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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O GUERREIRO LOBO / Sandra Carvalho
O GUERREIRO LOBO / Sandra Carvalho

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SAGA DAS PEDRAS MÁGICAS

 

 

Livro II

O GUERREIRO LOBO 

 

- Que Thor te acompanhe, Pequena!

- Bom dia, Pequena!

- Olá, Pequena!

- Como vais Pequena?

- Pequena, vem brincar conosco!

- Obrigado, Pequena! A minha tosse melhorou bastante.

- Queres ver o cavalo de madeira que o meu pai fez, Pequena?

- Não te importas de entrar, Pequena? O mais novo está com febre!

- Os cachorrinhos já nasceram! Queres um, Pequena?

- Vem provar um pedaço do meu bolo, Pequena. Ainda está quente!

O apelido que Throst me pusera acabara por tornar-se o meu nome. Por vezes, questionava-me se responderia se alguém me chamasse Catelyn, ou mesmo Cat. Sentia que se passara uma eternidade desde o dia da invasão viking à Enseada da Fortaleza, quando Throst me resgatara das garras do pérfido Conde de Goldheart, para me conduzir a um destino incerto e assustador, distante de tudo o que eu conhecia e amava, longe da feiticeira que destruíra a minha família e escravizara a minha terra.

Não conseguia evitar um sorriso quando me lembrava do que pensara na primeira vez que os meus olhos tinham fixado a paisagem única da Terra Antiga. Desde então, acontecera tanta coisa! O Bem e o Mal haviam-se misturado e alterado os meus valores e tudo o que eu dava como certo. O convívio com os Vikings e a compreensão da sua cultura e motivações tinha amenizado o meu ódio. A família que encontrara tão longe de casa e a amizade dos filhos de Thorgrim faziam-me sentir protegida, acarinhada e pronta para continuar com a missão que a minha avó, a feiticeira Aranwen, Sacerdotisa Superior da Grande Ilha, me confiara: a destruição de Myrna e a salvação do nosso povo.

Quando pensava no que deixara para trás, a saudade atormentava-me ao recordar-me dos meus irmãos e a angústia dominava-me, perante a incerteza do seu destino. Após o reconhecimento do nosso parentesco, Krum fora incansável na inquirição do paradeiro dos prisioneiros da campanha do último Verão, não só porque eu lho pedira, mas também porque os laços de sangue que nos uniam se tornavam cada dia mais fortes. Eu sabia que Krum não permitiria que os primos vivessem como escravos na sua terra. Porém, até agora, os resultados da busca haviam sido nulos. Revelava-se pouco provável que, vivos ou mortos, os meus irmãos tivessem abandonado a Grande Ilha.

A propriedade de Throst funcionava de maneira diferente da herdade do hediondo e sanguinário Gunnulf. Era uma comunidade muito menor do que aquela que residia na Aldeia de Grim, essencialmente composta por amigos e pelas suas famílias, que trabalhavam e contribuíam para um bem comum. Eu não sentia consternação nas pessoas quando o senhor da terra passava. Throst era amado e respeitado, em terra e no mar. Não era de admirar que a sua aldeia se chamasse Aldeia do Povo.

A minha integração não fora amistosa. Nas comunidades pequenas, as novidades corriam depressa, e Halldora certificara-se de que todos tomavam conhecimento da sua versão da história do colar. Porém, a companhia e a confiança dos donos da terra, aliados ao meu impulso para ajudar o próximo, tinham resolvido o problema.

Três dias após a minha chegada, Ingrior pedira-me ajuda. Um garoto da aldeia estava com febres altíssimas, que não baixavam há dias. Ela receava que a criança não resistisse mais uma noite. Eu ainda não saíra de casa. As dores na mão e no braço atormentavam-me, e criara medo ao olhar crítico das pessoas. Contudo, não podia ficar indiferente ao seu apelo.

A mãe do garoto recebeu-me bem, mas a avó manteve uma distância desconfiada. A presença de Ingrior deu-me segurança. Examinei o menino com cuidado. Estava muito fraco e não sobreviveria para ver um novo dia, tal como Ingrior temia. Concentrei-me de corpo e alma na preservação daquela vida frágil e, durante a noite, travei uma luta sem tréguas, com a morte espreitando pela porta a cada batida do coração, esperando pacientemente. Pela manhã, obtive a minha primeira vitória e recuperei a confiança. À tarde, as pessoas começaram a visitar a casa, curiosas e estupefatas perante a recuperação da criança que já davam como perdida. No dia seguinte, o menino ensaiava os primeiros passos.

A partir daí, não parei mais. Se alguém tossia, chamavam pela Pequena. Se alguém se magoava, chamavam pela Pequena. Numa comunidade onde se trabalhava sem descanso, a saúde e a segurança estavam sempre ameaçadas. A curandeira da aldeia morrera e não existia ninguém suficientemente destro para substituí-la, além da já muito atarefada Ingrior, que tinha de conciliar a sua habilidade com a administração da quinta, o apoio à família e o ofício de artesã. A Aldeia de Grim não ficava tão perto que o povo pudesse recorrer às suas curandeiras num momento de aflição, por isso, depressa percebi a importância do meu auxílio.

Apesar de a quinta dos filhos de Thorgrim empregar muitos homens e mulheres, na sua casa viviam apenas duas criadas. Nelas, eu encontrei duas amigas. Jodis era uma mulher corada e anafada, que morava com a família desde sempre. Katla era uma jovem que trabalhava para ajudar a sua família que habitava na aldeia: a mãe doente e a irmã mais velha, que ficara viúva com três filhos pequenos.

Aos poucos, fui conhecendo as pessoas e decorando os seus nomes estranhos. A maioria dos guerreiros que me tinham acompanhado na viagem e as suas famílias viviam nos arredores. O entusiasmo com que me abordavam deixava claro que muitos sonhavam fixar-se próximo da Grande Ilha, onde o Sol brilhava com esplendor e o solo era fértil.

Perdida em reflexões, subi a pequena encosta que separava a quinta de Throst das casas circundantes. Os períodos de luz começavam a aumentar, e era um prazer estar na rua para receber os tímidos raios de sol. Sobressaltei-me ao ouvir o trote compassado de um cavalo. Estava tão distraída que nem reparara na aproximação do cavaleiro. O meu coração disparou ao ver Throst com a mão estendida e um sorriso maravilhoso no seu rosto perfeito.

- Vem...

Não nos encontrávamos longe da casa, mas por nada eu desperdiçaria esta oportunidade. Deixei-me içar para a garupa do cavalo malhado e agarrei-me à cintura de Throst. Por muito que me custasse admitir, sentira saudades dele. O capitão partira com um grupo de companheiros, numa viagem a um porto vizinho, a fim de trocar mantimentos. Ausentara-se mais de uma semana e, apesar de Ingrior me garantir que tal era normal, eu não conseguira conter a apreensão; a horrível sensação de carência e desamparo. Voltar a abraçá-lo era um alívio e um prazer inconfessáveis.

Ingrior veio ao nosso encontro, trazendo Trygve ao colo. Depois de me ajudar a descer, Throst abraçou a irmã e, por fim, ergueu o sobrinho nos seus braços, rodopiando-o sobre a cabeça. Eu fiquei quieta, a observar o garoto que soltava gargalhadas de pura satisfação e a sonhar acordada. Se o destino permitisse, Throst seria um pai maravilhoso, atencioso, brincalhão, carinhoso... Muito diferente de Lorde Garrick McGraw, que sempre nos colocara, a mim e aos meus irmãos, um degrau abaixo das suas ambições.

Trygve possuía, sem dúvida nenhuma, o sangue de Mairwen... O meu sangue! Os seus cabelos eram morenos, os seus olhos verdes e brilhantes. Herdara as feições delicadas de Ingrior, mas também outros traços, muito belos e exóticos, que eu reconhecia na minha família materna. Trygve não devia ser muito diferente do meu irmão Berchan, quando este tinha a sua idade.

Descobrir família nesta terra hostil fora estranho. Perceber que essa família estava ligada à família de Throst fora assustador, por todas as implicações que isso acarretava. Muitas vezes, quando segurava o pequeno Trygve nos meus braços, sentia a tentação de contar a verdade a Ingrior. Mas a súplica da minha tia Mairwen, para que mantivesse a sua origem em segredo, fazia-me recuar. Além disso, não queria que Ingrior pensasse que eu pretendia um tratamento especial, por ser prima do seu falecido marido. Este assunto era-lhe, sem sombra de dúvida, muito doloroso e, enquanto ela não tomasse a iniciativa de me contar o que acontecera, eu não forçaria a questão.

Ingrior embrenhava-se muitas vezes na floresta e, certo dia, eu resolvi segui-la, mais preocupada do que curiosa. Surpreendi-a junto de um pequeno terreno sem árvores, onde uma dezena de pedras gravadas com as Runas Sagradas dos Vikings se dispunham de forma harmoniosa. Deduzi que se tratava do cemitério onde os seus familiares descansavam.

Não tive coragem de me revelar. Ingrior deitou-se na neve, com a testa encostada a uma das pedras tumulares e chorou. A sua dor destroçou-me o coração. Antes de partir, ela pousou um objeto junto da pedra. Esperei que se afastasse e espreitei. Era um colar de homem, tão perfeito como belo. Debaixo dele, Ingrior colocara um pedaço de cabelo castanho-escuro. Eu vira-a trabalhar no colar nas últimas noites e, quando regressei a casa, reparei que o cabelo do pequeno Trygve fora cortado. Concluí que Ingrior visitara o seu amado para lhe oferecer presentes.

Na manhã seguinte, voltei ao cemitério com um ramo de ervas de cheiro para prestar homenagem. Arrepiei-me ao verificar que os presentes que Ingrior deixara haviam desaparecido. As pegadas na neve não mentiam. Só quem estivera ali fora eu, Ingrior... E um lobo! Não uma vulgar fera da floresta... Mas um animal sagrado, o guardião de uma alma atormentada: um Lobo Cinzento! A vida do meu primo Trygve fora-lhe usurpada bárbara e cobardemente. A sua alma estava condenada a vaguear com as criaturas encantadas, até que a justiça fosse feita. E isto dizia-me muito mais do que a qualquer outra pessoa. Trygve não ficara vingado com a morte dos Vândalos, como a sua família e o povo acreditavam. Logo, não tinham sido os Vândalos os autores da barbaridade. O culpado ainda vivia... E talvez nunca fosse encontrado.

Todo o meu ser clamava por justiça. Eu não permitiria que a morte de Trygve tombasse na impunidade do esquecimento! Emocionada, depositei o ramo de ervas ao lado da pedra e toquei-lhe timidamente. Ainda subsistia muito amor... E tanta dor e saudade, que o desaparecimento do ser físico jamais eliminaria. Suspirei profundamente antes de assumir o compromisso: ”Eu irei descobrir a verdade, primo! Até lá, juro que velarei por Ingrior e pelo vosso filho. Enquanto houver um sopro de vida em mim, todos aqueles que atentarem contra o meu sangue serão castigados"!

- Pequena! - apelou Ingrior despertando-me. - Estás a dormir em pé?

Pisquei os olhos, e eles riram do meu sobressalto. Ingrior agarrou-me a mão e arrastou-me para dentro de casa.

- Vem comer, tolinha! Eu já preparei o chá intragável que tu insistes em beber, e o Throst trouxe uns belos peixes. Hoje vais alimentar-te convenientemente ou não me chamo Ingrior!

Sentamo-nos à mesa, e Jodis serviu-nos. Ali, eu vivia como uma convidada comia com os donos da casa e dormia numa cama confortável. Assim que chegara, Ingrior oferecera-me a arca de Trygve, justificando que o filho ainda dormiria consigo durante muito tempo. Throst nem me deixara protestar, prontificando-se a fazer outra cama para o sobrinho. Enquanto bebia a mistura curativa que Mairwen garantira ser a única solução para contrariar o feitiço de Myrna e recuperar a voz, senti o olhar de Throst cravado no meu rosto e comecei a respirar com dificuldade.

- Ela está com boas cores! - elogiou, falando com a irmã como se eu não estivesse presente. - Tem sido bem tratada pela comunidade?

Ingrior riu alto, antes de responder:

- Nem queiras saber! É uma heroína! Já ninguém dispensa os seus serviços.

- Foi o que eu ouvi dizer! - murmurou Throst, antes de me tocar no braço para atrair a minha atenção. - Não te canses demasiado, ouviste? Não te trouxe para aqui para trabalhares!

Senti o rosto a latejar. Gesticulei devagar, explicando que gostava de ser útil. Throst retribuiu-me o sorriso e iniciou o relato das peripécias da sua viagem. O gelo começava a soltar-se dos fiordes, e o ar ainda estava demasiado frio para derretê-lo, por isso, havia pedaços enormes à deriva no mar, os quais tornavam a navegação muito perigosa. Ingrior percebeu o meu tremor e apertou-me a mão. Entre nós existia esta cumplicidade deliciosa que me restituía a alegria de viver. A muitos dias da minha verdadeira casa, eu encontrara um lar.

- Mostra-me a tua mão. Ainda não a vi bem...

Lá estava eu com as faces em chamas, enquanto Throst me analisava com cuidado. A ferida provocada pela queimadura que Halldora me infligira estava praticamente sarada e não deixaria marcas. Desde sempre que a minha resistência física encantava os que me eram chegados. Em criança, nunca partira um osso ou sofrera um ferimento que deixasse vestígios. Só adoecera uma vez, quando Myrna me enfeitiçara para tentar apoderar-se da pedra mágica da minha avó. E a única cicatriz que marcava o meu corpo era a que eu partilhava com Throst.

- Está muito bem! - murmurou surpreendido, sem me soltar.

- Só lamento não poder apagar da tua mente a dor que sofreste...

Respondi-lhe por gestos que a culpa não fora sua.

- Foi sim! Eu não devia ter-te levado para a casa do Gunnulf. Quis fugir do que sentia por ti e só consegui despertar inimizades e ódios. Magoei-te, magoei-me e magoei a Halldora. Criei uma situação complicada, que pode ter conseqüências graves na vida de muita gente. Resta-me esperar que tudo se resolva pelo melhor.

A sua sinceridade emocionava-me e dava-me confiança. Custava-me fazê-lo, mas a razão obrigava-me a sugerir que me mandasse para outra casa, na sua aldeia. As pessoas receber-me-iam bem. A reação de Throst foi imediata:

- Não és feliz aqui?

Se eu era feliz? Era tão feliz quanto à ausência da minha terra e dos meus entes queridos mo permitia. Gesticulei a resposta, para que ele não ficasse com a idéia errada. Ingrior observava-nos em silêncio, enquanto embalava Trygve, que adormecera no seu colo.

- Então ficarás! Agora, esta casa também é tua. Eu jurei que te protegeria. Recordas-te?

Para dar mais força às palavras, ele apertou-me a mão. De imediato, as nossas cicatrizes aqueceram, como se estivessem impregnadas de magia. Os lábios de Throst estremeceram com essa percepção. Não voltamos a falar, mas os nossos olhos revelaram muito do que ficou por dizer.

A arca que me servia de cama nada ficava a dever, em calor e conforto, às camas onde me habituara a dormir desde criança. Proporcionava-me sempre sonhos bons, geralmente relacionados com a minha infância. Eu estava quase a adormecer quando Ingrior e Throst começaram a conversar. Apesar de falarem baixo, não podia impedir-me de escutá-los:

- Como reagiu o Gunnulf à tua decisão de trazeres a Pequena para morar conosco? - perguntava Ingrior.

- Como esperas que tenha reagido? Está furioso! Mal me dirige a palavra!

- E como está a Halldora?

- O Krum contou-me que anda lavada em lágrimas. Já me enviou muitos recados, mas eu ainda não fui visitá-la. Ela tem de admitir que errou e que, desta vez, o seu erro foi grave...

- Liberta-te dela, Throst! Aproveita esta oportunidade, pois pode ser a última. Não cometas o mesmo erro que eu!

Silêncio. Longo...

- A situação não é igual, mana! Eu amo a Halldora! Mesmo com aquele feitio difícil, com aquela personalidade forte... Eu gosto dela!

Apertei os olhos e cerrei os dentes com força. Fechei as mãos com tanta raiva que as unhas se enterraram na carne. A declaração de Throst provocava-me uma agonia azeda. Cada vez que o ouvia confessar o seu amor pela noiva doía-me mais. Como podia um homem tão bom estar apaixonado por uma mulher tão perversa?

- Tu não amas a Halldora! - objetou Ingrior, deixando-me a tremer. - O que eu vejo nos teus olhos e nos teus gestos não é amor! É carinho, amizade, ternura, por uma menina que viste nascer e crescer junto de ti. Tu não a desejas...

- É claro que desejo!

- Da maneira como ela se impõe a ti, não te resta opção! És um homem! Mas sentes esse desejo quando a Halldora não está a provocar-te, pendurada no teu pescoço? Ficas fulminado quando a vês surgir ao longe? Quando prendes o seu olhar, pensas que tens de possuí-la ou morrerás?

Silêncio... Muito mais longo do que o primeiro.

- Throst...

- Eu não vou responder-te, Ingrior!

- Não respondes por que terias de admitir que eu tenho razão!

- Não! - O tom de Throst impacientava-se. - Não respondo porque não é correto termos esta conversa!

- E por que não? Não somos irmãos? Não nos amamos tanto, que desejamos a felicidade um do outro acima de todas as coisas? - Ingrior fez uma pausa para recuperar o fôlego. - Conheço-te melhor do que tu próprio te conheces e não posso calar-me! Eu vejo amor nos teus olhos, sim! Vejo desejo, paixão, loucura, desespero... Mas não é pela Halldora!

- Chega! - trovejou ele, de tal forma irritado que ter-me-ia acordado se eu já estivesse a dormir. - Isto já foi longe de mais!

Ouvi Ingrior ofegar e pensei que se atreveria a contrapor, mas enganei-me. Nessa noite, não se ouviu nem mais um suspiro na casa dos filhos de Thorgrim.

Bjorn regressou finalmente, depois de mais um período junto da sua família de adoção. Trouxe consigo Styrr, o companheiro inseparável, com quem estava a aprender alguns truques no manejo das armas. Styrr era filho dos pais de adoção de Bjorn e quatro anos mais velho do que o amigo. No próximo Verão já seguiria os homens na campanha. Reconheci nele o jovem que sacrificara o bode no ritual a Odin, que tanto mudara a minha vida.

Styrr aproveitou a presença de Throst na casa para melhorar a sua técnica com o arco. Sentei-me ao lado de Ingrior a apreciar o treino dos rapazes. Com dezessete anos, Styrr era um homem feito, sólido e bonito, com cabelos castanho-claros e olhos da cor do mel. Para que os longos cabelos não o incomodassem, Ingrior entrançara-os. O rosto do rapaz ficara em chamas, enquanto os dedos femininos se moviam com habilidade. Bjorn contou-me, em segredo, que Styrr estava apaixonado por Ingrior. O garboso jovem planeava enriquecer nas campanhas, para se declarar e desposar a irmã do amigo.

- E eu farei o mesmo por ti, Pequena - afirmou Bjorn docemente. - Estava a falar a sério quando disse que pretendia casar-me contigo! Esperarás por mim?

Só evitei o riso a custo. Abracei-o com o mesmo carinho com que se abraça um irmão mais novo, beijei-o na testa e despachei-o para os seus deveres. Bjorn afastou-se, saltitando de alegria. Eu fiquei a observá-lo, sorrindo ternamente. Só mesmo um rapaz inocente poderia desejar casar-se com uma escrava desengraçada e muda!

O meu coração parou ao ver Throst ali perto. Percebi que assistira a toda a conversa e temi a sua reação. Porém, também ele sorria divertido com a fogosidade e arrojo do irmão.

Enquanto Throst provava a razão por que era considerado o melhor arqueiro do seu povo, eu recordava a conversa que escutara na noite anterior, que me mantivera acordada durante muito tempo. As palavras de Ingrior não me saíam da cabeça. Devoravam-me com uma alegria estúpida, com a mesma intensidade com que as palavras de Throst me magoavam. E, no interior da minha mente, uma voz despeitada remoía: ”Tens uma missão a cumprir e continuas a perder tempo com campônios e selvagens"...

- Pequena, vem cá! - pediu Bjorn. - Eu ensino-te! Provavelmente já não era a primeira vez que ele me chamava. Fui ao seu encontro, ouvindo o riso de Ingrior nas minhas costas, sentindo o rosto a corar e as pernas bambas. Throst mirava-me com uma expressão trocista. Quando Bjorn me forçou a segurar no arco, o irmão não se conteve:

- Como queres que a Pequena estique a corda, se o arco é maior do que ela? Ingrior vai buscar um menor.

Antes que eu pudesse reagir, já ela satisfazia o seu apelo. E, de repente, o corpo de Throst estava encostado ao meu, as suas mãos seguravam as minhas, enquanto ele me explicava como agarrar no arco e esticar a corda. Os meus olhos fecharam-se quando a flecha partiu. Ouvi os gritos de entusiasmo dos restantes, enquanto Throst murmurava:

- Vês como é fácil? Com um pouco de prática, serias uma arqueira exímia! - Riu-se baixinho, apreciando o meu nervosismo.

- Vou soltar-te agora... Não caias!

Tive vontade de lhe dar uma bofetada. Throst sabia que me perturbava e nem se esforçava por disfarçá-lo. Afastei-me bruscamente, irritada pela sua zombaria. Mas, antes que pudesse demonstrar desagrado, estaquei perplexa ao verificar que a flecha acertara no centro do alvo. Throst fizera magia através das minhas mãos!

A euforia do sucesso fez-me esquecer a raiva. Quando dei por mim, tinha os braços dos filhos de Thorgrim ao meu redor. E a força desta amizade que se consolidava a cada dia permitia-me acreditar que a vida ainda me reservava alguma felicidade.

A conversa à mesa estava muito animada. Bjorn preparava-se para enfrentar o teste que lhe abriria as portas para a aceitação dos adultos como um igual. Depois de ouvir a discrição das provas que Styrr superara, Bjorn fez questão de afirmar que a sua prestação seria melhor. Explicou-me o processo de formação de um guerreiro e a ambição que todos os jovens acalentavam de serem escolhidos por uma fera para partilharem da sua força e coragem. Eu escutei-o com atenção, satisfazendo-lhe o entusiasmo. Styrr não escondeu a frustração quando Bjorn afirmou que o amigo não fora procurado por um lobo, mas que ele seria.

- Não é justo! - exclamou com uma careta. - Como irmão do Throst, tu tens muito mais possibilidades do que eu!

- Vamos mudar de assunto - afirmou Throst, estranhamente desagradado.

Porém, Bjorn continuou possuído por um entusiasmo febril e transbordando de orgulho:

- Sabes que o Throst é um guerreiro-lobo, Pequena? Mas não é um guerreiro-lobo qualquer, como o Sven ou o Durin! O meu irmão é especial!

- Chega Bjorn! - rosnou Throst, com uma ferocidade que me arrepiou. - Pára de aborrecer a Pequena...

- Eu não estou a aborrecê-la! - ripostou o mais novo, rubro de excitação, sem se aperceber de que o irmão estava zangado. - Durante as suas provas, o Throst...

- Já disse que chega!

O grito do dono da casa foi acompanhado por um murro na mesa. Retive a respiração quando Bjorn saltou do banco e enfrentou o irmão com os punhos cerrados.

- Estás parvo? Para que é que foi isso?

- Eu estou cansado de te dizer que não quero que fales desse assunto!

Throst não perdia a calma frivolamente. Tinha de existir um motivo sólido para tamanho agastamento. Contudo, o mais novo continuava decidido a marcar a sua posição:

- Mas, porquê? Nunca entendi por que escondes que és o líder dos lobos! Devias usar a tua pele com orgulho...

Throst levantou-se tão depressa que temi que fosse agredir o irmão. Segurou-se no último instante, apontando para a porta.

- Sai daqui, Bjorn! Desaparece da minha frente, antes que eu faça um disparate!

Estavam ambos com as faces em fogo; uma versão adulta e uma em crescimento do mesmo rosto belo e determinado. Um dia, Bjorn possuiria a força e a resolução do irmão. Mas agora, o respeito e o carinho que os unia forçava-o a obedecer, apesar de protestar:

- És um imbecil!

Saiu a correr e bateu com a porta. Numa voz sumida, Styrr anunciou que ia atrás dele. Eu continuei pregada ao banco, vendo Ingrior pinicar o seu bolo de aveia com os olhos colados à mesa. Um suspiro depois, a porta tornava a bater atrás do dono da casa.

Abri e fechei a boca, desejando ardentemente poder falar. Por que Throst se descontrolara com algo que, de acordo com os padrões vikings deveria ser motivo de vaidade? As palavras de Bjorn recordavam-me o entusiasmo ardente de Sven, quando afirmara que o capitão era o líder da alcatéia. O enigma estava desfeito. Throst também era um guerreiro-lobo! E o fato de o distinguirem dos seus semelhantes trazia-me à memória as estranhas declarações do Lobo Cinzento. Então, como se escutasse os meus pensamentos, Ingrior começou, trêmula, mas decidida:

- Eu sei que entenderás o que vou dizer. Na sua iniciação, o Throst superou com facilidade e distinção as provas impostas pelos mais velhos. Quando os guerreiros o abandonaram na floresta, ninguém duvidava de que ele seria escolhido para fazer parte da elite. E o meu irmão foi realmente procurado por uma fera... Mas não a que todos presumiam! A fera que veio ao seu encontro foi um Lobo Cinzento, uma criatura sagrada...

Eu estava a tremer. Tinha as mãos sobre os lábios e os olhos esbugalhados. Agora, tudo se explicava! Tudo... Exceto a razão por que Throst negava a honra que lhe fora concedida. Mas a justificação não tardou:

- Para o meu irmão, tudo o que se relaciona com magia é uma maldição. Acredito que fez frente ao lobo por puro instinto, mas nunca conseguiu aceitar o significado da sua vitória... - A voz de Ingrior sumiu-se com um soluço. - Desculpa! Por vezes sinto que estou perdida entre dois mundos... Que grito alto, mas ninguém me escuta...

Levantou-se da mesa e recolheu-se no seu quarto. Ouvi-a chorar e lutei contra a vontade de a seguir, de lhe entregar a minha compreensão e de lhe contar toda a verdade. Como podia eu fazê-lo? A convivência afastara quaisquer dúvidas acerca da lealdade de Ingrior, mas era impensável revelar-lhe a minha história através de gestos. Além disso, o instinto garantia-me que este não era o momento certo.

Deitei-me e tentei adormecer. Já Ingrior cedera ao cansaço, e eu ainda continuava com os olhos escancarados, observando as sombras da fogueira viva a brincarem no telhado de colmo, debaixo do qual a pequena coruja branca, que me seguia para toda a parte, fizera agora a sua morada. Os meus sentidos estavam despertos, em alerta para qualquer som ou movimento. E, de repente, senti-o... Tanta confusão! Tanta dor!

Eu não sabia o que fazer. Só sabia que não podia deixá-lo sozinho!

Existia um templo na propriedade de Throst, muito perto da casa. Era simples, pequeno e aconchegante, muito diferente dos templos enormes e sinistros da Aldeia de Grim, que me causavam arrepios. No altar não havia imagens de deuses gigantes de madeira e sim duas pedras, uma preta e uma branca, repletas de caracteres rúnicos. Eu ainda não tivera tempo de debruçar-me sobre a aprendizagem do alfabeto viking, mas a intuição dizia-me que estava perante a representação do equilíbrio das forças do Universo: a Lua e o Sol, a Noite e o Dia, a Morte e a Vida... O Mal e o Bem.

Eu sentia-me em paz dentro do templo e, sempre que podia, buscava a sua privacidade para praticar a Arte, longe do olhar da atarefada quinta. O pensamento de Throst não devia ser muito diferente, pois foi lá que o encontrei. Acendera a fogueira para contrariar o frio e sentara-se junto das pedras. Aproximei-me devagar, e o meu coração acelerou ao reparar que ele segurava algo grande e peludo... Uma pele de animal... A pele de um Lobo Cinzento! Quando me encarou, vi que rolavam grossas lágrimas dos olhos azuis. O guerreiro desviou o rosto, envergonhado pela exposição da sua fraqueza. Só então me ocorreu que talvez a minha presença não fosse um conforto e sim um estorvo. Recuei um passo, de regresso à noite gelada.

- Espera! - A sua voz manifestou-se, baixa e trêmula. - Fica...

E eu fiquei feliz por saber que Throst desejava a minha companhia, mas demasiado impressionada para ousar aproximar-me. A magia que nos rodeava era tão forte que podíamos respirá-la, saboreá-la, deixá-la escorregar por entre os dedos. Eu sabia que Throst não lhe era indiferente. Então, por que a negava? O que acontecera para torná-lo tão amargo? Um vento feroz assobiou por entre as tábuas das paredes do templo carregando um murmúrio que só eu escutei: ”O Que Tudo Vê”... ”O Que Tudo Vê”...

Um pio melódico anunciou a chegada da pequena coruja. A ave pairou sobre nós e pousou numa trave do teto, apreciando o calor do fogo e distraindo-se a limpar as penas. Eu desejei desfrutar da sua descontração. Estava tão nervosa que mal me agüentava em pé.

- Vem... Senta-te aqui, perto de mim.

Throst já não chorava. Tinha os olhos fechados e uma expressão tão cansada, que dir-se-ia ter combatido sozinho contra um exército poderoso. O dragão tatuado nos seus pulsos despertava com os reflexos das chamas. Eu pisquei os olhos, resistindo ao apelo da magia, e fixei a atenção na pele que ele abraçava. O lobo fora um animal magnífico, talvez tão grande como o que agora liderava a alcatéia. E, apesar de o guerreiro não o admitir, o animal não morrera. Subsistia dentro dele... Lutava para que o seu sacrifício não tivesse sido vão, para que a teimosia de Throst em negar a sua verdadeira essência não os condenasse, a ambos, ao destino que eu vira naquela terrível Visão.

Arrepiei-me quando a voz forte ecoou pelo templo:

- Ele falou comigo... Ainda o ouço dentro da minha cabeça. Lançou-me um desafio: matar ou morrer. Só um de nós podia vencer! Só um de nós podia viver! Eu não queria... Ele era tão belo, tão forte, tão puro... Eu não merecia a sua vida! Eu não sou digno...

Os ombros robustos vergaram-se, e a cabeça de Throst pendeu sobre a da fera. Vê-lo sofrer assim partia-me o coração. Toquei-lhe no ombro e gesticulei devagar:

”Tu não tiveste escolha! Foi ele quem te escolheu! O Lobo reconheceu o teu valor, confiou na tua coragem... Agora, vive dentro de ti e não deves negá-lo. Honra o seu sacrifício e orgulha-te da tua conquista.”

Throst fechou os olhos e respirou fundo. Depois de um breve silêncio, murmurou hesitante:

- Eu nasci marcado pelo destino e toda a vida me esforcei por provar que posso contrariar o que me foi imposto pelo sangue, que sou dono da minha vontade, que tenho o poder de fazer as minhas escolhas. Pensava que tinha conseguido... Até que te encontrei! No instante em que te vi, fiquei à deriva! Preciso tornar a encontrar um equilíbrio ou ficarei louco...

Os seus lábios deixaram escapar um soluço e, de imediato, escondeu o rosto. Tentei uma aproximação tímida, mas, desta vez, ele não mo permitiu. Pediu que o deixasse sozinho, e eu respeitei o seu desejo. Throst não podia saber que, talvez melhor do que qualquer outra pessoa, eu compreendia a sua revolta; a dor da impotência para contrariar um destino imposto.

A cama não me trouxe o descanso desejado. A noite fora rica em emoções extremas, revelações preciosas e suposições inquietantes. Qual seria a origem do poder que vivia no sangue dos meus anfitriões? Estaria esse poder relacionado com aquele de quem Mairwen se recusara a falar; aquele cuja ajuda a minha avó prometera e que ignorava a minha aflição e a ameaça que pairava sobre o mundo; aquele que eu imaginava ser um poderoso feiticeiro?

Contrastando com estas dúvidas, tornara-se inegável que, tal como eu, Throst nascera com uma missão. Isso justificava o sacrifício das Criaturas Sagradas, ao entregarem-lhe a vida do seu líder. Porém, o guerreiro viking não aceitava a sua essência, afastava-se do seu propósito de vida, traía os que nele depositavam confiança e expectativas e caminhava cegamente para o abismo. E eu nada podia fazer para ajudá-lo...

Não podia? Nas profundezas da minha consciência, uma voz rebelava-se violentamente. Para que iriam as forças divinas cruzar os nossos caminhos e revelar-me o trágico futuro de Throst, se não pretendessem que eu usasse de todos os meus recursos para salvar-lhe a vida? E não me haviam os Lobos Cinzentos confiado a sorte do seu guerreiro? Quanto mais refletia, mais acreditava que a salvação de Throst era um teste à minha força. Se eu o colocasse no trilho que a vidente profetizara, que lhe daria muita felicidade e três filhos reis, então o misterioso feiticeiro viria ajudar-me e eu poderia regressar à Grande Ilha para combater Myrna.

Como mudar o destino de Throst era uma questão complicada. Os avisos de Berchan assustavam-me, porque eu sabia que o meu irmão nunca se enganava. Mas o meu instinto garantia-me que este era o único rumo a tomar. Se eu reunisse força e tranqüilidade suficientes, encontraria uma solução inteligente. A confirmar-se a minha premonição, o meu sucesso dependia da sobrevivência de Throst. E forçar Throst a aceitar algo que negava com acérrima convicção adivinhava-se uma tarefa tão monumental como vencer Myrna.

 

Os períodos de luz aumentavam e a neve começava a derreter, quando os jovens da Terra Antiga se reuniram para uma caçada. Iam entrar na floresta e demonstrar as suas habilidades, montando acampamentos, seguindo pistas, perseguindo animais e sobrevivendo às muitas armadilhas e desafios preparados pelos mais velhos.

Bjorn quase que voava tal era a sua agitação. Ele tinha a certeza de que seria considerado o mais apto dos aspirantes e afirmava que regressaria com o maior veado da floresta em cima dos ombros. Ainda não alcançara a idade de prestar a prova de fogo, mas, até lá, não deixaria que nenhum dos outros o suplantasse.

Eu ajudei Ingrior a preparar-lhes o farnel, rindo-me do entusiasmo de Bjorn e das gabarolices de Styrr. O jovem guerreiro já fizera muitas caçadas e trouxera consigo relatos mirabolantes das proezas que executara. Eu desconfiava da destreza de Styrr como caçador, mas devia admitir que ele era um excelente contador de histórias.

- Isto é só mais uma demonstração idiota da vaidade masculina - provocou Ingrior, pretendendo irritá-los. - Nós, mulheres, não precisamos dessas parvoíces para nos afirmarmos!

- Estás cheia de inveja, mana! - ripostou Bjorn, colocando o arco às costas. - Mas, quando eu for o chefe da caçada, prometo que te levarei comigo!

Os rapazes partiram para a Aldeia do Povo, onde iriam encontrar-se com outros aventureiros da mesma idade e mais velhos. Discutiam fervorosamente sobre qual dos dois lideraria o grupo, num futuro próximo. Eu acenei-lhes em despedida e depressa me esqueci da caçada.

Nesse dia, teria de enfrentar uma aventura muito mais perigosa. Ingrior pedira-me que a acompanhasse ao mercado.

Antes de sairmos, ela prendeu os meus caracóis com um dos seus ganchos. Depois, mirou-me deliciada, apreciando o efeito.

- Tu és muito bonita, Pequena! Quando as mulheres te virem, correrão para comprar as minhas peças. Se o Throst não tomar juízo, em breve teremos uma multidão de pretendentes a bater-nos à porta!

Nem me atrevi a pensar na sua insinuação. Segui-a obedientemente, apesar de sentir o nervosismo a pesar-me os pés e a picar-me a pele. Uma coisa era estar na Aldeia do Povo, onde todos me respeitavam e acarinhavam. Outra, bem diferente, era introduzir-me na Aldeia de Grim, nos domínios de Gunnulf e Halldora.

Montamos a banca, e as freguesas não tardaram. As peças de Ingrior eram muito solicitadas e, em pouco tempo, tínhamos vendido quase tudo. Quando eu já pensava que o dia terminaria sem acidentes, eis que vislumbrei a minha tia Mairwen, na sua identidade assumida de Anna do povo viking, com Halldora e Signy. Ingrior também as viu e apertou-me a mão para me transmitir confiança.

- Se a minha prima te provocar, não lhe respondas. Eu tratarei do assunto!

Quando me viu, Anna tentou evitar o confronto, mas Halldora delirou com a oportunidade dourada de me acirrar e humilhar.

- Como tens passado querida? - Dois passos e já beijava as faces de Ingrior. - Há quanto tempo não nos dás o prazer da tua visita?

- O mesmo pergunto eu, Halldora! - volveu Ingrior secamente. A irmã de Gunnulf mirou-me de alto a baixo, revidando com desprezo:

- Eu iria visitar-te, querida prima, se a tua casa não estivesse tão mal freqüentada!

Deteve-se ao reparar no gancho que me adornava o cabelo. Por infeliz coincidência, também trouxera o seu. Encarou Ingrior com os olhos chispando de raiva.

- Como te atreves a permitir que esta escrava nojenta use um gancho igual ao meu?

- Os meus ganchos são para todas as pessoas, Halldora! - retrucou a prima, sem se intimidar. - Não me lembro de ter feito um exclusivamente para ti!

Sem mais contemplações, Halldora arrancou o enfeite do seu cabelo e atirou-o para o chão.

- Eu recuso-me a usar um gancho igual ao de uma escrava! Para me fazeres esta desfeita, seria melhor que não mo tivesses oferecido!

Ingrior enrubesceu, mas a sua voz manteve-se calma:

- Eu não to ofereci, Halldora! Recordas-te? Eu ofereci-o à Pequena e tu tiraste-me da mão.

Halldora estacou, fulminada pela afronta. Signy levou as mãos à boca, horrorizada. Anna fechou os olhos e suspirou. O caldo acabara de se entornar.

Num ímpeto de puro ódio, Halldora pisou o gancho com a bota, inutilizando o material delicado. Depois, ainda lhe cuspiu em cima, sem se importar com a repreensão da madrasta. O olhar que dirigiu à prima declarava o seu ressentimento. Debruçou-se sobre ela, silvando com o veneno na ponta da língua:

- Foi pena os Vândalos não terem acabado contigo! Não prestas Ingrior! És pior do que fruta podre! Desprezo-te!

Só eu me apercebi do esforço que Ingrior fazia para controlar a vontade de apertar o pescoço de Halldora, pois ela manteve o tom neutro que tanto irritava a opositora:

- Fico feliz por saber que tens essa opinião! Vinda de ti é um elogio e faz de mim uma excelente pessoa!

Halldora rugiu e Signy e Anna mal conseguiram segurá-la. O povo começava a juntar-se em redor da banca, ansioso por um bom escândalo. Valeu-nos a oportuna intervenção de Krum, que arrastou a irmã para longe.

Durante o jantar, constatei que Throst estava mais silencioso e tenso do que o normal. Ingrior também reparou e quis apurar a razão:

- Já sabes que eu discuti com a Halldora no mercado? Ele suspirou, quase imperceptivelmente, antes de responder:

- Sim. Já me contaram.

- Terei de agradecer-lhe pela confusão que arranjou - continuou Ingrior em tom de gracejo, tentando obter uma reação do irmão. - Graças a ela, vendi todas as minhas peças e recebi muitas encomendas. Estou a pensar em chamar mais uma rapariga para ajudar-me. O que é que me dizes?

Throst encolheu os ombros, obviamente desatento.

- Faz o que achares melhor!

E, de novo, o silêncio instalou-se. Fiquei surpreendida quando ele o quebrou:

- O Bjorn levou o meu punhal?

Ingrior franziu o sobrolho, atrevendo-se a perguntar:

- É por causa do Bjorn que estás apreensivo? Ele está bem preparado!

Os filhos de Thorgrim haviam feito as pazes na manhã seguinte à discussão violenta que todos presenciamos. Bjorn não guardara ressentimentos, mas Throst ainda não se perdoara pela sua dureza. Talvez por isso tivesse entregue ao irmão o punhal que o pai lhe oferecera na sua prova de iniciação e do qual nunca se separava. Sem erguer os olhos da malga, replicou:

- Não duvido! Mas não posso deixar de sentir-me contrariado por não ter podido acompanhá-lo. É a primeira vez que o nosso irmão presta provas! Durante anos, eu nunca falhei uma caçada... E logo nesta...

- Tu não podes dividir-te em dois, mano! - revidou Ingrior.

- Acho que está na altura de fazeres uma pausa. Estás exausto! Precisas de descansar...

- Eu estou bem - cortou Throst, num tom que matava o assunto.

- O que te preocupa, afinal? - insistiu Ingrior, sem se importar com a sua resistência. - Sabes que eu não me calarei enquanto não descobrir, por isso é melhor que fales de uma vez!

Esperei que Throst resmungasse, porém, ele sorriu levemente. Esticou as costas e respirou fundo antes de responder:

- Os Vândalos estão a agitar as fronteiras do Steinarr. Os ataques são constantes e já houve baixas... Esta tarde procurei o Gunnulf para discutirmos o assunto.

A irmã deixou escapar uma interjeição de desprezo, mastigando:

- E decerto ele disse que os Vândalos lhe fariam um favor se matassem o Steinarr!

- O Gunnulf e o Steinarr podem discordar em muitas questões, mas o nosso primo não é imprudente - objetou Throst com o sobrolho carregado. - Sabe perfeitamente que uma ameaça à Terra dos Carvalhos é também uma ameaça à Terra Antiga. Amanhã organizaremos um grupo para ajudar os nossos vizinhos a arrasar esses animais.

O desconforto de Ingrior revelou-me que a idéia não lhe agradava.

- Aposto que tu serás o líder desse grupo!

- E quem mais consegue chegar perto do Steinarr? As suas relações com o Gunnulf estão cada dia piores.

- Não é, certamente, por culpa do Steinarr!

- Por favor, Ingrior! - Desta vez, a voz de Throst soou impaciente e irritada. - Assim é impossível conversarmos! Eu aceito os teus sentimentos pelo Gunnulf, mas não essa intransigência quando se trata dos assuntos da comunidade. Ele é o nosso líder e devemos-lhe obediência e respeito! - Ergueu-se bruscamente. - Vou deitar-me. Amanhã partirei cedo e não sei quando regressarei.

O meu coração afundou-se num pântano de tristeza. Eu sentia vontade de confortar os dois irmãos, mas o instinto manteve-me ao lado de Ingrior. Apertei as suas mãos entre as minhas e amparei a lágrima solitária que lhe escorria pelo rosto. Não demorou muito para que a minha amiga me brindasse com um sorriso triste.

- Deves pensar que nós somos cruéis por falarmos diante de ti de coisas que não entendes e de pessoas que não conheces. O homem que mencionamos é o mais poderoso dos chefes vikings. A região onde vive chama-se Terra dos Carvalhos e faz fronteira com a Terra Antiga e o território dos Vândalos. O Steinarr possui mais propriedades e homens do que o Gunnulf e tem idéias definidas acerca do futuro do nosso povo. Por ele, todos os clãs deviam unir-se e formar um só reino, com um único rei. Defende que, assim como estamos, expomos as nossas fraquezas e comportamo-nos como animais, guerreando futilmente por um pedaço de terra. Mas não é só entre os nossos que o Steinarr defende a paz. Ele acredita que é possível fazer a paz com outros povos... Até com o teu povo!

Os olhos de Ingrior brilhavam. A sua admiração por aquele homem era mais do que evidente. A voz limpa mudou do contentamento para o desprezo ao continuar:

- É óbvio que estas idéias de paz e união irritam a besta, que nada mais deseja senão a guerra e a destruição! Está longe do entendimento do Gunnulf que um homem com os recursos do Steinarr não avance contra os outros povos, como ele próprio faz, e os domine pela força. O Gunnulf acusa o Steinarr de fraqueza e cobardia. Desde crianças que os dois não se suportam, e o tempo abriu um fosso insuperável entre eles. Se não fosse pela interferência de homens equilibrados como o Throst e o Krum, acredito que já teria havido um banho de sangue dentro do nosso povo, para regozijo dos nossos inimigos.

Mas por que era o Throst o mediador dessa briga? Ingrior não me manteve na expectativa:

- Não julgues pelo que eu disse que o Steinarr é algum fracalhote enfezado! Ele é um homem da estatura do Gunnulf, um excelente guerreiro e um cavaleiro exímio. A sua única fraqueza é a água.

Há muitos anos, quando eu ainda era uma criança e os clãs não estavam de costas viradas, o Steinarr sofreu um acidente durante o degelo. Quando atravessava o rio no trenó, a parte mais fina do gelo quebrou-se. O Throst estava por perto. Ouviu os gritos, correu em seu socorro e salvou-lhe a vida. Como prova de gratidão, o Steinarr convidou-o para conhecer a sua aldeia e a sua casa. Desde então, apesar de viverem em lados opostos, são como irmãos. E eu sei que ergueu a voz bem alto para que Throst a escutasse - apesar de o meu irmão não o admitir, possui as mesmas aspirações e ambições que o Steinarr. O filho de Thorgrim também deseja ver o seu povo unido e a viver em paz com os restantes povos. Contudo, teima em manter-se ao lado de um homem que representa tudo aquilo que ele abomina.

- Eu não sou um traidor, Ingrior!

O rugido de Throst arrepiou-me. Ingrior fechou os olhos e suspirou, murmurando tão baixo que só o meu coração a escutou:

- Tu não és... Mas o Gunnulf é! E um dia sentirás isso na pele... Rezo para que vejas a luz, antes que seja tarde de mais!

Os rapazes espalharam-se em grupos pela floresta. Quando a noite caiu, montaram vários abrigos dispersos e divertiram-se a partilhar as peripécias do dia de caça. A conversa estava tão animada que poucos cederam ao sono. Os adultos deixaram os jovens gabarolas entregues às descrições inflamadas das suas façanhas e foram descansar.

Eu não conhecia os rostos que rodeavam a fogueira, mas pertenciam a homens feitos, da idade de Styrr, à exceção de dois, tão novos como Bjorn. A sua conversa era animada e o calor da fogueira tão agradável que senti vontade de me sentar perto deles e ouvir as suas histórias. Todavia, eu não estava ali para isso, e a floresta abriu-me os seus braços para desvendar o segredo.

Eram dezenas e moviam-se como gatos pardos, silenciosos como a morte que lhes brilhava no olhar. Vestiam-se como os Vikings, tinham estaturas e semblantes parecidos, mas eu sabia que não eram Vikings. Tentei recuar para avisar os jovens incautos e inexperientes, mas estava presa à imagem dos homens que avançavam sobre mim, que me transpunham e deixavam para trás...

Acordei alagada em suor e a tremer de frio, como sempre acontecia quando tinha uma Visão. O terror que me fustigava era tamanho, que impedia os movimentos. Caí assim que pousei os pés no chão.

Arrastei-me até Throst, ignorando os protestos do meu corpo, que demorava a recuperar a energia. Apesar de as minhas premonições habitualmente revelarem o futuro, não havia tempo a perder. Uma hesitação podia significar a morte da juventude da Terra Antiga, numa catástrofe nunca antes vista ou imaginada. Throst ergueu-se mal o sacudi.

- Pequena? O que foi que aconteceu?

Ingrior acordou e aproximou-se. Trygve começou a chorar, e Jodis correu a acudir-lhe.

Eu esbracejava, esforçando-me por alertar Throst. Dei-me conta de que, mesmo que me entendesse, ele pensaria que eu enlouquecera. De repente, ouvi a voz trêmula e engasgada de Ingrior:

- Bjorn... O nosso Bjorn...

Fitei-a e encontrei-a sem cor. Ela compreendera-me.

- O que se passa Ingrior? - questionou Throst apreensivo.

- A Pequena diz que garotos vão ser atacados por muitos guerreiros.

A expressão da minha amiga dividia-se entre o desespero e a súplica. A testa de Throst franziu-se ao encarar-me. Todavia, a sua pergunta foi dirigida à irmã:

- Isso é possível?

- Ela tem o poder de ver! - respondeu-lhe Ingrior, como se me conhecesse melhor do que eu própria me conhecia.

- Quando, Pequena? - As mãos fortes do chefe viking pousaram nos meus ombros, e os seus olhos azuis cintilaram com um brilho de feroz determinação. - Quanto tempo me resta?

Neguei com a cabeça, encolhendo os ombros com pesar. Eu não sabia. No mesmo instante, Throst agarrou na sua espada e correu para a porta, gritando para a irmã:

- Sopra a trompa e vai ao encontro dos homens.

Havia guerreiros por perto que o seguiriam em breve, mas, à velocidade com que Throst se lançava no desconhecido, chegariam muito depois dele. Enquanto o som ensurdecedor da trompa de alarme acordava todas as almas da aldeia, eu montei no cavalo que Throst me destinara. O robusto e inteligente animal não me falharia! A pequena coruja branca surgiu alvoroçada, piando aflitivamente como se me desafiasse a acompanhá-la. E eu não hesitei.

À luz do archote, ainda tive um vislumbre do rosto pálido e incrédulo de Ingrior, assustada por me ver galopar no encalço do irmão. Depois, pulei a cerca e concentrei-me em evitar os ramos aguçados das árvores, guiando o cavalo atrás da coruja, por entre a escuridão. Nem me apercebi de como era ridículo lançar-me contra um grupo de guerreiros armados até aos dentes. O meu instinto apressava-me e não tardei a escutar apelos sonoros, vindos do coração da floresta, provenientes das cornetas dos Vikings.

Perdi a noção do tempo. Já não sabia se era eu quem orientava o cavalo, se a coruja, se uma entidade superior que incentivava o animal a avançar às cegas, mas com firmeza, de encontro ao desconhecido. De súbito, ouvi gritos e o som inconfundível do embate de espadas. A chama ainda viva da fogueira iluminou a desolação de um pequeno acampamento. Num espaço exíguo, Throst e dois companheiros enfrentavam os seus inimigos ancestrais; os cobardes que atacavam crianças a coberto da noite. No chão, sem vida, estavam os jovens que a Visão me revelara. Eu chegara tarde de mais!

A coruja voou baixo sobre os destroços e desapareceu por entre as árvores sombrias. O medo atingiu-me como uma aragem gelada, mas não permiti que se instalasse no meu espírito. Levei as mãos ao peito e encontrei a pedra azul, pulsando com a força do meu coração. Parei de respirar o odor da carne suada e morta, o fumo da madeira queimada, o cheiro do ódio e do horror. Deixei de ouvir os gritos inflamados e o estridor das espadas. Concentrei toda a minha atenção na energia que alimentava o ar, até a penumbra se transformar numa luminosidade radiosa. Então, a força dos Elementos abateu-se sobre mim, e a magia inundou-me o sangue.

Throst acabara de matar um Vândalo quando me viu. O seu rosto, corado pelo esforço, fez-se branco de surpresa e susto. A distração foi-lhe fatal. Nas suas costas, um inimigo avançou de espada erguida sobre a cabeça loura e altiva.

- Throst! - apelei instintivamente, com todo o ardor.

Em vez de se defender, ele quedou-se petrificado. No instante em que o metal ia ceifar-lhe a vida, uma lufada de vento trespassou o Vândalo, arrancando-lhe a arma da mão e arremessando-o contra uma árvore. Quando o corpo grande e pesado tentou erguer-se do solo enlameado, Throst reagiu finalmente, saciando a fome de vingança da sua espada.

Mais Vândalos chegavam, e eu não hesitei em usar os meus poderes. Os paus que alimentavam a fogueira voavam sobre os inimigos, incendiando-lhes as roupas. As armas escapavam-se-lhes das mãos, deixando-os indefesos. O chão fugia-lhes dos pés. Os ramos das árvores dobravam-se para açoitá-los. E os seus movimentos ferozes tornavam-se trôpegos, enquanto a força lhes era sugada para longe da vontade.

Assustei-me quando um guerreiro tentou alcançar-me, mas Throst salvou-me, arremessando-lhe um machado. O homem tombou a dois passos do meu cavalo, com a lâmina enterrada na cabeça; uma visão que, há bem pouco tempo, teria sido suficiente para que eu desfalecesse.

