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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FILHO DO AMOR / Violet Winspear
O FILHO DO AMOR / Violet Winspear

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FILHO DO AMOR

 

Fenny estremeceu. Como explicar a loucura que tinha feito? Tirou a grinalda, a grinalda do vestido de noiva que sua prima devia ter usado, e encarou aquele homem furioso à sua frente. O pior vinha agora.

Tinha sido fácil enganar toda aquela gente na igreja. Nem mesmo tio Dominic suspeitara, em nenhum momento, que era a sobrinha, e não a filha, que estava levando ao altar. Mas agora a farsa terminara. Era impossível conti­nuar enganando o noivo. Ou melhor, o homem que havia casado com ela, pensando que fosse sua prima Penela.

— Como conseguiu fazer esta encenação? — Puxou-a com força pelo cabelo. — Foi aquela droga de véu, hein? Por trás dele, você se parecia com ela. Depois, o desmaio na sacristia. Tudo fingimento, para não ter que ir à recepção. — Chegou mais perto dela, ameaçador. — E agora, espertinha? Ainda se sente tão confiante, sozinha comigo neste hotel?

Heraklion Mavrakis era um grego típico. Justamente por isso havia sido tão fácil montar aquela farsa. Ele tinha ido para o hotel num carro separado, com dois irmãos e uma dupla de amigos, porque os gregos, como os árabes, não gostam de juntar-se às mulheres em público. Por isso ela havia sido mantida longe dele até agora, quando, completamente sós, encararam um ao outro como marido e mulher.

Cada momento daquela manhã parecia gravado na mente de Fenny, como as facetas do anel de esmeraldas que Penela tinha abandonado na penteadeira, sobre o bilhete que dei­xara para o noivo, o grego, que conhecera em Atenas e a seguira até a Inglaterra.

Fenny sabia do caso que a prima tivera com Drake Mon-tressen, um produtor de teatro muito mais velho e cheio de vícios, mas nunca imaginou que a louca fugisse com ele no dia do casamento.

Agora, o noivo, que ainda nem sabia que tinha sido enga­nado, esperava uma explicação e parecia a ponto de esganá-la.

— Como você foi capaz de usar as roupas dela, o nome dela?

— Não usei. Dei o meu próprio nome, que é parecido com o dela: Fenella. Foi o que assinei nos documentos do cartório e no registro do hotel. Achei que ninguém ia reparar.

— Sua mão tremia tanto que, se tivesse assinado Jezebel, ainda assim seria indecifrável. Confesso que fiquei surpreso de ver Penela tão nervosa; logo ela, que é sempre calma e senhora de si. Mas por que eu ia suspeitar de que a garota a meu lado, de cabelo loiro e sedoso, não era a minha verda­deira noiva? Por que eu deveria suspeitar de uma impostora?

Empurrou-a para a janela.

— Agora posso ver que você não chega aos pés de Penela. Não pode ter sentido nada de bom quando colocou o vestido branco de noiva e escondeu o rosto atrás daquele véu no­jento! O que esperava conseguir?

Fenny teve que desviar os olhos para que ele não des­cobrisse a verdade. Era melhor deixar que pensasse que ela, sendo pobre, vira nele uma boa oportunidade para en­riquecer, e por isso tramara toda a farsa. Aquilo ele con­seguiria entender, mas, o verdadeiro motivo, nunca... Não, Lion, como a prima o chamava, não podia saber que a tímida e apagada Fenny o amava.

Sem uma palavra, entregou-lhe o bilhete de Penela. "Querido

Ainda morro de amores por você. Sei que poderíamos ter tido momentos inesquecíveis juntos, porém, mais do que tudo, quero ser atriz e você nunca permitiria. Hoje surgiu a minha grande oportunidade: vou subs­tituir Gertrude Maine numa peça, em Nova York. Não podia recusar. Por favor, tente entender e, em nome da nossa grande paixão, perdoe todo o mal que lhe fiz, faltando com a minha palavra. Provavelmente, Fenny lhe entregará este bilhete. Ela é de absoluta confiança, muito discreta. Aos convidados, você poderá dizer que terminamos o noivado porque não nos dávamos bem. Obrigada pelas horas maravilhosas que tivemos. Sempre sua, Penela."

Ele amassou o papel e atirou-o no cesto de lixo, perto da escrivaninha.

— Então, posso confiar em você, hein? Uma pessoa dis­creta e incapaz de qualquer desonestidade.

Fenny sentiu o coração frio e pesado como uma pedra, porque sabia que ele jamais iria perdoá-la.

— O que é que você vai fazer? — Tinha medo de que a expulsasse do quarto. Que situação: era esposa dele e, ao mesmo tempo, uma intrusa.

— O que acha? Deve saber melhor do que eu. Quem entrou na igreja, vestida de noiva, ocupando o lugar de outra mulher foi você. É a prima pobre, não é mesmo? Per­cebe que está inteiramente à minha mercê?

— E, eu... eu acho que sim.

— Poderia matá-la. Quem se importaria?

— Ninguém. Você teria uma boa justificativa.

— Ainda não entendo como pude ser enganado. Penela é sensual e cheia de vida, e você, insignificante. Seus olhos são azul-acinzentados, enquanto os dela são cor de safira. Seu cabelo é dourado e não prateado. Sabe o que penso exatamente de você?

— Posso imaginar — disse Fenny baixinho.

— Não. Duvido que faça uma idéia de como a odeio. É como se tivesse comprado um diamante valioso e, ao abrir o estojo, encontrasse um caco de vidro.

Fenny não podia mais aguentar aquilo. Se pudesse chegar ao corredor, conseguiria escapar. Correu para a porta. Esque­ceu, porém, que usava os sapatos de Penela, um número maior do que calçava. Pisou em falso e perdeu o equilíbrio. Foi agar­rada por mãos fortes que a arrastaram para o grande sofá. Ergueu os olhos suplicantes para ele, cheios de dor e angústia. Mas em nenhum momento o rosto moreno se suavizou. — Então, o sapato não serve no pezinho da Cinderela? — zombou. — E já deve saber que não sou nenhum príncipe encantado, nem vou ser galante, bondoso e gentil para permitir que vá embora, depois de você ter salvado a minha honra. Sua tola, acha que ligo para a opinião dos outros? Ia casar com Penela justamente porque ela não se importava com isso, nem com o meu dinheiro, entende? Ela brilhava, cintilava como uma jóia, e eu a desejava. No entanto, por ironia, aqui estou eu com você, e não há nada que nenhum de nós possa fazer.

— Está enganado, há uma saída — disse Fenny impul­sivamente. — O casamento pode ser anulado.

— Um casamento grego? Acha que, só porque me casei no seu país, aceito os seus costumes? Sou espartano de nascença, e, embora não me considere um santo, mantenho-me fiel às leis da minha igreja. E, para ela, o casamento é indissolúvel.

— Isso quer dizer que você e eu estamos unidos até que a morte nos separe?

— Goste ou não goste, você é minha esposa, e vamos celebrar o casamento com o champanhe que Zonar trouxe.

Ela o observou pegar a garrafa que o irmão colocara no balde de gelo. Ao se despedir, Zonar tinha dito; "Minha nova irmã, até amanhã..."

Amanhã, quando estariam voando para a ilha de Peta-loudes, na Grécia, uma das muitas propriedades de Mavra-kis. Ele era dono de minas de mármore, vinhedos, plantações de figo, uma indústria de óleo de oliva, uma das melhores fábricas de enlatamento de peixe, estaleiros, hotéis, um clu­be noturno, três restaurantes e algumas luxuosas vilas.

Depois da guerra, ele e os irmãos menores tinham estado entre os muitos órfãos que procuravam o que comer nas latas de lixo. Só sobreviveram porque Lion era valente e muito inteligente. Fenny podia entender a adoração que os irmãos tinham por ele e a maneira reverente — e até te­merosa — como todos o tratavam.

Encolheu-se toda quando a rolha do champanhe estourou, caindo no carpete, perto do sofá.

— Não vai brindar comigo? Dizem que dá sorte. E você vai precisar de muita sorte — ele disse, com desprezo.

"Jamais acreditará que eu realmente queria salvar o or­gulho dele", pensou Fenny; era auto-suficiente demais.

— Tome, esta é para você. — Entregou-lhe a taça e ela sentiu um nó na garganta. — E a que devemos brindar? Sim, porque desde que me conheço por gente, toda vez que tomo champanhe é para comemorar algum acontecimento feliz. Talvez devêssemos brindar a uma longa vida, cheia de prazeres e de alegrias ao lado um do outro.

— Não! Você me faz sentir como uma criminosa!

— Não é exatamente isso que você é, boneca? Você roubou tudo o que devia ser de outra mulher.

— Mas Penela o abandonou na porta da igreja...

— Ela fez tudo isso para que eu corresse atrás dela. Não percebe, sua tonta?

A taça tremeu nas mãos de Fenny, e ela teve que beber um gole para aliviar a sensação de desespero que a sufocava.

— Isso, beba, beba mais. Vai precisar de muitos drinques para enfrentar o que a espera.

Fenny olhou para ele, assustada. Que espécie de homem era ele? Por que não mostrava um mínimo de compreensão? Ah, se pudesse fugir daquele lugar, desaparecer!

— Muitas felicidades — ele zombou. — Não é isso que os ingleses dizem quando tomam alguma coisa com outra pessoa? Santa Virgem Maria, não consigo imaginar como é que você pôde ter tanto sangue-frio para fazer esse jogo comigo. Diga-me a verdade: o que é que queria, realmente? Dinheiro? Sei que não tem onde cair morta.

— Tio Dominic permite que eu ocupe um dos quartos na casa deles... — começou, com voz rouca.

— O patinho feio, cheio de inveja da linda prima, hein? — Dirigiu-se ao bar, encheu a taça novamente e levou o resto para Fenny. — Vamos, tome mais um pouco. A bebida vai nos ajudar a encarar esta situação idiota. Porque temos que encará-la. — Derramou um pouco da bebida no chão e riu. — Dizem que quando alguém derrama champanhe é sinal de boa sorte, mas, neste caso, quer dizer desgraça. Beba!

Ela estremeceu e obedeceu, sentindo a bebida forte subir-lhe à cabeça. Tinha certeza de que aquele homem ainda encon­traria uma maneira de puni-la, e de que o castigo seria terrível.

Ele pareceu adivinhar-lhe o pensamento.

— Não me diga que esperava que eu a perdoasse. Se pensou, é idiota, além de oportunista. Nós, gregos, quando odia­mos, odiamos para valer. E você fez o possível para ser odiada.

— E... mesmo assim, quer levar adiante este casamento?

— Nossa religião não aceita o divórcio. Quando fazemos uma promessa, nós a mantemos. Mas prometo que vai se arrepender para o resto da vida por ter ocupado o lugar de Penela e usado aquele véu para me roubar e enganar.

— Oh, não! Isso é uma injustiça!

— Não, querida. Você roubou o lugar de sua prima ao meu lado, mentiu durante toda a cerimônia, e vai terminar esse jogo sujo hoje à noite, quando estiver em meus braços.

— Não! Nunca pretendi me aproveitar da situação. A única coisa que quis fazer foi salvar o seu orgulho, embora você não queira aceitar o fato.

— Ah, não me diga! Acha que há orgulho num homem que, de repente, se vê casado com uma mulher que nunca lhe interessou?

— Preferia a humilhação de ficar esperando Penela na igreja?

— E esta situação é menos humilhante? Mas agora está feito. Você usa o meu nome e, sejam quais forem os meus sentimentos, não vou permitir que suje esse nome.

— Nunca pretendi ofender o seu orgulho, acredite. Sei que fiz uma loucura, uma idiotice, mas...

— Acho que sabia exatamente o que estava fazendo desde o instante em que leu o bilhete de Penela. Sabia que eu tinha muito dinheiro. Sua prima deve ter contado do meu castelo na ilha de Petaloudes. Como você deve ter adorado a idéia de viver num castelo, em vez de num simples quarto! E que preço baixo teria que pagar: bastava oferecer o seu corpo ao amo e senhor.

— Eu... eu nunca pensei numa coisa dessas — Fenny garantiu, corando violentamente. A verdade é que aquele homem não lhe saía da cabeça.

— Bem, se está curiosa para saber como é que eu sou, boneca, prometo satisfazer a sua curiosidade. — Caminhou na direção dela, e Fenny levantou-se, apavorada e consciente de que aquele era o quarto de sua lua-de-mel.

Foi recuando, até ficar acuada contra a janela. Agora, não tinha mais como escapar. Começou a soluçar quando ele a segurou com força.

— Foi você mesma quem quis se casar comigo. Ao fazer essa escolha, tornou-se minha propriedade. Terá que fazer tudo que eu exigir. Está entendendo?

— Oh, sim...

— Admito que foi esperta. Planejou tudo direitinho. Se seu plano não desse certo, não teria nada a perder, não é mesmo? Voltaria para o seu quarto na casa de tio Dominic e continuaria vivendo à sombra de sua encantadora prima. Devo confessar que é uma ótima atriz: talvez você se saísse melhor do que Penela no teatro.

— Acha que eu sentia ciúme dela? Não é verdade e não tem o direito de insinuar uma coisa dessas.

— Aqui, quem não tem direito algum é você. Nunca per­mitirei que uma mulher me diga o que fazer. Muito menos você, que só serve para uma coisa... E acho que não preciso dizer o quê. Ou ainda é assim tão pura que não sabe?

— O... o que quer dizer com isso?

— Não é mulher bastante para entender? — Suas mãos apertavam cada vez mais a cintura de Fenny.

— Você tem todo o direito de estar zangado comigo, mas deve procurar entender que só fiz isso para ajudá-lo. Estou realmente arrependida por ter causado tanta encrenca. Por favor, por que não me deixa ir embora? Não vamos conseguir suportar a presença um do outro por muito tempo. E você ainda poderia casar com Penela, se é que a ama.

— Amor? — Arqueou as sobrancelhas, com sarcasmo. — Nunca perdi tempo sentindo alguma emoção pelas mulheres, mocinha.

— Mas você... você veio à Inglaterra atrás dela.

— E que diabo tem isso a ver com o amor? Eu a desejava! Entende o que quero dizer?

Não precisava casar com ela só por isso, Fenny pensou, mas não teve coragem de dizer. Baixou a cabeça, atordoada e indefesa.

— Olhe para mim! — Com raiva, ele a puxou pelo cabelo e forçou sua cabeça para trás. — Você se colocou no altar, sacrificou-se por mim. Portanto, não banque a virgem as­sustada. Queria viver num castelo? Pois vai viver. Em troca, me dará um filho. E, quando tiver a criança, eu a deixarei partir. Está me ouvindo, espertinha?

Ouvia, mas não podia acreditar. Deu uma gargalhada histérica.

— E o que acontecerá se eu não puder ter um bebê? Ou se nascer uma menina? Vai me matar?

Os olhos dele tinham um brilho dourado e perigoso,

— Reze para que possa ter um bebê e que seja menino. Não acredito que queira passar mais do que um ano em Petaloudes, com um homem que apenas quer que gere um filho e que não tem nenhum outro interesse por você.

Aquilo foi a gota d'água. Fenny começou a tremer tão convulsivamente que seus dentes batiam. Ele a tomou nos braços e carregou-a para o sofá. Depois, foi até o telefone.

— Serviço de quarto? — Sua voz era áspera, cheia de autoridade. — Mandem café quente e sanduíches para a suíte da cobertura.

Desligou e voltou para perto dela.

— Procure se controlar, porque não vou aguentar essas crises de nervos por muito tempo. Se é que não está repre­sentando. Em todo o caso, acredito que esteja morrendo de fome. Um criado vai lhe trazer algo para comer. Quando ele chegar, comporte-se como uma noiva feliz.

Desesperadamente, Fenny tentou fazer tudo o que ele mandava, mas seus nervos estavam em frangalhos. Ele real­mente falava a sério sobre o casamento. Tinha feito uma proposta e a obrigaria a cumprir a palavra dada.

Depois de alguns segundos, ouviu um toque discreto à porta e, em seguida, entrou um criado com um carrinho de chá. Lion imediatamente pôs-se à frente de Fenny, prote­gendo-a do olhar do homem, até os dois ficarem sozinhos novamente. Então, puxou o carrinho para perto dela e ser­viu-lhe uma xícara de café.

— Vamos, beba. Pare de agir como criança, porque não vai conseguir me comover.

Ela bebeu em grandes goles, sentindo-se reanimada. Evi­dentemente, ele a julgava uma atriz e, pensando bem, não podia culpá-lo. Pois, se é que havia alguma culpa, era toda dela. E nem ao menos conseguira poupá-lo da humilhação. O que aconteceria, quando todos ficassem sabendo que não era Penela quem estava usando aquele divino vestido de noiva? Homens como Lion tinham muitos inimigos que gosta­riam de se aproveitar do fato de ele ter sido abandonado pela noiva e de ter se casado com outra, por engano. Logo ele, um grego para quem o orgulho masculino valia mais do que tudo...

— Agora, por que não come? — ele perguntou, tirando a xícara de café das mãos dela.

— Eu... eu não tenho muita certeza de que quero comer.

— Mas vai tentar. — Dirigiu-se ao carrinho e pegou dois sanduíches.

— Obrigada — murmurou. — Você também vai comer?

— Não se preocupe comigo. O jantar será servido às sete e meia e desceremos para o restaurante. Depois, iremos ao Aldwych, assistir a uma peça de Shakespeare. Não sei se lhe agrada, mas Penela gostava muito, e foi ela quem su­geriu o programa.

Penny estremeceu quando ele mencionou o gosto da prima por Shakespeare. Lembrou-se do caso de Penela com Drake Montressen. Um homem como Montressen não era do tipo que deixava escapar uma conquista com facilidade, muito menos uma mulher tão atraente. Penela queria ser uma atriz de sucesso e Lion jamais aceitaria a idéia de sua esposa se apresentar diante de outros homens que também iriam admirá-la... e desejá-la.

— Você gosta de Shakespeare? — perguntou. Sabia tão pouco das preferências dele! Como poderia levar adiante aquele casamento, o casamento com o qual tanto sonhara... um sonho que nunca imaginou ser uma realidade tão cruel?

— Às vezes gosto, outras, odeio, depende do meu estado de espírito, do meu humor. — Lion pegou alguns sanduíches e instalou-se numa poltrona.

Comeram durante algum tempo, em silêncio. Fenny não imaginava que estivesse com tanta fome. Não comera nada o dia todo. Nem pensara nisso, desde o momento em que encontrou aquele bilhete de Penela, encostado num vidro de perfume, junto com a aliança de esmeraldas de noivado. Não era próprio da prima desprezar uma jóia como aquela. Devia ter muito medo de Lion.

Fenny estremeceu mais uma vez, imaginando como seria estar nos braços dele. Braços que a envolveriam sem qualquer espécie de ternura, mas como algemas de aço, obrigando-a a obedecer às suas exigências. Só quando lhe desse um filho seria livre. Até então, estaria ligada a ele, amando-o e temendo-o. Sentiu os olhos encherem-se de lágrimas.

— Gostaria que acreditasse que estou sentida com o que aconteceu. — Sua voz era pouco mais do que um murmúrio. — Agi num impulso...

— Você representou maravilhosamente bem. E, por favor, poupe-me de suas explicações e lágrimas. Realmente, não há necessidade de continuar interpretando o papel de virgem hesitante. Ah, por falar nisso: você ainda é virgem?

— Claro que sou!

— Não há nada de claro sobre isso, boneca. — Acendeu ura fino charuto e observou a fumaça subir. — Pode-se es­perar qualquer coisa de uma mulher que faz o que você fez... menos que seja virgem e inocente. Além do mais, sou o seu marido e tenho o direito de perguntar. De qualquer forma, descobrirei por mim mesmo esta noite, não é?

Fenny corou, percebendo que os lábios dele se contraíram num sorrisinho sarcástico.

— Termine de comer. E não fique imaginando coisas a meu respeito. Terá muito tempo para me conhecer. Agora, estou simplesmente querendo saber que espécie de mulher arranjei para esposa. Hoje à noite, nos divertiremos; amanhã, viajaremos de avião para a Grécia Por falar nisso, você tem passaporte?

Ela concordou com a cabeça e mastigou um pedaço de sanduíche, que agora tinha gosto de palha.

— Ah, é! Agora me lembro de que Penela disse que você ia de férias para Creta, com um colega de trabalho. Um homem?

— Não, claro que não! — Fenny olhou-o, indignada. Ele não perdia oportunidade para atacá-la. Será que imaginava que Penela era um anjo de candura? Ah, se soubesse do caso da noiva com Montressen!

— Bem, isso pouco me importa. — Encolheu os ombros fortes. — Você não tem que ficar me dando explicações de seu passado. O que interessa é o que vai acontecer daqui para a frente. Não duvido de que eu acabaria tendo alguns problemas com Penela, porque ela é muito moderna, tem um modo de pensar bem diferente do meu, mas isto também já não faz diferença. Quer queira, quer não, você vai ter de me dar um filho, porque eu nunca jogo para perder.

Suas palavras feriram o orgulho de Fenny, que levantou a cabeça e disse, com voz firme:

— Acabo de ser desafiada, e aceito o desafio, mas não poderemos viver juntos sem sentir afeto um pelo outro. Nos­sa vida vai ser um inferno!

— Garanto que vai. O que esperava? Que um homem que só a despreza fosse lhe oferecer o céu? Claro que não, minha querida. Você só pensou nas vantagens materiais. Vejo que trouxe até a bagagem de Penela. Se o vestido de noiva lhe serviu, então o resto do guarda-roupa também deve servir... com exceção dos sapatos.

Para ele, Fenny não passava de uma trapaceira oportu­nista, a quem daria agora todas as coisas materiais que teria dado a Penela, desde que ela se comportasse como uma esposa servil.

— Você está sendo muito duro — disse, mas sem nenhu­ma esperança de que ele se comovesse.

— É muito justo que pague pelos seus pecados. Foi você mesma quem escolheu assim. Agora, é minha esposa. Vai se vestir como sua prima e, na frente da minha família, se mostrará muito carinhosa. Também vai me respeitar. Fará tudo o que um grego espera de sua jovem esposa.

— Quer dizer que devo representar, fingir que o amo? Se Lion pudesse imaginar que o amor que sentia por ele

era a única realidade em toda aquela encenação...

— Isso mesmo. E vai representar tão bem como repre­sentou hoje, no altar. Sou o chefe da família, todas as res-ponsabilídades e cargas são minhas. Segundo a tradição grega, tenho e mereço o respeito de meus irmãos mais moços e tenho o direito de esperar isto de você, minha esposa!

Esposa... Uma pobre esposa, aceita pelas leis dele, mas não por seu coração.

— Já tomou todas as providências para viajar? Foi va­cinada? Há cachorros selvagens nas colinas da Grécia, que são usados pelos pastores para manter o rebanho junto, e a mordida de um pode ser muito perigosa.

— E isto faria alguma diferença para você? — Naquele momento, Fenny sentia que nada no mundo poderia ser pior ou mais doloroso do que o ódio de Lion.

— Claro que sim, sua tola. A hidrofobia é ainda mais desagradável do que um casamento sem amor, porque pode ser fatal. Então, já tomou as vacinas?

— Já.

— Mostre o braço — ele ordenou. Fenny estremeceu com o contato dos dedos dele. — Tenho que ver pessoalmente. De uma esposa que mente não posso esperar outra coisa senão que tente me enganar. E quanto ao passaporte e do­cumentos? Está com eles, ou ficaram na casa de seu tio?

— Está tudo na minha bolsa.

Ele continuava segurando seu braço com tanta força que machucava. Fenny não sabia como reagir. Nunca imaginou que um dia pudesse sentir tamanha atração por um homem daqueles.

— Diga-me, por que foi que você decidiu visitar Creta?

— Bem, eu... eu ouvi você dizer que é fascinante e, como ia entrar em férias, achei que seria o lugar ideal.

— E é. Mas Petaloudes é ainda mais bonito. Tenho certeza de que vai gostar muito de lá. Tem penhascos vulcânicos à beira-mar. O castelo fica um pouco acima deles. Foi construído na época em que os turcos ocupavam aquela parte da ilha, que agora pertence a mim. Mas você já deve saber disso. Não há dúvida de que sua prima contou tudo a meu respeito. Deve ter sido justamente nessa ocasião que começou a invejá-la.

— Não! — Fenny balançou a cabeça, desejando muito con­vencê-lo de sua sinceridade. — Nunca senti inveja das coisas de Penela e, muito menos, dela. Precisa acreditar em mim. O que aconteceu hoje foi... Oh, não sei explicar. Quando eu me vi na igreja, já era muito tarde para fazer alguma coisa, a não ser enfrentar tudo de cabeça erguida e com sangue-frio.

— Pois daqui para a frente terá que enfrentar tudo o que acontecer. — Inclinou-se sobre Fenny, com as mãos em seu pescoço e então a beijou.

Ela sentiu-se perdida, como se estivesse sozinha numa floresta escura durante uma forte tempestade.

— Você não beija tão bem como sua prima. — Sua ex­pressão era tanto de zombaria quanto de surpresa. — Que tipo de mulher é você? Uma virgem muito inocente ou a vagabunda mais esperta do mundo? Seja qual for a verdade, vou fazer de você uma mulher de verdade, madura, contro­lada, fina e inteligente.

Depois, como se sua fúria aumentasse repentinamente, apertou o pescoço dela com mais força, murmurando feroz:

— Amor e ódio são muito parecidos. E, pelo amor de Deus, você e eu vamos ter que manter uma fina corda esticada entre essas duas coisas. Acha que está preparada para isso?

— Tenho que estar. Você não me dá outra escolha.

— Nenhuma, minha pequena mentirosa. E não tenha ilusões, não vou deixá-la partir antes de me dar o que quero: um filho.

 

Era um vestido azul-claro, sem mangas e decotado, bordado com pedras num tom mais forte. Sem dúvida alguma, tinha sido desenhado especial­mente para Penela, mas, como Fenny tinha quase o mesmo corpo dela, serviu perfeitamente.

Parou diante do espelho e sentiu-se como uma estranha. Nunca havia usado roupas assim; mesmo porque, seu salário não lhe permitiria. Agora, com o coração batendo depressa, ela se via linda naquele vestido azul que realçava a pele clara, os olhos acinzentados e o cabelo dourado. Jamais fora atraente como Penela, mas estava contente com a imagem refletida no espelho. Lion não podia reclamar de sua aparência.

A aliança de esmeraldas brilhou na mão esquerda. Se alguém da imobiliária a visse agora, não reconheceria a eficiente e dedicada funcionária Fenny Odell.

De repente seu coração bateu mais forte, pois lembrou-se das implicações que aquele casamento teria. Seu tio devia ser avisado e os irmãos de Lion precisavam tomar conhecimento de que tinha havido uma troca de noiva Era tudo muito com­plicado e os falatórios explodiriam como uma bomba.

— Está pronta? — Lion perguntou, entrando pela porta que comunicava os dois quartos.

— Quase.

— Dê uma volta.

Fenny obedeceu, sem protestar. Apesar do olhar de apro­vação, sabia que ele a estava comparando com Penela, e por isso não esperou elogios.

— É um bonito vestido — ele disse finalmente. — Ficaria bem até numa mulher feia e deselegante.

— Por favor... — suplicou. — Será que não podemos ser amigos? Ao menos isso?

— Amizade está fora de cogitação, minha querida. Por­tanto, esqueça.

Ela viu que ele se aproximava e teve que se controlar para não fugir. Mostrar coragem seria a única maneira de se fazer respeitada. Ergueu a cabeça e enfrentou o olhar de investigação que ele lhe dava.

— Como você vai sofrer, minha querida. — Parecia sa­borear a idéia de maltratá-la, porque um brilho diferente apareceu em seus olhos.

— Você não é do tipo resistente. Sua pele é clara, sensível, como se a protegesse do sol e da sensualidade dos homens. Totalmente diferente de Penela e, ainda assim, tomou o lugar dela. Por acaso tem alguma coisa de feiticeira?

— Ainda há pouco você duvidou da minha virgindade e me chamou de vagabunda. Parecia muito certo do que dizia. Não entendo por que está em dúvida, agora.

— Que homem está completamente certo com relação às mulheres? Com esse vestido, você parece frágil como uma flor. — Aproximou-se mais e tocou o chiffon macio. — Está tremendo, minha querida. Tem medo de que eu a toque, ou isso desperta em você o instinto de mulher?

— Você me faz sentir medo.

— Medo de que eu a machuque?

— Não. Acho que estou apavorada com o seu ódio.

— O ódio é um sentimento terrível, não é? E nós, gregos, nunca somos moderados em nossos sentimentos. — Seus dedos fortes subiram até a garganta de Fenny. — O pescoço de uma mulher devia estar sempre enfeitado com pérolas, mas pérolas verdadeiras, formando uma corrente tão forte que se poderia estrangulá-la com ela. Não se mexa!

Fenny ficou paralisada enquanto ele tirava do bolso uma caixa preta e retangular: era um rico colar de pérolas, com um fecho de pequenos diamantes.

— Não posso usar isso. Pertence a Penela!

— Não vejo diferença alguma entre usar o vestido dela e usar este colar. Comprei para Penela, mas como ela não está aqui, e você está, seria uma pena deixá-lo guardado na caixa. Um grego gosta de que as pessoas vejam os enfeites que ele pode oferecer à esposa.

— Enfeites? As pérolas não são verdadeiras?

— Gostaria de usar pérolas falsas, para combinar com você, minha pequena Judas? Ia se sentir melhor assim?

