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O GUIA DA MONTANHA / Zane-Grey
O GUIA DA MONTANHA / Zane-Grey

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O GUIA DA MONTANHA

 

Naquele dia quente de Junho, a cidade de Santo António, no Texas, dir‑se‑ia uma colmeia. O ano de 1871 parecia destinado a ficar na história como o das maiores levas de gado para o Norte, desde que, em 1868, Jesse Chisholm fizera a primeira. Durante a Guerra Civil, o gado multiplicara‑se nas vastas planícies do Texas, atingindo centenas de milhar de cabeças, sem haver mercado para ele, pois os ranchos eram pouco distantes uns dos outros, e os habitantes muito pobres. Fora, por isso, que Chisholm concebera a ideia ousada de conduzir uma manada para o Norte e aí a vender, empresa que conseguiu levar a cabo, apesar da interminável distância, da consequente fadiga e dos perigos que correra. Este feito modificou a história do Texas.

Na Primavera de 1871 a Pista Chisholm tornara‑se factor decisivo na recuperação económica do país: os cascos dos bois de grandes chifres e dos cavalos de sangue espanhol haviam aberto uma senda com uma milha de largura através das terras ondulantes do Lone Star State.

Adam Brite fizera já uma leva naquele ano. Partira em Março com 2.500 cabeças de gado e sete guias, levando a palma aos índios e realizando a sua mais lucrativa proeza. Como principiara muito cedo, as desventuras dos guias que o seguiram não lhe diminuíram o ânimo para tentar segunda leva. Talvez, até, pudesse fazer três viagens, naquele ano auspicioso! Comprando gado a torto e a direito, pagando a pronto, conseguira reunir uma manada de 4.500

cabeças ‑ a maior de uma só leva para o Norte. O seu problema imediato e vital era, agora, o de arranjar guias.

Do Rancho Uvalde vinha já a caminho de Santo António uma manada, conduzida por cinco rapazes que contratara no acto da compra, pois Brite não ousaria embrenhar‑se em aventuras de tal monta sem ter como guias pelo menos dez dos melhores cavaleiros e atiradores da região. Como, em Dodge, os seus sete guias se haviam sumido entre o fumo e a poeira dos postos fronteiriços, logo no dia seguinte ao do seu regresso a Santo António tratara de procurar quem os substituísse. Estava, porém, contente por ter conseguido para capataz um dos guias mais conhecedores da Pista Chisholm, cuja chegada esperava, cheio de ansiedade e esperança.

Fora o seu velho amigo e grande criador de gado, coronel Eb Blanchard quem lhe recomendara Texas Joe Shipman e prometera enviar‑lho. À medida que a tarde findava, iam aparecendo grupos de cavaleiros poeirentos, prontos para partir. Do vestíbulo do «Hotel Álamo» saíam, também, magotes de vaqueiros, com as suas botas características, as suas esporas e os seus cinturões, ao mesmo tempo que diminuía a algazarra no salão. Mexicanos de olhos negros e trajos coloridos, passeavam pela rua. Brite começava a impacientar‑se quando o coronel Blanchard apareceu, acompanhado por um jovem que se tornaria notado mesmo entre uma hoste de altos e serenos texanos de olhos claros. ‑ Cá estamos, Adam! ‑ saudou Blanchard, em tom alegre, empurrando para a frente o seu companheiro. ‑ Tex, cumprimenta o meu velho sócio, Adam Brite, o mais limpo negociante deste Estado! Adam, este é Joe Shipman, que tem trabalhado para mim muitas vezes e que já fez duas levas pela Pista. Podes estar descansado; respondo por ele!

‑ Como está, Shipman? ‑ cumprimentou Brite, em tom conciso, estendendo‑lhe a mão.

O rapaz aparentava ter vinte e quatro anos, era alto, de ombros largos, quadris estreitos, flexível e desempenado. As suas feições irradiavam arrojo e simpatia, tinha cabelos escuros, olhos cor de âmbar, claros e singularmente francos, e um pequeno sorriso frio e indolente.

‑ Como passa, senhor Brite? Desculpe estar bêbado, mas encontrei um velho compincha, Less Holden, e, diabos o levem, fez‑me entornar quase um barril de cidra!

Brite conhecia os texanos e não precisaria de olhar duas vezes para o valente rapaz para gostar dele e aceitá‑lo, mesmo sem a recomendação de Blanchard.

‑ Vou‑me embora, para poderem conversar à vontade ‑ anunciou o coronel. ‑ Lembra‑te de que andarás bem se o contratares já...

‑ De acordo, coronel, muito obrigado ‑ agradeceu Brite. ‑ Vamos, Shipman, sentemo-nos. Toma um cigarro. Quanto queres de soldada, para seres meu capataz na próxima leva?

‑ Bom... quanto é que paga? ‑ indagou o rapaz, mostrando bem que tal pormenor era, para ele, de somenos importância.

‑ Quarenta por mês, tendo em conta que levaremos 4.500 cabeças.

‑ Ih!... E quantos guias, patrão?

‑ Dez, pelo menos, ou quinze, se conseguirmos arranjá‑los.

‑ Bem, a coisa não se fará só com dez. Pela certa vai haver o diabo na Pista, este Verão.

‑ Aceitas o lugar?

‑ Creio que sim ‑ rouquejou. ‑ Já tinha jurado que não voltava lá... Três vezes é demais... Já levei com uma

flecha dum comanche num ombro e trago chumbo aqui, num quadril...

‑ Sim, já reparei que coxeavas... Custa‑te a cavalgar?

‑ Nunca ninguém disse nada...

‑ Conheces alguns cavaleiros que possas contratar?

‑ Posso falar ao meu compincha, Less Holden ‑ respondeu o rapaz, com um sorriso de satisfação. ‑ Ninguém percebe mais de cavalos. Mas é um tipo bravo...

‑ Isso não interessa. Convence‑o a vir connosco e a mais meia dúzia. É verdade, arranja, também, um cozinheiro. Tenho de comprar um vagão novo; o outro fez‑se em cacos em cima de nós. Tratarei, igualmente, das provisões.

‑ Quando quer partir, patrão?

‑ O mais depressa possível. Se o pessoal do Uvalde chegar hoje, como espero, partiremos depois de amanhã.

‑ Diabo! Tinha uma garota por aí, na cidade, e não consigo encontrá‑la. Bem, isto é vida de cão! Não se esqueça de que, com uma manada desse tamanho, precisa de pessoal capaz!

‑ Sim, dos melhores cavaleiros que houver.

‑ Não vai ser fácil... Os guias começam a ser tão raros como os dentes nas galinhas. Só este mês, devem partir umas cinquenta mil cabeças!

‑ Mais uma razão para nos despacharmos. ‑Eu iria, igualmente, mesmo que houvesse meia dúzia de manadas à nossa frente. Farei o melhor possível, patrão

‑ concluiu Shipman, levantando‑se.

‑ Volta aqui a dizer‑me o que houver, depois da ceia

‑ rematou Brite, por seu turno, vendo‑o afastar‑se preguiçosamente.

Coxeava um pouco, mas isso em nada prejudicava a sua aparência impressionante. Brite pensou para consigo que gostaria de poder chamar‑lhe filho. Sim, porque, afinal de contas, era um velho vaqueiro solitário e mais de uma vez sentira estranha melancolia, quase que pressentimento desastroso acerca da leva que preparava. De facto, estas aventuras, já de si perigosas, devido às tempestades, às enxurradas, às secas e ao frio, aos relâmpagos e à natureza extenuante do trabalho, haviam‑se tornado ainda mais arriscadas, ultimamente, por os Comanches e os Kiowas se encontrarem em pé de guerra. Sempre houvera no Texas distúrbios provocados pelos índios; no entanto, nunca tão sérios como ameaçavam ser agora. Este facto, no entender de Brite, era devido aos búfalos e aos caçadores de peles. Tempo viria em que os índios não consentiriam que se abatessem búfalos e, então, todos os caçadores, guias e colonos teriam, forçosamente, de unir‑se, para combater os peles‑vermelhas. Os jovens e irrequietos texanos troçavam desta ideia, mas todos os antigos, como Brite, sabiam que assim sucederia.

Brite teve de abrir caminho à força de ombros, para entrar no armazém de Hitwell, embora três meses antes, quando ali fora comprar, também, provisões, houvesse tido a loja toda para si. Uma confusão de vaqueiros, soldados, criadores de gado, guias, índios e vadios, enchia a vasta quadra. Por fim, lá conseguiu fazer‑se ouvir por Hitwell, com o qual estivera associado no negócio de gado, antes da guerra.

‑ Que quer esta gente toda, Sam?

‑ É uma invasão! ‑ respondeu o armazenista, esfregando as mãos. ‑ Se o velho Jess Chisholm previsse isto, ter‑se‑ia feito meu concorrente.

‑ Olha, é melhor duplicares a encomenda que te fiz em Março e acrescentares ainda uma terceira.

‑ Quando partes, Adam?

‑ Depois de amanhã.

- Estará tudo pronto. Chegaram provisões frescas de

Nova Orleães.

‑ E a respeito de um vagão?

‑ Esgotado, Adam. Não há nada!

‑ Não poderás arranjar‑me um?

‑ Tentarei, mas há poucas probabilidades.

‑ Diabos! O melhor é eu ir procurar por aí. Visitou outros armazéns, sem resultado, e já o Sol se

pusera havia muito quando voltou ao hotel. Ceou e, seguidamente, foi esperar Shipman. O calor do dia passara, e era agradável estar sentado cá fora. Do outro lado da rua, encostado à porta de uma loja, estava um homem alto, de comprido casaco preto, camisa florida e chapéu, também preto, de abas largas. Guias de gado, de botas, esporas e pistolas, entravam e saíam, barulhentos e alegres, enquanto os cavaleiros andavam de um lado para o outro, junto das janelas iluminadas.

De súbito, o tilintar de esporas atrás de Brite desviou‑lhe a atenção da cena.

‑ Bem, patrão, tive sorte ‑ começou Shipman.

O interpelado voltou‑se e deparou com o capataz, acompanhado por um jovem que aparentava ter menos de vinte anos, de olhos azuis e ar de atrevida insociabilidade.

‑ Olá, Shipman! Vejo que sim, que tiveste sorte! Mais do que eu, que não consegui desencantar um vagão.

‑ Este é o tal compincha, Less Holden... Less, cumprimenta o senhor Brite.

‑ Donde é você? ‑ perguntou o velhote, após a apresentação, fixando o rapaz.

‑ De Dállas. Nasci lá.

‑ Pois não precisava dizer‑me que era texano! Para quem tem trabalhado?

‑ Para Dave Slaughter, vai para três anos, mas nunca fiz a Pista.

‑ Bem, se trabalhou para o Dave, também serve para mim. E o resto da sorte, Shipman?

‑ Contratei um rapaz chamado Whittaker. Não podia ser melhor. E falei também, com um da Pensilvânia, ainda tenro, é certo, mas com fibra, e que diz saber cavalgar. Creio que é melhor o patrão deixar‑me contratá‑lo, pois,, embora Santo António esteja cheia de vaqueiros todos têm trabalho.

‑ Sim, claro. Parece‑me que vai custar um bocado arranjar pessoal. O que me rala mais é o vagão!

‑ Eu e o Less procuraremos um em segunda mão.

‑ E não se esqueçam do cozinheiro! Não ouviram chamar pelo meu nome? ‑ perguntou, admirado.

‑ Ouvi, sim! ‑ respondeu Shipman, apontando. ‑ Foi aquele rapaz que está a desmontar do cavalo.

Brite voltou‑se na ocasião em que o indicado largava as rédeas e se dirigia a um dos homens presentes.

‑ Brite? ‑ responderam‑lhe. ‑ Deve andar por aí, sim.

‑ Estou aqui ‑ disse este, indo ao encontro do recém‑chegado, seguido pelos dois homens.

O cavaleiro era jovem, moreno como um mexicano, estava meio roto e sujo e exalava cheiro pouco agradável.

‑ É o senhor Adam Brite?

‑ Sou, sim. Você é um dos rapazes do Uvalde, não?

‑ Sou, patrão. Acabamos de chegar e não perdemos

um novilho, sequer!

‑ Como se chama?

‑ Ackerman.

‑ Este é o meu capataz, Shipman, e o seu amigo Holden.

‑ Como estás, Deuce? ‑ cumprimentou o primeiro, estendendo a mão.

‑ Olha... diabos me levem... mas é o Texas Joe! ‑ exclamou, por fim, com uma careta de alegria. E apertou, calorosamente, a mão do outro.

‑ Onde deixaste a manada, Deuce? ‑ quis saber o capataz, depois dos cumprimentos.

‑ A umas cinco milhas daqui, ao pé da enseada. A erva não é muita, mas há bastante água. Os bichos são lindos e estão gordos como se fossem pombos. Não viemos depressa.

‑ Têm algum vagão?

‑ Claro, e um bom cozinheiro! É preto, mas tomaram muitos brancos... Ih, como ele cozinha!...

‑ Bem, senhor Brite, isto, para mim, é música! ‑ comentou Shipman. ‑ Onde está o resto do gado?

‑ Tenho 2.000 cabeças em três pastagens, mesmo à saída da cidade. Podemos juntá‑las na Pista sem grande trabalho e ir andando devagar, enquanto Ackerman leva as dele.

‑ Claro, patrão, mas precisamos de guias ‑ protestou o capataz. ‑ Já somos oito, contando comigo. Arrisco‑me a ir só com mais dois homens, desde que sejam bons.

‑ Tens razão, havemos de arranjá‑los por aí... E a respeito de provisões?

‑ Já as encomendei ao Hitwell. Ackerman, manda‑nos o teu vagão, amanhã de manhã, e, depois de carregado, põe‑o na Pista.

‑ Demoras‑te na cidade, Deuce? ‑ perguntou Shipman.

‑ Não posso. Dois dos rapazes estão por cá e tenho de voltar. ‑ E, despedindo‑se, afastou‑se a trote.

‑ E agora, patrão, voltaremos Santo António de pernas para o ar, se for preciso, mas havemos de arranjar mais dois guias! Amanhã cá estarei, para ajudar a carregar o vagão.

‑ Combinado! Encontrar‑me‑ei com vocês nas pastagens. Boas noites.

Brite encaminhou‑se para o vestíbulo do hotel, onde se lhe deparou um homem que conhecia bem, mas que, naquela ocasião, não se lembrava de onde. O mesmo não sucedia, porém, ao texano louro, de rosto duro, lábios finos e olhos perfurantes que se lhe dirigiu familiarmente:

‑ Viva, Brite! Então, não me conhece?

‑ Conheço, com certeza, mas não sou capaz de lembrar‑me do seu nome ‑ replicou o velho, recuando um pouco a mão meio aberta.

‑ Pan...

‑ Oh, diabo de cabeça a minha! Pan Handle Smith, pois claro! ‑ exclamou, estendendo, desta vez, a mão, satisfeito.

O outro correspondeu ao cumprimento com um aperto de mão tão firme que arrepiou Brite até à medula.

‑ Como vieste parar aqui?

‑ Ora, a cavalo! Vou para o Norte.

‑ Sempre em bolandas, Pan Handle! Espero que não seja por causa da mesma velha história...

‑ Ah, mas é! Não posso ter descanso. Entrei numa jogatina e fui comido. Fiquei danado, claro, e pus‑me à coca, até descobrir um dos tipos a fazer batota. Chamei‑o, mais ao parceiro. Tinham andado a trabalhar nos campos de búfalos e não me conheciam. Vai, os parvos, começam a atirar‑me, da mesa a que estavam sentados! Claro, tive de abrir caminho a tiro e safar‑me, deixando lá a massa. Agora, estou farto de correr, esfomeado e sem vintém.

‑ Não te rales. Ainda bem que me encontraste ‑ animou‑o Brite, estendendo‑lhe uma nota.

No mesmo instante, porém, assaltou‑o uma ideia que o fez esquecer‑se do arrepio que a história lhe causara.

‑ Andas fugido, então?

‑ É como diz. Isto aqui pode tornar‑se quente para mim, enquanto o caso não esquecer...

‑ Se bem me lembro, costumavas conduzir gado...

‑ É verdade ‑ respondeu Pan Handle, com um sorriso melancólico.

‑ Gostarias de ajudar‑me a levar uma grande manada para Dodge?

‑ Se gostava! Nem queria soldada! Em Dodge poderia arranjar‑me ‑ respondeu, ansioso.

‑ Pois então estás contratado, mas com soldada, evidentemente. Que ferramentas tens?

‑ Pouca coisa. Um esplêndido cavalo, mas necessitado de descanso; sela, manta e uma «Winchester». O resto das minhas propriedades terrenas trago‑o às costas...

‑ E nas ilhargas, também, pelo que vejo... ‑ murmurou Brite, deitando uma olhadela ao personagem abatido que tinha na sua frente e, em especial, às coronhas dos revólveres que saíam dos coldres, significativamente descaídos. ‑ Vá, vai comer qualquer coisa, que bem precisas, e encontra‑te aqui comigo, dentro de uma hora, pouco mais ou menos. Deves precisar de munições e de mudar de farpela.

‑ Não sei como agradecer‑lhe, Brite ‑ respondeu o outro, afastando‑se.

O velho ficou‑se a segui‑lo com os olhos e só quando o perdeu de vista avaliou o que fizera. Contratara para guia de gado um dos mais conhecidos pistoleiros do Texas! Dera asilo a um fora da lei! O facto, em si, impressionou‑o um pouco. Contudo, pensando melhor, soltou uma gargalhada. Dodge ficava na fronteira do Texas e todas as comunidades possuíam um pistoleiro, do qual, geralmente se orgulhavam. Wess Hardin, Buck Duane, King Fisher e grande porção de astros de menor grandeza, eram tão representativos do Texas como, por exemplo, Crockett, Travis ou Bowie! Por outro lado, havia homens que se tornavam notados a darem rápido e mortífero trabalho ao gatilho e que, pelos seus actos, bem mereciam ser postos à margem da lei ‑ ladrões, bandidos, possessos, xerifes com mais tendência para matar do que para prender, vaqueiros, vadios e jogadores que atiravam para encobrir a batota. Pan Handle fora, também, posto fora da lei, é certo, mas era mais vítima do que agressor. Feitas bem as contas, tivera sorte em contratar o foragido para a segunda leva, pois qualquer coisa lhe dizia que ia haver dificuldades. 4.500 cabeças de gado! Agora, era demasiado tarde para desistir da audaciosa aventura. Tinha de ir para a frente! Contudo, sentia um frio na espinha quando pensava nas possibilidades... Quantos guias não tinham ficado pelo caminho, sem verem o fim da longa Pista!

 

O primeiro acampamento de Brite foi em Pecan Swale, a umas doze milhas, ou talvez mais, de Santo António. A erva escasseara até ali e a gigantesca manada andara mais depressa do que era hábito, chegando a Swale antes do pôr do sol. Shipman com o vagão e Ackerman com a outra manada, ali se reuniram.

‑ Vem alguma leva atrás de nós? ‑ perguntou Brite, da sombra onde estava a descansar.

Sentia‑se arrasado! Apesar de vigoroso, levava alguns dias a acostumar‑se à sela e à Pista.

‑ Nenhuma, patrão. O Henderson deve ser o primeiro a vir, com duas manadas, mas ainda precisa de alguns dias, para estar pronto. Depois dele, será uma avalanche.

‑ Antes assim. Creio que deves dar, agora, as tuas ordens, Shipman.

‑ Então, será melhor ficarmos todos aqui, até depois da ceia. O sítio parece‑me óptimo para o gado.

Tinha razão. O local era, de facto, excelente e os guias não gostariam de deixá‑lo, sobretudo os que já haviam percorrido mais vezes a Pista. Um bosque de carvalheiras, nogueiras e amoreiras silvestres cobria a parte superior do vale de ramagens verdes e amarelas, enquanto em baixo um ribeiro preguiçoso e pouco profundo serpenteava entre salgueiros. A erva crescia abundantemente nas terras do fundo e nas encostas suaves. Esta paisagem bucólica era perturbada, aqui e ali, por nuvens de poeira levantadas pelo trotar dos cavalos.

Os guias atiraram as selas, as mantas e as rédeas para o chão, e eles próprios em seguida, fazendo voar luvas, chapéus e botas. Os rapazes queriam divertir‑se e desfrutar um pouco o cozinheiro que, pelo visto, tinha um fraco pelo assobio. Chamavam‑lhe Alabama Moze e era um negro forte, de idade difícil de avaliar. O vagão que lhe servia de cozinha era vasto, tinha argolas para as loiças e todos os apetrechos indispensáveis. Naquele instante, estava a desmontar uma larga porta, para servir de mesa, após o que pegou no machado e saiu, à procura de lenha. O instrumento, porém, de pouco lhe serviria, naquele bosque de árvores de grande porte...

Do local onde se encontrava, Brite observava os seus homens, incluindo o cozinheiro. Shipman não conseguira arranjar mais guias, o que o levava a felicitar‑se por ter contratado Pan Handle Smith. Este apressou‑se a seguir Moze, para ajudá‑lo. Assim, sem casaco nem chapéu, possuía uma bonita figura. Mesmo nas fronteiras do Texas, onde eram comuns os homens de aspecto impressionante, Smith atrairia mais do que um olhar. Na realidade, merecia‑o mais do que Joe Shipman, embora este não fizesse qualquer observação a seu respeito.

Bender, o rapazote tenro da Pensilvânia, era simpático, bem humorado e mostrava vontade de ser amigo de todos, embora se revelasse tímido diante dos texanos de faces duras e olhos verrumantes. Possuía feições carregadas e firmes, que condiziam bem com os seus ombros fortes, os cabelos emaranhados, cor de estopa, e os olhos azuis, francos e ardentes. Whittaker era um cavaleiro de vinte e dois anos, de faces coradas e olhos sonolentos, notável pelo seu soberbo físico.

O quinteto do Rancho Uvalde despertava grande interesse em Brite. Numa terra onde os homens jovens, ardorosos e endiabrados, constituíam mais regra do que excepção, este grupo nada tinha de especial que atraísse as atenções. Todavia, Brite amava o Texas e os texanos, e, por isso, ao observar aqueles rapazes, tinha a impressão de que alguma coisa os diferençava dos vulgares condutores de gado. Nenhum deles fizera ainda vinte anos. Deuce Ackerman, moreno, delgado e de pernas arqueadas, parecia ser o de mais vincada personalidade. San Sabe, outro jovem do grupo, tinha sangue índio ou mexicano e a esbelteza típica do autêntico vaqueiro. Rolly Little, cujo nome quadrava bem à sua pessoa, pois era baixo e roliço, possuía cabelos amarelos, sardas e olhos castanhos, cintilantes e aguçados como punhais. Ben Chandler era um perfeito texano: alto, esgrouviado, desengonçado, dotado de cabelos e pele claros, cor de areia, e olhos azuis, luminosos. O último dos cinco, Roy Hallett, parecia apenas um membro do grupo: jovem, sossegado e taciturno.

Os preparativos para a ceia prosseguiam sem pressas. Brite notou que Pan ajudava o negro sempre que podia. Os guias notaram‑no, também, com olhares significativos, pois não era hábito, durante as levas, qualquer dos seus compartilhar as tarefas dos pretos. O interesse pessoal pelo pistoleiro crescia de momento a momento, mas ninguém parecia disposto a interrogá‑lo ou a duvidar do prazer com que fazia tudo.

Texas Joe afastou‑se, a fim de, do alto da encosta, observar o vale, e ficou visivelmente satisfeito com o que viu. Na opinião de Brite, o gado não se desgarraria; contudo, não era costume deixá‑lo sem guardas, um só momento que fosse. Joe olhou, seguidamente, para Norte e, quando regressou ao acampamento, anunciou:

‑ Há guias a caminho de Santo António. Vi sair um cavaleiro duma encruzilhada.

‑ Bem, Shipman, com certeza veremos mais cavaleiros do que desejamos, nesta leva ‑ comentou Brite.

‑ Refere‑se a cavaleiros pintados, patrão? ‑ indagou Ackerman.

‑ Não me refiro especialmente a esses, se tivermos sorte. Na última leva tive de encher a barriga a uma quantidade de Comanches, mas não fizeram desacatos. Confesso que os cavaleiros que mais me preocupam são os que fazem tresmalhar o gado.

‑ Talvez essa malta ache melhor passar adiante, quando vir este pessoal ‑ rosnou Shipman.

‑ Assim o espero! Nunca se pode dizer o que o pessoal vale, enquanto não é experimentado.

‑ Porquê, senhor Brite? ‑ quis saber o tenro Bender, cheio de curiosidade.

O patrão riu da pergunta e Shipman antecipou‑se‑lhe na resposta:

‑ Ora, rapaz, tudo quanto pode acontecer não passa de uma brincadeira!

‑ Hoje nada sucedeu e está‑me cá a parecer que os apregoados perigos da Pista não passam de exagero...

De súbito, um dos rapazes de Ackerman soltou um potente brado, logo seguido de estridente assobio do cozinheiro:

‑ Venham, está pronto!

Ouviu‑se grande alarido e, logo após, o silêncio. Os rapazes, esfomeados, não podiam perder tempo com conversas. Brite pediu ao cozinheiro que lhe levasse a ceia onde estava e não precisou de muito tempo, para ver que aquele Moze era um tesouro.

O sol pôs‑se, no céu dourado e sem nuvens. De quando em quando, um mugido vinha da beira da água, quebrando o silêncio, e uma brisa fresca agitava as ramagens, levando para longe o fumo do acampamento.

Brite sentia‑se satisfeito por estar, de novo, na Pista e ao ar livre, pois a maior parte da sua vida fora assim passada.

‑ Donde és tu, Moze? ‑ perguntou Shipman, levantando‑se.

‑ Sou «nego» de Alabama, «siô» ‑ ‑ respondeu o interpelado. ‑ É por isso que me chamam Alabama.

‑ Bem, enquanto me encheres a barriga desta maneira, garanto‑te que não deixarei os peles‑vermelhas escalpelarem‑te.

‑ Não me esquecerei, «siô», não me esquecerei.

‑ Bem, rapazes, custa‑me dizê‑lo, mas temos de montar guarda ‑ continuou Shipman, mudando de tom e dirigindo‑se a todos. ‑ Somos dez; portanto, quatro até à meia‑noite, três até às três da madrugada e outros três até de manhã. Quem vem agora comigo?

Fez‑se roda, para se combinar a escolha da primeira guarda, e Brite declarou:

‑ Shipman, irei também, na minha vez.

‑ Diabos me levem! Mas que pessoal é este, que todos querem trabalhar, até o patrão?!

‑ É a primeira noite... ‑ insinuou alguém.

‑ Confesso que acabarei por tornar‑me antipático ‑ retorquiu o capataz, resignado. ‑ Bender, sela o teu cavalo, e tu, também, Lester. Quanto a ti, Smith, estarei mais descansado, se ficares aqui.

