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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ESTILHAÇO DE GRANADA / Maurice Leblanc
O ESTILHAÇO DE GRANADA / Maurice Leblanc

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ESTILHAÇO DE GRANADA

 

— A partir desse momento, nada mais ouvi.

Ela estava diante de meu pai, hostil, veemente. Seu rosto se contraía com uma expressão verdadeiramente feroz que me dava medo.

Avançando para ele, ela o encurralou, por assim dizer até o pé de uma árvore grande, à direita da capela. E foi tudo brusco, imediato: com uma faca — vi a lâmina subitamente brilhar na penumbra! — ela o atingiu em pleno peito, uma vez... duas vezes, em pleno peito. Meu pai caiu.

— Ah! — balbuciou Elisabeth — seu pai foi assassinado!...

 

 

Cometeram um crime

— E se eu lhe dissesse que estive bem em frente dele, há muitos anos atrás, aqui mesmo, em território francês?

Elisabeth olhou Paul Delroze com a expressão de carinho de uma recém-casada para quem tudo o que o amado diz é motivo de encantamento.

— Você viu Guilherme II aqui na França? — disse ela.

— Com meus próprios olhos e sem que me seja possível esquecer uma única das muitas circunstâncias que marcaram o encontro. E, no entanto, já faz bastante tempo...

Falava com uma gravidade súbita, como se a evocação da lembrança acordasse nele memórias muito penosas. Elisabeth disse:

— Gostaria tanto que você me contasse como foi, Paul!

— Vou-lhe contar — disse ele. — Além do mais, embora eu fosse uma criança na ocasião, o incidente está ligado de maneira tão trágica à minha vida que não poderia deixar de lhe contar tudo com os mínimos detalhes.

Saltaram. O trem tinha parado na estação de Corvigny, ponto final de uma linha que parte de Paris, passa pelo vale do Liseron e chega, seis léguas antes da fronteira, aos contra-fortes da cidadezinha da Lorena que Vauban cercou, conforme diz em suas Memórias, "com os mais perfeitos revelins que se possa imaginar".

A estação apresentava um movimento extraordinário. Havia ali uma porção de soldados e um grande número de oficiais. Uma multidão de viajantes, famílias burguesas, camponeses, operários, banhistas vindos das cidades termais vizinhas servidas pela linha regional de Corvigny, esperava ha plataforma, em meio a um amontoado de embrulhos, a partida do trem seguinte em direção à capital.

Era a última quinta-feira de julho, a quinta-feira que precedeu à mobilização.

Elisabeth angustiada agarrou-se ao marido.

— Oh! Paul! — disse arrepiando-se — permita Deus que não haja guerra!

— Guerra! Ora! que idéia!

— E não é para pensar, com toda essa gente partindo, todas essas famílias se afastando da fronteira?...

— Isso não comprova...

— Não, mas você leu no jornal ainda há pouco. As notícias são muito ruins. A Alemanha se prepara. Ela está com tudo ajustado... Ah! Paul, se tivéssemos que nos separar... e, depois, se eu ficasse sem notícias suas e se você fosse ferido... e se...

Ele lhe apertou a mão.

— Não tenha medo, Elisabeth! Não vai acontecer nada. Para que haja guerra é necessário que alguém a declare. Ora! qual o louco, o criminoso odiento que ousaria tomar essa decisão abominável?

— Não é medo — disse ela —, e tenho até certeza de que seria corajosa se você tivesse de partir. Só que seria mais cruel para nós que para os outros. Pense, meu amor, nós acabamos de nos casar esta manhã.

A lembrança do recente casamento onde havia tantas promessas de alegrias profundas e duradouras, seu bonito rosto alvo iluminado por uma auréola de cachos dourados já sorria com o mais confiante dos sorrisos e murmurou:

— Casados esta manhã, Paul! Então você entende que minha provisão de felicidade não é tão pesada!

Houve um rebuliço na multidão. Todos se agrupavam em torno da saída. Era um general, acompanhado de dois oficiais superiores que se dirigia para o pátio onde o esperava um automóvel. Ouviu-se uma música militar: na rua da estação passava um batalhão de caçadores a pé. Logo em seguida, uma carreta conduzida por artilheiros e atrelada com 16 cavalos, arrastava uma enorme peça de artilharia cuja silhueta, apesar do peso do reparo, parecia leve, visto o comprimento do canhão. E depois, passou uma boiada.

Com duas malas nas mãos, Paul, que não tinha encontrado nenhum empregado, permanecia no passeio, quando um homem com polainas de couro, vestido com calças de veludo verde e paletó de caçador, com botões de chifre, aproximou-se dele, tirando o boné:

— Senhor Paul Delroze? Sou o caseiro do castelo...

Tinha um rosto enérgico e franco, pele endurecida pelo sol e frio, cabelos já grisalhos e aquele ar um pouco rude que têm certos empregados antigos habituados a muita independência. Fazia 17 anos que ele cuidava, sob as ordens do Conde d'Andeville, pai de Elisabeth, da vasta propriedade de Ornequin, pouco acima de Corvigny.

— Ah! é você, Jérôme? — falou Paul. — Muito bem!

Vejo que recebeu a carta do Conde d'Andeville. Nossos empregados chegaram?

— Sim, senhor. Chegaram três esta manhã e nos ajudaram, à minha mulher e a mim, a pôr um pouco de ordem no castelo para recebê-los.

Cumprimentou novamente Elisabeth, que lhe disse:

— Então, está me reconhecendo, Jérôme? Faz tanto tempo que não venho aqui...

— A senhorita tinha quatro anos. Foi uma tristeza para minha mulher e para mim sabermos que não voltaria mais ao castelo... nem o senhor conde, por causa da morte da esposa. Coitada! E o senhor conde, não vai dar uma voltinha por aqui este ano?

— Não, Jérôme, não creio. Apesar de tanto tempo ter já passado, meu pai sente ainda muita tristeza.

Jérôme tinha pegado as malas e as colocava numa carruagem encomendada em Corvigny, que ele tocou para frente. As outras bagagens pesadas, ele as levaria na charrete da fazenda.

O dia estava bonito. Levantaram o capo do carro.

Paul e a esposa acomodaram-se.

— A estrada não é muito longa — disse o caseiro — quatro léguas... Mas sobe.

— O castelo está mais ou menos habitável? — perguntou Paul.

— Bem... não vale um castelo habitado, mas em todo caso o senhor verá. Fizemos o possível. Minha mulher está tão contente com a chegada dos donos... Os senhores a verão ao pé da escada. Eu lhe disse que chegaríamos aí pelas seis e meia, sete horas...

— Bom sujeito — disse Paul a Elisabeth, enquanto partiam —, mas não deve ter muita ocasião de falar. Está recuperando o tempo perdido...

A estrada subia uma ladeira íngreme em direção a Corvigny e constituía, no meio da cidade, entre a dupla fila de lojas, monumentos públicos e hotéis, a sua principal artéria, engarrafada naquele dia por confusão fora do comum. Descia em seguida e contornava os antigos bastiões de Vauban. Depois, havia pequenas ondulações pela planície dominada à direita e esquerda por dois fortes: o Jonas Pequeno e o Jonas Grande.

Foi seguindo essa estrada sinuosa, que serpenteava entre plantações de aveia e trigo, sob uma abóbada de sombra formada por alinhamentos de sicômoros, que Paul Delroze voltou ao episódio de sua infância cuja descrição tinha prometido a Elisabeth.

— Conforme lhe disse, Elisabeth, o episódio está ligado a um drama horrível e tão intimamente ligado a ele que na minha lembrança é como se fosse uma coisa só. Esse drama foi muito comentado na época, e seu pai que, conforme você sabe, era amigo do meu, tomou conhecimento dele paios jornais. Se nada lhe disse foi a pedido meu, e porque eu queria ser o primeiro a lhe contar esses fatos... tão dolorosos para mim.

Suas mãos se uniram. Ele sabia que cada uma de suas frases seria acolhida com fervor e, após um silêncio, continuou:

— Meu pai era um desses homens que inspiram simpatia, até mesmo afeição, a todos os que dele se aproximavam. Entusiasta, generoso, encantador e bem-humorado, exaltava-se por todas as belas causas e por todos os belos espetáculos. Amava a vida e a gozava com uma espécie de sofreguidão.

Em 70, alistado voluntariamente, ganhou nos campos de batalha suas divisas de tenente, e a heroicidade do soldado convinha tão bem à sua natureza que ele se_ alistou pela segunda vez para combater no Tonkin, e pela terceira vez para participar da conquista de Madagascar.

Foi na volta desta campanha, onde conquistou os títulos de capitão e oficial da Legião de Honra que se casou. Seis anos mais tarde ficou viúvo.

Quando minha mãe morreu eu tinha apenas quatro anos, e meu pai me dedicou um carinho ainda mais vivo, porque a morte de mamãe o marcou cruelmente. Fez questão de começar ele mesmo a minha educação. Do ponto de vista físico ele se esforçou para que me desenvolvesse bem e me tornasse um rapaz forte e corajoso. No inverno, nas montanhas da Savóia, na neve e no gelo. No verão íamos cara a beira-mar. Eu o amava com todo o meu coração. Ainda hoje não posso pensar nele sem uma grande emoção.

Aos 11 anos o acompanhei em uma viagem pela França, viagem essa que ele tinha protelado durante anos, porque queria que eu o acompanhasse somente numa idade em que pudesse compreender toda a sua significação. Era uma peregrinação aos mesmos lugares onde havia combatido no passado, durante aquele ano terrível.

Aqueles dias que deviam terminar com uma catástrofe horrorosa deixaram em mim impressões profundas. Às margens do Loire, nas planícies da Campagne nos vales dos Vosges, e sobretudo entre as aldeias da Alsácia, quantas lágrimas derramei vendo jorrar as dele! Com que esperança singela vibrei ao escutar suas palavras animadoras!

"Paul" — ele me dizia — "não duvido nada de que um dia você se defronte com este mesmo inimigo que combati. Desde agora, e apesar de todas as belas frases de paz que você venha a ouvir, odeie com todo o ódio de que for capaz este inimigo. Seja lá o que disserem, é um bárbaro, um monstro orgulhoso, um sanguinário e rapace. Esmagou-nos uma primeira vez, e não descansará até nos arrasar de novo e definitivamente. Neste dia, Paul, lembre-se de cada uma das etapas que percorremos juntos. As que você seguirá serão as etapas de vitória, tenho certeza. Mas não se esqueça nem um minuto dos nomes destas aqui, e que sua alegria de triunfar não apague jamais os nomes de dor e de humilhação que são Froesch-willer, Mars-la-Tour, Saint-Privat e tantos outros! Não se esqueça, Paul..."

E depois, sorrindo:

"Mas para que me preocupar? Ele mesmo se incumbirá de acordar o ódio no coração daqueles que esqueceram e daqueles que nada viram. Será que ele pode mudar? Você verá, Paul, você verá. Tudo o que posso lhe dizer não é nada em comparação com a horrível realidade. São monstros."

Paul Delroze se calou. Elisabeth lhe perguntou com a voz um pouco tímida:

— Você acha que seu pai tinha razão?

— Meu pai estava talvez influenciado por recordações muito recentes. Viajei muito pela Alemanha, até morei lá e creio que o seu estado de espírito já não é o mesmo. Assim, confesso, tenho dificuldade em compreender as palavras dele... No entanto... no entanto elas muitas vezes me preocupam. E o que se passou depois foi tão estranho!

O carro tinha diminuído a velocidade. A estrada subia ligeiramente em direção às colinas que dominam o vale do Liseron. O sol se inclinava para os lados de Corvigny Uma diligência passou por eles, carregada de malas, depois dois automóveis abarrotados de gente e embrulhos. Uma companhia de cavalaria galopava pelos campos.

— Vamos andar — disse Paul Delroze. Seguiram o carro a pé e Paul continuou:

— O que me resta a contar, Elisabeth, se apresenta na minha memória em detalhes bem precisos, que emergem de uma espécie de nuvem espessa onde nada distingo. Posso apenas afirmar que, terminada essa parte da viagem, devíamos ir de Estrasburgo para a Floresta Negra. Por que nosso itinerário foi mudado? Não sei. Dei por mim certa manhã na estação de Estrasburgo, subindo num trem que se dirigia para os Vosges. Meu pai lia e relia uma carta que tinha acabado de receber e que parecia ter-lhe.trazido muita satisfação. Teria essa carta mudado seus projetos? Também não sei. Almoçamos durante a viagem. O calor abafado prenunciava tempestade e adormeci, de maneira que só me lembro da praça principal de uma cidadezinha alemã onde alugamos duas bicicletas, deixando nossas malas no depósito... E depois... como tudo é confuso na minha memória!... viajamos por uma região da qual não me ficou impressão alguma. Num dado momento meu pai me disse:

— Veja, Paul, estamos atravessando a fronteira... eis-nos na França!... E mais tarde, quanto tempo depois?... Ele parou para perguntar o caminho a um camponês que lhe indicou um atalho pelo bosque. Mas que caminho? No meu cérebro, é uma sombra impenetrável onde meus pensamentos estão como enterrados.

Mas subitamente a sombra se rasga, e vejo, com uma clareza surpreendente, uma clareira, árvores imensas, musgos que parecem de veludo e uma velha capela. Sobre tudo isso chovem gotas grandes, cada vez mais fortes, e meu pai me diz:

— Vamos nos abrigar, Paul.

Sua voz, como ecoa em mim! E como consigo reconstituir exatamente a capelinha de muros esverdeados pela umidade! Na parte de trás, onde o teto fazia uma saliência um pouco acima da nave, colocamos nossas bicicletas a salvo. Foi então que o ruído de uma conversa chegou até nós vinda do interior da capela e que distinguimos também o ranger da porta que dava para o lado.

Alguém saiu e disse em alemão:

— Não há ninguém. Vamos rápido.

Neste momento contornávamos a capela com a intenção de ali entrar por aquela porta, e aconteceu que meu pai, que ia na frente, viu-se de repente na presença do homem que teria pronunciado as palavras em alemão.

De ambas as partes houve um movimento de recuo, o estranho contrariado e meu pai atônito com o encontro insólito. Um segundo ou dois talvez, ficaram imóveis um em frente ao outro. Ouvi meu pai murmurar.

— Será possível? O imperador!...

E eu mesmo, espantado com essas palavras, e tendo visto diversas vezes o retrato do Cáiser, não podia duvidar: aquele que estava ali, diante de nós, era o imperador da Alemanha.

O imperador da Alemanha na França! Rapidamente ele abaixou a cabeça e suspendeu, até às abas arriadas de seu chapéu, a gola de veludo de uma enorme pelerine. Ele voltou-se em direção à capela. Uma senhora saía de lá seguida de um indivíduo que mal olhei, uma espécie de empregado. A senhora era alta, jovem ainda, bastante bonita, morena.

O imperador segurou-lhe o braço com grande violência e puxou-a dizendo-lhe, com um tom colérico, palavras que não pudemos distinguir. Retomaram o caminho pelo qual tínhamos vindo, e que conduzia à fronteira. O empregado tinha embarafustado pelo bosque e os precedia.

— Esta aventura está mesmo muito estranha! — disse meu pai rindo. A troco de quê Guilherme II estaria se arriscando por aqui? E em plena luz do dia! Será que a capela apresenta algum interesse artístico? Vamos entrar, Paul?

Entramos. Um pouco de claridade, somente, passava pelo vitral negro de sujeira e de teias de aranhas. Mas essa pouca claridade era o suficiente para vermos grossas colunas, muros nus, nada que pudesse merecer a honra de uma visita imperial, segundo a opinião de meu pai, que acrescentou:

— É evidente que Guilherme II veio ver isto como turista, numa aventura e que está amolado de ter sido surpreendido nesta escapada. Talvez a senhora que o acompanha lhe tivesse garantido que ele não corria risco algum. Daí sua irritação contra ela e suas queixas.

— É curioso, não é, Elisabeth, que todos esses pequenos fatos, que só tinham na realidade uma importância relativa para uma criança de minha idade, eu os tenha registrado fielmente, ao passo que tantos outros, mais essenciais, eu não tenha gravado. Entretanto, enquanto lhe conto, é como se estivesse vendo tudo diante dos meus olhos e como se as palavras ecoassem nos meus ouvidos. E vejo ainda, no momento em que falo, tão nitidamente quanto no momento em que saíamos da capela, a acompanhante do imperador que voltava, atravessava a clareira com passos rápidos e dizia a meu pai:

— Posso pedir-lhe um favor, cavalheiro?

Ela estava aflita, devia ter corrido. E rápido, sem esperar resposta, acrescentou:

— A pessoa que encontrou desejaria ter um entendimento com o senhor.

A desconhecida se exprimia com facilidade em francês. Sem o mínimo sotaque.

Meu pai hesitou. Mas essa hesitação pareceu revoltá-la, como uma ofensa inconcebível para com a pessoa que a enviara, e ela disse num tom áspero:

— Não creio que o senhor tenha a intenção de recusar!

— E por que não? — disse meu pai com impaciência. — Não recebo ordem alguma.

— Não é uma ordem — disse ela se controlando. — É um desejo.

— Está bem, aceito a entrevista. Estou à disposição dessa pessoa.

Ela pareceu indignada:

— Não, não, é preciso que seja o senhor...

— É preciso que seja eu a tomar a iniciativa — disse meu pai bem alto — e sem dúvida que eu passe a fronteira para além da qual se dignem esperar-me! Sinto muito, madame, eis aí uma coisa que não farei. A senhora dirá a essa pessoa que se ela receia de minha parte uma indiscrição, pode ficar tranqüila. Vamos, Paul, venha comigo.

Tirou o chapéu e se inclinou diante da desconhecida. Mas ela lhe barrou o caminho.

— Não, não, o senhor vai-me escutar. Uma promessa de discrição, isso lá conta? Não. Ternos que chegar a uma conclusão de uma maneira ou de outra, e o senhor há de admitir que...

A partir desse momento, nada mais ouvi. Ela estava diante de meu pai, hostil, veemente. Seu rosto se contraía com uma expressão verdadeiramente feroz que me dava medo. Ah! como é que eu não previ?... Mas eu era tão jovem! E além do mais tudo foi tão rápido!... Avançando para o meu pai, ela o encurralou, por assim dizer até o pé de uma árvore grande, à direita dá capela. Suas vozes se elevaram. Ela teve um gesto de ameaça, Ele começou a rir. E foi tudo brusco, imediato: com uma facada — vi a lâmina subitamente brilhar na penumbra! — ela o atingiu em pleno peito, duas vezes... duas vezes, em pleno peito. Meu pai caiu.

Paul Delroze estacou, todo pálido à lembrança do crime.

— Ah! balbuciou Elisabeth — seu pai foi assassinado!... Meu pobre Paul! Meu pobre amigo!...

E ela prosseguiu, ofegante e angustiada:

— E depois, Paul, o que aconteceu? Você gritou?

— Gritei, corri para ele, mas uma mão implacável me segurou. Era o sujeito, o empregado, que surgia do bosque e me agarrava. Vi seu punhal levantado acima de minha cabeça. Senti um choque horrível no ombro. E eu também caí.

 

O quarto fechado

O carro esperava Elisabeth e Paul a certa distância. Chegando ao planalto tinham se sentado à beira do caminho. O vale do Liseron abria-se diante deles em curvas suaves e verdejantes, onde o riacho onduloso era escoltado por duas estradas brancas que seguiam todos os seus caprichos. Atrás, sob o sol. se amontoava Corvigny que se dominava de, no máximo, uma centena de metros. Uma légua mais adiante, se erigiam as pequenas torres de Ornequin e as ruínas do velho torreão.

A jovem ficou calada muito tempo, aterrorizada pela narração de Paul. Por fim lhe disse:

— Ah! Paul,tudo isso é horrível. Você sofreu muito?

— De nada mais me recordo a partir desse momento, de nada mais até o dia em que me vi num quarto que eu não conhecia, sendo tratado por uma prima idosa de meu pai e por uma freira. Era o quarto mais bonito de um albergue situado entre Belfort e a fronteira. Uma manhã, bem cedo, o estalajadeiro tinha descoberto dois corpos imóveis que haviam jogado lá durante a noite, dois corpos banhados em sangue. Logo à primeira vista ele constatou que um desses corpos estava gélido. Era o do meu pobre pai. Eu respirava, mas muito pouco!

A convalescença foi muito longa e entrecortada de recaídas e de acessos de febre, quando, tomado de delírio, eu queria fugir. Minha velha prima, a única parente que me restava, foi extraordinária de dedicação e de atenções. Dois meses mais tarde ela me levou para a casa dela, quase restabelecido de meu ferimento, mas tão profundamente afetado pela morte de meu pai e pelas circunstâncias pavorosas de sua morte que foram necessários diversos anos para recuperar minha saúde. Quanto ao drama em si...

— Qual a explicação? — perguntou Elisabeth que, com o braço, havia envolvido o pescoço do marido num gesto de proteção e amor.

— O drama — disse Paul — é que nunca se pôde desvendar o mistério. A justiça bem que empregou todo o zelo e diligência, tentando verificar as únicas informações de que dispunha, as que eu dei. Todos os seus esforces fracassaram. Essas informações eram além do mais tão vagas! Mais do que se tinha passado na clareira e diante da capela, que é que eu sabia? Onde procurar essa clareira? Onde descobrir essa capela? Em que país o drama se tinha desenrolado?

— Mas no entanto vocês fizeram uma viagem, seu pai e você, para chegar a esse país, e me parece que, partindo da saída de vocês de Estrasburgo...

— É! Você há de convir que não abandonamos esta pista, e que a justiça francesa, não satisfeita em requisitar o apoio da justiça alemã, enviou ao local seus melhores policiais. Mas foi aí precisamente o que, quando atingi idade para compreender, me pareceu o mais estranho: nenhum traço da nossa passagem por Estrasburgo foi relevado. Você lá entende alguma coisa? Ora, se há algo de que eu tenha certeza absoluta, é que comemos e dormimos mesmo em Estrasburgo, pelo menos dois dias inteiros. O promotor que cuidava do caso concluiu que minhas recordações infantis, de criança sofrida, desnorteada, deviam estar erradas. Mas eu sabia que não estavam; eu sabia e sei hoje.

— E agora, Paul?

— Agora não posso deixar de estabelecer uma conexão entre a abolição total de fatos incontestáveis, fáceis de controlar ou de reconstituir, como a estada de dois franceses em Estrasburgo, como a viagem deles pela estrada de ferro, como o depósito de suas malas, como o aluguel de duas bicicletas num lugarejo da Alsácia, uma conexão, digo*, entre esses fatos e o fato primordial a saber, que o imperador esteja direta, sim, diretamente ligado ao caso.

— Mas essa ligação, Paul, o juiz também como você deve ter percebido...

— Evidentemente; mas nem o juiz nem magistrado algum nem nenhuma das personagens oficiais que coletaram deposições quiseram admitir a presença do imperador na Alsácia naquele dia.

— Por quê?

— Porque os jornais alemães tinham assinalado sua presença em Francfort naquela mesma hora.

— Em Francfort!

— Ora! nós sabemos, a presença do imperador é assinalada onde ele manda, e nunca onde ele não quer que o seja. Em todo o caso, neste ponto eu estava de antemão acusado de erro, e o inquérito se chocava com uma série de obstáculos, de coisas impossíveis, de mentiras, de álibis que, para mim, revelavam a ação contínua e todo-poderosa de uma autoridade sem limites. Esta explicação é a única admissível. Vejamos, será que dois franceses podem se hospedar num hotel de Estrasburgo sem que tomem seus nomes no registro do hotel? Ou porque esse registro foi confiscado, ou a página arrancada, nossos nomes não foram encontrados em parte alguma. Sendo assim, nenhuma prova, nenhum indício. Gerentes e empregados de hotel ou restaurante, funcionários da estação, empregados da estrada de ferro, os que alugam bicicletas, eram todos subalternos, ou seja, cúmplices, que receberam ordem de silêncio e obedeceram.

— Mas você, Paul, mais tarde deve ter procurado também.

— Se procurei! Já quatro vezes desde a minha adolescência percorri a fronteira, da Suíça ao Luxemburgo, de Belfort a Longwy, interrogando indivíduos, estudando a paisagem! E quantas horas já não me esforcei cavando até o fundo do meu cérebro para daí extrair uma ínfima lembrança que pudesse me elucidar. Nada. Nessas trevas, nenhuma claridade nova. Três imagens somente saltam através da nuvem espessa do passado: a imagem dos lugares e das coisas que foram as testemunhas do crime: as árvores da clareira, a velha capela, o atalho que foge pelos matos. A imagem do imperador. E a imagem... a imagem da mulher que matou.

Paul tinha abaixado a voz. A dor e o ódio contraíam seu rosto.

— Oh! aquela mulher, nem que eu viva cem anos, eu a estarei vendo diante de mim como se vê um espetáculo cujos detalhes estão em plena luz. A forma de sua boca, a expressão de seu olhar, o tom de seus cabelos, o jeito de seu andar, o ritmo de seus gestos, o desenho de sua silhueta, tudo isso é, para mim, não visão que evoco à vontade, mas algo que faz parte de meu próprio ser. Até se poderia pensar que, durante o meu delírio, todas as forças misteriosas de meu espírito trabalharam para a assimilação completa dessas lembranças odientas. E se hoje já não é mais a obsessão doentia de antigamente, é um sofrimento em certas horas, quando vai anoitecendo e estou só. Meu pai foi assassinado e a mulher que o matou ainda vive, impune, feliz, rica, homenageada, prosseguindo sua obra de ódio e destruição.

— Você a reconheceria, Paul?

— Se eu a reconheceria? Claro. Entre milhares e milhares

de mulheres. E se estivesse transformada pela idade, eu acharia sob suas rugas, o rosto exato da jovem que assassinou meu pai, no final daquela tarde de setembro. Não a reconhecer! Mas até mesmo a cor de seu vestido, eu notei! Não é inacreditável? um vestido cinza com uma renda preta em volta dos ombros, e, no decote, feito broche, um camafeu pesado rodeado por uma serpente de ouro com olhos de rubis. Está vendo, Elisabeth, não esqueci o que não esquecerei jamais.

Calou-se. Elisabeth chorava. Assim como ao seu marido esse passado a envolvia de horror e amargura. Ele puxou-a para si e beijou-lhe a testa.

Ela lhe disse:

— Não esqueça, Paul. O crime será punido porque assim deve ser. Mas sua vida não deve estar submetida a esta recordação de ódio. Somos dois agora, e nos amamos. Olhe para o futuro.

O castelo de Ornequin é uma construção bela e simples do século XVI, com quatro pequenas torres, encimado de pequenos campanários, com janelas altas de pináculo denteado e uma balaustrada fina e saliente no primeiro andar.

Gramados planos em volta do retângulo formado pelo pátio de entrada principal formam uma esplanada, e conduzem pela direita e pela esquerda aos jardins, aos bosques e às hortas. Um dos lados desses gramados termina num grande terraço donde se avista todo o vale do Liseron, e que sustenta, nos limites do castelo, ruínas majestosas de um torreão quadrado.

O conjunto impressiona bastante. Com fazendas e campos à volta, a propriedade, quando bem cuidada, faz transparecer exploração ativa e vigilante. É uma das mais vastas do departamento.

Há dezessete anos atrás, quando da venda que se seguiu à morte do último barão de Ornequin, o Conde d'Andeville, pai de Elisabeth, o comprou a pedido de sua esposa. Casado há cinco anos, tendo pedido demissão de oficial de cavalaria para dedicar-se àquela que amava, viajava com ela quando o acaso os fez visitar Ornequin no exato momento em que a venda, que acabava de ser anunciada nos jornais da região, ia ser efetuada. Hermine d'Andeville entusiasmou-se. O conde, que procurava uma propriedade cuja exploração ocupasse seu tempo livre, fez o negócio por intermédio de,um advogado.

Durante todo o inverno que se seguiu, ele dirigiu, de Paris, os trabalhos de restauração necessários devido ao abandono em que o antigo proprietário tinha deixado o castelo. Queria que a residência fosse confortável e, para que fosse também bela, para ali enviou todos os bibelôs,. tapeçarias, objetos de arte e telas de mestres que decoravam sua mansão de Paris.

Foi somente no mês de agosto que nele se puderam instalar. Ali viveram algumas semanas deliciosas com sua querida Elisabeth de quatro anos e com Bernard, um menino forte que a condessa tinha acabado de dar à luz.

Inteiramente dedicada aos filhos, Hermine d'Andeville jamais saía do jardim. O conde administrava suas propriedades e ia à caça em companhia de seu caseiro Jérôme.

Pois bem, no fim de outubro, tendo-se a condessa resfriado, e tendo o mal-estar que se seguiu conseqüências bastante graves, o Conde d'Andeville decidiu conduzi-la, a ela e aos filhos, para o sul. Duas semanas mais tarde houve uma recaída e, em três dias, ela estava morta.

O conde sentiu o desespero que nos faz compreender que a vida acabou e, seja lá o que aconteça, nunca mais teremos alegrias nem mesmo alívio de espécie alguma. Ele viveu, não tanto pelos filhos como para cultivar em si a memória da morta e para perpetuar uma recordação que se tornou sua única razão de ser.

Incapaz de voltar a esse castelo de Ornequin onde tinha encontrado uma felicidade perfeita e, de outro lado, não admitindo que intrusos pudessem ali morar, deu ordens a Jérôme de fechar as portas e janelas e trancar o quarto de vestir e de dormir da condessa, de maneira a que aí ninguém mais entrasse. Jérôme teve ainda a incumbência de alugar as fazendas a agricultores e de receber os aluguéis.

Essa ruptura com o passado não foi o suficiente para o conde. Coisa estranha para um homem que não existia senão para cultuar a memória de sua esposa. Tudo aquilo que a lembrava, objetos familiares, cenário de vida, lugares e paisagens, era uma tortura para ele, e até mesmo os filhos lhe inspiravam um sentimento de mal-estar que ele não conseguia superar. Tinha na província, em Chaumont, uma irmã mais velha e viúva. Confiou-lhe Elisabeth e Bernard, e partiu em viagem.

Perto da tia Aline, pessoa de sentimento de dever e abnegação, Elisabeth teve uma infância de ternura, seriedade e estudo, onde seu coração se formou ao mesmo tempo que seu espírito e caráter. Recebeu educação aprimorada e uma disciplina moral muito rigorosa.

Aos 20 anos era uma jovem esbelta, corajosa e sem medo, cujo rosto, naturalmente um pouco melancólico, brilhava às vezes com um sorriso dos mais ingênuos e afetuosos, um desses rostos onde estão inscritos, desde cedo, as provações e alegrias que o destino lhes reserva. Eternamente úmidos, os olhos pareciam comover-se com o espetáculo de todas as coisas. Os cabelos, com seus cachos claros, davam-lhe alegria ao semblante.

O conde d'Andeville que, a cada permanência perto dela, entre duas viagens, sucumbia cada vez mais aos encantos da filha, levou-a dois invernos seguidos à Espanha e à Itália. Foi assim que em Roma ela conheceu Paul Delroze, que se reencontraram em Nápoles, depois em Siracusa e depois ao longo de comprida excursão pela Sicília, e essa intimidade os ligou um ao outro com um laço cuja força só perceberam no momento da separação.

Assim como Elisabeth, Paul tinha sido educado na província e, como ela, por uma parente devotada que tentou fazer-lhe esquecer, à forca de cuidados e afeição, o drama de sua infância. Se o esquecimento não veio, ela conseguiu pelo menos continuar a obra do pai, e fazer de Paul um rapaz direito, trabalhador, com vasta cultura, amante da ação e curioso das coisas da vida. Passou pela Escola Central, e, depois do serviço militar, ficou dois anos na Alemanha, estudando in loco certas questões industriais e mecânicas que o apaixonavam acima de tudo.

Com estatura alta, bem proporcionado, cabelos negros penteados para trás, o rosto um pouco magro, queixo voluntarioso, dava impressão de força e energia.

Seu encontro com Elisabeth lhe revelou um mundo de sentimentos e emoções que até então havia desdenhado. Foi para ele, assim como para a jovem, uma espécie de embriaguez, misturada de encantamento. O amor criava neles almas novas, livres, leves, em que o entusiasmo e expansão contrastavam com os hábitos que o tipo severo da existência de ambos lhes tinha imposto. Assim que voltou à França pediu-a em casamento. O pedido foi aceito.

No contrato que se realizou três dias antes do casamento, o conde d'Andeville anunciou que acrescentava ao dote de Elisabeth o castelo de Ornequin. Os dois jovens resolveram nele morar, e Paul procuraria, então, nos vales industriais da região, um negócio que pudesse adquirir e dirigir.

Na quinta-feira 30 de julho casaram-se em Chaumont. Cerimônia íntima porque se falava muito em guerra, embora o conde, baseando-se em informações a que dava o maior crédito, afirmasse que tal eventualidade não podia ser levada em consideração. No almoço de família que reuniu as testemunhas, Paul conheceu Bernard d'Andeville, irmão de Elisabeth, colegial de 17 anos somente, cujas férias começavam e que lhe agradou pelo seu belo porte e pela sua franqueza. Ficou combinado que Bernard se juntaria a eles dentro de alguns dias em Ornequin.

Enfim, à uma hora Elisabeth e Paul deixaram Chaumont pela estrada de ferro. De mãos dadas, os dois iam para o castelo onde deviam passar os primeiros anos de sua união, talvez até todo aquele futuro de felicidade e de quietude que se abre aos olhos maravilhados dos apaixonados.

Eram seis e meia quando perceberam no sopé da escada a mulher de Jérôme, Rosalie, uma bondosa senhora de faces escabiosas e de aspecto alegre. Depressa, antes do jantar, deram uma volta pelo jardim, depois visitaram o castelo.

Elisabeth não continha sua emoção. Embora nenhuma lembrança pudesse perturbá-la, parecia-lhe, no entanto, rever algo da mãe que conhecera tão pouco, de cujo rosto não se lembrava e que ali tinha vivido seus últimos dias felizes. Para ela, a sombra da morta caminhava nas voltas dos caminhos. Os enormes gramados.verdes exalavam um cheiro especial. As folhas das árvores tremiam sob a brisa com um murmúrio que ela parecia já ter ouvido nesse mesmo local, às mesmas horas, e com a mãe ouvindo perto dela.

— Você está triste, Elisabeth? — perguntou Paul.

— Triste não, mas perturbada. É minha mãe que nos acolhe aqui, neste refúgio onde ela sonhou morar e aonde nós chegamos com o mesmo sonho. E por isso certa inquietude me oprime. É como se eu fosse uma estranha, uma intrusa que perturba a paz e o repouso dela. Pense bem! há tanto tempo que minha mãe habita este castelo! Sozinha. Meu pai não quis nunca voltar aqui, e eu me pergunto se nós temos o direito de vir aqui, indiferentes a tudo que não seja nós.

Paul sorriu:

— Elisabeth, minha querida, você está é sentindo impressão de mal-estar que sempre se sente ao chegar ao fim do dia num lugar estranho.

— Não sei — disse ela. — Talvez você tenha razão,,, Entretanto não consigo me liberar desse mal-estar, e isto é tão oposto à minha natureza! Você acredita em pressentimentos. Paul?

— Não, e você?

— Bem, eu também não — disse ela rindo e lhe oferecendo os lábios.

Ficaram surpresos ao encontrar, nos salões e nos quartos do castelo, um ar de cômodos que não deixaram de ser habitados. Seguindo ordens do conde tudo tinha conservado o mesmo jeito que nos dias longínquos de Hermine d'Andeville. Os bibelôs estavam lá, nos mesmos lugares, e todos os bordados, todos os paninhos de renda, todas as miniaturas, todas as belas poltronas do século XVIII, todas as tapeçarias flamengas, todos os móveis colecionados outrora pelo conde para embelezar a casa. Assim, eles davam entrada num ambiente encantador e íntimo.

Após o jantar voltaram ao jardim e aí passearam abraçados e silenciosos. Do terraço viram o vale em plenas trevas através das quais brilhavam algumas luzes. O velho torreão tinha suas robustas ruínas realçadas num céu pálido, onde se arrastava ainda um pouco de claridade confusa.

— Paul — disse Elisabeth falando baixinho —, você reparou que ao visitar o castelo passamos perto de uma porta trancada com um cadeado grande?

— No meio do corredor largo — disse Paul —, e bem pertinho de seu quarto?

— Essa mesma. Era o quarto de vestir que minha pobre mãe ocupava. Meu pai exigiu que fosse fechado, assim como o quarto conjugado, e Jérôme colocou um cadeado e lhe mandou a chave. Assim sendo, ninguém ali penetrou desde então. Tudo que servia à minha mãe, os trabalhos iniciados, seus livros preferidos, tudo ali estão. Está como estava então. E, na parede, entre as duas janelas que estão fechadas, há um retrato dela, que meu pai tinha mandado fazer um ano antes por um grande pintor, um de seus amigos, um retrato em pé e que é a imagem perfeita de mamãe, me disse ele. Ao lado. o genuflexório dela. Hoje de manhã meu pai me. deu a chave do quarto e eu lhe prometi ajoelhar-me nesse genuflexório. e rezar diante deste quadro.

— Vamos embora, Elisabeth.

A mão da jovem tremia dentro da de seu marido quando subiram a escada que conduzia ao primeiro andar. Algumas lâmpadas estavam acesas no corredor. Estacaram.

A porta era ampla, e alta, numa parede espessa e coroada por um trenó com relevos dourados.

— Abra, Paul — disse Elisabeth, cuja voz tremia.

Ela lhe entregou a chave. Ele fez funcionar o cadeado e segurou a maçaneta da porta. Mas subitamente ela apertou o braço do marido.

— Paul, Paul, um instante... Sinto tanta angústia! Pense bem, estou aqui pela primeira vez diante de minha mãe, diante de sua imagem... e você ao meu lado, meu amor... Parece-me que toda minha vida de menina recomeça.

— Sim, de menina — disse ele, apertando-a apaixonadamente contra si —, e de adulta também...

Ela se desvencilhou, reconfortada pelo abraço, e murmurou:

— Entremos, Paul querido...

Ele empurrou a porta, depois voltou ao corredor onde pegou uma das lâmpadas presas na parede e voltou para colocá-la numa mesa.

Elisabeth já tinha atravessado o cômodo e estava diante do retrato.

Como o rosto da mãe estava na penumbra, ela dispôs a lâmpada de maneira a colocá-lo em plena claridade.

— Como é bonita, Paul!

Ele se aproximou e levantou a cabeça. Cambaleante, Elisabeth ajoelhou-se no genuflexório. Mas após alguns instantes, como Paul permanecesse calado, ela o olhou e ficou estupefata.

Ele não se mexia, lívido, os olhos esbugalhados por uma horrenda visão.

— Paul, que é que você tem?

Ele se pôs a recuar em direção à porta, sem poder tirar os olhos do retrato da condessa Hermine. Cambaleava como um bêbado e seus braços se debatiam.

— Esta mulher... esta mulher... — balbuciava com voz rouca.

— Paul! — implorou Elisabeth. — O que é que você quer dizer?

— É esta mulher! Foi ela que matou meu pai.

 

Ordem de mobilização

A horrível acusação foi seguida de um silêncio horripilante. De pé, diante do marido, Elisabeth tentava compreender palavras que ainda não tinham para ela o seu significado real, mas que no entanto a atingiam como facadas profundas.

Deu dois passos na direção dele e, fixando-o nos olhos, articulou, tão baixo que ele mal percebeu:

— Que é que você está dizendo, Paul? Isso é uma monstruosidade!...

Ele respondeu no mesmo tom:

— Sim, é uma monstruosidade! E nem eu mesmo ainda posso acreditar... Eu não quero acreditar...

— Diga que se enganou. Você se enganou, não foi? Confesse...

Ela lhe suplicava em desespero, como se esperasse dobrá-lo.

Por cima do ombro da esposa, ele novamente fitou os olhos no retrato maldito e tremeu da cabeça aos pés.

— Ah! é ela — afirmou cerrando os punhos. — É ela... é ela mesma!... Foi ela que matou...

Um sobressalto de revolta sacudiu a jovem senhora, que, batendo violentamente no peito; exclamou:

— Minha mãe! minha mãe teria matado?... minha mãe! que meu pai adorava e não deixou nunca de adorar!... minha mãe que me acalentou e que me beijava! Eu esqueci tudo dela, mas isso não! Não esqueci a impressão de seu carinho e de seus beijos! Ela não teria jamais matado ninguém!

— Foi ela.

— Ora! Paul! não diga tal infâmia! Como é que pede afirmar, tanto tempo depois do crime? Você era apenas uma criança e você viu aquela mulher tão pouco!... só uns minutos.

— Eu a vi mais do que se pode ver! — exclamou Paul com veemência. — Desde o momento do crime sua imagem não me saiu mais da cabeça. Bem que eu teria gostado de me ver livre dela certas horas, como de um pesadelo! Não consegui nunca! Este é o retrato dela. Tão certo como eu existo, é ela. Eu a reconheço como reconheceria o seu retrato após vinte anos! É ela... Veja, veja, no decote, o broche rodeado por uma serpente de ouro... o camafeu que descrevi para você! Os olhos da serpente... de rubis! e a renda preta em volta dos ombros! É ela! Tenho certeza. É a mulher que eu vi!

Uma fúria crescente o assaltava e ele ameaçava com os punhos o retrato de Hermine d'Andeville.

— Cale-se! — gritou Elisabeth, torturada por cada uma daquelas palavras. — Cale-se! Eu o proíbo...

Ela quis tapar-lhe a boca com a mão para fazê-lo calar. Paul, porém, teve um gesto de recuo como se se recusasse a suportar o contato de sua mulher, e foi um movimento tão brusco, tão instintivo que ela caiu soluçando, enquanto ele. exasperado, louco de dor e de ódio, tomado de uma espécie de alucinação pavorosa que o fazia recuar até à porta, exclamava :

— É ela! a boca ruim, os olhos implacáveis! Ela está pensando no crime. Eu a vejo... Eu a vejo... avançando para meu pai! levantando o braço!... Ela o está matando!... Ah! miserável!...

Ele fugiu...

 

Aquela noite Paul passou no jardim, correndo como um louco por entre aléias obscuras, ou jogando-se extenuado no gramado, chorando, chorando sem parar.

Paul Delroze só havia sofrido pela lembrança do crime, sofrimento atenuado, mas que, no entanto, em certas crises, tornava-se agudo, a ponto de lhe parecer queimadura de uma nova ferida. A dor desta vez foi tal e tão imprevista que, apesar de seu autocontrole habitual e do equilíbrio de sua cabeça, ele perdeu literalmente o raciocínio. Seus pensamentos, seus atos, suas atitudes, as palavras que gritava pela noite adentro foram as de um homem que já não está na posse de suas faculdades.

Uma única idéia vinha sempre ao seu cérebro tumultuado, onde os pensamentos e as impressões voavam como folhas ao vento, uma única idéia horrível: "Eu conheço a mulher que matou meu pai, e a mulher que eu amo é filha dela!"

Será que ele a amava ainda? É claro que chorava desesperadamente uma felicidade que sabia perdida, mas será que amava ainda Elisabeth? Será que poderia amar a filha de Hermine d'Andeville?

De manhãzinha, quando entrou e passou pelo quarto de Elisabeth, seu coração não bateu mais rápido. Seu ódio pela assassina abolia tudo que pudesse palpitar nele de amor, de desejo, de carinho ou mesmo de simples e humana piedade.

O aniquilamento em que caiu durante algumas horas aliviou um pouco seus nervos, mas não mudou a disposição de seu espírito. Pelo contrário, e assim mesmo sem refletir, recusava-se, talvez, com mais força a encontrar-se com Elisabeth. No entanto queria saber, dar-se conta, munir-se de todas as informações necessárias e só tomar com toda a certeza a decisão que iria desatar, numa direção ou noutra, o grande drama de sua vida.

Antes de mais nada deveria interrogar Jérôme e sua mulher, cujo testemunho tomava um valor considerável pelo fato de terem conhecido a Condessa d'Andeville. Algumas questões de datas, por exemplo, poderiam ser esclarecidas imediatamente.

Ele os encontrou em suas dependências, todos os dois muito agitados. Jérôme com um jornal na mão, e Rosalie gesticulando apavorada.

— Pronto, senhor — exclamou Jérôme. — O senhor pode ficar seguro: é para já!

— O quê? — perguntou Paul.

— A mobilização. O senhor verá. Encontrei os guardas, meus amigos, e eles me avisaram. Os comunicados estão prontos.

Paul retrucou distraidamente:

— Os comunicados estão sempre prontos.

— Sim, mas vão expô-los logo mais, o senhor vai ver. Além disso o senhor pode ler o jornal. Aqueles safados — desculpe, mas não há outra palavra —, aqueles safados querem a guerra. A Áustria bem que entraria em negociações, mas, enquanto isso,.eles mobilizam, e isso há já alguns dias. A prova é que já não podemos entrar lá. Além do mais, ontem, não muito longe daqui, demoliram uma estação de trem francesa, e arrancaram os trilhos. O senhor pode ler!

Paul passou a vista pelas últimas manchetes, mas, apesar de ter a consciência da gravidade da situação, a guerra lhe parecia algo tão inverossímil que só prestou uma atenção passageira.

— Tudo vai se arranjar —r concluiu. — É o jeito que eles têm de discutir, com a mão na bainha da espada, mas não posso acreditar...

— O senhor faz mal — murmurou Rosalie.

Ele já não escutava, só pensando no fundo na tragédia do seu destino e procurando por que meios obteria de Jérôme as respostas de que tanto necessitava. Mas, incapaz de conter-se mais tempo, atacou o assunto com franqueza.

— Você talvez saiba, Jérôme, que madame e eu entramos no quarto da Condessa d'Andeville.

A declaração teve no guarda e na mulher um efeito extraordinário como se tivesse sido um sacrilégio penetrar naquele quarto fechado há tanto tempo, o quarto de madame, como o chamavam entre si.

— Meu Deus, como é possível? — balbuciou Rosalie. E Jérôme acrescentou:

— Mas como? Como é possível? Eu tinha mandado «a única chave do cadeado para o senhor conde, uma chave de segurança.

— Ele no-la entregou ontem de manhã — disse Paul. E, logo em seguida, sem se preocupar mais com o espanto deles, interrogou:

— Há, entre as duas janelas o retrato da condessa d'Andeville. Quando é que esse retrato foi colocado lá?

Jérôme não respondeu logo. Refletiu. Olhou sua mulher; depois, após um momento, articulou:

— Muito simples, na época em que o Sr. conde expediu todos os seus móveis para o castelo, antes de se instalar.

— Isto é?

Durante os três ou quatro segundos que Paul esperou a resposta sua angústia foi insuportável. A resposta era decisiva.

— E então? — insistiu.

— Bem, na primavera de 1898.

— 1898!

Essas palavras, Paul as repetiu com uma voz surda. 1898 era exatamente o ano em que seu pai havia sido assassinado!

Sem se dar o luxo de refletir, com o sangue-frio de um promotor que não se afasta do plano traçado, perguntou:

— Quer dizer então que o Conde e a Condessa d'Andeville vieram aqui?...

— O senhor conde e a senhora condessa chegaram ao castelo no dia 28 de agosto de 1898 e retornaram ao sul no dia 24 de outubro.

Agora Paul sabia a verdade, pois o assassinato de seu pai tinha sido em 19 de setembro.

E todas as circunstâncias que dependiam desta verdade, que a explicavam nos seus principais detalhes, ou que dela decorriam, lhe apareceram de uma só vez. Lembrou que seu pai mantinha relações de amizade com o conde d'Andeville. Chegou à conclusão de que o pai teria tido conhecimento, durante sua viagem na Alsácia, da estada de seu amigo d'Andeville na Lorena, e teria projetado fazer-lhe a surpresa de uma visita. Calculou a distância que separava Ornequin de Estrasburgo, distância essa que correspondia bem às horas passadas no trem.

Voltou a interrogar:

— Quantos quilômetros há daqui até a fronteira?

— Exatamente sete, senhor.

— Do outro lado, chega-se a uma cidadezinha alemã bem próxima, não é?

— Sim, senhor. Ebrecourt.

— Pode-se tomar um atalho para ir à fronteira?

— Até meio caminho da fronteira, sim, senhor, um atalho na parte alta do jardim.

— Passando pelo bosque?

— Passando pelo bosque do Sr. conde.

— E nesse bosque...

Não havia outra coisa a fazer, para ter certeza total, absoluta, aquela que resulta, não de uma interpretação dos fatos, mas dos próprios fatos tornados, por assim dizer, visíveis e palpáveis; não havia outra coisa a fazer senão fazer a pergunta máxima: no bosque não havia uma capelinha no meio de uma clareira? Por que Paul Delroze não fazia essa pergunta? Será que-ele a julgava muito precisa, levando o guarda-caça a reflexões e a ilações já motivadas amplamente pela natureza mesmo da conversa?

Contentou-se em dizer apenas:

— A Condessa d'Andeville não viajou durante os dois meses em que morou em Ornequin? Uma ausência de alguns dias...

— Bem, acho que não. Madame não saiu de sua propriedade.

— Ah! ela permanecia no jardim?

— Mas claro! O senhor conde ia quase todas as tardes de carro até Corvigny, ou para os lados do vale, mas a senhora condessa não saía dos jardins nem dos bosques.

Paul sabia o que queria saber. Indiferente ao que pudessem pensar Jérôme e sua mulher, não se deu ao trabalho de dar um pretexto para esta estranha série de perguntas, sem relação aparente umas com as outras. Deixou as dependências dos empregados.

Fosse lá qual fosse sua pressa em ir até o fim de sua pesquisa, deixou para mais tarde as investigações que queria fazer na parte externa do jardim. Poder-se-ia dizer que tinha medo de se achar frente a esta última prova, bem inútil, no entanto, após todas aquelas que o acaso lhe tinha fornecido.

Voltou então ao castelo; depois, quando chegou a hora do almoço, resolveu aceitar o encontro inevitável com Elisa-beth.

Mas a camareira veio-lhe ao encontro no salão dizendo que madame lhe pedia desculpas. Meio adoentada, pedia-lhe a permissão de fazer a refeição no quarto. Ele compreendeu que ela queria deixá-lo inteiramente livre, recusando-se por sua vez a suplicar em favor de uma mãe que ela respeitava e, no final das contas, submetendo-se a priori às decisões do marido.

Ele teve então, almoçando sozinho, sob os olhares das pessoas que o serviam, a sensação profunda de que sua vida estava perdida e que Elisabeth e ele, no dia mesmo de seu casamento, tornavam-se, devido às circunstâncias pelas quais não eram responsáveis nem um nem o outro, inimigos que nada no mundo podia unir. Ele não tinha, lógico, ódio dela e não a acusava pelo crime de sua mãe, mas inconscientemente guardava-lhe rancor, como se fosse sua culpa ser filha daquela mulher.

Durante duas horas, após o almoço, ficou trancado no quarto do retrato, trágica entrevista que queria ter com a assassina, para encher seus olhos com a imagem maldita e para dar às suas recordações uma força nova.

Examinou os mínimos detalhes. Estudou o camafeu, o cisne com as asas abertas que estava lá representado, a cinzelagem da serpente de ouro que servia de moldura, a distância dos rubis, como também a queda da renda em volta dos ombros, o formato da boca, o tom dos cabelos e o traço do rosto.

Era exatamente a mulher que ele havia visto, numa tarde de setembro. Num canto do quadro, havia a assinatura do pintor e, abaixo, um cartão: Retrato da Condessa H. Sem dúvida o quadro tinha sido exposto e tinham se contentado com essa designação discreta: condessa Hermine.

— Vamos — disse Paul para si próprio —, mais alguns minutos e todo esse passado ressuscitará. Encontrei a culpada, só resta achar o local do crime. Se a capela estiver realmente lá, no bosque, a verdade será completa.

Marchou decididamente em direção a essa verdade que receava menos desde que não se podia furtar a seu domínio. E, no entanto, como seu coração batia com grandes pulsações dolorosas, e quão horrível era a impressão ao percorrer esse caminho que conduzia àquele que seu pai havia seguido 16 anos antes!

Um gesto vago de Jérôme tinha-lhe ensinado a direção. Atravessou os jardins, para o lado da fronteira, virando à esquerda e passou perto de um pavilhão. À entrada do bosque abria-se uma grande alameda de pinheiros pela qual embarafustou, a qual, 500 passos adiante, dividia-se em três outras mais estreitas. Duas delas, que ele percorreu, acabavam em mato indevassável. O terceiro levava ao alto de um monte de onde desceu, ainda à esquerda, por outra alameda de pinheiros.

E, ao escolher esta última, Paul deu-se conta de que o motivo de sua escolha era precisamente pelo fato de que essa alameda de pinheiros acordava nele, ele não saberia dizer por quais semelhanças de forma e de posição, reminiscências que lhe guiavam os passos.

De início e por bastante tempo reta, a alameda fazia um ângulo bruscamente ao chegar a um grupo de enormes eucaliptos, onde as cúpulas de folhagem se tocavam; logo depois ela ficou reta e, no final da arcada escura sob a qual ela se encontrava, Paul percebeu a profusão de luz que indica uma grande clareira. '

Na verdade a angústia lhe partia as pernas e teve de fazer um esforço para continuar andando. Seria a clareira onde seu pai tinha recebido o golpe mortal? À medida que seu olhar descobria um pouco mais de espaço luminoso, ele se sentia invadido por uma convicção mais profunda. Assim como no quarto do retrato, o passado tomava nele e diante dele a figura mesma da realidade!

Era a mesma clareira, rodeada por um círculo de árvores que mostravam o mesmo quadro e, coberta por um tapete de ervas e grama que os mesmos caminhos dividiam em setores análogos. Era uma mesma porção do céu que decalcava a massa teimosa das folhagens. È lá, à sua esquerda, velada por dois enormes pinheiros, Paul reconheceu a capela.

A capela! A pequena, velha e maciça capela cujas linhas tinham sulcado como veios no cérebro do rapaz! As árvores crescem, alargam-se e mudam de forma. O aspecto de uma clareira modifica-se. Os caminhes entrelaçam-se de maneira diferente. Podemos nos enganar. Mas aquele, um edifício de granito e de cimento, é imutável. São necessários séculos para lhe dar a cor de um cinza esverdeado que é a marca do tempo sobre a pedra, e aquela patina que não se altera nunca.

A capela que se erguia ali, com sua fachada sulcada por uma rosácea de vitrais empoeirados, era bem aquela onde o imperador da Alemanha tinha surgido, seguido pela mulher que, dez minutos mais tarde, assassinava...

Paul dirigiu-se para a porta. Queria rever o lugar no qual, pela última vez o pai lhe tinha dirigido a palavra. Que emoção! O mesmo telhadinho que havia abrigado suas bicicletas ultrapassava por trás e era a mesma porta de madeira com grandes guarnições de ferro enferrujadas.

Subiu o único degrau. Levantou o trinco. Empurrou o batente. Mas, no momento exato em que entrava, dois homens escondidos na penumbra, à direita e à esquerda, avançaram contra ele.

Um deles apontou-lhe o revólver em pleno rosto. Por qual milagre Paul conseguiu perceber o cano da arma e abaixar-se a tempo para que a bala não o atingisse? Um segundo disparo retiniu. Mas ele já tinha derrubado o homem e lhe tirado a arma das mãos, enquanto o segundo agressor o ameaçava com um punhal. Recuou e saiu da capela com o braço esticado e mantendo-os imóveis com o revólver.