O sarcasmo em sua voz era suficiente para Fenny en­tender que as pérolas não só eram verdadeiras, como ca­ríssimas. Embora Lion negasse já ter amado alguma mu­lher, tinha desafiado a convenção grega, tornando-se noivo de Penela, uma garota inglesa que nem era mais virgem. O cabelo claro e as maneiras encantadoras de Penela o cativaram e amoleceram o seu coração de pedra, jamais compraria pérolas artificiais para a mulher que amava. Ape­sar de negar seus sentimentos, Fenny tinha certeza de que Lion amara sua prima, e ainda amava.

Ele examinou, com ar de aprovação, a jóia em seu pescoço.

— São o que eu chamaria de pérolas virgens. Talvez você não as mereça, mesmo.

— Como se atreve? Tem absoluta certeza de que Penela era um poço de virtudes?

Seus olhos de tigre brilharam.

— Quando é que vai parar de fazer insinuações a respeito dela? Nem mesmo agora deixou de ter inveja? Talvez tenha razão: nem mesmo usando o vestido e as pérolas de Penela, você se compara a ela. Sua chama é de uma vela, e não de uma lâmpada. Você é inibida e apagada, ela é extrovertida e cheia de vida. Beijar você é o mesmo que beijar uma pedra de gelo: reage com frieza, não com a impulsividade de um coração quente.

Suas palavras feriram Fenny como punhaladas. Deslum­brado por sua prima, como acontecia com muitos homens, ele estava cego de amor por aquela mulher adorável que, onde quer que estivesse, era sempre o centro das atenções. Não se lembrava de, algum dia, Penela não ter conseguido o que queria. Em primeiro lugar estavam ela e seus desejos, depois, os outros. Fora sempre assim, desde que a conhecera. No entanto, era a ela, Fenny, que Lion acusava de ter um coração de gelo e de ser calculista!

Mas não podia dizer isso, pois só aumentaria o desprezo dele. Tinha que aceitar as injustiças, engolir os insultos e rezar para que Deus a ajudasse a suportar tudo o que aquele homem diabólico — mas a quem ela amava — pudesse fazer.

— Coloque o xale. E é melhor começar a aceitar a idéia de que estas roupas e jóias lhe pertencem.

— Se é o que quer...

Virou-se e sentiu as pernas tremerem quando se dirigiu à cama, onde deixara o xale de seda pura. Ele a seguiu e colocou o abrigo sobre os seus ombros frágeis.

Desceram e foram direto para o Jasmine Room, o sofis­ticado restaurante do hotel. O garçom conduziu-os a uma mesa central, nada apropriada para um casal recém-casado, e Fenny pôde jurar que Lion tinha reservado aquele lugar com antecedência: queria tornar público, o mais rápido pos­sível, que, em vez da noiva deslumbrante, agora estava ca­sado com uma mulher tímida e insignificante,

Fenny percebeu o olhar das pessoas e ouviu os cochichos. Deviam estar todos curiosos e sem entender nada. Lion segurou suas mãos por cima da mesa.

— Vamos dar corda para eles terem o que comentar. Por que não sorri para seu marido e permite que todos vejam como estamos felizes?

— Você precisa ser assim tão cruel?

— Minha querida, tenho que tirar algum proveito deste nosso casamento. — Levou as mãos dela aos lábios e, quando as beijou, apertou-lhe os dedos até machucar.

— Por favor, deixe-me ir embora!

— Só depois que pagar o que me deve, do jeito que combinamos.

— Como pode querer que eu seja a mãe de seu filho? Sei o que pensa de mim.

— Portanto, nunca viveremos em dúvida, boneca. Ao con­trário de muitos que se casam cegos pelo amor, nós não teremos desilusões, pois sabemos muito bem o que somos.

Soltou suas mãos, que tremiam. Quanto mais a ofendia e humilhava, mais satisfeito ficava. Ele tinha a justiça a seu lado, mas era uma justiça cruel. À noite, quando esti­vessem na cama e ele a procurasse, seria só para satisfazer seu desejo. Depois, quando tivesse a criança, ele a expul­saria, pois já não precisaria mais dela.

— Sorria. Você está parecendo um peixe fora d'água. As pessoas estão olhando para nós.

— Estou... estou muito preocupada com o meu tio. Eu devia avisá-lo de onde estou.

— Ele já sabe, pode ficar descansada. Há pouco menos de uma hora, telefonei para ele e avisei que a filha está em Nova York, e a sobrinha, comigo.

— O que ele disse? Você contou que...

— Contei, minha querida. Parece um pouco confuso, mas isso é questão de tempo, logo ele se acostumará com a idéia.

— Você contou tudo? — Fenny torcia as mãos. — Ele deve ter ficado muito surpreso...

— Arrasado seria a palavra correta.

— Estava bravo?

— Que diferença faz? Você não precisa mais dar satisfação a seu tio, pois é minha esposa e não depende mais dele. Agora, é a sra. Mavrakis, dona de indústrias e ilhas, e seu dever é ajudar seu marido e cumprir com o prometido. É o que queria e é o que você tem. Devia estar radiante, embora eu compreenda que o pagamento não é dos mais agradáveis. — Fez uma pausa e seus olhos eram duros como aço. — O que você sente realmente não me interessa. Quem faz a cama deita, e você não vai ser uma exceção.

— Obrigada — ela disse calmamente. — Até que enfim, está sendo honesto.

— Um de nós vai ter que ser, e a sua honestidade não é coisa em que se possa confiar.

O maitre chegou com a carta de vinhos e Fenny escon­deu-se atrás do grande cardápio. Estava sem fome e a lista de entradas e pratos deixou-a enjoada.

— Já resolveu o que vai querer? — Lion perguntou.

— Eu... eu não gosto de nada muito exótico. Quero melão, de entrada, e depois costeletas de vitela com batatas e feijão francês.

— Vou comer o mesmo — disse ao garçom. — Exceto que, como entrada, quero fatias de presunto defumado.

— Pois não, senhor.

O garçom recolheu os cardápios e pareceu um pouco sur­preso por pedirem um jantar tão simples, especialmente sendo ele um homem tão rico.

— Aquele sujeito deve estar achando que nós estamos nos alimentando de amor — Lion comentou. — É uma ironia que essas pessoas nos olhem, imaginando que hoje é o dia mais feliz de nossas vidas. Muitos devem até nos invejar.

— Qual você acha que vai ser a reação de seus irmãos? Zonar e Demetre eram gêmeos e cerca de quatro anos

mais moços do que Lion. Demetre tinha uma esposa na Grécia, mas Zonar ficara viúvo logo depois do casamento. Os três irmãos eram muito unidos, e Fenny tinha medo de que ficassem contra ela.

— Os dois admiravam muito Penela — disse Lion. — Portanto prepare-se, porque não vão tratá-la como amiga. Vão querer saber por que eu não a mandei para o inferno. Tente provar-lhes que me ama desesperadamente e que não achou que fosse me prejudicar ao tomar o lugar de Penela. Assim, ficarão mais descansados e até poderão aceitá-la. Eu não gostaria que eles soubessem que você viu em mim uma tábua de salvação para todos os seus problemas finan­ceiros: um marido rico que poderia lhe oferecer uma boa vida, uma fuga da rotina e do quarto na casa de seu tio.

— Imagino que deve ferir muito o seu orgulho a idéia de que uma simples mulher possa se aproveitar de você.

— Isso me enfurece. — Seus lábios estavam apertados e seus olhos pareciam lâminas. — Você vai fazer como estou lhe dizendo em consideração a meus irmãos, porque eles são mais importantes para mim do que qualquer mulher. Tomei conta deles quando eram pequenos, depois que nossos pais foram mortos pelas bombas. Lutei, briguei, fiz os serviços mais baixos e para as pessoas mais baixas, só para que eles não morressem de fome e para que, quando crescessem, pudessem ter uma boa vida, estudos, tudo o que eu não pude ter. São mais sociáveis e simpáticos do que eu, querida, e suas maneiras são mais educadas, mas cairão sobre você feito feras se des­cobrirem por que fez isso tudo. Tome cuidado.

Fenny olhou para aquele homem determinado e arrogante e pensou em dizer: "Não preciso fingir que gosto de você. Tomei o lugar de Penela porque eu o amava desesperada­mente". Mas é claro que não disse.

Lion levantou o copo de vinho e brindou:

— Beba e seja feliz, porque hoje à noite você pagará por ter se metido na minha vida e acabado com os meus planos.

Será que ele estaria sorrindo se Penela estivesse ali? Ou será que era sempre fechado, bruto e cruel com todas as mulheres?

Kali oreki — ela disse, mostrando-lhe que também sabia um pouco de grego, cuidadosamente memorizado por causa de sua viagem para Creta, uma viagem que havia planejado desde o ano anterior, muito antes de Penela ter apresentado aquele grego alto e elegante à família.

— Você está se referindo a isto? — Ele apontou para a comida em seu prato. — Ou está me desejando bom apetite para esta noite?

Fenny corou e olhou para o copo de vinho.

— Você... você torna tudo mais difícil, dificulta a minha atuação como... como uma esposa apaixonada.

— Quando estamos sozinhos, não há necessidade de usar­mos máscaras. Sabia que, quando os gregos inventaram o drama, escondiam-se por trás de uma máscara? Faz parte de suas crenças que os seres humanos são descendentes de Jano, com dois rostos para oferecer ao mundo. O mistério todo sobre isso é que ninguém tem certeza de qual é a verdadeira face.

— Acho uma atitude muito cínica. Significa que ninguém é realmente bom e que o mundo foi feito para as pessoas representarem.

— Quanto mais civilizados nos tornamos, menos revela- mos de nós mesmos, e não me refiro ao corpo, mas à mente. Olhe para você, meu bem. Seus olhos são como uma cortina de fumaça nos quais podem ser escondidas todas as coisas. Como muitos maridos num drama grego, eu posso estar correndo o perigo de ser envenenado pela minha Messalina.

Ele descansou a faca e o garfo sobre o prato e disse:

— Mostre-me a sua mão esquerda. — Fenny mostrou e   Lion tocou a aliança de esmeraldas, girando-a. A jóia se virou e surgiu uma pequena cavidade. — Um pozinho ve­nenoso era guardado neste pequeno compartimento para ser despejado no café ou vinho do marido ou do amante indesejável. Bem engenhoso, não acha?

Fenny olhou para o anel, cuja beleza escondia algo tão sinistro.

— Penela sabia disso? — perguntou, um pouco surpresa por a prima não ter mencionado um detalhe tão fascinante sobre aquela aliança de noivado. Era uma jóia estranha para um homem oferecer à mulher que ama.

Ele balançou a cabeça.

— Ela pediu uma aliança de esmeraldas, e eu tinha ganho essa, uns dois anos atrás, durante uma viagem de negócios a Florença. A pedra é magnificamente lapidada, mas não achei necessário contar a Penela que estava usando um anel que tinha pertencido a Lucrécia Bórgia.

Fenny prendeu a respiração. Os terríveis Bórgia, aquela infame família devotada à deslealdade e à morte misteriosa. Com um rápido movimento, Lion fechou o anel novamente.

— De qualquer forma — ele disse —, parece bem apro­priado que você use essa aliança, sua vagabunda perigosa.

Fenny sentiu os nervos à flor da pele. Nunca homem algum a chamara daqueles nomes.

— Eu... eu só o usei para...

— Para tornar a sua mentira mais convincente. Garanto, minha querida, que você é a atrizinha mais consumada que até hoje apareceu na minha vida. Você é quem devia ter seguido carreira. Desempenharia com perfeição o papel de mulher fatal. E há sempre uma certa fascinação, quando se está em companhia da filha do diabo.

Fenny não respondeu. Cada palavra dele era uma pu­nhalada em seu coração. Sentia-se a última das mulheres, sem razão nem vontade de viver. Olhou-o disfarçadamente. Apesar de insultá-la, ele não parecia sentir qualquer emo­ção. Tudo por que passara para tornar-se um homem rico e poderoso devia tê-lo tornado insensível.

Quando o carrinho de sobremesa chegou, ele lhe disse, com a voz mais suave do mundo:

— Doces para um doce. Vamos, você tem que provar um pouco. Que tal um pedaço daquele bolo recheado de coco e nozes? Afinal, não comeu do nosso bolo de casamento, não foi, meu bem?

— Não consigo comer mais nada. Não quero nenhuma sobremesa, obrigada. Já estou satisfeita.

— Ah, mas eu insisto. É a sua grande oportunidade de provar algumas das delícias que a vida nos oferece. Sim, garçom, minha esposa vai comer sobremesa.

— Talvez madame goste das nectarinas, senhor. — O garçom olhou para Fenny. — Nós as preparamos com co­nhaque e depois recheamos com creme. Isso lhes dá um sabor muito sutil.

— Sim, vamos provar — Lion disse, com um olhar de reprovação para Fenny. — Um dia tão especial para nossas vidas exige um tratamento especial. Prepare-as com o me­lhor conhaque que vocês tiverem, pois minha esposinha me­rece tudo do bom e do melhor: ela é maravilhosa.

O garçom trouxe a sobremesa em taças de cristal. Estava muito bonita, mas Fenny não sentia um pingo de vontade de comê-la. Pegou o garfo e a colher com mãos trêmulas.

— Hum... uma delícia — Lion murmurou. — Ande, coma. Pare de fingir que tem o apetite de um pássaro.

— Você está sendo cruel. Pare com isso!

— Ah, então você agora já acha que tem direito de me dar ordens? — Seus olhos fuzilavam Fenny, e ela teve a impressão de estar diante de um animal selvagem. — Estou apenas sendo eu mesmo, amor. Sou um grego que se fez sozinho, sem ajuda de ninguém e sem ilusões. Você terá que aprender que quem manda em casa sou eu, e que, como minha esposa, deve obedecer. Porque a última palavra quem dá sou eu, e tudo o que digo é lei.

— E por causa disso tenho que me empanturrar de doces, quer queira, quer não? Você não tem pena mesmo, não é?

— Quando se trata de você, não. Agora, coma. Não quero chegar atrasado ao teatro.

E ele ficou lá, sentado como um inquisidor, até Fenny terminar a sobremesa. Depois, ajudou-a a se levantar. Ela pôde sentir seu ódio, que parecia penetrar-lhe até os ossos, quando Lion segurou-a pelo cotovelo e conduziu-a para a rua, onde o carro esperava.

Seguiram em silêncio para o teatro. Fenny, mais pálida que as pérolas de seu colar, deixou que Lion a levasse até as poltronas, feito um autômato.

As pessoas que se viravam à passagem dos dois nunca ima­ginariam que aquela mulher abatida fosse uma recém-casada.

Lion murmurou em seu ouvido:

— Sou muito orgulhoso, vingativo e ambicioso. É muito tarde, minha querida, para se arrepender.

Fenny não ousou olhar para ele. As luzes do teatro co­meçaram a apagar, e a grande cortina, a subir.

Foi durante o segundo intervalo que sentiu que não podia suportar mais. Desculpou-se com Lion, murmurando que queria ir ao toalete, mas, quando alcançou o vestíbulo, es­capou da pequena multidão que fumava e discutia a peça e saiu para a rua.

Estava fugindo de Lion, mesmo sabendo que jamais con­seguiria escapar daquele homem tão cruel; mas, por ora... por algum tempo, estaria livre. Ele tinha ido longe demais, estava fazendo-a sofrer mais do que podia aguentar. Ficar a seu lado seria suicídio.

Atravessou a rua e desceu os degraus que levavam à barragem do rio. A noite e o reflexo das luzes na água deram-lhe uma sensação passageira de paz, a única paz que sentira durante o dia todo. A brisa batia-lhe no rosto e ondulava seus cabelos. Havia uma certa beleza naquela velha parte de Londres e, em qualquer outro momento, Fen­ny teria se abandonado à sensação de bem-estar.

Mas, quando olhou para a água, viu um par de olhos brilhando. No ruído distante do tráfego, a voz irritada e profunda de Lion se destacava. De repente, seus olhos se encheram de lágrimas.

— Cheia de surpresas, hein? — disse ele. — O que estava planejando fazer?

— Nada. Só queria ficar sozinha por alguns instantes. Há algum mal nisso? Você não precisa me seguir, eu não ia me demorar. Já estava pensando em voltar para o teatro.

— Claro. Você não terá direito a meus bens até se tornar minha esposa de verdade, e não apenas de nome. Claro que ia voltar.

— Eu nunca quis os seus bens. Nunca dei a mínima para eles...

— Minha querida, não me diga que você está me dando a honra de gostar de mim! — Riu, sarcástico. — Espero que Petaloudes seja compensação suficiente pelo sacrifício que vai fazer. Não se iluda: você me dará um filho, não me importa se gosta ou não disso.

Mais do que a cólera de Lion, o que a amedrontava era que ele ia tratá-la sempre como a uma qualquer. Estremeceu quando a segurou pelo braço para ajudá-la a entrar no carro.

— Você é muito cínico — disse baixinho. Começava a sentir-se muito fraca. O que Lion faria se, de repente, encostasse a cabeça cansada no ombro dele? Será que iria empurrá-la, repeli-la? Ou beijá-la, como um homem beija uma mulher da vida?

Qualquer uma das reações seria insuportável. Fez um esforço para manter o controle e a aparência fria, altiva e distante.

— Um homem só pode julgar as mulheres pelo que conhece delas. Quando eu era mais jovem, não tinha tempo para essas coisas, estava sempre ocupado. Para mim, era suficiente pas­sar uma noite com uma mulher, e nunca me preocupei seria­mente com o casamento, até que, no verão passado, encontrei sua prima em Atenas. Bem, deu no que deu. Se sou cínico, quem pode me culpar? Mas como sou também um grego, devo tirar o melhor proveito de um mau negócio. Você não tem os mesmos atrativos de sua prima, mas sabe como usar as roupas dela e tem um ar de pureza que intriga até mesmo um homem que sabe que tudo isso é falso.

Seu olhar era como uma lâmina. Estudou-a de alto a baixo e continuou:

— Você não teve boa educação, mas a única coisa que quero que me dê um filho. As chances são boas de nascer um menino: acredito que setenta por cento. Meus pais só tiveram filhos homens, e a esposa de Zonar, antes de morrer, teve um menino.

— Eu não fazia idéia de que seu irmão Zonar era pai. Ele parece... Oh, não sei.

— Despreocupado? Um homem que flerta e leva a vida como se fosse acabar na manhã seguinte? É só uma máscara! Ele, ao contrário de Demetre e de mim, teve muita sorte no amor, era muito feliz, tinha uma esposa maravilhosa... até o dia em que aquele maldito caminhão chocou-se com o carro deles. Mercedes teve o bebê na estrada, perto de onde aconteceu o acidente, e morreu antes que a ambulância pudesse chegar ao hospital.

— A criança sobreviveu? — Fenny olhou para o marido com sincera compaixão.

Ele disse, com voz cortante:

— Poupe-me esses seus olhos de atriz. Que diferença pode fazer para você que um Mavrakis sofra? Você não faz parte realmente da minha família. Invadiu a nossa priva­cidade. Portanto, guarde a sua simpatia para si mesma. No dia em que me entregar o bebê, eu a riscarei da minha vida. Terá que suportar a dor de ter um filho que nunca irá correr ao seu encontro e chamá-la de mamãe.

— Você... você vai ser assim tão cruel?

— A vingança nunca é suave. Um grego não espera que a vida lhe proporcione amor ou piedade, mas ele trabalha muito para ter um filho a quem possa deixar tudo o que construiu. Sim, o filho de Zonar sobreviveu e está muito bem, é uma criança saudável; uma enfermeira toma conta dele, no castelo. Eu pensava em tornar Alekos meu herdeiro, mas agora terei um herdeiro do meu próprio sangue. — Enquanto falava, Lion se aproximava dela com um sorriso assustador. — Estou começando a ficar entusiasmado com a idéia. Você sabia que, na Grécia, a palavra "entusiasmado" quer dizer que uma pessoa está possuída por um deus?

— Não é por um demônio?

— O diabo esteve trabalhando hoje, e por que não con­tinuará à noite? Nossa noite de núpcias tanto poderá ser o paraíso como o inferno.

O carro parou em frente ao hotel. Atravessaram o ves­tíbulo e foram à portaria, onde Lion pegou as chaves com o gerente. O homem sorriu, malicioso.

— Boa noite, senhor. Madame... — Colocou ênfase nas palavras, e Fenny não ousou olhar para Lion quando en­traram no elevador que os levou para a cobertura.

Já era tarde e o hall da suíte estava à meia-luz. O barulho da chave sendo virada na fechadura mexeu com os nervos

de Fenny.

— Você quer beber alguma coisa? — ele perguntou, despindo o sobretudo e aproximando-se do bar. — Vou tomar uma dose de vodca com soda e gelo. Muito bom para os nervos.

— Por quê? Você está nervoso?

— De forma alguma. Mas você está; não é mesmo? Tenho certeza de que você adoraria ser uma daquelas esposas que inventam uma dor de cabeça para escapar das atenções do marido. Não me importo nem um pingo com as dores que possa estar sentindo.

Fenny colocou o xale no sofá e aceitou um dos copos. Nunca tinha experimentado vodca, mas, se fosse ajudá-la a sentir-se melhor, não se importaria com o gosto. Tomou-a rapidamente, e a bebida forte queimou-lhe a garganta, quase fazendo-a sufocar.

— Fico realmente espantado de ver que você não tem... ou finge não ter... o hábito de beber. Se está pensando que vai conseguir me comover com esta encenação de falsa virtude, perde seu tempo. Guarde-o para algo útil, minha querida.

Ela corou, quando viu como ele a olhava. Então Lion disse, quase insolente:

— Já é tarde, está na hora de dormir. Acho melhor você ir para o quarto, se aprontar para mím.

Fenny encarou-o, petrificada.

— Bem, você já devia esperar por isso: casou-se comigo, e nosso casamento não vai ficar só no papel. Nós fizemos um pacto, lembra-se?

— Sim...

— Então, o que está esperando? Estava muito animada para usar o vestido de noiva de sua prima. Agora, é hora de ir se preparar para a nossa noite de núpcias.

— Você deve estar brincando... Isso não é sério, não é mesmo? — Fenny sabia muito bem que Lion falava sério, mas precisava fazer alguma coisa para ganhar tempo. Ele ergueu a sobrancelha.

— Nunca falo só por falar, você sabe disso. A camisola de Penela deve servir em você. Mas, se não servir, não vou reclamar...

— Lion, por favor!

— Minha querida, devia ter pensado nas consequências de seus atos esta manhã. Vá para o quarto!

Sem olhar para ele novamente, ela obedeceu.

À meia-luz daquele quarto luxuoso, Fenny despiu-se, pre­parando-se para dormir. Estava perdida em seus pensa­mentos. Caminhou descalça pelo carpete, entrando no ba­nheiro para se lavar e escovar os dentes, voltando outra vez para vestir a camisola de seda bordada, cor de pêssego.

Lion era um selvagem, incapaz de sentir piedade. Sua pele suave e pálida, seu cabelo dourado, os cílios trêmulos não iriam torná-lo mais delicado, apenas despertariam o desejo que um homem violento sente por uma mulher que lhe pertence.

O espelho refletiu a sua imagem... aquele rosto e corpo pertenciam a Lion Mavrakis, e ele agora ia aparecer e exigir o que tinha direito. Se ao menos aquilo fosse amor... Suspirou, com lágrimas nos olhos. Ele ia escravizá-la, mas nunca che­garia a amá-la. Lentamente ela se voltou para olhar para a cama baixa e larga, coberta por uma colcha de seda dourada.

Aquela noite, sem dúvida alguma, seria um inferno, mas Fenny nada podia fazer. Era muito tarde.

Estava em pé perto da janela, olhando as estrelas que pa­reciam estar muito próximas, quando ouviu o barulho da porta sendo aberta. Com o coração disparado, Fenny continuou no mesmo lugar, sentindo que ele se aproximava silenciosamente pelo carpete. Com um gesto brutal, Lion puxou sua cabeça para trás. Ela não tinha como escapar e, se tentasse, seria bem provável que ele quebrasse o seu pescoço.

Estremeceu quando Lion a acariciou, e sensações que não conhecia fizeram seu sangue ferver. As mãos dele pas­saram pelos seus cabelos e desceram até o pescoço.

— Uma da partes mais vulneráveis e mais eróticas da anatomia de uma mulher é o pescoço — ele murmurou e, no tumulto e violência daquele momento, Fenny quase acre­ditou que houvesse uma mudança em seu tom de voz. Mas depois Lion a fez voltar-se e ela viu que não havia esperança de ternura no rosto moreno: ele estava inflexível.

— Sua pele tem a palidez do loto, minha querida. Como você parece inocente! Qualquer outro poderia ser enganado, pensando que é pura.

Puxou-a contra o peito e começou a beijar seus ombros nus. O coração de Fenny batia descontroladamente, de amor e medo.

— Como consegue isso? Você não me ama! — ela protestou com voz fraca. Sabia que os sentimentos pouco importavam: ele a desejava naquele momento e iria possuí-la, apesar de não amá-la.

— O que é que o amor tem a ver com isso? — Ele deu uma gargalhada e passou os dedos por sua pele macia e jovem. — Você será minha robija... minha escrava... por milhares de noites, e depois... adeus!

Afastou-a por alguns instantes, o que sentia estava muito visível em seu rosto: os olhos brilhavam de modo estranho, os lábios tremiam de desejo. Fenny afastou-se.

— Por favor...

— Quem quer perdão, primeiro deve bater à porta e então esperar a resposta do diabo — ele falou, zombeteiro, e segurou-a com as duas mãos. Seu calor penetrava pela camisola de seda

— Seria o mesmo que bater numa pedra — ela murmurou.

— Com certeza. Você está agindo exatamente como uma virgem, quando dorme com o primeiro homem.

— Você... você sabe que eu sou...

— Não, eu ainda não sei. — Puxou-a e levou-a para a cama. Fenny ficou deitada, imóvel e fascinada, apesar do terror

que sentia. Sabia que aquele homem não iria poupá-la, até que amanhecesse e a luz do sol entrasse pelas janelas.

Lion apagou o abajur e ela sentiu que despia o roupão de seda.

— De noite, todos os gatos são pardos... e todos podem ronronar — disse ele, com uma gargalhada.

 

A manhã seguinte estava linda. O sol brilhava forte, entrando pela janela, batendo no tra­vesseiro e depois no rosto de Fenny. Ela acordou e, no começo, não reconheceu o quarto estranho e luxuoso. Continuou dei­tada preguiçosamente até que, de repente, lembrou de tudo. Com um suspiro sentou-se, puxando a colcha para se cobrir. Já não era mais a garota ingênua do dia anterior, porque não havia uma parte de seu corpo em que não sentisse a intimidade dos lábios de Lion.

Ele a possuíra inteira, durante horas. Algumas vezes ti­nha sido cruel, não dando muita importância ao fato de ela ser inocente, insultando-a até fazê-la entregar-se.

Naquela noite, nada teve importância, exceto o fato de que o amava. Mesmo assim, não se entregou sem luta, não se deu por vencida com facilidade. Sabia que, se ele apre­ciasse qualquer coisa nela, seria justamente o fato de ter lutado com ele... até que Lion a fez render-se.

Tinha sido totalmente dominada na escuridão, mas agora já era dia, e devia encará-lo. Nenhuma vez ele murmurou uma palavra de carinho... Apreciara muito o seu corpo, e era tudo. Ela sentiu-se uma escrava naqueles braços fortes, percebendo o ódio profundo do homem que amava.

Continuava sentada, perdida em seus pensamentos, quando a porta do quarto foi aberta e Lion entrou, moreno e viril, usando uma camisa branca e uma calça escura im­pecável. Fenny puxou a colcha, cobrindo-se, envergonhada. — Bom dia — ele disse, vindo sentar-se na beirada da cama. Depois deixou cair sobre as cobertas um objeto que tinha um brilho estranho. — A dádiva da virgindade deve sempre ser recompensada para satisfazer os deuses.

Fenny olhou para o presente, sentindo uma onda de in­dignação: estava sendo paga pela noite anterior, como qual­quer mulher de harém.

— Olhe — ele ordenou. — Tenho certeza de que vai adorar.

— Da mesma forma que você adorou, quando descobriu que eu nunca tinha pertencido a outro homem, não é? — ela perguntou, com os olhos faiscando.

— Realmente, fiquei muito surpreso; não esperava por isso — ele admitiu, inclinando-se sobre ela, com um braço encostado na cabeceira. — Não esperava que você fosse tão imaculada de corpo, já que tem uma mente tão diabólica. Machuquei você?

— Por que está perguntando isso? Por acaso faz alguma diferença? — Sentiu o rosto pegar fogo. — Não era o que você queria, me machucar?

— É indiferente. — Suas mãos morenas escorregaram pelos ombros dela, nus. — Não sou um animal. Apenas um homem com raiva, e o ódio de um homem pode subjugar o seu lado bom. Você tem uma pele muito branca e sensível, é fácil deixar marcas.

Quando a tocou, Fenny estremeceu.

— Não faça isso, não me toque. Para sua surpresa, ele a soltou.

— Olhe o seu presente. Tenho certeza de que, de certa forma, vai se sentir recompensada.

Ela pegou o bracelete de ouro, esculpido com frutos, flores e pequenas cabeças de mulheres. Obviamente era uma jóia grega e, sem dúvida, rara e bem antiga.

— É um desenho da Afrodite sagrada — ele disse. — O trabalho de filigrana é excelente. Bonito, não acha?

— Muito bonito. Bem apropriado para a sua escrava.

— Se é como se sente... Quer tomar café aqui no terraço da suíte, ou quer descer ao restaurante?

