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O FEITIÇO DO CÁLICE DE PEDRA / John Dickinson
O FEITIÇO DO CÁLICE DE PEDRA / John Dickinson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FEITIÇO DO CÁLICE DE PEDRA

 

                                                       O HOMEM NO SONHO

 

                       As Cortes do Rei

Phaedra não conhecia o caminho pelos corredores escuros da casa do rei. Seguia as meninas mais velhas pelas passagens sombrias, guiando-se por seus sussurros, pelo ruído de seus pés e pelo som de euforia contida. Os barulhos a levaram à esquerda, e depois à direita, por depósitos e salas de ferramentas e aposentos cuja serventia ela não conseguia imaginar. Todas as persianas estavam fechadas. Ninguém havia pensado em levar uma fonte de luz porque era dia lá fora quando, juntas, urdiram o plano. Supunha que alguém à frente da fila as estivesse conduzindo.

   Houve uma pausa. As meninas haviam se deparado com uma porta. Para além dela era possível ouvir uma grande comoção: o som de uma multidão reunida em um amplo salão.

Phaedra havia imaginado que a corte real fosse um local silencioso, como uma igreja abrigando um serviço religioso, onde as pessoas falavam apenas quando necessário. Não esperava por aquele ruído desordenado. Talvez aquilo facilitasse a entrada na sala do trono sem que fossem notadas. Não tinha idéia do que aconteceria depois disso. Nunca havia testemunhado o julgamento de uma bruxa antes.

   Uma trombeta soou adiante. As meninas abriram a porta. Phaedra viu o contorno de suas cabeças e ombros contra a luz além da abertura, e todas, uma a uma, foram ultrapassando a soleira. Ela foi a última a passar para uma estreita galeria de madeira que se estendia por todo o comprimento da parede do salão abobadado. O ruído que escutaram antes estava diminuindo. Em algum lugar abaixo delas, uma voz começou a falar. Ela encontrou um lugar na balaustrada e respirou fundo. Sabia que não devia estar ali, olhando para a sala do trono do rei.

Era difícil enxergar.

   O sol brilhava forte e penetrava pelas janelas altas, inundando o salão com seus raios. Tochas cintilavam tremulantes. Fios dourados brilhavam sobre flâmulas que balançavam nas colunas de aquecimento. Abaixo dela estava a multidão — cavaleiros, barões e nobres espremidos contra cada uma das paredes, de forma a deixar vazia a longa nave. Onde havia luz do sol, os homens pareciam banhados por prata brilhante. Cada detalhe era nítido, desde do brasão de uma casa ao piscar de um olho. Todos tinham expressões tensas e barbas, e todos se esforçavam para enxergar alguma coisa. Entre os raios de luz havia uma massa de formas e silhuetas mergulhadas em sombras mais e mais profundas que se estendiam pelo salão até o trono. O ar carregava o suor de duzentos homens em trajes pesados. Ruídos abafados ecoavam entre as paredes; estalidos, pés que se moviam, o ranger do couro e sentenças pela metade murmuradas no ouvido de um vizinho. Os homens falavam como caçadores, como se andassem pela floresta na ponta dos pés. E a besta à espreita entre as árvores era a iminência da Morte.

   Ela procurou pelo pai pela primeira vez, tentando localizá-lo em meio à massa de homens desconhecidos. Ele devia estar ali. Mas já a vira? Se a vira, devia estar zangado por ela ter ido a um local em que não deveria estar. Se teria de enfrentar essa situação mais tarde, preferia saber desde já. Mas não conseguia encontrá-lo, porque era uma estranha na corte e não sabia em que parte do salão deveria procurá-lo. Não sabia qual seria o lugar dele entre todos aqueles nobres: um alto posto, certamente, mas a que distância do rei?

   Podia ver o rei, um homem de barba branca sentado sobre o Alto Trono. Acima dele, o sol de sua casa pintava a parede de ouro. À sua direita, na sombra, sentava-se um homem mais jovem, príncipe Barius, que ocupava o Trono Ocre e mantinha-se bem ereto com uma espada sobre os joelhos. E o homem mais jovem à esquerda do rei devia ser o príncipe Septimus, que seria sagrado cavaleiro naquela noite, no mesmo banquete em que ela seria apresentada.

   De um lado dos tronos havia um pequeno grupo de bispos, todos paramentados e com as cabeças cobertas de dourado, e seus sacerdotes tonsurados. Do outro lado estavam os oficiais escolhidos para a corte, rostos sérios e pescoços adornados por grossas correntes de ouro. Havia guardas na frente do palanque. Seus capacetes e machados estavam polidos e os protetores de ombros brilhavam, refletindo a luz das tochas.

   Um barão ocupava o centro da nave e era banhado pelos últimos raios de sol que incidiam sobre aquela área na frente do trono. Sua barba negra e a roupa preta empalideciam sob a luz intensa, e a pele de seu rosto parecia branca como a morte, exceto pela pequena sombra escura embaixo da ponta do nariz. Ele estava de frente para a luz. Certamente, podia enxergar muito pouco, mas todos no salão podiam vê-lo; a testa imponente; o rosto forte. Ele devia ter se colocado deliberadamente sob o raio de sol no momento em que o som da trombeta silenciou. A voz que ela ouvira brotava de uma figura nas sombras ao lado do barão: um homem coberto por capa e túnica que, compenetrado, lia um pergaminho.

   "... Associou-se a espíritos caídos... conspirou com rebeldes... tramou sorrateiramente promover violência pela magia, contra nós, um barão do reino... clamamos por justiça e por um fim ao mal... que deve, portanto, encontrar a morte sob a lei desta terra..."

   Havia mais alguém na área de sombras e piso de pedras. Era uma mulher, e estava sozinha. Sua cabeça pendia. E Phaedra tinha a impressão de que nenhum rosto na multidão se alterava com as acusações que eram despejadas contra a criatura. Todos, desde o trono do rei até as portas do salão, mantinham-se sérios.

   Phaedra não sabia qual poderia ser a aparência de uma bruxa. Se esperava alguma coisa, era uma espécie de pesadelo estridente, um ser que estaria enjaulado como uma besta em uma feira. Não imaginara uma mulher comum, apenas alguns poucos anos mais velha do que ela mesma. Então, era contra esse ser que o barão queria vingança. Essa era a mulher que seria enterrada numa cova rasa e sem identificação, sem cabeça e com uma estaca cravada em seu coração. Phaedra respirou fundo mais uma vez, tentando descobrir se sentia mesmo as pernas tremerem naquele ambiente pesado.

   A leitura chegou ao fim. A mulher acusada respondia em voz baixa, tão baixa que os presentes mal podiam ouvi-la. Seu discurso foi breve. O intervalo que se seguiu foi ocupado por tosses e vozes abafadas de pessoas que moviam os pés sem sair de seus lugares.

   O rei disse alguma coisa do alto de seu trono. Uma pergunta. O barão assentia. O rei acenou. Seis retentores se adiantaram portando longas espadas. Eles as depuseram em uma fileira no chão entre o barão e a mulher, alternando cabo e lâmina de forma que três apontassem para cada lado. Um arauto se fez ouvir no salão.

   — O rei concede julgamento aos olhos do Paraíso. Qualquer um que se sentir com direito a esta causa adiante-se antes do terceiro toque de trombeta. Que se adiantem apenas aqueles que estejam dispostos a provar a verdade com o próprio corpo!

O rei ergueu a mão, e a trombeta soou pela primeira vez.

   Todos se sobressaltaram. Súbita, imponente, a língua do bronze era mais poderosa do que as vozes que a precederam. Imediatamente, dois cavaleiros se adiantaram. Eles ocuparam seus lugares junto aos cabos das espadas diante do barão. Em algum lugar na galeria, alguém sussurrava seus nomes, como se fossem lutadores bastante conhecidos. Um momento mais tarde, o próprio barão ocupou o lugar diante do cabo da terceira espada ao seu lado. Mais uma vez, ele se moveu com cuidado para que o sol o banhasse da cabeça aos pés, possibilitando, assim, que todos o vissem.

   Depois, nada aconteceu. Pessoas sussurravam umas para as outras no balcão e abaixo dele. Ninguém saía do lugar. Phaedra olhou para a mulher, que estava em pé e sozinha, de costas para a galeria.

   Vamos. Vamos lá. Por que a trombeta não soava? O arauto havia dormido em pé? Para lá do salão, o sol já havia mudado de lugar. Um caminho de sombra tornava-se mais e mais longo, rastejando para o pé do barão. Ele não havia notado.

   Houve uma movimentação no salão. Alguém emergira da multidão no fundo da sala e colocava-se na nave vazia. Ele olhava em volta, olhava para trás, como um menino que havia recebido do pai a ordem para pôr-se em pé, mas esquecendo-se imediatamente do que deveria fazer.

   Ele começou a caminhar em direção do trono. Atravessou um raio de luz, e assim iluminado parecia ser um simples cavaleiro em sua malha. A cabeça estava desnuda, mas o rosto ficou obscuro por mais alguns segundos até ele atravessar o último raio de luz e lançar sua sombra por um momento sobre os joelhos do barão. Uma face forte e viril surgiu brevemente sob cabelos lisos. Um sabujo vermelho dançava em sua sobrepeliz. Na penumbra, diante do trono, o homem se inclinou para o rei. Depois, virou-se para a direita e, sem sequer olhar diretamente para a mulher atrás dele, colocou-se na frente do cabo de uma das espadas viradas para ela. Ele ainda não havia concluído o movimento quando a trombeta finalmente soou.

   Os sussurros ganharam força e velocidade. A mudança era palpável. Sem um defensor a mulher teria sido uma bruxa. Sua sentença teria sido anunciada e executada antes do cair da noite. Um homem reabrira a questão. Homens morreriam para encerrá-la.

   O brilho da luz ia perdendo força; nuvens finas encobriam o sol. Os contrastes fundiam-se em detalhes que eram mais nítidos ao olhar. O barão e seus cavaleiros olhavam para o oponente com dureza. O recém-chegado ostentava o equipamento de um senhor de terras pobre, um dos "cavaleiros-cães" do reino, que não seguiam nenhum amo senão o rei e não tinham seguidores além de um fiel sabujo. Ele olhava para os próprios pés, para o trono, para a mulher atrás dele. Talvez as implicações do que estava fazendo somente agora se tornassem claras. A mulher também já não olhava apenas para a fileira de homens armados diante dela, mas para seus pés e para a multidão, para as janelas e para as portas, até que, por fim, ela olhou para cima, para a galeria. Esguia, usava um vestido azul e simples. Seus cabelos longos eram de um castanho profundo e brilhante, e apenas algumas poucas pedras amarelas os adornavam. Por um momento, Phaedra olhou para o rosto pálido e triangular com aqueles olhos enormes e o nariz pronunciado; a expressão sugeria perplexidade e solidão. Phaedra compreendeu que ela sentia medo.

   — Agora vão matar os dois — resmungou uma voz na galeria. — Primeiro ele, e depois, ela.

   Era como um sonho. Pior que um sonho, porque neles Phaedra nunca se sentia tão impotente quanto ali. Queria virar-se, deixar o salão e não testemunhar o fim daquela situação horrível. Mas não saberia voltar sozinha pelos corredores escuros da casa do rei.

   E, como em um sonho, de repente podia ver claramente o rosto de seu pai. Ele estava entre os nobres no corredor oposto. Não olhava para cima. Seu rosto largo e encoberto pela barba demonstrava seriedade e atenção para com a cena que ali se desenrolava. Ele não gostava do que via, isso era evidente. O que poderia fazer? Phaedra tinha certeza de que ele queria fazer alguma coisa. Em casa, estava sempre preparado para dizer o que julgava ser certo ou errado. Ele diria ao rei, diante de toda aquela gente, que esse julgamento era um erro? Certamente que não. O rei havia decidido que ele deveria acontecer.

Então, ele se adiantaria para ser um defensor?

   Nesse caso, teria de lutar! Lutar contra homens que desejariam matá-lo, um depois do outro, e sem seus soldados para ajudá-lo! Ela não ousava pensar no que poderia acontecer.

   Perto de onde estava seu pai, um jovem deixou seu lugar e começou a percorrer o corredor. Devia estar pensando que, se alguém mais assumisse a segunda espada pela bruxa, ele ficaria com a terceira. O terceiro homem era o último a lutar e tinha sempre mais chances de sobrevivência. Mas ninguém mais se moveu, e a mão de um cavaleiro mais velho o puxou de volta ao seu lugar. Os sibilos de palavras murmuradas em fúria subiram à galeria. E seu pai também não se movia.

   Ela queria desviar os olhos. Encontraria, de alguma forma, o caminho de volta pelos corredores sombrios e sairia desse lugar assustador. Mas ela também não se movia. Nem os três cavaleiros, a mulher ou o homem do sabujo dançante.

Vamos. Vamos. Vamos.

   Os cavaleiros olharam para o homem que segurava a trombeta, que olhava para o rei. O rei não fez o sinal para o último toque. Virado em seu trono, ele conversava com um arauto e um conselheiro. A ponta de seu dedo movimentava-se suavemente quando ele falava. Os príncipes estavam debruçados sobre seus tronos para ouvir a conversa. Por um momento, todo o salão aguçou os ouvidos, tentando captar as palavras reais. O arauto e o conselheiro pareciam hesitantes. O rei falou novamente, mais duas vezes, depois se voltou para o barão. O arauto adiantava-se para colocar-se ao lado do trombeteiro, bem na beirada do palanque.

   — Homens declararam-se dispostos a morrer pelo direito. Porém, antes que sangue seja derramado, o rei deseja considerar o assunto. O dia de justiça está encerrado. Os súditos do rei se dispersarão.

   Imediatamente, a sala explodiu numa tremenda cacofonia. Todos estavam surpresos, alarmados, até. A ocasião não se completara. Se não fosse decidida de uma forma ou de outra, então...? A longa procissão para a saída começou, desorganizada, como se os trombeteiros houvessem sido surpreendidos pelo anúncio. Com o som estridente das trombetas, os guardas da porta entenderam que a audiência estava encerrada. As portas foram abertas. As intermináveis fileiras de cavaleiros e nobres uniam-se no centro do salão numa ruidosa massa móvel. Phaedra viu o barão parado no mesmo lugar, como se estivesse em choque. Não podia ver sua expressão, porque ele mantinha os olhos fixos no trono. O rei de barbas brancas sustentava seu olhar, impassível.

   A mulher havia desaparecido para algum lugar, presumivelmente sob custódia. Membros da corte discutiam com o cavaleiro do sabujo. Um chefe da guarda olhou para cima e viu que a galeria estava ocupada, e por quem. Ele as expulsou com um gesto, a testa franzida, como se houvesse ali algo de obsceno ou impróprio que jovens donzelas não devessem testemunhar. Um guarda juntou-se a ele, repetiu seus gestos e chamou um companheiro. As meninas correram.

   Correndo, percorreram os corredores mal iluminados e as escadas traiçoeiras que teciam uma teia de alvenaria em torno das cozinhas e dos depósitos. Mãos manejavam ferrolhos que, emperrados, demoravam a ceder. Seus pés provocavam grande ruído, e vozes chamavam seus nomes na escuridão. Havia nelas riso e medo, sentimentos que ganhavam força e tornavam-se mais barulhentos em sua expressão à medida que se afastavam da sala da corte, descendo rapidamente para o pátio externo de onde haviam obtido acesso uma hora antes. A porta estava encostada, como a tinham deixado. Ela cedeu sob a mão firme da líder, e todas sentiram o calor do dia luminoso. O grupo voltou ao pátio rindo e respirando com dificuldade.

   — Oh! — exclamou uma. — Algum deles era mais belo que Barius?

   Havia meia dúzia de jovens damas no pátio. Phaedra, aos quinze anos, era a caçula do grupo. Nenhuma delas tinha mais do que vinte anos. Como Phaedra, eram filhas de homens importantes que tinham ido à casa do rei para o grande banquete que Sua Majestade ofereceria naquela noite, marcando assim a vitória definitiva sobre os barões rebeldes, o final do verão e a sagração de seu segundo filho como cavaleiro. Com todas as batalhas que ocorriam no reino, fazia anos que não viviam uma ocasião como essa. Phaedra não era a única que nunca estivera na corte. Muitas dessas jovens somente se haviam conhecido no dia anterior.

   Estavam vestidas informalmente, porque não teriam cerimônia nenhuma até o banquete daquela noite (e certamente não deveriam ter comparecido à corte do rei). Mesmo assim, os longos vestidos de lã fina em suaves tons de azul, verde e amarelo faziam com que parecessem um alegre grupo festivo naquele pátio de piso de pedras com sua fonte refrescante e a bela oliveira atrofiada.

— Acha que ele nos viu?

— Quem?

— Príncipe Barius, é claro...

— Por que não lutaram? O que farão?

   — Juro que pensei que eles a arrastariam para fora e cortariam sua cabeça na escada... bem na nossa frente...

   — ... eu acenei para ele! Estou certa de que olhou para mim.

   — Alguém convenceu aquele cavaleiro-cão a assumir a defesa daquela mulher. Quem pode ter sido?

   — Talvez ele tenha se apaixonado por ela. Ali, à primeira vista!

   — Dibourche estava comendo como um glutão, não estava? Ele é horrível. E quase nos viu. Se me visse, ele falaria com meu pai e eu seria obrigada a passar o resto de nossa estadia trancafiada no convento da cidade.

   — Se tivesse sorte. Ele está procurando por uma esposa, sabe? Talvez pudesse pedir a seu pai...

— Não, não! Amanthys, nem diga isso...

— Esganado, esganado...

   Mais gargalhadas. O sol iluminava o pátio com toda sua força naquele início de tarde. Duas ou três das meninas estavam sentadas na beirada da fonte, recuperando o fôlego à sombra da árvore.

   — Suponho que um príncipe não possa simplesmente descer de seu trono e defender uma mulher acusada. Mas estou certa de que era isso que queria fazer...

— Talvez devêssemos todas cometer o crime da bruxaria...

— Oh!

   — ... ou dizer tê-lo cometido esta noite. Então, seríamos julgadas uma a uma diante do trono, e ele teria de escolher uma de nós para resgatar!

   O ar era quente no pátio bem iluminado, e parado. Nada se movia à sombra da oliveira. Nem as folhas secas nem as teias de aranha se movimentavam.

   — Essa é a idéia mais tola que já ouvi desde Hallows — opinou a jovem chamada Amanthys.

— Você seria morta...

   — Ou poderia ser resgatada por algum cavaleiro-cão do fim do mundo, e ele a jogaria sobre sua carroça e a levaria para uma casa de dois cômodos infestada de moscas, onde você teria de passar o resto da vida descaroçando azeitonas. E isso se tivesse muita sorte!

   — Sabe — disse a menina mais velha, cujo nome era Maria — que, graças à disposição de um cavaleiro-cão de lutar por ela, essa mulher pode ser inocentada? Mas, se ninguém se houvesse oferecido para combater aqueles corta-gargantas que o barão Seguin tinha com ele, ela teria sido declarada culpada e morta? E agora o rei diz que precisa pensar. Por que não pensaram antes? Não podem simplesmente deixar o assunto inacabado assim...

   — Foi uma exibição — Phaedra falou pela primeira vez. — O rei havia combinado com o barão tudo o que aconteceria ali. Toda justiça é um espetáculo, para dizer a verdade.

As outras a fitaram, meio espantadas.

   — Suponho que tenha se dedicado a estudar essas questões — disse Amanthys.

   Phaedra era filha de uma casa solitária. Não estava acostumada a ter companhia desse tipo, de jovens tão bem-nascidas quanto ela e um pouco mais velhas.

   — Toda corte de justiça é um espetáculo — insistiu. — Se um homem desempenha bem o seu papel e resolve a disputa de uma forma que ela não se repita nunca mais, as pessoas que ele julga ficam satisfeitas por serem comandadas por homem tão sábio. E não lutam. Quando meu pai comanda a corte em Trant, ele tenta determinar ou combinar com antecedência o desfecho da situação. Depois, ele chama todos à corte e põe as chaves do castelo do rei sobre a mesa diante dele, só para lembrar o povo de que o rei o escolheu como seu guardião. Ele faz irmão David, nosso sacerdote, ficar em pé atrás de sua cadeira, o que demonstra que a justiça vem do Céu. E, então, eles julgam o caso e decidem o que já havia sido decidido.

— Trant?

   — Sim. Meu pai é Ambrose, guardião do Castelo de Trant. Nosso brasão é o Sol e a Folha de Carvalho...

   Phaedra percebeu que estava sendo manipulada. As outras esperavam por... Amanthys franziu a testa, como se fizesse um esforço de memória.

   — Trant...? Oh, sim! Gordo e barulhento! Aquele.

   Alguém gritou e depois cobriu a boca com a mão. Outras riram. Phaedra sentiu que corava.

   Sim, seu pai certamente era grande (e ruidoso), e não se surpreenderia se as pessoas não gostassem muito dele. Mas... mas insultá-lo... e ao mesmo tempo fingir que mal sabiam quem era ele...

   E barulhento era uma palavra que podia ser usada para descrever outras pessoas, além de seu pai.

   — Meu pai é gordo — disse Maria. — Ele diz que é melhor assim, porque pode suportar melhor um ataque.

   — Seu pai tem todos os burgos de Pemini prestando homenagem a ele — argumentou outra. — Diferentemente de outros por aqui. Guardião de Trant! Oh, querida menina. Se seu pai não possui sequer o próprio teto... quem vai querer desposá-la?

   — É só nisso que conseguem pensar? — Phaedra disparou com o rosto ardendo e vermelho.

   — Gordo como um porco — resmungou outra menina. — Todos os cavalos de Trant têm as patas arqueadas? Eu não gostaria de ser sua mãe.

A resposta para esse comentário era fácil.

—    Minha mãe já morreu.

E foi mais fácil ainda ir embora.

   O castelo do rei em Tuscolo era um complexo de pátios e áreas delimitadas por muros, algumas amplas, outras apenas pequenas construções de pedras, como o local em que as meninas conversavam sobre os príncipes. Subir por uma rampa pavimentada e passar por baixo de um arco foi o suficiente para que Phaedra chegasse ao principal pátio do pavimento superior. O lugar era uma confusão de palha e outros destroços e estava cheio de gente. À direita, a parede era tão alta que parecia tocar o céu. A esquerda ficava a capela real, com suas torres dos sinos e suas janelas compridas. Figuras entalhadas ocupavam os nichos de pedra acima e em torno das portas do templo. Um grupo de monges descia a escada de degraus largos no exato momento em que ela se aproximou. Eles usavam batinas marrons, com o distintivo da Lanterna que identificava sua ordem, e caminhavam silenciosos por entre a agitação da casa do rei.

   Vira muitos monges durante sua breve estadia ali. Em casa havia apenas o irmão David para erguer suas mãos para o Céu e trazer bênçãos para o povo de Trant. Mas, ali, o castelo e a cidade que o cercava transbordavam monges de todas as ordens. De início ela presumira que Tuscolo fosse um lugar muito sagrado. Agora achava que a capital real devia necessitar de tantos sacerdotes por abrigar muitos pecados. Era o que estava descobrindo.

   As portas da capela estavam abertas. A luz azul, as estátuas nas janelas se debruçavam sobre o interior sagrado. Phaedra caminhou atrevida pelo longo corredor pavimentado. Ela se inclinou diante do altar sobre o qual ficava a Chama do Céu; o sinal de Deus, brilhante, sem forma e irreconhecível em um mundo de sombras.

   Nesse altar, a Chama era uma enorme coisa de quatro braços, muito maior do que o simples candelabro dourado na capela de Trant. Cada um de seus braços tinha a forma de um dos Anjos que o Senhor havia enviado ao mundo para lutar por almas. E, acima do altar, os mesmos Anjos pairavam em janelas de vidro fosco que dominavam o templo. Miguel o Guerreiro brandia sua grande espada e mantinha uma careta furiosa, a boca apertada formando um desenho rígido, tenso. Ao lado dele, Gabriel o Mensageiro se inclinava do céu com o fogo sob suas asas. Rafael percorria uma estrada interminável com seu cajado na mão, e Umbriel olhava para baixo com sete olhos e anotava tudo no livro em que todas as coisas eram escritas. Eles eram maiores, mais vistosos e menos humanos do que nos quadros de sua casa; mas Phaedra os conhecia. Não sentia que devesse ter medo deles ou ficar constrangida em sua presença, mesmo ali. Sob seus olhos, sentia a raiva perder força dentro dela, não a ponto de desaparecer, mas tornando-se mais profunda, instalando-se em lugares em que poderia ser lembrada sem interferir em sua capacidade de ação.

Phaedra escolheu um banco e sentou-se.

   Pessoas entravam e saíam e olhavam em sua direção, mas ela as ignorava enquanto passavam. Vozes se ergueram atrás dela, aproximando-se. Homens falavam acaloradamente. Não foi nenhuma surpresa quando o príncipe Barius, moreno e muito zangado, passou pelo corredor com o irmão e meia dúzia de outros homens atrás dele. O grupo se deteve a dois metros dela, em uma porta que levava aos claustros do rei. Ninguém parecia notá-la.

   — Nesse caso, milorde, meu pai estará renegado seja qual for seu procedimento — disse Barius. — Deve dizer isso a ele por mim. E diga que agora devemos escolher com sabedoria, ou escolher bem. Muitos, sem dúvida, vão preferir que ele escolha de maneira sábia. Eu prefiro que ele escolha bem!

   Um chefe-de-gabinete inclinou-se, depois olhou para o príncipe Septimus como que para indagar se ele desejava acrescentar alguma coisa ao conselho do irmão. O príncipe limitou-se a assentir, e os homens se inclinaram mais uma vez antes de voltarem apressados pelo caminho que haviam percorrido ao entrar, perseguindo alguma questão de estado premente. Barius já havia desaparecido pela porta que levava ao claustro da capela. Septimus, um rapaz pouco mais velho que ela, hesitou por um momento. Ele a vira, uma menina desconhecida que devia ter escutado o que os homens tinham dito ali pouco antes. Então ele sorriu, como se dividisse com ela o absurdo que estava acontecendo, e seguiu o irmão, passando pela porta baixa.

Passos se afastaram, e a capela mergulhou no silêncio.

   O que tinha sido aquilo? Phaedra formulou a pergunta à figura invisível ao seu lado no banco.

O cavaleiro se mexeu.

   O rei vive um dilema. Ele deve escolher entre quebrar uma promessa para alguém que tem influência e fazer a mesma coisa para alguém menos influente, mas a quem, na opinião do príncipe, seria mais honrado manter-se fiel.

   Houve um julgamento na corte esta manhã, Phaedra contou. Eles iam resolver a questão em combate. O rei impediu o confronto e disse que ia pensar

Sem dúvida é isso. Gostou da corte?

   Não. Pensei ter encontrado amigas, mas, quando contei a elas o que você disse sobre a justiça, elas riram de mim.

   Você só disse a verdade. Não deve se envergonhar disso. Como elas tratam a questão é um problema delas.

   Phaedra sabia que estava acordada e que, portanto, se virasse o rosto para encará-lo, ele não estaria ali. Mas se olhasse para frente, para os Anjos, poderia sentir pelo canto do olho as dobras escuras do manto negro, seus cabelos pretos e sua pele pálida, e o grande cálice de pedra que ele segurava sobre os joelhos. Sabia que estava tudo ali, porque vira cada detalhe em seus sonhos.

   Deve haver poder antes que haja lei, disse o cavaleiro. E todas as leis se rendem a ele.

— Quando o verei novamente?

   O som da própria voz a assustou. Não tivera a intenção de falar alto. E não houve resposta, porque agora ele havia partido.

   Naquela noite ela percorreu a sala do trono na qual a bruxa estivera em pé e sozinha algumas horas antes. Mais uma vez, o lugar estava repleto de pessoas encostadas nas paredes; os cavaleiros e nobres do reino. Mas, dessa vez, eles estavam acompanhados por suas mulheres, e dessa vez todos os olhos estavam fixos nela.

   Seu pai caminhava a seu lado. Alto, barbado, imponente, ele percorria o corredor para o trono, e em seu pesado vestido brocado ela se movia protegida por sua sombra. Diante dela, Amanthys e o pai já se inclinavam diante do rei. Atrás dela, a voz do arauto anunciava o nome do cavaleiro seguinte e de sua filha, indicando que deviam se apresentar. A cerimônia estava acontecendo havia mais de uma hora, começando pela prolongada tagarelice da sagração de Septimus como cavaleiro, e depois da sagração de seus três jovens escudeiros. Mas agora, e por mais alguns momentos, era a vez dela. Todos a olhavam e sussurravam sobre ela, a filha de Trant conduzida pelo braço de seu pai, com as jóias do pai em seus cabelos. Sabia que todos apreciavam o que viam. E ela teria preferido que ninguém a apreciasse.

   Aproximaram-se dos três tronos e dos degraus largos que levavam a eles. O rei estava vestido de dourado e ocupava seu lugar, como se não houvesse se movido dali desde aquela manhã. Os príncipes, os mesmos cortesãos... também estavam ali. Mais alguns passos: os últimos centímetros também pareciam ser os mais lentos. Um leve movimento do braço de seu pai a deteve um momento antes do esperado. Ele se inclinava. Ela também se encurvou lentamente em sua mesura; longa e lentamente, seu pai a instruíra, e quanto mais dos dois melhor. Agora ele falava com o rei recitando as frases que compunham o ritual de apresentação tantas vezes ensaiado. Devia manter-se inclinada.

   Teria a bruxa feito uma mesura naquela manhã, diante dos olhos que planejavam matá-la?

   — Saudações, Trant — cumprimentou a voz suave que vinha do trono central. — Amamos sua casa por seu valor a nosso serviço. Agora devemos amá-la também por sua beleza.

   E agora ela podia se levantar e olhar para o rosto do rei, que não era mais do que um rosto velho adornado por um manto dourado e uma pesada coroa. Os cabelos e a barba branca eram ralos. Podia ver a pele rosada sob os fios. Ao fitar seus olhos claros, ela notou que uma sobrancelha se erguia ligeiramente, como se ele tivesse se surpreendido com algo.

   — E a beleza de Trant tem algumas palavras que gostaria de nos dizer? — o rei indagou depois de um momento.

Palavras? Ela?

Seu pai não a prevenira sobre isso!

   Podia sentir a tensão no braço dele. Seu pai também havia sido pego desprevenido. E Amanthys não fora solicitada a falar pouco antes.

   Por que ela?

   Só havia uma coisa que poderia dizer. E devia inclinar-se novamente.

   — Somente minha obediência, Vossa Majestade — murmurou, mantendo os olhos baixos.

   — Obediência? — repetiu a voz suave e envelhecida. — Obediência é bom. Sabemos que podemos encontrá-la em Trant.

   Ele devia ter feito algum sinal, porque, quando se levantou novamente, Phaedra foi puxada pelo pai, levada para longe dos tronos. Ela olhou para trás. Os olhos de Barius ainda a seguiam do alto do Trono Ocre. Septimus, com suas brilhantes esporas douradas, também a acompanhava com o olhar, assim como alguns dos conselheiros. Mas o rei já olhava para frente, esperando pela aproximação do próximo casal de pai e filha. Depois vieram mais dois, e outros dois. Phaedra já não fazia parte de seus pensamentos.

   Eles se juntaram a Amanthys e seu pai, um pouco afastados da plataforma sobre a qual ficavam os tronos. Amanthys a ignorava, e Phaedra decidiu fazer o mesmo. Olhando em volta, examinou o imenso salão e respirou fundo para acalmar os batimentos do coração, que havia disparado sem que ela percebesse.

   As paredes eram iluminadas pelo brilho do sol poente, cujos raios se derramavam pelas janelas. A tarde devia estar linda e maravilhosa lá fora, longe de toda aquela multidão. Na galeria em que estivera horas antes, um grupo de menestréis se preparava para atuar. Um a um, todos iam ocupando seus lugares. No salão, a corte assistia à procissão de pais e filhas que, próximos do trono, eram anunciados e apresentados. Meninas que atravessavam a fronteira para a vida adulta. Phaedra observava atenta para verificar se o rei conversava com outra daquelas jovens. Ele não dizia nada. Por que falara com ela?

   Septimus ainda a seguia com os olhos. Ela abaixou a cabeça rapidamente.

   Os murmúrios da multidão iam ganhando volume, e ela percebeu que boa parte daquela conversa não se relacionava à procissão formal. Os rostos na primeira fileira, basicamente femininos, acompanhavam as duplas com maior atenção, certamente buscando possíveis parceiras para seus filhos. Mas, atrás delas, os homens se agrupavam aos pares ou trios, cochichando entre eles. Alguns nem fingiam prestar atenção. Phaedra viu um homem gesticulando para o outro lado do corredor, para alguém que ela não podia ver, mas que devia estar em algum lugar não muito distante dela. Combinavam um encontro. Para discutir casamentos, já? O mais provável era que a conversa se relacionasse às audiências que aconteciam havia dias, e ainda se repetiriam por dois ou três dias até que todos os rebeldes derrotados fossem julgados, e até que todos os homens leais recebessem suas recompensas. Conversariam sobre as resoluções a serem tomadas, talvez até tentando antecipá-las, como alguém havia tentado antecipar naquela manhã o desfecho do caso julgado pelo rei.

   Podia sentir o pai ao seu lado, observando o salão como ela costumava fazer. Ele também parecia ter esquecido o que se desenrolava diante dos tronos. Queria se juntar aos companheiros para discutir a política vigente e outras questões de seu interesse.

   Agora o quinto e último casal se juntava a eles, e o cantor do rei tomava seu lugar no centro do salão. As cordas dos menestréis começaram a verter suas notas melodiosas da galeria superior. Em voz alta, o cantor deu início às conhecidas frases de abertura de The Tale of Kings, que relata a chegada por mar de Wulfram e seus sete filhos para encontrar o reino. Em torno dela, o grupo de pais e filhas começava a se dispersar. Seu pai já se inclinava para ouvir o que um barão sussurrava em seu ouvido. Ela não queria falar com ninguém. Não queria ficar ali, vendo a corte ferver com questões políticas, enquanto o rei agia como se a cerimônia fosse a única questão a ser tratada, como se a região estivesse em paz. Havia uma porta atrás dela. Estava apenas encostada, porque alguém já saíra por ali. Phaedra hesitou. Ninguém a observava.

   Sabia que seria impróprio deixar o salão antes que chegasse o momento de integrar a procissão para o banquete. Seu pai ficaria zangado se notasse sua ausência. Mas o cantor escolhera uma versão mais longa de The Tale, recitando as façanhas de gerações e gerações de reis, porque o rei no trono queria lembrar todos da importância de seu reinado. Assim, seria prisioneira ali por uma hora ou mais antes que a procissão começasse. Outros já haviam se retirado discretamente. Ela também iria, porque tinha coragem para tanto.

Obediência!

   Um corredor curto levava a uma arcada iluminada pelo sol de final de tarde. O som da cerimônia ia se distanciando atrás dela. Estava em um pequeno pátio pavimentado cercado por antigas colunas brancas. Árvores frutíferas cresciam nessa área delimitada por muros. Havia uma fonte ali, mas a água cintilava quieta no interior da bacia redonda e larga. Phaedra se debruçou sobre ela.

   Lembrou-se de outra fonte, muito parecida com essa, no pátio em ruínas além dos muros de sua casa. Gostaria de nunca ter saído de Trant. Gostaria que fossem como algumas outras famílias, incluindo uma ou duas das maiores, que ainda se mantinham distantes da corte. Por que ir até ali para inclinar-se diante do rei? Mas seu pai era um guardião nomeado pelo trono, e um homem do rei em seu coração.

Uma voz soou ao lado dela.

   — Prefere as pedras de Wulfram às canções de Wulfram, Phaedra?

   Era a mais velha das garotas que haviam estado com ela naquela manhã, durante o julgamento da bruxa. Dessa vez ela estava sozinha. Usava um vestido próprio para a corte, o que indicava que a seguira desde o salão.

— O que quer dizer?

   — Vi quando deixou o salão do trono. Gostaria de saber por quê.

   Phaedra lembrou-se do nome dela. Maria. Ela possuía um agradável rosto oval com olhos muito grandes e faces marcantes, tudo emoldurado por cabelos castanhos. Não tinha certeza, mas ficara com a impressão de que ela se afastara do grupo quando as outras a atacaram naquela manhã. Mas Phaedra era desconfiada e não queria correr o risco de ser motivo de riso novamente.

   — Gosto daqui — respondeu, como se visitasse a fonte há séculos.

   — Eu também. Escolhi este lugar como meu refúgio secreto em Tuscolo. Mas é claro que todos sabem dele. Ouvi alguém dizer que aqui fica o centro do mundo.

— Por quê?

   — Imagino que eles queiram dizer que é o centro de Tuscolo e, portanto, do reino. Se isso significa que aqui está o centro do mundo, bem... Suponho que existam terras além dos caminhos selvagens, mas nada vem de lá. Meu pai conta que existem reinos do outro lado do mar, mas apenas os marinheiros de Velis sabem como chegar lá, e não revelarão seus segredos. Seja qual for a verdade em tudo isso, é certo que o pátio em que estamos e sua fonte foram construídos pelos filhos de Wulfram. Então, são tão velhos quanto o mundo que conhecemos, pelo menos.

   Ela não debochava de Phaedra por ter deixado a cerimônia. De fato, parecia feliz por estar ali em sua companhia. Talvez também se houvesse entediado lá dentro. Mas Phaedra não queria se deixar conquistar com tanta facilidade. Por isso manteve um silêncio sombrio, demonstrando assim quanto havia sido magoada pelas outras naquela manhã.

   — E agora o mundo sabe que você é uma mulher — Maria continuou falando. — Ou, pelo menos, o mundo que importa. Foi apresentada diante do rei e dos príncipes. Ninguém fez tanto por mim. Causou uma forte impressão lá dentro, sabe? O que foi que disseram quando estava diante do trono?

O silêncio não estava surtindo o efeito imaginado por ela.

   — Eu... eu me lembrei daquela mulher que vimos hoje no julgamento — respondeu. — Devo ter franzido a testa, ou manifestado minha contrariedade perante o rei. Ele quis saber por quê.

   Franzira a testa? Havia exibido uma expressão absolutamente furiosa, como só agora percebia; e para o rei, que devia ser a Fonte da Lei!

—    Oh, pelos anjos! — Maria riu. — E o que disse a ele?

Phaedra encolheu os ombros. Sentia-se envergonhada do que havia dito.

— As outras terão colapsos quando eu contar a elas...

— Por favor, não — Phaedra a interrompeu com firmeza.

   — Oh, bem... Está bem, não direi nada a elas. E lamento muito se a perturbamos, Phaedra. Aquilo tudo foi uma grande tolice.

   — Elas insinuaram que não somos bons o bastante — Phaedra queixou-se, esperando ouvir imediatamente que Trant era elevado e nobre e que seus guardiões tinham o respeito de todo o reino (embora o avô de seu pai houvesse sido um cavaleiro-cão, é claro).

   — Bons o bastante para quê? Se estavam se referindo a desposar um príncipe, você não tem chance menor do que qualquer uma delas. Sua aparência é excelente. E.Trant é um grande nome: um dos sete, mesmo que seu pai não seja o senhor de direito. Não sei o que fez lá dentro, mas Septimus ficou muito impressionado com você. Ele a seguia com os olhos, e continuou observando tudo que fazia mesmo enquanto as outras garotas eram apresentadas.

— Eu não notei — mentiu Phaedra.

   — Mas eu notei, e duvido que tenha sido a única. Mas, na verdade, somente as famílias mais poderosas podem contar com a chance de estabelecer uma aliança com a coroa. Elas mantêm suas filhas, sobrinhas e primas bem escondidas sob muitas camadas de renda e atrás de portas trancadas contra todo e qualquer pretendente. Pobrezinhas... O príncipe Barius é um homem impressionante, mas não pensa muito em nada que não sejam suas devoções. Ele preferia ser monge, como deve saber...

   Phaedra não sabia. Não sabia de nada que se referisse à corte e seus ocupantes.

   — E claro que se casar com um príncipe é um sonho, Phaedra. E temos de sonhar. Temos de pensar no futuro. Devia sentir pena de nós, não raiva. E devia lamentar por si mesma, também. Sabe o que, ou melhor, quem estará esperando por você quando voltar para casa?

— Ninguém. Não vou me casar.

Maria suspirou com delicadeza e melancolia.

   Os últimos raios de sol brincavam com a água no centro do mundo. Nos galhos das árvores frutíferas, pombos arrulhavam embevecidos com a aproximação do entardecer.

   — Tenho uma prima quase da sua idade — Maria começou a relatar em tom sonhador, quase como se falasse sozinha. — Ela acabou de completar quinze anos. Era uma menina adorável e feliz, até este verão. Agora está trancafiada em um quarto de sua casa, alimentada de maneira frugal e surrada todos os dias, porque se recusa a desposar o homem que minha tia julga ser apropriado para ela. E ela vai se casar com esse homem, a menos que ele se canse de esperar pela domesticação de seu espírito e vá buscar outra noiva em outro lugar. Espero que meu pai não me use dessa maneira, quando chegar a minha vez. Infelizmente, sei que ele tem ambições e espera por uma boa oportunidade. E quando ele decidir, minha fortuna, meus direitos e meus objetivos, tudo passará a pertencer a meu marido... Todas nos casaremos, Phaedra. Nada funciona se não nos casamos. Mas com quem? Amanthys já sabe a que casa pertencerá. Se às vezes é ferina ou ressentida conosco, talvez tenha motivos para isso. E o restante de nós... quem sabe? Podemos ser espalhadas pelo reino. Fiz boas amigas aqui, e sofro por pensar que talvez nunca mais as veja. Algumas outras prometeram escrever para mim. Espero que você também o faça.

   Phaedra olhou para os próprios dedos e notou que eles agarravam a beirada da fonte. As articulações estavam brancas. Seu pai não a obrigaria a se casar, ela pensou. Ele não podia fazer tal coisa.

Maria a observava.

— Quando disse aquilo sobre sua mãe... Foi no parto?

— Sim — Phaedra confirmou com tom seco.

   — Entendo. — E entendia mesmo. — Sinto muito. Aconteceu o mesmo com minha mãe.

   Nenhuma delas disse nada por algum tempo. Maria rompeu o silêncio mais uma vez.

   — Descobri o que aconteceu depois do julgamento da bruxa. Não quer saber?

— Sim, quero — Phaedra anunciou aliviada.

   — Não houve combate. Não haveria nenhuma luta, e eles sabiam disso. Você tinha razão. O rei só concordou com o julgamento para agradar ao barão Seguin, que queria pôr fim à vida daquela mulher para ficar com as terras dela.

   Não era esperado que alguém interferisse, mas o cavaleiro-cão agiu seguindo seus instintos, contrariando todas as expectativas. Assim, à tarde, o rei encontrou o barão Seguin e propôs um acordo. Lady Luguan continua viva, mas perde suas terras para o nobre. E diManey terá de cuidar para que ela não pratique mais sua magia.

— Quem?

   — O cavaleiro com a insígnia do sabujo. Um brasão de sabujo para um cavaleiro-cão. Muito apropriado. E estranho. Ontem, todos estavam certos de que a mulher era uma bruxa. Agora parece que não sabem. Mas todos estão furiosos com o cavaleiro-cão, e estão correndo por aí tentando descobrir se algum rival de Seguin o enviou. Estão dizendo que ele merece ser morto, e que teria sido, se o rei não houvesse interferido para salvá-lo. Lady Luguan e ele serão libertados dentro do reino, mas serão banidos, com o desgosto do rei, de sua corte, de suas terras e estradas. E você sabe... O próprio Barius os casará! Suponho que os bispos e seus sacerdotes não queiram se envolver nessa história. Mas, como príncipe real, Barius tem o direito e a autoridade para realizar a missa.

— Eles vão se casar?

   — Sim, por ordem do rei. Foi uma maneira de resolver o problema da mulher e, ao mesmo tempo, punir diManey. Pobre diManey! Imagine: um belo dia você acorda, como faz todos os dias, veste-se, vai à corte porque todos estão indo para lá e, algumas horas mais tarde, você está indo para sua cama em desgraça, com sorte por estar vivo, noivo de uma estranha. Uma completa desconhecida, Phaedra, alguém de quem ele nunca ouvira falar antes, alguém que ele jamais havia visto anteriormente. E ela é uma rebelde. Pior, e uma bruxa, provavelmente! E todas as terras que ela possuía foram doadas, o que significa que o casamento não servirá para nada. Mesmo assim, ele tomou uma atitude muito nobre, quaisquer que tenham sido suas razões. Talvez nem ele mesmo as entenda. Estou feliz por Barius ter invocado seu direito de abençoá-los. Não é muito, mas é próprio dele, e é mais do que qualquer outro teria feito em seu lugar. Suponho... suponho que seja justo esperar, afinal, e até mesmo sonhar, se sabemos que ainda existem alguns poucos homens bons no mundo.

   Phaedra ficou em silêncio. Tinha a impressão de que até mesmo Maria pensava mais no cavaleiro-cão, e em Barius, é claro, do que na bruxa. Podia bem se imaginar no lugar daquela bruxa. E tinha certeza de que teria preferido morrer a casar-se com o cavaleiro-cão.

 

                                         O Prisioneiro

Ah, Trant! Ambrose, o guardião, ergueu-se sobre a sela no pátio do rei. O sol matinal brilhava em sua testa alta. Suas sobrancelhas estavam unidas. A cabeça virava de um lado para o outro de modo a buscar todos os seus seguidores. Seu batalhão estava pronto, os homens montados, verificando seus cavalos, olhando para ele de suas selas. Os arreios foram ajustados, as malhas brilhavam, as espadas pendiam das bainhas de maneira casual. O Sol e a Folha de Carvalho cintilavam em uma dúzia de peitos protegidos por armaduras. Os criados amarravam os últimos fardos na carroça. A liteira de sua filha estava preparada. Phaedra mantinha-se um pouco afastada, já em seu vestido de viagem, esperando que um lacaio terminasse de verificar os arreios do pônei que ela montaria quando quisesse.

   Em torno deles, a grande área central da parte externa do castelo de Tuscolo era ocupada quase que inteiramente por carroças e homens montados em cavalos. Pessoas se moviam de um lado para o outro com sacos e fardos de suprimentos, praguejando quando atravessavam o caminho umas das outras. Cachorros latiam e crianças corriam entre os adultos ocupados. O castelo e a cidade além dele começavam finalmente a se ver livres dos hóspedes que ali haviam estado por dias, e que agora eram vomitados como a indigestão de uma grande besta.

   Ambrose continuava carrancudo, procurando por entre aquelas pessoas alguém que pudesse ser sua vítima.

   O grupo o observava. Todos esses homens e suas famílias comiam todos os dias porque haviam nascido ou sido escolhidos para estar entre aqueles que o serviam. Conheciam suas lealdades e obsessões, bem como as milhares de pequeninas coisas que ele acreditava que podiam ser feitas de maneira melhor. Conheciam o grito que ele acalentava em suas entranhas, pronto para viajar pelo ar e atingir o homem que estivesse um momento atrás de seus companheiros. Ambrose os estivera atormentando desde o dia anterior. O grande, musculoso e barbudo guardião de Trant não toleraria atrasos quando chegasse a hora de partir.

   Mas, dessa vez, não havia ninguém com quem ele pudesse gritar. Estavam todos prontos. Todos eles.

   — Ah, bem! — Ambrose resmungou irritado. E depois, ao ver que a filha recebia ajuda para montar, disse: — Phaedra, minha querida. Vamos ver como está o nosso caro amigo reverendo.

   Deixando o grupo esperando naquele mesmo local, ele pôs a montaria em movimento. Phaedra o seguiu em seu pônei. Pai e filha progrediam devagar, respeitando a segurança das pessoas ali reunidas.

   Na metade do caminho inclinado que levava ao portão do pátio, a multidão se tornava ainda maior e mais atribulada. Era ali que ainda se podiam ver as barracas montadas para abrigar o bispo de Jent e seu impressionante séqüito. Três estandartes, cada um deles com o brasão da Casa de Deus a que o bispo tinha direito, pendiam de estacas mantidas pelas mãos firmes de seus criados uniformizados. Três carroças iam sendo carregadas por outros serviçais. O bispo estava em pé no meio da confusão, gritando para que todos se apressassem. Ele era um homem gordo, de rosto redondo e todo enfeitado com o manto, a capa, o anel e o cajado que compunham a indumentária do cargo. Era evidente que pretendia viajar em liteira fechada para proteger suas finas vestes da poeira da estrada. Ao notar a aproximação de pai e filha, ergueu a cabeça para encará-los com óbvia contrariedade.

   Phaedra sabia que seu pai não seria rude, porque Sua Excelência ocupava um posto muito mais elevado do que o de qualquer guardião. Mas Ambrose também não seria capaz de conter o impulso de recitar seu lema. Trant acorda cedo...

   — Vejo que está mais adiantado do que eu, guardião. É com alegria que descubro que não teremos de esperá-lo, pelo menos. Já comeu, senhor?

   — Ao amanhecer, Vossa Excelência. Trant acorda cedo, e sabemos o que devemos fazer.

   — Há uma bandeja com pães e cerveja perto da porta de meus aposentos, se quiser. Gostaria de poder oferecer mais, mas pretendo partir o quanto antes, assim que possível. Já estão prontos?

   Prontos e preparados, Vossa Excelência. Trant não conhece atrasos...

   — Prontos e preparados, Vossa Excelência. Espero apenas por meu novo encargo.

— Aquele patife? Está no portão, bem ali.

   Encargo? Patife? Olhando em volta, Phaedra viu um grupo de homens do rei ao lado do portão do pátio superior. Eles não pareciam fazer muita coisa e estavam todos a pé. Mas seu pai se inclinava para o bispo de cima da sela e, determinado, conduzia a montaria por entre a multidão. Ela o viu subir até a área mais elevada do pátio, acenando para que homens e animais de seu grupo de seguidores se juntassem a ele. Quando se aproximou do grupo de homens do rei, Ambrose inclinou-se mais uma vez, dessa vez para um indivíduo baixo e claro que se mantinha no meio dos soldados. Ele retribuiu a cortesia. Um cavalo de Trant foi levado até lá. O homem montou, e os seguidores do rei recuaram.

   — Agora sua companhia está completa — disse o bispo, parado ao lado do pônei de Phaedra. — E meus tolos aqui ainda levarão pelo menos mais uma hora para concluir os preparativos. Trant é confiante, ou não viajaria com tão poucos.

   De repente, Phaedra percebeu que havia sido abandonada pelo pai na presença daquele imprevisível religioso, alguém que ela só conhecia por sua poderosa reputação.

   — Ele deve estar mesmo confiante, senhor — a jovem respondeu cautelosa. — Quando soube que viajaremos dois terços do caminho para casa em sua companhia.

   — Ah! São os homens dele que devem me proteger, não o contrário! Da próxima vez que vier a Tuscolo, também pensarei menos em minha honra e mais na velocidade. Esse ano não precisamos de exércitos nos cercando. Coma alguma coisa, menina. Ainda vamos demorar um pouco.

   Phaedra inclinou a cabeça e conduziu seu pônei para longe dali. Estava grata por não ter de ficar mais. Ao seu lado, um criado exibia uma bandeja com pães, bolos e outros alimentos matinais, mas ela balançou a cabeça e foi se juntar ao grupo de Trant para esperar pelo momento de partir.

   Era típico de seu pai, pensou irritada, não só tê-la deixado na companhia de um homem que acabara de alfinetar como também ter promovido uma situação em que a espera era inevitável. Ele arrancara todos da cama antes do amanhecer e os atormentara enquanto empacotavam roupas e objetos pessoais, não apesar, mas por causa do tamanho do grupo do bispo, uma multidão que os retardaria por muito tempo depois de o último fardo de Trant ter sido acomodado na carroça. Agora ficariam ali, talvez por horas, com tudo que podia oferecer algum conforto guardado nos baús e com o sol cada vez mais alto sobre a área empoeirada e quente do pátio. Por que não se havia preparado mais lentamente, por que não se aprontara de acordo com sua conveniência, em vez de acatar as ordens do pai? Podia até tê-lo feito de tolo diante de todos os outros que Ambrose havia apressado.

   Podia ter feito isso. Agora que já ouvia o chamado do lar, ansiava por romper com aquela atitude de filha obediente que havia exibido ali. Queria voltar a viver como vivia em sua casa. Seu pai sabia que não devia tentar castigá-la, caso não lhe obedecesse. Naquela manhã, em determinado momento, ele ficara parado na porta de seus aposentos enquanto ela e sua criada Dilly acomodavam suas coisas em um baú. Roupas, seus livros preciosos, jogos, velas e castiçais, bacia, sabão, jóias... Ele havia testemunhado sua boa vontade e sua diligência. E pudera ouvir o alívio na voz dele quando, satisfeito, cumprimentara um homem que passava pelo corredor e o seguira para o pátio.

   Mesmo assim, essa era uma vitória para Trant. Pequenos em número, ainda podiam iniciar sua jornada de cabeça erguida entre os componentes do grande cortejo do bispo, porque haviam demonstrado que Trant conhecia seus deveres. Era de Trant, não menos que o pai. E também sentia saudades de casa.

   O ruído de cascos batendo contra o solo anunciou a aproximação de um cavalo. Seu pai parou a montaria ao lado do pônei, inclinando-se em sua direção. Ao lado dele estava o homem louro que vira pouco antes perto do portão, agora montado, estudando-a intensamente sob o sol. Ela usou um braço para proteger os olhos contra a forte luminosidade.

   — Senhor, esta é minha filha, Phaedra, que será sua anfitriã em Trant. Phaedra, este é o barão de Lackmere, Aun. Ele será nosso hóspede.

   Um hóspede. E por que deveria aturar um desconhecido em Trant?

   Esse barão era um homem carrancudo. Devia ser mais jovem que seu pai, teria entre trinta e quarenta anos, mas seu rosto marcado e desagradável, com sobrancelhas espessas e um queixo pontudo, fazia com que parecesse mais velho. Ele era mesmo baixo, uma cabeça menor que seu pai, agora que estavam montados, e não muito maior do que Phaedra, considerando a diferença de tamanho entre seu pônei e o animal que havia sido emprestado ao desconhecido. Ele usava os cabelos longos, na altura dos ombros, e não tinha barba, adotando a moda das províncias. Sua sobrepeliz era branca e azul, e sua insígnia parecia ser um cajado cruzado diante da cabeça de um lobo. Phaedra imaginou que ele fosse um dos barões menores do sul. Afinal, o homem parecia não ter criados que o acompanhassem.

   — Que Miguel nos proteja, milady — disse o homem, para quem a prece dos companheiros de viagem era apenas, ao que tudo indicava, uma formalidade vazia.

   — E que Rafael nos guie em nosso caminho, porque estamos muito longe de casa — ela respondeu. — Será nosso hóspede, então? Senhor, é com prazer que recebo essa informação. Por quanto tempo?

   O olhar de seu pai demonstrava que havia dito algo errado.

   — Por mais tempo do que você e eu poderíamos desejar, creio — o barão respondeu. — Não vamos guardar ressentimentos por isso, sim?

   Somente então ela percebeu que o barão não portava uma espada. A bainha que pendia de sua sela estava vazia. Dois homens de Trant o seguiam em seus cavalos, mantendo-se bem próximos dele.

 

   Tinham percorrido a planície ensolarada da periferia de Tuscolo por cerca de uma hora antes que Phaedra finalmente conseguisse aproximar sua montaria da do pai.

—Lamento ter envergonhado nossa casa, senhor.

   — Refere-se a Lackmere? Eu não me incomodaria com isso. Em outra ocasião, lembre-se de que uma boa anfitriã nunca pergunta a um hóspede quanto tempo ele pretende ficar.

   — Em outra ocasião, prefiro ser informada com alguma antecedência, o que me deixará mais preparada para lidar com o hóspede — ela retorquiu com a ousadia habitual.

   Ambrose refletiu sobre as palavras da filha, coisa que não faria por mais ninguém.

   — Ele me foi imposto nas últimas audiências de ontem. Quando retornei aos nossos aposentos você já dormia, como era esperado. Ele permanecerá conosco até quando o rei assim o desejar. E teve sorte de escapar sem sofrer danos maiores.

— O que ele fez?

   — Ele tem sido um velhaco e um encrenqueiro por anos. Mas, ao ser pego, era um rebelde e se aliara aos revolucionários. Bons homens foram perdidos até que ele fosse capturado. O barão podia estar cego e ter sido privado de suas terras. O rei se comoveu a ponto de tratá-lo com clemência, porque o acusado não a pediu. Temos de ensiná-lo a agir com civilidade, menina.

   Phaedra olhou para frente, para onde o barão cavalgava com a cabeça descoberta e exposta ao sol. Então, esse homem pequenino, de porte insolente e arrogante, esse desconhecido que seguia na frente das flâmulas de sua casa era um dos inimigos sem rosto contra os quais seu pai havia lutado quatro vezes nos campos perdidos do reino. Ele não olhava para trás, para a longa procissão que o seguia. Não os reconhecia e avançava errante em meio à nuvem de poeira levantada pelos cascos das montarias dos homens que eram seus carcereiros. O que poderia fazer? Dois dos integrantes do exército de Trant o seguiam de perto.

        —Ele vai tentar escapar? — perguntou a filha de Ambrose.

        O sol cintilava sobre as malhas metálicas. Os cavaleiros que ocupavam as áreas mais externas das colunas progrediam lentamente ao longo do alto de uma pequena colina para o sul de sua linha de marcha. Phaedra podia ver a nuvem de poeira provocada por suas montarias contra o sólido azul do céu. O toque de suas trombetas anunciaria o perigo a tempo de evitá-lo.

   — Quem sabe? Tenho a palavra desse renegado. Se tentar fugir, ele será capturado e perderá suas terras. Ele tem uma família que sofrerá as conseqüências de seus atos. Se cumprir a sentença imposta pelo rei, pelo menos poderá rever seu lar em paz.

   Então, esse homem estava preso pela palavra, pelos guardas e pela ameaça de sangue. Mas o simples fato de tantas garantias serem necessárias comprovava quanto ele era perigoso. E seria alimentado em sua casa e se sentaria à sua mesa todos os dias, um inimigo e um rebelde.

   Segura em Trant, Phaedra não tomara muito conhecimento da rebelião dos barões do Litoral e de seus aliados do sul, uma batalha que havia coberto de sangue o solo do reino. Ainda entendia pouco a complexidade das disputas e rivalidades que os levaram a se aliar contra a coroa, ou como eles haviam conquistado as primeiras vitórias, contrariando todas as possibilidades, e assim ameaçado a permanência do rei em seu trono. Para ela, o principal efeito fora o vazio em Trant, uma desolação que se estendera por meses a fio, enquanto o pai e seus cavaleiros partiam para trazer de volta histórias de um inimigo cuja força não estava nos números, mas na capacidade de luta e na engenhosidade que pareciam superar a natureza humana. Durante as poucas semanas que havia passado na corte, ela ouvira outros relatos de homens que tinham visto uma cidade inteira incendiada, combatentes que tiveram seus amigos mortos, enfim, gente que falava de coisas tão alteradas que nunca mais poderiam ser as mesmas.

   Ambrose também observava o barão, e sua testa estava franzida. Também devia estar considerando o julgamento do rei. Somente o rei podia distribuir justiça entre os senhores da mais alta nobreza, de forma que eles podiam repassar essa mesma justiça para seus cavaleiros e barões, que por sua vez comandavam os proprietários de terra e as pessoas que ganhavam a vida trabalhando nela. Mas uma rebelião tinha de ser contida. Seu pai, como muitos outros, poderia ter sofrido grandes prejuízos caso a luta houvesse seguido pelo caminho errado. Ele devia estar receoso, certo de que o rei havia sido muito benevolente com esse rebelde; e, talvez, com base em outros julgamentos já realizados na corte, ele podia temer que Sua Majestade atuasse agora com cautela muito menor do que aquela exigida pelo momento.

— Uma situação desanimadora — disse o bispo.

— Sou da mesma opinião, Vossa Excelência. Estavam jantando juntos em uma hospedaria.

   O barão Lackmere comia com eles na pequena mesa redonda entalhada com santos, uma peça que o bispo carregara com ele até Tuscolo e que agora levava de volta. Phaedra tinha o rosto brilhante do sol e as pernas doloridas depois de percorrer trinta e cinco quilômetros de estradas em péssimo estado. Parte do grupo que os acompanhava bebia e conversava no salão comum, do outro lado do corredor.

   — Mas por outra razão, Trant. É um leal homem do rei, uma característica que o tornou famoso, senhor. Por isso só se recorda de que o rei teve de voltar atrás na palavra dada a Seguin a fim de salvar um tolo cavaleiro que não sabia o que estava fazendo. Portanto, pensa, o julgamento não devia ter acontecido. Se o homem não se houvesse apresentado, eles teriam golpeado aquela mulher na cabeça, dividido suas terras, e você não teria visto nenhum erro nisso. — Ele franziu a testa. — Não digo que quem tenta praticar um assassinato, seja por quais meios for, não mereça a morte. Mas a bruxaria é tão apropriada aos jogos dos humanos quanto o fogo é próprio para a brincadeira das crianças.

   Sentado à mesa, o bispo não usava seu capuz. Havia sido um choque para Phaedra descobrir que o religioso era inteiramente careca. Seus dedos grossos e enfeitados por anéis e suas roupas finíssimas exibiam manchas de comida. Ele se espalhava na cadeira à ponta da mesa, inclinando-se para frente, os olhos salientes, a voz retumbante soando com petulância, como se adorasse uma boa discussão, mas gostasse ainda mais de vencer todas as disputas.

   — Não estamos tratando apenas de assassinato — argumentou o pai dela. — Falamos aqui de uma rebelião.

   — Ah! Quanto a isso, não ouvi nenhuma acusação contra aquela mulher. Por que um homem se rebela contra seu senhor, Lackmere?

   O barão não participava da conversa. Talvez estivesse surpreso por ser solicitado a opinar.

   — Por que uma pedra cai no chão? — ele resmungou. — Devo aceitar como meu senhor alguém que me governe de longe e talvez ordene minha vida de forma a privilegiar meu vizinho, em detrimento dos meus interesses? E se meu vizinho paga algum tipo de suborno ao rei ou a seus cortesãos para obter privilégios, sem que eu me dê conta disso?

O bispo sorriu com escárnio.

   — E um mundo decaído esse em que Deus não pode ser mais do que o menor de dois grandes males. Não me interprete mal. Sou um homem da igreja, e nessa posição eu e meus companheiros abençoamos o rei e sua lei por qualquer medida de paz que possam trazer. Mas não suponho que sejam perfeitos. Nenhum dos dois. Especialmente quando os homens apregoam bruxaria. Não gosto desse assunto... Não, Trant, escute-me, senhor. Deixe o rei aplicar sua justiça na ponta de uma espada, se sua vontade não pode ser mais útil, mas a escritura me diz que nada é maior do que o Céu.

   — E o que ela lhe diz a respeito de bruxaria? — Phaedra indagou repentinamente. — Vossa Excelência — acrescentou.

   Imediatamente, ela percebeu que havia falado em um momento inoportuno. Talvez por isso o bispo a encarasse boquiaberto, com os olhos arregalados e uma coxa de galinha a meio caminho da boca.

— Quero dizer... por que devemos ter tanto medo?

— Phaedra... — o pai a censurou.

   — Não, Trant — o bispo o interrompeu. — Ela acha que o assunto é apropriado, então, devemos debatê-lo.

   De repente, ela percebeu como os outros homens estavam rígidos, observando cada gesto do religioso.

   — Acaba de proferir uma obscenidade, criança, como deve saber. A bruxaria é uma abominação. Não sugiro que um homem encharcado de poções ou outros artifícios maléficos seja mais prejudicado do que outro cuja cabeça foi aberta por uma espada. Nem simplesmente, como diriam alguns de meus irmãos, que o ato da feitiçaria é prejudicial à alma. Se aquela mulher nem se arrepende de ter praticado sua bruxaria, então, que sua alma seja amaldiçoada e que ela vá para bem longe de nós, senhor... Mas veja o mundo como os Anjos o vêem. Veja o Homem, sentado à mesa, uma mesa redonda como esta. A sua direita — o bispo apontou para o guardião — estão as virtudes: justiça, lealdade, honra, e assim por diante, cada uma mais e mais brilhante, até alcançarmos as cadeias da Coragem, da Compaixão, da Glória e da Verdade, por trás das quais estão os próprios Anjos. A sua esquerda...

   O barão sufocou uma gargalhada sarcástica quando o religioso apontou em sua direção.

   — ... a guerra, a crueldade, a falsidade e as pequenas mágicas, os filtros de amor, as poções, as criaturas que correm como lebres ágeis nos prados, as palavras dos moribundos e dos mortos, as imagens de cera e o sangue das aves sacrificadas. Além deles, os lugares sombrios em que os demônios nascidos conosco sussurram promessas que levam a alma à podridão.

   Ele se debruçou sobre a mesa, e seu dedo roliço apontou para o coração de Phaedra.

   — E há um lugar em que a verdade e a bruxaria se tocam. Lá precisamos da ajuda dos Anjos! Porque vivemos pela verdade. Nunca duvide disso. O que deveria ser a justiça, senão o exercício da verdade? Mas a verdade que delimita esses lugares é distorcida. Lá, o ódio mais bem contido é aquele imediatamente destruído. Senão, ele conduz aquele que odeia à falsidade e à traição. E se espalha daquele que odeia para todos, até mesmos para aqueles que o levam à justiça. Coisas horríveis são praticadas todos os dias, menina, por homens em armaduras e considerados nobres. Mas nada pode ser pior do que o que eles são capazes de fazer quando há o cheiro de bruxaria no ar. — Ele parou por um instante. Depois, prosseguiu: — Menina, conhece alguém que pratique ou fale em praticar bruxaria?

Ela o encarou.

— Não, Vossa Excelência.

   — E os Anjos são minhas testemunhas — acrescentou apressado o pai dela. — Ela diz a verdade como a conheço, Jent.

   O bispo recostou-se na cadeira, olhando-os com interesse. Não disse nada. Não podia estar duvidando de seu pai, podia? Phaedra e o guardião o estudavam como se ele fosse um urso prestes a atacá-los.

Finalmente, o religioso riu.

   — Por acaso já conhecia aquela mulher, Lackmere? A que foi julgada na corte?

O barão olhou diretamente para o bispo.

   — Luguan? Não. Mas creio que ela esteve com Calyn da Rosa da Lua por algum tempo.

   — Ah! Então, podemos dizer que ela praticamente pediu para ser julgada ao escolher suas companhias!

   — Não posso opinar quanto a isso. Ele era um homem perspicaz, fiel aos amigos, apesar do que se diz de sua casa e de sua linhagem.

   — E eu já disse algumas palavras sobre a verdade há pouco. Com ou sem bruxaria, um homem que é fiel a rebeldes como esses pode ser ele mesmo o pior exemplo de falsidade. O que aconteceu com ele?

   O fogo estalou, e o barão não respondeu. Talvez também se sentisse ameaçado.

— O que aconteceu com ele, Lackmere?

   — Morreu de uma febre comum antes do Dia de Todos os Santos — resmungou o barão. — E sem nenhuma ajuda da bruxaria.

   Os três homens continuaram ali sentados por algum tempo depois de Phaedra ter se recolhido. De onde estava, em seu quarto, ela podia ouvir o rumor de vozes ecoando pela chaminé, misturando-se ao coro mais intenso e abafado do salão.

Vento sul, varrendo as águas, Balançando as velas ao redor...

 

A voz do bispo ecoava pelas paredes de pedra.

   —Bela filha você tem, Trant. Congratulações.

   Ambrose respondeu alguma coisa. Talvez já estivesse um pouco amolecido pela bebida. Talvez, afetado pelos esforços do bispo de tratá-la com tato e delicadeza, ele estivesse pronto para admitir que a conversa sobre bruxaria havia sido culpa dela, afinal.

   — Não! Pelas asas de Gabriel, Trant! Orgulhe-se! Ela pensa. Dará uma linda mulher.

Vento sul, varrendo as águas, Leve-me de volta para o meu amor.

   — Pensando? — o bispo gritou novamente. — Quanto maior o mérito, maior a queda, seja para um homem ou para uma mulher. E maior a redenção. Mas um homem que procura por uma mulher estúpida é ele mesmo um tolo. Que dote oferece por ela?

   "Três mansões e seiscentos marcos de prata", Phaedra pensou.

— Pequeno! Ah, é um homem astuto, Trant...

   — A terra fica livre de reclamações — confirmou o pai dela. — E mesmo que eu não oferecesse uma folha de grama, os tolos ainda estarão atrás de nós...

   — Teimosos como moscas! Eles sabem o que virá. E ela tem boa aparência. Metade do reino baterá em sua porta por causa dela. Maldito seja... Eu mesmo bateria, se não fosse um sacerdote. — Sua risada ecoou por entre as pedras. — E se minha outra conhecida permitisse!

   Despediriam-se do bispo ao amanhecer e depois seguiriam caminhos distintos. (Haviam sido trinta e cinco quilômetros hoje, e seriam quarenta e cinco no dia seguinte, e sob sol escaldante. Ela se sentia dolorida.) Estava feliz, tanto porque a despedida marcava um novo estágio na viagem de volta para casa, quanto por sua ânsia em afastar-se desse príncipe da Igreja e suas perguntas insolentes. Então, ele acreditava que podia insultar os homens que com ele se sentavam à mesa e depois reconquistar sua amizade? O que os Anjos deviam pensar de tal criatura a seu serviço!

   Ela virou a cabeça sobre o travesseiro. Através das finas cortinas que cercavam sua cama, podia ver sua criada Dilly deitada perto da lareira, uma sombra adormecida iluminada pelo que restava das brasas. De baixo vinham os sons do sacerdote, do barão e do homem do rei, rindo e conversando apenas do adiantado da hora. Seu pai e o bispo deviam estar embriagados, pois falavam sobre os infortúnios dos grandes e tentavam sentir no vento o cheiro de bruxaria. E o barão... também estaria bêbado, embora silencioso, ou apenas planejava? Do lado de fora, cavalos relinchavam e batiam seus cascos contra o chão, perturbados por alguma coisa na escuridão. A luz da lua brilhava e desaparecia com o movimento das nuvens. Malhas metálicas tilintavam sob sua janela, onde vigias armados andavam de um lado para o outro.

Leve-me de volta para o meu amor.

Phaedra sonhou.

   Caminhava por uma paisagem carregada de intensos tons castanhos. A luminosidade era fraca. Em torno dela erguiam-se as colinas que, sabia, existiam do outro lado do lago de Trant. Sentia o impacto das botas contra as pedras secas. Tentava encontrar o caminho para casa.

   Então, o bispo a desposaria se não fosse um bispo, disse o homem que seguia a seu lado. Devia estar satisfeita.

Não quero me casar com ele, ela respondeu.

Então, seja grata por ele ser um bispo, afinal.

Ele me amedronta. E a meu pai. E ele tem essa intenção.

   Pode acabar descobrindo que ele é melhor do que muitos jovens com quem poderiam desejar casar com você.

Não!

   Agora é uma mulher. Seu pai não a teria levado à corte, se fosse diferente.

Estou indo para casa, ela argumentou.

Caminhavam juntos, percorrendo caminhos que seguiam por entre as pedras escuras. Longe, o horizonte encontrava o céu, como se todo aquele lugar consistisse em um vasto círculo de montanhas. Duas grandes luzes, menores do que a lua, mas maiores do que qualquer estrela, pendiam juntas da beirada. O ar carregava o eco de algum som que era profundo demais para ser ouvido.

Já se haviam encontrado antes, muitas vezes.

   Podia olhar para ele, porque estava sonhando. Ele era alto e caminhava com a cabeça inclinada. Podia ver nitidamente seu rosto e os cabelos pretos e curtos, apesar da tênue luminosidade. Ele se vestia de negro e, enquanto andava, carregava o cálice de pedra diante dele com as duas mãos. Phaedra observou a linha de seu rosto contra o céu enquanto andava a seu lado. Queria que ele falasse, mas ele permanecia em silêncio. Em que estaria pensando?

Vamos beber novamente? finalmente, ela perguntou.

   Ele parou, mas não respondeu de imediato. Depois de alguns instantes, ergueu a taça.

Se quiser...

   Havia água no cálice, água escura como tinta, como a que fica retida num fosso muito profundo. E, no entanto, ao mesmo tempo, essa água era clara. Ela se movia ligeiramente diante de seus olhos. Phaedra tocou a borda do cálice. Eles o seguraram entre as mãos.

Você primeiro, ela disse.

Seus dedos repousavam sobre as luvas do homem.

   O segredo é não ter medo, ele falou. Você será o que será se não tiver medo de nada.

   Pedras se chocaram entre as rochas à esquerda de onde ela estava. Algo sem olhos se movia por ali, rosnando, tateando o caminho. Uma coisa com cabeça de sapo coberta por um capuz. Pequenas pedras se desmanchavam sob seus pés, e as longas garras de seus dedos deixavam marcas no chão. Pelo canto dos olhos, ela o viu virar a cabeça em sua direção, enquanto, determinada, tomava o cálice de seu acompanhante. Não o encarava. Não tinha medo de nada. Ela bebeu, virando a taça de forma que seus lábios tocassem o mesmo lugar que os dele haviam tocado.

   O pônei de Phaedra era castanho e tinha o nome de Collen. Ele era dócil e seguro, no mínimo muito esperto. Havia percorrido regiões desconhecidas e castigadas pelo sol inclemente e encontrado o melhor terreno nas estradas de solo acidentado, progredindo melhor do que muitos animais de grande porte que integravam a parada. Agora, quando subiam a difícil encosta de Redes Hill no calor do final de tarde, ele parecia notar que se aproximava de casa. Olá, suas orelhas diziam ao se levantarem. Já não estive aqui antes? Vejamos...

   Phaedra deixou que ele a levasse para a frente do grupo, e para cima da encosta. A trilha descrevia uma curva para a direita, passando por entre oliveiras em que cabras pastavam sonolentas a relva abundante. Após um quilômetro, o caminho fazia uma espécie de retorno contornando o miolo da colina, e a paisagem mudava.

   Ali, Collen parecia dizer, com suas orelhas em pé: Eu não disse?

   Após dias de terras secas e aridez escaldante, o grande lago se estendia para a esquerda e para a direita até encontrar o céu no horizonte. Sua superfície calma brilhava ainda mais azul sob a luz do entardecer. Lá embaixo, barcos de pesca cortavam a água, suas velas lembrando diamantes, encurvadas e pálidas sobre a superfície escura. Ela podia ver a margem mais distante com clareza. Podia distinguir as sombras dos pinheiros e o manto formado pela relva nas encostas das colinas. Mais longe ainda, as montanhas se erguiam, majestosas.

   Era um alívio estar em casa, depois de dias em lugares desconhecidos em que tivera de conviver com novos rostos. Era agradável ver a água depois da aridez das paisagens da jornada e do frenesi da casa do rei. Paz, parecia sussurrar a brisa que soprava por entre os galhos das árvores. O ar era um pouco mais fresco ali, entre as oliveiras perfumadas, do que havia sido na estrada batida pelo sol. As árvores estavam carregadas com seus pequeninos frutos. Logo haveria uma colheita de olivas.

   Cavalos se aproximavam. Para sua surpresa, era o barão de Lackmere e seus dois guardas. O restante do grupo ainda se encontrava fora de seu campo de visão, abaixo da curva mais acentuada.

   — Este lugar é tão pacífico que você se aventura a seguir sozinha na frente dos outros, sem nenhum cuidado? Não sou de grande valia para você, mas pensei que, se a alcançasse, esses dois soldados viriam comigo, e então estaríamos em melhor situação, caso algum mal ocorresse.

   — Reconheço a bondade de seu gesto, senhor, mas sua preocupação é desnecessária. Estamos em terras de meu pai. Veja — ela disse, apontando para o lago.

— Sim, já vi. Que distância ainda temos de percorrer?

   — A estrada segue pela margem do lago. Veremos Trant depois da próxima subida. — Prossigamos, então. Aquilo é uma mansão?

Abaixo e à esquerda, era possível ver os limites do telhado familiar da Mansão Gowden.

— Uma das casas de meu pai, senhor.

— Falamos de riqueza, aqui?

   — Não sei se podemos dizer que o lugar é rico. Trata-se de uma casa ampla de madeira e pedra, cercada por cabanas e construções que servem ao trabalho agrícola, tudo em um terreno demarcado por estacas e localizado em uma área de campos férteis e pomares.

— Muita terra?

   — Desde a margem do lago podemos contar meia hora de caminhada nas duas direções. Há um lugarejo de pesca na margem que fica dentro do terreno.

   A trilha os conduziu para a direita, por entre as oliveiras, numa suave descida pela encosta. O barão ergueu-se sobre a sela para olhar em volta, tentando ver além das árvores frondosas e perfumadas.

   — É tudo tão verde! — exclamou. — O que plantam aqui?

   — Ora, oliveiras, como pode ver, senhor. E videiras, frutas e grãos. Também temos carvalhos, de onde tiramos nosso brasão. Nossos rebanhos são basicamente de carneiros e cabras. O que há em Lackmere?

   — O mesmo... onde é possível. Mas aquela é uma região mais pobre. Um homem precisa de muita terra para ter uma vida confortável. Muito mais do que sua Gowden. E não existem grandes cidades das quais possamos retirar riqueza ou bens.

   — É um lugar muito seco? Lackmere significa falta de água, ausência de mar...

   — Não temos nada parecido com isso — ele respondeu, apontando para o lago. — Nem um décimo ou um centésimo do tamanho desse lago. Nossas fontes ficam quase secas no verão, e a relva é amarela como palha. Não é um deserto, mas uma floresta de espinhos. Muitos quilômetros dela. Uma terra boa para lobos. Uma terra difícil para pastores e criadores de cabras, que devem proteger seus rebanhos usando, às vezes, não mais do que um cajado. — Ele tocou seu brasão.

