O ma­giar começara a contar anedotas pornográficas e Jim ima­ginou que aquele era o jeito que o homem tinha ao ficar nervoso. O cheiro de alho era horrível. O magiar parecia estar mascando alho o tempo todo. Sem qualquer aviso, ele desligou o motor. Eles estavam descendo uma encosta, po­rém mais devagar. O carro ainda não havia parado com­pletamente quando o magiar o freou e Jim deu com a ca­beça numa vidraça e apanhou o revólver. Encontravam-se à beira de um caminho que se abria ao lado da estrada. Uns trinta metros adiante erguia-se uma cabana de madei­ra, de pouca altura. Nela não havia o menor sinal de vida.

Jim disse ao magiar o que pretendia que ele fizesse. Gostaria que ele pusesse o chapéu de pele dele, Jim, e também seu casaco, e desse uma caminhada. Deveria ir devagar, mantendo as mãos unidas atrás das costas, e andar pelo meio da pequena estrada. Se não fizesse isso, Jim atiraria nele. Quando chegasse à cabana, deveria entrar e explicar ao general que Jim estava tomando pre­cauções elementares. Em seguida, voltaria lentamente e informaria Jim de que tudo estava bem e de que o general estava pronto para recebê-lo. Ou não recebê-lo, conforme o caso.

O magiar pareceu não ficar muito satisfeito com isso, mas não tinha muito que escolher. Antes de ele sair do carro, Jim ordenou que o manobrasse, colocando-o de frente para a pequena estrada. Se houvesse qualquer trai­ção, Jim acrescentou, ele acenderia os faróis e atiraria no magiar ao longo do feixe de luz, não uma única vez, mas várias, e jamais nas suas pernas. O magiar começou a ca­minhar. Quando tinha quase chegado à cabana, toda a área foi profusamente iluminada: a cabana, a estrada e um grande espaço em volta. Em seguida, várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. Jim não conseguiu ver tudo porque estava ocupado em manobrar o carro. Enxergou quatro homens que pulavam do alto de umas árvores e, tanto quanto pôde perceber, um deles golpeou o magiar. A fuzilaria começou mas nenhum desses quatro homens se importou com isso: mantiveram-se recuados enquanto um outro tirava fotografias. Os tiros davam a impressão de ser dirigidos para o céu límpido, que ficava por detrás dos holofotes. Foi uma cena muito dramática. Explodi­ram uns foguetes de sinalização, acenderam-se sinais lumi­nosos, até mesmo dispositivos que traçam a trajetória de projéteis. E no momento em que Jim arrancou com o Fiat, teve a impressão de sair de uma demonstração militar no seu auge. Estava quase a salvo — realmente achou que de fato estava a salvo —- quando, saindo da mata à sua direita, alguém começou a disparar uma metralhadora qua­se à queima-roupa. A primeira rajada arrancou uma roda traseira do carro, que virou. Ele viu que o volante foi arre­messado sobre o capo na ocasião em que o carro se desviou em direção a uma vala que havia à esquerda. Essa vala poderia ter uns três metros de profundidade, mas a neve permitiu que Jim caísse suavemente. O carro não pegou fogo e, por esse motivo, Jim ficou atrás dele à espera, de frente para a estrada, contando poder alvejar o homem da metralhadora. A rajada seguinte proveio da retaguarda e o atirou de encontro ao carro. A mata deveria estar fervi­lhando de soldados. Jim sabia que fora atingido duas vezes. Ambos os tiros tinham pegado em seu ombro direito e pareceu-lhe surpreendente, enquanto permanecia deitado a observar a demonstração militar, que não lhe tivessem arrancado o braço. Ouviu o soar de uma sirena, talvez por duas vezes. Uma ambulância veio se aproximando, na es­trada, ao passo que ainda perdurava uma fuzilaria sufi­ciente para assustar a caça durante anos. A ambulância lembrou-lhe aqueles antigos carros de bombeiros de Holly­wood, porque era muito alta e reta. Uma verdadeira bata­lha simulada estava se desenrolando. No momento, os homens da ambulância ficaram a observá-la sem a menor preocupação deste mundo. Jim estava quase perdendo os sentidos quando ouviu que chegava um segundo carro, percebeu vozes de homens e notou que estavam sendo tira­das mais fotografias, dessa vez da pessoa certa. Alguém dava ordens, mas Jim não poderia dizer quais eram elas, pois eram transmitidas em russo. Seu único pensamento, quando o atiraram numa padiola e as luzes foram apaga­das, era o de voltar para Londres. Imaginou estar no apar­tamento de St. James, com aqueles mapas coloridos e um maço de notas, sentado numa poltrona e explicando a Control como a velhice dos dois os levara a entrar na maior armadilha, como uns otários, a maior de toda a his­tória da espionagem. Seu único consolo era que o magiar havia sido golpeado. Mas Jim gostaria de ter-lhe quebrado o pescoço pessoalmente, coisa que teria conseguido fazer com muita facilidade e sem ficar com remorso.

 

Descrever sua própria dor era uma complacência que Jim dispensava. Para Smiley, seu estoicismo tinha algo de terrível, mais ainda porque Jim parecia não ter consciência disso. As lacunas de sua história, explicou ele, decorriam principalmente dos momentos em que perdera os sentidos. A ambulância o levou, tanto quanto pôde ve­rificar, ainda mais para o norte. Ele assim presumiu ao reparar nas árvores, quando os homens abriram a porta da ambulância para permitir a entrada do médico: a neve era muito espessa, quando ele a viu. O leito da estrada era bom e Jim achou que estavam na rodovia que le­vava a Hradec. O médico aplicou-lhe injeções e Jim re­cobrou os sentidos no hospital de uma prisão de janelas altas e revestidas de barras de ferro. Acreditava que o primeiro interrogatório ocorrera nesse lugar, cerca de se­tenta e duas horas depois de ter sido "remendado", mas o tempo já constituía um problema para ele, pois, natural­mente, lhe haviam tirado o relógio.

Ele foi transferido muitas vezes de um lugar para outro. Levaram-no para salas diferentes, conforme o que iam fazer com ele, ou para outras prisões, dependen­do de quem fosse interrogá-lo. Por vezes o deslocaram apenas para mantê-lo acordado, fazendo-o caminhar du­rante a noite pelos corredores que havia entre as celas. Foi também levado em caminhões e, uma vez, conduzido num avião tcheco de transporte, amarrado durante o vôo, tendo-lhe sido enfiado um capuz. E Jim perdera os sentidos pouco depois de o avião ter levantado vôo. Foi muito longo o interrogatório feito em seguida a essa viagem. Salvo isso, ele pouco se apercebera da progressão de um interroga­tório para outro, e não conseguiu pensar com clareza, antes pelo contrário. O que mais se fixara em sua memó­ria fora seu "plano de campanha", que havia elaborado en­quanto aguardava o início do primeiro interrogatório. Sabia que o silêncio seria impossível e que, por uma questão de preservar sua sanidade, ou assegurar sua sobrevivência, teria de haver um diálogo e, no final do mesmo, eles teriam de pensar que Jim havia dito o que sabia, tudo quanto sa­bia. Deitado no hospital, ele se preparara para colocar a mente por detrás de certas linhas de defesa e, se tivesse sorte, poderia ir recuando por etapas até dar a impressão de haver sofrido a mais completa derrota. Sua linha de frente, ele o reconhecia, que iria exigir-lhe maiores sacrifícios, era formada pela essência da Operação Tes­temunho. Todas as pessoas presumiam que Stevcek era um espião ou que fora traído. Mas qualquer que fosse o caso, uma coisa era certa: os tchecos sabiam mais acerca de Stevcek do que o próprio Jim. Sua primeira concessão seria, portanto, a história de Stevcek, uma vez que eles já a conheciam. Mas Jim faria com que se esforçassem por obtê-la de sua boca. No começo ele negaria tudo e se apegaria à sua falsa identidade. Depois de lutar por isso, admitiria ser um espião britânico e daria seu nome, Ellis, de sorte que, se eles o tornassem público, pelo menos o Circus ficaria sabendo que ele estava vivo e procurando resistir. Tinha quase certeza de que a complicada arma­dilha e as fotografias que haviam sido tiradas auguravam uma grande encenação. Depois, conforme seu entendimento com Control, Jim descreveria a operação como se tivesse sido feita por sua própria conta, armada sem o consenti­mento de seus superiores e calculada para obter o favor deles. E ocultaria, da maneira mais profunda que pudesse, a idéia de que houvesse um espião plantado no Circus.

— Não existia um toupeira — afirmou Jim para a negra silhueta dos Quantocks. — Não tinha havido encon­tros com Control, nem um apartamento com serviço de hotel, em St. James. E nada de Rei, soldado...

A segunda linha de defesa seria Max. Jim se propuse­ra, inicialmente, a negar que havia trazido um elemento de ligação. Em seguida, poderia dizer que trouxera um desses homens, mas não sabia o nome dele. Depois, pelo fato de que todos sempre insistem em nomes, ele lhes daria um: errado, da primeira vez, em seguida, o nome certo. Nessa altura, Max já deveria estar a salvo, oculto, ou ter sido apanhado.

Acudiu à imaginação de Jim uma sucessão de posições que haviam sido sustentadas com menos vigor: recentes operações dos caçadores de escalpos, mexericos que haviam corrido no Circus, qualquer coisa que pudesse levar seus inquisidores a pensar que ele estava derrotado e falando sem reservas, e que aquilo era tudo quanto sabia. Eles teriam, então, conquistado sua última trincheira. Jim deu tratos à memória para recordar-se de antigos casos de ca­çadores de escalpos e, se necessário, diria os nomes de um ou dois funcionários soviéticos ou de países satélites que houvessem recentemente virado a casaca ou sido destruídos; e de outros que, no passado, tivessem alguma vez vendido informações e, não havendo desertado, poderiam ser con­siderados prontos para serem destruídos ou dar outro bote. Atiraria a eles qualquer osso que lhe ocorresse e, se necessário, "delataria" todo o pessoal de Brixton. Tudo isso seria uma cortina de fumaça capaz de dissimular as informações mais vulneráveis que possuía: a identidade dos membros tchecos do seu plano e das redes Agravar e Platão.

— Landkron, Krieglova, Bilova e Pribyl — disse Jim.

Durante muito tempo Jim não tivera qualquer respon­sabilidade junto a essas redes. Alguns anos antes de assu­mir a direção, em Brixton, ajudara a estabelecê-las, e re­crutara alguns de seus primeiros membros. Desde então muita coisa lhes acontecera, sob o comando de Bland e Haydon, e Jim nada sabia a esse respeito. Mas tinha cer­teza de que ainda sabia o suficiente para que eles fossem destruídos. O que mais o inquietava era o receio de que Control, Bill ou Percy Alleline, ou quem quer que desse a palavra final, naquele tempo, tivesse demasiada pressa ou tardasse demais em evacuar aquelas redes até o mo­mento em que Jim, submetido a formas de coação que poderia apenas imaginar quais seriam, não tivesse outra alternativa exceto entregar-se por completo.

— O engraçado foi isso — declarou Jim, sem o mais leve tom de humor. — Eles não poderiam ter-se preo­cupado menos com as redes. Fizeram meia dúzia de per­guntas sobre a rede Agravar e perderam o interesse por ela. Sabiam muito bem que a Operação Testemunho não era criação do meu cérebro, e estavam plenamente informa­dos sobre o fato de Control haver comprado o passe de Stevcek em Viena. Começaram exatamente no ponto em que eu desejava terminar: a entrevista no apartamento em St. James. Não me fizeram perguntas sobre qualquer auxi­liar, não estavam interessados em quem me levara de carro para o encontro com o magiar. Tudo quanto queriam era falar sobre a teoria da maçã podre, de Control.

Uma única palavra, pensou novamente Smiley, pode­ria ser apenas uma palavra. E disse o seguinte:

Eles conheciam o endereço de St. James?

Sabiam até a marca do maldito xerez.

E os mapas? indagou Smiley mais que depres­sa. A caixa de música?

Não. E Jim acrescentou: A princípio, não.

A isso Steed Asprey costumava dar o nome de pensar pelo avesso. Eles sabiam das coisas porque Gerald os in­formara, refletiu Smiley. Gerald sabia o que as secretárias tinham conseguido obter do velho MacFadean. O Circus realizava sua própria autópsia: Karla tinha a vantagem de suas descobertas, feitas a tempo de poder utilizá-las contra Jim.

Então eu suponho que, naquela hora, você estava começando a achar que Control tinha razão: havia um toupeira declarou Smiley.

Jim e Smiley estavam apoiados numa cancela de ma­deira. O terreno se estendia diante deles num forte declive, uma longa sucessão de vales e campos. Mais além erguia-se outra vila, uma baía e uma delgada estria de mar, ba­nhada pelo luar.

Eles foram direto ao centro da questão. "Por que Control agiu sozinho? Que esperava alcançar?" "Sua rea­bilitação", disse eu. Eles riram. "Com informações enla­tadas sobre posições militares na área de Brno? Isso não daria nem para ele pagar uma refeição decente em seu próprio clube." "Talvez ele estivesse perdendo o domínio da situação", declarei. E se Control estava perdendo esse domínio, disseram eles, quem estava mandando? Alleline, isso era o que se dizia: Alleline e Control viviam em com­petição para proporcionar informações ao governo. "Mas em Brixton nós só ouvimos boatos", disse eu. "E o que Alleline está produzindo e Control não está?" "Não sei", respondi. "Mas você acabou de afirmar que Alleline e Control vivem em competição para proporcionar informa­ções." Eu declarei: "É o boato que corre. Eu não sei". E eles me mandaram de volta.

Jim disse que nessa altura tinha perdido comple­tamente a noção do tempo. Ficava metido na escuridão de um capuz ou à luz branca de uma cela. Não havia, para ele, dia ou noite, e para tornar a situação ainda mais fan­tasmagórica eles ficavam fazendo barulho a maior parte do tempo.

Portavam-se em relação a Jim de acordo com as nor­mas das linhas de produção: não o deixavam dormir, revezavam-se nos interrogatórios, empregavam muitas me­didas que o desorientavam, muitas torturas, até que os interrogatórios se tornaram para ele uma lenta progressão, cujas alternativas seriam ficar meio maluco, como se ex­primiu, ou ceder completamente. Ele naturalmente preferia ficar meio louco, mas isso era algo que uma pessoa não poderia decidir por si mesma, porque eles tinham meios de fazer com que Jim se recuperasse. Grande parte das tor­turas eram praticadas com o emprego da eletricidade.

E nós começamos outra vez. Novos métodos. "Stevcek era um general importante. Se lhe fizessem per­guntas acerca de um oficial inglês de alta patente, pode­riam esperar que ele estivesse devidamente informado sobre todos os aspectos de sua carreira. Você quer nos fazer crer que não se informou?", eles indagaram. "Eu lhes digo que obtive minhas informações de Control", declarei. E eles insistiram: "Você leu o dossiê de Stevcek, no Circus?" Eu disse que não. "Control o leu?", indagaram eles. "Eu não sei", foi minha resposta. "Que conclusões Control tirou da segunda nomeação de Stevcek em Moscou? Control lhe falou a respeito do papel de Stevcek no comitê de ligação do Pacto de Varsóvia?" "Não", foi minha resposta. Eles insistiram nessa pergunta e eu suponho que me aferrei à mi­nha resposta, porque depois de mais alguns "não" de minha parte eles ficaram meio desorientados. Parecia que esta­vam perdendo a paciência. Quando eu perdia os sentidos, eles me regavam com uma mangueira e recomeçavam a es­pancar-me. Faziam-me andar —- declarou Jim. E sua narra­tiva tornou-se estranhamente entrecortada de arrancos. — Celas, corredores, automóvel... no aeroporto, tratamento "especial" e mais pancadaria antes de eu embarcar no avião... durante o vôo, eu adormeci e fui castigado por isso. Recobrei os sentidos novamente numa cela, menor, com paredes sem pintura. Às vezes eu pensava estar na Rússia. Concluí pelas estrelas que tínhamos voado para leste. Às vezes eu acreditava estar em Sarratt, de volta aos interrogatórios do curso de resistência.

Durante uns dois dias eles o deixaram sozinho. Atur­dido. Jim continuou a ouvir tiros na floresta e tornou a ver a demonstração militar. Quando, finalmente, começou a grande sessão, a de que ele se recordava como verdadeira maratona, enfrentou a desvantagem de sentir-se já meio derrotado logo de início.

— Uma questão de saúde tanto quanto outra coisa qualquer — explicou Jim, que estava muito tenso.

— Nós podemos fazer uma pausa, se você quiser — declarou Smiley. Mas no ponto em que Jim se encontrava não poderia haver pausas, e o que ele queria era irrelevante.

— Foi longa a sessão — declarou Jim. — A certa altura, eu lhes falei a respeito das notas de Control, de seus mapas e das tintas e lápis de cor. Os homens atiraram-se em cima de mim como uns demônios e eu me lembro de que um grupo constituído só de homens, numa extremi­dade da sala, ficou a olhar para mim, como se fossem uma porção de médicos, a murmurar coisas entre si. Eu falei nos lápis de cor apenas para manter a conversação, para fazê-los parar e ouvir-me. Eles prestaram atenção ao que eu dizia mas continuaram as torturas. Depois que obtive­ram a informação sobre as cores, quiseram saber o que elas significavam. "O que quer dizer azul?" "Control não usava nenhum azul", eu lhes disse. "O que significa ver­melho? O que quer dizer vermelho? Dê um exemplo de vermelho, no mapa. O que significa vermelho? O que signi­fica vermelho? O que significa vermelho?" Depois disso to­dos se retiraram, exceto dois guardas e um tipo miúdo e de cabelos brancos, empertigado, que parecia ser o chefe deles.

Os guardas me levaram a uma mesa e esse sujeitinho sen­tou-se a meu lado como um anão maldito, com as mãos cruzadas. Apanhou dois lápis de cor que estavam diante dele, um vermelho e outro verde, e um gráfico da carreira de Stevcek.

Jim não ficou exatamente derrotado, apenas não tinha mais o que inventar. Não conseguia pensar em outras his­tórias. As verdades que ele guardara da maneira mais ciosa eram as únicas coisas que lhe vinham à mente.

— Então você contou a eles o caso da maçã podre _ sugeriu Smiley. — E lhes falou sobre Rei, soldado.

Jim disse que sim. Contou ao tal homem que Control acreditava que Stevcek poderia identificar o toupeira que agia no Circus. Narrou-lhe tudo sobre o código do Rei, soldado, e quem era cada um dos personagens, dando-lhe todos os nomes, um após outro.

— Qual foi a reação dele?

— Ficou pensativo durante algum tempo e me ofe­receu um cigarro. Eu detestei o maldito cigarro.

— Por quê?

— Tinha gosto de cigarro americano. Um desses Camel.

— Ele também fumou um?

— Cigarro desgraçado — disse Jim, fazendo um sinal afirmativo com a cabeça.

"Depois dessa ocasião, o tempo começou novamente a passar", continuou Jim. Ele foi levado a um campo, que presumia ficar nos arredores de uma cidade, e ficou moran­do num conjunto de cabanas rodeadas por uma dupla cerca de arame. Passado algum tempo conseguiu novamente an­dar, com a ajuda de um guarda. Um dia eles até fizeram uma caminhada pela floresta. O campo era muito grande. O conjunto de cabanas constituía apenas uma parte do mes­mo. À noite, Jim avistava o brilho das luzes de uma cidade, a leste. Os guardas usavam roupas de zuarte e não fala­vam, de sorte que ele não poderia dizer se estava na Tchecoslováquia ou na Rússia, mas tinha um forte palpite de que era neste último país. E quando um cirurgião veio exa­minar suas costas, valeu-se de um intérprete que sabia russo e inglês para exprimir o desprezo que sentia pelo trabalho de seu predecessor. O interrogatório prosseguiu esporadicamente, mas sem hostilidade. Puseram uma nova equipe para lidar com ele, mas tratava-se de gente frouxa, cansada, em comparação com a primeira equipe. Certa noite, foi levado a um aeroporto militar e transportado num avião de combate da RAF até Inverness. Daí seguiu num avião pequeno até Elstree, tendo ido numa camioneta até Sarratt. As duas viagens foram noturnas.

Jim estava rapidamente concluindo sua história. Na realidade, narrava suas experiências na Nursery quando Smiley indagou o seguinte:

E o chefe? O homenzinho de cabelos brancos. Você nunca mais o viu?

Uma vez admitiu Jim. Pouco antes de voltar para a Inglaterra.

Com que propósito?

Conversa fiada. E acrescentou num tom de voz muito mais alto: Uma porção de bobagens sobre pessoas do Circus, coisas triviais.

Que pessoas?

Jim respondeu de um modo evasivo. Tolices sobre quem estava no último andar, e quem trabalhava no tér­reo. Quem estava logo abaixo do chefe. "Como poderei sa­ber?", disse Jim a ele. "Os malditos porteiros ouvem falar nisso antes de nós, em Brixton."

Então, que pessoas entraram nessas perguntas to­las, precisamente? indagou Smiley.

Principalmente Roy Bland declarou Jim num tom soturno. Eles indagaram como Bland conciliava sua inclinação esquerdista com o trabalho do Circus. E qual a situação de Bland diante de Esterhase e de Alleline. O que achava Bland dos quadros pintados por Bill. Que quantidade de bebida Roy tomava, e o que seria dele se Bill retirasse o apoio que lhe dava.

Jim declarou haver dado respostas insatisfatórias a essas perguntas.

Mais alguém foi mencionado? indagou Smiley.

Esterhase respondeu Jim bruscamente, no mes­mo jeito tenso. O desgraçado do homem queria saber como alguém poderia confiar num húngaro.

A pergunta que Smiley fez em seguida pareceu, até para ele mesmo, haver feito baixar um silêncio absoluto sobre todo aquele escuro vale.

E que disse a meu respeito? Smiley insistiu. O que ele disse a meu respeito?

— Mostrou-me um isqueiro. Disse que era seu. Um presente de Ann. Com uns dizeres gravados: "Com todo o meu amor", e a assinatura dela.

Ele mencionou como o obteve? O que ele disse, Jim? Vamos! Eu não irei fraquejar por causa de uma piada infame de um espião russo a meu respeito.

A resposta de Jim pareceu ser dada numa voz de comando militar. Ele declarou o seguinte:

Depois da aventura de Bill Haydon com ela, Ann poderia querer dar outra redação ao que estava gravado.

