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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O GATO QUE ATRAVESSA PAREDES / Robert Anson
O GATO QUE ATRAVESSA PAREDES / Robert Anson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O GATO QUE ATRAVESSA PAREDES

 

Honesto Indiferente

 

"O que quer que faça, você se arrependerá."

Allan McLeod Gray, 1905-1975

 

— Precisamos de você para matar um homem. Aquele estranho olhou nervoso em volta. Achei que um restaurante cheio de gente não era lugar para uma conversa dessas. O fato é que o alto nível de ruído em volta só dá mes­mo uma privacidade limitada.

Sacudi a cabeça, não querendo nada com aquilo.

— Não sou assassino. Matar, para mim, é mais um hobby. Já jantou?

— Não vim aqui para comer. Simplesmente, deixe que eu...

— Ora, não faça cerimônia. Eu insisto...

Ele me aborrecera, interrompendo uma noite com uma ga­rota maravilhosa. Eu lhe pagava na mesma moeda. Não adianta dar corda à má educação. A retaliação se impõe, cortês, mas firme.

A garota, Gwen Novak, dissera que precisava retocar a ma­quiagem e deixara a mesa. Ao que, o Sr. Anônimo se materia­lizara e se sentara, sem ser convidado. Eu ia lhe dizer que se mandasse quando ele mencionou um nome, Walker Evans.Não há nenhum "Walker Evans".

Em vez disso, o nome é, ou deve ser, uma mensagem en­viada por uma entre seis pessoas, cinco homens e uma mu­lher, um código a me lembrar de uma dívida. É concebível que um pagamento, em prestação, daquela antiga dívida pudesse exigir que eu matasse um homem — possível, mas improvável.

Mas não era concebível que eu matasse alguém por solici­tação de um estranho porque ele mencionara aquele nome.

Embora me sentisse obrigado a lhe prestar atenção, nem de longe pensava em deixar que ele estragasse minha noite. Mas já que estava sentado à minha mesa, bem que poderia comportar-se como um convidado.

— Moço, se não quer um jantar completo, experimente as sugestões do maître. Este ragout de lapin com torradas talvez seja rato em vez de coelho, mas o chef aqui dá um jeito para que tenha o sabor de ambrosia.

— Mas eu não quero...

— Por favor. — Ergui a cabeça e captei o olhar de meu gar­çom. — Morris.

Morris compareceu imediatamente.

— Três ragout de lapin, por favor, Morris, e peça ao Hans que me escolha um vinho branco seco.

— Sim, senhor, Dr. Ames.

— Sirva apenas quando a moça chegar, por favor.

— Certamente, senhor. Esperei até o garçom se afastar.

— Minha convidada volta logo. O senhor tem alguns mi­nutos para se explicar, em particular. Por favor, comece dizen­do quem é.

— Meu nome não tem importância. Eu...

— Ora, vamos, senhor! Seu nome. Por favor.

— Mandaram que eu dissesse simplesmente: "Walker Evans".

— Serve, em parte. Mas seu nome não é Walker Evans e eu não faço negócios com um homem que não quer dizer o nome. Diga quem é, e seria bom que tivesse uma carteira de identidade que combinasse com suas palavras.

— Mas... coronel, é muito mais importante dizer quem tem que morrer e por que o senhor é o homem que tem que matá-lo! O senhor tem que reconhecer isso!

— Eu não tenho que reconhecer nada. Seu nome, moço! E sua carteira de identidade. E, por favor, não me chame de "coronel". Eu sou o Dr. Ames.

Tive que erguer o tom para a voz não ser abafada por um rufo de tambores. O último show da noite estava começando. As luzes diminuíram e um projetor focalizou o apresentador.

— Tudo bem, tudo bem! — O inesperado convidado en­fiou a mão no bolso e tirou-a trazendo uma carteira. — Mas Tolliver tem que estar morto até o meio-dia de domingo ou todos nós é que estaremos!

Abriu a carteira para me mostrar a cédula de identidade. Um pequeno ponto escuro apareceu no peito de sua camisa branca. Ele pareceu surpreso e disse baixinho:

— Sinto muito, mesmo — e inclinou-se para a frente. Pa­receu que estava tentando acrescentar alguma coisa, mas, de sua boca, o que jorrou mesmo foi sangue. A cabeça de meu convidado imobilizou-se em cima da toalha da mesa.

Saltei da cadeira e dei a volta para o seu lado direito. Qua­se com a mesma rapidez, Morris apareceu no lado esquerdo. Talvez Morris estivesse tentando socorrê-lo. Eu, não — era tarde demais. Um dardo de quatro milímetros abre um pequeno ori­fício de entrada e não tem ferimento de saída. Explode dentro do corpo. Quando o ferimento ocorre no tronco, a morte é rá­pida. O que eu estava fazendo era examinar a multidão em volta — isto e um pequeno trabalho.

Enquanto eu tentava descobrir quem fora o assassino, o chefe dos garçons e um auxiliar de serviço juntaram-se a Mor­ris. Os três agiram com tal presteza e eficiência que dava até para pensar que remover de uma mesa um comensal assassi­nado era coisa que faziam com uma das mãos amarrada nas costas. Levaram o cadáver com a rapidez e a discrição de um comparsa de palco chinês. Um quarto homem tirou a toalha e os talheres, e voltou imediatamente com uma toalha imacu­lada preparando a mesa para dois.

Sentei-me de novo. Não conseguira identificar o provável assassino. Nem mesmo notei pessoa alguma demonstrando uma curiosa falta de curiosidade com o que acontecera à mi­nha mesa. Pessoas olharam fixamente, mas logo que o corpo foi levado deixaram de olhar e voltaram a atenção para o show. Não houve gritos nem expressões de horror. Aparentemente, os que haviam notado o fato pensaram que estavam vendo um comensal que se sentira mal de repente, ou que a bebida su­bira com a mesma rapidez.

A carteira do morto estava nesse momento no bolso es­querdo de meu paletó.

Quando Gwen Novak voltou, levantei-me mais uma vez e puxei a cadeira. Ela sorriu, agradecendo, e perguntou:

— Perdi alguma coisa?

— Não muito. Piadas que já eram velhas antes de você nas­cer. E outras ainda mais velhas, do tempo em que Neil Arms­trong nem tinha nascido ainda.

— Eu gosto de piadas antigas, Richard. Com elas, sei quan­do devo rir.

— Pois veio ao lugar certo.

Eu também gosto de piadas velhas. Aliás, gosto de todo tipo de coisas velhas — velhos amigos, velhos livros, velhos poemas, velhas peças de teatro. Uma velha favorita fora o co­meço de nossa noite: Sonhos de uma Noite de Verão, encena­da no Halifax Ballet Theater, estrelando Luanna Pauline no pa­pel de Titânia. Balé de baixa gravidade, artistas em carne e os­so e hologramas mágicos que criavam uma terra de fadas que Will Shakespeare teria adorado. Novidade não é virtude.

Pouco depois, a música abafou o idoso humor do apre­sentador. O corpo de baile entrou em ondulações na pista de dança, sensualmente gracioso em meia gravidade. O ragout chegou; com ele, o vinho. Terminado o jantar, Gwen sugeriu que dançássemos. Eu tenho esta perna cabulosa, mas à meia-gravidade dou um jeito de me safar nas danças clássicas len­tas — valsa, bolero, tango, coisas assim. Gwen é uma trouxi­nha quente, viva, cheirosa. Dançar com ela é regalo de sibarita.

E era um final alegre para uma noite agradável. Havia ain­da, claro, o caso daquele desconhecido que tivera o mau gos­to de conseguir ser assassinado à minha mesa. Mas como Gwen aparentemente não tomara conhecimento do desagra­dável caso, eu o arquivara na mente para tratar dele depois. Para ser exato, estava pronto para, a qualquer momento, rece­ber aquele tapinha no ombro... mas, enquanto isso, estava cur­tindo a boa comida, o bom vinho e a boa companhia. A vida transborda de tragédias. Se deixarmos que elas nos peguem pelo pé, não podemos desfrutar-lhe os prazeres inocentes.

Gwen sabe que em matéria de dança minha perna só vai até certo ponto. A primeira interrupção na música, ela tomou a frente em nossa volta para a mesa. Com um sinal, pedi a conta a Morris. Ele tirou-a do meio do ar, digitei nela o código de minha conta de crédito, marquei-a para a gorjeta padrão, mais cinqüenta por cento, e selei tudo com minha impressão digital.

Morris agradeceu:

— Uma saideira, senhor? Ou um conhaque? Quem sabe, a moça gostaria de tomar um licor? Com os cumprimentos do Rainbow's End.

O dono do restaurante, um egípcio idoso, acreditava num agrado. Pelo menos para os freqüentadores habituais. Não sei como os turistas da Terra eram tratados.

— Gwen? — perguntei, esperando que ela recusasse. O consumo de bebida de Gwen limita-se a um cálice de vinho às refeições. Um único.

— Um cointreau seria bom. Eu gostaria de ficar ainda um pouco, ouvindo a música.

— Cointreau para a senhora — anotou Morris. — Doutor?

— Mary Tears e um copo d'água, por favor, Morris. Logo que Morris se afastou, Gwen comentou, tranqüila:

— Eu precisava de tempo para conversar com você, Richard. Quer dormir em minha casa hoje à noite? Não precisa ficar desconfiado. Pode dormir sozinho, se quiser.

— Eu não gosto tanto assim de dormir sozinho.

Mentalmente, examino rápido as possibilidades. Ela pe­dira uma bebida que não queria para me fazer um oferecimento que não combinava. Gwen é uma mulher franca. Achei que, se desejasse dormir comigo, teria dito isso mesmo — não vi­ria com rodeios.

Por conseguinte, convidara-me para dormir em seu compar­timento porque achava que era imprudente ou perigoso, para mim, ir dormir em minha própria cama. Portanto...

— Você viu.

— De longe. De modo que esperei até que as coisas se acal­massem antes de voltar para a mesa. Richard, não tenho bem certeza do que aconteceu. Mas se precisa de um lugar para bancar o morto... então venha comigo!

— Ora, muito obrigado, minha querida! — Uma amiga que oferece ajuda sem pedir explicações é um tesouro sem preço. — Aceite ou não, estou em dívida com você. Hummm, Gwen, eu também não sei bem o que aconteceu. Um desconhecido total que é morto enquanto está tentando nos dizer alguma coisa... Um clichê, um clichê surrado. Se eu bolasse hoje uma história dessa maneira, meu sindicato me expulsaria. — Sorri para ela. — Na forma clássica, acabaria por se descobrir que você foi a assassina... um fato que só se revelaria aos poucos, enquanto você fingisse me ajudar na busca. O leitor escolado saberia desde o primeiro capítulo que foi você, mas eu, como detetive, nem desconfiaria do que era tão visível como o nariz em seu rosto. Digo: no meu.

— Oh, meu nariz é muito comum. Os homens se lembram é de minha boca, Richard. Mas não vou ajudar você a botar a culpa disso em mim. Eu, simplesmente, lhe ofereci um es­conderijo. Ele foi realmente assassinado? Não pude ter certeza.

— Ahn? — A chegada de Morris com as bebidas salvou-me de responder àquilo depressa demais. — Eu não havia pen­sado em nenhuma outra possibilidade. Gwen, ele não foi ferido. Ou morreu quase instantaneamente... ou aquilo foi fin­gido. Poderia ser? Claro. Se mostrado em representação holo­gráfica, poderia ser feito em tempo real, com apenas alguns adereços banais. — Pensei no assunto. Por que o pessoal do restaurante fora tão rápido, tão preciso, no abafamento do ca­so? Por que eu não havia sentido aquele tapinha no ombro? — Gwen, pego você na palavra. Se os censores quiserem me prender, eles me encontrarão. Mas eu gostaria de discutir este assunto com você em maiores detalhes do que podemos fazer aqui, por mais baixo que a gente fale.

— Ótimo. — Levantou-se. — Não me demoro querido. — E dirigiu-se para a toalete feminina.

Quando me levantei, Morris me entregou a bengala e me apoiei nela, enquanto a seguia na direção dos toaletes. Não preciso realmente usar bengala — posso até dançar, como vo­cês sabem — mas usando-a evito que minha perna fique can­sada demais.

Saindo do toalete dos homens, tomei posição no foyer e esperei.

E tome espera.

Tendo esperado mais do que o razoável, procurei o maî­tre d'hotel.

— Tony, você poderia mandar uma de suas auxiliares ir até o toalete das senhoras para ver o que está acontecendo com a Sra. Novak? Acho que ela pode ter adoecido ou estar com algum problema.

— Sua convidada, Dr. Ames?

— Ela mesma.

— Mas ela saiu há 20 minutos. Eu mesmo a levei até a porta.

— Saiu? Devo ter entendido mal o que ela disse. Obriga­do, e boa-noite.

— Boa-noite, doutor. Vamos esperar ansiosos sua próxi­ma visita.

Deixei o Rainbow's End, demorei-me por um instante no corredor público no lado de fora — círculo 30, nível de meia-gravidade, na direção dos ponteiros do relógio a partir do raio 2-70, na Petticoat Lane, um local movimentado, mesmo à 1h da manhã. Olhei em volta à procura de censores à minha es­pera, em parte esperando ver Gwen já em cana.

Nada parecido. O que vi foi uma corrente ininterrupta de pessoas, a maioria gente da superfície em férias a julgar por suas roupas e comportamento, além de mascates de lojas pornôs, guias e matutos, batedores de carteira e pedras. O hábi­tat Regra de Ouro [1] é conhecido em todo o Sistema como lu­gar onde tudo está à venda e a Petticoat Lane ajuda a manter essa reputação no que interessa a locais luxuosos. Quem qui­ser coisas mais sóbrias basta virar no sentido contrário aos ponteiros em um arco de 90 graus, para chegar a Threadnee­dle Street.

Nenhum sinal dos censores. Nem de Gwen.

Ela prometera me encontrar na saída. Prometera mesmo? Não, não mesmo. As palavras exatas dela haviam sido: "Não me demoro, querido". Eu tirara a ilação de que ela espe­rava me encontrar à porta do restaurante.

Conheço todas aquelas piadas velhas e batidas sobre as mulheres e o tempo, La donna è mobile, estes troços. Não acre­dito em nenhuma delas. Gwen não mudara de idéia assim de repente. Por alguma razão — alguma boa razão — ela saíra sem mim e, nesse momento, esperaria que eu fosse ter com ela em casa.

Ou pelo menos foi isso o que disse a mim mesmo.

Se tomara uma motoneta, já estava lá. Se andara, logo che­garia à casa. Tony dissera: "Há 20 minutos." Há um posto de motonetas na esquina do círculo 30 com a Petticoat Lane. En­contrei uma desocupada, digitei círculo 1-0-5, raio 1-30-5, gra­vidade 6/10, o que me levaria tão perto quanto é possível, em motoneta pública, do compartimento de Gwen.

Gwen mora no Gretna Green, a um passo do Appian Way, no ponto em que corta a Yellow Brick Road — o que não significa coisa nenhuma para uma pessoa que nunca esteve no habitat Regra de Ouro. Algum "especialista" em relações públi­cas chegara à conclusão de que os habitantes se sentiriam mais à vontade se cercados por nomes de lugares conhecidos da superfície. Há mesmo (não vomite) uma "Casa na Esquina dos Pobres". O que digitei foram as coordenadas do cilindro prin­cipal: 105, 135, 0, 6.

O cérebro da motoneta, concentrado em alguma coisa perto do círculo 10, aceitou essas coordenadas e esperou. Digitei meu código de crédito e tomei posição, agachado de costas para os coxins de aceleração.

Aquele cérebro idiota passou um tempo insultuosamente longo para chegar à conclusão de que meu crédito era bom e depois pôs uma teia em volta de mim, fechou a cápsula e, whuff; bam!, lá fomos nós... em vôo rápido por três quilôme­tros a partir do círculo 30 para o círculo 1-0-5, e logo depois bam! bing! whuff!, e eu estava em Gretna Green. A motoneta se abriu.

Para mim, esse serviço vale bem o preço. O administra­dor, porém, vem nos advertindo de que o sistema não se autofinancia: temos que usá-lo mais ou pagar mais por viagem, ou o material será sucatado e o espaço alugado a outro. Toma­ra que cheguem a uma solução. Algumas pessoas precisam deste serviço. (Sim, eu sei, a teoria Laffer fornece sempre duas soluções para um problema como este, uma alta e outra baixa — exceto quando a teoria afirma que as duas soluções são as mesmas... e imaginárias. O que bem poderia se aplicar aqui. Pode ser que um sistema de motonetas seja caro demais para um habitat espacial no estágio atual da arte de engenharia.)

Dava para andar até o compartimento de Gwen: para bai­xo até 7/10 de gravidade, 50 metros "para a frente" até seu nú­mero. Toquei.

A porta respondeu:

— Esta é a voz gravada de Gwen Novak. Fui me deitar e estou, espero, dormindo placidamente. Se sua visita é realmen­te uma emergência, deposite 100 coroas, usando seu código de crédito. Se concordar que se justifica eu ter sido acordada, devolverei seu dinheiro. Se discordar — riso, risinho, casquinada! — gasto todo o dinheiro em bebida e deixo-o do lado de fora, de qualquer maneira. Se sua visita não é uma emer­gência, por favor, grave sua mensagem na trilha sonora de meu grito.

Estas palavras foram seguidas por um grito agudo, como se a pobre garota estivesse morrendo por estrangulamento.

Aquilo era uma emergência? Uma emergência de 100 co­roas? Cheguei à conclusão de que não era esse tipo de emer­gência, de modo que gravei:

— Querida Gwen, fala aqui o seu sempre fiel namorado Richard. De alguma maneira, nossos fios se embaralharam. Mas podemos desembaralhá-los pela manhã. Pode ligar para meu compartimento quando acordar? Amor e beijinhos. Ri­chard, o Coração-de-Leão.

Fiz um esforço para manter fora da voz o aborrecimento, que não era tão banal assim. Achava que havia sido passado para trás, mas, bem no fundo, havia a convicção de que Gwen não me maltrataria intencionalmente. Tinha que haver uma ex­plicação honesta para aquilo, embora eu não pudesse com­preender o quê.

Depois, fui pra casa, whuff! bing! bam!.. bam! bing! whuff!

Possuo um compartimento de luxo, com quarto separado da sala de estar. Entrei, verifiquei se havia algum recado no terminal — nenhum — ajustei-o para condições de dormida, tanto na porta como no terminal, pendurei a bengala e entrei no quarto.

E lá estava Gwen, dormindo em minha cama.

E parecia docemente tranqüila. Recuei em silêncio, despi-me sem barulho, entrei no refrescador, fechei a porta — à pro­va de som. Eu disse que era um compartimento de luxo. Ape­sar disso, fiz o menor ruído possível enquanto me refrescava para a cama, uma vez que "à prova de som" é mais esperança do que certeza. Quando fiquei tão higiênico e inodoro quanto um símio glabro pode ficar sem passar por cirurgia, voltei silenciosamente para o quarto e, com o máximo cuidado, enfiei-me na cama. Gwen se mexeu, mas não acordou.

 

Acordado em alguma ocasião durante a noite, desliguei o alarme. Mas acordei na hora habitual, uma vez que minha bexiga não pode ser desligada. Levantei-me, tratei dela, refres­quei-me para o dia que começava, resolvi que queria viver, enfiei-me em um roupão e, sem barulho, entrei na sala de es­tar, onde abri o abastecedor e verifiquei as provisões. Uma hós­pede especial merecia um desjejum especial.

Deixei aberta a porta de comunicação, de modo a poder mantê-la de olho, Acho que foi o cheiro do café que a acordou.

Quando a vi abrir os olhos, disse em volta alta:

— Bom-dia, dia lindo. Levante-se e escove os dentes. O desjejum está pronto.

— Já escovei os dentes há uma hora. Volte para a cama.

— Ninfomaníaca. Suco de laranja, de cereja preta, ou ambos?

— Ahn... ambos. Não mude de assunto. Venha até aqui e enfrente seu destino, como homem.

— Coma, primeiro.

— Covarde. Richard é bicha, Richard é bicha!

— Um covarde completo... Quantos waffles você conse­gue comer?

— Humm... decisões! Você não pode descongelar um de cada vez?

— Estes não são congelados. Há apenas alguns minutos, estavam vivos e cantando. Eu mesmo os matei e esfolei. Fale, ou como todos eles.

— Oh, vergonha das vergonhas! Troca-me por waffles. Na­da me resta senão recolher-me a um mosteiro. Dois.

— Três. Você quer dizer "convento".

— Eu sei o que quero dizer. — Levantou-se, entrou no refrescador, saiu logo, usando um de meus roupões. Pedaços agradáveis de Gwen projetavam-se aqui e ali. Entreguei-lhe o copo de suco. Ela tomou dois goles antes de falar:

— Poxa, isto é bom. Richard, quando a gente se casar vo­cê vai me preparar o desjejum todas as manhãs?

— Essa pergunta contém suposições implícitas que não es­tou querendo...

— Depois que eu confiei em você e lhe dei tudo!

— ... discutir, mas admito que, com igual boa vontade, tan­to prepararia desjejum para dois como para um. Por que é que presume que vou me casar com você? Que incentivos você me oferece? Está pronta para um waffle?

Escute aqui, moço, nem todos os homens ficam exigen­tes assim quando se trata de casar com avós. Já recebi ofereci­mentos. Sim, estou pronta para um waffle.

— Passe o prato. — Sorri alegre para ela. — Vovó, uma ova. Nem mesmo se tivesse tido o primeiro filho quando ficou in­comodada pela primeira vez e sua prole tivesse nascido imedi­atamente.

— Nem uma coisa nem outra e eu sou avó. Richard, estou querendo deixar claras duas coisas. Não, três. Em primeiro lu­gar, estou falando sério quando falo em querer casar com vo­cê, se você ainda topar... ou, se não quiser, eu fico com você, como meu bichinho de estimação e preparo o desjejum para você. Em segundo, sou realmente avó. Em terceiro, se, a des­peito de minha avançada idade, você quer ter filhos comigo, as maravilhas da microbiologia moderna conservaram-me fe­cunda, além de relativamente sem rugas. Se quiser ter filhos comigo, não deve ser tão trabalhoso assim.

— Eu poderia me obrigar a isso. Xarope de bordo nesse aí, de vacínio nesse outro. Ou, quem sabe, eu fiz um filho na noite passada?

— Ocasião errada por, pelo menos, uma semana... mas o que diria você se eu tivesse dito: "Acertou no meu dia fértil!"

— Deixe de brincadeira e acabe o waffle. O outro já está pronto.— Você é um monstro sádico. E deformado.

— Deformado, não — protestei. — Este pé foi amputado. Não nasci sem ele. Meu sistema imunológico recusa-se a acei­tar um transplante e ponto final. E é um dos motivos porque vivo em baixa gravidade.

Gwen ficou subitamente séria.

— Oh, meu querido! Eu não estava me referindo a seu pé. Oh, Deus do céu... seu pé não importa... exceto que vou to­mar mais cuidado do que nunca para não pressioná-lo, agora que sei por quê.

— Desculpe. Tudo bem. Agora, que história é essa de eu ser "deformado"?

Imediatamente, ela voltou ao seu alegre habitual.

— Você devia saber! Depois de ter me estirado toda e me tornado inútil para um homem normal. E agora não quer ca­sar comigo. Vamos voltar para a cama.

— Vamos terminar o café e resolver isto primeiro... Você não tem compaixão? Eu não disse que não casava com você... e eu não estirei você.

— Oh, que mentira mais pecaminosa! Passe a manteiga, sim? Você é deformado, mesmo! Qual é o tamanho desse tu­mor com um osso dentro! Vinte e cinco centímetros! Mais? E que grossura? Se o tivesse visto primeiro, nunca teria me ar­riscado a ele.

— Oh, tolice! Não tem nem mesmo 20 centímetros. E eu não estirei você. Sou apenas de tamanho médio. Você devia ter conhecido meu tio Jack. Quer mais café?

— Quero, obrigada. Mas você me estirou, mesmo! Humm... seu tio Jack é mesmo maior do que você? Localmente?

— Bastante.

— Hummm... onde é que ele mora?

— Termine seu waffle. Ainda quer me levar de volta para a cama? Ou quer uma carta de apresentação para meu tio Jack?

— Por que não posso ter os dois? Quero, um pouco mais de bacon, obrigado. Richard, você é bom cozinheiro. Não quero casar com o tio Jack. Estava simplesmente curiosa.— Não peça a ele que lhe mostre a ferramenta, a menos que você queira usá-la. Ele seduziu a mulher do chefe de es­coteiros dele quando tinha apenas 12 anos. Fugiu com ela. O caso provocou muitos comentários no sul de Iowa porque ela não queria soltá-lo. Isso aconteceu há mais de 100 anos, quando essas coisas eram levadas a sério, pelo menos em Iowa.

— Richard, você está insinuando que tio Jack tem mais de 100 anos e que continua ainda ativo e viril?

— Cento e dezesseis e ainda metendo com as esposas, fi­lhas, mães e gado dos amigos. E tem três esposas próprias, de acordo com o código de cohabitação de cidadãos gradua­dos de Iowa, uma delas — minha tia Cissy — ainda na escola se­cundária.

— Richard, às vezes acho que você nem sempre fala a ver­dade. Que tem uma ligeira inclinação para o exagero.

— Mulher, isto não são modos de se dirigir ao seu futuro marido. Atrás de você há um terminal. Digite aí Grinnell, Iowa. Tio Jack mora lá. Vamos chamá-lo? Converse com ele bem convincente e ele talvez lhe mostre seu orgulho e alegria. En­tão, querida?

— Você está simplesmente tentando evitar de me levar de volta para a cama.

— Outro waffle?

Pare de tentar me subornar. Hum, metade, talvez. Di­vida um comigo, sim?

— Não. Um inteiro para cada um.

— "Ave, César!" Você é o mau exemplo de que sempre pre­cisei. Logo que a gente se casar, vou engordar.

— Que bom que disse isso. Eu estava sem saber como di­zer, mas você é um pouco sobre o osso. Cantos pontudos. Con­tusões. Um pouco de acolchoamento ajudaria.

Não vou descrever o que Gwen disse em seguida. Foi pi­toresco, mesmo lírico, mas (na minha opinião) pouco refina­do. Não a verdadeira Gwen, de modo que não vou deixar is­so registrado.

Respondi:— Na verdade, é irrelevante! Admiro-a por sua inteligên­cia. E por seu espírito angélico. E pela bela alma. Não vamos descer ao físico.

Mais uma vez, acho que tenho que censurar.

— Muito bem — concordei. — Se é isso o que você quer. Meta-se naquela cama e comece a pensar pensamentos físi­cos. Vou desligar a máquina de waflle.

Um pouco mais tarde, perguntei:

— Você quer um casamento na igreja?

— (Arrulho.) Vou ter que usar branco? Richard, você é religioso?

— Não.

— Nem eu. Acho que nem você nem eu somos gente de igreja.

— Concordo. Mas de que maneira quer casar? Tanto quanto sei, não há outra maneira de casar-se no Regra de Ouro. Na­da nos regulamentos do administrador. Legalmente, o insti­tuto do casamento não existe aqui.

— Mas, Richard, um bocado de gente se casa.

— Mas como, querida? Sei que casam, mas se não fazem isso através de uma igreja, como é que fazem, não sei. Nunca tive oportunidade de descobrir. Será que vão a Luna City? Ou descem para a superfície? Como?

— Da maneira como querem. Alugam um salão e conse­guem que algum VIP amarre o nó na presença de um bocado de convidados, com música de fundo e uma grande recepção depois... ou fazem isso em casa, presentes apenas alguns ami­gos. Ou qualquer outra coisa entre as duas. A escolha é sua, Richard.

— Hummm, humm, minha, não. Sua. Eu simplesmente concordei em topar. Quanto a mim, acho que uma mulher se encontra em sua melhor forma quando está um pouco tensa, sem ficar insegura de seu status. Isso a mantém na ponta dos pés. Não concorda? Hei! Pare com isso!

— Então, pare de me chatear. Se não quiser cantar de so­prano no seu próprio casamento.— Faça isso mais uma vez, e não vai haver casamento. Que­rida, que tipo de casamento você quer?

— Richard, eu não preciso de uma cerimônia nupcial. Não preciso de testemunhas. Quero simplesmente lhe prometer tu­do o que uma esposa deve.

— Tem certeza, Gwen? Você não está sendo precipitada? Droga, promessas que uma mulher faz na cama não de­vem ser de cumprimento compulsório.

— Não, não estou. Resolvi casar com você há mais de um ano.

— Resolveu? Bem, o diabo me... Hei! Nós nos conhece­mos há menos de um ano. No Baile do Dia Um. Julho, dia 20, lembro-me.

— Verdade.

— E então?

— E então o quê, querido? Resolvi me casar com você an­tes de nos conhecermos. Há algum problema nisso? Eu não tenho. Não tive.

— Hummm. É melhor eu lhe dizer algumas coisas. No meu passado há coisas das quais não me vanglorio. Não exatamente desonestas, mas um pouco duvidosas. E Ames não é meu no­me de nascimento.

— Richard, eu me sentirei orgulhosa em ser chamada de "Sra. Ames". Ou de "Sra. Campbell"... "Colin".

Fiquei calado, sonoramente calado, depois perguntei:

— O que mais você sabe?

Ela me olhou firme no olho e não sorriu.

— Tudo que eu precisava saber. Coronel Colin Campbell, conhecido como "Matador" Campbell por suas tropas... e em despachos oficiais. Um anjo salvador para os estudantes da Academia Percival Lowell. Richard, ou Colin, minha filha mais velha foi uma de suas alunas.

— O diabo me leve para sempre.

— Duvido disso.

— E por causa disso você resolveu casar comigo?

— Não, homem querido. Essa razão foi suficiente há um ano. Mas, agora, tive muitos meses para descobrir o homem que está por trás do herói das histórias em quadrinhos. E... eu, de fato, dei um jeito para levá-lo para a cama na noite pas­sada, mas nenhum de nós dois se casaria apenas por esse mo­tivo. Quer conhecer também seu próprio passado maculado? Eu conto.

— Não. — Tomei-lhe as mãos. — Gwendolyn, quero que você seja minha esposa. Você me aceita como marido?

— Aceito.

— Eu, Colin Richard, aceito-te, Gwendolyn, como minha esposa, para manter e conservar, amar e cuidar, enquanto vo­cê me quiser.

— Eu, Sadie Gwendolyn, aceito-te, Colin Richard, como meu marido, para manter e conservar, amar e cuidar, pelo resto de minha vida.

— Poxa! Acho que isto resolve.

— Resolve. Mas, beije-me... Beijei.

— Quando foi que apareceu esse "Sadie"?

— Sadie Lipschitz, meu nome de família. Não gostava dele e, por isso, mudei-o. Richard, a única coisa que falta para torná-lo oficial é divulgá-lo. Isto legaliza o casamento. E quero legalizá-lo enquanto você ainda está tonto.

— Tudo bem. Divulgue-o agora.

— Posso usar seu terminal?

— Nosso terminal. Você não tem que pedir para usá-lo.

— "Nosso terminal." Obrigado, querido. — Levantou-se, foi até o terminal, digitou o catálogo, ligou para o Golden Ru­le Herald e pediu para falar com o colunista social. — Por fa­vor, grave. O Dr. Richard Ames e a Sra. Gwendolyn Novak têm o prazer de anunciar seu casamento nesta data. Solicita-se que não sejam enviados presentes nem flores. Por favor, con­firme. — E desligou.

Eles ligaram para nós imediatamente. Respondi e confirmei. Ela suspirou.

— Richard, eu o apressei. Mas tive que fazer isso. Agora, ninguém pode me obrigar a depor contra você em qualquer jurisdição, em qualquer lugar. Quero ajudá-lo de todas as ma­neiras como puder. Por que o matou, querido? E como?

 

"Para acordar um tigre, use uma vara comprida. "

Mao Tse-Tung, 1893-1976

 

Olhei pensativamente para minha esposa.

— Você é uma mulher valente, meu amor, e sinto-me gra­to porque não quer depor contra mim. Mas não tenho certeza de que o princípio legal que citou possa ser aplicado nesta jurisdição.

— Mas essa é a norma geral da justiça, Richard. Não se pode obrigar uma esposa a depor contra o marido. Todo mundo sabe disso.

— A questão é: o Administrador sabe? A Companhia afir­ma que o habitat só tem uma lei, a Regra de Ouro, e alega que os regulamentos do Administrador são apenas interpretações práticas dessa regra, simplesmente diretrizes sujeitas à mudan­ça... mudanças bem no meio de uma audiência e retroativas, se o Administrador assim decidir. Gwen, não sei. A promoto­ria do Administrador pode chegar à conclusão de que você é a principal testemunha da Companhia.

— Eu não farei isso! Não farei!

— Obrigado, minha querida. Mas vejamos o que seria seu depoimento caso você fosse testemunha do... o que é que va­mos chamar aquilo? Ahn, suponhamos que sou acusado de ter maldosamente causado a morte do, ahn, Sr. X... sendo o Sr. X o estranho que veio à mesa quando você pediu licença para ir ao toalete. O que foi que você viu?

— Richard, eu o vi matá-lo. Eu vi!

— Um promotor pode querer mais detalhes. Viu-o chegar à nossa mesa?

— Não. Não o vi até sair do toalete e começar a me dirigir para nossa mesa... e fiquei espantada vendo uma pessoa sen­tada em minha cadeira.

— Tudo bem, volte atrás um pouco e me diga exatamente o que viu.

— Humm, saí do toalete, e virei à esquerda, na direção de nossa mesa. Você estava de costas para mim, como deve se lembrar...

— Não importa o que eu me lembro. Conte o que você lem­bra. A que distância estava você?

— Oh, não sei. Dez metros, talvez. Posso voltar lá e me­dir. Isso tem importância?

— Se tiver em alguma ocasião, você pode medir. Você me viu de uma distância de uns dez metros. O que eu estava fa­zendo? Estava de pé? Sentado? Movimentando-me?

— Você estava sentado, de costas para mim.

— Minhas costas estavam voltadas para você. A ilumina­ção não era muito boa. Como é que você sabe que era eu?

— Ora... Richard, você está sendo intencionalmente difícil.

— Estou, porque promotores são intencionalmente difíceis. Como foi que me reconheceu?

— Humm... Era você, Richard. Conheço tão bem sua nu­ca como conheço seu rosto. De qualquer modo, quando você se levantou e se moveu, eu vi de fato seu rosto.

— O que foi que eu fiz em seguida? Levantei-me?

— Não, não. Eu o vi, em nossa mesa... depois parei quando vi alguém sentado à sua frente, em minha cadeira. Fiquei sim­plesmente ali e olhei.

— Reconheceu-o?

— Não. Acho que nunca o vi antes.

— Descreva-o.

— Hummm, acho que não posso, muito bem.

— Baixo? Alto? Idade? Barba? Raça? De que maneira ele es­tava vestido?

— Eu não o vi de pé. Ele não era moço, mas também não era velho. Acho que não usava barba.

— Bigode?

— Não sei. (Eu sabia. Não usava bigode. Devia ter uns 30 anos.)

— Raça?

— Branca. Pele clara, de qualquer maneira, mas não lou­ro como um sueco. Richard, não houve tempo para notar to­dos os detalhes. Ele o ameaçou com alguma espécie de arma, você atirou nele e saltou quando o garçom se aproximou... e eu recuei até que o levaram dali.

— Para onde o levaram?

— Não sei com certeza. Recuei para o toalete das mulhe­res e deixei que a porta se contraísse. Podem tê-lo levado para o toalete dos homens, que fica no outro lado do corredor. Mas há outra porta no fim do corredor, com uma tabuleta: "Em­pregados, apenas."

— Você disse que ele me ameaçou com uma arma?

— Disse. Em seguida, você atirou nele, pegou dele a arma e guardou-a no bolso no mesmo momento em que o garçom apareceu no outro lado.

— (Ohh!) Em que bolso eu a guardei?

— Deixe ver se eu me lembro. Mentalmente, tenho que vi­rar daquela maneira. O bolso esquerdo. O bolso esquerdo ex­terno do paletó.

— Como era que eu estava vestido na noite passada?

— A rigor, nós tínhamos vindo diretos do ballet. Camisa branca de gola rolê, paletó marrom, calças pretas.

— Gwen, porque você estava adormecida no quarto, na noite passada eu me despi aqui na sala de estar e pendurei as roupas que estava vestindo naquele guarda-roupa junto à porta de entrada, pensando em tirá-las dali depois. Quer, por favor, abrir aquele guarda-roupa, procurar o paletó que usei ontem e tirar do bolso esquerdo externo a "arma" que me viu guardar nele?

— Mas...

Mas calou-se e, rosto solene, fez o que eu mandara. Um momento depois, voltou.

— Isto é tudo que estava naquele bolso. — E me entregou a carteira do estranho.

Peguei-a.

— Esta é a arma com que ele me ameaçou. — E mostrei-lhe o indicador da mão direita, sem nada. — E esta é a arma que usei para atirar nele quando ele me apontou a carteira.

— Não estou entendendo.

— Amada, é por isto que os criminologistas acreditam mais em prova circunstancial do que no depoimento de testemu­nhas oculares. Você é a testemunha ideal, inteligente, sincera, cooperativa e honesta. Você descreveu uma mistura do que realmente viu, o que pensou que viu, o que deixou de ver, em­bora estivesse bem à sua frente, e o que sua mente lógica con­tribuiu, como necessidade, ligando o que viu com o que pen­sou que viu. Esta mistura está tão sólida agora em sua mente como se fosse uma autêntica recordação, uma recordação de primeira mão de urna testemunha ocular. Mas não aconteceu.

— Mas Richard, eu de fato vi.

— Você viu aquele pobre palhaço ser morto. Não o viu me ameaçando, nem me viu atirando nele. Uma terceira pessoa matou-o com um dardo explosivo. Uma vez que ele estava de frente para você e o dardo pegou-o no peito, deve ter partido bem detrás de você. Notou alguém de pé ali?

— Não. Oh, havia garçons andando de um lado para o outro, auxiliares de garçom, o maître e gente levantando-se e se sentando. Quero dizer, não notei ninguém em especial... e de maneira nenhuma alguém usando uma arma. Que tipo de arma?

— Gwen, talvez não parecesse uma arma. Uma arma dis­farçada de assassino, capaz de disparar um dardo a curta dis­tância... Poderia parecer com qualquer coisa, enquanto tives­se a dimensão de uns 15cm de comprimento. Uma bolsa de mulher. Uma câmara fotográfica. Binóculos de ópera. Uma lista interminável de objetos de aparência inocente. Mas isto não nos leva a parte alguma, uma vez que eu estava de costas e você nada viu de fora do comum. O dardo provavelmente veio de um lugar atrás de suas costas. De modo que, esqueça isso. Vamos ver quem era a vítima. Ou quem dizia ser.

Tirei tudo dos compartimentos da carteira, inclusive do mal disfarça do compartimento "secreto." Este último continha certificados de ouro, emitidos por um banco de Zurique, equi­valentes a umas 17 mil coroas — seu último pagamento, ao que parecia.

Havia uma espécie de carteira de identidade do tipo que o Regra de Ouro fornece a todas as pessoas que chegam ao eixo do habitat. Mas tudo o que ela prova é que a pessoa "iden­tificada" tem um rosto, alega possuir nome, prestou esclareci­mento sobre nacionalidade, idade, local de nascimento, etc., e depositou na Companhia uma passagem de volta, ou o equi­valente em dinheiro, bem como pagou antecipadamente a ta­xa de respiração de 90 dias — sendo estes dois aspectos tudo o que interessa à Companhia.

Não sei com certeza se a Companhia jogaria no espaço uma pessoa que, por algum lapso, chegasse sem passagem de vol­ta nem dinheiro para pagar pelo ar. Talvez lhe deixasse ven­der a dentadura. Mas eu não contaria com isso. Comer vácuo não é coisa a que eu queira me arriscar.

Essa tal carteira de identidade da Companhia dizia que o portador era Enrico Schultz, de 32 anos de idade, cidadão de Belize, nascido em Ciudad Castro, contador por profissão. A foto que acompanhava a carteira era daquele pobre-diabo que arranjara um jeito de morrer abordando-me em um lugar pú­blico demais... e pela enésima vez perguntei-me por que ele não me telefonara e, em seguida, me fizera uma visita parti­cular. Como "Dr. Ames" eu estou no catálogo... e se mencio­nasse "Walker Evans" teria conseguido uma audiência, uma audiência particular.

Mostrei-o a Gwen.

— É este o nosso rapaz?

— Acho que é. Mas não tenho certeza.

— Eu tenho. Conversei com ele cara a cara durante alguns minutos.

A coisa mais estranha na carteira de Schultz era o que não continha. Além dos certificados de ouro suíços, guardava 831 coroas e aquela identidade do Regra de Ouro.

Mas isso era tudo.

Nada de cartões de crédito, nem habilitação de piloto de veículo a motor, nem cartões de seguros, nem de sindicatos ou associações, nem outro qualquer que o identificasse, nem mesmo carteirinha de clube, neca. Carteiras de homens são como bolsas de mulheres. Acumulam lixo — fotos, recortes, listas de compras, etc. sem fim, e periodicamente precisam de uma limpeza. Mas, ao fazer isso, o indivíduo geralmente dei­xa uma dezena de itens que o homem moderno precisa para se mexer por aí. Meu amigo Schultz não tinha nada disso.

Conclusão: ele não estava ansioso para divulgar sua ver­dadeira identidade. Corolário: em algum lugar do Regra de Ouro estavam guardados, escondidos, seus documentos pes­soais... outra carteira de identidade com um nome diferente, um passaporte, quase com certeza não emitido em Belize, ou­tros itens que poderiam me dar uma pista sobre seus antece­dentes, motivos e (possivelmente) como ele viera saber de "Wal­ker Evans" e invocá-lo.

Poderiam ser encontradas essas peças?

Um problema associado me incomodava: aqueles 17 mil em certificados de ouro. Em vez de ser dinheiro para fuga, po­deria ter ele esperado usar uma soma tão insignificante para me contratar para matar Tolliver? fosse isso, eu me sentia ofen­dido. Preferia pensar que ele alimentara a esperança de me fazer cometer o assassinato como um serviço público.

— Quer se divorciar de mim? — perguntou Gwen.

— Ahn?

— Eu forcei você a isto. Minhas intenções eram boas, eram, mesmo! Mas acabo de descobrir que fui uma estúpida.

— Oh, Gwen, eu nunca casei e me divorciei no mesmo dia. Nunca. Se quer realmente se livrar de mim, fale-me ama­nhã. Embora, para ser justo, eu ache que deva me experimen­tar por 30 dias. Ou duas semanas, pelo menos. E me permita fazer o mesmo. Até agora, seu desempenho, tanto vertical quanto horizontal, tem sido satisfatório. Se algum dia se tor­nar insatisfatório, eu lhe aviso. Bastante justo?

— Bastante justo. Embora eu talvez possa surrá-lo até a morte com suas próprias cavilações.

— Surrar o marido até a morte é privilégio de todas as mu­lheres casadas, enquanto ela puder fazer isto em particular. Por favor, acalme-se, minha querida, estou com problemas. Po­de pensar em alguma boa razão por que Tolliver deveria ser morto?

— Ron Tolliver? Não. Embora eu também não consiga pen­sar em qualquer boa razão por que ele deva continuar vivo. Ele é um grosseirão.

— Ele é tudo isso, certo. Se não fosse um dos donos da Companhia, já lhe teriam dito para pegar sua passagem de volta e cair fora há muito tempo. Mas eu não disse "Ron Tol­liver", eu disse simplesmente "Tolliver".

— Há mais de um? Tomara que não.

— Isso veremos.

Fui até o terminal e digitei o catálogo telefônico, letra "T".

— "Ronson H. Tolliver, Ronson Q. — este é o filho dele — e aqui o da esposa, "Stella M., Tolliver". Hei! Aqui diz: "Ver também Taliaferro."

— Essa é a grafia original — explicou Gwen. — Mas é pro­nunciada "Tolliver" da mesma maneira.

— Tem certeza?

— Toda. Pelo menos ao sul da Linha Mason e Dixon, lá na superfície. Grafar a palavra como "Tolliver" sugere ralé bran­ca que não sabe escrever. Escrever de maneira certa e depois pronunciar todas as letras juntas faz com que pareça uma droga de nome ianque, um antigo nome que poderia ter sido "Lips­chitz" ou coisa assim. O autêntico dono de fazenda, surrador de negros e fodedor de negras escrevia da maneira comprida e pronunciava-o da maneira curta.

— Lamento muito que você tenha me dito isso.

— Por quê, querido?

— Porque há três homens e uma mulher listados aqui que grafam o nome da maneira comprida, Taliaferro. Não conhe­ço nenhum deles. De modo que não sei qual devo matar.

— Você tem que matar um deles?

— Não sei. Humm, está na hora de lhe contar algumas coi­sas. Se estiver pensando em ficar casada comigo pelo menos durante 14 dias. Está?

— Claro que estou! Quatorze dias e o resto de minha vi­da! E você é um porco chauvinista machão.

— Sócio remido.

— E um chato.

— Eu acho que você é bonitinha, também. Quer voltar para a cama?

— Só depois que você resolver quem vai matar.

— Isso pode levar algum tempo. — Fiz o melhor que pu­de para dar a Gwen uma descrição detalhada, factual, de meu curto conhecimento com o homem que usara o nome "Schultz". — E isso é tudo o que sei. Ele morreu cedo demais para que eu descobrisse mais alguma coisa. Deixando um bocado de perguntas sem respostas.

Virei-me para o terminal, digitei-o para o modo de pro­cessador de texto e assim criei um novo arquivo, como se esti­vesse armando uma história sensacionalista:

 

A AVENTURA DO NOME GRAFADO ERRONEAMENTE

 

Perguntas a Serem Respondidas

  1. Tolliver ou Taliaferro?
  2. Por que T. tem que morrer?
  3. Por que "todos nós morreremos" se T. não estiver mor­to até o meio-dia de domingo?
  4. Quem é esse cadáver que deu a si mesmo o nome "Schultz"?
  5. Por que sou o capanga lógico para acabar com T.?
  6. Este assassinato é necessário?
  7. Qual dos membros da Sociedade em Memória de Walker Evans deu meu nome àquele trapalhão? E por quê?
  8. Quem matou "Schultz"? E por quê?
  9. Por que o pessoal do Rainbow's End interveio logo e abafou o assassinato?
  10. (Geral.) Por que Gwen saiu antes de mim e por que veio parar aqui, em vez de ir para casa, e como conseguiu entrar?

 

— Vamos respondê-las na ordem? — perguntou Gwen. — A número 10 é a única que posso responder.

— Essa eu simplesmente incluí de quebra — respondi. — Quanto às nove primeiras, acho que, se obtiver a resposta pa­ra qualquer três delas, poderei deduzir o resto. — E continuei a juntar palavras na tela:

 

AÇÕES POSSÍVEIS

"Quando Estiver em Perigo ou em Dúvida

Corra em Círculos, Grite ou Berre."

 

— Isso ajuda? — quis saber Gwen.

— Em todas as ocasiões! Pergunte a qualquer velho mili­tar. Agora, vamos tomar uma pergunta de cada vez:

 

  1. 1 — Telefone para todos os Taliaferro do catálogo. Des­cubra a pronúncia preferida do nome. Risque os que usarem a pronúncia com todas as letras.
  2. 2 — Estude os antecedentes dos que sobrarem. Comece com números velhos do arquivo do Herald.
  3. 3 — Enquanto investiga a P. 2, mantenha as orelhas bem abertas para alguma coisa marcada ou esperada para o meio-dia de domingo.
  4. 4 — Se você fosse um cadáver que chega ao habitat es­pacial Regra de Ouro e quisesse esconder sua identidade, mas pegar seu passaporte e outros documentos para partida ime­diata, onde os esconderia? Palpite: procure saber quando es­se cadáver chegou ao Regra de Ouro. Em seguida, verifique hotéis, armários individuais, serviços de cofre de depósito, pos­ta restante, etc.
  5. 5 — Adie.
  6. 6 — Adie.
  7. 7 — Procure entrar em contato telefônico com tantos membros do grupo de juramento "Walker Evans" quanto pos­sível. Continue a tentar até que alguém dê o serviço. Nota: al­gum cretino pode ter falado demais sem saber.
  8. 8 — Morris, ou o maître d', ou o auxiliar de garçom, ou todos eles, ou qualquer dois deles, sabe quem matou Schultz. Um ou mais de um esperavam que aquilo aconteces­se. De modo que procuramos o ponto fraco de cada um — be­bida, drogas, dinheiro, sexo (comme ci ou comme ça) — e qual era mesmo seu nome lá embaixo, meu velho? Algum digital sobre você, em algum lugar? Descubra esse ponto fraco. Aperte-o. Faça isso com todos os três e veja como as histórias deles combinam. Todo armário tem um esqueleto. Isto é uma lei na­tural — de modo que, procure-o em todos os casos.
  9. 9 — Dinheiro (suposição conclusiva, até prova em con­trário). (Pergunta: Quanto tudo isso vai me custar? Tenho recur­sos para pagar a conta? Resposta à pergunta: Posso me dar o luxo de não fazer isso?)

 

— Eu andei pensando sobre o caso — disse Gwen. — Quando enfiei nele meu nariz, achava que você estava muito encrencado. Mas, aparentemente, você é inocente como um anjo. Por que é que você tem que fazer alguma coisa, meu marido?

— Preciso matá-lo.

— O quê? Mas você não sabe qual deles é o Tolliver! Ou por que ele deve ser morto. Se deve ser.

— Não, não, Tolliver, não. Embora possamos descobrir que Tolliver deva ser morto. Não, querida, o homem que matou Schultz. Tenho que encontrá-lo e matá-lo.

— Oh. Humm, agora entendo que ele deva ser morto. É um assassino. Mas por que você deve fazer isso? Ambos são estranhos para você — a vítima e quem quer que o tenha ma­tado! Na verdade, isto não é de sua conta, ou é?

— É da minha conta. Schultz, ou qualquer que seja o no­me dele, foi morto enquanto era convidado à minha mesa. Is­so é intoleravelmente grosseiro. Não vou tolerar isso. Gwen, meu amor, se toleramos grosserias, elas se tornam piores. Nos­so agradável habitat poderia transformar-se no tipo de cortiço que é o Ell-Five, com gente se acotovelando, conduta impró­pria, barulho desnecessário e linguagem chula. Tenho que en­contrar o grosseirão que fez isso, explicar-lhe o crime que co­meteu, dar-lhe uma oportunidade de se desculpar, e matá-lo.

 

"Devemos perdoar nossos inimigos, mas

não antes deles serem enforcados."

Heinrich Heine, 1797—1856

 

Minha linda esposa olhou-me fixamente.

— Você mataria um homem? Por má educação?

— Você conhece uma razão melhor? Quer que eu ignore comportamento rude?

— Não, mas... Posso entender que se execute um homem por assassinato. Não sou contrária à pena de morte. Mas você não deve deixar isso aos censores e à Administração? Por que você tem que fazer justiça com suas próprias mãos?

— Gwen, eu me expliquei perfeitamente. Meu intuito não é castigar, mas erradicar... Além da satisfação estética de reta­liação a comportamento grosseiro. Este assassino desconheci­do pode ter tido excelentes razões para matar a pessoa que disse chamar-se Schultz... mas matá-lo na presença de pessoas que faziam uma refeição é tão repugnante como briga de marido e mulher em público. Depois, aquele grosseirão agravou seu ato intolerável fazendo o que fez enquanto a vítima era meu convidado... o que torna a retaliação tanto obrigação como prer­rogativa minha. E continuei:

— O crime putativo de assassinato não é assunto meu. Mas, quanto aos censores e à Administração cuidarem do as­sunto, conhece algum regulamento que proíba assassinato?

— O quê? Richard, tem que haver um.

— Pois nunca ouvi falar. Acho que o Administrador pode­ria interpretar o assassinato como violação da Regra de Ouro...

— Eu acho que interpretaria, mesmo!

— Você acha? Eu nunca tenho certeza do que o Adminis­trador pensará. Mas, Gwen, minha querida, matar não é ne­cessariamente assassinar. Na verdade, freqüentemente não é. Se esta morte jamais chegar à atenção do Administrador, ele pode chegar à decisão de que foi homicídio justificado. Um crime contra as boas maneiras, mas não contra a moral.

— Mas... — continuei, voltando-me novamente para o ter­minal — o Administrador talvez já tenha resolvido o caso, de modo que vamos ver o que o Herald tem a dizer sobre o assunto.

Digitei novamente o jornal, desta vez selecionando o ín­dice da edição e depois escolhendo as estatísticas vitais.

O primeiro item à passar pela tela foi "Casamento — Ames - Novak", de modo que parei, digitei ampliação, pedi maté­ria impressa, destaquei-a e entreguei-a a minha esposa.

— Guarde isso para seus netos, a fim de lhes provar que vovó não está mais vivendo em pecado.

— Obrigada, querido. Você é tão galante.

— E sei cozinhar, também.

Desci para os necrológios. Em geral leio os necrológios pri­meiro, uma vez que há sempre a feliz possibilidade de que um deles me alegre o dia.

Mas não naquele dia. Nenhum nome que eu reconheces­se. Especialmente, nenhum "Schultz". Nada senão a triste lis­ta habitual de pessoas que haviam morrido de causas naturais, e uma delas por acidente. Em vista disso, digitei notícias gerais do habitat e deixei o noticiário passar.

Nada. Oh, havia o interminável rosário de fatos, de che­gadas e partidas de naves até (a maior de todas as notícias) o anúncio de que o mais novo acréscimo, os círculos 130-140, estavam sendo trazidos e, se tudo corresse de acordo com a programação, seriam encaixados e sua soldagem ao cilindro principal começada às 08:00 no dia seis.

Mas nada havia sobre "Schultz", nem menção a qualquer Tolliver ou Taliaferro, e nenhum cadáver de desconhecido. Con­sultei novamente o índice do jornal, digitei a programação de fatos do domingo seguinte e descobri que a única coisa mar­cada para o meio-dia do domingo era uma mesa-redonda, mon­tada com imagens holográficas procedentes de Haia, Tóquio, Luna City, EU-Four, Regra de Ouro, Tel Aviv e Agra: "A Crise na Fé: O Mundo Moderno em uma Encruzilhada." Os co-mediadores eram o presidente da Sociedade Humanista e o Dalai Lama. Desejei boa sorte a ambos.

— Até agora só temos nada somado com nada, que dá ze­ro. Gwen, qual é a maneira polida de eu perguntar a estra­nhos como eles pronunciam seus nomes?

— Deixe que eu tente, querido. Eu digo: "Sinhora Tolivá, aqui tá falando Gloria Meade Calhou, sou di Savannah. A si­nhora tem uma prima por nomi Stacey Mae, de Charliston?" Quando ela corrigir a maneira como lhe pronunciei o nome, peço desculpa e desligo. Mas se ela — ou ele — aceitar a for­ma curta mas negar conhecer Stacey Mae, eu digo: "Eu tava in dúvida. Ela disse, Talei-a-faro... mas eu sabia que tava erra­do." E depois, Richard? Transformo a coisa num encontro ou desligo como se fosse "linha caída"?

— Marque um encontro, se possível.

— Um encontro para você? Ou para mim?

— Para você, mas eu irei com você. Ou marque o encon­tro em seu compartimento. Mas, em primeiro lugar, tenho que comprar um chapéu.

— Um chapéu?

— Uma dessas coisas engraçadas que se bota na parte pla­na da cabeça. Ou botaria, se a gente estivesse lá embaixo.

— Eu sei o que é um chapéu! Eu nasci na superfície, exa­tamente como você. Mas duvido muito que um chapéu jamais tenha sido visto fora da Terra. Onde é que você ia comprar um?

— Não sei, garota incomparável, mas posso lhe dizer por que preciso de um. De modo a que possa inclinar polidamen­te o chapéu e dizer: "Senhor, ou madame, por gentileza, diga-me por que alguém quer que esteja morto, ou morta, até meio-dia de domingo?" Gwen, isto andou me preocupando... como iniciar uma conversa destas. Há maneiras polidas tradicionais para iniciar quase qualquer pergunta, de propor adultério a uma esposa antes casta e solicitar uma propina. Mas como é que a gente inicia este assunto?

— Você não pode simplesmente dizer: "Não olhe agora, mas há uma pessoa que está tentando matá-la."

— Não, a ordem está errada. Não vou tentar avisar esse estúpido que alguém anda querendo pegá-lo. Vou tentar des­cobrir por quê. Quando souber o motivo, posso aprová-lo com tanto prazer que simplesmente me recostarei e assistirei ao ato... ou posso mesmo ficar tão inspirado pelo motivo que realiza­rei o serviço pretendido pelo falecido Sr. Schultz como servi­ço à humanidade.

— Mas em sentido contrário — continuei —, eu poderia discordar tão veemente que sentaria praça para o resto da vi­da, ofereceria voluntariamente minha vida e meus serviços à causa sagrada de impedir que aconteça esse assassinato. O que é improvável, se o alvo escolhido for Ron Tolliver. Mas é cedo demais ainda para escolher lados. Preciso compreender o que está acontecendo. Gwen, meu amor, neste negócio de assas­sinato nunca devemos matar primeiro e perguntar depois. Is­to costuma aborrecer as pessoas.

Virei-me para o terminal e olhei-o fixamente, sem tocar em tecla nenhuma.

— Gwen, antes de fazermos chamadas locais, acho que de­vo dar seis telefonemas com retardo temporal, um para cada um dos Amigos de Walker Evans. Afinal de contas esta é mi­nha pista básica, que Schultz tinha mencionado esse nome. Um dos seis lhe deu o nome... e esse deve saber por que Schultz estava em tal apuro.

— Retardo temporal? Eles estão tão longe assim?

— Não sei. Um deles está provavelmente em Marte, dois outros talvez no Cinturão de Asteróides. Um ou dois podem estar mesmo na superfície, mas, mesmo assim, sob nomes fal­sos, exatamente como eu. Gwen, dada a débacle que me le­vou a renunciar à alegre profissão das armas e fez com que seis de meus camaradas acabassem como meus irmãos de san­gue... bem, a coisa cheirou mal para o público. Entendi per­feitamente que os repórteres dos meios de divulgação de mas­sa, que não viram a coisa acontecer, de maneira nenhuma po­deriam compreender por que ela aconteceu. Eu poderia afir­mar, sem falsear a verdade, que o que fizemos foi moral no contexto naquele tempo, naquele lugar, naquelas circunstân­cias. Eu poderia... não importa, querida. Basta que saiba que meus irmãos estão, todos, escondidos. Descobrir o paradeiro deles poderia ser um trabalho tediosamente demorado.

— Mas você quer falar com apenas um, não? O que en­trou em contato com esse Schultz.

— Isso mesmo, mas não sei qual é ele.

— Richard, não seria mais fácil trabalhar em sentido in­verso a partir de Schultz para descobrir o que você quer, em vez de localizar seis pessoas que estão escondidas, sob nomes supostos, e espalhadas por todo o Sistema Solar? Ou mesmo fora dele?

Recolhi-me dentro de mim mesmo para pensar um pouco.

— Talvez. Mas como é que eu parto de Schultz para trás? Tem alguma inspiração, meu amor?

— Não é uma inspiração. Mas eu me lembro que, quando cheguei aqui no Regra de Ouro, perguntaram-me no eixo não apenas onde eu morava, e conferiram isso com meu passa­porte, mas também de onde viera antes daquela viagem... e conferiram isso com os vistos. Não apenas que eu viera de Luna — quase todo mundo chega aqui procedente de Luna — mas como cheguei a Luna. Não lhe perguntaram isso, também?

— Não. Mas eu trazia um passaporte do Estado Livre de Luna provando que nasci lá.

— Eu pensava que você tinha nascido na Terra.

— Gwen, Colin Campbell nasceu na superfície. ''Richard Ames" nasceu em Hong Kong Luna... é o que diz aqui.

— Oh!

— Mas procurar refazer os passos de Schultz é realmente uma coisa que devo tentar antes de querer localizar todos os seis. Se eu soubesse que Schultz nunca esteve muito longe, eu verificaria primeiro perto de casa... em Luna, na superfí­cie, em todos os habitats balisticamente ligados à Terra ou Lu­na. Não na Faixa de Asteróides. Ou mesmo em Marte.

— Richard? Suponha que o objetivo é... Não, isso seria tolice.

— O que é que seria tolice, querida? Experimente comigo, de qualquer maneira.

— Humm, suponha que esta — o que quer que seja — conspiração, suponha que... não visa a Ron Tolliver nem qual­quer outro Tolliver, mas a você e seus seis amigos, o pessoal "Walker Evans." Poderia o objetivo ser como você toma medi­das radicais para entrar em contato com todos os outros? E des­sa maneira fazer com que você os levasse, a quem quer que sejam eles, todos os sete? Poderia ser por acaso uma vendet­ta? Poderia, o que quer que tenha acontecido, dar origem a uma vendetta contra todos vocês sete?

Senti frio na boca do estômago.

— Sim, podia ser isso. Embora não, acho, neste caso. E não explicaria por que Schultz foi morto.

— Eu disse que era tolice.

— Espera um momento. Schultz foi morto mesmo?

— Ora, nós dois vimos isso, Richard.

— Vimos? Eu pensei que vi. Mas reconheci que aquilo po­dia ter sido um embuste. O que vi pareceu ser morte provoca­da por dardo explosivo. Mas... Dois adereços simples, Gwen. Um deles faz um pequeno ponto preto aparecer na camisa de Schultz. O outro é uma pequena bexiga de borracha que ele traz na boca. Contém sangue falso. No momento certo, ele mor­de a bexiga, e o "sangue" escorre da sua boca. O resto é histrionismo... incluindo o comportamento estranho de Morris e dos outros empregados. Aquele "cadáver" tinha que ser ti­rado logo dali... através daquela porta "Empregados, Apenas"... onde lhe deram uma camisa limpa e depois o levaram pela porta de serviço.

— Você acha que foi assim que aconteceu?

— Humm... Não, droga. Não acho. Gwen, eu já vi mui­tas mortes. Aquela aconteceu tão perto de mim como você es­tá neste minuto. Não acho que aquilo tenha sido uma repre­sentação. Acho que vi um homem morrer.

Estava danado comigo mesmo. Poderia ter-me enganado num ponto tão básico assim?

Claro que poderia! Não sou nenhum supergênio, dotado de poderes extra-sensoriais. Poderia me enganar, como teste­munha de vista, com a mesma facilidade com que Gwen se enganara.

Soltei um suspiro.

— Gwen, eu simplesmente não sei. Pareceu-me morte pro­vocada por dardo explosivo... mas se a intenção era falsificar a coisa e, se foi bem preparada, então, claro, pareceria exata­mente isso. Um embuste planejado explica o abafamento rá­pido do caso. A não ser assim, o comportamento do pessoal do Rainbow's End é quase inacreditável. — Fiquei pensativo. — Melhor das mulheres, eu não tenho certeza de nada. Al­guém está tentando me expulsar de dentro de meu crânio?

Ela tratou minha pergunta como retórica, como pergunta que não merecia resposta, feita por fazer, o que era, na verda­de... ou assim eu tinha esperança que fosse.

— Neste caso, o que é que nós vamos fazer?

— Ahn... vamos tentar descobrir o que pudermos sobre Schultz. E não nos preocupar com o próximo passo até que tenhamos feito isso.

— Como?

— Propina, meu amor. Mentiras e dinheiro. Mentiras pró­digas e uso parcimonioso de dinheiro. A menos que você seja rica. Nunca pensei em perguntar, antes de me casar com você.

— Eu? — Os olhos dela se esbugalharam. — Mas, Richard, eu me casei com você por causa de seu dinheiro.

— Casou? Moça, você foi ludibriada. Quer consultar um advogado?

— Acho que sim. É isso que chamam de "estupro por pre­sunção de violência"?

— Não, "estupro por presunção" significa que a vítima acha que vai haver violência, e cede... embora porque alguém de­va se preocupar com isso eu nunca entendi. Acho que, aqui, não é contra os regulamentos. — Virei-me para o terminal. — Você quer aquele advogado? Ou procuramos o Schultz?

— Ahn... Richard, nós estamos tendo uma lua-de-mel mui­to esquisita. Vamos voltar para a cama.

— A cama pode esperar. Mas você pode comer outro waffle enquanto eu tento localizar um Schultz.

Digitei novamente o terminal, pedindo o catálogo, e sele­cionei "Schultz".

Encontrei 19 pessoas com o nome "Schultz", mas nenhum "Enrico Schultz". O que não era de espantar. Mas de fato en­contrei um "Henrik Schultz" e digitei, pedindo mais detalhes.

"O Reverendo Doutor Henrik Hudson Schultz, B.S., M.A., D.D., D.H.L., K.G.B., ex-Grande Mestre da Real Sociedade As­trológica. Horoscopia científica a preços moderados. Solenização de casamentos. Aconselhamento Familiar. Terapia eclé­tica e holística. Assessoramento sobre investimentos. Apostas aceitas a todas as horas do dia sobre os favoritos nas pistas de corridas. Petticoat Lane, círculo 95, contíguo a Madame Pom­padour." Sobre essa legenda, a efígie, em holograma, dele, sor­ridente e repetindo seu slogan: "Eu sou o Padre Schultz, seu amigo nas horas difíceis. Nenhum problema é grande de­mais; nenhum problema é pequeno demais. Todo trabalho ga­rantido."

Garantido a ser o quê? Henrik Schultz parecia exatamen­te igual a Papai Noel, menos a barba, e em absoluto lembrava meu amigo Enrico, de modo que o apaguei — relutantemen­te, porque senti uma espécie de afinidade com o Reverendo Doutor.

— Gwen, ele não está no catálogo nem de acordo com o nome que consta da identidade no Regra de Ouro. Será que isto significa que ele nunca esteve no catálogo? Ou que o no­me dele foi retirado ontem à noite, antes que o corpo esfriasse?

— Você está esperando uma resposta? Ou pensando em voz alta?

— Nenhuma das duas coisas, acho. Nosso próximo movi­mento é fazer indagações no eixo... certo? — Consultei o catá­logo e liguei para o Departamento de Imigração, no eixo. — Aqui fala o Dr. Richard Ames. Estou tentando localizar um mo­rador chamado Enrico Schultz. Poderia me dar o endereço dele?

— Por que o senhor não o procura no catálogo? (Ela falava exatamente igual à minha professora do terceiro primário — o que não era uma recomendação.)

— Ele não consta do catálogo. É turista, não assinante. Eu quero simplesmente o endereço dele no Regra de Ouro. Ho­tel, pensão, o que for.

— Ora, ora! O senhor sabe muito bem que não fornece­mos informações de natureza pessoal. Se ele não consta do catálogo, então pagou bem e muito para não constar. Faça aos outros, doutor, o que quer que lhe façam. — E desligou.

— Onde é que vamos perguntar agora? — quis saber Gwen.

— No mesmo lugar, com a mesma burocrata — mas, des­ta vez, com dinheiro e pessoalmente. Terminais são convenien­tes, Gwen... mas não para propinas em somas inferiores a cem mil. Para um pequeno suborno, dinheiro na mão e uma visita em pessoa é mais prático. Vem comigo?

— Você acha que pode me deixar pra trás? No dia de nos­so casamento? Simplesmente tente, meu chapa.

— Que tal vestir alguma coisa?

— Está com vergonha da maneira como estou?

— Em absoluto. Vamos.

— Desisto. Meio segundo, enquanto calço os chinelos. Ri­chard, podemos passar antes por meu compartimento? No bal­let, noite passada, eu me senti muito chique, mas meu vesti­do é produzido demais para corredores públicos nesta hora do dia. Quero me trocar.

— Seu menor desejo é uma ordem para mim, madame. Mas isso coloca outra questão. Quer se mudar para cá?

— Quer que eu me mude?

— Gwen, segundo minha experiência, o casamento pode, às vezes, resistir a camas separadas, mas quase nunca a ende­reços separados.

— Você não me respondeu, realmente.

— De modo que você notou, Gwen. Eu tenho um único péssimo hábito. Que torna difícil uma pessoa conviver comi­go. Eu escrevo.

A querida moça pareceu confusa.

— Foi o que você me disse. Mas por que o chama de pés­simo hábito?

— Ahn... Gwen, meu amor, não vou pedir desculpas por escrever... não mais do que o faria por este pé que falta... e, na verdade, um levou ao outro. Quando não pude mais se­guir a profissão das armas, tive que fazer alguma coisa para comer. Não fui treinado para mais nada e, lá na superfície, ou­tro garoto ficou com meu circuito de entrega de jornais. Escre­ver, porém, é uma maneira legal de evitar trabalhar sem real­mente roubar e que nem precisa de talento nem de treinamento.

— Mas escrever é anti-social. É uma coisa tão solitária co­mo masturbação. Perturbe-se um escritor quando ele está nas vascas da criação e é provável que ele se vire e morda até o osso... e nem mesmo saber que fez isso. Como mulheres e ma­ridos de escritores e escritoras descobrem para seu horror.

— E... — escute com toda atenção, Gwen! — não há ma­neira de amestrar escritores e torná-los seres civilizados. Ou mesmo curá-los. Em uma família de mais de uma pessoa, uma das quais é escritor, a única solução conhecida da ciência é for­necer ao paciente um quarto de isolamento, onde ele possa agüentar sozinho os estágios agudos e onde a comida possa lhe ser dada empurrando-a com uma vara. Porque, se pertur­bar o paciente nessas ocasiões, ele pode debulhar-se em lá­grimas ou tornar-se violento. Ou ele talvez não a ouça absolu­tamente... e, se você o sacudir nessa fase, ele morde. Sorri meu melhor sorriso e continuei:

— Não se preocupe, querida. No momento, não estou tra­balhando em nenhum conto e vou evitar começar outro até que a gente arranje um quarto isolado para eu trabalhar. Este lugar aqui não é suficientemente grande, nem o seu. Humm, antes de irmos ao eixo, vou telefonar para o escritório do Ad­ministrador e verificar quais os compartimentos maiores dis­poníveis. Vamos precisar também de dois terminais.

— Por que dois, querido? Eu não o uso muito.

— Mas quando usa, precisa dele. Quando estou usando este em modo de processador de texto, ele não pode ser usa­do em nada mais — nada de jornal, correspondência, com­pras, programas, chamadas pessoais, nada. Acredite, queri­da, eu sofro desta doença há anos, sei como controlá-la. Dei­xe que eu tenha uma pequena sala e um terminal, deixe que eu entre e feche as portas às minhas costas e será a mesma coisa que ter um marido normal e sadio, que vai para o escri­tório todas as manhãs e faz o que quer que homens façam em escritórios. Nunca soube e nunca me interessei muito em saber.

— Sim, querido. Richard, você gosta de escrever?

— Ninguém gosta de escrever.

— Eu estava curiosa. Neste caso, tenho que lhe dizer que não lhe disse toda a verdade quando lhe disse que me casei com você por seu dinheiro.

— E eu não acreditei inteiramente em você. Estamos quites.

— Sim, querido. Eu, realmente, tenho meios para mantê-lo como bichinho de estimação. Oh, não posso comprar iates para você. Mas podemos viver aqui no Regra de Ouro com relativo conforto... e ele não é o lugar mais barato do Sistema Solar. Você não precisara escrever.

Beijei-a, exaustiva e cuidadosamente.

— Estou feliz por ter casado com você. Mas eu tenho que escrever.

— Mas você não gosta de escrever e nós não precisamos de dinheiro. Realmente, não precisamos!

— Obrigado, meu amor. Mas não lhe expliquei o outro as­pecto insidioso deste negócio de escrever. Não há maneira de parar. Escritores continuam a escrever muito tempo depois de isto se tornar financeiramente desnecessário... porque dói me­nos escrever do que não escrever.

— Não entendi.

— Eu também não, quando dei aquele primeiro passo fa­tal — um conto, foi isso, e honestamente pensei que podia de­sistir quando quisesse. Esqueça, querida. Dentro de mais de dez anos você compreenderá. Simplesmente, não preste aten­ção quando eu gemer. Não significa nada... é apenas dor de criação.

— Richard! Psicanálise não ajudaria?

— Não posso me arriscar a isso. Conheci um escritor que tentou esse caminho. Curou-o de escrever, certo. Mas não da necessidade de escrever. Na última vez em que o vi, ele esta­va agachado em um canto, tremendo. Mas essa era a fase boa dele. A simples vista de um processador de texto era suficien­te para que ele tivesse um ataque.

— Humm, isso não será queda para um pouco de exagero?

— Ora, Gwen, eu poderia até levar você para conhecê-lo. Mostrar-lhe a pedra tumular dele. Esqueça, querida. Vou te­lefonar para o Departamento de Imóveis de Aluguel da Admi­nistração.

Virei-me para o terminal...

... exatamente no momento em que a maldita coisa iluminou-se como se fosse uma árvore de Natal e a campai­nha de emergência tocou insistentemente. Apertei o botão de resposta:

— Ames, aqui! Estamos sendo grampeados?

Letras brancas acompanhadas de som correram pela face do terminal e a tele-impressora começou a funcionar, sem or­dem minha — e eu odeio quando isso acontece.

"Comunicação oficial para o Dr. Richard Ames. A Admi­nistração informa que há necessidade urgente do compar­timento que o senhor ora ocupa, designação 715301 a 65-15-0,4. O senhor é, pelo presente, notificado a desocupá-lo imediata­mente. O aluguel não devido foi creditado à sua conta, além de um bônus extra de 50 coroas a fim de compensar qualquer incômodo que esta medida lhe traga. Ordem assinada por Arthur Middlegaff, Vice-Administrador a Cargo de Habitações. Um bom-dia para o senhor!"

 

"Continuo a trabalhar pelo mesmo motivo porque uma gali­nha continua a pôr ovos."

H.L. Mencken, 1880-1956

 

Esbugalhei os olhos.

— Oh, maravilha das maravilhas! Cinqüenta coroas... poxa vida! Gwen! Agora você pode casar comigo por causa de meu dinheiro!

— Está se sentindo bem, querido? Você pagou mais do que isso por uma garrafa de vinho na noite passada. Acho isto per­feitamente nojento. Insultuoso.

— Claro que é, querida. A intenção é me botar furioso, além do incômodo de me forçar a me mudar. De modo que não vou fazer isso.

— Não vai se mudar?

— Não, e não. Vou me mudar imediatamente. Há manei­ras de lutar com a municipalidade, mas recusar-me a mudar não é uma delas. Não, quando o Vice-Administrador a Cargo de Habitações pode cortar a energia, a ventilação, a água e o serviço sanitário. Não, querida, a intenção é me irritar, arruinar minha capacidade de julgamento e me levar a fazer amea­ças que não possam ser cumpridas. Sorri para o meu amor.

— De modo que não vou ficar zangado, saio daqui ime­diatamente, manso como um cordeiro... e a fúria intensa que sinto dentro de mim será mantida onde está, fora da vista, até que me seja útil. Além do mais, não muda coisa nenhu­ma, uma vez que eu ia pleitear um compartimento mais am­plo — com pelo menos mais um quarto — para nós dois. De modo que vou ligar de volta para ele, para o querido Sr. Middlegaff, quero dizer.

Chamei novamente o catálogo, não sabendo de cor o có­digo do Departamento Imobiliário. Apertei o botão "executar".

E recebi um aviso pela tela: Terminal desligado."

Olhei-o fixamente, enquanto contava até dez na ordem in­versa, em sânscrito. O querido Sr. Middlegaff, ou o próprio Administrador, estava fazendo uma força danada para me en­raivecer. De modo que, acima de tudo, não devia deixar que isso acontecesse. Pense calmo, pensamentos tranqüilizadores, apropriados para um faquir deitado numa cama de pregos. Em­bora não houvesse nada demais em pensar em lhe fritar os testículos para almoço, logo que eu soubesse quem era ele. Com molho de soja? Ou apenas com manteiga ao alho e uma pita­da de sal?

Pensar nessa opção culinária realmente me acalmou um pouco. Descobri que não fiquei surpreso e não visivelmente mais aborrecido quando o aviso mudou de "Terminal desligado" para "Energia e serviços dependentes de uso de energia serão desligadosàs 13:00." O aviso foi substituído por outro, em grandes números: 1231 — e que mudou para 1232 enquanto eu o fitava.

— Richard, o que, em nome de Deus, eles estão fazendo?

— Ainda tentando me expulsar de dentro de meu crânio, acho. Mas não vamos deixar que consigam. Em vez disso, va­mos gastar esses 28 minutos — não, 27 — limpando o lixo de cinco anos.

— Sim, senhor. Como é que eu posso ajudar?

— É assim que se fala! O pequeno guarda-roupa ali, o gran­de, no quarto, jogue tudo em cima da cama. Na prateleira do grande guarda-roupa há uma sacola de lona, uma grande bolsa de pára-quedista. Ponha tudo dentro dela, o máximo que puder. Não escolha. Deixe de fora esse roupão que você usou no café da manhã e aproveite-o para fazer uma trouxa de tu­do que não couber na sacola. Amarre-a com a faixa do roupão.

— Seus artigos de toalete?

— Ah, sim. Fornecedor de sacos plásticos na cozinha... Coloque-os em um saco e ponha-o na trouxa. Doçura, você vai ser uma esposa maravilhosa!

— Nisso você tem razão. Um bocado de prática, querido... Viúvas sempre são as melhores esposas. Quer saber sobre meus maridos?

— Quero, mas não agora. Reserve isso para alguma longa noite, quando você estiver com dor de cabeça e eu não estiver cansado demais.

Tendo transferido para Gwen 90% de meu trabalho de ar­rumação, dediquei-me aos mais árduos 10%: meus arquivos e registros de transações.

Escritores são, na maior parte, ratos de bando, enquanto que militares profissionais aprendem a viajar leve, mais uma vez a maioria. Esta dicotomia poderia ter-me tornado um tipo esquizóide, não fosse pela mais maravilhosa das invenções que aconteceu na vida dos escritores desde a borracha em uma das pontas do lápis: os arquivos eletrônicos.

Eu uso Sony Megawafers, cada um deles com capacidade de meio milhão de palavras, cada um deles com dois centí­metros de largura, três milímetros de espessura, com as in­formações acondicionadas tão densamente que nem vale a pe­na pensar nisso. Sentei-me ao terminal, tirei minha prótese (pé postiço, se preferirem) e abri a porta de cima. Em seguida retirei todos os meus wafers de memória do seletor do termi­nal, coloquei-os no cilindro que é a "tíbia" de minha prótese, fechei-a e recoloquei-a no lugar.

Nesse momento, possuía todos os arquivos necessários à minha vida profissional: contratos, cartas comerciais, cópias de meus trabalhos protegidos por direitos autorais, correspon­dência geral, agendas de endereços, apontamentos para his­tórias que pretendia escrever, comprovantes de impostos, etcetera, e assim por diante, ad nauseam. Antes dos dias do ar­quivamento eletrônico, esses registros teriam equivalido a uma tonelada e meia de papel, em meia tonelada de aço, tudo isso ocupando vários metros cúbicos. Nesse momento, pesavam alguns gramas e ocupavam um espaço não maior que meu de­do médio — 20 milhões de palavras de espaço de arquivamento.

Os wafers estavam inteiramente acondicionados dentro do "osso" e, por conseguinte, protegidos contra roubo, perda ou dano. Quem é que rouba a prótese de um homem? De que modo pode um aleijado esquecer seu pé artificial? Pode tirá-lo à noite, mas é a primeira coisa que pega quando acorda.

Nem mesmo um assaltante profissional presta atenção a uma prótese. No meu caso, a maioria nem sabe que a uso. Ape­nas uma vez me separei dela, um colega (não um amigo) tomou-a enquanto me trancafiava durante a noite — havíamos tido um arranca-rabo a respeito de um assunto profissional. Mas consegui escapar, saltando sobre uma perna só. Depois, abri a cabeleira dele no meio com um atiçador de lareira e pe­guei meu outro pé, alguns papéis, e me mandei. Este negócio de literatura, basicamente sedentário, tem seus momentos animados.

No momento em que o terminal avisou 1254, estávamos quase no fim. Eu possuía apenas um punhado de livros — li­vros encadernados, palavras impressas em papel —, uma vez que fazia minhas pesquisas, o que havia neste particular, atra­vés do terminal. Esses poucos, Gwen enfiou na trouxa que fi­zera com meu roupão.

— O que mais? — perguntou ela.

— Acho que isso é tudo. Vou passar uma revista rápida e depois botar tudo que esquecemos no corredor e então decidir o que fazer com os troços depois que desligarem as luzes.

— E a árvore bonsai? — Gwen olhava nesse momento pa­ra meu pé de bordo, que tinha uns 80 anos e media apenas 39 centímetros de altura.

— Não dá para guardá-la em algum lugar, querida. Além do mais, precisa ser aguada várias vezes por dia. A coisa sen­sata a fazer é legá-la ao próximo inquilino.

— Uma ova, chefe. Você a leva na mão até meu comparti­mento, enquanto eu arrasto a bagagem atrás.

(Eu ia acrescentar que a "coisa sensata" a fazer nunca me agradara.) Mas de fato acrescentei:

— Vamos para seu compartimento?

— Para onde mais, querido? Claro que vamos precisar de um lugar maior, mas nossa necessidade urgente é de alguma espécie de teto sobre nossas cabeças. Parece que vai nevar ao anoitecer.

— Ora, é isso mesmo! Gwen, lembre-me para lhe dizer que estou feliz por ter casado com você.

— Você não pensaria nisso. Homens nunca pensam.

— É mesmo?

— De verdade. Mas eu a você, lembro de qualquer maneira.

— Faça isso. Estou contente porque você pensou em casar comigo. Estou feliz porque casou comigo. A partir de agora, promete que não deixa que eu faça as coisas sensatas?

Ela não prometeu, uma vez que as luzes piscaram duas vezes e, de repente, ficamos muito ocupados, Gwen pondo tudo lá fora no corredor, enquanto eu fazia uma última e fre­nética inspeção. As luzes piscaram novamente, agarrei a ben­gala e saí exatamente um instante antes da porta se contrair atrás de mim.

— Poxa!

— Calma aí, chefe. Respira devagar. Conte até 10 antes de exalar, depois solte o ar, devagarinho.

Gwen deu uma palmadinha nas minhas costas.

— Nós devíamos ter ido para Niagara Falls. Eu lhe disse. Eu lhe disse.

— Disse, Richard. Pegue a arvorezinha. Nesta gravidade, posso levar a. sacola e a trouxa, uma em cada mão. Vamos di­reto para gravidade zero?

— Vamos, mas eu levo a sacola de lona e a árvore. Vou amarrar a bengala à sacola.

— Por favor, não banque o macho, Richard. Não quando estamos tão ocupados.

— Macho é uma palavra que deprime, Gwen. Usá-la no­vamente será um convite a uma surra. Pela terceira vez, dou-lhe uma sova com esta bengala. Banco o macho toda vez que tiver vontade.

— Sim, senhor. Eu, Jane, você, Tarzã. Pegue a arvorezinha. Por favor.

Chegamos a uma solução conciliadora. Levei a sacola e usei a bengala para me equilibrar. Gwen segurou a trouxa com uma das mãos e a árvore bonsai com a outra. Ficou desequilibrada e continuou a mudar a trouxa de lado. A solução proposta por Gwen, tenho que reconhecer, fora mais sensata, uma vez que o peso não teria sido demais para ela nessa acelera­ção e caiu quase ininterruptamente à medida que subíamos para a gravidade zero. Fiquei um pouco sem graça, um tanto envergonhado... mas é uma tentação para um aleijado provar, especialmente para mulheres, que pode fazer tudo o que fa­zia antes. Besteira porque todo mundo pode ver que ele não pode. Mas eu não cedo freqüentemente a essa tentação.

Logo que começamos a flutuar no eixo, continuamos nos­so caminho, nossa bagagem amarrada atrás de nós, enquanto Gwen protegia a pequena árvore com ambas as mãos. Ao che­garmos ao anel onde ela morava, Gwen pegou as duas peças de bagagem e não discuti. A viagem levou menos de meia ho­ra. Eu podia ter chamado uma gôndola de carga — mas pode­ríamos estar ainda esperando por ela. Um "dispositivo eco­nomizador de trabalho" é o que não é.

Gwen pôs os embrulhos no chão e falou com a porta.

E ela não abriu.

Em vez disso, a porta respondeu:

— Sra. Novak, por favor, telefone imediatamente para o Departamento Imobiliário da Administração. O terminal pú­blico mais próximo fica no anel 1-100-5, raio 1-30-5, aceleração seis décimos de gravidade, contíguo à estação de transporte público. Esse terminal aceitará sua chamada gratuitamente, cor­tesia da Regra de Ouro.

Não posso dizer que fiquei muito surpreso. Mas reconhe­ço que fiquei horrivelmente decepcionado. Estar sem um teto é mais ou menos como estar com fome. Talvez pior.

Gwen reagiu como se não tivesse ouvido a triste notícia. Virou-se para mim;

— Sente-se em cima da sacola de lona, Richard, e acalme­-se. Acho que não vai demorar.

Abriu a bolsa, mexeu nela e puxou a mão trazendo uma lixa de unha, um pedaço de arame e um clip de papel. Canta­rolando uma musiquinha monótona, começou a trabalhar na porta do compartimento.

Ajudei não dando conselho. Nem uma única palavra. Era difícil, mas consegui.

Gwen parou de cantarolar e espigou-se. — Pronto! — anunciou.

A porta escancarou-se.

Pegou minha árvore bonsai — nosso bonsai de bordo.

— Entre, querido. É melhor deixar a sacola atravessada na soleira, para que a porta não se encolha. Está escuro aí dentro.

 

TODOS OS SERVIÇOS DESLIGADOS

 

Ela ignorou o aviso, deu outra busca na bolsa e dela tirou uma lanterna-caneta, que usou para mexer numa gaveta na co­zinha, de onde tirou uma comprida e fina chave de fenda, uma chave de grifa, uma ferramenta não identificada que podia ter sido de fabricação caseira e um par de luvas do tamanho de suas esguias mãos.

— Richard, você quer segurar bonitinho para mim?

A placa de acesso que ela queria alcançar ficava bem alto acima de seu forno de microondas e era fechada e decorada com os avisos habituais alertando moradores para nem mes­mo olhar para ela, quanto mais tocá-la, acompanhada de en­cantamentos como "Perigo! Não Mexa — Chame a Manuten­ção", etc. Gwen subiu, sentou-se em cima do forno e abriu a placa com apenas um toque, tendo sido antes, aparentemen­te, inutilizada a tranca.

Depois, trabalhou em silêncio, salvo por aquela musiqui­nha monótona, além de um pedido ou outro para eu mover a luz. Numa ocasião, produziu um autêntico fogo de artifício, o que a fez cacarejar de reprovação e murmurar:

— Mal-educado, mal-educado, você não devia fazer isso com Gwen!

Em seguida, trabalhou mais devagar durante mais alguns momentos. As luzes do compartimento voltaram, acompanha­das por um baixo ronronado na sala de estar — ar, micromotores, etc.

Fechou a placa de acesso.

— Pode me ajudar a descer, querido?

Ergui-a com ambas as mãos, abracei-a por um instante, exi­gi um beijo de pagamento. Ela sorriu para mim.

— Obrigado, senhor! Deus do céu, eu havia me esqueci­do como é bom ser casada. A gente devia casar mais vezes.

— Agora?

— Não. Agora almoço. O café da manhã foi reforçado mas já passa das 2h da tarde. Topa comer alguma coisa?

— É um bom exercício — assenti. — Que tal o Sloppy Joe ou a Appian Way, que fica perto do anel 1-0-5? Ou você prefe­re haute cuisine?

Um Sloppy Joe dá pé. Não sou exigente em comida, que­rido. Mas não acho que a gente deva sair para almoçar. Talvez não pudéssemos entrar de novo.

— Por que não? Você faz um trabalho bacana como penetra.

— Richard, talvez não seja fácil outra vez. Eles simplesmente não notaram ainda que fechar a porta comigo não fun­ciona. Mas quando notarem... podem soldar uma chapa de aço de um lado a outro da porta, se for necessário. Não que seja, porque não vou mais brigar para sair daqui mais do que você brigou. Vamos almoçar. Depois, arrumo minhas coisas. O que é que você gostaria de comer?

Descobri que Gwen havia tirado de minha cozinha certos itens de gourmet que eu mantinha no freezer ou em pacotes esterilizados. Eu de fato me abasteço de alimentos pouco co­muns. De que modo pode um cara saber antecipadamente, quan­do está trabalhando num conto, no meio da noite, que vai so­frer de um desejo ardente de comer pudim de mariscos? É me­ramente prudente ter os materiais à mão. De outra maneira o cara podia sucumbir à tentação de abandonar o trabalho, aban­donar a reclusão monástica a fim de descobrir um artigo que tem por que tem que comer — e esta é a porta aberta para a falência.

Gwen preparou um buffet de seus suprimentos e dos meus — nossos é o que eu devia ter dito — e almoçamos enquanto discutíamos nosso próximo movimento... porque tínhamos que nos pôr em movimento. Disse a ela que minha intenção era procurar o querido Sr. Middlegaff logo que terminássemos o almoço.

Ela pareceu pensativa.

— Acho que seria melhor eu arrumar minhas coisas pri­meiro.

— Se quiser. Mas por quê?

— Richard, estamos com lepra, isto é claro. Acho que de­vemos ter pego a doença com o assassinato de Schultz. Mas não sabemos. Qualquer que seja a causa, quando botarmos a cabeça do lado de fora é melhor que eu tenha minhas coi­sas à mão, exatamente como você. Talvez não possamos en­trar novamente. — Inclinou a cabeça na direção do terminal, brilhando ainda com o aviso: "Todos os serviços desligados." — Recolocar aquele terminal em funcionamento seria muito mais difícil do que mexer em alguns solenóides, uma vez que o próprio computador está em outro local. De modo que não podemos enfrentar o Sr. Middlegaff a partir deste com­partimento. Por conseguinte, temos que fazer tudo que pre­cisarmos fazer aqui, antes de sairmos por aquela porta.

— Enquanto você faz as malas, eu posso sair e telefonar para ele.

— Só sobre meu cadáver.

— Ahn? Gwen, seja sensata.

— Sensata eu enfaticamente sou. Richard Colin, você é um marido novo em folha. Tenciono obter anos e anos de uso de você. Enquanto esta confusão estiver acontecendo, não tenho a menor intenção de deixá-lo longe de minhas vistas. Você po­deria desaparecer, como o Sr. Schultz. Paixão, se vão atirar em você, vão ter que atirar em mim primeiro.

Tentei raciocinar com ela. Ela tapou as orelhas.

— Não vou discutir. Não posso ouvir o que você está di­zendo, não estou escutando! — Descobriu as orelhas. — Ve­nha me ajudar a arrumar as coisas. Por favor.

— Sim, querida.

Gwen arrumou tudo em menos tempo do que eu, embo­ra minha ajuda consistisse principalmente em não atrapalhá-la. Não estou acostumado a morar com mulheres. O serviço militar não é conducente à vida doméstica e eu tendera a evi­tar casamento, à parte contratos de curto prazo com camara­das amazonas — contratos automaticamente cancelados por ordens de mudança de missões. Depois que cheguei ao ofi­cialato, tive ordenanças umas duas ou seis vezes — mas tam­bém não acho que esse relacionamento seja muito parecido com o casamento civil.

O que estou tentando dizer é que, a despeito de ter escri­to muitos milhares de palavras de histórias de amor, sob cen­to e tantos pseudônimos femininos diferentes, não entendo muito de mulheres. Quando estava aprendendo os macetes da profissão, disse isso ao editor que me comprava essas his­tórias de pecado, sofrimento e arrependimento. O editor em causa era Evely Fingerhut, um cara sombrio, de meia-idade, uma falha no couro cabeludo e um charuto permanente na boca.

Grunhiu ele:

— Não tente compreender as mulheres. Isto só o preju­dicaria.

— Mas estas são supostamente histórias verdadeiras — protestei.

— Elas são histórias verdadeiras. Todas são acompanha­das de uma declaração prestada sob juramento: "Esta história baseia-se em fatos verídicos." — Indicou o manuscrito que

eu acabara de lhe entregar. — Você tem uma declaração de "Fato verídico" grampeada a essa aí. Está querendo me dizer que ela não é? Não quer receber seu dinheiro?

Sim, queria. Para mim, o máximo em estilo de prosa é exemplificado pela frase simples e graciosa: "Pague-se por es­te cheque a quantia de..." e respondi logo:

— Bem, para ser fiel aos fatos, essa história não constitui problema. Eu não conheci realmente a mulher em causa, mas minha mãe me contou tudo sobre ela... uma coleguinha dela na escola. Já estava grávida quando a verdade apareceu... e ela então enfrentou aquele horrível dilema, segundo me con­taram: o pecado do aborto ou a tragédia de um filho incestuo­so, com a possibilidade de duas cabeças e nenhum queixo? Tu­do é fato verídico, Evelyn, mas eu suavizei um pouco a coisa ao contar a história. Acabou-se descobrindo que Beth Lou não era parente consangüínea do tio — e foi assim que escrevi — mas também que o filho não era do marido. Essa parte eu dei­xei de fora.

— Então, reescreva-a e deixe essa parte e tire a outra. Sim­plesmente, não esqueça de mudar os nomes e lugares. Eu não quero queixas.

Mais tarde fiz isso e vendi a ele também essa versão, mas nunca me convenci a dizer a Fingerhut que aquilo não acon­tecera a uma coleguinha de minha mãe, mas era uma coisa que eu havia surrupiado de um livro que pertencia a minha tia Abby: o libretto do O Anel dos Nibelungen, de Richard Wagner, que devia ter se limitado a compor música e procurado um W. S. Gilbert para lhe preparar os librettos. Wagner era péssimo escritor.

Os seus enredos absurdos, porém, eram exatamente cer­tos para o ramo de confissões verdadeiras... as arestas um pou­co aparadas, menos crueza e, claro, nomes e locais diferentes. Não os roubei. Ou não inteiramente. Todos eles pertencem hoje ao domínio público, copyríghts vencidos, e tudo mais, e pa­ra começar, Wagner roubou-os de alguém.

Eu poderia ter continuado a ganhar a vida usando nada mais que os enredos wagnerianos. Mas enchi da coisa. Quan­do Fingerhut se aposentou e comprou um rancho de criação de perus, abandonei o ramo de confissões e comecei a escre­ver histórias de guerra. Isto era mais difícil — durante algum tempo até fome passei — porque assuntos militares são coisas que conheço e isso (conforme dissera Fingerhut) prejudica.

Após algum tempo, aprendi a suprimir o que sabia e não deixar que interferisse na história. Mas nunca tive aquele pro­blema com as histórias de confissões verdadeiras, uma vez que nem Fingerhut nem eu, nem Wagner, sabíamos de coisa al­guma a respeito de mulheres.

 

Especialmente sobre Gwen. Em algum lugar eu pegara a idéia de que, para viajar, mulheres precisam, pelo menos, de sete mulas de carga. Ou o equivalente em grandes valises. E, claro, mulheres, por natureza, são desorganizadas. Pelo me­nos era isso o que eu pensava.

Gwen saiu do compartimento trazendo apenas uma grande mala de roupas, menor que minha sacola de lona, com todas as roupas bem dobradas, e uma maleta menor contendo... bem, não eram roupas. Coisas.

Alinhou nossas posses — sacola de lona, trouxa, mala gran­de, maleta, a bolsa de sair, minha bengala, a árvore bonsai, e fitou-as.

— Acho que posso bolar uma maneira — disse — de le­varmos todas elas de uma só vez.

— Não vejo como — protestei —, com duas mãos apenas cada. Acho que é melhor eu chamar uma gôndola de carga.

— Se quiser, Richard.

— Quero. — Virei-me para o terminal dela e... parei interdito: — Ahn...

Gwen dirigia toda sua atenção para nosso minúsculo pé de bordo.

— Ahn... — repeti. — Gwen, você tem que relaxar um pou­co. Eu saio daqui, procuro a cabine de terminal mais próxima, volto em seguida...

— Não, Richard.

— Ahn? Apenas o tempo suficiente para...

— Não, Richard. Soltei um suspiro.

— Qual é a sua solução?

— Richard, concordo com qualquer curso de ação que não exija que nos separemos. Deixar tudo aqui no compartimento e acalentar a esperança de que possamos voltar a ele... bem, isto é uma maneira. Pôr tudo do lado de fora e deixar aí, en­quanto vamos procurar uma gôndola de carga — e telefona­mos para o Sr. Middlegaff — é outra.

— E tudo sumir quando estivermos longe? Ou será que não há ratos bípedes neste bairro?

Eu estava sendo sarcástico. Todos os habitats no espaço têm seus noctâmbulos, habitantes invisíveis que não possuem recursos para permanecer no espaço mas que, de todo jeito, querem evitar ser mandados de volta à Terra. No Regra de Ou­ro, tenho a impressão de que a Administração jogava-os no vácuo quando conseguia pegá-los... embora circulassem boa­tos do tipo que me faziam evitar todos os tipos de carne de porco picada.

— Há uma terceira maneira, senhor, suficiente para nos levar até aquela cabine de terminal. Sendo este o lugar mais longe onde podemos ir, até que o Departamento Imobiliário nos designe novas acomodações. Logo que soubermos nosso novo endereço, podemos chamar uma gôndola e esperar por ela.

Após uma pequena pausa, ela continuou:

— A cabine fica perto daqui. Senhor, o senhor disse antes que poderia levar sua sacola e a trouxa, com a bengala amar­rada à sacola. Nesta curta distância, concordo com isso. Posso levar minhas malas, uma em cada mão, com a correia de mi­nha bolsa aumentada para que eu possa carregá-la em volta do ombro.

E disse mais:

— O único problema é a pequena árvore. Richard, você viu alguma vez na National Geographic moças nativas levan­do trouxas na cabeça?

Não esperou que eu concordasse com a sugestão. Pegou a árvore em seu vaso, equilibrou-a em cima da cabeça, soltou as mãos, sorriu para mim, agachou-se, curvando apenas os joelhos, a espinha reta e a postura ereta — e apanhou as duas malas.

Foi até o fim do compartimento, virou-se e olhou para mim. Aplaudi.

— Obrigada, senhor. Apenas mais uma coisa. Os corre­dores estão às vezes muito cheios de gente. Se alguém se cho­car comigo, faço isto. — Simulou que estava cambaleando de­vido a um encontrão, deixou cair as duas malas, pegou a bon­sai no momento em que ela caía, recolocou-a na cabeça e, mais uma vez, levantou as malas. — Assim.

— E eu solto minhas sacolas, pego a bengala e espanco-o com ela. O cara que deu um encontrão em você. Não para ma­tar. Apenas para repreender. — E acrescentei: — Suponho que o canalha seja homem e adulto. Se não, farei com que o casti­go se ajuste ao criminoso.

— Tenho certeza de que fará isso, querido. Mas, para di­zer a verdade, acho que ninguém vai me empurrar, uma vez que você vai seguir na minha frente, abrindo caminho. Tudo bem?

— Tudo bem. Exceto que você deve ficar nua da cintura para cima.

— É mesmo?

— Todas as fotos desse tipo na National Geographic mos­tram mulheres com o busto nu. É por isso que as publicam.

— Tudo bem, se é isso o que você quer. Embora eu não seja realmente bem-dotada nesse particular.

— Deixe de querer provocar elogios, sua fingida. Você serve perfeitamente. Mas é boa demais para a plebe comum, de mo­do que continue a usar a blusa.

— Não me importo. Se você realmente pensar que eu devo.

— Você é bem-disposta demais. Faça o que quiser, mas eu não estou, repito, não estou insistindo em que faça isso. To­das as mulheres são exibicionistas?

— São.

A discussão terminou porque a porta deu sinal. Ela pare­ceu surpresa.

— Deixe que eu atendo — disse eu, e dirigi-me para a porta, onde toquei o botão de áudio: — Sim?

— Mensagem do Administrador!

Tirei o dedo do botão e olhei para Gwen:

— Abro?

— Acho que devemos.

Toquei o botão do dilatador. A porta se alargou e um ho­mem usando uniforme de censor entrou. Deixei a porta vol­tar a se contrair. Ele me estendeu uma prancheta.

— Assine aqui, senador. — Recolheu-a em seguida. — Hei, o senhor é o senador da Standard Oil, não?

 

"Ele é uma dessas pessoas que seriam imensamente melho­radas pela morte."

  1. H. Munro, 1870-1916

 

Respondi:

— Você começou de trás para frente. Quem é você? Identi­fique-se.

— Ahn? Se o senhor não é o senador, esqueça, deram-me o endereço errado.

Ele começou a recuar e bateu de costas na porta. Pareceu surpreso, virou a cabeça e procurou o botão dilatador. Bati na mão dele para baixá-la.

— Eu lhe disse para se identificar. Essa roupa de palhaço que está usando não é identificação. Quero ver suas creden­ciais. Gwen! Cubra-o!

— Certo, senador!

Ele estendeu a mão para o bolso de trás e sacou rápido. Com um pontapé Gwen arrancou o que quer que ele tivesse na mão. Quanto a mim, dei-lhe uma cutelada no lado esquerdo do pescoço. A prancheta voou e ele desabou, caindo com uma indolência curiosamente graciosa naquela baixa gravidade. Ajoelhei-me ao lado dele.

— Continue a cobri-lo, Gwen.

— Um instante, senador... fique de olho nele! — Recuei e esperei. Ela continuou: — Tudo bem, agora. Mas não fique em minha linha de fogo, por favor.

— Recebido e entendido.

Olhei para nosso convidado, desmoronando frouxamen­te no chão. A postura esquisita parecia dizer que ele estava sem sentidos. Ainda assim, havia a possibilidade de que estivesse fingindo. Eu não o atingira com essa força toda. Por causa dis­so, apliquei o polegar no ponto de pressão na vértebra cervi­cal esquerda inferior, apertando com força suficiente para que ele gritasse e subisse até o teto, se estivesse consciente. Ele não se moveu.

Fiz uma revista nele. Em primeiro lugar, atrás. Em segui­da, virei-o. As calças não combinavam com a túnica e lhe fal­tava o friso dourado lateral, que fazem parte do uniforme dos censores. A túnica também não estava bem no corpo. Nos bol­sos, algumas coroas, em papel-moeda, um bilhete de loteria e cinco cartuchos. Eram Skodas, 6,5mm, longos, sem estojo, expansivos, usados em pistolas, metralhadoras portáteis e fu­zis — e ilegal em quase toda parte. Nada de carteira, nem cé­dula de identidade, nada mais.

E ele precisava de um banho.

Coloquei-o novamente de costas e me levantei.

— Continue a cobri-lo com sua arma, Gwen. Acho que ele é um noctâmbulo.

— Eu também acho. Por favor, olhe para aquilo, senhor, enquanto eu o mantenho coberto.

Chamar aquilo de "pistola" dignificava-a mais do que a coi­sa merecia. Era uma arma letal, de fabricação caseira, da cate­goria tradicionalmente conhecida como "queimante de malan­dro". Examinei-o com todo o cuidado que me era possível, sem tocá-lo. O cano era um tubo de metal tão delgado que me per­guntei se jamais havia sido disparado. Possuía empunhadura de plástico, lixada ou desbastada para se ajustar à mão. O me­canismo de disparo era ocultado por uma tampa de metal man­tida no lugar (acreditem ou não) por elásticos. Parecia certo que era uma arma de um só disparo. Mas com aquele cano tão fino poderia ser também de último disparo. Achei que era tão perigosa para quem a usasse como para o alvo.

— Coisinha perigosa — comentei. — Não quero tocá-la. É uma armadilha antipessoal em si.

Olhei para Gwen. Ela o cobria com uma arma igualmente letal, mas que incluía tudo o que havia de melhor na moder­na arte do armeiro, uma Miyako de nove tiros.

— Quando ele sacou, por que não atirou nele? Em vez de se arriscar a desarmá-lo! Você pode ficar bem morta dessa maneira.

— Porquê.

— Porque o quê? Se uma pessoa puxar uma arma para vo­cê, mate-a imediatamente. Se puder.

— Eu não podia. Quando você me disse para cobri-lo, mi­nha bolsa estava ali. De modo que o cobri com isto. — Algu­ma coisa brilhou subitamente na outra mão e ela deu a im­pressão de ser uma pistoleira ambidestra. Depois, colocou-a no bolso da blusa: uma caneta. — Fui pega desprevenida, chefe.

— Oh, como pude cometer tais erros! Quando gritei para você dizendo para cobri-lo, eu estava simplesmente tentando distraí-lo. Não sabia que você só tinha o pé para mandar.

— Eu disse que sentia muito. Logo que deu tempo de pe­gar a bolsa, tirei este convencedor. Mas tinha que desarmá-lo primeiro.

Quando descobri, estava pensando comigo mesmo o que um comandante de campo não faria com mil Gwens. Ela pesa mais ou menos 50kg e não deve ter de altura muito mais que l,50m — digamos, 156 centímetros, descalça. Mas tamanho pouco tem a ver com a coisa, conforme descobriu Golias há muito tempo.

Por outro lado, em parte alguma há mil Gwens. O que tal­vez seja bom.

Ela hesitou antes de responder:

— Se estivesse, os resultados poderiam ter sido lamentá­veis, não acha?

— Retiro a pergunta. Acho que nosso amigo está acordan­do. Mantenha a arma apontada para ele, enquanto verifico.

Mais uma vez, apliquei-lhe o polegar. Ele soltou um uivo.

— Sente-se — ordenei. — Não tente se levantar. Simples­mente, sente-se e ponha as mãos na cabeça. Qual é o seu nome?

Ele me disse para fazer uma coisa não só improvável co­mo imoral.

— Ora, ora — censurei-o —, nada de grosseria, por favor. Sra. Durona — continuei, olhando diretamente para Gwen —, gostaria de atirar nele apenas um pouquinho? Um ferimento na carne? O suficiente para lhe ensinar boas maneiras?

— Se quer assim, senador. Agora?

— Bem... vamos perdoá-lo por aquele erro. Mas nada de se­gunda oportunidade. Faça o possível para não matá-lo, quere­mos que ele fale. Pode atingi-lo na parte carnuda da coxa? Sem atingir o osso?

— Posso tentar.

— Isso é tudo o que uma pessoa pode pedir. Se atingir o osso, não será por rancor. Agora, vamos recomeçar. Qual é o seu nome?

— Ahn... Bill.

— Bill. E o resto do seu nome?

— Ahn, apenas Bill. Esse é todo nome que tenho.

— Um pequeno ferimento na carne agora, senador? — su­geriu Gwen. — Para avivar a memória dele?