— Lobos? Eles são grandes e ferozes?

O barão a encarou. Seus olhos eram verdes.

   — São pequenos, magros e ferozes. E estão sempre famintos.

   Saíram da região em que o bosque era mais denso, e a estrada voltou a subir a encosta, ainda com o lago à esquerda. Perto do topo, detiveram-se. Olhando para trás, Phaedra viu o restante do grupo emergindo da região das árvores.

— Trant fica logo depois dessa colina.

— Acho que vou gostar de ver nosso destino.

   — Devemos esperar aqui. Meu pai pode desejar reunir todos os integrantes do grupo para a última escalada. Ele sempre faz soar sua trombeta.

   — Mesmo assim, vamos nos adiantar para olhar. Não sei por quanto tempo esse lugar será minha prisão. Creio que me sentirei melhor se o vir pela primeira vez em sua companhia.

   O barão pôs sua montaria em movimento. Ela o seguiu relutante, porque não havia gostado do que acabara de ouvir. Do topo da colina, avistaram a silhueta familiar de Trant na colina vizinha. Tudo continuava como sempre havia sido, mesmo depois da longa jornada. Além da propriedade, o lago se estendia para o norte até se perder de vista. Estava em casa.

— Hmm... É forte — comentou o barão.

— Não é tão grande quanto a casa do rei.

   Trant era um pátio fechado e delimitado por cinco grandes torres. Além dele, havia outras construções e uma área ampla cercada por um dique que se estendia até o lago.

   — Não, realmente. Mas seu pai não precisa abrigar mil combatentes em uma única noite nem alimentar e proteger uma cidade. Minhas paredes não são tão altas quanto essas, e o meu não é o lugar menos fortalecido ao sul. Que outros castelos existem perto daqui?

   — Não são muitos. Tower Bay deve ser o mais próximo, mas fica a mais de um dia de viagem.

   — De quem são aquelas terras, então? — ele apontou para o outro lado do lago.

   — As montanhas que vê ficam além dos limites do reino. O povo das montanhas de lá é pagão. Mas as terras desse lado de cá compõem as Fronteiras de Tarceny.

O barão balançou a cabeça.

— A Lua Dúbia. Não posso dizer que tenha bons vizinhos.

   — É o que dizem, senhor. Mas também já ouvi dizer que o mal que foi feito, a opressão de seu povo e de seus vizinhos, foi obra do velho senhor de lá. Ele morreu há alguns anos. Não conheço o novo responsável ou sua casa, e eles não foram a Tuscolo para o banquete do rei. Nossos navegantes mantêm alguns negócios com os deles. Caso contrário, nem tomaríamos conhecimento da existência desse povo, porque não nos importunam. Meu pai sempre nos deixa protegidos por forte guarda quando está fora, como no caso dos recentes problemas que se abateram sobre o reino. Mas nunca tivemos de nos defender.

   — Hmmm... — Agora o barão olhava sério para o outro lado do lago.

   Devia ter se lembrado de que ele era um daqueles a quem Tarceny poderia ter auxiliado por meio de um ataque proveniente da outra margem do lago. Talvez ele e seus amigos houvessem implorado a Tarceny por tal movimento, já que os homens do rei haviam fechado o cerco em torno de suas últimas fortalezas. Caso houvesse ocorrido esse ataque, talvez agora ele não fosse prisioneiro. E toda essa terra que ele tanto admirava por sua exuberância verdejante agora seria negra, resultado dos rastros deixados pela guerra. E ele não se teria importado.

   Phaedra teve de respirar fundo por um momento. Sentindo o sol na pele, ela se lembrou de que os abutres de Tarceny se haviam mantido em casa, enquanto Trant florescia num delicado jardim.

   — Então — disse o barão —, não recebe visitantes? Não tem pretendentes ainda?

— Alguns poucos.

   — E o que faz aqui, enquanto espera que eles venham procurá-la?

— Faço o que quero, senhor.

   — O quê? Não imaginei que fosse uma prisioneira, como eu!

— Sou filha de meu pai, senhor!

— É claro.

   Ambrose aproximava-se com o restante de seu grupo. Podia simplesmente se virar sobre a sela e observar a chegada dos outros, e esse teria sido o fim daquela aborrecida conversa. Mas sabia que teria de passar muitas horas na companhia desse homem. Desde que ele entendesse que o trataria como a um igual, ou não falaria com ele, não havia mais necessidade de lidar com sua presença inoportuna. De qualquer maneira, gostando ou não, em pouco tempo já se conheceriam bem melhor.

   — Às vezes, leio — contou resignada. — Normalmente caminho e penso.

— Você lê?

— Sim, e também aprendi aritmética.

   — Isso é raro. Minha esposa não sabe ler e não conhece os números. Nem eu.

   Então, ele já possuía uma esposa. E claro... Ouvira seu pai falar sobre a família do barão. E agora ele já estava próximo o bastante para deter sua montaria.

   De repente, toda a colina se enchia de cavaleiros: o grupo inteiro, diversos homens montados e o condutor do vagão esperavam pelas ordens do guardião. Ele levantou um braço. Um cavaleiro aproximou-se, levando a grande flâmula do Sol e da Folha de Carvalho que, batida pelo vento do lago, tremulava orgulhosa. Sob a imagem era possível ler o lema do guardião: ATENÇÃO COM QUEM SE APROXIMA. O arauto fez soar o toque de Trant, e o grupo começou a descer a colina. Outras trombetas, ainda fragmentadas e distantes, soaram das janelas do castelo na colina distante.

   E assim Phaedra voltou para casa pela última vez sob a bandeira de seu pai.

  

                             Pretendentes e Jogo de Xadrez

Trant vivia a época de colheita. Pela manhã e ao entardecer, quando o clima era fresco o bastante e era possível trabalhar, as encostas das colinas ficavam cobertas por pessoas que se moviam por entre as videiras carregadas. As uvas ainda estavam sendo colhidas. Os grãos já haviam sido tirados da terra. De todos os celeiros vinha o ruído constante da debulha com mangual. Os meses de escassez chegavam ao fim. A comida estava ali para ser recolhida, e cada dia era importante. Todos os homens se apressavam para assegurar o próprio sustento antes de fazer o trabalho para a propriedade, e cada cavaleiro da propriedade queria tudo que lhe era devido antes de pensar no que devia a Trant. Ambrose estava em todos os lugares, cavalgando por entre as propriedades para encorajar as pessoas e motivá-las a dar a ele o que era devido. Um dia ficou furioso no meio de uma audiência e condenou à prisão três homens do mesmo vilarejo por não fazerem seu serviço como deviam. Por cinco dias, três mulheres e seus filhos, o menor com seis anos de idade, trabalharam sem a ajuda dos chefes de suas famílias na época mais importante do ano.

   Isso ocorreu em Sevel, uma das propriedades. Ambrose presidia a corte ali com mais freqüência do que em qualquer outra de suas propriedades, porque um cavaleiro a serviço de Tower Bay certa vez tentara reclamar o lugar, e ainda era importante garantir que Bay e Sevel compreendessem quem era o senhor de Sevel.

   Phaedra havia cavalgado com o barão de Lackmere para assistir às audiências, mas não estivera presente quando o pai tivera aquela explosão temperamental, porque seu hóspede se havia afastado com seus guardas para visitar o galpão em que as uvas eram processadas, cheirar o suco e a polpa delas extraídos e examinar todo o equipamento utilizado no trabalho, para depois opinar sem modéstia sobre como as coisas eram feitas por ali. Meia hora ouvindo a justiça do guardião havia sido mais do que suficiente para Lackmere. Não estava interessado em casos domésticos, mas na distante possibilidade de um confronto com Bay. Talvez imaginasse que o guardião pudesse dar a ele uma espada e deixá-lo enfrentar os inimigos de Trant como um cavaleiro, mesmo que somente por uma hora.

   Ele estava sempre na companhia de Phaedra. Não era um homem fácil de entreter. Embora fosse tratado com respeito e cercado de todo conforto, e apesar de ter permissão para ir a qualquer canto das terras de Trant, desde que sob supervisão, ele não tinha nada para fazer senão esperar pela ordem de libertação que nunca chegava. Phaedra fazia o que estava ao seu alcance. Cavalgava com ele por todas as casas e mansões do castelo e o acompanhava em longas caminhadas até as muralhas. Tentava ler para ele, mas o barão não encontrava muita utilidade para The Lamentations of Tuchred, ou qualquer outro dos cinco ou seis volumes de meditações sagradas que compunham a biblioteca de Trant. Ela escrevera uma carta, ditada pelo barão, para sua senhora, uma mensagem cujas palavras e saudações eram tão tensas que traíam sua culpa por ter agora sua família protegida e suas terras resguardadas por aqueles que ele escolhera como inimigos.

   Queria que ele visse Trant como ela via, um lugar aconchegante e doméstico, mesmo para um exílio. Queria que ele enxergasse além dos pequenos sinais de riqueza que já havia notado, como o prato de prata com o qual era servido, o número de tapeçarias que adornavam as paredes e o fino artesanato dos conjuntos de mesas e bancos. Queria que ele demonstrasse compreender que tinha sorte por ter sido enviado para lá, não para outra casa qualquer do reino. Em Trant ele podia rir com James, o administrador, ou com Joliper, um dos empregados. Sappo, o caçador, podia levá-lo para uma expedição às margens do lago, e todo seu tempo poderia ser ocupado por atividades divertidas e prazerosas. Ficava aborrecida quando ele falava com desdém dos pratos produzidos na cozinha ou quando reclamava de algum detalhe. O barão falava pouco com irmão David, o sacerdote do castelo, e só comparecia ao serviço religioso quando o dever assim exigia.

   Ela o levou para conhecer sua área preferida em Trant, o pequeno bosque de carvalhos perto da margem do lago abaixo do castelo, onde o pátio em ruínas se escondia entre as árvores com suas colunas tentando tocar o céu, sua fonte de água fresca e seu silêncio revigorante. Levou-o para conhecer o trabalho artesanal realizado naquelas pedras, pensando que ele poderia ficar impressionado com a profunda quietude dali. Contou como escapara do banquete do rei em Tuscolo e encontrara um pequeno pátio com uma fonte como aquela, um lugar que despertara lembranças de casa. Ele não se mostrou muito interessado.

   E em um dia chuvoso, ela o acompanhou até a capela para mostrar a fileira de pedras contra uma parede, lápides nas quais se liam os nomes de sua mãe e de seus quatro irmãos e irmãs, dos quais apenas um vivera até os três anos de idade.

   Ele olhou para as lápides, e seu rosto também parecia entalhado em pedra. Talvez se lembrasse dos filhos que também tivera de enterrar, como aqueles.

— Você era a mais velha?

   — A segunda. Guy era o mais velho. Ele é o único de quem me lembro bem. Guy pereceu vítima de uma febre um ano antes de minha mãe morrer. Depois de mim, houve um intervalo, e então... — Ela apontou para a fileira de lápides que terminava no nome de sua mãe.

— Por que seu pai não se casou novamente?

   Por que as pessoas sempre pensavam e perguntavam a mesma coisa?

— Ele não quer riqueza, senhor.

— Mas quer filhos, não? Todo homem os deseja.

   — Ele jurou que nunca mais se casaria. Meu pai diz que os Anjos já deram a ele sua cota e que isso é o bastante para contentá-lo.

   — Entendo. E quando um desses belos pretendentes a levar embora daqui, o que terá restado de sua cota?

   Odiava quando ele falava dessas coisas. Era como ouvir um bêbado cantando em voz alta suas canções obscenas dentro de uma catedral ou numa rua silenciosa. Mas, como um bêbado, ele não se deixaria calar. E tinha a impressão de que não havia muitos outros assuntos sobre os quais ele desejasse discutir. Não queria pensar em pretendentes, como também não queria pensar no que o pai faria no futuro.

—    Ele jurou que não se casará.

   Um estranho juramento, disse seu acompanhante. No sonho, estavam sentados numa encosta de solo marrom. Ele tocava com a ponta de um dedo a borda do cálice de pedra que segurava com a mão esquerda.

Lembra-se da primeira vez?

   Ele assentiu. Lembro. Você era apenas uma criança e estava debruçada sobre a fonte. EU a vi nitidamente. Por isso falei com você.

Pensei que você fosse meu irmão, ela respondeu.

   Havia sido pouco depois da morte de sua mãe, naquele período vazio em que todos os dias ela acordava para descobrir que tudo tinha mudado, embora tudo continuasse igual. Certa noite, quando ocupava o lugar de sua mãe à mesa do jantar, seu pai começara a relacionar em voz alta todas as irmãs e filhas de senhores locais com quem ele poderia formar uma aliança. Ele falava sem grande interesse, mas de maneira ininterrupta. E ela havia gritado com ele por cima da mesa, com sua voz infantil estridente e histérica, acusando-o de ter matado sua mãe e prometendo que também morreria caso ele se casasse outra vez. Depois fora para o quarto e recusara o alimento. Recusara a comida por dias. A dor chegara como um luto. E quando ela se fora, Phaedra sentira o luto partindo com ela e começara a sonhar sonhos maravilhosos e ensolarados nos quais via a mãe costurando vestes (Não se aproxime demais, criança), ou caminhando pela margem do lago com o sol iluminando sua pele e se refletindo na superfície da água. E acordava para descobrir que a mãe estava morta, que Guy estava morto e que seu pai estava furioso, implorando para que ela comesse, e desejava adormecer novamente.

   Mas o orgulho de Ambrose se dobrara no décimo segundo dia, e ele havia chorado e jurado que nunca mais desposaria nenhuma outra mulher e nem faria qualquer mudança em Trant enquanto Phaedra vivesse. Ela fechara os olhos, e um sonho diferente acontecera. Não era mais sua mãe, mas uma piscina natural formada entre as pedras no meio das montanhas, pedras cujas formas eram como punhos cerrados apontados para o céu. Nesse sonho ela vira o homem que pensara ser seu irmão, um homem que se movera pelas sombras e falara enquanto ela olhava para a água e para a improvável profundidade sob a superfície.

   Perdoara o pai. Abandonara o jejum para engolir o mingau salgado que haviam preparado para ela, um alimento que tivera em sua garganta oprimida o mesmo efeito de muitas lágrimas. Com as pernas ainda trêmulas de fraqueza, descera a escada para ir ocupar o lugar de sua mãe à mesa mais uma vez. E assim selara a promessa feita pelo pai. Nenhuma noiva cruzaria os portões de Trant para enterrar o que havia sido perdido sob os alicerces de uma nova família. E durante o longo período de luto, Trant foi o lar de pai e filha.

   Aprendera a gostar muito do último período de sua infância, época em que vagava sozinha de aposento em aposento, onde os criados estavam sempre ocupados, onde ela brincava com seus jogos e de onde via as estações sucederem umas às outras pelas janelas do castelo. Conhecia toda a rotina doméstica, estava feliz com ela, e seria capaz de comandar sem nenhuma dificuldade toda a criadagem da casa, graças ao poder que o pai colocava em suas mãos. Uma vez por ano, ela costurava uma veste ou uma faixa, como sua mãe sempre fizera, para o pai usar na Páscoa ou em outro dia santo, um gesto cuja utilidade era demonstrar que também estava sendo fiel. E nunca mais voltara a sentir medo da ira do pai.

   Seu amigo a ouvira e não dissera mais nada naquela noite. Phaedra pensava ter sido tocada por ele no ombro ao final de seu relato, e a lembrança desse toque a acompanhou mesmo depois do despertar.

   Pretendentes não faziam parte de seus planos. Suas vozes e seus passos eram um som novo em Trant, um som que ela não apreciava. Jovens e bem vestidos, eles chegavam numa interminável procissão. Os cavaleiros vindos de mansões conhecidas apresentavam-se com mais freqüência com a aproximação do inverno. Nobres e seus filhos cavalgavam até sua casa dizendo estar de passagem, algo que jamais havia acontecido antes. Os comentários sobre sua aparência se espalhavam rapidamente. Os ricos e desprovidos de ambição poderiam procurá-la por esse motivo, porque seu dote não era maior do que o de muitas filhas de simples cavaleiros. Mas o que todos sabiam, mesmo sem nunca tê-la visto ou conhecido, era que seu pai era dono de quinze propriedades ao redor de Trant, enquanto o rei possuía nove, e nenhum outro cavaleiro possuía mais do que três. Quando Ambrose morresse, o marido de Phaedra seria a escolha do rei para o posto de guardião e teria o impressionante patrimônio de vinte e quatro propriedades para sua esposa e a coroa, e com elas um dos maiores castelos da região. Sem perceber, Phaedra se tornara a mais cobiçada donzela da corte. Na primavera, por ocasião de seu décimo sexto aniversário, era impossível passar um único mês sem que algum novo pretendente se apresentasse pedindo sua mão.

   Sabia que o casamento era a condição natural para uma mulher (a menos que ela fosse freira), e que muitas se casavam na sua idade. Mas também era capaz de pensar em outras mulheres que nunca se casaram, ou que ainda não eram casadas. Não se sentia preparada para deixar sua casa, onde o vento brincava entre os carvalhos e escurecia a água. E odiava todos os homens que tinham o poder de obrigá-la a isso.

   Tratava-os com frieza. Recusava-os. Alguns, aqueles que ela considerava "bons", aceitavam seu pedido para que não insistissem em suas propostas. Outros não a escutavam, embora se retirassem apressados quando seu pai anunciava sua decisão de recusá-los por serem inadequados. Piores eram os poucos que acreditavam estar verdadeiramente apaixonados, sonhadores que pensavam que, por abrigarem no peito um amor genuíno e intenso, poderiam triunfar no final. Todas as baladas populares falavam de mulheres que recusavam e recusavam, testando seus pretendentes em extremos de combate e devoção, até finalmente cederem com graça. Era assim que eles a viam: e contavam cada rejeição como mais uma passagem de armas na longa batalha por sua alma.

   — Certa vez, meu pai disse que você era inferior a mim, Phaedra — contou o filho de um barão, sorrindo, quando ela solicitara que não insistisse em sua proposta de aliança. — Mas, oh, como ele estava enganado! Você é tão superior a mim que mais parece uma cotovia cantando sem ser vista.

Ele não tinha o direito de pensar tal coisa!

   Phaedra tentou explicar seu ponto de vista ao irmão David numa manhã, depois de terem visitado uma mulher que se encontrava enferma. O sacerdote assentira, como se a entendesse. Depois dissera alguma coisa sobre tudo ter seu tempo, o que demonstrava que ele não a compreendia. Ninguém a compreendia.

   Mesmo nos momentos de grande desespero, quando chegava a relacionar dois ou três nomes com quem poderia aceitar um matrimônio caso não tivesse alternativa, não era capaz de imaginar que vida levaria com eles em suas casas, esperando e esperando para voltar a Trant, onde seu pai não estaria mais debulhando os grãos colhidos. Não conseguia imaginar que sonhos teria. E tinha medo.

   Anos se passaram desde que vira o último bebê em Trant. As crianças de que se lembrava haviam crescido e se transformado em pestes ruidosas que assolavam os aposentos de paredes de pedra. Mas ainda se lembrava claramente de como fora vê-los em seus berços e de como os segurara nos braços. E também recordava as vozes geladas que ecoavam em seu coração sempre que tocava uma daquelas frágeis criaturas. Não conseguia banir da mente a imagem dos pequeninos túmulos que os homens preparavam para seus filhos, como havia sido feito por seus irmãos e irmãs. Via-se enterrando os filhos que gerara em seu ventre e até mesmo morrendo depois de um parto, vendo com suas últimas forças o bebê sendo levado do quarto chorando, sem saber como ele seria tratado e se sobreviveria. Um dia, e isso era muito provável, teria de correr esses riscos, mas não sabia como. As possibilidades que se abriam diante dela pareciam todas muito erradas. Sabia como tudo terminaria.

   Por isso ela recusava e recusava, sem nunca mudar de atitude.

   — Isso tudo é tolice — seu pai opinou no final do verão. — Não vou solicitar que aceite companhia desagradável ou cruel, porque cabe a mim assegurar justamente o contrário. Mas você precisa se casar, e eu terei de perdê-la. Os homens que aqui se apresentam estão entre os melhores do reino. Então, escolha e acabe com isso de uma vez, ou vamos acabar tendo de nos conformar com o pior quando não houver mais possibilidade de escolha.

   E, mesmo assim, ele não exigiria que se casasse, e os dois sabiam disso. Em seu íntimo, os pedidos de seus semelhantes e dos filhos que os acompanhavam contrariavam seu desejo de manter a filha em sua casa por mais um ano e reforçavam, talvez, seu receio sobre a atitude que ela poderia tomar caso fosse obrigada a se casar. Mas, cada vez que era forçado a ofender o filho de um vizinho ou ultrajar um amigo, Ambrose também era ferido. Depois de concluída a colheita, quando as noites começaram a cair mais cedo, ele se sentava sozinho, bebendo vinho e alternando silêncio e resmungos.

Devo me casar, ela disse ao cavaleiro em seu sonho.

É o que você deseja?

   Não, ela respondeu. Mas meu pai está mudando. Isso não pode continuar.

   Phaedra tinha a impressão de que estavam no pátio em ruínas, perto da fonte, à sombra dos frondosos carvalhos. Havia uma brisa leve, e as árvores cantavam com ela. Diante dela, a bacia da fonte estava cheia de água escura e parada, e uma folha de carvalho havia caído ali levada pelo vento.

   Não será Bay, ela anunciou. Se alguém de Bay tornar-se guardião após a morte de meu pai, eles teriam posse de quase toda a costa leste do lago. Na paz ou na guerra, nada poderia cruzar essa região, e pouco movimento poderia ser feito acima ou abaixo dela sem a permissão deles. O rei e meu pai jamais permitiriam tal coisa.

E também não será Tarceny?

   Uma lebre se casa com um falcão? Meu pai mandou de volta seus arautos no momento em que eles chegaram.

O antigo senhor de Tarceny está morto, lembre-se.

   Já me disse isso antes. Mas não faz diferença. Um a mais, um a menos... não faz diferença. Trant não pode mais ser como antes. Devo escolher um deles e deixar que me levem daqui. Se Baldwin insistir em sua proposta, talvez. Ele é jovem, pelo menos, e vai agradar a meu pai.

   Estavam lado a lado, em silêncio. Ela imaginava o que aconteceria com ele quando deixasse Trant definitivamente. Ele a seguira até Tuscolo há um ano. Poderia fazer o mesmo quando se mudasse para Baldwin? Não conseguia imaginar a resposta. De todas as coisas em sua vida, ele era uma das poucas que nunca havia mudado. Perdê-lo poderia ser a mais dura de todas as perdas.

   Ele suspirou, repousando as mãos sobre a fonte. Sob seus dedos, ela se transformou, como sempre parecera, no cálice de pedra, que ele erguia diante de seu rosto. Uma pequenina folha de carvalho ainda boiava formando um círculo lento na superfície da água.

Ele disse:

Podemos beber agora? Sim.

   Aquele era um dia terrível, a véspera de Todos os Santos, quando Phaedra se sentava rígida em seu assento no salão de Trant, olhando com severidade para o belo e jovem nobre diante dela, um visitante que se cercava de um grande grupo de homens em trajes cinzentos e armaduras brilhantes, todos colocados atrás dele de maneira a demonstrar fidelidade. Sentia-se trêmula enquanto seu pai se levantava lentamente e dizia ao homem que, apesar de seu sangue ser da mais alta linhagem e sua verdade estar acima de qualquer dúvida, a filha de Trant não se dignava aceitá-lo. E Elward, primogênito de Tower Baldwin e considerado entre os mais preciosos dentre a nata da região, olhou para os dois com patente incredulidade. Depois, com o rosto vermelho, ele se inclinou e saiu, levando em seu rastro os vinte cavaleiros que o protegiam.

   O grupo passou pelos portões deixando o castelo mergulhado no mais profundo choque. Pessoas que haviam recebido com guirlandas os representantes de Baldwin, sem nunca imaginar ou crer que Phaedra e seu pai poderiam recusar tal aliança, agora a fitavam e cochichavam em suas costas. Uma mulher adulta devia se casar. Sem casamento não havia futuro. Phaedra sustentava todos os olhares e cada um deles, mas ninguém falava com ela. Irmão David se manteve quieto e contrito na capela. Naquela noite, seu pai comeu em silêncio e segurou seu manto de pele em torno do corpo como se fosse um urso furioso. Phaedra permaneceu acordada em seu quarto com a cabeça tomada por muitos pensamentos e com o gosto da água na boca.

   Havia chegado uma carta de Maria, a terceira desde que se despediram no pátio da fonte em Tuscolo. Ela expressava seu espanto com as histórias que chegavam na corte relatando fatos de Trant, notícias que Maria ouvia também na casa de seu pai em Pemini. Ela ria do desconforto causado por tantos pretendentes obstinados. Sua prima estava casada com o homem escolhido pelos pais, mas Maria, ainda solteira, incentivava Phaedra a continuar resistindo até encontrar um que fosse certo para ela, independentemente de sua posição ou das conveniências políticas. Ela escrevia bem e pelo próprio punho, dizendo tantas coisas que Phaedra desejava ouvir e que ninguém jamais dissera até então. Depois de ler a carta à luz do amanhecer, Phaedra foi inundada pela sensação de que muitos pássaros cantavam para ela de algum lugar além da janela recortada na parede espessa. Naquela tarde, ela se sentou na biblioteca para escrever sua resposta. Olhando para uma tapeçaria que retratava santos, tentava encontrar palavras para explicar a Maria por que, até onde sabia, nenhum homem podia ser "certo", quando alguém entrou no aposento assobiando.

— Bom dia, sir Aun.

— Bom dia. Como soube que era eu?

   — Hoje em dia não são muitos na casa que cantam enquanto sobem a escada. — E nenhum era tão desafinado. Ela olhou por cima do ombro. O barão usava a longa veste azul e branca de Lackmere e parecia mais alegre do que nos últimos tempos. Seus guardas se mantinham à porta numa espera discreta e atenta.

— Tolos! Deviam se alegrar — ele opinou.

— A culpa é minha.

   — Se acredita mesmo nisso, deve suportar o peso da culpa. Vim para perguntar se você joga xadrez.

   — Ah, não... E nem acredito que haja um tabuleiro em Trant. — Havia muitos tabuleiros de damas e outros passatempos, mas nenhum tabuleiro de xadrez. Não que ela soubesse.

   — Não havia mesmo, até uma semana atrás. Quer ver o que consegui fazer com a madeira e as ferramentas concedidas por seu pai?

   Ele estava instalado em um quarto na torre noroeste, um andar acima dos aposentos de Phaedra. Sua cama era protegida por uma cortina, e o restante do aposento estava quase que inteiramente tomado por um amplo guarda-roupa e uma mesa de madeira colocada sob a janela. Sobre a mesa, havia uma fileira de ferramentas e algumas peças entalhadas, algumas manchadas de tinta. No canto, um tabuleiro de xadrez esperava para ser utilizado. O barão a convidou para sentar-se em um dos dois bancos próximos da mesa.

   Phaedra pegou uma das peças e estudou-a com curiosidade. Era uma pequena estátua de um homem sobre um cavalo, e sua cabeça e a parte superior do corpo exibiam uma grotesca desproporção em relação ao pequenino cavalo e às pernas finas traçadas em relevo nas laterais do animal. O rosto tinha uma expressão contorcida, como se o cavaleiro houvesse perdido o juízo sobre a sela.

— Não sabia que era capaz de entalhar — ela comentou.

   — Nem eu. Na verdade, nunca tentei fazer nada com madeira, até os últimos meses. E derramei meu sangue para produzir essas peças. Mas sou um aprendiz persistente e talvez possa substituir as que ficaram malfeitas. Daqui a um tempo, quando minha habilidade for maior... Pelo menos elas ficam em pé. Agora, preste atenção. O jogo é para dois jogadores. Cada peça se move de um jeito diferente. O peão é o mais simples. Então...

   Ela ouvia, e aos poucos percebeu que sua rispidez não era, como antes imaginara, por não desejar pedir por sua companhia ou por formas de entretenimento, mas por entender que ela precisava de companhia e não saber oferecê-la sem constrangimento. Estranho que um homem como ele desejasse confortá-la. Nunca o imaginara capaz de tais gentilezas. Com o passar do tempo, aprendia mais sobre as pessoas que julgava conhecer. Talvez essa descoberta fosse parte do amadurecimento de uma mulher.

   O jogo era impessoal, e essa também era uma vantagem. Phaedra descobriu-se fascinada por como ele progredia de fileiras bem organizadas a uma rede de complexidade mutante, retornando à simplicidade quando as últimas peças eram removidas do tabuleiro. Em outras circunstâncias teria recusado o convite para uma segunda partida, porque havia perdido vergonhosamente, e não gostava de perder. Mas, depois daquela manhã em que fora apresentada às peças, jogava com ele diariamente, às vezes duas partidas por dia. A atividade era algo que ambos podiam controlar. Para Phaedra, a pressão crescente do ataque do barão às suas posições era uma representação em menor escala das pressões que vinha sofrendo do mundo, mas no jogo ela podia desenvolver defesas com peças que movimentava sem imprevistos. Sabia que estava melhorando no jogo e a cada dia conseguia prolongar a partida e adiar a derrota por mais tempo. E se ficava frustrada por continuar perdendo, podia provocar o barão quanto à qualidade de uma ou outra peça, deixando-o sozinho com suas ferramentas para realizar os necessários reparos.

   Agora podiam falar sobre eles mesmos: falavam do receio que ela sentia de deixar Trant, e do medo que ele tinha de nunca poder deixar esse mesmo lugar.

     Pensei em ir a Jent e pedir a Sua Excelência que me deixe virar freira.

   -   Duvido que seu pai permita. E Sua Excelência não a aceitaria sem que ele autorizasse. É sua vez... Você mexe demais com essa peça, sabe.

   -    É a melhor que tenho. Por que não deveria movê-la? Você usa os cavalos sempre que pode.

   — Porque os cavalos são apropriados para correr riscos... Ei, o que foi isso?

Uma trombeta soava em algum lugar do castelo.

   — É o vigia do portão — Phaedra respondeu com a rainha na mão. Quando se recuperou da surpresa, não conseguiu lembrar o que ia fazer com ela.

   — Outro pretendente? — indagou Aun. — Pensei que todos se houvessem assustado depois do que aconteceu com o jovem Baldwin.

   Phaedra olhou para o tabuleiro. Todos os espaços disponíveis e possíveis para aquela peça pareciam inadequados.

   — Vai perdê-la de qualquer jeito — avisou o barão. — Por que não vemos quem chegou?

— Boa idéia.

   Fora dos aposentos do barão, um lance de escada levava ao telhado plano da torre. O dia estava frio e ventava muito. A insígnia do Sol e da Folha de Carvalho tremulava violentamente no alto de um mastro. Do parapeito, podiam ter uma visão clara do portão no extremo do pátio central. Cerca de seis cavaleiros desmontavam ao lado da guarita do portão. Empregados dos estábulos e guardas da segurança os cercavam.

— É uma insígnia real!

   — Sim, por Deus! — confirmou o barão, inclinando-se e apertando os olhos para ler o que estava escrito sob o brasão.

   Phaedra sentia sua súbita agitação. Mensagens reais podiam estar relacionadas ao seu futuro.

   — Se não estou enganado, aquele é o Sol. Mas o fundo não é diferenciado?

— É, senhor. A ponta da bandeira é verde.

   — Septimus. — Ele ficou em silêncio. Phaedra sentia a agitação do barão crescer. E sabia que ele não devia alimentar esperanças. Nada que viesse do filho mais novo do rei poderia trazer alívio para sua situação. Sabia que ele também tinha conhecimento disso; e, no entanto, Aun não conseguia sufocar a esperança. Foi com grande esforço que ele se afastou do parapeito. — Septimus, ou seus enviados. A caminho de algum lugar vindo de algum lugar. Não creio que seja alguma coisa para um de nós dois. Venha, vamos descer e acabar aquela partida de xadrez. Ainda tenho de tomar sua rainha.

   Ele jogou tão mal que Phaedra conseguiu se recuperar. Mas não sentiu nenhuma alegria nisso.

   Era o chefe-de-gabinete do príncipe, que estava a caminho, conforme Aun previra, de algum lugar. Ele era um homem engraçado, gordo, careca e barbudo, que falava sem parar e parecia sibilar as palavras. O jantar foi animado. O chefe-de-gabinete se dirigia principalmente ao guardião e ao irmão David. Ele brincou com Phaedra algumas vezes, mas agia como se nem notasse a presença de Aun, que se limitou a observar o intercâmbio em silêncio.

   Homem do príncipe ou não, ele vinha da corte, e também da corte viria a ordem de libertação do barão. Phaedra viu que ele percebia que estava sendo ignorado, viu que ele parecia se encolher dentro de si mesmo, comendo em silêncio na ponta da mesa, bebendo e estudando o enviado da corte por cima da borda de sua taça. Pela primeira vez em quase um ano, ela se deu conta de que sentia realmente o sofrimento de outra pessoa além do de si mesma; sofria pelo homem feroz e feio que ostentava a insígnia do Lobo Atrás do Cajado. Ela se levantou da mesa tão logo foi possível e seguiu para seus aposentos. Passos soaram na escada atrás dela. Da porta do dormitório, viu o barão continuar escalando os degraus para seu quarto na torre, a cabeça inclinada e uma garrafa de vinho em uma das mãos. Sem dizer nada, Phaedra fechou a porta e sentou-se na cama. Depois de algum tempo, ela se levantou.

   Sabia que os guardas estariam na porta do dormitório de Aun, mas não a deteriam. Talvez julgassem sua presença estranha, mas, se deixasse a porta entreaberta e não se demorasse muito... Com o coração disparado pela impropriedade do que estava fazendo, ela percorreu o corredor em direção à escada que a levaria ao quarto do barão. Ainda hesitava diante do primeiro degrau, quando outra porta se abriu dois andares abaixo dela. Vozes chegaram claras aos seus ouvidos.

   — Creio que pode ter esperança, senhor — dizia o chefe-de-gabinete. — Acho mesmo que deve ter. Nem Faul nem Develin ficarão contentes se Sua Alteza se casar com a outra candidata. Assim, estamos em compasso de espera. Sua Alteza usa essa situação para resolver a questão de acordo com seu interesse. E ele está cansado das damas da corte e não se esqueceu dela. Direi a ele que os rumores não exageram sua beleza e nem a sua formação. Nada está acertado, é claro, mas não ficaria surpreso se Sua Alteza decidisse visitá-lo dentro de pouco tempo... De passagem, certamente.

   — Sua Alteza nos concede grande honra — disse Ambrose. — Uma honra muito maior do que minha filha merece.

   — Sua filha é o tipo de mulher que serve de musa para as mais belas baladas, guardião. E se Barius está mesmo determinado a permanecer solteiro, como parece...

— Não falemos nisso agora. Quando ele virá?

   — Não posso prever com certeza. Se não estiver enganado, haverá uma Jornada Real por essas terras no novo ano.

   — Ouvi alguma coisa sobre essa possibilidade, embora não haja nada certo.

   — Sua Alteza deve integrar o grupo. E é melhor garantir que ele seja bem recebido em Trant.

   —

   — Já estou pensando em tudo. Mais uma coisa... Acha que o rei trará notícias para meu hóspede?

   — Lackmere? Inchapter tem a proteção e o lucro de suas propriedades. Ele é um dos homens de Develin. O grupo não gostaria de vê-lo livre, e Sua Majestade tem poucas razões para contrariá-los. Lackmere não deve esperar por uma mudança enquanto essa situação perdurar.

   — Isso não é nada bom. Ele está sempre agitado, ansioso, como um falcão selvagem.

   — Lamento por ele, mas creio que o homem devia ter escolhido amigos melhores... ou queimado menos vilarejos.

   Estavam subindo a escada em sua direção. O chefe-de-gabinete devia estar se retirando cedo depois de sua jornada. E seu pai também se recolhia. Phaedra correu.

   Encolhida atrás da porta do quarto, ela ficou ouvindo os passos se afastarem. Portas se fecharam. Outros passos soaram na escada. James, o administrador da casa, e seus ajudantes. Eles apagavam as luzes, agora que o guardião havia ido para a cama. O brilho dourado desapareceu de sob sua porta. Apenas os raios do luar penetrando pelas frestas da janela reduziam a escuridão do quarto.

A porta estava fechada. Estava presa.

   Não podia mais ir ao quarto de Aun, agora que a casa estava escura. Além do mais, o barão devia estar embriagado. E não saberia o que dizer a ele. Não sabia o que pensar. Preferia não ter ouvido aquela conversa. O chefe-de-gabinete devia estar bêbado também, porque havia falado demais. Ou a casa do príncipe passava todo seu tempo envolvida em fofocas?

O príncipe!

   Não conseguia se lembrar muito de Septimus; um rosto comum, um rapaz barrigudo, sem nenhum outro atrativo além do de ser o filho do rei. Para o restante do mundo, sem dúvida, ele era mais bom partido do que Baldwin teria sido. Para Phaedra, era o pior de todos. E vivia na corte do rei em Tuscolo, no centro de suas frivolidades, de suas intrigas e de sua justiça distorcida. Ele havia sorrido para um rosto desconhecido na capela real, e não havia nada de inusitado ou impróprio nessa atitude em sua opinião, porque sua casa estava sempre cheia de estranhos. Lá ele nunca seria o amo nem sua esposa seria a senhora.

   Presa! Não podia fazer nada senão esperar até que eles fossem procurá-la, mesmo que levassem meses para tomar uma decisão. Havia aprendido o suficiente desde que deixara Tuscolo para saber que o mundo nunca a deixaria em paz. Não haveria um fim. Não esperava que fosse assim. Agora ela andava pelo quarto, muito zangada, dando voltas intermináveis. De vez em quando, uma palavra ou um som escapava de sua garganta. Phaedra bateu o pé com força. Doía. Queria gritar. A cama encostada em uma parede estava coberta por lençóis amarrotados, resultado do pouco tempo que passara sentada ali. Dormir? Como poderia dormir depois de tudo que ouvira? Em algum lugar em Tuscolo havia outra cama, maior, mais rica, uma cama que Septimus dividiria com sua esposa. Ouvira dizer que na noite de núpcias de um príncipe homens permaneciam ao lado da cama com velas acesas, porque deveria haver alguém capaz de jurar que o herdeiro real era mesmo filho do príncipe.

Juramentos e Anjos!

   Ela se aproximou da janela e abriu a cortina. Era uma noite fria de inverno, embora esse lado do castelo fosse abrigado do vento que empurrava as nuvens no céu, fazendo a lua surgir e desaparecer como um lorde em uma caçada. Ela se apoiou no parapeito, e a pedra fria a acalmou um pouco. Muitos metros abaixo daquela janela, a encosta descia suave até a margem do lago. Podia ver o dique e as árvores que o contornavam, o desenho das velhas construções e o pequeno bosque que circundava o pátio em ruínas. Podia ver o luar refletido na superfície do lago, desenhando um caminho que o atravessava até o infinito, até onde os olhos podiam ver, um caminho para longe daquele lugar em que as paredes a sufocavam, mas um caminho fora de seu alcance, além de suas possibilidades.

   Phaedra teve a impressão de adormecer debruçada na janela. Era como se as paredes que a cercavam houvessem desaparecido. Caminhava por entre rochas castanhas, e havia um som abafado e quase profundo demais para ser ouvido. Conhecia tudo isso de antes.

   A lua surgiu novamente. As pedras desapareceram, e sob as finas solas de seus sapatos ela sentiu a maciez da relva. Andava por entre árvores. Estava novamente no bosque próximo da fonte, com o ar úmido da noite soprando seus ombros. Carvalhos sussurravam como se fossem seres vivos. As colunas eram muito altas. As ondas do lago iam e vinham perto dali. Aquele som profundo ainda persistia, e ela girou sobre os calcanhares e olhou para trás.

Onde está você?

   Encontrara-o ali, naquele mesmo lugar, quando pensara que devia aceitar Baldwin. Agora precisava dele mais do que nunca.

Onde está você?

   Havia água na fonte, refletindo a lua. O reflexo oscilava. A sombra da cabeça dele surgiu ao lado da dela na superfície da água.

Aqui, ele disse.

Você está aí? Não consigo vê-lo claramente.

Ele se ajoelhou diante dela e beijou-lhe a mão. Seus dedos sentiram o contato como uma carícia.

   Estava me chamando, ele disse. Olhei, e aqui estava você. Qual é o problema?

   Vão me casar com o príncipe Septimus. Devo partir, mas não conheço ninguém e não tenho para onde ir.

   Ele ficou em silêncio por um tempo, como se estivesse pensando.

Quanto tempo temos?

   Não sei, ela respondeu. Algumas semanas. Tenho de partir antes que ele me veja.

Escolha um número, então. Maior do que cinco.

Oito sempre havia sido seu favorito.

   Muito bem. No oitavo dia do novo ano espere por mim neste lugar à oitava hora depois do meio-dia. Pode fazer isso?

Phaedra acreditava que sim.

   Se eu vier a essa hora, darei toda a ajuda que puder. Se não vier, é porque não posso ajudá-la.

Espere!

Ele parou.

   Você é... (Vivo? real? Conhecia-o havia sete anos. Agora ele parecia falar como se pudesse saltar para o mundo exterior.)

   Ele sorriu. Por um momento, foi possível vê-lo nitidamente, parado diante dela com as mãos na beirada da fonte. Phaedra lembrou-se de como a fonte se transformara no cálice de pedra em suas mãos. Seus dedos tocaram a água e retiraram algo da superfície.

   Meu nome é Ulfin, ele disse, entregando a ela o que acabara de retirar da água. Isso cresce sob minhas paredes.

   A lua desapareceu novamente, levando com ela a visão. Phaedra abriu os olhos.

   Estava acordada, parada diante da janela, tremendo. A pedra do parapeito era dura e fria sob suas mãos. O bosque do pátio da fonte, que no momento anterior a cercara com tanta nitidez, estava escondido na escuridão colina abaixo. Nada parecia se mover por lá. A luz tornou-se mais intensa quando a lua surgiu de trás de uma nuvem. Em sua mão esquerda, a que ele beijara, havia uma flor exótica, uma rosa branca de quatro pontas com uma única pétala negra. Ela a examinou bem de perto. Nunca vira nada parecido antes.

   — Então, agora sou uma bruxa — ela murmurou. — Fez isso comigo?

   O silêncio foi sua resposta. Talvez aquilo quisesse dizer que ele também havia mudado. Em algum lugar, ele andava à luz do dia, sob o mesmo sol que banhava Septimus e todo o mundo que vinha bater em sua porta. Podia ajudá-la. E seus lábios haviam tocado sua mão.

   Sentia o coração bater acelerado como se houvesse corrido pela escada que levava ao topo da torre.

  

                                             Aço e Escuridão

O chefe-de-gabinete partiu. Janeiro chegou com seus dias escuros e com uma garoa que era carregada pelo vento. Cavaleiros reais apareceram na estrada do lago e pediram abrigo nos portões. Havia quatro deles, enviados semanas antes da grande parada com instruções para cada uma das casas que os receberiam ao longo caminho. As pessoas de Trant os observaram enquanto eles atravessaram os pátios, cochichando umas com as outras. Meninos da cozinha corriam pelos corredores que haviam percorrido sem pressa alguma no dia anterior. O chefe dos estábulos perdeu a paciência por conta de um detalhe qualquer e espancou duramente um dos empregados. Trant estava agitada e nervosa. O rei estava chegando.

   Phaedra notou que a atmosfera no castelo havia mudado com a chegada dos hóspedes, mas estava preocupada com seus próprios pensamentos. O tempo passara depressa. Seu pai nem mencionara a conversa que tivera com o chefe-de-gabinete do príncipe na escada do castelo. Era melhor assim, porque ela não saberia como reagir. Era difícil concentrar-se nos assuntos da casa, que se tornavam mais e mais irreais com o passar do tempo. Às vezes, quando as pessoas falavam com ela, Phaedra levava um momento para responder.

   A flor ficara em um copo com água por uma semana, até murchar e ser jogada fora. A coisa mais real deixada no castelo fora um pequeno embrulho, uma bolsa e roupas de viagem, que ela havia escondido sob sua cama dias antes. Desde então, muitas vezes fora verificar e certificar-se de que tudo ainda estava lá. Os objetos permaneciam em sua mente como pedras na escuridão.

   Na sétima noite do novo ano, Phaedra foi para a casa como fizera milhares de outras vezes. Não dormiu. Quando fechou os olhos e olhou para a escuridão, tentou imaginar onde repousaria a cabeça na noite seguinte.

   Na manhã seguinte, ela compareceu ao debate do guardião com os homens do rei. Outros habitantes de Trant também estavam lá. Os visitantes falavam numa espécie de revezamento organizado. Um representante especificou o tamanho da tropa do rei e as acomodações que seriam necessárias para recebê-la. Um escriba queria saber detalhes sobre as queixas que seriam levadas ao julgamento do rei enquanto ele estivesse em Trant. Um mordomo falou das necessidades pessoais e do conforto do rei, e um caçador especificou como ele passaria seus momentos de lazer.

   Phaedra não disse nada. Enquanto escutava a conversa, ela percebia que Trant já começava a se tornar ruidosa e frenética. As exigências de tal alteração da rotina doméstica seriam enormes. Seriam cinqüenta cavaleiros, cinqüenta homens para alimentar e acomodar, sem mencionar os escribas, os criados pessoais, os ajudantes de cozinha e os chefes-de-gabinete, gente suficiente para devorar o equivalente a três meses de vida em provisões durante as três semanas que passariam ali. Os dois príncipes reais integrariam o grupo. Ainda não se sabia quais dos barões participariam da arada, embora fosse quase certo que, se Develin acompanhasse a comitiva, Seguin e Faul também estariam nela para vigiá-lo. Dois príncipes, três grandes lordes; e o rei não pagaria uma moeda de prata pela hospedagem e pela alimentação de toda essa gente. Sim, a coroa tinha bons motivos para realizar o desfile, e reforçar a autoridade do rei nas terras por que ele passasse era apenas um deles.

   Não haveria mulheres no grupo. A rainha estava grávida novamente (seria o sétimo filho, se sobrevivesse). Ela não viajaria. As damas da corte permaneceriam em Tuscolo por respeito a ela.

   — Bem, você deveria parecer satisfeita — o mordomo disse a Phaedra. Todos riram. Phaedra precisou de um momento para compreender que seu trabalho seria duplicado caso as damas da corte também viessem. Mais do que duplicado.

   Haveria mais de cem cavalos para acomodar e alimentar, com arreios e selas para serem reparados e conservados. Os estábulos de Trant transbordariam. Haveria banquetes à noite e caçadas durante o dia. Phaedra sabia que, sem a ocorrência de um milagre ainda naquela noite, passaria muitas semanas ocupando-se apenas das questões relativas à visita do rei. Pensar no milagre desviou sua atenção. Para a fonte, para a noite que se aproximava, para o homem de seu sonho. E as vozes na sala se distanciavam.

   — E quanto ao barão de Lackmere? — perguntou seu pai.

   — Essa é uma questão que toca à justiça do rei — disse o escriba real. — Mas, na minha opinião, é improvável que Sua Majestade faça qualquer julgamento relacionado ao barão durante esta jornada.

   — Portanto — acrescentou o mordomo —, seria melhor se o barão não encontrasse o rei em nenhum momento, não comesse à mesa principal, nem em nenhuma outra em que houvesse alguém do grupo real. O que vai fazer além disso é uma decisão sua.

   Assim, Aun perdia suas esperanças de liberdade em um futuro próximo, como já temia. E não haveria outra chance tão boa quanto essa em muitos anos. Seu pai não protestava. E ele também não protestou quando o escriba começou a questionar sobre as idas e vindas dos cavaleiros de Bay pela posse da Mansão Sevel, tentando decidir como essa disputa entre as grandes casas transcorreria quando o rei os testasse. Se Bay tivesse de ter apenas migalhas, então migalhas seriam atiradas para Bay. Trant estava atrás de um prêmio muito maior. Ela fechou os olhos por um instante.

Devo partir, pensou. Eu o salvarei disso.

   Mais tarde, quando a refeição do meio-dia chegou ao fim, ela procurou por Aun em todo o castelo, mas não o encontrou. Finalmente viu os guardas que o vigiavam. Os guardas estavam encolhidos no andar mais alto da torre noroeste, fugindo do vento e da ameaça iminente de chuva. Eles indicaram onde o barão estava. Aun andava de um lado para o outro ao longo da muralha sobre o salão principal. Já devia saber o que os homens do rei haviam falado a seu respeito. Quando notou que ela se aproximava, virou-se de costas, como se temesse que ela viesse confortá-lo.

— Creio que não é um bom dia — Phaedra comentou.

   Ele resmungou e se debruçou sobre a muralha, como se mirasse algum lugar específico. Phaedra juntou-se ao prisioneiro, olhando para a vastidão branca e cinzenta da muralha norte. Havia doze metros da plataforma em que estavam até a base, e mais cinco do solo até o fundo do fosso. O fosso devia estar seco, mas existia sempre um pouco de água nele nessa época do ano.

   — A parede se inclina para fora perto do fundo — ela revelou. — Não dá para notar, a menos que esteja aqui em cima e olhe para baixo.

   Em outra ocasião, ele poderia ter oferecido explicações sobre técnicas de edificação, como a necessidade de uma base larga para garantir a estabilidade da parede ou alguma outra coisa parecida. Mas nesse momento apenas escutava em silêncio.

   — Fico pensando sobre a qualidade desse trabalho. A argamassa é boa nesse nível, sem dúvida, porque é fácil de aplicá-la. Mas não há rachaduras e fendas entre as pedras na superfície da parede?

— Talvez esteja certo em sua suposição, senhor.

   — Espero que sim. Nesse caso, um dia as muralhas ruirão, e então estarei livre.

   — Existem outras possibilidades mais concretas de ser libertado, Aun.

   — Existem? — A pergunta soou ríspida. — Suponho que será uma princesa, desde que se case com esse seu príncipe, e se der a ele o número certo de filhos, talvez ele a escute. Então, se Sua generosa Majestade e Barius morrerem sem muita demora, um dia você será a rainha consorte. E, então, poderá convencer alguém a me deixar sair daqui... se eu não morrer ou ficar louco, esperando.

   Phaedra parou, lutando contra a ira que crescia em seu peito e despertava nela o desejo de deixá-lo ali sozinho. O que a fez ficar foi saber que ele não se importaria. E o homem tinha bons motivos para estar perturbado. Tanto quanto ela, certamente.

   — Supostamente, eu não deveria saber sobre essas coisas — disse.

   — Nem eu. Nem metade das pessoas que habitam o castelo. Acha que alguém me teria contado o que anda circulando pelos corredores desde ontem? Esses lordes tagarelas de Tuscolo!

— Não quero...

   — Ainda é muito jovem, minha menina. Posso lhe dar um conselho?

— Certamente.

   — Não pense em fazer seu pai jogar o seu jogo. Ele não pode. Não dessa vez. E ele nem vai tentar. O que ele fez por você já foi além de todos os limites do razoável. Outro homem teria esfolado viva uma filha que ousasse desafiá-lo. Se o príncipe quiser se casar com você, ele se casará com você... embora, se quer saber o que penso, tenha grandes chances de sofrer as conseqüências dessa escolha no reino. Mas ele pode desposá-la. Seu pai não seria guardião por muito tempo se interferisse. Não estou dizendo essas coisas por prazer ou para ter alguma alegria. Estou dizendo tudo isso porque as coisas são assim.

   Podia ser reconfortante para um homem como ele saber que mais alguém estava sendo manipulado, governado e obrigado a agir contra sua vontade. A chuva começou a cair em pesados pingos sobre as pedras da muralha. Phaedra levou algum tempo para voltar a falar.

   — Senhor, eu gostaria de esquecer o que disse. Porque muitos homens não passam de valentões protegidos por armaduras. E acredito que, quando se tomam as armas de um homem e se priva esse homem de sua valentia, e se descobre que ele não é mais nada, então ele, de fato, não é mais nada. E você, ele e o reino ficam mais pobres por isso.

   Ele a encarou, e Phaedra sustentou seu olhar, como sempre fazia. Depois o deixou. Quando olhou para trás, viu que ele se debruçava novamente sobre a muralha, com a chuva caindo pesada sobre seus ombros. Phaedra passou o restante da tarde vagando pelo castelo, observando os homens e as mulheres que se dedicavam ao trabalho e explicando distraída aos serviçais o que achava que teria de ser feito quando o rei chegasse. Mais tarde ela foi à torre noroeste para apreciar a chegada da noite. A chuva havia cessado. Aun não estava mais ali. As muralhas lá embaixo estavam vazias. Nuvens cinzentas ainda paira no céu, afastando-se lentamente para o poente. O tempo estava mudando. O vento soprava do sul. O calor era estranho, inesperado. Ela olhou para baixo, para as oliveiras que escondiam a fonte, e pensou: preciso ir. Mesmo que ele não venha esta noite, devo partir. Talvez consiga convencer os navegantes a me levarem pelo lago para Jent, onde pedirei ao bispo para me aceitar no convento.

   A sexta hora daquela noite ela se sentou para jantar pela última vez em Trant, com as lamparinas iluminando a sala e todos os objetos nela contidos. Olhando de seu lugar para a mesa principal, à qual se sentava entre o caçador do rei e seu mordomo, podia ver todos os habitantes do castelo nas longas mesas secundárias abaixo dela. Aun havia sido colocado naquela a sua direita, entre os cavaleiros e na cabeceira. Podia perceber que ele a observava, mas não conseguia ler a expressão de seu rosto. Quando olhou novamente para aquela mesma mesa, no meio da refeição, ele havia desaparecido.

   As mesas rangiam sob o peso de punhos e pratos, e Joliper, o artista, aproximou-se com seus instrumentos musicais para entreter o grupo na mesa principal. A imagem e os sons enchiam seus olhos e seus ouvidos, mas só tocavam a fronteira mais externa de sua mente. O mordomo do rei conversava com irmão David, mas ela não ouvia o que diziam. A imagem do antigo pátio sob os carvalhos ocupava seus pensamentos como um lago escuro e quieto. O jantar prosseguiu ruidoso povoando as margens desse lago, mas a superfície da água ainda era calma, parada.

   — ... Então, Wulfran veio pelo mar — Joliper estava dizendo naquela voz melodiosa de contador de histórias. — Nos Três Navios ele trouxe Quatro Anjos, e com eles nosso povo para uma praia desconhecida. Lá ele incentivou seus Sete Filhos a tomarem terras para si mesmos, uma fração para cada um deles, e em suas mãos ele colocou Uma Coisa E a Coisa era Aço. Aço nas mãos dos Sete Filhos conquistou o reino, e Aço no coração de seus filhos fará com que ele nunca esteja em paz.

   Joliper havia estado com o pai de Phaedra na longa opressão do Litoral quando os últimos rebeldes finalmente foram derrotados. Ele nunca enfrentaria Ambrose, ou nenhum outro homem em que Phaedra pudesse pensar. Mas o ódio contra tudo que vira temperava as linhas de suas baladas, mesmo diante dos homens do rei. (Ele também mencionava piolhos e disenteria sempre que acreditava poder se safar sem uma reprimenda de Ambrose.)

   Em algum momento depois da sétima hora, quando as taças foram enchidas pela segunda vez, Phaedra se levantou para deixar o salão. Ela beijou o pai desejando-lhe uma boa noite, como fazia todas as noites desde que era pequena, e deixou os lábios se demorarem um segundo além do normal em sua face barbada. Se notou, ele não demonstrou nada. Mas sorriu para ela, e havia afeto em seu abraço, o que não acontecia com freqüência nos últimos meses. Depois, ele se virou para o escriba real a seu lado e começou a testar o terreno de sua longa disputa com Falco de Bowerbridge, que afirmava ser um cavaleiro livre e que, por isso, não submetia sua casa ao guardião. O rei talvez não se dedicasse a julgar tal caso, mas podia apontar um homem adequado para a missão, não?

   Seu pai não era um homem mau. Ele jogava o jogo como devia, como no xadrez, e essa era uma chance boa demais para ser desperdiçada. Um presente na hora certa, mesmo para um simples escriba, poderia trazer uma carta real que poria um fim na cansativa e velha alegação de Falco sobre ser um cavaleiro-cão, um desfecho tão certo quanto se seu pai queimasse a casa desse homem e pusesse fim à vida de todos que tentassem ajudá-lo. Seria uma propriedade para contrapor a Sevel, se ele perdesse a causa; uma troca justa para Trant, independentemente do que poderia vir por meio de um casamento. Phaedra deixou o salão sem olhar para trás.

   Os corredores estavam escuros aos seus olhos depois de toda a luminosidade da sala de banquete. Manchas púrpuras pareciam dançar diante dela enquanto caminhava. Seus pés conheciam o caminho. No alto da escada, devia virar para a direita depois do décimo segundo degrau e continuar subindo até a galeria de onde ouvira seu pai e o homem do príncipe conversando semanas atrás. Um vazio crescia dentro dela enquanto caminhava.

   Agora para a direita. Uma tocha pendia sobre sua porta, desenhando um caminho de luz na passagem. Ela entrou e procurou pelas coisas que havia escondido sob a cama: um manto leve e a trouxa pequena o bastante para ser transportada embaixo dele. Estava deixando quase tudo que tinha. Até o jogo de bilboquê fora guardado no armário com as bonecas de pano empoeiradas com que não brincava fazia anos. Quando prendesse o manto ao pescoço, não haveria nada que pudesse indicar que estava saindo para mais do que uma inocente caminhada dentro das muralhas do castelo antes de se recolher.

Estava pronta. Devia ser quase a oitava hora.

   Phaedra ficou parada diante da janela por mais algum tempo, sozinha, olhando para o oeste, para o lago. Havia uma lua pairando sobre a água, cintilando em algum ponto do céu acima das nuvens finas. Os carvalhos que cercavam a fonte compunham uma massa negra, e o espelho do lago era uma extensa camada azul metálica na noite silenciosa. Ela julgou ter visto... o quê? Uma mancha branca que bem podia ser a vela de uma embarcação cruzando o lago suavemente. Mas não podia ter certeza.

   Ainda havia algo a fazer. Phaedra deixou o quarto e seguiu pelo corredor até a torre noroeste, onde usou a escada para chegar a outro corredor, este menos iluminado que o anterior, e por ele caminhar confiante, deslizando os dedos pela parede identificando assim uma, duas, três portas. Quando os dedos tocaram a madeira pela quarta vez, ela parou e segurou o anel de metal preso à porta. As dobradiças rangeram como se gemessem de dor.

   A capela estava vazia. A Chama do Céu ainda cintilava no altar, mas o teto e os corredores estavam mergulhados na escuridão. Ela se dirigiu lentamente ao corredor mais distante, inclinando-se diante da Chama como fazia todos os dias havia doze anos, e continuou caminhando até parar diante das pedras alinhadas contra uma parede.

   Mal podia vê-las na escuridão, mas não precisava enxergar. Sabia que estava diante delas. Depois de um momento, abriu a boca para dizer alguma coisa, mas deteve-se. Em vez disso, estendeu a mão e tocou cada uma das pedras, sentindo na pele os nomes registrados nas superfícies frias. Adeus, Guy. Adeus, Ellen, Anfred, Ina. Adeus, mãe. Devo ir agora.

   Enquanto retornava pelo corredor para a porta principal, ela ia pensando que familiares deviam chorar nas despedidas. Mas, por sete anos, tivera apenas cinco lápides e o pai. Pedras não choravam, e ela também não choraria.

   Na muralha oeste de Trant, sob o sotavento da torre noroeste, existia uma pequena porta. Ali não havia vigilância. Grandes ferrolhos a mantinham fechada, mas suas mãos os retiraram sem grande dificuldade. As dobradiças rangeram quando ela abriu a porta. Phaedra saiu e voltou a fechá-la com o mínimo de ruído possível.

   Imediatamente, soube que estava no lugar errado. Nunca antes estivera daquele lado da muralha depois do anoitecer. Ela desceu rapidamente para o fosso (a água dentro dele alcançava a altura de seus tornozelos) e subiu pelo outro lado. Ninguém a chamou de cima. Havia luzes nas muralhas mais elevadas, mas, em tempos de paz, Trant tinha o costume de deixar homens guardando a guarita do portão, enquanto as muralhas ficavam desertas.

   Phaedra desceu a colina sentindo o solo macio sob os pés. Seu manto era escuro. Agora estava fora do alcance da luz das tochas. Não havia nenhum som além do sussurro constante do vento e o leve farfalhar de seus pés sobre a relva. Os primeiros troncos do bosque pareciam esperá-la na escuridão. Ela progredia mais devagar, tentando encontrar algum sinal de alguém se movendo ou aguardando sob as árvores.

   — Devia ter trazido uma lamparina — disse para si mesma.

   Mas para quê? Transportar uma luz só serviria para delatá-la, caso houvesse alguém observando o pátio do alto do castelo. Conhecia o caminho. Pelo menos, julgava conhecê-lo à luz do dia. E não estava completamente escuro, mesmo ali, sob as árvores.

   Seus pés tocaram um trecho de pedras. Alguns dos troncos em torno dela deviam ser pilares. A velha fonte estava bem a sua frente. Os dedos buscaram a borda seca. Ali estava. Tateando, ela encontrou o caminho para a plataforma sobre a qual se erguia a fonte e, aliviada, apoiou as costas nas velhas pedras. Por quanto tempo teria de esperar? Uma hora, ele havia dito. Seria capaz de julgar o tempo?

   O vento cantava por entre os galhos. Entre eles, a sua esquerda, podia ver as luzes do castelo. Sons indistintos ecoavam entre as árvores. De vez em quando ela tinha a impressão de ouvir passos, mas, quando se virava na direção do som, não via nada. Então, o vento soprava mais forte, fazendo balançar as folhas, e depois da rajada restava apenas o silêncio.

   Estava frio. Seu manto era fino. Sentia os pés e os tornozelos gelados. Havia peças mais quentes em sua reduzida bagagem, mas não queria abri-la e revirar seus pertences na escuridão. Se o fizesse, levaria uma eternidade para estar pronta novamente.

   Por outro lado, seria bom poder sentir-se aquecida e ainda ter algo com que ocupar seu tempo. Quando estendeu a mão para o fardo, Phaedra julgou ter ouvido novamente um ruído entre as árvores. Alguém se movendo? Mais de uma pessoa, porque os sons à direita eram seguidos rapidamente por outros à esquerda. Ela se levantou e olhou em volta. Nada se movia. Ninguém se adiantava para apresentar-se ou cumprimentá-la.

   E ela esperou. E o vento fazia tremer as folhas, o bosque estalava e rangia, e aos poucos as batidas aceleradas de seu coração foram se tranqüilizando, e ela se abaixou e abraçou os joelhos, olhou para as luzes na colina e imaginou se não havia adormecido e mergulhado num sonho.

   As nuvens se tornaram ainda mais finas. A luminosidade cresceu. Alguns passos atrás dela, uma voz chamou:

—    Phaedra.

   Seu coração pulou, e pulou novamente quando ela o viu. Em pé, ao lado da fonte, vestido com um manto bem grosso, com a lua brilhando em seus cabelos, ele sorria. E ela também sorriu, aliviada por vê-lo, afinal.

— Você veio — disse.

   — Vim. Minha embarcação está no molhe à margem do lago. Quer vir comigo?

   Havia outros homens com ele, observando das sombras das colunas e das árvores. Ela se levantou.

   —Sim, eu quero — respondeu. — Ulfin.

—    Não!

   Um homem deixou a proteção das árvores atrás dela e aproximou-se cambaleante. Uma lâmina cintilou por um momento ao luar.

— Ela não é para você! — gritou Aun.

   Phaedra tentou detê-lo com um grito desesperado, mas o cavaleiro se adiantava deixando o refúgio da fonte, sacando a espada com uma das mãos. Aun hesitou, contendo o impulso inicial. O aço ainda brilhava entre os dois. Outras mãos seguraram as de Phaedra e a puxaram quando ela olhou para trás. O cavaleiro disse alguma coisa e atacou, e voltou a atacar, rápido como uma serpente. Aun cambaleou.

—    Não o mate! — ela gritou.

   Vozes distantes chamaram do castelo. As lâminas tilintavam e os combatentes ofegavam. Aun se esforçava muito para escapar dos golpes e de repente tentou acertar a cabeça do inimigo. O cavaleiro saltou para trás.

— Rá!

   — Isso é ridículo — disse o cavaleiro. — Tirem-no de perto de mim.

   Homens cercaram Phaedra. Ela ouviu os gritos de Aun. Havia luzes e movimento no castelo.

A mão de seu companheiro tocou seu ombro.

—    Devemos ir agora. Venha comigo.

   Passos apressados secundavam o ruído dos golpes ferozes no bosque. Aun ainda gritava.

—    Ei, Trant! Guardas! Guardas!

   Um assobio soou bem perto de sua orelha direita. O cavaleiro a levava colina abaixo, e eles corriam como se tivessem asas nos pés, deixando a proteção das árvores e buscando a margem do lado. Havia mais dois homens com eles. Outros os seguiam.

— Há alguém ferido? — ele perguntou ao mais próximo.

   — Como vou saber? — O homem levou um apito aos lábios e soprou com força. Sombras se moveram na colina. Homens corriam na direção deles.

— Vamos!

   Phaedra viu a longa linha do molhe com os barcos de Trant balançando presos por cordas. No extremo mais distante havia um navio imponente com seu mastro recolhido e a vela enrolada. Homens se movimentavam a bordo da embarcação. O cavaleiro levou Phaedra para bem perto dele e saltou para dentro da nau. Depois estendeu a mão, ajudando-a a embarcar. Atrás deles, seus seguidores se reuniam no molhe. O homem com o apito tentava contá-los.

   Havia luzes, tochas de Trant que desciam a encosta para a margem do lago. Os homens embarcavam apressados. As tábuas de Trant rangiam sob os pés dos invasores.

— Vamos zarpar.

   — Fique perto de mim, Phaedra — ele disse, assumindo o comando do barco. Phaedra atravessou o mar de homens e tábuas para se juntar a ele. Remos cortavam o ar e batiam com vigor na superfície escura do lago.

— Juntos! — alguém gritou perto dela. — Comigo!

   Já havia uma extensão de água entre eles e o molhe. Phaedra ainda podia saltar e voltar para a margem com algum esforço, se quisesse. E teria de pular agora, se fosse essa sua intenção. O tempo estava passando.

   Ele estava a seu lado. Tocaram-se, e ela quase nem notou. Ele estava ali, onde podia tocá-lo novamente. O convés foi sacudido por um movimento mais brusco dos remos, e a decisão foi tomada por ela. Temendo cair, ela se agarrou ao cinturão do comandante, sentindo o calor de seu corpo através do tecido de sua túnica.

   Homens se movimentavam em torno deles, e alguém olhou para os dois. Podiam adivinhar o que ela pensava? Os sentimentos transpareciam em seu rosto, mesmo àquela luz tênue? Talvez ele pudesse sentir sua pulsação nas pontas de seus dedos e pelo tecido de sua roupa, e se pudesse

seria maravilhoso, porque então ele já sabia o que ela temia jamais poder dizer. Ficaram ali juntos, e o sabor da água escura estava em sua boca.

   Na colina acima dela estava a silhueta imponente do castelo, as luzes das tochas buscando o céu escuro. Naquela sombra plana estavam seu pai, os cavaleiros, os cachorros e toda a comunidade de Trant. Collen, inquieto em sua baia no estábulo. A capela com a luz cintilando no altar. Todos a viam partir.

De repente, a noite sibilou selvagem. Ela se assustou.

   — Mantenha-se abaixada — ele disse com tom suave, ajoelhando-se e puxando-a para que fizesse o mesmo. Havia tochas e homens correndo pelo molhe. Alguém gritou da margem do lago.

O ar sibilou novamente, um som odioso.

   — Flechas — murmurou uma voz perto dela. — Vários arcos, imagino.

— Içar velas.

   Houve um sibilo, um baque e um grito de alguém. A vela subiu no mastro, balançando e dançando ao sabor da brisa noturna. Homens se reuniam em torno do mastro. De repente, ela tomou forma e se encheu, e o navio foi impelido pelo vento. Os remos foram recolhidos. A esteira deixada pelo progresso da embarcação tornou-se mais larga com o aumento da velocidade. O molhe ficou para trás. Luzes ainda se moviam ali.

   — Cuidou dos barcos? — ele perguntou ao homem do leme.

   — Jogamos os remos no mar e cortamos todas as cordas que encontramos.

— Obrigado. Alguém se feriu com as flechas?

Houve uma pausa. Depois alguém gritou de volta.

— Não! Só algumas farpas.

   — Então, acho que conseguimos — ele declarou. Se falava com ele mesmo ou com Phaedra, ninguém poderia dizer. Ela olhava para as tochas no molhe e no castelo, sinais que iam se distanciando mais e mais a cada minuto, até que luzes da margem do lago desapareceram, e as do castelo, mais altas, fundiram-se numa única e fraca centelha que carecia segui-los, vigilante. A linha da praia desapareceu, oculta pela noite, mas ainda era possível ver a luz do castelo.

   Homens se moviam pelo convés, transportando fardos e soltando amarras, espalhando cobertores na proa e tomando providências variadas. Phaedra recebeu um cobertor. Ele estava duro, e parecia ter sido ensopado em óleo. Alguém passou por ela para assumir o comando no lugar do marinheiro que estava no leme.

— Agora, durma, porque vamos acordar cedo — disse o cavaleiro. — Estaremos mais aquecidos assim.

   Phaedra percebeu que estava tremendo. A luz que estivera observando finalmente havia desaparecido. A lua brilhava alta; quase cheia, mas não inteiramente. Uma franja de sombra encobria uma pequena porção do disco. Seu cavaleiro e outros quatro homens se deitaram formando uma fileira na popa do barco. Ela se envolveu com o cobertor e deitou-se com eles, uma mulher com menos de dezessete anos entre guerreiros desconhecidos. Não havia privacidade, mas estava feliz por se sentir aquecida. E não sentia sono. Nenhum sono. Olhava para a curva da grande vela sobre o convés e para a lua, tentando imaginar como seria o dia seguinte. O que descobriu foi que não conseguia nem imaginar. Quando deixara o molhe, deixara para trás também o fim de seu mundo, o fim do mundo que conhecia.

O barulho da água era diferente quando ela repousou a cabeça no convés. Era mais profundo e mais estridente, e muito mais próximo do que antes. Além das tábuas, sob sua cabeça, estava Derewater, profundo, frio e escuro. Os homens respiravam e cochichavam ao seu lado, e ela se sentia mais aquecida. A lua os observava do alto, acompanhando o avanço da embarcação pela superfície do lago.

   Não faça perguntas, não faça perguntas, cantava a esteira do barco.

   Alguém passou por cima de sua cabeça. Mais uma vez, o homem no comando dava lugar a outro. Em algum lugar ela ouviu as notas baixas de um instrumento de sopro, uma flauta, talvez. Era um som sibilante, menos puro do que aquele a que se habituara, e a melodia era estranha. A lua se movera. Devia ter cochilado. O navio progredia com determinação, cortando a noite escura e imutável.

Não pergunte nada.

Não faça perguntas à noite.

V S

O Sacerdote no Outeiro ou o guardião das Fronteiras de Tarceny.

Estavam abaixados perto da beirada do barco, vendo o sol nascer. O vento forte fazia balançar a embarcação e formava ondas que se chocavam contra suas laterais. Encolhida sob um manto emprestado, Phaedra estremecia constantemente. Seu corpo doía depois de uma noite inteira encolhida no chão. Ainda não havia, é claro, nenhuma esperança de privacidade. Mas a vela era banhada pelo sol e contrastava com a escuridão da superfície do lago, e uma grande bandeira preta-e-branca tremulava no mastro. O sol incendiava a porção mais distante do lago e tingia a crista das ondas de dourado. Nesse momento, ela não desejaria estar em nenhum outro lugar do mundo.

       A margem oeste estava muito mais próxima agora, tanto que já podia ver seus contornos à luz do dia. Diante deles, uma grande e imponente colina de cume achatado dominava a paisagem. A proa do barco apontava diretamente para ela. Todo aquele território devia ser Tarceny. À popa, o lago se estendia interminável, misturando-se às formas cinzentas e azuladas da água até a margem desaparecer de vista. O leste era um banco de névoa. Trant, todo o território e a porção do lago que ela conhecia estavam perdidos em algum ponto atrás deles. E ao norte, sob a vela inflada, o lago também se estendia sem fim. Não havia outro barco até onde podia enxergar.

   — Nosso desconforto está quase terminando. Aquela colina além da margem é o Outeiro de Talifer. Do lado de cá da colina fica meu porto em Aclete, onde poderemos oferecer maior hospitalidade...

   Ele era o guardião da Fronteira. Os guardas que os acompanhavam na viagem estavam a seu serviço; toda a tripulação devia obediência a esse homem. Todas aquelas pessoas ocupadas nas colinas, na terra, nos bosques, enfim, em todas as dependências daquela região seguiam suas ordens. Ele era o topo da rede humana que se estendia sobre a margem oeste de Derewater.

E de Tarceny! A Lua Dúbia!

   — Não... não se preocupe comigo — ela disse. — Na verdade, estou apreciando essa bela manhã.

   — Você é boa. Não sou um bom marinheiro. É claro que os barcos têm suas vantagens. E improvável que possamos ser enganados, por exemplo, o que é muito bom, porque sei que nenhum de nós dois deseja o mal de Trant. E até mesmo eu posso perceber que a vista do porto é uma raridade a ser apreciada.

   Phaedra o fitou de soslaio. Ele ainda era real; ainda estava ali. Até agora, só tinha visto seu rosto como uma imagem de sonho, uma imagem bela, inteira, mas nunca um objeto de estudo. Jamais vira detalhes como as linhas nos cantos de seus olhos e da boca, ou a sombra escura da barba em suas faces e no queixo.

   Seu rosto era longo e, quando em repouso, solene. Nesse momento, havia um sorriso pálido iluminando seus olhos voltados para o sol nascente, como se ele estivesse perdido em pensamentos. Ele usava o cabelo preto curto. Há três dias devia ter estado barbeado. Seus olhos eram castanhos, e as sobrancelhas eram fortes sem serem pesadas. Devia ter entre vinte e cinco e trinta anos. Suas roupas eram negras. Talvez as houvesse escolhido pensando naquela noite de aventura, ou porque essa era a cor de sua casa. De qualquer maneira, a escolha combinava com ele.

   E ele estava ali, presente e real ao seu lado, tão real quanto o dia, embora antes houvesse sido apenas sombra. Era quase como se ela fosse a sombra agora; ela era a fumaça sem substância, um vulto num mundo de formas concretas. Não conseguia pensar em nada para dizer. A mão dele repousava sobre a balaustrada a alguns centímetros da dela. Poderia tocá-la, talvez?

De repente, ele a encarou.

—Estou certo? Acha que virão atrás de nós?

Assustada, compreendeu que ele ainda tratava das complicações da terra e da família. Phaedra

suspirou.

   — Eles não sabem quem éramos ou para onde fomos — disse. — Mas, se meu pai chegar a pensar que fui raptada, certamente vasculhará até o fim do mundo com todos os cavaleiros e guardas que puder alistar.

   E se ele soubesse que havia partido por vontade própria? Juntos, eles apreciaram o reflexo do sol sobre a água.

   — Deixou sua casa para escapar de um casamento que não aceitaria — ele disse. — Um casamento que não poderia recusar, embora fosse esse seu desejo. Se ficasse, haveria dor e pesar duradouros. Poupou seu pai desse sofrimento. Sua decisão de recusar o matrimônio teria custado seu orgulho de homem, pai e guardião. Para você, a decisão de partir custou seu lar.

   Homens se moviam em torno deles no convés, ajeitando cordas ou cuidando de outras tarefas. Progrediam rapidamente, e as pequenas cabanas na margem ganhavam contor-nos mais nítidos, como o molhe que ocupava uma boa parte da beira do lago sob a proteção de um pequeno promontório. Além dele, erguia-se a colina que ele apontara antes.

 

   — Suponho que esteja certo — ela disse. — Não consigo imaginar o que teria acontecido se eu ficasse. Só sabia que tinha de partir.

   O barco penetrou na área mais rasa da baía. Dali não se podia ver o lago ao norte. Os homens da tripulação baixaram a vela, amenizando a pressão do vento e reduzindo muito a velocidade.

   — Não temos de sair daqui? — Phaedra indagou preocupada.

— Ainda não. Eles têm espaço para trabalhar.

   O responsável pelo leme conduzia o barco ao longo do molhe. Os homens que manejavam as cordas do mastro mantinham os olhos fixos nele. Um movimento de cabeça, e eles terminaram de recolher a vela, que caiu numa pilha branca sobre o convés. O barco seguiu lentamente pelos últimos metros que o separavam da margem. Homens caminhavam pelo molhe para recebê-los. Alguém mais próximo da balaustrada saltou com agilidade para as pranchas de madeira do píer e, usando uma corda que havia levado entre as mãos, fez um laço em torno de um mastro em terra firme. Outros já desembarcavam para ajudá-lo. O barco rangia contra a madeira da construção. Derewater ficara para trás.

—    Muito bom — ele disse.

   Esperando que uma onda erguesse o barco, saltou para o píer. Depois se virou para estender a mão para Phaedra. Ela a aceitou... com a respiração ofegante, porque de repente recebia aquilo que não ousara tentar obter no barco. Havia força em seus dedos, e a pele era quente, apesar da noite no lago. Com a ajuda de uma onda que levantou a embarcação, Phaedra saltou para a terra firme e pisou em um novo mundo.