Jim afastou-se em direção ao carro e disse, num brado cheio de fúria:

Eu berrei com ele. Gritei para aquele tipo de cara enrugada: "Você não pode julgar Bill por coisas como essa. Os artistas têm padrões totalmente diversos dos nossos. Vêem coisas que nós não vemos. Sentem coisas que estão acima de nós". O desgraçado sujeitinho limitou-se a rir, e comentou: "Eu não sabia que os quadros dele eram tão bons assim". Eu disse a ele, George, "Vá para o inferno, vá para o inferno. Se ao menos você tivesse um Bill Hay­don em sua maldita organização!" Eu disse a ele: "Meu Deus do céu! O que vocês estão administrando aqui? Um serviço de espionagem ou um Exército da Salvação?"

Você disse muito bem observou Smiley final­mente, como se estivesse fazendo um comentário sobre algum remoto debate. E você nunca tinha visto o ho­mem antes?

Quem?

O homenzinho de cabelos brancos. A fisionomia dele não era familiar a você, de muito tempo atrás, por exemplo?

Bem, você sabe como nós somos. Treinados para ver um grande número de rostos, fotografias de personali­dades do Centro de Moscou. Às vezes essas imagens ficam, até mesmo quando não conseguimos mais dar-lhes um nome. De qualquer maneira, aquele rosto eu não havia fixado. Fiquei pensando nisso.

— Ocorreu-me que você teve muito tempo para re­fletir. Você ficou de cama, curando-se, à espera de voltar para a Inglaterra. O que mais você teria para fazer, senão pensar? — Smiley ficou à espera. — Então a respeito de que você ficou pensando? Na missão? Em sua missão, eu suponho.

— De vez em quando — admitiu Jim.

— E quais as suas conclusões? Foram algo de útil? Algumas suspeitas? Você discerniu alguma coisa, poderá dar-me algumas indicações que eu possa levar comigo?

— Que diabo! — disse Jim bruscamente, com muita aspereza. — Você sabe que eu não sou nenhum feiticeiro. Sou um...

— Você é apenas um homem de campo, que deixa os outros pensarem. Apesar disso, quando você soube que tinha sido atirado a uma armadilha que não tinha mais tamanho, que fora traído, levando dois tiros pelas costas, e que não conseguiu fazer mais nada durante meses, a não ser ficar deitado ou sentado num catre, ou então andar por uma cela de prisão russa, eu presumo que até mesmo o mais dedicado homem de ação — a voz de Smiley não perdera nada de seu tom cordial — poderia ficar imaginan­do como havia caído numa esparrela daquele tipo. Conside­remos a Operação Testemunho durante um momento — sugeriu Smiley a Jim, que estava imóvel diante dele. — A Operação Testemunho acabou com a carreira de Control. Ele se desgraçou e não conseguiu perseguir seu toupeira, presumindo-se que esse toupeira existisse. O Circus passou a outras mãos e Control morreu, revelando nisso grande senso de oportunidade. A Operação Testemunho produziu tam­bém mais alguns resultados. Revelou aos russos, aliás por seu intermédio, o exato alcance das suspeitas de Control. O fato é que ele limitara o campo de suas suspeitas a cinco pessoas, mas nada mais além disso, aparentemente. Não estou sugerindo que você deveria ter ponderado e medido tudo isso em sua cela, enquanto lá estava. Afinal de contas, você não poderia ter a menor idéia, por detrás das grades, de que Control havia sido alijado, embora pudesse ter ocorrido a você que os russos organizaram aquela batalha simulada, na floresta, no propósito de provocar uma tem­pestade. Não foi isso?

— Você está esquecendo as redes — declarou Jim num tom lúgubre.

— Os tchecos já tinham descoberto essas redes muito antes de você entrar em cena. Eles apenas fizeram um estardalhaço com elas para acentuar o fracasso de Con­trol.

O tom expositivo, quase coloquial, com que Smiley exprimiu suas teorias não encontrou a menor ressonância em Jim. Tendo esperado, em vão, que ele se dispusesse a dizer alguma coisa, Smiley mudou de assunto.

— Bem, vamos passar à sua recepção em Sarratt, está certo? Para encerrar o assunto.

Num raro momento de inadvertência, Smiley serviu-se da garrafa de vodca e tomou um trago antes de passá-la a Jim.

A julgar pelo seu tom de voz, aquilo tudo já fora o bastante para Jim. Ele falou rapidamente e cheio de irri­tação, com aquela mesma concisão militar que era sua defesa contra incursões de ordem intelectual.

— Sarratt foi um limbo durante quatro dias — disse ele. — Comi para valer, bebi um bocado e dormi até mais não poder. Dei umas caminhadas pelo campo de críquete. Teria nadado, mas a piscina estava em conserto, como acontecera seis meses antes. Ineficiência maldita. Fiz exa­me médico, assisti a programas de televisão em minha cabana e joguei um pouco de xadrez com Cranko, que era o responsável por mim.

Durante todo esse tempo, Jim ficou esperando que Control aparecesse, o que não aconteceu. A primeira pes­soa do Circus que foi visitá-lo foi o funcionário encarregado do enquadramento do pessoal, o qual lhe falou a respeito de uma agência de colocação de professores, muito dis­posta a ajudar. Em seguida foi procurado por um sujeito encarregado dos problemas de pagamentos que veio discutir com ele a pensão a que tinha direito e, depois dessa pessoa, voltou a aparecer o médico a fim de avaliar o caso dele para que recebesse uma gratificação. Jim ficou aguardando os encarregados de interrogá-lo, mas eles nunca aparece­ram, o que foi um alívio para ele, pois não sabia o que lhes teria dito enquanto não obtivesse o sinal verde de Control. Além disso, já estava farto de perguntas. Presumiu que Control estava mantendo esses homens afastados. Pareceu absurdo a Jim não dizer a quem viesse interrogá-lo o que já havia informado aos russos e aos tchecos. Mas que po­deria fazer enquanto não tivesse a palavra de Control? Quando este persistiu em não enviar-lhe instruções, ele chegou a pensar em apresentar-se a Lacon e contar-lhe sua história. Depois concluiu que Control estaria esperando que ele saísse da Nursery para entrar em contato com ele. Jim tivera uma recaída que durara alguns dias e, quando se restabeleceu, apareceu-lhe Toby Esterhase, de terno no­vo, aparentemente para apertar-lhe a mão e desejar-lhe boa sorte. Mas de fato viera dizer-lhe como andavam as coisas.

— Sujeito estranho o que eles mandaram — disse Jim. — Mas parecia ter subido de posição. Então eu me lembrei do que Control havia dito sobre usar certas pes­soas ...

Esterhase declarou a Jim que o Circus tinha quase levado a breca em conseqüência da Operação Testemunho, e que Jim era, no momento, o réprobo número 1 do ser­viço. Control estava afastado e encontrava-se em anda­mento uma reorganização do Circus, no propósito de apa­ziguar Whitehall.

— Ele então me disse que eu não me preocupasse — acrescentou Jim.

— Em que sentido? — indagou Smiley.

— A respeito de meu enquadramento. Declarou que poucas pessoas sabiam a verdadeira história, e que eu não precisava me preocupar porque a coisa iria ser devida­mente cuidada. Todos os fatos eram conhecidos. Em segui­da ele me deu mil libras em dinheiro, a título de adicional à minha pensão.

— Quem as mandou? — perguntou Smiley.

— Ele não me disse.

— Toby mencionou a teoria de Control a respeito de Stevcek? A de que havia um espião do Centro de Mos­cou no Circus?

— Os fatos eram conhecidos — repetiu Jim, fuzi­lando Smiley com o olhar. — Ele determinou que eu não me aproximasse de ninguém, nem procurasse espalhar mi­nha história porque a coisa estava sendo tratada em alto ní­vel e o que quer que eu fizesse poderia deitar tudo a perder. O Circus estava novamente em marcha. Eu poderia esque­cer a coisa de Rei, soldado, e todo aquele maldito plano: toupeiras, tudo. "Dê o fora", disse ele. "Você é um homem de sorte, Jim", Toby ficou repetindo. "Você recebeu ordens para levar uma boa vida, não fazer nada." Ele disse que eu poderia esquecer tudo. Está bem? Esquecer tudo. E me portar como se aquilo não tivesse acontecido. — E Jim continuou, aos brados: — Isso é o que eu tenho feito: cumprir ordens e esquecer.

A paisagem noturna pareceu a Smiley subitamente inocente: uma grande tela na qual jamais fora pintada qualquer imagem. Um ao lado do outro, os dois estavam contemplando o vale, olhando por sobre aquelas luzes para um pico rochoso que se recortava no horizonte. Uma torre isolada erguia-se no alto dele e, durante um momento, ela assinalou para Smiley o fim da jornada.

— Sim — declarou Smiley. — Eu também esqueci um pouco as coisas. Então Toby realmente mencionou a você a coisa de Rei, soldado. Mas como ele ficou sabendo disso, a menos que... E não trouxe nenhuma palavra de Bill? — continuou Smiley.

Bill estava fora, no exterior — disse Jim lacóni­camente.

— Quem lhe contou isso?

— Toby.

— Então você nunca se avistou com Bill! Desde a Operação Testemunho, seu amigo mais antigo, mais íntimo, desapareceu.

— Você ouviu o que Toby me disse. Eu estava fora do jogo. De quarentena.

Bill nunca foi muito de respeitar normas, não é isso mesmo? — declarou Smiley num tom de quem estava evocando suas próprias reminiscências.

— E você nunca foi capaz de julgá-lo de maneira certa — esbravejou Jim.

— Eu sinto não ter estado no Circus quando você me procurou antes de seguir para a Tchecoslováquia — comentou Smiley depois de uma breve pausa. — Control me despachara para a Alemanha, quis me afastar do cen­tro dos acontecimentos. E, quando eu voltei... O que você queria exatamente?

— Nada. Eu pensei que a Tchecoslováquia poderia ser um pouco... Eu pensei que eu deveria me despedir de você, dizer adeus.

— Antes de uma missão? — exclamou Smiley, num tom de certa surpresa. — Antes de uma missão tão espe­cial? — Jim não fez a menor demonstração de ter ouvido isso. — Você se despediu de mais alguém? — prosseguiu Smiley. — Eu suponho que todos nós estávamos fora. Toby, Roy... Bill. Você disse adeus a ele?

— A nenhum deles.

Bill estava de licença, não foi isso? Mas eu creio que andava por perto, apesar de tudo.

— A nenhum deles — insistiu Jim. E um espasmo de dor fez com que erguesse o ombro e fizesse um movi­mento de rotação da cabeça. — Todos estavam fora.

— Isso foi muito contra seu feitio, Jim — declarou Smiley no mesmo tom conciliador. — Andar dando aper­tos de mão às pessoas antes de seguir para missões de importância vital. Você deve ter ficado romântico com a velhice. Não foi... — Smiley hesitou. — Não foi porque você queria ouvir os conselhos de alguém? Afinal de con­tas, você achava que a missão era tola. Não era isso que você pensava? E que Control estava perdendo o domínio das situações. Talvez você tenha sentido que deveria levar seu problema a uma terceira pessoa. Todo esse problema tinha um aspecto meio louco, eu admito.

"Informe-se sobre os fatos", costumava dizer a Steed Asprey, "depois procure experimentar as histórias como se fossem roupas."

Eles voltaram para o carro, Jim fechando-se num fu­rioso mutismo.

 

De regresso ao motel, Smiley tirou vinte fotografias do bolso do capote. Eram do formato de cartões-postais, e ele as arrumou em duas fileiras sobre a mesa de cerâ­mica. Algumas delas eram instantâneos, outras eram re­tratos. Todas de homens, e nenhum deles tinha aparência de ser inglês. Jim apanhou duas fotografias, fazendo uma careta, e passou-as a Smiley. Murmurou ter certeza quanto à primeira, mas estar menos seguro em relação à segunda.

A primeira foto era do tal chefe, o anão de cabelos brancos. A segunda era de um dos porcos que ficavam olhando, pro­tegidos pela sombra, enquanto os facínoras arrebentavam Jim. Smiley tornou a pôr as fotografias no bolso. No mo­mento em que eles ergueram seus copos e tomaram o úl­timo trago, antes de ir deitar-se, um observador menos torturado do que Jim poderia ter notado que ele estava sendo tratado com cerimônia, e não com qualquer senti­mento de triunfo, como se aquele drinque estivesse selando alguma coisa.

— Então quando você realmente se avistou com Bill pela última vez, para conversar? — indagou Smiley, como uma pessoa que pedisse notícias de um velho amigo. Ele evidentemente perturbara Jim com outras idéias, porque este último levou alguns momentos até levantar a cabeça e entender a pergunta.

— Foi por lá — disse ele displicentemente. — Dei de cara com ele nos corredores, creio eu.

— Para conversar com ele? Deixe isso para lá. — Jim voltara a mergulhar em outros pensamentos.

Jim não iria ser levado no carro até a escola. Smiley teria de deixá-lo perto de Thursgood, no fim da estrada asfaltada que passava pelo cemitério e ia até a igreja. Jim tinha deixado uns cadernos de exercícios na capela, segun­do afirmou. Naquele momento, Smiley sentiu-se inclinado a não acreditar nele, mas não compreendeu por quê. Talvez tivesse chegado à conclusão de que após trinta anos de profissão, Jim ainda era um mau mentiroso. A última ima­gem que Smiley guardou dele foi a de uma sombra meio torta, caminhando em direção ao pórtico normando, com os saltos dos sapatos estalando como tiros de fuzil por entre os túmulos.

Smiley seguiu de carro até Taunton e, do Castle Hotel, deu uma série de telefonemas. Embora estivesse exausto, dormiu um sono inquieto, povoado de visões de Karla sentado à mesa de Jim e tendo dois lápis de cor na mão, e o adido cultural Polyakov, ou melhor, Viktorov, cheio de preocupações por causa de seu toupeira, Gerald, aguar­dando impacientemente que Jim se entregasse, na cela onde se realizava o interrogatório. Finalmente, sonhou com To­by Esterhase penetrando em Sarratt, em lugar de Haydon, que estava ausente, para aconselhar jovialmente a Jim que se esquecesse de tudo a respeito da história de Rei, solda­do, e também de seu criador, Control, que já estava morto.

 

Naquela mesma noite, Peter Guillam seguiu de carro para oeste, atravessando a Inglaterra com destino a Li­verpool, tendo Ricki Tarr como seu único passageiro. Foi uma viagem monótona, realizada em condições miseráveis. Durante a maior parte do tempo, Tarr vangloriou-se a res­peito da recompensa que iria exigir, e da promoção que teria, depois de ter executado sua missão. Em seguida, falou sobre suas mulheres: Danny, a mãe dela e Irina. Parecia estar pensando num ménage à quatre, no qual as duas jun­tas cuidariam de Danny e dele.

— Irina tem muito de maternal. Isso foi o que a frustrou, naturalmente. — Boris, disse Tarr, poderia se perder, e ele, Ricki, iria dizer a Karla que o conservasse. Quando se aproximou seu ponto de destino, o humor de Tarr mudou novamente, e ele permaneceu calado. A madrugada era fria e havia uma densa neblina. Chegando aos subúrbios de Liverpool, eles tiveram de reduzir a mar­cha do carro e foram se arrastando, ao passo que os ci­clistas os ultrapassavam. Um cheiro de fuligem e de aço impregnava o automóvel.

— Não se demore em Dublin — disse Guillam subi­tamente. — Eles esperam que você se utilize de rotas fáceis. Por isso conserve a cabeça fria. Tome o primeiro avião que sair.

— Nós já discutimos isso.

— Bem, eu vou repetir tudo outra vez — replicou Guillam. — Qual é o nome de guerra de Mackelvore?

— Pelo amor de Deus — sussurrou Tarr. E disse o nome.

Ainda estava escuro quando a barca irlandesa partiu. Havia soldados e policiais por toda parte: desta guerra, da guerra passada e da anterior. Um vento áspero encapelava o mar e a travessia ia ser agitada. Um senti­mento de companheirismo em breve uniu a pequena mul­tidão que permaneceu no porto, enquanto as luzes do navio balançavam-se na escuridão. Uma mulher começou a cho­rar, e um bêbado celebrava sua libertação.

Guillam fez a viagem de volta lentamente, procurando entender a si próprio. O novo Guillam que estremecia diante de ruídos inesperados, que tinha pesadelos, e não só era incapaz de conservar sua namorada como também inventava razões desvairadas para desconfiar dela. Ele a tinha chamado às falas por causa de Sand, dos horários irregulares que ela tinha e de seus segredos em geral. De­pois de ouvi-la, com aqueles graves olhos castanhos fixos nele, ela declarou que ele era um tolo, e saiu. "Eu sou o que você acha que eu sou", ela disse, e foi até o banheiro buscar suas coisas. Guillam telefonou para Toby Esterhase, de seu apartamento vazio, convidando-o para uma conversa cordial, mais tarde, naquele mesmo dia.

 

Smiley estava no Rolls-Royce do ministro, tendo Lacon a seu lado. Na família de Ann aquele carro tinha o apelido de urinol preto, sendo detestado por causa de seu brilho. Tinham mandado o chofer fazer sua refeição da ma­nhã. O ministro estava no banco dianteiro e os três estavam olhando para a frente, por sobre o comprido capo do carro, avistando, do outro lado do rio, as torres da Usina de Força de Battersea, cobertas de neblina. O cabelo do ministro era cheio na nuca, e se enrolava em pequenos anéis em torno das orelhas.

Se você estiver certo declarou o ministro após um silêncio fúnebre —, e não estou dizendo que não esteja, se você estiver certo, quanta louça ele irá quebrar até o fim do dia? Smiley não entendeu bem. Estou me referindo ao escândalo. Gerald chega a Moscou. Bem. O que irá então acontecer? Irá subir numa caixa de sabão e rir a mais não poder de todas as pessoas que fez de idiotas por aqui? Eu quero dizer, meu Deus, que nós todos esta­mos juntos nisso, não estamos? Eu não vejo por que mo­tivo devemos deixá-lo ir para que ele possa fazer o telhado desabar sobre nossas cabeças. O ministro tentou uma abordagem diferente. Eu quero dizer, apenas porque os russos conhecem nossos segredos isso não significa que todas as outras pessoas tenham de ficar conhecendo tais segredos. Nós temos muitas coisas importantes a cuidar, além deles, não temos? E toda a negrada vai ler os san­grentos detalhes nos jornais dentro de uma semana?

Ou os eleitores dele, pensou Smiley.

Eu acho que há uma coisa que os russos aceitam declarou Lacon. Afinal de contas, se você faz seu inimigo parecer um tolo, perde a justificativa de lidar com ele. Até agora eles nunca se aproveitaram de suas oportu­nidades, não é isso? acrescentou ele.

Bem, certifique-se de que eles estão seguindo a orientação do Partido. Obtenha isso por escrito. Não, não faça isso. Mas diga-lhes que o que é ruim para nós é ruim para eles. Nós não iremos informar a ordem dos nossos batedores de críquete ao Centro de Moscou para que eles possam jogar bola também, nem que seja uma vez.

Recusando-se a tomar o elevador, Smiley declarou que caminhar lhe faria bem.

 

Era dia de Thursgood trabalhar, e ele muito se ressen­tia com isso. Os diretores de escolas, em sua opinião, de­veriam estar isentos de tarefas mesquinhas e conservar a mente lúcida para dedicar-se às diretrizes e à liderança. Sua toga de Cambridge a agitar-se não lhe trouxe qualquer consolo. E enquanto permanecia de pé, no ginásio, obser­vando os meninos que se postavam em filas para a inspe­ção matinal, seu olhar neles se fixou malévolamente, se não com inequívoca hostilidade. Foi Marjoribanks, no entanto, quem lhe desferiu o golpe de misericórdia.

Ele disse que era por causa da mãe dele ex­plicou Marjoribanks, num murmúrio quase inaudível junto ao ouvido esquerdo de Thursgood. Recebeu um tele­grama e decidiu sair imediatamente. Nem mesmo ficou para tomar uma xícara de chá. Eu prometi transmitir-lhe o recado.

Isso é monstruoso, positivamente monstruoso declarou Thursgood.

Eu ficarei com as aulas de francês dele, se você quiser. Posso substituí-lo na quinta e na sexta séries.

Estou indignado declarou Thursgood. Nem consigo pensar. Estou indignado.

E Irving diz que cuidará da partida final de rugby.

Relatórios a fazer, exames, partidas finais de rugby a disputar. O que terá a mulher? Talvez uma gripe, eu suponho. Uma gripe da estação. Todos nós apanhamos gripe, e também nossas mães. Onde ela mora?

Pelo que ele disse a Sue, entendi que a mulher estava morrendo.

— Bem, é uma desculpa que ele não poderá alegar novamente — comentou Thursgood, sem mostrar-se abso­lutamente mais brando. E num brado áspero, impôs silêncio e fez a chamada dos alunos.

Roach?

— Está doente.

Era o que bastava para transbordar a taça da amar­gura. O menino mais rico da escola estava com um esgo­tamento nervoso por causa de seus desgraçados pais. E o velho dele ameaçava retirá-lo da escola.

 

Eram quatro horas da tarde daquele mesmo dia. "Eu tenho visto muitos refúgios", pensou Guillam, olhando em derredor do sombrio apartamento. Seria capaz de escrever sobre o assunto como um viajante comercial poderia es­crever acerca de hotéis: do saguão de espelhos, de cinco es­trelas, em Belgrávia, com suas colunas de Wedgwood e folhas de carvalho douradas, a esse duas-peças dos caça­dores de escalpos, nos Lexham Gardens, cheirando a poei­ra e a esgoto, com aquele extintor de incêndios de um metro de altura, num vestíbulo escuro como breu. Sobre a lareira, uns cavaleiros estavam bebendo em canecões de estanho. No canto reservado às mesas, havia umas con­chas marinhas que serviam de cinzeiros; e na cozinha cinzenta liam-se instruções anônimas: "Não deixe de des­ligar os dois bicos de gás".

Guillam estava atravessando o saguão quando soou a campainha da porta da rua, exatamente na hora. Retirou o interfone do gancho e ouviu a voz distorcida de Toby a gemer do outro lado. Guillam apertou o botão e escutou o ruído do ferrolho elétrico a ecoar pela escada. Abriu a por­ta da frente mas deixou-a presa na corrente até certificar-se de que Toby estava sozinho.

— Então, como vamos? – indagou Guillam num tom jovial, fazendo-o entrar.

— Muito bem, Peter — disse Toby, tirando o casaco e as luvas.