‑ Calha bem ‑ respondeu o fora da lei, contente ‑ nunca durmo.

‑ Deuce, acordar‑te‑ei à meia‑noite, mais ou menos. Escolhe dois, para te acompanharem. É verdade, patrão, quem trata dos cavalos? Fizemos uma grande corrida...

‑ Pois sim, mas eles não são bravos. Deixa‑os com o gado. onde houver boa erva.

‑ Está bem; mas é preciso escalar alguém para esse serviço. Até logo. É um bom princípio.

Brite concordou com as últimas palavras do capataz, apesar dos estranhos pressentimentos que, por vezes, o assaltavam.

A sua manada de 4.500 cabeças, marcadas com três ferros antes de ter sido comprada, levava bom avanço sobre as que se lhe seguiam e cerca de três semanas de atraso em relação à última que partira para o Norte. A erva e a água não faltariam, salvo nalguns lugares, e o gado podia passar alguns dias sem erva, desde que não lhe faltasse água. No entanto, a Primavera fora tardia, retardando a migração anual dos búfalos para o Norte e, portanto, deviam encontrar‑se com eles, algures na parte setentrional do Rio Vermelho.

‑ Não podes arranjar carne fresca, Moze? ‑ perguntou Deuce Áckerman.

‑ Costumo guardar um quarto inteiro de boi, «siô» Áckerman. Bem sabe que sou um cozinheiro económico.

‑ No entanto, vi um bando de veados que calhavam mesmo bem, não achas?... Ande Ben, ainda temos meia hora de dia.

Os dois rapazes pegaram nas carabinas e desapareceram atrás da encosta.

Hallett declarou a Little, de modo peremptório, que ia tomar banho, o que causou espanto e consternação:

‑ Meu Deus, Roy! Que tens tu, homem? Não faltarão rios e enseadas pelo caminho, não é verdade, patrão?

‑ É, sim, é. E se estiverem cheios e gelados, vocês ficarão fartos de água por dez anos! ‑ replicou Brite.

‑ Mesmo assim, vou!

‑ Também irei, se me descalçares as botas. Há uma semana que as trago nos pés...

‑ Acredito!... Vamos!

Em breve no acampamento ficaram apenas Moze e o seu eterno assobio, e Brite, que se entreteve a desenrolar a sua lona e a estender o cobertor. Uma boa cama era o que os guias mais desejavam e raramente conseguiam. Afinal de contas, pouco tempo se podiam aproveitar dela. Feita a cama, Brite encheu o cachimbo. O sol morria no poente, dardejando os seus últimos raios dourados, e à sua luz recortou‑se a silhueta dum cavaleiro solitário, montado num cavalo negro. Brite examinou‑o com atenção, assegurando‑se de que não era índio, mas logo a seguir, o cavaleiro dirigiu o cavalo para o Swale e desapareceu por entre as árvores. Brite ficou à espera de vê‑lo surgir no acampamento. Ao longo da Pista Chisholm era corrente aparecerem destes desconhecidos, muitos dos quais, infelizmente, indesejáveis. O de agora reapareceu, por fim, com evidentes sinais de haver atravessado o ribeiro, e dirigiu‑se para o vagão. Antes do cavaleiro parar, Brite pensou que, até ao fim da Pista, muitos e muitos encontros teriam ainda. Este era apenas o primeiro.

‑ Olá, cozinheiro! ‑ saudou o recém‑chegado, com voz juvenil e vibrante. ‑ Dás‑me alguma comida, antes de a deitares fora?

‑ Pois dou, meu rapaz, mas já te digo que este cozinheiro não deita nada fora. Anda, desmonta e entra.

Brite reparou que a montada do rapaz não era um cavalo vulgar, mas maior e mais fino do que os cavalos espanhóis. Era magnífico, negro como alcatrão, possuía belas pernas, peito e cabeça de campeão. O cavaleiro, pelo contrário, parecia um rapazito.

Quando ele desmontou, o velho notou‑lhe a baixa estatura, contrastando com as pernas roliças fortes que cruzou, ao sentar‑se, para atacar o tacho de comer que Moze lhe dera.

Brite aproximou‑se, esperançado em conseguir outro guia.

‑ Viva, rapaz! ‑ saudou‑o, com bom humor. ‑ Por aqui, sozinho?

‑ É verdade ‑ redarguiu o interpelado, levantando a cabeça, mas baixando‑a, rapidamente, logo a seguir.

Apesar da rapidez do gesto, Brite pôde divisar‑lhe o rosto simpático, dourado pelo Sol, no qual brilhavam, com ar furtivo, quase assustado, dois grandes olhos negros e profundos.

‑ Donde vens?

‑ De parte nenhuma.

‑ Vaqueiro solitário, hem? Isso interessa‑me; tenho falta de rapazes como tu. Queres trabalho? Chamo‑me Brite e vou com uma leva de 4.500 cabeças para o Norte, para Dodge. Já alguma vez conduziste gado?

‑ Não, senhor, mas tenho lidado com gado toda a vida.

‑ Ah, então deve ser há muito tempo! ‑ observou o

velho, com ar de brincadeira. ‑ Que idade tens, meu filho?

‑ Dezasseis anos, mas sinto‑me como se tivesse cem.

‑ Onde vives?

‑ Em parte nenhuma.

‑ Sim? E a tua família, quem é?

‑ Não tenho família, senhor Brite. Os índios assassinaram meus pais, quando eu era garoto.

‑ Oh, que pena, meu filho! Isso aconteceu a tantas crianças texanas! E que tens feito, desde então?

‑ Andado de um rancho para outro... Não consigo parar muito tempo no mesmo sítio.

‑ Porquê? És um rapaz simpático...

‑ Bem... não aguento os trabalhos mais pesados e... «... há outras razões.

‑ E quanto a tratar de cavalos?

‑ Ah, disso gosto muito! Vai dar‑me trabalho?

‑ Por que não? Acaba de comer e, depois, vai ter comigo.

Durante a curta conversa, Brite não deixara de observar o rapaz, de modo que a sua curiosidade dos primeiros momentos acabara por transformar‑se em simpatia e interesse, apesar do seu interlocutor não haver levantado a cabeça do tacho. Tinha diversos buracos no velho e amassado chapéu preto, de abas largas, através de um dos quais espreitava uma madeixa de cabelos ruivos e anelados. As mãos eram trigueiras e bonitas, pequenas, mas ágeis e fortes, e, do lado esquerdo do casaco, aparecia a coronha duma arma pesada. Vestia calças compridas, calçava botas mexicanas de salto alto e usava grandes esporas, tudo em muito mau estado, devido ao longo uso.

Brite voltou a sentar‑se sob a carvalheira e, mirando o esplêndido cavalo, descobriu um pequeno saco de lona, seguro atrás da sela. Para consigo mesmo pensou que bastava apenas alguém embrenhar‑se um pouco naquele Texas extenso e bravio, para se lhe depararem, a cada passo, experiências tristes, estranhas e trágicas. Quantos filhos do Texas havia como aquele garoto! Que duro e sangrento imposto o imenso Estado extorquira aos pioneiros!

Começava a escurecer quando o rapaz se apresentou diante dele e se anunciou, com ar tímido:

‑ Chamo‑me Bayne, Reddie Bayne.

‑ Alcunha por causa do cabelo, não?

‑ Não, não me chamo assim por causa da cor do cabelo; Reddie é o meu verdadeiro nome.

‑ Está bem, não interessa. No Texas, qualquer alcunha chega e serve. Já alguma vez ouviste falar de Kennedy, «O Comilão», de Jones, «O Cara Suja», ou de Pan Handle Smith, «O Cabo de Caçarola»?

‑ Do último, já.

‑ Já? Então, vais vê‑lo, não tarda. Vem comigo, nesta leva. Bem, aceitas a minha proposta?

‑ Sem dúvida! Obrigado.

‑ Quanto a soldada?

‑ Trabalharei pelo comer.

‑ Não, assim não te aceito. A Pista é dura. Trinta dólares por mês está bem?

‑ Nunca ganhei tanto! Quando começo?

‑ Amanhã de manhã tens tempo, filho. Shipman e os rapazes juntaram os cavalos para esta noite.

‑ Quantos tem?

‑ Duzentos, mais ou menos. Mais do que precisamos, sem dúvida, mas são todos bons e não dão muito trabalho. Bem vês, quando chegar a Dodge vendo gado, cavalos, vagão, tudo!

‑ Já ouvi falar muito da Pista Chisholm e tenho vindo a campo descoberto desde Bendera, na esperança de encontrar uma leva de gado.

‑ Bem, realizou‑se o teu desejo, Reddie. Só espero que não te arrependas.

‑ Pelo contrário, estou muito satisfeito, até! Agora o melhor é ir tirar a sela ao «Sam».

Bayne conduziu o cavalo para debaixo de outra carvalheira, desaparelhou‑o e tornou a sentar‑se perto de Brite.

‑ Quantos homens tem no seu pessoal?

‑ Agora, doze, contando contigo.

‑ Pessoal regular, do Texas?

‑ Do Texas, sim, mas novo para mim. Creio, porém, que é regular. Texas Joe Shipman é o capataz. Já fez a Pista três vezes, é um prático nisto e pode dar‑me sorte. O resto é uma grande mistura, excepto cinco rapazes do Uvalde, excelentes, segundo me parece. Tenho, também, um tenro, da Pensilvânia, chamado Bender, Less Holden, um amigo de Shipman, e, ainda, um carolino, Whittaker, que se é tão bom como parece não pode ser melhor. Ah, esquecia‑me!... E Pan Handle Smith, um pistoleiro fora da lei, mas que, como alguns da sua classe, vale quanto pesa.

‑ Dez... contando consigo, comigo e com o cozinheiro... faz treze. É número azarento, senhor Brite!

‑ Treze?... É verdade!

‑ Talvez seja melhor eu ir‑me embora. Não quero dar‑lhe azar.

‑ Pelo contrário, hás‑de dar‑me sorte, rapaz!

‑ Oxalá! Já tenho dado azar a tanto pessoal! ‑ exclamou Bayne, com um suspiro.

Brite ficou impressionado com a resposta do garoto e a sua curiosidade aumentou. Nesse instante apareceram Deuce Ackerman e Chandler e, logo a seguir, Little e Hallett.

‑ Patrão, vi ali um soberbo cavalo preto! Não é nenhum pónei, é um cavalo grande, já feito, que nunca notei entre os nossos ‑ declarou Ackerman.

‑ Pertence aqui ao Reddie Bayne, que se juntou a nós. Bayne, aqui tens quatro rapazes do Uvalde.

‑ Boas‑noites a todos ‑ cumprimentou o garoto.

‑ Boas‑noites, vaqueiro ‑ respondeu Ackerman, espreitando para diante. ‑ Não te vejo bem, mas tenho prazer em que estejas aqui. Eh, rapazes, Reddie Bayne parece um nome bem texano!

Todos cumprimentaram o novo camarada. Depois, um deles deitou lenha na fogueira, que brilhou com mais intensidade. Bayne, porém, não se aproximou.

‑ Ouviu o meu tiro, patrão? ‑ indagou Ackerman.

‑ Não. Deste algum?

‑ Dei. Apareceu um veado, mesmo a calhar, mas já estava escuro e perdi‑o de vista. Amanhã de manhã tirarei a desforra; hei‑de apanhar um.

‑ Se me tivesses emprestado a carabina, teríamos caçado o bicho ‑ declarou Ben.

‑ Ah, sim? Aposto como não és capaz de vencer‑me!

‑ Quanto apostas?

‑ Bem, custa‑me ficar com o teu dinheiro, mas... ‑ começou Ackerman. Calou‑se, porém, de súbito, e apurou o ouvido. ‑ Aproximam‑se cavaleiros!

Brite ouvira, também, o estropear de cascos de cavalos e depreendeu que, quem quer que era, descia a encosta.

‑ Não deve ser nenhum dos nossos ‑ prosseguiu Ackerman, com os olhos fixos na escuridão. ‑ Amigos, é melhor estarmos prontos para tudo!

Divisavam‑se já as sombras negras dos cavaleiros, à luz do fogo do acampamento, à entrada do qual pararam.

‑ Quem vem? ‑ perguntou Ackerman, em voz sonora e forte.

‑ Amigos! ‑ respondeu uma voz áspera.

‑ Então, avancem, amigos, para que os vejamos.

No mesmo instante, Brite sentiu‑se agarrado com força por um braço e, voltando‑se, viu Reddie Bayne ajoelhado a seu lado. Tirara o chapéu, descobrindo o rosto pálido, no qual os grandes olhos negros brilhavam de febre.

‑ É Wallen! Vem procurar‑me ‑ murmurou, ansioso. ‑ Não o deixe...

‑ Está quieto! ‑ ordenou Brite, segurando o garoto e dando‑lhe um pequeno safanão.

Os recém‑chegados aproximaram‑se mais do lume, mas não o suficiente para se verem distintamente. O chefe parecia ser um homem forte, moreno, violento e antipático. Brite vira já bem um cento de homens como ele, nas pradarias do Texas.

‑ Guias de gado, hem? ‑ perguntou, com os olhos brilhantes fitos nos rapazes que se encontravam junto do fogo.

‑ Não somos índios Comanches, com certeza! ‑ replicou Deuce, com voz dura.

‑ De quem é o pessoal?

‑ Brite, de Santo António. Levamos 4.000 cabeças e vinte guias. Quer saber mais alguma coisa?

‑ Contrataram um novo cavaleiro, há pouco, não?

‑ Se contratámos...

Brite, porém, levantou‑se e aproximou‑se do lume, indagando :

‑ Quem é você, afinal, e o que quer daqui?

‑ Chamo‑me Wallen, de Braseda. Vimos à procura de... dum... miúdo chamado Reddie Bayne.

‑ Reddie Bayne? É esse o nome do rapaz? E por que o procuram?

‑ Isso é comigo. Está aqui?

‑ Não, não está.

‑ Então, esteve, Brite.

‑ Pois esteve. Ceou connosco e, tomou o caminho de Santo António. Já lá deve estar a esta hora, não te parece Deuce?

‑ Talvez. O cavalo era rápido ‑ respondeu o interpelado, em tom natural.

‑ Há alguns acampamentos entre o vosso e Santo António? ‑ quis saber Wallen.

‑ Quando passámos, não havia; mas, agora, talvez haja.

‑ Se não se importa, ficaremos aqui esta noite, Brite ‑ pediu Wallen, em tom velhaco.

‑ Tenho pena, meu caro desconhecido, mas uma das minhas normas é não ser demasiado hospitaleiro durante as levas por esta Pista ‑ respondeu Brite. ‑ Não é a primeira vez que isso me custa muito caro...

‑ Está a correr comigo? ‑ inquiriu o outro, agressivo.

‑ Não quero ofendê‑lo, mas é a minha norma.

- Hum! Mas muito reles, para um texano, concorde.

‑ Pois concordo ‑ declarou Brite, em tom frio.

O cavaleiro esporeou a montada, praguejando entre dentes, e, seguido pelo silencioso companheiro, perdeu‑se na escuridão.

Brite ficou à espera de ouvi‑los na estrada e só então voltou para onde deixara o garoto. Bayne estava encostado a uma árvore e nas suas mãos brilhava uma arma.

‑ Pronto, intrujei‑os, Bayne! Espero ter feito bem.

‑ Se fez! Obrigado, senhor Brite! ‑ respondeu o garoto, em voz baixa.

‑ Patrão ‑ chamou Ackerman, que seguira Brite ‑ aquele tipo não fazia farinha comigo! Tenho a impressão de que já o vi em qualquer lado.

‑ Quem é Wallen, meu filho?

‑ Um rancheiro para quem trabalhei, em Braseda.

‑ Que tem ele contra ti?

Não obteve resposta.

‑ Tratava‑te mal, hem, Reddie? ‑ perguntou Deuce, inclinando‑se para o rapaz. ‑ Bem, não te censuro. Agora, rapaz, fala, se quiseres; se não quiseres, fica calado, que para nós, é o mesmo.

‑ Obrigado... Eu não sou alcoviteiro... nem ladrão... nem nada de mau. Apenas... Oh, não posso dizer! ‑ declarou, emocionado.

‑ Então, foi, com certeza, qualquer coisa com uma rapariga...

‑ Sim... tem razão... uma rapariga ‑ concordou Bayne, apressadamente.

‑ Já sei o que isso é, rapaz... Oxalá aquele tipo não seja o pai dela, senão, mais tarde ou mais cedo, ficará órfã.

E afastou‑se, gritando para os amigos:

‑ Façam as camas, rapazes, é preciso dormir!

‑ Bayne, estou satisfeito por não teres feito nada de mau ‑ declarou Brite, em tom paternal.

Um dos rapazes atiçou o fogo e, à luz mais forte que irradiou da fogueira, o velhote pôde ver, com mais clareza, o rosto do seu novo empregado. A expressão amarga e dura adoçara‑se‑lhe, dando‑lhe um ar triste que comoveu Brite.

‑ Eu... eu... hei‑de dizer‑lhe uma coisa... se não me denunciar ‑ prometeu o garoto, afastando‑se, seguidamente, a passos largos.

Brite enrolou‑se no cobertor e ficou a pensar na confissão de Bayne: qualquer coisa com uma rapariga! Assim lhe sucedera, a si próprio, há muitos anos, e talvez a isso devesse a sua vida solitária. Sem saber porquê, gostava daquele órfão. A velha Pista era dura e sangrenta, mas, às vezes, encontrava‑se nela algo de valor!...

 

Um tiro de espingarda despertou Brite, de madrugada. Moze assobiava, o que queria dizer que o acampamento não fora atacado pelos índios. Afastou a manta, calçou as botas e vestiu o casaco, ficando assim pronto para todo o dia. Enrolou a cama e, de toalha na mão, encaminhou‑se para a enseada. Texas Joe estava a levantar‑se. Três outros rapazes dormiam ainda, com os rostos serenos e juvenis iluminados pela luz cinzenta do novo dia, prestes a nascer.

‑ Ai, patrão, custa tanto a levantar de madrugada! ‑ observou Moze, à guisa de cumprimento.

‑ Principalmente a mim, que estou cada vez menos novo, Moze!

Perto da água, Brite encontrou Bayne atarefado com as suas abluções.

‑ Bons‑dias, filho. Já a pé e em acção, hem?

‑ Bons‑dias, senhor Brite ‑ respondeu o rapaz, erguendo o rosto molhado e bonito, como o de uma rapariga.

Brite achou exagerada a pressa com que o rapaz vestiu o casaco e cobriu os cabelos ruivos e anelados com o velho e amachucado chapéu de abas largas, tanto mais que, só depois disso, se deu ao trabalho de enxugar as mãos e a cara ao lenço.

‑ Vou buscar o meu cavalo antes do pequeno almoço ‑ disse Bayne, afastando‑se.

A água estava límpida e fria. Brite bebeu‑a e lavou‑se com o prazer de um guia de gado que sabe avaliar tal privilégio.

Em muitos lugares a água é lamacenta, mal cheirosa e morna, e noutros nem sequer existe. Quando se encaminhava para o acampamento o dia nascera e ouvia‑se o mugir do gado. O céu estava avermelhado, para o lado do Este; cantavam pássaros nas árvores, fugiam coelhos por entre os salgueiros, na margem oposta avistavam‑se gamos, com as orelhas muito compridas e direitas, e, para tornar o ambiente ainda mais agradável, às narinas do velho chegou a fragrância da madeira a arder.

Ao chegar ao acampamento foi testemunha de um interessante colóquio:

‑ Quem diabo és tu, rapaz? ‑ perguntava Texas Joe, surpreso. ‑ Não me lembro de já ter visto a tua cara!

‑ Chamo‑me Reddie Bayne. Cheguei aqui a noite passada e o patrão contratou‑me.

‑ Sim? E para quê? Para acartares água?

‑ Não! Para cuidar dos cavalos.

‑ Ah! Não está mal o garotelho, não senhor!...

‑ Não tenho culpa de não ser uma velha girafa como...

‑ Como quem? Como eu? Fica sabendo, fedelho, que,

de manhã, tenho muito mau génio!

‑ Assim parece ‑ retorquiu o outro, secamente.

‑ Para que trazes esse canhão aí, do lado esquerdo?

‑ Como protecção contra certas coisas...

‑ Não te perguntei se era para vista, mas sim por que o trazes do lado esquerdo.

‑ Sou canhoto.

‑ Compreendo. Disparas com a esquerda, não é? E tens uma quantidade de golpes na coronha!...

Bayne não se dignou, sequer, responder‑lhe, mas via‑se que estava um bocadinho aborrecido com o frio e sarcástico capataz. Por isso, os olhos brilharam‑lhe quando viu Brite.

‑ Bons‑dias, patrão ‑ ‑ saudou‑o Shipman. ‑ Vejo que contratou outro pistoleiro...

‑ Quem? Reddie Bayne?

‑ Decerto, quem havia de ser? Que será o Texas para os rapazinhos que, em vez de estarem em casa a mugir vacas, vêm para as pistas de gado armados de grandes canhões?

‑ Isso não é comigo; não tenho casa ‑ retorquiu Reddie, com espírito.

‑ Vamos, Reddie, aperta a mão ao meu capataz, Texas Joe Shipman ‑ cortou Brite.

‑ Prazer em conhecê‑lo, senhor Shipman ‑ cumprimentou o rapaz, ressentido, frisando bem o «senhor» e não estendendo a mão.

‑ Igualmente, mariquinhas ‑ rosnou Joe. ‑ Vai buscar o teu cavalo e mostra‑mo, assim como as tuas coisas.

Bayne corou e afastou‑se, enquanto Brite aproveitava a ocasião para contar a Shipman o incidente da véspera.

‑ Um inferno, bem vês. Pobre garoto! E agora tenho a impressão de já ter ouvido o danado daquele nome: Wallen. Apostava as minhas esporas em como não é boa pega... É daqueles tipos que não caem em graça, nem mesmo no diabo do nome.

- Eh, entrançadores de rabos de vaca, venham ao almoço

- clamou Moze.

San Sabe entrou no acampamento com um grupo de cavalos que os homens prenderam e Texas Joe gritou para Bender:

‑ Botas e selas aqui, meu tenro Hal da Pensilvânia! Isto é para todos! Vá, toca a despachar, que o dia vai ser de trabalho! É preciso misturar uma manada de bois bravos com outra de bois mansos.

Um enxame de mãos morenas começou a mover‑se e, como por encanto, os cavalos ficaram selados. Depois todos começaram a comer, mesmo em pé, e o capataz foi o primeiro a montar.

‑ Preparem os cavalos, rapazes! ‑ ordenou, em tom vibrante. ‑ Eu aponto a manada, patrão, e mando Ackerman e a sua guarda comer. Vocês sigam e não se esqueçam do rapaz, do Bayne.

Em poucos instantes, Brite ficou só com Moze. O Sol começava a espreitar por entre as nuvens e o bosque enchia‑se de melodia. Ao longe, o mugido dos bezerros recém‑nascidos atestava o aumento que a noite trouxera à manada. O cavalo preto entrou no acampamento como uma flecha e Bayne desmontou, alegre:

‑ Tudo junto e pronto, patrão. Ih, que beleza de bichos! Nunca os vi mais bonitos! Posso tratar de todos sozinho.

‑ Se conseguires isso, meu filho, conquistarás a admiração de Texas Joe.

‑ Quero lá saber desse vaqueiro! Prefiro a sua estima, patrão.

‑ Pois sim, anda comer.

Brite dirigiu o seu cavalo para o alto da encosta e ficou a ver os guias apontar a manada. Embora habituado a tudo quanto se referisse a gado, não pôde deixar de admitir que o espectáculo era soberbo. O Sol brilhava já em todo o seu esplendor, cobrindo com os seus raios maravilhosos léguas e léguas de pradaria; o ar estava fresco, suave, com uma promessa de calor para o meio‑dia; bandos de melros erguiam‑se, como nuvens, sobre o gado, e, lá de baixo, do bosque de carvalheiras, vinha como que uma onda de música da passarada nele escondida. A enseada desaparecera sob a massa de gado, com bem uma milha de largura, que fazia esparrinhar água por todos os lados. No meio de tudo aquilo, ouviam‑se os tiros dos guias, atestando que os seus homens abatiam os bezerritos, que não poderiam acompanhar as mães.

Como um colossal triângulo, com o vértice para a frente, os animais começaram a subir laboriosamente a outra encosta, abandonando o vale. A manada de Ackerman ia à frente ‑ o que era acertado, pois já estava habituada à Pista; a segunda e a terceira seguiam amontoadas atrás, formando o maior conjunto de bois bravios que jamais vira. Os seus chifres brancos, pretos e cinzentos pareciam uma interminável floresta de troncos de árvores desenraizadas, redemoinhando e entrechocando‑se no vale e na encosta verdejante. Moviam‑se processionalmente, com ritmo, firmes como um todo, embora irregulares na cor, e dando a impressão de uma força irresistível. Para Brite, o quadro representava o grande movimento de gado, agora na sua culminância, o encaminhamento do Texas para um império, a beleza épica das manadas e dos guias que fariam a história do Oeste. Nunca, até então, avaliara o tremendo significado da cena colorida que se oferecia aos seus olhos maravilhados de velho criador de gado. Atrás daquela avalanche de animais, dir‑se‑ia cavalgarem, assobiando e cantando, todos os valentes filhos do Texas. Era aquela a sua oportunidade, depois da Guerra Civil, que a tantos deixara órfãos e, a todos, sem dinheiro. O coração de Brite comoveu‑se, encheu‑se de simpatia por aqueles donairosos cavaleiros. Só ele pensava na verdadeira natureza da tarefa que empreendera; por isso, uma súbita apreensão o assaltou; e o porvir?

Eles não pensavam no futuro; bastava‑lhes o momento presente. Guiar uma manada, trabalhar conscientemente, atingir o objectivo em vista ‑ eram a sua obrigação.

Dever inalterável, assumido à partida! Por isso, Brite ficou a conhecê‑los melhor e a estimá‑los mais.

Finalmente, o grosso da manada atravessou o riacho, deixando‑o qual campo lamacento e revolvido. Logo atrás, ordeiramente, passaram os cavalos. Brite divisou Reddie Bayne, escarranchado na sua esplêndida montada negra. O garoto estava como peixe na água, tratando dos cavalos! Moze, conduzindo o vagão, surgiu na estrada, por detrás de Brite.

Por fim, a parte menos densa da manada, o vértice do triângulo, com Texas Joe no flanco esquerdo e Less Holden no direito, perderam‑se de vista, na subida da encosta. Mais para baixo, os outros dois guias montavam guarda. Os restantes, não tinham posição estável: ora cavalgavam aos flancos, ora corriam como demónios, na retaguarda, sempre que algum grupo mais turbulento fazia algazarra e erguia uma nuvem de poeira. Cada um dos rapazes parecia ter o seu próprio assobio especial, que Brite esperava acabar por conhecer e diferençar, com o tempo, e todos eles cruzavam o vale, estridentes e agudos.