— Mãos ao alto! — gritou.

Sem esperar o gesto que intimava e sem querer, puxou o gatilho duas vezes. Nas duas vezes houve um clique... nenhuma detonação. Mas bastou que atirasse para que os dois desgraçados, apavorados, fizessem meia-volta bem depressa e fugissem rapidamente.

Por um segundo Paul ficou indeciso, estupefato com a surpresa daquela armadilha. Depois, ligeiro, atirou novamente nos fugitivos. Mas o que adiantava? A arma, carregada sem dúvida alguma com duas balas somente, fazia clique, mas não dava estampido.

Pôs-se então a correr na direção tomada pelos seus agressores, lembrando que outrora o imperador e sua acompanhante, distanciando-se da capela tinham tomado essa mesma direção que era evidentemente a da fronteira.

Logo em seguida os homens, vendo-se perseguidos, entraram pelo bosque e embarafustaram pelas árvores Mas Paul, mais ágil, ganhava terreno, e ainda mais rapidamente por ter contornado uma depressão repleta de plantas espinhentas por onde os outros se tinham aventurado.

Subitamente um deles soprou um apito estridente. Seria um sinal endereçado a algum cúmplice? Pouco depois desapareceram por detrás de uma fila de arbustos bem copados. Quando conseguiu ultrapassar esses arbustos Paul divisou, a cem passos diante dele, um muro alto que parecia cercar os bosques de todos os lados. Os homens achavam-se a meio caminho, e ele concluiu que iam direto para uma parte desse muro onde havia uma portinha baixa.

Redobrou os esforços a fim de chegar antes que eles tivessem tempo de abri-la. O terreno descoberto lhe permitia uma locomoção mais rápida, e os homens, visivelmente esgotados, diminuíam a marcha.

— Vou agarrá-los, bandidos! — disse ele alto... — Finalmente vou saber...

Um segundo apito, seguido de um som rouco. Ele estava a apenas 30 passos deles e os ouvia falar.

— Vou agarrá-los! Vou agarrá-los! — repetia com uma alegria selvagem.

E propunha-se a jogar o cano do revólver no rosto de um e agarrar o pescoço do outro.

Mas antes que tivessem alcançado o muro, a porta foi empurrada. E um terceiro indivíduo apareceu, dando-lhes passagem.

Paul atirou seu revólver e tal foi a /fúria de seu movimento e a energia que desenvolveu que conseguiu segurar a porta e puxá-la para si.

A porta cedeu. E o que ele viu então o apavorou a tal ponto que fez um movimento de recuo e não teve idéia de defender-se contra aquele novo ataque. O terceiro indivíduo — oh! pesadelo atroz!... seria possível que fosse outra coisa senão um pesadelo? —, o terceiro indivíduo levantava um punhal para ele, e aquele rosto, Paul o conhecia... Era um rosto semelhante àquele que tinha visto outrora, um rosto de homem e não de mulher, mas o mesmo tipo de rosto, indiscutivelmente o mesmo tipo!... Marcado por mais 16 anos e por uma expressão ainda pior e mais dura, mas o mesmo tipo de rosto, o mesmo tipo...

E o homem golpeou Paul, como a mulher antigamente, como aquela que, desde então morta, havia golpeado seu pai.

Se Paul Delroze baqueou, foi mais pelo choque nervoso causado pela fisionomia desse fantasma, do que pela lâmina do punhal que, batendo no botão que fechava as dragonas de seu casaco, partira-se em pedaços. Desnorteado, os olhos como cobertos por uma nuvem, percebeu o barulho da porta, depois o ranger da chave na fechadura e, enfim, o ruído de um automóvel que dava partida do outro lado da muralha, Quando Paul saiu do seu torpor, não havia nada mais a fazer. O indivíduo e seus dois acólitos estavam fora de alcance.

No momento, aliás, o mistério da semelhança entre a pessoa de antigamente e a pessoa de agora o absorvia por completo. Ele só pensava nisso: A Condessa d'Andeville está morta, e eis que ressuscita sob ~& aparência de um homem cujo rosto seria o mesmo que ela teria atualmente. Rosto de parente? rosto de irmão desconhecido, de irmão gêmeo?

E pensou:

— Afinal, será que não me engano? Não estarei sendo vítima de uma alucinação, tão natural na crise que atravesso? Quem me garante que haja a mínima relação entre o passado e o presente? Precisaria de uma prova.

Esta prova estava à disposição de Paul, e tão forte que lhe foi impossível duvidar por mais tempo.

Tendo avistado no chão os pedaços do punhal apanhou o cabo.

Na ponta desse cabo, quatro letras estavam gravadas como a ferro ardente: um H, um E, um R e um M.

HERM... as quatro primeiras letras de Hermine!

...Foi nesse instante, enquanto contemplava as letras que tomavam para ele tal significado, foi nesse instante — e Paul não devia mais esquecer — que o sino de uma igreja próxima começou a badalar de um modo estranho, um badalar regular, monótono, ininterrupto, e, ao mesmo tempo, tão alegre e tão comovente!

— O rebate! — murmurou, sem ligar essas palavras ao sentido que habitualmente se dava àquele tipo de toque.

— Algum incêndio, provavelmente.

Dez minutos depois conseguia, utilizando galhos grandes que ultrapassavam o nível das árvores, pular o muro. Outros bosques se estendiam a perder de vista, atravessados por um atalho. Seguiu por esse atalho os traços do automóvel e, em uma hora, alcançou a fronteira.

Um posto policial alemão acampava no sopé de uma colina e percebia-se uma estrada branca onde desfilavam lanceiros.

Mais além, uma porção de telhados vermelhos e de jardins. Seria a aldeia onde outrora seu pai e ele haviam alugado as bicicletas, a aldeia de Ebrecourt?

O rebate melancólico não tinha cessado. Ele se dava conta de que o som vinha da França, e que até outro sino soava em algum lugar, igualmente na França, e um terceiro do lado de Liseron, e todos os três com a mesma pressa, corro se lançassem em volta deles um apelo perdido.

Ele repetia com ansiedade:

— O rebate... o rebate... E passando de igreja em igreja... será que?...

Mas afastou o pensamento horrível. Não, não, estava escutando mal, ou era o eco de um só sino que ressoava pelos vales e rolava pelas planícies.

Olhava no entanto a estrada branca que saía da aldeia alemã e reparou que uma onda contínua de cavaleiros chegava por ali e se espalhava pelos campos. Além disso um destacamento de dragões franceses surgiu no alto de uma colina. Com umas lentes o oficial estudou o horizonte, depois prosseguiu com seus homens.

Então, não podendo ir mais adiante, Paul voltou até o muro que tinha pulado e constatou que esse muro cercava realmente toda a propriedade, o bosque assim como os jardins. Soube além do mais, através de um velho camponês, que a construção datava de uns 12 anos, o que explicava por que, em suas explorações pela fronteira, Paul nunca tinha encontrado a capela. Uma única vez, lembrava-se, alguém lhe tinha falado de uma capela, mas situada dentro de uma propriedade cercada. Como poderia ele ter-se preocupado?

Seguindo assim os contrafortes do castelo, aproximou-se do município de Ornequin propriamente dito, cuja igreja apareceu logo no fundo de um espaço desmoitado em meio ao bosque. O sino, que ele não ouvia há já algum tempo, soou novamente bem nítido. Era o sino de Ornequin. A voz era fina, cortante como uma queixa e, apesar de sua pressa t. leveza, mais solene que as vésperas que anunciam a morte.

Paul dirigiu-se para ele.

Uma linda aldeia, toda florida de gerânios e margaridas, em volta de sua igreja. Grupos silenciosos estacionavam diante de um cartaz fixado à parede da prefeitura.

Paul avançou e leu:

"ORDEM DE MOBILIZAÇÃO"

Em qualquer outra época de sua vida, estas palavras lhe teriam aparecido com todo o seu formidável e lúgubre significado. Mas a crise que ele atravessava era forte demais para que uma emoção, mesmo grande, pudesse perturbá-lo. Apenas conseguiu formar conjeturas sobre as conseqüências fatais dessa notícia. Era, pois, a mobilização. À meia-noite, começava o primeiro dia da mobilização. Se cada um tinha de partir, ele partiria, então. E isso tomava no seu espírito a forma de um ato tão imperativo, as proporções de um dever que dominava de tal forma todas as pequenas obrigações e todas as pequenas necessidades individuais que ele sentiu até uma espécie de alívio em receber de fora a ordem que sua conduta lhe ditava. Não havia que hesitar.

O dever era partir.

Partir? E nesse caso, por que não partir imediatamente? Para que voltar ao castelo, rever Elisabeth, procurar uma explicação dolorosa e vã, concordar em conceder ou recusar um perdão que sua mulher não lhe pedia, mas que a filha de Hermine d'Andeville não merecia?

Diante do albergue principal uma diligência esperava, e nela havia a inscrição:

Corvigny-Ornequin — Serviço da estação

 

Algumas pessoas aí se instalavam. Sem mais refletir numa situação que os próprios acontecimentos resolviam a sua maneira, subiu.

Na estação de Corvigny disseram-lhe que seu trem só partiria dentro de uma meia hora e que não havia outro. O trem da noite, que fazia correspondência com o expresso noturno na linha central tinha sido suprimido.

Paul assegurou seu lugar e depois, após ter-se informado, voltou à cidade até o escritório de um homem que alugava carros e possuía dois automóveis.

Entendeu-se com ele. Ficou decidido que o automóvel maior iria sem mais tardar ao castelo de Ornequin e seria posto à disposição da Sr? Paul Delroze.

E escreveu à esposa estas poucas palavras:

 

Elisabeth,

As circunstâncias são suficientemente graves para que eu lhe peça que deixe Ornequin. Como as viagens de trem não estão mais seguras, estou lhe enviando um automóvel que a conduzirá esta noite mesmo a Chaumont, para a casa de sua tia. Suponho que os empregados quererão acompanhá-la e que, em caso de guerra, que, apesar de tudo me parecer ainda improvável, Jérôme e Rosalie fecharão o castelo e partirão para Corvigny.

Quanto a mim, volto ao meu regimento. Qualquer que seja o futuro que nos esteja reservado, Elisabeth, jamais esquecerei aquela que foi minha noiva e que assina o meu nome.

  1. Delroze

 

Carta de Elisabeth

Às nove horas a posição era insustentável. O coronel estava enraivecido.

Desde o meio da noite — isto se passava no primeiro mês da guerra, no dia 22 de agosto — ele havia trazido seu regimento à encruzilhada dessas três estradas das quais uma desembocava do Luxemburgo belga. Na véspera o inimigo ocupava as linhas da fronteira, a 12 quilômetros mais ou menos. Deviam, ordem formal do general que comandava a divisão, contê-lo até o meio-dia, isto é, até que a divisão inteira se pudesse reunir. Uma bateria de 75 apoiava o regimento.

O coronel havia disposto seus homens numa curva do terreno. A bateria se escondia também. Ora, desde as primeiras luzes do dia, regimento e bateria tinham sido avistados pelo inimigo e copiosamente regados de granadas.

Estabeleceram-se a dois quilômetros à direita. Cinco minutos depois, as granadas caíam e matavam meia dúzia de homens e dois oficiais.

Novo deslocamento. Dez minutos mais tarde novo ataque. O coronel obstinou-se. Em uma hora havia 30 homens fora de combate. Um dos canhões foi demolido.

E só eram nove horas.

— Valha-nos Deus! — disse o coronel. — Como é que eles podem descobrir-nos desta forma? Há bruxaria nisso!

Ele se escondia com seus comandantes, com o capitão de artilharia e alguns homens encarregados da ligação, por trás de um barranco por cima do qual se descortinava um horizonte bastante vasto de planaltos ondulados. Não muito longe, à esquerda, uma aldeia abandonada. A frente, fazendolas dispersas e, por toda a distância descoberta, nem um único inimigo à vista. Nada que pudesse indicar de onde vinha essa chuva de granadas. Inutilmente os 75 haviam "tateado" alguns pontos. O fogo continuava sem parar.

— Ainda três horas para agüentar — exclamou o coronel. —Nós agüentaremos, mas um quarto do regimento vai morrer.

Neste momento uma granada silvou entre os oficiais e os homens encarregados da ligação e esbarrou em pleno chão. Todos tiveram um movimento de recuo à espera da explosão. Mas um dos homens, um cabo, atirou-se, segurou a granada e a examinou.

— O senhor está louco, cabo! — gritou o coronel. — Largue isso e rápido.

O cabo repôs vagarosamente o projétil no buraco, depois, depressa, aproximou-se do coronel e bateu continência:

— Desculpe, coronel, quis ver na espoleta a distância em que se acham os inimigos. Cinco quilômetros e 250 metros. A informação pode ter valor.

Sua calma confundiu o coronel, que gritou:

— Santo Deus! E se tivesse explodido?

— Ora, coronel, quem não arrisca...

— Evidentemente... mas de qualquer forma, não é qualquer um... Como é que você se chama?

— Paul Delroze. Cabo na terceira companhia.

— Muito bem, Cabo Delroze, eu o felicito por sua coragem, e creio mesmo que seus galões de sargento não estão longe. Enquanto isso, um bom conselho: não repita esse gesto.

Sua frase foi interrompida pela explosão, bem próxima, de um obus. Um dos homens de ligação caiu, ferido no peito, enquanto um oficial tropeçava sob uma massa de terra que lhe caíra em cima.

— Vamos — disse o coronel quando a ordem foi restabelecida —, não há nada a fazer senão curvar a cabeça sob a tempestade. Que cada um se ponha ao abrigo da melhor maneira possível, e paciência.

Paul Delroze deu um passo à frente de novo.

— Desculpe, coronel, de me meter no que não é de minha conta, mas podíamos evitar, eu acho...

— Evitar a metralhadora? Ora! Só preciso mudar de posição mais uma vez. Mas como logo depois seremos descobertos... Vamos, rapaz, retorne ao seu posto.

Paul insistiu:

— Talvez, coronel, não fosse caso de mudar nossa posição, mas mudar o tiro do inimigo.

— Ora! Ora! — disse o coronel um pouco irônico, mas impressionado, no entanto, com o sangue-frio de Paul. — E o senhor conhece o meio?

— Sim, coronel.

— Explique-se.

— Dê-me 20 minutos, coronel, e em 20 minutos as granadas mudarão de direção.

O coronel não pôde deixar de sorrir.

— Perfeito! E sem dúvida o senhor as fará cair onde o senhor quiser?

— Sim, coronel.

O capitão de artilharia, que tinha escutado a conversa, zombou por sua vez:

— Aproveitando o ensejo, cabo, já que o senhor me forneceu a indicação da distância, e já que conheço mais ou menos a direção, o senhor não poderia precisar esta direção a fim de que eu regule meu tiro exatamente e possa demolir as baterias alemãs?

— Será mais longo e muito mais difícil, capitão — respondeu Paul. — Tentarei, no entanto. Às 11 horas precisamente, peço-lhes examinar o horizonte, do lado da fronteira. Lançarei um sinal.

— Qual?

— Ignoro. Três espoletas...

— Mas seu sinal só terá valor se sair por cima mesmo da posição inimiga.

— Justamente.

— E para isto precisaríamos conhecê-la...

— Eu a conhecerei.

— E chegar até lá...

— Eu chegarei.

Paul fez uma saudação, bateu os calcanhares e deu meia-volta, e antes mesmo que os oficiais tivessem tempo de aprová-lo ou de emitir uma objeção, deixou-se escorregar correndo ribanceira abaixo, embarafustou à esquerda por uma espécie de cratera cujas bordas estavam cheias de mato e desapareceu.

— Sujeito esquisito — murmurou o coronel. — Aonde será que ele quer chegar?

Semelhante decisão e audácia depunham em favor do jovem soldado e, se bem que só tivesse uma confiança bastante limitada no resultado da tarefa, foi-lhe impossível deixar de consultar diversas vezes seu relógio durante os minutos que passou com seus oficiais, atrás do fraco contraforte de um montão de feno. Minutos horríveis, quando o chefe do destacamento não pensa um momento sequer no perigo que o ameaça, mas no de todos aqueles que lhe foram confiados e que considera como filhos.

Ele os via à volta de si, deitados pelo solo, a cabeça coberta pelas mochilas, amontoados pelos cantos ou encurralados nos buracos do chão. A tempestade de ferro encarniçava-se contra eles. Precipitava-se como uma chuva enraivecida que quer desempenhar a toda pressa seu trabalho de destruição. Sobressaltos de homens que' fazem uma pirueta e caem imóveis, gemidos de feridos, gritos de soldados que se interpelam, brincadeiras mesmo... E, por cima, o trovejar ininterrupto das explosões...

E, depois, subitamente o silêncio, um silêncio total, definitivo, um alívio infinito no espaço e na terra, uma espécie de libertação inexprimível. O coronel expressou sua alegria por uma gargalhada.

— Cristo! O Cabo Delorze é um homem e tanto. O cúmulo seria que a plantação de beterrabas em questão fosse encharcada por sua vez, como prometeu.

Ainda não tinha terminado e uma bomba já explodia a 1.500 metros ã direita, não exatamente em cima do terreno de beterrabas, mas à frente. Uma segunda foi longe demais. Na terceira o local havia sido descoberto. E a lavagem começou.

Havia aí, na realização da tarefa em que se tinha empenhado o cabo, algo de tão prodigioso por um lado, e, por outro, de tal precisão matemática, que o coronel e seus oficiais não duvidaram, por assim dizer, de que ele fosse até o fim da tarefa, e que, apesar dos obstáculos intransponíveis, não conseguisse dar o sinal combinado.

Sem parar, perscrutaram o horizonte com seus binóculos, ao passo que o inimigo redobrava esforços contra o terreno de beterrabas.

Às 11 horas e cinco minutos, viram uma espoleta vermelha.

Apareceu muito mais à direita do que se pudesse imaginar.

E duas outras se seguiram.

Armado de lentes de grande alcance, o capitão de artilharia não tardou a descobrir um campanário de igreja que emergia de um vale cuja depressão permanecia invisível entre os desníveis do planalto, e a ponta desse campanário ultrapassava tão pouco que podia ter sido tomada por uma árvore isolada. Pelos mapas foi fácil constatar-se que era a aldeia de Brumoy.

Conhecendo, graças à granada que tinha examinado, a distância exata das baterias alemãs, o capitão telefonou a seu tenente.

Meia hora mais tarde as baterias alemãs se calavam e, no momento em que uma quarta espoleta subia, os 75 continuaram a bombardear a igreja assim como a aldeia e seus arredores imediatos.

Um pouco antes do meio-dia, o regimento foi alcançado por uma companhia de ciclistas que precedia a divisão. Foi dada a ordem de avançar de qualquer maneira.

O regimento avançou, apenas perturbado, ao se aproximarem de Brumoy, por alguns tiros de espingarda. A retaguarda inimiga debandava.

Na aldeia em ruínas, e onde algumas casas queimavam ainda, acharam a mais inacreditável desordem de cadáveres, feridos, de cavalos mortos, de canhões inutilizados, de vagões e furgões espatifados. Uma brigada inteira tinha sido surpreendida no momento em que, certa de ter limpado o terreno, ia seguir caminho.

Mas um chamado partiu do alto da igreja, cuja nave e fachada arrasadas não apresentavam senão um caos indescritível. Somente a torre da igreja, meio destruída e enegrecida pelo incêndio de algumas colunas, mantinha-se em pé e trazia ainda, graças a um milagre de equilíbrio, a estreita flecha de pedra que a coroava. Pendurado pela metade para fora dessa flecha, um camponês agitava os braços e gritava para chamar a atenção.

Os oficiais reconheceram Paul Delroze.

Prudentemente, por entre as ruínas subiram a escada que conduzia à plataforma da torre. Lá, amontoados de encontro à porta feita na flecha, havia oito cadáveres de alemães, e a porta, demolida, caída de través, barrava a passagem de tal forma que tiveram de quebrá-la a golpes de machado para liberar Paul.

No final da tarde, quando se constatou que a perseguição ao inimigo ia de encontro a obstáculos por demais sérios. o coronel reuniu o regimento na praça e beijou o cabo Delroze.

— Primeiramente a recompensa — disse-lhe ele. — Peço a medalha militar, e com motivo tal que você a terá. Agora, meu filho, explique-se.

E Paul, no meio do círculo formado em volta dele pelos oficiais e graduados de cada companhia, respondeu às perguntas.

— Meu Deus! É muito simples, coronel. Nós estávamos sendo espionados.

— Claro, mas quem era o espião e onde se achava?

— Coronel, foi por acaso que descobri. Ao lado do local que ocupávamos hoje de manhã, havia à nossa esquerda, não é, uma aldeia com uma igreja?

— Sim, mas fiz evacuar a aldeia desde minha chegada. e não havia ninguém na igreja.

— Se não havia ninguém na igreja, por que o galo que fica por cima do campanário afirmava que o vento vinha do leste quando ele vinha do oeste? E por que, quando mudávamos de posição, a direção desse galo descia em direção a nós?

— Você tem certeza?

— Sim, coronel. E foi por isso que, depois de ter obtido sua permissão, não hesitei em me arrastar até a igreja e introduzir-me no campanário tão furtivamente quanto me foi possível. Não me enganei. Estava lá um homem, e eu consegui, não sem certo esforço, dominá-lo.

— Miserável! Um francês?

— Não, coronel, um alemão disfarçado de camponês.

— Será fuzilado.

— Não, coronel, prometi-lhe salvar-lhe a vida.

— Impossível!

— Coronel, era necessário saber como ele informava o inimigo.

— E então?

— Oh! não era muito complicado. Do lado norte a igreja possui um relógio, do qual nós não podíamos perceber o quadrante. De dentro nosso homem manobrava as agulhas, de maneira que a maior, alternativamente colocada sobre três ou quatro números enunciava a distância exata onde nós nos achávamos da igreja, e isso na direção do galo. Foi o que eu fiz, por minha vez, e, logo depois, o inimigo, retificando seu tiro, segundo minhas indicações, enchia conscienciosamente o terreno das beterrabas.

— Realmente — disse o coronel rindo.

— Nada mais me restava fazer senão ir ao segundo posto de observação onde se recolhia a mensagem do espião. De lá eu saberia — pois o espião ignorava esse detalhe essencial — onde se escondiam as baterias inimigas. Corri então até aqui, e foi somente ao chegar que constatei, no sopé mesmo da igreja que servia de observatório, a presença dessas baterias e de uma brigada inteira de alemães.

— Mas foi de uma temeridade louca! Como eles não atiraram em você?

— Coronel, eu vesti as roupas do espião, do espião deles. Eu falo alemão, sabia a senha, e um só entre eles conhecia esse espião: o oficial da observação. Sem a mínima desconfiança o general comandante da brigada mandou me chamar assim que soube por mim que os franceses me tinham desmascarado e que eu acabava de escapar-lhes.

— E você teve a coragem?

— Tinha de ter, coronel, e depois eu estava com todos os trunfos. O oficial não duvidava de nada e quando eu cheguei à plataforma da torre de onde ele transmitia as indicações, não tive trabalho nenhum em atacá-lo e reduzi-lo ao silêncio. Minha tarefa estava cumprida, só tinha de fazer o sinal combinado com os senhores.

— Só isso! e no meio de sete ou oito mil homens!

— Eu lhe tinha prometido, coronel, e eram 11 horas. Na plataforma se encontrava todo o material necessário para enviar sinais diurnos e noturnos. Como não aproveitar? Acendi um foguete, depois outro, depois um terceiro e um quarto, e a batalha começou.

— Mas esses foguetes eram avisos que regulavam nosso tiro para esse campanário onde você se encontrava! Foi em cima de você que nós atirávamos!

— Ah! juro, coronel, que essas idéias não se têm nessas horas. A primeira granada que bateu na igreja me pareceu bem-vinda. Além do mais, o inimigo não me deixava tempo para refletir! Logo uma meia dúzia de sujeitos tinham escalado a torre. Destruí alguns com meu revólver, mas houve a seguir novo assalto, e, mais tarde, outro ainda. Tive de me refugiar atrás da porta que fecha o cofre da flecha. Quando eles a demoliram ela me serviu de barricada e, como eu dispunha de armas e munições tomadas dos meus primeiros atacantes, e estava inacessível e quase invisível, foi-me fácil sustentar um ataque em regra.

— Enquanto nossos 75 lhe atiravam de canhão.

— Enquanto nossos 75 me libertavam, coronel, porque o senhor compreende que uma vez demolida a igreja, e estando as fundações em chamas, ninguém mais se aventurou a ir à torre. Só tive então de ter paciência até a chegada dos senhores.

Paul Delroze tinha feito sua narração da maneira mais simples possível e como se fosse uma coisa muito natural. O coronel, depois de o ter felicitado de novo, confirmou-lhe sua nomeação a sargento, e lhe disse:

— Você nada tem a me pedir?

— Sim, coronel, eu queria interrogar o espião alemão que deixei lá e, ao mesmo tempo, reaver meu uniforme que deixei escondido.

— Combinado, você janta conosco e depois lhe daremos uma bicicleta.

Às sete horas da noite Paul voltava à primeira igreja. Uma grande decepção o esperava. O espião havia partido as amarras e fugido.

Todas as buscas de Paul, na igreja e na aldeia, foram inúteis. Entretanto, num dos degraus da escada, não muito longe do local onde se tinha jogado sobre o espião, apanhou o punhal com o qual seu adversário tinha tentado feri-lo.

Este punhal era exatamente semelhante àquele que ele tinha apanhado na grama três semanas antes, diante da pequena porta de madeira de Ornequin. A mesma lâmina triangular. O mesmo cabo de chifre marrom e, neste cabo. as quatro letras HERM.

O espião e a mulher que pareciam tão estranhamente com Hermine d'Andeville, a assassina de seu pai, se serviam todos os dois de uma arma idêntica.

No dia seguinte a divisão da qual fazia parte o regimento de Paul continuava sua ofensiva e entrava na Bélgica após haver aniquilado o inimigo. Mas, de noite, o general recebia ordem de retirada.

A retirada começava. Dolorosa para todos, ela o foi mais ainda, talvez, para aqueles que tinham iniciado com uma vitória. Paul e seus camaradas da terceira companhia não se conformavam. Durante a metade do dia passado na Bélgica tinham visto as ruínas de uma pequena cidade arrasada pelos alemães, cadáveres de 80 mulheres fuziladas, velhos enforcados suspendidos pelos pés, crianças asfixiadas aos montes. E deviam recuar diante desses monstros!

Soldados belgas tinham-se incorporado ao regimento e. seus restos ainda guardando o horror de visões infernais, contavam coisas que nenhuma imaginação poderia conceber. E deviam recuar! Deviam recuar com o ódio no coração e um desejo louco de vingança que torcia as mãos em volta dos fuzis.

E por que recuar? Não era a derrota, pois recuavam em ordem, com paradas bruscas e reviravoltas violentas contra o inimigo desconcertado. Mas o número quebrava toda resistência. A onda dos bárbaros se refazia. Dois mil vivos substituíam mil mortos. E recuavam.

Uma noite Paul soube por um jornal que datava de uma semana uma das causas deste recuo, e a notícia foi-lhe penosa. No dia 20 de agosto, após algumas horas de um bombardeamento efetuado em condições das mais inexplicáveis, Corvigny tinha sido tomada de assalto, justamente quando se esperava dessa praça-forte uma defesa de pelo menos alguns dias, que teria dado mais energia às operações francesas do lado esquerdo dos alemães.

Assim Corvigny havia sucumbido, e o castelo de Ornequin, abandonado sem dúvida, como o próprio Paul tinha desejado, por Jérôme e Rosalie, estaria agora destruído, pilhado, saqueado, com aquele refinamento e aquele método que os bárbaros davam à sua obra de destruição. E, desse lado ainda as hordas precipitavam-se furiosamente.

Dias sinistros de fim de agosto, os mais trágicos talvez, que a França tenha jamais vivido. Paris ameaçada. Doze departamentos invadidos. O vento da morte soprava sobre a heróica nação.

Foi na manhã de um desses dias que Paul ouviu atrás dele, num grupo de jovens soldados, uma voz alegre que o interpelava.

— Paul! Paul! Enfim consegui o que eu queria! que felicidade!

Esses jovens soldados eram voluntários, jogados no regimento, e entre eles Paul logo reconheceu o irmão de Elisa-beth, Bernard d'Andeville.

Nem teve tempo de refletir na atitude que deveria tomar. Seu primeiro impulso foi de virar-se, mas Bernard tinha-lhe segurado as duas mãos e as apertava com uma gentileza e uma afeição que mostravam que o jovem de nada sabia, ainda da separação entre Paul e a esposa.

— Pois é, Paul, sou eu — declarou ele alegremente. — Posso ficar à vontade com você, não é mesmo? Sim, sou eu e isso o espanta, não é? Você está pensando que é um encontro providencial, uma sorte como nunca se vê? Os dois cunhados reunidos no mesmo regimento!... E, bem, não foi a pedido meu. "Eu me alisto'' — disse às autoridades — "Eu me alisto já que é meu dever, e com satisfação. Mas como atleta mais que completo e premiado por quase todas as sociedades de ginástica e de preparação militar, desejo ser enviado imediatamente ao front e para o regimento do meu cunhado, o cabo Paul Delroze." E como não podiam dispensar os meus serviços, despacharam-me para cá... E, então, você não me parece ter gostado!

Paul quase não escutava. Dizia consigo mesmo: "Eis o filho de Hermine d'Andeville. Este que agora me toca é o filho da mulher que matou..." Mas o rosto de Bernard exprimia tal franqueza e tanta alegria ingênua, que gaguejou:

— Sim, sim... Só que você é tão jovem!

— Eu? Eu sou muito velho. Dezessete anos no dia em que me alistei.

— Mas seu pai?

— Papai me deu sua autorização. Sem o que, aliás, eu não lhe teria dado a minha.

— Como?

— Sim, ele se alistou.

— Seu pai se alistou?... na idade dele?

— Como? Ele é muito jovem. Cinqüenta anos no dia do seu alistamento! Puseram-no como intérprete no alto-comando inglês. A família inteira sob as armas, você vê... Ah! já ia esquecendo, tenho uma carta de Elisabeth para você.

Paul tremeu. Ele não tinha querido até então interrogar o cunhado sobre a jovem senhora. Murmurou, tomando a carta:

— Ah! ela lhe deu isso. ..

— Não, ela a enviou de Ornequin.

— De Ornequin? Mas é impossível! Elisabeth partiu na noite mesmo da mobilização. Ela ia para Chaumont, para a casa de sua tia.

— Nada disso. Fui me despedir de nossa tia: ela não tinha notícia nenhuma de Elisabeth desde o começo da guerra. Além disso olhe o envelope. "Paul Delroze, aos cuidados do Sr. d'Andeville, em Paris"... E está carimbado de Ornequin e de Corvigny.

Depois de ter olhado, Paul murmurou:

— É, você tem razão, e a data está legível sob o carimbo dos Correios: "18 de agosto". 18 de agosto... E Corvigny caiu em poder dos alemães no dia 20 de agosto, dois dias depois. Então Elisabeth ainda estava lá.

— Não, não — disse Bernard. — Elisabeth não é uma criança. Você há de compreender que ela não esperou os boches, a 10 passos da fronteira! Ao primeiro tiro daquele lado, ela deve ter deixado o castelo. E é isso que ela lhe vai dizer. Leia a carta, Paul.

Paul não tinha dúvida, muito pelo contrário, do que ele ia aprender lendo essa carta, e foi com um calafrio que rasgou o envelope.

Elisabeth tinha escrito:

 

Paul,

Não pude decidir-me a sair de Ornequin. Um dever aqui me retém, ao qual não falharei, o de salvar a lembrança de minha mãe. Compreenda-me bem, Paul, minha mãe permanece para mim o ser mais puro. Aquela que me acalentou em seus braços, aquela para quem meu pai guardou todo o seu amor não pode ser alvo de suspeita. Mas você a acusa, e é contra você que quero defendê-la.

As provas de que não preciso para crer eu as acharei para foiçá-lo a crer. E essas provas, creio que só as acharei aqui. Ficarei, então.

Jérôme e Rosalie ficam igualmente, embora se anuncie a chegada do inimigo. São pessoas boas, você nada tem a temer, já que não estarei só.

Elisabeth Delroze

 

Paul dobrou a carta. Estava muito pálido. Bernard perguntou-lhe:

— Ela não está mais lá, não é? /

— Está, sim.

— Mas é loucura! Como! mas com tais monstros!... um castelo isolado... Valha-nos, Deus, Paul! Valha-nos Deus! Ela não ignora os perigos terríveis que a ameaçam! O que será que a retém? Ah! é horrível!...

O rosto contraído, os punhos apertados, Paul conservava-se em silêncio...

 

A camponesa de Corvigny

Três semanas antes, ao tomar conhecimento de que a guerra tinha sido declarada, Paul sentira desabrochar em si, imediata e implacavelmente, a resolução de se deixar matar.

O desastre de sua vida, o horror de seu casamento com uma mulher que, no fundo, não deixava de amar, as certezas adquiridas no castelo de Ornequin, tudo isso o tinha abatido a tal ponto que a morte lhe aparecia como um alívio.

Para ele, a guerra foi instantaneamente e sem a menor dúvida a morte. Tudo que ele pudesse admirar de emocionante e de grave, de confortante e de maravilhoso nos acontecimentos dessas primeiras semanas, a ordem perfeita da mobilização, o entusiasmo dos soldados,- a união perfeita da França, o acordar da alma nacional, nenhum desses grandes espetáculos prendeu sua atenção. No mais profundo de si mesmo ele tinha decretado que realizaria tais façanhas que nem a sorte mais inacreditável poderia salvá-lo.

Foi assim que ele pensou achar, desde o primeiro dia, a ocasião desejada. Apoderar-se do espião que suspeitava estivesse no campanário da igreja, penetrar em seguida no coração mesmo das tropas inimigas de modo a assinalar a posição deles era ir de encontro a uma morte certa. Ele lá foi, corajosamente. E, como tivesse uma consciência muito aguda de sua missão cumpriu-a com prudência e igual bravura. Morrer, sim, mas morrer após haver alcançado algo. E gozou, na ação como no sucesso, uma alegria singular que não esperava.

A descoberta do punhal empregado pelo espião o impressionou vivamente. Que relação podia ele estabelecer entre esse homem e aquele que havia tentado matá-lo? Que relação entre esse fato e a condessa d'Andeville, morta 16 anos antes? E como? Por que meios invisíveis os três se ligavam à mesma obra de traição e espionagem de que Paul tinha surpreendido as diferentes manifestações?

Mas foi sobretudo a carta de Elisabeth que lhe trouxe um golpe extremamente brutal. Assim a jovem senhora estava lã, entre granadas, balas, as lutas sangrentas em volta de castelo, o delírio e a fúria dos vitoriosos, incêndios, fuzilamentos, torturas, atrocidades! Ela estava lá, jovem e bela, quase só, sem defesa! E estava lá porque ele, Paul, não tinha tido energia para revê-la e levá-la consigo!

Esses pensamentos provocavam em Paul crises de abatimento de onde saía na mesma hora para atirar-se diante de um perigo qualquer, perseguindo suas loucas tarefas até o fim, viesse o que viesse, com uma coragem tranqüila e uma obstinação feroz que despertavam em seus camaradas tanto surpresa- quanto admiração. E talvez, menos que a morte, procurasse ele agora aquela embriaguez inexprimível que se sente ao desafiá-la.

E o dia 6 de setembro chegou; o dia do milagre nunca visto em que o grande chefe, dirigindo a seus exércitos palavras imortais ordenou-lhes enfim que avançassem contra o inimigo. A recuada suportada tão valentemente mas tão cruel terminava. Exaustos, sem fôlego, lutando um contra dois durante dias, sem tempo para dormir, sem tempo para comer, só marchando graças a prodígios de esforço de que já não tinham consciência, sem saber por que não se deitavam nas fossas para aí esperar a morte... foi para esses homens que disseram: "Alto! Meia-volta! E agora, direto aos inimigos!"

E eles deram a meia-volta. Aqueles moribundos reencontraram força. Do mais humilde ao mais ilustre, todos enrijeceram sua vontade e bateram-se como se a salvação da França dependesse de cada um deles somente. Tantos soldados, quantos heróis sublimes. Pediram-lhes vencer ou morrer. E foram vitoriosos.

Entre os mais intrépidos, Paul brilhou na primeira fileira. O que ele fez e o que agüentou, o que tentou e o que conseguiu, ele mesmo tinha consciência de que passava dos limites da realidade. Nos dias 6, 7 e 8 e, depois, do 11 ao 13, apesar do excesso de cansaço e das privações de sono e de alimento às quais não se imagina que seja humanamente possível resistir, não teve nenhuma outra sensação senão a de avançar, e avançar ainda e avançar, avançar sempre. Fosse à sombra ou à claridade do sol, às margens do Mame ou nos corredores de Argon, para os lados do norte ou em direção ao leste, quando mandaram sua divisão reforçar as tropas da fronteira, quer estivesse se arrastando pelas terras semeadas ou de pé, carregando a baioneta, ia sempre à frente e cada passo era uma libertação, cada passo uma conquista.

Cada passo também exasperava o seu ódio. Oh! como seu pai tinha razão em execrar aquele povo! Hoje Paul os via atuar. Em todos os lugares era a devastação estúpida e o aniquilamento irracional. Em todo lugar incêndios, saques e morte. Reféns fuzilados, mulheres assassinadas à toa, pelo prazer de destruir. Igrejas, castelos, casas de ricos e casebres de pobres, nada mais restava. Até mesmo ruínas tinham sido destruídas e cadáveres torturados.

Que prazer em vencer tal inimigo! Apesar de reduzido em seus efetivos pela metade, o regimento de Paul, solto como uma matilha, mordia sem parar a besta selvagem. Parecia mais tenaz e mais apavorante à medida que se aproximava da fronteira, e avançava ainda em sua direção na esperança louca de dar-lhe o golpe final.

E um dia, no poste que marcava a junção de duas estradas, Paul leu:

 

Corvigny, 14km

Ornequin, 31km400

Fronteira, 38km300

 

Corvigny! Ornequin! Com que emoção de todo o seu ser leu essas palavras imprevistas! Em geral, absorto no ardor da luta e bom tantas preocupações diferentes, prestava pouca atenção aos nomes dos locais atravessados e somente por acaso os percebia. E eis que de repente se encontrava a uma distância tão curta do castelo de Ornequin! Corvigny, 14 quilômetros... Seria para Corvigny que se dirigiam as tropas francesas, em direção à pequena praça-forte que os alemães tinham tomado de assalto e ocupado em condições tão estranhas?

Nesse dia batiam-se desde a alvorada contra um inimigo que parecia resistir mais vagarosamente. Paul, encabeçando um destacamento, tinha sido enviado pelo seu capitão até a aldeia de Bléville com a ordem de aí entrar caso o inimigo se tivesse retirado, mas de não ir mais adiante. E foi depois das últimas casas dessa aldeia que ele viu o poste indicador.

Ele estava então bastante inquieto. Um avião inimigo acabava' de sobrevoar a região. Uma armadilha era de se recear.

— Voltemos à aldeia — disse ele. — Vamos ficar nas barricadas por enquanto.

Mas um ruído subitamente crepitou por detrás de uma colina arborizada que cortava a estrada do lado de Corvigny, um barulho cada vez mais nítido, e no qual Paul, no fim de alguns instantes, reconheceu o enorme ronco de uma máquina, sem dúvida uma autometralhadora.

— Joguem-se nas fossas — gritou para seus homens. — Escondam-se nos montes de feno e que ninguém se mexa!

Compreendeu o perigo, aquela máquina atravessando a aldeia, avançando pelo meio da companhia, semeando o pânico e desviando-se em seguida por outro caminho qualquer.

Rapidamente escalou o tronco sulcado de um velho carvalho e instalou-se per entre os ramos, a uma altura que dominava a rua de alguns metros. Logo a seguir apareceu o carro. Era um autoblindado, formidável e monstruoso sob seu casco, mas de um modelo bastante antigo que deixava à mostra, por cima das placas de aço, o capacete e a cabeça dos homens.

Avançavam com velocidade, prontos a atacar em caso de alerta. Os homens curvavam-se. Paul contou uma meia dúzia. Dois canos de metralhadora à mostra.

Colocou seu fuzil em posição e apontou para o chofer, um germano gordo cujo rosto escarlate parecia pintado de sangue. Depois, calmamente, no momento propício, atirou.

— Atirem, rapazes — gritou-lhes pulando da árvore.

Mas não foi necessário dar ordens.

O chofer, ferido no peito, tinha ainda tido a presença de espírito de frear e parar o carro. Vendo-se cercados os alemães levantaram os braços.

— Camerad! Camerad!

E um deles, saltando do carro após ter jogado fora as armas, precipitou-se em direção a Paul:

— Alsaciano, sargento! Alsaciano de Estrasburgo! Ah! sargento, há dias que espero este momento!

Enquanto os homens conduziam os prisioneiros à aldeia, Paul bem depressa interrogou o alsaciano: — De onde vinham?

— De Corvigny.

— Há gente em Corvigny?

— Bem pouca. Uma retaguarda de 250 badenses, no máximo.

— E nos fortes?

— Mais ou menos a mesma coisa. Pensaram que não seria necessário consertar as torrinhas e fomos tomados de surpresa. Não sabem se resistem ou se devem recuar até a fronteira. Eles hesitam, e é por isso que nos enviaram em caráter de observação.

— Então, podemos marchar?

— Sim, mas rápido, pois eles esperam reforços importantes, duas divisões.

— Elas vão chegar?

— Amanhã. Devem atravessar a fronteira amanhã, mais ou menos ao meio-dia.

— Deus do céu! não há tempo a perder! — disse Paul. Enquanto examinava a autometralhadora e mandava desarmar e vasculhar os prisioneiros, Paul refletia nas medidas a serem tomadas; foi quando um de seu homens, que tinha ficado na aldeia, veio anunciar-lhe a chegada de um destacamento francês. Um tenente o comandava.

Paul apressou-se em pôr o oficial a par da situação. Os acontecimentos necessitavam de ação imediata. Ofereceu-se para ir à cata de informações no carro mesmo que tinham capturado.

— Está bem — disse o oficial. — Por mim, ocupo a aldeia e vou dar um jeito para que a divisão seja prevenida o mais rápido possível.

O carro partiu em direção a Corvigny. Com oito homens apertados. Dois entre eles, especialmente carregados com metralhadoras, estudavam-lhe o mecanismo. O prisioneiro alsaciano, em pé, a fim de que se pudesse ver bem, de qualquer lugar, seu capacete e seu uniforme, espreitava o horizonte.

Tudo isso foi decidido no espaço de alguns minutos, sem discussão e sem que se parasse para pensar nos detalhes da empresa.

— Seja o que Deus quiser! — exclamou Paul quando se viu na direção. — Estão prontos para agüentar a aventura até o fim, meus amigos?

— E até mais, sargento — disse perto dele uma voz que reconheceu.

Era Bernard d'Andeville, o irmão de Elisabeth. Bernard, da 9^ Companhia. Paul tinha conseguido desde o reencontro deles evitá-lo, ou pelo menos não lhe falar. Mas sabia que o jovem lutava bem.

— Ah! é você? — disse.

— Em carne e osso. Vim com meu tenente e quando o vi subir no carro e levar os que se apresentavam, você compreende, não deixei passar a ocasião!

E acrescentou, num tom embaraçado:

— Ocasião de fazer um belo trabalho sob suas ordens, e ocasião de falar com você, Paul... porque não tive chance até hoje... até me pareceu que você não agia comigo... como eu esperava.

— Ora! Ora! — articulou Paul. — São apenas as preocupações...

— Com Elisabeth, não é?

— Sim.

— Compreendo. De qualquer modo isso não explica que haja entre nós... como um mal-estar...

Nesse momento o alsaciano ordenou:

— Não devemos ficar à mostra... Ulanos!...

Uma patrulha desembocava de um caminho transversal, no término de um bosque. Ele gritou, ao passar por eles:

— Fujam, camaradas! Depressa! os franceses vêm aí!... Paul aproveitou-se do incidente para não responder ao cunhado. Aumentou a velocidade e o carro corria com um barulho ensurdecedor, escalando ladeiras e resvalando como um furacão.

Os destacamentos inimigos faziam-se mais numerosos. O alsaciano os interpelava ou, por sinais, os incitava a uma retirada imediata.

— Como é gozado vê-los! — disse rindo. — É uma cavalgada desenfreada atrás de nós.

E acrescentou:

— Eu lhe previno; sargento, que a esse passo vamos acabar é no meio de Corvigny. É isso o que o senhor quer?

— Não — replicou Paul. — Vamos parar quando a cidade estiver à vista.

— E se formos cercados?

— Por quem? Em todo caso não é esse bando de fujões que se poderia opor a nosso retorno.

Bernard d'Andeville falou:

— Paul, suspeito que você não pense nem um pouco na volta.

— Nem um pouco, na verdade. Você está com medo?

— Ora! que palavra feia!

Mas, após um silêncio, Paul retrucou com voz menos rude:

— Arrependo-me de ter deixado você vir.

— O perigo então é maior para mim do que para você e para os outros?

— Não.

— Então faça-me a honra de não se arrepender. Continuando em pé, curvado por sobre o sargento, o alsaciano indicou:

— A ponta do campanário em frente a nós, atrás da cortina de árvores, é Corvigny. Penso que virando para a parte alta à esquerda poderíamos ver o que se passa na cidade.

— Veremos melhor entrando nela — observou Paul. — Só que arriscamos muito, sobretudo você, alsaciano. Se for feito prisioneiro será fuzilado. Devo deixá-lo antes de chegar a Corvigny?

— O senhor não me enxergou, sargento.

A estrada atingiu o trilho do trem. Depois apareceram as primeiras casas dos bairros. Alguns soldados apareceram.

— Nenhuma palavra a eles — determinou Paul. — Não devemos amedrontá-los... eles poderiam nos atacar pelas costas no momento decisivo.

Reconheceu a estação e constatou que ela estava fortemente ocupada. Ao longo da avenida que levava à cidade capacetes pontiagudos iam e vinham.

— Avante! — gritou Paul. — Se há concentração de tropas só pode ser na praça. As metralhadoras estão prontas? E os fuzis? Prepare o meu, Bernard. E, ao primeiro sinal, fogo à vontade'

O carro desembocou violentamente em plena praça. Assim como tinha previsto uma centena de homens aí se achavam, todos empilhados diante do portal da igreja, perto de uma porção de baionetas. A igreja nada mais era senão um monte de ruínas, e quase todas as casas da praça tinham sido destruídas pelo bombardeio.

Os oficiais que se conservavam a distância soltaram exclamações alegres e gesticularam ao perceberem aquele carro que tinham enviado em missão de observação e cujo retorno esperavam evidentemente, antes de tomar uma decisão sobre a defesa da cidade. Aliados sem dúvida aos oficiais de ligação, eram muitos. Um general os dominava a todos pela altura. Automóveis estacionavam a certa distância.

A rua era pavimentada, mas nenhum passeio a separava do terreno da praça propriamente dito. Paul seguiu-a e depois, a 20 metros dos oficiais, deu uma reviravolta brutal e a terrível máquina avançou direto no grupo, atropelou, esmagou, virou ligeiramente para pegar de uma só vez as baionetas e penetrou como uma massa irresistível pelo meio do destacamento. Foi a morte, a confusão, a fuga desesperada e as vociferações de dor e medo.

— Fogo à vontade! — gritou Paul, que parou o carro. E daquele brockhaus inexpugnável surgido subitamente

no centro da praça começou a fuzilaria, ao mesmo tempo em que se precipitava o crepitar sinistro de duas metralhadoras. No espaço de cinco minutos a praça foi coberta de mortos e de feridos, O general e diversos oficiais jaziam inertes. Os sobreviventes fugiram.

— Cessar fogo! — gritou Paul.

Levou o carro até o fim da avenida que conduzia à estação. Atraídas pelas detonações as tropas da estação vinham a seu encontro. Algumas descargas de metralhadoras as dispersaram.

Três vezes a toda velocidade, Paul deu a volta à praça a fim de observar as vias de acesso. De todos os lados o inimigo fugia pelas estradas e pelos atalhos que conduziam à fronteira. E de todos os lados também os habitantes de Corvigny saíam de suas casas e manifestavam sua alegria.

— Que se levante e se socorra os feridos — foi a ordem de Paul. — E que se chame o tocador da igreja ou alguém que saiba tocar os sinos. É urgente!

E logo a seguir, ao velho sacristão que se apresentou:

— O rebate, meu caro, o rebate e a todo vapor! e quando o senhor estiver cansado que um amigo tome o seu lugar! Vá... O rebate sem um segundo de intervalo.

Era o sinal que Paul tinha combinado com o tenente francês e que devia anunciar à divisão o sucesso da empresa e a necessidade da ofensiva.

Eram duas horas. Às cinco horas o estado-maior e uma brigada tomavam posse de Corvigny e nossos 75 lançavam algumas granadas. Às 10 horas da noite, tendo-se o resto da divisão reunido, os alemães foram expulsos do Grande Jonas e do Pequeno Jonas e se concentravam na vanguarda da fronteira. Ficou decidido que logo de madrugada seriam postos para fora.

— Paul — disse Bernard a seu cunhado, com quem se encontrou após a chamada da tarde. — Paul, eu tenho que lhe contar uma coisa que me intriga... uma coisa bastante esquisita... você vai ver. Há pouco eu estava dando uma volta por uma dessas ruazinhas perto da igreja, quando fui abordado por uma mulher... uma mulher cujos traços e roupas não distingui logo, porque a escuridão era então quase completa, mas que no entanto, pelo barulho de seus tamancos na calçada me pareceu ser uma camponesa. Seu jeito de se exprimir surpreendeu-me um pouco:

— Meu amigo, o senhor poderia talvez me dar uma informação...

E como me coloquei à sua disposição, ela começou:'

— Veja bem. Eu moro numa pequena aldeia bem pertinho daqui. Há pouco tempo soube que seu batalhão estava aqui. Então eu vim, porque eu queria ver um soldado que faz parte desse batalhão. Só que eu não sei o número" de seu regimento... Sim, houve modificações... suas cartas não chegam... ele certamente também não recebeu as minhas..-. Será que o senhor não o conhece por acaso?... um jovem tão bom!

Eu lhe respondi:

— A sorte pode ajudá-la, senhora. Qual é o nome do soldado?

— Delroze, Cabo Paul Delroze. Paul espantou-se:

— Como, tratava-se de mim?

— É, de você, Paul, e a coincidência pareceu-me tão curiosa que eu simplesmente lhe dei o número de seu regimento e o de sua companhia sem revelar nosso parentesco.

— Muito bem! — disse ela. — E o regimento está em Corvigny?

— Sim, desde há pouco.

— E o senhor conhece Paul Delroze?

— Somente de nome — retruquei. — E na realidade eu não saberia dizer porque eu retrucava assim nem por que, em seguida, continuei a conversa de maneira que ela não adivinhasse meu espanto.

— Ele foi nomeado sargento e citado na ordem do dia, e foi assim que ouvi falar dele. A senhora deseja que eu me informe e que a conduza até ele?

— Ainda não, ainda não, eu ficaria emocionada demais.

— Emocionada demais? Aquilo me parecia cada vez mais suspeito. Aquela mulher que o procurava tão avidamente e que retardava o momento de vê-lo!

Eu lhe perguntei:

— A senhora se interessa muito por ele?

— Sim, muito.

— Ele é de sua família, talvez?

— É meu filho.

— Seu filho!

— Certamente até aí ela não tinha suspeitado nem por um segundo que eu estava lhe fazendo um interrogatório. Mas meu espanto foi tamanho que ela recuou para o escuro como para pôr-se na defensiva.

— Eu tinha deslizado a mão pelo bolso e segurado a pequena lanterna elétrica que sempre trago comigo. Apertei o botão e joguei-lhe a luz em pleno rosto, enquanto avancei para ela. Meu gesto a tomou de surpresa e ela permaneceu alguns instantes imóvel. Depois, violentamente, deixou escorregar um xale que lhe cobria a cabeça e, com um vigor imprevisto, bateu no meu braço com tal força que deixei cair a lanterna. E foi um silêncio imediato, absoluto. Onde é que ela estava? Na minha frente? À direita? À esquerda? Como era possível que nenhum ruído me revelasse sua presença ou sua fuga? A explicação me foi dada quando, após haver encontrado e acendido de novo a minha lanterna, vi no chão os tamancos que ela tinha abandonado para poder fugir. Desde então a tenho procurado, mas em vão. Ela desapareceu.

Paul havia escutado a narrativa de seu cunhado com uma atenção crescente e perguntou:

— Então, você viu o rosto dela?

— Oh! bem distintamente. Um rosto enérgico... sobrancelhas e cabelos negros... um ar mau... Quanto às vestes, roupa de camponesa, mas limpa demais e muito elegante, o que dava a pensar que fosse uma fantasia.

— Mais ou menos que idade?

— Uns 40 anos.

— Será que você a reconheceria?

— Sem dúvida.

— Você me falou de um xale? De que cor?

— Preto.

— Fechado como? Por um nó?

— Não, por um broche.

— Um camafeu?

— Sim, uni camafeu cercado de ouro. Como é que você sabe?

Paul conservou-se em silêncio um bocado de tempo e depois disse:

— Eu lhe mostrarei amanhã, era uma das dependências de castelo de Ornequin, um retrato que deve ter, com a mulher que o interpelou na rua, uma semelhança impressionante, a semelhança que pode haver entre duas irmãs, talvez... ou então... ou então...

Ele segurou seu cunhado pelo braço, e empurrando-o:

— Escute, Bernard, há à nossa volta, no passado e no presente, coisas horrorosas... que pesam sobre a minha vida e sobre a de* Elisabeth... sobre a sua também, conseqüentemente. São trevas horríveis, no meio das quais me debato e onde inimigos que eu ignoro, prosseguem há 20 anos, num plano que eu não entendo. Desde o começo dessa luta meu pai morreu, vítima de um assassinato. Hoje, é a mim que atacam. Minha união com sua irmã está partida, nada mais pode nos aproximar um do outro, da mesma forma que nada mais pode fazer com que haja, entre mim e você, a amizade e a confiança que tínhamos o direito de esperar. Não me interrogue, Bernard, não procure saber mais. Um dia, talvez, e não desejo que esse dia chegue, você saberá por que eu lhe peço silêncio.

 

O que Paul viu no castelo de Ornequin

Desde o amanhecer, Paul Delroze foi despertado pelos sons do clarim. E, logo a seguir, tio duelo dos canhões que começou, ele reconheceu a voz breve e seca do 75 e o latir rouco do 77 alemão.

— Você vem, Paul? — chamou Bernard. — O café está servido lá embaixo.