Apesar de tudo, a vantagem que eu oferecia aos Vikings não durou muito. O cansaço começava a quebrar a sua destreza e o meu vigor. Um dos companheiros de Throst sucumbiu, trespassado por uma espada. Quando os nossos esforços já se adivinhavam vãos contra o enxame de inimigos, eis que um lobo gigante surgiu de entre as árvores, rosnando furiosamente. Tive de piscar os olhos para reconhecer Sven. No instante seguinte, uma saraivada de Vikings despenhou-se em cima dos Vândalos e a batalha reacendeu-se.

A confusão de homens que se batiam e homens que fugiam consumiu a última réstia da minha força. Senti a vista turvar-se, enquanto as luzes dos pequenos fogos que me incendiavam a mente rodopiavam ao meu redor. Eu sabia que ia cair do cavalo, mas não me importei. Depois pensaria nisso. Agora, tinha de dormir...

Os corpos jaziam sem vida, espalhados pelo pântano de lama e sangue em que o solo da floresta se transformara. Enquanto os Vikings se atarefavam a prestar socorro aos seus feridos, uma estranha figura movia-se por entre os cadáveres destroçados dos Vândalos. Era uma mulher jovem, elegante e bela, vestida de negro, com longos cabelos louros e olhos de um azul profundo. Parava junto de cada um dos guerreiros e fechava-lhes os olhos com um toque suave dos seus dedos delicados, ao mesmo tempo que palavras silenciosas deslizavam dos seus lábios rosados...

- Pequena... Pequena, por favor...

A imagem da mulher desvaneceu-se, qual fumaça empurrada pelo vento. Eu abri os olhos e encontrei o olhar de Throst, atormentado pelo medo. Voltei a fechá-los e ouvi a sua voz, vinda de muito longe:

- Ela tornou a desmaiar...

- Está a recuperar a energia - respondeu outra voz que instintivamente me provocou pele de galinha. - É normal. Leva-a para casa.

Casa? Eu não podia ir para casa! Ainda tinha muito trabalho para fazer!

Forcei-me a despertar e vislumbrei o rosto preocupado de Throst... E o rosto inexpressivo do feiticeiro Sigarr. A mão que tocara na minha face ainda se afastava e vi de relance a tatuagem que lhe cercava o pulso. Era uma serpente alada, entrelaçada no próprio corpo... Não! Era um dragão... Com a Lua sobre a cabeça? O que significava aquilo?

- Bravo jovem! - exclamou ele num tom que me envolveu e esvaziou a mente. - A tua ajuda seria apreciada, se não significasse um dispêndio de força maior do que aquele que podes suportar. És-nos mais útil viva do que morta! Fecha os olhos e descansa filha da Grande Ilha...

- Ela está a acordar!

- Pequena... - Uma voz meiga e suave sacudia-me a consciência. - Como te sentes?

Eu sentia-me bem! Dir-se-ia que dormira durante estações e despertava numa cama de conforto e felicidade. Apetecia-me espreguiçar e descer as escadas da Casa Grande a correr, para tomar um farto pequeno-almoço na companhia barulhenta e divertida dos meus irmãos. Bretta resmungaria por causa do alarido. A minha mãe sorriria complacentemente. O tempo quente convidaria a um mergulho no lago...

- Pequena...

Abri os olhos e observei os seis rostos que se debruçavam sobre mim: Ingrior, Bjorn, Styrr, Katla, Jodis... E Throst.

- Afastem-se um pouco - apelou Ingrior. - Deixem-na respirar... Levei algum tempo a habituar-me à realidade; a convencer-me de que esta era a minha realidade. Junto do telhado de colmo, a pequena coruja branca dormitava serenamente. Aos poucos, eu recordei o que acontecera e lancei os meus braços em redor do pescoço de Bjorn. Sem se importar em exteriorizar as suas emoções, o rapaz começou a chorar, enquanto me estreitava com força.

- Foi horrível, Pequena! - murmurou entre soluços. - Eles saíram da escuridão e estavam por toda a parte...

Por cima das outras cabeças, Throst afirmou calma e ponderadamente:

- Os Vândalos encontraram uma brecha na nossa defesa e deleitaram-se com as presas que surpreenderam. Se não fosses tu, Pequena, todos os nossos jovens teriam perecido.

- A trompa despertou-nos - explicou Styrr, mostrando-se forte, apesar de empalidecer com a simples recordação. - Ficamos alerta e, quando os Vândalos nos caíram em cima, estávamos prontos para recebê-los. O Bjorn comportou-se como um grande guerreiro! Estou orgulhoso dele!

- Nós também! - asseverou Throst. - E de ti! E de todos os que travaram esta batalha cega!

- Throst... - As atenções voltaram-se para Bjorn, que devolvia o punhal ao irmão.

O chefe viking trincou o lábio para conter a emoção. Apertou as mãos do mais novo entre as suas, replicando roucamente:

- Fica com ele...

- Não - retrucou Bjorn, solene e decidido. - O nosso pai ofereceu-to a ti, e tu deves oferecê-lo ao teu primogênito. Foi uma honra empunhá-lo na minha primeira batalha! Salvou-me a vida... Tu salvaste-me a vida, mano!

Throst abraçou-o com ardor, e o jovem sucumbiu às lágrimas. As mulheres soluçaram, enquanto o próprio Styrr pigarreava para disfarçar a comoção. Eu suspirei o conforto de saber que, pelo menos na casa que me acolhia, se chorava de alívio e não de agonia.

- O valor de um homem não se mede apenas pela força do seu corpo ou pela eficácia da sua arma - declarou Throst, fixando o irmão. - Mais importante do que tudo isso é a nobreza do seu coração. Eu não preciso do resultado de nenhuma prova de iniciação para reconhecer o teu valor, Bjorn. Tu já és um homem! Um grande homem! És o orgulho desta família!

O rosto do jovem iluminou a casa. Para ele, Throst era muito mais do que um irmão. Era um pai, um ídolo... Tudo o que ele desejava ser quando crescesse! E o seu elogio representava a maior das recompensas, depois da provação por que passara.

Quando as emoções acalmaram, Ingrior preparou-me um chá de ervas curativas, e eu bebi-o com prazer, sentindo a força fluir pelo corpo. Throst distribuiu tarefas pelos restantes e sentou-se ao meu lado, começando com suavidade e cautela:

- Muitos morreram esta noite, principalmente rapazes da idade do Bjorn, que não estavam preparados para se defender. Mas podia ter sido pior! O alarme da trompa serviu de aviso aos jovens, que resistiram como puderam até à chegada dos reforços. A maior desgraça foi a que presenciaste... E, se tu não me tivesses seguido, eu também não estaria aqui! - A sua mão enlaçou a minha com carinho. - O que tu fizeste foi... Eu nem tenho palavras!

Apertei-lhe a mão, suplicando que não continuasse. O que eu fizera fora muito perigoso, e tinha a certeza de que iria sofrer as conseqüências da minha ousadia. Se eu podia contar com o silêncio de Throst, o mesmo não sucedia em relação aos outros homens, que queriam ouvir o seu nome imortalizado em todas as histórias.

- Não receies Pequena! - sossegou-me ele, decifrando o meu medo. - Os guerreiros que assistiram ao teu desempenho prometeram silêncio e não quebrarão o juramento. Todos te devemos a vida e todos ta entregaremos se dela necessitares.

Isto era uma surpresa! Throst vira-me a utilizar a magia, que tanto abominava... Porém, não me censurava e até me elogiava! Senti a esperança renascer e encher-me o peito de calor.

- Se continuares assim, Pequena - intrometeu-se Ingrior, sorrindo carinhosamente -, em breve terás o exército viking às tuas ordens!

E os feridos?

- O Sigarr encarregou-se deles - respondeu Throst.

Antes que eu pudesse sobressaltar-me com as recordações que me invadiam, Ingrior replicou azedamente:

- Esse bruxo só utiliza o seu poder em proveito próprio! Podia ter-nos avisado...

- Não sejas tão rápida a julgar - volveu o irmão, no mesmo tom.

- Quem te garante que o Sigarr sabia o que ia acontecer?

- Estás outra vez a defender esse bruxo maldito!

- Queres que defenda o outro bruxo que nos renegou?

- O Sigarr não está do teu lado! - retrucou Ingrior, num tom de aceso aviso. - Está do lado do Gunnulf, e também só lá permanecerá enquanto ele lhe servir os intentos!

Throst ergueu uma mão para controlar o arrebatamento da irmã.

- Chega Ingrior! Estamos a assustar a Pequena com esta discussão sem sentido!

Era verdade! Mas não pela razão que ele imaginava. As minhas suspeitas acabavam de confirmar-se. Existia um feiticeiro na vida dos filhos de Thorgrim. Alguém tão chegado que lhes legara o poder no sangue. E o ressentimento de Throst pelos Seres Superiores e a sua Arte fora causado pelo abandono...

- Há algo que preciso saber... - O apelo de Throst cortou-me o raciocínio. - Na floresta, quando me alcançaste... - Hesitou trêmulo e inseguro. - Tu chamaste o meu nome! Eu ouvi-o claramente! Terei imaginado?

- Acalma-te, mano! - acudiu Ingrior mansamente, perante a sua ansiedade e a minha confusão. - Deixa a Pequena pensar. É possível que tenhas recuperado a voz sem que te apercebesses, querida?

Olhei de um para o outro, sentindo o coração a martelar-me o peito. Eu chamara por Throst? Certamente berrara o seu nome com a voz da minha mente, diante da colossal ameaça. Mas ele não podia ter-me escutado! Então, como...? Respirei fundo e decidi arriscar. Forcei a garganta, e o som saiu claro e limpo. Em sobressalto, levei as mãos aos lábios e comecei a tiritar sem controlo. Eu recuperara a voz!!! Quando acontecera? Desde quando podia eu falar?

Bjorn apareceu a gritar, vindo do fundo da casa:

- Ela falou? A Pequena falou?

Styrr e as criadas seguiram-no, misturando exclamações de encanto com sorrisos de sincera congratulação. Ingrior abraçou-me e desatou a chorar. Throst tinha o olhar preso em mim, mas eu não me atrevi a encará-lo. Destapei a boca e voltei a tentar. Lá estava, a minha voz, tão arisca e fresca como sempre fora!

- Eu posso falar avó! Berchan... Stefan...

Agradeci à Deusa, a Cristo e a Thor. Sinceramente, nesse instante não me interessava qual deles governava o destino dos Homens. Enquanto eu divagava, ainda vacilante, eles escutavam em silêncio, sem entenderem uma palavra da minha língua materna. Por fim, engoli em seco e experimentei articular os sons que só a minha mente conhecia:

- Quero agradecer... A todos vós... O que tendes feito... Por mim... Por entre risos e lágrimas, recebi abraços dos dois rapazes e de Ingrior. Katla e Jodis observavam maravilhadas. Throst era o único que não sorria. Parecia que ainda não acreditava. Ingrior foi a primeira a reagir, limpando os olhos e exclamando entusiasmada:

- Agora já não temos de chamar-te Pequena! Qual é o teu verdadeiro nome?

Há pouco tempo, esta simples pergunta ter-me-ia deixado em pânico, temendo que o meu nome pudesse levar à revelação da minha identidade. Agora, porém, esses receios pareciam-me ridículos quando fixava o olhar dos filhos de Thorgrim. Todos eles haviam conquistado o meu afeto. A minha avó não recomendara que eu seguisse o coração?

- Cate...

O que parecia fácil, afinal não era! Eu não estava apenas a dizer-lhes o meu nome. Estava a abrir a minha alma, a entregar-lhes a minha confiança.

- Lyn... Entreolharam-se.

- Catalin?

A interpretação trapalhona de Bjorn ganhou o meu sorriso. Enchi o peito de ar e repeti mais segura:

- Catelyn... O meu nome... É Catelyn! Mas... Os meus irmãos... A comoção deu-me um nó na garganta. De imediato, Ingrior cingiu-me nos seus braços e replicou de mansinho:

- Não te esforces, Peque... Catelyn... Disse bem? - Sorriu orgulhosa do seu desempenho. - O esforço pode ser perigoso! Foi muito tempo...

Demasiado tempo! Poderia ela imaginar o quanto eu sofrera por não poder falar?

- Cat - completei, superando o tremor. - Os meus irmãos chamam-me Cat...

Encontrei o olhar de Throst, e o meu coração apertou-se ao constatar a sua perturbação. Sem uma palavra, ele voltou-nos as costas e saiu. Os rapazes ficaram a olhar para a porta, surpreendidos pela atitude do dono da casa. De imediato, Ingrior assumiu a liderança:

- Bem, meninas... Vamos trabalhar. Há muito para fazer. Rapazes ide ajudar na limpeza do estábulo.

- Mas...

- Nada de protestos, Bjorn! Ainda estás aqui?

Eu não conseguia desviar os olhos da porta. Por que Throst partira? Para onde fora? Tê-lo-ia incomodado com a alusão aos meus irmãos? Importar-se-ia com o meu desgosto?

Ingrior apercebeu-se do meu dilema e murmurou-me ao ouvido:

- Se já recuperaste as forças, por que não vais atrás dele? Comecei a gesticular enquanto falava. O hábito era muito forte.

- E se ficar zangado...?

- Vai!

Sem querer, os meus pés deslizaram para dentro das botas. Agarrei na manta e embrulhei-me nela. Testei o equilíbrio. Poderia estar melhor... Se eu não estivesse prestes a enfrentar a fonte da minha perturbação.

Throst não fora longe. Encostara-se à cerca, com as mãos entrelaçadas e o olhar preso no vazio. Não se moveu quando parei ao seu lado. Toquei-lhe no braço quase inocentemente, confusa, à deriva num mar de emoções violentas. Mesmo falar parecia-me algo de novo e complicado. A minha pronúncia era muito desajeitada. As palavras não fluíam com o mesmo som de quando as pensava.

- Fiz ou disse... Algo que te desgostou?

Quando ele me encarou, o meu coração contraiu-se ao ver que os olhos azuis cintilavam úmidos e inchados. Todavia, desta vez, o chefe viking não parecia incomodado em revelar a própria sensibilidade. A sua perturbação tinha outra causa.

- Diz o meu nome!

Pisquei os olhos e sacudi a cabeça, sem acreditar no que acabara de ouvir. Mas Throst repetiu:

- Diz o meu nome, por favor...

Um nó invisível estrangulou-me. Perdi o fôlego. Vi tudo a rodar, enquanto as recordações me transportavam até à noite em que Fiona nascera. Eu já vivera este momento! E, como todos os outros revelados nas Visões, não pudera evitá-lo.

Ignorando o meu sobressalto, Throst segurou-me as mãos e suplicou:

- Pequena...

Toquei-lhe nos lábios para que ele compreendesse que eu necessitava de recompor-me. Quantas vezes me imaginara a murmurar o seu nome? Tantas... Em sonhos que nem me atrevia a recordar!

- Throst...

Falei muito baixo, mas a sua expressão provou que me escutara. Apertou-me as mãos junto do peito e aproximou-se, até o calor da sua respiração acariciar as minhas faces.

- Outra vez...

Não contive um meio sorriso, que estremeceu de nervosismo. O momento era tão constrangedor quanto excitante. Mergulhei no seu olhar e sussurrei com redobrada convicção:

- Throst...

Os seus braços envolveram-me, e eu mal contive um suspiro quando ele afundou o rosto nos meus caracóis negros e deslizou as mãos pelas minhas costas, enterrando os dedos na manta de lã.

- Outra vez!

Era óbvio que um de nós devia quebrar o encantamento, antes que fosse tarde. Mas fugir era a última coisa que eu desejava! Dei por mim a pousar as mãos no peito masculino, sobre a túnica macia e quente, e a acariciá-lo como se tentasse segurar as sensações nas pontas dos dedos. Na minha mente flutuava a lembrança dos nossos corpos unidos...

- Só se disseres o meu! - revidei instintivamente, sustentando o seu olhar sem receio nem vergonha, consciente de que estávamos prestes a fazer uma loucura.

Throst inclinou-se, e eu acreditei que fosse beijar-me. Porém, encostou apenas a sua face à minha, tal como fizera durante a viagem até à Terra Antiga, quando me tocara pela primeira vez.

- Catelyn... - murmurou roucamente. - Diz o meu nome, Catelyn!

Os seus lábios roçaram a minha pele. O contacto com a barba rija provocou-me arrepios. Estremeci e fechei os olhos, enquanto entrelaçava os dedos nas ondas bravias dos seus cabelos e o puxava para mais perto. Se Throst não me beijasse, eu morreria!

- Throst...

Aquelas pequenas carícias enlouqueciam-me, e eu já nem sabia a quem pertencia o coração que me martelava o peito. Ele ergueu-me cuidadosamente, até os meus pés repousarem numa trave da cerca. Fiquei à sua altura e não contive o riso. Throst sorriu de volta e prendeu-me com o corpo poderoso, para que eu não caísse, enquanto me envolvia o rosto com as mãos. Beijou-me a testa e os olhos e tornou a encarar-me. Já não sorria.

Lentamente, eu comecei a acariciá-lo como há muito sonhava, memorizando cada linha da sua expressão. Throst arfou, esforçando-se por recuperar o fôlego. Quando repousou o rosto no meu, correspondi pressionando a sua pele com os lábios, beijando-o devagar e adorando o contacto. Sentia os seus lábios deliciosamente frescos na minha face. Estaria ele a apreciar estes carinhos tanto quanto eu?

- Catelyn...

- Sim, Throst?

- Beija-me, Catelyn... Por favor!

Era a primeira vez que eu tomava a iniciativa, e gostei da sensação. Ele estremeceu quando os nossos lábios se roçaram. A sua resistência desmoronou-se num piscar de olhos. Soltou um ronco selvagem e apossou-se da minha boca com uma fúria apaixonada. Correspondi com igual fome, sem quaisquer hesitações ou remorsos, ansiando pelo seu toque.

Foi Throst quem quebrou o beijo. Escondeu o rosto nos meus cabelos, respirando com dificuldade. As suas mãos tremiam quando me ajudou a descer da cerca.

- Desculpa... - arquejou dolorosamente. - Eu não posso! Cambaleei confusa e desamparada, quando perdi o aconchego e a segurança dos seus braços. Throst recuou um, dois, três passos, com o semblante torturado pela frustração. O seu peito agitava-se em agonia, e o seu corpo estremecia como se fustigado por uma tempestade.

- Perdoa-me...

Sem aviso, desatou a correr para o interior da noite. Eu fiquei no mesmo sítio, mastigando a angústia e a desilusão. Quem era eu, para merecer o afeto do senhor da Aldeia do Povo? Throst jamais quebraria a palavra que dera a Gunnulf! Senti-me esmagada pelo peso da solidão. Todos aqueles a quem me entregava eram arrancados do mundo ou viravam-me as costas. Agarrei na pedra de Aranwen e surpreendi-me ao senti-la pulsar com vida própria.

- Onde estás avó? - apelei à escuridão. - Por que me abandonaste quando eu mais preciso de ti? Será que vale a pena continuar? Eu já não tenho força...

A porta abriu-se e, em menos de nada, o abraço carinhoso de Ingrior envolvia-me e a sua voz doce acariciava-me os sentidos:

- O Throst voltará Catelyn! Ele pode fugir dos seus sentimentos, mas não poderá esconder-se para sempre. Há muito que está previsto... Nós duas temos de conversar, mas não agora! Estamos todos cansados. Vem... Preparei um grande jantar. Vamos festejar o regresso da tua voz!

 

O luto e a tristeza assombraram a rotina das famílias da Terra Antiga. Numa sociedade construída sobre a força e a coragem dos jovens guerreiros, as mortes inglórias de mais de uma dezena de rapazes foram um golpe rude e brutal, para o qual ninguém estava preparado. O desespero corroía principalmente aqueles que, apesar de não terem tombado, o desejassem, por terem ficado incapacitados para o desempenho da sua arte, desprovidos da destreza e da força necessárias para se tornarem mais do que um fardo para os seus familiares e a comunidade.

Gunnulf e Throst, como chefes de clã e líderes das aldeias, visitaram todas as famílias e prestaram-lhes a sua simpatia. Eu mantive-me ao lado de Ingrior, tentando passar despercebida, mas com fracos resultados. É que, apesar de as habilidades que eu utilizara durante a batalha não terem sido delatadas, todos sabiam que eu estivera presente. Descrições de como combatera a cavalo, de espada em punho, derrubando uma horda de Vândalos fortemente armados, foram repetidas até à exaustão.

Percebi finalmente o quanto era estimada na Aldeia do Povo. Os guerreiros que haviam combatido na floresta exaltavam a minha coragem e declaravam a sua admiração. Já ninguém pensava em mim como ”a escrava estrangeira que Throst trouxera para tornar sua amante”. Eu ganhara o respeito do povo como curandeira... E como guerreira!

Throst regressou tarde. Não dormia em casa desde a noite do ataque dos Vândalos. Ingrior esperou-o de pé. Todos os outros se encontravam na aldeia; Jodis e Katla com familiares, e Bjorn e Styrr em casa dos pais do último. Eu ainda não conseguira adormecer, atormentada pela preocupação, mas simulava o sono. Não me apetecera conversar, e Ingrior respeitara o meu silêncio. Ambas sabíamos que havia muito por revelar e desejávamos abrir o coração. Porém, eu entendia que ela quisesse a aprovação do irmão antes de tomar a iniciativa. O senhor da terra sentou-se à mesa para comer, e a irmã acompanhou-o. Eu continuei a respirar pausadamente. Passado pouco tempo, Ingrior perguntou num sussurro:

- O que se passou entre ti e a Catelyn?

Sofri um sobressalto que quase me denunciou. Como era hábito, Throst não respondeu logo, e Ingrior insistiu:

- Deixaste-a num farrapo quando partiste! O que foi que lhe disseste?

- Eu não quero falar acerca disso! - ripostou ele secamente.

- Perdeste a cabeça, não foi? - forçou ela sem piedade. - Deixaste o teu coração falar mais alto e assustaste-te quando percebeste que estavas a quebrar a promessa ridícula que fizeste ao Gunnulf. Estou enganada?

Throst ignorou-a, e Ingrior continuou:

- Quando é que vais admitir os teus sentimentos pela Catelyn? Quando for tarde de mais? Queres viver uma vida de infelicidade?

- Quero fazer o que está correto! - revidou o irmão num tom irritado. - Assumi um compromisso há catorze anos. Não posso voltar atrás!

- Então, faz com que seja a Halldora a desistir!

Depois de uma breve hesitação, Throst prosseguiu num tom estranho e reprimido:

- A Halldora jamais desistirá. Estivemos juntos... Continua a suplicar o meu perdão e, apesar de tudo, eu ainda gosto dela. Tenho de reconhecer que é uma Viking cheia de força e coragem; uma mulher que pensa com o coração e reage por instinto. Sentiu-se ameaçada e tentou eliminar a ameaça. Não concordo com o que ela fez, mas admiro a sua determinação. O meu futuro é ao seu lado. Não posso alterar isso! Não quero alterar isso!

Fui invadida por um desconforto doloroso. Forcei-me a manter quieta para não perder uma palavra. Ingrior não demorou a reagir:

- A Catelyn não é uma mulher normal, nem uma simples curandeira ou vidente. É muito mais e já o provou. Eu reconheci o seu poder assim que a vi. E tu também! Por isso não consegues afastar-te. Deveria ser fácil, não é verdade? Se amas a Halldora...

- Ingrior...

- Ela está no teu sangue, Throst, e a cicatriz que partilhais comprova-o! Vós estais destinados! De nada te valerá lutares contra isso! Podes ser teimoso e levar adiante o casamento com a Halldora, mas a vida encarregar-se-á de te juntar à Catelyn. Os semelhantes reconhecem-se! E ela já despertou a magia que vive em ti.

- Estás a passar dos limites! - cortou Throst, frio como gelo.

- Sabes perfeitamente o que eu penso desse assunto!

- Não podes continuar a negar aquilo que és!

Eu podia imaginar Ingrior forçando o irmão a encarar a tatuagem que lhe rodeava os pulsos - o dragão que fixava o Sol com o desafio no olhar. Escutei um alvoroço e percebi que Throst se levantara da mesa. A sua voz soou cortante como uma lâmina:

- Estás enganada! Eu não posso é assumir algo que não sou!

- Por quanto tempo continuarás a negar o nosso sangue?

- Eu nunca aceitarei esta maldição! Eu não pedi para ser marcado, Ingrior!

- Não será por ignorares o teu poder que ele desaparecerá!

- Mas que poder mulher? Eu não sou curandeiro nem vidente!

- Tu és um guerreiro sagrado! O Lobo escolheu-te e uniu-se a ti para te ajudar a cumprir a tua missão. Se negares isso, os deuses revoltar-se-ão e serás castigado.

- E qual é a minha missão, abençoada irmã?

- Unir o teu povo - volveu ela, sem se deixar abater pela ironia. - Unir todos os povos...

- E foi para concretizar essa nobre missão que o destino colocou a Pequena no meu caminho!

O sarcasmo de Throst provocou-me um calafrio. Ingrior retrucou sem hesitação:

- Foste tu que proferiste essas palavras e não eu!

- Basta, Ingrior! Sabes perfeitamente que não pode ser...

- A Catelyn ama-te, Throst!

A afirmação deixou-me sem ar e, por pouco, não saltei da cama para protestar contra o seu atrevimento. Mas o que se seguiu manteve-me suspensa:

- A Catelyn não me ama! Não pode amar-me! Depois do que eu fiz à sua terra, ao seu povo...

- Ela já te perdoou há muito, Throst! Teria interferido pelo bem da nossa família e do nosso povo, correndo tantos riscos, se assim não fosse? Não serás tu quem ainda não se perdoou?

- Eu nada fiz de que tenha de envergonhar-me...

- Sabes que isso não é verdade! De cada vez que a tua espada ceifa uma vida, numa batalha sem sentido, o teu coração sangra. Tu nasceste para unir, não para destruir!

- Eu nasci para servir o meu povo! Mesmo que a Catelyn sentisse o que tu dizes, o nosso amor seria impossível. Conheces as barreiras que nos separam.

- Todas as barreiras podem ser contornadas ou derrubadas! E tu tens a vontade e o poder para fazê-lo! Por que outra razão a trouxeste contigo, senão para sarar o passado?

- E por que não por vingança? - A voz de Throst tremia, denunciando a sua perturbação. - Porque a morte seria demasiado fácil! Porque queria que ela sentisse na pele a dor que eu senti quando perdi o meu pai!

Ele sabia quem eu era! Essa era a única explicação para o que acabara de dizer! Cravei as unhas na manta, mal contendo um gemido. Ingrior contestava:

- O teu coração nunca pensou assim, e a tua mente a muito que deixou de fazê-lo! A Catelyn jamais foi um objeto de vingança. Só podes estar a pretender enganar-te, porque não consegues enganar mais ninguém!

- Eu já admiti que trazer a Catelyn para a Terra Antiga foi um erro!

- Mas o coração não te deu alternativa! Abre os olhos, Throst! Pára de lutar contra ti próprio! A Catelyn já te perdoou! Chegou a altura de tu te perdoares e de perdoares aqueles que feriram o nosso povo. Vingança após vingança não é a resposta! Este ódio tem de acabar! E só pode finar com a força de um grande amor...

- Basta, Ingrior! - O ardor de Throst fez-me estremecer. - Estou cansado dos teus delírios! As pessoas não podem guiar-se pelo coração e esquecer a razão! Tu és um bom exemplo disso!

A casa ficou em silêncio. Aparentemente, Throst pretendera pôr fim à discussão atingindo a irmã num ponto fraco. Mas Ingrior não desistiu apesar de a sua voz soar ferida quando objetou:

- Eu não me arrependo do que fiz, nem do amor que vivi! Se tenho algo a lamentar, é o tempo que perdi a lutar contra os meus sentimentos. Eu teria sido feliz se o ódio não se intrometesse na minha vida!

Ouvi a cortina do quarto de Throst fechar-se bruscamente. Todavia, Ingrior ainda não terminara:

- Eu já não tenho força para combater a tua teimosia, o teu rancor e a tua cegueira, mano! O meu coração chora por ver-te semear a tua própria infelicidade. Nega o teu sangue, nega a tua força, nega a verdade da tua alma e do teu coração, mas não me peças para pactuar com a tua destruição. A Catelyn veio até nós com um propósito, e eu irei ajudá-la a persegui-lo. Se não lhe contares a verdade, eu contarei!

- E qual é a tua verdade? - A voz de Throst chispava de indignação. - Os rabiscos de um louco, num lugar amaldiçoado que provoca alucinações? Um bruxo que desprezou e abandonou a sua família humana? Uma infeliz que a sorte atraiçoou e que só busca um pouco de paz? Um povo que luta contra o frio, a fome e o desespero, todos os dias da sua miserável existência? Esta é a minha verdade, Ingrior! E eu não aceitarei outra!

- Então, não falarás com a Catelyn?

Interroguei-me se eles não escutariam o tambor que rufava dentro do meu peito. Após uma longa hesitação, Throst concluiu:

- Eu nada tenho para lhe dizer que ela não saiba já! Ingrior resmungou algo imperceptível, antes de retorquir:

- O que ela sabe não ouviu da tua boca. Se desejas que a Catelyn te perdoe, deves submeter-te ao seu julgamento! Ela tem o direito de conhecer a verdade... A tua verdade!

O silêncio esmagador foi a única resposta.

Não preguei olho toda a noite, remoendo cada pedaço de informação, encaixando peças num enigma que parecia infindável, soltando a imaginação ao encontro das respostas que fugiam do meu alcance.

Throst foi o primeiro a levantar-se e saiu sem proferir uma palavra. Ingrior despertou quase tão faladora como o irmão. Avisou-me que iria passar o dia na aldeia, levou Trygve consigo e deixou-me por conta da casa vazia. Eu sabia que a sua intenção era forçar-me a defrontar Throst. Mas, mesmo que assim não fosse eu estava mais do que decidida a fazê-lo.

Encontrei-o diante do celeiro, onde a luz do dia parecia mais viva. Trabalhava num pedaço de madeira que já tomava forma e seria a nova cama do sobrinho. Atara o cabelo com uma fita de pele, mas algumas madeixas rebeldes caíam-lhe sobre o rosto, sacudidas pela ferocidade dos seus movimentos. Recordei a primeira vez que o vira, na Enseada da Fortaleza, cavalgando no centro da batalha que mudaria o rumo da minha vida, poderoso e belo como um deus. Quando me sentei ao seu lado, ele continuou como se eu não existisse. Vacilei um breve instante, pois sabia que, uma vez que começasse, já não haveria retorno.

- Ontem ouvi-te a falar com a Ingrior.

As suas mãos pararam de mover o instrumento de corte, mas não me encarou. Recomeçou devagar, replicando num tom que já denunciava irritação:

- Não te ensinaram que é feio escutar as conversas alheias?

- Querias que eu viesse para a rua? Era impossível não ouvir os vossos gritos!

Throst encolheu os ombros e suspirou, resmungando mais para si próprio do que para mim:

- Sei que é inútil pedir-te que esqueças o que ouviste... Tão inútil como implorar à minha insensata irmã que fique quieta e calada; que não complique ainda mais as vidas de todos nós! Mulheres! Diga o que se disser, elas farão sempre o que querem!

- Esclarecer o passado não é uma teimosia ou um capricho!

- objetei com convicção. - É uma necessidade! Não queres saber...?

- Não! - atalhou ele bruscamente. - Vai-te embora, Catelyn! Deixa-me trabalhar em paz!

A sua intransigência começava a exasperar-me.

- Vais ter de me escutar, quer queiras, quer não! - insisti com ardor. - A Ingrior disse que eu vim para a Terra Antiga com um propósito. Eu não sei se isso é verdade... Mas é verdade que me foi designada uma missão. E acredito que as respostas de que necessito para a prosseguir se encontram na magia do vosso sangue.

Apesar de estar à espera de uma reação não muito boa, sobressaltei-me quando Throst arremessou o instrumento de corte pelo ar e me encarou, bufando de raiva:

- Será possível que ninguém me dê ouvidos? Quantas vezes terei de dizer que não quero ouvir falar de magia? Recuso-me a tomar parte no que quer que seja que se relacione com essa aberração!

Agora eu estava zangada! Ergui-me de um salto e enfrentei-o sem temor, colocando a palma da minha mão diante do seu nariz.

- Devo concluir que, para ti, o que aconteceu conosco foi uma aberração? Que, depois que me viste enfrentar os Vândalos, eu me transformei aos teus olhos numa criatura desprezível?

A minha rispidez fê-lo recuar. Throst respirou fundo, em busca do domínio perdido, e franziu o sobrolho, retorquindo numa voz alterada pela comoção:

- Eu não disse isso, Catelyn! Reconheço que existe magia boa e má. A Ingrior também possuiu algumas habilidades, se bem que nem se comparam com as tuas! Mas eu não pertenço a esse mundo! Não quero pactuar com tal loucura! Eu corto a mão, tu sangras e a minha irmã já sonha que nós iremos salvar o mundo... Sabes, melhor do que ninguém, o quanto és especial para mim. Mas o futuro que a Ingrior prevê para nós significaria a minha morte e, inevitavelmente, a tua. Até ela tem de admiti-lo! Eu jurei que desposaria a Halldora e não posso quebrar a minha palavra! Não quero quebrá-la! Raios! - praguejou, esmurrando com toda a força a parede do celeiro. - Por que cedi à tentação de trazer-te comigo? Por que não te deixei na tua terra?

Eu sabia que estava a trilhar um caminho perigoso; a desviar-me dos objetivos a que me propusera, caindo na discussão dos estranhos sentimentos que nos aproximavam e suplantavam. Todavia, dei por mim a argumentar:

- Porque a magia que vive em ti já te revelara o meu rosto e, apesar de não compreenderes o que estava diante dos teus olhos, não foste capaz de me virar as costas e de me entregar à morte. Acredita que não foste o único a experimentar a agonia do reconhecimento, Throst! Eu também a experimentei! Porém, não senti medo, ao contrário do que seria previsível. Mesmo agora, falando tão abertamente, eu não temo... Porque confio em ti! Porque sei que tu és um homem bom, destinado a grandes coisas.

A máscara de frieza, que ele tanto se esforçava por segurar, ruiu em pedaços. Abriu e fechou a boca, sem saber como enfrentar-me. A custo reuniu fôlego para contrapor:

- Como podes confiar em mim tão cegamente? Como podes... Depois de me teres visto a combater contra o teu povo? Depois de tudo por que eu te fiz passar...?

Tentei responder-lhe, mas concluí que não podia explicar-lhe algo que nem eu própria compreendia. Nenhuma razão me parecia suficiente para justificar a incoerente certeza que me movia. Contudo, talvez a solução estivesse muito perto, gravada na minha e na sua carne! Abri a mão e observei a cicatriz, ponderando:

- Eu começo a acreditar que tudo tem um propósito... De que outra forma podemos explicar isto? Se foi o destino ou um qualquer deus que nos uniu desta forma, pouco importa! Só sei que temos de descobrir o que pretendem de nós!

Throst afastou o cabelo do rosto, nervoso como um animal encurralado. Mal reconheci a sua voz quando declarou:

- Eu não sou o homem que tu pensas Catelyn! Sou apenas um guerreiro...

- Tu és muito mais do que um guerreiro! - ouvi-me refutar.

- Os desenhos nos teus pulsos ganham vida debaixo do meu olhar, e os Lobos Cinzentos falaram-me da tua missão...

Sem aviso, Throst segurou-me pelos ombros e sacudiu-me secamente, enquanto rosnava:

- Os desenhos nos meus pulsos são uma maldição; a herança de um traidor que renegou a própria família. A sua superioridade não lhe permitiu conviver conosco, criaturas inferiores! - A rudeza do seu escárnio deixou-me paralisada. - É ao meu pai e à sua família que eu devo tudo o que sou! E a única missão que tomei para mim foi a vingança contra o cobarde que o assassinou! Sabes do que eu estou a falar, Catelyn?

As suas palavras tiveram o impacto de um soco. De nada me valia negar, por isso enchi o peito e enfrentei-o, resoluta:

- A Anna contou-me acerca da batalha onde o teu pai pereceu...

- Eu não chamaria batalha à investida de uma poderosa força militar contra uma frota de comércio! - cortou, magoando-me com a intensidade feroz do seu olhar. - Não, eu não chamaria batalha ao massacre de dezenas de homens desprevenidos! Não foi só o meu pai que perdeu a vida naquele dia. Muitos familiares e amigos partilharam da sua sina. Desde então, o Sol não nasceu sem que eu sonhasse com a morte do senhor da Grande Ilha, Garrick McGraw, sob a lâmina da minha espada!

A força abandonou-me, o meu coração parou e o sangue gelou. Enquanto as cores me escapavam do rosto, Throst prosseguiu:

- Todos os órfãos dessa infame carnificina tinham o mesmo objetivo quando se lançaram sobre a fortaleza de Goldheart, naquela manhã. O Gunnulf quase conseguiu fazer justiça, mas o McGraw escapou-se-lhe por entre os dedos. E eu falhei... Falhei ao meu líder, falhei ao meu pai, falhei ao meu povo...

Calou-se subitamente e soltou-me com tamanho ímpeto, que dir-se-ia que o contacto o queimava. Eu desfaleci sobre a caixa de madeira, lutando pela consciência, assimilando cada uma das suas palavras como uma punhalada no peito. Com a amargura e a raiva desfigurando os traços perfeitos do seu rosto, Throst mastigou entredentes:

- Depois disto, ainda pensas que eu sou um simples guerreiro combatendo pela vontade do meu líder? Agora que conheces a minha sede de vingança, continuas a confiar cegamente em mim, Catelyn McGraw?

Apetecia-me chorar, berrar, espernear, explodir de angústia. Throst recuara e assombrava-me como um gigante. A voz que empregara para dizer o meu nome fora agressiva. A emoção sufocava-me, mas consegui manter-me altiva, ao inquirir num tom defraudado e carregado de acusação:

- Tu sempre soubeste... Sempre soubeste que eu sou uma McGraw?

O tempo deteve-se, enquanto a agonia inundava o olhar azul. Porém, a voz de Throst soou gélida ao responder:

- Sim, eu percebi que tu eras uma McGraw assim que te vi. Agora sabes que não foi um nobre desígnio divino que me forçou a raptar-te. Eu conhecia o valor da minha presa! Não te iludas acerca da bondade do meu coração, Catelyn! Eu sou apenas um homem com as mãos encharcadas pelo sangue do teu povo, que viu em ti uma oportunidade de vingança e luxúria. Odeias o Gunnulf pelo que ele fez... Pois eu estava ao seu lado, movendo as armas com igual ardor...

Deteve-se com a voz suspensa, engasgado nas próprias palavras. Soltou uma interjeição imperceptível e voltou-me as costas, refugiando-se no celeiro e abandonando-me ao desencanto e à confusão. Mal pude suster-me, corri para casa, cambaleando e tropeçando na mágoa. O calor agradável da fogueira não derreteu a capa de gelo que me envolvia a alma. Escorreguei para o chão e, só quando senti o sabor agreste do sangue a inundar-me a boca é que percebi que trincava o lábio, num último esforço para conter os berros que me esmurravam a garganta.

As palavras de Throst estrondeavam no meu espírito como um coro de almas danadas. No furor da batalha, ele fora apenas um Viking, cego de ódio, sedento de vingança... O que esperara eu desta abordagem? Que ele declarasse estar disposto a perdoar e a esquecer tudo o que sofrera para agradar à filha do seu maior inimigo?

Agora que eu obtivera a confirmação de que existia magia no sangue dos meus anfitriões, a informação revelava-se inútil. Apesar de me ter resgatado à morte e entregue a vida num pacto de sangue, quebrando todas as regras que impusera a si próprio, Throst jamais renunciaria ao rancor. Diante dos sentimentos contraditórios que alteravam o rumo que ele próprio traçara, decidira-se a provar que as nossas divergências eram incontornáveis. E o seu triunfo era a nossa derrota, pois a teimosia condenava-o à morte e, sem a ajuda do misterioso feiticeiro, que eu desconfiava ser o seu avô materno de quem ninguém falava, eu nada podia contra Myrna.

Na minha mão, a cicatriz latejava qual chaga aberta. Despeitada, escondia-a atrás das costas. Talvez se a ignorasse, ela acabasse por desaparecer da mesma forma que aparecera! Eu não queria partilhar nada com aquele bárbaro! Aliás, se Throst morresse haveria menos um selvagem no mundo, menos um inimigo da Grande Ilha, menos um caçador da minha família...

”Eu falhei ao meu líder, falhei ao meu pai, falhei ao meu povo"...

A voz na minha mente foi acompanhada por um forte agitar de asas. Os grandes olhos da coruja magoaram-me a vista, como se o Sol brilhasse dentro deles. No mesmo instante, um trovão estourou por cima da minha cabeça e vislumbrei Throst, brandindo o seu machado contra os Aliados. A nossa ligação era tão sólida que eu sentia o fogo que ardia no seu sangue, o tambor que rufava dentro do seu peito, a chuva que banhava a sua pele... E a descarga de ódio que o fulminou no instante em que se viu diante do já debilitado e ferido Garrick McGraw. Seria tão fácil... Porém, o olhar atraiçoava-o e forçava-o a enxergar para além do inimigo. Não muito longe, o Conde de Goldheart carregava à força uma jovem vestida de branco...

Estremeci, trespassada por calafrios e afrontamentos, lutando ferozmente contra a Visão que teimava em dominar-me. Eu não podia ceder! Eu tinha de manter-me desperta!

Gemi dolorosamente quando a minha cabeça se esmagou contra o chão. Escancarei os olhos e vi o teto de colmo, suspenso sobre a névoa, e o pássaro branco a desaparecer pela chaminé. Arfei aflitivamente, forçando o coração a acalmar-se, enquanto a gravidade da última revelação me sacudia o espírito. Eu não podia desistir de Throst... Assim como ele não desistira de mim!

Arrastei-me para a rua, e o ar gelado ajudou-me a reagir. A fraqueza embriagante quase desaparecera quando irrompi pelo celeiro. As minhas entranhas reviraram-se ao encontrá-lo vazio. Teria chegado tarde? Forcei as pernas a correrem até ao estábulo e estaquei ao encontrar Throst, preparando o cavalo malhado para partir. Ele fitou-me, surpreendido. Não esperava tornar a ver-me depois da nossa discussão. Eu comecei de imediato, antes que perdesse a coragem:

- Tu tiveste o meu pai ao alcance da tua arma... Por que não o mataste?

O assombro no seu semblante denunciava confusão e algum temor. A racionalidade de Throst não admitia que eu tivesse a aptidão de alcançar os seus segredos mais profundos. Não desisti quando me voltou as costas. Ele iria escutar-me até ao fim!

- Foi por minha causa, não foi? Tiveste de decidir entre deter a fuga do meu pai e salvar-me do Goldheart...

Exasperada pelo seu silêncio, segurei-lhe o braço e obriguei-o a encarar-me. Os olhos azuis do guerreiro estavam inchados e sombrios, denunciando um cansaço extremo. Permaneceu calado, enquanto eu continuava dominada pelas emoções:

- Eu tinha dois anos quando o teu pai morreu. O meu irmão mais velho era ainda um garoto, tal como tu, e nada sabia sobre guerra... No mundo dos adultos, os Vikings atacavam as costas da Grande Ilha. Perante a frota do teu pai, os Aliados não pararam para perguntar se se encontravam diante dos mesmos Nórdicos que haviam matado pilhado e queimado as nossas aldeias. O que aconteceu nesse dia foi um erro. Mas nós não temos de perpetuá-lo!

Eu ansiava por uma reação, mas Throst permanecia lívido, como se ainda não acreditasse no que lhe estava a suceder. Atrevi-me a buscar a sua mão, que repousava no dorso do cavalo, libertando a voz do meu coração:

- Sempre que um homem empunha uma arma por ambição ou vingança, é inevitável que morram inocentes. Durante gerações foram cometidos incontáveis erros! Alguém tem de parar! Há pouco tempo, o Krum fez-me entender que o passado não pode ser alterado, mas que o futuro está guardado dentro das nossas mãos. A Ingrior acredita que a tua missão é fazer a paz entre os nossos povos. E... Depois de tudo o que vivemos... Eu também acredito...

A voz faltou-me e não contive um soluço. Sentia-me fraca, carente, ansiosa pelo conforto dos seus braços. Throst não era um inimigo e sim um abrigo aconchegante que me protegeria da maior das tempestades. Eu detestava esta fragilidade que me esmagava, mas não conseguia evitá-la. Enquanto lutava para manter o pouco orgulho que me restava, ele fixava-me em silêncio, respirando pesadamente, dissecando-me com o olhar. De súbito, correspondeu ao aperto da minha mão e levou-a aos seus lábios, beijando-a demoradamente. Só depois confessou:

- Eu sempre gostei das mulheres do meu povo, Catelyn... Para mim, era impensável deitar-me com uma rapariga como tu. Todavia, quando te vi, fui fulminado por um desejo inexplicável e indomável. Pensei que nenhum homem, de nenhuma raça, poderia impedir-me de possuir-te e, quando te tomei finalmente, experimentei algo que nunca havia sentido com outra mulher. Mas, ao despertar, esbofeteado pela realidade, vi que tinha nos meus braços a filha de Garrick.

McGraw e odiei-me pelo que fizera. Odiei-me pelo muito que te queria... E cada dia, cada vez mais...

Eu tremia dos pés à cabeça. Throst estava a expor-se totalmente... E, as suas palavras tocavam-me de uma forma que eu nem me atrevia a admitir. Mal contive um suspiro quando ele me acariciou o rosto, antes de prosseguir com a voz embargada:

- Eu não te culpo pelo passado, Catelyn! Mas, por mais que te deseje... Por mais que te admire e te queira bem, nunca poderei libertar-me do horror, de tudo o que sofri e do muito sofrimento que infligi. Talvez a Ingrior tenha razão... Talvez eu não possa perdoar os outros, porque não consigo perdoar-me! Para abraçar uma missão tão nobre como a que vós falais, é necessário uma fé inabalável e um coração limpo. E eu não possuo nenhuma dessas coisas...

Tentou recuar, mas eu não permiti. Barrei-lhe a fuga, rouca, mas convicta:

- Eu sei que tu carregas feridas que jamais sararão. Eu também as carrego! A dor nunca finará, mas pode tornar-se branda e até suportável, se consentires que te ajudem... Se tu próprio te ajudares!

- Engoli em seco, estendendo-lhe a minha mão num apelo. - Ainda estás a tempo...

- Não, Catelyn! - A brusquidão com que Throst me afastou deixou-me petrificada. - Eu sou um guerreiro viking! Toda a vida me orgulhei da precisão do meu arco, da força do meu machado e do rigor da minha espada. Contudo, desta vez foi diferente... Tu tornaste tudo diferente! Eu deixei Garrick McGraw escapar porque corri a socorrer uma desconhecida! Agora, não se passa um dia sem que me questione se matei um dos teus irmãos, algum dos teus amigos... E, como se não bastasse ter-me envolvido com a filha do meu maior inimigo; como se não fosse suficiente ter desenvolvido um remorso torpe por tua causa, ainda dou por mim a orgulhar-me por participar na tua magia... Surpreendo-me envolvido em coisas contra as quais lutei desde que me conheço! - Arquejou, extenuado pelo esforço, repartido entre a perturbação e a revolta. - Eu não quero fazer parte de um plano divino para salvar o mundo! Quero navegar e conquistar terras; ter uma mulher na cama e uma dezena de filhos no colo...

Uivou como um animal ferido e cobriu o rosto com as mãos. Eu dei um passo à frente e outro atrás, completamente desnorteada. Quando Throst me encarou, já recuperara a inabalável frieza. A sua rispidez estalou em mim como uma chicotada:

- Eu não posso continuar aqui! Não posso continuar perto de ti, Catelyn! Não quero envolver-me mais nessa tua magia. Sei que fiz um juramento e mantenho-o! Não permitirei que te suceda nenhum mal, enquanto o meu braço tiver vigor para erguer uma arma. Mas não vou esquecer quem sou e aquilo em que acredito! Não irei enlouquecer por tua causa!

A sua intransigência despertou a minha indignação. De novo, Throst negava o evidente e agia como se eu lhe tivesse lançado um feitiço para lhe dobrar a vontade; como se eu não olhasse a meios para o manter ao meu lado. Só que, desta vez, eu podia responder-lhe:

- Guarda os teus favores para a tua noiva! - rugi afogueada.

- E não te preocupes em cumprir nenhum estúpido juramento! Eu sempre me desvencilhei muito bem sozinha! Peço desculpa se te distraí da tua brutalidade ignorante!

Desatei a correr às cegas, com o vermelho da ira a bloquear-me a razão, mas não alcancei a porta. O meu corpo foi agarrado no ar e tombou num monte de feno. Antes que eu pudesse gritar, a boca de Throst cobria a minha, a sua língua quente forçava a entrada nos meus lábios e as mãos poderosas evitavam os golpes débeis dos meus punhos. Uma batida de coração foi quanto lhe bastou para me dominar. A fúria transformou-se numa paixão desenfreada, enquanto os meus dedos se enterravam nos anéis dourados dos seus cabelos, libertando-os e usando-os para o puxar para mais perto. Este beijo sabia a desespero; possuía uma fome e uma sede que nenhum de nós estava preparado para aceitar. Ao separarmo-nos para recuperar o fôlego, Throst afundou o rosto no meu pescoço e gemeu dolorosamente:

- Não percebeste o que eu quis dizer Catelyn... Minha Pequena! Não tencionei ofender-te ou desprezar-te! Eu... - Respirou fundo e ergueu-se ao encontro do meu olhar. A sua voz tornou-se grave, como se recitasse a própria condenação: - Catelyn, se eu continuar perto de ti, acabarei por desgraçar-me perante o Gunnulf e tomar-te para mim, com o teu consentimento ou à força, sem me importar com o ciúme e a raiva da Halldora, sem me importar em desonrar a minha palavra, sem me importar com mais nada...

Fechei os olhos, incapaz de suportar a visão do seu rosto atormentado pelo desejo. A minha pele também bradava pelo seu toque. Nós estávamos possuídos por uma força superior, que nos impedia de raciocinar, que nos forçava a esquecer quem éramos e tudo o que nos separava. Talvez Throst estivesse correto! Só a distância sanaria esta loucura!

Quando o seu corpo se afastou, fui preenchida por um vazio gelado. Quase supliquei que não partisse, mas o orgulho segurou-me a língua. Afinal, eu era uma McGraw!

Não tardei a ouvir o galope furioso do cavalo, mas mantive-me imóvel, presa no olhar brilhante da coruja que me seguira, mastigando o pressentimento, doloroso e angustiante, de que se passaria muito tempo até tornar a ver Throst.

 

- Temos de conversar, Catelyn. Tu e eu sabemos... Sempre soubemos! Mas as forças do mal movem-se, rápidas e perigosas, ocultas pelo manto da ilusão. Nenhuma de nós podia arriscar-se, pois ambas temos demasiado a perder. Agora, que sei que posso confiar-te a minha vida, estou preparada para enfrentar o desafio que os nossos antepassados nos colocaram. Irás abraçar a minha decisão?

Eu não possuía a habilidade de manipular as palavras e criar imagens bonitas, como Ingrior e Berchan. Gostava de ir direta ao assunto, sem perder tempo. E foi com essa determinação que retorqui:

- O fato de eu ser filha de Garrick McGraw não te incomoda? Os lábios da filha de Thorgrim apertaram-se, enquanto acenava com a cabeça.

- Vejo que já falaste com o Throst! E calculo que não foi uma conversa amistosa!

- O Throst odeia a minha família e o meu povo - volvi, sem disfarçar a mágoa. - O seu rancor só será apaziguado quando o meu pai tombar. Afirma que é um guerreiro e que jamais trairá as suas convicções. Ele não compreende a estima que eu sinto por vós. E abomina a magia que reconhece em mim...