Brite observava os guias enlameados, as nuvens de pó que, momentaneamente, pareciam querer encobrir o Sol nascente, e, por fim, o corpo da manada, que procurava vencer a encosta. Uma floresta de chifres longos e pontiagudos parecia querer furar o céu. Quando o último terço dos animais abandonou definitivamente o vale, iniciando também, a subida da encosta, o espectáculo tornou‑se assombroso, até para o velho Adam Brite! Metade daquela manada, sem o elemento selvagem, seria mais do que suficiente para conduzir a Dodge! Só agora compreendia ‑ agora que lhe era impossível voltar atrás! E, com um aperto no coração, perguntou a si próprio, angustiado, quantas cabeças de gado e quantos guias não chegariam, nunca, a Dodge.

Brite afastou‑se, cavalgando, para a parte mais alta da encosta. Ali, alongou o olhar atento sobre a Pista, voltado para o Sul. Um guia de gado considerava quase tão importante o que se passava atrás de si, como o que o esperava à sua frente. Misturar a sua manada com alguma que o seguisse, era mau negócio; havia a certeza de se extraviarem e perderem animais. Contudo, para seu alívio, a Pista estava livre ao Sul, e apenas uma pequena neblina indicava a direcção de Santo António. Para o Norte, estendiam‑se por léguas e léguas as terras purpúreas da pradaria, com as suas filas negras de árvores, ao longe. Parecia um mar ondulante de erva vermelha, no qual só para além da linha do horizonte podia esconder‑se alguma ameaça.

A grande manada subira já a encosta e mostrava‑se agora, inteiramente, em forma de seta. Enquanto permanecera no vale, parecera demasiado grande para lá caber, mas agora, em campo aberto, dir‑se‑ia estender‑se e dilatar‑se, à procura de espaço. Começara, finalmente, a sua lenta caminhada para o Norte, devorando toda a erva que se lhe deparava. Num dia, nunca percorreriam mais de oito a dez milhas. Quando o tempo estava bom e nada molestava o gado, era com verdadeira alegria que os guias se entregavam àquela espécie de passeio. O infernal paradoxo da sua vida estava no facto de tanto poderem percorrer toda a Pista com absoluto conforto e descanso, como no meio de perigos e dificuldades de toda a ordem. A Brite nunca sucedera ter de arrostar com os infortúnios de que ouvia falar constantemente, mas para si o trajecto fora sempre extenuante e arriscado.

O velhote juntou‑se ao vagão e, por momentos, cavalgou ao lado dele, conversando com o bem humorado negro. Começando por perguntas acerca do Rio Grande e dos vaqueiros de Uvalde, acabou por informar‑se a respeito do quinteto que trouxera a manada do Sul. Moze mostrou‑se loquaz e, a breve trecho, divulgou quanto sabia de Deuce Ackerman e dos seus camaradas.

‑ Sim, «siô», são os melhores e mais valentes rapazes que conheço! ‑ concluiu o cozinheiro. ‑ Trabalhei no Uvalde uns dois ou três anos. Primeiro, foi o «crunel» Miller quem dirigiu aquele pessoal; mas, depois, vendeu‑o ao Jones... e ele deve ter ficado bem contente por se ter visto livre dos cinco rapazes... Todos os dias de pagamento disparavam para a cidade, para catrapiscarem «miss» Molly, a filha do «crunel»! Faziam a vida negra ao patrão!

‑ Bem me parecia a mim que não deviam ser diferentes dos outros rapazes, quanto a raparigas bonitas.

‑ São diferentes num ponto, «siô»: é que eles são amigos e parecidos como irmãos gémeos, e «miss» Molly não podia escolher. Gostava tanto de todos que o «siô» Jones teve de vender‑lhos juntamente com o gado.

‑ Bem, Moze, alguma coisa se nos há‑de deparar ao longo da velha Pista, mas esperemos que não apareçam raparigas bonitas enquanto não chegarmos a Dodge! ‑ exclamou Brite, com uma gargalhada.

‑ Tenho ouvido dizer que, nestes dias, a cidade é um buraco quente...

‑ Espera‑lhe pela pancada, Moze! Bem, estamos quase a juntar‑nos à manada; depois, será um passeio pachorrento.

De facto, dentro de instantes Brite encontrava‑se junto da rectaguarda irregular e com uma milha de largura da sua manada. Estavam à vista quatro vaqueiros, mas o primeiro que o alcançou foi Hallett, que ia sentado na sela, de pernas cruzadas, deixando o cavalo pastar à vontade.

‑ Como vai isso, Roy?

‑ Menos mal, desde que acabámos a subida. Na segunda manada há alguns bois velhos e fracos e outros retorcidos que nem chavelhos! Texas Joe teve de atirar sobre dois touros, para fazê‑los sair do vale.

‑ Dá azar disparar sobre o gado ‑ observou Brite, em tom pensativo.

‑ Bem, mas nós somos poucos e temos de alcançar o nosso destino... o que me parece que não conseguiremos nunca.

‑ Havemos de conseguir! Onde está Reddie Bayne com os cavalos?

‑ A meio da subida, parece. O Rolly deve andar perto, pois esteve a ajudar o garoto.

‑ Sim?... E como se porta ele?

‑ Bem, patrão. São muitos cavalos para um garoto só, mas creio que ele se teria desembaraçado sozinho, se não fossem os danados dos bois velhos.

Brite afastou‑se. Rolly Little era o cavaleiro que se seguia e parecia atarefado com alguns novilhos teimosos. Havia vacas que berravam e queriam voltar atrás, desejando, evidentemente, juntar‑se aos bezerritos que fora forçoso abandonar.

 ‑ Eh, patrão, nesta manada há bichos velhos e teimosos que nem danados!

‑ Tem paciência, Little ‑ respondeu Brite.

Os cavalos vinham devagar, umas cem jardas, ou talvez mais, atrás, do gado. Brite dirigiu‑se para junto de Reddie Bayne, que estava inclinado sobre o pescoço do cavalo, deixando‑o comer.

‑ Viva, Reddie!

‑ Cá vamos, senhor Brite!

‑ Irei ao pé de ti, para te ajudar no que for preciso. Vai tudo bem?

‑ Sim, patrão. Nunca fiz trabalho que tanto me agradasse !

Que garoto simpático! Parecia ter menos do que os dezasseis anos que dissera, com aquelas faces que, sem serem gordas, tinham um belo rosado, apesar de queimadas pelo tempo.

Assim, recebendo em cheio a luz do Sol, as suas feições mostravam‑se tal qual eram: correctas, finas e atraentes. Talvez os seus lábios fossem demasiado pronunciados e vermelhos para um rapaz, mas os olhos compensavam esse pequeno senão: eram vivos, luminosos, denunciadores de uma personalidade exuberante e intensa.

‑ Ainda bem ‑ replicou Brite, contente por haver conquistado a estima do rapazito. ‑ Sabes que a noite passada fiquei um bocadinho preocupado contigo? Os meus rapazes foram bons para ti?

‑ Claro que foram e eu já me sinto mais à vontade! São as pessoas mais simpáticas com quem já trabalhei... excepto esse tal Texas Joe.

‑ Bem, bem. Mas que fez o Joe?

‑ Oh! Nada! Simplesmente, embirrou comigo... ‑ respondeu, em tom triste que contrastava singularmente com o das suas primeiras palavras. ‑ Acontece sempre assim, senhor Brite, em todos os lados onde apareço... Há sempre alguém, geralmente o patrão ou o capataz, que embirra comigo e me põe a andar.

‑ Mas porquê, Reddie? Tens a certeza de que não te enganaste com o Texas Joe? Ele é um excelente rapaz, como os outros!

‑ Acha? Ainda não dei por isso! Esta manhã ralhou comigo com um palavreado!...

‑ Sério? Bem, isso não quer dizer nada. Sabes que ele é o meu capataz e isso, numa leva destas, é uma grande responsabilidade. Mas, por que te ralhou ele?

‑ Ora, por nada! Eu sou capaz de juntar os cavalos tão bem como ele, mas o tipo embirrou comigo, e pronto!

‑ Talvez fosse apenas para te arreliar, Reddie! Não te esqueças de que és o mais novo de todo o pessoal e de que, portanto, tens de suportar algumas brincadeiras.

‑ Não me importo, senhor Brite, desde que eles sejam decentes.

Gostava tanto de conservar este emprego! Gosto do trabalho e acho que serei capaz de fazê‑lo como deve ser.

‑ Mas o emprego é teu, meu rapaz, garanto‑te! Não te rales por isso.

‑ Obrigado, patrão! E... já que é tão. bom penso que... acho que devo confessar...

‑ Olha, miúdo ‑ interrompeu Brite ‑ não precisas de confessar nada. Estou certo de que és um rapaz às direitas e isso me basta.

‑ Mas é que eu... não sou um rapaz como pensa! ‑ teimou o outro, corajosamente, voltando o rosto.

‑ Não? Tolices! ‑ exclamou Brite, comovido com a tremura que mais adivinhara do que vira nos lábios do garoto.

‑ Qualquer coisa me diz que devo confessar‑lhe a verdade antes que...

‑ Antes quê? ‑ perguntou o patrão, já com curiosidade.

‑ Antes que me descubra.

‑ Olha, meu filho, não precebo onde queres chegar. Podes confiar em mim, embora me pareça que tomas por uma montanha o que não passa de um cabeçozinho. Mas, vamos lá. desembucha!

‑ Senhor Brite, eu... eu... não sou o que.

pareço!

‑ Não? Bem, como és um rapaz perfeito e simpático, acredita que me custa ouvir‑te dizer isso. E porque não o és?

‑ Porque sou uma rapariga!

Brite apertou os calcanhares com tanta força que o cavalo deu um salto. Pensou que não devia ter ouvido bem, mas Bayne estava de cabeça baixa e com o rosto escondido, numa atitude que era mais eloquente do que as suas palavras.

‑ O quê?! ‑ exclamou, por fim, o homem, espantado.

Bayne levantou a cabeça e fitando‑o, desta vez, bem de frente, tirou o velho chapéu. Brite deu consigo a olhar boquiaberto, para uns olhos cor‑de‑violeta, que a perturbação tornara mais escuros.

‑ Sou uma rapariga ‑ repetiu Bayne. ‑ Tenho‑me sempre esforçado por guardar o meu segredo, em todos os lados, mas acabam sempre por desmascarar‑me e, depois, ainda sofro mais. É por isso que lhe digo... que confio em si. Se for descoberta, talvez me ajude e seja meu amigo.

‑ Sou uma besta! ‑ explodiu Brite. ‑ Uma rapariga! Bem, agora vejo que sim, que és uma rapariga! Reddie, minha pobre pequena, podes estar descansada que guardarei o teu segredo e serei teu amigo, se vierem a descobrir!

‑ Oh, eu bem sabia! ‑ respondeu Reddie, voltando a pôr o chapéu.

Assim sem o Sol a bater‑lhe nos grandes olhos e nas faces coradas, sobretudo sem os seus rebeldes caracóis, dum vermelho doirado, voltava a ser um rapaz.

‑ Não sei porquê, faz‑me lembrar o meu pai ‑ rematou, pensativa.

‑ Nem sabes como gosto de ouvir‑te dizer isso, pequena! Nunca tive uma filha, nem um filho, e só Deus sabe quanto lhe tenho sentido a falta! Não queres contar‑me a tua história?

‑ Sim, qualquer dia. É bem longa e triste!

‑ Há quanto tempo andas disfarçada de rapaz?

‑ Há três anos, ou mais. Bem vê, era preciso ganhar a vida, e isso, para uma rapariga, é difícil. Tentei tudo e, confesso, detestava ser criada, mas quando cresci mais ainda foi pior. Quase sempre os homens e os rapazes me tratavam com delicadeza, como é hábito dos texanos, mas aparecia sempre algum, ou alguns, que... que me queriam e não me deixavam em paz. Por isso fugi e me lembrei de que, se me disfarçasse de rapaz, talvez fosse mais fácil viver.

Ajudou um bocado, é verdade, mas acabei sempre por ser descoberta. Tenho um medo de morte de que aquele Texas Joe já desconfie de alguma coisa!

‑ Oh, não, não! Tenho a certeza de que não, Reddie!

‑ Mas chamou‑me... mariquinhas! ‑ exclamou Reddie,

com ar trágico.

‑ Isso é por seres tão... tão... bonita! Palavra que se o Texas desconfiasse, realmente, se portaria de modo diferente contigo! E todos eles, todos, sem excepção, se mostrariam tímidos, como carneirinhos! Olha, Reddie, não será melhor contarmos tudo ao Joe e aos outros?

‑ Por amor de Deus, não, senhor Brite! Palavra, se o fizéssemos nunca mais chegaríamos a Dodge!

Brite soltou uma risada, mas lembrou‑se subitamente do que Moze lhe dissera a respeito dos rapazes do Uvalde:

‑ Sim, bem vistas as coisas, deves ter razão. E... parece‑me bem que o tal Wallen sabe que és uma rapariga.

‑ Pois sabe, e o mal é esse!

‑ Apaixonado por ti?

‑ Ele! Wallen é demasiado reles para amar seja quem for, mesmo a própria família, se alguma vez a teve. É de Big Bend e já ouvi dizer que em Braseda ninguém gosta dele. Afirma que me comprou com uma quantidade de gado, como se eu fosse uma escrava negra! Eu trabalhava para o John Clay e ele deixou‑me ir com o gado que vendeu, mas não sabia que Wallen fizera o negócio por ter descoberto que eu era uma rapariga. Foi por isso que fugi e que ele veio atrás de mim.

‑ Agora será melhor não te seguir mais, Reddie.

‑ Salvava‑me? ‑ perguntou, com calor.

‑ Sem dúvida. Mas o Texas Joe ou o Pan Handle atiravam sobre ele, sem me darem tempo a mexer um dedo! ‑ afirmou o velho, de cara franzida.

‑ Faz‑me crer que o meu sonho se tornará realidade... algum dia! ‑ exclamou a rapariga, fitando‑o com meiguice.

‑E como, Reddie?

‑ Sempre tive esperança de que algum bom rancheiro, algum verdadeiro texano, me adoptaria... e de que poderia voltar a usar vestidos de rapariga. Teria uma casa e... e... ‑ não foi capaz de concluir.

‑ Já têm acontecido coisas mais estranhas, Reddie! ‑ observou Brite, comovido, só não se comprometendo desde logo a adoptá‑la porque o som de diversos tiros à distância o chamou à realidade.

‑ Há ali qualquer coisa, senhor Brite! ‑ gritou Reddie, apontando uma grande nuvem de poeira que se levantava na extremidade da manada voltada para Oeste. ‑ É melhor ir até lá. Eu tomo conta dos cavalos!

Brite esporeou a montada e galopou na direcção indicada. Não via Hallett nem Little, talvez encobertos pelo pó, mas aos seus ouvidos chegava o ruído abafado dos cascos dos animais. Quando chegou mais perto reparou que o grande corpo da manada permanecia intacto, embora algumas cabeças de gado se afastassem para a esquerda, precisamente donde vinha a poeira. Para lá se dirigiu, verificando que um grupo de animais abandonava a manada principal, em ângulo recto. Pelo barulho que faziam e apesar da distância, dava a impressão de tratar‑se duma desgarrada, o que, com tão poucos guias como ele tinha, podia ocasionar a debandada na direcção oposta à da manada principal. Exceptuando, porém, alguns pequenos núcleos, os animais agiam racionalmente e os guias dianteiros faziam já retroceder os fugitivos, voltando‑os para o Norte. Com grande alívio, Brite afrouxou o galope e foi postar‑se atrás da parte mais exposta da manada.

Os animais movimentavam‑se muito rapidamente, como se uma onda de inquietação os envolvesse a todos; porém, gradualmente, voltaram ao andamento vagaroso habitual e tudo pareceu normalizar‑se. Little passou por Brite, a galope, e gritou qualquer coisa que este não compreendeu.

A leva continuou pois, no seu andamento ordenado e processional, como se importasse, apenas, vencer o tempo. Passaram horas. O Sol quente iniciou a sua corrida oblíqua para o ocaso, limitado por tudo quanto se relacionava com a leva: o descanso, o andamento, os arrancas, o movimento incessante do gado, o bater dos cascos, o mugir das vacas, o eterno cheiro a pó, estrume e corpos suados ‑ e, até, pelo céu que os cobria, os outeiros que pareciam acenar‑lhes e a terra vermelha que se estendia até aos confins do horizonte, para os lados do Norte...

Uma hora depois, a grande manada rodeou um pequeno lago, no centro dum vale pouco profundo. As árvores notavam‑se pela ausência, e Moze pôde dar graças a Deus por ter tido a sensatez de fazer provisão de lenha. Brite precisou de cavalgar uma boa milha ao longo do flanco esquerdo dos animais, antes de alcançar o vagão e o acampamento, instalado numa pequena eminência de terreno donde se avistava todo o centro do vale. A erva era boa, embora pouco abundante, mas o gado precisava de ser reunido naquela noite.

Reddie Bayne aproximou‑se, também, balanceando‑se sobre o belo cavalo preto que era um deleite para os olhos dos cavaleiros, e colocou‑se ao lado de Brite.

‑ Cá estamos com o dia passado e novamente acampados. Oh, senhor Brite, sou quase feliz!

‑‑Ainda bem! Aproveita essa felicidade, pois só Deus sabe o que nos espera!

‑ Oh, lá está o tal Texas Joe! ‑‑ exclamou Reddie. ‑Todo importante e vaidoso por ter feito os bichos voltar ao seu lugar! Patrão, como devo proceder quando ele... implicar comigo outra vez?

‑ Vê como falas, Reddie ‑ aconselhou o velho, em voz baixa e séria .‑ Resmunga, fala como nós, se puderes, solta, de vez em quando, uma praga ou um palavrão. Verás como te será precioso.

‑ Só Deus sabe quantos já ouvi!

Quando entraram no acampamento já Texas Joe tirara o chapéu, a camisa e os coldres, e, sem saber porquê, Bride pensou que o jovem gigante de olhos cor de âmbar e cabelos castanhos era bem capaz de pôr em perigo o coração de alguma rapariguita descuidada.

‑ Olá, patrão! ‑ saudou, com o seu sorriso atraente. ‑ Só agora o vejo, desde manhã. Já pensava que tivesse

voltado para Santo António...Foi uma boa jornada, hem? Quinze milhas e um lugar para os bichos descansarem.

‑ Fico nervoso lá na rectaguarda, Texas ‑ queixou‑se Brite, desmontando.

‑ Mas não houve novidade, nenhuma mesmo. Só quero informá‑lo de que este aqui, o Pan Handle Smith, parece que fez a primeira Pista com Jess Chisholm e nunca mais fez outra coisa.

‑ Obrigado, Joe, mas não mereço isso ‑ replicou o fora da lei, que parecia demasiado absorvido na tarefa de sacudir a poeira do fato.

Lester Holden estava também presente, sentado numa pedra, a carregar a arma.

‑ Tive de dar quatro tiros naquele maldito touro preto, velho como o diabo! As balas estoiraram‑lhe a cabeça.

‑ Não atirem aos animais, rapazes, por muito teimosos que sejam! Guardem o chumbo para os Comanches!

‑ Cá está o nosso Reddie! ‑ exclamou Texas, zombeteiro. ‑ Quantos cavalos deixaste fugir, menino?

‑ Não os contei ‑ respondeu Reddie, em tom sarcástico.

‑ Nesse caso, vou eu contá‑los e se não estiverem lá 189 bem podes fugir.

‑ Então o melhor será fugir; você não é capaz de contar mais do que até dez!

‑ Estás muito vivaço, não haja dúvida! Parece‑me bem que tenho de pôr‑te de guarda, esta noite...

‑ Às ordens! Até me dará prazer. Não ficarei, porém, mais do que o tempo que me competir, senhor Texas Jack.

‑ Muito bem. Sou então «senhor» para ti... Mas repara que me chamo Joe, e não Jack.

‑ Para mim é o mesmo ‑ replicou Reddie, enquanto escovava o cavalo.

‑ Já viram como o miúdo mima o bicho? ‑ comentou Shipman. ‑ Assim não admira que o animal seja bonito... Raios me partam se amanhã não irei nele!

‑ A toque de sino é que você vai.

‑ Estava a brincar, refilão! Só os ladrões de cavalos montam os que não lhes pertencem.

‑ Não o conheço muito bem, senhor Shipman...

‑ Mas, pelos vistos, hás‑de conhecer‑me melhor do que poderias desejar, antes de terminar a leva!

Brite não compreendia por que motivo aqueles dois se guerreavam por tudo e por nada, mas reparou que Reddie, embora tivesse resposta pronta para tudo quanto Texas Joe dizia, evitava descobrir o rosto.

‑ Conhecer‑nos‑emos ambos, antes de chegarmos a Dodge ‑ ripostou Reddie.

‑ Estás a provocar‑me! Olha que te arrependes... ‑ recomendou o capataz, agressivo.

‑ Não me provocou a mim também?

‑ Olha, menino, eu sou o capataz da leva de Brite e tu o rapaz da água, não te esqueças!

‑ Engana‑se, eu sou o encarregado de juntar os cavalos desta leva, sou o encarregado...

‑ Tu?! Não eras capaz de juntar uma vara de porcos gordos e lazarentos! Ficaste muito senhor de ti, assim de repente, pois, se bem me lembro, esta manhã estavas mais meiguinho!

‑ Vá para o inferno, Texas Joe! ‑ ripostou, atrevidamente.

‑ Que disseste? ‑ perguntou Joe, já zangado.

‑ Disse que você é um guia refilão, vaidoso e trangalhadanças como uma girafa, pronto!

‑ Ah, ele é isso?

- replicou o visado, furioso, e, rápido, como um gato, arrancou‑lhe a arma e atirou‑a para longe.

Reddie, que estava ajoelhada e de costas voltadas, soltou um grito, mas Texas Joe, impiedoso, segurou‑a com força pela gola da blusa, obrigando‑a a levantar‑se.

‑ Ouviu bem que este miúdo me faltou ao respeito, patrão ‑ gritou o capataz, sentando‑se e deitando‑a sobre os joelhos ‑, portanto, tem de levar o correctivo!

 

O que mais espantava o assustado Brite era a imobilidade de Reddie, nos joelhos do vaqueiro. Sem dúvida, a pobrezita estava petrificada de ansiedade e terror, e o velhote de bom grado mandaria Texas Joe suspender o castigo se a expressão foribunda e, ao mesmo tempo diabolicamente alegre do rapaz não o houvessem privado do uso da palavra.

‑ Pan Handle, não achas que devemos castigar os rapazes desobedientes? ‑ indagou Texas.

‑ Com certeza. Mas, em minha opinião, o Reddie foi, apenas, respondão.

‑ De acordo. Mas se não o torcermos já de princípio, não seremos capazes de conduzir o gado, com ele a papaguear‑nos aos ouvidos.

- Dá‑lhe um par de palmadas, Texas ‑ decretou Lester. ‑ O Reddie é bom miúdo, concordo, mas está terrivelmente mimado.

Texas ergueu a mão forte e morena, ao mesmo tempo que Reddie gritava com a voz estrangulada pelo medo:

‑ Não se atreva... a açoitar‑me... Shipman!

Contudo, a mão caiu, com uma pancada sonora, levantando nuvens de poeira das calças de Reddie e fazendo‑lhe saltar a cabeça e os pés, ao mesmo tempo, com a violência do golpe. A rapariga soltou um grito agudo de raiva e dor, e começou a espernear, como uma gata assanhada. Texas Joe conseguiu, porém, dar‑lhe ainda mais três sonoros açoites, antes que ela conseguisse libertar‑se e pôr‑se de pé. Então, se antes Brite ficara petrificado, agora dir‑se‑ia assombrado, tal era a fúria que a garota personificava naquele momento ‑ uma fúria que a tornava bela e que, ao mesmo tempo, causava calafrios. Pareceu‑lhe que só cabeças duras e olhos cegos, como os dos seus guias seriam incapazes de ver que o seu companheiro era uma rapariga doida pelo furor.

‑ Oh, malvado! ‑ gritou ela, procurando no coldre a arma que Texas lhe tirara e Lester apanhara, discretamente.

‑ Eh, miúdo, nada de tiros! ‑ gritou este último. ‑ Foi tudo uma brincadeira.

‑ Para o diabo a paródia! ‑ e, rápida como um raio, pregou um tremendo pontapé numa canela de Texas, que tinha o rosto convulso de riso.

‑ Ah! ‑ gritou o alvejado, agarrando a perna e torcendo‑se com dores .‑ Oh, meu Deus, a minha perna doente!

Reddie ergueu o pé, para duplicar a receita, mas desistiu e, vagarosamente, baixou a bota.

‑ Hem, dói, não é verdade?

‑ Se dói? Oh, rapaz, não tarda um minuto que não esteja morto! ‑ gemeu Texas. ‑ Tenho a perna cheia de chumbo.

‑ Se me voltar a tocar‑me, eu... eu encho‑lhe de chumbo o resto da carcaça!

‑ Já não se pode brincar? Estava só a divertir‑me um pouco. O guia mais novo tem sempre de aguentar um bocadinho de paródia.

‑ Bem, Texas Jack, se o que me fez é uma amostra das brincadeiras dos guias de gado, passo bem sem elas no resto da viagem.

‑ Mas tu não és mais do que os outros! ‑ protestou Texas, em tom dorido. ‑ Pergunta ao patrão! Não foste bom camarada... não devias ficar tão zangado.

Reddie voltou‑se implorativa e muda, para o velhote.

‑ Têm os dois razão ‑ declarou este, ansioso por ser conciliador. ‑ Tu, Texas, bateste com demasiada força para ser só a brincar; bem vês que o Reddie não é nenhum latagão...

‑ Sim... pareceu‑me, até, muito macio... Queres apertar‑me a mão e esquecer o caso, garoto? Garanto‑te que o pior foi para mim; parece que tenho uma quantidade de dentes a rasgar‑me a perna!

‑ Antes queria morrer que apertar‑lhe a mão! ‑ replicou Reddie, empurrando o chapéu para trás e tirando a arma ao relutante Lester.

‑ Diabos me levem! ‑ gritou Texas, pesaroso, quando ela se afastou. ‑ Quem diria que o gaiato tinha um génio destes? Lá arranjei outro inimigo!

‑ Foste bruto, Texas ‑ admoestou‑o Brite.

‑ Bruto? A mim, quando tinha a idade dele, davam‑me com um chicote de duas pontas! ‑ e, coxeando, afastou‑se para o seu trabalho.

