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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FILME PERFEITO / Jodi Picoult
O FILME PERFEITO / Jodi Picoult

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FILME PERFEITO

Primeira Parte

 

A primeira coisa que o jardineiro viu quando chegou ao pequeno cemitério atrás da igreja de St. Sebastian foi o corpo que alguém havia esquecido de enterrar.

Ela estava deitada sobre um túmulo, a cabeça perto da lápide, os braços cruzados sobre o estômago. Era quase tão pálida quanto as sete peças puídas de granito que a cercavam. O jardineiro respirou profundamente, largou sua toalha e benzeu-se. Deu um passo à frente e se inclinou para espiar o corpo, fazendo sombra.

Em algum ponto no céu ouviu-se uma gaivota grasnar, e os olhos da mulher se abriram, e o jardineiro virou-se e saiu correndo pelo portão de ferro que levava às ruas agitadas de Losângeles.

A mulher olhou para o céu. Não sabia onde estava, mas tudo permanecia em silêncio; ficou feliz por isso, pois sua cabeça latejava. Tentou se lembrar de como havia parado ali.

Sentando-se, tocou o túmulo e semicerrou os olhos para conseguir enxergar as letras que sua visão embaçada não conseguia decifrar. Ficou em pé e recostou-se na pedra para não cair. Inclinou-se e sentiu ânsia de vómito, levando as mãos ao estômago e controlando as lágrimas por causa da dor que sentia na cabeça.

- Uma igreja - ela disse, assustando-se com o volume da própria voz. - Isso é uma igreja.

Caminhou até o portão e analisou os carros e os ônibus que passavam. Havia dado três passos para longe da igreja quando percebeu que não sabia para onde ir. "Pense", ela exigiu de si mesma. Levou a mão à testa e sentiu seu sangue escorrendo.

- Jesus - ela disse. Sua mão tremia. Procurou por um lenço no bolso de sua jaqueta, uma jaqueta puída de couro que ela não se lembrava de ter comprado, mas encontrou apenas um protetor labial e 2,24 dólares trocados. Caminhou de volta ao cemitério e procurou atrás da lápide por uma carteira, uma mochila, uma pista.

- Fui assaltada - ela disse, secando a sobrancelha na manga. - Devo ter sido assaltada. - Correu para a porta da igreja e bateu, mas estava trancada. Foi até o portão novamente, pensando em se dirigir até a delegacia de polícia mais próxima e informar o que havia acontecido. Ela daria seu endereço e telefonaria...

Para quem telefonaria?

Avistou um ônibus no ponto da esquina. Não sabia onde estava. Não sabia onde ficava a delegacia mais próxima.

Nem sequer sabia seu nome.

Roendo a unha, ela deu um passo para trás, para dentro do cemitério, onde se sentia mais segura. Ajoelhou-se ao lado do túmulo onde acordara e apoiou a cabeça na lápide gelada. Talvez o padre voltasse logo, pensou. Talvez alguém se aproximasse oferecendo ajuda. Talvez apenas ficasse ali.

Sua cabeça começou a latejar, dores que ameaçavam dividi-la ao meio. Ela abaixou-se e deitou-se sobre o túmulo mais uma vez, abrigando-se na jaqueta para afastar o frio da terra.

Esperaria.

Abriu os olhos, esperando obter respostas, mas só viu as nuvens que cobriam o céu.

NÃO HAVIA TERRA SUFICIENTE NA CALIFÓRNIA.

Ele sentia, insistente como um martelar em sua garganta, a claustrofobia nascida do asfalto quente sob os pneus e as casas tão próximas umas das outras a ponto de dificultar a respiração. Por isso ele continuou dirigindo a leste para encontrar o mar, esperando que isso ocorresse antes do escurecer. Nunca tinha visto o mar. Só o conhecia por fotos e relatos feitos pela sua mãe e por seu pai.

Lembrou-se das histórias que seu pai contava, histórias nas quais ele não acreditara à época, de índios encarcerados nos anos 1800 e que morreram no dia seguinte porque não suportaram o confinamento.

Pensou nas estatísticas do Departamento de Assuntos Indígenas, que indicavam que 66% dos indígenas que deixavam as reservas retornavam, incapazes de viver nas cidades. É claro, ele não era completamente Sioux. Porém tampouco era totalmente branco.

O olfato foi mais rápido do que a visão. O vento carregava o sal das ondas. Ele estacionou a picape enferrujada de segunda mão na beira da estrada e desceu o monte inclinado. Não parou de correr até ver seus tênis submersos, até a água manchar sua calça jeans como lágrimas.

Uma gaivota grasnou.

William Cavalo Alado ficou ali, com os braços abertos, os olhos fixos no oceano Pacífico, porém vendo as planícies listradas e as montanhas de Dakota que não seriam seu lar.

NA RESERVA PINE RIDGE, EM DAKOTA DO SUL, a estrada 18 levava à cidade, e, se quisesse ir a outro lugar, passaria por paisagens naturais ou veículos há muito abandonados, uma vez que não existiam muitas outras vias. Mas ele havia chegado a Los Angeles três dias antes e ainda precisava se orientar.

Alugara uma pequena casa em um conjunto residencial em Reseda, que era próxima o bastante da Delegacia de Los Angeles para que não houvesse a necessidade de percorrer um longo trajeto para chegar ao trabalho, porém suficientemente distante para que ele tivesse a impressão de não estar preso ao serviço. Só teria de se apresentar no dia seguinte - a papelada necessária havia sido providenciada e enviada pelo correio - e ele planejara aproveitar esse tempo para conhecer Los Angeles.

Will bateu o punho no volante. Onde estava? Inclinou-se no banco da frente, procurando pelo mapa que havia largado minutos antes. Semicerrou os olhos para enxergar as pequenas estradas em vermelho, mas a luz de dentro da picape tinha sido o primeiro item do veículo a parar de funcionar, por isso ele estacionou rente à calçada, bem debaixo de um poste. Analisou o mapa sob a luz.

- Merda - ele disse. - Beverly Hills. Eu estava aqui uma hora atrás.

Pela primeira vez em décadas, desejou ter seu lado indígena mais forte.

Culpava seu sangue branco pela falta de senso de direção. Durante toda a sua vida, escutara a história do pai de seu avô, que havia encontrado o maldito búfalo apenas observando a mínima mudança do vento. E, quando a mulher que seu pai amava o deixara sem explicações, ele cavalgou por quilômetros usando apenas a intuição para encontrá-la. Em comparação com essas histórias, não seria muito difícil encontrar a Estrada de San Diego.

Certa vez, na infância, Will acompanhara sua avó à floresta para pegar raízes e folhas para o preparo de remédios. Ele pegava aquelas para as quais ela apontava, cidreira, acorus verde e alcaçuz selvagem. Ele ficou de costas por um instante e sua avó desaparecera. Durante algum tempo, Will caminhara em círculos, tentando se lembrar das lições de seu pai sobre pegadas deixadas em folhas secas, galhos quebrados, movimento do ar pesado. Passaram-se horas até sua avó encontrá-lo novamente, com frio e enrolado sob um carvalho. Sem dizer uma única palavra, ela o guiou pela mão para casa. Quando a casa de madeira surgiu diante deles, ela virou-se para o neto, segurou seu queixo e disse, suspirando: - Você... tão branco.

Will tinha apenas dez anos, mas foi quando percebeu que nunca seria como seus avós. Para eles, para todos que conviviam com o garoto, ele sempre seria um iyeska, um mestiço. Passara os 25 anos seguintes agindo ao máximo como um branco, acreditando que, se não pudesse ser como o povo de seu pai, seria como o de sua mãe. Dedicou-se aos estudos para poder frequentar uma faculdade. Falava apenas inglês, até mesmo na casa de seus avós, onde o idioma lakota era o principal. Concordava quando seus chefes brancos descreviam os sioux como alcoólatras preguiçosos e quando sentia as palavras lhe gelarem o sangue; usava sua indiferença o tempo todo.

Bem, agora era branco. Estava fora da reserva e planejava ficar na cidade e, para conseguir sair de Beverly Hills, faria o que todos os outros homens brancos fariam: pararia em um posto de gasolina para pedir informação.

Mudando de marcha, Will partiu com a picape e desceu a rua novamente. A opulência de Beverly Hills o surpreendia - os portões de ferro forjado e as fontes de mármore rosado, as luzes brilhando nas grandes janelas palacianas. Em uma das casas estava acontecendo uma festa. Will desacelerou para observar o balé silencioso de garçons e convidados e demorou um momento para perceber as luzes do carro de polícia atrás dele.

- Veja o que temos aqui, Joe - disse o policial. - Outro maldito latino.

- Escutem - Will disse, e o policial colocou a mão livre entre as omoplatas dele.

- Não responda para mim, Pedro - ele disse. - Nós estamos em sua cola há dez minutos. Que tipo de interesse tem em um bairro como este?

- Sou policial. - Will respondeu rispidamente.

O homem soltou seu pulso, e Will se afastou da picape e o encarou.

- Quero ver seu distintivo.

Will engoliu em seco e olhou nos olhos do policial:

- Ainda não o recebi. Tampouco recebi minha arma. Acabei de chegar; começo a trabalhar amanhã.

O policial semicerrou os olhos:

- Bem... se não vejo o distintivo, não vejo policial algum. - Ele fez um sinal positivo com a cabeça para seu parceiro, que começou a caminhar de volta para o veículo. - Suma daqui.

Will cerrou e descerrou os punhos enquanto observava o policial se afastar.

- Sou um de vocês - ele gritou, e, pelo grosso vidro do parabrisas do carro de polícia, pôde ver o policial rindo. Ao caminhar de volta para seu carro, ele olhou para as pessoas da festa, bebendo e rindo como se nada tivesse acontecido.

A lua escorregou para trás de uma nuvem como se estivesse com vergonha e nesse momento Will teve certeza de duas verdades: ele não gostava de Los Angeles e não era branco.

QUANDO ELA DESPERTOU, o sol havia se posto. Sentou-se e recostou-se na lápide que reconheceu. Em algum ponto a leste, a luz de um refletor cortava o céu, e ela pensou que talvez algum evento de premiação estivesse acontecendo naquela noite... eles eram extremamente comuns em Los Angeles.

Ficou em pé e começou a caminhar na direção do portão. A cada passo, dizia em voz alta um nome de mulher, na esperança de que um deles lhe fizesse retomar a memória.

- Alice - ela disse. - Barbara. Cicely. - Chegara ao Marta quando alcançou a rua - Sunset Boulevard, ela soube assim que a viu e notou que estava progredindo, já que não havia se lembrado anteriormente. Sentou-se na guia, diante da placa com o nome do padre da St. Sebastian e os horários para confissões e missas.

Sabia que não fazia parte da congregação - sabia que tampouco era católica -, mas sentia que já havia estado ali. Sentia que havia se escondido ali, na verdade, ou se abrigado. De que ela estaria fugindo?

Dando de ombros, afastou o pensamento e olhou ao longe. Do outro lado da rua, um quarteirão à frente, havia um outdoor do filme Taboo, que ela leu em voz alta, tentando descobrir se o assistira, uma vez que o nome lhe parecia tão familiar. O anúncio mostrava um homem meio escondido, mas até mesmo com os traços distorcidos era fácil perceber que o ator era Alex Rivers, o queridinho dos Estados Unidos. Ele atuara com sucesso em todos os tipos de produções, desde filmes de ação a histórias de Shakespeare, e ela havia lido em algum lugar que ele era mais conhecido do que o presidente. Ele sorria para ela.

"Em exibição nos cinemas de todo o país", ela leu, percebendo o clichê.

MAIS TARDE, QUANDO Will SE LEMBROU do ocorrido, percebeu que tinha sido tudo culpa da coruja. Se ele não houvesse brecado ao escutar o pio da coruja, não teria parado; se não tivesse parado, não teria tomado todas as decisões erradas.

Por sorte ele havia encontrado Sunset Boulevard e, apesar de saber que a Sunset Boulevard levava a uma estrada, não tinha certeza de que estava seguindo na direção certa. Passara por dois postos de gasolina fechados, e seu olho direito já estava quase totalmente fechado e ele só queria deitar-se e tentar esquecer o que o fizera mudar-se para a Califórnia.

Acabara de passar por um McDonalds quando escutou o grito, alto e forte, como o choro de uma criança. Will já havia escutado o pio de corujas antes, mas não desde que partira de Dakota do Sul. Seus avós, como muitas pessoas da reserva, acreditavam piamente nos presságios anunciados pelas aves. Como elas podiam voar, eram mais próximas do mundo espiritual do que o homem, por isso ignorar a mensagem de que uma ave podia significar não captar um aviso ou promessa de forças maiores do que o homem. Will, tentando manter sua rejeição à cultura sioux, deixara de dar importância a falcões, águias e corvos, mas não conseguia ignorar as corujas, que sua avó dizia trazerem sinais de morte.

- Talvez tenha sido o carro - ele disse em voz alta, e quase simultaneamente escutou o pio mais uma vez, um som que o assustou.

Brecou. Atrás dele, uma van desviou, e o motorista gritou um palavrão pela janela. Will parou diante de uma igreja católica e estacionou em uma área proibida.

Saiu da picape e pisou na calçada, olhando para o céu. - Certo - ele disse. - E agora?

A mulher que passou pelo portão ao lado da igreja estava vestida de branco, como um fantasma. Ela viu Will e começou a caminhar um pouco mais rápido, abrindo um sorriso. Surpreso, Will não desviou o olhar dela. Batia em seu ombro e tinha sangue seco na cabeça. Ela se aproximou, parou a centímetros de distância, olhando para o hematoma que ele tinha acima do olho. A mulher desconhecida esticou o braço e passou o dedo em sua pele. Ele nunca havia sentido aquilo: um toque mais sutil que uma respiração.

- Você também? - ela sussurrou, então rolou os olhos e começou a cair no chão.

Will a segurou e a sentou no banco do passageiro de sua picape. Quando ela começou a retomar a consciência, ele se afastou o quanto pôde, recostando-se na porta do lado do motorista, certo de que ela começaria a gritar quando percebesse que estava dentro do carro de um estranho. Mas seus olhos se abriram e ela sorriu com tanta facilidade que Will retribuiu o sorriso.

- Você está bem? - ele perguntou.

Ela engoliu em seco e passou a mão pelos cabelos, afastando-os de seu rosto.

- Acho que sim - respondeu ela. - Você está esperando há muito tempo?

Ela falava como se o conhecesse muito bem; Will sorriu e respondeu:

- Não. Eu estava passando por acaso. - Ele a observou por um momento e disse: - Se você estiver esperando por alguém, posso lhe fazer companhia até a pessoa chegar.

A mulher ficou tensa.

- Você não me conhece? - Will fez que não com a cabeça. - Ai, meu Deus. - Ela esfregou os olhos e repetiu: - Meu Deus. - Ela olhou para ele, chorando. - Então somos dois.

Will tentou imaginar onde havia se metido, sentado em sua picape com uma mulher maluca e tão drogada que não conseguia pensar com clareza. Ele sorriu brevemente, esperando que ela voltasse à realidade.

- Quer dizer que não sabe quem eu sou?

- Quero dizer que não sei quem eu sou - a mulher sussurrou. Will olhou atenciosamente para os olhos claros dela, para o corte em sua cabeça. "Amnésia", pensou.

- Não sabe seu nome? - Ele passou automaticamente a fazer o interrogatório que havia aprendido como policial em Dakota do Sul. - Você se lembra do que aconteceu? O que a levou à igreja?

A mulher desviou o olhar.

- Não me lembro de nada - ela disse. - Acho que devo procurar a polícia.

A maneira com que ela disse aquilo, como se tivesse cometido um crime grave, fez Will sorrir. Ele pensou em levá-la para o centro da cidade, para a Delegacia de Los Angeles. Apesar de ainda não fazer parte do quadro de funcionários, poderia mexer uns pauzinhos e checar os registros de ocorrência, para saber se havia alguém procurando por ela. Ele se endireitou no banco, fazendo uma careta pela dor que sentiu no olho. Lembrou-se do policial louro de Beverly Hills e tentou imaginar se todos agiriam daquela maneira na segunda-feira.

- Eu sou da polícia - ele disse discretamente e, enquanto dizia aquilo, já sabia que não levaria aquela mulher à Delegacia de Los Angeles, não depois do que acontecera com ele, não naquele momento.

Ela semicerrou os olhos, desconfiada.

- Tem um distintivo?

Will negou com um movimento lento de cabeça.

- Acabei de me mudar para cá. Vivo em Reseda. Começo a trabalhar amanhã. - Ele olhou para ela e disse: - Vou cuidar de você. Confia em mim?

Ela observou os traços definidos de seu rosto, a luz sobre seus cabelos escuros. Ninguém mais havia aparecido. No entanto, quando ele surgiu, ela correra até ele sem hesitar. Certamente para alguém que não estava pensando racionalmente, mas apenas com a intuição, aquilo tinha de significar algo. Ela assentiu.

Ele estendeu o braço.

- Sou William Cavalo Alado. Will.

Ela sorriu.

- Jane Ninguém. - Ela colocou os dedos na palma da mão dele, e com aquele toque, a cidade estranha entrou nos eixos. Will pensou na canção da coruja e naquele presente que literalmente caíra em seus braços e, quando olhou para a moça, soube que, de alguma forma, ela agora era dele.

 

Ela continuava pulando o mês de outubro. Tinha de dizer os nomes dos meses na ordem ao contrário, seguindo as instruções do médico da emergência, mas ela passava de novembro para setembro. Ela corou e olhou para o homem que a examinava.

- Sinto muito - disse. - Vou tentar de novo. Do outro lado da sala onde a observava havia dez minutos, Will não se conteve.

- Meu Deus! - ele disse, aproximando-se. - Estou perfeitamente bem e não conseguiria fazer isso sem errar.

Ele olhou para o médico. Havia levado a moça para o pronto-socorro porque era procedimento comum na polícia, pelo menos em Dakota do Sul, mas já se arrependia. Até onde Will podia ver, aqueles exercícios estúpidos não estavam resolvendo nada, apenas a deixaram mais confusa.

- Ela perdeu a consciência pelo menos duas vezes nas últimas horas - disse o médico sem se alterar. Segurou uma caneta a alguns centímetros do rosto dela. - O que é isto?

Ela demonstrou seu enfado olhando para cima. Já havia respondido perguntas como onde estava, que dia era, quem eram o presidente do país. Já havia contado para trás e para a frente de três em três e decorado uma lista pequena de frutas e legumes.

- Uma caneta.

- E isto?

- Uma tampa de caneta. - Olhou para Will e sorriu. - Ou seria uma vaca? - Ao encontrar o olhar do médico sobre ela, riu e disse: - Estou brincando. Foi só uma piada.

- Viu? - Will disse. - Ela consegue fazer piadas. Está bem. - Cruzou os braços, inquieto. Sentia-se nervoso em hospitais. Isso acontecia desde os nove anos, quando viu o pai morrer em um deles. Três dias depois do acidente de carro, sua mãe já enterrada, Will sentara-se com seu avô em um hospital, esperando que seu pai recobrasse a consciência. Observara por horas a mão morena do pai em contraste com os lençóis brancos, as luzes claras e as paredes pálidas e sabia que seria apenas uma questão de tempo até que seu pai partisse para onde devia ir.

- Tudo bem. - Ao ouvirem a voz do médico, Will e Jane se endireitaram. - Parece que você sofreu uma leve concussão, mas parece estar se recuperando. É possível que recobre a memória mais distante antes da mais recente. Talvez nunca se lembre dos momentos que antecederam o golpe na cabeça. - Ele se virou para Will e perguntou: - Você é...?

- Policial William Cavalo Alado, Delegacia de Polícia de Los Angeles. O médico fez um movimento afirmativo com a cabeça. - Diga a quem for buscá-la que ela deve ser observada esta noite. É preciso acordá-la a cada duas ou três horas e checar seu nível de atenção; você sabe, perguntar quem ela é, como se sente, coisas assim. !

- Espere - Jane disse. - Quanto tempo vai demorar para eu me lembrar de quem sou?

O médico sorriu pela primeira vez durante todo o tempo em que a examinou.

- Não posso dizer ao certo. Talvez demorem horas ou semanas. Mas tenho certeza de que seu marido estará à sua espera no centro da cidade. - Ele colocou a caneta dentro do bolso do jaleco e deu um tapinha no ombro dela. - Em breve ele lhe dará todos os detalhes.

O médico abriu a porta da sala de exames e saiu, seu jaleco branco em movimento.

- Marido? - Jane disse. Olhou para a mão esquerda, observando os diamantes da aliança reluzirem. Olhou para Will e perguntou: - Como posso ter me esquecido disso?

Will deu de ombros. Não havia notado.

- Consegue se lembrar dele? Jane fechou os olhos e tentou pensar em um rosto, um gesto ou até mesmo em um tom de voz. Balançou a cabeça.

- Não me sinto casada. Will riu.

- Sendo assim, acho que metade das esposas dos Estados Unidos faria qualquer coisa para levar uma pancada na cabeça. - Caminhou até a porta e a abriu para ela. - Vamos.

Ele conseguia sentir a presença dela a um passo dele durante o caminho todo até o estacionamento. Quando chegaram à caminhonete, ele abriu a porta do lado do passageiro e a ajudou a se sentar. Girou a chave no contato e prendeu o cinto de segurança antes de falar.

- Veja. Se seu marido estiver à sua procura, pode preencher uma ficha de desaparecido até que passem as primeiras 24 horas. Podemos ir para a delegacia agora se você quiser, ou podemos ir logo de manhã.

Ela olhou para ele.

- Por que não quer me levar até lá?

- Do que está falando?

- Está fugindo - Jane disse. - Dá para perceber pela sua voz. Will olhou para a frente e deu a ré na caminhonete. - Então você não está ouvindo direito. - Seu rosto ficou tenso. - É você quem sabe.

Ela olhou para ele, um perfil bem-feito. Tentou descobrir o que havia dito para deixá-lo tão nervoso. Naquele momento, pelo menos, ele era seu único amigo.

- Talvez eu devesse descansar - ela disse com cuidado. - Vou me lembrar de tudo quando acordar. Talvez tudo esteja diferente.

Will virou-se para ela, percebendo o tremor em sua voz e a confiança que ela depositava nele. Aquela mulher sobre quem ele nada sabia, que nada sabia sobre ele, estava se colocando em suas mãos. Era o máximo que já havia recebido.

- Talvez - disse.

JANE HAVIA ADORMECIDO QUANDO ELES CHEGARAM à casa em Reseda. Will a levou para o quarto, colocando-a sobre o colchão sem lençol e cobrindo-a com o único cobertor que ele havia tirado das malas. Tirou os sapatos dela, mas não faria nada além disso. Ela era esposa de outro homem.

No Oglala Community College, em alguma aula de cultura que ele havia sido forçado a frequentar para se formar, Will aprendera sobre o castigo aplicado às mulheres adúlteras sioux no passado. Ele ficara chocado: se a esposa fugisse com outro homem, o marido tinha o direito de cortar a ponta do nariz dela, para que a mulher ficasse marcada pelo resto da vida. Para Will, aquilo parecia contradizer tudo o que ele havia aprendido sobre os sioux. Afinal, eles não compreendiam a posse de terras. Acreditavam que deviam dar dinheiro, alimentos e roupas a amigos em situação difícil, mesmo que para isso acabassem ficando pobres também. Apesar disso, viam as esposas como propriedade e os maridos como proprietários.

Ele observou Jane dormir. De certo modo, sentia inveja dela. Conseguira esquecer seu passado com facilidade, enquanto Will se esforçava para tirar sua história da cabeça.

Tocou o colarinho da camisa de Jane, onde o sangue havia secado. Pegaria um pouco de água para remover a mancha. Afastou o cabelo de sua testa e analisou seus traços. Ela tinha cabelo castanho comum, nariz pequeno e queixo empinado. Sardas. Não era a loura arrasadora de seus sonhos adolescentes, mas era bonita de uma maneira simples. Alguém devia estar desesperado com seu sumiço.

Afastou a mão de seu pescoço, com a intenção de buscar um pano, mas foi detido quando sua mão se ergueu, os dedos prendendo seu pulso com grande velocidade. "Meu Deus", ele pensou, "reflexos de puma." Ela abriu os olhos e olhou ao redor assustada como se tivesse sido capturada.

- Psiu - Will a acalmou e, quando tentou se libertar com delicadeza, Jane o soltou, franzindo a testa como se não entendesse ao certo por que o havia prendido.

- Quem é você? - Ela perguntou.

Will caminhou para a porta e apagou a luz. Olhou para o outro lado para que ela não conseguisse ver seu rosto.

- Você não quer saber - ele disse.

A PRIMEIRA LEMBRANÇA DE Will era a da libertação de seu pai da cadeia.

Ele tinha três anos e se lembrava de sua mãe em pé na frente do delegado. Ela era alta e decidida e mesmo sob a luz fraca tinha a pele extremamente clara. - Houve um engano - ela disse. - O senhor Cavalo Alado é um de meus funcionários.

Will não compreendeu por que a mãe dissera que seu pai trabalhava para ela, pois sabia que ele trabalhava para o senhor Lundt, na fazenda. Não compreendeu a palavra "assalto", mas pensou que "ataque" tivesse a ver com o que faziam os super-heróis das histórias. O delegado, um homem cheio de marcas no rosto, olhou bem para Will e cuspiu perto de seu pé.

- Não houve engano algum, senhora - o delegado disse. - A senhora conhece esses malditos índios.

A expressão de sua mãe era séria e ela pegou a carteira para poder pagar a fiança.

- Solte-o- - ela disse rispidamente, e o delegado virou-se e entrou em um corredor. Will observou o homem ficando cada vez menor, o revólver em seu bolso balançando com o movimento de seu corpo.

A mãe de Will ajoelhou-se a seu lado e disse: - Não acredite em nada do que ele diz. Seu pai estava tentando ajudar.

Ele soube, anos depois, que Zachary Cavalo Alado estava em um bar, onde ocorreu um problema. Uma mulher estava sendo perturbada por dois homens e, quando ele tentou intervir, teve início uma briga. A mulher havia fugido do bar, e, quando a polícia chegou, a palavra de Zack ficou contra a dos dois brancos da região.

Zachary surgiu no corredor da cadeia atrás do delegado. Não tocou em sua esposa.

- Senhora - ele disse solenemente. - Will. - Colocou o filho sobre os ombros e o levou para fora, para o sol escaldante de Dakota.

Eles caminharam metade de um quarteirão, e o pai de Will o tirou dos ombros e abraçou a esposa.

- Oh, Anne - ele suspirou. - Sinto muito fazê-la passar por isso. Will puxou a ponta da camisa listrada do pai:

- O que o senhor fez, pai?

Zach segurou a mão de Will e começou a descer a rua novamente.

- Eu nasci - respondeu ele.

TERIA SIDO IMPOSSÍVEL NÃO VER O BILHETE QUE Will havia deixado a ela, em cima da tampa da privada com uma toalha limpa, pasta de dentes, uma nota de vinte dólares e uma chave.

Jane,

Saí para trabalhar. Vou tentar obter alguma informação sobre seu marido e tentarei telefonar mais tarde para lhe dar notícias. Não tenho nada na geladeira, por isso, se sentir fome, vá até o mercado (três quarteirões a leste). Espero que esteja se sentindo melhor. Will.

Escovou os dentes com o dedo e olhou novamente para o bilhete. Ele não havia dito nada a respeito do que ela deveria fazer se acordasse lembrando perfeitamente de seu nome e endereço - não que isso fosse importante, afinal, ela ainda não se lembrava de nada. Ao menos tivera sorte. As chances de encontrar algum viciado ou um cafetão na Sunset Boulevard tinham sido bem maiores do que encontrar alguém de fora da cidade, alguém que entregaria a uma desconhecida a chave de sua casa e uma nota de vinte dólares sem fazer nenhuma pergunta ou sem esperar algo em troca.

Seus olhos brilharam. Ela podia fazer algo em troca; podia desfazer as malas para ele. Seu gosto para decoração podia ser diferente do dele - na verdade, não fazia ideia de qual seria o próprio gosto -, mas certamente seria bom chegar em casa e ver panelas e copos nos armários e toalhas e lençóis no guarda-roupa.

Jane entreteve-se com a tarefa de colocar a casa de Will em ordem. Organizou a cozinha, o banheiro e o local onde eram mantidos os produtos e artigos para limpeza, mas não precisou usar a criatividade até começar a arrumar a sala de estar. Ali, dentro de duas caixas, cuidadosamente separadas por folhas de jornal, havia uma série de relíquias dos índios norte-americanos. Ela desembrulhou belos mocassins e um pedaço de pele pintado com a imagem de uma caçada. Havia um cobertor e um leque feito de penas e um medalhão com miçangas circulares. No fundo da caixa havia um pequeno saco de couro com miçangas e penas coloridas, sobre o qual havia o desenho de um cavalo galopando. Estava bem fechada com uma tira de couro e, apesar de tentar, não conseguiu abri-lo para ver o que havia dentro.

Não sabia o que era a maioria daqueles objetos, mas lidou com eles da maneira mais cuidadosa possível e começou a descobrir mais sobre Will. Olhou ao redor para as paredes vazias e pensou: "Se eu estivesse em um lugar desconhecido, gostaria de ter alguma coisa que me lembrasse de minha casa."

NINGUÉM HAVIA IDO À DELEGACIA PROCURAR uma mulher desaparecida. Will passou o dia sendo apresentado pelo capitão a outras pessoas na Polícia de Los Angeles, recebeu seu distintivo e suas tarefas. Quando registrou sua arma, o policial que coletou as informações perguntou se ele preferia receber um tacape; seu novo parceiro divertiu-se ao chamá-lo de Cavalo Abilolado. Mas Will já havia enfrentado essas coisas antes. Não encontrou o policial que lhe agredira; no entanto, Beverly Hills era uma jurisdição diferente. Quando secretárias risonhas perguntaram o motivo do hematoma, ele respondeu que alguém havia atravessado seu caminho.

Já passava das quatro da tarde quando ele reuniu coragem para bater à porta de seu novo superior e contar-lhe sobre Jane.

- Entre - Watkins disse, fazendo um movimento com a mão para que se aproximasse. - Acha que já aprendeu como funcionam as coisas?

Will balançou a cabeça em um gesto negativo.

- É diferente. Watkins sorriu.

- Não é diferente de Dakota do Sul. Algumas violações de trânsito infringidas por celebridades, posse de drogas, as coisas de sempre.

Will endireitou-se na cadeira.

- Queria conversar com você sobre o caso de uma pessoa desaparecida - ele disse. - Na verdade, quero saber se... - Ele parou e passou as mãos sobre as coxas para se recompor. Não havia uma maneira certa de dizer que ele havia ignorado os procedimentos; Jane já deveria ter sido levada à jurisdição para ser fotografada. - Encontrei uma mulher com amnésia ontem à noite. Fomos ao hospital, mas, como já estava tarde, eu não a trouxe para cá.

Will olhou para o capitão.

- O senhor soube de alguma coisa?

O homem mais velho negou com um lento movimento de cabeça.

- Como você ainda não estava trabalhando ontem à noite, não contarei isso contra você - ele disse. - Mas ela precisa ser trazida para um interrogatório. - Watkins olhou para Will e naquele momento ele soube que, apesar da remissão do capitão, já começaria a relação com um pé atrás. - Pode ser que a perda de memória dela esteja relacionada com um crime. - Watkins olhou para Will. - Acredito que você ainda saiba onde ela está. Sugiro que a traga para cá o mais rápido possível.

Will concordou e começou a se dirigir à porta.

- E, policial - Watkins disse -, daqui para a frente cumpra as regras.

Will PUXAVA O COLARINHO DE SUA CAMISA o caminho todo de volta a Reseda. A maldita camisa o sufocava. Não conseguiria sobreviver por uma semana vestindo-a. Dobrou a esquina de sua rua tentando imaginar se Jane havia se lembrado de seu nome. Se ela ainda estaria ali.

Ela o recebeu na porta vestindo uma de suas camisas novas e brancas amarrada na cintura e um short de corrida.

- Tem alguém à minha procura? - Ela perguntou.

Will balançou a cabeça negativamente e entrou na varanda de sua casa. Ficou parado na entrada, analisando as caixas vazias empilhadas e uma prova de sua história pendurada nas paredes onde todos podiam ver.

A fúria chegou com tanta rapidez que ele esqueceu de disfarçá-la.

- Quem lhe deu permissão para mexer em minhas coisas? - Ele gritou, pisando forte no carpete, indo para o meio da sala de estar. Ele se virou para olhar para Jane e a encontrou agachada perto da parede, as mãos na cabeça como para abafar o som de uma explosão.

A raiva sumiu. Ele ficou parado, esperando que a fúria deixasse sua visão clara. Não disse nada.

Jane abaixou os braços e levantou-se, tensa, mas não encarou Will.

- Pensei que estaria ajudando - ela disse. - Queria agradecer-lhe por tudo, e essa me pareceu a melhor maneira. Seus olhos observaram a parede onde o pequeno saco de couro estava pendurado ao lado da imagem da caçada. - Posso mudar tudo se você não gostar da maneira como os objetos estão expostos.

- Não os quero expostos de maneira alguma - Will disse, tirando os mocassins de cima da lareira. Pegou uma caixa vazia e começou a jogar os objetos dentro.

Jane ajoelhou-se ao lado da caixa e tentou organizar as peças frágeis para que não se quebrassem. Ela tinha de fazer isso com cuidado; tinha de fazer tudo direito. Passou os dedos sobre as penas do pequeno saco de couro.

- O que é isso?

Will mal olhou para o que ela segurava.

- Um patuá - ele disse.

- O que há dentro dele?

Will deu de ombros.

- As únicas pessoas que sabem são meu tataravô e seu pajé, e ambos estão mortos.

- É lindo - Jane disse.

- É inútil - Will respondeu. - Deveria servir de proteção, mas meu tataravô foi morto por um búfalo. Ele se virou e viu Jane tocando o patuá e seu rosto ficou menos tenso quando ela olhou para ele. - Sinto muito - ele disse. - Não queria estourar desse jeito. Só não gosto que essas coisas fiquem penduradas onde eu possa vê-las o tempo todo.

- Pensei que você fosse gostar de ter alguma coisa que lhe fizesse lembrar de onde veio - Jane disse.

Will sentou-se no chão.

- É exatamente disso que quero fugir - ele disse. Suspirou e passou a mão pelos cabelos, procurando mudar de assunto. - Como está se sentindo?

Ela olhou para ele, percebendo que usava uma camisa azul de policial, com o símbolo do Departamento de Polícia de Los Angeles em seu braço.

- Você está vestindo um uniforme.

Will sorriu.

- Estava esperando um cocar?

Jane levantou-se e esticou o braço para Will, puxando-o para ficar em pé.

- Eu me lembrei de como cozinhar - ela disse. - Quer jantar?

Ela havia preparado um frango frito, feijão e batata assada. Will levou o prato para o centro do chão da sala de estar e separou um peito para si e outro para ela, colocando a carne nos dois pratos. Contou a ela sobre seu primeiro dia de trabalho, e ela lhe contou que se perdera indo ao mercado. O sol entrava pelas janelas e projetou a sombra dos dois, que fizeram um silêncio confortável.

Will pegou os pedaços de frango, chupou a carne dos ossos. De repente, sentiu a mão de Jane sobre a sua.

- Oh, vamos fazer isso - ela disse com os olhos brilhando, e ele percebeu que segurava o osso da sorte.

Ele puxou e ela também, os ossos brancos escorregando de seus dedos engordurados, e por fim ele tirou o pedaço maior. Desapontada, Jane se recostou em uma pilha de caixas.

- O que você pediu?

Will havia pedido que ela recuperasse a memória, mas não contou a verdade.

- Quando contamos, o pedido não se realiza - ele disse, surpreendendo-a. Ele sorriu. - Minha mãe dizia isso. Na verdade, ela foi a última pessoa que quebrou um osso de galinha comigo.

Jane abraçou as pernas, aproximando-as do peito.

- Ela vive em Dakota do Sul?

Ele quase não escutou a pergunta, pois estava pensando no contorno do rosto da mãe e do brilho de seu cabelo escuro. Pensou na mão dela e na dele segurando as pontas do osso de galinha e tentou imaginar se os sonhos dela se realizaram. Will olhou para Jane.

- Minha mãe morreu quando eu tinha nove anos, em um acidente de carro com meu pai.

- Oh, que terrível - Jane disse, e Will ficou surpreso pela maneira com que sua voz parecia carregar tanta dor por um estranho.

- Ela era branca - ele disse, sem querer. - Depois do acidente, fui morar com os pais de meu pai na reserva.

Quando ele começou a falar, Jane esticou o braço e pegou do prato um monte de ossos que Will havia deixado de lado. Colocou-os no prato e mexeu neles com as mãos, aparentemente sem perceber o que estava fazendo. Ela olhou para ele e sorriu.

- Continue. Conte-me sobre como eles se conheceram.

Will havia contado essa história muitas vezes antes, porque parecia amolecer o coração de uma mulher, a ponto de ela cair em sua cama.

- Minha mãe era professora em Pine Ridge, e meu pai a viu um dia quando estava buscando alimentos para seu chefe no rancho. E por ela ser branca e ele um índio lakota, meu pai não conseguiu entender por que estava se sentindo atraído e o que faria em relação a isso. - Surpreso, ele observou as mãos de Jane formarem uma fila de ossos, um depois do outro. - Mas eles saíram algumas vezes até que vieram as férias de verão e ela achou que as coisas estavam indo rápidas demais, por isso simplesmente partiu sem dizer ao meu pai para onde ia.

Jane deitou com cuidado cinco ossos em linhas paralelas na borda de seu prato.

- Estou ouvindo - ela disse.

- Bem, parece bobagem, mas meu pai disse que simplesmente sabia. Por isso, partiu no meio do dia, em seu cavalo emprestado, e saiu em direção ao norte-nordeste sem a mínima ideia de onde estava indo.

Jane olhou para ele, as mãos erguidas.

- Ele a encontrou?

- Cerca de 56 quilómetros depois, em um restaurante, onde ela estava esperando que uma amiga chegasse para levá-la de volta para casa, em Seattle. Meu pai a colocou diante dele sobre o cavalo e os envolveu com um cobertor - afirmou Will.

Will havia escutado a história tantas vezes quando era criança que até naquele momento conseguia imaginar as palavras na voz de sua mãe. "Anos atrás, era assim que meu povo se apaixonava", seu pai me disse e envolveu o cobertor tão apertado que nosso coração batia em uníssono. "Eu poderia me aproximar de você à noite, e sentaríamos sob o céu nesse casulo e, com todas as estrelas como testemunhas, eu lhe diria que a amo."

- Meu Deus - Jane suspirou. - Foi a coisa mais romântica que já ouvi. - Ela pegou outro punhado de ossos da bandeja entre eles. - Sua mãe voltou com ele?

Will riu.

- Não, ela foi para Seattle. Mas escreveu cartas para ele durante todo o verão e eles se casaram um ano depois.

Jane sorriu e limpou as mãos com um guardanapo.

- Por que as pessoas não fazem coisas assim hoje em dia? Transam no banco de trás do carro no ensino médio e pensam que estão apaixonadas. Ninguém mais vive uma paixão arrebatadora. - Balançando a cabeça de maneira negativa, ela ficou em pé para limpar os pratos. Pegou a travessa quase vazia e a derrubou, ouvindo o barulho e vendo a gordura se espalhar.

Em seu prato, ela havia recriado o esqueleto de uma galinha.

Os ossos estavam cuidadosamente estruturados, em alguns casos até encaixados nas articulações. As asas estavam dobradas com cuidado contra as costelas. As pernas fortes estavam dobradas, como se corressem.

Ela colocou a mão na testa enquanto muitas imagens inundavam sua mente: o osso fino do braço de um ramapiteco, uma faixa de molares e pedaços de crânios, barracas verdes na Etiópia que cobriam mesas repletas de ossos catalogados. Antropologia física. Ela havia passado meses e mais meses no Quénia, em Budapeste e na Grécia em escavações, construindo a história do homem. Isso tinha sido uma grande parte de sua vida, a ponto de deixá-la chocada por perceber que até um golpe na cabeça podia fazê-la esquecer.

Cuidadosamente tocou o fémur da galinha reconstruída.

- Will - ela disse, e quando levantou o olhar, seus olhos brilhavam. - Sei com o que trabalho.

 

Will gostava mais de Jane antes de ela se lembrar que era uma antropóloga. Ela não parava de tentar explicar a ele sobre sua ciência. Dizia que a antropologia era o estudo de como as pessoas se encaixavam no mundo. Isso ele conseguia entender, mas a maioria das outras coisas que ela dizia parecia grego. No trajeto até a delegacia na noite de segunda-feira, ela havia descrito os melhores métodos de escavação de fósseis. Quando Watkins perguntou a ela sobre o recado que deveria colocar no L. A. Times, ela dissera que até que alguém a encontrasse, ela ficaria contente se pudesse ajudar na investigação. E agora, na manhã seguinte, enquanto Will saboreava uma tigela de cereais, ela tentava explicar a ele sobre a evolução do homem.

Ela estava fazendo linhas em seu guardanapo, dando nomes a cada parte. Will começava a compreender por que o marido dela ainda não tinha aparecido.

- Não consigo acompanhar esse raciocínio - ele disse. - Não consigo sequer fazer contas tão cedo.

Jane o ignorou. Quando terminou, recostou-se na cadeira suspirando.

- Nossa! Como é bom saber alguma coisa.

Will pensou que talvez houvesse outras coisas que valessem mais a pena saber, mas não disse nada. Apontou para um ponto do guardanapo.

- Por que eles se tornaram extintos? Jane franziu a testa.

- Eles não conseguiram se adaptar ao mundo - respondeu. Will riu.

- É, sei... na maior parte do tempo, nem mesmo eu consigo - ele disse. Pegou seu chapéu, preparando-se para sair.

Os olhos de Jane brilharam quando ela olhou para ele.

- Gostaria de saber se já descobri alguma coisa importante, como o esqueleto de Lucy, ou aquele homem da Idade da Pedra nos alpes tiroleses.

Will sorriu. Pensou em Jane agachada no local de escavação no meio de um deserto, fazendo o que a deixava feliz.

- Sinta-se à vontade para escavar o quintal - ele disse.

NAQUELA TERÇA-FEIRA DE MANHÃ, a Delegacia de Polícia de Los Angeles publicou a foto de Jane no L.A. Times com uma pequena nota pedindo informações sobre ela, e Jane se lembrou de ter descoberto a mão.

Depois que Will partiu, Jane foi até a biblioteca da região. Era um local pequeno, mas tinha uma seção organizada de livros sobre antropologia e arqueologia. Ela encontrou o livro mais recente, dirigiu-se até a mesa e começou a ler.

Palavras familiares trouxeram imagens à sua mente. Ela se viu na região rural da Inglaterra, agachada ao lado de uma cova aberta na qual havia restos de uma antiga batalha da Idade do Ferro. Lembrava de ter espanado a terra dos ossos; sentindo as depressões em um esterno feitas por lanças e flechas, ou a vértebra claramente cortada que indicava um ato de decapitação. Era assistente de alguém na época, pôde se lembrar, catalogando espécies com tinta nanquim, carregando bandejas de ossos para secarem ao sol.

Jane virou a página e foi quando viu a mão. Era exatamente da mesma maneira como a encontrara na Tanzânia, fossilizada em uma pedra sedimentar, segurando com força um cinzel feito de pedra. Centenas de antropólogos haviam vasculhado a Tanzânia procurando por provas da indústria de ferramentas de pedras, pois acreditavam que o homem primitivo tinha um nível de inteligência suficiente para criar. Seguindo o estudo de seus colegas, ela havia passado um ano para reabrir um local esquecido de escavações.

Não estava procurando quando encontrou a mão. Ela havia se virado e a visto, à altura do ombro, como se tentasse alcançá-la. Tinha sido uma descoberta extraordinária.

Ossos delicados raramente eram preservados. Para que a fossilização ocorresse, os esqueletos precisavam ficar longe de animais, água e mudanças da terra, e as extremidades do esqueleto costumavam se perder.

Enquanto trabalhava, já pensava que aquele momento seria sua iniciação na carreira. Havia encontrado o que todos procuravam. Cuidadosamente catalogou o cinzel, as centenas de pedaços de ossos, limpou-os e os preservou com uma resina sintética.

Jane voltou-se ao livro e leu a legenda ao lado da fotografia da mão. Com mais de 2,8 milhões de anos, esta mão de hominídeo e este cinzel são as provas mais antigas conhecidas na indústria das ferramentas de Pedra. (Barrett et al., 1990)."

Barrett. Seria aquele seu sobrenome? Ou ela tinha sido apenas assistente de outra pessoa, alguém que tinha levado crédito pela sua descoberta? Ela analisou o índice no livro, mas não havia outras referências a Barrett. Nenhum dos outros livros trazia uma foto da mão; era uma descoberta muito recente.

Tremendo um pouco, ela caminhou até o balcão e esperou que a bibliotecária olhasse para ela, desviando sua atenção do computador.

- Olá - ela disse, mostrando seu melhor sorriso. - Pensei que talvez você pudesse me ajudar.

ELA ENCONTROU Will DEBRUÇADO SOBRE UMA MESA, que parecia pequena demais para ele, analisando alguns documentos.

- Relatórios da polícia - ele disse. - Detesto essa merda. - Ele os afastou com o braço e apontou para uma cadeira próxima. - Já viu sua foto? - Will esticou a mão com o jornal.

Jane pegou o papel e analisou a foto.

- Nossa! Eles me deixaram parecida com uma criança perdida. - Ela jogou o jornal novamente sobre a mesa de Will. - E você recebeu muitos telefonemas?

Will negou com um movimento de cabeça.

- Tenha paciência. Ainda não é nem meio-dia. - Ele afastou a cadeira e cruzou os pés sobre a mesa. - Além disso, estou me acostumando com você como governanta.

- Bem, acho melhor você começar a procurar uma substituta. - Ela deu a ele uma cópia da página do livro que ela havia lido naquela manhã. - Esta mão é minha.

Will olhou para a fotografia borrada e assoviou.

- Você está muito bem para a sua idade. Jane pegou o papel e o colocou na beira da mesa.

- Descobri essa mão na África - ela disse. - Posso muito bem ser essa "Barrett".

Will ergueu as sobrancelhas.

- Você descobriu isso? - Ele balançou a cabeça, surpreso. - Barrett, não é?

Ela deu de ombros.

- Ainda não tenho certeza. Talvez Barrett fosse o cientista que liderou a escavação. - Apontou para a referência. - Eu posso ser o et al. Pedi à bibliotecária que obtivesse mais informações - ela disse sorrindo. – Devo saber quem sou amanhã à tarde.

Will sorriu para ela. Pensou no que faria quando ela partisse para voltar à sua vida. Tentou imaginar como a casa ficaria vazia com apenas uma pessoa e se ela telefonaria de vez em quando.

Bem - ele disse. - Acho que devo começar a chamá-la de Barrett. Ela parou e virou-se para olhar para ele.

- Para dizer a verdade, já me acostumei com Jane - ela disse.

ACOSTUMADO A ACORDAR CEDO, Herb SILVER havia tomado o café da manhã ao lado da piscina às seis horas: suco de tomate, toranja e um charuto cubano. Semicerrando os olhos por causa da luz do sol, ele abriu o L. A. Times de terça-feira e olhou para a foto da mulher na página 3 até seu charuto cair, sem que ele percebesse, do canto de sua boca.

- Caramba! - Ele disse, procurando o telefone celular no bolso do roupão. - Caramba, caramba!

ELES NÃO TERIAM INTERROMPIDO AS GRAVAÇÕES por nenhum outro ator do elenco, mas ele era um dos produtores-executivos, além de protagonista, e qualquer dinheiro que fosse gasto sairia de seu bolso. Ele passou o braço pela testa, fazendo uma careta ao ver um borrão de maquiagem na manga de seu blazer de veludo. Fazia -6 graus na Escócia, mas o produtor de cenário havia mandado trazer uma centena de tochas para serem enfileiradas no grande corredor do castelo onde eles estavam filmando Macbeth. Consequentemente, não conseguia passar por uma cena que fosse sem estar coberto de suor.

Jennifer, sua assistente de feições comuns, estava em pé segurando o telefone celular perto de uma armadura. Pegando o telefone, ele se afastou discretamente dela e do repórter da People que estava cobrindo as filmagens.

- Herb - ele disse, mantendo o sotaque. - É melhor que seja um assunto importante.

Sabia que seu agente não telefonaria para ele nas gravações se não fosse um caso de emergência, uma indicação ao Oscar ou um papel que alavancasse sua carreira ainda mais. Mas ele já havia sido indicado ao Oscar deste ano e escolhia os próprios papéis há muito tempo. Segurou o telefone com mais força, esperando que a estática se estabilizasse.

- ...jornal de hoje, e ela estava... - ele escutou.

- O quê? - Ele gritou, esquecendo-se do elenco e das pessoas a seu redor. - Não consigo escutar nada do que está dizendo!

A voz de Herb surgiu clara ao telefone.

- A foto de sua esposa está na página 3 do L. A. Times. Ela foi resgatada pela polícia e não se lembra de quem é.

- Jesus - ele disse, com o coração acelerado. - O que houve com ela? Está bem?

- Acabei de ler a notícia há dois minutos - Herb disse. - Ela parece bem na fotografia. Telefonei para você na mesma hora.

Ele suspirou.

- Não faça nada. Chegarei em casa amanhã às... - ele checou o relógio - às seis horas, horário daí. - Quando ele voltou a falar, sua voz falhou.

- Preciso ser a primeira pessoa a vê-la - ele disse.

Ele desligou o telefone sem se despedir e começou a dar instruções a Jennifer. Ele gritou para o coprodutor por cima do ombro da assistente:

- Joe, precisamos interromper as filmagens por pelo menos uma semana.

- Mas...

- Que se dane o orçamento. - Ele virou-se em direção a seu trailer, mas voltou e tocou o ombro de Jennifer. Ela já estava ocupada ao telefone, fazendo reservas em voos, seu cabelo caído sobre seu rosto como se fosse uma cortina. Quando ela olhou para cima, ele a encarou e ela viu algo em seus olhos que poucas pessoas já tinham visto: um desespero silencioso. - Por favor - ele murmurou. - Se precisar, mova céus e terra.