Estávamos sozinhas e assim permaneceríamos até ao dia seguinte. À nossa volta, o ar carregado forçava-nos a arquejar. Ingrior apertou-me a mão e disse mansamente:

- Muito antes de nascermos, já o teu povo combatia o meu e o meu o teu. São movidos pela mesma ignorância, a mesma cegueira, a mesma arrogância... Nós não temos de partilhar a sina dos nossos pais! Eu estava enganada quando te disse que não pertencias aqui. O tempo revelou-me que a tua presença na Terra Antiga não é um capricho do destino. Há muito, foi profetizado que um grande amor extinguira o ressentimento que separa os nossos povos. Esse amor está dentro de ti, Catelyn! Para mim, pouco importa de quem és filha, pois, no meu coração, tu és minha irmã.

Eu nunca ouvira uma declaração tão sincera e apaixonada. A minha mão fechou-se na de Ingrior e, sem a menor hesitação, entreguei-me ao seu abraço. De imediato, fui invadida por um alívio doce. Ia finalmente desabafar o que me ardia na alma.

- Sabes que eu retribuo sem reservas a tua confiança e afeição - respondi comovida. - Também acredito que a paz entre os nossos urge e tudo farei para despertar as consciências dos líderes da minha terra. Mas, antes de regressar à Grande Ilha, preciso da tua ajuda.

Contei-lhe a minha história, apenas omitindo que Anna era minha tia, pois não estava autorizada a revelar esse segredo. Ingrior deteve-me quando lhe confessei que suspeitava que o poderoso feiticeiro que eu buscava tinha o seu sangue, e continuou com serenidade:

- Tenho a certeza de que aquilo que te vou dizer abalará muitas das tuas convicções. Só te peço que abras o espírito, pois não é algo que possas aceitar de ânimo leve...

Aqui, muito perto de nós, em pleno coração da Terra Antiga, encontra-se um dos lugares mais mágicos da Terra. A Montanha Sagrada domina sobre as Terras do Norte, apesar de ninguém conseguir vislumbrá-la, além dos que possuem o dom do conhecimento da Arte. Para se chegar ao seu cume, basta subir o ribeiro que nasce no interior da própria Montanha. Mas o caminho só se revela àqueles que podem trilhá-lo e, se alguém se atreve a violar as regras, a própria natureza ganha vida: as árvores movem-se, as pedras deslocam-se e o solo ergue-se ou afunda-se, até que tudo o que era num instante deixa de sê-lo no seguinte. Os intrusos depressa se perdem e morrem de frio ou de fome, se tiverem sorte... Os menos afortunados enfrentam o destino nas garras dos Lobos Cinzentos.

”No topo da Montanha, com os olhos postos na Terra, está uma pedra mágica, diferente de todas as que já viste e possas vir a conhecer". É negra como a noite, mas mais brilhante do que um dia luminoso, como se um mundo feito de estrelas cintilasse no seu interior. Contudo, o mais fantástico não é o seu aspecto e sim o seu poder. Aqueles que lhe tocam têm acesso a outra realidade... Ao passado e ao futuro. E, a todos, a pedra revela uma história diferente, pois cada ser é único e tem uma missão própria. Por esta razão lhe chamam ”Pedra do Tempo”.

Ligada à Pedra do Tempo está uma lenda fantástica. Há muito, muito tempo, antes de os Homens e de os Feiticeiros habitarem a Terra, existiu outra raça de seres inteligentes que reinava sobre todos os outros. Eram criaturas majestosas e terríveis que dominavam o céu, o mar e a terra. Certamente já ouviste falar delas, aqui e na Grande Ilha. Humanos e Feiticeiros chamam-lhes Dragões.

”Na sociedade dos dragões havia uma elite, da qual fazia parte o Guardião da Montanha Sagrada". Consultando a Pedra do Tempo, ele previu um cataclismo que destruiria o mundo e toda a sua raça. Apressou-se a avisar os seus semelhantes, mas estes não lhe deram ouvidos. Eles eram os senhores da Terra e nada temiam! Só quando o céu se rasgou e começou a chover fogo, os dragões acreditaram no Guardião. Porém, já era tarde. Uma noite sem fim desceu sobre a Terra e trouxe uma nuvem sufocante de pó. O ar tornou-se gelado e irrespirável. Toda a água congelou, e o fogo da terra apagou-se. A vida, animal e vegetal começou a perecer.

Dentro da Montanha Sagrada, protegido pelo calor da magia, o Guardião adormeceu até que a própria Montanha decidiu despertá-lo. Quando saiu do abrigo das grutas, descobriu que tudo o que o rodeava era desconhecido e assustador, desde as plantas aos animais. Com o coração a sangrar, sobrevoou esta nova realidade e concluiu que o mundo que amava finara há muito.

”De regresso à Montanha, o Guardião viu o seu reflexo na Pedra do Tempo e verificou que nada restava do jovem dragão, belo e vigoroso". Ele era o último da sua espécie e, em breve, também morreria. Este pensamento enlouqueceu-o. Num impulso arrebatado, voou tão alto quanto conseguiu e deixou-se tombar sobre a Pedra do Tempo, talvez na tentativa desesperada de destruí-la, esmagando-a sob o corpo poderoso, para que os novos senhores da Terra não pudessem apoderar-se dos segredos da sua raça. Contudo, a Pedra não cedeu sob o seu peso. Afiada como uma espada trespassou-o e manteve-o prisioneiro de um sofrimento atroz, até ao último suspiro. Enquanto esperava pelo alívio da morte, o dragão chorou duas grossas lágrimas que, mal tocaram no solo, se transformaram em cristais mágicos, portadores da sua sabedoria.

Só acreditarás se quiseres, mas é verdade que, quando os Feiticeiros chegaram pela primeira vez ao cume da Montanha Sagrada, encontraram o esqueleto de um ser fabuloso, empalado na Pedra do Tempo. Perto das cavidades dos seus olhos estavam dois cristais, cujas propriedades mágicas foram reconhecidas de imediato. Os cristais eram iguais na forma e no tamanho, mas possuíam cores distintas. Um era negro como a noite e, por isso, chamaram-lhe Lágrima da Lua. Ao outro, transparente como água, chamaram Lágrima do Sol.

O Conselho dos Seres Superiores, a quem os cristais foram entregues, depressa percebeu que tinha em seu poder uma força fenomenal que, utilizada levianamente, podia provocar a destruição da Terra. Para evitar essa calamidade, foi criada uma Ordem liderada por dois irmãos que se distinguiam dos seus semelhantes pela força e poder exemplares.

A Ordem do Dragão prestou juramento de sangue pela defesa dos cristais, da Montanha Sagrada e da Pedra do Tempo, para que os seus segredos jamais caíssem em mãos erradas. O irmão mais velho, responsável pela Lágrima do Sol, tatuou na carne o dragão debaixo da imagem do Sol, e o irmão mais novo, responsável pela Lágrima da Lua, tatuou o dragão debaixo da imagem da Lua. Dentro da Ordem, todos os descendentes da linhagem herdavam a marca, e o primeiro filho de um Guardião adquiria igualmente a responsabilidade pela proteção do seu cristal.

Durante gerações, a tradição cumpriu-se sem sobressaltos. Os Guardiões da Montanha Sagrada levavam uma vida recatada, dedicada à meditação e à aprendizagem dos segredos da Pedra do Tempo e dos cristais mágicos. Mas a chegada dos Humanos mergulhou a sociedade perfeita dos Seres Superiores num conturbado caos. E a Ordem do Dragão não foi exceção.

O último Guardião da Lágrima do Sol era um dos feiticeiros mais poderosos de sempre, responsável por magníficos feitos e prodigiosas conquistas, altamente considerado pelos demais. O seu nome era Hakon, mas os Seres Superiores chamavam-lhe ”O Que Tudo Vê”, devido ao seu poder de adivinhação e à sua habilidade para deslindar os enigmas da Pedra do Tempo.

”A sorte de Hakon não foi muito diferente da sorte da tua avó". Apesar de todas as responsabilidades que pendiam sobre os seus ombros, quando conheceu o verdadeiro amor, não teve força para negá-lo. Mas esse amor era humano e consequentemente amaldiçoado pela lei do seu povo. Não obstante a sua importância, Hakon foi condenado a perder as faculdades superiores. Contudo, não voltou as costas ao juramento de proteção da Lágrima do Sol e da Pedra do Tempo. Os Feiticeiros podiam subjugar o seu poder, mas não a sua vontade.

”Depois disso, Hakon poderia ter sido feliz... Tão feliz quanto um Ser Superior condenado à humanidade é capaz de ser. Mas, infelizmente, parece que as grandes paixões estão destinadas à fatalidade. Hakon perdeu a sua companheira em circunstâncias que ninguém sabe explicar. Prostrado pelo desgosto e revoltado contra os seus e contra os deuses, ”O Que Tudo Vê” entregou a sua única filha, ainda bebê, para criar e desapareceu na Montanha Sagrada. Dizem que nunca mais foi visto por olhos humanos. Elina cresceu e enamorou-se do filho mais jovem de Eric, filho de Grim, o senhor da Terra Antiga: Thorgrim... o meu pai".

Eu achava que a história da minha família era extraordinária, mas pasmei ante o relato de Ingrior. Com o coração exaltado, aguardei que me dissesse que se relacionava com o avô e que iria levar-me até ele. Contudo, o que ela tinha para contar era bem diferente:

- Eu era muito menina quando subi a Montanha Sagrada pela primeira vez. Não sei como me atrevi. Talvez, nesse dia, o chamamento tenha sido demasiado forte para o poder ignorar! Desde sempre, as minhas noites eram povoadas por sonhos que eu não compreendia, mas também não me atrevia a revelar a ninguém; e durante o dia ouvia vozes, apelando insistentemente, vindas de lado nenhum. Quando se é criança, gosta-se de ouvir falar de magia e das criaturas mágicas. Mas, na minha casa, esse assunto era proibido. Por isso, eu procurava muitas vezes a companhia de Anna. Ela não mencionava essas coisas diante do resto da família, mas quando saía levava-nos, a mim e ao Trygve, e contava-nos histórias fantásticas e lindas, enquanto nos ensinava os segredos das ervas curativas. Apesar de eu nunca ter discutido com Anna as transformações que estava a sofrer, foi graças a ela que aprendi a não as temer.

Certo dia, ao brincar na entrada da floresta, deparei com um trilho novo. Eu conhecia o bosque como a palma da minha mão, e o fato de nunca ter reparado nesse caminho intrigou-me, principalmente porque ia dar a um ribeiro, cujo cântico se ouvia distintamente. De imediato, desafiei as minhas companheiras a explorá-lo, mas elas teimaram que eu estava a troçar delas. Onde eu via uma vereda, rodeada de árvores majestosas e pequenos arbustos verdejantes, elas viam um emaranhado de troncos decrépitos e intransponíveis. Regressei a casa, contrariada e nervosa, mas, no dia seguinte, voltei ao mesmo sítio. O trilho continuava aberto, e o ribeiro cantarolava o meu nome. Não hesitei mais.

Tenho apenas uma vaga recordação da viagem até ao cume; imagens repletas de névoa, como um sonho. Ao chegar, a Pedra do Tempo capturou toda a minha atenção. Eu preparava-me para lhe tocar, quando uma voz vinda do interior de uma gruta me chamou. Respondi a medo, mas a minha ousadia infantil ajudou-me a entrar. Não encontrei ninguém, mas havia cestos com comida e bebida esperando por mim. E livros... Muitos livros! Anna ensinara-me a ler, por isso não tive dificuldade em aventurar-me neste novo mundo que se abria à minha curiosidade fervente. Contudo, mesmo que não compreendesse as Runas, os livros não me guardariam segredos, pois as suas palavras assumiam formas reais dentro da minha mente.

Não sei quanto tempo fiquei. Comi sem ter fome e bebi sem ter sede, reunindo a força necessária para devorar a história dos meus antepassados, escrita pelo punho daquele que eu descobrira ser o avô de quem ninguém falava. E quanto mais lia, mais desejava ler! A noite caiu, o dia nasceu e a noite voltou a tombar. Dei por mim diante da Pedra do Tempo, desejando ardentemente tocá-la, mas tremendo de medo. E se nada acontecesse? E se eu estivesse enganada e não pertencesse à linhagem dos eleitos, com poder para ver o passado e o futuro?

”Todas as minhas dúvidas se dissiparam no instante em que os meus dedos se encostaram à pedra". A realidade que eu conhecia virou-se do avesso e dei por mim a pairar por cima do mar, como um pássaro. Caía a noite e a Lua redonda reinava no céu. Lá em baixo, muitos barcos sulcavam as águas. Quis aproximar-me para observar os homens, mas fui detida por uma estrondosa gargalhada. A face da Lua transformara-se no rosto de uma mulher que mirava os navios com um esgar assassino. Então, a imagem esmoreceu e a luz da Lua finou. O círculo amarelo ficou vermelho, como um coração gigante a palpitar no céu. Horrorizada, vi o coração rasgar-se e o sangue chover sobre os barcos. Os gritos dos homens ainda hoje me assombram...

Devo ter desmaiado porque, quando despertei, a luz já esmorecia. Desci a Montanha a correr e só parei em casa. O que encontrei era previsível. A minha mãe estava lavada em lágrimas, pois já me dava como perdida. O meu pai chegou depois, regressando de uma das buscas que organizara. Assim que eu lhes contei o que pensava ser uma descoberta maravilhosa, levei uma tareia. A minha mãe arregaçou-me as mangas do vestido e confirmou os seus temores. Tatuado nos meus pulsos estava um desenho igual ao que enfeitava os pulsos dela. Abismada, eu tentei apagá-lo com os dedos, com saliva, com água... Em vão! O testemunho da minha linhagem mágica permanecerá na minha carne até à morte.

Fiquei de castigo durante muito tempo. Os meus pais temiam que eu regressasse à Montanha. Só me deram permissão para sair de casa no dia em que a nossa família se reuniu na herdade do tio Arngrim, para a festa de despedida. Os homens iam fazer uma longa viagem até uma terra distante, muito rica e poderosa. Levavam os Knarr carregados de artesanato, peles de animais, óleos e marfim, e esperavam obter um bom preço por esses produtos.

”Eu segredava ao Trygve o que me acontecera, quando o Throst me veio buscar". Fiquei furiosa ao perceber que ele contara ao Gunnulf a minha aventura e que pretendia mostrar-lhe as tatuagens do dragão. Não tive tempo de protestar, pois Sigarr abeirou-se de nós. Eu já estivera perto dele algumas vezes, porque o Sigarr era responsável pela educação do Gunnulf. Porém, nesse dia, parecia que estava a vê-lo com outros olhos, que cheirava o perigo em cada um dos seus movimentos.

”Ele começou por afirmar que eu não precisava ter medo dele e ergueu as mangas da sua túnica, revelando uma tatuagem semelhante à minha, mas com a Lua por cima da cabeça do dragão". Eu teria gritado, se o meu pai não interferisse. Gelada de medo ouvi Sigarr dizer-lhe que eu devia receber uma orientação adequada e que ele desejava a sua autorização para me treinar. O meu pai segurou-me ao colo e ripostou que a sua filha não era um brinquedo de feiticeiros.

Durante o resto do dia, eu só consegui pensar na descoberta que fizera. Sigarr possuía a marca dos descendentes do Guardião da Lágrima da Lua, logo, era primo do meu avô... Era meu primo! O feiticeiro que aterrorizava os nossos inimigos e impunha um respeito temeroso sobre o nosso povo tinha o meu sangue! Seria ele o guardião do cristal? Se os Feiticeiros haviam castigado o meu avô por unir-se a uma humana, o que teriam feito quando um dos seus eleitos enveredara pelo trilho negro da Arte?

No final da noite, surpreendi uma conversa dos meus pais. A minha mãe chorava e suplicava-lhe que não partisse naquela viagem. Como argumento, repetia incessantemente a Visão que eu tivera, na Montanha. O meu pai sorria e esforçava-se por acalmá-la. Iria regressar rico e provar-lhe que as premonições e profecias não passavam de fantasias para assustar os mais fracos e dar vantagem aos mais fortes.

Na manhã seguinte, o meu pai abraçou-me e quis forçar-me a prometer que não tornaria à Montanha Sagrada. Os meus lábios permaneceram fechados. Ele zangou-se e ameaçou que me manteria de castigo até ao seu regresso, mas eu não me demovi. E essa foi a última vez que o vi.

Quando o meu tio voltou com a trágica notícia, a minha mãe quase enlouqueceu. Durante muito tempo não falou com ninguém e só o nascimento do Bjorn a encorajou a reagir.

Dias depois, eu reuni ânimo para subir a Montanha. A Pedra do Tempo usara-me para alertar o meu povo acerca da desgraça que se aproximava, e eu esperava que ela voltasse a confiar-me os seus segredos. Se eu conseguisse controlar esse dom, poderia ajudar muitas pessoas. Seria uma forma de redimir-me por ter falhado no salvamento do meu pai e dos seus companheiros.

”De início, temi levar Trygve comigo, não fosse o meu avô zangar-se". Porém, de todas as vezes que ele me acompanhava, éramos bem recebidos com comida, bebida e mantas. Os livros encontravam-se abertos em folhas diferentes, como se ”O Que Tudo Vê” nos indicasse o que devíamos estudar. E, à medida que o tempo passava, eu apercebia-me da importância do estranho mundo que me rodeava. Dediquei-me de alma e coração à aprendizagem da Arte descrita nos livros e senti a energia que vivia em mim despertar e desenvolver-se. Mas, por mais que tentasse contatar com a Pedra do Tempo, esta não voltou a manifestar-se... Até ao dia do ritual de iniciação do Throst.

Quando o meu irmão entrou na floresta, eu escutei finalmente o apelo da pedra mágica. Apressei-me a responder-lhe e, mais uma vez, a realidade desvaneceu-se e eu precipitei-me num tempo irreal. Visionei o meu irmão já homem, cavalgando diante de um exército. Não era uma guerra que se travava, como comecei por temer; os guerreiros que Throst liderava eram os chefes dos clãs vikings. No local de encontro, pousaram as armas e deram as mãos. O meu irmão sorriu, e eu vi o seu rosto transformar-se no focinho de um animal, semelhante a um lobo, mas muito maior.

Despertei assustada, temendo pela vida do Throst. Felizmente, vivíamos dias de festa e poucos haviam notado a minha ausência. Todavia, percebi no olhar feroz e ressentido da minha mãe que ela sabia onde eu estivera.

Descobri o significado da revelação quase de imediato. Na Terra Antiga não se falava de outra coisa. O filho de Thorgrim tivera a honra de enfrentar e vencer uma fera. E o animal cuja alma ele assimilara não era um vulgar lobo da floresta e sim um Lobo Sagrado. Mas isso não era tudo! Enquanto eu estivera inconsciente, Throst fora marcado pela magia da nossa linhagem. O Dragão do Sol brotara da sua carne tão misteriosamente como da minha.

”Para mim, essa foi a prova final de que a vida nos reservava um grande futuro". Nós éramos netos de um feiticeiro poderoso e tínhamos responsabilidades para com o nosso povo: eu como vidente e Throst como o guerreiro que uniria os clãs e fundaria a paz. Tentei convencê-lo da minha certeza, mas o meu irmão ignorou-me. Todo o seu entusiasmo e paixão eram para a guerra e para a conquista. Estava cego e surdo, dominado pela influência do primo, que lhe prometia vingança e riqueza. Juntos, o urso e o lobo seriam os reis do mundo!

”Eu nunca simpatizei com o Gunnulf". Sabia-o frio e cruel, obcecado pela guerra, desprovido de coração e respeito pelo próximo. E, quando constatei que ele seduzira o meu irmão com os seus tenebrosos ideais, não consegui suportá-lo mais. Porém, a minha má sorte fora ditada no nascimento. Seguindo a tradição, Gunnulf fizera votos por mim e eu ficara-lhe prometida. Até ao momento, vivera conformada com a minha sina. Porém, ao ver o irmão que eu tanto amava regressar da sua primeira campanha totalmente mudado, sem um vestígio de humanidade na alma, regozijando-se com o sofrimento dos infelizes que abatera, resolvi tomar uma atitude. Enfrentei a minha mãe e declarei que jamais me casaria com o Gunnulf, porque o abominava. Ela ficou horrorizada e suplicou-me que reconsiderasse. Após a morte do meu pai, os meus tios eram o nosso apoio emocional e econômico. Uma desfeita tão grave podia significar a ruína da família. Considerando que a minha mãe estava muito doente e fraca, eu acabei por ceder.

Alguns dias depois, acordei dominada por uma angústia intolerável. Saltei da cama e verifiquei que a minha mãe saíra de casa. Estávamos no pico do Inverno, e a sua saúde sustinha-se por um fio. Eu nem podia acreditar que ela se embrenhara na escuridão da noite, durante uma tempestade de neve! Alertei toda a quinta, e começamos as buscas. O medo plantava-me na mente o rosto sem vida da minha mãe, gelado de frio, contorcido de dor...

”Um apelo que só a minha alma escutou atraiu-me à Montanha”. Quando me aproximei da Pedra do Tempo, encontrei a minha mãe envolta no aconchego exclusivo daquele lugar mágico. Sorriu quando me viu, estendeu-me as suas mãos e disse:

”Não te preocupes comigo, querida filha. Eu encontrei finalmente o meu rumo.”

Ficamos abraçadas em silêncio, desfrutando de um entendimento e de um carinho há muito esquecidos. Por fim, a minha mãe continuou:

”Os anos que estão para vir serão duros, Ingrior. Terás de ser forte e manter a família unida. Não desistas de chamar o Throst à razão, pois dele depende a sobrevivência do nosso povo; nunca prescindas da tua felicidade, mesmo quando sentires que já não podes continuar, mesmo que penses que já não existe esperança; cuida do Bjorn como se fosse teu filho e ensina-o a amar o nosso sangue, pois é dele que provém a nossa força.”

”O seu discurso soou-me estranho e triste...” como uma despedida. Tentei argumentar, mas ela não permitiu. Tocou nos meus lábios e prosseguiu:

”A Lua está viva, Ingrior, e serve uma nova senhora, cruel e poderosa. Se ela conquistar as Lágrimas, será invencível. Amigos e inimigos deverão unir-se para impedi-la. E tu estarás à frente dessa batalha, meu amor. Que a luz ilumine o teu caminho e te dê força para vencer.”

”Tornou a silenciar-me e ordenou num tom urgente”:

”Vai buscar o Bjorn para que a marca do Guardião seja lavrada na sua carne. Sem ela, o nosso menino estará desprotegido contra o mal que se aproxima.”

”Fiquei tão assustada, que corri para casa sem demora, decidida a arrancar o Bjorn da cama e a levá-lo à nossa mãe, antes que ela pudesse piscar os olhos”. Porém, assim que entrei na quinta, apercebi-me de que algo ruim sucedera. Irrompi pela casa e sofri o maior dos sobressaltos. O corpo da minha mãe jazia sem vida sobre uma manta, gelado pelo frio. Comecei a gritar e a espernear e, só a custo, o Throst conseguiu segurar-me. Fora ele quem a encontrara, perto do trilho que conduzia à Montanha Sagrada. Ao pressentir a morte, a nossa mãe seguira o apelo do sangue, em busca de abrigo, mas só o seu espírito alcançara a paz almejada.

”Quando a vida tornou à normalidade possível, tentei contar a verdade ao Throst, mas ele recusou-se a ouvir-me”. Replicou que estava órfão e tinha uma propriedade para administrar, um irmão pequeno para cuidar e uma irmã louca a atormentá-lo. Mandou-me arrumar as nossas coisas, porque aceitara a hospitalidade da Casa de Grim por uns tempos. Eu obedeci destroçada e revoltada. Contudo, na primeira oportunidade, levei o Bjorn à Montanha e cumpri a última vontade da nossa mãe.

”O Throst ficou possesso quando descobriu”. Poucas vezes o vi tão zangado! Só então apreendi o rancor que ele devota ao nosso avô. O Sigarr contara-lhe a história que eu lera nos livros, mas envenenara-o com a sua língua viperina, dizendo exatamente o que o meu irmão queria escutar e afastando-o da família, da magia do nosso sangue e da sua missão de vida, plantando-lhe o ódio dentro do peito, atiçando a sua ambição e rebeldia.

”A nossa discussão violenta, seguiu-se uma campanha, e eu não vi Throst durante meses. O estudo da Arte era a minha prioridade, e o Trygve tornou-se o meu companheiro inseparável. Tínhamos a mesma idade, as mesmas convicções e gostos, o fascínio pela magia e o desejo de praticar o bem. Em contraste com os seus irmãos, até com o Krum, ele não queria ouvir falar de guerra e de conquistas. O Trygve era um poeta! Tocava música como um deus, compunha canções que me faziam chorar e poemas que perdurarão na memória do povo. Era um contador de histórias, uma alma pura que sonhava conhecer outros mundos pela sua beleza e não pela riqueza que lhes podia extorquir. Até fisicamente se distinguia, porque o seu corpo não possuía a robustez dos Vikings. Era mais baixo, muito magro e delicado. O seu rosto parecia celestial. Tinha os cabelos pretos e encaracolados e os olhos verdes... como os teus! É incrível, como vós sois parecidos!”

Eu estava suspensa nas palavras de Ingrior, assombrada pela sua vivência. Agora, que ela fizera uma pausa para recuperar o fôlego e secar as lágrimas, os seus olhos denunciavam o conhecimento do meu parentesco com Trygve. Senti o rosto a ferver e a língua a batalhar dentro da boca. Devia-lhe a verdade, pela sua sinceridade e entrega. Esbocei o seu nome, mas ela deteve-me:

- Há muito que eu descobri o segredo da Anna, apesar de ela o ter guardado até dos próprios filhos. Mas o Trygve sabia que era especial; sentia a força e o poder dentro da mente, tal como eu. E, quando eu te vi, soube que o destino se aventurava num jogo perigoso. Só alguém muito distraído não declararia a vossa semelhança. Depois de ouvir a tua história, tudo se clarificou. A Anna é tua tia, não é verdade? O meu Trygve era teu primo...

Envolvi-a nos meus braços e experimentei o alívio da queda do último segredo. Tal como Ingrior, eu pressentia que existia entre nós uma ligação especial. A nossa existência tinha coincidências perturbadoras, impossíveis de ignorar. Depois de tudo o que ouvira e com a minha própria experiência, eu concluía que Ingrior também teria de enfrentar uma adversária perigosa - a Senhora da Lua, contra a qual a sua mãe a admoestara. Tentei confortá-la o melhor que sabia e, por entre soluços e tremores, Ingrior continuou a sua narrativa:

- Durante anos, Trygve e eu fomos como irmãos, almas gêmeas que se completavam, com um entendimento que muito poucos compreenderão e ainda menos terão a sorte de experimentar. Essa era uma das razões por que o Gunnulf o detestava... Mas não a única! Ele desprezava o espírito artístico e nobre do irmão. Chamava-lhe menina, princesa, boneca; mil e um palavrões destinados a magoá-lo e a humilhá-lo. A sua intolerância acabou por afastar Trygve dos assuntos dos homens e aproximou-o do novo mundo que ansiávamos por descobrir juntos. Nós passávamos as tardes a estudar na Montanha ou a passear pela floresta. Sentávamo-nos na margem do ribeiro, e ele compunha canções que me dedicava. Ensinou-me a tocar flauta e a dominar as Runas. A nossa relação era tão inocente e pura que só reconhecemos o sentimento profundo que nos unia quando já era tarde.

”Apesar de saber que não me agradava e de ter muitas mulheres dispostas a tudo pelos seus favores, o Gunnulf teimava em desposar-me". Eu era uma menina e ele um homem pujante, por isso acreditei que a estratégia de evitá-lo, negando-lhe os carinhos habituais dos namorados, seria suficiente para o desinteressar. Enganei-me! Presa à gratidão pelo apoio que os meus tios nos haviam oferecido, nos últimos anos; sabendo que Throst estava assoberbado de trabalho e de preocupações, e que este casamento o faria feliz, pois nutria grande respeito e afeição pelo primo; pensando na educação e no bem-estar do Bjorn; sentindo o entusiasmo de toda a comunidade, perante a expectativa da união das duas famílias mais poderosas da Terra Antiga, eu não tive coragem de recusar o pedido de casamento de Gunnulf.

”E, como se não bastasse sentir-me miserável ante a possibilidade de passar o resto da vida ao lado de um homem que detestava, o meu melhor amigo afastou-se e deixou-me sozinha, sem ninguém com quem desabafar”. Só compreendi a atitude do Trygve quando me apercebi dos meus próprios sentimentos. Ele sofria em silêncio porque me amava... E eu também o amava!

”Faltavam poucos dias para o casamento quando o Trygve me procurou”. Declarou-me o seu amor de joelhos, com o rosto banhado em lágrimas. Partilhando do seu desespero, eu caí-lhe nos braços e beijei-o com loucura. Porém, quando ele me pediu que desfizesse o noivado e sugeriu que enfrentássemos a família, eu vi-me diante de todas as questões que já ponderara e mais uma: o que faria o Gunnulf quando descobrisse que me perdera para o irmão que desprezava? Temi por Trygve, temi por mim e pelos meus. E, de novo, me acobardei e fugi ao encontro da infelicidade.

”Quando despertei, estava casada com um homem muito mais velho, que nada sabia acerca das necessidades de uma mulher”. Os dias eram difíceis, mas as noites transformavam-se em pesadelos e, para aumentar a minha agonia, descobri que, por baixo dos adornos que lhe envolvem os pulsos, o Gunnulf tem tatuada a marca do Guardião da Lágrima da Lua. Apavorada, perguntei-lhe o que aquilo significava, já que ele e o Sigarr não são parentes. Ele escarneceu da minha ansiedade e explicou que o feiticeiro lhe concedera essa honra após o combate com o urso, quando o escolhera para seu protegido. Apesar de desconhecer as intenções do bruxo, eu adivinhei que tal não podia ser um bom augúrio.

”Trygve via-me sofrer e padecia tanto ou mais do que eu”. Os nervos estavam a consumi-lo vivo e, como se não bastasse, o Gunnulf tentou forçá-lo a juntar-se aos guerreiros na campanha desse Verão. Ele recusou de imediato, declarando que preferia ficar e ajudar nos trabalhos da quinta, pois jamais mancharia as mãos cobardemente com o sangue de mulheres e crianças, para encher os bolsos de riqueza. Gunnulf saltou sobre o irmão como uma besta enfurecida e tê-lo-ia desfeito se os outros não interferissem.

”Eu ainda não recuperara do susto, quando Sigarr veio ao meu encontro". A dúvida que acalentara durante anos foi desfeita. O feiticeiro acenou com o cristal negro diante do meu nariz e apelou à minha cobiça. Agora que eu era uma mulher com direito de decisão, ele renovava o convite para que me tornasse sua aprendiz. Sabia que eu visitava a Montanha com freqüência, em busca do meu avô e dos seus ensinamentos, e pedia-me que refletisse acerca da minha lealdade. Quantas vezes Hakon se revelara para falar-me, orientar-me, ou apenas para confortar-me? Até onde eu esperava evoluir no Conhecimento, sem o acompanhamento adequado? Por que desperdiçava o meu talento seguindo alguém que nem se dignava a falar-me?

”Todo esse tempo, a Lágrima da Lua esteve à minha frente”. Era a coisa mais linda que eu já vira, redonda, mas com incontáveis faces e recortes, um brilho que encandeava e um poder palpável. Apetecia-me mergulhar dentro dela e banhar-me nos seus segredos, mas não esquecia que quem me tentava era um feiticeiro negro e que a sua proposta certamente escondia um desígnio obscuro. Por que outra razão ele se esforçava tanto por despertar o meu ressentimento contra o meu avô? E, principalmente, que interesse tinha o Guardião da Lágrima da Lua numa herdeira do Guardião da Lágrima do Sol? Fui forçada a apelar a toda a minha vontade, mas resisti à ardente tentação.

Sigarr não deixou transparecer se a minha recusa o contrariara. Replicou que me daria tempo para refletir e voltaria a procurar-me quando regressasse da campanha.

”Nesse Verão, a angústia de ver os homens partirem para a guerra misturou-se com o alívio”. Pude retornar à Montanha e, aos poucos, convenci Trygve a acompanhar-me. Reatamos a nossa amizade e vivemos dias de indescritível harmonia, praticando a Arte, entregando-nos à música e à poesia, ou apenas conversando. Nenhum de nós se atreveu a recordar o beijo trocado e muito menos a falar do sentimento que nos esforçávamos por sufocar.

”Mas os dias de felicidade não passaram de uma leve brisa”. Gunnulf regressou com uma nova obsessão: queria um herdeiro. Mostrou-se desapontado por não me encontrar de barriga, pois partira convicto de que me engravidara. Não voltei a ter sossego. A todo o instante, arrastava-me para a cama, e eu depressa concluí que de nada valia resistir-lhe, porque ele não tinha o menor pejo em impor-se pela força. Os meses sucederam-se, e as minhas regras nunca faltaram. Gunnulf começou a perder a paciência e a tornar-se violento na fala e no trato. Acusava-me de usar truques para evitar a concepção. Chegou a amarrar-me à cama para confirmar a sua suspeita. Mas nem amarrada eu engravidei!

”Entretanto, Gunnulf também não perdia uma oportunidade de humilhar Trygve, apesar de o irmão tentar ignorar as suas ferroadas persistentes". A situação desmoronou-se quando o meu tio faleceu. Durante a cerimônia fúnebre, perante a família e os amigos, Gunnulf embriagou-se e declarou que eu me recusava a dar-lhe um filho porque estava apaixonada pelo seu irmão bastardo. Mas que se desenganasse quem pensava que ele era corno, porque o irmão era uma fêmea, incapaz de cumprir os serviços de um homem. Ao ouvi-lo, Trygve perdeu a cabeça e deu-lhe um pretexto para o expulsar de casa sem ser criticado pela comunidade.

”Eu fiquei desesperada". Estava tanto frio que Trygve morreria se dormisse ao relento. Como era um rapaz solitário, não tinha amigos a quem recorrer e, mesmo que os tivessem ninguém se atreveria a dar-lhe guarida, depois das palavras do novo senhor da Terra Antiga. Então, Throst avançou e ofereceu-lhe a hospitalidade da sua casa. Nessa noite, percebi que o coração do meu irmão ainda não fora corrompido. Eu precisava reagir e seguir os conselhos da minha mãe.

”A partir daí, decidi que Gunnulf não voltaria a vergar a minha vontade nem a maltratar-me”. Já que tinha a fama de usar truques, teria o proveito! De imediato, comecei a apelar aos meus conhecimentos da Arte para evitar submeter-me à sua luxúria. Num dia adormecia-o, no outro cortava-lhe o entusiasmo, no outro colocava-lhe pó na roupa para que se coçasse até sangrar... Fui bem-sucedida durante algum tempo, até que o Sigarr se intrometeu.

”Certa noite fatídica vi Gunnulf esgueirar-se para a rua e um negro pressentimento forçou-me a segui-lo". Surpreendi-o nas sombras, conspirando com o feiticeiro. Este entregou-lhe um amuleto e garantiu-lhe que, da próxima vez que ele me procurasse, uma criança seria gerada. Gunnulf respondeu-lhe que, se não fosse pela profecia que nos unia já me teria cortado a garganta. Eu mal me atrevia a respirar, dominada pelo pavor. Quão grande era o poder do bruxo, para contrariar a vontade da própria Natureza? E que profecia era essa, da qual falavam? Eu tinha de descobrir a verdade, mas não podia continuar a espiá-los porque Sigarr se aperceberia. Se voltasse para casa, ficaria à mercê de Gunnulf. Recorrer à Pedra do Tempo era arriscado, pois esta só revelava o que queria e quando queria. Subitamente, o vento assobiou-me aos ouvidos o nome da única capaz de me dar uma resposta: A Velha do Tronco Oco...

”A Velha do Tronco Oco é a mais velha e a mais sábia das videntes”. Tu conhece-la, Catelyn! Vi quando lhe falaste durante o Festival de Inverno. Nesse dia, surpreendi-me por encontrá-la na aldeia, porque nunca deixa a sua casa, na floresta profunda. Mora dentro de uma árvore morta e gosta pouco de ser incomodada. Há quem diga que ela tem o poder de transformar os homens em animais ou em criaturas sem vontade, e que o faz apenas para se divertir.

”O desespero levou-me até aonde poucos já se aventuraram”. Estava escuro, mas o chão iluminava-se à minha frente, guiando os meus passos. Todos os medos que me fustigavam desapareceram mal vi a anciã, que me aguardava. Bebi sem receio o chá que me preparara e senti-me mais forte e confiante. Disse-lhe ao que vinha, e ela resmungou. Se os jovens da Terra Antiga respeitassem o passado da sua terra, não teriam de importunar os velhos para aprender acerca do futuro. Lançou os ossos sobre a sua manta, leu a minha mão e mirou-me dentro dos olhos. Depois, afirmou algo surpreendente:

”Não é de ti que a profecia fala.”

”Supliquei-lhe que me explicasse o que se passava, e a minha aflição comoveu-a”. Tornou a arrojar os ossos e, depois de uma pausa, mastigou:

”O Guardião da Lágrima da Lua corre atrás da cauda como um cachorro endoidecido”. Atira-se para o fundo do poço e pensa que está a saltar para fora dele. Quer alterar à força a sua sorte no tabuleiro da vida, mas enganou-se nas peças e desacertou na estratégia. “Até aonde a loucura dos Homens e a ambição dos Feiticeiros nos levará”?

”Pensei que ela iria regressar ao silêncio”, mas continuou:

”Se tivesses prestado atenção aos ensinamentos do teu avô, saberias que as lágrimas do dragão contêm o conhecimento absoluto. Por isso, o Conselho dos Feiticeiros decidiu separá-las. Nenhuma criatura deve possuir um poder igual ao do Criador, pois certamente sentirá a tentação de usurpar o Seu lugar. Os cristais não foram uma dádiva para os novos habitantes da Terra e sim uma armadilha. O dragão forneceu aos invasores um instrumento de destruição, esperando que o utilizassem rapidamente. Contudo, por uma razão desconhecida, as pedras mágicas podem ser manipuladas, mas o poder encarcerado nelas continua prisioneiro de uma vontade mais forte. Porém, a Terra não está segura! Há muito, foi profetizado que o Rei da Lua e a Rainha do Sol, portadores do mesmo sangue, darão à luz um primogênito varão, capaz de libertar o Poder Superior. O que esse homem fará quando se tornar deus, só o próprio Deus pode prever.”

”Atrevi-me a uma saraivada de perguntas, mas a vidente silenciou-me com brusquidão”: ”Até agora, os Guardiões mantiveram a tradição de transferir o seu poder para um filho varão. Mas os tempos mudaram, e as vontades distorceram-se. O único herdeiro do Guardião da Lágrima do Sol que possui vocação é uma mulher, e o Guardião da Lágrima da Lua sabe que jamais gerará herdeiros. Assim, Ingrior, filha de Thorgrim, da casa de Grim, tornou-se uma Rainha do Sol. E, por um pacto de sangue, Gunnulf, filho de Arngrim, da casa de Grim, foi feito Rei da Lua".

”Eu estava gelada de horror”. De um momento para o outro, o meu mundo ruíra, e eu mergulhara no caos. Acabara de descobrir que a minha vida estava a ser manipulada por uma força que me empurrava para o abismo e eu nem sequer sabia como defender-me.

”O Guardião da Lágrima da Lua deposita grande fé naquele que tomou como protegido. Há muito que tenta desequilibrar a balança do destino em seu proveito e avança, galgando todos os obstáculos para alcançar o poder que almeja. Neste momento, estão reunidas as condições para que o Filho do Dragão seja gerado... E quando a Natureza se recusa a obedecer à vontade do feiticeiro, ele não hesita em recorrer à Arte Maldita para atingir os seus objetivos.”

”Senti-me encurralada e até pensei em terminar com a vida”. Porém, a recordação da súplica da minha mãe para que cuidasse dos meus irmãos forçou-me a recuar. Desesperada, implorei à vidente que me dissesse o que fazer. A sua resposta foi imediata:

”Tu sempre soubeste o que devia ser feito... Vai e segue os teus instintos, neta de O Que Tudo Vê. Tens muito trabalho pela frente... Não, não me agradeças! Voltaremos a conversar... Talvez mais depressa do que ambas desejaríamos!”

Saí da floresta meio enlouquecida, sem vislumbrar a mais tênue solução. Inesperadamente, Gunnulf surgiu diante de mim, qual personificação do demônio. Há muito que me procurava e estava furioso. Berrou que nenhuma mulher abandonava a sua cama a meio da noite. Exigiu saber aonde eu fora e, quando me recusei a responder-lhe, acusou-me de adultério e agrediu-me. Furiosa, cuspi-lhe na cara o ódio e o nojo que ele me causava. E, quanto mais eu gritava, mais Gunnulf me batia. Acreditei que ele ia matar-me, mas parou subitamente e tombou ao meu lado, chorando como uma criança. Confessou que me amava... Que nunca amara outra mulher! Mas as suas súplicas por perdão não me comoveram.

Aproveitei a sua prostração para reagir e apelei a toda a força para correr ao encontro do abraço protetor da floresta. Ouvi-o clamar, cada vez mais perto, mas não desisti. De repente, parei de escutá-lo e apercebi-me de que estava no trilho mágico que me levaria ao cume da Montanha Sagrada. Gunnulf ficara para trás, sem hipótese de me perseguir.

Depois disso, só me recordo de acordar junto da Pedra do Tempo, envolvida pelo carinho de uns braços que há muito me haviam esquecido. Eu mal podia acreditar que Throst subira a Montanha por minha causa! A alguns passos, Trygve observava-nos em silêncio, e eu sentia-o estremecer, perturbado e indignado por me ver ferida. O meu irmão quis saber o que me acontecera, mas não tive coragem de lhe contar a verdade, temendo que me julgasse louca. Deixei-o acreditar que fora vítima de uma violenta briga conjugal e supliquei-lhe que não me forçasse a voltar para o Gunnulf. Throst garantiu-me que eu obteria o divórcio que desejava, mas que Gunnulf iria responder pelo que me fizera. O meu coração parou quando a sua mão deslizou para o punho da espada. Então, Trygve disse algo que jamais esquecerei:

Tu não podes enfrentar o Gunnulf, Throst! Se o fizeres, morrerás. E a tua morte em nada beneficiará a Ingrior, o Bjorn, ou aqueles que te amam e que de ti dependem. Só os insensatos e os loucos acreditam que tudo se resolve pela força. Deixa que o fogo se extinga e que o vento espalhe as cinzas. Apesar de tudo, eu acredito que o Gunnulf ainda não está perdido para o mal e, se existe alguém que lhe pode devolver a razão és tu!

Depois disto, descemos a Montanha e eu cumpri o ritual do divórcio. Diante dos vestígios da agressão brutal, ninguém contestou a minha vontade e, surpreendentemente, Gunnulf não opôs resistência; nem sequer tentou acusar-me de adultério para se defender, como seria esperado. Parecia disposto a aguardar que a poeira assentasse antes de atacar novamente.

Regressei à casa do meu pai, a esta casa, para a companhia dos meus irmãos... E de Trygve. E foi como tornar a nascer! A relação de Throst e Gunnulf arrefeceu um pouco, mas Gunnulf fez tudo para reconquistar a confiança do primo e lhe provar o seu arrependimento. Na Primavera, os guerreiros partiram para outra campanha, e Throst reafirmou lealdade ao seu líder. Eu sabia que a amizade que os unia acabaria por derreter o gelo.

Trygve permaneceu ao meu lado e o controlo que forçáramos durante anos depressa ruiu. Ele já era um homem feito e sabia o que queria. E eu estava ansiosa por conhecer o amor nos seus braços. Já me conformara com a impossibilidade de gerar filhos e, quando a minha barriga começou a crescer, chorei de alegria. No Outono, os guerreiros regressaram e Trygve enfrentou Throst, assumindo o nosso amor e pedindo-lhe que apoiasse a nossa união. O meu irmão autorizou, sem hesitações ou críticas, deixando claro que a minha felicidade era mais importante do que quaisquer preconceitos.

Só Gunnulf não compareceu ao casamento. A minha gravidez deixara-o possesso. Encheu a cama de escravas, pretendendo provar que também podia gerar filhos, mas os meses passaram-se e nada aconteceu.

Totalmente alheia à sua loucura, eu vivia um sonho sem fim, noites e dias repletos de felicidade. Mas o mal não tardou a rasgar o véu da minha alegria. No dia da desgraça, Trygve entrou na floresta para colher os ingredientes do nosso ofício. Eu não o acompanhei, porque a barriga já mal me permitia mover. Estava sozinha com Katla quando uma vertigem me atingiu. Eu senti a agonia do meu amor, Catelyn... Uma dor atroz, impossível de descrever! Larguei tudo e entrei na floresta, sem sequer pensar na segurança do filho que carregava no ventre. Encontrei o meu marido a agonizar num lago de sangue e lágrimas, lutando para reafirmar uma última vez o seu amor, enquanto me acariciava a barriga com os dedos trêmulos e gelados. A emoção acelerou-me o parto e, se a boa Katla não me tivesse seguido, teríamos morrido os três.

Durante algum tempo, desejei que tivesse sido essa a nossa sorte... Porém, quando reuni força para acalentar o meu filho e vi nos seus olhos o brilho dos olhos do pai, convenci-me de que eu tinha de viver... Tinha de viver pelo meu filho, pela memória de Trygve, pela felicidade dos meus irmãos e pela liberdade do meu povo!

O meu marido foi morto com a arma de um Vândalo, e a comunidade não descansou enquanto não caçou os invasores. Eu nunca vira um cenário de guerra... Mas a brutalidade e o horror a que assisti nesses dias não me trouxeram nenhum consolo.

Assim que pude, subi a Montanha e supliquei à presença invisível do meu avô que abençoasse o meu filho. Deixei Trygve dentro da gruta e dormi ao relento, junto à Pedra do Tempo. Nessa noite, tive um sonho estranho... Sonhei que um Lobo Cinzento deixava a alcatéia e vinha dormir nos meus braços. O brilho dos olhos selvagens aliviava a dor que me esmagava o coração... E nada podia ser mais reconfortante do que o calor do seu corpo. Despertei com o esplendor renovado do Sol. Na gruta, Trygve dormia serenamente enrolado nas mantas. E nos seus pulsos estava o testemunho da força do nosso sangue.

”A partir daí, apliquei-me no estudo das mensagens do meu avô". A paz e o conforto da sua casa ajudavam-me a suportar a solidão e a dor. Sigarr tornou a atacar-me com o seu veneno. Por que ”O Que Tudo Vê” não me avisara do futuro trágico de Trygve, para que o mal pudesse ser evitado? Como podia eu permanecer leal a alguém que abandonara a família e a desprezava? Não lhe dei ouvidos. Eu não precisava ver o meu avô para sentir a sua presença e acreditava que, se nada fizera para evitar a morte de Trygve, fora porque tal não estava ao seu alcance.

”Gunnulf também não desistiu". Mal o corpo de Trygve arrefecera, e já ele me afirmava o seu apoio e declarava o seu amor. Ostentando uma capa de inocência e generosidade, garantiu que esquecera o passado e que estava disposto a desposar-me de novo e a aceitar o sobrinho como seu filho. Eu deixei claro que não pretendia voltar a casar-me; que queria viver para o meu filho e dedicar-me aos ofícios de artesã e curandeira. Mas ele não desistiu e, antes de partir, na última Primavera, renovou o pedido.

”Apesar de o Throst não tocar no assunto, eu sei que o Gunnulf também o pressiona para me convencer". E tenho medo... Não por mim, que não temo a morte. Mas pelo meu filho, pela sua segurança e pelo seu futuro nesta terra. Todos os dias peço por Throst, para que o verdadeiro caminho lhe seja revelado; para que ele nos leve para longe da Terra Antiga, para uma nova vida no arquipélago com que sonho todas as noites.

Começava a perder a esperança, quando fui presenteada com uma surpresa. A Pedra do Tempo falou-me mais uma vez e revelou uma escuridão infindável, gélida e pesada como a morte. Subitamente, das profundezas do desespero surgiu uma luz, tênue a princípio, mas que ganhava vigor à medida que pulsava... Uma luz azul, brilhante e bela, que devorou a escuridão e me encheu de paz. Quando a bruma se desvaneceu, vi que a chama azul se encontrava nas mãos de Throst, que entrava dentro dele e lhe envolvia o coração, pulsando com um ardor capaz de despertar todas as consciências do mundo. E, no íntimo do espírito do meu irmão, o Lobo Cinzento que habita a sua alma abriu os olhos e bravejou todo o seu poder.

Quando acordei, não compreendi o significado da mensagem, mas senti que algo estava prestes a acontecer que mudaria a existência do meu irmão... E o destino de todos nós! Voltei para casa e recebi o apelo de Anna. Corri a ajudar no parto da Signy, mas cedo verifiquei que as vidas da mãe e do bebê se escapavam por entre os meus dedos. Nem Anna, com os seus conhecimentos do passado e o amor de avó, obtinha resultados.

Então, tu chegaste, e foi como se a luz da revelação brotasse do ventre da Terra Antiga. Quando te sentaste ao meu lado, eu apreendi a tua força, o teu poder... E, quando tocaste na Signy, vi a grandeza do teu coração, a tua coragem... E a tua magia.

Quem era a menina sem nome e sem voz, pequena e frágil, que dera a volta à cabeça do meu irmão? O Throst estava diferente! Apesar de sempre ter sido um homem justo e bondoso, era extremamente ponderado e frio no trato das emoções. A paixão estava gelada dentro do seu peito, e até Halldora se queixava do seu retraimento. Porém, perto de ti, o Throst descontrolava-se; os seus olhos ganhavam um brilho que eu nunca vira antes.

”Comecei a pressioná-lo, tanto, que ele acabou por confessar-me que tu eras filha de Garrick McGraw". Eu não vou mentir-te! Fiquei bastante angustiada com a revelação, não apenas porque sabia o dilema que o meu irmão enfrentava, mas também porque depositava grandes esperanças em ti. Confesso que vacilei nas minhas convicções. Como podia a filha do maior inimigo do povo viking ser a nossa salvadora? Todavia, sempre que nos encontrávamos, eu rendia-me a este carinho que nos une... E, quando descobri a pedra da tua avó, as minhas dúvidas finaram.

”Agora, que te abri a minha alma, resta-me estender-te a mão e perguntar-te com toda a ansiedade do meu coração... Subirás a Montanha comigo, Catelyn?”

 

Nessa noite, duas jovens subiram o trilho que conduzia ao berço da magia da Terra, sem medo, frio ou cansaço. Bem cedo, chegamos ao ribeiro onde eu procurara conforto, depois da vontade divina me ter unido a Throst. A pedra que testemunhara o nosso voto continuava impassível, cintilando com luz própria. E a água cristalina murmurava a cantilena que me era familiar: ”O sangue de dois deve mergulhar como um"...

A pedra do pacto ficou para trás e o caminho continuou a abrir-se. Os Lobos Cinzentos não andavam longe e interroguei-me se Ingrior os ouviria... Estaria Trygve entre eles? Eu não me esquecera da promessa que fizera ao meu primo. Conhecer a sua nobreza havia fortalecido o meu empenho. Eu não deixaria a Terra Antiga sem vingar a sua morte!

A minha exaltação aumentava a cada passo e, quando finalmente chegamos ao cume da Montanha, não contive uma exclamação de encanto, perante a beleza e o poder que se respirava a cada fôlego. A luz, que brotava da terra e iluminava os nossos passos, espalhava-se pelo ar e estendia-se até ao céu, como se este fosse realmente um lugar à parte da realidade. Mas, tal como Ingrior dissera, a beleza que nos rodeava tornava-se insignificante quando os nossos olhos eram atraídos para a majestosa pedra, que se erguia diante do abismo de escuridão e parecia tocar o céu. À sua volta, nuvens de denso nevoeiro colorido moviam-se incessantemente, assumindo formas fantásticas, pairando ao nosso encontro e dançando em redor dos nossos corpos, quente e úmido sobre a pele como vapor de água.