Pouco depois, Moze chamou‑os para a ceia, finda a qual partiram, com cavalos frescos, para render a guarda. Deuce Ackerman veio dizer que o gado não havia estado sossegado, devido à presença de uma alcateia de lobos, e Brite partiu para a sua ronda, levando a carabina. Ao passar pelo cavalo preto de Bayne, reparou que os outros estavam reunidos a alguma distância do gado. Ainda se sentia calor, embora o Sol já houvesse desaparecido, e o velho rancheiro parou entre os cavalos e o gado, iniciando uma tarefa de que nunca gostara.

Os animais ainda não se haviam deitado e o barulho que vinha de longe confirmava que a outra extremidade da manada estava inquieta. Brite patrulhou uma grande distância, com a arma atravessada na sela e mantendo‑se alerta contra os lobos. Viu coiotes, coelhos e, ao longe sobre a grama, alguns gamos assustados. Ainda a noite não caíra completamente quando Reddie Bayne surgiu com os cavalos, conduzindo‑os para Leste, na direcção de uma angra abrigada, a cerca de meia milha do local onde se encontrava Brite. O lusco‑fusco começava a cair sobre o acampamento e no horizonte, do lado do poente, apareciam e desapareciam pequenos raios doirados.

Pouco depois, Reddie veio ao encontro do patrão: ‑ Os cavalos ficaram bem ‑ anunciou. ‑ Parece‑me que devo manter‑me por aqui; todos recebemos ordem para continuarem de guarda até nos virem render.

‑ Pode ser que aconteça alguma coisa... ou pode ser que não aconteça... Quem sabe?

‑ Creio bem que na cabeça daquele tipo é que está a acontecer qualquer coisa...

‑ Qual tipo, Reddie?

‑ Bem sabe... Não acha indecente o que ele me fez, senhor Brite?

‑ Sim, foi um bocadinho duro ‑ concordou Brite. ‑ O Texas agiu tão depressa que até fiquei aparvalhado!

‑ De facto, o senhor foi pouco cavalheiresco ‑ avançou a jovem. ‑ Agora, já tenho as minhas dúvidas a seu respeito...

‑ Acredita que fiquei como que paralizado, por saber que eras uma rapariga.

‑ Eu julgava que «isso» o «paralisasse» a ele, também, mas não! Olhe que estive mesmo para dizer‑lhe que insultara uma senhora!

‑ Raios me partam! Tens razão, mas ele era capaz de abandonar a leva!

‑ Só eu sei quanto desejo que ele não saiba que o sou ‑ murmurou Reddie, pensativa.

‑ Esperemos que ninguém descubra.

‑ Nunca perdoarei a mim própria, se lhe trouxer azar, senhor Brite.

 ‑‑Não penses nisso, Reddie.

‑ Escute! ‑ exclamou ela, de súbito.

Uma canção cortou o ar quente, na escuridão. Brite reconheceu a balada espanhola de um vaqueiro.

‑ É o San Sabe que canta para a manada ‑ esclareceu Brite.

‑ Oh, que bem ele canta! ‑ notou a rapariga.

Vindo doutra direcção, ouviu‑se outro canto extravagante e, quando este cessou, ergueu‑se outra voz, mais fraca e melodiosa. O bater dos cascos terminou e só o mugir ocasional de uma ou de outra vaca cortava o silêncio. San Sabe recomeçou a sua canção de amor, cujo estribilho melancólico ressoou à volta da manada. Era assim, quase por magia, que os guias aquietavam os animais desassossegados.

A Lua nasceu, envolvendo nos seus raios prateados a vasta clareira. Reddie pôs‑se a passear, para cá e para lá, trauteando uma canção, perdida na beleza e na serenidade da noite. De súbito, o uivo dum lobo da pradaria, longo, desolado, de fazer gelar o sangue nas veias, quebrou o encanto e acordou‑os para a lembrança angustiosa de que a morte rondava por ali e os esperava a cada passo. Depois... mais nada: os vaqueiros continuaram a fumar e a cantar; o gado aquietado; a brisa nocturna, perfumada e suave, a fazer ondular a grama; os patos a voejar, dum lado para o outro, sobre o lago ‑ e as estrelas a empalidecerem, ofuscadas pelo clarão da Lua cheia...

Texas Joe apareceu, a trote:

‑ O patrão e o Reddie podem ir para a cama. Agora são duas horas de guarda e duas de descanso, para cinco de nós. Ainda não tenho a certeza de tudo estar bem.

Reddie nem sequer parou de cantarolar a toada doce com que Se entretinha. Só Brite respondeu: ‑ O quê? Ainda não deve ser meia‑noite, Texas!

‑ Talvez. Em todo o caso, vão... Reddie, tens uma voz demasiado fina, para um rapaz... Começo a desconfiar de ti.

‑ Vê, patrão? ‑ murmurou a jovem, assustada, agarrando um braço de Brite. ‑ Este homem desconfia de mim!

‑ Deixa‑o lá! Se descobrir, tanto pior

‑ Para ele ou para mim?

‑ Para ele, sem dúvida!

‑ Porquê, patrão?

‑ Ora, porquê? Porque ficará tão doidinho por ti que...

‑ Oh, meu Deus! ‑ exclamou Reddie, aterrada, dando de esporas à montada e sumindo‑se na sombra.

«‑ Bem, foi uma ideia! ‑ murmurou Brite para consigo, atrapalhado, ao aperceber‑se que dissera algo desagradável à rapariga. ‑ Não me fugiu, hem?!»

E dirigiu‑se vagarosamente para o acampamento, onde Hallett e Ackerman já se encontravam, sentados perto do lume, a beber café.

San Sabe apareceu, também, ainda a acabar uma canção. Brite foi enrolar‑se nos cobertores, notando, de passagem, o cavalo de Reddie, parado ali perto, e uma figura negra, curvada junto de um pequeno maciço de arbustos.

Quando, na manhã seguinte, Brite foi tomar o pequeno almoço, só Whittaker e Pan Handle estavam presentes, a comer à pressa.

- A manada já está em andamento, patrão ‑ anunciou Smith. ‑ Fomos chamados.

Brite saudou‑os, apurando o ouvido para o distante matraquear dos cascos. Era muito cedo, o Sol ainda não nascera, mas um céu balsâmico e sem nuvens prometia bom tempo.

‑ O Reddie?

‑ Está com os cavalos. Quando ouviu o assobio do Joa largou o comer, como um coelho assustado! Eu pedi‑lhe cavalos novos.

‑ Deve haver qualquer coisa... ‑ monologou Brite. ‑ Bem, já vai sendo tempo.

‑ A leva, assim, não presta ‑ blasonou Whittaker. ‑ Que pasmaceira! Estou desejoso de acção! ,

‑ Hum, hum!... Tê‑la‑ás com fartura, descansa ‑ declarou Brite, taciturno.

‑ Aí vem o Reddie com os cavalos ‑ anunciou Pan Handle. ‑ Gosto do miúdo, patrão! É simpático e sossegado, monta como um vaqueiro e percebe de cavalos!

‑ Eh, homens, segurem nos bichos! ‑ gritou Reddie, desaparecendo logo em seguida.

Foi cada um por si. Uma corda que por ali havia ajudou‑os a dominar os cavalos, repousados e ariscos, com pouca vontade de suportarem a sela. Brite prendeu o seu, um pequeno baio zaragateiro, e, depois, foi acabar a refeição, enquanto os outros se afastavam.

‑ Que aconteceu, para a manada abalar tão cedo, Moze?

‑ Não sei, patrão. Parece que foram os próprios bichos que começaram a andar. São uns almas danadas e nem Deus sabe por que fazem as coisas!

‑ Está bem. Arruma tudo, mesmo sem lavares a loiça, e põe‑te, também a andar.

‑ Sim, «siô».

Brite montou o pequeno baio e logo calculou que ele ia dar‑lhe que fazer. Todo o pessoal tinha de montar os cavalos que Reddie conseguia laçar mais prontamente, e aquele mostrava todos os indícios de não ser boa peça. Conseguiu, porém, amansar‑lhe o génio, dando‑lhe de esporas pela pradaria fora.

Um disco vermelho começara a espreitar, no horizonte, anunciando ao universo que mais um dia nascera, e bandos de pássaros saíam da água, na direcção do gado. Uma nuvem de poeira, baixa e distante, indicava o movimento da manada, para o Norte. Bayne reunira os cavalos de reserva no flanco direito, cerca de meia milha atrás.

Ackerman deteve a sua montada, esperando pelo patrão, que vira aproximar‑se:

‑ Viu aquele boi morto, no caminho?

‑ Não, não vi.

‑ Fui eu que tive de atirar‑lhe.

‑ Porquê?

‑ Alguém o estropiou. Tinha uma perna partida, com balas de agulha.

- Que dizes?! Não temos armas para búfalos, nesta leva!

‑ Também me admirei. Devem ter ferido o bicho antes de amanhecer.

‑ O Texas sabe?

‑ Provavelmente, não. Só entrou de guarda comigo, ao alvorecer. Mas algum dos rapazes deve ter ouvido o tiro, com certeza!

‑ Hum!... Parece‑me que esteve por aqui perto um acampamento... Há muito lixo, no lago. Bem, foi talvez alguém que precisava de carne.

Brite afastou‑se por entre o gado, pôs o cavalo a passo e, descansadamente, observou o horizonte com atenção. Apesar de tudo, não podia deixar de considerar agradáveis as longas horas que iam passando.

Pelo meio da tarde a interminável ladeira, quase imperceptível enquanto a não venceram, ficou para trás. Agora, a terra descia, até ao vale, onde largas faixas de areia branca apareciam, aqui e ali, por entre o lençol de água que o vento encrespava. Nas margens, tufos verde‑negros de arvoredo e verde‑claros de erva convidavam a acampar. Quatro guias, um após outro, transmitiram as ordens do capataz:

‑ Cruzamento adiante! Continuar a andar!

Brite observou a vanguarda da grande manada desviar‑se para Oeste, ao longo da margem, e sete guias juntarem‑se desse lado. O gado tinha sede e não mudaria de direcção enquanto a não satisfizesse. O maior perigo consistia no facto de alguns bois tresmalhados haverem forçado a barreira que lhes era oposta pelos vaqueiros, tomando caminho errado. Diversos tiros soaram, indicando que os rapazes tinham dificuldade em fazê‑los voltar ao seu lugar. Brite não sabia, ao certo, onde a Pista cruzava, mas devia ser perto dali. Smith acenou com um lenço vermelho, do cimo de uma pequena elevação. Só ele estava do lado da manada virado ao Oeste, mas, de súbito, desapareceu e, acto contínuo, como uma avalanche invencível, o gado começou a descer a ladeira. A parte posterior da manada empurrou a da frente e, num momento, o entrechocar de chifres e o mugir das vacas tornou‑se ensurdecedor. Brite verificou que a sua presença se tornava mais necessária no flanco direito, para ajudar a manter no seu lugar os bois mais recalcitrantes e impedir que os mais vagarosos ficassem para trás. Quando a vanguarda da manada ‑ uma amálgama de vermelho e branco ‑ passou o cruzamento, em turbilhão desorientador, tornou‑se ainda maior a dificuldade em conter a rectaguarda e, então, essa tarefa passou a ser desempenhada um tanto ou quanto ao acaso. Os sete rapazes que se haviam reunido de um só lado ficaram impossibilitados de actuar.

Reddie Bayne alinhou os cavalos de reserva do lado esquerdo e foi juntar‑se aos cavaleiros da direita. Brite gritou‑lhe que não se pusesse à frente dos animais, pois alguns deles arremetiam furiosos, erguiam as patas como mulas teimosas e sacudiam ameaçadoramente as cabeçorras. Quando, por fim, a rectaguarda enfurecida conseguiu entrar na água, Brite verificou que alguns tinham ficado atolados na areia molhada e revolvida pelos milhares de cascos impacientes. Na sua maioria, eram bois turbulentos, que haviam saído antes de tempo da margem. Uns debatiam‑se furiosamente, outros afundavam‑se, mas todos berravam com força.

Texas Joe voltou atrás, a galope, e gritou para Reddie Bayne, com os olhos despedindo chispas:

‑ Por que diabo não ficaste ao pé dos cavalos? Sai daqui!

Reddie não respondeu. Limitou‑se a entrar na água com o cavalo.

‑ O patrão também cá não é preciso ‑ continuou o capataz, depois de mandar embora Whittaker, Bender e Smith. ‑ Vá com eles.

‑ Deixa‑os ficar, Texas ‑ aconselhou Brite. ‑ São só vinte e uma cabeças.

‑ Não, que diabo! ‑ gritou Joe, desatando o laço. ‑ Não fica cá nenhum. A postos, rapazes, preparem os laços! Não se aproximem do lodo; Puxem‑nos para cima!

Dito isto, Shipman afastou‑se da margem, volteando o laço sobre a cabeça. O seu cavalo enterrava as patas na lama até aos jarretes, mas sem deixar de mover‑se, e o cavaleiro, jogando a corda com força, laçou um boi que tinha apenas a cabeça de fora. Depois, gritando e esporeando a montada, entregou‑se à dura tarefa de arrancar o animal do lodo. Os outros rapazes imitavam‑no, e a cena que se seguiu foi de extenuante e ruidosa actividade.

Todos foram rápidos e eficientes. Alguns animais puderam ser facilmente retirados da crítica situação em que se encontravam, mas outros só à custa de enorme esforço de cavalos e cavaleiros conseguiram salvar‑se. Texas não conseguiu libertar o alentado animal que laçara e Brite gritou‑lhe que o deixasse. Nesse instante, porém, a montada do capataz atolou‑se, também, até aos flancos. Rápido como o raio, Texas desmontou, com sela e tudo, mas, embaraçado pelo laço que, numa ponta, estava preso à sela e, na outra, à cabeça do boi, acabou por afundar‑se. O cavalo lutava, para desatolar‑se, mas Shipman teve de gritar por socorro. Ackerman e San Sabe correram em seu auxílio:

‑ Agarra‑te! ‑ gritou o primeiro, lançando‑lhe um laço aberto.

‑ San, vai lá a baixo e prende‑me aquele maldito bicho com o teu laço! ‑ ordenou Texas, pegando na ponta da corda de Ackerman e prendendo‑a à sela, apesar de estar enterrado até às coxas e a afundar‑se a olhos vistos.

‑ Já está, Deuce! ‑ gritou San Sabe, fazendo voltear o cavalo. ‑ Agora é puxar!

Os cavalos enterraram‑se mais no lodo, os laços zuniram e Texas Joe foi puxado para cima, sem largar a corda a que se segurava. Os dois cavaleiros safaram o touro, começaram a puxá‑lo e, pouco depois, com um terceiro laço a envolvê‑lo e literalmente arrastado, o bicho pisava terra firme, como uma gigantesca tartaruga enlameada. Texas apostrofou‑o, com pragas e palavrões, como se o animal fosse um ser humano.

Brite, que assistira maravilhado a toda a cena, só uma vez achou necessário dar uma ajuda, mas esta nem chegou a ser precisa. Como índios Comanches, aqueles jovens gritavam e laçavam, de olhos chispantes e feições crispadas. A sua rudeza e os seus modos condiziam com os seus actos; eram, como eles, duras, primitivas e indomáveis.

A última vaca estava por demais distante e atolada para ser possível salvá‑la; mas nem por isso deixaram de tentar. Fizeram tudo quanto foi possível; os laços, porém, eram curtos e apenas um conseguiu prender‑se‑lhe num chifre, mas mesmo esse deslizou e soltou‑se.

‑ Está perdida, rapazes! ‑ gritou Brite. ‑ Deixem‑na!

‑ Pois sim, mas primeiro, acabemos‑lhe com o sofrimento! ‑ gritou um deles.

Soaram diversas detonações. As balas zuniram, mas falharam o alvo, perto da cabeça do animal.

‑ Julgava que os tipos do Uvalde soubessem atirar, mas enganei‑me! ‑ berrou Texas, puxando da sua arma.

Fez pontaria, com cuidado. Acto contínuo, um olho do animal saltou‑lhe da órbita, a cabeça descaiu‑lhe e o corpo enterrou‑se‑lhe no lodo, ficando apenas à vista a ponta do comprido chifre.

‑ Raios! ‑ exclamou Deuce Ackerman, com uma gargalhada, guardando a arma.

‑ Bem, espero que acertes assim quando algum pele‑ vermelha se preparar para levar‑me o cabelo! ‑ elogiou Less Holden.

Texas, porém, nada disse. Retirou a sela da lama, sacudiu a manta e colocou‑a sobre o cavalo. Pôs‑lhe, depois, em cima a sela encharcada, montou e seguiu os outros, na travessia do pequeno ribeiro. Brite imitou‑o, com cuidado, deixando o cavalo escolher o caminho.

Guiaram as vinte cabeças de gado salvas para a margem e conduziram‑nas para lá do arvoredo, onde a grande manada pastava tranquilamente na erva tenra, alheia aos cuidados e trabalhos que dera naquele dia.

‑ Aqui está bem ‑ declarou Texas cansado. ‑ Deuce, vê quando vem o Moze. Deve precisar de ordens e, talvez, de ajuda para atravessar. Irra, estou derreado! Estafado, molhado e com as botas cheias de água! Raio de sorte, as minhas lindas botas novas! Eh, Red, sê bom rapaz e descalça‑mas, anda!

‑ Quem era o seu escravo negro o ano passado? ‑ perguntou Reddie, friamente.

‑ Não interessa quem fosse, diabos te levem! ‑ gritou, mas logo a seguir mudou de tom: ‑ Foi um favor que te pedi; tenho as mãos todas esfoladas.

‑ Está bem ‑ concordou Reddie, que, com bons modos, o descalçou.

‑ Texas, viste aquele boi aleijado, esta manhã? ‑ perguntou Deuce.

‑ Não. Aleijado como?

‑ Com uma perna partida por um tiro de caçadeira de búfalos. Tive de abatê‑lo.

‑ Caçadeira de búfalos! O pessoal tem alguma?

‑ Não.

‑ Tens a certeza, Deuce? ‑ insistiu Joe, com interesse crescente.

‑ Absoluta. Conheço‑as bem, assim como os buracos que fazem.

‑ Que pensas tu?... Eh, patrão! Ouviu?

‑ Já me tinham dito esta manhã. Pan Handle Smith interveio:

‑ Eu ouvi o tiro, Shipman. Foi disparado ao alvorecer por alguém que não pertence ao nosso grupo.

‑ Então, havia algum acampamento perto do nosso. Agora me lembro de ter‑me cheirado a fumo quando descemos para o lago!

‑ É verdade, eu vi fumo para os lados do Oeste.

‑ Alguém que precisou de carne, com certeza ‑ declarou Brite, sugerindo o que desejaria que fosse na realidade.

‑ Hum... ‑ duvidou Deuce, reflectindo. ‑ O bicho era velho e o tiro foi dado de muito longe. Alguém apontou sobre a manada, mas não por falta de carne...

‑ Porquê, então? ‑ indagou Texas.

Ninguém respondeu, mas Brite sabia perfeitamente que os três pensavam o mesmo que ele, embora não exteriorizassem as suas suspeitas.

‑ Lá vem o Moze ‑ informou Ackerman. ‑ Reddie, traz um cavalo grande, para lhe darmos um reboque.

Afastaram‑se os dois, por entre as árvores, dirigindo‑se para a margem. Moze parara o vagão do lado oposto e era evidente que procurava o melhor sítio para atravessar.

Texas olhou de Pan Handle para Brite e o brilho frio que havia nos seus olhos, naquele momento, merecia a pena ser visto:

‑ Vocês acham que estamos a ser perseguidos?

‑ Tanto podemos estar a ser como não... ‑ replicou Brite.

‑ Se nos perseguem, o que procuram? ‑ inquiriu Smith. ‑ Somos doze homens fortes... Seria uma tolice.

‑ O caso parece‑me feio, Smith. O Texas já fez a Pista mais vezes e sabe, tão bem como eu, que devem vir‑nos na peugada alguns tipos especializados em tresmalhar o gado. A minha manada é muito grande e o pessoal muito pouco...

‑ Sim?...

‑ Nunca me tinha acontecido ‑ prosseguiu Brite ‑ encontrar‑me com essa gente. A sorte tem estado sempre comigo, mas sei o que se tem passado com outros. Alguns apanham umas cabeças aqui, outras acolá, e acabam por formar uma manada própria, que conduzem a Dodge; há, também, os criadores invejosos que contratam esses tipos para tresmalharem a manada que vai à frente... Enfim, um negócio porco.

‑ Um negócio para liquidar a tiro, é que é! ‑ replicou Texas, com os olhos coruscantes. ‑ O patrão acha que, esta noite, devemos dar uma vista de olhos lá para trás ou que esperemos a ver se...

‑ É melhor esperar ‑ aconselhou Brite. ‑ Se nos seguem, acabaremos por sabê‑lo mais cedo ou mais tarde; se não nos seguem, escusamos de perder tempo. Perguntem ao Moze se viu algum cavaleiro na rectaguarda.

Durante a noite, Brite foi acordado de repente, sem saber porquê. As três estrelas tão suas conhecidas obliquavam ainda para Oeste, sinal de que a manhã estava longe. O silêncio era profundo; não se ouvia a manada nem sequer a canção de algum vaqueiro solitário que estivesse de guarda. Os próprios insectos quase não faziam ouvir o seu melancólico zumbido e a fogueira do acampamento mal bruxuleava. Apenas, lá para o Norte, se ouvia o queixume penetrante dos coiotes. De súbito, a descarga de uma arma rasgou o silêncio, acordando‑o de todo: ‑ «Calibre 45» ‑ monologou Brite, tentando ver, nas trevas, quem dormia perto de si.

Três dos dorminhocos nem se mexeram. Logo a seguir, soaram três detonações mais fortes, que Brite reconheceu provirem de caçadeiras de búfalos. Um dos vaqueiros ergueu‑se de um pulo, ficando hirto como um espectro: Texas Joe! Escutou na direcção do Sul e o matraquear duma «45» fê‑lo gritar uma ordem seca:

‑ Fora daqui, rapazes! Peguem nas armas e toca a andar, sem fazer barulho!

Dois dos interpelados acordaram ao mesmo tempo, levantaram se, pegaram nas armas e seguiram Shipman, que já se afastava na sombra; o terceiro, porém, despertou pouco a pouco, estremunhado: era Hal Bender.

‑ Levanta‑te, Bender ‑ ordenou Brite, erguendo‑se, também.

‑ O que foi, patrão? ‑ perguntou o tenro, calçando as botas.

‑‑Não sei bem. Foram uns tiros. Anda, pega na arma.

‑ Ah! E o que é isto?

Um trotar abafado, para o Sul, chegou aos ouvidos apurados de Brite.

‑ Cavalos! Devem andar atrás da nossa manada, suponho ‑ respondeu Brite, afrouxando o andamento.

Não podia avançar depressa, pois arriscava‑se a ir de encontro às árvores, tal era a escuridão. Bender resfolgava, perto dele. O patrão parou duas vezes, procurando apurar, pelo barulho, a direcção que seguiam os cavaleiros. Deixaram, por fim, o arvoredo e encontraram‑se numa clareira a que a pálida luz das estrelas dava uma cor acinzentada. Vozes estridentes guiaram‑nos mais para a esquerda. Brite correu, com cuidado, para não tropeçar na grama, com a carabina aperrada e os olhos bem abertos.

‑ Quem vem aí? ‑ perguntou a voz de Texas Joe.

‑ Brite. Onde estás?

‑ Aqui. Cuidado com os buracos.

Brite e Bender em breve se juntaram a um grupo de quatro homens, um dos quais montado.

‑ não sei nada, além do que ouvi ‑ dizia este. ‑ Cavalos a correrem, furiosos, e, depois, tiros. Dois tiros de caçadeira de búfalos e um duma «45».

‑ De que lado, San?

O vaqueiro apontou para o Sul.

‑ Escutem todos ‑ ordenou Texas, deitando‑se no chão e apoiando o ouvido na terra.

O silêncio era vibrante, intenso; nada o perturbava. ‑ Cavalos a mexerem‑se algures ‑ informou Texas, levantando‑se.

‑ Inquietos, apenas; já não correm. Agora, ouçam o resto...

Texas pôs as mãos em concha, sobre a boca, inspirou com força e gritou, por fim:

‑ Eh, Reddie!

O grito rompeu o silêncio e como que rolou pelo espaço, estranho e selvagem. Logo a seguir, ouviu‑se a resposta, fraca, mas clara, vinda do Sul.

‑ Olhem, parece...

‑ Caluda! Ouçam com atenção ‑ interrompeu Texas. Ouviu‑se outra resposta, da direcção contrária, e, depois

um grito, muito distante, a Oeste. Seguiu‑se nova resposta, mais perto, localizando a manada.

‑ Dispersem, amigos, e corram nesta direcção ‑ ordenou Texas. ‑ Parem de cem em cem jardas, mais ou menos e vejam se vêem os cavalos. Vamos ter que fazer, creio bem.

San Sabe puxou as rédeas ao cavalo e desapareceu. Brite voltou‑se para a direita, obedecendo às ordens. Parou cerca de uma dúzia de vezes, até que, por fim, ouviu barulho de cavalos mas não os viu. Depois, continuou a andar, quase desfalecido, mas sem desistir. Texas Joe não reagira com serenidade, daquela vez. O relinchar de cavalos fê‑lo voltar atrás, para a esquerda, e em breve se lhe deparou uma grande mancha negra no meio da noite.

‑ Onde diabo estás tu, Reddie? ‑ gritou Shipman.

‑ Estou aqui! ‑ respondeu a voz aguda que Bride já conhecia tão bem.

‑ Que estás aqui a fazer, a esta hora? ‑ perguntou Texas, peremptório.

‑ Não fui para o acampamento ‑ respondeu Bayne.

‑ E por que não obedeceste às ordens?

‑ Estava desconfiado, Shipman; fiquei com os cavalos. Ouvira umas vozes e vira umas luzes... Juntei os animais e conduzi‑os para longe da manada. Não tardou que ouvisse o bater de cascos e que surgisse um grupo de cavaleiros, a toda a brida. Atirei ao da frente e acertei nele ou na montada, mas não desistiu e apontaram todos para os cavalos. Quando começaram a disparar, vi logo o que queriam. Isolaram alguns dos nossos cavalos e levaram‑nos. Disparei; dispararam, também... e creio que foi tudo.

‑ Ladrões! O Deuce tinha razão! ‑ declarou Texas.

‑ Vamos atrás deles ‑ sugeriu Holden. Brite não achou a ideia acertada, mas calou‑se.

‑ Quantos roubaram, Reddie?

‑ Não sei, mas poucos.

‑ Bem, é melhor esperarmos o romper do dia. Tu, Reddie, vai para o acampamento descansar o resto da noite.

‑ Se não se importa, prefiro ficar ‑ volveu Bayne.