Os dois cunhados haviam encontrado dois quartos em cima de uma venda de vinhos. Ao mesmo tempo em que fazia as honras a um café substancial, Paul, que na véspera à noite havia recolhido informações sobre a ocupação de Corvigny e de Ornequin, contou:

— Na quarta-feira 19 de agosto, Corvigny, para grande satisfação de seus habitantes, podia ainda acreditar que os horrores da guerra lhe seriam poupados. Lutava-se na Alsácia e diante de Nancy. Lutava-se na Bélgica, mas parecia que o esforço alemão negligenciasse a estrada da invasão, estreita, é verdade, e aparentemente de interesse secundário, que oferecia o vaie do Liseron. Em Corvigny, uma brigada francesa se ocupava ativamente nos trabalhos de defesa. O Grande e o Pequeno Jonas estavam prontos sob sua cúpula de cimento armado. Esperavam.

— E Ornequin? — perguntou Bernard.

— Em Ornequin nós tínhamos uma companhia de caçadores a pé cujos oficiais moravam no castelo. Dia e noite essa companhia, sustentada por ura destacamento de dragões, patrulhava a fronteira.

Em caso de alerta a ordem era de prevenir o mais rápido possível os fortes e recuar, resistindo energicamente.

O entardecer dessa quarta-feira foi absolutamente tranqüilo. Uma dúzia de dragões havia galopado para além da fronteira, até ter à vista a pequena aldeia alemã de Ebrecourt. Nenhum movimento de tropas se avistava desse lado nem na linha da estrada de ferro que acabava em Ebrecourt. Noite pacífica, igualmente. Nem mesmo um tiro de fuzil. Estava comprovado que as duas horas da manhã nenhum soldado alemão havia ultrapassado a fronteira. Ora, foi às duas horas em ponto que ressoou uma detonação espetacular. Quatro outras se seguiram em intervalos muito pequenos. Essas cinco detonações foram devidas à explosão de cinco granadas de 420 que destruíram imediatamente as três cúpulas do Grande Jonas e as duas cúpulas do Pequeno Jonas.

— Como! mas Corvigny está a 24 quilômetros da fronteira, e os 420 não alcançam essa distância!

— O que não impediu que seis outras granadas grandes caíssem em Corvigny todas sobre a igreja e sobre a praça. E essas seis granadas caíram 20 minutos mais tarde, isto é, no momento em que se poderia supor que, o alerta tendo sido dado, a guarnição de Corvigny estaria reunida na praça. Foi, com efeito o que se deu, e você pode adivinhar a carnificina que daí resultou.

— Seja, mas repito: a fronteira está a 24 quilômetros. Tal distância deve então ter deixado às nossas tropas o tempo de se formar e de se preparar para os ataques que esse bombardeamento anunciava. Tiveram no mínimo três ou quatro horas diante de si.

— Nem um quarto de hora. O bombardeamento ainda não havia acabado e já o ataque começava. Um ataque? Nem chegou a ser. Nossas tropas, as de Corvigny, assim como as que acorreram dos dois fortes, nossas tropas aniquiladas e derrotadas, estavam cercadas de inimigos, massacradas ou obrigadas a render-se, antes mesmo que pudéssemos organizar um esboço de resistência. Isto tudo subitamente, sob a luz ofuscante de projetores colocados não se sabe onde nem como. E o desfecho foi imediato. Pode-se dizer que em 10 minutos Corvigny foi invadida, atacada, tomada e ocupada pelo inimigo.

— Mas de onde vinham? Por onde saíam?

— Ignora-se.

— E as patrulhas noturnas na fronteira? Os postos com sentinelas? A companhia destacada para o castelo de Ornequin?

— Nada. Nenhuma notícia. Desses 300 homens que tinham como missão observar e advertir, nada mais se escutou falar, jamais. Podemos reconstituir a guarnição de Corvigny ou com soldados que fugiram ou com os mortos que 03 moradores identificaram e enterraram. Mas os 300 caçadores de Ornequin desapareceram sem deixar a sombra de um traço. Nem fugitivos nem feridos, nem cadáveres. Nada.

— É inacreditável! Você interrogou?...

— Dez pessoas ontem à noite, 10 pessoas que, há um mês, sem serem aliás molestadas pelos poucos soldados do Landsturm aos quais foi confiada a guarda de Corvigny, prosseguiram numa pesquisa minuciosa sobre todos esses problemas, e não puderam estabelecer uma hipótese sequer plausível. Uma só certeza: o negócio foi preparado há muitíssimo tempo e nos seus mínimos detalhes. Os fortes, as circulas, a igreja, a praça tinham sido localizados com exatidão, e os canhões de grande porte dispostos com antecedência e rigorosamente colocados de modo a que as 11 granadas pudessem atingir os 11 objetivos que tinham resolvido atingir. Eis aí tudo. E no mais, mistério.

— E o castelo de Ornequin? E Elisabeth?

Paul tinha-se levantado. Os clarins tocavam a chamada da manhã. O canhoneio redobrava de intensidade. Os dois dirigiram-se para a praça, e Paul continuou:

— Aí também o mistério é horrível e talvez mais ainda. Uma das ruas transversais que cortam a planície entre Corvigny e Ornequin foi designada pelo inimigo como um limite que ninguém, aqui, teve o direito d? ultrapassar sob pena de morte.

— Então, Elisabeth?... — disse Bernard.

— Não sei, não sei nada mais. E é terrível, esta sombra de morte que se estende sobre todas as coisas e sobre todos os acontecimentos. Parece, não pude averiguar a proveniência desse boato, que a aldeia de Ornequin, situada perto do castelo, nem existe mais. Foi inteiramente destruída, mais ainda, suprimida, e seus 400 habitantes levados para o exílio. E nesse caso...

Paul abaixou a cabeça e disse com um arrepio:

— E então o que é que eles fizeram do castelo? Podemos vê-lo. Percebem-se de longe suas torrinhas, seus muros. Mas atrás desses muros, o que houve? Qual o paradeiro de Elisabeth? Faz já quase quatro semanas que ela vive no meio desses brutos, só, exposta a todos os infortúnios. Pobre infeliz!

 

O dia clareava apenas quando eles Chegaram à praça. Paul foi chamado pelo seu coronel que lhe transmitiu felicitações muito calorosas do general comandante da divisão e anunciou-lhe que ele era candidato à cruz do mérito e à patente de subtenente, e que ele tinha de agora em diante o comando de sua seção.

— É só — acrescentou o coronel rindo, — A menos que o senhor tenha outro desejo?...

— Tenho dois, coronel.

— Diga.

— Primeiramente que meu cunhado Bernard d'Andeville, aqui presente, seja colocado desde já na minha seção como cabo. Ele o merece.

— Combinado, e depois?

— E segundo, que daqui a pouco, quando nos forem levar até a fronteira, minha seção seja dirigida para o castelo de Ornequin, que se encontra na estrada mesmo.

— Isto é, que seja designada para o ataque propriamente dito do castelo?

— Como, para o ataque? — perguntou Paul inquieto. — Se o inimigo se concentrou ao longo da fronteira, seis quilômetros para lá do castelo.

— Assim pensávamos ontem. Na realidade, a concentração teve lugar no castelo de Ornequin, excelente posição de defesa onde o inimigo se gruda desesperadamente esperando reforços. A melhor prova é que contra-atacam. Olhe, lá adiante, à direita, aquela granada que explode... e mais adiante aquele shrapnell... dois... três shrapnells. Foram eles que localizaram as baterias que instalamos nas elevações à volta e que as castigam sem parar. Eles devem ter uns 20 canhões.

— Mas então — gaguejou Paul invadido por uma idéia atroz —, mas então o tiro das nossas baterias está dirigido...

— Está dirigido na.direção deles, é óbvio. Já faz uma hora inteira que os nossos 75 bombardeiam o castelo de Ornequin.

Paul soltou um grito.

— O que é que o senhor está dizendo, coronel? O castelo de Ornequin está sendo bombardeado?...

E, perto dele, Bernard d'Andeville repetia angustiado;

— Bombardeado, será possível? Surpreso, o oficial perguntou:

— Os senhores conhecem esse castelo? Ele lhes pertence, talvez? É mesmo? E os senhores têm parentes que ainda o habitam?

— Minha esposa, coronel.

Paul estava muito pálido. Ainda que se esforçasse para dominar sua emoção e para conservar uma imobilidade rígida, suas mãos tremiam um pouco e seu queixo não parava.

Sobre o Grande Jonas três peças de artilharia pesada, três Rimailho, alçados por tratores, puseram-se a bravejar. E isso, junto à obra tenaz dos 75 tomava, após as palavras de Paul Delroze, uma significação horrível. O coronel e em volta dele os oficiais que tinham assistido à conversa guardavam silêncio. A situação era daquelas que as fatalidades da guerra desencadeiam no seu trágico horror, mais forte ainda do que as forças da natureza propriamente ditas e, como elas, cegas, injustas e implacáveis. Nada havia a ser feito. Nenhum daqueles homens teria sonhado em interceder para que a ação da artilharia cessasse ou diminuísse de intensidade. E Paul tampouco não pensou nisso.

Ele murmurou:

— Parece que o fogo do inimigo diminui. Talvez estejam recuando...

Três granadas que explodiram na parte baixa da cidade desmentiram essa esperança. O coronel balançou a cabeça.

— Recuando? Ainda não. O lugar é importante demais para eles, e esperam reforços; só o abandonarão quando nossos regimentos entrarem na dança... o que não deve tardar.

Com efeito, a ordem de avançar foi trazida alguns instantes mais tarde ao coronel. O regimento deveria seguir a estrada e se espalhar pelas planícies situadas à direita.

— Vamos, cavalheiros — disse ele a seus oficiais —, a seção do sargento Delroze marchará à frente. Sargento, ponto de direção: o castelo de Ornequin. Há dois pequenos atalhos. O senhor irá por aí.

— Está bem, coronel.

Toda a dor e toda a raiva de Paul o exasperavam, dando-lhe uma imensa necessidade de agir e, ao pôr-se a caminho com seus homens, sentiu-se com forças inesgotáveis e com o poder de conquistar sozinho a posição inimiga. Ele ia de um para outro com a rapidez incansável de um cão pastor que leva seu rebanho. Multiplicava conselhos e encorajamentos.

— Você, meu caro, você é um valente, eu o conheço, você não vai esmorecer... Você também não... só que você pensa muito na sua pele, e reclama quando o melhor é achar graça... Hem, rapazes, nós achamos graça, não é? Temos um golpe a dar, e nós o daremos em cheio, sem olhar para trás, não é verdade?

Por cima deles as granadas seguiam seu caminho no espaço, silvando, gemendo, explodindo, formando como uma nave de balas e de ferro.

— Abaixem a cabeça! Deitem-se! — gritava Paul.

Ele mesmo ficava de pé, indiferente aos projéteis inimigos. Mas com que pavor ele ouvia os nossos, os que vinham de trás, de todas as colinas das redondezas e que iam adiante levar a destruição e a morte. Onde iria cair aquele? E este outro? Onde cairia a chuva mortal de suas balas e estilhaços?

Diversas vezes murmurou:

— Elisabeth! Elisabeth!...

A visão da esposa, ferida, agonizante, o obcecava. Há diversos dias, desde que tinha sabido que Elisabeth se tinha recusado a deixar o castelo de Ornequin, ele não podia pensar nela sem uma emoção que já não era contrariada nem por um sobressalto de revolta nem por um movimento de cólera. Ela já não misturava mais as recordações abomináveis do passado e as realidades encantadoras de seu amor. Quando pensava na mãe execrada, a imagem da filha não se apresentava mais a seu espírito. Eram dois seres de raça diferente e que nada tinham um com outro. Valente, arriscando a vida para obedecer a um dever que julgava ser de mais alto valor que a sua própria vida, Elisabeth tomava aos olhos de Paul uma nobreza ímpar. Ela era bem a mulher que ele tinha amado t querido, a mulher que ele amava ainda.

Paul estacou. Havia-se aventurado com seus homens por um terreno mais descoberto, e provavelmente avistado, que o inimigo enchia de balas de metralhadora. Diversos soldados foram atingidos.

— Parem! — gritou-lhes. — Todos de barriga no chão! Empurrou Bernard.

— Deite-se e já, menino! Para que expor-se inutilmente?... fique aí... não se mexa...

Mantinha-o no chão com um gesto afável, segurava-lhe o pescoço e lhe falava com doçura como se quisesse manifestar-lhe todo o carinho que lhe vinha ao coração pela sua querida Elisabeth. Esquecia-se das palavras ásperas que havia dito a Bernard na véspera à noite, e dizia-lhe outras, todas diferentes, onde palpitava a afeição que ele tinha renegado.

— Não se mexa, menino! Você está vendo, eu não deveria tê-lo trazido comigo, desse jeito, nessa fornalha. Sou responsável por você, e não quero... não quero que seja tocado.

O fogo diminuiu. Arrastando-se, os homens atingiram uma dupla fileira de pinheiros, ao longo dos quais prosseguiram e que os conduziu em leve ladeira até o cume que era cortado por um caminho oco. Paul, tendo escalado o barranco e dominando assim o planalto de Ornequin, percebeu ao longe as ruínas da aldeia, a igreja desmoronada e, mais à esquerda, um caos de pedras e de árvores de onde saíam alguns painéis de paredes. Era o castelo.

Por todos os lados, à. volta, fazendas, feixes de feno, granjas estavam em chamas...

Per trás, as tropas francesas espalhavam-se por todos os lados. Uma bateria tinha vindo estabelecer-se ao abrigo de um bosque vizinho e atirava sem interrupção. Paul via ao longe a erupção das granadas acima do castelo e por entre as ruínas.

Incapaz de suportar tal espetáculo, ele retomou sua tarefa à frente de sua seção. Ò canhão inimigo' tinha cessado de esbravejar, reduzido ao silêncio, sem dúvida. Mas, quando estavam a três quilômetros de Ornequin, as balas voavam em volta deles e Paul avistou ao longe um destacamento alemão que recuava para os lados de Ornequin à medida que iam fazendo fogo. E os 75 e os Rimailho detonavam sem parar. Era horrível.

Paul segurou Bernard pelo braço e pronunciou com voz embargada:

— Se me acontecer algo, você dirá a Elisabeth que lhe peço perdão, ouviu, que eu lhe peço perdão...

Teve subitamente medo de que o destino não lhe permitisse rever a mulher, e dava-se conta de que havia agido com ela com uma crueldade imperdoável, abandonando-a como uma culpada por uma falta que ela não havia cometido, expondo-a a todas as torturas. Andava rapidamente, seguido de longe pelos seus homens.

Mas no local onde o atalho dá na estrada, à vista do Liseron, ele foi alcançado por um ciclista. O coronel dava ordem para que a seção esperasse o grosso do regimento para um ataque em conjunto.

Foi a prova mais dura.

Paul. presa de uma exaltação crescente, tremia de febre e de raiva.

— Vamos, Paul — dizia-lhe Bernard —, não fique nesse estado! Chegaremos a tempo.

— A tempo!... A tempo de quê? — replicou ele. De encontrá-la morta ou ferida?... Ou simplesmente não achá-la? E depois! esses canhões malditos não podem calar-se? O que é que eles estão bombardeando agora que o adversário não responde mais? Cadáveres... casas demolidas...

— E a retaguarda que cobre o recuo alemão?

— Bem, não estamos nós da artilharia aqui? É tarefa nossa. Uma amostra de atiradores e, depois, uma boa carga de baioneta...

Enfim a seção partiu, reforçada pelo resto da terceira companhia e sob o comando do capitão. Um destacamento de hussardos passou por eles galopando, dirigindo-se em direção à aldeia a fim de barrar o caminho aos fugitivos. A companhia dobrou em direção ao castelo.

À frente era o grande silêncio da morte. Armadilha, talvez? Não se podia acreditar que forças inimigas solida-mente entrincheiradas e barricadas se preparassem para a suprema resistência.

No caminho cheio de velhos carvalhos que conduzia à entrada principal, nada de suspeito. Nenhuma silhueta, nenhum ruído.

Paul e Bernard sempre à frente, o dedo no gatilho de seus fuzis, pesquisavam com olhar agudo o dia confuso pelos bosques. Por cima do muro, bem perto e esburacado com fendas enormes, subiam colunas de fumaça.

Ao se aproximarem, ouviram gemidos e depois o queixume dolorido de lamentações. Eram feridos alemães.

E subitamente a terra tremeu, como se um cataclisma interior tivesse partido sua crosta e, do outro lado do mun. houve uma explosão formidável ou, antes, uma seqüência de explosões, como relâmpagos repetidos. O espaço escureceu sob uma nuvem de areia e de pó, donde saiu toda espécie de materiais e de restos de desmoronamento. O inimigo tinha explodido o castelo.

— Isto nos estava destinado, sem dúvida — disse Bernard. — Nós também deveríamos ter ido pelos ares junto com o castelo. O negócio foi mal calculado.

Quando atravessaram a grade, o espetáculo do pátio todo em desordem, das torrinhas arrebentadas, do castelo destruído, das dependências em chamas, dos agonizantes que se contorciam, de cadáveres amontoados os amedrontou a tal ponto que fizeram um movimento de recuo.

— Avante! Avante! — gritou o coronel que vinha chegando a galope. — Há tropas que conseguiram escapar pelo parque.

Paul conhecia o caminho, tendo-o percorrido algumas semanas antes, em circunstâncias tão trágicas. Lançou-se pelos gramados, por entre blocos de pedra e árvores desarraigadas. Mas ao passar por uma casinha erigida à entrada do bosque parou subitamente, como pregado ao solo. E Bernard e todos os homens ficaram estupefatos, aparvalhados de horror.

De encontro à parede dessa casinha havia, de pé, dois cadáveres amarrados a dois anéis com a mesma corrente que lhes cercava o ventre. As cabeças caíam por cima da corrente e os braços pendiam até o chão.

Cadáveres de homem e de mulher. Paul reconheceu Jérôme e Rosalie. Tinham sido fuzilados.

Ao lado deles, a corrente se prolongava. Um terceiro anel estava grudado à parede. Havia sangue por sobre a cal e vestígios de balas eram visíveis. Sem dúvida alguma tinha havido uma terceira vítima e o cadáver tinha sido levado.

Aproximando-se Paul viu no gesso um pedaço de granada que aí se tinha incrustado. Na borda do buraco, entre o gesso e o fragmento de granada, via-se um cacho de cabelos, de cabelos louros de tons dourados, de cabelos arrancados da cabeça de Elisabeth.

 

H.E.R.M.

Mais que desespero e horror, Paul sentiu, no momento, uma imensa necessidade de vingança, e, imediatamente, a qualquer preço. Olhou à volta de si como se todos os feridos que agonizavam no parque tivessem sido culpados pelo assassinato monstruoso...

— Covardes! — dizia entre os dentes. — Assassinos!...

— Você tem certeza?... — gaguejou Bernard. — Você tem certeza de que são os cabelos de Elisabeth?

— Claro! Claro! Eles a fuzilaram como aos dois. Eu os reconheço: é o caseiro e sua mulher. Ah! miseráveis!...

Paul levantou o fuzil por sobre um alemão que se arrastava pela grama e ia arremessá-lo nele, quando o seu coronel se aproximou.

— O que é isso, Delroze, o que é que você está fazendo? E sua companhia?

— Ah! se o senhor soubesse, coronel!...

Paul precipitou-se para o seu chefe. Estava parecendo demente, e balbuciou, levantando o fuzil:

— Eles a mataram, coronel! Sim, eles mataram minha mulher!... Veja, nessa parede, com as duas pessoas que a serviam... Eles a fuzilaram... Ela tinha 20 anos, coronel... Ah! Têm de ser massacrados, todos como cães!...

Mas já Bernard o puxava.

— Não percamos tempo, Paul, vamos nos vingar nos que se batem... Podem-se ouvir tiros lá adiante. Deve haver gente cercada.

Paul já não tinha consciência de seus atos. Retomou seu posto, bêbado de raiva e de dor.

Dez minutos mais tarde, reunia-se à sua companhia e atravessava, próximo da capela, o local onde seu pai havia sido assassinado. Mais adiante, em vez da portinha que antes se abria no muro, enorme brecha tinha sido feita por onde deviam entrar e sair os comboios de mantimentos destinados ao castelo. A 800 metros de lá, na parte plana, na encruzilhada do caminho e da estrada, uma fuzilaria violenta começou. Algumas dúzias de fugitivos tentavam conseguir passagem por entre os hussardos que tinham seguido a estrada. Surpreendidos pelas costas pela companhia de Paul, conseguiram refugiar-se em um quadrado formado por árvores e arvoredos onde se defenderam com energia selvagem. Recuavam passo a passo, caindo uns após os outros.

— Por que resistem? — murmurou Paul, que atirava sem parar e que se acalmava pouco a pouco com o ardor da luta. — Parece que procuram ganhar tempo.

— Olhe só! — gaguejou Bernard, cuja voz parecia alterada.

Por sob as árvores, vindo da fronteira, um automóvel entupido de soldados alemães desembocava. Seriam reforços? Não. O automóvel virou para um lado quase na praça e entre ela e os últimos combatentes do bosque havia, em pé, num enorme capote cinza, um oficial que com um revólver em punho os forçava à resistência, ao mesmo tempo em que ajeitava sua fuga no carro enviado a seu socorro.

— Olhe, Paul, olhe! — repetia Bernard. Paul ficou estupefato. O oficial para o qual Bernard chamava a sua atenção. era... Não, não era possível admitir. E no entanto...

Ele perguntou:

— O que é que você quer dizer, Bernard?

— O mesmo rosto — sussurrou Bernard. — O mesmo rosto de ontem, você sabe, Paul, o rosto daquela mulher que me interrogou ontem à noite, sobre você, Paul.

E Paul por sua vez reconhecia, sem hesitação possível, o ser misterioso que tinha tentado matá-lo perto da pequena porta do parque, o ser que tinha uma semelhança tão inconcebível com a assassina de seu pai, cem a mulher do retrato, com Hermine d'Andeville, a mãe de Elisabeth e de Bernard. Bernard apontou o fuzil.

— Não, não atire! — gritou Paul horrorizado com tal gesto.

— Por quê?

— Vamos tentar pegá-lo vivo.

Ele avançou, louco de ódio, mas o oficial tinha corrido até o carro. Os soldados alemães já lhe estendiam a mão e o alçavam até eles. Com um tiro Paul atingiu o que se achava ao volante. O oficial segurou então o volante no momento em que o automóvel ia bater-se de encontro a uma árvore, endireitou-o e fê-lo correr por entre os obstáculos com grande habilidade levando-o até por trás de uma depressão do terreno e de lá até a fronteira.

Ele se salvou.

Assim que ele ficou ao abrigo das balas, os inimigos que ainda combatiam renderam-se.

Paul tremia de ódio impotente. Para ele, aquele ser representava o mal sob todas as formas, e, do primeiro até o último instante dessa longa série de dramas, assassinatos, espionagens, atentados, traições, fuzilamentos que se multiplicavam num mesmo sentido e no mesmo espírito, ele aparecia como o gênio do crime.

Só a morte daquele ser poderia satisfazer o ódio de Paul. Não tinha dúvidas, era ele o monstro que tinha mandado fuzilar Elisabeth. Ah! que ignomínia! Elisabeth fuzilada! Visão infernal que o martirizava!...

"Quem será?", perguntava de si para si. "Como saber? , Como chegar até ele, torturá-lo e apertar-lhe o pescoço?"

— Interrogue um dos prisioneiros — disse Bernard.

A uma ordem do capitão, que julgava prudente não avançar mais, a companhia recuou para permanecer em ligação com o resto do regimento, e Paul foi designado especialmente para ocupar o castelo com sua seção e para aí conduzir os prisioneiros.

No caminho apressou-se em interrogar dois ou três graduados e alguns soldados. Mas só conseguiu tirar deles informações bastante confusas porque eles tinham chegado de Corvigny na véspera e só tinham passado a noite no castelo.

Eles ignoravam até mesmo o nome do oficial do casaco cinza, por quem se tinham sacrificado.

Chamavam-no de major, era só.

— No entanto era o chefe imediato de vocês — insistiu Paul.

— Não. O chefe do destacamento da retaguarda, ao qual pertencemos, é um Oberleutnant, que foi ferido pela explosão de minas, quando fugíamos. Nós quisemos levá-lo. O major recusou categoricamente, e, revólver em punho, obrigou-nos a marchar na frente dele, ameaçando de morte o primeiro que o abandonasse. E, há pouco, enquanto nos batíamos, conservou-se 10 passos atrás de nós e continuava a nos ameaçar com seu revólver, para obrigar-nos a defendê-lo. Três dos nossos caíram sob suas balas.

— Ele contava com o socorro do automóvel, não é?

— Sim, e com reforços que deveriam nos salvar a todos, dizia ele. — Mas somente o automóvel veio e o salvou, a ele.

— O Oberleutnant sabe o nome dele, sem dúvida? Ele está ferido gravemente?

— O Oberleutnant? Uma perna quebrada. Nós o deitamos numa casa do parque.

— A casa onde houve a fuzilaria?

— Sim.

Ora, aproximavam-se dessa casa, espécie de pequeno pavilhão, onde se guardavam as plantas no inverno. Os cadáveres de Jérôme e Rosalie tinham sido retirados. Mas a corrente sinistra estava pendurada no muro, presa a três anéis de ferro, e Paul reviu, com um arrepio de pavor, o vestígio das balas e o pequeno estilhaço de granada que segurava os cabelos de Elisabeth à parede.

Uma granada francesa! Isso acrescentava horror à atrocidade do assassinato.

Sendo assim, na véspera, quando ele, Paul, com a captura do carro blindado e com sua proeza audaciosa até Corvigny havia aberto a estrada às tropas francesas, ele determinou acontecimentos que terminaram com a morte de sua mulher' O inimigo vingava-se de seu recuo fuzilando os habitantes do castelo! Elisabeth, colada a um muro, presa a uma corrente, foi crivada de balas! E por horrível ironia, seu cadáver recebia ainda por cima estilhaços das primeiras granadas que canhões franceses tinham atirado antes do anoitecer, do alto das colinas perto de Corvigny.

Paul tirou o fragmento de granada e separou os cachos de ouro que guardou preciosamente. Depois, com Bernard, entrou na casa onde os enfermeiros já tinham instalado uma ambulância provisória. Encontrou o Oberleutnant deitado sobre uma camada de palha, bem tratado, e em estado de responder às perguntas.

Logo de início um ponto ficou bem claro, de maneira bem nítida: as tropas alemãs que tinham montado guarda no castelo de Ornequin não tinham tido, por assim dizer, contato algum com as que, na véspera, se tinham retraído frente a Corvigny e para os fortes vizinhos. Como se se tivesse medo que cometessem uma indiscrição relativamente ao que se tinha passado durante a ocupação do castelo, a guarnição foi evacuada assim que chegaram as tropas de combate.

— Nesse momento — contou o Oberleutnant, que fazia parte destas últimas — eram sete horas da noite, os seus 75 já tinham identificado o castelo, e lá nós só encontramos um grupo de generais e de oficiais superiores. Os furgões com as suas bagagens já iam saindo e seus automóveis estavam prontos. Deram-me ordens de resistir tanto quanto possível e depois explodir o castelo. Aliás, o major tinha organizado tudo com essa intenção.

— O nome desse major?

— Não sei. Ele passeava com um jovem oficial a quem até mesmo os generais se dirigiam com respeito. Foi esse mesmo oficial que me chamou e me deu ordens expressas de obedecer ao major como "ao imperador".

— E esse jovem oficial, quem era?

— O Príncipe Conrad.

— Um dos filhos do Cáiser?

— Exato. Ele deixou o castelo ontem, no fim da tarde.

— E o major passou a noite aqui?

— Creio que sim. Em todo caso ele estava aqui hoje de manhã. Nós incendiamos as minas e partimos. Tarde demais, já que fui ferido perto desta casa... perto desta parede...

Paul dominou-se e disse:

— Perto da parede onde fuzilaram três franceses, não foi?

— Foi.

— Quando é que os fuzilaram?

— Ontem de tarde, mais ou menos às seis horas, acho, antes da nossa chegada de Corvigny.

— Quem os mandou fuzilar?

— O major.

Paul sentia gotas de suor lhe caírem do crânio sobre a testa e pela nuca. Não se havia enganado: Elisabeth tinha sido fuzilada por ordem daquele personagem inominável e inconcebível, cujo rosto lembrava, a ponto de poder ser confundido, o rosto de Hermine d'Andeville, a mãe de Elisabeth!

Prosseguiu, com voz trêmula:

— Então foram três os franceses fuzilados. O senhor tem certeza?

— Tenho, os moradores do castelo. Eles traíram.

— Um homem e duas mulheres, não foi?

— Foi.

— E no entanto só há dois cadáveres amarrados à parede.

— Sim, dois. Por ordem do Príncipe Conrad, o major mandou enterrar a senhora do castelo.

— Onde?

— O major não me disse.

— Mas talvez o senhor saiba por que ela foi fuzilada?

— Ela descobriu, parece, segredos muito importantes.

— Poderiam tê-la levado prisioneira?...

— Evidentemente, mas o Príncipe Conrad não a queria mais.

— Hem?!...

Paul deu um pulo, sobressaltado. O oficial prosseguiu, com um sorriso ambíguo:

— Homem! Nós conhecemos o príncipe. É o Don Juan da família. Na.s semanas que ele morou no castelo teve tempo, não é, de agradar... e depois... e depois de cansar... Além disso o major acha que essa mulher e os dois empregados tentaram envenenar o príncipe. Então, não é?

Não completou. Paul debruçou-se sobre ele com o rosto contorcido, e segurando-o pelo pescoço, disse-lhe:

— Mais uma palavra e eu o degolo... Ah! sorte a sua de estar ferido... se não fosse isso... se não fosse isso...

E Bernard, fora de si, o maltratou também:

— É mesmo, você tem sorte. É mesmo, você sabe, o seu Príncipe Conrad, bem... é um porco... e eu me encarrego de ir dizer-lhe isso na cara... um porco como toda a sua família e como vocês todos...

Deixaram o Oberleutnant bastante atônito, sem nada compreender daquele furor repentino.

Mas, fora, Paul teve um acesso de desespero. Seus nervos distendiam-se. Toda a sua cólera e todo o seu ódio transformavam-se num abatimento infinito. Mal conseguia reter a? lágrimas.

— Vamos, Paul — disse-lhe Bernard. — Você não vai acreditar nem uma palavra...

— Não, em hipótese alguma! Mas o que aconteceu, eu imagino. O grosseiro desse príncipe terá querido fazer-se de engraçado diante de Elisabeth e aproveitar-se do fato de ser o mais forte... Pense bem! uma mulher sozinha sem defesa, e;s uma conquista que vale a pena. Que torturas ela não deve ter sofrido, coitada! que humilhações! Uma luta a cada dia... ameaças... brutalidades e depois, no último momento, para puni-la por sua resistência, a morte...

— Nós a vingaremos, Paul — disse Bernard baixinho.

— Claro, mas será que eu vou conseguir esquecer jamais que foi por minha causa que ela ficou aqui... por culpa minha. Mais tarde eu lhe explico e você compreenderá o quanto fui duro e injusto... E no entanto...

Ele permaneceu pensativo. A imagem do major o perseguia, e ele repetiu;

— E no entanto... no entanto... há coisas tão estranhas...

A tarde toda, tropas francesas continuaram a chegar pelo vale do Liseron e pela aldeia de Ornequin a fim de oporem a uma volta de ofensiva inimiga. Estando a seção de Paul de repouso, ele aproveitou para dedicar-se com Bernard a pesquisas minuciosas nos jardins e pelas ruínas do castelo. Mas nenhum indicio lhes revelou onde o corpo de Elisabeth havia sido enterrado.

Às cinco horas mais ou menos mandaram dar a Rosalie e a Jérôme uma sepultura decente. Duas cruzes foram erguidas no alto de um pequeno monte semeado de flores.

O capelão veio rezar pelos mortos. E foi com emoção que Paul se ajoelhou sobre o túmulo dos dois fiéis empregados cuja dedicação tinha sido a causa de sua morte.

A esses também Paul prometeu vingança. E seu desejo de vingança evocava nele, com uma intensidade quase dolorosa, a imagem execrada do major, aquela imagem que já não podia mais, de agora em diante, se separar da lembrança que ele guardava da condessa d'Andeville.

Puxou Bernard para perto de si.

— Você tem certeza de não se ter enganado ao fazer uma ligação entre o major e a tal "camponesa" que o interrogou em Corvigny?

— Certeza absoluta.

— Então, venha. Eu lhe falei sobre o retrato de uma mulher. Nós vamos vê-lo e você me dirá sua impressão imediata.

Paul tinha reparado que a parte do castelo onde se encontrava o quarto de dormir e o de vestir da condessa Hermine d'Andeville não havia sido completamente demolida pela explosão das minas nem pela das granadas. Talvez então o quarto de vestir tivesse conservado o aspecto primitivo. Não existindo mais a escada não puderam atingir o primeiro andar senão após haver escalado os pedaços das paredes derrubadas. O corredor podia ser reconhecido em certos lugares. Todas as portas tinham sido arrancadas e os quartos mostravam um caos lamentável.

— É aqui — disse Paul mostrando um vazio entre dois painéis de parede que se mantinham em pé por milagre.

Era o quarto de vestir de Hermine d'Andeville, arrebentado, esburacado, entulhado de pedaços de paredes e teto, mas perfeitamente reconhecível, e cheio dos móveis que Paul tinha avistado na noite de seu casamento. As persianas tapavam em parte a entrada do dia. Mas havia luz suficiente para que Paul adivinhasse a parede oposta. E logo a seguir gritou:

— O retrato foi retirado!

Para ele foi uma enorme decepção e, ao mesmo tempo, uma prova da importância considerável que o adversário dava àquele retrato. Se o tinham retirado, não seria porque ele constituía um testemunho implacável?

— Eu juro — disse Bernard — que isso era nada muda a minha opinião. A certeza que eu tenho com relação ao major e à camponesa de Corvigny não tem necessidade de ser averiguada. O que representava esse retrato?

— Já lhe disse, uma mulher.

— Que mulher? Era um quadro que meu pai tinha posto aí? Um dos quadros da sua coleção?

— Justamente — afirmou Paul, desejoso de iludir o cunhado.

Tendo aberto uma das persianas, ele distinguiu na parede nua o grande retângulo que o quadro cobria antes e pôde dar-se conta, por certos detalhes, que a retirada do quadro tinha sido feita de maneira precipitada. Assim, a placa retirada do retrato estava no chão. Paul apanhou-a furtivamente para que Bernard não visse a inscrição que aí estava gravada.

Mas quando examinava mais atentamente o painel e no momento em que Bernard retirava outra parte da janela. soltou uma exclamação.

— O que foi? — disse Bernard.

— Ali... veja... aquela assinatura na parede... no lugar mesmo em que estava o quadro... uma assinatura e uma data.

Estava escrito a lápis, em duas linhas que arranhavam a pintura branca, na altura de um homem. A data: quarta-feira à noite, 16 de setembro de 1914. A assinatura: Major Hermann.

Major Hermann? Antes mesmo que Paul tomasse consciência, seus olhos fixavam-se num detalhe onde se concentrava toda a significação dessas linhas, e, enquanto Bernard se debruçava e por sua vez olhava, ele murmurou com um espanto sem limites:

— Hermann... Hermine...

Eram quase as mesmas palavras! Hermine começava pelas mesmas letras que o sobrenome ou o nome com que o major assinava, após sua patente, na parede. Major Hermann!! a condessa Hermine! HERM. As quatro letras incrustadas no punhal com o qual tinham tentado matá-lo, a ele! HERM... as quatro letras incrustadas no punhal do espião que ele tinha capturado no campanário de uma igreja! Bernard falou:

— A meu ver é uma assinatura de mulher. Mas então... E pensativamente, continuou:

— Mas então o que é que devemos concluir? Ou a camponesa de ontem e o major Hermann são um único personagem, isto é, que essa camponesa é um homem, ou então o major não o é... Ou então... ou então estamos à frente de dois personagens distintos, uma mulher e um homem, e eu acho que deve ser isso, apesar da semelhança sobrenatural que existe entre esse homem e esta mulher... Porque, enfim... como admitir que um mesmo personagem tenha podido ontem à noite assinar isso, atravessar as linhas francesas e, fantasiado de camponesa, vir me abordar em Corvigny... e depois, hoje de manhã, voltar aqui fantasiado de major alemão, mandar bombardear o castelo, fugir, e, depois de ter matado alguns de seus soldados, desaparecer em um automóvel?

Paul não respondeu, absorto em suas reflexões. Após alguns instantes, ele passou ao quarto vizinho, que separava o quarto de vestir do apartamento que sua mulher Elisabeth tinha ocupado.

Do apartamento, nada restava a não ser ruínas. Mas o cômodo intermediário não tinha sofrido muito e era fácil constatar, na pia, na cama coberta por lençóis em desordem, quartinha servido de quarto, e que aí tinham dormido na noite anterior.

Na mesa, Paul viu jornais alemães e um jornal francês, datado de 10 de setembro, onde o comunicado que recatava a vitória do Marne estava riscado com dois traços grandes de tinta vermelha e anotadas estas palavras: "Mentira! mentira!'' cem a assinatura H.

— Nós estamos exatamente nos aposentos do major Hermann — disse Paul a Bernard.

— E o major Hermann — declarou Bernard — queimou essa noite papéis comprometedores... Veja na chaminé o montão de cinzas.

Ele abaixou-se e recolheu alguns envelopes e algumas folhas meio queimadas, que, aliás, só apresentavam palavras sem segmento e frases incoerentes.

Mas o acaso fez seus olhos se dirigirem para o lado da cama onde ele viu, sob o colchão, um pacote de roupas escondidas, ou talvez esquecidas na pressa da partida. Ele as puxou para si e logo deu um grito:

— Ah! essa agora é um pouco demais!

— O que foi? — disse Paul que dava uma busca pelo quarto, por sua vez.

— Essas roupas... roupas de camponesa... as que eu vi na mulher em Corvigny. Não há dúvida possível... Era bem esse tom marrom e esse mesmo tecido de lã. E, depois, veja a renda preta de que lhe falei...

— O que é que você está dizendo? — gritou Paul aproximando-se.

— Homem! você pode ver, é uma espécie de fichu que não data de ontem. Como está usado e rasgado! Ainda aqui, preso por dentro o broche que descrevi, você está vendo?

Desde o início, Paul tinha visto o broche, e com que medo! Que sentido horrível ele dava à descoberta das roupas bem no quarto do major Hermann, e perto do quarto de vestir de Hermine d'Andeville! o camafeu, gravado com um cisne de asas abertas, e cercado por uma serpente de ouro onde os olhos eram feitos de rubis! Desde sua infância Paul o conhecia, a este camafeu, por tê-lo visto no decote daquela que tinha matado seu pai, e o conhecia por tê-lo revisto, nos seus mínimos detalhes, no retrato da condessa Hermine. E eis que o achava lá, preso ao fichu de renda preta, misturado às roupas da camponesa de Corvigny, e esquecido no quarto do major Hermann! Bernard disse:

— A prova é concludente. Já que as roupas estão aqui, isso quer dizer que a mulher que me interrogou sobre você voltou aqui essa noite; mas que relação haverá entre ela e esse oficial que é a sua cara? A pessoa que me interrogou sobre você será a mesma que duas horas antes mandava fuzilar Elisabeth? E quem serão eles? Que bando de assassinos e de espiões estamos enfrentando?

— Alemães, nada mais — declarou Paul. — Assassinar e espionar são, para eles, formas naturais e permitidas da guerra, e de uma guerra que eles começaram em pleno período de paz. Eu já lhe disse, Bernard, desta guerra nós somos as vítimas há quase 20 anos. O assassinato de meu pai foi o princípio do drama. E agora, é a nossa pobre Elisabeth que choramos. E ainda não é tudo.

— E, contudo — disse Bernard —, ele fugiu.

— Nós o veremos de novo, esteja certo disso. Se ele não vier, serei eu que irei procurá-lo. E nesse dia...

Havia duas poltronas nesse quarto. Paul e Bernard resolveram passar aí a noite, e sem mais tardar inscreveram seus nomes nas paredes do corredor. Depois Paul reuniu-se aos seus homens a fim de organizar-lhes a instalação entre as granjas e as dependências que ainda estavam de pé. Lá o soldado que lhe servia de ordenança, um bom sujeito da Auvergne chamado Gériflour, lhe disse que tinha conseguido dois pares de lençóis e colchões limpos, no fundo de uma casinha que dava para a casa do vigia. As camas foram então aí feitas

Paul aceitou. Ficou combinado que Gériflour e um de seus camaradas iriam para o castelo e se acomodariam nas duas poltronas.

A noite passou sem alerta. Foi uma noite de febre e de insônia para Paul, perseguido pela lembrança de Elisabeth.

De manhã ele caiu num sono pesado, agitado por pesadelo e logo cortado pelo som do despertador.

Bernard o esperava.

A chamada foi feita no pátio do castelo. Paul constatou que seu ordenança e seu camarada estavam faltando.

— Eles devem estar dormindo — disse a Bernard. — Vamos acordá-los.

Refizeram, pelas ruínas, o caminho que conduzia ao primeiro andar, passando pelos cômodos destruídos.

No cômodo que o major Hermann havia ocupado, acharam, na cama, o soldado Gériflour apunhalado, coberto de sangue, morto. Numa das poltronas jazia seu camarada, morto igualmente.

Em volta dos cadáveres, nenhuma desordem, nenhum traço de luta.

Os dois soldados devem ter sido mortos durante o sono. Quanto à arma, Paul logo a percebeu. Era um punhal no qual o cabo de madeira trazia as letras HERM.

 

O diário de Elisabeth

Havia nesse duplo assassinato, que se seguia a uma série de acontecimentos trágicos, todos ligados uns aos outros pelos laços mais rigorosos, havia aí tal acúmulo de horrores e de fatalidade revoltante, que os dois jovens não pronunciaram uma única palavra e não fizeram um único gesto.

Jamais a morte, de quem já tantas vezes tinham sentido o sopro no curso das batalhas, lhes tinha aparecido sob um aspecto mais sinistro e mais odiento.

A morte! Eles a viam não como um mal sorrateiro que atinge por acaso, mas como um espectro que desliza na sombra, espia o adversário, escolhe o seu momento e levanta-o braço com uma intenção determinada. E esse espectro tomava para eles a forma exata e o rosto do major Hermann.

Paul murmurou, e sua voz tinha verdadeiramente aquela entonação surda e aflita que parece lembrar as forças más das trevas:

— Ele veio hoje à noite. Ele veio, e como tínhamos marcado os nossos nomes na parede, esses nomes de Bernard d'Andeville e de Paul Delroze, que representam a seu olhos os nomes de dois inimigos, ele aproveitou a ocasião para ver-se livre deles. Certo de que éramos você e eu que dormíamos neste quarto, ele matou o pobre Gériflour e seu camarada. Eles morreram em nosso lugar.

Após um longo silêncio, continuou;

— Eles morreram como morreu meu pai... e como morreu Elisabeth... e também o caseiro e sua mulher... e pelas mesmas mãos... as mesmas, você entende, Bernard! É, é inadmissível, não é? e meu cérebro recusa-se a admitir isso... No entanto é a mesma mão que continua segurando o punhal... o de antes e o de agora.

Bernard examinou a arma. Ele disse ao ver as quatro letras:

— Hermann, não é? major Hermann?

— Sim — afirmou Paul com veemência. — Será o seu nome real e qual será a sua verdadeira personalidade? Ignoro. Mas o ser que cometeu todos esses crimes se assina com essas quatro letras: HERM.

Após haver dado um alerta aos homens de sua seção e de ter chamado o capelão e o major-médico, Paul resolveu pedir uma audiência particular ao seu coronel e confiar-lhe toda a história secreta que pudesse esclarecer qualquer coisa sobre a execução de Elisabeth e sobre o assassinato dos dois soldados. Mas soube que o coronel e seu regimento batalhavam para lá da fronteira, e que a terceira companhia tinha sido chamada de urgência, menos um destacamento que devia permanecer no castelo sob as ordens do sargento Delroze. Paul fez então o inquérito ele mesmo com os seus homens.

Nada ficou revelado. Foi impossível recolher-se o menor indício sobre a forma pela qual o assassino tinha penetrado, primeiramente no pátio, depois nas ruínas, e enfim no quarto. Nenhum civil tendo passado, devia concluir-se que o autor do duplo crime era um dos soldados da terceira companhia? Evidentemente que não. E então, que suposição adotar fora dessa?

E Paul nada descobriu tampouco que o esclarecesse sobre a morte de sua mulher e sobre o local onde a teriam enterrado. E isso era a prova mais dura.

Junto aos feridos alemães esbarrou-se na mesma ignorância de quando investigou junto aos prisioneiros. Todos sabiam da execução de um homem e duas mulheres, mas todos tinham chegado após essa execução e após a partida das tropas de ocupação.

Prosseguiu até a aldeia de Ornequin. Talvez que lá se soubesse qualquer coisa. Talvez os habitantes tivessem ouvido falar da castelã, da vida que levava no castelo, de seu martírio, de sua morte...

Ornequin estava vazio. Nenhuma mulher, nenhum velho. O inimigo devia ter mandado os habitantes para a Alemanha, sendo seu objetivo, manifestamente, sem dúvida alguma, desde o começo, suprimir todos os testemunhos de seus atos durante a ocupação e de transformar em deserto as imediações do castelo.

Assim Paul consagrou três dias às suas pesquisas vás.

— E, no entanto — dizia ele a Bernard —, Elisabeth não pode ter desaparecido inteiramente. Se eu não achar o seu túmulo, não posso então achar um traço mínimo que seja de sua estada aqui? Ela viveu aqui. Aqui sofreu. Uma lembrança dela me seria tão preciosa!

Ele tinha conseguido reconstituir a posição exata do quarto que ela ocupava, e mesmo, em meio aos desmoronamentos, pedaços de pedras e outros restos do que tinha sido seu quarto.

Isso tudo estava misturado com os restos dos salões, no térreo, para onde tinham degringolado os tetos do primeiro andar, e foi nesse caos, sob montes de paredes pulverizadas e móveis aos pedaços que um dia de manhã ele recolheu um pequeno espelho quebrado, e depois uma escova de tartaruga, e depois um canivete de prata, e depois um conjunto de tesouras, todos objetos que pertenceram a Elisabeth.

Mas o que o confundiu mais ainda foi a descoberta de uma agenda grande onde ele sabia que a jovem marcava, antes de seu casamento, suas despesas, lista do que tinha a fazer, visitas e, às vezes, informações mais íntimas de sua vida

Ora, dessa agenda só restava a capa com a data 1914 e a parte que concernia aos sete primeiros meses do ano. Todos os fascículos dos cinco últimos meses tinham sido, não arrancados, mas retirados um a um dos cordões que os prendiam à agenda.

Paul logo pensou:

— Foram retirados por Elisabeth, e sem pressa, num momento em que nada a pressionava nem a inquietava, e quando ela simplesmente desejava servir-se desses fascículos para escrever dia após dia... O quê? O que senão justamente essas notas mais íntimas que antes ela anotava na agenda, entre uma conta e uma receita. E como, após minha partida, não mais tinha havido contas e a existência não foi para ela senão o drama mais horrível, foi sem dúvida a essas páginas desaparecidas que ela confiou seu desespero... suas queixas... talvez sua revolta contra mim.

Naquele dia, na ausência de Bernard, Paul redobrou seus esforços. Procurou por baixo de todas as pedras e em todos os buracos. Levantou todos os pedaços de mármore, os lustres torcidos, os tapetes furados, pelas vigas enegrecidas pelas chamas. Durante horas obstinou-se.

Distribuiu as ruínas em setores pacientemente interrogados, cada um por sua vez, e, como as ruínas não respondessem às suas perguntas, refez no parque investigações minuciosas.

Esforços inúteis, e Paul se dava conta dessa inutilidade. Elisabeth devia dar grande importância a essas páginas para não as ter ou destruído ou escondido muito bem. A menos que...

"A menos" — pensou ele — "que as tenham roubado. O major devia exercer sobre ela uma vigilância contínua. E, nesse caso, quem sabe?..."

Uma hipótese se esboçava no espírito de Paul.

Depois de haver descoberto as roupas da camponesa e a renda preta, ele as tinha deixado, não lhes dando mais atenção, sobre a cama mesmo do, quarto, e perguntava-se se o major, na noite em que tinha assassinado os dois soldados, não teria vindo com a intenção de reaver as roupas, ou, pelo menos, o conteúdo de seus bolsos, o que ele não tinha podido fazer já que o soldado Gériflour, deitado por cima, as escondia das vistas.

Ora, agora Paul se recordava que ao desdobrar aquela saia e o corpete de camponesa, ele tinha percebido, num bolso, um ruído de papel. Não se poderia concluir que era o jornal de Elisabeth, encontrado e roubado pelo major Hermann?

Paul correu até o quarto onde o duplo crime tinha sido cometido. Segurou as roupas e procurou.

— Ah! — exclamou ele logo a seguir, c:m uma alegria verdadeira — ei-lo aqui!

As folhas soltas da agenda enchiam um enorme envelope amarelo. Eram todas independentes uma da outra, amassadas e em alguns lugares rasgadas, e bastou a Paul um olhar para dar-se conta de que essas folhas não correspondiam senão aos meses de agosto e de setembro, e que, mesmo assim, faltava algumas na série desses dois meses.

E ele viu a letra de Elisabeth.

Não era, de início, um diário muito detalhado. Notas simplesmente, pobres notas de onde se exalava um coração ferido, e que, algumas vezes mais longas, tinham necessidade de junção de uma folha suplementar. Notas escritas de dia ou de noite, ao acaso da pena ou do lápis, apenas legíveis, algumas vezes, e que davam a impressão de uma mão que tremia, de olhos embaçados pelas lágrimas e de um ser louco de dor.

E nada poderia comover Paul mais profundamente.

Ele estava só, e leu:

 

Domingo, 2 de agosto.

Ele não deveria ter escrito esta carta. Ela é cruel demais. E por que ele me propõe abandonar Ornequin? A guerra? Então porque a guerra é possível eu não teria a coragem de permanecer aqui e de fazer o meu dever? Como ele me conhece pouco! E porque ele pensa que sou covarde ou então capaz- de suspeitar de minha pobre mãe?... Paul. meu querido Paul, você não deveria ter-me deixado...

 

Segunda-feira, 3 de agosto.

Desde que os empregados partiram, Jérôme e Rosalie se desdobram em atenções para comigo. Rosalie também me suplicou para que eu parta. "E você, Rosalie, eu lhe disse, você vai partir?" "Oh! nós, nós somos gente pobre, nada temos a temer. E, além do mais, o nosso lugar é aqui." Eu lhe respondi que era o meu também. Mas bem vi que ela não podia compreender. Quando encontro Jérôme ele balança a cabeça e me, olha com olhos tristes.

 

Terça-feira, 4 de agosto.

Meu dever? Sim, não o discuto. Preferiria morrer que renunciar a ele. Mas cumprir esse dever? E como chegar até a verdade? Estou cheia de coragem e no entanto não paro de chorar, como se eu nada tivesse de melhor a fazer . É que penso sobretudo em Paul. Onde está ele? O que está sucedendo com ele? Quando Jérôme me disse hoje de manhã que a guerra tinha sido declarada, pensei que ia desmaiar. Assim, Paul vai combater. Ele será ferido, talvez! Morto! Ah! meu Deus, será que o meu lugar não seria perto dele, numa cidade perto do lugar onde ele esteja combatendo? O que posso esperar ficando aqui? Sim, meu dever, eu sei... minha mãe. Ah! mamãe, eu lhe peço perdão. Mas, você sabe, é que eu o amo e tenho receio que alguma coisa lhe aconteça...

 

Quinta-feira, 6 de agosto.

Sempre as lágrimas. Estou cada vez mais infeliz. Mas sinto que, ainda que tivesse de sê-lo mais, mesmo assim não cederia. De qualquer modo, poderia encontrar-me com ele,-quando ele já não quer mais saber de mim e nem me escreve? Seu amor? Mas ele me detesta! Sou a filha de uma mulher para quem seu ódio não tem limites. Ah! Que horror! Será possível? Mas então, se é assim que ele pensa de mamãe, e se eu nada conseguir de meu lado, nós nunca mais poderemos nos rever, ele e eu? Eis a vida que me espera!

 

Sexta-feira, 7.de agosto.

Eu interroguei Jérôme e Rosalie longamente sobre mamãe. Eles só a conheceram durante poucas semanas,'mas lembram-se bem dela e tudo o que me disseram foi tão agradável! Parece que era boa e tão bonita! Todos a adoravam. "Não era sempre que ela estava alegre" — me disse Rosalie. — "Seria já a doença que a minava, não sei, mas quando ela sorria, fazia bem.ao coração da gente." Minha pobre mamãe querida!

 

Sábado, 8 de agosto.

Hoje de- manhã ouvimos o canhão bem longe. Batem-se a 10 léguas daqui. Há pouco alguns franceses vieram aqui. Eu já os havia visto, freqüentemente do alto do terraço, passando pelo vale do Liseron. Esses de agora vão morar no castelo. O capitão deles pediu desculpas. De receio de me perturbar, seus tenentes e ele próprio dormem e tomam as refeições nas dependências onde Jérôme e Rosalie moravam.

 

Domingo, 9 de agosto.

Continuo sem notícias de Paul. Eu também não tento escrever-lhe. Não quero que ele ouça falar a meu respeito até o momento em que eu tenha todas as provas.

Mas o que fazer? E como ter as provas de uma coisa que se passou há 16 anos? Eu procuro, estudo, reflito. Nada.

 

Segunda-feira, 10 de agosto.

O canhão não pára, ao longe. Entretanto o capitão me disse que nenhum momento deixa prever um ataque inimigo deste lado.

 

Terça-feira, 11 de agosto.

Há pouco, um soldado de ronda no bosque, perto da pequena porta que dá para os campos, foi morto com uma punhalada. Supõe-se que ele tenha querido barrar passagem a um indivíduo que tentava sair do parque. Mas como esse indivíduo teria feito para entrar?

 

Quarta-feira, 12 de agosto.

O que está havendo? Eis um fato que me impressionou vivamente e que me parece inexplicável. Por falar nisso há outros que são tão desconcertantes se bem que eu não saiba dizer por quê. Estou muito espantada que o capitão e todos os soldados que eu encontro pareçam despreocupados ao ponto de poder brincar entre eles. Mas eu sinto aquela impressão que nos angustia ao aproximar-se uma tempestade. Talvez seja nervoso.

Hoje de manhã então...

 

Paul interrompeu-se. Toda a parte de baixo da página onde estas linhas estavam escritas, assim como a página seguinte, tinha sido arrancada. Deveria concluir que o major, após haver roubado o diário de Elisabeth, tinha dele retirado, por qualquer motivo, as páginas onde a jovem dava certas explicações? E o diário continuava:

 

Sexta-feira, 14 de agosto.

Nada pude fazer senão me abrir com o capitão. Eu o conduzi perto da árvore morta, envolvida por uma erva espessa, e pedi-lhe para sentar-se e escutar. Ele pôs muita paciência e atenção no seu exame. Mas nada ouviu e, com efeito, recomeçando a experiência por minha vez, tive de reconhecer que ele tinha razão.

— Está vendo, madame, tudo está absolutamente normal.

— Capitão, eu juro que anteontem, saía dessa árvore, precisamente neste local, um barulho confuso. E isso durou diversos minutos.