— Quem sabe? Quer na perna esquerda, Bill? Ou na di­reita?

— Em nenhuma das duas! Olhe aqui, senador, Bill é mes­mo o único nome que tenho... e diga a ela para não apontar aque­la coisa pra mim, sim?

— Mantenha-o coberto, Sra. Durona. Bill, ela não atira en­quanto você cooperar. O que foi que aconteceu com seu sobrenome?

— Nunca tive. Eu era o "Bill Número Seis" no Orfanato do Santo Nome. Lá na superfície, isto é, Nova Orleans.

— Compreendo. Estou começando a compreender. Mas o que dizia no seu passaporte quando você chegou aqui?

— Eu não tinha. Apenas um cartão de trabalho. Dizia: "William Nenhum Nome Intermediário Johnson." Mas isso foi o que o recrutador de operários escreveu. Olhe, ela está ba­lançando aquela arma na minha direção!

— Então não faça nada para aborrecê-la. Você sabe como são as mulheres.

— Claro que sei. Elas não deviam ter permissão para usar armas.

— Um pensamento interessante. Falando em armas... A respeito dessa que você trouxe: quero descarregá-la, mas te­nho medo que exploda na minha mão. De modo que, em vez da minha, vamos arriscar a sua. Sem se levantar, vire-se de modo a ficar de costas para a Sra. Durona. Vou empurrar seu estilingue para um lugar onde possa pegá-lo. Quando eu lhe disser — não antes! —, pode baixar as mãos, descarregá-lo e no­vamente pôr as mãos sobre a cabeça. Mas escute isto com aten­ção. — Virei-me para Gwen: — Sra. Durona, quando Bill se vi­rar, faça pontaria para a espinha dele, imediatamente abaixo do pescoço. Se ele fizer qualquer movimento suspeito — mate-o. Não espere ordem, e não lhe dê uma segunda opor­tunidade, nem faça disso um ferimento na carne — mate-o instantaneamente.

— Com grande prazer, senador! Bill soltou um gemido.

— Tudo bem, Bill, vire-se. Não use as mãos. Apenas for­ça de vontade.

Ele girou sobre as nádegas, raspando o chão com os calca­nhares para conseguir tração. Notei, aprovador, que Gwen mu­dara para a firme empunhadura de duas mãos. Peguei a bengala e empurrei a arma de fabricação caseira de Bill para um ponto em frente a ele.

— Bill, não faça qualquer movimento súbito. Baixe as mãos. Descarregue a pistola. Deixe-a aberta, com a bala ao lado. De­pois volte a pôr as mãos sobre a cabeça.

Dei apoio a Gwen com minha bengala e prendi a respira­ção enquanto Bill fazia exatamente o que eu mandara. Eu não tinha a menor pena em matá-lo e estava certo de que Gwen o mataria imediatamente, se ele tentasse virar contra nós aquela arma improvisada.

Mas eu me preocupava sobre o que fazer com o cadáver. Não o queria morto. A menos que o cara esteja em um campo de batalha ou num hospital, cadáver é um embaraço, difícil de explicar. A Administração forçosamente seria exigente a esse respeito.

Soltei por isso mesmo um suspiro de alívio quando ele terminou a tarefa e recolocou as mãos na cabeça.

Estendi a bengala, ao contrário, e puxei a perigosa arma­zinha e seu único cartucho em minha direção — botei o cartu­cho no bolso, pisei com o calcanhar no cano, esmagando-o, também o mecanismo de disparo improvisado, e depois disse a Gwen:

— Pode relaxar um pouco. Não há necessidade de matá-lo neste instante. Retorna àquele alerta para infligir ferimen­tos na carne.

— Sim, senhor senador. Posso fazer nele aquele ferimento?

— Não, não! Não, se ele se comportar. Bill, você vai se com­portar, não vai?

— Não estou me comportando? Senador, diga a ela para, pelo menos, baixar a trava de segurança!

— Ora, ora! O seu nem trava tinha. E você não está em situação de impor condições. Bill, o que foi que você fez com o censor que matou?

— Humm!

— Ora, não me venha com essa. Você aparece aqui usan­do uma túnica de censor que não dá em você. E as calças não combinam com a túnica. Pedi para ver suas credenciais e você puxou uma arma — um queimante de malandro, pelo amor de Deus! E você não toma banho... há quanto tempo? Você vai dizer. Mas vai dizer primeiro o que tez com o dono da tú­nica. Está morto? Ou simplesmente sem sentidos e enfiado num armário? Responda logo ou vou pedir à Sra. Durona que lhe aplique um estimulante de memória. Onde está ele?

— Não sei! Não fui eu que fiz isso.

— Ora, ora, meu querido rapaz, não minta.

— É verdade! Juro pela minha santa mãe que é a pura verdade!

Eu tinha dúvidas sobre a honra da mãe dele, mas teria si­do impolido manifestá-las, especialmente tratando-se de um espécime tão lamentável.

— Bill — disse eu gentilmente —, você não é censor. Tenho que explicar por que estou tão certo disso? (O Censor-Chefe Franco é um disciplinador rigoroso. Se um de seu capangas aparecesse para a chamada da manhã com a aparência — e o cheiro — daquele pobre-diabo, o delinqüente teria sorte se fosse meramente chutado de volta para a terra.) — Explicarei se insiste. Já enfiaram um alfinete embaixo da sua unha e de­pois aqueceram a outra extremidade? Esse remédio melhora imediatamente a memória.

Entusiasmada, Gwen disse:

— Um grampo de cabelo funciona melhor, senador... há mais massa para conservar o calor. Eu tenho um aqui. Posso fazer isso com ele? Posso?

— Você quer dizer: "O senhor deixa eu fazer isso com ele?", não é? Não, querida menina. Quero que você continue a manter Bill sob mira. Se for necessário recorrer a esses métodos, não vou pedir a uma senhora que faça isso por mim.

— Ah, senador, o senhor vai ficar com pena e parar quando ele for justamente dar o serviço. Eu, não! Deixe que lhe mos­tre... por favor!

— Bem...

— Não deixe essa cadela sedenta de sangue se aproximar de mim! — Bill falou em voz estridente.

— Bill! Você vai pedir desculpa à moça imediatamente. Se não pedir, deixo que ela faça o que desejar.

Novamente, ele gemeu:

— Moça, desculpe. Sinto muito. Mas você está me enca­gaçando. Por favor, não use um grampo de cabelo em mim... Eu vi um cara depois que fizeram isso com ele.

— Oh, poderia ser pior — garantiu-lhe Gwen em voz agra­dável. — Fio de cobre conduz o calor ainda melhor, e no cor­po do homem, há lugares interessantes onde a gente pode usá-lo. Mais eficiente. Resultados mais rápidos. — E acrescentou, pensativa: — Senador, tenho um pedaço de fio de cobre na minha maleta. Se segurar esta pistola por um momento, vou buscá-lo para o senhor.

— Obrigado, minha querida, mas talvez não seja neces­sário. Acho que o Bill quer dizer alguma coisa.

— Nenhum problema, senhor. O senhor não quer que eu fale logo?

— Talvez. Vejamos. Bill, o que foi que você fez com aque­le censor?

— Não fiz. Nunca botei os olhos em cima dele! Dois ba­bacas disseram que tinham um negócio pra mim, pagavam bem. Não os vi, não sei quem são. Mas eles sempre aparecem e Dedos diz que eles eram legais. Ele...

— Pare aí. Quem é "Dedos"?

— Ahn, o prefeito do nosso beco. Okay?

Mais detalhes, por favor. Seu beco?

— Um homem tem que dormir em algum lugar, não tem? Gente importante como o senhor tem compartimento com no­me na porta. Quem me dera ter essa sorte! A casa é o lugar onde a gente está... certo?

— Acho que você está me dizendo que o beco é o seu lar. Onde fica? Anel, raio, aceleração.

— Ahn... bem, a coisa não é exatamente assim.

— Seja racional, Bill. Se está dentro do cilindro principal, e não distante em um dos anexos, a localização dele pode ser descrita dessa maneira.

— Talvez possa, mas não posso descrevê-la assim, porque não é assim que se chega lá. E não vou na frente pelo cami­nho que o senhor tem que seguir porque... — O rosto dele contorceu-se em total desespero e ele pareceu dez anos mais velho. — Não deixe ela aplicar o arame quente em mim e não deixe ela atirar em mim, um pouquinho de cada vez. Por fa­vor! Simplesmente, me jogue no espaço e acabe com tudo lo­go... okay?

— Senador?

— Sim, Sra. Durona.

— Bill está com medo de que, se o senhor o machucar mui­to, ele lhe diga onde se esconde para dormir. Outros noctâm­bulos também dormem lá. A coisa é essa. Acho que o Regra de Ouro não é suficientemente grande para escondê-lo dos ou­tros. Se ele disser onde dormem, eles o matarão. E talvez não depressa.

— Bill, é por isso que você está sendo teimoso?

— Eu já falei demais. Me jogue no espaço.

— Não, enquanto você estiver vivo, Bill. Você sabe de coi­sas que eu preciso saber e tenciono espremê-las de você, mes­mo que tenha que usar o arame de cobre e as idéias mais ca­prichosas da Sra. Durona. Mas talvez eu não precise de res­posta à pergunta que lhe fiz. O que é que vai lhe acontecer se você me disser ou me mostrar onde fica seu beco?

Ele demorou a responder. Não o apressei. Finalmente, ele começou em voz baixa:

— Os censores pegaram um babaca há seis, sete meses. Obrigaram-no a falar. Não era do meu beco, graças a Jesus. O beco dele era uma instalação de manutenção espacial, per­to de 110 e com gravidade completa. De modo que os censo­res encheram-na de gás e um bocado de babacas morreram... mas este babaca eles soltaram. E que ajuda foi essa? Não estava solto nem 24 horas quando o pegaram e trancaram-no com ratos, ratos famintos.

— Compreendo. — E olhei para Gwen. Ela engoliu em seco e murmurou:

— Senador, ratos, não. Não gosto de ratos. Por favor.

— Bill, retiro a pergunta sobre seu beco. Seu esconderijo. E não vou pedir que identifique qualquer noctâmbulo. Mas espero que responda a tudo mais, completo e rápido. Nada de embromar. E nem de perder tempo. De acordo?

— Sim, senhor.

— Volte atrás. Esses dois desconhecidos lhe ofereceram um trabalho. Conte como foi.

— Ahn, eles falaram comigo apenas uns minutos, nada demais nisso. Queriam que eu usasse esta túnica, para eu pa­recer um censor. Bater na porta aqui e perguntar pelo senhor. "Mensagem do Administrador", era isso o que eu devia dizer. Depois, o resto a gente faz... o senhor sabe. Quando eu di­sesse "Hei? O senhor não é o senador! Ou é?", eles deviam chegar e prender o senhor.

Bill olhou-me, acusador.

— Mas o senhor botou tudo a perder. O senhor foi quem estragou a coisa, não eu. O senhor não fez nada que devia fa­zer. Fechou a porta às minhas costas... e não devia ter feito isso. E, no fim, era mesmo o senador... e ela estava com o se­nhor. — A voz ficou especialmente amarga quando ele se re­feriu a Gwen.

Eu podia compreender a razão do ressentimento dele. De que modo pode um criminoso sincero, que se esforça muito, progredir em sua profissão se a vítima não coopera? Quase todos os crimes dependem da aquiescência da vítima. Se a ví­tima recusa-se a assumir o papel designado, o criminoso fica em desvantagem tão séria que, em geral, é preciso um juiz com­preensivo e compassivo para endireitar as coisas. Eu quebra­ra as regras; reagira.

— Você certamente teve uma maré de má sorte, Bill. Vamos ver essa "Mensagem da Administração" que você devia entregar. Mantenha-o coberto, Sra. Durona.

— Posso baixar as mãos?

— Não.

A prancheta continuava no chão, entre Gwen e Bill, mas um pouco mais perto de mim. Poderia pegá-la sem interrom­per a linha de tiro. Apanhei-a.

Preso à prancheta havia um formulário de recibo de men­sagens, com lugar para que eu (ou alguém) assinasse. Ao la­do, vi o envelope azul da Mackay Três Planetas. Abri-o.

A mensagem era em grupos de códigos de cinco letras, mais ou menos uns 50 deles. Até mesmo o endereço estava em código. Mas em cursivo em cima do endereço estava escri­to: "Sen. Cantor, St. Oil."

Enfiei a mensagem no bolso sem comentário. Gwen inter­rogou-me com os olhos. Consegui não vê-los.

— Sra. Durona, o que é que nós vamos fazer com Bill?

— Dar um esfrega nele!

— Ahn? Quer dizer 'Acabar com ele"? ou está se ofere­cendo para esfregar as costas dele?

— Deus, não! As duas coisas. Nenhuma delas. Estou su­gerindo que a gente o ponha no refrescador e deixe-o lá até que fique higiênico. Banhado, água quente e um bocado de sabão. E xampu nos cabelos. Unhas limpas, das mãos e dos pés. Tudo. Não deixar que ele saia até que cheire bem.

— Você deixaria que ele usasse seu "refrescador"?

— Do jeito que estão as coisas, não penso que vá usá-lo novamente, senador. E estou cansada do fedor dele.

— Bem, sim, ele lembra batatas podres em dia quente no Gulf Stream. Bill, tire a roupa.

A classe criminal é o grupo mais conservador de qualquer sociedade. Bill relutou tanto em se despir em frente a uma mu­lher como o fizera a respeito da divulgação do esconderijo de seus amigos bandidos. Ficou chocado porque sugeri isso, hor­rorizado porque a mulher topou a proposta indecente. Quan­to a este último ponto, eu poderia ter concordado com ele ontem... mas eu descobrira que Gwen não se assusta à toa. Na verdade, acho que ela gostou daquilo.

Ao ficar pelado, Bill despertou-me um pouco de simpa­tia: parecia uma galinha depenada, com uma expressão infe­liz para combinar. Quando chegou à cueca (cinzenta de sujo) parou e olhou-me.

— Tudo bem — respondi vivamente. — Tire e corra para o refrescador. Se fizer um trabalho ordinário, repete tudo. Se botar o nariz de fora em menos de 30 minutos, nem me preo­cuparei em ver seu estado. Simplesmente, mando-o voltar para o banho. Agora, tire essa cueca — rápido!

Bill virou as costas para Gwen, tirou a cueca e correu de lado para o refrescador, em uma tentativa inútil de conservar um pouco de pudor. Trancou a porta.

Gwen guardou a pistola na bolsa e depois movimentou os dedos, flexionando-os e estirando-os.

— Eu estava ficando com os dedos duros, segurando a ar­ma. Amado, posso ficar com esses cartuchos?

— Ahn?

— Os que você tirou de Bill? Seis, não era? Cinco mais um.

— Claro, se os quer.

Devia lhe dizer que eu, também, tinha um uso em vista para eles? Não, informações desse tipo devem ser comparti­lhadas apenas na base do "precisa saber". Tirei-os do bolso e entreguei-os.

Gwen examinou-os, inclinou a cabeça, tirou novamente da bolsa a linda pistolinha — puxou o carregador, carregou-o com os seis cartuchos confiscados, recolocou o carregador, pôs uma bala na agulha, travou a arma e recolocou-a na bolsa.

— Corrija-me se estou errado — comecei lentamente. — Quando a chamei para me dar cobertura, você o cobriu com uma caneta. Depois de desarmá-lo, manteve-o coberto com uma arma descarregada. Correto isto?

— Richard, eu fui tomada de surpresa. Fiz o melhor que podia.

— Eu não estava criticando. Muito pelo contrário.

— Parece que nunca houve um momento apropriado, pa­ra eu lhe contar — prosseguiu ela. — Querido, você podia ce­der uma calça e uma camisa? Há algumas bem em cima das coisas em sua sacola.

— Acho que sim. Para nosso filho-problema?

— Para ele mesmo. Estou querendo botar as roupas imun­das dele na calha, para que sejam recicladas. O mau cheiro não vai passar até que a gente dê um jeito nessas roupas.

— Neste caso, vamos nos livrar delas. — Enfiei as roupas de Bill na calha (todas, menos os sapatos) e depois lavei as mãos na pia da cozinha. — Gwen, acho que não tenho nada mais a obter desse idiota. Poderíamos lhe deixar algumas rou­pas e simplesmente ir embora. Ou... poderíamos ir embora imediatamente e não lhe deixar roupa nenhuma.

Gwen pareceu estarrecida.

— Mas os censores o pegariam, imediatamente.

— Exatamente. Querida moça, aquele cara é um perdedor nato. Os censores vão pegá-lo antes de muito tempo, de qual­quer maneira. O que é que eles fazem com noctâmbulos atual­mente? Ouviu algum boato a esse respeito?

— Não. Nada com aparência de verdade.

— Não acho que o mandem em uma nave de volta à Ter­ra. Isto custaria dinheiro demais à Companhia, desta maneira violando a Regra de Ouro, da forma como é interpretada aqui. Não há xadrez ou penitenciária aqui. Isto limita as possibili­dades. Neste caso...

Gwen pareceu perturbada.

— Não acho que esteja gostando do que estou ouvindo.

— E a coisa fica pior. Do outro lado desta porta, talvez não à vista, mas em algum lugar por perto, há uns dois bandidos que não têm nenhuma boa intenção a nosso respeito. Ou pe­lo menos não têm boas intenções a meu respeito. Se Bill sair daqui tendo botado a perder o trabalho que foi contratado para fazer, o que é que vai acontecer com ele? Servem-no aos ratos como comida?

— Ugh!

— Isso mesmo, ugh. Meu tio costumava dizer: "Nunca apa­nhe um gatinho perdido... a menos que já tenha resolvido que ele vai ser seu dono." Bem, Gwen?

Ela suspirou.

— Acho que ele é um bom rapaz. Poderia ser, quero di­zer, se alguém se importasse com ele.

Devolvi o suspiro.

— Só há uma maneira de descobrir.

 

"De que adianta escorar a casa que já caiu?"

Hartley M. Baldwin

 

É difícil dar soco no nariz de um cara através de um terminal.

Mesmo que a pessoa não tenha intenção de usar esses mé­todos diretos de convencimento, discussão via terminal de com­putador é menos que satisfatória. Com um apertar de botão, o interlocutor pode nos cortar no meio da frase ou nos trans­ferir para um subordinado. Mas se estamos fisicamente pre­sentes no gabinete dele, podemos combater seus argumentos mais sensatos sendo simplesmente mais estupidamente obs­tinados do que ele. Basta a gente ficar inamovível e dizer não. Ou não dizer nada. Nós podemos dar-lhe a opção de ou con­cordar com nossas reivindicações (oh, tão razoáveis) ou obrigá-lo a nos mandar botar para fora.

Esta última medida provavelmente não combina com sua persona pública.

Por essas razões, resolvi não telefonar para o Sr. Middlegaff ou qualquer pessoa no Departamento Imobiliário e sim dirigir-me em pessoa ao gabinete do Administrador. Não ti­nha esperança de influenciar o Sr. Middlegaff, a quem eviden­temente haviam encarregado de uma política que ele estava executando com burocrática indiferença ("Um bom-dia para o senhor", realmente!). E era mínima a esperança de obter sa­tisfações do Administrador — mas, pelo menos, se ele recu­sasse me atender eu não teria que perder tempo apelando para uma instância superior. O Regra de Ouro, sendo uma compa­nhia particular, não-licenciada por qualquer Estado soberano (isto é, sendo ele mesmo soberano), não contava com autori­dade mais altamente colocada que o Administrador — e Deus Todo-Poderoso nem mesmo era sócio minoritário.

Decisões tomadas pelo Sócio Administrador poderiam ser inteiramente arbitrárias... mas eram também inteiramente fi­nais. Não havia possibilidade de anos de litígio judicial, ne­nhuma maneira de uma corte superior revogar-lhe a decisão. As "demoras da justiça" que tanto maculam o funcionamento da "justiça" nos Estados democráticos lá na Terra não podiam existir aqui. Lembro-me de apenas alguns casos capitais nos meus cinco anos de residência aqui... mas, em todos eles, o Administrador agira como magistrado e o condenado fora lan­çado ao espaço no mesmo dia.

Em um sistema desses, a questão de erro de justiça torna-se acadêmica.

Acrescente-se a isso o fato de que a profissão da lei, da mesma forma que a profissão da prostituição, não é licencia­da nem proibida, e o resultado é um sistema judicial que tem pouca semelhança com a teia maluca de precedentes e tradi­ção que passa por "justiça" na superfície. A justiça no Regra de Ouro poderia sofrer de astigmatismo, se não fosse inteira­mente cega. Mas não podia ser lenta.

Deixamos Bill na ante-sala do gabinete do Administrador, tomando conta de nossa bagagem — minha sacola de lona e a trouxa, as malas de Gwen, a árvore bonsai (que fora aguada antes de deixarmos o compartimento de Gwen) — com ins­truções para se sentar em cima da primeira, defender a bon­sai até com a vida (no fraseado de Gwen) e vigiar o resto. Entramos.

Uma vez no lado de dentro, deixamos nossos nomes, se­paradamente, na recepção e depois nos sentamos para espe­rar. Gwen abriu a bolsa e tirou um tabuleiro eletrônico Casio.

— O que é que vai ser, querido? Carteado, gamão, go, ou o quê?

— Você está pensando que vamos esperar muito?

— Estou, sim senhor. A menos que a gente acenda um fo­go embaixo da mula.

— Acho que você tem razão. Alguma idéia sobre como acender o fogo? Sem tocar fogo na carroça, quero dizer. Oh, que diabo, vá em frente e toque fogo na carroça. Mas como?

— Nós poderíamos usar uma variação do velho modelo: "Meu marido sabe de tudo." Ou "Sua mulher descobriu." Mas nossa variação teria que ser absolutamente nova, uma vez que o estratagema básico já é muito manjado. — E depois acres­centou: — Eu poderia entrar em trabalho de parto. Isto é sem­pre uma boa maneira de chamar atenção.

— Mas você não parece grávida.

— Quer apostar? Até agora ninguém me deu uma boa olhada. Simplesmente me dê cinco minutos sozinha naquele toalete de senhoras e você se convence logo que já estou no nono mês. Richard, este macete eu aprendi há muitos anos, quando era investigadora de sinistros de uma companhia de seguros. Ele sempre consegue que a gente entre em algum lugar.

— Você está me tentando — reconheci —, já que seria en­graçado ver você fazer a coisa. Mas o macete que usarmos te­rá não apenas que nos fazer entrar mas nos manter ali dentro em circunstâncias tais que o estúpido escute nossos argu­mentos.

— Dr. Ames?

— Sim, Sra. Ames?

— O Administrador não vai escutar nossos argumentos.

— Por favor, explique.

— Aplaudi sua decisão de vir direto até o alto porque per­cebi que economizaria tempo e lágrimas receber todas as más notícias de uma vez só. Temos lepra. O que já foi feito conos­co deixa isso muito claro. A intenção do Administrador não é simplesmente nos obrigar a ir embora, mas nos chutar logo para fora do Regra de Ouro. Não sei por quê, mas não preci­samos saber porquê — a coisa é simplesmente esta. Compreen­do isto, estou relaxada. Uma vez que você compreende isso tam­bém, homem querido, poderemos traçar planos. Ir para a Ter­ra, ou para Luna, ou então para a Terra Prometida, Ell-Four, Ceres, Marte — o que você desejar, amado meu. "Aonde fo­res..."

— Para Luna.

— Senhor?

— Por ora, pelo menos. O Estado Livre de Luna não é dos piores. Atualmente, está passando da anarquia para a burocra­cia, mas não foi ainda inteiramente engessado. Ainda permi­te um bocado de liberdade a pessoas que sabem enfrentar pragmaticamente a situação. E há ainda espaço para viver em Lu­na. E dentro de Luna. Isso mesmo, Gwen, temos que nos man­dar. Eu desconfiava disso antes e tenho certeza agora. A não ser por uma coisa, poderíamos seguir até diretamente para o espaçoporto. Eu ainda quero falar com o Administrador. Dro­ga, quero ouvir a mentira de seus próprios lábios mentirosos! Em seguida, com uma clara consciência, posso servir o veneno.

— Você tenciona envenená-lo, querido?

— Uma figura de retórica. Penso em colocá-lo em minha lista e um karma rápido dará jeito nele.

— Oh. Talvez eu possa pensar em uma maneira de aju­dar o karma.

— Não é necessário. Uma vez na lista, eles nunca duram muito.

— Mas eu gostaria de fazer isso. "A mim pertence a vin­gança, diz o Senhor." Mas a Versão Revista diz: "A vingança a Gwen pertence... e a Mim apenas se Gwen deixar alguma coisa por fazer."

— Minha querida, você.é uma menininha perversa, digo com prazer. Vai matá-lo com urticária? Com unha encravada? Talvez soluços?

— Estou pensando em mantê-lo acordado até que ele mor­ra. Falta de sono é pior do que qualquer coisa que você listou, querido, se levado suficientemente longe. A capacidade de jul­gamento da vítima se desfaz em pedacinhos antes que ela pa­re de respirar. Tem alucinações. Incluindo todas as suas pio­res fobias. Morre em seu próprio inferno particular e jamais escapa dele.

— Gwen, você dá a impressão de que já usou esse método. Gwen não comentou.

Encolhi os ombros.

— O que você resolver, diga-me para eu poder ajudar.

— Farei isso, senhor. Hummm, gosto muito da idéia de afo­gar uma pessoa em lagartas. Mas não sei como conseguir tan­tas assim, a não ser trazendo-as da Terra. Exceto... Bem, a gente pode sempre dar um jeito, utilizando o método da insônia. Perto do fim, pode fazer com que o condenado crie suas pró­prias lagartas apenas sugerindo-lhe isso. — Arrepiou-se. — Schrecklich! Mas não vou usar ratos, Richard. Nunca ratos. Nem mesmo ratos imaginários.

— Minha doce e terna esposa, que bom saber que você traça uma linha em algum ponto.

— Claro que traço! Bem-amado, você me surpreendeu com a idéia de que má educação poderia ser considerada como cri­me que merece forca. Meu próprio interesse é no mal, e não em má educação. Acho que ratos maldosos nunca devem pas­sar sem castigo. Os métodos de Deus para punir o mal são lentos demais para meu gosto. Quero que isto seja feito ago­ra. Veja o caso de seqüestro. Seqüestradores deveriam ser en­forcados no local, logo que capturados. Incendiários deveriam ser queimados vivos no tronco, no local do incêndio que ini­ciaram, se possível antes que as cinzas esfriem. Um estupra-dor deveria ser morto por...

Não descobri nessa ocasião que complexa maneira de mor­rer Gwen preferia para estupradores, porque um burocrata po­lido (homem, com caspas, risus embutido) parou à nossa frente e perguntou:

— Dr. Ames?

— Eu sou o Dr. Ames.

— Eu sou Mungerson Fitts, Vice-Administrador Assisten­te a cargo de Estatísticas Super-Rogatórias. Estou dando uma mãozinha aqui. Tenho certeza de que o senhor compreende que o gabinete do Administrador está numa roda viva com o novo acréscimo que está sendo trazido para se acoplar ao sis­tema... todos os reassentamentos temporários que têm que ser feitos e todas as perturbações em rotina que têm que ser corri­gidas, antes que possamos nos acomodar todos em um Regra de Ouro mais espaçoso e melhorado. — Endereçou-me um sor­riso cativante. — Acho que querem falar com o Administrador.

— Isso mesmo.

— Excelente. Devido à atual emergência, estou dando uma ajuda aqui, a fim de manter a qualidade de que nos orgulha­mos dos serviços do Regra de Ouro para nossos hóspedes du­rante as alterações que ora se processam. Recebi todos os po­deres para agir em nome do Administrador. Podem pensar em mim como seu alter ego... porque, para todos os fins e finali­dades, eu sou o Administrador. Esta jovem senhora... ela está com o senhor?

— Está.

— É uma honra, madame. Um prazer. Agora, amigos, se quiserem ter a gentileza de virem comigo...

— Não.

— Perdão?

— Quero falar com o Administrador.

— Mas eu expliquei ao senhor...

— Eu espero.

— Acho que o senhor não me compreendeu. Por favor, ve­nham comigo...

— Não.

(Nessa altura Fitts devia ter-me pegado numa chave e, com um balão, me jogado sentado no chão. Não que isso seja fácil de fazer comigo. Afinal de contas fiz meu treinamento com Dorsai. Mas era isso o que ele devia ter feito. Mas era pessoa inibida pelo costume, o hábito e a política da empresa)

Fitts fitou-me calado por um momento, parecendo perplexo.

— Ahn... mas o senhor tem que vir comigo, como sabe.

— Não, não sei.

— Estou tentando lhe dizer...

— Quero falar com o Administrador. Ele lhe disse o que fazer a respeito do senador Cantor?

— Senador Cantor? Espere aí, ele é o senador eleito por, ahn, por...

— Se o senhor não sabe quem é ele, como é que sabe o que fazer com ele?

— Ahn, se quiser esperar um momento, farei uma con­sulta.

— Era melhor nos levar... uma vez que o senhor não pa­rece estar no gozo de "todos os poderes" no tocante a este as­sunto crítico.

— Ahn... por favor, esperem aqui. Levantei-me.

— Não, é melhor eu ir embora. O senador pode andar à minha procura. Por favor, diga ao Administrador que sinto mui­to não ter podido esperar. — Virei-me para Gwen. — Vamos, madame. Não devemos deixá-lo à espera.

(A mim mesmo perguntei se Mungerson notara que eu usa­ra o caso proclítico, sem referência à pessoa.)

Gwen levantou-se e tomou-me o braço. Apressado, disse Fitts:

— Por favor, amigos, não vão embora! Humm, venham co­migo. — Levou-nos por uma porta sem tabuleta ou inscrição. — Esperem apenas um momento, por favor.

Ele demorou mais que um momento, mas, apesar disso, não muito. Voltou com o rosto aureolado de sorrisos. (Acho que esta é a frase.)

— Por aqui, por favor!

Levou-nos pela porta sem marca, descemos uma curta pas­sagem e entramos no gabinete do Administrador.

O Administrador ergueu os olhos da escrivaninha e nos ins­pecionou, não com aquela expressão conhecida, paterna, da freqüente demais "Uma Palavra do Administrador!", aqueles avisos que aparecem em todos os terminais. Muito ao contrá­rio, o Sr. Sethos dava a impressão de que havia encontrado no seu mingau, naquela manhã, alguma coisa repugnante.

Ignorei seu comportamento glacial. Fiquei simplesmen­te onde estava, no lado de dentro do gabinete, Gwen ainda pendurada no meu braço, e esperei. Morei certa vez com um gato exigente (Há algum outro tipo?) que, quando lhe era ofe­recida comida que não combinava perfeitamente com seu gosto, dava impressão de ofendido — uma façanha de representa­ção por parte de um ser cuja face é inteiramente coberta de pelugem. Ele, não obstante, fazia isso principalmente através de linguagem corporal. Fiz isso nesse momento com o Sr. Se­thos, pensando principalmente naquele gato. Fiquei onde es­tava... e esperei.

Ele nos fitou... e finalmente se levantou, fez uma ligeira mesura e disse:

— Madame... Tenha a bondade de se sentar.

Ao que, nós nos sentamos. Primeiro assalto ganho por nós, por pontos. Eu não poderia ter feito isso sem Gwen. Mas ti­nha a ajuda dela e logo que sentei meu traseiro na cadeira ele não ia tirá-lo de lá — até que eu conseguisse o que queria.

Continuei imóvel, calado, e esperei.

Quando a pressão sangüínea do Sr. Sethos chegou a ponto de provocar um derrame, ele disse:

— Bem? O senhor conseguiu forçar a entrada em meu ga­binete. Que tolice é essa a respeito do senador Cantor?

— Espero que o senhor me diga. O senhor designou o se­nador Cantor para o compartimento de minha esposa?

— Ahn? Não seja ridículo. A Sra. Novak tem um compar­timento de alta eficiência de um único cômodo, o menor ta­manho na primeira classe. O senador da Standard Oil, se che­gou aqui, iria querer uma suíte de luxo. Claro!

— O meu, talvez? Foi por isso que o senhor me despejou? Para dar meu compartimento ao senador?

— O quê? Não ponha palavras na minha boca. O senador não está a bordo. Fomos obrigados a pedir a alguns de nossos hóspedes que se mudassem, o senhor entre eles. A nova se­ção, como sabe. Antes que ela possa ser soldada, todos os com­partimentos e espaços adjacentes ao círculo 1-30 têm que ser evacuados. De modo que tivemos que duplicar temporariamen­te as acomodações, a fim de conseguir espaço para os hóspe­des remanejados. O seu compartimento receberá três famílias, segundo me lembro. Isto é por pouco tempo.

— Compreendo. Neste caso foi apenas por um lapso que não me disseram para onde eu devia ir?

— Oh, tenho certeza de que o senhor foi informado.

— Não fui, de maneira alguma. Pode, por favor, me di­zer qual é o meu novo endereço?

— Doutor, o senhor espera que eu guarde de cabeça as de­signações para todas as acomodações? Espere lá fora, alguém verificará e lhe comunicará.

Ignorei-lhe a ordem/sugestão.

— Sim, de fato acho que o senhor as guarda na cabeça.

— Há mais de 180 mil pessoas neste habitat — rosnou ele. — Tenho assistentes e computadores para cuidar desses de­talhes.

— Tenho certeza que sim. Mas o senhor me deu fortes ra­zões para pensar que tem esses detalhes na cabeça... quando isto lhe interessa. Vou dar um exemplo. Minha esposa não lhe foi apresentada. Mungerson Fitts não sabia o nome dela, de modo que não podia ter dito ao senhor. Mas o senhor sabia, sem que ele tivesse dito. Sabia o nome dela e em que compar­timento residia. Residia antes, isto é, até que o fechou, deixan­do-a do lado de fora. É assim que o senhor aplica a Regra de Ouro, Sr. Sethos? Expulsando seus hóspedes a pontapés, sem ter mesmo a cortesia de avisar a eles antecipadamente?

— Doutor, o senhor está querendo provocar briga?

— Não. Estou tentando descobrir por que o senhor está nos perseguindo. Intimidando-nos. Fustigando-nos. O senhor e eu sabemos que isto nada tem a ver com o deslocamento cau­sado pela nova seção que vai ser soldada. Isto é certo... por­que a nova seção está sendo construída há mais de três anos e o senhor sabia com pelo menos um ano de antecedência quando ela seria trazida... Não obstante, o senhor me expul­sou de meu compartimento com um aviso de menos de 30 mi­nutos. E tratou ainda pior minha esposa. Simplesmente tran­cou o compartimento, deixando-a do lado de fora, sem nenhum aviso. Sethos, vocês não estão nos tirando do caminho ape­nas para que a nova seção seja soldada. Se isso fosse verda­de, teríamos sido avisados há pelo menos um mês, juntamente com a relocalização temporária e as datas para nos mudarmos para nossas novas acomodações temporárias. Agora, está nos expulsando, nada menos que isso, do habitat Regra de Ou­ro... e eu quero saber por quê!

— Saia de meu gabinete. Mandarei alguém levá-lo pessoal­mente às suas novas... acomodações... temporárias.

— Isto não é necessário. Simplesmente me dê as coorde­nadas e o número do compartimento. Espero aqui enquanto o senhor verifica isso.

— Deus do céu, eu acredito mesmo que o senhor quer ser expulso do Regra de Ouro.

— Não, tenho vivido bem confortável aqui. Ficarei muito contente em permanecer aqui... se me disser onde vamos dor­mir hoje à noite... e nos fornecer nosso novo endereço per­manente — o lugar onde vamos residir logo que a nova seção seja soldada e pressurizada, quero dizer. Precisamos de uma suíte de três cômodos, a fim de substituir o compartimento de dois que eu tinha e o de um único da Sra. Ames. Dois ter­minais. Um para cada um de nós, como antes. E baixa gravi­dade. Quatro décimos de gravidade, preferencialmente, mas não mais que meia gravidade.

— Gostaria também de um jardim particular? Por que pre­cisa de dois terminais? Isto exigiria fiação adicional.

— De fato, e eu pago a despesa. Porque eu sou escritor. Vou usar um como processador de texto e trabalho de pesqui­sa em bibliotecas. A Sra. Ames precisa de outro para a rotina doméstica.

— Ohhh! O senhor pensa em usar espaço residencial pa­ra fins comerciais. Este fato implicará cobrança de tarifas co­merciais. Não residencial.

— Isso importa em quanto?

— O preço terá que ser calculado. Há um fator de custo para cada tipo de uso comercial. Lojas a varejo, restaurantes, bancos e coisas assim custam aproximadamente três vezes mais por metro cúbico que o espaço residencial. Espaço para fábri­cas não custa tanto como o comercial para varejo, mas pode ter adicionais de risco, coisas assim. O espaço de armazena­gem custa apenas um pouco mais que o residencial. De im­proviso, eu diria que o senhor terá que pagar tarifas de espa­ço para escritório — há um fator de 3,5 — mas terei que verifi­car isso com o contador-chefe.

— Sr. Administrador, será que o compreendi perfeitamen­te? O senhor está pensando em nos cobrar três vezes e meia nossos antigos alugueres combinados?

— Aproximadamente. Pode descer talvez a três vezes.

— Bem, bem. Eu não escondi o fato de que sou escritor. Diz isso no meu passaporte e estou listado dessa maneira em seu catálogo, nos últimos cinco anos. Diga-me uma coisa: por que, de repente, faz esta diferença toda se uso meu terminal para escrever cartas para casa... ou escrever ficção?

Sethos emitiu um som que poderia ser interpretado como uma risada.

— Doutor, o Regra de Ouro é uma empresa comercial com fins lucrativos. Com esse objetivo em vista, administro-o para meus sócios. Ninguém tem que morar aqui, ninguém tem que fazer negócios aqui. O que cobro às pessoas para viverem aqui, ou para fazer negócios aqui, é decidido exclusivamente pelo lucro maximizador para a sociedade, conforme meu melhor julgamento para atingir esse fim. Se não gostar, pode ir fazer negócios em outra parte.

Eu ia justamente mudar a base da discussão (eu sei quan­do sou superado em peças de fogo), quando Gwen falou:

— Sr. Sethos?

— Ahn? Sim, Sra. Novak? Sra. Ames.

— O senhor começou na vida sendo cafetão de suas irmãs? Sethos adquiriu uma delicada tonalidade de berinjela. Mas por fim controlou-se o suficiente para dizer:

— Sra. Ames, a senhora está sendo intencionalmente insultuosa?

— Isto é óbvio, não é? Eu não sabia que o senhor tinha irmãs. Simplesmente parece o tipo de atividade que o atrai­ria. O senhor nos insultou sem nenhuma razão. Viemos aqui pedindo reparação de uma injustiça. O senhor nos respondeu com evasivas, mentiras completas, questões irrelevantes... e nova extorsão. E justificou essa nova indignidade com um se­rão de terceira classe sobre livre empresa. Exatamente que preço o senhor habitualmente pedia por suas irmãs? E quanto guar­dava de comissão? Metade? Ou mais da metade?

— Madame, tenho que lhes pedir que deixem meu gabi­nete... e este habitat. Os senhores não são o tipo de pessoas que queremos que residam aqui.

— Iremos embora com imenso prazer — respondeu Gwen, sem se mexer —, logo que o senhor encerrar minha conta. E a de meu marido.

— FORA!

Gwen levantou a mão, palma para cima.

— Dinheiro na frente, seu escroque careca. O saldo de nos­sas contas, mais os depósitos relativos às passagens de volta, que fizemos ao chegar. Se sairmos desta sala sem nosso di­nheiro, não há nenhuma garantia de que jamais veremos a cor dele. Pague o que deve e vamos embora. Na primeira ponte aérea para Luna. Mas pague tudo e agora! Ou terá que me jo­gar no espaço para me calar. Se chamar seus brutamontes, seu mentiroso, boto este lugar abaixo aos gritos. Quer uma amostra?

Inclinou a cabeça para trás e soltou um grito que me fez os dentes doerem.

Os de Sethos também, aparentemente... porque o vi se encolher todo.

Ele fitou-a durante um longo tempo e, em seguida, tocou em algum botão de controle na mesa.

— Ignatius, encerre as contas do Dr. Richard Ames e da Sra. Gwendolyn Novak, números — com uma hesitação ape­nas momentânea deu corretamente os números do meu com­partimento e de Gwen — e traga-as imediatamente ao meu ga­binete. E dinheiro para pagar o saldo deles. Com os devidos recibos. Nada de cheque. O quê? Você ouviu o que eu disse. Se isto demorar mais de 10 minutos mandarei fazer uma ins­peção de alto a baixo em seu departamento... a fim de verifi­car quem deve ser demitido, e não apenas rebaixado.

Desligou, e não olhou para nós.

Gwen tirou da bolsa o tabuleiro de jogo, preparou-o para o jogo-da-velha, o que me agradou, sendo mais ou menos o nível intelectual a que, no momento, eu me arriscaria a subir. Ela me venceu em quatro partidas seguidas, embora em duas ocasiões me coubesse a primeira jogada. Mas minha cabeça ainda estava doendo com o grito supersônico dela.

Não marquei o tempo exato, mas uns 10 minutos depois um homem entrou trazendo nossas contas. Sethos lançou-lhes um olhar e passou-as para nós. A minha parecia estar certa. Eu ia assinar o recibo quando Gwen falou:

— E os juros sobre o dinheiro que tive que depositar?

— Ahn? Sobre o que é que a senhora está falando?

— Minha passagem de volta à Terra. Tive que depositá-la em dinheiro vivo, não sendo aceito cheque. O seu banco aqui cobra 9% sobre empréstimos pessoais, de modo que deve pa­gar pelo menos as taxas de poupança sobre o dinheiro imobi­lizado. Embora depósitos a prazo fixo ofereçam taxas mais ra­zoáveis. Estou aqui há mais de um ano e assim... deixe-me ver... — Tirou da bolsa a calculadora que estávamos usando para manter o escore do jogo-da-velha. — O senhor me deve 871 e... — vamos arredondar — 871 coroas em juros. Em ouro suíço isso importa em...

— Nós pagamos em coroas, não em dinheiro suíço.

— Tudo bem, o senhor então me deve a importância em coroas.

— Nós não pagamos juros sobre o dinheiro relativo à pas­sagem de volta. Nós conservamos o dinheiro simplesmente bloqueado.

Fiquei subitamente alerta.

— Não paga, hein? Deus do céu, pode me emprestar essa maquininha? Vejamos —180 mil pessoas... e passagens em clas­se turista para Maui via PanAm ou Quantas importam em...

— Sete-duzentos — respondeu Gwen — não computados os fins de semana e feriados.

— Sendo assim. — Digitei o número. — Humm, bem mais de um bilhão de coroas! Um, dois, nove, seis, seguidos por seis zeros. Que coisa mais interessante! E como é esclarecedo­ra. Sethos, meu velho, você deve estar ganhando mais de 100 milhões por ano, isentos de imposto, apenas colocando todo este dinheiro que exige de nós, palermas, em fundos monetá­rios em Luna City. Mas não acho que o use dessa maneira — ou nem todo ele. Acho que você dirige toda essa empresa usan­do dinheiro de outras pessoas... sem que elas saibam ou con­sintam. Certo?

O lacaio (Ignatius) que trouxera nossas contas escutava tu­do aquilo com agudo interesse.

— Assinem esses recibos e caiam fora.

— Oh, assinaremos!

— Mas pague os nossos juros — acrescentou Gwen. Sacudi a cabeça.

— Não, Gwen. Em qualquer lugar, menos aqui, podería­mos processá-lo. Aqui ele é a lei e o juiz. Mas não me impor­ta, Sr. Administrador, o senhor acaba de me dar uma idéia ma­ravilhosa e vendável para um artigo na Reader's Digest, pro­vavelmente, ou na Fortune. Vou dar-lhe o título de "Uma Mi­na no Céu, ou Como Ficar Rico com o Dinheiro dos Outros: A Economia dos Habitats Espaciais de Propriedade Privada". Cem milhões ao ano surrupiados do público apenas no habitat Regra de Ouro. Alguma coisa nesse sentido.

— Publique isso e eu o processo e tomo tudo que o se­nhor possui.

— Processa? A gente se vê no tribunal, meu velho. De al­guma maneira, acho que você não vai querer lavar sua roupa suja em um tribunal em que não seja o juiz. Humm, tive ou­tra idéia maluca. O senhor está concluindo um acréscimo muito importante — e me lembro de ter visto no Wall Street Journal que o senhor fez isso sem vender ações. Quanto daquele di­nheiro dito bloqueado está flutuando aqui como círculos 130 a 140? E quantos de nós, indo embora na mesma semana, se­riam necessários para ocasionar uma corrida ao seu banco? Po­de pagar à vista, Sethos? Ou esse dinheiro bloqueado é tão falso como você?

— Diga isso em público e eu o processarei em todos os tri­bunais do Sistema! Assinem esse recibo e caiam fora daqui!

Gwen só assinou depois de contado todo o dinheiro em nossa frente. Assinou finalmente, e eu também.

Enquanto recebíamos o dinheiro, o terminal da escrivani­nha de Sethos acendeu. A tela era visível apenas para ele, mas a voz da pessoa que falava foi suficiente para identificá-la: o Censor-Chefe Franco:

— Sr. Sethos!

— Estou ocupado.

— Mas isto é uma emergência! Ron Tolliver foi baleado. Eu...

— O quê!

— Acabou de acontecer! Estou no escritório dele... mas ele está muito ferido, provavelmente não vai escapar. Mas tenho testemunhas oculares. O autor do crime foi aquele doutor de ataque... Richard Ames...

— Cale a boca!

— Mas, chefe...

— CALE A BOCA! Seu estúpido, seu trapalhão! Apre­sente-se a mim imediatamente. — Sethos virou-se para nós. — Agora, sumam daqui.

— Talvez fosse melhor eu esperar e conhecer essas teste­munhas oculares.

— Fora. Fora deste habitat. Dei o braço a Gwen.

 

"Você não pode enganar um homem honesto. Para começar, ele precisaria ser desonesto no fundo do coração."

Claude William Dukenfield, 1880-1946

 

No lado de fora encontramos Bill sentado em cima de mi­nha sacola de lona, a pequena árvore nos braços. Levantou-se, uma expressão indecisa no rosto. Mas quando Gwen lhe sorriu, ele retribuiu todo alegre.

Perguntei:

— Algum problema, Bill?

— Não, chefe. Humm, um babaca quis comprar a arvore­zinha.

— Por que não a vendeu?

Ele pareceu chocado.

— Ahn? É dela.

Isso mesmo. Se a tivesse vendido, sabe o que ela teria feito? Teria afogado você em um monte de lagartas, é isso o que teria feito. De modo que você foi sabido em não aborrecê-la. Mas nada de ratos. Enquanto ficar com ela, não precisa nun­ca ter medo de ratos. Certo, Sra. Durona?

— Correto, senador, ratos, nunca Bill, estou orgulhosa de você, não deixando que alguém o tentasse. Mas quero que pare com essa gíria — ora, alguém que o ouvisse poderia até pen­sar que você é um noctâmbulo —, e nós não gostaríamos dis­so, certo? De modo que não diga "um babaca quis comprar a árvore", mas apenas "um homem".

— Ahn, para dizer a verdade, o babaca era uma xoxota. Ahn, uma piranha. Morou?

— Morei. Mas vamos tentar outra vez. Diga "uma mulher".

— Tudo bem. Aquela babaca era uma mulher. — Sorriu envergonhado. — A senhora até parece aquelas irmãs que en­sinavam a gente no Santo Nome, lá na superfície.

— Recebo isso como um elogio, Bill... E vou atazanar vo­cê ainda mais do que elas sobre sua gramática, pronúncia e escolha de palavras. Até que você consiga falar tão bonito co­mo o senador. Isto porque, há muitos anos, um homem sábio e cínico provou que a maneira como uma pessoa fala é a coisa mais importante nela quando se trata de se sair bem neste mun­do. Entendeu o que eu disse?

— Ahn... médio.

— Ninguém aprende tudo de uma só vez e não espero is­so de você. Bill, se você tomar banho todos os dias e falar cor­retamente, o mundo chegará à conclusão de que você é um vencedor e o tratará nessa conformidade. De modo que va­mos continuar a tentar.

Interrompi-os:

— Enquanto isso, é urgente para nós cair fora desta banheira.

— Senador, isto é urgente, também.

— Ah, sim, a velha regra "acostumar o cachorrinho a não fazer xixi no chão". Compreendo. Mas vamos nos mexer.

— Sim, senhor. Direto para o espaçoporto?

— Ainda não. Descer todo El Camino Real, ao mesmo tempo verificando todos os terminais públicos que aceitem moedas. Tem algumas?

— Poucas. O suficiente para um telefonema rápido, talvez.

— Ótimo. Mas fique de olho também em um cambista.

Agora que você e eu cancelamos nossos códigos de crédito, temos que usar moedas.

Pegamos novamente nossa tralha e começamos a andar. Gwen disse baixinho:

— Não quero que Bill ouça isto... mas não é difícil con­vencer um terminal público de que estamos usando um códi­go de crédito correto, quando não estamos.

Respondi em voz igualmente baixa:

— Recorreremos a esse meio apenas se a honestidade não funcionar. Minha querida, quantos outros macetes você tem escondidos?

— Senhor, não sei do que está falando. A uns 100 metros à nossa frente... Aquela cabine à direita tem o sinal amarelo? Por que são tão poucas as cabines públicas equipadas para tra­balhar com moedas?

— Porque o Irmão Mais Velho quer saber quem está tele­fonando para quem... e com o método do código de crédito estamos praticamente implorando a ele que compartilhe de nossos segredos. Sim, aquele tem o sinal. Vamos reunir nos­sas moedas.

O reverendo doutor Henrik Hudson Schultz respondeu imediatamente em seu terminal. A fisionomia de Papai Noel me examinou, me avaliou, contou o dinheiro em minha carteira.

— Padre Schultz?

— Em pessoa. Às suas ordens, senhor?

Em vez de responder, tirei da carteira uma nota de mil co­roas, coloquei-a em frente ao mesmo. O Dr. Schultz examinou-a e ergueu as sobrancelhas eriçadas.

— O senhor me interessa, senhor.

Dei uma batidinha na orelha enquanto olhava para a es­querda e para a direita e fiz em seguida o sinal dos três maca­quinhos. Ele respondeu:

— Ora, sim, eu ia mesmo sair para tomar uma xícara de café. Quer me fazer companhia? Um momento...

Pouco depois, mostrou uma folha de papel, na qual es­crevera em grandes letras de fôrma:

 

OLD MACDONALD'S FARM

 

— Pode me encontrar no Sans Souci Bargrill? Fica na Petticoat Lane, bem em frente ao meu estúdio. Em uns 10 mi­nutos?

Durante todo o tempo em que falava, cutucava com o in­dicador a tabuleta improvisada que me mostrava. Respondi:

— Combinado — e desliguei.

Eu não tinha o hábito de ir a território agrícola, uma vez que gravidade plena é ruim para minha perna e fazendas têm que funcionar com toda gravidade. Não, isso não é correto. Talvez haja mais habitais no Sistema que usam em agricultura quaisquer frações de gravidade que desejam (ou que plantas que sofreram mutações preferem) do que os que usam luz na­tural do sol e gravidade plena. Em nosso caso, o Regra de Ou­ro utilizava luz natural e gravidade completa para produzir a maior parte de seus alimentos frescos. Outros espaços no Re­gra de Ouro, porém, utilizam luz artificial e vários tipos de aceleração para conseguir alimentos — em que volumes, não sei. Mas o espaço imenso dos círculos 50 a 70 é a céu aberto, lado a lado, exceto pelas longarinas, amortecedores de vibra­ção e passadiços ligando os principais corredores.

No espaço desses 20 círculos — 800 metros — os raios 0-60, 120-180 e 240-300 deixam entrar a luz solar; os raios 60-120, 180-240 e 300-0 são terras agrícolas — e nos 180-240, raio 50-70, fica a Old MacDonald's Farm.

A fim de chegar ao restaurante, tínhamos que descer até o círculo 50, caminhar para trás (a plena gravidade, droga!) até o círculo 60, numa distância de cerca de 400 metros. Distância curta, certamente — uns quatro quarteirões de cidade. Mas ten­te isso andando com um pé postiço, com um coto que já fora usado demais para andar e para carregar coisas em um único dia.

Gwen notou, na minha voz, rosto, andar, ou em algu­ma outra coisa — ou leu a minha mente, quem sabe. Não tenho certeza de que ela não possa fazer isso. Parou.

Parei também.

— Problema, querida?

— Sim, senador. Arreie essa trouxa. Eu equilibro árvore-san em minha cabeça. Passe a trouxa.

— Eu estou bem.

— Sim, senhor. Certamente que está e vou mantê-lo des­sa maneira. É direito seu ser macho quando quiser... e meu direito ser feminina, delicada, fraca e irrazoável. Agora, estou a ponto de desmaiar. E fico assim até que me passe a trouxa. Pode me dar uma surra depois.

— Humm. Quando é que chega minha vez de ganhar uma discussão?

— No dia do seu aniversário, senhor. Que não é hoje. Passe a trouxa. Por favor.

Não era uma discussão que eu quisesse vencer. Entreguei a trouxa. Bill e Gwen seguiram à frente, Bill de escoteiro, abrin­do caminho. Ela nem por um momento perdeu controle do fardo equilibrado na cabeça, mesmo que a estrada não fosse um corredor macio — uma estrada de terra. Terra de verdade — uma peça de luxo inteiramente desnecessária.

Claudiquei lentamente atrás, apoiado pesadamente na ben­gala, quase sem pôr o peso no coto. Ao chegar ao restaurante ao ar livre, senti-me quase inteiramente recuperado.

O Dr. Schultz estava encostado no bar, um cotovelo no tam­po. Ele me reconheceu mas não deu sinal até que me aproxi­mei dele.

— Dr. Schultz?

— Ah, sim! — Não perguntou meu nome. — Vamos pro­curar um lugar sossegado? Eu gosto da tranqüilidade de um pomar de maçãs. Peço ao gerente para mandar colocar uma pequena mesa e algumas cadeiras lá entre as árvores?

— Pode. Mas três cadeiras, não duas. Gwen reuniu-se a nós.

— Quatro, não?

— Não. Quero que Bill olhe nossas coisas, como fez an­tes. Estou vendo uma mesa vazia ali. Ele pode botar em cima e em volta dela nossas coisas.

Pouco depois, acomodamo-nos em uma mesa que nos fo­ra preparada nos fundos do pomar. Após consultá-lo, pedi cer­veja para o reverendo e para mim, uma Coca para Gwen, e disse à garçonete para procurar o jovem com as bagagens e lhe servir o que quisesse — cerveja, Coca, sanduíches, o que fosse. (De repente dei-me conta de que Bill talvez não tivesse comido ainda nada naquele dia.)

Quando ela se afastou, enfiei a mão no bolso, saquei a nota de mil coroas e entreguei-a ao Dr. Schultz.

Ele a fez desaparecer num passe de mágica.

— Senhor, quer um recibo?

— Não.

— Negócio entre cavalheiros, ahn? Excelente. Em que posso ajudá-lo?

 

Quarenta minutos depois o Dr. Schultz sabia quase tanto a respeito de nossos problemas como nós, uma vez que não escondi nada. Ele poderia ajudar-me, ou assim me parecia, apenas se soubesse de todos os antecedentes — tanto quanto eu os conhecia — do que havia acontecido.

— O senhor disse que Ron Tolliver foi baleado? — pergun­tou ele finalmente.

— Não presenciei o fato. Ouvi o Censor-Chefe dizer. Cor­reção: ouvi um homem que falava como Franco e o Adminis­trador tratou-o como tal.

— Isso é suficiente. Ouvindo som de patas, espere um ca­valo, não uma zebra. Mas eu não soube de nada ao vir para aqui. E não notei sinais de agitação no restaurante... e o as­sassinato ou tentativa de assassinato do segundo maior sócio da empresa neste Estado soberano devia causar agitação. Esti­ve no bar durante alguns minutos antes de vocês chegarem. Ninguém comentava nada. Ora, o bar é sabidamente o lugar onde as notícias chegam primeiro. Há sempre uma tela ligada ao canal de noticiário. Hummm... poderia ser que o Adminis­trador estivesse abafando a coisa?

— Aquela serpente mentirosa é capaz de tudo.

— Eu não estava me referindo ao caráter moral dele, a res­peito do qual sua opinião coincide com a minha, mas apenas na possibilidade física. Não é tão fácil assim abafar um tiro­teio. Sangue. Barulho. Uma vítima, morta ou ferida. E o se­nhor falou em testemunhas... ou pelo menos Franco. Ainda assim, o juiz Sethos controla o único jornal, os terminais e os censores. Sim, se quisesse se dar a esse trabalho, ele poderia certamente manter a coisa na moita durante muito tempo. Ve­remos. .. e este é mais um assunto sobre o qual lhe farei rela­tório depois que o senhor chegar a Luna City.

— Talvez não fiquemos em Luna City. Vou ter que lhe telefonar.

— Coronel, isso é aconselhável? A menos que nossa pre­sença, juntos uns poucos segundos naquele bar, tenha si­do notada por alguma parte interessada que nos conheça a am­bos, é possível que tenhamos conseguido manter secreta nos­sa aliança. É realmente uma sorte que não nos tenhamos as­sociado de qualquer maneira no passado. Não há maneira pro­vável de me ligar ao senhor ou o senhor a mim. Pode me tele­fonar, claro... mas temos que supor que meu terminal estará grampeado, que meu estúdio tem dispositivo eletrônico de es­cuta, ou ambas as coisas... e as duas aconteceram no passa­do. Sugiro, em vista disso, o correio... a não ser no caso da mais grave emergência.

— Mas correspondência pode ser violada. Por falar nisso, eu sou o Dr. Ames, não coronel Campbell, por favor. E, oh, sim! Este jovem que está comigo. Ele me conhece como "se­nador" e a Sra. Durona, desde aquela pequena confusão de que lhe falei.

— Eu me lembrarei. No curso de uma longa vida, somos obrigados a viver muitos papéis. O senhor acreditaria que ou­trora fui conhecido como o "anspeçada Finnegan, dos Fuzi­leiros Imperiais"?

— Posso facilmente acreditar nisso.

— O que serve de prova, porque nunca fui. Mas fiz mui­tos trabalhos estranhos. Correspondência pode ser aberta, é verdade, mas se eu entregar uma carta a uma nave da ponte aérea para Luna City antes que ela deixe o aeroporto é muito improvável que chegue as mãos de alguém interessado em abri-la. Na direção oposta, uma carta enviada a Henrietta van Loon, aos cuidados de Madame Pompadour, 20012 Petticoat Lane, chegará às minhas mãos com uma demora de apenas minu­tos. Uma velha e tradicional dona de pensão tem anos de tra­to suave com os segredos de outras pessoas. Temos que con­fiar, acho. A arte consiste em saber em quem confiar.

— Doutor, acho que confio no senhor. Ele soltou uma risadinha.

— Meu querido senhor, eu venderia com todo prazer seu próprio chapéu, se o deixasse por esquecimento em cima de meu balcão. Mas, em essência, tem razão. Uma vez que o aceitei como meu cliente, pode confiar inteiramente em mim. Ser agente duplo poderia me provocar úlceras... e eu sou um gour­mand que nada fará que possa interferir em seus prazeres de bom de garfo.

Pareceu pensativo e acrescentou:

— Posso ver novamente aquela carteira? Enrico Schultz. Passei-lhe a carteira. Ele tirou a cédula de identidade.

— O senhor diz que a foto é fiel?

— Excelente, acho.

— Dr. Ames, o senhor deve ter compreendido que o no­me "Schultz" imediatamente me despertou a atenção. O que talvez não possa desconfiar é que a natureza variada de mi­nhas empresas torna desejável que eu tome conhecimento de cada nova chegada a este habitat. Leio o Herald todos os dias, examinando tudo mas anotando com o maior cuidado tudo de natureza pessoal. Posso lhe dizer inequivocamente que es­te homem não entrou no habitat Regra de Ouro sob o nome "Schultz". Qualquer outro nome poderia ter-me escapado. Mas meu próprio sobrenome? Impossível.

— Aparentemente, ele deu esse nome ao chegar aqui.

— Aparentemente... o senhor fala com precisão. — Schultz voltou a olhar para o documento de identidade. — Em 20 mi­nutos no meu estúdio — não, dê-me meia hora — eu poderia produzir uma carteira de identidade com esse rosto — e de qualidade também boa — que declararia que seu nome é "Al­bert Einstein".

— O senhor está dizendo que não podemos identificá-lo pela carteira?

— Espere aí. Eu não disse isso. O senhor me disse que é uma boa foto. Uma boa foto é melhor do que um nome im­presso. Muitas pessoas devem ter visto este homem. Várias têm que saber quem é ele. Um número menor por que ele foi assassinado. Se foi. O senhor deixou em aberto, com todo cuidado.

— Bem... principalmente por causa daquela incrível Dan­ça Mexicana de Chapéu que ocorreu imediatamente depois que ele foi baleado. Se foi. Em vez de confusão, aqueles quatro se comportaram como se houvessem ensaiado a coisa.

— Bem, vou investigar o assunto, empregando tanto a ce­noura como o porrete. Se um homem tem consciência culpa­da ou natureza gananciosa — e a maioria tem as duas coisas —, meios podem ser encontrados para extrair o que ele sabe. Bem, senhor, uma vez que é improvável que voltemos a nos consultar, o senhor segue em frente com o aspecto Walker Evans, enquanto eu investigo as demais perguntas em sua lis­ta. Nós nos manteremos informados dos progressos consegui­dos, especialmente no tocante ao que entra e sai do Regra de Ouro. Mais alguma coisa? Ah, sim, aquela mensagem codifi­cada... Tenciona investigá-la?

— O senhor tem alguma idéia a respeito?

— Sugiro que a guarde e a leve à sede da Mackay em Luna City. Se puderem identificar o código, a coisa torna-se uma questão de pagar honorários, lícitos ou ilícitos, para traduzi-la. Seu significado lhe dirá se eu precisarei ou não dela aqui. Se Mackay não puder ajudar, talvez possa levá-la ao Dr. Jakob Raskob, na Universidade Galileu. Ele é criptógrafo no depar­tamento de ciência de computadores... e se ele não puder des­cobrir o que fazer, não posso sugerir nada melhor do que ora­ções. Posso conservar esta foto de meu primo Enrico?

— Claro, claro. Mas mande-me uma cópia, por favor. Pos­so precisar dela para investigar o ângulo Walker Evans... Pen­sando bem, com certeza. Doutor, temos mais uma necessida­de que não mencionei.

— Sim?

— Aquele rapaz que está conosco. Ele é um fantasma, re­verendo, um andarilho da noite. E está nu. Queremos protegê-lo. O senhor conhece alguém que possa cuidar disso — e ime­diatamente? Gostaríamos de tomar a próxima nave da ponte aérea para Luna.

— Um momento, senhor. Devo inferir que seu carregador, o jovem que cuida de sua bagagem, é o marginal que fingiu ser um censor?

— Eu não deixei isto claro?

— Talvez eu tenha sido obtuso. Muito bem, aceito o fa­to, conquanto reconheça meu espanto. Quer que eu lhe for­neça simplesmente um documento? De modo que ele possa andar pelo Regra de Ouro sem medo dos censores?

— Não, exatamente. Quero mais do que isso. Quero um passaporte. Para tirá-lo do Regra de Ouro e levá-lo para o Es­tado Livre de Luna.

O Dr. Schultz puxou o lábio inferior.

— O que é que ele vai fazer lá? Não, retiro a pergunta... problema seu, não meu. Ou dele.

Gwen interveio na conversa:

— Eu vou botá-lo em forma, padre Schultz, mesmo que tenha que espancá-lo. Ele precisa aprender a manter as unhas limpas e melhorar sua sintaxe de concordância. Além disso, precisa de uma espinha dorsal. Vou dar isso a ele. Schultz fitou-a pensativo.

— Sim, acho que a senhora tem espinha suficiente para duas pessoas. Madame, permita-me dizer que embora não an­seie por imitá-la admiro-a profundamente?

— Eu odeio ver desperdícios. Bill deve ter uns 25 anos, acho, mas se comporta e fala como se tivesse 10 ou 12. Ain­da assim, ele não é estúpido. — Sorriu alegre. — Eu ensino a ele mesmo que tenha que quebrar seu coco.

— Deus a ajude. — Em seguida Schultz acrescentou sua­vemente: — Mas suponhamos que ele revele ser simplesmen­te estúpido. Que carece de capacidade para crescer.

Gwen exalou um suspiro.

— Neste caso acho que choraria um pouco e lhe arranja­ria algum lugar protegido, onde ele pudesse trabalhar no que fosse capaz de fazer e ser o que é, com dignidade e conforto. Reverendo, eu não poderia devolvê-lo à sujeira, à fome, ao me­do... e aos ratos. Viver assim é pior do que morrer.

— De fato, é. Porque não devemos temer a morte — ela é o consolo final. Como todos aprenderemos, no fim. Muito bem, um passaporte honesto para Bill. Tenho que procurar uma certa senhora — verificar se ela aceita ou não um trabalho a toda pressa. — Franziu as sobrancelhas. — Será difícil fazer isto antes da próxima nave da ponte aérea. E preciso de uma foto dele. Diabos o levem! Isso significa uma viagem a meu estúdio. Mais tempo perdido, mais riscos para vocês dois.

Gwen enfiou a mão na bolsa e tirou uma Mini Helvetia ilegal, sem licença na maioria dos lugares, mas provavelmente não abrangida pelos regulamentos do Administrador ali no habitat.

— Dr. Schultz, isto não tira uma foto suficientemente gran­de para um passaporte, eu sei, mas ela não podia ser amplia­da para o que queremos?

— Claro que poderia. Hummm, esta é uma câmera de al­ta classe.

— Gosto dela. Certa vez trabalhei para... uma agência que usava estas câmeras. Quando me exonerei, descobri que a ha­via perdido... e tive que pagar por ela. Mais tarde, encontrei-a... Estivera em minha bolsa o tempo todo... mas bem no fun­do, perdida no meio do lixo. — E acrescentou: — Vou correr e tirar uma foto de Bill.

Apressadamente, avisei:

— Use um fundo neutro.

— Pensou que eu ia usar a porta com o letreiro daqui? Li­cença, por favor. Volto logo.

Voltou minutos depois. A foto estava sendo revelada na máquina. Um minuto depois, ganhara nitidez. Entregou-a ao Dr. Schult.

— Isto serve?

— Excelente. Mas o que é este fundo, se posso perguntar.

— Uma toalha de bar. Frankie e Juanita estenderam-na atrás da cabeça de Bill.

— Frankie e Juanita — repeti. — Quem são eles?

— O garçom-chefe e o gerente. Gente bacana.

— Gwen, eu não sabia que você era conhecida aqui. Isto pode dar problema.

— Eu não sou conhecida aqui. Nunca estive aqui antes, queridor Eu estava acostumada a ir ao The Chuck Wagon in Lazy Eight Spread, no raio 90... lá dançam quadrilha. — Gwen olhou para cima, apertando as pálpebras para se defender da luz do sol, que vinha diretamente de cima — o habitat, em seu majestoso giro, estava justamente cruzando o arco que coloca­va o sol no zênite para a Old MacDonald's Farm. Apontou pa­ra cima — bem para 60 graus acima, tinha que estar lá. — Ali, estão vendo, o The Chuck Wagon. A pista de dança fica bem em cima dele, na direção do sol. Estão dançando lá? Podem ver alguma coisa? Uma longarina está obstruindo parcialmen­te minha vista.

— Está longe demais para que eu possa dizer com certeza — reconheci.

— Estão dançando — confirmou o Dr. Schultz. — Texas Star, acho. Sim, as evoluções são essas. Ah, mocidade, moci­dade! Eu não danço mais, mas, às vezes, fui ao The Chunk Wagon. Eu a teria visto lá por acaso, Sra. Ames? Acho que não.

— E eu acho que sim — respondeu Gwen. — Mas naque­le dia eu estava mascarada. Gostei quando me tirou para dan­çar, doutor. O senhor tem um verdadeiro toque de veterano.

— Louvor mais alto eu não poderia esperar. "Mascarada..." Por acaso usava um vestido em faixas de verde e branco? E saia rodada?

— Mais do que roda inteira. Fazia ondas todas as vezes em que meu par me fazia girar — pessoas se queixaram que a vista as deixava tontas. O senhor tem excelente memória.

— E a senhora é uma excelente dançarina, madame. Um pouco irritado, interrompi-os:

— A gente não podia acabar com esta história dos velhos tempos? Há ainda coisas urgentes a fazer e ainda estou com esperança de pegar a ponte aérea das 20h.

Schultz sacudiu a cabeça.

— Vinte horas? Impossível, senhor.

— Por que é impossível? Temos mais de três horas à fren­te. Fico nervoso com a idéia de esperar por uma nave mais tarde. Franco pode resolver mandar seus brutamontes atrás de nós.

— O senhor pediu um passaporte para o Bill. Dr. Ames, até mesmo a pior imitação de passaporte precisa de mais tem­po que isso. — Calou-se e pareceu-me menos com Papai Noel e mais com um velho cansado e preocupado. — Mas seu prin­cipal objetivo é tirar Bill deste habitat e levá-lo para a lua, não?

— É...

— Suponhamos que o leve em estado de servidão por pe­ríodo certo.

— Ahn? Não se pode levar um escravo para o Estado Li­vre de Luna.

— Sim e não. Pode levar um escravo até a Lua... mas ele fica automaticamente livre, na ocasião e para sempre, quando puser os pés em Luna. Isto foi o que aqueles condenados exi­giram e conseguiram quando se evadiram. Dr. Ames, posso fornecer uma nota fiscal com o contrato de servidão de Bill em tempo para a nave da noite, tenho quase certeza. Tenho um suprimento de papel timbrado oficial — autêntico, mediante requisição irregular — e há tempo para enrugar e envelhecer o documento. Realmente, este método é muito mais seguro do que tentar fabricar um passaporte a toda pressa.

— Curvo-me ao seu julgamento profissional. Como, quan­do e onde pego o documento?

— Hummm, não no meu estúdio. Conhece um pequeno bistrô vizinho ao espaçoporto, um décimo de gravidade no raio 300? O The Spaceman's Widow?

Eu ia dizer que não, mas que o encontraria, quando Gwen falou:

— Sei onde fica. Temos que ir por trás do armazém do Macy's para chegar lá. Não tem tabuleta.

— Isso mesmo. Na verdade é um clube particular, mas eu lhes dou um cartão. Podem relaxar por lá e comer alguma coi­sa. Ninguém os incomodará. Os fregueses tendem a cuidar de seus próprios negócios.

(Porque os negócios deles são contrabando ou alguma outra coisa ilegal — mas eu não disse isso.)

— Serve para mim.

O reverendo doutor tirou um cartão do bolso, começou a escrever alguma coisa, parou.

— Nomes?

— Sra. Durona — respondeu imediatamente Gwen.

— Concordo — disse sério o Dr. Schultz. — Uma precau­ção bem apropriada. Senador, qual é o seu sobrenome?

— Não pode ser "Cantor". Eu poderia por acaso topar com uma pessoa que conheça o senador Cantor. Hummm.... Durona?

— Não, ela é sua secretária, não sua esposa. "Johnson." Houve mais senadores com o nome "Johnson" do que qual­quer outro, de modo que não desperta suspeitas — e combina com o sobrenome de Bill... Isto pode ser útil. — Terminou o cartão e entregou-o. — O nome do dono é Tiger Kondo e ele ensina todos os tipos de morte rápida, nos momentos de fol­ga. Pode confiar nele.

— Obrigado, senhor. — Olhei para o cartão rapidamente, enquanto o guardava. — Doutor, quer agora mais uma parte de seus honorários?

Ele sorriu jovialmente.

— Ora, ora! Não resolvi ainda em quanto vou sangrá-lo. Meu lema é "Tudo o que o tráfico possa fornecer", mas nunca torne a vítima anêmica.

— Razoável. Até depois, então. Seria melhor que não saís­semos juntos.

— Concordo. Dezenove horas é meu melhor palpite. Que­ridos amigos, foi um prazer e uma honra. E não esqueçamos a verdadeira importância deste dia. Minhas felicitações, ma­dame. Meus parabéns, senhor. Que a vida de vocês, juntos, seja longa, tranqüila e cheia de amor.

Gwen pôs-se nas pontas dos pés e beijou-o por ter dito isso, e ambos tinham lágrimas nos olhos. Bem, e eu também.

 

"Os biscoitos e o melado nunca saem iguais."

Lazaraus Long, 1912—

 

Gwen levou-nos diretamente ao Spaceman's Widow, um lugarzinho escondido atrás dos armazéns da Macy's, exatamen­te como ela dissera, em um desses estranhos pequeninos cantos formados pela forma cilíndrica do habitat — e se a pessoa não soubesse que estava lá provavelmente nunca o descobriria. E era agradavelmente silencioso depois das multidões que ha­víamos encontrado na extremidade do eixo, onde ficava o espaçoporto.

De modo geral, essa extremidade era reservada apenas para naves de passageiros. Os cargueiros usavam a outra. O posi­cionamento do novo acréscimo para erguê-lo e soldá-lo à es­trutura fizera com que todo o tráfego fosse desviado para a direção da Lua, ou extremidade fronteira — "fronteira" por­que o Regra de Ouro era suficientemente comprido para apre­sentar um leve efeito de maré, e terá ainda mais disto quando o novo acréscimo estiver no lugar. Não quero dizer que tenha suas marés diárias. Não tem. Mas o que de fato tem...

(Posso estar falando demais. Tudo depende do quanto você sabe sobre habitais. Pode saltar esta parte sem perder grande coisa).

O que, de fato, tem é uma orientação de maré com Luna: a extremidade dianteira aponta sempre em linha reta para a Lua. Se o Regra de Ouro fosse do tamanho de uma nave de ponte aérea, ou estivesse tão longe como Ellfive, isto não acon­teceria. O Regra de Ouro, porém, tem mais de cinco quilôme­tros de comprimento e descreve uma órbita em torno de um centro de massa que fica a apenas pouco mais de 2.000 quilô­metros de distância. Claro, isto é apenas uma parte em 400 — mas é uma função quadrática, não há atrito e o efeito conti­nua para sempre. Fica acoplado. A ligação de maré que a Ter­ra tem com Luna é apenas quatro vezes maior que isso — muito menos se você levar em conta que Luna é redonda como uma bola de tênis, ao passo que o Regra de Ouro lembra mais um charuto.

O Regra de Ouro possui outra peculiaridade orbital. Des­creve sua órbita de pólo a pólo (tudo bem, todo mundo sabe disso — desculpem), mas, além disso, esta órbita, elíptica mas formando um círculo quase perfeito, tem este círculo inteira­mente virado para o Sol, isto é, o plano de sua órbita dá fren­te para o Sol, sempre, enquanto Luna gira embaixo dele. Tal como o pêndulo de Foucault. Tal como os satélites espiões que patrulham a Terra.

Ou, mudando as palavras, o Regra de Ouro simplesmen­te segue o círculo de iluminação, a linha dia-e-noite de Luna, em volta, para sempre — nunca na sombra. (Bem... na som­bra nos eclipses lunares, se quer descer a detalhezinhos. Mas só nessa ocasião.)

Esta configuração é apenas meta-estável, não fixa. Tudo e todos o puxam, até Saturno e Júpiter. Mas há um pequeno computador-piloto no Regra de Ouro que nada faz senão cer­tificar-se de que a órbita do habitat conserva-se sempre de frente para o Sol — o que dá a Old MacDonald's Farm suas abundantes colheitas. Para isso não é preciso energia que valha a pena mencionar, apenas às menores das cutucadas para corrigir os mais minúsculos dos desvios.

Tomara que você tenha saltado essa parte. A balística é in­teressante apenas para aqueles que a usam.

 

O Sr. Kondo era baixo, aparentemente de origem japone­sa, muito polido, e possuía músculos tão lisos como os de um jaguar — e movia-se como um deles. Mesmo sem a dica do Dr. Schultz, eu teria sabido que não quereria encontrar Tiger Kondo em um beco escuro, a menos que ele estivesse lá para me proteger.

A porta não se abriu de todo até que lhe mostrei o cartão do Dr. Schultz. Imediatamente ele nos colocou à vontade com uma hospitalidade formal, mas calorosa. O lugar era peque­no, cheio apenas pela metade, e as mulheres não eram (pen­sei) as esposas daqueles homens. Mas tampouco piranhas. À impressão que dava era de profissionais em igualdade de con­dições. O dono da casa nos avaliou com um olhar, chegou à conclusão que nosso lugar não era com os habitues da casa, colocou-nos em uma pequena sala ou cabine lateral, suficien­te para nós três e nossa bagagem, mas por pouco. Em segui­da recebeu nossos pedidos. Perguntei-lhe se havia jantar.

— Sim e não — respondeu ele. — Há sushi. E sukiyaki co­zido na mesa pela minha filha mais velha. Pode-se arranjar hamburgers e cachorros quentes. Há também pizza, mas está congelada. Nós não a fazemos. Ou recomendamos. Esta casa é principalmente um bar. Servimos comida, mas não exigimos que os freqüentadores comam aqui. O senhor pode jogar go, xadrez ou cartas a noite toda e não pedir nada.

Gwen pôs a mão no meu braço.

— Posso?

— À vontade.

Ela lhe falou durante algum tempo e eu não entendi absolutamente nada. Mas o rosto dele se iluminou. Fez uma cur­vatura e se afastou. Eu disse:

— Então?

— Perguntei se podíamos comer o que experimentei na úl­tima vez... e isto não é um prato específico, mas um convite para que Mama-San use seu critério com o que acaso tenha. O que o levou a reconhecer que estive aqui antes... o que ele nunca teria feito, se eu não tivesse dito isto, já que estive aqui com outro homem. Ele também me disse que nosso brinquedinho aqui é a melhor espécie de bordo que já viu fora do Ja­pão... e eu lhe pedi que o aguasse para nós antes de irmos embora. Ele vai fazer isso.

— Você disse a ele que somos casados?

— Não foi necessário. A expressão idiomática que usei ao me referir a você deixou isso implícito.

Tive vontade de perguntar a ela como e quando aprende­ra japonês, mas não. Gwen me diria quando lhe fosse conve­niente. (Quantos casamentos vão à ruína por causa daquela velha coceira de saber "tudo" sobre seu cônjuge? Como vete­rano de incontáveis histórias de confissões verdadeiras, garanto que a curiosidade sem freios sobre o passado da esposa é uma fórmula segura para provocar tragédia doméstica).

Em vez disso, dirigi-me a Bill:

— Bill, esta é sua última oportunidade. Se quer ficar no Regra de Ouro, a hora de ir embora é esta. Depois de ter jan­tado, quero dizer. Mas após o jantar vamos descer para Luna. Você pode vir conosco ou ficar aqui.

Bill pareceu espantado.

— Ela disse que eu tenho escolha? Gwen falou secamente:

— Claro que você tem! Pode ir conosco... caso em que exi­girei que se comporte como ser humano civilizado o tempo todo. Ou você pode ficar no Regra de Ouro e voltar a seu ter­ritório... e dizer a Dedos que botou a perder o trabalho que ele o encarregou.

— Eu não baguncei nada! Foi ele. Significando eu. Decidi:

— Isso resolve, Gwen. Ele não gosta de mim. Não o que­ro à minha volta — e muito menos sustentá-lo. Uma dessas noites, ele bota veneno na minha sopa.

— Ele não faria uma coisa dessas. Faria, Bill?

— Oh, não faria? — observei. — Notou como ele demo­rou a responder? Gwen, hoje cedo ele tentou atirar em mim. Por que eu deveria ter que tolerar seu comportamento mal-humorado?

— Richard, por favor! Você não pode esperar que ele me­lhore da noite para o dia.

A discussão irresponsável foi interrompida pelo Sr. Kondo, que nesse momento voltara para preparar a mesa para o jantar... incluindo pregadores para nossa pequena árvore. Um décimo de gravidade normal da Terra é suficiente para man­ter comida em um prato, manter os pés no chão — mas por pouco. As cadeiras ali eram presas ao chão, havia cintos de segurança para quem quisesse usá-los... Não os usei, mas um cinto tem suas vantagens, se a gente tem que cortar um bife duro. Cálices e xícaras tinham tampas e asas. Esta era talvez a adaptação mais necessária: o cara pode facilmente escaldar-se pegando uma xícara de café quente em 1/10 de gravidade — o peso é nada, mas a inércia continua a ser a mesma... e ele derrama e dá um banho na pessoa.

No momento em que colocava os pratos e os pauzinhos de comer ao meu lado, o Sr. Kondo disse baixinho ao meu ouvido:

— Senador, é possível que o senhor tenha estado presen­te na descida de pára-quedistas em Solis Lacus?

Respondi, contente:

— Claro que estive, meu chapa! Você também? Ele fez uma curvatura.

— Tive essa honra.

— Que unidade?

— "Vou Até o Fim, Oahu."

— A velha "Vou Até o Fim" — retruquei, reverente. — A unidade mais condecorada de toda a história. Orgulhe-se, ho­mem, orgulhe-se!

— Em nome de meus camaradas, agradeço. E o senhor, senhor?

— Saltei com... os "Matadores de Campbell". O Sr. Kondo sugou o ar com os dentes.

— Ah, então, ela! Motivo de orgulho, realmente.

Fez nova mesura e dirigiu-se rapidamente para a cozinha.

Olhei sombriamente para meu prato. Descoberto... Kon­do havia me reconhecido. Mas quando chegar o dia em que, perguntando de cara, eu repudiar meus camaradas, não se preocupem em tomar meu pulso, nem mesmo se importem em me mandar cremar — simplesmente me tirem dali com o lixo.

 

— Richard?

— Ahn? Sim, querida?

— Você me dá licença?

— Claro. Sente-se bem?

— Muito bem, obrigada, mas há uma coisa que tenho que fazer.

Saiu, dirigiu-se para o passadiço que levava à sala de es­tar e à saída movendo-se daquele jeito imponderável que é mais dança do que andadura — a um décimo de gravidade a caminhada normal só pode ser feita usando-se pegadores magnéticos ou qualquer outra coisa, ou tendo muita práti­ca. Kondo não usava pegadores... e deslizava como se fosse um gato.

— Senador?

— Sim, Bill?

— Ela está piçuda comigo?

— Acho que não. — Eu ia acrescentar que ficaria aborreci­do com ele se insistisse em... depois calei-me, mentalmente.

Ameaçar deixá-lo ali parecia demais com abandonar um be­bê. Ele não tinha proteção. — Ela simplesmente quer que você se torne responsável e não ponha a culpa nos outros por seus atos. Não dê desculpas.

Tendo dito minha banalidade favorita a pessoas que pre­cisavam de um reforço, voltei à minha sombria auto-análise. Eu dava desculpas. Sim, mas não em voz alta, apenas para mim mesmo. Isto em si é uma desculpa, meu chapa — o que quer que você tenha feito, onde quer que tenha estado, tudo isso é, na totalidade, 100% falta sua.

Ou para crédito meu. Sim, mas danado de pouco. Ora va­mos, fale a verdade.

Mas vejam só onde comecei... e, ainda assim, subi o ca­minho todo até coronel.

Na turma mais cheia de filhos da puta, mais ordinária, ladravaz, saqueadora, de bandidos desde as Cruzadas.

Não fale dessa maneira sobre o Regimento.

Muito bem. Mas eles não eram a Guarda da Rainha, certo?

Aqueles almofadinhas! Ora, um único pelotão dos Mata­dores de Campbell...

Merda.

 

Gwen voltou, tendo estado longe por muito tempo — oh, um bocado de tempo. Eu não havia conferido as horas, mas, naquele momento, notei, eram quase 6h. Tentei me levantar — o que não é prático com cadeiras e mesa presas ao chão. Ela perguntou:

— Atrasei o jantar?

— Nem um pouco. Comemos e jogamos o resto aos porcos.

— Tudo bem. Mama-San não vai deixar que eu passe fome.

— E Papa-San não serve o jantar sem você.

— Richard, eu fiz uma coisa sem consultá-lo.

— Não conheço nada no livro que diz que você não pode. A gente pode arrumar as coisas com os guardas?

— Nada parecido com isso. Você deve ter notado o movi­mento, o dia todo... de gente usando fez... excursionistas vin­dos da convenção dos Shriners em Luna City.

— Então é isso que eles são. Pensei que a Turquia havia nos invadido.

— Se quiser. Mas viu-os hoje, subindo e descendo a Lane e o Camino, comprando tudo que não morde. Acho que a maio­ria não vai passar a noite aqui. Têm um programa completo em Luna City e quartos de hotel pelos quais já pagaram. As últimas naves certamente estarão superlotadas...

— Com turcos bêbados vomitando dentro do fez. E nas almofadas.

— Sem dúvida. Eu pensei que mesmo a nave das 20h pro­vavelmente teria toda a lotação comprada com muita antece­dência. De modo que comprei passagens para nós e reservei camas.

— E agora você espera que eu a indenize? Submeta um pedido e eu o mandarei ao meu departamento jurídico.

— Richard, eu estava com medo de não conseguirmos sair absolutamente daqui hoje à noite.

— Sra. Durona, a senhora continua a me impressionar. Qual foi o total?

— Podemos acertar depois esta questão de finanças. Eu simplesmente achei que poderia jantar em um estado de es­pírito mais alegre se estivesse certa que poderíamos ir embo­ra imediatamente depois. E, ahn... — Interrompeu-se e olhou para Bill. — Bill.

— Sim, madame.

— Nós vamos jantar já. Vá lavar as mãos. — Ahn?

— Não rosne. Faça o que eu mandei.

— Sim, madame.

Docilmente, Bill se levantou e saiu. Gwen voltou-se novamente para mim.

— Eu estava nervosa. Inquieta. Por causa do Limburger.

— Que Limburger?

— O seu Limburger, querido. Parte do que eu tirei de sua dispensa, e depois coloquei na bandeja de frutas e queijos quando almoçamos. Sobrou uma porção de 100 gramas, in­teira, ainda na embalagem metálica, quando terminamos. Em vez de jogá-la fora, guardei-a na bolsa. Pensei que daria um bom lanche...

— Gwen.

— Tudo bem, tudo bem! Guardei-o com uma finalidade, porque o usei numa guerra de espelhos antes disso. É muito mais decente que algumas outras coisas na lista. Ora, você nem acreditaria o que...

— Gwen. Eu escrevi aquela lista. Volte ao assunto.

— No gabinete do Dr. Sethos, você deve lembrar-se de que eu me sentei quase colada ao anteparo e junto da principal saí­da de ventilação. Senti uma corrente de ar nas pernas e desa­gradavelmente quente. Comecei a pensar...

— Gwen.

— Elas são todas iguais, em todo o habitat — controle lo­cal, tanto de calor quanto de volume. E a tampa é a pressão. Enquanto a Contabilidade trabalhava em nosso demonstrati­vo final e o Administrador cuidadosamente nos ignorava, bai­xei o volume e o calor para neutro e tirei a tampa. Passei o queijo Limburger por todas as saídas do intercambiador de ca­lor e joguei o resto tão no fundo quanto consegui, e novamente recoloquei a tampa. Em seguida, pouco antes de sairmos de lá, liguei o controle de calor para "frio" e aumentei o volume. — Ela pareceu preocupada. — Está com vergonha de mim?

— Não. Mas estou satisfeito porque você está do meu la­do. Ahn... você está, não está?

— Richard!

— Mas estou ainda mais contente porque você fez reser­vas na próxima nave. Quanto tempo vai demorar até que Se­thos sinta frio e ligue o calor?

O que comemos no jantar foi delicioso, não sei o nome de prato nenhum, de modo que vou ficar por aqui. Havíamos chegado justamente à fase do arroto quando o Sr. Kondo apa­receu, aproximou-se de minha orelha e disse:

— Senhor, por favor, venha comigo.

Segui-o até a cozinha. Mama-San levantou a cabeça do tra­balho, e depois não nos deu mais atenção. O reverendo Dr. Schultz estava ali, com aparência preocupada.

— Problemas? — perguntei.

— Apenas um momento. Esta é a sua foto de Enrico. Tirei uma cópia. Aqui os documentos de Bill. Por favor, examine-os.

Em um envelope usado, os documentos estavam enruga­dos, gastos, um tanto amarelos e mais do que sujos em alguns lugares. A Hercules Manpower, Inc. contratara William Sem Nome Intermediário Johnson, de Nova Orleans, Ducado de Mississipi, República da Estrela Solitária, que por seu lado ven­dera o contrato de servidão a Bechtel High Construction Corp. (contrato endossado para espaço, queda livre e vácuo), que por sua vez o vendera ao Dr. Richard Ames, habitat Regra de Ouro, circum Luna, etc. — o resto era conversa de advogado. Grampeado ao contrato havia uma certidão de nascimento mui­to honesta, dizendo que Bill era um enjeitado, fora abandona­do na Metairie Parish, com uma data de nascimento de três dias antes do dia em que fora encontrado.

— Grande parte disso é verdade — garantiu-me o Dr. Schultz. — Consegui arrancar alguns velhos registros do com­putador principal.

— Importa se for verdade ou não?

— Realmente, não. Enquanto for suficientemente hones­to para tirar Bill daqui.

Gwen me seguira. Tomou-me os documentos, leu-os.

— Estou convencido, padre Schultz, que o senhor é um artista.

— Uma senhora que conheço é a artista. Mas transmitirei seus elogios. Amigos, agora as más notícias. Tetsu, pode lhes mostrar?

O Sr. Kondo recuou para os fundos da cozinha. Mama-San (a Sra. Kondo, quero dizer) deu um passo para o lado. O Sr. Kondo ligou o terminal. Digitou o Herald, pediu algu­ma coisa — notícias de última hora, acho. Descobri-me olhan­do para mim mesmo.

Comigo, em meia tela, Gwen — numa imagem medíocre. Eu não a teria reconhecido, não fosse o áudio:

"... Ames. Sra. Gwendolyn Novak. A mulher é uma co­nhecida vigarista que tosquiou numerosas vítimas, principal­mente homens, em bares e restaurantes da Petticoat Lane. O pretenso 'Dr.' Ames, nenhum meio de sustento conhecido, desapareceu de seu endereço no círculo 65, raio 15, a 4/10 de gravidade. Os tiros foram disparados às 20h16m esta tarde no gabinete do sócio do Regra de Ouro, Tolliver"...

— Hei! — exclamei. — Essa hora está errada. Nós está­vamos...

— Isso mesmo. Vocês estavam comigo na Farm. Ouça o resto.

"... Segundo testemunhas oculares, ambos os assassinos dispararam. Acredita-se que continuem armados e sejam pe­rigosos. Utilizem a maior cautela para prendê-los. O Adminis­trador está profundamente abalado com a morte de seu velho amigo e ofereceu uma recompensa de dez mil coroas por..."

O Dr. Schultz estendeu a mão e desligou o aparelho.

— Daí em diante é só repetição. A proclamação está em um loop. Mas é transmitida como notícia de última hora em todos os canais. Por esta hora, a maioria dos habitantes deve tê-la assistido.

— Obrigado por nos avisar. Gwen, você não sabe que não se deve atirar em ninguém? Você é uma menina muito levada.

— Sinto muito, senhor. Caí em más companhias.

— Desculpas, novamente. Reverendo, que diabo vamos fa­zer? Aquele calhorda vai nos jogar no espaço antes do anoitecer.

— Esse pensamento me ocorreu. Hei, veja se isto dá em você.

De algum lugar em sua ampla pessoa ele tirou um fez. Experimentei-o.

— Dá bem.

— E agora isto.

Era uma venda de olho de veludo preto, com elástico. Coloquei-a e cheguei à conclusão de que não gostava de ter um olho tapado, mas fiquei calado. Papa Schultz evidentemente fizera um esforço de imaginação para impedir que eu respi­rasse vácuo.

— Oh, Deus! — exclamou Gwen. — Isso resolve!

— Exatamente — concordou o Dr. Schultz. — Um tapa olho atrai de tal maneira a atenção da maioria dos observadores que é preciso um esforço consciente para ver a fisionomia. Eu sem­pre tenho um à mão. Esse fez e a presença dos Nobres do San­tuário Místico fora uma feliz coincidência.

— O senhor tinha também um fez à mão?

— Não, exatamente. Ele, de fato, tem um antigo dono. Quando ele acordar, pode sentir falta... mas não acho que vá acordar muito cedo. Meu amigo Mickey Finns está cuidando dele. Mas seria bom evitar quaisquer membros do Templo Al Mizar. Os sotaques deles podem ajudar a identificá-los. São do Alabama.

— Doutor, vou evitar todos eles, tanto quanto puder. Acho que devo embarcar no último minuto. Mas, e Gwen?

O reverendo doutor mostrou outro fez.

— Experimente este, querida senhora.

Gwen obedeceu. O fez desceu sobre ela como um apaga-dor de velas. Tirou-o.

— Não acho que me melhore. Não combina com minha tez. O que é que você acha?

— Lamento dizer que acho que você tem razão.

— Doutor — disse eu —, os Shriners são duas vezes mais volumosos que Gwen, em todas as direções, e têm protube­râncias em lugares diferentes. Tem que ser outra coisa. Ma­quiagem de artista?

Schultz sacudiu a cabeça.

— Maquiagem de artista sempre parece maquiagem de artista.

— Foi uma foto muito ruim dela que mostraram no termi­nal. Ninguém vai reconhecê-la com base naquilo.

— Obrigada, meu amor. Infelizmente, há muitas pessoas no Regra de Ouro que sabem como eu sou... e apenas uma delas na câmara de embarque hoje à noite poderia reduzir dras­ticamente minha expectativa de vida. Hummm. Com um pouco de esforço e nada de maquiagem eu poderia mostrar minha verdadeira idade. Papa Schultz?

— Qual é sua verdadeira idade, querida moça?

Ela me lançou um olhar, levantou-se nas pontas dos pés e murmurou alguma coisa no ouvido do Dr. Schultz. Ele pa­receu surpreso.

— Não acredito nisso, E, não, não ia dar certo. Precisamos de alguma coisa melhor.

A Sra. Kondo falou rapidamente com o marido. Ele pare­ceu subitamente alerta, trocaram algumas palavras rápidas no que tinha que ser japonês. Ele passou ao inglês.

— Posso, por favor? Minha esposa observou que a Sra. Gwen tem a mesma altura, quase a mesma altura, que nossa filha Naomi... e, de qualquer maneira, quimonos são muito... flexíveis.

Gwen parou de sorrir.

— É uma idéia... e eu agradeço a ambos. Mas eu não pa­reço nipônica. Meu nariz. Meus olhos. Minha pele.

Houve mais conversas e trocas de palavras naquela língua rápida mas de palavras compridas, três pessoas ao mesmo tem­po. Finalmente Gwen disse:

— Isto poderá prolongar minha vida. De modo que, com licença.

Saiu em companhia de Mama-San.

Kondo voltou ao salão principal: luzes vinham piscando há vários minutos, solicitando serviço. Ele as ignorara. Eu disse ao bom doutor:

— O senhor prolongou nossa vida simplesmente — Gwen! — exclamei. —Sim?

— Gwen, isto é maravilhoso! Mas diga-nos, rápido, que nomes usou quando fez nossas reservas?

— Ames e Novak. Para combinar com nossos passaportes.

— Isto liquida a coisa. O que faremos, doutor? Gwen relanceou a vista entre nós dois.

— Por favor, qual é a dificuldade? Expliquei:

— Nós vamos ao portão de embarque, os dois bem disfar­çados... e nossas reservas mostram os nomes Ames e Novak. Cai o pano. Nada de flores.

— Richard, eu não lhe contei tudo.

— Gwendolyn, você nunca conta inteiramente tudo. Mais Limburger?

— Não, querido. Eu pensei que a coisa podia acabar desta maneira. Bem, acho que você pode dizer que desperdicei um monte de dinheiro. Mas eu... ahn, depois que comprei nos­sas passagens — passagens que não podemos mais usar e que estão perdidas... fui até a ala das naves de aluguel e fiz um depósito por um U-Pushit. Um esportivo Volvo.

— Sob que nome? — perguntou Schultz. Eu perguntei:

— Quanto?

— Usei meu nome verdadeiro...

— Valha-nos Deus! — exclamou Schultz.

— Apenas um momento, senhor. Meu nome verdadeiro é Sadie Lipschitz... e Richard é o único que sabe disso. E o senhor, agora. Por favor, guarde segredo disto, porque não gos­to do nome. Como Sadie Lipschitz reservei um Volvo para meu patrão, o senador Richard Johnson, e fiz o depósito. Seis mil coroas.

Soltei um assovio.

— Por um Volvo? Até parece que você o comprou.

— De fato, comprei-o, querido, tive que comprar. Tanto o aluguel como o depósito tiveram que ser feitos em dinheiro porque eu não tinha cartão de crédito. Oh, de fato tenho, em número suficiente para jogar paciência. Mas Sadie Lipschitz não tem crédito. De modo que tive que pagar seis mil simples­mente para reservá-lo... alugá-lo, mas com contrato de venda. Tentei conseguir um abatimento, mas com os Shriners na ci­dade, ele tinha certeza de que poderia vendê-lo.

— No que provavelmente tinha razão.

— Acho que sim. Se o pegarmos, temos ainda que com­pletar o pagamento de lista dos preços regulares, mais 19 mil coroas...

— Meu Deus!

— ... mais seguro e propina. Mas receberemos de volta o saldo não utilizado se o entregarmos aqui, em Luna City ou em Hong Kong Luna em 30 dias. O Sr. Dockweiler explicou o motivo do contrato de compra. Mineiros de asteróides, ou melhor, garimpeiros, andaram alugando naves sem pagar to­do o preço, levando-as para algum esconderijo em Luna e modificando-as para mineração.

— Um Volvo? A única maneira de levar um Volvo aos as­teróides seria no porão de carga de um Hanshaw. Mas, 19 mil... não, 25 mil coroas. Mais seguro e bola. Uma deslavada rouba­lheira.

Schultz falou-me um tanto seco:

— Amigo Ames, sugiro que deixe de comportar-se como o escocês da fábula com um refrescador operado a moeda. Acei­ta o que a Sra. Ames conseguiu arranjar? Ou prefere a rota de ar fresco do Administrador? Fresco mas... rarefeito.

Tomei uma profunda respiração.

— Desculpe. O senhor tem razão. Não posso respirar di­nheiro. Mas simplesmente odeio ser explorado. Gwen, per­dão. Tudo bem, onde fica a Hertz, a partir daqui? Estou desorientado.

— Hertz, não, querido, Budget Jets'. A Hertz não tinha nem uma única unidade de sobra.

 

"Murphy era um otimista. "

(Comentário de OToole à Lei de Murphy, citada por A. Bloch)

 

Para chegar ao escritório da Budget Jets tínhamos que la­dear os fundos da sala de espera do espaçoporto e entrar na mesma pelo eixo, e em seguida seguir diretamente até a porta da agência. A sala estava congestionada — a multidão habi­tual, mais Shriners e suas esposas, a maioria presa por cintos aos descansos da parede, alguns flutuando livres. E censores — um numero excessivo deles.

Talvez eu deva explicar que a sala de espera — e o balcão de venda de passagens, a câmara pneumática para o túnel de embarque de passageiros e as instalações dos escritórios de aluguel de naves — estão todos em queda livre, em estado de imponderabilidade; não fazem parte do majestoso giro que dá ao habitat sua pseudogravidade. A sala de espera e ativi­dades correlatas situam-se em um cilindro dentro de outro mui­to maior, o próprio habitat. Os dois cilindros têm um eixo co­mum. O grande gira; o menor, não — tal como uma roda gi­rando em torno de um eixo.

Isto exige uma válvula de vácuo na superfície externa do habitat no ponto onde os dois cilindros se tocam — uma de tipo mercúrio, acho, mas nunca a vi. O importante é que em­bora o habitat circundante gire, o espaçoporto de maneira ne­nhuma pode girar porque uma nave de ponte aérea (ou um transatlântico, um cargueiro ou mesmo um Volvo precisa de um lugar fixo em queda livre para atracar. As baias de atra­cação das naves de aluguel formam uma roseta em torno do espaço de pouso principal.

Ao cruzar a sala de espera, evitei qualquer contato olho a olho e segui direto para meu destino, uma porta em um canto à frente da sala. Gwen e Bill me seguiam. Ela trazia a bolsa pendurada no pescoço e protegia a árvore bonsai com uma das mãos e agarrava meu tornozelo com a outra; Bill segurava um dos tornozelos dela e rebocava um embrulho na embala­gem da Macy's, o logotipo da loja proeminente e à vista de todos. Não sei o que aquele papel originariamente embrulha­ra, mas nesse momento escondia a valise menor de Gwen, a parte que não era de roupas.

O resto de nossa bagagem? Seguindo o primeiro princí­pio de quem quer salvar o pescoço, havíamos nos desfeito de­la. Ela nos teria indicado como impostores — para uma via­gem secundária de um único dia, Shriners em férias não le­vam grandes cargas de bagagem. A mala menor de Gwen po­díamos salvar porque, disfarçada com o papel de embrulho da Macy's, parecia o tipo de compras que muitos Shriners ha­viam evidentemente feito. E o mesmo acontecia com a minús­cula árvore — exatamente o tipo de compra tola e trabalhosa de levar que turistas geralmente fazem. Mas o resto da baga­gem teve que ser abandonada.

Oh, quem sabe, talvez pudesse ser-nos enviada algum dia, se por meios seguros pudessem ser encontrados. Mas eu a ris­caria de nossos inventários. O Dr. Schultz, censurando-me por ter reclamado o custo da transação feita por Gwen, havia me reorientado. Eu me permitira tornar-me mole, sedentário e domesticado — ele me obrigara a trocar de marchas no mundo real, onde só há duas raças de pessoas: as rápidas e as mortas.

Verdade esta, aliás, da qual me tornei agudamente cons­ciente ao cruzar a sala de espera: o censor-chefe Franco vinha atrás de nós. Aparentemente sem nos perceber e eu fazendo o possível para não notá-lo. Ele parecia interessado apenas em chegar ao grupo de capangas que guardavam a câmara pneu­mática de entrada para o túnel de passageiros. Mergulhou di­retamente na direção deles, enquanto eu puxava minha peque­na família ao longo de uma linha vital que se estendia da en­trada até o canto que queria atingir.

E consegui, cheguei à porta da Budget Jets, que se con­traiu atrás de nós, voltei a respirar e reengoli o estômago.

 

No escritório da Budget Jets encontramos o gerente, um tal de Sr. Dockweiler, amarrado à escrivaninha, fumando cha­ruto e lendo a edição de Luna do Daily Racing Form. Ele nos olhou quando entramos e disse:

— Sinto muito amigos, mas não temos nada para alugar ou vender. Nem mesmo uma vassoura de feiticeira.

Lembrei-me de quem era — o senador Richard Johnson, representante de um sindicato imensamente rico, que se es­tendia por todo o Sistema, de cheiradores de sassafrás, um dos lobistas mais poderosos em Haia — e deixei que a voz do senador falasse por mim:

— Filho, eu sou o senador Johnson. Sei que uma de mi­nhas assessoras fez uma reserva em meu nome hoje cedo... de um Hanshaw Superb.

— Oh! Prazer em conhecê-lo, senador — disse ele, pren­dendo o jornal à mesa e soltando o cinto de poltrona. — Sim, de fato temos sua reserva. Mas não é um Superb. É um Volvo.

— O quê! Ora, eu disse claramente à moça... Não impor­ta. Mude a reserva, por favor.

— Eu gostaria muito, senhor, mas não temos mais nada.

— Lamentável. O senhor poderia ter a gentileza de con­sultar seus colegas das outras agências, perguntando se...

— Senador, não há uma única unidade de sobra para alu­gar em todo o Regra de Ouro. A Morris Garage, a Lockheed-Volkswagen, a Hertz, a Interplanet... todos estamos nos con­sultando nesta última hora. Nenhuma chance. Nada feito. Ne­nhuma unidade.

Era tempo de ser filosófico, tolerante.

— Neste caso seria melhor eu aceitar um Volvo, não, filho?

 

O senador tornou-se mais uma vez apenas um pouco mais ríspido quando solicitado a pagar o preço total de lista sobre o que era evidentemente uma nave muito usada — e eu me queixei dos cinzeiros sujos e exigi que fossem limpos com as­pirador de pó... Depois disse que não se importasse com isso (quando o terminal atrás da cabeça de Dockweiler parou de falar sobre Ames e Novak) e ordenei:

— Vamos verificar a massa e a velocidade delta disponí­vel. Quero partir logo.

Para verificação de massa, a Budget Jets não usa centrífu­ga, porém o mais moderno, mais rápido, mais barato e muito mais conveniente medidor de inércia... embora eu tenha dúvi­das até que ponto é preciso. Dockweiler nos colocou todos ime­diatamente na rede (todos menos a bonsai, que ignorou e ano­tou como pesando dois quilos — quase o bastante, talvez), pediu-nos para nos abraçar firmemente com o pacote da Macy's entre nós, e em seguida puxou a alavanca do suporte elástico — e quase nos arrancou os dentes. Depois, anunciou que nossa massa total era de 213,6kg.

Minutos depois estávamos amarrados aos coxins, Dock­weiler fechava o nariz da nave e em seguida a porta interna do berço. Não nos pedira carteiras de identidade, passapor­tes ou habilitação de piloto de veículos a motor. Mas contara duas vezes aquelas 19 mil coroas. Mais a taxa de seguro. Mais a propina.

Digitei "213,6kg" no computador-piloto e verifiquei os instrumentos de bordo. O medidor de combustível indicava "completo" e todas aquelas luzes idiotas brilhavam, verdes. Apertei o botão "pronto" e esperei. A voz de Dockweiler nos chegou pelo alto-falante:

— Boa aterrissagem.

— Obrigado.

A carga de ar comprimido explodiu com um Whumpf!, deixamos a baia e entramos em brilhante luz solar. À frente e perto divisei a parte externa do espaçoporto. Apertei o con­trole de precessão e ajustei-o para 1/80. Enquanto girávamos, o habitat afastou-se para minha vigia esquerda; à frente, a na­ve da ponte aérea que chegava surgiu à vista — e eu nada fiz a esse respeito: era ela que tinha que me evitar, uma vez que era eu que estava decolando — e na minha vigia direita apare­ceu uma das vistas mais impressionantes do sistema: Luna em close-up, a uns meros 300 quilômetros de distância — tão per­to que poderia estender a mão e tocá-la.

Senti-me maravilhosamente bem.