‑ Como quiseres. Vocês, rapazes, dispersem e cerquem os cavalos. Gritem se alguém se aproximar.

Mais uma vez o silêncio caiu sobre a pradaria. Os cavaleiros desapareceram, um a um, e Brite ficou de ronda, junto de Texas Joe.

‑ Que dizes a isto, Joe?

‑ Era de esperar. Vamos ter dores de cabeça sem conta. Muito gado e poucos homens...

‑ Tens razão ‑ concordou Brite, pensativo. ‑ Mas, se chegarmos a Dodge apenas com metade do que levamos, ainda farei bom negócio e, com certeza, não me esquecerei de vocês.

‑ A mim não me interessa que percamos ou não algumas cabeças, mas não deixarei roubar um único boi, mesmo velho, sem lutar até ao fim! Quanto mais cavalos! Fico furioso! E que me diz do miúdo, Brite? Ficar assim, sozinho, alerta! Diabos o levem! Faz‑me o juízo em água, mas gosto dele, não sei porquê.

‑ Também eu, Texas, e bem desejaria que o tratasses um pouco melhor.

‑ Bem sei, mas nesta leva não haverá favoritismos. Terão de aturar‑me e de fazer o que eu mandar, até chegarmos a Dodge, pois, de contrário, nunca lá chegaremos.

‑ Arranjei‑te uma carga! ‑ murmurou Brite, tristonho.

‑ E se ela é pesada! Bem, está a clarear. Vamos a ver o que nos trará o novo dia.

Brite continuou a ronda, fitando as estrelas que empalideciam e se sumiam, vendo colorir‑se o nascente, dissolver‑se o negrume, como que por encanto, e tudo tomar forma e cor: gado, cavalos, terra...

Pouco depois, Texas Joe acenou‑lhe que fosse para o acampamento. A manada principiou a mover‑se, vagarosamente, para o Norte, e mais uma vez o tempo prometia estar bom. Quando chegou ao acampamento San Sabe, Bender e Ackerman rodeavam Alabama Moze, de tigelas na mão.

A seguir chegou Texas Joe, a pé, com os olhos vivos semicerrados e os lábios finos apertados um contra o outro.

‑ Deuce, tu apontas a manada e continuas o caminho ‑ ordenou, em tom seco. ‑‑ Manda o Pan Handle e os outros para cá.

‑ Que vais fazer?

‑ E Reddie vem aí com alguns cavalos. Parece‑me que vou dar uma olhadela lá por trás, pelo Sul... Perdemos mais de vinte e cinco cavalos!

‑ Fraco prejuízo, se ficar por aí.

‑ Parece‑lhe? Pois olhe que, para um velho texano, acho‑o mole demais com esses ladrões!

‑ Qualquer destes dias passa‑lhe a moleza, Texas ‑ disse Deuce, com um sorriso.

Reddie entrou no acampamento atrás de meia dúzia de cavalos bravios e os rapazes atiraram‑lhe os laços, para os encurralarem a um canto. Em breve apenas Brite, Texas Joe, Reddie e o negro ficaram no local. Joe estava taciturno, esfomeado e cheio de pressa. Reddie pegou no comer que Moze lhe deu, sentou‑se num banco improvisado e começou a deglutir sem dar atenção a mais nada.

O Sol espreitava no horizonte, rubro e quente, e toda a terra parecia envolta numa luz rósea. Até os pássaros pareciam modificados. A grama brilhava como prata, as flores abriam as suas corolas, voltadas para o nascente, a natureza renascia! Brite respirou fundo, extasiado. Texas Joe ergueu‑se, de repente, praguejando entre dentes, e inclinou‑se para o Sul, na posição de quem escuta.

‑ Que estás a ouvir, Texas? ‑ perguntou Brite.

‑ Cavalos.

‑ E que tem isso? ‑ inquiriu, de novo, o patrão que, também, os ouvia agora.

‑ Nada. Mas se nos lembrarmos do que aconteceu esta noite, o caso muda de figura.

Pouco depois, um grupo de cavaleiros apareceu à entrada do arvoredo. Bride contou sete ou oito, todos de mau aspecto e a trote largo. Texas examinou‑os com atenção e, em seguida, voltou‑se para Brite:

‑ Têm‑nos estado a espiar, patrão ‑ afirmou, com os olhos em fogo. ‑ Os nossos rapazes não estão cá, nem a guarda à vista...

De súbito, Reddie Bayne levantou‑se, deixando cair o tacho do comer:

‑ É o Wallen e o seu pessoal! ‑ gritou, aterrada.

‑ Tens a certeza? ‑ perguntou o capataz.

‑ Absoluta! Conheço‑o... e apostava que foram eles quem espantou os cavalos. Agora, vêm à minha procura.

‑ Bem, fica aí atrás e toma cuidado com a língua.

Brite, ponha a Winchester à mão. Eu falo... Agora é que nos seria útil o seu Pan Handle Smith.

O grupo de cavaleiros aproximou‑se rapidamente e formou um semicírculo em frente do fogo e do vagão. Desta vez, Brite não teve ilusões acerca do que pretendiam! Reconheceu o moreno Wallen que, com os grandes olhos atrevidos, percorria o acampamento e o terreno à volta. Entre os outros homens, encontrava‑se um ainda mais impressionante do que o próprio Wallen ‑ um tipo de cinquenta anos, de rosto empedrenido e gelado, e olhos duros. Brite já o vira, algures. Os restantes cinco não passavam de dignos servidores dos chefes: eram vaqueiros jovens, magros e irrequietos.

‑ Cá está o nosso Reddie Bayne ‑ rosnou Wallen, estendendo a mão pesada para Reddie.

‑ Não há dúvida, Wal ‑ confirmou o seu lugar‑tenente, em voz seca e crispada.

‑ Mentiu‑me, há dias, hem, Brite? ‑ observou Wallen, pousando em Brite os olhos arredondados.

‑ Não tenho satisfações a dar‑lhe! ‑ exclamou Brite, sentindo o sangue a ferver‑lhe.

Texas Joe deu um passo em frente e outro para o lado, saindo fora do alinhamento do vagão, com um significado que não escaparia a nenhum texano.

‑ Wallen, vi alguns dos seus homens armazenarem caçadeiras de agulha nas selas ‑ disse com sarcasmo.

‑ E depois? Andamos a caçar búfalos!

‑ Isso é o que você diz.

‑ Falarei com Brite e não contigo, vaqueiro ‑ declarou o outro, agressivo.

‑ Falará com Texas Joe! ‑ declarou Brite, no mesmo tom.

‑ Brite, nós queremos esse garoto, o Reddie Bayne, que você raptou - prosseguiu Wallen, como se não

tivesse ouvido.

- Não estou habituado a perder palavras com homens

como você, Wallen ‑ interpôs Texas Joe, mordaz, e Brite teve a impressão de que o seu capataz estava a procurar ganhar tempo, talvez na esperança de que Pan Handle e os outros chegassem, entretanto, ao acampamento.

Deitou, por isso, um olhar furtivo à pradaria, mas nem sinal de cavaleiros! O caso era sério, pois ia haver sarilho ali. sem grande demora.

‑ Mas, quem diabo és tu? ‑ inquiriu Wallen, furioso.

‑ Eu conheço o homem ‑ esclareceu o sócio de Wallen. ‑ É Texas Shipman.

‑ Isso não significa nada para mim.

‑ Então, fale, camarada ‑ retorquiu o outro, em voz fria e dura, que fez Brite compreender que, dos dois, era ele o mais perigoso.

‑ Não preciso que você, Ross Hite, fale por mim! Ross Hite! Era um nome bem conhecido dos guias de gado, pois correra todas as profissões que o Texas pode proporcionar.

‑ Então, fale, e não se demore! ‑ gritou Texas. ‑ Que quer?

‑ Quero Reddie Bayne. Ficou ao meu serviço, depois de um negócio que fiz com o Jones, de Braseda.

‑ E Bayne deve‑lhe esses serviços?

‑ Claro!

‑ Que dizes, Reddie?

‑ Ele é um intrujão, Texas! ‑ gritou Reddie, avançando. ‑ Já fugi de três ranchos, para me ver livre dele.

‑ Cala a boca, senão é pior para ti! ‑ gritou Wallen, por sua vez.

‑ Mais devagar, Wallen! ‑ aconselhou Texas. ‑ Estamos num país livre; o tempo da escravatura, branca ou preta, acabou‑se!

‑ Reddie, diz‑me por que é que ele te quer ‑ interveio Brite, pois o seu sangue texano não podia aguentar por mais tempo aquela mentira. Além disso, muito ao longe, avançava um cavaleiro a galope: Pan Handle!

‑ Oh, Tex! ‑ quase soluçou Reddie. ‑ Ele quer levar‑me porque... porque... eu não sou o que pensa.

Texas estremeceu, mas não se afastou, nem a grossura dum cabelo, do cavaleiro que estava à sua frente. O rosto de Wallen tornou‑se ainda mais escuro, quase terroso.

‑ O que és tu, Reddie? ‑ perguntou Joe, em voz baixa e fria.

‑ Sou... sou uma rapariga. E... e é por isso!

‑ Cuidado! ‑ gritou Ross Hite, com voz estridente. Wallen levou a mão ao coldre e Texas pareceu dançar

ante os olhos fixos de Brite. Uma arma vomitou fogo e, ao mesmo tempo, Wallen ergueu‑se na sela, numa rigidez súbita e terrível. A raiva que lhe contraía o rosto desvaneceu‑se e ele caiu no chão, com um ruído seco. A montada desatou a correr e os outros cavalos relincharam, inquietos.

‑ Toca a andar ou furo‑os a todos! ‑ gritou Texas, de arma apontada. ‑ Brite, para trás de um, com a carabina; Reddie, a mesma coisa.

Brite nem precisou da ordem; a sua carabina estava já levantada, antes de Joe começar a falar. Reddie avançou, também, ameaçadora e sem medo.

Todos os cavaleiros, excepto Ross Hite, esporearam as montadas, com fúria, e alguns afastaram‑se. O lugar‑tenente, porém, não revelou medo no olhar que deitou a Texas e ao prostrado Wallen. Ao longe, ouviam‑se os gritos dos vaqueiros e o tropel dos cavalos, avançando a galope.

‑ Quer que levemos Wallen, Brite? ‑ perguntou Ross.

‑ Obrigado, nós trataremos dele! ‑ replicou o interpelado, sarcástico

No mesmo instante, um cavalo passou, a galope, pelo vagão, e, como o cavaleiro o fizesse deter‑se abruptamente, espalhou poeira e terra por toda a parte. Pan Handle saiu do meio daquele pandemónio com uma arma em cada mão. Só então a ansiedade de Brite afrouxou.

‑ Que se passa? ‑ perguntou Smith, serenamente. Ross Hite fitou‑o e, por fim, soltou uma gargalhada

áspera:

‑ Você é previdente, Brite! Primeiro Texas Shipman e agora Pan Handle Smith!

‑ Desapareça daqui! ‑ ordenou Texas.

‑ Homens, o negócio era de Wallen e não meu ‑ replicou Hite, voltando o cavalo e afastando‑se atrás dos companheiros que lhe restavam. Pouco depois, rompiam a galope e desapareciam por onde haviam vindo.

Só então Texas Joe se mexeu. Lançou um olhar rápido ao morto e, pálido e de olhos febris, deu duas longas passadas em direcção a Reddie:

‑ Disseste que és uma rapariga?

‑ Sim, Texas Joe... sou ‑ respondeu a jovem, tirando o chapéu, para o provar.

Tinha o rosto contraído e os olhos dilatados de terror. O rapaz segurou‑a por um ombro, com a mão esquerda, e fê‑la erguer‑se, bem defronte dos seus olhos perscrutadores. Os seus cabelos desgrenhados, pareciam a juba de um leão, mas a fúria ia‑lhe esmorecendo, dando lugar ao espanto:

‑ Tu... és uma rapariga?

‑ Sim, Texas ‑ murmurou, tremendo, sob a mão de ferro que a retinha. ‑ Eu... eu... não queria enganá‑los... disse ao patrão... Quis dizer‑lhe a si, também, mas ele não me deixou... Desculpe.

 

Com ar sucumbido, Texas largou Reddie tão subitamente que ela caiu.

‑ É incrível! ‑ exclamou o rapaz, enquanto o rosto pálido se lhe tornava cada vez mais corado. ‑ Fazer‑se passar por rapaz, diante de todos nós... consentir que a espancasse e...

‑ Consentir! ‑ gritou Reddie, ainda mais vermelha do que ele. ‑ Que havia eu de fazer, seu grande bruto, se você se atreveu a tanto?!

‑ E todas as pragas, todas as conversas grosseiras, diante de uma rapariga! ‑ prosseguiu ele, como se não a ouvisse. ‑ Fez uma coisa horrível, «miss» Reddie Bayne!

‑ Concordo. Mas foram os homens malvados como ele ‑ e apontou, com o dedo trémulo, o cadáver de Wallen ‑ que me obrigaram a isso!

Estas palavras tiveram o condão de fazer compreender a Texas Joe o lado trágico do que acontecera. Voltando abruptamente as costas à rapariga, guardou a arma que ainda conservava na mão direita e fitou o morto.

‑ Revistem‑no ‑ ordenou, com voz dura e fria. ‑ Levem‑no daqui e deitem‑no à água... Livremo‑nos disto...

‑ Onde vais, Texas? ‑ perguntou Brite, vendo‑o afastar‑se.

‑ Leve o meu cavalo ‑ gritou Reddie, logo a seguir. Texas Joe, porém, não deu mostras de tê‑los ouvido, e desapareceu da vista, atrás dos arbustos.

Só então afrouxou a tensão que se apoderara de todos. Reddie deixou‑se cair, pesadamente, como se as pernas lhe enfraquecessem de chofre:

‑ Já vi homens mortos a tiro... mas nunca por minha causa ‑ murmurou. ‑ Sinto‑me como... uma assassina.

‑ Tolice, Reddie ‑ ralhou Brite, em tom ríspido. ‑ Eu próprio o teria abatido, se o Texas não se antecipasse. Pan Handle, viste aquele camarada com um cavalo meu?

‑ Não, patrão, não reparei; toda a minha atenção estava concentrada em Ross Hite.

‑ Pois é verdade! Quando comprei os animais, fixei, por acaso, um pequeno baio com o focinho branco, e nunca me engano a reconhecer cavalos, depois de os ter visto uma vez! Não há dúvida, portanto, de que foi a gente do Wallen quem nos roubou, esta manhã!

‑ Eu não conhecia o Wallen, mas a verdade é que andava em má companhia... ‑ observou o fora da lei.

‑ Ah! Então conheces esse Ross Hite? ‑ inquiriu

Brite.

‑ Muito bem! Era negociante de gado, em Abilene, mas meteu‑se em negócios escuros e aquilo aqueceu demais para ele. O que me espanta é vê‑lo envolvido no roubo de meia dúzia de cavalos. Talvez tenha sido apenas de passagem, para aproveitar o tempo, pois deve ter em vista coisa mais importante...

‑ Sim, calculo que seja o cabecilha de alguma tramóia ‑ concordou o patrão, apreensivo. ‑ Os guias de gado chegam a perder metade das suas manadas e sei de um a quem roubaram os bichos todos!

‑ Joe devia ter feito ao Hite o mesmo que fez ao Wallen; o tipo vai arranjar‑nos sarilhos, no resto da viagem! ‑ afirmou Smith, pensativo.

Enquanto conversavam, Ackerman, Whittaker e San Sabe haviam retirado Wallen do acampamento. Voltaram pouco depois, carregando a arma e o coldre, as esporas, um grande relógio de prata e um alforge, pesado e ensebado.

‑ Abri isto, patrão ‑ declarou Ackerman, apontando o alforge. ‑ Deviam andar atrás do tipo!

Brite abriu‑o, também, e encontrou‑o cheio de notas.

‑ Oh, deve ter assaltado algum Banco! ‑ exclamou, admirado. ‑ Estão aqui centenas de dólares! Que vamos fazer disto?

‑ Que lhe parece? ‑ perguntou Ackerman, sarcástico. ‑ Quer que corra atrás do pessoal de Wallen e lhe entregue a massa?

‑ Claro que não! Estava a brincar. Vou guardá‑la e dividi‑la‑ei por vocês, no fim da jornada.

Os homens deram largas ao seu contentamento. Brite guardou o dinheiro na sua mala e no vagão os restantes pertences de Wallen.

‑ Repararam onde o Joe acertou no tipo? ‑‑ indagou Pan Handle, curioso.

‑ Vimos, sim! Mesmo no meio da algibeira esquerda da camisa. A bala atravessou o saco do tabaco.

‑ Foi uma boa chumbada! ‑ murmurou Smith, reflectindo. ‑ Este Texas Joe atira a valer!

Brite sabia o interesse que os pistoleiros demonstram pela eficiência dos outros e, por isso, informou‑o de que o rancheiro que lhe recomendara Texas se referia especialmente à sua pontaria.

‑ Despachem‑se com o comer ‑ ordenou depois. ‑ Temos de nos pôr a andar.

Todos obedeceram, com rapidez, excepto Reddie, que continuou sentada, com o rosto apoiado nas mãos e os belos caracóis ruivos à vista de todos. Possuía uma figura linda e patética que, segundo Brite observou, já começara a produzir os seus efeitos sobre o espírito dos vaqueiros.

Deuce Ackerman fitou‑a diversas vezes e, finalmente, dirigiu‑se‑lhe, galante, vencendo o seu embaraço:

‑ Então, Reddie, não tome o caso tanto a sério! Se nós podemos suportar isto, você também pode. Já sabemos que é uma rapariga, e se puder esquecer o nosso... o

nosso...

Não concluiu, manifestamente incapaz de encontrar as palavras adequadas para exprimir a sua vergonha pelas conversas e pelo comportamento que tivera antes dos últimos sucessos.

‑ Obrigada, Deuce ‑ respondeu a jovem, compreensiva, procurando vencer, também, o seu embaraço. ‑ Nenhum de vocês me deve desculpas, pois o Texas foi o único que me ofendeu. Não calcula como estou satisfeita por não ter de mentir!

Whittaker ganhou, também, coragem para entrar na

conversa:

‑ Eu... eu confesso que sempre soube...

‑ O... quê?! ‑ titubeou ela, alarmada.

‑ Ele não passa de um intrujão, Reddie! ‑ afirmou Deuce. ‑ Ninguém sabia, pois não, San?

San Sabe, porém, perdera a fala, e até Moze, boquiaberto, encarava a jovem, de olhos arregalados.

‑ Enganou‑nos a todos, «miss» Reddie, esta é que é a verdade! ‑ declarou o cozinheiro, abanando a cabeça. ‑ É uma rapariga! Bem, estou satisfeito por haver uma senhora entre o pessoal!

‑ Podemos continuar a tratá‑la por Reddie? - Perguntou Pan Handle, secamente, fitando‑a também.

‑ Claro que sim!

Em breve todos haviam comido e selado os cavalos, para a jornada daquele dia. Quando Brite se pôs a caminho, reparou que os rapazes, ao sepultarem Wallen, nem sequer se haviam dado ao trabalho de cobri‑lo. Talvez pensassem que a sua gente voltaria a procurá‑lo, o que era provável.

Aquele fora o primeiro acontecimento trágico de todas as levas que já fizera e, em seu entender, não augurava nada de bom. A verdade é que não podia ter sempre a mesma sorte fenomenal de que beneficiara até ali. Contudo, a circunstância de a mais guias isso ter já acontecido, encorajava‑o um pouco. Aquela manhã trouxera mudança sensível à vida em comum, dera‑lhe novos aspectos; e o velho, observando a vastidão da pradaria, tentava perscrutar mais alguma coisa do que a beleza habitual da paisagem.

A manada seguia algumas milhas adiante, bem apontada e em andamento regular. Reddie e Pan Handle cavalgavam a Oeste, com os cavalos de reserva. Brite subiu a uma elevação de terreno, a fim de poder observar melhor o que se passava à sua volta. O dia apresentava‑se claro, transparente, e permitia‑lhe ver, ao Sul, talvez a umas vinte milhas de distância, uma mancha negra e rasteira. Não poderia dizer se se tratava de búfalos ou de gado, mas inclinava‑se a crer que eram os primeiros. À sua frente e a Oeste, havia neblina; e, por toda a parte, naquela manhã, abundavam os coelhos, os gamos e os coiotes.

Por fim, meteu o cavalo a trote, na direcção dos guias, que divisara junto da manada. Um deles conduzia um cavalo selado, naturalmente destinado a Texas Joe, que ia a pé. Durante muitas horas, Brite não conseguiu descobrir o seu capataz.

Já o Sol se punha, quando Shipman se deteve, para passarem a noite. Deviam ter percorrido cerca de quinze milhas, o que era muito para o gado. Felizmente, haviam passado por água a meio da tarde, pois onde acamparam não a havia. A erva abundava, assim como os detritos de búfalo. Moze parou o vagão na base duma rocha, única saliência na terra plana. Depois de arrumar as suas coisas, Brite ocupou‑se a juntar detritos para o lume, mas só quando o dia morreu por completo deixou de alongar a vista na direcção do Sul.

Texas só apareceu depois da ronda da noite haver partido para a primeira guarda e vinha silencioso e taciturno, como Brite já vira outros homens, após ceifarem uma vida humana. Comeu sozinho, ajoelhado ao lado da fogueira, e, por mais de uma vez, ficou de olhar vago, com a tigela na mão e o pensamento longe dali. A seguir, afastou‑se na escuridão, para não mais ser visto. Rolly Little, Ben Chandler e Roy Hallet manifestavam em todas as suas atitudes o prazer que sentiam com a presença, entre o pessoal, de uma rapariga, não só muito bonita, mas, também, comovedoramente romântica. Haviam‑se transformado, os três Exaltados, alegres, portando‑se o melhor possível, divertiam Brite. Nem uma só vez os ouviu referirem‑se à morte de Wallen, facto que parecia ter‑se dado muito tempo atrás. Rolly era o único dos três que tinha a coragem de dirigir‑se directamente à rapariga, e fazia‑o em voz alta, quase com jactância, absolutamente diferente do que fora até ali. Bender, pelo contrário, limitava‑se a observá‑la, disfarçadamente.

A mudança mais notável, contudo ‑ e mais agradável, também ‑ operara‑se na própria Reddie Bayne. Mostrava‑se natural, pela primeira vez, e nunca mais precisou de entrar ou sair apressadamente, com o velho chapéu de abas largas puxado para os olhos. Na realidade, agora nem já o punha, e bastava olhar‑lhe a linda cabeça, para se ver que a lavara. Onde, gostaria Brite de saber. Depois do jantar, foi ajudar Moze na sua tarefa, parecendo não ligar importância ao trio barulhento entretido à volta do fogo, embora um observador atento pudesse afirmar que não lhe escapara uma só palavra dita por eles. Mais de uma vez olhou, furtivamente, na direcção por onde se sumira Texas Joe. Pouco depois, tirou do vagão a trouxa das suas coisas, para ir estender a cama, e os três rapazes correram ao seu encontro, atropelando‑se.

‑ Onde quer estendê‑la, Re... «miss» Reddie? ‑ perguntou Rolly, que fora o primeiro a chegar.

‑ Obrigada, mas não se incomodem ‑ recusou. ‑‑ Não tenho carregado a minha trouxa todas as noites? Então, por que não hei‑de carregá‑la hoje, também?

‑ Bem vê, «miss» Reddie, a menina... nós... bem, não é a mesma coisa, agora.

‑ Oh, não é?!...

‑ Sim... a sua situação aqui... nós já resolvemos: guiar os cavalos, é bastante; não precisa mais de acartar as selas, as camas, a lenha, a água e outras coisas. Nós faremos isso.

‑ Vocês são muito bons, Rolly, mas esperem que eu não possa fazer isso tudo, para me ajudarem. Valeu?

E pegou de novo na trouxa e carregou‑a significativamente, para onde Brite estendera a sua cama. Depois de fazer o mesmo, sentou‑se junto do patrão:

‑ Ainda estou mal disposta ‑ confessou. ‑ Tenho aqui uma impressão... ‑ indicou, comprimindo as mãos sobre o peito.

‑ Bem sei, Reddie. O que se passou esta manhã... Eu já quase me esqueci; tenho mais em que pensar.

‑ Oh, e eu já pensei tanto que até me dói a cabeça! Estes vaqueiros são cómicos, agora;, depois que falei. Já reparou?

‑ Já. Bem vês, não é costume haver raparigas nas levas de gado. Se queres que te diga, vão ser, até, alguma coisa mais do que cómicos...

‑ Também o receio. O que pensa?

‑ Que és uma rapariga bonita e que isso vai trazer complicações!...

‑ Talvez tenha razão. Mas eles são rapazes decentes; gosto deles. Até serei capaz de dormir à vontade! Nunca trabalhei com homens tão direitos.

‑ É um cumprimento para todos nós, Reddie, obrigado. Como sei que gostarão de saber, hei‑de dizer‑lhes o que

pensas.

‑ A verdade é que não posso esquecer o que se passou

esta manhã. Ele foi terrível, não foi?

‑ Quem? Wallen?

‑ Wallen! Oh, esse limitou‑se a cair! Refiro‑me ao Texas Joe. Nem sei o que senti, quando ele disparou. Foi tudo tão rápido! Precisamente no momento em que confessei que era uma rapariga... e o Wallen andava atrás de mim, zás, matou‑o! E eu que havia rezado tanto para que algum guia o fizesse! Apesar disso, fiquei doente, o sangue gelou‑se‑me nas veias... mas o pior de tudo foi quando Texas me agarrou pela blusa e quase me arrancou para fora das botas! Nunca mais esquecerei o tom como perguntou: ‑ «Disseste que és uma rapariga?».

‑ Tens razão, Reddie ‑ concordou Brite. ‑ Céus, com que rapidez ele furou aquele tratante! Até o Pan Handle se admirou! Mas, deixemos isso, Reddie; ainda haverá mais que ver, nesta viagem.

‑ Mas, senhor Brite... ‑ titubeou ‑ tenho a impressão... parece‑me... que Texas pensou que Wallen tinha... bem que eu era... uma mulher de mau porte, compreende?

‑ Reddie! Garanto‑te que não pensou tal coisa!

‑ Pensou, sim! Olhou‑me de uma maneira, senhor Brite... E eu não poderia ir com a sua gente, se ele pensasse que eu... era uma rapariga sem juízo.

‑ Não, o Texas ficou, apenas, espantado, como eu, como todos nós, afinal. Não é vulgar cair‑nos do céu uma linda rapariga, como tu. Compreendes, ele dirigira-te palavras feias, espancara‑te, tocara‑te diversas vezes, familiarmente, sem imaginar que não fosses um rapaz; e, quando descobriu que se enganara, ficou tão envergonhado que nem tem cara para aparecer.