— Aqui está bom — disse, e ficou tensa porque ele tomou seu pulso e colocou o bracelete.

— Meus irmãos virão nos visitar logo após o café. Lem­bre-se do que eu lhe disse.

— Sim, meu amo. Devo agir como uma esposa pateta e tentar convencê-los de que a perda de Penela como cunhada não é uma grande calamidade. Eu devo, se possível, mos­trar-me como um exemplo de esposa amorosa e devotada.

— Também terá que aprender a usar o meu nome, como fez ontem à noite.

— Fiz isto? — Estava toda confusa novamente. Por Deus, ela não podia ter falado nada comprometedor durante aque­las horas em que esteve em outro mundo, vivendo só para ele, para aquele corpo forte de homem. Naqueles momentos nada tinha importância... Mas agora estava preocupada, te­ria falado alguma coisa que revelasse o seu amor?

— Você nunca vai saber, não é mesmo? — ele zombou. — Precisa de um criado para ajudá-la a banhar-se?

— Não preciso de nada.

— Você é um enigma. — Segurou-a pelo queixo e puxou seu rosto para a luz do sol, mostrando um brilho cruel nos olhos. — Você sabe menos da metade do que Penela sabe sobre os homens. Só posso imaginar que devia estar deses­perada para enriquecer rapidamente, E espero que cada pagamento valha a pena. Ontem à noite você lutou como um demônio, até que eu a venci.

— Tem que ficar lembrando a noite passada? Você é mais forte. Tive que me entregar, não importando se queria ou não.

— Talvez seja isso mesmo. — Seu sorriso era irônico. — Foi uma noite de núpcias cheia de surpresas. Lembre-se sempre de que, enquanto for minha esposa, será minha propriedade exclusiva. A esposa de um grego não olha para outros homens, a não ser que queira levar uma boa surra. Nós temos um ditado: "Bata em sua mulher como você bate para limpar o seu tapete".

— Maravilha!

— Os gregos não fingem, como os outros homens. O que dizemos é para valer. O que fazemos, nós o fazemos até o fim.

— Estou certa disso. Ele riu.

— Vou para a sala de estar e pedirei o nosso café. Não me faça esperar muito tempo.

— Não, patrão.

— O quê? O que foi que você disse?

— Foi exatamente o que você ouviu.

— Você pode me chamar do que quiser, se gostar, mas não na frente de outras pessoas. Muito menos dos meus irmãos. Entendeu bem?

Saiu com passos rápidos, fechando a porta com violência.

Fenny pulou da cama e foi para o banheiro. Abriu o chuveiro e ficou embaixo da revigorante ducha por muito tempo, en­saboando o corpo que parecia mais sensível, e percebeu que, apesar da luta com Lion, ele quase não deixara marcas nela.

Quantas mulheres Lion tivera na vida? Já estava com trinta e tantos anos, era um homem vivido; provavelmente, muitas mulheres tinham passado por suas mãos.

Teria amado Penela? Amar, talvez não. Mas estava certa de que ele tivera a prima nos braços do mesmo jeito como a possuíra na véspera Ele não tinha dito que Penela sabia muito sobre os homens? Um indício de que suas relações eram íntimas.

Uma sensação de ciúme invadiu Fenny. Será que ele tinha comparado as duas, achando-a sem experiência, cheia de pudor e fria?

Nunca iria realmente descobrir, porque era apenas uma propriedade dele, para ser possuída ou deixada de lado, dependendo de seu humor. Começou a se enxugar, tentando afastar aqueles pensamentos. De volta ao quarto, vestiu um robe que Penela tinha comprado com o dinheiro de Lion e separou a roupa que vestiria na viagem à Grécia. Havia uma sandália para combinar e, uma vez mais, teve que usar uma palmilha para que o sapato não saísse de seus pés.

Enquanto escovava o cabelo, observou-se no espelho.

O terror da noite anterior tinha desaparecido de seus olhos. Era apenas interiormente que sentia aquela sensação de medo, ao pensar que agora fazia parte da vida de Lion Mavrakis.

Ela lhe pertencia e nada iria alterar esse fato. Ele era o primeiro e único homem que a conhecia. Estavam unidos, e assim ficariam até que ela lhe desse um filho.

Fenny o amava, ainda mais do que no dia anterior, mas não queria engravidar. Se tivesse o filho que ele desejava, o relacionamento deles terminaria. Foi esse pensamento que trouxe o terror de volta a seus olhos acinzentados. Teve que esperar alguns segundos até recuperar a calma e poder ir juntar-se ao marido no terraço da suíte.

Ficava bem acima das ruas barulhentas de Londres e do verde das árvores. Ele estava sentado à mesa, lendo o jornal da manhã, e olhou-a, rapidamente, enquanto ela se dirigia

ao parapeito.

— Não temos muito tempo, Fenella. — Pela primeira vez disse seu nome, mas sem nenhuma emoção. — É melhor você comer alguma coisa, porque o vôo para a Grécia é demorado e só servem sanduíches e café, a bordo. Quero ir direto para Petaloudes por razões de negócios.

— Você nunca pára de trabalhar? — ela perguntou, ser­vindo-se de café.

— Não, se for preciso. — Serviu-a de bacon com ovos.

— Pronto, isto vai sustentar você.

— Obrigada.

Lion já tinha comido e lia agora o caderno de economia do jornal. Vestia um terno de corte perfeito e usava um relógio Cartier no pulso. Um autêntico homem de negócios bem-sucedido. Mas aquelas mãos fortes eram as mesmas que haviam dominado e acariciado todo o seu corpo.

Naquele momento ela pensou que não havia basicamente nada de nobre no amor... era na verdade a mais primitiva das experiências do ser humano.

Perturbada, Fenny tentou não olhar para aquele que a fazia sentir-se daquele jeito...

— Fico contente de ver que você está com apetite, querida. Talvez seja o ar da manhã. O dia está lindo e isso ajuda,

não acha?

Ela corou e não respondeu. Lion continuou:

— Estranho, mas eu nunca dei muita importância a você, achava-a insignificante. Quando a encontrava na casa de seu tio, quase nem a notava. O que houve com o seu cabelo? Parece que você o usava diferente. Já sei: ficava sempre preso num rabo-de-cavalo, não é?

Ela concordou com a cabeça,

— Quando se trabalha num escritório, o cabelo solto atra­palha. Principalmente se você tem que passar o tempo todo batendo à máquina. Por isso eu me acostumei a usá-lo da­quele jeito.

É. Sem dúvida, habituou-se a não competir com a sua prima. Enquanto ficar comigo, prefiro que use o cabelo solto como está agora. Quero que seja admirada. Há uma beleza estranha e singular em seus olhos. Mas, fique sabendo: outros homens poderão olhá-la, mas não permita que toquem em você!

— Como se eu quisesse que eles me tocassem!

— Claro, minha querida. Eu tinha esquecido que você tem aversão por ser tocada. Não precisa ficar vermelha. Você deve ter percebido, ontem à noite, que eu não fiquei totalmente desapontado. Tive prazer com você. Portanto, pode ficar com a consciência tranquila e usar aquelas lindas roupas e jóias sabendo que trabalhou bem por elas e as mereceu.

— Oh, Lion!

— Foi exatamente assim que você falou ontem à noite. Continue dizendo o meu nome dessa forma, e meus irmãos irão aprová-la.

— Você consegue ser tão ferino e selvagem como um leão.

— Sim, e é bom que nunca se esqueça disso. Fenella no covil do leão, hein? Acha que, se for esperta, eu acabarei comendo na sua mão?

— Nunca esperei viver tanto tempo.

— Só o tempo suficiente de me dar o que quero. — Ele pegou um pêssego, partiu-o ao meio, retirou o caroço e entregou-lhe uma das metades.

O suco escorreu de seus dedos pelos de Fenny e, como sempre, ela sentiu que havia alguma coisa pagã no que ele fazia. Aquele grego rude e primitivo fazia com que ela se lembrasse de ritos de amor, magia e guerra. Grandes pedras de sacrifícios no sol ardente, a oliveira prateada e o figo fértil do terreno árido da terra antiga.

Fenny mordeu a polpa do pêssego.                              

Ainda estavam sentados ao sol no terraço, quando alguém tocou a campainha da suíte. Fenny sentiu uma tensão ime­diata e, quando Lion se levantou, soube que os irmãos dele estavam prestes a entrar na sala de estar. Apesar de ner­vosa, ela o seguiu. Não havia meio de fugir daqueles homens.

Ele abriu a porta e, imediatamente, as mãos morenas de seus irmãos bateram em seu ombro: era como se os três ti­vessem estado separados por um mês, em vez de uma noite.

Gregos dos pés à cabeça. Um relacionamento familiar tão poderoso que poderia excluir o desconhecido, se eles assim o desejassem.

— Olá, recém-casado! — Zonar riu. — O chefe da família e, só agora, um marido! O que está achando, mano?

Os irmãos invadiram a sala, subjugando Fenny com suas alturas e seus bronzeados. Eram parecidos e tinham uma aparência mais suave do que Lion. Bonitos e menos assusta­dores, tinham olhos castanho-escuros ao invés do amendoado que tornava o olhar do irmão mais velho tão expressivo.

Só então os dois lhe deram atenção.

— Você parece diferente... — Demetre foi o primeiro a falar.

— É uma ótima garota. — Zonar observou seu cabelo sedoso e dourado. — Tranquila e linda.

Fenny permaneceu no mesmo lugar, sem se defender da opinião que faziam dela. Lion não disse nada, ignorando o medo que ela sentia por estar sendo julgada naquele tri­bunal familiar.

Foi Demetre quem percebeu a troca de esposas.

— Mas que diabo! O que foi que saiu errado? — pergun­tou, confuso e bravo.

— Ou certo? — Zonar olhou para Fenny e ela percebeu que ele parecia diferente de seu gêmeo por causa de algumas linhas de sofrimento marcadas em seu rosto.

O rapaz caminhou em sua direção, com um sorriso.

— Posso beijar-lhe as mãos e dar-lhe as boas-vindas à família?

Fenny não teve tempo para protestar ou concordar, por­que Zonar, impulsivamente, tomou sua mão esquerda e le­vou-a aos lábios.

— Você é muito bonita. Cabelos dourados e pele lisa... muito raro, hoje em dia, quando os cosméticos podem fazer milagres para embelezar uma mulher.

Quando os lábios dele tocaram sua mão, Fenny imedia­tamente percebeu que uma coisa perigosa tinha acontecido: Zonar Mavrakis estava atraído por ela. Rapidamente, liber­tou seus dedos dos dele.

— Você é um homem de sorte, Lion — disse o irmão.

— Acha? — O rosto moreno e duro estava indecifrável.

— Mas claro que sim, mano. Quantos homens têm a sorte de largar uma mulher de cabelo cor de platina e apa­nhar imediatamente uma de cabelo dourado?

— Fico contente que você esteja tão deslumbrado com a minha jovem esposa. Ela estava com receio de que meus irmãos não a aprovassem.

— Aprovar? — Demetre olhou para o irmão mais velho, assustado. — Nós vamos ter mesmo que aceitar esta garota no lugar de Penela? Ela é uma impostora...

— Ela e eu nos casamos ontem de manhã, na igreja, e à noite nos tornamos marido e mulher. Não há mais nada para dizer!

— Há ainda muito a ser discutido — protestou Demetre.

— Estas coisas simplesmente não podem acontecer.

— Parece que acontecem, e até mesmo com os gregos.

— O sorriso de Lion era a própria ironia. — Mas uma mulher é uma mulher e esta será o suficiente para as minhas necessidades. Um rosto agradável na hora das refeições, um pequeno consolo no fim do dia.

Foi então que Fenny sentiu que devia deixar os irmãos Ma-vrakis a sós para discutirem entre si o que iam fazer. Seguindo o instinto, dirigiu-se a Lion e ficou quase nas pontas dos pés para alcançar com seus lábios aquele rosto duro e marcado.

— Devo ir para o quarto, ver se a bagagem está toda pronta. Sei que você quer ir embora logo.

— Isso mesmo, Fenella. — Olhou para Demetre. — Está vendo como ela é obediente?

— Você já a tem na palma da mão, hein? — comentou Zonar, acompanhando-a até a porta do quarto. Fenny sabia que os olhos escuros dele pousaram na cama, antes que ela fechasse a porta atrás de si.

Por alguns instantes, ficou em pé e muito quieta, sentindo as mãos frias e o rosto quente. Que situação mais incrível! Demetre não gostara dela, enquanto Zonar gostara até de­mais. Os gregos! Não tinham meias medidas! Por que pre­cisavam se envolver tanto no casamento de um irmão?

Mas tinha que encarar o fato de que Lion não era um irmão comum. Ele havia comido o pão que o diabo amassou para que osmeos sobrevivessem no terrível inverno do fim da guerra. Usara todos os meios para tornar-lhes a vida mais agradável. Não havia nenhuma dúvida na cabeça de Fenny de que os dois o adoravam e queriam, que fosse muito feliz com a mulher certa, pois ninguém melhor do que ele merecia tal coisa.

Na opinião de Demetre, Penela não podia ser substituída, porque tinha sido a escolhida de Lion. Por outro lado, Zonar apreciara a beleza discreta de Fenny.

Bonita? Ela foi até o espelho e deu uma olhada objetiva em seu rosto e corpo. Sua aparência era extremamente co­mum e inglesa, no entanto agradava ao jovem grego. Devia ser porque, desde que ele perdera tragicamente a esposa, provavelmente procurava consolo com outras mulheres,

para tentar esquecer.

Só que, agora, Zonar estava cometendo um grande erro: ele devia entender que não podia se interessar demais por Fenny. Ela era a esposa de Lion, propriedade dele, e iria ser um inferno se ela permitisse que o irmão se aproximasse ou mesmo que chegasse a tocá-la.

O que poderia fazer para não prejudicar os dois irmãos? Um homem que cobiçasse a esposa do irmão era amaldiçoado pelos gregos. Além disso — e muito pior —, a natureza de Lion não admitia que sua esposa fosse de qualquer outro. Era dele, para beijar ou surrar... para manter ou rejeitar. A vida com ele parecia empurrar Fenny para um abismo, para onde quer que olhasse.

Começou a dobrar e guardar na mala de couro as roupas menores que usara na noite anterior. Seu coração bateu depressa ao perceber, pela primeira vez, o monograma nelas. O símbolo de um leão rugindo, e as iniciais "P.M." Nada era dela! Nem o homem, nem as roupas, nem mes­mo aquela ilha. A ilha das borboletas!

Demetre a chamara de impostora, e estava certo. Não tinha o direito de estar ali, apesar de não ter outro lugar para ir. Tio Dominic não a aceitaria de volta, depois do que fizera. A porta do quarto foi aberta e Lion entrou.

— O rapaz está aqui para levar a bagagem para baixo. Você está pronta?

— Estou.

Pegou a jaqueta que fazia conjunto com a camisa, e a bolsa que combinava com aqueles sapatos grandes. Por um momento, sentiu um impulso histérico de rir... mas teria sido um riso que acabaria em choro.

— Tudo pronto — disse, e saiu do quarto onde Lion havia tirado a sua virgindade e partido o seu coração.

O helicóptero já os esperava no aeroporto. Era vermelho metálico, propriedade particular de Lion, no qual ele viajava da ilha para qualquer outro lugar, a negócios.

Demetre continuava a olhá-la como se achasse que não deviam confiar nela. Era de natureza mais introvertida do que a de Zonar, por isso estava profundamente chocado com o que Fenny fizera. Devia julgá-la uma sem-vergonha. As mãos nervosas de Fenny seguravam a bolsa no colo.

"Oh, Deus, não estarei saindo de um inferno para entrar em outro?", pensou.

— Nervosa? — Lion sentara-se ao lado dela. — Você nunca voou num helicóptero?

Fenny fez que não com a cabeça e desejou que ele lhe segurasse as mãos, enquanto o helicóptero ganhava altura. No começo, teve muito medo. Mas quando Lion abriu uma pasta e começou a estudar alguns documentos, tão calmo como se estivesse sentado numa poltrona em seu escritório, ela se sentiu mais confortável e começou a apreciar o vôo. Os tons graves das vozes de Zonar e Demetre chegaram aos ouvidos dela: falavam em grego, possivelmente omitindo o seu nome da conversa para que Lion não pudesse ouvi-los.

— Está se sentindo melhor, agora que já estamos no ar? — Lion olhou-a rapidamente e a luz que entrava pela janela bateu em seus olhos, tornando-os ainda mais brilhantes no rosto mo­reno. — Acho este meio de transporte mais conveniente do que um avião. Podemos aterrisar no nosso próprio telhado, sabia?

— Não. — Fenny esforçou-se para sorrir. — Conheço muito pouco do seu mundo, apesar do que você pensa de mim.

— Tenho certeza, de que não ignora o que foi escrito nos jornais sobre o reino ensolarado da família Mavrakis, na ilha de Petaloudes. Todos sabem que somos gente reservada, não costumamos permitir que estranhos entrem em nosso mundo.

— E sou uma estranha. Penetrei em seu mundo sem ao menos ser convidada.

— Não se esqueça disso, e não venha correndo para mim, se algum membro de minha família se recusar a aceitá-la.

— Está se referindo a Demetre, não está? Eu... eu percebi que ele está chocado comigo e não pretende me perdoar.

— E acha que pode culpá-lo por isso? Ele conhece mais os perigos da vida do que Zonar, que é agora um cínico declarado. Agarra-se aos prazeres da vida como um garoto colhendo uma fruta do quintal do vizinho. Não se esqueça de que Zonar agora é seu irmão e não tente procurar seu apoio, pois, como você mesma sabe, somos uma família muito unida. E ele não vai querer entrar em choque com um de nós, por causa de... Bem, por sua causa.

— Claro que não me esquecerei. Mas eu... eu preciso ter ao menos um amigo, e ele se portou bem comigo. Foi gentil, acho que nos daremos bem.

— Acha mesmo? — Seus olhos eram maliciosos. — Deixe de drama. Não me diga que precisa de alguma simpatia?! Você sabia os riscos que ia correr, quando aceitou passar por toda aquela cerimónia que a tornou esposa de um grego. Não somos pessoas gentis; portanto, não comece a sentir pena de si mesma. — De repente, ele se inclinou sobre Fenny e sua voz soou muito grave: — Não acredito que você tenha sido idiota a ponto de esperar que sua vida fosse cheia de emoções e de um grande romance ao meu lado.

— Não pensei quando devia. Depois, já era tarde demais. Seria o mesmo que passar por uma fogueira, achando que não ia me queimar.

— Minha querida, você não é mais criança. Pôr a mão no fogo e tentar atacar leões são coisas de crianças e de idiotas. Você não tem nenhuma desculpa plausível. Então, pare de tentar me convencer de que não sabia o que estava fazendo. Aplauda o seu próprio sucesso. Você estava uma noiva angelical, muito bonita, e ontem à noite mostrou-se bem satisfatória.

— Achou mesmo? Sério? — Ela abaixou os olhos para o bracelete em seu pulso e se perguntou o que ele teria mur­murado para Penela, se fosse ela quem estivesse sentada ali. — Fico feliz que você não tenha se sentido totalmente tapeado.

— Uma mulher é uma mulher. — Deu de ombros. — O acordo que fizemos está bem para mim, você já sabe que só quero um filho. Depois, então, terá a sua liberdade e poderá fazer de sua vida o que bem entender.

Ele voltou a atenção para o monte de papéis que trouxera e Fenny olhou pela janela, sem reparar direito no que via. Aquele acordo terrível! Não suportava nem pensar naquilo. No entanto, ele tinha todo o direito de esperar que fosse cumprido. Não importava quanto amor sentisse por ele, Lion nunca iria considerá-la sua verdadeira esposa. Era apenas o meio mais eficaz para ele ter um herdeiro e uma fonte de satis­fação para a sua virilidade. Seu corpo era a única coisa que o interessava; seus sentimentos não significavam nada.

"Uma mulher é uma mulher", ele tinha dito, dando de ombros para o amor.

— Você fuma, Fenella? — Zonar estendeu para ela uma cigarreira dourada.

— Não, ela não fuma — disse Lion, sem levantar os olhos dos papéis.

O rapaz tornou a sentar-se, mas Fenny podia sentir que a observava com curiosidade e malícia. Ela era a garota inibida que tinha sido suficientemente audaciosa para ar­rumar um marido rico. Zonar estava intrigado e atraído, planejando conquistar a esposa do irmão: a mulher que o irmão não amava, mas que possuía.

Oh, Deus! O coração de Fenny estava pesado com tantos problemas. A última coisa do mundo que queria era ser a causa de uma discórdia entre Lion e Zonar.

Queria uma amizade, não um flerte. Precisava que um dos membros da família Mavrakis lhe desse as boas-vindas, mas claro que não da maneira que Zonar pretendia.

Seus dedos tamborilavam na bolsa, e assustou-se quando Lion bateu com a caneta em suas mãos.

— Vai acabar quebrando as unhas — ele repreendeu. — Você alguma vez fez balanço de contas naquele escritório onde trabalhava?

— Algumas vezes — respondeu, perguntando-se o que ele pretendia com aquela pergunta.

— Você é boa em contas?

— Eu as fazia bem, sim. Gosto desse tipo de trabalho.

— Ótimo. — Entregou-lhe uma pasta com papéis e tirou do bolso da jaqueta uma lapiseira dourada, que combinava com a caneta. — Vê se consegue resolver isso aqui: são contas dos meus restaurantes em Atenas, mas feitas em inglês, para não complicar o meu gerente, que é um compatriota seu.

Fenny pegou a pasta e a lapiseira e percebeu que Lion só estava pedindo o seu auxílio para manter a sua mente ocupada. Ficou muito grata e sorriu-lhe, com carinho e do­çura. Ele olhou-a por um momento; depois, disse secamente:

— Bem, dê um jeito nisso aí e ganhará uma xícara de café.

Está certo. — Curvou-se sobre a pasta, com uma pontinha de dor no coração. Pelo jeito, ele nunca iria olhá-la sem aquele ar cínico, nunca sentiria por ela algo mais do que ódio.

Tentou concentrar-se nas colunas de contas, procurando somá-las corretamente e ganhar um pouco de sua aprovação.

As horas passavam. O barulho do helicóptero e o mur­múrio de vozes masculinas chegaram até Fenny, que estava completamente absorta nos papéis.

O trabalho mental estava sendo o melhor remédio que podia querer. Chegara à última página quando o aroma de café fez com que levantasse os olhos para ver que o lanche estava sendo servido.

— Vamos aterrissar em Nice para reabastecer. — Lion entregou-lhe uma xícara de café, que cheirava deliciosa­mente. — Se olhar pela janela, poderá ver o mar azul.

Sul da França! Fenny olhou para fora, para o oceano des­lumbrante, e as praias brancas a deixaram encantada. A In­glaterra fria e cinzenta tinha ficado para trás. Imaginou que, após aquela breve parada, voariam direto para a Grécia.

Enquanto tomava café, Lion conferiu seu total com o dele.

— Você é muito eficiente. Já sei quem chamar, a qualquer hora, quando tiver muito trabalho em minhas mãos.

— Unindo o útil ao agradável, não é?

Ele deu uma risada e entregou-lhe um sanduíche com uma grossa fatia de presunto.

— Então, as pequenas garras ainda têm algumas unhas afiadas?

— Espero que sim, obrigada.

O sanduíche estava tão saboroso quanto o café e, apesar da dor no coração, Fenny sentiu que a vida ao lado de Lion parecia abrir seu apetite. Mordeu o sanduíche e percebeu que os olhos dele passeavam pela pele de seu pescoço e pelo decote da camisa rosa. O olhar de Lion era como um toque, lem­brando-a da noite anterior e prometendo novamente aquela fúria, aquele prazer sensual; tudo, menos sentimentos puros.

Cada vez que a tomasse nos braços, Lion estaria pensando no momento em que lhe dissesse: "Vou ter um bebê"!

— Bolo? — Zonar estava lhe oferecendo uma fatia daquele bolo magnífico que Fenny vira pela última vez na mesa da casa de seu tio, na noite anterior ao casamento. Era coberto com glacê branco, doces formando flores, castanhas de caju e dois sinos de prata de lei.

— Ande, Fenella, você tem que provar de seu bolo de casamento.

Sabia que Zonar não queria ofendê-la com aquelas pala­vras, mas sentiu que seu rosto ficava frio e pálido.

— Não é meu bolo. E todos nós sabemos disso, não é mesmo?

— Dá no mesmo, e você vai comer um pedaço — disse Lion, com firmeza. — É costume dos gregos que a noiva coma do bolo.

— Por quê? É o símbolo da fertilidade? Isto ajudará a tran­quilizar meu marido de que ele será capaz de ter um filho?

Por alguns instantes, todos ficaram assustados e ninguém disse nada. Deus do céu! Ela não pretendera ir tão longe, mas Lion a provocara.

— Nós só podemos pedir que o bebê tenha um gênio mais doce do que o da mãe. Vai crescer no nosso meio e aprenderá a ser tudo o que um verdadeiro homem deve ser. Agora, abra a boca! — Lion gritou, sentindo o sangue ferver.

— Não! Não sou uma foca à espera de um peixe.

— Você é muito teimosa, minha querida. — Seus olhos se suavizaram, fazendo-a ficar alerta, pois ele nunca cedia. Era um homem acostumado a vencer. — Deixe de ser criança e coma seu bolo, vai gostar.

— Vá para o inferno, Lion! — ela gritou, não dando a mínima importância a que seus irmãos fossem testemunhas da falta de carinho, amor e compreensão entre eles. . .

Lion teria que forçá-la, porque não ia se rebaixar diante dos gêmeos e, muito menos, se arrastar atrás dele e beijar seus pés, como uma escrava das cortes bizantinas.

— Mano, talvez sua esposa prefira que guarde uma fatia de bolo para mais tarde. — Foi Zonar quem falou, mantendo seu tom de voz tão imparcial quanto possível. — As mulheres sempre têm dessas superstições. E uma delas é não comer o bolo do próprio casamento na frente do marido, não é?

— Se ela acha que isso vai sufocá-la, então é melhor guardar, mesmo. — Lion virou-lhe as costas e serviu-se de um pouco mais de café.

Fenny procurou não se mostrar muito grata a Zonar, murmurando, numa voz quase inaudível, algumas poucas palavras de agradecimento, quando ele lhe entregou o pacotinho com o bolo.

Demetre continuava sentado no mesmo lugar, em silêncio, olhando-a como se quisesse abrir a porta do helicóptero e jogá-la para fora. Percebeu que seu corpo todo tremia. Havia muita violência nos irmãos Mavrakis e ela era o centro de suas várias reações. Uma esposa indesejável... Uma intru­sa... Uma garota que despertava emoções em Zonar.

Guardou o bolo na bolsa e sentiu grande alívio quando pousaram em Nice e pôde sair do helicóptero e ir ao toalete.

Uma vez lá, abriu a bolsa e contou o dinheiro. Não tinha tido tempo de retirar do banco o que havia economizado para a viagem de férias. A quantia teria sido suficiente para ajudá-la a fugir de uma situação que estava se tornando quase impossível de controlar. Como se arrependia por se envolver na vida de Lion! Por que, diabos, inventara de colocar aquela droga de vestido de noiva, que Penela tinha jogado na cama? E como teve coragem de ocupar o lugar da prima? Devia estar possuída pelo demônio naquele mo­mento; só isso podia explicar o que fizera.

Assustou-se quando uma moça se inclinou para ela. A mulher falava francês e Fenny só conseguiu entender que estava perguntando se madame se sentia bem.

— Oui, merci. — Forçou um sorriso e levantou-se. Prendeu o cabelo num rabo-de-cavalo e olhou-se no espelho. Tinha feito a cama e agora teria que se deitar, gostasse ou não.

Encheu-se de coragem e caminhou no sol, em direção ao helicóptero escarlate, onde Lion esperava, um pouco afas­tado dos irmãos e fumando em silêncio. Fenny dirigiu-se para ele, e disse baixinho:

— Peço desculpas por ter perdido o controle. Farei o pos­sível para que isso não aconteça mais.

— Nós simplesmente provamos que não podemos viver uma mentira. — Ele deu de ombros. — O amor é um sen­timento e não pode ser usado como uma capa. Demetre já jogou na minha cara o que eu temia que ele pensasse: acusa você de ter casado comigo por dinheiro.

— E você realmente acredita nisso, não acredita, Lion?

— Sim. O que mais devia pensar? Nós dois não passá­vamos de estranhos, nunca trocamos mais do que uma dúzia de palavras na casa de seu tio. Você iria amar um estranho, um homem com quem mal conversava?

— Não. — No entanto, era exatamente o que havia acon­tecido. Lion tinha razão, nunca conversaram muito. Mas havia alguma coisa nele que o tornava diferente dos outros homens, que não sabiam falar de mais nada, a não ser carros, motos e mulheres fáceis. Por isso, Fenny nunca tinha olhado duas vezes para nenhum deles, nem se importava com a própria aparência.

Os rapazes achavam que era chata e deixavam de procu­rá-la. Mas não se importava de ir sozinha ao cinema ou mesmo a restaurantes e pagar ela mesma por suas diversões.

Os assuntos homens e amor nunca tinham passado por sua cabeça, até o dia em que sua prima levou em casa aquele grego alto e moreno. Lembrava de ter ouvido os dois brincarem sobre a pobre Fenny, que tinha medo dos homens.

Com Penela ele ria, falava de negócios e fazia planos para um casamento real. Com ela, Fenny, tinha apenas partilhado as refeições e uma noite de núpcias sem amor nem carinho. Era o suficiente para que ela tivesse vontade de chorar de terror e dor. Em vez disso, tinha que enfrentá-lo e assumir um ar de dignidade.