Havia chá numa bandeja. Guillam o havia preparado: duas xícaras. Existem certas normas em matéria de provi­sões, em refúgios: a pessoa finge que mora ali, ou que é eficiente em qualquer lugar. Ou, simplesmente, que não se esquece de nada. No ofício de espião, a naturalidade é uma arte, concluíra Guillam. Isso era algo que Camila não seria capaz de apreciar.

— O tempo anda de fato bem estranho — declarou Esterhase, como se realmente tivesse analisado as condi­ções meteorológicas. Essas conversas sem importância, nas casas de segurança, nunca eram muito melhores do que isso. — A gente dá meia dúzia de passos e sente-se completa­mente exausto. Então estamos à espera de um polonês? — indagou ele, sentando-se. — Um polonês ligado ao comér­cio de peles e que você acha que poderá servir de correio para nós?

— Ele deve estar aqui a qualquer momento.

— Nós o conhecemos? Eu mandei meu pessoal pro­curar o nome dele, mas não o encontraram.

"Meu pessoal", pensou Guillam, "preciso não me es­quecer de usar essa expressão."

— Os poloneses livres o abordaram há alguns meses, e o homem deu uma corrida de mais de um quilômetro — disse Guillam. — Posteriormente Karl Stack o localizou perto dos armazéns do cais e achou que ele poderia ser útil aos caçadores de escalpos. — Ele deu de ombros. — Gostei dele. Mas que interessa? Nós nem conseguimos manter nosso pessoal ocupado.

Peter, você é generoso — declarou Esterhase num tom reverente. E Guillam experimentou o ridículo senti­mento de que acabara de dar-lhe uma gorjeta. Ficou alivia­do quando a campainha da porta da frente soou e Fawn tomou o lugar dele à entrada da porta.

— Eu sinto muito, Toby — disse Smiley, meio ofe­gante por haver subido as escadas. — Onde eu penduro meu sobretudo, Peter?

Virando Toby contra a parede, Guillam levantou-lhe as mãos, ao que ele não opôs qualquer resistência. Em seguida, revistou-lhe os bolsos para ver se ele estava arma­do, e o fez bem devagar. Toby não tinha arma de espécie alguma.

— Ele veio sozinho? — indagou Guillam. — Ou haverá algum amiguinho dele à espera, na rua?

— Tudo me pareceu desimpedido — declarou Fawn.

Smiley estava junto à janela, olhando para a rua. E disse:

— Apague a luz por um minuto, sim?

— Espere no saguão — ordenou Guillam a Fawn, que se retirou, levando o casaco de Smiley. — Você viu alguma coisa? — Guillam perguntou a Smiley, indo até onde ele estava, à janela.

Aquela tarde londrina já ganhara um tom róseo e enevoado, e aquele matiz amarelo do cair da noite. A praça era residencial e vitoriana, tendo ao centro um jardim cercado de grades, já às escuras.

— Apenas uma sombra, eu suponho — disse Smiley, num grunhido, e voltou para perto de Esterhase. O relógio sobre a lareira deu quatro horas. Fawn deveria ter-lhe dado corda.

 

— Eu quero lhe propor uma tese, Toby. Uma idéia sobre o que está se passando. Você me permite?

Esterhase não moveu um só músculo. Suas mãos pe­quenas estavam apoiadas nos braços de madeira da cadeira onde estava sentado de maneira bastante confortável, mas um tanto em posição de sentido, por assim dizer, com os dedos dos pés e os calcanhares juntos, dentro dos sapatos lustrosos.

— Você não precisa falar. Não há o menor risco em ouvir, não é fato?

— Talvez.

— Vamos remontar há dois anos. Percy Alleline quer conquistar o cargo de Control, mas não tem prestígio no Circus. Control tudo fez para que isso fosse assim. Está doente e não é mais jovem, mas Percy não consegue tirá-lo do lugar. Lembra-se dessa época?

Esterhase fez um sinal de cabeça.

— Foi uma daquelas temporadas estúpidas — decla­rou Smiley num tom de voz comedido. — Não havia tra­balho suficiente a fazer lá fora, por isso nós começamos a tecer intrigas no serviço, espionando uns aos outros. E Per­cy estava sentado em sua sala, numa certa manhã, sem ter o que fazer. Tinha sido nomeado, no papel, diretor opera­cional. Na prática, não passava de um carimbo de borracha entre as seções regionais e Control, se chegava a ser isso. A porta de Percy abriu-se e alguém entrou na sala. Nós o chamaremos de Gerald. Trata-se apenas de um nome. "Percy", disse ele, "eu acabei de topar com uma impor­tante fonte russa. Poderá ser uma mina de ouro." Ou tal­vez nada tenha dito enquanto eles não saíram do prédio porque Gerald é um ótimo homem de campo, e não gosta de falar com paredes e telefones em derredor. Talvez te­nham dado um passeio pelo parque ou uma volta de carro. Possivelmente terão feito uma refeição em algum lugar e, nessa altura, Percy não poderia fazer grande coisa, ex­ceto ouvir. Percy tinha muito pouca experiência com a cena européia, lembre-se disso, principalmente com a Tchecoslováquia e os Balcãs. Os primeiros dentes dele romperam na América do Sul e, depois disso, trabalhou nas velhas possessões: Índia, Oriente Médio. Não sabia grande coisa sobre russos, tchecos ou o que você quiser, e estava inclinado a ver que vermelho era vermelho, e deixar as coisas assim. Estou sendo injusto?

Esterhase franziu os lábios e enrugou um pouco a testa, como se estivesse dizendo que nunca discutia as opiniões de um superior.

Ao passo que Gerald era um perito em tais assun­tos. Sua vida de trabalho passou-se tramando planos e se esquivando nos mercados do leste. Percy estava meio con­fuso, mas interessado. Gerald estava pisando em terreno familiar. Essa fonte russa, disse Gerald, poderia ser a mais rica que o Circus tivera durante anos. Gerald não queria falar demais, mas esperava trazer algumas amostras de informações, dentro de um ou dois dias. E quando assim fizesse, estimaria que Percy as examinasse somente para fazer uma idéia de sua qualidade. Mais tarde, eles poderiam entrar em detalhes sobre a fonte. "Mas por que eu?", inda­gou Percy. "De que se trata?" Então Gerald lhe disse: "Per­cy, alguns dos nossos, das seções regionais, estão preocupa­dos com o nível de nossas perdas operacionais. Parece ha­ver um azar em torno de tudo. Um excesso de falatório no Circus e fora dele. Gente demais sendo envolvida na dis­tribuição de informações. No campo, nossos agentes são encostados no paredão, nossas redes estão sendo destruí­das ou coisa pior, e cada novo trabalho acaba num acidente de rua. Nós queremos sua ajuda para consertar as coisas". Gerald não era um rebelde, e tomou todo o cuidado para não dar a impressão de que havia algum traidor no Circus que estivesse desbaratando todas as operações, por­que todos sabem que, quando começam a circular conver­sas desse tipo, a maquinaria se desgasta e acaba parando de funcionar. De qualquer modo, a última coisa que Ge­rald desejava era uma caça às bruxas. Mas de fato afirmou que o serviço estava fazendo água por todas as juntas e que o desleixo da cúpula estava conduzindo a insucessos nos escalões inferiores. Tudo isso foi um bálsamo para os ouvidos de Percy. Gerald fez uma relação dos escândalos recentes e teve o cuidado de insistir na aventura do próprio Alleline, no Oriente Médio, que dera tão maus resultados a ponto de quase custar-lhe a carreira. Em seguida, fez sua proposta, de acordo com minha tese, você compreende. É apenas uma tese.

Sem dúvida, George confirmou Toby, passando a língua nos lábios.

Outra tese seria a de que Alleline era seu próprio Gerald, você compreende. Mas acontece que eu não creio nisso. Não acredito que Percy fosse capaz de sair em campo e comprar para si mesmo um espião russo de pri­meira classe, nem que estivesse à altura de governar seu próprio barco de então em diante. Eu acho que ele faria uma confusão tremenda.

Sem dúvida disse Esterhase, com absoluta con­fiança em sua afirmação.

Então, segundo minha tese, foi isso que Gerald disse a Percy logo depois: "Nós, isto é, eu e as almas pare­cidas com a minha, associadas nesse projeto, gostaríamos que você agisse como nossa imagem paterna, Percy. Nós não somos políticos, somos homens de ação. Não enten­demos aquela selva de Whitehall. Mas você a entende. Você cuidaria das comissões e nós lidaríamos com Merlin. Se você agir como nosso intermediário e nos proteger desse apodrecimento que se instalou entre nós, o que significará, na realidade, limitar o conhecimento da operação ao míni­mo absoluto, nós proporcionaremos o produto". Eles con­versaram sobre meios e modos pelos quais isso poderia ser feito. Em seguida, Gerald deixou que Percy se ficasse apo­quentando durante algum tempo. Uma semana, um mês, não sei. O tempo bastante para que refletisse. Um belo dia, Gerald trouxe sua primeira amostra. Naturalmente, era muito boa. Muito boa, mesmo. Informações navais, que não poderiam convir melhor a Percy junto ao Almirantado, que era seu clube de fãs. Desse modo Percy ofereceu aos amigos da Marinha uma espécie de bola rasteira de críquete, a título de pré-estréia, e eles ficaram com água na boca. "De onde proveio isso? Haverá mais informações?" Há uma grande quantidade de informações. Quanto à identidade da fonte, bem, isso é o grande mistério dessa etapa, mas deve ser assim mesmo. Você me perdoe se eu estiver um pouco longe do alvo sob certos aspectos, mas eu só dispo­nho do arquivo para me orientar.

A menção do arquivo, o primeiro indício de que Smiley poderia estar agindo em caráter oficial, causou em Esterhase uma reação perceptível. Aquele seu gesto habi­tual de passar a língua nos lábios foi acompanhado de um movimento de cabeça, para a frente, e de uma expressão de astuciosa familiaridade, como se Toby, por meio desses sinais, estivesse procurando indicar que também ele havia lido o arquivo, qualquer que fosse esse arquivo, e que compartilhava inteiramente as conclusões de Smiley. Smiley interrompera suas palavras para tomar um pouco de chá.

— Mais chá, Toby? — indagou Smiley com a xícara na mão.

— Eu vou buscar — declarou Guillam num tom mais firme do que hospitaleiro. — Chá, Fawn — disse através da porta. Esta foi imediatamente aberta e Fawn apareceu com uma xícara na mão.

Smiley voltara à janela. Abrira a cortina uns dois centímetros, e estava olhando atentamente para a praça.

— Toby. Você trouxe uma "babá"??

— Não.

— Nem uma?

George, por que eu deveria trazer uma "babá" se iria apenas ter um encontro com Peter e um pobre polonês?

Smiley voltou à sua cadeira e recomeçou a falar.

— Merlin, como fonte. Onde estava eu? Ah, sim. De maneira bastante conveniente, Merlin não era apenas uma única fonte, conforme Gerald pouco a pouco explicou a Percy e aos dois outros homens que ele havia então tra­zido para dentro do círculo mágico. Merlin era um agente soviético, muito bem. Mas, no que se parecia muito com Alleline, era também o porta-voz de um grupo dissidente. Nós gostamos muito de nos ver nas situações de outras pessoas, e eu tenho certeza de que Percy se sentiu identi­ficado com Merlin desde o começo. Esse grupo, essa dissi­dência de que Merlin era o líder, constituía-se, digamos, de meia dúzia de funcionários soviéticos que tinham a mesma maneira de pensar, todos eles bem situados. Cada qual em seu setor. Com o passar do tempo, eu suspeito de que Gerald deu o nome de seus auxiliares e Percy adquiriu uma noção bastante íntima dessas subfontes, mas isso eu não sei. A tarefa de Merlin consistia em confrontar as informações dessas subfontes e fazê-las chegar ao Ocidente. E no decurso dos meses que se sucederam, ele demonstrou notável versatilidade ao proceder exatamente desse modo. Empregou toda espécie de métodos, e o Circus mostrou-se extremamente solícito a fornecer-lhe todo o equipamento. Correspondência secreta, informações impressas sobre si­nais de pontuação de cartas de aspecto inocente, caixas de cartas clandestinas nas capitais do Ocidente, que eram enchidas por, sabe Deus, bravos russos, e zelosamente esva­ziadas pelos valorosos coletores de informações de Toby Esterhase. Até mesmo reuniões ao vivo, organizadas e ob­servadas pelas "babás" de Toby. — Nessa altura Smiley fez uma pausa muito breve e tornou a olhar em direção à janela. — Duas idas a Moscou, que deveriam ser seguidas por trabalho de tampo executado pela agência local, em­bora jamais lhe fosse permitido conhecer seus benfeitores. Mas nada de rádio clandestino; Merlin não gosta disso. Certa vez houve uma proposta, chegou até o Tesouro — no sentido de estabelecer-se uma emissora de rádio de longo alcance, na Finlândia, apenas para proporcionar aju­da a ele, mas tudo foi por água abaixo quando Merlin declarou: "Não". Ele deve ter tomado lições com Karla. Você sabe que Karla detesta o rádio. A grande coisa é a seguinte: Merlin possui mobilidade; esse é seu maior talento. Talvez pertença ao Ministério do Comércio, em Moscou, e possa utilizar-se de seus caixeiros-viajantes. Como quer que seja, dispõe de recursos e possui voz ativa fora da Rússia. Por isso é que seus companheiros de cons­piração o procuram para que ele se entenda com Gerald e acerte as condições, as condições financeiras. Porque eles de fato querem é dinheiro. Muito dinheiro. Eu devia ter mencionado isso. Nesse particular, os serviços secretos e seus clientes são iguais a quaisquer outras pessoas, acho eu. Dão mais valor ao que custa mais caro, e Merlin custa uma fortuna. Você já comprou um quadro falso?

— Eu vendi dois deles certa vez — disse Toby dando um sorriso rápido e nervoso. Mas ninguém riu.

— Quanto mais você pagar por um quadro desses, menos estará inclinado a duvidar de sua autenticidade. Isso é tolo, mas é assim. É também um conforto para todo mundo saber que Merlin é venal. Um motivo que todos compreendem, não é mesmo, Toby? Especialmente no Te­souro. Vinte mil francos por mês, depositados num banco suíço. Bem, não se conhece quem não afrouxaria alguns princípios igualitários por um dinheiro desses. Por isso Whitehall lhe paga uma fortuna e considera suas informa­ções de um preço inestimável. E parte dessas informações é boa — admitiu Smiley. — Muito boa, eu de fato acho, e assim deveria ser. Então, um belo dia, Gerald admite Percy no maior segredo de todos. A facção Merlin possui um terminal em Londres. Isso foi o começo, eu devo dizer a você, de um vínculo muitíssimo inteligente.

Toby colocou a xícara no pires e enxugou meticulosa­mente os cantos da boca com o lenço.

— Segundo informou Gerald, um membro da Em­baixada soviética daqui de Londres estava de fato disposto a agir como representante de Merlin, e era capacitado para isso. Ocupava até mesmo um posto excepcional, sendo capaz de utilizar-se, em raras ocasiões, das facilidades da Embaixada para falar com Merlin em Moscou, e assim enviar e receber mensagens. E se fossem tomadas todas as precauções concebíveis, seria ainda possível, de vez em quando, que Gerald arranjasse reuniões clandestinas com esse homem maravilhoso, no propósito de obter e dar infor­mações, fazer-lhe as perguntas suplementares e receber respostas de Merlin quase que pela volta do correio. Nós daremos a esse funcionário soviético o nome de Aleksey Aleksandrovich Polyakov e faremos de conta que ele é membro do Departamento Cultural da Embaixada sovié­tica. Você está de acordo comigo?

— Eu não ouvi nada. Fiquei surdo.

— Polyakov tornou-se importante muito depressa, porque ao cabo de pouco tempo Gerald o nomeou o ele­mento de ligação da Operação Bruxaria e, muito mais, pela entrega de informações em Amsterdam e Paris, as tintas se­cretas, os tudo-vai-bem; mas isso não bastava. A conve­niência de ter Polyakov à soleira da porta seria boa demais para ser deixada de lado. Uma parte do melhor material de Merlin passou a ser contrabandeado para Londres através da mala diplomática. Tudo quanto Polyakov teria de fazer seria abrir os envelopes e passá-los ao seu equivalente no Circus: Gerald ou quem este indicasse. Mas nós jamais de­vemos esquecer que essa parte da Operação Merlin se manteve secreta, absolutamente secreta. O próprio grupo da Operação Bruxaria também era secreto, sem dúvida, mas numeroso. Isso foi inevitável. A operação era de vulto, o material que ela recebia era volumoso e somente seu processamento e distribuição exigiam supervisão de pessoal de escritório numeroso: transcritores, tradutores, codificadores, datilógrafos, avaliadores e sabe Deus que outros tipos de pessoas. Nada disso preocupou Gerald, na­turalmente. Na realidade, ele gostava dessa situação, por­que a arte de ser Gerald consistia em ser um no meio da multidão. O grupo da Operação Bruxaria era dirigido por um escalão hierárquico inferior? Médio ou superior? Eu aprecio a descrição que Karla faz dos grupos de pessoas. É chinesa? Um grupo ou comissão é um animal que tem quatro patas traseiras. Mas o terminal de Londres, a perna (ou pata) de Polyakov, essa parte era confinada ao cír­culo mágico de origem. Skordeno, Silsky, toda a malta: eles poderiam abalar-se para o exterior e trabalhar como uns loucos para Merlin fora do país. Mas aqui, em Londres, a operação que envolvia o irmão Polyakov, a maneira de atar os nós, isso constituiu um segredo muito especial, e por motivos muito especiais. Você, Percy, Bill Haydon e Roy Bland. Vocês quatro formavam o círculo especial. Não é certo? Agora vamos apenas especular sobre como ele funcionava em seus detalhes. Havia uma casa, nós sabía­mos disso. Mas as reuniões que lá se realizavam eram organizadas de maneira muito cuidadosa, nós poderíamos ter certeza disso, não é fato? Quem se encontrava com Polyakov, Toby? Quem lidava com Polyakov? Você, Roy, Bill?

Segurando a gravata por sua extremidade mais larga, Smiley virou para fora o forro de seda da mesma, começou a limpar os óculos e respondeu à sua própria pergunta:

Todos vocês. Como assim? Às vezes Percy se encontrava com ele. Eu presumo que Percy representava junto a ele o lado autoritário: "Não será hora de você tirar umas férias? Você teve notícias de sua esposa esta sema­na?" Percy daria certo num papel desses. Mas o grupo da Operação Bruxaria se utilizava de Percy com parcimônia. Percy era o canhão de grosso calibre e deveria possuir o valor de uma raridade. Então viria Bill Haydon. E Bill se encontraria com Polyakov. Isso acontecia com maior freqüência, creio eu. Bill impressiona quando se trata da Rússia e possui valor como pessoa capaz de proporcionar entretenimento. Tenho a impressão de que ele e Polyakov se entendem muito bem. Eu acho que Bill brilhou quando chegou o momento de dar instruções e das perguntas suple­mentares, você não acha? Assegurar que as mensagens certas chegassem a Moscou. Por vezes ele levava Roy em sua companhia, outras vezes mandava Roy ir sozinho. Es­pero que eles organizem entre si algo de parecido com isso. E Roy é, sem dúvida, especialista em economia, como também pessoa do mais alto nível em matéria de satélites. Por esse motivo deve haver muitas conversas sobre esses assuntos. E, às vezes, eu imagino que seriam por ocasião de aniversários, Toby, ou pelo Natal, ou quando se tratava de apresentar um agradecimento especial ou levar dinhei­ro: há uma pequena fortuna destinada a diversões, eu observo isso, para não falar em gratificações. Às vezes, para que a festa prosseguisse, vocês quatro iam juntos e erguiam suas taças pela saúde do rei, que estava do outro lado do mar: a Merlin por intermédio de seu enviado, Polyakov. O próprio Toby teria seus assuntos a tratar com o amigo Polyakov. Discutir a arte da espionagem, além de manter breves conversações sobre o que se estaria passan­do na Embaixada, tão úteis aos informantes em suas ope­rações do dia-a-dia em matéria de vigilância da agência. Por isso Toby também teria suas sessões, em que faria seus solos. Afinal de contas, não devemos desprezar o valor local de Polyakov, inteiramente distinto de seu papel como representante de Merlin, em Londres. Não é todos os dias que dispomos de um diplomata soviético domesticado, em Londres, comendo de nossas mãos. Com um pouco de prática no uso de uma máquina fotográfica, Polyakov po­deria ser muito útil até em nível puramente doméstico. Isso desde que nós não nos esquecêssemos de nossas prioridades.

O olhar de Smiley não se afastara do rosto de Toby. E ele acrescentou:

Posso imaginar que Polyakov pôde em pouco tempo acumular um bom número de carretéis de filmes, você não acha? E que uma das tarefas de quem se avistas­se com ele seria a de reabastecer seu estoque, levando-lhe pequenos pacotes selados. Pacotes de filmes, filmes vir­gens, sem dúvida, desde que viessem do Circus. Diga-me uma coisa, Toby, por favor: Lapin é um nome familiar a você?

Depois de passar a língua pelos lábios, franzir o rosto e sorrir, e de fazer um movimento de cabeça para a frente, ele respondeu:

Sem dúvida, George. Eu conheço Lapin.

Quem mandou destruir os relatórios dos infor­mantes a respeito de Lapin?

Fui eu, George.

Por sua própria iniciativa?

O sorriso de Toby tornou-se mais pronunciado, e ele disse o seguinte:

Escute, George, eu subi alguns degraus na hierar­quia, nos últimos tempos.

Quem disse que Connie Sachs deveria ser atirada escada abaixo?

Olhe, eu creio que foi Percy. Talvez tenha sido Percy, ou talvez Bill. Você sabe como é uma grande ope­ração. É preciso remendar sapatos, lavar panelas, há sem­pre alguma coisa em andamento. E Toby deu de om­bros. Talvez tenha sido Roy.

Então você recebe ordens de todos eles decla­rou Smiley com desdém. Isso é falta de discernimento de sua parte. Você deveria saber agir melhor.

Esterhase não gostou dessas palavras. Smiley con­tinuou:

Quem lhe disse para pôr Max na geladeira, Toby? Foram essas mesmas três pessoas? Eu tenho de levar tudo isso ao conhecimento de Lacon, você compreende. Ele está me fazendo uma terrível pressão, exatamente agora. Pare­ce apoiado pelo ministro. Quem foi que lhe disse para pôr Max na geladeira?

George, você tem estado conversando com as pes­soas erradas.