‑ É muito gentil dizendo‑me isso, e eu gostaria de acreditar, pois ele matou um homem por minha causa, salvou‑me de ir para o Inferno e de derramar o meu próprio sangue. No entanto...

‑ Estás cansada, Reddie ‑ murmurou Brite, comovido ante o rosto pálido e convulso da rapariga. ‑ Deita‑te, anda; amanhã hás‑de sentir‑te melhor.

‑ Dormir! E o que impedirá o tal Hite de aparecer aqui com o seu pessoal, matá‑los a todos e fugir comigo?

A pergunta assustadora fez Brite pensar que não havia muito a opor a tal catástrofe. Eram precisos muitos homens para guardar o gado e o acampamento ficava quase sem defesa...

‑ Estás a ir atrás da imaginação, Reddie.

‑ Já aconteceu o mesmo no caminho de Braseda, segundo ouvi.

‑ Eu tenho o sono leve, Reddie; nem os próprios Comanches seriam capazes de surpreender‑me!

Reddie sacudiu a cabeça encaracolada, em ar de dúvida, e murmurou:

‑ Já é difícil ser rapariga, na cidade; aqui, porém, é pior do que no inferno!

‑ Só a gente de Wallen sabe e, com certeza, não se atreverão a enfrentar‑nos outra vez. Vá, deita‑te e dorme!

Brite ficou acordado muito tempo, pensando em Reddie e no facto de ela ter vindo perturbar um tanto a vida normal dos condutores de gado. Representava, na realidade, um contratempo e um risco, mas, apesar disso, não admitia, sequer, a ideia de abandoná‑la. Que era forte, boa amazona e guiava tão bem os cavalos como qualquer vaqueiro, era verdade; contudo, tratava‑se de uma rapariga ‑ e de uma rapariga que, de minuto a minuto, se tornava mais atraente... Era impossível impedir os rapazes de notarem esse facto perturbador e de reagirem com o natural fogo da juventude ‑ da juventude texana, principalmente. Apaixonarem‑se por ela, guerrearem por sua causa... Mas, supondo que o faziam!... Brite não acreditava que a juventude, beleza, espírito de conquista, fossem suficientes para virar a cabeça a um grupo de valentes guias de gado. Não, eles lutariam consigo próprios para que tal não acontecesse! A sua natureza livre, bravia, ousada, impediria que se transviassem! Reddie Bayne não era, portanto, um obstáculo, mas sim uma ajuda!

Ao chegar a esta conclusão, Brite compreendeu que a órfã ocupava no seu coração um lugar que sempre estivera vazio. Os acontecimentos do dia não haviam sido de molde a facilitar um sono sereno. Brite estava ainda acordado quando a guarda rendeu, à meia‑noite. Reddie Bayne também não dormira.

‑ Vou dar uma vista de olhos aos cavalos, patrão.

‑ Irei contigo.

Ackerman trouxe os cavalos que deviam descansar e informou que tudo estava sereno e a manada deitada. A Lua, em quarto minguante, brilhava pàlidamente no céu, onde fiapos de nuvens, a Oeste, prenunciavam calor e temporal.

Quando cavalgavam juntos, Texas Joe saiu‑lhes ao caminho e notou, carrancudo:

‑ Parecem inseparáveis!

Brite ouviu Reddie murmurar qualquer coisa, em voz baixa, e admirou‑se do modo como ela fitou o cavaleiro solitário. Foram encontrar os cavalos a descansar, com

excepção de alguns, poucos, que pastavam ainda a erva alta. Ao longe, um grande quadrado negro sobressaía como uma mancha na planície: a manada. San Sabe entoava uma canção, mas os outros guardas estavam silenciosos. Brite e Reddie contornaram duas vezes a manada e voltaram ao acampamento. Diversas vezes o patrão quis conversar, mas Reddie apenas lhe respondeu por monossílabos. Deitaram‑se e Brite adormeceu, por fim, até ao nascer do Sol.

O dia decorreu sem novidade. Shipman fez avançar a manada doze milhas, pelo menos, observando, com frequência, o terreno que iam deixando para a rectaguarda. Nada, porém, perturbou a marcha e a noite foi, igualmente, calma. Outro dia se seguiu, saudado já com menos ansiedade, pois tinham a certeza de que, Ross Hite não os ultrapassara. No dia seguinte, uma pequena trovoada veio quebrar a monotonia da jornada; o gado apareceu com os chifres húmidos e brilhantes e a terra sequiosa exalava cheiro agradável.

Coon Creek, Buffalo Wallow, Hackberry Fiat, The Meadows... Noite após noite, estes nomes assinalavam outros tantos acampamentos. Estava‑se em Junho. Começavam a surgir pequenas manadas de búfalos, ao longe, para os lados do poente, assim como alguns cavaleiros suspeitos que, no entanto, não se aproximavam. Brite começou a pensar que a boa sorte voltara a protegê‑lo e esqueceu os seus receios.

Entretanto, com excepção de Texas Joe e de Pan Handle, todos pareciam formar uma família feliz. Reddie Bayne conseguira exercer benéfica influência sobre os seus companheiros e a rivalidade para beneficiar do seu favor, para ver quem mais podia ajudá‑la, manifestava‑se com espírito de camaradagem, apesar do seu ardor. O sorriso tornara‑se agora frequente nos lábios da rapariga, que andava alegre e despreocupada.

Chegou o dia em que Brite decidiu que a adoptaria como filha se, antes disso, nenhum dos vaqueiros a conquistasse como esposa. No entanto, apesar da sua vigilância, não descobrira ainda nenhuma corte séria. Jamais algum deles tivera oportunidade de encará‑la sozinha, porque assim calhasse ou porque Reddie, suficientemente esperta, arranjasse as coisas desse modo. Quanto a Shipman, o fogo lavrava oculto: observava‑a de longe, com olhos eloquentes, e Reddie, quando julgava que ninguém a via, não deixava de desviar, também, o olhar sonhador na sua direcção. Como capataz, Shipman era responsável pela manada, e não o esquecia, dia e noite. Raramente se dirigia agora à jovem e não voltara a dar‑lhe qualquer ordem; usava o sistema de dizer a Brite que a mandasse fazer isto ou aquilo relacionado com os cavalos. No acampamento, evitava‑a sempre que podia, dando a impressão de um melancólico e cansado cavaleiro perdido nos seus pensamentos.

Brite reparava como Reddie se sentia magoada com aquele tratamento, pois nunca perdia a oportunidade de se lhe lamentar. A corte dos vaqueiros tornara‑a orgulhosa e, também, um bocadinho vaidosa, apesar da sua pobre vestimenta masculina que, no entanto, jamais poderia continuar a fazê‑la passar por rapaz. Embora, no fundo, Brite já tivesse feito a sua escolha, era demasiado amigo dos seus rapazes, para deixar transparecer as suas preferências. Todos se haviam modificado, graças à presença da jovem. Se ela manifestasse inclinação por algum deles com certeza surgiriam ciúmes; assim, porém, davam‑se como irmãos e a rapariga sentia‑se feliz, excepto quando Texas Joe impunha a sua personalidade e a sua presença em cena.

Ao princípio de uma noite, encontravam‑se todos acampados em Blanco River, depois de um dia que correra sem contratempos até ao momento de atravessarem uma larga ribeira.

Nessa altura, porém, haviam cometido diversos erros, principalmente relacionados com os cavalos de reserva, e Texas Joe ficara furioso. Estavam a acabar de jantar e Texas preparava‑se para a primeira guarda da noite, quando se lembrou de dar a Ackerman uma das suas ordens para Reddie.

‑ Mão ouço nada, Deuce! ‑ disse a rapariga, fitando Joe com ressentimento. ‑ Se o senhor Shipman tem alguma ordem a dar‑me, que ma dê a «mim» própria!

‑ Dou as minhas ordens do modo que mais me agradar, «miss» Bayne ‑ replicou Texas.

‑ Decerto, mas se há alguma coisa que queira que eu faça, é a mim que tem de dizê‑la, e não por intermediários.

‑ Bem, dispenso os seus serviços, quando chegarmos a Fort Worth ‑ declarou Texas, em tom frio.

‑ Dispensa‑me! ‑ gritou, espantada e furiosa.

‑ Exactamente, «miss».

‑ Então, despede o pessoal todo! ‑ declarou Reddie, com mais calor. ‑ Eu não fiz nada mal feito! Digam‑lho vocês, rapazes, Deuce, Roy, Whit, Rolly, digam‑lho!

Seguiram‑se diversas observações amigáveis, confirmando as palavras da rapariga, que levaram Joe a exclamar, pesaroso:

‑ Que gente desprezível! E tu, Less Holden, camarada, também?

‑ Claro, Tex ‑ respondeu Lester, com uma gargalhada. ‑ Já não seríamos capazes de conduzir gado sem a Reddie!

‑ Também tu, também tu! ‑ repetiu Joe, desgostoso e espantado,.

‑ Sim, que raio de capataz é você que precisa de intermediários para dar ordens ao tratador de cavalos? ‑ prosseguiu Reddie, trocista. ‑ Faço parte deste pessoal, ganho dinheiro aqui, não pode ignorar‑me!

‑ Não posso? ‑ contestou Texas, enraivecido.

Era evidente que ele mesmo via não poder, de facto; mais evidente, ainda, que alguma coisa o punha fora de si, sem aparentar motivo.

‑ Não pode, não! ‑ continuou a jovem. ‑ Não pode ignorar‑me sem me insultar, ‑Texas Jack Shipman!

‑ Deixe de chamar‑me Texas Jack!

‑ Ainda lhe chamarei pior! E digo aqui, diante de todos, que é o mais vaidoso e emproado vaqueiro que conheço! Muito orgulhoso, para falar a pessoas sem importância, como eu, dá as suas ordens por intermédio do patrão, dos rapazes e, até de Moze. Mas isso tem de acabar, Texas Shipman!

‑ Patrão, acha que devo ouvir isto tudo? ‑ perguntou Joe, envergonhado.

‑ Bem, Tex, não digo que devas. No teu lugar, porém, ouviria e não faria caso ‑ respondeu Brite, conciliador.

Assim mimada, Reddie deu livre curso aos sentimentos que a dominavam e, saltando para junto de Joe, fitou‑o de olhos coruscantes:

‑ Tem de dizer‑me aqui, e já, diante de todos, por que motivo me trata como se eu fosse a poeira que pisa!

‑ Engana‑se, «miss» Bayne, engana‑se porque nem sequer penso em si!

Esta resposta pareceu a todos uma monstruosa mentira ‑ a todos, menos à pálida jovem a quem era dirigida.

‑ Texas Shipman, você matou um homem, para me defender; mas não o fez por «mim», especialmente? Teria feito o mesmo por qualquer rapariga, boa ou... má?

‑ Certamente!

‑ E tinha as suas dúvidas a meu respeito, nessa altura, não tinha?

‑ Sim, confesso. E... ainda as tenho ‑ afirmou com dificuldade, pois tinha‑as a respeito de si próprio, o pobre rapaz, a quem a situação mortificava.

‑ Confessa que tem! ‑ gritou Reddie, escarlate. ‑ Diga quais são, então, se não é cobarde! Primeiro, pensa que eu sou... má, não é verdade?

‑ Se lhe interessa tanto saber... não me parece, de facto, que seja muito boa!

‑ Oh! ‑ gritou a rapariga, angustiada, esbofeteando‑o com a mão esquerda e, depois, com a direita.

‑ Eh, compreendeu‑me mal! ‑ exclamou Joe, percebendo, horrorizado, o sentido que ela dera às suas palavras e recuando ante o gesto que adivinhava.

Era tarde, porém. Reddie estava tão furiosa que não compreendia o que a Brite e a todos os outros parecia claro.

‑ Devia matá‑lo pelo que disse, e matá‑lo‑ia, meu Deus, se não tomasse em consideração o senhor Brite! Sempre julguei que você me considerava mal comportada e que o Wallen... Maldito, Texas Shipman, maldito porque não sabe diferençar uma rapariga decente das outras, quando encontra alguma! É preciso que saiba, e eu digo‑lho, que Wallen era um porco e que não foi o único a obrigar‑me a fugir dum emprego. Tudo por eu querer ser decente... E sou‑o,( Texas Shipman! Tão decente como a sua própria irmã ou a de qualquer outro rapaz! Pensar que... que... tive de dizer‑lhe isto por palavras... eu que devia fazê‑lo com uma pistola... ou a chicote!

De súbito, porém, desatou a soluçar.

‑ Agora, pode ir para o inferno... Texas Shipman... com as suas ordens... e com o que pensa de mim. É como poeira... sob os meus pés!

 

Reddie afastou‑se, num repelão, como se tencionasse deixar o acampamento para sempre. Brite decidiu não a deixar afastar‑se muito, mas, antes de ir atrás dela, olhou para o grupo reunido à volta do fogo. Texas Joe tinha os olhos fixos na direcção por onde ela desaparecera e os outros vaqueiros começavam a apostrofá‑lo em termos pouco amigáveis quando Pan Handle os fez calar, com um gesto, e declarou, pondo a mão no ombro do capataz:

‑ Tex, o que aconteceu pode causar desentendimento entre o pessoal, o que é preciso evitar. Sabemos perfeitamente que não quiseste dizer que Reddie era mal comportada, mas «ela» ignora isso e não deve esquecer tal pormenor.

Só então Brite se apressou a procurar a jovem, que foi encontrar fora do alcance da luz do acampamento.

‑ Não fujas de nós, pequena! ‑ murmurou, detendo‑a, em tom gentil.

‑ Oh... eu... eu... devia atirar‑me ao rio! ‑ soluçou. ‑ Sentia‑me... sentia‑me... tão feliz!

- Tudo se arranjará, verás! ‑ replicou o velhote, passando‑lhe um braço pelos ombros e sentando‑a num rochedo, ali perto.

‑ Diga‑me que... não acredita! ‑ suplicou a jovem, sensibilizada com aquela prova de ternura, encostando a cabeça ao ombro do patrão.

‑ Que não acredito em quê, filha?

‑ No que Texas pensa... a meu respeito.

‑ Mas nem eu nem os rapazes acreditamos nisso! E afirmo‑te que o próprio Tex... Olha, aí vem ele, Reddie!

Ao ouvir as últimas palavras, a rapariga empertigou‑se e conteve a respiração. Texas avançava para eles, de cabeça descoberta, e, no meio da escuridão, só os seus olhos se viam, extraordinariamente brilhantes:

‑ Ouça, Reddie Bayne ‑ começou, em tom severo ‑ se não tivesse tão mau génio, não me teria feito cair no desagrado do pessoal. Eu...

‑ No desagrado do pessoal, você? ‑ interrompeu ela.

‑ Sim, eu. Juro‑lhe, por Deus, que não quis dizer, nem pela cabeça me passou, que você não fosse tão honesta e tão... boa como qualquer rapariga, mas sim, apenas, que é um diabinho dotado de espírito de contradição, rancoroso e irritadiço! Foi isto, somente, mais nada! Lamento tê‑la feito zangar e peço‑lhe desculpa.

‑ Vem seis dias atrasado, Texas Jack! ‑ gritou, fora de si, ‑ E... e... pode ir para o inferno, da mesma maneira !

Ele olhou‑a fixamente, com um olhar estranho, e respondeu com frieza, afastando‑se:

‑ Bem, terei companhia, pois o inferno é o destino deste pessoal!

Reddie levantou um pouco a cabeça, para espreitá‑lo por cima do ombro de Brite, agarrou‑se com força à camisa deste e, depois, devagar, deixou pender de novo, a fronte, titubeando:

‑ Pronto... já está! Devia ter‑me comportado como... como... uma senhora, mas... detesto‑o tanto!

Brite tinha a sua opinião a respeito da forma como ela «detestava» Texas Joe... Os sentimentos que ele próprio nutria pela jovem vibravam, no seu íntimo, com mais intensidade: aquele era o momentooportuno, para lhe transmitir as suas ideias acerca do futuro da sua protegida.

‑ Ouve, minha garota ‑‑ começou. ‑ Creio que quem anda na Pista Chisholm sente de modo diverso do que quando está em casa, são e salvo; que os meus sentimentos são, talvez, mais fortes e profundos, e, também, melhores... Pois bem, tenho um pedido a fazer‑te: Estou só no mundo, sem nenhum parente chegado, e gostaria de ter‑te como filha. Que dizes?

‑ Oh, seria o meu sonho tornado realidade! ‑ exclamou, extasiada. ‑ Se ao menos eu o merecesse!...

‑ Deixa‑me ser o juiz, nesse pormenor ‑ observou ele, feliz. ‑ Possuo um rancho à entrada de Santo António, que será o teu lar. Só te peço que gostes um bocadinho de mim.

‑ Mas... eu gosto já muito de si! ‑ afirmou, generosa, abraçando‑o. ‑ É bom demais, para ser verdade!

‑ Aceitas‑me, então, como pai adoptivo?

‑ Nunca serei capaz de agradecer bastante a Deus! ‑ foi a única resposta que obteve.

‑ Visto isso, está combinado. E eu, também, tenho que Lhe agradecer, e muito!

‑ Que bondade a sua! Como tudo é agora diferente! Só gostava de saber o que dirão os rapazes, quando souberem e...

‑ E quem?

‑ aquele vaqueiro...

‑ Bem, ele agora terá de contar comigo!... É verdade, gostava de manter a nossa combinação secreta, até chegarmos a Dodge. De acordo?

Brite estava a desenrolar a manta quando sentiu qualquer coisa fria tocar‑lhe o rosto. Chuva! Estivera tão absorvido que nem dera pela mudança do tempo. As estrelas tinham empalidecido e para o Norte o céu apresentava‑se carrancudo e negro.

As tempestades constituíam o flagelo dos guias de gado e o Texas era pródigo em memoráveis fúrias dos elementos, desde o «del Norte» dos mexicanos até ao ciclone de Pan Handle.

‑ Vai chover, Reddie! ‑ avisou. ‑ Faz a tua cama debaixo do vagão.

Mas Reddie encontrava‑se no país dos sonhos e não o ouviu. Brite pegou num oleado e foi estendê‑lo sobre a cama da rapariga, experimentando uma sensação nova para si, uma alegria doce, proveniente da sua recente responsabilidade paternal. Depois, encaminhou‑se para o vagão, debaixo do qual os rapazes se haviam já recolhido. O vento soprava com força, atirando‑lhe ao rosto uma chuva miudinha e fria.

‑ A nossa sorte mudou, patrão ‑ resmungou Texas, carrancudo. ‑ Temos tido uma sorte dos diabos, mas agora está a chegar...

‑ O quê, ave agoirenta?

‑ Em primeiro lugar, temporal do Norte... depois, ainda não sei, mas palpita‑me que não será coisa boa.

‑ Isto não passa de uma Primavera tardia ‑ replicou Brite.

‑ Onde estás metido, Moze? ‑ perguntou Joe.

‑ Estava debaixo do vagão, mas empurraram‑me cá para fora... ‑ respondeu o negro.

‑ Trata de guardares bem toda a lenha seca que tiveres na cozinha.

‑ Sim «siô».

‑ O machado? Quero ir rachar alguma. Patrão, nós podemos servir‑nos do outro encerado, por causa da chuva e do vento; o Moze tem um, em cima do vagão. Céus, como são detestáveis a chuva e o frio! Não seria melhor acordar a Reddie e chamá‑la para aqui?

‑ Cobri‑a com o meu oleado ‑ respondeu Brite, satisfeito com a solicitude do rapaz. ‑ Estará bem, assim, a não ser que a chuva engrosse.

Texas afastou‑se, falando sozinho, e em breve o bater do machado revelou em que se ocupava. Moze via‑se atrapalhado para guardar a lenha na lona estendida sob o vagão, pois os vaqueiros dificultavam‑lhe a tarefa.

‑ Deixa‑os dormir, Moze ‑ sugeriu Brite. ‑ Vamos servir‑nos do outro encerado. Podes pôr a lenha debaixo daquele, até de manhã. Assim: ata uma ponta do oleado aos arcos do vagão e prende a outra ao chão.

Texas aproximou‑se, vergado ao peso da lenha que partira, e colocou‑a no oleado, sem fazer barulho:

‑ Se o vento se torna mais forte e se vem mais chuva, teremos a manada a fugir, e será mau para nós, se tomar a direcção do Sul.

‑ Creio que o vento sopra de Noroeste, Tex ‑ respondeu Brite, levantando a mão.

‑ A única diferença é que o temporal do Norte dura três dias. Talvez, até, não chegue a ser nada... Daqui a um par de horas saberemos. Entretanto, vou dormir.

Enrolaram‑se nos cobertores, abrigados sob o encerado estendido, e Texas adormeceu com a rapidez própria da juventude. Em breve, também, Moze ressonava, como uma serração em actividade. Só Brite não tinha sono. O calor dos cobertores permitia‑lhe avaliar até que ponto o ar arrefecera. Deixou‑se ficar quieto, de ouvido atento. O vento gemia, lamentoso, e, penetrando, em rajadas agrestes por debaixo do vagão, sacudia a lona e afastava‑se, uivando tristemente. Ouviam‑se coiotes, perto do acampamento, e lá ao longe, na noite escura e ventosa, o gado agitava‑se, inquieto, nas suas camas. Os velhos touros mugiam e os guardas cantavam‑lhes, para aquietá‑los. Que singular e tremenda aventura era aquela de conduzir gado para o Norte!

Ali deitado, desperto, Brite visionava a magnitude que o negócio atingira, o que representava para a salvação do Texas e o impulso que daria ao seu progresso. Jesse Chisholm fora o primeiro dos pioneiros a ter tal visão, e agora os vaqueiros que, às centenas, subiam a Pista ‑ ou, antes, os que dentre eles sobrevivessem às suas dificuldades e aos seus perigos ‑ veriam o dia em que os seus próprios ranchos deveriam tudo àquele heróico começo.

A pouco e pouco, estes pensamentos mergulharam‑no em sonhos, aos quais foi arrancado pelo bater de cascos e por uma voz que gritava:

‑ Todos a pé! A manada vai a fugir!

Quando Brite se ergueu, já Texas estava de joelhos, enrolando a cama.

‑ Que horas são, Deuce?

‑ Passa da meia‑noite. Não posso ver o relógio. Está um frio dos diabos!

‑ Chove muito?

‑ Nem por isso. O que cai é geada, em Junho, imaginem! Ah, sim, já me esquecia de que estamos no Texas!... Vamos precisar de lanternas, Tex; não se vê um palmo à frente do nariz.

‑ Estás acordado, Moze?

‑ Sim, «siô».

‑ As lanternas estão cheias? Onde as puseste?

‑ Estão prontas, patrão, e guardadas onde as ponho todas as noites: entre os eixos das rodas da frente.

Brite vestiu o pesado casaco que lhe servira de almofada e aconselhou os rapazes a agasalharem‑se o melhor possível.

‑ Reddie Bayne! ‑ chamou Texas.

Nenhuma resposta. Joe gritou, de novo, com desnecessária irritação, segundo pareceu a Brite, mas continuou sem obter resposta.

‑ Deve estar morta, com certeza! Nunca teve o sono pesado.

‑ Ouço cavalos ‑ avisou Deuce.

Dentro em pouco, Brite saía com os outros de sob o abrigo, alumiando‑se com a luz frouxa e amarela das lanternas. O velho dispunha‑se a ir acordar Reddie, quando o bater de cascos anunciou a entrada no acampamento de um grupo de cavalos furiosos.

‑ Cá está ela! ‑ gritou Deuce.

Brite divisou o vulto de Reddie, de pé, envolto no oleado que a água fazia brilhar, segurando pelos cabrestos uma meia dúzia de animais.

‑ Onde arranjou esses cavalos? ‑ perguntou Texas.

‑ Tinha‑os presos aqui perto.

‑ Hum!... Então vê no escuro, como os gatos?

‑ É verdade ‑ respondeu a rapariga, em tom exageradamente dócil.

‑ Bem, custa‑me dizê‑lo, mas a verdade é que percebe mais do ofício do que os tratadores de cavalos que tenho conhecido ‑ concluiu o capataz, com voz áspera.

‑ Obrigada, Jack ‑ replicou Reddie, no mesmo tom suave.

Arrearam os cavalos e, depois de montar, Texas pediu uma lanterna e abrigou‑se do vento.

‑ Leva a outra lanterna, Deuce ‑ ordenou. ‑ E tu, Moze, aguenta‑te aqui até voltarmos e prepara um bom lume e bebidas quentes, pois devemos vir bem precisados delas.

Brite e os outros seguiram‑no. Os cavalos tremiam, muito chegados uns aos outros. Texas levantou a lanterna e perguntou, agressivo:

‑ Não é o cavalo de Reddie?

‑ É, e eu estou aqui ‑ respondeu a jovem.

‑ Volte para o acampamento. Isto não é trabalho para rapariguinhas.

‑ Você vai quando há «calor», Jack, eu posso muito bem suportar o frio.

‑ Deixe de chamar‑me Jack ‑ ordenou, mal‑humorado ‑ senão, dou‑lhe um puxão de orelhas! Eu disse‑lhe que ficasse no acampamento.

‑ Mas, Texas, eu teria medo de ficar lá, sem vocês todos‑ replicou, muito séria.

‑ Hum... pensando melhor, tem razão! Deuce, para onde vamos?

‑ Macacos me mordam, se o sei! Vi‑me em apuros para dar com o acampamento; perdi meia hora, às cegas.

‑ A que distância estava a manada?

‑ Um par de milhas, creio.

‑ Segue pela direita, Deuce, e avança enquanto puderes ver a minha luz. Vocês fiquem entre nós dois... Raios, está de todo!

O vento assobiava‑lhes por detrás, ouvia‑se o barulho da chuva e da geada a cairem na erva, a escuridão era total, como se uma camada de tinta negra cobrisse tudo, e apenas a lanterna de Texas iluminava frouxamente as figuras espectrais dos cavaleiros e das montadas. Após haverem percorrido duas ou três milhas, Texas e Deuce começaram a gritar, tentando localizar os guardas e o gado. Nenhum grito lhes respondeu, porém. Avançaram mais duas milhas e, então, a barreira horizontal, com Texas numa extremidade e Deuce na outra, começou a cavalgar em círculo. A situação aumentava de gravidade. Se a manada debandasse em sentido errado, os poucos guardas que a rodeavam não conseguiriam detê‑la e os animais poderiam tresmalhar‑se ou, pelo menos, afastar‑se muitas milhas, pois os bois, quando querem fugir, têm tão boas pernas e tanta resistência como os cavalos.

‑ Alto, amigos! ‑ ordenou Texas, por fim. ‑ Ouvi qualquer coisa... Talvez seja apenas um coiote, mas eu desmonto e afasto‑me um pouco, para ouvir melhor.