A pedra negra, prenhe de luz, libertava uma energia que me atraía irresistivelmente. Eu não conseguia pensar em mais nada, senão em tocá-la. Esqueci Ingrior; esqueci onde estava e o feiticeiro que procurava e caminhei até ela, qual mendigo esfomeado e sôfrego diante de uma mesa de banquete. O nevoeiro seguiu-me e envolveu-me, até esconder a minha carne; entrou-me pelo nariz e pela boca e inundou o meu ser. Quando toquei na Pedra do Tempo, já não era senhora da minha vontade.

A escuridão envolveu-me e senti-me arremessada sobre o mar, qual flecha disparada de um arco. Os meus gritos estridentes foram sufocados pelos estrondos que ecoavam ao meu redor. O céu abria-se e cuspia bolas de fogo a uma velocidade que os olhos mal conseguiam acompanhar. As que caíam no mar provocavam ondas gigantes que chocavam entre si e se precipitavam contra a costa, cobrindo os penhascos, rasgando as rochas, arrancando as árvores pelas raízes, numa devastação inigualável; as que tombavam na terra perfuravam o solo, esmagando montanhas e vomitando ondas de fogo que incineravam tudo o que existia ao alcance da vista, reduzindo a vida a cinzas.

O ar transformou-se em pó negro e escaldante, que aniquilava num único sopro. A dor que me fustigava sobrepunha-se à consciência. Eu já não tinha carne em cima dos ossos e estes ameaçavam desfazer-se. Só o meu espírito subsistiria para assistir à destruição do mundo. E foi o meu espírito que reuniu forças para regressar à Montanha Sagrada e enfrentar o seu Guardião, olhos nos olhos, num último exercício de vontade antes da extinção.

O dragão era uma criatura magnífica, alto e robusto como um carvalho adulto. As suas asas assemelhavam-se às velas de um barco, e a cauda, a uma serpente gigante. As unhas das mãos e dos pés tinham a forma de espadas curvas, capazes de me desfazer com uma carícia. O focinho era parecido com os desenhos medonhos que enfeitavam os corpos dos marinheiros. A boca larga e cheia de dentes devoraria o maior dos homens com uma única dentada. Mas o mais impressionante eram os seus olhos cor de estrelas, possuidores de uma sabedoria para além do alcance de outra criatura viva. Num só fôlego, a sua voz troou como o rugido de mil demônios:

- Isto não é o fim! Um dia a minha carne viverá na tua carne e tudo o que já foi voltará a ser!

E o meu espírito consumiu-se no fogo.

Acordei com a sensação de que me encontrava esmagada debaixo de uma carroça. O rosto bonito e carinhoso de Ingrior saudou-me, enquanto as suas mãos atenciosas me umedeciam as frontes e os lábios com um pano encharcado em água fresca.

- A primeira vez é a pior - murmurou apesar de eu ter a percepção de que ela gritava. - Não te preocupes! Vai já passar...

Ela tinha razão. Logo eu estava de pé, sacudindo o pó do vestido e esticando os membros doridos. Deixei-me arrastar até à gruta que penetrava no interior da Montanha e confirmei sem sombra de dúvida, que esta era habitada. Havia mantas espalhadas pelo chão, uma fogueira acesa, um pote cheio de água fresca e um cesto com raízes e frutos de aspecto delicioso. Dir-se-ia que o anfitrião preparara uma recepção para as visitas, antes de sair à pressa.

- Esta é a casa do meu avô - apresentou Ingrior, com tanta devoção e respeito que me arrepiou. - Eu sinto a sua presença muitas vezes, apesar de não o ver. Não sei por que ele se mantém nas sombras, mas respeito a sua opção. Pressinto que se aproxima o dia em que tudo se esclarecerá... E que tu serás a responsável pelo seu regresso!

- Crês que o teu avô se revelará se eu explicar bem alto a importância e a urgência da minha missão? - perguntei com uma inocência que lhe arrancou um sorriso.

- O meu avô sabe tudo o que há para saber acerca de ti, Catelyn - observou ela pacientemente. - Ele é ”O Que Tudo Vê”! Se não vier ao teu encontro hoje, teremos de continuar a tentar... Talvez este ainda não seja o momento certo!

Cerrei os dentes para conter a indignação. Ingrior não tinha culpa da irresponsabilidade do avô. Angustiada, pensei que talvez não houvesse esperança de derrotar Myrna. Mairwen avisara-me de que as expectativas de Aranwen e a minha espera seriam vãs. O que podia eu fazer sem orientação? A Arte pulsava em mim, mas eu não conseguia executá-la... Era como estar diante das letras do alfabeto, sem a menor pista sobre como juntá-las para formar palavras!

- Vem ver os livros, Catelyn!

O apelo de Ingrior arrancou-me da agonia, e cada passo na sua direção deixou-me mais aliviada. Vi materiais de escrita que ainda não tivera oportunidade de encontrar no país dos Vikings. As tintas também não faltavam, e constatei que a parede interior da gruta estava coberta com desenhos coloridos que contavam a história que eu já ouvira dos lábios de Ingrior. O Guardião da Montanha estava representado com uma fidelidade assustadora. Parecia que, a qualquer momento, iria libertar-se da rocha e ganhar vida. Num impulso arrebatado, descrevi à minha amiga o que a Pedra do Tempo me revelara. Ela escutou com atenção e opinou:

- Penso que tu estás de alguma forma, ligada a este lugar e à sua história. A Pedra levou-te até ao momento em que o mundo dos dragões encontrou o seu fim... O que o Guardião te disse está para além da minha compreensão. Mas, certamente, o meu avô saberá explicar-te!

Quase gritei de frustração. Como era possível que Ingrior ainda acreditasse que o seu avô se dignaria a aparecer? Enquanto eu lutava para me controlar, ela chamou-me a atenção para um desenho que mostrava um pedaço de terra pairando no céu, suspenso por cima das nuvens.

- Esta é a Ilha Sagrada - explicou -, o sítio onde os Seres Superiores escolheram viver. Nunca está num lugar certo, porque viaja pelo mundo ao sabor da vontade dos seus habitantes. O trilho que a liga à terra foi oculto para evitar o contacto com o Homem.

De seguida, mostrou-me um grande livro de aspecto frágil, com uma capa negra feita de pele de animal. Estava escrito numa letra desenhada e praticamente ilegível, mas que eu reconheci de imediato. Vi tudo tremido, perdi a força nas pernas e tive de segurar-me a Ingrior para não cair. Ela assustou-se e correu a buscar água. Eu forcei-me a folhear o livro, e as palavras ganharam vida na minha mente. Estava perante o diário de ”O Que Tudo Vê”, onde o feiticeiro registrara a história recente da Terra Antiga. Não era possível! Não era possível!!!

- O que aconteceu, Catelyn? - perguntou a minha amiga.

- Estás branca como cera! Diz-me, por favor!

Fixei o seu olhar azul-celeste e forcei a língua a mexer-se, apesar de a minha voz tremer tanto como o meu corpo.

- Há muitos anos, o meu irmão Berchan entregou-me um livro que fora confiado aos Sábios... Um livro igual a este que eu descobri tratar-se de um manual de feitiçaria. A sua sabedoria vive na minha mente, apesar de nunca me ter atrevido a utilizá-la. O livro estava escrito com esta letra... O livro pertencia ao teu avô

Ingrior não reagiu de imediato, mas, depois de uma breve hesitação, retrocedeu até ao início do livro. Apontou com o dedo e começou a ler:

- A minha glória está perdida, e os meus poderes, enfraquecidos. Resta-me a memória e a vontade de combater o mal que ameaça o mundo. Transformarei a magia em Runas para que o Conhecimento Superior do Guardião da Lágrima do Sol não morra na Terra. A Pedra do Tempo mostrou-me que ainda existe uma esperança para o

Homem... E para Deus. O mar entregará as minhas palavras aos Sábios para que, um dia, a Escolhida possa regressar com a sabedoria que nos salvará a todos. Depois disto, ainda duvidas da tua missão nesta terra, Catelyn?

Ingrior insistiu para que passássemos a noite na gruta. Ainda acalentava a esperança de que o seu avô se revelasse com a luz da manhã. Sentamo-nos à fogueira, comendo os frutos, com as mantas por cima dos ombros. Falamos de nós, das nossas experiências e do medo que o futuro nos inspirava. Perguntei-lhe se a Senhora da Lua poderia ser Myrna. Se eu falhasse a minha missão e a feiticeira destruísse a Grande Ilha, depressa atacaria os que me haviam ajudado. Ingrior não sabia, mas confessou que se sentia melhor depois de partilhar a sua história e desabafar o seu desgosto.

O que eu ouvira mudara, em muito, a percepção do que me rodeava. O mais inquietante fora a confirmação de que Gunnulf e Sigarr, além de monstros de egoísmo e crueldade, também eram conspiradores com propósitos obscuros e letais. Duvidar que o guerreiro-urso conhecia a minha identidade afigurava-se ingênuo e perigoso. Por que não me trespassara com o aço da sua espada, no momento em que me pusera os olhos em cima, era uma pergunta que urgia resposta. Mas, pior do que isso, fora descobrir a importância de Sigarr e reconhecê-lo como um inimigo declarado. Se a sua atitude sempre me parecera estranha, agora revelava-se contraditória e suspeita. Que plano diabólico estaria aquela mente perversa a cozinhar?

E o que dizer das revelações da Pedra do Tempo? As interpretações de Ingrior eram assustadoras. Ela não só insistia na minha ligação à Terra Antiga como se afirmava convicta de que o seu irmão e eu estávamos destinados a viver um grande amor. E, se uma parte de mim se recusava a admitir tal possibilidade, a outra tremia sempre que recordava o ímpeto apaixonado do guerreiro viking, durante a nossa última conversa. Por mais que eu repetisse para mim própria que, assim que Throst assumisse a sua missão e o Lobo liderasse o exército da paz, nós teríamos forçosamente de nos separar; por mais que eu sofresse ao pensar que o sangue do meu povo estava entranhado nas suas mãos; por mais que me lembrasse de que ele pertencia a Halldora, não conseguia evitar o calor que me enchia o peito e o formigueiro que se instalava na minha barriga, ante as recordações que me atormentavam. Raios! Não tinha eu já problemas suficientes? Precisava inventar mais um? Throst não significava nada para mim! Nada!

Ingrior adormeceu, sem suspeitar do meu dilema. Eu pensei que não conseguiria fechar os olhos, mas o calor das mantas e a proteção da magia depressa venceram. Enquanto dormia, o nevoeiro colorido cobriu-me a pele e fez-me cócegas no nariz. Inspirei um fôlego vazio e abandonei a concha que era o meu corpo, seguindo a névoa que me guiava para uma passagem que se rasgara na parede da rocha. A Montanha ia desvendar-me um segredo! Avancei pelo corredor de pedra, sem hesitação, até que uma luz semelhante à do sol me envolveu, e o meu espírito se agitou de pasmo e maravilha.

Encontrava-me numa gruta de estonteante beleza. O teto alto estava repleto de colunas de minerais coloridos e cintilantes que pendiam como lágrimas. Formações idênticas erguiam-se do chão, algumas maiores do que eu, assumindo todas as formas que a imaginação concebia. A luz forte era irradiada da própria parede, numa mistura de cores, como se pedras preciosas a cobrissem. Muito acima da minha cabeça, a água brotava com uma força admirável, precipitava-se pela parede, formava uma lagoa e desaparecia novamente dentro da rocha. O ar estava quente e pequenas nuvens de vapor libertavam-se da água. Uma pedra escura e brilhante elevava-se do centro da lagoa, despertando a minha curiosidade, até me ser impossível resistir-lhe. Dei por mim dentro do líquido morno, deslumbrando-me com a infinidade de cores que faiscavam ao meu redor. Pequenas bolhas de ar libertavam-se da rocha submersa e flutuavam até à superfície, estalando à minha volta e de encontro à minha pele.

A pedra que guardava o lago era levemente inclinada e lisa, tão confortável como uma cama. Deitei-me sobre ela e entreguei-me ao prazer de apreciar a beleza exclusiva deste lugar secreto, desvendado apenas para o meu conhecimento. Talvez tivesse sido nesta mesma pedra que o dragão dormira, enquanto o mundo se regenerava! Eu podia ficar aqui por uma eternidade e esquecer-me de tudo...

Despertei dolorosamente, lutando para respirar. Apesar do meu sobressalto, Ingrior dormia como um bebê. Belisquei-me para ter a certeza de que estava acordada. O sonho fora tão real!

Levantei-me e percorri a parede da gruta com os dedos, buscando a misteriosa passagem. As minhas unhas esgravataram a rocha sólida, em vão. Respirei fundo e encostei o rosto escaldante à superfície gelada. Eu estava a enlouquecer! Já confundia realidade com sonhos, sonhos com Visões...

Preparava-me para chamar Ingrior, quando um apelo urgente e inconfundível me deteve. A Pedra do Tempo reclamava a minha presença.

Saí para debaixo do céu e inspirei o ar fresco da manhã, sentindo-me imediatamente mais calma. Este era um lugar abençoado, onde todas as feridas saravam e os espíritos se reuniam para descansar. Deixei que a brisa me transportasse até à majestosa pedra e voltei a maravilhar-me. A névoa levantara e, diante de mim, estendia-se uma paisagem de tirar o fôlego - terra, céu e mar; castanho, branco, verde e azul. A brisa, perfumada e amena, transportava uma voz suave:

”Sobe a montanha, Catelyn"...

Ouvia-o tão claramente como se estivesse ao meu lado. Fora com ”O Que Tudo Vê” que eu falara, há muitos anos, quando tocara pela primeira vez no livro de magia. Voltei-me para enfrentar a presença que se manifestara, esperando encontrar o feiticeiro, vestido de branco, com longas barbas, cabelos louros entrançados e olhos azuis profundos como os do seu neto. Mas não era Hakon quem ali estava. Era Aranwen!

Incapaz de controlar a emoção do reencontro tombei aos seus pés soluçando:

- Eu falhei avó... Falhei à minha família, ao meu povo... Sinto muito!

As suas mãos doces ajudaram-me a erguer, enquanto ela replicava: Percorreste um longo caminho, minha neta... Não sejas tão dura contigo!

Fizeste o que devias e venceste a tua primeira batalha.

Estremeci diante do olhar verde-floresta que refletia o meu, sem entender o que a minha avó queria dizer. Só consegui tartamudear:

- Mas... A minha família... Os meus irmãos...

”Os teus irmãos estão bem e a trabalhar arduamente para o futuro do mundo, tal como tu.”

O Sol inundou-me a alma, o alívio amoleceu-me o corpo. Porém, a minha euforia só durou uma batida de coração, pois logo fui assombrada pela negra fatalidade:

- A maldição.. A avó tem de avisá-los! ”Sabes que não posso fazê-lo, Catelyn!”

A mesma força que me fizera pairar de felicidade esmagou-me contra o chão. Tapei o rosto com as mãos, extravasando o meu desespero:

- O Quinn e o Aled morreram por minha causa... Eu possuía o conhecimento para evitar a desgraça e nada fiz...

”Não te culpes pelas vidas que se perderam, querida! Cada um dos teus irmãos tomou uma opção alheia à tua vontade. Um dia, chegará a tua vez... E só nesse dia a escolha será tua!”

- Mas como podem eles lutar contra algo que desconhecem? O Edwin e o Berchan serão sacrificados, antes que eu seja posta à prova!

”Não subestimes as capacidades do teu sangue, querida! Os teus irmãos não têm o teu poder, mas possuem outros recursos"...

Eu não estava convencida! Se tivesse forçado o Berchan a escutar-me, na noite em que Fiona nascera, ter-se-iam evitado ódios, mortes, a guerra... Myrna teria sido destruída antes de ter oportunidade de espalhar o mal, e eu seria uma jovem igual às outras e viveria feliz...

Alcançando os meus pensamentos, Aranwen retorquiu:

”Tu sabes que não vieste para a Terra Antiga por acaso! Por vezes, temos de fazer sacrifícios para que outros desfrutem do que nos é negado. Se não houver paz na Terra Antiga, não haverá paz na Grande Ilha. Se não houver paz na Grande Ilha, todo o mundo estará ameaçado. Eu conheço o teu sofrimento melhor do que ninguém! Mas a realidade é impiedosa! Só tu podes vencer esta adversidade... Se fraquejares se desistires, não existirá amanhã para o Homem.”

Fiquei muda gelada ante a crueza das suas palavras. Ignorando a minha palidez cadavérica, ela continuou:

”Acredita que a tua presença aqui é uma grande vitória! Mas não podes continuar agarrada ao passado! Tens de seguir em frente... Não temas, Catelyn! Existem muitos a olhar por ti e pela tua proteção.”

Por mais que a sua frieza me magoasse, a minha avó tinha razão. Eu não podia deitar-me no chão a carpir, esperando que o tempo voltasse para trás. Se concluísse rapidamente a minha missão na Terra Antiga, talvez regressasse à Grande Ilha a tempo de avisar os meus irmãos da maldição de Myrna. Seria essa a esperança que me empurraria adiante!

- Eu juro que tenho tentado progredir, avó! Mas não posso continuar sem uma orientação! Diga-me, o que é necessário para convencer ”O Que Tudo Vê” a ajudar-me?

 ”Lamento, Catelyn, mas ”O Que Tudo Vê” nada pode fazer por ti, neste momento"!

- Então...?

”Para combater o mal, terás de conhecer a sua verdadeira face. E o mal virá até ti e tentará iludir-te, mas tu serás mais esperta, mais forte, e irás derrotá-lo no seu jogo. Aceita as suas condições sem temor e toma o que te oferece, pois ser-te-á de grande valia. Contudo, nunca te esqueças de quem és. Recorda-te de que na guerra da ilusão só haverá um vencedor. E, tal como tu, o mal não pode perder!”

Senti a força a abandonar-me e não pude evitar a rebelião:

- Eu não entendo avó! E não posso perder mais tempo a decifrar enigmas!

Ela manteve-se impassível ao responder:

”Apesar de não te aperceberes, cada gesto que esboças cada passo que dás cada palavra que dizes cada decisão que tomas, por mais insignificantes que te pareçam, estão a pesar na balança do destino, Neste instante, o futuro está ao alcance das tuas mãos. Fecha os olhos, querida, e deixa-te guiar ao encontro das respostas que procuras.”

As mãos de Aranwen repousaram nas minhas. Uma brisa quente passou por nós, trazendo o cheiro das folhas virgens das florestas da Grande Ilha. O Sol aqueceu, e eu tive a certeza de que ouvia o cântico doce do ribeiro. A minha mão tocou a superfície enrugada da Pedra do Tempo, e a voz da minha avó pairou como as notas suaves de uma flauta:

”O teu destino é uma página inacabada do livro da vida. O caminho é longo, cheio de sobressaltos... E a batalha entre a mente e o coração decidirá a sorte do mundo.”

Fui fustigada pela vertigem de disparo de flecha e abri os olhos no meio de uma multidão vestida de festa, sorridente e faladora, que se afastava e curvava à minha passagem. De entre o povo, distingui a face enrugada da Velha do Tronco Oco, que repetia uma e outra vez: ”O sangue de dois deve mergulhar como um"...

Tive de proteger a vista quando a luz desceu sobre mim. Surpreendi-me no quarto do dragão, no centro do lago, deitada na pedra escura e brilhante como no meu sonho... Só que, desta vez, não estava sozinha! Senti o calor do corpo másculo do meu amante, a sua respiração ofegante junto do meu rosto, o aperto da sua mão na minha, enquanto as nossas cicatrizes sangravam numa renovação perpétua dos votos que nos uniam. Os olhos de Throst brilhavam como estrelas ao murmurar: ”Sou teu, meu amor... Teu, de corpo e espírito"...

Berrei o seu nome até a garganta se rasgar. A força do meu grito misturou-se com o troar de centenas de pés em corrida. À minha frente estendia-se uma planície sem fim, salpicada de cores vivas e bafejada por uma aragem perfumada. Reconheci muitos dos guerreiros que empunhavam as suas espadas e machados, mas aquele que seguiam não era humano. Era um Lobo Cinzento, portador de um poder que arrepiava a alma. Ao seu lado corria outra criatura fabulosa - um urso gigantesco... Um colosso de força e imponência. Mas não foi o animal que me impressionou e sim a visão da coroa que cintilava na sua cabeça. O urso era o rei do povo viking.

Ingrior despertou-me suavemente. Tentei sorrir, perante a sua preocupada interrogação, mas não tive ânimo. Como era hábito, a minha amiga não perdeu tempo com rodeios:

- Voltaste a falar com a Pedra do Tempo?

Confirmei, inspirando a brisa da manhã para me certificar de que era real.

- A minha avó veio ao meu encontro.

A testa de Ingrior franziu-se e a sua expressão denunciou decepção.

- A tua avó? Tive esperança de que o meu avô...

- ”O Que Tudo Vê” não pode ajudar-me - interrompi, estremecendo ao recordar as palavras de Aranwen. - A minha avó disse que eu preciso conhecer a verdadeira face do mal para o enfrentar e que o mal virá até mim. Não percebo o que isso significa... Tenho medo, Ingrior!

Apesar de tudo, era bom dividir a agonia com alguém; sentir o abraço carinhoso e protetor da minha amiga, mesmo sabendo que ela não podia valer-me. Depois de um instante de reflexão, Ingrior respondeu:

- Tu não estás desamparada, Catelyn! A tua avó não permitirá que te magoem. Se algum mal te prostrasse, quem combateria a bruxa da Grande Ilha? Deves seguir as suas instruções, tal como eu sigo as do meu avô, mesmo que não as compreendas ou que delas discordes... Estou certa de que, no futuro, tudo fará sentido!

Como eu gostaria de partilhar do seu otimismo! A minha cabeça latejava, fustigada pela confusão. A Pedra do Tempo mostrara-me um futuro perturbador e contraditório. Eu vira o povo viking aclamando-me... E escutara a declaração de amor de Throst, num lugar que só existia na minha imaginação. A insistência romântica de Ingrior começava a provocar-me delírios, a descontrolar-me, a alimentar o meu desejo mais secreto e imoral!

Ainda assim, o que mais me preocupava era a última parte da Visão - aquela que revelara Gunnulf, o guerreiro-urso, como o rei do seu povo. O rei Gunnulf jamais lutaria pela paz! Como soberano, desejaria tornar-se o maior conquistador de sempre e banhar-se no sangue dos seus inimigos. De nada me valeria despertar o Lobo Cinzento na alma de Throst, se depois ele colocasse a sua espada ao serviço de um tirano e esquecesse a razão por que nascera! Eu tinha de impedir essa calamidade ou tudo estaria perdido!

Não me atrevi a contar a Ingrior a Visão do rei urso e do seu companheiro lobo. Se ela morria de medo do Gunnulf, quando soubesse que o destino planeava entregar tamanho poder nas mãos sanguinárias, ficaria arrasada. Este era só mais um problema que eu teria de resolver. Conversar com Throst e tentar chamá-lo à razão parecia-me a única coisa a fazer. Porém, desde o dia da nossa discussão, o guerreiro não regressara a casa. Ingrior mandara saber do irmão e haviam-na informado de que este se encontrava hospedado na Herdade de Grim. Ingrior ficara desgostosa... E eu ficara muito triste, apesar de não me atrever a admiti-lo. Era óbvio que Throst regressara para os braços de Halldora. Por mais que eu repetisse que era assim que devia ser, o coração esbofeteava-me a mente. Raios! Por que é que eu não conseguia arrancá-lo do meu pensamento?

Uma sensação de angústia intolerável tomou-me de surpresa, interrompendo a minha consumição. Fiquei gelada, sentindo os pêlos do corpo eriçarem-se, enquanto o coração acelerava dentro do peito. Por cima da minha cabeça, a pequena coruja branca piou estridentemente e desapareceu pelo buraco da chaminé. Quase de imediato, eu ouvi o galope de um cavalo que se aproximava. Ergui os olhos da manta que remendava e encontrei a expressão carregada de Ingrior. Também ela sentia igual desconforto. Aquele não era um cavaleiro comum!

Saímos para receber Sigarr. O feiticeiro deslizou do seu cavalo com a leveza de uma pluma, saudou-nos com um aceno e começou sem hesitações:

- Trago uma mensagem do Throst, Ingrior. Ele ficará na casa do Gunnulf por mais alguns dias e depois partirá numa viagem de objetivos comerciais, que durará várias semanas. Quando regressar, irá oficializar o noivado com a filha de Arngrim. Não precisas de desassossegar-te com os preparativos para a festa. A noiva insiste em tratar de tudo. Serás avisada com a devida antecedência para que possas comparecer.

Eu estava chocada, e Ingrior não se encontrava melhor. Throst saíra de casa sem dar satisfações à família e agora enviava um mensageiro sinistro para o justificar, através de uma mensagem que colocava a irmã perante fatos consumados, sem hipótese de argumentação.

- Eu não acredito que o meu irmão tenha decidido casar-se tão repentinamente...

Sigarr silenciou o ímpeto de Ingrior com um gesto impaciente:

- Eu só falei em noivado. O Throst insiste em que o casamento se realize no Outono, e o Gunnulf deu o seu acordo. Veremos se a vontade dos vossos pais será finalmente respeitada!

A maldade deste homem estalava-lhe na pele. A sua insinuação venenosa tencionava apenas ferir Ingrior. Eu senti que ela estremecia, mas, quando respondeu, fê-lo no tom controlado que eu tanto admirava:

- Agradeço-lhe pelo seu incômodo. Agora, se nada tem a acrescentar...

Sigarr sorriu ante a sua ousadia e replicou jocosamente:

- É sempre um prazer visitar-te... Prima!

Era óbvio que ele conhecia a aversão que Ingrior lhe devotava e divertia-se a provocá-la. Ignorando o nosso desconforto, aproximou-se devagar, fixando em mim o olhar cintilante.

- O Throst contou-me que recuperaste a voz... Fico feliz por ti, Catelyn da Floresta Sagrada da Grande Ilha! - Fez uma pausa, apreciando o impacto das suas palavras. - Encontraste na Montanha Sagrada aquilo que procuravas?

As minhas entranhas reviraram-se. Agora eu estava em pânico! Como podia Sigarr saber...? Era evidente que sabia! Indignou-se a minha mente, furiosa com a sua própria ingenuidade. Não era ele o Guardião da Lágrima da Lua? A Montanha Sagrada também fazia parte da sua essência.

- É certo que não encontraste! - continuou o feiticeiro, sem aguardar uma resposta. - Só os tolos acreditam que, um dia, o grande ”O Que Tudo Vê” retornará ao mundo dos vivos...

- Deixe a Catelyn em paz! - gritou Ingrior, cedendo à ira. - As suas opiniões não nos interessam...

- Fala por ti, rapariga insolente - atalhou o feiticeiro, num tom que soou como a derrocada de um penhasco. - Felizmente, a tua amiga é independente para assumir as suas decisões. E os teus recursos estão a terminar, não é verdade, Catelyn? Parece que ninguém está disposto a ajudar-te, e os que tentam nada conseguem senão estorvar! - Mirou Ingrior com um esgar de desprezo. - Não percas mais tempo com companhias que só te desviarão do teu verdadeiro objetivo, filha da Grande Ilha. Vem visitar-me esta noite e eu dar-te-ei o que precisas.

Subiu para o cavalo com a subtileza com que descera e partiu sem pressa. Eu continuei pregada ao chão, incapaz de reagir. Acabara de perceber a mensagem da minha avó, e a revelação não podia ser mais aterradora. Ingrior tremia quase tanto como eu, mas falou primeiro.

- Penso que já descobriste quem será o teu tutor!

A custo forcei os lábios a moverem-se num gemido doloroso.

- Não é possível! Como pode a minha avó sujeitar-me a tal provação?

A mão de Ingrior apertou a minha, tentando confortar-me.

- O Sigarr pode ensinar-te coisas que mais ninguém sabe Catelyn. Aprender não te fará mal! O uso que darás a esse conhecimento é que marcará a diferença.

Arfei, sentindo a cabeça a rodopiar e a vista a turvar-se. Tinha de lutar contra o medo. Não podia deixar que essa emoção fútil e inútil me vencesse. Apertei as frontes entre as mãos com toda a força, como se tentasse impedir que a cabeça me tombasse de cima dos ombros.

- Se o feiticeiro sabe que eu estive na Montanha, também tem noção do que lá se passou! Como pode a minha avó proteger-me se ele estiver sempre um passo à sua frente?

Ingrior suspirou profundamente, ponderando na resposta.

- O Sigarr sabe que subiste a Montanha e talvez até saiba que falaste com a tua avó, mas o que vós dissestes está fora do seu alcance. Por experiência própria, sei que ele só consegue aceder a alguns dos nossos pensamentos. Se o bruxo pudesse ler as mentes, não teria de cozinhar as tripas dos seus inimigos! - Poderia ser um gracejo, mas nenhuma de nós sentia vontade de rir. - Percebo que a decisão que tu enfrentas não é simples, nem agradável. Vou deixar-te sozinha para que possas refletir. Contudo, se sentires que estás a perder o rumo, procura-me de imediato. Eu estarei sempre ao teu lado, Catelyn!

O apoio de Ingrior era-me precioso, mas eu não estava apenas perturbada porque sabia que iria enfrentar a vontade de um feiticeiro negro, nessa noite. O recado que Sigarr entregara deixara-me prostrada. Throst estava prestes a ficar noivo... Throst ia casar-se com Halldora; com a mulher que amava! Ingrior podia teimar o contrário, mas o irmão há muito que fizera a sua escolha e não prescindiria dela. E eu não devia importar-me! Pelo contrário, devia dar-me por satisfeita, já que as possibilidades de a minha premonição se realizar diminuíam drasticamente. Então, por que raio ainda perdia tempo a remoer? Eu tinha de concentrar-me na minha missão! Devia pensar na destruição de Myrna e em nada mais!

 

Parei o meu cavalo diante da casa de Sigarr. Um jovem pouco mais velho do que Bjorn veio receber-me e levou o animal para descansar. A pesada porta de madeira abriu-se, sem que ninguém lhe tocasse, e eu entrei no mundo do Guardião da Lágrima da Lua.

Ao contrário do que temera, não havia esqueletos humanos pendurados nas paredes, nem criaturas hediondas espreitando na escuridão. A casa de Sigarr era grande, estava bem iluminada e magnificamente decorada com ricos artefatos, estátuas de madeira, cobre prata e ouro, jóias deslumbrantes, tapeçarias e tecidos dignos de reis, armaduras de bravos guerreiros, armas fenomenais, pedras brilhantes como eu nunca vira, quadros com imagens magníficas de outros reinos, castiçais majestosos... Eu jamais imaginaria tanto conforto e riqueza numa morada da Terra Antiga.

Sigarr encontrava-se sentado à mesa, numa cadeira estofada, comendo com talheres de ouro, dentro de um prato de ouro e bebendo de um cálice do mesmo metal. Se desejava impressionar-me, tinha conseguido.

- Aproxima-te sem receio, Catelyn! Senta-te! Há quanto tempo não vias uma cadeira? Tragam um prato, talheres e um cálice. A minha convidada ceará comigo.

Vindos do nada, apareceram dois rapazes ainda mais novos do que o primeiro. Guiaram-me até à mesa e acomodaram-me. Eu era filha de um senhor da guerra poderoso e abastado, estivera noiva do primo do rei, mas nunca comera com utensílios de ouro.

- Prova este vinho, Catelyn... É um néctar dos deuses! Bebe sem medo, rapariga! Não pretendo envenenar-te!

Eu bebi e comi à mesa com o feiticeiro negro, no mais absoluto silêncio. Sigarr demorou-se a observar-me, e eu podia jurar que não havia maldade nos seus olhos azuis, apenas uma infinita tristeza. Não tinha fome e sentia-me desconfortável, mas forcei-me a apreciar a iguaria que me escorregava pela garganta, num esforço inconsciente de adiar o que me esperava. Assim que terminei, ele estendeu-me a sua mão galantemente, convidando-me a segui-lo. Quando me tocou, mal evitei um gesto de repulsa. A pele de Sigarr estava gelada como a de um morto.

O feiticeiro levou-me para uma zona privada da casa e, de novo, eu pasmei. O chão estava coberto por almofadas de linho e lã, por mantas pesadas bordadas a ouro, por peles de animais estranhos e coloridos, que eu nunca vira antes...

- Senta-te! Tu sempre foste demasiado rebelde para viveres como uma princesa, mas decerto apreciarás um pouco do conforto de que não podes desfrutar nas casas da aldeia.

Afundei-me na hospitalidade de Sigarr. Um dos rapazes colocou uma manta de pêlo e uma bandeja de prata sobre o meu colo. A bandeja servida ao anfitrião estava cheia com folhas largas e ervas moídas. O feiticeiro colocou as ervas dentro de uma das folhas e enrolou-a. Tocou com um dedo no rolo, e este começou a arder. Depois, levou a outra extremidade aos lábios e inspirou com força e declarado prazer o sabor do fumo que se soltava. Por fim, convidou-me a imitá-lo.

O meu coração chicoteava-me o peito. Perto de Sigarr, tudo parecia novo e intimidador, mas igualmente excitante. Movia-me a confiança estranha e quase irracional de que o feiticeiro não me faria mal... Pelo menos, por enquanto!

- Tu és uma mulher muito bela, Catelyn... Não precisas de esforçar-te para despertar a paixão nos homens. Tal como Aranwen... Vós sois iguais como duas gotas de água!

Seria o efeito da bebida e do fumo doce? A voz de Sigarr soava-me embevecida! Estremeci, sabendo que chegara o momento da verdade.

- O senhor conheceu a minha avó? Surpreendentemente, Sigarr sorriu e desviou o seu olhar. Por um breve instante, pareceu-me quase tão belo como assustador.

- A tua avó não era alguém que se conseguisse ignorar! - Tornou a estender-me o pequeno rolo de ervas. - Nós trilhávamos caminhos diferentes e possuíamos ambições distintas, mas eu admirava a sua força e fui muitas vezes tentado pela sua beleza.

Quedei-me estupefata, com o canudo consumindo-se lentamente entre os meus dedos.

- Por que fazes essa expressão de espanto? - Sigarr acentuou o sorriso e recostou-se nas almofadas. - Nem mesmo um coração negro consegue ficar indiferente à beleza! Mas o destino de Aranwen era diferente do que qualquer um podia prever até mesmo os seus mentores. - Fez uma pausa, apreciando o fumo doce. - Como devo começar Catelyn? Era uma vez? Não! É assim que se começam os contos de fadas... E este não é um conto de fadas! É uma história de decepção, de amargura, de frustração e de ódio.

Quando os Homens começaram a espalhar-se como uma praga incontrolável, os Seres Superiores perceberam que não podiam ignorá-los. Muitos opinaram que o tempo dos Feiticeiros na Terra terminara e que deviam retirar-se para a Ilha Sagrada, onde ficariam a salvo do jugo dos invasores e poderiam continuar a desenvolver os seus estudos e a sua Arte. Outros teimaram que a convivência era possível, desde que se respeitassem as regras e se punisse severamente os infratores.

”Aranwen foi a eleita para dirigir os destinos e controlar os ímpetos dos Homens, na Grande Ilha. Ela era a mais jovem de três irmãs e, de longe, a mais bela e habilidosa. Não havia seu igual que não a admirasse e poucos não a desejavam. Contudo, Aranwen não estava interessada em namorar, como as irmãs. Idealista e determinada defendia apaixonadamente que o convívio entre Homens e Feiticeiros seria proveitoso para ambas as raças. Todavia, durante décadas, os seus esforços revelaram-se vãos. Foi então que um homem se destacou de entre os demais.

Cinaed, um jovem e arisco guerreiro, conseguiu a proeza de unir os clãs da Grande Ilha em consenso, algo que os Feiticeiros já acreditavam impossível. Dizia-se dele coisas formidáveis: que era belo, valoroso e corajoso... Que a sua força era equivalente à sua bondade e que possuía a admiração e a devoção dos da sua raça.

Os Sacerdotes Superiores instruíram Aranwen para que abordasse esse homem. Era imperativo estabelecer as regras de coexistência. Todavia, quando a feiticeira e o guerreiro se encontraram, o impensável aconteceu. Cinaed declarou-lhe o seu amor ao primeiro olhar, e Aranwen deixou-se arrebatar pela força da paixão. Enlouqueceu de tal forma, que quebrou todas as regras e todos os votos que fizera, unindo-se de corpo e alma a um humano.

Apesar de saber que o Poder Superior lhe seria arrebatado, a tua avó não se conformou com o rigor da lei do seu povo. Dispondo do conhecimento para trapacear o Conselho, ela reuniu sete pedras e encantou-as, para que estas retivessem a sua magia na Terra quando a punição lhe fosse aplicada. Tudo indicava que, em breve, o mundo dos Feiticeiros se fecharia aos Humanos e, quando isso acontecesse, Aranwen poderia recuperar o seu poder. E a primeira parte desse plano foi um sucesso. O feitiço que a condenaria a uma existência simplória deu origem a sete magníficas pedras mágicas. Só lhe restava esperar pelo momento certo e concluir a sua intenção. Porém, sem que ela desconfiasse, outras forças conspiravam contra a sua felicidade.

Gwendalin era a irmã mais velha de Aranwen e sempre a invejara pela sua beleza pura e exímio controlo da Arte. Desdenhava do espírito empreendedor da irmã e preferia concentrar as suas próprias habilidades na organização de festas e na exibição dos seus atributos. Foi num desses banquetes que conheceu Cinaed, antes de Aranwen saber da sua existência, e também ela não resistiu aos encantos do guerreiro. Apaixonada, tentou a sorte junto dele, mas foi desenganada... No seu entender, desprezada... Por um reles humano!

Quando Aranwen tomou sem dificuldade o que ela tanto desejava, Gwendalin perdeu a cabeça e jurou que a felicidade da irmã seria efêmera. Na lei dos Seres Superiores não existia punição para um feiticeiro que matasse um humano, e Gwendalin executou a sua vingança com perícia e sem remorso, assassinando Cinaed à traição. Porém, esqueceu-se da Visão de Aranwen, que não finara com a punição. Confrontada com a fúria da irmã, Gwendalin deu vazão ao ódio que sempre as dividira e empurrou-a do mais alto penhasco da Enseada da Fortaleza. Foi assim que Aranwen encontrou a morte na rebentação do mar, por entre as rochas afiadas.

”Gwendalin convenceu o povo de que Aranwen se suicidara, enlouquecida pelo desgosto da perda do amado. Todavia, não teve a mesma sorte com os Sacerdotes Superiores. Como a punição por matar um igual era terrível, Gwendalin alegou que Aranwen já não era uma feiticeira e sim uma traidora das Leis Sagradas. Mas esses argumentos não a salvaram da condenação. Além de perder os seus poderes, o seu tempo de vida foi comparado ao humano e aplicado, transformando uma das mais belas mulheres da sua raça numa velha decrépita e abominável.

”Devo explicar-te que o poder de um feiticeiro nunca é completamente sanado, mesmo quando arrebatado pelo Conselho Superior. Algo subsiste como o poder da Cura ou da Visão. No caso de Gwendalin, prevaleceu a sua maior habilidade: a força para praticar o mal. Sabendo que lhe restava pouco tempo de vida e esfomeada por vingança, ela buscou ajuda junto de um mestre da Arte Obscura e entregou-se à sua orientação. Esse feiticeiro ensinou-lhe como sobreviver. Através da captura da essência dos não-nascidos, a sua idade poderia recuar e, se os não-nascidos descendessem de uma linhagem de Feiticeiros, as suas capacidades seriam igualmente restabelecidas, devido ao Poder Superior usurpado com a vida.

Durante anos, Gwendalin percorreu o mundo dos Homens arrancando vidas dos ventres. Quando regressou à Grande Ilha, já era uma feiticeira poderosa. Contudo, o poder não lhe bastava. Ela ansiava por desforra contra o seu próprio sangue. Sabia que os descendentes de Aranwen possuíam grandes habilidades, mas isso não a assustava. Afinal, não passavam de humanos! Jamais poderia prever a existência de uma criança muito especial...

”Observando a evolução de Gwendalin, o Conselho Superior concordou que era necessário interferir. Se a feiticeira triunfasse, não hesitaria em usar o seu poder e o controlo sobre o mundo dos Homens para atacá-los. Como haviam jurado não regressar à Terra, só lhes restava restituir a magia a um dos feiticeiros condenados ou fazer nascer um humano que, apesar da sua essência própria, também possuísse Sangue Superior. A primeira opção era perigosa, pois arriscavam-se a criar outra Gwendalin após a morte desta ou, num cenário pior, dar à feiticeira um aliado na sua vingança. Decidiram-se, pois, pela segunda possibilidade. Um feiticeiro nasceria de um ventre humano e seria o instrumento da destruição de Gwendalin. E foi assim que a herdeira de Aranwen se tornou a última feiticeira nascida na Terra.

Mal descobriu este plano, Gwendalin agiu de imediato, roubando a vida da mais jovem descendente do seu sangue, ainda não-nascida. A essência da criança era tão forte que ela acreditou ter virado a arma dos Seres Superiores contra os próprios. Descobriu que se enganara no momento em que a bebê nasceu. Depois da sua intervenção, a sobrevivência da sobrinha só podia significar que existia alguém suficientemente poderoso para resgatá-la à morte. Concluiu que aquele que procurava poderia até já ser um adulto. Tinha de descobrir a identidade do inimigo e, para isso, seria forçada a introduzir-se na família de Aranwen.

A feiticeira desencadeou a sua vingança com uma eficácia brilhante. Os elos familiares, que se julgavam indestrutíveis, enfraqueceram e fragmentaram-se. E aquela onde todos depositavam a esperança perdeu-se dentro de si própria, numa batalha constante entre o humano e o celestial, onde a parte humana está sempre destinada a prevalecer.

”Diante da prostração dos seus inimigos, Gwendalin acreditou que a vitória estava garantida. Senhora do seu nariz, pérfida e gananciosa, depressa lhe ocorreu que podia ludibriar aquele que lhe deu a mão, para evitar cumprir o acordo que fizera quando suplicara por ajuda. Distorceu o rumo dos acontecimentos para enganar o seu benfeitor e julga que foi bem-sucedida. Pura ilusão! Em breve, ela perceberá que não se brinca com as forças obscuras. Gwendalin pagará caro pela sua impertinência!”

Nas frias e longas noites de Inverno, a minha família costumava sentar-se à lareira e contar histórias fantásticas. Os meus irmãos preferiam as mais terríveis e assustadoras, que deixavam as mulheres com os cabelos em pé. Eu sabia que eles faziam de propósito, por isso entregava-me à brincadeira. Porém, nos últimos dias, as histórias que eu escutara haviam-me abalado profundamente, porque eram reais e não produto de uma imaginação ardilosa. E esta tivera um impacto devastador, pois eu vivera na pele as conseqüências do seu desenvolvimento.

- Então - murmurei sufocada - Gwendalin é Myrna! E Myrna é... A bruxa é minha tia!

- Brilhante! - ironizou Sigarr, terminando a quarta folha. - Estou impressionado! E que mais?

Engoli a custo, sem impedir que a minha voz denunciasse o asco que me engasgava:

- E o senhor é... O responsável por esta desgraça! O senhor é o feiticeiro que ajudou e treinou Gwendalin!

- Muito bem! - exclamou Sigarr. - E tu quem és Catelyn? Diz-me!

- Eu sou... Uma... Não pode ser! Eu nasci de um ventre humano! A minha mãe possuía o sangue de Aranwen, mas também o de Cinaed. E o meu pai não tem nenhuma ligação com o mundo da magia...

Os lábios do feiticeiro estreitaram-se numa linha fina, e a sua voz perdeu toda a gentileza, subindo de tom até se tornar um bramido ensurdecedor:

- Será que estive a falar para o vento que habita nessa cabeça? Tu não nasceste feiticeira por imposição do sangue! Assim foi porque o Conselho Superior te deu esse poder. E como não puderam eliminar a tua essência humana, vives num permanente conflito entre a mente e o coração, com as emoções à flor da pele. Perdes tempo a fazer perguntas, mas não aceitas as respostas. Quem pensas tu que és Catelyn? Uma das criaturas de sangue misto, que os Humanos ignorantes apelidaram de Sábios? Conheces um único sábio com o teu poder de Visão? Poderá um sábio enfrentar um exército de Vândalos com as mãos nuas? Existirá algum capaz de pôr cobro a uma tempestade, desfazendo o sortilégio de um mestre da Arte Obscura? As revelações tombavam sobre mim como uma chuva de granizo. Sigarr acabara de denunciar a autoria da tempestade que quase afundara o Knarr que me transportara até à Terra Antiga. E, para dizer a verdade, isso não me surpreendia. Aliás, era inadmissível que eu ainda não tivesse concluído que tamanha atrocidade só podia ter um mentor. No meu âmago, a raiva sufocou o medo e fez-me rugir como uma fera ferida:

- O senhor tentou matar-me! O objetivo da tempestade não era o Knarr, nem nenhum dos seus guerreiros... Era eu!

- Bravo! - aplaudiu ele desdenhosamente. - Começava a desconfiar de que se tinham esquecido de fornecer-te um cérebro!

Sem pensar no que fazia, lancei-me contra Sigarr e atingi-o no queixo com um potente soco que o desequilibrou. A minha fúria não ficou aplacada e preparava-me para desferir um segundo ataque, quando fui projetada pelo ar e embati violentamente na parede. Todos os meus ossos estalaram em agonia, e a cabeça ameaçou explodir, no momento em que o feiticeiro avançou sobre mim, com o rosto vermelho de ira, os olhos estrelados e um fio de sangue escorrendo do lábio.

- Estou a perguntar-me por que não acabo com isto já! Sanaria o meu incômodo e pouparia aos que te criaram a humilhação de te verem derrotada por aquela que tanto abominam! Se escapaste ao poder de Gwendalin, deves agradecer à sorte e não à inteligência. Dá-me uma razão para não te matar imediatamente, Catelyn McGraw! Olha para mim, criatura imprestável, e implora pela tua vida!

Eu estava dominada pela vontade do mestre da Arte Obscura. Sentia-o em todos os meus nervos, dilacerando cada recanto da minha mente. Por trás do seu olhar transparente havia uma escuridão impenetrável. Sigarr era uma criatura das trevas, uma aberração terrível da sua espécie... Que assustadoramente também era a minha! Eu tive a certeza de que, apesar desta encenação de gentileza e ostentação, o feiticeiro era tudo o que os aldeões murmuravam nas sombras do medo.

Por que uma criatura tão poderosa e terrível se dava a tanto incômodo por minha causa? Mesmo que, por um prodígio da sorte, eu tivesse contrariado a sua magia e extinguido a tempestade, Sigarr não teria nenhuma dificuldade em voltar a atentar contra a minha vida e a humilhação da derrota dar-lhe-ia um incentivo acrescido. Por que não o fizera? A resposta era óbvia:

- Eu não tenho medo de si! O senhor não irá matar-me porque precisa de mim!

Até eu começava a duvidar da minha sanidade! Por que raio dissera isto, enfrentando o seu olhar azul como se tivesse poder para revidar? Eu era um rato preso nos dentes de um gato, desafiando-o por entre gargalhadas: ”Come-me! Devora-me, se te atreves"!

E o felino Sigarr desatou a rir. A força com que me esmagava amenizou, e eu deslizei pela parede, até ficar estendida aos seus pés. A voz mordaz ribombou na minha cabeça, crua e gélida:

- Só podes ser insensata e estúpida, ou muito corajosa, rapariga! Talvez vivas o suficiente para me esclareceres esta dúvida... Ou talvez não! Mas a tua petulância agrada-me. Levanta-te!

Voltou-me as costas e regressou ao conforto das almofadas e das peles exóticas. Não me restou alternativa senão segui-lo e aguardar em silêncio, enquanto ele enrolava as ervas noutra folha. Após uma longa pausa, que me testou os nervos e desafiou a paciência, o feiticeiro tornou a falar numa voz calma e polida, muito diferente do tom incendiado que usara há pouco:

- Tu és uma criatura única, Catelyn! Nem humana, nem druida, nem feiticeira, mas as três numa só. Os imbecis, que se autodenominam Seres Superiores, não perceberam que estavam a criar um remoinho de incompatibilidades. Deram tanta força a uma criança... E deixaram-na perdida, a sofrer todas as penas, sem um conforto ou uma orientação. Mandaram o seu único soldado para a frente de batalha com os olhos vendados!

Inclinou-se até ficar ao nível do meu olhar. Estávamos tão próximos que eu podia sentir o seu bafo na minha pele. Só a muito custo sustive a postura. E a minha força de vontade foi recompensada quando ele continuou:

- É verdade que tive a tentação de matar-te durante a viagem. Mas, felizmente, o Criador muniu-me da inteligência para ver mais longe... Neste momento, os olhos do mundo estão postos em nós, Catelyn, aguardando pelo desfecho desta conversa para decidir o destino do planeta. Não sentes a tensão no ar? Eis a salvadora do mundo

Diante do feiticeiro renegado, instruída por aqueles que o amaldiçoaram para aceitar todas as suas condições. Não é irônico? Muito bem, filha da Grande Ilha, eu estou disposto a ajudar-te. Quando subverteu o jogo, a tua querida tia deixou de servir os meus propósitos. A morte será um castigo justo para a sua traição. Espero que a Gwendalin arda, para toda a eternidade, no inferno da religião que a acolher!

A raiva de Sigarr arrastara a sua verdadeira natureza para a superfície e, talvez para me impressionar, ele não se esforçava por escondê-la. O corpo alto e esguio foi envolvido por uma intensa luminescência vermelha, onde estrelejavam relâmpagos de brilho negro que, após rebentarem, se espalhavam como fumo. Eu não conseguia aceitar que o meu destino estava nas mãos de um demônio, por isso repliquei:

- E por que se dá ao incômodo de me ajudar? Se anseia por vingança, por que não avança sozinho contra Gwendalin, já que é tão poderoso?

A minha ironia sarcástica provocou-lhe um sorriso malicioso. Mediu-me com o olhar, antes de responder:

- Isso tornaria a tua vida muito mais fácil, não é verdade? Contudo, o Criador nos ajude, tu és a única que pode detê-la, não porque sejas mais hábil que os demais, mas porque assim foi decidido. E só eu posso ensinar-te como contrariá-la, porque lhe transmiti conhecimentos que mais ninguém possui. - Estendeu a mão e agarrou-me numa madeixa de cabelo, deslizando-a por entre os seus dedos. - Eu também fui amaldiçoado pela nossa raça... Mas a minha ira não é cega, como a de Gwendalin! Gosto do gênio dos Homens, da sua paixão, da facilidade com que se deixam manipular! Se a Gwendalin vencer, reunirá as pedras da tua avó... E tanto poder à mercê de uma inteligência tão débil será catastrófico. A realidade que conhecemos desaparecerá num piscar de olhos. E eu gosto demasiado deste mundo para arriscar tamanha calamidade! Por isso, estou disposto a ceder-te algum do meu tempo.

Repeli-o com um supetão, objetando rancorosamente:

- Depois do que me contou, ainda espera que eu confie em si? Quem me garante que essa história de traição não foi combinada? Que tudo isto não faz parte do vosso plano para dominar o mundo?

O feiticeiro estreitou o olhar e volveu friamente:

- Não estarias aqui se a Gwendalin tivesse cumprido com a sua palavra. Os acontecimentos que desencadearam a tua vinda para a Terra Antiga foram precipitados pela estupidez daquela que se julga muito inteligente. É essa a diferença entre vós. Sois ambas desprovidas de intelecto, mas ela acredita que o tem, enquanto tu te resignas à ignorância. Por isso és fraca! - Deteve o meu protesto com um gesto cortante. - Tens outra opção, senão confiar em mim? Os teus protetores permitiriam que viesses se existisse alternativa? Se enfrentares Gwendalin e morreres, ela será a única vencedora. Se a derrotares, seremos todos vitoriosos. Tu terás a tua vingança e recuperarás o que perdeste. Os Homens sobreviverão à escravidão. Os Feiticeiros livrar-se-ão da ameaça que pende sobre o seu mundo perfeito... E eu terei uma pequena recompensa pelo meu esforço. É justo, não concordas?