Jennifer precisou de um instante para voltar à realidade e mesmo depois que ele já havia saído, durante alguns segundos, ela sentiu o calor da mão dele em seu ombro; a força de seu pedido. Pegou o telefone de novo e começou a apertar as teclas. O que Alex Rivers precisava, ele conseguia.

ÀS SETE HORAS DA QUARTA-FEIRA, O TELEFONE começou a tocar. Will saiu correndo do banheiro e foi para a cozinha, enrolando uma toalha na cintura.

- Alô?

- É o Watkins. Acabei de receber uma ligação da delegacia. Três tentativas para você descobrir quem apareceu.

Will sentou-se no chão da cozinha e deixou o susto tomar conta dele.

- Estaremos aí em meia hora - ele disse.

- Will? - Ele ouviu a voz de Watkins distante. - Sabe o que tem de fazer.

Ele sabia que precisava acordar Jane e contar a ela que seu marido chegara para buscá-la; sabia que tinha de dizer as coisas confortantes que ela esperava que ele dissesse no caminho para a delegacia, mas achava que não seria capaz. Os sentimentos que Jane despertara nele eram mais do que apenas uma coincidência. Ele gostava de saber que ela tentava esconder as sardas com talco de bebê. Gostava da maneira com que ela movia as mãos ao falar. Adorava vê-la em sua cama. Ele dissera a si mesmo que simplesmente usaria a máscara de indiferença que havia usado nos últimos vinte anos e que dentro de uma semana sua vida voltaria ao normal. Disse que era isso o que precisava ser feito. E, ao mesmo tempo, via Jane sair correndo pelo portão do cemitério com o grito da coruja, e sabia que, mesmo quando já estivesse longe, ela continuaria sendo sua responsabilidade.

Ela estava dormindo de lado, com o braço sobre a barriga.

- Jane - ele disse, tocando seu ombro. Inclinou-se e a balançou levemente, surpreso ao perceber que o travesseiro e o cobertor já não tinham o cheiro dele, mas, sim, o dela. - Jane, acorde.

Ela abriu os olhos e rolou na cama.

- Está na hora? - Ela perguntou e ele assentiu.

Will preparou o café, enquanto ela tomava um banho, para o caso de ela querer comer alguma coisa antes de sair, mas ela quis partir imediatamente. Ele se sentou ao lado dela na picape e dirigiu em silêncio, deixando tudo o que deveria estar dizendo preencher o espaço a seu redor. "Vou sentir sua falta", ele planejara lhe dizer. "Telefone para mim quando puder. Se alguma coisa acontecer, bem, você sabe onde me encontrar."

Jane manteve o olhar fixo na estrada, apertando as mãos no colo. Não disse nada até chegarem ao estacionamento da delegacia. No começo, sua voz estava tão contida que Will pensou que não a escutara bem.

- Acha que ele vai gostar de mim?

Will esperava que ela fosse perguntar se conseguiria se lembrar do marido assim que o visse, ou que fosse tentar imaginar onde ficava a sua casa. Não esperava escutar aquilo.

Não teve a chance de responder. Um bando de repórteres foi em direção à caminhonete, tirando fotos e fazendo perguntas que se confundiam umas com as outras no meio do tumulto. Jane se encolheu no assento.

- Vamos lá - Will disse, deslizando o braço por seus ombros. - Ele a puxou pela porta do motorista. - Fique perto de mim.

Quem era ela? Mesmo que fosse Barrett, a antropóloga, e mesmo que tivesse mesmo descoberto aquela mão, aquele tipo de cobertura da imprensa parecia um tanto exagerada. Will guiou Jane pelos degraus, até a recepção da delegacia, sentindo sua respiração quente em seu pescoço.

Em pé ao lado do capitão Watkins estava Alex Rivers.

Will tirou o braço dos ombros de Jane. O próprio Alex Rivers. Todos aqueles jornalistas, todas aquelas máquinas fotográficas não tinham nada que ver com Jane.

Will esboçou um sorriso. Jane era esposa do astro número 1 dos Estados Unidos. E havia se esquecido completamente disso.

A PRIMEIRA COISA QUE ELA PERCEBEU FOI QUE Will não estava mais a seu lado. Por um momento teve a certeza de que não conseguiria parar em pé sozinha. Estava com medo de olhar para a frente e encarar todas aquelas pessoas, mas alguma coisa a mantinha em pé e precisava ver o que era.

Levantou a cabeça e viu os olhos de Alex Rivers.

Taboo.

- Cassie? - Ele deu um passo adiante, mais um e inconscientemente ela se aproximou de Will. - Sabe quem eu sou?

É claro que ela sabia; todo mundo o conhecia, ele era Alex Rivers, pelo amor de Deus. Ela assentiu e foi quando percebeu como sua percepção tinha se tornado falha. O rosto de Alex Rivers ficava embaçado e voltava ao normal, da mesma maneira que a visão fica duplicada por causa do calor subindo do asfalto. Por um momento, Cassie o viu maior do que tudo. No seguinte, ele não era nada além de um homem comum.

Um instante antes de ele esticar o braço em sua direção, todos os sentidos de Cassie pareceram virar um só. Conseguia sentir o calor de sua pele, ver a luz refletindo em seu cabelo, escutou os sussurros ao seu redor. Sentiu o cheiro de sua loção pós-barba de sândalo e o cheiro de camisa recém-lavada. Hesitante, ela esticou os braços para abraçá-lo, sabendo exatamente onde seus dedos pousariam sobre os músculos de suas costas. "A antropologia", ela pensou, "é o estudo de como as pessoas se encaixam no mundo." Fechou os olhos e sentiu familiaridade.

- Meu Deus, Cassie, eu não sabia o que tinha acontecido. Herb telefonou para mim na Escócia. - Sua respiração alcançou o ouvido dela. - Eu te amo, pichouette.

Foi aquela palavra que fez com que ela se afastasse. Ela olhou para ele, para aquele homem com quem todas as mulheres sonhavam, e deu um passo para trás.

- Tem alguma foto? - Ela perguntou delicadamente. - Alguma coisa que mostre, você sabe, nós dois juntos em algum lugar?

Não questionou por que, dias antes, quando não estava pensando com clareza, confiara com tanta facilidade em Will; no entanto, pedia agora uma prova antes de Alex Rivers a levar embora. Alex franziu o cenho por um instante, depois pegou a carteira de seu bolso traseiro. Entregou a ela a foto, uma imagem do casamento.

Certamente era ele e certamente era ela, e ela parecia feliz, alegre e segura. Ela devolveu a fotografia a Alex. Ele a guardou na carteira e esticou o braço.

Ela olhou para a mão dele.

Wil!

Em algum lugar atrás de si, escutou uma funcionária dizer:

- Puxa! Se ela tem dúvidas, eu irei com ele, então.

Enroscou os dedos nos de Alex e observou sua expressão mudar completamente. A marca de preocupação entre suas sobrancelhas se suavizou em um sorriso e seus olhos começaram a brilhar. Ele iluminou o ambiente e Cassie prendeu a respiração. "Eu", ela pensou. "Ele me quer."

Alex Rivers soltou a mão dela e a envolveu pela cintura.

- Se não recuperar sua memória - ele sussurrou -, vou fazê-la se apaixonar por mim novamente. Vou levá-la à Tanzânia, vou misturar todos os seus ossos, você pode jogar uma pá em mim...

- Sou uma antropóloga? - Ela perguntou.

Alex assentiu.

- Foi por isso que nos conhecemos - ele disse. Ela pensou naquilo. Sua mão. Era mesmo a sua mão; e por algum milagre de Deus Alex Rivers parecia apaixonado por ela e...

"Will". Ela se virou para olhar ele, em pé a alguns metros de distância e afastou-se do abraço de Alex.

- Eu sou uma antropóloga - ela disse, sorrindo.

- Escutei - ele respondeu. - Eu e a maioria das pessoas de Los Angeles.

Ela sorriu para ele.

- Bem... muito obrigada. - Ela ergueu as sobrancelhas. - Não esperava que as coisas fossem terminar assim. - Esticou o braço e impulsivamente abraçou Will. Sobre o ombro dela, ele não pôde deixar de perceber a expressão fria nos olhos de Alex Rivers por uma fração de segundo.

Soltou os braços de Jane - Cassie - e colocou-os ao lado do corpo dela, rapidamente colocando na palma de sua mão o pedaço de papel no qual havia anotado seu endereço e número de telefone. Inclinou-se para lhe dar um beijo no rosto.

- Se precisar de alguma coisa - ele sussurrou e deu um passo para trás. Cassie colocou o papel no bolso de sua jaqueta e agradeceu mais uma vez.

Aparentemente tinha uma vida de contos de fadas. Do que poderia precisar?

Alex estava esperando pacientemente na porta da delegacia. Ele segurou o rosto de Cassie com as palmas das mãos.

- Você não tem ideia... - disse, com a voz falhando. - Não tem ideia de como foi perdê-la.

Cassie olhou para ele, notando o medo em sua voz. Também estava assustada, mas seus sentimentos ficaram em segundo plano por um instante. Sorrindo por instinto, ela disse:

- Mas não foi por muito tempo. E eu não estava muito longe.

Cassie observou os ombros de Alex relaxarem. Incrível... quando ele parecia mais calmo, ela se sentia melhor também.

Alex olhou para a imprensa aglomerada.

- Isso não vai ser agradável - ele disse como se pedisse desculpas, ao trazê-la de volta para perto dele e abrir a porta pesada da entrada.

Colocou uma mão diante dos olhos e procurou abrir caminho pela multidão de paparazzi e fotógrafos. Cassie olhou para a frente, confusa, e viu um rosto bem próximo e a explosão de um flash. O susto fez com que ela não soubesse o que fazer e, sem conseguir enxergar, teve de se virar para o peito de Alex. Sentiu que ele apertava seu braço, sentiu as batidas do coração dele contra seu ombro e entregou-se à força daquele marido desconhecido.

 

O apartamento de Malibu era famoso por sua luz natural. Havia sido construído com 92 placas de vidros para janelas, estrategicamente localizadas para a exposição a leste, oeste e acima, para que, independentemente da posição da pessoa ali dentro, o sol a atingisse. Alex ficou em pé diante de uma parede de vidro, belamente iluminada, passando o polegar sobre a beira de uma caixa de madeira oval.

- Você comprou isso em Lyons, creio eu - ele disse a Cassie. Ela estava sentada em uma poltrona vermelha de dois lugares e, quando ele se abaixou em sua frente, segurando sua mão, ela não conseguiu controlar a surpresa. Era como ter o personagem projetado da tela do cinema, repentinamente em carne e osso.

Era esquisito ver um estranho na sua frente e saber que já havia dividido com ele uma tigela de cereais, que já esquentara os pés nas pernas dele, trocado com ele em uma cama macia. Cassie desejou ser capaz de se entregar àquela fantasia, mas não podia. Alex era o ator; não ela, e ela estava bastante consciente a respeito do espaço entre eles, triste e magnético, forçando uma distância entre eles mesmos quando se tocavam.

Alex suspirou.

- Você não vai começar a agir como se eu fosse de outro mundo, não é? Nunca fez isso antes.

Cassie lançou-lhe um sorriso amarelo. Estava quieta de propósito, acreditando que quanto menos falasse menos tola pareceria.

- Demora um pouco para uma pessoa se acostumar - ela disse. - Olhou para as cortinas brancas de renda francesa, para a mesa de canto de madeira, a pia de mármore rosa do bar.

Alex inclinou-se para beijar sua testa e ela não conseguiu evitar a tensão. Desde que ele a buscara na delegacia hesitara em tocá-la. Era ridículo sentir-se tímida como se fosse um primeiro encontro, uma vez que Alex havia dito que eles estavam casados havia três anos. Ainda assim, ela não conseguia se imaginar na rotina diária de um casamento. Continuava pensando em imagens que sabia terem sido mostradas pela imprensa: Alex Rivers de terno em um evento sobre a pesquisa da Aids, Alex Rivers recebendo um Globo de Ouro, Alex Rivers fazendo malabarismos com cocos durante o intervalo das gravações de Robinson Crusoé.

De repente, ele ficou em pé, tomado pela luz do sol e Cassie esqueceu-se de seus pensamentos. Ela não se lembrava de Alex, não se sentia à vontade com sua presença, mas estava fascinada por ele. O brilho de seus olhos, o contorno de sua mandíbula, os músculos de seu pescoço, tudo lhe era familiar. Ela o observou como observaria a Davi, de Michelangelo: fluido, belo, mas enraizado demais em sua perfeição para ser feito para ela.

- Que bom que viemos para cá - Alex disse. - Se já está surpresa com o apartamento, imagine com a casa.

No caminho para a colónia de Malibu, Alex tentou trazer à tona as lembranças de Cassie fazendo descrições das três residências: a casa de Bel-Air, o apartamento em Malibu e o rancho perto de Aspen, Colorado. Dissera que ambos passavam a maior parte do tempo na casa, mas que Cassie preferia o apartamento, pois o havia redecorado quando eles se casaram.

- Como ela é? - ela perguntou, ansiosa para receber mais detalhes que a fizessem se lembrar do passado.

Alex deu de ombros:

- É pequena. Mas quando a Range Rover parou diante da enorme construção branca, Cassie olhou para os cantos arredondados, para as torres de princesa, andar depois de andar. O último adjetivo que poderia ser dado àquela casa era pequena.

- Parece um castelo - ela disse, e Alex a abraçou.

- Foi isso o que você disse na primeira vez em que a viu.

- Cassie? - Ela se assustava ao escutar o próprio nome. Não escutara o telefone tocar, mas Alex estava segurando o aparelho, cobrindo o bocal. - Herb disse que não vai conseguir dormir até constatar que você está bem. - Ele se aproximou dela e colocou a palma de sua mão em seu rosto. - Mas eu não estou nem aí - ele disse. - Você tem de descansar.

Levou o telefone à orelha.

- Não, Herb. Cinco minutos é tempo demais. Não...

Cassie ficou em pé e encostou a mão no braço de Alex. Era a primeira vez que ela o tocava, sem que ele a tocasse antes. Ele se virou para ela, esquecendo-se do telefone, com os olhos fixos nos dela.

- Tudo bem - ela disse de modo contido. - Diga a ele para vir. Estou bem. Não quero descansar.

Ele murmurou alguma coisa ao telefone e ela observou a maneira como seus lábios formavam as palavras. Esperou até que ele desligasse, mas não foi o que fez. Pousou a mão sobre o bocal novamente e se aproximou, até que ambos ficaram extremamente perto um do outro.

Cassie não fechou os olhos quando Alex a beijou. Sua mão soltou o braço dele e parou ao lado do próprio corpo, e ela sentiu o gosto de café e baunilha. Quando ele se afastou, ela continuava inclinada para ele, olhos arregalados à espera da enxurrada de lembranças que tinha certeza de que viria.

Mas, antes que isso ocorresse, Alex fez um movimento com o telefone na mão.

- Preciso conversar com ele. Abandonei as filmagens de Macbeth no meio, você sabe, para poder buscá-la. O coitado do Herb precisa dar um jeito na bagunça que causei. - Ele passou a mão pelos cabelos. - Ande pela casa um pouco. Prometo que não vou demorar mais do que cinco minutos.

Enquanto Alex se virava e fazia perguntas, conversando ao telefone, Cassie desceu as escadas para o andar do meio. Pensou se deveria trocar de roupa antes de Herb chegar. Pensou em quem Herb poderia ser.

Caminhou em direção à suite máster, onde Alex havia lhe mostrado, anteriormente, um guarda-roupas repleto de peças coloridas de seda e algodão que pertenciam a ela. Chegou ao corredor abobadado pelo qual havia passado com Alex antes. Dessa vez, parou para olhar para as fotos penduradas nas paredes brancas. Havia uma de Alex na praia, enterrado na areia até o peito. Uma de Cassie, sorrindo, abraçando um esqueleto pelo ombro. Havia uma foto de um cão que ela não reconheceu e outra de Alex montado em um cavalo. Por fim, uma foto de Cassie na cama, com os lençóis brancos cobrindo seus seios, sorrindo tranquilamente.

Lembrou da pressão do beijo de Alex. Tentou imaginar a mão dele descendo por sua coluna.

Olhou para a foto novamente e tentou imaginar se Alex havia sido o fotógrafo.

Herb SILVER tinha um metro e meio de altura, era careca, tinha um bigode fino e orelhas meio pontudas que fizeram Cassie se lembrar de um gatinho. Foi recebido por Alex na porta do apartamento e entregou a ele uma sacola de papel marrom engordurada.

- Este é o almoço e vamos ver o que um goi como você tem na cozinha? - Ele olhou para trás de Alex, procurando por Cassie, afastando Alex enquanto começava a mexer na sacola. - Tem carne defumada com chucrute para você e três quiches. Pelo amor de Deus, não coma todas as quiches sozinho dessa vez. Ah! - ele esticou os braços na direção de Cassie. - Estava tentando causar meu terceiro ataque cardíaco?

Herb Silver era o agente de Alex. Ele havia se mudado para Los Angeles vinte anos antes, mas dizia a todos que, mesmo que fosse possível tirar Herb Silver do Brooklyn, era impossível tirar o Brooklyn de Herb Silver. Cassie esticou os braços e o abraçou, e a cabeça dele encostou embaixo do queixo dela.

Herb deu-lhe um selinho nos lábios. Passou as mãos delicadamente sobre os braços dela, como se estivesse procurando por algum osso quebrado.

- Então você está bem?

Cassie concordou com um movimento de cabeça, e Alex deu um passo à frente, oferecendo a ela a metade de um sanduíche enrolado em um guardanapo.

- Ela está perfeita - ele disse com a boca cheia.

Herb ergueu uma sobrancelha.

- Ela sabe falar?

- Estou bem - Cassie disse. - De verdade. - Ela olhou para Alex e Herb e para Alex de novo, agradecendo ao homenzinho, em silêncio, por ter insistido para estar ali naquela tarde. Com Herb em cena, Alex parecia mais familiar.

Alex passou o braço por cima dos ombros de Herb e o direcionou para o andar de cima, onde ficava a sala de jantar.

- Cassie, pode pegar os pratos? Certo, Herb, conte-me o que Joe está fazendo na Escócia.

Cassie caminhou pela cozinha, feliz por ter algo para fazer. De certo modo, as coisas comuns, como encontrar pratos ou cozinhar, ou observar o vapor do chuveiro tomar conta do banheiro, faziam com que se sentisse à vontade. Alex parecera muito menos assustador naquela manhã enquanto eles estavam fazendo as tarefas juntos - ele servindo o suco nos copos e ela procurando as pedras de gelo, lado a lado cortando os pimentões para fazer uma omelete, pegando os papéis que haviam se espalhado pelo chão. Havia uma intimidade nas tarefas simples, coisas que todos conheciam e faziam, que formavam uma base de conforto e segurança sob dois desconhecidos.

Herb e Alex conversavam na sala de jantar e ela escutava uma palavra ou outra de vez em quando. Cassie procurava em um armário e depois em outro, tentando descobrir onde estavam os pratos. Ela abriu a porta mais próxima. Toalhas de mesa e um cesto de pães. A porta ao lado revelou taças de vinho.

- Joe gravou seis cenas chatas que não envolvem você - a das bruxas e uma ou outra com Banquo. Ele disse que a Melanie fez um grande trabalho em resolver a situação. - Herb observou Cassie abrir o terceiro e o quarto armários, morder o lábio e procurar embaixo da pia. - O que há com a cabeça dela? - Ele perguntou a Alex. - Ainda está meio doida?

Alex deu de ombros.

- O médico disse que vai demorar um tempo para que ela se lembre de quem é e o que a deixou fora de órbita. - Ele observou Cassie até que ela finalmente abriu o armário onde estavam os pratos.

Enquanto isso, acho que vou mantê-la perto de mim. Em segurança. - Ele sorriu para seu agente. - Que coisa! Se eu não consigo trazer sua memória de volta, não sei o que vai conseguir.

Cassie chegou com três pratos e um pacote de guardanapos de papel. Ficou à beira da mesa, um tanto deslocada.

- Só consegui encontrar taças de vinho - ela disse.

Herb fez sinal para que ela se sentasse.

- Sente-se. Podemos beber no gargalo. - Ele abriu um sanduíche que continha uma enorme quantidade de carne entre as duas fatias de pão, e Cassie observou-o abocanhar o alimento. - Espero que tenha agradecido a sua querida esposa, Alex, pela propaganda gratuita. - Herb apertou a bochecha de Cassie. - Uma cobertura nacional de Alex Rivers arrasado, procurando sua esposa, é exatamente o tipo de propaganda pré-Oscar de que precisamos. - Ele segurou o sanduíche a poucos centímetros da boca. - Não será nada mal para os homens da academia ver você sendo o homem de família antes de indicarem o escolhido para Melhor Ator e Melhor Diretor. Sabe de uma coisa? Vou telefonar para Michaela hoje à tarde e ver se podemos tirar proveito disso no programa da Oprah. Podemos emendar com o Taboo, talvez possamos colocar Cassie no ar nos últimos cinco minutos...

- Não. - ao ouvir aquela palavra, Cassie se assustou. Alex não a dissera em um tom de voz alto, porém batera o punho na mesa com tanta força que trincou um dos azulejos pintados a mão de sua superfície. Cassie observou uma linha de sangue descer pelo pulso de Alex, mas ele não se importou em limpá-la. Estreitou os olhos e inclinou-se sobre a mesa na direção de Herb, derrubando uma garrafa de refrigerante. - Você não vai explorar a minha esposa na TV para aumentar minha chance de ganhar um Oscar.

Herb limpou a boca com um guardanapo, como se estivesse acostumado com esse tipo de explosão todos os dias.

- Tudo bem, sem problemas - ele disse.

Surpresa, Cassie ficou sentada sem saber o que fazer, observando a mancha de Sprite sobre o carpete. Olhou para Alex.

- Não me importo - ela disse. - Se você achar que isso pode ajudá-lo...

- Eu disse não - Alex respondeu. Os dedos tensos na beirada da mesa finalmente relaxaram. - Cassie - ele disse com mais delicadeza -, o refrigerante.

Cassie afastou a cadeira e correu para a cozinha. Um pano. Ela virou-se abrindo por intuição um dos armários onde havia uma pilha de panos para limpeza. Com eficiência, secou a mesa e depois, ajoelhando-se entre Herb e Alex, apertou o pano no carpete. Esfregou por um minuto. Na verdade, estava tão ocupada limpando a bagunça que não se deu conta do silêncio pesado sobre ela, que a forçou a abaixar a cabeça para não olhar para o marido.

- Pronto - Cassie disse a si mesma, ofegante. Voltou a ficar em pé. Alex a puxou para que se sentasse em seu colo. - Sinto muito, Herb – ele disse de maneira tranquila. - Você sabe como reajo quando o assunto é Cassie.

- E quem não reagiria da mesma maneira? - Herb pegou a segunda metade de seu sanduíche e começou a tirar a carne, eliminando todas as fatias. - Colesterol desgraçado.

Cassie o observou empilhar a carne em um canto do prato. Ajeitou-se desconfortavelmente, sentindo as coxas de Alex sob as suas. Percebeu que estava tremendo e, quase imediatamente, Alex envolveu-a com os braços. - Está com frio? - Ele murmurou em seu ouvido e, antes que ela respondesse, ele aumentou a pressão do abraço.

- Vou voltar para a Escócia na sexta-feira - ele disse. - Levarei Cassie comigo.

- Vai me levar? - Cassie perguntou, virando-se nos braços dele para encará-lo.

Herb fez um movimento afirmativo com a cabeça. - A UCLA* vai dar uma licença para ela?

- UCLA? - Cassie levantou-se. - O que a UCLA tem que ver com isso? Herb sorriu.

- Provavelmente Alex não teve tempo de lhe contar.

Você leciona lá.

- Pensei que fosse uma antropóloga.

- E é. Você leciona antropologia lá - Alex disse. Ele sorriu e acrescentou: - Vamos ver se acerto a matéria deste semestre... você está lecionando Práticas de Arqueologia, Os australopitecíneos, e está coordenando um curso da Golden em biologia, sociedade e cultura.

Cassie olhou para ele, furiosa, sua raiva suspensa na distância entre eles, fazendo com que ela se esquecesse de seu papel como observadora. Como ele podia ter se esquecido de dizer aquilo? Ela havia contado a ele sobre a mão que encontrara na biblioteca um dia antes, a primeira pista sobre sua identidade. E na delegacia de polícia, quando ele confirmou sua profissão, ela quase gritara de alegria. Por ser alguém tão preocupado com a própria carreira, Alex deveria ter compreendido. - Por que você não me contou isso antes? Preciso telefonar para alguém lá. Posso ter faltado a alguma aula. Eles devem ter visto o jornal...

Nota de rodapé:

UCLA - Universidade da Califórnia, Los Angeles.

Fim da nota de rodapé.

- Cassie - Alex disse -, acalme-se, eu pedi a Jennifer que telefonasse a eles para avisar que você está bem e para dizer que você voltará em algumas semanas.

- E quem diabos é Jennifer? - Cassie gritou.

- Minha assistente - Alex respondeu. Sua voz, baixa e tranquilizante, tomou conta de Cassie. Ele ficou na frente dela, segurando seus braços e forçando-a a olhar em seus olhos. - Fique tranquila - ele disse. - Só quero que você melhore.

- Estou bem - Cassie explodiu. - Estou perfeitamente bem. Posso não lembrar quem sou, Alex, mas isso não me torna uma inválida. Talvez eu me lembrasse de muito mais coisas se você não se empenhasse tanto em tomar todas as decisões por mim e... - De repente, ela parou. A voz de Alex estava tranquila e seus braços pareciam esticados para oferecer conforto, mas seus dedos a apertavam. Cassie olhou para baixo, para um ponto onde um pouco de sangue da mão machucada dele havia manchado a camiseta dela.

Ele olhava para ela com tanta intensidade que nem sequer percebera que a estava machucando. Cassie sentiu as faces vermelhas. Ela o acusava, apesar de saber apenas metade da história. Ela gritara com ele, quando ele só estava tentando ajudar. Virou-se de costas, arrasada por ter se descontrolado diante de Alex, diante de seu agente. O que estava pensando? É claro que iria para a Escócia. Tinha o resto de sua vida para lecionar na UCLA.

Alex afastou os cabelos dela da testa. Parecia estar esperando que ela retomasse o bom senso.

- Sinto muito - Cassie disse. - Só queria que você tivesse dito algo. - Ela se afastou dele, deixando aquela sensação incômoda novamente se colocar entre eles. Sorriu envergonhada para Herb e caminhou para o pátio que levava à praia.

- Uau! - Herb disse, ficando em pé e levantando os braços para se alongar. - Acho que nunca vi Cassie desse jeito.

Alex observou a esposa caminhar para a areia clara, com o vento desfazendo suas pegadas com quase a mesma rapidez de seus passos. Ele a viu Pegar uma pedra e jogá-la o mais longe que conseguiu, tentando acertar o sol.

- Não, nem eu - ele disse.

ERA VERÃO DE 1975 e Cassie e Connor estavam deitados de barriga Para cima na doca, raspando os pés na madeira, lançando desafios para ver quem conseguia passar mais tempo olhando para o sol forte.

- Você está roubando - ela disse. - Vi você semicerrar os olhos quando pensou que eu não estava olhando.

- Não estou, não - Connor respondeu indignado. - Você simplesmente não sabe perder.

Ela tinha doze anos e estava com seu melhor amigo, em um daqueles dias absolutamente perfeitos em Moosehead Lake, que passavam muito devagar, dando a impressão de que você estivesse em uma fotografia até que, bum!, de repente terminava. - Nossa! Estou totalmente cega - ela disse.

- Eu também - Connor disse. - Estou vendo tudo preto.

- Sério?

- Sério. - Cassie sentou-se, esticando o braço além de sua vara de pescar, e a de Connor, segurando o osso frágil do punho dele. Ela puxou até saber que ele também estava sentado.

Conhecia Connor desde quando conseguia se lembrar. Ele era seu vizinho e seu pai trabalhava na loja de artigos de pesca na cidade. Eles haviam roubado biscoitos ainda quentes da padaria dos pais de Cassie; estudavam na mesma sala desde a segunda série; haviam aprendido a navegar juntos em um barco Sunfish muito velho comprado com o emprego de entregadores de jornal. Haviam prometido que se casariam, acreditando que qualquer outra pessoa do sexo oposto era uma porcaria; conversavam constantemente sobre fugir para a fronteira do Canadá, só para ver se conseguiriam fazer isso. Seus pais diziam que eles eram a metade um do outro, duas partes de um todo. Cassie gostava muito dessa ideia. Fazia com que ela pensasse em uma foto de seu livro de biologia de um caranguejo-ermitão com uma anêmona-do-mar em suas costas. A anêmona-do-mar, carregada pelo caranguejo, tinha mais chances de encontrar alimentos e o caranguejo ficava mais bem protegido com a picada e a capacidade de camuflagem da anêmona-do-mar. Juntos, eles tinham uma chance muito maior de sobreviver.

Connor ficou em pé.

- Quer pescar?

- De novo? - Cassie disse. - Não.

- Quer correr? - Ele apontou para a costa.

- E as nossas varas?

Connor agachou-se.

- Posso lhe ensinar a dar um mergulho de costas.

Por um segundo, os olhos de Cassie brilharam - Connor sabia fazer tudo quando o assunto era mergulhar. Ele já havia tentado mostrar o mergulho a ela algumas vezes, mas Cassie não era muito boa naquilo. Mas um mergulho de costas...

- Certo - ela disse. - O que devo fazer?

Connor a colocou ao lado dele no dique para que ambos ficassem de costas para a água, os dedos dos pés posicionados bem na beirada. Então ele flexionou os joelhos e fez um mergulho perfeito, cortando a água com as mãos antes de seu corpo mergulhar, como a lâmina prateada de uma faca. Ele subiu à tona ao lado do dique e limpou com a mão uma sujeira de seu nariz. - Agora é a sua vez.

Cassie respirou fundo. Flexionou as pernas um pouco, pulou e escorregou na madeira molhada. A única coisa de que se lembrou por muito tempo depois daquilo foi o terrível barulho causado pelo choque de sua cabeça contra algo duro.

Connor já estava na água quando ela desmaiou, e ele passou um braço pelo peito dela e nadou até a areia. Arrastou Cassie pela areia, e os calcanhares dela deixaram marcas pelo caminho.

Quando abriu os olhos, algo bloqueava sua visão do sol, algo escuro e grande. Connor. Passou a mão na nuca.

Connor olhava para ela como se ela tivesse ressuscitado dos mortos e não apenas desmaiado por um ou dois minutos.

- Você está bem? - Ele perguntou. - Sabe quem eu sou?

Cassie riu; não conseguiu se conter. Como se algum dia ela pudesse esquecer Connor.

- Sim - ela disse. - Você é minha metade.

Connor olhou para ela, seu rosto tão pálido que mostrava que o susto havia sido grande. Por um momento, os dois permaneceram calados. Connor foi o primeiro a dizer:

- Vamos. Precisamos pegar um pouco de gelo para você.

Eles abriram a porta da casa de Cassie, deixando pegadas molhadas e areia pelo caminho até a cozinha. - Teria sido um mergulho perfeito - Cassie disse olhando para trás. - Da próxima vez, acho que... - Ela parou na porta de modo tão abrupto que Connor se chocou contra ela e, inconscientemente, ela se inclinou para ele. Sua mãe estava desmaiada no chão da cozinha, em meio a uma poça do próprio vómito.

Apertando os lábios, Cassie ajoelhou-se ao lado da mãe com um pano de limpeza úmido, limpando seu rosto, boca e sua camisa. De soslaio, viu Connor retirar, discretamente, a garrafa de gin que havia rolado para baixo do refrigerador. Sua mãe tinha de estar na padaria, uma vez que ainda eram três da tarde. Outra briga devia ter ocorrido. Isso significava que não sabia quando ou se seu pai voltaria para casa.

- Mãe? - Cassie sussurrou. - Mãe, vamos. Levante-se. - Passou o braço mole de sua mãe por seu pescoço e tentou levantar o peso morto. Com Connor observando da porta, ela levou a mãe até o sofá da sala de estar e a cobriu com um fino cobertor.

- Cassie? - A voz de sua mãe estava calma e suave, parecida com a de Mariiyn Monroe. Esticou o braço à procura da mão da filha. - Minha filha querida.

Cassie colocou a mão da mãe sob o cobertor e voltou para a cozinha, tentando pensar no que fazer para o jantar. Se tivesse uma refeição pronta quando - e se - o pai voltasse, ele não ficaria nervoso e, se ele não ficasse nervoso, as chances de sua mãe beber até cair de novo eram menores. Cassie ajeitaria tudo.

Connor ficou em pé na cozinha segurando um saco com gelo.

- Venha aqui - ele disse. - A última coisa de que você precisa é que sua cabeça inche ainda mais.

Ela se sentou em uma cadeira e deixou Connor segurar o saco de gelo sobre a curva de seu pescoço. Não era a primeira vez que Connor presenciava aquela cena - ele sabia tudo sobre Cassie -, mas mesmo na primeira vez, ele havia apenas oferecido ajuda e se mantido calado. Não havia olhado para ela com aqueles olhos grandes que ela sabia que demonstravam pena.

A água gelada escorreu entre as omoplatas de Cassie e, apesar do cuidado de Connor, uma dor de cabeça estava começando a surgir. Ela olhou pela janela para o dique flutuante, que parecia tão distante que era difícil de acreditar que ela havia estado ali minutos antes. Cassie suspirou. O problema dos dias absolutamente perfeitos de verão era que eles eram propícios para que coisas ruins acontecessem.

ELA ACORDOU COM ALGUÉM PASSANDO UM gel de aloivera frio em suas pernas.

- Você vai me pagar por isso depois - Alex disse. - Está tão vermelha que me dói só de olhar para você.

Cassie afastou a perna e tentou virar-se, sentindo-se desconfortável com o toque íntimo das mãos de Alex sobre sua pele. Fez uma careta de dor quando tentou dobrar o joelho. - Eu não queria ter adormecido.

Alex olhou para o relógio.

- Eu também não pretendia deixá-la dormindo por seis horas - ele disse. - Depois que Herb foi embora, fiquei ocupado ao telefone.

Cassie sentou-se um pouco afastada de Alex. Ela viu o sol deixar uma faixa de cor diferente no céu. Uma mulher mais velha passeava pela praia com dois weimaraners.

- Alex! - Ela gritou acenando.

- Cassie! Você está se sentindo bem?

Alex sorriu para ela e disse:

- Ela está bem. Bom passeio para você, Ella.

- Ella? - Cassie perguntou. - Ella Whittaker? - Os olhos dela se arregalaram, tentando ver a mulher alta que, cinquenta anos antes, havia sido uma pinup girl e lenda do cinema. - A Ella Whittaker que fez o filme...

- A Ella Whittaker que vive a duas casas abaixo da nossa - Alex disse sorrindo. - Meu Deus! Você precisa recuperar logo a memória, ou vai pedir autógrafos a todos os moradores da colónia.

Durante muitos minutos, ele ficou calado e Cassie sentiu o silêncio se estabelecer entre eles. Queria dizer alguma coisa a Alex, qualquer coisa, mas não sabia sobre que tipo de coisas eles conversavam.

Ao se virar na direção da linha violeta do horizonte, a voz de Alex a envolveu, leve como seda.

- Eu ia lhe contar sobre a UCLA. Puxa vida! Eu nunca a teria conhecido se você não trabalhasse lá, por isso devo muito a eles. Não foi de propósito, apenas me esqueci. - Ele esticou o braço para segurar a mão dela e a levou aos lábios. Seus olhos pareciam pesarosos. - Consegue me perdoar?

"Ele está interpretando." O pensamento invadiu a mente de Cassie com tanta força que ela puxou sua mão livre e virou-se, tremendo. "Como eu sei quando ele está interpretando um papel?"

- Cassie?

Ela olhou para ele, manteve seu olhar e aos poucos amoleceu. Não conseguia pensar na UCLA, sobre quem estava certo e quem estava errado, pelo menos não naquele momento. Ele a estava hipnotizando; ela sabia disso tão bem quanto sabia que havia sido feita para ele, assim como sabia que quaisquer dúvidas que tivesse sobre Alex refletiriam sua falta de bom senso.

Cassie começou a ouvir e a sentir o inesperado: uma mistura de violinos mexicanos em uma melodia suave, o vento úmido do pantanal, a música de cem corações batendo. Pensou em fugir, intuindo que ali começava o fim, mas não conseguiu se mexer, assim como não podia voltar no tempo. Seu mundo estava ruindo e o único lugar para onde ir era em direção a Alex.

- Você me perdoa? - Ele repetiu.

Cassie escutou a própria voz, as palavras nas quais não se lembrava de ter pensado.

- É claro. Não é o que eu sempre faço?

Uma onda lambeu os tornozelos de Cassie, fria e realista. A mágica foi desfeita e ali estavam apenas os dois, ela e Alex, e a situação começava a parecer normal.

- Vim preparado com um suborno - Alex disse. - Eu mesmo fiz. - Ele estava sorrindo para ela e ela devolveu o sorriso, hesitantemente, pensando: "Ele compreende. Ele sabe que me tem na palma da mão. Ele levantou a parte da frente de sua camisa para revelar um pacote quadrado muito bem embrulhado no cós de sua calça. - Aqui está.

Cassie esticou o braço para pegar o pacote, tentando não olhar para os músculos esculpidos e definidos de seu peito. Abriu o embrulho.

- Você fez Para mim marshmallows? Eu gosto deles?

- Não - Alex riu. - Na verdade, você detesta marshmallows, mas é a única coisa que eu sei fazer na cozinha e pensei que certamente você fosse se lembrar disso e ficar com pena de mim. - Ele pegou o doce da mão dela e deu uma mordida. - Eu cresci comendo isso - ele disse, com a boca cheia.

Cassie virou-se para ele, com os olhos brilhando:

- Alex, onde eu fui criada? - Maine. - Ela sabia antes mesmo de ele ter dito a resposta. - E quem era Connor?

Os olhos de Alex se arregalaram, de modo que ela pôde ver o anel dourado dentro de suas íris.

- Seu melhor amigo. Como você... se lembrou de tudo isso?

Ela sorriu, animada.

- Sonhei o tempo todo que passei dormindo - respondeu. - Lembrei de muitas coisas. Do lago Moosehead, de Connor e... de minha mãe. Nós a visitamos? Eu converso muito com meus pais?

Alex engoliu em seco.

- Sua mãe faleceu, e, bem, quando eu a conheci, você me disse que o motivo pelo qual frequentou a faculdade foi para ficar cada vez mais distante do Maine.

Cassie assentiu com a cabeça, como se já esperasse ouvir tudo aquilo. Tentou imaginar quanto Alex sabia sobre seus pais. Se já tivera a coragem de contar tudo a ele.

- Onde estão os seus pais?

Alex virou-se para olhar para o mar. Cassie observou seu perfil e teve uma lembrança repentina - era daquele jeito que ele ficava momentos antes de gravar uma cena, quando sua personalidade sumia de seu corpo e era substituída pelo personagem que ele estivesse interpretando.

- Estão em New Orleans - Alex disse. - Nós não os visitamos com frequência. - Ele esfregou a mão na nuca e fechou os olhos. Cassie tentou imaginar o que ele sentia, o que o fizera se fechar. Para sua surpresa, sentiu um aperto no peito e soube naquele instante que sentira a dor no lugar dele. Quando Alex olhou para ela, velhos fantasmas ainda encobriam seu olhar. - Você não se lembra mesmo de mim, não é? - Ele perguntou.

Ele estava a poucos centímetros, mas ela sentia a linha de calor entre eles, como se estivessem se tocando. Cassie o abraçou, tremendo ao sentir ainda mais a dor dele.

- Não, não me lembro - ela respondeu.

Eles FIZERAM PIPOCA DE MICRO-ONDAS PARA o jantar e assistiram a uma reprise de Monty Python na televisão. Jogaram baralho com cartas que encontraram no quarto de limpeza. Com uma fronha envolvendo sua cabeça, fazendo as vezes de uma touca, Alex interpretou a senhora Macbeth dizendo: "Fora, mancha maldita!" fazendo reverências quando Cassie sorriu e aplaudiu. Os olhos dela estavam brilhando quando ele desceu da mesa

de canto que usara como palco. Ela não conhecia Alex, mas gostava dele. Certamente aquilo já era mais do que muitos casais tinham em seus casamentos.

Alex a puxou para que ficasse em pé.

- Está cansada?

Cassie assentiu, deixando que ele escorregasse os braços ao redor de sua cintura. Enquanto desciam as escadas para o quarto, ela tentou imaginar como dormiriam. Eles eram casados, portanto ele podia dormir onde quisesse; mas ela tivera apenas um dia para se acostumar com ele, e pensou que ele teria a gentileza de ficar em um quarto de hóspedes. Pensou se queria que isso acontecesse.

Diante da porta da suite máster, Alex parou de andar. Cassie afastou-se dele, com os braços tensos ao lado do corpo. Não conseguia olhar para Alex, cujas perguntas, mesmo no silêncio, pareciam encher o corredor.

Ele ergueu o queixo dela e a beijou com delicadeza.

- Boa noite - ele disse e se virou para ir ao quarto de hóspedes algumas portas adiante.

Cassie o observou por um momento, depois caminhou para o quarto e fechou a porta. Tirou a camiseta e o short, jogando as peças na cama de quatro postes enquanto caminhava para o banheiro. Tirando a roupa íntima, ficou diante dos espelhos que pontuavam a parede toda ao lado da pia. Cobriu os seios com as mãos e franziu a testa ao ver sua barriga. Não conseguia imaginar o que Alex Rivers vira nela.

Pegou os frascos e embalagens sobre o balcão - cremes faciais, esponjas de esfoliação e adstringentes que pareciam pertencer tanto a Alex quanto a ela. Cassie já havia lavado o rosto quando percebeu que não havia pasta de dente ali. Havia duas escovas de dente - uma verde, outra azul - e também não sabia qual era a sua.

Procurou nos armários das paredes, mas só encontrou toalhas em tom pastel e dois roupões de banho grossos. Envolveu-se em um deles, passando as mãos pelo algodão pesado. Talvez Alex tivesse pasta de dente no banheiro dele e certamente ia querer sua escova.

Cassie não sabia em qual quarto ele havia entrado e estava prestes a bater em qualquer porta quando escutou a voz dele mais adiante. - A vida não passa de uma sombra errante. - A porta estava entreaberta e, no reflexo do espelho do banheiro, ela viu Alex diante da pia, os olhos vazios. - Um pobre ator que se prepara e se aflige sobre o palco, durante sua hora - ele murmurou, sua voz um pouco mais alta que um sussurro. - E que deixa de ser ouvido.

Surpresa, Cassie apertou as escovas de dente na mão e se inclinou contra a porta para ver um pouco melhor. Aquele não era Alex. Ele havia se transformado em um homem cansado, um homem que via a vida de acordo com o que se tornaria: uma lembrança na mente de alguém, depois algo esquecido.

Cassie conteve a vontade de abrir a porta e envolvê-lo com sua esperança. Não conhecia aquele outro estranho, muito menos do que conhecia Alex, mas compreendia que estava ali para ajudá-lo.

Pensou no que Alex dissera na delegacia, do terror em sua voz: "Não tem ideia de como foi perdê-la". E começou a ver que o famoso Alex Rivers era frágil como qualquer pessoa.

Cassie deu um passo adiante e Alex abriu os olhos, vendo o reflexo dela. Era Alex novamente e sorria, mas nos tons mais escuros de seus olhos ela pôde ver o terror e a apatia de Macbeth. Tentou imaginar se ele sempre era daquele jeito, se todos os personagens se tornavam parte dele. Ela sabia que os atores, em alguns papéis, tinham de enriquecer a atuação, e pensar que havia tanto desespero dentro de Alex a deixava arrasada. - De onde você tira tudo isso? Toda essa dor?

Ele olhou para ela, surpreso com o comentário.

- De dentro de mim.

Ela se moveu primeiro, ou ele o fez, mas logo ele a abraçava e abria seu roupão, passando as mãos pelas laterais de seu corpo. As escovas de dente caíram no chão e Cassie envolveu os cabelos dele em seus dedos, escondendo o rosto em seu ombro. Ela deslizou as mãos pelas costas dele, puxando o tecido da camisa até que suas mãos sentiram a pele quente dele na região da cintura.

Ele beijava com sofreguidão, encostando-a nas paredes e batentes das portas ao voltar para a suite máster. Cassie deitou-se na cama e ele afastou as laterais do roupão pesado, segurando os braços dela ao observar seu corpo. Ele passou a língua pelo contorno da mandíbula dela, nas curvas dos seios, nas linhas brancas de suas coxas.

Cassie abriu os olhos, encantada com a imagem do corpo dele sobre o dela. Alex beijou sua barriga.

- Linda - ele disse.

"Ele está interpretando."

Como acontecera mais cedo naquele dia, o pensamento surgiu do nada e, quando se alojou em sua mente, ela começou a querer afastá-lo. Mas o corpo de Alex estava sobre o dela, pressionando. Ele segurou seu rosto com as mãos e a beijou tão intensamente que ela pensou que fosse parti-la ao meio. E então se lembrou do feitiço que ele aplicara entre eles naquela tarde; o vazio que se abrira como uma ferida em seu ventre quando ela o escutou falar como Macbeth.

No momento em que se uniram, Cassie compreendeu por que eles pertenciam um ao outro. Ele a preenchia e ela afastava suas cicatrizes. Cassie abraçou Alex, surpresa com as lágrimas que escaparam dos cantos de seus olhos. Virou o rosto para a janela aberta, inspirando a doce mistura dos cheiros dela, de Alex e do mar infinito.

Ela estava quase adormecendo quando Alex disse:

- Você não precisa recuperar sua memória, Cass. Sei quem você é.

- É? - Ela perguntou sorrindo. Envolveu seu corpo com o braço de Alex. - Quem sou eu?

Sentiu a tranquilidade de Alex como uma bênção. Ele puxou as costas dela contra seu peito, no lugar exato onde ela se encaixava.

- Você é minha metade - ele disse.

 

Em outra época e lugar, Will Cavalo Alado teria sido um Sonhador.

Ele tinha onze anos quando seus olhos se abriram no meio da noite, enxergando e não enxergando ao mesmo tempo. Era verão, e do lado de fora as cigarras cantavam sob a lua crescente. Mas a cabeça de Will estava tomada pelo trovão e, quando seus avós correram para o lado de sua casa, conseguiram ver os violentos raios azuis refletidos em suas pupilas. Cyrus Cavalo Alado esticou o braço sobre o cobertor de seu neto para segurar a mão da esposa.

- Wakan - ele murmurou. - Sagrado.

Apesar de muitas coisas terem mudado para os sioux com o passar dos anos, certos hábitos não eram perdidos. Cyrus era um homem criado em reserva, que havia testemunhado o desenvolvimento da televisão e dos automóveis e que, um mês depois, veria um homem caminhar na lua. Mas ele também se lembrava das coisas que seu pai lhe dizia a respeito dos índios sioux que tinham visões. Sonhar com trovão era algo forte. Se o sonho fosse ignorado, a pessoa podia ser atingida pelo raio.

E foi por isso que, certa manhã em 1969, o avô de Will Cavalo Alado o levou até o xamã, Joseph Cabanas ao Sol, para falar sobre a possibilidade de o neto se tornar um Sonhador.

Joseph Cabanas ao Sol era mais velho do que o mundo, pelo menos era o que diziam. Ele se sentou com Cyrus e Will sobre um banco comprido e baixo que se estendia por toda a cabana de madeira. Enquanto ele falava, ia entalhando, e Will observou a madeira tomando o formato de um cachorro, depois de uma águia, depois de uma menina bonita, mudando a cada movimento das mãos do xamã.

- Na época de meu avô -, Joseph disse -, um menino como você procurava por uma visão quando estava pronto para ser tratado como um homem. E, se ele sonhasse com o trovão, se tornaria um heyoka.

Joseph olhou para Will e pela primeira vez Will percebeu que os olhos do homem eram diferentes de qualquer outro olho que ele já tinha visto. Não havia íris. Apenas pupilas negras e insondáveis.

- Sabe disso, garoto?

Will fez um movimento afirmativo com a cabeça; seu avô só falara sobre isso no caminho até a cabana do xamã. Cem anos antes, os heyokas haviam sido "palhaços" tribais, homens que agiam de maneira estranha. Alguns se locomoviam apenas de costas, alguns falavam um idioma diferente. Eles se vestiam com trapos, dormiam sem cobertores no inverno e envolviam-se em peles de búfalo no verão. Mergulhavam as mãos em água fervente e as tiravam sem nenhuma marca, provando que eram mais poderosos do que os outros homens. Às vezes, eles recebiam uma visão dos espíritos, que os alertavam acerca de um perigo ou da morte de alguém. Como heyokas, tinham o poder de evitar que essas coisas acontecessem; mas, por serem heyokas, não recebiam nada em troca de seus esforços. Will escutara pacientemente o seu avô e o tempo todo ficou pensando que estava muito feliz por eles estarem no ano de 1969.

- Bem - disse Joseph Cabanas ao Sol -, você não pode ser um heyoka; estamos no século XX. Mas você terá seu sonho de trovão.

Três noites mais tarde, Will estava sentado, nu, em uma espécie de sauna na frente de Joseph Stands in Sun. Ele já havia visto um daqueles abrigos onde se encontrava; às vezes, os adolescentes as construíam e fumavam peiote dentro delas e ficavam tão alucinados que corriam nus pelos campos e mergulhavam em riachos de água congelada. Mas Will nunca antes havia estado dentro de uma. De vez em quando, Joseph remexia nas pedras em brasa que eram usadas para criar calor. Na maior parte do tempo, cantava e entoava sílabas que cresciam e explodiam como foguetes a centímetros dos olhos de Will.