Saltou para o chão e afastou‑se dos cavalos, balançando a lanterna dum lado para o outro. Depois, soltou um grande grito. Brite apurou o ouvido, mas não ouviu nada. Texas, pelo contrário, gritou, de novo, após breve silêncio:

‑ Não me enganei, responderam‑me!

Correu para o cavalo, montou e afastou‑se um pouco para a esquerda:

‑ Parece‑me que não poderei manter aquela direcção por muito tempo; mas iremos parando e gritando, até os localizarmos.

Graças a este sistema, Texas Joe acabou por localizar a manada e os outros guardas. Estes, porém, encontravam‑se no extremo dianteiro dos fugitivos, que corriam no sentido do vento. Texas disse a Brite e a Reddie que o seguissem e aos demais que acompanhassem Deuce, que cercaria o gado por esse lado. Vezes sem conta a lanterna do capataz iluminou bois tresmalhados, evidentemente muito para trás do corpo principal da manada.

Os gritos de resposta foram‑se tornando frequentes e cada vez mais próximos, e em breve Texas e os seus companheiros rodeavam a frente da manada, onde encontraram Pan Handle e Rolly Little.

‑ Então, Pan? ‑ perguntou Texas, em voz alta.

‑ Vão a fugir, Tex, mas não há grande perigo ‑ foi a resposta.

‑ Onde estão os outros rapazes?

‑ Umas vezes longe, outras perto; tão depressa os ouço, como não.

‑ Raio de vida! ‑ gritou o capataz. ‑ Alinhem!

Aprenda a lição, senhor Brite! Comprará gado a doze a cabeça! Reddie, é aqui que tem de portar‑se como um homem!

Os guias enfrentaram o vento e a manada, que vinha na mesma direcção. Uma avalanche de gado, mugindo e berrando, avançava para eles, em barreira compacta. Não estavam assustados e talvez pudessem ser detidos com facilidade, se não fossem os milhares que empurravam os da frente. Uma centena de jardas atrás, a luz e os gritos dos vaqueiros de nada valiam; eram poucas as esperanças de fazê‑los parar. Quando muito, podiam tentar retardar‑lhes a marcha, evitar que se tresmalhassem e... deixar‑lhes o caminho livre.

Felizmente, mantinham‑se juntos, como verificaram, quando a luz de Deuce se divisou, a uma meia milha de distância. Entre as duas lanternas ‑ a de Texas e a de Deuce ‑ escalonavam‑se todos os outros guias, gritando e cantando. Tinham de confiar‑se aos olhos dos seus cavalos, pois somente os que se encontravam nas proximidades da luz das lanternas podiam enxergar alguma coisa. Ouviam, porém, e era pelo ouvido que, as mais das vezes, localizavam a vanguarda. A intervalos regulares, Deuce galopava no sentido da largura dessa vanguarda, com a lanterna, e Texas fazia o mesmo, em sentido contrário. Era a única maneira de conseguirem alguma coisa parecida com uma linha recta.

Trabalho lento, aborrecido, desencorajante, consideravelmente arriscado, aquele! O vento soprava cada vez mais forte e gelado, a geada cortava como lâminas, e Brite, que sempre fora muito sensível ao frio, verificou, a breve trecho, que o pesado casacão que envergava e as luvas que calçava não o protegiam suficientemente do temporal. Quase não podia já suportar a geada que lhe batia no rosto, mas tinha de escolher entre esse tormento e a certeza de ser espezinhado pelo gado.

A necessidade obrigava‑o a conduzir o cavalo lentamente, raras vezes mais do que a passo, e isso também não ajudava a activar a circulação do sangue. Reddie Bayne cavalgava perto dele, tão perto que podiam localizar‑se sem gritar e rectificarem as suas posições quando Texas ou Deuce passavam com as lanternas.

‑ Não desanimem, rapazes! ‑ gritou o capataz, encorajador. ‑ Podemos gabar‑nos de termos sorte!

Brite sabia que se o temporal aumentasse de intensidade ele e os restantes guias, Bender e Reddie, com certeza, se veriam em sérios apuros. No entanto, embora o vento frio e cortante custasse cada vez mais a suportar, não aumentava de violência. O velho rancheiro batia monotonamente as mãos enluvadas uma contra a outra e abrigava as orelhas na gola do casacão.

‑ Ânimo, Reddie! A manhã está quase a romper ‑ gritou Ackerman, ao passar por eles.

‑ Oxalá não demore, senão rebento! ‑ ripostou a jovem.

Brite procurou ver, com os olhos enevoados por lágrimas de frio, para lá da manada e verificou que, ao longe, o negrume da noite começava a dar lugar a uma cor parda. Desde então, voltou‑se frequentemente, sempre espreitando, para o mesmo lado. Como o dia nascia devagar! Como eram longas, odiosamente longas, as horas daquela noite! Mas, imperceptivelmente, a escuridão foi‑se dissipando, a alvorada surgiu e, na pradaria imensa, começaram a divisar‑se as manchas negras de incontáveis cabeças do gado. Não tardou que Brite pudesse distinguir Reddie Bayne e o seu cavalo, e, um após outro, os restantes cavaleiros. As lanternas apagaram‑se. Os guias podiam, agora, tirar maior partido do seu esforço, trotar e galopar dum lado para o outro, e este exercício era‑lhes benéfico, assim como às suas montadas.

Lentamente, a vanguarda ia perdendo terreno; os animais paravam, para pastar, mas eram logo empurrados para a frente pelos que vinham atrás. Brite estava certo de que se a geada se transformasse em chuva e o vento não amainasse, teriam de abandonar a manada, para os guias se aquecerem e mudarem de cavalos.

Finalmente, a manhã clareou por completo, revelando um espectáculo desolador: a manada fugindo sob as nuvens baixas e os cavaleiros enlameados e curvados sobre as selas encharcadas. Tornava‑se imperioso obrigar a manada a voltar para trás, pois um dia de atraso podia redundar na perda de centenas, ou mesmo de milhares, de cabeças de gado. Texas exigiu dos extenuados rapazes esforços incríveis, tendo em vista um único fim e, à custa de esgotantes cavalgadas, de muitos tiros, para se localizarem, conseguiu pôr a manada no bom caminho. Gado e guias estavam, de novo, voltados para o Norte, mas os animais, de cabeças baixas, cansados e famintos, avançavam muito lentamente. Quanto aos cavalos, exceptuando o de Reddíe, encontravam‑se esgotados e inutilizados para o resto da viagem.

À tarde, Brite aproximou‑se do acampamento e reparou que os cavalos de reserva estavam aparentemente sem novidade. Texas e Ackerman tinham deixado o gado numa clareira perto do acampamento, onde o pasto era abundante.

Brite não foi o último a chegar. Após ele vieram ainda Pan Handle, olheirento e de má cara, e Bender, todo curvado sobre a sela, a quem foi preciso desmontar. O velho não estava tão maltratado como eles, mas não se lembrava de se ter visto jamais naqueles apuros.

‑ Olá, patrão, ainda bem que chegou! ‑ saudou‑o Texas, em voz baixa e rouca.

Sentara‑se diante do lume e, por acção do calor, o fato encharcado fumegava‑lhe. Moze servia bebidas quentes e Brite perguntou a si próprio em que redundaria tudo aquilo se não pudessem acender lume ou não tivessem suficientes reservas de uísque.

Reddie Bayne era a única pessoa que não estava molhada até aos ossos, pois o longo impermeável protegera‑a. Por isso, apesar de pálida e cansada, saira‑se da aventura melhor do que alguns rapazes.

‑ Café, uísque não ‑ murmurou a rapariga, ao cheirar o copo que Moze se apressara a trazer‑lhe.

‑ A Reddie portou‑se à altura! ‑ exclamou Deuce, com admiração. ‑ Estava preocupadíssimo por sua causa e afinal...

‑ Bem, estou cá desconfiado de que ela é mesmo um homem!... ‑ gracejou um dos vaqueiros.

Reddie não disse nada; limitou‑se a rir, fazendo coro com os demais.

‑ Rapazes, a manada desviou‑se um pouco para o Sul ‑ murmurou Texas, pouco depois, preocupado ‑ mas creio que podemos remediar isso. Tu, Sabe, vem comigo, e tu, Deuce, daqui a uma hora manda dois homens substituir‑nos, para virmos comer. Far‑se‑ão as guardas normais e ficaremos aqui, esta noite.

Viram se alguma manada nos ultrapassou hoje? ‑ perguntou Brite, falando com dificuldade.

‑ Desconfio que os que vêm atrás perderam tanto terreno como nós, patrão... Não se esqueçam de dar uma boa dose ao Bender e de o meter na cama ‑ recomendou Texas que, parando diante de Reddie e como se ao pensamento lhe ocorresse de súbito, indagou: ‑ Precisa de algumas ordens minhas, garota?

‑ Garota? A quem está a falar, senhor Jack? ‑ replicou ela.

‑ Não volte a chamar‑me Jack! ‑ ordenou ele, fitando‑a irritado.

‑ Está bem... Jack.

‑ Detesto esse nome. Recorda‑me uma rapariga que costumava chamar‑me assim e que era tão orgulhosa como você, Reddie Bayne.

‑ Mas eu não consigo lembrar‑me de chamar‑lhe Joe... se me é permitido ser tão familiar.

‑ Ah, sim, tão familiar! Todavia, trata todos pelos seus nomes próprios e até já a ouvi chamar papá ao patrão...

‑ Pois chamo... mas nunca supus que estivessem a escutar‑me.

‑ Bem, se não consegue ser... familiar e tratar‑me por Joe ou Tex, trate‑me por senhor Shipman ‑ declarou, sarcástico.

‑ Oh, mas eu gosto mais de Jack! ‑ teimou, atrevida, mas sem ousar fitá‑lo.

‑ Escute! ‑ ordenou, com voz semelhante àquela com que falara a Wallen. ‑ Não poderei tornar a bater‑lhe, por muito que o mereça, mas pode ficar certa de que, antes de terminar a viagem, ainda há‑de chamar‑me Jack... qualquer coisa mais!

‑ Qualquer coisa mais?!...

‑ Sim! Jack querido, por exemplo... ‑ respondeu, afastando‑se.

Os rapazes riram com vontade e, pela primeira vez, Reddie embatucou. Não, não fora o calor do lume que lhe pusera aquelas rosetas nas faces... Brite viu‑lhe os olhos, antes que ela os baixasse, e a sua expressão era de surpresa e espanto. Contudo, a sua cabeça desgrenhada não permaneceu muito tempo baixa; ergueu‑se de repelão, agitou os caracóis, como que admirada de se ver metida naquele fato masculino, velho e enlameado, e afirmou: ‑ Nunca, nunca nesta vida!

A noite decorreu tranquila, tanto no acampamento como para os que a passaram de guarda, e a manhã rompeu mais clara, com promessa de sol. A erva húmida e as frequentes poças de água tornavam o trabalho mais fácil, facto que Shipman aproveitou para uma tirada mais comprida, até ao escurecer. Naquela noite, porém, não houve conversas animadas à volta da fogueira.

Após mais dois dias de marcha sem incidentes dignos de nota, chegaram a Austin, primeira paragem da Pista. Brite aproveitou o ensejo para ir visitar um rancheiro que vivia a cerca de três milhas da cidade e soube por ele notícias perturbadoras acerca das condições do caminho para o Norte: o número de desastres habituais multiplicara‑se e o Rio Colorado, que corria perto de Austin, ameaçava sair do seu leito. Seria necessário esperar até podê‑lo atravessar a vau ou subir pela margem e atravessá‑lo a nado. No entanto, quando transmitiu estas notícias a Joe, a resposta que recebeu agradou‑lhe:

‑ Oh! Não será, com certeza, essa ninharia que nos deterá.

Austin, como as demais paragens ao longo da Pista, estava sujeita a flutuações de população e, às vezes, era o sítio ideal para os guias pouco sociáveis. Texas estudou bem o lugar e decidiu atacar o rio cinco milhas a Oeste, num local onde o informador de Brite dissera existir uma boa ladeira, para apontar a manada e fazê‑la atravessar. O patrão dirigiu‑se sozinho para a cidade, ceou numa casa onde estivera já várias vezes e, em seguida, desceu a rua e encaminhou‑se para o armazém de Miller. Na escuridão, apenas cortada, aqui e ali, por algumas poucas luzes, era difícil calcular se Austin estava ou não cheia de homens. A impressão que se colhia era, apenas, de solidão e quietude. Miller, um magrizela do Missouri, saudou‑o cordialmente :

‑ Andava à sua procura ‑ declarou. ‑ A que distância vêm as manadas que saíram depois da sua?

‑ Há uma com o atraso de um dia, pouco mais ou menos, mas daqui por uma semana serão mais do que búfalos! ‑ respondeu Brite.

‑ O Ross Hite é da mesma opinião?

‑ Hite? Ele está aqui? ‑ perguntou o velho, como que por acaso.

‑ Está; chegou há poucos dias. Trazia uns cavalos que vendeu por aí.

‑ Quantos homens tem ele?

‑ Não sei. Quando chegou trazia apenas dois desconhecidos. Não passou por vocês?

‑ Passaram uns sete ou oito, parece‑me, mas ouvi dizer que era gente do Wallen.

‑ Wallen? Não conheço. Bem, quantos mais vierem, mais contente fico! E prometo não ser nem muito curioso nem muito exigente... ‑ acrescentou, soltando uma gargalhada.

Brite encomendou tabaco para os seus homens e diversas coisas para Moze, e, enquanto lhas ficaram de aviar, entrou no estabelecimento de Snell.

Era um compartimento semelhante a um grande celeiro, cheio de luz, fumo, algazarra e odor a rum. Em todas as suas anteriores passagens por Austin, durante as levas de gado, estivera naquela casa; mas ainda que juntasse todas as pessoas que então lá encontrara, não totalizaria as que lá estavam naquele momento. Jogava‑se por toda a parte.

A um canto, sentado diante de uma mesa tosca, Ross Hite distribuía cartas aos seus parceiros, tendo estampada no rosto a obsessão e o vício. Brite olhou com atenção, a ver se reconhecia algum dos outros, porém, naquele local a luz era fraca e a maioria dos rostos estava na sombra. Não lhe restavam dúvidas, contudo, de que se encontrava presente todo o pessoal de Wallen. Os vaqueiros autênticos, tal como os conhecia, tornavam‑se notados pela ausência... A maior parte da assistência compunha‑se de homens maduros e rudes, e a minoria de mexicanos e negros. Brite dirigiu‑se para um canto de onde podia observar todos os jogadores e uma parte do balcão, ficando, por seu turno, na sombra. Procedia assim apenas por curiosidade e na esperança de tagarelar um pouco, pois embora, geralmente, os rancheiros não perdessem as noites metidos nas casas de jogo, reconhecera alguns deles entre os presentes. Estava ali havia pouco mais de meia hora quando viu surgirem, com desgosto, Roy Hallett e Ben Chandler, os quais procuraram chegar‑se ao balcão. Provavelmente, Shipman dispensara‑os, mas o mais verosímil era terem‑se escapado sem sua licença, com a intenção de regressarem, também, sem serem vistos. Os vaqueiros eram assim mesmo.

Chandler vinha corado e com evidente bom humor, ao contrário de Hallett, que se mostrava mais sombrio do que habitualmente. A este a bebida, em vez de modificá‑lo, tornava‑lhe mais pronunciadas as suas características pessoais. Não estava, no entanto, embriagado e teve, até, de arrastar Chandler quase à força de junto do balcão, pois este parecia disposto a tirar o máximo proveito possível daquela escapada. Hallett devia ter, porém, outros desígnios, visto que nem sequer mostrava disposição para a indulgência no espírito de bebidas, ao invés do vulgar entre vaqueiros. De tudo isto Brite deduziu que o rapaz projectava alguma coisa.

Foram sentar‑se a uma mesa vaga, onde Hallet principiou a conversar, em voz baixa, com o companheiro. A conversa, todavia, parecia não agradar a Ben, porque mais de uma vez tentou levantar‑se, bem disposto, mas sem resultado. Por fim, o bom humor desapareceu‑lhe e o rosto tornou‑se‑lhe carrancudo: Hallett devia estar a querer convencê‑lo de qualquer coisa, talvez de que podiam jogar e beber mais, ou ficar na cidade toda a noite. Brite, porém, não se inclinava para nenhuma destas hipóteses. A certa altura, Ben replicou em voz alta:

‑ Raios me partam, se eu fizer isso!

O tom de voz em que foram proferidas estas palavras e o brilho que notou nos olhos do rapaz decidiram Brite a interrompê‑los. Porém, no momento em que ia intervir, surpreendeu Ross Hite a deitar a Hallett um olhar significativo, dominador e ousado, embora disfarçadamente, que o deixou imóvel, transfigurado e em sobressalto. Que queria aquilo dizer?

Dois dos jogadores levantaram‑se, a uma palavra de Hite, e encaminharam‑se para o balcão, enquanto aquele, dirigindo‑se a Hallett, perguntou:

‑ Vai uma partida? A dois o limite.

‑ Aceito ‑ respondeu o interpelado. ‑ Anda, Ben, vamos arrancar‑lhes a pele!

‑ Vou mas é para o acampamento! ‑ declarou Ben, levantando‑se.

Hallett segurou‑o e, encostando ao dele o rosto avermelhado, disse‑lhe o que quer que fosse, em voz inaudível e violenta, a que Chandler reagiu, também com violência, libertando‑se da mão que o prendia e atirando o outro ao chão, com um soco bem aplicado. A seguir baixou‑se, de mão na arma, embora tal precaução fosse inútil: Hallett não perdera os sentidos, mas recompunha‑se muito lentamente. Chandler olhou para ele e para Hite, pasmado do que vira, e saiu, a passos largos, da taberna. Ross dirigiu‑se, em voz baixa, a um dos seus homens, um tipo de rosto patibular, que saiu logo atrás de Ben.

Hallett ergueu‑se e juntou‑se a Hite, à mesa de jogo, esfregando o rosto com a mão. Olhava ameaçadoramente para a porta, como se esperasse ver Chandler regressar. Hite embaralhou as cartas, falando‑lhe em voz baixa, e distribuiu‑as, como se fossem, na verdade, jogar. De tudo aquilo se deduzia que não era a primeira vez que se encontravam. Pouco depois o pretenso jogo terminava e ambos se dirigiram para o balcão. Beberam e saíram, também.

Brite não sabia que pensar, nem que fazer. Por um lado, desejava correr atrás de Chandler e avisá‑lo de que o seguiam; por outro, não queria arriscar‑se a encontrar Hite e Hallett. A incerteza deteve‑o, por momentos, mas acabou por sair, puxando o chapéu para a frente e cobrindo o rosto com ele. A rua estava escura e deserta, e as poucas luzes que nela brilhavam acentuavam ainda mais a escuridão. Ao encaminhar‑se para o armazém, a fim de ir buscar o que encomendara, viu Hite e Hallett atravessarem a faixa luminosa projectada no chão pela porta aberta e recuou, abrigando‑se na sombra. Os dois homens passaram por ele, falando em voz tão baixa que não conseguiu perceber o que diziam. Contudo, o tom do conciliábulo pareceu‑lhe subtil e calculador...

Quando os viu reentrarem na sala de jogo, Brite foi buscar o cavalo e não se sentiu em segurança enquanto não se encontrou no meio da estrada. Foi em vão que se manteve alerta, para descobrir Chandler, chegando até a parecer‑lhe ter ouvido o bater de cascos. Em breve se encontrava em campo aberto, a caminho do acampamento, com mil pensamentos fervilhando‑lhe no cérebro.

 

A estrada que saía de Austin terminava no rio, de onde partia um trilho, ao longo da margem, para Oeste. O velho Colorado levava grossa enxurrada e, àquela hora, oferecia aspecto magnífico, brilhando à luz das estrelas e marulhando suave e melancolicamente. Brite, nas anteriores levas, nunca o encontrara assim transbordante. Conseguiria a manada atravessá‑lo? Decerto, se isso fosse humanamente possível. Era hábito dos guias de gado arriscarem‑se a tudo, para evitar que mais de uma manada se juntasse, pois em tal caso perdia‑se, em regra, mais gado do que se este se tresmalhasse. No entanto, nas ocasiões em que isto sucedia, ficava‑se, às vezes, sem toda uma manada...

Brite abandonara a esperança de encontrar Ben Chandler; se o rapaz conseguira alcançar o cavalo, devia estar perto do acampamento. Contudo, estava convencido de que o vaqueiro chegaria tarde, se alguma vez chegasse! Quanto a Hallett, se voltasse não regressaria antes de romper o dia. Brite, por seu lado, estava ansioso por chegar, para poder contar a Shipman o que vira e ouvir a sua opinião a tal respeito. Em seu entender, Hallett era capaz de tudo, a julgar pelo seu procedimento, em extremo suspeito.

O velho rancheiro foi avançando, lentamente, nos locais mais acidentados, e a trote quando o caminho se apresentava mais plano. Ao fim de uma hora, pouco mais ou menos, começou a avançar de ouvido à escuta, pois o acampamento devia ficar a cerca de uma milha de distância. Não fazia a mínima ideia para que lado, mas, certamente, o gado servir‑lhe‑ia de ponto de referência.

E, de facto, assim aconteceu: localizou‑o pelo mugir das vacas, a alguma distância do rio.

Ninguém se encontrava a pé. Alguns homens dormiam junto do vagão, mas Brite resolveu não acordá‑los. Se estivesse a dormir, quando a guarda rendesse, teria tempo de falar, de manhã. Tirou, portanto, a sela ao cavalo e deixou‑o ir, e, depois, deitou‑se.

Brite acordou sobressaltado, parecendo‑lhe que adormecera apenas havia momentos. Era já dia, porém, e ouvia‑se o bater dum machado, a cortar lenha. Não devia ter sido isso, no entanto, que o acordara.

Relanceou o olhar à sua volta e viu Hallett, escarranchado no cavalo, mostrando no rosto evidentes sinais da noitada anterior. Pan handle e Deuce estavam perto do fogo. Texas fitava o cavaleiro; era manifesto que já haviam falado.

‑ E onde estiveste? ‑ perguntou Joe.

‑ Fui à cidade. Não tencionava demorar‑me toda a noite, mas não pude vir mais cedo ‑ respondeu o outro, friamente.

‑ Não me perguntaste se podias sair...

‑ Pois não, mas saí.

‑ Bem vejo. Fica sabendo que quase te ia custando o emprego!

‑ Não me interessa muito o lugar, Shipman. Ackerman aproximou‑se e perguntou, impulsivo:

‑ Que se passa ultimamente contigo, Roy?

‑ Nada. Estou apenas farto disto, Deuce. Muitos bois e poucos homens...

‑ E por que não me disseste isso mais cedo? Sou responsável por ti; fui eu quem te contratou.

‑ Alivio‑te dessa responsabilidade, então! ‑ declarou Hallett, rudemente.

‑ Raios me partam se eu!...

‑ Cala‑te, Deuce! ‑ ordenou Texas. ‑ Este assunto não te diz respeito e quem fala aqui sou eu!

‑ Pois diz o que tens a dizer e que te leve o diabo! Andas muito cheio de vento, Shipman... ‑ replicou Hallett, sarcástico, acendendo um cigarro.

‑ Pois ando... e sou capaz de atirar contigo, se continuas a falar desse modo. Parece‑me que tencionas ir‑te embora, não é verdade?

‑ Claro!

‑ Seja; estás livre! E agora vou dizer‑te uma coisa: é uma partida suja que pregas ao senhor Brite, pois sabes muito bem que temos falta de pessoal, e, além disso, o teu procedimento parece‑me estranho...

‑ Ah, sim?! Devias saber que o Texas é a terra das coisas estranhas.

‑ Pois é. Mas é, também, a terra dos cobardes e dos amarelos ‑ retorquiu Joe, fitando intensamente o outro.

Hallett reagiu significativamente às palavras do capataz e os olhos de Brite não o desfitaram. Texas Joe acabara de se levantar, tinha uma bota calçada e outra na mão e ainda não colocara os coldres na cintura. Hallett desmontou, de cabeça baixa e com os olhos brilhantes como carvões.

‑ Há mais do que um cobarde aqui ‑ declarou ‑ e vou revelar‑te uma coisa que te vai admirar: foi Ben Chandler quem me convidou a ir à cidade, a noite passada, porque tinha lá não sei o quê a tratar, que eu ignorava o que fosse. Fui com ele, apenas para me divertir, e demorei‑me para impedi‑lo de atraiçoar‑nos...

‑ Ah! ‑ exclamou Texas, pouco convencido, mas, no entanto, impressionado.

Entretanto, Brite calçara as botas e erguera‑se, disposto a intervir. Não foi longe, porém; Ben Chandler interpôs‑se, com a cabeça enrolada num lenço ensanguentado:

‑ Texas ele é... um mentiroso!

‑ Donde vens tu? ‑ inquiriu aquele, surpreendido.

‑ A minha cama é ali, naquelas moitas, Tex. Levantei‑me agora e ouvi a conversa.

‑ E chegaste mesmo a tempo!

A atitude de Hallett transformou‑se, como que por encanto. Primeiro, revelou completo pasmo e incredulidade, e, logo a seguir, emoções mais fortes: raiva, medo, ódio...

‑ Já chegaste, hem? ‑ indagou, desdenhoso. ‑ Apostava que não te lembras da bebedeira que apanhaste a noite passada!

‑ Eu não estava bêbado, Hallett.

‑ E também não te lembras de teres andado à pancada, hem?...

‑ Eu não andei à pancada com ninguém. Que me atiraram à cabeça, isso sim, é verdade; mas voltei, como vês, e agora, por Deus, vou pôr a claro tudo quanto se passou!

‑ Shipman, este cobarde estava tão bêbado, a noite passada, que nem se lembra de ter brigado na taberna do Snell.

‑ É o que tu dizes. Hallett, mas Ben chamou‑te mentiroso. E, se bem conheço os texanos, tal afirmação requer desmentido.

‑ Estive no Snell, a noite passada, Tex ‑ interveio Brite, avançando ‑ e vi o Hallett e o Chandler lá. O Ben não estava bêbado.

No momento de silêncio que se seguiu, a face de Hallett tornou‑se lívida. Agachou‑se um pouco, como se se preparasse para saltar, e, com as mãos nas ancas, afastou‑se lentamente para junto do cavalo. Caíra‑lhe a máscara! Queria fugir, mas o seu aspecto metia medo.

‑ Se abres outra vez a boca, estoiro‑te, Shipman! ‑ gritou, com os olhos quase a saltarem‑lhe das órbitas.

Texas engoliu em seco, com dificuldade, mas ficou silencioso.

‑ Tu não estoiras ninguém! ‑ exclamou Ben Chandler, com ímpeto. ‑ Não passas de um intrujão, Hallett!

‑ Cala‑te... canalha! ‑ replicou o outro, sempre a recuar para o cavalo.