Senti a raiva arder dentro do peito. Sigarr tinha razão. Era ele quem ditava as regras e, a nós, só nos restava submeter, pois todos tínhamos demasiado a perder. Fora por isso que a minha avó me abandonara nas suas mãos. Só o Guardião da Lágrima da Lua possuía a chave do conhecimento para vencer Gwendalin. Ele ensinara-lhe os feitiços, e eu teria de aprender os contra-feitiços, sacrificando-me aos seus caprichos. Qual seria o objetivo de Sigarr? Não ambicionaria recuperar o poder que lhe fora retirado pelo Conselho, tal como Gwendalin? E se ele me exigisse as pedras mágicas? Eu esperava sinceramente que Aranwen soubesse o que estava a fazer!

- E qual é o seu preço? - mastiguei frustrada. - O que pretende em troca da sua... Generosidade?

O feiticeiro afundou-se nas almofadas e deleitou-se demoradamente com o fumo doce, antes de dizer:

- Certamente já reparaste que eu sou um homem solitário. Há muito que deixei de acreditar no amor, e a amizade é um mero disfarce para justificar o interesse e enganar o medo. A minha única paixão é a Arte e por ela sacrifiquei tudo... E é pelo amor que lhe devoto que não posso permitir que o meu conhecimento morra comigo. Por essa razão preciso de um herdeiro; um homem de sangue forte e grande habilidade na Arte. E tu, Catelyn, irás dar-me esse herdeiro!

Saltei, fulminada pela indignação, enquanto berrava e agitava os punhos:

- Não está a sugerir que eu me deite consigo...

- É claro que não, criatura desmiolada! - cortou ele impaciente, com um gesto de desdém. - Está previsto que o teu primogênito será um varão, filho de um grande guerreiro... Quero que mo entregues para que eu o crie. O meu preço, Catelyn, é a vida do teu filho!

Nessa noite não consegui dormir, nem em muitas das noites que se seguiram, perseguida por pesadelos, assaltada por suores e tremores. As revelações de Sigarr ardiam dentro de mim como um incêndio descontrolado. Aranwen não se suicidara. Myrna matara-a. Gwendalin matara a minha avó e o meu avô. Os tentáculos da funesta feiticeira moviam-se, implacáveis. Ceifava vidas sem remorso e prosseguia... Prosseguiria enquanto existisse um descendente de Cinaed e Aranwen. Amaldiçoava, usurpava, atraiçoava, enganava... Esperava pacientemente por uma vitória que parecia escrita no destino.

E o Guardião da Lágrima da Lua fora o cúmplice da odiosa criatura. Devia ter-lhe exigido algo igualmente aberrante. Por que outra razão a bruxa se arriscaria a desafiá-lo? Eu apercebera-me de que havia muitas lacunas na história contada. Porém, neste momento, só me restava baixar a cabeça e engolir em seco. Aceitei a proposta de Sigarr porque a minha avó mo ordenara. Ela, sem dúvida, conhecia o caminho certo. Além disso, que possibilidades havia de se concretizar a exigência do bruxo? Quase me rira na sua cara, quando ele afirmara que eu teria um filho de um grande guerreiro. Quem olharia para mim, desonrada, desamparada, prestes a enfrentar um desafio mortal? Que homem no seu juízo desejaria possuir-me, tão magra e desengraçada? E, mesmo que existisse tal louco, eu jamais poderia devotar-lhe o meu afeto, pois o meu coração estava destroçado. Parte dele morrera com Tristan. A outra... A outra permaneceria com Throst, qualquer que fosse a nossa sorte, condenada a nunca conhecer a felicidade.

Restava-me viver para a derrota de Gwendalin; concentrar-me de alma e coração nesta nova realidade que justificava a força que efervescia em mim. Quando o momento chegasse, eu enfrentaria a tirana de igual para igual; feiticeira contra feiticeira. E venceria, porque não podia perder! Depois pensaria no que fazer da minha vida. Era óbvio que devia manter-me afastada de qualquer homem, para que nunca sofresse a dor de apartar-me de um filho, para o entregar ao mais cruel dos destinos. Sigarr não poderia reclamar a posse de algo que não existia.

Sim, eu seria mais forte, mais esperta; iria derrotar o feiticeiro no seu jogo, como Aranwen dissera! Se Gwendalin o trapaceara, eu também conseguiria fazê-lo! Se colaborasse e Sigarr me entregasse sem reservas os seus ensinamentos, talvez eu descobrisse o seu ponto fraco. Podia não estar destinada a casar, gerar filhos e usufruir da felicidade de um lar, mas faria do extermínio de todas as criaturas abomináveis que contaminavam a Terra o meu objetivo.

Revelada a origem da tempestade, eu questionava-me até aonde iria o Guardião da Lágrima da Lua na persecução dos seus objetivos. Afinal, assim que me identificara como uma ameaça, não hesitara em usar o seu poder para me eliminar, sem se importar com a desgraça de Throst, de Krum e dos restantes companheiros. Saberia Gunnulf que o feiticeiro atentara contra a vida do seu primo, homem de confiança e futuro cunhado? Saberia que quase matara o seu próprio irmão? Eu precisava de respostas rápidas, pois delas dependiam vidas que me eram preciosas.

Ingrior não me perguntou o que se passara na casa de Sigarr. Ela sabia que os frutos da aprendizagem da magia negra deviam permanecer secretos, para o bem de todos. E eu não lhe falei acerca das minhas suspeitas e do pacto monstruoso. A minha amiga só podia ajudar-me oferecendo-me o seu carinho. E, mais uma vez, não me faltou. Perdi a conta às noites em que o conforto dos seus braços me amenizou a dor. Graças à pureza da alma de Ingrior, consegui resistir às tentações e ao desespero. Graças ao seu carinho, reuni forças para enfrentar a loucura.

O passar das semanas revelou-me um Sigarr diferente do que eu esperava e temia. O demônio sedento de sangue, capaz das piores aberrações, adormecera dentro dele. O Guardião da Lágrima da Lua sabia apreciar as pequenas e belas coisas da vida, carregava a sabedoria de centenas de anos e era uma fonte inesgotável de informação. O sarcasmo, por vezes bem-humorado, era a única arma que usava para me ferir:

- Se um humano soprar numa poça de água, origina uma oscilação. Se um feiticeiro soprar para o mar, provoca uma onda gigante. É claro que, no teu caso, nunca se sabe! Provavelmente despirias os peixes de escamas, rapariga desastrada!

Ele só se zangava perigosamente quando eu teimava na minha incapacidade de realizar algo. Certo dia, levou-me até ao lago onde os garotos costumavam patinar. O gelo já derretera, e o feiticeiro deixou-me de queixo caído ao vê-lo atravessar, pé ante pé, sobre a água. Na margem oposta, ordenou imperativamente:

- É a tua vez, Catelyn!

Franzi o sobrolho e enfrentei-o com as mãos nas ancas, batendo com um pé no chão, trespassada por um nervosismo frustrante.

- Está a brincar comigo? Eu não posso fazer isto! Não sei como fazê-lo!

A sua resposta foi imediata:

- É evidente que não, criatura imprestável! Como pude supor que tu descobrisses de imediato a solução de um dilema tão simples? Enquanto os restantes feiticeiros transformam um penhasco numa pedra, a fim de o transpor, a minha néscia aprendiz converte uma pedra num penhasco, só pelo prazer de declarar que será incapaz de o ultrapassar!

Deu-me as costas, esboçando um gesto de impaciente despeito.

- Eu estou a perder o meu tempo! Perto do esplendor de Gwendalin, tu não passas de uma miserável nódoa!

E desapareceu, deixando-me a bufar de indignação.

”A azul falhará por fraqueza e inaptidão...”

”Raios! Eu não falharei!”

Pus um pé dentro da água gelada e senti os ossos despedaçarem-se.

”Maldita terra! Maldito frio! Maldita escuridão! Maldito bruxo!”

O que me diria Berchan? Falaria das pequenas partículas que dão forma a todas as coisas... Eu podia solidificar a água ou afastá-la para passar, mas isso seria batota e Sigarr não me perdoaria. Então, a resposta tinha de encontrar-se em mim. Não era também eu composta por partículas? Carne, músculos e ossos... Sem peso...

Não foi fácil atingir um nível de concentração suficientemente forte para suster os pés por cima da água. O tempo arrastou-se, lenta e dolorosamente, até que os primeiros passos hesitantes superaram o abraço líquido. Quando tal sucedeu, permiti-me uma euforia infantil. Eu estava a pairar! Aprendera a voar fisicamente, como fazia com o espírito!

Surpreendi-me ao encontrar Sigarr a meditar na outra margem, oculto pelo tronco de uma árvore. Afinal, não saíra dali!

- Podemos prosseguir? - rosnou jocosamente. - Ou precisas de fazer uma pausa para tomar chá e comer bolinhos?

Ordenou-me que lhe mostrasse a minha habilidade com o fogo. Eu acendi uma chama na palma da mão, como Mairwen me ensinara.

- E para que serve isso? Vais ser o archote de uma expedição? Arremessa esse fogo contra alguma coisa, rapariga! Queima uma criatura viva, para variar!

Eu estava tão furiosa que usei toda a minha força para lançar a bola de fogo contra ele. Sigarr apanhou-a e esmagou-a entre os dedos como se fosse feita de areia.

- Será isto o que a tua querida tia te fará, se a enfrentares com esse espírito simplório. Quando decidires parar de brincar, talvez possamos trabalhar! Vamos começar do princípio. Repete tudo o que eu te ensinei!

 

Throst povoava os meus sonhos.

Eu via o guerreiro viking a avançar de espada em punho, enquanto eu me quedava, envolta nas chamas da cavalariça. Passava por mim e arremetia contra o Conde de Goldheart. A luta não delongava. Nem no mais puro ataque de ódio, eu poderia desejar a Oliver uma morte tão desonrosa e violenta. Com o desespero, nem me apercebera de que a sua cabeça rolara até aos meus pés. Só desejava morrer; descansar junto de Tristan depois de um último beijo dos seus lábios ainda quentes. Mas Throst erguia-me do chão e paralisava-me com o seu olhar azul. Agora, eu entendia o que antes fora incompreensível:

- Irás ofendê-lo com a tua morte. Este não é o teu destino! ”E qual é o meu destino, Throst?”

Quantas vezes eu repetira esta pergunta, durante a nossa viagem até à Terra Antiga, enquanto o observava ao leme do Drakkar, guiando-se pelo Sol e pelas estrelas, quando a linha da costa desaparecia, e pela bela e enigmática Pedra Solar, nos dias de nevoeiro? E na ilha que os Nórdicos usavam como refúgio; um esconderijo tão perfeito que nem a frota dos Aliados da Grande Ilha o conseguira descobrir? Recordei o momento em que Throst me transportara para a praia, em que me segurara junto do seu corpo, em que me forçara a despir o vestido encharcado e a vestir roupa quente, em que me obrigara a beber o caldo que me restituíra as forças, em que travara um duelo e arriscara a vida para me salvar...

Throst cuidara de mim desde o primeiro instante. Matara por mim. Discutira e enfrentara amigos por minha causa. E a atração irracional que nos unia não cessara de nos atormentar, como se estivéssemos condenados a cair nos braços um do outro e nada nos pudesse deter. O meu coração chorava por Tristan, mas eu não resistira aos beijos do capitão viking, ao ardor das suas mãos, ao apelo selvagem do seu corpo...

A água do banho esquentava a minha pele uma vez mais, enquanto nós guerreávamos até a excitação ser insuportável. Depois, Throst segurava-me ao colo, carregava-me para a cama e amava-me toda a noite... Uma única noite que jamais se repetiria. No tormento do delírio, eu via-me novamente dentro de uma gruta, junto de Tristan... Ao lado de Throst... As imagens dos dois homens que haviam despertado a minha paixão misturavam-se dolorosamente, até o meu peito explodir de desespero. Ambos me tinham amado com loucura, num momento solitário do tempo. Tristan estava morto. Throst estava condenado a perecer na próxima campanha.

A alucinação levava-me até ao quarto de uma estalagem, onde Throst partilhava a cama com duas mulheres. Ele jazia prostrado, demasiado ébrio para esboçar um gesto, mesmo que torpe. Elas revezavam-se por cima do seu corpo excitado, trocando carícias entre si, até que os dedos do guerreiro se cravavam nos lençóis, o seu rosto se desfigurava num esgar de prazer violento e os seus lábios se escancaravam num único grito, rouco e desesperado:

- Catelyn...

- Catelyn! Acalma-te! Foi só um sonho!

Pisquei os olhos, receando encarar a realidade. Ingrior estava diante de mim, pálida de preocupação. Estreitou-me e acariciou-me os cabelos, esforçando-se por me confortar.

- Tem calma, querida! Eu sei que não tem sido fácil, mas precisas de ser paciente! Precisas de ser forte! Chhh! Eu estou aqui...

Como explicar-lhe que a minha vida se encontrava fora do seu controlo... E do meu?

Eu sentia frio, mas estava alagada em suor. A minha angústia e ansiedade, sufocadas pela consciência, refletiam-se nos sonhos e guiavam-me ao encontro daquele em quem não me permitia pensar. O meu delírio surpreendera Throst em plena orgia. O que diria Halldora se soubesse que o seu noivo se divertia com meretrizes, nas vésperas do noivado? E por que chamara ele por mim? Por que raio gritara ele o meu nome?

Nas noites seguintes, o desvario repetiu-se. O cenário mudava. As prostitutas eram diferentes. Throst estava sempre bêbado. Por fim, revelava-se tão incapaz que as mulheres pagas para lhe agradar o abandonavam e iam ganhar a vida com outro cliente.

Eu comecei a desesperar, e Sigarr, a impacientar-se. De noite, o meu espírito vagueava. De dia, o meu corpo prostrava-se de exaustão e a concentração extinguia-se. Por fim, o feiticeiro zangou-se e ordenou-me que ficasse em casa, de castigo, a praticar um exercício ridículo. Com a força da mente, eu teria de matar os insetos que ele considerasse suficientes. Dependendo da minha eficácia, retomaríamos os treinos.

Passei dias no estábulo a cumprir a rotina diária e a matar os desafortunados bichos. No primeiro, ardia de irritação pela minha ineficácia e acabei por esmagar alguns com as mãos e os pés, só por despeito. No segundo, a magia manifestou-se. As moscas eram colhidas no ar por pequenas centelhas de luz e caíam fulminadas. No terceiro, senti orgulho do meu desempenho e compreendi a razão por que Sigarr me atribuíra uma tarefa tão patética. A concentração exigida, que começara por ser enorme, tornara-se insignificante. Eu obtinha sucesso com um simples golpe de olhar, sem sequer pensar no que fazia. Esta era uma excelente forma de treinar o arremesso da energia.

Por fim, comecei a interrogar-me se o feiticeiro me esquecera. Nessa tarde, sentei-me ao lado de Ingrior e fiquei a observar as suas mãos destras e delicadas a esculpirem e moldarem as belíssimas peças de artesanato. A sua última obra era um colar que misturava vários tipos de metais nobres e fios de tecido. Seria o seu presente de noivado para Halldora.

- Gostava que viesse comigo à Casa de Grim...

Este assunto ainda não fora abordado e eu desejava evitá-lo. Contestei com firmeza:

- Não me parece boa idéia. A Halldora detesta-me... Não quero estragar a festa do Throst!

Perdi o meu olhar no vazio. A neve derretera, e a quinta começava a vestir-se de cores vivas. A temperatura estava amena, e pairava no ar o cheiro delicioso da Primavera. Não muito longe, Trygve brincava com Katla e alegrava os nossos ouvidos com as suas gargalhadas.

- Gostas do meu irmão, Catelyn?

A pergunta apanhou-me totalmente desprevenida. O sangue subiu-me às faces, enquanto dezenas de insetos tombavam esturrados. Só após uma longa hesitação consegui balbuciar:

- Eu estou... Agradecida pela sua hospitalidade...

- E gratidão é tudo o que sentes? - atalhou Ingrior de imediato, decidida a torturar-me. - O Throst não desperta em ti nenhum sentimento mais profundo?

- Eu já te falei do Tristan - volvi, tentando finar a questão.

- Ele foi meu amigo, irmão, companheiro... Tínhamos planos! Íamos casar... - A minha voz falhou, mas forcei-me a continuar: - O Tristan foi o meu primeiro homem... E eu irei amá-lo até morrer!

A minha amiga apertou-me a mão e forçou-me a encará-la.

- Eu não duvido da grandeza e da beleza do sentimento que partilhaste com esse rapaz. Porém, onde quer que ele esteja, tenho a certeza de que não deseja ver-te amargar na solidão para o resto da vida. Não feches o teu coração, minha querida...

Eu sabia que as intenções de Ingrior eram boas, por isso contive a vontade de replicar se ela também tencionava esquecer Trygve, assim tão facilmente, para se entregar a outro homem. A sua convicção inabalável, alimentada pelas revelações da Pedra do Tempo, forçava-a a lutar fervorosamente pela minha união com Throst. Mas isso jamais aconteceria! Respondi com a firmeza possível:

- O Throst está noivo! E vai casar-se apaixonado!

- O meu irmão jurou desposar a Halldora no dia em que ela nasceu, cumprindo a nossa tradição. Mas a Halldora não é a mulher certa para o Throst! Irá destruir-lhe a vida... Ele até pode estimá-la, mas não a ama! Todavia, é demasiado teimoso para admitir que alguns juramentos não podem ser carregados em cima dos ombros até à morte. Eu percebo o teu desconforto pela minha insistência, Catelyn, mas não consigo assistir impassível ao que se passa diante do meu nariz. O Throst tem sentimentos por ti e tu por ele. Foi por isso que ele se foi embora. Vais permitir que o meu irmão leve a sua teimosia adiante e semeie a vossa infelicidade?

Fixei Ingrior, em pânico. O que podia eu fazer? O Throst pertencia à Halldora, e eu não podia pertencer a homem nenhum! Já tinha problemas suficientes, sem almejar algo que estava fora do meu alcance! Dar-me-ia por satisfeita se conseguisse salvar-lhe a vida. Eu conhecera Throst nos meus sonhos, e era lá que ele devia permanecer, até ao fim dos meus dias.

O barulho provocado pela aproximação de um cavalo pôs cobro a conversa. O meu coração falhou quando reconheci Gunnulf. Ingrior correu para Trygve e protegeu-o no seu colo, como se temesse que o primo tivesse coragem de forçar a montada adiante para pisotear a criança. O bárbaro franziu o sobrolho com desprezo. Gelei ao reparar que o seu olhar tempestuoso não se dirigia a Ingrior e sim ao menino. Afinal, parecia que o medo da minha amiga não era infundado. Katla recolheu Trygve dos braços da mãe e apressou-se a entrar em casa.

- Por quem me tomas, mulher? - rugiu o colosso. - Acreditas que eu seria capaz de matar o teu filho?

- Eu bem sei do que tu és capaz! - retorquiu ela, num tom inflamado. - Diz ao que vens e desaparece da minha propriedade. Sabes que não és bem-vindo aqui na ausência do meu irmão.

Gunnulf incitou o cavalo a avançar, e eu reagi instintivamente, protegendo Ingrior com o meu corpo. O guerreiro-urso forçou a montada a empinar-se diante de nós e só depois recuou, com o rosto assolado por uma ira selvagem. A sua voz estrondeou como uma trovoada infernal:

- O Throst já regressou. A festa de noivado realizar-se-á dentro de três dias, mas a Halldora espera-te amanhã. Deixa essa escrava em casa. Não quero sentir o cheiro dessa peste nas minhas terras!

Partiu a galope, com os cabelos rubros esvoaçando, qual bandeira de guerra. Ingrior caiu ao chão, chorando copiosamente. Tive de embalá-la nos meus braços para acalmá-la e, quando por fim consegui, ela sacudiu-me e suplicou:

- Nunca mais enfrentes o Gunnulf, ouviste? Não sei como a besta resistiu a matar-te!

Ficamos abraçadas em silêncio. Ingrior não parava de tiritar. Eu própria não compreendia onde arranjara coragem para afrontar o chefe viking. Se Gunnulf já me odiava, depois disto aproveitaria o menor pretexto para me matar. Pois que tentasse! O guerreiro-urso não era imortal! E eu já não o temia! Ser-me-ia até mais fácil concretizar a minha vingança num ato de defesa.

- Existe algo respeitante à morte de Trygve... - soluçou Ingrior.

- Algo que eu nunca contei a ninguém...

O seu segredo era terrível! No dia fatídico, sentindo a proximidade do parto, Ingrior pedira ao marido que colhesse um ramo das flores às quais chamavam Beijos de Dragão, porque eram vermelhas e abriam-se aos raios de sol como lábios desejosos de carícias. Essas flores só cresciam na Montanha Sagrada e a infusão das suas pétalas era ótima para aliviar as dores. Quando Ingrior encontrara Trygve, ele ainda mantinha um Beijo de Dragão entre os dedos, e ela guardara-o dentro do seu vestido. Ninguém vira a flor e toda a comunidade pensava que o curandeiro fora assassinado enquanto buscava os ingredientes do seu ofício. Porém, durante a cerimônia fúnebre, depois de dar as condolências à prima, Gunnulf não se coibira de salientar que o irmão fora muito imprudente por entrar na floresta só para apanhar umas miseráveis flores.

- Talvez fosse um erro de expressão - continuou ela, tremendo como uma folha solta ao vento. - O Gunnulf é tão ignorante nestes assuntos que podia querer dizer ervas... Porém, a suspeita cravou-se em mim como a garra de um falcão. Mas, apesar de tudo, não quero acreditar que ele tenha tido coragem de matar o próprio irmão. Isso faria dele um monstro...

Eu não tinha dúvidas de que Gunnulf era um monstro! Seria esta a verdade que eu perseguia?

- O Throst sabe disso? - perguntei ofegante.

Ingrior abriu tanto os olhos que eu pensei que estes lhe iriam cair. Abanou-me, arquejando, assolada pelo medo:

- Não! E tu também não irás dizer-lhe! Se o Throst desconfiar de algo tão abominável, decerto enfrentará o Gunnulf! E a morte do meu irmão não trará o meu marido de volta à vida.

- Sossega, Ingrior! - esforcei-me por acalmá-la. - Eu jamais trairia a tua confiança! Vamos esperar, para o bem de todos, que as tuas suspeitas não tenham fundamento...

Durante o resto do dia, eu não pensei noutra coisa. Ajudei Ingrior a separar o que iria levar para a Herdade de Grim e deitei-me cedo. Precisava refletir acerca do desenvolvimento da história trágica do meu primo, o qual me causara um enorme desconforto.

Acordei a meio da noite, tão gelada como se tivesse adormecido ao relento. Sentei-me na cama, tiritando, enquanto buscava a coberta que tombara no chão, e só a muito custo contive um grito. A manta não deslizara de cima de mim. Fora arrancada pelo grande lobo que aguardava a minha atenção, sentado a dois passos da cama, com o pêlo brilhante recebendo as carícias da luz bruxuleante da fogueira. A porta continuava solidamente fechada, mas eu nem admiti a possibilidade de uma fera selvagem se ter esgueirado para o interior da casa. Este era um Lobo Cinzento... E muito especial!

Deslizei para junto dele e enfrentei o seu olhar estrelado, procurando as patas peludas. O que encontrei não foram pêlos e garras, mas mãos quentes e delicadas que abraçaram as minhas, enquanto as nossas mentes se fundiam. Arfei, esforçando-me para controlar a vertigem e, aos poucos, tive a percepção das formas sombrias de uma floresta. Não muito longe, um rapaz movia-se, tão silencioso e elegante como um gato. Pensei que seria fácil confundi-lo com Berchan, mas, quando se aproximou, vi que as suas feições eram diferentes, mais infantis e femininas. Ingrior tinha razão. Trygve era muito parecido comigo!

Eu pressenti a presença maligna antes dele. Tentei gritar mas descobri que não tinha voz. Nesse instante, os olhos de Trygve escancararam-se de horror, ao verificarem o que a escuridão ocultava. Ele começou a correr, perseguido pela morte. Esta não tardou a revelar-se sob a forma de um cavaleiro negro, gigante e ameaçador, com os ombros cobertos por uma pele de urso.

- O que queres de mim, Gunnulf?

A voz do meu primo tremia. Ele fazia a pergunta, mas sabia a resposta.

- Eu avisei-te, bastardo! - rosnou o selvagem. - Avisei-te que saísses do meu caminho! E tu atreveste-te a tomar o que é meu!

- Eu nada possuo que seja teu! - contrapôs Trygve com uma coragem que me impressionou. - Deixa-nos, a mim e à minha família, em paz!

- Insolente!

A enorme mão do guerreiro-urso esmagou-se no rosto delicado. Trygve tombou de costas e deixou cair os cestos carregados de ingredientes curativos. No solo úmido e podre da floresta, o vermelho-vivo das flores que colhera na Montanha Sagrada cintilou como uma lanterna. Gunnulf desmontou e desembainhou a espada, enquanto Trygve rastejava atrapalhadamente, balbuciando em pânico:

- O que é que estás a fazer, Gunnulf? Eu sou teu irmão!

- Não, bastardo! - rosnou o colosso, num tom decidido e ameaçador. - Eu não sou irmão de um verme nojento e miserável como tu!

Trygve conseguiu erguer-se e começou a correr, levando consigo um Beijo de Dragão. Mesmo com a morte no encalço, ele não se esquecia do bem-estar da esposa e do filho!

Gunnulf ficou para trás, esboçando um largo sorriso. Guardou a espada e dirigiu-se ao cavalo. Acabara de montar quando um grito agonizante trespassou a noite. Praguejando, o guerreiro-urso galopou ao encontro do apelo. Mas era tarde! O corpo de Trygve jazia no solo, com uma adaga enterrada no ventre. Ao seu lado, um homem exibia um sorriso vitorioso no rosto cruel... Um homem que eu conhecia e odiava! Este encarou o líder, exclamando com euforia:

- Eu não te disse que daria um bom uso à arma do Vândalo!?

Gunnulf desmontou e investiu contra Freysteinn. O soco que lhe desferiu foi tão poderoso, que o arremessou pelo ar.

- Não era para matá-lo, sua besta! Era só para assustá-lo! Como irei justificar isto à minha família?

Apoiando-se a uma árvore, Freysteinn ripostou num tom dorido, mas firme:

- Pensa, Gunnulf! Os teus problemas acabaram! Todos pensarão que foram os Vândalos que caçaram este imprestável! A Ingrior voltará para ti, tu criarás o pequeno bastardo e o povo louvará a generosidade do teu coração!

- Imbecil!

O punho do gigante esmagou-se no rosto, no ventre e nas costelas de Freysteinn, uma e outra vez. Mas o brilho vitorioso nunca se apagou do olhar do jovem guerreiro.

Ingrior partiu para a Herdade de Grim, acompanhada por Jodis, e eu fiquei como Gunnulf ordenara. Disse adeus à minha amiga sem mencionar o fenômeno dessa noite. De que me valeria martirizar ainda mais o seu coração, se nem eu própria sabia explicar o que acontecera?

Eu despertara caída no chão, sozinha, envolvida pelo silêncio da casa adormecida. Rastejara de volta à cama e afundara-me em cogitações. Da minha Visão, concluía que Gunnulf seguira o irmão apenas para o assustar e humilhar. A mão assassina fora a do ambicioso Freysteinn, que não olhava a meios para agradar ao líder. No fim, a eliminação de Trygve revelara-se um favor. Isso explicava por que o guerreiro-urso mantinha Freysteinn por perto, apesar de o desprezar.

Não me fora fácil impedir-me de saltar para a cama de Ingrior e contar-lhe tudo, mas a razão prevalecera. Freysteinn estaria na Herdade de Grim, azedo e enraivecido por ver a mulher que desejava tornar-se noiva do seu maior rival, e eu não sabia se a sensata Ingrior conseguiria conter-se de o acusar publicamente. Se tal não sucedesse, em vez de uma festa de noivado, haveria um banho de sangue. Não! A minha amiga já aprendera a viver com as suas suspeitas. Era melhor que assim continuasse, até que eu tivesse uma confirmação inequívoca da verdade. No momento certo, a justiça seria reposta.

Sensibilizada pelo infortúnio do meu primo, concentrei toda a minha atenção no pequeno Trygve. Assim que Katla se ausentou, levei-o até ao cemitério, onde o corpo do seu pai aguardava o descanso do espírito. Sentei-o comigo, ao lado da pedra tumular, fechei os olhos e rezei, como sempre fazia quando precisava sentir o conforto da presença da minha mãe. O entusiasmo do menino arrancou-me da meditação. Uma luz forte, irradiada pelo solo, iluminava ao nosso redor, e a alcatéia de Lobos Cinzentos cercava-nos. O majestoso líder nada disse, mas havia um esgar de aprovação quase humano no seu focinho, quando o lobo que me visitara na noite anterior se destacou dos demais e avançou.

As lágrimas estavam na minha garganta, na minha cabeça, inundavam-me o coração e a alma... Por que o destino tinha de ser tão cruel para com aqueles que, num momento da vida, conheciam a felicidade de experimentar o verdadeiro amor?

Na sua inocência, Trygve mirou com insistência o animal que parara à sua frente, como se pudesse ver para além do pêlo, dos dentes e das garras. Solenemente, estendeu a mão rechonchuda e acariciou-o. O lobo reuniu confiança para se aproximar mais e deitou a cabeça no seu colo. E, enquanto o garoto lhe afagava o pêlo com devoção, o lobo chorava grossas lágrimas; lágrimas humanas; lágrimas de pesar e dor, pelo que poderia ter sido e não fora...

Maldito Gunnulf! Mil vezes amaldiçoado! Quando o mal não vinha pela sua mão, vinha pela sua intenção. Gunnulf podia não ter desferido o golpe fatal, mas provocara e acobertara o crime. Para mim, a sua culpa era igual ou pior do que a de Freysteinn. Por enquanto, eu estava de mãos atadas. Porém, com profecia de rei urso ou sem ela, eu não deixaria a Terra Antiga sem arrancar pela raiz a erva daninha que apodrecia o povo viking.

As trompas ecoaram pelos vales e montanhas. O fragor perpetuou-se sobre o mar, afundou-se contra os fiordes e destroçou-me o coração. Throst acabara de ficar noivo.

Não sei explicar que loucura me acometeu. Quando caí em mim, já galopava na direção da propriedade de Gunnulf.

Escondi o cavalo e ocultei a cabeça com o capuz da capa, para passar despercebida por entre a multidão que festejava. De longe, vi Throst e Halldora cumprindo as tradições. A noiva estava tão formosa como uma deusa viking. Os seus cabelos tinham reflexos de sol e fogo. O corpo alto, generoso de curvas, seria o abrigo perfeito para a luxúria de Throst. Nos braços do belo guerreiro não voltaria a haver lugar para mim.

Apesar de este pensamento me esmagar, não desviei os olhos da cerimônia. Não consegui partir quando devia, e a noite encontrou-me sentada no telhado da casa da noiva, pairando como Sigarr me ensinara, escutando os sons estridentes da festa que continuava na privacidade de familiares e amigos.

O meu coração falhou uma batida quando Throst surgiu inesperadamente na solidão da rua. Trazia na mão um chifre cheio de bebida e caminhava aos ziguezagues, sem dar um passo diante do outro. Como um pássaro cego, embateu contra a cerca, caiu desamparado e começou a vomitar.

Trêmula de aflição, tencionei precipitar-me em seu auxílio, mas uma garra de ferro apertou-me o braço, impedindo o movimento. Por pouco não gritei ao encontrar Sigarr pairando ao meu lado, fixando-me com o seu olhar glacial. Não moveu os lábios, mas a sua voz temerosa vergastou a minha mente:

”Não devias estar aqui, criatura desmiolada!”

A frustração e a revolta apossaram-se do meu raciocínio. Reagi instintivamente:

”Eu cansei-me de esperar por si! Se continuasse a matar insetos, os pássaros morreriam à fome antes do fim da Primavera!”

A minha ironia surpreendeu-o, mas ele não permitiu que tal transparecesse por muito tempo.

”Tu não és o único assunto que ocupa o meu espírito, Catelyn! Tenho mais que fazer!”

Eu ia responder-lhe torto quando a porta da casa tornou a abrir-se. Krum saiu ao encontro do primo e amparou-o. Ralhou num tom impaciente, como se o já tivesse feito dezenas de vezes:

- Olha o que estás a fazer contigo! Tu não podes continuar assim, Throst! Por que deixaste isto ir tão longe, se não era o que realmente desejavas?

A voz de Throst feriu-me os ouvidos, de tão sentida e amargurada:

- É a única coisa a fazer...

- Não, não é! Não destruas a tua vida! Acaba com esta farsa enquanto é tempo!

- Solta-me!

O gigante louro libertou-se com um safanão e cambaleou de regresso a casa. Krum seguiu-o, exalando um sonoro suspiro de frustração. Sigarr não demorou a atacar-me:

”Sabes que é por tua causa que o Throst sofre? A paixão está a enlouquecê-lo!”

O meu coração desatou aos pinotes, sem que eu pudesse domá-lo. Jamais conseguiria controlar as minhas emoções, quanto mais escondê-las de Sigarr. Ainda assim, objetei indignada:

”Eu não sei do que é que o senhor está a falar...”

”Sabes sim... E partilhas dos seus sentimentos de forma tão intensa que acompanhas o seu tormento quando entrega a mente ao desespero... quando rende o corpo a todas as rameiras que encontra e berra o teu nome em agonia, desejando que fosses tu a mentora do seu prazer.”

Fitei o bruxo com a raiva declarada no olhar. Ele só podia ter lido isto na minha mente! Eu tinha de reparar esta falha... E com bastante urgência!

”Cale-se! O senhor não sabe o que está a dizer! E eu não lhe admito que me fale nesses termos!”

Incapaz de suportar a intensidade ferina do seu esgar, desviei o rosto e fixei a noite, respirando sopros de agonia enquanto o meu coração sangrava. Eu não devia ter vindo! Não teria visto... Não estaria agora a experimentar tão insuportável tormento!

”O destino do Throst é claro. Ele está condenado a morrer na campanha deste Verão. Liberta-te agora, Catelyn, antes que esse entusiasmo te desvie irremediavelmente do caminho que juraste seguir. Tu estás a um passo de tombar num abismo de onde não haverá retorno.”

Encarei Sigarr com os olhos esbugalhados. A minha revolta era demasiado grande para conter dentro do peito. E a voz da mente denunciou toda a minha repulsa:

”Como pode falar da morte do Throst com tamanha indiferença? Ele é seu parente; tem o seu sangue! Existe algo sagrado para si, além dos seus próprios interesses?”

A frieza do feiticeiro denunciava o seu despeito:

”O Throst não passa de um ingrato ignorante e arrogante, cuja alma vive em permanente tormento e rejeição de um poder que deveria ser considerado uma bênção. Por que me falas tu em salvá-lo? Desejas que ele viva para que possas vê-lo nos braços de outra mulher?”

Engoli em seco. Desta vez, Sigarr não chegaria aos meus verdadeiros sentimentos.

”O Throst é um bom homem e merece ser feliz ao lado da companheira que escolheu!”

O seu sorriso escarninho arrepiou-me. Eu não podia disfarçar o que o Guardião da Lágrima da Lua já apreendera há muito. A sua voz quase me rasgou a alma:

”Além de uma aberração, o amor humano é uma futilidade, uma perda de tempo e uma breve caminhada para a desilusão e para a perdição. Aranwen e Mairwen não te ensinaram isso? Elas são peritas! Deviam ter metido alguma sensatez nessa tua cabeça oca!”

Sem argumentos para rebater, eu volvi num tom ameaçador:

O Gunnulf sabe que o seu preferido está prestes a tombar? Tem conhecimento de que a irmã irá perder o noivo que tanto adora? E de que o seu feiticeiro conspira contra o seu próprio sangue?

No mesmo tom com que o enfrentei, Sigarr retribuiu: ”E por que não lhe fazes tu própria essas perguntas? Talvez aprendesses alguma coisa com as respostas, criatura néscia!”

Num piscar de olhos, encontrei-me sozinha.

Os feiticeiros não eram deuses nem animais alados. Logo, não podiam voar. Conseguiam meramente levitar durante um curto espaço de tempo, e esse esforço exigia deles muita energia.

Não sei como cheguei a casa nessa noite. Felizmente, o cavalo sabia o caminho de cor! Katla assustou-se quando me viu.

- Olhe para si, menina! Que olheiras tão profundas! O que andou a fazer?

”Asneiras! Eu só faço asneiras!”

- Eu estou bem - respondi em voz alta. - Não te preocupes! Só preciso dormir...

E dormi toda a noite e parte da manhã. Quando acordei, Trygve estava deitado sobre o meu peito, profundamente adormecido. Katla fazia a lida, enquanto nos observava com um sorriso carinhoso. Ao aperceber-se de que eu despertara, exclamou baixinho:

- Deve arranjar um marido, menina! Bonita como é, não terá a menor dificuldade! Já está na idade e transparece no seu olhar o quanto deseja um filho. E as crianças adoram-na! Veja como o nosso pequeno traquina se derrete!

Forcei um sorriso em resposta. Não podia dizer a Katla que a vida que ela descrevia nunca seria para mim. Eu não era humana... E também não era uma verdadeira feiticeira. Não passava de um remendo do destino, de uma criatura miserável, prestes a explodir de tristeza e frustração, perante um fardo demasiado pesado para carregar.

Recordar que Throst estava condenado à morte virava-me as tripas do avesso. Era uma injustiça que a sorte mantivesse vivos tiranos como Gunnulf e matasse homens justos e bons! Contudo, o tempo passava, e eu não descobria uma solução para contrariar a sua sina. Até mesmo uma simples conversa já me parecia impossível! Throst abandonara a sua própria casa para me evitar. Agora que estava noivo, não permitiria que eu me aproximasse.

Este pensamento mutilou-me. Estrebuchei e refutei qualquer sentimento mais profundo do que gratidão ou amizade. E o meu coração gargalhou descaradamente da minha teimosia. Irritada, decidi enfrentar o que sentia por Throst. Admirava-o, sem dúvida. Reconhecia nele um pouco de cada um dos meus irmãos: a liderança e a sensatez de Aled, o ardor apaixonado de Edwin, a reflexão de Berchan, o carinho de Stefan e a alegria de Quinn. E devia admitir que ele era tão atraente para mim quanto um homem podia ser para uma mulher. Mas eu não estava louca! Tinha os pés bem assentes na terra! Eu não amava Throst! Ou... Ou... Raios!

Ingrior regressou logo após a celebração do noivado. O irmão não a acompanhou.

- O Throst partirá numa campanha dentro de poucos dias - anunciou com uma expressão abrasada. - Temos de preparar os mantimentos e as roupas para a viagem.

- O senhor não virá a casa? - perguntou Katla surpreendida.

- Virá.

A resposta seca ficou suspensa no ar. Eu não precisava deitar-me a adivinhar para perceber que Ingrior discutira violentamente com o irmão.

Throst chegou dois dias depois, acompanhado por Bjorn e Styrr, que iria integrar a sua tripulação. Era uma honra fazer a primeira viagem a bordo do barco do segundo chefe da Terra Antiga. O rapaz estava eufórico e ardia de impaciência por partir. Ingrior também ardia de impaciência, mas por razões bem diferentes:

- Tanta alegria por uma estúpida ilusão! - segredou-me exasperada. - Quero ver o fulgor das suas convicções quando o sangue começar a escorrer e os amigos tombarem ao seu lado, sem vida!

As palavras de Ingrior feriram-me. Talvez Styrr visse mesmo o seu herói tombar durante esta campanha! Para piorar a minha angústia, eu ainda não tivera oportunidade de remar contra a maré. Throst cumprimentara-me com um gesto monótono e devotara toda a sua atenção aos rapazes. Tamanha indiferença magoava-me e afligia-me. O tempo esgotava-se... E a muralha que o capitão viking erguia ao seu redor não o protegeria do punhal que lhe laceraria a vida.

Nessa noite, acordei com a cabeça a rodar, enjoada e febril. À luz difusa da fogueira moribunda, arrastei-me para fora de casa, esperando que o ar gelado me devolvesse o bem-estar. Assim que o frio me bateu no rosto, o meu coração apertou-se. A indisposição fora apenas um pretexto que o meu espírito encontrara para me arrancar da cama. Throst estava meio tombado por cima da cerca, bebendo sem parar, enfrentando a escuridão com um olhar enlouquecido. Instintivamente, corri para ele e segurei-lhe a mão, impedindo-o de levar o chifre aos lábios.

- Chega, Throst! Chega...

- O que estás tu a fazer aqui? - A sua voz soou incerta e irritada. - Volta para a cama!

- Só se vieres comigo!

O rosto másculo distorceu-se numa careta sarcástica, e, só então, eu assimilei o que acabara de dizer. Ele não me perdoou:

- Isso é um convite? Estreitei o olhar e mastiguei:

- Se estivesses sóbrio, eu não te perdoaria, filho de Thorgrim! Pára de beber!

Tentei arrancar-lhe o chifre da mão, e Throst reagiu, sacudindo-me tão bruscamente que me derrubou. Eu caí desamparada, sem perceber muito bem o que acontecera. Mal pude piscar os olhos, e já ele me sustinha nos seus braços, suplicando:

- Desculpa! Thor, o que fiz eu? Pequena, por favor... Estás bem? Perdoa-me!

Eu não me magoara, e o acidente fizera-o esquecer a bebida. Tinha-o exatamente onde o queria! Lentamente, fixei o seu olhar e toquei-lhe no rosto sofrido, apelando com firmeza:

- Tu não podes continuar a beber! Terás homens a depender de ti durante a viagem; homens que te confiam as suas vidas cegamente. Não podes decepcioná-los. Estás a escutar-me?

Throst mirava-me deslumbrado. Sobressaltei-me quando agarrou numa madeixa do meu cabelo, murmurando roucamente:

- Estás a brilhar... Quem és tu, Catelyn? Uma deusa?

- Throst...

- Tu és mágica... E tão bela...

Teria de ser eu a recuar, porque ele era um homem desprovido de vontade. Mas as minhas mãos não cessavam de lhe acariciar o rosto, por mais que eu lhes ordenasse que se aquietassem. E Throst continuava a fixar-me com embevecido encanto.

- De onde vem esta luz que irradia de ti?

Era evidente que ele não dormia há muitas noites. Os seus olhos estavam encovados, a sua pele avermelhada, a barba loura demasiado crescida e os cabelos desgrenhados. A sua beleza selvagem tirava-me o fôlego. Não tive força para afastá-lo quando enrolou os dedos nos meus caracóis.

- Eu quero mergulhar nessa luz... Eu quero mergulhar em ti, Catelyn! Ajuda-me... - Subitamente, a sua voz esmoreceu. - Por que me sinto tão mal? Por que sinto tanto medo? Eu nunca temi a morte... E agora fraquejo diante dela! Eu quero viver, Catelyn! Eu quero viver...

Perdi o fôlego, atordoada. Os meus piores receios confirmavam-se. Throst conhecia a sua sorte! Mas, então, por que teimava em enfrentar o perigo? Por que não desistia simplesmente da campanha? Sem pensar, abracei-o, e ele correspondeu como uma criança assustada. A bebida corroía-lhe a vontade. Estreitou-me com declarado desespero e desatou a chorar. E eu queria chorar com ele...

- Faz a dor desaparecer, Pequena! Por favor, meu amor... Faz a dor desaparecer...

Mordi os lábios para que o coração não me saltasse pela boca. Teria ele consciência do que acabara de dizer? Não! Throst estava embriagado... Mas o brilho do seu olhar não mentia!

- Catelyn... - Prendeu o meu rosto entre as suas mãos, subitamente decidido. - Eu não consigo lutar contra isto! Já não posso mais...

Ia beijar-me. E, se ele me beijasse, eu corresponderia até que os nossos corpos saciassem a fome que nos consumia! Apelei, num último esforço de vontade:

- Throst... Escuta-me... Vamos para dentro. Tens de dormir e recuperar as forças. Eu ficarei junto de ti. Prometo! Quando estiveres bem, conversaremos...

- Ficarás comigo? - cortou, incrédulo e suplicante.

- Já te prometi que sim!

Lentamente, ele apoiou-se em mim e permitiu que eu o guiasse até casa. Assim que chegou à cama, tentou puxar-me para o seu lado, mas eu insisti em sentar-me no chão. Throst já não teve ânimo para protestar. A energia curativa que eu lhe transmitia restabelecia-lhe a paz de espírito. Aos poucos, o sono que teimara em escapar-lhe durante semanas, tombou-lhe na cabeça como um rochedo. Contudo, antes de fechar os olhos, o guerreiro ainda implorou:

- Não me deixes...

 

Por regra, tenho um sono leve. Contudo, nesse dia, não despertei quando a casa acordou. Não ouvi Ingrior enviar os rapazes à aldeia, nem pedir a Katla e a Jodis que a acompanhassem ao mercado. Quando a manhã me surpreendeu, eu estava sozinha com Throst, a fogueira ardia intensamente e o cheiro da comida cozinhada perfumava o ar.

Movi-me devagar para não incomodar o senhor da Aldeia do Povo. Sentia-me toda dorida porque dormira sentada no chão, com a cabeça apoiada na grande arca forrada com lã de ovelha, que era a sua cama. Espreguicei-me e aconcheguei-me à manta quente e macia que alguém colocara por cima dos meus ombros e distraí-me a observá-lo. Aparentemente, a minha intervenção trouxera-lhe sonhos reparadores, pois a sua expressão serenara. Throst só precisava tomar um bom banho! O seu cabelo estava sujo e embaraçado, e a barba encrespada não via lâmina há muitos dias. O odor do seu corpo era intenso, mas não desagradável e enjoativo como o da maioria dos homens. O guerreiro cheirava como um puto traquina que passara o dia a brincar na rua.

A pequena coruja branca abriu um olho para me mirar e tornou a fechá-lo, decidida a desfrutar do inesperado sossego matinal. Eu imitei-a e permiti que o meu pensamento voasse. Throst chamara-me ”amor” num momento em que a sua vontade se encontrava desprovida de censura; num momento em que me confessava os seus desejos e temores. Poderia ser verdade? E se fosse...?

Despertei pela segunda vez com uma carícia quente na nuca e no rosto. Não me movi; apenas o meu coração se manifestou. Se eu não voltasse a sentir o afago das mãos de Throst, recordaria este instante para o resto da minha vida.

- Pequena... Eu sei que já acordaste... Olha para mim, Catelyn! Obedeci. Ainda restavam sinais de cansaço no vasto azul do seu olhar, mas o desespero desaparecera. Throst era novamente o homem forte e controlado que eu aprendera a admirar. Ele assumiu uma expressão solene quando disse:

- Peço desculpa por te ter forçado a dormir no chão. Deves estar muito desconfortável!

A sua mão continuava na minha nuca e eu esqueci as recomendações da mente e acariciei-lhe a barba, enquanto respondia:

- Eu sinto-me bem. Nem percebi quando os outros saíram...

- A minha irmã é uma raposa matreira!

Eu partilhava da sua opinião. Imaginava a satisfação de Ingrior quando nos vira, apressando-se a deixar-nos sozinhos e entregando à sorte o desfecho desta aproximação.

- E tu? - perguntei. - Estás melhor?

Throst esboçou um meio sorriso que depressa finou.

- Estou a aprender a aceitar o que não pode ser alterado. Tu tens razão! Eu tenho sido um irresponsável! Mas não voltará a acontecer! As vidas dos meus homens dependem da minha firmeza e confiança.

Servi-lhe a comida, e o dono da casa aguardou que eu me sentasse à mesa para iniciar a refeição. Como o meu povo estava enganado a respeito desta gente! Por regra, os Vikings não eram criaturas brutas, ignorantes e porcas. Eram um povo rude, mas por imposição da vida.

Fiquei desconcertada quando ele me pediu:

- Fala-me de ti, Catelyn! Fala-me da tua casa... E dos teus irmãos...

Conversamos durante muito tempo. Contei-lhe que vivera uma infância maravilhosa. Narrei as brincadeiras junto ao ribeiro, como gostava de correr descalça pela floresta e de trepar às árvores. A coruja abriu os olhos, mas manteve-se quieta, como se nos escutasse atentamente. O nome de Lorde Garrick não foi mencionado. Eu sabia que seria uma afronta falar do meu pai na casa de Thorgrim. Também não me atrevi a contar-lhe a minha história recente e a invasão de Myrna. Throst já tinha demasiados problemas. Eu desejava animá-lo, não preocupá-lo inutilmente.

Por seu lado, Throst confiou-me algumas das suas aventuras de menino. Falou com especial carinho do cavalo malhado que o pai lhe oferecera quando ele fizera dez anos, e que acompanhara o seu crescimento.

Entusiasmou-se ao revelar que planeava construir uma comunidade na maior ilha do grande arquipélago banhado de sol que eu conhecera na viagem. Exprimiu a amizade inabalável que o unia a Krum, as suas expectativas para o futuro de Bjorn, longe de qualquer sombra de guerra, a adoração pelo sobrinho... Não nomeou Gunnulf nem Halldora. Também ele não queria estragar a nossa harmonia. Eu poderia passar o resto da minha vida a falar com o homem diante de mim, sem me enfadar. Esforçava-me por esquecer que o tempo voava impiedosamente e que esta talvez fosse a nossa última conversa. E, se muito do que eu desejava ficaria por dizer e fazer, pelo menos uma coisa ainda estava ao meu alcance. Engoli em seco, antes de perguntar:

- Prometes portar-te bem?

Throst ergueu as sobrancelhas numa interrogação:

- Quando foi que eu me portei mal?

Corei ao recordar a noite em que a paixão nos arrebatara. Ele adivinhou-me o pensamento e beijou-me a mão, murmurando com carinho:

- Se eu pudesse mudar o passado, Catelyn, essa noite seria diferente. Eu queria que tu me desejasses... E acabei por impor-te o meu desejo!

Sufoquei a vontade de lhe confessar que o seu ardor não fora uma imposição, enquanto lhe apertava a mão, apelando sumidamente:

- Vem... Vou preparar-te um banho.

Throst agarrou na sua túnica e encostou-a ao nariz.

- Estou muito sujo?

- Pior! - gracejei, lutando para não me acobardar. - Estás imundo!

Temperei a água e perfumei-a com ervas. Voltei as costas e permiti que o chefe viking se despisse e entrasse na tina. Depois, fui até ele, tomei o pano das suas mãos e comecei a esfregar-lhe os ombros com suavidade. Percebi que Throst ficava tenso. A sua voz enrouqueceu quando exclamou:

- Não tens de fazer isto, Catelyn! Sorri deliciada, retrucando:

- Não queres?

- Sabes bem que sim, mas... - Segurou-me o queixo, forçando-me a encará-lo. - Não quero que te sintas obrigada... Ou desconfortável.

Não consegui sustentar o meu sorriso. A intensidade do seu olhar punha-me a tremer.

- Queres que me vá embora?

Apesar de tudo, eu estava a adorar provocá-lo e, mais velho e experiente, Throst depressa o compreendeu. Acariciou-me o rosto devagar, replicando:

- E se eu não puder controlar os impulsos do meu corpo? Inclinei-me e tomei a iniciativa de beijá-lo no rosto.

- Fecha os olhos... Pensa no teu mar, na terra nova... Pensa em coisas boas e bonitas.

A sua resposta foi imediata:

- Tu és tudo em que eu consigo pensar, minha Pequena! Silenciei-o com os meus dedos. Throst obedeceu e acomodou-se como se estivesse adormecido. Livre do azul ardente do seu olhar, foi-me mais fácil perder a inibição e apreciar o que fazia. Agora eu entendia o porquê dos risos e cochichos das escravas, naquela noite inesquecível. O corpo masculino reagiu de imediato ao meu toque e o meu corpo à visão do dele. Enquanto Throst apertava as mãos sobre a madeira da tina, eu aquietei o fôlego, aprisionei a imaginação e concentrei-me em desembaraçar-lhe os cabelos rebeldes, aparar-lhe a barba dourada e limpar-lhe o suor da pele.

Era impossível não reparar nas muitas cicatrizes que o marcavam, cada uma com a sua história; memórias de um passado que eu não queria conhecer. Sabia que o homem que as minhas mãos acariciavam não era o mesmo que combatera o meu povo. E eu também não era a menina que o enfrentara de espada em punho. A nossa transformação iniciara-se no instante em que os nossos olhos se haviam encontrado. E nenhum de nós podia negá-lo!