Conforme amanhecia do outro lado da planície, Joseph levou Will para o topo de um planalto. Will preferiria estar em qualquer outro lugar que não fosse aquela área rochosa, nu, mas sabia que não deveria contrariar seu avô nem Joseph. Respeite os mais velhos, era o que ele tinha aprendido. Tremendo, Will seguiu as instruções que lhe eram dadas. Encarou o sol com os braços abertos, mantendo-se bem parado e tentando ignorar o mato que assoviava com o movimento de Joseph. Ficou em pé durante quatro horas até que o sol começou a se pôr, até que suas pernas não aguentaram mais e ele caiu. Curvou-se para o lado e começou a chorar. Sentiu o planalto tremer, o céu derreter.

No segundo dia, uma águia sobrevoou sua cabeça, vinda do leste. Will observou-a fazendo voos circulares, movendo-se com tanta demora que durante minutos ela parecia estar suspensa ao alcance de um braço. - Ajude-me - ele sussurrou e a águia passou por ele. "Você escolheu uma vida difícil, ela gritou e em seguida desapareceu.

Horas devem ter se passado; podem ter sido dias. Will estava com tanta fome e fraqueza que teve de forçar sua respiração. Nos momentos em que sua mente estava lúcida, ele xingava o avô por acreditar naquele tipo de bobagem; xingava a si mesmo por ser tão facilmente influenciado. Pensou nos testes para entrar no time de beisebol da escola da primavera passada, na revista Playboy que ele havia escondido sob seu colchão, no cheiro do creme preparado pela mãe. Pensou em tudo que parecia muito distante de seu estilo de vida sioux.

Estamos chegando, estamos chegando. As palavras ressoavam sobre a planície, envolvendo o pescoço de Will e fazendo com que ele se levantasse. Bem acima dele havia uma nuvem escura. Exausto, faminto, delirando, ele jogou a cabeça para trás e abriu os braços, oferecendo-se em sacrifício.

Quando começou a trovejar sobre sua cabeça, percebeu que não estava no chão. Mais acima e olhando para baixo, Will viu a menina. Ela era pequena e magra e estava correndo em uma nevasca. De vez em quando os ventos fortes a envolviam, impedindo Will de vê-la. Ele pensou que ela estava fugindo de alguém ou de alguma coisa, mas então a viu parar. Ela ficou no centro da tempestade, com os braços abertos. O tempo todo, ela tentava encontrar o centro.

- Ajude-a - Will disse e escutou as palavras ecoarem cem vezes a seu redor. Estava no chão de novo. Sabia que não se lembraria de nada daquilo. Sabia que, mesmo quando já estivesse adulto, aquele seria o pesadelo que se manteria em sua consciência muitos minutos depois de acordar.

Quando a chuva começou, Will gritou. Com os olhos arregalados, ele viu um raio dividir o céu, dividindo seu mundo em partes iguais que se quebravam a seus pés.

ATÉ MESMO O SOL AMAVA ALEX. CASSIE TOCOU o rosto dele com os dedos, encantada com o fato de o único raio de luz que entrava pela janela ter ido parar diretamente sobre ele. Sua pele era morena, a barba aparecia e havia uma pequena cicatriz sob seu queixo. Ela tentou se lembrar de como ele havia se ferido. Observou os olhos dele se mexendo, mesmo fechados e se perguntou se ele podia estar sonhando com ela.

Saiu da cama, tomando cuidado para não acordá-lo. Sorrindo, envolveu o corpo com os braços, pensando que devia ser alvo da inveja de todas as mulheres dos Estados Unidos. Se ainda lhe restassem dúvidas a respeito da veracidade de seu casamento com Alex, todas haviam sumido na noite anterior. Duas pessoas não fariam amor daquela maneira se não tivessem uma história juntas. Cassie riu. Se seu coração parasse de bater naquele instante, poderia dizer que tinha vivido uma boa vida.

"É um bom dia para morrer." As palavras a assustaram e ela sentiu um arrepio antes de perceber que não havia dito aquilo em voz alta. Recuperando-se, entrou no banheiro e se olhou no espelho, levando os dedos ao lábio inferior protuberante.

Uma palestra. Aquela tinha sido a frase de abertura de uma palestra a que ela assistira, realizada por um colega da UCLA. Cassie apoiou as mãos na pia de mármore, respirando com alívio ao perceber que não havia lhe ocorrido um agouro, mas, sim, uma lembrança verdadeira. Tratava-se de um curso sobre cultura indígena, e aquela frase fazia parte da oração ritualística feita pelos guerreiros tribais das planícies antes de ir para a batalha. Cassie lembrou que disse ao professor que ele sabia como prender a atenção da plateia.

Ela tentou imaginar o que Will podia estar fazendo. Era manhã de quinta-feira; ele provavelmente estava indo para o trabalho. Will dera-lhe seus números de telefone. Talvez, mais tarde, ela telefonasse para ele na delegacia, para contar que vivia em um castelo em Malibu e que estava de viagem marcada para a Escócia.

Cassie escovou os dentes e passou um pente pelos cabelos, posicionando cada item com cuidado sobre o balcão para não perturbar o sono de Alex. Voltou para o quarto na ponta dos pés e sentou-se em uma poltrona em um canto.

Alex estava roncando baixo. Ela observou sua respiração por um momento, ficou em pé e caminhou para o armário do outro lado do quarto, onde estavam todas as roupas dele. Abriu a porta e prendeu a respiração.

O armário de Alex era vinte vezes mais bem organizado do que o dela. No chão, na parte dos sapatos, havia filas de tênis, sapatos italianos e sapatos de couro preto. Uma parte lateral ostentava blusas, peças de lã shetland e norueguesa de um lado e de algodão do outro. Suas camisas estavam dispostas em cabides de cedro. Uma gaveta de roupas íntimas no canto do closet guardava de modo organizado cuecas de seda dobradas e meias, separadas por divisões.

- Meu Deus - Cassie sussurrou. Passou o dedo pela fileira de camisas, escutando o som dos cabides em contato uns com os outros. Era de esperar que o armário fosse organizado, principalmente porque ele contava com os serviços de uma boa faxineira. Mas alguma coisa fazia com que aquele armário cruzasse o limite entre a meticulosidade e a obsessão.

As blusas. Elas estavam separadas por material e dobradas com cuidado, mas também estavam organizadas por cores. Como um arco-íris. Até mesmo as blusas com estampas estavam dispostas na ordem das cores predominantes.

Ela deveria rir. Afinal, aquilo era tão estranho que chegava a ser engraçado. Era motivo para piadas.

Mas Cassie sentiu os olhos ficarem marejados. Ajoelhou-se diante das fileiras de sapatos, chorando quase em silêncio, puxando uma blusa de seu lugar e colocando-a na boca para abafar o som. Curvou-se, com o estômago embrulhado, e disse a si mesma que estava ficando louca.

Era o estresse acumulado dos últimos dias, ela concluiu ao secar o rosto. Caminhou até o banheiro e fechou a porta. Abriu a torneira e deixou que a água ficasse tão fria a ponto de deixar a pele dos pulsos anestesiada e então lavou o rosto, esperando começar de novo.

DURANTE DIAS ELES VINHAM FALANDO SOBRE a nevasca. Chegaria depois das quinze horas na sexta-feira. Seria a tempestade do século. Vocês devem encher suas banheiras com água, o meteorologista dissera. Comprem pilhas e lenha. Peguem as lanternas.

As coisas só ficariam melhores se a nevasca chegasse no domingo, Cassie pensou, pois assim as aulas de segunda-feira seriam canceladas.

Cassie caminhou até a cozinha. Estivera na casa de Connor a tarde toda, mas havia prometido à mãe que voltaria para casa antes que os primeiros flocos de neve caíssem. A mãe de Cassie morria de medo de neve. Havia sido criada no estado da Geórgia e vira neve pela primeira vez depois de sua mudança para o Maine, quando se casou. Em vez de agir para se precaver na ocorrência de uma tempestade de inverno - como a mãe de Connor, que havia separado velas e comprado mais litros de leite no mercado do bairro -, Aurora Barrett ficava sentada à mesa da cozinha com os olhos arregalados, escutando a previsão do tempo em seu rádio e esperando ser enterrada viva.

A única coisa que Aurora gostava a respeito da região nordeste do país era o fato de poder acusar o marido de tudo que havia acontecido de ruim em sua vida. Cassie sabia desde pequena que sua mãe detestava o Maine, que não queria ter se mudado para lá, que não queria ser a esposa de um padeiro. Ainda sonhava com uma casa com gramado que se estendesse até um rio, com um banco sob cerejeiras, com o sol escaldante do sul. Enquanto Cassie observava, escondida, sua mãe discutia com Ben e perguntava por quanto tempo eles continuariam ali, pois havia dez anos ele prometia uma mudança.

Na maior parte do tempo, seu pai se mantinha impassível, apenas escutando as reclamações de Aurora. Tecnicamente, era culpa dele; ele havia prometido à esposa que, assim que conseguisse vender a padaria por um bom preço, eles voltariam para a terra dela. Mas a padaria dava prejuízo todos os anos e a verdade era que seu pai, no fundo, não tinha intenção de sair de New England. Ben dera apenas um conselho a Cassie na infância: "Antes de decidir o que quer ser, decida onde quer estar."

A neve só começou a cair naquela noite, na hora de dormir, e, quando acordou de manhã, o mundo havia mudado. Do lado de fora, um gramado branco se estendia até a janela de seu quarto, e os montes e ladeiras haviam sido encobertos, fazendo com que ela quase perdesse o senso de direção. Pegou uma maçã e a guardou no bolso; em seguida, sentou-se à mesa da cozinha para calçar as botas.

Escutou a discussão claramente, apesar de ela estar ocorrendo no quarto dos pais, no andar de cima.

- Venda a padaria - a mãe o ameaçava. - Ou não sei o que sou capaz de fazer.

O pai respondeu:

- O que mais você pode fazer que ainda não fez?

- Cassie se assustou quando uma rajada de vento lançou neve no vidro da janela diante dela.

- Por que não volta para a sua casa?

Voltar para casa. Cassie arregalou os olhos. Durante um longo momento fez-se silêncio, exceto pelos ruídos da tempestade. Até que ela escutou a mãe dizer:

- Não estou me sentindo bem hoje, nada bem. - Em seguida, ela escutou o som inconfundível da garrafa de uísque sendo retirada da prateleira onde Aurora a mantinha. Quanto mais ela bebia, menos o pai de Cassie conseguia tolerá-la. Era um círculo vicioso.

- Jesus Cristo - o pai de Cassie disse amargamente e desceu correndo as escadas. Estava vestido pronto para enfrentar a nevasca. Olhou para Cassie e fez um carinho em seu rosto, quase um pedido de desculpas.

- Cuide dela, certo, Cassie? - ele disse, mas, antes que ela pudesse responder, partiu.

Cassie terminou de calçar as botas e cozinhou um ovo, com a gema mole, do jeito que a mãe gostava. Levou o alimento com uma fatia de pão até o quarto, pensando que, se a mãe estivesse alimentada, a embriaguez não seria tão ruim.

Quando Cassie abriu a porta, Aurora estava deitada sobre a cama, com o braço sobre os olhos.

- Oh, Cassie - ela sussurrou. - Querida, por favor. A luz.

Cassie entrou de maneira obediente, fechando a porta. Sentiu o aroma adocicado do uísque tomando conta do cômodo, com vestígios da raiva do pai.

Aurora olhou para a bandeja de café da manhã que Cassie levara e começou a chorar.

- Ele te disse aonde ia? Está lá fora, nessa... nessa nevasca... Ela esticou o braço na direção da janela para sustentar seu argumento. Em seguida, apoiou atesta na mão, esfregando a ponta do nariz. - Não sei por que isso acontece. Simplesmente não sei.

Cassie olhou para os olhos da mãe, vermelhos e inchados, e colocou as mãos na cintura.

- Levante-se.

Aurora virou-se para a filha e perguntou:

- Como?

- Eu disse para você se levantar. - Ela tinha apenas dez anos, mas se tornara adulta havia muito tempo. Cassie tirou a mãe da cama e começou a lhe dar as roupas: uma blusa de lã de gola comprida, outra blusa, meias felpudas. Depois de um momento de incredulidade, Aurora começou a obedecer, silenciosamente aceitando o que lhe era dado.

Quando Cassie abriu a porta da casa, Aurora deu um passo para trás. O frio do inverno a acompanhou para dentro de casa.

- Vá - Cassie exigiu. Ela foi para a neve, rindo por um momento ao sentir o vento nas pernas. Virou-se para a mãe disse: - Estou falando sério.

Foram precisos quinze minutos para que Aurora caminhasse mais de um metro e meio a partir da varanda. Estava tremendo e seus lábios estavam quase roxos, por não estar acostumada a ficar sob uma tempestade. O vento arrancou o chapéu de Cassie e fez com que ele saísse voando na neve. Ela viu a mãe abaixar-se, como uma criança, e tocar o chão.

Cassie pegou um punhado de neve e fez uma bola bem-feita.

- Mãe - ela gritou, um momento de alerta, e lançou a bola com o máximo de força que pôde.

A neve atingiu Aurora no ombro. Ela ficou em pé, parada, piscando, sem saber o que havia feito para merecer aquilo.

Cassie abaixou-se de novo e fez uma pilha de bolas de neve. Jogou uma depois da outra na mãe, deixando marcas no ombro, no seio e na coxa da mãe.

Cassie nunca tinha visto nada parecido com aquilo. Parecia que sua mãe não tinha ideia do que se esperava dela. Como se não tivesse ideia do que fazer, Cassie cerrou os punhos do lado do corpo.

- Revide! - Ela gritou, com as palavras congeladas no frio. - Que droga! Revide!

Ela se abaixou de novo, mais lentamente dessa vez, esperando que a mãe imitasse seus movimentos. Aurora estava meio lenta por causa da bebida e balançou ao ficar ereta, mas tinha uma bola de neve na mão. Cassie observou quando a mãe impulsionou o braço para trás e para a frente e lançou a bola.

A neve acertou em cheio o seu rosto. Cassie tirou o gelo de seus cílios. Sua mãe já estava criando um arsenal de bolas de neve. Na neve cegante, os olhos de Aurora não estavam mais tão vermelhos; no frio, seu corpo já estava se movimentando com um pouco mais de ritmo.

Cassie apurou os ouvidos e escutou um barulho além do uivo do vento. Era um som claro, o riso de sua mãe, e ficou mais alto e mais leve ao sair de onde estava preso. Sorrindo, Cassie entregou-se à neve, com os braços esticados, oferecendo-se para os golpes leves e gentis.

SEMPRE QUE Will ACORDAVA COM OS LENÇÓIS ENROLADOS na cintura e com o peito coberto de suor, sabia que tinha sonhado com o trovão. Mas não pensava nos detalhes; na verdade, com o passar dos anos, apesar de o número de sonhos ter aumentado, ele achava cada vez mais fácil esquecê-los. Ele se levantava e tomava um banho, mandando embora com o suor as lembranças que o ligavam aos sioux.

Por ter sido escalado para o turno da quinta-feira à noite, Will dormiu até mais tarde e sonhou com o trovão até que o telefone o acordou.

- Aqui é Francês Bean, da biblioteca - a voz disse. - Temos aqui o material que o senhor pediu.

- Não pedi material algum - Will começou a dizer, esticando-se para devolver o telefone à sua base.

- ...antropologia.

A palavra foi tudo o que ele escutou, quase inaudível, e ele levou o telefone de volta à orelha.

A biblioteca era pequena, escura e silenciosa como um túmulo na quinta-feira de manhã. Depois de se identificar na mesa da recepção, Will recebeu uma pilha de jornais presos por um elástico.

- Obrigado - Will disse à bibliotecária, indo para um local onde pudesse ler as matérias sobre Cassie.

Duas delas eram de revistas técnicas. A terceira era da National Geographic e composta por dezenas de fotografias da ilustre doutora Cassandra Barrett no ponto de escavação na Tanzânia, de onde a mão havia sido retirada. Will rapidamente leu a importância da mão para a antropologia e sua ferramenta de pedra, mas não descobriu nada que Cassie já não tivesse mencionado.

"A doutora Barrett, jovem o bastante para se passar por uma das alunas da UCLA que ela leva aos pontos de escavações, admite que se sente mais à vontade em um local de escavação do que dentro de uma sala de aula." Will leu as palavras em silêncio, olhando para a foto de Cassie agachada, tirando a Poeira de um osso comprido e amarelo. Will leu a última linha da reportagem: Em uma área dominada por homens, a doutora Barrett é líder, sem dúvida".

- Que arrogante - ele murmurou. Olhou a página, procurando outra foto de Cassie. Não encontrando nenhuma, voltou para o início da reportagem. Na página 36 da revista havia uma foto da mão; e, embaixo dela, para fins de comparação, estava a mão de Cassie. Outra foto dela ocupava o restante da página. Ela estava na sombra, com o sol atrás dela, o tipo de foto que os fotógrafos da National Geographic gostavam, e seu queixo estava um pouco levantado. Will tocou a garganta dela com o polegar. A foto estava escura demais para mostrar os olhos. Ele daria tudo o que fosse preciso para vê-los.

Tentou imaginar como uma mulher perfeitamente à vontade nas savanas africanas também conseguia se sentir feliz sendo perseguida por paparazzi. Ele tentou descobrir como era escrever um artigo para uma publicação e depois ler o Enquirer e encontrar uma matéria com histórias que difamavam o caráter de seu marido. Tentou imaginar como Alex Rivers tinha conhecido Cassandra Barrett; o que faziam nos domingos de manhã. Sobre o que conversavam à noite, abraçados, quando não havia mais ninguém por perto.

Will deixou as matérias sobre a mesa, tudo, exceto a página com a foto de Cassie de lado. Dobrou a foto e, enquanto a bibliotecária se distraiu com o computador, a enfiou no bolso de sua calça jeans. Pensou em voltar para a casa com a foto, e sabia que a imagem ficaria cada vez mais apagada, até que ele não mais conseguiria ver o rosto dela.

 

Cassie abriu a porta de entrada do apartamento e viu a mulher mais linda do mundo. A princípio, não fez nada além de olhar para o cabelo comprido e reluzente da moça; seus olhos verdes. Ela vestia uma camisa de seda verde, uma boina de caxemira e um grande lenço enrolado duas vezes em seu corpo, servindo de saia.

- Consegue acreditar, Cass? - Ela disse com a voz fina e aguda que não combinava nada com ela. Passou por Cassie, segurando o braço direito com o esquerdo, como se quisesse se livrar dele.

O braço dela estava preso do pulso ao ombro em um gesso preto.

- O que eu devo fazer a respeito de Clorox? - Ela perguntou.

- Clorox? - Cassie murmurou, subindo os degraus atrás da mulher, observando aquela desconhecida pegar um copo de suco de laranja de dentro da geladeira.

A mulher disse:

- O que houve? Alex manteve você acordada metade da noite falando sobre si mesmo de novo?

Cassie ficou em alerta. Não sabia quem era aquela mulher, mas Alex havia sido muito gentil. No dia anterior, enquanto Cassie dormia na praia, ele havia pedido ao motorista, John, que buscasse todos os álbuns de fotos e retratos que pudessem ser encontrados na casa. Quando ela acordou, Alex sentara-se ao seu lado na biblioteca escura e silenciosa. Ele havia dado nomes a rostos familiares, delineado um passado para Cassie de maneira simples. Ele dera longas descrições a respeito dos momentos mais importantes e Cassie recostara-se no ombro dele, fechara os olhos e observara sua vida se revelar em formas e cores.

A mulher bebeu todo o suco de laranja, sentou-se em um banquinho de madeira e encaixou as pernas nas barras de apoio da base. Cassie estreitou os olhos, tentando se lembrar de uma foto que Alex mostrara a ela no dia anterior de um álbum que ela havia montado com fotos dos colegas da faculdade.

- Você não era loira? - Cassie perguntou.

A mulher franziu o nariz.

- Há um zilhão de anos. Meu Deus! O que aconteceu com você?

Alex chegou tão discretamente por trás de Cassie que ela só percebeu sua chegada pela sombra que projetou na mulher à sua frente. Ele tinha apenas uma toalha enrolada na cintura.

- Ophelia - ele disse friamente, abraçando Cassie. - Nada como vê-la logo de manhã.

- É - Ophelia respondeu. - O prazer é meu.

Fascinada, Cassie olhou para eles, analisando Ophelia de novo. Não era à toa que não se sentira ameaçada. A mulher mais bonita que Cassie já vira havia aparecido em sua casa, mas ela mal prestou atenção a Alex, e este só queria sair dali.

Alex apontou para o gesso no braço de Ophelia.

- Tendinite? Esforço exagerado? Algum outro acidente de trabalho?

- Vá se danar - Ophelia disse. - Escorreguei na calçada. Alex deu de ombros.

- Poderia ser pior.

- Pior? Vou gravar um comercial na próxima semana, um comercial que será transmitido ao país todo do produto de limpeza Clorox, com meu braço direito despejando alvejante em uma maldita tampa medidora...

- Você é atriz também?

A pergunta de Cassie fez com que Ophelia interrompesse o que dizia. Olhou para Alex e disse:

- O que você fez com ela?

Alex sorriu para Cassie, reconfortando-a.

- Você lê os jornais, Opie, ou isso está além da sua capacidade intelectual?

- Ler dá pés de galinha. Assisto ao noticiário na televisão.

Alex recostou-se na ilha de mármore da cozinha, com os braços cruzados.

- A Cassie sofreu algum acidente domingo passado e bateu a cabeça. Foi encontrada por um policial em um cemitério e não se lembrava do próprio nome. Ainda está recuperando a memória aos poucos.

Os olhos de Ophelia se arregalaram ao olhar para Cassie. Em seguida, voltou-se para Alex:

- Que conveniente para você - ela disse. - Sem dúvida você está se fazendo de santo.

Alex ignorou o comentário, inclinou-se e beijou a testa de Cassie.

- O nome dela é Ophelia Fox, e não se trata do nome verdadeiro... mas pouca coisa é verdadeira nela atualmente. Ela é modelo de mãos; foi sua melhor amiga na faculdade e dividia um quarto com você quando nos conhecemos e, até onde sei, ela é seu único defeito. - Ele ajeitou a toalha na cintura e caminhou em direção à escada. - E Ophelia - ele disse com um sorriso -, se você ficar bem boazinha, posso autografar seu gesso.

Cassie tentou imaginar como uma estudante de antropologia conseguiria conhecer alguém como Ophelia Fox, mas, antes de poder fazer a pergunta, Ophelia se aproximou. Passou os dedos longos no corte em cicatrização da têmpora de Cassie.

- Graças a Deus, acho que não vai ficar uma cicatriz.

Cassie começou a rir. Aquela era a última de suas preocupações. Deu um passo para trás, observando Ophelia:

- Você é linda - ela disse com sinceridade.

Ophelia balançou a mão para ignorar o elogio.

- Meus olhos são muito próximos um do outro e meu nariz é torto cerca de meio centímetro para a direita. - Ela levantou a mão esquerda, branca, quase sem pelos, com cinco unhas bem pintadas em estilo francesinha. - Mas minhas mãos são lindas. A cada vez eles usam um pouco mais do meu corpo. Da última vez, mostraram até meus ombros, por isso acho que é só uma questão de tempo.

Nem mesmo Alex, a quem Cassie considerava um grande astro, não era tão apaixonado por si mesmo quanto Ophelia. Mas ela parecia tão séria mostrando as mãos que Cassie sorriu.

- Quer mais suco? - Ela perguntou, apontando para o copo vazio.

Ophelia caminhou até um armário e enfiou sua mão ali, procurando e encontrando um muffin.

- Eu me viro. Conheço as coisas por aqui.

- Ótimo - Cassie disse. - Talvez possa me ensinar.

Ophelia afastou-se do forno elétrico, demonstrando ansiedade.

- Puxa, Cass! Quanto tempo isso vai demorar? Deve ser terrível.

Cassie deu de ombros.

- Tenho Alex aqui.

- Que grande ajuda - Ophelia disse.

Cassie ficou diante de um balcão e começou a cortar um morango em oito finas fatias. Cortou de modo metódico, escutando a faca batendo no mármore a cada corte.

- Por que vocês se detestam? - Ela perguntou.

Cassie não teve certeza se Ophelia não queria responder à pergunta ou se não a escutara.

- Manteiga? - Ophelia disse. Fechou os olhos como se tentasse adivinhar sua localização e abriu um compartimento da geladeira. Ah! - disse. Tentou segurar o muffin com o braço lesionado enquanto passava a manteiga com o outro, mas o bolinho sempre lhe escapava.

- Deixe-me fazer isso - Cassie disse.

Ela entregou metade do muffin a Ophelia, que olhava para o braço como se este fosse um objeto desconhecido.

- Ainda não posso aplicar pressão com ele. Isso está me deixando maluca. E coça demais!

- Como você se feriu?

Ela deu de ombros.

- Era o fim de um dia horrível. Eu estava em uma sessão de fotos para a revista Parents e havia passado a tarde toda segurando várias crianças de três meses de idade e sem roupa... - Ela esticou os braços para demonstrar. - Bem, eles estavam tirando fotos que pegassem o bumbum do bebê e minhas mãos em suas axilas. Até que uma criança - um menino -, começou a fazer xixi em mim. E eu estava vestindo uma saia de seda que comprei na Versace mês passado... lembra? Eu a mostrei a você... e sei que a mancha não vai sair. - Ela parou, dando uma mordida no muffin. - E eles me disseram que iriam me avisar se - se - decidissem usar as fotos para a edição do próximo mês. Então eu saí do estúdio e estava chovendo muito e, quando vi já estava no chão, no meio de uma poça de lama. Caí em cima do meu braço e fiquei morrendo de dor. - Ela sorriu. - Mas marquei um encontro com o médico de plantão na emergência. - Ela se virou para Cassie: - Você sabia que eles não fazem apenas gessos brancos? Dá para escolher a cor: rosa, verde, até roxo. Escolhi a cor preta, porque combina com a maior parte de minhas roupas de sair à noite.

Cassie recostou-se no balcão, cansada de escutar a explicação de Ophelia.

- Mas já falei demais sobre mim. - Ela sorriu e Cassie viu que ela estava certa, seu nariz era um pouco torto, mesmo. - Como estão seus ossos?

- Ossos?

- Meu Deus, Cass, você só tem falado sobre sua viagem a campo deste semestre. Pensei que isso estivesse tão enraizado em sua mente que nem mesmo um coma faria com que você esquecesse. Você vai para... deixe-me pensar... Quênia, creio eu, em maio, com os formandos.

- Não tenho ido à UCLA ultimamente. Alex precisa voltar para as gravações de Macbeth, por isso decidimos que eu pediria uma licença para acompanhá-lo.

- Nós decidimos? - Ophelia balançou a cabeça. - Você quer dizer que ele decidiu. Você nunca acompanha Alex nas filmagens. Muito menos durante o ano letivo. Você deve ter perdido mais do que a memória, porque a Cassie que eu conheço não toleraria perder dois dias seguidos de aula sem sofrer uma apoplexia. - Ophelia sorriu. - Talvez eu devesse levá-la para a universidade hoje, trancá-la em seu escritório velho e empoeirado por uma hora ou duas com suas pesquisas e depois disso Alex teria que arrastá-la para a Escócia.

Cassie sentiu que apertou a faca que segurava. Não tinha por que acreditar mais em Alex do que em Ophelia, mas acreditava. Engoliu em seco e colocou a faca sobre o balcão da cozinha, ao lado do morango fatiado. Passou o dedo sobre uma poça vermelha de suco e sementes; a essência da fruta, o sangue.

- Por que você e Alex se detestam? - Ela perguntou de novo.

Ophelia suspirou e disse:

- Porque Alex e eu somos muito parecidos para nos darmos bem. Estamos em níveis diferentes, porém na mesma área. Ambos somos obcecados por trabalho. E ambos queremos você com exclusividade.

Cassie riu, mas o som parecia meio forçado.

- Que maluquice - ela disse. - Você é minha amiga. Ele, meu marido. Há bastante espaço para os dois em minha vida.

Ophelia recostou-se na ilha no meio da cozinha, erguendo a cabeça.

- Diga isso ao Alex. Desde o primeiro dia parece que ele quer engoli-la inteira.

COMO SE ESTIVESSE ESCUTADO A CONVERSA, ALEX VOLTOU da rua naquela manhã trazendo uma caixa cheia de ossos. Ele fingiu que ela estava pesada ao caminhar em direção a Cassie. Ela estava sentada à mesa da cozinha, observando álbuns de fotos, passando os olhos por uma foto velha de um menino loiro. Ele era esguio, prestes a desenvolver-se fisicamente, e ele abraçava Cassie. Ela tinha treze anos naquela foto, mas não havia aquele distanciamento comum aos adolescentes, entre meninos e meninas. Na verdade, pela foto, era possível ver que eles eram bem próximos.

Cassie não olhou para Alex, não percebeu a caixa de madeira com suas etiquetas de nomes científicos.

- Alex - ela disse. - Onde Connor vive atualmente? Por que não tenho contato com ele?

- Não sei. Ele é a única coisa sobre a qual você se recusa a falar.

Cassie passou o dedo sobre uma fina mecha de cabelo que batia no rosto de Connor.

- Deve ter sido alguma briga, uma daquelas brigas de criança que nos deixam arrasados por anos, mas que sentimos vergonha de resolver.

Alex abriu a caixa.

- Duvido. Você é louca para resolver as coisas. - Ele jogou diversos ossos no ar, pesados e amarelados, e Cassie os pegou como uma experiente malabarista. - E aqui - ele disse - estão alguns pedaços para você pegar.

Ele espalhou o conteúdo da caixa sobre a mesa de jantar, cobrindo com eles as páginas à mostra dos álbuns.

- Não diga que nunca lhe dou nada - ele disse sorrindo.

Cassie retirou o pano de algodão macio e o jornal que eram usados para transportar as peças, passando os dedos por cerca de cinquenta fragmentos de ossos. Todas estavam marcadas com tinta nanquim em uma letra de mão deitada para o lado esquerdo, aparentemente feita por alguma pessoa inglesa, marcando o túmulo, o local e a data da descoberta.

- Oh, Alex - ela disse. - Onde você conseguiu tudo isso?

- Cambridge, Inglaterra - ele disse. - Pela Cornualha, de acordo com o laboratório de onde o comprei.

- Você comprou um esqueleto para mim?

Alex passou a mão pelos cabelos.

- Você não faz ideia do que tive de fazer para convencê-los a me deixar trazer isso para casa. Precisei conversar com um tal de doutor Bother...

- Doutor Botner?

- Esse mesmo... precisei fazer uma enorme "contribuição", dizer a ele quem você era e convencê-lo de que eu tinha certeza de que você acabaria enviando o esqueleto de volta para ser exibido em um museu, e não o manteria na casa de um ator qualquer. - Ele pegou um pedaço de algodão e o rasgou distraidamente. - E, para deixar tudo em segredo, tive de fazer a negociação pelo telefone nos seis minutos em que você ficou longe de mim.

Cassie olhou para ele:

- Você fez isso ontem?

Alex deu de ombros.

- Eu o comprei na Escócia. Mas apressei o envio ontem. Não sabia quanto tempo você levaria para se sentir normal novamente e queria que aqui você se sentisse à vontade.

Cassie sorriu e, como sempre, ele se perguntou por que os fotógrafos sempre se apressavam em registrar uma imagem dele e não dela. Se os traços dele refletiam alguma coisa, era a luz irradiada por Cassie.

- É claro que qualquer outra mulher ficaria feliz com um buquê de flores - ela disse.

Alex observou Cassie começar a separar os ossos do esqueleto por ordem de tamanho.

- Eu não trocaria você por nada no mundo - ele disse.

Cassie estava desenrolando a mandíbula. Parou, olhou para suas mãos e em seguida ficou em pé e inclinou-se para beijar Alex:

- Devo ser a pessoa mais sortuda da Califórnia - ela disse.

Alex entregou-se ao momento, aproveitando o que ela dissera e a forte sensação de sentir a pele dela contra a dele. Ele não soube o que dizer a ela; nunca sabia o que dizer; estava acostumado a dizer o que os outros escreviam. Gostaria de ter aprendido, muito tempo antes, como expressar o sentimento de que, se ela fosse embora, se partisse, ele deixaria de existir. Mas não conseguia dizer isso, então fez o que sempre fazia: entrou em um personagem, o primeiro que lhe ocorria, disposto a fazer qualquer coisa, menos encarar seus limites.

Ele se afastou e mudou o humor: comédia leve, dessa vez. Olhando para os ossos espalhados, ele ergueu uma sobrancelha e disse:

- Você tem mais sorte do que ele teve.

Ele deixou Cassie separando os ossos em cinco fileiras, além da mandíbula e desceu as escadas para buscar a segunda metade do presente: a pistola de cola e a plasticina, além de uma caixa de areia que ela usaria para apoiar as peças do esqueleto enquanto o montava. Ele havia pegado tudo aquilo do laboratório que ela tinha na casa.

Quando voltou, Cassie já havia separado diversos pedaços de ossos, de uma ponta a outra, e Alex pôde ver como eles se encaixavam com facilidade.

- Na embalagem está escrito que ele é da Idade das Trevas. Dei a ele o nome Lancelot - Cassie disse. Ela pegou a caixa que Alex estava segurando, pegou a pistola de cola e passou uma fina camada de cola na borda do osso. Deixando-o de lado na caixa de areia, ela prendeu o segundo pedaço e fez um monte de areia para segurar os pedaços até que o fixador secasse. - Vou fazer o corpo e depois montar o rosto. Enquanto eles estiverem secando, posso montar os côndilos da mandíbula nas cavidades glenoides para ver se os dentes se ocluem corretamente antes de eu montar o rosto de uma vez.

Alex balançou a cabeça negativamente.

- E dizem que as pessoas não são capazes de entender Shakespeare. «

Cassie sorriu, mas não desviou os olhos de seu trabalho.

- Bem, ninguém precisa compreender o que estou dizendo. Ele é minha plateia - ela passou o dedo ao longo da mandíbula de Lancelot - e sua audição não funciona mais.

Ela trabalhou durante uma hora, encaixando as peças em um quebra-cabeça tridimensional. Alex sentou-se diante dela, absolutamente surpreso.

Cassie olhou para ele.

- Você nunca me viu fazer isso antes? Quando Alex balançou a cabeça, negando, ela sorriu: - Quer me ajudar?

Por um instante seus olhos brilharam, mas em seguida ele pegou com delicadeza uma peça do rosto antigo e passou o polegar pela borda acidentada.

- Não saberia o que fazer - ele disse. - Acabaria atrapalhando.

- É fácil. - As mãos de Cassie levaram as deles a uma segunda peça, e ela uniu as peças de um modo que fazia perfeito sentido. - Você pode colar estas duas para mim. - Ele observou a imagem dos dedos dela envolvendo os dele, as palmas das mãos dela sobre as dele, e depois olhou para os ossos. Ninguém pensaria em unir ele e Cassie ao vê-los separados, mas, juntos, eles também pareciam peças que se encaixavam perfeitamente.

Cassie pensou que ele estava calado por estar confuso.

- Tente - ela disse. - É como um modelo. Você deve ter montado um quando era criança.

Na infância, Alex passara a maior parte de seu tempo sozinho, sonhando acordado e explorando a área rural onde vivia, em New Orleans. Ele preferia manter-se escondido, e passava horas embaixo de cerejeiras lendo livros que havia pegado emprestado da biblioteca da cidade. As Aventuras de tíuckleberry Finn, A glória de um covarde, Os prazeres do sexo.

Os pais de Alex detestavam um ao outro, mas se preocupavam demais com o que as pessoas podiam pensar para se divorciarem. Sua mãe se afastara dele porque ele lembrava seu pai; o pai se afastara dele porque Alex não era o

filho com o qual Andrew Riveaux sonhara: aquele que se mostrava disposto a caçar com ele; aquele que sairia à caça e depois beberia com os rapazes.

No décimo segundo aniversário de Alex, Andrew Riveaux comprou para o filho um modelo de madeira bastante complicado de uma carroça Conestoga, aquela que havia atravessado Oregon, sobre a qual Alex estava aprendendo na escola.

- Vou ajudá-lo a montar, garoto - seu pai dissera, e, para Alex, a promessa de passar algum tempo com o pai era melhor do que o presente em si.

Alex abriu a caixa e cuidadosamente dispôs as peças de madeira, as partes de metal que serviriam como estrutura da cobertura da carroça.

- Não vá tão rápido - o pai lhe dissera, dando um tapa em suas mãos. - Você vai ter que conquistar as peças.

A carroça foi construída de acordo com o número de vezes que Alex agia, na opinião do pai, como um homem. Ele matou seu primeiro ganso, levou-o para casa pelos pés e parou para vomitar duas vezes, e em troca seu pai ajudou-a a montar a estrutura do carro. Atravessou o rio à noite com uma canoa, usando apenas o olfato para se direcionar, e encontrou o casebre da velha mulher de quem seu pai comprava uísque, o que lhe garantiu o assento frontal e o arreio dos cavalos. Caiu de uma árvore e quebrou a perna, com fratura exposta, mas não derramou uma lágrima, e naquela mesma noite seu pai se sentou à beira de sua cama para ajudar Alex, com seus dedos trêmulos, a montar as rodas.

Quando ele tinha treze anos, conseguiu terminar o modelo. Era delicado e perfeito, centímetro por centímetro de história. Alex, por fim, colocou a cobertura da carroça e uma hora depois levou o modelo para a mata atrás de sua casa e o quebrou completamente com um galho que encontrou no chão.

- Alex. Alex. - Ele se assustou com o som da voz de Cassie. Seus olhos estavam arregalados, e ela estava balançando um lenço de papel diante dele. - Tome. Você está todo ensanguentado.

Ele olhou para seu colo, vendo os pedaços de ossos e o corte na lateral de seu polegar.

- Meu Deus. Sinto muito - ele disse.

Cassie deu de ombros, segurando o papel úmido à mão dele, aplicando pressão.

- São peças frágeis. Eu deveria ter dito isso. - Ela sorriu, hesitante. - Acho que você não teve noção da própria força.

Alex se virou. Cassie havia completado o rosto; olhava para ele com olhos vazios dentro da caixa de areia. Ele ficou em silêncio enquanto Cassie montava a parte de trás do crânio. Quase todas as peças estavam ali, ele a observou colocando quatro fragmentos ao redor do lugar onde o osso que ele havia quebrado seria encaixado.

Alex ficou em pé, murmurando algo que nem mesmo ele compreendeu. Tudo o que sabia era que precisava sair dali antes que Cassie terminasse. Não mais seria capaz de ver o esqueleto como uma soma de todas aquelas partes; em vez disso, seus olhos veriam o que estava faltando, o que ele havia arruinado.

- VAMOS ASSALTAR UM TÚMULO - Cassie anunciara - no Dia das Bruxas. Faltavam duas semanas, e era uma data perfeita e Connor nunca recusava esse tipo de coisa. Ela estava tentando fazer com que Connor esquecesse suas preocupações: seu pai havia perdido o emprego e passava seus dias na garagem bebendo uísque, e estava ficando cada vez mais claro que Connor não conseguiria pagar a faculdade, apesar de estar desesperado para se tornar um veterinário. Cassie havia visto o brilho em seus olhos e sabia que chamara sua atenção.

Então, na noite do Dia das Bruxas, eles saíram de casa à meia-noite. lá haviam obtido informações: os alunos mais velhos da escola haviam dito a eles que a polícia ficava protegendo o cemitério St. Joseph todos os anos, mas que o cemitério de animais na Mayfair Place ficava sem vigilância.

Eles desceram a rua com discrição, andando pelas sombras e segurando seus sacos distantes do corpo, para que as ferramentas não fizessem barulho. Caminharam até terem certeza de que a noite já havia acabado: árvores com pedaços de papel higiênico pendurados, caixas de correspondência sujas de ovos. Cassie caminhava na frente e Connor seguia seus passos à luz da lua, tendo o cuidado de pisar exatamente onde ela pisava.

O cemitério de animais era uma área pequena cercada, pontuada por pinheiros. Todo mundo na cidade já tinha enterrado alguma coisa ali - um gato, um porquinho-da-índia, um peixinho dourado - apesar de muitas das covas não terem identificação. Connor e Cassie escolheram um dos poucos túmulos do cemitério. Aquele anunciava que ali era o local de descanso de Rufus, um mastim que havia sido a única criatura a se safar dos comentários maldosos da senhora Monahan. Rufus havia morrido seis anos antes, e a senhora Monahan há três, por isso Cassie achou que eles não estariam ofendendo ninguém se escavassem os ossos do animal.

- Está pronto? - Connor estava olhando ao redor de maneira nervosa, mas já estava com a pá nas mãos. Cassie fez um movimento afirmativo com a cabeça. Pegou as ferramentas e esperou que Connor desse o Primeiro golpe.

O cachorro estava enterrado tão profundamente que Cassie começou a se perguntar se poderia haver um caixão ali. Os Monahan tinham sido a família mais rica do lago, afinal, e Rufus era o único filho. Ela mexeu na terra macia com as mãos, retirando o que Connor já tinha cavado. Ele estava em pé, cerca de um metro e vinte dentro da cova, com as pernas nas laterais do buraco, com medo de pisar em Rufus quando menos esperasse. Inclinou-se e bateu a ponta da pá contra algo duro.

- Caramba! - ele disse. Cassie secou o suor de seus olhos.

- Encontrou? Connor engoliu em seco. Estava pálido. Cassie esticou o braço para puxá-lo e, quando ele estava no nível do solo novamente, caiu de joelhos e vomitou. Passou a mão na boca.

Cassie ficou em pé com as mãos na cintura.

- Meu Deus, Connor - ela disse. - Como você vai conseguir costurar os intestinos de um cachorro se não consegue vê-lo já morto? - Chacoalhando a cabeça, ela entrou na cova. Inclinou-se e começou a puxar os ossos, um por um, jogando-os aos pés de Connor. De certo modo, ficou surpresa. Pensou que o esqueleto seria um pedaço inteiro, como nos desenhos, e não algo que o tempo quebrava em pedaços.

Por fim, escavou na terra e puxou o crânio do cachorro. Pedaços de pelo ainda cobriam sua cabeça.

- Que legal! - Ela disse, colocando-o perto de Connor.

Ele estava sentado de costas para a cova, com os olhos bem fechados.

- Podemos ir? - Ele perguntou, com a voz rouca. Cassie sorriu.

- Puxa, Connor! Se eu não o conhecesse muito bem, poderia dizer que você está morrendo de medo.

Connor ficou em pé rapidamente, virou-se e segurou Cassie pelos braços com uma força que quase fez doer. Ele a chacoalhou com tanto vigor que fez a cabeça dela balançar.

- Não estou com medo - ele disse.

Cassie estreitou os olhos. Connor nunca a tratava daquela maneira. Nunca a feria. Era a única pessoa que não fazia isso. Lágrimas queimaram em seus olhos.

- Covarde - ela sussurrou, dizendo qualquer coisa que tocasse o coração dele e fizesse com que ele sentisse a mesma dor que ela sentia.

Eles ficaram daquela maneira durante muito tempo, e Cassie só conseguia sentir as unhas de Connor em sua pele e o calor de seu olhar sobre seu rosto. Uma lágrima surgiu no canto de seu olho, e Connor soltou um de seus ombros para secá-la.

Ele também nunca a havia tocado daquele modo. Tão delicadamente que ela teve dúvidas se tinha sido sua imaginação ou se havia sido o ar da noite.

- Não sou um covarde - ele sussurrou, aproximando-se dela.

Nenhum deles sabia beijar. Ambos viraram para um lado, depois para o outro e finalmente se uniram com um sussurro. O calor subiu pelo corpo de Cassie, queimando as pontas de seus dedos onde eles tocavam os ombros de Connor. Tinha certeza de que deixaria marcas nele.

Ela abriu a boca para recebê-lo e, quando a língua dele tocou a sua, ela só conseguiu pensar: "Ele tem o meu gosto".

Anos depois, quando Cassie pensava em sua profissão, tentava compreender o que exatamente a fizera optar pela antropologia. Inconscientemente, tomou sua decisão aos quatorze anos, naquela noite no cemitério de animais. Mas nunca soube se era pelo encantamento que os ossos lhe causavam ou se havia sido por causa do primeiro beijo que havia dado sob a luz da lua, ou se havia sido simplesmente uma homenagem a Connor, uma vez que aquela foi a última vez em que o viu com vida.

Eles ficaram no cemitério durante uma hora, aprendendo um sobre o outro novamente. A lua os deixou brancos, dois fantasmas perdidos em um beijo, com ossos a seus pés. E então eles caminharam lentamente de volta para a casa de Cassie, de mãos dadas, e Connor guiava dessa vez.

 

Para comemorar a ressurreição de Lancelot da Idade das Trevas, Alex disse a Cassie que a levaria para jantar.

- Vamos ao Le Dome - ele disse, teclando um número que havia memorizado. Olhou para Cassie: - Talvez você queira se arrumar.

É claro que ela pretendia fazer isso, estivera entretida com areia e plasticina o dia todo; mas era ruim ver que Alex via alguma coisa de errado nela.

- Louis? Alex Rivers. Sim, hoje à noite; às nove. Apenas minha esposa e eu. Nos fundos, por favor. - Ele colocou o telefone na base e levantou o crânio que estava sobre a mesa de jantar, mexendo na mandíbula para cima e para baixo:

- Tudo bem? - Ele perguntou.

Cassie sorriu, não conseguiu se conter.

- Tudo bem. Ela envolveu o corpo com os braços, pensando no que encontraria para vestir em seu armário.

Mas, para sua surpresa, Alex a seguiu e abriu seu guarda-roupa. Encontrou um terno de seda de três peças, com corte simples, e o colocou sobre a cama.

- Aqui está - ele disse, como se fizesse isso o tempo todo.

Cassie recostou-se no batente do banheiro e cruzou os braços.

- Eu posso escolher suas roupas, também? - ela perguntou.

Alex olhou para ela, confuso, como se só naquele momento estivesse percebendo o sentido de sua atitude.

- Você sempre pede que eu escolha - ele disse. - Diz que eu sei o que as pessoas estão vestindo por aí. - Ele começou a colocar a roupa dentro do guarda-roupa.

Cassie mordeu o lábio.

- Não - ela disse dando um passo adiante. - Gosto disso. Eu não sabia. Tudo bem.

Ela esfregou o corpo na hora do banho, até sua pele estar brilhando e seu cabelo tomado pelo cheiro de flores. Cantou Heyjude a plenos pulmões e escreveu seu nome no box embaçado. Quando abriu a porta, Alex estava ali, em pé, lindo entre o vapor e os espelhos. Ele estava nu, e isso a deixou ainda mais envergonhada. Ela cruzou os braços sobre os seios e virou-se.

- Não sabia que você estava aqui - ela disse.

- Eu teria escutado sua cantoria mesmo que estivesse em San Diego - Alex disse. Ele sorriu e segurou-a pelos punhos, libertando suas mãos.

vi tudo isso antes - disse com delicadeza. Ele enrolou a toalha ao redor do quadril dela, puxando-a para perto de seu corpo.

- Pensei que íamos sair para jantar - Cassie disse.

- Estou abrindo meu apetite - ele respondeu. Circulou o mamilo dela com a língua. - Estou em fase de crescimento.

Ele conseguia fazer com que seu corpo doesse de desejo. Cassie se aproximou e o guiou para dentro dela, arranhando seu ombro na tentativa de se aproximar. Em algum momento, os espelhos desembaçaram e sobre a cabeça abaixada de Alex ela o viu triplicado, uma quimera com braços e pernas enrolados, forte. Ela olhou para seu reflexo. "Meu Deus", ela pensou. "Sou eu mesma?"

Uma HORA DEPOIS, ELES ESTAVAM NO LE DOME, SEGUINDO para uma mesa mais tranquila na parte dos fundos, entre apertos de mãos, promessas de almoços e acenos. Por ser uma quinta-feira, o restaurante estava lotado. Cassie ficou em pé, nervosa, atrás de Alex, com a mão presa à dele, enquanto ele realizava conversas rápidas e formais nas mesas de outras pessoas. Ela o viu conversar com um executivo da indústria cinematográfica e demorou um tempo para perceber que Alex estava falando sobre o clima na Escócia, enquanto o homem falava sobre as vantagens do sindicato. Hollywood não falava sobre o outro, apenas sobre si. Cassie pensou em crianças de três anos que não sabiam dividir.

Enquanto Alex pedia um vinho, Cassie escondia-se com o cardápio, já sabia o que pretendia pedir, mas gostava de ficar escondida. Parecia que em todas as mesas havia ou uma celebridade com cara de tédio ou uma pessoa comum esticando o pescoço para ver o que Alex Rivers jantaria.

Alex puxou a parte de cima do cardápio com um dedo. Estava sorrindo para ela.

- É por esse motivo - ele disse -, que não saímos muito.

Eles haviam acabado de brindar a Lancelot quando uma mulher caminhou em direção à mesa suspirando o nome de Alex. Cassie inclinou-se sem reação. Achara Ophelia bonita, mas não esperava encontrar tamanha beleza, vestida com um longo preto que cobria de seu pescoço aos punhos. Ela abraçou Alex. Havia uma fenda em seu vestido e Cassie percebeu que a mulher não estava vestindo calcinha, apenas uma cinta-liga.

- Onde você tem se escondido? - Ela perguntou.

- Miranda - Alex disse, praticamente empurrando a mulher para fora de seu colo -, você se lembra de minha esposa? Cassie, Miranda Adams.

Miranda Adams inclinou-se na direção dela, perto o bastante para Cassie sentir o cheiro de álcool. Ela se endireitou e Cassie ficou surpresa ao perceber que o vestido da mulher era transparente. Os mamilos de Miranda eram escuros e triangulares e sobre o seio esquerdo havia uma série de marcas de nascença ou talvez uma tatuagem, no formato da constelação Orion.

Cassie acreditava que Alex e Miranda haviam trabalhado juntos, mas era difícil de imaginar. Os únicos filmes que ela se lembrava ter visto Miranda Adams atuando eram aqueles nos quais ela interpretava virgens ousadas.

- Estamos jantando - Alex disse, e Miranda fez biquinho. Ela o beijou na boca, deixando uma grande marca de batom vermelho, que Alex limpou antes mesmo de ela se afastar.