   Uma pequena multidão estava ali para recebê-los. Havia guardas e outros homens usando vestes em preto e branco. Havia gente das cabanas, crianças correndo, homens em pé nos barcos ancorados observando a movimentação: pessoas comuns, como aquelas que a teriam recebido na margem de Trant, perto dos vilarejos. Havia sorrisos, riso e conversa, como se alguma competição esportiva tivesse acabado de ser realizada. Homens se aproximavam para apertar as mãos da tripulação da embarcação e bater amistosamente em suas costas. Em todos os lugares a bandeira de Tarceny tremulava orgulhosa: uma lua branca sobre um fundo negro.

   Alguns olhavam para ela com curiosidade, e todos falavam sem parar. Quando ela retribuía um desses olhares, a pessoa em questão se inclinava ou baixava a cabeça numa cortesia respeitosa, sorrindo, talvez por constrangimento. Os mais próximos resmungavam algumas palavras enquanto se inclinavam. Ela olhou em volta. Ele ainda estava no molhe, cercado por um punhado de homens. Parecia estar dando ordens. Não olhava em sua direção. Ela se mantinha no meio da multidão na praia, perguntando-se... e agora? O que ele pretendia? Porque não havia pensado no que aconteceria depois da fuga.

   Uma mulher se aproximou e cumprimentou-a com uma inclinação graciosa. Seu nome era Elanor Massey, ela contou. A senhora devia estar precisando repousar depois da longa viagem, e seria para ela um honra poder oferecer a hospitalidade de sua casa. O lugar era pobre, mas certamente seria o melhor que Aclete poderia lhe oferecer.

   A mulher era de meia-idade, um pouco mais baixa que Phaedra, e sorridente. Vestia-se como a esposa de um mercador, embora tivesse a cabeça desnuda. Talvez houvesse vestido suas melhores roupas para aquela ocasião.

     — Oh, muito obrigada — disse Phaedra. — É muito generosa... — E olhou para trás. Ele ainda continuava entre os homens, mas agora olhava em sua direção e assentia, embora não pudesse ter ouvido o que diziam. Em seguida, ele voltou a falar com seus seguidores, batendo com um punho cerrado na palma da mão para enfatizar o que estava dizendo. Devia saber que seria recebido dessa maneira, Phaedra pensou. Talvez houvesse dado ordens nesse sentido. Não sabia por quê. Não sabia quando e nem mesmo se voltariam a se encontrar. Não queria se afastar dele. Mas a mulher chamada Massey a esperava, e não havia nada que pudesse fazer senão aceitar sua oferta.

— Obrigada — repetiu. — Sua oferta é muito bem-vinda.

   — Uma noite em um pequeno barco cheio de homens não é nada divertido para uma mulher. Já vivi essa situação muitas vezes. Se quiser me acompanhar, milady, o caminho é curto.

   O sol já ia alto. Podia sentir seu calor. Seria um dia claro para o mês de janeiro. Além da multidão, a praia estava deserta. Aclete era um lugar pequenino, não mais do que duas grandes casas, uma de madeira e outra de pedra, uma de cada lado do porto, e várias casinhas e cabanas espalhadas entre elas. Por entre as cabanas ela podia vislumbrar uma paliçada na porção mais continental do vilarejo.

Phaedra percebeu que devia dizer alguma coisa.

   — Aqueles barcos parecem ótimos vistos da praia — comentou. — Mas não passam de uns poucos metros de madeira quando se está dentro deles.

   — É verdade. Fui criada em Velis, no grande mar. Lá tínhamos navios de verdade, com deques e cabines e todas as acomodações. Mas não verá nada parecido por aqui.

— Por causa das quedas em Watermane.

   — É isso mesmo, milady. E deve saber, porque viveu perto do lago durante toda sua vida. Muito mais tempo do que eu.

   — É uma navegante experiente, sra. Massey? — Phaedra nunca ouvira falar de uma mulher que tivesse seguido tal vocação.

   —Não navego mais, a menos que seja indispensável. Sou a chefe do porto por aqui. Parece uma piada, não é? O posto era de meu pobre Ralph, até ele falecer, há dez anos. Então, descobrimos que não havia um local para realizarmos as reuniões, exceto na sala da minha casa, e também não havia ninguém para ler ou manter os livros. Não havia mais ninguém para apaziguar as disputas. Somente eu. Ralph me deixou alguns barcos, e por isso eles tiveram de me ouvir. Há três anos, o meu senhor escreveu uma carta nomeando-me mestre do porto. Talvez tenha considerado a situação engraçada. Mas as coisas transcorreram nesses três últimos anos como nos sete anteriores, o que significa que devo ter sido mestre do porto desde então. Aqui estamos, milady.

   Estavam diante de uma grande casa de madeira no lado norte do porto. Havia duas criadas na porta, jovens da idade de Phaedra, e elas sorriam e se inclinavam sob o peso da urgência do entusiasmo contido. Ela penetrou no frescor do hall de entrada, sentindo os cheiros estranhos de uma casa desconhecida. Havia uma grande sala à esquerda, além de uma porta aberta, onde se viam uma mesa de jantar e uma lareira; um pequeno aposento à direita abrigava uma escrivaninha; uma escada levava ao pavimento superior...

   — Leve a senhora para cima, por favor — disse a sra. Massey. — Ela precisa descansar.

   Degraus de madeira rangiam sob seus pés. A subida era íngreme. Uma das jovens a conduzia, a outra as seguia. Havia um quarto espaçoso com vista para o porto. Tudo havia sido preparado para ela. Aquele devia ser o aposento da sra. Massey, certamente. Uma das garotas indagou se ela gostaria de beber um copo de limonada. A outra mostrou-lhe as roupas que já haviam sido deixadas preparadas para quando ela se levantasse de seu descanso, presentes da sra. Massey. Como poderiam servir? Talvez ele houvesse conseguido descrevê-la com alguma precisão. Talvez houvesse pensado em todos os detalhes, antes de pôr seu plano em prática, e assim previra todas as necessidades de uma mulher chegando a um local desconhecido depois de uma noite em um barco. Ele parecia pensar em tudo.

   — Obrigada — ela disse.

   Phaedra acordou de um sonho no qual corria e corria e vozes chamavam seu nome.

   O quarto estava quieto. O sol não iluminava mais as janelas fechadas. O ar tinha o frescor de uma bela tarde de janeiro, ainda morno o bastante para permitir que se ficasse ao ar livre, porém mais agradável do que as abrasadoras tardes de verão. Estava deitada em uma cama ampla e confortável. A casa ficava em um vilarejo no porto da Fronteira de Tarceny. A cama pertencia a uma mulher que era mestre do porto. Uma das ajudantes da sra. Massey, que devia ter sido designada para servi-la, dormia em uma cadeira. Toda a extensão de Derewater se interpunha entre ela e sua casa.

   Devia ter dormido por horas. Não havia percebido que estava tão cansada. A aventura da noite parecia ter ficado num passado distante. Lembrava-se de ter corrido pela margem do lago, das tochas e dos arcos que dispararam flechas que cruzaram o ar, provocando o som do ódio. Mas sua mente, ainda meio sonolenta, confundia essas imagens com outras do sonho que acabara de ter. Estivera correndo, não pela margem do lago, mas por um lugar escuro em meio a pedras castanhas. Uma voz chamava por ela; chamava com desespero, depois perdia a intensidade... Poderia ser a voz de seu pai.

Ela se sentou.

   O quarto estava quieto. Não havia nenhum barulho além do da janela. Onde estavam todos? Onde estava... Ulfin?

   Deixara-o conversando com seus homens no píer, tratando de um assunto aparentemente urgente. Teria ele partido para cuidar de outras questões, deixando-a aos cuida-dos de Aclete, considerando seu dever cumprido?

   Devagar, tentando não despertar a criada adormecida, ela caminhou até a janela e olhou para fora. O porto era de um azul profundo, e mansas ondas brancas emprestavam um toque de delicadeza ao panorama. Em um extremo ficava a casa de pedra, onde ele devia morar. Bandeiras em preto e branco pendiam de postes plantados na porta, tremulando ao vento. Podia ver uma dúzia de homens, alguns sentados, outros caminhando sem pressa. Havia linhas de cavalos perto da paliçada. Então, seu acompanhante ainda estava lá. Ele devia estar em Aclete.

   Ela se afastou da janela e, com o coração batendo forte no peito, respirou fundo.

   A pilha de roupas novas continuava no mesmo lugar, diante de um grande espelho. Ela se aproximou das peças sem fazer barulho. O vestido que escolheu era simples e branco, pois sabia que o tom combinava com a coloração de sua pele. O decote era alto, cobrindo toda a extensão do pescoço, e botões fechavam o corpete em sua porção frontal. O cinto dourado era o único adorno que usaria.

Seus dedos tremiam.

Não saberia dizer por que se vestia dessa maneira, sem nenhuma ajuda, quando só precisava chamar a jovem criada para ser vestida, como havia sido em todos os dias de sua vida. Não conhecia nenhuma razão para que ele hou-esse desaparecido de seu mundo real com a mesma rapi-dez com que nele penetrara. No entanto, o temor de que tal coisa houvesse ocorrido era real. Estava abalada; saber que ele não havia desaparecido era muito importante. Queria pensar nisso. Queria pensar em... Ulfin.

   Ela o conhecia havia anos, mas dar um nome a ele o tornava um estranho. Agora ele era aquele Senhor de Tarceny, de cuja casa nenhum homem podia dizer boa coisa. Ele enviara mensageiros para pedir sua mão como qualquer outro nobre no reino, e seus homens haviam sido encaminhados aos portões em menos de uma hora. Ele nunca mencionara tal coisa em sua presença.

   E depois de todos esses anos, pensou Phaedra, tentando acalmar-se, o que sabia? Seu rosto era belo, suas mãos eram longas, seus pensamentos, rápidos. Ele era o senhor das fronteiras. Sabia que o pai dele havia sido um invasor e um saqueador, alguém que expulsara os monges de suas terras e deixara o próprio povo fora de suas muralhas; mas ele morrera pelo próprio fogo há alguns anos, conforme ouvira dizer. Não tinha conhecimento de outros familiares. Que tipo de senhor era Ulfin, então, para Tarceny, esse lugar de horrível nome onde as pessoas sorriam e se inclinavam e ofereciam hospitalidade?

   Todas as coisas corriqueiras sobre esse homem eram estranhas ou desconhecidas. Apenas a lembrança de sua voz fazia com que se recordasse dos sonhos obscuros e familiares nos quais falava com ele desde sua infância. Seu coração havia disparado quando o vira e batera forte novamente quando sua mão tocara a dele no barco, assegurando-se de sua presença real. E agora ele não a deixara. Esperava por ela do outro lado da baía. Ela estava ali, perto dele, e o veria novamente em breve, por certo. Esse homem a conhecia melhor do que qualquer outro no mundo.

   Parecia impossível... Algo contra todas as leis da natureza que ela havia aprendido ou se habituara a esperar. Em sua opinião, tudo isso se assemelhava ao momento em que um redemoinho leva para a superfície de um rio uma folha que é arrastada até uma piscina natural, escapando da correnteza. O redemoinho deve parar, a folha deve afundar, e tudo será levado pela correnteza; e, no entanto, por um momento, uma força mágica sustenta todas essas coisas onde não devem estar e como não devem ser. Como uma folha, ela também vagava pela sala sem se dar conta disso. Suas mãos estavam unidas e crispadas, e a garganta ardia com a lembrança da água escura. Tentava imaginar o que ele podia pensar sobre ela, sem conseguir. O redemoinho a levou para a mesa diante do espelho. Havia ali uma escova de cabelo.

   Ela a pegou e começou a escovar os longos cabelos negros, virando a cabeça para olhar-se no espelho. Ensaiava diversas conversas enquanto se penteava, pronunciando as palavras com suavidade. E durante todo o tempo manteve a escova se movendo com tanta estabilidade quanto era possível, buscando calma na repetição, enquanto pensava no rosto e nas mãos de Ulfin.

   Um som atrás dela chamou sua atenção. A criada se movia na cadeira. Ainda não estava totalmente acordada, mas olhava para Phaedra boquiaberta.

   — Por que não posso ter sua aparência? — ela perguntou.

   De repente, Phaedra se sentiu invadida por um súbito poder, e ela riu.

   — Umbriel escreve o que foi dado, e por quê, e tudo o mais que foi dado com isso — respondeu. — Mas como lemos um livro no qual tais coisas estão escritas? — Ouvira tal colocação em um sermão de irmão David. Nesse momento, teve certeza de que ele a teria abençoado, se estivesse presente. — Se já está acordada, vamos descer.

   — Quem era aquele homem que saltou do bosque ontem à noite? — ele perguntou.

   Estavam sentados juntos à mesa sob uma árvore frutífera do lado de fora do galpão de pedra. Anoitecia. O sol mergulhava atrás das montanhas a oeste. Do outro lado do porto, a casa da sra. Massey e a colina atrás dela já haviam sido encobertas pelas sombras. O ar era frio e úmido.

   Ele mandara perguntar se ela aceitaria tomar um refresco em sua companhia. Quando chegara, conduzida pelo braço da sra. Massey, as mesas tinham sido postas sob as árvores frutíferas, e havia vinho nelas. Uma mesa menor acomodaria Phaedra e Ulfin, enquanto outra, mais longa e um pouco distante, receberia os homens de Ulfin e um grupo de conhecidos da cidade. A reunião era parecida com a que ela se acostumara a ver em casa; a mesma conversa, os mesmos sorrisos... e, no entanto, não eram os mesmos. Aqui e ali, entre os rostos, havia um que podia ser parcialmente descendente do povo das montanhas. Antes, dois músicos haviam executado melodias da colina usando flautas e um tambor. Essas coisas faziam com que ela lembrasse como se aproximara do limite do reino.

   Phaedra tentava entender por que ele formulara a pergunta. Não acreditava ser apenas por curiosidade. Ele devia estar refletindo sobre o incidente. Talvez imaginasse se Phaedra havia sido seguida até o pátio da fonte, se sabia disso e, nesse caso, qual a importância de tudo isso.

   — Aquele era Aun, o barão de Lackmere. Ele é prisioneiro em Trant desde o último levante.

   — Ah. Pensei mesmo que ele parecia me conhecer. Mas isso não explica o que ele fazia armado, e fora das muralhas de Trant.

   — Deve ter escapado. O barão ouviu dizer que sua liberdade não seria concedida tão cedo, e isso o deixou zangado. Não sei como ele conseguiu sair do castelo, porque havia sempre dois homens guardando a porta depois do anoitecer. Também não tenho idéia sobre como ele obteve armas.

   — Era uma espada pequena. Não era a arma de um cavaleiro. Mas julgo seu comportamento estranho para um prisioneiro. Primeiro, ele interrompe sua fuga para nos atacar. Depois, mesmo estando em fuga, grita de forma a atrair a atenção do castelo.

   — Ele é um homem impulsivo... — Phaedra sentiu que Ulfin a observava e hesitou. As perguntas dele invadiam sua mente com dúvidas repentinas. Por um momento, ela viu o mundo como ele deveria enxergá-lo, e o julgou complexo, perigoso...

   Seria possível que Aun houvesse recebido ordens secretas para vigiá-la? Mas isso teria sido loucura. Sua prisão havia sido real. Sabia disso, embora Ulfin desconhecesse tal fato.

   — Talvez — ele disse finalmente. — Ele atacou sozinho um grande grupo de homens. Teve sorte por escapar com vida.

   — Fico feliz por não ter dado ordens para que o matassem.

   — De certa forma, eu também. Mas ainda acho que ele me conhece. Portanto, se ele se rende a Trant, ou se é recapturado, Trant e a coroa saberão onde você está e quem a ajudou a fugir. Isso torna nossa posição muito delicada.

— Entendo.

   Não estava inteiramente certa do significado desse comentário. Mas imaginava linhas de soldados, suas armaduras brilhando ao sol, vindo buscá-la para levá-la de volta pela força, enquanto a fumaça ia se espalhando pela praia do lago.

   Olhando em volta, sentiu o coração apertado. Na outra mesa as pessoas conversavam animadas, sem consciência de uma possível retaliação e, portanto, sem medo. Podia ouvir as gargalhadas de Elanor Massey. Pessoas sorriam, olhavam para ela e sorriam novamente. O flautista tocava instrumento em notas longas e doces que permeavam a conversa como águas profundas.

   — Por que sonhávamos um com o outro? — perguntou ela.

   Ulfin ficou em silêncio, olhando para a baía. Quando falou, sua voz era tão baixa que ela mal conseguiu decifrar as palavras.

— O que você se lembra desses sonhos? Ela não respondeu, e então ele perguntou:

— O que eu carregava?

— Um cálice.

— E um dom trazido pelo Cálice.

— Um dom?

   Por um momento, foi como se ele se houvesse calado para sempre, como se não pretendesse dizer mais nada.

—    Está falando de bruxaria? — Phaedra insistiu.

   Ele suspirou. Parecia estar desapontado, como se ela houvesse fracassado em algum teste de confiança.

   — Prefiro dizer que é uma espécie de arte oculta, um termo empregado aqui na Fronteira para tratar de conhecimento, ou de manipulação — ele explicou. — A Arte Oculta Prevalece. Esse é o lema da minha casa. Significa que, se você usa o que sabe, e se sabe mais que seu inimigo, você vence. Quando Wulfram conduziu seus guerreiros por mar até esta terra, as pessoas que aqui viviam não sabiam como forjar o aço. Quando descobriram que nós possuíamos armas que elas não podiam quebrar e armaduras que elas não podiam penetrar, ficaram desanimadas. Chamaram nosso trabalho com o aço de feitiçaria porque não o entendiam. E assim tomamos o reino.

— Não é a mesma coisa.

   — Não saber e temer aquilo que você desconhece é a mesma coisa em todos os lugares. É o que eu penso. Cavaleiros e sacerdotes chamariam o Cálice de feitiçaria, porque com ele sou capaz de derrotá-los, e eles não entenderiam como. Mas não há mais mal nele do que havia no aço de Wulfram. Menos, eu diria, porque não tirei as pessoas de suas terras, não destruí vilarejos e nem deixei os sobreviventes e seus descendentes vivendo na miséria e sofrendo com a mais dura pobreza nas colinas. O pesar do homem das montanhas é muito grande por nossa culpa, Phaedra. O que há no Cálice são as lágrimas de Beyah, a Mãe do Mundo, de acordo com o povo das colinas. Foi isso que nós dois sorvemos juntos. Agora você possui um conhecimento que não revelei a mais ninguém desde que meus irmãos morreram. Mas já falamos demais sobre isso. Há outra coisa que desejo dizer.

— O quê?

   — Mesmo quando você ainda era uma criança, sempre foi muito clara para mim. Você é rara. Não me refiro apenas a sua aparência ou a seu nascimento, mas a seu espírito. Não se submeteu, apesar de todo o reino estar contra você. Mesmo que seja somente por isso, já me sinto feliz por tê-la ajudado como meu dom permitia. Agora, está na Fronteira de Tarceny. Aqui, de acordo com minha lei, nenhum pai ou guardião pode ordenar ou impedir o casamento de alguém maior de dezesseis anos de idade. Você pode permanecer por quanto tempo desejar como minha hóspede, ou, se quiser, pode percorrer as terras como julgar mais apropriado ou conveniente. Será um prazer oferecer-lhe toda a ajuda de que necessita.

— É muito... gentil.

   — E estou fazendo uma oferta incondicional. Mas ainda há algo mais, e espero que me escute.

— Sim?

   — Minha casa é malfalada. Acredite em mim quando digo que a culpa não é minha. Toda a responsabilidade cabe a meu pai, e tudo o que ele fez deve ser esquecido. Mas os homens não entendem meu povo. Temos pouco a ver com Tuscolo, porque somos austeros, enquanto eles são festivos; somos silenciosos, enquanto eles são fofoqueiros; somos verdadeiros, eles são falsos. No entanto, minha linhagem é antiga e, exceto pelos tempos recentes, sempre foi honrada. Há verdadeiro sangue de Wulfram em minhas veias. E não sou o último de minha ordem no reino. Ele a estava pedindo em casamento!

   — Acima de tudo, sou eu mesmo. Não me gabaria de minhas habilidades, mas realizei muitos estudos e conheci muitos lugares. Dou minha palavra de honra de que nunca quebrei uma promessa e nem contei uma mentira em todos os dias de minha vida. Tudo que sou, e tenho, eu daria a você, Phaedra, se me concedesse sua mão.

   Uma proposta de casamento deveria durar meses; eram necessárias longas negociações envolvendo terras e dotes. E ela recusava todos os pedidos de matrimônio. Todos eles.

Mas...

Em algum lugar, a voz de sonho a chamava, mas era como se ecoasse sob a água e o som não pudesse ser transportado. Ela o encarou com o coração disparado.

Ele continuou falando:

   — Phaedra, o homem mais santo que conheço está um quilômetro distante daqui. Falei com ele enquanto você dormia. Esse homem não é meu vassalo, nem opera em minhas terras ou em qualquer outro lugar do reino. Mas ele tem o direito e está disposto a nos unir em matrimônio... se você assim desejar.

   Sobre sua cabeça, os galhos da árvore frutífera dançaram sob uma brisa suave. Já se podiam ver botões de flores. O sol tingia de vermelho o topo das montanhas, e a primeira lua cheia do novo ano começava a se erguer imponente sobre Derewater. O mundo girava em torno dela, lentamente, mas com a firmeza inexorável que arrasta a folha para o centro de seu turbilhão.

— Ele está perto daqui? — Phaedra murmurou.

   — No alto daquele outeiro que podemos ver daqui. E vai esperar.

Imediatamente, ela segurou a mão dele, sobre a mesa entre eles.

—Então, vamos ao encontro desse homem.

—    Tem certeza?

Uma última chance. Se ela fosse além desse ponto...

—    Diga o que está pensando.

De repente, as palavras transbordaram de sua boca como água.

   — Eu me lembro... quando todos os filhos de barões e cavaleiros começaram a chegar em Trant procurando por mim; sabia que teria de desposar um deles e, no entanto, sabia que tal decisão seria impossível. Lembro-me também de ter pensado que seria como unir em matrimônio um torrão de terra e um riacho. Soube disso porque você estava na frente de todos eles. Você esteve ali o tempo todo, e eles não eram parecidos com você. E agora você mudou. Posso vê-lo, tocá-lo, dizer seu nome. Ulfin. E eu também mudei. Todas as coisas que davam forma à minha vida foram levadas pela correnteza. Meu pai, Trant, o medo... Você sempre me disse para não ter medo. A única coisa que não mudou é que sei que você tem estado dentro de mim o tempo todo. — Ela o fitou bem fundo seus olhos castanhos, e por eles pôde ver seu coração. — Agora, Ulfin, vamos ao casamento. Se demorarmos, alguém pode vir para levar-me de você.

   —Phaedra, estarei distante com muita freqüência...

   —Um dia, dois dias em um ano com você serão melhores do que nenhum, ou, ainda mais assustador, serão menores do que um ano inteiro com qualquer outro homem do reino. Ulfin, você tem sido... não creio ser capaz de expressar tudo que tem sido para mim.

   Ele se levantou devagar.

   — Então, venha comigo.

   Ela se levantou e mergulhou naquele abraço. O mundo ficou fora dos braços que a envolviam, dos lábios que tocavam seu rosto e das batidas cadenciadas e fortes do coração daquele que seria seu esposo.

   As pessoas silenciaram. Ela sentia diversos pares de olhos fixos neles e não se incomodava com isso.

Ulfin gritou:

— Hob!

— Sim, milorde.

   — Mande mensageiros à cidade. Haverá um casamento ainda esta noite, no Outeiro de Talifer... para aqueles que forem rápidos o bastante para nos alcançarem. Haverá um banquete em minha casa. Mande providenciar comida. Esvazie minha adega. Esvazie cada barril da cidade, seja ele pobre ou requintado. E pague com ouro! Mande buscar tochas. Você aí! Toque uma canção e conduza-nos em nosso caminho.

   Houve um momento de paralisia, e de repente as pessoas explodiram em comentários variados. Alguém assobiou. O flautista recuperou-se e começou a tocar uma melodia rápida e animada. Hob correu para cumprir as ordens de seu senhor. Ulfin levou Phaedra pela estrada que ligava o porto à paliçada, passando por entre as casas de madeira. Outros os seguiam. O flautista ia na frente. Quando passaram pelos portões, Phaedra ouviu punhos cerrados batendo nas portas atrás deles, na cidade.

   A estrada era acidentada, difícil de percorrer. Ela subia para o norte e para o oeste, contornando a base de uma colina baixa. Cem metros além da paliçada, uma trilha ainda mais estreita subia pela encosta, descrevendo curvas acentuadas, como se enroscasse em torno de si mesma, descrevendo um ziguezague do lado sul da colina. Eles ultrapassaram o flautista, que parou no meio da subida para incentivar os que iam ficando para trás. Atrás dos noivos, uma pequena multidão progredia com dificuldade. Mais longe ainda, outros corriam passando pelos portões. Dali, podiam olhar para baixo, para Aclete, e ver as pessoas correndo por entre as casas.

   Ela não soltava a mão de Ulfin. Ele parou ao seu lado. Ambos ofegavam por conta da subida difícil.

   — É um bom lugar para a cerimônia — Ulfin lhe assegurou. — Verá quando chegarmos ao topo. Aqui, o primeiro príncipe de Tarceny esperou por lady de Velis, que navegava pelo lago para vir tornar-se sua esposa.

— Olhe para a lua!

— Sim, é um bom presságio.

   Ele se virou para retomar a subida, e Phaedra o seguiu. Enquanto caminhava, ela pensava: Isso é real? Vou mesmo me casar com ele! Não há ninguém de minha casa aqui, ninguém para apoiar-me, ninguém além de mim mesma. Vou me casar com ele. Todas as linhas do passado pareciam convergir para esse momento. Não haveria cerimônias formais nem compra e venda de direitos ou terras e famílias que nelas vivessem. Ali, não haveria nada além do céu e de um lugar muito antigo; e os dois, correndo na frente de um grupo numeroso, deixando para trás todo um povo na alegria do que estavam fazendo.

   A subida ia se tornando mais suave. Aclete ficara escondida pela curva da encosta, mas Derewater podia ser visto se estendendo para o norte. O sol estava mais baixo atrás das montanhas cercadas pela névoa. Um brilho avermelhado iluminava o céu, e, sobre a água, a lua se erguia exibindo sua imensa e redonda forma amarela, transformando o ouro em prata. A terra em torno deles ia mergulhando na escuri-dão. Os contornos irregulares das colinas iam se perdendo Penumbra. A estrada lá embaixo era uma pálida cicatriz amarela que conduzia ao norte e ao oeste até desaparecer tragada pelas árvores. Do lado do outeiro, Phaedra podia ver os limites de um bosque que parecia cobrir toda a encosta norte. Uma figura solitária e coberta por um manto caminhava na direção deles e parecia ter saído das árvores. Ulfin virou-se e ergueu os braços com as palmas voltadas para baixo, indicando que aqueles que os seguiam deviam parar. Depois, tomou Phaedra pela mão, e eles seguiram em frente juntos. O sacerdote aproximou-se do casal. Ele usava uma longa túnica presa à cintura por uma faixa, como um monge, mas suas vestes tinham a cor do entardecer. O capuz cobria sua cabeça. Ele parecia ser um homem idoso, mas movia-se com facilidade.

— Quem é você? — sua voz era seca.

— Ulfin Ector, fiscal das Fronteiras de Tarceny.

— Por que veio?

— Para me casar com esta mulher.

   O sacerdote olhou para Phaedra. Seus olhos brilharam sob o capuz. Os contornos de seu rosto eram desprovidos de carne. Sua boca era apenas um pequeno buraco negro que se movia.

— Quem é você?

   — Phaedra, de Trant. Desejo me casar com este homem, senhor.

   Sabia que devia ter dito Phaedra, filha de Ambrose, guardião de Trant. Mas Ulfin também não havia utilizado o nome de seu pai.

—    Suas mãos.

   A mão dela estava presa à de Ulfin. Eles as estenderam juntas. O sacerdote colocou a mão sobre a de Ulfin.

   — Digam a verdade um ao outro. Deixem que suas vidas sejam como espelhos para o outro. Mantenham as promessas que fizerem. Vocês são marido e mulher.

   Ulfin inclinou-se. Phaedra o imitou e realizou uma cortesia delicada. Quando se levantaram, o sacerdote já se afas-tava, voltando para o meio das árvores.

—    Isso foi muito rápido! — Phaedra exclamou espantada.

   —Acabamos de receber uma grande honra. Que eu saiba ele não fez isso por mais ninguém em toda a sua vida.

   Havia uma nota de fascínio na voz de Ulfin. O sacerdote desapareceu entre os primeiros troncos. A julgar pelos sons que ouvia, Phaedra deduziu que outros o esperavam no interior do bosque.

—Ele vive aqui?

   — Não. Ele vai aonde quer estar. — Ulfin virou-se para encará-la e segurou suas mãos. Por um momento, os dois ficaram em silêncio. Phaedra baixou o olhar.

   — Agora — ele disse —, temos de cuidar de nossos convidados.

   O grupo que os seguira formava um semicírculo distante do local em que havia sido realizada a breve cerimônia. Phaedra pensava que o sacerdote os aconselhara a manter suas promessas, mas não haviam feito nenhuma. Poderiam ser castigados por isso? Septimus ainda poderia tomá-la, afinal, se soubesse que o casamento havia sido incomum? Talvez encontrasse um sacerdote tradicional, alguém de sua confiança, e tentaria convencer Ulfin a fazer os votos como sempre aprendera que deveria ser. Só por precaução.

   Aplausos e assobios explodiram do grupo de espectadores que, entusiasmados, perceberam que a cerimônia havia sido concluída. Uma tocha brilhou mais forte na noite de luar.

   —O que é isso?

   A música havia mudado. Várias flautas se uniam numa melodia que se erguia acima do ruído sob sua janela. Era uma canção das colinas, diferente de todas as músicas do reino; um som longo, comedido, tocado pelas lágrimas. Ulfin ergueu-se sobre um cotovelo ao lado dela e ouviu. A mistura de luar e tochas iluminou o lado direito de seu rosto. O restante continuava nas sombras. Mas ele parecia sorrir, como que tocado por alguma recordação distante.

   — Esse é o Grande Lamento. O Mundo chorando por seu filho.

   Ela se encolheu junto do marido, buscando conforto para os pensamentos que invadiam sua mente.

   A mão dele se moveu no escuro. Os dedos tocaram sua pele. Mais uma vez, ela experimentou o extraordinário sentimento de ser acariciada por aqueles dedos, um sentimento que ganhava força e despertava seu corpo para uma urgência que ela não saberia nomear. Deitada, ela o encarou. Seu rosto era sombrio e lindo como a meia-lua numa noite cintilante, e ele sorria novamente.

   Lá fora, as luzes ardiam sobre as mesas montadas à porta de Ulfin. As pessoas falavam, bebiam e riam; os flautistas tocavam suas notas suaves como faziam havia horas, desde que seu senhor e sua nova condessa se tinham retirado do banquete.

   Ali, nos braços de Ulfin, Phaedra encontrou a dor e uma indescritível doçura. Mas mais maravilhoso que tudo era mergulhar assim no sono, cercada pelos braços do homem que amava.

  

                               A Resposta do Guardião

Emergindo do frescor do hall de paredes muito altas, apoiada em seu braço, ela ouviu o som da água por um segundo antes de compreender onde estava.

   — Oh! — exclamou. — E como em casa! E como em Tuscolo!

   Havia esperado pelo pátio interno empoeirado em que apearam ao chegar, mas encontrava-se em uma área pavimentada com duas pequenas árvores frutíferas e uma fonte. Colunas caiadas marcavam os quatro cantos da área, sustentando uma cobertura de ladrilhos que oferecia sombra e frescor. O ar tinha o doce perfume de plantas, menta e alecrim, e ela reconheceu essas folhas nos grandes vasos de cerâmica situados na base de cada pilar.

      Sabia que ia gostar — disse Ulfin. — E está em melhores condições do que aquele em que nos encontramos em Trant, uma área que deve ter sido abandonada há muito tempo. Pode citar os nomes das sete casas do reino?

   —Tuscolo e Velis, Baldwin e Bay, Trant, Ferroux e Tarceny.

   —Exatamente. Sete casas para sete príncipes, e você vai encontrar um pátio como este, ou as ruínas do que um dia foi um pátio, em cada uma delas. Porque assim as construí quando chegamos por mar.

   — Havia mesmo sete príncipes? E você é descendente de um deles?

   — Não e sim. The Tale of Kings foi escrito e lembrado muitas vezes, e de diferentes maneiras. Em cada versão, Wulfram chega por mar em três navios, fugindo de uma guerra ou de um desastre do outro lado da água, e não nos lembramos do que ele foge. Imediatamente, ele divide a terra por seus sete filhos. Mas os sete nem sempre recebem os mesmos nomes nos diferentes relatos que ouvi ou li. Contei oito nomes. Por isso, acredito que não tenham sido sete príncipes, mas oito. E alguns não podem ter nascido até bem depois de Wulfram ter guiado nosso povo pelo mar. Desde sua chegada até o tempo em que meu ancestral Talifer chegou de Jent para conquistar a Fronteira devem ter transcorrido vinte ou trinta anos.

— Onde fica Ferroux? Não se ouve falar nela atualmente.

   — Trata-se de uma casa sem importância na região de Develin. Alguns afirmam descender dessa linhagem, é claro, mas essa alegação é falsa. As outras casas também caíram, uma a uma. A primeira casa de Baldwin encontra-se em ruínas desde o final dos Altos Reis, embora Faul e Seguin e toda a casa real afirmem ser descendentes dela. E os administradores da terra, traiçoeiros que foram, ergueram sua torre numa colina próxima e ainda hoje se intitulam Baldwin. Trant é agora uma casa guardada por um homem indicado pelo rei, como você bem sabe. Bay tem uma história melhor, mas...

— Gostei de Baldwin.

— Não muito, espero.

—    Não fique enciumado. Não me casei com ele, não é?

Ele riu. Parecia surpreso por alguém falar com ele dessa maneira.

— Então, lê histórias, milorde?

   — Existem algumas histórias no castelo. E outros traba-lhos. Sim, eu leio. Meu propósito é entender como o reino chegou ao estado em que está. Por que nós, que somos mais numerosos e temos melhores armas do que todas as tribos que nos cercam, passamos tanto tempo encolhidos dentro de nossas fronteiras sem nunca buscarmos alargá-las, conquistar novas terras? Não desejo mal nenhum ao povo da colina. Mas me espanta que a força de nosso povo se volte tão destrutivamente contra nós mesmos. Certamente, nossos reis deveriam nos governar melhor.

— Gostaria de ver seus livros.

— Tudo que possuo é seu.

   O que era verdade, ou parecia ser. Algumas horas antes ela havia sido levada a uma sala em que encontrara uma impressionante variedade de objetos a sua espera. Eram livros, pentes, espelhos, roupas, ornamentos... Uma criada estivera lá, uma mulher idosa chamada Orani, dona de um rosto fino e um olhar de pássaro que Phaedra começava a associar ao povo da colina. E mensagens já haviam sido enviadas. Uma costureira fora chamada em Baer, a maior cidade na Fronteira, e um joalheiro havia sido notificado e convocado em Watermane. Ambos deveriam se apresentar no castelo o mais depressa possível.

   O melhor de tudo era uma linda escrivaninha, um móvel de madeira tão escura que era quase negra, com pernas entalhadas no formato de criaturas sinuosas e delicadas. Deslizar seus dedos pela superfície da mesa a fizera apaixonar-se novamente pelo marido.

   —Você tem sido muito generoso, mas ainda tenho um Pedido a fazer.

   —É claro. O que deseja?

   —Caneta, pergaminho e cera. Devo escrever a meu pai e convencê-lo a aceitar o que fizemos. E também não tenho um anel de sinete como sua esposa. Sabe que devo usá-lo como carimbo junto à minha assinatura.

   — Terá caneta, pergaminho e cera imediatamente. E eu mesmo escreverei para seu pai, também, porque reconheço a injúria que causei e não quero transformá-la em insulto. Mas um anel de sinete será mais difícil. Pode usar o meu...

— Para outras cartas, sim, mas para esta...

   — E claro. Mas qualquer joalheiro levaria uma semana para confeccionar tal peça e... Espere. — Ele hesitou por um instante, depois retirou algo de uma bolsa interna. — Talvez isto sirva. Pertenceu ao meu irmão mais novo. Estava pensando se devia ofertá-lo a você, mas... acho que ele teria gostado de saber que a peça está em boas mãos.

   Era um anel de sinete largo demais para seu dedo. A letra "P" era saliente sobre a lua de Tarceny. Do outro lado dela havia um "c" e um "u" gravados na face oposta do anel. Era uma jóia de prata, forjada no formato do corpo de um pequeno dragão que ia se enroscando em torno de si mesmo como uma corda, de forma que a parte superior do anel representava sua cabeça, e os olhos espiavam cintilantes por baixo da letra de seu nome.

— O dragão da eternidade — ela murmurou.

   — Entre os de nossa classe, essa é uma verdade. Mas para o povo da colina seu nome é Capuu, o réptil que descansa em torno da borda do mundo e o mantém fechado e unido; e ele significa fidelidade. Vai vê-lo em jóias e totens, e até — ele deslizou os dedos pelo trabalho em pedra — entalhado na borda desta fonte. Éramos três, meus irmãos e eu, e cada um de nós possuía um anel como esse com a letra dos nomes dos outros dois ao lado da letra de seu próprio nome. Agora eles se foram, estão mortos, e eu sou o senhor da casa.

   — É primoroso, Ulfin. Cuidarei bem dele, prometo. Qual era o nome dele?

— Paigan.

— Um nome estranho.

— Um nome antigo. E devia ter vivido nele, mas não foi o que aconteceu.

—Devia amá-lo profundamente.

   Ele assentiu. Phaedra esperou, mas ele olhava firme para a bacia da fonte, sem dizer nada. Por isso ela se manteve em silêncio ao lado do marido, olhando para os degraus de pedra e para as torres de Tarceny ao seu redor.

   O lugar ainda era fascinante. Parecia muito maior do que Trant, embora não tivesse, certamente, o tamanho do castelo do rei em Tuscolo. Suas torres eram mais altas, mais finas, e pareciam quase tão graciosas quanto na época em que as vira pela primeira vez. Havia saído da floresta e se deparara com um amplo vale nas colinas, com o castelo pendendo de sua colina numa solidão imponente atrás dela. O solo do vale era recoberto por folhas de oliveira e parecia, visto de cima, um grande jardim. A luz do entardecer criava desenhos nas paredes e nos canteiros de flores brancas que cresciam em emaranhados perfumados. Enquanto cavalgara colina abaixo, na direção das árvores, seus ouvidos haviam registrado o som de trombetas.

   A mão traçava as curvas da besta entalhada na beirada da fonte. Ela estendeu os dedos para o jato de água que brotava do centro da fonte. Era fria, mas não gelada. As gotas dançavam em sua pele banhada pelos últimos raios de sol. Em algum lugar, escondido, um asno ou burro girava a rnanivela que fazia jorrar a água, e um homem observava o trabalho do animal. Talvez estivessem na base da pequena torre no canto do pátio. Certamente não passavam todo o dia ali. Ulfin os desviara de outros deveres com o único propósito de acrescentar um toque de beleza ao cenário por ela visitado.

   Ela se virou, e com a base da coluna apoiada na fonte olhou para cima, para o céu. O azul estava puro naquele dia de janeiro, um panorama ainda mais imponente quando emoldurado pelas torres e fortalezas de Tarceny. Ao lado dela, Ulfin despertou de suas lembranças. Phaedra podia sentir o calor da perna dele contra a dela através do grosso tecido do vestido. As mãos estavam em seus ombros. Seu rosto se tingiu de vermelho, e ele inclinou a cabeça para beijar seu pescoço, como já esperava que fizesse.

Reverenciado e idolatrado pai (escreveu Phaedra). Coloco-me humildemente diante de sua presença e desejo ansiosamente ouvir de seu bom espírito e bem-estar, tão depressa quanto sua mensagem possa chegar a mim. Pela carta que meu senhor envia junto desta, e pela boca de nosso mensageiro, vai saber que tomei a mão e o nome do Lorde de Tarceny. Escrevo para lhe dizer que fiz tal coisa por vontade própria e com grande alegria, porque nunca conheci homem mais nobre, sábio ou generoso, exceto pelo senhor, sua honrada pessoa. Antes que me julgue dona de mente inconstante, relato que esse amor não me chegou de maneira súbita, mas cresceu com o tempo e alcançou uma grandiosidade que realmente não posso descrever. Nunca me senti mais abençoada que agora e só preciso de sua bênção de pai para este casamento, o que me fará a mais feliz das mulheres que já viveram. Oro para que me envie quanto antes tais bênçãos. Idolatrado senhor, cuidou de mim e muito suportou por minha causa. Se algum dia lhe causei pesar, recentemente ou em toda a minha vida, então sofro em igual medida. Oro agora para que se regozije comigo, pois nesse casamento sua casa é recompensada com um grande aliado, alguém que será tão forte e verdadeiro a sua pessoa quanto possa ser necessário, e isso porque o amor que meu senhor e eu temos um pelo outro pode significar que ele o amará como eu o amo, com todo o meu coração e com todo o respeito que meu ser lhe pode dedicar. Escrito no décimo terceiro dia de janeiro em Tarceny e assinado por minha mão.

   Ela escrevia com cuidado, com muitas inserções e justificativas, e ainda não se sentia satisfeita com o resultado. Devia ser uma carta mais longa, e não conseguia pensar em mais nada para dizer sem que repetisse o que já havia declarado. Tinha dificuldades para explicar quando havia se apaixonado. Não queria que o pai pensasse que, no final, havia se casado num impulso. Mas não podia dizer a ele como, ou por quanto tempo, conhecia Ulfin antes mesmo de ter deixado Trant.

   Desejava passar a limpo toda a carta, de forma a dar a ela uma apresentação impecável, mas levara tanto tempo executando o rascunho que agora não dispunha de mais tempo. Ulfin esperava por ela no estábulo, ansioso para exibir um cavalo novo que havia comprado para a esposa. Por isso ela entregou o rascunho a um dos escribas de Ulfin, ordenando que ele copiasse o texto em uma folha em branco que já havia assinado. Seu pai, que não sabia escrever bem, teria de contar com Joliper ou outro serviçal para redigir sua resposta. E agora que dispunha de escribas em sua casa, podia e devia usá-los como a grande dama em que se transformara. O mesmo pensamento levou-a a mudar o cumprimento de abertura para "idolatrado senhor", remoendo também a palavra "humildemente" da primeira sentença. Feito isso, ela correu para o estábulo.

   Mais tarde, lamentaria ter feito tais mudanças. E pensaria também que devia ter oferecido mais desculpas ao o que "Se algum dia lhe causei pesar, recentemente ou em toda a minha vida". (Se!) Mas então a carta já havia sido despachada.

 

   As torres se debruçavam sobre ondas e ondas de terreno acidentado, relva, bosques, pedras e pomares, um panorama que se estendia até a névoa das grandes montanhas distantes. Nas depressões mais profundas, riachos corriam ocultos, e estradas da largura de trilhas de coelhos cortavam os vales, subindo e descendo com o relevo. Os vilarejos eram pequenos e afastados. Um dia e meio de cavalgada lenta, depois de terem deixado Aclete, e ainda não haviam passado por castelos ou outras propriedades. O primeiro repouso do dia ocorrera em um grupo de quatro cabanas ao lado da estrada; o segundo, em uma bifurcação da estrada.

   Era um lugar vazio, depois do mundo atribulado e fechado de Trant; vazio por dentro e por fora. Não havia sacerdotes, uma coisa com a qual deveria estar chocada e que, sabia, teria de mudar antes de seu pai e outros de seu mundo tomarem conhecimento disso. Com exceção desse detalhe, a criadagem de Ulfin era maior do que a do guardião, mas era mais quieta e mais organizada. Os grandes aposentos impunham uma porção de sua quietude aos humanos que por eles se moviam. O salão erguia-se três patamares acima de suas vigas, com a porta para o patamar superior a meio caminho de sua altura e uma lareira cuja largura era quase a mesma da parede do cômodo. Degraus brancos subiam para a madeira escurecida da galeria, e além dela ficavam os quartos. O piso alternava quadrados de mármore branco e preto, compondo um padrão que era quase regular, mas não inteiramente.

   — Alguém foi descuidado, senhor — ela comentou certa tarde. — Porque aqui há três... não, cinco pedras pretas alinhadas diante da lareira. Estou surpresa por ter permiti do tal desarranjo.

Ele não parecia estar com disposição para brincadeiras.

   —As pedras negras vêm de pedreiras além de Baer. Mas brancas são de Velis. Na época em que as pedras foram danificadas, a rebelião começava no Litoral. Nada passara para o sul pela costa. Fizemos o que foi possível, e eu acabei me acostumando com isso.

   Phaedra nunca havia estado em um cômodo projetado em torno de uma combinação de cores. Nem mesmo em Tuscolo.

   —Branco e preto são mais do que as cores da minha casa — disse Ulfin. — São as cores da verdade. São claras, precisas e sem decoração.

—    Como um tabuleiro de xadrez?

   Aun sempre se referia ao seu tabuleiro e às peças do jogo de xadrez como pretas e brancas, por mais que tivessem tons diferentes de verde e marrom.

   — Ainda está tentando brincar comigo. Mas é isso mesmo. Sabe jogar xadrez?

   — Comecei a aprender no último ano. Minha peça favorita é a rainha. E a sua?

   — Não devemos ter peças favoritas. E necessário usar todas as peças, como o jogo exige. No momento apropriado, você deve sacrificá-las sem misericórdia. Exceto o rei, que deve ser guardado como sua própria vida.

   Assim, eles começaram a jogar xadrez depois do jantar. Jogavam em um grande e belo tabuleiro com peças da cor do ébano e do mármore. Ulfin era habilidoso, muito mais do que Aun havia demonstrado ser. Ele planejava muitas jogadas com antecedência. E seu jogo também era mais sutil. Ele adorava levar uma peça para uma posição de vantagem e assim deixá-la preocupada com ela até aproximar ao de um cavalo ou peão para o movimento de defesa. Então, ele balançava a cabeça suavemente, e ela olhava para o tabuleiro e via, pela primeira vez, o bispo ou o castelo que seu movimento havia deixado descoberto, a ameaça direcionada para o centro de sua defesa.

   Ela lutou. A luta ajudou-a a aprimorar sua consciência do jogo, de suas complexidades e de seu ritmo. Ela o forçou a executar mudanças súbitas a fim de remover uma peça na qual, de acordo com a opinião de Phaedra, repousavam seus planos. E assim eles jogavam, às vezes várias partidas consecutivas, nas noites de início de primavera no salão em Tarceny, onde o ar penetrava pelas longas janelas e não havia outro som senão o das peças e das cortinas balançando suavemente, cheias de história. E quando suas defesas eram vencidas, e seu rei caía pela última vez, ela sorria e aceitava a mão estendida, e juntos eles subiam a escada de mármore para os aposentos íntimos, onde a lua fazia cintilar os lençóis e seus corações batiam mais forte.

   Assim, o idílio de Phaedra durou até os primeiros dias de fevereiro, quando a primeira chuva de muitas semanas bateu contra as janelas, e a resposta de Trant chegou para destruir seu sonho.

... Inconseqüente, voluntariosa e anormal... Seu pai me pede para escrever que ele deveria enviar a maldição dos Anjos e a dele também, porque você envergonhou sua casa diante do rei e de todo o reino... todo o sangue que ele e seus cavaleiros derramaram foi em vão... e que ele jura que vai trazê-la para casa, e amarrada se for necessário...

   O Salão de Guerra de Tarceny era iluminado por tochas, e pelas janelas se podia ver o brilho do sol se pondo sob uma massa de nuvens. As paredes eram caiadas, a mobília era de madeira escura e polida, brilhante, e havia uma mesa com bancos dos dois lados e uma cadeira em forma de trono em uma de suas pontas. O único ornamento nas parede consistia em um retrato de um homem jovem, com o rosto longo da família de Ulfin e uma expressão triste no olhar.

   Phaedra olhou em volta para os doze homens, alguns desconhecidos, outros mais familiares, mas a quem ainda não podia dar nomes. Hob, mordomo de Ulfin e assistente mais próximo, estava ali. Ele ocupava uma posição baixa à mesa. Os outros deviam ser cavaleiros, cada um com várias fazendas e propriedades e uma dúzia ou mais de homens armados, vestidos com armaduras e montados. Alguns vestiam malhas. Em Tarceny, os homens se trajavam para a guerra mesmo quando estavam em suas terras, pelo que via, e até para a curta viagem pela estrada precária que levava ao portão de seu senhor. Muitos eram anos mais velhos que Ulfin. E, desses, nenhum tinha o rosto simpático, embora valente, do povo de Trant. Eram os homens que haviam seguido o velho conde, duros e silenciosos. Homens que haviam cumprido suas ordens.

   Agora, eles esperavam pelas ordens do filho do conde.

   — Vocês sabem — começou Ulfin — que escrevi para o pai de minha esposa oferecendo amizade, um possível dote e meu apoio, pedindo apenas que ele se sentisse contente por me chamar de filho. Não recebi nenhuma resposta. Minha esposa também escreveu, e recebeu uma resposta, mas nada que nos dê esperança ou ânimo. Por essa razão, basicamente, pedi que se unissem a nós enquanto discutimos o assunto. Também devemos considerar as notícias que Abernay me trouxe, e pedirei que ele as resuma. Por último, eu mesmo tenho notícias as quais desejo tornar conhecidas. Juntos, vamos considerá-las e decidir o que fazer.

   Todos os presentes assentiram e esperaram em silêncio.

   Ulfin seguiu em frente.

   —Em primeiro lugar, devo repetir, caso haja alguma dúvida, que minha esposa aceitou se casar comigo por vontade própria, em solo da Fronteira e de acordo com nossas leis. Não há nenhuma dúvida quanto a isso.

   Sua mão direita repousava sobre o braço de Phaedra. A esquerda estava sobre um baú de madeira entalhado com complexas serpentes e imagens, um objeto que era mantido sobre a mesa como um totem de autoridade. Sua linguagem era formal, como a de um sacerdote. Phaedra podia ver que os homens em torno da mesa tentavam antecipar o que ouviriam ali.

— Milady — disse Ulfin, virando-se em sua cadeira.

   — Milorde — Phaedra respondeu num sussurro. Tentou tossir para limpar a garganta, e voltou a falar: — Milorde, meu pai mandou escrever que não reconhece e não aceita nosso casamento e nem pretende responder a suas cartas.

   Alguém grunhiu. Podia ser uma gargalhada, mas o som foi tão breve que Phaedra não soube identificar se ele traduzia um lamento ou escárnio.

   — Não creio que tenhamos de questionar o significado de tal mensagem — disse Ulfin.

   — Ele não pode esperar vencer — comentou Orcrim, o cavaleiro de cabelos brancos que era mestre de guerra de Ulfin. — Somos cinco ou mais para cada um deles.

   — Se fosse só esse o ponto, eu concordaria — respondeu Ulfin. — No entanto, vamos pensar que, enfurecido como está, ele parece ter adiado por oito ou dez dias sua resposta. Tempo suficiente para mandar outros mensageiros e receber respostas. Sabemos que o guardião é homem do rei. E não me parece impossível que um certo príncipe real possa estar ofendido com tudo isso.

   Um ou dois homens sorriram. Pelo que Phaedra podia ver, Septimus não tinha o respeito dos cavaleiros da Fronteira.

   —Abernay, onde está o rei agora, e quem está com ele?

   Um cavaleiro, um daqueles que vestiam malhas, inclinou-se para frente. Ele tinha um rosto estreito, com um queixo pontudo e cabelos negros cortados num formato arredondado.

   —Falei com um mercador que foi enviado a Bay para fazer compras para a chegada do rei. O rei saiu de Tuscolo no último dia de Natal. Agora ele está em Baldwin, mas estará em Bay no final do mês. Os dois príncipes estão com ele como lorde Develin e os outros. Eles estarão em Trant por uma quinzena no meio de março, e chegarão em Jent para a Páscoa.

   — Esse era seu plano — disse Ulfin. — Agora, imagino que o tenha mudado... pelo menos com relação ao local em que passará a Páscoa. O que penso é o seguinte: uma ordem com o selo real foi enviada a todas as praias do leste de Derewater, exigindo que todos os navios e barcos passíveis de comando estejam em Trant no décimo quinto dia de março.

   Houve silêncio no salão novamente. Phaedra podia ouvir o crepitar das tochas presas à parede. Na ponta da mesa, Hob parecia pensativo. Seus olhos repousavam na pequena arca sob a mão de Ulfin. Para além das janelas era quase noite. A chuva caía leve sobre a soleira.

Ela estremeceu, sentindo um frio súbito.

... que você tenha comungado em segredo com inimigos de sua casa... que até receber sua carta ele não sabia se estava viva ou morta... filha de uma amada mãe, que agora está morta, irmã de adorados irmãos, que estão mortos, e que você deverá estar morta para ele deste dia em diante...

   Nas horas de insônia, infelicidade e fúria, dissera a si mesma que não poderia estar morta para ele, se ele se dispunha a atravessar o lago para levá-la de volta pela força. Ele nunca falava a sério quando pronunciava suas palavras com ira. Se estivesse em Trant, poderia encará-lo e vencer Poderia dizer a ele que Tarceny somente era um inimigo se ele assim desejasse fazê-lo. Poderia fazê-lo entender que esse era o único caminho para ela, e assim seria perdoada. Mas por estar ali, não podia fazer nada.

   Mas havia pouco conforto nesse pensamento. A verdade era que fugira por ser impotente e nem sequer considerara o que ele pensaria ou diria. Fazia muito tempo que seu pai não ficava furioso olhando em seus olhos. Parte dela esquecera como era enfrentá-lo nesse estado de fúria. Escritas num discurso relatado, por um homem que tentava desesperadamente suavizar o que seu senhor provavelmente havia gritado para que ele escrevesse, as palavras a feriram de um jeito para o qual simplesmente não estivera preparada.

   E ali estava o pós-escrito desesperado e frenético de Joliper.

... Escrito neste vigésimo sexto dia de janeiro em Trant. Idolatrada e querida senhora, digo que ele está obstinado, porque se enfurece e chora como nunca vi antes. Devemos empunhar armas e praticar todos os dias, e aqueles que assim não fazem são espancados até lhe obedecerem. Na verdade, eu lhe desejo boa sorte, senhora, mas haverá um rio de sangue antes que esta história se encerre.

Eles a tomariam de Ulfin!

   A mão direita dele ainda repousava sobre seu braço. Ela usou a própria mão direita para segurá-la com força. Como se encorajado por seu toque, ele voltou a falar.

   — Saberão, meus amigos, que desde a morte de meu pai não demos ao rei causa alguma para nos odiar. No entanto, julgo que ele pensará que também não tem motivo para nos amar. Já que nunca dançamos ao ritmo de sua corte nem fizemos nossas as suas batalhas. De qualquer maneira, não desejo esperar até que o rei e os milordes Baldwin, Bay e Develin estejam preparados para me enfrentar. Se assim agir, não duvido de que teremos de ser duros para pôr um ponto final nisso, e que os termos de qualquer contenda serão realmente difíceis. Assim... a chave para a preparação dos cavaleiros é Trant. Lá eles reunirão seus barcos. Lá convocarão todos os cavaleiros que já não estejam com eles. Lá o rei chegará, no décimo quinto dia de março...

   O rei, que era a Fonte da Lei. Ele também estava contra ela.

   — ... se não o detivermos. Então, pretendo tomar Trant. Com um castelo real em nossas mãos, acredito que poderemos ouvir melhores termos.

   Era como se ela estivesse olhando por uma janela para dentro do salão, vendo-o de fora para dentro enquanto ele falava. Sua mente estava em algum outro lugar, enquanto suas palavras soavam calmas, naturais, encaixando-se no discurso de um mundo que havia enlouquecido. Ela viu alguns dos cavaleiros assentindo, como se desafiar o rei à guerra fosse algo em que nunca houvessem pensado até esse momento, embora fosse certo que a idéia já havia passado por suas cabeças muitas vezes.

   Outros franziam a testa. Tomar Trant? Assim, de repente?

   —O golpe deve ser certeiro — falou Orcrim de seu assento à esquerda de Ulfin. — Melhor ainda se esperarmos até que muitos desses barcos estejam ali reunidos, de forma que possamos tomá-los para nosso próprio uso. E isso deve ser feito antes da chegada do rei.

—Realmente — concordou Ulfin. — Eu não seria conhecido no reino como alguém que ataca seu senhor antes de um desafio ser lançado.

—    Ulfin!

Era sua própria voz. Ela se recuperou.

   — Milorde. Se me ama... ninguém em Trant deve ser morto por minha causa.

   — Sei por que diz isso — respondeu ele. — Embora esteja pedindo demais. Na guerra nada pode ser certo ou seguro. Mas — ele prosseguiu olhando em volta — também não desejo derramar em vão uma só gota do sangue da casa do homem a quem chamaria de pai. Portanto, devemos planejar nosso ataque de forma que ninguém na casa tenha uma só chance de puxar a espada.

Agora, todos estavam chocados.

— E impossível! — alguém protestou.

— Teríamos de manter alguém lá dentro.

   — Não é impossível — Ulfin argumentou. — Difícil, sim. Difícil, mas quem me diz que o que pretendo fazer é impossível?

   Houve outro silêncio, desta vez mais denso. Ninguém respondeu.

   — Muito bem, então. — Ele olhou para Phaedra. — Há alguma forma de penetrarmos as muralhas de Trant sem sermos notados? Um túnel, talvez?

   Mais tarde, quando refletiu sobre esse momento, Phaedra lembrou-se do rosto olhando para ela à luz das tochas, de seu coração batendo forte no peito, e da necessidade desesperada de ajudá-lo a persuadir os homens apavorados que lotavam aquela sala do que devia ser feito.

   — Não há nenhum túnel — ela disse. — Nenhum cano ou respiradouro grande o bastante para permitir a passagem de um homem.

— Como escapou do castelo, então?

   — Pela porta do fundo. Fica na parede ao lado do lago, sob a torre noroeste. Ela se abre para o fosso e, por dentro, conduz ao pátio. Ela é mantida trancada por dentro. Não poderá arrombá-la sem atrair a atenção da guarda. Mas... - Ela hesitou.

—    Mas?

   Todos olhavam para ela. Havia algo nela que não desejava prosseguir. Ela se ouviu falar:

— Não fui a única a escapar do castelo naquela noite.

— Lackmere?

Ela assentiu.

   — Ele mantinha cinzéis em seus aposentos e alguns cobertores. Quando o vi um dia antes, ele examinava a parede norte e como ela se inclinava para fora na base, como a alvenaria estava rachada. Creio que ele saiu pela janela de seus aposentos, que ficava no topo daquela torre, e desceu pela parede forçando os cinzéis entre as pedras para utilizá-los como degraus improvisados, apoios para as mãos e os pés.

— Desesperado, não?

   — Ele não estava disposto a pôr sua chance de fuga em risco. E não há vigilância na muralha em tempos de paz. Pode ser um caminho para você.

Os homens não gostaram daquilo.

   — Teremos de manter dois homens sobre a muralha, equipados para a guerra!

   — Não — Ulfin protestou. — Apenas um para abrir a porta do fundo. E será mais fácil escalar a parede do que deve ter sido descer por ela.

   — É verdade — disse alguém. — Esse Lackmere devia estar maluco.

   —Ou ele estava, ou nós estamos. Nunca ouvi falar de um lugar como Trant sendo dominado dessa maneira!

   —Chega. — Ulfin impacientou-se. — Se um homem conseguiu sair, um homem consegue entrar. De uma forma ou de outra, devemos chegar à porta do fundo sem sermos vistos, e chegaremos. Agora, milady, uma vez aberta a porta... Onde ficam alojados os guardas e guerreiros?

   Ela se debruçou sobre a mesa, sem encarar ninguém, e começou a traçar com os dedos os contornos de sua casa na madeira escura. O ar que a cercava era denso como se antecedesse uma tempestade.

   Uma hora mais tarde, a reunião terminou. Ninguém falava. Os cavaleiros deixavam a sala com ar sério. Phaedra se mantinha ao lado do marido, ouvindo o ruído dos pés descendo a escada além da porta da capela, onde alguém deve ter dito alguma coisa para provocar aquela gargalhada amarga dos outros. Finalmente, os passos desapareceram abafados pelo som suave da chuva caindo lá fora, uma chuva insuficiente para encher os tanques ou ajudar em alguma coisa, mas suficiente para levantar o cheiro de poeira da terra. Ulfrin reclinou-se em sua cadeira, pensativo. Devagar, ela se acomodou no banco e foi se debruçando sobre o apoio de braço da cadeira, até encostar a cabeça em seu ombro. Ele a envolveu com um braço.

   — São bons lutadores, mas limitados de pensamento — disse. — Só conseguem raciocinar de certas formas preestabelecidas. Phaedra, lamento que ele tenha escolhido esse caminho. Não era essa minha intenção. No entanto, com alguma sorte, ainda poderemos rir de tudo isso depois da conclusão do embate.

— Eles o respeitam.

   Uma vez anunciada a decisão de Ulfin, ninguém a discutira. Não haviam questionado o rito do casamento, ou a sabedoria de lançar Tarceny num confronto armado com o rei. Não haviam nem mesmo questionado Ulfin sobre como ele obtivera as notícias sobre os barcos do rei, ou até que ponto esses dados eram confiáveis. Talvez julgassem saber. Phaedra acreditava poder imaginar, também.

Quem me diz que o que pretendo fazer é impossível?

—    Quando planeja partir para Jent?

Ela não queria pensar nisso.

   —Fico me perguntando se deve mesmo ir — ele continuou. — Não posso acompanhá-la agora. Há muito o que fazer por aqui.

   —Deve haver um sacerdote no castelo, Ulfin. E toda essa situação torna essa necessidade ainda mais urgente.

— Por que diz isso?

   Seu pai havia atraído os sacerdotes e monges da Fronteira até restarem bem poucos deles, um punhado de fracos que nunca se opunham ao que ele determinava. Assim, Ulfin jamais soubera como era viver sob as bênçãos da Igreja. Talvez por isso não demonstrasse entender como era visto no reino, como era criticado por não ter restaurado o que o pai havia destruído. Mas ele mesmo havia mostrado como os sacerdotes também eram atores na encenação da justiça.

   Que lei poderia haver ali, se suas terras não eram abençoadas? Nada podia ser feito na Fronteira que não pudesse ser desfeito. Até um rito de casamento, especialmente um rito apressado como havia sido o deles, podia ser declarado nulo se o bispo e o rei assim decidissem. Então, seria levada dali, para longe dele, e ficaria decretado que o que haviam feito não passara de malícia, erro grave e pecado abominável.

   Mas ele não estava preparado para essa conversa. Nem ela. Se discutissem agora, ambos estariam absolutamente sozinhos.

   —O julgamento em Segne será contra nós — Phaedra resumiu. — E nos julgarão sem pensar...

   —O tempo é muito curto. Se houver luta, você não poderá ter segurança viajando fora da Fronteira. Jent também estará mergulhada na atribulação, repleta de peregrinos para a Semana Santa.

   —Deve haver um homem em quem podemos confiar, Ulfin; e isso significa que devemos escolher esse homem. Não podemos... não podemos mandar buscar o sacerdote do outeiro? Ele certamente...

   Ulfin já havia dito que tal coisa era impossível. Dessa vez ele nem pareceu tê-la ouvido.

   — Talvez isso ajude. Eles podem tentar alegar que eu a trouxe para cá pela força, e assim terão maior facilidade para dissolver nossa união antes de casá-la com Septimus. Será bom, portanto, que você seja vista além da Fronteira sozinha, sem nenhuma vigilância. E sua viagem também pode ocultar nossas intenções. No entanto, não deve se arriscar a ser capturada. Previna-os o mínimo possível sobre sua chegada. E terá de estar de volta à Fronteira no décimo segundo dia do próximo mês. Não será seguro estender essa aventura.

   Ulfin ainda a abraçava, e ela mantinha a cabeça em seu ombro. Por um momento, nenhum dos dois disse mais nada. Ela podia ouvir e sentir seu coração pulsando, batendo contra seu ouvido.

   Era seu mundo. Todo o mundo estava ali, pelo menos para ela. Nos primeiros dias de casamento, havia pensado que não poderia estar mais apaixonada. Havia sido espantoso como seus sentimentos, que foram criando raízes mais e mais profundas ao longo de todos os anos em que os dois se encontraram em seus sonhos, emergiram tão depressa e com tanta força. Pelo Cálice haviam construído um laço entre eles que, Phaedra pensava, era mais forte que tudo no mundo. Agora sabia que era possível amar ainda mais profundamente. Amava-o ainda mais quando pensava que podia perdê-lo.

   Fuligem antiga, deslocada pela chuva, correu pela chaminé com um ruído característico. Da parede, o retrato do homem jovem os observava com seu olhar fixo. A moldura da tela era decorada com uma grande serpente retorcida, uma imagem que despertava em sua mente a lembrança do anel de dragão que agora levava em uma corrente presa ao seu pescoço.

   —Aquele é Paigan?

— Sim.

—Como ele morreu, Ulfin?

Ele suspirou.

   —Devo dizer-lhe a verdade, Phaedra, porque jurei minha honestidade. E assim você poderá entender melhor por que os sacerdotes não nos amam e por que os homens empunham armas quando ouvem o nome de Tarceny. A verdade é que meu próprio pai o matou, aqui mesmo, nesta sala. E sua morte não tardou a ser vingada.

                                   As Janelas de Jent

Em um opulento cômodo de seu palácio, um aposento iluminado por janelas muito altas, o bispo estava sentado como um verme no coração de uma maçã. As paredes eram cobertas por cortinas claras, douradas com um suave toque rosado, mas suas vestes eram simples como as de um noviço. Em uma pequena mesa a seu lado viam-se os restos de uma refeição composta de pão e água. Ele devia ter comido antes do amanhecer, e não tocaria em nenhum outro alimento antes do anoitecer. Não se banhara na última semana nem usara óleos ou perfumes. Seu cheiro era o de um simples camponês de qualquer vilarejo agrícola.

   Esses eram os dias de Quaresma; o tempo que antecede a Páscoa, quando a Igreja exige penitência. Mesmo esse bispo os respeitava com o que comia e vestia; dedicava-se dia após dia àqueles que iam a Jent nessa época do ano para suplicar por perdão. E ele não estava nada satisfeito por ter de interromper seus deveres.

   Com o rosto vermelho e os olhos salientes, ele se inclinou para frente em seu trono.

— Soube que insistiu muito em falar comigo.

   Ele não a cumprimentava nem fazia uso de títulos que denotassem respeito ou admiração. Não havia como deixar de notar sua ira.

   Do outro lado da porta atrás dela, Phaedra podia ouvir interminável multidão de penitentes, alguns em pé, outros sentados na escada e no chão do palácio do bispo. Os pacientes peregrinos a viram forçar passagem e usar sua posição para anular as objeções dos sacerdotes do bispo e dos guardas que controlavam a porta. Eles podiam esperar mais de um dia por sua vez para entrar em seus aposentos e falar com ele sobre os erros que haviam cometido. Mas ela tinha pressa e não hesitara em se impor diante de milhares de pares de olhos.

   Também tinha consciência das sedas e das jóias com que se cobrira naquela manhã, uma escolha impensada, claro.

   — Vossa Excelência deve ter ouvido que desde nosso último encontro tomei o nome de Tarceny — ela começou.

   — Eu soube. Devo confessar que tal nome não está entre aqueles que amo. Deseja minha bênção para o casamento ou prefere que o anule?

Anular o casamento? Não! Como ele podia sugerir tal coisa?

   — Se... Se Vossa Excelência puder fazer o favor de nos abençoar — ela pediu cuidadosa —, seremos muito gratos. Vim porque descobri que minha casa não tem um sacerdote e gostaria de implorar que...

   — Um sacerdote? Francamente! Eu estava mesmo pensando em perguntar que sacerdote teve a ousadia de realizar esse casamento.

   Surpresa novamente, Phaedra não respondeu. O religioso devia ter percebido por sua expressão que ela desconhecia o nome daquele que a unira a Ulfin.

—De que igreja, que ordem? — ele a pressionou.

   — Ele é um andarilho sagrado conhecido por meu marido.

—Um mendigo!

—Assim como Tuchred Mártir, senhor.

   —E como qualquer velhaco de educação medíocre que reclama a batina só para escapar da forca, caso seja surpreendido com os bens de outro homem em seu poder! E a bênção de seu pai... Também a teve, suponho? Ou mandou pedi-la posteriormente, postando-se diante do homem que a criou e guardou sua vida desde sempre, revelando a ele o que havia feito?

   Phaedra não queria falar sobre o pai. Estava tentando lembrar se o sacerdote usava uma insígnia de uma das grandes ordens. A Corda com o Nó, a Lanterna, o Cajado... Certamente havia algo que o identificasse, mas ela não notara. Seus brincos tilintaram pesados quando ela balançou a cabeça, e as sedas de suas vestes pareciam sussurrar. Malditas fossem! E maldito fosse ele, também, com toda aquela humildade nas roupas e uma atitude tão arrogante!

   O bispo ergueu as sobrancelhas, esperando por uma resposta. Uma resposta que ela não podia dar. Phaedra quase saiu da sala. Mas aquele lugar não era Trant, e ela não era mais uma criança.

   — Vossa Excelência, vim em boa-fé, certa de que ficaria satisfeito com meu propósito. Se deseja falar sobre meu casamento, ouvirei com alegria. Mas...

   — Ouça, então. Não aceito que uma filha se case sem o consentimento de seu pai ou que um pai seja tão castigado depois de anos de zelo e cuidados. Também não aceito que a casa real seja desafiada ou que o reino seja levado novamente à beira de uma guerra. Não brinco com casamentos. Em pouco tempo, um príncipe da Igreja, provavelmente eu mesmo, será chamado para julgar o seu matrimônio. Quando esse dia chegar, será bom para você poder apresentar esse mendigo e melhor ainda que ele possa confirmar o que está dizendo aqui. O que consegue dizer sobre ele até esse momento não é nada tranqüilizador.

   O silêncio invadiu a sala depois dessas palavras duras. Do lado de fora, os peregrinos esperavam e falavam. O mais próxirno da porta devia ter ouvido tudo que o bispo dissera.

   —Vossa Excelência... Peço sua ajuda para encontrar um sacerdote para meu povo em Tarceny, um povo que não teve as bênçãos da igreja nesses últimos doze anos.

—Seu povo. E é para seu povo que me pede tal coisa?

Era difícil sustentar seu olhar penetrante.

   — Todas as almas de minha casa necessitam de bênçãos, senhor. Não aprendi de outra maneira.

   Ele estava tentando intimidá-la com os olhos. Phaedra esperou.

   O bispo levantou-se e começou a andar de um lado para o outro na frente do trono. Ainda estava zangado, mais ainda do que quando ela entrara. Era possível ver o emaranhado de veias em suas faces vermelhas.

   — Bênçãos — ele repetiu. — Na Quaresma, minhas bênçãos são para aqueles que vêm a mim em penitência.

   — De fato, isso me causa pesar, senhor, pois não desejava ter interrompido seus assuntos sagrados. — Pelo menos por isso podia se desculpar (como se fosse capaz de esperar ali até o fim da Semana Santa, enquanto ele recebia um a um milhares de peregrinos!). Mas, se ele desejava ouvi-la lamentar ou pedir desculpas por seu casamento, teria de esperar por toda eternidade. — Na verdade — Phaedra prosseguiu —, disponho de pouco tempo e por isso devo deixar Jent ainda amanhã, bem cedo. No entanto, pensei... — Ela o encarou. — Eu e meu marido pensamos que nossa casa deveria ter alguém rezando por ela, mesmo que fosse apenas um homem de Deus, e que essa era a primeira e mais urgente questão a ser tratada por nós quando retornássemos a Tarceny.

   Ele havia se virado e olhava por uma das imensas janelas que deixavam entrar luz no aposento. Era uma janela imensa, feita por muitos painéis e tão valiosa quanto toda a mobília e a decoração da sala. Não saberia dizer para que ele olhava tão atentamente, mas devia ser uma bela vista da cidade e das pessoas que chegavam em procissão ao seu palácio. Suas mãos estavam entrelaçadas às costas. Um polegar gorducho movia-se lentamente em torno do outro. Ele estava pensando. Phaedra não conseguia ver seu rosto.

   Certamente, a essa altura ele já devia ser capaz de enxergar além da ira e identificar onde estavam seus interesses. Mesmo que odiasse Tarceny, ele tinha dúzias de motivos para desejar reconstruir a Igreja nessa casa. Seria descortês, e até perigoso, recusar seu pedido e expulsar a esposa de seu mais poderoso vizinho sem nenhuma cerimônia. Aos dezessete anos, ela julgava conhecer os sinuosos caminhos do poder.

   — Bem — ele falou finalmente —, seria bom se os olhos dos Anjos estivessem sobre Tarceny outra vez. Vou pensar nisso. Mas, no presente, não tenho o habitual batalhão de idiotas ordenados suplicando por um meio de vida.

   — Não tem, Vossa Excelência? Bem, sua declaração muito me surpreende. — Os bispos estavam sempre tendo de lidar com as exigências de seus sacerdotes para que os colocassem em algum lugar em que pudessem viver.

   — Continue me pressionando, e posso surpreendê-la ainda mais. Já disse que vou pensar nisso. Agora chega. Ha um assunto no qual talvez possa me ajudar.

— Sim, Vossa Excelência?

   — Esse maldito vento norte. Está soprando há dias, e poucos capitães de naus zarpam com esse tempo inclemente.

   — De fato, Vossa Excelência. — Ele queria que ela mudasse o clima?

   — Muitos cidadãos de boa índole vieram a esta cidade movidos pela fé e não conseguem retornar a suas casas. Um deles me preocupa mais do que todos. — Ele a chamou para que fosse se colocar a seu lado na janela. — Lá embaixo...

   Da janela se podiam ver todos os obeliscos de Jent. À direita ficava o antigo santuário de St. Tuchred Mártir, com sua torre branca e seu telhado pontiagudo. Ao lado dele, erguia-se a nova catedral, uma maciça forma cinzenta seis vezes maior do que o antigo santuário. Estava sendo construído havia cerca de vinte anos, e mais uma vida inteira transcorreria antes que estivesse pronto. Multidões de peregrinos da Quaresma se reuniam em suas portas. A praça diante do lugar estava repleta deles, com suas túnicas, seus cajados e suas vozes estridentes.

   O bispo apontava para o norte da praça, onde o piso descia bruscamente numa encosta íngreme. Havia ali uma balaustrada baixa de pedra de onde se podiam ver nitidamente o lago e a cidade baixa. Uma figura solitária ocupava o balcão. Uma mulher num vestido claro.

   — Ela esteve em minha presença há três dias. Desde então, encaminha-se à praça todas as manhãs, onde espera por um meio de voltar para casa, perto de Watermane. Como disse que planeja partir amanhã...

— Deseja que eu a leve comigo para o norte?

   A impaciência devia transparecer em sua voz, porque o bispo a fitou novamente com aquela expressão carrancuda.

   —Sempre pensei que fosse costume dos mais fortes permitir que outras pessoas se juntem a eles a fim de ter segurança na estrada — ele disse. — Lembro-me de que seu pai, e a filha dele, porque ele ainda tinha uma filha, aceitaram minha companhia na estrada de Tuscolo há dois anos. Não desconfie de mim. Não vou lhe dar uma leprosa ou uma dona de bordel por acompanhante, embora conheça muitas delas que poderiam lhe fazer grande bem, caso as conhecesse. Essa mulher é esposa de um cavaleiro, mas seu grupo é pequeno demais para que se arrisque a viajar por terra sem mais companhia.

   Phaedra estava prestes a lhe perguntar por que, nesse caso, a mulher não se juntava a uma das inúmeras caravanas de viajantes que deixavam Jent todos os dias. Mas ele ergueu um dedo para silenciá-la.

   — Seja generosa com meus penitentes, criança. Um dia ainda poderá ser um deles.

   Penitência, casamento... Não havia nada a lucrar na repetição dessa parte da conversa com o bispo. Por isso ela inclinou a cabeça com cortesia e elegância.

   — Já que me pede, Vossa Excelência... Estarei esperando pela resposta para o meu pedido. E oro para que seja breve.

   O bispo resmungou alguma coisa e virou a cabeça. Uma porta lateral se abriu. O secretário do bispo estava ali. Foi com gratidão que Phaedra deixou o opulento salão sem ter de beijar a mão do religioso, que preferiu ignorá-la a despedir-se apropriadamente.

   — Venha comigo, milady — o secretário pediu, fechando a porta atrás dela.

   Estavam em um corredor escuro e deserto que devia servir de ligação entre os aposentos dos criados e o salão em que o bispo recebia seus penitentes. A comitiva com que chegara ao palácio, o escudeiro Vermian, Orani e os homens de armas, ainda estava acampada em algum lugar em meio à multidão de peregrinos na grande escada do outro lado da imponente construção.

   — Sua Excelência deseja que eu ofereça minha companhia à esposa de um cavaleiro. Ela deverá vir comigo amanhã, quando eu partir.

— De fato, milady. Refere-se a lady Evalia diManey, de Chatterfall. Devemos ser rápidos, porque ela não pode se demorar...

   Ela o seguiu apressada, percorrendo a passagem que levava a uma escada escondida.

   O homem estivera ouvindo! O bispo devia tê-lo colocado atrás da porta de forma a escutar cada palavra daquela entrevista. Sentia-se humilhada. Podia sentir o rosto corado e estava feliz por esse rubor não poder ser visto nas passagens escuras. Phaedra seguiu o secretário com toda a pressa de que era capaz, mas sem correr e de cabeça erguida. O homem a levou à varanda principal, onde havia um grande número de peregrinos, e lá ele se deteve na porta. Procurava por alguém na praça, certamente a mulher que o bispo havia apontado da janela do salão.