O que começara por ser uma experiência aprazível transformava-se rapidamente num doloroso exercício de vontade. Throst sentia cada toque dos meus dedos como a faísca de um raio, e eu agonizava com a vontade de beijá-lo. Decidi pôr fim ao nosso tormento, murmurando junto do seu ouvido, com a maior firmeza que reuni:

- Vou deixar-te terminar. Estarei lá fora...

Saí sem esperar pela sua reação e desatei a correr, a correr sem parar. Quando perdi a força nas pernas e caí, surpreendi-me no cemitério dos antepassados de Throst; o lugar onde, muito em breve, os que o amavam viriam prestar-lhe homenagem.

Enrolei-me sobre o meu próprio corpo e apertei os olhos com força, trespassada pela dor. O que podia eu fazer para mudar o que estava destinado? Por que a Visão não me revelava o outro caminho que a vidente profetizara; o caminho que libertaria Throst da sombra da morte? De que me servia ser uma feiticeira, se não tinha o poder de salvar aqueles que amava?

A vertigem esmagou-me como uma pancada na cabeça, enquanto o meu sangue se transformava em fogo líquido. Eu acabara de admitir... Não! Não era possível!

”Catelyn...”

Abri os olhos a custo. Diante de mim estava Trygve, o Lobo Cinzento. Possuída por uma angústia maior do que o próprio ser, arrastei-me até ele. Com um ronco de furioso desespero, apertei-lhe o focinho entre as minhas mãos e afundei-me no seu olhar de luz, até que, nas profundezas daquela alma atormentada, encontrei Trygve, o homem. Aos meus soluços convulsivos, juntaram-se as suas lágrimas. Abraçamo-nos, e a sua voz etérea envolveu-me como uma brisa:

”Prima... Não sofras por mim!”

- Eu quero tanto ajudar-te...

”Só poderás fazê-lo solucionando o enigma que te atormenta!

A energia que nos unia fez-me ver para além das suas palavras.

- A tua salvação não está nas minhas mãos - concluí ofegante.

- Está nas mãos do Throst!

Ele acentuou sem hesitação:

”A salvação do nosso povo está nas mãos do Throst, Catelyn! E a salvação do Throst está nas tuas mãos!”

E assim eu voltava ao ponto de partida!

- Mas o que posso eu fazer? ”Escuta a vontade do teu coração...”

- O meu coração enlouqueceu! - repliquei amargurada. - Eu não posso entregar-me a este sentimento!

”E por que não?”

Tentei responder-lhe, mas a emoção toldou-me a voz. Foi a minha mente que gemeu em agonia:

”O Throst não me pertence!”

”Essa decisão é dele e não tua! Tu só tens de decidir a quem tu pertences!”

Desta vez, nem a voz da mente teve alento para argumentar. As minhas idéias eram um novelo cheio de nós cegos.

- É possível amar dois homens? - perguntei, por fim.

Os olhos que refletiam os meus faiscaram antes de ele declarar:

”Deves amar os vivos e saudar os mortos. Se o amor for verdadeiro, não se deseja a solidão e a infelicidade do companheiro, quando o destino separa realidades. Eu estou certo de que aquele que lamentas te diria o mesmo.”

Senti-me derrotada, voando à deriva na minha cegueira.

- O Throst está decidido a fazer esta maldita viagem! - gemi dolorosamente. - Mesmo que eu admitisse... Mesmo que eu olhasse nos seus olhos e gritasse que o amava, nada mudaria!

”Tu mudaste o seu coração sem proferires uma palavra! O que importa é a tua essência... A verdade está no que és e não no que dizes. O caminho que procuras encontra-se a um passo, oculto pelas sombras do medo. Convence-te de que és mais forte do que os teus inimigos e vencerás!”

A nossa ligação estava a finar. A energia consumia-se rapidamente, e o rosto de Trygve tornava-se transparente entre as minhas mãos. Ele também o sentia. Beijou-me a testa, enquanto a sua voz flutuava como um sussurro:

”Quando o momento chegar, diz à Ingrior que o nosso amor é eterno e que voltaremos a encontrar-nos noutra vida. Porém, no tempo que lhe resta, ela deve procurar a felicidade sem arrependimento nem culpa. O meu coração encontrará conforto na sua alegria, no riso do nosso filho e no riso de todas as outras crianças que tiverem os nossos olhos.”

Um clarão insuportavelmente forte forçou-me a recuar. Quando eu recuperei a visão, estava sozinha. O meu primo, homem e lobo, desaparecera sem deixar rasto. A profunda tristeza que se instalava no meu peito acompanhava a certeza de que não tornaria a vê-lo.

Throst esperava-me sentado na entrada de casa e, mal me avistou, veio ao meu encontro.

- Aonde foste, Catelyn?

A exigência na sua voz alarmou-me. Aproximei-me devagar e respondi cautelosamente:

- Estive na floresta. Precisei ficar sozinha por algum tempo...

- Por que?

Raios! Ele estava tão bonito e perfumado! Seria ótimo poder saltar-lhe para o pescoço, como a sua noiva fazia, e esquecer que o mundo existia.

- Porque estou confusa. Tu não és o único que tem decisões a tomar!

Tentei entrar na casa, mas ele segurou-me firmemente pelo braço.

- E essas decisões têm a ver com tua missão? Já encontraste as respostas que buscavas?

- Pensei que tu não querias saber...

Tentei escapar-lhe, mas fiquei aprisionada dentro dos seus braços. A segurança e a determinação de Throst haviam atingido o auge. O olhar azul deixou-me paralisada, arfando de antecipação, enquanto os seus dedos se entrelaçavam nos meus cabelos. As minhas pernas amoleceram, e o coração espinoteou quando ele redargüiu:

- Mudei de idéias! Quero saber tudo sobre ti, o teu poder, a tua missão... Diz-me, Pequena, quem és tu? Uma feiticeira?

Não foi fácil começar; explicar-lhe que, apesar de o meu sangue ser misto como o seu, eu fora feita feiticeira no nascimento para combater a criatura malévola que ameaçava destruir o mundo. Revelou-se ainda mais difícil encontrar palavras para lhe contar que parte do Conhecimento me fora transmitido por um livro escrito pelo seu avô, o feiticeiro que ele desprezava. Enquanto a aventura que era a minha vida se desenrolava, ao som do crepitar da fogueira e envolvida pelas sombras da casa, tornava-se cada vez mais incerta a separação entre as nossas terras, as nossas famílias e os nossos destinos. Sentados à mesa das refeições, frente a frente, algo dentro de nós mudava a cada palavra; a forma como nos olhávamos não voltaria a ser igual.

Muitas vezes o surpreendi de cabeça baixa, com o sobrolho franzido e os olhos marejados de lágrimas, numa luta sem tréguas entre as convicções que mantivera toda a vida e a vontade de compreender o que a razão não podia explicar. As suas questões eram diretas, de resposta simples, e, contrariando o meu temor, nunca emitiu juízos de valor acerca da minha família. As suas emoções apenas extravasaram por duas vezes. Uma, foi para manifestar a sua satisfação por ter cortado a cabeça a Oliver de Goldheart. A outra foi para falar de Tristan.

Eu conseguira a proeza de relatar os fatos sem denunciar o amor que vivera. Justificava a mim própria que o fazia para manter privado o mais sagrado dos sentimentos. Porém, uma voz furiosa e acusadora berrava dentro da minha mente: ”Tu não queres é que o Throst perceba que existe outro homem na tua vida!” Todavia, foi inútil! Perdi o fôlego quando o guerreiro provou que nenhum pormenor lhe escapava:

- Quem era o jovem que o Goldheart matou na cavalariça e por quem tu mostraste tanto afeto? Não era um dos teus irmãos!

O que podia eu responder, senão a verdade?

- Ele chamava-se Tristan e era filho do chefe da guarda do meu pai. Crescemos juntos... E...

Throst estendeu as suas mãos e segurou as minhas, completando:

- E apaixonaram-se?

Confirmei e desviei o rosto, com a cabeça a latejar. Ele acariciou-me os dedos, continuando num tom baixo, mas decidido:

- O teu amigo era um homem muito corajoso e um bom guerreiro. Tive oportunidade de observá-lo durante a batalha. Toda a sua dedicação foi para ti e lutou bravamente até ao fim. Deves orgulhar-te do teu amor, Catelyn! Ele salvou-te a vida.

E orgulhava-me! Mas também me orgulhava do homem que estava diante de mim, porque não se deixava cegar pelo rancor. A sua percepção e astúcia provavam uma excelência ante os demais. E a sua sensibilidade tocava o meu coração, tão profundamente, que me assustava. As lágrimas escorreram pelo seu rosto quando murmurou:

- Aquela manhã mudou o rumo de dois povos... E eu comprometi a tua missão ao trazer-te para a Terra Antiga! Mas o que mais podia fazer?

Expliquei-lhe que a minha viagem era inevitável, quer fosse pela sua mão ou por qualquer outro capricho do destino, pois o feiticeiro que podia ajudar-me a derrotar Myrna encontrava-se na Terra antiga. Throst começou por pensar que eu me referia a ”O Que Tudo Vê”. Quando desfiz o equívoco, fez-se da cor da neve e não escondeu a indignação e o receio:

- Não posso aceitar que te tenham imposto tão grande provação! Não era suposto que te protegessem? O Sigarr é muito perigoso... Temo por ti, Pequena!

- Então, não ficaste zangado? - balbuciei a custo. Ele abanou a cabeça, denunciando a confusão.

- Zangado?

- Eu sei o que tu pensas dos feiticeiros... - continuei, ansiosa e trêmula. - E acabaste de descobrir que albergas uma aprendiz da Arte Obscura sob o teu teto.

As suas mãos apertaram as minhas, antes de replicar:

- Uma das poucas certezas que eu possuo nesta vida é a tua bondade. Se te sujeitaste a essa perversão, foi porque não tiveste escolha, e eu imagino o quanto estás a sofrer. Porém, é de esperar que tu me olhes com esse temor! Desde que te encontrei, nada fiz além de ofender-te com a minha brutalidade! - Esticou uma mão para tocar na pedra de Aranwen. - Coloquei em risco tudo aquilo por que lutas com tanta coragem e pelo qual já sacrificaste tanto, com a minha prepotência, com a minha ignorância. Eu... - Engoliu em seco, desviando os olhos e recolhendo as mãos. - Eu não sou digno... Nem de tocar num fio do teu cabelo!

Antes que eu pudesse segurar-me, estava a abraçá-lo com sofreguidão,

- Isso não é verdade! Tu também és muito especial! - Afastei-me o suficiente para encarar o azul atormentado do seu olhar. - Tens de acreditar em ti! Tens de confiar na tua força...

Os braços de Throst cingiram-me contra o seu peito. A minha entrega arrebatada desafiava o seu controlo. Afundou o rosto nos meus cabelos, murmurando veementemente:

- Eu juro que, se regressar, tudo farei para corrigir os meus erros. Talvez ainda haja esperança... Eu não posso perder-te, Pequena! Eu não irei perder-te!

Nenhum de nós tinha condições para continuar esta conversa. Ainda ficava tanto por revelar: a traição de Sigarr, a perfídia de Gunnulf... Mas valeria a pena? Não iria fomentar perigosamente a sua raiva com as minhas acusações? Eu podia esforçar-me por despertá-lo para a necessidade de mudar de rumo, mas ele tinha de caminhar com os seus próprios pés, descobrir quem eram os inimigos e os aliados, senão tudo seria vão.

Deixei-me ficar aninhada no seu colo, escutando o seu coração. Quando Throst apelou, resolvi não responder e, julgando-me adormecida, ele deitou-me na minha cama e cobriu-me cuidadosamente com a manta. Depois, tornou a sentar-se à mesa, afundando a cabeça entre as mãos. Foi assim que a irmã o encontrou quando regressou a casa.

No dia seguinte, enquanto jantávamos, tivemos visitas inesperadas: Gunnulf, Arnorr e Sigarr. Um único esgar do meu mestre foi suficiente para eu saber que se avizinhavam grandes sarilhos. Mantive os olhos no prato, enquanto Gunnulf atacava raivosamente:

- Agora sentas os escravos à tua mesa, Throst? É óbvio que, nos últimos tempos, muita coisa mudou na casa do teu pai!

Esbocei a intenção de me levantar, mas Ingrior segurou-me o braço, replicando:

- Fica! Tu és minha convidada!

Ao mesmo tempo, a voz de Throst soou tão fria e ríspida que me arrepiou:

- A casa é minha, Gunnulf! Eu escolho quem se senta à minha mesa!

A conversa não estava a correr bem! Bjorn e Styrr entreolharam-se. Katla já pegara em Trygve e refugiara-se no quarto, logo seguida por Jodis. A coruja branca também desaparecera.

Eu imaginava Gunnulf da cor da fogueira, soltando fumo pelas ventas, com as tatuagens ameaçando saltar da pele. Foi uma surpresa ouvi-lo controlado quando apelou:

- Preciso falar contigo, primo. Posso afastar-te um pouco da tua família e dos teus convidados?

- Certamente!

Com um gesto simples, Throst pediu-nos que nos retirássemos. Ingrior deu-me o braço, levou-me para o seu quarto e fechou a cortina. Prevendo algo terrível, abraçamo-nos e ficamos imóveis, de respiração suspensa. A voz de Gunnulf foi a primeira a ecoar:

- Não percamos mais tempo! O Arnorr manifestou interesse em comprar a tua escrava. Nós estamos aqui para testemunhar o negócio. Qual é o preço da rapariga, Throst?

Senti o medo a espalhar-se pelo sangue como lâminas de gelo.

- Confia no Throst... - segredou-me Ingrior. A voz do senhor da casa já perguntava:

- E posso saber para que queres a minha escrava, primo? Após uma pausa, a resposta de Arnorr:

- Não é segredo para ninguém que a Pequena me agrada. Pretendo desposá-la e dar-lhe uma vida digna.

Throst praticamente não hesitou:

- Depois de a Halldora rejeitar a escrava, eu entreguei-a aos cuidados da Ingrior. Sinto muito, mas a Pequena não está à venda.

Fez-se um silêncio mortificante, quebrado pela voz rouca e irritada de Arnorr:

- Eu posso dar-lhe uma vida boa, Throst! Não sou qualquer um! Tenho sangue nobre! A Pequena jamais encontrará um pretendente melhor! Eu não quero tomá-la para amante e sim para minha esposa, para mãe dos meus filhos. Se estimas tanto a tua escrava, tens de admitir que o que eu lhe ofereço é muito mais do que tu lhe podes oferecer.

O silêncio que se seguiu deixou-me aterrada. A presença de Sigarr era mais do que significativa. De certeza o feiticeiro escolhera Arnorr para pai do meu filho. Se Throst me entregasse ao primo, eu estaria perdida. A voz do meu protetor soou, impaciente e gélida:

- Acho que não fui suficientemente claro! A Pequena pertence à minha irmã. Eu já não sou responsável pelo seu destino.

Foi a vez de Gunnulf estrelejar de ira:

- Então, chama a tua irmã à nossa presença, para que possamos consultá-la!

Ingrior esfregou-me os braços, enquanto negava com a cabeça. Era evidente que confiava cegamente em Throst. Ele não tardou:

- Isso não será necessário. A Ingrior tem planos para a Pequena. Jamais cederá!

- E por que não é ela a dizer-nos isso? - O vozeirão do guerreiro-urso sacudiu as paredes. - Por acaso a tua irmã tem medo de que eu a maltrate?

- Não seria a primeira vez, pois não Gunnulf?

Ao tom incendiado de Throst, Sigarr interveio de imediato:

- Calma, rapazes! Devo recordar-vos de que sois primos e amigos? Nenhum homem é obrigado a vender a sua propriedade se não o desejar, Gunnulf! O Throst explicará à irmã as boas intenções do Arnorr, e a Ingrior terá o Verão inteiro para tomar uma decisão. Não percamos mais tempo aqui! O regresso ainda é longo...

Ouviu-se um rugido e o estrondo da porta. Gunnulf e Sigarr haviam partido, mas Arnorr quedou-se e ainda insistiu:

- Por favor, primo, falarás com a Ingrior?

- Vai descansado, Arnorr. O teu desejo será transmitido.

A porta tornou a fechar-se e, num piscar de olhos, Throst estava junto de nós. Por trás dele, Bjorn gritava:

- Tu não vais vender a Pequena! Eu jamais te perdoarei se...

- Cala a boca, piolho! - replicou o irmão mais velho, afastando-o com brusquidão. - Não achas que já chega? Vai para a cama!

Bjorn afastou-se com a orelha murcha, e Throst encarou-me, perguntando:

- Se o Sigarr apóia a tua missão na Grande Ilha, por que razão se prestou a esta farsa?

Ingrior antecipou-se:

- O Sigarr está a garantir que a Catelyn não escapará ao seu domínio. O único objetivo desta proposta ridícula é afastá-la de nós. A Catelyn acredita que os seus dias nesta terra estão contados, e tu, querido irmão, negas o teu poder. Mas o bruxo vê mais longe e teme pela vossa proximidade. Ele sabe que, no momento em que vós assumirdes o vosso amor, ninguém travará a bandeira da paz. E não é essa a bandeira que o Sigarr defende. O maldito fará tudo para que a profecia da Pedra do Tempo não se concretize!

O meu rosto pegou fogo, e o de Throst não ficou melhor. Ingrior não deixava passar uma oportunidade de afirmar a sua convicção e de nos repreender pela nossa teimosia. E, de cada vez que o fazia, as suas palavras pareciam ganhar força. Foi Throst quem se insurgiu, mastigando entredentes:

- A Catelyn já tem problemas suficientes, sem que queiras impor-lhe a tua vontade, Ingrior! - Baixou-se, fixando o meu olhar.

- Sabes que, para mim, nunca foste uma escrava. Porém, para tua própria segurança, é melhor que todos pensem que assim é. Quero que te mantenhas longe do Gunnulf. Ele deu-me a sua palavra de que não te magoaria, mas, entretanto, muita coisa mudou. Já não sei se posso confiar nele! É melhor que evites sair sozinha, mesmo após a nossa partida. Os acidentes acontecem... Compreendes? Eu já discuti este assunto com a Ingrior, e ela sabe o que deve fazer se eu não voltar. Aos olhos do povo, a minha irmã será a tua senhora e poderá libertar-te sem que sofras perseguições...

Pretendia dizer algo mais, mas a voz faltou-lhe. Antes que alguma de nós reagisse, já ele deixara a casa. Ingrior estremeceu, murmurando angustiada:

- Eu nunca o vi assim, Catelyn! O Throst vive obcecado pela certeza de que vai morrer... Tenho medo!

Embalei-a quando começou a chorar. O que podia eu fazer? Raios! O que podia eu fazer?

Sigarr aguardava-me na margem do ribeiro, mas não me recebeu com a aspereza habitual. Cumprimentou-me com um aceno de cabeça e disse sobriamente:

- Chegou o momento de nos despedirmos, Catelyn! Esperam-te meses de trabalho duro na quinta, mas não podes esquecer-te do nosso acordo. Tens de praticar, de dia e de noite...

O discurso continuou. Eu tinha! Eu devia! Não veria ele a minha angústia? E, se visse, que diferença faria? Eu não passava de um instrumento usado para atingir os seus objetivos. O estranho laço que nos unia confundia-me e enfurecia-me. Sigarr era um servo do mal e o responsável por toda esta desgraça. Já atentara contra a minha vida e voltaria a fazê-lo sem remorsos, se tal lhe conviesse. Em que ponto da nossa relação eu me esquecera disto? Enfrentei-o desgostosa:

- Se está tão preocupado com o meu desempenho, por que apoiou a idéia disparatada do Arnorr? Eu não posso casar-me com um Viking! Tenho de regressar à Grande Ilha...

Sigarr interrompeu-me com um gesto cortante, replicando impaciente:

- Por vezes é necessário alinhar nas maiores tolices para evitá-las. Pensas que, sem a minha interferência, o Gunnulf teria recuado com tamanha facilidade? Acreditas, realmente, que o incapaz por quem te apaixonaste te pode proteger? Julgas que, sob qualquer condição, o Gunnulf permitiria que uma McGraw vivesse na sua terra, na sua casa, se eu não o tivesse convencido da tua importância, rapariga ingrata? Farias melhor se me obedecesses, em vez de me contestares! Os corações dos homens estão confusos, e o seu desejo, descontrolado. Sem a guarda do Throst, ficarás à mercê da luxúria que tão insensatamente tens despertado.

A raiva bateu-me no rosto e, sem pensar nas conseqüências, cuspi a acusação:

- O Throst é uma ameaça para os seus planos! Por isso, o senhor está tão ansioso por vê-lo morto! Se o neto de ”O Que Tudo Vê” assumisse a sua missão, os conspiradores seriam banidos desta terra!

A sua gargalhada deixou-me assombrada. O olhar de Sigarr não denunciava indignação ou ultraje e sim um surpreendido agrado, como se eu tivesse atingido um objetivo que ele julgara fora do meu alcance. Ao invés de protestar, revidou num tom escarninho:

- Devo agradecer ao Criador por o Throst não possuir o teu poder de Visão e tu não exerceres o seu poder de persuasão. O tempo do guerreiro-lobo terminou! Ele fez a sua escolha e decidiu o seu fim. Terá uma morte honrosa, que cumprirá os requisitos que estes infelizes acreditam necessários para alcançarem o Paraíso. Não te preocupes com a sorte do Throst, Catelyn. Uma vez chegado ao Valhalla, terá cerveja, duelos e mulheres suficientes para nunca mais se lembrar da pequena enfezada que deixou para trás!

As suas palavras magoaram-me... E a língua voltou a trair-me:

- E depois do Throst quem se seguirá? O próprio Gunnulf? Qual é o seu propósito, Sigarr? O trono de um futuro País do Norte? Ou algo ainda mais ambicioso?

Em menos de nada, o feiticeiro estava junto de mim, e o seu olhar profanava-me com um ardor que eu desconhecia. Tentei recuar, mas não consegui mover um músculo, gelada de medo, mortificada pela idéia absurda de que ele tencionava beijar-me. Porém, tão rapidamente como se aproximara, Sigarr afastou-se sem tocar num fio do meu cabelo e replicou, desprovido de emoção:

- As forças que movem o mundo não são simplórias como a tua mente, minha néscia aprendiz! Concentra-te na tua ínfima importância e deixa os grandes desígnios para quem tem o poder de intervir no futuro. Caso ainda não tenhas compreendido, nós estamos a fazer história! Agora, eu vou apresentar-te o teu novo mestre. Imagino que tu já saibas o que isto é...

Repentinamente, uma bola de cristal negro apareceu na palma da mão de Sigarr. Mal contive um grito ao perceber que estava diante da Lágrima da Lua.

- Agarra-a, rapariga! Não irá morder-te nem sugar-te para o inferno!

Não me dei ao trabalho de disfarçar o tremor quando os meus dedos tocaram na superfície brilhante, repleta de faces minúsculas, que, ao entrarem em contacto com a pele, perdiam a transparência e adquiriam cor. Os meus olhos escancararam-se e os lábios libertaram uma exclamação silenciosa de pasmo e maravilha. Tal como Ingrior, eu pensava que o cristal era a coisa mais bonita que já vira.

- Cada uma dessas faces é uma porta para um mundo - continuou Sigarr. - Explorá-los será o teu treino, na minha ausência. Existem muitos desafios para vencer... Desafios que jamais poderias encontrar nesta realidade, onde os ignorantes da raça inferior ainda defendem que nós somos o centro do mundo, que a Terra é plana e que o mar vai terminar abruptamente no abismo da sua estupidez.

Foi necessário um grande esforço para desviar os olhos da Lágrima da Lua e expressar a minha incredulidade:

- Vai deixá-la comigo?

Ele encolheu os ombros monotonamente.

- E por que não? Encara a minha generosidade como uma prova de confiança! O cristal pode ser manuseado por qualquer feiticeiro, ou mesmo por descendentes de sangue superior. Porém, a vontade do seu Guardião é soberana. Foi este o acordo firmado há muitos séculos. Isto significa que, se me tentares enganar, o próprio cristal se encarregará de te castigar!

Engoli em seco, irresistivelmente atraída pela bola mágica que pulsava nas minhas mãos.

- Como funciona? - perguntei ofegante. - O que tenho de fazer?

- A forma como o cristal comunica com cada feiticeiro é diferente. Liberta a tua mente, e ele próprio dar-te-á as respostas. Lembra-te de que cada vitória significará um passo adiante no conhecimento da Arte. E não percas tempo com assuntos menores ou a explorar coisas sem interesse, como o passado, ou coisas mutáveis, como o futuro. A Gwendalin não está a dormir!

Tornei a encarar Sigarr, sobressaltada por uma dúvida acutilante:

- A Gwendalin também aprendeu com a Lágrima da Lua?

Os lábios do Mestre da Arte Obscura retorceram-se num sorriso escarninho. Cruzou o manto por cima dos ombros com um gesto amplo, para se proteger do ar frio da noite, e desapareceu nas sombras, sem se dignar a responder.

”A salvação do Throst está nas tuas mãos...”

Mas as minhas mãos estavam vazias. Vazias de soluções. Vazias de tempo. Vazias de esperança... A única pista que possuía era a revelação da tragédia. Eu não sabia explicar o motivo, mas crescia em mim a certeza de que a resposta que buscava se encontrava aí. Quando presenciara o flagelo, ficara tão perturbada que nada mais vira além de sangue e morte. E se eu tivesse a oportunidade de reviver o momento da desgraça e de lhe extorquir a preciosa informação?

Até ao presente, a Visão ia e vinha, conforme a sua própria vontade, mostrando-me o que bem lhe apetecia. Mas eu podia experimentar domá-la aos meus desígnios, forçá-la a levar-me para aquele preciso instante no futuro. Se não tentasse, viveria o resto da vida atormentada pelo remorso de nada ter feito para salvar Throst.

Nessa noite decidi arriscar tudo. Mal a casa se silenciou, e a única testemunha dos meus passos furtivos era a pequena coruja, dirigi-me ao templo onde as pedras, branca e a negra me aguardavam. Acendi a fogueira e sentei-me diante dela, com uma tina de água entre as pernas e um punhado de terra dentro das mãos. Respirei fundo e apelei a todas as forças físicas e mentais, num esforço de concentração nunca antes ousado.

No início, nada aconteceu. O meu olhar esgazeado explorava cada pormenor da casa, da quinta, da aldeia adormecida, e pairava por cima do mar. No topo da Montanha Sagrada, a Pedra do Tempo estava envolta em fogo que incendiava o céu. O nevoeiro tombava sobre mim e sorvia-me a força. A grande Lua vermelha ria-se da minha fraqueza: ”Tu não irás vencer-me!”

”Queres apostar?”

O meu grito elevou-se, até dissipar o nevoeiro e estilhaçar o negro do céu. O azul brilhante de uma realidade longínqua encandeou-me a vista, e o meu clamor tomou a forma de um apelo:

- Throst!

Pisquei os olhos e fui esmagada pela imponência da fortaleza que ocultava o Sol. Hasteada no topo e balançando orgulhosamente ao sabor do vento, estava uma bandeira com um brasão que eu conhecia sobejamente bem: o escudo, o carvalho e o lago, bordados sobre o verde-natureza e o vermelho-sangue - os símbolos da minha família. Estaquei fulminada, ao aperceber-me do que isso significava, mas uma força dentro de mim impeliu-me a reagir. Se eu cedesse ao assombro, estaria tudo perdido!

Corri por entre o estridor das espadas e encontrei o guerreiro que procurava. Quando Throst caiu, eu tombei ao seu lado, berrando o seu nome em agonia, suplicando por um amor que deixara finar sem nunca ter tido coragem de o declarar.

- Não... Não... Não!

Os olhos azuis escancararam-se ao encontro dos meus, como se me pudessem ver. Deitei a cabeça no seu peito. Queria chorar, gritar, berrar... Mas já pouco mais conseguia do que respirar. A pele do meu guerreiro estava úmida. O seu coração batia em debandada, e os músculos do seu corpo contraíam-se de dor.

- Throst... Não!

Tentei proteger-lhe a garganta e só então reparei que o seu pescoço se encontrava nu. O amuleto que representava o machado que Thor empunhava nas heróicas batalhas, oferecido pelo seu pai no dia do seu nascimento, depois de o elevar ao céu e abençoar, havia desaparecido. Contudo, antes que eu pudesse compreender o significado de tão estranha descoberta, a lâmina de um punhal trespassou-me a mão e degolou o gigante louro.

Despertei com os meus próprios gritos, oscilando perigosamente perto da fogueira. Arrastei-me para a segurança da sombra das pedras e esforcei-me por dominar a tontura que me banhava de suores frios. Os meus gemidos alternavam com o troar do coração. Throst ia morrer na Grande Ilha, pela mão de um soldado do meu pai. Poderia o pesadelo da guerra nunca mais ter fim?

Saltei de susto quando a porta do templo se escancarou. Ergui-me a custo, apoiando-me na pedra branca. Mal pude acreditar nos meus olhos, ao ver Throst diante de mim, tremendo como uma criança abandonada, com o rosto sem cor e os olhos esbugalhados de horror. Hesitou quando me viu, mas acabou por avançar e tomou-me nos seus braços. Eu estreitei-o com igual desespero, compreendendo o que se passara mesmo antes de ele confessar entre soluços:

- Voltou a acontecer, Pequena... Eu vi o meu fim...

- Eu sei... - murmurei, enrouquecida pela emoção. - Eu estive lá, contigo...

Os seus olhos encontraram os meus e denunciaram a confusão que o fustigava. Eu segurei-lhe no rosto e repliquei com toda a firmeza que consegui reunir:

- Isso não irá acontecer! Tu não vais fazer esta viagem, Throst!

- Eu não posso deixar de ir, Pequena...

- E por que não?

O meu desespero misturava-se com a indignação. Senti vontade de o acorrentar às pedras do templo, até o último Drakkar da Terra Antiga ter desaparecido no horizonte.

- Se eu voltar as costas a esta campanha, viverei o resto da vida com a cara no chão, escondendo-me da minha própria sombra como um cobarde! - justificou fracamente, recuperando o fôlego e a serenidade. - Isso será muito pior do que a morte!

- Então, irás combater novamente a minha família? - Eu queria afastá-lo para deixar vincada a minha indignação, mas não tive força.

- Não, Catelyn! - retrucou ele com veemência. - O Gunnulf garantiu aos homens que esta será uma campanha de busca e exploração de novas terras, longe das costas da Grande Ilha...

- E tu acreditaste?

Throst enlaçou o meu rosto com as suas mãos, antes de responder:

- Se o meu destino for morrer nesta campanha, Catelyn, eu morrerei como um Viking, com o orgulho de nunca ter voltado as costas ao meu dever, de nunca ter traído a minha palavra! Se o meu corpo não puder descansar junto dos meus antepassados, restar-me-á a consolação de tê-los honrado até ao último sopro de vida. Esta é a minha convicção de homem! Sem ela, não sou ninguém! Entendes?

Não era a altura ideal para discutirmos as nossas divergências. Apesar de não concordar, eu compreendia que o orgulho de Throst era a raiz do seu espírito. Quebrá-lo, seria destruir a mente e o corpo do homem. Mas, mesmo sem o contestar, eu tinha o dever de lhe soprar para os olhos:

- Morrer nesta campanha não é o teu único destino! Recordas-te das palavras da Velha do Tronco Oco? Há outro caminho para trilhares, que te levará para longe, talvez para a terra onde sonhas construir a tua comunidade. A vidente viu três filhos no teu futuro, Throst. Três reis! É nesse destino que deves acreditar! E é por ele que tens de lutar com toda a tua convicção...

Enquanto eu falava, a sua expressão alterou-se. Acariciou-me as faces com as pontas dos dedos, como se desejasse decorar os pormenores da minha pele. Por fim murmurou, rouco de emoção:

- Desejava... Desejava que pudesse ter sido diferente; tu e eu... A Ingrior teve razão desde o início! Eu nunca senti por ninguém o que sinto por ti, Pequena... Minha doce Pequena!

Aproximou o rosto devagar, hesitante, como se temesse que eu recuasse. Mas eu não recuei. Recebi os seus lábios e entreguei-me ao seu carinho, com toda a emoção que me estalava no peito. O seu ardor sabia a lágrimas, a dor e a saudade. Era uma despedida. A última despedida...

Foi ele quem tomou a iniciativa de quebrar o beijo. Vi que tirava o amuleto de Thor do seu pescoço e se preparava para colocá-lo no meu. Este gesto simples deixou-me apavorada. De repente, tudo se tornou claro como água. Assim se concretizava a desgraça!

- Throst, não...

- Por favor, Catelyn! - suplicou, ignorando o meu recuo. - Se eu tombar, pelo menos parte de mim estará contigo. Se o meu corpo não descansar aqui, o meu espírito viverá a alegria de ficar perto de ti, de acompanhar o teu regresso a casa, a tua vitória... De ver-te reencontrar o amor e gerar filhos...

Quis suplicar-lhe que parasse, mas não tive força. Desejei gritar que esta era a chave da sua perdição, mas as palavras não me saíam e, enquanto eu mergulhava na doçura do olhar azul, vi uma sombra ameaçadora erguer-se sobre a cabeça loura. Num esforço supremo de vontade, tentei devolver-lhe o fio, enquanto objetava:

- Desculpa Throst, mas eu não posso aceitar! Este amuleto carrega as tuas origens. É a tua proteção! A tua ligação ao teu deus...

- O meu deus sabe que eu não preciso de símbolos de metal para lhe provar a minha devoção. - Apertou-me as mãos, suplicante. - Não negues o meu presente, Catelyn! Causar-me-ás grande dor!

O machado de Thor queimava-me a pele. Aflita, ergui a mão para lhe tocar. Então, apercebi-me de que não era o amuleto de Throst que me incomodava. Era o amuleto de Aranwen! Depois de tanto tempo adormecida, a pedra mágica pulsava, respondia às minhas preces e fornecia-me a resposta pela qual, há tanto, agonizava. Sem que eu precisasse desfazer o nó, o fio deslizou para a minha mão. Ante o olhar incrédulo de Throst, tencionei colocá-lo no seu pescoço. As suas mãos frias detiveram-me.

- Não, Catelyn! Eu sei o quanto essa pedra significa para ti! Não podes arriscar-te a perdê-la! Como conseguirás cumprir a tua missão sem ela?

- Da mesma forma que o teu deus vive em ti, também a magia do amuleto vive em mim - volvi sem hesitar. - Eu não estou a dar-te a pedra, Throst... Estou a emprestar-ta para que te dê sorte! - Como que afastadas por uma vontade Superior, as mãos do guerreiro cederam, e o fio deslizou e aninhou-se no seu peito. - A pedra voltará para mim! E tu também voltarás...

Eu sabia que era verdade. A sombra funesta que pairava sobre ele desvanecera-se. Throst voltaria à sua terra e cumpriria a promessa que fizera a Halldora, no dia em que ela nascera, uniria o seu povo e seria pai de três reis. Este era o seu verdadeiro destino.

- Catelyn...

- Promete-me... - impedi o seu protesto débil. - Promete-me que, aconteça o que acontecer, jamais te entregarás ao desespero e à escuridão! Jura-me que lutarás até à tua última réstia de força! Jura-me, Throst!

Com uma expressão solene, ele estendeu a mão que nos unia num pacto sagrado, e eu correspondi, enquanto interiorizava as suas palavras:

- Eu prometo... Eu juro pelo nosso sangue que tudo farei para regressar! Eu irei vencer a morte, Catelyn!

Respiramos o alívio desta nova esperança. O amuleto de Thor estava no meu pescoço, e o de Aranwen, no pescoço de Throst. A minha missão na Terra Antiga fora concluída e restava-me rezar para que a magia se concretizasse. Já não sentia raiva quando pensava na união de Throst e Halldora. Compreendia finalmente o significado das palavras de Trygve. O verdadeiro amor não era egoísta. Eu seria feliz se soubesse que Throst vivia a alegria de ver os seus filhos a crescerem. Apesar de não poder dizer-lho, sabia que o amava. Amava-o com todo o meu coração.

O dia que eu tanto temia chegou finalmente. Styrr estava eufórico e desejoso de partir, Bjorn resmungava, frustrado por não poder acompanhá-los e Ingrior afogava-se em lágrimas.

Throst despediu-se com um sorriso e a confiança renascida no olhar. Escondera a pedra de Aranwen dentro da sua túnica, para que o nosso segredo fosse preservado, mas eu sentia-a pulsar com as batidas dos nossos corações. O desfecho desta batalha já só dependia da caprichosa sorte.

Sustive a respiração quando Throst se deteve à minha frente e aguardei por um aceno superficial. Afinal, não estávamos sozinhos e já nos tínhamos despedido. Todavia, perante o meu próprio assombro, o capitão abraçou-me com tanto ardor que eu quase perdi o chão. Afundou o rosto nos meus cabelos e murmurou baixinho, para que só eu o escutasse:

- Amo-te, Catelyn McGraw! Amo-te com o meu coração e a minha alma... Sem quaisquer barreiras ou condições. Amo-te...

Quando ele me soltou, eu cambaleei sem força nas pernas e tive de procurar o apoio de Ingrior. Mordi o lábio ao vê-lo montar no seu cavalo, logo imitado pelo alegre Styrr. Os guerreiros da Aldeia do Povo iam reunir-se aos companheiros na Herdade de Grim, de onde partiriam na manhã seguinte, depois da grande festa desta noite.

Styrr torceu-se sobre o cavalo e acenou um último adeus. Throst não olhou para trás.

 

O Verão estendeu-se sobre a terra dos Vikings e encheu-me de admiração e encanto. Depois do Inverno agreste e rigoroso, eu jamais poderia imaginar que a paisagem se cobrisse de um manto verde suave, salpicado pelas cores vivas e alegres das mais belas flores. Era para mim uma felicidade acompanhar Bjorn aos campos e concentrar-me nos pequenos pormenores do treino da Arte, enquanto o observava a pastar o gado com a altivez de um líder, a guerrear com os outros rapazes para provar que era o mais forte, ou a subir às árvores para carregar um cesto com frutos maduros, doces e sumarentos, que depois me oferecia com um olhar enamorado.

Não muito longe de Bjorn estava sempre a filha de Sven, uma pequenita de oito anos, gorducha e corada, que desenvolvera uma adoração pelo mais jovem dos Thorgrim. Bjorn irritava-se com a constante perseguição de Dália. Contudo, se algum dos outros rapazes se atrevia a levantar a voz ou a lançar um olhar atravessado à sua admiradora, ele saltava para defendê-la como uma fera enfurecida.

Certo dia, Dália caiu durante uma brincadeira com as amigas. Do acidente só resultou um susto e um arranhão, mas ela continuava a choramingar, e eu depressa concluí que o fazia para atrair a atenção de Bjorn. Divertida, contei-lhes que, quando tinha a idade de Dália,

Também me sucedera o mesmo e que o mais forte e corajoso dos meus irmãos me carregara às cavalitas até casa, como um verdadeiro herói.

Foi o suficiente para que Bjorn se oferecesse para transportar Dália a casa dos pais, cortando caminho por entre as espessas searas da cor dos seus cabelos rebeldes. Apesar de os amigos quererem ajudá-lo insistiu em executar a prodigiosa tarefa sozinho. No final, a pequena brindou-me com uma piscadela de olho e um sorriso deliciado. Eu tive a certeza de que a sua determinação a levaria longe. Dália já fizera a sua escolha.

Enquanto trabalhávamos na quinta, eu ia trocando com Ingrior experiências na arte de curar. Entre nós, a conversa nunca se esgotava. Ela pedia-me muitas vezes que falasse acerca da minha família, especialmente de Berchan e da sua aprendizagem com os Druidas. Havia nela uma grande fome de saber, que os livros do seu avô e os débeis conhecimentos que Anna lhe transmitira não conseguiam saciar.

A razão por que ”O Que Tudo Vê” se mantinha escondido do mundo permanecia um mistério. Ingrior confessou-me que, durante os dias mais negros da sua vida, colocara a hipótese de o avô ter enlouquecido depois do falecimento da avó e chegara a ponderar a opinião de Throst, que teimava que ele se envergonhava e ressentia da sua descendência humana. Para mim, nenhuma dessas explicações era verossímil. Se o Guardião da Lágrima do Sol estivesse louco, não teria orientado Ingrior durante anos; e por que se envergonharia dos netos humanos, se estes eram maravilhosos? Não! Hakon escolhera a sua solidão em consciência e por motivos muito fortes, fora do alcance da nossa imaginação.

Não tornei a subir a Montanha Sagrada, apesar de Ingrior mo ter solicitado muitas vezes. Temia enfrentar novas revelações, quando ainda não compreendera a contradição das primeiras. Como podia a Pedra do Tempo escolher Throst para unir o seu povo e colocá-lo no caminho da paz, admitindo simultaneamente que o rei desse povo seria um ambicioso assassino sem escrúpulos? Além disso, eu não conseguia afastar do pensamento o que vira no quarto do dragão. Depois do que prometera a Sigarr, ponderar a possibilidade de viver o amor nos braços do guerreiro viking era tão angustiante como admitir que estava condenada à solidão.

No pouco tempo livre que me restava, descobri o prazer de bordar. Segurava a túnica de Throst entre os dedos e sentia-o junto de mim, murmurando na sua voz intensa: ”Amo-te, Catelyn McGraw...” Enquanto isso, o desenho do dragão fixando o Sol, testemunho da sua linhagem mágica, tomava forma. A esperança de que, um dia, Throst usasse a túnica com o mesmo carinho com que eu a bordava dava-me coragem para continuar.

Noite após noite, o meu corpo repousava na cama, mas o espírito vagueava sem descanso. A floresta escondia a minha prática da Arte Superior, o aperfeiçoamento da magia que não podia revelar a Ingrior, a descoberta dos mistérios da Lágrima da Lua... E, à beira do ribeiro de águas sagradas, junto da pedra que testemunhara a minha união de sangue com Throst, encontrei um equilíbrio que julgara inatingível. Pela primeira vez, comecei a acreditar que a vitória estava ao meu alcance.

Passei a tarde na aldeia, tentando salvar um ancião cuja idade abençoada se transformara num tormento. Para meu desespero, falhei. A sua família agradeceu-me pela dedicação e por ter-lhe amenizado a dor nos últimos instantes, mas eu senti-me revoltada com a fragilidade humana, angustiada com a precariedade da vida.

Regressei a casa, fugindo das sombras da noite que ameaçavam cobrir-me. Estava a chegar quando aconteceu...

Comecei a ficar tonta; a sentir na boca o sabor a sal e a sangue, com o suor a escorrer pela pele, gelado como a chuva de Inverno. As minhas pernas perderam a força, e o corpo dobrou-se numa convulsão. Caí desamparada e os meus olhos abriram-se à escuridão. Mas ainda não anoitecera... Havia muita luz, apesar de o Sol estar encoberto pela fortaleza alta e inexpugnável. A bandeira dos McGraw agitava-se ao capricho do vento. Perto, uma voz que eu conhecia e amava entrou-me nos ouvidos como o sopro de uma trompa:

- Edwin, atrás de ti!

Olhei para Stefan, sobressaltada pelo reconhecimento, fustigada pela emoção e pela saudade. O meu irmão! O meu querido irmão! Estava tão diferente! Tornara-se um homem... Um guerreiro!

Na direção do seu apelo encontrei Edwin, um verdadeiro deus da guerra, forte e belo, a amparar o golpe de um inimigo com o seu escudo e a trespassá-lo com a espada. O meu sorriso de encanto finou de imediato, ao reconhecer o homem que tombava. Eu vira-o muitas vezes na casa de Gunnulf, divertindo-se com as escravas. Isto só podia significar que...

O meu pesadelo ganhou vida quando Edwin se lançou em frente, varrendo os Vikings diante dele. Stefan seguiu-o. Clamavam por vingança. Procuravam pelo líder. Queriam o urso.

Gunnulf estava perto. Edwin precipitou-se ao seu encontro, com o olhar carregado de ódio, berrando como uma fera selvagem. Um homem de constituição equivalente à sua impediu-lhe a passagem. Os cabelos dourados do Nórdico brilharam aos moribundos raios de sol, enquanto as suas espadas chocavam no ar e os escudos se esmagavam com furor.

Eu quedei-me, impossibilitada de mover-me, incapaz de respirar, vendo os homens a girar à minha volta como fantasmas. Já presenciara esta batalha tantas vezes que a conhecia de cor. Mas nunca, jamais me apercebera...

O escudo de Edwin foi-lhe arrancado da mão, e o meu irmão cambaleou em desequilíbrio, mal conseguindo amparar a investida de Throst. O instinto fê-lo alcançar o punhal na bainha da bota e atacar com renovada exaltação. As espadas devoraram-se, e o meu irmão fraquejou mais uma vez, ante a força do adversário. Imobilizado contra o escudo viking, a sua vida pendeu na lâmina do guerreiro-lobo. Porém, nesse instante, a pedra vermelha de Aranwen brilhou como fogo por cima da sua cota prateada. Eu vi a chama a refletir-se no olhar de Throst e, nessa pausa de uma batida de coração, percebi que o ímpeto do meu amor afrouxava ao reconhecer o meu irmão. Edwin não lhe perdoou a hesitação e rasgou-lhe o ventre com um golpe rápido e preciso.

Enquanto eu corria ao encontro dos dois, bradando muda e histericamente, o corpo de Throst abateu-se sobre a areia. Tombei ao seu lado e encontrei o olhar azul, cintilante de agonia. E ele viu-me, tão claramente como eu o estava a ver.

- Pequena...

O seu gemido foi abafado pelo rugido do meu irmão:

- Malditos selvagens! Eu acabarei com a vossa raça, nem que tenha de matar-vos um a um...

O punhal brilhou na sua mão. Puxou pelos cabelos louros do inimigo para lhe expor o pescoço e baixou a lâmina.

- Não, Edwin! - supliquei entre soluços. - Não...

Senti a minha mente estourar e fui envolvida por um negrume gélido. Respirar era impossível, e a ausência de ar provocava-me agonias por todo o ser. Várias mãos imobilizaram-me, e, no meu tormento, ouvi a voz de Bjorn... Longe, muito longe:

- Quem é o Edwin? E a de Ingrior:

- É o irmão dela! Que Thor nos ajude! O que está a acontecer?

Não sei quanto tempo permaneci desacordada. Despertei com o perfume de ervas curativas e a carícia das mãos de Ingrior, que molhavam a minha testa com um pano macio. Diante dos seus olhos encharcados, senti vontade de gritar. Como podia eu dizer-lhe o que acontecera ao homem que ambas amávamos?

Contudo, não foi necessário falar. Ingrior segurou a minha mão e abriu-a diante dos nossos olhos. A cicatriz que eu partilhava com Throst rasgara-se e derramara sangue. Enrouquecida pelo choro, ela perguntou simplesmente:

- O que podemos nós fazer, Catelyn?

O meu corpo estava fraco, mas a mente batalhava. Throst não morrera! Eu tinha a certeza de que mudara o seu destino quando lhe entregara o meu amuleto. Throst estava vivo e precisava de mim, da minha força, da minha magia. E só havia um lugar onde o meu espírito assimilaria a energia necessária para se lançar ao seu encontro. Chegara o momento de enfrentar os meus temores. Chegara o momento de encarar a verdade.

- Vou subir a montanha!

A convicção na minha voz sacudiu a esperança de Ingrior.

- Eu vou contigo.

Nessa noite, uma violenta tempestade de Verão, como não havia memória de outra igual, flagelou as Terras do Norte. O céu estava negro, e os Elementos, irados. Os relâmpagos transformavam a noite em dia, desferindo chicotadas de energia sobre a terra e o mar. Por muito tempo, a chuva teimou em resguardar-se, e o ar ficou insuportavelmente quente e úmido. Vários fenômenos de luz azul, amarela e vermelha pairaram por cima do mar, como línguas de fogo que rasgavam as vagas enraivecidas. Nos corações supersticiosos dos aldeões aterrados, crescia a certeza de que um demônio feroz fora libertado para destruir a humanidade.

Assim que eu toquei na Pedra do Tempo, perdi a noção da realidade e tombei na cama de erva virgem. A minha mente foi disparada através do vazio, ao encontro de uma voz familiar... A voz do mestre da Arte Obscura:

”Ele virá conosco!”

”Não! Eu não posso deixá-lo...” - Era Krum quem retrucava, num tom enfurecido que não ocultava a aflição.

”Está decidido, Krum! O Sigarr pode dispensar-lhe cuidados que estão para além do teu conhecimento!” - A resolução de Gunnulf não admitia protestos.

”Então, eu irei convosco!” - Krum não desistia.

”Tu vais comandar o barco do Throst” - ordenava Gunnulf.

”Não confias em nós, Krum? Enquanto discutes, a vida do teu primo foge do alcance das minhas mãos!”

Sigarr! Feiticeiro pérfido e ardiloso! Eu não podia condenar Krum por deixar Throst entregue às suas mãos maliciosas. O meu primo fizera o que pudera pelo amigo, a quem amava mais do que a qualquer um dos seus próprios irmãos. A sorte de Throst estava decidida. Ou Sigarr assim acreditava!

O tormento era tão forte que me cortava a respiração. Era a dor de Throst... Diante dos meus olhos, que eram os seus, o véu de escuridão transformava-se num céu iluminado de estrelas, e eu conhecia o significado e os segredos de cada uma delas. Sabia que navegava a caminho de casa... Mas este não era o meu barco! Ouvia Gunnulf liderando os homens...

- Fecha os olhos, Throst. Entrega-te à paz que te aguarda. Não queres que a dor termine?

Sigarr? O que fazia este maldito junto de mim? Onde estava o Krum? Eu precisava do Krum...

E a escuridão regressava, fria e cruel. Mas, mesmo na inconsciência, a dor não me dava tréguas. O suplício era insuportável. O meu instinto escutava as vozes sussurradas, tão distintamente como se fossem brados soltos ao vento. Primeiro Gunnulf:

- Eu vou acabar com isto... Depois Sigarr:

- Guarda essa arma! Queres despertar a indignação e a fúria dos que te seguem? O Throst é um homem venerado!

- Estarei a fazer-lhe um favor se terminar com o seu sofrimento! Apesar de tudo, não me agrada vê-lo agonizar...

- É tarde de mais para recuares, Gunnulf! Nós fizemos um pacto! E eu já te expliquei que comprometerás o teu futuro se sujares as mãos com o sangue do líder da alcatéia. Deixa o inimigo carregar esse fardo! O ferimento do Throst é suficiente para o condenar. Todos os homens acreditarão que eu fiz o possível para o salvar, e a tua reputação não sofrerá mácula.

- É melhor que esse maldito plano resulte, Sigarr! Ultimamente, os teus conselhos não têm sido de grande valia!

- Se seguisses os meus conselhos, não te terias metido nesta confusão, seu imbecil! Quem te mandou dar ouvidos à ruiva e atacar a Enseada da Fortaleza? A tua impaciência deitou tudo a perder! Se tivesses esperado, como eu te mandei, agora a cabeça do McGraw estaria pendurada na tua casa, o teu ingênuo primo iria conduzir-te pela mão até ao trono e nada disto teria sido necessário. Por vezes, temos de usar a inteligência, em vez da força. Mas é óbvio que isto está para além do teu entendimento!

A escuridão era medonha. Estava tanto frio... E tanto calor! Água! Eu precisava de água! O meu corpo ardia! O fogo consumia-me as entranhas... O olhar de Sigarr alimentava as chamas! A dor... A dor tão forte... Tão insuportável! Por que não acabava a dor?

De súbito, uma brisa de ar fresco... Uma voz doce ecoando no vazio, enchendo a noite de música... A minha voz:

- Promete que não cederás ao desespero...

- Promete que não mergulharás na escuridão,..

- Promete que lutarás até à última réstia de força...

- Promete...

As estrelas enegreciam. O céu pintava-se de vermelho e sangrava. O mundo girava em redor da minha cabeça.

- Pequena!

O grito desesperado de Throst perdia-se no vazio. E outra voz respondia-lhe... A voz da própria Lua, sibilante como uma serpente gigante, cortante como a fúria de mil demônios:

- Ela está tão longe de ti como a mais longínqua das estrelas. Não será tua! Ela nunca será tua! Desiste... Entrega-te... Morre... Morre!