Cassie tentou imaginar se Alex havia feito amor com ela antes de saírem de casa apenas por causa de cenas como aquela. Ele quis, claro, mas parecia que também queria demonstrar que ela era dele, independentemente do que acontecesse. Ainda conseguia sentir as partes mais quentes de seu corpo, lembranças deixadas por ele.

- Ela era aquela que estava dentro de seu trailer, nua? - Cassie quis saber.

Alex ficou boquiaberto.

- Como soube disso?

Ela não sabia ao certo; pensou ter lido aquilo em uma manchete de tablóide no Trancas Market: Anjos se encontram para se divertirem como capetinhas. Ela sorriu, apenas para mostrar a ele que não se incomodava.

- Sim - ele disse -, ela estava dentro de meu trailer, nua, mas minha assistente, Jennifer, foi quem a encontrou. - Ele se inclinou na direção de Cassie e a beijou delicadamente, e ambos se viraram na direção de um flash de máquina fotográfica.

- Que inferno - Alex murmurou, batendo os punhos na toalha branca da mesa. Cassie pensou no azulejo rachado na mesa da sala de jantar, no sangue que escorregou da mão do marido; pegou-se rezando para que ele não se levantasse e fizesse uma cena naquele momento. Alex empurrou sua cadeira para trás.

Ele parou quando Luis, o maitre caminhou na direção da mesa de onde a foto havia sido tirada e colocou o cliente em pé, à força. Não era ninguém que Cassie reconhecia, apesar de isso não significar muita coisa naqueles dias. O homem tinha um prato meio cheio à sua frente e uma bolsa de câmera fotográfica no encosto da cadeira. Louis o levou para a porta e voltou para a mesa de Alex, desculpando-se.

- Peço desculpas, senhor Rivers - ele disse. Tirou um filme de máquina de seu bolso e o colocou sobre a mesa. - E, como maneira de nos retratarmos, oferecemos outro petisco.

Ela comeu metade do prato de carneiro de Alex, que comeu metade do caranguejo de Cassie. Durante o jantar, eles quase não foram perturbados, exceto por Gabriel McPhee e Ann Hill Swinton, uma dupla de jovens atores felizes e casados que passaram pela mesa quando estavam se retirando. Gabriel carregava sua filhinha no colo, mudando-a de lado enquanto cumprimentava Alex. Eles conversaram por alguns minutos, até a criança começar a gritar e as pessoas a olhar.

Quando saíram, Alex balançou a cabeça de modo negativo, como se precisasse se reacostumar com o silêncio. Pegou uma colher e observou seu reflexo, distorcido e de cabeça para baixo.

- Não temos filhos - Cassie disse.

Alex olhou para ela.

- Pensou que eu estivesse escondendo eles de você?

Ela riu.

- Eu estava só pensando. Estamos casados há três anos e, não sei, você disse que tenho trinta e...

- Meu Deus - Alex disse. - Você tem amnésia e ainda por cima quebrou seu relógio biológico. - Ele sorriu para ela. - Podemos ter filhos, talvez mais para a frente, mas três anos não é tempo suficiente para que duas pessoas se conheçam bem. Além disso, você vai para a África e passa um mês lá todos os verões, o que não seria muito fácil de fazer tendo um filho. Decidimos esperar um pouco até que nossas carreiras estivessem mais estabilizadas.

Cassie quis perguntar por que eles tinham dinheiro para manter três casas, mas não podiam contratar uma babá. Queria perguntar o que aconteceria se... Pensou em Ophelia, dizendo naquela manhã: "Você quer dizer que ele decidiu".

Ela levantou os olhos, preparando uma discussão, mas foi detida pelo olhar de Alex. Sua mandíbula estava tensa e sua pele estranhamente pálida.

- Você tem tomado sua pílula, certo? Não lembrei de lhe mostrar onde elas estão.

Cassie não tinha como saber que Alex estava pensando no próprio pai e naquela maldita carroça de montar, além do fato de ter jurado que nunca teria filhos, porque não queria se transformar em um Andrew Riveaux. Ainda assim, do modo que tinha de sentir a dor dele, ela esticou o braço sobre a mesa, pedindo sua mão.

- É claro - apesar de não ter visto nenhuma pílula anticoncepcional desde que havia chegado em casa. - Nós decidimos.

Alex respirou profundamente.

- Graças a Deus. Empurrou a cadeira Para trás e esticou as pernas. - Vou ao banheiro. Acho que ninguém vai Perturbá-la enquanto eu estiver fora.

Cassie rolou os olhos.

- Acho que sei cuidar de mim.

Ele ficou em pé.

- Claro. Da última vez que você ficou longe de mim, foi parar na Delegacia de Los Angeles. - Ele caminhou pelas fileiras de mesas, chamando a atenção das pessoas pelas quais passava. Cassie observou os movimentos do corpo dele e a confiança que demonstrava.

Estava distraída observando o marido e não percebeu que um homem se sentou à mesa. Ele era bonito, apesar de não chegar aos pés de Alex, um pouco mais baixo e magro. Cassie sorriu timidamente.

- Pois não?

O homem inclinou-se e segurou a mão dela, passando os lábios em seu punho.

- Esperei a noite toda - ele disse, e Cassie se afastou.

- Não me lembro de seu nome. - Cassie sentou-se ereta na cadeira, esperando a aproximação de Alex. Queria que aquele homem fosse embora antes que o marido retornasse. Queria se livrar dele sozinha.

- Estou arrasado. Nicholas. Nick LaRue. - Ele tinha um sotaque estranho que ela não conseguia distinguir.

Cassie lançou-lhe um belo sorriso.

- Nick. Alex e eu estamos de saída. Direi a ele que você deixou seus cumprimentos.

Ele segurou o punho de Cassie, apertando sua mão na mesa de modo que retirá-la chamaria a atenção das pessoas. Sua outra mão começou a subir pelo braço dela.

- Quem disse que eu vim para ver Alex? - ele disse.

- Tire suas malditas mãos de cima da minha mulher - Alex estava em pé atrás dela e Cassie fechou os olhos, instintivamente aproximando-se do calor dele. De repente, ajeitou-se na cadeira. Nick LaRue. Ele trabalhara naquele filme com Alex, Taboo. Seus personagens eram os melhores amigos, parceiros em um roubo a uma joalheria. Mas ela se lembrou que Alex voltava das gravações e percorria a casa como uma pantera, espumando de raiva. "Ele acha que seu trailer deveria ser mais próximo do local das gravações do que o meu"; "Ele está sendo mais divulgado do que eu". E o que ela fazia? Servia uma bebida ao marido todas as noites, prometia a ele que em dez semanas, oito ou seis, ele nunca mais teria de trabalhar com Nick LaRue de novo e entregava-se a ele para ajudá-lo a esquecer.

Alex havia tirado seu blazer e Cassie percebeu que a peça estava jogada sobre seu colo, mais quente do que a pele dele. Nick estava diante de Alex, e Cassie olhou dentro de seus olhos e viu duas imagens do marido, tomado pela raiva. Os clientes das outras mesas começaram a sair do salão e, quando o último havia saído, os dois homens se aproximaram.

Diante do Le Dome, Louis chamou a polícia. Com certeza ele não interferiria e, mesmo que fosse trinta centímetros mais alto e quinze quilos mais forte, não teria sido capaz de escolher um lado. Tanto Alex Rivers quanto Nick LaRue eram clientes especiais.

Cassie recostou-se na parede. Não se lembrava de alguém já ter brigado por ela antes e não sabia se ficaria lisonjeada ou enojada. Viu Alex erguer o punho para o primeiro golpe e fechou os olhos, conhecendo o inconfundível som de osso contra osso.

Will GOSTAVA DE PERCORRERA SUNSET. Ele e seu parceiro - um hispânico chamado Ramón Perez, e essa ironia não lhe escapava - dirigiam durante horas descendo e subindo a Sunset, prevendo alguma coisa errada. De vez em quando havia uma denúncia de tráfico, um assalto, mas na maior parte das vezes Will apenas olhava pela janela e esperava algo acontecer. No dia anterior, ele havia ido à igreja de Cassie e acendido uma vela para ela. Sentou-se em um banco do fundo, falando com o Deus dela, basicamente pedindo para que ela estivesse bem.

- Ei, Maluco - Ramón disse. - Acorde.

Ramon ainda insistia em chamá-lo de Cavalo Maluco, o que Will não achava engraçado e já havia dito ao companheiro, porém sem sucesso.

- Eu não estava dormindo - Will disse.

- Ah, tá, então me diga para onde acabamos de ser mandados. Will virou o rosto para olhar pela janela.

- Le Dome - Ramón disse. - Le Maldito Dome. Dois atores de primeira estão brigando.

Will endireitou-se e puxou seu boné para baixo, enquanto Ramón lia para ele o que devia ser feito em caso de problemas com pessoas famosas. Não se deve destratá-los. Deve-se chamá-los de senhor Fulano de Tal. Não se deve levá-los para a delegacia. Não se deve causar-lhes problemas.

O Le Dome era um local simples e pequeno, mas cinquenta pessoas estavam na porta da frente, algumas indo para o estacionamento. Ramón abriu caminho entre os clientes do restaurante, apresentando-se a um homem baixo e nervoso que vestia um paletó.

- Sou o policial Pérez - ele disse. - O que está havendo?

Will balançou a cabeça de modo negativo. Qualquer idiota conseguiria Perceber os barulhos de vidro quebrado e socos sendo dados, que vinham dos fundos do estabelecimento. Will passou pelo maitre pela área principal do restaurante até avistar Alex Rivers batendo sem parar em seu mais recente colega de filme.

Ele afastou Alex Rivers de Nick LaRue assim que Ramón entrou no salão.

- Pegue esse - Will disse. Ele empurrou Rivers e o tirou da linha de visão de LaRue, e então viu Cassie. Estava encostada na parede como se pretenndesse desaparecer. Estava bonita, com os cabelos caídos pelos ombros, o sangue de seu marido manchando seu blazer de seda caro.

Assim que viu Will, pareceu ganhar vida. Caminhou na direção deles, usando os ombros para ajudar a manter o peso de Alex. Corou.

Will sorriu para ela. - Quais as chances de algo assim acontecer? - ele disse, detestando a si mesmo assim que as palavras foram ditas, assim que os olhos de Alex Rivers miraram Cassie, com um brilho de suspeita.

- Com licença - Cassie murmurou, guiando Alex para uma cadeira. Ela tirou o blazer que vestia e segurou um guardanapo branco de pano sobre um ferimento no lábio do marido. Will observou os músculos discretos de seu braço.

- Você permitiu que ele se sentasse com você - Alex vociferou. - Deixou aquele merda se sentar com você.

Cassie apoiou a mão no ombro dele, tentando remediar a situação.

- Psiu. Podemos falar sobre isso mais tarde. - Olhou ao redor até encontrar um garçom. - Gelo - ela pediu.

Alex olhou para o corpo dela.

- Estava pedindo por isso. Vestida como uma maldita prostituta - ele disse. Puxou a saia dela para baixo, pois a peça havia subido em suas pernas durante a confusão, e jogou seu blazer para ela.

Lentamente, ela abaixou as mãos nas laterais do corpo. Dobrou o guardanapo e o colocou sobre a mesa, vestindo seu blazer novamente e sentando-se na cadeira ao lado dele.

Não se deve destratá-los.

Ramón caminhou na direção de Alex Rivers, chamando-o pelo nome e elogiando-o por sua atuação no filme Taboo, como se o estivesse encontrando no camarim. Ajudou Rivers a se levantar e o guiou a Nick LaRue, que Will pensou que havia concordado em pedir desculpas ou era o maior idiota da Califórnia.

Will sentou-se na cadeira deixada por Alex Rivers. Ainda estava quente. Viu que Cassie continuava olhando para a frente, com o semblante confuso como se tentasse montar um quebra-cabeça que só ela via. Will tocou seu joelho.

- Ei. Está tudo bem? - ele sussurrou.

Cassie assentiu com um movimento de cabeça e engoliu em seco.

- Ele estava brigando por minha causa.

Will não soube o que dizer. Pensou na cópia da foto dela que trazia em sua carteira, no dia em que devolvera Cassie a Alex Rivers. Pensou que talvez devesse ter brigado por ela também.

Will sorriu para ela, deixando o silêncio tomar o espaço entre eles.

- Vi fotos da mão - disse, finalmente.

Cassie virou a palma de sua mão para cima. Flexionou os dedos, cerrou o punho e abriu a mão e olhou com atenção, como se tentasse ler a própria sorte.

O motorista dos Rivers entrou no salão, ajudando Cassie a se levantar e permitindo que ela se escondesse a seu lado.

- Eu estava comprando um maço de cigarros em Nicky Blair's - ele disse. - Se eu soubesse, senhora, teria vindo.

Alex Rivers voltou-se para eles. John olhou para o rosto de seu chefe e depois para o de Nick LaRue.

- Parece que o senhor venceu, senhor Rivers - ele disse.

Alex aproximou-se e sorriu. Quando ele se inclinou para Cassie, o motorista afastou-se com discrição.

Will não fez o mesmo. Pensou que aquele ainda era um caso de polícia, e não se importou.

- Sinto muito - ele disse a Cassie. - Não tive a intenção de ofendê-la. Isso não foi sua culpa de maneira alguma. - Ele pigarreou, começou a dizer alguma outra coisa, mas balançou a cabeça e repetiu as primeiras palavras. - Sinto muito.

Ele a beijou delicadamente. Quando Alex se afastou, Cassie olhava para ele como se estivesse vendo o inventor do sol.

Cassie olhou para Will enquanto Alex a levava para fora do restaurante, mas não arriscou um sorriso. Will compreendeu. Ele os seguiu até a porta, observando como um caminho se abria pela multidão como se fosse mágica. Ele escutou Alex se despedir das pessoas que conhecia como se nada tivesse acontecido.

Não se deve causar-lhes problemas.

Cassie o observava da janela de trás da Range Rover, enquanto o veículo se afastava; Will tinha certeza disso. Permitira que ela partisse pela segunda vez, mas sabia que novas chances viriam. Sua avó havia lhe ensinado que coincidências não existiam. "Existem milhões de pessoas no mundo, e os espíritos cuidarão para que você nunca encontre a maioria delas. Mas uma ou duas estão ligadas a você e os espíritos sempre vão uni-los, fazendo voltas e até que, finalmente, vocês se acertem", ela disse.

Ramón saiu e se posicionou ao lado dele.

- Inacreditável - ele disseSe qualquer outro idiota causasse tudo isso, seria levado e preso. Alex Rivers se irrita e o mundo inteiro para por ele.

Will virou-se para seu parceiro.

- Que horas são?

- Quase onze.

Ele tinha mais uma hora de trabalho.

- Cubra para mim. - Will disse Sem dar nenhuma explicação e começou a descer a Sunset correndo. Correu quilómetros até chegar à igreja St. Sebastian. As pesadas portas estavam fechadas, mas ele entrou atrás da igreja pelo cemitério familiar. Dessa vez, ele não rezou para o deus cristão, que demorara demais para agir, mas, sim, para os espíritos de sua avó. A distância, escutou o trovão. - Por favor, ajude-a - ele sussurrou.

 

- Como pôde fazer isso comigo?

Cassie escutou os gritos da mulher ao telefone e se assustou. Deixou o aparelho cair entre seu travesseiro e o de Alex, abafando um pouco o som, mas não o suficiente para que Cassie não se perguntasse o que, exatamente, ela havia feito.

Parecia que havia areia em seus olhos. Ela os esfregou, mas só piorou. Apesar de Alex ter pedido desculpas no restaurante, em casa ele não quis conversar. Sua atitude ficou bem clara, ele se despiu em silêncio e se trancou no banheiro para tomar banho. Quando foi para a cama, Cassie já tinha apagado as luzes e virado para o lado, querendo chorar. Mas em algum momento, no meio da noite, Alex a procurou, seu inconsciente fazendo o que sua mente consciente se recusava a fazer. Ele a segurou com força contra seu corpo, um abraço que chegava à beira da dor.

- Michaela. - A mão de Alex passou pelo ombro de Cassie em uma tentativa de encontrar o telefone. - Michaela, cale a boca.

Cassie rolou na cama para olhar para Alex, que estava despertando aos poucos. Ele segurou o telefone na orelha e apertou os lábios, que exibiam um corte que chegava perto do queixo. Perto do olho direito havia um ferimento com a forma de um pequeno pinguim e suas costelas tinham marcas roxas e azuladas. Surpreendentemente, ele sorriu.

- Para ser bem sincero, isso foi a última coisa na qual pensei - ele disse ao telefone.

Ele se virou para o lado, fechou os olhos e balançou a cabeça.

Claro - murmurou. - Sempre faço o que você quer, certo? - Com um sorriso maquiavélico, deixou o telefone cair novamente sobre o travesseiro e esticou o braço na direção da esposa. Sua mão acariciou o seio dela. Cassie olhou para o telefone. Conseguia escutar a mulher gritando de maneira que lembrava o som de um xilofone, ou talvez de um periquito.

Alex havia deixado a noite passada para trás da mesma maneira que quem fecha um livro. A briga no Le Dome, as acusações em seguida, a frieza dentro do quarto - ele havia passado por tudo isso ou acreditava que eram coisas tolas que podiam ser deixadas de lado. Cassie pensou que conseguir agir daquela maneira era um talento. Imagine: um mundo sem mágoas. Um mundo sem culpa. Um mundo no qual não se era condenado pelas consequências das atitudes.

Ela havia passado metade da noite tentando descobrir o que, exatamente, deixara Alex tão nervoso com ela, por isso estava disposta a começar do zero. Esticou o braço e tocou Alex na lateral de seu corpo e em seu quadril.

De repente, ele rolou para longe dela, pegando o telefone e fazendo sinal para que ela encontrasse uma caneta. Procurou em seu criado-mudo e encontrou um lápis e um recibo de alguma coisa que havia custado 22,49 dólares. Alex virou o recibo e começou a escrever.

- Sim. Estarei lá. Sim, você também.

Jogou o lápis longe e suspirou, fazendo o pequeno papel parar na beira da cama. Cassie sentou-se e o pegou.

- Hospital de Los Angeles? - ela leu. - Sala 1215, sétimo andar?

Alex cobriu os olhos e passou as mãos pelo rosto.

- Parece que a coluna de Liz Smith começa mencionando meu... desentendimento com Nick LaRue ontem à noite. - Ele se levantou e caminhou nu até a janela, afastando a cortina, de modo que o primeiro raio de luz cor-de-rosa pousou sobre suas costas em linhas paralelas. - Michaela está tendo um ataque, porque é errado criar confusão um mês antes da cerimónia do Oscar. Está tentando equilibrar a impressão do público fazendo com que eu apareça fazendo boas ações. Só Deus sabe como ela conseguiu fazer isso às seis da manhã, mas ela encontrou uma oportunidade de eu tirar fotos com pacientes que sofrem de leucemia na ala pediátrica do hospital.

Alex deu a volta na cama e se sentou ao lado de Cassie. Ela esticou o braço, tocando o ferimento em seu rosto.

- Dói?

Ele balançou a cabeça.

- Nem tanto quanto vai me doer deixá-la almoçar sozinha. - Ele olhou para baixo, desenhando vários círculos no lençol que cobria a coxa dela. - Cassie, quero me desculpar de novo. Não tenho a intenção de... sabe que eu não... - Ele cerrou a mão e disse. - Que inferno, às vezes explodo.

Cassie segurou o rosto dele com as mãos e o beijou com delicadeza para não machucá-lo.

- Eu sei - ela disse. Sentiu algo grande crescendo dentro de si, preso em sua garganta e demorou algum tempo para perceber que não se tratava de amor, mas, sim, de alívio.

Quando bateram à porta do quarto, Alex vestiu um short. Ao abri-la, Cassie viu uma mulher baixinha e atarracada que lhe parecia familiar, mas talvez fosse apenas pelos traços dela, uma vez que ela era parecida com uma avó. Seu cabelo castanho era escasso e estava preso, seus olhos eram da cor de madeira escura e seu sorriso era triste.

- Escutei o telefone tocar, senhor Rivers, então concluí que o dia começou cedo para o senhor, si? - Ela afastou a luminária para o lado sobre o criado-mudo de Alex e pousou ali a bandeja que estava carregando. Havia ali o L.A. Times, café, muffins de maçã e alguma coisa coberta com açúcar cristal que tinha um cheiro maravilhoso.

Senhora Alvarez. O nome ecoou na mente de Cassie, até ela dizê-lo em voz alta: - Senhora Alvarez? - Ela se sentou tão rapidamente que o lençol escorregou para a sua cintura. Aquela era a senhora Alvarez que tomava conta do apartamento quando eles estavam vivendo na casa. Que tinha mais fotos de Jesus em seu quarto do que dos três filhos. Que havia ensinado Cassie a fazer um flan e que, certa vez, quando Alex estava trabalhando, abraçara Cassie naquele mesmo quarto para espantar um pesadelo de sua patroa. - Senhora Alvarez - ela repetiu ansiosa, imensamente orgulhosa de si mesma.

Alex riu e sentou-se ao lado da esposa, enrolando o lençol em seu corpo novamente.

- Parabéns - Alex disse à senhora Alvarez. - Com apenas um bolinho, você conseguiu o que eu não consegui em dois dias.

A empregada corou imediatamente.

- No es verdade - ela disse. - Senhora Rivers, quer que eu a ajude a fazer a mala hoje?

Cassie voltou-se para Alex. Tentou imaginar como a senhora Alvarez havia se lembrado que devia voltar naquela manhã. Ela mesma havia esquecido a respeito da viagem para a Escócia.

- Você decide - Alex disse. - Apesar de eu achar que você vai querer levar roupas mais pesadas do que as que tem aqui. Pedirei a John que venha buscá-la às três da tarde e iremos para a casa. O voo só sai às nove; será um voo noturno.

A senhora Alvarez franziu a testa ao abrir um guardanapo sobre o colo da patroa, tão branco que Cassie não conseguia distinguir o guardanapo do lençol. A empregada serviu duas xícaras de café e acrescentou creme a uma delas, entregando-a a Alex.

- Bem, pode gritar se mudar de ideia. - Sorrindo para Cassie, ela saiu do dormitório.

Alex serviu um pedaço de muffin a Cassie e a beijou com força nos lábios.

- Então sua memória está voltando.

- Aos trancos e barrancos - Cassie admitiu. - Talvez, quando chegarmos à casa, eu já seja capaz de encontrar o quarto.

Alex passou os olhos pela primeira página do jornal de sexta-feira e o entregou à esposa.

- Vou correr um pouco na praia - disse, pondo a mão por dentro do lençol para encontrar a perna dela. - Pode ficar na cama até eu voltar.

Ela fingiu ler as notícias do país enquanto o marido se alongava, mas, assim que ele fechou a porta, ela procurou a coluna de Liz Smith. O subtítulo era ta-boo-boo. Alex Rivers e Nick LaRue que interpretam, em seu mais novo filme, amigos inseparáveis, mostraram aos clientes do Le Dome, ontem à noite, que o que mostram na tela é mesmo apenas interpretação. De acordo com fontes confiáveis, os dois se pegaram com socos por causa da esposa de Rivers, Cassandra. Quando a noite do Oscar chegar, as pessoas pensarão na atuação indicada de Rivers no filme A história dele, ou de suas ações na vida real?

Tremendo, Cassie virou a página. Fechou os olhos, mas não conseguiu tirar de sua mente a raiva que Alex demonstrara na noite anterior.

Nada que Nick LaRue dissera havia dado início à briga. Cassie sabia disso tão bem quanto conhecia Alex. Qualquer outra pessoa teria discutido ou trocado alguns insultos, mas Alex havia perdido o controle. Alguma coisa havia feito com que ele explodisse. Nada relacionado a Cassie - ele mesmo havia afirmado isso, e parecia contente com ela naquela manhã. Talvez tivesse que ver com a pressão do Oscar. Talvez fosse o fato de ele estar longe das filmagens de Macbeth.

Ela olhou para o jornal e notou que o havia dobrado na seção dos filmes em cartaz. Procurou a divulgação de Taboo, chamadas que combinassem com o outdoor que ela havia visto na noite em que Will a encontrara. Viu que o Westwood Community Center estava oferecendo um festival de filmes de um dia inteiro com a exibição de trabalhos de Alex Rivers, como parte de uma homenagem prestada aos indicados ao Oscar.

Sorrindo, Cassie passou o dedo pela relação. Um trio de filmes de Alex, começando às nove da manhã. Seriam exibidos António e Cleópatra, de Shakespeare, um filme que provou a capacidade de Alex, e uma das primeiras produções da qual ele havia participado depois do casamento. Malfeitor, um filme de faroeste que havia sido seu primeiro trabalho. E também A história dele, o drama familiar pelo qual Alex havia recebido três indicações ao Oscar.

Cassie olhou para seu relógio. Tinha duas horas para chegar ao Westwood. Pulou da cama e tomou um banho rápido, vestiu uma calça jeans e uma blusa de moletom que Alex havia vestido no dia anterior. Ela encontrou John na cozinha com a senhora Alvarez e perguntou se ele poderia levá-la, e eles encontraram Alex na hora de irem.

- Aonde você vai? - Ele perguntou ofegante, com suor escorrendo pela lateral de seu pescoço.

- Vejo você às três da tarde - Cassie disse, lançando-lhe um sorriso e escapando antes que ele tivesse a chance de fazer outra pergunta.

Ela se ajeitou no banco traseiro da Range Rover, feliz como uma adolescente. Fechando os olhos, encostou o rosto nas mangas compridas da blusa de Alex que trazia cheiro de Malibu, de sândalo, o cheiro dele.

O WESTWOOD COMMUNITY CENTER NÃO PASSAVA DE UM centro de recreação para cidadãos idosos, que formavam grande parte da plateia na sessão matinal do Festival de Filmes de Alex Rivers. Protegida pelo anonimato, Cassie passou por entre as senhoras na recepção. - Igual a Gary Cooper - uma delas disse. - Ele consegue fazer qualquer coisa nos filmes.

Cassie sorriu, percebendo que havia vivido algo diferente de todos ali presentes. Ela queria abrir os braços na frente de todos e gritar: "Eu sou a esposa de Alex Rivers. Tomo café da manhã com ele. Para mim, ele é real".

Quando começaram a permitir a entrada das pessoas no anfiteatro, Cassie ficou para trás contando o número de fãs que Alex tinha ali em Westwood. Imaginou-se rindo com ele mais tarde, contando sobre a senhora com o cabelo em forma de bolo que carregava consigo um autógrafo dale de vinte por vinte e cinco centímetros e que o colocou ao seu lado, e sobre o senhor que gritara na bilheteria: - Alex o quê?

Ela se sentou na poltrona dos fundos, de onde podia assistir e escutar às pessoas. Malfeitor, o filme de faroeste que todos em Hollywood pensavam que seria um fracasso, foi o primeiro filme a ser mostrado. Cassie não conhecia Alex quando ele fez o filme e, na verdade, ele não era o protagonista. A atriz principal teve maior divulgação - Ava Milan. Ela interpretou uma mulher que havia sido levada como prisioneira por um grupo de índios renegados, quando ainda era criança, e que havia sido criada pela tribo nómade, conhecido o marido e uma vida decente. Alex era seu irmão, que tinha visto a família toda ser morta a tiros e cresceu jurando vingança. O filme tem seu clímax quando Alex encontra a irmã no acampamento indígena e sai atirando em todos, matando a maioria dos moradores do lugar e o marido do personagem de Ava. Depois de uma dramática cena em que ela diz ao irmão que a vida que ele tirou dela era melhor do que qualquer coisa que poderia ter como mulher branca nos anos 1890 ela corta a própria garganta diante dele.

Os críticos ficaram malucos. As pessoas da região oeste não despertavam interesse na época, ao contrário dos índios. Malfeitor tinha sido o primeiro filme a mostrá-los como indivíduos, não como inimigos sem face. Alex Rivers, aos 24 anos, saiu à frente de uma nova safra de jovens atores e se destacou, e seu personagem, Abraham Burrows, tornou-se o primeiro de uma longa linhagem de heróis complexos e imperfeitos.

Cassie encolheu-se em seu assento quando os nomes dos atores apareceram na tela. Alex Rivers. Um arrepio correu de seu pescoço às pontas dos dedos. Assim que Alex surgiu na tela, ela prendeu a respiração. Ele parecia muito jovem e seus olhos eram mais leves do que pareciam atualmente. Ele estava em pé com as pernas separadas, as mãos na cintura, e soltou um grito que balançou as paredes de cortinas vermelhas. Nem mesmo uma palavra, apenas uma sílaba que tornava sua presença inegável.

Ela percebeu como sua percepção a respeito de Alex havia mudado em apenas alguns dias. Quando ele se aproximara dela na delegacia, ela o vira como ele era na tela: enorme e intocável. Mas conhecia a verdade agora. Sorriu. Teria grande dificuldade para convencer as pessoas daquele cinema a respeito da verdade, mas Alex Rivers era como qualquer outra pessoa.

 

Will ESTAVA ESPERANDO POR UMA ENTREGA DE móveis. Estava cansado de usar o colchão como sala de jantar, de estar e área de recreação. Havia comprado suas coisas na primeira loja que encontrara, um estabelecimento pequeno com preços razoáveis que permitira que o pagamento fosse feito em parcelas mensais.

A caminhonete com os móveis chegou exatamente quando disseram que chegaria, às dez horas. Dois homenzarrões levaram as peças até a porta e perguntavam: "Aonde vai esta?". Quando chegaram à sala de estar, Will tirou as caixas do caminho. Desconectou sua televisão nova em folha e o videocassete e esperou que os funcionários trouxessem a estante, que eles chamavam de "centro de entretenimento". Ele havia comprado aquele móvel apenas pelo nome, pois parecia que havia uma festa acontecendo em casa, mesmo quando a pessoa estivesse sozinha.

O videocassete foi comprado por impulso. Não via sentido em morar na capital mundial dos filmes e não ter um videocassete. Não sabia acertar o relógio e certamente não procuraria descobrir no manual, por isso o aparelho estava com o número 12:00 piscando sem parar havia um dia inteiro. Era sexta-feira, seu dia de folga. Quando aqueles homens fossem embora, ele faria as seguintes coisas nesta ordem: comer uma tigela de cereal na mesa nova da cozinha, pular em sua cama nova e espalhar-se no sofá e ligar a TV com o controle remoto e, depois, assistir a um filme.

Passava do meio-dia quando ele foi para a loja de conveniência para alugar uma fita. Não estava procurando por nada em especial. O coreano, dono da loja, dissera que suas duas primeiras escolhas não estavam disponíveis e em seguida lhe mostrou uma fita em uma caixa vermelha e velha: - Tente este - ele disse. - Vai gostar.

Malfeitor. Will não controlou o riso. Era um filme do início dos anos 1980, coestrelado por Alex Rivers. - Merda - ele disse, tirando cinco dólares do bolso.- Vou tentar. - Se Rivers fosse tão novo quanto devia ser, pelas datas na caixa, provavelmente não era muito bom e, depois da noite passada, Will sentiu vontade de rir à custa dele.

Comprou um pacote de pipoca e caminhou para a casa. Sentou-se em seu novo sofá e começou o filme com o controle remoto, adiantando as partes de trailers e propagandas. Quando Alex Rivers apareceu na tela e soltou um grito parecido com o grito de guerra de um sioux, Will riu e jogou pipocas na TV.

Não sabia qual era o assunto do filme, mas se lembrava da controvérsia a respeito dele. Havia sido discutido em muitos jornais de tribos, com opiniões divergentes: alguns reclamavam das inadequações, outros elogiavam o retrato da vida familiar dos índios e a contratação de atores indígenas. Will assistiu ao filme até que a atriz que interpretava a irmã de Alex Rivers se casou com um guerreiro mandan. Ela era pequena e loira, e seu rosto era bem parecido com aquele que Will vira à noite, quando era adolescente, quando se enfiava sob os lençóis da casa de seu avô.

- Que droga - Will disse. Apertou o pequeno botão vermelho de seu controle remoto, sentindo grande satisfação ao ver desaparecer de sua frente a imagem de Alex Rivers quando a fita foi ejetada. Sentou-se, espalhando pipoca entre as almofadas do sofá. - Eles não sabem de nada. Fazem esses filmes horrorosos e não sabem de nada.

Will desligou a TV também e ficou olhando para a tela até seus olhos se acostumarem com a tela preta. Olhou para a caixa do filme que estava no chão, a seu lado. Então caminhou até as duas caixas que havia tirado do caminho para a entrega dos móveis. Abrindo a de cima, ele procurou os jornais que Cassie tivera o cuidado de usar para envolver os itens que ele havia jogado de qualquer modo dentro da caixa.

Pegou o patuá que pertencera ao tataravô, que - assim como o avô - havia sonhado com o alce, e era disso que o patuá era feito. Will passou os dedos pelas franjas; pela pele do objeto. Os Sonhadores de Alces eram muito reverenciados entre os sioux. As pessoas se voltavam a eles quando estavam à procura da pessoa que deveriam amar.

Will havia conhecido um homem no departamento de polícia da reserva que havia se casado com uma moça branca; depois disso, ele se mudou para a cidade de Pine Ridge e foi o técnico de um time infantil de beisebol. Como qualquer policial, ele carregava uma arma e um patuá também. Em 1993, por mais incrível que pareça, ele usava o objeto todos os dias, preso a seu coldre. Segundo ele, aquele objeto lhe dava sorte, e no único dia em que sua filha o pegou emprestado para mostrar aos colegas da escola ele levou um tiro no braço, dado por um drogado.

Havia outras pessoas na reserva, pessoas de sua idade que ainda tinham seus patuás. Ninguém duvidava. Will tinha de admitir que havia coisas estranhas envolvidas.

Caminhou até a cozinha e encontrou um martelo e um gancho. Durante um momento, ficou sentado com o patuá, passando-o no rosto e sentindo o contato suave das penas. Não era o seu patuá, por isso não lhe traria nada de bom, mas também nada de ruim.

Will tentou se lembrar do local onde Cassie o pendurara naquele dia e colocou o patuá entre os dentes para subir no sofá. Manteve as palmas das mãos na parede lisa e branca, na esperança de sentir um pouco do calor das mãos dela.

ASSIM COMO TODAS AS OUTRAS PESSOAS DO Westwood Community Center, Cassie chorou ao final de A história dele. Era fácil perceber por que Alex havia recebido sua primeira indicação como Melhor Diretor, apesar de a indicação para Melhor Ator ter causado certa controvérsia, a respeito do por que de Alex Rivers, e não Jack Green, que interpretava seu pai, ter sido indicado. Jack havia sido indicado para Melhor Ator Coadjuvante; poderia ter sido de qualquer modo. Os especialistas de Los Angeles diziam que Alex era favorito em suas duas categorias, que Jack levaria a dele, com certeza, e que a produção seria a vencedora da categoria de Melhor Filme.

Muitos dos idosos partiram depois do filme, pois tinham ido até ali para assistir principalmente à produção que atraíra todas as especulações. Mas Cassie não conseguiu sair do cinema. Concluiu que o motivo principal de sua ida ao festival era para assistir a António e Cleópatra, o filme épico que Alex havia feito logo depois de se casar.

Os créditos começaram a surgir na tela, acompanhados pelas tristes notas de uma cítara. Cassie soltou o rabo de cavalo e jogou o cabelo sobre o encosto de seu assento. Fechou os olhos um pouco antes de Alex proferir a primeira fala de António e procurou lembrar. ERA O PRIMEIRO INDÍCIO QUE ELA TINHA DE QUE Alex não era o homem com quem havia se casado. Ele voltou para casa, vindo do escritório de Herb Silver, segurando um roteiro. Ela estava em seu laboratório na casa, analisando o itinerário para a viagem para a Tanzânia, quando Alex apareceu na porta e colocou-se diante dela.

- Este foi o papel para o qual nasci - ele disse.

Mais tarde, Cassie pensou no que ele havia dito: teria feito mais sentido dizer "Este papel foi feito para mim", e não o contrário. Mas, assim como António, desde o primeiro instante em que havia tocado naquele roteiro, Alex se tornou um megalomaníaco.

As falas eram ditas com facilidade por ele, como se ele nunca as tivesse decorado, e, apesar de saber que o marido tinha uma memória fotográfica, Cassie nunca o vira abrir o roteiro. - Sou António - ele dizia a ela simplesmente, e não lhe restava opção a não ser acreditar.

Ele não era o ator favorito para o papel. Nem sequer havia sido chamado para testes, até ele pedir a Herb que enviasse seu nome. Cassie sabia que Alex estava nervoso. Por isso, na manhã em que ele se encontraria com o diretor de elenco, ela dispensou a cozinheira e preparou para ele uma omelete. Acrescentou pimentão, presunto, cebolas vidália, queijos cheddar e colby e uma pitada de páprica.

- Do jeito que você gosta - ela disse, com uma reverência. Colocou o prato diante dele na mesa. - Para lhe dar boa sorte.

Alex teria olhado para ela, talvez a puxado pelo quadril, colocando-a em seu colo para beijá-la. Teria oferecido metade de sua omelete e a daria a Cassie com o próprio garfo. Mas, naquela manhã, seus olhos estavam mais escuros, como se ele houvesse engolido algo inteiro que agora se consumia. Jogou o prato para longe com o braço, sem olhar para os cacos no chão de mármore claro.

- Traga-me uvas - ele disse, adotando um sotaque diferente. - Ameixas e timo de vitela. Ambrósia. - Ele deu as costas a Cassie, que estava paralisada a seu lado. Olhou para a mesa, para algo que ela não via. - Traga um banquete para um deus - ele disse.

Cassie saiu correndo. Do quarto, ela telefonou para a universidade, explicando que faltaria devido a uma indisposição, de fato acreditando que estava prestes a vomitar. Escutou quando John buscou Alex e, quando a porta se fechou, ela se enrolou sobre o colchão, tentando ficar bem pequena.

Alex chegou em casa depois do jantar. Ela ainda estava no quarto, olhando pela janela e observando o horizonte engolir o sol. Manteve-se de costas para Alex quando ele abriu a porta, esperando por um pedido de desculpas.

Ele não disse nada. Ajoelhou-se atrás dela e passou os dedos de sua mandíbula ao pescoço, acariciando-a gentilmente. Deixou os lábios passarem por suas mãos e, quando levantou o queixo dela para beijá-la, ela se entregou.

Ele fez amor como nunca. Foi rude até ela gemer, e em seguida passou a ser tão delicado que Cassie teve de apertar as mãos dele contra o corpo dela, pedindo mais. Não se tratava de um ato de paixão, mas, sim, de voracidade, e todas as vezes em que Cassie tentava se afastar um centímetro que Fosse, Alex a aproximava ainda mais. Ele se controlou até senti-la atingir O clímax e, ao deitá-la na cama, sussurrou em seu ouvido: - Você soube como foi minha conquistadora.

Quando ele estava com a respiração normalizada, adormecido, Cassie saiu da cama e pegou o roteiro que ele havia deixado perto da janela. Foi para o banheiro e sentou-se sobre a tampa do vaso sanitário, vendo a peça que lera, pela última vez, no colégio. Chorou quando António, apaixonado por Cleópatra, casou-se com Octavia pela paz. Leu em voz alta a cena em que António, ao descobrir que Cleópatra não o havia traído, implora a um soldado que o mate com a própria espada. Fechou os olhos e viu António morrer nos braços de Cleópatra; Cleópatra deixando-se envenenar pela picada de uma víbora. No Ato III, ela encontrou: a fala que Alex havia murmurado em seu ouvido depois de fazerem amor. Mas ela não havia feito amor com Alex. Era António quem a tocara, obcecado por ela, preenchendo-a.

UMA MULHER QUE ESTAVA SENTADA À ESQUERDA DE Cassie começou a tossir muito, e Cassie abriu os olhos e percebeu que havia perdido grande parte do filme. Alex já não estava mais na tela. A atriz que contracenara com ele, uma mulher muito bonita que não havia feito mais nenhum outro trabalho que merecesse mérito, estava entoando frases a António. Cassie sussurrou as frases com ela: "Abarcava com as pernas o oceano; seu braço, levantado, servia ao mundo. Sua voz tinha a harmonia das esferas". Aquele tinha sido um papel importantíssimo para Alex, aquele que abrira os olhos de Hollywood o suficiente para que se percebesse que ele era um ator que podia fazer qualquer coisa, que conseguiria vender areia no deserto. Era de surpreender? Um homem que comandava o mundo. Ambição sem precedentes. Havia tantas semelhanças entre António e Alex que ficava difícil dizer se ele havia interpretado ou simplesmente agido como realmente era.

Ela queria vê-lo. Não como se mostrava na tela, tomado pelos pensamentos e atos de um personagem, mas como ele mesmo. Ela queria conversar com o homem que lhe dizia que a havia ameaçado com um sequestro para que ela aceitasse se casar, aquele cujas covinhas seus filhos teriam, aquele que comprava para ela esqueletos antigos e plasticina. Queria ir à Escócia com ele, abraçada a ele, com os batimentos cardíacos em sintonia.

Sem esperar pelo final do filme, ela envolveu-se ainda mais na blusa de Alex e começou a subir o corredor do anfiteatro. Ela o encontraria no hospital, onde ele cumpria seu compromisso, e eles iriam juntos para Bel-Air, e ela contaria a respeito dos 42 idosos que haviam ido assisti-lo naquela manhã. Ele beijaria sua cabeça e ela se recostaria nele, deixando todos observarem os dois juntos.

As palavras de Cleópatra a seguiram como um véu de noiva quando sentiu o clima úmido da tarde. "Crês que houve, ou há, tal homem com o qual sonhei?

 

Michaela Snow, relações-públicas de Alex Rivers, o encontrou no estacionamento do hospital.

- Alex, Alex, Alex - ela disse, os braços grossos abertos para abraçar o ator. - Se eu não o amasse, eu o mataria.

Alex deu-lhe um beijo no rosto e a abraçou como pôde - ela pesava muito mais do que ele, por isso seus braços não conseguiam dar a volta em seu corpo.

- Você só me ama porque eu faço você ganhar muito dinheiro - ele disse.

- Tem razão nesse ponto - ela respondeu. Ela estalou os dedos e um homem baixinho e magro saiu da parte de trás da van. Ele segurava três pincéis entre os dedos de uma mão e uma esponja com pancake na outra. - Este é Flaubert Halloran - Michaela disse. - Maquiador freelance.

- Flaubert - o homem repetiu, com uma voz que fez com que Alex pensasse no miado de um gato. - Como o escritor. - Ele colocou os cabos dos pincéis na boca e começou a cobrir o machucado no canto do olho de Alex.

- Horrível, horrível - ele disse.

Michaela não parava de olhar para o relógio.

- Ótimo, Fio, está bom.

- Ela puxou Alex pelo pulso, levando-o com ela na direção do hospital.

- Consegui atrair a atenção de três grandes veículos, People, Vanity Fair e Times. A história é que você participa desses eventos de caridade todos os anos, mas foi graças a uma notícia vazada - muito obrigada - que houve cobertura este ano. Invente uma história sobre um primo que há muito morreu de leucemia.

Alex sorriu para ela:

- Ou sobre um filho bastardo?

Michaela o direcionou através das portas de vidro do hospital.

- Eu lhe mataria se fizesse isso - ela disse. Ela entregou a Alex uma pilha de fotos para publicidade do filme Taboo e muitos balões azuis e dourados e o guiou a um elevador. Michaela apertou o botão do sétimo andar. - Lembre-se, finja estar chocado ao ver todas as câmeras, mas recupere-se logo e conte uma história emocionante que lhe garanta outra indicação ao Oscar. - Ela piscou para ele e acenou, com as pequenas unhas vermelhas aproximando-se da palma da mão.

- Tchao - ela disse.

“Fingir?", ele pensou, seu sorriso desaparecendo quando as portas do elevador se fecharam em sua frente. Ele já estava fingindo. Tivera de usar quase todas as suas habilidades criativas para encontrar Michaela no estacionamento e fingir que aquilo se tratava de apenas mais uma ocasião de divulgação de sua imagem. Durante anos Alex evitou hospitais, havia anos que mantinha enterradas as lembranças de uma ala pediátrica de New Orleans. Conforme caminhava pelos corredores, o cheiro familiar de amónia e as paredes brancas começaram a sufocá-lo. Os músculos de seus braços ficaram rígidos, esperando sentir a pontada de uma agulha, a entrada de um soro.

Ele havia nascido com um buraco em seu coração, uma doença que lhe condenou a uma infância sem emoções. Um clínico geral que havia detectado o sopro havia indicado à mãe de Alex o centro de caridade da cidade, onde um especialista poderia checar a gravidade do defeito, mas quando se esqueceu da consulta - o que ocorreu mais de uma vez - o médico disse a ela que seu filho teria de ter cuidado. "Não corra", diziam a ele. "Não se canse." Ele se lembrava de ver outras crianças correndo pelo parquinho molhado. Conseguia se lembrar de quando fechava os olhos e costurava seu coração - um coração vermelho, costurado, de desenho de criança.

Quando tinha cinco anos e ainda não podia brincar fora de casa, escutava as radionovelas durante as tardes com a mãe, que não parecia notar ou se importar com sua presença ou ausência. Certa vez, na televisão, uma mulher de cabelo claro como uma fada apertara o rosto ao peito nu de um homem e dissera: "Eu te amo do fundo do meu coração". Depois daquilo, quando Alex imaginava seu coração, não imaginava apenas o furo. Via também a extensão do dano: todo o amor que ele havia reunido para e das pessoas vazava, uma torneira impossível de fechar.

Não é à toa, Alex percebeu, culpando a si mesmo pela indiferença dos Pais, do mesmo modo que as crianças pequenas têm de distorcer resultados e acontecimentos. Foi a primeira vez em que ele decidiu ser outra pessoa. Em vez de enfrentar seus defeitos, fingia ser um pirata malvado, um escalador de montanhas, o presidente. Fingia fazer parte de uma família normal, na qual, durante o jantar, perguntavam a ele: "Como foi seu dia?", e não diziam Palavras duras em francês cajun. Aos oito anos, quando recebeu alta, levou quelas fantasias para a vida real, preferindo alguém forte e esperto no lugar do menino assustado que havia sido.

Convenceu a si mesmo de que era alheio à dor, em proporções supereroicas. Lembrava-se de manter a palma da mão sobre uma vela acesa, sentindo a pele queimar e arder, dizendo a si mesmo que qualquer um que sobrevivesse àquilo não se sentiria afetado pela indiferença da mãe, pelos insultos do pai. Ele ficou muito bom em acreditar no que se forçasse a acreditar. Na verdade, trinta anos depois, Alex tinha adquirido tanta prática em dissimular, que não se lembrava muito bem do que restaria se todas as suas máscaras cuidadosas ruíssem.

Com o autocontrole pelo qual se tornara famoso, Alex livrou-se de suas lembranças e se concentrou na situação presente. Aquilo era um hospital, certo, mas nada tinha que ver com ele; não significava nada para ele. Faria seu trabalho, fingiria gostar de estar ali e iria embora.

Ele não ficou surpreso ao ter de passar por vários médicos e enfermeiras antes de chegar às crianças. Sorriu educadamente, olhando por cima das cabeças para encontrar o caminho mais rápido à ala dos pacientes, para que passasse a impressão de ter estado ali muitas vezes antes. As pessoas puxavam seu casaco, dizendo como haviam adorado sua atuação em um filme ou outro. Todos o chamavam de Alex, como se o fato de terem passado duas horas em um cinema escuro, vendo sua imagem na tela, desse a eles a ideia de que o conheciam desde sempre.

- Obrigado - ele murmurou. - Sim, obrigado. - conseguiu descer o corredor para a ala pediátrica de câncer, quando fotógrafos surgiram em sua frente. Ele olhou para a frente tempo suficiente para demonstrar leve desaprovação, talvez um vestígio de surpresa, mas recuperou-se e sorriu com educação e disse que algumas crianças esperavam por ele.

Michaela não o havia preparado para ver aquelas crianças. Com apenas um olhar, ele voltou a ter cinco anos, tremendo em uma camisola de hospital enquanto esperava que os médicos lessem seu futuro. Ele tinha aquela mesma aparência?

As crianças vestiam pijamas, algumas roupões abertos. Seus olhos eram grandes demais em comparação com as cabeças. Eram cópias umas das outras: magras, assustadas, carecas; imagens parecidas com as dos campos de concentração. Alex só conseguia distinguir os meninos das meninas pela voz.

- Senhor Rivers - uma garotinha o chamou. Não devia ter mais do que quatro anos, apesar de Alex não ser muito bom para fazer esses cálculos, e ele se abaixou para que ela subisse em suas costas. Exalava um cheiro de remédio, urina e entrega. - Aqui está - ela disse, colocando um biscoito molhado no bolso do casaco de lã dele. - Guardei um para você.

Alex pensou que aquelas crianças eram pequenas demais para conhecer seus filmes, mas quase todas haviam assistido a Speed, o filme sobre o piloto de testes. Os meninos quiseram saber se ele havia, de fato, pilotado aquele F-14, e um deles chegou a perguntar se a bela atriz que interpretara sua namorada beijava bem.

Ele distribuiu balões para as crianças menores e autografou as fotos de todos que pediram. Quando uma garota de treze anos, chamada Sally, aproximou-se para pegar seu autógrafo, ele se inclinou a ela e disse: - Sabe de uma coisa? A melhor maneira de se lembrar dos lugares onde você esteve é beijar uma menina bonita em cada um deles - afirmou alto o suficiente para que os gravadores registrassem aquele momento. - Acha que pode me ajudar?

Ela corou na mesma hora e ofereceu seu rosto, mas quando Alex ia beijá-la, ela se virou e pousou os lábios nos dele. - Uau! - Ela disse, levando os dedos à boca. - Preciso ligar para a minha mãe.