Um de nós tem feito isso concordou Smiley jovialmente. Sem a menor dúvida. Eles também querem saber o que há sobre Westerby: quem o amordaçou? Foi a mesma pessoa que mandou você ir a Sarratt com mil libras em dinheiro e uma palavra para tranqüilizar o espíri­to de Jim Prideaux? Eu estou apenas em busca de fatos, Toby, e não de escalpos. Você me conhece, eu não sou do tipo vingador. De qualquer maneira, o que significaria dizer que você não é pessoa muito leal? Trata-se apenas de uma questão de fidelidade. E Smiley acrescentou: Eles apenas querem saber, você compreende. Tem havido até mesmo umas conversas feias a respeito de realizar uma espécie de inquérito. Ninguém deseja isso, não é fato? Seria como procurar um advogado quando alguém briga com a esposa: um passo irrevogável. Quem lhe forneceu a mensagem de Jim sobre Rei, soldado? Você sabia o que ela queria dizer? Você a obteve diretamente de Polyakov, foi isso?

Pelo amor de Deus sussurrou Guillam. Dei­xe que eu meta o braço nesse desgraçado

Smiley não tomou conhecimento de Peter, e pros­seguiu:

Vamos continuar falando a respeito de Lapin. Qual era a tarefa que desempenhava aqui?

Ele trabalhava para Polyakov.

Era secretário dele no Departamento Cultural?

Era seu informante.

Mas meu caro Toby: que espécie de coisas um adido cultural tem a fazer com seu próprio informante?

Os olhos de Esterhase permaneciam cravados fixa­mente em Smiley, o tempo todo. "Ele parece um cão", pensou Guillam, "não sabe se deve esperar um pontapé ou um osso." Os olhos dele moviam-se do rosto de Smiley para suas mãos e voltavam a seu rosto, permanentemente observando os pontos capazes de denunciar alguma coisa.

Não seja tolo, George disse Toby displicente­mente. Polyakov está trabalhando para o Centro de Moscou. Você sabe disso tão bem quanto eu. Ele cruzou as pernas curtas e, tornando a mostrar toda a anterior insolência, refestelou-se na cadeira e tomou um gole de chá frio.

Smiley, segundo pareceu a Guillam, deu a impressão de ter ficado meio embaraçado. Diante disso, Guillam, em seu estado de confusão, inferiu friamente que Smiley sem dúvida estava muito satisfeito consigo mesmo. Talvez porque, afinal, Toby estivesse falando.

Vamos, George disse Toby. Você não é uma criança. Pense em quantas operações nós realizamos dessa maneira. Nós compramos Polyakov, certo? Polyakov é um espião de Moscou, mas é um dos nossos. Mas é obrigado a fingir perante sua gente que está nos espionan­do. De outro jeito, como poderia ele fazer isso? Como entra e sai daquela casa o dia inteiro, sem gorilas, "ba­bás", tudo tão fácil? Ele vem até nossa "loja", por isso tem de levar mercadorias para casa. Por isso nós lhe da­mos essas mercadorias. Coisas sem substância, para que ele possa transmiti-las à sua terra, e todo mundo, em Moscou, dá-lhe uns tapinhas nas costas e diz que ele é um grande homem. Isso acontece todos os dias.

Se a cabeça de Guillam estava girando por causa de uma espécie de furioso temor, a de Smiley parecia extraor­dinariamente lúcida:

E essa é bem a história-padrão entre os quatro iniciados, não é verdade?

Bem disse Esterhase —, eu não poderia dizer que é história-padrão. E falou fazendo um gesto muito húngaro com a mão, estendendo a palma e sacudindo-a de um lado para outro.

Então quem é o agente de Polyakov?

Guillam percebeu que a pergunta tinha grande signi­ficação para Smiley: ele se estendera ao máximo no pro­pósito de chegar a essa indagação. Enquanto Guillam aguardava a resposta, ora com os olhos fitos em Esterhase, que já não estava de modo algum tão confiante, ora no rosto de Smiley, que parecia o de um mandarim, ele per­cebeu que já começava a entender o tipo da inteligente trama de Karla, como Smiley a denominara. E também es­tava principiando a entender sua própria entrevista com Alleline, que fora uma dura provação.

O que lhe estou perguntando é muito simples insistiu Smiley. Quem você imagina ser o agente de Polyakov no Circus? Meu Deus, Toby, não seja obtuso! Se o pretexto de Polyakov para encontrar-se com vocês é o fato de estar espionando o Circus, nesse caso ele deve ter um espião do Circus, não é isso mesmo? Então quem é esse espião? Polyakov não poderá voltar à Embaixa­da, depois de um encontro com vocês, com uma porção de carretéis de filmes de menor importância do Circus, e dizer: "Eu obtive isto com os rapazes". Tem de haver uma história, e uma boa história: uma história de aliciamento, recrutamento, encontros clandestinos, dinheiro e motivos para tudo isso. Não é fato? Não se trata apenas da história aparente de Polyakov, mas de sua vital linha de comuni­cação. Ela deve ser perfeita. Tem de ser convincente. Eu diria que é o grande trunfo do jogo. Então quem é o espião? indagou Smiley num tom ameno. Será você? Toby Esterhase, mascarado de traidor do Circus a fim de que Polyakov conserve seu emprego? Palavra, Toby, isso vale uma porção de medalhas.

Eles ficaram aguardando enquanto Toby refletia.

Você está tomando uma estrada muito longa, George disse Toby, afinal. O que vai acontecer se você não chegar ao fim dessa estrada?

Mesmo com Lacon me dando apoio?

Traga Lacon aqui. Percy também. E Bill. Por que você veio procurar uma pessoa insignificante? Procure os grandes. Dê em cima deles.

Eu pensei que você fosse hoje em dia uma figura importante. Você seria uma boa escolha para o papel, Toby. Ascendência húngara, ressentimento em matéria de promoções, razoável acesso aos fatos, mas não excessivo... é esperto, gosta de dinheiro... Dispondo de você como agente, Polyakov teria uma história que lhe daria boa cobertura, pois realmente seria sólida e funcionaria bem. Os três grandes lhe dão a ninharia, você a entrega a Polyakov. O Centro fica pensando que Toby é dos seus, todos são servidos, todos são contentados. O único problema surge quando começa a transpirar que você está entregando a Polyakov as jóias da Coroa e recebendo, em troca, ma­terial sem importância. Se for esse o caso, você vai pre­cisar de uns bons amigos, assim como nós. Minha tese é a seguinte, só para concluir: Gerald é um toupeira russo, a serviço de Karla. E ele virou o Circus pelo avesso.

Esterhase deu a impressão de estar se sentindo muito bem, e disse:

Escute uma coisa, George. Se você estiver errado, eu não quero errar também. Você entende?

Mas se ele estiver certo, você quer estar certo também sugeriu Guillam, numa de suas raras interven­ções. E quanto mais depressa você estiver certo, mais contente irá ficar.

Sem dúvida disse Toby, sem perceber de mo­do algum a ironia. Sem dúvida. Eu quero dizer que George e você pensaram bem. Mas, meu Deus, há dois lados em toda questão, George, especialmente quando se trata de agentes. E talvez você se tenha apegado ao lado falso. Escute: quem algum dia chamou a Operação Bru­xaria de ninharia? Ninguém. Nunca. É a melhor que existe. Você pega um camarada boquirroto que começa a chafur­dar na lama e já escavou a metade de Londres. Você está entendendo? Veja uma coisa. Eu faço o que eles mandam. Certo? Eles me dizem para eu fazer o papel de pombo-cor­reio para Polyakov, eu obedeço. Levar os filmes para ele, eu levo. Eu estou numa situação muito perigosa expli­cou Toby. Perigosa mesmo.

Eu sinto muito disse Smiley, que estava junto à janela, mais uma vez observando a praça através de uma fresta da cortina. Isso deve estar preocupando você.

Extremamente concordou Toby. Estou so­frendo de uma úlcera no estômago. Não consigo comer. Uma verdadeira enrascada.

Durante uns momentos, o que fez Guillam ficar fu­rioso, os três se mantiveram num silêncio de compreensão por causa dos apuros em que se encontrava Toby.

Toby, você não mentiria sobre aquelas "babás", mentiria? perguntou Smiley, ainda da janela.

George, eu juro, com a mão no peito.

Que espécie de gente você usaria para um traba­lho como esse? Gente motorizada?

Pessoal subalterno. Eu colocaria um ônibus perto do aeroporto, faria todos entrarem nele e os mandaria de volta.

Quantos?

Uns oito ou dez. Talvez seis, nesta época do ano. Muitos estão doentes. É Natal disse Toby, de mau humor.

Um homem agindo sozinho?

Jamais. Você está louco. Um homem! Você acha que eu iria ser gerente de uma loja que vende balas, nos dias de hoje?

Afastando-se da janela, Smiley voltou a sentar-se.

Escute, George. Essa idéia que você meteu na cabeça é terrível, sabe disso? Eu sou um sujeito patriota, meu Deus! repetiu Toby.

Qual é a tarefa de Polyakov na casa de Londres?

Ele trabalha sozinho.

Cuidando de seu grande espião no Circus?

Sem dúvida. Eles o dispensaram dos trabalhos regulares, dando-lhes inteira liberdade para que possa lidar com Toby, o grande espião. Nós fazemos tudo, horas a fio eu fico sentado ao lado dele. "Escute", digo eu. "Bill está suspeitando de mim, minha mulher está desconfiando de mim, meus garotos apanharam sarampo e eu não tenho dinheiro para pagar o médico." Todo o material que os agentes me dão eu entrego a Poly para que ele possa trans­miti-lo à pátria como se fosse verdadeiro.

E quem é Merlin?

Esterhase sacudiu a cabeça.

Pelo menos você ouviu dizer que ele está estabele­cido em Moscou disse Smiley. E que faz parte do serviço de espionagem soviético. O que poderá ele ser?

Assim dizem eles concordou Esterhase.

Assim é que Polyakov pode comunicar-se com ele. No interesse do Circus, sem dúvida. Secretamente, sem que seu próprio pessoal suspeite.

Sem dúvida e Toby recomeçou suas lamenta­ções. Mas Smiley parecia estar ouvindo sons que não eram produzidos na sala.

E a história de Rei, soldado?

Eu não sei que diabo é isso. Eu faço o que Percy manda.

E Percy lhe disse que você deveria acomodar Prideaux?

Sem dúvida. Talvez tenha sido Bill, talvez Roy. Escute, foi Roy. Eu tinha de comer, George, você com­preende. Eu não tinha opção, você está me entendendo?

Foi o arranjo perfeito. Você percebe isso, não é, Toby? observou Smiley de um jeito tranqüilo, distante. Vamos presumir que tenha sido um arranjo. Todos os que estavam certos pareciam estar errados. Connie Sachs, Jerry Westerby... Jim Prideaux... até mesmo Control. Silenciou os que tinham dúvidas antes que pudessem falar... as permutações são infinitas, depois de ter sido apresentada a mentira básica. Deve-se deixar que o Centro de Moscou pense que possui uma importante fonte no Circus. Whitehall não deverá, em hipótese alguma, sus­peitar da mesma idéia. Levemos isso à sua conclusão ló­gica, e Gerald nos levaria a estrangular nossos próprios filhos em suas camas. Seria muito bonito em outro con­texto observou Smiley, quase como se estivesse sonhan­do. Pobre Toby. Sim, eu de fato entendo. Como você deve ter passado por maus bocados, correndo entre eles, de um para a outro.

Toby já tinha sua resposta pronta:

Naturalmente, se houver alguma coisa de prático que eu possa fazer, George, você me conhece. Eu estou sempre disposto a ajudar. Não há problema. Meus rapazes estão bem treinados se você quiser que os empreste, talvez nós possamos fazer um trato. Só isso é que eu desejo. Por causa do Circus, você sabe. Para o bem de nossa empresa. Eu sou um homem modesto. Não quero nada para mim. Certo?

Onde fica essa casa que você mantém exclusiva­mente para Polyakov?

-— Fica em Lock Gardens, em Camden, número 5.

Alguém toma conta da casa?

— Sim. Mrs. McCraig.

— Ultimamente ela tem trabalhado com o rádio?

— Sem dúvida.

— Existe aparelhagem de áudio?

— O que você acha?

— Então Millie McCraig toma conta da casa e lida com os aparelhos de gravação.

— Isso mesmo — declarou Toby, fazendo um gesto de cabeça com grande vivacidade.

— Eu quero que você telefone para ela e diga que eu vou passar a noite lá e quero usar o equipamento. Diga que fui chamado para executar um trabalho especial e que ela deverá fazer tudo o que eu pedir. Eu chegarei lá por volta das nove horas. Qual a maneira de vocês entrarem em contato com Polyakov, quando querem realizar uma reu­nião de emergência?

— Meus rapazes têm uma sala em Haverstock Hill. Poly passa de carro pela janela deles todas as manhãs, a caminho da Embaixada, e todas as tardes, quando vai para casa. Se eles colocarem um cartaz amarelo na janela, pro­testando contra o tráfego, esse é o sinal.

— E à noite? E nos fins de semana?

— Dar um telefonema e dizer que foi engano. Mas ninguém gosta disso.

— Isso já foi feito?

— Não sei.

— Você quer dizer que não fica escutando os telefo­nemas dele? — Toby não deu resposta. — Eu quero que você se afaste no fim de semana. Você acha que o Circus suspeitaria disso? — Esterhase sacudiu a cabeça cheio de entusiasmo. — Tenho certeza — prosseguiu Smiley — de que você prefere ficar de fora, de qualquer maneira, não prefere? — Esterhase assentiu com a cabeça. — Diga que está com um problema com uma mulher, ou qualquer outro problema que você tenha hoje em dia. Você vai passar a noite aqui, possivelmente ficará aqui duas noites. Fawn cuidará de você. Há comida na cozinha. E sua mulher?

Enquanto Guillam e Smiley ficaram a observar, Ester­hase discou para o Circus e mandou chamar Phil Porteous. Recitou a lição perfeitamente, com certa autocomiseração, um jeito meio conspiratório e um ar meio jocoso. Uma mulher que estava apaixonada por ele, no norte, amea­çando-o de coisas desvairadas se ele não fosse segurar a mão dela.

— Não me diga nada, Phil, isso acontece todos os dias com você. Escute, como vai aquela nova e deslum­brante secretária? Ouça, Phil, se Mara telefonar de casa, diga que Toby está executando um grande trabalho, está bem? Fazendo o Kremlin ir pelos ares. E que estará de volta na segunda-feira. Seja amável e positivo, certo? Um abraço, Phil. — Toby desligou o telefone e discou um nú­mero do norte de Londres: — Mrs. M., alô. Aqui é seu namorado predileto, não reconhece a voz? Escute, eu lhe estou mandando uma visita, hoje à noite, um velho amigo, você vai ficar surpreendida. — E Toby explicou aos dois, colocando a mão no bocal do telefone: — Ela me odeia. Examine tudo, certifique-se de que tudo está funcionando. Nada de "vazamentos". Está bem?

Quando Smiley e Guillam saíram, este último disse a Fawn num tom impregnado de verdadeira peçonha:

— Se houver problema, amarre as mãos e os pés dele.

Já estavam na escada quando Smiley tocou levemente no braço de Guillam e disse:

Peter, eu quero que você proteja minha retaguar­da. Você faz isso por mim? Dê-me uns minutos, em se­guida me apanhe na esquina da Marloes Road em direção ao norte. Fique do lado oeste da calçada.

 

Guillam ficou esperando durante o tempo combinado, em seguida encaminhou-se para a rua. Caía uma garoa fina, estranhamente morna como neve derretida. Onde havia luzes, aquela umidade se transformava num fino nevoeiro, mas nas sombras ele não a sentia nem a via. Era apenas uma opacidade que lhe perturbava a visão, fazendo-o semi-cerrar os olhos. Deu uma volta completa pelos jardins e, em seguida, entrou numa bonita cavalariça, que ficava bem ao sul do ponto em que deveria apanhar Smiley. Chegando à Marloes Road, atravessou-a até a calçada oeste, com­prou um vespertino e começou a caminhar vagarosamente, passando por umas villas que ficavam no fundo de grandes jardins. Estava contando os pedestres, ciclistas, carros, ao passo que adiante dele George Smiley ainda andava deci­didamente pela calçada do outro lado, o verdadeiro pro­tótipo do londrino a caminho de casa. Guillam lhe per­guntou:

São vários?

Um pouco antes de chegarmos às Abingdon Villas eu atravessarei a estrada disse Smiley, que não pôde ser preciso. Procure um homem isolado. Mas procure mesmo!

Enquanto Guillam estava observando, Smiley se arran­cou abruptamente, como se tivesse acabado de lembrar-se de alguma coisa: saltou perigosamente na estrada e saiu imediatamente em disparada, entrando pela porta de um bar. No momento em que ele o fez, Guillam viu, ou julgou ter visto, um vulto curvado e alto, com um casaco escuro, que saiu ao encalço dele. Mas, naquele momento, um ônibus parou, ficando entre Smiley e seu perseguidor. E quando o ônibus novamente se pôs em movimento, deve ter levado esse perseguidor, pois o único sobrevivente na­quela faixa da calçada era um homem enfiado numa capa de chuva preta, de plástico, tendo à cabeça um boné de pano, indolentemente apoiado no ponto de parada do ôni­bus, a ler seu jornal da tarde. E quando Smiley saiu do bar, com sua pasta marrom, o homem apenas se limitou a erguer a cabeça da página de esportes do jornal. Durante mais um breve momento, Guillam seguiu o rastro de Smiley através dos trechos mais elegantes de Kensington, com suas construções vitorianas, enquanto Smiley ia se esgueirando de uma praça a outra, entrando em cavalari­ças e delas saindo pelo mesmo caminho. Apenas uma única vez, quando Guillam se esqueceu de Smiley e, instintiva­mente, retrocedeu um pouco, teve a suspeita de que um terceiro vulto estava caminhando junto a eles: uma som­bra denteada, de encontro ao casario de tijolos de uma rua vazia. Mas quando Guillam recomeçou a caminhar pa­ra a frente, essa figura havia desaparecido.

Depois disso a noite teve seu próprio desvario. Os acontecimentos se sucederam depressa demais para que ele, sozinho, pudesse ligá-los. Dias depois ele percebeu que aquela figura, ou a sua sombra, havia trazido algo de familiar à sua memória. Mesmo então, por algum tempo, não conseguiu situá-las. Mas, numa certa manhã, bem cedo, quando acordou subitamente tudo se tornou cla­ro em sua mente: uma voz áspera, militar, uma gentileza de maneira fortemente dissimulada, uma raqueta de squash atirada por detrás do cofre de sua sala, em Brixton, que trouxe lágrimas aos olhos de sua imperturbável secretária.

 

Provavelmente a única coisa que Steve Mackelvedore fez de errado naquela mesma noite, em termos da técnica de espionagem clássica, foi censurar-se por não haver baixado a trava da porta traseira de seu carro. En­trando no carro pela porta do lado do motorista, atribuiu sua negligência ao fato de que a outra trava estava levan­tada. A sobrevivência, conforme Jim Prideaux gostava de lembrar, consiste numa capacidade infinita de suspeitar das coisas. Conforme esse padrão purista, Mackelvedore deveria ter suspeitado de que durante uma hora de rush, particularmente abominável, numa noite também parti­cularmente abominável, numa daquelas ruas transversais, barulhentas por causa das buzinas dos carros, e que vão dar no extremo inferior dos Champs Elysées, Ricky Tarr levantaria a trava daquela porta de trás do carro e lhe apontaria um revólver. Mas, naqueles dias, a vida na resi­dência de Paris pouco contribuía para manter apurada a agudeza mental das pessoas, e quase todo o dia de traba­lho de Mackelvedore fora consumido no registro de suas despesas da semana e na conclusão de seu mapa referente ao pessoal, a ser enviado às secretárias. Somente depois do almoço, uma prolongada refeição em companhia de um inseguro anglófilo do labirinto do serviço francês de segu­rança, quebrara a monotonia daquela sexta-feira.

Seu carro, estacionado debaixo de uma tília que esta­va morrendo por causa das emanações dos canos de des­carga, possuía uma licença extraterritorial e as letras CC coladas na parte de trás, pois a agência passava por ser uma dependência do consulado, embora ninguém levasse isso a sério. Mackelvedore era um veterano do Circus, natural do Yorkshire, atarracado e de cabelos brancos, possuindo uma longa folha de nomeações para o exercício de ativi­dades consulares que, na opinião de todos, não lhe trou­xera quaisquer vantagens. Paris era a última dessas nomea­ções. Ele não gostava de Paris de modo especial, e sabia, por haver passado a vida inteira em operações no Extremo Oriente, que os franceses não lhe serviam. Mas a situação não poderia ser melhorada, sendo um prelúdio para sua aposentadoria. Recebia um bom dinheiro, morava confor­tavelmente, e o máximo que lhe haviam solicitado durante os dez meses em que aí se encontrava era cuidar do bem-estar dos agentes que ocasionalmente estivessem em trân­sito, colocar uma marca de giz aqui e ali, servir de carteiro para algum trabalho da Estação de Londres, coisas assim.

Tinha sido isso até aquele momento em que estava sentado em seu próprio carro, sentindo o revólver de Tarr encostado nas costelas e a mão dele afetuosamente apoiada em seu ombro direito, pronta para arrancar-lhe a cabeça se tentasse qualquer falseta. A alguns metros de distância, umas moças passaram por eles apressadamente. Uns dois metros adiante deles o tráfego havia engarrafado: poderia permanecer assim durante uma hora. Ninguém ficaria, nem de leve, interessado na conversa íntima de dois homens, num carro parado.

O que você andou fazendo, Ricki? — queixou-se Mackelvedore enquanto os dois, o braço de um enfiado no do outro, voltavam para a agência. O serviço inteiro anda procurando por você, você sabe disso, não é mesmo? Eles vão arrancar sua pele se o encontrarem. Temos ordens de fazer coisas de gelar o sangue nas veias se dermos com os olhos em você.

Ele pensou em agarrar Tarr e golpeá-lo no pescoço, mas sabia que não tinha agilidade para isso e que Tarr o liquidaria.

A mensagem seria comunicada a cerca de duzentos grupos, declarou Tarr, no momento em que Mackelvedore abriu a porta da frente e acendeu as luzes. Depois que Steve a tivesse transmitido, eles ficariam sentados no carro, aguardando a resposta de Percy. No dia seguinte, se o instinto de Tarr se confirmasse, Percy viria até Paris a toda pressa para ter uma conversa com ele, Ricki. Essa conversa também seria realizada na agência, porque Tarr acreditava ser muito pouco provável que os russos tentas­sem matá-lo na sede do Consulado Britânico.