— Acho que você adoraria colocar a minha cabeça numa forca — ela disse, tentando não mostrar muito medo.

— É melhor ela ficar neste seu belo pescoço. Há consolos até mesmo em casamentos como o nosso, pelo menos para mim. Não sei se para você também.

— Não, nenhum consolo. Imagino que saber disso lhe agrade.

— Agrada, sim, minha querida. Você nunca saberá o ódio que sinto sempre que me lembro de sua voz suave e falsa, a meu lado, lá na igreja, prometendo-me amor, afeto e obe­diência. Pergunto-me às vezes se aquele anjo de pedra não vai quebrar a promessa e fazer da minha vida um inferno.

— Você é que é o anjo de pedra, Lion. Com olhos de fogo.

— E queimam você?

— Como se estivesse presa numa fogueira!

— Uma fogueira é o lugar certo para uma bruxa, minha querida.

— Se você acha...

— Acho. Você é uma pequena bruxa de pele clara, e sem alma. Nunca serei gentil ou carinhoso com você, porque é bem mais gratifícante ser cruel. Tenho motivos suficientes, meu anjo.

— E quando minha punição acabará?

— Um dia, quando me der um filho. — Passou as mãos pelos quadris dela. — Você é um tanto magra e o parto poderá doer como o diabo.

— Você vai rir quando eu gritar, não é mesmo, Lion? Você me odeia tanto assim?

— Você me chamou de orgulhoso, não foi?

— Orgulho é o seu segundo nome.

— Então, por que o olhar reprovador? Nós colhemos o que semeamos.

— E uma colheita será o meu... meu bebê, se eu tiver um?

— Tenha um filho e acabe com o seu suplício.

— Você foi feito de pedra.

Ele virou a cabeça e riu alto.

— Não tente me elogiar, minha querida, sou imune a essas coisas. Sou feito de pedra, sim, mas não em forma de um Adônis charmoso, nem mesmo quando eu era mais jovem.

— Mas os deuses lhe deram outros dons, não foi, Lion?

— Sim, se você quer dizer tenacidade e inteligência.

E muito mais, ela pensou. Aqueles ombros imponentes e aquele andar macio, sempre alerta e infinitamente seguro. O brilho dourado de seus olhos, aquela força que despertava o temor e exigia a entrega.

Ele tinha um forte carisma que o tornava ainda mais perigoso do que os outros homens.

— Você nasceu para apreciar conflitos. É o seu lado espartano, e sabe disso. Você me odeia, ainda que queira meu... bebê. Você o atirará do alto de um penhasco, se ele se parecer comigo?

— Será suficiente que tenha a sua beleza. O resto virá de mim. Amor e ódio estão próximos um do outro, como a pele sobre os ossos.

— Verdade? Você pretende criar meu filho como um espartano?

— Isso mesmo. Os homens devem ser duros, já as mu­lheres, são para ser olhadas.

— Fico contente que você não me ache repugnante.

— As mulheres às vezes são muito emotivas, e as gregas, em particular, gostam de ser dominadas e cuidadas. Qual­quer garota grega poderá lhe dizer que vive para dar à luz e para ver os filhos crescerem, tornando-se homens firmes e orgulhosos. Acha que é uma filosofia muito ruim? Em seu próprio país, querida, haveria muito menos tristeza no co­ração das mulheres caso os homens se lembrassem de seu verdadeiro papel e deixassem de ser tão fáceis de levar. Você admirava muito esses homens?

Fenny pensou no desprezo que sentia por eles. Seus olhos passaram por aqueles ombros largos. Tinha lutado com Lion e achou-o um adversário muito forte, de determinação as­sustadora. Ela o amava justamente por isso.

Amava-o, ainda que tivesse que continuar lutando com ele, porque era o que Lion queria dela, sua falsa e trapaceira esposa.

— Você acreditava que eu tinha amantes — disse.

— Nisto eu estava completamente enganado. A não ser, claro, que você fosse o que chamam de uma caçadora. — Seus olhos examinaram o rosto dela. — Era?

Se Lion tivesse feito aquela pergunta a Penela, teria mui­to sentido. Ainda agora ela podia ouvir a prima rindo, ro­lando na cama, enquanto lhe contava uma de suas conquis­tas fáceis: "Os homens são todos uns idiotas", ela costumava dizer, "se você souber levá-los".

— Você acreditaria em mim — Fenny disse baixinho — se eu negasse ser desse tipo de garota?

— Eu seria um tolo se acreditasse em qualquer coisa vinda de você. Nem um santo conseguiria entender o seu mistério!

— Talvez seja preciso um cínico. — Zonar juntara-se a eles e obviamente tinha escutado a conversa. — Uma mulher sem mistérios é como uma jóia sem valor ou um prato sem pimenta.

Lion olhou-o fixamente; depois, abruptamente, pegou Fenny pelo cotovelo.

— Está na hora de partir. Sinto-me como se estivesse longe de Pataloudes há anos.

— A sua ilha das borboletas — Fenny murmurou.

— A única coisa válida e real da minha vida. — Sua voz era áspera, e suas mãos machucavam, quando ele a ajudou a subir no helicóptero. — Lembre-se disso!

— Vou-me lembrar de tudo — respondeu, numa voz que era pouco mais do que um murmúrio.

Alguns minutos mais tarde, a gaiola escarlate ganhava altura, as hélices brilhando ao sol como grandes facas.

 

Descendo na direção do mar, ao entardecer, Fenny desejou ter uma máquina para fazer uma foto daquela maravilha.

O helicóptero sobrevoava a ilha, aproximando-se do pla­nalto que ficava entre os pomares e o próprio castelo.

— Estamos em casa! — Lion disse, num tom de voz des­conhecido para Fenny, cheio de vida e com uma alegria ardente. — Lar!

Fenny olhou para Lion e viu que sorria, debochado. Sus­tentou seu olhar, com orgulho. Não devia mostrar àquele homem, seu marido, a facilidade que ele possuía para des­truir as suas ilusões. A mesma facilidade com que as hélices do helicóptero cortavam o ar, antes de pousar.

Agora, as estrelas brilhavam no céu de um azul mara­vilhoso. Pensativa, Fenny calculou a quantos quilómetros estariam de Mon Repos, a casa de seu tio, com aquele gra­mado sedoso e muito bem cuidado, os canteiros de flores tão bem distribuídos.

Petaloudes... a ilha grega selvagem, um pedaço de rocha habitado pelos irmãos Mavrakis. Altos penhascos e planta­ções aromáticas, exalando um perfume agradável após um longo dia de calor intenso. O canto das cigarras na escuridão.

A casa, branca como o templo do soi, ficava entre oliveiras, ciprestes muito altos e laranjais. As paredes eram como glacê duro, as janelas curvas estavam dispostas no fundo das pedras. Tinha a mesma grandeza de seu dono, e luzes coloridas brilhavam através das vidraças.

— Bem-vinda à Galazia Kastro.

Foi Zonar quem acompanhou Fenny ao Castelo Azul, e o nome a intrigou, até que percebeu que a fortaleza dos Mavrakis se erguia como um ninho de águia bem acima do mar. Tanto que, de qualquer ângulo, a água podia ser vista, ondulada e murmurante, quando o sol brilhava ou mesmo quando estava escuro, só com o brilho da noite.

Gim com gelo e tônica esperava pelos irmãos, numa bandeja com copos de cristal, servido por um criado que usava uma jaqueta branca impecável. Para Fenny, havia uma bebida ge­lada de cor semelhante à de suco de laranja e que tinha sabor de mistura de frutas e vinho. Estava simplesmente deliciosa.

Uma comprida e larga escada atravessava o hall, um imenso mosaico de azulejos lustrosos formando um antigo padrão oriental. Fenny foi levada pela escada por uma mu­lher usando um vestido escuro. Levada para longe dos ho­mens, para o santuário de um apartamento onde o silêncio era uma graça divina depois de um dia cansativo, de uma viagem longa e cheia de surpresas.

A mulher olhou a esposa do patrão com curiosos olhos escuros num rosto queimado pelo sol. Não falava inglês, mas murmurou algumas palavras que soaram bem amigá­veis a Fenny. Ela sorriu e tentou dizer uma ou duas palavras gregas que aprendera para a sua viagem de férias a Creta.

Sua tentativa foi inútil. A mulher balançou a cabeça, e então surpreendeu Fenny ao pegar sua mão e virar a palma para cima. Por alguns momentos, observou a palma da mão de Fenny, que parecia ainda mais pálida junto à pele morena da governanta. Depois, olhou para os olhos de Fenny e le­vantou um dedo, mas o que disse foi um mistério:

— Den katalaveno — Fenny tentou dizer, em grego sofrível, já que não tinha entendido o que a outra vira em sua mão.

A mulher passou a mão em seu rosto e cabelos e repetiu o gesto, mostrando um dedo. De repente, Fenny compreendeu. Ela era uma noiva e, para os gregos, uma mulher recém-casada tem um único objetivo na vida: produzir para o marido, o mais rápido possível, um filho, que prove sua virilidade.

Uma criança! A mulher de tipo cigano vira na palma de sua mão um único nascimento... Oh, mas devia ser uma simples superstição boba. Como é que alguém podia saber o que aconteceria no futuro?

Fenny sorriu e balançou a cabeça. Havia insistência nos olhos gregos, mas depois a mulher indicou as malas e os grandes armários, querendo dizer que iria desfazer as malas para a senhora. Fenny retirou as chaves da bolsa e abriu as malas. Uma vez mais tentou dizer algumas palavras em grego, perguntando à mulher o nome dela.

— Kassandra — a outra respondeu, e Fenny apenas sor­riu do absurdo absoluto de tudo aquilo. Teria que acreditar que aquela mulher era uma profetisa dos tempos modernos? Uma mulher que tinha o poder de dizer-lhe que ia ter apenas um filho?

As ilhas eram lugares estranhos e misteriosos, e as pessoas que viviam lá acreditavam em todos os tipos de magia, mas ela viera da Inglaterra e tinha que manter os seus próprios pontos de vista. Não ousava acreditar que Kassandra pudesse prever o futuro, porque, nesse caso, veria também outras coisas ainda mais perturbadoras: a falta de amor e, finalmente, sua partida daquela casa branca no alto do mar de Afrodite.

Fez com que a mulher entendesse que desejava ficar sozinha e a porta da suíte foi fechada atrás daquela figura escura, com certeza uma viúva, porque as gregas não cos­tumavam tirar o luto de seus maridos, querendo mostrar a todos que o sol de sua vida tinha perdido o brilho. Então a jovem e indesejável senhora do Castelo Azul começou a explorar o amplo e lindo quarto que ficava no alto de uma das torres da casa.

Olhou em redor e viu biombos feitos de madeira tão bem entalhada que parecia renda escura. A colcha da grande cama era bordada com fios de seda. Havia muitos tapetes persas no chão. Tudo lembrava um harém; nunca um ninho de amor. Imaginou que Lion devia achar muito divertida conservá-la naquele apartamento, onde tudo era ostentação e riqueza. Aquele sutil aroma do Oriente com certeza indicava que ela seria considerada concubina e não uma verdadeira esposa.

Os aposentos eram ligados por largos arcos com lindas portas grossas de ferro. O quarto ao lado tinha o teto pintado à mão, janelas de madeira e uma grande cadeira de palha com assento acolchoado. Era um quarto fascinante, com uma tocha acesa, iluminando muito pouco; havia também uma lareira. Num outro aposento, encontrou um baú pintado de preto e branco com figuras estranhas de deuses antigos e cabras.

Pegou uma uva do cacho que estava numa fruteira de prata. Ao lado, havia um jarro antigo, provavelmente turco. Serviu-se de um pouco mais daquele refresco de frutas com vinho com o qual fora recebida na casa, da maneira tradicional grega.

O que teriam colocado naquela bebida, para que se sen­tisse tão calma? Aquilo fazia um efeito incrível! Não estava nem um pouco preocupada ou cansada. Poderia esperar tranquilamente por Lion, sentada naquela cadeira macia daquele quarto que ia dividir com ele.

Respirou fundo o aroma da noite que entrava pelas ja­nelas. Era um cheiro de terra, agradável, vital, poderoso. Vinha dos pátios de oliveiras. Os galhos das árvores estavam pesados com tantos frutos, quase se quebrando. Os limoeiros também estavam carregados, desprendendo um aroma de­licioso, que impregnava toda a casa.

O Castelo Azul poderia ter sido o céu na terra para ela, mas, em vez disso, seria o paraíso no qual seria castigada e do qual a baniriam por ter comido do fruto proibido.

Merecia tudo o que acontecesse: tinha mentido e nunca poderia confessar a Lion que fizera aquelas coisas por amá-lo demais. Ele zombaria de seu amor. Era um homem forjado numa terra onde, muito tempo atrás, mulheres tinham sido apedrejadas em praça pública por crimes bem menores do que o que ela cometera.

Já havia percebido nele aquela raiva primitiva. Por exemplo, o momento, no helicóptero, quando exigiu que comesse do bolo que ele tanto queria ter repartido com Penela, Aqueles pequenos sinos de prata verdadeira que encimavam o bolo denotavam prazer, alegria, mas agora seriam usados para chamar a escrava.

Ela não tinha escolha. O pior era que, agora que estava no Castelo Azul, sabia quanto desejava ficar lá. O lugar já conseguira conquistar o seu coração. Tinha um fascínio de passado. Por mais que se esforçasse para não pensar, sen­tia-se como uma mulher arrebatada de casa para propor­cionar divertimento ao paxá.

No entanto, mesmo que ele a tratasse como outra propriedade qualquer, ela não trocaria nenhuma das horas tris­tes que a esperavam por aqueles dias e noites vazios de sua vida na Inglaterra.

Sentiu um arrepio pelo corpo todo. Seus sentidos deviam estar muito aguçados, pois pressentiu a presença de Lion mesmo antes de vê-lo, parado à porta de ferro. À luz suave, parecia mais alto e mais bonito.

Quando ele entrou no quarto, a fumaça do cigarro turco chegou até ela.

— O castelo já foi propriedade de um paxá turco, sabia? Esta é uma parte do velho harém. Telegrafei para que os quartos fossem preparados para você. Gosta deles?

— Achei-os fascinantes. O que há por trás daquela ta­peçaria de seda?

Ele foi até lá, andando daquela forma macia e silenciosa de uma fera na selva. Comprimiu os olhos saltados de um cavalo selvagem, esculpido na madeira, e então uma porta se abriu. No fundo, havia luzes e mobílias de estilo colonial, que provavelmente estavam lá desde a invasão dos árabes. Era uma sala enorme. Fenny se perguntava como um ho­mem podia possuir tantas coisas maravilhosas, e logo aquele homem, que parecia não se interessar por nada.

— Esta é a porta secreta do apartamento do paxá — ele disse, com um tom divertido. — Aqui vivia a sua escrava favorita. Imagino que o segredo aumentava o prazer de sua aventura. Os homens daqueles tempos consideravam as mu­lheres como nada mais que uma forma de divertimento, e a garota ficava trancada como um passarinho na gaiola. Se ela se atrevesse a entrar nos aposentos do paxá pela porta secreta, seria severamente punida. As portas externas do harém eram sempre mantidas trancadas por uma grande chave que ficava em poder do eunuco que as vigiava.

— Nunca permitiam que tomasse um pouco de ar, que saísse aos jardins?

— Claro que sim, mas só na companhia do eunuco, e tam­bém ia ao moussandra particular. Venha, vou lhe mostrar.

Fenny levantou-se da cadeira e seguiu-o através das por­tas de madeira. Estava encantada com tudo aquilo, nunca imaginara que pudesse existir um lugar como aquele, a não ser em sonhos. O brilho das estrelas encheu o lugar e ela se viu numa varanda que dava frente para a plantação de limões e para o mar. A voz de Lion veio despertá-la.

— Moussandra — ele repetiu. — Um pequeno quarto, exclusivo para a ocupante do harém, não importando se ela ficasse uma noite... ou um ano.

As mãos de Fenny agarraram as grades de ferro e seus dedos esmagaram algumas florezinhas amarelas que cresciam por elas. As batidas de seu coração se aceleraram quando Lion foi para trás dela, tão alto, tão bonito e forte, e tão inatingível para seu amor, aquele amor que queimava suas veias.

A luz fraca das estrelas, só conseguia avistar os troncos escuros das árvores. Centenas de vagalumes tremeluziam no ar, voando alto e baixo, e Fenny continuou muda, encostada no parapeito de ferro, sentindo o poderoso e energético corpo de Lion tão próximo. Ouviu os bichos noturnos por entre as árvores altas, depois, uma vacilante chama vermelha uniu-se à dos vagalumes, quando Lion atirou o cigarro lá embaixo.

Ele colocou os braços ao redor de Fenny e virou-a.

— Você devia se sentir à vontade neste apartamento, kyria. Esta casa também lhe pertence. Além do mais, este lugar parece muito adequado a você, não concorda?

— Sendo esposa de um grego, devo sempre concordar com o meu marido?

— Esposa! Marido! No nosso caso, essas palavras não significam nada.

— O paxá com a sua escrava — ela disse. — Mas fique certo de que não pretendo me arrastar de joelhos para você. Teria que me atirar no chão para me manter nesse nível, tão baixa como já acha que sou.

— Tenho todos os direitos do mundo de pensar que você... Ora, admita: você se rebaixou para vencer, não foi?

— Duvido muito que alguém possa vencê-lo, Lion... muito menos uma mulher.

— Exato. — Deu uma risada e segurou-a com força pelo pescoço claro. Virou seu rosto para o lado das estrelas e ob­servou suas feições. — Zonar disse que você é linda, e eu nem notei. Isso deve significar muito para você, não é mesmo?

— Você estava muito ocupado com Pen... —Fenny engoliu em seco, porque, de repente, pareceu-lhe terrivelmente di­fícil dizer o nome de Penela. — Com minha prima. Por que iria notar a presença do patinho feio da família?

— Tem razão. — Acariciou a pele suave do pescoço de Fenny. — Como suas pulsações estão rápidas! Sente assim tanto medo de que eu a toque?

— Senti bem mais, na vez em que ameaçou quebrar o meu pescoço. Você não faz ameaças que não cumpre, não é mesmo?

— Geralmente, não. Mas sou um homem que muito cedo aprendeu o valor das vantagens. Não me desfaço de uma coisa, até tirar todo proveito dela. Além do mais, minha querida, achei-a muito mais divertida do que esperava. Por outro lado, tenho algo a resolver com você ainda, a respeito de certo pacto que fizemos. Se por acaso eu quebrar este seu adorável pescoço, estarei matando o cisne que deverá pôr um ovo de ouro para mim.

— Como você é encantador! Por falar em nossa maravi­lhosa vida conjugal, nós vamos jantar com a sua família?

— Somos um casal em lua-de-mel, meu amor, e para o povo grego isso significa apenas uma coisa: que queremos ficar sozi­nhos. Portanto, não vamos descer para jantar com a minha fa­mília. A comida será servida aqui. Isto é, quando eu tocar a campainha, avisando que queremos jantar. Mas neste exato mo­mento meu apetite é por você, minha esposa, e não preciso tocar nenhum sino para você vir: tenho apenas que estalar os dedos.

Deu uma risada cínica e seus braços de repente torna­ram-se tão fortes como aço, esmagando o corpo de Fenny contra o seu, sem se importar se a machucava. Beijou-a com raiva e desejo.

Depois, com grande facilidade, levantou-a nos braços e levou-a da moussandra para o quarto onde havia aquele divã, à luz de um abajur.

Tudo de que Fenny tinha consciência eram as mãos e a boca de Lion, a presença dele a seu lado na cama. Seu coração batia descompassadamente e ela não conseguia pensar em mais nada, a não ser naquele momento em que o sentia tão próximo. Deixou-se invadir por aquela onda de prazer.

O roupão se abriu um pouco, mostrando seu corpo jovem, sua pele branca e macia, suas curvas bem-feitas. Imedia­tamente Fenny o fechou.

Estava com as pernas cruzadas por baixo da mesa, sen­tada diante de Lion. O aroma do café confundiu-se com o da carne preparada com ervas, e Fenny comeu com apetite.

— Estranho — murmurou Lion. — Um homem e uma mulher fazem amor e mais tarde a mulher volta a ser uma pequena garota novamente, faminta como uma criança num piquenique, de olhar inocente como se estivesse num con­vento sob a proteção de uma boa freira. Mais do que estra­nho... realmente, incrível. Quem é que acreditaria ao olhar para você, kyria, que tem tanta resistência para o amor e tanto calor nesse corpo claro e inglês? Pensei que as inglesas fossem frias, com água nas veias.

— Com certeza você não se refere a Penela — Fenny comentou, partindo um tomate deliciosamente recheado com carne e arroz.

— Nunca tive momentos tão íntimos com Penela como tenho com você — ele respondeu, e o coração dela disparou: era óbvio que não estava mentindo, pois não havia motivo para isso. Olhou-o de relance e sentiu o sangue subir ao rosto, quando percebeu que Lion sorria com ironia, uma vez mais, havia naqueles olhos um brilho dourado e estranho.

— Você achou que eu tinha pulado o muro antes de o portão ser aberto? — ele perguntou. — Os gregos gostam de que a mulher seja virgem, quando vão para o altar. Agrada-lhes pensar que a noiva é tão pura como um raio de sol, como um floco de neve caindo do céu, inocente como as águas cristalinas de um riacho no meio de uma floresta.

— E não faz diferença se o noivo é versado na arte da sedução?

— Que garota iria gostar de um homem virgem e desa­jeitado em sua noite de núpcias? Já é uma experiência bas­tante traumática para uma noiva quando ele é experiente... — Seus dentes brilharam quando ele mordeu um pedaço de tomate recheado. Mastigou lentamente, sempre encaran­do Fenny. — Admita, querida, que eu não a destruí nem ontem a noite e nem há poucos instantes.

Fenny ficou vermelha e teve que lutar para não baixar os olhos, como uma tonta. Sacudiu a cabeça.

— Ninguém poderia acusá-lo de ser um bruto. Mas você é muito convencido de sua superioridade masculina, não é?

— Acha? Fisicamente, os homens são mais fortes do que as mulheres, e algumas vezes são mais inteligentes também. Mas nós, gregos, respeitamos o fato de que uma mulher possa criar com o seu delicado corpo uma réplica viva dos homens que a possuíram. Isto faz com que eu me tome um porco-chauvinista aos seus olhos? Não é assim que vocês, mulheres, nos chamam?

Fenny teve que sorrir. Na Inglaterra, poucas vezes en­contrara homens que concordassem com aquela idéia de que a mulher era um milagre do qual um abraço de paixão fazia nascer uma criança. Os homens em sua terra pareciam preferir que as garotas tomassem pílulas ou usassem outros métodos, menos que ficassem grávidas e tivessem filhos.

— Às vezes você me surpreende, Lion. Há algumas coisas em você que me encantam. Pelo jeito, estamos aprendendo um pouco um com o outro.

— Isso é inevitável, minha querida. — Cortou uma fatia de bolo de uvas e mel e entregou a ela. — Você vai comer isto das minhas mãos, sem olhar se coloquei veneno?

— Obrigada. — Aceitou o bolo e, uma vez mais, veio-lhe à mente o ocorrido no avião com o bolo de casamento e de como ele ficara bravo. Mordeu o bolo e achou-o delicado. — Tem uma excelente cozinheira, Lion. Gosta de coisas boas, não é?

— Gosto de tudo o que é bom e, graças à divina Providência e ao suor de meu trabalho, agora posso fazer e comer o que quiser. Um homem deve ganhar as coisas boas da vida tra­balhando, lutando, e não recebê-las de mão beijada, pois só assim se dá valor ao que se tem. O melhor mel do mundo é o das abelhas selvagens das colinas da Grécia. Lá, na prima­vera, a terra é coberta com pequenas orquídeas, as fodéleas e gramas floridas. Cada passo que um homem dá esmaga as ervas e delas se desprende uma fragrância selvagem. É ver­dade que há partes áridas no país, mas mesmo onde os templos e os frontões desmoronaram, e onde as cabeças dos leões estão caídas, cheias de poeira, há uma certa beleza. É a minha pátria. — Recostou-se na cadeira com uma xícara de café e seu roupão se abriu. — Não tenho nenhuma outra.

— Conte-me alguns costumes gregos — ela pediu, porque sentiu que, se soubesse um pouco mais de seu país, desco­briria mais coisas sobre o marido. Não era suficiente ter ficado em seus braços: queria tentar alcançar o coração e a alma que existiam naquele corpo forte que ficara tão pró­ximo ao dela. Mais perto do que alguém já estivera.

Lion olhou-a, interrogativamente, e seus dedos brincaram com a tampa da garrafa de conhaque antes de abri-la e servir-se da bebida.

— Então, está curiosa a respeito do meu povo? — Levou o copo à boca, dizendo: — Stin iyia sou!

Fenny imitou-o, mas sem a entonação que tornava as palavras gregas tão significativas. Viu os lábios de Lion se contraírem quando engoliu a bebida, depois ele jogou a ca­beça para trás, como que para sentir o prazer da bebida descendo pela garganta. Cada um de seus atos parecia-lhe vital, movimentos sensuais de um leão.

— Muitos dos nossos costumes vêm de tempos antigos e sobreviveram principalmente porque nós quisemos que sobre­vivessem, porque somos um povo que ama a sua terra. O primogênito de uma família grega sabe que seu destino será sempre mais difícil do que o de seus irmãos e irmãs, pois deve ajudar no sustento deles. As mulheres gregas já nascem com a idéia de que devem se casar, ter um lar, e seu maior prazer será ter filhos. Nós não temos respeito por títulos e esnobismos, só pelo sucesso. Nossos sentimentos são profundos e eu acredito que mais sinceros do que sofisticados, ao contrário das raças orientais. Não choramos com facilidade, porque nun­ca somos tocados pela tristeza fundamental da alma humana.

Brincou com os dedos sobre a garrafa de conhaque e seus olhos sorriram. Fenny o ouvia, absorta, num silêncio respeitoso, como uma criança que ouve uma explicação do pai. Seus cabelos e sua pele alva eram destacados pelo caftã colorido e comprido.

— Você me causa espanto — ele disse. — Conhece a lenda de Afrodite? Sabe que ela tinha o poder de renovar sua castidade no mar? Olho para você e pareço ver a prova dessa ilusão.

— Nada fará você mudar de idéia a meu respeito, não é? Tudo para os gregos é preto ou branco, sem meio-termo?

— Houve tanto feiticeiras quanto mártires que ficaram nas chamas e declararam-se inocentes no momento da ago­nia suprema. Você poderia ser uma ou outra, e eu iria me divertir muito, tentando descobrir. — Inclinou-se, e seus olhos dourados tinham um brilho sensual. — Você não é a garota que lutou com o leão? Pensou, pequena falsaria, que seria uma coisa fácil de fazer, morar com um grego e fazê-lo de bobo com o seus cabelos dourados e o seu corpo bonito? Mas já percebeu que não é assim tão fácil, não é?

— Nunca me passou pela cabeça que fosse fácil conviver com você. — Encolheu-se na cadeira quando o olhar dele pou­sou no decote de seu roupão. Era o olhar declaradamente insolente de um homem que a procuraria quando quer que lhe conviesse, como o faria com um figo ou um limão do pomar.

— Uma coisa eu lhe digo, minha garota: você não treme diante de mim. Muito pelo contrário, você me enfrenta sem medo. É a coragem criada pela esperança ou pelo desespero, agora que descobriu que seu rico grego não tem nada de flexível?

— Flexível? — Ela deu uma risada. — Só mesmo um idiota para pensar que você é fácil de ser influenciado. Você é flexível de corpo, mas inflexível de coração. Como uma cimitarra turca, eu acho, que corta com tanta rapidez que só depois de alguns segundos é que a agonia é sentida.

— Agonia? — Ele ergueu a sobrancelha, enquanto apa­nhava um charuto numa caixa de madeira. — Você se im­porta se eu fumar?

— Faria alguma diferença se eu me importasse? Por acaso você deixaria de fumar?

— Você não é tão melindrosa assim — ele disse, soltando uma baforada e se recostando confortávelmente na cadeira. — Eu achava que era, mas, desde que descobri que seu ar de recato não passava de uma máscara, deixei de tratá-la com escrúpulos. Acredito que estou começando a conhecer a verdadeira Fenella que se esconde por trás desses olhos azuis tristes. Como você representou bem o papel de prima solteirona, mostrando-se desinteressada pelos homens.

— Mas era verdade! — Um pouco da agonia a que Lion se referira surgiu no rosto dela. Ninguém conseguia magoá-la tanto quanto Lion, porque nunca alguém significara tanto para ela. Santo Deus! Todos tinham sido sombras em sua vida, sem sentido, indesejáveis. E então, finalmente, despertara para o amor, o que era mais um tormento do que um êxtase.

— Bem, no fundo você era mesmo uma solteirona. Os homens não a achavam tão atraente como Penela?

— Nunca dei importância a isso. Nunca achei os homens bastante importantes para correr atrás deles. Deixei esse tipo de coisa para... para Penela fazer. E ela se divertia muito.

— Você quer dizer que ela gostava de flertar? — A fumaça do charuto cobriu seu rosto e deu-lhe ao olhar um ar sinistro. — Então, imagina que eu não sabia que dezenas de homens a achavam desejável? Eu seria um tolo se pensasse que ela não chamava a atenção: um cabelo maravilhoso, um corpo atraente e uma personalidade fascinante. Os homens não iriam mesmo prestar atenção em você com Penela por perto.