Alex percebeu no instante em que os flashes terminaram que ele não havia dado o primeiro beijo em Sally, mas também, provavelmente, o último. Ele sentiu que começava a suar quando o quarto girou e precisou respirar profundamente várias vezes para se acalmar. Fisicamente, estava melhor; fisicamente, tivera sorte. Mas havia muitas coisas escondidas na infância, coisas que roubavam a inocência antes de a criança ser grande o bastante para se defender. Tentou decidir o que era pior: uma criança cujo espírito não sobrevivia a um corpo doente ou, como ele mesmo, um homem cuja aparente saúde escondia uma alma que havia morrido anos antes.

JESUS CRISTO, John - ALEX DISSE, ESTICANDO OS braços na poltrona de trás do Range Rover. - A menos que ela tenha ido se encontrar com outro homem, qual é o problema?

John olhou para ele do espelho retrovisor.

- Não sei, senhor Rivers - ele disse. - Eu prometi a ela.

Alex inclinou-se para a frente e sorriu:

- Dez dólares a mais por semana se você me disser a cidade onde a deixou. Vinte dólares por semana se me contar tudo.

John mordiscou o lábio superior:

- O senhor não vai dizer que eu contei:

Alex cruzou os dedos sobre o peito.

- Juro.

- Ela foi ao cinema.

- E qual o segredo nisso?

John sorriu para ele.

- Ela foi assistir aos seus filmes. Foi a um festival que está acontecendo em Westwood.

Alex começou a rir. Ela poderia assistir a qualquer um de seus trabalhos - desde os filmes normais às cópias sem cortes - na privacidade de sua casa. Mas talvez por isso ela não quisesse que ele soubesse. Talvez a graça estivesse em ver as reações das pessoas a Alex na tela.

- Tem uma cópia do jornal de hoje, John? - Alex pegou o Times pela abertura do vidro que separava o banco do motorista do restante do veículo.

Analisou a seção de entretenimento até encontrar a relação dos cinemas. Malfeitor, António e Cleópatra e, é claro, A história dele. Sorriu. Se Cassie queria vê-lo trabalhando, ele tornaria tudo bem mais fácil.

Pediu a John que desligasse o rádio e fechou os olhos, desligando-se do mundo e ligando-se a seus sentidos. Antes de gravar, ele sempre encontrava um local tranquilo onde pudesse entrar no personagem. Era uma questão de saber respirar direito; de se concentrar na maneira de agir e alterá-la o suficiente para se encaixar no papel.

Quando a respiração começava, a vida tinha início. António inspirou, como se sugasse o mundo todo com apenas uma respiração. Ao abrir os olhos, viu um mundo de tons verdes e dourados que se espalhava a seus pés. Disse os nomes das saídas na estrada com um sotaque britânico preciso. Não se preocupava em olhar para John; não olhava para seus servos. Abaixou o vidro e deixou o vento bater em seu rosto, soprando seus cabelos e atingindo seus olhos. Tocou o couro macio do banco e pensou nas curvas de sua rainha.

No apartamento, quando Alex não saiu do carro, John deu de ombros e correu para dentro para buscar a senhora Rivers. Estava acostumado àquele tipo de coisa vinda de seu empregador. Não era de sua natureza comentar, mas às vezes ele buscava o senhor Rivers e do carro saía um homem completamente diferente.

Cassie estava rindo quando entrou no carro.

- Vá mais para lá - ela disse. - Está ocupando o banco todo. - Alex estava sentado no centro e olhou para ela, mas não fez nenhum esforço para se mexer. Pensando se tratar de uma brincadeira, ela o empurrou, sentando-se com a coxa sobre seu colo.

Ela sentiu a mão dele em sua nuca, delicada e tensa ao mesmo tempo, como se o carinho servisse para que ela se lembrasse de que ele podia facilmente vencê-la. Ela estreitou os olhos e virou-se para ele.

- O que eles fizeram com você no hospital, pelo amor de Deus?

Os dedos dele a apertaram quase a ponto de causar dor e ela reclamou, sem conseguir se controlar. Ele estava olhando diretamente em seu rosto, mas ela tinha a impressão de que Alex estava vendo outra pessoa. Assustada, apertou o pulso do marido.

- Pare com isso - sussurrou e, antes que pudesse perguntar de novo o que estava acontecendo, ele se inclinou sobre ela e cobriu sua boca com um beijo. Aquele não era Alex.

"Ele está interpretando."

Ela apertou as unhas no braço dele e mordeu seu lábio até conseguir afastar-se dele.

- Pare com isso. Pare agora mesmo - ela disse.

Durante um momento ele ficou paralisado, os olhos frios que lentamente perderam a intensidade, até que o corpo ao lado de Cassie fosse apenas uma concha vazia. E então seu corpo ganhou vida de novo, seu rosto ficou corado e seus olhos brilharam. Era Alex mais uma vez e ele deu de ombros:

Você não precisava me morder - ele disse. - Apenas pensei que você quisesse ver uma performance ao vivo também.

Ainda cautelosa, Cassie recostou-se no canto do banco, longe dele.

- Quem lhe contou aonde eu fui? - Ela perguntou, olhando para John no banco da frente.

Alex segurou sua mão e envolveu seus dedos nos dela.

- Sei tudo sobre você - ele disse sorrindo.

Cassie começava a pensar que ele sabia mesmo. Ele voltara a ser o Alex com quem ela havia se acostumado nos últimos dias, engraçado, delicado e confortável. Ela tentou imaginar se aquele era apenas outro personagem que ele mantinha por perto, no qual entrava na maior parte do tempo.

Ela balançou a cabeça para afastar o pensamento. O que estava pensando? Já vira Alex em seus momentos vulneráveis, quando falava sobre os pais, quando tentava ensinar a ela golpes de caratê na praia, quando a abraçava e sussurrava seu nome enquanto dormira. Era impossível interpretar o tempo todo; era ridículo pensar que o que ela via não era real. Ela apertou a mão dele.

- Sinto muito, não costumo morder. - Ele se virou um pouco, batendo levemente no banco a seu lado, e ela se aproximou. - Mas por que você escolheu António, afinal?

Alex sorriu.

- Você adorava António quando nos casamos - ele disse.

Cassie pensou em contra-argumentar, mas mudou de ideia. Alex tinha razão. Ele sabia tudo sobre ela, e naquele momento ela não sabia muita coisa, por isso só podia acreditar nele.

Eles ficaram por cerca de quinze minutos em silêncio, e então Cassie sentiu Alex beijar o topo de sua cabeça.

- Você provavelmente só está nervosa porque vai encontrar toda a equipe de novo - ele disse.

Cassie olhou pela janela. Sabia que estava passando por árvores, estradas e canteiros, mas o carro se movia com tanta pressa que o mundo parecia apenas uma grande mistura de cores; ela não podia escolher uma delas apenas:

- Sim, deve ser isso - ela respondeu.

A CASA FICAVA NO FIM DE UM CAMINHO de um quilómetro e meio no topo de um monte em Bel-Air, uma mansão branca com portões de ferro forjado e telhado de ardósia. O terraço apoiava uma varanda no segundo andar onde cortinas de renda que iam até o chão balançavam através das janelas francesas abertas. Havia rosas do lado esquerdo da casa; heliotrópios do lado direito. A distância, Cassie conseguiu ver jardins e duas casas como réplicas da construção principal.

- Meu Deus - ela sussurrou, escutando o barulho das pedras sobre seus tênis ao sair do carro. - Não pode ser verdade que eu moro aqui.

Alex a segurou pelo cotovelo e a guiou degraus acima. John abriu a porta da frente, uma peça maravilhosa de carvalho entalhada com a cabeça de um leão.

A sala era um cômodo enorme com teto abobadado, com duas escadas e pisos de mármore cor-de-rosa. Cassie olhou para seus pés, banhados pela luz de uma janela de vitrais perto da porta. As iniciais de Alex se espalharam como uma mancha sobre seu pé e tornozelo esquerdos.

- Cassie - ele disse, e ela olhou para cima. - John já contou a todos sobre o seu... probleminha, e eles procurarão ajudá-la hoje antes de nossa viagem para a Escócia.

Cassie passou os olhos pelas pessoas que estavam ao pé da escada, no lado esquerdo, como uma fileira de soldados de brinquedo. Ali estava John, claro, que era não só motorista e guarda-costas, mas também um tipo de mordomo. Havia um homem com um avental amarrado a seu corpanzil, uma jovem vestindo um uniforme simples de empregada, preto e branco. Outro homem estava mais ao lado, como se não quisesse ser relacionado aos funcionários da residência. Ele deu um passo à frente com o braço estendido:

- Sou Jack Arbuster - ele disse, sorrindo. - O secretário de seu marido.

Ela tentou imaginar para que Alex precisaria de um secretário se já contava com a ajuda de um agente, uma publicista e uma assistente pessoal. Pensou que, talvez, ele fosse a pessoa responsável por responder às cartas de fãs ou de pagar as contas.

- Preciso conversar com você antes de sua viagem - ele piscou para Cassie, como se pedisse desculpas.

Alex passou o braço ao redor da cintura da esposa.

- Dê-me uma hora - ele disse a Jack. Vou encontrá-lo na biblioteca. - Quando Jack se retirou, Cassie o seguiu com os olhos, tentando ver o que havia na primeira entrada. Levando-a consigo, Alex passou pela empregada, pelo cozinheiro e por John. - Vamos - ele disse. - Vou lhe mostrar o máximo que der e, na pior das hipóteses, vou lhe entregar a planta da casa até você conseguir se encontrar aqui dentro.

Ele a levou para a biblioteca com estantes de cerejeira repletas das primeiras edições de centenas de clássicos ingleses e americanos, mostrando uma estante toda tomada por cópias de matérias de jornais e revistas que Cassie havia escrito. Ele a levou pela sala de jantar, cuja mesa tinha espaço para trinta pessoas, uma sala de projeção com uma grande tela e dez sofás bem macios. Na cozinha, ela abriu a geladeira de aço inoxidável e contou os potes de cobre sobre o balcão de mármore e recebeu uma maçã do cozinheiro.

Havia seis banheiros e dez quartos na casa, todos decorados com papel de parede claro e cortinas de renda francesa. Havia três salas de descanso e um centro de recreação com máquinas de pebolim, uma pista de boliche, mesas de bilhar e uma TV de tela grande. Ainda restava uma ala toda a ser vista quando Alex a levou para a suite máster, no andar de cima. Ele abriu as portas duplas que davam para um quarto de casal, confortavelmente mobiliado com sofás listrados e tapetes persas. Havia um rádio no canto da parede, além de uma televisão e um videocassete. Havia flores dentro de vasos sobre diversas mesas, belas flores que acentuavam os tons azuis e roxos da sala e que, Cassie sabia, não eram espécies nativas da Califórnia.

- Provavelmente passamos muito tempo aqui - Cassie disse, parando atrás de Alex ao atravessar uma porta que revelava uma enorme cama de cedro.

Alex sorriu para ela:

- Bem, nós tentamos.

Cassie aproximou-se da cama e passou o dedo pelos entalhes da madeira.

- É maior do que uma king-size, certo?

Alex mergulhou na cama de barriga.

- Eu a encomendei em um tamanho especial. Tenho uma teoria sobre camas: elas são como peixinhos dourados. Você sabia que se mantiver um peixinho dentro de um aquário pequeno e redondo ele ficará do tamanho de seu polegar? Mas se você o colocar em um lago, como aquele que temos nos fundos, ele vai crescer dez vezes mais. Então acho que quanto maior for a cama, menos comprometerei meu crescimento.

Cassie riu.

- Acho que você já passou da puberdade.

Alex segurou os punhos dela e a puxou para que se deitasse a seu lado.

- Então você percebeu?

Ela rolou na direção dele, olhando para a barba rala que já aparecia em seu rosto.

- Onde fica meu laboratório?

- Nos fundos. A pequena casa branca - a segunda que encontrar. A primeira é onde John vive.

Cassie franziu o cenho.

- Ele não fica dentro da casa como a senhora Alvarez?

Alex sentou-se.

- Gostamos de ter privacidade à noite - ele disse simplesmente.

Cassie caminhou até a lareira que ficava na frente da cama e passou a mão sobre a garrafa de uísque sobre o console. "Aurora", ela pensou e sentiu as mãos do marido sobre seus ombros.

- É só para enfeitar - ele disse, como se tivesse lido seus pensamentos.

Cassie virou-se.

- Vá cuidar de suas coisas - ela disse sorrindo. - Se eu não estiver de volta em uma hora, envie a Guarda Nacional à minha procura.

Quando Alex saiu, Cassie ficou em pé diante das portas francesas, olhando para os bairros ricos de Los Angeles e para os montes azulados das montanhas. Um jardineiro a quem ela não havia sido apresentada estava cuidando de um canteiro de lírios delicados, e, no caminho que dava para a garagem, John estava polindo o para-lama traseiro do Range Rover. Ela localizou seu laboratório, logo à esquerda de um arbusto de flores no formato de uma flor-de-lis. Além do jardim havia um caminho de pedra calcária branca que descia por um monte em direção a algo que ela não conseguia ver.

Ela desceu correndo a escada por onde não havia subido, apenas para ver se havia alguma diferença. Saiu pela porta e testou uma cadeira de balanço e um banco de balanço na varanda antes de sair correndo pelo caminho de pedra calcária, como se fosse uma criança. Quando estava longe o bastante da casa, certa de que ninguém a observava, ela abriu os braços para o sol e girou, rindo, sorrindo e dando pulos.

Havia uma piscina com ornamentos, com uma queda-d'água artificial sobre a qual Alex esquecera de comentar com Cassie e um verdadeiro labirinto feito com arbustos densos. Ela entrou, tentando imaginar se saberia chegar ao centro e encontrar a saída de novo. Os cantos mais afiados do labirinto surgiram rapidamente enquanto ela corria pelos corredores estreitos, raspando os braços em galhos recém-podados. Tonta, ela sentou-se na grama fria. Deitou-se de costas, maravilhada com a casa e a propriedade de Alex.

Se um inseto não tivesse subido por seu braço, ela não teria visto a pedra. Ela rolou de bruços, olhando para os talhos dos arbustos. Bem escondida ali dentro estava uma pedra rosada pequena.

Não era exatamente oval; era muito áspera e torta para ser oval. Cassie esticou a mão dentro da vegetação, sentindo os galhos envolverem seus pulsos como pulseiras. Era um quartzo rosa, e ela o havia trazido da Costa Leste. Entalhadas de qualquer modo na parte mais lisa da pedra, estavam as letras CCM e o ano, 1976.

Não conseguia se lembrar do porquê de ter escondido aquela peça no meio do labirinto de Alex. Não se lembrava se já havia dito a Alex que ela estava ali. Mas percebeu que aquela era a primeira prova na qual acreditava; a primeira coisa que via desde que perdera a memória e que a convenceu de que ela já havia vivido ali.

Cassie deitou-se de costas e segurou a pedra contra o peito. Manteve o olhar fixo no sol até que aquele mundo lindo que Alex oferecia a ela ficasse preto, e então ela sussurrou o nome de Connor.

NO DIA 1° DE NOVEMBRO DE 1976, UM POUCO DEPOIS DAS sete horas, o pai de Connor entrou na cozinha onde ele e sua mãe tomavam mingau de trigo e matou ambos com um revólver calibre 12. Entre o tempo que Cassie levou para ligar para a polícia para falar sobre os disparos e correr até a casa de Connor, o senhor Murtaugh teve tempo de atirar em si mesmo também.

O pai de Connor havia se matado na sala de estar, mas a senhora Murtaugh estava deitada no chão. Estava sem a parte de trás da cabeça. Connor havia caído quase em cima dela e havia um grande buraco em seu peito.

Com uma calma resultante do choque, Cassie sentou-se ao lado de Connor e o colocou em seu colo. Tocou com os dedos os lábios dele, ainda quentes. Pensou em beijá-lo, como fizera na noite anterior, no cemitério, mas não conseguiu.

A polícia e os paramédicos afastaram a menina do corpo de Connor. Ela ficou sentada em um canto da cozinha com um cobertor de lã enrolado em seus ombros, respondendo às mesmas perguntas sem parar. Não, não havia presenciado o crime. Não, não havia visto o senhor Murtaugh naquela manhã. Não, não, não.

Todos sabiam como Cassie e Connor eram próximos, e ela foi dispensada da escola até o funeral, mas não foi poupada dos comentários. "Dizem que ele se matou. Não conseguiu encontrar emprego, então passou a beber. Matou um menino inocente como aquele, na flor da idade." Pelo menos ela conseguia prever os problemas em sua casa. A família de Connor apodreceu sob sua fachada colorida, sem que ninguém percebesse.

No dia do enterro, choveu. Connor não tinha um testamento, por isso seu corpo foi cremado, assim como o de seus pais. As cinzas foram jogadas sobre o lago Moosehead. Cassie observou quando foi aberta a urna com as cinzas da senhora Murtaugh e depois a urna com as cinzas do marido. Quando espalharam as cinzas de Connor, Cassie começou a gritar. Ninguém conseguiu controlá-la. Nem mesmo quando seu pai pôs a mão sobre sua boca conseguiu abafar o som. Não era certo que, para sempre, Connor e seu pai ficassem misturados. Queria que começassem de novo. Queria que entregassem Connor a ela.

Ela sentiu a neve gelar seus olhos quando o que restara de Connor foi levado pelo vento. Uma nuvem cinza, fraca como fumaça, escureceu o céu

E desapareceu rapidamente. Era como se Connor tivesse sido uma parte da imaginação de Cassie. Como se nunca houvesse existido.

Ela se afastou das outras pessoas que estavam prestando seu respeito e, com seu vestido mais novo e as botas de neve, começou a correr ao redor do lago Moosehead. Era enorme, e ela sabia que não conseguiria chegar muito longe, mas quando caiu de joelhos na neve, ofegante, estava a um quilómetro e meio de distância do local do funeral. Deixou a neve derreter pelo tecido fino de sua saia, fria o bastante para paralisá-la. Cavou o chão congelado com os dedos até suas unhas estarem quebradas e sangrando.

Percebeu que apesar de ter tentado, durante anos, aliviar a dor da mãe nunca conseguiria aliviar a dor de Connor. Assim, faria o que poderia compensar esse fato: sentiria a dor por ele. Levou o pedaço de quartzo rosa com ela e trabalhou na garagem perto da caixa de ferramentas do pai, usando um martelo e uma sovela para fazer a lápide que Connor não havia recebido. Trabalhou até suas mãos ficarem doloridas. E então abraçou os joelhos e balançou-se para a frente e para trás, tentando imaginar por que, uma vez que os corações de ambos tinham sido arrancados, ela não estava morrendo.

NA NOITE DE SEXTA-FEIRA, Will Cavalo Alado estava sentado em seu novo sofá verde, assistindo a um game show na TV e comendo comida pré-pronta quando acabou a eletricidade.

- Merda! - ele disse, observando o relógio do vídeo cassete, que piscava sem parar, desaparecer. Colocou o prato ao lado dele sobre o sofá e tentou se lembrar onde ficava a caixa de dijuntores.

Não tinha sido tão ruim; era horário da janta, por isso havia iluminação suficiente do lado de fora para que ele conseguisse ir ao porão. O mais estranho é que nenhum dijuntor havia sido desarmado. Ele subiu as escadas e saiu na varanda da casa. Pelas janelas da casa vizinha e daquelas do outro lado da rua, ele conseguiu ver que as luzes estavam acesas, que as TVs estavam ligadas. O problema era só em sua casa.

Ele telefonou para a companhia de eletricidade, mas só pôde deixar registrado seu endereço e o problema em questão em um sistema de gravação de mensagens. Só Deus sabia quanto tempo levaria para que os funcionários pegassem a mensagem. Assim, ele começou a pegar velas de dentro dos armários, velas vermelhas e feias, em formato de ovo, que uma ex-namorada lhe dera de aniversário. Levou quatro delas para a sala de estar e acendeu-as com um palito de fósforo que tinha em seu bolso.

Conforme o sol se pôs, uma sombra ficou evidente. As franjas do patuá acima de sua cabeça se mexiam sem parar no silêncio. Will escutou o ritmo de seus batimentos cardíacos. Não havia nada a fazer além de esperar.

ELIZABETH, A EMPREGADA, LEVOU PARA O QUARTO uma mala maior do que ela própria.

- A senhora também vai precisar de uma mala de mão?

Cassie não sabia. - Acho que sim - ela disse, e a empregada já ia se retirando. - Espere - ela disse, franzindo o cenho. - Não consigo encontrar os armários.

Elizabeth sorriu. Atravessou a suite e o quarto, entrando no pequeno corredor que levava ao banheiro de mármore verde. Quando encostou seu ombro contra a parede, Cassie ficou encantada ao ver o papel de parede se abrir e revelar um armário escondido.

- Este é o seu - Elizabeth disse, e em seguida fez a mesma coisa do outro lado. - E este é o do senhor Rivers.

Ela saiu do quarto, deixando Cassie olhando as fileiras de blusas e suéteres que pertenciam a ela. O closet era maior do que as dependências de empregada no apartamento. Cassie nunca tinha visto tantas roupas em um só lugar.

Começou a pegar peças das gavetas - blusas confortáveis de gola olímpica e casacos de algodão, roupas íntimas e sutiãs e uma pequena bolsa para a maquiagem. Queria pegar um par de sapatos que estava na parte de baixo da pilha de caixas, mas pensou que poderia chegar a eles sem retirar as caixas de cima. Escorregou a caixa pela metade, tentando tirar os sapatos pela tampa entreaberta, mas a base cedeu e o conteúdo do armário caiu.

Cercada pela confusão de lingeries, sapatos de salto e casacos, ela quase não viu o pequeno compartimento. Empurrou a parte da frente e ele se abriu. Era mais um buraco escondido que funcionava com o mesmo princípio de seu armário. Era minúsculo, do tamanho de uma forma de pão. Cassie tentou imaginar se era ali que guardava suas jóias.

Ali dentro havia uma pilha de romances de bolso, daqueles com uma mulher seminua inclinada sobre um pirata estampados na capa, o tipo de livro que nunca seria lido por uma antropóloga. Cassie riu. Aquele era seu grande segredo? O que Alex guardava em seu compartimento? Revistas de mulher pelada?

Ela pegou alguns e olhou os títulos. Salve-me de novo, O fogo e a flor, As chamas ardentes do amor. Talvez Alex pedira que ela os escondesse. Não seria muito bacana que viesse a público o fato de a esposa do maior ator dos estados Unidos ler aquelas coisas em seu tempo livre.

Havia uma caixa presa, atrás da pilha de livros. Cassie a identificou só de ver sua embalagem cor-de-rosa. Um teste que identificaria a gravidez logo no primeiro dia de atraso da menstruação.

Ela olhou para o belo banheiro verde. Conseguia ver-se claramente ali, inclinada sobre a pia, esperando que os três minutos se passassem. Lembrou da maneira com que o círculo pequeno e rosa havia surgido. Rosa, positivo. Branco, negativo. Ela havia chorado sobre a pia, com as mãos sobre as torneiras.

Cassie sentou-se novamente sobre a pilha de roupas, peças que Alex havia comprado para ela, roupas que combinavam com todas as armadilhas de uma vida assim. Ela apertou as palmas das mãos contra os olhos, tentando tirar da cabeça a imagem do cemitério St. Sebastian e do que a havia levado até ali.

ERA A NOITE EM QUE ALEX VOARIA PARA A ESCÓCIA para suas gravações e ele estava com o humor alterado. Cassie havia aprendido a avaliá-lo pelos olhos: quanto mais escuros ficavam, mais distante ela se mantinha. Havia se passado meses desde a última vez. Ela deveria ter percebido.

Na hora do jantar, Alex ficou batendo a faca na beirada da mesa. Fazia um barulho seco e insistente contra a toalha de mesa e o coração de Cassie acompanhava o ritmo.

- Como foi hoje? - ela perguntou. Alex descansou a faca na beirada do prato. - O filme está com o orçamento estourado; está sendo dirigido por um idiota. Faz apenas uma semana que o estamos produzindo. - Ele passou as mãos pelos cabelos. - Muito obrigado por tocar no assunto.

Cassie ajeitou-se na cadeira e concentrou-se em manter a boca fechada e comer fazendo o mínimo de barulho. Havia descoberto naquele dia sobre a gravidez e queria contar a Alex antes de ele viajar, mas talvez não fosse o momento. Precisava ser na hora certa. Precisava mostrar a ele que a gravidez não tinha ocorrido em um momento ruim; mudaria a vida dos dois. Seria uma segunda chance.

Alex empurrou a cadeira para trás.

- Preciso fazer minha mala. Tenho menos de uma hora.

Cassie olhou para o prato dele, cheio de comida que ele havia deixado sem quase tocá-la.

- Farei um sanduíche para você levar - ela disse, mas Alex já havia saído da sala.

Desde o início, três anos antes, Cassie havia se tornado muito boa em se manter longe do caminho do marido. Afinal, a casa era grande e, com os funcionários dispensados à noite, ninguém acharia estranho o fato de ela descer para seu laboratório às três da manhã ou se decidisse terminar a leitura de um livro na biblioteca até o sol raiar. Mas sua intuição não estava muito aguçada naquela noite; passara muito tempo durante o dia sonhando com um menininho de olhos brilhantes como os de Alex. Caminhou até o quarto e sentou-se no meio da cama, onde observou o marido fazer sua mala. Olhar para ele era como ver seu bebê.

- Quer que eu arrume seu kit de barbear? - Alex negou com um movimento de cabeça. Ela pegou uma blusa que ele havia jogado no quarto. - Vou dobrá-la para você - ela disse, e começou, braço por braço, mas Alex segurou seu punho.

- Eu disse que vou fazer isso - ele murmurou.

Alguma coisa estava consumindo Alex por dentro, algo que fazia parte dele muito antes de Cassie tê-lo conhecido. Era o que fazia dele um ótimo ator, apesar de ninguém mais saber disso. As pessoas viam a dor, mas apenas depois que Alex a passava para um personagem. Apenas Cassie já tinha olhado para ele quando seus olhos ficavam cegos; apenas Cassie havia sentido com as mãos em seu peito o ponto onde batia um coração com ódio.

Ela o amava acima de tudo no mundo. Até mesmo mais do que a si mesma. Já não havia provado isso? Sabia que, mesmo que não pudesse curá-lo dessa vez, da próxima vez que ele sentisse dor ela conseguiria. Por isso Alex se voltava para ela. Cassie era a única pessoa que conseguia melhorar as coisas.

Mas era uma faca de dois gumes. Ela era a única próxima o bastante de Alex para ajudar, mas isso a deixava em uma posição vulnerável. Não era culpa dele se ela entrava em seu caminho. Quando isso acontecia, ela só podia culpar a si mesma e perdoá-lo.

Alex sentou-se ao lado dela na cama.

- Não quero ir para a maldita Escócia - ele disse com a voz grave. - Quero tirar um tempo de férias. Quero que essa maldita divulgação do Oscar termine e quero sumir da face da Terra.

- Então faça isso - Cassie disse, massageando os músculos dos ombros dele. - Dê uma pausa em Macbeth e vá para o Quênia comigo.

Alex riu com ironia.

- E o que vou fazer enquanto você estiver brincando em sua caixa de areia?

Cassie sentiu um aperto por dentro.

- Ler roteiros. Pegar um bronzeado - ela sugeriu.

Alex começou a jogar as roupas nas malas que havia colocado no chão.

Hoje fiquei sabendo da entrevista antes do Oscar que gravamos com Barbara Walters. - Ele suspirou. - Ela vai me apresentar com um comediante e Noah Fallon. - Cassie olhou para ele sem entender. - Pelo amor de Deus! Noah Fallon. Ele está concorrendo como Melhor Ator também. Alex sentou-se no chão, com os joelhos encolhidos contra o peito. - Vou aparecer no programa em segundo lugar. Segundo, que merda! Fallon será apresentado por último.

Cassie sorriu para ele:

- Pelo menos você estará no programa.

Alex ficou de costas para ela.

- Nos últimos três anos, quando o especial de Oscar de Barbara Walters apresentou um indicado na terceira parte do programa, esse indicado levou o Oscar. É um maldito termómetro de como serão os votos da Academia.

Sem saber o que dizer, Cassie saiu da cama e abraçou o marido.

- Não vou vencer - Alex disse, encostado no ombro da esposa.

- Você vai vencer - ela suspirou. - Vai vencer.

Da maneira como costumava acontecer, Alex mudou em um instante. Ficou em pé, agarrando Cassie pelos punhos e a chacoalhou com tanta força que o cabelo dela balançava sem parar.

- Como você sabe? - Ele perguntou, seu hálito quente em contato com o rosto dela. - Como sabe?

As palavras ficaram presas na garganta de Cassie, aquelas com as quais ela sempre queria se defender, mas que nunca eram expressas. Alex a chacoalhou de novo e dessa vez a empurrou, jogando-a ao chão.

Ela tropeçou na mala ao cair e bateu a cabeça na porta do closet, sentindo uma ferida se abrir, mas que não doeu tanto quanto a vergonha que tomou conta de seu ser. Ela teve tempo de ver Alex erguendo o pé, e, em vez de se curvar como sempre fazia, rolou de modo que ele a acertou em cheio nas costas, com a dor correndo por sua coluna, mas poupando seu ventre.

- Meu bebê - ela disse e levou as mãos à boca imediatamente, rezando para que Alex não a tivesse escutado.

Mas ele já estava de costas, com as mãos na cabeça. Ajoelhou-se ao lado dela, amparando-a como sempre fazia quando a dor sumia, com as mãos passando sobre ela com a delicadeza de um gato.

- Sinto muito - ele disse. - Não era a minha intenção.

- Não é sua culpa - ela disse, porque conhecia suas falas, mas pela primeira vez não acreditou nas próprias palavras. A raiva começou a vazar de uma rachadura bem funda que havia sido consertada vezes demais para manter-se firme. "Seu filho da mãe", ela pensou.

Sabia que Alex precisava dela, mas também se deu conta de que não podia permanecer ali. Não podia pôr em risco a segurança de seu filho com Alex. ela faria para seu bebê o que não fizera para si mesma em três anos.

Quando John tocou o interfone, Alex saiu do lado de Cassie e jogou todas as suas roupas, até os ternos, dentro das malas. Arrastou a bagagem para fora do quarto e voltou para beijá-la.

- Eu te amo - ele disse, as palavras exageradas. Colocou a mão sobre a dela, que estava posicionada em sua barriga.

Ela esperou até escutar o carro se afastar e então pegou seu casaco e saiu da casa de Alex. O mundo se abriu, e ela teve de se concentrar a cada passo para se convencer de que estava fazendo o que precisava ser feito. Disse a si mesma que se fosse embora naquele momento, enquanto Alex estava fora da cidade, talvez não o magoasse tanto.

Desceu a rua sem saber para onde ir. Pensou em ir para a casa de Ophelia, mas era ali que Alex a procuraria assim que tomasse conhecimento de seu sumiço; e não havia ninguém a quem pudesse recorrer. Era a palavra de Cassie contra a imagem pública de ouro de Alex, e ninguém acreditaria nela quando contasse a verdade.

CASSIE HAVIA CHEGADO MUITO PERTO. OS PUNHOS estavam fechados sobre seu corpo, ela chorava e percebeu que havia traído a si mesma ao perder a memória. Caso contrário, teria conseguido se manter à frente de Alex.

Ele havia sido gentil e compreensivo, provavelmente porque ela não havia começado a gritar acusações assim que o viu na delegacia. Não que ela fosse capaz de fazer algo desse tipo; Alex devia saber. Ela não tinha intenção de magoá-lo - nunca tivera -, apenas queria proteger-se. Nunca pensara que os dois eram exclusivos um para o outro.

Mas Alex pensava dessa forma, por isso a buscara. Mas a vida que ele mostrou não era como parecia. Ela podia viver nas mansões, sorrir diante das câmeras, passar a noite sendo tocada por ele e, ainda assim, tudo acontecer de novo.

No passado, as promessas de Alex não haviam impedido os acontecimentos. Ela não tinha escolha. Desejou que tivesse visto as coisas com tanta clareza antes.

Ele entraria no quarto a qualquer momento para fazer a mala para o voo da sexta-feira à noite, mas ela não ia para a Escócia. Cassie ficou em pé e pegou uma bolsa velha de lona com o nome de uma emissora pública de TV. Jogou dentro dela muitas peças de roupa e pegou peças íntimas e as colocou nos espaços vazios. Colocou um boné com o nome da empresa de produção de Alex e saiu do quarto.

Ali não era uma prisão, pelo menos não literalmente, então as pessoas pelas quais Cassie passou ao sair não a detiveram e não perguntaram aonde ela ia. Ela passou pela piscina, pelo labirinto e pelos jardins floridos. Saiu por um portão dos fundos e cortou caminho pelo quintal bem-feito de um vizinho até chegar à rua.

Caminhou cada vez mais rapidamente, com medo de estar sendo seguida. Depois de um tempo, começou a correr. Horas depois, quando pensou que estava em segurança, caiu de joelhos e se forçou a lembrar.

                                                                     1989-1993

 

Os petréis, aves do Ártico, vivem nas partes mais altas dos montes. De seus pontos privilegiados, eles podem ganhar mais destaque entre aves que não são tão autoconfiantes, entoando canções a respeito de sua magnificência sobre os mares congelados.

Certa vez, existiu um petrel tão arrogante que não conseguiu encontrar uma parceira em seu bando. Decidiu que se casaria com um ser humano e fez um feitiço para dar a si mesmo a forma de um homem. Costurou peles grossas de foca para fazer uma bela parca e se enfeitou até ficar muito bonito. É claro que seus olhos continuavam sendo de petrel, por isso ele fez óculos escuros para dar um toque final a seu disfarce e, dessa forma, colocou seu caiaque na água e partiu à procura de uma esposa.

Na mesma época, um viúvo vivia na costa tranquila com sua filha Sedna, uma garota tão bonita que comentários sobre sua forma e seus traços já se espalhavam para além da tribo. Muitos homens vinham para admirá-la, mas Sedna não se casava. Nenhum dos pedidos conseguia chegar ao coração dela.

Certo dia, um homem bonito chegou em uma bela parca de pele de foca. Ele não arrastou seu caiaque para a praia, mas sobrevoou as ondas que se quebravam e chamou Sedna. Começou a cantar para ela. "Venha, amor", ele entoava, "para a terra dos pássaros, onde você nunca sentirá fome, onde vai descansar em peles de ursos, onde terá penas para cobri-la e colares de marfim, onde suas lamparinas sempre terão óleo e onde seu prato será cheio de carne."

A canção se enrolou na alma de Sedna e a levou para mais perto do caiaque. Ela navegou com o estranho pelo mar, longe da casa e de seu pai.

Durante um tempo, foi feliz. O petrel fez a casa deles em um monte rochoso e buscava peixes para ela todos os dias, e Sedna estava tão encantada com o marido que nunca pensou em olhar ao redor. Mas, um dia, os óculos do petrel escorregaram de seu nariz e Sedna pôde ver seus olhos. Desviou o olhar e viu uma casa construída não com couro, mas, sim, com pele de peixe podre. Não dormia sobre a pele de um urso, mas no pelo duro de uma morsa. Sentiu as gotas pontiagudas do mar e percebeu que havia se casado com um homem que não era o que ela pensava.

Sedna chorou de tristeza e, apesar de o petrel a amar, não conseguia parar seu choro.

Um ano se passou e o pai de Sedna foi visitá-la. Quando chegou ao monte onde ela vivia, o petrel estava caçando peixes, e Sedna implorou ao pai que a levasse de volta para casa. Eles correram de volta para o caiaque e se puseram a navegar.

Eles não estavam muito longe quando o petrel voltou a seu ninho. Ele gritou por Sedna, mas seu choro de dor foi engolido pelo barulho do vento e do mar. Outros petréis foram a seu encontro e contaram onde Sedna estava. Ele abriu as asas, sua envergadura bloqueando o sol, e voou na direção do barco onde estavam Sedna e seu pai.

Ao vê-los remando cada vez com mais fúria, o petrel ficou nervoso. Bateu as asas ao vento, criando correntes, forçando a violência das ondas congelantes. Uma tempestade se deu por seus gritos e o mar ficou tão revolto que o barco balançava sem parar. O pai de Sedna percebeu que a ave era tão poderosa que até o mar estava furioso com a perda da esposa do petrel. Sabia que para salvar a si mesmo teria de sacrificar a filha.

Jogou Sedna na água gelada. Ela se debateu, a pele roxa de frio. Conseguiu se segurar na lateral do barco, mas seu pai, assustado pelo bater forte das asas do petrel acima de sua cabeça, bateu nos dedos da filha com o remo do caiaque. Os dedos de Sedna se quebraram e caíram no mar, onde se transformaram em baleias e nadaram para longe. Ressurgindo, Sedna segurou-se na lateral de novo, mas seu pai a atacou pela segunda vez. As falanges de seus dedos se quebraram como pedras de gelo e caíram no mar e se tornaram focas. Mais uma vez ela alcançou o barco, mas seu pai bateu em suas mãos até partes de seus dedos se quebrarem e se transformarem em morsas, e Sedna afundou.

Sedna se tornou um espírito poderoso que controla as criaturas do mar que nasceram de seus dedos. Às vezes ela causa tempestades e faz com que caiaques batam contra as rochas. Às vezes causa fome afastando as focas de seus caçadores. Nunca sobe à tona, onde pode reencontrar o petrel.

 

                         Lenda dos esquimós

Vou contar a verdade.

Mas a história começa muito antes de eu tê-lo conhecido, bem antes de qualquer pessoa ter ouvido o nome de Alex Rivers. Começa no dia em que Connor Murtaugh se mudou para a casa ao lado da minha - o mesmo dia em que voltei para casa para o jantar e disse à minha mãe que quando eu crescesse queria ser menino.

Eu tinha cinco anos, uma menininha certinha treinando para ser uma moça do Sul. O fato de morarmos no Maine não impedia minha mãe de me ensinar os modos de uma garota primorosa do estado da Geórgia. Já sabia ler um pouco e, por necessidade, sabia até preparar pratos simples, como sopa e queijo grelhado e, é claro, café forte. Havia dominado a arte de jogar meus cabelos por sobre o ombro e de baixar o olhar para conseguir o que queria. Sorria sem mostrar os dentes. A maioria dos adultos me achava uma gracinha, mas eu não tinha amigos de minha idade. Levá-los para casa para brincar era inimaginável, você pode imaginar, o que fazia com que muitas crianças da escola pensassem que eu era estranha ou fresca. Até que a família de Connor se mudou de um apartamento do outro lado do lago para a casa ao lado da minha.

Passei aquele primeiro dia ajudando-o a carregar caixas e luminárias, respondendo a suas perguntas sobre a data de meu aniversário, a comida de que menos gostava e onde era possível encontrar iscas gordas. Ele me surpreendeu e, pela primeira vez, vi que o mundo era mais do que se sentar com as pernas fechadas em uma cadeira e passar a escova cem vezes nos cabelos todas as noites. Assim, troquei minhas sapatilhas por um par de tênis velhos que me serviam quando eu colocava meias enroladas nas pontas. Aprendi as finas artes de jogar sal sobre lesmas para secá-las e escorregar de barriga em chãos cheios de lama.

Atribuo a Connor muitos dos motivos pelos quais decidi me tornar uma antropóloga, mas principalmente porque ele foi a primeira pessoa a me Mostrar como é bom sentir a terra entre os dedos. Atualmente, minhas mãos quase sempre estão secas e, apesar de Connor ter morrido há dezessete anos, ele continua em minha mente.

Não acredito em OVNIs, reencarnação, fantasmas, mas acredito em Connor. Tudo que posso dizer é que de vez em quando eu o sinto. Ele aparece sempre que as coisas estão erradas. Acredito que é por minha causa que ele nunca voou para o paraíso, ou seja lá para onde as almas vão, uma vez que ele passou a infância cuidando de mim e aparentemente ainda se sente na obrigação de fazê-lo.

Então, você entende, eu estava esperando por ele naquela segunda-feira quente do mês de agosto enquanto atravessava os corredores do departamento de antropologia, esperando para obter a resposta da universidade. Eu vinha trabalhando como professora-assistente na UCLA havia dois anos e queria estabilidade. Havia pessoas ali com menos tempo de serviço do que eu que tinham alcançado. Consegui ameaçar Archibald Custer, o diretor do departamento, com uma história esfarrapada, dizendo ter recebido outras propostas de uma universidade do leste.

Eu não estava esperando ser contratada permanentemente, porque aos 27 anos eu ainda era mais jovem até do que os professores adjuntos. Mas não era minha culpa que eles tinham demorado mais tempo para chegarem onde eu estava. Eu sentia orgulho do fato de ter decidido, treze anos antes, o que faria da vida e me mantive com o plano original.

Eu estava encostada no bebedouro que ficava do lado de fora do escritório da secretária do departamento quando senti a leve pressão em minha espinha que era um indício de que Connor estava observando. Se ele estava ali, pensei, as respostas não seriam muito boas. - Eles vão me deixar para trás - sussurrei. Pronto. Eu havia admitido a minha falta de sucesso, as palavras caíram ao chão na minha frente, pesadas como o fracasso costuma ser.

- Detesto estar ligada a uma universidade - eu disse em silêncio, passando a mão pela parede.

Não era verdade. Eu detestava o lado político, mas adorava o dinheiro e os benefícios. Adorava a maneira com que a fita vermelha desaparecia como mágica quando eu tentava abrir uma escavação em outro país. E eu sabia que em uma semana eu perdoaria Custer e todas as pessoas que receberam promoções. Perdoaria todas as pessoas que não haviam me aprovado. Naquele ano, eu precisaria entender o que estava fazendo de errado e me esforçar um pouco mais.

- Sabe o que eu queria? - eu disse. - Queria que todas as coisas boas da vida não fossem todas reunidas na infância.

Não era o que ocorria para a maioria das pessoas. Quando tinha sido a última vez que eu havia percorrido o campus descalça? Ou quando tinha sido a última aula perdida por ter dormido demais? Quando tinha sido a última vez em que eu havia me embriagado e acordado na cama de um estranho ou ficado sem dinheiro no caixa do supermercado?

Nunca. Eu não me permitia chegar aos limites, apesar de não pensar que estava perdendo alguma coisa. A espontaneidade me deixava desconfortável. Minha mente firme era o que me daria uma promoção. Algum dia.

Mas eu tinha a sensação de que se Connor estivesse vivo ele ficaria chateado comigo. Ele desejaria que eu fizesse as coisas sobre as quais conversávamos: viver no Taiti durante alguns meses, escalar montanhas ou cuidar de um bonsai.

Tentei tirar Connor de minha mente enquanto me preparava para a reunião com Archibald Custer. Ele estava em pé na porta de seu escritório, monolítico, como se esperasse invocar quem quisesse com a força de sua posição. Ele era argumentador, mente pequena e sexista. Eu não gostava muito dele, mas sabia como fazer seu jogo.

- Ah, senhorita Barrett - ele disse. Ele falava segurando um transmissor a uma caixa dentro de sua garganta, pois suas cordas vocais haviam sido retiradas devido a um câncer de garganta anos antes. Os alunos o achavam assustador e eu tinha de concordar. Exceto por sua altura, ele sempre me lembrava um pouco os desenhos feitos dos Homo habilis, e eu tinha de aplaudi-lo por ter escolhido uma profissão tão adequada.

Ele também não gostava de mim, não apenas por eu ser mulher e jovem, mas também por eu ser uma antropóloga física. Ele era um antropólogo cultural - construíra seu nome muitos anos antes, envolvendo-se com os yanomamis. Sempre houve uma rivalidade sadia entre os dois campos da antropologia, mas eu não conseguia perdoá-lo pelo que havia feito depois de eu ter defendido minha dissertação. Eu havia escrito um texto a respeito da violência, se ela era nata ou adquirida, um debate antigo entre antropólogos físicos e culturais. A crença popular tendia a uma abordagem cultural, dizendo que, apesar de a agressão ser nata, a agressão planejada - como a guerra - era causada pela pressão de se viver em sociedade, não por nosso histórico evolucionário. Eu rebati, dizendo que isso podia ser verdade, mas que a sociedade em si não teria surgido a menos que a natureza territorial aumentada em nossos genes exigisse que o homem criasse regras.

De modo geral, era uma incoerência para os antropólogos culturais, e isso deixava Custer maluco. Em meu primeiro ano como palestrante) ele havia me inscrito em cursos que tinham a ver com antropologia cultural e, quando reclamei e pedi para ir a campo, ele simplesmente ergueu as sobrancelhas e disse que pensava que seria bom se eu me tornasse mais bem informada.

Agora ele fazia um sinal para que eu entrasse em seu escritório e me mostrou a cadeira, onde eu pudesse sentar e ficasse de frente para sua enorme mesa. Ele estava sorrindo, o filho da mãe, quando começou a falar.

- Sinto muito em dizer...

Eu levantei da cadeira, incapaz de escutar mais nada.

- Então não diga nada - eu disse, sorrindo de maneira nervosa. - Presumo que fui deixada de lado, muito obrigada, e vou poupar seu esforço. Dei um passo na direção da porta.

- Miss Barrett.

Eu parei com a mão na maçaneta e me virei.

- Sente-se.

Eu me sentei novamente, pensando sobre quantos pontos havia regredido no conceito dele.

- Você terá uma tarefa incomum no primeiro trimestre - ele continuou. - De fato, você sempre insiste para ir a campo.

Eu me inclinei para a frente. Estariam eles dando início a uma nova aula prática durante o semestre do outono? Minha mente se apressou a pensar nos possíveis pontos: Quênia, Sudão, as ilhas da Sicília. Eu comandaria o grupo ou trabalharia para alguém?

- Temo que não seja possível dar-lhe uma posição entre os professores adjuntos este semestre - disse Custer. - Mas nós a indicamos para uma licença.

Apertei o braço da cadeira. Não havia pedido uma licença.

- Com licença, Archibald, mas preciso dizer em minha defesa que nos últimos três anos...

- Você tem sido exemplar. Sim, eu sei. Todos sabemos. Mas às vezes...

- ele titubeou nesse ponto -, às vezes apenas isso não é o bastante. "Explique melhor", eu pensei;

- Escolhemos você para reabrir o antigo ponto de escavação da UCLA na Garganta de Olduvai. Prepare-se para uma viagem de campo com os alunos do primeiro ano - Custer disse, recostando-se em sua cadeira.

Eu fiquei boquiaberta. Eles queriam que eu fosse um tipo de office boy - cuidar de uma aula que eu não era valiosa o bastante para lecionar. Não era para aquilo que tinha me esforçado tanto, que havia escrito minha dissertação. Não era o que eu havia planejado na escalada de minha carreira.

- Certamente não sou a pessoa mais bem treinada para esse emprego - eu disse.

Custer deu de ombros.

- É a única pessoa da universidade que não recebeu... aulas para o próximo semestre - ele disse.

Escutei o que ele disse, mas escutei a verdade. Ele estava me dizendo que eu era a única supérflua.

MENOS DE TRINTA E SEIS HORAS DEPOIS, eu ESTAVA NA TANZÂNIA, sentada à sombra de uma cobertura improvisada na pequena área da Garganta de Olduvai que a UCLA havia separado para suas aulas de campo. Eu ainda estava nervosa por ter sido descartada, mas não havia discutido com Custer. Teria sido um erro. Afinal de contas, eu teria de voltar em dez semanas e implorar por aulas.

Eu tentara me convencer de que aquela viagem seria melhor do que o esperado. Afinal de contas, a Garganta de Olduvai havia sido o primeiro ponto de escavação do arqueólogo Louis Leakey no leste da África. Talvez eu fizesse algo grande também: descobrisse o elo perdido ou outra coisa que fizesse com que meus colegas mudassem sua visão a respeito da evolução humana. Era pouco provável, mas eu ainda era jovem e havia milhões de anos de história para desenterrar.

No entanto, pela análise que eu havia feito de manhã, estava convencida de que, como os outros antropólogos que vasculharam a área por décadas depois das descobertas de Leakey, eu não ia encontrar nada novo. Não fazia a menor ideia de como me manteria ocupada por dez semanas. Arrumar a área para a aula prática significa apontar os locais onde uma escavação poderia encontrar fósseis, mas parecia que a classe podia escavar a garagem de suas casas e ter a mesma sorte que teriam ali.

Conforme o sol subia, eu caminhei casualmente pelo local, procurando em minha grande bolsa de palha o livro que eu havia começado a ler no avião. Olhei para os lados, checando se estava sozinha antes de pegá-lo.

Ridículo. Meu coração estava acelerado, como se eu estivesse prestes a ser flagrada com um grama de cocaína. Era apenas um romance de banca de jornal, meu único vício. Eu não fumava, raramente bebia, nunca havia usado drogas, mas estava completamente viciada nesses livros idiotas, cuja capa mostrava uma mulher presa aos braços de um homem. Eu sentia tanta vergonha que os encapava em papel pardo, como fazia com meus livros no ensino fundamental. Eu os lia no ônibus e nos bancos do lado de fora da UCLA, fingindo que eles eram textos de antropologia ou um livro vencedor do prémio Pulitzer.

Não conseguia me controlar. Sabia que a explicação psicológica para isso tinha que ver com o que faltava em minha vida, mas eu dizia a mim mesma que não importava. Eu havia começado alguns anos atrás, depois que minha colega de quarto, Ophelia, havia posado para a capa de um livro nos braços de um homem glorioso. Eu havia lido aquele primeiro livro e depois não consegui parar. Encontrava conforto em saber que em nenhuma tribo ou raça antiga as pessoas existiam daquela maneira. Fazia com que eu me sentisse mais normal. Mas isso não me impedia de ter esperança, acredito. Mas se um romance fosse ganhar vida, aconteceria com alguém como Ophelia e seu papel no título. Ela era bonita, de corpo bem feito e sensual - não apenas simples e prática, como eu. Seria bom ser o tipo de mulher por quem guerras eram travadas, mas eu não esperava por isso. Até então nenhum cavaleiro lutara por mim, nenhum aventureiro havia me procurado, vencendo o tempo e a distância. Eu escolhi viver em Los Angeles, onde encontrar mulheres bonitas era a norma, não a exceção. Por outro lado, nesses livros não havia cirurgia plástica, cosméticos "mágicos" ou aulas de aeróbica. Pensei em Helena de Tróia, em Laura, de Petrarca, e tentava imaginar se, de fato, elas eram tão diferentes de mim.

- Com licença - alguém disse. - Sua tenda está no caminho.