Você está se portando como um energúmeno, Tarr. Não são os russos que querem matá-lo. Somos nós.

Na sala da frente ficava a recepção, sendo o que restava do pretenso consulado. Nela havia um balcão de madeira e avisos obsoletos para os súditos britânicos, pen­durados na parede encardida. Tarr revistou Mackelvedore para ver se ele estava armado, mas nada encontrou. A casa erguia-se no fundo do terreno e a maior parte do material delicado ficava no outro extremo do mesmo: a sala de decifração, o cofre-forte e as máquinas.

Você está alucinado, Ricki — advertia-lhe Ma­ckelvedore monotonamente, enquanto ia a sua frente, atra­vessando salas vazias até apertar a campainha da sala de decifração. Você sempre pensou que era Napoleão Bo­naparte e agora isso o dominou completamente. Você re­cebeu um excesso de educação religiosa de seus pais.

O ferrolho de aço deslizou para trás e um rosto atur­dido, com uma expressão ligeiramente tola, surgiu na abertura da porta.

Você pode ir para casa, Ben. Vá para junto de sua mulher, mas fique perto do telefone, no caso de eu precisar de você. Isso, meu rapaz. Deixe os livros onde estão e ponha as chaves nas máquinas. Eu vou falar com Londres daqui a pouco. Eu mesmo cuidarei disso. O rosto se afastou e eles ficaram à espera enquanto o homem abria a fechadura da porta, pelo lado de dentro: uma chave, mais outra, e um trinco de molas. Este senhor é do Extremo Oriente, Ben explicou Mackelvedore quan­do a porta se abriu. É um dos meus conhecidos mais importantes.

Alô disse Ben. Era um rapaz alto, com um ar de matemático; usava óculos e tinha um olhar firme.

Vá andando, Ben. Eu não vou registrar sua au­sência na folha de pagamento. Você terá o fim de semana livre com direito ao pagamento integral. E não me deve seu tempo também. Vá dando o fora.

Ben vai ficar aqui disse Tarr.

 

Em Cambridge Circus a luz era bem amarela, e do lugar onde Mendel estava de pé, no terceiro andar de uma loja de roupas, o asfalto molhado brilhava como ouropel. Era quase meia-noite, e ele permanecera de pé durante três horas. Estava entre uma cortina de renda e um secador de roupa. De pé, do jeito que os policiais fazem no mundo inteiro, com o peso distribuído igualmente entre as duas pernas esticadas, e ligeiramente inclinado para trás, na linha do equilíbrio. Tinha puxado o chapéu sobre o rosto e virado a gola para cima para evitar que a brancura de sua pele fosse vista da rua. Mas seus olhos, ao vigiar a entrada da frente, lá embaixo, brilhavam como os de um gato num depósito de carvão. Ele ficaria ali esperando mais três ho­ras, ou seis: Mendel estava de volta na trilha da caça, e o cheiro dela lhe chegava às narinas. Ou melhor, era um pássaro noturno. A escuridão daquela sala onde os clientes experimentavam suas roupas o conservava maravilhosa­mente acordado. A luz da rua, que chegava até onde ele es­tava, espalhava-se, invertida, em pálidas manchas no teto. Tudo mais, as mesas de cortar roupas, as peças de fazen­da, as máquinas cobertas com suas capas, o ferro de en­gomar, as fotografias assinadas de príncipes de sangue, tudo isso lá estava porque ele o vira em sua missão de reconhecimento do terreno, naquela tarde. A luz não che­gava até essas coisas e, mesmo agora, ele mal conseguia distingui-las.

Mendel cobria a maior parte das vias de acesso, lá de sua janela: oito ou nove ruas desiguais e becos haviam escolhido, sem qualquer razão satisfatória, encontrar-se em Cambridge Circus. Os edifícios que ficavam entre elas eram vistosos, mas de pouco valor, adornados de maneira vul­gar com fragmentos do Império: um banco romano, um teatro que parecia uma vasta mesquita que perdera seu caráter sagrado. À sua retaguarda, prédios formados de altos blocos avançavam como um exército de robôs. E no alto, um céu cor-de-rosa estava lentamente se enchendo de neblina.

Por que o lugar era tão quieto? ficou imaginando Mendel. O teatro tinha se esvaziado há muito tempo. Mas por que as alegres atividades do Soho, que ficava a curta distância de sua janela, não estavam enchendo aquele lugar com seus táxis e grupos de ociosos? Um só caminhão de frutas descera ruidosamente pela Shaftsbury Avenue, rumo a Covent Garden.

Mendel mais uma vez inspecionou, com seu binóculo, o edifício que ficava do outro lado da rua, bem defronte a ele. Parecia estar dormindo um sono ainda mais profundo do que os prédios vizinhos. As duas portas iguais de seu pórtico estavam fechadas e não se via uma só luz nas janelas do andar térreo. Somente no quarto andar, da segunda janela a contar da esquerda, filtrava-se uma pálida luminosidade. E Mendel sabia que era a sala do encarre­gado do serviço, pois Smiley lhe dissera isso. Mendel des­viou momentaneamente o binóculo para o teto do edifício, para uma série de antenas nele plantadas, que formavam uma configuração estranha contra o céu. Em seguida, vol­tou o binóculo até um andar abaixo, para as quatro janelas da seção de rádio, que estavam às escuras.

"De noite todos usam a porta da frente", Guillam dissera. "É uma medida de economia, para reduzir o núme­ro dos porteiros."

Durante aquelas três horas, apenas três acontecimen­tos haviam recompensado a vigilância de Mendel: um por hora não era muito. Às nove e meia, um Ford azul de entregas deixara dois homens que estavam carregando o que parecia uma caixa de munição. Abriram a porta eles próprios e a fecharam logo depois de entrarem no edifício, enquanto Mendel sussurrava seu comentário ao telefone. Às dez horas chegou a mala; Guillam também o avisara a esse respeito. Ela coletava os documentos "quentes" nos postos avançados, e os armazenava no Circus durante o fim de semana, para que ficassem seguros. Passava em Brixton, Acton e Sarratt, nessa ordem, dissera Guillam, e, finalmente, no Almirantado, chegando ao Circus por volta das dez horas. Naquela ocasião, chegara às dez horas em ponto, e dois homens, saindo do edifício, vieram ajudar a descarregá-la. Mendel informou também isso, e Smiley lhe retribuiu com um paciente "obrigado".

Estaria Smiley sentado? Estaria no escuro, como Mendel? Mendel achava que sim. Smiley era o mais estra­nho de todos os tipos originais que ele conhecia. Olhando-se para ele, pensava-se que não seria capaz de atravessar uma rua sozinho, mas seria a mesma coisa oferecer prote­ção a um porco-espinho. Coisa engraçada, ficou Mendel imaginando. Uma vida inteira a perseguir bandidos, e como eu acabo meus dias? Arrombar uma casa, nela entrar, ficar de pé na escuridão e espionar suspeitos. Ele nunca lidara com pessoas esquisitas até conhecer Smiley. Pensava que elas eram um bando de amadores que atrapalhavam tudo, homens saídos das universidades. Julgava que não davam para a coisa; e o que os postos externos poderiam fazer de melhor, para seu próprio bem e o bem do público, con­sistia em dizer "sim senhor, não senhor" e perder a corres­pondência daqueles homens. E chegou a pensar, com a no­tável exceção de Smiley e de Guillam, que era exatamente isso que ele achava naquela noite.

Pouco antes das onze horas, uma hora antes, chegara um táxi. Um desses táxis de aluguel de Londres, com uma placa comum, que encostou junto do teatro. Smiley o prevenira até mesmo sobre isso: era costume, no serviço, não usar táxis até junto de sua porta. Alguns paravam perto do Foyles, outros na Old Compton Street, ou numa das lojas. A maioria das pessoas tinha um pretenso destino predileto, e o de Alleline era o teatro. Mendel nunca tinha visto Alleline, mas lhe haviam feito a descrição dele. Quan­do o observou com seu binóculo, reconheceu-o, sem a menor dúvida: um sujeito alto, que caminhava pesada­mente, enfiado num casaco escuro. E chegou a observar como o chofer fez cara feia diante da gorjeta que ele lhe deu, e ficou dizendo alguma coisa enquanto Alleline reme­xia nos bolsos em busca de suas chaves.

A porta da frente não possui fechos de segurança, ficando apenas trancada com uma fechadura comum. Os fechos de segurança começam no interior do prédio, de­pois que se vira à esquerda, no extremo do corredor. A sala de Alleline é no quinto andar. Não se poderá ver as janelas dele iluminadas, mas existe uma clarabóia no teto, e o brilho das luzes deve chegar até a chaminé. Sem a menor dúvida, enquanto Mendel se mantinha em observa­ção, uma mancha amarela surgiu na parede de tijolos en­cardidos dessa chaminé. Alleline entrara em sua sala.

"E o jovem Guillam precisa de um feriado", pensou Mendel. Ele vira isso acontecer antes: os duros que desabam aos quarenta anos. Eles os trancafiam em outro lugar, fingem que eles não se acham lá, apóiam-se em pessoas adultas que acabam revelando não serem, afinal, tão adultas assim e, um belo dia, tudo está acabado para elas: seus heróis começam a despencar, e elas ficam sentadas diante de suas mesas de trabalho, derramando lágrimas que caem sobre o mata-borrão.

Mendel colocara o receptor do telefone no chão. Apanhando-o, disse o seguinte:

— Parece que o rei chegou.

Deu o número da placa do táxi e voltou à sua tocaia.

— Como é o aspecto dele? — murmurou Smiley.

— Parece muito atarefado.

— Deve estar.

Aquele não iria partir-se, concluiu Mendel, aprovan­do sua decisão. Smiley era um daqueles carvalhos flácidos. A gente pensa que é capaz de atirá-lo pelos ares com um sopro, mas quando desaba uma tempestade ele é o único que resta, no final. A essa altura de suas reflexões, outro táxi encostou, bem em frente à porta de entrada, e um vulto alto e de lentos movimentos subiu cautelosamente os degraus como um homem que toma cuidado com o co­ração.

— Chegou o soldado — murmurou Mendel ao tele­fone. — Não desligue. Também chegou o capitão. Uma reunião apropriada dos clãs, segundo tudo indica. Escute, vá de leve.

Um velho Mercedes-190 emergiu rapidamente da Earlham Street, arremeteu em direção à sua janela e fez a curva com certa dificuldade, na saída norte de Charing Cross Road, onde estacionou. Um homem jovem e corpu­lento, com os cabelos de um louro avermelhado, saiu do carro com esforço, bateu-lhe a porta e foi caminhando pesadamente, atravessando a rua e dirigindo-se à entrada do prédio, mas sem tirar a chave. Passado um momento, acendeu-se outra luz no quarto andar, quando Roy Bland juntou-se ao grupo. "Tudo o que nós temos de saber, agora, é quem vai sair", pensou Mendel.

 

Os Lock Gardens, que têm esse nome, presumivel­mente, por causa das represas de Camden e da Hamp­shire Road, que ficam em sua vizinhança, formam um platô de casas do século xix, de fachadas lisas, em número de quatro, construídas em torno de um crescente, cada qual com três andares, um porão e uma nesga de jardim mura­do, nos fundos, que se estende até o Regent's Canal. Seus números vão de dois a cinco. A casa n.° 1 fora demolida ou nunca havia sido construída. A n.° 5 era a última a norte. Possuía três vias de acesso, num raio de trinta metros, e o caminho de sirga, no canal, proporcio­nava-lhe mais dois. Ao norte estendia-se a rua principal de Camden, aonde o tráfego convergia; ao sul e a oeste ficavam o parque e Primrose Hill. Melhor ainda, a vizi­nhança não possuía qualquer característica social que a identificasse, e não o exigia. Algumas das casas haviam sido transformadas em conjuntos de apartamentos de uma única peça, e possuíam dez campainhas em suas portas, dispostas como as teclas de uma máquina de escrever. Outras casas se haviam tornado imponentes e tinham uma só campainha. Na de n.° 5 havia duas: uma para Millie McCraig e outra para seu inquilino, Mr. Jefferson.

Mrs. McCraig era beata, freqüentadora de sua igreja, e colecionava todos os tipos de informações, o que era, diga-se de passagem, uma excelente maneira de ficar sem­pre de olho nos agentes do lugar, embora dificilmente se pudesse dizer que eles louvassem seu zelo. Quanto a Jef­ferson, seu inquilino, sabia-se vagamente que era es­trangeiro, trabalhava numa empresa de petróleo e ausen­tava-se muito de casa. Os Lock Gardens constituíam seu pied-à-terre. Os vizinhos, quando se davam ao trabalho de reparar nele, achavam que Jefferson era um homem retraído e respeitável. Teriam tido a mesma impressão de George Smiley se acaso o localizassem à meia-luz do pór­tico, às nove horas daquela noite, quando Millie McCraig fê-lo entrar em sua sala da frente e cerrou as piedosas cortinas.

Millie era uma rija viúva escocesa, que usava meias marrons e cabelos curtos e lustrosos. Tinha a pele cheia de rugas, como as de um velho. No interesse de Deus e do Circus dirigira escolas para o ensino da Bíblia em Mo­çambique e desempenhara uma missão em Hamburgo. Em­bora fosse há vinte anos uma profissional em escutar coisas às escondidas, ainda se inclinava em considerar todos os homens como transgressores da lei. Smiley não seria capaz de dizer o que ela pensava. Suas maneiras, a partir do momento em que ele chegou, tinham uma profunda e im­penetrável imobilidade. Ela o levou a percorrer a casa como se fosse uma castelã cujos hóspedes houvessem mor­rido há muito tempo.

Primeiro o meio-porão onde morava, cheio de plantas e daquela mistura de cartões-postais, mesas com tampos de bronze e móveis negros e trabalhados que parecem estar ligados a senhoras inglesas, viajadas e de certa idade, pertencentes a determinada classe social. Se o Circus pre­cisava dela durante a noite, ligava para seu telefone, no porão. Sim, havia outra linha no andar de cima, mas só servia para fazer ligações para fora. O telefone do porão tinha uma extensão na sala de jantar, que ficava nesse andar de cima. E, até no andar térreo, notava-se um ver­dadeiro relicário, devido ao dispendioso mau gosto das secretárias: berrantes cortinas listradas em estilo Regência, reproduções de cadeiras de estilo, douradas, sofás de pelú­cia com os cantos debruados de cordões. A cozinha não fora tocada e era sólida. Além dela ficava um anexo, en­vidraçado, que servia ao mesmo tempo de estufa para plan­tas e de copa, e dava para o jardim maltratado e para o canal. Espalhados pelo assoalho de ladrilho havia uma velha máquina de secar roupas, uma caldeira de lavar rou­pas e uns caixotes de água tônica.

Onde ficam os microfones, Millie? perguntou Smiley, que voltara à sala de visitas.

São aos pares murmurou Millie —, embutidos atrás do papel da parede, dois pares em cada sala do andar térreo, um em cada quarto do andar de cima. Cada par está ligado a um gravador separado. Ele a acompanhou, subindo pela escada íngreme. O andar de cima não estava mobiliado, salvo quanto a um quarto no sótão, que pos­suía uma armação de aço, cinzenta, com oito gravadores de fita, quatro no alto e quatro na parte de baixo dessa armação.

E Jefferson sabe de tudo isso?

Mr. Jefferson disse Millie num tom formal é tratado numa base de confiança. —- Foi o máximo a que chegou para exprimir sua desaprovação às palavras de Smiley, ou sua dedicação à ética cristã.

Novamente no térreo, ela lhe mostrou os interruptores que controlavam todo o aparelhamento. Um interruptor extra ajustava-se a cada painel. A qualquer momento que Jefferson ou algum dos rapazes, conforme se expressou, quisesse fazer uma gravação, bastava levantar-se e virar para baixo o interruptor de luz que ficava à esquerda. A partir desse momento, o sistema ficaria ativado pela voz, isto é, o tape-deck só giraria quando alguém estivesse fa­lando.

E onde você fica enquanto tudo isso se passa, Millie?

Ela ficava lá embaixo, que era o lugar onde uma mulher deveria permanecer.

Smiley estava abrindo os armários, os compartimen­tos, andando de uma sala para outra. Em seguida, voltou à copa, de onde se via o canal. Tirando do bolso uma lanterna, projetou um feixe luminoso na escuridão do jardim.

Quais são os procedimentos de segurança? in­dagou Smiley, enquanto mantinha entre os dedos, pensa­tivamente, o interruptor da última luz, perto da porta da sala de visitas.

A resposta de Millie fez-se ouvir num monótono tom litúrgico:

Duas garrafas de leite, cheias, na soleira da porta, querem dizer que a pessoa pode entrar, que tudo está bem. Se não houver garrafas de leite, não deve entrar.

Ouviu-se um leve bater, vindo da direção da varanda envidraçada. Voltando à copa, Smiley abriu a porta de vidro e, após uma rápida troca de palavras com Guillam, num sussurro, tornou a aparecer em companhia dele.

— Você conhece Peter, não conhece, Millie?

Millie talvez o conhecesse, mas seus olhos pequenos e duros o fitaram com desprezo. Guillam estava estudando o painel dos interruptores, procurando alguma coisa num bolso enquanto assim procedia.

— O que é que ele está fazendo? Ele não deve fazer uma coisa dessa. Não deixe.

Se ela estivesse preocupada, declarou Smiley, poderia ligar para Lacon pelo telefone do porão. Millie McCraig não se mexeu, mas duas manchas vermelhas haviam apa­recido em suas faces coriáceas, e ela estava estalando os dedos, de fúria. Usando uma pequena chave, Guillam re­movera cuidadosamente os parafusos de ambos os lados do painel de plástico e estava inspecionando a instalação que ficava por trás dele. Em seguida, com muita cautela, virou para baixo o interruptor que ficava na extremidade, prendendo-o em seus fios, e, depois disso, tornou a aparafusar a chapa em sua posição original, não mexendo nos demais interruptores.

— Nós vamos fazer uma experiência — disse Guil­lam. E enquanto Smiley subiu para o andar de cima para verificar o tape-deck, Guillam cantou O velho rio, num grave rugido à Paul Robeson.

— Obrigado — disse Smiley, que estremeceu e no­vamente desceu ao andar térreo —, isso é mais do que suficiente.

Millie tinha ido até o porão a fim de telefonar para Lacon. Smiley armou a cena tranqüilamente. Colocou o telefone ao lado de uma poltrona, na sala de visitas, e em seguida preparou sua linha de retirada até a copa. Foi buscar duas garrafas de leite, na geladeira onde ficavam guardadas as garrafas de Coca-Cola, na cozinha, e as co­locou na soleira da porta para significarem, na linguagem eclética de Millie McCraig, que uma pessoa poderia entrar e que tudo estava bem. Tirou os sapatos e deixou-os na copa. E tendo apagado as luzes, foi para seu posto, na cadeira de braços, exatamente no momento em que Mendel ligou o telefone para comunicar-se com ele.

Enquanto isso, no canal, Guillam recomeçara a vigiar a casa. O caminho é fechado ao público uma hora antes do anoitecer. Depois disso, esse caminho poderá ser tudo, desde um local de encontros de namorados até um refúgio para marginais; uns e outros, por diferentes motivos, sen­tem-se atraídos pela escuridão das pontes. Naquela noite fria, Guillam não viu nada disso. Por vezes um trem vazio passava em disparada, deixando em seu rastro um vazio ainda maior. Os nervos dele estavam tão tensos, suas ex­pectativas eram tão variadas que, durante alguns momen­tos, enxergou toda a arquitetura daquela noite como uma visão apocalíptica: os sinais da ponte ferroviária transfor­maram-se em cadafalsos; os armazéns vitorianos transfi­guraram-se em gigantescas prisões, com as janelas revesti­das de grades de ferro, que se arqueavam de encontro ao céu coberto de névoa. Mais perto dele, o bulício dos ratos e o mau cheiro da água estagnada. Então as luzes da sala de visita apagaram-se: a casa lá estava em meio à escuri­dão, interrompida por aquelas estrias amarelas de cada lado da janela de Millie, no porão. Um ponto luminoso, na copa, piscava para ele através do jardim abandonado. Tirando do bolso uma lanterna em forma de caneta, ele tirou seu capuz cor de prata, apontou-a, com os dedos trêmulos, ao ponto de onde a luz proviera e retribuiu o sinal. De então em diante só lhe cabia ficar à espera.

 

Tarr atirou de volta a Ben o telegrama que acabara de chegar.

— Vamos — disse ele. —- Mereça o dinheiro que lhe pagam. Abra o telegrama.

— É para você, e pessoal — objetou Ben. — "Pes­soal, de Alleline, para o próprio destinatário decifrar." Eu não estou autorizado a tocar nele. É do chefe.

— Faça o que ele está pedindo, Ben — disse Mackelvedore, e ficou observando Ricki.

Durante dez minutos os três homens não trocaram uma única palavra. Tarr estava de pé do outro lado da sala, longe deles, muito nervoso por causa da espera. Tinha enfiado o revólver no cós da calça, com a coronha para dentro, encostado à virilha. Seu paletó estava em cima de uma cadeira. O suor lhe colara a camisa às costas, em toda sua extensão. Ben estava utilizando uma régua para decifrar os grupos de números e escrevendo cuidadosamen­te o que ia encontrando no bloco de papel quadriculado que tinha diante de si. Para poder concentrar-se, aplicava a língua de encontro aos dentes, estalando-a levemente ao retirá-la dessa posição. Pondo o lápis de lado, estendeu para Tarr a folha que destacara do bloco.

Leia em voz alta disse Tarr.

A voz de Ben assumiu um tom benévolo e um tanto ardoroso. "Pessoal, de Alleline, para ser decifrado pelo destinatário. Exijo positivamente esclarecimentos e/ou amostras de material antes de atender a seu pedido. Cite informações vitais à salvaguarda do serviço. Não citá-las desqualifica. Permita lembrar sua má situação aqui subse­qüente indigno desaparecimento. Urgente falar com con­fiança Mackelvedore imediatamente. Repito: imediatamen­te. Chefe."

Ben ainda não acabara de ler todo o telegrama quando Tarr desatou a rir de um modo estranho e excitado.

É assim que se faz, Percy, meu rapaz! excla­mou ele. Sim quer dizer não! Você sabe por que está negaceando, Ben, querido? Está fazendo a pontaria para me dar um tiro pelas costas! Foi assim que ele pegou minha russa. Está tocando a mesma música, o filho da mãe. Eu o aviso de uma coisa, Ben: há alguns sujeitos sujos neste estabelecimento. Por isso não confie em ne­nhum deles. É o que estou lhe dizendo. Senão você nunca chegará a ser um homem adulto e forte!