— E, honestamente, acredita que eu me importava com isso? — Tinha sido tolerada na casa do tio, e, por sua vez, suportara as histórias sem fim de Penela sobre as batalhas nos assentos traseiros dos carros dos namorados. Algumas vezes, Fenny pensara em alugar um pequeno apartamento, mas os aluguéis eram muito caros e as acomodações muito ruins, nada que valesse tamanho sacrifício. Então, continuara ouvindo as histórias de Penela. O quarto que ocupava na casa de tio Dominic era pequeno, mas de frente para os canteiros de rosas, e ela ficava sozinha a maior parte do tempo.

Sua própria companhia tinha sido suficiente. E, até o dia em que Mavrakis entrou pela primeira vez em Mon Repos, não imaginava que seus sentimentos pudessem ser tão perturbados, e seus sonhos interrompidos por um ho­mem que quase não olhava para ela, que só tinha olhos para a cintilante Penela.

— Acho que você se importava, sim — Lion disse seca­mente. — Não perdeu tempo em agarrar o que ela preferiu atirar pela janela. E isso será sempre um veneno em nosso copo de vinho, minha querida. O tempo que passarmos jun­tos será sempre mais amargo do que doce.

Fenny não tinha palavras para responder, porque havia muito de verdade no que ele dissera. Levou o conhaque aos lábios, procurando encontrar um pouco de coragem.

Seus nervos estremeceram quando ele repentinamente lançou-lhe um olhar e, com ar desinteressado, apagou o charuto no cinzeiro.

— Até quando vou ter que suportar esse seu olhar de peixe morto?

— Não tem que suportar nada, Lion. Pode até me matar, se quiser.

— Pode ter certeza de que, às vezes, fico tentado. Quando penso no que você fez da minha vida, é difícil me controlar para não esganá-la. Mas, como já disse antes, você não me interessa morta: há muitas outras formas de fazê-la pagar por tudo.

Ele se levantou e dirigiu-se para ela. Sacudiu-a com força e ela sentiu a cabeça rodar.

— O conhaque já subiu à sua cabeça? — Riu e desamarrou o cordão do roupão dela, afastando a seda macia e encos­tando o rosto naquela pele suave e agradável.

Fenny ouviu-o prender a respiração quando passou os lábios em seus ombros.

— Você é uma trapaceira, diabinha de pele branca, mas, Deus, como a desejo! Esta noite, vamos comemorar a minha volta à ilha. É só aqui que as estrelas brilham como chamas de fogo e o ar tem aroma de vinho. É aqui que o filho de um grego deve crescer. Aqui, onde tudo é puro, tudo é na­tureza. Está entendendo o que quero dizer?

As palavras dele chegaram bem no fundo de seu coração. Santo Deus, ela que ousasse não ter o filho dele, a criança que iria pôr um fim em tudo, naqueles momentos amargos e às vezes maravilhosos durante sua estada na ilha de Lion.

Começou a se debater em seus braços.

— Não... — A palavra morreu em sua garganta. — Lion, por favor, deixe-me em paz! Eu imploro!

— Pode implorar, minha querida, mas fique certa de que não tenho intenção de ouvi-la.

Puxou-a para seus braços e sentou-se no divã. Com um desespero nascido de seu amor, Fenny lutou como se lutasse com o demônio, esmurrando-o com força, mas sem conseguir atingir seus ombros fortes.

— Quanto mais você resiste, mais aumenta o meu prazer. Nunca apreciei mulheres frias, passivas, e não me importo nem um pouco que esse seu excesso de emoção não seja paixão. O esforço apenas aumenta a sua atração e, inevi­tavelmente, você se cansará muito mais depressa do que eu. Você mesma já reconheceu que sou mais forte.

— Você não tem coração — ela murmurou, empurrando-o quando ele colou os lábios em seu pescoço. Quanto tempo mais poderia tolerar aquele desejo irresistível de ceder e acabar dizendo tudo o que sentia por Lion? Era um verda­deiro inferno fingir que não o desejava, quando todo o seu corpo pedia por ele.

— Como é que pode dizer que eu não tenho coração, quando, certamente, está ouvindo as batidas dele? Esta é a nossa lua-de-mel e vou fazer com que se lembre de cada momento dela. Agora, vai me beijar e parar de se agitar tanto?

— Você terá que me obrigar. — Fenny estava à mercê de suas emoções, tremia nos braços dele, e as lágrimas de sua miséria secreta escorriam-lhe pelas faces. Tinha pro­metido a si mesma não dar a Lion a satisfação de vê-la derramar uma lágrima sequer, mas agora não conseguia se controlar. Era o choro do fundo de seu coração magoado pelo marido. Soluçou alto.

— Está se comportando como uma criança, você sabe. — Lion tomou o rosto dela entre as mãos e fez com que olhasse para ele por entre as lágrimas que a cegavam, — Você me acha tão repelente assim? Vamos, diga!

E foi então que ela se viu numa situação terrível. Poderia dizer, com sinceridade, que ele nunca lhe seria odioso, mes­mo que batesse nela. Mas, se mostrasse que sentia repug­nância, medo e aversão, ele talvez a deixasse em paz e não insistisse mais. Não só por uma noite, mas para sempre.

— Estou cansada — murmurou. — A única coisa que quero é dormir...

— Quer mesmo? — Ele afastou seu cabelo do rosto quente e molhado pelas lágrimas; à luz do abajur, Fenny parecia jovem e deprimida. — Talvez eu esteja sendo imprudente e muito cruel, mas você sabia o que estava fazendo e não pode culpar ninguém, a não ser você mesma.

— Eu sei. — Passou as mãos pelo rosto, para enxugar as lágrimas. — Não precisa ficar repetindo isso a todo ins­tante. Sei que fiz uma besteira... e agora, terei que pagar.

— De uma forma ou de outra.

Olhou-a de cima a baixo. O rosto de Fenny ainda mostrava vestígios de lágrimas. Os cabelos estavam em desalinho sobre as almofadas e brilhavam com o reflexo das estrelas. Os cílios molhados tremiam e a boca jovem refletia sombras de dor.

— Desta vez você não está representando, não é mesmo? As lágrimas e o medo são verdadeiros, e eu nunca violentei ninguém.

Magra e frágil, ela se levantou do divã, amarrando o roupão.

— Durma sozinha hoje à noite. Kalinikta.

Fenny não conseguiu responder ao boa-noite, porque sua garganta estava seca. Ouviu-o apagar a luz e sair, desapa­recendo na escuridão pela porta de comunicação entre os dois quartos.

Fenny recostou-se nas almofadas, com um gemido de dor.

O que podia ser mais penoso do que estar apaixonada e não passar de uma mercadoria para o homem que se ama? Tinha desejado de corpo e alma ficar nos braços dele, não se importando que não sentisse nada por ela. Tremia agora ao pensar que aquela paixão já podia ter produzido um fruto: e se ela já estivesse grávida? A maternidade repre­sentaria a sua destruição, uma morte em vida.

Fenny gemeu e puxou o lençol de seda para os ombros.

— Lion... — murmurou, sentindo falta daquelas mãos fortes em sua pele, acariciando-a como se fosse de porcelana, depois, de repente, quase selvagens, mas nunca chegando a machucá-la.

Saltou da cama, calçou as chinelas bordadas de pequenas borboletas em fios de seda, apertou o botão que abria o painel secreto e saiu para a moussandra.

Foi até o parapeito. As estrelas pareciam jóias que nin­guém podia roubar.

Sentiu o aroma de limão que vinha do pomar, o ruído do mar lá embaixo e, a distancia, o som de um bandolim tocando uma canção de ninar, típica da Grécia.

Quem estaria tocando? Seria para fazer dormir o filhinho órfão de Zonar?

Então a música mágica parou e Fenny sentiu-se completamente solitária outra vez, isolada da intimidade daquela família grega, impedida para sempre de tomar parte de suas alegrias ou de suas tristezas.

Seu coração bateu depressa quando pensou no futuro. Agora, no silêncio mortal daquele lugar, ouvia apenas o barulho do mar batendo contra pedras e as paredes dos penhascos. Era como se durante toda a sua vida ela estivesse esperando por um lugar como Petaloudes, mas lá não havia nada nem ninguém para protegê-la ou avisá-la do preço alto que teria que pagar por tornar seu sonho realidade.

"Não é assim tão fácil como você pensava", Lion tinha zombado dela, "fazer um marido grego de bobo."

Tinha ousado esperar que, com o tempo, ele a amasse! Mas toda a esperança morrera em seu coração. Nunca des­pertaria nada nele além de desejo. Lion só queria o seu corpo e continuava amando Penela.

Oh, como fui idiota por não pensar duas vezes antes de tomar a decisão de subir ao altar e tornar-me sua esposa! Lion nunca esteve realmente a meu lado: todo o tempo, seu coração estava em Nova York... com Penela.

Fenny voltou ao quarto e se deitou entre os lençóis frios. Quis implorar a Deus por um pouco de felicidade, mas real­mente não acreditava que merecesse. Usara as roupas de Penela, mas elas não lhe serviam. De qualquer forma, o conto de fadas tinha saído errado e o sapatinho de cristal não pertencia à Cinderela.

Escondeu o rosto no travesseiro que ainda conservava as marcas da cabeça de Lion e sentiu-se adormecer nos braços de uma ilusão.

 

Nas semanas seguintes, Fenny foi se acostumando à rotina do castelo do topo da co­lina. Sentia-se cada vez mais encantada pela ilha, onde o tempo era sempre maravilhoso, e pelas águas incrivelmente azuis do Egeu, que renovavam as esperanças nos corações das pessoas desesperadas.

Descobriu que Lion era um trabalhador incansável, sain­do algumas manhãs no helicóptero e não voltando durante vários dias, Suas inúmeras atividades o mantinham ocupado em Atenas e Chipre e, de vez em quando, em Istambul.

Zonar viajava quase sempre com ele, e a responsabilidade da casa ficava nas mãos competentes de Demetre.

Ele parecia continuar não aceitando Fenny, mas sua esposa, uma mulher muito bonita e fútil, encontrou na nova cunhada uma fonte de curiosidade. Adelina não lhe ofereceu exatamente amizade, mas mostrou-se mais sociável do que o marido. Es­tavam casados há quase cinco anos e não tinham filhos. Ade­lina confessou a Fenny que não tinha muita paciência com crianças e não lhe interessava ter filhos, e Demetre estava muito apaixonado por ela para insistir em seus direitos gregos. — Esse negócio de ter um bando de filhos já está ultra­passado — disse ela, com sua voz lânguida. — Acaba com o corpo das mulheres e com o interesse sexual. Acredite-me: os homens gregos dedicam toda a sua atenção às crianças. Fenny simplesmente sorriu. Adelina seria a última pessoa do mundo a quem ela confiaria seus temores e segredos.

O filhinho de Zonar era um encanto de garoto, mas a babá mostrou-se possessiva e até mesmo um pouco rude com Fenny. Era bem jovem e ocorreu a Fenny que ela devia estar apaixonada pelo atraente Zonar.

A vida no Castelo Azul oferecia-lhe mais um desafio do que um contentamento, mas Fenny não se importava com isso. Decidira não se deixar mais abater pela falta de amor de Lion. Havia sempre a possibilidade remota de que ele viesse a tratá-la com um pouco mais de carinho ou, quem sabe, até gostar dela. Era uma tênue esperança, mas Fenny se agarrava a ela; do contrário, não lhe restaria nada e o futuro seria um abismo profundo e negro.

No castelo, despertou para a beleza selvagem da paisagem, o aroma dos limoeiros nos verdes pomares exuberantes, o bri­lho e o calor do sol. Mas, para perturbar tudo isso, havia sempre o barulho do helicóptero subindo no céu azul, levando Lion, que a deixava sozinha sem ao menos dizer adeus.

Depois daquela noite, ele nunca mais se mostrara deli­cado. Entrava e saía do quarto dela quando bem entendia. — Você é minha esposa — disse com firmeza. — Não pretendo tratá-la como um ícone sagrado, que é beijado rapidamente e colocado de volta em seu branco nicho frio. Você é uma mulher e vai aprender a me satisfazer, quer queira, quer não.  

Depois de sete semanas no Castelo Azul, Fenny ficou sabendo que ia ter um bebê, mas não contou nada a Lion. Decidiu es­conder de todos a novidade, guardando o segredo só para ela. Agarrava-se desesperadamente à fraca esperança de que um dia ele pudesse perdoá-la e mantê-la ali com ele. E, por amor àquela pequenina vida que estava crescendo em seu corpo ma­gro, tentava absorver tudo que podia de beleza da ilha.

Logo descobriu por que chamavam o lugar de Petaloudes. Os galhos das árvores estavam sempre cobertos por grandes borboletas, suas asas se agitando como renda. Sempre que pos­sível, Fenny saía em longos passeios. Seu refúgio preferido era o yali, uma casa de verão na praia, de estilo turco, mobiliada com pequenas mesas e um divã com um grande almofadão. Um tapete trançado cobria o chão. Havia conforto e solidão ali. Fenny gostava de ir lá quando Lion estava fora, para ouvir discos e ler revistas inglesas que ele comprava para ela no continente. Sempre ficava até o escurecer, e costu­mava nadar quando o sol se punha.

Enquanto nadava, pensava em Afrodite, que renovava a sua castidade no oceano. Se isto fosse possível para uma mulher que sabia que em seu corpo crescia um bebê de seu amante... Pensava sempre em Lion como amante, porque ele nunca se comportava como marido. Nunca discutia seus negócios com ela, muito menos os planos para o futuro. Ao contrário, deixava claro que não tinham futuro algum, zombando dela, depois de fazerem amor.

— Vou sentir falta disso, minha pequena impostora, quando mandar você embora... para enganar outro homem rico.

Ela não discutia nem protestava, não adiantava nada. Ele jamais ouviria as suas lamúrias e, se ouvisse, não daria a menor atenção. Preferia ficar calada, remoendo sozinha as suas tristezas.

Ele vinha, ficava um pouco com ela e depois partia para a outra vida, a vida de negócios da cidade grande, onde provavelmente havia uma outra mulher, que devia saber mais de sua vida do que Fenny.

Por ora, nadar naquela água deliciosa, naquele mar divino e banhado pelo luar e pela luz das estrelas já era um alívio muito grande para a dor que sentia e que algumas vezes se tornava uma verdadeira agonia. Então ouviu o barulho do he­licóptero seguindo em direção ao planalto, onde as luzes em terra estavam sempre acesas, como se o esperassem. O aparelho sobrevoou o mar, fazendo círculos, até descer lentamente.

Fenny, que estava boiando, teve um sobressalto. Não es­perava que Lion voltasse tão cedo, porque Zonar tinha dito que iriam a uma conferência em Chipre.

Embora sentisse um desejo irresistível de ir ao encontro de Lion, ficou na água e disse a si mesma que ele não queria vê-la correndo para seus braços como toda esposa apaixonada faria. Não ficava bem para ela mostrar-lhe o que sentia.

Fenny estava sentada sozinha na praia deserta, mãos cruzadas sobre os joelhos, olhando para o mar, quando ouviu pedras rolando nos rochedos. Imediatamente percebeu que alguém descia pelo atalho, em direção à praia. Seu coração bateu descompassado na esperança de que fosse Lion, pro­curando por ela.

— Kalispera, kyria — disse uma profunda voz masculina.

Só que não era Lion quem vinha em sua direção. O desa­pontamento foi tão grande que Fenny enterrou as unhas nas palmas das mãos. Mas sorria, amigável, ao se voltar para Zonar.

— Boa noite, cunhado. Voltou cedo. Deixou meu marido trabalhando?

Esperava que Zonar lhe retribuísse o sorriso e dissesse alguma coisa agradável. Em vez disso, ele ficou olhando para ela com uma austeridade incomum naquele rosto sim­pático. Fenny pressentiu que algo ruim tinha acontecido.

— O que foi? — Levantou-se rapidamente e agarrou o braço dele. — Aconteceu alguma coisa com Lion? Diga logo, ou acabo ficando maluca!

— Preocupada? — Arqueou as sobrancelhas escuras, fi­cando muito parecido com Lion. — Você morreria se o per­desse, não é mesmo?

— Por Deus, sim! — Sacudiu o braço do cunhado. — Não se comporte como ele! Não me atormente! Por que você voltou tão depressa?

— Houve um acidente. Pelo amor de Deus, não há ne­cessidade de ficar tão apavorada!

Mas era tarde: a cabeça de Fenny girou, e Zonar teve que carregá-la nos braços até o yali. Empurrou a porta com os ombros e carregou-a para o divã, com um carinho que Lion nunca havia demonstrado. Tirou o cabelo dela do rosto pálido e se ajoelhou a seu lado,

— Um acidente? — ela murmurou. — Lion foi ferido?

— Foi, mas fique calma. Ele é tão forte como um verda­deiro grego deve ser, e a explosão só o feriu de leve. O médico teve que extrair pedaços de vidros de seu braço e das costas. Eu estava almoçando com... certa pessoa; por­tanto, não estava no prédio da administração, quando a bomba explodiu. Até que Lion teve sorte, porque alguns dos outros homens foram mortos ou ficaram mutilados.

— Oh, Deus! Por que essas coisas têm que acontecer? Por que as pessoas não se comportam como gente civilizada? É vandalismo ficar atirando bombas por aí, torturando um ao outro por causa de divergências políticas. Preciso ir ficar com ele. Tenho certeza de que está precisando de mim.

— Ele está bem, acredite. Nós o trouxemos de volta e agora está descansando no quarto. Os médicos aplicaram uma injeção que o fará dormir bastante: vai descansar bem e não sentirá mais nada depois.

— Eu devia ir vê-lo, para ter certeza. — Tentou se le­vantar, mas Zonar impediu, sorrindo.

— Ele está inteirinho, posso garantir, Fenella. Amanhã estará se sentindo melhor, embora com dor de cabeça e com o braço enfaixado. Aí então, você poderá brincar de enfermeira e insistir para que ele siga o conselho do médico para repousar durante uma semana. Por Deus, que outro homem deixaria uma mulher maravilhosa completamente só numa ilha como esta, nadando no Egeu? Você não merecia essa má sorte!

— É o meu destino, e não estou me queixando — disse ela. Mas seus lábios tremeram enquanto falava e seus cílios baixaram para esconder o desespero. — Fico muito feliz por Lion não ter se ferido gravemente. Você está me dizendo a verdade, Zonar? Ele está mesmo bem, apesar dos ferimentos?

— Eu nunca mentiria para você. — Zonar segurou as mãos dela e roçou os lábios na ponta de seus dedos. — Sabe, de um certo modo, o meu irmão trabalhador merece você; mas, por outro lado, não. Ele não devia deixá-la abandonada.

— Oh, mas ele não me deixa totalmente abandonada. O que acontece é que precisa mais do trabalho do que de mim. Eu sirvo para uma finalidade e aceito que ele não sinta a felicidade completa a meu lado. Não sou a mulher que ele ama, e isso faz muita diferença, você sabe. Eu não gostaria que ele fingisse que sente algum afeto por mim. Não faz parte do caráter de Lion: ele é muito franco, diz tudo o que pensa. E tem todo o direito, porque o que eu fiz foi uma coisa im­perdoável, e agora é muito tarde para tentar remediar.

— Você quer dizer que ele é brutalmente honesto!

— Eu... eu não gosto dessa palavra...

— Não? — Zonar franziu a testa. — Kyria, eu conheço Lion há muito mais tempo do que você e sei como pode ser desumano, quando alguém faz um jogo que ele julga sujo. Principalmente quando ele é o enganado.

— O jogo que eu fiz foi sujo. Não espero que Lion me trate com amor, com carinho.

— Não gosto do jeito como trata você, é muito cruel. — Seus olhos passearam pelo corpo magro de Fenny, naquele minúsculo traje de banho. — Você precisa ser amada de verdade, não apenas usada por ele para satisfazê-lo. Meu irmão não pode fazer uma coisa dessas. Você tem muito mais a oferecer, além de seu belo corpo, cheio de curvas.

— Zonar, por favor, não diga essas coisas!

— Já estava na hora de alguém dizer.

— Você está se aproveitando do estado dele, e isso não é muito bonito, ainda mais sendo irmão de Lion. Agora, preciso ir vê-lo!

— Não. Ainda não. — Forçou-a a se sentar novamente.

— Você vai ter que ouvir, e fique sabendo que é mil vezes melhor do que aquela sua prima exibicionista. Ela me paquerou, sabia? Deu em cima de mim, pelas costas de Lion! Tive vontade de lhe dar uns tapas, e seria bem merecido!

— Ele a ama, e não há lógica no amor. Nunca haverá. Deixe que eu vá agora, Zonar, antes que nós dois digamos coisas de que possamos nos arrepender mais tarde.

— Eu nunca me arrependeria de falar com você... de conhecê-la, Fenella. — Segurou as mãos dela. — Você é a mulher mais fascinante que já conheci. Está jogando fora a sua vida ao lado de um homem que pensa primeiro nos negócios e, por último, na mulher que o ama. Ainda não posso acreditar que existam homens desse tipo, têm tudo do bom e do melhor e ainda querem mais, esquecendo-se de uma mulher maravilhosa como você.

Olhou o corpo de Fenny e um brilho estranho apareceu em seus olhos.

— Fenny, você me olha como se fosse divinamente pura. No entanto, é esperta e cheia de truques. Acho isso fascinante.

— Não sou o tipo de garota esperta que você imagina! — Fenny arrancou as mãos das de Zonar e seus olhos o fuzilaram. — Você fala do seu respeito por Lion e, ao mesmo tempo, me diz essas coisas. Estou chocada e desapontada.

— Chocada? — Ele deu uma gargalhada. — Só porque eu a acho charmosa e porque gostaria de fazê-la feliz?

— Já sou bem mais feliz do que mereço.

— Acha mesmo? — Zonar balançou a cabeça, incrédulo.— Tenho observado você algumas vezes. Principalmente aqui na praia, sozinha, brincando feito criança desprotegida, fazendo castelos. Quase não consigo me controlar. Meu ir­mão a deixa muito sozinha. O que você tem é uma escra­vização, não um casamento!

— É problema meu, Zonar, e você não tem o direito de ficar se metendo.

— Gosto de você e isso me dá o direito. — Inclinou-se sobre ela e Fenny olhou o rosto bronzeado pelo sol, forte e emocionado, com lábios sensuais e queixo quadrado. Não podia negar que era um homem perigosamente atraente.

Ficou nervosa por estar sozinha na casa de verão com ele, sabendo que a raça dos Mavrakis era terrível.

— Como cada dia morre nos braços da noite, cada mulher também devia viver nos braços de alguém que realmente gostasse dela — ele murmurou.

— Posso sobreviver sem uma lígação perigosa — Fenny respondeu. — Lion mataria você, se soubesse que... que esta falando desse jeito com a esposa dele.

— Sem dúvida alguma. E não seria a primeira vez que ele iria me dar uns bofetões. Ou você acha que fui um jovem fácil de educar e criar?

Ela sorriu, de má vontade.

— Você tem um pouco do diabo, Zonar. Gosto muito de você e odiaria se alguma coisa estragasse a nossa amizade. Tenho certeza de que não quer ter um caso comigo, e que apenas se sente obrigado a tentar com todas as mulheres que encontra.

— Você está sendo cínica. Sabe muito bem que eu a acho linda e tranquila, como um oásis no meio do deserto. Since­ramente, invejo Lion. E ainda mais, se você o ama de verdade!

— Eu o amo. — As palavras saíram de seu coração. — E acredito que sempre amarei, pois o que sinto é muito forte e não acaba do dia para a noite.

— Apesar do modo como ele a trata? — Zonar franziu a testa, e mais uma vez sua semelhança com Lion era bem visível. — Lion pode ser bruto de muitas formas e com muitas pessoas, porque só Demetre e eu tivemos a sorte de receber uma boa educação. Foi ele quem nos transformou de simples garotos de rua em dois homens finos, dois ca­valheiros. Lion trabalhava nas pedreiras de mármore, as mesmas que agora lhe pertencem, e ajudou a construir os caíques que transportam as mercadorias dele para centenas de portos estrangeiros. Deus lhe deu resistência física e perspicácia nos negócios, e acho que os grandes negócios são a única coisa com que se preocupa. Tenho certeza de que admira mais um livro de contas do que as formas do corpo de uma mulher. E você diz que o ama!

— Você deve muito a ele, Zonar. Não devia se esquecer de tudo o que fez por vocês.

— Não esqueço. Ele é um grande homem: cheio de qua­lidades, enérgico. Eu mataria por ele.

Fenny mordeu o lábio.

— Você gostaria de fazer amor comigo, sendo a esposa dele?

— E ser maldito por isto? Para um grego, a esposa do irmão deve ser sagrada. — Deu um sorriso cínico. — Mas estou apai­xonado por você e não consigo me controlar. O que posso fazer, se a única coisa que quero é juntar minha alma à sua?

— Não! Por favor!

— Oh, Fenella, não há nada mais desesperador do que uma mulher bonita apaixonada por outro homem.

— Você é incorrigível.

Conseguiu livrar-se dele e escapou do yali, correndo para o atalho que levava ao castelo. Zonar desceu os degraus logo atrás dela, alto e elegante, mas sem a mesma força que diferenciava Lion de todos os outros homens.

Lion... ferido por uma bomba. Fenny queria correr para o lado dele e atirar-se em seus braços. Sentiu o desejo primitivo percorrer-lhe as veias e percebeu que já não era a tímida garota inglesa de outros tempos. Alguma coisa da personali­dade pagã do marido se apossara dela. Apesar de separados fisicamente no futuro, estaria sempre ligada a Lion.

Quando ela e Zonar alcançaram o topo da colina, pararam alguns instantes, olhando para baixo, para o reflexo das estrelas no mar. Foi só então que Fenny lembrou que tinha deixado o vestido na casa de verão e ainda estava descalça, usando biquini. Enfiou os dedos na terra e desejou estar plantada ali tão firmemente quanto as figueiras ou uma das antigas oliveiras cujas raízes se estendiam até as pedras.

— Acho seu país fascinante — disse a Zonar.

— O povo também? A família Mavrakis em particular?

— Uma família arrogante. — Ela sorriu. — Onipotente e orgulhosa.

— Temos motivos para isso. Ir da sarjeta para uma mansão significa uma grande proeza. Olhando para nós agora, quem é que diria que não fazemos parte da aristocracia grega?

— Realmente, não. — Olhou para Zonar, que parecia um deus grego, mas vestia um moderno calção de banho e uma camisa marrom, dasabotoada. — Na Grécia, são apenas as roupas que separam os reis dos mendigos, não é? Vocês são um povo muito bonito.

— Obrigado. — Ele pareceu um tanto sem graça por um momento, como se o que ela dissera tivesse abalado um pouco a sua segurança. — Eu gosto de você, também.

— Zonar, não me entenda mal. — Continuou a andar e ele a acompanhou, rindo. — Eu o acho um homem bonito, mas isso não quer dizer que você abale a minha estrutura.

— Isso é coisa só para Lion, não é?

— Há necessidade de amor, e você sabe disso!

— Eu amava muito minha esposa, Fenella, mas não posso fazer amor com uma morta. Acha que devia usar luto? Não é preciso vestir roupas negras para mostrar que se amava uma pessoa.

— Você podia encontrar uma boa moça e casar. Alekos precisa de uma mãe.

— Todas as boas garotas já estão casadas com maridos brutos. Por que isso? Vivo me perguntando se a bondade é atraída pela maldade. Você me acharia um amante atencioso e apaixonado.

— Verdade? Você guarda os seus diplomas pendurados na parede do quarto, mostrando o carimbo da aprovação feminina?

— Por que não vai até lá e tira a prova?

Agora, já estavam no jardim de pedras que ficava na divisa dos pomares, onde havia ruínas do que provavelmente fora um templo pagão.

— Zonar, prometa uma coisa.

— Você terá tudo o que quiser de mim, Fenella.

— Quero a sua promessa sincera de que vai me tratar apenas como uma amiga e como sua cunhada, esposa de seu irmão mais velho, que fez tudo para que você tivesse uma vida melhor do que a dele. Chega de tentar flertar comigo, está bem?

— Porque você acha isso repelente, ou porque acha perigoso?

— Você sabe que é perigoso. Eu pertenço a seu irmão.

— Da ponta do cabelo até as solas dos pés, minha cunhada?

— Sim.

— Continue assim, e acabará se tornando mamãe. O coração dela bateu apressado.

— Você acha?

— É o que acontece quando uma garota se casa com um grego. É isso o que você realmente quer, acima de tudo?

Oh, não! Não, acima de tudo! Como poderia querer uma criança que seria a sua separação de Lion? Mas o bebê estava lá e podia senti-lo crescendo dia a dia, sangue de seu sangue, carne de sua carne; e a única lembrança de Lion, se resolvesse abandoná-lo antes do nascimento da criança.

— Venha, pequena solitária, deixe-me acompanhá-la ao castelo.

Gentilmente, Zonar pegou-a pelo braço, e ela não tentou se libertar. Acima de tudo, Lion tinha conseguido fazer dos irmãos dois cavalheiros, e eles sabiam muito bem que Lion os mataria, se um dia traíssem a sua confiança.

— Para um grego — ele disse —, um filho é a luz da vida. Aposto que, se der um filho a Lion, ele vai esquecer que você fez um jogo sujo com ele. Se é isso o que você quer.

Esquecer? Fenny tremia quando chegaram ao hall do cas­telo, onde a grande lanterna brilhava, iluminando as pare­des brancas e as arcadas.