Ele me respondeu, dando um pequeno sorriso:

— Seria fácil pôr abaixo esta árvore, mas não acha que no estado de nervos em que todos estamos, podemos estar sujeitos a certos equívocos, a uma espécie de alucinação? Por que, enfim, de onde poderia vir esse barulho?

Sim, claro, ele tinha razão. E no entanto eu ouvi... Eu vi...

 

Sábado, 15 de agosto.

Ontem à noite trouxeram dois oficiais alemães que foram trancados na lavanderia, no final das dependências dos empregados.

Hoje de manhã só encontraram nessa lavanderia os seus uniformes.

Que eles tenham arrombado a porta, eu entendo. Mas a investigação feita pelo capitão mostrou que eles fugiram, vestidos com uniformes franceses, e que passaram diante das sentinelas, dizendo-se encarregados de uma missão em Corvigny.

Quem lhes forneceu esses uniformes? Além do mais, tinham de saber a senha... Quem lhes revelou essa senha?...

Parece que uma camponesa veio diversos dias seguidos trazer ovos e leite, uma camponesa um pouco bem vestida demais e que não foi vista hoje. Mas nada prova sua cumplicidade.

 

Domingo, 16 de agosto.

O capitão me pressionou insistentemente para que eu parta. Ele não sorri mais, agora. Parece muito preocupado.

"Estamos cercados de espiões" — disse-me ele. — "Além disso há indícios que nos levam a crer que poderíamos ser atacados daqui a pouco tempo. Não um ataque de grande porte, com finalidade de forçar a passagem para Corvigny. mas um assalto ao castelo. Meu dever é de preveni-la de que de um momento para o outro nós poderemos ser forçados a recuar para Corvigny e que seria para a senhora mais do que imprudente permanecer aqui."

Respondi ao capitão que nada mudaria minha resolução.

Jérôme e Rosalie também me suplicaram. Para quê? Eu não irei embora.

 

Mais uma vez, Paul parou. Havia nesse ponto da agenda, uma página a menos, e a seguinte, a do dia 18 de agosto, rasgada no começo e no fim, só davam um fragmento do diário, que a jovem tinha escrito naquela data:

 

...e foi por essa razão que nada falei na carta que acabo de mandar a Paul. Ele saberá que fico em Ornequin e os motivos da minha decisão, é tudo. Mas deve ignorar minha esperança.

A minha esperança é ainda tão confusa e erguida num detalhe tão insignificante! No entanto estou muito alegre. Não compreendo a significação deste detalhe e, apesar disso, sinto sua importância. Ah! o capitão pode bem se mexer e multiplicar as patrulhas, todos os seus soldados revistar suas armas e gritar sua vontade de combater. O inimigo pode bem instalar-se em Ebrecourt, como dizem! Que me importa? Uma só idéia conta! Terei encontrado o ponto de partida? Estarei na pista certa?

Vejamos, vamos refletir...

 

 

A página estava rasgada aí, quando Elisabeth ia entrar em explicações precisas. Teria sido uma medida tomada pelo major Hermann? Sem dúvida alguma, mas por quê?

Rasgada igualmente, a primeira metade da página da quarta-feira, 19 de agosto, véspera do dia em que os alemães tomaram de assalto Ornequin, Corvigny e toda a região... Que linhas teria traçado a jovem, nessa tarde de quarta-feira? O que teria ela descoberto? Que se preparava às escondidas?

O medo invadia Paul. Ele se lembrava de que às duas horas da manhã, na quinta-feira, o primeiro som de canhão tinha ressoado acima de Corvigny, e foi com o coração apertado que ele leu na segunda parte da página:

 

Onze horas da noite.

Eu acordei e abri minha janela. De todos os lados ouvem-se latidos de cães. Eles se respondem, param, parecem escutar, e recomeçam a uivar como nunca os tinha ouvido fazer. Quando param, o silêncio torna-se impressionante e então, por minha vez, escuto a fim de surpreender os ruídos indistintos que os. mantêm acordados.

E parece-me, a mim também, que esses ruídos existem. É outra coisa a mais que o ruído de folhas. Isso nada tem a ver com o que anima de hábito a calma das noites. Vem, não sei bem de onde, e a minha impressão é ao mesmo tempo tão forte e tão confusa, que me pergunto se não estou somente ouvindo o barulho das batidas do meu coração ou se não estou percebendo o barulho de um exército em marcha.

Vamos! estou louca. Um exército em marcha! E nossas vanguardas na fronteira? E nossas sentinelas em volta do castelo?... Haveria uma batalha, troca de tiros...

 

Uma hora da manhã.

Não saí da janela. Os cães não latiam mais, tudo estava adormecido. E eis que vi alguém que saía par entre as árvores e que atravessava o gramado. Eu poderia tê-lo tomado por um dos nossos soldados. Mas quando aquela sombra passou pela minha janela havia luz suficiente no céu para permitir-me distinguir uma silhueta de mulher. Pensei em Rosalie. Mas não, a silhueta era alta, um jeito leve e rápido de andar.

Estive a ponto de acordar Jérôme e de dar o alarma. Não o fiz. A sombra havia desaparecido para os lados do terraço. E imediatamente um grito de uma ave que me pareceu estranha... e logo depois um luar que transpassou pelo céu, como uma estrela cadente que tivesse saído da terra mesmo

E depois, nada mais. Ainda uma vez o silêncio, a imobilidade das coisas. Nada mais e no entanto, desde essa hora não mais ouso me deitar. Tenho medo, sem saber de quê. Todos os perigos surgem de todos os cantos do horizonte. Avançam, cercam-me, me impressionam, me sufocam, me esmagam. Não posso mais respirar. Tenho medo... Tenho medo...


 

O filho do imperador

Paul apertava nas suas mãos cerradas o triste diário ao qual Elisabeth tinha confiado suas angústias.

"Ah! a infeliz — pensou ele —, como deve ter sofrido! E foi só o começo do caminho que a conduziu à morte..."

Estava com medo de ir mais adiante. As horas do suplício se aproximavam de Elisabeth, ameaçadoras e implacáveis, e ele gostaria de gritar-lhe:

— Mas... vá embora! Não enfrente o destino! Eu esqueço o passado. Amo-a!

Tarde demais! Foi ele mesmo, pela sua crueldade que a havia conduzido ao suplício, e ele devia, até o fim, assistir a todas as etapas do calvário do qual conhecia o final terrível.

Bruscamente, virou as folhas.

Havia primeiramente três páginas em branco, aquelas que traziam as datas de 20, 21 e 22 de agosto... dias de confusão durante os quais ela não tinha podido escrever. As páginas de 23 e 24 estavam faltando. Essas relatavam, sem dúvida, os acontecimentos e continham revelações sobre a inexplicável invasão.

O diário recomeçava no meio de uma folha rasgada, a folha de terça-feira 25.

— Sim, Rosalie, estou me sentindo muito bem e lhe agradeço pela maneira com que você cuidou de mim.

— Então, não tem mais febre?

— Não, Rosalie, acabou.

— Madame já me dizia isso ontem e a febre voltou... talvez por causa dessa visita... Mas essa visita não virá hoje... Somente amanhã... Recebi ordem de avisar Madame... amanhã às cinco horas...

Não respondi. Para que revoltar-me? Nenhuma palavra humilhante que eu tenha de ouvir me fará mais mal do que o que está aqui sob os meus olhos: o gramado invadido por cavalos amarrados nos paus, caminhões e caixotes pelas alamedas, a metade das árvores abatidas, oficiais esparramados pela grama, bebendo e cantando e, bem em minha frente, pendurada bem na varanda da minha janela, uma bandeira alemã. Ah! miseráveis!

Fecho os olhos para não ver. E é pior ainda... Ah! a lembrança daquela noite... e, hoje de manhã, quando o sol se levantou, a visão de todos aqueles cadáveres. Havia alguns infelizes que viviam ainda e em volta dos quais os monstros dançavam, e eu percebia o grito dos agonizantes que suplicavam para que os matassem.

E depois... e depois... mas não quero mais pensar nisso e não mais pensar em coisa alguma que possa destruir minha coragem e minha esperança.

Paul, é pensando em você que escrevo este diário. Alguma coisa me diz que você o lera, se me acontecer algo, e é preciso então que eu tenha a força para prosseguir e de colocá-lo a par da situação a cada dia. Talvez você já compreenda, pelo que eu escrevi o que a mim me parece ainda bem obscuro. Que relação há entre o passado e o presente, entre o crime de então e o ataque inexplicável de outra noite? Nada sei. Eu lhe expus os fatos detalhadamente, assim como minhas hipóteses. Você, você concluirá e irá até o fim da verdade.

 

Quarta-feira,26 de agosto.

Há muito barulho no castelo. Há um contínuo vaivém por todos os lados sobretudo nos salões embaixo do meu quarto. Faz já uma hora que meia dúzia de caminhões e o mesmo número de automóveis apareceram nos gramados. Os caminhões estavam vazios. Duas ou três senhoras saltaram de cada carro, umas alemãs que faziam muitos gestos e riam alto. Os oficiais precipitaram-se ao seu encontro, e houve efusões de alegria. Depois toda essa gente dirigiu-se para o castelo. Qual será o objetivo deles?

Mas parece-me que ouço passos no corredor. Cinco horas já...

Estão batendo...

Entraram cinco, ele primeiro, e quatro oficiais obsequiosos que se curvavam diante dele.

Ele lhes disse em francês, num tom seco:

— Os senhores estão vendo, cavalheiros? Tudo o que estiver nesse quarto e no apartamento reservado a Madame, eu os intimo a não tocar. O resto, com exceção dos dois salões, eu lhe.3 dou. Guardem aqui o que lhes for necessário e levem o que lhes aprouver. É a guerra, é o direito de guerra.

Com que tom de convicção boba ele pronunciou estas palavras: "É o direito de guerra" e repetiu:

— Quanto ao apartamento de Madame, nenhum móvel deverá sair do lugar. Eu conheço as convenções.

Aí me olhou com ar de quem diz:

— Hem! como sou cavalheiro! Poderia pegar tudo. Mas sou alemão e, como tal, conheço as convenções.

Ele espera um agradecimento. Eu lhe digo:

— É o saque que começa? Entendo o porquê da chegada dos caminhões.

— Não é saque o que se pega pelos direitos de guerra — respondeu ele.

— Ah! e os direitos de guerra não se estendem aos móveis e objetos de arte dos dois salões?

Ele enrubesceu e eu comecei a rir.

— Compreendo, é a sua parte. Bem escolhido. Só coisas preciosas e de grande valor. As sobras, seus empregados dividirão entre si.

Os oficiais ficaram furiosos. Ele ficou mais vermelho ainda. Tem um rosto redondo, cabelos demasiadamente louros, cheios de brilhantina e impecavelmente divididos ao meio. A testa é baixa e, por trás dessa testa adivinho o esforço que ele faz para achar uma resposta. Enfim, aproxima-se de mim. e diz com voz triunfante:

— Os franceses foram derrotados em Charleroi, derrotados em Morhanger, derrotados em todos os lugares. Recuam em todas as linhas. O fim da guerra está resolvido.

Por mais violenta que seja a minha dor, não me mexo, meus olhos o desafiam, e eu digo:

— Cafajeste!

Ele oscilou. Seus companheiros ouviram, e um levou a mão à bainha de sua espada. Mas ele, o que vai fazer? O que vai dizer? Sente-se que está confuso e que seu prestígio está em causa.

— Madame, a senhora ignora talvez quem eu seja?

— Não. O senhor é o Príncipe Conrad, um dos filhos do Cáiser. E daí?

Novo esforço de dignidade. Ele aprumou-se. Espero as ameaças e a expressão de sua cólera: mas não, é uma gargalhada que me responde, um riso afetado de grande senhor displicente, desdenhoso demais para se ofender e suficientemente inteligente para não se aborrecer.

— Francesinha! Como ela é engraçadinha, senhores! Ouviram? Que impertinência! É a parisiense, senhores, com toda a sua graça e toda a sua esperteza.

E, me saudando com um grande gesto, sem uma palavra a mais, saiu brincando:

— Francesinha! Ah! senhores, essas francesinhas!...

 

Quinta-feira, 27 de agosto

O dia inteiro, mudança. Os caminhões correm para a fronteira, carregados com o saque.

Era o presente de casamento de meu pobre pai, todas as suas coleções adquiridas com tanta paciência e com tanto amor, e era o cenário precioso onde Paul e eu deveríamos viver. Que sofrimento!

As notícias da guerra são ruins. Chorei muito.

O Príncipe Conrad veio. Tive de recebê-lo, porque ele me fez saber por Rosalie que se eu não recebesse suas visitas, os habitantes de Ornequin sofreriam as conseqüências!

Neste ponto de seu diário, Elisabeth se interrompeu mais uma vez. Dois dias mais tarde, com a data de 29, ela retomava:

Ele veio ontem. Hoje também. Ele faz esforços para mostrar-se espiritual, culto. Fala de literatura e música, Goethe, Wagner... Ele fala sozinho, por sinal, e isso o põe em tal estado de cólera que ele termina gritando:

— Mas responda, ora! Não é uma desonra, mesmo para uma francesa, conversar com o Príncipe Conrad!

— Uma mulher não conversa com seu algoz.

Ele protestou vivamente:

— Mas a senhora não está na prisão, que diabo!

— Posso sair deste castelo?

— A senhora pode passear pelos jardins...

— Então, entre quatro muros, corno uma prisioneira.

— Enfim, o que é que deseja?

— Sair daqui e ir viver... onde o senhor o exigir, em Corvigny, por exemplo.

— Isto é, longe de mim!

Como eu fiquei em silêncio, ele inclinou-se um pouco e continuou com voz baixa:

— A senhora me detesta, não é? Oh! não o ignoro. Estou habituado com as mulheres. Só que não é o Príncipe Conrad que a senhora detesta, não é? É o alemão... O vencedor... Porque, enfim, não há razão para que o homem em si lhe seja... antipático... E, neste momento, é o homem que está em jogo... que procura agradar... A senhora compreende?... Então...

Eu tinha ficado em pé, diante dele. Não pronunciei uma única palavra, mas ele deve ter visto nos meus olhos um tal nojo, que parou no meio da frase, com ar absolutamente idiota. Depois, a natureza falou mais alto, e ele, grosseiramente, mostrou-me o punho e partiu batendo a porta e mastigando ameaças...

 

Em seguida faltavam duas páginas no diário. Paul estava lívido. Jamais sofrimento algum o tinha queimado assim a esse ponto. Parecia-lhe que a sua pobre e querida Elisabeth vivia ainda e que lutava sob os seus olhos, e que se sentia vista por ele. E nada poderia perturbá-lo mais profundamente que o grito de desespero e de amor que marcava a folha de 19 de setembro.

Paul, meu Paul, não tenha medo de nada. Sim, rasguei essas duas páginas porque eu não queria que você jamais tivesse conhecimento de coisas tão feias. Mas isso não o afastará de mim, não é? Não é porque um bárbaro se permitiu ofender-me que sou menos digna de ser amada, não é? Oh! tudo o que ele me disse, Paul!... ainda ontem... suas injúrias, suas ameaças odiosas, suas promessas ainda mais infames... e toda a sua raiva... Não, não quero repetir-lhe. Ao confiar-me a este diário, eu pensava confiar-lhe meus pensamentos e meus atos de cada dia. Eu pensava nada mais escrever aí senão o testemunho de minha dor. Mas isso já é outra coisa, e não tenho coragem... Perdoe o meu silêncio. Que seja suficiente conhecer a ofensa para poder vingar-me mais tarde. Não me peça mais nada...

 

Com efeito, nos d'as seguintes a jovem não contou mais com detalhes as visitas cotidianas do Príncipe Conrad, mas como se sentia na sua narração a presença obstinada do inimigo em volta dela! Eram notas breves, onde ela já não ousava dizer tudo como antes, e que ela escrevia à medida que as páginas se apresentavam, marcando ela me?ma os dias, sem a preocupação das datas, que foram suprimidas.

E Paul lia tremendo. E revelação novas aumentavam-lhe o medo.

 

Quinta-feira

Rosalie os interroga todas as manhãs. O recuo dos franceses continua. Parece que é mesmo uma derrota e que Paris está abandonada. O governo fugiu. Estamos perdidos.

 

Sete horas da noite.

Ele passeia sob a minha janela, como é seu hábito. Está acompanhado de uma mulher que já vi de longe diversas vezes e que está sempre envolta num grande manto de camponesa e nos cabelos um xale de renda preta que lhe esconde o rosto. Mas a maior parte das vezes, seu companheiro de passeio pelo gramado é um oficial a quem chamam de major. Este também vive com a cabeça enfiada na gola levantada de seu capote cinza.

 

Sexta-feira

Os soldados dançam em cima da grama, enquanto tocam músicas alemãs e os sinos de Ornequin badalam até não poder mais. Celebram a entrada de suas tropas em Paris. Como duvidar que seja verdade? Ah! a alegria deles é a melhor prova da verdade.

 

Sábado

Entre o meu apartamento e o quarto de vestir onde se acha o retrato de mamãe, há o quarto que mamãe ocupava. Este quarto está sendo usado pelo major. É um amigo íntimo do príncipe e um personagem considerável, dizem, que os soldados só conhecem pelo nome de Major Hermann. Ele não se humilha como os outros diante do príncipe. Pelo contrário, parece dirigir-se a ele com certa familiaridade.

Neste momento andam um ao lado do outro pela alameda. O príncipe se apoia no braço do major Hermann. Creio que falam de mim e que não estão de acordo. Dir-se-ia quase que o Major Hermann está colérico.

 

10 horas da manhã.

Não me enganei. Rosalie me disse que houve entre eles uma cena violenta.

 

Terça-feira, 8 de setembro.

Há algo de esquisito no jeito deles todos. O príncipe, o major, os oficiais parecem nervosos. Os soldados já não cantam mais. Ouve-se barulho de brigas. Será que os acontecimentos não são favoráveis?

 

Quinta-feira.

A agitação está aumentando. Parece que notícias estão chegando a cada instante. Os oficiais enviaram de volta à Alemanha uma parte de suas bagagens. Estou com grande esperança. Mas, de outro lado...

Ah! meu querido Paul, se você soubesse a tortura dessas visitas!... Já não é mais o homem adocicado dos primeiros dias. Jogou fora a máscara... Não, não, silêncio nesse assunto...

 

Sexta-feira.

A cidade inteira de Ornequin foi evacuada para a Alemanha. Não querem que haja uma única testemunha do que se passou durante a noite horrível que eu lhe contei...

 

Domingo à noite.

É a derrota, o recuo para longe de Paris. Ele me confessou rangendo os dentes de raiva e proferindo ameaças para mim. Eu sou a refém contra a qual se vingam...

 

Terça-feira.

Paul, se alguma vez você o encontrar durante uma batalha, mate-o como a um cão. Mas e essa gente lá se bate! Ah! já não sei o que digo... Estou perdendo a razão. Por que fiquei neste castelo? Você deveria ter-me levado à força, Paul..

Paul, você sabe o que ele imaginou?... Ah! covarde.. Guardaram 12 habitantes de Ornequin como reféns, e sou eu. sou eu que sou a responsável pela vida deles. Você entende o horror? Segundo a minha conduta eles viverão ou serão fuzilados, um a um... como crer numa tal infâmia? Será que o que ele quer é fazer-me medo? Ah! a ignomínia de tal ameaça! Que inferno, eu preferiria morrer...

 

Nove horas da noite.

...Morrer? Não, por que morrer? Rosalie veio aqui. Seu marido deu um jeito com uma das sentinelas que darão guarda hoje à noite na pequena porta do jardim, para lá da capela.

Às três horas da manhã, Rosalie me acordará, e nós fugiremos até o meio do bosque onde Jérôme conhece um esconderijo inacessível... Meus Deus! se nós conseguíssemos!

 

Onze horas da noite.

O que aconteceu? Por que me levantei? Tudo isso é somente um pesadelo, tenho certeza... e no entanto tremo de febre e quase nem posso escrever... E esse copo d'água em cima da mesa?... Por que é que não ouro beber essa água, como tenho o hábito de fazer nas horas de insônia?

Ah! que horrível pesadelo! Como poderei jamais esquecer o que eu vi enquanto dormia? Porque eu dormia, disso tenho certeza; tinha-me deitado para repousar antes da fuga, e foi em sonho que eu vi aquele fantasma de mulher! Um fantasma?... Sim, só mesmo um fantasma para passar por uma porta trancada à chave, e seus passos fazendo tão pouco barulho ao deslizar pelo chão que só ouvi mesmo o imperceptível roçar de sua saia.

O que vinha ela fazer? À luz de minha luz bem fraca, eu a vi passar pela mesa e prosseguir em direção à minha cama, com precaução, o rosto escondido pelas trevas. Tive tanto medo que fechei os olhos para que ela pensasse que eu dormia. Mas a sensação de sua presença e de sua aproximação aumentava em mim. e segui da maneira mais nítida tudo o que ela fazia. Tendo-se debruçado sobre mim, olhou-me um bocado de tempo como se não me conhecesse e quisesse estudar minhas feições. Como então ela não ouviu as batidas desordenadas de meu coração? Eu ouvia o seu e também o movimento regular de sua respiração. Como eu sofria! Quem era essa mulher? Qual era o seu objetivo?

Ela terminou seu exame e afastou-se. Não para muito longe. Através de minhas pálpebras eu a adivinhava curvada perto de mim e ocupada com algum serviço silencioso, e, no fim, tive tanta certeza de que ela não me observava mais que cedi pouco a pouco á tentação de abrir os olhos. Eu queria ver, nem que fosse por um segundo, ver seu rosto, ver seu gesto... E olhei.

Meu Deus. por que milagre tive a força de reter o grito que saía de todo o meu ser?

A mulher que estava ali e cujo rosto eu distinguia nitidamente, iluminado pela minha luz, era...

Oh! não escreverei tal blasfêmia! se aquela mulher estivesse perto de mim, ajoelhada, rezando, e se eu tivesse vislumbrado um rosto doce que sorrisse por entre as lágrimas, não, eu não teria tremido diante dessa visão inesperada daquela que já morreu. Mas aquela expressão contraída, atroz, de ódio e de ruindade,1 selvagem, infernal... nenhum espetáculo do mundo poderia ter causado mais pavor em mim. E foi por isso, talvez, pelo que tal espetáculo tinha de excessivo e de sobrenatural, foi por isso que não gritei e que agora estou quase calma. No momento em que meus olhos olhavam, eu já tinha compreendido que eu estava tendo um -pesadelo.

Mamãe, mamãe, você nunca teve nem pode ter aquela expressão, não é verdade? Você era boa, não era? Você sorria? E se você ainda vivesse, você teria sempre o mesmo ar de bondade e de doçura? Mamãe querida, desde a noite horrorosa em que Paul reconheceu seu retrato, eu entrei freqüentemente nesse quarto, para estudar o seu rosto de mãe, que eu tinha esquecido — eu era tão pequena quando você morreu, mamãe! — e se sentia que o pintor lhe tivesse dado uma expressão diferente da que eu teria gostado, pelo menos não era a expressão tão ruim e feroz de agora há pouco. Por que você me odiaria? Eu sou sua filha. Papai me disse diversas vezes que tínhamos o mesmo sorriso, você e eu, e também que ao me olhar seus olhos se molhavam de doçura. Então... então... você não me detesta, não é? E eu tive um pesadelo?

Ou, pelo menos, se eu não tive um pesadelo vendo uma mulher no meu quarto, eu tive um pesadelo quando essa mulher me pareceu ter o seu rosto. Alucinação... delírio... De tanto olhar o seu retrato e de pensar em você, dei à desconhecida o rosto que eu sabia ser o seu, e foi ela e não você que tinha aquela expressão horrorosa.

Não vou beber, portanto, essa água. O que ela ai derramou foi veneno talvez ou talvez algo que me faça dormir profundamente e ficar à mercê do príncipe... e penso na mulher que algumas vezes passeia com ele...

Mas não sei nada... Não compreendo nada... Minhas idéias se confundem no meu cérebro cansado...

Logo mais serão três horas... Espero Rosalie. A noite está calma. Nenhum barulho no castelo nem pelos arredores.

...Três horas estão soando. Ah! ver-me livre daqui!.. ficar livre!

 

X - 75 ou 155?

Ansiosamente Paul Delroze virou a página, como se esperasse que esse projeto de fuga pudesse ter um final feliz, e foi, por assim dizer, o choque de uma nova dor que ele recebeu ao ler as primeiras linhas escritas na manhã seguinte, com uma letra quase ilegível:

Fomos denunciados, traídos. Vinte homens nos espiavam... Jogaram-se em cima de nós como uns brutos... Agora estou trancada na casinha do parque. Ao lado, um quartinho serve de prisão para Jérôme e Rosalie. Eles estão presos e amordaçados Eu estou solta mas há soldados na porta. Eu os escuto falar.

Meio-dia.

Tenho muita dificuldade em escrever-lhe, Paul. A cada instante o soldado de guarda abre e me inspeciona. Não conferiram os meus pertences de modo que conservei as páginas do meu diário, e escrevo-lhe depressa, aos poucos, no escuro...

...Meu diário!... você o achará, Paul? Você saberá tudo o que se passou e o que foi feito de mim? Contanto que eles não o peguem!

Trouxeram-me pão e água. Continuo separada de Jérôme e Rosalie. Não lhes deram comida.

 

Duas horas.

Rosalie conseguiu livrar-se de sua mordaça. Do canto onde ela está, consegue falar-me a meia-voz. Ela ouviu o que os soldados alemães que montam guarda disseram, e fico sabendo que o Príncipe Conrad partiu ontem para Corvigny, que os franceses se aproximam e que aqui estão muito inquietos. Vão bater-se? Vão recuar até a fronteira?... Foi o Major Hermann que fez gorar a nossa evasão. Rosalie diz que estamos perdidos...

 

Duas e meia.

Rosalie e eu tivemos de interromper nossa conversa. Acabo de lhe perguntar o que ela quis dizer... Por que estamos perdidos?... Diz ela que o Major Hermann é um ser diabólico.

— Sim, diabólico — ela repetiu. — E como ele tem razões especiais para agir contra a senhora...

— Que razões, Rosalie?

— Logo mais eu explico à senhora... Mas esteja certa de que se o Príncipe Conrad não voltar de Corvigny em tempo de nos salvar, o major Hermann aproveitará a ocasião para mandar nos fuzilar todos os três...

Paul teve um verdadeiro sobressalto vendo esta palavra horrível escrita pela mão de sua pobre Elisabeth. Estava na última página. Nada mais havia, depois disso, senão algumas frases escritas ao léu, soltas sobre o papel, visivelmente às cegas. Dessas frases sufocantes como soluços de agonia...

...O rebate... O vento o traz de Corvigny... O que quer dizer?... As tropas francesas?... Paul, Paul, você talvez esteja entre eles!...

...Dois soldados entraram rindo:

— Abaixo a senhora!... Abaixo todos os três... O Major Hermann disse abaixo...

...Ainda sozinha... Vamos morrer... Mas Rosalie queria me falar... Ela não ousa...

 

Cinco horas.

...O canhão francês... Granadas explodem em volta do castelo... Ah! se uma delas pudesse me atingir!... Ouço a voz de Rosalie... O que tem ela a me dizer? Que segredo ela surpreendeu?...

...Ah! que horror! Ah! verdade ignominiosa! Rosalie falou. Meu Deus, dai-me tempo para escrever... Paul, você não poderá supor... Você tem que saber antes que eu morra... Paul...

 

O resto da página tinha sido arrancada, e as páginas seguintes até o fim do mês estavam em branco. Elisabeth teria tido tempo e força para transcrever as revelações de Rosalie?

Foi uma pergunta que Paul nem se fez. O que lhe importavam essas revelações e as trevas que envolviam de novo e para sempre uma verdade que ele não podia mais descobrir? Que lhe importavam a vingança e o Príncipe Conrad e o major Hermann, e todos aqueles selvagens que martirizavam e matavam mulheres? Elisabeth estava morta. Ele acabava, por assim dizer, de vê-la morrer sob seus olhos.

Fora dessa realidade, nada valia um pensamento nem um esforço. E, alquebrado, entorpecido por uma súbita covardia, os olhos fixos no diário onde a infeliz havia anotado as fases do suplício mais cruel que se pudesse imaginar, ele se sentia aos poucos deslizar para uma imensa necessidade de total abatimento e esquecimento. Elisabeth o chamava. Para que lutar agora? Por que não ir ao seu encontro?

Alguém bateu no seu ombro. Uma mão pegou o revólver que ele segurava, e Bernard lhe disse:

— Deixe isso pra lá, Paul. Se você pensa que um soldado tem o direito de se matar nestas circunstâncias, eu o deixarei livre para fazê-lo daqui a poupo quando você me tiver escutado...

Paul não protestou. A tentação da morte o havia tocado, mas quase à sua revelia. E embora pudesse ter sucumbido, num momento de loucura, ainda estava naquele estado de espírito em que se retoma consciência rapidamente.

— Fale — disse.

— Não vai ser longo. Três minutos de explicações, no máximo. Escute.

E Bernard começou:

— Vejo, pela letra, que você encontrou um diário redigido por Elisabeth. Este diário confirma o que você já sabia?

— Sim.

— Elisabeth, quando o escreveu, estava realmente ameaçada de morte assim como Jérôme e Rosalie?

— Estava.

— E todos os três foram fuzilados no dia exato em que chegamos, você e eu, a Corvigny, isto é, quarta-feira, 16?

— Foram.

— Isto é, entre cinco e seis horas da noite e ha véspera da quinta-feira em que pudemos chegar aqui, no castelo de Ornequin?

— Foi, mas por que todas essas perguntas?

— Por quê? Olhe aqui, Paul. Eu refiz sua pesquisa, e tenho aqui nas minhas mãos o estilhaço de granada que você pegou da parede da casa, no lugar exato onde Elisabeth foi fuzilada. Olhe aqui. Um cacho de cabelo ainda estava colado nele.

— E daí?

— E daí que conversei ainda há pouco com um técnico em artilharia, de passagem pelo castelo, e de nossa conversa e do exame que ele fez deste estilhaço chegamos à conclusão de que ela não provém de um canhão 75, mas sim de um canhão de 155, um Rimailho.

— Não estou compreendendo.

— Você não compreende porque ignora, ou esqueceu este fato que meu ajudante-de-ordens acaba de me lembrar: na noite de Corvigny, quarta-feira, 16, as baterias que fizeram fogo e que lançaram algumas granadas no momento do fuzilamento, eram todas nossas baterias de 75; e nossos Rimai-lhos de 155 só atiraram no dia seguinte, quinta-feira, durante nossa marcha em direção ao castelo. Então, como Elisabeth foi fuzilada e enterrada na quarta-feira à noite mais ou menos às seis horas, é materialmente impossível que um estilhaço de granada lançado por um Rimailho lhe tivesse tirado um cacho de cabelo já que os Rimailhos só atiraram na quinta-feira de manhã.

— E então? — disse Paul com a voz alterada.

— Então, como duvidar que o estilhaço de granada do Rimailho, achado no chão na quinta-feira de manhã, não tivesse sido voluntariamente enfiado entre os cachos de cabelo cortados na véspera à noite?

— Mas você é louco! Com que interesse teriam feito isso? Bernard deu um sorriso.

— Meu Deus! com a intenção de nos fazer crer que Elisabeth tivesse sido fuzilada quando na realidade não estava.

Paul jogou-se de encontro a ele e, sacudindo-o:

— Você sabe de alguma coisa, Bernard? Você está brincando? Fale, homem! E as balas na parede da casa? E a corrente de ferro? Aquele terceiro elo?

— Justamente. Muito estudado, o cenário! Quando há uma execução mesmo, vê-se tanto assim o vestígio das balas? E além do mais, o cadáver de Elisabeth, você o achou? Quem prova que após haver fuzilado Jérôme e sua mulher não tiveram piedade dela? Ou, quem sabe, uma intervenção...

Paul sentia um pouco de esperança invadi-lo. Condenada pelo major Hermann, talvez Elisabeth tivesse sido salva pelo príncipe Conrad, chegado de Corvigny antes da execução...

Balbuciou:

— Talvez... é, talvez... Então é isso: o major Hermann sabendo de nossa presença em Corvigny — lembre-se de seu encontro com aquela camponesa —, o major Hermann que fazia questão que Elisabeth fosse morta por nós, e também que desistíssemos de procurá-la, o major Hermann simulou essa encenação. Ah! como ter certeza?

Bernard aproximou-se dele e pronunciou gravemente:

— Não é uma esperança que eu lhe trago, Paul, é a certeza. Quis prepará-lo. Agora, escute. Se eu interroguei este técnico de artilharia foi para certificar-me de fatos que eu já não ignorava mais. Sim, ainda há pouco na aldeia de Ornequin, onde eu me achava, chegou da fronteira um grupo de prisioneiros alemães. Um deles, com quem pude trocar algumas palavras, fazia parte da guarnição que ocupou o castelo. Ele então viu. Ele sabe! Bem. Elisabeth não foi fuzilada. O Príncipe Conrad impediu a execução.

— O que você está dizendo? O que você está dizendo? — gritou Paul que desfalecia de alegria... — Então você tem certeza? Ela está viva?

— Sim, viva... Eles a levaram para a Alemanha.

— Mas depois?... Porque, enfim, o major Hermann poderia ir a seu encalce e conseguir o que desejava!

— Não.

— Como é que você sabe?

— Por esse soldado prisioneiro. A senhora francesa que ele viu aqui, ele a reviu hoje de manhã.

— Onde?

— Não muito longe da fronteira, numa casa dos arredores de Ebrecourt, sob a proteção daquele que a salvou, e que, lógico, tem poderes para defendê-la contra o major Hermann.

— O que você está dizendo? — repetiu Paul, mais baixo dessa vez, e com o rosto contraído.

— Estou dizendo que o Príncipe Conrad, que parece tomar sua profissão de soldado como amador — ele passa, aliás, por ser um cretino, mesmo pela família —, estabeleceu seu quartel-general em Ebrecourt, que ele visita todos os dias Elisabeth, e que por conseguinte todo receio... Mas Bernard parou, e perguntou estupefacto:

— Mas o que é que você tem? Você está lívido... Paul segurou seu cunhado pelos ombros e disse:

— Elisabeth está perdida. O Príncipe Conrad apaixonou-se por ela... lembre-se, já nos haviam dito... e esse diário outra coisa não é senão um grito de angústia... Ele apaixonou-se por ela, e não larga a sua presa, compreende? Não recuará diante de nada!

— Oh! Paul, eu não posso acreditar...

— Diante de nada, estou lhe dizendo. Não é somente um cretino, é um falso e miserável! Quando você ler este diário você vai ver... E chega de palavras, Bernard, O que devemos fazer agora é agir, e logo, sem mesmo tomar o tempo de refletir.

— O que é que você vai fazer?

— Arrancar Elisabeth das mãos desse homem, salvá-la....

— Impossível.

— Impossível? Estamos a três léguas do local onde minha mulher está prisioneira, exposta às humilhações desse homem, e você imagina que vou ficar aqui, de braços cruzados? Ora vamos! seria necessário não ter sangue nas veias. Mãos à obra, Bernard, e se você hesitar irei só.

— Você irá só... aonde?

— Lá. Não tenho necessidade de ninguém... Não tenho necessidade de ajuda alguma. Um uniforme alemão é tudo o que eu preciso. Passarei escondido pela noite. Matarei os inimigos que precisar matar, e amanhã de manhã Elisabeth estará aqui, livre.

Bernard balançou a cabeça e disse com muita doçura;

— Meu pobre Paul...

— O quê? O que significa?...

— Isto significa que eu seria o primeiro a aprová-lo, e que marcharíamos juntos para socorrer Elisabeth. Os riscos, isso a gente não conta. Mas infelizmente...

— Bem, eis o problema, Paul. Renunciaram desse lado a uma ofensiva mais rigorosa... Regimentos da reserva e, outros territoriais foram chamados. Quanto a nós, vamos partir.

— Vamos partir? — disse Paul arrasado.

— Sim, hoje à noite. Hoje à noite mesmo nossa divisão embarca em Corvigny e partimos nem sei para onde... Reims talvez, ou Arras. Enfim para o oeste ou norte. Você vê, meu caro Paul. como seu projeto não é realizável. Vamos, seja corajoso. E não fique com esse ar de desespero. Você me corta o coração... Vamos, vamos lá, Elisabeth não está em perigo... Ela saberá defender-se...

Paul não respondeu uma única palavra. Ele se lembrava daquela frase horrorosa do Príncipe Conrad, repetida no diário de Elisabeth: "É o direito de guerra, é a guerra, é a lei da guerra." Ele sentia sobre si o peso considerável dessa lei, mas sentia ao mesmo tempo que ele a suportava no que há. de mais nobre e de mais exaltante: o sacrifício individual de tudo o que a salvação da pátria possa exigir.

O direito da guerra? Não, o dever da guerra, e um dever tão imperioso que não se discute, e que nem se deve, por mais implacável que possa ser, deixar palpitar, no âmago da alma, o murmúrio de uma queixa. Ainda que Elisabeth estivesse em face da morte ou da desonra, isso não era da competência do sargento Delroze, e isso não podia por um minuto sequer fazê-lo sair do caminho que lhe mandavam seguir. Antes de homem ele era soldado. Não tinha outro dever que não fosse o de defender a França, sua pátria dolorosa e bem-amada.

Dobrou cuidadosamente o diário de Elisabeth e saiu, seguido pelo cunhado.

A caída da noite, ele deixava o castelo de Ornequin.

 

Yser... miséria

Toul, Bar-le-Duc, Vitry-le-François... As cidadezinhas desfilaram pelas janelas do trem que levava Bernard e Paul para o oeste da França. Outros trens, inúmeros, precediam o deles ou o seguiam, carregados de tropas e material. Depois passaram pelos arrabaldes de Paris, e, em seguida, subiram para o norte, Beauvais, Amiens, Arras.

Tinham de chegar primeiro que os outros à fronteira, para juntar-se aos heróicos belgas, e juntar-se a eles o mais ao norte possível. Cada légua percorrida era uma légua tirada do invasor durante a grande guerra imóvel que se preparava.

Esta subida em direção ao norte o subtenente Paul Delroze — sua nova patente foi-lhe conferida em pleno caminho — a fez como em sonho, por assim dizer, combatendo a cada dia, arriscando a vida a cada minuto, comandando os seus homens com um fervor irresistível, mas tudo isso como se o estivesse fazendo independente de sua vontade, pelo desencadeamento automático de uma vontade predeterminada. Enquanto Bernard arriscava a vida rindo e sustentava com o seu bom-humor e alegria a coragem de seus camaradas, Paul permanecia taciturno e distraído. Cansaço, privações, intempéries, tudo lhe era indiferente.

No entanto, era para ele um prazer enorme — ele o confessava a Bernard — o fato de avançar. Tinha a impressão de dirigir-se para uma finalidade precisa, a única que o interessava, a libertação de Elisabeth. Que fosse essa fronteira que ele atacasse e não a outra, a do leste, era sempre e de qualquer forma o inimigo execrado contra o qual jogava todo o seu ódio. Abatê-lo aqui ou ali, tanto fazia. Num caso como no outro, Elisabeth seria libertada.

— Nós chegaremos — dizia-lhe Bernard. — Compreende que Elisabeth conseguirá impor-se a esse fedelho. Enquanto isso, ultrapassamos os "boches", avançamos pela Bélgica adentro, surpreendemos Conrad pelas costas e nos apossaremos de Ebrecourt num piscar de olhos! Essa perspectiva não lhe dá muita alegria? Não, já sei, você só ri quando aniquila um "boche". Ah! Você está dando um sorrisozinho que não me engana. Logo penso: "Pam! a bala atingiu..." ou então: "Pronto... ele está com um na ponta de seu garfo." Porque na realidade você maneja um garfo, nessa hora... Ah! meu caro tenente, como ficamos ferozes! Rir porque matamos! e pensar que temos razão para rir!

Roye, Lassigny, Chaulnes... Depois, o canal do Bassée e o rio Lys... e depois ainda, enfim, Ypres, Ypres! Os dois caminhos acabam aí, prolongados até o mar. Depois dos rios franceses, depois do Marne, depois do Aisne, depois do Oise, depois da Somme, vem um pequeno rio belga que vai esquentar o sangue dos jovens. É a horrível batalha do Yser que começa.

Bernard, que ganhou rapidamente os galões de sargento, e Paul Delroze viveram nesse inferno até os primeiros dias de dezembro. Formaram, juntamente com uma meia dúzia de parisienses, dois voluntários, um reservista e um belga que se chamava Laschen, que tinha escapado de Roulers e que tinha achado mais produtivo, para combater o inimigo, juntar-se aos franceses, uma pequena tropa que o fogo parecia respeitar. De toda a seção comandada por Paul, só restavam esses, e, quando a seção foi reconstituída, eles continuaram a ficar juntos. Todas as missões perigosas, eles as reivindicavam para si. E, sempre, uma vez terminada, encontravam-se sãos e salvos, sem um arranhão, como se se dessem sorte mutuamente.

Durante as duas últimas semanas, o regimento lançado na extrema ponta da vanguarda foi subitamente acrescentado de formações belgas e inglesas. Houve golpes de heroísmo. Furiosos ataques de baioneta foram executados, na lama, na própria água das inundações, e os alemães caíam aos milhares e dezenas de milhares.

Bernard exultava.

— Você está vendo, Tommy — dizia ele a um pequeno soldado inglês ao lado de quem ele um dia avançara sob tiros de metralhadoras, e que, por sinal não falava uma única palavra de francês. — Você vê, Tommy, ninguém mais do que eu admira os belgas, mas eles não me espantam, e isso porque eles se batem como nós, isto é, como leões. Os que me espantam, são vocês, os garotos de Albion. Isto é outra coisa... Vocês têm outra maneira de fazer o serviço... e que serviço! Nada de excitação, nada de furores. Tudo se passa no âmago de vocês. Sentem uma raiva quando recuam, e então ficam terríveis. Vocês só ganham terreno ao debandar. Resultado: uma pasta de "boches".

Ao entardecer desse dia, quando a terceira companhia fazia fogo nos arredores de Dixmude, aconteceu um incidente que pareceu bastante esquisito aos dois cunhados. Paul sentiu repentinamente acima dos rins, do lado direito, um choque muito violento. Não teve tempo de preocupar-se com aquilo Mas, de volta às trincheiras, constatou que uma bala havia transpassado o couro de seu estojo de revólver e tinha deslizado pelo cabo da arma. Ora, visto a posição que Paul ocupava, a bala teria que ter sido atirada por detrás dele, isto é, por um soldado de sua companhia ou de uma companhia do seu regimento. Teria sido um acaso? Um equívoco?

Dois dias depois foi a vez de Bernard. A sorte também o protegeu. Uma bala atravessou sua sacola e passou rente pelo seu ombro.

Quatro dias depois, Paul teve o seu boné furado e, ainda dessa vez o projétil vinha das linhas francesas.

Não havia então dúvida alguma. Os dois cunhados estavam visados da maneira mais evidente, e o traidor, bandido a soldo do inimigo, escondia-se nas próprias fileiras francesas.

— Não há dúvidas — disse Bernard. — Primeiro você, depois eu, e depois você de novo. Há algo de Hermann nisso tudo. O major deve estar em Dixmude.

— E talvez o príncipe também — retrucou Paul.

— Talvez. Em todo o caso um de seus agentes introduziu-se entre nós. Como descobri-lo avisando o coronel?

— Se você quiser, Bernard, mas não falemos de nós nem de nossa luta particular com o maior. Se tive a intenção de avisar o coronel, logo renunciei, não quero que o nome de Elisabeth seja misturado nessa aventura toda.

Além disso, não foi necessário colocar os chefes de sobreaviso. Se as tentativas contra os dois cunhados não se repetiram, os casos de traição recomeçavam a cada dia. Baterias francesas eram assinaladas, ataques prevenidos, tudo provava a organização metódica de um sistema de espionagem muito mais ativo que em qualquer lugar. Como não suspeitar a presença do major Hermann, que era evidentemente um dos principais elos desse sistema?

— Ele está ai — repetia Bernard, apontando para as linhas alemães. — Está aí porque no momento a partida principal está sendo decidida nesse pântano, e que aí há serviço para ele. E também pelo fato de nós estarmos aqui.

— Como é que ele ia saber? — alegava Paul. E Bernard respondia:

— Por que ele não haveria de saber? Uma tarde houve, numa cabana que servia de residência ao coronel, uma reunião dos chefes de batalhão e de capitães, para a qual Delroze foi convocado. Nessa reunião ele soube que o general que comandava a divisão tinha dado ordens para que se tomasse de assalto uma pequena casa situada do lado esquerdo do canal, e que, em tempos normais, era habitada por um canoeiro. Os alemães tinham-se fortificado nesse local. O fogo de sua bateria pesada, estabelecida num outeiro, do outro lado, defendia aquele blockhaus, que estava sendo disputado há diversos dias. Tinham de tomá-lo.

— Para isso — precisava o coronel — pedimos às companhias da África cem voluntários que partirão hoje à noite e atacarão amanhã de manhã. Nossa tarefa será a de sustentá-los assim que começarem, e, uma vez dado o golpe, impedir os contra-ataques que não deixarão de ser extremamente violentos, vista a importância da posição. Esta posição, os senhores a conhecem, cavalheiros. Ela está separada de nós por um charco onde nossos voluntários da África se embrenharão hoje à noite... até à cintura, poder-se-ia dizer. Mas, à direita desse charco há, ao longo do canal, um caminho pelo qual poderemos de nossa parte chegar em seu auxílio. Esse caminho, varrido pelas duas baterias, está em grande parte livre. Há, no entanto, 500 metros antes da casa do canoeiro, um velho farol que estava ocupado até hoje pelos alemães e que demolimos ainda há pouco a tiros de canhão. Será que o evacuaram completamente? Não estaremos arriscando a nos arremessar contra um posto avançado? Eis o que seria bom saber. Pensei em você, Delroze.

— Obrigado, coronel.

— A missão não é perigosa, mas é delicada e tem de ser exata. Parta hoje à noite. Se o velho farol estiver ocupado volte. Se não, faça com que uma meia dúzia de homens fortes chegue até você, dissimule-os cuidadosamente até a nossa chegada. Será um ótimo ponto de apoio.

— Está bem, coronel.

Paul logo tomou suas disposições, reuniu o pequeno grupo de parisienses e de convocados que, com o reserva e o belga Laschen, formava a sua coorte habitual, preveniu-os de que precisaria sem dúvida deles durante o transcorrer da noite e de noite, às nove horas, lá se ia ele em companhia de Bernard d'Andeville.

O foco dos projetores inimigos os reteve um bocado de tempo às margens do canal, por detrás do enorme tronco de um chorão desarraigado. Depois trevas impenetráveis acumularam-se em volta deles, a tal ponto que nem conseguiam ver a linha da água.

Arrastavam-se mais do que propriamente andavam, de receio de clarões inesperados. Uma leve brisa passava sobre os campos de lama e sobre os pântanos onde tremia um queixume de taquaras.

— Está lúgubre — sussurrou Bernard.

— Fique quieto.

— Às suas ordens, subtenente.

Canhões esbravejavam de vez em quando sem razão, como cães que latem para fazer barulho no enorme silêncio inquietante, e logo outros canhões latiam raivosamente, como para, por sua vez, fazer barulho e mostrar que não dormiam.

E, novamente a calma. Nada mais mexia no espaço. Parecia que as plantas do pântano se tornavam imóveis. Paul e Bernard sentiam, no entanto, a progressão lenta dos voluntários da África que tinham partido no mesmo tempo em que eles, suas paradas grandes em meio às águas geladas, seu esforço tenaz.

— Cada vez mais lúgubre — falou Bernard.

— Como você está impressionável hoje — observou Paul.

— É o Yser. "Yser, miséria", dizem os boches. Deitaram-se rapidamente. O inimigo varria o caminho com refletores e pesquisava os pântanos. Tiveram ainda dois alertas e enfim atingiram sem problemas os arredores do velho farol.

Eram 11 e meia. Com precauções infinitas deslizaram por entre os blocos demolidos e logo puderam dar-se conta de que o posto estava abandonado. Entretanto, sob os degraus desmoronados, eles descobriram um alçapão aberto e uma escada que levava a um porão onde brilhavam centelhas de sabres e capacetes. Mas Bernard, que do alto pesquisava a escuridão com uma lâmpada elétrica, declarou:

— Nada a temer, estão mortos, Os "boches" devem tê-los jogado aí após a canhonada de ainda há pouco.

— É — disse Paul. — Devemos então prever a possibilidade de eles virem buscá-los. Monte guarda do lado do Yser. Bernard.

— E se um desses sujeitos ainda estiver vivo?

— Eu o mato. Vou ver.

— Vire os bolsos deles — disse Bernard indo-se embora — e traga-nos seus caderninhos de anotações. Isso me interessa muito. Não há melhor documento sobre o estado da alma deles... ou melhor, do estômago.

Paul desceu. O porão tinha proporções bastante vastas. Uma meia-dúzia de cadáveres enchiam o chão, todos inertes e já gélidos. Distraidamente, seguindo o conselho de Bernard, virou os bolsos e passou uma vista pelos caderninhos. Nada de interessante reteve sua atenção. Mas, no paletó do último soldado que examinou, um magrinho, atingido em pleno rosto, achou uma carteira com o nome de Rosenthal, que continha cédulas de dinheiro francês e belga e um maço de cartas com selos da Espanha, Holanda e Suíça. As cartas, todas escritas em alemão, tinham sido endereçadas a um agente alemão residente na França, cujo nome não aparecia e entregues por ele ao soldado Rosenthal, nos bolsos de quem Paul as encontrava. Este soldado devia entregá-las, assim como uma fotografia, a uma terceira pessoa designada pelo nome de Excelência.

"Serviço de espionagem" — disse Paul consigo percorrendo-as. — "Informações confidenciais... Estatísticas... Que raça de infames!"

Mas, abrindo de novo a carteira, ele retirou um envelope que rasgou. Nesse envelope havia uma fotografia, e a surpresa de Paul foi tão grande ao ver esta fotografia que deu um grito.

Representava a mulher cujo retrato ele havia visto no quarto fechado de Ornequin, a mesma mulher, com a mesma renda ajeitada de maneira idêntica, e com aquela mesma expressão em que o sorriso não escondia dureza. E essa mulher não era a condessa Hermine d'Andeville, a mãe de Elisabeth e Bernard?

A prova trazia a marca de Berlim. Tendo-a virado. Paul percebeu uma coisa que aumentou o seu estupor. Algumas palavras estavam aí escritas:

 

A Stéphane d'Andeville, 1902.

Stéphane, era o nome do conde d'Andeville!

Quer dizer então que a fotografia tinha sido enviada de Berlim ao pai de Elisabeth e de Bernard em 1902, isto é, quatro anos após a morte da condessa Hermine. Sendo assim achava-se em frente a duas soluções: ou bem a fotografia, tomada antes da morte da condessa Hermine trazia a data do ano em que o conde a tinha recebido ou então a condessa ainda estava viva.

E, à sua revelia, Paul pensou no major Hermann, cuja imagem, assim como o retrato do quarto fechado, evocava a recordação em seu espírito confuso. Hermann! Hermine! e eis que agora a imagem de Hermine era encontrada junto ao cadáver de um espião alemão, às margens desse Yser onde devia andar o chefe da espionagem, que era certamente o major Hermann!

Era o cunhado que o chamava. Paul se aprumou rapidamente, escondeu a fotografia, bem resolvido a nada comentar, e subiu até o alçapão

— E então Bernard, o que há?

— Uma pequena tropa de "boches". Pensei no início que fosse uma patrulha, que rendiam postos, e que ficariam do outro lado. Mas não, destacaram dois barcos e estão atravessando o canal.

—. Realmente, estou ouvindo.

— E se fizéssemos fogo? — propôs Bernard.

— Não, daríamos o alarma. É preferível observá-los. É essa, além do mais, a nossa missão.

Mas nesse momento houve um ligeiro apito que vinha do atalho que Paul e Bernard tinham tomado. Responderam, do barco, por um outro apito do mesmo tipo.

Dois outros sinais foram trocados a intervalos regulares.

Um relógio de igreja tocou meia-noite.

— Um encontro — supôs Paul. — A coisa está ficando interessante. Venha. Eu vi, lá embaixo, um lugar onde penso que podemos ficar ao abrigo de qualquer surpresa.

Era um cubículo, separado do primeiro por um bloco de alvenaria no qual havia um buraco por onde foi-lhes fácil passar. Rapidamente encheram esse buraco com as pedras caídas do teto e das paredes.

Mal tinham acabado quando um barulho de passos res soou acima deles e palavras alemãs chegaram a seus ouvidos. A tropa inimiga devia ser bastante numerosa. Bernard introduziu a extremidade de seu fuzil em uma das seteiras formadas pelas suas barricadas.

— Que é que você está fazendo? — perguntou Paul

— E se eles chegarem até aqui? Estou me aprontando. Podemos agüentar um cerco em regra.

— Nada de bobagens, Bernard, Escutemos. Talvez possamos surpreender algumas palavras.

— Você, talvez, Paul, mas eu que não compreendo nem uma sílaba de alemão...

Uma claridade violenta inundou o cubículo. Um soldado desceu e pendurou uma lâmpada grande a um prego na parede. Uma dúzia de homens vieram ao seu encontro e os dois cunhados logo compreenderam. Esses homens tinham vindo para buscar os mortos.

Não foi demorado. No fim de 15 minutos, só restava um único cadáver no cubículo, o do agente Rosenthal.

Do alto uma voz imperiosa comandou:

— Fiquem aí, vocês, e esperem-nos. E você, Karl, desça primeiro.

Alguém apareceu nos degraus de cima. Paul e Bernard ficaram estupefatos ao ver umas calças vermelhas, depois um casaco azul, enfim o uniforme completo de um soldado francês.

O sujeito saltou à terra e gritou:

— Aqui estou, Excelência. É sua vez.

Eles viram então o belga Laschen, ou mais exatamente o que se dizia belga e fazia-se chamar de Laschen, e que fazia parte da seção de Paul. Agora sabiam de onde tinham vindo os três tiros de fuzil atirados neles. O traidor estava ali. Na claridade distinguiam claramente o seu rosto, o rosto de um homem de 40 anos, de traços pesados e carregados de banha, com os olhos avermelhados.

Ele segurou a escada de maneira a bem fincá-la na parede. Um oficial desceu com cuidado, enrolado num enorme capote cinza de gola levantada.

Reconheceram o major Hermann.

 

O Major Hermann

Na mesma hora, e apesar do sobressalto de ódio que o teria levado a um ato de vingança imediata, Paul apoiou sua mão sobre o braço de Bernard para forçá-lo à prudência.

Mas que raiva o torturava ao ver aquele demônio! Aquele que representava a seus olhos todos os crimes cometidos contra seu pai e sua mulher, esse mesmo se oferecia à bala de seu revólver e Paul não podia se mexer! Muito mais do que isso, as circunstâncias se apresentavam de tal modo que, com toda a certeza, esse homem iria embora dentro de alguns minutos, para cometer outros crimes, sem que ele pudesse abatê-lo.

— Em boa hora, Karl — disse o major em alemão, e ele se dirigia ao falso Laschen —, em boa hora você está aqui, pontual no encontro. E então, o que há de novo?