   — Uma coisa — ela apontou para o peito dele, determinada e séria. — Enviei uma mensagem anunciando minha chegada. Solicitei uma audiência com o bispo esta manhã e pedi também para encontrar candidatos depois disso. Sei que minha mensagem chegou ao palácio antes de ontem, mas creio que Sua Excelência não a recebeu. Ele se mostrou surpreso com minha presença. E nenhum preparativo foi feito para me receber no palácio.

   O secretário a olhou de cima. Ele era um jovem sacerdote, com brilhantes cabelos claros e o pomo de Adão mais proeminente que ela já vira. Era possível perceber por sua atitude que ele a menosprezava, que não a considerava digna de melhor recepção ou da atenção do bispo, e que a censurava por ter passado na frente de todos aqueles fiéis miseráveis.

— Milady, qualquer mensagem de importância que chegue às nossas mãos é levada a Sua Excelência. No entanto, não posso discutir o que ele pensa de sua presença, exceto o que ele já lhe disse em audiência.

   —Muito bem, pois custo a acreditar que Sua Excelência tenha recebido o aviso de minha chegada. E prefiro que não se incomode em me acompanhar. Deve estar muito ocupado; não creio que estará ajudando Sua Excelência se perder outras mensagens enquanto estiver me servindo. Concorda comigo?

   Então ela saiu sem manto ou acompanhante para enfrentar o forte vento do norte.

   Era uma vitória barata, especialmente porque o derrotado era alguém incapacitado de responder. Mas sentia que alguém no palácio do bispo devia saber o que ela pensava sobre a recepção que tivera.

   Phaedra atravessou o pátio e se viu sozinha. Avançava por entre a multidão malcheirosa e cansada reunida na grande praça entre o palácio e os templos sagrados. Ninguém ali parecia conhecê-la. Não voltara a ver sua criada ou os guardas desde que os deixara na ante-sala do bispo. Não havia ninguém a chamar para ajudá-la a abrir caminho, ninguém para afastar a multidão e auxiliá-la a passar pelo mar de potes, panelas e canecas que cobria o chão. Podia sentir as grandes janelas do palácio atrás dela. Sua Excelência ainda a seguia com os olhos por trás das cortinas, observando-a enquanto se aproximava da mulher? Ele se importava com seu destino? Não queria pensar que a missão de caridade havia sido apenas um pretexto para pôr fim à entrevista. Ele estivera tão zangado! Por quê? Por causa do velho ódio contra Tarceny? Porque, graças à incompetência de seus secretários, havia sido forçado a interromper as visitas dos penitentes? Ou ele realmente se aborrecera com seu casamento? Temia ser surpreendido pela tempestade que o seguiria? Estaria sua lealdade depositada em Trant, com seu pai, e não em Tarceny, com ela? Era isso que o afligia?

   Phaedra não olhou para trás. Se ele a estivesse observando, preferia não deixar transparecer que tinha consciência disso. Se não era observada por ninguém, preferia não saber. Viajara durante uma semana para estar ali e discutira com sacerdotes pelo que havia parecido uma eternidade. Sua audiência não podia ter sido encerrada tão depressa, e com tão poucos resultados! Phaedra desviou-se de um grupo de peregrinos cantores e descobriu que a balaustrada ao final da praça estava vazia.

   Toda Jent conspirava contra ela? A mulher que vira um momento antes da janela do bispo havia desaparecido como fumaça. Recusara a companhia do secretário do bispo e estava separada de sua comitiva. Não havia ninguém ali para ajudá-la. E ainda sentia as janelas do palácio às suas costas, assistindo aos seus movimentos.

   Frustrada, ela olhou para o norte, para além da cidade baixa.

   O vento soprava contra ela vindo de Derewater, encurralando os barcos no porto, lavando as paredes caiadas e os telhados vermelhos, fazendo balançar tudo que se opusesse à sua força devastadora. A superfície do lago estava crispada e escura. O dia estava mais frio do que qualquer outro nesse novo ano.

   Um pouco à direita havia uma escada, degraus que conduziam a alguma rua estreita na base da colina. Ela se aproximou do topo da escada e olhou para baixo. Os degraus formavam uma trilha sinuosa pela face escarpada da colina. Havia uma mulher num vestido claro, sozinha, descendo a escada com cautela e sem pressa. Seria aquela?

— Lady diManey?

   A mulher continuou em seu caminho, mas parou quando Phaedra a chamou pela segunda vez.

   —Sim... sim, esse é meu nome — respondeu, como se emergisse de um mar de pensamentos sombrios.

   —Sua Excelência me disse que espera por uma chance de voltar ao norte. Planejo partir amanhã com uma comitiva. Gostaria de vir comigo? Não teremos de nos desviar de nosso caminho.

   A mulher olhou para o ar diante dela. Não parecia surpresa com a oferta, mas balançou a cabeça sem encará-la.

   — É uma boa alma, milady, e Sua Excelência teve a generosidade de enviá-la. Mas Sua Excelência esquece que fui banida das estradas do reino, e devo viajar por água, ou não viajar de nenhuma maneira.

   Banida? Anjos do céu, quem era essa? Ao mesmo tempo, Phaedra compreendeu por que ela havia sido solicitada a oferecer companhia a essa mulher.

   — Desculpe-me, milady, por não ter sido mais clara. Sou a condessa da Fronteira, de Tarceny. Viajarei para oeste do lago, atravessando a Fronteira. A Fronteira tem leis próprias. E as estradas ali não pertencem ao reino, mas ao meu marido.

   Dessa vez a mulher a encarou. Phaedra viu um rosto pálido e triangular com olhos grandes e um nariz pronunciado. Havia algo de familiar naquele rosto, como se já o houvesse visto nesse mesmo ângulo e à mesma distância antes. Uma lembrança tentava emergir da escuridão do fundo de sua mente.

Alguém com medo...

   — Soube que ele se havia casado — disse a mulher. — Então foi com você.

   Ele e você. Quem era essa mulher?

   Lady diManey também a estudava como se tentasse agarrar lembranças esquivas.

— Sua Excelência revelou por que fui banida, milady?

— Não.

Não. Mas agora ele nem precisaria.

   — Eu... assisti ao seu julgamento em Tuscolo, dois anos atrás. Estava na galeria com algumas amigas...

Anjos! O bispo a encarregara de acompanhar uma bruxa!

—Foi lá que a vi? Seu rosto voltado para baixo... Por alguma razão, lembro-me bem disso.

   Ela subia a escada para se aproximar de Phaedra, observando-a enquanto falava. Havia uma expressão distante em seus olhos, como se tivesse motivos para duvidar da boa-fé de sua oferta. De repente, Phaedra esperou que ela recusasse o convite, embora soubesse que uma negativa nessas circunstâncias seria algo extraordinário. Uma esposa de cavaleiro ansiosa para viajar de volta para casa agarraria qualquer oportunidade que surgisse, especialmente se essa oportunidade viesse por meio de uma grande dama.

   A mulher estava diante dela agora. Era alta e esguia. Phaedra, que alguns minutos antes enfrentara com valentia um dos homens mais poderosos de todo o reino, sentiu-se tremer diante dessa criatura.

O que pretendia o bispo com essa atitude inusitada?

   — Minha comitiva tem apenas três pessoas, contando comigo — Lady diManey explicou. — Mas viemos de barco e não temos montaria ou equipamento apropriado...

— Eu... posso providenciar tudo isso...

   O custo seria irrisório. Mas o tempo... Dispunha de tão pouco tempo!

E a mulher era uma bruxa!

Lady diManey tomou uma decisão.

   —Nesse caso, serei eternamente grata, milady, se realmente aceitar-me em seu grupo.

   Ela parecia saber que Phaedra já se arrependia da oferta que fizera. E era isso o que mais a incomodava.

   —Tarceny sente-se honrada em poder escoltá-la, milady — disse, colocando espantosa força na palavra Tarceny, como se ela servisse de escudo. — Irá comigo até minha casa e de lá terá um acompanhante para conduzi-la a sua casa. Prometo.

  

   Nos aposentos enfumaçados e apertados que haviam conseguido na hospedaria, Phaedra sentou-se cansada em uma cadeira de madeira perto do fogo.

—    Vermian, acuda-me, por favor.

   O escudeiro era um dos jovens e experientes guerreiros que Ulfin mantinha em Tarceny, homens que esperavam por uma chance de serem sagrados cavaleiros pelas mãos do poderoso senhor. Queriam também uma casa que os sustentasse e uma família. Ele tinha um jeito sorridente e agradável com aqueles cabelos de corte arredondado e as sobrancelhas claras quase invisíveis na pele pálida. Ulfin devia apreciá-lo, ou não o teria escolhido como acompanhante de Phaedra nesse momento de dificuldade, quando os cavaleiros mais velhos e experientes não podiam ser dispensados de seus postos. Mas a cidade não era seu elemento. Por isso, ele mantinha a testa franzida e os lábios apertados.

— Montarias, milady?

   — E equipamento, e uma liteira para lady diManey. Quatro cavalos e uma liteira. Quero tudo pronto hoje à noite.

— Onde...?

— Como posso saber? Pergunte ao dono da hospedaria.

   — Perguntarei, milady, claro. Mas metade da cidade esta tentando viajar. As montarias são escassas.

   Sim, sabia disso. Ele não estava apenas sendo estúpido. Mas Phaedra sentia-se exausta, desapontada e chocada. E ele não tinha o direito de devolver problemas que ela pusera em suas mãos para serem solucionados.

   — Vermian, vai ser mais fácil aturarmos um ao outro se você... — Oh, por Umbriel! — Dois, então, para seus acompanhantes — resmungou. — Quatro, se for possível, mas dois, no mínimo, e hoje à noite, a qualquer preço. A mulher pode usar minha liteira, se for o caso. Eu... seguirei cavalgando Thunder — decidiu, pensando no grande garanhão preto que Ulfin lhe havia dado e que passara boa parte da jornada até Jent cavalgando sozinho atrás da liteira.

—Sim, milady.

   Uma grande dama, cavalgando durante uma semana? Ele não gostava disso. Mas sabia que não devia discutir. Por isso, inclinou-se e partiu, as malhas de sua roupa tilintando no ritmo de seus passos.

   A velha Orani não sabia que devia permanecer calada. Parada ao lado da porta, com seu rosto fino e os ombros arredondados, ela olhava séria para sua senhora.

— Vai cavalgar durante todo o caminho, senhora?

   — Temos de partir amanhã. E devemos levar essa mulher conosco.

—    Por que ela vai viajar conosco, senhora?

Por quê? Grande Umbriel!

   — Porque eu decidi que vai. Agora, por favor, ajude-me. Quero me livrar destas sedas tolas. Quero alguma coisa para comer. E, depois, quero papel e tinta.

   — Sim, senhora. Primeiro, tire a roupa, depois poderá comer.

   Essa era uma atitude típica da mulher que a servia. Se ela não sabia como cumprir uma ordem ou seguir uma instrução, fingia não ouvi-la.

   — E tinta e papel, Orani. Desejo escrever para meu marido.

   Havia planejado passar a tarde entrevistando candidatos para o posto que ofereceria. Mas agora isso não aconteceria mais. E depois da experiência daquela manhã, não queria perambular por entre os impressionantes edifícios da cidade do bispo, como poderia ter feito em outra ocasião. Todo o poder de Tarceny parecia ser inútil ali. Permaneceria na hospedaria e escreveria a carta. Um de seus cavaleiros teria de ser despachado com ela antes do amanhecer. Ulfin desejaria saber como Jent recebera friamente um pedido de sua casa. E escrever para ele seria um conforto, quando nenhum outro conforto existia.

Orani olhava para ela, seu rosto transmitindo confusão

— Peça papel e tinta ao dono da hospedaria — disse Phaedra.

Céus, por que ela tinha de resolver todos os problemas que apareciam?

   Sozinha, esperando por sua refeição, ela andava pelo quarto, inquieta.

   O que o bispo sabia sobre aquela mulher? Sabia ao menos que ela era uma bruxa? Certamente que sim. E sabia que a cortesia exigia que Phaedra a deixasse viajar ao seu lado, conversasse com ela e olhasse em seus olhos por dias seguidos. O que a mulher faria? O que não faria? Era exatamente como se ele a houvesse solicitado para aceitar em sua comitiva alguém com uma praga secreta que os olhos não podiam ver.

   Phaedra lembrou-se do jeito casual com que o bispo olhara pela janela. Nada que ocorresse em Jent e envolvesse a lady de Tarceny seria casual dessa vez. Oh, ele sabia quem, ou o que era diManey. Sabia que ela devia estar bem longe dali. Podia até tê-la instruído nesse sentido, exigindo sua partida. Unir as duas era seu objetivo desde o início.

   Por quê? Para retardar sua partida? O bispo sabia que a guerra se aproximava. Estaria colocando essa mulher em seu caminho numa tentativa de manter lady de Tarceny em Jent por mais um dia, de forma que pudesse melhor arranjar sua captura? Mas isso não funcionaria. De um jeito ou de outro, partiria ao amanhecer, com todos de seu grupo montados e equipados, de forma que pudesse estar bem longe dali e de qualquer tentativa que fizessem de alcançá-la quando a batalha começasse. E teria havido outras maneiras, soluções muito melhores, para retê-la ali. Prometer um campo cheio de sacerdotes para que ela entrevistasse e selecionasse um deles no período de uma semana, por exemplo.

   Seria isso para difamá-la, então, para mostrar ao mundo que Tarceny oferecera ajuda a uma feiticeira? Mas ele mesmo havia recebido essa mulher. Não poderia difamar Tarceny sem causar dano a si mesmo. Não, essas eram idéias sem sentido.

   De que tinha medo, afinal? Bruxaria? Seu grupo contava vinte integrantes, enquanto o de lady diManey tinha apenas três. Mesmo que diManey fosse uma bruxa, estaria dependendo de Tarceny para sobreviver e gozar de proteção, e por isso não pensaria em causar nenhum mal àqueles que a conduziam na viagem pela Fronteira. E a mulher bem podia ser inocente. Totalmente inocente. Só haviam alegado que ela era uma bruxa a fim de matá-la para tomar suas terras. Phaedra lamentara por ela no passado. Por que a temia agora? O medo estava se tornando um hábito nesse novo mundo em que havia penetrado.

   Preferia acreditar que o bispo a estava testando. Queria que ela exibisse algum sinal de humildade. Se oferecesse conforto a um peregrino desconhecido e hostilizado, como era o caso dessa mulher, talvez ele atendesse ao seu pedido, então. Por isso ajudaria a mulher. Por isso não chamou Vermian de volta à hospedaria nem mandou uma mensagem aos aposentos de lady diManey sugerindo que encontrasse outras pessoas com quem viajar. Ainda havia uma chance de levar um sacerdote a sua casa e assim garantir a continuidade de seu casamento.

   O bispo queria que Tarceny tivesse um bispo. Ele mesmo dissera. E ele havia dito...

   Por um momento, ela ficou olhando para as paredes do quarto abafado e pequeno.

Se os olhos dos Anjos estivessem sobre Tarceny outra vez.

Seria aquela mulher uma espiã?

 

                                         Um Rosto na Estrada

Agora, que Miguel nos proteja, milady — disse a feiticeira ao amanhecer.

Os portões de Jent se abriram ruidosamente para permitir a passagem de trinta cavalos. A luz era tênue sob o túnel em arco. O mesmo vento que soprava havia dias sacudia as portas de madeira em suas dobradiças e balançava as cortinas pretas e brancas da liteira de Tarceny, da qual o rosto de lady diManey espiava o movimento à sua volta.

   — E que Rafael nos conduza em nosso caminho — Phaedra respondeu de forma abreviada, sem completar a oração. Também não apreciou o olhar de diManey nem incentivou o prolongamento da conversa. Com um som assustador, os portões se abriram completamente diante dela. Thunder, o grande garanhão por ela montado, estremeceu ao ver a estrada se descortinar, mostrando o caminho de casa.

   Thunder era um idiota; Phaedra não confiava nele, embora o animal houvesse sido um dos primeiros presentes do marido para ela. Pensar que teria de passar uma semana montada em seu lombo era um veneno para seu humor. Nas poucas viagens longas que fizera anteriormente, sempre fora acompanhada por uma liteira. O aparato pendia entre dois cavalos e era coberto como uma tenda, e ali ela podia descansar quando se fartava de cavalgar ao sol. Para resolver o dilema do tempo e da falta de cavalos, tivera de ceder sua liteira para lady diManey. Mas, pelo menos, ainda podia escolher em que local da comitiva viajaria e quando ou se desejava falar com sua companheira de jornada.

   A noite havia sido de insônia, com a guerra, a bruxaria e a raiva povoando seus pensamentos. Não ouvira mais nenhuma palavra do bispo. Nenhum sacerdote se apresentara portando uma carta de Sua Excelência. Era pouco provável agora que um capelão os alcançasse (e, caso isso ocorresse, teria perdido sua chance de escolher o homem). Pela primeira vez na vida, não havia conseguido aquilo que desejava. Não podia crer que tamanho desastre se abatesse sobre alguém em sua nova posição; a esposa do mais poderoso vizinho de Jent, a filha de um velho amigo, que chegara absolutamente certa de que Sua Excelência a receberia bem.

Que um pai seja tão castigado... que a casa real seja desafiada...

Seu pai, o bispo e o rei... Era muito errado que os pilares do mundo devessem cair em ultraje contra ela, um ultraje tão impensado! Pensavam que os costumes, o dever de uma filha e o respeito pela casa real não eram nada para ela. Não entendiam. Sabia como se afastara do que era aceito (pelo menos, estava afastada agora). Mas, se o amor era uma ofensa que os bispos amaldiçoavam e contra a qual cavaleiros pegavam em armas ultrajados, então devia ofendê-los. Seu passado nada tinha a oferecer. Era tão vazio quanto a estrada diante dela. Sua estupidez representava perigo para todo o reino. E se tinha de acontecer uma guerra entre Trant e Tarceny, entre Tarceny e o rei, só haveria um lado que poderi defender; e devia seguir sua decisão. O amor era mais forte que o sangue e mais verdadeiro que a Fonte da Lei. Eram eles que não conseguiam ver.

   Então, ela cavalgava, e pensava, e cavalgava enfrentando os frios ventos do norte, suplício que perdurou pela primeira hora de sua jornada, até que finalmente sua consciência e hábitos provocaram uma revolta contra seu próprio comportamento. Phaedra voltou até alcançar a liteira cuja ocupante podia ser inteiramente inocente, mas certamente já havia percebido que sua protetora estava de mau humor.

   — Esses malditos ventos — ela disse. — Sopram assim há dias e ainda podem perdurar por muito mais tempo. Não gosto do que podem pressagiar.

   Foi um dia de conversas superficiais e longos silêncios. DiManey era correta em seu discurso, mas revelava pouco. Talvez estivesse ofendida; talvez, envergonhada. Ela não demonstrava nenhum desejo de conquistar a simpatia da esposa de um alto nobre, como teria feito a esposa de qualquer cavaleiro desvalido. Phaedra cavalgava, refletindo sobre as questões da política daquela região. A lembrança do rosto vermelho do bispo retornava à sua mente com freqüência.

   A primeira noite da viagem de volta foi passada em uma das casas de Ulfin no limite sul da Fronteira, onde o cavaleiro que a guardava ria alto à mesa e falava com entusiasmo sobre batalhas. Phaedra retirou-se cedo, deixando-o aborrecer lady diManey até altas horas. As luzes do lugar eram apenas chamas tênues, e o papel, como o que o dono da hospedaria providenciara para ela no dia anterior, era de má qualidade, com a marca d'água de um moinho em Jent, diferente das folhas lisas e majestosas de Velis, material a que ela estava acostumada. Mesmo assim, precisava registrar seus pensamentos. Queria expor seu caso ao rei. Ainda havia uma pessoa vivendo a leste do lago que pode entendê-la.

 

Querida madame e boa amiga, procuro-a agora e oro para que me receba, porque me aconselhou a casar por amor, e segui seus conselhos.

   Ela começou descrevendo a aparência de Ulfin, sua voz, a inteligência profunda por trás de seus olhos. Escreveu sobre seu casamento no Outeiro de Talifer, de forma a poder estabelecer com firmeza (e ao mesmo tempo lembrar-se) que havia sido uma cerimônia verdadeira, embora breve. Ela ouviu mentalmente, palavra por palavra, o pouco que o sacerdote havia dito ao casá-los. Digam a verdade um ao outro. A vida de um devia ser espelho para o outro. Ela decidiu que, se uma centena de bispos se houvessem reunido para realizar a cerimônia, não poderiam ter sido mais claros. Entre marido e mulher devia haver verdade, acima de tudo, e conhecimento real; como espelhos, deviam mostrar um ao outro suas verdadeiras personalidades.

   Manter as promessas. Não haviam feito nenhuma, exceto em seus corações.

... um casamento tanto em lei quanto em verdade. E, no entanto, espanta-me que tantos sintam-se ofendidos por ele, prometendo pegar em armas e lançando terríveis ameaças, como se aço e costumes tivessem de vir antes da lei e do amor. Realmente, estes são tempos bastante difíceis para mim, porque aqueles que amo e a quem honro acima de tudo no mundo, exceto acima de meu marido, estão contra mim...

   Devia ser cuidadosa agora. Uma carta de Tarceny para o coração do reino bem poderia ser lida por outras pessoas, antes ou depois de chegar ao seu destino. Mesmo suas palavras poderiam ser distorcidas por línguas hostis.

 

Honro verdadeiramente Sua Majestade e Sua Alteza Real, o príncipe Septimus, como honro o Sol, que governa os dias e é indispensável para todas as vidas, mas meu coração deve estar com a Lua brilhante que se levanta sobre nossas noites. Porque sabemos que os Anjos deram o dia para o dever, mas deram a noite para o amor.

   Phaedra releu a carta, fez algumas correções necessárias, trabalhando até tarde à luz tênue, e produziu uma boa cópia. Depois a assinou, dobrou e endereçou: "Para Minha Boa Amiga Maria, da Casa de Sir Hector Delverdis, em Pemini". Por fim, selou a missiva com o anel que recebera de Ulfin. Olhou para a impressão das letras cPu sobrepostas à lua de Tarceny na cera endurecida.

   O sol real para o dever, a lua para o amor. Há muito tempo não repousava nos braços de Ulfin.

   Na manhã seguinte, na estrada, Phaedra conduziu Thunder paralelamente à liteira e fez um esforço honesto para conversar com lady diManey. Havia decidido que, caso sua companheira de viagem fosse uma amiga, ela merecia mais cortesia do que havia demonstrado no dia anterior, e que, se fosse realmente uma agente do bispo ou da coroa, seria conveniente que soubesse com que firmeza Phaedra se mantinha no caminho que havia escolhido e por quê.

   O mesmo pensamento a fez começar falando sobre Ulfin.

   — Muitas coisas mudaram para mim depois que deixamos Tuscolo — Phaedra contou, conduzindo Thunder pela estrada estreita que ficara ainda menor pela presença próxima da liteira. — Todos aqueles desditosos desejando desposar-me! Eles modificaram tudo, até mesmo meu pai e minha casa. No final, tive de encontrar uma saída para mim. E foi como se descobrisse uma forte disposição que me empurrava nessa direção como uma folha levada pela correnteza. Havia apenas a voz de meu senhor dizendo-me para não ter medo...

   Os olhos de lady diManey tornaram-se mais atentos, até surpresos. Talvez ela sentisse que Phaedra havia alterado uma palavra crucial em seu discurso, algo que ela nem chegara a começar a pronunciar, mas que se fizera entender nas entrelinhas. Talvez estivesse apenas ofendida pelo contraste que Phaedra insinuava entre seus casamentos. Phaedra a encarou e esperou, como se desafiasse sua companheira de viagem a tentar acompanhá-la em seu relato, ao mesmo tempo decidindo que seria dez vezes mais cautelosa nas palavras que escolhesse no futuro. Então, lady diManey baixou o olhar e murmurou um pedido de desculpas. Elas prosseguiram em silêncio.

   Um pouco mais tarde, Phaedra surpreendeu aquele mesmo olhar novamente.

   E nesse momento foi como se elas atravessassem alguma fronteira de intimidade na mente de Evalia diManey, porque de repente ela começou a falar mais, e sobre si mesma. Disse que fazia a viagem a Jent todos os anos, para penitenciar-se, sim, mas também para buscar o consolo do Céu. Ela falou um pouco sobre a casa do novo marido, uma propriedade que ficava abaixo do nível do lago. Referia-se a ele ocasionalmente, basicamente para dizer que esperava por seu retorno; e uma ou duas vezes ela mencionou episódios de sua infância.

   E demonstrava consideração, também. Quanto mais se adiantavam nas colinas escarpadas de Tarceny, maiores eram os problemas que Thunder enfrentava com o solo acidentado. Phaedra se cansava mais depressa do que havia esperado. Cavalgar era um esforço, e manter o cavalo idiota ao lado da liteira enquanto conversava era um esforço exaustivo. Por volta do meio-dia do terceiro dia, Evalia diManey insistiu com muita elegância que naquela tarde elas deveriam trocar de lugar. Quando retomaram a viagem, ela conseguiu iniciar uma conversa com o normalmente quieto escudeiro Vermian, de forma que passaram a cavalgar naturalmente lado a lado, enquanto a liteira ficava para trás Phaedra descobriu que podia fazer aquilo que realmente desejava, algo incomum para ela, que era encolher-se entre as almofadas e cochilar. O balanço cadenciado e lento era fonte de tranqüilidade sob o sol brilhante de Tarceny. Até mesmo o pensamento de que não havia prevenido Vermian sobre sua companheira de viagem foi apenas um momento de desconforto enquanto, sonolenta, ela deixava o mundo real para mergulhar no dos sonhos.

  

   Era noite do décimo quinto dia de março; a noite do ataque a Trant. Phaedra estava sentada com Evalia diManey depois da refeição no longo salão de jantar da casa de Ulfin em Baer. Cada uma delas segurava um cálice de vinho. A bebida parecia soltar a língua de diManey.

   — ... Foi horrível. Fiquei doente com isso. Não conseguia pensar em nada além das espadas. Quando diManey apareceu, não pensei quem era ele ou por que arriscava sua vida. Não creio que pudesse ter raciocinado. Lembro-me apenas de perceber que não seria morta ali, naquele momento, diante de todos. Mais tarde, eu me dei conta de que seria melhor ter morrido a ter de viver aqueles momentos mais uma vez.

E uma taça mais tarde, ela disse:

   — Você é muito jovem. E tem beleza, sim. Mais, você é feliz. Ainda não sabe que a única felicidade digna de se ter é a esperança de que ela continuará existindo. E como você a manterá? Como?

   Phaedra olhou para o interior de sua taça. Podia sentir piedade de sua companheira. Agora, podia até gostar dela. Mas não queria ouvir sermões sobre como ser "feliz". A felicidade era uma flor que florescia e murchava, mas para outras pessoas. Para ela, podia ver duas vidas se abrindo: uma mutilada, outra inteira. Não era uma pessoa, pensava. Era a metade de um todo, uma de duas metades unidas por elo tão forte e profundo quanto as escuras águas do lago, e para sempre. E agora os pequenos barcos de Tarceny estariam zarpando do dique pelo pátio em ruínas no bosque de oliveiras. Sentia-se capaz de suportar qualquer coisa qualquer desfecho, desde que Ulfin não fosse morto.

   Perdera o prazer de saborear o vinho. Phaedra girava a taça e seu conteúdo num movimento lento e repetitivo, rezando para os Anjos manterem seu marido a salvo. Orava para que, de alguma forma, ele desistisse de liderar o grupo de homens que escalaria a muralha. Ou para que todos os guardas dormissem. Que ele voltasse para casa em segurança.

   Quando ergueu os olhos novamente, ela descobriu que sua companheira fitava o infinito, ou algum ponto perdido no meio do fogo que ardia na lareira, como se toda a sua atenção estivesse voltada para os próprios pensamentos. Seus olhos cintilavam úmidos, e ela piscava como se quisesse conter as lágrimas. Phaedra também observou o fogo por algum tempo, e quando voltaram a falar foi sobre outras coisas.

   Naquela noite, ela foi acordada por um ruído sinistro bem perto de sua cama. Imóvel, esperou ouvi-lo novamente. A noite estava silenciosa. A lua brilhava alta por trás de um fino véu de nuvens que ofuscava sua luz. Nada se movia em seu quarto. Mas, quando se ajeitou sob as cobertas, ela ouviu novamente aquele som. Vinha de algum lugar próximo, do outro lado das tábuas que formavam uma parede. Uma voz que gemia, e depois falava. Uma voz de mulher, uma voz que chamava o nome Calyn, e seguia o chamando com sons que lembravam um lamento choroso. O lamento se estendeu por algum tempo. Ele a seguiu em seus sonhos em que ela escalava uma encosta de pedras escuras para um cume de onde o brilho de sol se despedia rapidamente. A paisagem era composta por grandes rochas que lembravam pessoas corcundas. Estava perdendo a direção.

   Não podia mais ver o horizonte, ou as duas luzes na borda do mundo que tantas vezes haviam estado lá. Seus pés eram guiados apenas pelo que parecia ser o ângulo da encosta naquele terreno difícil. Mesmo assim, ela continuava subindo e tropeçando, realizando uma última curva para emergir num patamar rochoso banhado pela última luz do sol. Ao seu lado, Ulfin segurou seu braço e exclamou Conseguimos, meu amor! Trant é nossa, e sem uma única vida perdida. E seu pai é nosso prisioneiro.

   Mais um dia começava, cheio de cansaço, anunciando mais um dia na estrada. Mas esse era diferente. Finalmente completariam a última etapa da viagem. Estariam em Tarceny ao anoitecer. Logo diria adeus a sua companheira de jornada, talvez com certo pesar, embora aliviada. Estaria em casa.

   Uma grande porta tinha sido aberta em meio à parede que a cercava. Ulfin estava seguro. Trant era deles. Assim como seu pai. Sabia que ele devia estar furioso, o que diminuía a probabilidade de se dispor a ouvir a voz de sua filha. Mesmo assim, agora encontraria um meio de resolver o conflito. Precisava encontrar um meio.

   Ela cavalgou em silêncio por boa parte da manhã, pensando em seu problema. O cansaço crescia, e ainda não havia encontrado respostas. À tarde, quando repousava na liteira, uma chuva repentina e pesada ensopou a paisagem. Sonolenta como estava, Phaedra levantou-se e deteve o progresso da comitiva para insistir que Evalia diManey dividisse com ela o reduzido espaço do abrigo. A liteira não fora construída para acomodar duas pessoas, e as roupas de sua companheira de jornada estavam molhadas. Mas elas riram do desconforto e observaram a boa chuva que molhava a terra por onde continuavam viajando. Quando passaram nela entrada para Aclete, as nuvens começaram a se abrir, e quando finalmente alcançaram a elevação sobre os bosques de oliveiras de Tarceny o céu estava claro. Uma brisa fresca soprava sobre o grupo.

   — Este é o melhor lugar para vê-la — Phaedra contou. - E o melhor momento do dia. Veja!

— Maravilhoso — aprovou Evalia diManey.

   O sol começava a se pôr sobre Tarceny, tocando os picos das montanhas. O ar estava úmido. Lá embaixo, os bosques de oliveiras mergulhavam em sombras. Mas o castelo do outro lado ainda refletia a luz do sol, e suas paredes e torres brilhavam com a cor do pálido âmbar, flutuando sobre as nuvens que a lua fazia cintilar em sua lenta ascensão. Havia bandeiras nas torres, longas flâmulas que tremulavam ao vento da Fronteira. As armaduras dos vigias brilhavam nos postos de observação em que ainda havia um resto de sol. Phaedra sentiu o coração se alegrar ao olhar para o vale e para seu novo lar. E, nesse momento, ela encontrou a resposta para o problema que a incomodara durante todo o dia.

   Levaria seu pai para lá. Ele teria de prometer que não lutaria nem tentaria fugir, de forma que pudessem mantê-lo em amistoso cativeiro em Tarceny, como ele mesmo fizera com Aun de Lackmere. Sabia que ele seria um prisioneiro difícil. Estaria preparada para isso. Podia controlá-lo, se fosse necessário. E, difícil ou não, sentia falta dele. Era capaz de pensar em sua turbulenta presença com ternura. Cuidaria dele, leria para ele, seria sua companheira em longas e prazerosas caminhadas. Mostraria a ele as vastas terras de Tarceny e a nobreza de sua casa. Faria com que ele aprendesse a enxergar a tragédia de seu passado com tristeza, em lugar do ódio. E o faria entender como Ulfin e ela se amavam e precisavam estar juntos. Convenceria seu pai e o traria para seu lado, mesmo que levasse muito tempo para atingir esse objetivo. Abriria um caminho de paz para o coração daquele que a criara.

   O escudeiro Vermian fez soar a trombeta, e, ao mesmo tempo, os vigias nas torres gritaram, ordenando que a estrada fosse liberada. Alguns camponeses de um dos vilarejos os encontraram na última colina, por onde subiam com seus burros carregados de madeira para as lareiras de suas casas. Aquele não era um bom lugar para homens montados, e era ainda mais difícil conduzir a liteira pela descida escorregadia e estreita. Os camponeses se mantinham na beirada da trilha, esperando que a comitiva passasse. Havia três rostos voltados para ela, marcados pelo suor e pela poeira, e um quarto rosto encoberto por um capuz. Phaedra estava imersa na campanha mental para reconquistar o apoio do pai, e foi necessário um momento antes que ela registrasse o que havia visto. Sobressaltada, afastou as cortinas da liteira para olhar mais uma vez para o grupo de camponeses. Os quatro já retomavam a difícil jornada pela colina, e ela gritou para o escudeiro:

—    Vermian! Vermian!

   Todos os cavaleiros pararam suas montarias. O escudeiro aproximou-se da liteira.

— Milady?

   — Aquele grupo que acabou de passar por nós. O último homem. Traga-o até mim. Quero falar com ele.

   O escudeiro levou um segundo para compreender a ordem que recebera. Então, cravou os calcanhares no flanco do cavalo para cumpri-la.

   Todos permaneceram onde estavam, esperando. Phaedra olhou para Evalia diManey e notou como sua pele brilhava, banhada pelos últimos raios de sol. Ela nem prestara atenção ao que estava acontecendo. Havia algum pensamento, alguma lembrança, por trás de seus olhos voltados para o castelo. O eco distante da trombeta do portão alcançou seus ouvidos. Phaedra lembrou-se de que Ulfin não estaria em casa. Seria a primeira vez que entraria no castelo sem ele. Ela se virou na liteira.

—    O que os retém?

   Nesse momento, o escudeiro apareceu novamente, conduzindo um homem. Phaedra sufocou uma exclamação ao vê-lo de perto.

   — Não é este! Não é este! — disse irritada. — Pedi para trazerem o último homem do grupo. O último!

   Vermian resmungou alguma coisa que podia ser uma praga.

   — Perdoe-me, milady, mas havia três homens, e este era o terceiro.

   O camponês parecia encurralado num mundo que estava além de sua compreensão. Sua expressão era quase de dor, como a de um coelho que se vê diante do caçador.

   — Solte-o, idiota! Havia quatro homens. O último ia coberto por um manto e um capuz, e seguia um pouco afastado dos outros.

Vermian parecia confuso.

   — Pode chamar-me de idiota, milady, mas só havia três homens quando os alcançamos.

— Pelos anjos! Vamos em frente, Vermian!

   Eles se agrupavam em torno da liteira, gente simplória e de porte avantajado, homens grandes em cavalos também muito grandes, e o camponês continuava preso pelas mãos do escudeiro.

—Milady... O que é isso? — indagou Evalia diManey.

   —É um circo... O que mais parece ser? Muito bem. Sol-te-o, Vermian. E dê alguma prata ao coitado. É capaz disso, não é? Mande alguns homens de volta para olharem melhor o grupo de camponeses. Quero aquele homem. Pro-metam o que for necessário, mas, por Miguel e Umbriel, levem-no ao castelo. Agora, vamos.

   Ela se acomodou novamente na liteira e olhou para frente, pois não queria continuar encarando os cavaleiros e suas expressões estupefatas. Eram todos idiotas.

   — Ele não pode ter percorrido quarenta e cinco metros — resmungou para Evalia diManey.

— Quem, milady?

   — Se aquele homem era quem penso, ele me causou muitos problemas. Problemas e constrangimento... Embora não tenha sido uma ação voluntária. Creio ter visto o sacerdote que me uniu ao meu marido. Vou descobrir por conta própria se ele aceitaria uma posição em minha casa; se não, quero saber por que não, e exigirei conhecer ao menos seu nome e a ordem à qual pertence.

— De que homem está falando?

   — Do último daquele grupo de camponeses. Também não o viu?

   Evalia diManey a encarava como se olhasse para um hóspede ou amigo que no meio da noite se embriagara até perder a razão.

— Vi três camponeses e dois burros.

   — Então você não estava prestando atenção! Ele estava lá!

   — Viu um sacerdote naquele grupo? — Havia urgência na voz de diManey.

   — Um homem com um manto claro e um capuz. Meu marido o escolheu.

   Sua companheira de viagem olhou para trás, para a estrada encoberta pela poeira.

   — Não o vi — respondeu em voz baixa, como se falasse para si mesma. — Não o vi.

   Para Phaedra, essa resposta foi o insulto final. Era a lady de Tarceny, a rainha da grande Fronteira. Tinha um grande grupo de homens sob seu comando imediato, cada um deles montado e armado à custa da colheita de várias plantações. Não conseguia fazer com que cumprissem uma tarefa simples, mesmo que fosse importante. Uma chance como essa para esclarecer seus problemas, e eles a desperdiçavam. Furiosa, ela olhava para as oliveiras à beira da estrada.

Depois de alguns momentos, sua companheira voltou a falar.

   — Phaedra... Não sei ao certo quem é esse seu sacerdote. Mas, se o viu, creio que deva tomar cuidado.

Phaedra a ignorou.

 

                               O Lago Traz Más Notícias

la não entendia por que seu humor se alterara tão intensamente com relação à hóspede naquela noite. A única culpa que podia atribuir a Evalia diManey era a de ter usado seu primeiro nome sem antes obter consentimento para isso. Mas Phaedra não conseguia se recuperar da decepção de ter perdido o sacerdote. A noite transcorreu pontuada por longos períodos de silêncio, enquanto Phaedra pensava e Evalia olhava curiosa para todos os detalhes da grande sala preta e branca de Tarceny. Ambas se recolheram cedo.

      Phaedra não considerou estranha a dificuldade para se levantar na manhã seguinte. Finalmente, ela se arrastou para fora da cama e vestiu-se a tempo de dizer algumas palavras de despedida a lady diManey, que já se preparava para partir levando um grupo de seis cavaleiros escolhidos por Vermian. Eles a protegeriam no último estágio da jornada a Chatterfall. Phaedra recebeu a gratidão da hóspede com um sorriso pálido e um aceno. Depois disso, houve mais um daqueles olhares estranhos, mas nenhuma palavra. Evalia diManey passou pelo portão na liteira de Phaedra, que não perdeu um segundo antes de retornar ao interior do castelo.

       Estava muito ocupada com os próprios pensamentos. Ulfin obtivera uma vitória importante, embora pequena. Mas a tranqüilidade não duraria para sempre, e havia coisas que ela podia fazer para ajudar no estabelecimento de um acordo. Phaedra escreveu para Ulfin, encorajando-o a mandar eu pai pelo lago, assim que sua palavra de honra fosse assegurada. Depois, redigiu uma descrição do sacerdote do Outeiro de Talifer, mandou que fosse copiada e distribuída para cada uma das setenta casas e propriedades da Fronteira enviada por mensageiros especiais a cada uma delas, de forma que a notícia do paradeiro do homem pudesse encontrá-la sem demora.

   Vermian resistiu em despachar metade de sua tropa para percorrer a Fronteira. Obrigá-lo a cumprir sua ordem a deixou irritada e exausta.

   Sua mente estava inquieta, incapaz de concentrar-se. Ela decidiu começar a trabalhar num manto para Ulfin, como sua mãe costumava fazer para seu pai. Disse a si mesma que isso tornaria mais difícil para o pai fingir que ela havia sido levada contra sua vontade. O primeiro passo era fazer uma lista das sedas e do material que deveria ser trazido de Baer ou Watermane. E, usando o rascunho da carta que escrevera para Maria, ela começou a compor um apelo para Septimus, uma missiva que seria entregue quando pudesse provar seu casamento e reconquistar o coração do pai. Nela, ela implorava para que o príncipe desistisse da hostilidade e honrasse a nova casa de Tarceny, como ela o honraria. Seria a grande paz, a vitória decisiva. Imaginava-se mais uma vez diante dos tronos de Tuscolo, dessa vez falando de Amor, não de Obediência. Tentou imaginar o som das liras que transportariam suas palavras em forma de canções, perpe-tuando-as por muitos anos. Mas as palavras secaram antes de encontrarem o papel. A imagem dos tronos se modificou rapidamente e com facilidade, canalizada por sua lembrança para uma cena de sombras e espadas: as tochas de brilho instável, a multidão agitada e uma mulher sendo julgada por bruxaria.

Inquieta, ela esperou por notícias.

   A casa estava cheia de ecos. Ulfin estava longe. (E com ele estavam seus cavaleiros e muitos dos guardas armados, mas era a ausência de Ulfin que mais se fazia sentir.) Sem ele, o castelo ficava estranho. A população doméstica, uma coleção de pessoas comuns que mal conhecia, movia-se cumprindo suas tarefas por trás de portas fechadas, deixando-a sozinha. Phaedra ficava deitada em sua cama ao amanhecer, vendo a luz se mover e crescer nas paredes e no teto. Retirava livros das estantes e os lia. Livro após livro, descobria anotações feitas por Ulfin nas margens das páginas, ou pergaminhos que ele redigira com comentários sobre as histórias, e assim ela examinava cada prateleira em busca dos pensamentos do homem com quem se casara. Em alguns momentos, sentada sozinha, ela apertava um livro contra o peito e olhava pela janela, tomada pela saudade.

   Buscava o pequeno conforto das coisas que traziam lembranças dele. Roupas, broches, uma caneca... Sinais de que, apesar de sua ausência, aquela ainda era sua casa, e sempre havia sido. Não havia retratos dele nem de nenhum outro membro da família, exceto do triste Paigan na Sala de Guerra. Ela começou a visitar a Sala de Guerra para, no silêncio, olhar para o rosto emoldurado pela serpente retorcida, imaginando a sutileza do trabalho que transformara tintas e pincéis numa expressão humana. Depois, sentava-se no banco à direita do trono e repousava a mão sobre o apoio de braço, imaginando tocar o braço do marido. A pequena arca havia desaparecido de onde estivera, sob a mão esquerda de Ulfin.

   — Por que não há nenhum brinquedo? — ela perguntou certa manhã, quando alguns criados trabalhavam perto dela num aposento do andar principal.

— Brinquedos, milady?

   Ulfin valorizava o silêncio entre seus criados. Por isso eles não estavam habituados a conversar. Ela falava com um homem idoso de rosto magro e cabelos brancos, com o mesmo uniforme preto e branco e, ela acreditava, a mesma expressão impassível de todos os outros. Tinha quase certeza de que seu nome era Patter, mas ainda não estava confiante de conhecer todos na casa por seus nomes.

   — De meu marido e seus irmãos. Lembranças de sua infância.

   Era preocupante que houvesse tão pouco no castelo para lembrar a meninice de Ulfin. Bons brinquedos, registros de seus estudos e relíquias de suas aventuras com os irmãos... Em Trant, suas bonecas e seus jogos ainda esperavam por novas mãos que os manejassem. Mas ali em Tarceny não se via nenhum traço dos três garotos que cresceram entre aquelas paredes. Era como se os anos se houvessem perdido, ou sido enterrados. Os aposentos íntimos, um conjunto de quartos e salas mobiliados com frugalidade e contendo apenas alguns tapetes, arcas e mesas, não continham nenhum traço deles. Esse era outro vazio, e a preocupava porque, sem evidências do passado de Ulfin nesse lugar, era difícil imaginá-lo vivendo ali por todos os longos anos de seu futuro.

   O homem colocava de volta em seu lugar uma cadeira que ela havia levado para perto da janela, onde estivera lendo.

   — Não sei se eles tiveram brinquedos, milady, ou se os guardaram.

   Ele se moveu até o console da lareira para substituir uma vela queimada e devolver pequenos objetos aos seus exatos lugares.

   Enquanto o observava, Phaedra pensava que os anos que Ulfin passara ali na infância e na juventude deviam ter sido difíceis e tristes. Nem ele nem seus criados gostavam de falar dos tempos de domínio do antigo lorde. Patter parecia muito concentrado em suas tarefas. Era óbvio que evitava encará-la, esperando assim encerrar a conversa. O silêncio foi prolongado e desconfortável entre eles. Mas ele sairia dentro de alguns momentos. Já havia feito mais do que o necessário no aposento espartano.

   O silêncio se estendia. O criado se movia pacientemente de objeto em objeto, tirando a poeira do tabuleiro de xadrez, ajustando uma mesa, recolocando cada coisa em seu devido lugar, onde haviam estado antes de alguém as tocar.

   Ela o observava fascinada, notando como cada traço de vida desaparecia sob suas mãos competentes; cada sinal deixado pelos moradores do castelo era apagado, enterrado como as infâncias perdidas de Tarceny.

   Não havia um sacerdote como irmão David. Não havia artista como Joliper. Phaedra não encontrava uma boa companhia entre os habitantes de sua casa. Com o passar do tempo, ia se tornando mais e mais dependente de Orani para transmitir suas ordens aos outros. Mas nem mesmo Orani era boa companhia; mais velha, silenciosa e introvertida, ela possuía olhos que pareciam profundos, mas eram vazios. Era competente no que fazia, mas quando falava era confusa e mudava de assunto sem fazer pausas. E ela estava sempre mexendo nas coisas de Phaedra.

   Assim, Phaedra vagava pelos aposentos de Tarceny, olhando para as finas tapeçarias que adornavam as paredes, conversando com os retratos dos santos e mártires, solidarizando-se com suas feridas ou implorando para que poupassem homens e animais naquela batalha de aço e ódio. Ela os censurava em pensamento pelo sangue que corria de suas mãos, imaginando se havia sido assim para os jovens filhos de Tarceny, crescendo dia após dia sob aqueles olha-res fixos.

   As noites eram mais frias do que havia esperado, efeito do ar das montanhas. Ela passou a usar um xale.

Sentia-se doente.

A liteira retornou depois de uma semana, e com ela chegou uma nota de Evalia diManey. A mensagem começava respeitosa: "Honrada e boa senhora" e continuava repleta de expressões de gratidão, para concluir "... oro para que os Anjos a protejam em todas as coisas de sua nova vida, e também rezo para que possamos nos encontrar novamente, pois a amizade é fonte de força contra tudo que o destino possa nos trazer". A assinatura era informal, um grande e rebuscado E.

   Phaedra sentia o coração pesado. Em outros tempos, talvez, com outros passados, as duas poderiam ter sido amigas. Mas havia um grande abismo político e social entre elas. A mulher se mantivera quieta, quase reticente, durante a maior parte da viagem. Por que agora reclamava uma porção da alma de Phaedra? Não queria descobrir que a mulher era uma espiã, afinal, ou algo pior. Cinco dias em sua companhia não haviam resultado em respostas para as dúvidas levantadas desde o primeiro encontro.

   Assim, a resposta de Phaedra incluiu um convite breve para uma visita a Tarceny na próxima vez em que Evalia diManey viajasse a Jent ou de lá retornasse. Calculava que a viagem por terra, especialmente pelo difícil território de Tarceny, consumiria três ou quatro vezes mais tempo do que o mesmo trajeto por água. Sendo assim, diManey teria de ter bons motivos para tirar proveito de tal oferta. E se algum dia ela aparecesse novamente nos portões de Tarceny, Phaedra estaria prevenida.

   Sentia-se mais e mais cansada, especialmente ao entardecer. Seu humor ainda era instável, e já não dormia tão bem. Uma nova e terrível suspeita começou a instalar-se em sua alma. A falta que sentia de Ulfin era maior do que nunca. Gostaria de poder falar com ele, mas seu marido não estava ali.

   Ela estava novamente na Sala de Guerra, com os braços apoiados no parapeito da janela, olhando para o norte e para o oeste, para as montanhas distantes, quando alguma coisa mudou. Podia ter sido apenas o sol descendo lentamente rumo às colinas, ou a súbita lembrança de uma ave que estivera cantando um momento antes, mas de repente o sentia mais próximo, como se algum pensamento esquecido rompesse o vazio por um instante. Era como se pudesse sentir sua presença mais real e sólida na sala, atrás dela.

Ulfin! Finalmente!

   Ele estendia as mãos em sua direção, como costumava fazer em Trant. Segurava o Cálice.

Phaedra.

Sinto sua falta, ela disse.

Não se sente bem em Tarceny?

Não consigo imaginar como foi para você crescer aqui.

Ela sentiu seu suspiro.

   Apenas Calyn se lembrava de nossa mãe, ele respondeu. Isso dava a ele uma força que não podia dividir comigo ou com Paigan. Tudo que tínhamos era um ao outro, e o ódio.

Depois de um momento, ele voltou a falar.

   Phaedra. Encontre-me em Aclete amanhã à noite. Preciso falar com você.

   Foi impossível não olhar em volta, como fazia quando era uma menina. Sua mão tentou alcançá-lo, mas só encontrou o ar e o vazio. Ele havia partido. Phaedra esperou, mas Ulfin não voltou.

   Era noite mais uma vez, e ela se encontrava na estrada para Aclete. A luz estava pálida sob as nuvens cinzentas. A jornada chegava ao fim. O vulto do Outeiro de Talifer erguia-se diante deles, bloqueando a vista do lago e da cidade. Phaedra ouviu as trombetas de sua escolta.

   —Vermian! Vermian, para quem está tocando as trombetas?

—O estandarte de milorde está no alto da colina, milady.

   Ao longe, trombetas soavam em resposta. Ela conseguia ver as pequenas figuras recortadas contra o horizonte, paradas para verem a estrada e serem vistas de lá. Uma grande bandeira tremulava acima deles. Vermian, ou um de seus homens, devia ter visão exemplar, se podia identificar a insígnia àquela distância. Talvez fosse o formato da bandeira, ou algum sinal emitido pela trombeta e pelo movimento da flâmula, que identificasse o grupo. Talvez Vermian houvesse participado de outros encontros parecidos antes.

— Ele está lá?

— É muito provável, milady.

— Então, vamos encontrá-lo.

   Preciso falar com você. Por que ele já não havia falado? Ou o que ele tinha a dizer era tão importante que não podia ser contido, fosse dia ou noite, em uma visão de seu cálice? Nesse caso, o assunto devia estar relacionado a seu pai e ao pedido que fizera para que ele fosse trazido a Tarceny. Ulfin queria discutir a questão, provavelmente argumentar.

   Mas ela tinha outros motivos para desejar conversar com o marido. Estivera contando as horas esperando por esse momento. E agora estava aos pés do Outeiro de Talifer.

   Vermian ordenou o seguimento da marcha. Ele a encarou, silencioso. Já devia ter percebido que estava diferente. Não disse nada, mas o olhar parecia perguntar se ela estava preparada para o esforço. A subida era impossível para a liteira. Seria difícil para os cavalos, porque o terreno era escorregadio e cheio de pedras e galhos. Orani, quieta e atenta, viajava montada num asno. Thunder ia atrás da liteira, selado e pronto para ser montado, mas as mãos que o prepararam haviam trabalhado em vão, porque ela não o cavalgaria.

   Estava cansada. Tinha o estômago embrulhado e a garganta apertada. O movimento da liteira piorava essas sensações. Sua mente perdia a concentração por conta do enjôo e do choque.

   Ela se sentou bem perto da cortina da liteira, aceitando a ajuda de um guarda para descer dela. O terreno era sólido sob seus pés. A colina se inclinava íngreme diante deles. Não estava devidamente calçada para a caminhada. Seria mais sensato prosseguir até a cidade e esperar por Ulfin lá. Mas ele os aguardava no alto da colina.

   — E melhor quando estou em pé — ela comentou. — Pode mandar a liteira de volta, Vermian, e todos os outros que julgar desnecessários. O restante subirá conosco.

   Homens desmontavam em torno dela. Vermian distribuía ordens. A liteira era levada. Ela se preparou para a caminhada.

   Não havia uma trilha. A vegetação era alta e batia quase na altura dos joelhos. Espinhos feriam seus tornozelos e machucavam seus pés, perfurando as finas solas dos sapatos. Ela continuou subindo, segurando as saias e estranhando a dificuldade. Nunca havia estado tão cansada antes. Não se sentia forte. Começava a ofegar, embora houvesse feito apenas um pequeno esforço. Os homens no alto da colina estavam escondidos depois de uma curva.

O grupo prosseguia lentamente.

   A subida era interminável. Phaedra parou e percebeu que havia superado apenas um terço do caminho. Onde estaria o sacerdote que se escondia no bosque, entre as árvores frondosas? Talvez ele conhecesse um caminho secreto. Seus companheiros deviam tê-lo ajudado. Sabia que eles existiam, porque os ouvira entre as árvores quando encontrará o sacerdote pela primeira vez. Mas não havia ninguém ali para ajudá-la. No sonho, ela se perdera entre os arbustos e tropeçara nas raízes expostas. Mas Ulfin estivera lá em cima e, quando o alcançara, ele havia anunciado as boas novas.

—    Milady...

   Orani aproximou-se para oferecer ajuda. Ela estendia a mão e apontava para o pequeno asno, único animal capaz de realizar a subida íngreme. Phaedra recusou a oferta com determinação. O asno pertencia à criada, e ela não iria ao encontro de Ulfin amontoada sobre seu lombo como um saco de grãos.

   — Vamos em frente — disse Phaedra. — Estamos quase chegando.

   O enjôo havia desaparecido. Agora sentia apenas fraqueza, e não deixaria que os outros a notassem. Subindo, subindo, subindo... Homens gritavam e riam. Era bom saber que alguém se divertia com a aventura. Alguém fez soar uma trombeta. Havia figuras lá em cima, descendo para encontrá-los... Homens a pé. O uniforme de Tarceny estava em todas as partes. Ulfin não estava ali, mas um homem, o escudeiro Cradey, correu para ajudá-la e oferecer seu braço.

— Onde está meu marido?

— Lá em cima, milady — respondeu o escudeiro.

— Ele está bem?

—    Bem e ileso, milady.

Graças a Miguel.

   Agora a subida era mais suave. Os espinhos já não a incomodavam, e o terreno não oferecia tantos obstáculos. Podia ver o horizonte acima deles, e a bandeira, e os homens reunidos em torno dela. Ulfin devia estar lá. Ela sorriu e se sentiu mais forte. Parecia que fazia muito tempo que não o via.

   Ele não estava entre os homens. Quando alcançou a bandeira, todos apontaram para onde ele esperava sozinho, um pouco abaixo do cume, na encosta de onde se via o lago. Ele olhava em sua direção, mas fitava a face escura de Derewater e as terras úmidas que o cercavam. Havia algo em sua postura que sugeria apreensão.

   Preciso falar com você. E agora que estava ali, ele não a encarava. Parecia prolongar o momento que antecedia o encontro. Era como se tivesse algo para dizer, mas não desejasse falar.

   Preciso falar com você. O silêncio cobria como um manto os homens reunidos sob a bandeira. Phaedra sentia a tensão entre eles, a atenção com que olhavam para seu senhor. Eles sabiam o que ele sabia, e ela, não. Eles sabiam o que ele tinha a dizer.

—    Ulfin? O que está acontecendo?

   Ele se virou para fitá-la. Seu rosto estava pálido e ele se apresentava mal barbeado. Havia manchas escuras em torno de seus olhos, como hematomas.

— Phaedra, eu... A verdade é que não sei como dizer...

— Meu pai?

Ele hesitou por um momento.

— Sim.

— Está morto?

— Sim.

— Sua aparência é horrível.

   — Foi um período difícil. O rei e o príncipe Barius também... Muitas coisas aconteceram. Phaedra... o rei está desaparecido.

   Ela se virou e olhou para o lago. Pela primeira vez sentia o vento soprar mais frio em seu rosto, unindo-se às lágrimas que o molhavam. Seu pai estava morto. E o rei... Desaparecido. Morto, também?

Pai!

Ela piscou. Seria considerada a pior traidora do reino.

— Por que... Por que isso aconteceu?

   — Porque ele era um bom homem! Porque não mantinha em ordem seu fosso! — As palavras explodiam de seu peito como um protesto violento. — Nós o mantínhamos em um depósito com mais alguns homens, um lugar cujo propósito não era o de servir de cativeiro. Eles escaparam e atacaram meus homens. Não estavam armados, mas nos surpreenderam. Meus homens se defenderam. Quando cheguei à cena, ele já estava morto, e havia mais dois homens caídos com ele.

—    Quem?

—Não sei quais eram seus nomes. Posso descobrir...

   — Não. — Nesse momento, não queria saber quem havia perecido ao lado de seu pai. — Pedi que o mandasse para cá.

— Não consegui obter sua palavra de honra.

   Seu pai devia ter sentido raiva e vergonha. Talvez nem houvesse escutado a proposta. Havia pedido demais, sonhado demais, acreditado que tudo acabaria bem, porque era essa sua vontade e sua mais sincera intenção. Não podia culpar Ulfin.

Ela segurou a mão do marido.

— É bom tê-lo de volta — murmurou. — Senti sua falta...

— Phaedra, eu... não posso ficar.

—    Mas você precisa ficar! Precisa! Não posso...

Não ia chorar.

   Olhando em volta, ela viu o lago e as colinas. O bosque e o céu. Não havia nenhum lugar para onde ir. Não tinha mais casa. Tarceny sem Ulfin não era seu lar. Trant sem seu pai não era seu lar. Tantas lembranças! Não ia chorar.

Ulfin a segurou pelos ombros.

   — Phaedra, sei que tudo isso é muito triste. Este é um momento em que eu deveria estar a seu lado. Mas a guerra pode estar sobre nós. Enviei homens portando uma bandeira de trégua ao acampamento do rei na estrada para Bay, mas o rei e Barius haviam desaparecido de lá. Você entende?

   Ela balançou a cabeça, sufocada pelas lágrimas, e enterrou o rosto em seu ombro.

   — Não posso prever o que vai acontecer agora. Tenho oitenta homens do outro lado de Derewater mantendo Trant para você. Devo retornar imediatamente, com oitocentos...mil. Não posso me demorar.

   Se haveria mais luta, ainda corria o risco de perdê-lo também.

   — Uma noite — ela pediu. — Uma noite, Ulfin. Por favor. Há algo que devo lhe dizer.

Ele hesitou.

— O que é?

— Penso estar esperando uma criança.

   Não acreditara quando Orani lhe dissera pela primeira vez o que significavam o cansaço e o enjôo. Não acreditara, porque não queria acreditar nisso. Mesmo quando o corpo começara a exibir os primeiros sinais, ela resistira à realidade. Somente agora, quando pronunciava as palavras, finalmente se rendia a elas.

   Ulfin se afastou dela e olhou para o lago. Depois voltou a encará-la e, finalmente, sorriu. E em sua dor e em seu medo, ela não considerou estranho que ele também pensasse que essa era a pior de todas as notícias.

 

                                                O SACERDOTE PÁLIDO

  

                               Dor

Um pergaminho na biblioteca de Tarceny continha um fragmento de The Tale of Kings que ela desconhecia. O relato tratava de um príncipe que conduzia seus seguidores para as montanhas pagãs e lá era cercado por inimigos. Num ponto muito alto, ele erguia sua trombeta para chamar os irmãos em seu socorro. Muitas vezes ele soprava, mas todos estavam ocupados com guerras ou caçadas, em banquetes ou dormindo em seus lençóis de seda. Ninguém o ajudava. Mais uma vez, o príncipe fez soar a trombeta, clamando pelo socorro do rei, seu pai. Venha, Wulfram, venha, como em ira você veio pelo mar! As notas da trombeta se perdiam entre as montanhas. Em seu coração ele sentia a resposta do pai:

O vento sopra suas palavras na poeira

Sobre folhas mortas. Espinhos se entrelaçam.

De aço são meus cavalos, meus cavaleiros não se agitam.

Deito-me entre uma centena de bravos.

A terra é fria em minha boca.

Meus ossos são restos na sepultura.

   Phaedra chorou. Não compareceu ao funeral. Não poderia ter se aproximado do esquife, com os olhos da multidão sobre ela e as espadas de Ulfin guardando-na de seu próprio povo. Mandou ordens para que ele fosse sepultado ao lado de sua mãe e dos filhos que tiveram, e que uma pedra fosse posta na parede da capela com seu nome nela gravado. Um dia visitaria o lugar para ver o que havia sido feito.

   Sua morte era uma presença, além da rotina sem cor de cada dia. Era um fato que lançava sombras em sua mente. Quando encontraram os corpos do rei e do príncipe Barius entre as árvores à beira da estrada que partia de Tower Bay, cobertos por terríveis ferimentos que pareciam ter sido causados por cascos de bestas sanguinárias, nenhuma explicação acompanhara a notícia; mas Phaedra não estava surpresa. Tinha a sensação de que essas mortes, embora separadas por dias e pela distância física, compunham a grande Morte que se havia abatido sobre Trant. Não havia outra razão.

   A dor atingia seus olhos e ombros. Suportava erupções, inchaços na boca e uma dor de garganta que se arrastavam por muitos dias. Parecia haver um enorme vazio em seu estômago que a obrigava a estar sempre engolindo. O cérebro ficava confuso quando ela tentava se concentrar, e quando queria dormir ele partia numa disparada incontrolável. Perguntava-se que tipo de criatura era ela, para ter permitido e até colaborado com um ataque à casa de seu próprio pai. Estava zangada, mas essa era uma ira que só a atacava em breves e esporádicos momentos. Enterrando as unhas nas palmas das mãos, ela praguejava contra o mundo que nunca a prevenira sobre a fragilidade de suas esperanças. Às vezes, sentia raiva até mesmo de Ulfin, que prometer não causar nenhum mal, mas não estivera presente para deter as espadas que cortaram a carne de seu pai.

   Acima de tudo, enfurecia-se com o pai. O orgulho dele havia provocado essa crise. Ele havia chamado o rei, planejado a invasão e, como uma criança, escolhera destruir tudo quando Tarceny prejudicara seus planos sem causar um mico ferimento. Estúpido, orgulhoso, cego, egoísta! Em que estiveram pensando, ele e seus homens desarmados, quando abriram o vão entre as tábuas e saltaram sobre os guerreiros armados de Tarceny? Tudo que fizera fora levar infelicidade àqueles que o amavam, e à própria filha acima de todos.

   A vida era muito frágil. Ela era protegida pela mais fina armadura para enfrentar as espadas de muitos inimigos. Os pilares do reino haviam caído. A luta começaria a qualquer momento. O mal só precisava levantar um dedo para tocar Ulfin e tirá-lo dela para sempre. O pensamento a tomou de assalto num sonho, quando começava a adormecer. Às vezes, pegava-se desejando sonhar com ele uma última vez, um sonho no qual daria seu adeus final e encerraria o breve período de vida em comum. Em outros momentos, acreditava que os cavaleiros chegariam para informá-la de que seu senhor estava morto. Depois, temia que os criados a estivessem procurando e, encontrando-a, fizessem esse mesmo anúncio. Por isso os evitava, recolhendo-se e preferindo a passagem sobre a galeria do hall, onde ouvia atentamente o som de quaisquer passos para, ao identificá-los, correr em fuga para a capela construída ao norte, sob o Salão de Guerra. Lá tentava orar.

A capela era uma concha. Ali, o Céu não repousava. Ela encontrou uma vela para acender a Chama, mas o fogo sempre se extinguia. Não havia um sacerdote para realizar os ofícios ou para prometer a ela conforto e perdão. Nenhuma palavra chegara de Jent, e, depois desses terríveis eventos, era certo que nenhuma viria. Nas janelas sujas e engorduradas, os Anjos pareciam carrancudos: Miguel o Guerreiro, e Gabriel o Mensageiro, paralisados em suas posições sobre o altar. Rafael Amigo dos Miseráveis, atento a tudo que o cercava. Umbriel Juiz do Mundo, escrevendo em seu livro enquanto ela se ajoelhava diante dele. Suas pegadas tinham ficado marcadas na fina camada de poeira do chão. Nunca estivera tão sozinha.

   No entanto, mesmo em sua solidão, havia alguém sempre com ela, uma presença quieta e indesejada.

   Não era nada que pudesse ver ou tocar. Era fraqueza enjôo, uma enfermidade debilitante que ainda se estenderia por meses. Ela prejudicava sua mente, de forma que já não conseguia pensar direito. Tornava-a escrava dos próprios sentimentos. Logo começaria a deformar seu corpo inchá-lo e distorcê-lo até deixá-la horrível. Ela seria transformada em uma forma imensa que se arrastaria de maneira grotesca pelos elegantes corredores da casa de Ulfin, parando para descansar a cada metro percorrido, como se houvesse viajado por quilômetros seguidos. E depois...

   Sua mãe morrera durante o parto. Outras mulheres tiveram o mesmo destino, uma morte dolorosa e sangrenta. Não conseguia imaginá-la. Tudo em que podia pensar era no vermelho e na agonia dos gritos. O dia chegaria. Não sabia como o enfrentaria. Às vezes pensava que talvez pudesse sobreviver, mas que a criança nasceria morta, ou morreria em seguida, como havia acontecido com seus irmãos e irmãs. Tentou imaginar-se brincando com aquela criança, um filho ou uma filha, numa sala ensolarada como se lembrava de ter feito com a mãe. Não conseguia imaginar o rosto pequenino. Não acreditava na possibilidade desse futuro. Havia momentos em que, exausta pela dor e pelo medo, ela tinha certeza de que acabaria abortando. Estaria livre e, se todo o mundo a acusasse por essa vergonha, não se incomodaria. Encontraria meios de nunca mais engravidar. Mas a criança agarrava-se teimosa ao seu interior, e ela engordava com o transcorrer das semanas.

   Um cavaleiro grisalho e silencioso fora encarregado de cuidar do castelo enquanto Ulfin estivesse fora. Seu nome era Caw. Ele tinha um rosto magro, a pele pálida e uma dureza interior que parecia vir do ferro. Não buscava companhia e Phaedra o evitava, exceto à mesa do jantar, quando o costume exigia que se sentassem juntos. Não tinham nada a dizer um ao outro. Mas, certa manhã, ele entrou tilintando em sua malha e, ao passar pelo corredor sobre o salão, encontrou-a na biblioteca de Ulfin, tentando escrever uma carta para o marido. Phaedra levantou os olhos da página em branco e viu o cavaleiro com a testa franzida. Vê-lo ali a fez pensar na biblioteca em Trant, em outra carta e em outro cavaleiro quase desconhecido parado em outra porta. Por um momento, ela imaginou se Caw lhe perguntaria se sabia jogar xadrez. Em vez disso, ele exibiu três papéis dobrados que carregava na mão coberta pela manopla.

   — Trago mensagens para a senhora — ele anunciou com tom seco.

   — Entre, sir Caw. — Supunha que as cartas tratassem de assuntos normais da Fronteira, queixas, petições ou negócios, assuntos que normalmente teriam sido encaminhados a Ulfin, mas que, em sua ausência, eram direcionados a ela. Tivera sorte por não ter sido forçada a tratar de outras cartas anteriormente. Em outros tempos, estaria pronta e até ansiosa para começar a aprender sobre os meandros das questões rotineiras que preenchiam o tempo de seu marido. Mas hoje estava muito desanimada.

   Então, ela viu que as cartas não eram endereçadas a Ulfin, mas a ela mesma. Rompendo o selo da primeira, abriu-a com cautela. A caligrafia era horrível, desconhecida da, e o selo pertencia a um lugar chamado Hayley, uma área que, supunha, devia ficar ao norte da Fronteira.

Caw se mantinha ao lado da porta e a observava.

   —Trata-se de uma resposta à minha carta sobre o sacerdote — ela anunciou finalmente.

   —Sacerdote?

— O homem que me uniu ao lorde em matrimônio.

— Hmm...

   — As outras... Sim, tratam do mesmo assunto. Pensei que fossem petições. As pessoas na Fronteira não solicitam nada de seu senhor?

   — Sim. — Ele parecia surpreso com a pergunta. Talvez ainda estivesse pensando em sacerdotes.

— Na ausência de meu marido... Ele encolheu os ombros.

— As cartas são direcionadas a mim.

— A você? — Por que não a ela?

— Sim.

   Ela o encarou. Era ela a esposa de Ulfin e, portanto, a pessoa que devia responder por ele em sua ausência. Devia estar fazendo mais pelo marido. Mas Caw conhecia a Fronteira. Sabia como resolver os casos que podiam ser resolvidos. Podia aconselhá-la sobre o que fazer; mas um homem como esse não promoveria espontaneamente uma mulher jovem o bastante para ser sua filha. Assim, ele administrava toda a Fronteira sozinho. Não dizia nada a Phaedra nem pedia sua opinião. E não via nada de estranho no que estava fazendo.

   Francamente, Phaedra também não via grande importância nisso.

Ele ainda esperava junto da porta.

   Phaedra voltou às cartas e as leu sem grande entusiasmo. Duas delas relatavam que um homem parecido com o que a senhora descrevera havia sido visto perto do vilarejo em tal dia, mas ninguém sabia para onde ele havia ido. A terceira tecia os mais crédulos contos sobre um eremita das montanhas, dando a ele nomes como John Pernas Longas, Matt Cinzento e Príncipe Sob o Céu.

   Eram insignificantes. E chegariam outras, muitas outras. Todas insignificantes.

Caw tossiu.

   —Devo reter o homem que as trouxe?

   —Não. — Mesmo que alguma resposta fosse necessária, não a redigiria agora. — O assunto já foi importante, mas agora que tudo isso aconteceu...

—Tudo isso?

—    Meu pai... e o rei.

   Ele não disse nada. Mas parecia tenso depois de ouvir suas palavras, como se tivesse medo do que ainda ouviria. Devia imaginar que sua senhora começaria a chorar. Um homem como ele devia odiar mulheres que choravam. Talvez apenas odiasse as mulheres.

   Seu pai, o rei... E ele ainda a esperava. E, de repente, Phaedra não conseguiu mais se conter.

   — Não entendo! — protestou com voz rouca. — Não sei o que foi que eu fiz!

— Nada. A culpa não é sua — Caw respondeu.

   — Não. — Ela tocou as cartas e baixou o olhar. Tudo que conseguiu dizer foi: — Obrigada, sir Caw. Se chegarem outras, por favor, traga-as para mim.

Ele a deixou.

   Algum tempo depois, ela ainda se perguntava se o homem havia realmente dito que a culpa não era dela.

   Phaedra não interrogou Caw sobre os casos e as queixas da Fronteira, embora soubesse ser sua essa tarefa. Era ela, não Caw, quem devia presidir a corte na ausência de Ulfin. Também sabia que ela, e não Caw, devia estar percorrendo propriedades, reunindo os homens de guerra para engrossar as fileiras de seu marido. Mas repousava em Tarceny, vendo a Fronteira passar diante de seus olhos, sob suas muralhas. E todos os dias bandos de homens vindos do norte e do oeste paravam diante dos portões, faziam soar suas trombetas pedindo água e descanso antes de seguirem para a margem do lago; Ulfin chamava a Fronteira para integrar seu exército além de Derewater. Havia cavaleiros de Hayley sob bandeiras, soldados a pé oriundos dos vales além de Bellisfell marchando sob imensos estandartes, posseiros com foices e aparatos de caça. A guarda do castelo fora reduzida a vinte homens. Caw vivia agitado, tenso, mas não falava. Só a procurava para tratar de assuntos diretamente relacionados a ela: o mercador que chegara para falar sobre a seda para o manto de Ulfin e as cartas em resposta ao seu comunicado sobre o sacerdote.

   Havia muitas delas, todas mal escritas e inúteis. Podia ver naqueles garranchos as pessoas humildes, algumas idosas, reunidas sobre uma folha de papel, fascinadas por terem recebido uma mensagem da senhora da Fronteira, tentando pensar em alguma coisa para lhe agradar e, já que o senhor do lugar estava ausente, acrescentando todas as coisas que ela poderia gostar de saber sobre a administração daquelas terras (ou, em alguns poucos casos, coisas que ela teria preferido desconhecer). Muitos pareciam presumir que haveria uma recompensa em dinheiro para quem encontrasse o sacerdote. Phaedra até havia considerado essa possibilidade, mas desistira dela ao imaginar o pátio do castelo repleto de pedintes e mendigos da Fronteira, todos alegando conhecer o homem que ela procurava.

   Ninguém a procurara até então. Se ficavam afastados por temerem a terrível reputação da casa de Ulfin, ou se a haviam procurado, e Caw os alistara nos exércitos de Ulfin para aquela horrível guerra, Phaedra jamais saberia.

   Uma carta era diferente das outras. A primavera ia se transformando em verão, e de alguma forma a mensagem conseguira atravessar o lago e encontrá-la em sua casa. O texto e a gramática eram claros e corretos, a caligrafia era familiar, embora corrida e desorganizada.

  

...Ele teria sido um homem de Deus, conforme desejava. Como príncipe ele foi muito bom para nós. Agora os Anjos o têm e levam nossa esperança com ele, porque fomos deixados em um lugar escuro. Os homens falam de presságios. Não sei o que vai acontecer. Temo as mais terríveis coisas. Esse cálice continha muita amargura, tanto que agora estamos uns contra os outros e os homens armam-se para a guerra. Alguns aqui pensam ser amigos de Septimus e alegarão que você foi enfeitiçada. Outros, embora eu não os ouça, afirmam até que você é parte do grupo de coisas pagãs. Querida senhora, perdoe-me se devo escrever tais coisas, mas creio que é mais sincera minha amizade se revelo a verdade e não escondo que poucos me ouvirão quando falar a seu respeito, e que tive de redigir esta carta em segredo. Mas, creia-me, apesar de todas as dificuldades, ainda a tenho em meu coração. E por isso rezo para que perdoe, Sua amiga Maria Delverdis, que escreve esta carta no décimo quarto dia da morte do rei e de seu filho, príncipe Barius, quem jamais houve nem haverá igual.

   A carta havia sido escrita à luz de uma vela, ela adivinhou, talvez depois de toda a casa ter ido dormir. E não fora remetida diretamente de Pemini. Maria devia tê-la enviado a alguma amiga menos exposta aos perigos da corte ou à desaprovação do reino por manter associações com Tarceny. Relendo a mensagem, Phaedra deduziu que Maria a poupara de muitas coisas. Não podia suspeitar de que "coisas pagãs" as pessoas a estavam acusando, mas a idéia de que poderia estar enfeitiçada era a mais gentil delas. Depois de algum tempo, ela se sentou para escrever uma resposta, tentando responder como a mulher corajosa que Maria parecia acreditar que ela era. Descreveu a casa e as terras de Tarceny, desejando que um dia ela pudesse ir conhecê-las. Depois, deixou a carta de lado, na esperança de que logo chegasse um tempo em que fosse seguro para sua amiga receber novamente cartas de Tarceny.

   Esperar, esperar. As semanas passavam sem notícias ela não conseguia superar a tristeza. Quando as sedas para o manto de Ulfin chegaram, e com elas a tesoura e as agulhas e os fios que Tarceny não via fazia gerações, ela começou a trabalhar. Dizia a si mesma, enquanto cortava o tecido, que temores também podiam falhar. Só porque não conseguia acreditar no futuro não significava que nenhum bem poderia advir. Tudo que podia fazer era orar e orar pelo retorno de Ulfin na capela vazia.

   E por uma notícia que atravessaria o lago anunciando a vitória.

   Ela o recebeu com guirlandas e um jantar de boas-vindas. Ulfin ria enquanto a abraçava, e riu muitas outras vezes enquanto comiam no salão de Tarceny. Ulfin pediu o tabuleiro de xadrez antes mesmo de as mesas serem limpas, e quando ele foi entregue por um criado o lorde colocou um punhado de peças sobre a superfície bicolor.

   — Eles nos atacaram em três colunas — contou. — Pelo norte, sob Baldwin, pelo leste e pelo sudeste. — E ia ajeitando as peças de xadrez em torno de uma taça que representava Trant. — Eram quinhentos ou seiscentos no total, contra nossos mil e quinhentos. Sabíamos que a coluna do sudeste vinha enfraquecida, porque Seguin havia discutido com Develin, e, portanto, não nos pressionavam com a mesma veemência dos outros. Por isso conseguimos contra-atacar pelo sudeste — uma peça negra saiu do castelo — e surpreender Septimus e Develin por seu flanco sul. Eles caíram ao primeiro ataque.

   Sua mão derrubou um rei branco com um floreio exagerado. Seu tom era ansioso, quase infantil. Os olhos estavam fixos nas peças e os gestos carregavam ecos do combate. Phaedra o fitava com os olhos brilhando. Era bom tê-lo em casa, a salvo e vitorioso!

   —Depois cavalgamos para o norte e chegamos a Baldwin antes do anoitecer. Houve uma luta feroz pela estrada, porque, diferentemente de Septimus, eles estavam preparados para o confronto. Mas não conseguiram fazer o bloqueio, e nos colocamos entre Baldwin e Bay. Bay recuou por onde havia avançado, e foi isso. Meus cavaleiros perseguiram Septimus até Tuscolo — um peão branco caiu sobre o tabuleiro — e para Bay, ao norte. Tomamos Baldwin, porque o lugar era pouco protegido e o portão estava aberto. Não tivemos nem de atacar Seguin.