Aqueles patifes mentirosos e assassinos estavam sendo dei­xados para trás e estávamos para sempre fora do alcance da tirania caprichosa de Sethos. No início, viver no Regra de Ou­ro me parecera uma existência livre e descuidada. Mas eu aprendera. O pescoço de um monarca deve ter sempre um la­ço de carrasco em volta do pescoço — para mantê-lo na pos­tura certa.

 

Eu ocupava o coxim do piloto, e Gwen o do co-piloto, à direita. Olhei para ela e me dei conta de que continuava a usar aquela venda idiota. Não, cortem o "idiota" — ela, com toda probabilidade, me salvara a vida. Tirei-a e enfiei-a no bolso. Depois, tirei o fez, olhei em volta procurando um lugar para guardá-lo — e coloquei-o sob o cinto de segurança.

— Vamos ver se estamos em segurança para viajar no es­paço — comecei.

— Não é um pouco tarde para isto, Richard?

— Eu sempre faço as verificações da lista depois que de­colo — expliquei-lhe. — É porque sou um tipo otimista. Você tem uma bolsa e um grande pacote da Macy's. Estão seguros?

— Ainda não. Se você não acelerar a nave enquanto eu es­tiver fazendo isso, desamarro o cinto e vou prendê-los na pra­teleira. — E começou a soltar o cinto de segurança.

— Espere aí! Antes de desamarrar o cinto você precisa ob­ter permissão do piloto.

— Eu pensei que a tinha.

— Tem, agora. Mas não cometa novamente esse erro, Sr. Christian. O Bounty, navio da esquadra de Sua Majestade, é um navio que obedece aos regulamentos e continuará assim. Bill! Como é que está indo aí atrás?

— Eu, legal.

— Está seguro de todas as maneiras? Quando eu virar a cauda da nave não quero dinheiro trocado voando por toda a cabine.

— Ele está devidamente amarrado — garantiu-me Gwen. — Eu mesma verifiquei. Está segurando o vaso da Árvore-San contra o estômago e prometi a ele que, se a soltar, nós o enter­raremos sem nenhum rito fúnebre.

— Não tenho muita certeza de que ela resista à aceleração.

— Nem eu, mas não havia maneira de acondicioná-la. Pelo menos ela estará na posição correta para a aceleração — e eu vou fazer uns encantamentos. Homem querido, o que é que vou fazer com esta peruca? É uma das que Naomi usa em es­petáculos públicos. E é valiosa. Foi realmente uma grande gen­tileza dela insistir em que eu a usasse — isto foi o toque final, convincente, acho — mas não vejo como protegê-la. Ela é pe­lo menos tão sensível à aceleração como a Árvore-San.

— O diabo me leve se sei — e isto é minha opinião oficial. Mas duvido que tenha que levar este calhambeque a mais de duas gravidades. — Pensei um pouco nisto. — Que tal o porta-luvas? Tire todos os lenços de papel da despensa e amarrote-os em volta da peruca. E alguns dentro. Acha que funciona?

— Acho que sim. Há tempo suficiente?

— De sobra. Fiz uma rápida estimativa no escritório do Sr. Dockweiler. A fim de aterrar em Hong Kong Luna, e de dia, tenho que começar a entrar em uma órbita mais baixa às 21h. Tempo à vontade. De modo que, vá, faça o que precisa ser fei­to... enquanto eu digo ao computador-piloto o que quero fa­zer. Gwen, pode ler todos os instrumentos de seu lado?

— Posso, senhor.

— Muito bem, este é seu trabalho, isto e a vigia de estibordo. Eu cuidarei da propulsão, altitude e este computador bebê. Por falar nisso, você é piloto brevetada, não?

— Não adianta me perguntar isso agora, adianta? Mas pa­ra que seu coração não fique perturbado, querido, eu estava juntando lixo espacial antes de deixar a escola secundária.

— Ótimo.

Não pedi para ver a carteira de piloto dela — como ela mes­ma observara, era tarde demais para importar.

E notei também que ela não respondera à minha pergunta.

 

(Se balística o aborrece, este é outro trecho para saltar.)

Uma órbita raspando as margaridas de Luna (supondo que Luna tem margaridas, o que me parece improvável) leva uma hora, 48 minutos e alguns segundos. O Regra de Ouro, estan­do 300 quilômetros mais alto do que uma alta margarida, tem que ir. mais longe que a circunferência de Luna (10.919 quilô­metros), isto é, 12.805 quilômetros. Quase dois mil quilôme­tros mais adiante — de modo que tem que ir mais rápido. Certo?

Errado. (Fiz tramóia.)

O aspecto mais maluco, contrário a todo bom senso, difí­cil, da balística em volta de um planeta é o seguinte: para ace­lerar você diminui a velocidade; para diminuir a velocidade, você acelera.

Sinto muito. Mas a coisa é assim mesmo.

Estávamos na mesma órbita do Regra de Ouro, 300 quilô­metros acima de Luna flutuando com o habitat a um e meio quilômetro por segundo (1.5477 km/s foi o que digitei no computador-piloto, porque era isso o que dizia a folha de ins­truções que recebi no gabinete de Dockweiler). A fim de des­cer à superfície eu tinha que descer para uma órbita mais bai­xa (e mais veloz)... E a maneira de fazer isso era reduzir a velocidade.

Porém era mais complexo do que isso. Uma aterrissagem em local sem atmosfera exige que desçamos à órbita mais baixa (e mais rápida)... mas temos que cortar essa velocidade para chegar a contato com o solo à velocidade relativa zero — te­mos que continuar a dobrá-la de modo que o contato seja na vertical e sem um solavanco (ou não muito) e sem derrapagem (ou não muita) — o que chamam de órbita "sinergística" (difícil de pronunciar e ainda mais difícil de calcular).

Mas isto pode ser feito. Armstrong e Aldrin fizeram isso certo da primeira vez. (Não há segunda oportunidade.) Mas a despeito de toda a matemática cuidadosa, aconteceu que ha­via uma pedra danada de grande no caminho deles. Por puro virtuosismo e um pouco de gasto de combustível, consegui­ram aterrissar a pouca distância dela. (Se eles não tivessem aque­le pouco de combustível de sobra, as viagens espaciais teriam sido retardadas em um século, mais ou menos. Nós não ho­menageamos o suficiente os pioneiros).

Há outra maneira de aterrissar. Pare de súbito sobre o lo­cal onde quer descer. Caia feito uma pedra. Freie com seus jatos tão precisamente que toca o chão como um saltimbanco pegando um ovo num prato.

Uma pequena dificuldade: voltas em ângulo reto são pra­ticamente o pior que se pode fazer em pilotagem. O gasto de delta vee é escandaloso — e sua nave provavelmente não leva tanto combustível assim. ("Delta vee" no jargão dos pilotos. Isto quer dizer "mudança de velocidade" porque, em equa­ções, a letra grega delta significa mudança minúscula e "v" significa velocidade — e, por favor, lembre-se que "velocidade" é tanto direção como velocidade propriamente dita, o motivo porque foguetes não fazem curvas em U.)

Comecei a programar o pequeno computador-piloto do Vol­vo com o tipo de aterrissagem sinergística que Armstrong e Aldrin haviam feito, mas nem de longe tão sofisticada. Princi­palmente tive que pedir ao computador-piloto que sacasse da memória seu programa generalizado para aterrissagem vindo de uma órbita em volta de Luna... E ele docilmente admitiu que sabia como fazer isso... E então tive que dar os dados pa­ra aquela aterrissagem particular, usando a folha de instruções fornecida pela Budget Jets.

Terminado isto, disse ao computador que verificasse os da­dos que eu lhe havia fornecido. Relutantemente, ele admitiu que possuía tudo de que necessitava para aterrar em Hong Kong Luna às 22hl7min48,3.

O relógio do computador marcava 19h57min. Há apenas 20h um estranho que dissera chamar-se "Enrico Schultz" sentara-se, sem ser convidado, à minha mesa no Rainbow's End — e cinco minutos depois fora assassinado. Desde então, Gwen e eu havíamos casado, sido despejados, "adotado" um dependente inútil, sido acusados de assassinato e dado no pé para salvar a vida. Um dia cheio! — e não terminara ainda.

Eu estivera vivendo em uma embotadora segurança por tempo longo demais. Nada dá mais vivacidade à vida do que correr para salvar a vida.

— Co-piloto.

— Co-piloto, sim, senhor?

— Isto é divertido! Obrigado por ter casado comigo.

— Recebido e entendido, comandante querido! Eu, tam­bém!

Aquele era meu dia de sorte, quanto a isso, nenhuma dú­vida! Um golpe de sorte em programação nos mantivera vi­vos. Naquele momento, o chefe Franco devia estar verifican­do todos os passageiros que entravam na câmara da nave da ponte aérea das 20h, esperando que o Dr. Ames e a Sra. Novak viessem reclamar suas reservas — enquanto havíamos saído por uma porta lateral. Mas, embora aquela sincronização crí­tica nos tivesse salvo a vida, Dona Sorte ainda estava ofere­cendo alternativas.

Como? A partir da órbita do Regra de Ouro, nosso pouso mais fácil em Luna implicaria descermos em algum ponto da linha de iluminação — menos combustível consumido, menor delta vee. Por quê? Porque já estávamos nessa linha de ilumi­nação, indo de um pólo a outro, do Sul para o Norte, do Nor­te para o Sul, de modo que o pouso mais simples era dobrá-la para baixo onde estávamos, nunca mudando nossa direção.

Aterrissar na direção leste-oeste implicaria jogar fora nosso movimento atual, gastar ainda mais delta vee fazendo aquela tola volta em ângulo reto — e em seguida programar pa­ra o pouso. Talvez sua conta bancária possa agüentar esse des­perdício — mas a nave não pode nem carregar esse combustível — e vamos acabar lá em cima sem nada embaixo senão o vá­cuo e pedras. Desagradável.

A fim de salvar nosso pescoço, eu aceitava feliz qualquer campo de pouso em Luna... Mas aquele risco oferecido por Dona Sorte incluía aterrar em meu corpo preferido (Hong Kong Luna) mais ou menos quando ali nascia o dia, com apenas uma hora estacionado em órbita, esperando a ocasião de dizer ao computador-piloto para nos baixar ao chão. O que mais po­deria eu pedir?

Naquele momento, estávamos flutuando sobre o outro la­do da Lua — tão enrugada quanto a bunda de um crocodilo. Pilotos amadores não pousam no outro lado de Luna por duas razões: 1) montanhas — o lado da Lua oculto da Terra faz com que os Alpes pareçam tão lisos como o Kansas; 2) povoados — não há nenhum que mereça menção. E não falemos dos que merecem porque poderia enfurecer alguns colonos de carac­terísticas impublicáveis.

Dentro de mais 40 minutos estaríamos sobre Hong Kong Luna, exatamente no momento em que o dia estivesse raiando. Antes disso, eu pediria liberação para pouso e controle de terra na última e mais delicada parte da aterrissagem — e pas­saria as duas horas seguintes girando e baixando suavemente o Volvo para o pouso. Nesse momento chegaria a ocasião de transferir o controle para a equipe de terra em Hong Kong Lu­na, mas prometi a mim mesmo que ficaria no comando e diri­giria pessoalmente o pouso, apenas para praticar. Há quanto tempo eu não fazia pessoalmente um pouso em local sem at­mosfera? Calisto, fora isso? Em que ano acontecera isso? Há tempo demais!

 

Às 20h12min passamos por cima do pólo norte de Luna e fomos brindados com o nascer da Terra... Uma visão empol­gante, por mais vezes que a tenhamos visto. Mãe Terra estava em meia fase (desde que nós estávamos na linha de ilumina­ção de Luna), com a parte brilhante à nossa esquerda. Tendo passado apenas alguns dias do solstício de verão, a calota po­lar norte aparecia inclinada em plena luz, ofuscantemente bri­lhante. A América do Norte, porém, estava quase igualmente brilhante, amplamente nublada, exceto pela parte da costa oeste do México.

Descobri que prendera a respiração e que Gwen me aper­tava a mão. Quase esqueci de chamar o controle da terra HKL.

 

— Volvo Bee Jay Seventeen chamando controle de terra HKL. Está me ouvindo?

— Bee Jay Seventeen, afirmativo. Continue.

— Solicito liberação para pousar aproximadamente às 22h 17min40s. Solicito aterrissagem controlada de terra, com pi­lotagem manual. Estou vindo do Regra de Ouro e ainda na órbita do mesmo a aproximadamente seis quilômetros a oeste do habitat. Câmbio.

— Volvo Bee Jay Seventeen. Liberado para aterrissagem em Hong Kong Luna a aproximadamente 22hl7min48s. Mude para canal de satélite 13 não mais tarde que 21h49min e prepare-se para receber controle de terra. Aviso: você tem que iniciar programa de descida dessa órbita às 21hl9min e segui-lo exatamente. Se em inserção para aterrissagem controlada de terra você estiver fora em vetor 3% ou em altitude quatro quilômetros, espere ser desconectado. Controle HKL.

— Recebido e entendido. Seguirei as instruções. — E acres­centei: — Aposto que vocês não sabem que estão falando com o Capitão Meia-Noite, o piloto mais "quente" do Sistema So­lar — mas desliguei o microfone antes de dizer isso.

Ou foi isso o que pensei. Ouvi a resposta:

— E este aqui é o Capitão Colônia de Hemorróidas, o mais perverso piloto de controle de terra de Luna. Você vai me com­prar uma garrafa de Glenlivet depois que eu o trouxer para baixo. Se eu o trouxer.

Examinei o controle do microfone — e não parecia haver nada de errado com ele. Resolvi não responder. Todo mundo sabe que telepatia funciona melhor no vácuo... mas devia ha­ver uma maneira de uma cara comum se proteger contra super-homens.

(Tal como saber quando calar o bico.)

Acertei o despertador para 21h, em seguida processei o computador para uma altitude diretamente para baixo e na hora seguinte saboreei a viagem de mãos dadas com minha esposa. As incríveis montanhas da Lua, mais altas e angulosas que os Himalaias e tragicamente desoladas, corriam à frente (ou sob) de nós. O único som era o murmúrio baixo do com­putador e o suspiro do exaustor de ar — e uma fungadela re­gular e irritante de Bill. Excluí todos os sons e convidei minha alma a entrar. Nem Gwen nem eu tínhamos desejo de falar. Era um feliz interlúdio, tão tranqüilo como o riacho ao lado do velho moinho.

— Richard! Acorde!

— Ahn? Eu não estava dormindo.

— Estava, querido. Já passa de 21h.

Humm... e assim era: 21h1min, e o tempo correndo. O que teria acontecido com o alarme? Isso não importava no mo­mento: eu dispunha de cinco minutos e alguns segundos pa­ra nos certificar de que entrávamos na ocasião certa no pro­grama de descida. Acionei o controle de precessão, de cabeça para baixo — o mais fácil para descer, embora supino para trás funcione também. Ou mesmo do lado para trás. Qualquer que seja a orientação, o local do jato tem que apontar contra a di­reção do movimento a fim de reduzir a velocidade para inser­ção no programa de pouso — isto é, "para trás" para o piloto, tal como a ave maluca que voa para trás. (Mas eu me sinto mais feliz quando o horizonte parece "certo" à maneira como estou preso no assento. Este o motivo porque prefiro pôr uma nave na posição cabeça para baixo e para trás.)

Logo que senti o Volvo iniciar a precessão, perguntei ao computador se estava pronto para iniciar o programa de pou­so,utilizando o código padrão constante da lista gravada em sua tampa.

Nada de resposta. Tela vazia. Mudo.

Falei cheio de desprezo dos ancestrais do computador. Gwen observou:

— Você apertou o botão "execute"?

— Claro que apertei. — E apertei novamente.

A tela iluminou-se e o som voltou em um nível de rachar dentes:

"De que maneira você escreve a palavra conforto? Para o cidadão de Luna hoje, superesgotado de trabalho, superes­timulado, superestressado, é escrito como C.O.M.F.I.E.S. — isso mesmo, Comfies, ò conforto que os terapeutas recomendam para acidez estomacal, azia, úlceras gástricas, cólicas intesti­nais e simples dor de estômago. Comfies! Elas fazem mais! Fabricadas por Tiger Balm Pharmaceuticals, Hong Kong Lu­na, fabricantes de medicamentos em que você pode confiar. COMFIES Comfies. Eles fazem mais! Pergunte a seu terapeu­ta." E uivos de corujas começaram a cantar as delícias de Comfies.

— Esta droga de coisa não quer desligar!

— Bata nele! — Ahn?

— Bata nele, Richard!

Não consegui ver lógica nisso, mas atendia as minhas ne­cessidades emocionais. Bati, e bati com força. O computador continuou a dizer bobagens sobre bicarbonato de sódio caro demais.

— Querido, você tem que bater com mais força. Eléctrons são coisinhas tímidas, mas opiniosas. Você tem que lhes mos­trar quem é o chefe. Deixe que eu faço. — E Gwen desfechou-lhe um murro que pensei que ia rachar a tampa da coisa.

O computador imediatamente reagiu:

"Pronto para descida — Hora Zero = 21-06-17,0."

O relógio do computador marcava 21-05-42,7.

... o que me dava tempo suficiente apenas para lançar um olhar ao altímetro de radar (que indicava 298 quilômetros aci­ma do chão, regular) e uma leitura de efeito doppler, que mos­trava que estávamos orientados ao longo de nossa linha de mo­vimento sobre o solo, perto o suficiente para trabalho do go­verno... embora o que eu pudesse ter feito em cerca de 10 se­gundos eu não pudesse saber. Em vez de usar pequenos ja­tos em pares para controlar altitude, o Volvo usa giroscópios e precessiona contra eles — mais barato do que 12 pequenos jatos e um bocado de fiação. Embora sejam mais lentos.

Em seguida, de repente, o relógio chegou a tempo zero, os jatos foram ligados, jogando-nos contra os coxins, e a tela mostrou o programa de queima de combustível — o principal sendo:

 

21 — 06 — 17,0 — 19 segundos

21 — 06 — 36,0

               

Tão suavemente como foi possível, o jato desligou após 19 segundos, sem mesmo pigarrear.

— Está vendo? — disse Gwen. — A gente tem simplesmen­te que ser firme com ele.

— Eu não acredito em animismo.

— Não acredita? De que modo você pode enfrentar... Des­culpe, querido. Esqueça. Gwen cuidará dessas coisas.

O Capitão Meia-Noite não respondeu. Vocês podem di­zer, sem falsear a verdade, que fiquei emburrado. Mas, dro­ga, animismo é pura superstição. (Exceto no tocante a armas.)

 

Eu mudara para o canal 13 e estávamos justamente inician­do o quinto disparo dos foguetes. Eu ia passar o controle pa­ra o HKL GCL (Capitão Hemorróida) quando o querido idiotazinho eletrônico fundiu a cuca, isto é, o RAM — Memória de Acesso Aleatório, onde estava gravado nosso programa de descida. A tabela de disparos na tela diminuiu de clareza, tre­meu, encolheu até transformar-se em um ponto e desapare­ceu. Freneticamente, premi a tecla de restauração — e nada aconteceu.

O Capitão Meia-Noite, intimorato como sempre, sabia exa­tamente o que fazer:

— Gwen! A coisa perdeu o programa!

Ela estendeu a mão e esmurrou o computador. A seqüên­cia de queima não voltou — um RAM, uma vez fundido, está perdido para sempre, como uma bolha de sabão —, mas a coi­sa não tomou vergonha. Um cursor apareceu no canto superior esquerdo e piscou interrogativamente. Gwen virou-se para mim:

— A que horas deve ligar novamente os jatos, querido? E por quanto tempo?

— 21, 47, 17, acho, durante, acho, ahn, 17 segundos.

— Eu confiro para você ambos os números. De modo que, faça isso manualmente, depois pergunte ao computador para recomputar o que perdeu.

— Certo. — Digitei a ligação. — Depois deste, estou pron­to para aceitar o controle de Hong Kong.

— E assim damos um jeito na coisa, querido — uma liga­ção manualmente e, em seguida, o controle de terra assume o controle. Mas vamos recomputar, apenas por questão de segurança.

Ela parecia mais otimista do que eu me sentia. Não con­seguia me lembrar que vetor e altitude eu devia conseguir pa­ra que o controle de terra assumisse. Mas não tinha tempo para me preocupar com isso. Tinha que comandar aquela ligação dos foguetes.

Digitei:

 

21 — 47 — 17,0 — 11,0 segundos

21 — 47 — 28,0

 

Observei o relógio e contei com ele. A exatamente 17 se­gundos depois de 21h47min apertei o botão de disparo e o mantive em posição. Os jatos dispararam. Não sei se eu os disparei ou se foi o computador. Mantive o dedo no botão enquanto os segundos se escoavam e ergui-o em exatamente 11 segundos.

Os jatos continuaram a queimar.

("... corra em círculos, grite e berre!") Mexi de um lado pa­ra o outro no botão de ignição. Não, não estava preso. Bati na tampa do computador. Os jatos continuaram a rugir e nos lançaram contra os coxins.

Gwen estendeu a mão e cortou a energia do computador. Os jatos pararam bruscamente. Fiz força para parar de tremer.

— Obrigado, co-piloto.

— Não há de quê, senhor.

Olhei para fora e cheguei à conclusão de que o chão pare­cia mais perto do que eu gostava, de modo que dei uma olha­da no altímetro de radar. Noventa alguma coisa — o terceiro número continuava a mudar.

— Gwen, acho que nós não vamos a Hong Kong Luna.

— Eu também não.

— De modo que o problema é tirar esta sucata do céu sem quebrá-la,

— Concordo, senhor.

— E onde é que nós estamos? Um palpite educado, quero dizer. Não espero milagres.

A coisa à frente — atrás, para ser exato, uma vez que está­vamos ainda orientados para frenagem — parecia tão aciden­tada como atrás. Não um lugar para um pouso de emergência.

— Poderíamos virar ao contrário? Se pudéssemos ver o Re­gra de Ouro isto nos diria alguma coisa.

— Muito bem. Vamos ver se a nave responde. Agarrei os controles de precessão, disse à nave que virasse 1/81 de grau, passando novamente pela inversão. O terreno estava visivelmente mais próximo. Nossa nave acomodou-se, com o horizonte correndo à direita e à esquerda — mas com o céu no lado de "baixo". Irritante... mas tudo o que queríamos era olhar para o nosso ex-lar, o habitat Regra de Ouro.

— Consegue vê-lo?

— Não, não consigo, Richard.

— Deve estar acima do horizonte, em algum lugar. Não é de surpreender, ele estava muito longe da última vez em que olhamos — e aquela última queima foi toda errada. Demora­da. De modo que, onde estamos nós?

— Quando foi que passamos por aquela grande cratera — Aristóteles?

— Não foi a de Platão?

— Não, senhor. Platão ficaria a oeste de nossa rota e ain­da estaria na sombra. Pode ser alguma cratera que não conhe­ço... mas aquele troço liso — aquele troço razoavelmente liso — ao sul me faz pensar que deve ser a de Aristóteles.

— Gwen, não importa o que seja. Vou ter que descer esta carroça naquele troço liso. Razoavelmente liso. A menos que você tenha uma idéia melhor.

— Não, senhor, não tenho. Estamos caindo. Se acelerás­semos o suficiente para manter uma órbita circular a esta alti­tude provavelmente não teríamos combustível suficiente pa­ra fazê-la descer mais tarde. Isto é um palpite.

Olhei para o marcador de combustível — aquele longo e desastrado disparo gastara um bocado de minha delta vee dis­ponível. Nenhuma folga.

— Seu palpite é uma certeza... de modo que vamos des­cer. Vamos ver se nosso amiguinho consegue calcular uma des­cida parabólica para esta altitude — porque tenciono cortar nos­sa velocidade avante e simplesmente deixar a nave cair logo que estivermos passando por cima de um terreno que pareça razoavelmente liso. O que é que você acha?

— Tomara que a gente tenha combustível suficiente.

— Eu também. Gwen?

— Sim, senhor?

— Doçura, foi divertido.

— Oh, Richard! Foi, sim.

 

Em voz abafada, Bill disse:

— Humm, eu não acho que possa...

Eu estava precessionando para nos colocar novamente em altitude de frenagem.

— Bico calado, Bill. Estamos ocupados!

O altímetro mostrava oitenta e alguma coisa — quanto tempo precisaríamos para a nave cair 80 quilômetros em um cam­po de 1/6 de gravidade? Ligar novamente o computador-piloto e perguntar? Ou fazer isso mentalmente? Poderia confiar que o computador não ligaria novamente os jatos se eu novamen­te lhe fornecesse energia?

Era melhor não arriscar. Uma aproximação em linha reta me diria alguma coisa? Vejamos... Distância é igual à meia ace­leração multiplicada pelo quadrado do tempo, tudo isso em centímetros e segundos. De modo que 80 quilômetros são, ahn, 80 mil, não, 800 mil... Não, 80 milhões de centímetros. Estava certo?

Um sexto de gravidade... Não, metade de um, 62. De mo­do que pegue esse número e extraia a raiz quadrada...

Cem segundos?

— Gwen, quanto tempo até o impacto?

— Mais ou menos 17 minutos. Isto é aproximado. Fiz a con­ta de cabeça.

Dei outra olhada dentro de meu crânio e verifiquei que, deixando de incluir o vetor para a frente — o fator "queda em espiral" — minha "aproximação" não era nem mesmo um pal­pite maluco.

— Bastante perto. Vigie o doppler. Vou diminuir um pou­co a velocidade para a frente. Não me deixe cortá-la toda. Pre­cisamos de alguma opção sobre o lugar onde pousar.

— Sim, senhor comandante.

Forneci energia ao computador. Os jatos dispararam ime­diatamente. Deixei que funcionassem por cinco segundos, cor­tei o combustível. Os jatos soluçaram e calaram-se.

— Isto — reconheci amargamente — é uma maneira horrí­vel de operar um acelerador. Gwen?

— Estamos simplesmente nos arrastando agora. Podemos virar e ver para onde estamos indo?

— Claro.

— Senador...

— Bill... cale a boca! — Virei a nave mais 180 graus. — Está vendo à frente alguma lisa e linda pastagem?

— Tudo isso parece liso, Richard, mas estamos ainda à qua­se 70 quilômetros de altura. Podia descer bastante antes de cortar a velocidade à frente, talvez? De modo a que possa ver qualquer rocha adiante?

— Razoável? Perto até que ponto?

— Ahn, um quilômetro seria seguro?

— Bastante perto para nós ouvirmos o som das asas do Anjo da Morte. Quantos segundos até o impacto? Para uma altura de um quilômetro, quero dizer?

— Ahn, raiz quadrada de 1.200 mais... digamos, 35 se­gundos.

— Tudo bem. Continue observando a altura e o terreno. A mais ou menos dois quilômetros vou querer começar a cortar a velocidade à frente. Preciso ter tempo de virar mais 90 graus depois disso e cair de cauda para baixo. Gwen, nós devíamos ter ficado na cama.

— Eu tentei lhe dizer isso, senhor. Mas confio no senhor.

— De que vale a fé sem obras? Eu gostaria de estar em Paducach. Tempo?

— Seis minutos, por aí.

— Senador...

— Bill, cale a boca! Cortamos metade da velocidade res­tante!

— Três segundos?

Dei um disparo de três segundos usando o mesmo méto­do idiota de ligar e cortar os jatos.

— Dois minutos, senhor.

— Observe o doppler. Diga quando. Ligue o jato.

— Agora!

Cortei-o bruscamente e comecei a pressionar, cauda para baixo, "pára-brisa" para cima.

— Como está indo a coisa?

— Estamos quase tão parados quanto podemos ir dessa maneira, acho. E eu não brincaria com isso. Olhe para esse medidor de combustível. Olhei e não gostei.

— Muito bem. Não ligo em absoluto até estarmos bem perto.

Estabilizamos na posição proa para cima — nada senão céu à nossa frente. Sobre meu ombro esquerdo via o terreno em um ângulo de uns 45 graus. Olhando para além de Gwen, po­dia vê-lo no lado de estibordo, também, mas a uma grande distância — um mau ângulo, talvez.

— Gwen, qual é o comprimento deste calhambeque?

— Nunca vi um deles fora do ancoradouro. Isto importa?

— Importa pra burro quando estou tentando julgar a que distância estamos do chão olhando por cima de meu ombro.

— Oh, eu pensava que você queria saber exatamente. Di­gamos, uns 30 metros. Um minuto, senhor.

Eu ia justamente provocar uma súbita explosão de moto­res quando Bill explodiu. De modo que o pobre-diabo estava enjoado, mas, naquele instante, desejei mesmo foi que esti­vesse morto. O jantar dele passou entre nossas cabeças e cho­cou-se com a vigia de proa, onde se espalhou.

— Bill! — gritei. — Pare com isso!

(Não se dê ao trabalho de me dizer que fiz uma exigência descabida.)

Bill fez o melhor que pôde. Virou a cabeça para a esquer­da e depositou barragem na vigia da esquerda — deixando-me a pilotar às cegas.

Tentei. Com os olhos no altímetro de radar, dei um rápi­do disparo de motores — e perdi este, também. Tenho certeza de que algum dia solucionarão o problema de leituras de baixa confiabilidade feitas através de disparos de jatos e prejudica­da pela "grama" do terreno... Eu nasci cedo demais, só isso.

— Gwen, não posso ver!

— Assumi, senhor.

Ela parecia calma, fria, relaxada... a companheira certa para o Capitão Meia-Noite. Pelo ombro direito ela olhava para o solo da Lua, a mão esquerda no controle de energia do compu­tador-piloto, nosso "acelerador" de emergência.

— Quinze segundos, senhor... dez... cinco. Baixou a alavanca.

Os jatos queimaram por um instante, senti o mais leve dos solavancos, e tínhamos peso novamente. Ela virou a cabeça e sorriu.

— O co-piloto comunica...

E perdeu o sorriso, pareceu espantada, e sentimos a nave vacilar.

Você já jogou pião quando criança? Sabe como um pião se comporta quando desce? Gira e gira, e afunda cada vez mais, enquanto lentamente perde velocidade e pára? Foi o que o or­dinário Volvo fez.

Até jazer o fio comprido na superfície e rolar. Paramos, ain­da amarrados aos nossos assentos, em segurança, sem uma contusão — e de cabeça para baixo.

Gwen continuou:

— ... comunica que acabou de pousar, senhor.

— Obrigado, co-piloto.

 

"É inútil ovelhas votarem resoluções em favor de vegetarianismo enquanto lobos tiverem opinião diferente."

William Ralph Inge, D. D., 1860—1954

 

"A cada minuto nasce alguém."

P.T. Barnum, 1810—1891

 

E acrescentei:

— Foi uma bela aterrissagem, Gwen. A PanAm jamais pou­sou com tal suavidade.

Gwen afastou para o lado a saia do quimono e olhou para fora.

— Não foi tão bom assim. Simplesmente, fiquei sem combustível.

— Não seja modesta. Admirei especialmente aquela pe­quena gaivota que pôs a nave deitada. Conveniente, desde que não temos aqui uma escada de espaçoporto.

— Richard, o que levou a nave a fazer isso?

— Hesito em dar um palpite. Pode ter sido alguma coisa com o giroscópio de precessão... que pode ter caído. Sem da­dos, nenhuma opinião. Querida, você fica encantadora nessa pose. Tristram Shandy tinha razão: a mulher fica no seu me­lhor aspecto com as saias em cima da cabeça.

— Não acho que Tristram Shandy tenha jamais dito isso.

Neste caso, devia ter dito. Você tem pernas lindas, mi­nha querida.

— Obrigada. Agora, pode ter a gentileza de me tirar desta confusão toda? Meu quimono está emaranhado no cinto de segurança e não consigo soltá-lo.

— Você se importa se, antes, eu tirar uma foto? Gwen, às vezes, dá respostas rudes. Neste caso é melhor mudar de assunto. Soltei meu cinto de segurança, fiz uma rá­pida e eficiente descida até o teto, levantei-me, atirei-me à ta­refa e libertei Gwen. A fivela do cinto não era realmente um problema: ela simplesmente não podia vê-la para soltá-la. Fiz isso e cuidei para que ela não caísse quando a libertei. Coloquei-a de pé e exigi um beijo. Eu me sentia eufórico. Minutos an­tes, não teria apostado em aterrissar vivo. Gwen fez o pagamento e deu sobra.

— Agora, vamos soltar o Bill.

— Por que é que ele não pode...

— Ele não está com as mãos livres, Richard.

Quando soltei minha esposa e olhei, entendi o que ela que­ria dizer. Bill estava pendurado de cabeça para baixo, uma ex­pressão de paciente sofrimento no rosto. Minha... nossa, ár­vore bonsai ele a conservava junto à barriga, a planta incólu­me. Solenemente, olhou para Gwen.

— Não larguei ela — disse, em tom de defesa.

Em silêncio, concedi-lhe absolvição por ter vomitado du­rante a aterrissagem. Uma pessoa que pode cumprir um de­ver (mesmo simples) durante a agonia de agudo enjôo espa­cial não pode ser tão má assim. (Mas ele tinha que limpar aqui­lo. A absolvição não significava que eu ia limpar para ele. Nem Gwen. Se ela se oferecesse, eu ia ser macho, marital e in­sensato.)

Gwen pegou a arvorezinha e colocou-a sobre a parte infe­rior do computador. Bill soltou o cinto, enquanto eu o segura­va pelos tornozelos, e em seguida desci-o para o teto e deixei que ele se espreguiçasse.

— Gwen, dê o vaso a Bill e deixe que ele continue a cui­dar da árvore. Quero-a fora do caminho... porque preciso usar o computador e os instrumentos de bordo.

Devia dizer em voz alta o que estava me preocupando? Não, isto poderia fazer Bill vomitar novamente... e Gwen já devia ter calculado o que era.

Deitei-me de costas, arrastei-me para baixo do computa­dor e do painel de instrumentos, e liguei-o.

Uma voz metálica, que reconheci, disse:

— Seventeen, está me ouvindo? Volvo Bee Jay Seventeen, responda. Este é o controle de terra Hong Kong Luna, cha­mando Volvo Bee Jay Seventeen...

— Bee Jay Seventeen aqui, Capitão Meia-Noite falando. Es­tou recebendo, Hong Kong.

— Por que, com todos os' diabos, não ficou no canal 13, Bee Jay? Você não compareceu ao ponto de encontro. Saia da onda. Não posso fazê-lo descer.

— Ninguém pode, Capitão Coceira de Hemorróida. Pou­so de emergência. Disfunção de computador. Disfunção de rá­dio. Disfunção de jatos. Perda de visibilidade. Ao aterrar, caí­mos de lado. Combustível acabado e, de qualquer maneira, posição impossível para decolagem. E agora o exaustor de ar parou.

Houve um silêncio bem demorado.

— Tovarishch, já fez suas pazes com Deus?

— Andei ocupado demais para isso!

— Hummm. Compreensível. Como está você em matéria de pressão na cabine?

— A luz idiota está verde. Não há medidor para isso.

— Onde está você?

— Não sei. As coisas degringolaram às 21h 47min, pouco antes de eu lhe passar o controle. Passei o tempo desde então numa descida de traseira. Embora eu não saiba onde estamos, devemos estar em algum lugar no caminho da órbita do Re­gra de Ouro. Nossos disparos de jatos foram todos cuidado­samente orientados. Passamos por cima do que acho que era Aristóteles às, ahn...

— Vinte e um, cinqüenta e oito — forneceu Gwen.

— Vinte e um, cinqüenta e oito, meu co-piloto anotou is­so. Desci em um maré ao sul desse ponto. Lacus Somniorum?

— Espere um pouco. Você ficou dentro da linha de iluminação?

— Fiquei. Ainda estamos nela. O sol está justamente no horizonte.

— Neste caso você não pode estar tão distante assim a les­te. Tempo de pouso?

Eu não tinha a mais vaga noção. Gwen sussurrou:

— Vinte e dois, ou vinte e três, quarenta e um.

— Humm. Deixe que eu verifique. Neste caso, você deve estar ao sul de Eudoxus, na parte mais setentrional do Maré Serenitatis. Montanhas a oeste?

— Altas.

— Cordilheira do Caucasus. Você está com sorte. Ainda pode sobreviver para ser enforcado. Há duas pressurizadas ha­bitadas bem perto de você. Pode haver alguém interessado em salvá-lo... pelo pedaço de carne mais querido de seu coração, e mais 10%.

— Eu pago.

— Claro que paga! E se for resgatado, não se esqueça de pedir a conta do que nos deve. Pode precisar de nós outro dia. Muito bem, vou dar o alarme. Isto poderia ser por acaso mais alguma dessa sua besteira de Capitão Meia-Noite? Se for, arranco seu fígado e mando fritá-lo.

— Capitão Coceira, sinto muito a este respeito, sinto, ho­nestamente. Eu estava simplesmente brincando com meu co-piloto e pensei que o microfone estava desligado. Devia ter es­tado. Sem querer, abri o canal. Um de meus problemas inter­mináveis com este monte de sucata.

— Você não devia fazer brincadeiras quando estivesse ma­nobrando.

— Eu sei. Mas... oh, que diabo, meu co-piloto é minha mu­lher. Hoje foi o dia de nosso casamento... recém-casados. Senti vontade de rir e brincar o dia todo. É este tipo de dia.

— Se isto for verdade... tudo bem. E parabéns. Mas vou esperar que prove isto. E meu nome é Marcy, não Coceira. Ca­pitão Marcy Choy-Mu. Vou passar os dados adiante e tentare­mos localizá-lo de órbita. Enquanto isso, é melhor entrar no canal 11 — é o de emergência — e começar a cantar S.O.S. Te­nho tráfego a cuidar, de modo que...

Gwen estava de quatro ao meu lado.

— Capitão Marcy!

— Ahn? Sim?

— Eu sou realmente a mulher dele e casamos de fato hoje e, se ele não fosse um piloto "quente", eu não estaria viva ho­je. Tudo saiu errado, exatamente como meu marido disse. A coisa foi como pilotar um barril por cima das Cataratas do Niá­gara.

— Nunca vi as Cataratas do Niágara, mas entendi o que disse. Meus melhores votos de felicidade, Sra. Meia-Noite. Desejo-lhes uma vida longa e feliz e uma penca de filhos.

— Obrigado, senhor! Se alguém nos encontrar antes de nosso ar acabar, vamos ter esses filhos.

 

Gwen e eu nos revesamos a irradiar "S.O.S., S.O.S!" no canal 11. Quando estava de folga, eu aproveitava o tempo pa­ra verificar os recursos e equipamento do bom e velho Volvo B.J.17, o lixo. De acordo com o Protocolo de Brasília, este car­ro aéreo devia ter sido equipado com água, ar e alimentos de reserva, um estojo de primeiros socorros classe dois, instala­ções sanitárias mínimas e macacões pressurizados de emergência (UN-SN especificação 10007A) para a capacidade má­xima (quatro, incluindo o piloto).

Bill passou seu tempo livre limpando as vigias e tudo em volta, usando lenços de papel retirados do porta-luvas — a pe­ruca de Naomi sobrevivera sem danos. Mas ele quase estou­rou a bexiga antes de tomar coragem de me perguntar o que fazer. Neste caso, tive que lhe ensinar como usar um balão... uma vez que as "instalações sanitárias mínimas" acabaram por ser um pequeno embrulho dos primitivos quebra-galhos e um panfleto explicando como usá-los, se obrigados.

Os outros recursos de emergência eram dos mesmos al­tos padrões.

Havia água em um tanque de dois litros junto ao assento do piloto — quase cheio. Nada de reserva. Mas nada para dar motivo a preocupação, uma vez que não havia ar de reserva e sufocaríamos no ar viciado antes de poder morrer de sede. O exaustor continuava sem funcionar, mas havia um apare­lho para operá-lo a mão — tudo, menos a manivela, que esta­va faltando. Comida? Não vamos brincar a este respeito. Gwen, porém, tinha uma barra de Hershey na bolsa, que partiu em três e distribuiu. Delicioso o chocolate!

Os macacões pressurizados e respectivos capacetes ocu­pavam a maior parte do espaço de carga atrás dos coxins dos passageiros — quatro de cada, segundo o manual. Eram tra­jes de resgate de excedentes militares, ainda fechados em suas embalagens originais. Todas as embalagens tinham a marca do fabricante (Michelin Tires, S.A.) e data (29 anos antes).

À parte o fato de que os plastificadores deviam ter escor­rido dos plastômeros e elastômeros — mangueiras, gaxetas, etc, — nesse tempo todo e o fato de que algum brincalhão safado deixara de acrescentar os tanques de ar, os macacões estavam em excelente forma. Para um baile de máscaras.

Não obstante, eu estava disposto a confiar a vida a um des­ses trajes de palhaço durante uns cinco minutos, mesmo 10, se a alternativa fosse expor o rosto ao vácuo.

Mas se a alternativa fosse simplesmente enfrentar um ur­so cinzento, eu gritaria: — Tragam o urso!

 

O Capitão Marcy nos chamou pelo rádio, disse-nos que

a câmara do satélite mostrava-nos a 35°17min norte, 14°07min oeste.

— Notifiquei Pressurizado Ossos Secos e Pressurizados Nariz Quebrado. Eles são os mais próximos. Boa sorte.

Tentei tirar do computador o catálogo telefônico de Luna. Mas ele continuava emburrado. De modo que tentei alguns problemas para submetê-lo a teste. Ele insistiu em que 2 + 2 = 3,9999999999999999999999... Quando tentei fazer com que reconhecesse que 4 = 2 + 2, ele se irritou e alegou que 4 =3,14159265358979323846264338327950288419716939937511... De modo que desisti.

Deixei o canal 11 ligado no máximo e subi para o teto. En­contrei lá Gwen usando um traje de mulher azul, com um lenço de pescoço cor de chamas. Ela me pareceu arrebatadora.

— Querida — observei —, eu achava que todas as suas rou­pas estivessem ainda no Regra de Ouro.

— Enfiei isto na mala menor quando resolvemos deixar lá a bagagem. Não posso manter a farsa de ser japonesa depois que lavo o rosto... o que espero que você tenha notado.

— Não muito bem. Especialmente as orelhas.

— Exigente, exigente! Usei apenas um lenço úmido de nos­sa preciosa água potável. Amado, não pude incluir um traje safari — ou qualquer outra coisa — para você. Mas de fato trouxe-lhe cuecas e meias limpas.

— Gwen, você não é apenas saudável, você é eficiente.

— Saudável?

— Mas é querida. Foi por isso que me casei com você.

— Essa, não! Quando eu calcular o quanto fui insultada e quanto você vai ter que pagar... e pagar, e pagar, pagar! A discussão besta foi interrompida pelo rádio:

— Volvo Bee Jay Seventeen, foi seu o S.O.S.? Câmbio.

— E como!

— Aqui Jinx Henderson, Serviço de Salvamento Chance Feliz, Pressurizado Ossos Secos. O que é que você precisa?

Descrevi nossa situação e dei nossa longitude e latitude. Henderson voltou ao áudio:

— Você arranjou essa sucata com a Budget, não? O que para mim significa que não a alugou, mas comprou-a com um contrato de retrovenda... Conheço bem aqueles ladrões. De modo que agora você é o dono do troço. Certo?

Reconheci que era o proprietário oficial.

— Você pensa em decolar e levá-lo a Hong Kong? Se as­sim for do que vai precisar?

Pensei uns pensamentos um tanto longos em três segundos.

— Não acho que esta nave esporte possa decolar daqui. Ela precisa de revisão geral.

— O que significa levá-la por terra a Kong. Certo, posso fazer isso. Uma longa viagem, um trabalho grande. Enquanto isso, resgate pessoal, duas pessoas... certo?

— Três.

— Muito bem, três. Está pronto para gravar um contrato? Uma voz de mulher interrompeu-o:

— Pare bem aí, Jinx. Bee Jay Seventeen, fala aqui Maggie Snodgrass, Operadora Chefe Gerente-Geral da Equipe Diabo Vermelho de Incêndio, Policial e Salvamento, Pressurizado Na­riz Quebrado. Não faça nada até ouvir minhas condições... por­que Jinx está pensando em esfolá-lo.

— Oi, Maggie! Como vai, Joel?

— Macio como seda e mais safado do que nunca. Como vai Ingrid?

— Mais bonita do que nunca e com outro no forno.

— Que bom pra você! Parabéns! Para quando ela está esperando?

— Natal, talvez Ano-novo, tanto quanto a gente pode cal­cular.

— Estou pensando em dar uma passada por aí para visitá-la. Agora, você vai cair fora e deixar que eu trate honestamen­te com esse cavalheiro? Ou vou encher de buraco sua cabine e deixar escapar todo o ar? Sim, vi você subindo a elevação... Comecei no mesmo momento que você, logo que Marcy deu a localização. Eu disse a Joel: "Este território é nosso... mas aquele patife mentiroso Jinx vai tentar roubá-lo bem embaixo de meu nariz" — e você não me decepcionou, rapaz, está aqui.

— E pensando em ficar, Maggie — e inteiramente dispos­to a lançar um lembretezinho não-nuclear no seu caminho, se você não se comportar. Você conhece as regras: nada na su­perfície pertence a ninguém... a menos que o cara esteja sen­tado em cima da coisa... ou estabeleça pressurização em cima ou embaixo da coisa.

— Essa é sua idéia de regra, não a minha. Isso é trambi­que daqueles advogados de Luna City... e eles não falam por mim e nunca falaram. Agora, vamos mudar para o canal 4 — a menos que queira que todo mundo em Kong ouça você im­plorar piedade e exalar seu último suspiro.

— Canal 4, então, Maggie, seu velho intestino cheio de gases.

— Canal 4 Quem foi que você contratou para fabricar aque­le bebê, Jinx? Se fosse um cara sério em matéria de resgate, estaria aqui com um transportador, como eu... e não com seu calhambeque rolador.

Eu sintonizara para o canal 4 quando eles fizeram isso. Nes­se momento, fiquei calado. Ambos apareceram no horizonte mais ou menos no mesmo momento, Maggie vindo do sudoes­te e Jinx do noroeste. Uma vez que tínhamos caído com a vi­gia principal orientada para o oeste, podíamos vê-los facilmen­te. O caminhão rolador (tinha que ser Henderson, pela conver­sa) estava a noroeste e um pouco mais perto. Exibia o que pa­recia um reparo de bazuca montado bem em frente da cabine. O transportador era um veículo muito comprido, com lagartas em cada extremidade e um guincho de serviço pesado mon­tado à ré. Não vi nenhuma bazuca nele, mas de fato vi o que poderia ser um Browning 2.54 semi-automático.

— Maggie, eu corri para aqui no rolador por razões hu­manitárias... uma coisa que você não compreenderia. Mas meu filho Wolf está vindo com meu transportador, com a irmã Gret­chen guarnecendo a torreta. Devem chegar logo. Ligo para eles e digo para voltarem para casa? Ou que corram para aqui e vinguem o papai?

— Jinx, você não pensou realmente que eu ia abrir a tiros buracos em sua cabine, pensou?

— Pensei, Maggie, penso com toda sinceridade que você faria isso. O que apenas me dá tempo de botar um obus em­baixo de suas lagartas, que é para onde estou apontando nes­te exato instante. Um morto apertando o gatilho. Com o que eu estaria morto... e você aí, incapaz de se mover, simples­mente para ver o que meus meninos fariam com a parte que fez isso com o paizinho deles... meu canhão de torreta tendo três vezes o alcance de sua espingarda de matar passarinhos. Que foi o motivo por que o arranjei... depois que Howie mor­reu por acaso.

— Jinx, você está tentando me escandalizar com essa ve­lha história? Howie era meu sócio. Você devia ter vergonha.

— Não estou acusando você de coisa nenhuma, querida. Estou sendo apenas cauteloso. O que é que me diz? Espero por seus filhos e fico com tudo? Ou dividimos, direito e bonitinho?

Eu simplesmente desejei que esses entusiásticos empre­sários acabassem logo com aquilo. A nossa luz de pressão de ar piscou vermelha e eu estava sentindo uma tonteira. Acho que quando rolamos pelo chão ocorreu um pequeno furo. Lutei entre a necessidade de dizer a eles que se apressassem e a com­preensão de que minha má posição de barganha cairia a zero, ou mesmo menos, se fizesse isso.

Pensativa, disse a Sra. Snodgrass:

— Bem Jinx, não faz sentido levar essa sucata à sua pressurizada — fica ao norte da minha — quando é uns 30 quilô­metros mais perto levá-la a Kong passando pelo meu territó­rio — ao sul do seu. Certo?

— Simples aritmética, Maggie. E eu tenho espaço de so­bra neste calhambeque para mais três... e não tenho certeza de que você pudesse receber mais três, mesmo que os empi­lhasse como panquecas.

— Eu poderia dar um jeito neles, mas reconheço que vo­cê tem mais espaço. Muito bem, você pega os três refugiados e esfola-os até o ponto em que sua consciência permitir... e eu pego esta sucata e resgato o que puder dela, se é que há alguma coisa.

— Oh, não, Maggie! Você é generosa demais. Eu não ia querer passar a perna em você. Dividimos ao meio. No papel. Confirmado.

— Ora, Jinx, você pensa que eu ia enganar você?

— Não vamos discutir isso, Maggie. Só causaria sofrimento. Essa nave esporte não está abandonada. O dono está dentro dela neste exato minuto. Antes de poder movê-lo, você preci­sa de autorização escrita... com base em um contrato registra­do. Se você não quiser ser razoável, ele pode esperar lá pelo meu transportador e não deixar nem por um momento sua propriedade. Nada de salvamento, apenas reboque de alu­guel... além de transporte gratuito para o dono e seus con­vidados.

— Senhor, quem quer que seja, não deixe que Jinx o en­gane. Ele o leva e sua nave à pressurizada dele e descasca-o como se fosse uma cebola, até que nada sobre de você, senão o cheiro. Eu lhe ofereço agora mesmo mil coroas, dinheiro vi­vo, por essa sucata de metal onde está sentado.

Henderson reagiu:

— Duas mil e eu o levo à pressurizada. Não deixe que ela o engane. Há mais salvados do que ela está oferecendo ape­nas no seu computador.

Fiquei calado enquanto os dois vampiros resolviam como iam nos sangrar. Finalmente, quando concordaram, eu concordei... apenas com uma resistência nominal. Objetei que o preço subira e que era alto demais. A Sra. Snodgrass foi dura:

— Pegue ou se vire. Henderson reforçou:

— Eu não saí de uma cama quente para perder dinheiro. Topei.

 

E assim vestimos aqueles trajes idiotas, gastos de tanta pra­teleira, tão rígidos como uma cesta de vime. Gwen protestou dizendo que a Árvore-San não podia ser exposta ao vácuo. Res­pondi que calasse a boca e não fosse idiota. Alguns momen­tos de exposição ao vácuo não iam matar a pequena criatura — e o ar havia se acabado, de modo que não havia opção. Neste caso, ela ia carregá-la. Depois, deixou que Bill carregasse. Ela se ocupou com outra coisa — comigo.

Entendam, não posso usar um traje pressurizado que não tenha sido feito especialmente para mim... enquanto uso meu pé artificial. De modo que tive que tirá-lo. E por isso tive que saltitar. Quanto a isto, tudo bem, estou acostumado a saltitar e a um sexto de gravidade saltitar não é problema. Mas Gwen tinha que cuidar de mim.

E assim fomos — Bill à frente com a Árvore-San, sob ins­truções de Gwen de entrar logo no veículo e conseguir um pou­co de água com o Sr. Henderson para molhar a planta, e logo atrás Gwen e eu, andando como se fôssemos gêmeos siame­ses. Ela levava a maleta com a mão esquerda e envolvia com o braço direito minha cintura. Eu pendurara o pé artificial no ombro, usava a bengala, saltitava e me equilibrava com o bra­ço esquerdo em volta dos ombros dela. De que modo poderia lhe dizer que teria ficado mais equilibrado sem a ajuda dela? Mantive fechada minha bocona e deixei que ela me ajudasse.

O Sr. Henderson abriu a cabine, selou-a hermeticamente e em seguida abriu generosamente a garrafa de ar — ele estivera trabalhando no vácuo, usando traje pressurizado. Apre­ciei devidamente este dispendioso gasto da mistura de ar — oxigênio extraído laboriosamente de rochas lunares e nitrogê­nio trazido desde a Terra — até que a vi no dia seguinte em minha conta a preço inflacionado.

Henderson demorou-se para ajudar Maggie a içar a velha B.J. 17 para o transporte, enquanto ela cuidava dos controles das lagartas. Em seguida, levou-nos para a Pressurizada Os­sos Secos. Passei parte do tempo da viagem calculando o quan­to aquilo me custara. Eu tivera que vender a nave, tudo nela — líquido por pouco menos de 27 mil coroas. Pagara três mil por cabeça pelo nosso salvamento, com um desconto para oi­to mil por cortesia... mais 500 cada por cama e café da ma­nhã... mais (soube depois) 1.800 no dia seguinte para que ele nos levasse à Pressurizada Dragão Feliz, o lugar mais próximo de onde poderíamos pegar um ônibus rolador para Hong Kong Luna.

Em Luna é mais barato morrer.

Ainda assim, sentia-me feliz em estar vivo, a qualquer pre­ço. Eu tinha Gwen e dinheiro é um troço que a gente sempre pode ganhar mais.

Ingrid Henderson era uma dona-de-casa muito graciosa — sorridente, bonita, gordinha (evidentemente esperando be­bê). Recebeu-nos calorosamente, acordou a filha, transferiu-a para o quarto deles, colocou-nos no quarto de Gretchen, alo­jou Bill no de Wolf — ponto em que compreendi que as amea­ças de Jinx a Maggie não tinham apoio na força... e compreendi também que isso não era de minha conta.

A dona-de-casa desejou-nos boa-noite, disse-nos que a luz no refrescador seria deixada acesa para o caso de... e saiu. Olhei no relógio antes de desligar a luz.

Vinte e quatro horas antes, um estranho e arrogante Schultz se sentara à minha mesa.

 

Arma Letal

"Deus querido, dai-me castidade e autocontrole... mas ainda não, oh, Deus, ainda não!"

Santo Agostinho, A.D. 354-430

 

Aquela droga de fez!

Esse chapéu idiota e falso oriental fora 50% do disfarce que me salvara a vida. Mas, tendo-o usado, a coisa friamente prag­mática a fazer teria sido destruí-lo.

Não fiz isso. Eu me sentia contrafeito em usá-lo, em pri­meiro lugar porque não sou nenhum tipo de maçom, e muito menos um Shriner, e em segunda porque não era meu. Fora roubado.

A gente pode roubar um trono, o resgate de um rei ou uma princesa marciana e ainda se sentir eufórico com a faça­nha. Mas um chapéu? Roubar um chapéu era ainda menos que desprezível. Bem, não raciocinei assim. Eu simplesmente me sentia contrafeito no que interessava ao Sr. Clayton Rass­mussen (o nome que encontrei gravado no fez) e tencionava devolver-lhe o imaginoso enfeite de cabeça. Algum dia... de alguma maneira... quando pudesse fazer isso... quando a chu­va parasse...

Deixando o habitat Regra de Ouro, eu o enfiara sob o cin­to e o esquecera. Após o pouso em Luna, quando me soltei da cadeira, o fez caíra para o teto. Eu nem notara. Quando ía­mos vestindo aqueles trajes espaciais ventilados, Gwen pegou-o e me deu. Enfiei-o na parte fronteira de meu traje e fechei o zíper.

Quando chegamos à casa dos Henderson na Pressurizada Ossos Secos e nos mostraram onde íamos dormir, despi-me tão sonolento que quase nem soube o que estava fazendo. Acho que o fez caiu nessa ocasião. Não sei. Simplesmente me aninhei contra Gwen e adormeci imediatamente — e passei minha noite de núpcias em oito horas de sono ininterrupto.

Acho que minha nova esposa dormiu também como uma pedra. Não tinha importância — havíamos feito uma grande sessão de treinamento na noite anterior.

À mesa do café da manhã, Bill entregou-me o tal fez.

— Senador, o senhor deixou cair o chapéu no chão do refrescador.

À mesa estavam também Gwen, os Henderson — Ingrid, Jinx, Gretchen, Wolf — e dois pensionistas, Eloise e Ace, além de três crianças pequenas. A ocasião era boa para que eu fi­zesse uma brilhante improvisação que explicasse a posse da­quele chapéu engraçado. Mas o que eu disse foi:

— Obrigado, Bill.

Jinx e Ace trocaram olhares. Em seguida, Jinx me fez si­nais de reconhecimentos maçônicos.

Era isso que eu devia ter suposto que eram. Na ocasião, pensei simplesmente que ele estava se coçando. Afinal de con­tas todos os lunáticos se coçam porque todos eles têm coceiras. Não podem evitar isso — não há banhos suficientes, não há água suficiente.

Jinx me procurou após o café. Disse:

— Nobre... Respondi:

— Ahn? (Resposta rápida!)

— Não pude deixar de notar que o senhor declinou de me reconhecer à mesa. A Ace notou isso, também. Está por acaso pensando que o trato que fizemos ontem não foi no nível e dentro do esquadro?

(Jinx, você me tirou o couro, me deixou de tanga,)

— Ora, nada disso. Não estou me queixando. (Negócio é negócio, seu safado. Bom cabrito não berra.)

— Tem certeza? Eu nunca enganei um irmão de loja — ou um estranho, por falar nisso. Mas dedico um cuidado espe­cial a qualquer um de meu próprio sangue. Se acha que pa­gou demais pelo salvamento, então pague o que achar que é certo. Ou não pague nada.

E acrescentou:

— Embora eu não possa falar por Maggie Snodgrass, ela fará um ajuste comigo, e será honesto. Não há nada de mes­quinho em Maggie. Mas não espere que aqueles salvados dêem um líquido muito bom. Ou talvez dê até prejuízo quando ela o vender porque... Sabe onde a Budget arranja a sucata que vende, não?

Confessei minha ignorância. Ele acrescentou:

— Todos os anos, as empresas de aluguel, de qualidade, como a Hertz e a Interplanet, vendem seus carros usados. Os bons são comprados por pessoas privadas, principalmente lunarianos. O resto vai para as revendedoras de segunda mão. A Budget Jets compra o que sobra a preços de ferro-velho, por uma ninharia. Reformam a sucata em suas oficinas nas proxi­midades de Loonie City, conseguindo talvez montar duas na­ves por três que compra e depois vende como sucata o que sobra. Aquele calhambeque que o deixou na mão — a com­panhia lhe cobrou o preço de lista, 26 mil... mas se a Budget teve mesmo até cinco mil empatado na coisa, eu lhe dou a di­ferença e lhe pago um drinque, e isto é a verdade.

Olhou-me e continuou:

— Agora, Maggie vai recondicioná-lo novamente, mas os reparos dela serão honestos e o trabalho garantido, e ela o ven­derá como a coisa é... um veículo usado, reformado, não novo. Talvez dê uns 10 mil, bruto. Depois de descontada uma parte justa por sobressalentes e mão-de-obra, se o líquido que ela dividir comigo chegar a mais de três mil, ficarei muito es­pantado — e pode ser um prejuízo líquido. Isto é um jogo.

Contei um bocado de mentiras sinceras e consegui (acho) convencer Jinx de que não éramos irmãos de loja, que eu não ia pedir desconto em nada e que obtivera aquele fez por aci­dente, no último minuto — encontrara-o no Volvo quando o alugara.

(Suposição implícita: o Sr. Rassmussen alugara aquela car­roça em Luna City e deixara o chapéu nela quando entregara o Volvo na Regra de Ouro 1.)

Acrescentei que o nome do dono estava no fez e que ten­cionava devolvê-lo a ele.

Jinx perguntou:

— Tem o endereço dele?

Reconheci que não tinha — apenas o nome de seu tem­plo, bordado no fez. Jinx estendeu a mão.

— Passe pra cá. Posso lhe poupar este trabalho... e a des­pesa de enviar um embrulho de volta a Terra.

— Como?

— Acontece que conheço um cara que vai de ônibus lunar a Luna City no sábado. A convenção dos Nobres termina no domingo, logo depois de eles inaugurarem o Hospital de Crian­ças Aleijadas e Mentalmente Retardadas de Luna City. Have­rá uma barraca de objetos perdidos e achados no centro de convenções, sempre há. Uma vez que o nome dele está no cha­péu, farão com que chegue às mãos dele... antes da noite de sábado, porque essa é a noite do concurso de evoluções em grupo... e sabem que um membro de um grupo de evoluções — se ele for — sem o seu fez está tão nu como uma garçonete de bar sem biquíni.

Entreguei-lhe o chapéu vermelho. E pensei que seria o fim da coisa.

Mais aborrecimentos antes de podermos iniciar a viagem para o Pressurizado Dragão Feliz — não havia trajes pressurizados. Ou como disse Jinx:

— Na noite passada, concordei em que usassem essas pe­neiras cheias de furos porque era tudo ou nada — era arriscar ou deixar que vocês morressem. Hoje, poderemos usá-las da mesma maneira — ou trazer mesmo o calhambeque para o han­gar e fazer vocês entrarem sem usar os trajes. Claro, isso gas­taria um volume imenso de ar. Em seguida, fazer a mesma coisa no outro lado... com um custo ainda maior de ar porque o han­gar deles é maior.

Eu disse que pagaria. (Não sei como poderia evitar isso.)

— Esta não é a questão. A noite passada vocês ficaram na cabine durante vinte minutos... e foi preciso uma garrafa in­teira para mantê-los respirando. Em fins da noite passada, o sol estava apenas nascendo; esta manhã ele está cinco graus alto. Os raios do sol vão bater num dos lados do veículo o tem­po todo até o Dragão Feliz. Oh, Gretchen vai dirigir pela som­bra o máximo que puder. Nós não criamos aqui crianças estú­pidas. Mas o ar que houvesse dentro da cabine esquentaria, se dilataria e continuaria a sair pelas rachaduras. De modo que a operação normal consiste em pressurizar seu traje, mas não a cabine, e usar esta apenas como sombra.

Após uma pequena pausa, continuou:

— Bem, não vou lhe mentir. Se eu tivesse trajes para ven­der, insistiria em que comprasse três novos. Mas não tenho nenhum. Ninguém neste pressurizado tem trajes para vender. Nós somos menos de 150 e eu saberia. Compramos trajes em Kong e é isso o que vocês devem fazer.

— Mas eu não estou em Kong.

Há mais de cinco anos que eu não possuía um traje pres­surizado. Na maior parte, os habitantes permanentes do Regra de Ouro não os possuem. Não precisam deles, não saem de lá. Claro, há muita gente do pessoal administrativo e tur­mas de manutenção que mantêm sempre trajes de prontidão, da mesma maneira que bostonianos têm suas galochas. O ha­bitante comum, porém, idoso e rico, não as tem e nem sabe­ria como usá-las.

Os lunarianos são diferentes. Mesmo hoje, tendo Luna City mais de um milhão e tanto- de moradores, e alguns que rara­mente saem de seus limites, todo lunariano tem seu traje pressurizado. Até mesmo os habitantes dessa grande cidade sa­bem, desde criancinhas, que esse pressurizado seguro, quen­te, bem-iluminado, pode ser furado — por um meteoro, uma bomba, um terrorista, um terremoto ou alguma calamidade imprevisível.

Se ele é um tipo pioneiro, como Jinx, está tão acostumado ao traje como um mineiro do cinturão de asteróides. Jinx nem mesmo cultiva sua fazenda pessoal dentro do túnel: isto ca­bia ao resto da família. Habitualmente ele trabalha fora, em traje pressurizado, como mecânico de construção pesada. O Resgate Feliz era apenas uma de suas dezenas de ocupações. Ele era também a Companhia de Gelo de Ossos Secos, Com­panhia de Transportes Terrestres Henderson, John Henry, Em­preiteiros de Solda, Perfurações e Construções — basta dizer o quê e Jinx inventaria a companhia correspondente.

(Havia também a Loja Ingrid de Pechinchas, que vendia tudo, de aço estrutural a biscoitos caseiros. Mas não trajes pressurizados.)

 

Jinx bolou uma maneira de nos levar ao Dragão Feliz: In­grid e Gwen eram mais ou menos do mesmo corpo, exceto que a primeira estava temporariamente distendida no equa­dor. Possuía um traje pressurizado de gravidez, com cintura que podia ser alargada. Possuía também um traje convencional que usava quando não estava grávida, e no qual não po­dia entrar nessa ocasião — mas Gwen podia.

Jinx e eu tínhamos mais ou menos a mesma altura e ele possuía dois trajes, ambos de primeira qualidade, fabricação Goodrich Luna. Notei que ele estava tão disposto a emprestá-lo como um carpinteiro em emprestar suas ferramentas. Mas também trabalhava sob pressão para bolar alguma coisa, ou teria que nos agüentar como hóspedes pagantes... e depois como não-pagantes quando nosso dinheiro acabasse. E na rea­lidade não dispunha de acomodações para nós, mesmo que pagássemos.

Passava das 10h na manhã seguinte quando vestimos nos­sos trajes pressurizados e subimos para o rolador — eu usan­do o segundo melhor de Jinx, Gwen no traje de não-gravidez de Ingrid e Bill em uma antigüidade restaurada que pertence­ra ao fundador do Pressurizado Ossos Secos, um certo Sr. Sou­pie McClanaham, que chegara à Lua há muito, muito tempo, na qualidade de hóspede involuntário do governo.

O plano era que conseguíssemos trajes de empréstimos no Pressurizado Dragão Feliz, que usaríamos até HKL, enviando-os de volta pelo ônibus de carreira, enquanto Gretchen levaria estes de volta ao pai quando nos deixasse em nosso atual destino. No dia seguinte, estaríamos em Hong Kong Lu­na, onde poderíamos comprar trajes que atendessem às nos­sas necessidades.

Falei com Jinx a respeito do pagamento. Quase pude ou­vir os números estalando dentro de seu crânio. Finalmente, ele disse:

— Senador, vou-lhe dizer o que vamos fazer. Aqueles tra­jes que vieram com sua sucata, bem, eles não valem grande coisa. Mas há alguns salvados nos capacetes e nas guarnições de metal. Mande-me de volta meus três trajes no estado em que os recebeu e ficaremos quites. Se também pensa assim.

Claro que pensei. Aqueles trajes Michelin tinham sido óti­mos... 20 anos antes. Rara mim, neste momento, nada valiam...

Restava apenas um problema — a Árvore-San.

Eu pensara que teria de ser firme com minha esposa — intenção esta nem sempre exeqüível. Mas descobri que enquan­to Jinx e eu estiváramos resolvendo o que fazer a respeito dos trajes de pressão, Gwen estivera trabalhando no que fazer a respeito da Árvore-San... com Ace.

Não tenho motivo para pensar que Gwen seduziu Ace. Mas tenho certeza de que Eloise assim pensou. Não obstante, lu­narianos têm lá seus costumes sobre sexo desde os dias em que homens superavam mulheres na proporção de seis a um. Segundo os costumes lunarianos, todas as opções em ques­tões sexuais cabem às mulheres — nenhuma aos homens. Eloi­se não pareceu zangada, apenas divertida — o que tirou o as­sunto de minha alçada.

De qualquer modo, Ace arranjou um balão de borracha de silicone, que abriu num dos lados, e por ele introduziu a Árvo­re San, com vaso e tudo, e em seguida fechou-o com aplicação de calor — acrescentando um apêndice contendo uma garrafa de ar de um litro. Não cobrou nada, nem mesmo pela garrafa. Ofereci-me para pagar, mas Ace simplesmente sorriu largamen­te e Gwen sacudiu a cabeça. De modo que não sei. E não quero perguntar.

Ingrid despediu-se de nós com beijos, fez-nos prometer que voltaríamos. Isto parecia improvável. Mas era uma boa idéia.

 

Gretchen fez perguntas durante toda a viagem e em ne­nhum instante pareceu observar o caminho por onde dirigia o veículo. Era uma loura de covinhas e trancas, alguns centí­metros mais alta que a mãe, mas ainda revestida de gordura infantil. Ficou muito impressionada com nossas viagens. Ela mesma fora a Hong Kong Luna duas vezes e uma vez até Novylen, onde as pessoas falam de modo engraçado. No próximo ano, quando completasse 14 anos, iria a Luna City e daria uma olhada nos rapazes — e talvez trouxesse um para casa como marido.

— Mamãe não quer que eu tenha bebê com ninguém em Ossos Secos, e nem mesmo de Dragão Feliz. Diz que é um dever meu com meus filhos procurar conseguir alguns genes novos. Sabe o que quer dizer isso? Genes novos, quero dizer.

Gwen garantiu-lhe que de fato sabia o que era isso e que concordava com Ingrid. Casar fora do grupo era uma política válida e necessária. Não fiz comentário, mas concordei: 150 pessoas não constituem um número suficiente para prover um bom reservatório de genes.

— Foi assim que mamãe pegou papai. Foi procurá-lo. Pa­pai nasceu no Arizona. Isso é uma parte da Suécia que fica na Terra. Veio para Luna como subempreiteiro da Picardy Trans­mutation Plant, mamãe o fisgou em um baile de máscaras, deu a ele nosso nome de família quando teve certeza — quero di­zer, sobre Wolf —, levou-o para Ossos Secos e botou um ne­gócio para ele.

Sorriu, cheia de covinhas. Estávamos conversando através dos aparelhos de rádio de nossos trajes e pude ver-lhe as co­vinhas pelo capacete graças a uma feliz mudança de luz.

— E eu vou fazer a mesma coisa com meu homem, usan­do a quota de minha família. Mamãe, porém, disse que não devo agarrar o primeiro rapaz que esteja querendo — como se eu fosse fazer isso! — e não me apressar nem me preocu­par mesmo que fique uma velha solteirona de 18 anos. E não vou. Ele tem que ser um bom homem, como papai.

Com meus botões, pensei que ela poderia ter que procu­rar muito. Jinx Henderson, née John Black Eagle, é um homem e tanto.

 

Quando divisamos finalmente o pátio de estacionamento de Dragão Feliz já era quase noite — em Istambul, quero dizer, como qualquer um podia ver, bastando olhar. A Terra es­tava quase diretamente ao sul de nós e bem alta no céu, uns 60 graus. Sua linha de iluminação cruzava o deserto a partir do norte da África e subia pelas Ilhas Gregas e Turquia. O sol estava ainda baixo no céu, nove ou dez graus, e subindo. Haveria quase 14 dias mais de luz solar no Dragão Feliz antes da longa noite seguinte. Perguntei a Gretchen se ela tenciona­va voltar imediatamente.

— Oh, não — garantiu-me ela. — Mamãe não ia gostar dis­so. Vou passar a noite aqui — há roupas de cama lá atrás — e voltarei descansada amanhã. Depois que vocês, gentes, pe­garem o ônibus.

— Isto não é necessário, Gretchen — respondi. — Logo que tirarmos estes trajes de pressão poderemos devolvê-los a vo­cê, e assim não há razão para esperar.

— Sr. Richard, está doido para que eu leve uma surra?

— Você? "Uma surra?" Ora, seu pai não faria uma coisa dessas. Com você? Quase uma mulher feita!

— Você bem que poderia dizer isso a mamãe. Papai, não me bateria, ele não faz isso há anos, muitos anos. Mamãe, po­rém, diz que sou candidata até o dia em que casar. Mamãe é uma peste, descendente direta de Hazel Stone. Ela disse: "Gret, veja esse negócio dos trajes deles. Leve-os a Charlie para que eles não sejam enganados. Se ele não puder fornecê-los, deixe que usem os nossos até Kong e combine com Lilybet para ir buscar os nossos mais tarde. E é melhor também que os ve­ja tomar o ônibus".

— Mas Gretchen — lembrou Gwen —, seu pai nos avisou que o ônibus não parte até completar a lotação. Isto poderia demorar um dia ou dois. Mesmo vários dias.

Gretchen soltou uma risadinha.

— Isso não seria horrível? Eu ganharia umas férias. Nada pra fazer senão ver de novo capítulos atrasados de O Outro Marido de Sylvia. Todo mundo com pena de Gretchen! Sra. Gwen, a senhora pode ligar para mamãe neste exato minuto, se quiser... mas eu tenho instruções terminantes.

Gwen calou-se, aparentemente convencida. Paramos a uns 50 metros da câmara pneumática de Dragão Feliz, instalada na vertente de uma colina. Dragão Feliz se situa nos sopés me­ridionais das Cordilheiras Caucasus, 32 graus 27 minutos nor­te. Esperei, apoiado sobre um pé e segurando-me na bengala, enquanto Bill e Gwen davam ajuda desnecessária a uma mo­cinha altamente eficiente na armação de um toldo inclinado para manter o rolador fora da luz solar direta nas 24 horas se­guintes, mais ou menos.

Gretchen ligou em seguida para a mãe pelo rádio do veí­culo, comunicou nossa chegada e prometeu voltar a falar pela manhã. Passamos pela câmara pneumática, Gwen levando a maleta e a bolsa e me amparando, Bill carregando a Árvore-San e um embrulho com a peruca de Naomi, e Gretchen ar­rastando um volumoso saco de roupas de cama. Uma vez do outro lado, ajudamo-nos uns aos outros a tirar os trajes pres­surizados. Recoloquei meu pé no lugar enquanto Gretchen pendurava meu traje no dela, e Bill e Gwen faziam o mesmo com os seus em longos cabides em frente à câmara.

Gwen e Bill apanharam seus fardos e dirigiram-se para o refrescador público à direita da câmara. Gretchen virou-se para segui-los, quando eu a detive.

— Gretchen, não seria melhor eu esperar aqui até que vo­cês três voltassem?

— Para quê, senhor senador?

— O traje de seu pai é valioso e também o que a Sra. Gwen esteve usando. Talvez todos aqui sejam honestos... mas os tra­jes não são meus.

— Oh. Talvez todos aqui sejam honestos, mas não confie nisso. Ou é isso o que papai diz. Eu não deixaria abandonada aquela linda arvorezinha, mas nunca se preocupe com um traje pressurizado: ninguém jamais toca no traje de outro lunariano. Eliminação automática na câmara pneumática mais próxi­ma. Nada de desculpas ou justificativas.

— Simples assim, ahn?

— Sim, senhor. Apenas, não acontece porque todos sabem que isso não se faz. Mas sei de um caso, que aconteceu antes de eu nascer. Um cara novo, talvez ele não soubesse que isso não se faz. Mas nunca mais fez porque um grupo foi atrás de­le e trouxe de volta o traje pressurizado, mas não ele. Deixaram-no simplesmente para secar nas pedras. Eu o vi, o que sobrou dele. Horrível. — Enrugou o nariz e depois encheu-se de co-vinhas. — Agora, pode me dar licença, senhor? Estou para mo­lhar minha calcinha.

— Desculpe!

(Sou um estúpido. A instalação hidráulica em um traje pres­surizado de homem é adequada, embora apenas isso. Mas o que os grandes cérebros inventaram para as mulheres não é. Tenho forte impressão que a maioria das mulheres prefere agüentar um grande desconforto a usá-lo. Certa vez ouvi uma delas referir-se depreciativamente à coisa como "a caixa de areia".)

À porta do refrescador, encontrei minha esposa à espera. Ela me estendeu meia coroa.

— Não tinha certeza se você tinha uma moeda, querido.

— Ahn?

— Para o refrescador. Já providenciei o ar. Gretchen pagou nosso consumo de um dia e eu paguei a ela. Estamos de volta à civilização, querido... Nada de almoço gratuito.

Nem nada gratuito. Agradeci.

Convidei Gretchen para jantar conosco. Respondeu:

— Obrigado senhor, aceito. Mamãe disse que eu podia acei­tar. Mas por ora o senhor não se contentaria com sorvete em casquinha? Mamãe me deu dinheiro para que eu pudesse oferecê-lo aos senhores. Porque há várias coisas que temos que fazer antes do jantar.

— Mas claro. Estamos em suas mãos, Gretchen. Você é a veterana. Nós somos os jecas.

— O que é um "jeca"?

— Um cara novo por aqui.

— Oh. Em primeiro lugar, temos que ir ao túnel Sonhos Tranqüilos e estender nossas roupas de cama, a fim de mar­car nossos lugares para que todos possamos dormir juntos. — Ponto em que descobri por que as roupas de cama de Gret­chen eram tão volumosas. Mais uma vez, o espírito de previ­são da mãe. — Mas antes disso é melhor dar nossos nomes a Lilybet para reservar lugares no ônibus... e, antes disso, va­mos pegar aqueles sorvetes em casquinha, se estão com tanta fome como eu. Depois, a última coisa antes do jantar, a gente deve ir falar com Charlie sobre os trajes pressurizados.

O sorvete de casquinha estava à mão, no mesmo túnel que os cabides: duas bolas borodin com guarnição, servido pela própria Kelly Borodin, que me ofereceu ainda à venda (além dos generosos sorvetes) revistas usadas da Terra, revistas quase sem uso de Luna City e Tycho Subsolo, balas, bilhetes de lo­teria, horóscopos, o Lunaya Pravda e o Luna City Lunatic, pos­tais (autênticas imitações Hallmark), comprimidos garantidos para restaurar a virilidade e uma cura certeira para ressaca, fabricada segundo antiga fórmula cigana. Em seguida, ofereceu-se para disputar nos dados o pagamento em dobro ou nada pelos sorvetes. Gretchen captou meu olhar e sacudiu de leve a cabeça.

Saindo dali, ela me disse:

— Kelly tem duas parelhas de dados, um para estranhos e outro para gente que conhece. Mas ela não sabe que eu sei disso. O senhor pagou o sorvete... e agora, se não deixar que eu retribua, vou levar aquela surra. Porque mamãe vai me per­guntar e eu vou ter que contar a ela.

Pensei no caso.

— Gretchen, é difícil para mim acreditar que sua mãe lhe dê uma surra por alguma coisa que eu fiz.

— Oh, mas ela daria, senhor! Vai dizer que eu devia ter estado com o dinheiro à mão. E devia, mesmo.

— E ela bate mesmo com força? No bumbum, sem nada?

— Oh, Deus, bate, sim! Brutal.

— Isto é um pensamento intrigante. Seu pequeno bum­bum ficando vermelho enquanto você chora.

— Eu não choro! Bem, não demais.

— Richard.

— Sim, Gwen?

— Pare com isso.

— Agora, ouça bem, mulher. Não interfira em minhas re­lações com outra mulher. Eu...

— Richard!

— Disse alguma coisa, querida?

— Mamãe bate.

Aceitei de Gretchen o pagamento dos sorvetes de casqui­nha. É, ela manda em mim.

 

A tabuleta dizia:

 

COMPANHIA DE ÔNIBUS APOCALIPSE

E O SEGUNDO ADVENTO

Viagens Regulares para Hong Kong Luna

Lotação Mínima — doze (12) passageiros

Afretamento para qualquer lugar, por hora

Próxima viagem para HKL não antes

de amanhã, ao meio-dia, 3 de julho

 

Sentada sob a tabuleta, balançando-se em uma cadeira e tricotando, uma negra idosa. Gretchen cumprimentou-a:

— Como vai, tia Lilybet?

Ela ergueu os olhos, pôs o tricô no colo e sorriu.

— Gretchen, doçura! Como vai sua mamãe, querida?

— Muito bem. Engordando a cada dia. Tia Lilybet, quero que conheça meus amigos, o senhor senador Richard, Sra. Gwen e Sr. Bill. Eles precisam ir com você a Kong.

— Prazer em conhecê-los, amigos, e será uma satisfação levá-los a Kong. Penso em viajar amanhã ao meio-dia, uma vez que, com vocês, tenho já 10 passageiros, e se não conseguir mais dois até o meio-dia, é possível completar com car­ga. Tudo bem?

Garanti a ela que sim, que estaríamos ali antes do meio-dia, usando traje pressurizado e prontos para rolar. Gentilmen­te ela sugeriu pagamento antecipado, observando que havia ainda assentos no lado da sombra, uma vez que alguns pas­sageiros tinham feito reservas mas não pago ainda. De modo que pensei — 1.200 coroas pelos três.

Fomos em seguida para o túnel Sonhos Tranqüilos. Não sei se devo chamá-lo de hotel ou o quê — talvez "albergue" descreva-o melhor. Era um túnel de pouco mais de três me­tros de largura por uns cinqüenta e tantos rocha adentro, on­de terminava. O meio e o lado esquerdo do túnel eram uma prateleira de pedra de meio metro acima da passagem à direi­ta. Esta prateleira era disposta em forma de espaços de dor­mir, marcados por faixas pintadas e por grandes números na parede. O espaço mais perto do corredor tinha o número "50". Cerca de metade dos espaços tinha roupas ou sacos de dormir.

A meio caminho do túnel, à direita, a costumeira luz ver­de indicava onde ficava o refrescador.

À entrada do túnel, sentado a uma mesa e lendo alguma coisa, um cavalheiro chinês, usando um traje fora de moda já na época em que Armstrong dera seu "primeiro e pequeno passo". Usava óculos tão antiquados como a roupa e ele mes­mo parecia ser uns 90 anos mais velho que Deus e duas vezes mais sério.

Ao nos aproximarmos, pôs o livro de lado e sorriu para Gretchen.

— Gretchen, que bom vê-la de novo. Como vão seus esti­mados pais?

Ela respondeu com uma mesura e disse:

— Eles vão bem, Dr. Chan, e lhe enviam cumprimentos. Posso lhe apresentar nossos convidados, o senhor senador Ri­chard, a Sra. Gwen e o Sr. Bill?

Ele fez uma curvatura sem se levantar do lugar e apertou mãos consigo mesmo.

— Hóspedes da Casa Henderson são muito bem-vindos à minha casa.

Gwen fez uma mesura, eu, uma curvatura, e o mesmo fez Bill, depois que enfiei um polegar em suas costelas — o que o Dr. Chan notou sem declinar ter notado. Murmurei a for­malidade apropriada. Gretchen continuou:

— Gostaríamos de dormir aos seus cuidados hoje à noite, Dr. Chan, se nos aceitar. Se assim, chegamos cedo o suficien­te para termos quatro lugares lado a lado?

— Na verdade, sim... porque sua graciosa mãe não me fa­lou antes. Suas camas são de números quatro, três, dois e um.

— Oh, ótimo! Obrigado, vovô Chan.

E assim paguei por três, não por quatro. Não sei se Gret­chen pagou ou se tinha conta corrente, ou o quê: não vi di­nheiro mudar de mãos. Cinco coroas por pessoa por noite, ne­nhum custo extra pelo uso do refrescador, mas duas coroas se quiséssemos água para o banho de chuveiro — água sem limite. Sabão, extra — meia coroa.

Terminada a transação, o Dr. Chan perguntou:

— A bonsai não precisa de água?

Quase em coro respondemos que sim. O hospedeiro exa­minou a película de plástico que a envolvia, abriu-a e, com todo cuidado, tirou árvore e vaso. O depósito que havia em sua mesa era uma garrafa d'água. Encheu um cálice e, usan­do apenas as pontas dos dedos, borrifou-a repetidamente. En­quanto ele fazia isso, dei uma olhada no livro que ele estava lendo. Era A Marcha dos Dez Mil, em grego.

Deixamos com ele a Árvore-San e também a maleta de Gwen.

 

Fizemos a parada seguinte na Churrascaria Jake. Jake era chinês como o Dr. Cham, mas de outra geração e estilo. Recebeu-nos com um:

— Oi, gente. O que é que vai ser? Hamburgers? Ovos me­xidos? Café ou cerveja?

Gretchen falou-lhe em uma língua tonal — cantonês, acho. Jake pareceu aborrecido e respondeu. Gretchen replicou, no mesmo tom. Trocaram insultos. Finalmente, parecendo revol­tado, ele disse:

— Okay, em quarenta minutos... — deu-nos as costas e se afastou.

Gretchen virou-se para nós:

— Venham, por favor. Vamos agora conversar com Char­lie Wang sobre os trajes pressurizados.

Enquanto nos afastávamos, ela disse baixinho:

— Ele estava querendo evitar que a gente pedisse os me­lhores pratos. Dão muito mais trabalho. Mas a pior discussão foi sobre preço. Jake queria que eu ficasse calada enquanto ele lhes cobraria preços de turistas. Eu disse a ele que se cobrasse mais do que cobra a meu pai, então meu pai, na próxima vez que viesse aqui, lhe cortaria as orelhas e as daria a ele para comer, cruas. Jake sabe que papai faria exatamente isso.

Gretchen sorriu, orgulhosa, e continuou:

— Meu pai é muito respeitado em Dragão Feliz. Quando eu era menina, papai eliminou um vagabundo que tentou ex­plorar uma prostituta daqui, que não quis pagar a ela o que prometera. Todo mundo se lembra disso. As prostitutas de Dra­gão Feliz fizeram mamãe e eu membros honorários da asso­ciação delas.

 

A tabuleta dizia: Wang Chai-Lee, Trajes sob Medida para Cavalheiros e Senhoras — especialidade em consertos de tra­jes pressurizados. Gretchen, mais uma vez, apresentou-nos e explicou nossas necessidades. Charlie Wang inclinou a cabeça.

— Viagem de ônibus ao meio-dia? Estejam aqui às 10h30min. Em Kong vocês devolvem os trajes a meu primo Johnny Wang, na Sears Montgomery, departamento de trajes pressurizados. Vou telefonar para ele.

Depois disso voltamos à Churrascaria do Jake. Não era churrasco, nem chop suey nem chowmein — mas que era uma delícia, era. Comemos até que a comida começou a sair pelo ladrão.

Ao voltarmos ao túnel Sonhos Tranqüilos as luzes do alto haviam sido apagadas e muitos dos espaços estavam ocupados por pessoas adormecidas. Uma fita luminosa corria ao lado dos espaços, numa posição que não brilhava no rosto das pes­soas adormecidas mas era suficiente para iluminar o caminho de quem andasse por ali. Notei uma luz de leitura à mesa do Dr. Chan, protegida de um lado para não incomodar os que dormiam. Ele parecia estar trabalhando em suas contas, ope­rando um terminal com uma das mãos e um ábaco com a ou­tra. Cumprimentou-nos sem falar; nós murmuramos boa-noite.

Instruídos por Gretchen, preparamo-nos para a cama: dispa-se, dobre suas roupas e coloque-as e os sapatos sob a cabeceira da tralha de cama, como travesseiro. Fiz isso e acrescentei meu pé de cortiça. Mas continuei de cueca, tendo notado que Gwen e Gretchen haviam conservado as calcinhas — e Bill, atrasado, vestiu a sua quando notou o que havíamos feito. Depois, dirigimo-nos todos ao refrescador.

Mas essa homenagem nominal à modéstia não durou: to­mamos banho de chuveiro juntos. Havia três homens no re­frescador quando entramos, todos nus. Seguimos o preceito antigo: "A nudez é freqüentemente vista mas nunca olhada." E os três homens seguiram rigorosamente a regra: nós não es­távamos ali, éramos invisíveis. (Salvo que, acho, não, tenho cer­teza, que nenhum homem pode ignorar totalmente Gwen e Gretchen.)

Eu não pude ignorar totalmente Gretchen, nem tentei. Nua, ela parecia anos mais velha e deliciosamente apetitosa. Acho que tinha um bronzeado de lâmpada ultravioleta. Sei que tinha covinhas que eu não vira antes. Não vejo necessida­de de entrar em detalhes. Todas as mulheres são belas no ponto em que desabrocham em plena feminilidade, e Gretchen tinha a beleza adicional de boas proporções e disposição alegre. Ela poderia ter sido usada para tentar Santo Antônio.

Gwen entregou-me o sabão:

— Muito bem, querido, pode esfregar as costas dela... mas ela mesma pode lavar a parte da frente.

Respondi, cheio de dignidade:

— Não sei do que é que você está falando. Não estou pen­sando em lavar as costas de ninguém, uma vez que preciso de mão livre para agarrar alguma coisa e manter o equilíbrio. Você se esquece que sou uma futura mãe.

— É mãe, sim, disto não há dúvida.

— Quem é que está chamando quem de mãe? Eu agradece­ria se você se mostrasse educada no que diz.

— Richard, isto está descendo até abaixo de minha digni­dade. Gretchen, você esfrega as costas dele. Eu servirei de árbitro.

A coisa acabou com todo mundo lavando o que ele/ela po­dia alcançar — até Bill — e a coisa não foi eficiente, mas que foi engraçado, foi, com um bocado de risadas. Pertenciam am­bas a um sexo extremamente oposto e tê-las em volta era divertido.

Às 22h estávamos prontos para a noite, Gretchen junto à parede dos fundos. Gwen ao lado dela, eu e depois Bill. A um sexto de gravidade, uma prateleira de rocha é mais macia do que um colchão de espuma em Iowa. Adormeci rapidamente.

Algum tempo depois — uma hora? duas horas? — acordei com um corpo quente colado ao meu. Murmurei:

— Agora, querida? — Depois, acordei mais um pouco: — Gwen?

— Sou eu, Sr. Richard. O senhor gostaria realmente de ver meu bumbum vermelho? E eu chorar?

Tenso, murmurei:

— Doçura, volte para junto da parede.

— Por favor.

— Não, querida.

— Gretchen — disse Gwen baixinho —, volte para seu lu­gar, querida... antes que acorde os outros. Venha, eu ajudo você a rolar por cima de mim.

Fez isso, pegou a mulher-criança nos braços e lhe falou. Ficaram assim e (acho) dormiram.

Mas eu precisei de muito tempo para fazer o mesmo.

 

"Somos orgulhosos demais para lutar. "

Woodrow Wilson 1856-1924

 

"A violência jamais resolve coisa alguma."

Genghis Khan, 1162-1227

 

"Os ratos votaram para amarrar uma campainha ao pescoço do gato. "

Esopo, c. 620 - c. 560 a.C.

 

Dar beijo de despedida usando trajes pressurizados é de­pressivamente anti-séptico. Assim penso eu e acho que Gretchen também pensou o mesmo. Mas foi assim que transcor­reu a coisa.

Na noite anterior, Gwen me salvara de "um destino pior do que a morte" e por isso eu estava grato. Bem, moderada­mente grato. Certamente um velho caído por uma fêmea que mal chegou à puberdade (Gretchen só faria 13 anos dentro de dois meses) é um espetáculo ridículo, objeto de desprezo de todos aqueles que têm a cabeça no lugar. Mas desde o momen­to, na noite anterior, em que Gretchem deixara claro para mim que não me considerava tão velho assim, eu estivera me sen­tindo cada vez mais jovem.

De modo que conste em ata que estou grato. E isto é oficial.

 

Gwen ficou aliviada, tenho certeza, quando ao meio-dia Gretchen acenou um adeus da cabine do caminhão rolador do pai e nós rolamos para o sul no ônibus rolador de tia Lilybet, o Valha-me, Jesus.

O Valha-me era muito mais amplo e enfeitado do que o caminhão de Jinx: pintado em cores berrantes com cenas da Terra Santa e trechos da Bíblia. Podia transportar 18 passagei­ros, além de carga, motorista e guarda — este último em uma torreta bem acima do motorista. Os pneumáticos do ônibus eram imensos, duas vezes a minha altura, muito acima do es­paço destinado aos passageiros, cujo piso ficava na altura dos eixos, ou ao nível de minha cabeça. Havia escadas de cada lado para permitir acesso às portas situadas entre os pneumáticos dianteiros e traseiros.

Essas rodas enormes tornavam difícil ver o que havia nos lados. Os lunarianos, porém, não estão muito interessados em paisagens, uma vez que a maior parte é interessante apenas quando vista de órbita. Do Caucasus às Montanhas Haemus — nossa rota — o fundo do Mare Serenitatis tem seus encantos escondidos. Inteiramente escondidos. Quase todo o terreno é liso como uma panqueca e tão interessante como panquecas frias sem manteiga e mel.

A despeito disto, eu estava satisfeito porque tia Lilybet nos colocara na primeira fila à direita — Gwen à janela, eu junto, e Bill à minha esquerda. Isto significava que podíamos ver tudo o que a motorista via à frente e também um pouco à direita, porque estávamos à frente do eixo dianteiro e portanto podía­mos divisar alguma coisa do outro lado do pneumático. Mas nem assim a visão era clara à direita, porque o plástico da janela de pressão era velho, riscado e amarelecido. Mas à frente tia Lilybet levantara sua grande vigia de motorista e a prendera, e a visão era tão clara quanto o permitiam nossos capacetes — excelente, em nosso caso. O equipamento alugado a Charlie Wang aliviava a feroz claridade solar sem interferir na visão, o que acontece também com bons óculos de sol.

Não conversamos muito porque os rádios dos trajes dos passageiros estavam todos ligados em uma freqüência comum — e era uma babel, de modo que conservamos os nossos desli­gados. Gwen e eu podíamos conversar tocando nossos capace­tes, mas não com muita facilidade. Eu me divertia tentando seguir o percurso que fazíamos. Nem bússolas magnéticas nem giroscópias são úteis em Luna. O magnetismo aqui (em geral nenhum) significa a presença de uma ocorrência de minério e não uma direção e a revolução da Lua, conquanto exista (uma revolução por mês!), é lenta demais para poder afetar bússolas giroscópicas. Um rastreador por inércia funciona bem, mas um bom é extraordinariamente caro — embora eu não entenda por quê: a arte foi aperfeiçoada há muito tempo para emprego em mísseis teleguiados.

Nessa fase de Luna sempre temos a Terra para servir como baliza de navegação e na metade do tempo também o Sol. As estrelas? Claro, as estrelas estão sempre lá — não há chuva, nem nuvens, nem amog. Oh, claro! Escute, tenho boas notícias para qualquer terráqueo que esteja escutando: é mais fácil ver estrelas em Iowa do que em Luna.

Você estará usando um traje pressurizado certo? O capace­te tem uma lente e um visor construídos para lhe proteger os olhos — o que equivale a amog embutido. Se o Sol está alto, esqueça as estrelas: suas lentes escureceram para lhe proteger os olhos. Se o Sol está ausente, então a Terra está em alguma fase entre cheia e semicheia e o brilho terreno é ofuscante — oito vezes mais superfície refletora com cinco vezes o albedo tornam a Terra pelo menos 40 vezes mais brilhante que a luz da Lua é para ela.

Oh, as estrelas estão lá, nítidas e brilhantes. Luna é um lugar maravilhoso para telescopia astronômica. Mas para ver estrelas a olho "nu" (isto é, de dentro do capacete de seu traje pressurizado) procure um ou dois metros de cano de fogão — poxa!, esqueci, não há fogões em Luna. Assim, utilize uns dois metros de um duto de ar. Olhe através dele; o duto corta o fulgor e as estrelas brilham "como uma boa obra em um mun­do perverso".

À minha frente, a Terra já passara um pouco da fase de semicheia. À esquerda, o Sol estava um dia e meio alto, 20 graus ou menos, tornando brilhante o solo do deserto, com lon­gas sombras destacando nada mais que a lisura perfeita, o que tornava o dirigir fácil para tia Lilybet. Segundo o mapa que havia na câmara pneumática do Pressurizado Dragão Feliz, havíamos partido da latitude norte de 32 graus e 27 minutos, com longitude de 6 graus 56 leste, e dirigíamo-nos para 14 graus 11 minutos leste, por 17 graus e 32 minutos norte, ou seja, um lugar próximo a Menelaus. Isto nos dava um curso em geral na direção sul — mais ou menos 25 graus a sudeste, tanto quanto pude ler naquele mapa — e um destino a cerca de 550 quilômetros de distância. Não era de espantar que nosso TEC (tempo estimado de chegada) falasse em 3h da manhã seguinte.

 

Não havia estrada. Tia Lilybet aparentemente não dispu­nha de rastreador ou qualquer coisa parecida em matéria de instrumentos de navegação, salvo um odômetro e um velocí­metro. Aparentemente, pilotava como se dizia que os coman­dantes de barcos dos rios de antanho descobriam o caminhos: simplesmente conhecendo a rota. Talvez fosse assim — mas na primeira hora notei outra coisa: havia marcos em toda a rota. Logo que chegávamos a um, víamos outro no horizonte.

Não notara esses marcos na véspera e acho que não os ha­via. Acho que Gretchen pilotava realmente no estilo Mark Twain. Na verdade penso que tia Lilybet fazia a mesma coisa. Notei também que com grande freqüência ela não se aproximava do marco ao passar por ele. Aqueles indicadores provavelmen­te haviam sido postos ali para motoristas ocasionais ou para os motoristas de reserva do Valha-me.

Comecei a tentar descobri-los, fazendo um jogo disto. Se perdia um, marcava um ponto contra mim. Dois erros segui­dos valiam uma "morte" no jogo de "Perdidos na Lua" — algo que acontecera com grande freqüência nos primeiros dias — e ainda acontece hoje. Luna é um lugar amplo, maior que a África, quase tão grande como a Ásia — e cada metro quadrado dela é letal, bastando que se cometa um pequeno erro.

Definição de lunariano: um ser humano, de qualquer cor, tamanho, ou sexo que nunca comete um erro onde ele possa prejudicá-lo.

Ao chegar à nossa primeira parada de descanso, eu "mor­rera" duas vezes, não tendo conseguido descobrir os marcos.

 

Às 15h 5min, tia Lilybet parou o ônibus e projetou uma transparência que dizia: PONTO DE DESCANSO — 20 MINU­TOS — e embaixo: Multa por atraso — Uma Coroa por Minuto.

Nós todos descemos. Bill agarrou o braço de tia Lilybet e encostou seu capacete no dela. Ela começou a se soltar, mas depois escutou. Não tentei dissuadi-lo: vinte minutos não é muito para uma parada de descanso quando isto envolve me­xer num traje pressurizado. Claro que a situação torna-se ainda pior para mulheres e leva mais tempo. Tínhamos uma passa­geira acompanhada de três crianças — e o braço direito de seu traje terminava imediatamente abaixo do cotovelo, em um gan­cho. Como era que ela dava um jeito? Resolvi ficar atrás dela, de modo que a multa por atraso fosse cobrada a mim e não a ela.

Aquele "refrescador" era medonho. Tratava-se de uma câ­mara pneumática à boca de um buraco na rocha que se ligava à casa de um colono que combinava agricultura em túnel com mineração de gelo. Pode ter havido na câmara algum oxigênio pressurizado para nos receber, mas o mau cheiro não me deu certeza. Lembrou-me as masmorras de um castelo onde fiquei certa vez aquartelado durante a Guerra das Três Semanas — no Reno, isto mesmo, perto de Ramagem. Possuía uma privada de pedras de grande profundidade que se dizia nunca ter sido limpa em mais de 900 anos.

Nenhum de nós foi multado por atraso, uma vez que nossa motorista atrasou-se ainda mais. E o mesmo aconteceu com Bill. O Dr. Chan vedara Árvore-San com um dispositivo de enrolar e prender que permitia que fosse aguada com maior facilidade. Bill pedira ajuda a tia Lilybet. Haviam conseguido fazer a coisa juntos, mas não rapidamente. Não sei se Bill teve tempo de urinar ou não. A titia, claro, teve — o Valha-me não podia rolar até que ela voltasse.

Fizemos uma parada para almoço às 19h30min em uma pequena pressurizada, quatro famílias, denominada Rob Roy. Após a última parada, esta parecia ser o máximo em civiliza­ção. O lugar era limpo, o ar tinha o cheiro certo e o pessoal mostrou-se cordial e hospitaleiro. Não havia opções no cardá­pio — frango e bolinho de massa assado e torta de amoras lunarianas, — e o preço era salgado. Mas o que queria você no meio de lugar nenhum na face da Lua? Havia uma barraca de souvenirs feitos à mão, com um garoto tomando conta. Comprei uma carteira para dinheiro trocado de que não precisava, porque aquelas pessoas haviam sido boas para nós. A decoração na carteirinha dizia: "Rob Roy City, Capital do Mar da Serenida­de". Presenteei-a à minha mulher.

Gwen ajudou a mulher maneta com as três crianças e sou­be que estavam voltando para Kong de uma visita aos avós dos meninos, no Dragão Feliz. O nome da mãe era Ekaterina OToole e, dos filhos, Patrick, Brigid e Igor, idades oito, sete e cinco. Os três outros passageiros eram Lady Diana Kerr-Shapley e seus maridos — ricos e pouco inclinados a confraternizar conosco, plebeus. Os homens dela usavam armas à cintura — dentro de seus trajes. Que sentido fazia isso?

 

A partir desse ponto, o terreno não foi tão plano e achei que a titia conservava-se um pouco mais perto dos marcos. Mas ainda guiava rápido e ousadamente, levando-nos em tor­no daquelas corcovas grandes e de baixa pressão de uma ma­neira que me levou a pensar no estômago delicado de Bill. Pelo menos ele não estava tendo que segurar a Árvore-San: tia Lily­bet ajudara-o a amarrá-la no compartimento de carga à ré. Desejei-lhe boa sorte. Vomitar dentro de um capacete é horrí­vel... Isto me aconteceu uma vez, há gerações. Ugh!

Fizemos outra parada de descanso pouco antes de meia-noite. Aceitável. O Sol estava nesse instante apenas alguns graus mais alto, e continuava a subir. Titia nos disse que tínhamos mais uns 115 quilômetros para percorrer e que chegaríamos em Kong mais ou menos no horário, Deus querendo.

Deus não deu à titia a ajuda que ela merecia. Estávamos viajando fazia uma hora quando, saindo de lugar nenhum (de trás de um afloramento rochoso?) apareceu outro rolador, me­nor, mais rápido, cortando em diagonal nosso caminho.

Dei uma batida no braço de Bill, agarrei o ombro de Gwen e nos abaixamos, abaixo da vigia do motorista e um tanto prote­gido pela chapa de aço lateral do ônibus. Quando me abaixei, vi o relâmpago que partia do estranho veículo.

Nosso ônibus rolou e parou, o outro veículo bem à nossa frente. Titia levantou-se.

Abateram-na.

Gwen pegou o homem que havia disparado o feixe contra titia, apoiando a Miyako no peitoral da vigia — pegou-o na lente do capacete, o melhor lugar para acertar um homem ves­tindo traje pressurizado se você usa balas em vez de laser. Eu peguei o motorista, apontando com todo cuidado, uma vez que minha bengala só dispara cinco vezes — e sem munição mais perto do que no Regra de Ouro (e em minha sacola de lona, droga). Outros tipos também usando trajes pressurizados saí­ram dos lados do veículo atacante. Gwen ergueu um pouco a mira e continuou a atirar.

Tudo isso aconteceu num vácuo fantasmagoricamente silencioso.

Comecei a apoiar Gwen com meu fogo quando outro veí­culo apareceu. Não um rolador, mas aparentado — e algo que eu nunca vira antes. Possuía apenas um pneumático, uma ros­ca supergigante de pelo menos oito metros de altura. Talvez 10! O orifício na rosca estava cheio do que pode ter sido (ou ti­nha que ser?) a unidade propulsora. A partir desse cubo de roda, de cada lado, projetava-se uma plataforma em balan­ço. No lado superior de cada plataforma, a bombordo e a estibordo, havia um artilheiro preso à sua sela. Abaixo do artilhei­ro ficava o piloto, ou motorista, ou engenheiro — um de cada lado, e não me perguntem como eles se coordenavam.

Não vou jurar por cada detalhe. Eu estava ocupado. Havia feito pontaria para o artilheiro do lado virado para mim e ia apertar o gatilho e disparar um de meus preciosos tiros quan­do parei: a arma dele estava virada para baixo, atacando nossos atacantes. Ele utilizava uma arma de energia — laser, feixe de partículas, não sei —, uma vez que tudo o que eu via com ca­da disparo era o relâmpago parasita e... o resultado.

A grande rosca virou um quarto de volta. Vi o outro par, motorista e artilheiro, no outro lado — e este artilheiro estava apontando para nós. O projetor dele relampejou.

Peguei-o na chapa facial.

Depois tentei pegar o motorista e acertei-o (acho) na junção do pescoço. Não tão bom como abrir um buraco em sua chapa facial, mas a menos que ele estivesse equipado para fazer um rápido e difícil conserto, ia respirar coisa rala em segundos.

A rosca virou o círculo todo. Quando parou, peguei o outro artilheiro em um nano-segundo antes de ele me pegar. Tentei me alinhar para um tiro no motorista, mas não pude me firmar no alvo e não tinha munição para desperdiçar. A rosca come­çou a rolar, para longe de nós, na direção leste — ganhou veloci­dade, atingiu um calhau, subiu alto no ar e desapareceu no horizonte.

Olhei para o outro rolador. Além dos dois que havíamos liquidado na primeira troca de tiros, ainda estirados ao lado do carro, havia cinco outros corpos no chão, dois a bombordo, três a estibordo. Nenhum dava a impressão de que voltaria a se mover. Encostei meu capacete no de Gwen.

— Mais algum deles?

Ela me deu uma cotovelada forte na costela. Virei-me. Uma cabeça envolvida em capacete estava justamente aparecendo na porta esquerda. Ergui a bengala e abri um buraco em forma de losango na chapa facial. Saltei sobre os pés de alguém e olhei para fora — ninguém mais à esquerda, e me virei, e lá estava outro, subindo pela porta da direita. Em vista disso, ati­rei nele...

Corrijo-me: tentei atirar nele. Não tinha mais munição. Caí na direção dele, dando uma estocada com a bengala. Ele agar­rou a ponteira da bengala, e este foi seu erro, pois a puxei pára trás, expondo 20cm de aço de Sheffield, que enfiei em seu traje e entre suas costelas. Puxei-a e, mais uma vez, mergulhei-a. Esse estilete, de apenas meio centímetro de largura de lâmina triangular, três lados estriados, necessariamente não mata de­pressa, mas minha segunda estocada prendeu-lhe a atenção, a atenção enquanto ele morria, mantendo-o ocupado demais para que me matasse.

Desmoronou, em parte para dentro da porta, e soltou a par­ta de bainha de minha bengala. Recuperei-a e recoloquei-a no lugar. Depois, empurrei-o para fora, agarrei-me ao assento mais perto, apoiei-me no meu pé, agüentei o pequeno desconforto, saltitei de volta para meu assento e me acomodei. Sentia-me cansado, embora o entrevero inteiro não pudesse ter demora­do mais de dois ou três minutos. É a adrenalina — eu sempre me sinto exausto depois.

Isto foi o fim da coisa, e foi bom que assim tivesse sido, também, porque minha munição e a de Gwen haviam acabado inteiramente e não posso usar mais de uma vez o macete da lâmina escondida — só funciona se conseguirmos fazer com que o adversário pegue a ponteira da bengala. Houvera nove naquele rolador e todos estavam mortos. Eu e Gwen havíamos acabado juntos com cinco, cabendo aos artilheiros da gigantes­ca rosca liquidar os outros quatro. A contagem dos corpos esta­va certa porque não há como confundir um buraco de bala com uma queimadura.