Eu me assustei com o som pouco familiar e instintivamente enfiei o livro na areia fofa e vermelha. Levantei a cabeça e vi dois homens, com os rostos contra a luz do sol.

- Pois não? - Eu disse, ficando em pé.

Os homens não eram dali, dava para ver. Suas testas estavam queimadas e descascando, e eles não tiveram o bom senso de usar bonés.

- Minha mira - o homem mais alto disse. - Você vai ter de sair daqui.

Eu me enfureci.

- Sinto muito, mas você está errado - eu disse. - Este local pertence à Universidade da Califórnia.

Os homens ergueram as mãos, contrariados, e deram as costas para mim.

O segundo homem estendeu a mão.

- Sou George Farley. Sou um A.D. - Ele fez um gesto sobre o ombro. - Edward é nosso D.P.

Sorri para eles.

- A.D.,D.P, Cassandra Barrett - eu disse, esperando que essa fosse a resposta apropriada.

George apontou para o desfiladeiro.

- Estamos gravando um filme aqui e, quando Edward estava fazendo filmagens amplas, filmou sua tenda. Sabe, pensávamos que seríamos os únicos aqui nessa época do ano.

Um filme? Não conseguia imaginar como eles haviam conseguido permissão para filmar na Tanzânia, mas percebi que os locais já escavados na beira da planície Serengeti faria com que a produção não precisasse fazer a limpeza da área. - Bem, sinto muito em desapontá-lo. Mas também estou trabalhando aqui - eu disse.

- Diga a ela para desfazer a tenda.

O cinematografista - o D.P. - nem sequer se importara em virar para mim ao falar, e fiquei nervosa.

- Está quente demais para trabalhar sem armação.

- Trabalhar? O cinematografista disse e sorriu. Os olhos de George Farley brilharam como se ele tivesse descoberto ouro. - Você é antropóloga?

Contra o bom senso, assenti.

- Ah - Edward suspirou. - Deus existe.

George me levou de volta para a armação.

- Você é antropóloga da UCLA? Está aqui fazendo escavações?

- Pode acreditar que este não é exatamente um local de escavação. - Expliquei o programa da universidade; os vários campos usados por todos os lados da África para ensinar as práticas de escavação.

- Então você não está trabalhando de fato. - George disse. - Talvez tenha um pouco de... tempo livre.

- Pode ser - respondi.

- Trezentos dólares por dia - George disse. - São seus, se concordar em ser consultora técnica.

Era mais do que eu recebia na UCLA. Proposta tentadora. Sem saber nada sobre o filme, pensei em como seria tentador lucrar com a licença forçada por Custer. Pensei na satisfação que sentiria ao ferrar com Custer de uma maneira que não prejudicasse meu futuro na universidade.

Quando eu não respondi, George se apressou em quebrar o silêncio.

- É um filme sobre um antropólogo, e o astro, Alex Rivers, insiste para que possa aprender sobre as escavações para compor o personagem.

- Insiste? - Edward interrompeu, sorrindo. - Exige.

Eu ergui a sobrancelha.

- Vocês ainda não fizeram isso? Pensei que pensassem nisso antes de virem para cá.

George pigarreou.

- Tem razão, e foi o que fizemos, mas ele teve de ir embora inesperadamente uma semana atrás.

- No meio da noite - Edward completou. - Provavelmente à força.

George olhou para ele com reprovação.

- O Alex não é tão mau assim - ele disse, virando-se para mim. - Entramos em contato com o pessoal que está nos Estados Unidos, mas demoraria um tempo que não temos até encontrarmos alguém e você... bem, você...

- Entrei em sua mira - eu disse.

- Trezentos e cinquenta - George disse. - E um quarto na cidade. Não era ético; não seria algo que Custer perdoaria. Significaria passar meu tempo livre servindo de babá de um astro de cinema mimado que já havia despedido alguém, em vez de cuidar de meu local de escavação para a minha pesquisa. Abri a boca, preparada para declinar da oferta, quando pensei em Connor. "Você nunca se pergunta o que está perdendo?"

- Bem - eu disse, sorrindo. - Quando começamos?

GEORGE HAVIA ME DEIXADO COM UM CONTRATO improvisado rabiscado na contracapa do romance que eu estava lendo e, quase no mesmo instante, peguei minha armação e fui para a cidade para telefonar para Ophelia. Eu, nas gravações de um filme com Alex Rivers. Pessoalmente, não esperava muito de uma celebridade - por viver em Los Angeles, já havia percebido como seus mundos eram rasos e egocêntricos -, mas eu sabia que Ophelia consideraria aquilo uma grande sorte. Ela devorava as revistas de fofoca, sempre sabia qual produtor estava namorando qual diretor ou qual estrela; ela olhava extasiada para os cenários quando passávamos por locações de filmes que estavam sendo gravados nas ruas de Los Angeles. Eu conseguia imaginar sua reação: morreria ou pelo menos diria que iria, porque essa era a sua resposta para a maioria das coisas, desde aceitar um papel como coadjuvante para um comercial de TV a ficar de alface quando fazia uma salada.

Ophelia Fox tinha sido minha colega de quarto desde que havíamos sido escaladas para dividir o dormitório em nosso primeiro ano na UCLA. Na época, ela tinha o nome estranho de Olivera Frug e ainda tinha seios singelos e cabelos loiros. Eu trazia Ophelia para o mundo real e em troca, bem, acho que ela me fazia rir.

Eu também sabia mais sobre ela do que qualquer outra pessoa. Quando fiquei na UCLA na época de Natal por não haver nada de interessante para mim no Maine, fiquei surpresa com a notícia de que Ophelia também ficaria por lá. A seu modo extrovertido, ela dizia a todos que era uma maneira de reforçar seu bronzeado. Mas na noite de Natal, quando nos embebedamos com uma garrafa de Glenfiddich e, quando Ophelia pensou que eu estava dormindo, começou a falar. Contou do padrasto que a molestava desde os doze anos. Contou do cheiro de sua loção pós-barba. Contou da insónia que passou a sofrer para poder escutar o menor barulho que fosse na porta de seu quarto. Quando o sol nasceu, não abrimos presentes, mas guardamos esse presente que dividimos.

Éramos diferentes demais para sermos amigas, mas éramos inseparáveis. Quando Ophelia começou a mudar sua imagem, eu a apoiei. Afinal, eu compreendia o que ela estava tentando disfarçar a todo custo. Comprou suas próteses de silicone como presente de formatura e mudou seu nome; e, quando comecei a cuidar de meu mestrado, ela se lançou na tarefa de encontrar para nós duas um apartamento perto o suficiente dos estúdios para ela e da UCLA para mim. Era um local pequeno, mas o aluguel era baixo e estávamos ali havia quase sete anos.

- Vá em frente - o operador disse.

- Ophelia?

Escutei seu suspiro.

- Graças a Deus você telefonou - ela disse, como se eu estivesse por perto. - Estou tendo uma crise.

Eu sorri.

- Você está sempre tendo crises. O que houve hoje?

- Tenho consulta com meu terapeuta às dezesseis horas, sabe? - Ophelia encontrara alguém para melhorar sua assertividade desde que decidira que as sessões com o psicólogo não estavam dando certo. - No momento, nossas sessões acontecem duas vezes por semana, mas eu gostaria de passar para apenas uma, mas não sei como dizer isso a ele.

Eu não queria rir, não tinha a intenção, mas o som vazou. Tentei encobri-lo com uma tossida.

- Acho que não vou aparecer - ela suspirou. - Conversarei com ele na quinta-feira. - Ela ficou em silêncio por um momento e em seguida pareceu se lembrar de onde eu estava. - E como estão as coisas na África?

Ophelia não compreendia minha atração pela antropologia - para ela, era uma maneira digna de se sujar -, mas sabia como era importante para mim. - Muito mais interessante do que eu esperava.

- Estou fazendo um "bico".

- Como guia de safari?

- Como consultora técnica do novo filme de Alex Rivers.

Escutei um suspiro de surpresa do outro lado.

- Ai meu Deus, ai meu Deus, ai meu Deus - Ophelia disse. - Como isso aconteceu?

Ao relatar a história a ela, minhas dúvidas retornaram.

- Sei que vou me arrepender disso - eu disse. - Se não fosse pelo dinheiro - e pela chance de ferrar a UCLA -, eu não teria aceito. Fiz uma careta. - Aposto que ele não vai nem querer sujar as mãos. - Suspirei lentamente, pensando nas consequências de uma decisão precipitada. Eu não gostava de Custer, mas podia evitá-lo quando estava na universidade. Eu não ia gostar de Alex Rivers, mas concordara em passar dez horas por dia com ele.

- Vou enviar roupas para você - Ophelia disse. - Meu vestido preto tubinho, o sutiã de seda cor-de-rosa e...

- Ophelia - eu a interrompi. - Vou ser consultora técnica, não a amante dele.

- Mas nunca se sabe. Receba o maldito pacote, coloque-o em sua mala e pronto. - Ela suspirou. - Não acredito nisso. Simplesmente não consigo acreditar. Sabia que devia ter me formado em antropologia. - Ela Se atrapalhou com as palavras, demonstrando sua excitação. - Uau, Cass - ela disse. - Alex Rivers! sorri. Mesmo que eu vestisse seu sutiã a vinte metros de Alex Rivers, ainda assim ela o colocaria em um quadro quando eu voltasse para casa.

- Ele é só uma pessoa - disse a ela.

- Certo - Ophelia disse. - Uma pessoa que ganha quatro milhões de dólares por filme e com quem a população feminina inteira do mundo sonha.

Pensei nisso: Eu não sonhava com Alex Rivers, mas a maioria de meus sonhos tinha que ver com escavações de homens que haviam vivido milhões de anos antes. Tentei lembrar de algum filme dele. Devia ter visto algum deles com Ophelia, pois era com ela que eu passava meu tempo livre, e ela costumava me forçar a assistir às estreias. Lembrei-me vagamente de Malfeitor, um filme de faroeste da época em que estávamos na faculdade, e Luzes e sombras, que tinha sido uma das principais produções sobre o Vietnã de 1987. Havia alguns filmes de ação cujos títulos eu não lembrava, e o último que eu havia assistido, cerca de seis meses antes, era aquela história de amor Selvagem. Havia me esquecido desse. O filme havia me surpreendido, pois eu nunca pensara em Alex Rivers como um herói romântico e ele foi convincente no papel.

A mensagem do filme me acompanhou durante todo o trajeto de volta para casa: melhor ter amado e perdido do que nunca ter amado. Tentei imaginar se aquilo era verdade. O amor, até onde eu sabia, não passava de uma sedução planejada. Na faculdade, eu havia perdido minha virgindade com um estudante, apenas por querer saber como era transar. Não senti nenhuma grande dor no coração, nem nenhuma conexão com os espíritos. Houvera minha excitação, a mistura de nossos hálitos e a simplicidade do sexo.

Não tinha namorado muito desde então, mas não achava que estava perdendo alguma coisa. Na maior parte das vezes, eu estava ocupada demais para notar. Talvez quisesse ter filhos, um dia, mas só criaria uma criança com alguém por quem eu realmente tivesse sentimentos e, até aquele momento, a única pessoa por quem me imaginava apaixonada era Connor.

- Preciso ir - eu disse. - Esta ligação vai me custar uma fortuna.

- Telefone na quinta-feira depois de conhecê-lo.

- Ophelia...

- Na quinta-feira.

Fechei os olhos.

- Vamos ver. Não prometo.

Eu NUNCA TINHA VISTO TANTAS PESSOAS PAGAS para não fazer nada. Havia pessoas sentadas no chão, dobrando cadeiras, sobre rochas. Havia armações com enormes câmeras e fios por todos os lados. Um homem com fones de ouvido estava sentado na frente de um sistema de som com botões e alavancas coloridas. Todos falavam, não vi George e Edward e ninguém parecia estar controlando tudo aquilo.

Eu estava acostumada a ser mandada para lugares nos quais não conhecia ninguém, mas estava meio deslocada ali. Parecia que em todas as partes em que pisava ficava enrolada em algum fio e dei de encontro com um homem que carregava muitas perucas e chapéus, e o derrubei no chão.

- Meu Deus - eu disse. - Deixe-me ajudá-lo. - Mas ele me olhou com raiva, juntou suas coisas e foi embora.

Caminhei até uma mulher sentada em uma cadeira alta de lona onde se lia “roteiro”.

- Com licença - eu disse. - Estou procurando o diretor.

Ela suspirou, mas não desviou o olhar de uma pasta que estava aberta sobre seu colo.

- Eu e você estamos procurando por ele, querida. - Rabiscou um bilhete com uma caneta vermelha e gritou o nome de alguém, chamando-o com um movimento de mão.

Passei por pessoas com walkie-talkies presos a seus cintos. Sobre a mesa, havia uma pilha de roteiros. - "À imagem dele" - li em voz alta, passando a mão sobre o logotipo da Warner Brothers no rodapé da página.

- Posso ajudar? - Um homem com cara de impaciente ficou na minha frente, batendo o pé no chão. Tirou o roteiro de minha mão.

- Estou à procura de Bernie Roth - eu disse. - O diretor.

- Como se eu não soubesse quem ele é. - Ele estalou os dedos quando dois homens se aproximaram trazendo uma corda grossa e preta. - Ei, ei... aonde estão indo com isso? Eu disse que era para levá-la para atrás da tenda.

- Espere - eu disse. - Bernie Roth?

- Um minuto - ele respondeu. Ele gritou para os dois homens que carregavam a corda: - Atrás da tenda!

Coloquei minha bolsa sobre a mesa e vesti meu boné caqui. Se Maomé não vai até a montanha, pensei, a montanha vai a Maomé. Mais cedo ou mais tarde, alguém tentaria me encontrar. Sentei-me encostada em uma árvore alta e abracei minhas pernas perto do peito.

Tentei pensar em Alex Rivers. Sabia como ele era, é claro - ele estava na capa das revistas todos os meses. Ele era maravilhoso, em uma palavra. Seu cabelo castanho tinha mechas douradas; sua mandíbula era em definida e marcada por seu queixo bem-feito. Ele tinha lábios cardos, que davam a impressão de que ele sempre guardava um segredo, seus olhos, o motivo de sua fama, eram lindos. Pareciam um espelho e, mortal, quem os via em uma foto de publicidade conseguia enxergar a própria alma.

Não seria ruim ter de olhar para ele todos os dias.

Fiquei surpresa com o silêncio. Não havia câmeras por todos os lados, ninguém estava correndo e gritando "ação", ninguém dizia nada que lembrasse uma fala. Uma capa de poeira vermelha cobria todo o equipamento de fotografia, como se não tivesse sido usado recentemente. Não era à toa que eram necessárias doze semanas para se fazer um filme de duas horas.

O set, pelo que eu via, era dividido em três partes. A primeira era o local de escavação da Garganta de Olduvai, bem diferente do ponto ocupado pela UCLA a menos de mil metros dali. A segunda parte era uma série de tendas, e diante de uma delas estava uma atriz que eu já havia visto antes, mas cujo nome não lembrava. Ela usava um short caqui e um casaco de Kalahari, e eu decidi que meu primeiro conselho técnico seria dizer à responsável pelos figurinos que o look National Geographic não estava nem um pouco de acordo e que seria melhor optar por uma boa e confortável camiseta.

A terceira parte ficava em uma plataforma elevada, feita para parecer o interior de uma barraca. Havia uma cama portátil e uma coleção de caixas vazias muito bem organizadas e uma mesa baixa. Em uma estante, havia uma vasilha de porcelana com desenhos e um jarro, e não consegui me conter. Porcelana?

Depois de alguns minutos, uma garota veio se sentar ao meu lado. Ela sorriu, o primeiro sorriso de verdade que eu via desde minha chegada.

- Com quem você está aqui?

- Comigo apenas - eu disse, surpresa pela pergunta, como se eu tivesse que ter levado uma companhia. - Sou a consultora técnica sobre antropologia.

- Nossa! - A menina disse. - Quer dizer que ganha a vida assim?

Eu sorri. - Pensei que tivesse de ser o contrário.

- Eu me impressionar por você trabalhar nos filmes.

- Mas não trabalho com filmes, exatamente. Sou assistente da Janet. - Ela apontou para a mulher com o casaco de Kalahari que estava lendo um roteiro. - Meu nome é LeAnne.

Eu me apresentei e apertei a mão dela e fiz um gesto para a multidão de funcionários.

- Por que ninguém está fazendo nada? - perguntei.

Leanne sorriu, levantando-se.

- É assim que funciona. Muita correria e espera. Venha, aposto que não sabe onde fica o oásis.

Quando ela começou a se afastar, eu a segui. Dentro de uma tenda grande e baixa, havia um banquete. Corri os olhos de uma ponta da mesa à outra, vendo jarros de suco de manga e limonada, cachos de bananas e montes de kiwi, sanduíches pequenos recheados com salpicão de frango e alguma coisa parecida com ovo fatiado, pratos cobertos com salada de repolho e macarrão.

- Isto é o almoço? - perguntei.

Leanne balançou a cabeça, negando.

- O senhor Rivers gosta de saber que há o que comer entre as gravações. Ele organiza tudo, ou melhor, sua assistente, Jennifer. Ela faz para ele o que eu faço pela Janet. Se está achando muito tudo isso, espere até ver o almoço. Ontem, serviram caranguejo. Acredita? Caranguejo, na África.

Hesitante peguei uma banana, descasquei-a e saí da barraca para o sol quente. Levantei o rosto, protegendo os olhos.

- Do que se trata esse filme?

Leanne ficou chocada por ninguém ter me contado. Era um tipo de filme de ficção científica. Alex Rivers estava interpretando um antropólogo que escava parcialmente um esqueleto que parece, à primeira vista, mais velho do que todos os outros já encontrados. Mas, quando ele avalia os ossos, descobre que eles são dos anos 1960. Descobre, então, que a composição química dos ossos não é a que deveria ser, mesmo que se tratasse de um esqueleto muito antigo. Depois, descobre-se que se trata de um alienígena, e isso faz com que ele se pergunte a respeito da origem do homem.

Balancei a cabeça de modo afirmativo quando Leanne terminou a explicação. Não era o tipo de filme que eu gostaria de assistir, mas certamente venderia bem.

Eu a segui para o pequeno aglomerado de pessoas, às quais fui apresentada e cujos nomes esqueci rapidamente. A maioria dos funcionários estava sentada no chão. Leanne começou a conversar com outra mulher a respeito do estado dos banheiros dali, e eu me sentei em uma cadeira de lona.

Era igual àquela na qual estava sentada a mulher dos roteiros, a diferença era que trazia o nome Alex Rivers na parte de trás. Mas estava vazia e Alex Rivers não estava por perto, por isso eu me sentei.

Leanne levou um susto e segurou meu pulso.

- Saia daí - ela disse.

Assustada, eu caí, formando uma nuvem de poeira que fez com que todos sentados no chão tossissem.

- É só uma cadeira - eu disse. - Não tem ninguém sentado aqui.

- É a cadeira do senhor Rivers. - Eu fiquei olhando para ela, esperando uma explicação. - Ninguém se senta na cadeira dele.

Pelo amor de Deus! Aquilo seria pior do que eu esperava. Tentei convencer a mim mesma de que 350 dólares por dia era mais do que suficiente para explicar o básico da escavação de fósseis a um homem que Pensava que jarros de porcelana podiam ser usados em um acampamento que era tão prepotente que apenas seu precioso traseiro podia encostar na cadeira de lona.

Sabia que alguma coisa estava para acontecer quando senti o vento frio que soprou tão rápido quanto os comentários se espalharam. A equipe começou a ficar em pé, batendo as mãos em suas roupas e voltando para suas posições no set. Três homens subiram na armação que levava até a câmera; o técnico de som segurou o fone de ouvido para escutar melhor e voltou uma parte da fita.

O homem que cuidara da corda gritou o nome de uma mulher chamada Suki. - Atriz em cena - ele gritou. - Suki, precisamos de sua iluminação. - Uma mulher que não era Janet, a atriz, passou por entre as tendas e imediatamente uma série de luzes foram viradas para ele e colocadas nessa posição.

Eu olhei diretamente para um feixe de luz e por isso só o vi quando ele já estava perto de mim. Alex Rivers jogou o casaco na cadeira onde eu havia ousado me sentar, sem olhar para mim, assim como não parecia perceber o ar que o rodeava. Estava conversando em voz baixa com alguém que acreditei ser Bernie Roth, já que ele tinha a mesma pose de importante e também não estava prestando atenção a ninguém.

Alex Rivers estava dizendo alguma coisa a respeito da corda preta que eu havia visto antes. Ele resvalou em meu braço ao passar por mim e eu dei um passo para trás, assustada.

Não foi por causa do choque; foi o calor de sua pele. Esfreguei meu ombro, certa de que veria uma marca vermelha ou vergão, uma prova qualquer do que eu havia sentido. Observei quando ele se afastou, surpresa por minha noção de espaço estar fora dos eixos, pois, em vez de ver Alex Rivers cada vez menor à medida que se afastava, ele parecia preencher todo o meu campo de visão.

Sem perceber o que estava fazendo, caminhei atrás das tendas, mantendo-me longe de onde ele estava, mas perto o bastante para conseguir escutar. Ele, Bernie Roth e um homem alto e musculoso estavam mexendo na corda preta que havia sido colocada ali antes. Um quarto homem estava sendo alvo da raiva de Alex Rivers.

- Escute bem - ele disse -, interrompendo o que o homem estava falando. - Escute bem mesmo. Sven pode pular com essa corda, mas ela e diferente do que pedi. Você tem duas opções: pode ir à cidade procurar uma corda que seja branca e com a qual ele possa pular ou pode usar essa corda preta e me deixar fulo da vida com você pelas próximas onze semanas. - Ele passou a mão pelo rosto como se estivesse muito cansado. - Estou falando de segurança. O principal é sabermos se Sven pode ou não usar a corda para a cena em que será o dublê. Em segundo lugar, vem a cor da corda que será mostrada em contraste com o pano de fundo.

O homem musculoso e o figurinista assustado saíram para a esquerda, deixando-me em contato visual com Alex Rivers. Observei seu perfil, sua mandíbula bem desenhada, os cabelos eriçados pelo vento.

Que idiota! Eu não entendia muito sobre filmes, mas já conhecera a burocracia na UCLA, e Alex Rivers não era muito diferente de Archibald Custer. Ele aproveitava a vantagem de estar em sua posição e da maneira com que as pessoas se portavam diante dele. Se eu havia aprendido alguma coisa no departamento de antropologia, era que não se devia deixar que as pessoas que tomavam decisões fizessem o que queriam. Era preciso imporse para que elas o aceitassem ali.

Eu engoli em seco e dei um passo adiante. Pretendia me apresentar a ele e a Roth, falar sobre o casaco da atriz e sobre a jarra de cerâmica e então poderia dizer o que pensava a Alex Rivers.

Mas, assim que entrei no seu campo de visão, fiquei paralisada. Ele me tirou de sintonia, e eu não sabia ao certo se estava em Serengeti, na Bélgica ou em Marte. Não tinha nada que ver com a beleza dele, mesmo sendo hipnotizante. Tinha a ver com seu poder. Alguma coisa em seu olhar me impedia de parar de observá-lo.

Os olhos dele brilharam, tomando a luz como a superfície de um lago. Em seguida, ele desviou o olhar, como se procurasse por alguma coisa. Quando olhou para mim de novo, estava sorrindo. Resplandecente. Pensei nessa palavra e tentei imaginar como conseguia passar horas sob o sol africano sem me deixar abater, mas ficava paralisada diante de um homem.

- Querida - Alex Rivers disse -, você pode me trazer alguma coisa para beber?

Eu o encarei, mas ele já estava se afastando com o diretor a seu lado. Quem ele pensava que era? Quem ele pensava que eu era?

Sua assistente. Ou melhor, ele estava procurando pela assistente e não conseguiu encontrá-la, por isso pensou que eu estava ali para servi-lo, obviamente. Como todas as outras pessoas. Eu o observei sentar-se em sua cadeira, com o encosto e o assento tomando a forma de seu corpo.

Eu não gostava de nada nele. Pensei no que diria quando telefonasse para Ophelia. "Adivinhe! Alex Rivers é um idiota prepotente que manda em todo mundo. É tão envolvido em si mesmo que não consegue enxergar um palmo na frente do nariz." E, enquanto pensava nisso, caminhei até a tenda onde estava o banquete.

Eu o detestei por ter me feito esquecer o que estava prestes a dizer; eu o detestei por ter me feito estar ali; e o detestei ainda mais por fazer meu coração acelerar de repente, batendo como os tambores dos índios que às vezes eu escutava a distância enquanto fazia escavações. Peguei um copo de plástico vermelho de uma pilha sobre a mesa e o enchi até a boca com gelo, sabendo que levaria apenas alguns minutos para derreter. Em seguida, acrescentei suco - de mamão, creio - e mexi com uma faca descartável, esperando até o copo começar a suar e o líquido estar na mesma temperatura do gelo.

Alex Rivers ainda estava sentado em seu trono real, inclinando-se na direção de uma mulher que passava base em seu rosto. Quando me viu, esticou o braço para pegar a bebida e lançou um segundo sorriso em minha direção.

- Ah - ele disse. - Pensei que não a veria de novo.

Eu sorri para ele e derrubei o suco e o gelo, até o copo, em seu colo. Por um momento, observei a mancha se espalhar em sua calça.

- Você não está com sorte - eu disse e fui embora.

 

Eu esperava que Alex Rivers reclamasse, quisesse saber meu nome, exigisse que eu fosse demitida. Quanto a mim, continuei andando, pensando em sair do set, até mesmo da Tanzânia. Mas Alex Rivers fez a única coisa capaz de me fazer voltar: ele riu. Sua risada era forte e profunda, do tipo que esquentava. Ele chamou minha atenção assim que me virei. E disse:

- Então, acredito que você sentiu que precisava esfriar minha raiva?

Provavelmente eu teria enfrentado sua ira, mas a compreensão que ele demonstrou me desarmou. Meus joelhos começaram a tremer e eu me segurei a um equipamento de iluminação apenas para me manter em pé. Fiquei transtornada pela força do que eu fizera. Não tinha derramado uma bebida gelada em algum assistente ou figurinista. Tinha enfrentado o homem com quem deveria estar trabalhando. O homem que estava me pagando 350 dólares por dia apenas para ser solícita.

Ele ficou em pé e caminhou na minha direção, esticando o braço como se soubesse que eu estava prestes a cair.

- Alex River - ele disse. - Acho que ainda não nos conhecemos.

De soslaio, percebi a equipe fingindo estar ocupada com outras coisas enquanto observavam a cena se desenrolar.

- Cassandra Barrett - eu disse. - Da UCLA.

Os olhos dele brilharam com um tom prateado que eu nunca tinha visto antes.

- Minha antropóloga - ele disse. - Prazer em conhecê-la.

Olhei para a calça dele molhada, encharcada com uma mancha no formato de uma borboleta. Sorri.

- O prazer foi todo meu - eu disse.

Ele riu de novo e eu fiquei pensando naquele som para me lembrar dele mais tarde quando estivesse no quarto do acampamento, com o ventilador de teto girando sobre minha cabeça. Ele segurou meu braço:

- Pode me chamar de Alex. E vou pegar um roteiro para você saber o que está acontecendo. Bernie! - ele gritou. - Venha aqui e conheça nossa consultora técnica.

O diretor do filme, que parecia uma sombra pronta para obedecer aos comandos de Alex, apertou minha mão com educação e pediu licença, dizendo que precisava encontrar alguém do elenco. Era fácil perceber que aquele era o show de Alex. Ele começou a conversar comigo antes que eu percebesse a importância de suas palavras.

- Quer que eu desenterre alguma coisa? Agora?

Ele assentiu.

- A cena que vamos gravar hoje é de meu personagem descobrindo o esqueleto. Eu poderia seguir minha intuição, mas não estaria correto. Precisa haver um método, certo? Não é simplesmente cavar e puxar o osso.

Fiz uma careta.

- Não. Com certeza não.

Ele havia segurado meu braço e estava me levando na direção da grande escavação, onde a maioria dos fósseis da Garganta de Olduvai havia sido descoberta.

- Só quero observá-la um pouco. Quero ver seus movimentos e sua concentração, esse tipo de coisa. É o que preciso.

- Você precisa de uma lona - eu disse. - Se estivesse procurando alguma coisa de valor, teria de fazer uma armação de lona sobre o local para que os fósseis encontrados não sejam manchados pelo sol.

Alex sorriu.

- Era exatamente para isso que contava com sua presença aqui - ele disse. Fez um gesto para dois homens que estavam ao lado, arrumando a perna de uma das armações. - Joe, Ken, vocês podem encontrar uma lona para colocar aqui? Precisa ser... - Ele olhou para mim. - Tem de ser preta?

Dei de ombros.

- As minhas costumam ser.

- Preta, então. - Quando os homens começaram a se afastar, Alex chamou o que se chamava Ken: - Parabéns pela sua filhinha - ele disse. - Fiquei sabendo que você recebeu a notícia ontem à noite. Se ela se parecer com Janine, será linda.

Ken abriu um largo sorriso e correu para acompanhar o outro rapaz. Olhei para Alex:

- Ele é seu amigo?

- Não exatamente - Alex respondeu. - Mas faz parte da equipe. É meu dever saber alguma coisa sobre todos daqui.

Eu me agachei na beira do local de escavação e mexi na terra. Se ele estava tentando me impressionar, não estava indo longe demais.

- Isso é impossível - eu disse -, afinal, deve haver pelo menos cem pessoas aqui.

Alex olhou com tanta intensidade para mim que olhei para ele antes de querer. Sua voz era controlada.

- Sei o nome de todos os funcionários e de seus cônjuges. Quando eu trabalhava como bartender, aprendi que, se as pessoas pensarem que você está prestando atenção nelas, tornam-se mais extrovertidas. Para mim, é fácil lembrar, eles se sentem importantes e as coisas passam a ser feitas com o dobro da rapidez por causa disso.

Ele falava como se estivesse se defendendo, como se eu o tivesse desafiado, quando não tinha sido minha intenção, de forma alguma. Na verdade, eu estava chocada. Era difícil ligar a uma mesma pessoa o homem que fizera um escândalo por causa de uma corda e o homem que fazia questão de saber os nomes de todos que trabalhavam para ele.

- Você não sabia meu nome - eu disse.

- Não - ele disse, sorrindo. - Mas você cuidou para que nunca mais o esqueça.

Começamos a trabalhar, agachados na área de escavação. Mostrei a Alex as diferentes ferramentas para cavar, os pincéis macios usados para tirar o excesso de terra. Tentei explicar as marcas no terreno que indicariam a existência de fósseis, mas era algo difícil de entender, a menos que a pessoa fizesse um treinamento.

- Pronto - eu disse, encostando meu traseiro nos calcanhares. - É tudo o que posso lhe mostrar.

- Mas ainda não me mostrou nada - Alex reclamou. - Preciso vê-la escavando um crânio ou algo assim.

Eu ri para ele.

- Não deste local. Tudo já foi tirado.

- Finja - ele pediu. E sorriu. - É fácil. Eu construí uma carreira fazendo isso.

Suspirei e inclinei-me para o fosso novamente, tentando imaginar um fragmento de osso que não estava ali. Comecei a perceber por que meu antecessor havia desistido. Talvez Alex Rivers tivesse facilidade em fingir, mas - como ele dissera - era a carreira dele. A minha era baseada em evidências e provas físicas, não apenas em imaginação fértil. Sentindo-me uma idiota, passei a mão sobre uma camada de areia vermelha e corri os dedos sobre uma parte tortuosa do solo. Peguei uma picareta e comecei a escavar em círculo ao redor do crânio inexistente. Afastei a terra com meus dedos e limpei o suor de minha testa em meu ombro.

Fechei os olhos e tentei imaginar o tamanho do crânio invisível. Não consegui imaginá-lo; era ridículo tentar. Eu era treinada demais na parte literal para pensar na figurativa.

- Olha... - eu disse, pensando em dizer a Alex que não gostava daquilo.

Mas antes que eu pudesse concluir minha frase, Alex Rivers agachou-se atrás de mim. Colocou os braços ao redor de meus ombros, quase como num abraço e cobriu as minhas mãos com as dele.

- Não, olha você - ele disse, e fez um gesto com a cabeça para o local onde eu estava escavando. Eu pisquei, e o que era apenas terra agora parecia osso. Um truque de luz, pensei, ou ilusão. Ou talvez apenas a força da imaginação de Alex Rivers.

ELE ERA DIFERENTE DE TODAS AS PESSOAS QUE eu conhecia. Sabia os nomes de todos; isso ficava claro assim que o set era preparado para as gravações. Educadamente, deixou-me sentada ao lado de sua assistente, Jennifer. Quando se agachou atrás da câmera para conversar com Bernie Roth a respeito da melhor maneira de fazer uma determinada filmagem, brincou com o rapaz da iluminação que tinha de tolerar o sol forte enquanto as luzes e os painéis refletores ficavam ao redor dele.

Ele estava sempre em cem lugares de uma só vez; eu ficava cansada só de tentar acompanhá-lo com os olhos. Mas, todas as vezes que eu olhava para o roteiro em meu colo e caminhava na direção da mesa onde estavam as storyboards, sentia os olhos dele em mim. Eu me virava e ali estava Alex Rivers, a quinze metros, olhando para mim como se eu fosse a única pessoa no local.

A cena que eles estavam gravando foi exatamente como Alex dissera que seria: seu personagem, um tal de doutor Rob Paley, encontrando os ossos do que ele pensava ser um hominídeo fossilizado. Bernie havia subido na armação que mantinha a câmera Panavision e conversava com Alex durante a cena.

- Quero que entre... isso mesmo, um pouco mais devagar... e agache-se, ótimo, assim mesmo. E agora, o que fará com as mãos? Tente se lembrar de que não encontra nada há três semanas e, agora, de repente encontra o ouro. - Alex ficou em pé e gritou fazendo uma pergunta a Bernie, mas não consegui escutar o que era.

Quando eles estavam prontos para filmar, todas as pessoas segurando seus walkie talkies estavam em pé em uma fileira espaçada, gritando "Silêncio!" uma depois da outra, um eco humano. O cinegrafista murmurou: "Gravando" e o técnico de som, inclinado sobre sua ilha, disse: "Velocidade".

Um segundo antes de Bernie pedir que começassem, observei Alex entrar em seu personagem. Seus olhos perderam o brilho e seu corpo relaxou tanto que parecia que ele havia sido puxado para fora de seu corpo. Então, um segundo depois, a energia voltou a seu corpo, endireitando sua coluna e fazendo seus olhos brilharem. Mas não tinha o mesmo rosto. Na verdade, se eu passasse por ele na rua, com aquela expressão, não o reconheceria.

Ele se mexia de maneira diferente. Falava de maneira diferente. Chegava a respirar de maneira diferente. Como um velho cansado, atravessou a faixa de terra amarela, abaixando-se cuidadosamente diante do local de escavação. Pegou uma picareta e um pincel de seu bolso e começou a cavar. Sorri, observando meus gestos sendo reproduzidos diante da câmera: o hábito que eu tinha de começar da esquerda para a direita, o varrer metódico do pincel, como um jogador que passa a mão no gramado para posicionar a bola. Até que chega o momento em que seu personagem descobre o esqueleto, começando pelo crânio. As mãos de Alex passaram pelo ponto que ele havia limpado e ele parou. Movendo-se com mais pressa agora, ele começou a afastar a terra com um cinzel. Um pedaço de osso apareceu, colocado ali minutos antes por um cenógrafo. Era amarelado e rachado e inclinei para a frente para ver melhor.

Alex Rivers levantou o rosto e olhou diretamente para mim, e em seus olhos eu me vi. Sua expressão era a mesma que eu demonstrara no momento surpreendente em que ele me abraçou por trás e, de repente, eu vi um crânio. Reconheci minha surpresa, minha dedicação e meu encantamento.

Comecei a sentir calor. Puxei a gola larga de minha camiseta de algodão e levantei meu cabelo. Tirei meu boné e me abanei com ele, torcendo para ele desviar o olhar.

Ele jogou a cabeça para trás e olhou para o sol.

- Meu Deus! - Suspirou. Parecia qualquer cientista que, no fundo de seu coração, sabia que havia feito a descoberta de sua vida. Parecia que fazia isso havia séculos. Ele se parecia comigo.

Eu havia passado anos trabalhando na descoberta antropológica que aumentaria meu status entre meus colegas. Imaginara o momento mil vezes em minha mente da mesma maneira que a maioria das mulheres imagina o próprio casamento: a sensação do sol em minha pele, como minhas mãos se espalhariam pela terra, como sentiria o osso nas palmas das mãos. Imaginara meu rosto voltado para o sol, minhas orações oferecidas em troca daquele presente. Apesar de eu nunca ter falado sobre isso com ninguém, muito menos com Alex Rivers, ele havia feito a cena exatamente da mesma maneira que eu imaginara a minha.

Ele tinha roubado o momento mais importante de minha vida, que ainda não havia acontecido. Foi essa injustiça que me fez levantar da cadeira no momento em que o diretor gritou: "Corta!" Mal conseguia escutar o barulho da equipe dentro de minha cabeça. "Como ele ousa?", pensei. Ele disse que só queria me observar escavar. Não disse nada sobre imitar minhas expressões e meus instintos. Era como se ele tivesse entrado em mim e percorrido minha mente.

Corri para a tenda de equipamentos, onde havia camas e ventiladores elétricos e jarras de água gelada. Depois de mergulhar uma toalha de papel na tigela, deixei a água escorrer por meu pescoço. Deixei que ela corresse entre meus seios, pela minha barriga, no cós de meu short. Eu me inclinei sobre a tigela e lavei meu rosto.

"Ele me conhecia muito bem. Ele me conhecia melhor do que eu mesma."

A distância, escutei Bernie Roth tomar a decisão de usar aquela única tomada, uma vez que Alex tinha sido perfeito. Resmunguei e me sentei em uma das camas. Eu havia feito um compromisso contratual; ia cumpri-lo.

Mostraria a Alex Rivers os detalhes técnicos que ele quisesse; mostraria os movimentos que precisava fazer e diria o que era inadequado no roteiro. Mas não permitiria que ele se aproximasse e nunca mostraria meu coração a ele. Eu havia feito isso uma vez, por ter sido pega de surpresa, mas não ia acontecer de novo.

Adormeci durante um tempo e, quando acordei, meu corpo estava coberto por uma fina camada de suor. Sentando-me, procurei pelo papel-toalha que havia usado antes. Eu o molhei de novo e o coloquei atrás de meu pescoço.

A parte da tenda que servia como porta foi aberta e por ela apareceu um jovem com rabo de cavalo de cabelos ruivos. Seu nome era Charlie, era uma espécie de camponês, como havia me dito; eu havia conversado com ele antes.

- senhorita Barrett - ele disse -, tenho procurado por você em todos os lugares.

Sorri para ele.

- E eu pensei que ninguém se importava.

Sua pele clara corou e ele desviou o olhar. Ele trabalhava com iluminação.

- Tenho uma mensagem para você - ele disse, mas não me olhava nos olhos.

Para diminuir sua angústia, eu peguei o bilhete que ele estava segurando. Era um pedaço simples de papel pardo, do tipo que envolvia os equipamentos para transporte. Por favor, jante comigo. Alex.

Sua letra era bem bonita, como se passasse horas praticando. Tentei imaginar se ele autografava com a mesma letra cuidadosa. Amassei o papel com a mão e olhei para Charlie, que estava esperando por uma resposta.

- E se eu disser não? – perguntei.

Charlie deu de ombros, afastando-se.

- Alex vai encontrá-la e vai fazê-la mudar de ideia.

ELE CONSEGUIA OPERAR MILAGRES. FIQUEI EM PÉ NA PORTA do que tinha sido um set de gravação horas antes - o interior da tenda de seu personagem - e observei a toalha de mesa de linho branco, as compridas velas nos castiçais de marfim, o champanhe esfriando em um balde prateado. Alex estava em pé do outro lado da tenda, vestindo um casaco, calça preta e gravata-borboleta branca.

Pisquei. Estávamos na África, Deus do céu! Não estávamos nem mesmo em um hotel, mas, sim, em um acampamento a 35 quilómetros da Garganta de Olduvai. Como ele conseguira tudo aquilo?

- É só, John. - Alex disse, sorrindo para o homem que havia me levado de volta ao set em um jipe. Era um homem simpático, alto como uma sequoia.

- Ele é muito gentil - Eu disse educadamente, observando John se afastar à luz vermelha emitida pelas tochas do lado de fora da tenda. - Ele me contou que trabalha para você.

Alex assentiu, mas não se aproximou.

- Ele daria a vida por mim - ele disse de maneira séria, e fiquei pensando em quantas outras pessoas fariam o mesmo.

Eu estava vestindo um tubinho preto, que havia chegado no pacote que Ophelia enviara aquela tarde, e sapatos baixos e pretos com pelo menos meio quilo de areia em cada. Eu havia passado três horas tomando banho e secando meus cabelos, hidratando minha pele com uma loção pós-banho de limão, enquanto imaginava diferentes conversas com Alex Rivers.

Mas não esperava vê-lo vestindo aquelas roupas. Não conseguia tirar os olhos dele.

- Você está lindo - eu disse discretamente, sentindo raiva de mim mesma por dizer aquilo.

Alex riu.

- Acho que eu deveria dizer isso. Mas obrigado. E, agora que viu o efeito, posso me livrar disso antes que derreta? Sem esperar minha resposta, ele tirou o casaco, desfez a gravata e enrolou as mangas até os cotovelos.

Puxou uma cadeira para mim e levantou uma tampa prateada arredondada de cima de um prato de crudítés.

- E então? - Ele perguntou. - O que achou de seu primeiro dia em um set de filmagem?

Estreitei os olhos, reconhecendo a oportunidade.

- Acho que nunca vi tamanha perda de tempo em minha vida - eu disse simplesmente. - E acho vergonhoso roubar as emoções de outra pessoa para realizar a sua performance.

Alex ficou boquiaberto, mas conseguiu se recompor rapidamente. Levantou a travessa de porcelana.

- Cenoura? - Disse com calma.

Olhei para ele.

- Não tem nada a dizer?

- Sim - ele respondeu, pensativo. - Por que sempre começamos errado? Você só odeia a mim ou é assim com todos os atores?

- Não odeio ninguém - eu disse. Olhei para os guardanapos e copos de cristal delicados, pensando nos problemas que ele havia enfrentado. Aquela era, obviamente, uma tentativa de se desculpar. - Só me senti usada.

Alex olhou para mim:

- Não era a minha intenção magoá-la - ele disse. - Estava tentando... bem, não interessa o que eu estava tentando fazer.

- Interessa para mim - eu disse.

Alex não disse nada. Olhou por cima de meu ombro e balançou a cabeça. Quando falou, sua voz saiu tão baixa que precisei me inclinar para escutar.

- O problema em ser um dos melhores é que ainda é preciso melhorar. Mas você compete consigo mesma. - Ele olhou para mim. - Sabe o que é fazer uma cena, ver todos lhe darem tapinhas nas costas e dizer que você é ótimo, mas perceber que precisa ser tão bom da próxima vez e da próxima depois da próxima? - Os olhos dele brilharam com a luz da vela. - E se não der? E se da próxima vez não funcionar?

Apertei minhas mãos em meu colo, sem saber o que deveria dizer. Estava claro que eu havia tocado em um ponto fraco - Alex Rivers não estava se exibindo; na verdade, ele parecia assustado por não se achar capaz de manter a imagem que havia criado.

- Roubo as reações das pessoas... você tem razão. Assim, não preciso cavar mais fundo em mim mesmo. Acho que tenho medo de que, se me mantiver atrelado às minhas experiências, um dia estarei procurando por alguma coisa na qual me apoiar e perceber que sequei. - Ele sorriu levemente. - Na verdade, não vou tolerar que isso aconteça. Interpretar é a única coisa na qual sou bom. Não sei o que mais poderia fazer. - Ele olhou para mim. - Sinto muito que tenha sido com você.

Ergui minha mão como se fosse tocá-lo, mas mudei de ideia. Alex corou levemente ao perceber o que havia admitido para mim. Eu desviei o olhar, tentando entender por que ele havia se exposto, mas eu me sentia tão vulnerável.

A HISTÓRIA DE ALEX Rivers EM HOLLWYOOD, de acordo com Michaela Snow, era de que ele havia se formado na escola de atores na Tulane, havia ido para Los Angeles e trabalhava como bartender em um bar num ponto muito frequentado, quando um grande produtor ficou embriagado. Alex levara o homem para casa, e um dia depois o homem o chamara para um teste. O filme era Malfeitor; ele havia ganhado o papel e roubado o filme. As pessoas da área acreditavam que tudo tinha sido fácil para Alex Rivers. Que se ele não estivesse no lugar certo e na hora certa teria ocorrido uma segunda coincidência, ou uma terceira.

Era difícil separar o fato da ficção, por isso, na maior parte do tempo, Alex não tentava. Deixara sua infância em uma poça nos fundos da Paramount e recriara a si mesmo para se encaixar nas proporções míticas da imprensa. A verdade é que ele havia se tornado um workaholic, não por causa do dinheiro ou da fama, mas, sim, porque não gostava de si mesmo tanto quanto gostava dos personagens aos quais dava vida. Não se permitia acreditar que havia algum traço ainda existente do menino vulnerável que já tinha sido. A outra verdade é que o mais próximo que havia chegado de um palco em Tulane tinha sido como faxineiro. Sua chegada a Los Angeles havia sido como uma carona bem-vinda. E nunca teria deixado Louisiana se não acreditasse ter matado o próprio pai.

Tinha sido uma daquelas semanas de clima úmido e desagradável em New Orleans. Andrew Riveaux estava apostando havia três dias e três noites em um local nos fundos da Bourbon Street, apesar de sua família não ter percebido no começo. Alex estava ocupado demais trabalhando na universidade, tentando economizar dinheiro suficiente para ajudar a mãe e conseguir um lugar para si. Ele quase não vivia na casa da família; passava quase todas as noites nas camas estreitas dos quartos da universidade, a convite das filhinhas de papai que o achavam durão e destemperado, uma aventura diferente.

Da mesma maneira, Lisa Riveaux não sentia falta de seu marido. Dormia a maior parte do tempo, dopada por Valium, tão drogada que não distinguia os dias da semana, muito menos aqueles nos quais Andrew resolvia aparecer. Naquela tarde, quando Alex entrou para vê-la, ela estava tão pálida que ele decidiu checar sua pulsação.

Alex estava na cozinha, cortando legumes para fazer um ensopado para o jantar quando escutou o pai rindo do lado de fora. Seu pai tinha duas risadas: uma malvada, usada para a degradação, e outra falsa, usada para a bajulação. Aquela era do segundo tipo, e depois de uma breve pausa, durante a qual Alex cortou o próprio dedo, ele voltou para a sua tarefa.

Andrew Riveaux havia levado alguém para a casa. Alex escutou os passos pesados, a voz diferente. Escutou o pai abrir a porta que dava para o único quarto e gritar o nome da esposa. Alex saiu da cozinha a tempo de ver o pai levando aquele homem gordo e avermelhado na direção de Lila, inconsciente na cama. Percebeu que o pai estava sem a corrente e o crucifixo de ouro e que sua pele estava amarelada por causa do álcool. Observou o desconhecido passar as mãos sobre a barriga e perguntar a Andrew: "Ela vai acordar?" e foi então que Alex percebeu quanto o pai perdera na jogatina.

Alex ficou ali como testemunha de um grande incêndio, assustado e imobilizado pelo choque sabendo que precisava se mexer ou chamar a atenção, compreendendo ao mesmo tempo que tais ações simples estavam além de seu controle. Ele ficou ofegante e a faca que segurava caiu no chão.

Andrew parou enquanto fechava a porta do quarto. Olhou para Alex e disse: "Ela não vai saber", como se tudo ficasse bem.

Seu primeiro golpe fez o pai se curvar. O segundo quebrou o seu nariz. A porta do quarto se abriu e o estranho apareceu arrumando a calça. Olhou para Alex, para o pai e para Alex de novo. Apontou um dedo para Andrew e disse: "Está me devendo, seu filho da puta" e, fechando a braguilha, bateu a porta do trailer.

O terceiro golpe de Alex fez seu pai cair sobre um armário antigo que era o orgulho de Lila. Andrew Riveaux bateu a nuca em uma ponta, abrindo uma cascata de sangue que escorria por entre seus dedos. Ele caiu inconsciente, mas não sem antes sorrir – sorrir - para o filho. Não disse nada, mas Alex escutou suas palavras mesmo assim: "Merda. Você sabe brigar".

Pela abertura do quarto, Alex conseguiu ver a mãe. Sua blusa estava aberta, com o sutiã puxado para cima, os mamilos vermelhos, expostos, obscenos. Dormira o tempo todo.

Pegou de volta o dinheiro que havia deixado sobre a mesa da cozinha para a mãe e o colocou no bolso. Em seguida, olhou para o corpo do pai até que o sangue que vazava de seu crânio chegasse à ponta do sapato de Alex. Esperou sentir alguma emoção: arrependimento, choque, alívio; mas não sentiu absolutamente nada, como se o homem que cometera aquele ato não tivesse nada que ver com ele.

E, mesmo depois de saber que seu pai desgraçado não havia morrido naquele dia, Alex não admitiu durante anos que o que ficara com ele o tempo todo não tinha sido o som da cabeça de seu pai se abrindo, nem o cheiro de seu sangue sobre o carpete, mas o fato de que, quando menos tentou, por um momento havia se tornado o tipo de filho que Andrew Riveaux queria que ele fosse.

ALEX LEVANTOU E COMEÇOU A MEXER NA TAMPA da garrafa de champanhe. Enquanto ele se mexia, pude vê-lo fechando a parte de si mesmo que eu acabara de ver, transformando-se novamente em uma celebridade.

- Sou ator há sete anos, roubando expressões e experiências de meus amigos, familiares e pessoas que encontro na rua. Se eles pudessem perceber isso, ficariam lisonjeados. Nunca ninguém teve a coragem de me dizer o que você disse. - Ele suavizou a voz, e eu esperei para ver onde tudo aquilo levaria. - Você me surpreende. Poucas pessoas me surpreendem.