— Corra e tire esse minúsculo biquini. Vá! Depressa!

Zonar a observou, enquanto ela subia os degraus. De repente Fenny parou, voltou-se para ele e sorriu, grata.

— Você faz bem ao meu moral — gritou.

— Mas não ao resto, hein?

Nenhum dos dois percebeu a babá parada atrás de um dos quartos, usando um vestido negro de gola branca.

— Senhor!

Sua voz assustou-os e fez com que se sentissem quase culpados. Olharam para a moça, que se aproximou.

— Queria falar com o senhor a respeito de Alekos — ela disse, ignorando Fenny. — Ele não tem comido muito bem. Pode ser por causa do calor. Mas, por outro lado...

— Por outro lado? — Zonar olhou-a, irritado. — É você quem deve saber tudo sobre a criança. Foi exatamente por isso que foi contratada e nós lhe pagamos um bom ordenado: para que ele esteja sempre muito bem cuidado.

— Sim, senhor. — A babá ficou tensa e dirigiu o olhar para onde estava Fenny. — Eu conheço o meu lugar nesta casa.

Com aquelas palavras, a moça se retirou, e ocorreu a Fenny que a babá não gostava dela e que tinha interpretado mal o sorriso inocente que os dois haviam trocado. Zonar era um viúvo muito bonito e jovem, cujos olhos pareciam passar pela babá sem perceber que ela estava apaixonada por ele.

Os homens podiam ser cruéis e Fenny sabia disso, pois passava por uma experiência assim; mas algumas mulheres conseguiam ser ainda mais diabólicas e capazes de fazer coisas terríveis quando queriam prejudicar os outros. Apertou a ba­laustrada de ferro da escada e sentiu um arrepio na espinha.

— Ande logo — Zonar disse. — Vá correndo para os braços de seu marido.

Quando Fenny chegou ao quarto de Lion, ficou surpresa de encontrar a porta entreaberta. Entrou depressa e, de repente, parou. Kassandra estava em pé, ao lado da grande cama, olhando fixamente para o rosto moreno e adormecido nos travesseiros brancos.

— O que você está fazendo?

A mulher se voltou lentamente e seu rosto pareceu ainda mais cigano e místico do que nunca: o nariz aquilino, o cabelo negro-azulado, a pele escura. Uma mulher alta e estranha, que Fenny sabia que caminhava durante a noite, falando sozinha. Era ela que, algumas vezes, tocava bandolim. Lion contara que tinha sido torturada durante a guerra por levar comida e in­formações para a resistência que se escondia nas colinas.

— O patrão está bem.

Fenny caminhou de mansinho para perto da cama e olhou para Lion com olhos ansiosos. Jamais o vira daquele jeito, dormindo tão profundamente, o cabelo grosso caído sobre os travesseiros. Tinha uma expressão tão cansada! Um dos braços estava para fora da coberta e enfaixado do pulso ao cotovelo.

— Oh, Lion! — Fenny acariciou o cabelo dele carinhosa­mente, mas ele não se moveu. Zonar dissera que ele havia tomado um remédio para dormir profundamente, mas, de qualquer forma, ficava preocupada e assustada de vê-lo tão quieto. Logo aquele homem, sempre ativo, que não descansava nunca. Teve um sobressalto quando Kassandra tocou-a no braço e falou, em grego, que Fenny estava aprendendo com rapidez como tratar de Lion. Era um cumprimento.

— O patrão é forte. Já o vi em pior situação do que esta, na guerra. Parece que ele luta contra tudo o que existe de ruim.

— Ele está num sono tão profundo! — Fenny deu um suspiro. — Parece estar tão longe de nós. Eu o toquei e ele nem sentiu.

— Isso é bom para ele. Dorme muito pouco, pois tem que trabalhar dia e noite para ganhar o pão de cada dia para a família. Isso é porque passou fome quando criança, sabia? Passou fome como um cachorro sem dono, para que os dois irmãos mais jovens pudessem comer e sobreviver. Eu o conheço desde então. Ele me achou quase morta na estrada e, ainda menino, cuidou de mim, me deu comida do pouco que conseguia pedindo esmolas, emprestando ou roubando. Esse tipo de pessoa merece muito amor. Você o ama, não é mesmo?

Os olhos de Fenny se encheram de lágrimas e, de repente, ela caiu no choro. Sentou-se na cama ao lado de Lion e abraçou suas pernas fortes por baixo das cobertas. Chorou desesperadamente por não ser a mulher que ele queria.

Kassandra bateu de leve em seu ombro.

— Desabafe, mas não chore muito — aconselhou. — Por causa da criança.

Saiu, fechando a porta do quarto atrás de si e Fenny ficou tensa, deitada na cama, o rosto molhado de lágrimas. Então Kassandra sabia! Aquela mulher estranha tinha descoberto o seu segredo... Oh, Deus, e se ela tivesse contado a Lion?

Ajoelhou-se ao lado da cama, incapaz de desviar os olhos do rosto do marido. Nunca o tinha visto adormecido, era ainda mais bonito e não parecia tão cruel. Muito pelo con­trário, parecia uma criança.

Mesmo quando dormia com ele, ela nunca despertou e o encontrou a seu lado. Estava sempre de pé e, na maioria das vezes, tomando café sozinho, para depois ir dar um mergulho, antes de sair para o trabalho. Como machucava saber que Lion nunca precisava de sua companhia depois de passar a maior parte da noite com ela, possuindo-a.

Mas nada disso importava. Apesar de ofendê-la e ma­chucá-la tanto, Fenny o amava.

O quarto estava muito quieto, exceto pelo tique-taque do relógio. Levantou-se com um suspiro e, inclinando-se, roçou com os lábios a face dele. Lion se mexeu um pouco. Com o coração disparado, Fenny se afastou depressa da cama. Será que ele ia acordar e encontrá-la ali, feito uma idiota apai­xonada? Mas Lion apenas mudou de posição na cama e caiu no mesmo sono profundo de alguns minutos antes. Res­pirou, aliviada, dirigindo-se para o seu quarto.

Sua jovem criada estava lá, dobrando a camisola para ela. Pela porta do banheiro vinha um aroma de eucalipto, do banho que a criada estava preparando. Fenny sorriu para a garota.

— Estive com o meu marido alguns minutos — disse, falando inglês, pois a moça entendia. Chamava-se Anne e era muito discreta e cheia de dignidade.

Quando Lion insistiu para que tivesse uma criada, Fenny ficou feliz por ele não ter escolhido alguma criatura petulante que esperasse que seu comportamento fosse como o de Adelina, que só se preocupava em andar na moda. Fenny gostava de roupas boas, mas nunca se interessara demais por maquilagem e penteados. Preferia andar o mais natural possível.

— A senhora vai se vestir para o jantar? — perguntou Anne, virando-se do enorme armário onde os vestidos de Fenny estavam pendurados. Ou melhor: os vestidos que de­viam ter sido de Penela.

— Não, vou fazer a refeição na moussandra. Não conse­guiria encarar um jantar formal com a família reunida.

— Claro que não. — A garota turca sorriu e tirou do guarda-roupa um caftã de seda. — Foi uma graça divina o senhor não ter ficado gravemente ferido, mas é uma tristeza saber que nosso povo não pode viver em harmonia.

— Harmonia — Fenny repetiu, devagar. — Até agora, não entendi o que Lion estava fazendo no prédio da admi­nistração, em Chipre. Por acaso você não ouviu algum co­mentário na casa?

Se a garota estava surpresa por Fenny não saber dos assuntos confidenciais do marido, não demonstrou.

— Ouvi, sim, patroa. Disseram que ele havia sido eleito para um cargo muito importante em Chipre. Nosso povo confia muito nele, até mais do que nos políticos. Ele tem uma ótima reputação, todos achamos que é muito leal e justo.

— Então, foi isso — Fenny murmurou, indo para o ba­nheiro, acompanhada por Anne. — Eu devia ter imaginado. Você acha que ele tem ambições políticas?

— Quem é que pode saber a respeito dos homens? — Anne sorriu e pegou o biquini das mãos de Fenny, enquanto ela entrava na banheira de mármore preto. — Eles insistem que nós, mulheres, somos um mistério, mas é sempre o contrário. Os homens nunca acreditarão verdadeiramente que as mu­lheres têm tanta cabeça quanto eles. Preferem mantê-las no harém, e, de muitas formas, isso tem um certo encanto.

— É, tem mesmo. — Fenny afundou na banheira cheia de água com aroma de eucalipto. — As mulheres não gostam de encarar o lado ruim da vida, mas é impossível fugir dele. Todos aqui me julgam uma escrava-amante do senhor, não é?

— E se importa com o que podem pensar? — A garota ensaboou as costas e os ombros de Fenny com as mãos magras que pareciam muito escuras em contraste com a pele clara da patroa. — Ele é considerado mais do que um homem, e hoje à noite o povo de Petaloudes vai beijar os ícones e agradecer por ele ter escapado da bomba.

— Vão mesmo fazer isso? — Fenny estava muito comovida com aquela idéia. — Lion é assim tão importante para eles?

— Dependem dele para viver, senhora.

Anne despejou na água um óleo aromático de um pequeno vidro e esfregou na pele de Fenny. Era agradável alguém tomar conta dela, e era um prazer a mais saber que Lion dormia são e salvo no outro quarto.

— Diga, Anne: como é que alguém pede uma graça como um morador da ilha? O que eu tenho que fazer?

— Levar para a capela alguma coisa de ouro ou de prata que tenha muito valor para a senhora e oferecer.

— Isso prova que as coisas materiais do mundo não têm tanto valor como o amor?

— Isso mesmo. — Anne pegou uma grande toalha de banho felpuda e enrolou Fenny, quando ela saiu da banheira.

— A capela fica do lado da colina, acima do povoado, não é?

— Sim. Mas não vai lá hoje à noite, vai? Seu marido ficaria descontente...

— Não, irei amanhã de manhã. Vou cedo, no carro pe­queno. — Enquanto vestia o caftã, Fenny passava em revista mentalmente o que tinha de ouro ou prata. Tudo o que possuía de valor era o colar que Lion lhe dera na noite de núpcias... e o bracelete com Afrodite, de ouro, que colocara em seu pulso na manhã seguinte.

Teria que dar o bracelete, porque as pérolas não significa­vam nada para ela. Nunca as usara. Ficavam sempre no estojo de veludo escuro... as pérolas de Penela. Mas o bracelete — um estremecimento de dor passou por seu rosto —, o bracelete que ela amava e usava sempre à noite...

— A oferenda tem que ter valor pessoal? — perguntou para Anne, que agora estava atrás dela, penteando o seu cabelo. — Precisa ser alguma coisa que eu goste muito de usar?

— Não acho que deva se preocupar tanto com esse as­sunto. — A criada sorriu. — Quanto maior o valor da coisa oferecida, melhor proveito fará o bom padre com o dinheiro que conseguir com a venda.

— É um alívio você dizer isso, e é claro que tem razão. Minhas pérolas serão uma oferenda muito valiosa e prática.

Fenny não hesitaria um segundo em dar as pérolas, pois não tinham o mesmo valor afetivo que o bracelete. Este, sim, talvez um dia fosse tudo o que lhe restasse de Lion. Nunca amaria outro homem.

— Obrigada, Anne. Agora pode me deixar sozinha, vou jantar lá fora.

A jovem criada saiu, fechando a porta sem fazer barulho.

Fenny abriu a gaveta da penteadeira e pegou o bracelete com o desenho de Afrodite. Colocou-o no braço, sentindo que o contato da jóia era quase como dedos carinhosos sobre sua pele.

— Oh, Deus!

Escondeu o rosto entre as mãos, pois, de repente, o futuro lhe veio à cabeça. Não era como Penela ou qualquer outra garota que conhecera. Nunca conseguiria amar outro homem daquele jeito novamente, e não havia nenhuma esperança de felicidade para ela.

 

Uma mesa estava posta para ela na moussandra, a toalha branca brilhando à luz pálida das arandelas que se refletia nos talheres de prata e nos pequenos vasos de flores.

Uma brisa suave soprava, impregnando o lugar com o aroma de figos, pinho e mar. Embora estivesse sozinha, Fenny não se sentia solitária. Quando terminou de comer, dirigiu-se para o parapeito com um segundo copo de vinho na mão. Foi lá que, inesperadamente, apareceu Adelina. Vestia uma camisa de seda pura branca, com estampa de flores, e uma longa saia vermelha. Seu cabelo negro estava preso num rabo-de-cavalo, e o rosto, muito bem maquilado, destacando os olhos escuros e os lábios escarlates. Parecia uma esfinge viva do Egito: a deusa Kat.

— Zonar disse que você preferia jantar sozinha, mas, de qualquer forma, vim para lhe fazer companhia. Fiz mal? Ou não devia perturbá-la? — Adelina aproximou-se de Fenny, com aquele seu andar felino, um cigarro no canto da boca. — Então, o leão machucou uma das patas na explosão? De uma coisa você pode ter certeza: aqui se vive perigosamente.

— Verdade? Está falando sério? — Fenny estava sempre de sobreaviso com Adelina. A cunhada sentia grande prazer de ser um objeto de amor e desejo, mas não lhe passava pela cabeça retribuir o que recebia. As preocupações e as ansiedades do amor, ela costumava dizer, envelheciam a mulher, tanto física quanto mentalmente, e ainda era muito jovem para isso.

— Lion Mavrakis é um homem muito perigoso, não é mesmo? — Adelina tirou o cigarro da boca e soltou uma baforada. — Excitante, claro, mas tão difícil de controlar como qualquer criatura da selva. Com Demetre, sempre sei onde piso. Ele tem seu mau gênio, mas sem ser ameaçador. Demetre não se importa de saber que não tenho nenhuma intenção de torná-lo pai. Mas sua vida com Lion deve ser... bem, para dizer o mínimo, uma experiência esmagadora. Tenho certeza absoluta de que ele não admite ouvir um "não".

Fenny tomou um gole de vinho, em silêncio. Não preten­dia discutir com ninguém sua vida particular.

— Certas mulheres inglesas conseguem ser bastante mo­destas. — Seu sorriso foi de zombaria e seus olhos estuda­ram Fenny cuidadosamente. — Você tem uma beleza incrí­vel. Eu devia sentir inveja de seu rosto, seu cabelo, seu corpo. Provavelmente sentiria, se Demetre olhasse para você como Zonar olha.

Fenny ficou tensa.

— Zonar se interessa pela maioria das mulheres — falou. — Isto não quer dizer nada.

— É bom mesmo que não signifique nada, querida. Lion é generoso, mas não suportaria a idéia de dividir a esposa, nem que fosse com o próprio irmão. E não se esqueça do mais importante, minha querida: a paixão. — Adelina deu uma risada. — O problema com os gregos é que, quando despertam para o amor, é com uma paixão cruel, de tão forte. É sempre mais seguro quando os casamentos são ar­ranjados. O meu foi arranjado, como você já deve saber. Foi tudo preparado por Lion e minha família. Eu trouxe um dote, o que me torna uma mulher quase que totalmente independente... ao contrário de você.

Fenny apertou o cálice de vinho. Era verdade. Tudo que trouxera para Petaloudes fora seu amor por Lion, e ele não se importava nem um pouco com seus sentimentos, era apenas seu corpo que despertava nele o sentimento primitivo grego.

— Os casamentos arranjados me assustam. Tenho a im­pressão de que são um negócio, sem nem um pingo de amor. O que acontece, se uma garota não tem dote?

— Simplesmente é condenada a ser solteira o resto da vida. Ou contentar-se com as atenções esporádicas de ho­mens casados. A Grécia, de muitas maneiras, é um país duro. Sem dúvida alguma, uma estrangeira precisa ter mui­ta coragem para se casar com um grego. Especialmente, uma garota como você.

— Como eu? Sim, eu mesma pedi uma vida complicada, não pedi?

— E como um drama grego. — Adelina riu. — É claro que é um segredo estritamente familiar, mas não levei muito tempo para arrancá-lo de Demetre. Lion ainda continua enamorado pela outra... por sua prima?

— Como você acabou de dizer há poucos instantes — Fenny engoliu em seco —, quando um grego se apaixona, é desesperadamente. Ou, então, não se apaixona. Ou é oito ou oitenta.

— E o que acontece com uma inglesa, quando se apai­xona? — Adelina olhava curiosamente para Fenny. — Você está apaixonada por ele, não está? Você não podia fazer o que fez com ele. Se não fosse tão atraente, acho que a teria esganado. Coitada! O único dote que tem é seu belo corpo.

Fenny sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Foi uma verdade cruel, que penetrou nela como uma faca afiada.

— Ora, vamos! — Adelina disse. — Não é assim tão mau. Você não precisa ficar envergonhada.

— Não estou — Fenny respondeu, quase sem forças. — Não enganei Lion nem uma vez e de maneira alguma. Por­tanto, nunca vou sofrer por problema de consciência. Já tenho muitos outros motivos para sofrer.

— Sabe? Você até parece uma grega, se oferecendo em sacrifício desse jeito. Graças a Deus, eu não tenho esse desejo ardente de dar tudo pelo amor. Você é jovem e muito atraen­te, e o amor está lhe fazendo muito mal, anda muito triste. Seja como eu: dê menos e exija mais. Os homens gostam e esperam isso, não sabia? Os anjos fazem com que eles se sintam desconfortáveis.

Fenny foi forçada a sorrir, ao imaginar Lion dominado por uma mulher.

— Lion já acha que sou uma atriz. Se tentasse agir como você age, Adelina, ele ia pensar que quero ganhar o Oscar.

— Um... Oscar? — Adelina olhava, confusa. — O que é isso?

— Um trofeu que é oferecido à melhor atriz de um filme.

— Ah, entendo. Então, o meu valente cunhado não percebe que tem uma esposa apaixonada? Por que ele acha que você casou com ele?

— Por dinheiro. Eu morava na casa de meu tio é era a parente pobre.

— Lion já se decidiu quanto a você, hein? Bem, se ele pensa que é uma mercenária, então você deve se aproveitar disso. Diga-lhe que precisa de roupas novas e que vai voar comigo até o continente qualquer dia desses para uma visita ao meu costureiro e ao meu cabeleireiro Constantino, em Atenas. O que acha?

— Eu adoraria ir a Atenas. — Fenny estava aliviada por mudarem de assunto. — Não ligo muito para roupas, mas seria divertido visitar a cidade.

— Não há outra igual. Precisa conhecer a Acrópole e ver as ruínas do Partenon. O templo foi dedicado à deusa-virgem Atena, e é melhor de se ver à luz da lua, quando as colunas e as estátuas parecem brancas. Durante o dia, parecem muito empoeiradas e cinzentas, com milhares de turistas correndo de um lado para o outro para tirar fotos.

— Você já foi a Londres? — Fenny perguntou, lembrando que Adelina não tinha ido com Demetre para o casamento,  

— Prefiro Paris. E tenho que confessar que minha maior paixão são as casas de moda: adoro roupas. Felizmente, recebo uma mesada do meu pai, que é armador; caso con­trário, acabaria levando Demetre à falência. Você acha que formamos um casal estranho?

— Na verdade, não. — Fenny encostou a cabeça na cadeira almofadada e tentou relaxar. — Ele adora você e a considera uma pessoa muito especial. Como você consegue resistir?

— Sim, é muito bom ser uma deusa aos olhos de um homem. — Seus lábios escarlates se curvaram num sorriso. — Você sente inveja de mim?

Fenny considerou a questão e se perguntou como seria, se conseguisse que Lion ficasse a seus pés. Mas era algo impossível de imaginar. Ele era muito orgulhoso e tinha virilidade: nunca colocaria uma mulher num pedestal.

— Não. Você e eu somos dois tipos diferentes — Adelina disse, com esperteza. — Você precisa da expressão física da paixão de um homem, mas eu me sinto mais feliz por ser admirada. Eu não considero o máximo da feminilidade ficar disforme, simplesmente para satisfazer o desejo de um homem ter um filho. Mas você gosta disso, não gosta? Não duvido que Lion exigirá um filho. — Adelina afastou-se do parapeito e olhou fixo para Fenny. — De uns tempos para cá, você anda um pouco pálida. Por acaso está grávida?

— Não! — Fenny negou com veemência, porque não podia confiar na cunhada. Se dissesse a verdade, ela acabaria contando para Demetre e Lion também saberia. Não queria que ele ficasse sabendo; não, por enquanto.

A criança não iria uni-los. A pequena vida que se alimentava de seu amor iria apenas separá-los definitivamente.

— Você parece ter muita certeza — disse Adelina. — Então as olheiras e o abatimento não querem dizer nada? Certamente, você não está fazendo regime: seu prato está vazio e nas travessas há muito pouco!

Fenny sobressaltou-se.

— Deve ser o calor. Não estou acostumada. Não temos esse tipo de tempo na Inglaterra, nem mesmo no verão.

— Brrr... eu não conseguiria viver num país frio. Faço questão das minhas visitas às casas de moda, mas adoro viver aqui nesta ilha, onde é tão sossegado, o ar é tão puro e há este mar maravilhoso.

— Uma das borboletas exóticas do lugar. — Fenny sorriu.

— Gosto da comparação, querida. Bem, acho que já tomei muito de seu tempo. Agora, vou deixar que descanse. Estou feliz por Lion ter saído do edifício quase que ileso. Kalenikta.

Adelina afastou-se, deixando no ar seu perfume francês. Fenny sentou-se sozinha, até que começou a esfriar. Então, entrou e foi, nas pontas dos pés, até o quarto de Lion para comprovar mais uma vez que ele estava bem. A luz de um abajur brilhava palidamente ao lado da cabeceira da cama, e foi um choque quando ela se inclinou e encontrou seu olhar.

— Lion...

— Olá! Estou me sentindo como se o tempo tivesse pa­rado. Dormi muito?

— Algumas horas. Como está se sentindo?

— Um Lixo. Tudo o que consigo lembrar é de um clarão e um estouro na cabeça. O que aconteceu?

— Um terrorista colocou uma bomba no edifício em que você estava. Teve muita sorte...

— Quer dizer que os outros morreram... O que aconteceu com Zonar?

— Ele estava num restaurante, almoçando, na hora da explosão.

— Claro, agora me lembro. Ele disse que ia se encontrar com um velho amigo do colégio, mas acho que era uma garota. — Lion sorriu, mas depois seus olhos se anuviaram. — É uma ironia os homens morrerem, quando estão lutando para levar um pouco de paz para Chipre. Então, eu vim de helicóptero, hein? E me colocaram na cama, como um bebê. Isso nunca me aconteceu antes.

— Você está com fome? Já passou bastante tempo e seria bom se comesse um pouco. Qualquer coisa que goste.

— Como está sendo atenciosa e educada. Aconteceu al­guma coisa com os seus sentimentos, minha querida?

— Não seja desagradável!

— Ah, esses olhos azuis... quanta dor eles conseguem expressar. — Seus dedos escorregaram por baixo da manga do caftã de Fenny e apertaram a pele clara. — Suave e doce, sorrindo como um anjo falso, não é mesmo? Certa­mente, deve ter sido um grande desapontamento para você, quando Zonar lhe disse que ainda não era uma viúva. Que pena! Como você ficaria encantadora num vestido preto de seda. Que belo contraste faria com sua pele clara e seu cabelo dourado. Quando penso nisso, tenho até vontade de morrer para vê-Ia assim... mas, se eu morresse, não poderia vê-la. Que bobagem a minha!

— Lion, você é um bobo, mas eu me recuso a perder a calma hoje. Quer comer alguma coisa?

— Pão preto, ostras e um potinho de manteiga quente, meu anjo de candura. E café.

— Logo estará tudo pronto. Oh, Lion, você é indestrutível, e todos estão felizes com isso.

— Você também?

— Fico encantada com seu apetite — brincou. — Man­teiga, café e ostras a essa hora da noite!

— Você perguntou minha preferência.

— Certo. Vou preparar as ostras eu mesma.

— Você?

— Claro. Não sou apenas pele branca e cabelo dourado, sabe? Uma vez, fiz um curso de culinária. Garotas sem graça precisam aprender a cozinhar, já que não têm outros atrativos — zombou. — Não vou demorar. Seu braço está doendo muito?

— Dá para aguentar. Não precisa se preocupar em pre­parar comidas exóticas para mim, kyria. Ficarei satisfeito com sanduíches.

— Você terá exatamente o que quer, patrão.

— Está sendo sentimental por causa dos meus ferimen­tos? Bem, nesse caso, não esqueça o café, por favor!

— Não, senhor.

Ele estava procurando pelos charutos, quando ela saiu do quarto, para correr escada abaixo em direção à grande cozinha. Durante o dia, ficava cheia de criadas trabalhando, porém, naquele momento, tudo estava em silêncio, e as lu­zes, apagadas. Fenny acendeu-as e caminhou para o refri­gerador imenso, as pregas do caftã enroscando-se em suas pernas. Sempre havia ostras no congelador, porque Lion adorava. Rapidamente, começou a preparar uma dúzia para ele, fez um molho para servir junto, coou café, cortou o pão em fatias e colocou um pratinho de manteiga numa bandeja.

Estava no meio dos preparativos, quando uma figura alta apareceu na porta.

— Meu Deus! Que atividade toda é essa?

Fenny desviou os olhos do que estava fazendo e sorriu para Zonar.

— Lion acordou e esta com fome. Pediu ostras, mas eu prepararia até um banquete, se ele quisesse. É maravilhoso vê-lo como antes.

— Imagino que sim! — Zonar instalou-se numa cadeira, olhando-a de modo irônico. — Ele já começou a insultá-la?

— Umas três vezes.

— Então, realmente, está em forma.

— Quase. Mesmo que estivesse sentindo alguma dor, não diria nada. Você, que o conhece há mais tempo do que eu, deve saber disso.

— Quer dizer que ele prefere comer ostra e descansar a cabeça machucada em seu ombro? Eu não faria a mesma escolha.

— Ele está um pouco fraco e precisa se alimentar. — Arrumou a bandeja, feliz por estar preparando uma refeição para o marido. Desejava poder fazer isso mais vezes, mas não estava em posição de perturbar a rotina do castelo. A cozinheira grega poderia ficar ofendida, se começasse a usar a cozinha, e Lion seria o primeiro a dizer que pagava um bom salário para ter uma comida feita com esmero, e não para comer o que fazia uma principiante.

— Pode trazer o bule de café? — pediu a Zonar. — Suba e diga alguma coisa agradável a seu irmão.

— Minha querida cunhada, ele cairia da cama, se eu ousasse dizer na cara dele que estou infernalmente feliz por ainda estar aqui para manter a família de pé. — Zonar seguiu-a pela escada, levando o café. — Sinto-me como um criado grego.

— Fazer alguma coisa útil não tira pedaço. E não se atreva a magoar seu irmão!

— Minha querida, ele é o rei desta selva e eu sou apenas mais um dos infelizes que ele maltrata. — Riu e acompa­nhou-a até o quarto. — Cá estamos, Lion, a seu serviço e com o prato mais delicioso que já comeu na vida.

— As ostras... ou minha esposa? — Dirigiu um olhar penetrante para o irmão e depois observou Fenny, que co­locou a bandeja de pezinhos sobre seus joelhos. — O cheiro está muito bom.

— Espero que goste. Está se sentindo bem?

— Bem. — Destampou a travessa e provou o molho. — A quantidade exata de alho e vinagre. — Deslumbrante!

— Oh, ela não tem apenas um rosto bonito — disse Zonar. Instalou-se numa poltrona, observando o irmão saborear o jantar com apetite. — Estou percebendo, Lion, que você se sente bem melhor. Escapou por um triz. Muitos dos mem­bros do comitê não tiveram a mesma sorte.

Fenny saiu silenciosamente do quarto, deixando os dois conversarem a sós. Agradeceu a Deus pelo marido estar salvo e ter gostado da ceia que preparara.

Foi para a cama e adormeceu tranquila.

O dia já estava claro e o sol penetrava pelas janelas quando Fenny acordou. O sol ia alto, e imediatamente per­cebeu que dormira muito mais que de costume. Lion! Pulou da cama, vestiu o robe e entrou correndo no quarto dele.

A grande cama estava vazia, as cobertas, atiradas para o lado, e os travesseiros, ainda com a marca da cabeça dele. Oh, não! Lion devia continuar descansando.

— Kalimera, kyria.

Ela se virou, e lá estava ele, em pé na porta da varanda, olhando-a com ironia.

— Venha até aqui. Quero lhe mostrar uma coisa.

— Lion, por que não fica mais um dia na cama? O médico disse para não abusar.

— É o que planejo fazer. Venha!

Estendeu a mão para ela, que obedeceu. Levou-a para a varanda, banhada pelo sol, e apontou-lhe o mar. Lá, naquele mar de água azul-esverdeada, navegava um lindo caíque preto, parecendo um navio de piratas que tinham decidido invadir a ilha. Como em tempos antigos, quando os mora­dores escondiam as jovens nas colinas, na esperança de mantê-las sãs e salvas dos conquistadores.

— Aquele é o Cirene — ele explicou. — Acaba de sair do estaleiro e está pronto para a primeira viagem. Gosta?

— É seu? Nunca tinha visto nada igual. Parece um navio de piratas. Sim, claro, só podia pertencer a você.

— Gostaria de fazer uma viagem nele pelo mar Egeu? Fenny o escutava, mas não acreditava. Era maravilhoso demais. Não podia ser verdade que Lion a estivesse convi­dando para um cruzeiro.

— Você não é uma boa marinheira?

— Realmente, não sei. Nunca fui testada.