— Antes de mais nada, Excelência — respondeu Karl que parecia tratar o major com aquela deferência misturada com familiaridade que se tem para com um superior que é, ao mesmo tempo, um cúmplice —, antes de mais nada uma permissão...

Tirou o casaco azul, vestiu o de um dos mortos e, batendo continência:

— Uf!... O senhor está vendo, Excelência, sou um bom alemão. Nenhuma tarefa me enoja. Mas nesse uniforme aí eu me asfixio.

— Então vai desertar?

— Excelência, o serviço, praticado dessa maneira, é muito perigoso, o blusão de camponês francês, sim; o casaco de soldado francês, não. Aqueles sujeitos não têm medo de nada, sou obrigado a segui-los, corro o risco de ser morto por uma bala alemã.

— Mas e os dois cunhados?

— Três vezes atirei neles pelas costas e três vezes errei. Não há nada a fazer, são sujeitos de sorte, vou acabar sendo preso. Sendo assim, como o senhor diz, vou desertar, e aproveitei o garoto que leva os recados de Rosenthal para mim para marcar esse encontro.

— Rosenthal me expediu seu recado lá para o quartel geral.

— Mas havia uma fotografia também, aquela que o senhor sabe, assim como um maço de cartas recebidas do seu agente da França. Eu não queria, caso fosse descoberto, que achassem aquelas provas comigo.

— Rosenthal devia trazer-me isso ele mesmo. Infelizmente, cometeu uma besteira.

— Qual, Excelência?

— A de se fazer matar por uma granada.

— Não brinque!...

— Eis o seu cadáver a seu pés.

Karl contentou-se em alçar os ombros e dizer:

— Imbecil!

— É mesmo, ele nunca soube se arranjar — acrescentou o major, completando a oração fúnebre Pegue a carteira dele, Karl. Ele a colocava num bolso interno do colete de lã.

O espião abaixou-se e disse após alguns instantes: — Não está aqui, Excelência.

— Ele deve ter mudado de lugar. Olhe nos outros bolsos.

— Não está em lugar nenhum — afirmou Karl, após haver obedecido.

— Como? Essa é boa! Rosenthal não se separava nunca de sua carteira. Ele a guardava consigo até para dormir. Ele a terá guardado para morrer.

— Vossa Excelência mesmo pode procurar.

— Mas, e então?

— Então alguém veio aqui há pouco tempo e pegou a carteira. " '

— Quem? Franceses?

O espião levantou-se, ficou um minuto calado, e aproximando-se do major disse-lhe numa voz pausada:

— Franceses, não, excelência, um francês.

— O que é que você quer dizer?

— Excelência, Delroze partiu há pouco em inspeção com seu cunhado Bernard d'Andeville. Para que lado? Não pude saber. Agora sei. Ele veio para cá. Explorou as ruínas do farol e, vendo os mortos, olhou nos bolsos.

— Mau negócio! — sentenciou o major. — Você tem certeza?

— Absoluta. Ele devia estar aqui, há uma hora no máximo. Talvez mesmo — acrescentou Karl rindo —, talvez ainda esteja por aqui escondido num buraco qualquer...

Ambos olharam em volta maquinalmente, e sem que o gesto indicasse de sua parte um receio sério. Depois o major continuou pensativamente:

— No fundo, esse maço de cartas recebidas pelos nossos agentes, cartas sem endereço e sem nomes, só têm uma importância relativa. Mas a fotografia, isso já é mais grave.

— Muito mais, Excelência! Como não! uma fotografia tirada em 1902, e que por conseguinte procuramos há 12 anos! Eu consegui, após tanto esforço, achá-la entre os papéis que o conde Stéphane d'Andeville deixou na casa dele durante a guerra. E essa fotografia, que o senhor queria retomar do conde d'Andeville a quem o senhor teve â imprudência de dar, está a essas horas nas mãos de Paul Delroze, o genro do Conde d'Andeville, o marido de Elisabeth d'Andeville, e seu inimigo mortal!

— É! meu Deus! eu sei — falou o major visivelmente amolado. — Você nem precisa me dizer mais nada.

— Excelência, devemos sempre olhar a verdade bem em frente. Qual foi o objetivo do senhor em relação a Paul Delroze? Esconder-lhe tudo que possa esclarecê-lo sobre a verdadeira personalidade de Vossa Excelência, e, para isso, voltar sua atenção, suas pesquisas, seu ódio para o major Hermann. Foi isso, não foi? Chegou ao ponto de multiplicar os punhais gravados com as quatro letras HERM e até mesmo a colocar a assinatura "Major Hermann" sobre o painel onde estava pendurado o famoso quadro. Enfim, todas as precauções. Dessa forma, quando o senhor julgar conveniente enviar o Major Hermann de volta ao nada, Paul Delroze acreditará que seu inimigo morreu, e não mais pensará no senhor. Ora, o que está acontecendo hoje? Ele possui, com essa fotografia, a prova mais certa da relação existente entre o major Hermann e aquele famoso quadro que ele viu na noite do seu casamento, isto é, entre o passado e o presente.

— Evidentemente, mas essa fotografia achada num cadáver qualquer só teria importância para ele se conhecesse sua proveniência; por exemplo, se ele pudesse ver seu sogro d'Andeville.

— Seu sogro d'Andeville combate nas fileiras inglesas, a três léguas dele.

— Eles sabem disso?

— Não, mas um acaso pode reuni-los. Além disso, Bernard e seu pai se escrevem, e Bernard deve ter-lhe contado os acontecimentos passados em Ornequin, pelo menos os que Paul Delroze e ele puderam reconstituir.

— É! que importância tem, se eles ignoram os outros acontecimentos? E é isso que conta. Através de Elisabeth eles saberiam todos os nossos segredos e adivinhariam quem eu sou. Ora, não a procurarão, porque a julgam morta.

— Tem certeza, Excelência?

— Que é que você quer dizer?

Os dois cúmplices estavam um em frente ao outro, olhos nos olhos, o major inquieto e irritado e o espião um pouco gaiato.

— Fale — disse o major. — Que é que há?

— Excelência, o que há é que agora há pouco pude botar a mão na mala de Delroze. Oh! não por muito tempo... alguns segundos... mas de qualquer modo o suficiente para ver duas coisas...

— Fale rápido.

— Primeiramente as folhas soltas daquele manuscrito de que o senhor queimou por precaução as páginas mais importantes, mas que infelizmente o senhor perdeu uma boa parte.

— O diário da mulher dele?

— Sim.

O major deixou escapar um palavrão.

— Raios me partam! A gente queima tudo num caso como esse! Ah! se eu não tivesse tido aquela curiosidade estúpida!... E depois?

— Depois, Excelência? Oh! quase nada, um fragmento de granada, sim, um pequeno fragmento de granada, mas que bem me pareceu ser o estilhaço que o senhor me mandou enfiar na parede da casa após ter colocado o cabelo de Elisabeth. O que é que vossa Excelência acha?

O major bateu o pé com raiva e proferiu uma nova onda de palavrões e de anátemas sobre a cabeça de Paul Delroze.

— O que acha, Excelência? — repetiu o espião.

— Você tem razão — disse ele. — Pelo diário da mulher, esse maldito francês pode perceber a verdade, e esse pedaço de granada em suas mãos é a prova de que, para ele, sua mulher vive talvez ainda, e é isso que eu queria evitar. Sem o que o teremos sempre às nossas costas.

Sua raiva aumentava.

— Ah! Karl, como esse sujeito me amola. Ele e seu bebê de cunhado, que esperteza! Por Deus que eu pensei que você tivesse me livrado deles na noite em que voltamos ao castelo, no quarto deles e que lhes vimos os nomes inscritos na parede. E você há de compreender que eles não ficarão ai, agora que sabem que a mulher não está morta. Eles a procurarão. Eles a acharão. E como ela conhece todos os nossos segredos!... Deveríamos suprimi-la, Karl!

— E o príncipe? — debochou o espião.

— Conrad é um idiota. Toda essa família de franceses nos trará azar, a Conrad em primeiro lugar, que é suficientemente imbecil para cair de amores pela boboca. Tínhamos de suprimi-la, Karl, bem depressa, e não esperar a volta do príncipe...

Colocado bem na luz, o major Hermann apresentava a mais horrível cara de bandido que se pudesse imaginar, horrível não pela deformidade dos traços ou por qualquer outra coisa de especialmente feio, mas pela expressão que era nojenta e selvagem, e onde Paul encontrava ainda, mas levada ao seu paroxismo, a expressão da condessa Hermine, como estava no quadro e na fotografia. À evocação do crime gorado, o major Hermann parecia sofrer mil mortes, como se o crime fosse sua condição de vida. Os dentes rangiam. Os olhos estavam injetados de sangue.

Com voz distraída, os dedos apertados ao ombro do cúmplice, disse, e, dessa vez em francês:

— Karl, até se diria que não podemos atingi-los e que um milagre os protege contra nós. Você, nestes últimos dias, fracassou três vezes. No castelo de Ornequin você matou dois outros no lugar deles. A mim, também, ele escapou um dia, perto da portinha do parque. E foi nesse mesmo parque... perto da mesma da capela... você não esqueceu... há 16 anos... quando ele ainda era uma criança... que você lhe enfiou a faca em plena carne... Bem, naquele dia você começava seus golpes desastrados...

O espião começou a rir, com um riso cínico e insolente.

— O que é que Vossa Excelência quer? Eu apenas estreava na carreira e não tinha a sua prática. Eis que vejo um pai e filho que nem conhecíamos 10 minutos antes, e que nada tinham feito senão amolar o cáiser. Minha mão tremeu, eu confesso. Ao passo que o senhor... Ah! como o senhor expediu o pai! Um pequeno golpe de sua mãozinha, uf! ficou tudo pronto!

Dessa vez foi Paul que, lentamente, com precaução, colocou o cano de seu revólver em um dos orifícios do esconderijo. Ele já não podia duvidar, agora, após as revelações de Karl, que o major havia matado seu pai. Foi bem aquele sujeito! e seu cúmplice de hoje era já o cúmplice de antigamente, o subalterno que tinha tentado matá-lo, a ele, Paul. enquanto seu pai expirava.

Bernard, diante do gesto de Paul, soprou-lhe à orelha:

— Você se decidiu, não é? Nós o abatemos?

— Espere o meu sinal — murmurou Paul —, mas não atire nele. Atire no espião.

Apesar de tudo ele pensava no mistério inexplicável dos laços que uniam o major Hermann a Bernard e a sua irmã Elisabeth, e não admitia que fosse Bernard que cumprisse a obra de justiça. Ele próprio hesitava, como se hesita diante de um ato do qual não se conhece toda a história. Quem era esse bandido? Que personalidade lhe atribuir? Hoje major e chefe da espionagem alemã; ontem companheiro de prazeres do Príncipe Conrad, todo-poderoso no castelo de Ornequin, fantasiando-se de camponesa e locomovendo-se por toda Corvigny; outrora assassino, cúmplice do imperador, castelã de Ornequin... Entre todas essas personalidades, que todas não eram senão aspectos diversos de um só e mesmo ser, qual era a verdadeira?

Fixamente, Paul olhava o major, como tinha olhado a fotografia, e, no quarto fechado, o quadro de Hermine d'Andeville. Hermann... Hermine... os nomes confundiam-se em sua cabeça.

. E ele notava a finura das mãos, brancas e pequenas assim como mãos de mulher. Dedos atilados ornados com anéis de pedras preciosas. Os pés também calçados de botas, eram delicados. O rosto muito pálido não tinha traço nenhum de barba. Mas toda essa aparência efeminada era desmentida pelo som rouco de uma voz estridente, pelo peso dos movimentos e da maneira de andar e por uma espécie de energia realmente bárbara.

O major espalmou as duas mãos no rosto e refletiu durante alguns segundos. Karl o considerava com certa pena e um ar de estar se perguntando se seu patrão não estaria experimentando, com as lembranças de seus crimes passados, um começo de remorsos.

Mas o patrão, sacudindo o torpor, disse-lhe — e seu ódio tremia em sua voz apenas perceptível:

— Pior para eles, Karl, pior para todos aqueles que tentem nos barrar a estrada. Eu suprimi o pai, e f.z bem. Um dia vai ser a vez do filho... Agora... agora, é a vez da garota.

— Quer que eu me encarregue disso, Excelência?

— Não, preciso de você aqui, e tenho necessidade de ficar aqui, também. Os negócios vão muito mal. Mas no começo de janeiro irei lá. No dia 10 de manhã estarei em Ebrecourt. Quarenta e oito horas depois, tem de estar tudo acabado. E vai estar tudo acabado, eu lhe juro...

Calou-se novamente, enquanto o espião abria-se numa risada. Paul tinha-se abaixado para pôr-se à altura de seu revólver. Uma hesitação mais demorada seria criminosa. Matar o major não era mais vingar-se e matar o assassino de seu pai era prevenir um novo crime e salvar Elisabeth. Devia agir, quaisquer que pudessem ser as conseqüências do ato. Ele se decidiu.

— Você está pronto? — disse bem baixinho a Bernard.

— Sim, espero seu sinal.

Ele mirou friamente, aguardando o instante propício e ia puxar o gatilho quando Karl pronunciou em alemão:

— Diga, Excelência, sabe o que se prepara para a casa do canoeiro?

— Quê?

— Simplesmente um ataque. Cem voluntários da companhia da África estão já a caminho pelo pântano. O ataque será logo ao amanhecer. O senhor só tem tempo para prevenir o quartel-general e para certificar-se das precauções que eles pensam tomar.

O major simplesmente declarou:

— Já estão tomadas.

— O que é que está dizendo, Excelência?

— Estou dizendo que estão tomadas. Fui prevenido por outra fonte e como fazemos muita questão da casa do canoeiro, telefonei ao comandante do posto que lhe mandaríamos 300 homens às cinco horas da manhã. Os voluntários da África serão presos na armadilha. Nem um único retornará vivo.

O major deu um risozinho satisfeito e levantou a gola do casaco, acrescentando:

— Por falar nisso, para maior segurança, irei passar a noite lá... quanto mais que me pergunto se por acaso não foi o comandante do posto que teria enviado uns homens aqui para apanhar os papéis de Rosenthal de quem ele sabia, a morte.

— Mas...

— Chega de conversa. Trate de Rosenthal e vamos embora.

— Devo acompanhá-lo, Excelência?

— Inútil. Uma das barcas me conduzirá pelo canal. A casa não é nem a 40 minutos daqui.

À chamada do espião, três soldados desceram e o cadáver foi alçado até ao alçapão de cima.

Karl e o major permaneceram imóveis todos os dois, no sopé da escada, e Karl levantava em direção ao alçapão a luz da lanterna que tinha ligado.

Bernard murmurou:

— Vamos atirar?

— Não, respondeu Paul.

— Mas...

— Eu o proíbo...

Quando a operação terminou, o major deu ordens:

— Ilumine bem e cuidado para que a escada não mexa. Subiu e desapareceu.

— Pronto — gritou ele. — Ande depressa. Por sua vez o espião subiu.

Ouviram os seus passos por cima do cubículo. Os passos distanciaram-se em direção do canal, e depois não houve mais barulho algum.

— E então — perguntou Bernard —, o que foi que houve com você? A ocasião era única. Os dois bandidos cairiam com um só golpe.

— E nós logo depois — disse Paul. — Eles eram 12 lá em cima. Nós seríamos liquidados.

— Mas Elisabeth seria salva, Paul! Na realidade não o compreendo. Como! com tais monstros na mira das nossas balas, e você os deixa partir! O assassino de seu pai, o carrasco de Elisabeth aqui, e é em nós que você pensa!

— Bernard — disse Paul Delroze. — Você não compreendeu as últimas palavras que eles trocaram. O inimigo foi prevenido do ataque e de nossos projetos quanto à casa do canceiro. Daqui a pouco os 100 voluntários da África que rastejam pelo pântano serão vítimas da emboscada que lhes foi preparada. É então neles que devemos pensar. São eles que devemos salvar primeiramente. Não temos o direito de morrer, agora que temos um dever a cumprir. E tenho certeza de que você me dá razão.

— Dou — disse Bernard —, mas de qualquer modo a ocasião era boa.

— Nós a teremos de novo, e daqui a pouco tempo, talvez — afirmou Paul que pensava na casa do canceiro, onde o major Hermann se devia apresentar.

— Enfim, quais são as suas intenções?

— Vou-me juntar ao destacamento de voluntários. Se o tenente que os comanda for de minha opinião, o ataque não será às sete, mas imediatamente, e eu tomarei parte na festa.

— E eu?

— Vá até o coronel. Exponha-lhe a situação e diga-lhe que a casa do canoeiro será tomada hoje de manhã e que ali ficaremos até a chegada de reforços.

Eles se afastaram sem uma palavra a mais e Paul jogou-se com toda a sua resolução no pântano.

A tarefa que ele se propôs a cumprir não encontrou os obstáculos que ele pensava ter de enfrentar. Após 40 minutos de uma caminhada difícil percebeu murmúrios de vozes, pronunciou a senha e se fez encaminhar até onde estava o tenente.

As explicações de Paul logo convenceram o oficial: deviam ou renunciar ao ataque ou apressar a execução.

A coluna avançou.

Às três horas, guiados por um camponês que conhecia uma passagem por onde os homens só ficavam com água até o joelho, conseguiram alcançar as vizinhanças da casa sem serem percebidos. Mas, tendo sido o alarma dado por uma sentinela, o ataque começou.

Esse ataque, um dos mais belos feitos de armas da guerra, é bastante conhecido para que seja necessário dar os detalhes aqui. Foi de uma extrema violência. O inimigo que estava preparado respondeu com igual vigor. Os fios de arame entrelaçaram-se. As armadilhas abundavam. Um corpo-a-corpo furioso começou diante da casa, depois dentro dela, e, quando os franceses, vitoriosos, tinham abatido ou feito prisioneiros os 80 alemães que a defendiam, tinham eles próprios sofrido perdas que reduziam seus efetivos pela metade.

Paul foi o primeiro a saltar nas trincheiras cuja linha passava pelo lado esquerdo da casa e prolongava-se fazendo um meio-círculo até o Yser. Ele tinha uma idéia em mente: antes que o ataque fosse vitorioso, queria cortar qualquer possibilidade de recuo aos fugitivos.

Impedido, no início, ganhou a margem, seguido por três voluntários, embrenhou-se pela água, subiu o canal, conseguiu assim chegar ao outro lado da casa, e achou, conforme esperava, um embarcadouro de barcos.

Nesse momento percebeu uma silhueta que desaparecia na sombra.

— Fiquem aqui — disse ele a seus homens —, e não deixem ninguém passar.

Por sua vez lançou-se, alcançou o embarcadouro e pôs-se a correr..

Tendo um projetor iluminado a margem, ele avistou novamente a silhueta a 50 passos na sua frente.

Um minuto mais tarde ele gritava:

— Pare ou atiro.

E como o fugitivo continuou, ele atirou, mas de modo a não atingi-lo.

O homem parou e descarregou quatro vezes seu revólver ao passo que Paul curvado em dois, jogava-se em suas pernas e o derrubava.

Preso, o inimigo não opôs resistência alguma. Paul o amarrou em seu casaco e o segurou pelo pescoço.

Com a mão livre, ele lhe jogou a luz da lanterna em pleno rosto. Seu instinto não o havia enganado: ele segurava o major Hermann.

 

A casa do canoeiro

Paul Delroze não pronunciou uma única palavra. Empurrando seu prisioneiro diante de si, com os punhos atados nas costas, voltou ao embarcadouro, entre trevas entrecortadas por ligeiros clarões.

O ataque continuava. No entanto, como certo número de fugitivos quis escapar, os voluntários sue guardavam o embarcadouro os acolheram a golpes de fuzil. Os alemães acreditaram-se enganados, e essa desorientação precipitou sua derrota.

Quando Paul chegou, o combate estava terminado. Mas um contra-ataque inimigo, mantido pelos reforços prometidos ao comandante do posto, não deveria tardar a produzir-se e logo se organizou a defesa.

A casa do canoeiro, que os alemães haviam intensamente fortificado e cercado com trincheiras, compunha-se de um andar térreo e de um único andar no qual os três cômodos agora só formavam um. Uma água-furtada, no entanto, que outrora servia de quarto para um empregado, e à qual se chegava por intermédio de três degraus de madeira, abria-se como uma alcova no fundo desse vasto cômodo. Foi aí que Paul, a quem foi confiada a organização do andar, trouxe o seu prisioneiro. Ele o deitou no chão, amarrou-o com uma corda e o prendeu solidamente a uma pilastra, e enquanto trabalhava foi tomado de tal acesso de ódio que o segurou pelo pescoço, como para o estrangular.

Dominou-se. Para que se apressar? Antes de matar esse homem ou de entregá-lo aos soldados que o colariam ao muro, não seria uma alegria profunda poder explicar-se com ele?

Como o tenente vinha entrando, ele lhe disse de maneira a ser ouvido por todos e principalmente pelo major:

— Tenente, eu lhe recomendo esse miserável, que não é outro senão o major Hermann, um dos chefes da espionagem alemã. Tenho provas aqui comigo. Se me acontecer algo, não se esqueçam dele. E no caso de termos de recuar... O tenente sorriu:

— Hipótese inadmissível. Nós não recuaremos pela boa razão que antes disso eu mandaria o casebre pelos ares. E, por conseguinte, o major Hermann voaria conosco. Então, fique tranqüilo.

Os dois oficiais combinaram as medidas de defesas, e rapidamente puseram mãos à obra.

Antes de mais nada, o embarcadouro foi deslocado, trincheiras cavadas ao longo do canal e as metralhadoras tiveram sua posição virada. Em seu andar, Paul mandou transportar sacos de terra de uma fachada a outra e fortificar, com a ajuda de vigas colocadas sob forma de arcobotantes as partes do muro que pareciam menos sólidas.

Às cinco e meia, sob a claridade dos projetores alemães, diversas granadas caíram em volta. Uma delas atingiu a casa. Artilharia pesada começava a varrer o caminho à beira d'água.

Foi por esse caminho que apareceu, um pouco antes da aurora, um destacamento de ciclistas enviados às pressas. Bernard d'Andeville vinha à frente.

Ele explicou que duas companhias e um pelotão de sapadores, precedendo um batalhão completo estava a caminho, mas que, impedidos de avançar pelas granadas inimigas, deviam seguir ao longo do brejo, subindo a correnteza e protegidos pela pequena ribanceira que sustentava a vereda existente ao longo do rio. Estando sua marcha assim retardada, teriam de esperá-los pelo menos uma hora.

— Uma hora — disse o tenente — será muito. Mas é possível. Então...

Enquanto dava novas ordens e designava seus respectivos postos aos ciclistas, Paul foi subindo para contar a Bernard a captura do major Hermann. Foi quando seu cunhado lhe anunciou:

— Você sabe, Paul, papai está aqui comigo. Paul sentiu um choque.

— Seu pai está aqui? Seu pai veio com você?

— Perfeitamente, e da maneira mais natural do mundo. Imagine que ele procurava a ocasião há já algum tem po... Ah! e por falar nisso, ele foi nomeado subtenente intérprete.

Paul não escutava. Ele só dizia consigo:

"O Conde d'Andeville está aqui... O Conde d'Andeville, o marido da Condessa Hermine. Ele não pode deixar de saber. Estará ela viva ou morta? Ou será que ele foi até o final vítima de uma intrigante, guardando carinho e boas recordações da desaparecida? Não, não é possível pois se há essa fotografia, tirada quatro anos mais tarde, e que lhe foi enviada, e enviada de Berlim! Então ele sabe, e daí..."

Paul estava bastante confuso. As revelações do espião Karl tinham subitamente mostrado o Conde d'Andeville sob um aspecto estranho. E eis que as circunstâncias o traziam para perto dele, no momento exato em que o major acabava de ser capturado!

Paul virou-se para a pilastra. O major não se mexia, o rosto colado de encontro à parede.

— Seu pai ficou então lá fora? — perguntou ao cunhado.

— Sim, ele tinha pegado a bicicleta de um homem que corria perto de nós e que foi ligeiramente ferido. Papai o está socorrendo.

— Vá chamá-lo e se o tenente não vir nenhum inconveniente...

Foi interrompido pela explosão de um shrapnell cujas balas furaram os sacos amontoados diante deles. O dia raiava. Via-se uma coluna inimiga surgir das sombras a mil metros no máximo.

— Preparem-se! — gritou lá de baixo o tenente. — E nem um único tiro antes de minha ordem. Ninguém à vista!...

Foi somente após 15 minutos e somente durante quatro ou cinco minutos que Paul e o Conde d'Andeville puderam trocar algumas palavras, de um modo tão brutal, além do mais, que Paul não teve tempo de se perguntar qual atitude tomar diante do pai de Elisabeth. O drama do passado, o papel que o marido da Condessa Hermine pudesse ter desempenhado nesse drama, tudo isso se misturava no seu espírito juntamente com a defesa do blockhaus. E, apesar da afeição que os ligava um ao outro, seu aperto de mão foi quase distante.

Paul mandava tapar uma pequena janela com um colchão. Bernard tinha sua posição do outro lado da sala.

O Conde d'Andeville disse a Paul:

— Você tem certeza de poder resistir, não tem?

— Lógico, já que temos de resistir.

— Temos, sim. Eu estava ontem na divisão com o general inglês para quem fui destacado como intérprete, quando este ataque ficou resolvido. A posição parece ser de primeira ordem, e é indispensável que aqui nos agüentemos. Foi então que vi a ocasião de revê-lo, Paul. Eu estava informado da presença de seu regimento. Eu então pedi para acompanhar o contingente designado por...

Nova interrupção. Uma granada esburacava o telhado e partia a fachada que dava para o canal.

— Ninguém ferido?

— Ninguém — responderam.

Um pouco depois o Conde prosseguia:

— O mais curioso foi ter encontrado Bernard junto ao seu coronel, esta noite. Você bem pode imaginar com que alegria eu me misturei aos ciclistas. Era o único meio de ficar um pouco perto de meu pequeno Bernard e de vir lhe apertar a mão. E depois, eu estava sem notícia de minha pobre Elisabeth e Bernard me contou...

— Ah! — disse Paul com veemência. — Bernard lhe contou o que se passou no castelo?

— Pelo menos tudo o que ele pôde saber, e há muitas coisas inexplicáveis, Paul, sobre as quais, segundo ele, você tem dados mais precisos. Então, por que Elisabeth ficou em Ornequin?

— Foi ela que quis — replicou Paul —, e eu só fui informado da decisão mais tarde, por carta.

— Eu sei. Mas por que você não a levou, Paul?

— Ao deixar Ornequin tomei todas as providências para que ela pudesse partir.

— Está bem. Mas você não deveria ter deixado Ornequin sem ela. Todo o mal vem daí.

O Conde d'Andeville tinha falado com certo rigor e como Paul ficasse calado, ele insistiu:

— Por que você não levou Elisabeth? Bernard me disse que coisas graves se passaram, que você havia feito alusões a acontecimentos excepcionais. Você talvez pudesse me explicar...

Paul parecia adivinhar no conde uma hostilidade surda, e isso o irritava ainda mais por vir de um homem cuja conduta lhe parecia agora tão suspeita.

— O senhor acha que seja agora o momento oportuno?...

— Sim, claro, podemos ser separados a qualquer instante...

Paul não o deixou concluir. Virou-se bruscamente para ele e gritou:

— O senhor tem razão! Foi uma idéia horrível. Seria terrível se eu não pudesse responder às suas perguntas e se o senhor não pudesse responder às minhas. O destino de Elisabeth depende talvez de algumas frases que nós vamos pronunciar. Pois a verdade está entre nós. Uma palavra para trazê-la à luz, e tudo nos apressa. Devemos falar desde agora, seja no que der e vier.

Sua emoção surpreendeu o sogro que lhe disse:

— Não seria melhor chamar Bernard?

— Não, não! — disse Paul — de modo algum! É algo que ele não deve saber, porque se trata...

— Porque se trata? — perguntou o conde cada vez mais espantado.

Um homem caiu perto' deles, fulminado por uma bala. Paul precipitou-se: baleado na testa, o homem estava morto. E duas outras balas penetraram por uma abertura muito grande que Paul mandou tapar em parte.

O Conde d'Andeville, que o havia ajudado, prosseguiu o diálogo.

— Você dizia que Bernard não deve ouvir porque se trata de?... —

— Porque se trata da mãe dele — respondeu Paul.

— Da mãe dele? Como! Trata-se da mãe dele?... De minha mulher? Não compreendo.

Através das ameias distinguiam-se três colunas inimigas que avançavam, acima das planícies inundadas, por passagens estreitas que convergiam para o canal defronte da casa do canoeiro.

— Quando eles estiverem a 200 metros do canal, nós atiraremos — disse o tenente comandando os voluntários, quando veio inspecionar os trabalhos de defesa. — Mas tomara que os seus canhões não destruam totalmente o casebre!

— E nossos reforços? — perguntou Paul.

— Estarão aqui dentro de 30 a 40 minutos. Enquanto isso os 75 fazem um bom serviço.

As granadas cruzavam-se no espaço. Caíam no meio das colunas alemãs. Caíam em volta do blockhaus.

Paul correndo paira todos os lados animava os homens e dava-lhes conselhos.

De vez em quando, aproximando-se da água-furtada, examinava o major Hermann. Depois retornava ao seu posto.

Nem por um segundo deixou de pensar no dever que lhe incumbia, com» oficial e como combatente, e nem um segundo tampouco no que devia dizer ao Conde d'Andeville. Mas essas duas obsessões confundiam-se e tiravam-lhe toda a lucidez, e não sabia como explicar-se ao seu sogro nem como esclarecer a inexplicável situação. Diversas vezes o conde o interrogou. Ele não respondeu.

A voz do tenente fez-se ouvir.

— Atenção!... Mirar!... Atirar!...

Quatro vezes a ordem foi repetida. A coluna inimiga mais próxima, dizimada pelas balas, pareceu hesitar.

Mas as outras juntaram-se a ela e reorganizaram-se.

Duas granadas alemãs explodiram sobre a casa. O telhado foi destruído de uma só vez, alguns metros da fachada demolidos e três homens estraçalhados.

Após a tormenta sucedeu-se uma calmaria. Mas Paul teve tão nitidamente a sensação do perigo que os ameaçava a todos que foi-lhe impossível conter-se mais tempo. Decidindo-se subitamente, encaminhou-se para o conde, e sem mais preâmbulos, disse-lhe:

— Uma palavra antes de mais nada... Eu tenho de saber... O senhor tem certeza de que a Condessa d'Andeville esteja morta?

E logo prosseguiu:

— Sim, minha pergunta lhe parece louca... Ela assim lhe parece porque o senhor de nada sabe. Mas eu não sou louco, e peço-lhe responder como se eu tivesse tido tempo de expor-lhe todos os motivos que a justificam. A Condessa Hermine está morta?

  1. d'Andeville controlou-se e concordando em colocar-se no estado de espírito que Paul lhe pedia, disse:

— Existe uma razão qualquer que lhe permitiria supor que minha mulher ainda estivesse viva?

— Razões muito sérias, eu ousaria até dizer irrefutáveis. O conde alçou os ombros e declarou com uma voz firme:

— Minha mulher morreu nos meus braços. Senti sob os meus lábios suas mãos gélidas, aquele frio da morte que é horrível quando se ama. Eu mesmo a vesti, conforme seu desejo, com seu vestido de noiva, e estava lá quando lacraram seu caixão. E depois?

Paul o escutava, pensando:

"Será que ele disse a verdade? Sim, e no entanto, posso admiti-lo?..."

—. E então? — repetiu o conde com uma voz mais severa.

— Então — prosseguiu Paul, uma outra pergunta: — o retrato que se achava no quarto de vestir da Condessa d'Andeville era o retrato dela?

— Claro, seu retrato em pé...

— Com uma renda preta em volta dos ombros?

— Sim, um fichu, como ela gostava de usar.

— Que era preso por um camafeu na frente, cercado por uma serpente de ouro?

— Sim, um velho camafeu que recebi de minha mãe, e que minha mulher usava sempre.

Um ímpeto irrefletido vibrou em Paul. As afirmações do Conde d'Andeville lhe pareciam confissões, e tremendo de cólera, gritou:

— O senhor não esqueceu que meu pai foi assassinado, não é? Falamos nisso diversas vezes os dois. Era seu amigo. Pois bem, a mulher que o assassinou e que eu vi, cuja imagem está esculpida no meu cérebro, aquela mulher tinha um fichu de renda preta em volta dos ombros, e um camafeu cercado por uma serpente de ouro. E aquela mulher, eu revi seu retrato no quarto da condessa... Sim, na noite de meu casamento, eu vi seu retrato... O senhor compreende agora?... Compreende?

Entre os dois homens o momento foi trágico. O Conde d;Andeville, com as mãos apertadas em volta do fuzil, tremia.

"Mas por que ele treme?" — perguntava-se Paul, cujas suspeitas aumentavam até tornarem-se uma verdadeira acusação. Será revolta ou raiva por ser desmascarado que o faz tremer assim? E devo considerá-lo como cúmplice de sua mulher? Porque, enfim...

Ele sentiu o braço torcido por um golpe violento. O conde balbuciava, lívido:

— Você tem a audácia! Então minha mulher teria assassinado seu pai!... Mas você está bêbado! Minha mulher que era uma santa diante de Deus e dos homens... Você tem a audácia! Ah! não sei o que me impede de quebrar-lhe a cara.

Paul desvencilhou-se bruscamente. Os dois, agitados por uma fúria aumentada pelo barulho do combate e pela própria loucura da própria briga, estiveram a ponto de ir às vias de fato, enquanto as balas e granadas assobiavam em volta deles.

Mais uma parte da parede veio abaixo. Paul deu ordens, e pensava ao mesmo tempo no major Hermann que estava lá num canto, e diante de quem ele teria podido levar o conde como um criminoso que confrontamos com o seu cúmplice. Por que então ele não fazia isso?

Lembrando-,se de repente, tirou dó seu bolso a fotografia da Condessa Hermine achada junto ao cadáver do alemão Rosenthal.

— E isso? — disse ele, colocando-a sob os olhos do sogro. — O senhor sabe o que é isso? A data está em cima: 1902. E o senhor insiste em que a condessa esteja morta? Hem! Responda: uma fotografia de Berlim, que lhe foi enviada por sua mulher quatro anos após a sua morte!

O Conde d'Andeville baqueou. Parecia que toda a sua cólera desaparecia e em seu lugar aparecia um assombro infinito. Paul erguia diante dele a prova fulminante que era aquele pedaço de papel. E ouviu-o dizer:

— Quem me roubou isso? Estava entre os meus papéis em Paris... Mas também, por que é que não o rasguei?...

E baixinho murmurou:

— Oh! Hermine, minha adorada Hermine!...

Não era a confissão? Mas então o que significava uma confissão expressa nesses termos e com essa afirmação de carinho para com uma mulher acusada de crimes e infâmias?

Do térreo o tenente gritou:

—Todos para as trincheiras da frente, com exceção de 10 homens. Delroze, fique com os melhores atiradores e fogo à vontade!

Os voluntários, sob o comando de Bernard, desceram a toda pressa. Apesar das perdas sofridas, o inimigo se aproximava do canal. Já à direita e à esquerda, grupos de pioneiros, constantemente renovados, teimavam em reunir os barcos atolados nas margens. Contra o ataque iminente, o tenente dos voluntários reunia seus homens na linha de frente enquanto os artilheiros da casa tinham missão, sob a saraivada de granadas, de atirar sem parar.

Um a um, cinco dos artilheiros caíram.

Paul e o Conde d'Andeville multiplicavam-se, ao mesmo tempo em que viam quais as ordens a serem dadas e o que deveria ser feito. Não havia chance, vista a enorme diferença numérica, de resistirem. Mas talvez se pudesse agüentar até a chegada do reforço, o que asseguraria a posse do blockhaus.

A artilharia francesa, na impossibilidade de um tiroteio eficaz no meio dos combatentes, tinha cessado fogo, enquanto os canhões alemães continuavam tendo a casa como objetivo, e granadas explodiam a toda hora.

Mais um homem foi ferido e transportado até a água-furtada perto do Major Hermann, onde logo depois morria.

Lá fora a luta se travava na água, e na água do canal propriamente dito, nas barcas e em volta das barcas. Um corpo-a-corpo furioso, tumulto, gritos de ódio e gritos de dor, urros de medo e cantos de vitória... A confusão era tanta que Paul e o conde tinham dificuldade em visar os seus alvos. Paul disse ao sogro:

— Receio que sucumbamos antes de ser socorridos. Devo então preveni-lo de que o tenente tomou providências para explodir a casa. Como o senhor está aqui por acaso, sem missão que lhe dê o título e os deveres de um combatente...

— Estou aqui como francês — respondeu o Conde d'Andeville. — Permanecerei até o último minuto.

— Então, talvez tenhamos tempo de terminar. Escute, Sr. Stéphane. Tentarei ser breve. Mas se uma palavra, uma só palavra o esclarecesse, eu lhe pediria que me interrompesse na mesma hora.

Ele compreendia que havia entre eles trevas incomensuráveis e que, culpado ou não, cúmplice ou vítima de sua mulher, o conde devia saber de coisas que ele, Paul, ignorava, e que essas coisas só podiam ser esclarecidas por uma exposição plena dos acontecimentos.

Começou então a falar. Ele o fez rigorosamente, calmamente, enquanto o conde o escutava em silêncio. E não paravam de atirar, armando os seus fuzis, colocando-os nos ombros, mirando e armando novamente como se estivessem em um exercício. Em volta e acima deles a morte prosseguia sua obra implacável.

Mas Paul tinha apenas contado sua chegada a Ornequin com Elisabeth, sua entrada no quarto fechado e seu pavor à vista do retrato quando uma granada enorme explodiu sobre suas cabeças e os encharcou de estilhaços de metralhas.

Os quatro voluntários foram alvejados. Paul caiu também, machucado no pescoço, e logo depois sentiu, apesar de não ter dor, que suas idéias se misturavam pouco a pouco numa nuvem sem que ele pudesse retê-las. Ele se esforçava, no entanto, e teve ainda por um prodígio de força de vontade, um resto de energia que lhe permitiu certas reflexões e certas impressões. Assim ele viu o sogro de joelhos perto dele, e conseguiu dizer:

— O diário de Elisabeth... o senhor o encontrará na minha mala, no acampamento... com algumas páginas escritas por mim... que o farão compreender... Mas antes o senhor deve... veja, aquele oficial alemão que está ali amarrado é um espião... fique de olho nele... mate-o... senão no dia 10 de janeiro... Mas o senhor o matará, não é?

Paul não podia mais falar. Além do mais ele percebeu que o Conde d'Andeville não estava de joelhos para escutá-lo ou socorrê-lo, mas que, atingido ele também, o rosto era sangue, dobrava-se em dois e, finalmente rolava com gemidos cada vez mais surdos.

No vasto cômodo houve então uma enorme calma, e ao longe crepitavam detonações de fuzis. Os canhões alemães não atiravam mais.' O contra-ataque do inimigo devia prosseguir com sucesso e Paul, incapaz de um único movimento esperava a formidável explosão anunciada pelo tenente.

Diversas vezes ele pronunciou o nome de Elisabeth. Pensava que nenhum perigo o ameaçava agora já que o Major Hermann ia morrer, ele também. Além disso seu irmão Bernard saberia defendê-la. Mas com a continuação, entretanto, essa espécie de quietude se esvoaçava dando lugar a um mal-estar, depois a um tormento, e enfim a uma sensação de tortura que se agravava a cada segundo. Seria um pesadelo, uma alucinação doentia que o perseguia? Isso se passava do lado da água-furtada para onde ele havia empurrado o Major Hermann e onde jazia o cadáver de um soldado. Que horror! parecia-lhe que o major tinha cortado as cordas, que se levantava e que olhava em volta de si.

Com todas as forças Paul abriu os olhos, e com todas as forças exigiu que permanecessem abertos.

Mas uma sombra cada vez mais espessa os fechava e através dessa sombra percebeu, como de noite se vê um espetáculo confuso, o major que se desvencilhava de seu capote, que se debruçava sobre o cadáver, que lhe tirava seu paletó de lã azul, que o vestia, que colocava na cabeça o quepe do morto, punha sua gravata em volta do pescoço, tomava seu fuzil, sua baioneta e seus cartuchos e que, assim transformado, descia os três degraus de madeira.

Visão terrível! Paul teria querido duvidar e crer na aparição de um fantasma surgido de sua febre e de seu delírio. Mas tudo confirmava a realidade do espetáculo. E foi para ele o mais infernal dos sofrimentos. O major fugia!

Paul estava fraco demais para elucidar a situação tal qual ela se apresentava. O major pensava em matá-lo, a ele e ao Conde d'Andeville? O major saberia que eles estavam ali às suas mãos, feridos? Essas questões Paul não se fazia. Uma única idéia obcecava o seu cérebro enfraquecido: o Major Hermann fugia. Graças a seu uniforme, se misturaria aos voluntários! Com a ajuda de algum sinal retornaria à companhia dos alemães! e seria libertado! e retomaria contra Elisabeth sua obra de perseguição, sua obra de morte!

Ah! se a explosão pudesse se produzir! Que a casa do canoeiro fosse pelos ares, é o major estaria perdido...

Na sua inconsciência Paul se segurava ainda nessa esperança. Sua razão no entanto vacilava. Seus pensamentos ficavam cada vez mais confusos. Rapidamente lançou-se pelas trevas onde nada mais £e pode ver, onde nada mais se pode ouvir...

 

Três semanas mais tarde, o general comandante-em-chefe das forças armadas descia de automóvel diante do portal de um velho castelo de Boulogne, transformado em hospital militar.

O intendente o esperava à porta.

— O Subtenente Delroze foi prevenido da minha visita?

— Foi sim, general.

— Conduza-me ao seu quarto.

Paul Delroze estava em pé, o pescoço enfaixado, mas o rosto calmo e sem traço de cansaço.

Muito emocionado com a presença do grande chefe cuja energia e sangue-frio haviam salvado a França, ele logo tomou a posição militar. Mas o general tomou-lhe a mão e disse-lhe com uma voz bem afetuosa:

— Sente-se Tenente Delroze... Digo bem, tenente, pois é seu posto desde ontem. Não, nada de agradecimentos. Ora, ora! Estamos em falta com o senhor. E então, já de pé?

— Sim, general. O ferimento não era grave.

— Melhor assim. Estou contente com todos os meus oficiais. Mas, aqui para nós, um sujeito feito o senhor, isso não existe às dúzias. O seu coronel me entregou um relatório sobre o senhor, tão especial, mostrando tal seqüência de ações inéditas que até me pergunto se não farei exceção à regra que me impus, e se não comunicarei esse relatório ao público.

— Não, general, eu lhe suplico.

— Você tem razão, meu amigo. A nobreza do heroísmo é de ser anônimo, e é somente a França que no momento deve ter toda a glória. Eu me contentarei então de citá-lo mais uma vez na ordem de exército e de dar-lhe a medalha para a qual você já estava indicado.

— General, eu nem sei como...

— Além disso, meu amigo, se você desejar algo, seja lá o que for, insisto veementemente para que me dê essa oportunidade de lhe ser útil.

Paul balançou a cabeça sorrindo. Tanta gentileza e atenções tão cordiais o punham à vontade.

— E se eu ficar muito exigente, general?

— Pode ficar!

— Está bem, general, eu aceito. Veja então o que eu peço. Para começar, uma licença de convalescença de duas semanas, a contar do sábado, 9 de janeiro, isto é, do dia em que vou deixaro hospital.

— Não é um favor, é um direito.

— Sim, general, mas essa licença eu a passarei onde bem desejar.

— De acordo.

— Ainda mais, terei no meu bolso uma permissão de circulação escrita com a sua letra, general, permissão que me dará toda liberdade para ir e vir pelas linhas francesas e de requerer toda e qualquer assistência que me seja necessária.

O general olhou Paul um instante, depois disse:

— O que você está me pedindo é grave, Delroze.

— Eu sei, general. Mas o que eu pretendo realizar é grave também.

— Está bem. Concordo. E o que mais?

— General, o sargento Bernard d'Andeville, meu cunhado, participava assim como eu do trabalho na casa do canoeiro. Ferido como eu, ele foi transportado para este mesmo hospital de onde, segundo tudo indica, poderá sair ao mesmo tempo que eu. Gostaria que ele tivesse a mesma licença e a autorização para me acompanhar.

— De acordo. E depois?

— O pai de Bernard, o Conde Stéphane d'Andeville, sub-tenente intérprete junto ao exército inglês, foi igualmente ferido naquele dia, a meu lado. Soube que seu ferimento apesar de grave não põe sua vida em perigo, e que ele foi evacuado para um hospital inglês... ignoro qual. Eu lhe pediria para fazê-lo voltar assim que estiver restabelecido, e de conservá-lo no seu estado-maior até que eu volte para prestar contas com o senhor do serviço que vou fazer.

— De acordo. É tudo?

— Quase tudo, general. Só me falta agradecer-lhe pelas suas bondades, pedindo-lhe uma lista de 20 prisioneiros franceses retidos na Alemanha, em quem o senhor tenha um interesse especial. Esses prisioneiros serão libertados daqui a 15 dias o mais tardar.

— Hem?

Apesar de todo o seu sangue-frio, o general parecia um pouco espantado. Repetiu:

— Libertados daqui a 15 dias! Vinte prisioneiros!

— Eu garanto.

— Quer dizer então?

— Será exatamente como estou dizendo.

— Qualquer que seja a patente desses oficiais? Qualquer que seja a sua situação social?

— Sim, general.

— E por meios regulamentares, confessáveis?

— Por meios contra os quais nenhuma objeção é possível. O general olhou Paul novamente, como chefe que tem hábito de julgar seus homens e de estimá-los em seu justo valor. Ele sabia que esse não era um faroleiro, mas um homem de decisão e de realização, que andava em linha reta e que cumpria o que prometia. Ele respondeu:

— Está bem, meu amigo. Esta lista lhe será entregue amanhã.

 

Uma obra-prima da kultur

Domingo, 10 de janeiro de manhã, o tenente Delroze e o Sargento d'Andeville desembarcavam na estação de Corvigny, foram visitar o comandante do local e, tomando um carro, fizeram-se conduzir ao castelo de Ornequin.

— Para ser franco não pensei que as coisas fossem se passar assim — disse Bernard espreguiçando-se no assento — quando fui atingido por um estilhaço de shrapnell entre o Yser e a casa do canoeiro. Que fornalha, naquele momento! Você pode crer, Paul, se os nossos reforços não tivessem chegado, mais cinco minutos e nós estaríamos perdidos. Foi mesmo muita sorte!

— Foi mesmo! — disse Paul. — Uma sorte danada! Só me dei conta no dia seguinte, ao acordar numa ambulância francesa.

— O que foi desagradável, por exemplo — retomou Bernard —, foi a evasão daquele bandido do Major Hermann. Então, você o tinha feito prisioneiro? E você o viu desvencilhar-se das cordas e fugir? Ele tem muita audácia, aquele sujeito! Esteja certo- de que ele conseguiu desaparecer sem nenhum problema.

Paul falou baixinho:

— Não duvido, como não duvido também que ele queira pôr em execução as ameaças contra Elisabeth.

— Arre! Temos 48 horas, já que ele dava a seu cúmplice, Karl, o dia 10 de janeiro como data de sua chegada, e já que ele só deve agir dois dias depois.

— E se ele agir hoje? — interrompeu Paul com voz alterada.

Apesar de sua angústia, no entanto, o trajeto pareceu-lhe rápido. Ele se aproximava, enfim, de uma forma real, desta vez, do objetivo do qual há quatro meses era afastado. Ornequin era a fronteira, e a certa distância se achava Ebrecourt. Os obstáculos que se lhe oporiam antes que ele pudesse alcançar Ebrecourt, antes que pudesse atingir o esconderijo de Elisabeth e que pudesse salvar sua mulher, ele nem queria pensar. Estava vivo. Elisabeth estava viva. Entre ela e ele não havia obstáculos.

O castelo de Ornequin, ou mais exatamente o que dele restava — pois até as ruínas do castelo tinham sofrido novo bombardeio em novembro —, servia de acampamento às tropas territoriais, cujas trincheiras de linha de frente acompanhavam a linha da fronteira.

Combatia-se pouco desse lado, não tendo os adversários, por uma questão de tática, nada a ganhar caso avançassem, A vigilância estava severa.

Foram essas as informações que Paul obteve do tenente da territorial com o qual ele almoçou.

— Meu caro colega — concluiu o oficial depois que Paul lhe confiou o objetivo de sua tarefa —, estou à sua inteira disposição, mas se se trata de passar de Ornequin a Ebrecourt, esteja certo de que você não passará.

— Eu passarei.

— Pelo ares então? — disse o oficial rindo.

— Não.

— Então por um caminho subterrâneo?

— Talvez.

— Tire isso da cabeça. Nós quisemos executar trabalhos de obstrução e minas. Em vão. Estamos aqui sobre um terreno de rochas antigas que impossibilitam a perfuração.

Paul sorriu por sua vez.

— Meu caro colega, tenha a gentileza de me dar, durante uma hora somente, quatro homens fortes, armados com picaretas e pás, e hoje à noite estarei em Ebrecourt.

— Oh! para furar dentro da rocha um túnel de 10 quilômetros, quatro homens e durante uma hora!

— Não mais do que isso. Peço além do mais segredo absoluto, tanto quanto sobre a tentativa em si como para as descobertas bastante curiosas que ela não pode deixar de provocar. Somente o general-chefe terá conhecimento através do relatório que lhe deverei apresentar.

— Certo. Vou escolher eu mesmo os meus quatro valentes. Para onde devo levá-los?

— Para o terraço, perto do torreão.

Esse terraço domina o Liseron de uma altura de 40 a 50 metros, e, por causa de uma sinuosidade do rio, orienta-se para o lado de Corvigny exatamente, percebendo-se ao longe seu campanário e as colinas em volta. Do torreão nada restava a não ser sua base enorme prolongada pelos alicerces misturados com rochas naturais que sustentavam o terraço. Um jardim estendia até o alto dos muros uma porção de loureiros e carvalhos.

Foi para aí que Paul se dirigiu. Diversas vezes andou de um lado para o outro pela esplanada, debruçando-se sobre o rio e inspecionando, sob seu manto de parasitas, os blocos caídos do torreão.

— E agora — disse o tenente que apareceu com seus homens —, é esse o seu ponto de partida? Aviso que estamos de costas para a fronteira.

— Qual! — respondeu Paul com o mesmo tom de galhofa. — Todos os caminhos levam a Berlim.

Indicou um círculo que havia traçado com a ajuda de estacas e convidou os homens ao trabalho:

— Vamos, amigos.

Atacaram, sobre uma circunferência de três metros mais ou menos, solo vegetal onde cavaram, em 20 minutos, um buraco de um metro e meio. Nessa profundidade encontraram uma camada de pedras cimentadas umas nas outras, e o esforço tornou-se bem mais difícil, pois o cimento era de uma dureza inacreditável e não se podia separá-lo senão com a ajuda de picaretas introduzidas nas fissuras. Paul acompanhava o trabalho com uma atenção inquieta.

— Parem! — gritou ao final de uma hora.

Quis descer sozinho pela escavação e continuou, desde esse momento, a cavar, mais devagar e examinando, por assim dizer, o efeito de cada golpe que dava.

— Pronto — disse levantando-se.

— O quê? — perguntou Bernard.

— O terreno onde estamos outra coisa não é senão um andar de vastas construções que outrora circundavam o velho torreão, construções essas arrasadas há séculos e sobre as quais acomodaram este jardim.

— E daí?

— Daí, desobstruindo o terreno furei o teto de uma das antigas salas. Veja.

Pegou uma pedra e a introduziu exatamente no centro do orifício mais estreito que havia feito e largou-a. A pedra desapareceu. Quase em seguida ouviu-se um ruído surdo.

— Só temos que alargar a entrada. Enquanto isso, vamos arranjar uma escada e luz... a maior quantidade possível de luz.

— Temos tochas de resina — disse o oficial.

— Perfeito.

Paul não se havia enganado. Quando a escada foi introduzida e ele pôde descer com o tenente e com Bernard, viram uma sala de dimensões muito vastas e na qual os arcos eram sustentados por vigas maciças que a dividiam, como uma igreja assimétrica, em duas naves principais e laterais mais estreitas.

Mas logo Paul chamou a atenção de seus companheiros para o chão propriamente dito dessas duas naves.

— Um chão em cimento armado, reparem... E, olhem, conforme eu esperava, eis aqui dois trilhos que correm ao longo da linha das pilastras!... E eis ali dois outros trilhos que correm ao longo das pilastras do outro lado!

— Mas enfim, o que é que isso quer dizer? — gritaram Bernard e o tenente.

— Isso quer dizer simplesmente — declarou Paul — que temos diante de nós a explicação evidente do grande mistério que envolveu a tomada de Corvigny e de seus dois fortes.

— Como?

— Corvigny e seus dois fortes foram demolidos em alguns minutos, não é verdade? De onde vinham aqueles tiros de canhão, quando Corvigny se acha a seis léguas da fronteira, e que nenhum canhão inimigo havia atravessado a fronteira? Vinham daqui, desta fortaleza subterrânea.

— Impossível!

— Eis aqui os trilhos sobre os quais foram manobradas as duas peças gigantescas que efetuaram o bombardeamento.

— Ora vamos! não se pode bombardear do fundo de uma caverna! onde estão as aberturas?

— Os trilhos vão nos conduzir lá. Ilumine bastante, Bernard. Olhem, uma plataforma construída sobre uma base giratória. Bastante grande, que é que vocês acham? E olhem aqui outra plataforma.

— Mas, e as aberturas?

— Na sua frente, Bernard.

— É uma parede...

.— É a parede que, com a rocha propriamente dita da colina, sustenta o terraço por cima do Liseron, em frente a Corvigny. E nesse muro duas aberturas redondas foram feitas, depois tapadas. Distingue-se facilmente a linha ainda visível, quase fresca dos arranjos executados.

Bernard e o tenente não acreditavam no que viam.

— Mas é um trabalho enorme! — disse o oficial.

— Colossal! — respondeu Paul —, mas não fique muito surpreso, caro colega. Há 16 ou 17 anos, que eu saiba, que foi começado. Além do mais, como lhes disse, uma parte do trabalho estava feita, já que nos encontramos nas salas inferiores das antigas construções de Ornequin, e que bastou achá-las e arrumá-las para a finalidade para a qual seriam destinadas. Há algo de bem mais colossal.

— E o que é?

— É o túnel que tiveram de fazer para trazer as duas pecas até aqui.

— Um túnel?

— Homem! por onde é que vocês querem que elas tenham vindo? Sigamos os trilhos no sentido inverso e lá chegaremos.

Com efeito, um pouco mais para trás as duas vias férreas juntavam-se e perceberam o buraco escancarado de um túnel de dois metros e meio de largura mais ou menos, e de igual altura. Ia-se enfiando na terra, num ligeiro declive. As paredes eram de tijolos. Nenhuma umidade transpirava pelas paredes, e até mesmo o solo propriamente dito estava absolutamente seco.