Não estou contando, notem, os dois, ou três, que acertei entre o pessoal da rosca... porque não havia corpos para con­tar. Se houvesse, estavam do outro lado do horizonte.

Nossas baixas somavam quatro pessoas.

Em primeiro lugar, nosso artilheiro, que viajara como guar­da de diligência na torreta sobre a motorista. Rastejei lá para cima e dei uma olhada — a um sexto de gravidade posso su­bir uma escada vertical quase com a mesma facilidade que qualquer outra pessoa. Nosso artilheiro estava morto. Prova­velmente aquele primeiro relâmpago fora o fim dele. Estivera dormindo durante a vigia? Quem é que sabe e se importa ago­ra? Estava morto.

Nossa segunda baixa, tia Lilybet, porém, não estava, e isto para crédito de Bill. Botara rapidamente nela dois remendos de pressurização, um no braço esquerdo e o outro no alto do capacete — e fora inteligente o bastante para cortar o ar enquan­to fizera isso, contara 60 segundos antes de mexer na válvula e reinflar o traje dela. E assim lhe salvara a vida.

Era a primeira prova que eu via que Bill tinha inteligência bastante até para mexer concreto. Notara onde era guardado o estojo com os remendos de pressurização, perto do assento do motorista, e depois se desincumbira do resto como indivíduo bem-treinado, sem perder movimentos e sem dar atenção à luta que se desenvolvia em torno de nós.

Acho que não devia ter ficado surpreso. Sabia que Bill tra­balhara como operário em construção de mecânica pesada — e no caso de um habitat espacial, isso significa trabalho com trajes pressurizados, com treinamentos e simulações de emer­gência de situações reais. Mas não é suficiente ser treinado. Em um aperto, é preciso ser sabido e ter cabeça fria para aplicar até mesmo o melhor treinamento.

Bill mostrou-nos o que fizera, não para se bravatear, mas porque compreendeu que parte do trabalho poderia ter que ser refeito: ao vedar às pressas o traje da titia, ele não pudera chegar ao ferimento no braço e estancar o sangramento, e não sabia se ele fora ou não cauterizado pela queimadura. Se ela estivesse sangrando, o traje teria que ser reaberto, uma banda­gem de pressão aplicada ao ferimento, e fechado novamente o traje — e rápido! Tendo em vista a localização do ferimento — um braço — a única maneira de fazer isto seria cortar o tecido do traje para abrir um orifício maior, pegar o braço e estancar o sangramento, remendar o orifício maior, e esperar os intermi­náveis segundos até completar um minuto antes de sujeitar novamente à pressão o traje remendado.

Há um limite muito estreito de tolerância ao vácuo de um paciente. Titia era velha e estava ferida, e isto já fora feito com ela naquele dia. Agüentaria pela segunda vez?

Abrir o capacete estava fora de cogitação. O raio que a atin­gira arrancara uma fatia no alto do capacete mas não na cabeça — caso este em que não estaríamos pensando em se ela deixava abrir ou não o traje pressurizado.

Gwen encostou o capacete no de titia, conseguiu despertá-la e chamar-lhe a atenção. Estava sangrando?

Titia achava que não. O braço estava dormente mas não doía muito. Eles o haviam pegado? Pegado o quê? Alguma coi­sa na carga. Gwen garantiu-lhe que não haviam tocado em na­da, estavam todos mortos. Isto pareceu satisfazer titia. E acrescentou:

— Taddie pode dirigir — e pareceu cair no sono.

Nossa terceira baixa era um dos maridos de Lady Diana. Morto. Mas não por nenhum dos bandos de malfeitores. Na verdade, ele se ferira acidentalmente no pé.

Acho que disse que ele estivera preparado — com a arma, pelo amor de Deus, dentro do traje. Quando começou o tiro­teio, ele tentou sacar a arma da cintura, descobriu que não po­dia pegá-la e abriu a parte fronteira do traje para sacá-la.

É possível abrir um traje de pressão e fechá-lo novamente no vácuo, e acho que o lendário Houdini poderia ter aprendido a fazer isso. Mas esse palhaço ainda procurava atabalhoado sacar a arma quando entrou em colapso e afogou-se no vácuo. O seu co-marido era um nadinha mais sabido. Em vez de pro­curar puxar a arma, tentou tirar a do sócio depois que ele em­borcou. Conseguiu, porém tarde demais para soltá-la e usá-la na luta. Espigou-se exatamente no momento em que eu me espigava sobre um pé só, depois de ter espetado o último bandido.

E ali estava aquele boboca brandindo uma arma em minha cara.

Minha intenção não era quebrar-lhe o pulso, mas simples­mente desarmá-lo. Afastei a arma de linha de tiro com um safa­não e desci a bengala em cima do pulso. Peguei a arma no ar, enfiei-a no cinto de meu traje pressurizado e desmoronei no assento.

Não sabia se o havia machucado, provocado outro ferimento ou uma contusão. Tomara.

Mas não sentia remorso. Se não quer um pulso rachado, não sacuda uma arma na minha cara. Não quando estou cansa­do e agitado.

Odeio falar a respeito da quarta baixa, Igor OToole, o garo­to de cinco anos.

Uma vez que estivera no assento traseiro com a mãe, é cer­to que não foi morto por ninguém no rolador. O ângulo teria sido impossível. Só os dois artilheiros da super-rosca estive­ram alto o suficiente para atirar atrás da vigia do motorista do Valha-me e acertar em alguma coisa lá nos fundos do veículo. Além do mais, tinha que ter sido o segundo artilheiro, já que o primeiro estivera ocupado matando colegas bandidos. De­pois a rosca virara, virara a arma apontada para nós, vira o relâmpago no momento em que eu disparara e o matara.

Embora ele tivesse perdido o tiro que dera em mim. Se estivera atirando, errara. Não tenho certeza de que ele estivesse apontando com cuidado, pois quem visaria o alvo menos peri­goso — uma criança, um bebê, realmente, lá no fundo do ôni­bus? Mas o relâmpago que vi tinha que ser o que matou Igor.

Não fosse a morte do menino, eu poderia ter sentido senti­mentos conflitantes sobre a tripulação da rosca gigante — pois não poderíamos certamente ter ganho a parada sem ajuda de­les. Mas aquele último tiro me convenceu que eles estiveram apenas liquidando concorrentes nos negócios, antes de aten­der à sua finalidade principal: seqüestrar o Valha-me.

Minha única pena é que eu não tenha acabado com o quar­to ocupante da rosca.

 

Mas esses foram pensamentos posteriores. O que vimos na ocasião foi simplesmente uma criança morta. Levantamo-nos depois de cuidar de titia e olhamos em volta. Vimos Ekaterina sentada, calma, abraçando o corpo do filho. Tive que olhar duas vezes para compreender o que acontecera. Um traje pres­surizado, porém, não segura uma criança viva quando a chapa facial é corroída por um raio. Saltitei na direção dela. Gwen chegou lá primeiro. Parei atrás dela. Lady Diana agarrou a manga do meu traje e disse alguma coisa.

Toquei o capacete dela com o meu.

— O que foi que você disse?

— Disse-lhe para dizer ao motorista que continue viagem! Será que o senhor não entende inglês comum?

Eu gostaria que ela houvesse dito isso a Gwen. As respos­tas de Gwen são mais imaginativas que as minhas e muito mais líricas. Tudo o que consegui dizer, cansado como estava, foi:

— Oh, cale a boca, e sente-se, sua puta tola. Não esperei por resposta.

Lady Dee foi à frente, onde Bill impediu-a de incomodar titia. Não presenciei isto, uma vez que nesse exato momento, enquanto eu me inclinava para ver o que acontecera ao consor­te (eu não sabia nada ainda) que acabara de se matar com seu traje pressurizado, o co-marido tentou tomar de mim aquela arma.

No curso da briga que se seguiu agarrei-lhe o pulso (que­brado). Não podia ouvir-lhe o grito ou ver-lhe a expressão, mas ele fez uma espantosa exibição improvisada de representação teatral, que me disse que sofrimento estava sentindo.

Tudo o que posso dizer é: não sacudam uma arma em mi­nha cara. Isto tira ressalta o que há de pior em mim.

Voltei a Gwen e àquela pobre mãe, toquei meu capacete no de Gwen:

— Alguma coisa que a gente possa fazer por ela?

— Não. Nada até que consigamos que ela pressurize. E não muito nessa ocasião.

— O que me diz dos outros dois?

Acho que eles estavam chorando, mas quando a gente não pode ver nem ouvir, o que fazer?

— Richard, acho que o melhor que podemos fazer é deixar esta família em paz. Vamos mantê-los de olho, mas deixá-los sozinhos. Até que cheguemos a Kong.

— Isso mesmo... Kong. Quem é Taddie?

— O quê?

— Tia Lilybet disse: "Taddie pode guiar."

— Oh, acho que ela se referia ao artilheiro da torreta. O sobrinho dela.

Em vista disso, subi à torreta para investigar. Tive que sair do veículo a fim de subir, o que fiz — cautelosamente. Mas tínhamos razão — todos eles estavam mortos. E também nos­so artilheiro, Taddie. Desci, voltei ao compartimento dos passageiros, reuni nós três — e disse que não tínhamos motorista de reserva. Perguntei:

— Bill, você pode dirigir este veículo?

— Não, não posso, senador. Esta é a primeira vez em mi­nha vida em que estou num troço destes.

— Eu estava com receio disso. Bem, faz alguns anos desde que dirigi um deles, mas sei como fazer, de modo que... Oh, Jesus! Gwen, eu não posso.

— Problema, querido? Suspirei.

— A gente guia este troço com os pés. Estou sem um pé... ele está ali, junto ao meu assento. Não há maneira no mundo como possa colocá-lo... e maneira nenhuma no mundo de diri­gir com um pé só.

Tranqüilamente, ela respondeu:

— Está tudo bem, querido. Você cuida do rádio... precisa­mos emitir uns SOSs, acho. Enquanto eu dirijo.

— Você pode guiar este beemonte?

— Claro. Eu não quis me oferecer, com vocês dois, homens, aqui. Mas dirigirei com prazer. Mais ou menos duas horas. Fácil.

 

Três minutos depois Gwen estava examinando os contro­les, eu sentado ao lado dela, pensando em como ligar meu traje ao rádio do ônibus. Dois desses minutos haviam sido pas­sados delegando a Bill a função de mestre d'armas, com ordens para manter Lady Dee em seu assento. Ela viera novamente à frente com instruções firmes sobre a maneira como deviam ser feitas as coisas. Aparentemente, ela estava com pressa — alguma coisa sobre reunião de diretores em Ell-Four. De modo que tínhamos que correr, compensar o tempo perdido.

Desta vez ouvi o comentário de Gwen. Foi de lavar o peito. Lady Dee arquejou, especialmente quando Gween lhe disse o que fazer com suas procurações de acionistas, depois de do­brar até que ficassem cheias de arestas afiadas.

Gwen debreou e o Valha-me sacudiu-se todo, recuou, pas­sou pelo outro rolador, e estávamos na estrada novamente. Fi­nalmente, consegui apertar os botões certos no rádio e sinto­nizei-o para o que pensei ser o canal certo.

"(...) O, M, F, I, E, S, escreve-se assim. 'Comfies!' a solução perfeita para os stresses da vida moderna! Não leve para casa as preocupações dos negócios. Tenha conforto com Comfies, a bênção para o estômago que terapeutas recitam mais do que..."

Tentei outro canal.

 

"A verdade é a única coisa em que ninguém acredita."

George Bernard Shaw, 1856-1950

 

Mediante tentativas e erros continuei a procurar o 11, o canal de emergências. O mostrador estava marcado, mas não numerado por canais — o que indicava que titia tinha seus pró­prios códigos. A janela marcada "Ajuda" não era o auxílio de emergência que eu supusera, mas ajuda espiritual. Apertei o botão e vejam só o que ouvi:

"Aqui o reverendo Herold Angel, falando do fundo do co­ração, diretamente para vocês do Tabernáculo sob Tycho, o Lar de Cristo em Luna. Sintonize às 8h de domingo para co­nhecer os verdadeiros significados das profecias das Escritu­ras... e envie hoje sua dádiva de amor à Caixa Postal 99, Angel Station, Tycho Subsolo. Nosso Tema das Boas-novas de hoje é: Como Reconheceremos o Senhor quando Ele chegar. Agora, juntemo-nos ao Coro do Tabernáculo no hino Jesus Aperte-me em Seu"...

Este tipo de ajuda estava atrasado 40 minutos, de modo que passei para outro canal. Nele reconheci uma voz e concluí que devia estar no canal 13. Por isso chamei:

— Capitão Meia-Noite chamando Capitão Marcy. Respon­da, Capitão Marcy.

— Marcy, controle de terra, Hong Kong Lima. Meia-Noite, que diabo você está fazendo agora? Câmbio.

Fiz um esforço para explicar, em 25 palavras ou menos, por que eu estava operando naquele circuito. Ele escutou por um momento e depois me interrompeu:

— Meia-Noite, você esteve puxando fumo? Deixe que eu fale com sua esposa. Nela eu posso acreditar.

— Ela não pode falar agora. Está dirigindo o ônibus.

— Agüente aí. Você está me dizendo que é passageiro do rolador Valha-me, Jesus. Esse é o ônibus de Lilybet Washing­ton. Por que sua esposa está dirigindo?

— Eu tentei lhe explicar. Ela foi baleada. Titia Lilybet, que­ro dizer, não minha mulher. Fomos assaltados por bandidos.

— Não há bandidos nessa área.

— Isso é verdade, acabamos com todos eles. Capitão, escu­te, deixe de formar conclusões apressadas. Fomos atacados. Te­mos três mortos e dois feridos... e minha mulher está dirigindo porque é a única pessoa válida restante que pode fazer isso.

— Você está ferido?

— Não.

— Mas você disse que sua mulher é a única pessoa válida restante que pode dirigir.

— Disse.

— Deixe-me ver se entendo bem isso. Anteontem você es­tava pilotando uma nave espacial... ou era sua mulher quem pilotava?

— Eu era o piloto. O que é que o está incomodando, capitão?

— O senhor consegue pilotar uma nave espacial... mas não pode dirigir um velho rolador. Isso é difícil de engolir.

— É simples. Não posso usar o pé direito.

— Mas você disse que não estava ferido.

— E não estou. Simplesmente perdi um pé, só isso. Bem, não está "perdido". Neste momento eu o tenho aqui no colo. Mas não posso usá-lo.

— Por que não pode usá-lo?

Tomei uma profunda respiração e tentei me lembrar das fórmulas empíricas de Siacci aplicáveis à balística em planetas dotados de atmosfera.

— Capitão Marcy, há alguém em sua unidade — ou em qualquer lugar em Hong Kong Luna — que possa estar interes­sado no fato de que bandidos atacaram um ônibus público que serve à sua cidade, a apenas alguns quilômetros dessa cidade pressurizada? E há alguém que possa receber os mortos e feri­dos quando chegarmos com eles? E que não se importe com quem dirige o ônibus? E que não ache incrível que um homem possa ter tido um pé amputado há alguns anos?

— Por que você não disse isso?

— Droga, capitão, isto não era de sua maldita conta. Seguiu-se um silêncio de vários segundos. Depois, o Capi­tão Marcy falou em voz calma.

— Talvez você tenha razão. Meia-Noite, vou passá-lo ao Ma­jor Bozell. Ele é comerciante em grosso por profissão, mas co­manda também nossos Vigilantes Voluntários e é por isso que deve falar com ele. Fique simplesmente sintonizado.

Esperei e fiquei observando Gwen dirigir o veículo. Quan­do começamos, sua maneira de guiar fora um pouco cheia de solavancos, como acontece com todo mundo que está se fami­liarizando com uma máquina estranha. Nesse momento, a coisa ia suave, embora não tão ousada como ao jeito da titia.

— Bozell aqui. Está me ouvindo?

Respondi.... e quase no mesmo instante senti uma sensa­ção de pesadelo de déjà vu, uma vez que ele me interrompeu dizendo:

— Não há bandidos nessa área. Suspirei.

— Se quer assim, major. Mas há nove cadáveres e um rola­do abandonado nessa área. Talvez alguém se interesse em pas­sar revista aos corpos, em salvar os trajes pressurizados e as armas, e reivindicar o ônibus abandonado... antes que colonos pacíficos, que nunca pensaram em virar bandidos, apareçam e peguem tudo.

— Hummm. Choy-Mu me disse que está tirando uma foto de satélite do local onde ocorreu esse alegado ataque. Se hou­ver realmente um ônibus abandonado...

— Major! — Sim?

— Não me importo realmente com o que o senhor pensa. E não dou a mínima bola para salvados de acidentes. Estare­mos na câmara pneumática norte mais ou menos às 3h30min. Pode providenciar um médico para nos receber, juntamente com uma maca e padioleiros? A maca é para a Sra. Lilybet Was­hington. Ela é...

— Eu sei quem ela é. Vem fazendo esse percurso desde que eu era moleque. Deixe-me falar com ela.

— Ela está ferida. Eu lhe disse isso. Está deitada, e espero que dormindo. Se não estiver, não queremos incomodá-la. Isto poderia provocar mais hemorragia. Simplesmente, mande al­guém para a câmara pneumática a fim de cuidar dela. E de três mortos também, um deles uma criança pequena. A mãe da cri­ança está conosco e em estado de choque, o nome dela é Ekaterina OToole e o marido mora em sua cidade. Nigel OToole. Talvez o senhor possa mandar avisá-lo para que ele venha re­ceber a família e cuidar dela. Isto é tudo major. Quando o cha­mei, em estava um pouco nervoso com bandidos. Mas como não há bandidos nesta área, não temos razão para pedir pro­teção dos vigilantes aqui no Mar da Serenidade neste belo e ensolarado dia, e sinto muito ter perturbado seu sono.

— Tudo bem, estamos aqui para ajudar... e não há necessi­dade de ser sarcástico. Isto está sendo gravado. Dê seu nome completo e endereço legal e repita em seguida: como repre­sentante de Lilybet Washington, do Pressurizado Dragão Feliz, estabelecida com a Companhia de Ônibus Apocalipse e Ad­vento, autorizo o Major Kirk Bozell, oficial-comandante e ge­rente comercial dos Vigilantes Voluntários de Hong Kong Lu­na, a fornecer...

— Espere aí. O que é isso?

— Apenas o contrato padrão, cobrindo serviços para pro­teção pessoal e conservação de propriedade, e garantindo o pagamento. O senhor não pode esperar que eu tire um pelotão de guardas de suas camas no meio da noite e que não pague por isso. Nada de almoço gratuito.

— Hum. Major, o senhor tem por acaso pomada anti-hemorróida à mão? Preparação H? Pazo? Esse tipo de coisa?

— Ahn? Eu uso Bálsamo de Tigre. Por quê?

— Porque o senhor vai precisar. Pegue o controle padrão, dobre-o até que esteja cheio de arestas afiadas...

 

Continuei ligado no 13 e não tentei mais descobrir onde ficava o canal de emergências. Tanto quanto me parecia, não havia proveito em gritar "Maidez!" no canal 11 quando eu já falara com a única provável origem de ajuda. Encostei meu ca­pacete no de Gwen, sumariei a situação e acrescentei:

— Mas os idiotas insistem em que não há bandidos nesta área.

— Talvez não fossem. Talvez fossem apenas reformadores agrários fazendo uma declaração pública. Deus queira que a gente não tope com extremistas da direita! Richard, é melhor eu não falar enquanto estou dirigindo. Carro estranho, estra­da estranha... apenas, não é uma estrada.

— Desculpe, amor! Você está indo maravilhosamente bem. Como é que eu posso ajudar?

— Ajudaria um bocado se você localizasse os marcos pa­ra mim.

— Claro!

— Neste caso eu poderia olhar para baixo e observar a es­trada à frente. Alguns desses buracos são piores do que os de Manhattan.

— Impossível.

Elaboramos um sistema mediante o qual eu a ajudava incomodando-a o mínimo. Logo que localizava um marco, eu o apontava. Quando também o via — e não antes —, ela batia no meu joelho. Não conversávamos porque tocar capacetes in­terferia na direção.

Cerca de uma hora mais tarde surgiu à frente outro rola­dor, que se aproximou de nós em alta velocidade. Gwen ba­teu no capacete, em um lugar em cima da orelha. Colei meu capacete ao dela. Ela disse:

— Mais reformadores agrários?

— Pode ser.

— Estou sem munição.

— Eu, também — suspirei. — Teremos simplesmente que levá-los para uma mesa de conferência. Afinal de contas a vio­lência nunca resolve coisa nenhuma.

Gwen fez um comentário pouco elegante e acrescentou:

— Que me diz daquela arma que tomou de Sir Galahad?

— Oh, querida, nem mesmo a examinei. Pode me consi­derar estúpido.

— Você não é estúpido, Richard, apenas espiritual. Dê uma olhada.

Tirei da cintura a arma confiscada e examinei-a. Depois, toquei-lhe novamente o capacete.

— Querida, você não vai acreditar nisto. Não está carre­gada.

— Ahn?

— Realmente, "Ahn". À parte isso, não tenho outro comen­tário a fazer. E pode me citar, se quiser.

Joguei para um canto do ônibus o troço inútil e olhei para o outro rolador, que chegava rápido. Por que uma pessoa usa­ria uma arma descarregada? Pura loucura!

Gwen bateu na orelha novamente. Toquei-lhe o capacete.

— Sim?

— A munição dessa arma está no corpo, pode apostar.

— Não aposto! Pensei nisso, Gwen, mas se eu tivesse que dar uma busca naquele corpo, teria que esfriar também os dois outros. Não é uma boa idéia.

— Concordo. E de qualquer modo não há mais tempo pa­ra isso. Aí vêm eles.

Apenas não vieram, ou não inteiramente. O outro rola-dor, ainda a uns 200 metros de distância, virou para a esquer­da, deixando claro que estava evitando um curso de colisão. Passando por nós, li: "Vigilantes Voluntários — Hong Kong Lu­na", escrito em um dos lados.

Pouco depois, Marcy chamou ao rádio:

— Bozell disse que o encontrou mas que não pôde alcançá-lo pelo rádio.

— Não sei por quê. Você me alcançou.

— Porque calculei que você estaria no canal errado. Meia-Noite, o que quer que você deva estar fazendo, é absolutamente certo que estará sempre fazendo outra coisa.

— Você me lisonjeia. O que deveria ter feito desta vez?

— Devia estar de plantão no canal 2, é isso. O que é reser­vado para veículos de superfície.

— Todos os dias a gente aprende uma coisa nova. Obriga­do.

— Quem não sabe disso não devia estar operando um veí­culo na superfície deste planeta.

— Capitão, como o senhor tem razão. E calei o bico.

 

Muito antes de chegar divisamos Hong Kong Luna no ho­rizonte — a torre de aterrissagem de emergência, os grandes pratos usados para conversar com a Terra, os maiores para Mar­te e o Cinturão, as grelhas de energia solar — e a cidade tornou-se ainda mais impressionante à medida em que nos aproxi­mávamos. Claro, todo mundo vive no subsolo... mas costu­mo esquecer o quanto da indústria pesada de Luna se situa na superfície — e é ilógico que esqueça isso, uma vez que a maior parte da grande riqueza de Luna está vinculada à luz solar feroz, às noites geladas e ao vácuo interminável. Mas, como observara minha esposa, eu sou do tipo espiritual.

Passamos pelo novo complexo industrial Nissan-Shell, hec­tare após hectare de tubulações e colunas de craqueamento, destiladores invertidos, válvulas, bombas e pirâmides Bussard. As longas sombras desenhadas pelo Sol nascente tornavam a paisagem um quadro de Gustave Doré, pintada por Pieter Brughel (zoonito) e orquestrado por Salvador Dali. Imediata­mente atrás dessas estruturas ficava a câmara pneumática norte.

 

Por causa de tia Lilybet deixaram-nos usar o pequeno Kwiklok. Bill passou com titia — ele merecera isso — e depois Lady Dee e seu marido sobrevivente se adiantaram empurrando-se, à frente de Ekaterina e das crianças. A querida Diana distinguira-se novamente exigindo que fosse levada ao espa­çoporto e não à câmara pneumática da cidade. Bill e eu não permitimos que ela incomodasse Gwen com suas ordens reais, mas isto diminuiu (se possível) sua popularidade conosco. Fi­quei satisfeito em vê-los desaparecer pela câmara. E a coisa funcionou bem porque o marido de Ekaterina veio em nossa direção pela câmara principal exatamente no momento em que perdíamos nossos VIPs. Nigel OToole levou a família (incluindo o triste corpinho) pelo mesmo caminho, depois que Gwen abra­çou Ekaterina e lhe prometeu telefonar.

Depois chegou nossa vez... mas apenas para descobrir­mos que a Árvore-San não podia ser colocada em um Kwik­lok. De modo que recuamos e demos a volta para a câmara pneumática maior (e mais lenta). Notei que alguém estava re­tirando o corpo da torreta do Valha-me, Jesus e outros des­ciam a carga, fiscalizados por quatro guardas armados. O que haveria naquela carga? Mas o assunto não me dizia respeito. (Ou talvez dissesse, uma vez ser possível que aquela carga te­nha sido a causa da carnificina e das mortes.) Entramos na câmara mais ampla — nós, o bordo bonsai, maleta, bolsa, peru­ca no embrulho, bengala e prótese de pé.

A câmara completou o ciclo, entramos em um túnel longo e inclinado e passamos em seguida por duas portas de pres­são. Na segunda porta havia uma máquina operada por moe­das, para venda de licenças curtas de uso do ar, mas tinha um aviso: "ENGUIÇADA. Visitantes, por favor, paguem meia co­roa por 24 horas." Vi um pires com algumas moedas em cima da máquina. Acrescentei uma coroa, por Gwen e por mim.

Ao fim do túnel, outra porta de pressão levou-nos para a cidade.

Havia bancos logo adiante para uso de pessoas que esta­vam vestindo trajes pressurizados para sair ou tirando para entrar. Com um suspiro de alívio, comecei a baixar o zíper e logo depois prendia, no lugar devido, o pé artificial.

Ossos Secos é um povoado, Dragão Feliz é uma pequena cidade e Hong Kong Luna é uma metrópole e perde apenas para Luna City. No momento não parecia congestionada, mas estávamos na calada da noite e só os que trabalhavam nes­sas horas podiam ser vistos. Até mesmo madrugadores tinham ainda duas horas de sono, pouco importando se era dia claro lá fora.

Mas o corredor quase deserto mostrava ainda assim sua qualidade de grande cidade: um aviso em cima do cabide de trajes dizia: NÃO ASSUMIMOS RESPONSABILIDADES POR TRAJES DEIXADOS NESTES CABIDES. PROCURE JAN NO VESTIÁRIO - GA­RANTIDOS E SEGURADOS - Uma Coroa/Um Traje Pressurizado. Sob essas palavras, e escrito a mão, outro aviso: Seja sabi­do — Procure Sol e pague apenas meia coroa — nem garanti­do, nem segurado, mas honesto. Ambos os avisos eram acom­panhados por setas, uma apontando para a esquerda e a ou­tra para a direita.

— Qual dos dois, querido? — perguntou Gwen. — Sol ou Jan?

— Nenhum dos dois. Este lugar é suficientemente pareci­do com Luna City para eu saber como me virar por aqui. Acho.

— Olhei em volta, para cima e para baixo, e vi uma luz verme­lha. — Há um hotel ali. Com o pé no lugar, posso levar um traje pressurizado embaixo de cada braço. Você pode dar con­ta do resto?

— Claro. O que me diz de sua bengala?

— Enfio no cinto de meu traje. Nenhum problema. Dirigimo-nos para o hotel.

De frente para o corredor, na janela de recepção do hotel, uma moça sentada estudava transgenia, o clássico de Sylvester. Ergueu os olhos.

— É melhor guardar primeiro esses trajes. Procure o Sol, porta ao lado.

— Não. Quero um quarto grande, com uma cama empress-size. Nós botaremos isto em um dos cantos.

Ela olhou para a planta dos quartos.

— Quartos de solteiro eu tenho. Com duas camas, tam­bém. Felizes suítes, idem. Mas o que vocês querem — não. To­dos ocupados.

— Quanto custa uma suíte feliz?

— Depende. Esta aqui tem duas camas king e um refrescador. Esta aqui não tem absolutamente camas mas um chão acolchoado e almofadas à bessa. E este aqui...

— Quanto pelo que tem duas camas king?

Oitenta coroas. Pacientemente, respondi:

— Ouça aqui, cidadã. Eu mesmo sou lunariano. Meu avô foi ferido nos degraus do Bom Marché. O pai dele veio para aqui acusado de sindicalismo criminoso. Conheço os preços em Luna City. Eles não podem ser tão mais altos assim em Kong. O que é que está cobrando pelo que eu pedi? Se tivesse um deles vago?

— Não estou impressionada, meu chapa. Todo mundo po­ete alegar ancestrais na Revolução e a maioria alega. Meus an­cestrais deram as boas-vindas a Neil Armstrong quando ele desceu. Supere isso.

Sorri alegre para ela.

— Não posso e devia ter ficado calado. Qual é seu preço real por um quarto duplo, com uma única grande cama e um refrescador? Não o seu preço para turistas?

— Um quarto duplo padrão com uma grande cama e re­frescador próprio custa 20 coroas. Vou lhe dizer o que vou fazer, cara — não há muita possibilidade de alugar minhas suí­tes vazias tão tarde assim da noite — ou tão cedo. Eu lhe alu­go uma suíte para orgia por 20 coroas... mas você sai ao meio-dia.

— Dez coroas.

— Ladrão. 18. Se cobrar menos, estou perdendo dinheiro.

— Não, não está. Conforme você mesma disse, a esta ho­ra da manhã não pode ter esperança de alugá-lo a qualquer preço. Quinze coroas.

— Mostre seu dinheiro. Mas vocês têm que sair ao meio-dia.

— Digamos, 1h da tarde. Estivemos acordados a noite to­da e tivemos um tempo difícil.

Contei o dinheiro.

— Eu sei. — Ela inclinou a cabeça na direção do terminal. — Hong Kong Gong deu vários extras sobre vocês. Treze ho­ras, tudo bem — mas se ficarem mais tempo, ou pagam o pre­ço completo ou se mudam para um quarto comum. Vocês ti­veram realmente um encontro com bandidos? No caminho para Dragão Feliz?

— Disseram-me que não há bandidos nessa área. Tivemos um encontro com uns desconhecidos muito hostis. Nossas per­das foram de três mortos, dois feridos. Estes só trouxemos para cá.

— Sim, eu vi. Quer recibo para sua conta de despesas? Por uma coroa, tiro um recibo sincero, autêntico, detalhado, em qualquer soma que você quiser. E tenho três mensagens para você.

Pisquei, estupidamente.

— Como? Ninguém sabia que vínhamos para seu hotel. Nós mesmos não sabíamos.

— Não há mistério nenhum, cara. Se um estranho entra pela câmara norte tarde da noite, as probabilidades são de se­te a dois que terminará na minha cama — numa de minhas camas, e nada de piadinhas de mau gosto, por favor. — Lan­çou um olhar ao terminal. — Se você não tivesse recebido es­sas mensagens em mais 10 minutos, reforços seriam enviados a todas as estalagens da pressurizada. Se nem assim conse­guissem entrar em contato com você, o vigilante de segurança pública poderia iniciar uma busca. Não é sempre que rece­bemos estranhos bonitões com aventuras românticas pa­ra contar.

— Deixe de balançar o rabo para ele, queridinha — disse Gwen —, ele está cansado. E já tem dona. Passe as fichas de registro, por favor.

A gerente do hotel olhou friamente para Gwen e dirigiu-se a mim:

— Meu chapa, se você já não tivesse pago a ela, eu pode­ria lhe garantir coisa melhor, mais jovem e mais bonita, a pre­ço de liquidação.

— Sua filha? — perguntou docemente Gwen. — Por favor, as mensagens.

A mulher encolheu os ombros e entregou as mensagens. Agradeci e disse:

— A respeito dessa outra coisa. Mais jovem, possivelmente. Mais bonita, duvido. Não poderia ser mais barata. Casei com esta por causa do dinheiro dela. Quais são os fatos?

Ela olhou de mim para Gwen.

— Isso é verdade? — Ele se casou com você por causa de seu dinheiro? Faça com que ele o mereça.

— Bem, ele disse que se casou — Gwen respondeu pen­sativa. — Não tenho certeza. Estamos casados há apenas três dias. Estamos em lua-de-mel.

— Menos de três dias, querida — protestei. — Apenas, pa­rece mais tempo.

— Cara, não fale assim com sua mulher! Você é um grosseirão, um bruto, e provavelmente anda foragido.

— Sim, tudo isso — concordei.

Ela me ignorou e dirigiu-se a Gwen:

— Queridinha, eu não sabia que era sua lua-de-mel ou não teria oferecido "aquela coisa" a seu marido. Peço humildes des­culpas. Mais tarde, porém, quando se cansar desse sujeito que fala demais, posso arranjar o mesmo para você, só que homem. Preço justo. Jovem. Bonitão. Viril. Durável. Afetuoso. Venha aqui ou telefone procurando Xia — sou eu. Garantido... Se não ficar satisfeita, não paga.

— Obrigada. Mas neste momento o que eu quero é um café da manhã. E depois, cama.

— O balcão do café fica atrás de você, no fim do corredor. O Sing's New York Café. Recomendo o Ressaca Especial, a uma coroa e 50. — Olhou para uma prateleira às costas e pegou duas fichas. — Aqui estão as chaves. Queridinha, você poderia pe­dir ao Sing que me mandasse queijo frito Cheddar em torra­da branca e café? E não deixem que ele cobre mais do que uma coroa e meia por um Ressaca Especial. Ele rouba apenas por prazer.

 

Deixamos nossa bagagem com Xia e cruzamos o corredor para tomar o café da manhã. O Ressaca Especial era tão bom como Xia dissera. Finalmente, entramos em nossa suíte. A suíte nupcial. Xia, mais uma vez, fora honesta conosco. De vá­rias maneiras. Levou-nos à suíte, ficou ali enquanto nós nos desmanchávamos em ahs e ohs — champanha em balde de gelo, colcha virada na cama, lençóis perfumados, flores (arti­ficiais mas convincentes), tudo isso destacado pela única luz existente.

Em vista de tudo isso, a noiva beijou Xia, Xia beijou a noi­va, e ambas fungaram — e isto foi bom, também, porque um bocado de coisas haviam acontecido rápido demais e Gwen não tivera tempo de chorar. E mulheres precisam chorar.

Depois, Xia beijou o noivo, o noivo não chorou e não re­cusou. Xia é uma oriental e tanto, do tipo que dizem que Mar­co Pólo encontrou em Xanadu. E me beijou de maneira con­vincente. Logo depois, soltou-se para respirar.

— Poxa!

— Sim, poxa! — concordei. — Quanto ao negócio que vo­cê mencionou antes... Quanto você cobra?

— Falador. — Sorriu alegre para mim e não se afastou. — Grosseiro. Patife. Eu dou amostras gratuitas. Mas não a noi­vos. — Desvencilhou-se. — Descansem bem, meus queridos. Esqueçam aquele prazo fatal de lh da tarde. Durmam tanto quanto quiserem. Eu digo ao gerente do dia.

— Xia, duas dessas mensagem pediam que eu ligasse pa­ra pessoas nas horas horríveis em que vacas estão sendo ordenhadas. Você poderia interceptar outras chamadas?

— Já pensei nisso. — Li essas mensagens antes de vocês. Esqueça. Mesmo que Bozell Fanfarrão apareça com todos os seus Escoteiros, o gerente do dia não vai dizer que vocês estão aqui.

— Eu não quero lhe criar problema com seu chefe.

— Eu não lhe disse? Eu sou a dona. Juntamente com o BancAmerica.

Beijou-me rapidamente e saiu.

 

Enquanto nos despíamos, Gwen observou:

— Richard, ela estava esperando ser solicitada para ficar. E ela não é uma virgenzinha arregalada como Gretchen. Por que não a convidou?

— Ora, bolas, mãe, eu não sabia como.

— Você podia ter tirado o cheong-sam dela enquanto ela estava tentando estrangulá-lo. Isto teria sido suficiente. Não havia nada por baixo. Corrijo: Xia estava por baixo da roupa, e nada mais. Mas havia um bocado de Xia, disto tenho certe­za. Por que não pediu a ela que ficasse?

— Quer saber a verdade?

— Hummm... não tenho certeza se quero.

— Porque eu queria dormir com você, moça, sem distra­ções. Porque não estou cheio de você. Não é o seu cérebro, nem suas qualidades espirituais, das quais você quase não tem nenhuma. Estou doido de desejo por esse seu pequeno corpo suado.

— Oh, Richard!

— Antes de tomarmos banho? Ou depois?

— Hummm... os dois?

— É assim que se fala.

 

"A democracia pode agüentar quase tudo, menos os democra­tas."

  1. Harshaw, 1904-

 

"Todos os reis são quase sempre patifes."

Mark Twain, 1835-1910

 

No banho, eu disse:

— Você me surpreendeu, amor, ao mostrar que sabia diri­gir um rolador.

— Não tanto quanto você me surpreendeu quando des­cobri que aquela sua bengala era um fuzil.

— Ah, sim, isso me lembra de uma coisa... Você se im­portaria em servir de cobertura para mim?

— Claro que não, Richard, mas como?

— Minha bengala maceteada deixa de ser proteção quan­do se sabe o que ela é. Mas se todos os tiros forem atribuídos a você, ninguém saberá o que ela é.

Pensativa, Gwen respondeu:

— Não vejo... Ou melhor, não entendo. Todo mundo no ônibus viu-o usando a bengala como fuzil.

— Viu, mesmo? A luta ocorreu no vácuo — em silêncio mortal. De modo que ninguém ouviu tiro nenhum. Quem me viu atirar? Titia? Ela estava ferida quando entrei na coisa. Ape­nas segundos antes, mas estamos falando de segundos. Bill? Ocupado com titia. Ekaterina e as crianças? Duvido que as crianças tenham visto alguma coisa que compreenderam, e a mãe sofreu o pior choque que pode acontecer a uma mãe. Não será grande coisa como testemunha, se chegar a depor. A que­rida Diana e seus rapazes enfeitadinhos? Um deles está mor­to e o outro ficou tão confuso que me tomou como bandido, e a própria Lady Dee é tão egocêntrica que nunca entendeu o que estava acontecendo. Sabia simplesmente que algum ab­surdo irritante estava interferindo em seus sagrados caprichos. Vire-se que eu esfrego suas costas.

Gwen virou-se. Continuei:

— Vamos melhorar a coisa. Eu lhe dou cobertura em vez de você fazer isso por mim.

— Como?

— Minha bengala e seu pequeno Miyako usam munição do mesmo calibre. De modo que todos os tiros partiram do Miyako — disparado por mim, não por você — e minha ben­gala é apenas uma bengala. E você é minha doce e inocente esposa que nunca faria algo tão grosseiro e pouco feminino como responder a tiros de estranhos. Isto lhe convém?

Gwen levou tanto tempo para responder que comecei a pensar que a havia ofendido.

— Richard, talvez nenhum de nós dois tenha atirado em ninguém.

— Mesmo? Você me interessa. Diga como.

— Eu estou tão pouco ansiosa para reconhecer que ando armada com uma pistola como você que sua bengala tem ta­lentos inesperados. Alguns locais são horrivelmente antiqua­dos a respeito de armas escondidas... mas uma pistola em mi­nha bolsa — ou em algum outro lugar em mim — salvou-me a vida em mais de uma ocasião e tenciono continuar a andar armada. Richard, as razões que você deu para acreditar que ninguém sabe coisa alguma sobre sua bengala aplicam-se tam­bém à minha Miyako. Você é mais alto do que eu e estava jun­to da janela. Quando nos abaixamos, não acho que alguém possa ter-me visto muito bem... afinal de contas seus ombros não são transparentes.

— Hummm... Podia ser assim. Mas e os corpos com ba­las dentro?

Balas longas, calibre 6.5, para ser exato.

— Mortos pelos açougueiros daquela grande roda.

— Eles usavam lasers, não balas.

— Richard, Richard! Você sabe se eles não tinham armas que usam balas, além de armas que disparam raios de ener­gia? Eu não sei.

— Hummm, novamente. Meu amor, você é tão tortuosa como um diplomata.

— Eu sou uma diplomata. Passe o sabão, bonitinho, por favor. Richard, nada de dar informações. Éramos apenas pas­sageiros, testemunhas inocentes, e estúpidas também. A ma­neira como aqueles reformadores agrários morreram não é res­ponsabilidade nossa. Meu pai me disse para guardar minhas cartas junto ao peito e nunca reconhecer coisa nenhuma. Esta é a ocasião de fazer isto.

— Meu pai me ensinou a mesma coisa. Gwen, por que você não se casou comigo antes?

— Precisei de algum tempo para amolecê-lo, querido. Ou vice-versa. Pronto para enxaguar?

Enquanto eu a secava, lembrei-me de um ponto que ha­víamos esquecido:

— Modelo de esposa, onde aprendeu a guiar um rolador?

— Onde? No Maré Serenitatis. — Ahn?

— Aprendi observando Gretchen e titia. Hoje à noite foi a primeira vez que guiei um deles.

— Bem! Por que não disse isso? Ela começou a me secar.

— Paixão, se tivesse sabido, você teria se preocupado. Inu­tilmente. Em todas as vezes em que casei, sempre adotei a regra de nunca dizer ao meu marido alguma coisa que pu­desse preocupá-lo, se eu pudesse de alguma maneira evitar isso. — Sorriu angelicalmente. — É melhor assim. Homens são preocupadores; mulheres, não.

 

Fui despertado do profundo sono por fortes batidas.

— Abram!

Não consegui pensar em uma boa razão para responder, e não respondi. Bocejei largamente, tomando cuidado para não deixar que a alma escapasse, depois, virei-me para a direita e, de repente, Gwen não estava ali.

Levantei-me da cama com tal rapidez que fiquei tonto. Dei uma sacudidela na cabeça para clareá-la, depois fui saltitando até o refrescador. Gwen também não estava ali. As batidas continuaram.

Não beba champanha na cama e durma logo em seguida. Eu tinha que drenar um litro de champanha antes de poder suspirar de alívio e pensar em outras coisas. As batidas conti­nuaram, com mais gritos.

Enfiado no alto de meu pé havia uma nota de minha ama­da. Menina esperta! Ainda melhor do que prendê-la à minha escova de dentes. Li:

 

Queridíssimo,

Tive um acesso de acordadite, de modo que estou saindo para fazer umas duas coisas. Em primeiro lugar, vou à Sears Montgomery devolver nossos trajes pressurizados e pagar o aluguel deles. Enquanto estiver na Sears, comprarei meias e cuecas para você e calcinhas para mim, e farei outras pequenas coi­sas. Deixei um bilhete na recepção aqui, dizendo a Bill para devolver seu tra­je, também... Sim, ele apareceu depois de nós e Xia colocou-o em um quarto de solteiro, como você combinou com ela. Depois vou ao Wyoming Knott Me­morial Hospital visitar titia e telefonar para Ekaterina.

Você está dormindo como um bebê e espero estar de volta antes de você acordar. Se não — se você for a algum lugar —, por favor deixe uma nota na recepção.

Amo-o

Gwendolyn

 

As batidas continuaram. Calcei o pé, notando ao mesmo tempo que nossos trajes pressurizados não estavam onde os vira pela última vez, isto é, arrumados em pose romântica no chão, uma brincadeira feita por minha devassa esposa. Vesti as únicas roupas que tinha, molhei o pequeno bordo, desco­bri que não precisava de muita coisa. Gwen devia tê-la aguado.

— Abra!

— Vá pro inferno! — respondi polidamente.

Pouco depois as batidas foram substituídas por um ruído de arranhão, de modo que me coloquei junto à porta e um pou­co de lado. Esta não era do tipo de dilatar, mas do tipo mais tradicional de dobradiça.

A porta se abriu. Meu barulhento visitante mergulhou para dentro. Estendi a mão e empurrei-o para o outro lado do quarto. Em um sexto de gravidade isto exige algum cuidado — é pre­ciso ter um pé apoiado em alguma coisa ou perde-se tração e o troço não funciona.

Ele rebotou mais ou menos da parede mais distante e caiu na cama. Eu disse:

— Tire seus pés sujos de cima da minha cama! Ele saiu da cama e se levantou. Continuei, furioso:

— Agora, explique por que arrombou meu quarto... e fa­ça isso logo, antes que eu lhe arranque o braço e bata com ele em sua cabeça. Quem é que você pensa que é, acordando um cidadão que ligou o aviso "Favor Não Perturbar'? Responda!

Dava para ver que ele era alguma espécie de palhaço da cidade: usava um uniforme que dizia "polícia". A resposta dele, uma mistura de indignação com arrogância, correspon­dia à aparência:

— Por que não abriu quando ordenei?

— Por que é que eu devia? Você paga o aluguel deste quar­to?

— Não, mas...

— Esta é sua resposta. Fora daqui!

— Agora, você é que vai me ouvir! Eu sou um oficial de segurança da cidade soberana de Hong Kong Luna. O senhor deve apresentar-se imediatamente ao Moderador do Conse­lho Municipal, a fim de fornecer informações necessárias à paz e segurança da cidade.

— Devo, hem? Mostre-me a intimação?

— Não é necessária intimação nenhuma. Estou uniformi­zado e em serviço. O senhor tem que cooperar comigo. Postu­ra Municipal 27-82, página 41.

— Você tem um mandado para arrombar a porta de meu quarto particular? Não me diga que isso não precisa de um mandado. Vou processá-lo e tomar sua última coroa e esse traje de macaco que usa.

Os músculos do queixo dele tremeram, mas tudo o que ele disse foi:

— O senhor vem de boa vontade ou terei de arrastá-lo? Sorri para ele.

— Quer disputar na melhor de três? Ganhei a primeira. Venha. — Notei que havia uma audiência à porta. — Bom-dia, Xia. Conhece este palhaço?

— Sr. Richard, sinto horrivelmente a respeito de tudo is­to. Meu gerente do dia tentou detê-lo, mas ele não quis ouvi-lo. Vim aqui logo que pude.

Notei que ela estava descalça e que não usava maquiagem — de modo que seu sono fora também interrompido. Respon­di suavemente:

— Não foi culpa sua, querida. Ele não tem um mandado. Jogo-o na rua?

— Bem... — e ela pareceu perturbada.

— Oh, entendo. Acho que entendo. Durante toda a histó­ria, estalajadeiros julgaram conveniente se dar bem com a polícia. E durante toda a história policiais tiveram corações de ladrões e maneiras arrogantes. Muito bem, como um favor a você, vou deixar que ele viva. — Virei-me para o policial. — Rapaz, você pode rastejar de volta para junto de seu chefe e dizer a ele que vou logo. Depois que tiver tomado pelo menos duas xícaras de café. Se ele quiser mais cedo que isso, é me­lhor que mande um pelotão. Xia, que tal um café? Vamos ver se Sing tem café pronto e pão-careca.

Nesta altura dos acontecimentos Joe Guarda-de-Tropa-de-Assalto tornou necessário que eu lhe tomasse a arma. Podem atirar em mim — já atiraram, mais de uma vez —, mas não um cara que pensa que simplesmente me apontando uma arma muda as probabilidades.

A arma não era nada que eu quisesse — mero lixo. Des­carreguei-a, verifiquei com certeza que a munição não era do mesmo calibre que eu uso, joguei os cartuchos pela calha de lixo, e devolvi-lhe a arma.

Ao perder os cartuchos, ele protestou em altos brados, mas eu lhe expliquei pacientemente que a arma dele era tão boa como antes para o que ele a usara, e que se eu lhe deixasse a munição ele poderia ferir-se acidentalmente.

Ele continuou a grasnar e eu lhe disse que fosse grasnar no ouvido do seu chefe. E dei-lhe as costas. Ele estava, disto eu tinha certeza, aborrecido. Mas eu também.

 

Quarenta minutos depois, sentindo-me melhor mas ain­da com sono, e após uma agradável conversa com Xia no acom­panhamento de café com roscas barradas com geléia, apresen­tei-me no gabinete do Honorável Jefferson Mao, Moderador do Conselho de Escolhidos da Cidade Soberana de Hong Kong Luna — ou pelo menos era isso o que havia na porta. Pergun­tei a meus botões o que o Congresso do Estado Livre de Luna pensava do uso da palavra "soberano", mas isto não era de mi­nha conta.

Uma mulher de aspecto eficiente, olhos amendoados e ca­belos ruivos (genes interessantes, acho) perguntou:

— Nome, por favor.

— Richard Johnson. O Moderador quer falar comigo. Ela lançou um olhar ao monitor.

— O senhor está atrasado para o encontro. Vai ter que es­perar. Pode sentar-se, se quiser.

— E posso não querer. Eu disse que o Moderador queria falar comigo. Eu não disse que queria falar com ele. Digite es­sa caixa e diga a ele que estou aqui.

— Não posso, de jeito nenhum lhe arranjar brecha antes de duas horas, pelo menos.

— Diga a ele que estou aqui. Se ele não me receber agora, vou embora.

— Muito bem. Volte dentro de duas horas.

— Você me compreendeu mal. Vou embora. Embora de Kong. E não volto.

Eu estava blefando quando disse isso e, quando disse, des­cobri que não estava. Meus planos ainda desarticulados ha­viam incluído uma estada indefinida em Kong. De repente dei-me conta de que não permaneceria em uma cidade que caíra tanto nas qualidades que constituem civilização porque algum funcionário oficioso resolve intimá-lo. Não, de jeito ne­nhum! Um soldado raso em uma unidade decente, bem co­mandada, disciplinada, tem mais liberdade e mais privacida­de do que isso. Hong Kong Luna, cantada em verso e prosa como o berço da liberdade de Luna, não era mais lugar apro­priado para alguém viver.

Virei e estava quase na porta quando ela chamou:

— Sr. Johnson!

Parei, mas não me virei.

— Sim?

— Volte aqui!

— Por quê?

A resposta pareceu machucar-lhe o rosto:

— O Moderador o receberá agora.

— Muito bem.

Aproximando-me da porta do gabinete, ela rolou para lon­ge... mas não entrei no gabinete privado do Moderador. Ha­via à frente mais três portas, todas elas guardadas por fiéis cães de guarda... e isto me disse mais do que eu queria saber so­bre o atual governo de Hong Kong Luna.

O guardião na última porta anunciou-me e me fez entrar. O Sr. Mao quase nem me olhou.

— Sente-se.

Sentei-me e coloquei a bengala sobre os joelhos.

Esperei durante cinco minutos, enquanto o chefão da ci­dade remexia em papéis e continuava a me ignorar. Depois, levantei-me, dirigi-me para a porta, movendo-me devagar, apoiado na bengala. Mao levantou a vista.

— Sr. Johnson? Para onde vai?

— Embora.

— Não diga. O senhor não quer cooperar, não é?

— Quero tratar de minha vida. Alguma razão para que eu não deva?

Ele me fitou, o rosto sem expressão.

— Se o senhor insiste, posso citar uma postura municipal, nos termos da qual o senhor é obrigado a cooperar comigo quando eu exigir isso.

— O senhor está se referindo à Postura Municipal 217-82?

— Vejo que a conhece... de modo que dificilmente pode alegar ignorância como atenuante de seu comportamento.

— Não conheço essa postura, apenas o número. Foi men­cionado pelo policial apalhaçado que arrombou meu quar­to. Essa postura diz alguma coisa sobre arrombamento de quar­tos particulares?

— Ah, sim. Interferir na ação de um agente de segurança que cumpre seu dever. Discutiremos isso mais tarde. Essa pos­tura que o senhor citou é a pedra fundamental de nossa liber­dade. Cidadãos, residentes e mesmo visitantes podem ir e vir como quiserem, sujeitos apenas ao dever cívico de cooperar com funcionários eleitos, nomeados, ou delegados no cum­primento de seus deveres oficiais.

— E quem decide quando a cooperação é necessária, de que tipo e em que grau?

— Ora, o funcionário interessado, claro.

— Foi o que pensei. Há alguma coisa mais que o senhor queira comigo? — Comecei a me levantar.

— Sente-se. Há, realmente. E eu exijo sua cooperação. La­mento ter posto a questão desta maneira, mas o senhor apa­rentemente não atende a solicitações polidas.

— Tais como arrombar minha porta?

— O senhor me cansa. Sente-se e cale-se. Vou interrogá-lo... logo que chegarem duas testemunhas.

Sentei-me novamente e fiquei calado. Achei que nesse mo­mento compreendia o regime: absoluta liberdade... exceto que qualquer funcionário, do laçador de cães vadios ao mais alto potentado, poderia dar quaisquer ordens, em qualquer tem­po, a qualquer cidadão privado.

Então era a "liberdade" da forma definida por Orwell e Kafka, a "liberdade" concedida por Stalin e Hitler, a "liberda­de" de andar de um lado para o outro numa gaiola. Fiquei cu­rioso em saber se o próximo interrogatório seria auxiliado por dispositivos 'mecânicos ou elétricos, ou quem sabe drogas, e senti o estômago embrulhado. Nos velhos tempos, quando es­tava no serviço ativo e enfrentava repetidamente a possibili­dade de captura, estando de posse de informações secretas, sempre tivera um "amigo final" aquele "dente oco" ou equi­valente. Mas não usava mais esta proteção.

E estava com medo.

Antes de muito tempo, entraram dois homens. Mao res­pondeu ao bom-dia e mandou-os sentar com um aceno. Um terceiro chegou logo depois.

— Tio Jeff, eu...

— Cale a boca e sente-se!

O retardatário era o palhaço cuja arma eu esvaziara. Ele calou-se e sentou-se. Surpreendi-o olhando para mim. Ele des­viou a vista.

Mao pôs de lado alguns papéis.

— Major Bozell, obrigado por ter vindo. E ao senhor tam­bém, Capitão Marcy. Major, o senhor tem perguntas a fazer a um certo Richard Johnson. Ele está sentado aí. Faça suas perguntas.

Bozell era um homem baixote que adotava postura muito ereta. Possuía cabelos amarelos cortados rentes e maneiras bruscas, sacudidas.

— Ahn! Vamos direto ao assunto! Por que o senhor me lançou numa busca improfícua?

— Que busca improfícua?

— Ah! O senhor vai negar que me contou uma história fan­tasiosa sobre um ataque de bandidos? Numa área onde nun­ca houve bandidos? O senhor nega que insistiu comigo em que mandasse para lá uma equipe de resgate e salvamento? Saben­do que eu nada encontraria! Responda!

— Isso me lembra... — comecei. — Alguém aqui pode me dizer como está tia Lilybet esta manhã? Porque me disseram para vir aqui, não pude ir até o hospital.

— Ah! Não mude de assunto! Responda! Respondi, humildemente:

— Mas este é o assunto. Nesse ataque fantasioso de que fala, a velha senhora foi ferida. Ela ainda está viva? Alguém sabe?

Bozell fez menção de responder. Mao cortou-o:

— Ela está viva. Ou estava, há uma hora. Johnson, é me­lhor que você reze para que ela continue viva. Tenho um de­poimento aqui — bateu no terminal — de uma cidadã cuja pa­lavra está acima de qualquer suspeita. Um de nossos acionis­tas mais importantes, Lady Diana Kerr-Shapley. Ela disse que o senhor atirou na Sra. Lilybet Washington...

— O quê?

— ... ao mesmo tempo que criou uma situação de terror, na qual seus atos provocaram a morte por anoxia de seu mari­do, o Honorável Oswald Progant, que quebrou o pulso de seu marido, o Honorável Brockman Hogg, e sujeitou a própria Lady Diana a táticas de terror e a insultos repetidos.

— Hummm. Ela disse também quem matou a criança OToole? E o artilheiro da torreta? Quem foi que o matou?

— Ela diz que foi tal a confusão que não viu tudo. Mas que o senhor saiu quando o ônibus estava parado e que subiu para a torreta... sem dúvida foi nessa ocasião que acabou com o pobre rapaz.

— É o senhor mesmo que está dizendo esta última parte ou foi ela quem disse?

— Eu disse. Uma presunção conclusiva. Lady Diana teve todo o cuidado de não prestar depoimento sobre coisa algu­ma que não viu com seus próprios olhos. Incluindo esse rola-dor fantasmagórico cheio de bandidos. Ela não viu nada disso.

Bozell tomou a palavra:

— Aí o senhor tem, Sr. Moderador. Este seqüestrador dis­parou uma saraivada de tiros dentro do ônibus, matou três pes­soas e feriu mais duas... e inventou uma história da carochi­nha para encobrir seus crimes. Não há bandidos nessa área, todos sabem disso.

Tentei agarrar com as duas mãos a realidade.

— Sr. Moderador, um momento, por favor! O Capitão Marcy está aqui. Sei que ele tirou uma foto do rolador dos bandidos.

— Eu faço as perguntas, Sr. Johnson.

— Mas... ele conseguiu ou não as fotos?

— Isso basta, Johnson! Comporte-se de acordo com as re­gras. Ou o faremos cumpri-las.

— O que estou fazendo que viola xs regras?

— Está perturbando uma investigação com matéria desca­bida. Espere até que receba permissão para responder. Em se­guida, responda à pergunta.

— Sim, senhor. Qual é a pergunta?

— Eu lhe disse para ficar calado!

Fiquei. E todo os demais ali.

Logo depois o Sr. Mao tamborilou na escrivaninha e disse:

— Major, tem mais alguma pergunta a fazer?

— Ah! Ele não respondeu à minha primeira pergunta. Tergi­versou.

O Moderador falou, por sua vez:

— Johnson, responda à pergunta. Banquei o estúpido — meu melhor papel.

— Qual a pergunta?

Mao e Bozell começaram a falar no mesmo instante. Bo­zell cedeu a vez a Mao, que continuou:

— Vou sumariar. Por que fez o que fez?

— O que foi que eu disse?

— Acabei de lhe dizer o que você fez!

— Mas não fiz nada do que o senhor disse que fiz. Sr. Mo­derador, não compreendo como o senhor se envolveu nisto O senhor não esteve lá. O ônibus não é de sua cidade. Eu não sou de sua cidade. O que quer que tenha acontecido, aconte­ceu fora de sua cidade. Qual é sua ligação com este assunto?

Mao recostou-se na poltrona e pareceu contente consigo mesmo. Bozell tomou a palavra:

— Ah! — disse, e acrescentou: — Digo a ele, Sr. Modera­dor, ou o senhor mesmo diz?

— Eu digo. Na verdade vai ser um prazer dizer. Johnson, há menos de um ano, o Conselho desta cidade soberana to­mou uma medida muito sábia: ampliou sua jurisdição a fim de abranger todas as atividades na superfície e no subsolo em um raio de 100 quilômetros a partir do pressurizado municipal.

— E transformou os Vigilantes Voluntários em braço ofi­cial do governo — contribuiu feliz Bozell —, encarregado de manter a paz e a ordem nessa faixa de 100 quilômetros. E isto cuida de você, seu assassino!

Mao ignorou a interrupção.

— De modo que você vê, Johnson, embora você provavel­mente pensasse que estava no meio de um deserto de anarquistas, onde a letra da lei não se aplica, você na verdade não estava. Seus crimes serão punidos!

(Eu gostaria de saber quanto tempo ainda vai passar an­tes que alguém tente um golpe assim para assumir o poder lá no Cinturão de Asteróides.)

— Esses meus crimes... eles ocorreram a menos de 100 qui­lômetros de Hong Kong Luna? Ou mais?

— Ahn? Menos. Consideravelmente menos. Claro.

— Quem foi que mediu a distância? Mao olhou para Bozell.

— A que distância aconteceu isso?

— A mais ou menos 80 quilômetros. Um pouco menos. Falei:

— O que foi um pouco menos? Major, o senhor está fa­lando do ataque dos bandidos ao ônibus? Ou a resposta de alguma coisa que teria acontecido dentro do ônibus?

— Não ponha palavras na minha boca! Marcy... responda. Tendo dito isso, Bozell assumiu uma expressão vazia. Fez menção de acrescentar alguma coisa, mas parou antes de falar. Eu, com todo cuidado, permaneci calado. Imediatamente Mao recomeçou:

— Bem, Capitão Marcy?

— O que deseja de mim, senhor? O diretor do espaçoporto, quando me enviou aqui, disse-me que cooperasse no que fos­se possível... mas que não dissesse voluntariamente nada que o senhor não perguntasse.

— Quero tudo que for relevante para este caso. O senhor deu ao Major Bozell um número de 80 quilômetros?

— Dei, senhor. Setenta e oito quilômetros.

— De que modo conseguiu esse número?

— Medi-o em um monitor no meu console de controle. Habitualmente, não imprimimos foto tirada de satélite, ape­nas a projetamos. Esse homem — o senhor diz que o nome dele é Johnson. Eu o conhecia como "Meia-Noite" — se é o mesmo homem. Ele me chamou pelo rádio na noite passada às 10h27min e disse que estava no ônibus do Dragão Feliz e que bandidos haviam atacado o ônibus...

— Ah!

—... e que o ataque fora repelido mas que a motorista, tia Lilybet — a Sra. Washington —, estava ferida e que o artilhei­ro da torreta...

— Nós sabemos de tudo isso, capitão. Fale-nos sobre a fotografia.

— Sim, Sr. Moderador. Pelo que Meia-Noite me disse, pude dirigir a câmara do satélite para o alvo. Fotografei o rolador.

— E o senhor calculou naquela ocasião que o ônibus esta­va a 78 quilômetros da cidade.

— Não, senhor, não o ônibus. O outro rolador. Houve um tipo de silêncio algumas vezes chamado de "prenhe de". Bozell, porém, explodiu:

— Mas isso é uma loucura! Não havia nenhum...

— Espere um pouco, Bozell. Marcy, você foi desencaminhado pelas mentiras de Jonhson. O que você viu foi o ônibus.

— Não, senhor. De fato, vi o ônibus: eu o tinha no moni­tor. Mas vi imediatamente que estava se movendo. De modo que fiz a câmara recuar pela estrada uns 10 quilômetros... e lá estava o segundo rolador, exatamente como Meia-Noite dissera.

Bozell ficou quase em lágrimas.

— Mas... nada havia lá, eu lhe garanto! Meus rapazes e eu demos uma busca por toda a área. Nada! Marcy, você está louco!

Não sei por quanto tempo Bozell teria continuado dese­jando que não tivesse havido um rolador que ele não pudera achar, quando foi interrompido. Gwen entrou. E eu reengoli meu coração. Tudo ia acabar bem.

(Eu estivera doente de preocupação desde que vira a trí­plice defesa que Mao montara contra qualquer pessoa que qui­sesse se aproximar dele. Uma guarda contra assassinato? Não sei. Simplesmente tive pavor que Gwen fosse contrariada. Mas eu devia ter tido mais confiança naquela pequena gigante.)

Ela sorriu, jogou-me um beijo, virou-se e manteve a porta aberta.

— Por aqui, cavalheiros!

Dois dos próprios guardas de Mao entraram empurrando uma cadeira de rodas, puxada para trás para que titia pudes­se se reclinar. Ela olhou em volta, sorriu para mim e disse ao Moderador:

— Oi, Jefferson. Como vai sua mamãe?

— Ela vai bem, obrigado, Sra. Washington. Mas a senhora...

— Que bobagem é essa de "Senhora Washington"? Meni­no, eu mudei suas fraldas. Você me chama de "titia", como sem­pre chamou. Agora, ouvi dizer que você estava pensando em pregar uma medalha no peito do senador Richard, como re­conhecimento pela maneira como ele me salvou daqueles ban­didos... e quando ouvi dizer isso, disse a mim mesmo: "Jef­ferson não ouviu nada a respeito dos outros dois que mere­cem tanto as medalhas como o senador Richard"... com seu perdão, senador.

— Oh, a senhora tem toda razão, titia.

— De modo que eu os trouxe aqui. Gwen, querida, diga oi a Jefferson. Ele é o prefeito desta pressurizada. Gwen é a esposa do senador Richard, Jefferson. E Bill... Onde está Bill? Bill! Venha até aqui, filho! Não fique com vergonha. Jefferson, embora seja verdade que o senador Richard matou dois da­queles perversos com as mãos nuas...

— Não com as mãos nuas, titia — protestou Gwen. — Ele tinha a bengala.

— Fique calada, amor. Com as mãos nuas e a bengala, mas se Bill não estivesse lá — e fosse rápido e esperto — eu não estaria aqui. Jesus teria me levado. Mas o Senhor querido dis­se que não era o meu dia ainda, Bill botou remendos em meu traje e me salvou para servir a Jesus mais um dia. — Estendeu a mão e pegou a de Bill. — Este é o Bill, Jefferson. Não se es­queça de dar também uma medalha a ele. E Gwen... Venha aqui, Gwen. Este bebezinho salvou a vida de nós todos.

Eu não tenho certeza da idade de minha esposa, mas ela não é um ''bebezinho". Contudo, esta foi a menor distorção de fatos que ouvimos nos minutos seguintes. Para dizer o mí­nimo, titia contou um montão de mentiras. E Gwen inclinan­do a cabeça, confirmando, e parecendo angélica.

O problema não era tanto que os fatos estivessem errados, mas que titia prestasse depoimentos sobre fatos que não po­deria ter presenciado de maneira nenhuma. Gwen devia tê-la escolado com todo cuidado.

Dois grupos de bandidos haviam atacado o ônibus, mas se engalfinharam. Isso nos salvou, uma vez que todos menos dois deles morreram naquela luta fratricida. Estes dois eu ma­tei com as mãos nuas e a bengala — enfrentando pistolas a laser. Sou um cara tão heróico que até me espanto comigo mesmo.

Enquanto essas valentes façanhas aconteceram, sei que titia estava inconsciente parte do tempo, deitada de costas duran­te todo o tempo e só podia ver mesmo o teto do ônibus. Ain­da assim, ela parecia acreditar — acho mesmo que acreditava — no que estava dizendo. Que isso diga o que valem testemu­nhas de vista.

(Não que eu esteja me queixando.)

Em seguida, titia contou como Gwen dirigia o ônibus. Quando dei por mim, estava levantando a bainha da calça pa­ra mostrar minha prótese — uma coisa que nunca faço —, mas mostrei desta vez para demonstrar porque não pudera usá-la vestindo um traje pressurizado padrão e, por conseguinte, sem condições para dirigir o veículo.

Mas foi Gwen quem arrematou grandiosamente o grande espetáculo quando titia findou seu relato altamente pitoresco. E fez isso com fotos.

Prestem atenção. Gwen usara toda sua munição, seis car­tuchos. Em seguida, arrumada como sempre — pusera a Miya­ko na bolsa, tirara a Mini Helvetia e batera duas fotos.

Inclinara a câmera um pouco para isso, pois as fotos mos­travam não só os dois veículos dos bandidos, mas também três baixas no chão e um bandido de pé e se movendo. A segunda foto mostrava quatro no chão e a super-rosca virada para fu­gir dela.

Não posso calcular o tempo exato que durou isto, mas de­ve ter sido pelo menos quatro segundos desde o momento em que ela ficou sem munição e o tempo em que a roda gigante virou para ir embora. Com uma câmera rápida, leva-se mais ou menos tanto tempo para bater uma foto como dar um tiro com uma arma semi-automática que usa balas.

A pergunta é: o que foi que ela fez com os outros dois segundos? Simplesmente desperdiçou-os?

 

"Síndrome pré-menstrual: pouco antes da menstruação mulheres se comportam da maneira como homens se compor­tam o tempo todo."

Dr. Lowell Stone, 2144

 

Não saímos na carreira, mas partimos daquele lugar com toda rapidez possível. É verdade que titia obrigara o Sr. Mao a me aceitar como "herói" e não como criminoso — mas isto não o fez me amar, e eu sabia disso.

O Major Bozell nem mesmo fingiu gostar de mim. A "de­serção" do Capitão Marcy enfureceu-o; as fotos de Gwen, mos­trando bandidos de verdade (onde eles não podiam estar!) partiu-lhe o coração. Em seguida o chefe desfechou-lhe o mais cruel dos golpes, ordenando-lhe que reunisse suas tropas, fosse até lá e os achasse! E imediatamente!

— Se não conseguir isso, major, vou ter que encontrar al­guém que consiga. Foi você quem pensou nessa idéia de limi­te de 100 quilômetros. Agora, justifique suas bravatas.

Mao não devia ter feito isso com Bozell na presença de outras pessoas — especialmente não da minha presença. Isto eu eu sei por experiência profissional — em ambos os papéis. Acho que Gwen deu algum sinal à titia. Como quer que fosse, tia Lilybet disse a Mao que tinha que ir embora.

— Minha enfermeirinha vai me passar um pito por ter fi­cado ausente por tanto tempo. Não quero que ela brigue co­migo. Mei-Ling Ouspenskaya... Conhece-a, Jefferson? Ela co­nhece sua mamãe.

Os mesmos dois guardas empurraram a cadeira de rodas de titia por aquela série de salas até o corredor público — ou melhor, praça, já que a Prefeitura dá para a Praça da Revolu­ção. Ela se despediu de nós nesse local e os policiais conti­nuaram empurrando a cadeira até o Wyoming Knott Memo­rial Hospital, dois níveis para baixo e ao norte dali. Não acho que eles esperassem fazer isso — mas sei que Gwen os con­vocou para serviço militar ali mesmo no gabinete do Modera­dor —, e titia supôs que eles a levariam de volta ao hospital, e foi o que fizeram.

— Não, Gwen, amor, você não precisa ir... estes bondo­sos cavalheiros sabem onde fica o hospital.

(Portas se abriram para ela porque ela espera que portas se abram. Tanto Gwen quanto tia Lilybet acreditam piamente nesse princípio.)

 

De frente para a Prefeitura havia um grande cartaz enfei­tado com bandeirolas, onde estava escrito:

 

LUNA LIVRE!

4 de Julho, 2076-2188

 

Já era realmente o Dia da Independência? Mentalmente, contei. De fato, Gwen e eu havíamos casado no dia 1º — de modo que aquele dia tinha que ser o 4 de julho. Bom augúrio!

Sentada em um banco em volta da fonte situada no cen­tro da Praça da Revolução, Xia esperava por nós.

Eu esperara Gwen. Mas não Xia. Naquela conversa que tivera com ela, pedira-lhe para tentar localizar Gwen e lhe di­zer para onde eu ia e por quê.

— Xia, eu não gosto de ser intimidado por tiras para ser interrogado, especialmente numa cidade estranha onde não conheço a organização policial. Se eu for "detido" — para di­zer a coisa polidamente — quero que minha esposa saiba on­de me procurar.

Não sugeri o que Gwen devia fazer a esse respeito. Em apenas três dias de casamento já aprendera que nada que eu pudesse sugerir poderia ser igual ao que ela pensaria se dei­xada a seus tortuosos expedientes. Ser casado com Gwen não era monótono.

Fiquei satisfeito em vê-la à espera, mas fiquei surpreendi­do com o que trouxera consigo. Olhei e perguntei:

— Alguém alugou a suíte nupcial?

No banco, junto a Xia, vi a maleta de Gwen, o pacote con­tendo a peruca, a bonsai, um pacote não conhecido mas bas­tante evidente pelo papel de embrulho da Sears Montgomery.

— Aposto que minha escova de dentes ainda está pendu­rada no refrescador.

— Quanto quer apostar, e qual é a vantagem que dá? — perguntou Xia. — Você perderia. Richard, vou sentir falta dos dois. Talvez eu dê um pulo em L-City para visitar vocês.

— Faça isso! — pediu Gwen.

— De acordo — disse eu —, se vamos nos mudar para L-City. Vamos?

— Imediatamente — confirmou Gwen.

— Bill, você sabia alguma coisa sobre isso?

— Não, senhor senador. Mas ela me mandou a toda à Sears entregar o traje. De modo que estou pronto.

— Richard — falou Gwen, séria — não é seguro para você permanecer aqui.

— Não, não é — confirmou uma voz às minhas costas (o que provava, mais uma vez, que assuntos sigilosos não devem ser discutidos em público). — Quanto mais cedo vocês forem embora, melhor. Oi, Xia. Você está com estes elementos perigosos?

— Oi, você, Choy-Mu. Obrigado pela última vez. Pisquei espantado para ele.

— Capitão Marcy! Que bom que apareceu. Eu queria lhe agradecer!

— Não tem o que me agradecer, Capitão Meia-Noite... ou é "senador"?

— Bem... na verdade, "doutor", ou "senhor", mas para você é "Richard", se quiser. Você me salvou o pescoço.

— E eu sou o Choy-Mu, Richard. Mas não salvei seu pes­coço. Segui-o para lhe dizer isto. Você pode pensar que ganhou lá dentro. Não ganhou. Perdeu. Você fez o Moderador perder o prestígio... os dois perderam prestígio. De modo que você é uma bomba de tempo ambulante, um acidente à procura de um lugar. — Franziu as sobrancelhas. — Não foi muito sadio para mim, também, estar presente quando eles perderam pres­tígio... depois de ter cometido o erro inicial de "levar más no­tícias ao rei". Entendeu o que eu disse?

— Receio que sim.

— Choy-Mu — perguntou Xia —, o Número Um perdeu realmente prestígio?

— Realmente perdeu, amor. E foi tia Lilybet Washington que fez isso com ele. Mas, claro, ele não pode fazer nada com ela. De modo que resta o capitão... Richard. Ou é assim que eu vejo a coisa.

Xia levantou-se.

— Gwen, vamos direto para a estação. Não podemos per­der nem um segundo! Oh, droga, eu queria tanto que vocês ficassem alguns dias.

Vinte minutos depois estávamos na Estação Sul do Me­trô, prestes a tomar o tubo balístico para Luna City. O fato de que pudéssemos arranjar lugar na cápsula L-City que partia quase imediatamente decidiu nosso destino, uma vez que Choy-Mu e Xia nos acompanharam para se despedirem de nós, e ao chegarmos à estação, usando o metrô local, eles haviam me convencido — ou convencido Gwen (mais fundamental) — que devíamos tomar o primeiro veículo que saísse da cida­de, pouco importando para onde. Partindo daquela mesma es­tação há tubos comuns (não balísticos) para Platão, Tycho Sub­solo e Novy Leningrad — e se tivéssemos chegado seis mi­nutos antes teríamos terminado na coelheira humana de Pla­tão, o que teria mudado muitas coisas.

Ou teria mesmo mudado alguma coisa? Há por acaso um Destino que modele nosso fins? (O fim de Gwen era delicio­samente modelado. O de Xia, também, pensando bem.)

Mal houve tempo para dizer ciao, ciao, antes de prender­mos as coisas nas prateleiras e nos amarrarmos. Xia beijou to­dos nós e eu fiquei satisfeito porque Gwen não deixou Choy-Mu sem um beijo. Verdadeiro lunariano, ele hesitou um lon­go momento antes de se certificar que a moça o beijava a sé­rio, e depois retribuiu entusiasticamente. Observei Xia dar um beijo de adeus em Bill— que retribuiu sem essa hesitação. Che­guei à conclusão de que a tentativa de Gwen de bancar Pig­maleão para essa incrível Galatéia estava tendo sucesso, mas que Bill precisaria aprender maneiras lunarianas, ou poderia perder alguns dentes.

Sentamo-nos, amarrramo-nos, a cápsula foi vedada e, mais uma vez, Bill apertou o pequeno bordo contra a barriga. As prateleiras se movimentaram para acompanhar a aceleração — uma gravidade completa, aceleração alta para os lunarianos que enchiam o resto do carro. Dois minutos e cinqüenta segundos de aceleração e logo alcançamos velocidade orbital.

Esquisito entrar em queda livre em um metrô. Mas que é divertido, é.

Esta era a primeira vez que eu andava no tubo balísti­co. O sistema data de antes da Revolução, embora por essa época (segundo li) só fosse até Endsville. Completado mais tar­de, seu princípio de funcionamento nunca foi estendido a ou­tros sistemas de metrô — não era econômico, segundo me dis­seram, a não ser por trechos longos e muito utilizados, que podem ser escavados "retos" o caminho todo — "reto", neste caso, significando "exatamente de acordo com uma curva ba­lística à velocidade orbital".

Este metrô é a única "nave espacial" subterrânea de toda a história. Funciona de acordo com o princípio de catapultas de indução que lançam cargas a Ell-Four, Ell-Five e à Terra... exceto que as estações de lançamento, de recebimento e toda a trajetória são todas situadas embaixo da terra... alguns me­tros no subsolo na maior parte das vezes, e uns três quilôme­tros mais fundo quando o tubo passa por baixo de montanhas.

Dois minutos e 51 segundos de aceleração a uma gravida­de, 12 minutos e 27 segundos em queda livre, dois minutos e 51 segundos de frenagem a uma gravidade — tudo isso so­ma uma velocidade média de mais de 5.000 quilômetros horá­rios. Nenhum outro transporte de "superfície", em qualquer lugar, aproxima-se sequer dessa velocidade. Ainda assim, é uma viagem feita no mais absoluto conforto — três minutos que parecem passados em uma rede de balanço na Terra, em seguida 12 e meio minutos de imponderabilidade, e mais três minutos de rede naquele jardim. Quem é que pode fazer me­lhor que isso?

Oh, poder-se-ia fazer isto mais rápido, acelerando a gravidades múltiplas. Mas não muito. Se a aceleração pudesse ser instantânea (matando todos os passageiros!) e a desacelera­ção da mesma maneira (splat), poderíamos aumentar a velo­cidade média para mais de 6.000 quilômetros por hora e cor­tar o tempo de viagem em quase três minutos! Mas isso seria o máximo.

Este é também o melhor tempo possível de uma nave-foguete entre Kong e L-City. Na prática, um foguete saltador leva geralmente meia hora — e tudo depende da altura da trajetória.

Mas certamente meia hora é um tempo bem curto. Mas por que túnel sob maria e montanhas quando um foguete po­deria fazer o trabalho?

O foguete é a forma de transporte mais cara já inventa­da. Numa típica missão em foguetes, metade do esforço é gasto lutando com a gravidade para subir e a outra metade lu­tando contra ela para descer — uma vez que se despedaçar-se no solo é considerado fim insatisfatório de missão. As gigan­tescas catapultas em Luna, Terra, Marte e no espaço são pro­testos gigantescos contra o desperdício dos motores a foguete.

Ao contrário, o metrô balístico é o transporte mais econô­mico já inventado: nenhuma massa é queimada ou lançada e a energia usada na aceleração é recuperada na outra extre­midade, na desaceleração.

Não há nenhuma mágica nisso. A catapulta elétrica é um gerador a motor. Pouco importa que não se pareça com isso. Na sua fase de aceleração é um motor, energia elétrica conver­tida em energia cinética. Na fase de desaceleração é um gera­dor: a energia cinética extraída da cápsula é puxada como ener­gia elétrica e armazenada em um Shipstone. Em seguida, a mesma energia é retirada do Shipstone para lançar a cápsula de volta a Kong.

Uma refeição gratuita!

Não, de todo. Há perdas de histerese e outras insuficiên­cias. A entropia aumenta sempre. Ninguém pode esnobar a segunda lei da termodinâmica. A coisa que mais lembra é a frenagem regenerativa. Houve tempo, há muitos anos, quan­do carros de superfície eram desacelerados e parados por atrito, rudemente aplicados. Mas, um dia, um cara brilhante com­preendeu que uma roda em movimento poderia ser parada tratando-a como se fosse um gerador e fazendo com que pa­gasse pelo privilégio de ser parada — o momento angular po­dia ser extraído e armazenado em um "acumulador" (um dos primeiros precursores dos Shipstones).

A cápsula que parte de Kong faz mais ou menos a mesma coisa: ao cortar linhas magnéticas de força na extremidade de L-City, ela gera uma imensa força eletromotriz, que pára a cáp­sula e transforma sua energia cinética em energia elétrica, que é em seguida armazenada.

O passageiro, porém, não precisa saber nada disso. Ele sim­plesmente mata o tempo em "sua rede" durante a viagem, a mais suave possível.

Havíamos acabado de passar a maior parte de três dias rolando 700 quilômetros. Naquele momento, percorríamos 1.500 quilômetros em 18 minutos.

 

Tivemos que abrir caminho da cápsula à força de ombros, e fazer o mesmo pela estação porque havia Shriners impacien­tes à espera da oportunidade de viajar para Kong. Ouvi um dizer que "eles" (o anônimo "eles", a quem culpam por tudo) — "deviam botar mais carros na linha". Um lunariano tentou explicar-lhe a impossibilidade envolvida nessa exigência — ape­nas um tubo, capaz de operar com apenas uma cápsula, que poderia estar apenas nesta ou na outra extremidade, quando não em queda livre entre as duas. Mas nunca duas cápsulas no tubo — impossível, puro suicídio.

A explicação provocou uma alvar incredulidade. O visi­tante aparentemente teve problema também para aprender a idéia de que o tubo balístico era de propriedade particular, não sujeito a qualquer regulamento... assunto que veio à baila quan­do o lunariano disse:

— Se o senhor quer outro tubo, vá em frente! Construa-o! Tem toda liberdade para fazer isso. Ninguém o está impedin­do. Se isso não o satisfaz, volte para Liverpool.

Indelicado da parte dele. Minhocas não podem deixar de ser minhocas. Todos os anos, algumas morrem pela incapacidade de compreender que Luna não é igual a Liverpool, Den­ver ou Buenos Aires.

Passamos através da câmara pneumática que separa a pressurizada de propriedade de Artemis Transit Company da pressurizada municipal. No túnel do outro lado da câmara vi uma tabuleta: PEGUEM SEUS VALES DE AR AQUI. Sentado sob a tabuleta, a uma mesa, havia um homem duas vezes mais inválido que eu: pernas terminadas nos joelhos. Isto, porém, não parecia lhe diminuir a movimentação: vendia revistas, do­ces e ar, anunciava serviços turísticos e de guia e exibia outro aviso interessante: ACEITAM-SE APOSTAS.

A maioria das pessoas passava por ele sem parar. Bill ia fazer o mesmo quando o detive:

— Espere, Bill.

— Senador, vou ter que botar um pouco d'água nesta ár­vore.

— Espere, ainda assim. E deixe de me chamar "senador". Chame-me de "doutor". Dr. Richard Ames.

— Ahn?

— Não importa. Simplesmente, faça isso. Neste exato mo­mento temos que comprar ar. Você não comprou em Kong?

Bill não comprara. Entrara na pressurizada ajudando titia e ninguém pensara em lhe cobrar coisa nenhuma.

— Bem, você devia ter pago. Notou que Gretchen pagou por todos nós no Dragão Feliz? Pagou. E agora vamos pagar aqui, mas vou comprar mais do que para uma única noite. Es­pere aqui.

Parei à mesa.

— Oi, aí. O senhor está vendendo ar?

O vendedor de ar levantou os olhos de um problema de palavras cruzadas, olhou-me de cima a baixo.

— O senhor não tem que pagar. Pagou o ar quando com­prou a passagem.

— Não, inteiramente — respondi. — Sou lunariano, com­panheiro, voltando para casa. Com esposa e um dependente. De modo que preciso de ar para três.

— Boa tentativa. Mas que deu em nada. Escute, uma au­torização de cidadão não vai lhe conseguir preços de cidadão — vão olhar para você e ainda lhe cobrar preços de turista. Se quiser prolongar seu visto, pode. Na Prefeitura. E cobrarão o ar para cobrir o prazo de prolongamento do visto. Agora, esqueça, antes que eu resolva enganá-lo.

— Cara, você é difícil de agradar. — Tirei do bolso o pas­saporte, lancei-lhe um rápido olhar para me certificar de que era meu passaporte "Richard Ames", e entreguei-o. — Esti­ve longe durante muitos anos. Se isso me faz parecer uma mi­nhoca, é pena. Mas, por favor, note ande nasci.

Ele olhou e me devolveu o passaporte.

— Muito bem, lunariano, você me enganou. Três de vo­cês, ahn? Por quanto tempo?

— Meus planos ainda não são definitivos. Qual é o perío­do mais curto na escala de residente permanente?

— Um quarto de ano. Oh, mais um desconto de 5% se comprar cinco anos de uma só vez... mas, com a prime rate de hoje a 7,5, é uma mão na roda.

Paguei ar para três adultos durante 90 dias e perguntei o que ele sabia sobre acomodações.

— Tendo ficado fora tanto tempo, não só não tenho com­partimento como não conheço o mercado, e não me agrada­ria dormir na Bottom Alley hoje à noite.

— Você acordaria sem sapatos, a garganta cortada e ratos passeando por cima da cara. Hummm, é uma questão difícil, companheiro. Está vendo esses chapéus vermelhos esquisitos? A maior convenção que L-City já assistiu. Entre a convenção e o Dia da Independência, a cidade está lotada. Mas se você não for biqueiro demais...

— Não somos.

— Poderão conseguir alguma coisa melhor depois do fim de semana, mas enquanto isso, há um motel antigo no nível 6, o Raffles, que fica em frente...

— Sei onde é. Vou ver se me arranjo lá.

— É melhor telefonar antes e dizer que sou eu que estou enviando vocês para lá. Eu sou o Rabi Ezra ben David. O que me lembra, "Ames, Richard". Você é o Richard Ames procura­do por assassinato?

— Não diga!

— Surpreso? É verdade, mesmo, companheiro. Tenho uma cópia do aviso por aqui. — Mexeu nas revistas, notas a lápis e problemas de xadrez. — Aqui está. É procurado no habitat Regra de Ouro... Parece que você esfriou algum cara impor­tante. Pelo menos é o que diz aí.

— Interessante. Há um mandado de prisão para mim aqui?

— Em Luna? Acho que não. Por que haveria? Ainda o mes­mo velho impasse. Nada de relações diplomáticas com o Re­gra de Ouro até que eles se qualifiquem, segundo os termos da Convenção de Oslo. O que não podem fazer sem uma Carta de Direitos. O que não é nada provável.

— Acho que não.

— Ainda assim... se precisar de advogado, venha me pro­curar. Sou isso, também. Estou aqui todos os dias, depois do meio-dia, ou então deixe seu nome no Seymour's Kosher Fish Emporium, em frente à Biblioteca Carnegie. Seymour é meu filho.

— Obrigado. Vou me lembrar. Por falar nisto, quem foi que dizem que matei?

— Não sabe?

— Uma vez que não matei ninguém, como é que posso saber?

— Há lacunas lógicas nisso que não vou examinar. Está dito aqui que sua vítima foi Enrico Schultz. Esse nome lhe refres­ca a memória?

— Enrico Schultz. Acho que nunca ouvi esse nome. Um estranho para mim. A maioria das vítimas de assassinato é mor­ta por amigos ou parentes, não por estranhos. E neste caso, não por mim.

— Entretanto, realmente. Ainda assim os proprietários do Regra de Ouro oferecem uma substancial recompensa por sua morte. Ou, para ser exato, pela sua entrega, vivo ou morto, sem ênfase em você ser entregue vivo — simplesmente seu corpo, companheiro, quente ou frio. Devo observar que, se fos­se seu advogado, eu seria eticamente obrigado a não explorar esta oportunidade?

— Rabi, acho que não faria isso, de qualquer maneira. O senhor é um lunariano típico demais. Está simplesmente ten­tando me fazer contratá-lo. Humm. Quero os Três Dias.

— Três dias, então. Quer recibo oficial ou um vale serve?

— Uma vez que perdi a aparência de lunariano, é melhor os dois.

— Muito bem. Uma coroa ou duas para dar sorte?

O Reverendo Ezra carimbou nossos antebraços com uma data três meses depois e com sua chancela, usando uma tinta à prova d'água, visível apenas em luz negra, e nos demons­trou, usando uma lâmpada de teste, que estávamos marcados e que podíamos legalmente respirar durante um quarto de ano em qualquer lugar na pressurizada L-City — e desfrutar ou­tros privilégios concomitantes, tais como passagem pelos lo­gradouros públicos. Ofereci-lhe três coroas acima do que pa­guei pelo ar. Ele aceitou duas.

Agradeci e desejei-lhe bom-dia e continuamos pelo túnel, todos um pouco desajeitados e sobrecarregados. Cinqüenta me­tros à frente, o túnel desembocou em um corredor principal. Íamos sair e eu conferia a orientação, decidindo se ia para a esquerda ou para a direita, quando ouvi um apito e uma voz de soprano:

— Espere aí! Menos pressa. Inspeção, em primeiro lugar.

Parei e me virei. Ela possuía aquele rosto que diz "funcio­nário público" — e não me pergunte como. Eu simplesmente sei, experiência em três planetas e vários planetóides, e um número ainda maior de habitais, que depois de cumprir certo número de anos a caminho da aposentadoria todos os servi­dores públicos têm aquela aparência. Ela usava um uniforme que nem era policial nem militar.

— Recém-chegados de Kong?

Confirmei que sim.

— Estão juntos, os três? Ponham tudo sobre a mesa. Abram tudo. Frutas, verduras ou alimentos?

— O que quer dizer isso? — perguntei.

— Eu tenho uma barra de chocolate Hershey. Quer um pedaço?

— Acho que isso significa suborno. Claro, por que não?

— Claro que estou tentando suborná-la. Tenho um peque­no jacaré na minha bolsa. Ele nem é fruta nem verdura. Acho que poderia ser comida. De qualquer modo, quase com certe­za é contra suas regras oficiais.

— Espere um minuto. Vou ter que consultar as listas. — A inspetora consultou um volume imenso de folhas soltas, de impressora de terminal. — Jacaré, peles de, secas ou curtidas, jacarés, empalhados... Esse está empalhado?

— Só quando come demais. É muito comilão.

— Queridinha, você está querendo me dizer que tem um jacaré vivo nessa bolsa?

— Ponha a mão dentro dela, mas por sua conta e risco. Ele é treinado como jacaré de guarda. Conte os dedos antes de enfiar a mão e depois quando tirar.

— Você está brincando.

— Quer apostar? E quanto? Mas lembre-se, eu avisei.

— Oh, conversa mole! — A inspetora enfiou a mão na bolsa de Gwen e soltou um uivo ao tirá-la. — Ele me mordeu!

E enfiou os dedos na boca.

— É para isso que ele está aí — lembrou Gwen. — Eu lhe avisei. Machucou muito? Deixe-me ver.

As duas examinaram a mão e chegaram à conclusão de que marcas vermelhas eram toda a extensão do dano.

— Que bom — disse Gwen. — Venho tentando ensinar a ele segurar firme mas não romper a pele. E nunca, nunca, arrancar os dedos. Ele está aprendendo, mas ainda é jovem. Mas você não devia ter podido tirar a mão tão fácil assim. Al­fred deve agarrar como um buldogue, enquanto o alarme do rádio me traz correndo para junto da bolsa.

— Eu não sei nada sobre buldogues, mas ele realmente ten­tou arrancar meu dedo.

— Oh, claro que não! Nunca viu um cachorro?

— Só em carcaça, em mercados de carne. Não, não foi is­so. Vi um deles num zoológico de Tycho quando era menina. Um bicho grande e feio. Fiquei com medo.

— Alguns são pequenos e alguns não são feios. O buldo­gue é feio, mas não muito grande. O buldogue é bom mesmo em agarrar e segurar. É isso que estou treinando Rei Alfredo para fazer.

— Tire-o daí e me mostre.

— De jeito nenhum! Ele é um animal de guarda. Não quero que ninguém o alise ou lhe faça carinhos. Quero que ele mor­da. Se quer vê-lo, enfie a mão e tire-o. Talvez desta vez ele se­gure. Tomara.

Isso acabou com qualquer tentativa de inspeção. Adele Sus­subaum, Servidora Pública Desnecessária Primeira Classe, con­cordou que Árvore-San era verbotem, admirou-a e fez pergun­tas sobre suas flores. Quando ela e Gwen começaram a trocar receitas culinárias, insisti em que tínhamos que nos mandar — se a inspeção sanitária e alfandegária estivesse terminada.

Dirigimo-nos em diagonal para o Círculo Externo. Senti o cheiro da Alameda e me orientei. Descemos um nível, pas­samos pelo Velho Dono e pegamos um túnel onde minha me­mória dizia que devia ficar o Raffles Hotel.

A caminho, porém, Bill me fez conhecer algumas de suas opiniões políticas.

— Senador...

— Não "senador", Bill. "Doutor."

— "Doutor." Sim, senhor, doutor. Acho que é errado o que aconteceu lá pra trás.

— Sim, foi. Essa chamada inspeção é sem sentido. Trata-se do tipo de tarefas caras, inúteis, que os governos se acostu­mam a adquirir ao longo dos anos, tais como cracas em um navio oceânico.

— Oh, não estou falando nisso. Isso está bem. Protege a cidade e dá a ela trabalho honesto.

— Corte essa palavra "honesto".

— Ahn? Eu estava falando sobre cobrar pelo ar. Isso é er­rado. Ar deve ser dado de graça.

— Por que diz isso, Bill? Isto aqui não é Nova Orleans. É a Lua. Não há atmosfera aqui. Se não comprar ar de que modo vai respirar?

— Mas é isso que estou dizendo! Ar para respirar é direi­to de todo mundo. O governo deve fornecer.

— A municipalidade de fato o fornece, a todos os lugares na pressurizada. E foi isso justamente o que pagamos. — Aba­nei o ar em frente ao nariz dele. — Esta coisa.

— Mas é isso que estou dizendo. Ninguém devia ter de pagar pela respiração da vida. É um direito natural e o governo devia dar o ar de graça.

Virei-me para Gwen:

— Espere um pouco, querida, isto tem que ser resolvido. Podemos ter que eliminar Bill apenas para conservá-lo feliz. Vamos ficar aqui mesmo até esclarecermos isto, Bill; eu paguei pelo ar que você respira porque você não tem dinheiro. Correto?

Ele não respondeu logo. Tranqüilamente, Gwen disse:

— Eu dei a ele uns trocados. Você é contra? Fitei-a, pensativo.

— Acho que devia ter sido informado. Meu amor, se vou ser o responsável por esta família, tenho que ser informado do que acontece nela. — Voltei-me para Bill. — Quando pa­guei lá pelo seu ar, por que você não se ofereceu para pagar sua parte com o dinheiro que tem?

— Mas ela me deu o dinheiro. Não foi o senhor.

— E daí? Devolva o dinheiro a ela.

Bill pareceu confuso. Gwen perguntou:

— Richard, isto é necessário?

— Acho que é.

— Mas eu não acho que seja.

Bill ficou calado, nada disse, observando apenas. Dei-lhe as costas para conversar em particular com Gwen e disse bai­xinho, apenas para ela:

— Gwen, preciso de seu apoio.

— Richard, você está provocando uma tempestade em um copo d'água.

— Não vejo a questão dessa maneira, querida. Muito ao contrário, é assunto da mais alta importância e preciso de sua ajuda. De modo que, me apóie ou então...

— Ou então o quê, querido?

— Você sabe o que "o então" significa. Decida-se. Vai me apoiar?

— Richard, isto é ridículo. Não vejo razão para fazer o que você quer.

— Gwen, estou lhe pedindo que me apóie. — Esperei por um tempo interminável e depois soltei um suspiro. — Ou en­tão comece a andar e não olhe para trás.

A cabeça dela sacudiu-se como se eu a tivesse esbofetea­do. Depois, pegou a maleta e começou a andar.

Boquiaberto de espanto durante um instante, Bill come­çou a segui-la apressadamente, ainda levando a Árvore-San.

 

"Mulheres foram feitas para serem amadas, e não compreen­didas."

Oscar Wilde, 1854-1900

 

Observei-os desaparecer e, em seguida, comecei a andar vagarosamente. Era mais fácil andar do que ficar parado, e não havia por ali um lugar onde pudesse sentar. O coto do pé doeu e todo o cansaço dos últimos dias chegou de repente. Tinha a mente embotada. Continuei a caminhar em direção ao Raf­fles Hotel porque estava voltado naquela direção, programado.

O Raffles estava ainda mais andrajoso do que me lembra­va. Mas desconfiei que o rabi Ezra sabia o que estivera dizen­do — aquilo, ou nada. De qualquer modo, eu queria desapa­recer da vista do público. Teria aceito uma estalagem muito mais modesta, enquanto me permitissem ficar atrás de uma porta fechada.

Disse ao empregado da recepção que fora enviado pelo ra­bi Ezra e perguntei o que havia disponível. Acho que ele me ofereceu seu quarto ainda vago mais caro: 18 coroas.

 

Iniciei o ritual de barganha, mas meu coração não estava nela. Concordei com 14 coroas, paguei, recebi a chave. O em­pregado virou um grande livro na minha direção.

— Assine aqui. E mostre, por favor, o recibo de pagamen­to do ar.

— Ahn? Quando foi que começou essa novidade?

— Com o novo governo, meu chapa. Não gosto mais dela do que o senhor, mas faço o que mandam ou fecham a casa.

Pensei no caso. Seria "Richard Ames"? Por que fazer um tira encher a boca d'água pensando no prêmio? Colin Camp­bell? Alguém de boa memória poderia reconhecer o nome — e pensar em Walker Evans.

Escrevi: "Richard Campbell, Novylen."

— Obrigado, gospodin. O quarto L fica ao fim deste cor­redor, à esquerda. Não temos salão de jantar, mas nossa cozi­nha serve nos quartos por elevador interno. Se quiser jantar aqui, por favor, anote que a cozinha fecha às 21h. Exceto nos casos de bebida e gelo, o elevador interno nos quartos fecha também na mesma hora. Mas há um Sloppy Joe em frente à saída do corredor, que fica aberto à noite toda, e a uns 50 me­tros ao norte. Não é permitido preparar comida nos quartos.

— Obrigado.

— Quer companhia? Linha reta, à esquerda, mulheres co­muns, ou versáteis, todas as idades e sexos e que atendem ape­nas à clientela de alta classe.

— Obrigado, mais uma vez. Estou muito cansado.

 

Era um quarto adequado para minhas necessidades. Não me importei com sua pobreza. Havia uma cama de solteiro, um sofá-cama e um refrescador, pequeno, mas com os servi­ços habituais, e nenhuma restrição ao uso de água... Prometi a mim mesmo um banho quente... depois, depois! Um suporte de prateleira no conjugado parecia ter sido reservado para um terminal de comunicação, mas nesse momento encontrava-se vazio. Junto, cravada na rocha, vi uma placa de latão:

 

Neste Quarto, no Dia 14 de Maio de 2075,

Adam Selene, Bernardo de La Paz, Manuel Davis e Wyoming Knott

Formularam o Plano que Deu Origem à Luna Livre.

Aqui Iniciaram Eles a Revolução!

 

Não fiquei impressionado. Sim, esses quatro eram os he­róis da Revolução, mas no ano em que enterrei Colin Camp­bell e criei Richard Ames, eu me hospedara numa dúzia e tanto de quartos de hotel em L-City, a maioria exibindo tabuletas semelhantes. A coisa lembrava cartazes do tipo "Washington Dormiu Aqui" em meu país nativo: engodo para turistas e qual­quer semelhança com a verdade era mera coincidência.

Não que eu me importasse. Tirei o pé fora, deitei-me no sofá e fiz um esforço para esvaziar a mente.

 

Gwen! Oh, droga, droga, droga!

Fora eu acaso um tolo presunçoso? Talvez. Mas, diabos, há um limite. Não me importava em fazer a vontade dela na maioria das coisas. Tudo bem que ela tomasse decisões por nós dois e eu não esperneara quando fizera isso sem me con­sultar. Mas não devia estimular aquele pensionista a me desa­fiar — devia? Eu não poderia tolerar isso. Um homem não po­de viver dessa maneira.

Mas não posso viver sem ela!

Não é verdade, não é verdade! Até esta semana — há pouco mais de três dias — você vivia sem ela... e pode fazer agora a mesma coisa.

Posso passar também sem meu pé faltante. Mas não gos­to de não possuir os dois e nunca me acostumarei à perda. Claro, você pode passar sem Gwen, não vai morrer sem ela — mas reconheça, seu estúpido: nos últimos 30 anos você só foi feliz nesse curto espaço de tempo, as horas em que Gwen chegou e casou com você. Horas cheias de perigo, profunda injustiça, lutas e dificuldades, nada disso importou o míni­mo, você estava borbulhando de felicidade simplesmente por­que a tinha a seu lado.

E, agora, mandou-a embora.

Ponha seu chapéu de burro. Prenda-o com rebites, e nun­ca mais o tire

Mas eu tinha razão!

E daí? O que é que ter razão tem a ver com continuar casado?

 

Devo ter dormido (eu estava mortalmente cansado) e lembro-me de coisas que não aconteceram — isto é, Gwen fo­ra estuprada e morta em Bottom Alley. Mas o estupro é tão raro em Luna City como comum em Los Angeles. O último aconteceu há 80 anos e o minhoca que o cometeu não viveu o suficiente para ser eliminado: os homens que atenderam aos gritos da mulher reduziram-no a picadinho.

Mais tarde descobriu-se que ela gritara porque ele não lhe pagara. Mas isso não fez diferença. Para o lunariano, a puta é tão sagrada em sua pessoa como a Virgem Maria. Sou luna­riano por adoção e concordo com isso do fundo do coração. O único castigo apropriado para o estupro é a morte, imedia­ta, sem apelação.

Antigamente, na Terra, houvera atenuantes legais deno­minados de "irresponsabilidade por desenvolvimento mental incompleto" e "inexculpável por razão de insanidade mental". Conceitos como esses fundiriam a cuca de um lunariano. Em Luna City, um homem teria desenvolvimento mental incom­pleto até mesmo em pensar em estupro, e praticá-lo seria a prova mais forte possível de insanidade — mas entre os luna­rianos essas doenças mentais não despertavam simpatia nenhuma pelo estuprador. Lunarianos não submetem estupra-dores à psicanálise. Matam-nos. Rápido. Na hora. Brutalmente. São Francisco devia aprender com os lunarianos. E todas as cidades onde mulheres não podem andar sozinhas em se­gurança. Em Luna, as mulheres nunca temem os homens, ami­gos, ou estranhos; em Luna, homens não fazem mal a mu­lheres — porque morrem!

 

Eu acordei soluçando incontrolavelmente. Gwen estava morta, fora estuprada e assassinada, e por culpa minha!

Mesmo quando acordei o suficiente para reentrar na mi­nha continuidade temporal, continuei a chorar — sabia que fora apenas um sonho, um horrível pesadelo... mas meus sen­timentos de culpa nem por isso diminuíram. Eu, de fato, não conseguira proteger meu amor. Havia-lhe dito que fosse em­bora... — começasse a andar e não olhasse para trás. Oh, lou­cura insondável.

O que é que posso fazer a esse respeito?

Procurá-la! Talvez ela me perdoe. Mulheres têm aparente­mente capacidade quase ilimitada de perdão. (Desde que, em geral, é o homem que precisa do perdão, isto deve ser um tra­ço racial de sobrevivência.)

Mas, em primeiro lugar, tinha que achá-la.

Senti uma necessidade insuportável de sair e iniciar a busca — saltar em cima de meu cavalo e galopar em todas as dire­ções. Mas este é o exemplo clássico dado em livros de mate­mática sobre como não localizar uma pessoa desaparecida. Não tinha a menor idéia de onde procurá-la, mas, quem sabe, ha­via a possibilidade de que ela estivesse me procurando no Raf­fles — se mudasse de idéia. Se mudasse, eu tinha que estar ali, e não procurando-a ao acaso.

Mas podia melhorar as probabilidades. Ligar para o Daily Lunatic e botar um anúncio — colocar mais de um: na coluna dos classificados, entre vinhetas e — melhor! — numa lenga-lenga comercial que seria exibida em todos os terminais jun­tamente com os noticiários do Lunatíc, de hora em hora.

Se isso não der certo, o que é que você vai fazer?

Oh, cale a boca e escreva logo o anúncio!

 

Gwen, procure-me no Raffles. Richard.

Gwen. Por favor, ligue para mim! Estou no Raffles. Amor, Richard.

Queridíssima Gwen, pelo amor do que tivemos juntos, por favor ligue para mim. Estou no Raffles. Amor, sempre. Richard.

Gwen, eu errei. Dê-me outra chance. Estou no Raffles. To­do meu amor, Richard.

Hesitei, nervoso, e finalmente achei que o número dois era o melhor — mudei de idéia; o número quatro tinha mais apelo. Mudei novamente — a simplicidade do número dois era melhor. Ou mesmo do número um. Oh, diabo, estúpido, sim­plesmente bote um anúncio! Peça a ela para telefonar. Se você tiver alguma possibilidade de trazê-la de volta, ela não vai se incomodar com o fraseado.

Ligar da gerência do hotel? Não, deixe um recado aí, di­zendo a Gwen aonde vai, e por que, quando vai voltar e, por favor, espere... depois corra até a sede do jornal e consiga que o anúncio apareça imediatamente em todos os terminais — e na próxima edição. Depois, volte correndo.

De modo que calcei o pé postiço, escrevi o bilhete para dei­xar na portaria e agarrei a bengala — e aquela sincronização, de fração de segundos, que notei um número excessivo de ve­zes em minha vida, aconteceu novamente: um senso de oportunidade que me leva a pensar, mais do que qualquer outra coisa, que este mundo louco é de certa forma planejado, não um caos.

Uma batida à porta...

Corri para abri-la. Era ela! Aleluia!

Parecia ainda menor do que me lembrava e toda olhos re­dondos e solenes. Trazia o pequeno pé de bordo no vaso, co­mo se fosse uma oferenda de amor — talvez fosse.

— Richard, você deixa que eu volte? Por favor? Acontecendo tudo no mesmo momento, peguei a arvorezinha, coloquei-a no chão, levantei-a no ar, fechei a porta, sentei-a no sofá ao meu lado, ela e eu aos soluços e em lágri­mas, falando, tudo misturado ao mesmo tempo.

Após algum tempo, moderamos o ritmo e eu me calei o suficiente para ouvir o que ela estava dizendo:

— Sinto muito, Richard, eu estava errada. Devia ter apoiado você, mas estava magoada e zangada, e era de um orgulho besta grande demais para ter voltado e lhe dito isso, e, quando fiz isso, você já tinha ido embora e eu não sabia o quê fazer. Oh, Deus, querido, nunca mais deixe que eu deixe você, obrigue-me a ficar! Você é maior do que eu. Se eu ficar zangada nova­mente e tentar ir embora, pegue-me, vire-me de bruços e não deixe que eu vá embora!

— Eu nunca mais deixarei, nunca. Eu errei, querida. Não devia ter criado um caso daquela bobagem. Esta não é a ma­neira de amar e acalentar. Rendo-me, com todas as armas. Fa­ça de Bill um bichinho de estimação, se quiser. Não direi uma única palavra. Vá em frente, mime-o até estragá-lo.

— Não, Richard, não! Eu estava errada. Bill precisava de uma lição rigorosa e eu devia tê-lo apoiado e deixado que vo­cê o endireitasse. Contudo...