A Lua tinha o rosto de uma mulher, tão belo como cruel. Eu conhecia esse rosto, mas não me recordava de onde. O desespero e a dor misturavam-se. E a Senhora da Lua fixava o meu olhar e enfrentava-me:

- Como ousas desafiar-me, rapariga miserável? A tua morte não será apenas uma vitória! Será um verdadeiro deleite!

Mas o meu coração respondia-lhe sem hesitar:

- Eu ainda não morri! E tu jamais vencerás!

Ao meu apelo, o Lobo Cinzento despertava, possante e feroz, decidido a resistir, determinado a triunfar. Corria pelo céu em perseguição da Lua, até caçá-la e rasgá-la em mil e um pedaços, com garras mais poderosas do que as lâminas das espadas sagradas. A face da mulher desvanecia-se... E a luz azul que brotava dos seus olhos inundava o céu; brilhava, forte e quente, trazendo um coro de vozes suaves que albergavam a idade do mundo:

- Tu és valoroso e corajoso, Throst, filho de Thorgrim... O teu coração é puro... Os nossos olhos estão postos em ti... Até aonde vai a tua força, guerreiro? Quão firme é a tua vontade? Lutarás até ao fim?

Throst lutaria! E eu lutaria ao seu lado!

Uma mão estendia-se no vazio. A mão magra, comprida e gélida de um feiticeiro negro tentava alcançar a luz azul e afastá-la. Mas a vontade da pedra mágica era mais forte. Desta vez, a voz de Sigarr vibrava dentro da minha mente:

”Maldita sejas, criatura néscia! Como conseguiste enganar-me?” O meu corpo era trespassado por agulhas de gelo. Ouvia a voz de Throst clamando o meu nome, mas já estava longe, tão longe... A dor era tudo e preenchia tudo. O desespero fugia do domínio da razão... E a escuridão já não se desvanecia.

Abri os olhos e encarei a manhã. Demorei algum tempo para recordar onde me encontrava e o que acontecera. Junto de mim, Ingrior dormia com uma expressão descansada. E, por mais incrível que parecesse, era assim que eu também me sentia: fervente de energia, capaz de enfrentar qualquer dificuldade. Como era possível?

Já devíamos estar na Montanha há muito tempo, atendendo ao estado das nossas roupas. Dia após dia, noite após noite, Ingrior mantivera-me aquecida, aliviara-me a febre e alimentara-me com chás curativos. Mas isso não explicava a minha disposição... Então senti-o, forte e declarado como o ribombar de um trovão. A sua essência poderosa misturava-se com o ar e sarava todas as feridas do corpo e do espírito. Apesar de eu não conseguir vê-lo, sabia que Hakon estava perto.

- Por que não se revela? - gritei, sentindo a raiva rebentar-me no peito. - Apareça! Nós precisamos de si! O seu neto está a morrer! Não tem coração?

Uma brisa quente passou por mim e acariciou-me o cabelo sujo e suado com os seus dedos invisíveis. Segui-a, e os meus olhos encontraram o mar pincelado de pontos garridos. Os Vikings estavam de volta.

- Ingrior!

Ela acordou ao meu apelo e percebeu de imediato o que se passava. Montamos nos nossos cavalos, que curiosamente se encontravam prontos para partir, e galopamos montanha abaixo. Assim que saímos da floresta, começamos a encontrar pessoas que bradavam em prantos. A desventurosa novidade voava de boca em boca. Eu tinha o coração apertado, mas a minha determinação não esmorecia. Avancei a cavalo até a multidão tornar qualquer progresso impossível. Depois, sem esperar por Ingrior, desmontei e lancei-me numa correria furiosa.

Dentro do porto, a confusão era tão extrema que mal se conseguia andar. Os barcos já haviam aportado, e os guerreiros carregavam os feridos para terra firme. Os gritos e o choro eram ensurdecedores. Se algumas mães e esposas viam os seus homens chegar maltratados, outras recebiam a tenebrosa notícia da perda irreparável. Fui forçada a abrir caminho aos empurrões, aproveitando o fato de ser mais baixa do que os restantes para me esgueirar por entre as suas pernas. O coração guiava-me sem hesitação, e não tardei a escutar os berros de Halldora:

- Não! Não pode ser! Nós íamos casar!

Reconheci Throst pela túnica. Estava estendido no chão, assim como tantos outros. Temi o pior. Caí de joelhos junto dele, sem me importar com o povo que nos rodeava, e supliquei com a voz embargada, enquanto tomava para mim a mão gelada que Krum segurara até então:

- Throst... Throst! Por favor...

- O Throst está a finar, Pequena! - soluçou Krum. - Não sei como resistiu até aqui... Eu... Eu não posso acreditar...

A tremer, levei a minha mão ao peito de Throst. A sua garganta estava intacta. A pedra azul brilhou e aqueceu debaixo dos meus dedos. Voltei a chamá-lo, num tom imperioso:

- Throst! Estás a ouvir-me? Abre os olhos! Atrás de mim, Halldora rosnava:

- O que está a escrava a fazer aqui? Gunnulf, faz qualquer coisa! Que essa rameira tire as mãos do meu noivo, ou eu...

Os olhos de Throst abriram-se timidamente, e o rosto, macerado pela dor, esboçou um sorriso triste. A sua mão apertou a minha com a força de um passarinho doente. O murmúrio dos lábios desfeitos foi tão débil que só o meu coração o escutou:

- Pequena... Posso morrer em paz...

- Não, Throst! - bradei tempestuosamente. - Não lutaste tanto para desistires agora!

Forcei-me a reagir e afastei-lhe a túnica para observar o ferimento. Horrorizei-me ao verificar que estava terrivelmente infectado e exalava um cheiro pestilento. Sigarr nem sequer o limpara! E por que o faria? Não fora ele quem engendrara a morte de Throst?

- Nós não regressamos no mesmo barco - arfou Krum, agitado pela revolta, assolado pela negação. - O Throst veio com o Gunnulf. O Sigarr jurou que o salvaria...

O meu primo não precisava de me contar a traição daqueles em quem Throst confiava, pois eu vivera-a na minha e na sua pele.

Encarei Gunnulf e o colosso deu-me as costas. O seu desprezo ocultava um sorriso. Arnorr mal conseguia segurar Halldora, que se debatia para investir contra mim. E Sigarr também estava por perto, mirando-me com um olhar predador, onde a raiva e a vitória se misturavam.

”Eu avisei-te que esse homem estava perdido, criatura imprestável! Pensaste que os teus truques ridículos o poderiam salvar?”

Estreitei o olhar e invadi a sua mente, ribombando de ódio na acusação:

”Julga que eu não sei que isto foi obra sua? O senhor não passa de um vil assassino!”

”Havia muitos homens para atender, filha da Grande Ilha! Deve-se auxiliar os que têm mais possibilidades de sobreviver. O Throst estava para além de qualquer ajuda...”

Era inútil discutir com o feiticeiro! Confirmei com Krum que já haviam providenciado um transporte para Throst e tentei ignorá-lo, mas Sigarr não desistiu de me atormentar:

”As tuas capacidades curativas não podem salvá-lo, tola desmiolada! Esquece-o e deixa os que lhe são próximos enterrá-lo com honra e glória. O Throst não faz parte do teu destino!”

Estreitei o olhar e repliquei como se lhe cuspisse no rosto:

”O meu destino, sou eu que o faço!”

Sigarr soltou uma gargalhada de desdém e desapareceu na multidão. Ingrior conseguiu finalmente aproximar-se. Caiu ao lado do irmão, gemendo o seu nome por entre lágrimas de aflição, enquanto lhe acariciava a testa. O rosto de Krum alagava-se de desespero, e ao dele juntavam-se muitos outros que estimavam o capitão. Já ninguém tinha esperança.

- A carroça está a chegar - alguém avisou por cima do meu ombro.

Denunciando um esforço sobre-humano, Throst tornou a abrir os olhos. Os seus lábios moveram-se, num murmúrio quase imperceptível, em resposta aos apelos de Ingrior:

- Querida irmã...

Demasiado perto, a voz de Halldora soou estridente e enraivecida:

- Throst, tu não podes fazer-me isto! Tu não podes morrer! Eu não quero passar pela vergonha de ter de lamentar o meu noivo!

Eu não acreditava nos meus ouvidos! O homem que Halldora declarava amar estava a morrer, e ela só se preocupava com o fato de, durante algum tempo, não poder comparecer a festas e namorar com outros pretendentes? À nossa volta ergueu-se um silêncio embaraçoso. As pessoas entreolhavam-se e questionavam-se se teriam escutado bem. Para que não existissem dúvidas, Halldora insistiu, com a voz carregada de ressentimento:

- Estás a ouvir-me, Throst? Liberta-me do nosso compromisso! A escrava rameira que chore por ti!

Como num sonho, vi uma lágrima escorrer pela pele seca e gretada do capitão, enquanto ele sussurrava com grande dificuldade:

- Eu não... Te quero mal... Halldora... És livre...

Eu nunca vira Ingrior perder a cabeça, mas isto foi de mais até para ela. Ergueu-se de um salto e atirou-se à prima, esbofeteando-a com tanta força que a fez cambalear nos braços de Arnorr.

- Sua cabra! - gritou sem contemplações. - O meu irmão está a morrer, e tu só te importas contigo e com o teu perverso egoísmo. Maldita sejas! Maldita sejas para toda a vida!

Halldora levou as mãos ao rosto, rubra de ira e de embaraço, berrando em resposta:

- Maldita sejas tu e a tua casa, rameira! És tão puta como a escrava a quem dás abrigo!

Ingrior voltou para junto de nós, respirando pesadamente e limpando a face onde Halldora lhe cuspira. Bjorn chegara, entretanto, mas tiveram de afastá-lo para que se acalmasse. A carroça parou ao nosso lado, e os amigos de Throst moveram-no com cuidado. Contudo, era evidente que ninguém acreditava que o capitão agüentasse muito mais. Ingrior agarrou-me o braço, mal se sustendo nas pernas devido ao tremor que a fustigava.

- Ajuda-nos, Catelyn... Ajuda-o! Tu já fizeste milagres antes! Ainda podes salvar o meu irmão!

- Temo que esse milagre já não esteja ao alcance da Catelyn - interrompeu Krum, prostrado pelo desgosto. - O Throst já se afastou de nós...

Foi um regresso a casa penoso. Sentada na carroça, com a cabeça do capitão sobre o colo, eu apertava a pedra da minha avó contra o seu peito e amargava de impotência. O amuleto já cumprira a sua missão, e a sua força esgotava-se. Eu não conseguira salvar Throst. Apenas lhe adiara a morte, prolongando-lhe o sofrimento.

Ao meu lado, Ingrior esforçava-se por aplacar a dor do irmão. Bjorn seguia-nos a cavalo, elevando a cabeça bem alto, na pose altiva e digna de um grande guerreiro, mas eu sabia a dor que o rasgava por dentro. Perto, ouvi Krum lamentar-se, mais para si próprio do que para nós:

- Nunca lhes perdoarei! Era uma ferida grave, mas simples... Podiam ter-lhe salvo a vida... Mas nada fizeram! Nada! Nunca mais! Juro pela minha honra e pela vida do meu filho, Throst, que jamais voltarei a pegar numa arma por Gunnulf! Prefiro morrer! Aquele homem não pode ser meu irmão! Aquele homem é um monstro!

Recordei o que acontecera, e os pormenores que desconhecia ser-me-iam revelados mais tarde. Edwin preparava-se para cortar a garganta de Throst quando se deparara com o meu amuleto. A surpresa e o choque detiveram-no o tempo suficiente para Krum intervir e defender o primo. Outros guerreiros vieram em seu auxílio e, no meio da confusão, conseguiram levar Throst para o barco. Gunnulf já ordenara a retirada e tudo o que havia a fazer era agarrar nos feridos que pudessem transportar e fugir. Sigarr impedira Krum de carregar o capitão no seu barco. A partir daí, o pesadelo era-me familiar.

A carroça avançava demasiado devagar para o tempo que nos restava. Ao nosso redor, dezenas de homens acompanhavam o amigo com deferência, remoendo o maior erro de estratégia de Gunnulf. Um erro premeditado! Para afastar o primo, como era vontade de Sigarr, o guerreiro-urso não se importara de sacrificar os seus guerreiros e sofrer uma derrota. O afeto e a confiança cega que Throst lhe devotava não tiveram nenhuma importância, diante da contrapartida que o feiticeiro indubitavelmente lhe prometera: o trono do povo viking. Ficava provado que Gunnulf não tinha coração e que a sua alma era tão negra como a de Sigarr.

Agora, o guerreiro da profecia não representava nenhuma ameaça para os conspiradores. A sua vida escorregava por entre os meus dedos como os seus cabelos de ouro. A idéia de perdê-lo era-me insuportável. Pensei que Hakon conseguiria salvá-lo, mas Throst não resistiria à subida da Montanha e, mesmo que sobrevivesse quem me garantia que ”O Que Tudo Vê” apareceria se não se dignara a fazê-lo até ao momento? Tinha de existir outra solução... Algo que eu ainda pudesse fazer...

Assim que chegamos a casa, iniciamos uma luta contra o tempo. Aquecer água, preparar ungüentos, rasgar panos, untá-los... Krum e Ingrior foram de uma ajuda inestimável. Despir Throst lavá-lo para ajudar a baixar a febre e evitar piorar a infecção, eram coisas que eu não conseguiria fazer sozinha, debaixo de um nervosismo crescente.

À pedido de Krum, os homens dividiram-se e formaram uma barreira defensiva em redor da casa, a fim de impedirem quem quer que fosse de se aproximar. Bjorn já recuperara do choque e estava atento às nossas solicitações, assim como Jodis. Katla assumira a difícil tarefa de manter o pequeno Trygve sossegado e satisfeito.

O tempo passava a correr, mas dir-se-ia que enfrentávamos a eternidade. Throst desmaiara no porto, depois de libertar Halldora do compromisso, e não mais recuperara a consciência. Eu sentia esta batalha cada vez mais perdida. E a derrota implicaria o fim da guerra. Com Throst morreria o meu coração e a esperança de um povo.

O resto da casa acabou por adormecer de exaustão. Só eu, Ingrior e Krum continuávamos despertos, teimando o que se declarava impossível. Krum deu voz ao meu pensamento:

- O Throst não passará desta noite!

Ingrior cobriu os lábios para reprimir um soluço, e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Eu continuei a mastigar o dilema cortante que me perfurava as entranhas. Pensara e repensara nas opções que nos restavam e apenas encontrara uma... Um feitiço que me fora revelado pelo livro de magia que Berchan deixara ao meu cuidado, escrito pela mão do próprio Hakon e que, na altura, eu considerara a maior das loucuras. Um feitiço que ensinava a ludibriar e vencer a morte. Seria capaz de realizá-lo? E se me arriscasse e perdesse? Eu ainda tinha esperança de derrotar Gwendalin, libertar o meu povo e recuperar a minha casa. Valeria Throst tamanho risco?

A mente ordenava-me que aceitasse o inevitável. O coração instava-me a agir rápido. Tal como Aranwen dissera, o resultado desta luta decidiria o meu destino... E a sorte do mundo.

- O meu avô ainda pode ajudá-lo! - exclamou Ingrior, erguendo-se decidida. - Subirei a Montanha e suplicarei pela sua ajuda...

- Não há tempo! - Pus-me em pé, com o coração a galope no peito. - Se ”O Que Tudo Vê” quisesse ou pudesse, já estaria aqui. O Throst só pode contar conosco!

Ela encarou-me, devastada pela agonia e pela revolta.

- E o que mais podemos nós fazer? Cruzar os braços e esperar que o meu irmão morra?

- O Throst não morrerá! - ripostei com firmeza. - Eu vou buscá-lo!

- Como?

Reuni o que necessitava e expliquei o que tinha em mente, instruindo-os acerca do que deviam fazer enquanto o meu espírito estivesse ausente. Krum impediu-me de continuar:

- Endoideceste, Catelyn? Aquilo a que te propões é muito perigoso. Podes morrer! Não é justo! Além disso, não estás suficientemente preparada para algo tão arrojado...

- Eu já decidi - afirmei sem pestanejar. - Confiem em mim! Eu preciso da vossa ajuda!

Ingrior estava muito assustada. Puxou-me para os seus braços, implorando:

- Catelyn, não! Eu não suportarei perdê-los aos dois!

- Não confias no poder de adivinhação e na sabedoria do teu avô?

- Argumentei. - Diante do seu diário, tu perguntaste-me se eu tinha dúvidas. Hoje posso responder-te que acredito que ”O Que Tudo Vê” previu o que está a acontecer. Por essa razão me entregou o seu conhecimento. Só Throst pode salvar o vosso povo. Se ele morrer, tudo perderá o sentido e o mal triunfará. - Dei uma mão à minha irmã de coração e estendi a outra ao meu primo, que a apertou com força.

- Eu não estarei sozinha nesta viagem! Se confiarmos na magia e no afeto que nos une, a vitória será nossa! Vamos buscar o nosso guerreiro!

Afastei a manta que cobria o corpo robusto e fixei-o com o coração em debandada. Uma vez que iniciasse o feitiço, eu não poderia desistir sem causar danos irreversíveis na sua mente e na minha. Engoli em seco. Não me aconselhara Aranwen a seguir o coração? Não se revelara na Montanha e colocara a minha mão sobre a Pedra do Tempo? Que dúvidas me restavam? Nenhumas! Salvaria Throst ou morreria tentando!

A cortina fechou-se, isolando-nos do mundo. Cerrei os olhos e respirei fundo, chamando a mim a magia que me pulsava no sangue e esquecendo tudo o que ficava para trás. Eu era apenas Catelyn, neta de Cinaed e Aranwen, humana e feiticeira.

Com um gesto simples, deixei cair o vestido e desprovi-me de todos os artefatos humanos, à exceção do amuleto de Thor. Coloquei as mãos sobre o corpo de Throst, sem tocá-lo, e concentrei nelas a magia que acumulara. De imediato, estas começaram a brilhar intensamente, faiscando em contacto com o ar. Ouvi o assombro dos meus ajudantes, diante da manifestação do meu poder, mas não lhes prestei atenção. Por baixo das minhas mãos, a carne de Throst adquiriu brilho e assim permaneceu. Encostei os dedos à sua testa, e a energia cintilante espalhou-se pelo meu corpo. Era tarde para recuar.

Com todo o cuidado, deslizei sobre Throst. A força da pedra azul, que o mantivera vivo, estava prestes a fenecer. Senti a sua pele gelada, como se a morte já o envolvesse. O seu coração batia tão debilmente que mal se percebia. Descansei a cabeça no peito sólido e fechei a minha mão na dele. Nós estávamos unidos pelo sangue... O sangue levar-me-ia ao seu encontro.

As palavras que Hakon escrevera para que, muitos anos mais tarde, uma estrangeira marcada pelo destino tentasse salvar a vida do seu neto, fluíram dos meus lábios, primeiro hesitantes, mas assumindo um fulgor intenso enquanto a essência de Throst se fundia na minha. A minha mão começou a doer, e só a concentração me ajudou a suportar o tormento, qual espada de fogo que penetrava pela ferida se enterrava no meu braço e me trespassava a cabeça, ao mesmo tempo que a garganta secava e o corpo se incendiava. O ventre enviava-me impulsos de agonia, enquanto a minha carne se rasgava e apodrecia. Era impossível pensar... Era impossível respirar...

Abri os olhos e enfrentei a escuridão. Eu pairava no vazio glacial da minha inconsciência. Rajadas de um vento pútrido açoitavam-me a pele nua com o fedor da morte, enquanto a minha mente se contorcia em espasmos de horror. A dor estilhaçava-me a consciência, perfurando-me com agulhas de fogo e gelo. Mas eu estava disposta a enfrentá-la! Para encontrar o espírito de Throst, teria de viver o seu martírio, gota a gota de sangue e suor, uma e outra vez, num sofrimento sem fim, até percorrer o caminho que ele já percorrera até a dor ser tudo e preencher tudo, até o desespero fugir do alcance da razão... Até alcançar o meu amor...

Ouvi a voz de Throst chamando o meu nome, mas estava longe, tão longe... Corri às cegas, num tempo irreal, seguindo o apelo do coração. Os meus pés enterravam-se na bruma, e era muito difícil avançar. O negrume envolvia-me e puxava-me para o interior da podridão. Mas eu continuava. Se não podia correr, arrastava-me. Se não podia gritar, sussurrava. Jamais desistiria!

”Poderá uma alma perdida unir uma alma quebrada?”

”Convence-te de que és mais forte do que os teus inimigos e vencerás!”

- Pequena...

- Throst...

Ele estava diante de mim, com as mãos no ventre e o sangue a escorrer por entre os dedos; o rosto belo desfigurado pelo tormento e encharcado em lágrimas.

- Perdoa-me, meu amor... Eu não agüento mais...

Gritei horrorizada quando um nevoeiro denso o agarrou e o sugou para o abismo. Viera de tão longe para perdê-lo no instante final?

- Não!

Sem hesitar, mergulhei atrás de Throst. Eu era uma feiticeira! A minha alma já não estava perdida. No vazio, vozes clamavam zangadas:

- Volta, Catelyn!

- Estás a ir longe de mais!

- É tarde...!

Rangi os dentes, enquanto ganhava velocidade. Não podia ser tarde! Eu não descansaria enquanto não devolvesse a vida ao corpo de Throst e unisse todos os pedaços da sua alma. O valente guerreiro já era apenas um ponto de luz azul no meio da escuridão, mas a minha determinação não enfraqueceu. Na vida ou na morte, o nosso destino seria igual.

Embati no próprio ar e fui fragmentada numa miríade de pequenos pedaços. Só a muito custo consegui erguer-me. Throst estava caído diante de mim, e a sombra envolvia-o na sua teia de nevoeiro negro. Rasguei-a e abracei o corpo prostrado. Os dedos da névoa envolveram-me de imediato, e eu senti a minha pele arder, consumida por um fogo gelado. No peito do guerreiro, a pedra da minha avó pendia, fria e sem luz. Apesar da dor que me dilacerava, agarrei no seu rosto inerte e forcei-o a encarar-me, clamando com a força que me restava:

- Throst... Throst, abre os olhos...

Ele obedeceu, e a visão do seu olhar branco e sem vida deixou-me petrificada, como se toda a esperança fosse arrancada do meu peito com rudeza.

Das sombras, soou uma voz rouca e desequilibrada:

- Deixa-o partir, Catelyn McGraw... Ou tomaremos a tua vida também!

- Eu não desistirei! - repliquei, negando o medo que teimava em dominar-me.

- Como te atreves a desafiar-nos rapariga? - trovejou a voz. - Pensas que a tua insignificante importância nos fará recuar?

A minha mente expandiu-se e enfrentei quem me falava: grãos, partículas - a primeira, menor e mais forte essência do universo.

- Fazei o que tiverdes de fazer! Eu lutarei pela minha vida, pela vida do meu homem... Pelo meu amor! Eu lutarei até ao fim!

Sem hesitar, beijei os lábios cinzentos do guerreiro. Ouvi as vozes berrarem dentro da minha cabeça, mas ignorei-as. A pedra azul recomeçou a pulsar, como se tivesse adormecido por um mero instante para recuperar o fôlego. Finalmente, senti vida no corpo de Throst. Os seus braços trêmulos envolveram-me, e encontrei o olhar azul inundado de lágrimas.

- Pequena?

- Eu vim buscar-te, meu amor! Vamos para casa!

O bravejar das vozes coléricas tornou-se insuportável. Throst não se movia.

- Tenho frio, Catelyn...

- Eu sei querido! Mas tens de lutar... Só mais um pouco! Suplico-te, Throst... Vem comigo!

Por fim, ele moveu-se e permitiu que eu o amparasse. Seria uma subida longa e perigosa, com as garras da morte pairando por cima das nossas cabeças.

- Pequena... Onde estamos? Por que está tanto frio? Quem são estes que nos seguem?

Eu sabia as respostas para as suas perguntas, mas recusava-me a olhar para trás ou a permitir que ele o fizesse. Os nossos pés arrastavam-se sobre o mundo das sombras, e os seus habitantes reclamavam a nossa essência.

”Ainda não!”

A penosa e turbulenta subida deixou-me exausta. Há muito que não ouvia Throst. A pouca energia que conseguira transferir-lhe extinguia-se. O ar permanecia irrespirável, putrefato, fétido de horror e dor.

- Pequena...

Perdi a força, e Throst escorregou dos meus braços para o manto de névoa negra. De imediato, a bruma que nos seguia começou a devorar-nos.

- Trost, temos de continuar!

Só o meu coração escutou a resposta:

- Não posso... Mais... Vai... Salva-te... Por... Favor...

- Não! Não sem ti! Não sem ti, meu amor!

Por mais que tentasse, não tinha alento para me erguer. A névoa negra já assumira a minha forma. Estreitei Throst com desespero, saboreando o amargor da derrota. Seria este o nosso fim? Eu morreria perdida entre realidades, sem vingar a minha família, sem salvar o meu povo... E sem ajudar Throst a plantar a semente da paz? Todas as profecias não passariam de mentiras cruéis, que me haviam iludido e atirado para o abismo? Restava-me o consolo de saber que o meu corpo ficaria eternamente unido ao corpo do homem que me salvara a vida; que, apesar de ter todas as razões para me odiar, me amara até ao último suspiro...

Subitamente, uma brisa fresca surgiu do nada e rompeu a escuridão nebulosa, soprando-a para longe de nós. Aos poucos, a luz vencia a obscuridade, primeiro timidamente, mas logo assumindo um fulgor que derretia o gelo. A pedra azul tornou a brilhar. Abri os olhos, sonolentos e doridos, e recebi o vento perfumado no rosto. Cheirava a ervas curativas. Cheirava a energia positiva, a calor, a alegria, a paz de espírito... Cheirava à esperança de uma nova vida!

- Trost...

Ele também sentira a mudança. Ergueu o rosto devagar, inspirando com alívio.

- Vamos, Throst - ordenei. - Não podemos perder tempo!

- Tenho... Frio...

- Vem, Throst!

- Muito... Frio...

- Vem!

Arrastamo-nos, até tombarmos dentro do clarão brilhante. Um alívio infinito percorreu-me a carne e aqueceu-me o espírito. A guerra ainda não terminara... Mas eu já vencera a mais dura das batalhas. Provara que era capaz! Provara a minha força! E Throst não morreria...

Abri os olhos febris e encontrei-me em casa. A mão fresca e cuidadosa de um homem umedecia-me os lábios. A sua sombra falou, aliviada e emocionada:

- Finalmente, Catelyn! Começávamos a temer que vos tivéssemos perdido!

De onde conhecia eu esta voz?

- Berchan? - balbuciei insegura.

A minha visão clareou, enquanto Krum respondia:

- Muitas vezes, durante estes longos dias, desejamos ter o poder do teu irmão do nosso lado. Se foi difícil para nós, imagino o vosso sofrimento! Bem-vinda a casa, querida prima!

Deleitei-me com o ar fresco e regozijei-me por estar viva. Só então tomei consciência do corpo deitado ao meu lado e estremeci em sobressalto.

- Throst...?

- O Throst ficará bem, Catelyn! - respondeu Ingrior, apertando-me a mão. - Ainda não despertou, mas a febre e a infecção estão dominadas. A ferida já purgou e começou a sarar. Brevemente, tudo o que restará deste acidente será uma cicatriz feia e uma memória dolorosa. Não tenho palavras para te agradecer querida irmã.

Ingrior ajudou-me a banhar e a vestir, pois eu mal tinha alento para mover um dedo. Quando terminei, Krum já preparara um caldo forte para me ajudar a convalescer. Enquanto comia, observei Throst cuidadosamente. Os seus olhos estavam encovados e negros, a pele macilenta e o cabelo ensopado em suor. Ele era o verdadeiro herói desta batalha. A sua coragem e força tinham determinado a vitória.

- Há quanto tempo estamos inconscientes?

- Há três dias - respondeu Ingrior. - Houve um momento em que desesperamos. A pedra da tua avó escureceu e paramos de sentir os vossos corações. Acreditamos que era o fim!

- Então, aconteceu uma coisa espantosa - continuou Krum.

- Uma luz branca nasceu do nada e desceu sobre vós. Era tão poderosa que nos cegou...

- Eu senti a presença do meu avô, Catelyn - interrompeu Ingrior, sem conter o entusiasmo. - ”O Que Tudo Vê” veio ajudar-nos! Não em corpo, mas em espírito...

- Assim que o Throst despertar, teremos de falar-lhe - prosseguiu Krum sobriamente. - Devemos forçá-lo a abrir os olhos! O Gunnulf e o Sigarr tentaram matá-lo. Eu tenho a certeza! Só não entendo por que...

Contei-lhes que o feiticeiro planeava colocar o protegido no trono do povo viking e que via em Throst uma ameaça ao seu domínio. Krum empalideceu, rosnando entredentes:

- A partir de hoje, muita coisa mudará! Não permitirei que a minha família continue a viver com um assassino.

- Esses monstros não podem ficar impunes! - vociferou Ingrior.

- Têm de ser julgados...

- E onde estão as provas para acusá-los? - retrucou o primo, exasperado. - Qualquer homem que enfrente Gunnulf perderá e, perante o povo, ele será considerado inocente. E ninguém se atreverá a levantar a voz contra Sigarr!

- Neste momento, enfrentá-los é um erro - interferi convicta.

- Temos de ser pacientes! Já muitos perceberam que estão a ser manipulados por esses tiranos e não tarda, mais vozes se erguerão contra a sua ambição assassina!

Todavia, apesar de conhecer a perfídia do guerreiro-urso e do seu feiticeiro, eu estava longe de imaginar os fatos que haviam desencadeado uma nova tragédia no seio da Terra Antiga.

Tal como Throst me afirmara, o objetivo da campanha era a exploração e a conquista de terras selvagens. Porém, conhecedor das aspirações pacifistas do primo e temendo os apoios que este continuava a reunir, Gunnulf resolvera cortar pela raiz a contestação à sua autoridade. Iludindo Throst para o manter ao seu lado, cobrira-se com a capa da boa vontade e enviara um mensageiro ao reduto de Edwin McGraw com uma proposta de tréguas. Surpreendentemente, a resposta do meu irmão fora positiva, e os líderes encontraram-se para discutirem os termos desta abertura.

Porém, assim que teve acesso ao território inimigo e avaliou a sua resistência, Gunnulf ordenou o ataque. Throst declarou a sua indignação, mas não pôde contestá-lo. Estava preso a um juramento de sangue, e a desobediência faria dele um traidor do seu líder e da sua honra perante os companheiros, como o primo bem sabia quando lhe preparara esta armadilha.

Tal como o capitão, muitos homens tiveram de cerrar os dentes e avançar, presos ao compromisso assumido no Festival de Inverno. Quando desembarcaram na praia, o sonho da paz foi esquecido e todos combateram como um.

Contudo, Edwin antecipara a traição e estava preparado para enfrentá-los, ao contrário do que fizera crer. Derrotado, Gunnulf regressava a casa com a vitória escondida no negrume do seu coração. Acreditava que o ideal da paz fora definitivamente esmagado e acicatado o ódio nórdico contra o povo da Grande Ilha. A morte de Throst às mãos de Edwin McGraw afastava a ameaça à sua liderança e traria muitos aliados à sua causa, talvez mesmo Steinarr, da Terra dos Carvalhos. Estavam reunidas as condições para que os Vikings se unificassem na guerra contra os seus inimigos... Chefiados pelo guerreiro-urso, que seria coroado rei.

A ferida de Throst estava com bom aspecto e a sarar rapidamente. Apesar disso, ele manteve-se inconsciente durante dias, delirando com febre, soltando gemidos incompreensíveis, gritando e barafustando com tamanha brusquidão, que era necessário amarrá-lo para que não tombasse da cama. Chamava pelo pai, pela mãe, pelos irmãos, por Krum... Chamou por mim algumas vezes. E chamou por Halldora.

Ingrior soprava de fúria sempre que ouvia o nome da prima. O fim do noivado era público, e a notícia de que Gunnulf já ponderava as propostas de vários pretendentes depressa chegou até nós. Eu temia o impacto desta novidade na saúde de Throst. Afinal, ele sempre afirmara que amava Halldora, e um sentimento tão forte não podia ser banido do peito de um dia para outro.

Quando repousava a cabeça, eu enfrentava outro dilema que me roubava o sono. Após despertar, Throst depressa assumiria a sua missão sagrada. E isso significava que os nossos caminhos iriam separar-se. Acreditar que a nossa união era possível revelava-se pura fantasia. Eu não podia ficar na Terra Antiga, e Throst não poderia seguir-me até à Grande Ilha. Era inconcebível imaginá-lo a combater ao lado dos McGraw, depois da batalha da Enseada da Fortaleza e da recente traição de Gunnulf. Além disso, ainda havia o pacto que eu fizera com Sigarr! E Gunnulf também viria reclamar a palavra do primo, por ódio e vingança, se ele se atrevesse a aproximar-se de mim. Throst estava salvo, mas jamais estaria seguro enquanto os dois malfeitores vivessem.

Por mais que o meu coração suplicasse o contrário, só me restava partir. E quanto mais rápido, melhor, pois a demora significava entrega e conseqüente sofrimento. Assim que Throst recuperasse, eu retornaria à Grande Ilha. Agora que testara a minha força, sentia-me ansiosa por enfrentar Gwendalin e certa de que iria vencê-la. Depois... Depois viveria de recordações.

 

Throst despertou de noite. A sua voz estava fraca, mas eu acorri ao primeiro apelo. Quando encontrei o seu olhar azul e as nossas mãos se apertaram, pensei que ia explodir de felicidade.

- Pequena...

Toquei-lhe nos lábios, silenciando-o.

- Não te esforces! Estás muito fraco e terás de recuperar com calma...

Perdi o fôlego quando ele me puxou para junto do seu corpo.

- Tenho frio... Fica comigo...

Ingrior e Krum não tardaram a reunir-se a nós. A primeira tentativa de alimentar o nosso paciente não foi bem-sucedida. O jejum deixara-o muito debilitado, e o seu estômago recusava-se a aceitar até a água. Mas, aos poucos, dia após dia, o seu rosto foi ganhando cores e a voz revigorando.

Ao recuperar o controlo dos sentidos, a primeira preocupação do capitão foi questionar da sorte dos seus companheiros e do desfecho da batalha. Com firmeza, insistimos que esse assunto devia esperar até que ele estivesse mais forte, pois as emoções podiam arruinar todos os progressos da sua saúde. Depois de alguns protestos e muitas resmunguices, Throst acatou.

As minhas noites transformaram-se num delicioso tormento. O gigante louro suplicava-me que partilhássemos a sua cama, e eu não tinha coragem de negar a ternura do seu abraço. Com a força a crescer-lhe no corpo, ele passava muito tempo desperto, a acariciar os meus cabelos. Por vezes, sentia-o trêmulo e imaginava que revivia o pesadelo. Quase sempre, Throst adormecia com a cabeça deitada no meu peito e o braço a rodear-me a cintura. E, por mais que eu tentasse resistir ao sono, o seu calor impunha-me uma dormência doce. Eu era um náufrago que finalmente encontrara uma praia segura... E Throst era o meu abrigo!

Krum regressou finalmente à casa do pai, e Gunnulf experimentou a segunda ferroada na sua convicção, depois de ter sido informado de que Throst sobrevivera. Sem atender aos protestos de Anna, o meu primo reuniu os seus haveres e partiu com Signy e o pequeno Eric para se instalar numa casa modesta, no coração da Aldeia de Grim, onde arrumou as armas e assumiu a sua vocação de curandeiro. Anna recusou-se a seguir o filho. Preferiu ficar na herdade com os enteados, agarrada com unhas e dentes à ilusão do poder.

A ferida de Throst continuava a sarar bem. Se tivesse sido antecipadamente tratada, ter-se-ia evitado a infecção que quase o arrastara para a morte. A sua constituição sólida salvara-o. O senhor da Aldeia do Povo era agora uma sombra do que fora, só com pele sobre os ossos, mas a sua vontade firme não dava tréguas à fraqueza. Forçava-se a comer e a descansar, mesmo quando o espírito rebelde tentava impor-se. Eu não tinha dúvidas de que, muito em breve, ele estaria de pé, completamente recuperado. E esse fato fazia-me pensar no futuro.

A sorte do meu pai permanecia um mistério. Krum só sabia que era Edwin quem agora liderava os Aliados e que a força militar da Grande Ilha fora restabelecida e reorganizada. Isso queria dizer que os meus irmãos só precisavam de mim para enfrentarem a bruxa. E, agora que a pedra da nossa avó lhes revelara o meu destino, não descansariam enquanto não me resgatassem. Edwin era suficientemente louco para atacar as costas nórdicas. Cada dia que eu passava na Terra Antiga representava um perigo acrescido para aqueles que amava, de ambos os lados da contenda.

Quando Throst conseguiu levantar-se, eu permiti que os amigos mais próximos o visitassem. As condições eram severas: nem uma palavra que pudesse causar comoção! Controlar homens era tão difícil como domar feras selvagens e famintas, diante de uma presa ferida, mas o meu olhar severo impôs o respeito. Porém, assim que ficou sozinho com os seus guerreiros-lobo e Krum, foi Throst quem exigiu pormenores do sucedido. A batalha foi descrita, e eu revi os meus irmãos pelos olhos daqueles homens. Os comentários começaram a azedar, e Throst interveio:

- Foi o Gunnulf quem traiu o pacto ao ordenar o ataque aos McGraw! - Fez uma pausa, arfando exasperado. - Este ódio irracional não nos levará a lugar nenhum! Todos concordamos que precisamos de terra para viver e de portos para negociar. Então, de que nos serve atacar posições armadas fora da nossa rota? Não podemos continuar a desperdiçar vidas nestes assaltos cegos ou, brevemente, não teremos homens suficientes para defender as nossas próprias costas. Os companheiros escutavam-no, mas as raízes do ódio não permitiam o consenso.

- Sabes que esse pacto não passou de um truque para obter vantagem - replicou Sigmund. - O Gunnulf jamais tencionou cumpri-lo e, desculpa que te diga, se pensaste o contrário, foste muito ingênuo! Mas, no final, não é ele quem está correto? Os McGraw são nossos inimigos! Temos de enfrentá-los até que o último desapareça da Terra. É uma questão de honra, Throst! Não há muito tempo também partilhavas desta opinião!

Throst mirou-me de esguelha, mas eu continuei com os olhos presos na costura. Pontos pequenos uniam a pele à bainha da manta de lã, para que esta nunca perdesse a forma. Quando todas as mantas ficassem prontas, seriam unidas, pele a pele, para formar a majestosa vela do barco novo, que estava praticamente construído e era o orgulho do capitão.

- Estou mais velho e prudente - disse ele, por fim. - Trilhei o caminho da morte e garanto-vos que não vi mesas de banquete repletas de carne e cerveja, nem ouvi música, nem tive mulheres voluptuosas a estenderem os braços para me receber. Algum de vós poderá acusar-me de ser cobarde em vida, para não merecer os prazeres e confortos do nosso Valhalla?

Foi Sven quem deu voz ao pensamento do grupo:

- Tu és o melhor de todos nós, Throst! Ninguém aqui pensa que és indigno dos favores de Odin! Mas o que pode isso significar? Será Valhalla uma ilusão? Estaremos condenados a mergulhar no sofrimento para toda a eternidade? Como poderemos viver, se não acalentarmos a esperança de uma existência menos dura do que esta?

Para minha surpresa, Throst respondeu sem hesitar:

- Apesar do que vi e senti, ainda acredito que esse lugar maravilhoso existe. Contudo, penso que, para lá chegarmos, teremos de fazer algo de extraordinário e não apenas morrer em batalha, gritando o nome do grande Odin. Eu nunca vos menti! Não quero continuar em campanhas por muito mais tempo. Sou um guerreiro, mas ambiciono os confortos da vida. Dentro de poucos anos, desejo viver na minha casa, dormir com a minha mulher e acompanhar o crescimento dos meus filhos, sem ter de passar pela angústia de partir na Primavera sem saber se irei regressar no Outono.

Ao contrário do que eu esperava, não se ouviu um coro de protestos. O capitão conhecia bem os corações dos seus amigos. A maioria tinha mulheres jovens, filhos e as mesmas ambições de Throst, apesar de não as exprimirem em voz alta.

- Achas, pois, que nós devemos abandonar a vingança contra aqueles que mataram os nossos pais? - perguntou Durin.

- O sangue que cobre as nossas armas a muito que vingou os nossos pais. - A firmeza de Throst arrepiou-me. - Eu digo que tem de haver um meio-termo, um equilíbrio! O ódio nunca finará, nem nos nossos corações, nem nos deles. Mas não podemos continuar eternamente, filhos contra filhos, netos contra netos! Os Aliados ficaram enfraquecidos com a morte dos seus principais chefes, mas não baixaram as mãos. - De novo, fixou-me pelo canto do olho. - Desta vez, os McGraw provaram estar dispostos a negociar, mas o Gunnulf estragou tudo! Vós sabeis qual foi a minha opinião. Eu não a escondi, mesmo arriscando-me a ser mal interpretado. E, no fim, quem tinha razão? O Gunnulf subestimou a força dos Aliados e as conseqüências estão à vista: dezenas de homens mortos, famílias desfeitas, nem um pedaço de terra conquistado... O que ganhamos nós com isto? Apenas a quebra de confiança e o redobrado ódio dos McGraw, que estão cada dia mais fortes. Já reuniram a maior parte das tribos e brevemente obterão o apoio do rei. Não tarda, teremos dois países unidos contra nós e não conseguiremos sequer defender o que nos pertence.

Fez-se um longo e pesado silêncio, enquanto os guerreiros maduros assimilavam as palavras do líder. Foi Krum quem primeiro opinou:

- O Throst tem razão. Nós não possuímos condições para manter esta guerra. Os clãs da Grande Ilha estão unidos e organizados, e nós pouco mais somos do que uma aldeia. Mais tarde ou mais cedo, seremos esmagados como insetos. Não precisamos curvar-nos diante dos Aliados, mas também não necessitamos de provocar contendas e acender novos ódios. Antes de partirmos, concordamos que iríamos explorar outros arquipélagos para proporcionarmos uma vida melhor às nossas famílias. Ao invés, atacamos um reduto armado...

- Não foi só perante os McGraw que o Gunnulf falhou com a sua palavra - resmungou Sven, em jeito de conclusão. - Como nosso líder, também traiu os objetivos desta campanha!

Depois de outra pausa para reflexão, Durin insistiu:

- Pensais que é possível acordar tréguas com os Aliados da Grande Ilha?

- Se não for tarde de mais! - respondeu Throst. - Talvez ainda possamos remediar o mal feito. O Edwin prometeu que não atacaria as nossas costas nem as rotas comerciais. Eu acredito que ele é um homem de palavra...

- Coisa que o Gunnulf já provou não ser! - cortou Sven, agitando-se desconfortavelmente, consumido pela ira. - Já não é a primeira vez que quebra os acordos que faz. Graças a ele e a outros como ele, o nosso povo é encarado como uma vara de porcos selvagens; chamam-nos pagãos ignorantes e sem palavra... Depois do que aconteceu, se eu fosse o McGraw, afundaria qualquer navio viking que me aparecesse pela frente, sem questionar o que quer que fosse! É assim que se lida com os traidores!

A revolta do guerreiro deteve as minhas mãos. A sua aversão ao líder da Terra Antiga era óbvia e já não era a primeira vez que a manifestava abertamente. Foi Throst quem continuou:

- O Gunnulf defende que a nossa palavra só é sagrada entre os nossos. Se vós pensardes o mesmo, então o acordo com os McGraw não tinha nenhuma importância. Mas a minha opinião é diferente! A minha palavra é apenas uma, para amigos e estrangeiros.

- E não estás sozinho na tua convicção - apoiou Krum.

- O problema será convencer os McGraw de que alguns de nós desejam realmente parar com as agressões.

E Sven surpreendeu-me mais uma vez:

- Vós conheceis a minha opinião! Há muito que devias ter-te apartado da má influência do Gunnulf e seguido os teus próprios ideais, Throst. Tu nasceste para liderar, não para ser o vassalo de um homem que vendeu a alma ao demônio feiticeiro para satisfazer a sua própria ambição!

- Todos nós juramos lealdade ao Gunnulf pela mesma razão

- volveu Throst friamente. - Quando o nosso povo caiu no desespero, foi o meu tio quem nos salvou. E, apesar de as ações de Gunnulf chocarem muitas vezes contra as minhas convicções, eu sempre defendi que existiam laços de sangue e gratidão que não podiam ser quebrados. Ele restituiu-nos a dignidade...

- E a que preço, Throst? - atalhou Krum, num tom sombrio que me deixou gelada. - Nunca me esquecerei do que ele fez com o Trygve... E com todos os outros que se atreveram a fazer-lhe frente. Tu deverias ser o último a defendê-lo. O Gunnulf separou-te de nós durante a viagem para que o seu maldito feiticeiro pudesse cozinhar a tua morte. Nenhum deles respeita laços de sangue ou amizade! Tudo o que lhes interessa é o poder!

- O Krum tem razão - firmou Ormarr. - O Gunnulf sempre temeu a tua influência. Os homens seguem-te por respeito, por admiração, e não por medo. Sabes que é verdade que qualquer um de nós, ou dos que estão lá fora, ou dos que estão na aldeia, dará a vida por ti sem hesitar. E ninguém duvida que tu farás o mesmo por nós.

- Isso é verdade! - concordou Sigmund. - O Gunnulf sabe que tu és um líder nato. A amizade e a lealdade que te devotamos não são imposições.

A conversa tomara um rumo inesperado. Eu mal me atrevia a respirar, temendo perder uma palavra. As considerações continuaram, dando voz àquilo em que eu própria acreditava. Há muito que Gunnulf perdera o domínio da sua vontade e a noção do que era melhor para si e para o seu povo. O verdadeiro líder da Terra Antiga vivia na proteção das sombras e chamava-se Sigarr.

Sven continuou a declarar abertamente o que os outros não se atreviam a dizer:

- A tua vida não está segura, Throst! O Gunnulf tolerava a adoração que os homens te devotam, porque pensava que serias incapaz de contrariá-lo. Mal lhe fizeste frente, os problemas começaram. É óbvio que te quer ver morto! Mas, como é demasiado cobarde para sujar as mãos com o teu sangue, planeou esta farsa para que o azar te abatesse.

- O Gunnulf só não ergueu a mão contra ti ainda porque teme perder o apoio dos homens - interferiu Ormarr. - Matar-te não é tão fácil como eliminar um de nós. Ele tem de arranjar um pretexto válido para te julgar na Assembléia e executar a sentença que está pronto a ditar.

- E tu tens esse pretexto debaixo do teu teto. - Durin baixou a voz de tal forma que tive de usar as minhas habilidades para escutá-lo. Ingrior esticou-se para a frente, frustrada por ter deixado de ouvir.

- Por quanto tempo irás resistir? Estás a lutar contra a tua natureza, Throst! Sabes bem que dou valor às qualidades da rapariga e reconheço o muito que tem feito por nós... Mas aviso-te de que estás a brincar com o fogo!

- Tenho de admitir, por mais que me custe, que o Durin tem razão - apoiou Sven. - Enquanto a Halldora manteve o vosso compromisso, o Gunnulf esteve de mãos atadas. Agora, virá cobrar a palavra que lhe deste...

- Eu sei a palavra que lhe dei! - interrompeu Throst, num tom tão irado que se tornou audível. - Mas não admitirei que ninguém controle a minha vida! É verdade que sempre me senti ligado ao Gunnulf pelo sangue, pela honra, pela admiração e pelo reconhecimento. Devo-lhe muito... Mas já paguei o suficiente! Eu não estive desacordado durante o regresso à Terra Antiga, como muitos julgaram. Jamais esquecerei a dor e a revolta que senti ao ouvir dois homens do meu sangue a conspirarem a minha morte. - Fez uma pausa para respirar fundo e dominar a raiva. - Apesar de discordar da decisão do Gunnulf, eu segui-o e combati ao seu lado. Se eu não tivesse travado o inimigo que me feriu, o nosso líder estaria morto! Eu não esperava a sua gratidão, mas desejava algum cuidado e piedade para com o meu sofrimento. Em vez disso, ele deixou-me a apodrecer, como um excremento. Os laços de lealdade foram cortados, e não fui eu quem os cortou! Mal abri os olhos, decidi que não voltarei a prestar-lhe obediência... E, assim que puder, irei dizer-lho!

Fui percorrida por um calafrio, ao ouvir trompas de morte na sua voz. Ainda assim, o fato de não ter revelado aos amigos que o homem que o ferira era meu irmão provava que realmente desejava pôr termo às hostilidades. Perdi o fôlego quando acrescentou:

- E a presença da Pequena na minha casa não é negociável, nem com o Gunnulf nem com ninguém. Eu devo-lhe a vida e muito mais do que possais imaginar.

- Eu só estou preocupado com a vossa segurança, Throst - retrucou Krum. - E o mesmo se passa com os restantes. Talvez tenha chegado a altura de deixá-la partir...

Eu sabia que o meu primo só pretendia ajudar-me, mas a sua sugestão cobriu-me de pavor. Percebi que, quando o momento chegasse, ser-me-ia mais doloroso abandonar a casa dos filhos de Thorgrim do que fora deixar a casa onde nascera. Ainda não estava preparada para enfrentar essa provação! Senti-me aliviada quando Throst determinou:

- A Pequena não irá a lugar nenhum... Pelo menos, enquanto a situação estiver tão confusa! Seria mais seguro levá-la agora para a Grande Ilha, Krum? Acreditas que nos receberiam como heróis? Ou devo atá-la à proa do navio para que o seu povo veja que está conosco e a deixe desembarcar em segurança?

Os amigos explodiram às gargalhadas. Krum esboçou uma careta, antes de objetar:

- As coisas não são assim tão simples, e tu sabe-lo bem!

- Este assunto está encerrado! - decidiu Throst, denunciando irritação. - Quanto ao Gunnulf, só posso responder por mim! Vós sois livres na vossa escolha. Eu não tornarei a navegar sob o seu comando. Mal possa fazer-me ao mar, voltarei a honrar o nome e a profissão do meu pai. Se não tiver quem me acompanhe, prefiro vender os barcos e lavrar a terra...

Novas gargalhadas ecoaram em redor da mesa. Foi Sven o primeiro a pronunciar-se:

- Já tens aqui um homem para erguer a vela e manobrar um remo. Seja o que for que o destino nos reserve, eu estarei do teu lado.

Ormarr foi o próximo:

- A lealdade que jurei a Gunnulf terminou com a campanha. Também eu lhe retiro o meu apoio. O Gunnulf pode ser o líder da Terra Antiga, mas não é o senhor da minha vida. Eu sou um homem livre e não seu escravo.

Estremeci quando Krum continuou:

- Há muito que tu sabes que és o meu único irmão, para o bem e para o mal!

Um a um, todos se ergueram e reafirmaram a amizade que os unia desde crianças. As minhas mãos estavam incapazes de dar um ponto na pele, mas mantive a cabeça baixa e a lã no colo, para que eles não percebessem que eu os escutava. Krum foi o primeiro a despedir-se:

- Deixemos o Throst recuperar as forças. Voltaremos em breve para firmar decisões.

- O Gunnulf não tardará aqui para verificar o terreno onde pisa - avisou Sven. - Devemos estar preparados quando o momento chegar.

Levantou-se um burburinho de concordância.

- Por que não veio o Styrr visitar-me? - indagou Throst subitamente. - Também está ferido?

Por trás de mim, Bjorn abafou um soluço. Ingrior parou de costurar e empalideceu. Eu já me interrogara muitas vezes acerca da sorte do jovem que se tornara guerreiro neste Verão, mas nunca tivera coragem de perguntar o que lhe sucedera. O meu íntimo sabia a resposta e ela chegou pela boca de Sven, o único que reuniu alento para dá-la:

- O Styrr tombou na batalha... E não pudemos recolher o seu corpo.