 

Sozinho na escuridão da sala de visitas, Smiley tam­bém estava à espera, sentado na desconfortável cadeira da dona da casa, com a cabeça desajeitadamente apoiada no telefone. De vez em quando murmurava alguma coisa e Mendel respondia a ele também num sussurro. Mas per­maneciam ambos em silêncio a maior parte do tempo. Ele estava de ânimo meio abatido, até mesmo um tanto lúgu­bre. A exemplo de um ator, sentia aproximar-se o anticlí­max, antes de subir o pano; sentia que grandes coisas se estavam amesquinhando até chegarem a um fim insignifi­cante; a própria morte lhe parecia insignificante e mes­quinha depois das lutas de sua vida. Não se recordava de ter experimentado qualquer sentimento de conquista. Seus pensamentos, como era freqüente acontecer quando sentia medo, diziam respeito a pessoas. Não nutria teorias ou juízos particulares. Simplesmente ficava imaginando como cada indivíduo seria afetado, e sentia-se responsável por isso. Lembrou-se de Jim, Sam, Max, Connie e Jerry Westerby, e das lealdades para com certas pessoas, todas destruídas. E, numa categoria à parte, lembrou-se de Ann e da desconexão desesperada da conversa que haviam tido nos penhascos de Cornwall. Ficou imaginando se haveria amor entre seres humanos que não se baseasse em alguma forma de auto-ilusão. Gostaria simplesmente de levantar-se e sair antes que as coisas acontecessem, mas não poderia fazer isso. Preocupou-se com Guillam, de um jeito muito paternal, e imaginou como ele aceitaria as últimas tensões dessa etapa, antes de tornar-se um adulto. Lembrou-se no­vamente do dia em que sepultara Control. Pensou nas traições e ficou indagando a si mesmo se acaso haveria traições involuntárias, do mesmo modo que se admitia haver violências involuntárias. Preocupou-se por sentir-se tão fracassado: todos os preceitos intelectuais ou filosófi­cos que ele sustentava agora desabavam por completo, quando, diante dele, apresentava-se uma situação humana.

Alguma coisa? perguntou a Mendel no telefone.

Dois bêbados respondeu Mendel cantando Ver a selva quando ela está molhada pela chuva.

Nunca ouvi falar nessa canção.

Passando o telefone para o lado esquerdo, tirou o revólver do bolso interno do paletó, onde a arma já estra­gara o excelente forro de seda. Agarrou bruscamente o pente de balas, tornou a pô-lo de volta em seu lugar e lembrou-se de que havia feito isso centenas de vezes quando estivera trabalhando numa batida noturna, em Sarratt, antes da guerra. Lembrou-se de que uma pessoa sem­pre atira com as duas mãos: uma segura o revólver, a outra o pente de balas. E lembrou-se de que havia uma história do folclore do Circus, que exigia que se pusesse o indicador ao longo do tambor e puxasse o gatilho com o dedo médio. Mas quando experimentou fazer isso, foi assaltado por uma sensação ridícula e deixou a coisa de lado.

— Eu vou dar uma volta — murmurou.

E Mendel respondeu:

— Está certo.

Ainda empunhando o revólver, voltou à copa, e pro­curou ouvir o ranger das tábuas do assoalho, que poderia denunciá-lo. Mas o assoalho deveria ser de concreto, sob o tapete. Ele poderia ter dado uns pulos sem causar-lhe a menor vibração. Emitiu dois curtos sinais, fazendo lampe­jar sua lanterna. Depois deixou passar um longo intervalo e, em seguida, repetiu a mesma coisa. Guillam respondeu-lhe com três lampejos curtos.

— Estou de volta.

Ok — disse Mendel.

Sentou-se e ficou pensando lugubremente em Ann: sonhar o sonho impossível. Pôs o revólver no bolso. Do lado do canal, o gemer de uma sirena. De noite? Barcos andando durante a noite? Devia ser um automóvel. E se Gerald dispusesse de toda uma técnica de emergência que ele desconhecia completamente? Ligação direta entre ca­binas telefônicas, pick-up em carros? E se Polyakov ti­vesse, afinal, um informante, um auxiliar que Connie iden­tificara? Ele já passara por isso. O sistema fora organizado para ser impermeável, para permitir a realização de reu­niões em quaisquer circunstâncias. Quando se tratava da arte da espionagem, Karla era requintado.

E a idéia de que estava sendo seguido? Que tal isso? E as sombras que nunca vira, apenas pressentira, até que suas costas parecessem estar formigando por causa da inten­sidade do olhar de quem o observava? Ele nada vira, nada ouvira, havia apenas sentido aquilo. Já tinha idade para prestar atenção à advertência. O ranger de uma escada que antes não rangia; o leve ruído de uma persiana, quan­do não soprava a menor aragem; um carro com uma placa de número diferente, mas com o mesmo arranhão do lado externo do pára-lama; aquele rosto no trem subterrâneo que a gente tem certeza de ter visto antes em algum lugar. Durante anos seguidos, tinha convivido com esses sinais. Qualquer um deles era motivo suficiente para mudar-se, ir viver em outra cidade, trocar de identidade. Naquela pro­fissão, que era a sua, não existia o que se denomina coin­cidência.

— Um já saiu — disse Mendel repentinamente. — Alô?

— Estou aqui.

Alguém havia saído do Circus, dissera Mendel. Pela porta da frente, mas não estava certo a respeito de sua identidade. O homem estava de capa de chuva e de cha­péu. Corpulento, e andava depressa. Devia ter chamado um táxi até a porta, e entrara diretamente nele.

— Rumo ao norte, em sua direção.

Smiley olhou para o relógio. "Vou dar-lhe dez minu­tos", pensou. "Doze minutos, porque terá de parar e tele­fonar para Polyakov no meio do caminho." Em seguida, pensou: "Não seja tolo, ele já fez isso lá do Circus".

— Vou desligar — disse Smiley.

— Tudo de bom — falou Mendel.

Guillam interpretou três longos lampejos, vindos da alameda. O toupeira já estava vindo.

Smiley mais uma vez examinara sua rota, na copa, empurrara para o lado algumas cadeiras de lona e prendera um barbante que o orientasse, pois estava enxergando mal na escuridão. O barbante ia até a porta da cozinha, que estava aberta, a cozinha dava para a sala de visitas e a sala de jantar, tendo duas portas, uma do lado da outra. A cozinha era comprida, sendo de fato um anexo da casa, antes de ter-lhe sido acrescida a copa. Smiley pensara em usar a sala de jantar, mas isso seria arriscado demais e, além disso, ele não poderia enviar sinais a Guillam. Por isso ficou à espera na copa, sentindo-se absurdo, só de meias, e limpando os óculos porque o calor de seu rosto os tornava permanentemente embaciados. A copa estava muito mais fresca. A sala de visitas era fechada e supera­quecida, mas a copa tinha paredes externas, e suas vidra­ças e seu assoalho de concreto, sob o tapete, faziam-no sentir os pés úmidos. "O toupeira chega primeiro", pen­sou, "e faz as vezes de anfitrião: isso é do protocolo, faz parte da simulação de que Polyakov é o agente de Gerald."

Um táxi de Londres é uma bomba voadora.

A comparação veio-lhe à mente devagar, do fundo do seu inconsciente. O ruído quando ele penetra no cres­cente, o tique-taque do taxímetro quando desaparecem as notas graves. O desligamento do motor. Onde o carro parou, em que casa, quando todos nós, nessa rua, estamos à espera, no escuro, agachados debaixo de mesas ou agar­rados a pedaços de barbante. Em que casa? Depois o bater da porta, o explosivo anticlímax: se a pessoa for capaz de ouvir, a cilada não será para ela.

Mas Smiley ouviu aquilo, e era para ele.

Ouviu o pisar de dois pés no cascalho, rápidos e vigorosos. O homem parou. "É a porta errada", Smiley pen­sou absurdamente. "Vai embora." Estava com o revólver na mão, e tinha destravado a arma. Ainda à escuta, nada ouviu. E pensou: "Gerald, você suspeita de tudo. Você é um velho toupeira, capaz de farejar que alguma coisa está errada. Millie", pensou; "Millie tirou as garrafas de leite, pôs um aviso, e fez com que ele se afastasse. Millie estragou a caçada." Em seguida ouviu o ruído da fecha­dura que se abria, uma volta, duas. "É uma fechadura Banham", lembrou-se. "Meu Deus, nós precisamos fazer com que Banham continue a ganhar o seu pão." Sem a me­nor dúvida: o toupeira estivera apalpando os bolsos, pro­curando a chave. Um homem nervoso a teria levado na mão, agarrando-se a ela, segurando-a no bolso durante toda a corrida no táxi. Não o toupeira. Ele poderia estar preo­cupado, mas não estaria nervoso. No momento em que a fe­chadura se abriu, a campainha soou; novamente o mau gos­to de quem tomava conta da casa — uma nota aguda, uma grave e a terceira aguda. Isso queria dizer um de nós, Millie lhe dissera. Um dos rapazes, seus rapazes, os rapazes de Connie, os rapazes de Karla. A porta da frente abriu-se, e alguém entrou na casa. Smiley ouviu o barulho do tapete, ouviu a porta fechar-se, ouviu o estalido dos comutadores de luz e viu uma réstia pálida aparecer debaixo da porta da cozinha. Pôs o revólver no bolso e enxugou a palma da mão no paletó. Em seguida, tornou a pegar na arma e, no mesmo momento, ouviu uma segunda bomba voadora, outro táxi que chegava, e um rumor de passos rápidos. Polyakov não só tinha a chave à mão, mas também o dinheiro para o táxi. Ele ficou imaginando se os russos dariam gorjetas, ou se isso seria antidemocrático. A cam­painha tocou novamente, a porta da frente abriu-se e fe­chou-se. Smiley ouviu um duplo tinido no momento em que as duas garrafas de leite foram colocadas sobre a mesa do vestíbulo, no interesse da boa ordem e da boa técnica profissional.

"Deus me proteja", pensou Smiley horrorizado, ao olhar para a velha geladeira da Coca-Cola que estava a seu lado. Isso nunca lhe passara pela cabeça: se o homem tivesse querido pôr as garrafas de novo na geladeira?

A réstia de luz sob a porta da cozinha tornou-se de repente mais viva quando as luzes da sala de visitas foram acesas. Um extraordinário silêncio desceu sobre a casa. Segurando o barbante, Smiley moveu-se para a frente, no gélido assoalho. Em seguida, ouviu vozes, a princípio in­distintas. Eles ainda deveriam estar no extremo da sala, pensou. Ou talvez sempre começassem a conversar em voz baixa. Então Polyakov aproximou-se: estava servindo as bebidas, junto ao carrinho.

— Qual será sua cobertura se formos perturbados? — indagou em bom inglês.

"Voz muito agradável", lembrou-se Smiley, "harmo­niosa como a sua. Eu muitas vezes tocava as fitas duas vezes, só para ouvi-lo falar." Connie deveria estar ouvindo Polyakov naquele momento.

Lá da extremidade silenciosa da sala, cada pergunta era respondida num murmúrio abafado. Smiley nada con­seguia entender. "Onde nós nos reagruparemos?" "Qual é o nosso local de retirada?" "Você está com alguma coisa que prefere que fique comigo durante a conversa, tendo em vista que eu possuo imunidades diplomáticas?"

"Deve ser uma série de perguntas", pensou Smiley, "uma parte da rotina escolar de Karla."

— O interruptor está virado para baixo? Você quer verificar, por favor? Obrigado. O que você vai beber?

— Uísque — disse Haydon. — Uma dose bem grande.

Possuído de um sentimento de absoluta incredulidade, Smiley ouviu aquela voz conhecida ler em voz alta exata­mente o telegrama que ele próprio redigira para ser utili­zado por Tarr quarenta horas antes.

Durante alguns momentos, uma parte do eu de Smiley revoltou-se abertamente contra a outra parte do mesmo eu. A onda de dúvida, cheia de irritação, que o avassalara no jardim de Lacon, e que havia desde então travado o progresso de suas investigações, como se fosse uma inquie­tante vaga, agora o arremessava de encontro às rochas do desespero e, logo, o induzia a rebelar-se: "Eu me recuso a prosseguir. Não há nada que valha a destruição de outro ser humano. O caminho do sofrimento e da traição deve terminar em algum ponto. Enquanto isso não ocorrer, não haverá um futuro, mas apenas um escorregar ininter­rupto até as versões mais terrificantes do presente. Esse homem era meu amigo e o amante de Ann, amigo de Jim e, por tudo quanto eu saiba, também o amante de Jim. A traição, não o homem, pertence ao domínio público".

Haydon tinha traído. Traído como amante, colega e amigo. Traído como patriota, como membro daquela cor­poração inestimável a que Ann dava o vago nome de Gru­po. Sob todos os títulos, Haydon declaradamente buscara atingir uma meta e, secretamente, alcançara a meta con­trária. Smiley sabia muito bem que até mesmo agora não estava alcançando toda a extensão dessa terrível duplici­dade. No entanto, uma parte dele próprio já se levantava em defesa de Haydon. Bill também não estava sendo traí­do? O lamento de Connie soava em seus ouvidos: "Pobres queridos. Educados para servir ao Império, educados para dominar os mares... Vocês foram os últimos, George, você e Bill". Smiley percebeu, com dolorosa clareza, um homem ambicioso, nascido para grandes realizações, cria­do para o mando, para dividir e reinar, cujas visões e vaidades eram, todas elas, firmemente estabelecidas, como acontecia com Percy, naquele jogo da vida. Um homem para quem a realidade era uma pobre ilha onde mal have­ria uma voz capaz de guiar alguém através das águas. Smiley sentiu, portanto, não apenas repugnância. No en­tanto, apesar de tudo quanto aquele momento significava para ele, experimentou uma onda de ressentimento contra as instituições que deveria estar defendendo. "O contrato social age das duas maneiras", afirmara Lacon. A indolen­te mendacidade do ministro, a complacência moral de Lacon, a ambição agressiva de Percy Alleline: aqueles homens invalidavam qualquer contrato. Por que uma pes­soa teria de ser leal a eles?

Ele o sabia, sem a menor dúvida. Sempre soubera que era Bill. Exatamente como Control o soubera, e tam­bém Lacon, na casa de Mendel. Exatamente como Connie e Jim o souberam, e também Alleline e Esterhase, todos eles haviam tacitamente compartilhado dessa meia ciência que não fora expressa e, semelhante a uma doença, tinham esperado que pudesse desaparecer sem que jamais fosse admitida, jamais diagnosticada.

Ann? Ann saberia? Teria sido isso a sombra que se abateu sobre eles naquele dia, junto aos penhascos de Cornwall?

Durante algum tempo foi assim que Smiley perma­neceu de pé: um espião gordo e descalço, como diria Ann, enganado no amor e impotente no ódio, segurando um revólver numa das mãos, e um pedaço de barbante na outra, enquanto esperava, na escuridão. Em seguida, ainda empunhando o revólver, retrocedeu pé ante pé até a jane­la, da qual enviou cinco sinais, breves lampejos, em rápida sucessão. Depois de aguardar o tempo suficiente para veri­ficar que haviam sido recebidos, voltou a seu posto de escuta.

 

Guillam veio correndo pelo caminho de sirga do canal, sacudindo furiosamente a lanterna, até chegar à ponte de arcos, de pouca altura, e à escada de aço que ziguezagueava até a Gloucester Avenue. O portão estava fechado e ele teve de pular sobre ele, rasgando uma das mangas do paletó até a altura do cotovelo. Lacon estava de pé, na esquina da Princess Road, enfiado num velho casaco es­porte e sobraçando uma pasta.

Ele está lá. Ele já chegou sussurrou Guillam. Ele pegou Gerald.

Eu não quero derramamento de sangue adver­tiu Lacon. Quero calma absoluta.

Guillam nem se dignou a responder. Trinta metros adiante, na estrada, Mendel estava à espera, num táxi inofensivo. Eles seguiram no carro, durante uns dois mi­nutos, não mais do que isso, e o táxi parou perto do crescente. Guillam segurava na mão a chave da porta, de Esterhase. Chegando ao n.° 5, Mendel e Guillam pula­ram o portão em vez de arriscar-se ao barulho que ele faria, ao abrir-se, e ficaram sobre a grama que cercava o canteiro. Enquanto caminhavam, Guillam, olhando para trás, acreditou por um momento ter divisado um vulto que os observava, não poderia dizer se homem ou mulher, pois o vulto estava à sombra de um vão de porta, do outro lado da rua. Mas quando Guillam chamou a atenção de Mendel para aquele lugar, nele não havia nada, e Mendel ordenou-lhe, num tom bastante ríspido, que mantivesse a calma. A luz da varanda estava apagada. Guillam adian­tou-se e Mendel ficou à espera debaixo de uma macieira. Guillam enfiou a chave na fechadura, e sentiu que esta ce­dia quando deu volta à chave. "Maluco", pensou triunfante­mente, "por que você não correu o ferrolho?" Ele abriu a porta, apenas uns três centímetros, e hesitou. Estava respirando lentamente, enchendo os pulmões de ar para agir. Mendel avançou mais um pouco. Passaram dois rapa­zes pela rua, rindo alto porque estavam nervosos, devido à noite. Mais uma vez Guillam olhou para trás, mas não havia ninguém no crescente. Penetrou no vestíbulo. Estava com sapatos de camurça, que rangiam sobre o assoalho de tacos, não atapetado. Chegando à porta da sala de visitas, ficou a ouvir durante o tempo necessário para que a cólera, afinal, o possuísse.

Seus agentes, assassinados em Marrocos, seu exílio para Brixton, as frustrações de seus esforços diários à me­dida que ia ficando dia a dia mais velho e a juventude lhe fugia por entre os dedos; a insipidez que o envolvia cada vez mais; a mutilação de sua capacidade de amar, alegrar-se e rir; os freios e restrições que impunha a si mesmo, em nome de uma dedicação tácita. Tudo isso ele poderia atirar no rosto de Haydon. Haydon, seu confessor; Haydon, sem­pre disposto a uma gargalhada, uma conversa e uma xícara de café fervendo; Haydon, um modelo diante do qual ele construíra sua vida.

Mais, muito mais do que isso. Agora ele percebia, agora ele sabia. Haydon era mais do que seu modelo, era sua inspiração. Empunhava a tocha de um tipo de roman­tismo antiquado, uma idéia daquela profissão inglesa que pela própria razão de ser vaga, de não ser plenamente expressa, de ser indefinível atribuíra até então um sen­tido a sua vida. Naquele momento, Guillam sentiu-se não apenas traído, mas também um órfão. Suas suspeitas, seus ressentimentos, há tempo voltados para o mundo da reali­dade para suas mulheres, suas tentativas de amar —, agora voltavam-se para o Circus e para a magia frustrada que constituíra sua fé. Abriu de par em par a porta, com todo o vigor que possuía, e arremeteu dentro da sala, com o revólver na mão. Haydon e um homem corpulento, com um anel de cabelos pretos caídos sobre a testa, esta­vam sentados um em frente ao outro, junto a uma pequena mesa. Polyakov — Guillam o reconheceu pelas fotografias estava fumando um cachimbo muito inglês. Vestia um colete de malha de lã, cinzento, com um zíper na frente, como se fosse a parte superior de uma roupa de praticar atletismo. Nem tivera tempo de tirar o cachimbo da boca quando Guillam deu uma gravata em Haydon. Com um único puxão, Guillam arrancou Haydon da cadeira. Tinha atirado fora o revólver e estava sacudindo Haydon de um lado para outro, como se ele fosse um cão, e o fazia aos brados. Mas aquilo de repente pareceu não ter sentido. Afinal de contas, tratava-se simplesmente de Bill, e eles tinham trabalhado muito, um ao lado do outro. Guillam se havia afastado muito antes de Mendel segurar-lhe o braço, e ouviu a voz de Smiley, convidando, polidamente como sempre, Bill e o Coronel Viktorov, como os chamou, a levantar as mãos e colocá-las sobre as cabeças até a chegada de Percy Alleline.

Não havia ninguém lá fora, em quem você tenha reparado? perguntou Smiley a Guillam, enquanto fica­vam à espera.

Um silêncio de túmulo disse Mendel, respon­dendo pelos dois, Guillam e ele próprio.

 

Há momentos que são cheios demais para que possam ser vividos quando acontecem. Aquele momento foi um deles, para Guillam e todos os presentes. As seguidas dis­trações de Smiley e seus freqüentes e cautelosos olhares através da janela; a indiferença de Haydon; a previsível crise de indignação de Polyakov e suas exigências em ser tratado de acordo com sua qualidade de membro do corpo diplomático — exigências que Guillam, lá de seu canto no sofá, tersamente ameaçou atender; a aturdida chegada de Alleline e Bland; mais protestos; e a peregrinação até o andar de cima, onde Smiley tocou as fitas dos gravadores; o longo e lúgubre silêncio que caiu sobre todos eles depois que voltaram à sala de visitas; a chegada de Lacon; e, finalmente, a de Esterhase e Fawn; a silenciosa atividade de Millie McCraig com o bule de chá; todos esses fatos desenrolaram-se com uma irrealidade teatral que, muito à semelhança de uma viagem até Ascot, numa era anterior, foi intensificada pela irrealidade daquela hora da noite. Também era verdade que aqueles incidentes, que incluí­ram, no início, a subjugação de Polyakov e uma série de palavrões em russo, dirigidos a Fawn, que o atingira com um golpe, Deus sabe onde, a despeito da vigilância de Mendel, pareciam um tolo enredo secundário que contra­riava o único propósito de Smiley ao convocar aquela assembléia: persuadir Alleline de que Haydon oferecera a ele, Smiley, a única oportunidade de negociar com Karla e de salvar, em termos humanitários, se não profissionais, o que restasse das redes que Haydon havia traído. Smiley não tinha poderes para conduzir tais negociações, nem parecia querer tal coisa. Talvez ele pensasse que Esterhase, Bland e Alleline estariam mais bem situados para saber que agen­tes ainda existiriam. De qualquer maneira, ele não tardou em ir para o andar de cima, onde Guillam ouviu que mais uma vez Smiley estava andando compassada e inquieta­mente de uma sala para outra, enquanto prosseguia em sua vigilância junto à janela.