— Linha de Ebrecourt — disse Paul rindo. — Onze quilômetros à sombra. E eis como foi escamoteada a praça-forte de Corvigny. Primeiramente alguns milhares de homens passaram, degolaram a pequena guarnição de Ornequin e os postos da fronteira, e depois continuaram seu caminho em direção à cidade. Ao mesmo tempo os dois canhões monstruosos foram trazidos, montados e virados na direção de lugares previamente assinalados. Cumprida a tarefa iam-se embora e tapavam de novo os buracos. Tudo isso não durou duas horas.

— Mas para essas duas horas decisivas — disse Bernard

— o rei da Prússia trabalhou 17 anos!

— E acontece — concluiu Paul — que na verdade foi para nós que o rei da Prússia trabalhou.

— Bendito seja, e a caminho!

— O senhor quer que os meus homens o acompanhem?

— propôs o tenente.

— Obrigado. É preferível que vamos só nós, meu cunhado e eu. Se, no entanto, o inimigo tiver demolido o túnel, retornaremos para procurar socorro. Mas isso me espantaria. Além de ter tomado todas as providências para que não pudéssemos descobrir a existência disso, ele o terá conservado para o caso de ele próprio ter de se servir do túnel novamente.

Assim sendo, às três horas da tarde os dois cunhados embarafustaram pelo túnel imperial, conforme o chamava Bernard. Estavam bem armados, abastecidos de provisões e munições, e resolvidos a levar a aventura a cabo.

Logo depois, isto é, 200 metros mais adiante, a luz de suas lanternas lhes mostrou os degraus de uma escada que subia à direita.

— Bifurcação número 1 — notou Paul. — De acordo com meus cálculos deve haver pelo menos três.

— E esta escada leva a?...

— Evidentemente ao castelo. E se você me perguntar a que parte do castelo, eu lhe responderei: ao quarto do retrato. Foi incontestavelmente por aí que o Major Hermann chegou ao castelo no dia do ataque. Seu cúmplice Karl o acompanhava. Vendo nossos nomes escritos na parede, apunhalaram aqueles que dormiam nesse quarto. Eram o soldado Gériflour e seu camarada.

Bernard d'Andeville brincou:

— Escute, Paul, de uns minutos para cá você tem me deixado estupefato. Você age com uma adivinhação e uma perspicácia, indo direto ao local que deve ser cavado, contando o que se passou como se tivesse sido testemunha, sabendo tudo e prevendo tudo. Na realidade não lhe reconhecíamos tais dons! Já ouviu falar em Arsène Lupin?

Paul estacou.

— Por que você diz esse nome?

— O nome de Lupin?

— Sim.

— Sei lá, o acaso... Haveria uma relação qualquer?

— Não, não... e no entanto... Paul começou a rir.

— Escute uma história esquisita. Será mesmo uma história? Sim, claro, não é um sonho... No entanto... A verdade é que certa manhã, quando eu estava adormecido com febre no hospital, percebi, com uma surpresa que você compreenderá, que havia, no meu quarto, um oficial que eu não conhecia, um major-médico, que se tinha sentado diante de uma mesa e que, tranqüilamente bisbilhotava na minha mala.

Levantei-me pela metade e vi que ele havia espalhado todos os meus papéis sobre a mesa e, entre esses papéis o diário de Elisabeth.

Com o barulho que eu fiz ele virou-se. Decididamente eu não o conhecia. Ele tinha um bigode fino, um ar enérgico, e um sorriso muito doce. Ele me disse... não, na verdade não era um sonho... ele me disse:

— Não se mexa... não se excite...

Fechou os papéis, colocou-os na mala e aproximou-se de mim:

— Peço-lhe perdão por não me ter apresentado logo no começo. Eu o farei daqui a pouco. E perdão também pelo trabalhinho que acabo de efetuar sem a sua autorização. Estava, aliás, esperando que o senhor acordasse para prestar-lhe contas, dar-lhe uma satisfação. É o seguinte. Um dos emissários que atualmente executa um trabalho para mim junto à policia secreta entregou-me documentos, que dizem respeito à traição de um tal Major Hermann, chefe de espionagem alemão. Nesses documentos muitas vezes o seu nome é citado. Foi por essa razão que tendo o acaso me revelado sua presença aqui, quis vê-lo e comunicar-me com o senhor. Então eu vim e entrei... por meios que me são particulares. O senhor estava doente, o senhor dormia, meu tempo é precioso (só tenho alguns minutos) não podia então hesitar em tomar conhecimento de seus papéis. E fiz bem porque agora posso compreender.

Eu contemplava com espanto aquele estranho personagem. Ele pegou seu quepe, como se fosse embora e me disse:

— Meus parabéns, tenente Delroze, pela sua coragem e habilidade. Tudo o que o senhor fez foi admirável e os resultados obtidos são de primeira qualidade. Evidentemente faltam-lhe alguns dons especiais que lhe permitiriam chegar mais rápido ao fim. O senhor não apreende bem a relação entre os acontecimentos e não faz ressaltar as conclusões que eles comportam. Assim sendo me espanta que certas passagens do diário de sua esposa, onde ela fala de suas descobertas espantosas, não lhe tenham dado uma pista. Se o senhor tivesse se perguntado, por outro lado, porque os alemães tinham acumulado tantas medidas para fazer um vazio em torno do castelo, aos poucos, de dedução em dedução, interrogando o passado e o presente, lembrando-se de seu encontro com o imperador da Alemanha, e de muitas outras coisas que se ligam entre elas, umas às outras, o senhor acabaria se dizendo que deve haver, entre os dois lados da fronteira, uma comunicação secreta que dava exatamente para o local de onde se pudesse atirar sobre Corvigny.

A priori, esse local me parece ser o terraço, e o senhor terá certeza absoluta se o senhor achar nesse terraço a árvore morta coberta de ervas perto da qual sua esposa pensou ter ouvido ruídos subterrâneos. Daí então o senhor só terá que pôr mão à obra, isto é, passar para país inimigo e... Mas vou parar aqui... Um plano de ação muito minucioso poderia atrapalhá-lo. Além disso um homem como o senhor não tem necessidade que se mastigue a tarefa. Boa-noite, tenente. Ah! a propósito, seria bom que o meu nome não lhe fosse totalmente desconhecido. Eu me apresento: o major-médico... Mas afinal de contas, por que não lhe dar o meu verdadeiro nome? Ele o informará melhor: Arsène Lupin.

Calou-se, saudou-me com um ar amável e retirou-se sem dizer uma palavra a mais. Eis a história. O que é que você diz, Bernard?

— Digo que você arranjou um pilheriador.

— Pode ser, mas de qualquer modo ninguém pôde me explicar quem era esse major-médico, nem como tinha podido introduzir-se até junto de mim. E depois confesse que, para um pilheriador, ele desvendou coisas que me são muito úteis neste momento.

— Mas Arsène Lupin morreu...

— Sim, eu sei, ele é dado como morto, mas lá se sabe, com um tipo desses! A verdade é que, vivo ou morto, falso ou verdadeiro, aquele Lupin me prestou um grande serviço.

— Então, seu objetivo?

— Só tenho um, a libertação de Elisabeth.

— Seu plano?

— Não tenho. Tudo dependerá das circunstâncias, mas tenho a convicção de que estou no caminho certo.

Com efeito todas as suas hipóteses se verificavam. Ao fim de 10 minutos chegaram a um entroncamento onde saía, à direita, outro túnel munido igualmente de trilhos.

— Segunda bifurcação — disse Paul —, estrada para Corvigny. Foi por aí que os alemães marcharam para a cidade para surpreender nossas tropas antes mesmo que elas se tivessem reunido, e foi por aí que passou a camponesa que o interpelou de noite. A saída deve ser a certa distância da cidade, numa fazenda, talvez, pertencente a essa suposta camponesa.

— E a terceira bifurcação? — perguntou Bernard.

— Olhe ela aqui — replicou Paul.

— Outra vez uma escada.

— Sim, e não duvido que conduza à capela. Como não supor, com efeito, que no dia em que meu pai foi assassinado,-o imperador da Alemanha viesse examinar as obras dirigidas por ele e executadas sob as ordens da mulher que o acompanhava? Essa capela, que não era antigamente cercada pelos muros do parque, é evidentemente uma das saídas da rede clandestina de que agora seguimos a artéria principal.

Dessas ramificações Paul ainda avistou duas outras que segundo sua posição e direção deviam dar nos arredores da fronteira, completando assim um maravilhoso sistema de espionagem e invasão.

— É admirável — dizia Bernard. — Eis aí a Kultur, se é que eu entendo alguma coisa. Vê-se bem que essa gente tem o senso da guerra. A idéia de cavar durante 20 anos um túnel destinado ao possível bombardeio de uma pequena praça-forte não viria jamais a um francês. Para isso precisa-se de um grau de civilização a que não podemos pretender. Ah! safados!

Seu entusiasmo cresceu ainda mais quando percebeu que o túnel era munido na sua parte superior de chaminés de arejamento. Mas por fim Paul lhe recomendou calar-se ou falar baixo.

— Você há de convir que se eles acharam útil conservar suas linhas de comunicação, devem ter feito de maneira a que não pudesse servir aos franceses. Ebrecourt não está longe. Talvez haja postos de observação, sentinelas postas nos bons lugares. Essa gente não deixa nada ao acaso.

O que dava peso à observação de Paul era a existência, entre os trilhos, dessas placas de ferro que cobrem os fornos de minas preparadas previamente e que podem ser explodidas por uma fagulha elétrica. A primeira trazia o número 5, a segunda o número 4, e assim por diante. Eles as evitavam cuidadosamente, e sua marcha era então retardada, porque já não ousavam mais acender suas lanternas senão por breves instantes.

Lá pelas sete horas eles ouviram, ou. antes, pareceu-lhes ouvir os ruídos confusos que a vida e o movimento da superfície propagam. A terra alemã se estendia por sobre eles, e o eco" lhes trazia ruídos provocados pela vida alemã.

— De qualquer forma é curioso — observou Paul — que este túnel não seja observado com mais cuidado e que nos seja possível ir tão longe sem ser molestados.

— Um mau ponto para eles — disse Bernard. — A Kultur está defeituosa.

Entretanto sopros mais vivos corriam ao longo das paredes. O ar de fora penetrava em baforadas frescas, e perceberam subitamente, na sombra, uma luz longínqua. Não se mexia. Tudo parecia calmo em volta dela, como se fosse um dos sinais fixos que se põem nas vizinhanças das vias férreas.

Ao se aproximar deram-se conta que se tratava da lâmpada de uma ampola elétrica, que ela se achava no interior de um barracão posto à saída mesmo do túnel e que a claridade se projetava sobre grandes despenhadeiros brancos e sobre montanhas de areia e cascalho.

Paul murmurou:

— São minas de minérios. Colocando aqui a entrada do túnel, isso lhes permitia prosseguir as obras em tempo de paz sem chamar a atenção. Esteja certo que a exploração das ditas minas se fazia discretamente, num local fechado onde ficavam os operários.

— Que Kultur! — repetiu Bernard.

Sentiu a mão de Paul que lhe apertava o braço com violência. Alguma coisa tinha passado diante da luz, como uma silhueta que se levanta e logo se abaixa.

Com infinitas precauções arrastaram-se até o barracão e levantaram-se até a cintura de maneira que seus olhos atingissem a altura das vidraças.

Havia aí uma meia-dúzia de soldados, todos deitados, e para dizer melhor largados uns por cima dos outros, por entre garrafas vazias, pratos sujos, papéis gordurosos, restos de lingüiça e outros frios.

Eram os guardas do túnel. Estavam completamente bêbados.

— Ainda a Kultur — disse Bernard.

— Estamos com sorte — replicou Paul — e agora entendo a falta de vigilância: hoje é domingo.

Uma mesa estava equipada com um aparelho de telegrafia. Um telefone estava preso à parede, e Paul notou, sob uma placa de vidro espesso, um painel com cinco manivelas de cobre, que correspondiam, evidentemente através de fios elétricos, às cinco placas de forno de minas existentes no túnel.

Ao afastarem-se, Bernard e Paul continuaram a seguir os trilhos na reentrância de um declive estreito cavado na rocha, que os conduziu a um espaço ao ar livre onde brilhavam uma porção de luzes. Uma aldeia inteira se estendia diante deles, composta de casernas e habitada por soldados de quem viam as idas e vindas. Eles a contornaram. O barulho de um automóvel e os clarões violentos de dois faróis os atraíam e perceberam, após haver transposto uma barreira e atravessado uma moita, uma cidade grande toda iluminada.

O automóvel parou diante de um portal onde se achavam lacaios e uma guarita de soldado. Dois oficiais e uma senhora vestida de peles saltaram. Na volta, a claridade dos faróis iluminou um enorme jardim protegido por muros altos.

— É bem o que eu supunha — disse Paul. — Temos aqui o inverso do castelo de Ornequin. No ponto de partida como no ponto de chegada, uma cidadela sólida que possibilita o trabalho ao abrigo de olhares indiscretos. Se a estação está ao ar livre aqui, em vez de subterrânea como do outro lado, pelo menos as minas, os canteiros, as casernas, as tropas da guarnição, a casa' do estado-maior, o jardim, as garagens, todo esse organismo militar se acha cercado por muralhas e guardadas sem dúvida alguma por. postos externos: É o que explica que possamos circular por dentro tão facilmente.

Nesse momento um segundo automóvel trouxe três oficiais e juntou-se ao primeiro do lado das garagens.

— Têm festa — disse Bernard.

Resolveram avançar o mais possível, no que foram ajudados pela largura dos canteiros dos arbustos plantados ao longo das vias que rodeavam a mansão.

Esperaram bastante tempo, depois vozes e risos, vindos do andar térreo por detrás, fizeram-nos concluir que a sala da festa se achava lá e que os convidados punham-se à mesa.

Houve cantorias, barulho de vozes. Fora nenhum movimento. O jardim estava deserto.

— O local está tranqüilo — disse Paul. — Você vai me dar uma ajuda e ficar escondido.

— Você quer subir pela beira das janelas? Mas, e as persianas?

— Não devem ser muito sólidas. A luz passa por elas.

— Enfim, qual é seu objetivo? Não há razão alguma para preocupar-se com essa mansão em vez de outra qualquer.

— Há. Você mesmo me informou que, segundo o que disse um ferido, o príncipe Conrad se instalou numa mansão nos arredores de Ebrecourt. Ora, a situação dessa aqui, no meio de uma espécie de campo fortificado e à entrada do túnel me parece pelo menos uma indicação.

— Sem contar essa festa que tem jeito bem principesco — disse Bernard rindo. — Você tem razão. Escale.

- Atravessaram a alameda. Com a ajuda de Bernard, Paul pôde facilmente alcançar a cornija que formava a base do andar superior e alçar-se até a varanda de pedra.

— Pronto — disse ele. — Volte para lá e, em caso de alarma, um toque de apito.

Tendo pulado para a varanda, balançou um pouco uma das persianas passando os dedos, depois a mão pela brecha que as separava e assim conseguiu puxar o trinco.

As cortinas fechadas por dentro permitiam-lhe trabalhai sem ser visto mas, mal cruzadas no alto, deixavam um triângulo pelo qual podia ver à condição de subir para a varanda.

E foi o que ele fez. Então esticou-se e olhou.

E o espetáculo que se ofereceu a seus olhos foi tal e o atingiu de maneira tão horrível que suas pernas começaram a tremer sob seu peso...

 

O Príncipe Conrad diverte-se

Uma mesa, uma mesa que se estende paralelamente às três janelas do cômodo. Um inacreditável amontoado de garrafas, garrafões e copos, deixando apenas espaço para os pratos de doces e frutas. Sobremesas sustentadas por garrafas de champanha. Uma cesta de flores colocada sobre garrafas de licor.

Vinte convidados, dos quais uma meia-dúzia de mulheres em vestido de baile. O resto, oficiais em suntuosos trajes de gala.

No meio, diante das janelas, o Príncipe Conrad presidindo o festim, com uma dama à sua esquerda e outra à sua direita. E foi a vista desses três personagens, reunidos pelo mais inverossímil desafio à lógica mesmo das coisas, que foi para Paul um suplício incessantemente renovado.

Que uma daquelas duas mulheres se achasse lá, à direita do príncipe imperial, toda empertigada em seu vestido de lã marrom, um fichu de renda preta escondendo uma parte de seus cabelos curtos, isso se explicava. Mas a outra mulher, em direção da qual o príncipe Conrad se voltava com uma afetação de galanteria tão grosseira, esta mulher que Paul olhava com olhos horrorizados e que teria gostado de estrangular, com as duas mãos, essa mulher, o que fazia ela ali? Que fazia Elisabeth em meio a oficiais embriagados e de alemães mais ou menos suspeitos, ao lado do Príncipe Conrad, ao lado da monstruosa criatura que o perseguia com seu ódio?

A condessa d'Andeville! Elisabeth d'Andeville! A mãe e a filha. Não havia um só argumento plausível que permitisse a Paul dar outro título às duas companheiras do príncipe. E este título, um incidente lhe forneceu todo o seu valor de horrível realidade, um momento depois, quando o Príncipe Conrad se levantou com uma taça de champanha na mão e berrou:

— Hoch! hoch! hoch! Bebo à nossa amiga vigilante! Hoch! hoch! hoch! À saúde da Condessa Hermine!

As palavras pavorosas foram pronunciadas e Paul as ouviu.

— Hoch! hoch!w hoch! — vociferou a manada de convidados. — À Condessa Hermine!

A condessa pegou uma taça, esvaziou-a de um trago e pôs-se a dizer palavras que Paul não pôde compreender, enquanto os outros se esforçavam para escutar com um fervor que tornavam mais elogiosas as copiosas libações.

E ela também, Elisabeth, escutava.

Estava com um vestido cinza que Paul conhecia, muito simples, de decote alto e com mangas até os punhos.

Mas em volta do pescoço pendia, sobre o decote, um maravilhoso colar de enormes pérolas, de quatro voltas, e esse colar Paul não o conhecia.

— A miserável! a miserável! — balbuciava ele.

Ela sorria. Sim, ele viu sobre os lábios da jovem um sorriso provocado pelas palavras que o Príncipe Conrad lhe disse inclinando-se para ela.

E o príncipe teve um acesso de alegria tão ruidosa que a Condessa Hermine, que continuava a falar, fê-lo ficar silencioso com um golpe de leque na mão.

A cena toda era terrível para Paul, e tal sofrimento tanto o queimava que tinha uma única idéia: ir embora, não ver mais nada, abandonar a luta, e apagar de sua vida, como de sua lembrança, a mulher detestada. a

"É bem filha da Condessa Hermine'' — pensava com desespero.

Ele ia embora, quando um pequeno fato o reteve. Elisabeth levava aos olhos um lenço amassado na palma da mão, e furtivamente enxugava uma lágrima prestes a rolar.

Ao mesmo tempo percebeu que ela estava horrivelmente pálida, não de uma palidez fictícia que ele até aqui havia atribuído a um efeito da luz, mas palidez mesmo de morte. Parecia que todo o seu sangue tivesse Fido retirado de seu pobre rosto. E que triste sorriso, no fundo, aquele que torcia seus lábios em resposta às graças do príncipe!

— Mas então o que faz ela aqui? — se perguntava Paul. — Não tenho eu o direito de julgá-la culpada, e de crer que seja o remorso que lhe arranca lágrimas? O desejo de viver, o medo, as ameaças tornaram-na covarde, e hoje ela chora.

Continuava a injuriá-la, mas uma grande piedade o invadia pouco a pouco para com aquela que não tinha tido a força de suportar as duras provas.

Nesse ínterim a condessa terminava o seu discurso. Bebeu novamente, gole após gole, jogando o seu copo por detrás dela após cada rodada. Os oficiais e suas mulheres a imitavam. Os hochs entusiastas cruzavam-se, e, num acesso de bebedeira patriótica, o príncipe levantou-se e cantou o Deutschland über Alles que os outros acompanharam com uma espécie de , frenesi.

Elisabeth havia posto os seus cotovelos sobre a mesa é suas mão,3 no rosto, como se tivesse querido isolar-se. Mas o príncipe, ainda em pé e aos berros, segurou-lhe os braços e os separou brutalmente.

— Nada de macaquices, minha linda!

Ela teve um gesto de repulsa que o pôs fora de si.

— O quê? Como?! "Reclama" e depois parece que choraminga! Ah! madame tem cada uma! Mas, que é isso? O que estou vendo? O copo de madame ainda está cheio!

Ele pegou no copo e todo trêmulo, aproximou-o dos lábios de Elisabeth.

— A minha saúde, pequena. A saúde do senhor e dono! E então, recusa?... Compreendo. Não queremos mais champanha. Abaixo o champanha! É de vinho do Reno que você precisa, não é, garota? Você sé lembra da canção de seu país: "Nós tivemos vosso Reno alemão. Ele coube no nosso copo...." O vinho do Reno!

Ao mesmo tempo os oficiais se tinham levantado e berravam Die Wacht am Rhein!

— Eles não terão o Reno alemão, embora o peçam nos seus gritos, como urubus ávidos...

— Não o terão — repetiu o príncipe exasperado —, mas você o beberá, você, garota!

Tinham enchido outra taça.' Novamente ele quis forçar Elisabeth a levá-la aos lábios e, como ela o empurrasse, ele lhe falou baixo, no ouvido, enquanto o líquido lhe molhava o vestido.

Todos se tinham calado, esperando o que ia acontecer. Elisabeth mais pálida ainda não se mexia. Curvado sobre ela, o príncipe mostrava um rosto bruto que ao mesmo tempo ameaça e suplica, dá ordens e insulta. Visão nojenta! Paul teria dado sua vida para que Elisabeth, num sobressalto de revolta, apunhalasse o insultante. Mas ela levantou a cabeça, fechou os olhos e, cambaleante, aceitando a taça, bebeu alguns goles.

O príncipe deu um grito de triunfo levantando a taça, depois gulosamente pôs seus lábios no mesmo lugar em que ela tinha posto os dela, e esvaziou-a de um trago.

— Hoch! hoch! — dizia ele. — Em pé, camaradas! Em pé na cadeira e um pé na mesa! Em pé, vencedores do mundo! Cantemos a força alemã! Cantemos o galanteio alemão! "Eles não terão o Reno alemão enquanto intrépidos jovens farão a corte a jovens esbeltas." Elisabeth, eu bebi o vinho do Reno no seu copo. Elisabeth, sei o que você está pensando. Pensamento de amor, meus camaradas! Eu sou o mestre! Oh! parisiense... Mocinha de Paris... É de Paris que precisamos. Oh! Paris! Oh! Paris!...

Ele titubeava. A taça caiu de suas mãos e quebrou-se de encontro ao gargalo de uma garrafa. Ele caiu de joelhos por sobre a mesa, numa algazarra de pratos e copos quebrados, segurou um frasco de licor e esborrachou-se por terra, murmurando:

— Precisamos de Paris... Paris e Calais... Foi Papai que disse... O Arco do Triunfo... O Café Inglês... O Grande Seize... O Moulin-Rouge!...

O tumulto cessou bruscamente. A voz imperiosa da condessa Hermine gritou:

— Que todos vão embora! Que cada um volte para sua casa! O mais rápido possível, senhores, por favor.

Os oficiais e as senhoras saíram rapidamente. Lá fora, do outro lado da mansão, diversos assobios soaram. Quase ao mesmo tempo automóveis chegaram das garagens. A partida foi geral.

Enquanto isso, a condessa havia feito um sinal para os empregados, mostrando-lhes o príncipe Conrad.

— Levem-no para o seu quarto. Em um segundo o príncipe foi levado.

Então a Condessa Hermine aproximou-se de Elisabeth.

Ainda não se tinham passado cinco minutos desde a queda do príncipe sob a mesa, e após a algazarra da festa, havia agora um enorme silêncio na sala em desordem onde as duas mulheres se encontravam sós.

Elisabeth tinha novamente escondido seu rosto entre as mãos, e chorava copiosamente com soluços que lhe faziam balançar os ombros! A Condessa Hermine sentou-se perto dela e tocou-lhe levemente o braço.

As duas mulheres se olharam sem dizer uma única palavra, Olhar estranho, tanto numa como na outra, carregado de um ódio semelhante. Paul não as perdia de vista. Observando uma como a outra ele não podia duvidar que já se tivessem visto e que as palavras que iam ser trocadas não fossem a seqüência da conclusão de explicações anteriores. Mas que explicações? E que sabia Elisabeth sobre a Condessa Hermine? Aceitava-a como sua mãe, esta mulher para quem olhava com tanta aversão?

Nunca dois seres se tinham distingu-'do par uma fisionomia mais diferente e sobretudo por uma expressão que indicasse naturezas mais opostas. E no entanto como era forte o conjunto de provas que as ligava uma à outra! Já não eram mais provas, mas elementos de uma realidade tão viva que Paul nem sonhava em discuti-los. O embaraço do Conde d'Andeville diante da fotografia da condessa, fotografia feita em Berlim alguns anos após a morte simulada dela, não mostrava então que ele era cúmplice dessa morte simulada, cúmplice talvez de muitas outras coisas?

E então Paul retornava à questão posta pelo angustiante-encontro entre mãe e filha: o que sabia Elisabeth de tudo aquilo? Que evidência teria ela conseguido tirar de todo esse complexo monstruoso de vergonhas, infâmias, traições e crimes? Acusava sua mãe? E, sentindo-se esmagada sob o peso da desonestidade, responsabilizava-a pela sua própria covardia?

— Sim, sim, evidentemente — dizia-se Paul. — Mas por que tanto ódio? Há entre elas um ódio que só a morte poderia apagar. E o desejo de homicídio é mais violento talvez nos olhos de Elisabeth do que nos olhos daquela que veio para matá-la.

Paul sentia essa impressão de maneira tão aguda que esperava mesmo que uma ou outra agissem ali mesmo e ele já procurava um meio de socorrer Elisabeth. Mas uma coisa totalmente imprevisível aconteceu. A Condessa Hermine tirou de seu bolso um daqueles enormes mapas topográficos de que se servem os automobilistas, abriu-o, colocou seu dedo sobre um ponto,.seguiu o traço vermelho de uma estrada até outro ponto, e aí, parando, pronunciou algumas palavras que pareceram trazer grande alegria a Elisabeth.

Ela segurou o braço da condessa e pôs-se a falar febrilmente, com risos e soluços, enquanto a condessa balançava a cabeça como se dissesse:

— Está bem... estamos de acordo... será tudo conforme você deseja. ..

Paul pensou que Elisabeth fosse beijar a mão de sua inimiga, de tal forma ela parecia transbordar de alegria e gratidão, e ele se perguntava ansioso em que nova armadilha caía a infeliz, quando a condessa levantou-se, encaminhou-se em direção à porta e abriu-a.

Fez um sinal e voltou.

Alguém entrou, vestindo um uniforme.

E Paul compreendeu. O homem que a Condessa Hermine introduzia era o espião Karl, seu cúmplice, o executante de seus desígnios, aquele que ela encarregava de matar Elisabeth. A hora da jovem havia soado.

Karl inclinou-se. A Condessa Hermine apresentou-o, depois, mostrando a estrada e os dois pontos do mapa, ela lhe explicou o que esperavam dele.

Ele tirou seu relógio e teve um movimento como prometendo :

— Será feito às tantas horas.

Logo depois, Elisabeth, a um convite da condessa, saiu.

Ainda que Paul não tivesse escutado uma única palavra do que tinha sido dito, esta cena breve tomou para ele um sentido rápido e o mais terrível. A condessa, usando seus poderes ilimitados, e aproveitando-se de que o Príncipe Conrad dormia, propunha a Elisabeth um plano de fuga, sem dúvida de automóvel, e para um ponto das regiões vizinhas designado de antemão. Elisabeth aceitava essa libertação inesperada. E a fuga dar-se-ia sob a proteção de Karl!

A armadilha foi tão bem apresentada e a jovem cansada de sofrer, precipitou-se de tão boa-fé que os. dois cúmplices, tendo ficado sozinhos, olharam-se rindo. Na verdade, o trabalho se realizava muito facilmente e não havia mérito algum em ter sucesso em tais condições.

Houve então entre eles, antes mesmo de qualquer explicação, uma mímica rápida, dois gestos, não mais do que isso, mas de um cinismo revoltante. Os olhos fixos na condessa, o espião Karl entreabria o dólmã e tirou, para fora do invólucro que o retinha, um punhal. A condessa fez um sinal de desaprovação e deu ao miserável um frasquinho que ele colocou no bolso, respondendo com um alçar de ombros:

— Como a senhora quiser, para mim tanto faz.

E sentados um ao lado do outro conversaram com animação, a condessa dando suas instruções que Karl aprovava ou discutia.

Paul teve a sensação de que, se ele não dominasse seu pavor, se não parasse com as batidas desordenadas de seu coração, Elisabeth estava perdida. Para salvá-la, era necessário um cérebro de uma lucidez absoluta, que tomasse, à medida que as circunstâncias se fossem apresentando, sem refletir nem hesitar, resoluções imediatas.

Ora, essas resoluções, ele só poderia tomá-las ao acaso e talvez a contra-senso, já que não conhecia realmente os planos do inimigo. De qualquer forma armou o seu revólver.

Supunha, então, que a jovem, uma vez pronta para partir, entraria na sala e sairia cem o espião; mas, no fim de alguns instantes, a condessa tocou um sino e disse algumas palavras ao empregado que se apresentou. O empregado saiu. Paul ouviu dois apitos, depois o barulho de um carro que se aproximava.

Karl olhava o corredor pela porta entreaberta. Virou-se para a condessa como se dissesse:

— Aí vem ela... Está descendo...

Paul compreendeu então que Elisabeth iria diretamente para o automóvel onde Karl a encontraria. Nesse caso tinha de sair e sem demora.

Um segundo ele ficou indeciso. Deveria aproveitar que Karl estivesse ainda lá para fazer irrupção na sala e matá-lo a tiros assim como à Condessa Hermine? Era a salvação de Elisabeth, pois só os dois bandidos queriam acabar com a sua vida.

Mas' ele receou o fracasso de uma tentativa tão audaciosa e, Faltando da varanda, chamou Bernard.

— Elisabeth vai sair de carro. Karl está com ela e deve envenená-la. Siga-me... com o revólver à mão.

— O que é que você quer fazer?

— Veremos.

Contornaram a mansão arrastando-se pelos arbustos que costeavam as alamedas. Aliás, essas paragens estavam desertas.

— Escute — disse Bernard —, um automóvel que está saindo...

Paul muito inquieto no princípio, protestou:

— Não, não, é o barulho do motor.

Com efeito, quando lhes foi possível vislumbrar a fachada principal, viram diante do portal uma limusine em torno da qual estavam agrupados uma meia dúzia de soldados e empregados, e cujos faróis iluminavam a outra parte do jardim, deixando na escuridão o local onde se achavam Paul e Bernard.

Uma mulher desceu os degraus da entrada e desapareceu dentro do carro.

— Elisabeth — disse Paul. — E aí vem Karl...

O espião parou no último degrau e deu ao soldado que servia de chofer ordens que Paul ouviu em parte.

A partida se aproximava. Ainda um minuto e se Paul nada fizesse, o automóvel levaria o assassino e sua vítima. Minuto horrível, pois Paul Delroze percebia todo o perigo de uma intervenção que nem teria a vantagem de ser eficaz, pois que a morte de Karl não impediria a Condessa Hermine de prosseguir nos seus projetos.

Bernard murmurou:

— Você não tem a intenção de raptar Elisabeth, não é? Há aí um agrupamento de correligionários.

— Só quero uma coisa: matar Karl.

— E depois?

— Depois? Prendem-nos. Haverá interrogatório, inquérito, escândalo... O Príncipe Conrad é indiciado.

— E nos fuzilam. Confesso que seu plano...

— Você pode propor outro?

Interrompeu-se. O espião Karl em grande cólera, invetivava seu chofer e Paul ouviu suas palavras:

— Grandessíssimo idiota! Você me arranja cada uma! Sem gasolina! Você acha que ainda a acharemos esta noite? Onde há gasolina? Na garagem? Corra lá, imbecil! E a minha pele? Você também esqueceu? Voe! Traga-a. Vou dirigir eu mesmo. Com um retardado de sua espécie a gente arrisca muito...

O soldado se pôs a correr. E logo Paul constatou que para ir, ele mesmo, até à garagem cujas luzes conseguia ver. não teria de afastar-se das trevas que o protegiam.

— Venha — disse a Bernard. — Tenho aqui minha idéia que você vai logo compreender.

Seus passos ensurdecidos pela grama do jardim, levaram-nos às dependências reservadas às estrebarias e às garagens dos automóveis, onde puderam penetrar sem que suas silhuetas fossem vistas da parte externa. O soldado achava-se num depósito cuja porta estava aberta. De seu esconderijo eles o viram despendurando de um cabide uma enorme pele de cabra que jogou sobre os ombros, pegando depois quatro garrafões de gasolina. Assim carregado saiu do depósito e passou diante de Paul e Bernard.

O golpe foi executado vivamente. Antes mesmo que o soldado tivesse tido tempo de soltar um grito, já estava caído, imobilizado e provido de uma mordaça.

— Tudo pronto — disse Paul. — Agora me dê o casaco e o boné dele. Gostaria de me livrar dessa fantasia. Mas quem quer o fim não olha os meios...

— E agora? — perguntou Bernard. — Você arrisca a aventura? E se Karl não reconhecer o seu chofer?

— Ele nem vai pensar em olhá-lo.

— Mas e se ele lhe dirigir a palavra?

— Não responderei. Além do mais assim que estivermos fora da cidadela, nada mais terei a temer dele.

— E eu?

— Você, amarre cuidadosamente o seu prisioneiro e tranque-o em um canto qualquer. Depois volte para os canteiros, atrás da janela da varanda. Espero aí me encontrar com você juntamente com Elisabeth lá pelo meio da noite, e só teremos de tomar, todos os três, o caminho do túnel. Se por acaso você não me vir chegar...

— E aí?

— E aí vá sozinho antes que o dia amanheça.

— Mas...

Paul já se afastava. Estava naquela disposição de espírito onde não se consegue mais refletir nos atos que se decide executar. De qualquer modo os acontecimentos pareciam dar-lhe razão. Karl o recebeu com injúrias mas sem prestar a mínima atenção àquele comparsa para quem não tinha suficiente desprezo. O espião botou sua pele de cabra, sentou-se ao volante e manipulou as barras enquanto Paul sentou-se ao seu lado.

O carro já se mexia quando uma voz, que vinha do portal, gritou:

— Karl! Karl!

Paul teve um instante de inquietude. Era a Condessa Hermine. Ela aproximou-se do espião e disse bem baixo, em francês:

— Eu lhe recomendo, Karl... Mas o seu chofer não sabe francês, não é?

— Apenas o alemão, Excelência. É um ignorante. A senhora pode falar.

— É o seguinte. Só coloque dez gotas do frasco, senão...

— Combinado, Excelência. E o que mais?

— Você me escreve dentro de oito dias se tudo tiver corrido bem. Escreva-me para o nosso endereço de Paris; antes não, seria inútil.

— A senhora vai então voltar à França, Excelência?

— Vou. Meu projeto está maduro.

— Sempre o mesmo?

— Sim. A época parece favorável. Está chovendo há já diversos dias e o estado-maior me preveniu de que iam agir por si mesmos. Então estarei lá amanhã de noite e bastará um empurrãozinho...

— Oh! isso, um empurrãozinho, nada mais. Eu mesmo dei uma ajuda, e tudo está no ponto. Mas a senhora me falou de outro projeto, para completar o primeiro, e confesso que esse outro...

— É necessário — disse ela. — A sorte está contra nós. Se eu conseguir será o fim das vacas magras.

— E a senhora tem o consentimento do imperador?

— Inútil. É daquelas tarefas de que não se deve falar.

— Essa é perigosa e terrível.

— Azar.

— Não há necessidade de mim lá, Excelência?

— Não. Livre-me da garota. Por enquanto isso basta. Adeus!

— Adeus, Excelência.

O espião deu o arranque; o carro partiu.

A alameda que dava a volta pelo gramado da frente levava a uma casinha que era responsável pelas grades e servia ao pelotão de guarda. De cada lado erguiam-se as altas muralhas da cidadela.

Um oficial saiu da casinha, Karl gritou a senha Hohenstaufen. A grade foi aberta e o automóvel lançou-se por uma estrada larga que atravessava primeiramente a aldeia de Ebrecourt e serpenteia em seguida.por entre colinas.

Assim Paul Delroze, às 11 horas da noite, achava-se só, pelos campos desertos, com Elisabeth e com o espião Karl. Bastava apoderar-se do espião, e disso ele não tinha dúvida, e Elisabeth seria libertada. Só teriam então que retornar, penetrar na mansão do Príncipe Conrad, graças à senha, e encontrar-se com Bernard. Terminado e completado o trabalho segundo os desígnios de Paul, o túnel os levaria todos os três ao castelo de Ornequin.

Paul deixou-se embalar então pela alegria que o invadia. Elisabeth estava ali, sob sua proteção. Elisabeth cuja coragem, é certo, havia esmorecido sob o peso das provas por que passara, mas a quem ele devia indulgência porque era infeliz por culpa dele, unicamente. Ele esquecia, ele queria esquecer todas as fases horríveis do drama, para só pensar no fim próximo, no triunfo, na libertação de sua mulher.

Observava a estrada com toda a atenção, para não se perder na volta, e planejava o seu ataque, fixando-o para a primeira parada que seriam obrigadas a dar. Resolvido a não matar o espião, ele o abateria com um murro e após havê-lo aniquilado e amarrado, o jogaria num fosso qualquer.

Passaram por uma cidade importante, depois duas aldeias, depois uma cidade onde tiveram de parar para mostrar os papéis do carro.

Depois foi novamente o campo, e uma série de pequenos bosques cujas árvores se iluminavam à passagem deles.

Nesse momento, como a luz dos faróis enfraquecesse, Karl diminuiu a marcha.

Reclamou:

— Duplamente imbecil, você não sabe nem cuidar dos faróis! Você botou carbureto?

Paul não respondia. Karl continuava a reclamar. Depois freou, xingando:

— Mas que porcaria! Não se pode mais avançar... Vamos, mexa-se e acenda.

Paul saiu do assento, enquanto o automóvel estacionava no lado da estrada. Tinha chegado o momento de agir.

Primeiramente ele se ocupou com o farol, ao mesmo tempo em que observava os movimentos do espião e tendo o cuidado de permanecer fora da projeção das luzes. Karl desceu, abriu a portinhola da limusine, começou uma conversa que Paul não ouviu. Depois afastou-se para o outro lado do carro.

— Como é, imbecil, você não acaba?

Paul permaneceu de costas para ele, prestando muita atenção ao seu trabalho e esperando o segundo propício quando o espião, avançando dois passos ficaria à sua mercê.

Um minuto passou. Apertou os pulsos. Previu exatamente o gesto necessário, e ia executá-lo, quando foi subitamente segurado pelas costas, jogado no chão e virado ao meio sem poder resistir.

— Ah! Raios que me partam! — gritou o espião, mantendo-o sob os seus joelhos — é então por isso que você não respondia?... Bem me pareceu que você estava com uma atitude bastante esquisita ao meu lado... E eu nem estava atinando... Foi agorinha mesmo, que a lanterna lhe iluminou o perfil. Ah! mas quem é esse sujeito? Um cachorro de um francês, talvez?

Paul tinha se enrijecido, e pensou por um instante que lhe seria passível desgarrar-se do espião. O esforço do adversário esmorecia, e ele o dominava aos poucos, e exclamou:

— Sim, um francês, Paul Delroze, aquele que você por três vezes quis matar, anteriormente, o marido de Elisabeth, de sua vítima... Sim, sou eu, e sei quem é você... o falso belga Laschen, o espião Karl.

Calou-se. O espião, que só tinha esmorecido para puxar um punhal de sua cintura, levantou a arma para ele.

— Ah! Paul Delroze... Santo Cristo! a expedição será frutífera... Os dois, um após o outro... o marido e a mulher... Ah! você veio se meter nas minhas garras... Oh! segure, meu filho...

Paul viu por cima de seu rosto o reflexo de uma lâmina que brilhava: fechou os olhos pronunciando o nome de Elisabeth...

Um segundo se passou e depois, uma atrás da outra ouviram-se três detonações. Por detrás do grupo formado pelos dois adversários, alguém atirava.

O espião soltou um palavrão horrível. Seus braços se afrouxaram. A arma despregou-se de sua mão e ele descambou caindo sobre o seu ventre e gemendo:

— Ah! maldita mulher!... maldita mulher!... Deveria tê-la estrangulado no carro, bem que desconfiei que isso pudesse acontecer...

Mais baixo, balbuciou:

— Pegaram-me! Ah! maldita mulher, como sofro! Calou-se. Algumas convulsões. Um soluço de agonia, e foi tudo.

Com um pulo, Paul levantou-se. Correu em direção daquela que lhe havia salvo a vida, e que tinha ainda na mão o revólver.

— Elisabeth! — disse ele, louco de alegria.

Mas estacou, com os braços caídos. Na penumbra, a silhueta dessa mulher não lhe parecia ser a de Elisabeth, mas uma silhueta mais alta e mais forte.

Balbuciou com uma angústia enorme:

— Elisabeth... É você?... É você mesma?...

E, ao mesmo tempo, tinha a intuição profunda da resposta que ia ouvir.

— Não — disse a mulher. — A Sra. Delroze partiu um pouco antes de nós, num outro automóvel. Karl e eu deveríamos ir ao seu encontro.

Paul lembrou-se daquele automóvel de que pensou ter percebido o ruído, quando fez o contorno da mansão cora Bernard. No entanto, como as duas partidas se deram a poucos minutos no máximo de intervalo, não perdeu o ânimo e gritou:

— Vamos, rápido, vamos nos apressar. Acelerando a velocidade, é lógico que os alcançaremos...

Mas a mulher logo objetou:

— Alcançá-los? É impossível, os dois carros seguem estradas diferentes.

— Não tem importância, se vão para o mesmo destino. Para onde conduzem a Sra. Delroze?

— Para um castelo pertencente à Condessa Hermine.

— E esse castelo, onde se encontra?

— Não sei.

— A senhora não sabe? Mas é incrível. A senhora sabe pelo menos o seu nome?

— Karl não me disse. Ignoro-o.

 

A luta impossível

No desespero horrível em que essas últimas palavras o precipitaram, Paul sentiu, assim como na ocasião da festa do Príncipe Conrad, a necessidade de uma reação imediata. Claro que todas as esperanças estavam perdidas. Seu plano, que consistia em utilizar a passagem pelo túnel antes que o alarma tivesse sido dado, seu plano se desmoronava. Admitindo-se que ele conseguisse alcançar Elisabeth e libertá-la, o que se tornava inverossímil, quando esse fato poderia se dar? E como, após isso, escapar das mãos do inimigo e entrar na França?

Não, ele tinha a partir de agora contra ele o tempo e o espaço. Seu fracasso era daqueles onde nada há a fazer senão resignar-se e esperar o golpe de graça.

No entanto ele não se mexia. Compreendia que um desespero seria fatal. O impulso que o tinha trazido até aí tinha de continuar sem tréguas e com mais entusiasmo ainda.

Aproximou-se do espião. A mulher estava curvada sobre o corpo e o examinava à luz de uma das lanternas que ela tinha desatarraxado do carro.

— Ele está morto, não está?

— Sim, está morto. Duas balas o atingiram nas costas. Murmurou com uma voz alterada:

— Foi horrível o que eu fiz. Eu o matei. Eu mesma! Não foi um assassinato, foi, senhor? E eu tinha o direito?... De qualquer forma, é horrível... Veja, eu matei Karl!

Seu rosto, jovem ainda e bonito, apesar de bastante vulgar, estava desnorteado. Seus olhos não pareciam poder despregar-se do cadáver.

— Quem é a senhora? — perguntou Paul. Ela respondeu soluçando:

— Eu era amiga... melhor do que isso, ou antes pior do que isso... Ele tinha jurado que se casaria comigo... Mas as promessas de Karl!... Que mentiroso, senhor, que covarde!... Ah! tudo o que eu sei dele... Eu mesma, de tanto calar fui aos poucos virando sua cúmplice. É que ele me metia tanto medo! Já não o amava mais, mas tremia e obedecia... Com que ódio, no fim!... e como ele sentia, esse ódio! Dizia-me sempre: "Você é bem capaz de me degolar um dia desses." Não senhor, eu bem que pensava, mas jamais teria coragem. Foi somente agora quando vi que ele ia matá-lo... e principalmente quando ouvi o seu nome...

— Meu nome? por quê?

— O senhor é o marido da Sra. Delroze.

— E daí?

— Daí que eu a conheço. Não há muito tempo, desde hoje. Foi hoje de manhã que Karl, vindo da Bélgica, passou pela cidade onde eu moro e levou-me até o Príncipe Conrad. Tratava-se de servir, como camareira, uma senhora francesa que deveríamos conduzir a um castelo. Compreendi o que isso queria dizer. Mais uma vez eu devia ser cúmplice, inspirar confiança... E depois eu vi essa senhora francesa... Eu a vi chorar... E era tão doce, tão boa que me partiu o coração. Prometi socorrê-la... Semente não pensei que fosse ser dessa forma, matando Karl...

Ela levantou-se bruscamente, e pronunciou com um tom áspero:

— Mas era preciso, senhor. Não podia ser de outra maneira, porque eu sabia coisa demais a respeito dele. Era eu ou ele... Foi ele... Melhor assim e não me arrependo de nada... Não havia no mundo um miserável feito ele, e, com pessoas de sua laia, não se deve hesitar. Não, não me arrependo de nada.

Paul lhe disse:

— Ele era devotado à condessa Hermine, não era? Ela teve um calafrio e abaixou a voz para responder.

— Ah! não vamos falar dela, pelo amor de Deus. Aquela é pior ainda e continua viva! Ah! se ela suspeitar de mim algum dia!

— Quem é essa mulher?

— E quem é que sabe? Ela vai de um lado para o outro, é dona de qualquer lugar em que chegue... Obedecem a ela assim como ao imperador. Todos têm medo dela. É como o seu irmão...

— Seu irmão?

— Sim, o major Hermann.

—Hem! a senhora está dizendo que o major Hermann é irmão dela?

— Claro, aliás basta olhá-lo. É a cara da condessa Hermine!

— Mas a senhora os viu juntos?

— Bem... já não me recordo mais... Por que essa pergunta?

O tempo era precioso para que Paul insistisse. O que essa mulher pudesse pensar da condessa Hermine pouco importava. Perguntou-lhe:

— Ela vive mesmo na casa do príncipe?

— Atualmente sim... O príncipe mora no primeiro andar, do lado de trás; ela, no mesmo andar, na frente.

— Se eu mandar lhe dizer que Karl, vítima de um acidente me mandou a mim, seu chofer, preveni-la, ela me receberá?

— Certamente.

— Ela conhece o chofer de Karl, de quem eu tomei o lugar?

— Não. É um soldado que Karl trouxe da Bélgica. Paul refletiu um pouco, depois continuou:

— Ajude-me.

Empurraram o cadáver para o barranco da estrada, deitaram-no aí e cobriram-no com galhos secos.

— Vou voltar para a mansão — disse ele. — Quanto à senhora, ande até encontrar um aglomerado de habitações. Acorde o pessoal e conte-lhe o assassinato de Karl pelo seu chofer e sua fuga. O tempo de prevenir à polícia, de interrogá-la, de telefonar para a mansão é mais do que necessário.

Ela teve medo.

— Mas e a condessa Hermine?

— Nada receie desse lado. Admitindo-se que eu não consiga nada, como poderia ela suspeitar da senhora, se o inquérito lançará a culpa só contra mim? Além do mais não temos outra solução.

E sem escutá-la mais, colocou novamente o carro em movimento, segurou o volante e apesar das súplicas amedrontadas da mulher, partiu.

Partiu com o mesmo ardor e decisão que se estivesse se sujeitando às exigências de um novo projeto cujos detalhes tivesse fixado, e de cuja eficácia não tivesse dúvidas.

"Vou ver a condessa" — dizia-se ele. — "E então, ou ela fica preocupada com Karl e quererá que eu a conduza até ele, ou ela me recebe num cômodo qualquer da mansão e eu a obrigarei de qualquer jeito a me revelar o nome do castelo que serve de prisão a Elisabeth. Eu a obrigo a me dar os meios de libertá-la e fazê-la fugir."

Mas como tudo isso era vago! Quantos obstáculos! Quanta coisa impossível! Como supor que as condições seriam fáceis a ponto de tornar a condessa cega e de privá-la de qualquer ajuda? Uma mulher de sua envergadura não era daquelas que se deixam enganar por palavras e se submetem a ameaças.

Não importa! Paul não aceitava a dúvida. No final de sua tarefa havia o sucesso, e para atingi-lo mais rapidamente ele aumentava a velocidade, jogando seu carro como um tufão pelos campos e apenas diminuindo à passagem de aldeias e cidades.

— Hohenstaufen — gritou para a sentinela plantada diante do posto da cidadela.

O oficial de guarda, após havê-lo interrogado, enviou-o ao suboficial do posto que estacionava perto do portal. Somente este oficial tinha livre acesso à mansão e, através dele, a condessa seria prevenida.

— Bem — disse Paul —, vou antes de mais nada botar o carro na garagem.

Quando chegou, apagou os faróis e, quando se dirigia para a mansão, teve a idéia, antes de entrar em contato com o suboficial, de procurar Bernard e informar-se sobre o que ele pudesse ter sabido.

Achou-o atrás da mansão, nas moitas existentes em frente à janela da varanda.

— Você está sozinho? — perguntou-lhe Bernard com ansiedade.

— Estou, o negócio foi por água abaixo. Elisabeth foi levada por um carro que saiu antes.

— É horrível isso que você está me dizendo!

— Sim, mas o mal é reparável.

— Como?

— Ainda não sei. E você? Que descobriu? E o chofer?

— Em segurança. Ninguém o descobrirá... pelo menos até de manhã, quando outros motoristas virão à garagem.

— Bem. E fora isso?

— Uma patrulha no jardim, há uma hora. Pude me esconder.

— E depois?

—E depois pude dar uma chegada até o túnel. Os homens começavam a se mexer. Aliás, houve algo que os botou na linha, e como!

— O quê?

— A chegada de uma pessoa de nossas relações, a mulher que eu encontrei em Corvigny, aquela que se parece tanto com o major Hermann. .

— Ela fazia a ronda?

— Não, ela partia...

— Sim, eu sei, ela está para partir.

— Ela já foi.

— Vamos... sua partida para a França não era imediata!

— Assisti à partida.

— Mas onde? Por qual estrada?

— Ora, essa, e o túnel? Você pensa que ele não serve mais para nada? Ela tomou aquela direção e sob os meus olhos, e em condições eminentemente confortáveis...' um pequeno vagão dirigido por um mecânico e movido a eletricidade. Sem dúvida alguma, já que a finalidade de sua viagem era, conforme você diz, ir para a França, deve tê-la programado para a linha de Corvigny. Foi há duas horas, isso. Ouvi o vagão voltar.

O desaparecimento da condessa Hermine foi, para Paul, um novo golpe. Como agora achar e como libertar Elisabeth? Em que direção seguir se cada um dos seus esforços levava a um fracasso?

Ele se entesou, esticando toda a sua força de vontade, resolvido a continuar sua tarefa até o fim.

Perguntou a Bernard:

— Você não viu mais nada?

— Nada mais.

— Nenhuma ida e vinda?

— Não. Os empregados estão deitados. As luzes foram apagadas.

— Todas as luzes?

— Com exceção de uma. Veja ali, bem acima de nós. Era no primeiro andar, e numa janela situada por cima da janela pela qual Paul havia assistido à festa do Príncipe Conrad.

Prosseguiu:

— Esta luz estava acesa enquanto eu estive na varanda?

— Estava, aí pelo final. Paul murmurou:

— De acordo com as minhas informações, deve ser o quarto do Príncipe Conrad. Ele estava bêbado e tiveram de carregá-lo.

— Vi as sombras, com efeito, naquela hora, e depois disso tudo ficou imóvel.

— Lógico, está curtindo seu champanha. Ah! se pudéssemos ver!... Penetrar naquele quarto.

— É fácil — disse Bernard.

— Por onde?

— Pelo quarto do lado, que deve ser o banheiro e cuja janela deixaram aberta, sem dúvida para dar um pouco de ar ao príncipe.

— Mas precisaríamos de uma escada...

— Sei de uma, pendurada na parede da garagem. Você a quer?

— Quero — disse Paul animado. — Ande logo.

No seu espírito, formava-se toda uma nova combinação, ligada aliás às suas primeiras disposições de combate, e que agora lhe parecia capaz de levá-lo ao fim.

Primeiramente, certificou-se de que em volta da mansão, à direita e à esquerda estava tudo deserto, e que nenhum soldado do posto se afastava do portal. Depois, assim que Bernard voltou, plantou a escada na alameda e apoiou-se à parede.

Subiram.

A janela entreaberta era mesmo a do banheiro. A luz do quarto ao lado o clareava. Nenhum barulho vinha desse quarto a não ser o ruído de um ronco sonoro. Paul esticou a cabeça.

Atravessado na cama, vestido com seu uniforme todo manchado na frente, arriado como um manequim, o Príncipe Conrad dormia. Dormia tão profundamente que Paul pôde examinar o quarto à vontade. Uma pequena entrada como se fosse vestíbulo o separava do corredor, o que fazia com que entre o quarto e o corredor houvesse duas portas, que ele fechou e trancou dando duas voltas. Assim acharam-se a sós com o Príncipe Conrad, sem que nada pudesse ser ouvido do interior.

— Vamos — disse Paul quando distribuíram a tarefa.

E aplicou sobre o rosto do príncipe uma toalha enrolada cujas pontas tentou enfiar na sua boca, enquanto Bernard, com a ajuda de outras toalhas amarrava-lhe as pernas e os pulses. Isso foi feito silenciosamente. Da parte do príncipe nenhuma resistência, nenhum grito. Ele tinha aberto os olhos e olhava seus agressores com ar de um homem que no início nada entende do que lhe está acontecendo, mas que um medo cada, vez mais forte invade à medida que tem consciência do perigo.

— Nada valente o herdeiro de Guilherme — debochou Bernard. — Que pavor!. Vamos, jovem, você tem de ficar bom. Onde está o seu frasco de sais?

Paul lhe tinha finalmente introduzido na boca a metade da toalha.

— Agora — disse ele — partamos.

— O que é que você vai fazer? — perguntou Bernard.

— Levá-lo.

— Para onde?

— Para a França.

— Para a França?

— Lógico! nós o agarramos, que ele nos sirva para alguma coisa!

— Não o deixarão sair.

— E o túnel?

— Impossível! A guarda está muito forte agora.

— Vamos ver.

Ele puxou seu revólver e encostou-o no Príncipe Conrad.

— Escute. Você está com as idéias muito misturadas para compreender nossas perguntas. Mas um revólver, isso a gente compreende sem explicações, não é? É uma língua muito clara, mesmo para alguém que está bêbado e que treme de medo. Bem, se você não me seguir tranqüilamente, se você tentar se debater e fazer barulho, se meu camarada e eu ficarmos em perigo um só instante, você está liquidado. A browning, cujo cano você está sentindo na sua têmpora, fará seu cérebro voar pelos ares. Estamos de acordo?

O príncipe sacudiu a cabeça.

— Perfeito — concluiu Paul. — Bernard, solte-lhe as pernas, mas amarre-lhe os braços em volta do corpo... Muito bem... A caminho.