Olhei para ele até a pompa e o glamour desaparecerem, deixando apenas o homem.

- Bem - admiti -, você também me surpreendeu.

A tampa voou da garrafa, explodindo no teto da tenda e caindo em meu colo. O champanhe escorregou nas laterais da mão de Alex, caindo em sua calça.

- Estou fazendo você gastar uma nota preta na lavanderia - eu disse.

Alex sorriu e encheu minha taça.

- Champanhe não mancha tanto quanto mamão - ele disse. Ergueu sua taça e a encostou na minha. O som, como o dos sinos mais suaves, foi levado pelo vento.

- Acho que deveríamos fazer um brinde ao filme - eu sugeri.

- Não. - Alex inclinou-se tanto que consegui sentir o perfume apimentado de sua loção pós-barba. - Acho que devemos brindar a você.

Observei a flute sendo levada aos lábios dele e me virei para olhar as velas acesas. Nossas entradas estavam dispostas em travessas cobertas com tampas de prata em cima da mesa, sob a tenda. Dispostas em uma base mais fraca, estavam duas tortas individuais de frutas.

- Você está tornando difícil eu ficar brava - disse.

- Bem, pelo menos estou fazendo alguma coisa certa, finalmente - ele disse.

Corei, olhando para meu prato. Queria que ele servisse minha comida. Cantasse. Gritasse. Qualquer coisa, menos olhar para mim daquela maneira.

Eu conseguia me localizar em um deserto observando a posição do sol. Sabia como montar um esqueleto mesmo quando este estava separado em cinquenta pedaços. Conseguia realizar análises complicadas de computador que explicavam o significado das dimensões de um osso. Mas não conseguia me sentar a uma mesa com um homem e ficar à vontade.

Simplesmente não tinha muita experiência prática com aquilo. E as fantasias que eu cultivava não escondiam as ciladas que surgiam na realidade: os momentos em que não havia nada a ser dito, o eco horrível de uma colher largada no prato, a maneira com que Alex olhava fixamente para mim, como se me visse por dentro. Pensei nas heroínas daqueles livros que eu lera durante o voo para a Tanzânia. A maioria delas teria jogado os longos cabelos sobre os ombros, entreaberto os lábios carnudos e inclinado-se para a frente, de maneira convidativa. Todas sabiam provocar e flertar. No mínimo, elas conseguiriam manter uma conversa sem parecerem tolas.

Mas Alex não sabia nada sobre antropologia, e eu não sabia nada sobre os filmes. Falar sobre o clima da Tanzânia não fazia muito sentido, uma vez que se mantinha estável durante meses. Ele não queria saber sobre minha viagem até ali. Sem o escudo de raiva que havia usado na tenda como proteção, eu tinha muito pouco a dizer a Alex Rivers. Ele provavelmente estava se Perguntando por que havia me convidado para jantar.

- Diga-me, Cassandra Barrett...

- Cassie - Eu disse automaticamente. Olhei para ele. - Pode me chamar de Cassie.

- Cassie, então. Conte-me como você acabou vindo escavar no deserto africano.

Aceitei a conversa, feliz pela chance de fazer alguma coisa.

- Eu era uma moleca na infância. Gostava de brincar na terra - expliquei.

Ele caminhou na direção de uma caixa de madeira que eu não tinha visto e tirou duas tigelas pequenas envolvidas em gelo.

- Coquetel de camarão? - ele perguntou.

Eu sorri quando ele colocou a tigela na minha frente.

- Como você fez isso? - eu perguntei, sem entender.

Alex levantou um camarão com um pequeno garfo.

- Se eu lhe contasse, deixaria de ser mágico.

Comemos em silêncio, e eu observei as velas criarem sombras inconstantes no rosto dele e iluminarem seu cabelo. Ele era dourado, era essa a palavra. Eu olhava para ele num momento e via um homem perguntando sobre meus cursos na UCLA e então respirava e via Apolo na minha frente.

Durante a refeição principal, Alex me contou que havia nascido perto de New Orleans. - Meu pai era médico e minha maman, bem, ela é a mulher mais linda que já vi. - Ele sorriu. Lembro que eu a observava no jardim quando ela pensava que ninguém estava olhando. Ela tirava o chapéu de palha e virava o rosto para o céu, rindo como se fosse a mulher mais feliz do mundo.

Olhei para meu prato, pensando em minha mãe, que teria trocado tudo o que tinha para voltar para o Sul. Pensei em como eu a observava quando ela pensava que ninguém estava olhando, inclinada sobre sua garrafa de uísque, brindando a si mesma. Fechei os olhos, tentando imaginar como teria sido a infância de Alex Rivers com sua família.

- Meu pai não ligava muito para a interpretação - Alex disse. - Mas até que ele me viu em uma peça na faculdade - Tulane - e se tornou meu fã número 1. Até sua morte, alguns anos atrás, ele mantinha os pósteres promocionais de todos os filmes nos quais eu atuava e os pendurava na parede de seu escritório.

- E sua mãe ainda vive em New Orleans? - perguntei.

- Tentei levá-la para Los Angeles, mas ela não quis. Disse que suas raízes estavam profundas demais ali.

Tentei pensar nas imagens do Sul que minha mãe pintara em minha mente, uma terra de graça e de pinheiros de folhas azuis, além de bebidas geladas com menta. Parecia tão diferente de Los Angeles quanto eu de Alex Rivers.

- Você deve sentir saudade de New Orleans - eu disse. - Hollywood deve ser um mundo diferente.

Ele deu de ombros.

- Cresci em uma daquelas mansões francesas ele disse. - Janelas pretas, roseiras trepadeiras e bancos de ferro. Quando cheguei em Los Angeles e ganhei fama, construí uma casa como aquela em Bel-Air. Se você já fez um daqueles passeios guiados pelas casas dos artistas, provavelmente já viu a caixa de correspondência.

Sorri para ele.

- E como você soube que havia conquistado fama?

Alex riu.

- Certo dia, eu estava em um supermercado. Foi logo depois de Luzes e sombras ter sido lançado - o filme sobre o Vietnã. Eu estava na seção dos produtos frescos, escolhendo melões, da mesma maneira que minha mãe me ensinara quando eu estava na faculdade, checando quais estavam maduros. Finalmente escolhi dois e segui em direção às cebolinhas e, quando olhei para trás, vi muitas mulheres ao redor dos melões. Todas elas estavam pegando as frutas que eu havia pegado, mas não levado - os verdes - dizendo umas às outras que haviam pegado uma fruta tocada por Alex Rivers.

- Ele sorriu.

- Essa é a pior parte. Não posso ir a lugar algum. Não posso fazer nada. Não tenho privacidade alguma. Aquele dia, em 1987, foi a última vez em que saí para fazer compras no mercado.

- Como faz para conseguir comida? - perguntei, horrorizada.

- Contrato pessoas. Tenho alguém que compra minha comida, minhas roupas, que faz meus telefonemas, que me leva de um lado a outro. Nossa! Provavelmente poderia contratar alguém para ir ao banheiro por mim se quisesse.

- Ah - eu disse, sorrindo. - As vantagens de estar em uma posição de poder. - Fiquei em pé e tirei os dois pratos - um delicioso ganso com molho de ameixa com recheio de arroz adocicado. - Então o que você faz o dia todo?

Alex riu.

- Pensando bem, muito pouco - ele disse.

Ele voltou a encher as taças de champanhe enquanto eu levava a sobremesa para a mesa.

- Mirtilo - eu disse. - Gosto muito.

Eu não estava dizendo aquilo apenas para ser gentil. Não havia maneira de uma pessoa ser criada no Maine e não gostar de mirtilos; os arbustos que havia entre a minha casa e a de Connor. Aquelas não eram tão boas quanto as do Maine - mas não disse isso a Alex -, mas elas me lembravam do verão de uma vida que eu havia vivido cem anos antes. Levei o garfo à boca e comi mais um pedaço.

- Costumávamos colher mirtilos no Maine - eu disse a Alex. - Eles crescem em todos os lugares, e comíamos as frutas diretamente tiradas do pé - sorri. - As mais vermelhas eram as melhores, porque tinham gosto de sol e deixavam manchas roxas em nossos dedos.

Alex esticou o braço para segurar minha mão. Ele a virou, acariciando levemente os meus dedos com as pontas dos dele.

- Aqui - ele disse, tocando a palma de minha mão como se pudesse ver as marcas. E aqui. - Ele olhou para mim. - Gostaria de estar com você.

Eu puxei minha mão. Senti uma onda de calor revelando-se em minha Pele.

- Acho melhor ir embora - disse rapidamente. - Obrigada pelo maravilhoso jantar. - Fiquei em pé antes que mudasse de ideia; antes que ele a Mudasse por mim.

Alex olhou para mim por muito tempo e então se levantou e desenrolou as mangas da camisa. Vestiu seu casaco e me acompanhou para fora da tenda. As duas tochas acesas na entrada para o set deixavam a terra com sombras avermelhadas que pareciam queimar.

- Eu disse a John que a levaria de volta - Alex disse delicadamente. - Espero que não se importe.

- Não quero incomodá-lo - eu disse, mas, mesmo que quisesse, sabia que não havia alternativa. Eu teria morrido de medo se tivesse de dirigir para o acampamento tão tarde; e não podia simplesmente chamar um táxi.

Ele me ajudou a entrar no jipe e acomodou-se no banco do motorista. Acendeu um cigarro e isso me surpreendeu - não pensei que ele fosse fumante. Mas tragou poucas vezes e jogou o cigarro pela janela, e eu fiquei sem a ponta avermelhada e brilhante do cigarro para observar os desenhos do rosto de Alex.

Ele ficou calado durante todo o trajeto de volta para o acampamento. Eu sabia que o ofendera, e tentei repassar a noite em minha mente, mas, além de nossa primeira discussão, a única coisa que poderia ter sido mal vista tinha sido minha atitude de afastar minha mão. Eu não conhecia o tipo de jogos casuais que alguém como Alex Rivers conhecia. "Ele vai se acostumar", eu disse a mim mesma. "Só que ainda não está acostumado a escutar um não."

Quando ele parou o jipe no estacionamento do acampamento e abriu minha porta, tentei pensar na maneira mais graciosa de dizer boa noite sem estragar o momento assim que pisasse no chão. E então ri. Ele era apenas um homem. Um ator. Do que eu sentia medo?

"De mim mesma." Soube a resposta antes mesmo de Alex fechar a porta do carro, prendendo-me entre seus braços. Eu sentia medo do que mais ele podia fazer comigo, desde que o vira interpretar meus sonhos no filme, aquela tarde. Dei um passo para trás, encostando na lateral do jipe. Alex olhou para mim, mas estava em pé nas sombras e eu só consegui ver o brilho de seus olhos.

- Você é linda - ele disse simplesmente.

Eu me virei.

- Não minta - eu disse. - Não interprete. - As pessoas já haviam me descrito como inteligente, ambiciosa - mas ninguém, em toda a minha vida, havia dito que eu era bonita. Sempre pensei que Connor poderia fazer isso, mas ele nunca teve a chance.

Eu fiquei nervosa novamente, irritada da mesma maneira que me sentia no início da noite, porque Alex Rivers havia arruinado uma noite perfeitamente boa. Antes de ele abrir a boca, eu poderia ter olhado para ele e sorrido, lembrando do jantar à luz de velas em Serengeti. Poderia ter ido para a cama aquela noite, fechado os olhos e retomado os pensamentos com conversas interessantes que eu quisesse inventar. Mas Alex havia ultrapassado o limite com uma mentira deslavada e de repente a noite toda pareceu ter sido uma grande piada à minha custa.

Alex segurou meus ombros.

- Não estou mentindo - ele disse. - Certamente não estou interpretando. - Ele me chacoalhou delicadamente. - Qual é o problema em dizer que você é bonita?

- Porque não sou - eu disse da maneira mais simples que pude, esperando que aquilo doesse um pouco menos. - Olhe ao seu redor. Olhe para a tal da Janet ou qualquer outra atriz com quem tenha trabalhado.

Ele segurou meu rosto com suas mãos.

- Você traz um tubinho preto sensual para o meio do nada. Escuta o que tenho a dizer com tanto cuidado que parece que estou contando os segredos do universo. Não tem medo de dizer que estou sendo um idiota quando é o caso. E - ele disse - você fala sobre colher mirtilos como se estivesse fazendo isso horas atrás, de modo que eu consiga ver as manchas roxas da fruta em seus dedos e lábios. Cassie, se isso não é beleza, não sei o que pode ser.

Ele começou a se inclinar para mim, e eu mantive os olhos abertos enquanto ele me beijava, porque queria ver se eu o afetava da maneira que ele me afetava. Consegui sentir a lua branca em seus ombros, puxando-me para mais perto de Alex. Escutei os batimentos estáveis de seu coração, o barulho suave dos ventiladores no acampamento e comecei a acreditar que aquilo era verdadeiro.

Quando ele se afastou de mim, seus dedos ainda descansavam em meu pescoço e tremiam. Eu sorri para ele.

- Não disse nada sobre manchas de mirtilo em meus lábios.

Alex envolveu minha cintura com os braços.

- Estou começando a achar que é o melhor filme de minha vida - ele disse. Ajudou-me a subir os degraus para o acampamento, até a entrada principal. Estava escuro, e a maioria dos outros membros do elenco e da equipe tinha ido para a cama, preparando-se para acordar cedo. Ele subiu os degraus ao meu lado e me levou até minha porta. A cada passo eu o sentia se afastando. Quando chegamos diante de meu quarto, tentei descobrir se eu havia imaginado tudo aquilo.

Alex se virou para mim, como se pretendesse me beijar de novo, mas, em vez disso, começou a falar de maneira rápida e furiosa.

- Meu pai não era médico - ele disse. Percebi que sua voz estava mais grave, gutural, que seus olhos queimavam como antes, quando ele falara sobre fracasso e sucesso. O mais perto que ele chegou de um médico foi quando deu um tiro no próprio pé depois de se embebedar com uísque. Fui sua maior decepção, Porque acabei sendo bem diferente do filho da puta, e ele costumava me espancar de vez em quando apenas para me lembrar de como era melhor.

Minha maman não sabia a diferença entre flores reais e artificiais. Cheguei ao mundo causando dor e ela nunca me deixou esquecer esse fato. Passei a infância toda me escondendo dos dois e procurando me distrair, fingindo ser outra pessoa. E a casa que construí em Los Angeles não existe em New Orleans - mas o mais perto que cheguei dela foi espiando atrás de uma árvore na mata que havia diante dela, observando meninas que viviam ali darem cambalhotas no gramado e deixando suas saias se levantarem. - Ele suspirou profundamente. - Aquela história que lhe contei foi o que minha relações-públicas inventou quando eu disse a ela que precisava de uma história. Mas não vou mentir para você e não vou interpretar.

Fiquei boquiaberta. Queria que ele soubesse que gostava mais daquilo - a verdade nua e crua - do que de seu alter ego.

Quis conversar com ele sobre minha mãe e minha família.

Acariciei seus cabelos nas têmporas. Duas vezes na mesma noite ele havia confiado em mim para dizer a verdade e, por isso, eu o ajudaria. Eu era mais capacitada para isso do que ele podia imaginar. Ele sussurrou meu nome e eu me recostei a ele, passando as mãos em suas costas e me surpreendendo com a maneira com que nos encaixávamos confortavelmente. A única coisa em que pensei antes de ele me beijar foi que Alex Rivers era um ator muito melhor do que as pessoas imaginavam.

 

Uma semana depois de ter começado a passar todo o meu tempo livre com Alex Rivers, comecei a sonhar com Connor todas as noites. Era sempre o mesmo sonho. Nele, Connor e eu éramos adultos, mas estávamos deitados de costas perto do lago Moosehead. Connor ficava apontando para o céu, comentando sobre as formas das nuvens.

- O que você acha? - ele perguntava diversas vezes, mas, para mim, todas as nuvens tinham a forma de Alex - seu perfil, seu cabelo esvoaçado pelo vento, sua mandíbula bem desenhada. Eu dizia isso a Connor, gesticulando, com minha palma pálida contra o céu azul e claro de verão. Mas, por mais que tentasse, não conseguia mostrar a Connor.

Eu havia passado seis dias observando Alex interpretar Rob, desenterrando seu esqueleto e enfrentando uma crise de fé. Ele percebe que a evolução humana está seguindo o mesmo caminho da evolução das espécies alienígenas que encontrou: uma corrida desenfreada para a extinção. Ele decide enterrar o que sabe, em vez de reescrever a história.

Fiquei surpresa ao saber que as filmagens não eram feitas na ordem, apesar de compreender as vantagens financeiras de gravar todas as cenas em uma determinada locação de uma só vez.

- Como você faz isso? - Eu perguntara a ele. - Como consegue reunir a emoção necessária para a última cena e depois voltar e fingir que nunca aconteceu? - E Alex apenas sorriu e me disse que ele era pago para fazer aquilo.

Ele se envolvia emocionalmente; apesar do que dizia, não conseguia se conter. Deixava vazar à noite, quando era apenas ele mesmo. Certa noite, estávamos sentados perto da Garganta de Olduvai e Alex me contou sobre quando ele tinha quatorze anos, quando seu pai o perseguira na sala de estar, batendo em seu rosto e em seu corpo esperando que ele revidasse. Quando revidou, arrancando vários dentes do pai, Andrew Riveaux sorrira com a boca cheia de sangue. Disse: "Cara, é assim mesmo que um homem briga".

Depois de um longo silêncio, Alex olhou para mim.

- Às vezes acho que se eu realizasse uma coletiva de imprensa e contasse ao mundo que Alex Rivers teve um pai bêbado e agressivo e uma mãe alienada ninguém se importaria em publicar essa notícia. Todos têm uma imagem de mim que não vai mudar, e o mais engraçado é que acho que o homem que eles criaram em suas mentes vai continuar vivendo quando eu morrer.

Eu segurei sua mão, porque não sabia o que devia dizer, mas ele me afastou com delicadeza.

- Foi por isso que gostei do roteiro desse filme - ele disse. - É um dilema moral: devemos dizer ao público algo que eles achem interessante? Ou seguir fazendo com que as pessoas acreditem no que precisam acreditar? - Ele balançou a cabeça. - Faz com que pensemos em Darwin.

Mas, por mais tempo que eu passasse com Alex, Connor era sempre o tema de meus sonhos à noite. Eu havia relacionado os dois em minha mente. Eu adormecia pensando em Alex e acordava chamando por Connor, como se este, com ciúmes, tivesse começado a entrar em meu subconsciente. Certa noite, meu sonho foi tão vívido que quando acordei ainda conseguia sentir o hálito de Connor em meu rosto, e isso me deixou preocupada. Na maior parte das vezes, Connor me deixava sozinha. Mas, quando ele pensava que eu estava com problemas, era mais difícil afastá-lo.

ESTÁVAMOS DANÇANDO VALSA ao REDOR DE UM LAGO atrás do acampamento, escutando os sons da noite africana.

- Não consigo acompanhar você. Está indo rápido demais.

- Você está indo muito devagar. - Alex virou meu corpo em uma curva, erguendo-me do chão frio e escuro. Quando me apoiou no chão novamente, torci o tornozelo e o puxei para rolar comigo por um montículo. A cada virada de seu corpo sobre o meu, e do meu sobre o dele, sentia uma forte onda de poder. Paramos com os dedos perto da água enlamaçada, com Alex embaixo de mim.

Recostei minha cabeça em seu peito. Com exceção daquele primeiro beijo de boa noite, aquele era o contato mais físico que eu e Alex tivemos. Era difícil saber o que ele queria de mim. Ele era simpático, extrovertido, mas não mantinha contato físico. Eu não sabia se ele estava indo com calma. Não sabia se estava indo a algum lugar. Quanto a mim, bem, eu esperava por mais. Na verdade, eu havia me preparado para uma única noite de sexo e, durante a última semana, quase havia me convencido de que não haveria problemas, mas Alex não tentava me seduzir. Com frequência, eu o tocava sempre que podia, tentando impedi-lo de se manter distante.

Senti o cheiro do sabonete em sua pele e de seu suor.

- Sinto muito. Dança de salão nunca foi meu forte - eu disse.

Alex riu, um som profundo em meu ouvido.

- Trata-se de um talento adquirido - ele disse. - Minha mãe me obrigava a fazer aulas duas vezes por semana. Eu detestava - aquelas meninas gordas com luvas brancas e perfume em excesso que pisavam em meu pé -, mas nunca mais esqueci os passos aprendidos.

Eu sorri.

- Você devia ter um desejo inconsciente de guiar uma debutante. Ou de ser Arthur Murray.

Alex riu.

- Não acho. - Ele acariciou meu cabelo com carinho e eu aproveitei o contato. - Acho que meu corpo gostava dos exercícios.

Ele havia me contado várias noites antes a respeito de seu problema no coração e o fato de não ter podido correr e brincar até perto dos oito anos.

- Imagine - ele dissera. - Um herói romântico de coração estragado.

Percebi o desgaste em sua voz, a dor de um menininho que se sentia defeituoso e fazia tudo o que podia para compensar sua fraqueza. Tentei entender por que ele havia me contado aquilo. Deixei-me enganar fingindo que era por ele pensar que eu compreenderia.

Quando fechei os olhos e encostei em seu peito, lembrando, Alex ficou tenso e se sentou. Desviei o olhar, envergonhada por tê-lo deixado desconfortável ao abraçá-lo. Balancei a cabeça, relacionando os motivos pelos quais Alex Rivers não queria - não precisava - de alguém inexperiente como eu.

Alex se virou para mim e disse:

- Já conheci muitas mulheres, mas não deixo ninguém se aproximar. Você precisa entender isso. Na verdade, não quero me desapontar de novo. Não com os defeitos de outra pessoa e, principalmente, com os meus. Então, costumo agir como se não tivesse importância. - Ele balançou a cabeça. - Cassie, estou tão cansado de interpretar!

Agindo com minha intuição, inclinei-me na direção de Alex e escorreguei a mão por dentro de sua camisa. Ele estava me dizendo o que eu não podia esperar, apesar de eu saber que já era tarde demais. Eu não havia vivido muitos relacionamentos, mas tivera Connor e sabia que era assim que tudo começava. As pessoas se apaixonavam por causa de um sorriso ou por serem capazes de fazer o ser amado rir ou, nesse caso, porque o ser amado fazia com que você acreditasse ser a única pessoa capaz de salvá-lo. Quando finalmente acontecesse, podia ser apenas uma noite de sexo para Alex, mas não para mim. Naquele momento, eu já teria dado muito de mim a ele.

Escutei a respiração de Alex quando ele se ajeitou sobre meu corpo, e a palma de minha mão ficou apoiada em seu peito. Eu sorri para ele enquanto segurava seu coração com a mão.

DOMINGO ERA O DIA DE FOLGA PARA O ELENCO E A EQUIPE, apesar de não haver muitas opções de lazer na Tanzânia. Eu estava sentada em um balanço à sombra de uma árvore quando Alex passou um braço por minha cintura como se fosse a coisa mais natural do mundo.

E estava começando a ser natural. Eu quase havia abandonado o ponto de escavação da UCLA. Depois daquela noite à beira da lagoa, quando Alex havia estabelecido nosso relacionamento, nós nos tornamos inseparáveis. Na verdade, Alex e eu éramos vistos juntos com tanta frequência que quando ele não estava por perto as pessoas da equipe me perguntavam onde ele estava. Eu me sentira um pouco desconfortável com isso no início, a maneira como ele me abraçava quando eu estava demonstrando como limpar um fragmento; ou a maneira, na frente de todos, que ele me pedia para encontrá-lo para jantar. Ele me lembrava de meus antigos estudos sobre territorialidade: os machos sempre deixam sua marca para avisar aos outros onde eles não são bem-vindos.

Mas, por outro lado, ninguém havia sentido esse tipo de possessividade por mim, mesmo que fosse temporária. E era bom. Eu gostava de saber que, de manhã, eu era a primeira pessoa a quem Alex procurava. Eu gostava de dar-lhe beijos de boa noite e perceber que alguém que passava pelo corredor nos vira. Estava agindo como uma adolescente pela primeira vez na vida.

Alex me puxou para mais perto dele.

- Tenho uma surpresa - ele disse, sussurrando em meu ouvido. - Vamos fazer um safari.

Imediatamente me afastei e olhei para ele.

- O que vamos fazer?

Ele sorriu.

- Um safari. Aquela coisa de leões, tigres, ursos, caça a marfim - ele disse.

- Ninguém mais pode pegar marfim - eu disse. - A única coisa permitida é tirar fotos.

Alex ficou em pé, puxando-me.

- Bem, eu estou cansado de fotos. Quero registrar tudo com os olhos.

Eu o segui, já imaginando o Serengeti, os grupos de animais caminhando lentamente. Um único jipe preto esperava por nós e um nativo com um sorriso branco e brilhante me ofereceu sua mão para me ajudar a subir.

- Cassie - Alex disse. - Este é Juma.

Juma nos guiou pelo coração da Tanzânia por mais de uma hora, passando por caminhos de arbustos que não serviam como estrada. Ele parou à sombra de um pequeno bosque.

- Nós esperamos aqui - ele disse, e pegou um cobertor xadrez azul do jipe, estendeu-o no chão para que nos sentássemos.

As planícies ficavam roxas no horizonte, e o céu acima era de um azul puro. Deitei-me de costas. Ao meu lado, Alex se apoiou em um cotovelo para me observar. Aquela era outra coisa com qual eu tive de me acostumar em sua presença: com a atenção concentrada. Ele me olhava como se observasse todos os movimentos, cada mudança sutil. Quando eu disse que aquilo me deixava pouco à vontade, ele deu de ombros.

- Pode me dizer que não percebe minha aparência? - ele disse e eu, é claro, ri daquilo. - Bem, não consigo deixar de olhar para você.

Seus olhos começaram em meus cabelos e desceram para o meu nariz, faces, pescoço e ombros. Ele passava uma sensação quente com o olhar, como se houvesse me tocado.

- Você sente saudade do Maine? - perguntou.

Semicerrei meus olhos por causa do sol. - Não muita. Estou na UCLA desde os dezessete anos. - Parei, pensando em quanto da explicação eu havia evitado. Apesar de Alex ter me contado a verdade sobre sua família, eu precisava revelar meus segredos. Nas últimas semanas, eu havia pensado em contar a ele várias vezes, mas duas coisas me impediram. Em primeiro lugar, porque o momento nunca era o certo. Em segundo, eu ainda temia assustá-lo.

O sol passou por entre as folhas pequeninas da árvore sob a qual estávamos, deixando uma sombra parecida com renda sobre as pernas de Alex. Se eu contasse e ele se afastasse, tudo bem. Eu tentava me convencer de que nosso relacionamento não tinha futuro. Afinal, o que ele faria quando as filmagens terminassem? Voltaria para Los Angeles com alguém como eu ao seu lado, anunciando a todos que eu era a mulher de seus sonhos?

- Alex... - eu disse de maneira hesitante. - Você se lembra quando eu disse que meus pais eram donos de uma padaria?

Aquilo era tudo que eu havia dito quando ele me pressionou a falar sobre mim. Era a única coisa segura que eu podia contar. Alex assentiu, virando o rosto para o sol.

- Você ajudava a preparar os merengues - ele disse.

Eu engoli em seco.

- Eu também ajudava a levantar minha mãe do chão todas as vezes em que ela se embriagava. - Mantive meus olhos no rosto de Alex, para saber exatamente quando minhas palavras causassem um efeito. - Ela era alcoólatra - eu disse. - Uma bela mulher do Sul, mas alcoólatra.

Ele estava olhando para mim, mas não decifrei sua expressão.

- E seu pai?

Dei de ombros.

- Ele me pedia para cuidar dela.

Ele se aproximou de mim lentamente e pousou a mão sobre meu rosto e a pele dele estava mais quente do que a minha vergonha.

- Por que está me contando isso? - Ele perguntou.

- Por que você me contou tudo aquilo? - Perguntei.

Alex me pegou com seus braços e me abraçou forte de modo que seu coração ficasse perto do meu.

- Porque somos iguais - ele disse. - Você nasceu para cuidar de mim, e eu vou cuidar de você.

Não pensei muito naquilo, mas aceitei o conforto oferecido. Era bom não ter de ser a pessoa no controle. Era bom ser a pessoa que era protegida, em vez de ser aquela que protege a todos.

Nós nos sentamos rapidamente quando escutamos o barulho de um trovão. Mas o céu estava limpo e de repente Juma apareceu com dois binóculos. - Ali - ele disse, apontando, e o que era uma nuvem cinza no horizonte se tornou carne e osso.

Os elefantes se moviam tranquilamente, com passos pesados. A pele deles parecia mais velha do que pergaminho, eles piscavam os olhos cansados na poeira. De vez em quando um deles erguia a tromba e emitia um som forte.

Minutos depois, aproximou-se um bando de girafas, resvalando as orelhas nas nuvens brancas mais baixas. Percebi que Alex prendeu a respiração quando uma delas se desgarrou do grupo e caminhou em nossa direção, flexionando e esticando as pernas levemente, como se mancasse. O animal tinha a cor da areia do Caribe, com manchas nas costas e no pescoço. Ela esticou o pescoço para a árvore acima de nós e começou a experimentar as folhas.

Então os elefantes começaram a se aproximar com força e unidos; as girafas marcharam pela planície. Quando a única coisa que consegui ver foi a grama alta, escutei o rugido inconfundível de um leão.

Ele se movia com a graça tranquila de um vencedor, e sua juba se destacava de sua cara como um círculo de fogo. Metros atrás dele estava uma leoa, mais magra, mais esguia, escondida na sombra. Ela ergueu os olhos, cor verde-água e mostrou os dentes sem emitir nenhum som. Alex apertou minha mão.

Os leões ficaram ali tempo suficiente para farejarem o ar. Moveram-se silenciosamente pela planície, agora lado a lado. Eu tentei imaginar se aqueles animais se reproduziam para sobreviver. O vento soprou e eles desapareceram tão tranquilamente como haviam chegado. Olhei por um momento para o ponto que eles haviam ocupado, tentando imaginar como uma criatura tão linda conseguia, em um instante, fazer sangrar.

- Vamos ficar aqui - Alex disse com a voz baixa. - Vamos construir uma cabana à beira da planície e observar os leões atravessando nosso quintal.

Eu sorri para ele.

- Tudo bem. Pode aceitar seu Oscar via satélite.

Pegamos nosso cobertor e voltamos para a parte traseira do jipe. A perna de Alex tocava a minha do quadril ao tornozelo. Juma deu a partida no veículo e nós começamos a atravessar o terreno para ir para casa.

NO SET, John HAVIA DEIXADO UMA CESTA DE piquenique com frango frito e pão fresco para nós. Alex e eu nos sentamos em silêncio durante meia hora do lado de fora da tenda com o sol quente batendo em nossas costas e aquecendo o chão entre nós. Era início do mês de setembro e estava muito quente.

- Sabe do que sinto falta do Maine? - Perguntei. Alex balançou a cabeça, negando. - Sinto falta das estações. Da neve. - Fechei os olhos, tentando, naquele calor escaldante, imaginar as pontas de meus dedos roxas de frio, meus cílios sentindo os primeiros flocos de neve.

- Uma de minhas casas fica no Colorado - Alex disse. - Perto de Aspen. Vamos para lá no inverno. Vou levá-la para ver a neve.

Eu me virei para ele. Tentei imaginar se estaria com ele no inverno. Pensei no leão, caminhando na planície, seguido pela leoa.

- Sim - respondi. - Seria ótimo.

Sabia que ele estava pensando nos leões também e nos outros animais que haviam feito o chão tremer com seus passos. Enquanto o sol se punha atrás dos montes distantes, ele se inclinou e me beijou.

Não foi da maneira como havia me beijado antes - não foi tranquilo, delicado. Ele beijou meus lábios e encostou o corpo no meu, selvagem, primitivo, proibido. Desabotoou a frente de minha camisa e escorregou a mão para dentro. Sua palma afastou meu sutiã, envolvendo meu seio.

- Tudo bem? - ele perguntou.

Eu sabia que as coisas caminhariam até ali; soube no momento em que ele me deixou na porta do acampamento aquela primeira noite. E, apesar de não ter experiência, sabia que ele esperaria. Eu não podia mais detê-lo.

Assenti e senti quando ele tirou minha camisa por cima, mas suas mãos continuavam em mim, percorrendo minhas costas, desabotoando meu sutiã e afastando meu cabelo do rosto. Ele me pegou e me carregou desajeitadamente para dentro da tenda do set, deitando-me sobre a cama estreita. Ajoelhando no chão de madeira, ele tirou meus ténis e meias e abaixou meu short e minha calcinha.

Minhas faces ardiam e eu procurei por um lençol com o qual pudesse me cobrir, mas aquele era um set de gravação e não havia lençol algum. Tentei cruzar meus braços sobre mim, mas Alex os colocou ao redor de seu pescoço e voltou a me beijar.

- Você é linda - ele disse. Correu as pontas dos dedos delicadamente sobre meu corpo, da mesma maneira com que um cego conhece o rosto de alguém e, quando me abri para seu toque, comecei a pensar que talvez fosse tão bonita quanto ele dizia.

Eu não sabia como tocá-lo ou exatamente o que fazer, mas Alex não Parecia se importar. Ficou em pé para tirar suas roupas e eu observei as linhas de seu corpo. Percebi que era como olhar para o sol - você não devia fazê-lo, pois não conseguiria enxergar mais nada.

Quando ele aproximou a boca de meu seio, escutei o som de minha voz, ou talvez o vento. A escuridão entrou na tenda conosco, cobrindo nossos corpos aos poucos até eu conseguir enxergar apenas partes de Alex aqui e ali, iluminado pela luz da lua e sentir sua pele grudando na minha. Sua mão moveu-se entre minhas pernas e as palavras pousaram em minhas têmporas quando fechei os olhos.

Vi o Serengeti, repleto de animais, como tinha sido séculos antes. Eles faziam seus ruídos à noite, moviam-se de maneira calculada. Acima de mim havia um quadro de estrelas que escorregavam para dentro de minha pele, desejando libertar-se, uma liberdade que só veio quando Alex me penetrou.

Quando parei de tremer, Alex começou. Ele chamou meu nome e se deitou sobre meu corpo. Olhou para mim com olhos de leão.

- É a primeira vez que você... sabe? - Ele susssurrou.

Eu me virei assustada.

- Como soube?

Alex sorriu.

- Foi pela maneira como você olhou para mim. Como se eu tivesse acabado de criar o mundo.

Tentei empurrá-lo um pouco, abrir espaço entre nós. Depois de terminado, eu não tinha certeza se deveria ter acontecido.

- Sinto muito - sussurrei. - Não faço isso com muitos homens.

Alex posicionou nossos corpos de lado. - Eu sei. - Voltei a corar, pensando em todas as mulheres com quem ele já devia ter dormido, de como elas sabiam fazer aquilo de modo muito mais instintivo. Ele segurou meu queixo, fazendo com que eu olhasse para ele.

- Não foi isso que eu quis dizer. Quis dizer que gosto de sentir que você é minha. - Ele me beijou delicadamente. - Porque você não vai fazer isso com muitos homens.

Ele sorriu ao dizer isso, mas apertou-me de maneira possessiva, como se eu de fato planejasse ir embora. Hesitante, passei meu dedo ao redor dos músculos do peito dele e o senti tremer dentro de mim. Empurrei meu quadril mais para perto dele e o escutei gemer.

- Jesus - ele disse. - O que você faz comigo...

Fingi controlá-lo.

- Como posso saber que você não está interpretando? - perguntei.

Alex sorriu.

- Cassie, quando estou interpretando, nunca sou tão bom assim.

SE Sven, o dublê, NÃO TIVESSE PEGADO UMA GRIPE, Alex e eu não teríamos brigado. Mas na manhã daquela segunda-feira - a manhã seguinte - eu cheguei ao set, tentando agir da maneira mais casual possível, e descobri que a cena marcada para ser gravada tinha sido mudada. Em vez de Sven pular de um penhasco com uma corda preta ruim, Alex e Janet Eggar filmariam a cena de amor do filme.

Janet Eggar era uma atriz jovem que, Alex dissera, estava fazendo sua primeira CGA - cena gratuita de amor. Bernie me contara que o papel de Janet era completamente sem conteúdo; só havia sido criado porque se ela mostrasse os seios as pessoas pagariam para ver o filme. Eu a observei passar desajeitadamente do figurinista ao pessoal da maquiagem. Ela ficou em pé de costas para mim e abriu seu roupão para que a base pudesse ser aplicada em seu corpo.

Eu estava tentando chamar a atenção de Alex. Ele havia chegado ao set bem antes de mim naquela manhã para tomar conhecimento das mudanças do roteiro, por isso eu ainda não sabia como ele reagiria depois da noite anterior. Ele havia me levado para o acampamento e se despedido com um beijo de boa noite que me fez arder por dentro. Mas, pensando nas fofocas, ele voltou para o seu quarto e me deixou acordada a noite toda, nua sob o ventilador do quarto, tocando nos pontos onde ele havia tocado horas antes.

Quando o sol nasceu, eu disse a mim mesma mais uma vez que não esperaria por nada. Para mim, ele fazia aquilo com algum membro do elenco ou da equipe em todos os filmes. Eu podia pensar o que quisesse, mas percebi que quaisquer promessas que fizesse a mim mesma estavam destinadas a não serem cumpridas.

Alex estava vestindo uma calça jeans e estava sem camisa, e não estava se sentindo muito bem; gritou com Charlie, por atrapalhá-lo. Quando Jennifer levou a ele uma cópia de seu roteiro, pedindo desculpas pela mancha de café espalhada em uma página, pensei que ele fosse arrancar a cabeça dela.

Mas quando ele olhou para Jennifer, pálido e tremendo diante da câmera, pareceu ficar mais tranquilo. Observei seus olhos percorrerem a extensão do roupão dela e voltarem para seu rosto. Ele se aproximou de Bernie e murmurou alguma coisa, e o diretor levantou as mãos para que ele ficasse em silêncio.

- Este será um set fechado - ele anunciou. - As pessoas que não estiverem diretamente envolvidas com a filmagem da cena podem voltar para o acampamento e se reunirem aqui depois do almoço.

Observei Bernie levar Janet para a tenda, para a cama onde Alex e eu havíamos feito amor na noite anterior. Ele conversou com ela e fez gestos com as mãos, e ela concordou e fez algumas perguntas. A distância, escutei os últimos jipes se afastando e percebi que restavam apenas algumas pessoas.

Eu não estava envolvida com as filmagens da cena - qualquer auxílio técnico que eu pudesse oferecer não ajudaria ninguém como Janet Eggar. Mas eu a vi reclinar-se na cama estreita, e seus traços mudaram, como se fossem os meus, e eu percebi que não iria embora de maneira alguma.

Bernie se aproximou de mim.

- Ainda está aqui? Ele perguntou. - Não escutou o que eu disse?

Antes que eu pudesse responder, Alex ficou em pé ao meu lado, com a mão em meu ombro.

- Ela fica - ele disse apenas.

Bernie assumiu sua posição ao lado da câmera e fez com que Alex e Janet passassem por um ensaio geral da cena. Se eu não estivesse me sentido tão envergonhada a respeito da locação, provavelmente teria rido: não imaginava o diretor instruindo os atores sobre o lado para o qual virar na hora do beijo, onde se podia ou não colocar as mãos, como respirar. Janet e Alex tinham um pequeno spray de antisséptico bucal sob o travesseiro e, quando Bernie colocou o cenário do jeito que queria, eles espirraram um pouco do líquido na boca e se voltaram profissionalmente para a cama.

Janet tirou seu roupão sob o lençol branco com Alex protegendo-a com cavalheirismo da visão das câmeras. Em seguida, como se fizesse aquilo o tempo todo, Alex tirou a calça jeans e subiu completamente nu na cama.

Foi uma cena horrível. A voz de Janet falhou no meio de sua fala; ela beijou Alex como se estivesse na cama com um cadáver. Quando Alex puxou o lençol para seu quadril, seguindo a orientação de Bernie, Janet ficou tensa e sentou-se ereta, cruzando os braços sobre o peito.

- Sinto muito - ela disse de maneira tranquila. - Podemos tentar de novo?

Mas depois de mais dois desastres, Alex passou a mão no rosto e ficou em pé. Ele se virou, mas todos do set perceberam que ele havia ficado excitado. Olhei para baixo e mexi na barra de meu short. Ele dissera que não estava interpretando comigo. Devia ter interpretado com ela.

- Certo - Alex disse. - Todo mundo deve tirar a roupa.

Bernie começou a murmurar em iídiche, mas Alex continuou falando, abafando a voz do diretor.

- O mais justo é que, se eu e Janet estamos nus, o mínimo que podem fazer é tirar suas roupas. - Ele olhou para trás, onde Jane estava começando a sorrir.

Um dos câmeras foi o primeiro a fazer o que Alex pedira, tirando a camiseta e as calças, revelando uma enorme barriga que caía por cima de sua bermuda. Leanne, assistente de Janet, tirou as roupas até ficar apenas de calcinha e sutiã. - É como se fosse um biquini - ela disse para ninguém em especial.

As roupas voaram e formaram montes no canto do set e naquele momento Janet Eggar estava dando gargalhadas. Alex sentou-se na cama, conversando com ela. Suspirando, Bernie tirou o short e revelou uma cueca de seda roxa, e só ficou restando eu mesma.

Todos estavam olhando para mim, tentando entender por que eu merecia tratamento especial, por isso, sem pensar duas vezes segurei a ponta de minha camisa. Alex olhou para mim e balançou a cabeça levemente, mas eu sorri para ele. Tirei minha camisa e meu short, sabendo que toda a equipe me observava.

Quando a gravação terminou, Janet parecia bem melhor. Eu a observei recostar-se na cama, com o cabelo espalhado sobre o travesseiro. Observei a respiração de Alex sobre ela. Tentei imaginar quanto de seu corpo ele estava tocando; quantas vezes aquela cena teria de ser gravada; se os lençóis ainda tinham nosso cheiro.

Depois da sexta tomada, quando Janet e Alex estavam rindo como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo, vi como havia arranhado, com as unhas, os descansos de braço de madeira de minha cadeira. No calor escaldante, a cena que estava sendo realizada na minha frente não parava de se transformar naquela que eu vivera na noite anterior. Minha garganta ficou tão seca que eu não conseguia engolir. Observei Alex com outra mulher, abraçando-a da maneira que deveria me abraçar, e foi quando percebi que estava apaixonada.

Sabia que ele me procuraria quando terminasse, mas eu não queria vê-lo. Nunca mais queria vê-lo. Eu tentara - de verdade -, mas não queria um romance qualquer.

Eu havia passado a noite anterior toda preparando-me para encarar a verdade, mas isso não me impediu de sentir a dor. Alex não havia sentido um mundo novo se abrir ao meu toque. Alex não havia ficado deitado sob um ventilador, rezando para o tempo parar antes que tudo fosse por água abaixo de novo. Para Alex, eu não tinha passado de um ensaio.

Eu estava indo na direção dos jipes, planejando entrar em um deles e dirigir para bem longe daquela produção, quando Alex me alcançou e segurou meu braço.

- Espere - ele disse. - Você tem que me dar uma chance.

Eu me virei e o encarei.

- Você tem um minuto - eu disse.

- Não sabia que íamos filmar isso hoje, Cassie. Foi em uma hora ruim. Se eu soubesse, eu nunca a teria levado para lá ontem à noite. Não queria que você visse aquilo, mas também não queria que pensasse que eu a estava expulsando.

- Você gostou. Eu vi - eu disse.

- Não gostei - ele gritou. - É meu trabalho.

- Bem, e o que lhe importa? - Eu gritei também. - Você já fez comigo. E agora tem Janet Eggar babando. Por que não termina o que começou enquanto todo mundo almoça?

Alex deu um passo para trás.

- É isso o que pensa de mim? - ele perguntou laconicamente. Ele estava com os punhos cerrados, pálido de raiva. Seus olhos queimaram e por um instante pensei que ele me agrediria ou me empurraria ao voltar correndo para o sete.

Eu não disse nada durante algum tempo, silenciada pela força da ira de Alex.

- Gostaria de saber o que pensar sobre você - sussurrei. - Eu vi a nós dois. A mesma tenda, Alex. A mesma cama. O mesmo tudo, mas dessa vez não era eu ali. - Quando meus olhos ficaram marejados, eu me virei. - Por favor, não me faça assistir àquilo de novo - eu disse. Passei por ele correndo, até não mais escutar sua voz. E disse a mim mesma que deveria ter sabido que uma pessoa que podia amar com tanta intensidade e tão bem também podia odiar e ferir com a mesma intensidade.

ELE TINHA DOZE ANOS E VINHA PRATICANDO roubos em lojas havia alguns anos, por isso, na teoria, não devia ter sido tolo o bastante para ser flagrado. Mas ultimamente as meninas olhavam para ele com intensidade, e a loira do caixa com seios do tamanho de mangas estava lhe lançando olhares, por isso, antes que pudesse colocar a lata de Pepsi em seu bolso, uma mão forte segurou seu braço e o virou. Alex viu-se olhando para o segurança pela segunda vez naquela mesma semana e, quando olhou de soslaio, percebeu que a menina do caixa não estava olhando para ele.

- Você é só um idiota completo - o segurança perguntou -, ou tem algum outro motivo para ter voltado a esta loja? - Alex abriu a boca para responder, mas, antes que pudesse falar, foi expulso pela porta automática e levado à delegacia.

O local estava repleto de cafetões, traficantes e criminosos, e o atendente estava com pouca paciência para receber um moleque que havia sido pego roubando mercadorias num mercado. O sargento olhou para Alex e depois para o segurança.

- Não vou desperdiçar uma vaga - ele disse. Algemou Alex à cadeira diante da mesa de ocorrências.

Tiraram suas impressões digitais e coletaram diversas informações, mas até mesmo Alex sabia que tudo aquilo era apenas para assustá-lo; ele era menor de idade, e em New Orleans roubar produtos em lojas só causava um tapinha na mão. O sargento prendeu a algema na cadeira novamente e Alex ficou sentado em silêncio, com os joelhos recolhidos ao peito e seu braço livre segurando os tornozelos. Fechou os olhos e fingiu que estava no corredor da morte, quase na hora da execução.

Algum tempo depois, o sargento notou sua presença.

- Merda - ele disse. - Ninguém veio buscá-lo ainda?

Alex balançou a cabeça, negando. O sargento perguntou qual era seu número de telefone e o discou, inclinando-se na mesa e olhando para um relatório de detenções. Olhou para Alex:

"Sua mãe e seu pai trabalham?" ele perguntou.

Alex deu de ombros.

- Alguém devia estar em casa - ele disse.

- Pois é, mas alguém não está - o policial disse.

Uma hora depois, o sargento tentou de novo. Dessa vez, conseguiu conversar com Andrew Riveaux. Alex sabia disso pela maneira com que o policial segurava o telefone muitos centímetros longe da orelha, como se o que seu pai estivesse dizendo fosse contagioso. Depois de um minuto, o sargento entregou o telefone a Alex.

O fio do telefone ficou completamente esticado. Alex encostou o telefone na orelha. Não sabia o que dizer; "alô" não parecia muito adequado. Seu pai começou a gritar um monte de palavrões em francês cajun e terminou dizendo que acabaria com a raça do filho.

- Estarei aí em quinze minutos - ele disse, e desligou o telefone.

Mas Andrew Riveaux não chegou em quinze minutos, nem mesmo em uma hora. De sua posição na cadeira, Alex observou o sol se pôr e a lua subir no céu como um rosto branco e enrugado. Ele sabia que fazia parte da punição - o fato de policiais e secretárias que passassem ali e fingissem não notá-lo sentirem pena dele. Ele mudou de posição desconfortavelmente, precisando urinar, mas sem vontade de chamar atenção ao pedir para ser solto.

O sargento o viu quando estava indo para casa ao final de seu turno.

- Não telefonou para a sua casa? - ele perguntou, curioso.

Alex assentiu.

- Meu pai está vindo - ele disse.

O policial se ofereceu para telefonar de novo, mas Alex recusou. Não queria que o sargento, a quem já estava considerando um aliado, soubesse que o problema não era que seu pai não podia ir buscá-lo, mas, simplesmente, não queria.

Tentou imaginar se seu pai havia decidido deixar Alex ali de propósito ou se havia encontrado alguma coisa melhor para fazer - arrumar suas redes para pesca, beber, ser o quinto jogador em uma mesa de pôquer. Talvez sua mãe fosse até ele - Alex tentava acreditar que sim -, mas, se a mãe estivesse sóbria o bastante para compreender que seu filho estava em uma delegacia, teria sido impedida pelo marido de ir até lá.

Alex encostou a cabeça no braço da cadeira e fechou os olhos.

Depois das três da manhã, ele foi acordado por um perfume forte. Uma prostituta estava sentada na cadeira ao lado dele. Tinha cabelo vermelho e pele cor de mogno, além de cílios compridos. Usava um colar comprido de contas que lhe caíam pelos seios, como se para delineá-los. Mascava chiclete - de uva - e estava com a mão cheia de dinheiro. Era a mulher mais linda que ele já tinha visto.

- Olá - ela disse a Alex.

- Oi.

- Vim buscar minha amiga - ela disse, como se precisasse de justificativa por estar em uma delegacia. - Por que está algemado à cadeira?

- Tive um surto e estrangulei minha família inteira - Alex disse, sem pestanejar. - E não tem vaga lá dentro.

A prostituta riu. Tinha dentes grandes e brancos, como os de um cavalo.

- Você é bonitinho - ela disse. - Quantos anos tem? Dez? Onze?

- Quinze - Alex mentiu.

A mulher sorriu.

- E eu sou Pat Nixon - ela disse. - O que você fez hoje?

- Roubei coisas de um mercado.

- E eles vão deixá-lo aqui a noite toda? - Ela pareceu surpresa.

- Não - Alex admitiu. - Estou esperando que me busquem.

A prostituta sorriu.

- É a história da minha vida, querido - ela disse.