Por isso, enquanto Alleline e seus auxiliares diretos se retiravam para a sala de jantar a fim de conduzir sua transação sozinhos, os demais ficaram sentados em silêncio na sala de visitas, olhando para Haydon ou deliberadamen­te dele afastando o olhar. Haydon parecia não ter cons­ciência de que aquelas pessoas se achavam ali. Com a mão no queixo, sentou-se longe delas, num canto, vigiado por Fawn, dando a impressão de estar bastante entediado. A conferência terminou, os homens saíram todos da sala de jantar e Alleline anunciou a Lacon, que insistira em não estar presente nas discussões, que haveria um encontro em seu endereço, dentro de três dias e, nessa altura, "o coro­nel já teria tido a oportunidade de consultar seus superio­res". Lacon fez um sinal de cabeça, assentindo. Aquela reunião poderia ter sido a do conselho de diretores de uma empresa.

As partidas foram ainda mais estranhas do que as chegadas. Entre Esterhase e Polyakov, de modo especial, os adeuses foram curiosamente pungentes. Esterhase, que sempre preferira ser um cavalheiro a um espião, pareceu decidido a transformar aquela oportunidade em algo de caráter nobre e estendeu a mão a Polyakov, que a apertou impacientemente. Esterhase olhou em derredor, procuran­do Smiley, talvez na esperança de granjear-lhe ainda mais simpatia, mas, em seguida, deu de ombros e passou um braço no largo ombro de Bland. Pouco depois todos eles saíram juntos. Não se despediram de ninguém, embora Bland parecesse terrivelmente prostrado e Esterhase desse a impressão de o estar consolando, embora seu próprio futuro, naquele momento, dificilmente pudesse ser por ele considerado róseo. Logo em seguida chegou um táxi para levar Polyakov, que também se retirou sem dar o mais leve cumprimento de cabeça a ninguém. Nessa altura, a con­versação morrera completamente: sem a presença do russo o espetáculo se tornou lamentavelmente provinciano. Hay­don permaneceu em sua pose costumeira de entediado, sempre sob a vigilância de Fawn e Mendel, e olhando com mudo embaraço para Lacon e Alleline. Outras ligações telefônicas foram feitas, principalmente para chamar táxis. A certa altura, Smiley reapareceu, vindo do andar de cima, e mencionou o nome de Tarr. Alleline telefonou para o Circus e ditou um telegrama para Paris, declarando que ele poderia regressar à Inglaterra com honra, o que quer que isso significasse. E ditou um segundo telegrama dirigido a Mackelvedore, afirmando que Tarr era pessoa aceitável, o que novamente pareceu a Guillam uma questão de ponto de vista.

Finalmente, para alívio geral, uma camioneta sem ja­nelas chegou da Nursery. Dois homens, que Guillam nunca tinha visto antes, saíram dela: um era alto e coxo; o outro, robusto e com cabelos avermelhados. Estremeceu ao per­ceber que eram inquisidores. Fawn foi buscar o casaco de Haydon no vestíbulo, examinou-lhe os bolsos e, respei­tosamente, ajudou que ele o vestisse. Nessa altura, Smiley interveio brandamente, insistindo para que Haydon saísse pela porta da frente, sem que fossem acesas as luzes do vestíbulo, e para que fosse acompanhado por um grande número de pessoas. Guillam, Fawn e até mesmo Alleline foram instados para prestar esse serviço, e, finalmente, ten­do Haydon ao centro, todo aquele grupo variado caminhou às pressas pelo jardim até a camioneta.

"É apenas uma precaução", insistira Smiley. Ninguém estava disposto a discutir com ele. Haydon entrou na ca­mioneta, seguido pelos inquisidores, que cerraram a grade por dentro. No momento em que as portas da camioneta se fecharam, Haydon ergueu uma das mãos num gesto cordial, talvez de despedida, dirigido a Alleline.

Só mais tarde, portanto, é que os fatos distintos vol­taram à mente de Guillam, e pessoas, individualmente, lhe vieram de novo à lembrança: o ódio incondicional, por exemplo, de Polyakov a todos os presentes, a partir da pobre Millie McCraig, o que realmente lhe desfigurara as feições: sua boca entortara-se como a de um selvagem, ele ficara lívido e trêmulo, embora não de medo ou de súbita cólera. Era apenas ódio, puro e simples, de um tipo que Guillam não encontrara em Haydon. Mas Haydon era da mesma espécie que ele próprio.

Quanto a Alleline, no momento de sua derrota, Guillam descobriu sentir por ele uma secreta admiração. Pos­teriormente, no entanto, Guillam não teve tanta certeza de Percy haver percebido, quando os fatos lhe foram apresen­tados, quais eram realmente esses fatos: afinal, ele ainda era o chefe, e Haydon ainda era seu Iago.

Mas o mais estranho para Guillam, uma visão inte­rior que ele guardou para si mesmo e na qual meditou de maneira muito mais profunda do que era costume em seu caso, foi que, apesar da cólera acumulada que sentiu, no momento em que irrompeu na sala, foi-lhe necessário um ato de vontade, bem violento, por sinal, para conside­rar Bill Haydon com outro sentimento diverso da afeição. Talvez, como diria Bill, ele afinal atingira a maturidade. E, melhor do que tudo aquilo, na mesma noite, subiu os degraus do seu apartamento e ouviu as notas familiares da flauta de Camila, ecoando através da escada. E se Camila perdeu, naquela noite, um pouco de seu mistério, pelo me­nos, ao raiar a manhã, ele conseguira libertá-la das malhas da traição em que a tinha ultimamente enredado.

Nos poucos dias que se sucederam, a vida de Guillam também assumiu, sob outros aspectos, perspectivas mais claras. Percy fora afastado, em licença por prazo indefi­nido; Smiley fora convidado a voltar ao serviço por algum tempo a fim de ajudar na operação de limpeza que ainda restava por fazer. Quanto ao próprio Guillam, falava-se em libertá-lo de Brixton. Foi, porém, muito, muito mais tarde que soube ter havido um final. E deu um nome e um pro­pósito àquela sombra familiar que havia seguido Smiley, à noite, pelas ruas de Kensington.

 

Durante os dois dias que se sucederam, George Smiley viveu no limbo. Seus vizinhos, quando repararam nele, acharam que ele parecia mergulhado numa tristeza que o consumia. Levantou-se tarde e ficou andando pela casa, enfiado em seu roupão, limpando objetos, tirando o pó das coisas, preparando ele próprio suas refeições, que não comia. Pelas tardes, infringindo bastante o regulamento do lugar onde morava, acendia um fogo de carvão na lareira e ficava lendo seus poetas alemães ou escrevendo cartas para Ann, raramente concluídas e nunca postas no cor­reio. Quando o telefone tocava, dirigia-se ao aparelho ra­pidamente apenas para ficar desapontado. O tempo lá fora continuava mau, os poucos transeuntes Smiley os es­tudava ininterruptamente passavam encolhidos, numa miséria franciscana. Lacon o visitou uma vez, trazendo uma solicitação do ministro no sentido de que "pudessem contar com a colaboração de Smiley para acabarem com a confusão reinante em Cambridge Circus, se fosse cha­mado para isso" na realidade, servir de "vigia da noite" até ser encontrado um substituto para Percy Alleline. Res­pondendo de maneira vaga, Smiley novamente insistiu jun­to a Lacon para que se tomasse extremo cuidado com a segurança física de Haydon enquanto ele permanecesse em Sarratt.

Você não está sendo um pouco dramático? re­plicou Lacon. O único lugar para onde poderá ir é a Rússia, e nós o mandaremos para lá, de qualquer maneira.

Quando? Brevemente?

Seriam necessários mais alguns dias para acertar os detalhes. Em seu estado de reação anticlimática, Smiley não perguntou como o interrogatório estava progredindo nesse ínterim, mas as maneiras de Lacon sugeriam que a resposta poderia ter sido "mal". Mendel trouxe a Smiley algo de mais substancioso.

A estação ferroviária de Immingham foi fechada disse ele. As pessoas têm de descer em Grimsby e ir até lá a pé ou de ônibus.

Com mais freqüência Mendel limitava-se a ficar sen­tado, olhando para ele, como seria de se esperar no caso de um inválido.

Ficar esperando não fará com que ela venha, você sabe disse Smiley uma vez. É hora de a montanha ir a Maomé. Um coração frio jamais conquistou mulher bonita, se eu posso dizer assim.

Na manhã do terceiro dia, a campainha da porta tocou e Smiley foi atender depressa, pensando que po­deria ser Ann, que teria esquecido sua chave, como de costume. Era Lacon. Smiley estava sendo convocado para ir a Sarratt. Haydon insistia em vê-lo. Os inquisidores nada haviam conseguido com ele, e o tempo estava passando. Parecia que, se Smiley fizesse o papel de confessor, Hay­don daria algumas explicações sobre si mesmo.

Eles garantem que não tem havido qualquer coa­ção disse Lacon.

Sarratt era um lugar lúgubre, desaparecida a grandeza de que Smiley se recordava. Quase todos os olmos tinham morrido, atacados por uma doença; várias torres de rádio haviam brotado no antigo campo de críquete. O próprio edifício, mansão de tijolos que se estendia por uma vasta área, também decaíra bastante desde o auge da guerra fria na Europa, e a maior parte do mobiliário mais fino parecia haver sumido. Ele julgava que teria ido parar numa das casas de Alleline. Smiley encontrou Haydon num abrigo pré-fabricado, oculto no meio das árvores.

O interior desse abrigo exalava o mau cheiro de uma casa da guarda do Exército, e suas paredes eram pintadas de preto. Tinha janelas altas, revestidas de grades. Guar­das vigiavam as salas, nos dois extremos, e receberam Smiley respeitosamente, dando-lhe o tratamento de "se­nhor". Tudo indicava que os rumores se haviam dissemi­nado. Haydon estava vestido com uma roupa de zuarte, trêmulo e queixando-se de tonteiras. Várias vezes fora obrigado a deitar-se para que cessassem umas hemorragias nasais. Deixara crescer a barba, meio a contragosto: pa­recia haver uma controvérsia a respeito de ser-lhe ou não permitido barbear-se.

Ânimo disse Smiley. Brevemente você es­tará fora daqui.

Smiley procurara, durante a viagem, lembrar-se de Prideaux, Irina e as redes tchecas, e até mesmo entrara no quarto de Haydon possuído de uma vaga noção de estar cumprindo um dever cívico. De certo modo, pensou ele, deveria censurar Haydon em nome das pessoas de bem. Mas sentia-se bastante retraído, em vez disso. Teve a im­pressão de que jamais havia conhecido Haydon e de que, agora, era tarde demais para conhecê-lo. Ficou também fu­rioso com o estado físico de Haydon, mas quando chamou os guardas às falas, eles declararam não saber de nada. Fi­cou ainda mais indignado quando soube que as medidas adicionais de segurança a respeito das quais havia insistido tinham sido relaxadas a partir do primeiro dia. Quando pediu para falar com Craddox, chefe da Nursery, disseram-lhe que ele não poderia atendê-lo, e seu assistente portou-se como se fosse mudo.

A primeira troca de palavras entre Smiley e Haydon foi banal e cortada de pausas.

Poderia Smiley fazer o favor de enviar-lhe a corres­pondência que chegasse ao seu clube e dizer a Alleline que tomasse medidas a respeito da troca de agentes com Karla? E ele precisava de lenços de papel para o nariz. Seu hábi­to de chorar, explicou Haydon, nada tinha a ver com re­morso ou qualquer dor, era uma reação física diante do que denominava a mesquinharia dos inquisidores que haviam concluído que ele sabia os nomes de outras pes­soas recrutadas por Karla e estavam decididos a ter esses nomes antes que ele partisse. Havia também uma opinião segundo a qual Fanshawe e os Optimates do Christ Church haviam trabalhado como localizadores de talen­tos para o Centro de Moscou e também para o Circus, explicou Haydon. "Realmente, o que uma pessoa poderia fazer diante de asnos como esses?" Ele conseguiu, apesar de sua debilidade, dar a impressão de que era a única pessoa que tinha a cabeça no lugar, naquele ambiente.

Caminharam pelo terreno da mansão e Smiley veri­ficou, quase desesperadamente, que seu perímetro não era nem mesmo patrulhado, de noite ou durante o dia. Após haverem dado uma volta em torno do terreno, Haydon pediu para voltar à cabana, onde arrancou um pedaço de tábua do assoalho e apanhou algumas folhas de papel co­bertas de hieróglifos. Elas fizeram Smiley lembrar-se inapelavelmente do diário de Irina. Agachado sobre a cama, Haydon as dispôs em ordem e, àquela luz débil, com sua longa mecha de cabelos da testa balançando-se quase até tocar nos papéis, ele poderia estar refestelado na sala de Control, de volta à década de 60, propondo algum plano para a maior glória da Inglaterra, maravilhosamente plau­sível e totalmente irrealizável. Smiley não se preocupou em escrever coisa alguma, porque os dois sabiam que sua conversação estava sendo gravada. As declarações de Hay­don começaram com uma longa apologia, da qual Smiley mais tarde recordou apenas algumas frases:

"Nós estamos vivendo numa época em que só as ques­tões fundamentais têm importância...

"Os Estados Unidos já não têm capacidade de levar adiante sua própria revolução...

"A posição política do Reino Unido não possui rele­vância ou viabilidade moral, nos negócios mundiais..."

Em outras circunstâncias, Smiley poderia ter concor­dado com grande parte dessas afirmações: era o tom, e não a música, que o afastava.

"Na América capitalista a repressão econômica das massas é institucionalizada a um grau que nem mesmo Lênin poderia ter previsto.

"A guerra fria começou em 1917, mas as lutas mais ásperas estão no futuro, no momento em que a paranóia senil da América a levar a maiores excessos no exte­rior..."

Haydon não falou sobre o declínio do Ocidente, mas de sua morte pela cobiça e pela prisão de ventre. Odiava profundamente a América, declarou ele, e Smiley achou que isso era um fato. Haydon também admitiu sem discutir que os serviços secretos eram a única medida verdadeira da saúde política de uma nação, a única verdadeira expres­são de seu subconsciente.

Finalmente, ele chegou a seu próprio caso. Em Oxford, afirmou, tinha realmente sido partidário da di­reita, e, durante a guerra, pouco importava qual o lado em que uma pessoa se colocasse desde que lutasse contra os alemães. Durante algum tempo, a partir de 1945, con­tinuou Haydon, ficara satisfeito com a participação que a Grã-Bretanha tivera na guerra, até que, pouco a pouco, começou a perceber como essa participação fora trivial. Como e quando isso aconteceu era um mistério. Na con­fusão histórica de sua própria vida, ele não poderia indicar uma ocasião: simplesmente sabia que, se a Inglaterra saísse do jogo, o preço do peixe não se modificaria um só vin­tém. Indagara freqüentemente a si mesmo de que lado estaria se o confronto algum dia se verificasse, e após longa reflexão finalmente teve de admitir que se um dos dois monolitos tivesse de ser o vencedor, preferia que fosse o do Leste.

— Trata-se de um julgamento estético como qual­quer outro explicou, erguendo os olhos. Em parte um julgamento moral, sem dúvida.

Sem dúvida declarou Smiley polidamente.

A partir de então, declarou Haydon, foi apenas uma questão de tempo para que aplicasse seus esforços do lado em que estavam situadas suas convicções.

Foi essa a coleta do primeiro dia. Um sedimento bran­co se formara em volta dos lábios de Haydon, e ele reco­meçara a chorar. Eles concordaram em encontrar-se no dia seguinte, à mesma hora.

Será bom entrarmos em certos detalhes, se pu­dermos, Bill disse Smiley ao sair.

Ah, escute, conte as coisas a Jan, está bem? Haydon estava deitado na cama, novamente tentando es­tancar a hemorragia do nariz. Não importa o que você diga, desde que seja coisa definitiva. — Sentando-se na cama, encheu um cheque e o colocou num envelope pardo. Dê isso a ela para a conta do leite.

Talvez percebendo que Smiley não estava muito à vontade com essa razão, Haydon acrescentou:

Bem, eu não posso levá-la comigo, não é mesmo? Ainda que eles permitissem que ela fosse em minha com­panhia, Jan seria um fardo insuportável para mim.

Na mesma noite, seguindo as instruções de Haydon, Smiley tomou o trem subterrâneo até Kentish Town e foi desencavar uma pequena casa que ficava numa antiga es­trebaria. Uma mulher de cara desenxabida, vestindo umas calças de zuarte, abriu a porta para ele, que sentiu um cheiro de óleo e de criancinha pequena. Não conseguiu lembrar-se de a ter visto na Bywater Street e, por isso, começou dizendo o seguinte:

Eu venho da parte de Bill Haydon. Ele está bem, mas eu tenho vários recados dele.

Jesus! disse a moça em voz baixa. Já era tempo.

A sala de estar era sórdida. Smiley enxergou, através da porta da cozinha, uma pilha de louça suja e con­cluiu que ela usava toda a louça até acabar e, depois, a lavava de uma só vez. As tábuas do assoalho não eram atapetadas, mas tinham umas figuras psicodélicas, represen­tando cobras, flores e insetos, pintados em toda a sua ex­tensão.

Isso é o céu de Michelangelo de Bill disse ela num tom coloquial. Só que ele não vai ficar com as costas doentes, como Michelangelo. O senhor trabalha para o governo? indagou, acendendo um cigarro. Ele trabalha para o governo. Ele me disse. A mão de Jan estava trêmula e ela tinha uns borrões amarelos na pálpebra inferior.

Ah, escute, primeiro eu preciso lhe dar isso disse Smiley. E, enfiando a mão no bolso interno do paletó, retirou o envelope com o cheque e entregou-lhe.

Grana disse a moça, colocando o envelope a seu lado.

Grana repetiu Smiley, retribuindo o sorriso de­la. Em seguida, alguma coisa na expressão fisionômica de Smiley, ou a maneira como fizera eco àquela única pala­vra, fez com que a moça tomasse o envelope e o abrisse. Não havia nele nenhum bilhete, apenas o cheque. Mas esse cheque era o que bastava, pois até mesmo do lugar em que estava sentado Smiley pôde ver que tinha quatro alga­rismos.

Sem saber o que estava fazendo, a moça atravessou a sala, indo até junto à lareira, e colocou o cheque ao lado de contas do armazém e de uma velha lata. Entrou na cozinha e preparou duas xícaras de Nescafé, mas veio tra­zendo apenas uma.

— Onde ele está? — indagou. E ficou de pé diante de Smiley. — Foi de novo atrás daquele marinheiro ranhento? E isto é o último pagamento? Ele me está man­dando embora? Bem, você diga a ele da minha parte...

Smiley já conhecera cenas iguais àquela e, naquele momento, as velhas palavras absurdamente lhe acudiram.

Bill está realizando um trabalho de importância nacional. Eu receio não poder falar a respeito disso, e não devo fazê-lo. Ele seguiu para o exterior há alguns dias, para executar uma operação secreta. Deverá permanecer fora do país durante algum tempo. Até mesmo por alguns anos. Não lhe permitiram informar a ninguém que deveria partir. Ele quer que você o esqueça. Eu realmente sinto muitíssimo.

Smiley chegou até essa altura quando ela explodiu em impropérios. Ele não entendeu tudo quanto ela disse por­que a moça estava falando de um jeito impulsivo e aos brados. E quando o bebê a ouviu gritar, começou também a fazer o mesmo, no andar de cima. A moça estava pra­guejando, não contra ele, nem especialmente contra Bill, apenas praguejando, sem chorar, e exigindo que lhe dis­sessem quem seria a desgraçada que ia acreditar no gover­no! Em seguida, seu estado de espírito modificou-se. Smi­ley reparou nos outros quadros de Bill, que pendiam das paredes em derredor, principalmente retratos da moça. Poucos estavam acabados. E de má qualidade, em com­paração com seus trabalhos anteriores.

— Você não gosta dele, não é mesmo? Sou capaz de apostar — disse ela. — Então por que faz esse trabalho sujo para ele?

Parecia não haver uma resposta imediata para essa pergunta. Regressando à Bywater Street, Smiley novamente teve a impressão de que estava sendo seguido, e tentou telefonar para Mendel e dar-lhe o número do táxi que por duas vezes vira, e pedir a Mendel que realizasse imediatas investigações. Dessa vez, Mendel permaneceu ausente de casa até depois da meia-noite. Smiley dormiu um sono agi­tado e acordou às cinco horas. Por volta das oito já estava de volta a Sarratt, encontrando Haydon de humor alegre.

Os inquisidores não o haviam importunado. Craddox o avisara de que a troca de agentes já havia sido acertada, e que deveria esperar viajar no dia seguinte, ou dentro de dois dias. Suas solicitações assumiram um tom de discurso de despedida. O saldo de seus vencimentos e o produto de quaisquer vendas extraordinárias feitas em seu nome se­riam a ele enviados aos cuidados do Banco Narodny, de Moscou, que também se encarregaria de sua correspondên­cia. A Galeria Amolfini, de Bristol, possuía alguns quadros dele, entre os quais umas antigas aquarelas de Damasco, que ele muito desejara ter. Poderia Smiley fazer o favor de providenciar isso? Em seguida, falou sobre o pretexto de seu desaparecimento.

— Faça a coisa render — aconselhou ele. — Diga que eu fui mandado servir em algum posto, mantenha as coisas num tom misterioso. Deixe passar uns dois ou três anos antes de me desacreditar...

— Eu creio que poderemos dar um jeito — disse Smiley.

Pela primeira vez, desde que Smiley o conhecera, Haydon mostrou-se preocupado com roupas. Queria che­gar parecendo alguém, disse ele. As primeiras impressões eram muito importantes. E acrescentou:

— Aqueles alfaiates de Moscou estão abaixo de qual­quer comentário. Vestem as pessoas como uns desgraçados bedéis de igreja.

— É isso mesmo — concordou Smiley, que não tinha melhor opinião a respeito dos alfaiates de Londres.

— Ah! Há um rapaz — disse Haydon displicente­mente —, um marinheiro amigo meu que mora em Notting Hill. — É melhor dar-lhe umas duzentas libras para que fique calado. Você poderá fazer isso, tirando do fundo dos répteis?

— Sem dúvida.

Ele escreveu o endereço do rapaz. E no mesmo espí­rito de boa camaradagem, Haydon começou a entrar no que Smiley chamara detalhes.

Recusou-se a discutir qualquer aspecto de seu recru­tamento ou de suas relações de uma vida inteira com Karla. "De uma vida inteira?", repetiu Smiley imediatamente. "Quando vocês se conheceram?" As afirmações do dia anterior pareceram subitamente desprovidas de senso, mas Haydon não entrou em pormenores a esse respeito.