   — Lamento por Baldwin — Phaedra comentou. — E pelos homens que morreram com ele.

   — É uma pena. Mas tal morte faz parte da vida. Baldwin envelhecia, e para ele, pelo menos, esse foi um fim honrado. Develin foi derrubado de seu cavalo e esmagado pelos cascos antes de um dos meus se aproximar dele. Se minha hora chegar, prefiro morrer como Baldwin.

   — Não, Ulfin! Não fale assim! Já chega! Que agora reine a paz. Essa guerra já foi além dos limites da razão.

   —Não está em minha natureza acomodar-me na paz, Phaedra. Haverá uma pausa, sim, porque o tempo quente chegou e Septimus tem de se reorganizar. Não sei se ele assumirá o comando do reino ou se o poder ficará com Faul ou Seguin, mas eles perderam muito de sua honra. É certo que voltarão a nos atacar depois da colheita.

   —Oro para Miguel pedindo que esteja enganado.

   Ulfin permaneceu em sua casa por duas semanas, nos dias mais quentes do verão, quando homens podiam morrer de calor dentro de suas armaduras e, por isso, todas as campanhas cessavam. Faziam pouco além de se sentarem juntos em locais mais frescos, esperando o sol baixar. Ele ficava em silêncio a maior parte do tempo e só prestava atenção aos assuntos da Fronteira quando reconhecia uma chance de conquistar mais homens ou tesouros para sua campanha. Ela o via observar as colinas e a paisagem em torno do castelo, com os pensamentos voltados para seu interior quieto. Via Caw esperar por um instante de atenção de seu senhor e ser ignorado. Havia uma certa frieza ali. Caw parecia esperar ser liberado de sua posição de administrador, mas não tinha coragem para solicitar o descanso temporário, e Ulfin não estava disposto a abrir mão dele. Quando Phaedra tentava interrogar o marido sobre esse assunto, ele sempre se esquivava.

   Falava com sua esposa sobre questões diversas, mas, mesmo enquanto conversavam, sua mente estava em outras coisas. Ele parecia pensar que havia pouca utilidade em sua tentativa de localizar o sacerdote do outeiro. Estava surpreso por sua gravidez a deixar enjoada (embora ela garantisse estar muito melhor do que antes, mais forte e mais disposta). E não falava sobre o filho que nasceria. Talvez fosse superstição, ou constrangimento... Ou, como ela, Ulfin também temia o que o parto traria.

   Em uma manhã, ele partiu. Levantou-se e passou pelo portão antes que ela conseguisse abrir os olhos para o mundo. Ulfin deixou mensagens e votos de felicidade e bem-estar, mas levou quase todo o dinheiro e todos os homens que conseguiu reunir pela estrada para Aclete. Phaedra estava magoada por ele a deixar pensar, embora soubesse q essa não era a verdade, que prata e guerreiros eram mais importantes nesse momento que a mulher que carregava seu filho. Teria dado anos de sua solidão por mais alguns dias de sua companhia. Mas não poderia tê-los. Tudo que restava nessa manhã era o castelo, a criadagem, a criança em seu ventre e Caw.

   Caw se mostrava mais retraído do que antes. Era evidente que não apreciava seu posto. Era difícil falar com ele. O homem parecia pensar apenas na guerra e nos assuntos do mês e se dispunha a discuti-los a seu modo breve, desde que ela insistisse muito. Mas Phaedra não queria falar dessas coisas, componentes do presente que a aprisionava. E Caw não falava sobre o passado. Quando o questionava sobre a infância de Ulfin, seu rosto endurecia e ele ficava ainda mais sóbrio. Tudo que dissera havia sido que seu próprio pai quebrara sua cabeça e vendera seu casamento por uma janela de vidro, mas que nunca ouvira falar de ninguém que houvesse recebido a criação que o velho Tarceny dera a seus filhos.

   Na tarde em que ela tentou conversar com ele sobre seu pai, Caw levantou-se e deixou a mesa resmungando algo parecido a uma maldição.

   As noites após o jantar eram vazias. Ela e Caw eram os únicos à mesa. A criadagem retirava os pratos e ia cuidar de seus afazeres, deixando-os juntos, e eles olhavam para o        nada até que Phaedra julgasse apropriado dispensá-lo. Felizmente, como ela descobriu depois de alguns dias, Caw jogava xadrez, e isso os ajudou a suportar a companhia um do outro sem as dificuldades impostas por uma conversa. No meio de setembro, o jogo noturno já se tornara rotina. Caw sempre escolhia as pedras pretas. Relutava antes de fazer o primeiro movimento, mesmo no movimento de abertura do jogo. Suas posições eram fechadas, defensivas. Phaedra tinha de atacar mais do que estava habituada. Sua mente estava sempre cansada ao anoitecer, e apesar do enjôo ter dado uma trégua os pensamentos não tinham o foco de antes. As partidas tornavam-se mais longas enquanto os dias ficavam mais curtos. As pedras se moviam sobre o tabuleiro. Preto e branco. Morte e Vida. E a Vida perdia.

   Mais uma noite, e a partida chegava ao fim. Era tarde Caw a deixou com um resmungo que podia significar que lhe desejava boa noite. Sozinha, Phaedra dirigiu-se aos seus aposentos, que estavam um pouco empoeirados e desarrumados, agora que Ulfin levara todos os homens jovens para a guerra. As mulheres não conseguiam dar conta de todas as tarefas sozinhas. Mesmo assim, Orani deixara uma vasilha com frutas sobre uma mesa de canto, e ela escolheu uma maçã vermelha e cintilante. Quando a mordeu, a fruta suculenta pareceu explodir em seus ouvidos, e foi então que ela ouviu outro ruído. Havia alguém na porta do quarto.

— Orani?

   Ninguém. Olhando para a porta, terminou de engolir a fruta, tentando mastigar sem prejudicar a audição. Nada se movia. Levando a lamparina, ela se aproximou da porta. Não havia ninguém no corredor. De um quarto próximo, alguns passos distante do dela, era possível ouvir os roncos de Orani. A criada devia estar acordada, esperando para auxiliar sua senhora nos preparativos para a noite, mas nem sempre ela resistia ao sono e ao cansaço.

   Phaedra fechou a porta sem fazer barulho. Depois de um instante de hesitação, decidiu usar os ferrolhos, que estavam enferrujados e empoeirados pelo desuso. Depois de se despir, sentou-se na cama para terminar de comer sua fruta enquanto olhava para a porta. Teria sido o som da fibra em sua boca, ou realmente ouvira um ruído parecido com passos e com o farfalhar de um manto?

   Agora seu ventre estava grande e pesado. O bebê parecia ter despertado no meio da noite, e seus movimentos também a acordaram. Ela estava sentada na biblioteca de Ulfin, envolta por cobertores num amanhecer de outubro, dizendo a si mesma que não havia nada que pudesse fazer quanto ao desconforto que sentia. Podia apenas distrair-se enquanto ele perdurasse. Por isso estava ali, lendo um dos livros do marido, enquanto o estômago e a bexiga eram esmagados pelos movimentos da criança dentro dela.

   As páginas de um manuscrito estavam espalhadas sobre a mesa que ganhara de Ulfin. O papel, macio e de excelente qualidade, tinha marca d'água de Velis, a mesma que algumas vezes vira em sua casa. A caligrafia de Ulfin cobria a superfície lisa, ocupando todo o espaço em torno do desenho de uma árvore genealógica. No topo, havia uma fileira de nomes famosos na história: Wulfram o Navegador, e os sete príncipes do reino. Abaixo deles, Ulfin relacionara para cada um a linhagem de seus descendentes do sexo masculino, de pai para filho. Havia nomes que ela conhecia desde sempre, reis e heróis. E outros que ela nunca ouvira falar nem encontrara nas diversas versões de The Tale of Kings. Gostaria de saber como Ulfin os conhecera. Uma a uma, as colunas chegavam ao fim. Somente a sétima, que começava em Talifer, prosseguia muito além das outras, até que, no final da terceira página, ela terminava em uma fileira de nomes: CALYN, ULFIN, PAIGAN.

   Em seu anel brilhavam as letras cPu cercadas pela serpente enroscada.

   Ulfin devia ter passado muitas horas nesse trabalho, e ela tinha muitas perguntas a fazer, ou talvez só uma. Mas ele não estava em casa e raramente mandava notícias do outro lado do lago. Às vezes, quando ela dormia, ou mesmo quando estava acordada, ele falava com ela por meio do Cálice. Tais sonhos eram bons, mas agitados, e não podia prever quando aconteceria o próximo; também não era capaz de fazê-los acontecer sempre que desejava. Ele estava envolvido naquela guerra, atravessando o Segne em marchas incansáveis, tomando Tuscolo para si e rechaçando Septimus e Seguin sempre que eles voltavam para recapturá-Ia, até seus soldados serem extintos e Seguin se afogar sangue à beira da estrada para Bay.

Um grupo de barões oferecera a coroa a Ulfin.

   A notícia chegara na noite anterior, e com ela viera o comunicado de que Ulfin havia recusado. Phaedra tinha a sensação de estar com um pé sobre o precipício e ser puxada para trás sem mesmo ter consciência disso. Se ele concordasse com a própria coroação, a guerra não teria fim. Mesmo com seus principais inimigos derrotados, muitas pessoas se opunham a ele. Se ele perdesse, todos estariam perdidos. Se vencesse, ela seria levada a Tuscolo, com todos os seus cochichos e suas intrigas, e teria de passar seus dias dedicando-se aos intermináveis jogos sociais que tanto odiava.

   Virando-se entre os lençóis, tentando encontrar uma posição na qual houvesse algum conforto, lembrara-se daquelas páginas de outras visitas feitas à biblioteca. A insônia a levara a ler os manuscritos, confirmando que Ulfin era, ou pensava ser, o último descendente da linhagem masculina oriunda dos primeiros reis. CALYN, ULFIN, PAIGAN. E seus irmãos estavam mortos, e seu filho crescia em seu ventre. E ele nunca lhe contara.

   Ela ergueu os olhos da página. Lá fora, uma revoada de pombos, seis ou sete deles, passava diante da janela. Vozes chamavam umas às outras das torres e dos telhados enquanto a guarnição olhava para fora, para o amanhecer.

   — Tudo certo. Tudo certo. Mantenham-se abaixados. — Homens andavam pelo telhado sobre sua cabeça, rindo falando aquelas bobagens que os soldados sempre falava O bebê se mexeu; ela também se mexeu. Podia ouvir Orani passando pelo corredor, e alguém, liberado da posição de vigilância, começava a tocar sua flauta, emitindo aquelas notas que, para ela, seriam sempre a tradução de Tarceny e das colinas.

   Ulfin recusara. Qualquer que fosse sua idéia de certo ou errado, ele se negara a levar adiante suas conquistas. Agora, com tantas vitórias, certamente haveria uma chance de paz, e ele voltaria para casa. Devia recomeçar o trabalho no manto, pois deixara tecido e agulhas intocados durante boa parte do verão.

   Phaedra voltou ao pergaminho, notando que o número de príncipes no alto da primeira página não era sete, mas oito. Na extrema direita, havia um nome: PAIGAN. O mesmo nome do irmão de Ulfin. Não havia descendentes.

—    Orani! Orani!

   Ela gritou na escuridão. Não sabia que horas eram. Podia ser meia-noite, ou uma hora antes do tardio amanhecer de dezembro. Seu pé se chocou contra alguma coisa, e ela se virou para o outro lado numa contorção involuntária.

—    Orani!

   Havia sons do lado de fora. Mãos sacudiam a porta, mas ela resistia.

—    Está trancada!

   Certamente que estava. Phaedra havia adquirido o hábito de fechá-la daquela maneira todas as noites, depois de um sonho com uma aparição no corredor uma semana antes. Tateando o espaço que separava a cama da porta, ela lutou para remover o ferrolho. Estava quase conseguindo, quando a dor retornou e a jogou no chão, dobrada ao meio. A porta foi empurrada para dentro e a acertou na coxa. Orani debruçou sobre seu corpo na escuridão.

   — Senhora?

   Phaedra precisou de um momento antes de responder.

   —O que está acontecendo? Orani... O que está acontecendo comigo?

   Ela sabia, é claro. Era a criança. Estivera esperando desde os dias sombrios de novembro, ansiosa para que algo acontecesse. Agora estava acontecendo. Mas... o quê? O parto? Um aborto? As dores eram uma ocorrência esperada algo que vinha e ia embora para voltar depois? Ninguém a prevenira. Não ousara fazer perguntas. Seria esse o começo da morte?

—    Ulfin!

   As mãos de Orani estavam sob seus braços. Juntas, elas retornaram ao centro do quarto. Phaedra se ajoelhou sobre o tapete, enterrando o rosto entre os braços enquanto Orani resmungava e tateava entre as cobertas da cama.

— A água escapou, senhora?

— A... o quê?

   — Não sabe, não é? Não tem importância. Saberia se houvesse perdido a água. Não é o que parece, porque os lençóis estão secos. Preciso de luz.

— Está doendo!

— Dói agora?

   —Sim... não... Vai doer num minuto. O que é isso?

   Em resposta, a mulher deslizou a mão sobre a coxa de Phaedra até seu ventre distendido. Phaedra abriu a boca para protestar contra tal indignidade, mas não disse nada. Sabia que precisava de ajuda. Ficaram ali unidas na escuridão, esperando... Então, Phaedra gritou. A dor cresceu. E prosseguiu. Ela tremia e chorava.

   — Parece que o pequenino tem pressa para sair — Orani dizia enquanto apalpava a região entre suas pernas. — Bem, chegou a hora. Pode acontecer ainda esta noite. Como tem pés pequenos, senhora, é melhor se preparar para sentir muita dor antes de encontrar o alívio. — Ela se levantou. —        Preciso de luz.

— Mande buscar meu marido!

   Ulfin estava quatrocentos quilômetros distante de casa, indo ou voltando de uma conferência no Litoral.

—Preciso de luz e de alguma ajuda. Fique aqui, senhora. Não vou demorar a voltar.

   Phaedra ouviu a mulher deixar o quarto. Sozinha, sufocou um soluço. Sabia que devia ser corajosa. O que quer que acontecesse agora, seria a vontade dos Anjos. Mas não havia nada nela para promover coragem. Não sabia nada sobre partos. Ninguém jamais conversara com ela sobre esse assunto, e nunca desejara perguntar. Não havia esperado essas terríveis contrações. Orani devia estar certa. A dor ainda a castigaria por algumas horas. Mas confiava na competência de sua criada para realizar o parto.

   Podia mergulhar na escuridão vermelha antes que Ulfin recebesse a notícia, antes que o mensageiro deixasse o castelo. Ela, o ponto de partida de todos os problemas do reino, desapareceria de forma insignificante; e o reino continuaria em guerra sem nem sequer saber de seu fim.

A dor recomeçou.

   Orani retornou portando uma lamparina. Havia mais gente com ela. Outras pessoas, moradores do castelo, eram levados aos aposentos de sua senhora para testemunhar sua dor, ouvir seus gritos e assistir ao espetáculo de covardia e sofrimento. Phaedra odiava essa situação, mas não tinha forças para expulsá-los dali. Ela mordeu a própria mão ao sentir o início de uma nova contração e assim sufocou um grito. O truque foi repetido muitas vezes, até que alguém percebeu e deu a ela uma tira de couro para morder, o que não era tão bom. Havia calor e umidade entre suas pernas e sobre seu ventre, e panos molhados e mornos limpavam seu rosto. Ela começou a gritar.

   A luz pálida do amanhecer penetrava pela janela, e ela teve certeza de que morreria. Tentou rezar entre uma contração e outra, mas a dor era incontrolável e infinita, prejudicando o raciocínio e impedindo todas as palavras, obrigando-a a recomeçar muitas vezes. Ela abriu os olhos e fitou Orani.

— Vá buscar o sacerdote! — pediu ofegante.

   — Só mais um pouco, senhora. Está indo muito bem. Já vi piores...

Ou ela não a ouvia, ou não a compreendia.

   — O sacerdote de vestes claras! Aquele que nos casou! — Ulfin, onde você está?

   — Ele! Não vai querê-lo aqui. Está bem conosco. E vamos precisar de uma ama-de-leite, embora ainda seja cedo para pensar nisso.

— O sacerdote!

   Orani disse alguma coisa, mas Phaedra não ouviu as palavras da criada, sufocada como estava por mais uma onda de dor e agonia. Não conseguia pensar. Só conseguia esperar pela próxima contração. E pela próxima.

E foi assim, por horas.

   Houve um momento estranho, quando a dor cessou e todo o peso foi removido de seu corpo. Era dia. Os lençóis estavam manchados de sangue, assim como suas pernas. As mulheres reunidas em torno de sua cama exibiam um pequeno volume, uma espécie de pacote envolto em tecido branco. No meio dele havia um pequenino rosto vermelho com seus olhinhos fechados e a boca aberta numa busca aflita. O choro era uma declaração de insatisfação e urgência.

   — Menino! — elas gritavam excitadas. — Menino! — Alguém saiu gritando pelo corredor.

   Phaedra sentou-se na cama e olhou para o volume branco. Os olhos da criança permaneciam fechados. Havia cabelos escuros e abundantes sobre sua cabeça. Ela o tomou nos braços com uma mistura de temor e curiosidade.

—    Tão leve! — exclamou. — É só isso?

   Alguém riu. Todas riam. E lá fora, vozes gritavam em alegria. Um sino repicava. Trombetas soavam anunciando ao mundo a chegada do herdeiro de Tarceny. A boca vermelha e minúscula se abria e fechava. Os membros se agitavam envoltos pelo tecido.

   — Quieto, bebê — Phaedra murmurou enquanto o embalava. — Quieto, pequenino. Pode descansar agora.

  

                               Anjos e Sombras

Ela acordou de repente na cadeira da saleta em seus aposentos. Era noite. A lamparina perdia força sobre a mesa a seu lado. O ar era denso. Algum ruído a despertara do sonho.

   Ela se mexeu. Ainda estava inteiramente vestida. Em suas mãos havia uma grande faixa que ela confeccionava para acompanhar o manto. Estivera tentando decidir se devia refazê-la usando oito grandes pedras preciosas, uma para cada um dos primeiros príncipes. Devia ter adormecido sobre o trabalho. Lembrava-se de ter sonhado que o cinto se transformava em uma caudalosa correnteza de águas cintilantes, um rio que a unia a Ulfin no meio de muitas rochas escuras. Ulfin havia chorado, tentando atravessar a correnteza, mas permanecera preso nas sombras enquanto inimigos se aproximavam para atacá-lo sorrateiramente. Então o sonho mudara, ou ela passara para outro sonho; porque Ulfin desaparecia, e as sombras se fechavam em torno do berço de seu filho. Lembrava-se de longos dedos com garras afiadas penetrando no interior do berço no qual o bebê se agitava e tentava chorar.

   Seu coração pesava, e ela se sentia doente. Ouvia com atenção.

   Um ruído. Ele penetrara em seu sonho. Havia sido... podia ter sido o de passos no corredor.

   Phaedra se levantou e pegou a lamparina. O óleo chegava ao fim.

   Pessoas no corredor, a essa hora? Orani, esperando para certificar-se de que sua senhora não precisava mais de seus serviços? Improvável.

   O som se repetiu, e ela teve certeza de que eram mesmo passos. No corredor. E o ferrolho da biblioteca.

   Era lá que o bebê dormia agora, com Orani e a nova ama-de-leite. Ela se dirigiu à porta, removeu os ferrolhos e saiu. Não havia luz no corredor. Erguendo a lamparina, tentou enxergar alguma coisa, mas isso era quase impossível.

—    Quem está aí?

   Houve um movimento no escuro, ela pensou, perto da porta da biblioteca. Por um momento, teve a impressão de que as sombras tinham formas.

   — Quem está aí? — ela repetiu, avançando com a tênue luminosidade da lamparina.

   Phaedra alcançou a porta da biblioteca, mas não havia ninguém ali.

   Julgou ter ouvido um passo, mas somente um. E, mesmo assim, a audição era prejudicada por seus próprios movimentos.

   A porta da biblioteca estava encostada.

   Ela se apoiou no batente e olhou para o interior do aposento. Ouviu os suspiros e os roncos de Orani, que dormia no chão. Não havia nenhum ruído de sua sobrinha Eridi, a ama-de-leite, ou do berço em que seu filho dormia. E não havia mais ninguém ali.

   Prendendo a respiração, tentando amenizar o farfalhar das roupas, ela se aproximou do berço. O bebê estava lá, imóvel. Ela se debruçou sobre o berço. Ainda não ouvia nenhum som. Phaedra estendeu a mão, e a retirou em seguida. Não ousava tocá-lo. Por isso ficou ali, esperando, observando e orando por um suspiro ou uma respiração mais profunda qualquer coisa que indicasse que a criança estava viva.

Nada acontecia.

   Então, com a cabeça bem perto da grade, ela ouviu o mais tênue suspiro. E outro. E novamente. A criança vivia e respirava suavemente no mundo hermético de seus sonhos

   Phaedra ergueu o corpo e a lamparina. Uma das mulheres levantara a cabeça do travesseiro e olhava para ela. Era Eridi, a menina que Orani levara para o castelo imediatamente após o nascimento do bebê.

—    Alguém entrou aqui? — Phaedra sussurrou.

   Eridi levou um momento para responder. Phaedra abaixou-se ao lado dela, levantando a lamparina de forma que pudessem se ver no escuro.

— Quem entrou? — ela insistiu.

— Você, minha senhora.

   Em Eridi, a mistura do sangue das montanhas e do reino havia produzido um rosto largo, com um nariz reto como o de um cavalo. Seus olhos eram escuros. Agora lembravam o ébano cintilante.

— Antes disso.

— Não, senhora.

— Ouviu a porta se abrir?

— Ouvi seu chamado, senhora.

   A menina estava com medo. Era óbvio que vira ou ouvira alguma coisa, e agora não sabia o que dizer. Aquela casa devia ser estranha para ela. A própria Phaedra devia se assustadora para uma menina da montanha que até então só tinha vivido em uma cabana rústica.

   — Era apenas um dos vigias, circulando por onde não devia estar — Phaedra explicou enquanto se levanta. Não era uma justificativa satisfatória ou tranqüilizadora, mas era a melhor que podia oferecer. — Talvez estivesse embriagado. Mantenha a porta aferrolhada. Ao amanhecer, identificarei o invasor e ordenarei que seja castigado com chicotadas.

   Ela saiu e esperou do lado de fora até Eridi fechar a porta com os ferrolhos. Depois percorreu todo o corredor, de um lado ao outro, olhando além das portas e para a escada que conduzia à entrada da capela. A luz pálida nada revelava.

   Havia mais de um homem; e não acreditava que fossem guardas. Um podia ser um homem. O outro, ela achava, era mais baixo. Ouvira apenas os passos de uma pessoa. Gostaria de ter ouvido os de duas.

   Havia uma estranha umidade no ar, como se caminhasse perto de águas estagnadas.

   Estava cansada... e dolorida. E não havia ninguém ali agora.

   Finalmente, Phaedra retornou aos seus aposentos e aferrolhou a porta. A lamparina imprestável foi deixada sobre a mesa. Não havia nada que pudesse fazer. Tinha de falar com Ulfin. Era reconfortante saber que ele já devia estar perto, acampado em algum lugar à beira da estrada de Aclete. No dia seguinte, estaria em casa. Tudo que precisava fazer era esperar por sua chegada. Pelas janelas, ela sentia o aroma das rosas da lua, abrindo-se em buquês coloridos nas colinas em torno do castelo. O amanhecer não tardaria. Estava exausta. Precisava dormir, se conseguisse.

   E ainda não havia concluído o trabalho do manto. Planejara terminá-lo esta noite, trabalhando até tarde, se necessário, de forma que pudesse receber o marido com o presente na manhã seguinte. Mas havia trabalhado até tarde e, quanto mais se esforçara, menos satisfeita ficara com o resultado de seu empenho. O cinto, a bainha, a ausência de cor nos acabamentos... Não terminaria a obra a tempo de apresentá-la quando ele chegasse, ao anoitecer. Devia escondê-la a fim de concluí-la sem pressa para quando ele retornasse em definitivo. Se examinasse as contas do castelo, ele acabaria adivinhando a que dedicara seu tempo, mas o cérebro cansado de Phaedra não se incomodava com isso. No dia seguinte, seu presente para o marido seria seu filho.

   Ulfin subiu os degraus do pátio. Seus cavaleiros o seguiram numa cacofonia metálica. Protegida pelas sombras da porta, Phaedra viu como ele era alto entre os homens. Sentia-se muito cansada, mas não conseguia conter um sorriso e percebia uma súbita leveza em seu coração enquanto o marido se aproximava. Ele estava em casa.

   — Milorde — ela o cumprimentou com uma inclinação elegante.

— Milady.

   Ulfin parecia mais magro, e havia uma dureza em seu olhar. Talvez também estivesse cansado, como ela.

   — Milorde, seu filho o espera para também recebê-lo em nossa casa.

— Onde ele está?

   Ela se virou para a ama, que exibiu o menino. A criança estava acordada e quieta.

   — Sinto muito, Phaedra — Ulfin murmurou. — Quero segurá-lo.

   Phaedra não sentia medo enquanto, de olhos fechados, ele tomava o bebê. Ulfin seguiu para a porta do castelo. Ela esperava vê-lo erguer o filho para que fosse ovacionado pelos cavaleiros reunidos ao pé da escada. Em vez disso, ele parou por um instante e começou a descer os degraus. Homens armados hesitaram. Ele ia ao encontro deles, ou pretendia passar por eles? Ulfin estava passando por eles. Todos se afastavam para abrir caminho. Para onde ele estava levando a criança? Seu cavalo esperava selado no pátio.

   Orcrim, o capitão de guerra de Ulfin, um homem de cabelos grisalhos e porte imponente, adiantou-se para encontrá-lo. Ele ainda usava sua armadura completa.

   —Saúdem o herdeiro de Tarceny — ele disse, erguendo a voz para ser ouvido por todos. —Ele tem a aparência de seu irmão, milorde.

   Ulfin olhou novamente para o bebê. Talvez pretendesse passar também por Orcrim, mas agora os cavaleiros se aproximavam de forma a cercá-lo, impedindo seu progresso. Do alto da escada, Phaedra só conseguia ver o rosto do filho cercado por aquela floresta de homens armados. Os desconhecidos com suas vozes potentes não o assustavam, e ele os abençoava com seu sorriso.

   — Senhor — ela disse —, eu o chamaria Ambrose Umbriel.

   Mais uma vez, Phaedra sentiu sua hesitação. No entanto, havia pouco que pudesse fazer por seu pai agora.

   — Ele tem a aparência de seu irmão caçula, milorde — Caw opinou ao lado de Ulfin.

   Por que esses cavaleiros insistiam tanto em comentar a aparência de um bebê? Era absurdo. Ele tinha a cabeça redonda e o rosto vermelho, feliz quando saciado, mas em um segundo estaria chorando.

   — Sim — Ulfin concordou finalmente. Havia uma nota sombria em sua voz. — Talvez tenha.

   De repente, ele passou o bebê para os braços dos homens que o cercavam, e logo estava atravessando o mar de cavaleiros para descer a encosta. Além da multidão, ele gritou para que alguém removesse a sela de seu cavalo.

   O bebê começou a chorar. Phaedra o retirou dos braços de um cavaleiro envergonhado, embalou-o e tentou acalmá-lo, e sentiu-se constrangida com Orcrim, Hob e todos os outros a observando em seu papel de mãe. Eridi aproximou-se e estendeu os braços para receber a criança, e Phaedra a entregou. Enquanto os gritos do bebê iam se perdendo na distância, ela encarou os cavaleiros e tentou encontrar palavras para dar as boas-vindas ao lar que era dela há pouco mais de um ano e que eles conheciam desde sempre. Ela os conduziu pela escada para o interior do salão, onde caneca e taças eram deixadas diante da lareira. Na ausência de pai e filho, eles beberam à saúde da linhagem. Ninguém parecia saber o que dizer, por isso as mesmas coisas eram ditas muitas vezes. Orcrim estava silencioso; sua boca era uma linha fina e pálida, e os pés pareciam traçar o desenho das pedras no chão. Algo o incomodava. Caw estava perto da porta. Ela viu o olhar que ambos trocaram, como se conspirassem sobre alguma coisa cujo resultado não podiam prever. Caw olhou para fora do aposento, fez uma careta estranha e encolheu os ombros. Ulfin ainda não havia entrado.

   Vinte minutos mais tarde, quando os últimos cavaleiros se haviam inclinado para sair e buscar seus aposentos, ela se dirigiu à porta. O sol se punha. Caw estava parado no topo da escada. Ele resmungava e olhava para algum ponto distante. Uma figura caminhava ao longo da muralha oeste, bem acima deles. E não olhava para o castelo.

   Phaedra atravessou o pátio para ir à muralha e subiu a escada até o parapeito. O céu estava claro, mas ganhava uma profundidade esverdeada onde se debruçava sobre as montanhas distantes. O ar carregava o perfume das rosas da lua. Ele se mantinha ereto na plataforma noroeste, olhando para as colinas e para os últimos raios de luz. Uma risada, um som explosivo e tenso, escapou de seu peito. As mãos se ergueram como se buscassem o céu. Por um momento ele ficou ali, depois se virou, e ela correu ao encontro do marido.

— Eu precisava pensar — Ulfin explicou.

— Não quer me contar?

   Caminhavam pelo pátio da fonte sob a luz do luar. A água estava quieta, mas luzes haviam sido deixadas em intervalos regulares para iluminar a noite. Do salão vinham os sons do jantar que eles haviam abandonado, com os cavaleiros ocupando todos os bancos das longas mesas e rindo, bebendo e comentando como era bom estar em casa.

   —Por que escolheu esse nome para a criança? Ambrose, por seu pai, mas...

—Umbriel?

   Gabriel representava a Glória, Rafael, a Compaixão. Miguel era o favorito das famílias dos cavaleiros e significava Coragem. Phaedra havia escolhido a Verdade para seu filho. Ulfin devia saber disso. Estava perguntando outra coisa.

— Queria... Bem, um protetor para ele.

— Um protetor.

   Ela respirou fundo. Quando começou a falar, ainda não sabia o que dizer.

   — Eu... estou assustada, Ulfin. Tenho um pressentimento... Acredito ver coisas. De início não era muita coisa, apenas frutos da solidão e de temores noturnos. Mas agora tenho Ambrose e temo por ele.

— O medo pode mostrar inimigos onde eles não existem.

   — Ulfin, não brinque comigo! Quantas vezes por dia acha que penso a mesma coisa, tentando me convencer disso? Mas tenho medo. Pensei que morreria com Ambrose. Pensei que você morreria na luta. Não o vejo com a freqüência que gostaria. Se não pode estar em casa, até mesmo um sonho pode ajudar. Antes conversávamos e bebíamos água juntos...

— Quieta!

   —Agora são somente algumas poucas palavras separadas por meses de silêncio!

   —Não haverá mais sonhos.

   —Por que não?

   —Porque... porque estivemos em lugares perigosos, Phaedra.

— Não sei se estive ou não.

— Você traz a marca. Qual é seu temor? O que viu?

   — Não sei! Não sei se eram homens, ou se eram mais de dois. Eu vi dois. Mas não sei se estavam ali realmente. Usavam longas vestes, como...

— Havia algum cheiro?

Ela balançou a cabeça devagar. Ulfin a encarava. Depois de um momento ele falou novamente, tão baixo que Phaedra quase não conseguiu ouvi-lo.

   — Estivemos em lugares perigosos, Phaedra. Não fosse por isso, jamais teríamos conseguido atravessar a água. Agora, pelo nosso bem, não devemos mais continuar com isso. E quando deixarmos de fazer essas coisas, se eles realmente estiverem aqui, deixarão de estar, também.

— Quero que fique em casa.

   — Phaedra, não posso. Comecei algo do outro lado da água que devo concluir, ou não haverá paz enquanto eles não acabarem comigo. Agora tenho alguns inimigos ferozes. A viúva de Develin, por exemplo; alguns integrantes do grupo de Seguin; os filhos de Baldwin. E existem outros, no Litoral e em outras partes, que nunca aceitaram a idéia de um soberano supremo. Farão tudo que puderem para que nunca haja um. E para Ambrose. Especialmente para Ambrose. Deve protegê-lo e guardá-lo muito bem. Está ouvindo, Phaedra?

— Sim — ela confirmou, infeliz.

   — Eles suspeitam de mim no reino. Suspeitam do que estive fazendo e desconfiam também de você. Mas não sabem ao certo. E não devem saber. Enquanto tudo for apenas uma suspeita, os homens que desejam aliar-se a mim poderão ignorar toda a conversa sobre bruxaria. Poderes como Jent podem se manter neutros, em vez de se unirem aos outros contra mim. Se Jent se voltasse contra nós agora seria fatal. Eles não devem saber... Assim, devo guardar... certas coisas na arca da Sala de Guerra. A arca ficará trancada, eu ficarei com a chave. Não direi nada disso a mais ninguém. Nem a Caw, nem a Orcrim. Eles imaginam, mas não têm certeza de nada. E é melhor que não saibam. Portanto, não permita que ninguém entre naquela sala ou que saibam o que existe lá dentro. E tome cuidado. Muito cuidado. Ela assentiu. Ele falava sobre o Cálice. Não voltaria a usá-lo porque era muito perigoso. E não haveria mais sonhos.

   Ele a observou por mais um momento, depois pôs as mãos sobre seus ombros.

   — E o nome... Não há nada de errado nele. Em nenhum dos dois. Mas a combinação tem um significado que você parece não ter percebido ainda. Pense nas iniciais. A e U.

— Não significam nada para mim.

   — Mas terão um significado específico para outras pessoas. É o que eu acho. Você sabe que depois dos Reis do Mar, Wulfram e seus filhos, seus descendentes se tornaram Grandes Reis. Seu domínio se estendeu por toda a terra e sob seu governo houve paz. Agora temos os Reis da Guerra. Suas dinastias são breves, sua força é reduzida, e seu domínio é marcado pela rebelião e pelo fracasso. Lembra-se do nome do último Grande rei?

— Aurelian.

   — Seu brasão traz as primeiras duas letras de seu nome. A e U. No idioma antigo elas são as primeiras duas letras para a palavra que significa ouro. O tempo dos Grandes Reis foi uma era de ouro, e depois de Aurelian ter sido traído e morto e a coroa ter sido passada para seu descendente direto essa era chegou ao fim.

   —Ambrose não será rei. Você já recusou a coroa, Ulfin.

   —Recusei. Também deixei claro que o reino deve lutar para voltar a ser como antes, quando estava sob o domínio dos Grandes Reis. Muitas pessoas ainda acreditam que a coroa é exatamente o que quero. E — ele riu — o nome que você escolheu será a prova disso aos olhos dessa gente. Pensarão que sua escolha foi proposital. E depois pensarão... Bem, não vamos nos preocupar com o que eles pensarão desde que não tenham provas. Por agora, tenho um presente para meu filho. Algo que pode tornar as coisas mais fáceis. Venha.

   Ele a levou de volta ao salão. As mesas já estavam vazias, e os ajudantes de cozinha começavam o trabalho de limpeza. Alguns cavaleiros conversavam diante da lareira e ergueram os olhos quando eles entraram. Ulfin dirigiu-se à escada da galeria, onde vários fardos haviam sido deixados. De um deles, ele retirou uma pequena caixa de madeira, que fez um ruído ao ser sacudida, e abriu o fecho. Dentro dela havia uma pilha de pedras brancas e redondas, todas de superfície lisa, mais cheias no centro e mais finas nas extremidades, de forma a poderem se encaixar perfeitamente nas mãos de uma criança.

   — Serão bons brinquedos, na minha opinião. Tente não deixá-lo perder nenhuma, porque gosto muito delas. São trinta e uma.

   — Estive mesmo pensando o que havia acontecido com seus brinquedos.

   — Não são exatamente brinquedos. Foram cortadas e reunidas por Calyn, meu irmão mais velho. Ficamos afastados por anos antes de sua morte, mas, quando já agonizava em seu leito de enfermo no Litoral, ele providenciou para que as pedras fossem mandadas para mim. Desde então a tenho comigo.

— Parecem pedras de dama.

   — Não são, mas isso me faz lembrar... Ainda joga xadrez?

Finalmente ela sorriu, sentindo o rosto corar.

— Estive praticando. Mas, Ulfin, é tarde...

— Uma partida rápida.

Ela ainda sorria.

—Talvez não seja tão rápida quanto espera.

   Ela acordou numa manhã cinzenta e fria de fevereiro, e travesseiro ao seu lado estava vazio. Ele a prevenira sobre considerar mais fácil partir enquanto ela ainda dormia. Agora se fora, provavelmente antes do amanhecer, para desaparecer em meio aos rumores da guerra.

Desta vez foi mais difícil. Muito mais do que antes.

   Ulfin havia dito que Caw devia manter um homem armado guardando o aposento em que Ambrose estivesse. Sempre. O tempo todo. O tempo úmido trouxera o frio, e quatro guardas caíram vítimas da febre. Não havia mais homens suficientes para que fosse mantida vigilância constante e completa nas muralhas. Caw redobrava sua carga de obrigações, mas os guardas, cansados, dormiam em seus postos. Se Ulfin estivesse ali, Caw poderia ter levado seus homens ao limite sem nenhuma hesitação. Mas ele disse claramente a Phaedra que não via motivo algum para ocupar seus homens com a guarda de um berço. Ela acabou por mudar os aposentos diurnos de Ambrose para a grande sala sob a plataforma de treinamento de guerra na torre nordeste. Isso significava que os criados tinham de carregar madeira suficiente para alimentar o fogo, um trabalho que tinha de ser repetido todos os dias para manter o aposento aquecido, mas também que os soldados estavam no telhado, principal ponto de observação do castelo, de onde guardavam Ambrose. Era ainda um arranjo que liberava mais um homem para outros deveres (e também significava, do ponto de vista de Phaedra, que Caw não poderia ser tentado a colocar no posto um homem meio enfermo, alguém que ficaria sentado, suando sua febre sobre seu precioso filho). Ela colocou um gongo na sala, de forma que Eridi ou quem estivesse com o bebê pudesse chamar os guardas numa emergência.

   Eridi estava taciturna. Havia apreciado poder gozar da companhia de um homem durante todo o dia.

— O que vou fazer se um assassino vier, senhora?

   — Faça soar o gongo e lute por sua vida — disse Phaedra — Lembre-se de fazer soar o gongo antes de qualquer outra coisa.

   Phaedra mantinha a chave de ferro da Sala de Guerra agora trancada, em seu porta-jóias, escondida entre broches e anéis. De tempos em tempos, quando todos estavam ocupados, ela a pegava e subia a escada além da capela para ver se tudo ia bem. A arca entalhada repousava sobre a mesa da Sala de Guerra, com sua tampa fechada. Mesmo sem movê-la ou tentar erguê-la, ela pensava poder sentir o peso do que havia lá dentro. Seus dedos tocavam a madeira e experimentavam o fecho. Absolutamente fechado. Noites e dias passavam em silêncio, e a madeira era fria.

Ela estremeceu.

   A pedra fundamental que havia sido a presença de Ulfin já não existia. Todas as questões sobre as quais não precisara pensar enquanto ele estivera ali voltaram a encher seus pensamentos. Dúvidas atormentavam sua mente; sobre a guerra e sobre as chances de haver paz; sobre a sensação de estar sendo espionada; sobre os "lugares perigosos" em que haviam bebido a água e caminhado por entre rochas durante tantos anos. Com a aproximação da Páscoa, ela jejuava e ia rezar na capela. Relacionava seus medos diante dos Anjos silenciosos, murmurando preces que eram entrecortadas pelo ruído dos vigias caminhando na muralha sobre o espaço sagrado.

   Um dia, um homem enviado pela sra. Massey de Aclete apresentou-se no salão com uma carta. A mensagem trazia o selo do Sabujo Dançante. Evalia diManey estava rumo a Jent para a peregrinação. Passaria por Aclete a caminho de e subiria a estrada de Tarceny para visitar sua Querida Amiga, a quem não via fazia um ano.

   Não havia nenhuma questão sobre a conveniência do arranjo, nenhum sinal de respeito no cumprimento da mulher de um cavaleiro-cão para com a esposa de um dos mais poderosos senhores da terra. A ousadia de sua atitude era surpreendente. Certamente, não podia recusar sua hospitalidade à mulher de um cavaleiro, nem a uma peregrina. Phaedra pensou em escrever anunciando a existência de uma doença contagiosa no castelo, mas nunca havia dito tão descarada mentira em toda sua vida. Por isso, rangeu os dentes e ordenou a Caw que destacasse uma companhia de tamanho bem reduzido para Aclete. E, uma semana depois, ela estava no alto da escada do salão, enquanto Evalia diManey penetrava no pátio e acenava ainda sobre o cavalo.

   — Bem — disse ela ao cumprimentá-la na escada —, soube que teve uma criança, mas é difícil acreditar em tal fato olhando para você.

   — É muito gentil, mas pouco verdadeira em seu comentário. Vejo que não mudou nada. É bom que tenha se desviado tanto de seu caminho para confortar uma mulher solitária em sua casa.

   —Não tão solitária agora. Onde ele está?

   —Dormindo. — Por que ela estava tão ansiosa para ver Ambrose? — Não voltaremos a vê-lo até amanhã.

   —Então, devo conter-me por mais algumas horas. Enquanto isso... — Evalia olhou sobre um ombro, para onde sua pequena comitiva desmontava, descarregava sua bagagem e levava os animais. — Enquanto isso, trouxe um presente para você.

   O homem que subia a escada para se juntar a elas era o secretário do bispo de Jent.

  

   — Foi muito fria com ele — disse Evalia na manhã seguinte, enquanto caminhavam juntas pela muralha oeste. O sacerdote estava em oração.

   Era um dia radiante, e uma brisa leve brincava corri os estandartes nos mastros do castelo.

— Fria?

   — Mal falou com ele. Pobre Martin. Ele me contou que pressionou Sua Excelência com uma insistência quase perigosa para obter esse posto.

   — Fico surpresa. Creio termos sentido uma antipatia mútua e imediata em Jent.

   — Talvez ele não tenha essa mesma sensação. No entanto, se estranha que ele tenha deixado tão privilegiada posição para vir para cá, eu também.

   Era exatamente sobre isso que Phaedra vinha pensando. Ser capelão de uma casa nobre era uma posição mais do que satisfatória, mas ser secretário do bispo devia ser ainda melhor.

   — Pois eu lhe digo que ele deseja se aproximar do povo das montanhas. Os pagãos.

— Pagãos? A Fronteira foi convertida há muito tempo!

   — Não, os verdadeiros pagãos, além da Fronteira. Minha querida, eu lhe trouxe um jovem Tuchred!

— Ele quer ir às montanhas?

   — Sim, e espera que você o libere ocasionalmente. Também tenho essa mesma esperança. Ele está muito ansioso.

   A descrição combinava com o homem que conhecera em Jent, e sua versão era, até então, muito plausível.

   — Desde que ele não necessite de muita companhia — murmurou.

   Jent, uma fonte de forte influência, não tomara partido nos problemas do reino. Então, Martin podia ser realmente o que parecia ser. Podia ser até um sinal de que Sua Excelência desejava agradar a parte mais bem-sucedida na batalha. Recusar o secretário do bispo seria um insulto público a um homem poderoso, e os inimigos de Ulfin desejariam saber o motivo desse insulto. Mas ainda se lembrava da hostilidade do bispo contra Ulfin, sua recusa em ajudá-la a encontrar alguém para orar por Tarceny e seu povo. Agora que a guerra se abatera sobre o reino, ele enviava à sua casa um homem de sua confiança... Aceitar a presença desse sacerdote seria um salto no escuro.

   Seus olhos repousaram sobre uma sombra, impenetrável, na janela da torre oeste. Nada se movia ali.

   Ulfin a prevenira quanto a ser cuidadosa. Teria de observar atentamente tudo que esse homem fazia em Tarceny. Se quisesse se afastar de casa por longos períodos, bem, não seria difícil liberá-lo, desde que ele realmente fosse para as montanhas e não estivesse espionando na Fronteira. Teria de se certificar de seus movimentos. Se o bispo ou seu secretário exibissem um único sinal de falsidade, então o insulto seria inevitável.

   Sentia-se muito mais velha do que a menina que, há um ano, vestira suas sedas para pedir um sacerdote a Sua Excelência.

   — Muito bem — ela decidiu finalmente —, que os anjos estejam satisfeitos e nos ajudem, enquanto ele quiser estar entre nós. — E se seu comentário soava seco, era porque a ajuda desse homem era muito mais do que realmente havia desejado.

   Evalia não respondeu de imediato. Olhava para frente, para os grandes espaços de Tarceny, com uma ruga marcando sua testa e indicando que estava pensativa.

   —A ajuda dos anjos é algo raro — ela opinou depois de alguns instantes. — É claro que estamos sempre ouvindo sobre novas aparições ou milagres, coisas testemunhadas por alguém de quem nunca ouvimos falar. Não tenho dúvida de que tais ocorrências são sempre aumentadas pelos relatos. Nunca vi nada com meus olhos, e nem você, suponho. Mas diManey julga ter visto um anjo. E o mais estranho é que você estava lá.

— Seu marido?

   — Sim... sim, meu marido... Sabe... que comecei minha vida conjugai odiando-o? Quando superei o choque e o medo e consegui pensar novamente, o que só ocorreu dias depois do julgamento, imaginei que ele se houvesse apaixonado por mim à primeira vista. Um desajeitado tão atraído por uma bela mulher que decidira arriscar a vida por ela! Oh...

— Foi o que pensamos na galeria.

   — Quando o conheci melhor, compreendi que havia mais por trás de sua decisão. Sim, ele se sentira ultrajado por como tudo havia sido arranjado para que o julgamento terminasse com minha morte, mas, se fosse só isso, ele ainda estaria pensando no que fazer quando cortassem minha cabeça. Ele é um bom homem. Quando se consegue enxergar além de sua aparência, não há nada de que se possa acusá-lo. Se há alguma falta, ela está em mim. Se não posso estar em paz na casa de diManey em Chatterfall, então, onde mais? Mas ele não é...

Ele não é? Não é quem?

   — Levei meses para arrancar isso dele. DiManey afirma que havia um, vestido rusticamente, que aparecia ao lado dele na multidão enquanto as acusações eram lidas. Sabe que Rafael é retratado nos altares nas roupas de um camponês ou peregrino. Adam não se lembra do que disse aquele peregrino. Ele afirma recordar-se apenas de que, ao ouvir o homem falar, ele sentiu que sabia exatamente o que fazer.

   Phaedra assentiu. Estava preocupada com aquele outro pensamento que bailava esquivo no fundo de sua mente; um nome não pronunciado, sufocado um segundo antes de dito. Ulfin? Era esse o contraste; mas Evalia jamais havia conhecido Ulfin (e nem Phaedra queria que ela o conhecesse). Não, teria sido o homem que a própria Evalia havia amado, e seu nome fora contido por ser doloroso demais de ser ouvido ou porque ela se lembrara de que o nome não significaria nada para Phaedra. Ou talvez porque...

   —Adam diz que ele parecia ser velho, um sacerdote numa veste longa com capuz.

   Evalia a olhou de soslaio. Sabia o que havia dito.

   Suas palavras eram como portas se abrindo num longo corredor que seguia em direções surpreendentes. Ela parecia ser muito mais velha do que Phaedra, e mais esperta, também. Phaedra não sabia como agir. Tome cuidado. Cuidado.

   — Assim, ele se colocou diante de todas aquelas pessoas e posicionou-se junto de uma espada. Não sei o que ele pensou que ocorreria, se Deus daria a ele a vitória, ou se o rei se intimidaria diante da Verdade revelada, ou se ele morreria ali porque recebera ordens para isso. A única coisa que ele esqueceu foi que sua casa estava sob a proteção do rei.

   — Ficou claro que havia algo nesse sentido — disse Phaedra.

   — O pai dele ficara aleijado a serviço do rei. Quando se pensa nisso, é de se compreender que o rei deva ter registradas todas as suas obrigações dessa natureza; cuidar dos filhos desse cavaleiro, olhar pela viúva daquele outro, como se ele não tivesse muito o que fazer cuidando do reino como um todo. Um rei deve precisar de uma memória profunda como um poço para manter todos os registros.

Um nome brotou do fundo da memória de Phaedra. Calyn

   Calyn? Ouvira Evalia gritar esse nome no meio da noite, quando se hospedaram em Baer. E Lackmere também não o dissera, há tantos anos, à mesa de uma hospedaria? Ou atribuía a essas duas lembranças um nome que já conhecia?

   Evalia esperava que ela falasse. Phaedra sabia que devia dar continuidade à história e que seria melhor fazê-1o com uma enxurrada de perguntas, como se fosse uma mulher interessada, porém incapaz de seguir a linha de raciocínio de alguém de inteligência superior. Mas não conseguia organizar os pensamentos. Estava ali parada sentindo a luz do sol em seu rosto, ouvindo o canto dos pássaros e sentindo o perfume das rosas da lua, olhando firme para a distância, em silêncio por não saber o que dizer.

   Sua companheira se virou, encolhendo os ombros como que para dizer: Bem, se você não diz nada...

   — Estava querendo perguntar se sabe qual é o significado dessa forma sobre a lua — Evalia disparou com os olhos fixos no estandarte de Tarceny. — A aparência é sinistra...

   Phaedra olhou para as bandeiras e sentiu o rosto se distender num sorriso.

   — Às vezes é uma coisa, e às vezes é outra — respondeu. — As interpretações são diferentes para olhos distintos. Alguns acreditam ser uma rosa da lua, que tem uma pétala negra e todas as outras brancas. O pai de meu marido pediu que fossem asas de morcego.

— Que coisa para pôr em uma insígnia!

   — O homem era assim. Vivia numa armadura e não pensava em nada além do próprio estômago e de sua espada. Houve um tempo em que existiu uma colônia sob essas muralhas, mas agora não há mais nada. Quem viveria tão perto de um senhor capaz de queimar os telhados de seu próprio povo por um capricho? E ele tentou criar os filhos à própria imagem. Há algum tempo me perguntei por que não havia brinquedos na casa, ou relíquias da infância meu marido e seus irmãos. Mas meu senhor me disse que os únicos brinquedos permitidos eram espadas de madeira...

   Meu primeiro brinquedo foi a cabeça de um homem, Ulfin contara, finalmente, quando o pressionara naquela noite antes de sua partida. Uma cabeça seca e sem os olhos. Algum inimigo ou desafortunado que chutávamos entre nós. Lembro-me dela. E preferia não me lembrar.

   Phaedra viu um novo brilho nos olhos de Evalia. A mulher sabia que ela deixara de dizer alguma coisa: aquele brinquedo lúgubre que o lorde dera aos filhos para lhes agradar. Calyn também se lembrara dele. E como não se lembraria? Calyn da Rosa da Lua, o irmão mais velho de Ulfin. Talvez os mesmos suspiros houvessem escapado dele quando sua amante o fizera falar sobre a lamentável infância perdida.

   — Agora o velho lorde se foi — Phaedra continuou. — Morto em seu lar depois de uma vida de erros e faltas. A lua está livre de sua mácula. Quanto a meu marido, ele afirma não ter uma idéia formada sobre o significado dessa forma. Às vezes pensa ser uma boca, como se a lua fizesse uma careta para o que vê no mundo.

— Não gosto dessa versão.

   — Creio que ele prefere crer que pode ser uma coisa ou outra. A lua vê tudo, e o que vê traz incerteza. Por isso fala-se da Lua Dúbia; o segredo da verdade.

   — Ou seja, quanto mais você sabe, mais você sabe que não sabe.

— Exatamente.

   Exatamente. Momentos antes, a segurança dessa mulher havia fraquejado, como se ela se sentisse abalada pelo súbito contido na palavra "marido" pronunciada pelos lábios de Phaedra. Por um momento, voltara a ser a mulher retraída e infeliz com quem estivera durante sua jornada no ano anterior. Agora ela estava serena como a superfície de um lago; ousada e loquaz como quando passara pelo portão, e estava mentindo ou escondia coisas que teria sido mais honesto revelar. E daí? Esconder seu passado com Calyn não era prova de nada. Mas era uma verdade importante, e ela a estava escondendo, mesmo quando fizera alusão ao sacerdote pálido.

   Com relação a isso, toda a história que ela relatara sobre diManey podia ser uma invenção. Phaedra havia dado a ela todo o material necessário quando passaram pelo sacerdote na liteira. Era isso! Teria de tomar mais cuidado com o que dissesse. E quando a mulher partisse, pensaria novamente em Martin, que lhe havia sido oferecido tão inesperadamente.

Um movimento na porta da torre atraiu sua atenção.

   — ... Um homem cuja mente visita lugares incomuns — Evalia estava dizendo. — Deve ser estranho viver com ele. Você deve amá-lo muito, apesar de todo o mal que sofreu pelas mãos dele. Qual é o problema?

   Phaedra a encarou séria, tomando o cuidado de manter a expressão neutra. Distraída novamente, mal ouvira o que sua hóspede acabara de dizer.

   — Nenhum — respondeu. — Acho que... devíamos... Podemos ir verificar se Ambrose está acordado? Quero saber como ele está.

   — Aconteceu alguma coisa? Posso ajudá-la? Phaedra forçou um sorriso e balançou a cabeça.

— Não é nada — respondeu.

 

                                           Na Escada

Não era nada. Sempre que olhava em volta, ou erguia a lamparina, ou contornava uma esquina no corredor, encontrava o nada. Os nichos e passagens estavam vazios. Eram molduras de madeira e pedra e gesso que não continham imagens e, talvez, apenas o mais sutil dos cheiros, tão fraco que não conseguia descrevê-lo. Esperava e ouvia, olhando para as paredes em busca de algum sinal. Nada.

   Os incidentes eram fugazes e se encerravam quase antes que pudesse ter consciência deles. Sua mente pregava-lhe peças. E lembrava-se de si mesma aos nove anos de idade (metade do tempo que já vivera) olhando e virando-se quando uma voz masculina falava ao seu lado; e, quando se virava, ele havia partido. Mas havia sido real. Havia sido Ulfin. E isso... Ulfin não fora capaz de dizer.

   Ainda menina, aprendera a não olhar. Descobrira que, mantendo os olhos num ponto diante dela, ele permanecia, podia falar com ele. De início, acreditara ser seu irmão Guy, que não deixara a morte obrigá-lo a abandoná-la. E quando entendeu que não era ele, já havia começado a confiar na sombra. Isso era diferente. Não conseguia ficar quieta quando sentia a presença observadora. Sentar-se, olhar para os próprios dedos, pensar que um deles podia estar atrás dela... não. Era melhor olhar, pois sabia que isso faria desaparecer a sombra. Que a enganassem. Que debochassem dela, desde que seu olhar as afugentasse.

   Não havia ninguém com quem conversar. Não queria assustar Orani ou Eridi; não podia correr o risco de perdê-las. E não confiava no irmão Martin. Quanto a Caw, se via alguma coisa, não deixava transparecer, embora o houvesse observado durante o jogo de xadrez e em outras ocasiões. Talvez as coisas fossem tão invisíveis para ele quanto o sacerdote pálido havia sido invisível para Vermian na estrada de Baer. Ou, talvez, ele tivesse visto alguma coisa, mas fingia que não. Por quê? O que ele achava que era? Falar com ele seria pedir ajuda... até mesmo para ser levada a sério. E não sabia se ele acreditaria nela. O homem andava mais carrancudo que nunca, agora que Ulfin partira novamente, deixando-o mais uma vez no posto que tanto odiava.

   Por isso ela não falava com ninguém sobre seu problema. Era filha de Trant e esposa de Ulfin, a senhora de Tarceny, e não devia ter medo. Se as sombras que via podiam causar algum mal, então talvez também pudessem ser atacadas, e havia homens armados sob seu comando que poderiam atacá-las, caso fosse necessário. Por enquanto, o que via (se é que via) tinha tanta substância quanto o bater das asas de um morcego. Interferiam em sua pulsação, mas era só isso. Podia se controlar. Podia tratá-los como se fossem os insetos que povoavam as encostas das colinas. A loucura provinha do sangue, conforme ouvira dizer, e não havia nenhum louco em sua família.

   As sombras iam e vinham nos limites do dia. Muito bem, haveria mais luz. Phaedra se queixou de dor nos olhos durante os prolongados finais de tarde do verão e ordeno que fossem colocadas lamparinas em todos os corredores e aposentos em uso no castelo. Quarenta chamas brilhavam todas as noites no grande salão, e os insetos noturnos das colinas voavam e morriam às centenas em torno delas. As chamas eram substituídas quando se aproximavam da extinção, e as portas dos aposentos em desuso eram mantidas fechadas e trancadas.

   Ulfin não voltou para casa naquele verão. Em vez disso, escrevia com mais freqüência do que antes (talvez por estar escrevendo ao mesmo tempo para Caw, solicitando mais dinheiro e mais soldados). A doença do reino persistia. Ele dominava o Segne, o coração da região. Phaedra soube que nobres se haviam rendido a Ulfin. Mas ao norte, ao leste e ao sul, outros poderes permaneciam vigilantes. Alguns eram abertamente hostis, especialmente no sul, onde Develin era forte. Em todos os outros lugares, os barões usavam a fraqueza do reino para fazer o que bem entendiam; e quem os deteria? A Fonte da Lei estava seca.

   Os saques eram seguidos por contra-ataques. A força de um senhor era testada, e seus vilarejos ardiam em chamas. Orcrim atacava constantemente os portões de Bay, mas a casa que fora envergonhada por Trant se encolhia atrás de suas muralhas e não cedia. Em junho, Pemini caiu de maneira sangrenta sob o ataque de aliados de Ulfin, e a cidade foi saqueada. Phaedra mandou uma carta, ansiosa por notícias de Maria, mas não recebeu resposta.

Em uma manhã de setembro, mais notícias chegaram.

   Phaedra estava na muralha noroeste, olhando para as colinas e os bosques de Tarceny. Lembrava-se da vista das muralhas de Trant, dos campos movimentados pelo povo que trabalhava na colheita nessa época do ano, quando ouviu passos atrás dela.

Um homem falou:

— Milady?

Era Martin, o sacerdote, e ele estava sozinho.

—Bom dia, Martin.

   Mais uma vez, pensou que deveria encontrar algum tempo para perguntar o que ele estava achando de seu posto e sobre o que mais poderia fazer por ali. Sentia-se culpada por ter atribuído tão poucas responsabilidades ao religioso quase nada além de liderar as orações dos criados da casa e dos empregados da cozinha e de todos os outros habitantes do castelo que ele pudesse atrair para a capela. Ao mesmo tempo, ainda queria observá-lo, e queria saber especialmente quantas cartas ele escrevia para Jent e outros lugares. Ele era correto e polido, mas não conseguia confiar nele, nem podia decidir se desconfiava definitivamente do religioso. Mais de uma vez, pensara em interceptar suas cartas, mas não fizera nada. Ele ainda era um estranho.

   — Ouvi os guardas conversando no pátio, milady. Dizem que Segne está nas mãos de Caw. Pensei que gostaria de saber.

Pelos Anjos! O que acontecera agora?

— Creio que conhece Elward de Baldwin, milady?

   — Sim. — Elward. Jovem, belo, de origem nobre... Lembrava-se bem dele diante da cadeira de seu pai. — Quase aceitei me casar com ele.

   — Nesse caso, eu... Lamento por milady, porque ele está morto.

Morto.

   Lá embaixo, as oliveiras sussurravam, sopradas pela brisa suave. Mais de uma vez, pensara que um homem como aquele não poderia morrer. Agora sabia que se enganara.

— Nós o matamos?

— Milady?

   Ela suspirou. Era evidente que tínhamos. Era como se Tarceny provocasse todos os acontecimentos do reino.

— Como aconteceu, Martin?

   — Ele devia estar com Septimus em Develin. No início do mês, ele cavalgou para o norte acompanhado por uma pequena tropa. Parece que conseguiu ultrapassar as barreiras de meu senhor em Tuscolo e chegou inesperadamente a Baldwin. Os portões estavam abertos, pois o tráfego provocado pela colheita era intenso, e eles entraram. Mas eram poucos, e a guarda estava alerta. Foram interceptados no pátio... Elward e seus seguidores.

   No pátio! Elward fora morto no mesmo lugar em que devia ter brincado quando criança. Ele merecia ter amado outra mulher.

   — Ele era um homem de honra, Martin. Nunca soube de nenhuma falta que o desabonasse.

   No entanto, outro amor não o teria poupado, porque ele também amava a casa para onde a teria levado. Devia ter odiado a idéia de ver a bandeira de Tarceny tremulando sobre suas muralhas.

— Devemos realizar uma cerimônia por ele, Martin.

— Ao meio-dia? Vai convocar todos da casa?

— Não, agora. Seremos apenas nós.

   Ele a conduziu à capela (agora muito mais clara, limpa e organizada). Lá, eles se ajoelharam e passaram uma hora diante da Chama. Ela o seguia oferecendo respostas precisas aos chamados das preces, ouvindo seu clamor a Umbriel e a encomenda para que o guardião do Céu contasse em dobro cada boa ação do homem morto. Ele dizia as palavras antigas como se fossem novas e marcava cada apelo com um silêncio.

Depois, voltaram juntos ao pátio da fonte, onde pairava forte o aroma de menta e tomilho.

   —Meus pensamentos estão com a mãe dele — Phaedra contou. — Ter perdido o marido e, agora, o filho... Como esposa e mãe, imagino que essa seja uma dor quase insuportável. Não posso acreditar que os Anjos desejem essas coisas.

   —Duvido que eles as desejem, milady.

   — Então, por que permitem que aconteçam, e aos melhores entre nós?

   — Os Anjos não permitem nem impedem. Isso não está nas mãos deles. Eles também não se ocupam apenas daqueles que são considerados bons. "Se o avarento dá ouro a um homem pobre", diz o Santo Tuchred, "vimos Rafael mover seu coração. Quando o cavaleiro covarde se volta contra seus perseguidores, Miguel cavalga sobre sua armadura. E se um mentiroso diz profecias, você pode buscar Umbriel por trás de seus olhos". Seus caminhos estão dentro de nós nos lugares mais secretos dos nossos pensamentos. Numa palavra ou num gesto, podemos ver brilhar sua luz entre o mal que criamos.

   — Mas o mal caminha. E pode nos tocar de muitas maneiras — Phaedra gritou frustrada. Pensava no mal que podia andar por entre as sombras, não em ferimentos de espada ou enfermidades, mas não ousava ser mais específica. — Que esperança temos se os anjos não tomam corpo para interferir?

Ele franziu a testa.

   — O corpo é apenas o campo de batalha. A verdadeira luta, na qual precisamos de toda ajuda que os Anjos possam dar, acontece na mente e na alma.

Dogmas, dogmas, pensou ela.

   — Conhece a história de lady diManey, como ela foi libertada de uma situação cujo propósito era pôr fim a sua vida? — Phaedra perguntou.

   — Sei o que Adam diManey pensa ter visto. E sei que Sua Excelência e a senhora falaram disso por trás de uma porta fechada antes de sua chegada, antes de tirá-la de Jent e levá-la para casa. Mas nenhum deles disse o que pensa ser verdade. Mas sei que Sua Excelência deve ter dito a ela, como disse a mim, que se os anjos viessem resgatar cada vítima e reparar cada erro há muito poderiam nos ter conduzido de volta ao Paraíso, e nenhum de nós teria ao menos percebido.

   Phaedra guardou silêncio. Precisava de conforto, e não era isso o que recebia. Se os Anjos não protegiam, não curavam e nem evitavam o mal, que bem poderiam trazer para esse mundo onde desastres sucediam desastres numa terrível cadeia?

   Lembrava-se dos dias em Trant, quando quase aceitara se casar com Elward. Então, encontrara Ulfin mais uma vez, bebera novamente do Cálice e encontrara a força para resistir uma vez mais. E se não houvesse sido dessa maneira? A guerra não teria acontecido. Seu pai ainda estaria vivo. Baldwin, com seus pastos banhados pelo sol, ainda poderia ser um lar tão bom quanto Tarceny com suas sombras e sua solidão. Ulfin; seu filho Ambrose; todo o mal e todo o bem em sua vida pareciam ter brotado daquele momento quando levara o Cálice aos lábios e vira a pequena folha de carvalho circulando na superfície da água.

— Algum problema, milady?

   Martin a olhava atento. Ou era um bom ator, ou estava realmente preocupado. Phaedra tinha certeza de que não merecia essa apreensão. Podia imaginar como havia parecido aos olhos desse homem desde que ele chegara em Tarceny: fria, distraída, impaciente. Devia ser uma terrível anfitriã. E mesmo um homem honesto acabaria se perguntando o que ela tanto temia.

   — Estava pensando... Por quanto tempo ainda ficará conosco antes de ir para as montanhas?

   —Concordamos que eu deveria partir depois do Dia de Todos os Santos, milady, e que retornaria antes da Quaresma.

   — Lamentaria perdê-lo.

   Depois de um instante, Phaedra agradeceu-lhe e o dispensou, pensando que, mesmo sendo Martin um homem do bispo, Tarceny seria ainda mais solitária quando ele partisse.

   E o passado era uma porta fechada. Elward estava morto, e era inútil sonhar como teria sido caso o houvesse desposado, porque jamais o teria feito. Mesmo antes, Ulfin havia sido mais real em sua ausência do que qualquer outro homem que tivesse conhecido à luz do dia. Podia fechar os olhos e lembrar a profundidade de seu olhar, as batidas de seu coração quando ele a tomava nos braços. Mesmo distante centenas de quilômetros, ainda podia sentir na pele o encanto de seu toque.

   E havia Ambrose. Criança petulante e exigente; o rosto alongado de seu tio realmente começava a aparecer nos traços do bebê, como Orcrim afirmara tê-lo visto logo no início; mas os olhos claros e o espírito valente eram dele próprio. Não teria mudado um único instante de seu passado se para isso tivesse de abrir mão da experiência de ter Ambrose nos braços.

   Então ela riu e levantou os braços para o céu como vira Ulfin fazer no dia em que conhecera o filho.

   Martin partiu no final do outono. Foi a pé, com um burro, equipamentos rústicos e nenhuma proteção além de um cajado e da aparência pouco interessante para eventuais ladrões. Parecia determinado a encontrar algum abrigo nas montanhas, um lugar em que pudesse passar o inverno, mas prometeu retornar na primavera. Phaedra o viu se afastar do castelo até desaparecer além do bosque das oliveiras. A capela estava vazia novamente, e Caw era a única companhia à mesa todas as noites.

Lady de Tarceny nunca se sentira tão sozinha.

   Seus problemas começavam a crescer. Naquela noite, quando Orani desembaraçava seus cabelos, Phaedra levantou-se assustada e exclamou alguma coisa antes de sair c rendo para o aposento que agora era o quarto de Ambrose. O bebê estava acordado, mas quieto, mordendo urna das pedras de Ulfin enquanto Eridi cantava para ele uma canção de ninar das montanhas. Havia pedras e outros brinquedos no chão do quarto. Chamas brilhavam em seus lugares. Os dois estavam sozinhos. Ela retornou ao quarto, ignorando o olhar espantado de Orani, e se sentou novamente diante do espelho. Olhava para o vidro intensamente indo além da escova e das mãos da criada até um certo ponto do aposento em que, alguns momentos antes, encontrara o olhar de algo que não era humano.

   Um rosto. Não o rosto de um homem. Era mais como uma expressão dementada sob um capuz escuro, um olhar que buscava o dela no espelho e parecia brilhar na escuridão daquele canto afastado.

   Agora, não havia coisa alguma ali. O manto, ainda por terminar, era como uma sombra sem cabeça e imóvel. O cabideiro atrás dela exibia cenas de luta tiradas das antigas histórias do reino, mas não eram padrões que pudessem conjurar tal coisa diante de olhos sonolentos. E Orani, atrás dela, não parecia ter visto algo.

Phaedra respirou fundo. Sentia um cheiro...

— Precisamos de mais luzes — disse.

   Ela escreveu uma carta discreta para Ulfin. A resposta trouxe pouco conforto. Devia manter-se atenta e não confiar em ninguém. Especialmente, devia cuidar de Ambrose. Ulfin não sabia dizer quando poderia retornar.

As coisas não podem seguir como estão por aqui. No entanto, não sei dizer o que as fará mudar. Ninguém quer Septimus por rei. Por outro lado, convém a muitos apoiá-lo, pois assim não haverá nenhum rei. Gostaria de poder me retirar do jogo e partir para o outro lado do lago. Mas nada terminaria por aqui. Pelo bem de Ambrose e daqueles que nos seguem, devo terminar o que começamos.

   Ele também dizia, curiosamente, que esperava que a esposa mantivesse Orani e Eridi a seu serviço, porque as considerava muito boas no que faziam. Era a primeira vez que ele notava alguma coisa relacionada aos arranjos domésticos desde que se casaram, dezoito meses antes. Phaedra escreveu uma resposta revelando que o clima estava péssimo e que Ambrose começava a gatinhar.

   Sua carta trouxe a resposta e a notícia de que, um ano depois da primeira oferta, novamente a coroa lhe havia sido ofertada, e novamente ele a recusara.

   O clima estava realmente ruim. A luz era tênue. Ela mantinha tochas acesas nos corredores mesmo no meio do dia, apesar do constante risco de incêndio. Elas desprendiam um cheiro pesado e acre e uma fumaça tão densa que, caso a dor nos olhos fosse uma queixa real, estaria muito pior agora. O ar estava úmido, e o vento, gelado. Um surto de resfriado assolava a criadagem. Phaedra se preocupava em manter o aposento da torre aquecido para Ambrose, deixando o fogo sempre aceso, garantindo um estoque de madeira seca que era trazido a cada hora do depósito pelos garotos da cozinha.

   Ela acabara de sair de um encontro com Caw e o capitão da guarda. Haviam discutido as tarefas de cada um deles, e Phaedra tinha a cabeça cheia de problemas e números; um guarda e três criados doentes, um sargento e quatro ajudantes fora de casa, recrutando homens para a guerra, outro em licença para se casar. E os cavalos também eram poucos. Sabia que logo Caw solicitaria Thunder para a guarda, o que provocaria a primeira discussão em meses (não tinha muito uso para o animal, que era preguiçoso e desajeitado, mas para tudo existem limites!). E com essas preocupações, ela se aproximou de uma janela da galeria para encontrar conforto na coluna de fumaça que brotava constantemente da chaminé da torre nordeste. A fumaça não estava lá.

   Ela esperou, mas nada aconteceu. O fogo se extinguira? Ou a madeira era tão seca que a fumaça se tornava invisível à luz do dia? A voz de Caw soou atrás dela, encerrando uma conversa com o capitão da guarda.

   Ela atravessou o pátio correndo. Se o fogo se houvesse apagado, ou era porque Eridi havia permitido, e nesse caso ela seria duramente castigada se o aposento estivesse menos que muito quente, ou o lote de madeira para mantê-lo aceso não havia sido entregue, e nesse caso os garotos da cozinha passariam um ou dois dias se dedicando a tarefas muito desagradáveis. Ela entrou no salão e subiu a escada da galeria, dirigindo-se ao aposento da torre dois andares acima. A porta estava fechada. Ela removeu o ferrolho externo e entrou.

   O aposento não estava aquecido. O chão estava coberto, como sempre, pelas pedras e outros brinquedos de Ambrose. O cômodo estava vazio. O fogo se apagara. Não havia ninguém ali.

   O cheiro. Não era o cheiro da madeira e das cinzas, mas de algo úmido e denso, como pedras antigas à beira de pegos entre as rochas. Ela o reconheceu de imediato.

Então, viu Ambrose.

   Ele estava a meia dúzia de degraus do topo da escada secundária da torre, quase desaparecendo além da curva. Empenhado, esforçava-se apoiado sobre joelhos e mãos para subir o degrau seguinte.

Havia alguém na escada acima dele.

Pelos Anjos!

   Uma figura menor do que um homem encolhia-se sob um manto pesado, e sua cabeça inclinada era coberta por um capuz. O menino se aproximava dele.

Ele se inclinou para frente.

   —Pare! — Nada mudou ao som de sua voz.

   Havia soldados do telhado sobre eles. Em algum lugar naquele aposento ela colocara um gongo para chamá-los, mas não conseguia lembrar onde. E não conseguia tirar os olhos do filho. O bebê continuava sua subida lenta e difícil para aquela figura assustadora.

   A criatura encolhida ergueu a cabeça. Sob o capuz ela parecia não ter olhos, e sua cabeça era como a de um sapo. Algo rangeu. Estilhaços de pedras desceram pela escada.

   Dedos longos que não eram humanos se estenderam para a criança.

—    Ambrose! — ela chamou, dessa vez mais alto.

O menino olhou em volta e a viu.

Estou ocupado, seu olhar parecia dizer.

   Se desse um passo para a frente, ele continuaria subindo. Dois degraus acima dele, os dedos se estendiam como raízes de árvores sombrias. Água pingava deles. Não devia olhar. Devia olhar para Ambrose. Ambrose.

—    Desça, querido. Por favor, desça.

Devagar, o bebê se virou.

   Ele tinha a testa franzida em concentração. E hesitava. Então, tentou descer um degrau.

E caiu.

   Phaedra gritou, lançando-se à frente para pegá-lo enquanto ele rolava os degraus numa queda vertiginosa. Acima dela, a escada estava povoada; a criatura encolhida, fétida, tão próxima deles, e atrás dela outra figura, um homem com uma longa túnica e capuz, olhando para baixo, aproximando-se da escada e dela...

Era ele! Era ele!

—    Socorro! Socorro!

   Em algum lugar além da porta, pés batiam contra o chão de madeira. Pessoas se aproximavam. Ela se virou, furiosa, com o filho nos braços, para encarar o inimigo.

A escada estava vazia.

Ambrose chorava e chorava. A porta se abriu e Caw entrou no aposento gelado, com Orani atrás dele.

—Há alguém lá em cima!

   Ele subiu a escada aos saltos. Phaedra o viu examinar todo o espaço além dos degraus e certificar-se de que não havia ninguém ali. Ele puxou a espada, atento, e continuou parado no ponto em que os degraus desapareciam além da parede espessa.

— Onde está Eridi? — perguntou Orani.

   — Silêncio! — Caw tentava ouvir alguma coisa, mas os gritos de Ambrose ecoavam pela torre. Depois de alguns segundos, ele exclamou:

— Aqui! Guarda da torre! Houve uma pausa.

— Senhor? — Uma voz respondeu distante.

— A escada está livre?

— Sim, senhor, até onde posso ver.

— Desça, então, e tome cuidado.

   Depois de um momento, foi possível ouvir o som de passos na escada. O metal da armadura tornava os movimentos mais ruidosos. Phaedra viu o momento em que o guarda se aproximou de Caw. A escada estava livre.

— Viu alguma coisa? Dentro ou fora?

— Não, senhor.

   — Mas havia! — gritou Phaedra. — Na escada, dois deles!

—  Muito bem — Caw decidiu razoável, como se mantivesse a paciência com grande esforço. — Vamos fazer isso de maneira apropriada. Suba e faça soar o alarme.

— Senhor?

   —O alarme! Alguma coisa esteve aqui. Ou você e seus companheiros estiveram usando a escada como banheiro, considerando esse mau cheiro. Mande a guarda do portão interno baixar a grade e mantê-la abaixada até ordem em contrário. Depois, vasculhem o telhado sobre os dormitórios e as salas íntimas. É o único lugar por onde eles podem ter fugido. Depressa.

   — Sim, senhor! — Passos desapareceram apressados no alto da escada.

   — Querido, não chore — Orani dizia, tomando Ambrose dos braços da mãe. — Pronto, pronto... Da próxima vez, desça a escada de costas, sem se virar. É assim que deve ser. Que tombo! Pronto, pronto...

   Ambrose ainda chorava, mas já não havia desespero em seu pranto. Phaedra olhou para as próprias mãos e as viu tremendo. Queria chorar também.

E ninguém mais vira nada.

   — Leve essa criança para baixo, para a guarita do portão. Depressa — ordenou Caw. — Lá o menino estará em segurança até solucionarmos essa questão. E você também, saia!

   Eridi aparecera na porta com um fardo de madeira, e observava a cena boquiaberta. Orani a empurrou para fora e saiu levando o bebê. Os gritos de Ambrose desapareceram além da porta. Acima deles, uma trombeta soou as notas breves do alarme.

   Phaedra continuava no quarto com Caw, que ainda examinava a escada.

—    Deve pensar que fiquei maluca — disse.

   Ele a encarou como se estivesse prestes a concordar, mas balançou a cabeça.

—    E melhor dar uma olhada nisto aqui.

   Phaedra subiu a escada. Nove, dez, onze degraus... Ele estava exatamente onde havia estado a criatura encolhida. E movia o pé enquanto ela subia. No degrau havia uma marca.

   Era como se a pedra tivesse sido desgastada, esmagada por um peso absurdo. Ela tocou a pedra. Estava úmida. O lugar exalava um cheiro insuportável.

   A marca era menor que a pegada de um homem. Menor ainda que a dela. E mais arredondada. Em um lado havia outra marca que podia ser de uma garra. Outros riscos e depressões na pedra indicavam o local exato em que a criatura estivera. Os degraus acima e abaixo estavam lisos, livres de impressões.

   Phaedra ficou olhando para aquela imagem. O degrau mutilado. No degrau abaixo desse, uma das pedras brancas de Ambrose fora esquecida. Ele estivera bem perto. E o rosto do homem que vira na escada, determinado em sua captura.

   Passos soaram acima dela. Caw pôs o próprio pé sobre a marca e o manteve ali até os soldados desaparecerem do outro lado do parapeito. Depois removeu o pé e se abaixou para examinar o sinal.