A descida efetuou-se nas melhores condições, e andaram em meio à noite até a cerca que separava o jardim do vasto pátio reservado às casernas. Passaram o príncipe de um lado para outro, como um embrulho, depois, seguindo o mesmo caminho que o da vinda, alcançaram as minas.

Além do fato de que a noite estava suficientemente clara para que eles pudessem seguir seu caminho, perceberam diante deles um clarão espalhado por todos os lados que devia vir do corpo de guarda estabelecido à entrada do túnel. Com efeito, no posto todas as luzes estavam acesas, e os homens em pé, fora das casernas, bebiam café.


Diante do túnel, um soldado perambulava, fuzil ao ombro.

— Nós somos dois — soprou Bernard. — E eles seis. Ao primeiro tiro aparecerão mais algumas centenas de boches que acampam a cinco minutos daqui. A luta é um pouco desigual, o que você acha?

O que agravava a dificuldade a ponto de torná-la intransponível, era que na realidade não eram dois, mas três, e que o prisioneiro constituía para eles um terrível embaraço. Com ele, impossível correr, impossível fugir. Deviam lançar mãe de um estratagema qualquer.

Lenta e prudentemente, a fim de que nenhuma pedra rolasse sob seus pés ou sob os passos do príncipe, descreveram, fora do espaço iluminado, um circuito que os levou ao fim de uma hora às proximidades do túnel propriamente dito, sobre os despenhadeiros contra os quais se apoiavam os primeiros contrafortes.

— Fique aí — disse Paul. — E ele falava bem baixo, mas de modo que o príncipe o ouvisse —, fique aí e preste bem atenção às minhas instruções. Para começar, você fica responsável pelo príncipe... revólver em punho e a mão esquerda no seu colarinho. Se ele perturbar, quebre a cabeça dele. Azar para nós, mas azar para ele também. Eu, por mim, volto até certa distância do barracão, e atraio a mim os cinco homens do posto. E aí, ou bem o homem que monta guarda, lá embaixo, se junta a seus camaradas — nesse caso você passa com o príncipe — ou, fiel às ordens recebidas, não se mexa — neste caso você atira nele, fere-o... e passa.

— Sim, eu passo, mas os boches correm atrás de mim.

— Evidentemente.

— E nos alcançam.

— Você tem certeza?

— Absoluta.

— Eles não os alcançarão.

— Já que você garante...

— Então, entendido. E você também — disse Paul ao príncipe. — Compreendeu, não é? Submissão absoluta, sem o que, uma imprudência, um mal-entendido podem lhe custar a vida.

Bernard disse no ouvido de seu cunhado:

— Peguei uma corda, vou amarrá-la em volta do pescoço dele, e, ao menor problema um pequeno gesto seco o fará

.retornar à realidade. Somente de uma coisa eu o previno, Paul: se ele resolver reagir, sou incapaz de matá-lo... assim... friamente...

— Fique tranqüilo... ele está apavorado demais para debater-se. Ele o seguirá como um cão até o outro lado do túnel.

— E aí, quando eu tiver chegado?

— Uma vez chegado, prenda-o nas ruínas de Ornequin, mas sem revelar seu nome a ninguém.

— E você, Paul?

— Não se preocupe comigo.

— No entanto...

— O risco é o mesmo para nós dois. O trabalho que vamos realizar é apavorante, e há bastante chances para que percamos. Mas, se ganharmos, é a salvação de Elisabeth. Então vamos com todo o ímpeto. Até logo, Bernard! Em 10 minutos tudo deve estar resolvido, de uma maneira ou de outra.

Abraçaram-se longamente, e Paul afastou-se.

Paul tinha previsto, esse esforço supremo só poderia ter êxito se fosse feito com audácia e rapidez, e devia ser executado assim como se executa uma manobra desesperada.

Mais 10 minutos e a aventura estaria terminada. Mais 10 minutos e seria vitorioso ou fuzilado.

Todos os atos que desde esse momento ele empreendeu foram tão organizados e metódicos como se tivesse tido tempo de preparar com cuidado o início e assegurar-se do sucesso inevitável, quando, na realidade, foi uma série de decisões isoladas que ele ia tomando à medida que as circunstâncias mais trágicas se iam apresentando.

Ele alcançou, por um atalho, os despenhadeiros que botavam as minas em comunicação com o campo reservado à guarnição, mantendo-se sobre os declives formados pela extração de areia. No último desses montículos, o destino fez com que batesse numa pedra que balançou. Aos trancos deu-se conta de que este bloco de pedra retinha atrás de si um amontoado de areia e pedregulhos.

— É mesmo do que eu estava precisando — disse sem mesmo refletir.

Com um ponta-pé violento, sacudiu q material que logo, seguindo a reentrância de um rego, precipitou-se pelo despenhadeiro com um estouro de terremoto.

Com um salto Paul pulou de entre as pedras, jogou-se de barriga para baixo e pôs-£e a gritar por socorro, como se tivesse sido vítima de um acidente.

Do lugar onde ele estava, não se podia, por causa das sinuosidade do despenhadeiro, ouvi-lo das casernas, mas o menor apelo devia chegar até o barracão do túnel, que só distava uns cem metros no máximo. E? com efeito, os homens do posto logo acorreram.

Ele não contou menos do que cinco, que vieram até ele, levantaram-no, interrogando-o. Com uma voz apenas inteligível, ele deu ao suboficial respostas incoerentes, entrecortadas de onde se podia concluir que ele tinha sido enviado pelo Príncipe Conrad à procura da condessa Hermine.

Paul sabia muito bem que o seu estratagema não tinha nenhuma chance a partir de um tempo muito limitado, mas todo e qualquer minuto ganho era de um preço inestimável, pois Bernard aproveitava-se para agir por sua vez contra o sexto homem, à espreita diante do túnel e para fugir com o Príncipe Conrad. Talvez esse mesmo homem viesse, ele também... Ou talvez Bernard se desvencilhasse dele sem fazer uso de seu revólver e por conseguinte sem chamar a atenção.

E Paul, aumentando a voz aos poucos, gaguejava explicações confusas, que o suboficial se irritava por não compreender, quando um tiro estourou lá embaixo, seguido de duas outras detonações.

O suboficial teve um momento de hesitação, não sabendo muito bem de onde vinha o barulho. Os homens, afastando-se de Paul ficaram à escuta. Ele então passou pelo meio deles e avançou sem que eles se dessem conta, no escuro, de que ele fugia. Depois, na primeira volta, ele se pôs a correr e em segundos atingia o barracão.

Num relance ele viu 30 passos adiante, em frente da entrada do túnel, Bernard lutando com o Príncipe Conrad que tentava escapulir. Perto deles o sentinela se arrastava pelo chão gemendo.

Paul teve a visão muito exata do que devia fazer. Dar assistência a Bernard e tentar com ele o risco de uma evasão seria loucura, pois os adversários facilmente os alcançariam e, de qualquer modo, o Príncipe Conrad seria libertado. Não. o essencial era estancar do posto o fluxo de homens cujas sombras já apareciam à saída do desfiladeiro e permitir a Bernard fugir com o príncipe.

Meio escondido pelo barracão avançou para eles o seu revólver e gritou:

— Alto lá!

O suboficial não obedeceu e penetrou na zona iluminada. Paul atirou. O alemão caiu, mas ferido somente, porque começou a dar ordens com uma voz selvagem:

— Para a frente! Avancem! Para a frente, cambada de medrosos!

Os homens não se mexiam. Paul segurou um dos fuzis que estavam amontoados perto do barracão e, enquanto o ajeitava, pôde, olhando para trás, constatar que Bernard, enfim dê posse do Príncipe Conrad, o levava para as profundezas' do túnel.

"Só se trata agora de agüentar cinco minutos" — pensou Paul — "para que Bernard vá o mais longe possível.''

E estava tão. calmo nesse momento que teria contado os minutos, pelas batidas regulares de seu pulso.

— Para a frente! Avancem! Para a frente! — não cessava de gritar o suboficial que, sem dúvida alguma, se não tinha reconhecido o Príncipe Conrad, tinha discernido a silhueta de dois fugitivos.

De joelhos deu um tiro de revólver em Paul! Este lhe quebrou o braço com uma bala. Mas o suboficial gritou como nunca:

— Avante! Dois fugiram pelo túnel! Avante! Olhem o reforço!

Era uma meia-dúzia de soldados das casernas, que acorriam com o barulho das detonações. Paul que tinha conseguido penetrar no barracão, quebrou a vidraça de uma clarabóia e atirou três vezes. Os soldados puseram-se ao abrigo, mas outros chegaram, tomaram as ordens do suboficial, depois dispersaram-se e Paul viu-os escalando os declives por perto, para fazê-lo virar-se. Ele atirou ainda algumas vezes. Para quê? Qualquer esperança de uma resistência mais longa desaparecia.

Obstinou-se, no entanto, mantendo seus adversários a distância, atirando sem parar e ganhando assim tempo, até os limites do possível. Mas percebeu que a manobra do inimigo tinha como finalidade, após tê-lo feito virar-se, dirigir-se ao túnel e dar caça aos fugitivos...

Paul segurou-se, às rochas. Tinha realmente consciência de cada minuto que passava, de cada um daqueles segundos inapreciáveis que aumentavam a distância onde se achava Bernard.

Três homens embarafustaram pela abertura enorme, depois quatro, depois cinco.

Além disso balas começavam a chover dentro do barracão.

Paul calculava:

— Bernard deve estar a 600 ou 700 metros. Os três homens que o perseguem estão a 50 metros... A 75 agora. Tudo vai bem.

Um grupo compacto de alemães vinha vindo para o barracão. Era evidente que não acreditavam que Paul aí estivesse sozinho, de tal forma ele multiplicava os seus esforços. Desta vez só lhe cabia render-se.

"Está na hora" — pensava ele. — "Bernard está fora da zona perigosa."

Bruscamente se precipitou para o painel que continha as maçanetas correspondentes aos fornos de mina praticados no túnel. Com uma coronhada fez o vidro despedaçar-se e abaixou a primeira e a segunda dessas maçanetas.

Pareceu que a terra tremia. Um barulho de terremoto soou sob o túnel e propagou-se como um eco que ressoava por muito tempo.

Entre Bernard d'Andeville e o bando que procurava alcançá-lo, a passagem estava bloqueada. Bernard podia levar tranqüilamente para a França o Príncipe Conrad.

Então Paul saiu do barracão, levantando os braços e gritando com uma voz satisfeita:

— Camarada! Camarada!

Já 10 homens o envolviam e um oficial que os comandava urrou, louco de raiva:

— Que seja fuzilado!... Imediatamente... imediatamente... que o fuzilem!...

 

A lei do vencedor

Ainda que o tratassem brutalmente, Paul não opôs a menor resistência. Enquanto o colavam com violência brutal de encontro a uma parte vertical do despenhadeiro, continuava intimamente seus cálculos:

— É matematicamente certo que as duas explosões foram produzidas à distância de 300 e 400 metros. Então posso igualmente concluir como certo que Bernard e o Príncipe Conrad se achavam para lá e que os homens que os perseguiam se achavam do lado de cá. Então está tudo ótimo.

Documente, com uma espécie de aquiescência irônica, prestava-se aos preparativos de sua execução, e já os 12 soldados encarregados alinhando-se sob a luz de um projetor elétrico, só esperavam uma ordem. O suboficial que ele tinha ferido no início arrastava-se até ele e falou-lhe entre os dentes:

— Fuzilado!... Fuzilado!... Francês imundo... Ele respondeu rindo;

— Não, não, as coisas não vão assim tão depressa.

— Fuzilado! — repetia o outro. — O Herr tenente disse.

— E então? Ora, o que é que ele está esperando, o Herr tenente?

O tenente fazia um rápido inquérito à entrada do túnel. Os homens que por ele tinham entrado vieram correndo, meio asfixiados pelo gás da explosão. Quanto ao companheiro de Bernard, teve de se desvencilhar, perdia sangue em tal quantidade que tiveram de renunciar ao projeto de tirar dele novas informações.

Foi nesse momento que novas notícias chegaram das casernas. Acabavam de saber por um estafeta mandado da mansão que o Príncipe Conrad tinha desaparecido, e mandavam os oficiais dobrar os postos e ficar de vigilância, sobretudo perto do túnel.

Lógico que Paul contava com esse impedimento ou outro qualquer do mesmo gênero, que suspenderia a sua execução. O dia começava a clarear e ele supunha que como Príncipe Conrad tinha sido deixado completamente embriagado no seu quarto, um de seus empregados devia ter ordens de tomar conta dele. Esse empregado, ao encontrar as portas fechadas, teria dado o alarma. Daí a procura imediata.

Mas a surpresa para Paul foi que não suspeitassem do seqüestro do príncipe pelo túnel. O companheiro desmaiado no túnel não podia falar. Os homens não se deram conta de que dos dois fugitivos vistos de longe, um deles arrastava o outro. Numa palavra, imaginaram o príncipe assassinado. Os agressores deviam ter jogado seu cadáver num canto qualquer das minas, depois teriam fugido. Dois deles tinham conseguido escapar. Estavam de posse do terceiro. E nem por um segundo, tiveram idéia de um empreendimento, cuja audácia, justamente, ultrapassava toda imaginação.

De qualquer forma já não se podia mais pensar em fuzilar Paul sem um inquérito prévio e sem que o resultado desse inquérito fosse comunicado ao alto-comando.

Conduziram-no à mansão onde após havê-lo liberado de seu casaco alemão e minuciosamente revistado, trancaram-no em um quarto sob a proteção de quatro sólidos soldados.

Ele aí ficou diversas horas dormindo, encantado com esse repouso de que tanto tenha necessidade, e bem tranqüilo, aliás, já que Karl estava morto, a condessa Hermine ausente, Elisabeth em segurança. Ele agora só precisava abandonar-se ao curso normal dos acontecimentos.

Mais ou menos às 10 horas, recebeu a visita de um general que tentou interrogá-lo mas que, não tendo recebido nenhuma resposta satisfatória, ficou colérico, mas com certa reserva, onde Paul percebeu aquela consideração que se tem por um criminoso de classe.

"Tudo vai bem" — disse de si para consigo. — "Esta visita só é uma etária e me anuncia a vinda de um embaixador mais importante, algo assim como um plenipotenciário."

Pelas palavras do general ele compreendeu que continuavam a procurar o corpo do príncipe. Procuravam-no também fora da cidadela, porque um novo fato, a descoberta e as revelações do chofer preso na garagem por Paul e Bernard. assim como a ida e a vinda do carro, assinaladas pelo posto de guarda alargavam sobremaneira o campo de investigações.

Ao meio-dia serviram a Paul uma refeição substanciosa. Aumentavam a consideração. Deram-lhe café e cerveja.

"Talvez eu seja fuzilado" — pensava ele — "mas dentro das regras, e não antes de saberem quem é o misterioso personagem a quem mantêm a honra de fuzilar, as razões de seus atos, e os resultados obtidos. Ora, somente eu mesmo.posso dar as informações. Então..."

Ele sentia de tal forma a força de sua posição e a necessidade que o adversário se achava de contribuir para o sucesso de seu plano que não se espantou ao ser conduzido, uma hora mais tarde, a um pequeno salão da mansão, à presença de dois personagens engalanados que mais uma vez fizeram-no ser revistado, depois atado com um excesso de precauções.

"É no mínimo" — pensava ele — "o chanceler do império que se disturba por minha causa... a menos que..."

No fundo, dadas as circunstâncias, ele não podia deixar de prever uma intervenção mais poderosa mesmo' do que a do chanceler, e, quando ouviu sob as janelas da mansão um carro parar, quando constatou a confusão dos dois personagens engalanados, ficou convencido de que seus cálculos recebiam uma magnífica confirmação.

Tudo estava pronto. Antes mesmo que a aparição se produzisse, os dois personagens puseram-se em postura militar, e os soldados, mais empertigados ainda, tomaram jeito de manequins.

A porta se abriu.

A entrada se fez como uma rajada de vento, em meio a uns cliques de espadas e esporas. Na mesma hora em que assim chegava, o homem dava a impressão da pressa louca e da partida iminente. O que ele vinha a fazer, só tinha um número restrito de minutos para fazê-lo.

Um gesto e todos os assistentes saíram.

O imperador e o oficial francês ficaram um diante do outra E logo o imperador falou com voz furiosa:

— Quem é o senhor? O que é que o senhor veio fazer? Onde estão os seus cúmplices? Sob ordens de quem o senhor age?

Era difícil reconhecer nele a imagem que suas fotografias e desenhos de jornais mostravam, de tal forma o rosto tinha envelhecido; era agora uma máscara marcada, sulcada de rugas, manchada de um tom amarelado.

Paul arrepiou-se de ódio, não tanto de um ódio pessoa] suscitado pela lembrança de seus próprios sofrimentos, como por um ódio leito de horror e desprezo pelo maior criminoso que já existiu. E, apesar de sua grande vontade de não se.afastar das fórmulas de hábito nem das regras de respeito aparente, respondeu:

— Desamarrem-me!

O imperador sobressaltou-se. Era certamente a primeira vez que lhe falavam assim, e ele gritou;

— Mas o senhor esquece que basta uma palavra para que o fuzilem! E o senhor ousa... pedir condições?!

Paul ficou em silêncio. O imperador ia e vinha, a mão sobre o punho de sua espada que ele deixava arrastar pelo tapete. Duas vezes parou e olhou para Paul, e como este não titubeasse, ficou ainda mais indignado.

E de repente apertou o botão de um sino elétrico.

— Desamarrem-no! — deu ordens aos que se precipitaram ao seu chamado.

Libertado de suas ataduras, Paul empertigou-se e retificou sua posição como um soldado diante de um superior.

Novamente o cômodo ficou vazio. Então o imperador aproximou-se e, ao mesmo tempo em que deixava entre Paul e ele uma mesa como segurança, perguntou com a voz sempre áspera:

— O Príncipe Conrad? Paul respondeu:

— O Príncipe Conrad não está morto, Majestade, está em' boa saúde.

— Ah! — exclamou o cáiser visivelmente aliviado.

E retomou a conversa, evitando ainda tocar no âmago do assunto.

— Isso não muda nada no que lhe diz respeito: agressão... espionagem... Sem contar o assassinato de um dos meus melhores servidores...

— O espião Karl? Ao matá-lo só fiz me defender dele.

— Mas o senhor o matou? Então por esse assassinato e pelo resto o senhor será passado pelas armas.

— Não, Majestade. A vida do Príncipe Conrad depende da minha.

O imperador balançou os ombros.

— Se o Príncipe. Conrad está vivo, nós o encontraremos.

— Não, Majestade, não o encontrarão.

— Não há esconderijo na Alemanha onde possam subtraí-lo à minha procura — afirmou batendo o punho.

— O Príncipe Conrad não está na Alemanha, Majestade.

— Hem? O que é que o senhor está dizendo?

— Estou dizendo que o príncipe não está na Alemanha, Majestade.

— Nesse caso, onde está?

— Na França.

— Na França!

— Sim, Majestade. Na França, no castelo de Ornequin, sob a guarda de meus amigos. Se amanhã à noite, às seis horas eu não tiver aparecido, o Príncipe Conrad será entregue às autoridades militares.

O imperador pareceu sufocado, a ponto de sua cólera ser quebrada como por encanto, e ele nem tentou dissimular a violência do golpe. Toda a humilhação, todo o ridículo que recairiam sobre ele, sobre a sua dinastia e sobre o império, se seu filho fosse feito prisioneiro, as gargalhadas do mundo inteiro quando soubessem disso, a insolência que daria ao inimigo a posse de tal refém, tudo isso apareceu no seu olhar inquieto e nos seus ombros que se curvaram.

Paul sentiu o arrepio da vitória. Ele segurava aquele homem tão solidamente como se tem sob os joelhos o vencido que nos pede graça, e o equilíbrio das forças estava tão bem rompido atualmente em seu favor que até mesmo os olhos do cáiser, levantados para ele, deram a Paul a impressão de seu triunfo.

O imperador entrevia as fases do drama que se tinha desenrolado nessa noite, a chegada pelo túnel, a explosão das minas provocada para assegurar a fuga dos agressores.

E a audácia louca de aventura confundia-o.

Perguntou:

— Quem é o senhor?

Paul deixou um pouco a sua atitude rígida. Uma de suas mãos foi posta tremendo um pouco em cima da mesa que os separava, e ele pronunciou gravemente:

— Há 16 anos, Majestade, no final de uma tarde do mês de setembro...

— Hem? O que significa isso?... — disse o imperador espantado com esse preâmbulo.

— Vossa Majestade me fez uma pergunta, eu devo responder-lhe.

E recomeçou com a mesma gravidade:

— Há 16 anos, no final de uma tarde do mês de setembro, Vossa Majestade visitava, conduzido por uma pessoa... como diria? uma pessoa encarregada dos seus serviços de espionagem, os trabalhos do túnel de Ebrecourt a Corvigny. No exato momento em que Vossa Majestade saía de uma pequena capela situada nos bosques de Ornequin, encontrou-se com dois franceses, pai e filho... Lembra-se, Majestade? Chovia... e esse encontro foi-lhe tão desagradável que um gesto de mau-humor lhe escapou. Dez minutos mais tarde, a senhora que o acompanhava voltou e quis levar um dos franceses, o pai, para território alemão, sob pretexto de uma entrevista com Vossa Majestade. O francês recusou. A mulher o assassinou sob os olhos do filho. Ele se chamava Delroze. Era meu pai.

O cáiser tinha escutado com um espanto crescente. Pareceu a Paul que o tom de seu rosto misturava-se cada vez mais ao de bílis. Entretanto permaneceu inflexível sob o olhar de Paul. Para ele a morte desse Sr. Delroze era um desses incidentes mínimos com que um imperador não se preocupa. Será que ele se lembrava, pelo menos?

Recusando-se então a explicar um crime que ele certamente não havia mandado, mas do qual sua indulgência para com a criminosa o havia tornado cúmplice contentou-se, após um rápido silêncio, em proferir estas palavras:

— A Condessa Hermine é responsável pelos seus atos.

— E ela só é responsável diante de si própria — observou Paul —, já que a justiça de seu país não quis que ela prestasse contas desse.

O imperador alçou os ombros, como homem que desdenha discutir sobre questões de moral alemã e de política superior. Consultou seu relógio, tocou a campainha, preveniu que sua partida seria dentro de poucos momentos, e, voltando-se para Paul:

— Então — disse ele —, é para vingar a morte de seu pai que o senhor raptou o Príncipe Conrad?

— Não, Majestade, isto é um caso entre a Condessa Hermine e eu, mas com o Príncipe Conrad tenho outra coisa a acertar. Na época de sua estada em Ornequin, o Príncipe Conrad perseguiu com suas assiduidades uma jovem que habitava o castelo. Recusado Dor ela, ele a trouxe como prisioneira para cá, a esta mansão. Esta senhora traz meu nome. Vim buscá-la.

Pela atitude do imperador era evidente que ele tudo ignorava dessa história e que as extravagâncias de seu filho o importunavam sobremaneira.

— O senhor tem certeza? — disse ele. — Esta senhora está aqui?

— Ela estava aqui ontem à noite, Majestade. Mas a Condessa Hermine, tendo resolvido suprimi-la, confiou minha mulher ao espião Karl com a missão de afastar a infeliz do Príncipe Conrad e de envenená-la.

— Mentira! Mentira abominável! — gritou o imperador.

— Eis aqui o frasco que a condessa deu ao espião Karl.

— E depois? E depois? — perguntou o cáiser com voz. irritada.

— Depois, Majestade? Como o espião Karl está morto e o local onde se acha a minha mulher me e desconhecido, voltei para cá. O Príncipe Conrad dormia. Com um de meus amigos, fi-lo descer de seu quarto e mandei-o para a França pelo túnel.

— O senhor fez isso?

— Fiz, Majestade.

— E sem dúvida, a troco da liberdade do Príncipe Conrad o senhor pede a liberdade de sua mulher? Mas eu ignoro onde ela possa estar!

— Ela está nesse castelo que pertence à Condessa Hermine. Pense um pouco, Majestade... um castelo a que se chega após algumas horas de automóvel, situado a 150, 200 quilômetros no máximo.

Taciturno, o imperador batia na mesa com o punho de sua espada, com pequenos golpes raivosos.

— É tudo o que pede? — perguntou.

— Não, Majestade.

— O que mais?

— A libertação de 20 prisioneiros franceses cuja lista me foi entregue pelo general comandante-em-chefe do exército francês.

Dessa vez o imperador levantou-se de um salto.

— O senhor está louco! Vinte prisioneiros, e sem dúvida oficiais? Comandantes, generais?

— Na lista há também simples soldados, Majestade.

O imperador não o escutava. Sua fúria se exprimia em gestos desnorteados e em interjeições incoerentes. Ele fulminou Paul com o olhar. A idéia de submeter-se às ordens desse tenentinho francês, cativo, e que, no entanto, falava como se fosse chefe, devia parecer-lhe horrivelmente desagradável. Em vez de castigar o inimigo insolente, tinha de discutir com ele e abaixar a cabeça sob o ultraje de suas propostas! Mas o que fazer? Não tinha saída. Tinha como adversário um homem que nem a tortura dobraria.

E Paul prosseguiu:

— Majestade, a liberdade de minha mulher contra a liberdade do Príncipe Conrad, o negócio seria verdadeiramente desigual demais, O que lhe importa, Majestade, que minha mulher seja cativa ou livre? Não é justo que a libertação do Príncipe Conrad seja objetivo de uma troca que a justifique?... E 20 prisioneiros franceses não é muito... Além do mais é inútil que isso seja público. Os prisioneiros entrarão na França um a um, se o senhor o preferir, como trocas contra prisioneiros alemães da mesma patente... quer dizer que...

Que ironia nessas palavras consoladoras destinadas a adocicar a amargura da derrota e a dissimular, sob a aparência de uma concessão, o golpe dado no orgulho imperial! Paul saboreava profundamente o gasto de tais minutos. Ele imaginava o que aquele homem, a quem uma decepção relativamente tão pequena, causada pelo amor próprio, infligia um tormento tão grande, devia sofrer, comparativamente, ao ver abortar seu plano gigantesco e ao sentir-se esmagado sob o peso terrível do destino.

"Vamos!" — pensou Paul. — "Estou bem vingado, e isto é só o; começo de minha vingança."

A capitulação estava próxima. O imperador declarou:

— Eu vou ver... darei ordens.

Paul protestou:

— Seria perigoso esperar, Majestade. A captura do Príncipe Conrad poderia ficar conhecida na Franca...

— Bem — disse o imperador —, traga o Príncipe Conrad e no mesmo dia sua mulher lhe será entregue.

Mas Paul foi implacável. Exigia inteira confiança.

— Majestade, não penso que as coisas devam passar-se assim. Minha mulher se acha na situação mais horrível que possa existir, até mesmo sua vida está em perigo. Peço para ser imediatamente conduzido para perto dela. Hoje à noite, ela e eu estaremos na França. É indispensável que estejamos lá hoje à noite.

Pronunciou essas palavras com um tom muito enérgico, e acrescentou:

— Quanto aos prisioneiros franceses, Majestade, sua entrega será efetuada nas condições que o senhor quiser precisar. Eis aqui a lista com o local de seu internamento.

Paul segurou um lápis e uma folha de papel. Assim que ele terminou, o imperador puxou-lhe a lista das mãos, e logo seu rosto se convulsionou. Cada nome, por assim dizer, sacudia-o de raiva impotente. Amassou a folha e reduziu-a a uma bola, como se estivesse resolvido a romper qualquer acordo.

Mas, subitamente, cansado de resistir, com um movimento brusco, onde havia uma pressa febril em acabar com toda aquela história exasperante, apertou três vezes o sino elétrico.

Um oficial de ordenança entrou rapidamente e plantou-se diante dele.

O imperador refletiu ainda alguns instantes. Depois deu ordens:

— Conduza o tenente Delroze de automóvel ao castelo de Hildensheim, de onde você o trará com sua esposa até os postos avançados de Ebrecourt. Oito dias depois, você se encontrará com ele nesse mesmo ponto de nessas linhas. Ele estará acompanhado do Príncipe Conrad, e você de 20 prisioneiros franceses cujos nomes estão escritos aqui nesta lista. A troca será feita de maneira discreta, que você organizará com o tenente Delroze. É só. Você me manterá a par de tudo através de relatórios pessoais.

Isso foi dito com um tom irregular, autoritário, como uma série de medidas que o imperador tivesse tomado por si próprio, sem sofrer a mínima pressão e pelo simples fato de ser essa a vontade imperial.

Tendo assim regularizado o assunto, saiu, cabeça erguida, a espada vencedora e a espora sonora.

"Uma vitória a mais em seu efetivo. Que cabotino" — pensou Paul que não pôde deixar de rir, para grande escândalo do oficial de ordenança.

Ele ouviu o carro do imperador que dava a partida. A entrevista não havia durado 10 minutos.

Um minuto depois, ele próprio saía e corria pela estrada de Hildensheim.

 

O pico

A feliz viagem! E com que alegria Paul Delroze a fazia! Já agora, ele chegava ao fim, e, desta vez, não era daquelas tarefas que dependiam da sorte e ao fim das quais não havia freqüentemente outra coisa senão a mais cruel das decepções; havia no final desta de agora a conclusão lógica e a recompensa pelos seus esforços. Nem mesmo a sombra de uma inquietude o perturbava.

Há vitórias, e a que ele acabava de obter sobre o imperador era dessas que arrastam à sua passagem a redução de todos os obstáculos. Elisabeth se achava no castelo de Hildensheim, e ele se dirigia para lá sem que nada pudesse opor-se a esse destino.

À claridade do dia, pareceu-lhe reconhecer as paisagens que se escondiam dele nas trevas da noite precedente, tal aldeia, tal cidade, tal rio que costeavam. E viu a sucessão de pequenos bosques. E viu a fossa perto da qual ele havia lutado com o espião Karl.

Não lhe foi necessário mais do que uma hora ainda para chegar a uma colina que era dominada pela fortaleza feudal de Hildensheim. Grandes fossos a precediam, e o acesso era feito por uma ponte levadiça. Um porteiro desconfiado apresentou-se, mas a algumas palavras do oficial portas abriram-se completamente.

Dois empregados vieram correndo do castelo e, a uma pergunta de Paul, responderam que a senhora francesa passeava pelos lados do lago.

— Irei só. Retornaremos agora mesmo.

Tinha chovido. Um pálido sol de inverno filtrando-se entre as nuvens iluminava os gramados e moitas. Paul seguiu o caminho das estufas e pulou por cima de um amontoado de rochas artificiais de onde escapava o tênue fio de uma cascata que formava, num cenário de pinheiros negros, um enorme lago alegrado por cisnes e patos selvagens.

Na extremidade desse lago havia um terraço enfeitado de estátuas e bancos de pedra.

Elisabeth estava aí.

Uma emoção indescritível perturbou Paul. Desde a véspera da guerra, Elisabeth tinha estado perdida para ele. Desde aquele dia ela tinha passado pelas provas mais horríveis, e as tinha sofrido pela única razão de querer aparecer aos olhos do marido como uma mulher sem mácula, nascida de uma mãe sem mácula.

E eis que ele a encontrava numa hora em que nenhuma das acusações lançadas contra a Condessa Hermine podia ser afastada, e em que Elisabeth mesma, pela sua presença no jantar do Príncipe Conrad tinha suscitado em Paul tanta indignação!

Mas como tudo isso estava longe! E como contava pouco! A infâmia do Príncipe Conrad, os crimes da Condessa Hermine, os laços de parentesco que podiam unir as duas mulheres, todas as lutas que Paul tinha sustentado, todas as suas angústias, todas as suas revoltas, todos os seus ódios... todos os detalhes insignificantes, agora que ele via a 20 passos de distância sua bem-amada infeliz. Ele não pensou em outra coisa senão nas lágrimas que ela tinha vertido e não percebeu fiada senão sua silhueta emagrecida, trêmula sob o frio do inverno.

Aproximou-se. Seu passo rangeu nas pedras da alameda, e a jovem virou-se.

Ela não fez um gesto. Ele compreendeu. ^ pela expressão de seu olhar, que ela na realidade não o via, mas que ele era para ela como um fantasma que surge das névoas do sonho, e que esse fantasma devia freqüentemente flutuar diante de seus olhos alucinados.

Ela até lhe sorriu um pouco, e tão tristemente que Paul juntou as mãos e esteve a ponto de ajoelhar-se:

— Elisabeth! Elisabeth!... — murmurou ele.

Só então ela se levantou e levou a mão ao coração, e ficou mais pálida ainda do que estava na véspera, à noite, entre o Príncipe Conrad e a Condessa Hermine. A imagem saía das brumas. A realidade se precisava diante dela e no seu cérebro. Desta vez ela via Paul!

Ele se precipitou, porque lhe pareceu que ela ia cair. Mas ela fez um esforço sobre si mesma, esticou as mãos para que ele não avançasse e olhou-o profundamente, como se quisesse penetrar até as profundezas de sua alma e saber o que ele pensava.

Paul não se mexeu mais, todo trêmulo de amor.

Ela murmurou:

— Ah! vejo que você me ama... Você não deixou de me amar... agora tenho certeza!

Ela continuava, no entanto com os braços esticados como um obstáculo e nem ele próprio procurava avançar. Toda a vida e a felicidade deles estavam no seu olhar, e enquanto seus olhos se fitavam loucamente, ela continuou:

— Disseram-me que você estava prisioneiro. É verdade então? Ah! tanto que supliquei para que me conduzissem para junto de você! O que eu me rebaixei! Tive até de sentar-me na mesa deles, rir de suas graças e usar jóias, colares de pérolas que eles me obrigavam a usar. Tudo isso para poder vê-lo!... E eles sempre prometendo... E finalmente esta noite conduziram-me aqui, e eu pensei que mais uma vez estivessem zombando de mim... ou então que fosse uma nova armadilha... ou então que tivessem resolvido enfim matar-me. E eis você!... Você finalmente! Você, meu Paul querido!...

Ela segurou-lhe o rosto com as duas mãos, e, de repente, desesperada:

— Mas você não vai embora agora? Somente amanhã, não é? Eles não vão tirar você de mim, após alguns minutes? Você vai ficar, não vai? Ah! Paul, já não tenho mais coragem... Não me deixe mais...

Ela ficou muito espantada ao ver que ele sorria.

— O que é que você tem, meu Deus? Como você parece feliz!

Ele pôs-se a rir e, desta vez, puxando-a contra si com uma autoridade que não admitia resistência, beijou-lhe os cabelos, a testa, e as faces, e os lábios e dizia:

— Estou rindo porque não há outra coisa a fazer senão rir e beijá-la. Rio também porque imaginei um bocado de histórias absurdas... Sim, imagine você, aquele jantar de ontem à noite... eu a vi de longe, e sofri demais... Acusei-a de já não sei o quê... É preciso ser imbecil!

Ela não compreendia sua alegria e repetia:

— Como você está feliz! Como é possível que você esteja tão feliz?

— Não há nenhuma razão para não estar — dizia Paul rindo sempre. — Vejamos, reflita... Nós nos encontramos os dois, após tantas tristezas que, em comparação com as que aconteceram com a família dos Atridas, é pouca coisa. Estamos juntos, nada mais pode nos separar, e você não quer que eu esteja contente?

— Nada mais pode então nos separar? — disse ela com ansiedade.

— Claro que não. É assim tão estranho?

— Você vai ficar comigo? Vamos ficar aqui?

— Ah! isso não... Que idéia! Você vai fazer suas trouxas em dois, três tempos, e vamos embora.

— Para onde?

— Para onde? Mas para a França. Tudo bem pensado, ê somente lá ainda que nos sentimos à vontade.

E como ela o olhasse com espanto, ele lhe disse:

— Vamos, depressa. O automóvel nos espera e eu prometi a Bernard... sim, seu irmão Bernard, eu lhe prometi que estaríamos juntos hoje à noite... Você está pronta? Ah! mas por que esse ar de espanto? Preciso explicar? Ma?, minha querida adorada, nós teremos que nos explicar durante horas e horas. Você virou a cabeça de um príncipe imperial... E depois você foi fuzilada... E depois... e depois... e depois... Enfim, numa palavra!... Preciso usar a força para que você me siga?

Ela compreendeu de repente que ele falava sério, e disse-lhe sem tirar os olhos dele:

— É verdade? Estamos livres?

— Inteiramente livres.

— Vamos para a França?

— Diretamente.

— Nada mais temos a temer?

— Nada.

Ela teve então um brusco alívio. Por sua vez pôs-se a rir, num desses acessos de alegria doida, onde se deixa levar a uma onda de criancices e infantilidades. Um pouco mais e ela teria cantado e dançado. E suas lágrimas rolavam, no entanto. E dizia:

— Livre!... Acabou!... Será que eu sofri?... Não... Ah! você sabia que eu tinha sido fuzilada? Bem, eu juro! não é tão horrível assim... Eu vou-lhe contar isso e muitas outras coisas!... Você também me contará... Mas como é que você conseguiu? Você é então mais forte do que eles? Mais forte do que o "inefável" Conrad, mais forte do que o imperador? Meu Deus, como é engraçado! Meu Deus, como é engraçado!...

Ela interrompeu-se e segurando-lhe o braço com uma força súbita:

— Vamos embora, querido. É loucura ficar aqui um segundo a mais. Essa gente é capaz de tudo. São pérfidos, criminosos! Vamos embora... Vamos embora...

Partiram.

Nenhum incidente atrapalhou a viagem deles. Ao anoitecer, chegaram às linhas de frente, diante de Ebrecourt.

O agente de ordens, que tinha plenos poderes, mandou acender um refletor e ele mesmo, depois de ter dado ordens para que se agitasse uma bandeira branca, conduziu Elisabeth e Paul ao oficial francês que se apresentou.

Este telefonou aos serviços da retaguarda. Um automóvel foi enviado.

As nove horas, Elisabeth e Paul paravam nas grades de Ornequin, e Paul perguntava por Bernard, diante de quem ele se apresentou;

— É você, Bernard? — disse-lhe ele. — Escute bem e sejamos breves. Eu trouxe Elisabeth. Sim, ela está aqui no carro. Vamos partir para Corvigny, e você vem conosco. Enquanto vou buscar minha mala e a sua, você dê ordens para que o Príncipe Conrad seja vigiado de perto. Ele está seguro, não está?

— Está, sim.

— Então vamos depressa. Trata-se de ir ao encontro da mulher que você viu anteontem no momento em que ela entrava no túnel. Já que ela está na França, vamos ao seu encalço.

— Você não acha, Paul, que encontraríamos sua pista mais facilmente retornando nós mesmos ao túnel e procurando o local onde ele desemboca nos arredores de Corvigny?

— Tempo perdido. Estamos num momento da luta em que precisamos agir depressa.

— Ora essa, Paul, a luta está acabada agora que Elisabeth está salva.

— A luta não está acabada, enquanto essa mulher estiver viva.

— Mas enfim, quem é ela? Paul não respondeu.

... Às dez horas desciam os três na estação de Corvigny. Não havia mais trem. Todos dormiam. Sem se perturbar. Paul apresentou-se no pasto militar, acordou o ajudante de ordens em serviço, mandou chamar o chefe da estação, o jornaleiro da estação, e conseguiu, após inquérito minucioso, apurar que naquela manhã mesmo de segunda-feira, uma mulher tinha comprado uma passagem para Château-Thierry, de posse de salvo-conduto em regra em nome de Sr. Antonin. Nenhuma mulher tinha partido sozinha. Ela vestia o uniforme da Cruz-Verme!ha. A descrição dela, tamanho e rosto correspondiam aos da Condessa Hermine.

— É ela, sem dúvida! — declarou Paul, quando se instalou no hotel vizinho, assim como Elisabeth e Bernard, para aí passarem a noite. — É ela mesma. Ela não podia partir de Corvigny senão por aqui. E é por aqui que amanhã de manhã, terça-feira, às mesmas horas, nós partiremos. Espero que ela não tenha tempo de pôr em execução o projeto que a traz à França. Em todo caso a ocasião é única para nós. Aproveitemos.

E como Bernard insistisse:

— Mas enfim, quem é ela? Ele respondeu:

— Quem é? Elisabeth lhe vai dizer. Temos uma hora diante de nós para explicações sobre certos pontos, e depois repousaremos, coisa de que estamos precisando os três.

No dia seguinte deu-se a partida.

A confiança de Paul era inquebrantável. Ainda que ele nada soubesse das intenções da Condessa Hermine, estava certo de estar seguindo a boa pista. Com efeito, por diversas vezes tiveram a prova de que uma enfermeira da Cruz Vermelha, viajando só e em primeira classe, havia passado na véspera pelas mesmas estações.

Desceram em Château-Thierry mais ou menos no fim da tarde. Paul indagou. Na véspera, à noite, um automóvel da Cruz Vermelha, que esperava diante da estação, tinha levado a enfermeira. Esse automóvel, a concluir pelo exame de seus papéis, fazia o serviço de uma das ambulâncias estabelecidas por detrás de Soissons, mas ninguém pôde precisar o local exato dela.

A informação foi suficiente para Paul. Soissons era exatamente a linha de frente.

— Vamos lá — disse ele.

A ordem que ele tinha, assinada pelo general-em-chefe, dava-lhe todos os poderes necessários para requisitar um automóvel e penetrar na zona de combate. Chegaram a Soissons na hora do jantar.

Os bairros, bombardeados e destruídos, estavam desertos. A cidade propriamente dita parecia em grande parte abandonada. Mas, à medida que se aproximavam do centro, notava-se certa animação nas ruas. Companhias passavam em grande velocidade. Canhões e carros com munições passavam ao trote de seus cavalos, e no hotel que lhe indicaram defronte da praça principal e onde estavam morando alguns oficiais, havia agitação, idas e vindas e certa desordem.

Paul e Bernard puseram-se a par dos acontecimentos. Foi-lhes dito que há alguns dias atacavam com sucesso os morros situados em frente a Soissons, do outro lado do Aisne. Dois dias antes, batalhões de caçadores e marroquinos tinham tomado de assalto o pico 132. Na véspera, mantiveram as posições conquistadas e atacaram as trincheiras da serra do Crouy.

Ora, durante a noite anterior, exatamente no momento em que o inimigo contra-atacava violentamente, um fato bastante esquisito se produzira. O Aisne, subindo como conseqüência das chuvas abundantes, transbordara e levara todas as pontes de Villeneuve e de Soissons.

A enchente do Aisne era normal, mas por mais forte que ela fosse, não explicava a ruptura das pontes, e essa ruptura, coincidindo com o contra-ataque alemão, que parecia provocado por meios suspeitos que tentavam escurecer, tinha complicado a situação das tropas francesas, tornando quase impossível o envio de reforços. O dia inteiro mantiveram-se no pico, mas. com dificuldades e muitas perdas. Naquele momento transportavam pela margem direita do Aisne uma parte da artilharia.

Paul e Bernard não tiveram um secundo de hesitação. Nisso tudo, eles reconheciam a mão da Condessa Hermine. Rupturas de pontes, ataques alemães, os dois fatos acontecendo na noite mesmo de sua chegada,, como duvidar que não fosse a conseqüência de um plano concebido por ela e cuja execução, preparada para a época das enchentes do Aisne, provava a colaboração da condessa e do estado-maior inimigo?

Além do mais, Paul recordava-se das frases que ela havia trocado com Karl diante do portal da mansão do Príncipe Conrad:

— Vou para a França... tudo está pronto. O tempo é favorável e o estado-maior mo preveniu... Então lá estarei amanhã à noite... bastará uma mãozinha.

A "mãozinha" ela tinha dado. Todas as pontes, previamente preparadas pelo espião Karl ou por agentes a soldo dele, tinham-se arrebentado.

— É claro que é ela — disse Bernard. — E então, se é ela, por que esse seu ar inquieto? Você devia ficar encantado, ao contrário, pois que agora estamos logicamente certos de alcançá-la.

— Sim, mas alcançá-la-emos a tempo? Na sua conversa com Karl ela pronunciou outra ameaça que me parece muito mais grave, cujos termos eu lhe repeti igualmente. A sorte está-se virando contra nós... Se eu conseguir, será o fim da série negra. E quando o seu cúmplice lhe perguntou se ela tinha o consentimento do imperador, ela lhe respondeu: "Inútil. A tarefa é daquelas de que não se fala." Você há de compreender, Bernard, que não Fe trata de ataque alemão nem de ruptura de pontes — isso é próprio da guerra, e o imperador está a par —; não, trata-se de outra coisa que deve coincidir com os acontecimentos e dar-lhes sua significação completa. Esta mulher não pode crer que o avanço de um quilômetro ou dois seja um incidente capaz de pôr fim ao que ela chama de série negra. E então? O que há? Ignoro-o. E é a razão de minha angústia.

Durante toda esta noite e todo o dia de quarta-feira, 13. Paul empregou o tempo em investigações nas ruas da cidade ou sobre as margens do Aisne. Ele tinha entrado em contato com autoridades militares. Oficiais e soldados participavam de sua pesquisa. Deram batidas em diversas casas e interrogaram diversos cidadãos.

Bernard tinha se oferecido para acompanhá-lo, mas ele tinha recusado categoricamente:

— Não. É verdade que essa mulher não o conhece, mas ela não deve ver sua irmã. Peço-lhe então ficar com Elisabeth, impedi-la de sair, e de tomar conta dela sem um segundo de descuido; porque estamos tratando com o pior inimigo que possa haver.

Os dois irmãos viveram então todas as horas desse dia colados às vidraças de suas janelas. Paul vinha fazer suas refeições às pressas. Ele estava agitado e muito esperançoso.

"Ela está aqui"— dizia-se ele. — "Ela deve ter deixado, assim como os que a acompanham, seu disfarce de enfermeira, e se esconde no fundo de um buraco qualquer, como uma aranha atrás de sua teia. Eu a vejo, o telefone â mão, dando ordens a todo um bando de indivíduos, enterrados como ela, e como ela invisíveis. Mas seu plano, começo a compreendê-lo, e tenho sobre ela uma vantagem, é que ela pensa que está livre de perigo. Ela ignora a morte de seu cúmplice Karl. Ela ignora minha entrevista com o cáiser. Ela ignora a libertação de Elisabeth. Ela ignora nossa presença aqui. Vou pegar essa abominável criatura. Vou pegá-la!''

As notícias da batalha, no entanto, não melhoravam O movimento de recuo continuava na margem esquerda. Em Crouy, o peso das perdas e a espessura da lama diminuíam o entusiasmo dos marroquinos. Uma ponte para barcos, construída às pressas, foi-se com a correnteza.

Quando Paul reapareceu, mais ou menos às seis horas da tarde, um pouco de sangue pingava de sua manga. Elisabeth amedrontou-se.

— Não é nada — disse ele rindo. — Um arranhão que recebi, não sei bem onde.

— Mas sua mão, olhe sua mão. Você está.sangrando!

— Não, não é sangue meu. Não se preocupe. Tudo vai bem.

Bernard lhe disse:

— Você sabe que o general comandante-em-chefe está em Soissons desde hoje de manhã?

— Parece que sim... Melhor assim. Gostaria de oferecer-lhe a espiã e seu bando. Seria um bom presente.

Durante uma hora ainda ele esteve afastado. Depois voltou e pediu que lhe dessem de jantar.

— Agora você parece certo de sua empresa — observou Bernard.

— Pode-se lá ter certeza? Essa mulher é o diabo em pessoa.

— Mas você já conhece o seu esconderijo?

— Já.

— E o que é que você está esperando?

— As 9 horas. Até lá, vou repousar. Um pouco antes de 9, acordem-me.

O canhão não parava de atroar lá ao longe, no meio da noite. De vez em quando uma granada caía sobre a cidade com enorme barulho. Passavam tropas para todos os lados. Depois havia silêncios em que todos os barulhos da guerra pareciam suspensos, e eram estes minutos, talvez, que tinham significado mais amedrontador ainda.

Paul acordou sozinho.

Disse à esposa e a Bernard:

— Vocês também vão participar da expedição. Vai ser duro. Elisabeth, muito duro. Você tem certeza de poder agüentar?

— Oh! Paul, olhe-se e veja como está pálido!

— Sim, é a emoção. Não por causa do que vai acontecer... Mas até o último momento, e apesar de todas as providências tomadas, é que tenho medo que o inimigo escape.

— Entretanto...

— Você sabe... uma imprudência, uma má sorte que os faça desconfiar, e teremos que começar tudo de novo... O que é que você está fazendo, Bernard?

— Pegando meu revólver.

— Inútil.

— O quê! — disse o jovem. — Nós então não vamos nos bater, nessa sua expedição?

Paul não respondeu. Segundo os seus hábitos ele só falava quando já estava agindo ou depois de tê-lo feito. Bernard pegou o revólver.

A última badalada de 9 horas soava quando atravessaram a praça, em meio às trevas furadas aqui e ali por um tênue raio de luz surgido de uma loja fechada.

Na entrada da catedral de que sentiram a sombra gigantesca por cima deles, um grupo de soldados ia-se reunindo.

Paul tendo lançado sobre eles o facho de uma lanterna elétrica, disse àquele que os comandava:

— Nada de novo, sargento?

— Nada, tenente. Ninguém entrou nem saiu da casa. O sargento assobiou baixinho. Lá pelo meio da rua dois homens saíram da escuridão que os envolvia e uniram-se ao grupo.

— Nenhum barulho dentro da casa?

— Nenhum, sargento.

— Nenhuma luz atrás das persianas?

— Nenhuma, sargento.

Pau] então pôs-se a caminho e, enquanto os outros, cumprindo ordens, o seguiam sem fazer o menor ruído, ele avançava decidido, como uma pessoa que, tendo se atrasado no seu passeio, volta a casa.

Pararam diante de uma casa estreita, da qual se distinguia apenas o andar térreo, na escuridão da noite. A porta ficava no alto de três degraus. Paul bateu quatro vezes com pancadas pequenas. Ao mesmo tempo tirou uma chave do bolso e abriu-a.

No hall acendeu sua lanterna elétrica, e, cem seus companheiros, observando sempre o mesmo silêncio, dirigiu-se a um espelho que saía do chão de pedras do hall propriamente dito.

Após haver batido nesse espelho com quatro pequenas batidas, ele o empurrou apoiando-se num dos lados. Ele escondia o topo de uma escada que descia ao subsolo, em cujo porão ele logo botou o facho de luz.

Isso devia ser um sinal, o terceiro sinal combinado, porque de baixo uma voz, uma voz feminina, embora rouca, grave, perguntava:

— É o senhor, padre Walter?

Tinha chegado a hora de agir. Sem responder, Paul desceu pelas escadas em alguns pulos.

Chegou exatamente no momento em que uma porta pesada ia se fechando e o acesso ao porão sendo barrado.

Um empurrão violento... e ele entrou.

A Condessa Hermine estava lá, na penumbra, imóvel, hesitante.

Depois, subitamente, ela correu para o outro lado do cômodo, pegou um revólver em cima da mesa, virou-se e atirou.

O gatilho fez um ruído. Mas não houve nenhuma detonação.

Por três vezes ela tentou e as três vezes foi a mesma coisa.

— Inútil insistir — debochou Paul. — A arma foi descarregada.

A condessa deu um grito de raiva, abriu a gaveta da mesa e pegando num outro revólver, atirou quatro vezes seguidas. Nenhuma detonação.

— Não adianta — disse Paul rindo. — Esse também foi descarregado, assim como o que está na segunda gaveta, e todas as armas da casa.

E como ela olhava com assombro, sem compreender, apavorada com a sua incapacidade, ele saudou-a, e, apresentando-se, pronunciou simplesmente estas duas palavras que diziam tudo:

— Paul Delroze.

 

Hohenzollern

Fora as dimensões, o porão dava o aspecto dessas grandes salas abobadadas que se vêem na Champagne. Paredes limpas, um chão liso feito de tijolos, uma atmosfera morna, uma alcova escondida entre dois barris e fechada por uma cortina, cadeiras, móveis, tapetes, tudo isso formava, ao mesmo tempo, que uma habitação confortável, ao abrigo das granadas, e um refúgio certo para quem receasse visitas indiscretas.

Paul lembrou-se das ruínas do velho farol às margens do Yser e o túnel de Ornequin a Ebrecourt. Assim sendo, a luta continuava embaixo da terra. Guerra de trincheiras e de porões, guerra de espionagem e de astúcia, eram sempre os mesmos processos falsos, vergonhosos, suspeitos, criminosos.

Paul tinha apagado sua lanterna, quer dizer que a sala só estava vagamente iluminada por uma lâmpada a petróleo suspensa no teto e cuja luz, atenuada por um abajur opaco, formava o desenho de um círculo branco no meio do qual se achavam os dois.

Elisabeth e Bernard ficai am para trás, na penumbra.

O sargento e seus homens não tinham aparecido. Mas ouvia-se o barulho de sua presença pela escada.

A condessa não se mexia. Estava vestida como na noite do jantar na mansão do Príncipe Conrad. Seu rosto, onde já não se via medo nem espanto, mostrava antes um esforço de reflexão, como se ela tivesse querido calcular todas as conseqüências da situação que lhe era revelada. Paul Delroze? Qual era a finalidade de sua agressão? Sem dúvida — e era evidentemente esse pensamento que aliviava aos poucos os traços da Condessa Hermine —, sem dúvida ele ia no encalço da libertação de sua mulher.

Ela sorriu. Elisabeth prisioneira na Alemanha, que moeda para uma permuta contra si própria, presa na armadilha, mas que podia ainda comandar os acontecimentos!

A um sinal, Bernard avançou e Paul disse à condessa:

— Meu cunhado. O Major Hermann, quando esteve amarrado na casa do canoeiro o viu talvez, como viu a mim. Talvez. Mas em todo caso, a Condessa Hermine, sejamos mais preciosos, a Condessa d'Andeville não conheceu, ou pelo menos esqueceu seu filho, Bernard d'Andeville.

Ela agora parecia estar completamente despreocupada, e conservava um ar de quem combate com armas iguais e mesmo mais possantes. Ela então não se perturbou diante de Bernard, e disse com um tom superior:

— Bernard d'Andeville. Parece muito com sua irmã Elisabeth, que as circunstâncias me permitiram não perder de vista. Há somente dois dias nós jantávamos, ela e eu, com o Príncipe Conrad. O príncipe tem uma grande afeição por Elisabeth, e ele tem razão, porque ela é adorável, e tão amável! Eu gosto muito dela, na verdade!

Paul e Bernard fizeram um mesmo gesto, que os teria jogado em cima da condessa, se não tivesse conseguido conter seu ódio. Paul afastou seu cunhado em quem ele sentia a exasperação e, respondendo ao desafio da adversária num tom igualmente alegre:

— É, eu sei... eu estava lá... Até assisti à sua partida.

— É mesmo?

— É mesmo. Seu amigo Karl me ofereceu um lugar no automóvel dele.

— No automóvel dele?

— Perfeitamente, e partimos todos para o seu castelo de Hildensheim... uma bela construção que eu teria prazer em visitar com mais vagar... Mas a estada ali é perigosa, freqüentemente mortal... de modo que...

A condessa o olhava corri uma crescente inquietude. O que quereria ele dizer? Como sabia ele essas coisas?