A partir da década de 50, se pudesse ser dado crédito a Haydon, ele fizera a Karla, de vez em quando, alguns presentes de material informativo. Esses primeiros esfor­ços se limitavam ao que esperava ser diretamente capaz de promover a causa russa diante dos americanos. Haydon fora "escrupuloso em não dar qualquer informação que nos pudesse prejudicar", conforme se expressou, ou pre­judicar nossos agentes que faziam trabalhos de campo.

A aventura de Suez, em 1956, acabou de persuadi-lo da inanidade da situação inglesa e da incapacidade dos ingleses em frustrar o avanço da história, ao mesmo tempo que não poderiam oferecer qualquer contribuição a esse avanço. A sabotagem da ação britânica do Egito, da parte dos americanos, foi, paradoxalmente, um incentivo a mais para ele. Haydon diria, portanto, que a partir de 1956 ele se tornou um toupeira soviético, totalmente comprometido, e trabalhando em regime de tempo integral para os russos, sem quaisquer restrições. Em 1961, recebeu formalmente a cidadania soviética e, durante os dez anos subseqüentes, ganhou duas medalhas soviéticas estranhamente ele não declarou quais tinham sido, embora insistisse que eram "da mais alta qualidade". Infelizmente, os postos para os quais foi designado no além-mar, durante esse período, limita­ram seu acesso às fontes de informação. E como insistia em que suas informações deveriam ser seguidas de ação, onde quer que isso fosse possível "em vez de ficarem jogadas em algum estúpido arquivo soviético" —, seu trabalho era perigoso e desigual. De regresso a Londres, Karla enviou-lhe Poly (evidentemente o apelido de Polyakov), para ser seu auxiliar, mas Haydon sempre achou que a permanente pressão das reuniões clandestinas seria coisa difícil de ser sustentada, especialmente diante da quantidade de material que estava fotografando.

Recusou-se a discutir a respeito de máquinas fotográ­ficas, equipamento, pagamentos ou trabalhos de espiona­gem durante esse período anterior a Merlin, em Londres, e Smiley teve consciência, durante todo o tempo, de que até mesmo o pouco que Haydon lhe estava contando era escolhido com meticuloso cuidado, retirado de uma ver­dade maior e, talvez, algo diferente dessa verdade.

Nesse meio tempo, Karla e Haydon colheram indícios de que Control estava desconfiando de alguma coisa. Ele estava doente, sem dúvida, mas era visível que jamais transmitiria as rédeas do comando enquanto houvesse uma probabilidade de desmascarar Karla. Foi um páreo entre as pesquisas de Control e sua própria saúde. Por duas vezes, Control quase descobrira o mapa da mina e no­vamente Haydon se recusou a dizer como isso acontecera e se Karla não fosse ligeiro, Gerald teria caído na armadilha. Foi nessa situação, que lhe atacava os nervos, que surgira a primeira Operação Merlin e, finalmente, a Operação Testemunho. A Operação Bruxaria foi conce­bida principalmente para cuidar da sucessão de Control: colocar Alleline vizinho no trono, apressar a destruição de Control. Em segundo lugar, naturalmente, a Operação Bruxaria conferiu ao Centro absoluta autonomia sobre o produto que chegava a Whitehall. Em terceiro e, a longo prazo, o mais importante de tudo, insistiu Haydon ela colocou o Circus à altura de ser uma arma importante contra o alvo americano.

Em que grau o material era verdadeiro? inda­gou Smiley.

O padrão sem dúvida variava conforme o que se que­ria alcançar, disse Haydon. Teoricamente, forjar material era muito fácil: bastava que Haydon informasse a Karla a respeito das áreas em que Whitehall não possuía dados, e seriam redigidos informes sobre elas. Por uma ou duas vezes, embora isso fosse um inferno, Haydon declarou que ele mesmo escrevera esses relatórios extras. Era divertido receber, avaliar e distribuir seu próprio trabalho. As van­tagens da Operação Bruxaria, em termos de espionagem, eram, sem dúvida, inestimáveis. Ele colocou Haydon vir­tualmente fora do alcance de Control e lhe deu uma suposta história, rija como ferro de cadinho, para que pudesse en­contrar-se com Poly sempre que assim desejasse. Por vezes passavam-se meses sem que eles se vissem. Haydon foto­grafava os documentos do Circus trancado em sua sala a pretexto de estar preparando o engodo para Polyakov —, entregava-os a Esterhase, juntamente com uma quantidade de material sem valor, e deixava que este os encaminhasse.

— Foi um páreo clássico — declarou Haydon sim­plesmente. — Percy tomou a dianteira, eu segui seus pas­sos, Roy e Toby fizeram o mesmo.

Nessa altura Smiley indagou polidamente se Karla alguma vez pensara em fazer com que Haydon efetiva­mente assumisse a direção do Circus: por que preocupar-se com um cavalo atrás do qual se esconde o caçador para espreitar a caça? Haydon respondeu com uma evasiva, e ocorreu a Smiley que Karla, a exemplo de Control, poderia bem ter considerado que Haydon ficaria melhor no papel de subordinado.

A Operação Testemunho, declarou Haydon, foi um golpe de desespero. Haydon tinha certeza de que Control estava chegando a pique de descobrir tudo. A análise dos arquivos que estava realizando proporcionou-lhe um inven­tário completo e desconfortável das operações que Haydon fizera ir pelos ares ou, por qualquer outro meio, levara a abortar. Control também conseguira reduzir o campo dos suspeitos a um grupo de funcionários de certa idade e ca­tegoria...

— A propósito, o primeiro oferecimento de Stevcek foi verdadeiro? — indagou Smiley.

— Meu Deus, não, que idéia! — disse Haydon, real­mente chocado. — Tudo foi assentado desde o começo. Stevcek existia, sem dúvida. Era um eminente general tcheco. Mas nunca fez qualquer oferecimento a ninguém.

Smiley percebeu que Haydon estava hesitante. Pela primeira vez, parecia de fato constrangido diante da mora­lidade de seu comportamento. Suas maneiras assumiram, visivelmente, um aspecto defensivo.

— Nós precisávamos, evidentemente, ter certeza de que Control iria tomar uma atitude, e de como o faria... quem enviaria. Nós não queríamos que ele apa­nhasse algum batedor de ruas insignificante. Tinha de ser uma figura de primeira grandeza para que a história pe­gasse. Sabíamos que só escolheria alguém que se achasse fora do centro dos acontecimentos e que não estivesse in­formado sobre a Operação Bruxaria. Se nós havíamos inventado um tcheco, Control naturalmente teria de escolher uma pessoa que falasse tcheco.

— Naturalmente.

— Nós queríamos uma pessoa do velho Circus; al­guém que pudesse fazer o templo se abater um pouco.

— Sim — disse Smiley, recordando-se daquela figura arquejante e suarenta lá no alto da colina. — Sim, eu percebo a lógica de tudo isso.

— Bem, que tudo vá para o inferno. Eu o trouxe de volta — falou Haydon num tom ríspido.

— Você fez bem. Diga uma coisa. Jim foi procurar você antes de seguir para a missão Testemunho?

— De fato ele veio me procurar.

— E para lhe dizer o quê?

Haydon hesitou durante muito, muito tempo, e não respondeu. Mas a resposta era patente em seu súbito olhar vazio, na sombra do sentimento de culpa que caiu sobre seu rosto macilento. Ele veio avisá-lo, pensou Smiley, por­que o amava. "Veio avisá-lo, exatamente como me foi avi­sar que Control estava louco, mas não conseguiu encon­trar-me porque eu estava em Berlim. Jim estava lhe dando cobertura até o fim."

Haydon recomeçou a falar e disse, ainda, que teria de ser um país que possuísse uma história de contra-revolução recente.

Smiley parecia não estar prestando muita atenção a ele.

—- Por que você o trouxe de volta? — indagou. — Por amizade? Porque ele era inofensivo e você tinha as cartas na mão?

Não fora exatamente por isso, explicou Haydon. Enquanto Jim permanecesse numa prisão tcheca (ele não disse prisão russa), as pessoas ficariam se agitando por causa dele e veriam nele uma espécie de chave do problema. Depois que estivesse de volta, Whitehall em peso haveria de impor meios de conservá-lo mudo. Esse fora sempre o procedimento de Whitehall em matéria de repartições.

— Estou surpreendido de que Karla não o tenha simplesmente fuzilado. Ou ele se conteve em atenção a você?

Haydon havia, porém, novamente derivado para afir­mações políticas meio duvidosas.

Em seguida, começou a falar acerca de si mesmo e, na opinião de Smiley, já parecia, de um modo bastante visível, estar descaindo ao terreno de coisas muito insig­nificantes e mesquinhas. Ficara impressionado ao ouvir dizer que Ionesco acabara de prometer uma peça na qual o herói permanecia em silêncio, ao passo que todos em seu redor falavam sem cessar. Quando os psicólogos e os his­toriadores que estivessem em voga escrevessem apologias sobre ele, Haydon, esperava que se lembrassem de que fora assim que ele se salvara. Como artista, dissera tudo quanto tinha para dizer, aos dezessete anos, e uma pessoa precisava fazer alguma coisa nos anos subseqüentes. Sen­tia muitíssimo não poder levar em sua companhia alguns dos amigos. Esperava que Smiley se lembrasse dele com afeto.

Nessa altura Smiley desejou dizer-lhe que não se lem­braria dele absolutamente com afeto, e quis dizer-lhe mui­to mais, além disso, mas tudo pareceu fora de propósito e Haydon estava tendo outra hemorragia nasal.

A propósito, eu quero lhe pedir que evite publi­cidade sobre o caso.

Haydon conseguiu rir. Tinha levado o Circus à maior confusão, em caráter particular, e não tinha o menor desejo de repetir o processo em público.

Antes de sair, Smiley fez a única pergunta que ainda o interessava.

Eu tenho de levar tudo ao conhecimento de Ann. Haverá alguma coisa especial que você queira que eu in­forme a ela?

Foram necessárias mais palavras para que ele enten­desse a implicação da pergunta de Smiley. A princípio pensou que Smiley houvesse dito "Jan", e não conseguiu compreender por que ele ainda não procurara a moça.

A sua Ann disse ele, como se houvesse muitas Ann em derredor. Era o que Karla pensava explicou Haydon. Karla reconhecera há muito tempo que Smiley representava a maior ameaça para Gerald. Ele disse que você era muito bom.

Obrigado.

Mas você tinha esse preço: Ann. A última ilusão de um homem sem ilusões. Ele julgava que se todo mundo, no Circus, soubesse que eu era amante de Ann, você não enxergaria as outras coisas com muita clareza. Os olhos de Haydon, observou Smiley, tinham ficado muito parados. Ann os chamava de olhos de estanho. E Haydon pros­seguiu: Não forçar as coisas e tudo mais, e, se fosse possível, acomodar-se, ficar quieto. Compreendeu?

Compreendi disse Smiley.

Na noite da Operação Testemunho, por exemplo, Karla foi inflexível: se fosse possível, Haydon deveria estar divertindo-se com Ann. Uma espécie de medida de se­gurança.

E não houve de fato uma pequena dificuldade naquela noite? indagou Smiley, lembrando-se de Sam Collins, e da dúvida sobre se Ellis tinha ou não levado uns tiros.

Haydon concordou que houvera essa dificuldade. Se tudo tivesse ocorrido conforme os planos, Haydon teria tido a oportunidade de ler o boletim em seu clube depois de Sam Collins haver telefonado para Ann e antes que ele, Haydon, chegasse ao Circus para assumir a direção das operações. Mas pelo fato de Jim ter sido alvejado a tiros, houve uma certa confusão da parte dos tchecos, e o bole­tim só foi distribuído depois que o clube fechou.

Foi uma sorte ninguém ter acompanhado isso disse ele, tirando outro cigarro de Smiley. Qual deles era eu, a propósito? indagou num tom coloquial. Já me esqueci.

O soldado. Eu era o mendigo.

Nessa altura, Smiley já ouvira bastante e, por isso, retirou-se sem se preocupar com despedidas. Entrou em seu carro e rodou durante uma hora, sem rumo, até que se viu numa estrada auxiliar que levava a Oxford, fazendo cento e trinta quilômetros por hora. Aí parou para almo­çar e, em seguida, rumou para Londres. Ainda não conse­guia enfrentar a Bywater Street e, por isso, foi a um cine­ma, jantou num restaurante e chegou em casa à meia-noite, ligeiramente embriagado. Encontrou Lacon e Miles Sercombe à sua porta. O idiota Rolls-Royce de Sercombe, aquele urinol preto, lá estava todo inteiro, em cima do meio-fio, impedindo a passagem de todo mundo.

Seguiram para Sarratt numa velocidade alucinada e, lá chegando, em plena noite e sob um céu límpido, ilumi­nado por várias lanternas de mão, lá estava Bill Haydon sentado num banco do jardim, defronte ao campo de críquete, banhado pelo luar. Vários companheiros seus da Nursery tinham os olhos cravados nele. Haydon vestia um pijama de listras e um sobretudo. O pijama parecia mais um uniforme de prisioneiro. Seus olhos estavam abertos e sua cabeça pendia estranhamente para um lado, como a de um pássaro cujo pescoço tivesse sido quebrado por uma pessoa experiente.

Não houve grandes discussões sobre o que acon­tecera. Às dez e trinta, Haydon se queixara aos guardas de estar com insônia e sentir náuseas, e propôs tomar um pouco de ar fresco. Como seu caso era tido como encer­rado, nenhum deles pensou em acompanhá-lo, e Haydon saiu a caminhar através da escuridão, sozinho. Um dos guardas recordava-se de que ele fizera uma pilhéria, di­zendo que ia "examinar as condições da meta de críquete". O outro guarda estava muito entretido, vendo televisão, para que pudesse se lembrar de alguma coisa. Transcor­rida meia hora, eles ficaram apreensivos e, por isso, o guarda mais antigo no posto saiu para ver o que estaria acontecendo, ao passo que seu auxiliar permaneceu na cabana, caso Haydon a ela voltasse. Haydon fora encon­trado onde estava, sentado. A princípio o guarda pensou que tivesse adormecido. Debruçando-se sobre ele, sentiu cheiro de álcool julgou que fosse gim ou vodca e concluiu que Haydon estava embriagado, o que o sur­preendeu, pois a Nursery proibia expressamente o uso de bebidas alcoólicas. Só quando procurou erguê-lo é que a cabeça dele pendeu, e o resto do corpo a acompanhou como um peso morto. E como Haydon vomitara (havia restos de vômito perto da árvore), o guarda o soergueu, encostando-o no banco, e deu o alarma.

Teria Haydon recebido alguma mensagem duran­te o dia? indagou Smiley.

Não. Mas seu terno tinha sido entregue pela tin­turaria e é possível que alguma mensagem tinha sido ocultada nele; por exemplo, convidando-o para algum en­contro.

Então os russos fizeram isso anunciou o mi­nistro com satisfação, diante da massa informe de Haydon. Para impedir que ele os delatasse, eu suponho.

Não disse Smiley. Eles fazem questão de obter de volta sua gente.

Então quem fez isso?

Todos ficaram esperando a resposta de Smiley, que nada disse. As lanternas foram apagadas e o grupo enca­minhou-se para o carro, com passos incertos.

Nós podemos soltá-lo da mesma maneira? in­dagou o ministro enquanto voltavam para o automóvel.

Ele era cidadão soviético. Eles que fiquem com ele disse Lacon, ainda olhando para Smiley, na es­curidão.

Concordaram que era uma pena quanto às redes. Seria melhor, de qualquer maneira, ver se Karla realizaria a transação.

Ele não vai fazer isso disse Smiley.

 

Recordando tudo aquilo na solidão de seu compar­timento de primeira classe, no trem, Smiley experimentou a curiosa sensação de estar observando Haydon pelo lado errado de um telescópio. Tinha se alimentado muito pouco desde a noite anterior, mas o bar estivera aberto durante a maior parte da viagem.

Saindo da King's Cross Station, passara-lhe pela men­te a melancólica idéia de que gostava de Haydon e o res­peitava: Bill era um homem, afinal de contas, que tivera alguma coisa a dizer e dera seu recado. Mas a estrutura mental de Smiley rejeitava essa simplificação cômoda. Quanto mais se tornava perplexo com a divagadora des­crição que Haydon fizera de si mesmo, mais consciente ficava das contradições da mesma. A princípio procurou ver Haydon segundo a descrição romântica dos jornais, como um intelectual da década de 30, para quem Moscou seria a Meca por excelência. "Moscou era a disciplina de Bill", disse para si mesmo. "Ele tinha necessidade da si­metria de uma solução histórica e econômica." Isso lhe pareceu demasiado insuficiente e, por isso, acrescentou algo mais ao homem de quem estava procurando gostar: "Bill era um romântico e um esnobe. Queria ligar-se a uma vanguarda elitista e conduzir as massas para fora das trevas". Então Smiley lembrou-se das telas inacabadas da sala de visitas da moça, em Kentish Town: carregadas demais, trabalhadas de maneira excessiva, condenadas. Lembrou-se também do espectro do autoritário pai de Bill Ann o chamara simplesmente de monstro e imagi­nou que o marxismo de Bill se formara de sua incapaci­dade como artista e de sua infância privada de amor. Mais tarde, pouco importaria se a doutrina a ele não se ajustasse bem. Bill estava palmilhando aquela estrada, e Karla sabia como mantê-lo preso a ela. A traição, de um modo geral, é uma questão de hábito, concluiu Smiley, tornando a ver Bill deitado no chão, na Bywater Street, enquanto Ann punha música para ele na vitrola.

Bill tinha gostado daquilo também. Smiley não duvi­dara de tal coisa por um só momento. De pé no centro de um palco secreto, atirando o mundo contra o mundo, herói e autor da peça ao mesmo tempo. Ah, Bill gostara mesmo daquilo tudo!

Smiley afastou todas aquelas idéias, desconfiado como sempre das formas padronizadas dos motivos humanos, e fixou-se, em vez disso, num quadro mental daquelas bo­necas russas de madeira, que se abrem, mostrando haver uma boneca dentro de outra, e mais uma terceira e uma quarta. Entre todos os homens deste mundo, somente Karla vira a última e pequena boneca que ficava dentro de Bill Haydon. Quando e como Bill havia sido recrutado? Sua posição direitista em Oxford teria sido uma pose, ou, paradoxalmente, um estado de pecado do qual Karla o chamou para que atingisse o estado de graça?

Karla responderia: "É pena que Smiley não o tivesse feito".

Jim: "Jamais o faria".

Na paisagem sem relevo de East Anglia, enquanto Smiley deslizava lentamente por ela, a fisionomia inflexível de Karla substituiu a retorcida máscara mortuária de Bill Haydon. "Mas você tinha esse único preço: Ann. A última ilusão de um homem sem ilusões. Ele julgava que se todo mundo, no Circus, soubesse que eu era amante de Ann, você não enxergaria as outras coisas com muita clareza."

Ilusão? Era esse realmente o nome que Karla dava ao amor? E Bill?

Vamos disse o condutor em voz muito alta, talvez pela segunda vez. Vamos andando. O senhor vai para Grimsby, não vai?

Não, não. Para Immingham. Então Smiley lembrou-se das instruções de Mendel e saiu do trem com dificuldade, pisando na plataforma.

Não conseguiu encontrar um táxi e, por isso, tendo pedido informações no guichê da estação, ficou de pé ao lado de um sinal verde no qual se lia "Filas". Tinha es­perado que ela talvez pudesse vir buscá-lo, mas era possí­vel que não tivesse recebido o telegrama. Bem. Quem poderia censurar os Correios na época de Natal? Smiley ficou imaginando como Ann receberia a notícia do que acontecera a Bill, até que, lembrando-se do seu rosto ater­rorizado, diante dos penhascos de Cornwall, percebeu que, naquela época, Bill já havia morrido para ela.

"Ilusão?", repetiu ele de si para si. "Falta de ilusões?"

Estava muito frio. Ele esperava que o desgraçado do amante de Ann tivesse encontrado alguma casa bem aquecida para ela morar.

Gostaria de ter trazido para Ann as botas forradas de pele que ficavam no armário debaixo da escada.

Lembrou-se do exemplar do Grimmelshäusen que ainda não tinha ido apanhar no clube de Martindale.

Então ele avistou Ann: aquele horrível carro que ela tinha vinha desviando-se em direção a ele, descendo a pis­ta onde se lia: "Somente para ônibus". Ann, ao volante, olhava para o lado errado. Smiley viu-a sair do carro, dei­xando a luz indicadora de direção piscando. Ela se enca­minhou para a estação a fim de informar-se: alta e gra­ciosa, muito linda. Era, sem dúvida, a mulher de um outro homem.

 

Durante o resto daquele período letivo, Jim Prideaux comportou-se, aos olhos de Roach, como a mãe dele teria feito quando o pai os abandonou. Jim dedicou muito tempo a fazer pequenas coisas, como arranjar a iluminação para a peça teatral da escola, remendar as redes de futebol e, quanto ao francês, dedicou grandes esforços em corrigir pequenas inexatidões. Mas as grandes coisas, como suas caminhadas e seu golfe solitário, tudo isso ele deixou de lado completamente. E durante as noites ficava em casa, não indo à vila. Pior de tudo era seu jeito de olhar, vazio, quando Roach o pilhava desprevenido, e o costume de esquecer de fazer as coisas na sala de aula, até de dar notas. Roach tinha de lembrar-lhe isso, todas as semanas.

Para ajudá-lo, Roach assumiu a tarefa de ser o res­ponsável pelo controle das luzes. Durante os ensaios, Jim tinha de fazer-lhe um sinal especial, dirigido a Bill e a mais ninguém. Levantaria o braço e deixaria que ficasse pendente, de lado, quando quisesse que as luzes da ribalta fossem diminuídas.

Com o passar do tempo, pareceu que Jim estava rea­gindo ao tratamento. Seus olhos tornaram-se mais lumi­nosos e ele voltou a mostrar-se interessado pelas coisas, quando a sombra da morte de sua mãe se foi afastando. Na noite da peça, Jim estava mais alegre do que jamais Roach o vira.

Eh, Jumbo, criatura desprezível, onde está sua capa de borracha... Você não vê que está chovendo? exclamou Jim quando os dois, cansados mas triunfantes, voltaram para o edifício principal da escola, após o espe­táculo. "O nome verdadeiro dele é Bill", Roach ouviu Jim explicar a um parente que ali estava, de visita: "Nós fomos calouros, na mesma época".

Roach finalmente se convencera de que o revólver tinha sido de fato um sonho.

 

 

[1] Em inglês, o substantivo comum "joy" significa "alegria". Daí o jogo de palavras, sem sentido em português.

 

 

                                                                  John le Carré

 

 

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