   — Acho que posso substituir esta pedra — disse. — E melhor divulgarmos que estava gasta, e por isso a criança escorregou.

— O que vai fazer?

— Escondê-la. Enterrá-la, assim que for possível.

— Por quê?

   — E ainda pergunta? Um comentário inoportuno a respeito disso e estaremos todos perdidos. E o meu senhor, também. E essa é outra questão. Não escreva para ele contendo sobre o que aconteceu aqui.

   —O quê? — Ulfin era o único que podia ajudar.

   —Não escreva. Mandarei mensagens chamando-o de volta. Faça o mesmo, se quiser. Redigiremos as cartas de forma que, ao lê-las juntas, ele compreenda que sua presença é necessária. Mas as mensagens seguirão separadas. Não deve haver nada nelas que alguém possa decifrar. Maldição! Preciso de um cinzel! — Ele se levantou ofegante. — Fique aqui. Certifique-se de que ninguém veja o sinal. Finja ter enlouquecido, qualquer coisa! De fato, essa seria uma boa idéia, porque ninguém vai encontrar nada no telhado os guardas questionarão o que houve aqui. Voltarei assim que puder.

   Sem esperar por uma resposta, ele se virou e saiu do aposento frio. Phaedra se sentou na escada, um degrau abaixo daquele em que fora deixada a marca, tentando pensar em tudo que ouvira.

Não diga a ninguém.

   E se voltassem? Não diga a ninguém. Nem aos guardas nem a Orani, nem a Eridi. Tente trazer Ulfin de volta sem revelar o motivo que faz sua presença tão necessária.

Pelos Anjos!

   Ela mexia distraída a pedra branca, pensando: Não diga a ninguém, nem mesmo a Caw. Nem sobre o rosto na escada, nem sobre a criatura encolhida. Não diga a ninguém que aquele era o sacerdote pálido do outeiro.

   Ninguém encontrou nada. A ira de Phaedra era como uma onda varrendo a criadagem. Um garoto da cozinha foi espancado por não ter levado a madeira ao quarto na torre. Eridi foi surrada por Orani por ter abandonado seu posto para ir buscar a madeira. Homens corriam a atender todo e qualquer desejo de sua senhora, observando-a de soslaio, hesitantes.

   As mensagens para Ulfin foram despachadas com um dia de intervalo entre elas, expressando tanto quanto Caw permitira que expressassem. Cartas dele chegaram quase imediatamente, e por um momento Phaedra pensou que ele já sabia o que havia acontecido ali e enviava as respostas. Mas, quando os lacres foram rompidos, sua esperança se desfez. A guerra ganhava força no reino. Ele conduzia uma coluna ao Litoral e extraía soldados de Trant e Tuscolo. Caw deveria enviar substitutos para os batalhões enfraquecidos, caso Septimus os atacasse de Develin. E também deveria mandar dinheiro. As cartas não abordavam os problemas vividos pelas pessoas do outro lado do lago.

   Caw praguejou, e na manhã seguinte cavalgou até Baer e para o sul da Fronteira, onde, sabia, algumas propriedades ainda não haviam contribuído para a causa de seu senhor. Levou apenas três cavaleiros com ele, e com a enfermidade de inverno e os mensageiros fora de Tarceny, sua partida deixou a guarda com apenas nove homens até o retorno do grupo de recrutamento. As últimas palavras de Caw para ela foram:

— Lembre-se: não conte a ninguém. Todos dependemos disso.

   Phaedra assentiu atordoada e depois o viu partir. Não gostava muito dele. Mas perdê-lo agora era quase mais do que podia suportar.

   Mas, pela primeira vez, era realmente a senhora de sua casa. E nunca estivera menos preparada para isso. A indecisão a dominava, mesmo quando dava instruções para as tarefas mais simples. Enquanto ordenava as funções rotineiras da guarda, ela também devia tentar proteger o castelo contra o inimigo que nunca tinham visto e que, talvez, jamais pudessem saber se existia, mas que poderia aparecer entre eles a qualquer momento. Onde Patter estaria quando isso acontecesse? Arianda estaria ao alcance de sua voz? Seria seguro deixar Barnay ir buscar madeira sozinho? Sua mente era dominada por dúvidas e pela necessidade recor-ente de encontrar razões para que tarefas fossem realiza-das das mais inusitadas maneiras. Quando o cérebro ficava muito lento, como era comum, ela buscava refúgio na irracionalidade e ordenava que cumprissem suas ordens sem questioná-las. E quando eles se inclinavam e corriam a cumpri-las, ela perdia a confiança na própria decisão e os chamava de volta, ou se esforçava para não chamá-los, embora desejasse retirar a ordem dada. Observava-os discretamente, mas suspeitava de que percebiam que eram observado O problema era que não conseguia apagar da mente a imagem de sombras e garras brotando das paredes ou das pilhas de lenha para atacar os criados que, no último segundo, desapareciam para dar lugar ao seu filho.

   Caminhava pelos corredores esperando o tempo passar, desejando poder visitar o filho novamente sem despertar suspeitas, imaginando quando receberia notícias de Ulfin e o que faria naquela noite quando a luz desaparecesse. Ao entardecer, pegava cobertores e ia se deitar no chão ao lado de Eridi no quarto de Ambrose, levantando-se de hora em hora para alimentar as lamparinas que cercavam o berço, temendo a escuridão.

   Ulfin não mandava resposta. A noite chegava, o dia retornava, mais uma noite caía... e nada.

   Numa noite, exausta, munida apenas de uma vela, ela se sentou à escrivaninha e quebrou a promessa que nunca chegara a fazer a Caw. Escreveu uma breve mensagem a Evalia diManey. Não sabia se confiava nela ou não. Mas, se Ulfin não queria ou não podia responder, faria contato com a única pessoa que podia ter uma solução para seu dilema.

Vi novamente aquela pessoa que mandei buscar na estrada de Baer. Naquele momento, você me aconselhou a ter cuidado. Seria reconfortante para mim se pudesse revelar por que disse aquilo...

   Sabia que sua mensagem carregaria os garranchos de uma mulher enlouquecida. Mas não tinha força para passar a limpo o rascunho, nem desejava esperar até recuperá-la.

   A mensagem foi levada, o que reduziu a guarda a oito homens. A casa a observava temerosa, ignorando seus chamados quando pensavam que ela nem notaria a reação. Não podia confiar neles. Mas também não podia esperar para sempre. Sentia-se fraca, atordoada pela falta de sono e pelo horror de adormecer. Sonhava que se movia entre as sombras em corredores e salas que não conhecia, onde pessoas passavam e falavam com ela, depois passavam sem dizer nada, e finalmente deixavam de aparecer. Subia a longa escada da casa do bispo, subindo e subindo para o aposento em que ele esperava para dizer ao penitente que suas sombras eram só dele e o atormentariam para sempre. O lugar estava vazio. A escada não era de madeira, mas de pedras, e depois de algum tempo tornava-se estreita e sinuosa. Alguma coisa se movia abaixo dela, e ao concluir uma curva ela via a marca arredondada e o sinal deixado por garras na pedra. A água acumulada na depressão tinha o cheiro das pedras cobertas por limo. Os degraus levavam ao quarto em que Ambrose brincava em seu berço, distraindo-se silencioso com uma veste do bispo. E ela seguia com pés e coração juntos na escalada, sabendo que a porta para o quarto dele já se abria, e ainda assim a escada continuava subindo e subindo para o vazio.

   De Tarceny para a casa diManey em Chatterfall eram três dias, uma viagem longa que se fazia ainda mais difícil pelo vento cortante. Phaedra não esperava receber resposta antes de uma semana. Quando levantou a cabeça ao entardecer do quinto dia e viu seu mensageiro na porta do salão, Phaedra foi invadida pelo medo. O vento não permitira que embarcasse. Sua mensagem fora deixada com alguém que prometera levá-la assim que fosse possível. Ele encolhera os ombros e retornara para informar que não cumprira a ordem dada por sua senhora. Phaedra sentiu sua expressão endurecer. Palavras amargas se formaram em seu peito. O homem deu um passo a frente e entregou-lhe um papel que não era o dela. Nele se via o selo do Sabujo.

   — Ela disse que eu teria cinco moedas de prata se minha senhora recebesse esta mensagem hoje, antes do anoitecer

   Phaedra rompeu o lacre imediatamente. No papel havia uma única linha escrita.

—    Sim, sim... Obrigada — ela disse.

   Evalia não depositara segredos naquela página. A mensagem dizia:

Venha a Chatterfall. Traga seu filho e quem mais julgar necessário, mas venha imediatamente.

 

                                         Chatterfall

No alto de Derewater havia um aglomerado de colinas de cume achatado e cobertas por arbustos cheios de espinhos. Ali o lago se dividia e abraçava as montanhas com braços largos. O principal corpo de água banhava as encostas ao norte, a caminho das grandes quedas. Mas o braço menor se virava para o leste, seguindo num riacho estreito e sinuoso pelas encostas íngremes.

   Por esse braço seguia um barco movido por remos. As encostas espinhosas erguiam-se à frente, dos dois lados. Seus reflexos escureciam a superfície da água. O sol se punha a oeste. Era um anoitecer silencioso, com pouco vento. Além do ruído constante dos remos na água, as margens iam ficando para trás sem emitir um único som.

   Debruçada sobre os remos, Phaedra via os rostos dos homens que compunham seu grupo àquela luz tênue. Os pescadores, pai e filho, que manejavam os remos. Orani, Eridi, Ambrose, e os dois guardas encolhidos numa posição desconfortável na proa. Um dos homens era um recruta chamado Massey. Primo pobre de Elanor Massey de Aclete, ele passara a integrar a família pelos laços do casamento e tinha uma postura imponente e um porte avantajado que inspiravam confiança. Phaedra o escolhera por considerar mais fácil confiar num novo recruta do que nos antigos homens de Tarceny, que nunca viram nada e a consideravam louca por conta de suas visões, ou já haviam visto ou imaginado demais e nunca fizeram nada para ajudá-la.

   O outro homem era um sujeito de rosto longo e magro e uma tendência para falar sem parar, mesmo que ninguém o ouvisse. Seu nome era Orchard, e Phaedra não o teria escolhido se o acaso não o houvesse apontado como portador de suas últimas mensagens e se ele não se mostrasse capaz de encontrar Chatterfall rapidamente. Havia sido seu otimismo infernal que os fizera começar a viagem na tarde anterior, até que ficara claro até mesmo para a Phaedra que era tarde demais para alcançarem terra firme em segurança. Mas também havia sido ele quem os conduzira até Neff's Jetty na manhã seguinte e lá encontrara pai e filho oriundos do leste do lago, gente generosa que se dispusera a levar a senhora e seus acompanhantes em seu barco.

   Apenas dois homens. Não ousara reduzir ainda mais o tamanho de seu séqüito. Até os recrutas retornarem, a guarda ficaria tão enfraquecida que até um bando de mendigos de passagem pelo castelo poderia tomá-lo, se quisesse e tivesse cordas suficientes. Além do mais, queria viajar em segredo. Sem uma tropa completa para garantir sua segurança, a melhor coisa a fazer era esconder-se de inimigos comuns cobrindo-se com o manto do anonimato. O grupo não levava bandeiras de identificação nem ostentava nada de valor.

   Viajava com medo. A lembrança da noite ainda a atormentava. Fora sua primeira noite em um acampamento aberto, a primeira experiência em terras desprotegidas próximas do lago. O amanhecer havia sido terrível: quase não conseguira conter o choro enquanto sua reduzida guarda desafiara diversas vezes alguma coisa que se movia entre os arbustos de espinhos. Amigo, inimigo ou animal selvagem? Nada que pudessem ver. O vento os pusera em marcha, e a chuva os surpreendera pouco tempo depois do reinício da jornada.

   Finalmente embarcaram, e o vento perdera intensidade o longo do dia, enquanto cortavam a superfície do lago a caminho da margem distante.

   Por um tempo, as colinas se debruçaram sobre a água, sonolentas, mas aos poucos o corredor foi se tornando mais largo, e as encostas foram se afastando do barco. Havia árvores, uma trilha, uma ou outra construção. Os remos castigavam a água.

   Um canal conduzia à margem, onde era possível ver um cais improvisado e um grupo de cabanas. Lá eles desembarcaram. Havia uma espécie de hospedaria de onde brotava o cheiro de fumaça. Todos descansaram e beberam água fresca e limpa, enquanto alguém foi enviado à casa de Chatterfall para reportar a chegada de uma dama, seu filho e um pequeno grupo. O proprietário da hospedaria providenciou tochas para que eles percorressem o caminho até Chatterfall ao anoitecer. Não havia cavalos, mas conseguiram alugar um burro sobre o qual Eridi viajou com Ambrose nos braços. Caminhando em silêncio, eles subiram uma encosta e alcançaram o cume da pequenina colina, de onde começaram a descer pelo outro lado, na direção da água, para o Litoral. Havia luzes se movendo entre as árvores diante deles. Ouviam vozes masculinas, viam sombras em movimento, até que uma silhueta sobre um cavalo se fez visível numa clareira. Atrás do cavaleiro, outros homens caminhavam portando lamparinas, chamando enquanto se aproximavam.

   — Adam diManey, milady — gritou uma voz forte. — Vim para lhe dar as boas-vindas em nome de minha senhora. —Ele falava com Eridi, a única que viajava montada.

   —Senhor, é muito bondoso — disse Phaedra ainda na escuridão. — E sou grata por ter suas boas-vindas e por sua proteção.

   — Vim para isso — disse o cavaleiro, recuperando-se rapidamente. — E para oferecer meu cavalo, se consegui se acomodar sobre uma sela tão dura.

— Se não for muito longe, seguirei a pé.

   — Nesse caso, caminharei a seu lado — ele decidiu, desmontando rapidamente. — Não estamos muito longe. Já podemos ouvir as quedas nitidamente. Esta área me pertence e é com grande alegria que os recebo nela. Muito ouvi falar sobre sua pessoa.

   — Senhor, para ser franca, esse comentário não é nada reconfortante para mim.

   — Quero dizer que ouvi relatos de minha esposa. E não precisa temer pelo que ela disse.

— Ela tem sido muito generosa, realmente.

   Era a segunda noite desde que ali chegara. Agora não estava tão cansada, depois de um dia praticamente desocupada na pequena casa de madeira cercada por construções mais elevadas e muito próxima das quedas d'água. Podia olhar em volta e enxergar tudo, graças às velas acesas sobre o console da lareira. Se os olhos se demoravam numa sombra mais escura, era mais por hábito do que por ansiedade. As sombras que atormentavam Tarceny não tinham vez na casa dos diManey. Estava certa disso, pelo menos por enquanto. Ali teria tempo para repousar.

   E tempo para observar Evalia e seu marido. Phaedra notava a formalidade entre eles, que era apropriado, e imaginava se a condição persistia nos momentos de privacidade. O que pensariam quando se deitavam lado a lado na escuridão?

   Adam também estava na sala, mas cochilava na poltrona ao lado do fogo. Todos os criados já se haviam recolhido. Não encontraria melhor oportunidade para conversar Evalia.

   —Por que me preveniu para ter cuidado? — murmurou.

   —Estava preocupada com você. Ainda estou. Vi você ir sozinha àquele lugar de tanto mal...

   —Tarceny?

Evalia hesitou.

   —O velho senhor já não está lá. Morreu, lembra-se? — continuou Phaedra.

   — Phaedra, não há uma das sete grandes casas que não tenha seu relato de destruição e malfeitoria. É de se pensar que algum demônio tenha brincado com todas elas. E, francamente, acredito mesmo nisso. Mas a história de Tarceny é a mais longa e, talvez, a mais terrível de todas, porque se estende por muitas gerações. E lá está você. Parecia tão feliz entre eles... E linda, jovem...

— Estou perdendo minha beleza.

   — Está apenas cansada — disse Evalia, balançando a cabeça. — Há muito tempo. E perdeu a confiança em si mesma. A beleza desaparece rapidamente quando isso ocorre. E sei bem o que digo. Mas você a terá de volta, talvez mais depressa do que considera possível.

   Phaedra olhou para o fogo. Lembrava-se de como tudo era mais difícil do que havia sido antes. Era como se vivesse com medo há eras, primeiro do parto, depois daquelas outras coisas. Desde a morte do pai. Ou mesmo antes dela, com a guerra, o reino se armando, o sacerdote da colina que havia desaparecido.

—Não sei o que fazer — disse.

Evalia tocou a mão do marido. Assustado, Adam abriu os olhos, olhou para a esposa e suspirou.

—Não quer ir se deitar?

—Ah, eu... Por quê? As senhoras desejam trocar segredos? Muito bem. — Ele se levantou e caminhou até a porta companhia da esposa. Lá se despediu e, com passos pesados e exaustos, seguiu pelo corredor escuro, tateando as paredes.

   Evalia retornou ao centro do aposento com um discreto sorriso nos lábios.

— A que segredos ele se referia?

   — Nada com que tenha de inquietar-se. Podemos falar sobre segredos de beleza, por exemplo. É claro que ele deduziu que você está com problemas. Imagina que a guerra a esteja colocando em perigo, seja por conta de seu marido ou por causa dos inimigos dele.

— A última alternativa é a mais provável.

   — De fato. Agora estamos sozinhas e podemos falar sobre o que a traz aqui. No entanto, devemos ser cautelosas. Confio em todos que moram nesta casa, mas é melhor para eles, e também para nós, que não ouçam o que dizemos.

   Phaedra assentiu. Depois foi buscar o tabuleiro de xadrez que adornava uma mesa de canto próxima da lareira e colocou-o sobre a mesa entre elas.

   — É melhor fingirmos que estamos jogando — sugeriu. Ou, se não sabe jogar, daremos a impressão de que estou aqui para ensiná-la.

— Ótima idéia. E então?

   Phaedra pensou. Havia pouco a ser dito. Sonhos. Um farfalhar de vestes. Sombras que se moviam na periferia de seu campo de visão. A coisa que vira no espelho. O mau cheiro no ar e a marca na escada da torre. O rosto do sacerdote.

   Não sabia quantos eram. Muitos, imaginava. E não, jamais havia falado com um deles. Ou, pelo menos, nenhum havia respondido aos seus desafios. (Evalia parecia julgar essa informação importante.) Não podia dar nome ao sacerdote. Sim, estava certa de que era o mesmo que havia realizado seu casamento. Se tinha certeza de que ele enviara a criatura da escada? Sim, ele a acompanhava, como um homem controlando seu cão. E os vira juntos antes, um hornem de capuz e uma criatura menor. À porta da biblioteca. O que mais sabia sobre ele? Apenas o que Ulfin contara. Que era privilegiada por ter sido casada por esse sacerdote. E que ele era "sagrado".

   —Seu marido pratica bruxaria, Phaedra?

   Phaedra piscou. Evalia executara um movimento inesperado e devastador. Não sabia como reagir à peça branca que penetrara sua defesa e também não sabia como responder à pergunta que já devia ter antecipado. Ela a encarou, tentando ler a expressão de sua anfitriã. Evalia estava concentrada, séria, estudando a complexidade das peças sobre o tabuleiro.

Cuidado, Ulfin havia dito na fonte, sob a lua de Tarceny.

   — Acho que ele entende mais do que eu. Mas toda a sua atenção está na guerra, como se esperasse ser destruído, caso desviasse o olhar da batalha por um segundo.

— Mas ele pratica bruxaria?

   Phaedra abriu a boca para responder. As palavras não saíram. Não poderia dizê-las. Não poderia trair o marido, embora Evalia parecesse conhecer a verdade.

   — Não posso enviar cartas para ele — foi tudo que conseguiu dizer. — Caw se opõe à troca de mensagens entre nós. E suspeito de que ele as interceptaria, se suspeitasse de um conteúdo revelador.

   — Esse Caw não é nenhum tolo — disse Evalia secamente. — Os poderes da terra não têm misericórdia para com aqueles que praticam tais coisas, e há pouca justiça para os que são suspeitos delas... como deve ter percebido em meu julgamento na corte.

   —Não era inocente daquelas acusações?

   —Talvez pudesse confiar em mim se o segredo fosse seu, e não dele — Evalia disse com tom solene. — Se não quer me contar o que sabe, talvez essa seja uma resposta em si mesma...

   Ela esperava que Phaedra a interrompesse. Evalia diManey a acolhera, recebera seu filho e membros de sua casa, mesmo correndo o risco de atrair a ira dos inimigos de Tarceny. Merecia a verdade. Além do mais, ela já sabia suficiente para criar qualquer história de bruxaria que desejasse divulgar contra Ulfin e sua casa. Mesmo que oferecesse firmes protestos agora, Evalia perceberia que eram falsos. E mentiras desse porte não estavam dentro de suas capacidades. Mas não podia, não podia pronunciar as palavras que exporiam o marido ainda mais.

—    Já contei tudo que vi, Evalia.

Uma verdade que esconde também é uma mentira.

   — Bem, não posso culpá-la. Se pudesse me contar mais, talvez eu fosse capaz de ajudá-la mais. Nas atuais circunstâncias, vou lhe dizer o que posso fazer. Não conheço mais do que você sobre essas coisas que a atormentam. Mas... posso imaginar que o que se move como fina fumaça e o outro cujo peso deixa marcas na pedra são criaturas de mundos profundos, onde as rochas se juntam e não há espaço entre elas para a passagem de nenhum corpo na superfície da terra... Mas isso é só suposição. E também estou deixando de dizer toda a verdade, Phaedra. Não era inocente daquilo que me acusavam.

   Phaedra sentiu o coração apertado. Com uma única frase, Evalia punha a própria vida em suas mãos.

   — Não me arrependo do que tentei fazer — ela prosseguiu. — Devia ter tentado veneno, ou uma faca, no lugar daquilo, mas não dispunha desse tipo de coragem. Eu era uma jovem esposa na casa Luguan. Como você, talvez, cresci ouvindo histórias de casamentos apaixonados e finais felizes. Descobri como a realidade podia ser diferente. O homem era uma besta. Depois de dezoito meses, o desespero me consumia. Então, o levante se colocou em nosso caminho. Os barões do Litoral lutavam, exibindo uma sorte ou um talento que eram muito maiores do que seus batalhões. Eles mataram Luguan... por razões próprias. Um de seus aliados era o Cavaleiro da Rosa da Lua...

   —Calyn, o irmão de meu marido?

   Evalia se levantou e foi até uma arca ao lado da lareira. O fecho estava destravado. Ela tirou um objeto de dentro da arca, algo perdido em meio a tantas outras coisas deixadas lá dentro, mas com uma certeza que indicava que ela conhecia o exato local em que tal objeto repousava. Quando retornou para onde estava Phaedra, ela tinha esse pequeno tesouro na palma da mão.

   — Não o uso mais — disse. — Não seria justo com Adam. Nem o mantenho em meu dormitório. Mas não tive coragem de devolvê-lo com todas as outras coisas. Era dele. E ele foi realmente o melhor homem que conheci. Mais ainda, ele me amava, e eu correspondia a esse amor. Nunca mais viverei nada parecido.

   Era um anel que lembrava o corpo de um dragão enrascado três vezes em torno de si mesmo. A cabeça sustentava um prato em que se podia ver a letra C sobre a lua de Tarceny. Phaedra o girou à luz do fogo para encontrar as outras duas letras ao lado do prato.

   — U, C, P — murmurou. Sentia o outro anel repousando pesadamente contra sua pele.

— Under-Craft Prevaleith — Evalia pronunciou solene. - Ou, traduzido de maneira grosseira, a Arte Oculta Prevalece. Era o que ele sussurrava enquanto estudava essas letras como você está fazendo agora. Lembro-me de como sorria, como se o preço houvesse sido muito alto. Certa vez,

ele me falou sobre um anel que ele e os irmãos encontraram nas montanhas. Significava algo terrível, acho. Por causa dessa jóia, ele tinha poderes que muitos nem sonhavam possuir e podia trabalhar com coisas que muitos julgavam proibidas. Podia ver longe, falar para longe e passar onde nenhum homem jamais passaria ou passara, entre outras coisas. Ele o usava pouco; até hoje, pelo que sei, os poderes só foram usados para ajudar os amigos de Calyn, os barões do Litoral, na luta contra Tuscolo. Ele já era um homem doente quando a maré virou contra os rebeldes e morreu sem sequer ter conhecimento de que ele e eu havíamos caído prisioneiros de Seguin. Isso aconteceu onze meses depois de ele ter cavalgado pelas portas de Luguan. Seguin queria as terras de Luguan, que passaram a ser minhas depois da morte de meu marido. Ele não conseguia decidir se casava comigo ou se me obrigava a desposar seu filho bastardo de treze anos de idade, ou um de seus seguidores. De minha parte, eu já havia perdido o amante, não tinha filhos e já contava como certa a possibilidade de ser empurrada para outro casamento sem amor. Não pensei em minha segurança, porque acreditava que tudo de bom em minha vida havia terminado com a morte de Calyn. — Ela sorriu amargamente. — Pouco depois descobri que ainda apreciava a vida o suficiente para rezar pela minha, fosse ela boa ou não. Mas, naquele momento, não encontrei motivo para deixar de usar o conhecimento que Calyn me deixara.

Phaedra a escutava com atenção e interesse.

Ela continuou falando:

   — Mas o que aprendi, e o que você deve procurar aprender, é o seguinte: existem forças. Elas não querem muito do mundo ou das pessoas nele, se é que têm realmente conhecimento de nossa existência. Estavam aqui antes de os Anjos chegarem. Algumas entre elas podem tender para o bem, e outras são más. Como todas as forças, suponho que algumas possam ser usadas para os dois lados ou para nenhum. E existe um, talvez mais, mas apenas um que eu tenha visto, que é um intermediário; alguém que aprendeu os segredos dessas forças e pode usá-los. Ele parece ser um homem muito velho numa longa veste clara, como a um sacerdote. Ouvi dizer que é chamado de Príncipe Sob o Céu. Não sei qual é o seu verdadeiro nome. Finalmente, existem os seguidores, pessoas como eu, ou como Calyn chegou a ser em alguns momentos, que conhecem e lidam com esse intermediário para determinado fim. O que eu busquei foi a morte de Seguin. Encontrei os meios para concretizá-la. Se estivesse preparada para pagar o preço, certamente a teria concretizado.

   — Preço?

   — Creio que sempre há um preço. Esse intermediário... é um homem, creio, ou já foi um homem. Mas ele não se desligou das coisas que motivam os homens. Ele tem acesso a um poder que torna insignificantes todas as ofertas de riqueza, mas exige reconhecimento. Ele exige algum tipo de sacrifício por parte do seguidor, ago que manifeste o reconhecimento por aquilo que esse seguidor recebeu. Não sei por quê. Talvez tenha havido um tempo em que ele realizasse a própria barganha, com alguma outra força ou um intermediário, de forma que até ele tem um preço a pagar. E esse preço é medido na infelicidade do nosso mundo, em seu ódio por aqueles que o procuram. Ou seja, há um preço. E nunca é apenas ouro. Você tem de dar algo que não é seu para dar. Essa é sua moeda. Se não... seu sangue, sua força, seu calor. Calyn havia dado tanto de si que uma simples febre o matou como se fosse uma criança indefesa e fraca. Até para barganhar existe um preço. No início, sem que você perceba, tudo parece ser justo, como se toda troca estivesse dentro dos limites do razoável. Mas você não pode desmentir aquilo que disse. Não pode recuperar aquilo que deu. Não pode devolver aquilo que recebeu...

   Evalia parou para suspirar profundamente. Depois de alguns segundos, continuou falando.

   —Oh, Phaedra, o que pode parecer um bom negócio será seu arrependimento mais tarde! Quando ele fez Adam tomar minha defesa no julgamento, pensei que estivesse salvando por desejar-me como aliada. Mais tarde, compreendi que era porque ele ainda precisava de mim como uma peça em seu jogo, um instrumento para as próprias necessidades. Agora entendo que fui salva porque o preço que paguei teria sido insignificante se eu não vivesse para suportar tudo isso. Não direi o que é. Digo apenas... Tome muito cuidado. Se o vir novamente, tome cuidado.

   Uma força, um seguidor e um intermediário. Quem era o inimigo?

   A voz de Ambrose soou no quarto de hóspedes. Phaedra levantou-se.

   — O dever de uma mãe nunca termina — Evalia comentou com tom profético.

   Mais tarde, Phaedra despertou em sua cama. Não havia sonhado nem se assustara com nada. A mente revirava todas as informações que havia recebido antes de dormir. A escuridão era quase completa. Uma janela aberta deixava ver a lua refletida sobre uma das pedras de Ambrose (que pareciam estar em todos os lugares) esquecida no parapeito. Evalia devia ter empacotado aquelas pedras depois da morte de Calyn, seu amante; ela as enviara para o irmão de seu grande amor.

   Evalia havia pedido a confiança de Phaedra. Phaedra já confiara a própria vida e a de seu filho a essa mulher. Mas não estava pronta para falar sobre Ulfin. E apesar de Evalia ter falado sobre Calyn, a comparação não era justa. Calyn estava morto, e por isso não podia ser tocado pelos poderes desse mundo. Ulfin corria perigo diariamente lutando contra muitos inimigos. E mesmo a confissão de Evalia podia ser menos importante do que parecia ser. Ela já devia ter contado todas aquelas coisas em penitência ao bispo de Jent, obtendo assim sua proteção.

Ou não?

   O bispo estava a três dias dali. Não poderia protege Evalia contra rumores espalhados deste lado do lago. Sua parte no enredo se encerrara quando ele as vira juntas pela janela. (Teria previsto até mesmo essa discussão?) Enfim, Evalia confiara nela e não recebera nada em troca. Phaedra não dispunha de nada que pudesse oferecer.

   Uma força? Não conhecia nenhuma. Exceto que Ulfin, certa vez, comentara que o Cálice continha as lágrimas de alguém que, para o povo das montanhas, era a Mãe do Mundo. O povo das montanhas... Os irmãos e o anel tinham alguma relação com as montanhas... Lugares profundos onde as rochas eram muito próximas... Talvez houvesse algum poder pagão nas montanhas, uma relíquia dos tempos anteriores aos Anjos? Orani podia saber de alguma coisa... se Phaedra encontrasse um meio de interrogá-la. Mas o sacerdote não pertencia ao povo das montanhas. Evalia afirmara que ele era o intermediário. E o chamara de Príncipe Sob o Céu. Uma carta mencionara esse nome... Uma mensagem escrita por alguém nas Fronteiras.

   Devia falar com Ulfin. Somente ele poderia ajudá-la. Lembrava-se de uma evidente falta de fé no sacerdote e, ao mesmo tempo, do terror que sentira ao ver o rosto dele na escada.

Ulfin, ajude-me!

   Ulfin. Se alguma coisa estava clara, era que Ulfin havia sido um "seguidor". Então, no momento em que chegara e vira Ambrose, ele havia dito que não voltaria a fazer uso de seus poderes. Por quê? O que o fizera mudar de idéia sobre o sacerdote? O preço teria se tornado alto demais?

   Ulfin... que preço você pagou? Está agora tão fraco que qualquer ferimento ou febre podem tirá-lo de mim?

   A guerra prosseguia, uma batalha depois da outra, levando-o sempre para mais e mais longe. Quando ele retornaria? Em semanas? Meses? Talvez nunca mais o visse. Estava deitada na escuridão, tentando construir uma imagem mental do rosto do marido. As nuvens iam se tornando mais densas, escondendo-o, como escondiam a lua. A luz perdia intensidade. Formas fantasmagóricas se moviam pelo céu como a fumaça de muitos exércitos; como uma queda d'água paralisada a muitos quilômetros de altura.

Ela dormiu, e as águas produziam um forte ruído em seus sonhos.

                           O Homem nos Juncos

Ao longe, um garoto escavava o terreno da estrada perto da margem do lago. Ele estava sozinho ao sol. Além dele, os leitos de junco dançavam e a água azul tinha a superfície encrespada. Do outro lado da esteira de água, um rebanho de bodes pastava ao pé das colinas. O tilintar dos sinos em seus pescoços podia ser ouvido nitidamente de onde estavam.

   — Em um mês será verão, e realmente quente — Evalia comentava. — Então, a superfície do lago descerá e a correnteza se transformará em um córrego minguado. No ano passado, ela secou completamente por três semanas, e as quedas desapareceram. Pensei que os gafanhotos me levariam à loucura.

   Era um dia quente. Sentada à sombra de um pequeno bosque numa encosta pouco inclinada, com Evalia reclinada a seu lado, Phaedra tinha a sensação de já estar em pleno verão. O menino subia a estrada em sua direção, como se cumprisse alguma tarefa. Além dele, um homem cortava juncos.

   — Watermane nunca seca. É lá que o lago realmente despeja sua água. As quedas aqui são apenas sua diversão.

   Phaedra assentiu para demonstrar que a ouvia. Não conseguia relaxar. Sofria de uma depressão que não ia embora. Com o passar das semanas, havia percebido que Adam diManey relutava em discutir com ela a política do reino. Naquela manhã, quando o assunto surgira, ele havia hesitado e escolhido as palavras com grande cuidado para não ofendê-la. Como cavaleiro livre, sem nenhuma bandeira a prestar homenagem, ele podia tomar partido nos problemas do reino ou se manter neutro, como estava fazendo dessa vez. Ele era no mínimo reservado com relação à causa de Ulfin. Como antigo rebelde contra as práticas da corte anterior em Tuscolo, além de vítima delas, era de se esperar que fosse um simpatizante dessa nova revolta. Ou diManey estava cego para as necessidades do reino, ou via algum motivo pelo qual todo o esforço de Ulfin, e os sacrifícios dela, por conseqüência, estivessem fadados ao fracasso. Talvez ele odiasse o caos que a guerra provocava mais do que odiava a má justiça da ordem que a precedera.

   O menino deixara a estrada. Caminhava por entre as árvores em linha reta, percorrendo uma área de vegetação densa e alta e vencendo os espinheiros. Era pouco provável que houvesse saído de alguma propriedade entre as árvores. Meninos de vilarejo não se aproximavam de um grupo de desconhecidos com aquela casualidade, se pudessem se manter afastados até que as pessoas fossem embora. Qualquer que fosse sua tarefa, ela dizia respeito ao grupo de Evalia. Phaedra o viu se aproximar. Ele não podia ter mais do que onze anos de idade.

— Um homem me disse para lhe dar isto — o menino anunciou ao alcançá-la. Ele a encarava e mantinha a mão estendida em sua direção.

Era uma peça de xadrez.

   Evalia ergueu-se sobre um cotovelo para olhar. Phaedra tomou a peça.

   —Ele disse que seria melhor se fosse encontrá-lo sozinha.

   —Ele disse? E onde ele está?

— Ali. — O menino apontou para o cortador de juncos.

   Evalia estava a seu lado. Phaedra a ouviu gemer aflita ao ver a peça de xadrez. Devia estar pensando naquela noite pouco depois de sua chegada, quando haviam conversado em voz baixa e fingido jogar.

   — Tudo bem — disse. — Não se trata de nenhuma indiscrição. — Sabia que o homem usava a peça de xadrez apenas como forma de identificação.

   Era a figura de um cavalo, entalhada grosseiramente e manchada de marrom. O rosto do cavaleiro tinha uma expressão contorcida, como a de um homem louco.

   — Ele deve ter levado a peça quando desceu pela muralha — murmurou para si mesma. — Pelos Anjos!

   Ele tinha a cabeça desnuda, e suas roupas eram tão rústicas que poderiam cobrir um camponês. Somente quando se aproximou pôde perceber a maneira pouco convincente como ele manejava as ferramentas. O lugar por ele escolhido não oferecia bons juncos, mas era um excelente esconderijo caso tivesse de esconder-se de alguém de passagem pela estrada. Ele não tinha uma foice, mas remos de barco. Evalia ficou ainda mais tensa ao se dar conta de que o homem era um impostor.

   — É bom vê-la — ele disse. — Percebo que goza de boa saúde.

   — Sim, senhor. E espero que você e sua família também estejam bem.

   — Sim, felizmente. Desejo saúde também para seu filho.

   Phaedra sorriu. Ele podia saber, ou imaginar, que Ambrose estava em Chatterfall, mas não ratificaria sua impressão.

   — Senhor, minha acompanhante é lady diManey, que talvez já tenha conhecido como Luguan. Milady, este é o barão de Lackmere, que foi hóspede na casa de meu pai. — Ela enfatizou a palavra hóspede de forma a conferir a ela um duplo sentido e privá-lo de qualquer respeitabilidade que o título pudesse lhe conferir. Porque, até descobrir o que ele realmente queria, não lhe concederia nada.

   Ele tinha uma aparência lamentável: a pele marcada e escura pela exposição prolongada ao sol, os cabelos emaranhados e uma barba espessa que cobria seu queixo. Suas botas estavam sujas de lama. A túnica estava desbotada e puída. De uma pilha de juncos na beira de estrada escapava o cabo de uma espada. Phaedra viu a marca verde e desgastada da folha de carvalho e desviou o olhar. Se ele tinha peças de xadrez em seu poder, era bem provável que houvesse levado também todos os pertences que conseguira reunir em Trant, talvez a bordo do pequeno barco. O olhar furioso de antes ainda cintilava em seu rosto cansado.

   —Vamos nos sentar — ele sugeriu.

   Acomodaram-se sobre as pilhas de juncos cortados. A plantação alta os ocultava de quem pudesse passar pela estrada.

—    Lamentei muito saber sobre a morte de seu pai.

   — E um bom homem, senhor... Veio até aqui só para me dizer isso?

— Descobri que estava aqui por acaso.

   — Preciso tentar adivinhar que tipo de acaso traz um ex-barão a esses juncos?

   —Ah! Crê que sou um fora-da-lei? É claro. Lamento se minha aparência já não é a mesma de antes. Mas é difícil viver acampado, e não é uma vida sem lei que me deixa nesta condição. Milady, devo dizer que recuperei minhas terras e fui perdoado de todas as acusações. Este homem que aqui vê é o barão de Lackmere, de fato e de direito.

   —Fico feliz por você, senhor. Posso saber quem o absolveu?

   — O único que poderia ter me livrado de todas as acusações. Septimus, príncipe da casa que decretou minha pena. Quando ouvi dizer que aquela velha Inchapter havia morrido com Seguin, procurei pelo príncipe imediatamente. Ofereci a ele minha espada... Na época, devo dizer, em que outros a quem ele tinha mais consideração retiraram seu apoio. A própria viúva de Develin estava ao lado dele naquele momento e, embora me conhecesse como um inimigo de sua casa, ela aconselhou o príncipe a me aceitar e restaurar meus direitos, porque naquele momento ele precisava muito de homens a seu lado. Agora as coisas estão melhores para ele.

   — E piores para o reino, porque agora existem dois poderes de força equiparadas lutando pelo comando. Antes havia um mais fraco.

   — Equiparada? — Ele sorriu com amargura. — Pois o equilíbrio se altera mais depressa do que pode imaginar. A cidade-chefe de Tarceny é Baer, não é? Sou informado sobre tudo que passa por seus portões, e com apenas um dia de atraso. Você tem uma casa lá. Se pendurar um pano verde ou azul em uma das janelas, e depois viajar para o sul, ou para o oeste, em menos de dois dias terá notícias minhas.

   Verde ou azul, as cores de Trant e de Lackmere. E Septimus tinha seguidores em Tarceny.

   — Já pensou que meu senhor poderia tê-lo ajudado a recuperar seus direitos mesmo que Inchapter não estivesse morta?

   — Sim, mas tive uma desagradável experiência com ele certa vez, e já cruzamos espadas, como deve saber.

   Experiência? Devia ter sido antes de ele ir a Trant. O barão conhecia Ulfin, ou não teria gritado ao saltar sobre ele na escuridão: Ela não é para você!

   — Eu sei. No entanto, acredito que meu marido é capaz de superar tais rixas se isso significar a correção de uma injustiça no reino. — Não estava convencida de que havia ocorrido uma injustiça no julgamento de Lackmere, mas Ulfin também precisava de seguidores. — Além do mais, se compreendesse que sua hostilidade provinha de algum velho mal-entendido, não de alguma falta dele... Sim, creio que ele teria feito o mesmo pelo serviço de sua espada. E talvez nem se incomodasse por ser uma espada retirada do castelo de meu pai, a mesma com que tentou cortar a cabeça dele.

   Phaedra concluiu a frase com mais veemência do que pretendia. O barão riu.

   — Se soubesse como foi difícil retirá-la de onde estava sem que os guardas notassem... Eu a escondi num fardo de madeira e a levei para os meus aposentos, e depois passei quinze dias carregando gravetos e mais gravetos quando ninguém me observava, de forma que ninguém julgasse estranho que eu houvesse levado aquele primeiro fardo. Mantive a madeira intocada por seis semanas, até descer por aquela maldita muralha. Assim, deve compreender por que hesito em trocá-la por uma arma mais nobre. Foi minha única aquisição em dezoito longos meses em Trant. E não me envergonho das razões que me levaram a desembainhá-la pela primeira vez. Da próxima vez que o encontrar, estarei usando malha e armadura, e veremos que vantagens poderão proporcionar sua longa lâmina e sua habilidade em manejá-la.

   Havia uma luz nos olhos do barão, como se Aun antecipasse o confronto. Ela desviou o olhar. Finalmente, voltou a ouvir a voz dele.

   —Nem sempre me faço acompanhar por quem costuma comentar a vida alheia. Mesmo assim, ficaria surpresa com a freqüência com que ouço falarem sobre você e com o que dizem.

   —Eu não escuto nenhum comentário, senhor.

— Não está preocupada, então, com o que dizem sobre sua participação na queda da casa de seu pai?

— E o que acha que deve preocupar-me?

— Traição, para começar.

— Uma acusação falsa, mas que não me surpreende.

— E bruxaria, também. E... bem, bruxaria é o suficiente

— Bruxaria e...?

Ele balançou a cabeça.

— Senhor! E...?

— Prostituição, então!

Ela o encarou sem demonstrar espanto ou revolta.

   — Bem — respondeu com tom neutro —, sempre soube que homens espancados podem dizer qualquer coisa. O que fiz, senhor, foi dizer a meu marido que você havia conseguido escapar descendo pela muralha de Trant, e que, portanto, também devia ser possível que a muralha fosse escalada. O que foi feito dependeu de coragem e habilidade dos homens de Tarceny, tanto que nenhuma vida se perdeu na tomada do castelo. Na minha opinião, esta é a maior vitória de todos os exércitos nessa guerra lamentável. A morte de meu pai, como talvez não tenha ouvido, ocorreu alguns dias mais tarde, quando ele escapou do confinamento e atacou os guardas, que o mataram.

   — Seu pai foi morto por Caw de Enderby. Foi o que eu soube.

Caw!

   — E se está dizendo que minha saída de Trant mostrou a Tarceny o caminho da entrada, devo confessar que duvido disso. Desci pela muralha depois de pular uma janela. Eu me preparei. Talvez pudesse subir por ela de volta, se fosse necessário. Mas quarenta desconhecidos em armaduras de guerra, e sem alertar um guarda sequer? Se isso é verdade, então eu me inclinarei diante de seu pai quando nos encontrarmos sob as asas de Miguel. Mas não acredito nisso. Minha suposição é que Tarceny tem outros meios, e faz uso deles.

Os juncos batidos pela brisa pareciam suspirar.

Caw. Seu pai.

   — Estranhei muito a morte repentina do rei na estrada para Trant — Aun continuou, como se falasse para si mesmo. — E justamente quando sua força se reunia... Isso abriu caminho para...

Agora Phaedra estava furiosa. Furiosa por Ulfin.

   — Senhor, parece que estamos em frentes diferentes. Mesmo assim, há algo que posso lhe dizer. Nem meu marido e nem eu lhe desejamos algum mal, e espero que, quando a razão voltar a dominar o reino, você seja capaz de finalmente viver em paz em sua casa. Mas meu marido é inocente das coisas de que o acusa. E ele não quer a coroa. Já a recusou duas vezes...

— E recusará uma terceira oferta? Não sei...

   — Ele a recusou. E não desejava a morte de meu pai nem a de qualquer outra pessoa de Trant. Nem eu desejei tais mortes. Tem minha palavra, senhor!

   Foi a vez de Aun calar e olhar para os juncos, como se tivesse uma visão da guerra.

   — Bem — ele respondeu finalmente —, suponho que vim para descobrir se você era cúmplice nos atos de Tarceny, ou vítima de rapto e cárcere privado por obra de seu suposto marido. Esperava constatar que essa segunda hipótese correspondesse à verdade, e o que me deu esperança foi encontrá-la deste lado da água, quando sei que Tarceny busca refúgio na margem oposta. Infelizmente, agora entendo que é realmente cúmplice de Tarceny, embora possa não perceber, por exemplo, que um homem em luta não pode tomar a casa de seu oponente sem desejar a ele o mais devastador e irrevogável mal. Ou que, na política, é sempre necessário recusar mais de uma vez o que se deseja que outros ofereçam. Talvez tenha sido enfeitiçada. De qualquer maneira, ainda é muito jovem, milady. Não me esqueço disso. E um dia pode precisar de minha ajuda. Bem, caso isso aconteça, já sabe como pode obtê-la. Agora talvez seja melhor para nós dois encerrarmos esta conversa.

   — Esteve muito calma — Evalia comentou quando percorriam o caminho de volta.

— Realmente? Não foi o que senti.

   — Não sou muito competente em momentos como esse. Não consigo me mover nem falar. Sinto-me intimidada.

   — Ele não nos teria feito nenhum mal — Phaedra garantiu. — Aquele homem odeia meu marido. Talvez por Ulfin ter se negado a defender o rei no levante do Litoral. Mas essa é uma questão diferente. Não creio que ele vá contar aos outros que estou aqui. Ele foi prisioneiro em Trant. Por dezoito meses, fui a única companhia que ele teve. Receio que... Receio que se tenha apaixonado por mim.

   Como o tempo muda a perspectiva das coisas! Mal havia pensado em Lackmere nos últimos dois anos. Agora, podia ver que sua amargura e desilusão em Trant não tinham sido causadas apenas pelo aprisionamento. Na época, recebia pedidos e mais pedidos de casamento, e ele já era casado com uma mulher com quem mal se correspondia. Depois arriscara o pescoço para escapar, mas erguera a voz quando ainda podia ser ouvido do castelo, chamando a atenção da guarda, numa tentativa de impedir que Ulfin a levasse. Loucura. E agora voltava a procurá-la.

   — Reconheço que ele pode estar mudando de idéia agora mesmo. Foi uma conversa muito deprimente. Então perguntou: — Onde estão os criados?

— Eu os mandei para casa — Evalia respondeu.

— Mandou? Por quê? — Porque... Ah!

— Um cavaleiro surgiu na estrada diante delas. Os cascos de sua montaria levantavam uma nuvem de poeira. A luz do sol fazia elmo e armadura brilharem, e a ponta da lança era uma ameaça concreta buscando o céu. Ele estava quase sobre elas, uma massa assustadora de carne, metal e armas. O visor do cavaleiro estava erguido. Era Adam diManey, e ele deteve sua montaria bem perto delas. Phaedra piscou, surpresa.

   — Ele se foi — Evalia estava dizendo. — Tinha um barco e partiu pelo lago. Não nos causou nenhum mal.

   DiManey olhou em volta, procurando pelo inimigo. Estava ofegante.

— Vim... tão depressa quanto pude. Quem era?

   — Um dos seguidores de Septimus. Ele só queria conversar.

   — Duvido que volte — Phaedra acrescentou.

   DiManey não usava as pernas da armadura, o escudo ou a sobrepeliz. Apenas jogara a malha metálica sobre a túnica ao ser avisado pelos criados sobre a presença de um invasor. E ainda ofegava. Phaedra o viu trocar um olhar com Evalia. Ambos estavam amedrontados.

   — Os outros estão a caminho daqui — Adam contou. — Eles trazem cavalos para vocês. Sugiro que busquemos uma sombra enquanto os esperamos.

   Phaedra seguiu o casal, pensando que, se Aun a encontrara, outros poderiam fazê-lo e também descobririam que Ambrose estava ali. DiManey conseguia manter sua propriedade livre de andarilhos fora-da-lei, mas não venceria uma tropa de barões enfurecidos. Se eles viessem, teria de se render de imediato, ou diManey sofreria uma morte sangrenta, assim como Evalia. Mas Ulfin estava do outro lado do lago...

   —Caw de Enderby não é o homem que seu marido deixou protegendo Tarceny? — Evalia sussurrou em seu ouvido.

—    Sim.

Ela sabia que Evalia faria aquela pergunta.

   Phaedra nunca tentara descobrir de quem eram as mãos que haviam tirado a vida de seu pai. Apenas se perguntara que problema Caw poderia ter causado a Ulfin para receber essa missão de ficar em casa, enquanto os outros iam para a batalha.

   Não se sentia traída. Julgava poder analisar o problema como Ulfin havia feito, olhando Caw nos olhos com escárnio e desdém. Você matou esse homem. Agora, cuide de sua filha e seu neto e coma em silêncio enquanto rumina a culpa pelo que fez. A decisão de Ulfin revelava sabedoria: escura e fria como água num cálice de pedra muito antiga.

— Devo voltar — ela disse.

— Voltar!

— Para Tarceny. Agora meu marido está lá.

— Phaedra...

— Sim, Evalia?

— O que aquele homem disse...

— O quê?

—    Tem certeza de que não está enfeitiçada?

Phaedra riu. Ulfin estava do outro lado do lago, pisando o solo de Tarceny.

   — Enfeitiçada? Minha querida amiga, estou, inteiramente!

  

                               A Casa na Colina

Ambrose havia crescido durante as semanas em Chatterfall. Dera seus primeiros passos no décimo nono aniversário de Phaedra, com Evalia soltando sua mão no bosque de oliveiras e Eridi o chamando do outro lado da relva macia. Ele demonstrou maior interesse na viagem de volta para casa do que sua mãe percebera na fuga de Tarceny. No barco, desejara sentar-se perto da borda e estendera a mão para a água escura e, quando uma onda o molhara, ele recuara, surpreso, mas não aborrecido.

   — Sim, querido — disse Phaedra. — Muito molhado. Por favor, tenha cuidado.

   Então ele passou a metade restante da viagem na borda da embarcação, onde Phaedra, Orani e Eridi se revezavam para segurá-lo, enquanto o pequeno se divertia vendo as ondas e tentando pegá-las, ou observava a superfície cintilante com olhos solenes que não revelavam seus pensamentos. Agora seu rosto exibia com maior nitidez os traços da casa de seu pai, mas os caracóis negros lembravam a mãe de Phaedra. Se seu pai pudesse vê-lo, talvez não se envergonhasse tanto dela.

   Orchard atravessara o lago no dia anterior para buscar os cavalos na casa em que os deixaram. Ele os esperava em Neff´s Jetty quando o barco aportou. E tinha notícias. Ulfin de fato cruzara o lago. Mas não estava em Tarceny. Partira dois dias antes para Hayley, ao norte da Fronteira, e ninguém sabia explicar o motivo dessa viagem.

   — Muito bem — Phaedra decidiu. — Iremos a Hayley.

   As trilhas estreitas conduziam a uma parte da Fronteira que ela desconhecia, onde as colinas eram mais inclinadas e tinham cumes achatados, de forma que algumas vezes por dia, quando a encosta os levava acima das copas das árvores, ela podia olhar em volta e apreciar a bela paisagem da Fronteira ao sul e a leste. Thunder estava mais fácil de controlar do que antes, não por ter mudado, mas porque ela agora cavalgava de maneira diferente, com maior confiança e força.

   As verdadeiras montanhas se aproximavam com seus cumes brancos. A neve ali acumulada ainda não se havia desfeito.

   Hayley era apenas uma área quadrada cercada por uma muralha. Colonos cuidavam de suas tarefas diárias, mas o estandarte de Ulfin não estava ali. No portão, Phaedra exigiu ser admitida e solicitou notícias do marido. O guardião do castelo, surpreso com a chegada de seu senhor, que ele supunha estar lutando em Segne, no reino, e depois de sua senhora, que havia desaparecido sem deixar rastro por toda uma estação, só conseguia fornecer informações vagas. Ulfin estivera em Hayley. Boa parte de sua tropa ainda estava ali. Ele mesmo seguira para as montanhas, acompanhado apenas por dois pastores e um pequeno rebanho de bodes. O guardião não sabia explicar por quê. Era algo que seu senhor já havia feito antes, mas não recentemente. Ele retornaria e uma semana, talvez mais. O guardião faria tudo que pudesse para garantir o conforto de sua senhora até lá...

—    Pretendo segui-lo — ela disse.

   As montanhas eram imponentes e imensas, inclinações separadas por vales em que se viam choupanas isoladas. Nuvens se acumulavam sobre os cumes nevados. Ao norte oeste de Hayley um vale corria entre duas grandes encostas cobertas por florestas. Ulfin seguira nessa direção. Phaedra exigiu que o guardião destacasse batedores e mais quatro escoltas, homens que Massey escolhera entre a guarda com cuidado extremo. Ela levava burros e provisões, cachorros para a caça e para a guarda. Ao amanhecer, pronta para partir, ela fez a Oração do Viajante sozinha no pátio e guiou o grupo para o portão, enquanto os cumes das montanhas se tingiam de ouro.

   Naquele dia, antes do anoitecer, eles passaram pela pedra da Fronteira.

   Massey explicou que ali o reino não tinha fronteiras reais. Por alguns anos, todos os vilarejos afastados por uma semana de viagem daquela pedra deviam pagar tributos. E agora? Massey encolheu os ombros. Com a guarda de Hayley desfalcada pela guerra, era pouco provável que a lei de seu senhor se estendesse para muito além das muralhas do guardião.

   Onde estaria Ulfin? Que loucura o levara para longe da batalha por um reino, da procura por sua esposa e seu filho, levando-o sozinho àquele lugar distante? Estaria ele buscando alguma coisa, ou fugindo? Phaedra seguia seus passos, procurando por sinais naquela terra desolada. Tinha apenas seus pés, seus olhos e sua vontade. Durante o dia, procurava pelos excrementos dos bodes e o brilho distante do metal banhado pelo sol. À noite, tentava identificar a luz de uma fogueira. Se os Anjos voassem por aquele território, saberiam guiá-la até seu marido.

   O progresso era lento. Os caminhos se resumiam a lugares em que homens e bestas tinham de avançar com cuidado. Um dia de jornada os levava de um extremo ao outro de um único vale. Tudo que viam eram as aves gigantescas e negras que voavam preguiçosas sobre a região.

   Passaram por rastros deixados pelos bodes, pelos restos de uma fogueira e por áreas nas quais os animais haviam pastado. Phaedra não estava preparada para o momento em que, depois de atravessar uma parte especialmente inóspita da cordilheira, ela se viu num vale onde bodes pastavam observados por dois meninos. Um homem em armadura estava sentado sobre uma rocha. Ele levantou a cabeça ao sentir sua aproximação.

— Ah! Já me perguntava se era mesmo você — disse.

   — Sabia que o seguíamos?

   — Desde ontem. Hoje de manhã vimos que você tinha se cercado de alguns camponeses de Hayley, por isso esperamos por sua chegada.

— O que faz aqui?

   — Estou numa jornada que, espero, porá fim aos nossos problemas. Os meus e os seus. Quer vir comigo?

— Oh, sim! Sim, eu quero!

   Dormiram sob o céu escuro pontilhado por estrelas. Phaedra sentia-se incomodada pelos pedregulhos que castigavam suas costas, mas, a seu lado, Ulfin permanecia imóvel. Podia sentir seu calor sob o cobertor que os envolvia. Eridi tentava silenciar os protestos sonolentos de Ambrose no abrigo improvisado bem perto dali. Os burros pareciam agitados em suas cordas, mas os bodes estavam silenciosos. O vigia deixara o fogo morrer, e agora restavam apenas brasas.

— Caw mostrou a você o que encontrou na escada?

   — Não. Ele descreveu a marca, mas já havia enterrado pedra. E agiu corretamente — Ulfin opinou. Não estava dormindo, afinal. — E você também. Isso deve ter servi para confundi-los. Sei porque eu mesmo fiquei confuso, como os outros. Mas foi um grande risco. Se um dos seguidores de Septimus...

— Eu sei. Amigos me receberam e esconderam.

—Não quero saber onde.

—Tive tanto medo. Por Ambrose, acima de tudo.

—Essas coisas não podem alcançá-lo. Mesmo assim, é melhor manter a vigilância.

—Ulfin, quem é o sacerdote?

—    Quem? Aquele que contratou para orar em minha casa?

   — Não. E eu não contratei ninguém. Concordamos que ele deveria ir para lá.

— Jent não é aliado, caso tenha se esquecido.

   Martin também estava em algum lugar naquelas montanhas. Como estaria se saindo? Que distância os separaria?

   — E quem é? Creio que nem mesmo a Fronteira é segura. Não inteiramente.

— Vai ter de me falar sobre isso.

   O rosto debochado de Aun surgiu diante de seus olhos. O que poderia dizer para protegê-lo do perigo representado pelo outro homem?

   — Amanhã, Ulfin. — Ele também não havia respondido a sua pergunta sobre o sacerdote. Com Ulfin a seu lado, tudo podia esperar até o amanhecer. Mas, se sua presença afastava alguns medos, outros se tornavam mais próximos. — Ouvi dizer que agora a guerra é menos favorável

para nós.

Ele suspirou.

   —Sempre foi. No início, eu dispunha de certas ferramentas... você sabe... para alcançar o sucesso, apesar de tudo. Se não posso utilizá-las, então, sim, é difícil vislumbrar uma saída... Este tempo quente deve representar uma trégua de algumas semanas. Já ordenei outra reunião em Tarceny por ocasião de minha chegada. Preciso de dinheiro. Receio que tenhamos de vender coisas que teríamos preferido preservar, como jóias e até mesmo sua escrivaninha.

—    Já havia pensado nisso.

   Ao longe, Eridi cantava versos do Grande Lamento enquanto embalava Ambrose. As palavras falavam de solidão e perda, do infinito vazio das colinas.

   — O que diz essa canção? — ela indagou, incapaz de identificar todos os trechos cantados em um idioma estranho.

Ulfin ouviu atento.

— Ela fala de um tempo em que o mundo estremeceu, transformou-se em pedra, e os gigantes chegaram. Beyah, a Mãe do Mundo, deu as costas para seu povo para chorar pelo filho perdido, e só Capuu, o verme-mundo, ousava se aproximar dela. Talvez contenha lembranças de quando invadimos a região e os afugentamos para as montanhas; mas existem outras coisas, mitos ou acontecimentos de um tempo muito antigo. Ou bobagens...

   Ouviu-se um grito. Uma voz masculina. Vinha de algum lugar acima deles. Tentaram encontrar um caminho mais seguro pela encosta que descia para um vale centenas de metros abaixo de onde estavam. Phaedra olhou em volta. Não havia nada a ser visto entre os espinheiros verdes. A paisagem diante dela era encoberta por Eridi, que cavalgava em seu burro levando Ambrose. Não podia ver Ulfin ou os soldados na frente da comitiva. Não sabia se estavam se preparando para lutar. Havia um estranho pulsar no ar, corno se alguém executasse uma melodia em algum ponto além do alcance de sua audição.

Então, o grito ecoou novamente.

   Vinha de algum lugar acima de onde ela estava, e muito distante para ter sido dirigido a eles ou servir de alerta de sua presença. Havia homens lá em cima, e não era possível prever o que fariam quando vissem o grupo.

   Eridi prosseguia. Phaedra já podia ver Ulfin acenando impaciente, chamando-as. Ela atendeu ao chamado e pouco depois conseguiu ouvir a música. Eram flautas do povo da montanha, tambores e vozes que entoavam notas graves em algum local desconhecido, mas não muito distante. Mais alguns minutos de cavalgada, e os homens da montanha surgiram diante de seus olhos.

   Sua primeira impressão foi de que eram muito pequenos. Nenhum deles parecia ter mais do que dois terços da estatura de Ulfin. Eram vinte, trinta, uma pequena multidão que caminhava em sua direção. Não portavam armas e pareciam vestir farrapos. Ulfin não demonstrava contar com uma eventual pausa do grupo. Ele se mantinha na lateral da estrada, deixando o caminho livre para aqueles homens pequeninos e seus tambores.

   Então, o grito soou mais uma vez, um som longo que era emitido pelo líder. Ao gritar, ele mantinha os olhos semicerrados e o rosto voltado para o céu. As flautas soavam atrás dele, preenchendo o espaço com uma melodia simples e constante que Phaedra nunca ouvira antes. A procissão passava por Ulfin e seus soldados como se nem notasse sua presença. Ela os viu seguir seu caminho. Todos se cobriam com cobertores marrons e caminhavam descalços. Phaedra via os rostos finos, como bicos de aves, os cabelos escuros e grisalhos, a pele marcada por linhas profundas. Eles desciam a colina vindo, provavelmente, de algum abrigo, a caminho de um santuário lá embaixo. Alguns carregavam estandartes com figuras, deuses ou espíritos, provavelmente.

   As flautas e vozes cessaram. Os homens das montanhas prosseguiam embalados pelas batidas constantes dos tambores, seus rostos tristes e solenes. Um homem vestindo traje diferente, talvez as vestes do líder, parou para conversar com Ulfin. Ao lado de Phaedra, um dos pastores explicava algo a Eridi e Orani, apontando para longe, para onde a encosta oposta terminava num largo patamar rochoso e se abria num novo vale. Ao fundo, uma imensa montanha se erguia com seu cume branco e uma encosta rosada pelo efeito das sombras das nuvens.

   — É ela — dizia o pastor. — Beyah. Ela não responde, é claro.

   — Beyaaahh! — gritou a voz daquele que liderava a coluna.

   E as flautas recomeçaram. Os homens passavam em sua marcha lenta. Os santos da frente da procissão eram seguidos por figuras bizarras e coloridas representando outros deuses e espíritos, incluindo uma longa serpente vermelha com uma crista e olhos muito grandes que necessitava de três estacas para sustentar todo o comprimento de seu corpo.

   — Capuu, o verme-mundo — dizia o pastor. — Ele pega suas lágrimas entre os dentes para o povo. Embora ela o espanque e bata em sua boca, embora ele cuspa os dentes, Capuu não solta as lágrimas. Ele se apresenta diante do povo e explica todas as coisas. Mica-mica, a estrela-aranha que gira na noite, Apta e Axapta, os gêmeos, o Príncipe Sob o Céu.

   A figura retratava um homem numa veste clara com a cabeça coberta por um capuz.

   Príncipe Sob o Céu. Evalia, e a lembrança de uma entre as muitas cartas inúteis que havia recebido dos moradores da Fronteira, quando procurava pelo sacerdote. Podia ter sido enviada por alguém dali, da região de Hayley.

—    Ulfin...

   Ele ainda conversava com o desconhecido e não olhava em sua direção.

   Passaram a noite nas choupanas dos homens das montanhas. Ulfin falava com seu líder e traduzia o que ele dizia, comentando sobre os lemas e costumes da região, aconselhando-os sobre como deviam comer o alimento. Phaedra falava pouco. E, mais tarde, enquanto o marido dormia tranqüilo a seu lado, ela passou boa parte da noite acordada, olhando para a porta aberta e para a noite clara lá fora. Tome cuidado, dizia uma voz em sua mente. E não era a voz de Ulfin, mas a de Evalia diManey.

   Do outro lado do vilarejo, sobre um patamar na encosta mais distante da colina, onde os dois vales se encontravam, havia uma longa forma rochosa. Era mais regular do que qualquer outro patamar rochoso e interrompia o horizonte com silhuetas que sugeriam telhados e chaminés. Ulfin apontou para ela quando o dia amanhecia. Era uma casa. O final da jornada.

   Levaram quase todo o dia para chegarem ao vale e vencerem a encosta do outro lado. As montanhas se fechavam num círculo em torno deles. Num extremo do vale havia uma construção com um sólido portão, janelas iluminadas e galpões como qualquer outra casa de respeito no reino. Nada se movia além daquelas muralhas. Phaedra continha o riso. Encontrar algo tão familiar naquela paisagem absolutamente inusitada era quase cômico.

— Alguém vive aqui? — ela perguntou ao marido.

   — Sim, eu... Quando estou aqui. — Ele desceu da montaria e caminhou até o portão. Não havia fosso ou ponte levadiça. O caminho terminava na porta ladeada por torres. Alguma coisa voou pela janela de uma delas quando o portão rangeu. Havia um túnel escuro e curto. Phaedra fez seu cavalo seguir em frente. A passagem cheirava a pedra e a desolação. Ulfin esperava por ela do outro lado, em um pequeno pátio com edifícios em três lados e uma pequena muralha que se abria para proporcionar uma grande vista das montanhas à esquerda. — Seja bem-vinda à minha casa.

   — Ela tem um nome?

   — Deve ter, mas ainda não o encontrei.

   —Há água aqui?

   —Venha e veja.

   Ele a ajudou a desmontar. Segurando sua mão, levou-a por uma passagem que ligava o primeiro pátio a outro

—    Oh!

   Era um pátio com uma pequena fonte, como em Tuscolo em Trant e em Tarceny. As mesmas colunas, os mesmos edifícios baixos atrás deles. A mesma fonte vertendo sua água fresca no centro da área. Phaedra aproximou-se e viu a mesma bacia adornada. Ali, como em Tarceny, o corpo de uma grande serpente ou de um dragão se enroscava em torno da beirada da fonte. A água não vinha em jorros, como em outros lugares. Nenhuma bomba era operada naquele local deserto para levar a água num fluxo constante que, vertido, lavava os lábios da serpente antes de escorrer para um círculo molhado entre as pedras.

— De onde vem essa água?

   — É uma farsa. Um cano escondido traz a água montanha abaixo de uma nascente em sua encosta. A finalidade da fonte não é apenas enfeitar, mas mostrar aos moradores da casa se seu suprimento de água está em ordem, ou se o cano se rompeu. Da bacia, ela corre para uma cisterna sob nossos pés. É um reservatório profundo e bem cuidado. Se um inimigo encontrar o cano e cortar o fornecimento de água, os moradores ainda terão uma reserva em casa.

   Phaedra olhou em volta. O pátio não tinha aquele ar sagrado dos outros que conhecera. Por exemplo, as colunas haviam sido erguidas em apenas três lados. O quarto lado era aberto, como se fosse uma saída. Um muro baixo separava o pátio da encosta inclinada do outro lado. E a área era irregular. O lado aberto era o maior, permitindo uma visão mais ampla das montanhas e da própria Beyah. A coluna mais distante se erguia sobre uma plataforma arredondada no fundo do pátio e se unia aos claustros num ângulo muito aberto. E uma enorme cadeira de pedra fora instalada ao lado da fonte, como um trono. Havia degraus diante dela e mais desenhos entalhados. Ulfin foi se sentar nesse trono.

   —Este lugar foi construído por gente do reino — disse. —Na última onda de conquistas depois de Talifer tomar Tarceny, eles vieram para cá. Mataram os líderes do povo das montanhas e fizeram com que os vilarejos pagassem tributos. Mas eram poucos. Precisavam da ajuda do reino, e os príncipes estavam muito ocupados com o que já tinham. Seu líder sentava-se aqui e esperava, uma espera que se estendeu por meses, anos... Uma ajuda que nunca chegou. Agora, eles se foram. E, que eu saiba, nenhum homem do reino esteve aqui desde então. Calyn e eu encontramos este lugar há uns dez, doze anos.

   Ele ficou em silêncio por alguns momentos, olhando para a impressionante paisagem formada pelas montanhas.

— Virei para cá quando tudo estiver perdido.

 

                           O Lugar das Pedras Brancas

Os dias passavam lentamente. Ulfin dera boa parte dos bodes ao povo do vilarejo como uma oferta de paz, mas manteve meia dúzia de cabras para garantir o leite. Havia frutos e caça com que se alimentassem. A água da fonte era fresca como neve derretida.

   Os guardas repararam o telhado danificado desde a última visita de Ulfin e fizeram outros consertos necessários. Ambrose brincava com suas pedras no pátio, gritando para as montanhas silenciosas e cobrindo-se de terra. Phaedra e Ulfin passeavam sob o sol. Ali, o clima era mais fresco, mas, mesmo assim, não iam muito longe. Naquele mundo inclinado, nenhum caminho era plano. Era um esforço percorrer alguns poucos metros e voltar para casa percorrendo as encostas íngremes.

   Na terceira tarde, Ulfin a levou à esquerda do portão, a um lugar em que não haviam estado antes. O caminho era difícil e acidentado, mas livre de espinheiros. A casa podia ser vista bem abaixo de onde estavam.

   Ulfin parou no cume daquela colina, de onde apontou silencioso para a vastidão da cordilheira, dirigindo o dedo para a grande forma de Beyah ao longe.

   — Agora pode entender por que os homens das montanhas dizem que o mundo é uma taça, ou um cálice — ele comentou.

—Como a montanha perdeu seu filho?

   —No vilarejo do outro lado do vale, essa é uma história que integra sua versão do começo do mundo. Em outros lugares, eles dizem que foi quando os gigantes chegaram.

— Gigantes?

— Nós.

— Posso compreender o que o trouxe aqui, Ulfin.

   — Quem pode comparar o reino a tudo isso? Especialmente no verão, quando o clima aqui é muito mais fresco. Eu e meus irmãos viemos para cá todos os anos durante cinco anos e fizemos amizade com os moradores. Trazíamos presentes, como fiz desta vez. Sempre subíamos até aqui. Encontramos algo... que você vai ver agora.

   Ele se virou de costas para a paisagem, olhando para a encosta. Uma parede de vegetação baixa e densa se erguia do solo, e dela surgia uma plataforma de pedra branca que se mantinha inclinada como uma sentinela adormecida em seu posto. Tomando a mão dela, Ulfin começou a caminhar por entre os arbustos.

—  Tome cuidado — disse. — O terreno é muito acidentado e a descida é repentina.

   Por um momento ela não o entendeu. Então, subitamente, Phaedra o viu descer por uma inclinação acentuada, sentindo a mão dele puxando a sua, e percebeu que os arbustos escondiam não a face da montanha, como era de se esperar naquele ponto, mas uma descida repentina. Um espaço se abriu diante dela enquanto caminhavam com cuidado por entre a vegetação. Estavam nos limites de um anfiteatro natural, encarando o vale que se estendia aos pés de Beyah, agora cercada por nuvens. As encostas eram nuas e passavam rapidamente do verde exuberante ao marrom desolador. Ulfin soltara sua mão e descia com grande cuidado. Um pego de formato perfeito lambia os pés do rochedo cerca de vinte metros abaixo.

—    Pise com cuidado — Ulfin aconselhou.

   Phaedra olhou em volta. Não via nada em torno dos limites do pego, exceto o céu acima e, do outro lado parte em que o abismo que levava ao pego era muito mais baixo, o pico de Beyah.

   Havia um encantamento naquele lugar. A água mal se movia, azul e acinzentada sob o céu limpo. Os rochedos escuros se erguiam a sua volta formando coroas brancas Algo se mexia dentro dela. Era como se há muito tempo num sonho em outra vida, já houvesse visitado aquele lugar. Fazia sentido. Ulfin estava abaixado num pequeno patamar sobre a água, olhando para ela. Talvez esperasse que fizesse algum comentário. A direita dele, na altura de seu joelho, havia um vazio na rocha, como se dela faltasse um pedaço.

Notando seu olhar intrigado, Ulfin explicou.

— Foi daqui que o Cálice foi retirado.

— Quando?

   — Há pelo menos trezentos anos, mas pode ser ainda mais velho.

   Não se sentia surpresa. A superfície serena do pego parecia atraí-la como um espelho mágico.

— Pode-se tomar banho aqui?

   — Sim, com cuidado. Existem alguns pontos mais rasos, mas depois o fundo é... o nada. Não sei qual é a profundidade, mas sei que ele encontra o coração da montanha.

   Mesmo temerosa diante da idéia de estar à beira de um abismo além daquela superfície tão serena, ela removeu as sandálias e foi caminhando devagar por entre as pedras. A água era fria, mesmo na parte mais rasa e com o sol aquecendo as rochas em torno dela. Ela parecia ser mais densa, e seu pés dentro do pego pareciam envoltos por um véu; era formas pálidas sobre a pedra escura que os sustentava.

Ulfin a observava.

   Ela recolheu uma porção generosa da água fria com as mãos e a jogou no rosto. Podia sentir as gotas escorrendo dentro do vestido. Incomodada com o calor, repetiu o gesto dessa vez mais devagar. E novamente. Depois de um tempo, decidiu ir um pouco mais além daquela beirada inofensiva, até sentir a pedra se movendo sob seus pés e já não poder mais ver o fundo. Lá ela se lavou novamente, olhando para as profundezas, pensando em mergulhar e deixar o frescor envolver seu corpo. Seu vestido ensopado aderia à nele. Ulfin ainda a observava. Ele sorriu, e ela se sentiu corar. Sabia em que ele estava pensando.

   Devagar, ela se virou e começou a percorrer o caminho de volta para a parte mais rasa do pego. Molhada, saiu da água e pegou as sandálias, mas não as calçou. Aproximou-se lentamente do marido que, embora não a encarasse nesse momento, certamente a esperava.

   Ele a levara àquele lugar. Era um santuário para ele; portanto, o lugar também era sagrado para ela. Mal podia esperar para mergulhar em seu abraço.

   Ele continuava olhando para a superfície da água, como se visse nela algo que Phaedra não podia enxergar.

—    Ulfin?

Ele não parecia ouvi-la.

—    Ulfin...

   Novamente, ele pareceu não ouvi-la. Então ele se levantou, sério. Sem encará-la, ajeitou as vestes e respirou fundo.

— É hora de voltarmos para casa — disse. Ela baixou o olhar.

— Eu... sinto muito — disse.

   Estava surpresa e magoada. E Ulfin já se afastava, não pelo caminho por onde haviam chegado, mas contornando o pego, agarrando -se às pedras e pisando com cuidado sobre cada uma. Ela se sentou e calçou as sandálias, vendo-o ir embora. Como sempre, seu caminhar era elegante e preciso, embora houvesse nele grande incerteza e algum desconforto, como se metade da mente estivesse naquilo que fazia enquanto a outra metade se dedicasse a uma questão que o perturbava. Depois de um momento, Phaedra o seguiu.

   Ulfin a esperava no topo da encosta, mas mantinha os olhos fixos no chão coberto por pedras.

— Bela jogada — disse.

— O quê?

Ele ergueu a cabeça.

   — Estou no lugar errado. Não há nada que eu possa fazer quanto a isso.

— Do que está falando?

   — Não importa. Venha, vamos ver se todos estão prontos para o jantar.

   Ulfin sabia que ainda era cedo para comer. Orani devia estar acendendo o fogo. Mesmo assim, os dois retornaram à casa em silêncio, e, quando lá chegaram, Ulfin entrou sem dizer nada. Phaedra ficou no pátio em que havia deixado Ambrose. Ele não estava ali, mas suas pedras haviam sido esquecidas pelo chão. Pensando em tudo que acontecera naquela tarde, ela foi recolhendo os brinquedos.

   — Umbriel escreve o que nos é dado — dizia para si mesma. — E, sim, ele também escreve o que mais foi dado com...

— Não!

   Ambrose surgia da sombra de um arco localizado mais perto da casa. Ele se mantinha em pé, ainda hesitante, e a observava. Phaedra parou, tentando entender o que o aborrecia. Ele começou a chorar.

—    Já estou indo, meu querido.

   Os gritos tornaram-se mais agudos e desesperados conforme ela se aproximou. Por um momento horrível, foi como se sua presença os estivesse causando. Mas não havia na que pudesse fazer senão seguir em frente, aproximar-se e descobrir qual era o problema. Ele estendeu um braço, mas não para ser pego. Era como se buscasse algo...

   —Tudo bem, meu querido. Estou aqui. Perdeu Eridi? O que foi, meu pequeno? Não, estou apenas recolhendo as pedras para que não as perca. Ambrose, não! Não pode bater em sua mãe! Não! Já disse que as estou recolhendo. Pelos Anjos, o que há com você?

   O menino tentava arrancar as pedras de sua mão e gritava, desesperado. Era como se soubesse alguma coisa. Como se compreendesse alguma coisa. Mas o quê?

— Ambrose! Solte!

   Ele a agarrava, tentando recuperar as preciosas pedras, e gritava.

— Tudo bem, acalme-se. E isto o que você quer? Pronto...

   Ele tomou as pedras com uma rapidez espantosa. Depois, engatinhando, dirigiu-se ao muro. Phaedra o viu devolver as duas pedras mais ou menos nos mesmos lugares em que ela as recolhera. Depois, completamente calmo, o pequenino sentou-se na terra para brincar como se nada houvesse acontecido.

   Phaedra pensou no que acabara de acontecer ali. Ambrose tivera de devolver as pedras àqueles lugares para se sentir calmo novamente. Que tipo de brincadeira era essa? E por que ele reagira com medo?

   Ela se virou devagar, olhando em volta como se examinasse o lugar pela primeira vez. Viu outras pedras brancas perto da muralha. Havia mais perto dos edifícios e na alameda que conduzia ao portão. Elas estavam por toda parte, formando... um anel!

Um anel que, há um momento, ela havia rompido.

Agora, Phaedra também estava com medo.

   Phaedra sonhou que estava em pé ao lado de uma pedra branca, uma das pedras de Ambrose que havia crescido e adquirido o tamanho de uma sentinela adormecida. Ela a contornava, descobrindo que o solo mergulhava abruptamente para um pego entre as encostas escarpadas. Do outro lado, uma mulher do tamanho de uma montanha chorava sentada pelo filho que perdera no começo do mundo. Phaedra começava a descer a encosta. Em torno dela, as pedras se erguiam como dentes para o céu; uma delas tinha a forma do rei do jogo de xadrez, porém estava caída. Ao se aproximar da água, ela parou para olhar a superfície e a profundeza assustadora abaixo dela. Sombras se moviam do outro lado do pego. Havia um cheiro conhecido, mas que ela não notara antes.