Ela quis amedrontá-lo por sua vez, a fim de ver claro no jogo do inimigo, e pronunciou com voz áspera:

— Com efeito, a estada é freqüentemente mortal. Lá se respira um ar que não é bom para todos...

— Um ar envenenado...

— Justamente.

— E a senhora receia algo para Elisabeth?

— Para falar a verdade, receio. A saúde daquela pobre ' moça já está comprometida, e só ficarei tranqüila...

— Quando ela estiver morta, não é?

Ela deixou passar alguns momentos, depois replicou bem claramente, da maneira a que Paul compreendesse o significado de suas palavras.

— Sim, quando ela estiver morta... o que não vai tardar muito, se já não estiver feito.

Houve um silêncio bastante longo. Mais uma vez, diante dessa mulher, Paul sentia a mesma necessidade homicida, a mesma necessidade de satisfazer seu ódio. Isso tinha de acontecer. Seu dever era matar, e era um crime não obedecer.

Elisabeth estava no escuro, em pé três passos atrás.

Sem uma palavra, lentamente, Paul virou-se para o seu lado, levantou o braço, acendeu a sua lanterna, e dirigiu-a em direção da jovem, cujo rosto ficou assim em plena luz.

Jamais Paul, fazendo esse gesto, teria pensado que o efeito fosse ser tão violento na Condessa Hermine. Uma mulher como ela não podia se enganar, pensar que estivesse sendo o joguete de uma alucinação ou enganada por uma semelhança. Não. Ela admitiu imediatamente que Paul havia libertado sua mulher e que Elisabeth estava ali, diante dela. Mas como um fato tão extraordinário era possível? Elisabeth que três dias antes ela tinha deixado nas mãos de Karl... Elisabeth que nesse momento deveria estar morta ou prisioneira numa fortaleza alemã com a aproximação impedida pela presença de mais de dois milhões de soldados... Elisabeth estava ali? Em menos de três dias ela tinha escapado de Karl, fugido do castelo de Hildensheim, atravessado as fronteiras com dois milhões de alemães?

A Condessa Hermine, com o rosto transtornado, sentou-se diante dessa mesa que lhe servia de encosto, e, furiosa, colou seus punhos de encontro às maçãs do rosto. Ela compreendia a situação. Não era mais hora de brincar nem de provocar. Não se tratava mais de discutir uma troca. Na peça que ela representava, toda a chance de vitórias subitamente lhe faltava. Ela tinha de se submeter à lei do vencedor e o vencedor era Paul Delroze!

Ela falou:

— Aonde o senhor quer chegar? Qual o seu objetivo? Me assassinar?

Ele alçou os ombros.

— Nós não somos desses que assassinam. A senhora está aqui para ser julgada. A pena que a senhora terá de pagar será a pena que lhe será imposta em conseqüência de um debate legal, onde a senhora poderá defender-se.

Ela foi sacudida por um tremor e protestou:

— O senhor não tem o direito de me julgar, os senhores não são juízes.

O medo, esse sentimento que ela parecia ignorar até aí, o medo tomou conta dela. Baixinho ela repetia:

— Os senhores não são juízes... eu protesto... Os senhores não têm o direito.

Nesse momento houve do lado da escada certa confusão. Uma voz gritava.

— Continência!

Quase imediatamente, a porta, que estava entreaberta, foi empurrada e deu passagem a três oficiais vestidos com longos casacos.

Paul foi rapidamente a seu encontro e fê-los sentar nas cadeiras, na parte em que a luz não penetrava.

Outro apareceu. Recebido por Paul, ele sentou-se mais longe, afastado dos demais.

Elisabeth e Bernard permaneceram um perto do outro.

Paul retomou seu lugar à frente, do lado da mesa, e, de pé, disse gravemente:

— Não somos juízes, realmente, e não queremos tomar um direito que não nos pertence. Os que a julgarão estão aqui. Eu, por mim, acuso.

A palavra foi articulada de uma maneira áspera e cortante, com uma grande energia.

E logo, sem hesitação, como se ele tivesse estabelecido previamente, todos os pontos de requisição que ia pronunciar, e pronunciar num tom onde não mostrasse nem ódio nem cólera, começou:

— A senhora nasceu no castelo de Hildensheim de que seu avó era administrador e que foi doado a seu pai após a guerra de 1870. A senhora se chama realmente Hermine, Hermine de Hohenzollern. Este nome Hohenzollern era a glória de seu pai, se bem que a ele não tivesse direito, mas a grande consideração que por ele tinha o velho imperador impediu que alguém jamais o contestasse. Ele fez a campanha de 70 como coronel, e distinguiu-se por uma crueldade e uma rapacidade incríveis. Todas as riquezas que decoram o seu castelo de Hildensheim provêm da França e, como cúmulo da petulância, sobre cada objeto vê-se uma nota que estabelece seu lugar de origem e o nome do proprietário de quem foi roubado. Além disso, no vestíbulo, uma placa de mármore traz em letras de ouro o nome de todas as aldeias francesas queimadas por ordem de Sua Excelência, o coronel Conde de Hohenzollern. O cáiser foi diversas vezes a esse castelo. Todas as vezes que ele passa diante da placa de mármore faz uma saudação.

A condessa escutava distraidamente. Essa história devia lhe parecer de medíocre importância. Esperava que tratassem dela.

Paul continuou:

— A senhora herdou de seu pai dois sentimentos que dominam toda a sua vida, um amor desenfreado por essa dinastia Hohenzollern a quem parece que o acaso de um capricho imperial, ou antes real, ligou seu pai, e um ódio feroz, selvagem, contra essa França a quem ele sentia não ter feito mal suficiente. O amor da dinastia, a senhora o concentrou inteirinho, desde que se viu mulher feita, naquele que a representa atualmente, e isso a tal ponto que, após ter tido a esperança inacreditável de um dia subir ao trono, a senhora perdoou-lhe, mesmo seu casamento, mesmo sua ingratidão, para devotar-se a ele de corpo e alma. Casada por ele com um príncipe austríaco que morreu não se sabe como,* depois com um príncipe russo que morreu também não se sabe como, em todos os lugares a senhora trabalhou para a única glória de seu ídolo. No momento em que foi declarada a guerra entre a Inglaterra e o Transvaal a senhora estava no Transvaal. No momento da guerra russo-japonesa a senhora estava no Japão. A senhora estava em tudo que é lugar, em Viena quando o Príncipe Rodolfo foi assassinado; em Belgrado quando o Rei Alexandre e a Rainha Draga foram assassinados. Mas não insistirei mais sobre o seu papel... diplomático. Tenho pressa de chegar à sua obra predileta, a que a senhora faz há 20 anos centra a França.

Uma expressão malvada, quase feliz, contraiu as feições da Condessa Hermine. Era verdade, sim, a sua obra predileta. Na sua execução ela havia empregado todas as suas forças e toda a sua inteligência perversa.

— E até mesmo — retificou Paul — não insistirei tampouco na obra gigantesca de preparação e espionagem que a senhora dirigiu. Até mesmo numa aldeia do norte, no alto de um campanário, encontrei um de seus cúmplices armado com um punhal com as suas iniciais. Tudo o que foi feito foi a senhora que engenhou, organizou, executou. As provas que eu recolhi, as cartas de seus correspondentes assim como as suas estão nas mãos do tribunal. Mas para o que eu quero chamar a atenção especialmente é a parte de seu esforço realizado em Ornequin. Aliás, não tomarei muito tempo. Alguns fatos ligados a crimes. Vai ser tudo.

Ainda um silêncio. A condessa era toda ouvidos, com uma espécie de curiosidade cheia de ansiedade. Paul falou:

— Foi em 1894 que a senhora propôs ao imperador a perfuração de um túnel de Ebrecourt a Corvigny. Após estudos feitos por engenheiros, ficou reconhecido que essa obra "colossal" não era possível e não seria eficaz a não ser que se tomasse posse do castelo de Ornequin. O proprietário desse castelo estava justamente muito doente. Esperaram. Como ele não teve pressa em morrer, a senhora veio a Corvigny. Oito dias mais tarde ele morria. Primeiro crime.

— O senhor está mentindo! O senhor está mentindo! — gritou a condessa. — O senhor não tem prova alguma, Eu o desafio a dar uma prova.

Paul continuou sem responder:

— O castelo foi posto à venda, e, coisa inexplicável, sem a mínima publicidade, às escondidas, por assim dizer. Ora, aconteceu o seguinte: o corretor a quem a senhora deu suas instruções manobrou com tanta incompetência que o castelo foi legado ao Conde d'Andeville que aí veio morar no ano seguinte com sua esposa e seus dois filhos.

Daí a cólera, desorientação e, enfim, a resolução de começar de qualquer jeito e de fazer as primeiras sondagens no local onde se achava uma pequena capela situada, naquela época, fora do parque. O imperador veio diversas vezes a Ebrecourt. Um dia, saindo dessa capela, ele foi reconhecido por meu pai e por mim. Dez minutos mais tarde a senhora acostava meu pai. Eu fui ferido. Meu pai morreu. Segundo crime.

— O senhor está mentindo! — repetiu mais uma vez a condessa. — Isso tudo é mentira! Nenhuma prova!

— Um mês mais tarde — continuou Paul., sempre muito calmo —, a Condessa d'Andeville, obrigada por causa da sua saúde a deixar Ornequin, viajou para o sul da França, onde acabou por falecer nos braços de seu marido, e a morte de sua esposa, inspirou ao Conde d'Andeville uma tal repulsa por Ornequin que ele decidiu nunca mais aí pôr os pés.

Aí então o seu plano entra em ação. Estando o castelo desabitado, é mister aí instalarem-se. Como? Comprando o caseiro, Jérôme e sua mulher. Sim, comprando-os, e foi aí que fui enganado, eu que confiei nos seus rostos francos e em suas pessoas cheias de bondade. Então a senhora os compra. Esses dois miseráveis, que têm na realidade a desculpa de não serem alsacianos conforme diziam, mas de origem estrangeira, e que não prevêem as conseqüências de sua traição, esses dois miseráveis aceitam o pacto. Desde aí, então, a senhora está como em sua casa, e a vontade para vir a Ornequin quando lhe dá vontade. Sob sua ordem, Jérôme chega ao ponto de guardar segredo da morte da Condessa Hermine, da verdadeira Condensa Hermine. E como a senhora também se chama Hermine, e ninguém conhecia a Sra. d'Andeville, que vivia afastada, tudo ficou ótimo.

A senhora aliás acumulou precauções. Uma entre outras, que me despistou, tanto quanto a cumplicidade do caseiro e de sua mulher. O retrato da condessa d'Andeville achava-se no quarto de vestir antes ocupado por ela. A senhora mandou fazer um retrato seu, do mesmo tamanho, que se adaptasse na mesma moldura onde o nome da condessa estava inscrito. E esse retrato representa-a no mesmo aspecto dela, vestida e penteada do mesmo jeito. Numa palavra, a senhora se torna o que a senhora tinha tentado parecer desde o início, e ainda quando a Sra. d'Andeville era viva, a senhora tinha começado a copiar-lhe a maneira de ser, e torna-se então Condessa Hermine d'Andeville, pelo menos durante suas estadas em Ornequin.

Um único perigo: a volta possível, imprevista do Conde d'Andeville. Para impedi-lo de uma maneira segura, um só remédio, o crime.

A senhora então arranja um jeito de conhecer o Conde d'Andeville, o que lhe permite observá-lo e corresponder-se com ele. Só que acontece isso, com o que a senhora não contava, é que um sentimento verdadeiramente inesperado numa mulher como a senhora, a liga aos poucos àquele que a senhora havia escolhido como vítima. Juntei ao relatório uma fotografia da senhora, enviada de Berlim para o senhor d'Andeville. Nesta época, a senhora contava levá-lo a casar-se com a senhora, mas ele percebe o seu jogo, afasta-se e rompe.

A condessa tinha franzido as sobrancelhas. Sua boca torceu-se. Sentia-se toda a humilhação que tinha sofrido e toda o rancor que guardava. Ao mesmo tempo sentia, não propriamente vergonha, mas uma surpresa crescente de ver sua vida assim divulgada nos seus mínimos detalhes, e seu passado de crimes surgir das trevas onde ela o julgava enterrado.

— Quando a guerra foi declarada — prosseguiu Paul — sua obra estava pronta. Postada na mansão de Ebrecourt. à entrada do túnel, a senhora estava pronta. Meu casamento com Elisabeth d'Andeville, minha chegada súbita ao castelo de Ornequin, meu desespero diante do retrato daquela que havia matado meu pai, tudo isso que lhe foi comunicado por Jérôme surpreendeu-a um pouco, e a senhora teve de organizar uma tocaia onde por pouco não fui eu também assassinado. Mas a mobilização livrou-a de mim. A senhora podia agir. Três semanas mais tarde Corvigny estava bombardeada, Ornequin invadida, Elisabeth prisioneira do Príncipe Conrad.

A senhora viveu então horas inexprimíveis. Para a senhora era a vingança, mas era também, e isso graças à senhora, a grande vitória, o grande sonho feito realidade, ou quase, a apoteose dos Hohenzollern. Mais dois dias e Paris é tomada. Mais dois meses e a Europa está vencida. Que embriaguez! Tive conhecimento de palavras pronunciadas pela senhora nessa época e li cartas escritas pela senhora, que provam uma verdadeira loucura, loucura de orgulho, loucura bárbara, loucura do impossível e do sobre-humano...

E, depois, o despertar brutal. A batalha do Marne! Ah! ainda aí vi cartas escritas pela senhora. Para começar, uma senhora de sua inteligência devia prever, e a senhora previu, que era o fim das esperanças e das certezas. A senhora o escreveu ao imperador. Sim, a senhora escreveu isso! Tenho a cópia da carta! Tinha de defender-se, no entanto. As tropas francesas se aproximavam. Através de Bernard, a senhora soube que eu estava em Corvigny. Elisabeth será libertada? Elisabeth que conhece todos os seus segredos... Não, ela morrerá. A senhora dá ordens para que ela seja executada. Tudo está pronto. Se ela foi salva, graças ao Príncipe Conrad, e se, como ela não morreu, a senhora tem de se contentar com um simulacro de execução destinado a cortar pelas raízes minhas pesquisas, pelo menos ela é levada como uma escrava. E, na verdade duas vítimas a consolam, Jérôme e Rosalie. Seus cúmplices, atormentados pelo remorso e emocionados com as torturas de Elisabeth, tentaram fugir com ela. A senhora teme o testemunho deles; e são fuzilados. Terceiro e quarto crimes! E, no dia seguinte há dois outros, dois soldados que a senhora mandou assassinar pensando tratar-se de Bernard e de mim. Quinto e sexto crimes.

 

Assim, o drama foi reconstituído em seus episódios trágicos, e seguindo a ordem dos acontecimentos e de assassinatos. E era um espetáculo cheio de horror o daquela mulher, culpada de tantos males e que o destino acuava no fundo desse porão, diante de seus inimigos mortais. Como era possível, entretanto, que ela não parecesse ter perdido toda a esperança? Porque era bem assim, e Bernard reparou.

— Observe-a — disse ele aproximando-se de Paul. — Duas vezes ela consultou o relógio. Parece que ela espera um milagre, mais do que isso, um socorro direto inevitável, que deve ser-lhe enviado a uma hora. fixa. Olhe... Seus olhos procuram... Ela escuta...

— Mande entrar todos os soldados que estão no alto da escada — respondeu Paul. — Não há razão alguma para que não ouçam o que me resta a dizer.

E, virando-se para a condessa, pronunciou com uma voz que foi aos poucos se animando:

— Aproximamo-nos do final. Toda essa parte da luta, a senhora conduziu fazendo-se passar pelo major Hermann, o que lhe era mais cômodo para seguir o exército e para representar seu papel de espião em chefe. Hermann, Hermine... O major Hermann, que por vezes a senhora fazia passar como sendo seu irmão, era a senhora, Condessa Hermine. E foi a senhora que eu surpreendi entrevistando-se com o falso Laschen, ou antes, com o espião Karl, nas ruínas do farol nas margens do Yser. E foi a senhora que eu pude segurar e amarrar nas águas furtadas da casa do canceiro.

Ah! que grande golpe a senhora deixou de dar ali! Seus três inimigos feridos, a seu dispor... E a senhora foge sem os ver, sem exterminá-los! E a senhora nada mais soube de nós, enquanto que nós, nós conhecíamos os seus projetos. Domingo, 10 de janeiro, encontro em Ebrecourt, encontro sinistro que a senhora teve com Karl anunciando-lhe sua vontade implacável de suprimir Elisabeth. E no domingo, 10 de janeiro, eu estava pontualmente no encontro. Eu assisti ao jantar do Príncipe Conrad! Eu estava lá, após o jantar,quando a senhora deu a Karl o frasco contendo o veneno! Eu estava lá, no assento do carro mesmo, quando a senhora deu a Karl suas últimas instruções! Eu estava em tudo que era lugar. E naquela noite mesmo, Karl morria. E na noite seguinte eu raptava o Príncipe Conrad. E, no dia seguinte, isto é, anteontem, dono de tal refém, obrigando assim o imperador a negociar comigo, eu lhe ditava minhas condições, sendo a primeira logo a libertação imediata de Elisabeth. E o imperador cedeu. E eis-nos aqui!

Uma palavra entre todas essas palavras, em que cada uma mostrava à Condessa Hermine com que energia implacável ela havia sido perseguida, uma palavra a perturbou, como a mais horrível das catástrofes.

Ela balbuciou:

— Morreu? O senhor disse que Karl morreu?

— Assassinado por sua amante no momento mesmo em que tentava matar-me — exclamou Paul novamente movido pelo ódio. — Morto como um animal enraivecido! Sim, o espião Karl está morto, e até à sua morte ele foi o traidor que foi em toda a sua vida. A senhora quer provas? Foi no bolso de Karl que eu as achei! Foi no seu caderninho que eu li a história de seus crimes e a cópia de suas cartas, e algumas de suas cartas mesmo. Ele previa que um dia ou outro, uma vez terminada sua obra, a senhora o sacrificaria à sua segurança, e ele se vingava de antemão... Ele se vingava como o caseiro Jérôme e sua mulher Rosalie, na hora de serem fuzilados, vingaram-se revelando a Elisabeth seu papel misterioso no castelo de Ornequin. Veja que cúmplices! A senhora os mata, mas eles a traem. Já não sou eu que acuso. São eles. Suas cartas, seus depoimentos já estão nas mãos de seus juízes. O que pode a senhora responder?

Paul quase se encostava nela. O canto da mesa quase não os separava um do outro, e ele a ameaçava com a sua cólera e com toda a sua execração.

Ela recuou até a parede, sob uns cabides onde estavam pendurados casacos, blusas, uma porção de velharias que deviam servir para seus disfarces. Apesar de cercada, presa na armadilha, confundida por tantas provas, desmascarada e impotente, ela conservava uma atitude de desafio e de provocação. O jogo não lhe parecia perdido. Restavam-lhe trunfos. E ela disse:

— Nada tenho a responder. O senhor fala de uma mulher que cometeu crimes. E eu não sou essa mulher. Não se trata de provar se a Condessa Hermine seja uma espiã e criminosa. Trata-se de provar que eu seja a Condessa Hermine. Ora, quem pode provar?

— Eu!

Afastado dos três oficiais que Paul havia indicado como fazendo papel de juízes, havia um outro, que tinha entrado ao mesmo tempo e que tinha escutado no mesmo silêncio e com a mesma imobilidade. Foi esse que avançou. A claridade da lâmpada iluminou-lhe o rosto.

A condessa murmurou:

— Stéphane d Andeville... Stéphane...

Era realmente o pai de Elisabeth e Bernard. Ele estava muito pálido, enfraquecido pelos ferimentos que havia recebido e dos quais apenas começava a restabelecer-se.

Beijou os filhos. Bernard lhe disse emocionado:

— Ah! pai, você está aqui.

— Sim — disse ele —, fui informado pelo general-chefe, e vim a chamado de Paul. Sujeito firme esse seu marido, Elisabeth. Ainda há pouco, quando nos encontramos nas ruas de Soissons, ele me tinha posto a par. E agora me dou conta de tudo o que ele fez... para esmagar essa víbora.

Ele havia-se colocado diante da condessa, e sentia-se toda a importância do que ele ia dizer. Por um momento ela abaixou a cabeça diante dele. Mas logo os teus olhos voltaram a ser provocantes. E ela disse:

— Você também vem me acusar? O que é que você tem a dizer contra mim? Mentiras, não é mesmo? Infâmias?

Ele esperou que um grande silêncio tivesse encoberto essas palavras. Depois, calmamente, disse:

— Venho primeiramente como testemunha, que traz sobre a sua identidade a confirmação que você reclamava ainda há pouco. Você se apresentou outrora sob um nome que não era o seu, e com o qual você conseguiu ganhar a minha confiança. Mais tarde, quando tentou atar relações mais estreitas entre nós, você me revelou sua verdadeira identidade, esperando assim me confundir com seus títulos e alianças. Eu tenho então o direito e o dever de declarar, diante de Deus e dos homens, que você é realmente a condessa Hermine de Hohenzollern. Os pergaminhos que você me mostrou são autênticos. E é justamente porque você é a condessa de Hohenzollern que eu cortei relações que me eram, além do mais, não sabia por que, penosas e desagradáveis. Eis o meu depoimento.

— Depoimento infame — gritou-lhe ela furiosa. — Depoimento mentiroso, eu bem havia dito. Nem uma única prova!

— Nenhuma prova? — disse o conde d'Andeville que se aproximou dela, vibrante de cólera. — E esta fotografia enviada de Berlim por você, e assinada por você? Esta fotografia onde, você teve a audácia de vestir-se como minha mulher? Sim! Você fez isso! Você mesma! Você pensou que tentando aproximar sua imagem da imagem de minha pobre bem-amada você me lembraria sentimentos que lhe seriam favoráveis! E não sentiu que era a pior injúria, para mim e o pior ultraje para a morta! E você ousou, depois do que se passou!

Assim como Paul Delroze um minuto antes, o conde estava em pé diante dela, ameaçador e cheio de ódio. Ela respondeu um pouco embaraçada:

— E por que não?

Ele apertou os punhos e continuou:

— Realmente, por que não? Eu ignorava naquela época o que você era, e eu nada sabia do drama... do drama de antigamente... — Foi somente hoje que liguei os fatos, e se a afastei outrora com uma repulsa instintiva, é com uma execração sem precedentes que eu a acuso agora... agora que eu sei... sim, que eu sei e com toda a certeza. Já quando minha pobre mulher estava moribunda, diversas vezes, no quarto de sua agonia, o doutor me dizia: "É uma doença estranha. Bronquite, pneumonia, está certo, mas há coisas que eu não compreendo... sintomas... por que não dizê-lo? Sintomas de envenenamento." Eu então protestava. A hipótese era absurda. Envenenada, minha mulher! E por quem? Pela Condessa Hermine, por você! Eu hoje o afirmo. Por você! Eu juro pela minha salvação eterna. Provas? Mas a sua própria vida, tudo a acusa.

Vejam, há um ponto sobre o qual Paul Delroze não se fez bem claro. Ele não compreendeu por que, ao assassinar-lhe o pai, você usava roupas iguais às de minha mulher. Por quê? pela razão abominável de que já nessa época, tendo sido a morte de minha mulher resolvida, você queria criar no espírito daqueles que poderiam surpreendê-la uma confusão entre a Condessa d'Andeville e você. A prova é contundente. Minha mulher a atrapalhava: você a matou. Você adivinhou que uma vez morta minha mulher, eu não voltaria mais a Ornequin, e então matou-a!... Paul Delroze, você anunciou seis crimes. Eis o sétimo, o assassinato da Condessa d'Andeville!

O conde havia levantado os dois punhos e os mostrava diante do rosto da Condessa Hermine. Tremia de raiva e parecia que ia bater.

Ela, no entanto, permanecia impassível. Contra essa nova acusação, não teve uma única palavra de revolta. Parecia que tudo se tivesse tornado indiferente, tanto essa carga imprevista como todas as que a aniquilavam. Todos os perigos se afastavam dela. O que ela tinha para responder não mais a obcecava, seu pensamento estava em outro lugar. Ela escutava algo que não eram essas palavras. Ela via algo de diferente desse espetáculo e, como havia notado Bernard, poder-se-ia dizer que ela se preocupava mais com o que se passava lá fora do que com a situação, diga-se bem, horrível, em que ela se achava.

Mas por quê? Que será que ela esperava?

Pela terceira vez ela olhava o relógio. Um minuto se passou. Outro minuto ainda.

De repente, em algum lugar do porão, vindo de cima, houve um barulho, uma espécie de detonação.

A condessa enrijeceu. E, com toda a sua atenção ela escutou, com uma expressão tão fervorosa que ninguém perturbou o silêncio enorme. Instintivamente Paul Delroze e o Conde d'Andeville recuaram até à mesa. A condessa Hermine escutava... Ela escutava...

E subitamente, por cima dela, pela espessura das abóbadas, vibrou o som de uma campainha. Alguns segundos somente... Quatro chamados iguais... e foi tudo.

 

Duas execuções

Mais ainda talvez do que pela vibração inexplicável daquela campainha, o golpe teatral foi produzido pelo sobressalto de triunfo que sacudiu a Condessa Hermine. Ela soltou um grito de alegria selvagem, depois uma gargalhada. Seu rosto transformou-se. Não havia mais inquietação, nem aquela tensão onde se sente, o pensamento que procura e que se amedronta, mas uma insolência, certeza, desprezo, um orgulho desmedido.

— Imbecis! — debochava ela... — Imbecis!... Então vocês acreditaram? Não! É preciso mesmo que os franceses sejam otários!... Vocês pensaram que iam me pegar assim, eu, numa ratoeira? Eu! Eu!...

As palavras já não podiam mais sair de sua boca, tão numerosas e tão apressadas estavam. Ela endureceu, fechou os olhos um instante num grande esforço de vontade, depois, esticando o braço direito e empurrando uma poltrona, descobriu uma pequena placa de acaju com uma alavanca de cobre que ela segurou às apalpadelas, com os olhos sempre voltados para Paul, para o Conde d'Andeville, para o filho, para os três oficiais.

E ela continuou, com uma voz seca, cortante:

— O que tenho eu a temer dos senhores neste momento? Eu? a Condessa Hermine de Hohenzollern? Os senhores querem saber se sou eu? Sim, sou eu. Não nego. Até mesmo o proclamo... Todos os atos que os senhores estupidamente chamam de crimes, sim, eu os realizei... Era o meu dever para com o meu imperador... Espiã? Não... Alemã, simplesmente. E tudo o que uma alemã faz pela sua pátria, é bem feito.

E além do mais... chega de palavras tolas e de conversas sobre o passado. Somente o presente e o futuro contam. E do presente como do futuro volto eu a ser a dona. Sim, sim, graças aos senhores, retomo a direção dos acontecimentos, e nós vamos rir. Vocês querem saber de unia coisa? Tudo o que se está passando por aqui desde alguns dias, fui eu que preparei. As pontes que o rio levou, foi por ordens minhas que tinham sido minadas nas bases... Por quê? Pelo ínfimo resultado de fazê-los recuar? Claro, primeiramente precisamos disso, tínhamos necessidade de anunciar uma vitória... Vitória ou não, ela será anunciada, e terá seu efeito, já vou responder-lhes. Mas o que eu queria era mais do que isso, e consegui.

Ela parou, depois continuou com um tom mais baixo, o busto para frente, na direção dos que a ouviam:

— A recuada, a desordem entre as tropas, a necessidade de dar um obstáculo ao avanço e de trazer reforços... era logicamente obrigação de seu general-chefe vir até aqui e encontrar-se com seus generais. Há meses, eu o espreito. Impossível aproximar-se. Impossível executar meu plano. Que fazer então? Que fazer senão simplesmente fazê-lo vir a mim, já que eu não podia ir a ele... Fazê-lo vir e atraí-lo num local escolhido por mim, onde terei tomado todas as minhas providências. Ora, ele veio... Minhas disposições foram tomadas. E só tenho que querer... Só tenho que querer! Ele está aqui, num dos quartos que ocupa cada vez que vem a Soissons. Ele aí está. Eu sei. Eu esperava o sinal que um dos meus agentes me devia dar. Este sinal, os senhores ouviram. Então, não há dúvida nenhuma. Aquele que eu espreitava trabalha neste momento com os seus generais numa casa que eu conheço e onde mandei pôr uma bomba. Perto dele há um comandante do exército, um dos melhores, e um comandante da guarda, um dos melhores também. São três — não falo dos comparsas — e para esses três, só tenho um gesto a fazer: levantar esta alavanca para fazer explodir os três com a casa que os abriga. Devo fazer esse gesto?

No cômodo houve um clique breve. Bernard d'Andeville armou seu revólver.

— Mas devemos matar esta miserável! — gritou ele.

Paul jogou-se em cima de Bernard, dizendo:

— Cale a boca e não se mexa!

A condessa pôs-se a rir novamente, e uma alegria malvada transparecia nesse riso.

— Você tem razão. Paul Delroze. Você, pelo menos, compreende a situação. Tão rapidamente quanto esse jovem irresponsável possa mandar-me uma bala, eu poderei levantar essa alavanca. E é isso que não deve ser feito, não é? É isso o que esses senhores e voes querem evitar a todo o preço.. mesmo ao preço de minha liberdade, não é? Por que, não é? Estamos nessa! Todo o meu belo p-ano vai por água abaixo porque estou nas suas mãos. Mas eu sozinha valho bem seus três grandes generais, hem? e eu bem que tenho o direito de poupá-los para salvar-me... Estamos então de acordo? A vida deles contra a minha! e já!... Paul Delroze, você tem um minuto para consultar esses senhores. Se dentro de um minuto, falando em seu nome e no deles, você não me der sua palavra que me consideram livre, e que toda proteção me será dada para passar para a Suíça, então... então "o alçapão fechará" como está no Chapeuzinho Vermelho. Ah! peguei vocês todos! E como é cômico! Apresse-se. amigo Delroze. Sua palavra... Sim! Ela já é o suficiente. Homem! a palavra de um oficial francês!... Ah! ah!

Seu riso, um riso nervoso e repulsivo prolongou-se silêncio adentro. E aconteceu que aos poucos ecoou menos seguro, como essas palavras que não provocam o efeito previsto. Por si mesmo pareceu se deslocar, interrompeu-se e parou de repente.

E ela ficou estupefata: Paul Delroze não se tinha, mexido, nem nenhum dos oficiais, nem nenhum dos soldados que estavam na sala.

Ela os ameaçou com os punhos.

— Exijo que se apressem!... Vocês tem um minuto, senhores franceses. Um minuto, nada mais...

Ninguém se mexeu.

Ela contava com voz baixa, e, de 10 em 10, anunciava os segundos passados.

No quadragésimo calou-se, o rosto inquieto. Entre os presentes, a mesma imobilidade.

Uma crise de fúria levantou-a.

— Mas os senhores estão loucos! Os senhores então não compreenderam? Ou então talvez os senhores não acreditem em mim? É isso, adivinhei, não acreditam em mim! Não imaginam que seja possível que eu tenha podido atingir um resultado dessa ordem! Um milagre, não é? Qual nada, somente força de vontade, e espírito de organização. E, além disso, sem soldados não estavam aqui? Meu Deus, é mesmo, seus soldados mesmos que trabalharam para mim colocando linhas telefônicas entre o correio e a casa do general! Meus agentes só tiveram que fazer a ligação e a coisa estava feita; o forno da mina cavado sob a casa viu-se assim ligado a esse porão! Agora acreditam em mim?

Sua voz se partia, ofegante e rouca. Sua inquietação, cada vez mais precisa, estragava-lhe os traços. Por que aqueles homens não se mexiam? Por que não ligavam para as suas ordens? Teriam eles tomado a inadmissível resolução de aceitar tudo de preferência a agraciá-la?

— Vamos, então? — disse ela. — Vocês estão me compreendendo bem, afinal?... Ou então é loucura! Vejamos, reflitam... Seus generais? O efeito que a morte deles causaria?... A impressão formidável que essa morte daria de nossa força? E que confusão!... A recuada de suas tropas!... O alto comando desorganizado!... Vejamos... vejamos...

Poder-se-ia acreditar que ela procurava convencê-los... mais do que isso, que ela lhes suplicava para que eles acreditassem nela e admitissem as conseqüências que ela tinha imposto a seus atos. Para que seu plano desse certo, era necessário que eles consentissem em agir no sentido da lógica. Senão... senão...

De repente ela revoltou-se contra si própria e contra essa espécie de súplica humilhante com a qual se rebaixava. E, retomando sua atitude de ameaça, gritou:

— Azar deles! Azar deles! Foram vocês que os condenaram! Então vocês querem? Estamos de acordo? E então vocês imaginam que me pegaram, talvez? Ora essa! Mesmo que vocês teimem, a Condessa Hermine ainda não disse sua última palavra! Vocês não me conhecem, a mim, Condessa Hermine... Eu não me rendo nunca! Eu, a Condessa Hermine... a Condessa Hermine...

Era horrível vê-la. Uma espécie de demência tinha tomado conta dela. Convulsionada, louca de raiva, horrorosa, 10 anos mais velha, ela lembrava a figura de um demônio queimado pelas chamas do inferno. Xingava, blasfemava, lançava impropérios. Chegava mesmo a rir com a idéia da catástrofe que seu gesto ia provocar. E gaguejava:

— Azar! Foram vocês... São vocês os carrascos... Ah! que loucura! Então, vocês exigem? Mas são loucos!... Seus generais! Seus chefes! Mas não é possível! Perderam a cabeça! Vejam só! Sacrificam de coração leve seus grandes generais! seus grandes chefes! E isso sem razão, cor uma teimosia estúpida, Bem, azar deles! Azar deles! Vocês é que quiseram. Vocês é que são responsáveis. Só bastava uma palavra. E essa palavra...

Ela teve uma última hesitação. Com expressão selvagem e inflexível, olhou aqueles homens obstinados que pareciam obedecer a uma ordem implacável.

Nenhum deles se mexeu.

Então parecia que posta diante da decisão fatal, ela tivesse sido tomada de um tal borbulhar de volúpia malvada que até esquecia n horror de sua situação. Apenas disse:

— Que seja feita a vontade de Deus, e que meu imperador seja vitorioso!

Os olhos fixos, o busto rígido, com o dedo levantou a alavanca.

Foi imediato. Pelas abóbodas, pelo espaço, o barulho da explosão longínqua penetrou até o porão. O solo pareceu tremer como se o choque tivesse se propagado nas entranhas da terra.

Depois houve um grande silêncio.

A Condessa Hermine escutou mais alguns segundos ainda. Seu rosto estava iluminado de alegria. Fia repetia:

— Para que meu imperador seja vitorioso!

E de repente, abaixando o braço e colando-o de encontro ao corpo, fez um esforço violento para trás, entre as roupas onde apoiava as costas, pareceu entrar pela parede adentro, e desapareceu.

Ouviu-se o estrondo de uma porta pesada que se fecha, e quase ao mesmo tempo, no meio do porão uma detonação.

Bernard havia atirado no monte de roupas. E ele já se lançava para a porta secreta quando Paul o segurou e o manteve no lugar.

Bernard debateu-se para livrar-se.

— Mas ela está fugindo!... e você a deixa fugir? Ora, Paul! Você se lembra bem do túnel de Ebrecourt e do sistema de fios elétricos?... É a mesma coisa!... E veja, ela vai escapar!...

Ele não compreendia a conduta de Paul. E sua irmã estava, como ele, indignada. Era aquela a imunda criatura que tinha matado sua mãe, que tinha usurpado o nome e o lugar dela, e deixavam-na escapar!

Elisabeth gritou:

— Paul, Paul, temos de segui-la... temos de esmagá-la... Paul, você está esquecido de tudo o que ela fez?

Ela não tinha esquecido, pelo menos. Ela se recordava do castelo de Ornequin, e da mansão do Príncipe Conrad, e da noite em que teve de esvaziar uma taça de champanha e da troca que lhe foi imposta, e de todas as vergonhas, e de todas as torturas...

Mas Paul não prestava atenção nem ao irmão nem à irmã, nem tampouco aos oficiais e soldados. Todos obedeciam à mesma ordem de impassibilidade. Nenhum acontecimento os tirava dessa conduta.

Passaram-se dois os três minutos durante os quais trocaram algumas palavras em voz baixa, sem que, no entanto, ninguém saísse do lugar. Enfraquecida e emocionada, Elisa-beth chorava. Bernard, sofrendo com os soluços da irmã, tinha a impressão de um desses pesadelos a que assistimos em espetáculos de horror, sem força nem poder para reagir.

E, depois, aconteceu algo que todos, com exceção dele e de Elisabeth, pareceram achar natural. Um barulho rangeu para os lados das roupas. A porta invisível rolou sobre as dobradiças. As roupas agitaram-se dando passagem a uma forma humana que foi jogada ao chão como um embrulho.

Bernard d'Andeville deu um grito de alegria. Elisabeth olhava e ria através das lágrimas.

Era a Condessa Hermine amarrada e amordaçada. Logo depois dela entraram três guardas.

— Olhe aí a encomenda — debochou um deles com uma voz grossa e simpática. — Ah! já estávamos começando a nos preocupar, tenente, e nos perguntávamos se o senhor tinha calculado certo e se era bem ali a saída por onde ela escaparia. Mas, que fera, tenente; a danada nos deu um trabalhão. Que fúria! ela mordia como um animal fedorento. E como berrava! Ah! que cadela!...

E dirigindo-se para os soldados em quem essas palavras provocavam uma grande hilaridade:

— Camaradas, só faltava essa ave para a nossa caçada de daqui a pouco. Mas, na verdade, é uma bela peça, e o tenente Delroze descobriu mesmo a sua pista. O quadro agora está completo. Um bando inteiro de boches em um dia só! Eh! tenente, o que é que o senhor vai fazer? Atenção! a fera tem dentes!

Paul tinha-se debruçado sobre a espiã. Desamarrou-lhe a mordaça que parecia machucá-la. Logo ela fez esforços para gritar, mas eram sílabas asfixiadas, incoerentes, onde, no entanto, Paul discerniu algumas palavras contra as quais ele protestou.

— Não — disse ele. — Nem mesmo isso, nem mesmo essa satisfação. O golpe foi aniquilado... É esse o castigo mais terrível, não é?... Morrer sem se ter feito o mal que se queria fazer. E que mal!

Ele se levantou e aproximou-se do grupo de oficiais. Eles conversavam, os três, já que sua missão de juízes tinha acabado, e um deles disse a Paul:

— Bem organizado, Delroze, meus parabéns!

— Muito obrigado, general. Eu poderia ter evitado essa tentativa de evasão, mas quis acumular o máximo possível de provas contra essa mulher, e não somente acusá-la dos crimes que ela cometeu, mas mostrá-la aos senhores em plena ação e em pleno crime.

O general fez uma observação:

— E! O caso é que ela não vai de mãos leves, a danada! Sem você, Delroze a casa explodia com todos os meus colaboradores, e comigo ainda por cima! Mas, diga-me aqui, e essa explosão que ouvimos?...

— Uma construção inútil, general, construção já demolida pelas granadas, além do mais, e da qual o comando local queria ver-se livre. Nós só tivemos de desviar o fio elétrico que sai daqui.

— Quer dizer então que todo o bando está preso?

— Sim, general, graças a um dos cúmplices em quem tive a sorte de pôr as mãos logo no início, e que me forneceu as indicações necessárias para penetrar aqui, depois de ter-me revelado com detalhes o plano da Condessa Hermine e o nome de todos os cúmplices. Hoje à noite, às 10 horas, ele devia, caso o senhor estivesse trabalhando em casa, prevenir a condessa por meio dessa campainha. O aviso foi dado, mas sob minhas ordens e por um de nossos soldados.

— Muito bem, e mais uma vez obrigado, Delroze.

O general deu um passo à frente em meio ao círculo de luz. Ele era grande e forte. Um espesso bigode branco lhe cobria o lábio.

Houve entre os presentes um movimento de surpresa. Bernard d'Andeville e sua irmã tinham-se aproximado. Os soldados tomaram a posição militar. Eles reconheceram o general-chefe. O comandante da divisão e o comandante do batalhão acompanhavam-no.

Diante deles, os soldados tinham empurrado a espiã contra a parede. Eles lhe desamarraram as pernas, mas tiveram de segurá-la, porque suas pernas se debatiam.

E, mais ainda que o pavor era um espanto indescritível que seu olhar exprimia. Com seus olhos arregalados ela contemplava fixamente aquele que ela tinha querido matar, aquele que ela acreditava morto, e que vivia e que pronunciaria contra ela a inevitável sentença de morte.

Paul repetiu:

— Morrer sem ter feito o mal que se queria fazer, é isso que é horrível, não é?

O general-chefe vivia! O horrível e formidável complô tinha abortado! Ele vivia e todos os seus colaboradores viviam também, e todos os inimigos da espiã viviam também. Paul Delroze, Stéphane d'Andeville, Bernard, Elisabeth... os que ela tinha perseguido com seu ódio infatigável. estavam aí! Ela ia morrer com esta visão atroz para ela, de seus inimigos felizes e reunidos.

E sobretudo ia morrer com esta idéia de que tudo estava perdido. Seu grande sonho desmoronava.

Com a Condessa Hermine desaparecia a própria alma dos Hohenzollern. E tudo isso se via no seu olhar feroz, onde passavam clarões de demência.

O general disse a um de seus companheiros:

— Você deu ordens? O bando vai ser fuzilado?

— Sim, general, hoje à noite mesmo.

— Muito bem! Comecem então por esta mulher. E imediatamente. Aqui mesmo.

A espiã sobressaltou-se. Contorcendo o rosto, conseguiu livrar-se de sua mordaça, e ouviu-se quando implorava perdão em um fluxo de palavras e gemidos.

— Vamos embora — disse o general.

Ele sentiu duas mãos ardentes apertavam as suas. Elisabeth, inclinada para ele, lhe suplicava chorando.

Paul apresentou sua mulher. O general disse com doçura:

— Veio que a senhora tem piedade, apesar de tudo o que lhe fizeram. Não devemos ter piedade, senhora. Sim, claro, é a piedade que se tem pelos que vão morrer. Mas não se deve ter por esses daí, nem pelos de sua raça. Eles colocaram-se fora da humanidade e não devemos esquecê-lo nunca. Quando a senhora for mãe, ensinará a seus filhos um sentimento que a França ignorava e que será útil no futuro: ódio aos bárbaros.

Ele tomou-lhe o braço com um gesto carinhoso e puxou-a até à porta.

— Permita-me ter o prazer de conduzi-la. Você vem, Delroze? Você deve estar precisando de repouso depois de um dia como este.

Saíram. A espiã gritou:

— Graça! Graça!

Os soldados já se alinhavam ao longo da parede oposta.

O conde, Paul e Bernard demoraram um instante. Ela tinha matado a mulher do conde d'Andeville. Ela tinha matado a mãe de Bernard e o pai de Paul. Ela tinha torturado Elisabeth. E se bem que a alma deles estivesse ferida, experimentavam esta grande calma que nos dá o sentimento de justiça. Nenhum ódio os agitava. Nenhuma idéia de vingança palpitava neles.

Para segurar a espiã, os soldados a tinham amarrado com uma corda a um prego, pela cintura. Afastaram-se.

Paul lhe disse:

— Um dos soldados que está aqui é padre. Se tiver necessidade de sua assistência...

Mas ela não compreendia. Ela não escutava. Ela somente via o que se passava e o que ia se passar, e balbuciava sem parar:

— Graça!... Graça!... Graça!...

Saíram os três. Quando chegaram ao alto da escada, uma ordem lhes chegou aos ouvidos:

— Apontar!

Para não ouvir, Paul fechou rapidamente atrás de si a porta do hall e a da rua. Lá fora, o ar livre, o ar que se respira a plenos pulmões. A tropa passava cantando. Souberam que o combate tinha terminado e nossas posições definitivamente asseguradas. Aí também a Condessa Hermine havia fracassado...

 

Alguns dias mais tarde, no castelo de Ornequin, o sub-tenente Bernard d'Andeville, seguido de doze homens, entrava numa espécie de casamata saudável e bem aquecida que servia de prisão ao Príncipe Conrad.

A mesa trazia os vestígios de uma refeição copiosa.

Ao lado, em seu leito, o príncipe dormia. Bernard tocou-lhe no ombro.

— Tenha coragem, Alteza!

O prisioneiro levantou-se amedrontado.

— Hem? Que é que o senhor está dizendo?

— Tenha coragem, Alteza! chegou a hora.

Ele balbuciou, pálido como um morto:

— Coragem?... Coragem?... Não compreendo. Meu Deus! Meu Deus! Será possível?...

Bernard explicou:

— Tudo sempre é possível, e o que deve acontecer acontece sempre, principalmente as catástrofes.

E propôs:

— Um cálice de rum para animá-lo, Alteza? Um cigarro?...

— Meu Deus!... meu Deus! — repetia o príncipe que tremia como uma folha.

Aceitou maquinalmente o cigarro que lhe oferecia Bernard, mas caiu-lhe dos lábios às primeiras baforadas.

— Meu Deus! Meu Deus! — repetia o príncipe sem parar. Seu desespero dobrou quando percebeu os 12 homens que esperavam, fuzil ao ombro. Ele teve aquele olhar louco do condenado que, na claridade pálida da madrugada, percebe a silhueta da guilhotina. Tiveram de levá-lo até a varanda, diante de um painel da parede.

— Sente-se, Alteza — disse-lhe Bernard.

O infeliz seria, aliás, incapaz de manter-se em pé. Ele arriou sobre uma pedra.

Os 12 soldados tomaram posição diante dele. Abaixou a cabeça para não vê-los, e todo o seu corpo estava agitado como o de um fantoche quando se puxam as cordas.

Passou-se um momento. Bernard perguntou-lhe com um tom amigo:

— Prefere de frente ou de costas, Alteza?

E como o príncipe, aniquilado, não respondesse, ele gritou:

— E então, Vossa Alteza parece estar doente? Ora, vamos, controle-se. O senhor tem tempo. O Tenente Paul Delroze só virá daqui a 10 minutos. Ele faz questão de assistir... como é que eu poderia dizer?... assistir a essa pequena cerimônia. E Vai achá-lo adoentado. Vossa Alteza, está esverdeado.

Sempre com muito interesse, e como se estivesse procurando distraí-lo, disse-lhe:

— O que será que eu poderia lhe contar? A morte de sua amiga, a Condessa Hermine? Ah, ah! parece-me que isso o faz ficar todo ouvidos! Pois é, imagine que essa digna pessoa foi executada outro dia em Soissons. E na realidade ela não estava melhor do que o senhor. Tivemos de segurá-la. E como gritava! E como pedia graça! Que falta de compostura! Que falta de dignidade! mas tenho a impressão de que o senhor está pensando em outra coisa. Diabos! como distraí-lo? Ah! tenho uma idéia...

Tirou, do bolso um livreto.

— Veja: vou simplesmente ler para sua Alteza. Claro que uma Bíblia seria mais indicado, mas não tenho uma agora. E depois, trata-se de proporcionar-lhe um momento de esquecimento, não é? e não sei de nada melhor para um bom alemão, orgulhoso de seu paia e dos feitos de seu exército, não conheço nada mais reconfortante que esse livreto. Nós o saborearemos juntos. Quer, Alteza? Título: Os Crimes Alemães Segundo Testemunhos Alemães. São anotações de viagem escritos por seus compatriotas, sendo assim, então, um desses documentos incontestáveis diante dos quais a ciência alemã se inclina com respeito. Vou abrir por acaso e ler:

"Os habitantes fugiram da aldeia. Foi horrível. Há sangue colado em todas as casas e quanto aos rostos dos mortos, estavam horrorosos. Nós logo enterramos todos, em número de 60. Entre eles muitas mulheres idosas, velhas e uma mulher grávida e três crianças que se tinham abraçado umas nas outras e morreram assim. Todos os sobreviventes foram expulsos e eu vi quatro meninos carregando por cima de duas varas um berço onde estava uma criança de cinco a seis meses. Tudo foi pilhado. E eu vi também uma mãe com seus dois filhos, um tinha um grande ferimento na cabeça e um olho vazado."

— É curioso isso tudo, não é, Alteza? Ele continuou: "26 de agosto — A admirável cidade de Gué d'Hossus (Ardennes) foi deixada incendiada, se bem que inocente, ao que me parece. Disseram-me que um ciclista caiu da sua bicicleta e que, na sua queda, seu fuzil atirou sozinho; então fizeram fogo em sua direção. Aí simplesmente jogaram todos os habitantes masculinos às chamas."

E mais adiante:

"25 de agosto (na Bélgica) — Dos habitantes da cidade, fuzilamos 300. Aqueles que sobreviveram à saraivada de tiros foram requisitados como coveiros. Era preciso ver as mulheres nesse momento..."

E a leitura continuou, cortada por reflexões justas que Bernard emitia com uma voz plácida como se tivesse comentado um texto de História. E o Príncipe Conrad parecia prestes a desmaiar.

 

Quando Paul chegou ao castelo de Ornequin e que, saindo do carro, foi para a varanda, à vista do príncipe, o cenário com os 12 soldados, tudo lhe deu logo a perceber a pequena comédia algo macabra a que Bernard se tinha deixado levar. Ele protestou, com um tom de reclamação: "Oh! Bernard!..."

O jovem falou afetando um ar de inocência:

— Ah! é você, Paul? Depressa! O cavalheiro e eu o esperávamos. Enfim, vamos acabar com esta história!

Ele foi postar-se diante de seus homens, a 10 passos do príncipe.

— Está pronto, cavalheiro? Ah! decididamente, o senhor prefere de frente... Perfeito! Aliás Vossa Alteza é muito mais simpático de frente. Ora, as pernas menos moles, por favor! Um pouco de linha!... E um sorriso, sim? Atenção.. Vou contar... Um, dois... Sorria, ora essa!...

Tinha abaixado a cabeça, e segurava de encontro ao peito um pequeno aparelho fotográfico. Quase ao mesmo tempo o clique fez-se ouvir. Exclamou:

— Pronto! Tudo certo, cavalheiro! Nunca lhe agradecerei o suficiente. Vossa Alteza deu mostra de uma boa-vontade, de uma paciência!... O sorriso está talvez um pouco forçado, a boca conserva um ricto de condenado à morte, e os olhos têm uma expressão cadavérica. Fora isso está um encanto. Agradeço mil vezes!

Paul não pôde deixar de rir. O Príncipe Conrad não aceitou muito bem a brincadeira. E, entretanto, ele sentia que o perigo havia desaparecido, e tentava enrijecer-se como um cavalheiro que suporta todos os infortúnios com dignidade altiva. Paul Delroze disse-lhe:

— Vossa Alteza está livre. Um dos oficiais de ordenança do imperador e eu temos encontro às três horas no front. Ele traz 20 prisioneiros franceses e eu o entregarei a eles. Queira ter a gentileza de entrar neste automóvel.

Visivelmente o Príncipe Conrad não compreendia uma palavra do que lhe dizia Paul. O encontro no front, os 20 prisioneiros principalmente, tudo aquilo era muita confusão para o seu cérebro.

Mas quando ele tomou lugar no carro e o automóvel começou a contornar lentamente o gramado, teve uma visão que acabou de desconcertá-lo: Elisabeth d'Andeville, de pé na relva, inclinava-se sorrindo.

Alucinação, logicamente. Ele esfregou os olhos com um ar lerdo, e seu gesto traduzia tão bem seu pensamento que Bernard lhe disse;

— Não está enganado, cavalheiro. É Elisabeth d'Andeville. Ela mesma. Paul Delroze e eu julgamos que seria preferível ir buscá-la na Alemanha. Então pegamos seu Beedeker. Pedimos uma entrevista com o imperador. E foi ele próprio que quis, com a sua boa-vontade habitual... Ah! por falar nisso, cavalheiro, prepare-se para o caso de seu papai fazer cara feia. Sua Majestade está furiosa com o senhor. O quê! Que escândalo!... Uma conduta de bastardo! Que esfregão, Alteza!

 

A troca teve lugar na hora marcada.

Os 20 prisioneiros franceses foram entregues.

Paul Delroze chamou o oficial de ordenança à parte.

— Senhor — disse-lhe ele —, queira ter a bondade de avisar ao imperador que a Condessa Hermine de Hohenzollern tentou assassinar em Soissons o general-chefe do exército. Presa por mim e julgada, ela foi, por ordens do general-chefe, fuzilada. Estão em minha posse certo número de papéis e sobretudo cartas íntimas às quais o imperador atribui, não tenha a menor dúvida, maior importância. Essas cartas lhe serão entregues no dia em que o castelo de Ornequin tiver de posse de todos os seus móveis e suas coleções. Saudações, cavalheiro.

Estava tudo terminado. Em todas as linhas, Paul ganhava a batalha. Ele tinha libertado Elisabeth e vingado o próprio pai. Havia dado um golpe no serviço de espionagem alemão e assegurado, ao exigir a libertação de 20 prisioneiros franceses, todas as promessas feitas ao general.

Ele podia conceber um orgulho legítimo de sua obra.

Na volta Bernard lhe disse:

— Então eu o choquei há pouco?

— Mais que chocou — disse Paul rindo —, indignou.

— Indignei! Não diga... Indignei!... Assim um jovem moleque que tenta apropriar-se de sua mulher com alguns dias de prisão fica quites! Eis um dos chefes desses malfeitores que assassinam e pilham e vai voltar para casa e recomeçar suas pilhagens e assassinatos! Vamos, é absurdo. Reflita um pouco que todos esses bandidos que quiseram a guerra, príncipes, imperadores, mulheres de príncipes e imperadores só conhecem da guerra as grandeza e belezas trágicas, e nunca nada das angústias que torturam os outros. Eles sofrem moralmente o pavor do castigo que os espera, mas não fisicamente, na sua carne e na carne de sua carne. Os outros morrem. Eles continuam a viver. E quando eu tenho essa ocasião única de fazer sofrer um deles, quando eu podia me vingar dele e de seus cúmplices, executado friamente como eles executam nossas irmãs e nossas mulheres, você fica espantado que eu lhe faça conhecer durante 10 minutos o arrepio da morte! Não quer dizer que, em sã justiça humana e "pela " lógica eu deveria infligir-lhe um mínimo de suplício que ele nunca mais esquecesse. Cortar-lhe um pedaço da orelha, por exemplo, ou a ponta do nariz.

— Você está coberto de razão — disse Paul.

— Está vendo, eu deveria ter-lhe cortado a ponta do nariz! Você é de minha opinião! Quanto que eu me arrependo! E eu, que imbecil, contentei-me com uma miserável lição da qual ele nem se vai lembrar mais amanhã. Que banana que eu sou! Enfim, o que me consola é que tirei uma fotografia que constitui o mais inestimável dos documentos... a cara de um Hohenzollern diante da morte. Que coisa! Você viu a cara dele?

O automóvel atravessava a aldeia de Ornequin. Estava deserta. Os bárbaros tinham queimado todas as casas e levado todos os habitantes, como se arrancam diante de si rebanhos de escravos.

No entanto eles viram sentado perto das ruínas um homem vestido de trapos, um velho. Ele olhou-os abobalhado com olhos de demente.

Ao lado, uma criança levantou os braços para eles, pobres braços onde já não havia mãos.

 

                                                                                 Maurice Leblanc  

 

                      

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