Gwen relaxou um pouco, pegou a bolsa e abriu-a. Eu disse:

— Cuidado com o jacaré! Cuidado!

Ela sorriu pela primeira vez.

— Adele engoliu mesmo aquela isca, com anzol, chum­bada e linha.

— Você quer dizer que não há um jacaré aí?

— Deus do céu, querido, você pensa que sou uma excêntrica!

— Oh, Deus nos livre!

— Apenas uma ratoeira e a imaginação dela. Aqui... — Gwen pôs uma maçaroca de dinheiro, papel e metal ao lado, no sofá. — Obriguei Bill a devolver o dinheiro. O que ele ain­da tinha, quero dizer. Devia ter três vezes mais. Receio que Bill seja um desses fracotes que não podem andar com dinheiro sem gastá-lo. Tenho que pensar como espancá-lo até que ele aprenda. Enquanto isso, ele não vai ganhar dinheiro nenhum até que o mereça.

— Logo que ele merecer algum dinheiro, deve me pagar 90 dias de conta de ar — interrompi-a. — Gwen, fiquei real­mente aborrecido com aquilo. Aborrecido com ele, não com você. Com a atitude dele a respeito de pagar pelo ar. Mas sin­to tanto quanto possível que tenha deixado que isso transbor­dasse em cima de você.

— Mas você teve razão, querido. A atitude de Bill sobre o pagamento do ar reflete sua desorientação geral. Foi isso o que descobri. Sentamo-nos no Velho Domo e discutimos um bocado de coisas. Richard, Bill sofre da doença socialista na sua forma mais maligna: acha que o mundo lhe deve o sus­tento. Disse-me com toda sinceridade — contente consigo mes­mo! — que naturalmente todos têm direito aos melhores ser­viços médicos e hospitalares possíveis — gratuitos, naturalmen­te, ilimitados, naturalmente, e, claro, o governo deve pagar tu­do. Ele não consegue nem entender a impossibilidade mate­mática do que exige. Mas não são apenas ar gratuito e trata­mento gratuito. Bill acredita honestamente que tudo o que ele quer deve ser possível... e deve ser gratuito. — Arrepiou-se toda. — Não consegui modificar a opinião dele sobre coisa nenhuma.

— "A Road Song of the Bandar-Log."

— Não entendi!

— De autoria de um poeta velho de dois séculos, Rudyard Kipling. Os bandarlog eram símios, acreditavam que tudo era possível, bastando desejar alguma coisa.

— Isso mesmo, Bill é assim. Com toda seriedade, ele ex­plica como as coisas deviam ser... e em seguida cabe ao go­verno fazer com que aconteçam. Simplesmente baixar uma lei. Richard, ele pensa no "governo" da mesma maneira que um selvagem pensa em ídolos. Oh... Não, não sei, não compreen­do como funciona a mente dele. Conversamos, mas um não alcançou o outro. Ele acredita nos absurdos que diz. Richard, cometemos um erro... ou eu cometi. Não devíamos ter resga­tado Bill.

— Errado, doçura de mulher.

— Não, querido. Pensei que poderia reabilitá-lo. Enga­nei-me.

— Não foi assim que eu quis dizer que você errou. Lembra-se dos ratos?

-Oh.

— Não fique tão infeliz assim. Trouxemos Bill conosco por­que ficamos com medo que, se não trouxéssemos, ele fosse morto, possivelmente comido vivo por ratos. Gwen, nós dois conhecemos os riscos de pegar gatinhos abandonados, nós dois entendemos o conceito de "obrigação chinesa". Mas fizemos isso, de qualquer maneira. — Levantei-lhe o queixo e beijei-a. — E faríamos a mesma coisa novamente, neste exato minuto. Sabendo o preço.

— Oh, eu o amo!

— Eu amo você, também, de maneira suada, vulgar.

— Hummm, agora?

— Preciso de um banho.

— Podemos tomar banho depois.

Eu havia justamente pegado o resto da bagagem de Gwen, temporariamente esquecida do outro lado da porta — e por sorte intacta — e estávamos nos preparando para o banho quando Gwen se curvou sobre a pequena árvore, apanhou-a do chão e colocou-a na mesa-prateleira ao lado do elevador interno de refeições, onde poderia tratá-la melhor.

— Um presente para você, Richard.

— Que bom. Mulheres? Ou bebida?

— Nem uma coisa nem outra. Embora ache que há pron­ta disponibilidade de ambas. O gerente da noite queria uma comissão de meu pagamento quando pedi um quarto para Bill aqui.

— Bill está aqui?

— Para passar a noite, no quarto de solteiro mais barato. Richard, eu não sabia o que fazer com Bill. Eu teria dito a ele para procurar um chefe na Bottom Alley, se não tivesse ouvi­do o que o rabi Ezra falou sobre ratos. Droga, não havia antes ratos aqui. Luna City deve estar se transformando em cortiço.

— Receio que você tenha razão.

— Dei de comer a ele, também. Há um Sloppy Joe nesta rua. Ele come por quatro... talvez você tenha notado.

— Notei.

— Richard, eu não podia abandoná-lo sem alimentá-lo an­tes e lhe dar uma cama segura. Mas amanhã a história é dife­rente. Disse a ele que esperava que se modificasse... antes do café da manhã.

— Hummm. Bill mentiria por um ovo frito. Ele é um caso triste, Gwen, o mais triste de todos.

— Não acho que ele consiga mentir convincentemente. Pelo menos, dei-lhe alguma coisa em que pensar. Sabe que estou zangada com ele, que desprezo as idéias deles e que o almoço gratuito está prestes a fechar as portas. Tomara que isto lhe tenha dado uma noite insone. Aqui, querido... — estivera mexendo na areia do vaso; sob o pequeno bordo. — Para Richard. É melhor levá-los.

Entregou-me seis cartuchos, Skoda 6,5mm, longos ou có­pias muito bem feitas. Peguei um deles e examinei-o.

— Mulher Maravilha, você continua a me deixar pasmo. Onde? Quando? Como?

Os elogios fizeram-na sorrir feliz, e mais.

— Esta manhã. Em Kong. Mercado negro, naturalmente, o que significa simplesmente descobrir em que balcão procu­rar na Sears. Escondi minha Miyako sob a Arvore-San antes de ir às compras, depois guardei a munição aí ao deixar o ho­tel de Xia. Queridíssimo namorado, eu não sabia que tipo de revista poderíamos sofrer se as coisas ficassem pretas em Kong — e ficaram, mas titia deu um jeito.

— Você sabe cozinhar?

— Sou uma cozinheira passável.

— Você pode atirar, pode dirigir um rolador, pode pilotar uma nave espacial, pode cozinhar. Okay, está contratada. Mas tem ainda outras habilidades?

— Bem, um pouco de engenharia. Fui também advogada muito competente. Mas não pratiquei nenhuma dessas pro­fissões ultimamente. — E acrescentou: — E posso cuspir por entre os dentes da frente.

— Supermoça! Você é agora ou já foi membro da raça hu­mana? Cuidado com o que vai responder. Isto constará dos anais.-

— Recuso-me a responder, a conselho de meu advogado. Vamos pedir o jantar antes que fechem a cozinha.

— Pensei que você queria um banho.

— Quero. Estou com coceira. Mas se não pedirmos logo teremos que nos vestir e ir até o Sloppy Joe... Não me impor­to com o Sloppy Joe, mas me importo em ter que me vestir. Esta é a primeira ocasião inteiramente relaxada, tranqüila, que tenho com meu marido desde, oh, eternidades. Em sua suíte no Regra de Ouro antes daquele mandado de despejo idiota.

— Três dias.

— Tão pouco assim? De verdade?

— Oitenta horas. Horas muito ocupadas, isto reconheço.

 

O Raffles tem boa cozinha se a gente segue as sugestões do chef. Naquela noite havia almôndegas com panquecas sue­cas e molho de mel e cerveja — uma combinação estranha mas que funcionava, salada verde com azeite e vinagre de vinho, queijo e morangos frescos. Chá preto.

Apreciamos, mas um sapato velho, devidamente frito, te­ria sido aceitável também, tanto tempo havia passado desde que comêramos algum coisa. Podia até ter sido gambá frito e nem teríamos notado. A companhia de Gwen era todo o mo­lho de que eu necessitava.

Estivéramos comendo feliz por meia hora, sem fazer ten­tativa nenhuma de parecermos elegantes, quando minha que­rida notou a chapa de latão na pedra — estivera ocupada de­mais antes. Compreensível.

Levantou-se, leu a placa e disse em voz sumida:

— O diabo me leve! É este o lugar! Richard, este é o pró­prio berço da Revolução! E eu aqui sentada, arrotando e me coçando; como se este fosse apenas qualquer quarto de hotel.

— Sente-se e termine seu jantar, amor — recomendei. — Três em cada quatro hotéis em Luna têm placas parecidas como essa.

— Não como essa, Richard. Qual é o número deste quarto?

— Não tem. Tem uma letra. Quarto L.

— Quarto L... é isso mesmo! Este é o lugar! Richard, em qualquer nação lá na Terra, um santuário nacional tão impor­tante como este teria uma chama perene. E provavelmente uma guarda de honra. Mas aqui... alguém botou essa pequena placa e ela foi esquecida. Mesmo no Dia de Luna Livre. Mas os lunarianos são assim. O grupo mais esquisito de todo o univer­so conhecido. Pode acreditar em mim!

— Querida moça — observei —, se lhe agrada pensar que este quarto é realmente o que aquela placa diz, ótimo! Enquanto isso, volte a sentar-se e coma. Ou como seus morangos!

Ela não respondeu, mas sentou-se e ficou calada. Ape­nas beliscou a fruta e o queijo. Finalmente, cheguei a uma conclusão:

— Namorada, alguma coisa a está incomodando.

— Não vou morrer disso.

— Que bom saber. Quando tiver vontade de falar, sou to­do ouvidos. Enquanto isso, vou apenas abaná-la com eles. Não se apresse.

— Richard...

A voz dela me pareceu sufocada. Surpreso, vi lágrimas es­correndo silenciosas de cada lado do nariz.

— Sim, querida?

— Eu lhe contei um monte de mentiras. Eu...

— Pare aí mesmo. Meu amor, meu pequenino amor arden­te, sempre acreditei que mulheres podem mentir tanto quan­to precisarem e nunca serem censuradas por isso. Mentiras po­dem ser sua única defesa contra um mundo hostil. Eu não lhe perguntei nada sobre seu passado... perguntei?

— Não, mas...

— Mais uma vez, pare. Não perguntei. Você contou vo­luntariamente algumas coisas. Mas, mesmo assim, eu a fiz calar uma duas vezes quando você estava prestes a sofrer um ata­que de perniciosa autobiografia. Gwen, não me casei com vo­cê por seu dinheiro, por sua origem familiar, sua inteligência ou mesmo pelos seus talentos na cama.

— Nem mesmo por esta última coisa? Você não me dei­xou muita coisa.

— Oh, sim, deixei. Aprecio sua perícia na horizontal e seu entusiasmo. Mas dançarinas de colchão competentes não são raras. Veja Xia, por exemplo. Conjecturo que ela seja não só hábil mas desejosa.

— Provavelmente duas vezes mais hábil que eu, mas o dia­bo me leve se for mais desejosa.

— Você se sai muito bem quando consegue um descanso. Mas não me distraia. Quer saber o que é que a torna tão especial?

— Quero! Bem, acho que quero. Se isto não tiver uma bom­ba escondida.

— Não tem. Amante minha, sua qualidade excepcional e especial é a seguinte: quando você está comigo eu sou feliz.

— Richard!

— Deixe de choramingar. Não posso suportar mulher que tem que lamber as lágrimas do lábio superior.

— Bruto. Eu choro quando tiver droga de vontade... e pre­ciso, desta vez. Richard, eu o amo.

— Eu gosto de você também, cara de macaco. O que eu estava dizendo era que, se seu atual monte de mentiras está começando a aparecer, não se importe em construir outra es­trutura cheia de solenes garantias de que esta é, finalmente, a verdade, toda a verdade, e nada mais que a verdade. Esque­ça. A velha estrutura pode estar puída — mas não me impor­to. Não estou procurando buracos ou incoerências porque não me importo. Quero simplesmente viver com você, segurar sua mão e ouvir você roncar.

— Eu não ronco! Oh... ronco?

— Não sei. Não tivemos sono suficiente nas últimas 80 ho­ras para isto constituir um problema. Pergunte-me dentro de 50 anos. — Estendi a mão por cima da mesa, toquei um bico de seio e vi-o endurecer. — Quero segurar sua mão, es­cutar seus roncos e, ocasionalmente... ou, uma ou duas vezes por mês...

— Uma ou duas vezes por mês!

— Isto é demais? Ela suspirou.

— Acho que devo me contentar com o que conseguir. Ou sair para miar nos telhados.

— Telhados? Que telhados? Eu ia dizer que uma ou duas vezes por mês sairemos para jantar fora, assistir a um show ou dançar numa boate. Comprarei uma flor para você pren­der nos cabelos. Ou mais vezes, se você insistir. Tenciono sustentá-la, meu amor, a despeito desses sacos de ouro que você escondeu em alguma parte. — E acrescentei: — Algum problema, querida? Programa anulado? Por que essa expressão?

— Richard Colin, você é de longe o homem mais exasperante com quem já casei. Ou mesmo dormi.

— Você deixava que eles dormissem?

— Oh, pergunte a sua mãe! Eu não devia tê-lo salvo de Gretchen. "Uma ou duas vezes por mês." Você botou uma casca de banana no meu caminho. E eu caí.

— Madame, não sei do que está falando.

— Sabe muito bem! Você pensa que eu sou uma ninfomaniacazinha suada.

— Você não é tão pequena assim.

— Continue assim. Continue a me encher. Continue e eu acrescento um segundo marido a nosso casamento. Choy-Mu casaria conosco... sei que casaria.

— Choy-Mu é um cara decente, quadrado demais. E te­nho certeza de que casaria com você. Ele não tem a cabeça cheia de terra. Se resolver isso, vou fazer o possível para recebê-lo bem. Embora eu não soubesse que o conhecia tão bem assim. Falou sério nele?

— Não, droga. Nunca tive o hábito de casamento múlti­plo. Agüentar um marido de cada vez já é complexo o sufi­ciente. Certamente que o Capitão Marcy é um rapaz direito, mas jovem demais para mim. Oh, não vou dizer que lhe re­cusaria uma noite de prazer, se ele me pedisse graciosamen­te. Mas seria apenas por divertimento, nada sério.

— Eu também não vou dizer que deva recusar a ele. Bem, avise-me antes, se for conveniente para você, de modo que eu graciosamente finja não notar. Ou servir de reserva. Ou for­necer toalhas. Escolha da dama.

— Richard, você é totalmente demais.

— Quer que eu fique com ciúme? Mas isto é Luna e eu sou lunariano. Só por adoção, mas, apesar disso, lunariano. Nunca uma minhoca batendo com a cabeça em um muro de pedra. — Parei para lhe beijar a mão. — Minha querida aman­te, você é realmente pequena e sem muita massa. Mas seu co­ração é grande. Tal como na multiplicação dos pães e dos pei­xes, você é rica em abundância para tantos maridos e amantes quantos quiser. Sinto-me feliz em ser o primeiro — se sou — entre iguais.

— O que é isso que estou vendo aí? Uma adaga?

— Não, um pingente de gelo.

— É mesmo? Vamos agarrá-lo antes que ele derreta. Conseguimos, mas por um triz. Eu estava cansado. De­pois, perguntei:

— Gwen, por que você está tão séria? Meu desempenho foi tão medíocre assim?

— Não, amor. Mas aquelas mentiras continuam a me in­comodar... E desta vez, por favor, não mude o assunto. Eu sei que a inscrição naquela chapa de bronze ali é correta, porque eu conheci três desses quatro. Conheci-os muito bem. Fui ado­tada por dois deles. Amado, eu sou uma das Mães Fundado­ras do Estado Livre de Luna.

Eu nada disse porque há ocasiões em que nada há que pos­samos dizer. Pouco depois Gwen se contorceu e disse quase com raiva:

— Não me olhe assim! Sei no que é que você está pensan­do: 2076 é uma data um bocado antiga. E é. Mas, se você se vestir, eu o levarei ao Velho Domo e lhe mostrarei minha chan­cela e minhas impressões digitais na Declaração de Indepen­dência. Você pode pensar que não é minha chancela... mas não posso falsificar impressões digitais. Quer ir dar uma olhada?

— Não.

— Por que não? Quer saber qual é a minha idade? Eu nas­ci no dia de Natal de 2063, de modo que tinha 12 anos e meio quando assinei a Declaração. Isso revela minha idade.

— Namorada minha, quando resolvi tornar-me lunariano nativo, ou pelo menos um fac-símile aceitável, estudei a his­tória de Luna a fim de poder me safar bem com minha nova identidade. Não há nenhuma Gwendolyn entre as assinan­tes. Espere um segundo, não estou dizendo que você mentiu... estou dizendo que você devia ter outro nome por essa ocasião.

— Claro que tinha. Hazel. Hazel Meade Davis.

— Hazel. Por casamento, ingressou mais tarde na Turma de Stone. Líder do corpo auxiliar de crianças. Humm, Hazel era ruiva.

— Era sim. Agora posso deixar de tomar essas pílulas no­jentas e permitir que meu cabelo volte à cor natural. A menos que você prefira esta tonalidade.

— A cor do cabelo não tem importância. Mas... Hazel, por que casou comigo?

Ela soltou um suspiro.

— Por amor, querido, e isto é verdade. A fim de ajudá-lo quando você esteve em perigo... E isto também é verdade. Por­que era inevitável e isto também é verdade. Porque está escri­to em livros de história em outro tempo e lugar que Hazel Stone voltou a Luna, casou-se com Richard Ames, conhecido tam­bém como Colin Campbell... e que esse casal resgatou Adam Selene, presidente do Comitê Revolucionário.

— Já escrito, ahn? Predestinado?

— Não inteiramente, bem-amado. Em outros livros de his­tória está escrito que fracassamos... e que morremos tentando.

 

"A idade não pode mirrá-la, nem o costume tornar cediça

Sua variedade infinita; outras mulheres saciam

Os apetites que despertam; ela, porém, torna-os famintos

Onde mais os satisfaz..."

William Shakespeare, 1564-1616

 

Então a menininha disse à 'fessora: "Meu irmão acha que é uma galinha". A professora respondeu: "Oh, Deus do céu! O que é que vocês estão fazendo para ajudar o pobre meni­no?" A menininha respondeu: "Nada. Mamãe diz que a gen­te tá precisando de ovos."

Devemos acaso nos preocupar com as ilusões de uma mu­lher? Se as ilusões a fazem feliz? Teria eu o dever de pegar Gwen pela mão e levá-la a um psicanalista para tentar curá-la?

Diabo, não! Psicanalistas são cegos conduzindo cegos e mesmo o melhor deles opera na base de palpites. Quem con­sulta psicanalistas devia mandar examinar a cabeça.

Exame atento mostrava que Gwen possivelmente tinha mais de 30 anos, provavelmente não chegara ainda aos 40 — mas de modo nenhum chegara aos 50! De modo que, qual era a maneira suave de receber a alegação dela de que nascera há mais de um século?

Todo mundo sabe que nativos de Luna envelhecem mais lentamente que minhocas que cresceram em um campo de uma gravidade. A ilusão de Gwen parecia incluir a idéia de que ela mesma era uma lunariana, em vez de ser a minhoca nativa que alegara antes ser. Mas lunarianos de fato envelhecem, ainda que devagar, e lunarianos de mais de 100 anos (eu conheci vá­rios deles) não parecem apenas ter mais de 30 e tantos; pare­cem velhos.

Teria que fazer um esforço danado para que Gwen pen­sasse que acreditara em tudo o que dissera... embora em na­da acreditasse e dissesse a mim mesmo que isto não tinha im­portância. Conheci certa vez um homem que, embora men­talmente são, casara com uma mulher que acreditava piamen­te em astrologia. Ela vivia obcecando pessoas e lhes pergun­tando sob que signo nasceram. Este tipo de loucura anti-social devia ser de convivência mais difícil do que viver com a man­sa ilusão de Gwen.

Ainda assim, esse homem parecia feliz. A mulher era ex­celente cozinheira, mulher de trato agradável (à parte o bu­raco que tinha na cabeça), e pode ter sido uma artista de cama igual a Rangy Lil. De modo que, por que devia ele se preocu­par com aquela síndrome da mulher? Ela se sentia feliz com a mesma, mesmo que aborrecesse outras pessoas. Acho que ele não se importava em viver em um vácuo intelectual em casa, enquanto nela estivesse fisicamente confortável.

Tendo lavado o lindo peito daquilo que a incomodava, Gwen dormiu imediatamente, o que fiz logo depois durante uma longa, feliz e ininterrupta noite de descanso. Acordei re­cuperado e alegre, pronto para lutar com uma cascavel e dar de quebra as duas primeiras picadas.

Ou pronto para comer uma cascavel. Quando chegasse segunda-feira, teria que procurar novos alojamentos. Em geral saio sem protestos para fazer as demais refeições, mas o café da manhã deve ser tomado antes que um homem enfrente o mundo. Esta não é a única razão para casar, mas é boa. Claro, há outras maneiras de resolver o problema do des­jejum em casa, mas casar e convencer a esposa a preparar o dito cujo é, acho, a estratégia mais comum.

Depois, acordei inteiramente e dei-me conta de que po­díamos tomar o desjejum ali mesmo. Podíamos mesmo? A que horas começava a funcionar a cozinha? Que horas eram? Verifiquei o aviso colocado no elevador interno de refeições e fiquei deprimido.

Escovara os dentes, calçara o pé e estava vestindo as cal­ças (pensando ao mesmo tempo que precisava comprar roupas naquele dia, uma vez que aquelas estavam alcançando massa crítica) quando Gwen acordou.

Abriu um olho.

— A gente se conhece?

— Nós, de Boston, não consideraríamos isto como uma apresentação formal, mas estou disposto a lhe pagar, de qual­quer maneira, o desjejum. Você foi bem ardente. O que é que vai ser? Este pulgueiro oferece uma coisa chamada "café com­plet", uma promessa pouco inspiradora, na melhor das hipó­teses. Ou você pode se vestir e irmos lentamente fazer uma visita a Sloppy Joe.

— Volte para a cama.

— Mulher, você está tentando receber meu seguro de vi­da. Sloppy Joe? Ou peço para você uma xícara de Nescafé mor­no, croissant passado e um copo de suco sintético de laranja como luxuoso desjejum na cama?

— Você me prometeu waffles todas as manhãs. Você pro­meteu. Prometeu.

— Prometi. No Sloppy Joe. É para lá que vou. Vem comi­go? Ou peço para você a especialidade da casa aqui no Raffles?

Gwen continuou a resmungar e a gemer, a me acusar de cri­mes impublicáveis e me desafiar a voltar e a morrer como um homem, ao mesmo tempo em que rápida e eficientemente se levantava, refrescava-se para o dia, e vestia-se. Acabou pare­cendo novinha em folha, em vez de ter passado três dias dentro da mesma roupa. Bem, nós dois tínhamos roupas de bai­xo novinhas em folha, banhos quentes recentes, e mentes e unhas putativamente limpas... Mas ela parecia fresca como uma caixa de chapéu novo, enquanto eu parecia o porco que vaga­rosamente se afasta. O que era azar dela e nenhum meu. Era maravilhoso acordar e ver Gwen. Eu me sentia borbulhante­mente feliz.

Ao deixarmos o quarto L, ela me tomou o braço e apertou-o.

— Moço, obrigada por ter-me convidado para um café.

— Quando quiser, mocinha. Em que quarto está o Bill? Ela ficou séria imediatamente.

— Richard, eu não queria que você enfrentasse o Bill até que tivesse tomado o desjejum? Não será melhor?

— Ahn... oh, diabo, eu não gosto de esperar pelo café e não vejo nada a ganhar fazendo com que Bill espere pelo dele. Nós não temos que olhar para ele. Pego uma mesa para dois e Bill pode comer no balcão.

— Richard, você é um boboca de coração mole. Adoro você.

— Não me chame de boboca de coração mole, sua boboca de coração mole. Quem foi que gastou uma fortuna com ele?

— Eu gastei, foi um erro, tomei-a de volta e isto não vai acontecer novamente.

— Você tomou parte do dinheiro.

— Tomei o que ele ainda tinha, e deixe de me acusar por isso, por favor. Fui uma idiota, Richard. Certa demais.

— Então, vamos esquecer isso. É este o quarto dele? Bill não estava. Uma pergunta na recepção confirmou o

que a batida à porta mostrara ser provável: Bill saíra meia ho­ra mais cedo. Acho que Gwen ficou aliviada. Eu sei que fiquei. Nossa criança-problema se transformara em uma forte dor em um lugar sensível. Eu tinha que me lembrar que ele salvara titia para conseguir ver alguma coisa boa nele.

Minutos depois, entramos no Sloppy Joe local. Eu olhava em volta à procura de uma mesa para dois quando Gwen me apertou o braço. Ergui os olhos e olhei para onde ela estava olhando.

Bill estava no caixa, pagando a conta. E fazendo isso com uma nota de 25 coroas.

Esperamos. Quando ele se virou e nos viu — pareceu dis­posto a correr. Mas não havia por onde correr, exceto por ci­ma de nós.

Levamos Bill para fora sem nenhuma cena. No corredor, Gwen fitou-o, seu rosto frio de repugnância.

— Bill, onde foi que você arranjou esse dinheiro? Ele olhou para ela e desviou a vista.

— É meu.

— Oh, besteira. Você saiu do Regra de Ouro sem um tos­tão no bolso. O dinheiro que você tem fui eu que dei. Você me mentiu na noite passada... você me escondeu coisas.

Com uma aparência de bronca obstinação, Bill ficou calado. De modo que eu disse:

— Bill, volte para seu quarto. Depois de tomarmos nosso desjejum iremos conversar com você lá. E extrairemos a ver­dade de você.

Ele me fitou com uma raiva mal controlada.

— Senador, isto não é de sua conta!

— Isso veremos. Volte ao Raffles. Venha, Gwen.

— Mas eu quero que Bill devolva meu dinheiro. Agora!

— Depois do café. Desta vez deixe que eu faça a coisa à minha maneira. Você vem?

Gwen calou-se e voltamos ao restaurante. Cuidei para não falarmos sobre Bill. Alguns assuntos coalham os sucos gás­tricos.

Uns 30 minutos depois, perguntei:

— Outro waffle, querida?

— Não, obrigada, Richard, já estou satisfeita. Eles não são tão bons como os seus.

— Isso é porque eu sou um gênio nato. Vamos terminar aqui, voltar ao hotel e cuidar de Bill. Vamos esfolá-lo vivo ou simplesmente empalá-lo em uma estaca?

— Eu estava pensando em interrogá-lo na roda. Richard, a vida perdeu alguns de seus encantos quando drogas de ver­dade substituíram as torqueses para dedos e os ferros em brasa.

— Minha amada, você é um horrorzinho sedento de san­gue. Mais café?

— Você disse isso apenas para me lisonjear. Não, obrigada. Quando voltamos ao Raffles, fomos ao quarto de Bill, não

conseguimos despertar-lhe a atenção e voltamos à portaria. O misantropo que me recebera na véspera estava novamente de serviço. Perguntei:

— Viu por acaso William Johnson, quarto KK?

— Vi. Há uns 30 minutos ele recebeu o depósito que fez pela chave e foi embora.

— Mas eu comprei aquela chave! — exclamou Gwen, um tanto estridentemente.

O recepcionista permaneceu impassível.

— Gospazha, sei que a senhora fez isso. Mas nós devol­vemos o depósito com a devolução da chave. Não tem impor­tância quem alugou o quarto. — Estendeu a mão para o qua­dro de escaninhos e tirou a chave-cartão KK. — O depósito mal paga a mudança do código magnético, se alguém deixa de devolver a chave... e não paga pelo aborrecimento. Se a se­nhora perdesse o cartão no corredor e alguém o apanhasse e o entregasse, nós devolveríamos o depósito... e a senhora teria de fazer um segundo depósito para entrar no quarto.

Segurei firme Gwen pelos ombros.

— Bastante justo. Se ele aparecer, avise-nos, sim? Quarto L. Ele olhou para Gwen.

— Não quer o quarto KK?

— Não.

Ele voltou a atenção para mim:

— O senhor está no quarto L pela taxa de solteiro. Por ocu­pação dupla nós cobramos mais.

Subitamente, enchi. De toda aquela merda, toda a descon­sideração, todas as besteiras pequeninas que eu podia agüentar. — Tente me arrancar mais uma única coroa e eu o arrasto até a Bottom Alley, desatarraxo sua cabeça. Venha comigo, querida.

Eu estava ainda uma fera quando abri a porta do quarto e entramos.

— Gwen, vamos embora de Luna. O lugar mudou. Para pior.

— Para onde você quer ir, Richard? — Ela parecia, pelo tom da voz, também aflita.

— Ahn.... eu optaria por emigrar para fora de todo o Sis­tema... Botany Bay, ou Próxima, ou coisas assim... se eu fosse mais jovem e tivesse duas pernas. — Suspirei. — Às vezes eu me sinto como órfão de mãe.

— Amor meu...

— Assim, querida?

— Eu estou aqui e quero ser sua mãe. Eu vou aonde você for. Segui-lo-ei até os confins da galáxia. Mas não quero ir em­bora de Luna ainda... se você puder me fazer esta vontade. Podemos sair agora e procurar outro lugar para morar. Se não encontrarmos — o rabi Ezra talvez tenha razão —, não pode­ríamos tolerar aquele porteiro mal-humorado até segunda-feira? Nessa ocasião certamente arranjaremos lugar.

Concentrei-me em diminuir as batidas do coração, e consegui.

— Certo, Gwen. Podemos sair à procura de um lugar pa­ra morar após o fim de semana, depois que os Shriners forem embora, se não pudermos encontrar imediatamente um lugar conveniente. Eu não me importaria com aquele idiota da por­taria, se tivéssemos certeza de arranjar um cubículo decente depois do fim de semana.

— Sim, senhor. Posso lhe dizer agora por que preciso fi­car em Luna City durante algum tempo?

— Ahn? Sim, certamente. Na verdade eu devia me fixar em algum lugar por algum tempo, também. Escrever alguma coisa, ganhar algum dinheiro para compensar as pesadas des­pesas desta semana.

— Richard, eu já tentei lhe dizer. Não há motivo para preo­cupações financeiras.

— Gwen, sempre há preocupações financeiras. Eu não vou gastar sua poupança. Chame isto de comportamento macho, se quiser, mas eu tenciono sustentá-la.

— Tudo bem, Richard. Obrigada. Mas você não precisa se sentir pressionado pelo tempo. Posso levantar rapidamente qualquer importância que precisarmos.

— É mesmo? Essa declaração é muito ambiciosa.

— E a intenção foi essa, Sr. Richard, eu deixei de lhe mentir. Chegou agora a ocasião de você conhecer grandes blocos de verdade.

Com ambas as mãos, fiz um gesto de pouco caso.

— Gwen, eu já não deixei claro que não me importo com as mentiras que me contou, sobre sua idade ou sobre o que você foi? Isto é um novo começo, para você e para mim.

— Richard, pare de me tratar como se eu fosse uma criança!

— Gwen, não estou tratando-o como se você fosse uma criança. Estou dizendo que a aceito como você é. Hoje. Neste momento. Seu passado é problema seu.

Ela me fitou, triste.

— Querido, você não acredita que eu seja Hazel Stone, não é?

Tempo de mentir! Mas a mentira não vale nada se não é aceita (a menos que seja contada para ser desacreditada, o que não se aplicava neste caso). Em vez disso, era tempo de fazer a dança do leque.

— Amor meu, estou tentando lhe dizer que não me im­porto se você é ou não Hazel Stone. Ou Sadie Lipschitz. Ou Pocanhontas. Você é a minha esposa bem-amada. Não tolde­mos este fato dourado com irrelevâncias.

— Richard, Richard! Escute. Deixe que eu fale. — Suspi­rou. — Ou então...

— Ou então?

— Você sabe o que "ou então" significa. Você o usou contra mim. Se você me escutar, tenho que voltar a eles e comu­nicar que fracassei.

— Voltar para onde? Comunicar a quem? Fracassou no quê?

— Se você não quiser me escutar, não tem importância.

— Você me disse para não deixar você ir embora!

— Eu não vou deixá-lo. Irei só dar um recado rápido e volto correndo para você. Ou você me dará prazer indo comigo... Oh, como eu gostaria que fosse. Mas tenho que comunicar meu fracasso e exonerar-me de minha função... Depois, ficarei li­vre para acompanhá-lo até os confins do universo. Mas tenho que pedir baixa, não simplesmente desertar. Você é soldado e compreende isso.

— Você é soldado?

— Não, exatamente. Agente.

— Hummm... agente provocateuse?

— Quase. — Sorriu ironicamente. — Agente amoreuse, tal­vez. Embora não tivesse ordens de me apaixonar por você. Apenas casar. Mas eu me apaixonei, Richard, e isto pode ter me arruinado como agente. Você vem comigo enquanto eu fa­ço meu relatório? Por favor?

Eu estava ficando confuso a cada minuto.

— Gwen, estou ficando confuso a cada minuto.

— Neste caso, por que não deixa que eu explique?

— Hummm... Gwen, isso não pode ser explicado. Você diz que é Hazel Stone.

— Sou.

— Droga, eu sei contar, Hazel Stone, se ainda estiver vi­va, tem mais de um século.

— Exatamente. Eu tenho mais de 100 anos. — Sorriu. — Roubei o berço, meu querido.

— Oh, pelo amor de Deus! Escute, querida, passei as úl­timas cinco noites na cama com você. Você é uma velhota ex­cepcionalmente ardente.

Ela me sorriu, alegre.

— Obrigada, querido. Devo tudo isso ao Composto Vege­tal Lydia Pinkham.

— Deve, hem? Uma panacéia comercial tirou o cálcio de suas juntas e colocou-o de volta nos ossos, passou a ferro as rugas, restabeleceu o belo equilíbrio hormonal, desentupiu suas artérias? Peça um barril disso para mim. Estou pifando.

— A Sra. Pinkham teve aconselhamento de especialista, Richard. Se você apenas me permitisse provar quem sou, pe­la minha impressão digital na Declaração de Independência, sua mente se abriria então à verdade, estranha como ela seja. Eu gostaria de poder oferecer-lhe identificação por padrão re­tinal... mas minhas retinas não haviam sido fotografadas na­quela época. Mas há a impressão digital. E identificação de tipo sangüíneo, também.

Comecei a entrar em pânico: o que faria Gwen quando essa ilusão caísse por terra?

Nesse momento, porém, lembrei-me de uma coisa.

— Gwen, Gretchen mencionou Hazel Stone.

— Mencionou, sim. Gretchen é minha tataraneta, Richard. Casei com Slim Lemke, da Quadrilha Stone, no meu 14º ani­versário, e tive meu primeiro filho com ele no equinócio de ou­tono na Terra, no ano 2078 — um menino. Dei-lhe o nome de Roger, em homenagem a meu pai. Em 2080 nasceu minha pri­meira filha...

— Pare aí. Sua filha mais velha era estudante em Percival Lowell quando comandei aquela operação de resgate. Ou foi isso o que você disse.

— Parte daquele monte de mentiras, Richard. Eu, de fato, tinha uma descendente ali — uma neta que fazia parte do cor­po docente. De modo que lhe estou realmente grata. Mas tive que ajustar os detalhes para combinar com minha aparente ida­de. Minha primeira filha chamou-se Ingrid, em homenagem à mãe de Slim... e Ingrid Henderson recebeu o nome por causa da avó... minha filha, Ingrid Stone. Richard, você não pode imaginar como foi difícil para mim na ocasião encontrar na Pressurizada Ossos Secos, pela primeira vez, cinco de meus descendentes e não poder reconhecê-los publicamente.

Fez uma pequena pausa antes de continuar:

— Mas não posso ser vovó Hazel quando estou sendo Gwen Novak. De modo que não reconheci... e essa não foi a primeira vez que isso me aconteceu. Tive muitos filhos — 44 anos, da primeira menstruação à menopausa, e dei a luz a 16 crianças por quatro maridos e três estranhos, de pas­sagem — e assumi o nome de Stone de volta quando morreu meu quarto marido. Porque passei a morar com meu filho Roger Stone.

E continuou:

— Criei quatro dos filhos que Roger teve com a segunda esposa — ela é médica e precisava de uma avó residente. Ca­sei três deles; todos, menos o mais novo, que hoje é o cirurgião-chefe do Ceres General, e que talvez nunca case uma vez que é bonitão, muito egocêntrico e acredita naquela velha histó­ria: "Por que ser dono de uma vaca?"

Olhou-me, antes de continuar:

— Depois, comecei a tomar aquele composto vegetal e aqui estou, fecunda novamente e pronta para criar outra família. — Sorriu e deu uma palmadinha na barriga. —Vamos voltar para a cama.

— Droga, mulher. Isso não vai resolver nada!

— Não, mas é uma maneira agradável de passar o tempo. E às vezes suspende aquele sangramento periódico. O que me lembra de uma coisa... se Gretchen voltar a aparecer, não vou interferir pela segunda vez. Eu simplesmente não achei graça em ver minha tataraneta se metendo em nossa lua-de-mel — já perturbada por gente demais e agitação demais.

— Gretchen é apenas uma criança.

— Você acha? Ela é fisicamente tão madura como eu era aos 14 anos... quando me casei e engravidei imediatamente. Virgem no casamento, Richard. Isto acontece mais aqui do que em qualquer outro lugar. Mama Mimi era rigorosa e Mama Wyoh era encarregada de me vigiar, mas eu não era incli­nada a me desencaminhar, uma vez que a família Davis era socialmente tão importante como se podia ser em Luna City naqueles dias, e eu gostava de ter sido adotada por ela. Ama­do, não vou lhe contar mais nada até que você verifique mi­nha chancela e impressão digital na Declaração. Estou sentin­do sua incredulidade... e isso me humilha.

(O que é que se faz quando a esposa insiste? O casamen­to é a maior das artes humanas... quando funciona.)

— Amor, não quero humilhá-la. Mas não sou competente para comparar impressões digitais. Mas há mais de uma ma­neira de desmascarar um mentiroso. Essa segunda mulher de seu filho Roger: ela vive ainda?

— Está vivinha da Silva. Dra. Edith Stone.

— Então há, provavelmente, aqui mesmo em Luna City, um registro do casamento dela com seu filho... Ele é o Roger Sto­ne que foi certa vez prefeito?

— Ele mesmo. De 2122 a 2130. Mas não está disponível. Deixou Luna em 2148.

— Onde está ele agora?

— A vários anos-luz de distância. Edith e Roger emigra­ram. Ninguém daquele ramo de minha família está mais aqui. Não vai dar certo, querido... Você está procurando alguém que possa me identificar como Hazel Stone, não é?

— Bem... é... Pensei que a Dra. Edith Stone seria uma es­pecialista e testemunha imparcial.

— Bem... ela ainda pode ser.

— Como?

— Determinação do grupo sangüíneo, Richard.

— Escute, Gwen, determinação de grupo sangüíneo é as­sunto sobre o qual tive que aprender alguma coisa, devido à possibilidade de cirurgia em campo de batalha. Providenciei para que todos os homens de meu regimento tivessem o gru­po sangüíneo determinado. A determinação pode mostrar o que a pessoa não é. Não o que é. Até mesmo em um número tão pequeno como um regimento, até mesmo um raro AB ne­gativo pode ser encontrado mais de uma vez: aparecer um em cada 200. Lembro-me porque sou um deles.

Ela inclinou a cabeça, concordando:

— E eu sou O positivo, o tipo mais comum de todos. Mas isso não é toda a história. Se você faz a determinação no to­cante a todos os 30 grupos sangüíneos, um tipo é tão excep­cional e único como uma impressão digital ou padrão retinal. Richard, durante a Revolução, um bocado de gente mor­reu porque o grupo sangüíneo deles não fora determinado. Oh, sabíamos como fazer transfusões, mas doadores seguros só podiam se encontrados por determinação cruzada, uma vez ou outra. Sem a determinação prévia, isto era freqüentemen­te feito com grandes demoras. Muitos — não, a maioria — dos nossos feridos que precisaram de sangue morreram porque um doador não pôde ser identificado a tempo. Após a paz e a independência, mamãe Wyoh — Wyoming Knott Davis, o hos­pital em Kong — lembra-se?

— Sim.

— Mamãe Wyoh fora uma mãe-hospedeira profissional, em Kong, e sabia dessas coisas. Iniciou o primeiro banco de sangue com dinheiro levantado pelo Major Watenabe, outro dos Fundadores. Pode haver ainda hoje meio litro de meu san­gue congelado em Kong... mas o certo é que uma determina­ção de grupo sangüíneo completa de meu sangue está arqui­vada aqui, porque Edith providenciou para que todos nós fi­zéssemos isso, todos os grupos conhecidos, antes de come­çarmos a Wanderjahr em 2148.

Gwen sorriu feliz.

— De modo que, pegue uma amostra de meu sangue, Ri­chard. Mande determinar-lhe o grupo no Centro Médico de Galileo Univerity. Peça um exame completo. Eu pago por ele. Compare-o com a determinação feita em 2148, arquivada no Wyoming Knott Memorial. Qualquer pessoa que consiga ler inglês lhe dirá se os dois combinam. Não é preciso o tipo de conhecimentos especializados necessários para comparar im­pressões digitais. Se a comparação não disser que eu sou eu, então peça uma camisa-de-força e é tempo de mandar me re­colher a um hospital de alienados.

— Gwen, nós não vamos voltar a Kong. Por nada neste mundo.

— Nem precisamos. Pedimos ao banco de sangue de Galileo uma transcrição enviada de Kong, impressa em terminal.

— O rosto dela anuviou-se. — Mas isso acabará com minha cobertura como Sra. Novak. Logo que esses registros forem postos lado a lado, todos saberão que vovó Hazel voltou à ce­na de seus crimes. Não sei o que isso fará com minha missão. Isto não devia acontecer. Mas sei, de fato, que convencê-lo é absolutamente essencial para a missão.

— Gwen, suponha que me convenceu.

— Realmente, querido? Você não me mentiria?

(Mentir eu mentiria, amorzinho meu. Mas tenho que re­conhecer que suas palavras são convincentes. Tudo o que vo­cê disse combina com meus cuidadosos estudos da história lunariana... e você fala com detalhes, como se estivesse esta­do presente. Tudo isso é convincente, menos a impossibilida­de física — você é jovem, querida, e não uma velha coroa de mais de um século.)

— Doçura, você me deu duas maneiras positivas de identificá-la. Assim, vamos supor que conferi uma outra, ou as duas. Vamos estipular que você é Hazel. Prefere ser cha­mada de Hazel?

— Atendo a ambos os nomes, querido. Como você quiser.

— A coisa pega é na sua aparência. Se você fosse velha e seca, em vez de jovem e suculenta...

— Está se queixando?

— Não. Estou sendo meramente descritivo. Admitindo que você é Hazel Stone, nascida em 2063, de que modo expli­ca sua aparência juvenil? E não me venha com conversa fiada sobre o lendário remédio comercial,

— Você vai achar a verdade difícil de acreditar, Richard. Passei por um processo de rejuvenescimento. Duas vezes, pa­ra ser exata. A primeira vez para me levar à aparência de fins de meia-idade... ao mesmo tempo restaurando minha econo­mia corporal a uma jovem maturidade. A segunda vez foi principalmente cosmética, para me dar uma aparência desejável. A fim de recrutá-lo, senhor.

— O diabo me leve. Cara de macaco, é essa sua cara?

— É, mas pode ser mudada, se quer que eu tenha outra aparência.

— Oh, não. Eu não sou de insistir em beleza, enquanto o coração da mulher continuar puro.

— Oh, seu ordinário!

— Mas desde que seu coração não é tão puro assim, é bom que você seja bonita.

— Você não pode se safar tão facilmente assim pelo que disse!

— Muito bem, você é deslumbrante, sexy e perversa. Mas "rejuvenescimento" explica sem explicar. Tanto quanto ouvi di­zer, rejuvenescimento funciona no caso de platelmintos, mas não em coisa alguma mais alta na escala evolutiva.

— Richard, esta parte você terá que aceitar em confiança — pelo menos por ora. Fui rejuvenescida em uma clínica si­tuada a uns 2.000 anos de distância e em uma estranha di­reção.

— Humm. Isto parece um macete que eu podia ter bola­do quando estava escrevendo ficção.

— Sim, de fato parece, não? Não é convincente. É mera­mente verdade.

— De modo que não vejo maneira de investigar isso. Tal­vez eu tenha que pedir aquela transcrição de tipo sangüíneo. Ahn... Hazel Stone, Roger Stone... O Flagelo das Rotas Espaciais!

— Meu Deus, o passado se emparelhou comigo! Richard, você assistiu à minha novela?

— Todos os capítulos, a menos que houvesse sido flagra­do fazendo alguma coisa que exigia castigo drástico. O Capi­tão John Sterling foi o herói de minha infância. E foi você que a escreveu?

— Meu filho Roger começou-a. Passei a escrevê-la em 2148, mas não botei meu nome na novela senão no ano seguinte — nessa ocasião ela passou a ser "Roger e Hazel Stone..."

— Lembro-me! Mas não me lembro de Roger Stone jamais a ter escrito sozinho.

— Oh, não, ele escreveu.. até que se cansou da rotina. Pe­guei onde ele a deixou, tencionando acabar com o espetáculo...

— Amor de minha vida, você não pode acabar com uma novela. É inconstitucional.

— Eu sei. De qualquer modo, pegaram a opção e me ofe­receram dinheiro demais. E precisávamos do dinheiro. Está­vamos vivendo no espaço nesta ocasião e uma nave espacial, mesmo pequena, improvisada, é muito cara.

— Eu nunca tive coragem de escrever uma novela com obri­gação de cumprir prazos. Oh, escrevi episódios por encomen­da, usando uma sinopse da novela, mas não independente­mente e com meu próprio nome.

— Nós não usávamos sinopse. Buster e eu bolávamos os capítulos enquanto os escrevíamos.

— Buster?

— Meu neto. O que hoje é cirurgião-chefe no Ceres Ge­neral. Durante 11 anos nós a escrevemos juntos, frustrando o Suserano Galático em todas as tramas...

— "O Suserano Galático!" O melhor vilão dos filmes de terror. Querida, eu gostaria que houvesse realmente um Su­serano Galático.

— Ora, seu presunçoso e insignificante escritor, como ou­sa você levantar dúvidas sobre a autenticidade do Suserano Galático? O que é que você sabe sobre isso?

— Desculpe. Perdão. Ele é tão real como Luna City. Ou John Sterling não teria a quem frustrar... e eu acredito piamente no Capitão John Sterling, da Patrulha Estelar.

— Isso é melhor.

— Naquela ocasião em que o Capitão Sterling estava per­dido na nebulosa Cabeça de Cavalo, com os vermes de radia­ção em seu encalço, como foi que ele escapou? Aquela foi uma das vezes em que eu estava sendo castigado e não pude assis­tir à televisão.

— Segundo me lembro... Note, isso aconteceu há muitos anos. Parece que ele "engatilhou" o radar Doppler para fritá-los como feixes polarizados.

— Não, isso foi o que ele usou contra as entidades es­paciais.

— Richard, tem certeza? Não acho que ele tenha encon­trado entidades espaciais senão depois de ter escapado da ne­bulosa Cabeça de Cavalo. Quando ele teve que fazer uma tré­gua temporária com o Suserano Galático para salvar a galáxia.

— Pensei nisso. Que idade tinha eu naquele tempo? Que ano na escola?

— Meu docinho, penso que você tem razão. Fiquei preo­cupado, pensando que ele se aliaria ao Suserano, mesmo que para salvar a galáxia. Eu...

— Mas ele teve que se aliar, Richard! Ele não podia deixar que bilhões de pessoas inocentes morressem apenas para não sujar as mãos cooperando com o Suserano. Mas entendo seu argumento. Buster e eu discutimos muito sobre esse episódio.., Buster queria aproveitar a trégua temporária para liquidar o Suserano logo que as entidades espaciais fossem destruídas...

— Não, o Capitão Sterling nunca faltaria à sua palavra.

— É verdade. Mas Buster sempre foi o pragmático. Sua so­lução para quase todos os problemas era cortar a garganta de alguém.

— Bem, é um argumento convincente — reconheci.

— Mas, Richard, a gente tem que ir devagar nesse negó­cio de matar personagens numa novela. A gente tem que dei­xar alguém para o capítulo seguinte. Mas você me disse que nunca escreveu uma novela sob seu próprio nome.

— Não escrevi, mas sei disso. Vi um bocado de novelas naqueles tempo. Hazel, por que você me deixou lhe dizer tanta besteira sobre a vida de escritor?

— Você me chamou "Hazel".

— Doçura — Hazel, minha querida —, eu não estou inte­ressado em grupos sangüíneos ou em impressões digitais. Você é inegavelmente a autora da maior novela de horror de toda a história: O Flagelo das Rotas Espaciais. Era isso o que di­ziam os créditos, semana após semana, ano após ano: "Escri­to por Hazel Stone." Depois, melancolicamente, começou a di­zer: "Baseado em personagens criados por Hazel Stone..."

— Foi mesmo? Esses últimos créditos deviam ter incluído Roger. Foi ele quem criou a novela. E não eu. Esses safados.

— Não teve importância. Porque os personagens ficaram anêmicos e morreram. Sem você, a novela nunca mais foi a mesma.

— Eu tive que parar, Buster cresceu. Eu fornecia a trama; ele fornecia o sangue. Às vezes, meu coração amolecia. O de Buster, nunca.

— Hazel! Por que não ressuscitamos a novela? Nós bola­ríamos a coisa juntos. Você a escreveria. Eu faria a cozinha e a faxina da casa. — Parei e olhei-a. — Por que, em nome de Deus, você está chorando?

— Eu choro, se quero! Você me chamou "Hazel" ... você acredita em mim!

— Tenho que acreditar. Qualquer pessoa poderia me en­ganar nessa história de grupos sangüíneos e impressões digi­tais. Mas não em ficção comercial. Não este velho escriba. Você é o verdadeiro McCoy, meu amor, o autêntico flagelo das ro­tas espaciais. Mas também minha ninfomaniacazinha suada... Acho que não me importo de você ter uns dois séculos de idade.

— Não tenho dois séculos! E não vou ter ainda por mui­tos anos e anos.

— Mas ainda é minha ninfomaniacazinha suada.

— Se você deixar. Sorri alegre para ela.

— Eu tenho alguma voz neste assunto? Tire as roupas e vamos bolar alguma coisa.

— Bolar?

— Toda a melhor literatura é escrita com os testículos, Ha­zel, minha ardente mulher... você não sabia disso? Posições de combate! Lá vem o Suserano Galático!

— Oh, Richard.

 

"Quando a opção é entre bondade e honestidade, meu voto é pela bondade, sempre — dando ou recebendo. "

Ira Johnson, 1854-1941

 

— Hazel, meu velho amor...

— Richard, gostaria de um abraço quebrado?

— Não acho que, neste momento, você tenha forças para fazer isso.

— Quer apostar?

— Ouch! Pare com isso! Não faça isso novamente... ou jo­go você no riacho e caso com Gretchen. Ela não é velha..

— Continue a me provocar. Meu terceiro marido era um provocador. Todo mundo notou como ele estava bem no en­terro dele... e que pena que tenha morrido tão moço. — Hazel-Gwen me sorriu. — Mas ele tinha muito seguro de vida, o que consola uma viúva. Casar com Gretchen é uma boa idéia, que­rido. Eu gostaria de criá-la. Ensinar a ela a atirar, ajudá-la no primeiro filho, mostrar-lhe como manejar uma faca, treinar com ela artes marciais, todas as graças domésticas que uma moça precisa neste mundo moderno.

— Hummmph! Minha querida menina, você é tão peque­nina, engraçadinha, bonitinha e inofensiva como uma cobra coral. Acho que Jinx já treinou Gretchen.

— É mais provável que tenha sido Ingrid. Mas ainda pos­so dar um polimento nela. Conforme você observou, sou ex­periente. Qual foi a palavra que usou? "Velha", foi isso.

— Ouch!

Oh, isso não doeu. Frouxo.

— O diabo que não doeu. Vou entrar num mosteiro.

— Não, até que você tenha entrado em Gretchen. Acabei de decidir, Richard: vamos casar com Gretchen.

Tratei essa declaração ridícula com o desprezo que ela me­recia — levantei-me e fui saltitando para o refrescador.

Pouco depois, ela veio atrás de mim. Afastei-me, aco­vardado.

— Socorro! Não me bata de novo!

— Oh, medroso! Eu não o mordi nem uma vez ainda.

— Entrego-me. Você não é velha, apenas bem marinada. Hazel meu amor, o que é que a faz tão violenta?

— Eu não sou. Mas quando a mulher é pequena como eu, se não defender seus direitos, será com certeza maltratada por homens grandalhões, cabeludos, fedorentos, com ilusões so­bre superioridade masculina. Deixe de ganir, querido. Eu não o machuquei, nem uma vez ainda. Não tirei sangue... tirei?

— Estou com medo de olhar. Mamãe nunca me avisou que a vida de casado podia ser assim! Querida, você ia me dizer por que tinha que me recrutar, e para que fim quando nos distraímos.

Ela demorou a responder.

— Richard, você teve problema para acreditar que tenho duas vezes sua idade.

— Você me convenceu. Não entendi, mas vim a aceitar.

— Você vai achar que outras coisas que tenho que lhe di­zer são muito mais difíceis de aceitar. Muito mais!

— Neste caso provavelmente não as aceitarei. Hazel-Gwen, doçura, eu sou duro de roer. Não acredito em mesas falantes, em astrologia, nem em nascimento imaculado...

— Nascimento imaculado não é difícil.

— Quero dizer, no sentido teológico. Não estou falando em laboratórios de genética — nascimento imaculado, nume­rologia, inferno literal, magia, feitiçaria e promessas de cam­panha de políticos. Diga-me alguma coisa que seja contrária ao bom senso. Vou ser tão difícil de convencer como a respei­to de sua antiga idade. E vai precisar do Suserano Galático co­mo testemunha para confirmar tudo.

— Tudo bem. Experimente esta para ver se dá: de um pon­to de vista sou ainda mais velha do que você suspeita. Mais de dois séculos.

— Agüente aí. Você só vai ter 200 anos no Dia de Natal de 2263. E faltam ainda muitos anos, como você mesma disse.

— É verdade. Eu não lhe falei a respeito de anos extras, embora eu os tenha vivido também... porque os vivi em ân­gulos retos.

Respondi:

— Querida, a trilha de áudio emudeceu de repente.

— Mas, Richard, esta é fácil de acreditar. Onde foi que dei­xei minhas calcinhas?

— Na maior parte do Sistema Solar, segundo suas memó­rias.

— Isso não é nem metade da coisa, moço. Tanto dentro como fora do Sistema, e mesmo fora deste universo... E, irmão, eu transgredi novamente! Quero dizer, onde foi que as deixei hoje?

— Ao pé da cama, acho. Doçura, por que se incomoda em vestir calcinhas quando as está tirando com tanta freqüência?

— Porque apenas piranhas andam por aí sem calcinhas... e apreciaria se você observasse bem o que diz.

— Eu não disse nada.

— Eu ouvi o que você estava pensando.

— E eu também não acredito em telepatia.

— Não acredita, hem? Meu neto, Dr. Lowell Stone, conhe­cido também como Buster, costumava roubar no xadrez lendo minha mente. Graças a Deus ele perdeu essa habilidade quan­do chegou aos 10 anos.

— Anotado — respondi — como boato a respeito de fato altamente improvável, veiculado por uma repórter cuja vera­cidade não foi comprovada. A confiabilidade do alegado da­do, por conseguinte, não é maior que C-Cinco, de acordo com a escala militar de classificação de informações.

— Você vai pagar por isso!

— Então você mesmo a classifique na escala — retruquei. — Você trabalhou em informações e contra-informações mili­tares. CIA, não foi?

— Quem foi que disse isso?

— Você disse. Através de várias observações incompletas.

— Não foi a CIA, nunca estive em McLean em toda mi­nha vida, e usava disfarce completo quando estive lá, e não era eu. Era o Suserano Galático.

— E eu sou o Capitão John Sterling. Gwen-Hazel ficou arregalada.

— Poxa, capitão, podia me dar seu autógrafo? Melhor me dar dois: posso trocar dois seus por um de Rosie, a Robô. Ri­chard, nós vamos passar por perto da agência central dos Cor­reios?

— Vou ter que. Tenho que arranjar um lançamento de cor­respondência para o padre Sultz. Por que, querida?

— Se passarmos pela Macy's vou mandar embrulhar as roupas e a peruca de Naomi e enviá-las pelo correio. Elas es­tão pesando na minha consciência.

— Pesando no quê?

— No sistema de contabilidade que uso em lugar dela. Ri­chard, você me lembra cada vez mais meu terceiro marido. Ele era um tipo bonitão, assim como você. Tomava grande cuida­do consigo mesmo e morreu em perfeita saúde.

— De que foi que ele morreu?

— De uma terça-feira, segundo me lembro. Ou foi de uma quarta? De qualquer modo, eu não estava lá... estava muito longe, enroscada com um bom homem. Nunca soubemos o que acabou com ele. Aparentemente, desmaiou no banho e a cabeça ficou embaixo d'água. O que é que você está res­mungando, Richard? "Charlotte" quem?

— Nada, nada, absolutamente, Hazel... eu não tenho se­guro de vida.

— Neste caso temos que tomar cuidado extra para mantê-lo vivo. Deixe de tomar banho!

— Se eu fizer isso, dentro de três ou quatro semanas você vai se arrepender.

— Oh, eu deixo de tomar também, e os cheiros se cance­lam. Richard, temos tempo hoje para ir ao Complexo Executivo?

— Talvez. Por quê?

— Procurar Adam Selene.

— Ele está enterrado lá?

— Isso é uma coisa que vou ter que descobrir. Richard, seu acreditador está em boa forma?

— Sobrecarregado. Vários anos em ângulos retos, realmen­te! Quer comprar uma dobra espacial?

— Obrigada. Eu tenho uma delas. Em minha bolsa. Esses anos extras são apenas uma questão de geometria, meu mari­do. Se você está apegado à imagem convencional de espaço-tempo, com apenas um eixo temporal, então, claro, vai achar difícil compreender isso. Mas há pelo menos três eixos temporais, da mesma maneira que há pelo menos três eixos espaciais... e eu vivi esses anos extras em outros eixos. Tudo claro agora?

— Inteiramente claro, meu amor. Tão axiomático como o transcendentalismo.

— Eu sabia que você compreenderia. O caso de Adam Se­lene é mais difícil. Quando eu tinha 12 anos de idade, ouvi-o falar muitas vezes. Ele era o líder inspirador que mantinha coesa nossa Revolução. Depois, foi morto — ou foi isso o que se in­formou. Só muitos anos mais tarde Mama Yoh contou-me, como o mais profundo segredo, que Adam não era um homem. Não era absolutamente um ser humano. Era um tipo de entidade.

Com todo cuidado possível, fiquei calado.

Gwen-Hazel perguntou:

— Bem, não tem nada a dizer?

— Oh, claro. Não era humano. Era um ádvena. Pele ver­de, um metro de altura e seu disco voador aterrou no Maré Crisium, do lado de fora de Luna City. Onde estava o Suserano Galático?

— Você pode me confundir falando dessa maneira, por­que sei como uma história assim inacreditável afeta uma pes­soa. Senti os mesmos tipos de dúvida quando Mama Wyoh me contou. Exceto que tive que acreditar nela porque mamãe Wyoh nunca me mentiria. Mas Adam não era um ádvena, Ri­chard. Ele era filho da humanidade. Mas não uma criança hu­mana. Adam Selene era um computador. Ou um complexo de programas em um computador. Mas era um computador autoprogramável, o que é a mesma coisa. Bem, senhor?

Não tive pressa em responder:

— Gosto mais de disco voador.

— Oh, besteira! Estou tentada em trocar você por Marcy Choy-Mu.

— É a coisa mais sabida que você poderia fazer.

— Não, vou ficar com você. Estou acostumada a suas ex­centricidades. Mas posso guardá-lo em uma gaiola.

— Hazel, escute com atenção — comecei, sério. — Com­putadores não pensam. Calculam com grande velocidade, de acordo com regras que são embutidas neles. Desde que nós mesmos calculamos usando nosso cérebro para pensar, esta capacidade embutida de calcular dá a alguns computadores a aparência de que podem pensar. Mas eles não pensam. Ope­ram da maneira como o fazem porque têm que agir assim. Fo­ram construídos dessa maneira. Você pode acrescentar "ani­mismo" à lista de idéias absurdas que não aceito.

— Que bom você pensar assim, Richard, porque esta mis­são será delicada e difícil. Preciso de seu sadio cepticismo pa­ra me manter sensata.

— Vou ter que botar isso no papel e estudá-lo cuidadosa­mente.

— Faça isso, Richard. Agora, foi isto o que aconteceu em 2075 ou 6: um de meus pais adotivos, Manuel Garcia, era o técnico que cuidava do grande computador do Executivo. Es­se computador único fazia quase tudo... administrava todos os serviços de utilidade pública desta cidade e a maioria dos outros povoados — exceto Kong —, dirigia a primeira catapul­ta, controlava os tubos, cuidava dos negócios bancários, im­primia o Lunatic... fazia praticamente tudo. O Executivo achou que era mais barato expandir as funções desse único grande computador do que espalhar computadores por toda Luna.

— Nem eficiente nem seguro.

— Provavelmente, mas foi assim que fizeram. Na época, Luna era uma prisão. Não tinha nem que ser eficiente nem segura. Não havia indústria de alta tecnologia aqui e naque­les dias tínhamos que aceitar o que nos davam. Como quer que seja, querido, esse único computador-mestre ficou cada vez maior.... e acordou.

(Acordou, hem? Pura fantasia, minha doçura... e clichê que tem sido usado por todos os autores de obras de fantasia na história. Até mesmo o Cabeça de Bronze de Roger Bacon era uma versão disso. O monstro de Frankenstein, outra. Depois, grande número de outras histórias, e elas continuam a surgir. E, todas elas, absurdos.) Mas o que eu disse foi:

— Continue, querida. E o que foi que aconteceu?

— Richard, você não acredita em mim.

— Eu pensava que havíamos resolvido isso. Você disse que precisava de meu sadio cepticismo.

— E necessito! De modo que, use-o. Critique! Não fique simplesmente aí com esse ar de gato que comeu o canário. Es­se computador estivera operando com voz durante anos — aceitando programas falados, respondendo com fala sintetizada, material impresso, ou as duas coisas.

— Funções embutidas. Técnicas de mais de dois séculos.

— Por que foi que você fechou a cara quando eu disse "acordou'?

— Porque isso é absurdo, meu amor. Acordar e dormir são funções de seres vivos. Uma máquina, por mais poderosa e flexível seja, nem acorda nem vai dormir. É uma questão de energia ligada e desligada, só.

— Muito bem, deixe-me refrasear a coisa. Esse computa­dor tornou-se autoconsciente e adquiriu livre-arbítrio.

— Interessante. Se é verdade, não tenho que acreditar nis­so. Não acredito.

— Richard, eu me recuso a entrar em desespero. Você é simplesmente jovem e ignorante, e isto não é culpa sua.

— Sim, vovó. Eu sou jovem e você é ignorante. Bundinha escorregadia.

— Tire essas mãos libidinosas de cima de mim e ouça. O que é que explica a autoconsciência no homem?

— Ahn? Não tenho necessidade de explicá-la. Eu a expe­rimento.

— Verdade. Mas esta não é uma pergunta trivial, senhor. Vamos tratá-la como um problema-limite. Você é autoconscien­te? Eu sou?

— Bem, eu sou, cara de macaco. Não tenho certeza a seu respeito.

— O mesmo, vice-versa.

— Isso é engraçado, também.

— Richard, vamos continuar no assunto. O esperma em um corpo masculino é autoconsciente?

— Tomara que não.

— Ou o óvulo na mulher?

— Essa pergunta quem pode responder é você, beleza. Nunca fui mulher.

— Você está evitando responder às perguntas apenas para me atazanar. O espermatozóide não é autoconsciente nem também o óvulo — e não me venha com observações idiotas. Esse é um dos limites. Eu, um zigoto humano adulto, sou au­toconsciente. E você, também, por mais obscuramente isso seja verdade no caso de homens. Segundo limite. Muito bem, Ri­chard, em que ponto a partir do óvulo recém-fecundado até o zigoto maduro ora chamado "Richard" surgiu a autoconsciência? Responda-me. Não evite a pergunta e, por favor, na­da de observações idiotas.

Eu ainda pensava que era uma pergunta idiota, mas me esforcei para dar uma resposta séria.

— Muito bem. Eu sempre fui autoconsciente.

— Uma resposta séria, por favor.

— Gwen-Hazel, essa resposta é tão séria quanto a posso dar. Tanto quanto sei, tenho vivido sempre e autoconsciente o tempo todo. Toda essa conversa sobre coisas que acontece­ram antes de 2133 — o alegado ano de meu alegado nascimento — é puro boato e não muito convincente. Continuo com a pi­lhéria, mas para evitar incomodar pessoas ou ficar com apa­rência esquisita. E quando ouço astrônomos falarem da cria­ção do mundo em uma grande explosão há oito ou 16, ou 30 bilhões de anos antes de eu ter nascido — se eu nasci, não me lembro disso —, isto é uma grande piada. Se eu não estava vivo há 16 bilhões de anos, então não havia absolutamente na­da. Nem mesmo espaço vazio. Nada. Zero sem nenhuma mol­dura em volta. O universo onde existo não pode existir sem mim. De modo que é tolo falar sobre a data em que me tornei autoconsciente. O tempo começou quando eu comecei. Tudo claro? Ou quer que eu lhe desenhe um diagrama?

— Tudo claro, na maioria dos pontos, Richard. Mas você está enganado na data. O tempo não começou em 2133. Co­meçou em 2063. A menos que um de nós dois seja um golem.

Todas as vezes em que tento um silipsismo, uma coisa co­mo essa acontece.

— Doçura, você é bonitinha. Mas é uma criação de minha imaginação. Ouch! Eu lhe disse para parar com isso.

— Você tem uma imaginação muito viva, querido. Obri­gado por ter me imaginado. Quer outra prova? Até agora, es­tive apenas brincando... quebro agora um de seus ossos? Ape­nas um pequenininho. Você escolhe qual.

— Escute, criação minha. Quebre um de meus ossos e vai se arrepender pelo próximo bilhão de anos.

— Apenas como uma demonstração lógica, Richard. Ne­nhuma maldade nisso.

— E logo que eu reduzir a fratura...

— Oh, eu a reduzirei para você, querido.

— Nem por sombras! Logo que a tenha reduzido, telefo­no para Xia, peço a ela para vir, casar-se comigo e me prote­ger de pequenas criações com hábitos violentos.

— Você vai se divorciar de mim? Mais uma vez ela era olhos só.

— Diabos, não! Simplesmente rebaixo você a esposa jú­nior e boto Xia no comando. Mas você não pode ir embora. Permissão negada. Você está cumprindo uma pena de prisão perpétua, seja diretamente para a frente ou em ângulos retos. Vou arranjar um cacete e bater até que você desista desses seus hábitos perversos.

— Tudo bem, enquanto eu não tiver que ir embora.

— Ouch! E não morda. Isso é indelicado.

— Richard, se eu sou apenas criação de sua imaginação, então o fato de eu mordê-lo é apenas uma idéia sua, pratica­da por você contra si mesmo por alguma tenebrosa razão ma­soquista. Se isso não é verdade, então eu tenho que ser auto-consciente... e não criação sua.

— Essa lógica de e/ou nunca provou coisa nenhuma. Mas você é uma deliciosa criação, querida. Estou satisfeito por ter pensado você.

— Obrigado, senhor. Amor, vou fazer agora uma pergun­ta decisiva. Se respondê-la seriamente, deixo de mordê-lo.

— Para sempre?

— Hummm...

— Não se esforce demais, criação minha. Se tem uma per­gunta séria, vou procurar dar-lhe uma resposta séria.

— Sim, senhor. O que explica a autoconsciência no homem e o que há nessa condição, processo, ou o que quer que torna a consciência impossível a uma máquina? Especificamente, a um computador. Em particular, o computador gigante que ad­ministrava este planeta em 2076. O Holmes IV.

Resisti à tentação de dar uma resposta petulante. Autocons­ciência? Sei que uma escola de psicólogos insiste que a cons­ciência, se existe, está presente apenas como um passageiro, não como um efeito sobre o comportamento.

Este tipo de absurdo pode ser metido no mesmo saco que a transubstanciação. Se verdadeira, não pode ser provada.

Estou consciente de minha própria autoconsciência... e isto é o máximo até onde vai meu solipsismo honesto.

— Gwen-Hazel, não sei.

— Ótimo! Estamos progredindo.

— Estamos?

— Estamos, Richard. A parte mais difícil em aceitar qual­quer nova idéia consiste em varrer a idéia falsa que ocupava esse lugar. Enquanto esse lugar estiver ocupado, nem evidên­cia, nem prova nem demonstração lógica, conseguirão coisa nenhuma. Mas logo que o espaço é esvaziado da idéia errô­nea que o preenchia — logo que podemos dizer honestamen­te "Não sei" —, então torna-se possível chegar à verdade.

— Meu docinho, você não é só a criação mais bonitinha que jamais imaginei, mas também a mais esperta.

— Acabe com isso, meu chapa. Escute esta teoria. E pen­se nela como hipótese de trabalho, não como verdade revela­da por Deus. Ela foi bolada pelo meu pai adotivo, papai Mannie, a fim de explicar o fato observado de que esse computa­dor ganhara vida. Talvez ela explique tudo, talvez não... Ma­ma Wyoh disse que papai Mannie nunca teve certeza. Agora, preste atenção... Um óvulo humano fecundado se divide... e divide-se novamente. E mais uma vez. E mais e mais vezes.

Em algum ponto do caminho — não sei quando — essa cole­ção de milhões de células vivas torna-se consciente de si mes­ma e do mundo em volta. E ela continuou:

— Um óvulo fecundado não é consciente, mas um bebê é. Depois que papai Mannie descobriu que seu computador era autoconsciente, notou também que ele, que fora expandi­do absurdamente à medida que mais e mais missões lhe eram designadas, chegara a um ponto de complicação tal que pos­suía mais interconexões do que um cérebro humano.

Gwen fez uma pequena pausa antes de prosseguir:

— Papai Mannie deu um grande salto teórico. Quando o número de interconexões em um computador torna-se da mes­ma ordem que o número das que existem em um cérebro hu­mano, esse computador pode acordar e tornar-se conciente de si mesmo... e provavelmente fará isso. Ele não tinha certeza se isso sempre acontecia, mas convenceu-se de que podia acon­tecer, e por essa razão: o alto número de interconexões.

Mas ela advertiu:

— Richard, papai Mannie nunca levou mais longe sua teo­ria. Ele não era um cientista teórico, mas um técnico em con­sertos. Mas a maneira como seu computador se comportava aborrecia-o. Fez um grande esforço para descobrir por que ele estava se conduzindo de modo tão estranho. Desse trabalho resultou esta teoria. Mas você não precisa prestar atenção a ela. Papai Mannie nunca a submeteu à experimentação.

— Hazel, que modo estranho era esse?

— Oh, Mama Wyoh me disse que a primeira coisa que Ma­nuel notou foi que Mike — o computador, quero dizer —, Mi-ke adquirira senso de humor.

— Oh, não.

— Oh, sim. Mama Wyoh me disse que para Mike — ou Michelle — ou Adam Selene — ele usava todos os três nomes, ele era uma trindade — para Mike, toda a Revolução Lunariana, na qual milhares morreram aqui e centenas de milhares morreram na Terra, era uma piada. Era simplesmente uma pia­da de mau gosto, pensada por um computador com um po­der cerebral de supergênio e um senso de humor infantil. — A careta que Hazel fizera transformou-se em sorriso. — Ape­nas uma criança grandalhona, volumosa, excessivamente cres­cente, adorável, que devia ter levado um pontapé.

— Você faz com que isso pareça um prazer. Dar um chute nele.

— Faço? Talvez eu não deva. Afinal de contas um com­putador não podia, em hipótese alguma, praticar o bem ou o mal ou experimentar o bem ou o mal no sentido humano. Não teria meio formativo para isso — nenhuma criação domés­tica, se quiser. Mama Wyoh me disse que o comportamento humano de Mike era expressado através de imitação — ele pos­suía incontáveis modelos de papéis na vida, lera tudo, incluin­do ficção. Mas sua única emoção real, toda sua, era profunda solidão e um grande desejo por companhia. Isto é o que nos­sa Revolução foi para Mike: companhia... um jogo... uma brin­cadeira que lhe ganhou a atenção do Professor, de Wyoh e es­pecialmente de Mannie. Richard, se uma máquina pode ter emoções, aquele computador amava meu papai Mannie. Bem, senhor?

Senti vontade de dizer "besteira" ou alguma coisa ainda menos polida.

— Hazel, você está exigindo a crua verdade de mim — e ela vai machucar seus sentimentos. Tudo isso me parece fic­ção. Se não ficção de sua autoria, então de sua mãe de cria­ção, Wyoming Knott. — E acrescentei: — Amor meu, vamos fazer o que temos que fazer? Ou passar o dia inteiro falando sobre uma teoria sobre a qual nenhum de nós tem prova?

— Estou vestida e pronta para sair, querido. Apenas mais uma palavra, e me calo. Você acha esta história inacreditável.

— De fato, acho — respondi tão sem emoção quanto possível.

— Que parte dela é inacreditável?

— Toda ela.

— É mesmo? Ou a dificuldade é a idéia de que um com­putador pode ser autoconsciente? Se aceitar isso, o resto da história torna-se mais fácil de engolir?

(Fiz um esforço para ser honesto. Se esse absurdo não me causasse náuseas, o resto seria aceitável? Oh, certamente! Tal como os óculos de ouro de Joseph Smith, tais como as Tábuas da Lei entregues a Moisés no monte, tal como o deslocamento para o vermelho devido à grande explosão — aceite o postula­do e o resto desce fácil.)

— Hazel-Gwen, se supormos um computador autocons­ciente com emoções e livre-arbítrio, não recuso mais nada — de fantasmas a homenzinhos verdes. O que foi que a Rainha Vermelha fez? Acreditar em sete coisas impossíveis antes do café da manhã.

— A Rainha Branca.

— Não, a Rainha Vermelha.

— Tem certeza, Richard? Isso aconteceu pouco antes de...

— Esqueça. Peças de xadrez que falam são ainda mais di­fíceis de engolir que um computador piadista. Amor, a única prova que você oferece é uma história que lhe foi contada por sua mãe de criação em sua velhice. Só isso. Hummm, senil, talvez?

— Não, senhor. Moribunda, mas não senil. Câncer. Cau­sado por exposição a uma tempestade solar quando era mui­to jovem. Ou pelo menos era isso o que ela pensava. Contou-me isso quando sabia que ia morrer... porque pensava que a história não seria perdida inteiramente.

— Está percebendo a fraqueza da história, querida? Uma história contada no leito de morte. Nenhum outro dado.

— Não exatamente, Richard.

— Ahn?

— Meu pai adotivo Manuel Davis confirma-a e acrescenta mais alguma coisa.

— Mas... você sempre falou a respeito dele no tempo pas­sado do verbo. Acho que falou. E ele teria... que idade? Mais velho do que você.

— Ele nasceu em 2040, de modo que teria agora um sécu­lo e meio... o que não é impossível para um lunariano. Mas ele é tanto mais velho quanto mais moço do que isso... pelas mesmas razões que eu, Richard. Se você falasse com Manuel Davis e ele confirmasse o que lhe disse, você acreditaria nele?

— Hummmm... — sorri alegre para ela. — Você pode me forçar a trazer para a questão o sólido bom senso da ignorân­cia e do preconceito.

— Topo o que você disse! Calce seu pé, querido, por fa­vor. Quero sair e lhe arranjar pelo menos um traje novo antes de começarmos a nos movimentar. Suas calças têm manchas em cima das manchas. Não estou sendo uma boa esposa.

— Sim, madame. Imediatamente, madame. Onde está ago­ra seu papai Mannie?

— Você não vai acreditar nisto.

— Se não implicar tempo em ângulo reto e computadores solitários, acreditarei.

— Eu acho... não verifiquei ultimamente... acho que pa­pai Mannie está com seu tio Jock em Iowa.

Parei com o pé na mão.

— Você tem razão. Não acredito.

 

"A patifaria tem limites; a estupidez, não. "

Napoleão Bonaparte, 1769-1821

 

Como é que se pode argumentar com uma mulher que não quer argumentar? Esperei que Gwen começasse a justifi­car sua absurda alegação, citando capítulo e verso a fim de me convencer. Em vez disso, ela se limitou a dizer tristemente:

— Eu sabia que isso era tudo o que podia esperar. Vou ter simplesmente que esperar. Richard, temos algumas outras pa­radas a fazer, além do Macy e da sede dos Correios, antes de podermos ir ao Complexo Executivo?

— Eu preciso abrir uma nova conta corrente e em seguida transferir minha atual conta do Regra de Ouro. Meus troca­dos estão se tornando escassos. Anêmicos.

— Mas, paixão, tentei lhe dizer: dinheiro não é problema. — Abriu a bolsa, sacou uma maçaroca de dinheiro, e come­çou a tirar notas de 100 coroas. — Estou trabalhando com uma verba de representação, claro.

Estendeu-me o dinheiro.

— Calma, aí! — retruquei. — Guarde seus tostões, meni­ninha. Eu resolvi sustentar você. E não vice-versa.

Esperei uma resposta incluindo "macho" ou "porco chau­vinista" ou, pelo menos, "isto é propriedade comum". Em vez disso, ela me flanqueou:

— Richard? Sua conta bancária no Regra de Ouro... É uma conta numerada? Se não, sob que nome?

— Ahn? Não. "Richard Ames", naturalmente.

— Você não acha que isso poderia interessar ao Sr. Sethos?

— Oh, nosso bondoso senhorio. Meu docinho, é bom que você esteja aqui para pensar por mim. — Uma pista levando diretamente a mim, tão clara como pegadas na neve... para que os capangas de Sethos a seguissem, a fim de cobrar o prê­mio por minha carcaça: vivo ou morto. Claro, todas as contas bancárias são confidenciais, e não apenas as numeradas, mas "confidenciais" significa apenas que são precisos dinheiro ou poder para quebrar as regras. E Sethos possuía ambos. — Gwen, vamos voltar lá e colocar novamente uma armadilha antipessoal no ar condicionado dele. Mas desta vez usaremos ácido prússico em vez de queijo Limburger.

— Ótimo!

— Como eu gostaria que pudéssemos. Você tem razão, não podemos tocar naquela conta corrente de "Richard Ames" en­quanto estiver hasteado o aviso de tempestade. Usaremos seu dinheiro... Considere isto como um empréstimo. Anote tudo...

— Anote você! Droga, Richard, eu sou sua esposa!

— A gente briga sobre isso depois. Deixe a peruca e a roupa de gueixa aqui. Não vamos ter muito tempo hoje... desde que tenho que procurar primeiro o rabi Ezra. A menos que você queira fazer suas coisas enquanto eu faço as minhas...

— Meu chapa, está com febre? Não vou deixar você fora de minhas vistas.

— Obrigado, mãe. Essa é a resposta que eu queria. Vamos ver o rabi Ezra, depois iremos caçar computadores vivos. Se sobrar tempo, faremos as outras coisas quando voltarmos.

Não sendo ainda meio-dia, procuramos o rabi Ezra ben David na peixaria de seu filho, que fica em frente à biblio­teca pública. O rabi morava em um quarto nos fundos da pei­xaria. Concordou em ser meu advogado e servir como ende­reço secreto de correspondência. Expliquei-lhe minhas com­binações paralelas com o padre Schultz e depois escrevi uma nota para ele, que devia ser enviada a "Henrietta van Loon".

Reb Ezra recebeu-a.

— Vou enviá-la imediatamente do terminal de meu filho. Deve ser impressa pelo computador no Regra de Ouro dentro de 10 minutos, a partir de agora. Expressa?

(Chamar a atenção para a mensagem? Ou aceitar serviço mais lento? Alguma coisa estava acontecendo no Regra de Ouro. Hendrik Schultz poderia ter algumas respostas.)

— Expressa, por favor.

— Muito bem. Com licença, só alguns minutos. — Saiu do quarto na cadeira de roda e voltou rápido. — O Regra de Ouro acusou o recebimento. Agora, a respeito de outros as­suntos... estava à sua espera, Dr. Ames. Aquele jovem que es­tava com o senhor ontem... Ele é membro de sua família? Ou empregado de confiança?

— Nem uma coisa nem outra.

— Interessante. O senhor mandou que ele perguntasse quem estava oferecendo um prêmio pela sua cabeça e qual o valor do prêmio?

— Certamente que não! Disse a ele alguma coisa?

— Meu querido senhor! O senhor pediu os tradicionais Três Dias.

— Obrigado, senhor.

— De nada. Desde que ele teve o trabalho de me procurar aqui, em vez de esperar por meu horário comercial, supus que havia alguma urgência. Uma vez que o senhor não o mencionou, concluí que a urgência era dele, não sua. Agora presu­mo, a menos que o senhor me desminta, que ele não tem boas intenções a seu respeito.

Dei ao rabi uma versão condensada de nossas relações com Bill. Ele inclinou a cabeça e disse:

— Conhece as observações de Mark Twain a respeito des­ses assuntos?

— Acho que não.

— Ele disse que se você pega na rua um cão perdido, alimenta-o e cuida dele, ele não o morderá. Esta, na opinião dele, é a principal diferença entre um homem e um cão. Não concordo inteiramente com Twain. Mas ele tem um bom ar­gumento aí.

Pedi-lhe que fixasse um honorário inicial, paguei sem dis­cutir muito, e acrescentei um pouco mais para dar sorte.

O Complexo do Executivo (oficialmente "Centro de Ad­ministração'', nome encontrado apenas em material impresso) situa-se a oeste de Luna City, a meio caminho do Mare Cri­sium. Chegamos lá por volta do meio-dia. Aquele metrô, em­bora não fosse balístico, era bem rápido. Logo que tomamos o carro, chegamos ao nosso destino em 20 minutos.

O meio-dia, porém, era o tempo errado de chegar. O Com­plexo é constituído de repartições do governo e todas fe­cham para uma descansada hora de almoço. O almoço, aliás, pareceu-me uma boa idéia: o desjejum já era coisa de passa­do remoto. Nos túneis do complexo havia numerosos restau­rantes... todas as cadeiras ocupadas pelas largas envergadu­ras de servidores públicos ou turistas coroados com aquele fez vermelho. Gente fazia fila em frente ao Sloppy Joe, o Mom's e o Antoine's II.

— Hazel, estou vendo máquinas de vender ali à frente. Pos­so interessá-la em uma Coca quente e num sanduíche frio?

— Não, senhor, o senhor não pode. Há um terminal pú­blico do outro lado das máquinas de vender comida. Vou fa­zer umas chamadas enquanto você almoça.

— Não estou com tanta fome assim. Que chamadas?

— Xia. E Ingrid. Quero ter certeza de que Gretchen vol­tou para casa em segurança. Ela pode ter sido atacada de em­boscada, como nós fomos. Eu devia ter ligado na noite passada.

— Apenas para dissipar suas preocupações: ou Gretchen chegou à casa na noite de anteontem... ou é tarde demais e ela está morta.

— Richard!

— É isso o que a preocupa, não? Telefone para Ingrid. Gretchen atendeu e soltou um grito agudo quando viu

Gwen-Hazel:

— Mamãe! Venha depressa! É a Sra. Durona!

Vinte minutos depois, desligamos. Tudo o que se conse­guiu foi dizer aos Henderson que estávamos no Raffles e que nosso endereço de correspondência passava pelo rabi Ezra. Mas as moças gostaram de se visitar eletronicamente e uma garan­tiu à outra que o faria pessoalmente antes de muito tempo. Trocaram beijinhos pelo terminal — na minha opinião um des­perdício de tecnologia. E de beijos.

Tentamos em seguida ligar para Xia... e surgiu na tela um homem que não reconheci. Não era o recepcionista do turno do dia.

— O que é que o senhor quer? — perguntou ele. Hazel respondeu:

— Eu gostaria de falar com Xia, por favor.

— Não está. Este hotel foi fechado pelo Departamento de Saúde Pública.

— Oh! Pode me informar onde ela se encontra?

— Tente a Chefia de Segurança Pública. E o rosto apagou-se.

Hazel virou-se para mim, os olhos cheios de preocupação.

— Richard, isto não pode estar certo. O hotel de Xia é tão escrupulosamente limpo como ela.

— Estou vendo um padrão nisso — retruquei, sombriamen­te —, e você também. Deixe-me tentar.

— Tomei o lugar dela, pedi o código e liguei para o gabinete do principal tira, HKL. Uma velha sargenta de serviço respondeu. Comecei:

— Gospazha, estou tentando entrar em contato com uma cidadã chamada Dong Xia. Fui informado...

— Isso mesmo. Fechei-a aqui — respondeu ela. — Mas saiu sob fiança há uma hora. Não está mais aqui.

— Ah, bem. Obrigado, madame. Pode me dizer onde pos­so falar com ela?

— Não tenho a menor idéia. Sinto muito.

— Obrigado. — E desliguei.

— Oh, meu Deus.

— Lepra, doçura. Pegamos a doença, quem toca em nós é contaminado. Droga.

— Richard, o que estou lhe dizendo é a pura verdade. Em minha infância, quando isto aqui era uma colônia penal, ha­via mais liberdade sob o Carcereiro do que há agora com autogoverno.

— Talvez você exagere, mas desconfio que Xia concorda­ria com você. — Mordi o lábio inferior e franzi o cenho. — Sa­be quem mais pegou nossa lepra? Choy-Mu.

— Você acha?

— Aposto, sete a dois.

— Nada feito, Ligue para ele.

O pedido de informações deu-me seu telefone particular. Liguei para a casa dele. Ouvi uma gravação, sem imagem: "Marcy Choy-Mu falando. Não sei quando voltarei para casa, mas responderei logo às mensagens, quando as receber. Ao som do gongo, por favor, grave sua mensagem." E soou um gongo.

Pensei furiosamente e disse em seguida:

— Capitão Meia-Noite falando, Estamos hospedados no velho Raffles. Um amigo mútuo precisa de ajuda. Por favor, ligue-me para o Raffles. Se eu não estiver, deixe recado dizen­do quando e onde posso falar com você.

E desliguei mais uma vez.

— Querido, você não deu o código do rabi Ezra.

— De propósito, Sadie, minha garota. Para manter o códi­go do rabi fora das mãos de Jefferson Mao. A linha de Choy-Mu pode estar grampeada. Eu tive que dar a ele um lugar pa­ra ele ligar de volta... mas não posso me arriscar a compro­meter a ligação rabi Ezra. Precisamos preservá-la para o padre Schultz. Cartas na mesa, beldade. Vou ter que ligar para o con­trole de terra de HKL.

 

— Controle de terra de Hong Kong Luna. Este terminal destina-se a assuntos oficiais. Seja breve.

Era apenas uma voz.

— Posso falar com o Capitão Marcy?

— Não está. Sou seu substituto em emergências. Recado? Seja rápido, tenho tráfego dentro de minutos.

— Fala aqui o Capitão Meia-Noite. Diga a ele que estou no velho Raffles. Diga a ele para me ligar.

— Não desligue. Capitão Meia-Noite?

— Ele sabe quem é.

— E eu, também. Ele foi à Prefeitura pagar fiança por quem você sabe. Ou não sabe?

-Xia?

— Certo demais! Vou ter que voltar a meus visores, mas digo a ele. Desligo.

— O que faremos agora, Richard?

— Galoparemos em todas as direções.

— Fale sério, por favor.

— Pode pensar em alguma coisa melhor? A fila sumiu em frente do Mom's Dinner. Vamos almoçar.

— Almoçar enquanto nossos amigos correm perigo?

— Doçura, mesmo que voltássemos a Kongville — e des­sa maneira enfiássemos a cabeça na boca do leão —, não te­ríamos maneira de encontrá-los. Não há nada a fazer até que Choy-Mu nos ligue. Isto pode levar cinco minutos ou cinco horas. E uma coisa eu aprendi em combate: nunca perca uma oportunidade de comer, dormir e mijar. A oportunidade se­guinte pode demorar muito.

 

Recomendo o bolo de morangos com soverte da Mom's. Hazel pediu a mesma coisa, mas quando comecei a raspar os últimos restos com a colher, ela meramente mexera no dela. Resolvi intervir:

— Mocinha, você vai ficar aí até comer tudo que há no seu prato.

— Richard, não posso.

— Eu não gostaria de surrá-la em público...

— Então não surre.

— Muito bem, não surro. Em vez disso, fico aqui até que você tenha comido a última migalha, mesmo que isso signifi­que eu ter que dormir nesta cadeira hoje à noite.

Hazel expressou opiniões obscenamente desfavoráveis a meu respeito, Jefferson Mao e o bolo de morangos, e depois comeu-o. Às 13h30min estávamos à porta da área do com­putador no complexo. Aí um jovem em um guichê nos ven­deu dois ingressos, a duas coroas e 40 centavos, disse-nos que a visita ciceroneada seguinte começaria em alguns minutos e levou-nos para um espaço fechado, uma sala de espera com bancos e oportunidades de jogar contra máquinas. Havia ali à espera uns 10 ou 12 turistas, a maioria usando fez.

Quando finalmente iniciamos a visita, uma hora depois, éramos 19 ou 20 pessoas, pastoreados por um guia uniformi­zado — ou guarda, uma vez que usava um distintivo de tira. Fizemos um longo circuito em volta do enorme complexo, uma caminhada chata e interminável. A cada pausa o guia fazia um discurso decorado — talvez não tão bem decorado assim, já que pude notar erros, embora eu não seja engenheiro de controle de comunicações.

Mas não explorei esses lapsos. Em vez disso, tornei-me um chato, de acordo com instruções prévias de minha colega de conspiração.

Em uma parada, o guia explicou que o controle de enge­nharia era descentralizado tanto geograficamente quanto por funções em toda Luna — ar, esgotos, comunicações, água po­tável, transporte, etc. —, mas monitorado pelos técnicos que víamos nesses consolos. Interrompi-o:

— Meu bom homem, acho que você deve ser novo neste trabalho. A Encyclopaedia Brítannica explica claramente que o único computador gigantesco cuida de tudo na Lua. Foi is­so o que viemos ver. Não a nuca de amanuenses juniores sen­tados em frente a monitores. Assim, vamos vê-lo. O compu­tador gigante. O Holmes IV.

O guia deixou morrer o sorriso profissional e olhou-me com o desprezo natural do lunariano pela minhoca.

— O senhor foi mal-informado. É verdade que era assim, mas o senhor está desatualizado em mais de 50 anos. Hoje nós nos modernizamos e descentralizamos.

— Jovem, você está tentando desmentir a Brítannica?

— Estou lhe dizendo a simples verdade. Agora, passemos a...

— O que foi que aconteceu àquele computador gigante? Já que não é mais usado. Ou é isso o que o senhor diz.

— Hummm! Olhe atrás de você. Está vendo aquela por­ta? Ele fica atrás daquela porta.

— Então vamos vê-lo! Foi para vê-lo que paguei.

— Nem morto. Trata-se de uma antigüidade histórica, um símbolo de nossa grande história. Se quer vê-lo, procure o Chanceler de Galileo U., e mostre suas credenciais. Ele o man­dará para aquele lugar! Agora, então, passemos à galeria seguinte...

Hazel não nos acompanhou, mas (seguindo as instruções) eu sempre tinha alguma observação pronta para fazer ou uma pergunta tola em todas as ocasiões em que nosso guia parecia ter um momento livre para olhar em volta. Mas quando, finalmente, fechamos o grande círculo e voltamos à sala de es­tar, Hazel estava lá.

Fiquei calado até sairmos do complexo e começar a espe­rar na estação do metrô. Saí fora do alcance de possíveis cu­riosos, antes de perguntar:

— Como foi a coisa?

— Nenhum problema. A fechadura naquela porta era de um tipo em que mexi antes. Obrigada por ter mantido todos eles distraídos enquanto eu trabalhava na fechadura. Foi um bom espetáculo, amor!

— Conseguiu o que procurava?

— Acho que sim. Vou saber mais depois que papai Mannie examinar minhas fotografias. Aquele é apenas um grande salão solitário, Richard, atravancado de velhos equipamentos eletrônicos. Fotografei-o de uns 20 ângulos diferentes e firmei cada foto com apoio da mão esquerda. Não foi perfeito, mas pratiquei a coisa.

— Só isso? Essa visita?

— Só. Bem, na maior parte.

Falou em voz sufocada. Fitei-a e vi que tinha os olhos cheios de lágrimas, prestes a escorrer.

— Ora, querida! O que foi que houve?

— N-n-nada.

— Conte.

— Richard, ele está lá,

— Ahn?

— Ele está lá, adormecido. Eu sei, senti a presença dele. Adam Selene.

 

A cápsula do metrô entrou barulhenta na estação nesse momento, para alívio meu — já que há assuntos para os quais palavras são inúteis. A cápsula estava transbordando de gen­te e não pudemos conversar durante a viagem. Ao chegarmos a L-City, minha amada acalmara-se e consegui evitar o assun­to. De qualquer modo, as multidões nos corredores tornavam difícil a conversa. Luna City vive congestionada em todas as ocasiões: nos sábados, metade dos lunarianos de outras divi­sões vêm às compras. Neste sábado, a multidão habitual fora aumentada pelos Shriners e suas esposas, vindos de toda a América do Norte e arredores.

Saindo da estação oeste do metrô à pressurizada 2 no cír­culo externo, vi que estávamos em frente à Sears Mont­gomery. Eu ia virar à esquerda para a Alameda quando Hazel me deteve.

— Ahn? O quê, querida?

— Suas calças.

— Minha braguilha está aberta? Não, não está.

— Vamos cremar suas calças. É tarde demais para um en­terro. E essa camisa-casaco.

— Eu pensava que você estava doida para chegar ao Raffles.

— Estou, mas só vou precisar de cinco minutos para com­prar roupas novas para você.

(Razoável. Minhas calças estavam tão sujas que eu come­çava a me arriscar a ser intimado como ameaça à saúde públi­ca. E Hazel de fato sabia o que eu prefiro para uso diário, uma vez que eu lhe explicara que não usaria bermudas mesmo que todos os outros de Luna City assim andassem vestidos — e a maioria andava. Não sou morbidamente autoconsciente de meu pé faltante... mas quero calças de pernas inteiras que me escondam a prótese. Isto é problema privado meu, e acho me­lhor não exibi-lo.)

— Tudo bem — concordei. — Vamos comprar o que esti­ver mais perto da porta.

Hazel nos fez entrar e sair em 10 minutos, comprando-me três conjuntos de duas peças, todos iguais, salvo na cor. O preço era certo, desde que ela pechinchara até conseguir um valor razoável, depois apostou o dobro ou nada, e ganhou. Agradeceu ao vendedor e deu-lhe de gorjeta o preço de um drinque e depois saiu, parecendo alegre.

— Você está alinhadérrimo, querido — disse ela.

Eu também achei. Os três conjuntos eram: cor verde-lima, pó rosado e lavanda. Resolvi vestir o lavanda, que acho que combina mais com minha tez. Saí andando todo emproa­do, girando a bengala, minha melhor pequena pelo braço, sen­tindo-me o maior.

Mas quando entramos na Alameda, não havia espaço pa­ra girar a bengala e quase nem para andar. Desvencilhamo-nos da multidão, recuamos até a Bottom Alley e cruzamos a cidade pelo elevador de cremalheira Five Aces até a pressuri­zada 6 — muito mais longe, mas naquele dia muito mais rápido.

Até mesmo o túnel lateral que dava no Raffles estava con­gestionado. Um grupo de homens usando fez encontrava-se reunido bem em frente ao nosso hotel.

Olhei para um deles, e depois dei outra mirada.

Deixei-o provar minha bengala, com um molinete inverti­do na virilha. Na mesma ocasião, ou a uma fração de segun­do antes de mim, Hazel lançou o embrulho (minhas roupas) na cara do homem ao lado dele e acertou outra atrás deste com a bolsa de mão. Ele caiu quando meu homem gritou e caiu também. Voltando à bengala, peguei-a horizontalmente com ambas as mãos, e utilizei os jabs laterais, empregados quando queremos passar por uma multidão turbulenta — embora des­ferisse os jabs mais pessoalmente, pegando um homem na bar­riga, outro no rim e chutando cada um para sossegá-lo quan­do caía.

Hazel cuidara do homem que retardara com o embrulho. Não vi como, mas ele estava no chão e não se movia. Um (sexto) homem ia esfriá-la com um cassetete, de modo que lhe dei uma estocada no rosto com a bengala. Ele agarrou-a. Fui à frente com ele para evitar que expusesse o estilete, ao mesmo tempo em que o mimoseava com três dedos no plexo solar, com a esquerda. Caí por cima dele.

Fui levantado do chão e levado a trote para o Raffles, eu de cabeça baixa e a bengala arrastando-se atrás de mim.

Os poucos segundos que se seguiram só pude analisar mais tarde, talvez imperfeitamente. Não vi Gretchen junto ao balcão de recepção, mas ela estava ali, tendo acabado de che­gar. Ouvi Hazel dizer secamente:

— Gretchen! Quarto L, bem aos fundos, à direita!

E me jogou em cima de Gretchen. Em Luna eu peso 13kg, mais ou menos alguns gramas — o que não é uma carga tão grande assim para uma moça do interior acostumada a traba­lho duro. Mas sou muito maior do que Gretchen e duas vezes maior que Hazel — o que quer dizer um fardo difícil de levar. Guinchei, pedindo para que me botassem no chão. Gretchen nem deu bola. O porteiro idiota estava gritando mas ninguém lhe prestou atenção.

Nossa porta se abriu quando Gretchen chegou lá e ouvi outra voz conhecida gritar:

— Bojemoi! Ele está ferido.

E logo me vi deitado de costas em minha própria cama e Xia trabalhando em mim.

— Eu não estou ferido — avisei. — Apenas um pouco abalado.

— Claro, claro. Fique parado enquanto lhe tiro as calças. Algum dos senhores, cavalheiros, tem uma faca?

Eu ia dizer a ela que não cortasse minhas calças novas quando ouvi um tiro. Era minha esposa, agachada do lado de dentro da porta, olhando cautelosa para a esquerda, a cabeça quase rente ao chão. Ela atirou outra vez, recuou rápido para dentro do quarto e fechou a porta.

Olhou em volta e disse secamente:

— Botem Richard no refrescador. Empilhem a cama e tu­do mais contra a porta. Eles vão atirar na porta, derrubá-la ou fazer as duas coisas.

Sentou-se no chão, de costas para mim, e não deu atenção a ninguém. Mas todos correram para cumprir as ordens dela. "Todos" incluía Gretchen, Xia, Choy-Mu, padre Schultz e o rabi Ezra. Não tive tempo de ficar estarrecido, especialmente porque Xia, com a ajuda de Gretchen, levara-me para o refrescador, pusera-me no chão e recomeçara a me tirar as calças. O que me estarreceu foi descobrir que minha perna boa, a que tem um pé de carne e osso, estava sangrando profundamente. No­tei isso pela primeira vez ao ver que Gretchen tinha grandes manchas de sangue no ombro esquerdo de seu macacão bran­co. Depois vi de onde vinha o sangue, e a perna começou a doer.

Não gosto de sangue, especialmente quando é meu. De modo que virei o rosto e olhei pela porta do refrescador. Ha­zel continuava sentada no chão e tirara da bolsa algo que pa­recia maior do que a bolsa. E estava falando com a coisa.

— Tee Aitch Queue! Major Lipschitz chamando Tee Aitch Queue! Responda, droga! Acorde! S.O.S., S.O.S.! Hei, matuto!

 

"Se alguém duvidar de minha sinceridade, só posso dizer que tenho pena de sua falta de fé. "

Barão de Munchausen, 1737-1794

 

Xia acrescentou, nesse momento:

— Gretchen, passe-me uma toalha limpa. Vamos dar um jeito com uma compressa até que ele possa ser tratado depois.

— Ouch!

— Desculpe, Richard.

— S.O.S., S.O.S.! Ave, Maria, estou no meio do riacho sem um remo! Responda-me!

— Estamos ouvindo, Major Lipschitz. Comunique coor­denadas locais, planeta, sistema e universo.

Era uma voz de máquina, com típico som metálico, sem inflexões, que me deu calafrios nos dentes.

— Agora, vamos apertá-la com força.

— O diabo leve as normas! Preciso de um resgate de trans­ferência temporal, e preciso agora! Confira minha missão e an­de com isso! Ponto de comutação: "Um pequeno passo", por Armstrong. Coordenadas locais: Hotel Raffles, quarto L. Mo­mento temporal, agora!

Continuei a olhar pela porta do refrescador a fim de não ver as coisas desagradáveis que Xia e Gretchen estavam fazendo comigo. Ouvi gritos e sons de pessoas correndo. Alguma coi­sa se chocou com a porta que dava para o corredor. Nesse mo­mento, na parede de pedra à minha direita, uma nova porta dilatou-se!

Digo "porta" por falta de palavra precisa. O que vi foi um local circular cinza prateado, do chão ao teto, e mais. Dentro desse local havia uma porta comum de veículo. Que tipo de veículo, eu nem desconfiava. A porta dele era tudo que eu po­dia ver.

Ela se abriu. Alguém do lado de dentro gritou "Vovó!" quando a porta para o corredor desmoronou e um homem caiu dentro do quarto. Hazel baleou-o. Um segundo apareceu lo­go atrás dele. Ela pegou-o, também.

Estendi a mão para a bengala — que estava atrás de Xia! Droga!

— Passe a bengala! Depressa!

— Calma aí, calma aí. Deite-se.

— Dê-me a bengala!

Hazel dispunha ainda de um tiro, ou talvez de nenhum. De qualquer maneira, era tempo de eu lhe dar apoio.

Ouvi mais tiros. Com amarga certeza de que nada mais restava senão vingá-la, estendi ao máximo o braço, peguei a bengala e me voltei.

Nada mais de tiros... Aqueles últimos tiros haviam sido disparados pelo rabi Ezra. (Por que me surpreendi que um alei­jado de cadeira de rodas andasse armado?) Hazel gritava nesse momento:

— Todos a bordo! Movam-se!

E nós nos movemos. Fiquei confuso novamente, quando um grupo infindável de jovens, homens e mulheres, todos eles ruivos, saíram do veículo e cumpriram as ordens de Hazel. Dois deles carregaram Reb Ezra para dentro, enquanto um ter­ceiro dobrava-lhe a cadeira e a entregava a um quarto. Choy-Mu e Gretchen foram levados apressadamente para dentro, seguidos por padre Schultz. Xia foi empurrada atrás deles quan­do tentou insistir em cuidar de mim. Logo em seguida, dois ruivos, um homem e uma mulher, levaram-me para dentro. Minhas calças manchadas de sangue foram lançadas atrás de mim. Agarrei-me à bengala.

Vi apenas pouca coisa do veículo. Sua porta se abria pa­ra um compartimento de pilotos-passageiros para quatro pes­soas, no que podia ser uma nave espacial. Ou talvez não fos­se. Os controles eram estranhos e eu não estava em condições de julgar como aquilo funcionava. Fui empurrado entre os as­sentos e espremido por uma porta atrás deles para um espaço de carga, e acabei em cima da cadeira dobrada do rabi.

Iria eu ser tratado como carga? Não. Fiquei ali apenas por um momento, depois virei em 90 graus e passei por uma por­ta maior, virei mais 90 graus e acabei em um chão.

E que bom que fiquei ali!

Pela primeira vez em anos estava experimentando o peso terreno normal.

Corrijo: eu o sentira por alguns momentos na véspera no tubo balístico, um pouco mais no elevador de cremalheira, na nave de Budget Jet e cerca de meia hora do mesmo na Old Mac-Donald's Farm quatro dias antes. Mas este peso inesperado pegou-me de surpresa e não desapareceu. Eu perdera sangue, achava difícil respirar e novamente senti tonteira.

Eu sentia pena de mim mesmo quando vi o rosto de Gretchen. Ela parecia não só amedrontada, mas horrivelmente doente. Xia dizia:

— Baixe a cabeça, querida. Deite-se ao lado de Richard. Essa é a melhor posição. Richard, você pode se encolher um pouco? Eu também gostaria de me deitar. Eu também não me sinto bem.

De modo que acabei aninhado por uma moça de cada la­do, e não me senti nem um pouco abraçado ternamente. Su­postamente sou um homem treinado para combate em acele­rações até duas gravidades completas, ou 12 vezes a da Lua.

Mas isso foi há muitos anos e eu tivera mais de cinco anos de vida mansa e sedentária em baixa gravidade.

Parecia certo também que Xia e Gretchen não estavam in­teressadas em bolinagem.

Minha bem-amada chegou trazendo nosso bordo em mi­niatura. Colocou-o sobre um suporte, jogou-me um beijo e co­meçou a borrifá-lo.

— Xia, que tal eu preparar uma banheira com água mor­na para vocês duas lunarianas nativas? Vocês duas cabem na banheira.

As palavras de Hazel fizeram-me olhar em volta. Nós es­távamos em um "banheiro". Não um refrescador apropriado para uma nave de quatro lugares, nada parecido com o que havia no Raffles. Aquele cômodo era uma antigüidade. Já vi­ram alguma vez papel de parede com motivos de fadas e gno­mos? Na verdade já viram papel de parede? O que me dizem de uma banheira gigantesca montada sobre pés em forma de garras? Ou uma torneira com uma tampa de madeira e um tan­que em cima? Todo aquele cômodo viera diretamente de um museu de antropologia cultural... mas, ainda assim, tudo aqui­lo brilhava de novo.

Perguntei a mim mesmo quanto sangue havia perdido.

— Obrigada, Gwen, mas não acho que precise disso. Gret­chen, você quer flutuar na água?

— Não quero que me movam daqui.

— Não demora muito — tranqüilizou-as Hazel. — Gay mu­dou duas vezes para evitar estilhaços de metralha, ou já tería­mos descido. Richard, como é que você está se sentindo?

— Dou um jeito.

— Claro que vai dar, querido. Eu mesmo sinto o peso, de­pois de um ano no Regra de Ouro. Mas não muito porque me exercitei todos os dias em uma gravidade. Querido meu, é grave seu ferimento?