— Por que me trouxe aqui? — perguntou a Ulfin.

Não houve resposta.

Estava acordada, e a cama a seu lado estava vazia.

   Seu coração batia descompassado. Ainda era noite. Não tinha idéia de que horas eram. Tateando na escuridão, ela se sentou na cadeira ao lado da cama e ficou ali, esperando que a névoa densa do sono se dissipasse em sua mente. Ulfin não estava no quarto. Havia saído, ido a algum lugar... àquela hora.

   Ulfin havia partido. Tivera um sono agitado e ruidoso, falando, resmungando e se virando na cama, sentando-se nela para olhar para a escuridão. Quando, sonolenta, ela perguntara o que estava acontecendo, ele não havia respondido e se deitara novamente. E agora desaparecera. Pela corrente de ar no quarto escuro, sabia que a porta fora deixada encostada.

   Descalça, ela a atravessou e seguiu até o pátio da fonte. Orani dormia em seu catre ao lado da porta. Na escuridão, Phaedra podia ver o trono se erguendo na noite com o encosto voltado para ela.

   Era natural que Ulfin tivesse ido buscar conforto na tranqüilidade daquele lugar no meio de uma noite de insônia. Mas ele não estava ali. O trono se encontrava vazio, como estivera ao longo dos séculos que antecederam sua chegada.

   Não havia lua. O amanhecer devia estar próximo, a julgar pela cor do céu.

   E agora ela sentia medo. Porque, se Ulfin não podia ter ido longe no meio da noite, a proximidade do amanhecer abria inúmeras possibilidades. Estou no lugar errado. E onde ele acreditava ser o lugar certo? Por duas vezes desde que o desposara ele se havia levantado no meio da noite e partido para a guerra. Nunca antes a deixara sem aviso. E por que o faria tão repentinamente, senão para assegurar-se de que ela não o seguiria?

   Phaedra decidiu agir rapidamente. Correndo, voltou ao quarto e sacudiu Orani ao passar por ela. Quando voltou ao corredor, já vestida, a criada estava sentada em seu catre.

— Senhora?

   — Orani, meu marido desapareceu. Não sei para onde ele foi e nem há quanto tempo saiu. Talvez não seja nada, mas pretendo ir atrás dele.

— Agora, senhora?

   — O amanhecer não tarda a chegar. Fique aqui. Se voltarmos hoje, muito bem. Se não... Se não, quero que partam amanhã mesmo, ao amanhecer. Este lugar é perigoso de maneiras que não posso entender. Deve fazer os homens a levarem de volta a Hayley. Massey atenderá ao seu pedido, se disser a ele que está seguindo ordens minhas.

   Orani a encarava perplexa. Phaedra não sabia quanto ela havia entendido. Não tinha tempo para repetir o que havia dito, mas falou novamente, dessa vez mais devagar.

   — O que quer que aconteça, você e Eridi devem garantir a segurança de Ambrose. E se tudo mais falhar, lembrem-se de que ele tem amigos em Chatterfall. Sigam para lá rapidamente e em sigilo. O cavaleiro e a senhora daquela casa os ajudarão. Ou você pode atravessar o lago e ir buscar refúgio no santuário de Jent, com o bispo. Orani...

— Senhora?

   — Sabe que os inimigos de meu filho não são todos do dia.

— Sim, senhora.

   — Aquelas pedras... os brinquedos ofertados por meu marido... O que ele disse que devia ser feito com elas?

   — Ele instruiu Eridi para mantê-las sempre em volta do pequenino.

   Aquelas coisas não podem alcançá-lo. Mesmo assim, é bom estarmos vigilantes.

—    Faça isso, então.

   Ela se virou e, correndo, atravessou o pátio da fonte. A alameda que levava ao portão estava envolta pela mais completa escuridão. Phaedra não viu o homem até tropeçar nele.

— Quem...?

— Quem está aí?

Era a sentinela, certamente.

— Quem é? Grayme?

   — Buckliss. Milady — ele acrescentou ao reconhecer sua voz.

— Viu meu marido?

   — Há cinco ou dez minutos, milady. Eu o vi descer a encosta. Notei que o portão estava aberto e desci para fechá-lo.

— Ele parecia disposto a ir muito longe?

— Ele levava um pedaço de pão, milady.

   Pão. Suprimentos para um dia, no máximo. Mas ele poderia encontrar outras provisões. Devia alcançá-lo rapidamente. Mas devia estar preparada, caso não o encontrasse.

— Tem alguma comida ou bebida com você?

— Apenas água, milady.

— Dê-me, por favor.

   Ele retirou o cantil de couro que levava preso à cintura e o entregou à senhora, embora o levasse já quase vazio. Phaedra não ousaria parar para enchê-lo.

—Para onde ele foi?

— Para a esquerda, milady, e para baixo.

Então, não ia para Hayley. Voltava para o pego.

—Deixe-me sair, por favor.

   O homem manejou os ferrolhos na escuridão. Do lado de fora, o dia começava a surgir na forma de uma luz acinzentada. Phaedra correu sentindo no rosto o vento gelado da montanha.

   Ele havia ido para o pego. Não sabia se encontraria o caminho que percorrera com o marido no dia anterior, mas precisava tentar. Apressada, foi descendo a encosta, notando um estranho brilho branco ao longe, uma espécie de luminosidade que parecia atraí-la. Ela continuava correndo, sempre na direção dessa luz, até que, ao se aproximar desse brilho, notou uma pedra branca bem perto de seus pés. Era grande, lisa, e nela havia uma depressão, como se parte da rocha houvesse sido removida. Era do tamanho de um punho, ou do tamanho das pedras com que as crianças costumavam brincar.

   Phaedra ergueu a cabeça e notou que o brilho se apagara. Alinhadas a essa pedra branca, outras compunham um círculo irregular. Ela as contou. Eram trinta e uma.

   Vozes soavam em algum lugar perto dali. Na borda mais afastada do pego estava o sacerdote em suas vestes claras. Ele se mantinha de costas para Phaedra. Abaixo dele, perto de um monólito caído, estava Ulfin. Apenas sua cabeça e seus ombros podiam ser vistos de onde ela estava, abaixada e escondida entre os espinheiros. As palavras eram indistintas, mas os dois discutiam.

Se um deles olhasse em sua direção, seria desmascarada. Mas a luz era pouca, e vestia roupas escuras. Se não se mexesse, talvez pudesse escapar sem ser notada. Tentou identificar as vozes. A de Ulfin era mais alta, urgente, contrariada. Quase podia ouvir o que ele dizia. A voz do sacerdote era suave, estável. Mas ele também parecia estar contrariado. O que acontecia ali? Num momento, Ulfin parecia pedir, até suplicar por algo que o sacerdote se negava a conceder. No outro, ele desconsiderava o que dizia o sacerdote gesticulando de maneira furiosa e ameaçadora. O sacerdote voltou a falar. Finalmente, Ulfin assentiu, como se ainda não estivesse satisfeito com a negociação, mas soubesse que não conseguiria nada melhor. Juntos, eles caminharam até a beira da água. Phaedra viu Ulfin ajoelhar-se diante de seu oponente e beber a água que o sacerdote recolhia com as mãos.

   De repente, ele se levantou e correu encosta acima. 0 sacerdote olhava para onde Phaedra se mantinha encolhida entre os espinheiros. Era impossível saber se ele a vira. Podia imaginar o sorriso frio que vislumbrara no alto da escada em Tarceny. Então, ele também se virou, e tudo mergulhou no vazio.

   Talvez o sacerdote estivesse escondido atrás de uma pedra. Talvez ressurgisse em um momento, seguindo Ulfin ou caminhando pela beira do pego. Phaedra permanecia encolhida, contando os segundos até a reaparição. Dez. Vinte.

Nada.

Estava sozinha.

   Ulfin tinha passado pelo cume. Ela não deveria ficar para trás novamente. E não se deixaria enganar mais uma vez. Não fingiria acreditar que aquele havia sido um encontro casual ou que as pedras brancas de Ambrose eram apenas brinquedos inofensivos. Iria em busca de verdade. Tão depressa quanto era possível, ela começou a descer a encosta.

   Ulfin localizara o sacerdote. Devia saber que o encontraria ali.

Depressa, depressa. Não caia!

   Ele a levara até ali, sabendo que o sacerdote habitava aquele lugar.

   E introduzira Orani e Eridi em seus segredos. Por quê? Porque elas não fariam perguntas. Cumpririam suas ordens, quaisquer que fossem, sem questioná-las. E ela, mãe da criança, esposa do lorde, fora deixada na ignorância, sem nada saber, assim como nunca soubera que Caw havia tirado a vida de seu pai.

   Mesmo assim, Ulfin prometera dizer sempre a verdade estabelecera um elo, e agora era essa força que a guiava para perto do marido.

Depressa, depressa.

   Mas o progresso era lento. Temia cair. E agora que se aproximava do ponto em que o sacerdote estivera, não sabia se o encontraria ali, uma possibilidade que a enchia de pavor.

Mesmo assim...

   Ulfin levara pão, um sinal de que não pretendia voltar para casa de imediato. Ao se aproximar do pego, Phaedra abriu o cantil e o encheu com o líquido fresco. Ainda estava sozinha. Levando o cantil cheio, ela se aproximou do ponto em que o sacerdote havia estado.

   Dali, olhava para um mundo diferente. A terra parecia mais escura, como se nuvens obscurecessem o sol que já se aproximava do horizonte para banhar o mundo com sua luz. O formato das montanhas era outro. O céu era pesado, como se uma tempestade estivesse se formando, mas não havia um sopro no ar nem a mais leve brisa.

Ulfin descia uma encosta perto dali.

— Ulfin! — ela gritou.

   Ele não parecia ouvi-la, e Phaedra correu numa tentativa desesperada de alcançá-lo. O descuido foi fatal. Um passo em falso, e o pé não encontrou o solo firme em que pisara até pouco antes. Ela caiu, rolando e se chocando contra rochas de todos os tamanhos e formatos. Quando conseguiu se levantar, Ulfin a olhava de onde estava, uns vinte metros à frente.

— Espere! — ela pediu.

— O que está fazendo?

— Seguindo você.

— Por quê?

   Havia algo errado na voz dele. Como na luz, nas montanhas, no céu... em todo o panorama que a cercava.

   Conhecia aquele lugar. Estivera ali, entre aquelas pedras em centenas de sonhos. À sua volta, havia a mesma paisagem desolada e árida e a mesma inclinação impossível do solo, como se tudo fosse penhascos e abismos, montanhas gigantescas que tocavam a linha do horizonte. À esquerda, duas grandes luzes brilhavam sobre a fronteira do mundo. O ar pulsava com um som tão profundo que era quase insuportável ouvi-lo. E tudo era marrom.

—    Não pode ficar aqui — decretou Ulfin. — Precisa voltar.

   Phaedra olhou para trás, para o caminho que havia percorrido. A alguns passos dali, existia uma depressão rasa, o contorno de um pego turvo que se aninhava entre uma coleção de pedras. Em torno dela, as rochas se erguiam como os dentes de uma besta monumental. Havia sonhado com esse cenário na noite anterior. E podia lembrar agora, anos depois, como uma menina de nove anos de idade percorrera essa paisagem inóspita em seus sonhos depois da morte da mãe, olhando para as profundezas escuras até um homem falar das sombras ao seu lado.

—    Não — ela respondeu.

 

                               O Fundo do Cálice

Mesmo que quisesse encontrar o caminho de volta para a luz do dia, ela não poderia. E Ulfin parecia se dar conta disso.

   — Ele a deixou entrar — disse. — Para expor-me ao ridículo, suponho. E estou com pressa, Phaedra.

— Vou com você.

— Não pode. Os outros...

   — Deixei ordens claras. Estão todos seguros, eu acho, tanto quanto em qualquer outro momento desde que me casei com você.

   — Devo ir para longe e depressa. Qualquer demora pode significar a morte aqui. Não pode vir comigo.

— Já disse que vou com você, meu marido...

— Se vier, será por sua escolha, e não serei responsável.

— Concordo. E terá de me dizer o que...

— Terei?

— Jurou dizer sempre a verdade, caso tenha se esquecido.

Ulfin praguejou, virou-se e começou a andar rapidamente pelo terreno inóspito. Phaedra o seguiu.

   Por um tempo, caminharam em silêncio. Logo, ele controlaria a raiva e a surpresa e, então, aceitaria sua companhia. E aí poderiam conversar. Agora, devia concentrar-se em acompanhá-lo... se pudesse. Não era fácil naquele lugar estranho.

   Estranho? Estivera ali antes. Caminhara por entre aquelas pedras centenas de vezes nos sonhos em que encontrava Ulfin segurando o Cálice. Lembrava-se delas. Era como se estivesse andando dentro de uma imensa taça.

   A luz era fraca; o solo, áspero. Aquele lugar tinha algo de estranho e opressivo, algo que provocava os sentidos Os sons eram distorcidos. E a visão... Havia qualquer coisa errada ou estranha nas distâncias. Talvez estivesse confusa com a curvatura do mundo daquela perspectiva. Os contornos das rochas eram claros e definidos, mas a maneira como se moviam diante de seus olhos, enquanto passavam por elas, não combinava com suas recordações. Não podia determinar a que distância se encontravam sem antes estender a mão para tocá-las.

   Ela tropeçou, mas não caiu. Ulfin a esperava. Estava ficando para trás.

— Para onde estamos indo?

   — Tarceny. Preciso arrebanhar todos os homens e animais e levá-los para o outro lado do lago em uma semana. Menos.

   Então, era a guerra. Estranho como a explicação soava compreensível.

— Por quê? Pensei que o verão fosse um tempo de trégua.

   — Fomos enganados. Os soldados da viúva ameaçam Tuscolo, e Orcrim removeu homens da guarda em Trant para aumentar seus batalhões. Mas o verdadeiro alvo é Trant. Trant é a chave. Se eu tivesse tido tempo para me dedicar apropriadamente a Bay, tudo seria diferente. Agora eles perceberam que, sem Trant, não posso reforçar as defesas do outro lado do lago. Septimus lidera uma coluna contra nós neste exato momento. Orcrim não sabe disso. Devo enfrentar Septimus e rechaçá-lo.

— Como sabe disso?

— Vi todos os fatos ontem, no pego.

   Não estava surpresa com a resposta. Pelo contrário; ela explicava tudo, desde seu olhar distante na tarde anterior até seu estranho comportamento desde então, bem como a pedra da qual havia sido retirada a rocha em que fora esculpido o Cálice. A rocha na beirada do pego. O pego que continha as lágrimas de Beyah.

   — Por que não enviou um sonho a Orcrim... já que parece estar usando sua... arte novamente?

   Ele não parou ou se virou, mas era óbvio que a pergunta o contrariara novamente.

   — Não posso me comunicar com ninguém daqui. O pego não é o Cálice. Não o possuo. Teria de possuir poderes sobre ele, o que não tenho.

— Então, quem os tem?

Ele não respondeu.

— Ulfin, quem é o Príncipe Sob o Céu?

   — Se sabe o bastante para perguntar, já deve conhecer a resposta. Ou quer saber por que ele é chamado assim? Se quer mesmo saber, é porque ele não tinha terras. Os irmãos tomaram-lhe tudo que havia. Então, ele veio para cá.

— Ele não é um sacerdote, Ulfin.

   — Eu nunca disse que era. Pense bem, Phaedra, e vai compreender que nunca fiz tal afirmação. E antes que fale alguma coisa, deveria perguntar a si mesma por que acha que devo dizer mais, se não acredita nem no que já revelei até aqui. Acha que não sei por que decidiu levar um forasteiro, um sacerdote para nossa casa, mesmo conhecendo o risco? Esperava convencer-me a participar de uma cerimônia vazia que tornaria insignificantes nossos momentos sobre o outeiro? Milady, estamos casados, e com a força de todas as leis do nosso povo, porque não existe ser vivo com mais direito de nos unir do que ele, que tem sua realeza diretamente extraída das entranhas de Wulfram.

—Você mesmo afirma que é o último descendente da linhagem de Wulfram. Vi o pergaminho.

   — E não soube interpretá-lo, porque fomos os últimos nascidos, mas não somos os últimos vivos. Milady, fomos casados pelo último dos filhos de Wulfram, Paigan, que não tem necessidades materiais, porque caminha em seu próprio corpo até os dias de hoje.

   Ela o encarou. Por um momento, sua mente parecia aceitar e incorporar o que ele dizia, ligando a informação a outro conhecimento. Paigan, o príncipe. O oitavo filho no topo do pergaminho de Ulfin. Chegou àquela região depois da conquista da Fronteira. O trono de pedra voltado para o vale...

   — Ulfin, não tente me enganar. Não ouse tentar me amedrontar...

— Pense o que quiser. — Ele caminhava apressado.

— Ele teria de ter centenas de anos!

— E tem.

   — Ulfin... Não pode estar falando sério! Por Deus! Ele nos casou! Que preço ele...

— Chega, Phaedra!

— Ele é o intermediário, não é?

— O quê? — A pergunta o fez parar.

   — O intermediário. Aquele que lhe deu o poder. E algo naquele pego é a fonte dessa força.

   As lágrimas de Beyah. O pego continha as lágrimas de Beyah, que o verme-mundo trouxera para a terra em seus dentes.

   — Como sabe sobre essas coisas? Com quem esteve falando?

   — Você não é o único a tratar com ele, Ulfin. Antes de morrer, Calyn usou esse mesmo poder para ajudar os amigos rebeldes. Seu irmão Paigan também deve ter...

   — Meu irmão Calyn tinha muito medo, e fracassou. Meu irmão Paigan não fez mais ou menos do que você, milady. Não julgue...

—    Que preço pagou pelo poder?

   Ele se virou e retomou a caminhada. Phaedra o seguiu, determinada.

—    Quer preço, Ulfin?

Ele começou a correr.

— Ulfin! Ulfin, espere!

   Ela ainda tentou alcançá-lo, mas a silhueta conhecida desapareceu na escuridão.

   Sentia-se fraca. Havia bebido um pouco de água, mas fora inútil. Faltava alguma coisa; algum elemento desconhecido que nutria a vida não estava presente naquele lugar. Seus pés se arrastavam, e ela começou a cambalear.

   Ia e voltava, tentando percorrer o mesmo trajeto que a levara até ali, mas não reconhecia a paisagem. Tudo era estranho, sombrio. Rochas e penhascos se misturavam, compondo uma massa marrom, a encosta que subia para a borda da taça onde estava contida. Sozinha.

   Aquela coisa dentro dela, algo que chamava de "o elo", a impelia a continuar andando. Seguira Ulfin para as montanhas e o encontrara. Depois o seguira antes do amanhecer por uma região desconhecida e também conseguira encontrá-lo. Não o perderia agora. Voltaria com ele para a luz do dia. Não devia pensar em outra possibilidade.

   Respirar era difícil. Estava suando, cansada, ofegante... perdida.

Anjos, ajudem-me!

   Estava de joelhos, mas não se ajoelhara para rezar. Caíra dolorosamente e não se lembrava de ter caído. Queria se levantar, mas não conseguia. Todas as direções eram as mesmas.

Ulfin, ajude-me.

Algo se moveu à direita, e algumas pedras deslizaram sob seus sapatos. Uma voz a chamava.

— Você está aí?

— Sim — respondeu ela.

   Ela sentiu, na escuridão, que seu interlocutor estava surpreso. Que ele esperava que outra pessoa tivesse respondido, ou usado palavras diferentes.

—    Quem esta aí? — ele indagou.

Quem? Que importância tinha um nome naquele lugar?

—    Eu — ela respondeu. Fraca, trêmula...

   O homem surgiu diante de seus olhos aparentando cautela. Vestia uma túnica marrom amarrada ao estilo dos monges, e sua cabeça estava desnuda.

— Milady?

   — Martin? Mas o quê... O que, em nome dos céus, está fazendo aqui?

— Eu segui... Ele me acordou no acampamento. Viu...?

— Ulfin? Meu marido?

— Não! Não viu...?

   Por um momento, eles se encararam em silêncio. Depois, Martin aproximou-se da beirada de uma encosta, olhando à direita e à esquerda antes de olhar para baixo, como se tentasse identificar algum sinal de outro viajante.

   — Bem — Phaedra suspirou quando recuperou a voz —, fico feliz e grata a quem quer que o tenha trazido até aqui, Martin, embora saiba que você não tem motivos para se sentir tão alegre.

— Não tenho? Que lugar é esse?

— Um lugar entre outros. Estive aqui antes, em sonhos.

   — O que vejo ali são estrelas? — Ele apontava para as duas luzes no horizonte. — Não parecem...

— Não creio que sejam.

Capuu se deita na borda do mundo e o mantém unido.

— O ar está estranho.

   — Sim — ela confirmou. Compreensões distantes começavam a tomar forma em sua mente. — Estamos no interior do Cálice.

— Não entendo.

   — Há um cálice, ou uma taça que... — Ela parou, tentando encontrar palavras que pudessem expressar os mistérios que só agora começava a desvendar. — A superfície do Cálice compreende todo o mundo. Nele, cada ponto se compara a um lugar no mundo. Os que têm esse poder podem viajar de um lugar ao outro por meio do cálice, alcançando seu objetivo muitos dias antes do que teriam podido caso tomassem os caminhos comuns.

Martin olhou em volta.

—    Tem água?

   Ela lhe ofereceu o cantil. O sacerdote o sacudiu, mas pareceu mudar de idéia.

   — É melhor economizarmos o que temos — disse ao devolvê-lo. — Como saímos daqui?

— Não sei.

   — Bem, não estamos fadados ao fracasso, milady. Podemos ter certeza disso.

— Onde estava acampado?

   — Em um vale ao pé das montanhas no limite da Fronteira. Um dia a oeste e ao sul de Hayley.

   Então, ele estava ao sul e ao leste de onde ela começara sua jornada. E ela percorrera uma distância que teria consumido pelo menos quatro dias de viagem caso houvesse seguido por caminhos mais ordinários.

   Ela respirou fundo e tentou reunir forças, extraindo-a desse conhecimento e da presença de Martin naquele local desolado. Tinha os olhos fechados e, quando voltou a abri-los, ela viu no meio da paisagem marrom e inóspita que a cercava por uma eternidade algo escuro, profundo e conhecido. Havia algo ali, sim, meio escondido na distância. Ou não era nada? Um lugar em que a terra despencava para o nada. Um precipício. Um lugar que mergulhava fundo na alma do mundo.

  

— É Derewater!

— Onde? — Martin indagou espantado.

   — Ali, na nossa frente Lá! Ele deve estar por aqui, do lado de cá. Ia para Tarceny recrutar homens e embarcá-los em naus. Se formos rápidos ainda poderemos alcançá-lo

   — Milady... A quem deseja alcançar? — Martin perguntou enquanto a seguia.

   — Meu marido. Ulfin, o guardião da Fronteira de Tarceny. Ele estava com pressa, por isso escolheu esse caminho. Eu o segui, porque não sabia o que ele pretendia fazer. Devemos alcançá-lo e falar com ele. Depressa!

   Com o brilho de Derewater a guiá-los, Phaedra se sentia mais confiante para prosseguir, mas ainda estava fraca. Tropeçava com freqüência e uma ou duas vezes chegou a cair. A mente estava cansada, e as pernas se tornavam cada vez menos estáveis. Martin era mais forte, porque estava ali fazia menos tempo. Ele a apoiam, tratando-a como se conduzisse uma idosa cujos membros já não suportavam o peso de seu corpo.

   Certo momento, ele rezou em voz alta para Rafael. Um pouco mais tarde, repetiu a prece. Phaedra não a conhecia, e também não conseguia aprendê-la, porque o cérebro não registrava as palavras.

   Caminhavam lado a lado pela terra escura, parando em intervalos regulares para repousar. Numa dessas paradas, Phaedra teve a impressão de reconhecer a região onde estavam. Era como se a tivesse registrado em alguma lembrança distante, em que a consciência não podia alcançá-la. Em algum sonho, talvez, estivera ali para encontrar Ulfin.

   — Por aqui — ela disse, preparando-se para retomar a caminhada.

   Martin a seguia. Avançavam com dificuldade, subindo uma encosta muito inclinada, buscando forças onde ja não acreditavam tê-las. E, de repente, quando já não pensava mais que poderiam sair dali, algo mudou. Sentiram o vento do dia. O terrível mundo marrom ficara para trás. Havia cores em torno deles. Era um pôr-do-sol. O horizonte podia ser visto ao longe. E o solo era plano sob seus pés. Diante dela, uma pequena muralha se erguia sobre um portão, e ela correu para lá.

   Estavam na muralha noroeste de Tarceny, e o estandarte da Lua Dúbia tremulava batido pelo vento do mundo

real.

   —Vamos entrar, Martin. Talvez ainda haja tempo...

   Martin seguiu diretamente para a capela e caiu de joelhos diante de Rafael e seu cajado. Phaedra o deixou orando.

   Da capela, seguiu para os aposentos íntimos sobre a galeria. Vozes se erguiam em algum lugar do castelo. Ela passava por criados, que paravam para olhar para sua senhora como se vissem um fantasma. O guarda no portão observava o pátio externo e não notou sua aproximação. Quando a viu parada a seu lado, ele se sobressaltou. Ela o ignorou.

   O pátio externo era um tumulto de cavalos e carroças, com quarenta ou cinqüenta homens montados e outros que se movimentavam a pé, todos muito apressados. Havia bandeiras, cavaleiros impacientes e armas. Ulfin se encontrava entre eles, estudando a confusão com ar carrancudo. Devia estar se preparando para partir imediatamente, com todos os homens — mais do que levara a Tarceny três semanas antes. E em duas horas a noite chegaria. Talvez ele planejasse marchar na escuridão.

   Trombetas soaram, e os portões foram abertos. As tropas começaram a sair. Ulfin a vira. Ele a encarou por um momento, imóvel. Depois se aproximou montado, gesticulando para indicar que a guarda devia se manter onde estava.

Ele se inclinou sobre a sela e baixou a voz.

—Há algo que devo lhe dizer, milady — disse. — Se ama seu filho, não o deixe perto de mim nunca mais.

—    Ulfin...

E em seus olhos ela viu o ódio.

   Sem esperar por sua resposta, Ulfin se juntou aos companheiros e partiu.

   Phaedra passou muito tempo parada no portão interno A noite caiu, e os sons distantes da fronteira foram se perdendo no nada. Quando as tochas começaram a tremular nas paredes, ela respirou fundo e entrou.

   A escrivaninha e vários outros objetos tinham desaparecido dos aposentos familiares. Não havia papel, e ela foi à biblioteca e cortou uma tira de um dos pergaminhos de Ulfin. Nele, ela escreveu algumas linhas: um apelo direto para que o marido retornasse e conversasse com ela. Quando estava terminando, um garoto da cozinha entrou na biblioteca para perguntar se ela tinha tudo de que precisava.

   — Preciso de um mensageiro especial para levar esta mensagem ao meu marido o mais depressa possível. Vou me recolher agora.

— Não quer comida ou bebida, milady?

— Só água. Leve-a ao meu quarto, por favor. Só água.

   Por quê? Por que ele não a amava? O que havia feito? 0 que não fizera? Amara-o, esperara por ele, sustentara sua guerra, gerara e parira seu filho. Ele não tinha razão para odiá-la. Amara-a. E devia amá-la! Ele havia prometido.

Então, por que ele não vinha?

   Quantos dias? Oito? Um após o outro, todos intermináveis, infinitas dores e sonhos também infinitos, muitos goles de água e muitas alvoradas debruçada sobre tiras de papel, redigindo apelos desesperados para que ele voltasse. E todos os dias um criado tentava convencê-la a comer pão ou a tomar um caldo, e todos os dias ela os expulsava, praguejando e amaldiçoando sua persistência.

Seu pai a observava sob as asas de Miguel.

   Em algum lugar além de um desses finais de tarde, ele devia estar esperando por ela. Tentava ensaiar as palavras com que justificaria sua vida. Não o traí. Se houvesse entendido, se não quisesse me forçar a nada, tudo teria acabado bem!

   Ele não tentara forçá-la a nada. Seus olhos a estudariam, a filha-traidora, fraca e enganada. Impossível fazer quarenta homens em armaduras escalar uma muralha. Devia haver um homem lá dentro. No Cálice é possível passar por onde nenhum outro homem jamais passará, da vastidão desoladora do nada para a muralha noroeste de Tarceny; do lago para a passagem posterior dentro das muralhas de Trant. Quem me diz que o que pretendo fazer é impossível?

—    Não!

   Seu pai estava morto. Nada poderia ser desfeito. Ulfin partira. Mas ainda poderia retornar. E, em algum lugar além desse mundo cinzento, havia um lugar em que Ambrose brincava ao sol. E ela remaria, remaria e remaria até chegar lá.

   A imagem dele (sentado na terra, olhando em volta procurando por ela) reaparecia por entre a névoa da exaustão. Se Ulfin não voltasse, Ambrose poderia não voltar a vê-la. Nunca saberia como ele havia crescido.

   — Ambrose... — sussurrou várias vezes. — Você é tudo que me resta no mundo.

   Sonhou que ele sorria e corria por entre as pedras marrons. Cuidado, meu bem. É fácil se perder aqui. Ele corria, conhecedor que era daqueles caminhos. Ela o seguia. Suas pernas doíam. Phaedra o perdia de vista. O solo mergulhava no nada, e ela despencava por entre pedras que pareciam pessoas, até ver a criança, olhando para baixo, para uma grande taça de pedras e para o pego de sombras.

Ambrose, volte.

   Sombras se moviam em meio às rochas. Uma delas se quebrava com um gemido sob um peso imenso. Havia rastros, pegadas de garras no chão. Elas exalavam o cheiro de charcos estagnados. Ambrose desaparecera.

   No lugar dele, ela olhava para o interior da grande taça. Em algum lugar, uma montanha chorava pelo filho que perdera. O pego era escuro como o fundo do mundo. Ela olhava para a água, e não havia nada; um profundo nada que pesava em torno de seu pescoço e a puxava para baixo. Estivera ali antes, metade de sua vida atrás. Na sombra ao lado dela, um homem se movia e falava.

Vai beber?

   Pensei que nunca mais viesse, ela respondeu. Por que demorou tanto?

   Ele sorria, oferecendo-lhe o grande Cálice. A água dentro dele era escura. Ela o levava aos lábios.

   Era diferente. Sentia um sabor forte, como o choque súbito do sal. Surpresa e magoada, ela erguia a cabeça para fitar os olhos do homem ao seu lado. Ele sorria, e seu sorriso lembrava o olhar de uma serpente para uma ave desprotegida. Seus olhos eram poços profundos. Algo como uma corrente rangia em sua mente, e ela pensou ter gritado.

   Para um pai, a vida de um filho, dizia, afinal, o sacerdote pálido. Para um rei, a vida de um rei.

   Ela se sentou na cama. Martin estava a seu lado, com uma vasilha entre as mãos. Dentro dela, a mistura que parecia um mingau exalava um aroma enjoativo.

   — Ele não virá — anunciou o jovem religioso. — Por Rafael, você deve se alimentar.

O mingau também era salgado; como lágrimas.

 

                                                                   A TRAIDORA

 

                                 Manhã Fria

A Sala de Guerra se encontrava iluminada pela primeira luz do mundo. O rosto do finado Paigan era uma sombra em um canto. A cadeira e os bancos estavam vazios. A mesa estava descoberta, e a luz pálida do amanhecer tornava quase invisíveis os detalhes entalhados na madeira. Nela, descansando sobre a madeira, a arca. Phaedra a tocou, e seus dedos formigaram. Ela tentou levantar o fecho. Ele resistiu por um momento, mas cedeu com um ranger típico de metal enferrujado.

Não havia nada ali.

   Apenas um tecido escuro forrando o interior da arca. Marcas tinham sido deixadas no pano por diferentes formatos e pesos. Marcas circulares... O Cálice! Nunca o vira realmente, não em seus momentos de vigília, mas o tamanho, o peso e a forma de que se lembrava coincidiam com o objeto de seus sonhos.

   No outro extremo da arca havia uma marca menos nítida; um pequeno retângulo, como de uma caixa que contivesse algo pesado. Não podia afirmar com certeza, mas, pelo tamanho da marca, podia ser a caixa que continha as pedras brancas que Ulfin dera a Ambrose, sem explicar por que, há cerca de um ano. Entre esses dois sinais havia um terceiro, uma marca grande e retangular. Era mais recente do que a outra, deixada pela caixa, e podia ser de um livro.

   As coisas haviam desaparecido. Ambrose, que os Anjos o protegessem, brincara entre as pedras brancas nas montanhas, e Ulfin levara os outros dois objetos para a guerra como fizera antes. Como seu irmão Calyn havia feito, com essas coisas ou outras no levante do Litoral: Calyn, que "havia tido medo demais" e, mesmo assim, pagara com a pró-pria vida.

Grande Umbriel! Que preço Ulfin pagaria?

   E Paigan, seu irmão caçula, que devia ter recebido esse nome em homenagem ao oitavo filho de Wulfram, que ainda assombrava o mundo? Ulfin dissera que ele "não fizera nem mais nem menos" que ela. Ou seja, bebera a água com Ulfin, que o amara; e depois falara sobre essa experiência de tal forma que, talvez, seu pai o houvesse atacado num rompante de fúria e arrancado sua vida dentro daquela mesma sala. Que preço? Nenhum para Paigan, talvez, mas ele também estava morto. Na moldura de seu retrato, o grande verme-mundo se contorcia, e as letras em sua cabeça formavam CaPuU; cPu eram as letras escuras no anel de serpente que pendia da corrente em seu pescoço; o anel que fora dele. Cada irmão tivera um anel, com a letra do próprio nome entre as dos outros dois. O de Calyn, Evalia havia dito, trazia também o lema de sua casa: a Arte Oculta Prevalece. O anel de Ulfin devia trazer cUp. Nunca notara, nem entendera. Cup. Cálice.

   Ela deixou a sala. Na capela, a voz de Martin podia ser ouvida realizando o ofício matinal.

   Suas pernas a levaram até lá, mas não tiveram força para sustentá-la na pequena capela enquanto as canções se sucediam. Por isso, ela se sentou em um banco e esperou, os olhos fechados, pelo final da liturgia. Finalmente, Martin baixou as mãos e se virou.

— E bom vê-la em pé, milady.

— Disseram-me que foram apenas seis dias.

— Apenas?

   — Quando eu era criança, passei doze dias sem comer nada, e teria jejuado por um período muito maior se meu pai não houvesse cedido à pressão por mim exercida por meio desse gesto. Nunca imaginei que pudesse perder minhas forças tão rapidamente, Martin. Quero conversar com você.

— Agora?

— Se for possível.

— Em confissão?

— Creio que sim... finalmente.

   — Quer se ajoelhar? Podemos realizar o ofício onde está, se julgar mais fácil.

   Ela pensou um pouco e assentiu. O religioso se acomodou ao lado dela e começou a murmurar a prece de abertura, enquanto Phaedra olhava para as quatro faces do Céu.

   — Tenho três coisas para dizer — ela começou. — A primeira, eu disse há pouco. Quando tinha nove anos, decidi morrer de fome porque minha mãe havia morrido e eu não queria que meu pai se casasse novamente. Após quase duas semanas, ele me prometeu que jamais desposaria outra mulher.

— E onde está o pecado?

   — Foi... chantagem, um ato de desamor. Ele se dedicava a mim, única pessoa que restava de sua família. Quando demonstrei que poderia mesmo morrer de fome, se quisesse, ele nunca mais conseguiu me dominar. Depois disso, meu pai passou a fazer apenas o que eu queria, como todos os habitantes de Trant. Quando comecei a receber pedidos de casamento, ele chegou a ofender grandes senhores de terra por medo de eu voltar a recusar o alimento. Eu fui...

   —A intenção da autodestruição também é causa de penitência.

   —Eu sei.

   — Umbriel escreve o que foi dito, e Miguel nos dá força para enfrentar o inimigo interior.

   — O segundo pecado é que, pouco tempo depois disso comecei a encontrar um homem nos lugares por onde você e eu viajamos quando retornamos a Tarceny, há uma semana. Juntos, bebíamos um... um... filtro de amor. — As últimas palavras soaram erradas. Não podiam descrever o significado do Cálice, tanto tempo usufruindo dele, mas não conseguia pensar em nada melhor. — O elo persistiu entre nós. Nós nos amamos, e eu me tornei sua esposa numa cerimônia que... foi um casamento de verdade, mas aconteceu sem a bênção de meu pai.

— E onde está o pecado?

   — Bruxaria — ela sussurrou, porque sabia que era necessário confessar. E ela não disse: Eu era uma criança. Confiei nele, porque não sabia o que estava fazendo. Um penitente não podia se apresentar diante de Umbriel coberto por desculpas; apenas o fino manto do pecado que passara a usar desde que começara a provar da água e que agora, finalmente, caía, escorregando por sua pele enquanto falava. — E traição. Havia forçado meu pai a me dar amor, e eu...

   — Umbriel escreve o que foi admitido — Martin a interrompeu. — E Gabriel banha o coração do penitente em Glória.

   Phaedra hesitou, em parte porque ele a impedira de dizer o que sentia mais profundamente (nesse momento), e em parte porque ele mudara a ordem do ofício como ela o conhecia. Gabriel, Mensageiro de Deus, devia ter concedido o último e o maior lugar entre os irmãos de Umbriel.

   — A terceira confissão — ela disse, finalmente. — Quando meu pai chamou o rei para ajudá-lo e me trazer para casa, eu contei ao meu marido como acreditava que minha casa poderia ser tomada num ataque armado.

— Onde está o pecado?

— Traição.

   Imaginara um meio de ataque à sua casa. Falara dele com aqueles homens, matadores endurecidos e armados dos antigos tempos de Tarceny. Havia esperado, de maneira estúpida, que nenhum mal surgisse disso. Mas havia preferido pôr em risco as vidas em Trant a voltar para lá, como era seu dever. Nem sequer considerara essa possibilidade.

   Fora traição, embora Ulfin não precisasse seguir seu plano, e nunca houvesse tido essa intenção. Não teria sido necessário escalar uma muralha com quarenta homens em armaduras, quando se podia caminhar por entre pedras marrons e aparecer repentinamente dentro do castelo do inimigo, talvez com mais um ou dois homens de confiança, e assim abrir a porta do fundo para permitir a entrada do grupo antes que a guarda percebesse.

   Apesar do elo entre eles, talvez até por causa dele, ele a levara a crer que havia sido ela quem indicara o caminho para a invasão a Trant e, conseqüentemente, para a morte de seu pai.

Ulfin!

   Aos poucos, os contornos de sua mente começavam a emergir da névoa formada pela dor e pelo desespero. O passado se tornava mais do que uma simples seqüência de eventos. Ele havia planejado cada movimento, como um jogador de xadrez, com antecedência, vendo claramente o caminho que outros percorriam às cegas. Trant havia sido a chave. Ao se apoderar de Trant, ele se apoderara também da estrada para o coração do reino. E desde quando sabia disso? Há muito tempo, antes mesmo de abrir a porta do fundo do castelo para deixar entrar seus homens armados. Não, antes de ter aproximado o Cálice de seus lábios para convencê-la a beber a água. Desde então, ele sabia qual seria o fim... Não apenas Trant, mas Tuscolo, o trono vazio, e as mudanças que ele causaria. Podia ver longe e falar para longe. E ela havia sido ingênua por supor que, de posse de tal poder, ele só o usaria para fascinar uma jovem em um castelo à beira do lago. Como ele conquistara tais vitórias? Por que os portões de Baldwin e Tuscolo se abriram tão repentinamente?

Como havia morrido o rei?

   Um jogador de xadrez. E, no entanto, ele não estava em seu elemento. O mundo era menos preciso e mais perverso do que ele admitia que fosse. Pais lhe haviam recusado as mãos de suas filhas por conta de uma terrível reputação conquistada pela geração anterior de sua família. Portas que deviam ter retido prisioneiros cediam, e o sangue desses homens era vertido para cobri-lo de vergonha. Os obstinados barões não se curvavam às exigências por ele lançadas, e a viúva de Develin o odiava tanto que armava inimigos de sua casa contra ele. Até mesmo sua "arte oculta" se desviava de seus propósitos, de forma que os laços de amor que ele planejara lançar sobre sua bela esposa também o haviam envolvido, uma fraqueza insustentável ou um impedimento que ele não havia planejado e dos quais só poderia se libertar permitindo que a mulher, antes cega de amor, agora entendesse os últimos segredos que ele ainda guardava: o nome do assassino de seu pai; o nome daquele que os casara; os encantamentos que ele colocara em torno de seu filho, valendo-se de duas criadas que, por conta de sua ignorância ou credulidade, mereciam mais sua confiança do que a própria esposa.

Como ele devia ansiar pela liberdade desse laço de amor!

   Na última vez em que o vira, discernira o ódio em seus olhos. Ódio, porque passara a ser para ele um fardo e uma ameaça. Perseguira-o com suas perguntas entre as pedras marrons, imaginando que ele devia responder com a verdade. Mas ele já havia escapado. O sacerdote e o pego haviam dado a ele a água que o libertara. E, assim, ele a abandonara naquele lugar horrível.

Ulfin!

   Existira um tempo em que ele falara sobre deixar a noite e entrar no dia. Não haveria mais magia. Ele faria as coisas como todas as outras pessoas e deixaria adormecidos os segredos do crepúsculo. No pátio do castelo ela o vira rir e erguer os braços para o céu, como se empurrasse alguma coisa para longe ou gritasse Pare! Para o pico de Beyah, para sua casa em ruínas e para o pego que continha as lágrimas escuras da Mãe do Mundo. Havia sido um gesto de desafio e recusa.

   O que o fizera mudar de idéia? A visão dos inimigos fechando o cerco em torno dele, sem nenhum poder exceto seu número e suas armas. Ele se tornara novamente um seguidor; um seguidor do sacerdote imortal, Paigan, filho de Wulfram, Príncipe Sob o Céu, que devia ter encontrado o pego e seu poder, mesmo quando os próprios irmãos o abandonaram em seu reino natimorto no meio das montanhas há três séculos.

   Onde Ulfin estava quando seu pai fora morto? Podia se lembrar de suas palavras no outeiro com imensa clareza, como se ele as tivesse pronunciado ontem. Quando cheguei lá, ele estava morto. Onde estivera? Imaginara-o no interior de Trant, mas, tragicamente, fora do alcance dos gritos de socorro. E se ele não houvesse estado lá? E se tivesse retornado para o interior do Cálice, viajando para o norte, para algum ponto no qual ninguém poderia esperar que estivesse?

Como o rei havia morrido?

E que preço Ulfin deveria pagar?

— Milady?

   Martin esperava que ela continuasse. Phaedra balançou a cabeça.

   — Milady, antes de encerrar o ofício, devo indagar se essa bruxaria persiste entre a senhora e seu marido.

   — Persistiu até a semana passada, quando seu elo foi rompido. O meu... um ou dois dias depois, enquanto eu jejuava e esperava por ele. Não o amo mais.

— Então, agora é livre.

— Livre. Embora...

   Evalia fora poupada do perigo. Seria isso que agora ele fazia por ela? Suas mãos tremiam. Raiva, fome ou medo? Experimentava todas essas emoções.

— Embora?

   — A maneira pela qual fui libertada é para mim a maior causa de medo.

Ulfin! Você... Maldições e anjos!

Martin esperou por alguns instantes. Depois falou:

   — Se há mais alguma coisa que queira falar sobre isso, peço que o faça em confissão, e não...

   — Não há mais nada, Martin. E vim procurá-lo porque comecei a entender as coisas que me haviam tocado; não por já ter caminhado comigo por lugares que só podem ser alcançados pela bruxaria. Fico feliz por essa jornada em comum ter permitido que você ao menos entendesse e acreditasse no que acabei de dizer.

— De fato.

— Encerre o ofício, por favor.

   — Umbriel, escreva o que é devido e aquilo que não e dívida. Sele o escrito em nossas mentes e em nossos corações até o Dia do Chamado dos Mortos. E, Rafael, Compaixão de Deus que anda nos lugares sombrios; Amigo dos Miseráveis; Luz do nosso Caminho; Sabedoria, Ternura, Equilíbrio...

   — Obrigada — ela disse ao final, enquanto ele a ajudava a se levantar. — Nunca ouvi essa prece antes. Mesmo assim, não me parece errado que ele precede seus irmãos na Penitência.

   — Milady, creio que ele já devia ter algum interesse por esse assunto. E muito diretamente, de uma forma que nunca teria acreditado ser possível.

— Está dizendo...?

   — Que fui acordado em meu acampamento por um homem. Ele estava vestido como um camponês, ou um peregrino. Mas sua voz não soava como a dessa gente. Ele me guiou até encontrá-la entre aquelas rochas. Não havia como escapar delas, mas nós escapamos. Lembro-me de ter dito que não estávamos fadados ao fracasso, ou algo parecido.

Um peregrino?

— Qual era a aparência desse homem, Martin?

   — Mal posso descrevê-lo, milady. Estava escuro, e quando despertei realmente, ele já caminhava na minha frente. Mas... Bem, não consigo pensar em outra explicação. Creio que aquele homem era o próprio Rafael.

   Phaedra não sentia nenhum movimento em sua alma vazia. Por maior e mais piedoso que pudesse ser o Céu, não conseguia imaginar que um Anjo houvesse descido à Terra para ajudá-la. E havia outra horrível possibilidade despertada em sua mente pela palavra "peregrino".

   — Tem certeza? Lembro-me de me ter dito que os Anjos moviam-se apenas dentro de nós e não apareciam realmente como imaginamos que deve acontecer. E não consigo acreditar que ele tenha decidido interferir por mim, seja por que meio for.

   — Aqueles que julgam ter caído mais baixo são geralmente os mais próximos da ajuda. E sei o que Tuchred ensina, e o que eu digo. Mas alguém me acordou no meio da noite e me fez deixar o acampamento para seguir seus passos. Eu me levantei, segui aquele homem e a encontrei, precisando de ajuda, naquele lugar... Não sei em que acreditar Gostaria de poder enviar uma carta para Sua Excelência mas...

   — Talvez eu também tenha uma mensagem para ele. Poderia enviá-la por mim? Seria melhor se ninguém soubesse que estou escrevendo...

— Deve saber que Caw abre e lê minhas cartas.

— O quê? Não, eu não sabia!

   — Pouco tempo depois de minha chegada a esta casa notei que uma carta a mim endereçada havia sido aberta e selada novamente com grande cuidado. Assim, quando redigi minha resposta e a entreguei ao mensageiro, fiquei observando o que ele fazia. Antes de partir ele a levou a Caw. Estavam repetindo esse procedimento com todas as cartas que eu enviava para fora do castelo, e esse padrão se mantém desde então. Não que eu tenha mandando muitas cartas, mas...

— Devia ter me contado isso antes.

   — Por um tempo, imaginei que fossem ordens suas. Perdoe-me...

   Phaedra também se lembrou de um tempo em que pensava que Martin fosse um espião do bispo.

   Foi o que ainda restava de raiva e de culpa que promoveu sua decisão. Ali, no corredor fora da capela, ela soube o que deveria fazer.

— Caw ainda está na casa, não?

   — Meu senhor o deixou no comando, com algum reforço, pois acredita que Septimus tem guerreiros em Tarceny. Não posso afirmar que a situação permanecerá inalterada depois da última vitória do lorde em Trant.

   — Não permanecerei sob o mesmo teto que Caw. Martin, preciso que me preste outro serviço.

— Milady?

   — Vá até Hayley. Se Orani e meu filho não estiverem lá, mande a guarda subir as montanhas para trazê-los de volta. Direi como poderá encontrá-los. Assim que eles estiverem em Hayley, você deve proceder como se os trouxesse para cá, mas vai se desviar discretamente e levá-los para a propriedade diManey, do outro lado do lago. O lugar se chama Chatterfall, e lá eles estarão seguros por algum tempo.

   Ele a ouvia e pensava. Não parecia surpreso por ter de sair novamente, tão pouco tempo após ter concluído uma extraordinária jornada para casa.

— Acha que os soldados vão cooperar?

   — Terá de escolher os mais apropriados. Um deles se chama Massey, outro atende por Orchard. Eles já estiveram lá. Não utilize nenhum outro, a menos que seja necessário. E há mais uma coisa, Martin. Não sei quem o acordou no acampamento. Talvez tenha sido uma força do Céu, talvez não. Há alguém que anda vestido como peregrino ou sacerdote que não é um amigo. Se por acaso o vir novamente, imploro para que tenha cuidado.

   Martin a encarou por um longo instante. Ela o viu compreender que, mesmo sob confissão, não havia dito tudo que deveria ter contado. Depois, o religioso assentiu.

— E o que vai fazer?

— Vou... Vou para Jent.

   Mais uma mentira. Seguiria na direção de Jent. Mas nem mesmo Martin devia saber o que planejava fazer.

  

                                     Tarefa

Sua nova ama se chamava Hera. Ela fora enviada, generosamente, por Elanor Massey em resposta à carta que Phaedra escrevera no dia em que encerrara o jejum. Era a mesma jovem que havia adormecido na cadeira enquanto esperava por Phaedra, há dois anos, quando chegara à margem do lago. Ela sorria abertamente e fora enviada com veementes recomendações. Mesmo assim, Phaedra a julgava jovem demais e não muito sensata. Por isso, não se assustou quando, uma hora depois de sua chegada em Baer, a menina entrou correndo no quarto em que ela repousava e, atirando-se ao chão, beijou sua mão.

—    Sua Majestade! — Hera exclamou.

Em algum lugar distante, sinos repicavam.

— O quê?

   — Desculpe-me, senhora! Só queria ser a primeira a chamá-la assim. Estão dizendo pelas ruas que ele foi coroado! Juro que a servirei muito bem, Majestade. Nunca pensei que...

   — Pelos Anjos, menina! Eu ainda não fui coroada. E talvez jamais seja. Não sei o que dizem nas ruas, mas talvez seja apenas uma mentira. Ele recusou a coroa duas vezes...

   — Mas agora a aceitou, senhora. Ele foi coroado! Talvez a guerra tenha terminado.

   — Ele já venceu batalhas antes e nem por isso pôs fim à guerra — Phaedra lembrou com tom seco. — Agora, levante-se e seja útil, sim? Você me fez derrubar água na manga do vestido verde que deixei sobre a cadeira, bem aqui ao lado da cama. Pendure-o na janela para secar, por favor.

   Quando Hera se aproximou da janela, aplausos e gritos soaram do lado de fora.

   — Eles pensam que sou milady — Hera contou sorridente. — Creio que gostariam de vê-la, se for possível.

   — Se é isso que desejam... Mas não serei chamada de Majestade, nem por você, nem por eles. E isso tem de ficar bem claro. Mande avisar ao povo. Irei à cidade em breve, pois preciso encomendar mais seda para as túnicas de meu marido. Não quero me ver cercada por uma procissão.

— Não, senhora. De que cores, senhora?

— O quê?

— As sedas.

   — Oh, preta, por favor. E dourada.

   Dourada para um rei. E verde... O tecido verde de Trant pendia da janela: um sinal para o homem dos juncos de Derewater.

   Estava acordada no meio da noite, lembrando. E recusará uma terceira oferta? Não sei... Podia imaginar o escárnio nos olhos de Lackmere quando comentasse sua ingenuidade. Na política, é sempre necessário recusar mais de uma vez o que se deseja que outros ofereçam. E agora Ulfin possuía o que desejara desde o início.

   Mais uma vez, lembrou-se de sua expressão ao conversarem no pátio da fonte sobre o nome de Ambrose. Sem dizer uma única mentira, ele a levara a acreditar no oposto do que era verdadeiro. Enganara-a tantas vezes... Acima de tudo, ele a enganara sobre seu desejo de ser rei, a Fonte da Lei, que nele seria baseada em mentiras.

Não conseguia dormir por causa da raiva.

   Lembrava-se de como, naquele mesmo aposento em que estava, o abrigo, ouvira uma voz feminina chamando o nome do irmão de Ulfin no meio da noite. Mesmo a perda de Evalia era menos terrível que a dela. E pelo menos Evalia tinha uma lembrança íntegra de Calyn.

   A madrugada passava depressa. Ela se virava na cama, cochilando, sonhando com Ulfin sorrindo, falando, pensativo enquanto entregava as pedras brancas de Ambrose. As pedras agora estavam espalhadas no quarto em que Ambrose dormia. Eram objetos pequeninos escondidos pela escuridão. As sombras se moveram. Alguma coisa estalou sob um pé com garras bem perto dali. Ela viu Ambrose acordar e começar a chorar. Viu Eridi levantar a cabeça do travesseiro para ouvir. Do outro lado do tabuleiro de xadrez, Phaedra encontrou os olhos do sacerdote.

   No momento apropriado, você deve sacrificá-las sem misericórdia — ele disse. — Exceto o rei, que deve ser guardado como sua própria vida.

   Ela baixou os olhos e não respondeu. Havia poucas peças no tabuleiro, e quase todas eram negras. Phaedra colocou mais uma pedra branca em torno de seu filho, e rezou para que o anel o protegesse.

   Um dia e meio de tediosa cavalgada para o sul de Baer, e ainda percorriam bosques de galhos baixos. Um cavaleiro surgiu no caminho diante deles usando elmo e armadura. Outro o seguia, e mais outros. Eram cinco, oito, mais.

— Levantem os braços — um gritou.

   O barulho no bosque atrás dela indicava que outros emergiam das árvores para impedir que recuassem em fuga. O sargento que liderava seu grupo olhou em volta, procurando por uma via de escape, enquanto meia dúzia de homens armava-se numa tentativa de defesa inútil. O solo entre as árvores era rochoso e traiçoeiro.

  

   Os cavaleiros os cercavam. Em poucos segundos estariam dominados.

— É melhor fazer o que ele diz — Phaedra aconselhou.

   O sargento não era jovem nem de origem nobre e possuía o bom senso que o momento exigia. Ele deu ordens aos homens, que jogaram suas armas no chão. O grupo que os emboscara se aproximou ainda mais. Ordens foram dadas aos homens que a seguiam. Eram dois. Mais para lá, braços erguidos, mãos unidas... Maldição! Ela olhava em volta, mas não via nenhum rosto conhecido. O líder se aproximou dela. Sem dizer nada, tomou as rédeas de seu cavalo. O elmo ocultava seus traços, mas cabelos negros podiam ser vistos logo abaixo dele, e havia algo de familiar em seus olhos. Um cavaleiro mais próximo olhou para ela e cuspiu. Sem saber como reagir, ela apenas viu a pequena mancha escorrendo pela lateral de sua sela.

— Mulher de mau gênio! Raposa! — um deles gritou.

Depois, puseram um saco sobre sua cabeça.

   Paciência, paciência. Já estivera na escuridão antes. O capuz roçava em sua pele e tornava mais difícil o simples ato de respirar. Havia frestas de luz penetrando por baixo, pela abertura em seu pescoço. E não precisava mesmo enxergar. Tudo que tinha de fazer era cavalgar, e esperar, até que removessem o capuz de sua cabeça.

   Estava convencida de que era importante que eles a tratassem como prisioneira. Seus soldados não deviam perceber que era tratada de maneira diferenciada pelos inimigos. Por que Lackmere havia escolhido uma forma de contato tão aberta? (Se é que ele escolhera, porque ainda não o vira.) Esperava que ele se reunisse ao grupo disfarçado de sacerdote ou mercador, de forma que pudesse conversar com alguma privacidade na estrada. Levara uma pequena tropa, Porque assim aumentavam as oportunidades de falar sem ser ouvida, e não para facilitar uma emboscada. Seriam muitas as explicações que teria de dar em Tarceny; se ainda voltasse para lá depois disso.

   Se voltasse. Não sabia o que aconteceria agora. Podia ouvir, não muito longe, o som abafado do choro de Hera enquanto cavalgavam. A jovem também devia estar vendada. O som lamurioso começava a irritá-la. Queria censurá-la, gritar com essa menina tola que mal conhecia, mas mantinha-se calada. Hera sabia menos que ela sobre as razões daquele ataque. No início da tarde, ela se alegrara por estar a serviço da nova rainha, cheia de sonhos e idéias para o futuro. Agora era conduzida por um exército de homens armados. Quem podia imaginar que temores a atormentavam?

   E Hera tinha em algum lugar um jovem que a amava... alguém que não a abandonara e para quem ela esperava voltar. Não devia ter traído o pai e provocado sua morte. Talvez ainda acreditasse que o mundo era um lugar no qual boas coisas podiam acontecer, onde uma alma podia se libertar da culpa e buscar algo além do que simplesmente desfazer o que não podia ser desfeito.

   — Hera — ela chamou, tentando manter a voz baixa para que ninguém se sentisse tentado a fazê-la calar. — Hera.

Não houve resposta, mas o choro cessou.

—    Isso não vai durar para sempre. Não vai.

Silêncio.

   Quaisquer que fossem os pensamentos da jovem, ela se mantinha calada sob o capuz. Phaedra cavalgava, sem conseguir decidir se tinha pena ou inveja de sua criada.

   Não demorou muito. Uma hora mais tarde, depois de uma subida íngreme e de uma descida muito inclinada no meio de água corrente, seu cavalo foi puxado bruscamente para a esquerda. Podia ouvir os outros integrantes do grupo na frente dela. Todos haviam reduzido a velocidade. Sua montaria ainda era guiada por outras mãos, subindo uma encosta. O barulho dos cascos sugeria um terreno coberto por folhas secas e galhos. Não estavam mais a céu aberto, a julgar pelo que ouvia. O ruído do vento nas árvores agora soava mais abafado. Estavam em um bosque. Instintivamente, ela se encolheu sobre a sela, antecipando os ferimentos dos galhos nos ombros e nos braços. E se um deles a atingisse no olho?

—    Tirem nossos capuzes — pediu.

Ninguém respondeu.

   — Tirem-nas — ela insistiu. — Não temos mais como lembrar o caminho. Não precisamos correr o risco de bater com a cabeça em um tronco.

   O grupo parou, e alguém falou em voz baixa. Um cavalo se aproximou dela. Dedos puxaram seu capuz. A luz explodiu em seus olhos.

   Estavam, como havia pensado, em um bosque. Podia ser qualquer um em Tarceny, porque o relevo era parecido e havia água correndo perto dali. Atrás deles, um grupo ia espalhando folhas sobre os rastros deixados por sua passagem. Outros removiam os capuzes de seus companheiros. Seus homens estavam amarrados. Hera tinha uma expressão miserável e apavorada. Phaedra tentou sorrir para ela.

Lackmere não estava ali.

—    Em frente — ordenou o líder.

   Ele havia retirado o elmo, e seus cabelos negros e encaracolados caíam sobre sua nuca como uma cascata brilhante. De onde estava, Phaedra podia ver o desenho desbotado em sua sobrepeliz. No tecido marrom e manchado pelo uso e pelo tempo, uma águia abria suas asas sobre uma torre cercada por uma muralha: Baldwin. Ele era um dos irmãos de Elward, provavelmente Tancrem, o do meio, já que o caçula ainda não devia ter idade para pegar em armas. Por isso havia tido a impressão de que o reconhecera. Um arrepio percorreu sua coluna. Apesar de ser melhor conhecer o nome daquele que a capturara, não conseguia pensar em único motivo que despertasse na Casa de Baldwin alguma boa vontade para com ela.

   Chegaram a um acampamento. Era amplo, imponente. Alguns homens e mulheres observavam a aproximação do grupo. Havia cavalos e uma fogueira sobre a qual panelas desprendiam finas colunas de fumaça. Era um lugar forte, bem defendido e bem localizado, porque não se podia vê-lo até chegar ao topo da colina. Caso fossem atacados, os ocupantes contavam com a floresta para escondê-los.

   Rostos se voltavam para ela. Phaedra ainda tentava encontrar algum sinal de Lackmere quando Tancrem, desmontado, surgiu ao lado dela.

— Desça — ele disse, estendendo a mão.

   — Obrigada — ela respondeu, aceitando a oferta de ajuda. — É bom poder enxergar e caminhar, depois de tanto tempo.

   — Fique ali. — O homem apontava para uma área no meio do acampamento. Ela se virou e caminhou obediente para onde ele a mandara. Os outros cativos eram conduzidos para outros pontos. Pessoas se reuniram em torno dela num semicírculo. Ela olhou em volta, e descobriu que era impossível encarar a multidão.

   Homens se adiantavam empunhando espadas. Eles as deixaram alinhadas sobre o solo da floresta.

   Eram seis. Três apontavam para ela, e três na direção oposta. Um jovem deu um passo à frente e começou a ler um pergaminho.

Era um julgamento por bruxaria.

   Todas as vozes que antes falavam com ela agora murmuravam em seus ouvidos. Em meio ao farfalhar das folhas, podia ouvir o pai falando, mas não conseguia decifrar as palavras. Evalia... Como era difícil pensar em um momento como esse! O pequeno Ambrose gritou "mamãe", olhando em volta como se a procurasse. E ela ainda estava ali, olhando para o jovem que lia o pergaminho, incapaz de falar.

   Eram as acusações que a paralisavam. A voz desconhecida afirmava, descrevia, relatava todas as coisas que ela supostamente fizera; coisas que até mesmo sua mente estupefata rejeitariam de imediato. Aquela não era, como chegara a supor por alguns terríveis momentos, a repetição da confissão que fizera a Martin. Aquilo era uma mistura ridícula e ingênua, um conjunto de todas as coisas que homens podiam cochichar entre eles num exército derrotado. Martin não a traíra. Ele ainda podia estar a caminho de Hayley, como ela ordenara, para encontrar seu filho e levá-lo para um lugar seguro. E, sabendo disso, podia pensar novamente.

   Eles iam matá-la. Fariam soar uma trombeta três vezes e depois a levariam para algum lugar onde cortariam sua cabeça. O sentimento mais claro era raiva. Não por saber que seria morta, mas por esse bando de homens armados preferir armar todo um cenário antes, como se precisassem de uma desculpa, como se assim pudessem dar ao gesto que pretendiam praticar uma qualidade sagrada e correta.

   A sua esquerda havia um jovem guerreiro com cabelos cortados em forma de tigela. Ao lado dele, uma mulher alta cujo rosto provocava uma sombra em sua memória. A mulher franzia a testa. O bando era carrancudo, amargo, hostil... Nem sentiriam o prazer da pequena vingança.

   O jovem havia concluído a leitura. Lackmere ainda não aparecera.

   A trombeta soou. Tancrem e dois outros se colocaram diante das espadas. Os outros eram jovens, como ele, como o rapaz que fizera a leitura. Eram os seguidores de Tancrem, um subgrupo pequeno e desesperado. Então, Tancrem estava por trás de tudo isso. Ele permanecia ali, com os olhos ardendo e transbordando lembranças do irmão, esperando para cortar a cabeça da mulher que esse mesmo irmão amara.

   — Não devo dizer anda antes? — ela indagou, erguendo a voz para ser ouvida por todos no círculo.

— Seja breve — Tancrem autorizou, carrancudo.

   — Estava pensando. Já vi essa cena antes. E quando tudo acabou, uma de minhas amigas disse que, para um cavaleiro-cão do fim do mundo se dispor a lutar, aquela mulher poderia ser inocente. Mas, se ninguém tivesse enfrentado os corta-gargantas que haviam sido instigados contra ela, todos saberiam que ela era culpada, e a mulher seria morta. O que minha amiga quis dizer é que, quando um homem se oferece para lutar, seja por que causa for, deve saber que pode mudar o passado e o futuro. O que é mais do que os Anjos podem fazer. Como ela disse... O que fazem os cavaleiros, senão lutar?

   O jovem de cabelo de tigela ouvia o que um vizinho sussurrava em seu ouvido. A mulher ao lado dele se virava para afastar-se do grupo. Talvez estivesse enojada com o que via. Phaedra decidiu continuar falando, mas, desta vez, dirigiu-se ao jovem que havia lido as acusações.

   — Não ouvi tudo o que você disse. E nem creio que seja necessário. De onde tirou tudo isso? Nunca conjurei ninguém, a menos que conte as orações que faço para que meu marido volte para casa em segurança. Nunca escravizei ninguém, por nenhum meio. Nunca matei ou tentei matar alguém, exceto eu mesma. E por isso já me penitenciei diante dos Anjos e de um sacerdote santificado...

   — Chega — decretou Tancrem. — Ela nega as acusações. Façam soar a trombeta.

Como se não o ouvisse e ainda olhando para o homem que lera as acusações, ela prosseguiu:

   — Um sacerdote santificado! Não é um sacerdote, é? Por um momento, pensei que fosse. Não sabe que a justiça deve ser abençoada? Qualquer outra coisa seria um terrível risco. Mas acredito que seria difícil encontrar um sacerdote num raio de centenas de léguas de Jent que se dispusesse a executar tal sentença sem a permissão do bispo. Ele é muito firme em sua posição contrária às execuções. Ele mesmo me disse.

— Chega! Teve seu tempo e o desperdiçou.

   — Duvida de mim? Pode perguntar ao barão de Lackmere. Ele estava presente nessa ocasião. Se quer mesmo insistir nessas acusações, sugiro que tudo seja feito da forma correta e...

— Não! Façam soar a trombeta!

   Tancrem estava com pressa. Não negara conhecer Aun. Então, esse era o grupo do barão de Lackmere. Insistiria em vê-lo. Tancrem pretendia assassiná-la antes do retorno de seu líder.

Precisava pensar em alguma coisa!

   — Um momento! — ela gritou. O homem que lera as acusações hesitou, já com a trombeta a caminho dos lábios.

— Vejo que não desamarraram meus homens.

   — Eles estão desonrados. Foram maculados por suas atitudes.

   — Não falamos de nobres, Tancrem — disse alguém no meio do grupo.

— Isso mesmo! Não são nem nobres! — ele concordou.

   — Que importância tem isso aos olhos do Céu? Se eles decidissem me defender, e essa seria a atitude correta e justa, então...

— Chega! Trombeta!

   O som ecoou pela floresta. Mais um passo para a morte. Podia sentir que estava perto de perder o controle. Queria agarrar uma espada e lutar, mas eles adorariam mais essa oportunidade de alegar legítima defesa.

   Alguém se colocou à sua esquerda. Era um jovem, aquele dos cabelos de tigela. Ele se mantinha postado diante do cabo de uma espada cuja lâmina apontava para o lado oposto.

   — Chawlin! — A voz de Tancrem traía irritação e escárnio. — Volte aqui!

— Não.

— Chawlin! — gritaram os outros. — Seu idiota!

   Ele permaneceu onde estava. Sua atitude não fazia sentido. E dois de seus homens exigiam ser desamarrados para também se colocarem como defensores de sua senhora.

— Chawlin, por Miguel, esse assunto é sério!

— Eu também sou.

   O momento de intriga foi um presente divino. Phaedra caminhou para o espaço que o jovem deixara vazio no círculo. Tancrem gritou, mas ela continuou andando. Ninguém tentava detê-la. O espetáculo fracassava. Não havia ninguém diante dela, exceto um homem com a cabeça coberta por um capuz, e ele ergueu os olhos quando ela se aproximou.

Olhos frios, e um sorriso gelado que já havia visto antes.

   Phaedra parou. Alguém a segurou pelo pulso. Alguém a agarrou pelos ombros. O sacerdote desapareceu, e ninguém mais o vira. Foi novamente levada para o centro do círculo, onde o jovem Chawlin estava de joelhos, com as mãos apoiadas na terra, tentando levantar-se enquanto outros o imobilizavam. Uma voz soou acima das outras. A confusão cessou. Três recém-chegados apareceram vindos da floresta. Um deles era a mulher alta que ela vira antes. Ao lado dela vinha Aun de Lackmere. E o terceiro era um homem gordo que Phaedra também reconhecia.

—    O príncipe.

As pessoas se ajoelhavam.

   — O que é isso? — sua voz era jovial, como se ele censurasse um bando de garotos. — Estão realizando um julgamento? De quem obteve sua licença? Quem o investiu com essa autoridade em nosso reino?

   Ninguém respondeu. Todos se mantinham ajoelhados, cabisbaixos.

   — A lei é algo para ser discutida — Aun disse. Sua voz soava mais ríspida que a de Septimus. — Mas eu começaria discutindo a questão com quem fez soar a trombeta nesse acampamento para todo mundo ouvir.

   A mulher alta aproximou-se de Phaedra e, segurando seu braço, levou-a para sentar-se em um dos bancos de madeira numa extremidade do acampamento.

—    Obrigada — ela disse.

O sacerdote! Que papel desempenhara nisso?

— Você está bem?

— Sim, estou. Apenas abalada. Pelos Anjos!

— Quer um pouco de água?

   — Sim, num momento. Seria muita bondade. Só uma coisa...

— O que é?

   — Pensei ter visto... Há um homem idoso entre vocês? Creio que já o conheço.

— Jan Brig? Ele não é tão velho.

— Não.

— Com uma cicatriz no rosto? É Jan Brig.

   — Não há nenhuma cicatriz, e o homem é realmente velho. Pensei que ele fosse um peregrino em vestes de sacerdote.

   — Não sei de quem está falando. E saberia, se houvesse algum integrante novo no grupo.

— Não importa. Acho... que me enganei.

   O sacerdote. Ele estivera falando com o jovem que tomara sua defesa. E ele se apresentara, como Adam havia feito por Evalia. O que isso significava?

   A mulher ainda não havia ido buscar a água. Depois de um momento, Phaedra a encarou, tentando descobrir o que estava acontecendo.

   — Sabe que cheguei a odiá-la? — ela disse com grande curiosidade.

Phaedra a encarou.

   — Não se lembra de mim, não é? Sou Amanthys diGuerring... Embora não fosse esse meu nome quando nos conhecemos. Nós assistimos juntas a um julgamento da galeria do rei em Tuscolo, e tudo terminou de maneira diferente do que se esperava, como acabou de acontecer aqui. Depois, nós duas discutimos por uma bobagem qualquer.

— Sim, eu me lembro.

   — Desde então, voltei a pensar em você muitas vezes. E há pouco ouvi você citar as palavras da pobre Maria... E foi como se o passado se descortinasse diante de meus olhos, nítido como se o revivesse. Sabia que o barão e o príncipe caminhavam às margens do riacho e decidi buscá-los. Você teve sorte. Eu poderia estar procurando até agora. Quer água? Nada mais forte?

   — Estou bem. Só preciso de tempo. Na verdade, preciso conversar. Pode ficar comigo? Preciso saber o que está acontecendo aqui.

   — Sim. — Ela se sentou no banco ao lado do de Phaedra. — Não é uma história feliz, mas posso contá-la, se quer mesmo ouvi-la. Sou a mestre do acampamento, mas não luto. Cuido apenas para que haja comida para os homens, feno para os cavalos, água e limpeza. O fogo não pode nos delatar, e devemos recolher nossas coisas e seguir em frente e em ordem. Enfim, todas essas coisas que os homens não são capazes de cuidar por si mesmos. Num momento irei me certificar de que seus homens estão bem instalados e confortáveis. No entanto, receio não podermos desamarrá-los...

— Por quê?

   — Por que faço isso? Essa é a parte infeliz. Fiquei zangada. Não, furiosa. Revoltada! Foi há cerca de dezoito meses, acho. Você teve um filho, não? Vivo?

— Graças ao Céu.

   — Eu perdi o meu. Estava grávida quando meu marido se uniu ao grupo que deveria banir o seu de Tuscolo. Passei quase todo o tempo me locomovendo numa liteira para acompanhá-lo. Você conhece a história. Meus cavalos foram levados por todos aqueles bravos escudeiros e cavaleiros em sua pressa de seguir adiante. Fiquei jogada na lama com os outros. Ao anoitecer, perdi meu filho... E perdi meu marido, também, embora só tenha tomado conhecimento disso mais tarde. Ele não era um mau homem. Fui jogada numa carroça, toda ensangüentada, e levada com outros seis homens feridos. Enquanto viajava, eu ia pensando na incompetência daquele ataque, em como tudo havia sido mal planejado e ridículo. Por isso a odiei. Todos nós a odiamos. E os homens ainda a odeiam. É o que os mantém lutando depois de tantas derrotas. Tem sido pior desde que eles tomaram conhecimento do último fracasso, quando seu marido degolou alguns cavaleiros alegando que eles haviam mudado de lado. Às vezes eles cometem uma ou outra estupidez, ou tentam cometê-las... como Tancrem fez há pouco. Todos erramos nessa guerra. O seu lado não erra. Mas eles não vão desistir.

   — Não é mais meu lado, Amanthys. Por isso vim procurar Aun. E também quero falar com Septimus, se ele me ouvir.

Amanthys refletiu um pouco sobre sua declaração.

   — Tenho certeza de que ele a ouvirá. É provável que pretenda mesmo vir interrogá-la, depois de castigar os insubmissos. Vou ver se consigo trazê-lo.

   A multidão ainda estava de joelhos, com os olhos no chão enquanto o príncipe os censurava. O homem ainda tinha autoridade, depois de todos os desastres.

— O que ele faz aqui?

   — Está tentando recompensar os amigos. Os soldados de seu marido o tiraram de Develin, Então, ele atravessou o lago para escapar dos inimigos. Lackmere foi encontrá-lo e por isso não estava aqui quando recebemos a notícia de que você viajava para o sul. Se Tancrem houvesse percebido que os dois já estavam de volta, talvez tivesse pensado melhor antes de encenar toda esta farsa.

   — Amanthys, só mais uma coisa: por que se referiu a Maria com aquele tom piedoso? Por que a chamou de "pobre" Maria? O que aconteceu?

   — Ela estava em Pemini quando o lugar caiu nas mãos do inimigo. Deve saber que seu povo saqueou a cidade. Isso foi há seis meses, e, desde então, não soube de mais nada.

   O sacerdote havia mandado aquele jovem para defendê-la, como enviara Adam diManey defender Evalia diante do trono do rei. Se havia mandado Chawlin, devia ter sido ele quem despertara Martin em seu acampamento e o guiara pelas rochas marrons para encontrá-la. Por considerá-la uma peça em seu jogo, ou simplesmente por desejá-la viva para ver seu filho ser finalmente dominado pelas coisas sombrias que o cercavam? Não podia imaginar que razões distorcidas o motivavam. Mas confiara Ambrose aos dois homens que consideravam esse inimigo mortal um enviado do Céu, e a uma mulher maculada que já estivera em seu poder. Agora, não havia nada que pudesse fazer.

   Amanthys afastou-se. As pessoas retomaram suas tarefas no acampamento. Phaedra continuou sentada, olhando para a relva amassada, como um jogador que olha para um tabuleiro sobre o qual todas as peças já estão em xeque.

  

                               O Preço de Phaedra

Uma carta chegou alguns dias depois de seu retorno a Tarceny. Phaedra estudou o selo. O Sabujo Dançante não havia sido violado. E quando ela rompeu o lacre, descobriu que Evalia havia sido cuidadosa.

   A página começava com um comentário passageiro sobre as notícias da coroação de Ulfin. Um leitor casual, mesmo um espião, não teria visto nada ali a não ser o texto de uma mulher com muito tempo e pouca inteligência. Phaedra passara semanas na companhia de Evalia. Podia quase vê-la sorrindo enquanto escolhia as palavras com grande cautela. Martin devia tê-la prevenido sobre as cartas anteriormente violadas em Tarceny.

   No final da página, Evalia sublinhara a última frase de um parágrafo. Embora a linha parecesse enfatizar as palavras vazias acima dela, também as destacava dos dois breves parágrafos seguintes.

Adam está bem, embora, em verdade, deva dizer que suponho que ele esteja bem, porque anda tão envolvido com suas plantações que mal tive a sorte de conversar com ele nos últimos dias. Mais importante em seu coração é uma pequenina semente de carvalho que chegou aqui enrolada em uma corda cheia de nós num dia desses. Ela parece germinar e crescer onde a plantamos, embora o solo seja rochoso por aqui. Nós cuidamos dela com carinho e atenção. Querida Phaedra, lembro-me de quando a vi pela primeira vez. Não posso dizer por que seu rosto se destacou entre todos aqueles que a cercavam, mas já então me perguntei quem era e o que pensava de tudo aquilo que presenciava. Não sei o que vai fazer agora. Sei que deve estar ocupada. Mas, onde quer que esteja, lembre-se de que muitas pessoas desejam sua felicidade, e dentre elas lembre-se sempre de sua E.

   A corda com nós, a insígnia da ordem de seu sacerdote. Martin. A semente era Ambrose. Ele estava bem, seguro e protegido, pelo menos no momento em que aquela carta fora escrita. A guarda em Hayley supunha que Ambrose e seus seguidores estivessem em Tarceny, e Tarceny o imaginava nas montanhas, ou em Hayley.

   Ela redigiu um breve reconhecimento à carta de Evalia, como cabia a uma grande dama diante de uma mensagem enviada por alguém com quem ela não queria se relacionar, mas que não desejava ofender. A única coisa que se permitiu foi lembrar a história da visão de diManey e acrescentar que ouvira dizer que agora os monges do outeiro sabiam de coisas semelhantes. De fato, havia conhecido um deles, e ele tivera uma visão muito parecida. Escreveria mais sobre isso, mas o assunto era vasto demais para uma carta.

   Ela selou a mensagem pensando no filho. Ambrose sentia sua falta? Ainda se lembrava dela, ainda olhava em volta e chamava pela mãe? Não havia como saber.

   E parte dela não desejava conhecer a resposta. Temia a verdade. Devia conter-se e esperar. Até mesmo as bondosas e vagas frases na carta de Evalia significavam perigo. Por isso ela a queimou. Viu as chamas amarelas enrugando o pergaminho, escurecendo, destruindo, escondendo. No momento apropriado, você deve sacrificá-las sem misericórdia. Exceto o rei.

   Colocara seu rei onde ele devia ser guardado... Por trinta e uma pedras brancas e pelo zelo de uma mulher que um dia desprezara. Prevenira-a da melhor maneira possível. Agora, era hora de jogar.