Queria acreditar em tal viagem, naquele oceano fabuloso, naquele lindo caíque com grandes velas e cabeças esculpidas na madeira — provavelmente, a deusa Cirene. Devia haver tantas pequenas ilhas gregas para serem exploradas. Queria isto com desespero, mas não podia ir navegar com ele. Não conseguiria sentir prazer algum, sabendo a todo instante que todos os dias e todas as noites iriam levá-la inevita­velmente a lugar nenhum.

— Então, hoje vai ser testada. Já pedi que o drene venha nos buscar dentro de algumas horas.

Desviou os olhos do navio para o rosto de Fenny, e ime­diatamente uma sombra de mau humor apareceu em sua expressão.

— Por que você está me olhando desse modo? Não está feliz de ficar sozinha comigo no caíque? A esposa atenciosa só existiu ontem à noite. Deixe de histórias! Se a idéia não lhe agrada, diga. Não estou tão desesperado por companhia, portanto, não a forçarei a navegar contra a sua vontade, como faziam os corsários turcos que ocuparam estas ilhas nos velhos tempos. Claro, era inevitável que o sangue deles corresse nas veias gregas, mas não sou tão cruel com você e nunca fui! Nós dois sabemos muito bem disso, não é mesmo?

— Sim. — Afastou-se o máximo que as mãos dele per­mitiram. Mas Lion continuou a segurá-la pelos pulsos, com força. — Você pode levar Zonar...

— Levar um irmão? — Ele franziu a testa e torceu o nariz. — Deve estar ficando maluca. Minha querida, acha que é a única mulher na minha vida? Se a viagem não lhe agrada, pode ficar descansada, que não terei dificuldades em arrumar uma outra. Há muitas que gostariam de ir comigo. Não se preocupe: estarei em boas mãos. Você mesma já sabe como as mulheres gregas me tratam... e até algumas estrangeiras. Imagino que o desapontamento de ontem lhe veio à cabeça agora, que pena que eu não morri, não é? Eu cheguei bem perto, não foi? Se tivesse acontecido, você agora seria uma viúva jovem e rica, e além do mais estaria livre do nosso pacto. Faço idéia de quanto deve me odiar por estragar seus planos e não morrer naquela explosão.

Fenny recuou, como se ele tivesse lhe dado uma bofetada.

— Farei o que você quiser, Lion. Irei navegar com você, se é o que quer. Farei tudo para deixá-lo...

— Vá para o inferno!

Ele a empurrou com tanta força que Fenny caiu contra as grades de ferro do parapeito, batendo as costas e gritando de dor. Ela agarrou-se ao parapeito e ficou olhando-o, chocada.

— Você é duro feito aço, Lion. Você simplesmente não quer me entender e interpreta tudo errado, quando tento explicar. Nada... nada consegue mudá-lo, nem mesmo o fato de ter estado tão perto da morte!

— Exato! Por que deveria alguma coisa me fazer mudar ou mudar quando você me forçou a um casamento que fez mudar completamente a minha vida. Agora, se não se importa, desapareça da minha frente... se é que tem amor à vida. E pensar que você agiu como um verdadeiro anjo, na frente do meu irmão, ontem à noite! Fez-se passar por uma pobre esposa e escondeu seu desgosto, seu pesar, por trás daquele sorriso doce e falso que está sempre pronta a vir a seus lábios. Graças a Deus, não terei que vê-la nos próximos dez dias. Vou colocar muitos quilómetros de oceano entre nós e gostaria, do fundo do coração, que isso pudesse ser o fim de tudo.

— Não pense que também não desejo a mesma coisa!

Fenny virou-se e, com as pernas tremulas, deixou-o sozinho. Em seu quarto, sentou-se na cama e pensou na terrível bar­reira que se erguera entre Lion e ela. Com a dramática rapidez de um furacão, tudo tinha acontecido; um momento desastroso, depois o prazer antecipado de estar com ele, a sós, naquele navio. Seu corpo doía da queda contra a grade, mas era no coração que sentia a pior das dores.

Iria embora!

A decisão chegou de repente. Sim, era a única coisa a fazer. Ele havia dito que ficaria longe da ilha durante dez dias, o que lhe daria tempo suficiente para preparar tudo para sua partida de Petaloudes. Alugaria um barco para levá-la até Atenas e, de lá, reservaria uma passagem de avião para a Inglaterra. Tinha algumas economias num ban­co inglês, o bastante para se sustentar até o nascimento do bebê. Depois, como muitas mulheres, iria procurar um em­prego e sustentar sozinha a criança. Não sentia medo. Da­quela forma, teria algo mais precioso do que um bracelete de ouro.

Graças a Deus, ninguém sabia que carregava um filho de Lion. Havia apenas Kassandra, e ela não era um membro da família, dificilmente falava e, menos ainda, sobre a vida dos patrões. De qualquer forma, a mulher só estava tentando adivinhar. E Fenny era uma estrangeira que havia entrado para aquela família sem ser desejada. Então, quem sentiria sua falta? Desapareceria de uma vez por todas da vida dos Mavrakis e se estabeleceria em alguma parte da Inglaterra, onde pu­desse ficar no anonimato.

Ainda naquela manhã escaparia do castelo e, quando vol­tasse da visita à capela nas colinas, Lion já teria partido no Cirene, navegando em alto-mar, cheio de ódio e conven­cido de que ela não passava de uma embusteira mercenária. Que ironia mais dolorosa, quando a única coisa que queria dele era o amor que mantinha trancado a sete chaves, sem pensar em repartir com ela.

Ela o estaria enganando, quando partisse da ilha, levando consigo o filho que ele nunca iria ver. Tinha que ser assim, porque não conseguia mais suportar aquela vida de paixão e tormento.

Há pouco, ele tinha sido fisicamente violento, pela primeira vez. Quando Fenny foi para a banheira, tomar uma ducha, descobriu manchas roxas no corpo. Talvez o marido não tivesse nem percebido como fora forte o aperto de suas mãos, em­purrando-a para as grades de ferro do parapeito. Sentiu um frio no estômago. Lion devia odiá-la profundamente, e a única recompensa que podia lhe oferecer por se meter na vida dele, forçando o casamento, era desaparecer para sempre.

Pediu que o café fosse servido no quarto. Em seguida, colocou um vestido branco simples e seu único adorno era o bracelete de ouro com o desenho de Afrodite. Desceu si­lenciosamente, levando consigo o estojo de veludo com o colar de pérolas. Aquela ida à capela para fazer uma ofe­renda aos deuses era agora uma desculpa válida para se afastar do elo por algumas horas. Quando voltasse, Lion já teria partido. Não haveria despedidas. Não teria um último beijo para se lembrar dele, apenas um forte empurrão que deixara marcas em seu corpo e sua alma.

Não havia ninguém por perto, quando foi à garagem, onde estavam guardados muitos carros de uso particular da família. As chaves estavam na ignição do carro de dois lugares e Fenny deu marcha à ré e desceu o caminho cheio de curvas, dirigindo-se para o portão.

O sol agora estava realmente muito quente, e o automóvel esporte não tinha capota. Sentiu uma pontada na têmpora. Devia ter lembrado de pegar um chapéu, mas todos seus pensamentos, naquela manhã, estavam concentrados na cena que tivera com o marido. Era um pesadelo que não esqueceria tão facilmente.

Passou pelos portões e seguiu a estrada estreita e sinuosa do penhasco. Fenny prendeu a respiração ao avistar a si­lhueta do caíque no mar. Parecia irreal, tão imponente, preto e belo, como uma pintura grega.

Suas mãos apertaram o volante.

— Vá com Deus, Lion — murmurou. — Eu o amei muito mais do que você pode imaginar.

Continuou a viagem, passando por imensas figueiras e oliveiras, e pelo caminhão que levava os pastores até as colinas áridas, onde pastavam os rebanhos de cabras. O ar estava puro como sempre, e borboletas voavam em torno das árvores e ouvia-se o canto das cigarras.

Fenny seguia pensando em Lion e na vida que levara com ele. Teria muita coisa boa para se lembrar, mas nunca poderia esquecer o que acontecera naquela manhã.

De longe, já avistava a capela toda branca que brilhava ao sol, dominando as pequenas casas distribuídas na encosta da colina, seus telhados muito juntos. Viu as mulheres tra­balhando agilmente com lã crua nas varandas da casa. Ha­via sombra e mistério acima das arcadas ovais feitas de pedras brancas e grades enfeitadas de pedrinhas coloridas.

Fenny estacionou o carro perto do pátio da capela e entrou. Muitas mulheres vestidas de negro estavam ajoelhadas, re­zando baixinho. Não era muito iluminado lá dentro, as janelas eram ovais e coloridas. Foi direto para onde estava o cande­labro aceso e depositou no prato de oferenda as riquíssimas pérolas que eram a prova de seu falso casamento com Líon. As pérolas que nunca realmente tinham lhe pertencido.

Ajoelhou-se e fechou os olhos. Rezou para ter forças para abandonar o homem que tanto amava e para ser capaz de resistir à falta de amor dele. Quando saiu da igreja, cami­nhou sob as árvores nas ruas estreitas, atraindo olhares curiosos. Todos podiam perceber que era uma estrangeira

e alguns deviam estar imaginando quem era. A Inglaterra parecia estar a milhares e milhares de quilómetros.

Fenny respirou fundo e viu algumas borboletas amarelas dançando no ar. Tinha esperado tão desesperadamente tor­nar-se uma moradora da ilha, com os mesmos gostos, mes­mos hábitos e a mesma língua, esquecendo-se totalmente do tempo em que vivera na Inglaterra, antes de tornar-se membro da família Mavrakis.

Mas isso não era para acontecer. Devia abandonar toda aquela beleza pagã e selvagem. Olhava para tudo dizendo adeus ao aroma forte de pão recém-assado, ao sol, às pessoas que nunca conheceria.

Dírigiu-se ao pontilhão sobre o mar e ficou observando os pesqueiros coloridos.

Depois, sentou-se à mesa de uma patisserie. Pediu suco de laranja ao garçom. O homem abriu um largo sorriso e, num inglês bem aceitável, contou que tinha trabalhado num restaurante grego em Londres, perto da torre de vidro da companhia telefônica,

— Mas senti saudade do meu pessoal — ele disse, ser­vindo o refresco a Fenny. — Há muito movimento e desgaste em Londres. Então, economizei e voltei para casa. A kyria não gostaria de provar uma rosquinha ou uma torta de massa folhada de creme? Minha esposa é ótima cozinheira de doces e bolos.

Era tão agradável ver um rosto amigo, que Fenny sen­tiu-se obrigada a concordar e provar uma rosquinha. Ficou conversando com o homem por quase uma hora. Quando se despediu, ele lhe pediu, solenemente, que mandasse lem­branças para o sr. Mavrakis e lhe dissesse que estava muito feliz por ele não ter ficado muito ferido.

Fenny não podia contar que não ia mais ver o marido. Com um sorriso que tremeu um pouquinho em seus lábios, prometeu transmitir o recado.

— É muito bom que o sr. Mavrakis tenha uma esposa bonita e simpática. — O grego curvou-se para ela. — Muitas felicidades, kyria.

Enquanto se afastava, Fenny teve a impressão de que o mar fazia um barulho estranho: parecia chorar.

Cerca de dez minutos mais tarde, já se dirigia para o castelo. O povoado começava a diminuir de tamanho com a distância. A vista era tão bonita, que Fenny deixou de olhar a estrada por um instante e virou a cabeça para trás. Foi naquele exato momento que um cão selvagem saiu do meio das árvores e correu latindo na frente do carro. Fenny tentou controlar o volante e pisou com força no freio. O carro derrapou, chegou à beira do precipício, deu um sola­vanco e, por milagre, voltou à estrada estreita, mas em sentido contrário. Descendo, em vez de subir.

O carro ganhou velocidade novamente e bateu no rochedo, pois Fenny não conseguia pará-lo. Alguma coisa tinha acon­tecido com o breque, que não funcionava. O automóvel pa­recia voar na direção de uma curva fechada. O sol batia em cheio em seu rosto e ela não enxergava mais nada. O carro continuou batendo no rochedo até parar de vez.

Finalmente, Fenny foi atirada para fora, caindo sobre uma moita de espinhos. Sentiu uma dor muito forte na cabeça e mergulhou na escuridão.

Cacos de vidro brilhavam ao sol e a gasolina escorria do motor. A buzina do carro disparada quebrava o silêncio da colina. Um cachorro farejou o óleo, e logo em seguida um garoto veio correndo pela pista, com os olhos cheios de medo. Procurou dentro do carro e logo depois viu a garota caída do lado de fora, junto à poça de gasolina. Rapidamente, puxou-a para longe do carro. Foi o que salvou a vida de Fenny. Quase no mesmo instante, o motor explodiu e o óleo incendiou.

O barulho fez Fenny despertar. Ficou deitada na estrada, com o vestido sujo e rasgado, sem conseguir se lembrar de nada. O cachorro pulava ao redor do garoto que lhe prestava os primeiros socorros, esperando que a fumaça e as chamas trouxessem ajuda do pessoal do povoado.

Fenny não dizia nada e também não sabia onde estava nem com quem. A única coisa que sabia era que alguém a tinha arrastado de perto do carro. Estava muito grata ao garoto por estar a seu lado, e não por salvá-la, pois desejaria ter morrido.

 

A luz iluminou as escuras feições masculinas ; ainda um pouca atordoada, Fenny viu as veias irregulares do pescoço moreno, onde a camisa estava aberta. Ainda não totalmente consciente, quase não reco­nhecia ninguém e a luz a cegava. Seus olhos examinaram aquela figura alta e magra e, quando se lembrou quem era aquele homem, sentiu um aperto no coração.

— Olá, boneca! — Zonar sorriu e segurou as mãos dela, levando-as delicadamente aos lábios. — Está me reconhe­cendo? Lembra quem sou eu?

Ela concordou com a cabeça, aliviada e confusa ao mesmo tempo: tinha achado que ele era uma outra pessoa.

— É muito bom tê-la de volta, aqui conosco — ele disse, carinhosamente, e continuou segurando suas mãos finas e bem cuidadas. — Está contente por estar de volta em casa, Fenella?

— Sinto-me como se tivesse ficado muito tempo longe daqui. — Examinou o quarto e começou a reconhecer o lugar. — O que aconteceu, Zonar?

— Você sofreu um acidente nas colinas, quando um cachorro correu na frente do carro. Um garoto do povoado tirou-a de perto do carro e levou-a para um lugar seguro, antes que explodisse. Ele é um jovem herói. Cuidou muito bem de você, mostrou-se decidido e forte, mas estava muito preocupado.

— Estou muito contente e... e muito grata a ele. Foi muita bondade. Se isso acontecesse na Inglaterra, duvido que alguém parasse para me socorrer, pois lá todos têm medo de se envolver.

— Não pense mais nisso, só vai se sentir pior. Agora tudo acabou e está sã e salva, e se recuperando.

— Do que estou me recuperando? — Seus olhos não se desviavam dos dele, procurando tudo que se escondia por trás daquelas palavras. — Há quanto tempo estou... estou ferida?

— Há muitos dias. E a maior parte deles você dormiu e esteve aos cuidados da enfermeira que a alimentava com caldo de galinha. Mas não pense mais nisso... vamos falar de outras coisas.

— Muitos... dias — repetiu. — Eu... não consigo me lem­brar. Devo ter ficado inconsciente. Fui ferida na cabeça? Zonar, por favor, me diga.

— Foi quando o carro bateu no rochedo. O corte está por baixo de seus cabelos; portanto, não haverá cicatrizes, o maior temor de toda mulher.

— Cicatrizes — ela murmurou. — Sim, eu tenho algumas.

— Não. — Ele balançou a cabeça, inclinando-se sobre ela e olhando intensamente em seus olhos. — Você, feliz­mente, não sofreu nenhum outro ferimento, minha querida.

"Minha querida"... Como essas duas palavras lhe traziam recordações amargas e doces: outras mãos, mais calejadas pelo trabalho, segurando as dela; lábios beijando os seus, fazendo todo seu corpo estremecer. Ah, aquele homem!

— Não me preocupo com ferimentos. — Não podia mais suportar a dúvida. Desesperada, perguntou: — Eu... eu perdi meu bebê, não perdi?

A veia do pescoço de Zonar pareceu saltar. Ele baixou os olhos.

— Eu... eu acho que sim, Fenella. Nós sabíamos que você tinha que ser avisada e o médico achou que eu devia di­zer-lhe... no lugar de Lion.

— Entendo — disse numa voz sumida. Estranho, não sentia vontade de chorar. Talvez já tivesse derramado todas as lágrimas. Naquele exato momento, seus olhos estavam secos, e seu corpo, vazio. Já não havia mais razão para viver: perdera o tão esperado filho de Lion. — Ele está assim tão zangado que... que não pôde vir me ver?

— Minha querida garota, não conseguimos localizá-lo! Ele partiu no Cirene e estamos tentando entrar em contato...

— Você procurou as antigas namoradas dele? Telegrafou para Nova York, onde minha prima está?

Zonar olhou-a fixamente e uma expressão de espanto apa­receu em seus olhos.

— Você deve estar brincando, não pode pensar uma coisa dessas. Lion nunca faria...

— Lion ama minha prima, e quando nós dois nos separamos houve uma discussão feia. Agora... agora ele tem alguma coisa mais para acrescentar à lista contra mim. Sou a esposa que jamais quis, a garota que o roubou dos braços da mulher amada, que o forçou a se casar, e, para completar, matei o filho dele. Fiz tudo que era possível para que me odiasse,

— Oh, Fenella, o que posso fazer ou dizer para consolá-la? — Zonar apertou suas mãos e oíhou-a, carinhosamente, como para dizer que era solidário com ela, e que percebia o quanto estava sofrendo. — Mas ninguém da família sus­peitava de alguma coisa, exceto a velha Kassandra, e foi ela quem medicou você, enquanto esperávamos a chegada do médico. Ela murmurava alguma coisa sobre esta ser a única oportunidade. Será que queria dizer que esta era a única chance de salvar seu casamento?

Fenella pensou no que Kassandra previra: que teria ape­nas um filho. E agora não havia mais a criança.

— Lion sabia a respeito do bebê? — Zonar perguntou. — Você chegou a contar a ele?

Ela negou com a cabeça e recostou-se no travesseiro, seu cabelo preso numa única trança caindo sobre a camisola. Estava muito magra e pálida. Parecia uma garota jovem e magoada e perdida... Agora, não havia mais nada para guardar do seu estranho casamento. Ele se fizera em pedaços e não havia meio de consertar, nem mesmo que os dois lutassem muito.

Se ao menos... Oh, Deus, se ao menos seu amor por Lion tivesse morrido junto com o bebê. Mas não: continuava lá, e tão forte como sempre, magoando seu coração. Era tudo que poderia levar embora com ela de Petaloudes.

— Talvez, se você tivesse lhe contado, Fenella, ele não fosse embora — disse Zonar, suas sobrancelhas negras se juntaram. — Acho que Lion teria ficado contentíssimo. Um filho é a única coisa que falta para completá-lo.

— Oh, sim — ela disse, o cinismo brilhando em seus olhos. — Ele só me manteve presa para que lhe desse um filho. Foi o acordo que fez comigo. Eu seria sua esposa até que lhe desse um filho. Então, tudo estaria acabado. Eu... eu não queria que soubesse que ia ter um filho dele, fruto de uma paixão fria e calculista. Eu ia fugir no dia do acidente. Isso deixa você chocado, cunhado? Eu ia embora, enquanto Lion estivesse fora, em sua viagem por alto-mar, e pretendia me esconder em algum lugar na Inglaterra, onde nunca pu­desse me encontrar. Já tinha tudo em mente, tudo planejado. Então, o destino interferiu sob a forma de um cachorro, metade selvagem, metade demônio, símbolo de Pã. Aqui nas ilhas gregas, qualquer um, depois de um certo tempo, passa a acre­ditar na força dos deuses pagãos. Você acredita neles, Zonar? Ou é um homem civilizado demais?

— Acima de tudo, sou um grego. Acredito que os deuses dão presentes e depois nos fazem pagar um preço bastante alto por todos eles.

— Eu roubei o meu — ela disse. — Por isso, os deuses de vocês me puniram. E foi uma punição muito cruel. Agora, não tenho mais nada, e isso dói tanto que nem consigo chorar...

— Fenella... — Levou as mãos ao rosto dela. — Você... você é uma garota encantadoramente emocional, que guarda tudo no fundo do coração. E Lion, apesar de tudo, mora no seu coração. Mas conseguirá arrancá-lo de lá, se tentar.

Fenny viu nos olhos de Zonar o que lhe estava pedindo. Oh, como seria fácil virar-se para ele e receber carinho, em vez de frieza...

— Nós fugiremos juntos — ele disse baixinho. — Você só precisa dizer uma palavra...

— Não! Não vou acrescentar mais isso aos outros crimes que cometi, Zonar. Não serei o motivo da inimizade entre você e Lion. Ele educou vocês, você e Demetre. Gosta de você, morreria em seu lugar se fosse preciso, lutou, trabalhou em pedreiras e navios para que pudessem ter uma vida melhor do que a que teve. Por favor, me solte. Sabe muito bem que Lion é o único homem da minha vida, o único que amei. Por favor, pare de me dizer essas bobagens todas...

— Quando você estiver mais forte, Fenella, quando mais nada puder machucá-la, então conversaremos novamente. Temos nossa vida para viver, e quero você por tudo que é. Você! Tão meiga e justa, e com essa pele tão fresca.

Virou as palmas das mãos dela e levou-as aos lábios, bei­jando-as... lá, no mesmo lugar onde Kassandra tinha olhado e visto aquelas sombras que acabaram por se realizar.

Fenny suspirou e sentiu-se sem forças para discutir com Zonar. Foi um alívio quando a enfermeira entrou no quarto, uniformizada e enérgica. Sem sorrir, dirigiu-se a Zonar.

— A senhora está fraca e precisa descansar. De manhã, já estará se sentindo bem melhor.

— Então, até amanhã. — Ele sorriu para Fenny, levan­tou-se e caminhou lentamente para a porta.

Quando Zonar saiu, a enfermeira alisou o travesseiro de Fenny e ofereceu-lhe um suco de laranja.

— É muito bom o irmão do marido da gente ser tão prestativo. Não é todo mundo que tem essa sorte. Um jovem simpático... Os olhos dele se encheram de lágrimas, quando lhe contaram de seu aborto. Os homens gregos são muito sensíveis em relação a essas coisas. Talvez eles fiquem mais tristes do que a própria mulher.

Fenny olhou melancolicamente para a enfermeira.

— Poderei ter outro filho?

— Deve perguntar ao médico, kyria. — A mulher lhe deu as costas, parecendo um tanto evasiva, e se pôs a ar­rumar as coisas no criado-mudo.

— Por favor, você não pode me dizer? Tenho certeza de que sabe. Prometo não desmaiar de chorar.

— Por quê? — A enfermeira voltou-se novamente para olhar para Fenny. — Você é uma dessas mulheres que não se importam realmente em ter família?

— Eu... eu me importo muito, mas também não gosto de ficar sem saber algo assim... assim tão importante para mim. Você sabe de tudo, tenho certeza de que sabe.

— Essas coisas nunca são certas, kyria. Em poucos anos...

— Anos? — Fenny respirou fundo. — Tenho medo de pensar no futuro.

— Os jovens sempre sentem medo. — Um sorriso apa­receu no rosto da mulher. — Vou lhe dizer uma coisa, você teria muitas complicações durante o parto. Ter esse filho iria lhe custar muito.

— Minha vida? —Fenny sentiu como se tivesse sido esfaqueada no coração. Oh, Deus: ela teria morrido e o bebê seria mandado para um orfanato. — É isso que você quer dizer, enfermeira? Ou entendi mal?

— Eu não devia estar lhe contando isso, mas, nesses casos, todas nós precisamos saber. Sim, você poderia ter perdido a vida com o nascimento da criança. Era um garoto, kyria.

Fenny fechou os olhos. Sentia uma dor profunda... Ia dar à luz um filho, um menino que Lion tanto queria e que agora nunca iria conhecer.

Ele só saberia disso tudo quando voltasse da viagem. Saíra no caíque sem nem mesmo contar aos irmãos onde poderia ser encontrado, ern caso de emergência. Até mesmo os negócios, pelo menos uma vez, pareceram menos impor­tantes para ele do que aquela necessidade repentina de afastar-se de todos.

De todos? Fenny tinha, cinicamente, insinuado a Zonar que ele havia ido para Nova York, encontrar-se com Penela. Mas não seria tão absurdo, se Lion estivesse lá. Se ele quisesse Penela com todas as forças de seu ser, não permi­tiria que uma esposa indesejável ficasse em seu caminho. E Fenny sabia que a prima sempre achara muito excitante ter um homem casado apaixonado por ela.

— Você não deve se afligir muito; senão não ficará boa. — Fenny sentiu a mão fria da enfermeira na testa. — Será bem melhor para o seu marido, quando voltar para casa, encontrá-la recuperada, e não uma esposa pálida e doente. As coisas tristes que acontecem com as mulheres devem ser enfrentadas o mais corajosamente possível. O bebê mor­reu, mas ele tem você...

— Eu? — Fenny deu uma risada. — Ele nunca me perdoará, quando descobrir o que aconteceu. Vai me culpar por tudo.

— Naturalmente que ficará desapontado, kyria, mas en­tenderá que não foi por culpa sua que aconteceu o acidente. Não somos culpados por coisas que acontecem e ficamos mar­cadas. Cada prazer tem seu preço, e cada dor sua recompensa.

— Eu adoraria poder acreditar em você, enfermeira, mas sinto que meu coração está vazio. Minha dor é muito forte e não há nenhum remédio para aliviá-la. Dói tanto que acho que o melhor para mim seria me juntar ao meu bebê.

— Você deve tentar não ser mórbida, kyria. Se fosse para morrer com a criança, você teria morrido. Se não morreu, é porque ainda não chegou a sua vez.

— Você acredita no destino, pelo que pude notar. Foi muita maldade do destino tirar de mim o único filho que poderia ter. E, não satisfeito, fez questão de deixar claro que eu mor­reria, se tivesse esse filho tão esperado. Ele nasceu em mim, vindo do amor... do amor pelo homem que o deu para mim.

— Tente dormir — a enfermeira murmurou. — Amanhã, tudo vai lhe parecer mais claro. E, quando se sentir mais forte, perceberá que nunca desejou morrer. Boa noite, kyria.

— Boa noite. Obrigada por ter sido tão boa.

A luz do abajur foi apagada e, um momento depois, a porta do quarto foi fechada, silenciosamente, atrás da figura uniformizada. Só um candelabro iluminava o quarto, apenas o tique-taque do relógio quebrava o silêncio, só o que a mantinha viva era a recordação amarga de ter ficado nos braços de Lion e chegado a conhecer o prazer de se sentir possuída pelo homem que amava.

Um prazer que tinha roubado de outra mulher. E ali, na­quela ilha grega pagã, os deuses a puniram por desafiá-los.

Dormiu, mas teve um sono agitado. Sonhou que estava na beira do mar, o vento soprando forte, vindo do alto do rochedo. Todas as luzes do castelo estavam apagadas. Estava sozinha, deitada na cama, e, de repente, ouviu um estrondo e viu o castelo em chamas. E não podia se defender. Então, acordou assustada e começou a pensar em sua vida ali.

Uma casa onde o amor não era bem acolhido. Tinha re­jeitado o amor da jovem esposa de Zonar e, agora, o filho de Lion.

Foi só quando Fenny já estava bem mais forte e podia sentar-se ao sol na moussandra, que lhe disseram que ha­viam erguido uma lápide em memória do bebê, na capela das colinas.

— Gostaria de ir visitá-lo — pediu a Adelina.

No primeiro dia em que recebeu permissão para sair de casa, Zonar e Adelina a levaram de carro até a capela. Ca­minhou com eles por entre os ciprestes, até o lugar silencioso onde estava a pequena lápide de bronze. Havia algumas pa­lavras gregas e o nome: Heraklion Mavrakis Júnior.

Ainda incapaz de chorar, Fenny ajoelhou-se junto do pe­queno túmulo e passou os dedos pela inscrição.

— O que significam essas palavras?

— Ele colheu a flor da vida — Zonar respondeu, incli­nando-se para ajudá-la a se levantar.

— Mas ele nunca chegou a colher, pobre criancinha. Nun­ca houve uma chance para ele. Era apenas um feto, um pequeno embrião, que foi morto por um acidente de carro. Eu gostaria de gritar o nome dele, arrancar os cabelos e amaldiçoar os deuses de sua ilha.

— Minha querida — disse Adelina —, pense no lado bom que a vida tem para oferecer, seja mais otimista. Você po­deria estar embaixo da terra, sem vida. Levante as mãos e sinta o sol penetrando em sua pele, e veja como é atraente. Não acha que ela está encantadora, Zonar?

— Sim — ele disse, mordendo o lábio, como para reprimir o que sentia pela esposa do irmão. — Posso imaginar como se sente e entendo, Fenella. Mas, acredite, a dor e o ódio acabam com o tempo. É exatamente como todos dizem: o tempo é o melhor remédio, quando se quer esquecer alguma coisa. Você verá que todo sentimento ruim que tiver dentro do coração vai se extinguir gradualmente, e a vida começará a ter um novo sentido.

— Claro que sim, Zonar tem toda razão. Não há mal que sempre dure, como não há bem que perdure. — Adelina passou o braço pelo de Fenny. — Você precisa aprender a se divertir, minha querida. Zonar vai nos levar a Atenas qualquer dia desses. Conosco, você se sentirá mais feliz, vai despertar para a vida. Você irá, não é mesmo, meu bem? Lion está ausente. Portanto, não precisa de permissão. Ele devia ter nos avisado onde poderíamos encontrá-lo, mas, em vez disso, partiu, fu­gindo como um leão ferido. Santa Maria! Ele é o culpado de tudo o que aconteceu e de todos os nossos sofrimentos.