A cortina do quarto de Bjorn fechou-se com aparato. A sua mágoa jamais finaria, não importava quanto tempo passasse. Além de um amigo, Styrr fora uma referência do homem que Bjorn ambicionava ser, forte e corajoso, ansioso por ação. E agora estava morto...

Throst ficou lívido, fitando os amigos sem realmente os ver, enquanto as cores que recuperara com esforço lhe fugiam do rosto. Acreditei que ele iria desmaiar e tencionei acudir-lhe, mas Ingrior deteve-me com firmeza. Depois de os companheiros saírem, o dono da casa recolheu-se sem uma palavra ou um olhar, deixando claro que desejava estar sozinho. Perante a minha apreensão, Ingrior tentou aquietar-me:

- Ele ficará bem. Dá-lhe tempo...

Obedeci contrafeita, sentindo o peito esmagado pela angústia. Imaginar Throst sozinho com os seus fantasmas, mastigando o desgosto em silêncio, engolindo uma culpa que não era sua, provocava-me agonias.

A noite ia adiantada e eu ainda não adormecera. Os meus sentidos apurados distinguiam perfeitamente a respiração de Throst. Ele também estava acordado e afogava-se em lágrimas silenciosas. Dei por mim a saltar da cama e a espreitar pela cortina do seu quarto. Os olhos azuis brilharam na penumbra, antes de ele os ocultar com o braço, pedindo debilmente:

- Deixa-me sozinho, Pequena... Por favor!

Avancei e ajoelhei-me ao lado da cama, acariciando os anéis dourados dos seus cabelos.

- Tu já estiveste muito tempo sozinho! Demasiado tempo...

- Eu não quero que me vejas... Assim...

Toquei-lhe gentilmente no braço, encorajando-o a encarar-me.

- Chorar não é um sinal de fraqueza. É a prova da grande alma e coração que tu tens. Deves abençoar as tuas lágrimas, não envergonhar-te delas!

Throst descobriu o rosto, e eu limpei-lhe os olhos inchados com a manga do meu vestido.

- Vem cá...

Não fora o que eu desejara desde o início? Mal me alojei nos seus braços, fui envolvida por um calor doce. Throst ajeitou as cobertas e aninhou-se tão intimamente que eu me apercebi de cada detalhe do seu corpo. Todavia, o seu olhar revelava que nada mais buscava além de conforto. Sobressaltei-me quando ele murmurou:

- O teu irmão Edwin é um bom guerreiro... Um homem forte e determinado. Mas a sua alma está ferida. Quando o destino nos colocou frente a frente, eu vi-me a mim próprio nos seus olhos: o Throst cheio de ódio e desprovido de esperança que vivia para a vingança, antes de encontrar a mulher dos seus sonhos... A pequena indomável que curou o meu coração. - Os seus lábios moveram-se gentilmente sobre os meus cabelos. - Eu sei que estiveste lá comigo, Catelyn. E também senti a tua presença durante a viagem. Nunca permitiste que eu desistisse...

- O meu espírito acompanhou-te - confessei. - Mas o mérito da sobrevivência é só teu! Não duvides que esta foi a batalha mais dura que já travaste. Em causa não esteve apenas a tua vida, mas também o futuro do teu povo.

Throst estremeceu e, depois de uma pausa, deixou transparecer a frustração:

- Quando o Edwin aceitou conversar, eu pensei que estava a assistir ao momento mais importante da nossa história. Este acordo de paz poderia ter trazido tantos benefícios para todos nós! A minha cabeça estala com perguntas... Mas, quanto mais reflito, mais me convenço de que o Gunnulf planeou tudo para me atrair à Grande Ilha, esperando que eu tombasse no conflito.

- O teu poder é uma ameaça para os tiranos desta terra, Throst.

- Procurei o seu pulso e acariciei a tatuagem do dragão. - Eles sabem que, uma vez que admitas o teu destino, ninguém conseguirá parar-te...

- Catelyn, não! - cortou ele rispidamente, enquanto se libertava.

- Por favor, não insistas nessa loucura. Eu já tenho problemas que cheguem, sem que tu e a minha irmã me venham encher os ouvidos com missões divinas e poderes celestiais! Não posso andar a correr atrás de fantasmas! Se quero vencer esta disputa terei de manter os pés bem assentes no chão!

A pequena coruja era a única testemunha das nossas palavras. Eu não queria discutir... Mas sabia que, se não despertasse Throst, ele estaria condenado ao fracasso. Toquei-lhe no rosto, forçando-o a encarar-me:

- Eu entendo o que tu estás a sentir! Também não me foi fácil admitir o que sou! Mas acredita que tudo se torna mais simples quando enfrentamos a realidade. Não negues a força do teu sangue...

- Este sangue só é meu porque eu não posso arrancá-lo do corpo.

- A sua brusquidão pôs-me a tremer. - Será que devo orgulhar-me de ser primo do Sigarr? Devo orgulhar-me de ser neto de um feiticeiro cínico e cobarde que abandonou a família e desapareceu sem deixar rasto?

- Isso não é verdade! - contrapus. - Apesar de não se revelar fisicamente, o Hakon fez um excelente trabalho na preparação da Ingrior. E foi graças aos seus ensinamentos e à sua ajuda que sobrevivemos e encontramos o caminho nas brumas da passagem! Devemos-lhe a vida...

- Eu não lhe devo nada! - Com um movimento impaciente, Throst libertou-se do meu abraço e sentou-se na cama. - Foste tu que me salvaste a vida! Só tu! Esse... Feiticeiro nunca quis saber de nós e muito menos de mim. Se eu dependesse da sua proteção, há muito que estaria morto! É pior do que o Sigarr, porque esse não esconde a sua maldade!

Suspirei longamente, sentindo que perdia terreno para a sua teimosia. Seria bom possuir o seu poder de persuasão, mas a minha convicção teria de chegar:

- Não podes negar que a tua vida está a mudar! A tua sobrevivência deu-te uma nova oportunidade para lutares pelas tuas convicções. Eu tenho a certeza de que o povo ficará ao teu lado...

- Eu não posso envolver mais ninguém nesta questão pessoal, Catelyn! - objetou ele com firmeza. - Ao contrário do que tu queres acreditar, o Gunnulf tem o apoio de muitos homens, dentro e fora da Terra Antiga. O apelo da propriedade e da riqueza fala mais alto do que qualquer sonho de paz. Não vou dividir a minha gente ainda mais! Não correrei o risco de provocar um banho de sangue nas Terras do Norte.

- E se aqueles que apóiam o Gunnulf o deixassem quando percebessem que existe uma alternativa? - insisti, mesmo sabendo que estava a remar contra a maré, dentro de uma casca de noz, debaixo de uma violenta tempestade. - Não podes fechar os olhos só porque a luz te magoa! Tens de habituá-los à claridade para depois ver com clareza!

O rosto bonito deformou-se num esgar de escárnio.

- E o que sugeres que eu faça? Que desafie o Gunnulf para um duelo de liderança na próxima Assembléia?

- Eu não tenho resposta para as tuas interrogações - respondi, ignorando a ironia. - Mas existe um sítio onde as podes buscar!

- E onde é esse sítio prodigioso?

- Sabes perfeitamente, Throst! Tens de subir a Montanha Sagrada...

- Nem pensar!

- Throst...

- Pára! - cortou violentamente. - Este assunto não tem discussão!

Eu quedei-me, surpreendida por verificar o esforço que ele fazia para conter a raiva e a revolta que o assolavam há anos, desde que banira o avô e a magia da sua vida. Throst demorou a encontrar um equilíbrio, mas, quando finalmente prosseguiu, fê-lo num tom baixo e gélido:

- O Hakon desprezou a sua família humana muito antes de eu nascer. Jamais lhe darei a satisfação de me ouvir suplicar por ajuda! A marca que me colocou não passa de uma maldição! A Ingrior ilude-se com fantasias. Acredita que o avô é o mais perfeito dos seres. Onde estava ”O Que Tudo Vê” quando a morte lhe levou o marido tão estupidamente? Onde estava ”O Que Tudo Vê” quando a minha mãe chorava de desgosto pela morte do meu pai? Onde estava ”O Que Tudo Vê” quando a minha mãe morreu gelada? E em todos os outros momentos em que precisamos dele; senão da sua ajuda, pelo menos do seu carinho?

- Esses foram os argumentos que o Sigarr usou para tentar subverter a vontade da tua irmã - repliquei indignada, esquecendo que só podia vencê-lo com calma e persistência. - Felizmente, ela não lhe deu ouvidos! Mas tu permitiste que ele te envenenasse o espírito, apesar de saberes que é um servo da Arte Obscura...

- Arte Obscura, Arte Luminosa, Sol, Lua... Tolices! Um feiticeiro é um feiticeiro, e o resto é poeira atirada para os olhos dos crentes! Não passam de criaturas egoístas e perversas, que se divertem com a desgraça alheia e não recuam perante nada...

Calou-se subitamente. Os seus gestos impacientes ficaram suspensos ao encarar a minha expressão horrorizada. De imediato, deixou-se tombar, puxando-me para o seu abraço, esforçando-se para remediar os danos do seu desabafo exaltado:

- Pequena, eu...

Reagi tão bruscamente que me surpreendi: - É isso que pensas de mim, Throst?

- Não sejas tola! - Ele lutou para me forçar a encará-lo. - Sabes que eu não estava a falar de ti!

- Eu também sou uma feiticeira! - Afirmei, profundamente magoada.

- Não! Tu és tão feiticeira como eu! O teu poder não foi herdado no sangue e sim impingido. O que te fizeram só prova a maldade e o egoísmo desses seres! Se não condenassem aqueles que, de entre eles, se atrevem a desejar ser diferentes, nada disto teria acontecido. Para remediarem as desgraças provocadas pela sua arrogância, roubaram os teus sonhos e talvez te destruam a vida. Tu jamais serás uma feiticeira, Catelyn, porque a tua alma é humana! - Throst conseguiu finalmente prender o meu olhar. - Não te compares a essas criaturas sem coração, minha querida, porque tu és muito melhor do que elas!

- Nem todos os feiticeiros são iguais! - protestei afogueada.

- Existem bons e maus, tal como os humanos!

- Então, por que se proclamam Seres Superiores? Não deveriam aqueles que tudo sabem e que tudo podem, ser capazes de sentir afeto, piedade, alegria em partilhar? Se os deuses criaram criaturas tão distintas e as juntaram na Terra, não é evidente que desejavam que aprendessem umas com as outras? Os feiticeiros odeiam e desprezam os humanos, Catelyn! São incapazes de sentir compaixão! São incapazes de sentir amor! Diz-me, que crime horrendo cometeu a tua avó para ser banida de entre eles; ela que, de acordo com o que me contaste, era uma das mais respeitadas e poderosas feiticeiras? Amar um humano tornou-a, de repente, tão desprezível e perigosa, que tivessem de usurpar-lhe o seu poder e condená-la à exclusão?

Eu engoli em seco, tremendo da cabeça aos pés. Nem queria pensar no eco que as suas palavras faziam no meu espírito. Quando falei, senti a injustiça e a crueldade da justificação que sempre me parecera natural:

- É a única maneira que eles têm de manter a pureza da raça... E Throst não me perdoou:

- Agora sim, estás a falar como uma feiticeira! O que aconteceria se eu me regesse por essa lei? Não poderia apaixonar-me por uma mulher de classe inferior ou por uma escrava? Não poderia gostar de uma das mulheres dos países quentes do Sul, que têm a pele da cor dos teus cabelos, só porque são diferentes? Ou não poderia amar-te, porque és filha de Garrick McGraw da Grande Ilha? Catelyn... - Respirou fundo e acariciou-me os lábios com os seus dedos. - Nada é mais forte do que o amor, Pequena... Nada é mais importante! Aprendi isso contigo! Gosto de ti ao ponto de admitir que aquilo que nos separa é mesquinho e insignificante...

A voz faltou-lhe, toldada pela emoção, e a minha resistência dissipou-se nos seus argumentos. Aninhei-me no seu carinho, rendida à declaração do seu amor. Só então me apercebi de que, enquanto as nossas mentes combatiam, os nossos corpos se haviam aliado. A fome que nos torturava era impossível de esconder. Throst deslizou os lábios pela minha face, murmurando embevecido:

- Já perdemos demasiado tempo a discutir algo cuja solução está fora do nosso alcance. Tudo o que me importa é este momento... Nós os dois... Eu quero-te, Catelyn! E não apenas como um homem deseja uma mulher! Eu quero-te muito para além da necessidade de possuir o teu corpo. Fico feliz só por te ter nos meus braços e sentir o teu coração a bater junto do meu...

- Throst... Não...

Tentei erguer-me, mas ele impediu-me. Mesmo debilitado, eu não tinha força para contrariá-lo. Franziu o sobrolho, magoado com a rejeição.

- O que foi Pequena? Eu sei que também me queres...

O meu corpo traía-me, reagindo ao seu ardor. Todavia, por mais que as palavras de Throst fizessem sentido, por mais que eu o admirasse e amasse, não podia render-me. Se fizéssemos amor, Gunnulf viria reclamar a sua vida, Sigarr viria exigir o nosso filho e eu morreria de desgosto antes de enfrentar Gwendalin. A muito custo, reuni alento para dizer:

- Mesmo que seja verdade, Throst... Ainda que eu te deseje... Tu sabes que nós não podemos!

Os seus lábios recomeçaram o doce tormento que me enlouquecia, desenhando linhas de fogo na minha pele. Ele estava decidido!

- Não te preocupes com o Gunnulf... Não te preocupes com nada, querida! Confia em mim...

Afastei-o com ambas as mãos e enfrentei o seu olhar.

- O Gunnulf não é a única razão!

Throst arfou dolorosamente, controlando-se a custo.

- E que outra razão pode haver, se enterrarmos o passado? Sabes como foi duro para mim admitir este sentimento, Pequena! Não lutes contra o meu amor...

Eu não podia contar-lhe. Se eu própria me odiava pelo pacto que fizera com Sigarr, depois de tudo o que fora dito, Throst iria revoltar-se e enojar-se, ao admitir que eu não era a mulher dos seus sonhos, mas uma feiticeira sem coração, capaz de vender a alma de um filho para alcançar o que ambicionava. Só havia uma maneira de nos salvarmos de nós próprios. E eu não hesitei em contestar com firmeza:

- O que tu sentes não é amor! Não podes amar-me se não admites quem eu sou! E eu também não posso amar um homem que não tem coragem de aceitar quem é! - Forcei-me a prosseguir, apesar de o seu abalo penetrar no meu peito como um punhal. - Falas do egoísmo e da intolerância dos outros, mas não és tu próprio egoísta e intolerante? Mesmo que o teu avô viesse ao teu encontro, escutarias a justificação para a sua ausência e silêncio? Não escutarias, porque não és capaz de ouvir ninguém, além de ti próprio! Nasceste com sangue abençoado, e as Criaturas Sagradas sacrificaram-se a ti, para que a tua força fosse formidável. E o que fizeste? Mergulhaste no rancor, silenciaste o Lobo dentro de ti e recusas-te a enfrentar o teu destino...

- Chega, Catelyn! - Os seus olhos iluminaram a penumbra como os de uma grande fera enraivecida. - Vou esquecer o que acabaste de dizer, porque sei que a tua intenção é boa...

- Podes negar a verdade, mesmo quando ela pende debaixo do teu nariz! - ripostei, enfurecida pela sua intransigência. - Podes esconder-te na ignorância... Mas não podes exigir que eu faça o mesmo! Tenho uma missão a cumprir e nada me impedirá de concretizá-la! O meu treino está praticamente concluído e, brevemente, terei de partir. Não irei perder o meu precioso tempo com devaneios que de nada servirão o meu objetivo. Eu não sou uma camponesa sonhadora, ansiosa pelos favores do senhor da aldeia! Eu sou uma feiticeira! Não irei trair o meu povo só para te divertir na cama...

- Sai da minha cama, Catelyn! - A ordem de Throst soou baixa, mas enrouquecida pela ira. As suas mãos afastaram-me, como se a proximidade o queimasse. - Não quero estorvar a tua nobre missão com a futilidade dos meus sentimentos! - A sua voz tresandava a ironia.

- Prometo que não voltarei a incomodar-te, a distrair-te... Não voltarei a tocar-te! - Arrancou a pedra azul do pescoço e estendeu-ma.

- Eu não preciso dos teus feitiços! Sou jovem e forte. Conseguirei sarar sozinho. Lamento se perdeste o teu precioso tempo com um homem ignorante, intolerante e egoísta. Agora, desaparece da minha frente! Vai!

A bola de cristal negro brilhava com todas as cores do arco-íris, rodopiava diante dos meus olhos, suspensa pela minha vontade, expandia-se e mirrava, como um coração a pulsar. Dentro dela, a minha mente percorria corredores infindos, transpunha barreiras, contornava obstáculos... E vencia desafios desmedidos, impulsionada pela força que fluía do meu sangue, transpirava da pele, aquentava o ar e aclarava a noite. Os enigmas da Lágrima da Lua eram conchas, e eu era a onda feroz, que as esmagava, destroçava, reduzia a pó; eram grãos de areia, e eu era o Vento Norte, selvagem e indomável, que os dispersava sem piedade. Nunca me sentira tão perto de perder o domínio da razão e de me render à sedução do poder. Nunca me sentira tão desafeiçoada da vida, dos sentimentos, da humanidade. Nunca me sentira tão feiticeira, sem vontade de enfrentar a miséria da frustração, da raiva e do desprezo por mim própria.

A opção que tomara arruinara a eventualidade de, algum dia, voltar a ser feliz. Esticara a corda que me unia a Throst e esta rebentara, sem hipótese de remendo. E que importância tinha isso? O amor só trazia confusão, sofrimento, dependência, prostração, desencanto, ansiedade e angústia. O amor deixava-me fraca. A magia tornava-me forte. Qual era a dificuldade na escolha? O treino era tudo o que me interessava. Se eu era a última das feiticeiras, seria também a mais poderosa!

Não precisei de abrir os olhos para saber que Sigarr se aproximava. E como eu via através do Guardião da Lágrima da Lua, também ele podia ver através de mim. Nós éramos iguais, feitos da mesma essência. Senti a sua mente pressionando a minha e abri-lhe as portas suficientes para que ele não desconfiasse da extensão do meu domínio da Arte. Tal como Berchan me ensinara, o inimigo nunca devia saber mais do que aquilo que nos convinha. A melhor estratégia era permitir que pensasse que nos conhecia e controlava.

- Estás a crescer, Catelyn! - A sua voz tocou-me como a pétala de uma flor e causou-me um calafrio. - E estás cada dia mais forte! A tua evolução foi muito além do que eu me atrevi a desejar. Percebo agora por que a Gwendalin não conseguiu dobrar-te. Apesar de não teres um pingo de confiança em ti própria, quando decides abraçar um objetivo, és insuperável. Parabéns!

Isto era inesperado! Sigarr a ser simpático? Tinha de haver alguma explicação maldosa, um interesse escuso! Abri os olhos e o cristal caiu na minha mão, desprovido da energia colorida que o alimentara. Encontrei o rosto do feiticeiro, sorridente e jovial. Que idade teria? A lógica apontava para mais de uma centena de anos. No entanto, não parecia mais velho do que Throst. Senti-me desconfortável debaixo do seu olhar e revidei com uma frieza defensiva:

- Houve tempos em que ansiei pelos seus elogios. Agora, dispenso-os!

- Por que estás tão zangada comigo? - continuou, com uma brandura espantosa. - Eu nada tive a ver com a desventura do Throst! Limitei-me a não interferir na seleção da Natureza. Se imaginasse que tu possuías o conhecimento para salvá-lo, a história teria sido diferente! Podes condenar-me por lutar pelos meus objetivos? Não lutas igualmente pelos teus? Não te preparas para afastar aqueles que se interpõem entre ti e o que desejas? Durante anos, eu mantive o Throst a salvo, afastado do meu caminho. E ele era feliz até tu te intrometeres! Não te regozijes pela tua vitória, filha da Grande Ilha! Tu não és a responsável pela salvação do Throst; és a causadora da sua desgraça.

Respirar devagar. Limpar a mente. Sigarr não viera só porque o meu desempenho o surpreendera. O mestre da Arte Obscura estava alarmado. Queria saber até aonde eu podia ir, quanto sabia, se seria uma ameaça para a sua pessoa. Este era um jogo altamente perigoso e chegara a minha vez de jogar. Forcei uma grande dose de ironia e retorqui:

- Se colocar um homem excepcional no trilho da felicidade é desgraçá-lo, então eu assumo a minha culpa! Depois desta batalha desastrosa, a confiança dos guerreiros na liderança de Gunnulf ficou severamente abalada, e o Throst está vivo para lhe fazer frente. O povo olha-o como um herói renascido das cinzas; um homem tão forte e tão bom, que a própria morte não conseguiu derrubá-lo. Neste momento, atentar contra Throst será um erro grosseiro, a não ser que sejam criadas as condições para o acidente perfeito... Ou um ajuste de contas! Já pensaram no vosso próximo passo? Terá de ser bem planeado, porque o povo está vigilante! Diante destas perspectivas, pergunto-me se o grande Sigarr não escolheu o lado errado da disputa!

Para meu total assombro, o feiticeiro tornou a sorrir. Aproximou-se devagar, como se pretendesse dar-me a oportunidade de me afastar. Mas eu não o fiz e, quando me apercebi, já os seus dedos compridos e gelados estavam nos meus cabelos, entrelaçando-se por entre os caracóis, enquanto ele continuava, surpreendentemente doce:

- Todos nós cometemos erros, Catelyn... Se eu tivesse sabido esperar, a minha vida seria diferente. Com um pouco de paciência, teria conquistado a companheira que desejava e mantido os meus poderes. Mas fui impulsivo e deitei tudo a perder! Hoje, sou mais velho e mais sábio. Aprendi a olhar em frente antes de correr para o desconhecido. Quando se é amaldiçoado por aqueles que se ama, deixa de haver um lado certo e um lado errado. Existe apenas a nossa luta e a luta dos outros. Ainda és muito jovem, mas o tempo encarregar-se-á de te ensinar esta lição!

Eu mal me atrevia a respirar. Há muito que percebera que Sigarr tinha duas personalidades distintas - uma repugnante e execrável que me causava um horror profundo; e outra, que ele tentava a todo o custo esconder, profundamente sensível e envolvente... inexplicavelmente atraente. Era esse homem misterioso e belo que estava diante de mim. E eu não sabia como lidar com ele! Presa ao seu olhar transparente, só consegui interrogar:

- Por que escolheu servir o mal?

Ele hesitou um pouco, talvez ponderando se devia responder.

- Um feiticeiro da Arte Luminosa necessita de ser muito bom para encontrar reconhecimento entre os seus. Um praticante da Arte Obscura só tem de erguer um dedo para incomodar os que o rodeiam; para que os ignorantes tremam de medo e se verguem à sua vontade. Enquanto fui bem-comportado, não alcancei nenhuma compensação. Após descobrir a minha vocação, obtive recompensas suficientes para não lamentar o que deixei para trás. - Os seus dedos longos tocaram na pele nua do meu pescoço e provocaram-me um arrepio que, certamente, não lhe passou despercebido. - Os tempos estão a mudar, Catelyn! Os Feiticeiros já não governam a Terra. Fugiram cobardemente para a sua preciosa ilha e deixaram a casa entregue aos maiores parasitas de entre todos os animais. Mas a Terra jamais pertencerá aos Homens. Brevemente, uma nova ordem irá estabelecer-se. E eu estarei à frente dessa revolução.

O meu coração parou quando a mão de Sigarr cobriu a minha, enlaçando o cristal negro. Um calor inesperado entrou-me no sangue e espalhou-se pelo meu corpo. Não contive uma exclamação abafada quando ele me rodeou a cintura com o outro braço e me estreitou com firmeza.

- Até a pouco, acreditei que o caminho para a vitória era solitário. Tinha a certeza de que jamais voltaria a encontrar uma igual que desafiasse o meu intelecto, que me mantivesse interessado, que despertasse o meu desejo... Tu foste uma surpresa, Catelyn da Grande Ilha! Uma surpresa amarga e doce...

Comecei a tremer, sem saber como reagir. O meu coração ameaçava rebentar, e todos os meus nervos batalhavam, divididos entre o impulso de fugir e a vontade de permanecer nos seus braços, debaixo do olhar cristalino, desfrutando da energia entorpecente que o seu ser exalava. Sigarr estudava cuidadosamente o terreno, observando o meu conflito e aguardando a minha decisão. Encorajado pela hesitação, baixou o rosto e roçou levemente os seus lábios pelos meus, afastando-se de seguida para murmurar:

- Sei que já percebeste que vim ao teu encontro para te fazer uma proposta. Tu despertaste em mim uma vontade adormecida... Quero continuar a treinar-te, mesmo depois de a Gwendalin tombar. Posso ensinar-te coisas com as quais nunca sonhaste, mostrar-te mundos para além da tua imaginação, colocar nas tuas mãos o destino do mundo e na tua cabeça a coroa do reino da Terra. O homem que nascerá do teu ventre não será arrancado dos teus braços. Terá o meu sangue e herdará o nosso império. - Sorriu levemente ao encarar a minha perturbação. - Tu ambicionas esse poder, sinto-o em cada batida do teu coração. Nasceste para liderar, tal como eu! E eu quero que sejas minha, Catelyn... Quero o teu coração e a tua alma...

Assim que os lábios de Sigarr tocaram os meus, a pedra de Aranwen começou a latejar. Contudo, eu estava tão embrutecida com o seu ardor e a sua declaração que, apesar de o meu espírito clamar para que me libertasse, não tinha forças para fazê-lo. Sobre a Lágrima da Lua, os nossos dedos entrelaçavam-se, enquanto toda a vontade se desvanecia, como se a minha personalidade fosse assimilada pelo feiticeiro. Dei por mim a fechar os olhos e a render-me ao beijo; a enlaçar Sigarr com um gemido de rendição, embriagada pela energia que se libertava dos nossos corpos. Uma nuvem vermelha toldou-me a visão e pensei que ia perder os sentidos. No meu peito, o amuleto da minha avó estava em brasa.

”Nunca te esqueças de quem és... Na guerra da ilusão, só haverá um vencedor, e o mal não pode perder!”

- Não!

Empurrei o feiticeiro com toda a força e libertei-me do seu aperto. A Lágrima da Lua caiu da minha mão e, de imediato, o ar tornou-se mais leve. Cambaleei, lutando para respirar e para me agüentar nas pernas, horrorizada pela certeza de que estivera a um passo de me perder. Quando reuni coragem para encarar Sigarr, não me surpreendi por encontrar o trejeito escarninho que tão bem conhecia.

- Minha tola rapariga... - Apesar de gelada, a sua voz denunciava um forte abalo. - Não irei dar-te uma segunda oportunidade!

- A um simples aceno, o cristal negro voou para a sua mão. - Um dia lamentarás a escolha que fizeste e o muito que perdeste!

- O que eu já lamento é ter permitido que o senhor se aproximasse de mim! - revidei de imediato. - O Sigarr não tem nada que eu deseje, nem como feiticeiro nem como homem! Posso ser tola, mas jamais ao ponto de acreditar na sua conversa.

- Preferes acreditar na conversa de um falhado, de um fraco, de um imbecil que nunca verá um palmo adiante da sua estupidez! Muito bem! Mas não te iludas... O Throst está marcado pela sorte. Nunca será teu! - A voz do feiticeiro tresandava a despeito e ameaça. - E não te esqueças do pacto que fizemos! Se ainda te resta alguma capacidade de raciocínio, mantém as mãos do filho de Thorgrim afastadas do teu corpo. Tenta enganar-me, rapariga ruim, e eu certificar-me-ei pessoalmente de que a tua linhagem será extinta! - As suas mãos tremiam quando ajeitou a capa sobre os ombros. - Não te incomodes a procurar-me para me pagares o que me deves... Eu encontrar-te-ei, onde quer que estejas!

Depois do encontro com Sigarr, passei a viver em constante sobressalto. O feiticeiro conhecia bem as minhas fraquezas e tentara manipular-me, tal como a minha avó me avisara. E eu quase me rendera à sua sedução. Toda a minha segurança e confiança no triunfo se esfumaram. Descobrira que o meu espírito não era incorruptível, como julgara; eu era vulnerável à tentação do conhecimento, ambicionava por poder... E esta falha de caráter quase me destruíra.

As últimas palavras do Guardião da Lágrima da Lua eram uma corda na minha garganta, cujo nó se estreitava a cada instante do dia e da noite. Eu jamais me libertaria da sua influência! Ele estaria sempre por perto, espiando nas sombras, escutando no vento, pairando como um espectro maldito... Aguardando pacientemente pela sua vitória. A sua declaração ardente não passara de um truque. Tudo o que Sigarr desejava era usurpar a força inexplorada que vivia em mim. O meu poder, apesar de pouco desenvolvido, estava intocado, e, através dele, o feiticeiro podia alcançar o que mais ambicionava. Ingrior negara-lhe a concretização da profecia do filho do dragão, mas ele não desistira de perverter a sorte a seu favor. O seu próximo passo era tão imprevisível como o anterior, e a perspectiva de tornar a enfrentá-lo deixava-me aterrada.

O ambiente que se instalara na casa dos filhos de Thorgrim não ajudou a contrariar a minha angústia. Throst cumpriu o que prometera debaixo do ataque de raiva, e os dias passaram-se sem que me dirigisse um olhar ou uma palavra. Ingrior avisou-me de que seria ela quem lhe faria os curativos, dali em diante, por sua ordem. Colei os olhos ao chão e limitei-me a concordar, enquanto lhe colocava nas mãos o amuleto do irmão, para que lho devolvesse.

Ingrior pouco ou nada podia fazer para me ajudar. Ela ouvira a última parte da nossa incendiada discussão e sabia que tinham sido proferidas palavras graves e imperdoáveis. Mesmo assim, não desistiu de procurar o irmão e tentar acalmar-lhe a ira. Eu surpreendi essa conversa e fiquei a escutar, sem que eles se apercebessem. Throst mostrou-se irredutível, afirmando que eu não o amava; que tudo o que eu fizera fora para garantir o regresso à Grande Ilha. Estava tão revoltado, magoado e humilhado, que se recusava a ponderar qualquer argumento. Até a persistente Ingrior foi forçada a desistir.

De cada vez que eu encontrava o olhar de Throst, sentia que me arrancavam o coração do peito. O azul acusador revelava-me que, muito em breve, a sua afeição se transformaria em desprezo. Eu era perita em semear a desgraça daqueles que amava e em colher a minha própria infelicidade. Contudo, quando as sombras do desgosto me permitiam respirar fundo, concluía que não tivera escolha. Throst sobreviveria à mágoa e acabaria por esquecer-me. Não tardaria a encontrar conforto nos braços de outra mulher. Agora que se libertara do compromisso com a perversa Halldora, não lhe faltariam pretendentes: mulheres da sua raça, altas e avantajadas, que lhe dariam filhos lindos, louros, de olhos azuis, rebeldes e corajosos como o pai. Livrá-lo de mim fora a maior prova de amor que eu lhe podia dar. Mas ele jamais compreenderia isso!

Os dias estavam mais curtos e frios. O Outono estendia os seus mantos de denso nevoeiro sobre as Terras do Norte. Eu treinava sem descanso e sentia a serenidade aliar-se à força. Aprendera muito com a Lágrima da Lua e lamentava ter perdido a orientação do cristal. Mas os conhecimentos que adquirira podiam ser desenvolvidos. Se Sigarr pensava que eu iria cruzar os braços, estava muito enganado! Quando a minha avó se revelasse para me anunciar que era tempo de regressar, eu partiria consciente de que fizera tudo ao meu alcance para cumprir a minha missão.

A saúde de Throst melhorava vagarosamente. A tristeza silenciosa em que se refugiara não ajudava no fortalecimento do corpo. Os irmãos esforçavam-se por animá-lo, mas ele só se descontraía quando brincava com o sobrinho.

E foi um desses raros momentos de alegria que Gunnulf, Arnorr e Halldora surpreenderam, quando entraram tempestuosamente na casa. Os guardas de Throst seguiram-nos, impotentes para os deter sem usarem a força. Eu estava a ajudar Katla a preparar a refeição e forcei-me a continuar, apesar de todos os meus sentidos troarem em alarme. Throst entregou o sobrinho a Ingrior, enquanto dispensava os seus homens. As faces de Gunnulf estavam rubras, embora tentasse dominar a fúria:

- Primo... A família já é recebida na tua casa como um bando de malfeitores?

Throst convidou-o a instalar-se, mas o grande líder fez o inesperado: aproximou-se e abraçou-o, com uma comoção que pareceria verdadeira aos olhos de um estranho. Se Gunnulf não conseguira livrar-se do rival, só lhe restava recuperar a sua confiança.

- Estou muito feliz por te encontrar bem! Quis visitar-te mais cedo, mas fiquei retido em reuniões e conselhos, discutindo e analisando o que correu mal na última campanha e o peso das baixas. Além disso, a Anna garantiu-me que o descanso era fundamental para a tua recuperação. E eu quero que te restabeleças depressa! Sabes que não dispenso o meu braço direito!

Apeteceu-me gritar. Mas a raiva que senti perante o cinismo e a hipocrisia de Gunnulf foi uma gota de água, comparada com o oceano de ódio que me inundou quando Halldora saltou para o pescoço de Throst.

- Meu amor! - chorava e soluçava como uma condenada à morte, suplicando absolvição. - Estás vivo! Disseram-me que estavas moribundo, a finar... Por favor, perdoa-me!

Engoli em seco. Assim se fechava mais um ciclo. Eu rejeitara Throst. Throst estava magoado. Halldora regressava esplendorosa e a pingar mel... Throst perdoava Halldora! Fiquei sem fôlego quando ele retrucou:

- Mesmo os moribundos apreciam a visita dos amigos!

Senti na minha pele o estremecimento de Halldora. A rapariga gaguejou antes de balbuciar:

- O Gunnulf já te explicou... A Anna disse-nos que tu não podias receber visitas...

Sem acreditar nos meus olhos, vi que Throst afastava os braços melosos do seu pescoço, enquanto exclamava friamente:

- Não desejo ocupar o teu precioso tempo, Gunnulf! Agora que já confirmaste que eu sobreviverei, queres contar-me o verdadeiro propósito desta visita?

Sobressaltei-me ao ver a ira de Gunnulf crepitar. O desafio de Throst era uma imprudência. Se o primo desembainhasse a espada, ele não teria como defender-se. Throst não era adversário para Gunnulf em condições físicas normais, quanto mais agora, que mal se sustinha nas pernas.

- A primeira das razões parece-me óbvia. A minha ensandecida irmã chora sem descanso, desde que terminou o vosso noivado. Fê-lo precipitadamente, num momento de forte comoção. Está arrependida e deseja que a aceites de volta.

Isto só podia ser um pesadelo! Eu tive de morder o lábio para conter um soluço, quando a tirana ronronou:

- Por favor, Throst... Eu amo-te! Podemos casar já...

Ele silenciou-a com um gesto brusco, e a sua voz soou cortante como uma lâmina:

- Eu fui informado de que estavas a receber propostas de casamento tentadoras, feitas por homens de grande valor e riqueza. Não preferes escolher de entre eles o teu marido? Imagino que será desonroso para uma mulher da tua estirpe desposar um guerreiro derrotado em batalha!

Fez-se um silêncio sepulcral. Halldora voltou-se para Gunnulf, com o pânico estampado no rosto. A sua culpa era tão gritante que não tinha argumentos para combatê-la.

- A Halldora já deixou claro que te ama - acudiu Gunnulf.

- Além disso, sempre foi desejo dos nossos pais que as nossas famílias se unissem pelo casamento. Vós sois a última esperança do cumprimento dessa vontade.

Senti a raiva de Ingrior como o embate de uma vaga contra um fiorde. Ela apertou Trygve nos braços com tanta força que o filho protestou. Percebendo-se à beira do descontrolo, isolou-se no seu quarto. Eu desejei acompanhá-la, mas contive-me. Não iria fraquejar diante de Halldora!

Após um silêncio desconfortável, Gunnulf insistiu:

- Qual é a tua resposta, Throst? Eu não queria ouvir!

- Irei pensar! Falar-vos-ei em breve...

- Throst...

Halldora tentou abraçá-lo, mas ele recuou, repreendendo-a rispidamente:

- Volta para junto dos teus irmãos! Não é correto que uma jovem sem compromisso se ofereça a um homem, desta maneira!

Halldora quedou-se, mortificada. Gunnulf cerrou os dentes e os punhos. Arnorr deixou o queixo pender. Nenhum deles esperava encontrar Throst tão mudado.

- Continua, Gunnulf. - A voz do dono da casa denunciava impaciência.

O outro teve de respirar fundo antes de prosseguir:

- Quero saber por quanto tempo pretendes ficar em casa. Os homens estão inquietos, e a tua presença ao meu lado irá provar-lhes que nada está perdido.

Eu supunha que fora difícil para o guerreiro-urso admitir tamanha fraqueza ante os seus, mas Gunnulf sabia jogar com as palavras. O que dizia agora já não contava daqui a pouco. Faria o que fosse necessário para reconquistar a cumplicidade de Throst.

- Eu irei assim que puder. Ficar em casa a observar a lida das mulheres também não é do meu agrado, como deves imaginar. Mais alguma coisa?

- Throst... - O apelo de Arnorr deixou-me gelada. Eu já me esquecera da sua proposta ridícula. - Quero saber o que decidiste quanto ao futuro da Pequena.

O meu protetor hesitou, e eu senti o coração a falhar. O seu olhar azul percorreu a distância que nos separava e encontrou o meu, suplicante e aflito. Não fui capaz de continuar a trabalhar. Fiquei parada, a tremer, aguardando a sentença da minha condenação.

- Sinto muito, Arnorr - respondeu Throst subitamente, encarando o primo. - A Ingrior deseja manter a Pequena, e eu próprio tenho outros planos para ela.

Presumi que Gunnulf estaria a trovejar. Arnorr fez-se roxo de indignação e não se conformou:

- Mas que planos são esses que interferem com a felicidade de uma pessoa que tanto estimas? A Pequena não encontrará melhor pretendente...

- Já usaste esse argumento - interrompeu Throst rispidamente.

- Ele não me serve! A Pequena irá casar-se com um chefe de clã. Desta vez Gunnulf interveio, soltando uma interjeição de desprezo:

- E que chefe de clã tomará para sua esposa uma mulher estrangeira, desonrada e sem o mínimo interesse?

- Eu tomarei - retorquiu Throst de imediato. - Eu vou casar-me com a Pequena.

As minhas pernas fraquejaram e tive de apoiar-me em Katla. Throst enlouquecera! Só podia ter perdido o juízo para estar a fazer este anúncio, desafiando Gunnulf abertamente. Não fui a única a ficar atordoada, mas Halldora reagiu primeiro, protestando num tom de esganiçado ultraje:

- Mas, Throst... Tu prometeste... Tu juraste! Tu és meu noivo!

- Eu não sou teu noivo, Halldora! - refutou ele, com uma tranqüilidade que me provou ser este o discurso que há muito ensaiava.

- Eu disse que iria pensar...

- Mas...

- Ponderarei a possibilidade de te manter como minha companheira - continuou, ignorando a interrupção. - Mas a Pequena será a minha mulher.

- Como te atreves a humilhar a minha irmã?

O berro de Gunnulf abafou o pranto de Halldora, que caiu nos seus braços gritando como uma louca. Throst não se demoveu:

- Se tivesses de escolher entre uma mulher que te despreza e outra que te salva a vida, qual delas escolherias, primo?

O seu sarcasmo enfureceu Gunnulf ainda mais. O colosso empurrou a irmã para os braços do estupidificado Arnorr e ordenou-lhes:

- Saí imediatamente desta casa! E tu, Halldora, estás proibida de voltar aqui!

Depois avançou para Throst, gesticulando ameaçadoramente:

- Devo recordar-te que juraste não tocar nessa criatura? Atreves-te a desonrar a tua palavra e a enfrentar-me?

Throst permaneceu firme, contrapondo mansamente:

- Eu dei-te a minha palavra, como noivo da tua irmã, que não tomaria a Pequena para minha amante. Uma vez que já não sou noivo da tua irmã e que não pretendo tomar a Pequena para amante, e sim para esposa, o juramento perdeu o efeito! Qualquer Assembléia me dará razão e tu sabes disso!

Gunnulf berrou estrondosamente e desembainhou a espada com uma rapidez mortal. Eu gritei aterrada e não consegui segurar-me. Estendi a mão e a arma do guerreiro-urso voou para longe, cravando-se na parede. Só quando todos me olharam, é que compreendi a gravidade do meu impulso. Baixei o braço devagar, enquanto Katla e Jodis se colocavam diante de mim, numa tentativa algo ridícula de me protegerem. Ouvi a cortina do quarto de Ingrior abrir-se e os seus passos aflitos a aproximarem-se. Lá dentro, Trygve chorava, assustado pelo súbito tumulto.

Throst e Gunnulf encararam-se. O corpo do guerreiro-urso oscilava ao sabor da sua respiração, afogueado pela ira e pela humilhação, enquanto o seu clamor incendiava o ar:

- Por Odin, o filho de Thorgrim esconde-se debaixo da mão de uma bruxa?

Throst enfrentou-o com uma segurança admirável:

- Se bem me recordo, há muitos anos que tu também o fazes! Não se deve o sucesso do filho de Arngrim à proteção do feiticeiro Sigarr?

Gunnulf urrou, e eu temi o pior. Com passadas largas, dirigiu-se à parede e arrancou a espada da madeira. Depois, para meu alívio, precipitou-se para a porta, cuspindo irado:

- Isto não fica assim!

Quando a porta bateu, o olhar de Throst caiu sobre mim. Antes que eu pudesse esboçar um gesto, já ele me arrebatava dos braços das mulheres e sacudia furiosamente:

- Como te atreves a interferir nos meus assuntos?

- Pára, Throst! - acudiu Ingrior. - Ela só quis ajudar!

- Eu não preciso de ajuda! - gritou ele junto do meu rosto.

- Eu não preciso de nada de ti, Catelyn! Estás a ouvir? Se voltares a humilhar-me, arrancar-te-ei a carne dos ossos à pancada!

Largou-me tão bruscamente, que eu teria caído se as minhas amigas não me segurassem. Contudo, não tive tempo de me sentir ferida ou ressentida, pois Throst deu dois passos e tombou desamparado no chão, sem sentidos.

Quando dormia, o gigante viking parecia um menino meigo e indefeso. Como era possível que aquelas mãos tão belas já tivessem espalhado tanta destruição? O amor era um sentimento estranho e incompreensível! Não me importaria de assimilar o sofrimento de Throst para que ele ficasse bem. E, de certa forma, era isso que eu fazia, ao enchê-lo de energia curativa, para que os seus sonhos se suavizassem e o seu corpo se restabelecesse.

Agora que a tormenta aquietara, compreendia por que a minha interferência o enfurecera. Throst pretendera marcar uma posição ante Gunnulf, e o meu gesto deixara a impressão de que ele não seria capaz de defender-se sozinho. Mesmo que eu o forçasse a escutar-me, não o convenceria de que, sem a minha ajuda, provavelmente estaria morto. Seria obstinado ao ponto de replicar que o primo não teria coragem de concretizar a ameaça e que sairia da sua casa ainda mais humilhado. Mas o seu orgulho e teimosia faziam parte da personalidade especial que eu tanto admirava. Do nosso confronto resultara alguma confusão, mas nenhum ressentimento.

A declaração das intenções amorosas de Throst deixara-me a tremer. Decerto, ele apenas pretendera rebaixar a prima! Era a única explicação, além da completa loucura! Mesmo que eu pudesse aceitar tamanho desvario, como ficaria a sua posição na comunidade, ao desposar uma mulher de classe inferior? Os outros líderes perder-lhe-iam o respeito e deixariam de segui-lo!

Casar-me com Throst... Dei por mim a esquecer a realidade e a fantasiar com essa hipótese inadmissível. Viver numa casa nossa, dormir nos seus braços, gerar os seus filhos... A imaginação encheu o meu corpo de febre. Depois, a dura verdade caiu sobre mim como uma chuva de granizo. Eu jamais conheceria tal felicidade. Mesmo que, um dia, me libertasse definitivamente de Sigarr, Throst seria um sonho irrealizável.

Ingrior terminou de adormecer Trygve e sentou-se ao nosso lado.

- Vai descansar um pouco, Catelyn. Deves estar exausta depois deste dia terrível! Eu velarei pelo meu irmão...

Interrompi-a com um gesto suplicante. Estes breves momentos em que Throst estava privado da consciência eram uma oportunidade única de estar perto dele. Ingrior compreendeu-me e não tornou a insistir. Molhou o pano em água fresca e estendeu-mo, para que eu o colocasse sobre a testa úmida de suor do paciente. Não consegui impedir que os meus dedos deslizassem pelos seus cabelos cor de Sol e sofri um sobressalto quando Ingrior perguntou:

- Tu ama-lo muito, não é verdade?

De que me serviria negar aquilo que a minha irmã de coração percebera antes de mim?

- Sim - respondi num sussurro dolente. - Mas ele não pode saber!

- Diz-me por que, Catelyn...

Não me atrevi a encará-la. Se eu me confessasse, Ingrior nunca mais me dirigiria a palavra. Mas este segredo estava a matar-me...

- A minha avó ordenou-me que aceitasse tudo o que o Sigarr me exigisse... e eu obedeci-lhe! - Ouvi a minha voz vinda de muito longe, como se estivesse a sonhar. - Ele pediu algo terrível... Algo que eu jamais lhe darei! Por isso, não posso entregar-me a nenhum homem.

- O teu primeiro filho?

- Sim...

Senti vontade de gritar quando os braços de Ingrior me envolveram. O alívio de desabafar e de perceber que ela não me condenava deixou-me a soluçar. Afundei-me no seu carinho e ali fiquei, até o meu coração se acalmar. Eu amava Ingrior tanto como amava os meus irmãos verdadeiros. Adivinhei o que ela ia dizer antes mesmo de falar:

- Sabes que deves contar-lhe...

Abanei a cabeça numa negação, enquanto sufocava um gemido.

- Não posso - articulei, por fim. - O Throst não compreenderá! Eu consigo suportar a sua indiferença, mas não o seu desprezo!

- Talvez te surpreendas com a sua reação - insistiu ela.

O meu irmão mudou muito, Catelyn! O seu amor por ti está a derreter-lhe o coração, a colocá-lo no caminho certo...

- Mais uma razão para eu me manter afastada! O Throst está destinado a liderar o seu povo. Precisa de uma mulher que lhe dê herdeiros...

- O meu irmão está desesperado porque pensa que o grande amor que te tem não é correspondido. Deixa que seja ele a decidir o que realmente deseja!

- Não posso, Ingrior... Não consigo...

Ingrior embalou-me, e eu voltei a soluçar. Quando ela me sentiu mais calma, afastou-me o cabelo do rosto e acariciou-me as faces inchadas e vermelhas.

- Seria mais fácil se chorasses, querida... - murmurou preocupada.

- Por que te conténs tanto? Por vezes penso que vais rebentar!

Deitei a cabeça no seu peito e suspirei profundamente, antes de responder:

- Toda a minha vida quis ser forte... até que a dor se abateu sobre mim e me afogou num mar de lágrimas. Quando a tempestade acalmou, descobri que os meus olhos haviam secado. Eu não consigo chorar, Ingrior! As lágrimas estão na minha cabeça, na garganta, rebentam-me o peito, mas não me caem dos olhos. Talvez este tormento faça parte da maldição que a bruxa me lançou! Ou talvez seja apenas um castigo por tudo o que não fiz e podia ter feito... por tudo o que anseio, mesmo sabendo que não posso ter...

- Catelyn, pára de te atormentar! - Ingrior beijou-me a testa, embalando-me com uma ternura maternal. - Um dia voltarão a cair lágrimas dos teus olhos, mas serão lágrimas de alegria! Luta por aquilo que desejas, mesmo que te pareça impossível de alcançar. O hoje é diferente do amanhã e o difícil pode tornar-se fácil! Tu ainda serás muito feliz, minha querida irmãzinha! Acredita em mim!

Três semanas após a discussão na casa de Throst, Halldora casou-se com Freysteinn. Nenhum dos seus primos foi convidado para assistir à cerimônia, que acolheu as famílias mais importantes da Terra Antiga e alguns chefes de clã das aldeias vizinhas.

Enquanto as trompas soavam, Throst deteve-se junto da cerca com o olhar perdido na floresta. Ingrior aproximou-se a abraçou-o pelas costas. Eu estava sentada na entrada da casa, brincando com Trygve e, mesmo sem querer, ouvi o que diziam:

- Foi melhor assim... Nunca serias feliz com ela! Throst hesitou antes de responder:

- Sabes o que mais me impressiona? Não sinto absolutamente nada! Todo o afeto que me unia a Halldora desapareceu como se nunca tivesse existido. Admito que tu tinhas razão. O que eu sentia era um carinho alimentado por quinze anos de convívio. Mas o seu egoísmo e maldade destruíram tudo...

Depois de mais algumas palavras de conforto, Ingrior deixou o irmão e regressou a casa. Pegou no filho ao colo e dirigiu-me um olhar apelativo. Eu tentei resistir. Continuava convicta de que devia manter-me afastada de Throst. Entre nós, pouco mudara. Só falávamos quando não podíamos deixar de fazê-lo e evitávamos encarar-nos. Eu sabia que avançar um passo para Throst significava recuar uma centena na minha resolução. Mas quando dei por mim já estava ao seu lado e a murmurar:

- Sinto muito...

Ele permaneceu imóvel, com o olhar distante.

- Por que?

Encolhi os ombros, desconfortável ante a sua indiferença.

- Por Halldora... Por tudo...

- Podes pensar o que quiseres, Catelyn - retorquiu friamente.

- No que te diz respeito, eu só lamento o que sofreste na casa do Gunnulf, à mercê dos caprichos da Halldora. Quanto ao resto... Sinto raiva de mim próprio por não ter assumido uma posição mais cedo. Se o tivesse feito, muitos dos meus companheiros que morreram neste Verão estariam vivos.

Com um nó na garganta, ergui a mão para tocar no seu braço, mas consegui segurar-me no último instante. Throst ainda surpreendeu o meu gesto, porém, não se manifestou. Eu forcei-me a argumentar:

- Não podes culpar-te pelas vidas que se perderam. Tu também arriscaste a tua!

Ele abanou a cabeça, objetando com severidade:

- Eu não devia ter permitido que o Gunnulf avançasse! Podia ter-me imposto...

- Os homens sabiam o que os esperava! Não era a primeira vez...

- Era a primeira vez do Styrr! Eu era responsável por ele! Devia tê-lo protegido!

- E a ti, quem te protegia Throst? - indaguei com ardor.

- Quem te guardava, quando aqueles em quem confiavas já te tinham marcado para morrer?

O guerreiro fechou os olhos, abalado pelas minhas palavras. Quando eu já recuava, exclamou subitamente:

- Tu!

Fixei o seu olhar azul, sem compreender, e Throst continuou:

- Tu protegeste-me, Catelyn! Alteraste a minha sorte quando me deste a pedra mágica. O teu irmão só se deteve porque a reconheceu. Deste-me força durante a viagem e alento quando eu já me entregara à morte... E há dias, quando o Gunnulf desembainhou a espada, voltaste a salvar-me a vida. Eu não sabia se ele teria coragem de me matar. Era um risco que estava disposto a correr... - Fez uma pausa, mastigando as emoções para que estas não o dominassem. - E tornei a magoar-te, em vez de te beijar as mãos. Desculpa.

A tentação de abraçá-lo e encostar a cabeça ao seu peito forçou-me a dar um passo em frente. Porém, ele virou-se para encarar a floresta, deixando-me triste e desamparada.

Regressei a casa e refugiei-me na solidão do meu quarto. Sentei-me e enlacei as pernas, balançando-me para trás e para diante. As lágrimas podiam não rolar dos meus olhos, mas todo o meu ser pranteava. Throst ainda me amava! Eu lia-o nos seus olhos; sentia-o nas suas palavras... Mas mantinha-se fiel à maldita promessa de não se aproximar. Melhor assim! Quando o momento chegasse, a separação não seria tão dolorosa.

 

                                                                                 CONTINUA

 

                      

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