   E sabia que as últimas palavras de Evalia não haviam sido apenas um cumprimento cordial, mas a súplica de uma amiga que não sabia se devia ou não dizer adeus.

   A noite caíra. As muralhas eram apenas sombras escuras buscando o céu. Phaedra ainda estava em seu quarto, pensando. Em Ulfin, em como ele a deixara sem dar explicações. Em Amanthys e em sua história. No sofrimento que a guerra causara a ela e a tantas outras pessoas. Em seu pai. Em Elward. Em Maria, perdida em Pemini. Em Ulfin.

   Diante dela, sob as janelas, deixara grandes fardos de seda negra e dourada que haviam chegado de Baer naquela tarde. Não sabia onde os mercadores a tinham encontrado, porque Baer não produzia tecidos dessa qualidade, e apenas quinze dias haviam transcorrido desde que ela as encomendara dos negociantes que passavam por ali. Algum herói devia ter abandonado tudo (esposa? família?) para ir correndo a Watermane e barganhado até esgotar o fôlego para atender ao capricho da nova rainha. Pensaria em recompensar esse homem, se ainda houvesse moeda no castelo para tanto.

   Infelizmente, o esforço fora sido em vão. Teria aceitado qualquer tecido de qualquer cor que chegasse em seus portões. Os mesmos criados teriam levado os fardos pela mesma escada até seus aposentos. O preço, qualquer que fosse, teria sido pago, e ela se valeria dos meios disponíveis para isso. Porque o tecido não tinha importância. O que importava era que, quando a porta se fechasse e os criados e Hera houvessem partido, seus dedos analisariam as dobras do tecido e encontrariam ali o que ela realmente buscava. Outros haviam estado ocupados quando o mercador desconhecido aportara. E nisso eles não se enganaram.

   O quarto era frio. Podia ouvir o vento uivando entre as pedras da chaminé e das paredes. Era hora de agir.

   Em pé, tomou uma vasilha de cerâmica contendo algumas rosas da lua, uma planta que subia pelas paredes do castelo durante a primavera. Aquelas haviam sido cortadas uma semana antes. Estavam esmaecidas, sem vida, e suas pétalas começavam a exibir um marrom feio nas pontas. Ela as misturou à água contida na vasilha e jogou a mistura pela janela. Depois, pegou embaixo de sua cama a garrafa que levara com ela em sua sombria viagem de volta das montanhas. E a sacudiu. Ela ainda continha a água retirada do pego. Phaedra removeu a rolha do cantil.

   Devagar, verteu a água na vasilha. Olhando para ela, tocou-a com as pontas dos dedos. Era apenas água, mas exalava um odor azedo por ter permanecido dentro do recipiente de couro. O que via com maior nitidez era seu reflexo, como uma sombra encapuzada na superfície da água. Ela hesitou.

   Estava prestes a fazer algo que nunca fizera antes, algo cujos resultados desconhecia, e nem sabia por que se dispunha a fazer tal coisa. Ulfin não respondera à carta que enviara para ele com urgência em seu retorno a Tarceny. Soubera que ele não responderia. Por isso, devia tentar outra via. Era um artifício que não deveria discutir com ninguém, mesmo que fosse um grande amigo. Especialmente um amigo. Estava em um quarto escuro, tateando em busca da porta.

   Aquela não era a vasilha; nem era o Cálice, que só vira em sonhos como uma grande taça nas mãos de Ulfin. Aquilo era apenas cerâmica comum. Mas a água... a água vinha da fonte sob o céu, em que a grande forma de Beyah se refletia e da qual bebia o sacerdote de trezentos anos. Aquelas eram lágrimas vertidas por amor, ódio e tristeza, derramadas dos olhos de um ser do início do mundo. Ao bebê-la, sentira o amor nela contido. Talvez ninguém no mundo conhecesse melhor do que ela a força daquela água. Vira sua escuridão pairando em sombras aterrorizantes em torno de seu filho. Ela deixara sua marca na escada. Tratava-se da ira de uma deusa que havia perdido o próprio filho quando o povo de Wulfram chegara.

   Aquele era o poder que o príncipe lesado usara contra a linhagem de seu pai. "Vivemos pela verdade", o bispo havia dito, e o que era a Lei senão o exercício da verdade? Agora, o sacerdote colocaria Ulfin, sua mentira, no centro da Lei. Quanto ódio e escuridão... Ulfin e seus irmãos não podiam ter ousado interferir, se realmente as entendiam! Talvez somente uma mãe pudesse entender.

E agora ela devia interferir.

   Se havia uma solução, ela a encontraria ali. Na água, na vasilha de cerâmica A luz era tênue. Havia algo de errado, ou estranho, com as distâncias. A água a conhecia. Podia ver os contornos das rochas no fundo da vasilha.

   O mundo era uma taça. Todos os lugares no mundo tinham seu ponto de correspondência na superfície da taça. Só precisava olhar para a vasilha. Então, como descobrir?

   Ulfin fizera tal coisa. Sua presença a alcançara em Trant e em Tuscolo. Não estava caminhando pelo vale das rochas escuras para emergir repentinamente em outro lugar qualquer. Enviava pensamentos, um sonho, talvez, como Ulfin havia feito. E pensamentos podiam voar.

   Ela se debruçou sobre a vasilha novamente, agora com maior confiança. Lembrava-se do caminho para o lugar das rochas marrons. Lembrava-se de Ulfin. Procurava por ele e podia senti-lo a oeste, acampado com um exército de aço a sua volta, repousando ou dormindo. Sim, e a água também o conhecia. Havia uma sala iluminada por tochas. Era o piso superior de algum abrigo, de uma casa, talvez, na estrada de Tuscolo para o sul. Fogueiras distantes tinham sua luz refletida naquelas janelas. Um pé envolto em metal se movia perto da porta. Um prato sujo e uma taça vazia estavam na mesa ao lado da cama, e sobre a cama ele jazia de bruços. E se moveu enquanto ela o observava.

Ulfin.

   Ele resmungou alguma coisa e balançou a cabeça. Seu sono era pesado. Phaedra não tinha muito tempo.

Ulfin, venha.

—    Phaedra?

Ele gemeu. Podia vê-la.

Ulfin, venha depressa.

   A visão estava desaparecendo. A água na vasilha interferiu. As chamas das velas pareciam dançar na superfície escura, marcando seu reflexo. Podia ver o quarto em que estava e, ao mesmo tempo, ainda via aquele outro aposento, em que Ulfin acordava assustado.

   — Phaedra! O que está fazendo? — Sua voz era fraca. Seu reflexo na água bloqueava a imagem do restante do quarto, como uma forma encapuzada. Uma forma encapuzada. Não era seu reflexo. A imagem de um rosto flutuava ali. Olhos claros cintilavam. Seus lábios se moveram, e ele falou.

— Que preço vai pagar?

   Ela olhou para o rosto do sacerdote na superfície da água. Havia quase esperado por isso.

—    Que preço vai me pagar, mulher, por meu poder?

Phaedra! Não!

Uma voz soava muito, muito distante.

   —Eu? Pagar um preço? — Ela se fortaleceu. — Nunca.

   Seu punho cerrado bateu sobre a mesa. A água se agitou na vasilha. Quando ela se acalmou, o rosto ainda estava ali, refletido em sua superfície. Como uma máscara de papel, não havia profundidade nele. Tomada por uma repentina coragem, ela pegou um lenço e cobriu a vasilha, apagando assim a imagem daquele rosto.

Estava tremendo.

   Pagar? Não havia nada a ser pago. Não obtivera nenhum conhecimento dele. E aquela vasilha não era o Cálice que ele entalhara. Aquelas eram as lágrimas de Beyah, que ela mesma recolhera e que ele nunca possuíra; nunca, apesar da terrível força transmitida por seu olhar. Felizmente, não conversara com ele por muito tempo.

Phaedra, Ulfin disse atrás dela.

— Não! — Ela se virou.

Não havia ninguém.

   Devia ter imaginado que ele tentaria entrar em contato imediatamente. Não havia pensado nisso. Devia estar desesperado para saber como ela fizera tal coisa, que barganha aceitara; queria saber se seus poderes estavam agora ameaçados. Tudo bem. Mas ele não teria sua resposta pelo Cálice. Teria de vir pessoalmente. E estava começando a compreender que seria muito, muito difícil convencê-lo a vir.

   O quarto estava frio e vazio. Era tarde. Devia acender o fogo.

   A vasilha ainda estava sobre a mesa, coberta por um lenço verde. Por fora, não havia nada nela que a diferenciasse das outras. Não havia nenhum sinal do que estivera flutuando na superfície quando olhara para seu interior pela última vez. Teria acabado? Sumido? Nesse caso, talvez pudesse utilizar a água novamente. Podia continuar chamando Ulfin até ele decidir vir. Ela tocou o lenço. Antes de erguê-lo, examinou a vasilha embaixo dele com os dedos. Não havia nada ali.

Mas não ousava remover o lenço.

Phaedra! O que você fez?

—    Que preço paguei, Ulfin? Diga-me!

   Silêncio. Não havia resposta. Cansada de esperar, ela se ajoelhou para acender o fogo.

   Lembrava-se de quando havia estado numa clareira da floresta, olhando para o homem gordo que metade do reino reconhecia como Fonte da Lei.

   Ele não a encarava, mas mantinha os olhos fixos num ponto diante dele no chão, ouvindo o que ela dizia.

   — Tenho um filho... ele ainda nem completou dois anos. Quando o vi pela última vez, ele começava a andar. — O pequeno Ambrose caminhava por um mundo cheio de perigos. Pesadelos que o ameaçavam além dos limites do círculo de pedras brancas. Febres e resfriados que todos os dias roubavam esses pequenos tesouros de suas mães. E... — Dentre todos os homens vivos, seus soldados devem considerá-lo o maior de todos os inimigos. Suponho que esperam ser reconhecidos, caso o matem, porque alguns o vêem como herdeiro do trono.

   O príncipe assentiu. Aun, sentado a seu lado, ouvia atento e sério.

   — Não peço o trono para ele — Phaedra prosseguiu. — Não quero riquezas nem títulos.

   — Ele terá minha proteção — o príncipe garantiu com voz firme. — Meus soldados não o atacarão, desde que ele não ofenda minha lei nem cometa traição contra minha pessoa. Mesmo que, já adulto, ele cometa tais faltas e seja trazido a mim por isso, eu o perdoarei. Uma vez. Depois disso, não poderei mais ajudá-lo.

   No mundo de aço da política, nenhum homem, nem mesmo Ambrose, poderia ser eternamente imune. O rei perderia sua autoridade e seus seguidores, se perdoasse duas vezes o mesmo infrator. Uma vez já seria ruim. Phaedra ainda lembrava toda a agitação que invadira a corte quando o rei jogara ao vento os favores de um barão para preservar um cavaleiro que se oferecera em defesa de uma mulher acusada de bruxaria. Havia algum bem na velha Tuscolo.

   E se Ambrose crescesse com o coração de Adam diManey, não poderia lamentar.

— E o bastante — ela reconheceu grata.

   A vasilha continuava sobre a mesa atrás dela. Não falara com o príncipe sobre esse assunto, nem pedira proteção para si mesma. Havia considerado que seus homens poderiam tê-la levado e queimado, deixando Ambrose em algum lugar seguro, considerando assim realizado o juramento do príncipe. E nem se importara. Também havia pensado em Ulfin, valendo-se de todo poder ao seu alcance para descobrir o que acontecia em Tarceny. Podia mantê-lo afastado enquanto estava acordada. Só precisava manter-se consciente dele e de sua presença. Mas em sonhos acabariam se encontrando na metade do caminho, na terra das pedras marrons. E isso não devia acontecer. Por isso não podia dormir. Ou, pelo menos, devia dormir quando ele não esperasse por isso, e não podia ser agora. Cochilaria durante o dia, até que ele chegasse.

   O fogo estava aceso. Phaedra decidiu acender também algumas lamparinas. Com o aposento iluminado, ela voltou à mesa e removeu o lenço que cobria a vasilha. O rosto flutuava na água diante dela. Os olhos se abriram e fitaram os seus. A boca se abriu para falar.

   Com uma maldição furiosa, ela pegou a vasilha e levou-a até a janela, e atirou seu conteúdo fora. Uma gargalhada rouca soou na noite.

  

                             Os Poderes do Aço

A velha lua mergulhava no horizonte, mas ainda era brilhante o bastante para iluminar um grande quadrante do céu. Phaedra a observava do balcão.

   A lua descia. Na última meia hora que passara ali, envolta em peles para proteger-se contra o vento frio, ela já havia descido metade do que restava para encontrar o horizonte. Logo, a porção inferior tocaria os cumes das montanhas, tingindo-as de prata até a luz diminuir e a escuridão se completar, anunciando a chegada de um novo amanhecer. E não tinha nada melhor para fazer do que andar, andar e andar, enquanto observava a lua.

   Era a oitava noite desde que chamara Ulfin por meio da vasilha.

   Um cachorro latia em algum lugar entre as oliveiras, mais de dois quilômetros longe dali. O latido profundo e rouco podia ser ouvido nitidamente. O que o assustara? Uma raposa? Uma fileira de cavaleiros silenciosos? Um pesadelo?

   Agora ele estava em silêncio. Podia ouvir os suspiros do vento. Os galhos das oliveiras se agitaram. A malha de um guarda tilintava contra a pedra da muralha. Lá embaixo, homens dormiam. E lá fora, homens dormiam. Famílias de seis, oito ou dez pessoas amontoadas em choupanas de um único cômodo, onde todos roncavam e o ar era quente. A lua prosseguia em sua lenta descida para o horizonte.

Umbriel, faça meu filho dormir bem.

   Alguma coisa estalou no bosque de oliveiras. Ela olhou na direção de onde julgava ter vindo o som, do outro lado do portão posterior, encosta abaixo. Não havia nada que pudesse ver. Apenas sombras e relva, imagens que se moviam com a luz da lua e com o vento, estímulos demais para olhos sonolentos. No momento seguinte, ela pensou ter ouvido um sussurro. Havia homens lá embaixo? Se havia, já deviam tê-la visto ali, em pé, ao parapeito da muralha. E dentro do castelo ela ouvia outros barulhos, passos apressados de homens que se dirigiam para o pátio externo. Uma dobradiça rangeu em algum lugar. Uma voz masculina soava em algum ponto do castelo, baixa, mas surpresa. Um cavalo relinchou. E de repente um cão latiu no pátio externo, até a voz de um homem gritar para que ele se calasse. Mais passos... metal tilintando... Homens armados.

Ulfin estava em casa.

   Ela suspirou, tamborilando com os dedos sobre o parapeito da muralha de Tarceny. Já havia decidido que não iria se deitar. Ele já devia saber que a esposa não havia dormido nas últimas noites. Voltara forçado, e à noite, como se quisesse surpreender seu próprio castelo. Ninguém o interceptara no portão. Caw ou o capitão da guarda deviam ter acordado com o lorde em pé ao lado da cama, exigindo ser admitido sem nenhum ruído ou demora. Talvez já estivesse em seu quarto, revirando-o com uma lamparina na mão, tentando encontrar a vasilha com a água, um livro ou qualquer outro artefato que pudesse confirmar que ela havia lidado com coisas além do mundo. Era melhor esperar. Os vigias do castelo diriam a ele onde poderia encontrá-la.

   A lua pairava sobre a beira do mundo. A sombra escura do pico de uma montanha pressionava o disco brilhante, deformando-o.

— Aqui estou, Phaedra.

— Você demorou — ela respondeu sem se virar.

— Quero saber o que esteve fazendo.

— Esperando por você.

   Ele se aproximou. Phaedra girou sobre os calcanhares para encará-lo e se deparou com um rosto forjado em aço.

   — Fez coisas proibidas. Quero saber por quê, e com que meios. E por que não me ouviu naquele momento.

   — Por quê? Porque queria que viesse. Por que eu deixaria de ouvi-lo? Porque, se o escutasse então, você não teria vindo. E os meios que utilizei você conhece muito bem.

— Não brinque comigo, Phaedra.

   — Não estou brincando! Quase morri de fome e você não veio! Escrevi avisando que havia sido feito prisioneira... Ulfin, quase fui morta! E você não veio. Eles me pegaram em uma estrada dentro de suas terras e submeteram-me a um julgamento para acabar com minha vida! Não leu minhas cartas?

   — Não correu nem uma pequena fração do perigo a que se expôs quando falou comigo. Por que fez aquilo? O que deu em troca?

— Nada, Ulfin. Eles...

— Não acredito em você.

   — Pelos Anjos! Já disse que não dei nada! Usei apenas o que restava da água que recolhi naquela manhã, no pego. Não fiz nenhum pacto. Falei com você antes que ele pudesse me impedir. E não teria sido obrigada a recorrer a tais artifícios, se houvesse respondido às minhas cartas. Desde então, não fiz mais nada. Joguei a água fora.

— Você a jogou? Quando?

   — Naquela mesma noite. Pergunte a ele, se não acredita em mim.

Ulfin parou. Parecia em dúvida.

— Onde está Ambrose?

   — Em segurança. — Ela se virou para não permitir que ele lesse a verdade em seu rosto. — Aqueles homens no bosque são seus? Deixou-os guardando a saída por acreditar que eu fugiria de você? Por que não os manda entrar e...

   — Eu perguntei onde está Ambrose. Não tente me enganar. Sou seu rei, além de seu marido!

   — Oh, então agora é rei! Sim, ouvi alguma coisa a respeito disso. Bem, Sua Majestade, seu filho está seguro, o que não poderia ser dito da mãe dele há quinze dias. Mas não se importa com isso, não é?

— Você não corria nenhum perigo. Onde ele está?

— Eu estava em perigo! E em suas terras...

— Todo o reino agora é meu!

   — E apesar disso, a garganta de sua rainha teria sido cortada, se Septimus não estivesse lá, também.

— Septimus?

   — A três dias de onde estamos. Vejo que finalmente consegui atrair sua atenção.

   Ulfin parou novamente. Estava cansado, como ela. E talvez começasse a acreditar no que Phaedra dizia. Mas não parecia preocupado.

   — Então, foi esse seu destino. Bem, Septimus já deve ter partido. Deve ter voltado a Bay, ou para o Litoral. E você ainda não respondeu. Onde está Ambrose?

Ambrose, Ambrose, Ambrose. Que preço pagou, Phaedra? Que preço você pagou, Ulfin?

— Já olhou em Hayley?

   — Ele não está lá. Sei que foi trazido para cá e levado para outro lugar. Onde ele está agora?

   — Quando ainda me amava, você me disse que eu não deveria permitir que se aproximasse novamente de Ambrose. Mas não se preocupe. Eu jamais poria em risco a segurança de nosso filho, mesmo que você me oferecesse a coroa.

E desta vez foi fácil virar-se e partir, deixando-o sozinho.

 

   Estava deitada em sua cama, exausta, mas não conseguia dormir. A cabeça doía. Um passo em falso, uma palavra pronunciada no tom errado, uma sentença que seus espiões desmentissem, e estaria perdida. Mas conseguira conter o medo. E ele não a impedira de partir quando desejara.

   Falar a verdade um ao outro. Havia dito a verdade e mentido em cada palavra... Assim como ele tinha feito desde que se casaram.

   O amanhecer ia penetrando preguiçoso pelas janelas. As portas de seu guarda-roupa estavam abertas. Em torno da cama estava a seda cortada e desordenada. Ulfin as retirara de seus lugares, provavelmente para examinar embaixo da cama. Bruxaria. Era o que ele estava procurando. Não tocara na túnica negra, ainda em seu cabide, como um fantasma sem cabeça. Isso era o suficiente.

   A porta da ante-sala se abriu, e os passos de um homem soaram fora do quarto. De repente, o silêncio retornou. O homem estava parado, ouvindo... Devia anunciar que estava acordada, e assim afugentá-lo? Talvez fosse pior. E se ele entrasse para insistir no interrogatório? Indecisa, ela permaneceu onde estava, quieta. Ele se movimentava pela ante-sala, movendo objetos, olhando atrás das cortinas, aproveitando a luz do dia para tentar encontrar algum sinal que não vira na noite anterior.

   Talvez tentasse falar com o sacerdote pálido. O que diria o monstro?

   Muito tempo depois, ela ouviu a porta se fechar novamente.

   Mais tarde, Hera entrou com uma refeição à base de frutas e pão. Phaedra comeu pouco, dando instruções à criada e orientando-a para repassá-las a todos os habitantes do castelo. O senhor de Tarceny e do reino estava em casa. Enquanto falava, ela estudava atentamente o rosto de Hera, que se mantinha sentada e com os olhos baixos, respondendo por monossílabos. Parecia miserável e esquisita. Phaedra estava a ponto de perguntar o que a incomodava, quando deduziu o que era.

   Hera havia sido interrogada, e sem nenhuma delicadeza. Devia ter sido sobre Ambrose e os sinais de bruxaria, certamente. E sobre as circunstâncias em que foram feitas cativas nos bosques além de Baer. Devia ter sido informada de que sua senhora cometera um terrível erro. Talvez houvesse sido ameaçada para não dizer a Phaedra que perguntas tivera de responder e estava apavorada pensando que agora, novamente, poderia ser castigada por sua senhora, que desejaria conhecer o teor do interrogatório.

   Phaedra não disse nada. Assim que foi possível, dispensou Hera para que cuidasse de suas tarefas. Seria muito melhor deixar que ela fosse encontrar algo para fazer do que tê-la ali a seus pés, tremendo o dia inteiro. Felizmente, Martin ainda não havia retornado.

   A tarde foi longa. Phaedra passou horas sentada à janela do quarto, olhando para o norte, para a paliçada que se estendia como sentinela por toda a terra. Nada se movia naquela região. E ali ela ficou até a luz ganhar uma tonalidade acinzentada, até as cores se apagarem. Os detalhes se perderam na paisagem, e as encostas das montanhas se transformaram em sombras com a chegada da noite. Quando Hera entrou para acender as lamparinas, Phaedra sorriu para ela e pediu que duplicasse as luzes, e depois a mandou à capela, para preparar, em suas palavras, uma vigília que ela realizaria naquela noite pela alma de seu pai.

   Sozinha novamente, Phaedra pegou as duas lamparinas e colocou-as lado a lado sobre o parapeito da janela. Ela esperou, contando. Quando chegou ao número cem, retirou-as de lá e contou novamente. Então as devolveu ao parapeito pela segunda vez, e pela terceira. Finalmente, parou e esperou.

Os minutos passavam.

Ela suspirou e olhou para a paliçada escura. Por que...

   Uma luz brilhou entre as árvores. Estava muito mais próxima do que ela esperava. A luz desapareceu, e voltou a aparecer, e novamente. E cada vez ela se movia um pouco, como se alguém caminhasse por entre as árvores com uma fonte de luz, movendo-se paralelamente à muralha do castelo e colina acima. Nada que alarmasse um vigia, mas o suficiente para mantê-lo olhando naquela direção, perguntando-se quando a luz voltaria a surgir.

   Phaedra tocou a gola da túnica. Dois anos de trabalho, e ela ainda não estava terminada; a seda era fria como metal sob seus dedos. Ela encontrou a costura, segurou a gola pelos dois lados dela, e rasgou a túnica da gola até a cintura. Ali, bem enrolados, estavam os quinze metros de corda que haviam sido enviados de Baer no interior da seda. Ela subiu em um banco e amarrou uma das pontas em uma viga, prendendo-a com toda a força que tinha. Depois, jogou o restante pela janela, onde ela ficou pendurada ao lado da escada, escondida de qualquer observador no posto da torre noroeste.

   Era uma noite escura. A lua não surgiria por algumas horas. Phaedra preparou-se para esperar novamente. O que significavam mais algumas horas de espera, depois de tanto tempo? Devia tentar desfrutar da quietude e da escuridão enquanto ainda podia. Logo, as coisas entrariam em movimento, e a velocidade dos acontecimentos seria maior do que poderia desejar. Era como se estivesse se aproximando de uma esquina na passagem de sua vida, sem saber o que encontraria do outro lado. O destino a esperava bem perto. Não sabia qual seria. Em uma das possibilidades, via Ambrose crescer e atingir a maturidade em Chatterfall, com Evalia contando a ele que tipo de mulher sua mãe havia sido. Não seria de todo mau. Evalia sempre havia sido generosa.

   Não, Phaedra! Ainda havia milhares de chances. De uma forma ou de outra, essa vida intolerável estava chegando ao fim.

Uma porta se abriu. Era a ante-sala de seus aposentos!

Ouvia passos do lado de fora do quarto. Ulfin!

   Remover a corda? Não havia tempo. Fechar a porta do quarto com os ferrolhos? Ele desconfiaria de alguma coisa.

Levando uma lamparina, Phaedra foi encontrá-lo.

—    Senhor?

   Ele estava em suas roupas de dormir, com seu fino robe de seda negra e listras douradas, a espada pendendo de seu quadril.

— Esperei por você à mesa do jantar, milady.

— Estava cansada.

   — Pena, já que se esforçou tanto para trazer-me para casa. Partirei ao amanhecer.

Ela se sentou em um banco para encará-lo, perplexa.

   — Não vai fazer nada com relação aos homens que me ameaçaram, senhor?

   — Caw cuidará deles. Acho que são mais espiões do que saqueadores e não creio que tenham sido a razão para a senhora ter feito o que fez.

Ela baixou os olhos.

   — Ninguém gosta de ter uma espada em sua garganta, senhor. E nenhuma esposa espera ser ignorada quando pede proteção ao marido.

Ele se acomodou numa cadeira diante dela.

—    Onde está Ambrose?

   Atrás dela, no quarto, alguma coisa estalou. Ela não ousava se virar. Não conseguia lembrar nem se havia fechado a porta.

Ulfin a observava e esperava por uma resposta.

   — Quer jogar, meu lorde? Se vencer, talvez eu diga o que deseja saber.

— Eu vou vencer.

   — Vai descobrir que meu jogo mudou, senhor. Deixe-me jogar com as brancas.

   — As brancas? Bem, se prefere... Para mim não faz diferença.

   Arrumaram as peças num tabuleiro entre eles. Phaedra batia com as peças brancas na madeira, fazendo grande barulho. Ulfin era silencioso. Ela deixou um peão no centro do tabuleiro. Ulfin fizera seu movimento antes mesmo de ela terminar de arrumar suas peças. Um cavalo no meio do bispo e da rainha. Inesperado, no mínimo. Ela teve de parar para pensar.

   No silêncio, a corda rangeu novamente. Phaedra pensou poder ouvir o fantasma de uma sola de couro sobre pedras. Ulfin levantou a cabeça. Ela levou o cavalo à frente, e os olhos dele voltaram a estudar o tabuleiro.

   Ulfin jogava depressa, e ela o seguia. Teria preferido pensar com mais calma, mas devia mantê-lo concentrado na partida. E já estava num grande dilema. De alguma forma, com o mesmo número de movimentos, ele havia conseguido avançar mais do que ela. Agora, tinha de adiantar sua rainha, algo que Aun sempre a aconselhara a não fazer.

   Tip, tip... As peças se moviam. Grunt, a corda rangia de tempos em tempos.

   Ele já devia ter escutado o barulho. E ela tinha de executar outro movimento rápido. Sua rainha estava sendo atacada.

— Vai perdê-la — ele disse.

   — Mas ainda não sabe o que estou fazendo. — Sua mão hesitou. Os olhos dele acompanhavam cada movimento. E, ignorando o perigo, ela usou um cavalo para penetrar a defesa adversária.

   Foi um movimento ousado. Uma farsa. Podia ver a contrariedade no rosto dele. E então sua expressão mudou. Seus olhos buscaram a porta do quarto. Lá dentro, soava o farfalhar de tecidos e o ranger de botas sobre pedras. Um corpo caiu pesado no chão. Um homem gemeu. Um passo. A maçaneta girou.

Aun surgiu na soleira, ofegante.

   Ulfin levantou-se sem emitir um som. A mesa balançou e caiu no chão. Phaedra caiu e tentou escapar sobre as mãos e os joelhos. Quando alcançou a porta externa, ela a trancou com os ferrolhos. Depois se virou.

   Os homens se encaravam sobre a mobília caída. Ambos empunhavam suas espadas. Os olhos de Ulfin brilhavam na direção dela. Ela estava ao alcance de sua lâmina. Aun estava do outro lado, a um segundo de um ataque preciso. Ela se encostou à porta, furiosa, exibindo os dentes.

Mas Ulfin olhava para Aun.

—    Muito bem, vamos lá.

   No quarto, a corda rangeu novamente.

   Aun atacou, acertando Ulfin na região das costelas, mas ele usava uma malha metálica sob o robe de seda.

—    Aqui! — gritou. — Preciso de ajuda! Aqui!

   Aun atacou novamente. Ulfin bloqueou o ataque. Não tinham espaço para grandes movimentos. Aun tentava colocar-se entre Ulfin e a porta, mas foi repelido mais uma vez. Ulfin também olhou para a porta, mas ela estava aferrolhada, e teria de abri-la enquanto mantinha Aun afastado com a outra mão. E teria de cortá-la, antes de mais nada. Phaedra olhou em volta procurando por uma cadeira ou um banco que pudesse colocar entre ela e a espada.

—    Guardas, ajudem!

A corda rangeu. Um segundo homem pulava a janela.

   Ulfin atacou, mirando a cabeça de Aun, e depois, sua coxa, mas ele se esquivou, gemendo ao sentir a lâmina atingir seu cotovelo e as costas. Phaedra encolheu-se e gritou quando a espada curta de Trant atingiu o rosto de Ulfin. Ele caiu sem emitir um só grito.

   Aun se manteve sobre ele por um momento; então sacou uma faca que levava na cintura.

—    Não o mate! — Phaedra pediu.

Ele a encarou.

   Outro homem esperava na porta do quarto. Além dele, a corta rangeu novamente.

—    Está ferido? — perguntou o recém-chegado.

   — Sim e não — respondeu Aun —, mas vou ficar bem. Eles ouviram?

   Phaedra colou o ouvido à porta. Podia ouvir sons distantes.

— Não sei.

— Quantos na porta do fundo?

   — Dois, eu acho. Desça a escada e vire à direita, depois novamente à direita na passagem para os depósitos. Eles devem estar na saleta no final do corredor, à esquerda da porta. Não quero que os mate.

Um terceiro homem pulava a janela.

   — Vamos, então. Mantenha os outros em estado de alerta. Não podemos esperar.

— Chawlin está na corda.

   — Então, acene para afastar os outros. Chawlin pode vigiá-lo — Aun decidiu, apontando para Ulfin, no chão. — Vamos.

   Passaram pela porta com suas armas em punho. Phaedra viu o sangue de seu marido na lâmina de Aun. Abriu a boca para dizer alguma coisa sobre não matar, mas calou-se, sabendo que o pensamento era inútil.

   Os ferrolhos foram removidos. A porta se abriu para a escuridão do corredor. Ninguém os deteve. Os homens saíram silenciosos.

Estava sozinha.

   Ela pegou a espada de Ulfin e a colocou fora do alcance das mãos dele. Era pesada e fria. Supunha que, se os soldados viessem agora, poderia ameaçá-los com ela, mas seria melhor trancar a porta novamente. De fato, era o que faria imediatamente. Mas...

Ulfin estava caído no chão do quarto. Seu rosto estava voltado para baixo, mas ele tentava levantar a cabeça. Havia sangue. Muito sangue. E ele gemia.

   Devagar, ela se levantou e foi para o quarto, onde a corda balançava solitária. Ela rasgou uma tira bem larga de sua preciosa seda preta e, quando empurrava o fardo para perto da cama, viu um par de mãos surgindo na corda além da janela. E uma cabeça. Era o jovem que a defendera na floresta. Ele enfrentava dificuldades.

   — Aqui — Phaedra chamou-o, ajudando-o a pular a janela. O rapaz caiu exausto no interior do quarto.

— Onde eles estão?

   —Desceram. E você deve ficar aqui. Venha e ajude-me.

   Ela levou a seda para a ante-sala e, ajoelhando-se ao lado de Ulfin, segurou sua cabeça. Seu rosto estava banhado em sangue, e havia uma poça impressionante no chão. Ele parecia fluir abundante da face e da testa. Phaedra usou o tecido para pressionar o ferimento, tentando estancar o sangue. Era inútil. O rapaz se aproximou para sustentar a cabeça de Ulfin, enquanto ela a envolvia com a seda e a amarrava com força. Então, eles ergueram os ombros de Ulfin e o arrastaram para o quarto, onde o colocaram na cama. Os dois se entreolharam. Estavam sujos de sangue, e havia uma longa trilha no chão.

   — Precisamos de mais bandagens — o rapaz decidiu. — E água.

   — Pegue tudo que for necessário — disse Phaedra, apontando para os fardos de seda. — Vou procurar um jarro. Fico... feliz por ser você, Chawlin.

   Era o máximo que se aproximaria de agradecer por sua interferência no acampamento.

   Hera havia deixado um jarro com água potável sobre uma das mesas da ante-sala. Mas a mesa fora derrubada durante a contenda. O jarro estava quebrado e seu conteúdo ensopava o tapete. Phaedra hesitou, olhando em volta. Podia ouvir gritos não muito longe dali. Alguém fazia soar uma trombeta; um alarme. Não se lembrava de quando o som havia começado. Passos ecoavam no corredor, aproximando-se rapidamente.

A porta permanecia aberta! Não tivera tempo de trancá-la.

   Uma figura surgiu na soleira, armada, olhando para dentro. Era Tancrem. Seu rosto tornou-se mais duro ao reconhecê-la, mas ele não entrou.

—    Como chegamos ao salão?

   Ele devia estar vindo dos depósitos. Havia mais três homens com ele.

   — Sigam em frente pelo corredor. Antes de alcançarem a porta da torre, verão uma escada que desce, à direita. Ela os levará à galeria. O que está acontecendo?

   — A guarita interna é nossa. Mas eles ainda defendem o salão, e existem mais na muralha. Fique aqui.

   Ele se virou e correu na direção indicada, seguido de perto pelos outros homens. Em algum lugar, alguém gritava. O som era abafado pelo de uma trombeta, mas voltava a ecoar pelas paredes do castelo. Quem estava no salão? Homens como Caw e Albernay, sem armadura, lutando mal armados por um senhor que não sabiam ter caído? E ela precisava de água. Phaedra olhou pela porta e constatou que o corredor estava vazio.

   Os gritos soavam mais altos à medida que ela prosseguia atrás de Tancrem. Podia ouvir o choque de metal contra metal, e alguém gritava de dor. Na porta da torre ela parou e ouviu, mas não havia nenhum som além dela. Ou os guardas abandonaram seus postos lá em cima, ou estavam muito quietos.

   Do salão vinha o estrondo de um combate feroz. Homens exigiam rendição, outros gritavam em desafio. Ela desceu a escada cambaleando. A galeria estava vazia.

   O salão era a imagem do caos. Mesas viradas, comida espalhada pelo chão, homens caídos aqui e ali como bêbados num cenário de orgia. Tancrem e seus homens estavam reunidos na porta, por onde outros entravam numa verdadeira torrente, todos seguidores de Septimus. Eles removiam uma mesa da porta, um móvel que devia ter sido usado como barricada pelos defensores até Tancrem atacá-los pela escada da galeria. Do outro lado do salão, meia dúzia de homens de Tarceny seguravam uma mesa tombada e se escondiam atrás dela, encolhidos num canto. Estavam em número muito menor do que seus atacantes. E haviam notado sua presença.

   A trombeta já não soava. Por um momento, ela conseguiu pensar. Identificava a cabeça grisalha de Caw entre os defensores.

   — Baixem suas armas! — ela gritou. — Baixem-nas agora!

   Por um momento, todos olharam em sua direção. Depois gritaram. Eram ameaças, pragas, maldições. Um braço se ergueu, lançado à frente. Alguma coisa cortou o ar voando em sua direção. Uma faca! Ela se chocou contra uma parede à sua esquerda. Os homens na porta gritaram e se lançaram para dentro do salão, atirando-se sobre as mesas. Aço e sangue se misturavam numa dança macabra, e da galeria uma mulher de dezenove anos assistia estupefata à matança que desencadeara em sua própria casa.

  

                                 Os Poderes da Sombra

Havia um homem encolhido entre os vasos de menta no pátio da corte. Era Vermian, e estava morto. Os braços e a cabeça eram um emaranhado de cortes de espada, e seu último gesto havia sido erguer os braços para proteger o rosto. A luz da lamparina de Phaedra, seus olhos abertos brilhavam de forma sinistra.

   Estava acabado. Os homens sem líder na muralha externa se haviam rendido. Diante da guarita do portão, o príncipe Septimus se ajoelhara e, grato e feliz, beijara a barra de seu vestido ensangüentado. Ela providenciou para que os feridos, Caw entre eles, fossem levados para um hospital improvisado em um dormitório. Vira os prisioneiros serem levados para um sólido depósito de onde não poderiam escapar. Vira os olhares que lhes eram lançados. Um homem havia sido chutado e amarrado pelos guardas por ter gritado algo que ela não ouvira.

E agora eles reuniam os mortos.

   Alguém atravessava o pátio em sua direção. Ela ergueu a lamparina. Martin emergiu da escuridão e olhou para o homem aos pés de sua senhora.

— Ele planejava se casar — explicou Phaedra.

   — É necessário que haja sangue para deter uma guerra, milady. E se ela não for detida, haverá sangue mesmo assim. Com sorte, esta poderá agora ser encerrada.

   Phaedra virou a cabeça. Queria apagar da mente as horríveis imagens. Queria chorar, mas não conseguia; estava enjoada e exausta.

— Quando chegou?

   — Há meia hora. O portão do fundo estava aberto, e não havia ninguém lá para guardá-lo.

Ela olhou em volta.

— Viu Hera?

   — Na capela. A porta está trancada. Devo voltar e dizer a ela que pode sair de seu abrigo. Mas, antes, quis encontrá-la. Está ferida?

   — Não. O sangue que vê em minhas vestes não é meu, mas de Ulfin.

— Dizem que ele a está chamando.

— Não quero vê-lo. Ambrose...?

   — Estava bem quando o deixei. Quando compreendeu que eu vinha para cá, ele me deu algo para você. — O sacerdote retirou algo de sua bolsa e entregou o objeto a Phaedra. — Dê para mamãe, ele me disse.

   Era uma das pedras brancas. Ela cerrou os dedos em torno do objeto.

Martin parou ao ver o corpo de Vermian.

— Vou levá-lo para dentro.

— Precisa da luz?

— Não.

— Não se esqueça de Hera.

   Ele resmungou alguma coisa, e Phaedra deduziu que ele já havia esquecido, apesar de tê-la mencionado um momento antes. E lembrou-se de que ela havia saído de seu quarto para ir procurar água para limpar o rosto de Ulfin. Isso havia sido horas atrás.

   O pátio estava escuro e quieto. A bacia de pedra da fonte brilhou sob a luz da lamparina quando passou por ela; o lugar em que ela e Ulfin haviam trocado um beijo em seu primeiro dia em Tarceny. A bacia estava vazia. Suas águas estavam silenciosas agora.

   Chawlin levantou-se quando ela entrou na ante-sala de seus aposentos. A porta para o quarto estava aberta. Podia ver luz além dela, e a forma de um homem sobre a cama.

— Como ele está?

   — Consciente. E com dores, é claro. Creio que o sangramento foi detido.

— Sente-se, por favor.

   Alguém, Chawlin, presumivelmente, tinha levantado as mesas derrubadas na luta. O lugar havia sido arrumado. O sangue fora removido do chão... Não. Não podia ser. Mas ele arrastara o tapete para cobrir as manchas. O quarto exibia uma aparência serena e inofensiva. Além do próprio Chawlin, um rapaz de ar calmo com uma espada sobre os joelhos, não havia mais ninguém nem qualquer sinal de que alguma coisa tivesse acontecido ali.

   Phaedra hesitou. Pela janela podia ver a silhueta da paliçada se estendendo ao norte do castelo. A noite estava mais clara do que antes. Em algum lugar além das torres e nuvens, a lua se erguera novamente, espalhando pelo céu um brilho desprovido de cor. Ela sentia um súbito desejo de estar lá, movendo-se pelo vasto piso da noite, longe das pedras onde espadas haviam cortado carnes e todos os seus males eram lembrados.

   Lá fora, na suave escuridão. Mas a noite nunca fora sua amiga. Havia pedras sob seus pés e uma lamparina em sua mão, e além da porta jazia o homem que ela traíra.

   Phaedra entrou no quarto e deixou a chama da luz sobre uma mesa. Chawlin, ou alguém, também havia trabalhado ali. Os tapetes e lençóis sujos de sangue tinham sido empilhados em um canto, e as sedas, foram empurradas para debaixo da cama. A túnica desaparecera. Ulfin estava deitado, com a cabeça envolta por tecido, de forma que só um olho era visível. Ele a encarava.

— Aqui estou — ela disse.

   — O que aconteceu? — Falar parecia causar dor ainda maior.

   — O castelo foi tomado. Septimus está aqui. Você é seu prisioneiro.

— Por que...?

— Por que eu...? Então não sabe?

— Não.

   Ele não parecia ressentido, acusador ou contrariado. Apenas confuso. Perplexo. E isso era ainda pior. Por um momento ela não foi capaz de encará-lo. Não o mate! Podia ter deixado os invasores cortarem sua garganta e encerrar o assunto. Porque eles deviam matá-lo. Não podiam permitir que vivesse. Não depois do que ele fizera. Em alguma praça de mercado, diante de uma multidão...

   — Por que... por que devo justificar-me diante de você, Ulfin? Teria me deixado para morrer nas rochas. Você...

— Mas você não corria... perigo.

   — Não? Não? Agora perdeu a memória? Ou está se escondendo até de si mesmo? — Ela se virou.

— Phaedra!

   — Não tenha medo. Não vou embora. — Ela se dirigiu à porta para a ante-sala. Chawlin ergueu os olhos. Devia ter escutado cada palavra do que fora dito ali.

   — Por favor, mande avisar irmão Martin — Phaedra pediu ao rapaz, que hesitou. — Ele é o capelão do castelo. Creio que o encontrará na capela, lá embaixo.

Chawlin saiu. Ela fechou a porta e retornou ao quarto.

   — Martin me encontrou — disse. — Não sabia que ele havia estado naquele lugar, não é? Ele poderá relatar o que aconteceu comigo depois de sua partida. E depois, creio que ele deverá ouvir o que você tem a dizer.

   — Quer uma confissão? Penitência? Eu não. E nem quero um sacerdote.

— Para mim, então.

— Se quiser...

E eles esperaram.

Depois de um tempo, ele a encarou novamente.

—    Meus homens?

Phaedra pigarreou.

   — Sei que nove estão mortos. Pode haver mais. Albernay estava entre eles. Caw e Hob foram feridos. Estão no hospital improvisado com alguns outros. O restante foi feito prisioneiro. — Não diria que alguns poderiam estar, e provavelmente estavam, escondidos dos homens de Aun em recantos obscuros do castelo.

— Diga a Septimus para matá-los.

— O quê?

   — Não desejo o mal para meus homens. Mas os que sobreviverem a perseguirão. E Orcrim. Precisa pegá-lo. E...

—    Não quero derramar mais sangue, Ulfin.

Ele sorriu com amargura.

   — Mais sangue será derramado. Esses homens... seguem Septimus. Mas lutarão. Quando eu estiver acabado, lutarão entre eles mesmos.

Então ele sabia que não havia esperança.

—    Septimus os conterá.

   — Septimus também lutará. Mais do que todos. E Lackmere. Lutarão por você.

— Não!

   Não haveria disputa. Era hora de parar. E quando tudo acabasse...

   Septimus pedira sua mão. Talvez ele repetisse o pedido. O que Aun faria? E havia a Fronteira. Tarceny seria dela se Ulfin desaparecesse. E as propriedades de Trant. Tarceny e Trant: chaves para o reino. Alguém desejaria tomá-las, por meio dela. Podia antecipar o jogo que se abria diante de seus olhos. Algo em seu coração ficou gelado.

   — Pensei em pedir clemência para você — ela revelou, tentando entender por que alimentava uma esperança que, sabia, era vã.

   — Eles não vão me enforcar. Fui rei. E uma mosca na teia. As duas coisas ao mesmo tempo. Agora acabou. Não é Septimus...

— O que está dizendo?

— Ambrose ainda tem as pedras?

Ela apertou aquela que ainda estava em sua mão.

— Sim — respondeu.

   — Estou acabado. Mas feliz, Phaedra. E melhor. E poderei encarar meus irmãos quando os encontrar.

   Novo silêncio. Além da janela, a chuva se aproximava. A escuridão era completa.

   — Calyn sabia — ele continuou. — Pegamos as pedras juntos, mas, mesmo então, ele já sabia mais do que eu. Tentou prevenir-me. E seu último ato foi enviar-me as pedras brancas que ele havia retirado dos dentes de Capuu no pego. Nem mesmo o amor e a ira da Mãe do Mundo pode passar por elas. Talvez, se Calyn não houvesse... Mas eu já havia começado. Conversamos. Eu havia recebido o Cálice. E a vi à beira do pego. Sim, fiz meu pacto.

— Pacto? Que pacto?

A porta do quarto se abriu.

—    O capelão, milady — anunciou Chawlin.

   Martin vestia uma batina simples e mantinha a cabeça coberta por um capuz. Ele entrou com passos silenciosos e parou ao lado de Phaedra.

— Que pacto, Ulfin?

Ele olhava para o teto.

— Um acordo que deixei de cumprir.

— E os termos?

— Irão... comigo.

   — Talvez eu possa ajudá-lo — ela insistiu, estranhando a voz calma e seca, que poderia pertencer a outra pessoa. — Queria poder, é claro. O Cálice lhe dava esse poder. A capacidade de ver longe, de andar em sonhos e atravessar o mundo movendo-se por lugares sombrios. Muitos truques dessa natureza. Creio que os escreveu em um livro, que pode estar perto daqui. Eu dei a você o poder de amar e ser amado por alguém com quem você escolheu beber desse Cálice. Enfeitiçou-me, Ulfin. Pensou que eu jamais descobriria sobre o que roubou de mim?

   A voz dela tremia. Ulfin permanecia deitado, e Martin sentou-se. Todos eram como estátuas enquanto ela falava. Phaedra respirou fundo. O preço...

   — Mas antes de tudo foi pela vida de seu pai, para vingar o irmão com quem você se havia ligado pela água. Sabe que em dois anos nesta casa eu nunca me perguntei como você havia conseguido pôr fim à vida de seu pai? E estava bem aqui, diante dos meus olhos. Caw apagou rapidamente as marcas que vimos na escada. Tão depressa que eu pensei... talvez... que aquelas coisas já houvessem sido encontradas na casa antes. Diante da lareira do salão, onde o padrão do piso foi modificado, trocado por mármore negro, porque você não conseguiu obter o branco.

A chuva batia forte contra a janela.

   — De que outra forma, diga-me, um jovem sem amizades poderia ter vencido um senhor tão cruel e bem armado? E você seguiu adiante. Quando Trant caiu, vítima de sua arte oculta, embora tenha permitido que eu e todo mundo pensássemos que a culpa era minha, você investiu contra a vida do rei. E o rei morreu...

— Você mentiu!

Ela o encarou.

— Disse... que não havia falado com ele.

   — Se houvesse mentido para você, Ulfin, não teria sido a primeira a enganar nesse matrimônio. E eu não menti. Não falei com ele. Ele falou comigo, no pego, quando me deu a água que finalmente rompeu o elo entre nós. Essa é a verdade. E é o tipo de verdade que você me tem dito há dois anos. E eu? Por que me enfeitiçou, usando um encantamento para manter-nos unidos por todos esses anos? Foi por Trant: o caminho que percorreria para o coração do reino. Ou foi porque... porque somente por mim você poderia pagar seu preço? Como poderia viver comigo, Ulfin? Como poderia ter permanecido casado comigo, olhando em meus olhos, sabendo que o preço a ser pago era a vida do nosso filho?

— Não!

   — Para um pai, a vida de um filho, ele disse. Para um rei, a vida de um rei, Ambrose Umbriel, o rei que um dia seria. Preferiu me deixar morrer a fazer essa revelação. E por isso fiz o que fiz!

   — Eu... não o conhecia! Phaedra! — Ulfin levantou-se, apoiado em um cotovelo. Seu rosto se contorceu na dor. Ela viu a abertura na gola de sua camisa e uma pequena chave preta pendurada em uma corrente em seu pescoço. Ele se esforçou para não perder o controle, para manter-se calmo. — O que diz é verdade...

   — Verdade! — Phaedra gargalhou histérica. — Nunca pensei que um dia ouviria essa palavra de sua boca! Dizer a verdade um ao outro! Que maldição foi aquela! Cumprir suas promessas, incluindo a promessa que fez a ele. Qual foi a outra? Que suas vidas sejam espelhos uma para a outra! Nós dois levamos nossos pais à morte. Você fez um pacto para ser rei e ofereceu seu filho. Eu fiz um pacto com o rei, para salvar seu filho. E meu preço foi você. Pelos Anjos!

   — Phaedra... pense o que quiser. Mas não pense que eu poderia dar um filho que conhecesse pelo poder, ou me casar com você por qualquer outro motivo que não fosse você mesma. Quando fiz esse pacto... não sabia qual seria o preço. Ele só disse que o revelaria quando chegasse o momento. Eu era jovem, estava sofrendo, odiando tudo e todos... Teria dado qualquer coisa que tivesse ou que acreditasse que um dia teria para me vingar de meu pai. Depois disso... apenas usei o que ele me deu. Nunca houve uma só palavra sobre preço. Presumi que ele me favorecia por ser eu o último da linhagem de seu pai. E ele me mostrou você à beira do pego. Lembra-se disso? Estava perto de entregar-se à morte quando falei com você. No entanto, se soubesse qual seria o preço, jamais teria pedido para desposá-la. Acredite nisso. Só quando falei com ele depois de tomar Trant pude compreender o que ele pretendia. E então já estava comprometido com a guerra contra o rei... uma guerra que eu não poderia vencer sem a ajuda dele. Então, retornei, quando pude, para você. Pretendia levar Ambrose naquela ocasião. Mas, quando o vi, quando ouvi o nome que havia escolhido para ele, quando me dei conta de quanto a amava... Não pude desistir dele.

   Orcrim e Caw o haviam prevenido, apontando uma semelhança imaginária com o irmão que ele tanto amara. Haviam deduzido, esses homens que agora ele a queria convencer a matar. Salvaram seu filho enquanto ela ainda ignorava o perigo. Phaedra respirou fundo para falar, mas agora era inútil.

   — Então, rejeitei o Príncipe Sob o Céu. Entreguei a Ambrose as pedras que mantinha para minha proteção. Cerquei-me de homens armados, sabendo que ele e os dele podem ser feridos pelo aço. Não usaria mais o poder por ele oferecido, embora meus homens pagassem caro por isso. E fui para as montanhas, onde você me encontrou, para informá-lo de que não poderia ter aquilo que desejava, e para fazer outro pacto.

   — Descobriu que precisava dele mais do que ele precisava de você.

— Se eu pudesse impedir tudo isso... sim...

   — Confiou a uma criada e a uma ama-de-leite segredos que não confiou a mim.

— Elas entendiam o que você não podia entender.

   — Quer dizer que elas não fariam perguntas que eu teria feito! E nos deixou aqui. Saiu para usar o poder que, sabia, só poderia ser retribuído de uma maneira. Deixou que ele o libertasse do amor que havia criado entre nós, porque assim teria forças para pagar seu preço. A vida de Ambrose!

— Há outra interpretação.

   Ela parou. Ulfin se deixara coroar em seu retorno das montanhas. Por quê? Para um rei, a vida de um rei. Ele se tornara rei, de fato, enquanto Ambrose...

— Está dizendo que teria oferecido sua vida...?

   — Não se eu pudesse... evitar. Esperava que o tempo me trouxesse uma terceira opção. Mas, se não...

   Ele havia exigido saber onde estava Ambrose. Mas também a prevenira sobre a necessidade de manter o menino longe dele, escondido. Se havia realmente sido pego nessa rede ainda na juventude... Se havia colocado a própria vida em risco duas vezes pela segurança do filho... Pela primeira vez desde que passara pela porta, Phaedra sentiu sua convicção fraquejar. A nitidez amargurada que conduzira seu discurso se dispersava.

   Ulfin olhou para o sacerdote para ver se ele também o entendia.

E ficou paralisado.

   Então, como uma serpente, seu braço se distendeu, e a mão agarrou a batina do religioso. O capuz caiu.

Não era o rosto de Martin sob o tecido.

   Uma cabeça pequena, quase sem cabelos, ostentando um fino círculo de ouro. A pele de um tom amarelo meio acinzentado que se cobria os ossos, rígida. Olhos fundos em órbitas profundas como pegos entre rochas escuras. O sacerdote pálido fitava impassível o homem diante dele.

   — Mais uma vez distorce a verdade, filho de Talifer — ele disse. — Recusa-se a me entregar o menino. No entanto, presumiu que se, apesar de seu empenho, eu pudesse passar pelo círculo de pedras brancas e tomá-lo, você se encontraria sem dívida ou culpa, e toda a responsabilidade recairia sobre as três mulheres fracas encarregadas de guardá-lo. Terei minha retribuição. Não há uma terceira alternativa. Não há uma segunda chance. Se um homem tenta enganar-me, cobro o preço dobrado. Sua vida é minha, filho de seu pai e rei autoproclamado. E mesmo assim, não salvará seu filho. O menino não poderá ficar dentro do círculo para sempre. Um dia eu também o terei, e então nosso pacto se cumprirá. A não ser que o seguinte aconteça — ele continuou, virando-se para Phaedra. — Faço uma oferta somente a você. Vinte anos de vida, por seu marido ou por seu filho. Um deles será meu imediatamente, ou assim que um mensageiro puder atravessar o lago. Escolha depressa.

   Phaedra não conseguia responder. Como ele chegara até ali? Onde estava Martin? A voz do religioso soava do outro lado da porta, conversando com Chawlin; confuso, porém despreocupado. Dez passos distante de onde ela conversava com o sacerdote pálido.

   — Pensa contra mim, filha de lavradores? Não pode! Sua vida é minha três vezes. Mandei o sacerdote tolo ir resgatá-la entre as pedras. E a despertei antes que morresse de fome por um amor que já a havia traído. Você é minha. Não pode escapar. Escolha. Vinte anos é um bom tempo de vida. Muitas crianças que nascerão amanhã morrerão antes disso. Ou cinqüenta anos para o homem, e talvez ainda tenha mais filhos.

   Ele poderia livrar Ulfin da execução? Faria tal coisa? Mas não podia oferecer a vida de seu filho. Ele devia saber disso. Devia saber, e Ulfin também sabia que escolha ela faria. Se a poupara fora para usá-la como peça em seu jogo. Todos esperavam por sua decisão.

Ela apertou a pedra branca em sua mão.

   Ele a poupara para levar Ulfin à derrota. Poupara sua vida apenas para esse momento. Queria que Ulfin a ouvisse condenando-o. E, ainda assim, ela estaria fazendo um pacto com o sacerdote pálido.

—    Eu o rejeito.

—Não pode. Terei um ou outro, ou os dois. Escolha.

Nada era real ali, exceto a pedra branca que lhe fora enviada por seu filho.

— Não.

— Vinte e cinco anos!

   De repente, ela riu. Não conseguia imaginar que propósito movia o sacerdote. Mas ele demonstrava fraqueza, e embora ainda sentisse medo Phaedra sabia que podia e devia resistir. E Ulfin se esforçava para levantar-se, o olho descoberto fixo na aparição, sua sombra distorcida erguendo-se como um anjo na parede atrás dele.

   — Velho! Verme rastejante e mentiroso! O que significam seus pactos e promessas senão a ruína daqueles que o presenteiam? Não fez nada em trezentos anos além de levar a desgraça e a destruição à casa de cada um de seus irmãos? Porque eles o deixaram sem nenhuma terra a não ser aquela que não conseguiu sustentar e manter. Invejoso, infeliz, enganado! Ouça-me! Eu pagarei seu preço... nosso preço... com meu corpo. Mas depois você partirá, porque minha casa não terá mais nenhuma dívida com você.

   — Você é meu, e sua casa será minha, e só então teremos cumprido nosso pacto.

   Mas Ulfin respondeu, Ulfin e alguém atrás dele, porque havia uma nova luminosidade em seu olho e um poder em suas palavras que vinha de longe, de algum lugar muito além das fronteiras do mundo.

   — Escute essas palavras, Paigan filho de Wulfram. Escute-as bem, Último dos filhos de seu pai. Pelo último dos filhos...

   — Chega! — O sacerdote abriu os braços. O quarto se enchia de formas e sombras. O ambiente foi invadido pelo cheiro de pedras úmidas. Estranhos sussurros e lamentos chegavam aos ouvidos daqueles que ali estavam. A voz de Ulfin erguia-se acima de todos os sons, sofrida e entrecortada, mas com o peso de muitas estrelas cintilantes.

—    Pelo último dos filhos de seu pai você será vencido!

E então eles o pegaram.

   Formas pequeninas e encapuzadas se ergueram em volta da cama. Tábuas do piso se quebraram. Ela viu a cabeça de Ulfin ser puxada para trás, suas pernas se debaterem. Alguma coisa com olhos e um bico voava por cima dela, empurrando-a para longe com a força de uma rajada de vento. Ela sentia. Ouvia o grito de Ulfin.

—    Chawlin! — chamou. — Chawlin!

   O quarto estava lotado. A porta explodiu ao ser aberta. Chawlin estava ali, empunhando a espada. Martin o seguia. Ela viu Chawlin agarrar um membro de sombra, e viu a criatura grasnar no rosto de seu oponente. Chawlin encolheu-se com um grito.

   Martin gritava os nomes dos anjos. Phaedra se arrastava sobre as mãos e os joelhos, e bateu com a pedra branca contra uma perna de pedra. Ela se moveu, arrastando Phaedra pelo chão de tábuas partidas. A espada sibilava sobre sua cabeça. Houve um estrondo e um grito. Pés corriam do lado de fora do quarto. Havia homens na ante-sala. Todos gritavam.

   Eles tinham a espada. Duas, três mãos com garras agarravam a lâmina, negro contra o metal cintilante. Chawlin a puxava pelo cabo. Phaedra viu o sacerdote pálido observando-a do outro lado do quarto, atrás do mar de sombras e criaturas. Então, ele se virou para a parede e sumiu. O quarto estava vazio.

   — Por Miguel! — Chawlin exclamou, encostando-se à parede mais próxima.

   O mau cheiro era insuportável. As tábuas do piso estavam marcadas, quebradas. A cama também se partira. Ulfin jazia numa poça de sangue ao lado dela. Phaedra se arrastou até ele e parou ao ver os ferimentos. O peito, os braços, as pernas e o rosto exibiam ranhuras profundas e sangrentas. Martin o segurou pelos ombros para virá-lo.

   Mesmo agora, ele ainda não estava morto. O olho se abriu. Os lábios se moveram.

   — Erga... a pedra do rei. Homens das colinas... ajudem... Erga... — Ele tentou tossir, mas não conseguiu.

— Ulfin?

Não houve resposta.

   Alguém se ajoelhava ao lado dela. Era Septimus. Phaedra o encarou e percebeu que o quarto abrigava muitos de seus seguidores.

   — São os mesmos ferimentos que vimos no corpo de meu pai — ele contou. — E no de meu irmão.

   — E no antigo senhor de Tarceny — alguém acrescentou. — A justiça tem um rosto duro. Ele está morto?

   — Sim — confirmou Septimus. Depois ele se levantou. — Senhora, muitas coisas aqui podem causar estranheza. E muitas, bem sei, jamais serão esclarecidas ou conhecidas. Mas, se conhece a causa do que aconteceu aqui, tem o dever de me dizer.

   — Conheço. — Trêmula, ela removeu a corrente com a chave do pescoço de Ulfin e levantou-se. Pensava em como o coração dele havia batido contra a chave de seus sombrios segredos, e o dela batera contra o anel que Ulfin lhe dera. O coração dele agora havia parado. O dela também...

   Phaedra olhou em volta. Aun estava ali, e Tancrem, Chawlin, Septimus e meia dúzia de outros homens, todos olhando para ela como se de repente se transformasse em uma criatura com chifres e rabo.

—    Venham comigo.

   Ela os levou à Sala de Guerra. A arca negra estava sobre a mesa, trancada. Ela usou a chave para abri-la.

   A arca não estava mais vazia, como antes. Dentro dela havia uma vasilha de pedra, com uma haste e uma base larga, como um cálice. Ao lado havia um livro. Septimus pegou a taça e examinou-a curioso. Havia uma espécie de serpente entalhada na borda.

— Um trabalho grosseiro — comentou alguém.

   — Não. O entalhe foi feito pelas mãos de um príncipe — disse Phaedra.

— Ele explicou a você o propósito dessas coisas?

   — Não. Só tinha visto o Cálice em meus sonhos. Havia água nele, e por ela ele enxergava longe, derrotando assim seus inimigos. —Aun assentia. — Ele podia atravessar grandes distâncias rapidamente e passar por portas que estavam trancadas. Isso o ajudava. E... havia outros usos. — Lembrava-se do sabor da água em seus sonhos, morna e doce como o mais suave mel. — O livro eu nunca havia visto antes, embora suspeitasse de sua existência. Não sei se há alguma bruxaria neles. Creio que os feitiços vinham por intermédio desses objetos, mas de muito longe. — Usava a palavra bruxaria para se fazer entender pelos presentes, mas o som era estranho mesmo aos seus ouvidos.

   Septimus pegou o livro e virou algumas páginas. Era evidente que nem ele nem os que se aglomeravam atrás dele sabiam ler bem.

— Seria melhor destruí-los — sugeriu um homem.

   — Ainda não — respondeu Septimus. — Talvez possamos usá-los para saber mais sobre esse mal que nos ameaçou. O Cálice permanecerá aqui, guardado e em segredo. E, lorde Lackmere, leve o livro para o sul. Mantenha-o em sua casa e não permita que ninguém se aproxime dele sem minha autorização.

   Aun não apreciou a missão, e Phaedra podia ver a contrariedade estampada em seu rosto. Não era apenas o livro. Ele não queria ir para o sul, voltar para a família e viver em sua casa. E Septimus sabia disso, mas insistia em mandá-lo para longe. Se Septimus não revelera o que planejava para Trant ou Tarceny, era claro que seus planos não incluíam Aun.

   Ulfin estava certo. Eles já começavam a se mover uns contra os outros. Quem quer que fosse designado para ocupar Tarceny seria privilegiado. Uma viúva que desejava afirmar sua pessoa como senhora de muitas terras em Tarceny e Trant precisaria de poderosos seguidores, aliados e, provavelmente, um novo marido. Todos sabiam disso. E se Septimus pretendia realmente colocá-la a seu lado no trono em Tuscolo, se pudesse encontrar os homens certos para manter Tarceny e Trant em seu nome, seria mais forte do que qualquer outro rei de que se tinha notícia na história.

   Estava muito cansada. E sentia-se furiosa. Essas meias pessoas! Matadores competentes! Eram corajosos e falavam de justiça, mas no final compartilhavam em todos os sentidos as faltas de Ulfin sem terem sequer um grama de sua sabedoria ou visão. E eles decidiriam seu futuro. Seria uma peça no tabuleiro, amada e odiada apenas pelas vantagens que pudesse proporcionar. Quanto tempo até que um deles lembrasse quem era o pai de Ambrose? Septimus cumpriria sua promessa, mas quantos barões ou condes poderiam desejar o trono? Não permitiria que isso acontecesse.

   Queria partir, encontrar um lugar naquela casa, sua casa, onde pudesse descansar. Mas ainda havia algo a ser feito.

— Posso ver o livro, por favor? Não vou demorar.

   Aun atendeu ao pedido sem esperar pelo sinal de aprovação de Septimus.

   Ela virou as páginas, algumas vazias, outras cobertas pela caligrafia de Ulfin. Não era um livro de encantamentos, mas de relatos. Na primeira página o título era "PRÍNCIPE PAIGAN", e o texto se estendia por muitas folhas, dividido entre longos capítulos em que narrava cada encontro. Algumas palavras chamavam sua atenção, como "pedra do rei", mas nada ali revelava mais do que havia imaginado.

O título seguinte falava sobre ela.

   Estava demorando demais. Os homens iam ficando impacientes. Um trecho atraiu seu olhar. Ulfin descrevia suas impressões de uma menina de nove anos parada à beira de um pego, uma fonte, e ia relatando como ela se assustara ao ouvir sua voz.

... formularei meu pedido para a água e juntos a beberemos. Porque já chorei demais, e é hora de amar novamente.

   O relato seguia enaltecendo suas qualidades, páginas e páginas de um relato terno, às vezes apaixonado, sempre muito sincero.

   — Obrigada — ela disse, fechando o livro para devolvê-lo. — Alteza, peço licença para me retirar. É tarde, e o dia foi difícil.

Septimus assentiu.

   — Havia algo mais aqui — um cavaleiro comentou apontando para a caixa. — Vejam, o tecido do forro está marcado. — Ele apontava para a marca deixada pela caixa das pedras brancas e olhava para Phaedra, esperando uma explicação.

—    Não sei o que poderia ser — ela respondeu.

Não era difícil mentir diante dessa tropa.

 

                               Vento Sul

Mais uma vez, ela esperava pelo amanhecer. A velha lua pendia baixa sobre o horizonte, uma estreita faixa de prata trazendo a lua nova em seus braços. Olhava pela janela da sala da sra. Massey em Aclete. Levantara-se e vestira-se com a ajuda de Hera, em silêncio e com o mínimo de iluminação necessária. Agora, Hera se fora. Estava sozinha, visitando antigas recordações.

   O que o Anjo escreveria: não só na página de Ulfin, mas na dela? Não seria vingança. Entre os cavaleiros, vingança era justiça. Não se sentia vingada ou justiçada com a lembrança dos cadáveres mutilados ou dos outros que haviam morrido ao longo da noite; nem com as viúvas e com os filhos sem pai, gente que ela conhecia bem.

A lua se erguia, plena; e o que ela sentia era perda.

   Então, algo sobrevivera nela, quando o sacerdote fétido lhe passara o Cálice que a libertara. Teria amado Ulfin de verdade, mesmo sob o efeito do encanto? Ou teria mudado tanto durante os anos de amor enfeitiçado que nenhuma bebida mágica poderia restaurá-la inteiramente? O segredo é não ter medo, ele dizia. Talvez a água houvesse simplesmente suprimido os temores que poderiam tê-la mantido afastada dele: pense em seu pai, pense no poder de seus pretendentes; pense em você mesma. E sem medo, o amor poderia ter florescido facilmente na menina solitária durante os longos anos com sua melhor companhia, a voz dele, falando dos recantos sombrios nas passagens de Trant.

   Ninguém poderia lhe dizer agora. O Príncipe Sob o Céu era seu inimigo. Ulfin estava morto, e seu livro fora levado para longe, fora de seu alcance. As palavras que vira nas páginas haviam acrescentado dados ao seu conhecimento, mas não aumentaram sua compreensão. Era inútil perguntar se o amara tanto quanto era vão tentar descobrir se ele a amara.

   Ele traíra Ambrose. Mas a própria recusa em admitir essa traição e as tentativas desesperadas para escondê-la demonstravam que ele se envergonhara, afinal. Sentira alguma necessidade de proteger o filho, mesmo expondo-se a riscos. Havia afirmado que, como último recurso, ofereceria a própria vida. E daí? Tais coisas eram fáceis de falar, antes de ele saber quem o estava ouvindo. Ela não as aceitava. Mas não podia acreditar que os motivos relatados pelo Príncipe Sob o Céu haviam sido a única motivação de Ulfin. Como um jogador de xadrez, ele se posicionara de forma a poder fazer o sacrifício, caso as circunstâncias exigissem. E ele o teria feito, se fosse necessário? Provavelmente nem mesmo Ulfin saberia responder.

   Phaedra viu a noite se tingir de cinza, com as terras mais altas além de Aclete começando a parecer mais distantes. Finalmente, ela sorriu.

   Passos. Alguém bateu na porta. Era Hera. Phaedra levantou-se. Juntas, elas percorreram o corredor na ponta dos pés, passando pelo quarto em que Chawlin dormia com a cabeça ainda atordoada pelo vinho consumido naquela noite. Martin as esperava ao pé da escada, a cabeça inclinada para a cozinha, onde alguém, uma das criadas da casa, conversava com o homem que devia estar na vigília. Ele devia ter sido atraído para dentro pela promessa de um desjejum quente. O pobre infeliz teria problemas por isso. Phaedra pensou em deixar algum dinheiro na bolsa do vigia. Mas isso só tornaria sua situação ainda pior, caso ele fosse descoberto. Ela sorriu ao passar pela porta e ser envolvida pelo vento frio. No mundo do aço, nada podia ser feito sem causar dor a alguém.

   Sua escolta não teria dificuldades. Eles a guardariam no caminho para Trant e também a acompanhariam para se unir a Septimus em Tuscolo quando o momento chegasse. Haviam recebido garantias de que o barco não partiria antes do meio-dia. Mas Chawlin sabia que o príncipe e seus conselheiros esperavam que lady de Tarceny chegasse em segurança para a coroação. E, uma vez em Tuscolo, ela não teria nenhuma liberdade até que a organização do reino e seu papel nela fossem decididos.

   Fugiria agora e desapareceria sobre a face tranqüila de Derewater.

   Martin caminhava a seu lado, silencioso. Estavam a alguns momentos de uma separação que se estenderia por muitos anos. Depois disso, ele desapareceria em alguma região ao sul do país, porque somente ele no grupo conhecia o destino de Phaedra. Fora um duro golpe para o religioso. Ele havia se esforçado muito pela oportunidade de trabalhar nos limites das montanhas da Fronteira. Mas essa parte do reino teria uma longa lembrança daqueles envolvidos no desaparecimento da senhora. E se o vissem nos vales, poderiam começar a imaginar se ela também havia ido para lá. Seria melhor para ambos se ele estivesse bem longe quando Septimus, de Tuscolo, e Tancrem, de Tarceny, começassem a procurá-la.

   Não a encontrariam. Nem os seguidores de Ulfin (para quem ela obtivera de Septimus uma garantia de vida, se não a garantia da preservação de suas terras) quando chegassem buscando vingança. Ficaria por pouco tempo dentro dos limites do reino, somente para resgatar Ambrose e reunir provisões. Eridi e Orani poderiam ir com ela, se quisessem. Depois, voltaria para as montanhas. Tinha um dever a cumprir.

   — Aquelas são criaturas caídas — Martin murmurou finalmente. — Não podem ser feridas pelo aço nem por minhas palavras. Vai tomar cuidado?

   — É claro que sim. Mas há uma resposta simples. Não tema por mim. E quanto ao milagre...

— Milagre, senhora?

   — Quando foi despertado no acampamento para ir me salvar... Sabe quem o acordou?

   — Eu o vi entre aquelas coisas fétidas há quinze dias, em Tarceny. E... não foi a primeira vez.

— Em Chatterfall?

— Sim.

— O que aconteceu?

   — Foi um momento difícil. Não lembro bem. Ele apareceu e exigiu que removêssemos as pedras, mas diManey ouviu sua esposa, e eles não nos importunaram mais. Deixou seu filho em boas mãos, senhora. E eu também.

   Então, o sacerdote encontrara o esconderijo. Ela tremeu. Desejara acreditar que Ambrose poderia permanecer escondido, mesmo dele. Não queria pensar que o filho viveria todos os seus dias tão próximo de ser capturado. Mas as defesas de Ambrose, seus defensores, protegeram-no. O círculo não se quebrara. Os amigos não a desapontaram.

— Graças aos Anjos — ela murmurou.

   — Sim, graças a Eles. Ouviu como seu marido falou antes de morrer? Aquilo foi pura profecia! Juro, enquanto lutávamos contra aquelas coisas, ouvimos a voz de Umbriel anunciando qual seria o fim. Não duvido que tenha sido assim. E acho que aquele que falou também sabia.

   — Sim, ele sabia. — Porque, apesar de todo seu poder, o sacerdote sentira medo. Podia começar a acreditar na vitória, agora.

   Havia um barco no cais. Homens esperavam silenciosos dentro da embarcação negra, quase invisível sobre a água escura do lago. A sra. Massey os aguardava no final do deque.

   — O mestre só sabe que deve seguir para o norte — ela disse. — Assim que estiverem mais afastados, você poderá revelar seu destino com maior precisão. E, depois disso, meus negócios o levarão a Jent. Ele não voltará a aportar na Fronteira antes de três semanas, ou mais.

   Phaedra olhou em volta, preocupada com os outros barcos.

   — Talvez não saiba — Elanor Massey continuou —, mas algum velhaco esteve aqui esta noite e cortou todas as cordas dos meus outros barcos. Os remos foram escondidos, e não poderemos encontrá-los a não ser amanhã. E pensar que eu teria de passar por isso!

   Phaedra sorriu. Quase toda a prata que restava em Tarceny estava na bolsa da sra. Massey; um preço justo pelos problemas que ela e seu pessoal enfrentariam. Aclete também se beneficiaria da paz. Essa mulher demonstrava ser uma boa amiga, alguém que Phaedra lamentava não ter conhecido melhor.

   Ela se despediu de todos. Elanor, Hera, Martin... Queria partir. Tudo que havia acontecido ali eram apenas lembranças a partir de agora. Um novo ciclo de vida começava.

   Seus olhos se voltaram para o Outeiro de Talifer, ainda envolto pelas sombras da noite. Procurou por sinais de uma silhueta escura olhando para o porto. Não havia ninguém.

   Sei que você sabe, Paigan, meu inimigo. Sei o que quis dizer quando falou em verdades e espelhos aí em cima. Sei que tipo de criaturas caminhavam em sua companhia quando nos deixou no outeiro. Durante toda sua vida, trabalhou para arruinar os herdeiros de seus irmãos e colocá-los à mercê de seu poder; todos envergonhados, corrompidos, condenados, todos destruídos e rebaixados, a ponto de um pai matar o próprio filho. Sei como encurralou Ulfin; como trabalhou para encurralar-me. Como tentou fazer de Martin, Adam e Evalia peças de seu jogo. Agora, nós, que ainda estamos vivos, escapamos de você. E eu estou a um passo de acabar com seu jogo.

   Era simples, embora não fosse fácil. A pedra do rei era a chave. Ela estava onde os irmãos haviam removido seus fragmentos, na entrada do vale à beira do pego do sacerdote. Levante-a, e o anel que os irmãos haviam rompido, o círculo das pedras brancas, estaria completo. Isso manteria na fonte obscura as coisas que a ela pertenciam, como as pedras brancas que Calyn removera dos monólitos as mantivera fora do círculo. Não sabia como as pedras chegaram lá, ou quando. Talvez, o último dos Grandes Reis houvesse conhecido a origem do mal que devastava seu reino e descobrira como confiná-lo por algum tempo. Talvez fossem muito antigas, os dentes do próprio Capuu, e tivessem sido erguidas e baixadas muitas vezes pelas mãos dos homens.

   O povo da montanha a ajudaria. Ia precisar de muitos deles, o que exigiria mais presentes e cabras, e os meios para levá-los onde tinham de estar. Precisaria da ajuda de Chatterfall. Eles prenderiam Paigan e suas criaturas atrás da pedra do rei. Viveria na casa em ruínas, longe do alcance de nobres e príncipes, cuidando do anel. E Ambrose correria livre pela encosta da montanha, até que um dia, ela, ou talvez ele (se era esse o sentido das palavras pronunciadas por aquela voz que fizera uso do corpo de Ulfin), encontrasse o meio para destruir o príncipe monstruoso dentro dele.

   O sol se erguia. Havia pouco movimento na cidade. Os marinheiros ocupavam seus postos e empunhavam remos. A faixa de água entre o barco e o cais já era maior do que ela poderia saltar.

   Um dos tripulantes começou a tocar sua flauta. Era a canção do marinheiro do lago, usada para chamar os ventos que os levariam para casa. Phaedra acenou para as três figuras que iam se tornando e mais distantes no porto, depois se virou para o lago dourado pelo sol.

   Água brilhante, montanha escura. Os contrastes em Tarceny eram como duas faces da lua. Houve um dia, dois anos atrás, em que ela passara de uma face para a outra. Com ela, levara no peito o amor corrompido pelo príncipe imortal. Talvez, tudo que havia acontecido depois disso fosse inevitável.

   Mas ela saíra do lago em um amanhecer e se deixara guiar pela mão do homem amado. Havia algo perfeito nisso, mesmo agora. Lembrava o sentimento de fascínio e incredulidade, depois, e por algum tempo, como sentira que tudo que havia desejado sem sequer saber lhe era entregue hora a hora. Sentia-se mais viva do que antes, ou do que jamais voltaria a sentir. Aquele tempo fazia parte de sua vida. E brilhava claro como a lua nova.

   Com ele, levaria na memória outros tempos de Ulfin, livre da guerra ou de coisas sombrias, seguindo em frente pelo disco pleno de suas vidas. Talvez houvessem brilhado menos... a face da lua tinha muitas marcas e mares, como muitos casamentos. Deviam ter estado lá. E talvez estivessem de alguma forma, como a lua estava ali, sob a sombra de sua outra face. A sombra era terrível; escura, corruptora. Mas nas ruínas de seus sonhos não conseguia imaginar outra vida que pudesse ter tido algum sentido para ela.

   Bem, as preferências colorem os fatos, mais ainda quando se tenta justificar aquilo que já foi feito. E estava feito. Tanto a luz quanto a escuridão eram parte dela agora. Os meses e anos que ainda tinha para viver mostrariam novas perspectivas.

   Mas o pôr-do-sol a levaria a Chatterfall, a Evalia... e a Ambrose, que mais uma vez teria em seus braços.

 

                                                                                John Dickinson  

 

                      

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