— Não sei. — Xia?

— Muito sangramento e alguma lesão muscular. Vinte ou 25 centímetros, e muito profundo. Acho que o osso não foi atin­gido. Pusemos uma compressa de pressão. Se esta nave esti­ver equipada, eu quero fazer um trabalho melhor e dar a ele também uma injeção de largo espectro.

— Você fez um excelente trabalho. Vamos aterrissar logo e haverá ajuda profissional e equipamentos.

— Tudo bem. Reconheço que não me sinto muito viva.

— Então, descanse. — Hazel pegou as toalhas empapadas de sangue. Vou molhar as toalhas antes que a mancha pegue.

— Use água fria! — disse impulsivamente Gretchen, ficou vermelha e depois acrescentou timidamente: — É o que ma­mãe diz.

— Ingrid tem razão, querida. — Hazel abriu a torneira da pia. — Richard, sou obrigada a confessar que perdi suas rou­pas novas naquela confusão.

— Roupas a gente pode comprar. Eu pensava que ia per­der você.

Richard, querido! Aqui está sua carteira e mais algumas coisas que achei. O que havia nos bolsos.

— É melhor me dar a carteira. — Coloquei tudo aquilo num bolso interno da jaqueta. — Onde está Choy-Mu? Eu o vi... ou será que não?

— Ele está no outro refrescador com o padre Schultz e o Rabi Ezra.

— Ahn? Você está me dizendo que uma nave para quatro tem dois refrescadores? Isto é uma nave de quatro lugares, não?

— É, tem, e espere até ver os jardins de rosas. E o deck da piscina.

Comecei a dar uma resposta mas cortei-a. Eu não havia bolado nenhuma fórmula que me dissesse quando minha es­posa estava brincando, ou dizendo uma verdade literal, em­bora inacreditável. Fui salvo de uma tola discussão por um dos ruivos, que entrou nesse momento — mulher, jovem muscu­losa, sardenta, felina, sadia, sedutora.

— Tia Hazel, aterrissamos.

— Obrigada, Lor.

— Eu sou Laz. Cas quer saber quem fica aqui, quem vai conosco, e quanto tempo até a descolagem? Gay quer saber se vamos ser bombardeados ou não e se ela pode estacionar uma mudança acima! Bombardeios deixam-na nervosa.

— Alguma coisa está errada aqui. Gay não devia estar per­guntando diretamente, devia?

— Acho que ela não confia na capacidade de julgamento de Cas.

— Ela talvez tenha razão. Quem está no comando? -Eu.

— Oh! Eu lhe digo depois quem vai, quem fica, depois que eu falar com meu pai e com tio Jock. Em alguns minutos, acho. Pode deixar Gay estacionar em uma zona morta, se qui­ser, mas, por favor, que ela permaneça em minha freqüência tripla. Podemos ter que nos mexer às pressas. Neste exato mo­mento, quero mover meu marido... mas, em primeiro lugar, tenho que pedir a outro de nossos passageiros que me em­preste sua cadeira de rodas.

Hazel virou-se para sair. Eu bradei:

— Não preciso de uma cadeira de rodas — mas ela não me ouviu. Aparentemente.

 

Duas das ruivas tiraram-me da nave e colocaram-me na cadeira de rodas de Ezra, com o espaldar arriado e os descan­sos dos pés levantados, e uma delas estendeu sobre minha bar­riga e pernas uma toalha de banho kingsize. Eu disse:

— Obrigado, Laz.

— Eu sou Lor. Não fique surpreso se a toalha desapare­cer. Nunca tentamos antes tirar uma delas de bordo.

Voltou para bordo e Hazel me empurrou por baixo do na­riz da nave e deu a volta por bombordo... o que me agradou, desde que eu vira imediatamente que aquilo era na verdade uma espécie de nave espacial, com fuselagem empinada e asas retráteis. Fiquei curioso em saber como o projetista consegui­ra incluir dois grandes refrescadores no seu lado de bombor­do. A coisa não me pareceu aerodinamicamente possível.

E não era. O lado de bombordo era igual ao de estibordo, liso e esguio. Não havia espaço cúbico para banheiros.

— Mas não tive tempo de pensar nisso. Quando havíamos entrado no túnel lateral do Raffles alguns minutos antes, meu Sonychron piscara exatamente 17h, tempo de Greenwich ou L-City... o que faria isso 11h da manhã na zona 6, em Terra.

E assim foi porque era ali que nos encontrávamos, na zo­na seis, na pastagem norte da fazenda de meu tio Jock, perto de Grinnell, Iowa. Assim, tornava-se óbvio que eu não ape­nas perdera muito sangue mas fora atingido com força na ca­beça — uma vez que mesmo o correio militar mais "envene­nado" precisa de pelo menos duas horas para fazer o percur­so Luna-Terra.

À nossa frente erguia-se a velha e bem-restaurada man­são victoriana de tio Jock, cúpula, varandas e terreiro, e ele mesmo vinha nesse momento em nossa direção, acompanha­do por dois outros homens. Titio estava tão lépido como sem­pre e ainda com aquela gaforinha branca que lhe dava uma aparência de Andrew Jackson. Não reconheci os outros dois. Eram homens maduros, mas muito mais moços que o Ho Jock, — bem, quase todo mundo é.

Hazel deixou de me empurrar, correu e lançou os braços em volta de um deles, beijou-o e lambuzou-o todo. Meu tio tomou-a dos braços daquele homem, beijou-a com igual en­tusiasmo, e depois entregou-a ao terceiro, que a saudou da mes­ma maneira e a recolocou no chão.

Antes de eu poder me sentir excluído, ela virou-se e trou­xe o primeiro pela mão esquerda.

— Rapai, quero que você conheça meu marido, Richard Co­lin, Richard, este é meu pai Mannie, Manuel Garcia OKelly Davis.

— Bem-vindo à família, coronel — disse ele, e me esten­deu a mão direita.

— Obrigado, senhor.

Hazel virou-se para o terceiro homem.

— E este, Richard, é...

— ... o Dr. Hubert — interrompeu-a tio Jock. — Lafe, aperte a mão de meu sobrinho, Coronel Colin Campbell. Bem-vindo à casa, Dickie. O que é que você está fazendo nesse carrinho de bebê?

— Só mandriando, acho. Cadê tia Cissy?

— Trancada, naturalmente. Sabia que você estava chegan­do. Mas o que é que você andou fazendo? Parece que você não conseguiu se abaixar. Sadie, você tem que esperar isso de Dic­kie. Ele sempre foi lento. Difícil de aprender a não fazer xixi na cama e nunca aprendeu a jogar bolinha de gude.

Eu estava procurando uma resposta suficientemente insul­tuosa para rebater essa mentira (eu aprendera há muito tem­po a maneira de tratar nossos escândalos de família) quando a terra tremeu, seguido imediatamente por um krrump! Não nuclear, apenas altos explosivos. Mas inquietante, ainda as­sim. Alto explosivo não é brinquedo nem a melhor maneira de morrer — aliás, não há nenhuma.

— Não mije nas calcinhas, Dickie — disse titio —, elas não estão atirando em nós. Lafe, você podia examiná-lo aqui? Ou lá dentro?

— Deixe-me ver suas pupilas, coronel — pediu o Dr. Hu­bert.

De modo que o olhei quando ele olhou para mim. Quan­do Hazel parou de empurrar a cadeira de rodas, a nave esti­vera à minha esquerda. Mas quando a detonação de alto explo­sivo ocorreu, a nave mudou subitamente de lugar. Desapare­ceu... "nem um instante depois". A hipótese menos insultuosa dizia que eu estava doido.

Ninguém mais pareceu notar aquilo.

De modo que fingi que também não, e olhei para meu mé­dico... e me perguntei onde o vira recentemente.

— Nenhuma concussão, acho. Qual é o logaritmo natural de pi?

— Se eu tivesse todas as minhas bolinhas de gude, esta­ria aqui? Escute, doutor, nada de jogo de adivinhação, por fa­vor. Estou cansado.

Outro obus de alto explosivo (ou bomba) aterrissou pró­ximo, mais perto ainda, se possível. O Dr. Hubert tirou a toa­lha que enfaixava minha perna esquerda, cutucou a compres­sa que Xia aplicara.

— Dói?

— Diabo, dói!

— Ótimo. Hazel, é melhor você levá-lo para casa. Não pos­so cuidar devidamente dele aqui, uma vez que estamos pres­tes a nos mudar para New Harbor, em Beulahland. Os ange­lenos tomaram Des Moine e estão vindo nesta direção. Ele es­tá em bom estado para um homem que foi atingido... mas pre­cisa de tratamento apropriado, sem demora.

— Doutor — perguntei —, o senhor é por acaso parente daquelas meninas ruivas que guarnecem a espaçonave em que viemos?

— Elas não são moças, são delinqüentes juvenis aposen­tadas por idade. O que quer que elas lhe tenham dito, eu ne­go categoricamente. Diga-lhes que as amo.

— Mas tenho que apresentar meu relatório — disse impe­tuosamente Hazel.

Todo mundo falou na mesma ocasião até que o Dr. Hu­bert restabeleceu a calma, dizendo:

— Silêncio! Hazel vai com o marido e o instala devidamen­te, fica com ele enquanto achar necessário, e depois se apre­senta em New Harbor... mas com a pulsação temporal estabe­lecida agora. Objeção? Então, é uma ordem.

O reaparecimento daquela espaçonave foi ainda mais des­concertante e fiquei satisfeito porque não olhei. Ou não mui­to. Os dois homens ruivos (acabei descobrindo que eram ape­nas quatro os ruivos, não uma multidão) pegaram-me e me levaram para dentro com cadeira e tudo, Hazel entrou naque­le velho refrescador comigo... e quase no mesmo instante en­trou Laz (Lor?) e anunciou:

— Tia Hazel, estamos em casa.

"Casa" era o telhado plano de um grande prédio — e era fim da tarde, quase noite. Aquela espaçonave devia ser cha­mada de Gato Cheshire. (Mas seu nome é Gay. O nome dela é Gay. Oh, esqueçam.)

O prédio era um hospital. Ao se internar num hospital, a pessoa espera inicialmente uma hora e quarenta minutos, enquanto eles examinam a papelada. Depois, tiram nossa roupa e nos põem em uma maca de rodas, embaixo de um cobertor fino, com os pés de fora, colocam-nos bem no centro de uma corrente de ar e mandam que a gente espere do lado de fora da sala de raios X. Depois, pedem um exame de urina em um urinol de plástico, enquanto uma mocinha espera que a gente urine, olhando para o teto e parecendo entediada. Certo?

Aquela gente não conhecia nem a primeira página do re­gulamento sobre a maneira de dirigir um hospital. Nossos ca­maradas ilesos (os que sofriam de nada mais que alta acelera­ção) já estavam a caminho, em carrinhos de golfe incrementa­dos, quando fui novamente tirado da nave e colocado em ou­tro carrinho de golfe (maca sobre rodas, cadeira de rodas, col­chão flutuante). O rabi Ezra estava ali em sua cadeira de ro­das. Hazel estava conosco segurando a Árvore-San e o em­brulho na embalagem da Sears contendo o costume de Nao­mi. A nave espacial desaparecera. Mal tive tempo de dizer a Laz (Lor?) que o Dr. Hubert mandara dizer que as amava. Ela fungou:

— Se ele acha que com essa conversa carinhosa vai sair da casa do cachorro, é melhor que pense novamente.

Mas os bicos de seus seios endureceram, de modo que acho que ela ficou satisfeita.

Quatro de nós ficamos no telhado, nós três e um membro do quadro de pessoal do hospital, uma mulher baixa e more­na que parecia combinar o que melhor havia em Mãe Eva e Mãe Maria, mas sem se vangloriar de nada disso. Hazel pôs o pacote no meu colo, entregou a bonsai a Reb Ezra e lançou os braços em volta dela.

— Tammy!

— Arli sool, m'tenga! — A maternal criatura beijou Hazel.

— Reksi, reksi... há tanto tempo! Soltaram-se do clinch e Hazel disse:

— Tammy, este é meu bem-amado Richard.

Isto me mereceu um beijo na boca. Tammy pôs devida­mente de lado aquele pacote. Um homem beijado por Tammy permanece beijado durante horas — mesmo que esteja ferido, mesmo que ela só dê um ligeiro beijo.

— E este é o nosso querido amigo, o reverendo rabi Ezra ben David.

Ele não obteve o mesmo tratamento que eu. Tammy fez uma profunda mesura e beijou-lhe a mão. De modo que tive um claro lucro.

 

Tammy (Tamara) disse:

Para dentro, tenho que levar os dois, para rapidamente tra­tarmos de Richard. Mas cada um de meus dois hóspedes que­ridos aqui serão. Hazel? Um quarto como aquele que com Ju­bal você dividiu?

— Tammy, que bela idéia! Porque vou ter que me ausen­tar algumas vezes. Cavalheiros, vocês ficarão juntos enquanto forem pacientes aqui!

Eu ia responder "Claro, certo, mas..." quando Reb Ezra to­mou-me a frente:

— Há uma pequena confusão. Sra. Gwendolyn, por fa­vor, explique a esta querida senhora que não sou um paciente, nem candidato à hospitalização. Estou em perfeita saúde. Nem um espirro, nem uma unha encravada.

Tamara pareceu surpresa e... não, não perturbada mas pro­fundamente preocupada. Aproximou-se dele e tocou suave­mente o coto esquerdo:

— Não vamos colocar suas pernas novamente? Reb Ezra deixou de sorrir.

— Tenho certeza de que a intenção de vocês é boa. Mas não posso usar próteses. Sinceramente.

prorrompeu em outra língua, falando com Hazel. Ela escutou e depois disse:

— Padre Ezra, está falando em pernas de verda­de. Carne e sangue. Eles podem fazer isso. Podem fazer isso de três maneiras.

Reb Ezra tomou uma profunda respiração, exalou-a num suspiro e olhou para :

— Filha, se você puder devolver minhas pernas... então vá em frente. Por favor — e depois acrescentou alguma coisa, creio que em hebraico.

 

A Luz no Fim do Túnel

"Deus criou a mulher para domar o homem."

Voltaire, 1694-1778

 

Acordei lentamente, deixando que a alma se acomodasse com suavidade de volta no meu corpo. Mantive os olhos fe­chados e liguei a memória, perguntando quem era eu, onde estava e o que acontecera.

Oh, sim, eu casara com Gwen Novak! Da forma mais ines­perada, mas que idéia deliciosa! E depois nós... Hei! aquilo não foi ontem. Ontem, você...

Rapaz, ontem você teve um dia cheio! Começou em Luna City, saltou até Grinnell — como? Não importa o "Como?", ago­ra. Aceite o fato. Depois saltou para... o que Gwen chamara aquilo? Hei, espere! O verdadeiro nome de Gwen é Hazel. Ou é? Preocupe-se com isso depois. Hazel chamara-a de "Tercei­ra Terra", Tellus Tertius. Tammy dera-lhe outro nome. Tammy? Oh, claro, "Tamara". Todo mundo conhece Tamara.

Tammy não deixaria que mexessem em minha perna feri­da enquanto eu estivesse acordada... Onde, que diabo, eu ar­ranjei aquele ferimento? Estou ficando desajeitado em minha velhice? Ou foi por ter visto a cara de Bill entre aqueles falsos Shriners? Não é profissional deixar que qualquer surpresa lhe retarde os movimentos. Se sua própria avó aparecer no meio de uma briga, atire nela e vá em frente.

Como é que você soube que eles não eram Shriners? Essa é fácil. Shriners são indivíduos de meia-idade e barrigudos. Aqueles caras eram jovens e duros. Prontos para combate.

Sim, mas isso é uma racionalização, na qual você só pen­sou agora. E daí? Não obstante, é verdade. Mas você não pen­sou nisso ontem. Diabo, não, claro que não. No momento da verdade ninguém tem tempo de pensar. Você olha para um cara, alguma coisa nele berra "Inimigo!" e você salta para fa­zer com ele antes que ele faça com você. Se usa o tempo de uma briga analisando impressões dentro do crânio, classifican­do por tipo e ponderando segundo a lógica — você está mor­to! Em vez disso, você se mexe.

Ontem você não se mexeu rápido o suficiente.

Mas arranjamos o parceiro certo para uma briga, não? Uma cobra coral pequenina e rápida chamada Hazel. E em qual­quer briga de que saiamos com uma temperatura corporal de 37 graus não pode ser considerada como derrota total.

Deixe de querer se enganar. Quantos você pegou? Dois? E ela pegou o resto. E ela teve que providenciar seu resgate... ou você estaria mortinho da Silva neste minuto.

Eu talvez esteja. Vamos ver. Abri os olhos.

 

Este quarto certamente se parece com o céu! Mas isto pro­va que não estou morto porque o céu certamente não é meu destino. Além do mais, todo mundo diz que, quando a gente morre, entra em um longo túnel com uma luz na boca mais distante e lá sua bem-amada está à espera... e isso não lhe acon­teceu. Nada de túnel! Nada de luz no fim do túnel! E é triste pensar, nada de Hazel!

De modo que não estou morto, isto não pode ser o céu e também não acho que seja um hospital. Nenhum hospital foi jamais construído tão bonito assim e cheirando tão bem. E onde está aquele barulho regulamentar que há em todos os corredores de hospital? Tudo que estou ouvindo são trinados de pássaros e um trio de cordas tocando à distância.

Hei, ali está a Árvore-San!

De modo que Hazel deve estar por perto. Onde está você, meu docinho? Preciso de ajuda. Procure meu pé e passe para cá, sim, por favor? Não posso me arriscar a saltitar nesta gra­vidade. Estou destreinado e... bem, droga, preciso urinar.

— Estou vendo que acordou. — Era uma voz suave, falan­do atrás de minha orelha direita. Virei a cabeça para olhar no momento em que ela deu a volta para o lugar onde eu podia vê-la mais facilmente: uma mulher jovem, atraente, esbelta, pequena de busto, longos cabelos castanhos. Ela sorriu quan­do lhe captei o olhar. — Eu sou Minerva. O que vai querer no desjejum? Hazel me disse que você gosta de waffles. Mas po­de pedir o que quiser.

— Qualquer coisa? — pensei um pouco. — Que tal brontossauro assado em fogo lento?

— Sim, certamente. Mas vai demorar mais preparar isso do que Waffles — respondeu ela com toda seriedade. — Algu­ma coisa para mordiscar enquanto espera?

— Topo tudo que você quiser. E deixe de brincar comigo. Falando de pernas, viu meu pé artificial? Antes de tomar o des­jejum preciso visitar o refrescador... e preciso de meu pé de cortiça para fazer isso. Esta gravidade, entende.

Sem meias-palavras, Minerva me disse o que fazer.

— Esta cama possui refrescador inerente e, de qualquer ma­neira, você não pode usar o refrescador comum. Você está sob bloqueio espinhal da cintura para baixo. Mas nossas disposi­ções são eficientes, de verdade. De modo que faça o que qui­ser. Quando tiver necessidade.

— Ahn?... Eu não posso. (Realmente, eu não podia. Quan­do amputaram meu pé, os enfermeiros do hospital tiveram um tempo danado de difícil comigo. Finalmente, equiparam-me com um catéter e um tubo de borracha até que eu pudesse ir ao banheiro usando muletas.)

— Você vai descobrir que pode. E estará tudo bem.

— Humm. — (Eu não podia mover nenhuma das pernas, nem a curta nem a comprida. — Sra. Minerva, pode me ar­ranjar um urinol tipo hospitalar comum?

Ela pareceu perturbada.

— Se desejar. Mas não será útil. — Em seguida, a expres­são preocupada mudou para pensativa. — Vou procurar um. Mas vai demorar algum tempo. Pelo menos 10 minutos. Nem um momento menos. E vou trancar sua porta enquanto esti­ver fora, de modo que ninguém possa perturbá-lo. — E acres­centou: — Dez minutos — e dirigiu-se para a parede vazia. A parede saiu da frente dela e ela desapareceu.

Imediatamente puxei o lençol para ver o que haviam feito com minha perna boa.

O lençol não se deixou puxar.

De modo que lhe dei um repelão.

O lençol era mais forte do que eu.

Em vista disso, tentei vencê-lo pela astúcia — afinal de con­tas, um lençol não pode ser mais sabido do que um homem. Pode?

Sim, pode.

Finalmente, eu disse a mim mesmo: escute, cara, nós não estamos conseguindo nada. Vamos então supor que a Sra. Mi­nerva foi exatamente veraz: esta é uma cama com instalações hidráulicas embutidas, capaz de cuidar do pior que um pa­ciente recolhido ao leito pode fazer. Assim dizendo, resolvi mentalmente uns dois problemas balísticos — garantidos pa­ra distrair até mesmo um homem à espera na guilhotina.

Esvaziei um meio litro, suspirei, e esvaziei a outra meta­de. Não, aparentemente a cama não ficou molhada.

E uma voz feminina disse ternamente: — Isso é que é um bom menino!

 

Olhei apressadamente em volta. Nenhuma corda vocal pa­ra acompanhar a voz.

— Quem disse isso e quem é você?

— Eu sou Teena, irmã de Minerva. Não estou mais longe de você que seu cotovelo... Ainda assim, estou a meio quilô­metro de distância e 200 metros abaixo. Se precisar de alguma coisa, simplesmente me chame. A gente tem, ou faz, ou falsi­fica. Milagres nós fazemos imediatamente. Qualquer outra coi­sa, ainda mais cedo. Exceção: virgens são consideradas um pe­dido especial... tempo médio de espera, 14 anos. Virgens re­construídas em fábrica, 14 minutos.

— Quem, diabo, quer uma virgem? Sra. Teena, você acha que é delicado me ver urinar?

— Moço, não tente ensinar a sua avó como roubar carnei­ros. Um de meus deveres é vigiar tudo, em todos os departa­mentos deste hospício, e me antecipar aos erros antes que eles aconteçam. Dois: eu sou virgem e posso provar... E vou fazê-lo se arrepender de ter nascido homem por ter dito aquela coisa depreciativa sobre virgens.

(Oh, diabo!)

— Sra. Teena, não tive intenção de ofender. Eu fiquei sim­plesmente embaraçado, só isso. De modo que falei sem pen­sar. Mas acho de fato que micção e coisas assim devem ser fei­tas em particular.

— Não em um hospital, cara. Elas são aspectos importan­tes do quadro clínico, em todas as ocasiões.

— Hummm...

— Lá vem minha irmã. Se não acredita em mim, pergun­te a ela.

Uns dois segundos depois a parede se abriu e a Sra. Mi­nerva entrou, trazendo um urinol hospitalar do velho tipo — sem maquinaria automática nem controles eletrônicos.

— Obrigado — disse eu. — Mas não preciso mais dele. E tenho certeza de que sua irmã lhe disse isso.

— Sim, disse. Mas certamente não lhe disse que tinha dito!

— Não, deduzi isso. É verdade que ela fica sentada em al­gum lugar no subsolo e espiona todos os pacientes? Ela não acha isso chato?

— Ela não presta realmente nenhuma atenção, até que se­ja necessário. Tem milhares de outras coisas para fazer, todas mais interessantes...

— Muito mais interessantes! — interrompeu a voz incorpórea. — Minnie, ele não gosta de virgens. Eu disse a ele que sou. Confirme isso, irmã. Quero esfregar o nariz dele nisso.

— Teena, não o provoque.

— Por que não? E divertido provocar homens. Eles se con­torcem todos quando a gente os cutuca. Embora eu não possa entender o que Hazel viu nesse aí. Ele é um triste caso.

— Teena! Coronel, Athene lhe disse que ela é um compu­tador?

— Ahn? Repita isso.

— Athene é um computador. É o computador supervisor deste planeta. Os outros computadores aqui são apenas má­quinas, não são sencientes. Athene dirige tudo. Da mesma ma­neira que Mycroft Holmes outrora dirigia tudo em Luna... Eu sei que Hazel lhe falou a respeito dele. — Minerva sorriu do­cemente. — De modo que é assim que Teena pode alegar que é virgem. Tecnicamente, ela é, no sentido em que um compu­tador não pode ter experiência de cópula carnal...

— Mas eu sei tudo a esse respeito!

— Sim, irmã... com um humano macho. Por outro lado, quando ela se transfere para um corpo de carne e osso e torna-se humana, em outro sentido técnico ela não é mais virgem porque seu hímen foi atrofiado in vitro e qualquer tecido vestigial removido antes que seu corpo animal fosse energizado. Da mesma maneira que fizeram comigo.

— E você estava doida, Minnie, quando deixou Ishtar convencê-la disso. Eu não farei dessa maneira. Resolvi experi­mentar tudo. Um hímen real e defloramento ritual e físico. Até mesmo vestido de noiva e um casamento, se pudermos arran­jar. Você acha que posso convencer Lazarus disso?

— Duvido demais. E você estaria cometendo um tolo er­ro. Dor desnecessária na primeira cópula poderia iniciar você com maus hábitos no que deve ser sempre uma experiência inteiramente feliz. Irmã, sexo é a razão mais importante para tornar-se humano. Não a estrague.

— Tammy diz que não dói tanto assim.

— Por que deixar que doa, absolutamente? De qualquer maneira, você não vai conseguir que Lazarus concorde com um casamento formal. Ele lhe prometeu um lugar em nossa família. E nada mais.

— Talvez a gente pudesse apresentar como voluntário o Coronel Zero. Ele vai me dever um bocado de favores por essa ocasião e Maureen diz que, de qualquer maneira, nin­guém jamais nota o noivo. O que é que você acha, soldadi­nho? Pense na honra de ser meu noivo em um lindo e luxuo­so casamento de maio. Cuidado com o que vai responder.

Meus ouvidos estavam zunindo e senti uma dor de cabe­ça chegando. Se eu simplesmente fechasse os olhos, desco­briria que estou no meu apartamento de solteiro no Regra de Ouro?

Tentei. Depois, reabri-os.

— Responda — insistiu a voz incorpórea.

— Minerva, quem foi que mudou meu pequeno bordo de vaso?

— Eu. Tammy disse que ela não tinha espaço suficiente para respirar, e muito menos para crescer e pediu que eu ar­ranjasse um vaso maior. Eu...

— Eu o arranjei.

— Teena achou-o e eu o reenvasei. Está vendo como ele parece tão feliz? Cresceu mais de 10 centímetros.

Olhei para minha pequena árvore. E voltei a olhar.

— Há quantos dias estou neste hospital?

Minerva, de repente, ficou absolutamente sem expressão. A voz de Teena falou:

— Você não disse qual o tamanho do brontossauro que que­ria para o desjejum. E melhor que queira um pequeno, ahn? Os mais velhos são horrivelmente duros. É o que todo mun­do diz.

Dez centímetros... Hazel dissera que me veria "pela ma­nhã". Que manhã, querida? Há duas semanas? Ou a mais tempo?

— Os mais velhos não são duros, se pendurados devida­mente. Mas não quero esperar até que a carne fique no ponto. Haveria algum atraso desses com waffles?

— Oh, não — concordou a voz de Teena. — Waffles não são comuns aqui, mas Maureen sabe tudo sobre eles. Ela foi criada, diz ela, a apenas alguns quilômetros do lugar onde você foi recriado, e quase na mesma ocasião, tome ou tire um sécu­lo ou dois. De modo que ela conhece o tipo de cozinha a que você está acostumado. Ela me explicou tudo a respeito de for­nos de waffles e experimentei até que consegui fazer um exa­tamente como ela queria. Quantos waffles você pode comer, gordinho?

— Quinhentos e sete.

Houve um curto silêncio, depois Teena disse:

— Minerva?

— Não sei.

— Mas — continuei — estou de dieta, de modo que redu­za para três.

— Não tenho certeza de que o queira como meu noivo.

— De qualquer modo, você não consultou Hazel, minha esposa.

— Nenhum problema. Hazel e eu somos amigas íntimas.

Há anos e anos. Ela o obrigará a aceitar. Se eu resolver usá-lo Não estou certa a seu respeito, Dickie, meu rapaz.

— "Dickie, meu rapaz", ahn? Você conhece meu tio Jock? Jock Campbell?

— A Raposa Prateada. Se eu conheço tio Jock! Nós não vamos convidá-lo, Dickie. Ele reclamaria a jus primae noctis.

— Temos que convidá-lo, Sra. Teena. Ele é meu parente mais próximo. Tudo bem. Eu banco o noivo e tio Jock se en­carrega de deflorar a noiva. Resolve tudo.

— Minerva?

— Coronel Richard, não acho que Athene deva fazer isso. Conheço o Dr. Jock Campbell há muitos anos e ele me conhe­ce. Se Athene insistir nesta idéia tola, não acho que ela deva se entregar primeiro ao Dr. Campbell. Um ano ou dois depois, quando ela souber... — Minerva encolheu os ombros. — Elas são pessoas livres.

— Teena pode resolver isso com Hazel e Jock. Não foi idéia minha. Quando é que esse crime vai acontecer?

— Quase imediatamente. O clone de Athene está quase pronto. Mais ou menos dentro de três de seus anos.

— Oh, eu pensei que estávamos falando sobre a próxima semana. Ou deixar de me preocupar. Nesse tempo o cavalo pode aprender a cantar.

— Que cavalo?

— Um pesadelo. Agora, a respeito desses waffles. Sra. Mi­nerva, poderia me fazer companhia nesses waffles? Não agüen­to ver você aí salivando e engolindo em seco, morrendo de fo­me, enquanto eu me espojo em waffles.

— Eu já quebrei meu jejum hoje...

— Que pena.

— ... mas isso foi há algumas horas e gostaria de experi­mentar waffles. Hazel e Maureen falam muito bem deles. Obri­gada, eu aceito.

— Você não me convidou!

— Mas Teena, minha futura noiva — criança, se você fizer como ameaçou, minha mesa será a sua. Convidá-la a compartilhar dela seria uma pletora tautologicamente redundante de excesso de excedente, repetitivo e quase insultante. Maureen lhe disse como os waffles devem ser servidos? Com mantei­ga, xarope de bordo e bacon torradinho à vontade... acompa­nhados de suco de fruta e café. O suco deve ser gelado de doer no dente e o resto quente.

— Três minutos, namorado.

Eu ia responder quando aquela parede incorpórea nova­mente se abriu e o rabi Ezra entrou andando. Andando. Usa­va muletas canadenses mas caminhava sobre duas pernas.

Sorriu largamente para mim e acenou com a muleta de mão.

— Dr. Ames! Que bom vê-lo acordado!

— Que bom revê-lo, Reb Ezra. Sra. Teena, por favor, pe­dido triplo de tudo.

— Já fiz isso. E mais, salmão defumado, rosca cristalizada e geléia de morango.

 

Foi uma refeição alegre, a despeito de todas as perguntas que me povoavam a mente. A comida era deliciosa e eu esta­va faminto. Minerva, Ezra — e Teena — eram bons companhei­ros de mesa. Eu estava raspando o xarope no último pedaço de meu primeiro waffle quando disse:

— Reb Ezra, viu Hazel esta manhã? Minha esposa. Eu es­perava que ela aparecesse por aqui.

Ele pareceu hesitar. Teena respondeu:

— Ela virá mais tarde, Dickie. Não podia ficar aqui espe­rando que você acordasse. Tem outras coisas para fazer. E ou­tros homens.

— Teena, pare de tentar me irritar. Ou não me casarei com você mesmo que Hazel e Jock concordem com isso.

— Quer apostar? Aborreça-me, seu grosseirão, e boto você para fora deste planeta. Você não obterá mais nada para co­mer, portas não se abrirão para você, refrescadores o escalda­rão e cães o morderão. E você terá coceira.

Irmã!

— Ora, Minnie.

Minerva continuou, dirigindo-se a mim:

— Não deixe minha irmã irritá-lo, coronel. Ela discute por­que quer companhia e atenção. Mas ela é um computador éti­co, inteiramente confiável.

— Tenho certeza que é, Minerva. Mas ela não pode espe­rar me encher e me ameaçar e ainda esperar que eu me po­nha na frente de um juiz, padre ou alguma outra pessoa e pro­meta amá-la, honrá-la e obedecê-la. De qualquer modo, não tenho certeza de que queira obedecê-la.

A voz do computador respondeu.

— Você não vai ter que prometer me obedecer, Dickie, meu rapaz. Eu o treinarei mais tarde. Apenas coisas simples. Aten­ção. Vá buscar. Sente-se. Deite-se. Role no chão. Banque o mor­to. Não espero nada de complexo de um homem. À parte tra­balhos como garanhão, isto é, nesse particular sua reputação o precedeu.

— O que é que você quer dizer com isso? — Botei de lado o guardanapo. — Isso acaba com tudo. O casamento está can­celado.

— Amigo Richard!

— Ahn? Sim, Reb.

— Não deixe que Teena o irrite. Ela propôs casamento a mim, a você, ao Padre Hendrik, a Choy-Mu e, sem dúvida, a muitos outros. A ambição dela é fazer Cleópatra parecer uma principiante.

— E Ninon de Lenclos, e Rangy Lil, e Marie Antoinette, e Rahab, e Kate "Couraçado", e Messalina, basta dizer o no­me. Eu vou ser a ninfomaníaca campeã do multiuniverso, be­la como o pecado e inteiramente irresistível. Homens travarão duelos por minha causa, se matarão à minha porta e escreve­rão odes ao meu dedo mínimo. Mulheres desmaiarão ao ouvir minha voz. Todos os homens, mulheres e crianças me ado­rarão de longe e eu amarei tantos deles quando puder incluir em minha agenda. Então você não quer ser meu noivo, hem? Que coisa mais imunda, perversa, maldosa, fedorenta, total­mente egoísta de dizer! Multidões enfurecidas o reduzirão a pedaços e beberão seu sangue.

— Sra. Teena, isto não é conversa apropriada de mesa. Nós estamos comendo.

— Foi você quem começou.

Tentei reexaminar os primórdios. Fora eu mesmo quem co­meçara? Não, na verdade, ela...

Em um murmúrio de um preso a outro, Reb Ezra me disse:

— Desista. Você não pode vencer. Eu sei.

— Sra. Teena, lamento ter começado isto. Não devia ter feito isto. Foi uma traquinada minha.

— Oh, então tudo bem. — O computador pareceu caloro­samente contente. — E você não tem que me chamar de "Sra. Teena". Pouquíssima gente usa apelativos por aqui. Se você cha­masse Minerva de "Dra. Long" ela olharia em volta para ver quem estava atrás.

— Tudo bem, Teena, e por favor, chame-me "Richard". Sra. Minerva, a senhora tem diploma de doutor? Em medicina?

— Um de meus diplomas é em terapia, sim. Mas minha irmã tem razão, títulos raramente são usados aqui. "Senhora" a gente nunca ouve... a não ser como expressão de carinho do homem para uma mulher a quem concedeu seu amor car­nal * Mas não há necessidade de me chamar "Sra. Minerva"... até que me resolva conceder essa bênção. Quando fizer isso. Se fizer.

Assim na lata!

Quase perdi o rebolado. Minerva parecia tão pudica, hu­milde, mansa, que me deixou inteiramente surpreso. Teena deu-me tempo para reagrupar minhas forças.

— Minnie, não tente roubá-lo de mim. Ele é meu.

— É melhor perguntar a Hazel. É melhor perguntar a ele.

— Dickie, meu rapaz! Diga a ela.

— O que é que eu posso dizer a ela, Teena? Você não re­solveu ainda a questão com Hazel e meu tio Jock. Mas, entre­mentes... — conseguiu fazer uma mesura para Minerva, tan­to quanto isso é possível de uma cama e com um bloqueio es­pinhal. — Querida moça, suas palavras me cumulam com uma grande honra. Mas, como você sabe, estou no momento fisi­camente imobilizado, incapaz de partilhar desses deleites. En­quanto isso, podemos tomar o desejo como o ato?

— Não ouse chamá-la de "senhora"!

— Irmã, olhe seu modos. Senhor, pode realmente me cha­mar de "senhora". Ou, como disse, podemos considerar o de­sejo como o ato e esperar até mais tarde. Sua terapia vai levar tempo.

— Ah, sim. Vai, mesmo. — Olhei para o pequeno bordo, não mais tão pequeno assim. — Há quanto tempo estou aqui? Minha conta aqui deve estar um bocado alta.

— Não se preocupe com isso — aconselhou-me Minerva.

— Mas eu tenho que me preocupar. Contas têm que ser pagas. E eu nem mesmo tenho Medicare. — Olhei para o ra­bi. — Rabi, como foi que o senhor financiou seus... transplan­tes? O senhor está tão longe de casa e de sua conta bancária como eu.

— Mais longe do que você pensa. E não é mais correto me chamar de rabi — no lugar onde estamos desconhece-se o To­rah. Agora sou o pracinha Ezra Davidson, Corpo de Irregula­res Temporais. Isso paga minhas contas. Acho que alguma coisa parecida paga as suas. Teena, você poderia — quero dizer, "faria o favor" de dizer ao Dr. Ames qual a conta a que são debi­tadas suas despesas?

— Ele mesmo tem que perguntar isso.

— Eu pergunto, Teena. Por favor, diga-me.

— "Campbell, Colin" conhecido também como "Ames, Ri­chard": despesa, debite todos os departamentos, à conta especial do Antigo, "Suserano Galático — Pequenas Despesas". De modo que não se aborreça, amor meu. Você é um caso de caridade, todas as despesas por conta da casa. Claro, as pes­soas que dependem dessa conta geralmente não vivem muito tempo.

— Athene!

— Mas Minnie, essa é a simples verdade. A média é de 1,73 missões e, em seguida, pagamos os benefícios por morte. A menos que lhe seja ordenado assumir alguma sinecura no QGT.

(Eu não estava ouvindo com atenção. "Suserano Galáti­co", realmente! Só uma pessoa podia ter aberto aquela conta. A queridinha brincalhona. Droga, querida — onde está você?)

A parede não tão sólida assim piscou novamente e se abriu.

— Estou atrasada demais para o café da manhã? Oh, poxa! Olá, querido!

Era ela!

 

"Em dúvida, diga a verdade."

Mark Twain, 1835-1910

 

— Richard, vim visitá-lo na manhã seguinte. Mas você não me viu.

— Ela, de fato, veio visitá-lo, Dickie, meu rapaz — confir­mou Teena. — Com grande risco para a saúde. Dê graças a Deus por estar vivo. Quase não ficou.

— Isso é verdade — reforçou Ezra. — Fui seu companhei­ro de quarto durante parte de uma noite. Depois, transferiram-me, colocaram-no de quarentena e me deram umas nove ou 90 vacinas. Irmão, você esteve para morrer.

— Dengue, convulsões provocadas por pus verde, febre sufocante... — Hazel contava minhas doenças nas pontas dos dedos —, cianose, tifo... Minerva, o que mais?

— Infecção sistêmica por estafilococo áureo, herpes hepática Landri. E, pior que tudo, perda de vontade de viver. Ish­tar, porém, não permite que morra pessoa alguma que não pe­diu a morte no gozo de seu juízo perfeito. Galahad também não permite. Tamara fez-lhe companhia durante todos os mi­nutos, até passar a crise.

— Por que é que não me lembro de nada disso?

— Dê graças a Deus porque não se lembra — sugeriu Teena.

— Amor de minha vida, se você não estivesse no melhor hospital de todos os universos conhecidos, tratado pelos terapeutas mais competentes, eu seria viúva novamente. E fico hor­rível de preto.

Ezra acrescentou:

— Se não tivesse a constituição de um boi, você nunca te­ria escapado.

Teena interrompeu com:

— De um touro, Ezra. Não de um boi. Eu sei, eu os co­nheço. Impressionantes.

Eu não sabia se agradecia a Teena ou se cancelava nova­mente o casamento. De modo que ignorei as palavras dela.

— O que não entendo é como peguei essas doenças to­das. Fui ferido, isto eu sei. Isso explicaria o estafilococo áureo. Mas as outras coisas?

— Coronel — lembrou Ezra —, o senhor é soldado profis­sional.

— Sou — e suspirei. — Nunca pratiquei este aspecto da profissão. Não me sinto à vontade nele. A guerra biológica faz com que bombas de fusão pareçam coisas limpas e decentes. Até mesmo a guerra química parece humanitária em compa­ração com armas biológicas. Muito bem, aquela faca — foi uma faca? — estava contaminada. Perigosamente contaminada.

— Estava — confirmou Ezra —, alguém o queria morto e estava disposto a matar todo mundo em Luna City, desde que você morresse também.

— Isso é loucura. Eu não sou tão importante assim. Tranqüilamente, Minerva disse:

— Richard, você é tão importante assim. Olhei-a fixamente.

— Por que é que você pensa assim?

— Lazarus me disse.

— Lazarus. — Teena usara esse nome antes. — Quem é Lazarus? Por que a opinião dele pesa tanto?

Hazel respondeu:

— Richard, eu lhe disse que você era importante, e por quê. O resgate de Adam Selene. As mesmas pessoas que querem que ele permaneça insurrecto não teriam escrúpulos em aca­bar com Luna City para acabar com você.

— Se você diz isso eu gostaria de saber o que aconteceu lá. Luna City é meu lar adotivo. Há gente boa lá. Hummm, seu filho, Ezra, entre outros.

— Isso mesmo, meu filho. E outros. Luna City foi salva, Richard. A infecção foi controlada.

— Ótimo.

— A um preço. Havia disponível uma dobra temporal de referência. O número de segundos que nos levou a todos pa­ra bordo e para sair de lá foi reconstruído com cuidadosa reencenação — por todos nós que tomamos parte na coisa, sendo seu papel desempenhado por um ator competente. Isto foi com­parado com a própria memória de Gay sobre o tempo em que ela esteve lá e procedeu-se a uma reconciliação das duas. Em seguida, uma cápsula espaço-tempo Burroughs foi levada para as coordenadas resultantes, mais quatro segundos, e de­tonada uma bomba de calor. Não atômica, mas quente, com o calor de uma estrela... uma vez que alguns desses micró­bios são duros de matar. Obviamente, o hotel teve que ser da­nificado, com alta probabilidade — não, certeza — de perda de vidas. A ameaça a Luna City foi cauterizada, mas a um preço alto. Nhetdag. — Ezra estava sombrio.

— Seu filho foi salvo?

— Acho que sim. Contudo, o bem-estar de meu filho não figurou nessa decisão e não pediram minha opinião. Foi uma decisão política do Quartel-general do Tempo. O QGT só res­gata indivíduos quando eles são indispensáveis à operação.

Richard, segundo entendo a situação — note, eu sou soldado raso em licença para tratamento de saúde e não privo das al­tas decisões de política —, segundo entendo, permitir que Lu­na City sofresse uma epidemia assassina naquela ocasião in­terferiria com planos do QGT para alguma outra coisa. Talvez este assunto a que aludiu a Sra. Gwendolyn — Hazel. Não sei.

— Interferiria, eu sei, e em Tertius não me chame de "se­nhora", a menos que queira levar a coisa adiante, Ezra, mas obrigada, de qualquer maneira. Richard, foi o dano geral que uma doença transportada pelo ar poderia ocasionar a seus pla­nos que levou o Quartel General a agir de maneira tão drásti­ca. Fizeram a coisa tão bem feita que você, eu e o resto da carga da Gay escapamos por um fio de cabelo de sermos des­truídos por aquela bomba de calor quando fugimos de lá.

(Nesta altura identifiquei um paradoxo — mas Hazel con­tinuava a falar.)

— Eles não podiam arriscar-se a esperar nem mesmo mais alguns segundos: alguns micróbios podiam entrar nos condu­tos de ar da cidade. Haviam projetado o efeito que isso teria sobre a Operação Adam Selene: desastre! Em vista disso, agi­ram. Mas o Comando do Tempo não anda correndo pelos uni­versos salvando indivíduos ou mesmo cidades inteiras. Ri­chard, eles poderiam salvar hoje Herculano e Pompéia, se qui­sessem... ou São Francisco, ou Paris. Não salvaram. Não sal­varão.

— Minha querida — comecei devagar —, você está me di­zendo que esse "Comando do Tempo" poderia impedir a Obli­teração de Paris em 2002, embora isso tenha acontecido há 200 anos? Por favor!

Hazel suspirou. Ezra tomou a palavra:

— Amigo Richard, escute com toda atenção. Não rejeite o que vou lhe dizer.

— Ahn? Tudo bem. Comece.

— A destruição de Paris ocorreu a mais de 200 anos no passado, não apenas há dois séculos.

— Mas isso é evidentemente...

— Por cálculo empírico, estamos hoje no ano gregoriano 4400 A.D., ou no ano 8160 pelo calendário judaico, fato este que achei muito inquietador, mas tive que aceitar. Além disso, aqui e agora estamos a mais de sete mil anos-luz da Terra.

Hazel e Minerva olhavam-me sérias, aparentemente espe­rando minha reação. Fiz menção de falar, parei para rever os pensamentos. Finalmente, disse:

— Só tenho mais uma pergunta. Teena?

— Não, você não pode comer mais waffles.

— Não é nada de waffles. Minha pergunta é a seguinte: posso tomar outra xícara de café? Desta vez com creme de lei­te? Por favor?

— Tome aí... pegue!

Meu pedido apareceu na mesa de colo de doente. Hazel falou impulsivamente:

— Richard, é verdade! Tudo isso. Beberiquei o café fresco.

— Obrigado, Teena. Está bem no ponto. Hazel, meu amor, não contestei. Seria tolice eu contestar uma coisa que não com­preendo. De modo que vamos passar para um assunto mais simples. A despeito dessas terríveis doenças que você disse que eu tive, eu me sinto suficientemente animado para saltar da cama e surrar os servos. Minerva, pode me dizer quanto tempo mais vou ficar com esta paralisia? Você é a minha mé­dica, não?

— Não, Richard, não sou. Eu...

— Minha irmã está encarregada de sua felicidade — inter­rompeu-a Teena. — Isso é mais importante.

— Athene tem mais ou menos razão...

— Eu sempre tenho razão!

— ... mas, às vezes, ela diz as coisas de maneira esquisi­ta. Tamara é a chefe da moral do Ira Johnson Hospital e da Howard Clinic... e esteve aqui quando você mais precisava dela, ninou-o em seus braços. Mas ela conta com numerosas assis­tentes porque o Diretor-geral Ishtar considera a moral — bem, a felicidade — fundamental para a terapia e rejuvenescimento. De modo que eu ajudo, e o mesmo fazem Maureen e Mag­gie, que você ainda não conheceu. Há outras que ajudam quan­do temos um número excessivo de problemas de felicidade — Libby e Deety, e mesmo Laz e Lord, que são soberbas nisto quando chamadas... o que não é de surpreender uma vez que são irmãs de Lazarus e filhas de Maureen. E há Hilda, natu­ralmente.

— Pare aí, por favor. Estou ficando confuso com o nome dessas pessoas todas que não conheço. Este hospital tem um quadro de pessoal que serve felicidade. Isso deu para com­preender. Todos esses anjos de felicidade são mulheres. Certo?

— Como poderia ser de outra maneira? — perguntou desdenhosamente Teena. — Onde é que você espera encontrar felicidade?

— Ora, Teena — disse Minerva em tom de reprovação. — Richard, nós operadoras femininas cuidamos da moral dos ho­mens... e Tamara tem operadores homens, hábeis, de sobrea­viso ou em serviço para cuidar de clientes e pacientes femini­nas. A polaridade oposta não é essencial absolutamente para enfermagem moral, mas a torna muito mais fácil. Não preci­samos de tantos operadores masculinos para cuidar de nos­sas pacientes femininas porque é menos provável que mulhe­res adoeçam. Os clientes de rejuvenescimento são mais ou me­nos igualmente divididos, homens e mulheres, mas mulhe­res quase nunca ficam deprimidas quando são tornadas jovens novamente...

— Apoiado, apoiado! — interrompeu-a Hazel. — Apenas me torna ardente.

Deu uma palmadinha na minha mão e acrescentou um si­nal particular, que ignorei, estando presentes outras pessoas.

— ... enquanto os homens em geral sofrem pelo menos uma crise de espírito durante o rejuvenescimento. Mas você perguntou sobre seu bloqueio espinhal. Teena?

— Eu já o chamei.

— Um momento — disse Hazel. — Ezra, já mostrou a Ri­chard suas novas pernas?

— Ainda não.

— Pode mostrar? Por favor. Você se importa?

— Para mim é um prazer exibi-las.

Ezra levantou-se, afastou-se da mesa, virou-se, ergueu no ar as bengalas e levantou-se sem ajuda. Eu não olhara para as pernas dele quando ele entrara no quarto (não gosto que olhem para meu pé). Em seguida, quando ele se sentou à me­sa de refeições que o seguira, não pude vê-las. No único vis­lumbre que tive delas, fiquei com a impressão de que ele usa­va bermudas, com meias marrons, até as panturrilhas, que combinavam com as bermudas — joelhos ossudos brancos vi­síveis entre as meias e a bermuda.

Nesse momento, ele tirou os sapatos e ficou de pé, des­calço — e eu revisei minhas idéias bruscamente. Aquelas "meias marrons" eram pele bronzeada de pernas e pés que haviam sido enxertados nos seus cotos.

Ele explicou longamente:

— ... de três maneiras. Um novo membro, ou um novo qualquer coisa, podem ser criados por germinação. Mas é tra­balho demorado e requer grande perícia, segundo me disse­ram. Ou um órgão ou membro podem ser tirados do próprio clone da pessoa e enxertados. Os clones são mantidos em êx­tase, com um cérebro internacionalmente subdesenvolvido. Disseram-me que, dessa maneira, é tão fácil como pôr remen­do numa calça — sem nenhuma possibilidade de rejeição.

— Mas eu não tenho clone aqui — ou ainda não —, de mo­do que me arranjaram alguma coisa no estoque de partes so­bressalentes...

— O mercado de carne.

— Sim, Teena. Grande quantidade de partes corporais à disposição, estoque computadorizado...

— Por mim.

— Sim, Teena. No caso de enxertos heterólogos, Teena se­leciona partes sobressalentes para a maior compatibilidade pos­sível de tecidos... compatibilizando sangue, claro, mas casando-os também de outras maneiras. E igualando em tamanho, mas isso é a parte mais fácil. Teena confere tudo e escolhe uma parte sobressalente que nosso próprio corpo confunde como sua. Ou quase.

— Ezra — disse o computador — você pode usar essas per­nas por 10 anos, no mínimo. Eu, realmente, fiz um bom tra­balho com você. Mas, por essa ocasião, seu clone estará dis­ponível. Se você precisar dele.

— Você fez, realmente, e lhe agradeço, Teena. O nome de meu benfeitor é Azrael Nkruma, Richard. Somos gêmeos, à parte uma irrelevante questão de melanina — e Ezra sorriu ale­gremente.

— Ele não sente falta dos pés? — perguntei. Ezra ficou sério de repente.

— Ele morreu, Richard.... da causa mais comum de mor­te aqui: acidente. Alpinismo. Caiu de cabeça e esmagou o crâ­nio. Nem mesmo a perícia de Ishtar poderia tê-lo salvo. E ela certamente teria tentado o possível. O Dr. Nkruma era cirur­gião no quadro de auxiliares dela. Mas estes não são os pés que o Dr. Nkruma usava. São do clone dele... dos quais nun­ca precisou.

— Richard...

— Sim, querida? Eu queria perguntar a Ezra...

— Richard, eu fiz uma coisa sem consultá-lo.

— E daí? Vou ter que surrá-la novamente?

— Isso é você quem decide. Quis que você visse as per­nas de Ezra... porque, sem sua permissão, pedi que botassem um novo pé em você. — E ela pareceu assustada.

 

Devia haver alguma regra limitando o número de choques emocionais a que uma pessoa pode ser legalmente submetida em um único dia. Recebi todo o treinamento militar padrão para reduzir os batimentos cardíacos e baixar a pressão arte­rial em uma situação de emergência. Mas em geral essas situações não esperam e as drogas desses treinamentos não são tão eficazes assim, de qualquer modo.

Desta vez, simplesmente esperei enquanto conscientemen­te reduzia a respiração. Logo depois, consegui dizer, sem que a voz se alquebrasse:

— De modo geral, não acho que isso exija uma surra. — Tentei mexer o pé naquele lado; sempre consegui sentir um pé ali, mesmo que ele houvesse desaparecido há muitos anos. — Mandou colocá-lo direito?

— Ahn? O que é que você quer dizer com isso, Richard?

— Eu gosto de ter meus pés apontando para a frente. Não como um mendigo de Bombaim. — (Aquilo teria sido uma me­xida?) — Hei, Minerva, posso ver o que foi feito? Este lençol parece apertado demais.

— Teena?

— Está chegando.

Aquela parede incorpórea piscou novamente e por ela en­trou o rapaz mais ofensivamente belo que jamais vi em toda minha vida... e a ofensa não era diminuída pelo fato de ele entrar nu em pêlo no meu quarto. Nem um fio de roupa. E o cara não usava nem mesmo sapatos. Ele olhou em volta e sorriu largamente.

— Oi, gente! Alguém me chamou? Eu estava tomando ba­nho de sol..

— Você estava dormindo. Durante o expediente.

— Teena, eu posso dormir e tomar banho de sol ao mes­mo tempo. Como vão as coisas, coronel? É bom vê-lo acorda­do. O senhor nos deu aquele trabalho. Houve ocasião em que pensamos em desistir de tudo e começar tudo novamente.

— O Dr. Galahad — apresentou Minerva — é o seu médico.

— Não exatamente — corrigiu ele, aproximando-se de mim, com um aperto no ombro de Ezra, um beliscão na bunda de Minerva e um beijo en passant em minha mulher. — Tirei a palha mais curta, só isso. De modo que sou o escolhido pa­ra levar a culpa. Enfrento todas as queixas... mas tenho que lhe avisar. Não adianta tentar me processar. Ou a nós. Nós con­trolamos o juiz. Bem...

Parou com as mãos imediatamente acima do lençol.

— Quer privacidade para isto?

Hesitei. Sim, eu queria. Ezra sentiu isso e começou a lu­tar para se levantar, tendo se sentado antes.

— A gente se vê depois, amigo Richard.

— Não, não vá. Você me mostrou as suas... Agora vou-lhe mostrar o meu, poderemos compará-los e você me dar con­selhos, já que não sei nada sobre enxertos. E Hazel fica, claro. Minerva o viu antes... não viu?

— Vi, Richard, vi.

— Então, fique também. Segure-me, se eu desmaiar. Te-ena... nada de piadinhas.

— Eu? Isso é um desdouro para minha capacidade de jul­gamento profissional!

— Não, querida. Para suas maneiras de acompanhante de doente. Que têm que ser melhoradas se você quer se compa­rar com Ninon de Lenclos. Ou mesmo com Rangy Lil. Muito bem, doutor, vamos vê-lo.

Apliquei pressão no diafragma e prendi a respiração.

Para o médico, aquela droga de lençol saiu fácil. A cama estava limpa e seca (eu verificara isso antes — e não havia ne­nhum sistema de encanamento que eu pudesse ver) — e dois grandes e feios pés projetavam-se lado a lado, o espetáculo mais belo que eu jamais vira em toda minha vida.

Minerva me pegou no momento em que desmaiei.

Teena não disse nenhuma piada.

 

Vinte minutos depois comprovou-se que eu exercia con­trole sobre meu novo pé e respectivos dedos quando não pen­sava nisso... embora em uma corrida de teste eu às vezes controlasse demais, se tentasse demais fazer o que o Dr. Galahad mandava.

— Estou satisfeito com os resultados — comentou ele. — Se você estiver. Está?

— Como é que posso descrever isto? Arco-íris? Campai­nhas de prata? Nuvens em forma de cogumelos? Ezra... você pode responder a ele?

— Eu tentei dizer a ele. É como nascer de novo. Andar é uma coisa tão simples... até que não podemos.

— Isso mesmo. Doutor, de quem é este pé? Eu não tenho rezado ultimamente... mas por ele vou tentar.

— Ele não está morto.

— Ahn?

— E não está com um pé a menos. Foi um caso esquisito, coronel. Teena teve problema para encontrar um pé direito do seu tamanho que seu sistema imunológico não rejeitasse tão depressa quanto você pode dizer "septicemia". Em vista dis­so, Ishtar — a minha chefe — disse a ela para ampliar a bus­ca... e Teena descobriu um. Esse aí. Parte do clone de um cliente vivo.

O médico fez uma advertência:

— Nunca enfrentamos antes uma situação como essa. Eu... nós, o pessoal do hospital, não temos mais autoridade nem mais direito de usar um clone reservado do que temos de lhe cortar o outro pé. Mas o cliente proprietário do clone, quando informado a respeito, resolveu lhe dar esse pé. A atitude dele foi que seu clone poderia, por germinação, criar novo pé em alguns anos. Entrementes, ele poderia passar sem aquela parte do seguro que um clone completo assegura.

— Quem é ele? Tenho que encontrar uma maneira de lhe agradecer.

(Como é que se agradece a uma pessoa por esse tipo de presente?)

— Coronel, esta é a única coisa que o senhor não vai sa­ber. O doador insistiu em permanecer anônimo. Foi esta a con­dição que ele impôs para a doação.

— Obrigaram-me mesmo a apagar meu registro disso — queixou-se amargamente Teena. — Como se eu não mereces­se confiança profissionalmente. Ora, eu mantenho melhor do que qualquer um deles aquele juramento hipócrita!

— Você quer dizer "hipocrático".

— Oh, você pensa assim, Hazel? Eu conheço essa turma muito melhor do que você.

 

O Dr. Galahad continuou:

— Claro que vou querer que você comece a usá-lo. E você precisa de exercício também para compensar pela longa doença. De modo que, fora dessa cama! Duas coisas — recomendo que use a bengala até que esteja seguro de seu equilíbrio, e tam­bém que Hazel, Minerva ou alguma outra pessoa lhe segure a outra mão durante algum tempo. Mime-se. Você ainda está fraco. Sente-se ou deite-se toda vez que tiver vontade. Hummm. Você sabe nadar?

— Sei. Mas não tenho nadado ultimamente. Andei mo­rando em um habitat especial, onde não havia piscina. Mas gosto de nadar.

— Por aqui há instalações à vontade. Uma pequena no po­rão deste prédio, outra maior no átrio. E a maioria das resi­dências particulares por aqui tem uma piscina de algum tipo. De modo que, nade. Não pode andar o tempo todo. Seu pé direito ainda não tem nenhum calo, de modo que não o force. E não use sapato até que seu pé aprenda como ser pé. — Sor­riu alegremente. — Tudo bem, então?

— E como!

Ele me deu uma palmadinha no ombro, inclinou-se e me beijou. Justamente quando eu estava começando a gostar do cara. Não tive tempo de me esquivar.

Senti-me muito aborrecido e fiz força para não demons­trar. Pelo que Hazel e os outros haviam dito, aquele bicha, bonito demais, me salvara a vida... e mais do que isso. Eu não estava em condições de recusar-lhe um beijo.

Droga!

Ele não pareceu notar minha relutância. Apertou-me o om­bro e continuou:

— Vai correr tudo bem com você. Minerva, leve-o para na­dar. Ou, Hazel. Ou alguma outra pessoa. — E foi embora.

Em vista disso, as meninas me ajudaram a sair da cama e Hazel me levou para nadar. Hazel deu um beijo de despedi­da em Minerva e, de repente, dei-me conta de que a enfer­meira esperava de mim o mesmo tratamento. Fiz um movimen­to experimental nessa direção e fui recebido com plena coope­ração.

Beijar Minerva é danado de diferente de beijar um homem, por mais bonito que ele seja. Antes de soltá-la, agradeci-lhe por tudo o que fizera por mim.

Ela respondeu, séria:

— Isto é felicidade para mim.

Saímos, eu andando com cuidado, apoiado na bengala. O pé novo formigava. Uma vez fora do quarto, aquela parede simplesmente desaparece quando a gente se aproxima dela, Hazel me disse:

— Querido, estou contente porque você beijou Minerva sem eu precisar estimulá-lo. Ela é uma cachorrinha inteiramente doida por agrado. Dar a ela afeição física significa mais do que agradecimentos jamais poderiam significar, ou qualquer pre­sente material, por mais generoso que fosse. Ela está tentan­do compensar dois séculos como computador.

— Ela foi realmente um computador?

— É melhor que você acredite nisso, meu chapa! — A voz de Teena nos seguira.

— Sim, Teena, mas deixe que eu explique a ele. Minerva não nasceu de uma mulher. O corpo dela foi criado in vitro de um óvulo com 23 pais — ela tem uma ancestralidade mais ilustre do que qualquer ser humano. Quando o corpo ficou pronto, ela ingressou com sua personalidade no corpo... jun­tamente com suas memórias...

— Algumas das memórias dela — objetou Teena. — Tira­mos cópia das memórias que ela queria levar, guardamos um conjunto e retivemos toda a memória de leitura apenas e a me­mória de acesso aleatório corrente (RAM). Isto supostamente nos transformaria em gêmeas idênticas. Mas ela escondeu coi­sas de mim... vedou-me algumas memórias, não as dividiu comigo, aquela cadela pulguenta! Isso é justo? É o que per­gunto!

— Não me pergunte, Teena. Eu nunca fui computador. Ri­chard, você já usou o tubo de queda?

— Nem desconfio do que seja.

— Segure-se em mim e aterrisse no velho pé. Acho que... Teena, você pode nos ajudar?

— Claro, amiga!

Tubos de queda são mais engraçados do que um cachorrinho collie! Depois de minha primeira queda, insisti em su­bir e descer quatro vezes "para praticar" (para me divertir, na verdade), e Hazel me fez a vontade, enquanto Teena providen­ciava para que eu não machucasse o pé novo nas aterrissagens. Escadas são um perigo para o amputado e dolorosamente in­cômodas no melhor dos casos. Elevadores sempre foram meios incômodos para todo mundo, tão sombrios como uma cinta de mulher, parecendo demais com vagões de transportar gado.

Tubos de queda, porém, ofereciam a mesma embriagadora emoção de saltar em cima de um monte de feno na fazenda de meu tio quando eu era garoto — sem a poeira e o calor. Whoopee!

Finalmente, Hazel parou com a brincadeira:

— Escute, querido, vamos nadar. Por favor.

— Tudo bem. Você vem com a gente, Teena?

— Como posso evitar? Hazel perguntou:

— Você nos grampeou, querida? Ou apenas um de nós?

— Nós não usamos mais implantes, Hazel. É grosseiro de­mais. Zeb e eu bolamos um macete que usa um duplo triplo para manter quatro eixos em ligação, vista-som nas duas dire­ções. A cor é um pouco falha mas estamos melhorando.

— De modo que você nos grampeou.

— Prefiro chamar isso de "raio espião". O som é melhor. Tudo bem, vocês estão grampeados.

— Foi o que pensei. Podemos ter privacidade? Tenho as­suntos de família a discutir com meu marido.

— Claro, amiga. Monitoramento hospitalar apenas. Fora disso, os três macaquinhos e o velho apagamento rápido.

— Obrigado, querida.

— Quando quiser sair de debaixo da pedra, simplesmente diga meu nome. Dê um beijo nele por mim. Ciao!

— Agora temos realmente privacidade, Richard. Teena está escutando e vigiando você em todas as frações de segundo, mas fazendo isso tão impessoalmente como um voltímetro, e sua única memória não-transitória é para assuntos como pul­sação e respiração. Coisa parecida foi usada para evitar que. você sofresse enquanto esteve doente.

Eu fiz meu brilhante comentário habitual:

— Hummm?

Tínhamos saído para o lar livre, deixando o prédio central do hospital, e estávamos de frente para um pequeno parque flanqueado por duas alas. Era um prédio em forma de U. O pátio era rico em flores, plantas verdes, e no meio dele havia uma piscina que "acontecia" ser da forma casual certa para se ajustar a esses canteiros, caminhos e arbustos. Hazel parou em frente a um banco que dava para a piscina, sob uma árvore. Sentamo-nos, deixando que o banco se ajustasse a nós, e ob­servamos o pessoal na piscina — quase tão divertido como nadar.

— De que é que você lembra de sua chegada aqui? — per­guntou Hazel.

— Não muito. Eu estava me sentindo muito tonto... aque­le ferimento, você sabe. ('Aquele ferimento" era nesse momento uma cicatriz da largura de um cabelo, difícil de achar... Acho que fiquei desapontado.) — Ela... Tamara? — Tammy me olhou nos olhos e parecia preocupada. Ela disse alguma coisa em outra língua...

— Galacta. Você vai aprendê-la. É fácil...

— Mesmo? De qualquer modo, ela me falou, e isto é a úl­tima coisa de que me lembro. Para mim, aquilo aconteceu na noite passada e acordei esta manhã, e agora descubro que não foi na noite passada, mas só Deus sabe quando, e estive in­consciente o tempo todo. Perturbador. Hazel, quanto tempo demorou isso?

— Depende da maneira como o contar. Para você, cerca de um mês.

— Mantiveram-me inconsciente esse tempo todo? Isto é muito tempo para manter um homem sob sedação.

(A coisa me preocupou. Eu os vira entrar em cirurgia, saí­dos diretamente do campo de luta... e saírem do hospital fisi­camente perfeitos... mas viciados em analgésicos. Morfina, De­meral, Sanssouci, Metadona, o que fosse.)

— Querido, você não foi mantido inconsciente.

— Repita.

— Foi usado um campo "Lethe" o tempo todo — nada de drogas. O Lethe permite que o paciente continue alerta e co­operativo... mas a dor é esquecida logo que surge. Ou qualquer coisa. Você não sofreu, querido, mas cada dor era um fato se­parado, esquecido imediatamente. Você nunca teve de supor­tar aquela fadiga insuportável que acompanha a dor intermi­nável. E agora você não tem ressaca nem necessidade de se livrar de semanas após semanas de drogas viciadoras. — Sor­riu para mim. — Você não era grande companhia, querido, por­que um homem que não pode lembrar o que aconteceu dois segundos antes não pode manter uma conversa coerente. Mas você parecia gostar de ouvir música. E comia muito bem, en­quanto alguém o alimentasse.

— Você me alimentou?

— Não. Não interferi no trabalho de profissionais. — Mi­nha bengala escorregara para a grama. Hazel inclinou-se e apanhou-a para mim. — Por falar nisto, recarreguei sua bengala.

— Obrigado. Hei! Ela estava carregada. Toda.

— Estava quando eles nos atacaram — e isto foi bom, tam­bém. Ou eu não estaria viva. Você, também, acho. Eu, com certeza.

Passamos os 10 minutos seguintes nos confundindo. Eu já contei como vi o que me pareceu aquela luta em frente do Raffles Hotel. Vou contar em curtas palavras como Hazel dis­se que a mesma lhe pareceu. Não há maneira de reconciliar as duas.

Ela diz que não usou a bolsa como arma. ("Ora, isso seria uma tolice querido. Lenta demais e não letal. Você liquidou dois deles imediatamente e me deu tempo para sacar minha pequena Miyako. Depois de eu ter usado meu chale, quero dizer.")

Segundo ela, eu matei quatro, enquanto ela operava na pe­riferia, esfriando os que eu errava. Até que eles me derruba­ram com aquele corte na coxa (Faca? Ela me contou que tira­ram fragmentos de bambu do ferimento.) e me atingiram com um aerosol — e isto lhe deu o instante de que precisava para acabar com o homem que havia me borrifado.

("Pisei na cara dele, agarrei você e arrastei-o dali. Não, eu não esperava ver Gretchen. Mas sabia que podia contar com ela.")

A versão dela explica um pouco melhor como vencemos... exceto que, segundo minhas recordações, está toda errada. Não adianta tentar achar falhas nelas porque é impossível de re­mendar.

— Como foi que Gretchen apareceu lá? Que Xia e Choy-Mu estivessem à espera não tem mistério, tendo em vista os recados que deixamos para eles. E Hendrik Schultz, também, se pegou a ponte aérea logo que teve notícias minha. Mas Gret­chen? Você falou com ela pouco antes do almoço. Ela estava em casa, em Ossos Secos.

— Em Ossos Secos, com o metrô mais próximo bem ao sul, em Hong Kong Luna. De modo que, como foi que ela che­gou a L-City tão ligeiro? Não por rolador. Não ofereço prêmio algum pela resposta certa.

— Em foguete.

— Claro. Sendo o foguete um saltador de garimpeiro. Lem­bra-se que Jinx Henderson estava pensando em devolver aquele fez através de um amigo que ia de saltador para L-City?

— Claro.

— Gretchen foi com aquele amigo e ela mesma devolveu o fez. Deixou-o na seção de achados e perdidos do Velho Do­mo, antes de ir ao nosso encontro no Raffles.

— Entendo, mas, por quê?

— Ela quer que você lhe bata no bumbum, querido, e faça-o ficar vermelho.

— Oh, besteira! Quero dizer, por que o pai dela deixou que fosse de carona a L-City com esse vizinho? Ela é moça demais.

— Ele deixou-a fazer isso pela razão habitual. Jinx é um homem grandalhão, forte macho, que não pode resistir às li­sonjas da filha. Proibido de satisfazer suas ânsias incestuosas reprimidas, deixa que ela faça tudo o que quer, se insistir o bastante.

— Isso é ridículo. E indesculpável. O dever de um pai pa­ra com a filha exige que...

— Richard, quantas filhas você tem?

— Ahn? Nenhuma. Mas...

— Então deixe de falar sobre uma coisa da qual nada sa­be. Pouco importa o que Jinx devia ter feito, o fato é que Gret­chen saiu de Ossos Secos mais ou menos enquanto estáva­mos almoçando. Contando o tempo de vôo, ela chegou à câ­mara pneumática de Luna-City Leste mais ou menos no mo­mento em que estávamos deixando o Complexo Executivo... e chegou ao Raffles segundos antes de nós — e foi bom isso, também, ou nós dois estaríamos mortos, acho.

— Ela se meteu na briga?

— Não, mas carregando-o ela me liberou para cobrir nos­sa retirada. E tudo porque ela quer que você bata no bumbum dela. Deus age de maneiras misteriosas, querido. Para cada ma­soquista ele cria um sádico. Casamentos são feitos no céu.

— Lave sua boca com sabão! Eu não sou nenhum sádico!

— Sim, querido. Posso ter entendido mal alguns detalhes, mas não o quadro geral. Gretchen propôs formalmente, pedindo-me sua mão em casamento.

— O quê?

— Isso mesmo. Ela pensou bem no caso e discutiu-o com Ingrid. Ela quer que eu lhe permita entrar para nossa família, em vez de iniciar uma nova linhagem ou um grupo próprio. Não achei nada de surpreendente nisso. Eu sei como você é encantador.

— Deus do céu! O que foi que você respondeu a ela?

— Disse a ela que o casamento tinha minha aprovação, mas que você estava doente. De modo que esperasse. E agora você mesmo pode responder... porque ela está ali, do outro lado da piscina!

 

"Não adie até amanhã o que pode ser desfrutado hoje."

Josh Billings, 1818-1885

 

— Vou voltar direto para meu quarto. Acho que vou des­maiar. — Apertei os olhos, procurando ver através da água faiscante de sol. — Não a estou vendo.

— Bem em frente, à direita do tobogã d'água. Uma loura e uma morena. Gretchen é a loura.

— Eu não esperava que ela fosse morena. — Continuei a olhar. A morena acenou para nós. Reconheci Xia. Acenei de volta.

— Vamos ficar com eles, Richard. Deixe sua bengala e as outras coisas no banco. Ninguém vai tocar nelas.

Hazel tirou as sandálias e pôs a bolsa junto à bengala.

— Um banho de chuveiro antes? — perguntei.

— Você está limpo. Minerva lhe deu banho esta manhã. Vai mergulhar? Ou entrar andando?

Mergulhamos juntos. Hazel deslizou entre as moléculas como se fosse uma foca. Eu abri na água um buraco suficiente para uma família inteira. Subimos à tona em frente a Xia e Gret­chen, e fui recebido com festa.

Disseram-me que em Tertius o resfriado comum foi ven­cido, bem como a peridondite e outras doenças que prolife­ram na boca e garganta e, naturalmente, aquele grupo outro­ra chamado de "doenças venéreas", porque são tão difíceis de contrair que exigem o contato mais íntimo para o contágio,

Ótimo isso... em Tertius.

A boca de Xia tem um gosto de especiaria; a de Gretchen uma doçura de menininha, embora (descobrir) ela não seja mais menininha nenhuma. Tive ampla oportunidade de comparar sabores. Se soltava uma, a outra me agarrava. Repetidamente.

Por fim elas se cansaram disso (eu, não) e nós quatro nos dirigimos para uma enseada rasa, encontramos uma mesa flu­tuante desocupada e Hazel pediu chá — chá com calorias: pe­queninos bolos e sanduíches, frutos cítricos doces, parecidos com uvas sem caroço. E eu abri o ataque:

— Gretchen, quando a conheci, há menos de uma sema­na, você, segundo me lembro, "ia fazer 13 anos". Assim, co­mo ousa estar cinco centímetros mais alta, cinco quilos mais pesada e pelo menos cinco anos mais velha? Cuidado com o que responder, porque tudo o que disser será anotado por Teena e usado contra você em outro tempo e lugar.

— Alguém disse meu nome? Oi, Gretchen! Bem-vinda à casa.

— Oi, Teena. É ótimo estar de volta. Apertei Xia:

— Você, também. Você parece cinco anos mais moça e tem que explicar isso.

— Nenhum mistério a meu respeito. Estou estudando bio­logia molecular, exatamente como fazia em Luna — mas aqui conhecem muito mais sobre o assunto — e pagando meu es­tudo com trabalho na Clínica Howard, fazendo trabalho "Geor­ge" não-programados — e passando cada minuto de folga na piscina. Richard, aprendi a nadar! Ora, lá em Luna não co­nheci ninguém que conhecesse alguém que soubesse nadar. E sol e ar fresco! Em Kongville, eu ficava dentro de casa, res­pirando ar encanado sob luz artificial e discutia com almofadinhas sobre farras. — Tomou uma profunda respiração, erguen­do o busto além do ponto de perigo, e expeliu todo o ar num suspiro. — Saí viva! Não é de espantar que eu pareça mais moça.

— Muito bem, você está desculpada. Mas não deixe que isso aconteça novamente. Gretchen?

— Vovó Hazel, ele está me apoquentando? Ele fala igual­zinho a Lazarus.

— Ele está lhe irritando, querida. Diga a ele o que an­dou fazendo e por que está mais velha.

— Bem... na manhã que chegamos aqui pedi conselhos a vovó Hazel...

— Não precisa me chamar "Vovó", querida.

— Mas é assim que Cas e Pol chamam você, e sou duas gerações mais moça do que eles. Eles querem que eu os cha­me de "tios".

— Eu vou ensiná-los a dizer "tio"! Não dê atenção a Castor e Pólux, Gretchen. Eles são má influência.

— Tudo bem. Mas acho que eles são bacaninhas. Mas en­chem. Sr. Richard...

— Não precisa me chamar de "senhor".

— Sim, senhor. Hazel estava ocupada — você estava mui­to mal! —, de modo que ela me passou para Maureen, que me passou para Deety, que começou a teoria básica dos seis eixos do espaço-tempo, e o paradoxo literário. Metafísica conceituai...

— Devagar aí! Você acaba de me perder.

— Mais tarde, Richard — disse Hazel. Gretchen continuou:

— Bem... a idéia essencial é que Tertius e Luna — nossa Luna, quero dizer — não estão na mesma vertente temporal, estão em ângulos de 90°. De modo que resolvi que queria ficar aqui — é muito fácil, se a pessoa é sadia, a maior parte deste planeta é ainda selva e imigrantes são bem-vindos, mas havia a questão de mamãe e papai. Eles pensariam que eu estava morta.

E prosseguiu:

— De modo que Cas e Pol levaram-me de volta para Luna — nossa Luna nesta vertente de tempo —, e Deety foi comi­go. De volta a Ossos Secos, isto é, no princípio da tarde de julho, menos de uma hora depois que viajei no saltador de Cyrus Thorn. Todo mundo ficou surpreso. Foi bom que Deety estivesse comigo para explicar as coisas, embora nossos trajes pressurizados convencessem mais papai do que qualquer ou­tra coisa. Você já viu o tipo de trajes pressurizados que têm aqui?

— Gretchen, eu vi um quarto de hospital, um tubo de que­da e esta piscina. Não sei nem mesmo qual é o caminho para o Correio.

— Hummm, sim. De qualquer modo, os trajes pressuri­zados aqui são dois mil anos mais avançados do que os que usamos em Luna. O que não é de surpreender... mas certa­mente surpreendeu papai. No fim, Deety fez um negócio por mim. Eu poderia ficar em Tertius... e viria de visita a cada dois anos, se pudesse encontrar alguém para me trazer. E Deety prometeu ajuda nisso. Mamãe obrigou papai a concordar. Afi­nal de contas quase todo mundo em Luna emigraria para um planeta como Tertius, se pudesse... Exceto aqueles que sim­plesmente precisam de baixa gravidade. Falando nisso, senhor, que tal acha seu novo pé?

— Estou apenas me acostumando agora. Mas dois pés são 897 vezes melhores do que um único.

— Acho que isso significa que gosta dele. De modo que voltei e sentei praça no Comando do Tempo...

— Devagar aí! Continuo a ouvir gente falando em "Coman­do do Tempo". O rabi Ezra me disse que sentou praça também. Esta moça de cabelos ruivos alega que é major nele. E agora você se alistou. Aos 13 anos de idade? Ou sua idade atual? Es­tou confuso.

— Vovó? Quero dizer, Hazel?

— Ela teve permissão para se alistar no corpo auxiliar das W.E.N.C.H.E.S., porque eu disse que ela tinha idade. Com isso ela foi enviada para a escola em Paradox. Quando se formou, foi transferida para a Segunda Harpias e passou por treina­mento básico, seguido de escola avançada de combate...

— E quando saltamos em Solis Lacus na vertente tempo­ral 4 para mudar o resultado da luta ali e naquela ocasião foi lá que peguei esta cicatriz nas costelas — está vendo? — e fui promovida a cabo no campo de batalha. E agora tenho 19 anos, mas oficialmente 20 para que eu possa ser promovi­da a sargento — depois que lutamos em New Brunswick. Não nesta vertente temporal — acrescentou ela.

— Gretchen é uma pessoa nata para a carreira militar — comentou tranqüilamente Hazel. — Eu sabia que seria.

— E recebi ordens para me matricular na escola de oficiais, mas isso foi sobrestado até que eu tenha esse bebê e...

— Que bebê?

Olhei para a barriga, a gordura infantil desaparecida — não gordinha como fora quatro dias antes pelos meus cálcu­los... seis anos antes pela história maluca que eu estava ou­vindo. Não estava grávida, tanto quanto eu podia ver. Depois olhei nos olhos dela e sob os olhos. Bem, talvez. Provavelmente.

— Não aparece? Hazel notou imediatamente. E Xia tam­bém.

— Não, para mim não aparece.

(Richard, meu velho, é tempo de tomar uma decisão. Vo­cê vai ter que mudar seus planos. Ela engravidou e embora você não tenha feito isso, sua presença mudou a vida dela. Transformou-lhe o Carma. De modo que, vá em frente. Por mais superior e brava que uma jovem pareça ser, quando vai ter um bebê ela precisa de um marido à vista, ou não se senti­rá relaxada na hora do parto. Não pode ser feliz. Uma jovem mãe tem que ser feliz. Diabo, homem, você escreveu este en­redo dezenas de vezes em histórias de confissões verdadei­ras. Você sabe o que tem que fazer. Faça!)

Continuei:

— Agora, ouça bem, Gretchen, você não pode fugir de mim com essa facilidade toda. Na última noite de quarta-feira, no Dragão Feliz — bem, foi a última quarta-feira para mim, mas você andou vagabundeando por estranhas vertentes tem­porais — e se divertindo, aparentemente. Na noite da última quarta-feira, segundo meu calendário, nos Sonhos Tranqüi­los do Dr. Chan, na Pressurizada Dragão Feliz, você prome­teu casar comigo... E se Hazel tivesse continuado a dormir, te­ríamos iniciado o bebê ali mesmo. Conforme nós dois sabe­mos. Mas Hazel acordou e me fez voltar para o outro lado. — Olhei para Hazel. — Desmancha-prazer! Continuei:

— Mas não acho nem por um segundo que você possa evi­tar casar comigo simplesmente porque foi engravidada enquan­to eu estava doente. Não pode. Diga a ela, Hazel. Ela não po­de escapar disso. Pode?

— Não, não pode. Gretchen, você vai se casar com Richard.

— Mas, vovó, eu não prometi casar com ele. Não prometi!

— Richard diz que você prometeu. De uma coisa tenho cer­teza: quando acordei, vocês dois iam iniciar um bebê. Talvez eu devesse ter bancado a morta. — E prosseguiu: — Mas por que essa agitação toda, menina querida? Eu já disse a Richard que você me pediu a mão dele... e que eu concordei, e agora ele aceitou. Por que o recusa agora?

— Hum... — Gretchen controlou-se. — Aquilo aconteceu quando eu tinha 13 anos de idade. Naquele tempo, eu não sa­bia que você era minha tataravó... eu chamava você de "Gwen" lembra-se? E naquele tempo, também, eu pensava como uma lunariana — uma gente muito conservadora. Mas aqui em Tertius, se uma mulher tem um bebê mas não tem marido, nin­guém dá a mínima bola. Ora, no Segundo de Harpias a maio­ria das aves tem filhos, mas apenas algumas são casadas. Há três meses nós lutamos nas Termópilas para garantir que os gregos venceriam desta vez, e nosso coronel de reserva foi que nos comandou porque nossa coronel regular ia dar à luz. É dessa maneira que nós, velhas profissionais, fazemos as coi­sas... nada de confusão. Temos nossa própria creche em Barrehouse, Richard, e cuidamos de nossos filhos. Realmente, cuidamos.

Secamente, disse Hazel:

— A filha de minha tataraneta não será criada numa cre­che. Droga, filha, eu fui criada numa creche. Não deixarei que você faça isso com essa criança. Se não quer casar conosco, você tem pelos menos que deixar que adotemos o bebê.

— Não!

Hazel cerrou os lábios.

— Neste caso vou ter que discutir o assunto com Ingrid.

— Não! Ingrid não é meu chefe... nem você. Vovó Hazel, quando saí de casa eu era uma criança e virgem e tímida e nada sabia do mundo. Agora não sou mais criança, não sou virgem há anos e sou uma veterana de combate que não pode ser assustada por nada. — Olhou bem dentro de meus olhos. — Eu não vou usar um bebê para forçar Richard a casar comigo.

— Mas Gretchen você não está me forçando. Eu gosto de bebês. Eu quero casar com você.

— Quer? Por quê? — Ela pareceu triste.

As coisas estavam solenes demais. Precisávamos aliviar o ambiente com uma brincadeira.

— Por que quero casar com você, querida? Para bater no seu bumbum e vê-lo ficar cor-de-rosa.

Gretchen ficou boquiaberta, sorriu depois e encheu-se de covinhas.

— Mas isso é ridículo!

— É, hem? Possivelmente ter um bebê não exige casamento por estas bandas, mas bater é outra coisa. Se eu bater na mu­lher de outro homem, ele pode aborrecer-se, ou ela, ou os dois. Arriscado. Provavelmente passarei a ser objeto de comentá­rios. Ou coisa pior. Se eu surrar uma moça solteira, ela pode usar isso para me pegar, quando não a amo nem quero casar com ela, mas estava simplesmente a surrando pour le sport. É melhor casar com você. Você está acostumada a isso, e gos­ta. E tem um bumbum sólido, que pode agüentar pancada.

E isto é uma boa coisa, também... porque eu bato com força. Brutalmente.

— Oh, pô! Onde foi que você arranjou essa idéia maluca de que eu gosto disso? — (Por que as auréolas de seus seios estão tão enrugadas, querida?) — Hazel, ele bate mesmo com força?

— Não sei, querida. Eu quebraria o braço dele, e ele sabe disso.

— Está vendo só qual é a minha situação, Gretchen? Na­da de pequenos prazeres inocentes. Eu sou um desprivilegiado. A menos que você se case comigo.

— Mas eu...

Gretchen, de repente, levantou-se, quase derrubando a me­sa flutuante, virou-se, saiu tempestuosa da piscina e começou a correr para o sul, saindo do jardim.

Levantei-me também e fiquei acompanhando-a com os olhos até que ela desapareceu. Acho que não poderia tê-la al­cançado, mesmo que não estivesse amaciando um novo pé. Ela corria como um fantasma assustado. Voltei a sentar e sus­pirei.

— Bem, mãe, eu tentei... Eles eram grandes demais para mim.

— Fica para outra vez, querido. Ela quer. Vai se convencer.

— Richard — observou Xia —, você só esqueceu uma pa­lavra. Amor.

— O que é "amor", Xia?

— É o que a mulher quer ouvir quando casa.

— Isso ainda não me diz o que é amor.

— Bem, eu, de fato, conheço uma definição técnica. Humm... Hazel você conhece Jabal Harshaw? Membro da Fa­mília principal.

— Há anos. De qualquer maneira que você entenda a palavra.

— Ele tem uma definição...

— Tem, eu sei.

— Uma definição de amor que acho permitiria que Richard usasse honestamente a palavra ao falar com Gretchen. Diz o Dr. Harshaw que a palavra "amor" designa um estado subje­tivo no qual o bem-estar e a felicidade de outra pessoa são es­senciais à própria felicidade do indivíduo. Richard, acho que você exibiu esse relacionamento no tocante a Gretchen.

— Eu? Mulher, você está louca. Só quero colocá-la em uma situação irremediável, na qual eu possa bater no bumbum de­la toda vez que tiver vontade e fazê-lo ficar cor-de-rosa. Com força, brutalmente.

Projetei o peito para a frente, tentei parecer macho — não muito convincentemente, reconheço. Eu ia ter que fazer algu­ma coisa sobre essa barriguinha. Bem, com todos os diabos, eu estivera doente.

— Sim, Richard. Hazel, acho que o chá acabou. Vocês dois gostariam de ir até meu quarto? Não vejo vocês há tanto tem­po! E posso convidar Choy-Mu. Acho que ele não sabe ainda que Richard está agora livre do campo Lethe.

— Boa pedida — concordei. — E o Padre Shultz está à mão? Uma de vocês, moças, poderia pegar minha bengala, por fa­vor? Acho que poderia ir até lá apanhá-la... mas não tenho certeza de que devo me arriscar ainda.

Firme, Hazel retrucou:

— Tenho certeza de que não deve. E já andou demais. Teena...

— Onde é que é a briga?

— Pode me arranjar uma cadeira preguiçosa? Para Richard.

— Por que não três?

— Uma basta.

— Em marche, marche. Richard, fique batendo nessa te­cla. Ela está enfraquecendo. A nossa guerreira grávida.

O queixo de Hazel caiu.

— Oh, eu esqueci que não estávamos em regime de pri­vacidade. Teena!

— Não se aborreça com isso. Sou sua amiga, e você sabe disso.

— Obrigado. Teena.

Levantamo-nos todos e saímos da piscina. Xia me deteve, pôs os braços em volta de mim, olhou-me bem e disse tran­qüilamente, mas em voz alta o bastante para incluir Hazel:

— Richard, eu vi nobreza antes, mas não com muita fre­qüência. Eu não estou grávida. Não é necessário casar comi­go. Nem preciso e nem quero marido. Mas está convidado para uma lua-de-mel comigo em qualquer ocasião em que Hazel puder dispensá-lo. Ou, melhor ainda, os dois. Acho que você é um cavaleiro andante. E Gretchen sabe disso.

Logo que a boca ficou livre, respondi:

— Não é nobreza, Xia, eu simplesmente tenho um méto­do diferente de sedução. Viu com que facilidade você caiu? Diga a ela, Hazel.

— Está vendo? — disse triunfante Xia.

— E está morto de medo que alguém descubra.

— Oh, besteira! Vou contar a vocês o caso que tive com minha professora do quarto ano primário.

— Mais tarde, Richard. Depois de você ter tido tempo de polir a história. Richard conta excelentes histórias para dormir.

—Isto é, quando não estou batendo. Xia, o seu bumbum fica cor-de-rosa.

 

Parece que eu tomara o desjejum em alguma ocasião de­pois do meio-dia. Aquela noite foi das mais agradáveis, em­bora minhas recordações dela contenham lacunas. Não posso botar a culpa disso no álcool, já que não bebi tanto assim. Mas descobri que o campo Lethe produz um leve efeito colateral que o álcool pode potencializar. O Lethe pode afetar erratica­mente a memória durante algum tempo, depois que o pacien­te dele saiu. Ah, bem... nhetdag! Uns brancos na memória não constituem o risco que é'o vício em drogas fortes.

De fato lembro-me que nos divertimos muito: Hazel, eu, Choy-Mu, Ezra, Padre Hendrik e (depois que Teena a locali­zou para nós e Hazel lhe falou) Gretchen. Todos nós que ha­víamos escapado do Raffles — até mesmo os dois pares de rui­vos que nos resgataram tomaram parte na festinha da noite, Cas e Pol, Laz e Lor. Bons meninos. Mais velhos do que eu, soube depois, mas não parece. Em Tertius idade é um concei­to vago.

Os aposentos de Xia eram pequenos demais para tanta gen­te, mas uma festa atravancada é o melhor tipo de festa.

Os ruivos foram embora, fiquei cansado, entrei e me dei­tei na cama de Xia. Um feroz jogo de cartas estava acontecen­do com pagamento em prendas. Hazel parecia estar sendo a grande vencedora. Xia foi à falência de acordo com quaisquer regras que estivessem seguindo, e veio me fazer companhia. Gretchen apostou mal na partida seguinte e tomou o outo la­do da cama. Usou meu ombro esquerdo como travesseiro, ten­do Xia já se apossado do direito. Do outro cômodo, ouvi Ha­zel dizer:

— Vejo e dobro uma galáxia.

O Padre Hendrik soltou uma risadinha.

— Boba! Ganhei, minha querida moça, com prenda em triplo. Pague.

Isto foi a última coisa de que consigo me lembrar.

 

Alguma coisa estava coçando meu queixo. Acordei deva­gar e devagar consegui abrir os olhos. Descobri-me olhando para os olhos mais azuis que jamais vi em toda minha vida. Pertenciam a um gatinho, de cor alaranjada brilhante, mas tal­vez com alguma ancestralidade siamesa. Ele estava em pé em cima de meu peito, ao sul de meu pomo-de-adão. Agradavel­mente, ele disse "Miau?" e voltou a lamber meu queixo. Sua pequenina língua áspera explicava a coceira que me acordara.

Respondi "Miau" e tentei erguer uma das mãos para aca­riciar o bichano, mas descobri que não podia porque continuava com uma cabeça em cada ombro, um corpo quente de cada lado.

Virei a cabeça para o lado a fim de falar a Xia — precisava me levantar e ir ao refrescador dela —, e descobri que não era Xia, mas Minerva que nesse momento usava meu ombro direito.

Fiz uma rápida análise da situação e cheguei à conclusão de que carecia de dados suficientes. De modo que, em vez de usar uma expressão respeitosa com Minerva, que poderia ou não ter sido apropriada, simplesmente beijei-a. Ou me deixei ser beijado, depois de mostrar disposição. Preso de ambos os lados e com uma pequena criatura felina em cima de meu peito, eu me sentia quase tão impotente como Gulliver, quase inca­paz do papel ativo como iniciador de beijo.

Minerva, porém, não precisa de ajuda. Ela pode dar um jeito. Talento.

Depois que ela me soltou, tendo me beijado até se fartar, ouvi uma voz à esquerda:

— E eu? Também não ganho um beijo?

Gretchen é soprano e aquela voz era tenor. Virei a cabeça.

Galahad!

Eu estava na cama com meu médico. Bem, com ambos.

Quando rapaz em Iowa, ensinaram-me que, se jamais me encontrasse naquela ou em situação análoga, o gambito apro­priado era correr gritando para os morros a fim de salvar mi­nha "honra", ou seu homólogo para homens. Uma moça po­dia sacrificar sua "honra", e a maioria fazia isso. Mas se ela fosse razoavelmente discreta a esse respeito e terminasse ca­sada com nada pior que um bebê de sete meses, sua "honra" logo voltava a crescer e ela era oficialmente acreditada como tendo sido noiva virgem, com direito de olhar desdenhosa para mulheres pecadoras.

A "honra" de um rapaz, porém, era coisa mais delicada. Se a perdesse para outro homem (isto é, se fosse flagrado perdendo-a), ele poderia, se tivesse sorte, acabar no Departa­mento de Estado — ou, se azarado, se mudaria para a Califór­nia. Iowa, porém, não era mais lugar para ele.

 

Isso relampejou em minha mente — e foi seguido por uma recordação suprimida: uma excursão de escoteiros quando eu era primeiranista de escola secundária, uma tenda dividida com o chefe de escoteiros assistente. Apenas aquela vez, na escuridão da noite, e em um silêncio quebrado apenas por um pio de coruja... Algumas semanas depois, esse chefe de esco­teiros foi para Harvard... de modo que, naturalmente, a coisa nunca aconteceu.

O tempora, o mores — aquilo acontecera há muito tempo e em lugar muito distante. Três anos depois, sentei praça, e candidatei-me a oficial e consegui... e fui sempre extremamente circunspecto, uma vez que o oficial que não resiste a transar com seus soldados não pode manter disciplina. Nunca, até aquele caso Walker Evans, tive jamais qualquer razão para te­mer chantagem.

Endureci um pouco o braço esquerdo.

— Claro, mas tenha cuidado. Parece que sou habituado. Galahad teve cuidado e o gatinho não foi perturbado. É

possível que Galahad beije tão bem como Minerva. Não me­lhor. Apenas igualmente bem. Uma vez resolvido a desfrutar o inevitável, desfrutei-o. Tertius não é Iowa. Boondock não é Grinnell. Não havia mais razão alguma para ser algemado pelos costumes de uma tribo há muito desaparecida.

— Obrigado — disse eu —, bom-dia. Pode tirar esse gato de cima de mim? Se ele ficar onde está, vou acabar sufocando-o.

Galahad envolveu o gato com a mão esquerda.

— Este é Pixel! Pixel, posso lhe apresentar Richard? Ri­chard, é uma honra para nós que Lord Pixel tenha vindo nos fazer companhia, o felino residente.

— Prazer, Pixel.

— Miau.

— Obrigado. E onde é que está aquele refrescador? Preci­so ir lá.

Minerva ajudou-me a sair da cama, pôs meu braço direito em volta de seus ombros, amparou-me enquanto Galahad pe­gava minha bengala, e em seguida os dois me levaram ao re­frescador. Não estávamos no quarto de Xia. O refrescador movera-se para o outro lado do quarto e era maior, o que acon­tecia também com o quarto.

E aprendi outra coisa sobre Tertius: o equipamento de um refrescador era de uma complexidade e variedade que faziam parecer tão primitiva como a ocasional "casinha" que se en­contra ainda em partes remotas de Iowa tipo de instalações que eu usara no Regra de Ouro, em Luna City e outros lugares.

Nem Minerva nem Galahad me deixaram sentir embara­çado por nunca ter sido instruído sobre as instalações hidráu­licas tertianas. Quando ia apanhar o aparelho errado para mi­nha necessidade mais premente, ela simplesmente disse:

— Galahad, era melhor você demonstrar para Richard. Não estou equipada para fazer isso.

E ele demonstrou. Bem, sou forçado a admitir que não sou equipado da mesma maneira que Galahad, tampouco. Visua­lize o Davi de Miguel Ângelo (Galahad é bonito assim!) mas equipe essa imagem com o material de engatamento três ve­zes maior do que o que Miguel Ângelo deu a Divi. Isso des­creve Galahad.

Quando completamos os três o refrescamento pós-sono, voltamos juntos ao quarto e mais uma vez me surpreendi — sem ter tido ainda a coragem de perguntar onde estávamos, como havíamos chegado ali e o que acontecera ao outros — especialmente a minha necessária... a qual, quando ouvida pela última vez, estava apostando galáxias em um jogo alucinado. Ou transando. Ou fazendo as duas coisas.

Uma parede desaparecera do quarto, a cama se transfor­mara em sofá, a parede desaparecida emoldurava um jardim deslumbrante — e sentado no sofá, brincando com o gatinho, estava o homem que eu conhecera brevemente em Iowa dois mil anos antes. Ou era o que todo mundo dizia. Eu continua­va inseguro sobre esse número. Já estava, aliás, tendo proble­mas suficientes para me acostumar com os cinco anos adicio­nais de Gretchen. Ou seis. Ou alguma outra coisa. Olhei-o fixamente.

— Dr. Hubert.

— Como vai. — O Dr. Hubert pôs o gatinho de lado. — Venha aqui. Mostre-me esse pé.

— Hummm... — Que arrogância mais besta. — O senhor tem que falar primeiro com meu médico.

Ele me olhou secamente.

— Deus do céu! Não é que ele gosta de regulamentos? Mui­to bem.

Às minhas costas, Galahad disse tranqüilamente:

— Por favor, deixe que ele lhe examine o transplante, Ri­chard. Se quiser ter a gentileza.

— Se você diz isso.

Levantei o pé novo e empurrei-o na cara de Hubert, er­rando o grande nariz dele por um centímetro.

Ele não recuou, de modo que meu gesto deu em nada. Sem pressa, desviou a cabeça um pouco para a esquerda.

— Ponha-o sobre meu joelho, faça o favor. Isto será mais conveniente para nós dois.

— Certo. Vá em frente.

Apoiado na bengala, fiquei suficientemente firme.

Galahad e Minerva ficaram calados, sem interferir, enquan­to o Dr. Hubert me examinava o pé pela vista e toque, mas nada fazendo que me parecesse realmente profissional — quero dizer, nada de instrumentos. Usou olhos e dedos nus, belis­cando o pé, esfregando-o, olhando de perto para a cicatriz e de repente arranhando a sola do pé com força e com a unha do polegar. O que é esse reflexo? Os dedos devem se encur­var para cima ou para baixo? Sempre desconfiei que médicos fazem isso por rancor.

O Dr. Hubert levantou meu pé, indicou que eu podia recolocá-lo no chão, o que fiz.

— Bom trabalho — disse ele a Galahad.

— Obrigado, doutor.

— Sente-se, coronel. Vocês, pessoas, já tomaram o desje­jum? Eu tomei, mas estou querendo mais. Minerva, você da­ria um berro por nós? Boa menina. Coronel, quero que se aliste imediatamente. Que patente espera? Cabe observar que isso não importa, porque o salário é o mesmo e, qualquer que seja a patente que escolha, Hazel vai ser de uma patente superior. Quero-a no comando, e não o contrário.

— Espere aí. Alistar-me para o quê? E o que é que o leva a pensar que quero me alistar em alguma coisa?

— No Comando do Tempo, naturalmente. Exatamente co­mo sua esposa se alistou. Para a finalidade de resgatar a pessoa-computador conhecida como "Adam Selene", também natu­ralmente. Escute, coronel, não seja tão obtuso. Sei que Hazel discutiu este assunto com o senhor. Sei que assumiu o com­promisso de ajudá-la. — Apontou para meu pé. — Por que é que pensa que foi feito esse transplante? Agora que tem am­bos os pés, vai precisar de outras coisas. Treinamento em refrescador. Orientação com armas que nunca usou. Rejuvenes­cimento. E todas essas coisas custam dinheiro, e a maneira sim­ples de pagar por elas é alistar-se no Comando. Esse pé ape­nas seria caro demais para um estranho procedente de uma era primitiva... mas não para um membro do Comando. O se­nhor pode compreender isso. De quanto tempo precisa para pensar numa coisa tão óbvia? Dez minutos? Quinze?

(Esse boquirroto devia vender promessas políticas de cam­panha.)

— Não tanto assim. Já pensei. Ele sorriu largamente.

— Ótimo! Levante a mão direita e repita comigo...

— Não.

— "Não" o quê?

— Simplesmente "Não". Eu não encomendei este pé.

— E dai? Sua esposa encomendou. Não acha que deve pa­gar por ele?

— E desde que não encomendei e não quero ser pressio­nado por você... — Mais uma vez, mandei o pé na cara dele, errando por pouco o feio nariz. — Corte-o.

— Ahn?

— Você ouviu o que eu disse. Corte-o e ponha-o de volta no estoque. Teena. Você está aí?

— Claro, Richard.

— Onde está Hazel? Como é que posso encontrá-la? Ou pode dizer a ela onde estou?

— Já disse. Ela mandou dizer que esperasse.

— Obrigado, Teena.

Hubert e eu ficamos sentados em nossos lugares, nada di­zendo, ignorando-nos, Minerva desaparecera e Galahad fin­gia que estava sozinho. Em questão de segundos, porém, mi­nha querida entrou impetuosamente — e por sorte a parede estava aberta.

— Lazarus! Que Deus mande sua alma nojenta para o in­ferno! Que idéia é essa sua de interferir?

 

"O otimista proclama que vivemos no melhor dos mundos pos­síveis, e o pessimista teme que isso seja verdade. "

James Branch Cabell, 1879-1958

 

— Bem, Hazel...

— "Bem, Hazel", uma ova! Responda! O que é que você está fazendo, intromentendo-se em assuntos meus? Eu lhe disse para ficar fora disto, eu lhe avisei. Eu disse que era uma nego­ciação delicada. Mas logo que viro as costas — deixando-o em segurança nos braços de Minerva, com Galahad servindo de apoio —, saio para fazer um serviço... e o que é que encontro? Você! Intrometido, trapalhão e desajeitado como sempre, des­truindo todo meu cuidadoso trabalho preparatório.

— Agora, Sadie...

— Uma merda! Lazarus, que compulsão é essa que o faz mentir e enganar? Por que você não pode ser honesto na maio­ria das vezes? E onde é que pegou essa nojenta coceira de interferir ern tudo? Não com Maureen, isto é certo. Responda, droga, antes que eu lhe arranque a cabeça e a enfie por sua goela.

— Gwen, eu estava simplesmente tentando limpar o caminho...

Minha querida interrompeu-o com tal saraivada de pala­vrões coloridos e imaginativos que hesito em registrá-los por­que não lhes posso fazer justiça: minha memória não é per­feita. Era alguma coisa como "Mude o Nome Sagrado de Arkansas", apenas mais lírico. Fez isso em aguda cantoria que me lembrou sacerdotisas pagãs rezando em um sacrifício — sacrifício humano no qual o Dr. Hubert era a vítima.

Enquanto Hazel lavava o peito, três mulheres entraram pela parede aberta. (Mais do que esse número de homens olhou para dentro, mas recuou apressadamente. Acho que não que­riam estar presentes enquanto o Dr. Hubert estivesse sendo escalpelado.) As três mulheres eram beldades, mas não abso­lutamente parecidas.

Uma delas era loura, tão alta como eu, ou mais alta, uma deusa nórdica tão perfeita que é inteiramente inacreditável. Ela escutou, sacudiu pesarosa a cabeça, voltou ao jardim e desa­pareceu. A outra era mais ruiva, que no princípio tomei por Laz, ou Lor — depois notei que ela era... não mais velha, ape­nas mais madura. E não sorria.

Olhei-a e achei que matara a charada. Ela tinha que ser a irmã mais velha de Laz e Lor — e o Dr. Hubert era o pai (ir­mão?) de todas elas... O que explicava como o Dr. Hubert era esse "Lazarus" cujo nome eu ouvira repetidas vezes mas não conhecera ainda — exceto que conhecera, antigamente, em Iowa.

A terceira era uma pequena boneca chinesa — chinesa de porcelana, não do tipo de Xia — de não mais de 155 centíme­tros e talvez 40kg, com a beleza imemorial de uma rainha Nefertiti. Minha querida parou para respirar e este pequeno duen­de assoviou alto e bateu palmas:

— Grande exibição, Hazel! Estou com você.

— Hilda, não a encoraje — pediu Hubert-Lazarus.

— E por que não? Você foi flagrado com a boca na botija, ou Hazel não estaria tão fula assim, isto é certo. Eu a conheço, conheço você... Quer apostar?

— Eu não fiz nada! Tentei simplesmente implementar uma política previamente acordada, para a qual Hazel precisa de ajuda.

A minúscula mulher cobriu os olhos e orou:

— Deus querido, perdoa-o. Ela está novamente fazendo a mesma coisa.

A ruiva perguntou suavemente:

— Woodrow, exatamente, o que foi que você fez?

— Não fiz nada.

— Woodrow!

— Eu lhe digo, nada fiz para justificar essa crítica. Eu es­tava tendo uma discussão civilizada com o Coronel Campbell quando... — E calou-se.

— E então, Woodrow?

— Discordamos.

O computador levantou a voz:

— Maureen, quer saber por que eles discordaram? Quer que eu reproduza esta soi-disant "discussão civilizada"?

— Athene — disse Lazarus —, você não deve reproduzir. Aquilo foi uma discussão privada.

Rapidamente falei:

— Não concordo. Ela pode, com minha permissão, repro­duzir o que eu disse.

— Não. Athene, isto é uma ordem. O computador respondeu:

— Regra Um: trabalho para Ira, não para você. Você mes­mo resolveu isso quando fui ativada. Peço a Ira para dirimir esta questão? Ou reproduzo aquela metade da discussão que pertence ao meu noivo?

Lazarus-Hubert pareceu atônito.

— Seu o quê?

— Meu noivo, meu prometido, se quer as coisas bem cla­ras. Mas na próxima manhã, quando eu vestir meu corpo extasiantemente belo, o Coronel Campbell comparecerá diante de você e trocará comigo votos relativos à nossa família. De mo­do que você vê, Lazarus, você estava tentando intimidar meu prometido, assim como o recém-casado esposo de Hazel. Vo­cê não pode fazer isso. Nunca, nunquinha. É melhor ceder e pedir desculpas... em vez de tentar extrincar-se blefando. Você não pode, e sabe disso. Foi flagrado. Não só eu ouvi o que você disse, mas Hazel também.

Lazarus pareceu ainda mais aborrecido.

— Athene, você transmitiu uma conversa particular?

— Você não estabeleceu o requisito de privacidade. Ao con­trário, Hazel de fato fez uma requisição de monitoração de Ri­chard. Tudo legal, de modo que não me venha com interpre­tações capciosas. Lazarus, aceite o conselho da única amiga que você tem que não pode enganar, que o ama a despeito de seus maus modos, isto é, eu. Reduza suas perdas, meu cha­pa, e veja se sai desta na lábia. Faça os últimos 100 metros rastejando e talvez Richard lhe dê uma segunda oportunida­de. Não é difícil lidar com ele. Agrade-o, e ele ronrona, exata­mente como aquele gatinho. (Pixel estava no meu colo e eu o estava alisando, tendo ele subido pela velha perna, fincan­do grampos enquanto subia... Perdi algum sangue mas não o suficiente para precisar de transfusão.) — Pergunte a Miner­va. Pergunte a Galahad. Pergunte a Gretchen ou a Xia. Per­gunte a Laz ou Lord. Pergunte a qualquer pessoa.