Ele não havia dito nada a ela, na verdade; nada sobre sua família ou sobre quanto tempo estava ali, ou sobre como preferiria passar um ano algemado a ter de enfrentar o fato de que o homem que entraria na delegacia no dia seguinte, ao meio-dia para buscá-lo, era seu pai. Alex sabia sobre as prostitutas; conhecia que parte da atração que exerciam estava no fato de aceitarem qualquer coisa que viesse com um cliente e fazê-lo acreditar que ele era mais importante do que era na realidade. Sabia que elas ganhavam a vida fingindo sentir coisas que não sentiam. De qualquer modo, pareceu natural quando ela abraçou Alex e o puxou mais para perto, como se as cadeiras separadas não fossem problema.

Alex recostou o rosto nos seios da prostituta, pensando na moça loira do caixa e deixando seu braço algemado doer, preso no espaço entre eles. Apenas quinze minutos depois, a amiga foi liberada das celas do andar de baixo e chegou assoviando e rebolando como um gato ao caminhar ao lado do carcereiro. Mas, durante aqueles minutos, Alex manteve os olhos fechados e sentiu o cheiro forte do laquê da prostituta e do perfume barato, deixando-a entoar canções religiosas dos negros para ele até o mundo desaparecer, até ele acreditar que o carinho era um direito de nascença.

AS FILMAGENS PARARAM INESPERADAMENTE por três dias e Alex desapareceu. Eu estava envergonhada demais para mostrar minha cara

Para o restante da equipe e não tinha passado muito tempo com os outros, por isso não tinha com quem conversar. Fiquei dentro de meu quarto no acampamento, saindo apenas para fazer refeições e comendo sozinha. Pensei em romper meu contrato e retornar para Los Angeles antes que Alex pudesse voltar.

Mas, em vez disso, fiquei sentada em minha cama e li todos os romances que havia comprado, imaginando-me como a heroína e Alex, como meu amante. Eu escutava os diálogos no tom e no ritmo de sua voz. Fingi e fingi até não conseguir distinguir o que havia acontecido de fato e o que eu tinha imaginado enquanto lia nos cantos frios e escuros da noite.

Certa noite, quando a lua aparecia no céu, alguém girou a maçaneta de minha porta. Não havia trincos. O acampamento era velho demais para isso. Vi a porta sendo aberta e me levantei, bastante calma prestes a ver um desconhecido.

Intuitivamente devo ter sabido que era Alex. Eu o observei entrar em meu quarto e fechar a porta. Estava escuro, mas meus olhos haviam se acostumado, então eu podia ver com facilidade as olheiras dele e os vincos em suas roupas, a barba crescida de dois dias. Comecei a me alegrar, pensando que talvez ele tivesse ficado tão triste quanto eu.

Só percebi o frasco em sua mão quando ele o colocou sobre a cômoda diante da cama.

- Comprei para você - ele disse simplesmente.

Era apenas um pote de geleia, do tipo que a mãe de Connor usava todos os verões para guardar a geleia de uva que fazia. Estava cheia pela metade com um líquido cristalino que não parecia nada além de água.

Alex deu um passo à frente e tocou o vidro.

- Não está frio - disse. Sentou-se na beirada da cama. - Voei para Nova York e peguei um teco-teco para Bangor, no Maine, mas não tem montanhas muito frias por lá em setembro. E não podia voltar para cá de mãos vazias, por isso peguei um avião para o único lugar onde eu tinha certeza de que encontraria o que procurava - conheço pessoas que esquiaram nas montanhas canadenses em agosto. - Ele apoiou os cotovelos nos joelhos e descansou o rosto nas mãos.

- Alex - eu disse com a voz baixa. - O que, exatamente, você trouxe Para mim?

Ele olhou para mim e respondeu: - Neve. Trouxe um pouco de neve.

Peguei o vidro e o virei em minhas mãos, imaginando Alex no topo de uma montanha coberta por neve, reunindo um punhado de neve em um vidro e trazendo-a para mim, a centenas de milhas de distância. Senti uma alegria por dentro.

- Você viajou metade do mundo para buscar um vidro de neve.

Mais ou menos. Não consegui pensar em nada que a fizesse compreender os acontecimentos daquele dia. Eu não quis... eu não... - Ele parou e respirou fundo, pensando no que diria. - Nunca conheci ninguém como você, mas não pude lhe dizer isso antes de gravar aquela maldita cena de amor. Eu não estava morrendo de vontade de ir embora como fui, mas você não me escutaria. Assim, pensei que as ações falariam mais alto do que as palavras.

Eu me sentei ao lado dele na beirada da cama, ainda segurando o vidro de água. Inclinei-me e o beijei no rosto, tentando pensar no que fazer a partir daquele momento. Apertei as mãos em meu colo.

- Obrigada - eu disse.

Alex virou-se para mim e sorriu.

- É apenas metade de seu presente - ele disse. - Além disso, queria lhe dar algo que não derretesse. - Ele procurou no bolso e tirou de dentro dele um presente que eu não consegui ver direito por causa da pouca luz. Mas naquele momento o sol apareceu no horizonte e seus raios refletiram na aliança com um diamante.

Alex esticou o braço para acariciar minha nuca. Ele me puxou para a frente até nossas testas se unirem, inclinados sobre aquela aliança que era mais brilhante que os olhos dele. Escutei as palavras do pedido, procurando por um sinal de meu futuro, mas, quando ele falou, parecia que sua vida dependia daquela frase.

- Meu Deus! - Ele disse com a voz rouca. - Por favor, aceite.

 

Em vez de uma festa para comemorar o fim das filmagens, fizemos uma festa de casamento. Depois de treze semanas de gravações, Alex ficou em pé em uma plataforma onde antes ficava um pequeno set e anunciou ao elenco e à equipe o segredo que havíamos guardado durante semanas. Até mesmo Bernie, o diretor, ficou chocado. Ele rompeu o silêncio de surpresa subindo na plataforma e cumprimentando Alex.

- Caramba! - ele disse sorrindo. - Por que não me contou?

Alex respondeu:

- Porque você, Bernie, era a primeira pessoa que eu esperava que fosse contatar os tablóides.

Todos sabiam que nós estávamos nos relacionando; era óbvio pela maneira com que Alex me tratava. Mas acho que as pessoas se surpreenderam quando viram que eu era mais do que parecia. Eu precisava acreditar que namoros entre atores e pessoas comuns eram coisas normais. Mas casamento era outra história.

Eu acreditara em Alex quando ele me disse que qualquer imprevisto que uma cerimónia simples na Tanzânia tivesse compensaria e muito o pesadelo de tentar manter afastados jornalistas e fãs enlouquecidos de um casamento nos Estados Unidos. Além disso, as únicas pessoas a quem eu convidaria teriam sido Ophelia, alguns colegas de trabalho e, talvez, apenas por obrigação, meu pai. Nunca havia passado horas sonhando estar em um vestido de noiva, indo ao altar por um corredor coberto de pétalas de rosas. Eu não me importava, e disse a Alex, se ele quisesse encontrar um juiz de paz.

Mas na África, você sabe, é mais fácil encontrar missionários do que juízes. - Quero que você se case em uma igreja - Alex insistira. - E você não vai usar as roupas do deserto. - Tentei dizer para ele que eu não me importava. Mas alguma coisa me impediu de defender minha opinião. Eu estava me casando com o príncipe de Hollywood, e, como todas as outras Pessoas, ele esperava uma Cinderela. E, pensando bem, o que eu mais queria era simplesmente fazer o que Alex quisesse que eu fizesse.

As seis semanas entre o dia em que aceitei o pedido de Alex e quando ele anunciou o casamento foram as melhores de minha vida. Em parte, a mágica estava no fato de estarmos fazendo algo ilícito. Alex me esperava na tenda onde ficavam as mesas com alimentos, fugindo das câmeras e criando uma grande comoção com seu desaparecimento para garantir tempo para um beijo intenso e rápido. Passamos três dias de chuva torrencial trancados em meu quarto no acampamento, fazendo amor e jogando gamão. Tomávamos banho juntos antes de o sol nascer. Falávamos sobre cinematografia, dos elementos dos ossos. Numa noite fria, no quarto de Bernie, enquanto eu estava sentada entre as pernas abertas de Alex e observava os procedimentos do dia, ele envolveu nossos corpos em um cobertor fino e, com todo mundo por perto, escorregou as mãos para dentro de meu short e me deixou maluca.

Alex fazia com que eu me sentisse como alguém que nunca tinha sido, e até mesmo a promessa de um casamento não me impedia de pensar que uma manhã eu acordaria e descobriria que tudo aquilo não havia acontecido. Assim, da mesma maneira que eu catalogava minhas amostras antropológicas com tinta nanquim, eu me peguei mentalmente relacionando cada lembrança que eu tinha com Alex, até elas se enrolarem em minha mente como um rosário, esperando para oferecer conforto.

Um flash fez com que eu voltasse para a cena presente. Joey, o fotógrafo do local, havia acabado de tirar nossa foto. Ele entregou a Polaroid a Alex, mas antes eu vi meu rosto pálido, lentamente ganhando cor conforme as químicas agiam. O rosto de Alex estava demorando mais para aparecer. - Uma lembrança - Joey disse e se inclinou para a frente e me beijou nos lábios.

Passei a maior parte da hora seguinte deixando Alex conversar com todas as pessoas que nos parabenizavam. Enquanto isso, eu o observei. O sol iluminava seus cabelos e delineava a curva familiar de seus ombros. A maioria das mulheres estreitava os olhos para me ver, tentando imaginar o que eu tinha que poderia ter atraído Alex e que elas não tinham. Pessoas cujos nomes eu não conseguia lembrar faziam comentários maldosos sobre as camas estreitas do acampamento e olhavam para minha barriga quando pensavam que eu estava distraída. Mas elas olhavam para mim - para ver o que tinham perdido à primeira vista. De repente, ganhei status. O poder e o prestígio de Alex se estendiam a mim.

- Na próxima quarta-feira, nós daremos os detalhes - Alex estava dizendo.

Senti um cutucão em meu ombro e, quando me virei, vi Jennifer, a assistente de Alex.

- Só queria lhe dizer que se você precisar de alguma coisa, para o casamento ou o que seja, ficarei feliz em ajudar.

Sorri para ela da maneira mais simpática que pude.

- Obrigada. Eu a chamarei se precisar.

Ela desviou o olhar antes mesmo de eu terminar minha frase e eu vi Alex olhando para ela.

- Exatamente quem eu queria encontrar - ele disse, e Jennifer correu para seu lado. Ele apoiou a mão nas costas dela e a empurrou alguns metros longe de mim. - Sinto muito - ele disse para mim, sorrindo -, mas, se você escutar, vai estragar a surpresa.

Observei Jennifer pegar um caderno e tirar um lápis de seu cabelo longo e preto. Ela escrevia sem parar enquanto Alex dava ordens que eu não conseguia escutar. Uma vez, quando ela fez uma pergunta, Alex olhou para mim, correu o olhar de meus pés à cabeça e voltou-se para ela de novo. Tentei observá-los, mas as pessoas se aglomeraram entre nós, segurando minha mão e dizendo coisas que pareciam em outra língua. Perdi Alex de vista no meio de rostos bronzeados. Pensei que pudesse desmaiar, apesar de isso nunca ter acontecido comigo e, de repente, Alex estava a meu lado de novo e eu percebi que não estava doente; era apenas a minha metade que estava faltando.

Várias SEMANAS ANTES DO CASAMENTO SONHEI QUE Connor me encontrava no Serengeti ao anoitecer e me dizia que eu estava cometendo o maior erro de minha vida.

- Não é como você pensa - eu dizia a ele em meu sonho. - Não estou apaixonada só porque ele é ator...

- Eu sei - Connor me interrompeu. - Isso é o pior. Parece que você não percebe as coisas que o resto do mundo vê porque está ocupada demais vendo-o como uma ave ferida cuja asa você pode consertar...

- Como assim? - explodi. - Ele não é um coitado. - Procurei ver as coisas como Connor via. Eu não estava tentando substituí-lo, mas havia muitas semelhanças entre o meu relacionamento com ele na infância e meu relacionamento com Alex agora para me fazer perceber que eu não podia deixar de comparar os dois. Assim como Connor, Alex me protegia - e era a única pessoa que eu deixava se aproximar o bastante para isso. Assim como Connor, Alex completava minhas frases antes de mim. Mas diferentemente de Connor, para quem eu havia chegado tarde demais, eu estava no momento certo para cuidar de Alex.

No sonho, um grupo de zebras caminhavam pela beira da planície e, quando elas me distraíram, Connor chamou minha atenção de novo.

- Você é a pessoa que melhora tudo, Cassie, não vê isso? É o que faz de melhor. Tomou conta de sua mãe, de seu pai, de mim e de Ophelia. Você coleciona os problemas das outras pessoas como algumas pessoas colecionam moedas raras.

Nesse momento do sonho, eu quis acordar. Não queria acreditar em Connor; não queria escutar.

- Existe um problema com aves feridas, Cassie - Connor disse. - Ou elas voam para longe um dia ou nunca melhoram. Continuam feridas independentemente de seus esforços.

Depois disso, eu me senti recobrar a consciência. Continuei olhando para Connor quando ele começou a desaparecer. Olhei em seus olhos.

- Eu amo o Alex - eu disse.

Connor andou para trás como se tivesse levado um golpe. Esticou um braço em minha direção, mas, como as coisas costumam ser em meus sonhos, não conseguiu me alcançar, e eu percebi que as coisas tinham sido daquela maneira entre nós durante um tempo.

- Que Deus nos ajude - ele disse.

TRÊS DIAS ANTES DE NOSSO CASAMENTO, ALEX E eu dirigimos até um dos muitos lagos pequenos que pontuavam a área do acampamento. Em nosso jipe havíamos colocado dois sacos de dormir, uma barraca de náilon, várias panelas e vasilhas. Não perguntei a Alex como ele havia conseguido tudo aquilo - já tinha percebido que Alex era capaz de arrancar sangue de pedra se quisesse. Ele abriu nossa bagagem à sombra de uma árvore baixa e de folhas lisas e começou a montar a barraca de dois lugares com a graça de um aventureiro. Fiquei sentada no solo macio, surpresa.

- Você sabe fazer isso? - perguntei.

Alex sorriu para mim.

- Você se esqueceu de que eu cresci no mato? Sempre fiz atividades ao ar livre.

Eu me esquecera. Mas era fácil esquecer ao ver Alex Rivers, polido e urbano. Era difícil conciliar em uma só pessoa o homem que se vestia com roupas chiques na Garganta de Olduvai com o homem que se agachava diante de uma armação de barraca.

- O senhor é um estudo de contrastes, senhor Rivers - eu disse.

- Ótimo - Alex disse. Ele chegou por trás de mim e passou seus dedos pelas minhas costelas. - Então não vai se cansar logo de mim.

Sorri com o comentário. Quando me virei para ajudar com o restante das coisas do jipe, Alex me puxou para baixo com gentileza para que eu me sentasse à sombra.

- Descanse, pichouette - ele disse. - Posso cuidar disso.

Alex me chamava de pichouette, uma palavra que eu não compreendia, mas gostava do som, que ele pronunciava com facilidade. Às vezes, na cama, ele usava seu francês cajun, e eu gostava. Um dos motivos era porque, quando usava o idioma, estava esquecendo de si mesmo, estava baixando a guarda. E eu gostava do ritmo das palavras. Eu escutava os sussurros em meu pescoço e fingia que ele estava me dizendo que minha pele era deliciosa, que meus olhos eram bonitos e que nunca seria capaz de me deixar.

Quando Alex terminou de montar o acampamento, eu pus a mão no chão ao meu lado, sinalizando para que ele se sentasse. Mas, em vez de se sentar, ele vasculhou uma mochila e tirou dela uma vara de pescar de três peças, que ele montou, colocou linha e isca. Durante meia hora eu o observei com água até os joelhos, puxando a linha e a lançando de novo, e a linha com o anzol voava como se fosse a trajetória de um míssil.

- Incrível - eu disse. - Você se sente à vontade aqui. Como aguenta Los Angeles?

Alex riu.

- Gosto um pouco de lá, chère - ele disse. - Mas fujo de lá quando posso. O rancho no Colorado tem 121 hectares de paraíso e posso pescar e fazer o que quiser. Eu poderia até sair correndo nu se quisesse, sem correr o risco de encontrar alguém. - Ele disse um palavrão por sua falta de sorte e lançou a linha de novo. - Nunca aprendi muito bem a lidar com essas coisas - ele disse. Virou-se para mim, um sorriso lento surgindo em seu rosto. - Sou muito melhor com minhas mãos.

Ele saiu do lago, vindo em minha direção com os dedos esticados, mas fugiu para o lado no último minuto para desaparecer na mata, à beira da costa. Quando voltou, estava segurando um galho fino e comprido e uma faca afiada. Agachou-se e colocou o galho sobre um joelho, afiando a ponta. Em seguida, voltou para a água.

Alex ficou parado, com sua sombra aparecendo na superfície, o braço posicionado com a lança improvisada. Rapidamente, ele lançou a lança na água e a ergueu com um peixe na ponta. Triunfante, Alex voltou-se para mim e disse:

- Quando estiver na Tanzânia, faça como os tanzanianos.

Fiquei impressionada.

- Como... como soube fazer isso?

Alex deu de ombros.

- É só uma questão de paciência e reflexos - ele disse. - Estou acostumado a fazer isso sem o galho. - Caminhou para longe para que eu não visse seu rosto e colocou o peixe na bolsa de lona. - Pode-se dizer que meu pai me ensinou.

Comemos muito peixe frito no jantar e depois fizemos amor e nos enrolamos no cobertor, e eu fiquei com as costas pressionadas contra o seu peito. Quando ele adormeceu, eu me virei para ele, observando seu rosto à sombra da lua prateada.

Um uivo forte fez Alex se assustar, jogando-me no chão. Acordou e se apressou para ver se eu estava bem. - É longe - eu disse a ele.

- Mas parece que é aqui do lado.

Alex voltou a se deitar, mas seu coração batia muito apressadamente.

- Não preste atenção a esses sons - eu o acalmei, lembrando da primeira vez em que dormi ao ar livre na noite africana. - Escute o vento. Conte as estrelas.

- Você sabia que detesto acampar? - Ele me perguntou. Eu me sentei e olhei para ele.

- Então por que estamos aqui? Ele tocou minha cabeça com suas mãos. - Pensei que você fosse gostar. Quis fazer isso por você.

Rolei os olhos.

- Passo tempo suficiente em cabanas improvisadas para valorizar lençóis limpos e uma cama firme - eu disse. - Você deveria ter me dito.

Quando olhei para Alex, seu rosto estava voltado para o céu, mas seus olhos iam além da lua. Tentei pensar no que eu havia dito para chateá-lo. Toquei o lado de dentro de seu antebraço.

- Para alguém que detesta acampar, você é profissional - eu disse.

Alex respondeu:

- Fiz muito treinamento sem querer. Já esteve em Louisiana no verão? - Eu neguei. - É o inferno na Terra - ele disse. - É tão quente que o ar faz você suar completamente, e a atmosfera é tão pesada que não dá para respirar direito. Há pernilongos do tamanho de moedas de 25 centavos. E tem cara de inferno, também, pelo menos dentro da mata. Só pântano, escuro e lamoso, repleto de ciprestes e salgueiros, barba-de-velho e vinhas penduradas como cortina sobre os galhos. Quando eu era criança, subia nos choupos-do-canadá à beira da água e escutava os sapos, pensando se tratar do diabo arrotando uísque.

Alex deu um sorriso, mas à luz fraca, poderia ter sido uma careta.

- Meu pai costumava me levar nessa mata quase todas as noites, então eu conhecia o lugar. Ele recolhia as redes de caranguejo e as levava ao Deveraux, um restaurante que toma metade do pântano nesse bosque enorme de velhos ciprestes. Ele entregava os caranguejos a Beau, que é a dona do lugar - ninguém prepara camarões como ela -, e então ele saía por uma hora para beber o que recebera.

- O que você fazia?

- Eu ficava do lado de fora, na maior parte das vezes, e observava as crianças mais velhas pegando os peixes-gato. É incrível de ver - sem varas, sem linhas -, elas simplesmente abaixavam e esperavam, e em seguida surgiam com peixes de dez quilos nos braços. - Ele suspirou e passou a mão pelo rosto. - Mas, uma noite, em vez de parar na Beau, meu pai levou o barco mais adiante, dizendo que estava na hora de acamparmos. Eu devia ter nove ou dez anos e perguntei por que ele queria acampar no pântano se havia aqueles belos acampamentos para turistas no Lago Pontchartrain. Ele me disse que aqueles acampamentos eram para maricas e me levou para a costa. Ele tirou do fundo do barco uma barraca que eu não tinha visto antes e a entregou a mim. "Volto daqui a pouco", ele disse. "Consiga nosso jantar, e vou cuidar da lenha."

Alex abraçou as pernas contra o peito conforme a noite se tornou bem mais fria.

- Bem, não preciso dizer que ele não voltou. Deixou-me ali, com o sol se pondo, tendo de descobrir como faria para comer e como poderia montar a barraca sem me preocupar em dormir e ficar molhado. Entrei em tamanho estado de pânico que tive certeza de que meu coração congelaria. Não seria um bom castigo depois de descobrir que eu tinha o coração saudável?

- Eu esperei a noite toda, assustado demais para me mexer no caso de meu pai voltar e não me encontrar. Observei a neblina e pensei, a cada sombra que via, que ele havia voltado. Às vinte e duas horas, mais ou menos, eu estava faminto, por isso tirei meus tênis e entrei no pântano, pensando no que eu vira as crianças fazerem todas aquelas noites do lado de fora do estabelecimento da Beau. Abaixei-me, sentindo a movimentação sob a lama. Demorei duas horas, mas aprendi, e, quando a água se moveu ao meu redor e o frio lambeu minhas pernas, eu peguei com toda a minha força e puxei um peixe-gato para fora. Foi a menor coisa que peguei, e a mais deliciosa.

Pensei em Alex, com nove anos de idade, em pé no escuro, dando formas às sombras com seu medo. Pensei nele dentro de um lago na África com uma lança na mão. Lembrei-me de como ele havia se assustado com o grito daquele animal.

- Quando seu pai voltou? - eu perguntei.

- Na manhã seguinte. Ele me encontrou com o esqueleto do peixe e com as cinzas de uma fogueira e disse que eu o deixara orgulhoso. Eu comecei a chorar.

Arregalei meus olhos.

- O que ele fez?

Alex sorriu.

- Levou-me à Beau às sete horas e comprou meu primeiro uísque. E continuou me levando para a mata, uma vez a cada dois meses, até eu poder olhar em seus olhos quando ele voltava na manhã seguinte e passar a impressão de que eu havia adorado cada segundo. - Ele suspirou. - Então, é por isso que não gosto de acampar.

- E porque se tornou o ator perfeito. - Peguei as mãos dele e beijei as pontas de seus dedos. Seus olhos estavam quase escurecidos de dor, e pude ver que ele tremia levemente, a única coisa que não conseguia controlar.

Meu rosto estava pressionado contra o peito dele. Compreendi do que ele precisava. Eu já tinha passado por aquilo, afinal. Eu quis falar, mas tive o cuidado de não demonstrar pena, por isso escolhi as palavras que poderiam encerrar o assunto ou oferecer algo a que Alex pudesse se agarrar.

- Não sei como conseguiu passar por tudo isso - sussurrei.

Alex beijou minha cabeça com delicadeza, suavemente. "Ele não quer mais falar sobre isso", percebi, e, como se a frase não dita tivesse surtido efeito, a tensão saiu dos ombros de Alex. Tentei imaginar se ele abordaria outro assunto, talvez o casamento ou se simplesmente me puxaria para perto e tentaria dormir.

A voz de Alex tirou-me de meus pensamentos.

- Foi fácil passar por isso - ele disse baixinho. Suas mãos subiram para minha omoplata, um toque de amor, como se ele não tivesse ideia de que suas palavras e ações não coincidiam. - Eu passava as noites acordado pensando em meu maldito pai. Pensando em minhas mãos ao redor de seu pescoço, estrangulando-o até a morte.

PELA SEGUNDA VEZ NAQUELA NOITE, ALEX CAÍRA EM UM sono profundo, mas estava tendo pesadelos. Ele se mexeu, acertando o braço em minha barriga, fazendo com que eu despertasse. Ele estava falando francês, mas tão baixinho que, mesmo que eu compreendesse o idioma, não teria como saber o que ele dizia. Eu me sentei e afastei o cabelo dele de suas têmporas, sentindo a febre que lhe acometia.

- Alex - eu sussurrei, pensando que era melhor acordá-lo. - Alex. Ele se sentou e saltou para o lado, prendendo meu corpo no chão com o dele por cima, antes que eu pudesse reagir. Ele estava olhando através de mim, com seus olhos pálidos e brilhantes. Um braço prendia meus ombros, mantendo-me parada, e o outro pressionava meu pescoço ao chão, com os dedos em minha jugular.

Tentei falar, mas não foi possível com a palma de sua mão sobre minha traqueia. Em pânico, comecei a me debater. "Ele não sabe o que está fazendo. Não sabe quem eu sou."

Suas mãos apertaram ainda mais e meus olhos ficaram marejados. Batendo as pernas, consegui acertar meu joelho em sua região genital. Alex gritou de dor e se afastou de mim, deixando-me de costas no chão, até que o mundo voltasse ao lugar, para que eu conseguisse puxar o ar para dentro de meus pulmões.

Alex sentou-se, mantendo a mão entre as pernas. Tentei falar, mas nada saiu de minha boca, e, em vez de continuar tentando, passei a mão pela extensão de meu pescoço. Tentei não pensar no que Alex teria feito se eu não tivesse conseguido libertar minhas pernas.

- O que houve? - Ele perguntou, ainda um pouco sonolento.

Eu levantei, apoiando-me nos cotovelos.

- Você teve um pesadelo - eu disse. Engoli minha dor.

Talvez tenha sido a luz que incidiu sobre mim quando me sentei, mas Alex pareceu tomar consciência. Passou um dedo na curva de meu pescoço, tocando as cinco marcas vermelhas que amanhã se tornariam hematomas.

- Oh, Deus! - ele disse, abraçando-me. - Oh, Cassie. Meu Deus!

Foi então que comecei a chorar.

- Você não fez porque quis - solucei, e senti que Alex balançava a cabeça, incrédulo. - Não sabia que era eu quem estava aqui.

Alex me segurou um pouco distante dele, para poder olhar-me nos olhos, tomados de vergonha. - Sinto muito - ele disse. - Sinto muitíssimo. - Sem dizer mais nada, ele ficou em pé e caminhou para o outro lado do acampamento, deitando-se de lado, com o rosto virado.

Eu o observei e, esperando alguns segundos, peguei o cobertor e me deitei ao lado dele. Percebendo ou não, ele precisava de mim. O pior para ele seria dormir sozinho.

- Não - Alex disse. Ele se virou para mim, revelando ainda mais medo e raiva em seus olhos do que quando estava apertando minha garganta, mas percebi que, dessa vez, aqueles sentimentos estavam voltados para ele mesmo. - E se eu fizer isso de novo?

- Você não vai fazer - eu disse, e acreditei em minhas palavras.

Alex rolou para o lado e me beijou, tocando as marcas em minha mandíbula e na garganta, como se dessa vez seus dedos pudessem apagar a dor. Ele olhou para mim até perceber que eu tinha certeza do que queria. - Cassandra Barrett - ele disse delicadamente -, você não existe.

MEU VESTIDO DE NOIVA ERA DA BIANCHI FACTORY, em Boston; meus sapatos sedosos tinham sido enviados de um centro de lojas de vestidos de noiva da cidade de Nova York; rosas brancas e jasmins-de-Madagascar haviam sido enviados da França para formarem meu buquê. As caixas e containeres viajaram a África de trem e depois de Land Rover, acompanhados por uma costureira pequena e negra que pedia para ser chamada de senhora Szabo e que estava responsável por todas as alterações de última hora que tornariam o lugar perfeito, como se tivesse sido construído para mim. Ela se ajoelhou aos meus pés enquanto eu passava os dedos pelos detalhes parecidos com sementes perolizadas em minha cintura e observava Jennifer checar a lista dos itens do casamento pela décima terceira vez aquela manhã.

- Senhorita Barrett - a costureira disse. - Fique parada.

Eu prestei atenção, algo muito fácil de fazer no grande vestido de cetim branco e montes de saiotes. Tentei imaginar como tudo continuaria branco na viagem de jipe do acampamento para a pequena capela de madeira. Tentei imaginar como evitaria rasgar meu véu e impedir que ele voasse com o vento; livrando-me de meus sapatos e levantando minhas saias pesadas para correr Pela areia quente e familiar.

- Pronto - a senhora Szabo disse. Ela ficou em pé, seus joelhos estalaram e bateu palmas. - Si, bella - murmurou. Caminhou até a cama estreita e chamou Jennifer para a porta. - Venha, venha - ela disse. - A noiva precisa de um minuto sozinha.

Jennifer checou seu relógio.

- Estamos adiantadas - ela disse. - Podemos esperar cinco minutos.

Eu não queria ficar sozinha, tampouco queria ficar com elas. Fiquei em pé na frente do espelho que tinha uma rachadura bem no meio, olhando para meu rosto dividido em duas partes que não se alinhavam.

Com exceção do anel de noivado de Alex, eu não usava nenhuma jóia. Mas minha garganta ostentava a prova do pesadelo de Alex, um colar de hematomas ametistas. Eu havia pegado um pouco de pancake do trailer de maquiadores emprestado e o apliquei antes de a senhora Szabo chegar, mas não deixei de saber o que havia por baixo.

Fechei os olhos e pensei em Connor. Houvera um tempo, não muito distante, em que eu acreditava que ele seria o homem com quem me casaria, se ainda estivesse vivo. E, se ele estivesse ali - mesmo que não fosse o noivo -, teria me dito para fazer Alex esperar. Para esperar um pouco mais antes de tomar uma decisão.

Mas eu não queria mais tempo. Queria Alex.

Com aquela conclusão, percebi por que, ultimamente, eu não sonhava mais com Connor; por que vinha ficando cada vez mais difícil ver seu rosto. Ele estava me deixando. Eu havia tomado uma decisão; Connor a aceitara. Ele deixaria de fazer o papel de advogado do diabo; não mais se intrometeria em minhas noites de sono; não mais cuidaria de mim.

Sentei-me na beira da cama, encostando um lenço sob meus olhos para manter a maquiagem e tentar retomar o controle. Senti a mesma dor no peito que havia sentido anos antes quando Connor morrera aos poucos em meus braços. Por um momento, eu me lembrei de nós dois como tínhamos sido, sentados lado a lado sob o pôr do sol do verão, construindo nossa infância com palitos de sorvete e sonhos quentes e suspirados. E então permiti que ele se fosse.

- PARE.

Mal consegui escutar minha voz, mas o chofer da limusine - só Deus sabia como Alex conseguira encontrar um deles na Tanzânia - imediatamente pisou no freio. Antes que ele pudesse olhar para o lado e perguntar o que eu queria, abri a porta e comecei a correr.

Imaginei que alguém iria atrás de mim. E me pegaria também, pois eu não podia ganhar velocidade com um vestido de dez quilos, com um espartilho de renda preso ao redor de minha cintura. Fui mais devagar apenas para chutar longe meus sapatos de salto, pensando que seria melhor correr descalça.

Meu véu voava atrás de mim, como uma nuvem de névoa e comecei a suar no pescoço e nas laterais do vestido, mas ninguém estava me seguindo. Quando percebi isso, passei a ir mais devagar, pulando, apertando minha mão nos pontos da lateral do meu vestido.

Não podia levar o casamento adiante. Nossa relação, nossa atração, não era baseada no mundo real. Eu tinha de acreditar que algumas semanas mágicas sob o sol africano apagariam as diferenças de nossos estilos de vida, que eu podia ir para casa e entrar na resplandecência da vida de Hollywood de Alex sem sentir nenhuma diferença.

Tudo o que eu sempre quisera era ser professora de uma universidade, construir uma carreira lecionando e realizando pesquisas. Nunca sequer pensara em alguém como Alex, então como poderia colocá-lo em meus planos. Sentei-me na grama alta no meio do nada e as saias formaram uma nuvem ao meu redor.

Horas devem ter se passado; a única maneira de calcular o tempo era pelo fato de eu ter me perdido e de minha maquiagem com pancake ter se tornado um borrão ao redor da gola de meu vestido de noiva, certamente revelando meus hematomas. Os passos de Alex passaram pela grama alta e ele se agachou ao meu lado.

- Oi - ele disse. Segurou meu queixo e puxou minha cabeça para cima até eu poder vê-lo, lindo de morrer com seu terno preto e camisa branca.

- Nervosismo? - ele perguntou.

Dei de ombros.

- Poderia dizer que sim.

Ele olhou para a minha garganta. Culpada, eu estiquei o braço procurando a mão dele.

- Alex - eu disse, respirando fundo. - Talvez não seja a melhor ideia.

- Tem razão.

Surpresa, olhei para ele, imaginando se ele havia saído de sua limusine e, por coincidência, havia parado no mesmo ponto da planície onde eu estava. Ele semicerrou os olhos por causa da luz do sol. - Não deveria ter planejado tamanho fais-dodo. Uma festa tão grande. Teria sido melhor fazer as coisas discretamente, apenas eu e você, sem todas as pessoas ao redor. - Ele se virou Para mim. - Pensei que fosse o tipo de casamento com que qualquer mulher sonhasse. Mas me esqueci temporariamente de que você não é qualquer mulher.

- Estava pensando mais em cancelar tudo. - Pronto, eu tinha dito o que pensava. Eu me inclinei, esperando que Alex gritasse ou começasse a Pular para me contradizer.

- Por quê? - ele perguntou com delicadeza, e fiquei desarmada.

Eu sabia que ele estava pensando no que havia acontecido na noite em que acampamos, mas aquilo era apenas parte de minha dúvida... eu não o culpava; eu estava no lugar errado e na hora errada. Os problemas eram mais profundos do que aquilo. Não sabia que ele era perseguido por pesadelos. Não sabia o quanto ele tinha sido forçado a sobreviver sozinho. Percebi que o Alex Rivers que eu conhecia era apenas a ponta do iceberg, que correntes estranhas e paixões obscuras existiam sob a superfície.

- Não sei nada sobre você. E se o Alex Rivers que me dá metade de seu café da manhã e brinca de ser Marco Polo na lagoa trás do acampamento for apenas mais um personagem? A frase não dita pairou sobre nós. "E se o verdadeiro Alex for a pessoa que vi naquela noite?"

Alex desviou o olhar.

- Acho que a frase é: na alegria e na tristeza. - Ele ficou em pé e deu as costas para mim. - Já lhe disse antes que não estava fingindo estar atraído por você, Cassie - ele disse. - E acho que você terá de acreditar em mim. Quanto ao resto, como todo mundo, sou muitas pessoas em uma só. - Ele se virou para mim, colocando-me em pé: - Algumas melhores, outras piores, temo eu.

Olhei para o lindo vestido de noiva, que havia percorrido metade do mundo, a pedido de Alex, para estar ali. Uma parte da renda estava pendurada para um lado e uma fileira de contas havia se soltado do espartilho. Na parte de trás havia listras de terra, contrastando com o cetim, parecendo manchas de sangue. Imaginei Alex entrando em um personagem diante de uma câmera. Alex brincando com as crianças de barrigas arredondadas da região entre as poças de lama atrás do acampamento. Alex inclinando-se para mim à noite, assustando-me com seu medo.

- Quem é você? - perguntei.

Ele me sorriu de um modo que me tirou as defesas, um amuleto que eu carregaria comigo pelo dia todo. Ele respondeu:

- Sou o homem que tem esperado por você a vida toda.

Alex esticou o braço em minha direção e sem hesitar eu caminhei até ele. Estávamos atrasados para o nosso casamento. A cada passo de volta para a limusine que me aguardava, minhas dúvidas desapareceram. Eu só conseguia pensar que amava Alex. Eu o amava tanto que doía.

 

Alex tentava calcular os horários de chegada dos voos ao aeroporto de Los Angeles, de modo que ocorressem de madrugada, duas ou três da manhã, quando apenas os jornalistas incansáveis ficavam diante do portão de desembarque e da área de esteiras. No dia em que partimos para o Quênia, onde passaríamos nossa lua de mel, Alex me acordou pousando a palma de sua mão em meu rosto.

- Cassie, chère - ele disse, beijando-me até me acordar. - Cassie.

Eu me sentei, notando as pilhas de roupas organizadas, os sapatos e itens de higiene de Alex todos enfileirados, tudo esperando para ser colocado dentro da mala. Eu nunca conseguiria fazer uma mala tão bem quanto ele, e isso me surpreendia, pois eu sabia que ele tinha três ou quatro empregados que poderiam fazer sua mala. Esfreguei os olhos com a mão.

- Está na hora de ir? - eu perguntei.

- Em um minuto. - ele olhou pela janela para a lua que se escondia, que delineava os montes Ngong em prata. - Preciso lhe contar uma coisa - Alex disse.

Meu corpo todo ficou tenso. Eu estava esperando por aquilo, não estava? A conclusão, a percepção de que eu vinha vivendo uma mentira. "Surpresa", ele diria, "nosso casamento foi uma farsa. O padre que o celebrou era um ator". Eu desviei o olhar, sem querer que Alex soubesse que eu sempre havia esperado por aquelas palavras.

- Independentemente do que aconteça, quando nós voltarmos eu quero que você compreenda uma coisa. - Ele segurou minha mão e a apertou contra seu peito, onde seus batimentos eram fortes e lentos. - Este sou eu. Posso dizer coisas e agir de maneira diferente do que você já tenha visto, mas isso se deve ao fato de eu ter de ser o que as pessoas esperam que eu seja. Não é real. - Ele me beijou delicadamente. - Isto é real.

Surpresa, não consegui dizer nada a princípio. Os olhos de Alex ficaram da cor da chuva. Seus lábios se apertaram de uma maneira tão sutil que Uma pessoa que não o conhecesse tão bem quanto eu não perceberia. Sob a Palma de minha mão, o coração dele acelerou-se.

Ele estava assustado. Pensou que eu chegaria em casa, o veria como ele realmente era e iria embora. Ele não pretendia me deixar partir; simplesmente tinha medo de que eu quisesse.

Mas Alex não tinha como saber que a última vez em que eu estivera em Los Angeles, os dias voaram, um indistinguível do outro. Ele não tinha como saber que minha pele parecia cantar quando ele me tocava; que eu nunca tinha pensado que era bonita até me ver pelos olhos dele. Ele não sabia, como eu sabia, que eu era o antídoto para sua dor; que ele me acalmava como um bálsamo. Eu sorri e ofereci o conforto que acreditei precisar.

- Você vai ver - eu disse. - Tudo vai ficar bem.

ALEX ME PROTEGEU SOB SEU BRAÇO E eu VIREI MEU ROSTO para o peito dele, mas mesmo fechando os olhos eu não conseguia bloquear a imagem de mais de sessenta pessoas empurrando umas às outras no portão do aeroporto para tocar a manga da blusa de Alex, gritar perguntas e tirar fotos dos recém-casados. Eu respirei profundamente, sentindo o cheiro do sabonete usado no Quênia e o cheiro apimentado da pele de Alex, e, quando eu apertei meus dedos na lateral de seu corpo, ele me abraçou com um pouco mais de força.

- Mais dez minutos - ele disse, passando os lábios sobre a minha cabeça. - Mais dez minutos e você estará segura dentro do carro.

Eu respirei fundo mais uma vez e me endireitei, tentando, no mínimo, agir da maneira que acreditava que a esposa de Alex Rivers deveria agir: de modo tranquilo e inabalável, não como uma flor delicada. Mas ao me afastar do braço protetor de Alex eu estava dando aos jornalistas a chance de tirarem uma foto de meu rosto pela primeira vez. Os flashes explodiram até que eu só conseguisse enxergar pontinhos dançando em meu campo de visão e Alex precisava parar ou eu poderia cair.

- Quando você se casou, Alex?

- O que ela tem que nenhuma outra tem?

- Ela sabe sobre você e Marti LeDoux?

Eu me surpreendi.

- Marti LeDoux? - perguntei, sorrindo.

Alex gemeu.

- Nem queira saber.

Minha visão voltou ao normal e vi um jornalista esticando-se atrás da corda de veludo que o mantinha afastado. Ele apontou para a minha barriga e perguntou:

- Podemos esperar um herdeiro em breve?

Alex se mexeu com tanta rapidez que nem mesmo as câmeras puderam flagrá-lo partindo para cima do jornalista, agarrando a gola de sua camisa. Eu estiquei o braço na direção de Alex, tentando dar ao profissional o benefício da dúvida pelo que podia ter sido uma pergunta completamente inofensiva. Mas, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa a Alex, vi uma pessoa de corpo bastante avantajado passar por mim, deixando para trás uma nuvem pesada de perfume floral e uma confusão de cabelos ruivos. A mulher tirou Alex de perto do repórter e o prendeu a seu lado com um braço ao redor de sua cintura e em seguida ficou ao meu lado e me envolveu com um braço também.

- Seja bonzinho com as outras crianças, Alex, ou você não vai brincar - ela disse.

Os olhos de Alex queimavam quando ele olhou para ela, mas conseguiu sorrir para a multidão de curiosos.

- Pensei que você fosse avisar a imprensa, Michaela - ele disse, nervoso. - Não pensei que fosse distribuir convites.

A mulher rolou os olhos.

- Tenho culpa de que você chama mais a atenção do que Deus? - Ela piscou para mim. - Como Alex não parece disposto a fazer as honras, sou Michaela Snow. Sou relações-públicas dele. Apesar de você estar percebendo que Alex não se dá muito bem com o público.

- Ela voltou a atenção a Alex.

- E, para sua informação, enviei a nota para a imprensa -, mas você precisa admitir que o fato de o solteiro mais badalado de Hollywood ter se casado com uma antropóloga causa um certo interesse. Os tablóides estão aproveitando. John tem todos eles no carro para o caso de você querer rir um pouco. - Michaela olhou para mim: - De acordo com a Star, você é uma rainha marciana que laçou Alex com uma poção mágica extraterrestre. - Ela empurrou Alex para a frente. - Vamos lá - ela disse.

- Quanto antes fizer isso, mais rápido vai terminar.

Observei Alex caminhar na direção dos jornalistas e das câmeras, e escutei o barulho de fita sendo ajustada na máquina para gravar o grande anúncio. Michaela me abraçou.

- Você vai se acostumar com isso - ela disse.

Eu duvidei. Não compreendia por que aquelas pessoas haviam acordado no meio da noite para fazer anotações e fazer perguntas sobre coisas que não eram de sua conta. De repente, desejei estar de volta em meu escritório empoeirado na UCLA, onde eu podia ficar sentada por dias sem um aluno para me interromper ou um telefone tocando, e onde eu era apenas uma entre várias pessoas. Fiquei abismada ao pensar que, apenas por estar associada a Alex, teria de andar por ruas afastadas, usar óculos escuros e receber prescrições médicas com o nome de outra pessoa. Eu podia ter Alex Pelo resto de minha vida, mas minha vida não seria como antes, e esse era o preço a pagar.

Alex estava fazendo amor com as câmeras. Adotava o mesmo olhar de quando estávamos juntos na cama; fazia o mesmo olhar tranquilo e o sorriso relaxado para as câmeras diante dele.

- O lugar mais quente onde já estive - ele estava dizendo, em resposta a uma pergunta sobre a Tanzânia. Ele olhou para mim, de cima a baixo, até eu corar. - Obviamente alguns dias eram mais quentes do que outros.

- Permita-nos conhecê-la, Alex - alguém pediu. E outra voz: - Vocês estão casados no papel?

Alex riu, começando a caminhar na minha direção.

- Bem, a cerimónia não foi realizada por um chefe zulu, se é o que quer saber. Você vai ter que acreditar em minha palavra, uma vez que a certidão de casamento já foi enviada a meu advogado para que fique bem guardada. - Ele segurou minha mão e a apertou levemente. - Permitam-me apresentar minha esposa: Cassandra Barrett Rivers.

Os flashes recomeçaram, mas dessa vez eu estava preparada para eles. Sorri, sem saber exatamente qual era a regra de etiqueta para coletivas de imprensa improvisadas às três da manhã. Começaram a me fazer perguntas, as palavras se unindo umas às outras:

- Como vocês se conheceram?

- Você era fã dele?

- Ele é um bom amante?

Alex inclinou a cabeça na direção da minha.

- Vou beijá-la agora - ele disse. - Vire sua cabeça para a direita.

Assustada, tentando entender por que ele estava me dando instruções para algo que, até aquele ponto, tinha sido natural para nós dois, perguntei:

- Por quê?

Alex sorriu, fingindo brincar com minha orelha.

- Porque assim eu vou aparecer mais. O trabalho de relações-públicas é mais importante para mim do que para você.

Ele se virou para mim para que as câmeras pegassem a melhor vista de nossos perfis, com as mãos dele firmes em meus antebraços.

- Esta é a última chance para as fotos. Não se esqueçam de que ainda estou em lua de mel. Ele se inclinou em minha direção, e eu observei seus lábios formarem duas palavras antes de tocarem os meus. "Seja corajosa".

Fechei meus olhos e fingi não escutar as palmas e deixei meus braços envolverem o pescoço de Alex e o abracei. Quando ele se afastou de mim, eu me surpreendi, tentando lembrar quando ele havia me tirado do chão, quando sua perna havia escorregado entre as minhas.

- Linda - ele sussurrou, afastando-me dos jornalistas. - Hepburn não teria feito melhor.

Sem ter o que dizer, olhei para ele. Estaria ele pensando que eu estava interpretando?

Michaela citou uma lista de coisas que aparentemente precisavam da atenção imediata de Alex e que não podiam esperar até o dia seguinte. Eu me movimentei como um robô ao lado de Alex, carregando minha bolsa listrada diante de meu corpo, como se fosse um escudo.

Os jornalistas pegaram suas bolsas e casacos, carregando com eles cinegrafistas e fotógrafos. Parecia que o aeroporto todo estava sendo esvaziado, agora que Alex dera a ordem de retirada. Caminhamos pelos corredores silenciosos atrás de Michaela, na direção de uma saída, indo para o carro que me levaria para a casa onde eu nunca tinha ido.

Apenas por Michaela ser duas vezes maior que a maioria das pessoas, não percebi imediatamente a pessoa que estava em nosso caminho. Ophelia estava em pé, seus olhos fixos não em mim, mas na celebridade ao meu lado.

Eu não havia telefonado a ela para contar que ia me casar, porque me senti culpada por realizar uma cerimónia à qual ela não pudesse comparecer. Por isso, havia enviado um telegrama, pedindo desculpas por ter dado a notícia apenas depois do acontecimento. Ao ditar a mensagem para o operador, imaginei seus olhos arregalados, seus lábios se abrindo um sorriso perfeito. Eu senti vontade de lhe contar que havia usado seu tubinho preto na primeira vez em que havia saído com Alex; que ele havia removido o sutiã de renda que ela me enviara. Mas, em vez disso, optei pela ambiguidade: casei-me com Alex Rivers ponto voltarei 14 de novembro ponto fique feliz por mim.

Eu esperava que Ophelia fizesse jus às histórias que eu havia contado a Alex sobre ela e fizesse algo ousado quando o visse pela primeira vez. Conhecendo-a, pensei que ela pudesse agarrar-se a ele com braços e pernas, acreditando que seria sua única chance de fazer aquilo. Talvez implorasse a ele que conseguisse marcar uma reunião entre ela e o agente dele da Associação dos Atores, ou perturbá-lo até que ele lhe desse um papel em um de seus filmes. Quando o assunto era coisas ousadas, Ophelia não tinha nenhum pudor, eu dissera a Alex.

Mas ela ficou parada sem se mexer, sem ao menos me cumprimentar. Olhava fixamente para Alex, não com a adoração que eu esperara, mas como se o estivesse analisando. Meu rosto demonstrava meu orgulho - ali estava a primeira pessoa que questionaria se Alex era bom o suficiente para mim, e não o contrário.

Afastei-me de Alex e corri em direção a Ophelia, abraçando-a com força.

- Estou tão feliz por vê-la - eu disse, segurando suas mãos. Ophelia, paralisada, ainda olhava para Alex. Sorri - um dia, quando ela soubesse que Alex era meu marido, e não uma celebridade, pensaríamos em tudo aquilo e daríamos risada.

Mas conforme ela continuava ali, em silêncio, percebi que havia algo no ar entre Ophelia e Alex que deixava o ambiente pesado e me dava medo de andar. Nos dez anos em que conhecia Ophelia, nunca antes a vira assim. Procurei por algum sinal da mulher que havia perdido o emprego de assistente em um escritório por abrir a blusa e copiar os próprios seios na máquina copiadora, aceitando o desafio de um colega; a mulher que havia pintado um biquini em seu corpo usando apenas catchup, mostrando-o em um teste, na esperança de chocar um diretor e conseguir uma vaga no comercial do catchup Hunte. A Ophelia com a qual eu morara não conhecia o significado da palavra "serenidade" e nunca havia se curvado a ninguém.

Ophelia olhou para o meu pescoço, e eu soube o que a estava mantendo em silêncio. Por baixo da base cuidadosamente aplicada, ela havia visto o que nenhuma pessoa da imprensa vira - as marcas fracas de dedos que ainda estavam em meu pescoço. Sem querer que ela tirasse conclusões precipitadas, puxei Alex para mais perto.

- Este é Alex Rivers - eu disse delicadamente. - Alex, Ophelia Fox, minha colega de quarto.

Alex abriu um amplo sorriso para ela:

- Ex-colega de quarto - ele corrigiu-me, esticando o braço para um aperto de mão.

Ophelia apertou-lhe a mão sem entusiasmo e virou-se para mim, sussurrando de modo que apenas eu conseguisse escutá-la:

- Não, se eu puder mudar isso.

ELA NÃO FALOU SOBRE OS HEMATOMAS. NÃO PRECISAVA. A VERDADE é que já tinha suas dúvidas antes mesmo de o avião aterrissar e tinha preparado sua argumentação. Era simples: Ophelia acreditava que Alex estava preparando uma grande queda para mim, pois...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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