— Minha querida cunhada — Zonar sorriu, zombeteiro —, quando foi que você sofreu? Demetre é a mãe da paciência com você. Ele faz de tudo para satisfazer os seus menores desejos. É muito diferente de todos nós. Você devia dar graças aos céus.

— Eu me certifiquei, Zonar, de que o homem com quem ia me casar não fosse cruel. Sabe que meu pai queria que eu me casasse com Lion? Mas eu o fiz entender que preferia entrar na jaula de um leão de verdade. Tenho certeza de que a pobre Fenella já percebeu o erro que cometeu.

Fenny deu um sorriso amarelo. Tinha que aprender a esconder o sentimento ferido, e, quanto mais rápido, melhor.

Afastaram-se da pequena lápide de bronze e ela sentiu como se estivesse deixando uma parte de seu coração para trás, enterrada no gramado. Zonar tomou sua mão e colo­cou-a no braço. Ele entendia seu sofrimento, como Adelina nunca poderia entender, porque, como Fenny, ele também se casara por amor.

Caminharam através dos jardins da capela, onde antigos túmulos de pedras ficavam ao sol, com suas inscrições. Fen­ny olhava-os, como se ela também estivesse num deles.

Quando se dirigiram para casa, codornas voavam sobre os campos e colinas, e o ar tinha o aroma da essência de pinho e flores. Passaram pelo lugar onde Fenny sofrera o acidente. Ela viu as marcas negras onde a grama tinha sido queimada pela explosão e algumas manchas de óleo no paredão do rochedo.

— Espero que o garoto pastor de cabras tenha sido re­compensado — ela disse. — Ele foi muito corajoso, tentando me salvar.

— Foi o cachorro dele que causou o acidente, querida — falou Adelina. — Ele admitiu que a culpa era dele, quando os homens do povoado levaram você para casa numa carroça usada pelos fazendeiros. Pensando bem, Zonar, esta é uma ilha bem primitiva. Devia ter um hospital. É uma necessidade.

— O que você fez pelo garoto? — Fenny perguntou ao cu­nhado. — Sinto-me em falta com ele, sabe? Poderia ter se ferido. Foi muito corajoso, agiu como um verdadeiro homem.

— Falei com o pai do garoto e deixei claro que Lion vai recompensá-lo, provavelmente com uma boa quantia em di­nheiro ou um reprodutor de sua própria criação. Aqui os ani­mais são mais preciosos para o povo. Muito mais do que di­nheiro no banco, é o que eles pensam. Têm, como você pode ver, uma forma de vida que Lion tem medo de estragar, e é exatamente por isso que vai modernizando aos poucos a vida do pessoal da vila. Já conseguiu isso em outros lugares. Antes do que você possa imaginar, os turistas já estarão lá, nos pequenos hotéis que estão sendo construídos nas praias, aca­bando com a beleza e o povo. Mas um hospital é uma neces­sidade, e Lion já falou sobre isto, acredite ou não, Adelina.

— Acho que ele só se preocupa com a própria imagem — disse a cunhada. — O rei da própria selva particular. Perdoe, Zonar, se acho seu irmão cruel e egoísta, mas ele nunca fez nada para me fazer pensar o contrário.

— A vida para ele nunca foi fácil, e sim cruel. — Zonar deu de ombros. — Nosso começo de vida foi muito duro, isso nos marcou muito. As privações e lutas endurecem os músculos e as emoções. Ele é compreensivo, e eu tenho que admitir isto.

— "Compreensão" é uma palavra muito suave. — Adelina olhou para Fenny. — Eu não gostaria de ter um marido que fosse viajar de caíque e não dissesse nenhuma palavra de satisfação, para onde ia e com quem ia. E isto não é próprio dele. Geralmente, tem muitos negócios para resolver e não se importa com mais nada. O que terá acontecido com o homem?

— Acho que queria ficar longe de mim — Fenny disse baixinho. — Tivemos uma briga, antes de ele partir. Eu... não estou aguardando com prazer a volta de Lion...

— Então, iremos passar alguns dias em Atenas. — Ade­lina sorriu. — Você nos leva, Zonar?

— Com todo o prazer. Acho que umas férias farão muito bem a Fenella. Ela vai se divertir muito em Atenas: as lojas, as paisagens, a música. Deixem tudo por minha conta, providenciarei tudo, minhas senhoras. Posso garantir que nos divertiremos a valer. Serão dias que acredito que, nem depois de velhas, vocês irão esquecer.

— Vou lhe dizer uma coisa, Zonar. — Adelina acariciou o rosto dele com a ponta dos dedos. — Você não é apenas um belo homem, mas também muito humano. Fenella devia ter casado com você, querido garoto.

— Eu esperava que ela fosse a madrinha do casamento do meu irmão — ele respondeu. — E tinha feito meus planos, consequentemente.

Quando ele parou o carro no pátio do castelo, deu um olhar cínico para Fenella.

— Posso me atrever a fazer mais planos? Ou você ainda vai me surpreender?

— Eu... eu apenas não quero mais me envolver. Estou com o coração oco. Só desejo aprender a enfrentar a vida com menos seriedade. Quero aprender com vocês dois como manter minha cabeça nas nuvens e meu coração sob con­trole. Vamos começar com as lições desde hoje, por favor. Não quero falar de nada que não seja dos bons momentos que passaremos juntos.

— Seja minha aluna, querida, e aprenderá tão bem as lições que conseguirá nota dez. — Adelina riu. — A vida pode ser um prazer, se você não levá-la muito a sério.

Mas, enquanto Adelina falava, Fenny estava consciente de que Zonar a observava, mas se recusou a encará-lo. Não ia permitir que aquele homem charmoso dividisse com ela sua vida interrompida... não, ainda.

Entraram, e Adelina pediu que o chá fosse servido no terraço que dava para o pomar, onde alguns dos trabalha­dores estavam cantando, enquanto colhiam as frutas. Uma cantiga grega, estranha e triste. Fenny recostou-se na ca­deira de palhinha e ficou observando o cunhado. Zonar lhe dava tudo que Lion nunca lhe dera: carinho, compreensão, amor, amizade. Gostava dela pelo que era, e não pelo que desejava que fosse.

Mas, de agora em diante, não seria bondosa e tão sensível à dor. Agora, ia procurar pelos prazeres sensuais que a vida podia oferecer. Recebendo mais do que dando, da mes­ma forma que Penela e Adelina faziam.

Um delicioso chá forte foi servido, acompanhado de pão de mel e biscoitinhos. Sentaram-se, conversando animadamente por mais de uma hora, até que o sol começou a baixar no mar.

Adelina saiu para encontrar o marido. Fenny e Zonar ficaram sozinhos.

— Foi um lindo pôr-do-sol, hein? — ele murmurou. — Seus olhos estavam brilhando, enquanto você o observava.

— Nunca deixarei de ficar encantada com a beleza da Grécia. Todas as coisas aqui têm um pouco de paganismo, não é?

— Você pretende ficar na Grécia?

A pergunta inesperada fez com que Fenny prendesse a respiração por alguns instantes. Então, ele tinha adivinhado que ela estava planejando ir embora, depois da viagem a Atenas. Ele sabia que tudo estava acabado entre ela e o irmão, que não havia possibilidade de reconciliação.

— Devo ir embora, Zonar. Você entende, não é mesmo?

— Claro que sim. É preciso haver amor num casamento, ou não há nada. Apesar do que Adelina fala do casamento, há alguma coisa muito forte entre ela e Demetre. Eles com­binam um com o outro.

— É assim que deve ser: combinar um com o outro. — O vento jogou uma mecha de cabelo em seus olhos. Tudo estava frio e escuro agora que o sol tinha desaparecido.

— Acho que você aprendeu a amar a Grécia, e a outras ilhas. Está com medo de Lion? De viver e de fugir dele? Quanto tempo vai fugir, Fenella, e para onde?

— Não posso ficar com um homem que não me quer. Nós não combinamos. Descobri que invejo Adelina porque tem quem combina com ela, como você mesmo disse.

— Chamam isso de necessidade — Zonar falou. — Todos nós precisamos de alguém. Gostaria de lhe dar tempo para precisar de mim, e acredito que você conseguiria. Não nasceu para ficar sozinha; certamente não, depois de ter vivido com um homem e engravidado.

— Não posso mais ter filhos, Zonar. Tomei-me uma mu­lher quase inútil.

— Nunca diga isso! Você é o que é, não apenas um corpo para procriar um filho. Deixe que eu faça de você a mãe do meu pequeno Alekos.

Zonar parou de falar, quando alguém chegou ao terraço pela porta de vidro uma babá impecavelmente uniformizada.

— Espero que não se importe por eu vir lembrar-lhe, senhor, que está na hora de levar Alekos para brincar antes de eu dar banho nele e servir o jantar.

A voz era bastante educada, mas Fenny pôde perceber que a jovem criada tinha ouvido o que Zonar dissera a res­peito do filho. Sentiu um nó na garganta, porque ainda era a esposa de Lion, e a última coisa que queria era abandonar Petaloudes com a família pensando que Zonar tinha des­truído o casamento do irmão.

— Venha comigo — ele disse para Fenny. — O garoto ficará feliz de brincar conosco, e eu gostaria que você o conhecesse melhor.

Quase disse que sim, mas sentiu novamente o olhar des­confiado que a babá lhe dirigia e mudou de idéia.

— Estou um pouco cansada. Vou ficar aqui sentada um pouco mais e desfrutar a minha solidão.

— Se é assim que você quer... — Inclinou-se para ela e, na frente daquela garota, beijou de leve seu rosto. — Sonhe com Atenas e com os momentos agradáveis que passaremos juntos. Até mais tarde,

Saiu com a babá do filho, e Fenny ficou sozinha com o pen­samento confuso de que Zonar e ela estavam se metendo, quase inevitavelmente, numa intimidade perigosa. Os dois estavam sozinhos... tinham ambas perdido alguém que significava muito. Dos jardins cheios de sombras vinha um aroma agradável de uvas e o canto das cigarras. Estava tudo muito calmo, em contraste com seus sentimentos. Foi tocada pela beleza da noite, mas de forma diferente, como se nunca mais fosse se emocionar com coisa alguma. Bem distante, no mar, di­visava as lanternas dos barcos pesqueiros, as luzes eram para atrair os peixes.

Havia beleza em viver, mas havia crueldade também e jurou a si mesma nunca mais permitir que seu coração a levasse a sentir aquele êxtase e dor.

Levantou-se e saiu do terraço, dirigindo-se para seu apar­tamento na torre. Quando chegou ao corredor, encontrou Kassandra, rodando no escuro. A mulher cumprimentou-a, baixinho, depois, acompanhou-a à sala da suíte.

— Está parecendo bem melhor — disse. — Mas tenho estado triste por você, pois ouvi dizer que chamou por seu marido e ele não veio.

— Nunca mais vou chamá-lo novamente, Kassandra, e não pretendo ficar aqui. — Fenny encontrou os olhos da velha num espelho da parede. — Isso tinha que acontecer, e você sabia. Você viu na minha mão, na noite em que cheguei aqui. Então, eu era uma estranha na Grécia e não acreditava em tais coisas, mas nunca mais serei cética. Aprendi como é perigoso desafiar os deuses.

— A kyria vai permitir que eu leia sua mão outra vez?

— Não! — Fenny escondeu as mãos atrás do corpo. — Já sei o futuro por mim mesma e eu... eu simplesmente não suportaria ter certeza. Esqueça isso. Deixe que eu aprenda a esquecer.

— Como a kyria quiser. — Kassandra olhou firmemente para Fenny, de um jeito estranho. — Perigo, amor, fidelidade, esses são os fogos do espírito, você sabe. Eles nos erguem e nos destroem, e devemos ter coragem para enfrentá-los.

— Acho que minha coragem desapareceu. Não posso su­portar mais...

— Então vai embora, kyria?

— Vou. Logo.

— Com o irmão do senhor?

— Sim.

— Então, Deus que os ajude!

Kassandra virou-se e saiu do quarto, fechando a porta com um barulho que mexeu com os nervos de Fenny. Oh, Deus, será que pensavam que era feita de pedra para suportar tudo aquilo? Ela não era grega. Não estava acostumada com o tipo de resistência deles, porque sua idéia de casamento era um ombro muito forte, protetor e firme para achar força. Não tinha nada disso, e não podia encarar o futuro assim.

Escondeu o rosto nas almofadas do divã, apertou-as, até que sentiu os dedos doerem. Não conseguiria encarar Lion e queria ir embora do castelo antes que ele voltasse. Já pagara bem caro por se casar com ele no lugar da prima.

Combinaram ir para o continente e Zonar reservou quar­tos para eles no Hotel Achilles, no centro de Atenas, com vista para a Acrópole.

Então, veio a mudança de planos para Adelina, que re­cebeu a notícia de que o pai não estava muito bem e desejava vê-la. Como era a única filha, Adelina decidiu ir imediata­mente, arrumou as malas e foi na lancha que tinha sido enviada para buscá-la, acenando dramaticamente para o marido, que ficou na praia, com o olhar meio perdido.

— Pobre Lina — ele disse, balançando a cabeça. — Estava morrendo de vontade de fazer compras. — Demetre olhou para o irmão. — Você vai adiar o passeio, não vai? Fenella não terá acompanhante. Então, por que não esperam a volta da minha Lina? Ela não vai demorar muito, será uma visita curta. Disse o nome de Fenny muito cerimoniosamente, ainda obstinado em não aceitá-la. Talvez porque seu irmão gêmeo, sem dúvida alguma, gostava dela.

— Não, não há necessidade de adiar a viagem, porque Adelina poderá se juntar a nós, assim que voltar. — Zonar olhou diretamente para Fenny, — Você gostaria muito de conhecer Atenas, não é verdade?

— Muito — falou, como se o desafiasse. — A não ser que ache que devemos esperá-la para viajar. Depende de você!

— Não vejo nenhuma razão real para esperar. Você pre­cisa de umas férias para se recuperar do acidente.

— Acho que você devia adiar isso — o irmão insistiu. — Seja razoável, Zonar, Fenella não é sua esposa! Ela pertence a Lion!

Agora, ele dizia aquilo. Mas sabía que nunca tinha per­tencido a Líon no bom sentido da palavra. Demetre foi o primeiro a entender isso, quando a chamou de intrusa.

— Zonar está certo — disse, olhando para o outro cu­nhado. — Preciso urgentemente fugir desta ilha e das re­cordações. Quero ir para Atenas mais do que tudo no mundo. e poderei ir sozinha, se você achar que a família ficará ofendida se eu for com Zonar.

Demetre franziu a testa.

— Lion tem um bom nome e deve ser preservado. Não é direito a esposa dele sair com outro homem. Você não acha que já atrapalhou muito a vida de Lion?

— Oh, sim, estou bem consciente do que fiz com ele, Demetre, mas, o que os olhos não vêem o coração não sente. Vou para Atenas sozinha ou acompanhada, mas vou.

— Não, não tem nada de você ir sozinha, Fenella — Zonar interrompeu. — Nós dois somos bastante adultos, e para o diabo com a pessoal desta casa e com o que poderão pensar. Iremos amanhã, como tinha sido combinado. E tem mais: você não precisa ficar dando satisfações a ninguém.

— Lion não vai gostar nada disso — Demetre advertiu. — Sabe que temperamento ele tem, Zonar, quando alguma coisa o deixa zangado. Como esposa dele, aqui é o lugar de Fenella, e ela precisa estar em casa, para explicar o caso do acidente.

— Verdade, mano? Por acaso ele estava aqui, quando ela se atormentou por ter perdido o filho dele? Estava ao lado dela para lhe oferecer conforto e carinho? Fui eu que fiz tudo, e agora serei eu quem vai levá-la onde as luzes são claras e onde há música. Será assunto meu fazê-la sentir-se feliz no­vamente, e estou pouco me importando com o que você ou qualquer outra pessoa possam pensar. Ela é uma mulher en­cantadora, que merece ser feliz, e farei tudo para ajudá-la.

Zonar estava vermelho de raiva e não conseguia se controlar.

— Quando Lion chegar, ele que fique bravo comigo, que me ofenda, que me bata, que faça o que quiser. Mas não com a garota que o ama tanto. Olhe para ela, Demetre! É apenas uma garota fraca e vulnerável como a sua Adelina, e a única coisa que quer é ser protegida. Para o inferno com o bom nome de Lion! Para o inferno com ele! Vamos supor que esteja com aquela loura artificial e exibicionista... Isso prova que prefere qualquer mulher à esposa.

— Por favor! — Fenny segurou o braço dele, sentindo os nervos à flor da pele, — Por favor, não discuta com Demetre por minha causa. Ele está preocupado com Adelina, e, além disso, não me aceita e não gosta de mim. Pare com isso! Você é um bom rapaz, e não deve dizer coisas de que mais tarde poderá se arrepender. Há coisas que nunca devem ser ditas. Portanto, não fale tanto assim e não mande ninguém para o inferno. O inferno não é um lugar agradável para estar, eu sei!

Zonar baixou os olhos castanhos para Fenny. Depois, os músculos de seu rosto relaxaram e um sorriso curto surgiu em seus lábios.

— Por que nós estamos nos preocupando com os outros?

— Porque não somos completamente egoístas.

— Mas ainda vamos para Atenas... juntos?

— Sim — ela falou, com uma ponta de fatalismo. — Vou deixar acontecer. Meu rosto estará exposto, Zonar, e não coberto por um véu.

— Vocês dois... — Demetre começou — vocês vão fazer a própria infelicidade e a de outros também. Não entendem isso?

— Eu me recuso a pensar em qualquer coisa, além do dia de amanhã. Você não entende, mano, porque a paixão não é a sua cruz. Você tem o que lhe serve, mas Fenella e eu precisamos ir à procura da nossa estrela.

Enquanto voltavam para o castelo, Fenny olhou para a imponente casa branca, com seus níveis de telhados e sua torre como um minarete turco. Lá em cima, naquela torre, tinha sido uma prisioneira de seu amor por Lion. A escrava dele, uma barganha que agora estava acabada. Se alguém faz algo para ser magoado, parece não haver nenhuma forma de evitar o sofrimento.

Quando entraram no castelo, o céu sobre eles tinha tons escuros e selvagens e a ressaca do mar atirava areia no calçadão de pedra.

Voaram para Atenas no helicóptero e se hospedaram no Hotel Achilles, separando-se na porta dos quartos com o sorriso conspirador de duas pessoas no limiar de uma des­coberta. Fenny suspeitava de que nenhum deles estava cons­ciente do que aquilo poderia lhes causar, mas, por hora, estavam felizes. Como duas crianças que tivessem escapado das garras do cruel guardião.

Nos dias seguintes, dias encantadores, visitaram quase toda Atenas e Fenny conheceu os lugares que apenas um verdadeiro grego podia conhecer tão bem. Zonar deixou de lado a parte turística e levou-a a pequenas lojas fascinantes no velho bairro turco, com seus trabalhos feitos em cobre, tapeçarias, sapatarias e fábricas de seda. Negociaram um corte de seda com um turco velho. No fim, ele mostrou os dentes num sorriso e falou em turco com Zonar. Minutos depois, Fenny estava feliz com sua bonita seda.

— O que foi que ele disse? — perguntou, quando saíram da loja. Zonar olhou-a e riu.

— Ele disse que a seda combina com o seu cabelo e que daria um belo traje de dormir para uma houri. Ele viu a aliança no seu dedo e me tomou por seu marido.

Fenny olhou para a mão e encheu-se de surpresa porque, em nenhum momento, lhe passara pela cabeça tirar a alian­ça. Agora estava na hora... mas não o fez. Sabia, no fundo do coração, que só tiraria a aliança de Lion quando sua memória e seu corpo não se lembrassem mais dele.

Caminharam sob o sol da tarde e subiram ao ponto mais alto da cidade, onde ficaram à sombra das colunas do templo dedicado à deusa-virgem, Atena.

Fenny percebeu como as turistas olhavam para Zonar. Não havia dúvida de que os gregos exerciam um fascínio selvagem sobre elas. Sorriu para ele e deixou que a ajudasse a descer os degraus, até onde uma velha vendia nozes, pistache e passas.

Os olhos de Zonar passearam sobre ela, enquanto cami­nhavam, comendo nozes. Fenny usava um elegante vestido verde-mata e parecia flutuar ao sol,

— O sol grego se perde em seu cabelo — Zonar disse. — Agora, sua pele é um mel suave, e as tristezas parecem ter desaparecido de seus olhos. Gostaria de poder gritar para o mundo inteiro que você é minha. As pessoas olham para nós e pensam isso. Mas é verdade, Fenella?

— Eu não... não sei. Já não é suficiente o que estamos vivendo agora?

— Você quer que seja suficiente... por enquanto?

— Por favor, Zonar. Esses dias despreocupados com você têm me ajudado muito. Estou muito grata.

— Gratidão? — Seu sorriso era cínico. — Nunca pensei que um dia eu chegasse a ouvir essa palavra prosaica! Se não for cuidadosa, pequena, conseguirá fazer de mim um bom rapaz.

— Você já é um bom rapaz.

— Sim, acho que devo ser. Esta é a primeira vez que levo uma garota para umas férias platônicas.

— Mas você está gostando das férias, não está? Deve ser uma coisa diferente para você também.

Ele caiu na risada.

— O que é, Fenny? Tem vergonha de estar comigo?

— Não. Não, realmente. — Ao dizer isso, lembrou-se de como fora tímida e como ficara envergonhada com Lion. Um simples olhar tinha sido suficiente para fazê-la ficar vermelha dos pés à cabeça. — Sinto-me bem com você, Zo­nar, no melhor sentido da palavra. Você é a pessoa em quem mais confio, o melhor homem que já encontrei. Não está com saudade do seu filhinho?

— Um pouco. É um amor de criança, não acha? Tem os mesmos olhos da mãe. Ela era uma criatura encantadora, sabe? Além disso, muito boa para mim. Eu... eu muitas vezes lhe dei motivos para não confiar em mim. Ao contrário de Lion e Demetre, eu nasci aventureiro. Meus dois irmãos são o que você pode chamar de homens de uma mulher só. Fenny baixou os olhos. Pensou em Penela e pediu a Deus para que a prima merecesse o amor que Lion lhe dedicava.

— Hoje à noite, iremos dançar — Zonar anunciou. — Fiquei sabendo que todas as sextas-feiras há bailes no salão do hotel. Bailes à fantasia. Esta tarde, vamos a alguma loja de aluguel para escolher nossas fantasias. Está entusiasmada?

— Oh, sim, claro, vamos nos divertir a valer. Nunca usei uma máscara... — Parou imediatamente, pois se lembrou do véu antigo que usara no casamento, escondendo o rosto de Lion.

— Não pense mais nisso! — Zonar acariciou as mãos dela. — Todos nós; uma vez na vida, fazemos uma loucura, e não podemos continuar sendo punidos. Não permitirei que isso aconteça com você! Ande, termine suas nozes, e vamos procurar nossas fantasias.

Naquela noite, o salão do hotel estava enfeitado com balões e lampiões e havia música tocada por uma orquestra grega.

A fantasia de Fenny era muito bonita, com um pequeno boné de abas, um bolero de veludo, uma blusa de seda com mangas compridas bordadas e saia rodada de veludo. Zonar usava uma calça preta justa, uma camisa de seda franzida e um gorro com pompom na ponta. Parecia uma mistura de pierrô e pirata.

De braço com ele, Fenny ria e sentia que tinha encontrado um pouco de esquecimento. Até que alguém pousou a mão nas costas de Zonar.

— Estou atrapalhando? — disse uma voz inconfundível. Fenny olhou fixamente para os olhos do homem, olhos dourados de leão faiscando através da abertura estreita da máscara negra.

— Permite? — perguntou Lion, tomando-a pela mão. Ela percebeu que Zonar ficou tenso, mas depois, sem uma palavra, deixou-a nos braços do irmão. Rapidamente, seus olhos encontraram os de Fenny e todo o riso desapareceu do rosto dos dois. Inclinou a cabeça, daquela forma irônica e cavalheiresca, e afastou-se.

Os braços fortes rodearam Fenny, que sentiu as pernas bambas.

— Eu... eu não consigo dançar — disse debilmente. — Por favor, leve-me para fora.

Ele concordou e guiou-a, sempre abraçando sua cintura. Lá fora, no terraço, ela se agarrou na pedra fria do parapeito e rezou para não desmaiar.

— Deixei você chocada? — ele perguntou, tirando a máscara.

— Como foi que conseguiu me achar? — Um pouco de sua firmeza começava a voltar, mas o coração traidor batia desesperadamente. Como ele era alto e como estava bonito, tão bronzeado.

— Fui informado de que você estava aqui com Zonar. Que tinha fugido com ele.

— Foi Demetre quem contou?

— Demetre é muito apegado ao gêmeo para ser desleal e negou saber o que estava acontecendo. Tive que perguntar a todos, arrancar informações, e acabei descobrindo que você tinha vindo para Atenas com meu irmão para se divertirem.

— Você falou com a babá de Alekos, não foi? Ou ela, voluntariamente, resolveu contar os detalhes escandalosos?

— São escandalosos? — Esticou o braço e tirou a máscara dourada do rosto de Fenny, como que para ver mais clara­mente se estava mentindo. — Zonar é seu amante?

— Amante? — repetiu, olhando-o cara a cara e não se sentindo mais uma mulher fraca e boba. — Tive apenas um amante na vida, Lion. Apenas um homem, que conheceu cada centímetro de meu corpo. Um homem que me fez um filho... um pequeno ser que eu queria desesperadamente, mas que seus deuses gregos tomaram de mim, justo no dia em que fui à capela para agradecer por sua arrogante cabeça não ter sido arrancada por uma bomba.

— A criança! — Lion agarrou-a, com selvageria. — Você podia ter morrido, e eu seria o culpado...

— Não. O carro saiu da estrada.

— Falei com o médico. Ele me contou tudo.

— Então, agora já sabe que não tenho mais nada para lhe dar. Nada que você possa querer. Seu filho está morto e eu ajudei a matá-lo, embora preferisse ter morrido no lugar dele. Sem dúvida, é o que está pensando.

— O que estou pensando é que tenho sido um cego, pa­lhaço e bruto com você.

— Comigo? — Levantou os olhos para ele e viu que estava bem diferente do homem cruel que ela esperava encontrar,

— Tenho apenas uma coisa para lhe dizer, Fenny, antes que você saia da minha vida. Eu a amava e não sabia. Quando percebi isso, você já não me queria mais, e foi por isso que fui para alto-mar no drene, como um garoto idiota.

— Você... você me amava? Mas sempre me desprezou, Lion. Você queria Penela, e eu achei que tinha ido à procura dela, que não aguentava mais ficar longe dela.

— Penela? — Ele parecia impaciente. — Minha querida, eu não podia mais pensar nela, depois de conhecer você. Era você que ocupava meus pensamentos, e algumas vezes até mesmo no meio de conferências de negócios. Seus cabelos dourados espalhados pelos ombros brancos, os grandes olhos suaves, as mãos como pássaros em meu corpo. As mãos de seda, que eu sentia por horas a fio... Santo Deus! Quis matar meu irmão, quando aquela garota me contou que você tinha deixado a ilha para ficar com ele. Você ama Zonar?

— Claro que eu o amo...

— Não! — Foi um gemido desesperado, e seus olhos pa­reciam sem vida quando pousaram em Fenny novamente.

— Zonar é o cunhado mais adorável e compreensivo, todas as mulheres gostariam de ter alguém como ele, assim tão bom e tão prestativo.

— Ah! — Agora, ele suspirava de alívio. — De qualquer forma, eu não podia acreditar que você fosse fugir e fazer esse tipo de jogo. Mas eu tinha que me certificar por mim mesmo...

— Por quê, Lion?

Ele tinha dito que a amava, e se fosse realmente verda­de... Oh, nem tinha coragem de acreditar!

— Você quer uma esposa que nunca vai poder lhe dar um filho?

— Eu quero você. Nunca conheci mulher alguma que fosse tão bondosa como você, Fenny. Tão meiga, valente e corajosa. Você tem tudo que um homem pode querer. Meu filho poderia ter matado você, está ouvindo? Queria você viva e apaixonada comigo no drene, mas você mesma disse que não queria ir. Nada nunca me magoou tanto como aqui­lo. Por Deus, nada! Fiquei louco e cheguei a perder a cabeça.

—Teria sido maravilhoso, viveríamos num paraíso, mas achei que você ia me mandar embora e tive medo de me arriscar... — Não conseguiu continuar. Começou a soluçar, ao lembrar-se da criança e pensar que poderiam ser felizes os três.

— Eu mereço ser açoitado por ter feito um trato daqueles com você. Ah, Fenny, pode me perdoar por ter sido tão bruto? Vou mudar, você vai ver.

— Sim, mas não muito. — Passou os braços pelo pescoço de Lion e, quando aquele corpo forte curvou-se sobre o seu, Fenny aconchegou-se mais e ofereceu-lhe os lábios.

Lion a beijou com um ardor selvagem, do jeito que ela queria. A música tocava no salão de baile, e Fenny desejou ardentemente que Zonar encontrasse uma garota bonita para dançar. Agora, era feliz. Amava e era amada, tinha um cunhado encantador e o que mais queria era que ele fosse feliz também.

 

                                                                                Violet Winspear  

 

                      

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