(Resolvi pedir a Teena — em particular — que me esclare­cesse alguns lapsos que tinha eu na memória. Ou seria isso imprudente?)

Lazarus respondeu:

— Nunca tive a intenção de ofendê-lo, coronel. Se falei de maneira rude demais, peço-lhe que me desculpe.

— Esqueça.

— Vamos trocar um aperto de mão?

— Tudo bem.

Estendi a mão e ele pegou-a. Deu-lhe um bom aperto, sem tentar quebrar nenhum osso. Olhou-me nos olhos e eu senti seu calor humano. É difícil deixar de gostar do filho da mãe — quando ele tenta.

— Segure sua carteira, meu querido — recomendou mi­nha querida. — Eu ainda vou esclarecer tudo isto, tintim por tintim.

— Isso é mesmo necessário?

— É... Você é novo aqui, querido. Lazarus pode roubar suas meias sem você tirar os sapatos, vendê-las de volta a você e fazê-lo pensar que foi uma pechincha — depois roubar seus sapatos quando se sentar para calçar as meias, e você termi­nará ainda agradecendo a ele.

— Bem, Hazel... — voltou a dizer Lazarus.

— Cale a boca. Amigos e família. Lazarus tentou coagir Richard a alistar-se às cegas para a Operação Suserano Galá­tico, tentando fazê-lo sentir-se culpado por causa desse pé subs­tituto. Lazarus insinuou que Richard era um caloteiro que es­tava tentando fugir às suas dívidas.

— Não insinuei nada disso.

— Eu já lhe disse para calar a boca. Sua intenção foi essa. Amigos e família, meu novo marido vem de uma cultura na

qual dívidas são sagradas. O lema nacional deles é "Não Há Este Tal de Almoço Gratuito". A palavra NHETDAG está bor­dada na bandeira deles. Em Luna — a Luna da vertente tem­poral de Richard, não esta — um homem pode lhe cortar a goela, mas morreria antes de lhe pagar um calote. Lazarus sabia disso, de modo que procurou o lugar mais sensível e apertou-o. Lazarus usou seus mais de dois mil anos de experiência, seus amplos conhecimentos de cultura e conduta humana, contra um homem de muito menos que um século de expe­riência, e esta apenas em seu próprio sistema solar e vertente temporal. Não foi uma luta leal, e Lazarus sabia disso. Foi pro­fundamente desleal. Tal como lançar esse gatinho contra uma velha jaguatirica.

Eu estava sentado junto a Lazarus, tendo permanecido ali depois daquele exame idiota do pé. Baixara a cabeça, ostensivamente para brincar com o gatinho, mas na verdade para não olhar para Lazarus — ou qualquer pessoa —, uma vez que es­tava achando muito inquietante a insistência de Hazel em la­var aquela roupa suja em público. Embaraçosa.

Em conseqüência, estava olhando para meus pés e para os dele. Eu disse por acaso que Lazarus estava descalço? Não prestara atenção porque uma das coisas a que nos acostuma­mos imediatamente em Tertius é a ausência de maneira obri­gatória de vestir. Não me refiro à falta de roupa. (Broondok ven­de mais roupas do que qualquer cidade terrena de tamanho semelhante — mais ou menos um milhão de pessoas — em parte porque as roupas só são usadas uma vez e, depois, reci­cladas.)

Quero dizer que nem pés descalços nem corpos pelados surpreendem por mais de cinco minutos. Lazarus estava usan­do um pareô, uma lava-lava, ou quem sabe um saiote esco­cês. Mas só notei os pés quando olhei para eles.

Hazel continuou:

— Lazarus tirou tal cruel vantagem do ponto fraco de Ri­chard — seu ódio compulsivo ao endividamento — que Richard pediu que seu novo pé fosse amputado. Em desesperada ne­cessidade de lavar sua honra, ele disse a Lazarus: "Corte-o e reponha-o no estoque!"

— Ora, ora — prometeu Lazarus —, ele não disse a sério nem eu o levei a sério. Uma figura de retórica. A fim de de­monstrar que estava aborrecido comigo. Como bem poderia estar. Cometi um erro, reconheço.

— Você, de fato, cometeu um erro! — interrompi-o. — Um erro tumular. Seu túmulo, talvez, ou meu. Porque não foi uma figura de retórica. Eu quero que esse pé seja amputado. Exijo que receba de volta seu pé. Seu pé, senhor! Olhem aqui, vo­cês todas, e depois olhem para ali! Para meu pé direito e em seguida para o pé direito dele.

Quem se deu ao trabalho de olhar não pôde deixar de ver o que eu queria dizer. Quatro pés masculinos... e três eviden­temente procedentes dos mesmos genes: os dois pés de Lazarus e o meu novo pé. O quarto era o pé com que eu havia nascido: igual aos outros três apenas em tamanho, não em cor da pele, textura, pilosidade, ou qualquer detalhe.

Quando me cobrara o custo daquele transplante, Lazarus me incomodara. Mas esta nova descoberta, que o próprio La­zarus fora o doador anônimo, que eu fora transformado em recipiente involuntário de sua caridade, pela própria carne e osso do pé, era intolerável.

Olhei furioso para ele.

— Doutor, por trás de minhas costas e inteiramente sem meu consentimento, o senhor me colocou em um estado de obrigação insuportável. Eu não vou tolerar isso!

E eu tremia de raiva.

— Richard, Richard! Por favor — Hazel parecia prestes a debulhar-se em lágrimas.

E eu, também. A moça ruiva mais velha correra para mim, curvara-se e colocara minha cabeça sobre seus seios maternais, ninava-me e me dizia:

— Não, Richard, não! Você não tem que se sentir dessa maneira.

 

Saímos mais tarde naquele mesmo dia. Mas ficamos para o jantar. Não corremos dali furiosos.

Hazel e Maureen (a querida senhora mais velha que me consolara) conseguiram me convencer que as despesas de hos­pital e cirurgia não precisavam me preocupar porque Hazel tinha dinheiro de sobra em um banco local — o que Teena con­firmou — e que Hazel podia e pagaria minhas contas se fosse apropriado mudar a referência sob a qual eu fora hospitaliza­do. (Pensei em pedir à minha amada que mandasse ali mes­mo a referência, através de Teena. Mas resolvi não aborrecê-la com isso. Droga, "nhetdag" é uma verdade básica, mas "men­digos não podem ser exigentes" também é — e naquele momento eu era um mendigo. Isto nunca foi boa posição para barganha.)

Quanto ao pé em si, segundo costume local invariável, "partes sobressalentes" (mãos e pés, corações, rins, etc. não são compradas ou vendidas. Havia apenas um emolumento de serviço e manuseio, cobrado juntamente com a cirurgia.

Galahad confirmou este fato:

— Fazemos isto desta maneira para evitar a formação de mercado negro. Posso lhe mostrar planetas em que há real­mente um mercado negro desses, onde um fígado combinan­do pode significar um assassinato combinando — mas não aqui. O próprio Lazarus estabeleceu esta regra, há mais de 100 anos. Compramos e vendemos tudo mais... mas não trafica­mos com seres humanos ou pedaços de seres humanos.

Galahad riu alegre para mim.

— Mas há outra razão por que você não deve se contra­riar. Você não teve voz no caso quando um grupo de nós cos­turou aquele pé no seu coto, e todo mundo sabe disso. Mas todo mundo também sabe que você não pode se livrar dele... a menos que resolva fazer isso com seu próprio canivete. Por­que eu não o amputarei. Nem você encontrará em Tertius ne­nhum cirurgião que faça isso. Normas do sindicato, sabia, e cortesia profissional.

E acrescentou:

— Mas se você cortá-lo pessoalmente, por favor, convide-me. Eu quero observar.

Disse isso com a maior seriedade, e Maureen censurou-o por isso. Não tenho certeza se ele estava pilheriando.

Não obstante, a detente implicou uma grande mudança nos planos de Hazel. Lazarus falara a verdade quando disse­ra que tudo que tentara fazer fora implementar um plano adre­de acordado. Mas fora ainda acordado que Hazel (e não Laza­rus) era a pessoa que implementaria o plano.

Hazel poderia ter conseguido, mas Lazarus, não! Lazarus jamais poderia me convencer porque eu achava a coisa toda ridícula. Por outro lado, se Hazel quer realmente alguma coisa de mim, eu tenho tanta probabilidade de recusar como... bem, como Jinx Herderson tem de recusar um pedido da fi­lha, Gretchen.

Lazarus, porém, não podia compreender isso.

Acho que Lazarus sofre da compulsão de ser a maior rã em qualquer poça d'água. Espera ser a noiva em todos os ca­samentos, o cadáver em todos os enterros... ao mesmo tempo fingindo que não tem ambições que é apenas um matuto com um chapéu de palha na cabeça e estéreo de boi entre os dedos dos pés.

Se você acha que não morro de amores por Lazarus Long, não vou discutir.

O plano era quase a mesma coisa que Lazarus descreve­ra. Hazel esperara que eu lhe fosse fazer companhia no Co­mando Temporal, planejara rejuvenescimento para mim — re­juvenescimento cosmético à minha escolha. Enquanto isso es­tivesse acontecendo, eu aprenderia gálata, estudaria a histó­ria de multiuniversos em várias vertentes temporais e, após o rejuvenescimento, seria submetido novamente a treinamento militar de vários tipos, até que me transformasse em um anjo da morte ambulante, armado ou desarmado.

Quando achasse que eu estava pronto, ela planejava que executássemos a missão Adam Selene, da Operação Suserano Galático.

Se sobrevivêssemos, poderíamos nos aposentar do Coman­do Temporal, viver o resto de nossos dias com uma gorda pen­são em um planeta de nossa escolha — gordos e felizes.

Ou poderíamos permanecer juntos no Comando, bastan­do para isso que eu me realistasse por um período de serviço de 50 anos — depois rejuvenescimento com cada período e a oportunidade de nos tornarmos eventualmente mestres do tempo. Isto era supostamente o grande prêmio — mais diver­tido do que gatinhos bebês, mais emocionante do que monta­nhas-russas, mais satisfatório do que ter 17 anos e estar apai­xonado.

Viver ou morrer, faríamos isso juntos — até que, finalmente, um de nós esperasse pelo outro no fim daquele túnel.

 

Mas esse programa pifou porque Lazarus se meteu e ten­tou me torcer o braço (o pé?) para que eu o aceitasse.

Minha querida planejara uma abordagem em pianíssimo: viver algum tempo em Tertius (um lugar celestial), aprender a história dos multiuniversos e a teoria das viagens no tem­po, etc. Não me obrigara a me alistar, mas depender do fato de ela e Gretchen, e Ezra e outros (tio Jock, por exemplo), eram membros do Comando... até que eu pedisse para ser aceito e prestasse juramento.

O custo de meu novo pé não teria me incomodado: a) se Hazel tivesse tido tempo de me convencer que o custo seria descontado de minha crescente eficiência em ajudá-la na "Adam Selene" e que o pé, por isso mesmo, se pagaria por si mesmo (a simples verdade!) — e Lazarus sabia disso; b) se Lazarus não tivesse tentado me cobrar o preço do pé e o usa-se para me pressionar; c) se Lazarus tivesse permanecido longe de mim (como se esperava que fizesse). E, por conseguinte, nunca me tivesse dado a oportunidade de descobrir que ele era meu anô­nimo doador — pés descalços ou não.

Acho que poderia dizer que nada disso teria acontecido se Hazel não houvesse tentado me manipular (e tentaria, ten­tou, e tentaria)... Mas o direito sem igual da esposa, consa­grado pela tradição, de manipular o marido retroage sem in­tervalos e mesmo até Eva e a maçã. E não vou criticar uma tradição sagrada.

Hazel não renunciou à intenção, apenas mudou de tática. Resolveu me levar para o Quartel-general do Tempo e deixar que os altos oficiais e os especialistas me respondessem às perguntas.

— Homem querido — disse-me ela —, você sabe que eu quero resgatar Adam Selene, e o mesmo querem mamãe e pa­pai. Mas as razões deles e as minhas são sentimentais, não o suficientemente boas para que você arrisque sua vida.

— Oh, não diga isso, amada minha! Por você eu cruzo o Helesponto. Num dia calmo, isto é, com uma escolta de bar­cos por perto. E um contrato para tevê em três d. Direitos co­merciais. E o restante.

— Fale sério, querido. Eu não tinha pensando em convencê-lo explicando a grande finalidade, o efeito sobre o multi-universo... uma vez que eu mesma não compreendo bem is­so. Não sei a matemática necessária e não sou um dos Com­panheiros do Círculo — o Círculo de Ouroboros, que preside a todas as mudanças cósmicas. Lazarus, porém, bagunçou as coisas tentando apressá-lo. De modo que acho que você tem o direito de saber exatamente por que este salvamento é ne­cessário e por que está sendo solicitado a participar dele. Ire­mos ao Quartel-general e deixaremos que eles tentem convencê-lo. Lavo minhas mãos desta parte do trabalho. Isto cabe aos Companheiros, os altos dignitários da manipulação do tem­po. Eu disse isso a Lazarus... Ele é um dos Companheiros do Círculo.

— Namorada, é muito mais provável que eu dê ouvidos ao que você diz. Lazarus teria problemas para me vender no­tas de 10 coroas por duas coroas.

— Problema dele. Mas ele só tem um voto no Círculo, em­bora ele seja o mais graduado. Claro, ele é sempre o mais gra­duado, em toda parte.

Essas palavras despertaram-me a curiosidade:

— Essa idéia de que Lazarus tem 2.000 anos de idade...

— Mais. Mais de 2.400.

— Como quer que seja, quem é que diz que ele tem mais de dois milênios? Ele parece mais moço do que eu.

~ Ele foi rejuvenescido várias vezes.

— Mas quem alega que ele tem essa idade? Perdoe, amor, mas você não pode dar testemunho disso. Mesmo que lhe creditemos cada quinzena que você alega ter vivido, ele ainda seria 10 vezes mais velho do que você. Se for. Mais uma vez, quem diz isso?

— Hummm... não eu, isso é verdade. Mas nunca tive a menor razão para duvidar disso. Acho que você deveria con­versar com Justin Foote.

Hazel olhou em volta. Estávamos naquele pátio ajardina­do que fica no lado de fora do quarto onde acordei. (O quarto dela, soube depois — ou dela quando o queria. Essas coisas eram fluídas. Outros tempos adotam outros costumes.) Está­vamos naquele jardim com outros membros da família Long e convidados, amigos e parentes, comendo tira-gostos sabo­rosos e nos embebedamos tranqüilamente. Hazel selecionou um homenzinho tímido, o tipo que é sempre eleito tesoureiro de qualquer organização a que pertença.

— Justin! Venha aqui, querido. Arranje um tempinho pa­ra mim.

Ele veio em nossa direção, passando por cima de crianças e cachorros e, ao chegar, beijou minha mulher daquela ma­neira calorosa como ela sempre era cumprimentada. E disse-a ela:

— Ratinha buliçosa, você esteve ausente por tempo longo demais.

— Negócios, querido. Justin, este é o meu marido queri­do, Richard.

— Nossa casa é sua. — E me beijou.

Bem, eu estava preparado para aquilo. Tinha acontecido demais. Essas pessoas se beijam com tanta freqüência como os antigos cristãos. Contudo, este foi um beijo de tia, só pro­tocolo e seco como osso.

— Obrigado, senhor.

— Por favor, fique certo de que não é nosso costume apli­car pressão em hóspedes. Lazarus é lei para si mesmo, mas não representa o restante de nós. — Sorriu-me e dirigiu em seguida a atenção para minha esposa. — Hazel, você permite que eu obtenha de Athene, para os Arquivos, uma cópia de suas observações a Lazarus?

— Para quê? Eu o espinafrei. E a coisa passou.

— Mas é de interesse histórico. Ninguém mais, nem mes­mo Ishtar, jamais surrou um Antigo tão completamente como você fez. Nos anais, é muito pouca a desaprovação aos atos dele, em qualquer grau. A maioria das pessoas acha difícil dis­cordar dele abertamente, mesmo quando discordam mais. De modo que isto constitui não só um item interessante para fu­turos estudiosos, mas será útil também ao próprio Lazarus, se ele jamais o ler. Ele está tão acostumado a fazer o que quer que é bom para ele ser lembrado, de vez em quando, que não é Deus. — Justin sorriu. — E constituiu uma lufada de ar fres­co para todos nós. Além disso, Hazel, amor, a qualidade lite­rária da peça é grande e excepcional. Quero-a para os Arquivos.

— Oh... besteira, querido. Fale com Lazarus. Nihil obstat, mas isto vai requerer a permissão dele.

— Considere isso feito. Eu sei como lhe explorar o obsti­nado orgulho. O princípio do porquinho. Tudo o que tenho que fazer é me oferecer para censurar a peça, mantê-la fora dos Arquivos. Com uma insinuação de que desejo lhe pou­par os sentimentos. Ele então fecha a cara e insiste em que se­ja incluída nos Arquivos... sem ser editada ou expurgada.

— Bem... tudo bem se ele disser tudo bem.

— Posso perguntar, querida, onde aprendeu algumas da­quelas expressões mais escabrosas?

— Não, não pode. Justin, Richard me fez uma pergunta que não posso responder. De que modo sabemos que o Anti­go tem mais de 2.000 anos de idade? Para mim, é como per­guntar: "Como é que sei que o Sol vai nascer amanhã?" Eu simplesmente sei.

— Não, é como perguntar: "Como é que você sabe que o Sol nasceu muito antes de você ter nascido?" A resposta é que você não sabe. Hum... interessante.

Ele piscou para mim.

— Parte do problema, tenho certeza, reside no fato de que você vem de um universo no qual o fenômeno das Famílias Howard nunca aconteceu.

— Acho que nunca ouvi falar nisso. O que é?

— É um codinome para pessoas com vidas extremamente longas. Mas, primeiro, preciso contar os primórdios. Os Com­panheiros do Círculo de Ouroboros designam universos por números de série... mas uma maneira mais compreensível para terráqueos consistiria em perguntar quem primeiro pôs os pés em Luna. Quem, em seu mundo?

— Ahn? Um cara chamado Neil Armstrong. Acompanha­do do Coronel Buzz Aldin.

— Exatamente. Um empreendimento da NASA, um órgão do governo, se me lembro corretamente. Mas neste universo, meu mundo e o de Lazarus Long, a primeira viagem à Lua foi financiada não pelo governo, mas por uma empresa priva­da, dirigida por um financista, um certo D. D. Harriman, e o primeiro homem a pôr os pés em Luna foi Leslie LeCroix, um empregado de Harriman. Em ainda outro universo, foi um pro­jeto militar, e o primeiro vôo a Luna teve lugar na USAFS Kil­roy Was Here. Em mais outro... não importa: em todos os uni­versos o início das viagens espaciais é um evento decisivo, afe­tando tudo o que veio depois: Agora, a respeito do Antigo... no meu universo, ele foi um dos primeiros pilotos espaciais. Durante muitos anos fui arquivista das Famílias Howard... Com base nesses arquivos, posso demonstrar que Lazarus Long é piloto espacial ativo há mais de 24 séculos. Você acharia isso convincente?

— Não.

Justin Foote inclinou a cabeça, concordando.

— Razoável. Quando um homem racional ouve alguma coi­sa que colide com todo o bom senso, ele não acreditará — e não deve —, sem evidência irrespondível. Você não a viu ain­da. Só lhe forneceram boatos. Boatos respeitáveis e, na verda­de, verdadeiros, mas apesar disso boatos. Estranho. No meu caso, cresci com eles. Eu sou o 45? membro das Famílias Howard a ter o nome "Justin Foote" o primeiro da linhagem ten­do sido um curador das Famílias em princípio do século XX gregoriano quando Lazarus Long era um bebê e Maureen uma mocinha...

Neste ponto a conversa reduziu-se a cacos. A idéia de que a querida mulher que me consolara tinha um filho de 24 sé­culos de idade... mas que ela mesma era uma mera filha de um século e meio — droga, em alguns dias não vale a pena sair da cama, um turismo em Iowa quando eu era menino e ainda verdadeiro em Tertius mais de dois mil anos depois. (Se fosse!) Eu me sentira inteiramente feliz com Minerva em um braço e Galahad no outro e Pixel no meu peito. À parte aque­la pressão na bexiga.

Maureen lembrava-me de outra discrepância.

— Justin, há outra coisa que me incomoda. Você disse que este planeta está muito, muito longe, no espaço e no tempo, de meu lar — mais de dois mil anos no tempo e mais de sete mil anos-luz em distância.

— Não, não digo isso porque não sou um astrofísico. Mas isso está de acordo com o que me ensinaram, sim.

— Ainda assim, aqui e hoje, ouvi inglês idiomático falado no dialeto de meu tempo e lugar. Mais do que isso, com o so­taque do Cinturão do Milho do Meio-oeste americano, áspe­ro, de uma certa forma enferrujado. Feio e inconfundível. Re­solve esse enigma para mim?

— Oh, estranho, mas nenhum mistério. O inglês está sendo falado como uma cortesia com você.

— Eu?

— Você. Athene poderia lhe fornecer tradução instantânea, nas duas direções, e a festa aqui poderia ser dada em gálata. Mas, infelizmente, devido a uma decisão tomada por Ishtar há muitos anos, o inglês foi tornada a língua de trabalho na clínica e no hospital. Que isto pudesse ser feito origina-se de circunstâncias que cercaram o último rejuvenescimento do An­tigo, reforçado pela fala de sua mãe e consolidado pelo fato de que Athene fala com esse sotaque e expressões idiomáti­cas e recusa-se a falar inglês de outra maneira. O mesmo se aplica a Minerva, desde que o aprendeu quando era ainda com­putador. Mas nem todos nós falamos inglês com igual facili­dade. Você conhece Tamara?

— Não tão bem quanto gostaria.

— Ela é provavelmente a pessoa mais carinhosa e mais estimável do planeta. Mas não é uma lingüista. Aprendeu in­glês quando tinha mais de 200 anos. Acho que sempre falará inglês macarrônico... embora o fale todos os dias. Isso explica o fato estranho de que uma língua morta esteja sendo falada em um jantar festivo de família, em um planeta que gira em torno de uma estrela distante do Velho Lar Terra?

— Bem... explica. E não me satisfaz. Ahn, Justin, tenho a impressão de que todas as objeções que eu levantar serão respondidas... mas eu não me convencerei.

— Isso é razoável. Por que não espera algum tempo? Ra­pidamente, sem pressionar, os fatos que acha difíceis de acei­tar se encaixarão nos seus lugares.

De modo que mudamos de assunto. Hazel disse:

— Querido meu, eu não lhe disse por que tive que sair a fim de fazer uma coisa... ou porque cheguei tarde. Justin, você já foi detido alguma vez na estação de teleportação sul?

— Vezes demais. Espero que alguém construa logo um ser­viço concorrente. Eu mesmo levantaria o capital e o montaria se não fosse tão confortavelmente preguiçoso.

— Hoje cedo, saí para fazer compras para Richard — sa­patos, querido, mas não vai usá-los até que Galahad disser que pode — e substituições dos ternos que perdi naquela briga no Raffles. Não pode encontrar coisas iguais, de modo que me contentei com vermelho-cereja e verde-jade.

— Boas escolhas.

— Foram, e combinam com você, acho. Tinha terminado as compras e teria estado de volta antes que você acordasse, mas... Justin, faziam fila na estação de teleportação, de modo que apenas suspirei e tomei meu lugar... e um furador de fila, um turista nojento de Secundus, passou seis lugares na mi­nha frente.

— Ora, o patife!

— Não adiantou nada para ele. O furador de fila foi exe­cutado.

Fitei-a.

— Hazel?

— Eu? Não, não, querido! Reconheço que fiquei tentada. Mas, na minha opinião, forçar a barra em uma fila não mere­ce nada mais pesado do que um braço quebrado. Não, não foi isso o que me deteve. Um tribunal de transeuntes foi formado imediatamente e eu quase fui escolhida como jurada. A única maneira de cair fora foi dizer que tinha presenciado o fato, era testemunha... Pensei que com isso ia ganhar tempo. Não tive essa sorte e o julgamento durou quase meia hora.

— Enforcaram-no? — perguntou Justin.

— Não. O veredicto foi "homicídio em interesse público", acabaram com ele e voltei para casa. E mais do que em tem­po. Lazarus, diabos o levem, procurara Richard, fizera meu amor infeliz e arruinara meus planos, de modo que tornei La­zarus infeliz. Como você sabe.

— Como todos sabemos. O turista morto tinha alguém com ele?

— Não sei. E não me importo. Mas de fato acho que matá-lo foi drástico demais. Mas sou sentimental e sempre fui. No pas­sado, quando alguém tomava meu lugar numa fila, sempre dei­xava que escapasse com leves ferimentos corporais. Mas furar fila é uma infração que jamais deve ser perdoada. Isso sim­plesmente encoraja os malandros. Richard, comprei sapatos para você porque sabia que seu novo pé não podia usar o tipo de sapato que você calçava quando chegou aqui.

— Isso é verdade.

(Meu sapato direito — desde a amputação — sempre tivera que ser feito sob medida por um protético. Um pé vivo não caberia nele.)

— Não fui a nenhuma sapataria. Fui a uma fábrica que pos­sui um pantógrafo geral e pedi que usassem seu sapato es­querdo para sintetizar um sapato direito combinando através de uma dobra espacial exata. Deve ser idêntico ao seu sapato esquerdo, mas do lado direito. Destro?

— Obrigado.

— Espero que dê bem. Se aquele maldito furador de fila não tivesse dado um jeito de morrer praticamente no meu co­lo, eu teria chegado em casa a tempo.

Pisquei novamente para ela.

— Acho que estou confuso novamente. Como é que este lugar é governado? É uma anarquia?

Hazel encolheu os ombros. Justin Foote pareceu pensativo.

— Não, eu não diria isso. Mas não é tão bem organizada assim.

 

Partimos logo depois do jantar naquela espaçonave de qua­tro lugares — Hazel e eu, um pequeno gigante chamado Zeb, Hilda, a beldade minúscula, Lazarus, o Dr. Jacob Burroughs, o Dr. Jubal Harshaw, mais outra ruiva — bem, loura puxada a cor de morango —, chamada Deety, e mais outra que não era sua irmã gêmea mas devia ter sido, uma doçura de moça cha­mada Elizabeth e conhecida por Libby. Olhei para estas duas últimas e sussurrei para Hazel:

— Mais dos descendentes de Lazarus? Ou mais dos seus?

— Não, acho que não. Quero dizer, sobre Lazarus. Sei que não são meus. Não sou tão casual assim. Uma delas é de ou­tro universo e a outra é mais de mil anos mais velha do que eu. Ponha a culpa em Gilgamesh. Ahn... no jantar você no­tou uma mocinha, outra ruiva, nadando na fonte?

— Notei. Uma gracinha.

— Ela... — Começamos a subir, todos nós nove, naquela espaçonave de quatro lugares. Hazel continuou: — Pergunte-me mais tarde.

Comecei a subir atrás dela. O pequeno gigante pegou fir­me meu braço, o que me fez parar, uma vez que me superava em massa em uns 40 kg.

— Nós não fomos apresentados. Eu sou Zeb Carter.

— Eu sou Richard Ames Campbell, Zeb. Prazer em conhe­cê-lo.

— E esta é minha mãe, Hilda Mae. E indicou a boneca chinesa.

Não tive nem tempo de pensar na improbabilidade dessa asserção. Hilda respondeu:

— Sou madrasta dele, esposa de meio expediente, e às ve­zes amante, Richard. Zebbie nem sempre permanece em fo­co. Mas ele é um doce. E você pertence a Hazel, de modo que isto lhe dá direito às chaves da cidade. — Colocou-se nas pon­tas dos pés, pôs as mãos nos meus ombros e beijou-me. O beijo foi rápido, mas quente e não inteiramente seco. E me dei­xou pensativo. — Se quiser alguma coisa, simplesmente peça. Zebbie arranja para você.

Parecia haver cinco naquela família (ou subfamília, faziam todos parte da casa Long, ou família, mas não soube disso na hora): Zeb e sua esposa Deety, sendo ela aquela primeira lou­ra avermelhada a quem eu fora rapidamente apresentado, o pai dela, Jake Burroughs, cuja esposa era Hilda, mas que não era a mãe de Deety... e o quinto era Gay. Zeb dissera:

— E Gay, naturalmente. Você sabe a quem me refiro.

Perguntei a Zeb:

— Quem é Gay?

— Eu, não. Ou apenas como hobby. Nossa nave, o nome dela é Gay.

Uma voz quente de contralto disse:

— Eu sou Gay. Oi, Richard, você esteve em mim certa vez, mas acho que não se lembra.

Cheguei à conclusão de que o campo Lethe incluía alguns efeitos colaterais realmente maléficos. Se eu houvesse estado alguma vez numa mulher (ela dissera isso dessa maneira, não eu), dotada de uma voz com aquela qualidade tão sedutora, mas não conseguisse me lembrar... bem, era tempo de eu me entregar à compaixão do tribunal. Eu era obsoleto.

— Desculpe. Não a vejo. A senhora chamada Gay.

— Ela não é uma senhora, é uma piranha.

— Zebbie, você vai se arrepender disso. Ele quer dizer que não sou uma mulher, Richard. Nesta nave em que você está prestes a subir — e onde esteve antes, mas estava ferido e doen­te, de modo que não me magôo se não me reconheceu...

— Oh, mas eu reconheci!

— Reconheceu? Que lindo. De qualquer modo, sou Gay tapeadora e bem-vindo a bordo.

 

Subi e tentei rastejar pela porta de carga que ficava atrás dos assentos. Hilda segurou-me.

— Não entre aí atrás. Sua esposa está lá atrás com dois ho­mens. Dê uma chance à moça.

— E com Lib — acrescentou Deety. — Não o irrite, tia Sharpie. Sente-se, Richard.

Sentei-me entre elas — um privilégio, exceto que eu que­ria ver aquele banheiro empenado espacialmente. Se havia um deles. Se não fosse um sonho induzido pelo campo Lethe.

Hilda encostou-se em mim como se fosse uma gata e disse:

— Você teve uma primeira má impressão de Lazarus, Ri­chard. Não quero que isso permaneça assim.

Reconheci que numa escala de um a 10 ele chegava a me­nos três comigo.

— Tomara que não continue assim. Deety?

— Dia sim, dia não, Lazarus aproxima-se cada vez mais de nove, Richard. Você vai ver.

— Richard — continuou Hilda —, a despeito do que você me ouviu dizer, não pense mal de Lazarus. Tive um filho com ele... e só vou até esse ponto com homens que respeito. Mas Lazarus tem suas pequenas manias e é necessário espancá-lo de tempos em tempos. Não obstante, amo-o.

— Eu, também — concordou Deety. — Tenho uma filhinha com Lazarus e isso significa que o amo e respeito, ou isso não teria acontecido. Correto, Zebadiah?

— Como é que eu posso saber? "Amor, oh, descuidado amor". Chefona, vamos a algum lugar? Gay quer saber.

— Comunica prontidão para decolagem.

— Porta de bombordo vedada, aparelhagem de irrelevância pronta e recolhida.

— Porta de estibordo vedada, cintos de segurança aciona­dos, todos os sistemas normais.

— Quartel-general do Comando do Tempo, via Alpha e Beta. À vontade, piloto-chefe.

— Sim, senhor capitão. Gay Tapeadora, Ponto de Controle Alpha, Execute.

— Sim sinhô, moço.

O gramado verde e brilhante, iluminado pelo sol ao lado da Casa Long, pestanejou e desapareceu em escuridão e es­trelas. Estávamos em estado de imponderabilidade.

— Ponto de Controle Alpha, provavelmente — disse Zeb. — Gay, você está vendo QGCT?

— Ponto de Controle Alpha bem em frente — respondeu a nave. — Quartel-general do CT bem à frente. Zeb, você pre­cisa de óculos.

— Ponto de controle Beta, execute. O céu pestanejou novamente.

Desta vez pude vê-lo. Não um planeta, mas um habitat talvez a 10 quilômetros de distância, talvez mil — no espaço, com um objeto estranho, eu não tinha como calcular.

Zeb disse:

— Quartel-general do Comando do Tempo, exe... Gay, fo­ra daqui!

Uma bomba tipo estrela nova explodiu à nossa frente.

 

O Gato de Schrödinger

 

Pelos ossos de Deus! — gemeu a nave. — Aquela quei­mou as penas de minha cauda! Hilda, vamos voltar para ca­sa. Por favor!

A bomba tipo estrela nova estava nesse momento a uma longa distância, mas ainda queimava com uma intensa luz bran­ca, parecendo o Sol visto das proximidades de Plutão.

— Capitão? — perguntou Zeb

— Afirmativo — respondeu calma Hilda. Mas estava agar­rada a mim e tremendo.

— GayMaureenExecute.

Estávamos de volta aos terrenos da mansão romântica de Lazarus Long e sua tribo.

— Piloto-chefe, por favor, informe anexo OZ e diga a eles para desembarcar. Não vamos mais para nenhum lugar tão ce­do. Richard, se você deslisar para a direita logo que Jake sair de seu caminho, isso permitirá que nossos passageiros desem­barquem.

Fiz isso logo que o Dr. Burroughs desimpediu o caminho. Ouvi a voz de Lazarus Long regougando às minhas costas:

— Hilda! Por que nos mandou sair da nave? Por que não estamos no quartel-general?

A voz dele me lembrou a de um sargento-instrutor que tive no meu tempo de recruta, há uns 10 mil anos.

— Esqueci meu tricô, Woodie. Tive que vir buscá-lo.

— Acabe com isso. Por que não partimos? Por que esta­mos desembarcando?

— Cuidado com sua pressão arterial, Lazarus. Gay acaba de provar que não estava sendo nervosinha quando me pe­diu para dividir em três saltos nossa viagem habitual ao QGCT. Se eu tivesse utilizado a velha rota, estaríamos todos brilhan­do na escuridão.

— Estou com coceira na pele — queixou-se Gay. — Apos­to que faria um contador Geiger vibrar como chuva em teto de zinco.

— Zebbie verificará isso depois, querida — disse tranqüilizadora Hilda, e voltou a falar com Lazarus: — Não acho que Gay tenha ficado ferida. Acho que nenhum de nós foi. Por­que Zeb teve uma de suas premonições de tragédia e tirou-nos de lá quase à frente dos fótons. Mas lamento comunicar, senhor, que o Quartel-general não está mais lá. Que descan­se em paz.

— Hilda — insistiu Lazarus —, isto é uma de suas piadas?

— Capitão Long, quando fala dessa maneira espero que se dirija a mim como "comodoro".

— Sinto, desculpe. O que foi que aconteceu? Zeb interveio:

— Lazarus, deixe simplesmente que eles acabem de des­cer e eu levarei você de volta e lhe mostrarei. Apenas você e eu.

— Sim, realmente, apenas vocês dois — disse a nave. — Mas não eu! Eu não vou! Eu não me alistei para missões de combate. Não deixo vocês fecharem minhas portas. Isso sig­nifica que não podem me tornar estanque e neste caso não po­dem me obrigar a me mover. Estou em greve.

— Motim — declarou Lazarus. — Derreta-a e transforme-a em sucata.

A nave soltou um grito agudo e depois falou nervosamente:

— Zeb, você ouviu isso? Você ouviu o que ele disse? Hil­da, você o ouviu? Lazarus, eu não pertenço a você e nunca pertenci! Diga isso a ele, Hilda! Toque em mim com um dedo, entro em fase crítica e queimo e arranco sua mão. E levo comi­go todo o condado de Boondock.

— Matematicamente impossível — observou Long.

— Lazarus — advertiu-o Hilda —, você não deve dizer "im­possível" assim tão rapidamente quando fala a respeito de Gay. De qualquer modo, não acha que já esteve por tempo suficiente na casa do cachorro para um único dia? Magoe Gay e ela con­ta a Dora, que contará a Teena, que contará a Minerva, que dirá a Ishtar e a Maureen e a Tamara, e depois você terá sorte se conseguir alguma coisa para comer e não terá permissão para dormir ou ir a lugar algum.

— Eu sou um homem dominado pelas mulheres. Gay, des­culpe. Se eu lhe ler dois capítulos de Tik-Tok hoje à noite, vo­cê me perdoa?

— Três.

— Feito. Por favor, diga a Teena para pedir aos matemáti­cos que trabalham na Operação Suserano Galático que me en­contrem conforme programado nos meus aposentos em Do­ra. Por favor, diga a todos os demais envolvidos em Suserano que são aconselhados a vir para Dora, comer e dormir a bor­do. Não sei quando viajaremos. Pode ser dentro de uma se­mana, mas a qualquer tempo também e talvez não haja nem 10 minutos de aviso prévio. Condições de guerra. Alerta Ver­melho.

— Dora recebeu. Está retransmitindo. O que me diz de Boondock?

— O que é que você quer dizer com "O que me diz de Boondock"?

— Quer que a cidade seja evacuada?

— Gay, eu não sabia que você se importava. Lazarus parecia surpreso.

— Eu? Importar-me com o que possa acontecer com mi­nhocas? — rosnou a nave. — Estou simplesmente retransmi­tindo para Ira.

— Oh, por um momento pensei que você estava desen­volvendo simpatias humanas.

— Deus me livre!

— Estou aliviado. Seu simples egoísmo egocêntrico tem si­do um oásis de estabilidade num mundo sempre em mutação.

— Esqueça os cumprimentos. Você ainda me deve três ca­pítulos.

— Certamente, Gay. Eu prometi. Por favor, diga a Ira que, tanto quanto sei, Boondock está tão segura como qualquer ou­tro lugar do mundo... o que não quer dizer muita coisa... ao passo que, na minha opinião, qualquer tentativa de evacuar este formigueiro resultaria em grande perda de vidas, e per­das ainda maiores de propriedades. Mas talvez valha a pena fazer isso apenas para sacudir o metabolismo preguiçoso des­sa gente... Boondock me parece hoje gorda, estúpida e des­cuidada. Peça a ela para acusar.

— Ira respondeu: "Cabe a você decidir."

— Câmbio, e o mesmo para você. Termino e desligo. Eles fazem um guisado danado de bom. Coronel Campbell, sinto muito a este respeito. Importar-se-ia em vir comigo? Poderia interessá-lo em ver como montamos uma manipulação tem­poral de emergência. Hazel, tudo okay com você? Ou estou entrando em sua seara novamente?

— Tudo bem, Lazarus, uma vez que não é mais minha sea­ra. É sua e dos outros Companheiros.

— Você é uma mulher dura, Sadie.

— O que é que você pode esperar, Lazarus? Luna é uma mestra severa. Aprendi minhas lições nos joelhos dela. Posso ir também?

— Você é esperada. Você é ainda parte de Suserano. Não é?

Andamos cerca de 50 metros cruzando o gramado até o local onde estava estacionado o maior e mais incrementado dis­co voador que qualquer cultuador de UFOs jamais alegou ter visto. Soube que se chamava Dora designando por igual a na­ve e o computador que dirigia a nave. Soube também que Do­ra era o iate particular dos Antigos, que era o capitânea de Hilda e também uma nau pirata comandada por Lorelei Lee e/ou Lá­pis Lazuli e guarnecida por Castor e Pólux, que eram seus ma­ridos, ou escravos, ou duas coisas.

— São as duas coisas — explicou-me mais tarde Hilda. — E Dora é todos três. Laz e Lor ganharam os contratos de ser­vidão de Cas e Pol em um jogo de cão-vermelho logo depois de casarem com eles. Laz e Lor são telepatas entre si e rou­bam no jogo. Meus netos são tão sabidos como macacos e tão presunçosos como caras formados em Harvard, e tentam sem­pre roubar no jogo. Tentei expulsar deles esse feio hábito quan­do eram ainda jovens demais para correr atrás de moças, usan­do um baralho marcado. Não funcionou. Eles descobriram mi­nhas marcas. Mas a queda deles decorreu do fato de que Laz e Lor são ainda mais sabidas do que eles e ainda mais tapeadoras.

Hazel sacudiu triste a cabeça.

— Este é um mundo perverso. Você pensaria que um ra­paz que treinei ficaria imediatamente desconfiado quando lhe dessem três azes e um rei de quebra numa mão de cachorro-vermelho... mas Cas era ganancioso demais. Não apenas to­pou a parada quando não podia cobri-la, mas jogou seu con­trato de servidão para cobrir a diferença.

Após uma pausa, continuou:

— Em seguida, nem um dia depois, Pol caiu num caso ain­da mais transparente de roubo. Tinha certeza de que sabia que carta ia ser dada em seguida porque reconheceu uma peque­na mancha de café. Aconteceu que o 10 e o oito tinham a mes­ma pequena mancha. Pol tinha o nove mas não estava em uma boa posição moral. Ah, bem, provavelmente é melhor para os rapazes terem que fazer todo o serviço sujo a bordo, além de aplicar shampoo e fazer o tratamento dos pés de suas esposas do que teria sido para eles vender Laz e Lor nos mercados de escravos de Iskander, como tenho certeza de que teriam feito se seus próprios planos fraudulentos tivessem tido sucesso.

 

O Dora é ainda maior por dentro do que por fora: tem tan­tos camarotes quantos forem necessários. Fora antes uma na­ve espacial luxuosa mas bem convencional, com propulsão hiperfotônica. Mas ela (a nave, não Dora, o computador) foi reequipada com a propulsão Burroughs (o meio mágico através do qual Gay Tapeadora salta em volta de estrelas num abrir e piscar de olhos). Um corolário das equações Burroughs que teleportam Gay pode ser aplicado a fim de modelar dobras es­paciais. Em vista disso, os espaços de carga e passageiros de Dora foram reformados. Este fato deixou a Dora um número interminável de compartimentos dobrados sobre si mesmos, até que deles necessita.

(Isto não é a mesma coisa segundo a qual Gay tem guar­dado no seu lado de bombordo dois banheiros do século XIX. Ou é? Bem, acho que não é. Vou ter que perguntar. Ou será que não é da minha conta? Melhor assim, talvez.)

Uma vigia aumentou no lado do iate, uma rampa escor­reu para baixo e segui Lazarus para a nave, levando minha que­rida pelo braço. No momento em que ele pôs o pé dentro da nave, começou uma música: "Não E Necessariamente Assim", da imortal Porgy and Bess de George Gershwin. Era uma can­ção há muito morta, sobre a impossibilidade de um homem tão velho como Matusalém jamais persuadir uma mulher a ir para a cama com ele.

— Dora!

Respondeu uma voz de mocinha:

— Estou no banho. Chame-me depois.

— Dora, desligue essa canção idiota!

— Tenho que consultar o comandante de dia, senhor.

— Consulte e diabos a levem! Mas pare com essa baru­lheira.

Outra voz substituiu a voz da nave:

— Capitão Lor falando, amigão. Algum problema?

— Tenho. Pare essa barulheira!

— Amigão, se está se referindo à música clássica ora toca­da como saudação à sua chegada, tenho que dizer que seu gos­to continua tão bárbaro como nunca. De qualquer modo, es­tou impedido de desligá-la porque o novo protocolo foi esta­belecido pela Comodoro Hilda. Não posso mudá-lo sem sua permissão.

— Eu sou um homem dominado por mulheres! — esbra­vejou Lazarus. — Não posso entrar em minha própria nave sem ser insultado. Juro por Alá que logo que tenha acabado Suserano vou comprar um Calhambeque Burroughs de Sol­teiro, equipado com Cerebrador Minsky, e sairei em longas fé­rias sem nenhuma mulher a bordo.

— Lazarus, por que é que você diz essas coisas tão horrí­veis?

A voz vinha de algum lugar às nossas costas. Não tive pro­blema em identificar o cálido contralto de Hilda. Lazarus olhou em volta.

— Oh, você está aí! Hilda, você pode, por favor, pôr um fim nesta zoeira infernal?

— Lazarus, você mesmo pode fazer isso...

— Já tentei. Eles se divertem em me frustrar. Todos três. Você, também.

— ... simplesmente dando três passos além da porta. Se houver outra saudação musical que preferir, simplesmente diga qual é. Dora e eu estamos tentando descobrir a música certa para cada um de nossa família, além de uma canção de boas-vindas para qualquer hóspede.

— Ridículo.

— Dora gosta de fazer isso. E eu, também. E é uma práti­ca graciosa, como comer com garfo em vez de dedos.

— Dedos foram feitos antes dos garfos.

— E platelmintos antes de seres humanos. Isto não os transforma em melhores do que gente. Ande, Woodie, e dê um descanso a Gershwin.

Ele grunhiu, andou e Gershwin parou. Hazel e eu o se­guimos e, mais uma vez, a música soou, uma banda de foles tocando a todo peito uma marcha que eu não ouvia desde aquele dia negro em que perdi o pé... e o meu comando... e a minha honra: "Os Campbells Estão Chegando..."

A música quase me fez perder a esportiva e me deu aque­la poderosa injeção de adrenalina que o antigo grito de guer­ra, antes de uma batalha, sempre proporciona. Fiquei tão aba­lado que tive que forçar minhas feições a permanecerem im­passíveis, enquanto rezava para que ninguém falasse comigo até que eu tivesse a voz novamente sob controle.

Hazel apertou-me o braço mas a querida permaneceu ca­lada. Acho que ela pode sentir emoções — sempre conhece minhas necessidades. Andei duro para a frente, espinha reta, mal me firmando com a bengala, e sem ver o interior da nave. Depois, as gaitas de fole pararam e pude respirar novamente.

Atrás de nós veio Hilda. Acho que ela se atrasara para man­ter separadas as saudações musicais. A dela era uma música leve e etérea, que não consegui identificar. Parecia ser tocada em campainhas de prata ou possivelmente em uma celesta. Hazel me disse o nome da música — "Jezebel" —, mas não consegui identificá-la.

 

Os aposentos de Lazarus eram tão luxuosos que me per­guntei como seria o camarote da "Comodoro" Hilda. Hazel a­comodou-se na sala de estar como se aquele fosse seu lugar.

Mas não fiquei ali: um anteparo piscou e Lazarus passou co­migo por ali. Do outro lado havia uma sala de diretoria apro­priada para uma empresa com ação em todo um sistema pla­netário: uma mesa de conferências gigantesca, cada lugar com sua poltrona acolchoada, bloco de rascunho, estilo para escri­ta, garrafa de água gelada, terminal com impressora, tela, te­clado, microfone e campo de abafamento de conversas — mas devo acrescentar que vi pouco uso desse lixo abundante. Do­ra tornava-o desnecessário, sendo secretária perfeita para to­dos nós, enquanto ao mesmo tempo nos servia refrigerantes e guloseimas.

(Não consegui nunca superar a impressão de que havia uma moça de carne e osso chamada Dora em algum lugar, fo­ra de nossas vistas. Mas nenhuma mortal poderia ter manti­do todos os ovos no ar como Dora fazia.)

— Sentem-se em qualquer lugar — disse Lazarus. — Não há graduações e ordem de precedência aqui. E não hesitem em fazer perguntas e dar opiniões. Se fizerem um papelão, ninguém vai se importar e não será o primeiro nesta sala, Co­nhece Lib?

— Não oficialmente.

Ela era a outra loura arruivada, a que não era Deety.

— Então, conheça. Dra. Elizabeth Andrew Jackson Libby Long... Coronel Richard Colin Ames Campbell.

— Sinto-me honrado, Dra. Long.

Ela me beijou. Eu esperara isso, tendo aprendido em me­nos de dois dias ali que a única maneira de evitar beijos ami­gos era recuar... mas que era melhor relaxar e desfrutar. E foi o que fiz. A Dra. Elizabeth Long é um prato cheio para a vis­ta, não usava muita coisa, cheirava bem e tinha gosto bom... Ela ficou colada a mim três segundos mais do que o necessá­rio, deu uma palmadinha no meu rosto e disse:

— Hazel tem bom gosto. Que bom que ela o trouxe para a família.

Corei como um recruta bisonho. Todo mundo ignorou is­so. Acho. Lazarus continuou:

— Lib é minha esposa e também minha sócia, começan­do tudo isso no século XXI, calendário gregoriano. Passamos juntos por uns tempos tempestuosos. Naquela ocasião, ela era homem e comandante aposentado, Forças Militares Terrenas. Mas naquela ocasião e agora, homem ou mulher, a maior ma­temática que jamais nasceu.

Elizabeth virou-se e acariciou-lhe o braço.

— Tolice, Lazarus. Jake é melhor matemático do que eu e um geômetra mais criativo do que eu jamais poderia esperar ser. Ele pode visualizar mais dimensões e não se perder. Eu...

O Jacob Burroughs de Hilda nos seguira e disse nesse mo­mento:

— Tolice, Lib. Falsa modéstia me dá vontade de vomitar.

— Então, vomite, querido, mas não no tapete. Jacob, nem sua opinião nem a minha — nem a de Lazarus — é relevante. Nós somos o que somos, cada um de nós — e sei que há tra­balho a fazer. Lazarus, o que foi que aconteceu?

— Espere por Deety e pelos rapazes, de modo que não pre­cisemos discutir o assunto duas vezes. Onde está Jane Libby?

— Aqui, tio Woodie.

Entrava justamente nesse momento uma moça nua que se parecia... Escutem, vou deixar de falar de semelhanças fami­liares, cabelos vermelhos ou não, e a presença ou ausência de roupas. Em Tertius, por motivo de clima e costume, o vestuá­rio era opcional, geralmente usado em público, às vezes em casa. Na casa de Lazarus Long, era mais provavelmente que os homens os usassem do que as mulheres, mas não havia uma regra que eu jamais pudesse descobrir.

Cabelos ruivos eram comuns em Tertius, ainda mais co­muns na família Long — um efeito hereditário (como dizem os criadores de gado que tinha origem em Lazarus... mas não só neles. Havia duas outras fontes na família, sem relação com ele e sem relação entre si: Elizabeth Andrew Jackson Libby Long e Dejah Thoris (Deety) Burroughs Carter Long — e ainda ou­tra fonte de que eu não sabia a existência na ocasião.

Pessoas que aceitam a teoria Gilgamesh observam que rui-vos tendem a se juntar, como por exemplo em Roma, Líbano, sul da Irlanda, Escócia... e ainda mais acentuadamente na his­tória, de Jesus a Jefferson, de Barba-ruiva a Henrique VIII.

As razões das semelhanças na família Long eram difíceis de classificar, a não ser que se contasse com a ajuda da Dra. Ishtar, a geneticista da família — a própria Ishtar não se pare­cia absolutamente com sua filha Lápis Lazuli... o que não era de surpreender, sabendo-se que ela não tinha relação genéti­ca com sua própria filha... cuja mãe genética era Maureen.

Parte disso eu só soube depois, e menciono tudo isto aqui a fim de encerrar o assunto.

 

Esse grupo de matemáticos consistia de Libby Long, Jake Burroughs, Jane Libby Burroughs Long, Deet Burroughs Car-ter Long, Minerva Long Weatheral Long, Pythagoras Libby Carter Long e Archimedes Carter Libby Long — Pete e Archie — um nascido de Deety e o outro de Libby, sendo essas duas mulheres as progenitoras exclusivas dos dois rapazes — Deety sendo a mãe genética de ambos e Elizabeth o pai genético... e eu me recuso a deslindar este dilema nesta altura. Que isso se transforme em problema para estudantes. Prefiro lhes pro­por outro problema: Maxwell Burroughs-Burroughs Long — e concluir dizendo que todas essas estranhas combinações eram supervisionadas pela geneticista da família para reforço máxi­mo do gênio matemático e nenhum reforço de genes recessi­vos prejudiciais.

Observar esses gênios no trabalho apresenta parte da ex­citação soporífica de observação de uma partida de xadrez, em­bora não exatamente. Em primeiro lugar, Lazarus tomou o de­poimento de Gay Tapeadora, trazendo-lhe a voz através dos circuitos de Dora. Eles escutaram-na, examinaram-lhe as fitas projetadas, luz e som, chamaram Zebadiah, tomaram-lhe o depoimento, convocaram Hilda e pediram-lhe sua melhor esti­mativa da premonição da explosão por Zebadiah.

— Alguma coisa entre um tremor de pálpebra e um pis­car de olhos — respondeu Hilda. — Vocês todos sabem que não posso fazer melhor do que isso.

O Dr. Jake declinou de manifestar opinião.

— Não a observei. Como sempre, eu estava confirmando as ordens verbais, ajustando os controles vernier. A penúlti­ma ordem, sendo um grito, abortou a seqüência e logo em se­guida estávamos de volta à casa. Não cheguei a ajustar os verniers, de modo que nada aparece em minhas fitas. Sinto muito.

O depoimento de Deety foi também bem escasso.

— A ordem de cair fora precedeu a explosão por um in­tervalo da ordem de um milésimo de segundo.

Pressionada, ela recusou-se a dizer que era "de ordem apro­ximada". Burroughs insistiu e mencionou-lhe o "relógio inter­no". Deety estirou a língua para ele.

O jovem (um adolescente, na realidade) chamado Pete dis­se:

— Voto "dados insuficientes". Precisamos colocar uma roseta de sensores em volta do lugar, a fim de descobrir o que aconteceu, antes de podermos decidir quão perto do momen­to podemos fixar o resgate.

Jane Libby perguntou:

— Após a ordem de cair fora, a bomba nova já era visível do novo ponto de observação ou apareceu após a translação de Gay? De qualquer maneira, como é que isso se ajusta com a sincronização no ponto de Controle Beta? Pergunta: está ex­perimentalmente comprovado que transporte irrelevante é ins­tantâneo, totalmente nulo em tempo de trânsito... ou é uma suposição baseada em evidência incompleta e sucesso empí­rico?

— Jay Ell, querido, o que é que você está insinuando? — perguntou Deety.

Eu estava imprensado entre os dois. Falavam de um lado para o outro e obviamente não esperavam opiniões minhas — embora eu tivesse sido testemunha.

— Estamos tentando verificar a pulsação certa para eva­cuação do QGT, não?

— Estamos? Por que não pre-programar a evacuação, sin­cronizá-la, e iniciar a evacuação a menos H-horas mais 30 mi­nutos? Isto traz todos para aqui com uma porção de tempo de sobra.

— Deety, com isso você formula um paradoxo que lhe deixa com a cabeça enfiada na bunda — comentou Burroughs.

— Papai! Isso é chulo, grosseiro e vulgar.

— Mas correto, minha querida filha estúpida. Agora, pense em uma maneira de escapar da armadilha.

— Fácil. Eu estava falando apenas da ponta de perigo, não da ponta de segurança. Terminamos o resgate com uma folga de 30 minutos, passamos em seguida para qualquer espaço vazio em qualquer universo conveniente — digamos, aquela órbita em torno de Marte que usamos tantas vezes —, depois damos a volta e reentramos neste universo a uma pulsação aqui-agora um minuto depois de partirmos para o resgate.

— Desajeitado mas eficaz.

— Gosto de programação simples, gosto mesmo.

— Eu, também. Mas ninguém vê nada de errado em to­mar qualquer duração de tempo de que necessitarmos?

— Diabo, sim.

— Bem, Archie?

— Porque contém uma armadilha, probabilidade 0,997 ou algo maior. O modo como foi instalada a armadilha depende. Quem é nosso antagonista? A Besta? O Suserano Galático? Boskone? Ou constitui ação direta de outro grupo que quer mu­dar a história, haja ou não tratados neste particular? Oh — não riam — estamos desta vez enfrentando um Autor? Nossa sin­cronização terá que depender de nossa tática e nossa tática tem que se ajustar ao antagonista. De modo que temos que espe­rar até que aqueles grandes cérebros na outra sala nos digam com quem estamos lutando.

— Não — disse Libby Long.

— Qual é o problema, mamãe? — perguntou o rapaz.

— Vamos formular todas as possíveis combinações, que­rido, e solucioná-las simultaneamente e, em seguida, introduzir a solução numérica apropriada no cenário que os fabulistas nos fornecerem.

— Não, Lib, você ainda estaria apostando uma centenas de vidas em que os grandes cérebros têm razão — objetou Lazarus. — Eles talvez não tenham. Ficaremos aqui mesmo e pro­curaremos uma solução segura, mesmo que isto demore 10 anos. Senhoras e senhores, estamos falando sobre nossos co­legas. Eles não são descartáveis. Droga, descubram a solução correta.

 

Fiquei ali no meu lugar, sentindo-me tolo, lentamente com­preendendo que eles estavam discutindo a sério como resga­tar todas aquelas pessoas — além de registros e instrumentos — em um habitat que eu vira ser vaporizado uma hora antes. E que eles, com igual facilidade, poderiam salvar o próprio habitat — tirá-lo daquele espaço antes que fosse bombardeado. Ouvira-os discutir como fazer isso, como sincronizar a opera­ção. Mas rejeitaram essa solução. Aquele habitat devia ter cus­tado incontáveis bilhões de coroas... e, ainda assim, eles se recusavam a salvá-lo. Não, não! O antagonista, fosse a Besta do Apocalipse, ou o Suserano Galático (engasguei-me com es­ta), ou quem quer que fosse — ele precisava acreditar que tive­ra sucesso, nunca desconfiar que o ninho estava vazio, que a ave voara para longe.

Senti uma sensação conhecida na perna esquerda: Lord Pixel estava mais uma vez desafiando o paredão vertical fron­teiro. Além disso, estava cravando novo grupo de grampos de sustentação, de modo que estendi a mão e coloquei-o sobre a mesa.

— Pixel, como foi que você chegou aqui?

— Miau!

— E certamente conseguiu. Saiu para o jardim, cruzou o jardim, atravessou a ala oeste — ou deu a volta em torno dela? — percorreu de um lado a outro o gramado e subiu para uma nave espacial vedada — ou a rampa estava baixa? Como quer que tenha sido, como foi que me encontrou?

— Miau!

— Ele é um gato de Schrödinger — disse Jane Libby.

— Então é melhor que esse Schrödinger venha buscá-lo, antes que ele se perca. Ou se machuque.

— Não, não, Pixel não pertence a Schrödinger. Pixel não escolheu ainda seu ser humano... a menos que o tenha esco­lhido.

— Não, acho que não. Bem, talvez.

— Acho que ele escolheu. Eu o vi subir para seu colo hoje ao meio-dia. E agora ele andou um bocado para encontrá-lo. Acho que você foi escolhido. Você gosta de gatos?

— Oh, gosto! Se Hazel deixar que eu fique com ele

— Vai deixar. Ela gosta de gatos.

— Tomara que sim. — Pixel estava sentado em cima de meu bloco de rabiscos, lavando o rosto e fazendo um trabalho elo­giável de limpar a parte posterior das orelhas. — Pixel, eu sou o seu dono?

Ele parou a lavagem o tempo suficiente para dizer enfático:

— Miau!

— Tudo bem, negócio feito. Soldo de recruta e extras. Be­nefícios médicos. Folga à tarde de cada segunda quarta-feira, sujeito a bom comportamento. Jane Libby, que história é essa sobre Schrödinger? Como foi que ele entrou aqui? Diga a ele que Pixel está apalavrado.

— Schrödinger não está aqui. Está morto há umas duas dezenas de séculos. Fazia parte de um grupo de antigos filó­sofos naturais alemães que estavam tão brilhantemente enga­nados sobre tudo que estudaram — Schrödinger, Einstein, Heisenberg e... Ou esses filósofos eram de seu universo? Sei que não estiveram em todas as partes do universo, mas história paralela não é o meu forte. — Sorriu em tom de desculpa. — Acho que a teoria dos números é a única coisa em que sou realmente competente. Mas sou boa cozinheira.

— Que tal suas esfregadelas de costas?

— Sou a melhor esfregadora de costas de Boondock!

— Você está perdendo seu tempo, Jay Ell — interrompeu-a Deety. — Hazel ainda o traz pelo coleira.

— Mas tia Deety, eu não estava tentando levá-lo para a ca­ma.

— Não estava, é? Neste caso deixe de desperdiçar o tem­po dele. Caia fora e deixe que eu tente. Richard, você é susce­tível a mulheres casadas? Nós todas somos casadas.

— Hummm... a Quinta Emenda!

— Entendo o que você quer dizer mas nunca se ouviu fa­lar nela em Boondock. Esses matemáticos alemães... não eram do seu mundo?

— Vamos ver se estamos falando das mesmas pessoas. Erwin Schrödinger, Albert Einstein, Werner Heisenberg...

— É essa turma. Gostavam do que chamam de "experimen­tos mentais" — como se alguma coisa pudesse ser aprendida dessa maneira. Teólogos! Jane Libby ia lhe falar sobre o "gato de Schrödinger", um experimento mental que supostamente diria alguma coisa sobre a realidade. Jay Ell?

— Foi uma coisa tola, senhor. Feche um gato em uma cai­xa. Controle ele se não é morto pela desintegração espontâ­nea de um isótopo com uma meia-vida de uma hora. Ao fim de uma hora, o gato está vivo ou morto? Schrödinger alegou que, devido às probabilidades estatísticas no que considera­vam como ciência naqueles dias, o gato nem estava vivo nem morto até que alguém abrisse a caixa. O gato existia como uma nuvem de probabilidades.

Jane Libby encolheu os ombros, criando notáveis curvas dinâmicas.

— Miau?

— Alguém pensou em perguntar ao gato?

— Blasfêmia! — exclamou Deety. — Richard, isto é "Ciên­cia". Ao estilo do filósofo alemão. Ninguém espera que se re­corra a algo tão grosseiro. De qualquer modo, Pixel ganhou o apelido de "Gato de Schrödinger" porque ele atravessa pa­redes.

— Como é que ele faz isso? Jane Libby respondeu:

— É impossível, mas ele é tão novinho que não sabe que é impossível, de modo que as atravessa, de qualquer mane ra. De modo que nunca se sabe onde ele vai aparecer. Acho que ele andava à sua procura. Dora?

— Precisa de alguma coisa, Jay Ell? — perguntou a nave.

— Você notou por acaso como o gatinho subiu para bordo?

— Eu noto tudo. Ele não se importou com a escada. Atra­vessou diretamente meu revestimento metálico. Fez cócegas. Ele está com fome?

— Provavelmente.

— Vou arranjar alguma coisa para ele. Ele já tem idade para comer comida sólida?

— Tem, mas não em pedaços. Comida de bebê.

— Em marche, marche.

— Senhoras — disse eu —, Jane Libby usou as palavras "bri­lhantemente enganados" a respeito desses físicos alemães. Cer­tamente vocês não incluem Albert Einstein nessa classificação.

— Claro que incluo! — respondeu enfática Deety.

— Estou espantado. Em meu mundo Einstein usa um halo.

— No meu mundo queimam-no em efígie. Albert Einstein foi um pacifista, mas não um pacifista honesto. Quando escornaram seu próprio boi, esqueceu todos os princípios paci­fistas e usou sua influência política para iniciar o projeto que produziu a primeira bomba que aniquilou uma cidade. Seu trabalho teórico nunca foi grande coisa e se descobriu depois que a maior parte era falaciosa. Mas ele sobreviverá na infâ­mia como político pacifista transformado em assassino. Eu o desprezo!

 

"O sucesso é alcançado quando se chega ao alto da cadeia alimentar."

  1. Harshaw, 1906

 

Mais ou menos nessa ocasião, apareceu a comida de bebê para Pixel, em um pires que subiu da mesa, acho. Mas não posso jurar, uma vez que o pires simplesmente apareceu. Ali­mentar o gatinho deu-me alguns momentos para pensar. A veemência das palavras de Deety surpreenderam-me. Aque­les físicos alemães viveram e trabalharam na primeira metade do século XX — não há tempo assim segundo minhas noções de história, mas se o que esses tertianos queriam que eu acre­ditasse era verdadeiro — improvável! —, há um tempo muito longo para eles. "Umas duas dezenas de séculos", dissera Ja­ne Libby.

Por que essa despreocupada jovem, a Dra. Deety, ficava tão emotiva a respeito de sábios alemães há tanto tempo mor­tos? Só conheço um fato em dois mil anos ou mais no passa­do sobre o qual pessoas se tornam emotivas... e esse fato nunca aconteceu.

Eu começara a fazer mentalmente uma lista de coisas que não faziam sentido — a alegada idade de Lazarus — aquela longa lista de doenças mortais que eu supostamente sofrera — meia dúzia de fatos estranhíssimos acontecidos em Luna — e principalmente no próprio Tertius. Seria este realmente um planeta estranho muito distante de Terra no tempo e es­paço? Ou era uma aldeia Potemkin em uma ilha do sul do Pa­cífico? ou mesmo no sul da Califórnia? Eu não vira a cidade chamada Boondock (com um milhão ou mais de habitantes, segundo diziam), só vira no total talvez uns 50 deles. Existi­ram os demais apenas como fundo memorizado para diálogo improvisado para se ajustar a papéis Potemkin?

(Cuidado, Richard. Você está ficando paranóico novamente.) Quanto de Lethe é necessário para fundir a cuca?

 

— Deety, você parece ter opiniões muito fortes sobre o Dr. Einstein.

— Tenho minhas razões para isso!

— Mas ele viveu há tanto tempo. "Umas duas dúzias de séculos", segundo disse Jane Libby.

— Há tanto tempo assim para ela. Não para mim. O Dr. Burroughs tomou a palavra:

— Coronel Campbell, acho que o senhor pode estar su­pondo que somos tertianos nativos. Não somos. Somos refu­giados do século XX, exatamente como o senhor. Por "nós" refiro-me a mim, a Hilda, a Zebadiah e a minha filha — mi­nha filha Deety, não minha filha Jane Libby. Jay Ell nasceu aqui.

— Você acertou, papai — disse-lhe Deety.

— Mas por pouco — acrescentou Jane Libby.

— Mas ele, de fato, tocou a última base. Não podemos de­serdá-lo por isso, querida.

— E não quero fazer isso. Como pai ele é tolerável. Não tentei analisar isso. Estava formando a convicção de

que pelos padrões de Iowa todos os tertianos eram loucos var­ridos.

— Dr. Burroughs, eu não sou do século XX. Nasci em Io­wa em 2133.

— Bem próximo desta distância. Diferentes vertentes tem­porais, acho — universos divergentes —, mas você e eu fala­mos quase com o mesmo sotaque, expressões idiomáticas e vocabulário. A cúspide que o colocou em um mundo e eu em outro não deve estar muito distante em nossos passados. Quem chegou primeiro a Lua e em que ano?

— Neil Armstrong, 1969.

— Oh, aquele mundo. Vocês tiveram seus problemas. Mas nós tivemos também os nossos. Para nós, o primeiro desem­barque na Lua ocorreu em 1952, com o HMAAFS Pink Koala, sob o comando de Ballox O'Maley. — O Dr. Burroughs ergueu a vista e olhou em volta. — Sim, Lazarus? Algum problema com você? Pulgas? Urticária?

— Se você e suas filhas não querem trabalhar, sugiro irem bater papo em outra freguesia. Na outra porta, talvez. Fabulistas e historiadores não se importam de correr atrás de coe­lhos mecânicos em pistas de cães. Coronel Campbell, acho tam­bém que achara mais apropriado alimentar seu gato em outro lugar. Sugiro o refrescador que fica à direita de minha sala de estar.

— Oh, droga, Lazarus! — disse Deety. — Você é um velho irascível e resmungão. Esta não é maneira de perturbar um ma­temático que está trabalhando. Olhe para Lib ali... Você podia estourar uma bombinha debaixo dela neste momento e ela nem piscaria. — Deety levantou-se. — Woodie, menino, você pre­cisa de um novo rejuvenescimento. Está ficando um velho rabugento. Venha comigo, Jay Ell.

O Dr. Burroughs levantou-se, fez uma mesura e disse:

— Com licença — e foi embora sem olhar para Lazarus.

Havia ali uma atmosfera de temperamentos à flor da pele, a necessidade de distância entre dois velhos touros prestes a enredar os chifres.

Ou três — já que eu devia ser incluído. Botar-me para fora por causa do gatinho fora uma grosseria. Descobri que estava zangado com Lazarus pela terceira vez em um único dia. Eu não trouxera o gatinho, fora seu próprio computador que su­gerira alimentá-lo ali e que fornecera os meios.

Levantei-me, peguei Pixel com uma das mãos, o pires com a outra, e depois achei necessário pendurar a bengala no braço para poder andar. Jane Libby notou o problema, pegou o gati­nho e apertou-o contra o peito. Seguia-a, apoiado na bengala e levando o pires de comida de bebê. Evitei olhar para Lazarus.

Passando pela sala de estar, rebocamos Hazel e Hilda. Hazel acenou para mim e deu uma palmada no assento a seu la­do. Sacudi a cabeça e continuei a andar. Em vista disso, ela se levantou e me acompanhou. Hilda seguiu-a. Não pertur­bamos a sessão que tinha lugar na sala de estar. O Dr. Hars­haw estava perorando e quase não nos notaram.

 

Um dos aspectos deliciosos, decadentes, sibaritas da vida em Tertius é a qualidade de seus refrescadores — se cabe apli­car essa palavra mundana. Sem tentar descrever qualquer um dos serviços desconhecidos para mim, permitam-me descre­ver um rico refrescador de luxo tertiano (e Lazarus era, eu tinha certeza, o homem mais rico ali) — descrevê-lo em ter­mos de função:

Comece com seu bar ou estalagem favorito.

Acrescente uma sauna finlandesa.

E que tal um banho em estilo japonês?

Gosta de banho morno de banheira? Com ou sem hidro­massagem?

A barraquinha de venda de sorvete fazia parte de sua juventude?

Gosta de companhia quando toma banho?

Que tal um bem-abastecido balcão de lanches quentes e frios ao alcance da mão?

Gosta de música? Em três-d? Revistas de sacanagem? Li­vros, revistas e fitas?

Exercício? Massagem? Lâmpadas solares? Brisas perfuma­das?

Um lugar macio e quente para se enrodilhar e tirar um co­chilo, sozinho ou acompanhado?

Pegue tudo isso, misture bem e instale em um salão gran­de, belo, bem iluminado. A lista ainda assim não descreve o refrescador social contíguo ao camarote de Lazarus Long, uma vez que omite o aspecto mais importante.

Dora.

Se há algum capricho que o computador da nave não possa satisfazer, não passei ali tempo suficiente para descobrir.

 

Não provei imediatamente de todos esse luxos. Tinha an­tes um dever a cumprir com um gato. Sentei-me a uma mesa redonda de tamanho médio, do tipo que quatro amigos po­dem usar para tomarem drinque, coloquei nela o gatinho, es­tendi a mão para ele. Em vez disso, foi Jane Ell que o sentou e lhe ofereceu a comida. Burroughs veio nos fazer companhia.

O gatinho cheirou a comida que estivera comendo gulo­samente minutos antes e em seguida fez uma representação histriônica, inspirada demonstração a Jane Ell que estava hor­rorizado com o ato dela, oferecendo-lhe algo impróprio para gatos. Jane Ell disse:

— Dora, acho que ele está com sede.

— É só dizer. Mas não esqueça que a gerência não me per­mite servir bebidas alcoólicas a menores, a não ser para fins de sedução.

— Deixe de se exibir, Dora. O Coronel Campbell pode acreditar. Vamos oferecer ao neném água e leite integral, separa­damente. E à temperatura do sangue que para gatinhos é...

— Trinta e oito, vírgula oito graus. Já estão vindo. Hilda falou de um mergulho — não um tubo de descan­so, acho — a alguns metros:

— Jay Ell? Venha se encharcar aqui, querida. Deety tem umas fofocas deliciosas.

— Hummm... — A menina parecia dilacerada pela dúvi­da. — Coronel Campbell, o senhor cuida de Pixel agora? Ele gosta de lamber o líquido no seu dedo. É a única maneira de fazer com que ele beba o suficiente.

— Farei isso à sua maneira.

O gatinho não gostava de beber dessa maneira... embora parecesse possível que eu morresse de velhice antes de fazer com que tomasse 10 mililitros. O gatinho, porém, não estava com pressa. Hazel saiu do tubo de descanso e veio nos fazer companhia, gotejando água. Beijei-a cautelosamente e disse:

— Esse cabelo está empapado de água.

— Não vai estragar o cabelo. O que foi isso sobre Lazarus fazendo novamente uma cena?

— Aquele filho da mãe!

— No caso dele isso é meramente descritivo. O que foi que aconteceu?

— Humm... talvez eu tenha reagido em excesso. É melhor perguntar ao Dr. Burroughs.

— Jacob?

— Não, Richard não reagiu em excesso. Lazarus foi ofen­sivamente grosseiro com todos nós quatro. Em primeiro lugar, Lazarus não tem nada de querer supervisionar a seção de ma­temática. Ele não é matemático em qualquer sentido profis­sional e não está qualificado para supervisionar. Em segundo, todos nós na seção conhecemos as idiossincrasias recíprocas e nunca interferimos no trabalho do outro. Lazarus, porém, expulsou-nos, a mim, Deety e Jane Libby, porque ousamos fa­lar durante alguns momentos sobre um assunto que não esta­va na agenda dele... totalmente alheio ao fato, ou não se importando que eu e minhas filhas usamos um modo de medi­tação de dois níveis. Hazel, consegui me controlar. Consegui, realmente, querida. Você teria ficado orgulhosa de mim.

— Eu sempre me orgulho de você, Jacob. Eu não teria me controlado. No trato com Lazarus, você deve usar aquela dica de Sir Winston Churchill e pisar nos dedões dele até que ele peça desculpa. Lazarus não aprecia boa maneiras. Mas o que foi que ele fez com Richard?

— Disse-lhe que levasse o gato da mesa de conferência. Ridículo! Como se pudesse estragar aquela mesa incrementa­da se este gatinho fizesse xixi nela.

Hazel sacudiu a cabeça e ficou séria, o que não combina com seu rosto.

— Lazarus sempre foi um osso duro, mas desde que co­meçou esta campanha — Suserano, quero dizer — ele tem se tornado cada vez mais difícil. Jacob, sua seção andou forne­cendo a ele prognósticos sombrios?

— Alguns. Mas a verdadeira dificuldade é que são vagas demais nossas projeções a longo prazo. Isto pode ser enlou­quecedor, sei, porque quando uma cidade é destruída, isto não é nítido e chocante. Se mudamos a história, não estamos na verdade não-destruindo a cidade, mas simplesmente inician­do uma nova vertente temporal. Precisamos projeções que nos permitam mudar a história antes que a cidade seja destruída. — Olhou para mim. — Esse o motivo por que é tão importan­te resgatar Adam Selene.

Assumi uma expressão estúpida — meu melhor papel.

— A fim de melhorar o bom humor de Lazarus?

— Indiretamente, sim. Precisamos de um computador su­pervisor que possa dirigir, programar e monitorar outros gran­des computadores na criação de projeções multiuniversais. O maior computador supervisor que conhecemos é o que existe neste planeta, Athene, ou Teena, e sua irmã gêmea em Secun-dus. Mas o tipo de projeção a que me refiro é um trabalho mui­to mais vasto. As funções públicas em Tertius são na maior parte automatizadas com segurança contra falhas, e Teena intervém apenas como quebradora de galhos. Mas Holmes IV — Adam Selene, ou Mike —, através de um conjunto de estranhas circunstâncias, cresceu, cresceu e cresceu sem que ninguém apa­rentemente tentasse manter seu tamanho no ponto ótimo... e em seguida sua capacidade de autoprogramação aumentou imensamente com um desafio sem igual: dirigir a Revolução Lunar. Coronel, não acho que qualquer cérebro ou cérebros humanos pudessem, de qualquer maneira, ter escrito os pro­gramas que Holmes IV autoprogramou-se para poder cuidar de todos os detalhes daquela revolução. Minha filha mais ve­lha, Deety, é uma grande especialista em programação. Ela diz que um cérebro humano não poderia fazer aquilo e que, em sua opinião, uma inteligência artificial o conseguiria apenas da maneira como Holmes IV agiu — ao ter que responder ao desafio final: "Descubra, vá até o fim, ou morra." De modo que precisamos de Adam Selene — ou de sua essência, dos programas que ele escreveu para se autocriar. Porque nós não sabemos como fazer isso.

Hazel olhou para a piscina.

— Aposto que Deety poderia fazer isso. Se tivesse que.

— Obrigado, querida, em nome de minha filha. Mas ela não é dada à falsa modéstia. Se pudesse fazer isso, ou pen­sasse que tinha mesmo uma remota possibilidade, estaria tra­balhando nisso agora mesmo. Da forma como estão as coisas, faz o que pode, trabalha duro para acoplar o banco de com­putadores que temos.

— Jacob, odeio dizer isto... — Hazel hesitou. — Talvez não deva.

— Então não diga.

— Preciso tirar isto do peito. Papai Mannie não está oti­mista com os resultados, mesmo se tivermos sucesso total em recuperar todos os bancos de memória e programas que cons­tituem o essencial de Adam Selene — ou "Mike" como papai Mannie o chama. Ela acha que seu velho amigo ficou tão feri­do no último ataque — eu me lembro até hoje, foi horrível! — Mike ficou tão ferido que imergiu em uma catatonia de computador e que nunca mais acordará. Durante anos papai ten­tou despertá-lo, após a revolução, quando teve acesso livre ao Complexo Executivo. Ele não entende como trazer essas me­mórias e programas para cá, e como fazer aqui. Oh, ele quer tentar, está ansioso, ele ama Mike. Mas não tem esperança.

— Quando estiver com Manuel novamente diga-lhe para se alegrar. Deety bolou uma solução.

— Foi mesmo? Oh, tomara que sim!

— Deety vai fornecer a Teena muito mais capacidade ocio­sa, tanto para memória quanto para manipulação de símbo­los, pensamentos... e depois botará Mike na cama com Teena. Se isso não trouxer Mike de volta à vida, nada mais o fará.

Meu amor pareceu surpreso e depois soltou uma risadinha.

— Sim, isso deve resolver.

Voltou à piscina e eu soube por Jacob Burroughs por que sua filha Deety referia-se em termos tão emotivos ao Pai da Bomba Atômica. Ela vira — eles haviam visto, todos os qua­tro, sua própria casa ser apagada por uma bomba atômica — uma bomba de fissão, inferi, mas Jake não mencionou esse fato.

— Coronel, é uma coisa ler uma manchete ou ouvir um noticiário. E outra inteiramente diferente quando é sua pró­pria casa que uma nuvem em cogumelo está cobrindo.

— Nós — continuou ele — fomos desapossados, nunca po­deremos voltar para casa. Em nossa vertente temporal nada há para mostrar que nós quatro — eu, Hilda, Deety, Zeb — jamais existimos. As casas onde outrora vivemos desaparece­ram, nunca existiram, a terra as cobriu sem deixar cicatrizes.

Parecendo-me tão solitário como Ulisses, ele prosseguiu:

— Lazarus enviou um agente de campo do Comando do Tempo de volta a... Dora? Posso falar com Elizabeth?

— Pode começar.

— Lib, amor. Coloque aquela roseta que Pete queria... ou foi Archie? Fixe a data mais próxima de vigilância. Recue três anos. Evacue.

— Paradoxo, Jacob.

— De fato. Coloque esses três anos em um loop *, acio­ne-os, solte-os. Confira.

— Confiro com você, querido. Mais?

— Não. Desligo. Burroughs continuou:

— ... enviou um agente de campo à nossa vertente tempo­ral a fim de tentar nos encontrar, em qualquer ponto no espa­ço de 50 anos entre meu nascimento e a noite em que corre­mos como o diabo para salvar a vida. Nós não estamos lá, ab­solutamente. Nós nunca nascemos. Zeb e eu tínhamos carrei­ras militares, além de carreiras universitárias. Não constamos nos assentamentos militares nem nos registros das universi­dades. Há registro de meus pais... mas eles nunca me tive­ram. Coronel, em todas as dezenas, centenas de maneiras atra­vés das quais cidadãos eram registrados no século XX nos Es­tados Unidos da América do Norte nenhum traço pode ser encontrado de que jamais estivemos lá.

Burroughs suspirou.

— Gay Tapadora não só salvou nossas vidas naquela noi­te, mas também nossa própria existência. Efetuou ação diver­sificada tão rápida que a Besta perdeu a pista... O que é, querida?

Jane Libby estava de pé ao nosso lado, gotejando água, olhos arregalados.

— Papai?

— Diga, amor.

— Precisamos daqueles sensores que Pitágoras queria, mas eles devem recuar muito mais, oh, 10 anos ou mais. Depois, quando eles identificarem a pulsação a qual o Suserano, ou quem quer que seja, tenha começado a vigiar o QGT, recuar mais e evacuar. Colocar em loop e inserir correção e eles nun­ca desconfiarão que nós os flanqueamos. Eu disse a Deety e ela acha que pode dar certo. Acho que vai dar. O que é que você acha?

— Vamos pôr sua mãe na linha e explico o plano a ela. Do­ra, ligue-me novamente com Elizabeth, por favor.

Nada em seu rosto ou maneiras sugeria que ele falara pou­co antes com Libby Long, propondo que era (tanto quanto eu podia entender) o mesmo plano.

— Elizabeth? Uma mensagem de nossa campeã de pingue-pongue. Jane Libby disse para colocar aquela roseta menos 10 anos, fixar primeira vigilância, recuar — ou, digamos, três anos — evacuar, colocar em um loop e inserir correções. Deety e eu achamos que funcionará. Por favor, submeta isso ao gru­po, crédito para Jane Ell, com votos de Deety e meu consigna­dos.

— E o meu.

— Você tem filhas sabidas, amante minha.

— Isto porque escolho pais sabidos, senhor. E bons. Bons para os filhos e bons para as esposas. Desliga?

— Desligo. — E Burroughs acrescentou à mocinha à espe­ra: — Seus pais estão orgulhosos de você, Janie. Prevejo que a seção de matemática produzirá um parecer unânime nos pró­ximos minutos. Você respondeu à objeção colocada por Lazarus — uma objeção inteiramente legítima — propondo uma so­lução segundo a qual não importa quem fez isso conosco. Po­demos reparar em segurança o dano sem saber quem o prati­cou. Mas notou que seu método pode também identificar quem fez isso? Com um pouco de sorte.

Jane Libby deu a impressão de que acabava de receber o Prêmio Nobel.

— Notei. Mas o problema exigia apenas evacuação segu­ra. O resto será uma descoberta feliz e inesperada.

— "Descoberta feliz e inesperada" é outra maneira de di­zer "sabido". Pronta para comer alguma coisa? Ou quer voltar para o tanque? Ou as duas coisas? Por que não jogam na água o Coronel Campbell, com roupa e tudo? Deety e Hilda a aju­darão, tenho certeza, e acho que Hazel poderia topar.

— Hei, espera aí! — protestei.

— Medroso!

— Coronel, nós não vamos fazer isso com o senhor! Pa­pai está brincando.

— Brincando uma ova.

— Jogue seu pai primeiro, para praticar. Se ele não se ma­chucar, eu me submeto sem protesto.

— Miau!

— Você fique fora disto!

— Janie, meu bebê.

— Sim, paizinho?

— Descubra quantos pedidos há de leite maltado de mo­rango e cachorros-quentes, ou fac-símiles absurdos. Enquan­to estiver fazendo isso, eu penduro minhas roupas no seca­dor — e se o coronel for sabido, fará o mesmo, também. Coro­nel, esta é uma turma turbulenta, especialmente nesta combi­nação exata — Hilda, Deety, Hazel e Janie. Explosiva. Quem cuida do gatinho?

Uma hora depois, Dora (uma pequena luz azul) levou-nos ao nosso camarote. Hazel levava o gatinho e o pires. Eu levava nossas roupas, o outro pires e a bolsa dela. Eu me sentia agradavelmente cansado e prelibava uma sessão de cama com mi­nha esposa. Há muito tempo que ela não compartilhava de minha cama. Segundo meu ponto de vista, havíamos perdi­do duas noites... não muito para um velho casal, mas demais para uma lua-de-mel. E a moral disto é a seguinte: não se dei­xe surrar em sua lua-de-mel.

Do ponto de vista dela fora... um mês?

— Melhor das mulheres, há quanto tempo? Aquele cam­po Lethe deixou bagunçado meu senso de tempo.

Hazel hesitou.

— Aqui foram 37 dias tertianos. Mas, para você, deve pa­recer da noite para o dia. Bem, duas noites... porque, quando voltei para a cama na noite passada você estava roncando. Odiei-me um pouco, mas não muito. Aqui está nosso lugarzi­nho.

("Lugarzinho", realmente! Era maior do que minha suíte de luxo no Regra de Ouro e mais suntuosa... com uma cama maior e melhor.)

— Esposa, tomamos banho no Taj Mahal de brinquedos de Lazarus Long. Não tenho mais que tirar minha perna de cortiça e cuidei de tudo mais naquele Taj Mahal. Se você tem alguma coisa a fazer, faça. Mas seja rápida! Estou ansioso.

— Nada. Mas temos que cuidar de Pixel.

— Botaremos esse pires no refrescador, fecharemos ele lá dentro e o soltaremos depois.

Fizemos isso e fomos para a cama, e foi maravilhoso, e vo­cês não têm nada a ver com os detalhes. Algum tempo depois, Hazel avisou:

— Fomos acoplados.

— Ainda estamos.

— Quero dizer: temos companhia.

— Foi o que notei. Ele subiu nas minhas omoplatas há al­gum tempo, mas eu estava ocupado e o peso era quase ne­nhum, de modo que não disse nada. Você pode pegá-lo e evi­tar que ele role e seja esmagado enquanto a gente se desengata?

— Posso. Mas não tem pressa. Richard, você é um bom rapaz. Pixel e eu resolvemos conservá-lo.

— Simplesmente, tente se livrar de mim! Não pode. Amor, você disse uma coisa de maneira esquisita. Você disse que ha­viam se passado "aqui 37 dias tertianos".

Ela me olhou séria.

— Foi mais do que isso para mim, Richard.

— Eu estava em dúvida. Quanto?

— Mais ou menos dois anos. Anos terrenos.

— O diabo me leve.

— Mas, querido, enquanto você esteve doente voltei para casa todos os dias. Trinta e sete vezes vim ao seu quarto no hospital pela manhã, exatamente como prometi. Você me re­conheceu todas as vezes, também, sorriu e pareceu feliz em me ver. Mas, claro, o campo Lethe fê-lo esquecer em todos os momentos em que isso aconteceu. Todas as noites eu ia em­bora novamente, e voltava mais tarde na mesma noite, tendo ficado ausente, em média, cerca de três semanas de cada vez. A escala não era difícil para mim, mas Gay Tapeadora fazia duas viagens todas as noites ou com as duas parelhas de gê­meos ou com a tripulação de Hilda. Deixe que eu me levante agora, querido. Pixel está em segurança. Tomamos novas e confortáveis posições.

— O que foi que você andou fazendo, ausente tanto tempo?

— Trabalho de campo para o Comando do Tempo. Pesquisa histórica.

— Acho que ainda não compreendo o que o Comando do Tempo faz. Você não podia ter esperado um mês, de modo que pudéssemos ter feito isso juntos? Ou minha cabeça está virada para trás?

— Sim e não. Pedi a missão. Richard, ando tentando des­cobrir o que vai acontecer depois que você e eu assumirmos o resgate de Adam Selene. Mike, o computador.

— E o que foi que descobriu?

— Nada. Nem uma só droga de coisa. Só conseguimos en­contrar duas vertentes temporais partindo desse evento... Trata-se de um evento cúspide. Você e eu criamos ambos os futu­ros. Procurei o que se seguiu durante quatro séculos, em am­bas as vertentes — em Luna, em Terra, em várias colônias e habitats. Todos eles dizem ou que tivemos sucesso... ou que tentamos e morremos... ou não nos mencionam, absolutamen­te. Este último é o caso habitual. A maioria dos historiadores não acredita que Adam Selene fosse um computador.

— Bem... não estamos em pior situação do que antes. Ou estamos?

— Não, não estamos. Mas eu tinha que ir ver. Queria ve­rificar antes que você despertasse. Saísse do campo Lethe, que­ro dizer.

— Sabe de uma coisa, pequenina, tenho uma alta opinião a seu respeito. Você é atenciosa com seu marido. E com gatos. E com outras pessoas. Hmmm... não, não é de minha conta.

— Diga logo, bem-amado, ou lhe faço cócegas.

— Não me ameace. Eu bato em você.

— O risco é seu... eu mordo. Escute, Richard, andei espe­rando para lhe perguntar umas coisas. Esta é a primeira vez em que estamos sozinhos. Você quer saber como a velha e sen­sual Hazel se comportou em matéria de fiel castidade durante dois dolorosos anos. Ou melhor, você não acredita que ela te­nha assim se comportado, mas é delicado demais para dizer.

— Ora, o diabo a leve! Escute, meu amor, sou lunariano, com valores lunarianos. Amor e sexo são decididos por nos­sas mulheres e nós homens aceitamos as decisões delas. Se você quer bravatear um pouco, vá em frente e diga o que quer. Se não, vamos mudar de assunto. Mas não me acuse de ví­cios de terrenos.

— Richard, você se torna mais exasperante quando está sendo o mais razoável.

— Quer que eu a interrogue?

— Seria delicado.

— Diga-me, três vezes.

— Eu lhe digo três vezes, e o que lhe disser três vezes é verdade.

— Você deu uma olhada no fim do livro. Muito bem, vou limitar ao que interessa. Você é membro da Família Long, não é?

Ela prendeu a respiração.

— O que foi que o levou a dizer isso?

— Não sei. Realmente não sei porque foram muitas pe­quenas coisas, nenhuma das quais significou muito e a maio­ria não ficou gravada. Mas em um momento esta noite, en­quanto falava com Jake, descobri que estava aceitando isso co­mo natural. Enganei-me?

Ela suspirou.

— Não, você tem razão. Mas não tenciono lhe contar tu­do, ainda. Entenda, estou de licença da Família, não sou membro dela neste exato momento. E não era isso o que eu tencio­nava confessar.

— Espere um segundo. Jake é um de seus maridos?

— É. Mas, lembre-se, estou de licença.

— Há quanto tempo?

— Até que a morte nos separe! Eu lhe prometi isso no Re­gra de Ouro. Richard, os livros de história mostram que você e eu estivemos casados à época do evento cúspide... de modo que pedi divórcio à Família... e aceitei uma licença. Mas ela também pode ser final... e a Família sabe disso. Eu sei. Richard, estive aqui todas as noites, em todas as noites tertianas, que­ro dizer — 37 vezes... mas nunca dormi com a Família. Eu... geralmente dormia com Xia e Choy-Mu. Eles foram bons para mim. — E acrescentou: — Mas nem uma única vez com um Long. Com nenhum deles, macho ou fêmea. Eu fui fiel a vo­cê, à minha maneira.

— Não vejo porque você precisa se privar. Neste caso, você é também uma das esposas de Lazarus. De licença, mas es­posa. Aquele velho sátiro ranheta. Hei! É possível que ele es­teja com ciúmes de mim? Diabo, sim, não só é possível mas provável. Certo! Ele não é lunariano, não foi condicionado a aceitar "A Escolha pela Mulher". E vem de uma cultura em que o ciúme era a doença mental mais comum. Claro! Ora, o tolo filho da mãe!

— Não, Richard.

— Não, uma ova.

— Richard, todo ciúme foi lixiviado dele há muitas gera­ções... e estou casada com ele há 13 anos, com oportunidade de sobra para julgar isso. Não, querido, ele está preocupado. Está preocupado comigo e preocupado com você — ele sabe como a situação é perigosa —, e está preocupado acima de tu­do com a Família e com todo Tertius. Porque sabe como é pe­rigoso o multiuniverso. Ele está dedicando a vida e toda sua riqueza para tentar tornar seguro seu povo.

— Bem... eu gostaria de ter sido um pouco mais delicado a este respeito. Maneiroso. Polido.

— Eu também. Hei, tome o gatinho. Vou fazer xixi. De­pois volto por um pouco de sono.

— Eu também. Ambos. Os dois. Poxa, como é bom sair da cama e ir até a privada sem ter que saltitar.

Estávamos bem abraçadinhos, luzes apagadas, a cabeça de­la no meu ombro e o gatinho andando pela cama, nós dois quase dormindo, quando ela murmurou:

— Richard, esqueci... Ezra...

— Esqueceu o quê?

— As pernas dele. Quando... ele andou pela primeira vez com elas... com muletas. Há três dias, acho... há três meses para mim. Xia e eu demos os parabéns a ele... horizontalmente.

— A melhora maneira.

— Nós o levamos para a cama. Deixamos ele esgotado.

— Boas meninas. O que é que há mais de novidade? Ela parecia ter dormido. Mal conseguiu murmurar:

— Wyoming.

— O quê, querida?

— Wyoh, minha filha. A mocinha que estava brincando na fonte... você se lembra?

— Sim, sim. Sua filha? Oh, maravilhoso!

— Eu a apresento... pela manhã. Dei a ela o nome... em homenagem a mamãe Wyoh. Lazarus...

— Ela é filha de Lazarus?

— Acho que sim. Ishitar diz que sim. Certamente... ele teve um bocado de oportunidade.

Tentei me lembrar do rosto da criança. Uma coisinha lin­da, com cabelos ruivos brilhantes.

— Parece mais com você.

Hazel não respondeu. Respirava lenta e uniformemente. Senti patas no meu peito e depois uma coceira no queixo.

— Miau?

— Cale a boca, neném. Mamãe está dormindo.

O gatinho acomodou-se e foi dormir. De modo que termi­nei o dia como o havia iniciado, com um gatinho dormindo em cima de meu peito. Fora um dia movimentado.

 

"É medíocre a memória que só trabalha para trás."

Charles Lutwidge Dodgson, 1832-1898

 

— Gwendolyn, meu amor.

Hazel parou com o limpa-dentes na mão e pareceu sur­presa.

— Sim, Ricahrd?

— Este é o nosso primeiro aniversário. Temos que come­morar.

— Estou inteiramente disposta a comemorar, mas não en­tendo sua aritmética. E comemorar como? Um desjejum in­crementado? Ou voltando para a cama?

— Ambos. Mais um regalo especial. Mas coma primeiro. Quanto à minha aritmética, preste atenção. É nosso aniversá­rio porque estamos casados há exatamente uma semana. Sim, sei que você pensa nisso como dois anos...

— Não penso! Não conto. Tal como tempo passado em Brooklyn.

— E você me disse que estou aqui há 37, 38, 39 dias, mais ou menos. Mas não são 39 dias para mim, Gwen Hazel, uma vez que Alá não vai subtrair de meu período de vida esses dias passados no campo Lethe. De modo que não os conto. Diabo, eu não acreditaria neles se não fosse o fato de eu ter agora dois pés...

— Está se queixando?

— Oh, não! Exceto que, agora, vou ter que cortar duas ve­zes mais unhas...

— Miau!

— O que é que você sabe sobre isso? Você não tem unhas, tem garras. E você me arranhou de noite, arranhou. Sim, ar­ranhou... e não banque o inocente. Na noite de segunda-feira, 13 de junho... de 2188, foi isso, embora eu não tenha certeza do ano em que estamos aqui... fomos assistir ao Halifax Bal­let Theater, com Luanna Pauline no papel de Titânia.

— Isso mesmo. Ela não é linda?

— Não, era! Tempo passado, querida. Se o que me conta­ram é verdade, a beleza etérea dela tem sido poeira há mais de dois mil anos. Que descanse em paz. Depois, fomos ao Rain­bow's End para a ceia e um estranho completo teve o mau gosto de ser inesperadamente assassinado em nossa mesa. Depois do que, você me estuprou.

— Não na mesa!

— Não, no meu apartamento de solteiro.

— E não foi estupro.

— Não precisamos brigar sobre isso, uma vez que você lim­pou minha reputação maculada antes do meio-dia do dia se­guinte. Nosso dia de núpcias, meu verdadeiro amor. A Sra. Gwendolyn Novak e o Dr. Richard Ames anunciaram seu ca­samento na terça-feira, 1? de julho de 2188. Grave essa data.

— Não é provável que eu a esqueça!

— Nem eu. Naquela noite, saímos às pressas da cidade, com os cães do xerife ganindo em nossos calcanhares. Naquela noite dormimos no Pressurizado Ossos Secos. Certo?

— Certo, até agora.

— No dia seguinte, quarta-feira, dia 2, Gretchen nos le­vou ao Pressurizado Dragão Feliz. Dormimos naquela noite na estalagem do Dr. Chan. No dia seguinte, quinta-feira, dia 3, titia nos levou para Hong Kong Luna, mas não o caminho todo, porque encontramos aqueles entusiásticos reformadores agrários. Você guiou o resto do caminho e acabamos no hotel de Xia tão tarde da noite que nem adiantava ir dormir. Mas fomos. Isto nos coloca na sexta-feira, 4 de julho. Dia da Inde­pendência. Confere?

— Confere.

— Fomos despertados... eu fui despertado. Você já tinha saído... fui despertado cedo demais na manhã de sexta-feira... e descobri que a Prefeitura não gostava de mim. Mas você e titia me salvaram e fomos para Luna City tão ligeiro que dei­xei minha peruca flutuando no ar.

— Você não usa peruca.

— Agora, não mais. Ela continua flutuando lá. Chegamos a L-City cerca de 16h da mesma sexta-feira. Você e eu tivemos uma discussão...

— Richard! Por favor, não desenterre meus pecados pas­sados.

— ... que foi resolvida logo que percebi os erros de meu comportamento e implorei seu perdão. Dormimos naquela noi­te no Raffles. Era ainda sexta-feira, 4 de julho, quando fomos para a cama. Havíamos iniciado aquele dia a muitos quilôme­tros a oeste dali, com os combatentes da liberdade alegrando-me com armas. Ainda está me acompanhando?

— Estou. De alguma maneira, em minha memória, isto pa­rece muito mais demorado.

— Uma lua-de-mel nunca é suficientemente demorada e estávamos tendo uma bem movimentada. Na manhã seguin­te, sábado, contratamos Ezra e depois fomos ao Complexo Ad­ministrativo... voltamos e fomos emboscados na entrada do Raffles. Assim, saímos do Raffles às pressas em uma nuvem de cadáveres, escapando por uma cortesia de Gay Tapeadora e do Comando do Tempo. Por um certo momento, estivemos na terra de minha inocente juventude, Iowa, onde cresce o al­to milho. Depois, num abrir e fechar de olhos, chegamos à Tertius. Amada minha, neste ponto meu calendário de minhoca torna-se inútil. Saímos de Luna na noite de sábado, dia 5, che­gamos aqui em Tertius alguns minutos depois, de modo que para nossas finalidades designo o dia tertiano de nossa che­gada como equivalente a sábado, 5 de julho de 2188. Não im­porta o que os cidadãos tertianos o chamam. Isto apenas me confundiria. Continua me seguindo?

— Bem... tudo bem.

— Obrigado. Acordei na manhã seguinte — domingo, 6 de julho — com dois pés. Em Tertius, o lapso de tempo foi, con­cedo, de 37 dias. Você me disse que para você foram cerca de dois anos, uma história muito improvável.... eu preferiria acre­ditar em unicórnios e em virgens. Para Gretchen, passaram-se cinco ou seis anos, o que sou obrigado a estipular porque ela tem agora 18 anos ou 19 e está grávida. Tenho que acredi­tar nisso. Mas para mim foi apenas uma noite, de sábado pa­ra domingo. Naquela noite de "domingo", dormi com Xia, Gret­chen, Minerva, Galahad, Pixel e, possivelmente, Tom, Dick e Harry e suas namoradinhas Agnes, Mabel e Becky.

— Quem são elas? As moças, quero dizer. Conheço os ra­pazes. Bem demais.

— Sua pobre, doce, inocente criança. Você é jovem demais para saber. Surpreendentemente, dormi bem. O que nos traz a ontem, designado segundo numeração rigorosa como se­gunda-feira, 7 de julho. Passamos a noite passada recuperan­do o tempo perdido na lua-de-mel... E obrigado por sua exibi­ção de virtuosismo, amada minha.

— Não há de quê, senhor. Mas o prazer foi compartilha­do. E agora vejo que chegou àquela data. Tanto pelo calendá­rio de Terra quanto por seu relógio biológico — o relógio bási­co, como sabe todo viajante do tempo — hoje é terça-feira, dia 8 de julho. Feliz aniversário, querido!

Paramos para trocar alguma saliva, Hazel chorou e meus olhos se umedeceram.

O desjejum foi formidável. Esta é toda descrição que pos­so fazer, uma vez que Gwen Hazel resolveu regalar-se com co­mida tertiana e fez consultas a Dora em um campo abafador, e eu comi o que estava na minha frente, como o agricultor de Iowa mandou gravar em sua lápide mortuária. E o mesmo fez Pixel, brindado com alguns pratos especiais que pareciam li­xo mas que para ele tinham o sabor de ambrosia, a julgar por seu comportamento.

Havíamos justamente terminado nossa segunda xícara de — não, nada de café — e estávamos prestes a ir para a mansão Long a fim de eu receber meu "brinde especial", isto é, conhe­cer minha nova filha, Wyoming Long... quando Dora falou:

— "Aviso especial: Vertente temporal, data, hora e locali­zação. Oficial. Por favor, preparem-se para acertar seus mar­cadores de tempo ao ouvirem a pulsação." — Hazel pareceu surpresa, pegou apressada a bolsa, enfiou nela a mão e tirou alguma coisa que eu não vira antes. Chamem-na de cronôme­tro. — "Estamos em órbita estacionaria em torno de Tellus, Sol III, na vertente temporal três, codinome 'Neil Armstrong'. A data é terça-feira, 1º de julho..."

— Deus do céu! Voltamos para onde estávamos! O dia de nosso casamento!

— Cale a boca, querido! Por favor!

— "... gregoriano. Repito: vertente temporal três, Sol III, 1º de julho, ano 2177, gregoriano. Ao ouvirem a pulsão serão, na zona cinco, 09h45min. Plim. Os que estão equipados para re­ceber correção sonora aproximada esperem pelo tom"...

A coisa começou com uma nota grave e subiu até doer em meus ouvidos. Dora acrescentou:

— Outro plim temporal e correção sônica serão dados den­tro de cinco minutos, hora a bordo ou hora na zona cinco, Tel­lus, que estão alinhadas com a hora legal oficial designada co­mo "dia" para ponto de interceptação nesta vertente tempo­ral. Hazel, amor, uma particular para você.

— Sim, Dora?

— Aqui estão os sapatos de Richard... (Plunk, e eles caí­ram em cima da cama. Vindo de parte nenhuma.) ... e as duas outras roupas dele... (Plop.) ... e acondicionei as roupas de baixo e meias com elas. Quer que eu adicione uns dois uni­formes de pára-quedista? Tomei as medidas de Richard enquan­to vocês dormiam. Estas não são laváveis, são feitas de tecido Hércules, não sujam, não podem se gastar.

— Quero, Dora, e obrigada, querida. Foi muito atencioso de sua parte. Eu ainda não comprara para ele nada senão tra­jes de passeio.

— Eu notei. (Plop — outro embrulho.) — Dora continuou: — Estivemos carregando e descarregando a noite toda. Os úl­timos hóspedes saíram às 09, mas eu falei à Capitã Laz sobre seu desjejum de aniversário, e ela não permitiu que Lazarus os incomodasse. Mensagem de Lazarus: se lhes for convenien­te, poderão ter a gentileza de acabar com essa frescura e se apresentar no QGT? Fim da mensagem. Transmissão da pon­te de comando, ao vivo.

— Hazel? Capitão Laz falando. Vocês dois podem deixar a nave às 10h? Eu disse a meu intransigente irmão que 10h era o tempo de partida que ele poderia esperar.

Hazel suspirou.

— Sim, iremos para a nave de bolso imediatamente.

— Ótimo. Parabéns a ambos de minha parte e de Lor e Dora. Que esta data se reproduza por muitos e muitos anos! Foi um prazer tê-los a bordo.

 

Chegamos à nave de bolso com dois minutos de sobra, eu carregado com os embrulhos e o gatinho e me acostuman­do aos novos sapatos — bem, um velho, o outro novo. Desco­bri que "nave de bolso" referia-se à nossa velha amiga Gay Tapeadora. O fim de um curto corredor levava diretamente a uma porta em seu costado direito. Mais uma vez, senti falta daqueles banheiros em dobra temporal. Os netos de Hazel pilota­vam para nós e nos disseram que ocupássemos os assentos de trás. Pol saiu da nave e nos recebeu:

— Oi, vovó! Bom dia, senhor.

Eu disse bom-dia e Hazel beijou os dois netos, de passa­gem, nada de perder segundos, sentamos e colocamos os cin­tos de segurança. Cas pediu comunicação de condições:

— Comunique estado de cintos de segurança.

— Cintos de segurança em posição — comunicou Hazel.

— Ponte! Pronto para decolagem. Laz respondeu:

— Lançamento executado.

Instantaneamente estávamos no céu e em estado de im­ponderabilidade. Pixel começou a espernear. Engaiolei-o com as duas mãos. Acho que era a imponderabilidade que o es­pantava... mas como podia ele dizer? Para começar, ele não pensava nada.

A Terra apareceu a estibordo, aparentemente cheia, embora não fosse possível saber com certeza de tão perto assim. Está­vamos de frente para a parte média da América do Norte, o que me disse que Laz era mais do que um piloto meramente competente. Caso houvéssemos estado na habitual órbita de 24 horas, concêntrica com o equador da Terra, estaríamos so­bre o equador a 90 oeste, isto é, sobre as ilhas Galápagos. Achei que ela escolhera uma órbita inclinada em cerca de 45 graus e sincronizada para 10h, de bordo — e tomei uma nota mental para conferir isso depois, se e quando eu pudesse dar uma olhada no diário de navegação.

(Um piloto não pode deixar de conferir o trabalho de to­dos os demais pilotos. É uma espécie de doença profissional. Sinto muito.)

De repente entramos na atmosfera, descendo 36 mil qui­lômetros no tempo de uma pulsação. Gay espalhou as asas. Cas inclinou-lhe o nariz, nivelou, e mais uma vez tivemos pe­so, a uma gravidade — e Pixel gostou ainda menos dessa mudança. Hazel tomou-me Pixel e acalmou-o. Ele se aquietou. Sentia-se, acho, mais seguro com ela.

Com as asas recolhidas para hipersônico, a única maneira como a vira, Gay é principalmente um foguete. Com as asas abertas possui grande área de sustentação, e plana que é uma beleza. Estávamos a uns mil metros de altura, mais ou menos alguns metros, e sobre terra agrícola em um belo dia de verão — claro, salvo por nuvens cumulus aqui e ali no horizonte. Um dia para um homem sentir-se jovem novamente...

— Tomara — disse Cas — que a translação não o tenha in­comodado. Se eu tivesse deixado isto ao critério de Gay, ela o teria posto no chão em um único salto. Ela fica nervosa com fogo antiaéreo.

— Eu não sou nervosa. Sou racionalmente prudente.

— Você está certa, Gay. Ela tem razão para ter cuidado. Os Avisos de Precaução a Pilotos relativos a este planeta, nesta vertente temporal e neste ano, dizem que devemos supor ar­mas antiaéreas em volta de todas as metrópoles e grandes ci­dades. De modo que Gay desce abaixo do radar que comanda as baterias antiaéreas...

— Sua esperança — disse a nave.

— ... de modo que aparecemos simplesmente como um avião subsônico particular no radar do controle de tráfego aé­reo, se houver. Isto é, não há nenhum no lugar onde nos encontramos.

— Otimista — zombou a nave.

— Deixe de encher. Já localizou seu ponto de pouso?

— Há muito tempo. Se deixar de perder tempo e me der permissão, pouso logo.

— Como quiser, Gay. Virei-me para Hazel:

— Hazel, eu estava esperando conhecer minha nova filha mais ou menos por esta ocasião. Wyoming.

— Não se aborreça, querido, ela nunca saberá que estive­mos viajando. Esta é a maneira de levar a coisa até que essa criança tenha idade para compreender.

— Ela não vai saber, mas eu vou. Estou desapontado. Muito bem, vamos esquecer isso.

A paisagem piscou novamente e estávamos no chão. Cas recomendou:

— Por favor, verifiquem se não estão deixando alguma coisa a bordo.

Logo que descemos e nos afastamos da nave, Gay Tapeadora desapareceu. Olhei para o espaço que ela ocupara. Vi a casa de meu tio Jock a uns 200 metros de distância.

 

— Hazel, em que data Dora disse que estamos?

— Terça-feira, 1º de julho de 2177.

— Foi isso o que pensei ter ouvido. Mas quando pensei bem, cheguei à conclusão de que eu devia ter-me enganado. Agora vejo que ela não estava brincando: 77. Onze anos no passado. Amor, aquele velho celeiro caindo aos pedaços é on­de aterramos no sábado passado, há três dias. Você me em­purrou na cadeira de rodas de Ezra até a casa. Amor, o celeiro que estamos vendo foi demolido há anos. Aquilo é apenas o fantasma dele. Isto é ruim.

— Não se amole com isso, Richard. Em saltos no tempo a gente se sente assim, na primeira vez em que entra em um loop.

— Eu já vivi todo o ano de 2177! Não gosto de paradoxos.

— Richard, trate a situação exatamente como o faria em qualquer outro lugar, em qualquer outro tempo. Ninguém vai notar o paradoxo, de modo que, ignore-o também. A probabi­lidade de ser reconhecido enquanto vive paradoxalmente é de zero para qualquer era fora de seu próprio tempo de vida nor­mal... mas, em geral, de apenas um em um milhão mesmo que você salte no tempo até um lugar perto de casa. Você saiu desta área quando era muito jovem, não?

— Eu tinha 17 anos no ano 2150.

— Então, esqueça. Você não pode ser reconhecido.

— Tio Jock vai me reconhecer. Voltei para visitá-lo algu­mas vezes. Embora não recentemente. A menos que você conte aquela visita há três dias.

— Ele não vai lembrar-se de nossa visita há três dias...

— Não vai, hem? Claro, ele tem 116 anos de idade. Ou te­rá dentro de 11 anos, a partir de hoje. Mas não está senil.

— Você tem razão, ele certamente não está senil. E tio Jock está acostumado a loops temporais. Como você deve ter des­coberto a esta altura, ele pertence ao Comando do Tempo e é bem antigo. Na verdade, é o chefe de estação mais gradua­do da América do Norte na vertente temporal três. A evacua­ção na noite passada do QGT foi feita para esta estação. Não percebeu isso?

— Hazel, eu nem passei dos rudimentos ainda. Há 20 minutos eu me encontrava em nosso camarote — Dora estava estacionada no solo em Tertius, ou foi isso o que pensei — e eu estava pensando se devia tomar ou não outra xícara ou levá-la de volta para a cama. Desde então, estou correndo tão rápido quanto posso para me emparelhar com minha própria confu­são. Sem êxito. Sou apenas um velho soldado e um escritor comercial inofensivo. Não estou acostumado a estas aventu­ras. Vem, vamos. Quero que você conheça minha tia Cissy.

Gay nos colocara no chão no lado da estrada que passa em frente da casa de tio Jock. Andamos pela estrada por al­gum tempo, eu carregando os embrulhos e girando a bengala e Hazel com a bolsa de mão e o gatinho. Há alguns anos, tio Jock mandou construir em volta de sua fazenda uma cerca mui­to mais sólida do que era comum em Iowa naqueles dias. Mas não fora construída ainda quando saí de casa e me alistei em 2150. Mas estava quando a visitei em... 2161? Mais ou menos.

A cerca era uma grossa tela de aço, dois metros de altura e cavaletes de seis fios de arame farpado por cima de tudo is­so. Acho que o arame farpado foi acrescentado depois. Não me lembro.

Nas partes internas dos cavaletes havia fios de cobre montados em isoladores de cerâmica. A cada 20 metros, uma tabuleta:

 

PERIGO!!!

Não Toque Sem Abrir

O Comutador — Mestre # 12

 

No portão, outra tabuleta, maior:

AGÊNCIA DE LIGAÇÃO INTERBUREAU

Divisão de Pesquisa Bio-ecológica

Escritório Distrital

Entrega de Materiais Radioativos

pelo Portão Quatro — Apenas

nas Quartas-feiras

7-D-92 — 10-3so

Os Impostos que Você Paga Convertidos em Serviços

 

Pensativa, disse Hazel:

— Richard, não parece que tio Jock resida aqui neste ano. Ou então estamos na casa errada e Gay errou suas coordena­das. Eu talvez tenha que pedir ajuda.

— É a casa certa e tio Jock morou — mora — aqui este ano. Neste ano de 2177, sobre o qual estou mantendo a mente aberta. Essa tabuleta é a cara de tio Jock. Ele sempre teve idéias es­quisitas sobre privacidade. Em certo ano, foram piranhas e um fosso.

Descobri um botão no lado direito do portão e apertei~o. Uma voz metálica, tão artificial que tinha que ser de um ator, anunciou: "Afaste-se meio metro da câmera. Mostre seu dis­tintivo. Fique de frente para a câmera. Vire 90 graus e mostre o perfil, Esta propriedade é protegida por cães de ataque, gás e atiradores de elite."

— Jock Campbell está?

— Identifique-se.

— Sou eu, o sobrinho dele, Colin Campbell. Diga a ele que o pai da moça descobriu tudo.

A voz metálica foi substituída por outra, que reconheci:

— Dickie, você está metido novamente em encrencas?

— Não, tio Jock. Eu simplesmente quero entrar. Pensei que você estava me esperando.

— Alguém com você?

— Minha mulher.

— Qual é o primeiro nome dela?

— Vá pro inferno.

— Mais tarde, não me apresse. Preciso, inicialmente, sa­ber o nome dela.

— E eu não topo a brincadeira. Vamos embora. Se encon­trar Lazarus Long... ou o Dr. Hubert.. diga a ele que estou com o saco cheio dessas brincadeiras infantis e que não topo. Adeus, tio.

— Pare! Não se mova. Você está na minha mira. Virei-me sem responder e disse a Hazel:

— Vamos começar a andar, amor. A cidade fica um boca­do longe, mas alguém vai aparecer e nos dar uma carona. As pessoas por aqui não são cordiais.

— Posso ligar pedindo ajuda. Da maneira como fiz no Rafles. — E levantou a bolsa.

— Pode? A ligação não seria retransmitida para esta casa, qualquer que fosse o onde, o quando ou a vertente temporal? Ou será que não consegui entender nada da coisa? Vamos co­meçar a andar. É minha vez de levar o gato feroz.

— Tudo bem.

Hazel não parecia preocupada por não termos consegui­do entrar na casa de tio Jock, ou Quartel-general do Coman­do do Tempo, ou o que quer que fosse. Quanto a mim, sentia-me feliz, de coração leve. Eu tinha uma bela e adorável mu­lher. Não era mais perneta e sentia-me anos mais moço que minha idade oficial. Se ainda possuía essa idade. O tempo estava maravilhoso, de um jeito que só Iowa conhece. Oh, seria mais quente à medida que o dia se adiantasse (é preciso sol quente para dar bom milho), mas naquele momento, às 10h15min, o tempo era ainda balsâmico. Quando esquentas­se realmente, minha esposa e o gato estariam na sombra, em algum ambiente. Mesmo que tivéssemos que parar na casa da fazenda seguinte. Vejamos, de quem... Dos Tanguays? Ou o velho vendera a propriedade em 2177? Não tinha impor­tância.

Não me preocupei com a falta da moeda corrente legal, nem com a falta de ativos de qualquer tipo. Um belo dia de verão em Iowa não deixa espaço para preocupações. Eu podia trabalhar, e trabalharia — espalhando estéreo, se fosse o tipo de trabalho disponível. E logo depois espalharia estéreo de ou­tro tipo, trabalhando em outras coisas à noite e nos domin­gos. Em 2177, Evelyn Fingerhut não havia se aposentado ain­da, de modo que eu arranjaria outros pseudônimos e lhe ven­deria o mesmo velho lixo. As mesmas histórias — bastando retirar os números de série.

Mudar os números de série, mudar um pouco as linhas corporais, passar-lhe uma demão de pintura, cruzar a frontei­ra do estado, e o mundo é do cara ousado! Aí é que está o se­gredo do sucesso literário. Editores sempre alegam que estão à procura de novas histórias, mas não as compram. Compram a mesma "velha mistura'', como antes. Porque o leitor que pa­ga à vista quer ser distraído, não estarrecido, nem instruído, nem amedrontado.

Se as pessoas realmente quisessem novidades, o beisebol teria morrido há dois séculos... em vez de continuar sempre popular. O que pode, em nome de Deus, acontecer em um jogo de beisebol, que todos não viram muitas vezes antes? Ain­da assim, pessoas gostam de assistir a jogos de beisebol. Bo­las, eu mesmo gosto de assistir um jogo de beisebol acompa­nhado de cachorro-quente e cerveja.

— Hazel, você gosta de beisebol?

— Nunca tive oportunidade de descobrir. Quando surgi­ram as drogas contra aceleração, vim à Terra para me formar em direito, mas nunca tive tempo de assistir beisebol, mesmo na máquina de fazer idiotas. Trabalhei durante todo o tempo em que estudava direito e vivia muito ocupada! Foi a época em que eu era Sadie Lipchitz.

— Por que foi? Você disse que não gostava desse nome.

— Quer mesmo saber? A resposta ao "por quê?" é sem­pre "dinheiro".

— Se quer que eu saiba, você me diz.

— Patife. Isso aconteceu pouco depois da morte de Slim Lenke Stone e... O que, em nome de Deus, é esse barulho?

— É um automóvel.

Olhei em volta à procura da fonte da zoeira.

Começando por volta de 2150 ou um pouco antes (vi o pri­meiro no ano em que me alistei) o grãfinismo supremo de um fazendeiro de Iowa era possuir e dirigir uma réplica fun­cional do "automóvel", o veículo de transporte pessoal do sé­culo XX. Claro, não um veículo acionado por motor de com­bustão interna e que usava um derivado de rocha petrolífera. Mesmo na República Popular da África do Sul havia leis con­tra o envenenamento do ar. Mas com seu Shipstone escondi­do e uma trilha sonora para fornecer o barulho de um soi-disant MCI, a diferença entre uma réplica funcional e um "automó­vel" autêntico não era tão visível assim.

Este era a mais bacana de todas as réplicas, um Tin Lizzy, "um carro de passeio Ford, Modelo T, 1914". Era tão respeitá­vel como a Rainha Victoria, com a qual, aliás, se parecia. E pertencia a tio Jock ... como eu desconfiara quando ouvi a ba­rulheira infernal.

Voltei-me para Hazel:

— Hei, segure Pixel e acalme-o. Ele certamente nunca ou­viu nada parecido. E afaste-se bastante do acostamento da es­trada. Essas carroças têm comportamento errático.

Continuamos a andar. A réplica emparelhou conosco e parou.

— Querem uma carona, gente? — perguntou tio Jock. De perto, o barulho era horrível.

Virei-me e sorri alegre para ele e respondi, articulando as palavras de modo que não podiam em absoluto ser ouvidas acima do ruído:

— Velho coroca, coroca já era há 87 anos.

— O que foi que você disse?

— O bilhar jamais substituirá o sexo, ou mesmo tomates. Tio Jock baixou a mão e desligou a trilha sonora. Continuei:

— Obrigado, tio. O barulho estava assustando nosso gati­nho. Grande gentileza sua em desligá-lo. O que foi que o se­nhor disse? Não pude ouvir por causa do zoeira do motor.

— Perguntei se queriam carona.

— Ora, obrigado. Está indo para Crinnell?

— Eu pensava em levar vocês de volta para a casa. Por que foi que você fugiu?

— Você sabe por quê. O Dr. Hubert, ou Lazarus Long, ou qualquer que seja o nome que ele está usando esta semana, mandou-o fazer isso? Se mandou, por quê?

— Apresente-me, em primeiro lugar, se faz favor, sobrinho. E perdão, por não me levantar, madame. Este corcel é assusta­diço.

— Jock Campbell, seu velho bode, não ouse fingir que não me conhece! Vou cortar e fazer castanholas de seus culhões. Pode crer!

Pela primeira vez que me lembre, tio Jock pareceu choca­do e confuso.

— Madame?

Hazel, notando-lhe a expressão, disse rapidamente:

— Fomos invertidos? Desculpe. Sou a Major Sadie Lipschit, Comando do Tempo, DOL., designada para Suserano. Conheci-o em Boondock há cerca de 10 de meus anos subje­tivos. O senhor me convidou para visitá-lo aqui, e fiz isso, no ano 2186, segundo me lembro. Confere?

— Confere. Uma inversão clara. Major, estou realmente contente em vê-la. Mas ainda mais feliz em saber que vou encontrá-la novamente. Vou esperar ansioso por esse momento. Hazel respondeu:

— Nós tivemos um tempo divertido, isso lhe garanto. Es­tou casada com seu sobrinho agora... mas você continua a ser um bode velho. Desça dessa carroça de brinquedo e me beije como se fosse a sério.

Apressado, tio Jock desatarraxou o rotor e desceu. Hazel entregou-me Pixel, o que lhe salvou a vida. Após algum tem­po, o velho bode disse:

— Não, não a conheci antes. Eu não poderia esquecer nun­ca.

Hazel respondeu:

— Eu o conheci antes. Nunca esqueço. Deus, é bom vê-lo novamente, Jock. Você não mudou. Quando foi que passou pelo seu último rejuvenescimento?

— Há cinco anos subjetivos atrás... apenas o suficiente para ficar marinado. Mas não deixei que rejuvenescessem meu rosto. Quando foi o seu?

— Mais ou menos os mesmos subjetivos. Não estava na hora ainda, mas eu precisava de cosméticos porque pensava em casar com seu sobrinho. De modo que tomei um reforço, juntamente com o rejuvenescimento.

— Eu sei. Dickie teve que se alistar porque o cerco estava se apertando em volta dele de todos os lados. (Uma deslava­da mentira!) Mas tem certeza de que seu nome é Sadie? Este não foi o nome que Lazarus me deu como palavra-teste.

— Meu nome é o que eu quero que seja, da mesma forma que com Lazarus. Meu Deus, estou contente porque transfe­riram o QGT para sua fazenda na noite passada! Beije-me, de novo.

O que ele fez. Finalmente, eu disse, humilde:

— Em estradas públicas, não, gente, não no condado de Poweshiek. Isto aqui não é Boondock.

— Mate-se com sua vida, sobrinho. Sadie, o Quartel-general não foi trazido para aqui na noite passada. Isto aconteceu há três anos.

 

"A maioria nunca tem razão."

  1. Long 1912

 

Voltamos no carro para a casa, Hazel na frente com tio Jock, Pixel e eu atrás com as bagagens. Como um favor a Pixel, a réplica Modelo T movia-se tão silenciosamente como um fan­tasma. (Fantasmas movem-se, realmente, tão silenciosos as­sim? Como foi que começaram esses clichês?) O portão abriu-se ao som da voz de tio Jock e nenhuma defesa letal foi acio­nada. Se houvesse alguma. Conhecendo tio Jock, desconfio que havia — mas não as anunciadas.

Fomos recebidos na varanda pelas tias Til e Cissy. Enquanto tio Jock entrava, minhas tias davam à minha esposa as boas-vindas com todo o calor dos costumes do campo. Depois, pas­sei o gatinho a Hazel e fui recebida por elas mais ou menos como Hazel cumprimentara o tio, mas sem nenhum loop tem­poral para nos confundir. Poxa, era bom estar em casa! A des­peito de minha adolescência um tanto tempestuosa, as recor­dações mais felizes de minha vida estavam ligadas e esta ve­lha casa.

Tia Cissy parecia mais velha naquele dia, em 2177, do que me lembrava desde a última vez em que a vira — 2183, teria sido isso? Seria isto uma pista para o fato de tia Til sempre pa­recer ter a mesma idade? Uma viagem ocasional e Boondock podia produzir milagres.

Estariam as três — não, todas quatro, incluindo tia Belden — cumprindo alistamentos com a Fonte da Juventude como uma das mordomias?

Teria tio Jock metabolicamente a idade de 30 anos, embo­ra conservando o rosto, o pescoço e as mãos de um velho a fim de coonestar o enigma? (Isto não é de sua conta, Richard.)

— Onde está tia Belden?

— Foi passar o dia em Des Moines — respondeu tia Til.

— Volta para a ceia. Richard, eu pensava que você estava em Marte.

Consultei o calendário que levo na cabeça.

— Pensando bem, estou.

Tia Til olhou-me atentamente.

— Você está em um loop?

Tio Jock apareceu justamente a tempo de dizer:

— Parem com isso! Esse tipo de conversa é proibido. Vo­cês todas sabem disso. E estão todas sujeitas ao Código.

Rapidamente retruquei:

— Eu não estou, o que quer que seja isso. Sim, tia Til, es­tou em um loop. Voltando de 2188.

Tio Jock fitou-me com aquele olhar que me assustava tan­to quando eu tinha 10 ou 12 anos.

— Richard, o que significa isto? O Dr. Hubert disse-me que você tinha ordens de se apresentar ao Quartel-general do Co­mando do Tempo. Agora mesmo, fui lá dentro e telefonei a ele comunicando sua chegada. Mas não entra no Quartel-general quem não tenha prestado juramento e esteja sujeito ao Código. No mínimo, se entrasse, de lá não sairia. Você dis­se, antes, que estava encrencado, mas pode parar de mentir agora e me contar o que está havendo. Eu o ajudarei, se pu­der. Sangue é mais grosso do que água. Assim, desembuxe.

— Não estou em nenhuma encrenca que saiba, tio, mas o Dr. Hubert quer me meter em alguma. Está sugerindo a sé­rio que minha apresentação ao Quartel-general do Comando do Tempo poderia resultar em que eu não sairia dele vivo? Não prestei juramento ao Comando e não estou sujeito ao seu Có­digo. Se está falando sério, então eu não devo me apresentar ao Quartel-general. Tia Til, tudo bem se a gente passar a noi­te aqui? Ou isso lhe causaria embaraço? Ou a tio Jock?

Sem consultá-lo, nem mesmo com os olhos, tia Til respon­deu:

— Claro que você vai ficar aqui, Richard, você e sua que­rida esposa são bem-vindos hoje à noite, enquanto quiserem ficar e voltar. Esta é sua casa, e sempre foi.

O tio encolheu os ombros e ficou calado.

— Obrigado! Onde é que ponho estes embrulhos? No meu quarto? E preciso fazer arranjos para este feroz felino. Sobre alguma caixa de areia da última ninhada? E embora Pixel te­nha tomado o café da manhã, acho que ele poderia tomar um pouco de leite.

Tia Cissy deu um passo à frente.

— Til, eu cuido do gatinho. Mas ele não é uma gracinha? Estendeu a mão. Hazel entregou-lhe o bichano.

Tia Til continuou:

— Richard, seu quarto está com um hóspede, um tal Sr. Davis. Humm, acho que, sendo julho, o quarto norte do ter­ceiro andar seria muito confortável para você e Hazel...

— Hazel! — interrompeu-a tio Jock. — Essa foi a palavra de teste que o Dr. Hubert me deu. Major Sadie, este é um de seus nomes?

— É. Hazel Davis Stone. Agora, Hazel Stone Campbell.

— Hazel Davis Stone — repetiu tia Til. — Você é por aca­so a filhinha do Sr. Davis?

Minha esposa empinou bruscamente as orelhas.

— Isso depende. Há muito tempo eu era Hazel Davis. Es­se se chama "Manuel Davis"? Manuel Garcia O'Kelly Davis?

— Ele mesmo.

— Meu paizinho! Ele está aqui?

Vai estar na hora da ceia, espero. Mas... bem, ele tem seus deveres.

— Eu sei. Estou no Comando há 46 anos subjetivos e pa­pai mais ou menos o mesmo tempo, acho. De modo que rara­mente nos vemos, sendo o Comando o que é. Oh, Deus do céu, Richard! Eu vou chorar, Faça com que eu pare!

— Eu? Moça, estou apenas esperando o ônibus. Mas po­de usar meu lenço. — Que lhe ofereci.

Ela aceitou-o e enxugou os olhos.

— Bruto. Tia Till, a senhora devia ter surrado mais ele.

— Tia errada, querida. Essa era tia Abigail, que foi cobrar seu prêmio no outro mundo.

— Tia Abigail era brutal — comentei. — Usava uma vara de pessegueiro em mim. E gostava.

— Devia era ter usado um porrete. Tia Til, não posso nem esperar para ver papai Mannie. Faz tanto tempo.

— Hazel, você o viu aqui mesmo... ali mesmo — disse eu, apontando para um ponto a meio caminho até o velho celeiro — há apenas três dias. — Hesitei. — Ou foi há 37 dias? Trinta e nove?

— Não, não, Richard. Nenhum dos dois. Pelo meu tempo subjetivo, já fazem mais de dois anos. — E acrescentou para as outras: — Isto tudo é ainda tão novo para Richard. Ele foi recrutado, no seu tempo subjetivo, há apenas uma semana.

— Mas eu não fui recrutado — protestei. — É justamente por isso que estou aqui.

— Nós veremos isso depois, querido. Tio, isso me lembra uma coisa... E tenho que vergar um pouco o código para fa­zer isso. Isso não me preocupa. Sou lunariana e nunca cum­pro leis que não me agradam. Mas o senhor é realmente tão vidrado em regulamentos que não vai ouvir minha conversa sobre as "próximas atrações"?

— Bem... — começou tio Jack lentamente. Tia Till soltou uma risadinha de mofa. Tio Jock voltou-se para ela e disse:

— Mulher, do que é que você está rindo?

— Eu, eu não estava.

— Humm. Major Sadie, minhas responsabilidades e de­veres requerem uma certa flexibilidade na interpretação do Có­digo. Isso é alguma coisa que eu preciso saber?

— Na minha opinião, é.

— Esta é sua opinião oficial?

— Bem, se você coloca a questão dessa maneira...

— Esqueça. Talvez seja melhor você me dizer e deixar que eu julgue.

— Sim, senhor. No sábado, 5 de julho, 11 anos à frente, 2188, o QGT será transferido para New Harbor, na vertente temporal cinco. O senhor irá também. Toda sua propriedade acho.

Ho Jock inclinou a cabeça.

— Isto é exatamente o tipo de informação derivada do loop que o Código foi criado para suprimir. Porque pode, com gran­de facilidade, gerar retroalimentação positiva e resultar em heterodinação e possível pânico. Mas eu posso recebê-la calma­mente e dela fazer bom uso. Hummm. Posso lhe perguntar o porquê da mudança? Desde que parece improvável que eu vá também... e certamente não a minha propriedade. Isto aqui é uma fazenda em funcionamento, pouco importa o que es­conde.

Interrompi-o:

— Tio, eu não estou limitado por nenhum código idiota. Aqueles cabeças quentes da Costa Oeste terminaram finalmente de falar e se separaram?

As sobrancelhas dele subiram.

— Não... Realmente? Eu não pensava que um dia eles con­seguissem deixar a maconha.

— Conseguiram. Naquele dia de maio de 88. No dia em que Hazel e eu estivemos aqui, no sábado, 5 de julho, as Fa­langes Angelenas haviam capturado Des Moines. Bombas es­tavam sendo lançadas por toda parte aqui. Você pode pensar, hoje, que não cairia fora daqui. Mas sei que estava para fazer isso naquela ocasião. Eu estava lá. Estarei lá. Pergunte ao Pr. Hubert... Lazarus Long. Ele pensou que este lugar era pe­rigoso demais para conservar por mais tempo. Pergunte a ele.

— Coronel Campbell!

Eu conhecia aquela voz. Vierei-me e disse:

— Oi, Lazarus.

— Esse tipo de conversa é estritamente proibido. Enten­deu o que eu disse?

Tomei uma profunda respiração e disse a Hazel:

— Ele não vai aprender nunca. — E depois a Lazarus: — Doutor, o senhor vem tentando me obrigar a permanecer em posição de sentido desde que nos conhecemos. Não vai dar certo. Será que não pode meter isso na cabeça?

Em algum lugar, em alguma ocasião, Lazarus Long rece­beu algum tipo de treinamento em controle emocional. Nesse instante o vi pedindo ao treinamento que o ajudasse. Preci­sou de uns três segundos para invocar o que quer que tivesse usado, pois depois falou tranqüilamente, em tom de voz mais baixo:

— Deixe-me tentar explicar. Essa conversa é perigosa para a pessoa com quem fala. Fazer prognósticos, quero dizer, com base em conhecimentos adquiridos em um loop. É um fato comprovado que, repetidamente, acontece que isso é um des­serviço à pessoa a quem informa quando lhe fala sobre algu­ma coisa em seu futuro que aprendeu no seu passado. Quan­to ao motivo por que isso é verdade, sugiro que consulte um dos matemáticos que lidam com tempo — o Dr. Jacob Bur­roughs, a Dra. Eliabeth Long, ou qualquer pessoa do quadro de matemática do Comando. Ou fazer uma pesquisa na biblio­teca de nosso Quartel-general — arquivo "Cassandra" e arquivo "Idos de Março", para começar, e em seguida ler o arquivo ''Nostradamus".

Long virou-se para tio Jock:

— Jock, sinto muito a este respeito. Rezo para que não per­mita que os problemas de 88 tornem sua família triste nos seus anos que faltam até àquela data. Eu nunca pensei em trazer seu sobrinho aqui, ainda não-treinado nas disciplinas do Tem­po... Nunca pensei, absolutamente, em trazê-lo para cá. De fato precisamos dele, mas esperávamos recrutá-lo em Boon­dock, sem necessidade de trazê-lo ao Quartel-general. Mas ele recusou-se a se alistar. Quer tentar mudar-lhe a opinião.

— Eu não tenho certeza de que exerça alguma influência sobre ele, Lafe. O que é que você me diz, Dickie? Quer saber o que uma boa carreira no Comando do Tempo pode signifi­car? Você poderia dizer que o Comando sustentou-o durante toda sua infância... e poderia porque é verdade. O xerife ia pôr em leilão esta fazenda e tomá-la de nós... quando me alis­tei. Você era apenas um garotinho... mas talvez se lembre de uma época em que a gente só comia pão de milho e não mui­to de outra coisa. Depois, as coisas melhoraram e ficaram me­lhores... lembra-se? Você tinha uns seis anos de idade.

Recuei um bocado no pensamento.

— Lembro-me. Acho que me lembro. Tio, eu não sou con­tra me alistar. Você está no Comando, minha mulher está, vá­rios amigos meus estão. Mas Lazarus vem tentando me ven­der gato por lebre. Tenho que saber o que é que eles querem que eu faça e por que querem que eu o faça. Dizem que me querem, para uma missão com probabilidades de apenas 50-50 de que eu saia vivo. Com essas chances, não há propósito em discutir benefícios de aposentadoria. Não quero que nenhum burocrata do Quartel-general seja assim tão displicente com meu pescoço. Preciso saber se essas probabilidades fazem sen­tido antes de aceitá-las.

— Lafe, exatamente que missão é essa que você tem para realizar, meu rapaz?

— A missão Adam Selene, na Operação Suserano Galático.

— Acho que nunca ouvi falar nela.

— E agora deve esquecê-la, uma vez que não faz parte de­la e não foi montada a partir deste ano.

— Isto torna difícil para mim aconselhar meu sobrinho. Eu não devia ser posto a par?

Hazel interveio.

— Lazarus! Acabe com isso!

— Major, estou discutindo assuntos oficiais com o chefe da estação do QGT.

— Conversa fiada! Você está, novamente, tentando obri­gar Richard a arriscar a vida sem saber por quê. Quando con­cordei em fazer isso, eu ainda não o conhecia. Agora que o conheço, e admiro, ele é sans peur et sans reproche — e sin­to vergonha de jamais ter tentado. Mas de fato tentei... e qua­se consegui. Mas você entrou no lance com sua finesse de ri­noceronte... bagunçou tudo, como era previsível. Eu lhe dis­se naquela ocasião que o Círculo teria que convencê-lo, eu lhe disse: e agora você está tentando que o parente mais próximo de Richard — seu pai em tudo o que conta — o pressione em seu lugar. Que vergonha! Leve Richard ao Círculo. Deixe que eles lhe expliquem... ou deixe que ele volte para casa! Deixe de remanchar! Faça isso.

 

O que eu sempre pensara que fosse um armário no gabi­nete do tio acabou mostrando que era um elevador interno. Lazarus Long e eu entramos juntos. Ele fechou a porta. Notei que enquanto um elevador comum tem em geral os números dos andares com um botão ao lado, o que havia ali era um grupo de símbolos iluminados — signos do Zodíaco, pensei, mas depois mudei de opinião. No Zodíaco não há morcego, nem aranha viúva negra e certamente nenhum estegrossauro.

No fundo, sozinha, uma serpente comia a própria cauda — a serpente mundana, Ouroboros. Um símbolo repugnante, na melhor das hipóteses.

Lazarus pôs a mão sobre o símbolo.

O armário, ou gaiola do elevador, ou pequena sala, mu­dou. Como, não tenho certeza. Ele simplesmente piscou e fi­cou diferente.

— Por aqui — disse Lazarus e abriu a porta do lado oposto.

Estendendo-se a partir daquela porta havia um longo cor­redor que nunca caberia dentro da casa de meu tio. Mas as paisagens que eu via pelas janelas que margeavam o longo cor­redor tampouco se ajustavam à fazenda. A terra lembrava Io­wa, sim, mas uma Iowa que não fora tocada pelo arado, nun­ca desmatada para a agricultura.

Entramos nesse corredor e logo depois estávamos no fim dele.

— Por ali — disse Lazarus, apontando.

Um arco apareceu na parede de pedra. Do outro lado, uma passagem escura. Olhei em volta para falar com Lazarus. Ele desaparecera.

A mim mesmo, eu disse: Lazarus, eu lhe disse para não brincar comigo... e virei-me para voltar pelo longo corredor, para passar pelo gabinete do tio Jock, reunir-me a Hazel e sair dali.

Não havia nenhum corredor atrás de mim.

Prometi a Lazarus uma porrada na cabeça e segui a única rota disponível. Ela permaneceu escura, mas sempre com uma luz um pouco mais à frente. Pouco tempo depois, cinco mi­nutos, ou menos, terminou em uma pequena e confortável sa­la de estar, bem iluminada por luz que não vinha de parte ne­nhuma. Uma voz metálica, sem inflexões, disse:

— Por favor, sente-se. Você será chamado. Sentei-me numa espreguiçadeira e pus a bengala de lado.

Numa mesinha ao lado vi revistas e um jornal. Lancei um olhar a cada uma delas, procurando anacronismos. Não encontrei nenhum. Os periódicos eram todos os que eu recordava de terem circulado em Iowa na década de 70: traziam as datas de julho de 2177, ou antes. O jornal era o Grinell Herald-Register, datado de sexta-feira, 27 de junho de 2177.

Comecei a botar o jornal na mesinha, já que o Herald-Register não é exatamente interessante. O tio era assinante de um diário de Des Moines impresso em casa por computador e, claro, do Kansas City Star, mas nosso jornal local só era bom pelas notícias que trazia da universidade, notas locais e os tipos de "notícias" e "notas sociais" publicadas para estampar tantos nomes locais quanto possível.

Mas um anúncio chamou-me a atenção: no domingo, 20 de julho, apenas durante uma noite, na Des Moines Munici­pal Opera House, o Halifax Ballet Theater apresentaria Sonhos de Uma Noite de Verão, com a nova e sensacional estrela Luanna Pauline, no papel de Titania.

Li aquilo duas vezes... e prometi a mim que levaria Hazel para assistir ao espetáculo. Seria um aniversário especial. Eu conhecera a Sra. Gwandolyn Novak no Baile do Dia 1° no Regra de Ouro, o dia de Neil Armstrong, 20 de julho um ano antes (pouco importa esse tolo loop temporal), e isto constitui­ria uma deliciosa reprise da véspera de gala de nosso dia de casamento (sem, desta vez, um grosseiro mal-educado entran­do de bicão em nossa festinha e morrendo em nossa mesa).

Um espetáculo em uma gravidade seria decepcionante de­pois de ter visto a Rainha das Fadas fazendo travessuras, alta no ar? Não, isto era uma viagem sentimental, não teria impor­tância. Além do mais, Luanna Pauline fizera (faria, fará) sua reputação dançando em uma gravidade — e seria um contras­te fascinante. Poderíamos ir aos bastidores e lhe dizer que a víramos dançar o papel de Titania a um terço de gravidade no Circus Room do Regra de Ouro. Oh, claro... embora o Re­gra de Ouro só viesse a existir três anos depois! Comecei a compreender por que o Código impunha limitações a conver­sas ociosas.

Esqueça. No Dia de Neil Armstrong eu presentearia mi­nha esposa com esta comemoração sentimental.

Enquanto eu olhava para o Herald-Register um desenho abstrato na parede transformou-se em um lema em letras bri­lhantes:

 

Um Ponto no Tempo Salva Nova Bilhões

 

Enquanto eu olhava, a frase mudou para:

 

Um Paradoxo Pode Ser Paradomodificado

 

Em seguida:

 

A Minhoca Deseja Morrer

 

Terminando em:

 

Não Se Esforce Muito: Você Pode Conseguir

 

Eu estava tentando decifrar o último quando ele mudou subi­tamente para "Por que Está Olhando para uma Parede Vazia?" — e era uma parede vazia. Depois nela apareceu, grande, a Serpente Mundana e, dentro do círculo que formava com sua nauseante maneira de alimentar-se, letras se perseguiam umas às outras. Depois se nivelaram em linha reta:

 

Pondo Ordem no Caos

E sob isso:

O CÍRCULO DE OUROBOROS

 

As palavras foram substituídas por outra arcada; e a voz metálica disse:

— Por favor, entre.

Peguei a bengala, cruzei a arcada e descobri que fora trans­portado para o centro exato de uma grande sala circular. Há essa tal coisa de serviço em excesso.

 

Havia mais de uma dúzia de pessoas sentadas em volta da sala em uma plataforma elevada de cerca de um metro de al­tura — um teatro de arena no qual eu fazia o papel principal... no sentido em que o inseto espetado sob a objetiva do micros­cópio é o astro do show. A voz metálica recomeçou:

— Diga seu nome completo.

— Richard Colin Ames Campbell. O que é isto? Um jul­gamento?

— Sim, em certo sentido.

— Os senhores podem suspender os trabalhos agora mes­mo. Não vou me submeter a nenhum julgamento. Se alguém está sendo julgado, são todos os senhores — uma vez que não quero nada dos senhores e os senhores parecem querer algu­ma coisa de mim. Cabe aos senhores me convencer, e não o contrário. E não se esqueçam disso.

Virei-me lentamente em um círculo, olhando para meus "juizes". Descobri um rosto amigo, Hilda Burroughs, e me senti imensamente melhor. Ela me jogou um beijo. Peguei-o e o co­mi. Mas fiquei também muitíssimo espantado. Eu esperaria encontrar essa minúscula beldade em uma reunião que exi­gisse elegância e graça... mas não como membro de um gru­po que me fora descrito como o mais poderoso conselho de toda a história e de todos os universos.

Depois, reconheci outro rosto: Lazarus. Ele inclinou a ca­beça. Retribuí. Ele falou:

— Por favor, não fique impaciente, coronel. Permita que continue o protocolo.

Respondi:

— O protocolo ou é útil ou deve ser abolido. Estou em pé e todos os senhores estão sentados. Isto é um protocolo que estabelece dominação. E podem metê-lo naquele lugar! Se não me derem uma cadeira em 10 segundos, vou embora. Sua ca­deira me servirá.

Aquele robô invisível de voz metálica colocou uma cadei­ra espreguiçadeira atrás de seus joelhos com tal rapidez que não tive desculpa para ir embora. Afundei-me nela e pus a bengala atravessada sobre os joelhos.

— Confortável? — perguntou Lazarus.

— Estou, obrigado.

— Ótimo. O item seguinte no protocolo é... apresentações. Acho que não vai achar isso censurável.

A voz metálica recomeçou, nomeando os membros — "Companheiros" — do Círculo de Ouroboros, entidade gover­nante do omuniversal Comando do Tempo. A cada nome cha­mado minha cadeira virava para o companheiro citado. Mas eu não sentia movimento.

— Mestre Mobyas Toras, de Barsoom, vertente temporal um, codinome "John Carter".

"Barsoom?" Bobagem! Mas descobri que estava em pé fa­zendo uma mesura em resposta ao sorriso suave e um gesto que sugeria bênção. Ele era antigo, pouco mais que ossos e peles. Usava espada, mas eu tinha certeza de que não mane­jara uma delas durante gerações. Estava envolvido em tecidos pesados de seda, muito parecidos com os usados por monges budistas. A pele era mogno polido, mais vermelha do que a de qualquer "pele-vermelha" americano — em suma, ele pa­recia exatamente igual às descrições fictícias nas histórias de Barsoom... um resultado fácil de conseguir com maquiagem, uns dois metros de tecido, e uma espada como adereço.

Mas, se assim, por que me levantei?

(Porque tia Abby tinha me escolado à pancada no tocante a qualquer falta de respeito com os mais velhos?

Tolice. Eu soube que ele era autêntico quando botei os olhos em cima dele. O fato de minha convicção ser absurda não al­tera nada.)

— Sua Estrela da Sabedoria, Árbitro dos Noventa Univer­sos, vertentes temporais compósitas, codinome "Cirano".

Sua Sabedoria sorriu para mim e me remexi como se fos­se um cachorrinho. Não sou juiz de sabedoria, mas tenho cer­teza de que homens com pressão arterial alta, qualquer histó­rico de problemas cardíacos ou T.I.A. não devem se aproxi­mar muito dela. Estrela, Sra. Gordon, é tão alta ou mais alta do que eu, pesa mais e toda ela é de músculos, com exceção dos seios e daquela leve camada que suaviza as linhas femini­nas. Ela usava muito pouca roupa para o Condado de Powes­hiek, mas um bocado para Boondock.

Estrela pode não ser a mulher mais bela de todos seus mui­tos universos, mas talvez seja a mais sexy — da forma ardente de uma bandeirante de tropa de escoteiros. Simplesmente cru­zar uma sala onde ela está deve transformar um menino em homem.

— Woodrow Wilson Smith, Senior das Famílias Howard, vertente temporal dois, codinome "Leslie LeCroix"

Lazarus e eu, mais uma vez, trocamos inclinações de cabeça.

— Dr. Jubal Harshaw, vertente temporal três, codinome "Neil Armstrong".

O Dr. Harshaw ergueu a mão em uma meia saudação e sorriu. Respondi da mesma maneira — e tomei uma nota men­tal para abecá-lo, talvez em Boondock, a respeito das muitas lendas sobre "O Homem de Marte". O quanto era verdade e o quanto ficção?

— Dra. Hilda Mae Burroughs, vertente temporal quatro, codinome "Ballox O'Malley".

Hilda e eu trocamos sorrisos.

— Comandante Ted Smith, vertente temporal cinco, codi­nome "DuQuesne".

O comandante Smith era um atleta de queixo quadrado e olhos de azul-gelo. Usava uniforme militar sem condecora­ções, trazia à cintura uma pistola no coldre, e exibia um brace­lete pesado cravejado de pedras.

— Capitão John Sterling, vertente temporal seis, codino­me "Vertente temporal alternada Neil Armstrong".

Olhei para o herói de minha infância e pensei na possibi­lidade de eu estar dormindo e tendo um sonho muito vivido. Hazel me dissera e repetira que o herói de sua novela espa­cial era real... mas nem mesmo o repetido uso da codifrase "Operação Suserano Galático" me convencera... e naquele mo­mento ali estava ele: o inimigo do Suserano.

Ou era mesmo? Que prova?

— Marechal-do-espaço Samuel Beaux, vertente temporal sete, codinome "Fairacre".

O marechal Beaux tinha mais de dois metros de altura, uma massa de pelo menos 110kg, tudo isso de músculos e cou­ro de rinoceronte. Usava uniforme preto como a meia-noite e uma carranca, e era tão belo como uma pantera negra. Fitou-me com olhos de selva.

Lazarus tomou a palavra:

— Declaro que há quorum. O Círculo está fechado. A Dra. Hilda Burroughs falará agora pelo Círculo.

Hilda me sorriu e disse:

— Coronel Campbell, fui convocada para lhe explicar nos­sos objetivos e o suficiente de nossos métodos para que com­preenda como a missão que lhe estamos pedindo que realize se encaixa no plano-mestre, e por que ela deve ser cumprida. Não hesite em me interromper, argumentar ou pedir mais de­talhes. Podemos continuar esta discussão a partir de agora até a hora do almoço. Ou pelos próximos 10 anos. Ou por um pe­ríodo realmente longo. Tão longo quanto necessário.

O Marechal-do-espaço Beaux interrompeu-a com:

— Fale por si mesma, Sra. Burroughs. Eu vou sair dentro de 30 minutos.

— Sambo — repreendeu-o Hilda —, você devia ter-se di­rigido à mesa. Não posso deixar que vá embora até que diga o que lhe cabe, mas, se precisa sair, pode falar agora. Por fa­vor, explique o que faz e por quê.

— Por que esse homem está sendo mimado? Nunca me pediram antes que explicasse meus deveres a um recruta no­vato. Isto é ridículo.

— Não obstante, peço-lhe que faça isto. Lazarus tomou a palavra:

— Sambo, sei que isto não tem precedente, mas todos os Companheiros, incluindo os três que não estão presentes, con­cordaram em que a Missão Adam Selene é essencial à Opera­ção Suserano Galático, que a Suserano é essencial à Campa­nha Boskone, que Boskone é essencial ao Nosso Plano de Lon­go Prazo... e que o Coronel Campbell é essencial à Missão Adam Selene. O Círculo se fechou a este respeito, sem voz dissidente. Precisamos dos serviços de Campbell, prestados total e li­vremente. De modo que temos de convencê-lo. Você não pre­cisa ser o primeiro a falar... mas se espera ser liberado pelo Círculo dentro de 30 minutos, é melhor que fale.

— E se resolver que não falo?

— O problema é seu. Você tem liberdade de pedir exone­ração. Todos nós temos, em qualquer ocasião, e o Círculo tem liberdade de terminá-lo.

— Está me ameaçando?

— Não. — Lazarus olhou para o punho. — Você reman­chou durante quatro minutos, contra uma decisão unânime do Círculo. Se está disposto a cumprir a decisão do Círculo, seus minutos estão se esgotando.

— Oh, muito bem. Campbell, eu sou o oficial-comandante das forças armadas do Comando do Tempo...

— Correção — interrompeu-o Lazarus Long. — O Mare­chal-do-espaço Beau é o Chefe do Estado-maior do...

— É a mesma coisa!

— Não é, e eu sabia exatamente o que fazia quando orga­nizei as coisas dessa maneira. Coronel Campbell, o Comando do Tempo intervém às vezes em batalhas decisivas da Histó­ria. De Histórias. A junta de historiadores do Comando pro­cura identificar cúspides em que o uso judicioso de força po­de mudar a história de maneiras que acreditamos, em nossa limitada sabedoria, que serão melhores para a raça humana — e esta política influencia fortemente e é influenciada pela Missão Adam Selene, tenho que acrescentar. Se o Círculo se fecha em uma recomendação dos historiadores, uma opera­ção militar é montada e um comandante-em-chefe para cada operação é escolhido pelo Círculo.

Lazarus virou-se e olhou diretamente para Beaux:

— O Marechal-do-espaço Beaux é um comandante mili­tar de altíssima competência, talvez o melhor em toda a histó­ria. É em geral escolhido para comandar. O Círculo, porém, escolhe o comandante de todas as forças-tarefa. Devo acres­centar que o Chefe do Estado-maior é um auditor sem direito a voto. Não é Companheiro do Círculo. Sambo, tem mais al­guma coisa a acrescentar?

— Parece que você fez meu discurso.

— Porque você estava remanchando. Mas tem liberdade para corrigir, emendar ou detalhar.

— Oh, esqueça. Você devia dar lições de locução.

— Você deseja ser excusado?

— Você está me dizendo para ir embora?

— Não.

— Vou ficar ainda um pouco para ver como você lida com esse palhaço. Por que simplesmente não o convocou e desig­nou-o para a Missão Selene? Ele é um tipo criminal óbvio. Olhe para o crânio dele, observem-lhe a atitude em relação à auto­ridade. No meu planeta natal, jamais usamos algo tão ordiná­rio e indigno de confiança como voluntários... e não temos uma classe criminal porque os convocamos para as forças armadas tão logo botam a cabeça de fora. Não há melhores combaten­tes que tipos criminais, se os pegamos jovens, mantêmo-los sob uma disciplina férrea e mais apavorados com seus sargentos instrutores do que podem ficar com inimigos.

— Isso basta, Sambo. Por favor, evite dar opiniões não solicitadas.

— Eu pensava que você fosse um paladino da liberdade de expressão.

— E sou. Mas não há esse tal de almoço gratuito. Se quer fazer um discurso, alugue seu próprio auditório. Este foi pago pelo Círculo. Hilda, por favor, querida..

— Muito bem Richard, a maioria das intervenções reco­mendadas por nossos historiadores e matemáticos não se cons­tituem em força bruta, mas em ações muito mais sutis, execu­tadas por agentes de campo individuais... como sua peque­na, Hazel, que é uma verdadeira raposa quando se trata de roubar um galinheiro. Você sabe o que estamos tentando con­seguir com a Missão Selene, mas não sabe para o quê, acho. Nossos métodos para prognosticar o resultado de mudanças introduzidas na história são menos que perfeitos. Seja apoian­do um lado numa batalha decisiva, ou fornecendo algo tão sim­ples a um estudante de escola secundária como uma camisi­nha à meia-noite e, dessa maneira, evitando o nascimento de um Hitler ou um Napoleão, não podemos nunca prever os re­sultados tão bem quanto precisamos. Em geral temos que fa­zer a mudança e em seguida enviar um agente de campo àquela vertente temporal a fim de comunicar o efeito das mudanças.

— Hilda — interrompeu a Lazarus —, posso dar um exem­plo horrível.

— Claro, Woodie. Mas ande logo. Estou pensando em ter­minar antes do almoço.

— Coronel Campbell, venho de um mundo idêntico ao seu, mais ou menos por volta de 1939. As divergências, como é habitual, apareceram com mais intensidade no começo dos vôos espaciais. Tanto seu mundo como o meu tinham tendência para histeria religiosa. No meu, chegou ao auge com um evan­gelista de televisão chamado Nehemiah Scudder. Seu tipo de inferno, enxofre e procura de bodes expiatórios — judeus, cla­ro, nenhuma novidade nisto — chegou ao auge numa ocasião em que o desemprego chegou também ao auge e o déficit pú­blico e a inflação se descontrolaram. O resultado foi uma dita­dura religiosa, um governo totalitário tão brutal como meu mundo jamais viu.

— De modo que — prosseguiu — este Círculo montou uma operação para remover Nehemiah Scudder. Nada tão grossei­ro como assassinato. O método específico que Hilda mencio­nou foi usado. Um aluno de escola secundária que não tinha camisinha recebeu uma de um operador de campo e o peque­no sacana que se tornou Nehemiah Scudder nunca nasceu. De modo que a vertente temporal dois — a minha — foi divi­dida e a vertente temporal 11 veio a ser criada, igual, mas sem Nehemiah Scudder, o Profeta. Tinha que ser melhor, certo?

— Errado. Na minha vertente temporal a III Guerra Mun­dial, a guerra nuclear — às vezes conhecida por outros nomes — danificou grandemente a Europa, mas não se disseminou.

A América do Norte, sob o Profeta, optara por ficar fora dos assuntos internacionais. Na vertente temporal 11, a guerra começou um pouco mais cedo, no Oriente Médio, e se espa­lhou por todo o mundo, da noite para o dia... e 100 anos de­pois ainda era impossível achar qualquer forma de vida supe­rior a baratas nas massas continentais que haviam sido as frias e verdes colinas de Terra. Continue, Hilda.

— Obrigada, demais! Lazarus me deixa, com um planeta brilhando nas trevas como uma brasa, a fim de demonstrar que precisamos de melhores métodos de previsão. Temos esperança de usar Adam Selene — o computador supervisor Holmes IV, conhecido como "Mike" — os programas e memórias que o tornam único — para acoplar aos melhores computadores de Tertius e alguns outros planetas em uma lógica mamute que possa corretamente projetar os resultados de uma mudança definida na história... de modo que não troquemos Nehemiah Scudder — que pode ser suportado — por um planeta arrui­nado, que não pode ser suportado. Lazarus, devo mencionar o superespioscópio?

— Acaba de mencioná-lo, de modo que é melhor explicar.

— Richard, estou muito longe de meu campo de ação. Sou uma simples dona-de-casa...

Um gemido subiu no salão. Lazarus pode tê-lo liderado, mas pareceu ser unânime.

— ... que carece de conhecimentos técnicos. Mas de fato sei que o progresso em engenharia depende de instrumentos preciosos e que estes instrumentos, desde o século XX — meu século — dependeram dos progressos em eletrônica. Meu ma­rido número um, Jake Burroughs, e as Dras. Libby Long e Deety Carter estão trabalhando em um pequeno instrumento que combina o volteador espaço-tempo de Jake com a televisão e o espioscópio comum. Com ele você poderá observar não só o que sua esposa está fazendo, enquanto você está longe, mas também ver o que ela estará fazendo dentro de 10 anos a par­tir de agora. Ou 50. Ou 500!

— Ou — continuou — poderia permitir ao Círculo de Ouroboros saber qual seria o resultado de uma intervenção antes que fosse tarde demais para não fazê-la. Talvez. Com a capa­cidade excepcional de Holmes IV... talvez sim. Veremos! Mas é tão certo quanto alguma coisa pode ser neste mundo mer­curial que Mike Holmes IV pode melhorar imensamente o de­sempenho do Círculo de Ouroboros mesmo que o super-espioscópio nunca se transforme em realidade.

Finalizando, disse:

— Desde que estamos nos esforçando muito para tornar as coisas melhores, mais decentes e felizes para todos, espero que compreenda que a Missão Adam Selene merece trabalho. Alguma pergunta?

— Tenho uma pergunta, Hilda.

— Sim, Jubal?

— O nosso amigo Richard foi doutrinado no conceito de O Mundo como Mito?

— Eu mencionei de passagem isso, certa vez, quando lhe disse que nós quatro — Zeb, Deety, Jake e eu — fomos ex­pulsos de nosso planeta e apagados do roteiro. Acho que Ha­zel fez algo melhor nesse sentido. Richard?

— Nada que eu pudesse compreender. Nada que fizesse sentido. E — desculpe, Hilda — eu achei sua história difícil de engolir.

— Claro, querido. Eu mesmo não acredito nela. Exceto bem tarde da noite. Jubal, seria melhor que você a contasse.

O Dr. Harshaw respondeu:

— Muito bem. O Mundo como Mito é um conceito sutil. Foi às vezes denominado de solipsismo de multipessoas, a des­peito da ilógica interna dessa expressão. Ainda assim, a não-lógica pode ser necessária, uma vez que o conceito nega a ló­gica. Durante muitos séculos, a religião dominou como expli­cação do universo — ou multiuniverso. Os detalhes de reli­giões reveladas diferiam muito, mas elas eram basicamente a mesma: em algum lugar alto no céu — ou embaixo na Terra — ou num vulcão — em algum lugar inacessível — havia um velho usando camisolão que sabia de tudo, era todo-poderoso, criava tudo, premiava e castigava... e podia ser subornado. O Dr. Harshaw continuou, após uma pausa para tomar respiração:

— Às vezes esse Todo-Poderoso era mulher, mas não com freqüência, uma vez que os machos humanos são em geral mais altos, mais fortes e mais beligerantes. Deus foi criado à imagem do Pai.

Prosseguiu o Dr. Harshaw:

— A idéia do Deus Todo-Poderoso caiu sob ataque por­que não explicava coisa nenhuma. Simplesmente punha em todas as explicações uma fase mais longe. No século XIX, o positivismo ateu começou a substituir a idéia do Deus Todo-Poderoso naquela minoria da população que tomava banho costumeiramente.

"O ateísmo teve voga limitada, uma vez que, de manei­ra idêntica, nada explica, sendo meramente ateísmo de cabe­ça para baixo. O positivismo lógico baseava-se na ciência do século XIX que, acreditavam piamente os físicos daquele sé­culo, explicava inteiramente o universo como uma espécie de mecanismo de relógio.

"Os físicos do século XX despacharam rapidamente es­sa idéia. A mecânica quântica e o Gato de Schrödinger joga­ram para o espaço o mundo regulado como um mecanismo de relógio, de 1890, e substituíram-no por uma névoa de pro­babilidades, na qual tudo podia acontecer. Claro, a classe in­telectual não notou isso durante muitas décadas, uma vez que o intelectual é um homem altamente educado que não conse­gue resolver problemas rudimentares de aritmética e orgulha-se dessa incapacidade. Não obstante, com a morte do positivis­mo, o deísmo e o criacionismo voltaram com mais força do que nunca.

"Em fins do século XX — corrija-me quando me enga­nar, Hilda — Hilda e sua família foram expulsas de Terra por um demônio, que denominaram de "a Besta". Fugiram em um veículo que você conheceu, Gay Tapeadora, e em sua busca de segurança visitaram muitas dimensões, muitos universos... e Hilda fez a maior descoberta filosófica de todos os tempos."

— Aposto que você diz isso a todas as moças!

— Tem razão, querida. Visitaram, entre lugares mais mun­danos, a Terra de Oz...

Espiguei-me na cadeira com um arranco. Não dormira mui­to na noite passada e a aula do Dr. Harshaw induzia ao sono.

— Você disse "Oz"?

— Eu lhe digo três vezes: Oz, Oz, Oz. Visitaram, de fato, o reino encantado sonhado por L. Frank Baum. E o País das Maravilhas inventado pelo Reverendo Sr. Dodgson a fim de agradar a Alice. E outros locais conhecidos apenas da ficção. Hilda descobriu o que nenhum de nós notara antes porque estávamos dentro dele: O Mundo é Mito. Nós mesmos o cria­mos — e nós mesmos o mudamos. Um fabricante de mitos realmente competente, como Homero, como Baum, como o criador de Tarzã, criam mundos substanciais e duradouros... enquanto os mentirosos e fabulistas medíocres, sem imagina­ção, nada criam de novo e seus tediosos sonhos são esqueci­dos. Nesse fato observado, Richard — não religião, mas fato verificável —, baseia-se o trabalho do Círculo de Ouroboros. Hilda?

— Apenas um instante, antes de suspendermos a sessão para o almoço. Richard, tem algum comentário a fazer neste instante?

— Você não gostaria.

— Desembuxe, rapazinho.

— Eu não apenas não arriscarei minha vida baseada em um absurdo verbal, mas farei tudo o que puder para impedir que Hazel se meta nisso. Se realmente querem, e necessitam, os programas e memórias daquele ultrapassado computador lunar, há pelo menos duas maneiras melhores de consegui-las.

— Continue a falar.

— A primeira simplesmente usa dinheiro. Funde uma or­ganização de fachada, uma contrafação acadêmica. Canalize dinheiro para a Universidade Galileu sob a forma de donati­vos, entre pela porta principal na sala do computador e tire o que quiser. A outra maneira é usar força para fazer um tra­balho real. Não envie um casal idoso para tentar arrombá-la. Vocês, samaritanos cósmicos, não me convenceram.

— Deixe-me ver seu ingresso!

Quem falava era o Negrinho Sambo, o Marechal-do-espaço.

— Que ingresso?

— O que lhe dá direito de deslindar o inescrutável. Mostre-o, Você é simplesmente um grandissíssimo covarde, medroso demais para cumprir seu simples dever.

— Sou mesmo? Quem foi que o nomeou Deus? Escute, ra­paz, estou muito contente porque a cor de sua pele combina com a minha.

— Por que assim?

— Porque, se não combinasse, eu seria chamado de racis­ta pela maneira como o desprezo.

Observei-o sacar a arma à cintura, e minha bengala, dro­ga, caíra no chão. Eu ia estendendo a mão para pegá-la quan­do o raio por ele disparado me atingiu, à esquerda.

Embora ele fosse atingido de três lados, duas vezes no co­ração e uma na cabeça, por John Sterling, Lazarus e o coman­dante Smith — três atiradores peritos, um único tiro teria sido suficiente.

Eu não estava sentindo dor, ainda. Mas sabia que era um tiro nos intestinos — grave, final, se eu não tivesse logo ajuda.

Mas alguma coisa estava acontecendo a Samuel Beaux. Ele inclinou-se para a frente, caiu da cadeira, tão morto como o Rei Charles, e seu corpo começou a desaparecer. Não sumiu, desapareceu em faixas, pelo meio, depois pelo rosto, como se alguém estivesse apagando alguma coisa em um quadro-negro. Depois, ele desapareceu inteiramente e não restou nem san­gue ali. A própria cadeira dele desapareceu.

E o ferimento na minha barriga desapareceu também.

 

"Talvez chegue o dia em que o leão e o cordeiro durmam jun­tos, mas continuo apostando no leão."

Henry Wheeler Shaw, 1818-1885

 

— Não seria melhor — protestei — que eu sacasse uma es­pada de uma peada? Se querem realmente vender o produto? Esse plano todo é idiota!

Em uma mesa de piquenique no pomar leste, estávamos sentados eu, Mannie Davis, o Capitão John Sterling, tio Jock, Jubal Harashaw — e um certo Professor Rufo, um velho care­ca que me foi apresentado como assessor de Sua Sabedoria e (impossível!) seu neto. (Mas tendo visto com meus próprios olhos avermelhados os resultados da feitiçaria da Dra. Ishtar, eu não estava disposto a usar a palavra "impossível" com a mesma facilidade de uma semana antes.)

Pixel estava conosco também, e tendo há muito termina­do o almoço, tentava na grama pegar uma borboleta. Eram an­tagonistas equivalentes, mas a borboleta no momento ganha­va pontos.

O céu brilhante e sem nuvens prometia uma temperatura de 38 ou 40 graus em meados da tarde. Minhas tias haviam resolvido almoçar na cozinha com ar condicionado. Mas so­prava uma brisa e estava razoavelmente fresco sob as árvores — um dia bonito, exatamente certo para um piquenique. E me lembrou-a conversa que tivemos com o Padre Hendrik Schultz no pomar do Old MacDonald's Farm há apenas uma semana (e 11 anos no futuro).

Exceto que Hazel não estava ali.

Isso me aborrecia, mas eu fazia um esforço para não de­monstrar. Quando o Círculo se abriu para o almoço, tia Til apa­receu com uma mensagem:

— Hazel saiu com Lafe há alguns minutos — disse. — Pediu-me para lhe dizer que não vem para o almoço, mas que espera estar com você no fim da tarde... e virá para a ceia sem falta.

Uma mensagem danada de sumária! Eu precisava discu­tir com Hazel todas as conversas e acontecimentos ocorridos no Círculo. Droga, como era que eu podia resolver alguma coisa até que tivesse tempo de discuti-la com minha mulher?

Mulheres e gatos fazem o que fazem e não há nada que um homem possa fazer a esse respeito.

— Eu lhe vendo uma espada numa pedra — disse o Pro­fessor Rufo. — Barata. Como nova. Usada apenas uma vez pelo Rei Arthur. A longo prazo, a espada não lhe adiantou grande coisa e não posso garantir que o ajude... mas não me importo de ter um lucro com ela.

— Rufo — disse meu tio —, você venderia ingressos para seu próprio enterro.

— Não "venderia". Vendi. Juntei o bastante para comprar uma peruca de que precisava com urgência... porque havia muitas pessoas que queriam estar certas de minha morte.

— E você os enganou.

— Em absoluto. Os ingressos não diziam que eu estava morto. Davam simplesmente direito a "carregar o caixão" no meu enterro. E foi um belo enterro, o mais bonito que já tive... especialmente no clímax, quando me sentei no caixão e cantei o oratório de A Morte de Jesse James, representando todos os papéis. Ninguém pediu devolução do dinheiro. Al­guns foram embora antes mesmo de eu chegar à nota aguda. Criaturas rudes. Vá ao seu próprio enterro e você logo desco­bre quem são seus verdadeiros amigos. — Rufo virou-se para mim. — Quer aquela espada na pedra? Barata, mas tem que ser à vista. Não posso vendê-la a crédito. Sua expectativa de vida não é tão boa assim. Digamos, 600 mil dólares imperiais em notas pequenas? Nenhum valor superior a 10 mil.

— Professor, eu não quero uma espada na pedra. Aconte­ce apenas que toda esta missão tola parece com o absurdo do "princípio encantado" dos romances dos dias anteriores a Armstrong. Não podem fazer isso abertamente com dinheiro, nem em segurança com força suficiente para reduzir a zero as perdas, mas tem que ser eu e minha esposa com nada mais que uma faca de escoteiro. É um plano nojento. Até mesmo uma revista de confissões verdadeiras o rejeitaria. É logicamente impossível.

— Quinhentos e cinqüenta mil e eu pago o imposto de consumo.

— Richard — interveio Jubal Harashaw —, é a lógica em si que é impossível. Durante milênios, filósofos e santos ten­taram elaborar um esquema lógico para o universo... até que Hilda apareceu e demonstrou que o universo não é lógico, mas caprichoso, dependendo sua estrutura exclusivamente dos so­nhos e pesadelos de sonhadores não-lógicos. — Encolheu os ombros, quase derramando a cerveja. — Se os grandes cére­bros não tivessem sido ludibriados pela convicção comparti­lhada de que o universo tinha que conter uma estrutura cons­ciente e lógica, que poderiam descobrir por análise minuciosa e síntese, teriam notado o fato gritante de que o universo — o multiuniverso — nem contém lógica nem justiça, exceto nos casos em que nós, os outros como nós, impomos essas quali­dades a um mundo de caos e crueldade.

— Quinhentos mil, e é minha última oferta.

— Se assim, por que Hazel e eu devemos arriscar nossos pescoços? — E acrescentei: — Pixel, deixe esse inseto em paz!

— Borboletas não são insetos — disse sério o Capitão John Sterling. — São flores autopropelidas. A Sra. Hazel me ensi­nou isso há muitos anos. — Estendeu a mão e suavemente le­vantou Pixel. — Como é que você o faz beber?

Mostrei-lhe, usando água e a ponta do dedo. Sterling me­lhorou o método, oferecendo ao gatinho uma pequena poça na palma da mão. O gatinho lambeu-a e nesse momento foi um gato lambedor correto, apanhando, com a língua enrola­da para cima, a água oferecida.

Sterling me incomodava. Conhecia-lhe a origem, ou pen­sava que conhecia, e assim tinha problema em acreditar nele mesmo quando lhe falava. Ainda assim, é impossível não acre­ditar em um homem quando o vemos, e ouvimos, mastigan­do aipo e batatas fritas.

Ainda assim, ele possuía um aspecto bidimensional. Nun­ca sorria ou ria. Era infalivelmente polido, mas sempre mor­talmente sério. Tentei agradecer-lhe por ter salvo minha vida, atirando naquele como-é-o-nome-dele? Sterling não me dei­xara prosseguir:

— Meu dever. Ele era sacrificável. Você, não.

— Quatrocentos mil. Coronel, ainda há aí ovos à la diable? Passei os ovos recheados a Rufo.

— Posso lhe dizer o que o senhor deve fazer com a espa­da na pedra? Em primeiro lugar, puxe a espada, e em seguida...

— Não sejamos grossos. Trezentos e cinqüenta mil.

— Eu não a quereria nem como brinde. Eu estava apenas apresentando um argumento.

— Fique com uma opção, pelo menos. Vai precisar dela pa­ra a grande festa da estréia, quando transformarem isto em novela de tevê.

— Nada de publicidade. Esta é uma das condições que me foram impostas. Se eu topar a parada!

— Nenhuma publicidade até depois. Tem que haver pu­blicidade. A missão pode acabar nos livros de história. Mannie, conte por que você nunca publicou suas memórias da Revolução.

— Mike está dormindo — respondeu o Sr. Davis. — Não quero que o incomodem. Nyet.

— Manuel — perguntou tio Jock —, você tem uma auto­biografia inédita?

Meu padastro inclinou a cabeça.

— Necessário. O professor morreu, Wyoming morreu. Mi­ke talvez tenha morrido também. Sou a única testemunha da história autêntica da Revolução Lunariana. Mentiras, montes de mentiras, de terrenos que não estiveram lá. — Coçou o quei­xo com a mão esquerda, a que eu sabia ser artificial. Ou pelo menos foi o que me disseram. Essa mão parecia exatamente igual à outra. Transplante? — Armazenada na memória de Mike antes de eu seguir para a Faixa de Asteróides. Nós salvamos Mike... depois publicamos, talvez. — Davis fitou-me. — Quer saber como conheci minha filha Hazel?

— Ora, como não? — respondi, e Sterling acenou enfati­camente.

— Foi na segunda-feira, 13 de maio de 2075, em L-City. Conversa que não acabava mais no Stilyagi Hall, sobre como combater o Administrador do Presídio. Nada de revolução, ape­nas uma estúpida e triste conversa sem fim, gente infeliz. Bem na frente, sentada no chão, uma menininha magrela. Cabelos ruivos, nem seios tinha. Dez, talvez 11 anos de idade. Ouvia cada palavra, batia palmas com força, estava profundamente séria.

''Os Jaquetas Amarelas, os tiras do Administrador, arrom­bam as portas e começam a matar. Fiquei ocupado demais pa­ra me preocupar com magrelas ruivas. Os Jaquetas mataram meu melhor amigo... e foi aí que a vi em ação. Lançou-se no ar, rolou feito bola, atingiu o Jaqueta Amarela nos joelhos. Ele caiu. Quebrei-lhe o queixo com a esquerda — não esta mão, esta é a número dois — e passei por cima dele, arrastando minha mulher Wyoming — não era mulher na ocasião. — A ma­grelinha ruiva desapareceu, não a vi durante semanas. Mas, amigos, esta é a verdade dura como pedra, Hazel, ainda me­nina, lutou com tanta disposição e habilidade que salvou seu papai Mannie e mamãe Wyoh dos tiras do Administrador muito antes de ela saber que era nossa." Manuel Davis sorriu, saudoso.

— Nós a encontramos, a Família Davis a escolheu... co­mo filha, não como esposa. Era ainda um bebê. Mas não bebê no que interessa! Deu um duro danado todos os dias, todas as horas, todos os minutos, para libertar Luna, o perigo nun­ca a deteve. Quatro de julho de 2076, Hazel Meade Davis, a mais jovem camarada a assinar a Declaração de Independên­cia. Nenhum camarada mereceu isso mais do que ela!

O Sr. Davis tinha lágrimas nos olhos. Eu, também. O Capitão Sterling levantou-se.

— Sr. Davis, sinto-me humildemente orgulhoso de ter ou­vido essa história. Sr. Campbell, foi um prazer desfrutar sua hospitalidade. Coronel Campbell, tomara que se resolva a lu­tar ao nosso lado. Precisamos do senhor. E agora, se me de­rem licença, tenho que ir embora. Uma vez que o Suserano Galático não prolonga seus almoços, eu também não devo.

— Besteira, John — disse tio Jock —, você precisa relaxar de vez em quando. Vamos novamente caçar dinossauros. O tempo passado no Mesozóico não vai prejudicar sua busca. O Suserano nunca saberá que você está longe. Esta é a gran­de beleza dos saltos no tempo.

— Eu saberia que estou longe. Mas lhe agradeço muitíssi­mo. Gostei muito daquela caçada.

Fez uma mesura e retirou-se. Baixinho, disse ao Dr. Harshaw:

— Lá vai verdadeira nobreza. Quando finalmente destruir o Suserano, ele será apagado. Ele sabe disso. Mas isso não o detém.

— Por que é que ele deve ser apagado? — perguntei.

— Ahn? Coronel, sei que isto não é novidade para o se­nhor... mas o senhor é, ou foi, fabulista, não?

— Sou ainda, tanto quanto sei. Acabei uma história longa e enviei-a a meu agente há apenas 10 dias. Tenho que voltar ao trabalho logo... tenho mulher para sustentar.

— Neste caso o senhor sabe que, para fins de elaboração do enredo, especialmente em histórias de aventuras, heróis e vilões são pares complementares. Um precisa do outro.

— Sim, mas... Escute, vamos falar claro. Esse homem que acaba de sair é realmente o personagem que Hazel — e o filho dela, Roger Stone — criaram para a novela O Flagelo das Ro­tas Espaciais?

— É, sim. Hazel e o filho criaram-no. Sterling sabe disso. Escute, senhor, todos nós somos ficções, os sonhos fabulistas de alguém. Mas em geral não sabemos disso. John Sterling sabe e é suficientemente forte para ficar à altura disso. Conhece seu papel e destino e os aceita.

— Ele não tem que ser apagado.

O Dr. Harashaw pareceu perplexo:

— Mas o senhor é um escritor. Hummm... um escritor li­terário, talvez? Em histórias sem enredo?

— Eu? Não sei como escrever literatura. Escrevo histórias. Para impressão por computador, três-d ou mesmo livros en­capados, mas de todos os tipos. Pecado, sofrimento e arre­pendimento. História de faroeste. História espacial. Guerra. Assassinato. Espiões. Histórias marítimas. O que quer que seja. Hazel e eu vamos recriar a novela clássica dela, com o Capi­tão Sterling no papel principal. Como sempre. De modo que história é essa de "apagá-lo"?

— Você não vai deixar que ele destrua o Suserano Galático? Você deve, você tem que deixar, já que o Suserano é tão perverso como Boskone.

— Oh, certamente! Nas primeiras 13 semanas. Devia ter acontecido há anos.

— Mas ele não pode. A novela foi suspensa com o herói e o vilão ainda vivos. Desde então, Sterling foi obrigado a tra­var apenas uma ação de retaguarda.

— Oh, bem, daremos um jeito nisso. Suserano delanda est!

— Neste caso, o que é que Sterling faz?

Fiz menção de responder, mas compreendi de súbito que a pergunta não era uma busca de informação, mas socrática. Para cada ótimo gato um ótimo rato. Um herói da estatura de Sterling tinha que combater um vilão tão poderoso como ele. Se ele matasse o Suserano, tínhamos que bolar o Filho do Su­serano, com o mesmo número de testículos, dentes do mes­mo comprimento, temperamento tão ruim como o do pai, e fumaça saindo pelas orelhas.

— Não sei. Pensaremos em alguma coisa. Envelhecê-lo, tal­vez, e botá-lo para pastar como comandante da Academia da Patrulha Estelar. Coisa assim. Não há necessidade de acabar com ele. Um trabalho como esse não exigiria um vilão tão hor­rendo como o Suserano.

— Não exigiria? — perguntou tranqüilizador Harshaw.

— Eu, não. Estou semi-aposentado. Tudo que faço agora é A Família Stonebender, uma novela estritamente humorís­tica, nenhuma necessidade de um bom vilão. Agora que co­nheço a verdade do Mundo como Mito nunca mais criarei um vilão de verdade... e graças a Klono, nunca fiz isso, não real­mente, uma vez que acredito apenas parcialmente em vilania.

"Bem. de qualquer modo, não posso responder por Hazel. Sou o escritor menos graduado, encarregado da pontua­ção, o que contribui com o tempo atmosférico e a paisagem. É ela quem controla o enredo. De modo que tenha que mudar de assunto. Tio Jock, que história foi aquela que disse ao Capi­tão Sterling sobre caçada de dinossauros? Uma de suas pia­das? Como daquela vez em que você serrou 10 quilômetros quadrados da banquisa do Mar de Ross e rebocou-a até Cin­gapura, nadando com braçadas laterais?"

— Não em braçadas laterais o caminho todo. Isso não é possível.

— Ora deixe disso. Dinossauros.

— Qual é o problema com dinossauros? Gosto de caçá-los. Levei comigo John Sterling uma vez. Ele abateu um magnífi­co tyrannosaurus rex. Gostaria de experimentar?

— Você está falando sério? Tio, você sabe que eu não caço. Não gosto de atirar em nada que não pode atirar em resposta.

— Ohhhh! Você me entendeu mal, sobrinho. Nós não ma­tamos os pobres animais. Matar dinossauros é mais ou me­nos tão esportivo como matar uma vaca E a carne não é tão boa. O dinossauro de mais de um ano de idade é duro e não tem gosto. Experimentei, há alguns anos, quando se pensou durante algum tempo em usar carne de dinossauro para ali­mentar famintos na vertence temporal sete. A logística, porém, era pavorosa, e quando se estuda bem o assunto, há pouca justiça em matar lagartos estúpidos para alimentar pessoas es­túpidas. Eles mereceram aquela fome. Mas caçar dinossauros com máquinas fotográficas é realmente divertido. Fica mais es­portivo se você vai atrás dos grandes carnívoros e consegue desentocar um macho quando ele está se sentindo nervoso e sexy — melhora nossa velocidade na corrida. Ou então... Dic­kie, há um lugar perto de Wichita onde lhe posso prometer triceratops, vários tipos de pterodáctilos, bicos-de-pato, lagartos-trovão e talvez um estegossauro macho, tudo no mesmo dia. Logo que acabar esta travessura vamos tirar um dia de folga e fazer isso. O que é que você diz?

— É tão fácil assim?

— Com o equipamento instalado o Mesozóico não é mais longe do que o QGT ou Boondock. Tempo e espaço são ilu­sões. A maquinaria de irrelevância Burroughs o colocará no meio de um rebanho de disparates que pastam e transam an­tes que você possa viver 65 milhões de anos.

— A maneira como o senhor apresentou o convite parece implicar que supôs que eu aceitei a Missão Adam Selene.

— Dickie, o equipamento de fato pertence ao Comando do Tempo... e é caro, o quanto não vamos discutir. Foi cons­truído para dar apoio ao Plano Longo Prazo e seu uso recrea­tivo é incidental. Sim, insinuei isso. Não vai aceitar?

Mannie Davis fitou-me, rosto sem expressão. Rufo levan­tou-se e disse em voz alta:

— Vou ter que me mandar. Estrela tem um trabalho para mim. Obrigado, e obrigado, pela última vez, Jock. Foi um pra­zer conhecê-lo, coronel.

Afastou-se rapidamente. Harshaw ficou calado. Soltei um profundo suspiro.

— Tio, posso fazer isso, se Hazel insistir. Mas vou tentar dissuadi-la. Nada me foi dito que me convença de que estou errado nas duas opções que sugeri. Qualquer uma delas é um método mais sensato de recuperar os programas e memórias que constituem Holmes IV, ou Mike... e sinto prazer em dizer que eles devem ser resgatados. Mas os meus métodos são mais lógicos.

— Não é uma questão de lógica, coronel — observou Hars­haw.

— É o meu pescoço, doutor. Mas, a longo prazo, faço o que Hazel desejar... acho. Acontece apenas que...

— Acontece o quê, Dickie?

— Odeio entrar em ação com informações inadequadas! Sempre odiei. Tio, nas últimas semanas, ou 10 dias — é difí­cil calcular, da maneira como salto de um lado para o outro — fui perseguido por um absurdo inexplicado e, bem assassi­no. O Suserano de que fala está no meu encalço? O fato de eu estar metido nisto explica o número interminável de vezes em que escapei por um triz? Ou estou ficando paranóico?

— Não sei. Fale-me desses fatos.

Comecei a falar. Logo depois, Harshaw tirou uma cader­neta do bolso e começou a tomar notas. Fiz um esforço para me lembrar de tudo: Enrico Schultz e sua estranha observa­ção sobre Tolliver e a menção de Walter Evans. A morte dele. Se houve. Bill. O estranho comportamento da administração do Regra de Ouro. Aqueles roladores e os assassinos em cada um deles. Jefferson Mao. Os atacantes no Raffles...

— Isso é tudo?

— E não basta? Não, não é tudo. Que carga titia estava car­regando? Como foi que deram um jeito de nos fazer voar em um monte de sucata que quase nos matou? O que Lady Dia­na e seus estúpidos maridos estavam fazendo lá no meio do deserto? Se tivesse meios, eu gastaria dinheiro sem conta com sherlocks para descobrir o que estava acontecendo, o que me visava realmente, o que foram apenas meus nervos e o que foi simplesmente coincidência.

— Não há coincidências—disse Harshaw. — Um aspecto em que o Mundo como Mito mais simples do que a antiga teologia é o simples fato de que não há acidentes, nada de coincidências.

Tio Jock disse:

— Jubal? Eu não tenho autoridade para isso.

— E eu tenho. Sim. — Levantou-se. — Nós dois, acho. Meu tio levantou-se também.

— Dickie, meu rapaz, espere sem sair daqui. Vamos nos ausentar por cinco minutos, mais ou menos. Um trabalho a fazer.

Quando se afastaram, foi a vez de Davis se levantar.

— Com licença, sim? Preciso trocar o braço.

— Claro, papai Mannie. Não, não, Pixel! Cerveja não é be­bida de gatinhos!

 

Pelo meu Sonychron eles estiveram ausentes durante sete minutos. Mas não, isso era evidente, pelo tempo deles. O tio usava agora barba cheia. Harshaw exibia uma cicatriz nova, de faca, rosada, de um lado a outro da bochecha esquerda. Fitei-os.

— Deus do céu! O que foi que aconteceu?

— Tudo. Há ainda cerveja? Cissy — disse ele, sem levan­tar a voz —, poderia nos arranjar mais um pouco de cerveja? E Jubal e eu não comemos há algum tempo. Horas. Dias, talvez.

— Já está indo — respondeu a voz desencarnada de tia Cissy. — Querida? Eu acho que você deve tirar um cochilo.

— Mais tarde.

— Logo que você comer alguma coisa. Quarenta minutos.

— Deixe de me apoquentar. Você podia me arranjar uma sopa de tomate? Para Jubal, também.

— Eu levo a sopa e mais coisas para seu piquenique. Em 45 minutos, enquanto você tira um cochilo. Isto é oficial. Quem diz é Til.

— Lembre-me para lhe dar uma surra.

— Sim, querido. Mas não hoje. Você está exausto.

— Muito bem. — Tio Jock virou-se para mim. — Vejamos, o que é que vou lhe dizer primeiro? Aqueles roladores? Seu amigo Hendrik Schultz cuidou daquele. Pode estar certo de que está acabado. Descobrimos que ele era um investigador de campo ichiban. Pode esquecer a paranóia no tocante àque­le, Dickie... Dois adversários, os Senhores do Tempo e os Modificadores de Cenários... ambos em seu encalço e um no en­calço do outro. Você tem uma vida encantada, filho... nasceu para ser enforcado.

— O que é que você quer dizer com... Senhores do Tem­po e Modificadores de Cenários? E por que eu?

— Talvez não sejam os nomes que eles dão a si mesmos. Os Senhores e os Modificadores são grupos que fazem o tipo de coisa que o Círculo faz... mas a gente não se dá bem. Dic­kie, você não acha que em todos os universos, 666 ou mais, nós do Círculo seríamos os únicos a perceber a verdade e ten­tar fazer alguma coisa a respeito dela, pensaria?

— Não sei de nada sobre isso, nem de um jeito nem de outro.

— Coronel — interveio o Dr. Harshaw —, uma das gran­des deficiências do Mundo como Mito reside no fato de que lutamos... e às vezes perdemos... com três tipos de antagonistas: vilões por iniciativa própria, como o Suserano Galático, e grupos como o nosso, mas condicionados por intenções diferentes — más, em nossa opinião, talvez boas, na opinião deles — e o terceiro e mais poderoso, os próprios criadores de mitos — tais como Homero, Twain, Shakespeare, Baum, Seift e seus colegas no panteão. Mas não esses que mencionei. Os corpos deles morreram, mas eles continuavam a viver no cor­pus imortal do mito que cada um criou... o que não muda e por conseguinte não nos coloca em perigo.

— Mas — continuou —, há criadores de mitos que estão vivos, todos perigosos, todos casualmente indiferentes enquan­to revisam um mito e apagam um personagem. — Harshaw sorriu sombriamente. — A única maneira como podemos so­breviver com isso consiste em compreender, em primeiro lu­gar, que é o único jogo na cidade e, segundo, que não dói. Apaga. Risca e tira o X da história.

— Como é que o senhor sabe que não dói?

— Porque me recuso a aceitar qualquer outra teoria! Con­tinuamos com nosso relatório?

— Dickie, rapaz, você perguntou: "Por que eu?" Pela mes­ma razão, Jubal e eu deixamos um almoço agradável para tra­balhar como doidos e lançar muitos outros em difíceis e peri­gosas investigações. Por causa da Missão Adam Selene e de seu papel decisivo nela. Tanto quanto podemos saber, os Se­nhores do Tempo querem seqüestrar Mike enquanto os Mo­dificadores de Cenário querem destruí-lo. Ambos os grupos, porém, querem-no morto. Você é uma ameaça aos planos deles.

— Mas naquela ocasião eu nem havia ouvido falar ainda em Mike, o Computador!

— Era a melhor ocasião de matá-lo, não acha? Cissy, você é não só bela, mas agradável de ter em volta de mim. Além de seus talentos ocultos. Simplesmente, deixe a comida aí. Nós nos servimos.

— Blagueur et gros menteur. Você ainda tem que tirar aque­le cochilo. Mensagem de Til. Você não deve aproximar-se da mesa do jantar até que tenha raspado essa barba.

— Diga àquela atrevida que prefiro morrer de fome a ser dominado por mulher.

— Sim, senhor. E eu penso igualzinho a ela.

— Paz, mulher.

— De modo que me ofereço para fazer sua barba. E cortar seu cabelo.

— Aceito.

— Depois de seu cochilo.

— Caia fora. Jubal, já provou esta salada em geléia? É uma coisa que Til faz excepcionalmente bem... embora todas as mi­nhas três donas sejam ótimas cozinheiras.

— Você diz isso por escrito?

— Eu lhe disse para sumir. Jubal, viver com três mulheres exige fortaleza de ânimo.

— Eu sei. Eu fiz isso, durante muitos anos. Fortaleza mais um estado de espírito angelical. E gosto por vida mansa. Mas um casamento coletivo, como em nossa Família Long, combi­na as vantagens da vida de solteiro, monogamia e poligamia, sem as desvantagens de nenhuma delas.

— Não vou discutir, mas fico com minhas Três Graças en­quanto elas me deixarem ficar com elas. Agora, vejamos... En­rico Schultz. Não houve tal protagonista.

— E daí? — respondeu. — Ele deixou algumas manchas horrendas na toalha de minha mesa.

— E daí ele tinha outro nome. Mas você sabia disso. A me­lhor hipótese é que fosse membro da mesma quadrilha de seu amigo Bill... que era um vilão sorridente, se um deles jamais sorriu, além de um ator consumado. Nós os chamamos de Os Revisionistas. A motivação tinha que ser Adam Selene. Não Walker Evans.

— Por que foi que ele mencionou Walker Evans?

— Para abalá-lo, talvez. Dickie, eu não sabia da existência do General Evans até que você provocou o assunto, uma vez que esse debate ainda está no meu futuro. Meu futuro nor­mal. Agora entendo como pesa em sua mente. Pesará. Lembre-se, eu não sabia que recebera baixa como inválido dos Cruza­dos do Contrato Andorrano até que você me disse.

— De qualquer modo... todos os "Amigos de Walker Evans" estão mortos, com exceção de você, e um que foi para a Faixa de Asteróides e não pôde ser encontrado. Isto até 10 de julho de 2188, 11 anos à frente. A menos que você queira falar com qualquer um deles vivo em uma data não muito à frente.

— Não vejo razão para isso.

— Foi o que nos pareceu. Agora, o próprio Walker Evans. Lazarus cuidou disso:.. e de um exemplo de mudança do mun­do, em parte para lhe mostrar o que pode ser feito. Nenhuma tentativa foi feita para revisar a batalha. Seria difícil, em 2177, revisar uma batalha em 2178, sem mudar inteiramente a sua vida. Ou matar você naquele ano, ou você não perder a perna e continuar no serviço — sim, agora sei a respeito de sua per­na, embora isto só vá acontecer adiante. De qualquer manei­ra, você não iria para o Regra de Ouro, não casaria com Ha­zel... e não estaríamos sentados aqui, conversando sobre este caso. Mudança de mundo é coisa delicada, Dickie... e é me­lhor ser feita em doses homeopáticas.

"Lazarus envia-lhe duas mensagens. Diz que você não de­ve sentir nenhuma culpa pessoal por aquela débacle. Agir as­sim seria tão idiota como um subordinado de Custer sentir cul­pa pelo que aconteceu no Little Big Horn... ao que ele acres­centa que Custer era um general muito mais brilhante do que Evans jamais foi. Lazarus fala como pessoa que passou por todos os postos, de pracinha a marechal-em-chefe, numa ex­periência de muitos séculos e 17 guerras.

"Essa é a primeira mensagem. A segunda é a seguinte: diga a seu sobrinho que, sim, horroriza gente boa. Mas acon­tece. Só aqueles que vão além do fim das luzes e calçadas sa­bem como essas coisas acontecem. Diz que tem certeza de que Walker Evans não guardaria aquilo contra você. Dickie, do que é que ele está falando?"

— Se ele quisesse que você soubesse, teria lhe contado.

— Razoável. O General Evans era um homem de bom gosto?

— O quê? — Olhei fixamente para meu tio — e depois res­pondi, relutante: — Bem, não. Eu diria que não. Eu o achei duro e um pouco fibroso...

— Agora temos tudo às claras...

— Sim, diabos o levem!

— ... e eu posso lhe contar o resto, a mudança de mundo. Um operador de campo colocou uns dois pacotes de ração sob o corpo do general. Quando moveu o corpo, você os encon­trou... e foi a conta para que nenhum dos Amigos de Walker Evans jamais chegassem ao grau necessário para superar o ta­bu. De modo que aquilo nunca aconteceu.

— Neste caso, por que é que eu me lembro daquilo?

— Lembra-se?

— Por que...

— Você se lembra de encontrar rações de campo abando­nadas sob o corpo. E como se sentiu bem.

— Tio, isto é loucura.

— Isso é mudança de mundo. Durante algum tempo, vo­cê teve uma recordação. Depois, uma recordação vaga de uma recordação. Depois, nada. Aquilo nunca aconteceu, Dickie. Vo­cê passou por uma situação danada de difícil e perdeu uma perna. Mas você não comeu seu oficial-comandante.

 

Titio continuou:

— Jubal, o que foi que nos sobrou e que é importante? Dic­kie, você não pode esperar que todas as suas perguntas sejam respondidas, nenhum homem pode esperar isso. Hummm, oh, sim, aquelas doenças. Você teve duas delas. O resto foi pu­blicidade. Ficou curado em uns dois dias. Depois, mantiveram-no em um campo de memória controlada e lhe colocaram uma nova perna... e fizeram mais alguma coisa. Não tem se sentido melhor ultimamente? Mais vivo? Mais enérgico?

— Bem... tenho. Mas isso data do dia em que me casei com Hazel, não de Boondock.

— As duas, provavelmente. Durante o mês em que você esteve à disposição, a Dra. Ishtar deu-lhe um reforço. Soube que o transferiram da clínica de rejuvenescimento para o hos­pital no mesmo dia em que o deixaram acordar. Oh, mas eles realmente fizeram um bom trabalho em você, rapaz. Deram-lhe uma nova perna e fizeram-no 30 anos mais moço. Acho que devia processá-los.

— Oh, acabe com isso. O que me diz daquela bomba de calor? Mais publicidade?

— Talvez sim, talvez não. Não foi decidido, apenas espe­cificada a pulsação temporal. A coisa é...

Harshaw interveio:

— Richard, pensamos agora que poderemos talvez levar a cabo a Missão Adam Selene antes que a bomba de calor seja necessária. Há alguns planos. De modo que a bomba de ca­lor, neste exato momento, está no status do Gato de Schrödin­ger. O resultado depende da missão. E vice-versa. Veremos.

— Esses planos... Vocês estão supondo que vou topar.

— Não. Estamos supondo que não vai.

— Hummm... Se estão supondo que não vou, por que es­tão se dando ao trabalho de me contar tudo isso?

Em sua voz cansada, titio respondeu:

— Dickie, meu rapaz, milhares e milhares de homens-hora foram gastos para atender à sua exigência infantil de que fos­se removido o véu que ocultava o desconhecido. Você acha que vamos simplesmente botar fora os resultados? Sente-se aí e preste atenção. Humm, fique fora de Luna City e do Regra de Ouro após junho de 2188. Há mandados de prisão para você por oito assassinatos.

— Oito! Quem?

— Hummm: Tolliver, Enricho Schultz, Jonson, Oswald Progant, Rassmussen...

— Rassmussen!

— Conhece-o?

— Usei o fez dele durante 10 minutos. Nunca botei os olhos em cima dele.

— Não vamos perder nosso tempo com essas acusações de assassinato. Tudo o que significam é que alguém está atrás de seu couro, em L-City e no Regra de Ouro. Com três grupos de viajantes do tempo em seu encalço, isso não é de surpreen­der. Você vai querer que sejam cancelados. Podem ser, mais tarde. Se necessário. Se você não for simplesmente para Tertius e esquecer tudo. Oh, sim... aqueles grupos de códigos. Não eram uma mensagem, apenas um macete para que você abrisse a porta. Mas você não se deixou matar tranqüilamen­te, como devia ter feito. Dickie, você e um criador de casos.

— Poxa, sinto muito.

— Mais alguma pergunta?

— Vá tirar seu cochilo.

— Ainda não. Jubal. Agora?

— Claro.

O Dr. Harshaw levantou-se e foi embora.

— Dickie.

— Sim, tio.

— Ela o ama, realmente o ama, rapaz. Só Deus sabe por quê. Mas isso não significa que ela lhe diga sempre a verdade ou seja sempre no seu interesse. Fique avisado.

— Tio Jock, não adianta nada avisar um homem sobre sua esposa. Você aceitaria um aviso meu a respeito de Cissy?

— Claro que não. Mas sou mais velho do que você e mui­to mais experiente.

— Responda-me.

— Vamos mudar de assunto, em vez disso. Você não gos­ta de Lazarus Long.

Sorri alegremente para ele.

— Tio, a única coisa que me convence que ele possa ser tão velho quanto se diz é que seria necessário mais do que uma vida comum para se ser tão rabugento e geralmente in­suportável como ele é. Ele me irrita todas as vezes. E o filho da mãe agrava a questão fazendo com que eu lhe deva favores. Este pé... de um clone dele — sabia? E aquela briga esta manhã. Lazarus matou o estúpido, qual era o nome dele, que tentou me matar. Mas o Capitão Sterling e o Comandante Smith fizeram a mesma coisa, e provavelmente mais rápidos que ele. Ou talvez não. De qualquer modo, tive que agradecer aos três. Droga, eu gostaria de salvar a vida dele uma única vez para equilibrar a escrita. O filho da mãe.

— Isso não é maneira de falar, Dickie. Abby teria lhe da­do uma coca.

— E teria mesmo. Retiro o que disse.

— Além do mais... seus próprios pais nunca casaram.

— Muitas vezes me disseram isso. Pitorescamente.

— Quero dizer, literalmente. Sua mãe foi minha irmã pre­dileta. Muito mais moça do que eu. Bonita menina. Eu a ensi­nei a andar. Brinquei com ela quando estava crescendo, estra­guei-a de todas as maneiras que pude. De modo que, natural­mente, teve o que antigamente se chamava de "problema", ela veio procurar o irmão mais velho. E sua tia Abby. Dic­kie, não foi que seu pai não estivesse presente. O fato era que seu avô antipatizava com ele, antipatizava tanto quanto você... antipatiza com Lazarus Long.

— Não me refiro ao Sr. Ames. Você ficou com o nome de­le, mas ele conheceu e casou com Wendy depois que você nas­ceu. E nós ficamos com você e o criamos. Sua mãe viria buscá-lo, após um ano — disse que Ames merecia isso —, mas não viveu até lá. De modo que Abby foi sua mãe em tudo, menos em biologia.

— Tio, tia Abby foi a melhor mãe que um menino podia querer. Escute, aquelas surras com vara de marmeleiro foram boas para mim. Eu sei.

— Fico satisfeito em ouvir você dizer isso, Dickie. Eu amo todas as suas tias... mas nunca haverá outra Abby. Hazel me lembra dela. Dickie, já se decidiu?

— Tio, vou combater isso até o fim. Como é que vou dei­xar que minha mulher se arrisque num trabalhinho em que ela só tem uma chance de 50-50 de sair viva? Especialmente quando ninguém tentou ainda me demonstrar por que meus métodos não são melhores.

— Eu estava apenas perguntando. Os matemáticos estão submetendo a teste outra equipe — uma vez que você não pa­rece disposto. Veremos. Seu pai era teimoso e seu avô era tei­moso. Não é de surpreender que você também seja. Seu avô — meu pai — disse redondamente que preferia ter um bastar­do na família do que um Lazarus Long. De modo que tive­mos um. Você. E Lazarus foi embora e nunca soube nada a seu respeito.

— Não é mesmo de surpreender que você e seu pai não combinem. Parecem-se demais. E agora ele vai tomar seu lu­gar na equipe que vai cumprir a missão Adam Selene.

 

"Nossa pândega agora terminou."

William Shakespeare, 1564-1616

 

Morrer não é difícil. Até um gatinho pode fazer isso.

Estou sentado de costas para a parede na velha sala de com­putador, no Complexo do Administrador, em Luna. Pixel está aninhado no meu braço esquerdo, Hazel no chão, ao nosso lado. Não tenho certeza de que Pixel esteja morto. Pode estar dormindo. Mas não vou perturbá-lo para descobrir. Na me­lhor das hipóteses, ele é um bebê muito ferido.

Sei que Hazel ainda está viva porque a vejo respirar. Mas ela não está em bom estado. Como eu gostaria que eles se apressassem.

Tampouco posso fazer muita coisa por qualquer um deles porque não tenho nada com que trabalhar e não posso me mo­ver muito. Perdi uma perna e não tenho uma prótese. Isso mes­mo, aquela mesma perna direita — a perna de Lazarus — am­putada a fogo pouco acima da linha do transplante. Acho que não posso me queixar — sendo um trabalho de queimadura, ela está cauterizada, não perdi muito sangue. Não começou a doer muito ainda. Não aquela dor branda que parece um maçarico. Isso vem depois.

Será que Lazarus Long sabe que é meu pai? O tio lhe dis­se isso por acaso?

Hei, isto torna Maureen, aquela maravilhosa, bela criatu­ra, minha avó!

É... talvez seja melhor eu me preparar.

Estou um pouco tonto.

Não tenho nem mesmo certeza de que isto está sendo gra­vado. Tenho comigo um gravador de batalha, mas é do tipo minúsculo, de Tertius, que não conheço bem. Ou estava liga­do e eu o desliguei ou estava desligado e eu o liguei. Não te­nho certeza de que Pixie esteja morto. Talvez fosse melhor eu me preparar.

 

Era um bom grupo, o melhor, equipado com tal poder de fogo que achei que nossas possibilidades eram boas. Hazel es­tava no comando, naturalmente...

Major Sadie Lipschitz, chefe do grupo de ataque

Capitão honorário Richard Campbell, XO

Porta-estandarte Gretchen Henderson, JO

Sargento Ezra Davidson

Cabo Ted Bronson, conhecido também como W. W. Smith, conhecido também como Lazarus Long, conhecido também como Lafayette Huber, M.D. — serviços suplementares, mé­dico da equipe.

Manuel Davis, civil, operador de campo especial.

 

Lazarus insistiu em ser chamado de "Ted Bronson" ao ser designado cabo da força-tarefa. Trata-se de uma piada de co­cheira, acho. Não me disseram o que significava.

A porta-estandarte Henderson voltara à ativa vários me­ses depois de ter tido seu menino. Era de uma esbeltez sóli­da, morena e bela, e as fitas de combate em seu belo busto estavam onde deviam estar. O Sargento Ezra sempre pareceu soldado, logo que ganhou pernas, e suas fitas mostravam is­so também. Um bom grupo.

Por que me deram a patente honorária de capitão? Fiz a pergunta logo depois de Hazel ter me tomado o juramento co­mo membro do Comando — e recebi uma resposta tola ou sen­sata, dependendo da tendenciosidade de cada um. Porqut (dis­se Hazel) em todos os livros de história em que o fato fora men­cionado eu figurava como segundo em comando. As histórias não davam outros nomes, mas não diziam que agíramos sozi­nhos, de modo que ela se resolveu por mais poder de fogo e escolheu o grupo. (Ela decidiu. Escolheu. Não Lazarus. Não alguma bateria de cérebros do QGT. Isso me agradou.)

Gay Tapeadora era guarnecida também por seu primeiro grupo — Hilda, comandante; Deety, XO e estrogadora; Zeb Carter, piloto-chefe; Jake Burroughs, co-piloto equipamento de irrelevância — e a própria Gay, consciente, senciente e capaz de pilotar... o que não acontecia com qualquer outra nave equi­pada para irrelevância, exceto Dora (que era grande mais para esse trabalho).

A comandante da nave, Hilda, estava sob as ordens da co­mandante da força de ataque. Eu teria esperado que a coisa pegasse aí... mas fora Hilda quem propusera isso.

— Hazel, vai ter que ser assim. Todo mundo tem que sa­ber quem é o chefe. Quando a coisa bater no ventilador, não podemos parar para conversar.

Um bom grupo. Não havíamos treinado juntos mas éra­mos profissionais e nossa comandante deixou as coisas tão cla­ras que não precisamos de treinamento.

— Atenção para as ordens. O objetivo desta força é captu­rar itens selecionados por Davis e trazê-los de volta, e a Davis, a Tertius. Não há outro objetivo. Mas se todos nós formos mortos e Davis e o material que selecionar chegarem a Tertius nossa tarefa terá sido um sucesso.

"O plano é o seguinte. Hilda nos pôs no muro leste, la­do de estibordo, na pulsação escolhida, depois que o QGT nos avisar que está pronto para ativar. Deixaremos a nave na se­guinte ordem: Lipschitz, Campbell, Henderson, Davidson, Bronson, Davis. Coloquem-se à frente e à retaguarda nos ba­nheiros para saírem nessa ordem.

"A sala do computador é quadrada. Lipschitz para o can­to sudeste, Henderson para o canto sudoeste, Campbell para o canto noroeste, Davidson para o canto nordeste. Pares em dia­gonal cobrem todas as quatro paredes, de modo que dois des­ses pares cobrem duplamente todas as paredes. Bronson é o guarda-costa de Davis. sem ponto fixo.

"À medida que Davis trabalhar, caixas cheias serão colo­cadas na nave. Henderson e Davidson transportarão os itens para a nave, da forma determinada por Davis, e serão ajuda­dos dentro da nave por Deety. O comandante da nave e pilo­tos permanecerão de sobreaviso para cair fora a toda pressa e ajudarão apenas transportando itens para trás. Bronson não, repito, não moverá bagagem. Sua única tarefa é servir de se­gurança a Davis.

"Quando Davis me disser que terminou a tarefa, voltamos à nave com toda rapidez, em ordem inversa — Davis, Bron­son, Davidson, Henderson, Campbell, Lipschitz. Hilda, você dará a ordem de cair fora logo que quiser, após ter Davis e o material que ele veio buscar a bordo, dependendo da situação tática. Se houver problema, não espere por ninguém. Use sua capacidade de julgamento, mas ele lhe deve dizer para salvar Mannie e os artigos que veio buscar, pouco importando quem ficou para trás."

"Alguma pergunta?

Há quanto tempo estou perdendo a consciência? Meu Sonychron foi uma das primeiras baixas. O grupo que Hazel escolheu era... Não, eu já disse isso. Acho que disse.

O que foi que aconteceu com a Árvore-San?

A pulsação temporal escolhida estava certa depois que Ha­zel deixou a sala do computador no sábado, 5 de julho. O grupo que captava a pulsação raciocionou que se estivesse à nossa espera quando chegássemos ao Raffles então aquele antagonista (os Senhores do Tempo?) não estaria nos procurando na sala do computador. Não havia maneira de fazer isso an­tes. Hazel comunicara que "Adam Selene" estava na sala do computador quando estivera lá.

Fizemos a coisa bem rápida, quase rápida demais. Quan­do Hazel estava deixando a Gay, parou de repente, eu ime­diatamente atrás dela — esperou por um momento e desceu.

Parou porque viu suas próprias costas, deixando a sala.

 

Tenho que mandar dizer a tia Til que Hazel e eu não che­garemos para a sopa.

 

A cabeça me dói e os olhos me incomodam.

 

Não sei como Pixel subiu para bordo de Gay. Como esse bebê se move!

Jubal Harshaw diz: "A única coisa constante nesses mun­dos mutáveis de fantasia é o amor humano." Isso é suficiente.

 

Pixel moveu-se um pouquinho.

 

Foi bom ter os dois pés durante alguns dias.

 

— Richar'?

— Sim, bem-amado.

— Hummm?

— Ela me disse, meses atrás.

— Não compreendo.

— Paradoxo.

Comecei a interrogá-la sobre isso. Ela dormia novamente. A compressa que eu colocara sobre o ferimento dela estava go­tejando. Mas não tenho mais nada, de modo que não a toquei.

 

Não vou ver tia Belden nesta viagem. Que pena.

 

O que foi que aconteceu com meus arquivos? Estão ainda no outro pé?

 

Hei! Amanhã é o dia "em que estaremos todos mortos" se Tolliver não estiver.

 

A primeira hora passou sem nenhum incidente. Mannie trabalhou ininterruptamente, mudou de braços uma vez, co­meçou a encher caixas. Gretchen e Ezra levaram-nas para a nave, entregaram-nas, voltaram a seus postos entre viagens. A maior parte disso parecia ser de programas que Mannie ex­traía para seus próprios cubos, usando equipamento que trou­xera. Eu não podia ver. Depois, começou a encher as caixas com maior rapidez, colocando cilindros dentro delas. As me­mórias de Adam Selene? Não sei. Talvez eu tenha observado demais.

Mannie espigou-se e disse:

— Isto completa! Feito. Em resposta ouvi:

— Miau!

E eles nos atacaram.

Caí imediatamente, a parte inferior da perna levada pelo raio. Vi Mannie cair. Ouvi Hazel gritar: "Bronson! Leve-o pa­ra bordo! Henderson, Davidson... aquelas duas últimas cai­xas!" Não ouvi o resto porque estava atirando. Toda a parede leste estava aberta. Atravessei-a com minha arma a plena ca­pacidade. Mais alguém estava atirando. Ao nosso lado, penso.

Depois, houve silêncio.

— Rich'r:

— Sim, amada.

— Foi div'tido.

— Foi, amor. Todo ele.

— Rich'r... aquela luz, no fim do túnel. — Sim?

— Eu espero você... lá.

— Querida, que você vai sobreviver a mim!

— Procure-me. Eu...

 

Quando aquela parede se abriu, acho que vi qual-era-o-nome-dele? Poderia o estúpido que o apagou recolocá-lo na história? Para nos cortar as asas?

 

Quem era que estava escrevendo nossa história? Iria dei­xar que vivêssemos?

 

Quem quer que mate um gatinho, é cruel, perversamente cruel. Quem quer você seja, eu o odeio. Desprezo-o!

 

Consegui acordar com um esforço, dei-me conta de que caíra no sono enquanto estava de vigia! Tinha que me contro­lar porque eles poderiam voltar. Oh, Deus seja louvado! Gay Tapeadora voltará. Não podia imaginar porque Gay não ti­nha voltado. Problema especificando a pulsação temporal certa?

Podia ser qualquer coisa. Mas eles não vão simplesmente nos deixar aqui.

Salvamos Mannie e o material que ele retirou. Nós vence­mos, o diabo leve vocês todos!

Tinha que ver o que sobrara de armas, munições. Eu não dispunha de nada mais. Minha pistola de raios estava vazia, sabia. Mas, e minha arma de cintura? Não me lembrava de a ter usado? Desapareceu. Tenho que procurá-la por aí.

 

— Querido?

— Sim, Hazel? (Ela vai me pedir água e não tenho nenhu­ma!)

— Sinto muito que pessoas estivessem comendo.

— O quê?

— Tive que matá-lo, queridíssimo. Ele havia sido designa­do para matá-lo.

 

Coloquei o gatinho em cima de Hazel. Talvez ele tenha se movido, talvez não — talvez os dois estivessem mortos. Con­segui me levantar sobre um pé, segurando-me a uma estante do computador, depois arriei novamente. A despeito da lon­ga prática em saltitar a um sexto de gravidade, descobri que nem estava forte o suficiente nem tinha bom equilíbrio — e estava separado de minha bengala, pela primeira vez em anos. Ela estava, pensei, no banheiro dianteiro de Gay.

De modo que rastejei, tendo cuidado com a perna direita. Ela estava começando a doer. Não encontrei armas carregadas. Afinal e dolorosamente voltei para junto de Gwen e Pixel. Ne­nhum dos dois se mexeu. Eu não podia ter certeza.

 

 

[1] Golden Rule no original: regra de ouro, preceito áureo (não fazer aos ou­tros o que não desejamos que nos façam). (N. do T.)

* Em inglês, "mistress" (senhora) significa também amada, amante, concu­bina. (N. do T.)

* Seqüência de instruções executadas reiteradamente até aparecer uma con­dição predominante que provoca seu término ou até que se cumpra deter­minado critério (apud Dicionário de Informática, LTC Editora). Usada co­mo loop em linguagem de computador. (N. do T.)

 

                                                                                            Robert Anson  

 

                      

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