‑ Sim, cala‑te, Ben ‑ aconselhou Brite, compreendendo, enfim, o que a Shipman parecia tão simples.

‑ Mas, senhor Brite, estou envergonhado do que fiz! ‑ protestou Ben, com o rosto a arder. ‑ Quero confessar tudo e desmascarar aquele tratante diante de todos!

‑ Espera! ‑ exclamou Pan Handle Smith, friamente.

‑ Quem me empresta uma arma?! ‑ gritou Chandler.

‑ Quietos! ‑ ordenou Hallet, por seu turno, julgando, evidentemente, encontrar‑se senhor da situação.

‑ Vou desmascarar‑te agora mesmo, Hallett! Não consinto que atires para cima de mim com todas as culpas do teu nojento negócio.

‑ Cala a boca, Chandler! ‑ sibilou Hallett.

‑ Não calo nada! Vou contar o que combinaste com o Ross Hite, vou...

‑ Então, toma!

Mal acabara de proferir estas palavras, Hallett sacou as armas dos coldres e ergueu‑as no ar. No mesmo instante, porém, soou um tiro atrás de Brite e este sentiu o fumo e o lume queimarem‑lhe o rosto. Hallett ficou paralizado, como se um raio o fulminasse, e uma mancha de sangue espirrou‑lhe do olho e da têmpora, do lado esquerdo. Como se lhe houvessem arrancado as pernas, o vaqueiro caiu de borco no chão, com os braços estendidos para a frente, lassos e inertes.

‑ Desculpe, patrão, mas não podia ficar de braços cruzados a ver estoirar os seus excelentes rapazes! ‑ declarou Pan Handle, cortando o silêncio que se estabelecera, com voz fria e vibrante.

‑ Que Deus me ajude! ‑ exclamou Ackerman, excitado. ‑ Teve o que merecia.

‑ Esquecera‑me de que estavas aqui, Pan ‑ murmurou Brite, aliviado. ‑ Eu vi‑o com o Ross Hite, a noite passada.

‑ Ben, conta lá agora o que se passou ‑ ordenou Texas Joe. ‑ Estiveste quase a ir desta para melhor, há pouco... ‑ E tu também, Tex, Lia‑se‑lhe nos olhos! ‑ disse Smith, secamente.

‑ Talvez; não dei por isso. Devo‑te um tiro, Pan Handle. Se alguma vez te vires em apuros...

‑ Anda, Ben, deita lá isso cá para fora ‑ ordenou

Brite.

O rapaz sentou‑se num fardo, com a cabeça entre as

mãos, e respondeu, em voz baixa:

‑ Não há muito que dizer, patrão. O Hallett andou de roda de mim e convenceu‑me a entrar num negócio com o Hite. Uma noite, Ross procurou o Hallett, quando ele estava de guarda, e ofereceu‑lhe quinhentos para deixar uma aberta na manada, de modo que ele e os seus pudessem apanhar uma boa quantidade de gado. Primeiro, eu... eu... concordei: Fui amarelo, não há dúvida, mas o caso andou a moer‑me, de noite e de dia... era um negócio porco... e quando chegou a altura eu... eu... fraquejei... e não fui capaz de fazer o que queriam. E é tudo, patrão.

‑ Meu Deus, Ben! Pensar que nos traíste assim! ‑ exclamou Deuce, desesperado. ‑ Nunca conheci o Hallett muito bem, mas tu, Ben! Trabalhámos juntos tantos anos!...

‑ Tens razão. Não me quero desculpar, mas o Roy... o Roy teve artes de convencer‑me ‑ concluiu, abatido.

‑ Eu perdoo‑te, Ben ‑ disse Brite, comovido. ‑ Espero que não voltes a cair noutra.

‑ Obrigado, senhor Brite! Prometo não tornar, prometo!

‑ Que pensas que a Reddie Bayne dirá de tudo isto? ‑‑ inquiriu Joe, zombeteiro. ‑ Era tão macia para ti...

‑ Não faço ideia, Tex, mas eu próprio lhe contarei.

‑ Ela aí vem com a reserva ‑ anunciou Deuce.

‑ Por que virá com tanta pressa e com aqueles cavalos todos? ‑ notou Joe, admirado.

‑ Tapem o morto ‑ pediu Ackerman.

‑ Não, rapazes ‑ opôs‑se Texas ‑ deixem‑na tomar o remédio de que precisa! Não era ela tão meiguinha com o Hallett?...

Todos se calaram. Reddie deixou os cavalos a umas cem jardas do acampamento e galopou até junto do grupo.

‑ Senhor Brite, Texas, Pan Handle ‑ começou, arquejante, com os olhos muito abertos ‑ trago notícias. Nichols e a sua manada de 2.000 cabeças vêm‑nos no encalço, seguidos de Horton, com outra grande manada de Dave Slaughter.

‑ Malditos! ‑ praguejou Brite, erguendo as mãos.

Texas Joe empregou linguagem igualmente expressiva, embora demasiado forte para os ouvidos de uma rapariga, e continuou a calçar a bota que ainda tinha na mão, o que lhe custou considerável esforço.

‑ Nichols e Horton mandaram um homem dizer‑nos que atravessemos o rio sem demora, pois de contrário alcançam‑nos ‑ prosseguiu Reddie, com as faces em brasa. ‑

Oh, mas reparem! A corrente é tão impetuosa que não conseguiremos que a manada a passe!

‑ Talvez não seja possível atravessar, Reddie, mas tentaremos ‑ respondeu Brite.

De súbito, a rapariga reparou no rosto ensanguentado de Hallett e soltou um grito.

‑ Ah! Que... que aconteceu? Não é... o Roy?

‑ É, sim, pequena.

‑ Oh! Está morto!

‑ Assim parece.

‑ Quem se atreveu?... ‑ indagou, enraivecida.

‑ Sou eu o vilão, Reddie ‑ respondeu Pan Handle.

‑ Você... seu maldito pistoleiro? Por que matou o pobre rapaz?

Pan Handle afastou‑se, Texas Joe voltou a cabeça, Brite fitou‑a em silêncio e Ben ergueu, finalmente, a cabeça.

‑ O quê, Ben, também te atiraram?

‑ Foi de raspão, Reddie... Mas, escute.

E, corajosamente, o pobre rapaz contou a tragédia e a parte que nela tomara, acusando Hallett sem piedade, mas não se poupando a si mesmo.

‑ Ben Chandler! ‑ exclamou atónita.

Passado o primeiro momento de espanto, olhou de Texas para Brite, deste para Hallett e, de novo, com olhos coruscantes, para Ben, como se só assim avaliasse a enormidade da ofensa.

‑ Você concordou em atraiçoar o nosso patrão! ‑ exclamou com desprezo. - Você projectou roubar quem lhe paga o pão! Que nojo, meu Deus!

‑ Mas, Reddie, dê as culpas a quem as tem ‑ interveio Texas. ‑ O Ben é fácil de levar e o Hallett sabia‑o. Sabia, igualmente, que a fraqueza deste diabo é a garrafa. No fim de contas, ele não foi capaz de trair‑nos...

‑ Isso não me interessa! Nunca lhe perdoarei, nem que viva um milhão de anos! E pensar que o porco, o cobardola, ainda há duas noites andava a pedinchar‑me um Beijo!

‑ Bem, nesse caso é importantíssimo saber se o Ben o conseguiu... ‑ zombou Texas.

‑ Não conseguiu, não! ‑ redarguiu Reddie, afogueada. ‑ Mas, se o tivesse conseguido, lançava‑me ao rio, neste mesmo instante!

‑ Reddie, eu perdoei ao Ben ‑ declarou Brite.

‑ Sim? Pois não passam todos de uns cabeças de melão mole! Eu nunca perdoaria uma coisa dessas! Nem perdoarei, nem...

‑ Eh! Venham comer, enquanto está quente ‑ interveio Moze.

Texas Joe observava o rio. Naquele ponto tinha vinte jardas de largura e arrastava na sua corrente impetuosa, redemoinhos e lamacentos toros, troncos de árvore e resíduos de madeira de toda a espécie. Era mister ter‑se em conta a velocidade das águas, pois, se impelissem os animais para baixo de certo ponto, pela certa muitos se perderiam. Duas milhas adiante, do lado oposto, a margem era escarpada e inclinada em toda a extensão que os olhos podiam alcançar.

‑ Patrão, ignoro o que vai acontecer, mas agora já não podemos voltar atrás ‑ murmurou Shipman. ‑ Os rapazes têm as suas ordens e a manada está à vista.

‑ Tentaremos; podemos perder ou ganhar... ‑ respondeu Brite, carrancudo, atraído pela aventura.

‑ Eh, Reddie! ‑ gritou Texas, agitando as mãos. ‑ Avance!

A rapariga respondeu‑lhe com um grito agudo e esporeou o cavalo, para seguir atrás da reserva, compacta e inquieta, mas não indomável. Pan Handle cavalgava um pouco mais abaixo, na ladeira, e Texas do lado de cima da

mesma.

Reddie obrigou os cavalos a descerem a margem numa carreira, ajudada pelos dois vaqueiros. A breve trecho os da frente estavam apontados e entravam nas águas revoltas, soltando relinchos agudos, logo seguidos pelos outros, em boa ordem. Texas cavalgou com eles, até a água atingir certa profundidade, gritando continuamente, a plenos pulmões. Pan Handle disparava em frente, dos animais que se desviavam do caminho devido a Reddie, com os seus gritos selvagens, colaborava eficazmente na tarefa. Quando, por fim, o seu cavalo negro alcançou, também, a água, já os da frente haviam perdido o pé e avançavam a nado.

‑ Bom trabalho, garota! ‑ elogiou Texas, acenando com o chapéu. ‑ Mantenha‑se no sentido ascendente e deixe‑os seguir.

Quando o capataz alcançou, de novo, a margem, a retaguarda da reserva já ia afastada e os cavalos da frente estavam prestes a chegar ao ponto onde a corrente era mais veloz.

‑ Devíamos ter ido com ela, Texas ‑ censurou Pan Handle, muito sério.

‑ Ela tem um bom cavalo ‑ disse Brite, esperançado. Apenas Texas Joe não exteriorizou os seus temores nem as suas esperanças, embora os seus olhos perscrutadores não desfitassem a jovem amazona.

Na última contagem, Brite verificara que possuia cento e setenta e nove cavalos de reserva, que, pelos vistos, gostavam da água. Relinchando e empinando‑se, os animais avançavam nas águas profundas, seguidos pela intrépida rapariga que, sem cessar, agitava o chapéu e lançava aos céus o seu grito estridente. Como brilhava ao Sol a sua cabeça ruiva!

Brite perdeu todos os receios, ao ver como o belo cavalo preto fendia o rio, nadando como se estivesse no seu elemento. Reddie mantinha‑o voltado para a nascente, do lado esquerdo da reserva. Troncos e toros de madeira flutuavam no meio deles, dificultando‑lhes o avanço, e, aqui e ali, alguns animais tinham de erguer‑se, para saltarem por cima do obstáculo, desviarem‑se, mergulharem e virem de novo ao de cima, para prosseguirem o seu caminho. O rio arrastava os que apanhava na corrente, com enorme velocidade, deixando para trás os que nadavam em águas mais calmas, mas nem mesmo assim eles se davam por vencidos, como se adivinhassem que parar seria a morte. Em breve todos os animais haviam alcançado o centro do leito do rio, onde a corrente era mais impetuosa, e, então, foi magnífico o espectáculo que se deparou aos olhos de Brite. Se não tivesse já dado o seu coração à jovem órfã, muito antes de vê‑la vencer o Colorado sozinha, recusando ajudas, dar‑lho‑ia agora, com alegria. A mancha negra das cabeças dos cavalos, ora se desintegrava, ora se alongava e torcia, ao longo do rio, numa cena de indescritível beleza, selvagem e maravilhosa.

Uma milha para além do ponto de observação de Brite e dos seus homens, os cavalos da frente atingiram um sítio onde a água era menos profunda e a longa fila curvou‑se, obediente, naquela direcção. A um e um, primeiro, depois a dois e a três, e, finalmente, em grupos numerosos, os cavalos começaram a chegar à margem, e em breve o corpo saía‑lhes da água molhado e luzidio, e todos se sacudiam e espojavam na terra. Em poucos minutos o último cavalo pisava terra firme, montado por Reddie Bayne!

‑ Com os diabos, isto foi grandioso! ‑ exclamou Texas, ofegante.

‑ Bonito, sem dúvida ‑ concordou Pan Handle.

‑ Sim, os nossos receios eram infundados ‑ acrescentou Brite.

‑ Patrão, é melhor mandá‑la parar! ‑ gritou, de súbito, Pan Handle, vendo que a rapariga se metia novamente à água. ‑ A travessia para este lado é diferente; não se pode contar com a corrente.

‑ Tens razão. Valha‑me Deus! ‑ exclamou Texas, tirando a arma e disparando duas vezes. ‑ Volte para trás! Volte para trás! ‑ gritou, em voz portentosa, acenando o chapéu.

Reddie ouviu‑o, pois acenou com a mão, em resposta, mas continuou a avançar. Em breve o cavalo perderia o pé. Texas disparou as restantes balas que tinha na arma, fazendo com que os tiros estoirassem na água, a pouca distância da rapariga, e gritou, de novo, como um gigante:

‑ Volte para trás, Reddie! Reddie, agora não é a mesma coisa! Diabos a levem, estou a dar uma ordem!

O grito estridente da rapariga chegou até eles, abafado, trazido pela forte ventania.

‑ É tarde, Tex; já entrou no rio e não pode retroceder ‑ disse o patrão.

‑ Deixe‑a vir, Brite; não deve haver novidade. Com um cavalo daqueles!... ‑ exclamou Pan Handle.

Texas ficou silencioso e imóvel, como uma estátua equestre de bronze. Grandes ondas de água enlameada caracolavam sobre o pescoço e a cabeça do cavalo, subiam até aos ombros da rapariga e arrastavam‑na na enxurrada, como uma simples palha. Porém, após avançar umas cem jardas, o fogoso cavalo conseguiu desviar‑se da corrente. Brite viu Reddie detê‑lo, para deixar passar um toro de madeira, e, logo a seguir, obrigá‑lo a voltar‑se, para dar passagem a grandes ramos de folhagem. Tanto o cavalo como a amazona sabiam o que faziam! De novo o animal entrou na corrente; mas Brite compreendeu, preocupado, que não conseguiria alcançar o ponto de onde a reserva partira. Já Pan Handle corria em auxílio da rapariga quando a montada desta, nadando com uma velocidade de que não a julgariam capaz, ergueu a cabeça, saiu parcialmente fora de água e, com um impulso vigoroso, aproximou‑se da margem. E fê‑lo com um à vontade digno de nota! A trote, Reddie chegou a terra.

No mesmo instante, Texas saltou do cavalo e, no auge da raiva, de desespero ou do que quer que fosse, atirou o chapéu ao chão e começou a andar de um lado para o outro, praguejando como um possesso. Brite percebeu que o seu capataz dava, assim, escape à suprema angústia de que fora presa.

‑ Volte para trás, Pan ‑ disse Reddie, alegremente. ‑ Foi cómico! Que pensa do meu cavalo?

‑ É excelente, mas você arriscou‑se, sem necessidade nenhuma.

‑ Não se esqueça de que vão precisar de mim ‑ declarou a rapariga, notando os gestos desordenados de Texas. ‑ Demónio, o nosso capataz está furioso!...

E, sem mais demora, correu para junto de Texas e de Brite. Valia a pena olhá‑la naquele momento, pálida de excitação, com os olhos escuros muito abertos e brilhantes de atrevimento, como quem espera, sem receio, ‑uma sentença. Estava completamente encharcada e a sua blusa não lhe escondia agora o contorno suave do busto.

‑ Lamento tê‑los assustado, cavalheiros ‑ declarou, um pouco a medo ‑ mas sabia que precisariam de mim e tive de vir.

‑ Eu gritei‑lhe, Reddie Bayne... ‑ começou Texas, severo.

‑ Com certeza! Eu ouvi!...

‑ Ordenei‑lhe que voltasse para trás! Também ouviu isto?

‑ Caramba, se ouvi! Berrou com tal força que até os mortos ouviriam!

‑ Nesse caso, não lhe mereço nenhum respeito, como capataz desta leva?

‑ Nem que fosse o próprio senhor Brite a mandar‑me retroceder eu teria obedecido! ‑ replicou Reddie, corajosamente, embora a sua palidez se acentuasse e os olhos se lhe dilatassem mais.

‑ Desobedeceu‑me, então, mais uma vez, deliberadamente? ‑ berrou Texas.

‑ Concordo que sim.

‑ E não só deixou de fazer o que lhe mandei, como nos assustou a todos, só para se tornar notada! É uma rapariga orgulhosa, mas não voltará a desorganizar esta leva!

‑ Não?...

‑ Escute, Reddie Bayne: nem por ter conseguido que o patrão coma pela sua mão, nem por ser formidavelmente bonita, nem por eu estar doido de amor por si, me levará a consentir‑lhe que me desobedeça! Você leva a vida dos guias, recebe soldada de guia e sabe as manhas dos guias!

Dizendo isto, aproximou‑se do cavalo dela e, estendendo a mão magra e morena, agarrou‑a pela gola da blusa e arrancou‑a da sela.

‑ Oh! ‑ gritou, com a voz estrangulada. ‑ Como se atreve? Deixe‑me! Texas, que vai...

‑ Não posso atirar‑lhe, como faria a um homem, nem espancá‑la, como já fiz uma vez ‑ prosseguiu, martelando bem as palavras ‑ mas vou, com certeza, obrigá‑la a ver tudo escuro!

E, executando a sua ameaça, segurou‑a pelos ombros, sem que Reddie oferecesse a mínima resistência, muda de pavor. Brite calculou que o insólito procedimento do rapaz se devia mais ao facto de haver confessado o seu amor, do que à intenção de aplicar a Reddie um bom castigo corporal.

Ela fitava‑o com expressão que Texas devia ter dificuldade em sustentar, mas, em breve não via nada, pois ele sacudiu-a de tal modo que, em vez de um ser humano, mais parecia uma porção de geleia sujeita a tremenda força vibratória. Quando, por cansaço, ele a largou, Reddie caiu na areia, sem deixar de agitar‑se.

‑ Aí tem... «miss» Bayne ‑ arquejou ele.

‑ O quê... Texas Jack? ‑ retorquiu, atrevida.

‑ Só Deus sabe! ‑ exclamou ele, desesperado.

‑ Aí vem o gado! ‑ gritou, de súbito, Pan Handle.

 

Um touro velho e corpulento conduzia a manada em forma de lança, pela extensa ladeira. Densamente amontoados, irresistíveis na sua marcha lenta, os animais dirigiam‑se para o rio, qual avalanche sem fim.

‑ Que sorte, já apontados! ‑ gritou Texas, alegremente. ‑ Que sorte!

‑ Ordens, Texas, ordens! ‑ pediu Brite, pouco à vontade. ‑ Não tarda que estejam em cima de nós!

‑ Não há ordens nenhumas a dar, patrão, além de se manterem na direcção ascendente do rio. Os rapazes estão avisados. Ben, tu segues no vagão. Nós voltaremos atrás e ajudá‑lo‑emos a atravessar, também.

‑Vou divertir‑me à grande! ‑ exclamou Ben, correndo a selar um cavalo.

Brite fez o mesmo, enquanto Texas praguejava contra Ben, por este não cumprir as suas ordens. Quando montou, já a formidável manada ‑ um triângulo colorido e movediço ‑ começara a descer, direita ao rio. Os guias cavalgavam continuamente, para a frente e para trás, de ambos os lados dos cornúpetos, gritando, assobiando e fazendo grandes gestos. No entanto, a algazarra dos vaqueiros perdia‑se quase por completo no formidável ressoar de milhares de cascos, batendo a terra em imponente tropel.

‑ Reddie ‑ chamou Texas, ansioso, voltando o rosto severo, de lábios apertados e olhos de falcão para a rapariga ‑, isto é novo para si. Sei que o seu cavalo nada muito bem, mas isso de nada lhe servirá, se seguir mal.

Quer ficar perto de mim, para que possa avisá‑la, se não for bem?

‑ Com certeza ‑ aceitou, complacente.

‑ Patrão, o senhor vai com eles ‑ ordenou Texas. ‑ E tu, Pan, recuado, ao centro. Que ninguém se ponha no meio da manada! Vamos, Reddie.

Os rios, por muito caudalosos que fossem, não metiam medo ao velho touro que, à frente da sua manada, ágil como um vitelo, corria pela encosta arenosa abaixo, mugindo.

Todos os sons foram abafados pelo estrépito ensurdecedor daqueles milhares de cabeças de gado, marchando em massa compacta e fazendo tremer o chão debaixo dos pés. Por pouco, o chapéu de Brite não lhe saltava da cabeça, tal o seu pasmo! Nenhuma audácia, nenhuma ordem, nenhuma boa sorte seria capaz de impedir uma catástrofe, se ela tivesse de dar‑se, naquele momento.

Texas meteu a montada ao rio, à frente do velho touro, agitando o laço sobre a cabeça e com as faces vermelhas e congestionadas de gritar. Brite, porém, não o ouvia. O cavalo negro de Reddie mergulhou na água lamacenta, atrás do de Texas, logo seguido por uma das alas da manada. Centenas de vacas e novilhos procuravam alcançar os companheiros que os tinham precedido, logo imitados por muitos outros, numa confusão e ruído impossíveis de descrever. Os da frente, contudo, uma vez na água, espalharam‑se, para conseguirem mais espaço, o que podia constituir dificuldade para os guias e impossibilitá‑los de manter a manada apontada.

Através daquela amálgama de corpos e chifres, Brite divisou Ben Chandler, a jusante da corrente, bem perto dos primeiros bois. Esquecido ou desinteressado do perigo que corria, o rapaz, desejoso de resgatar a sua falta, não sentia medo. Depressa, no entanto, deixou de ver a cabeça envolta na ligadura ensanguentada. San Sabe e Ackerman, ambos do mesmo lado, cediam lentamente terreno, com o fito de ficarem atrás da manada logo que os últimos animais entrassem na água. Rolly Little, Holden e Whittaker passaram por Brite, de olhos brilhantes e excitados.

Quando tornou a olhar para o rio já o velho touro entrara nas águas mais profundas, levando atrás de si, como carneiros submissos, a maior parte dos seus companheiros. Texas perdeu o pé, afastando‑se para longe, rio acima, o mesmo acontecendo a Reddie. Pouco depois, a retaguarda da manada passou por Brite, berrando e matraqueando o solo com os cascos. Era tempo de juntar‑se aos guias.

Brite esporeou a montada, deitou um último olhar à corrente onde um milhar de cabeças armadas de grandes chifres deslizava, num largo semicírculo, e entrou, também, na água, ao mesmo tempo que os últimos bois. O rugido do trovão nada era, comparado com o fragor produzido pelos animais, numa estranha mistura de silvos, mugidos e estalar de ossos. Esse barulho diminuía, porém, à medida que o gado ia perdendo pé. Texas e, depois, Reddie, desapareceram da vista, na ocasião em que a manada pareceu querer mudar de direcção. A seguir, sumiram‑se Ackerman e Holden, ficando apenas visível Whittaker. Brite notou, por fim, a presença de Bender, cavalgando perto de si, muito assustado.

Num tremendo esparrinhar de água e entrechocar de corpos, toda a retaguarda da leva se afastou da margem. Como por magia, estabeleceu‑se quase absoluto silêncio, apenas cortado por um leve e ameaçador marulhar, provocado pelas patas dos animais, revolvendo as águas. Brite compreendeu que lhe calhara um bom cavalo para aquele trabalho, observando a facilidade com que a sua montada enfrentava os obstáculos que lhe surgiam pela frente. De facto, eram maravilhosos aqueles pequenos corcéis espanhóis de sangue árabe!

Entretanto, o aspecto do rio modificara‑se extraordinariamente. Desaparecera toda a espuma branca e apenas se via, de través, uma longa fila de cabeças negras e compridos chifres, brilhando ao Sol. O terror e a fúria dos primeiros momentos haviam desaparecido; em seu lugar, ficara somente a beleza esmagadora da mais audaciosa aventura a que Brite assistira. Com efeito, nada se podia comparar ao fenomenal espectáculo que lhe enchia os olhos de pasmo, nem mesmo a travessia do rio Brazos por um milhão de búfalos, que uma vez presenciara! Nessa ocasião, os animais eram senhores absolutos da situação; aqui, pelo contrário, o Colorado era o grande dominador.

O Sol espelhava as águas que reflectiam o azul magnífico do céu, e, na margem oposta do rio, as árvores verdejantes, cada vez mais perto, convidavam cavaleiros e gado a recolherem‑se sob as suas copas frondosas...

Brite alcançou o centro da corrente, cujas ondas o encharcaram até ao pescoço. À sua direita, os três guias esforçavam‑se por afastar os cavalos da manada, quando, de súbito, grande porção de resíduos de madeira se aproximou, na crista de uma onda mais alta do que as outras. Já era ter pouca sorte, deparar com aquele contratempo, precisamente a meio do rio e na ocasião mais crítica!

Brite deteve a montada, para evitar o choque, e, com os pés e as mãos, afastou os troncos e os ramos. Mas já uma árvore inteira, ainda verde e cheia de folhagem, rodeada por grossa barreira de toros, se encaminhava para o meio da manada, sem que os guias pudessem deter‑lhe o avanço. Aliás, eles próprios tinham de cuidar de fugir‑lhe, o que, pelo menos a dois, estava longe de ser fácil.

O veloz aríete fendeu a manada, obrigou a retaguarda a desviar‑se um pouco para jusante e abriu uma clareira entre as duas metades, pressagiando desastre. De facto, se a metade posterior continuasse rio abaixo, a sua perda seria inevitável.

Brite aproximou‑se e acabou por ficar enredado em grandes ramos que não vira, pois a sua atenção estivera concentrada nos acontecimentos. Se não fosse o seu inteligente cavalo, não se teria desenvencilhado com facilidade. Era mister ter mais cuidado. Ao olhar para trás, surpreendeu‑se de ver o vagão, um simples ponto na linha do horizonte, vir rio acima. À sua frente surgia já, a pouca distância, a margem agreste e inclinada que Texas recomendara que não ultrapassassem. De pé nos estribos, Brite notou que as primeiras cabeças de gado estavam prestes a alcançar a margem e que Texas, que as precedia, acabara de pôr pé em terra firme.

De súbito, o seu cavalo foi apanhado num remoinho que o obrigou a dar várias voltas sobre si mesmo, com tal violência que o velhote se dispunha a desmontar, para aliviá‑lo do seu peso, quando ele conseguiu libertar‑se. A próxima descoberta de Brite encheu‑o de júbilo: a vanguarda da manada saía da água, acompanhada por dois cavaleiros. Satisfeito, voltou‑se, para ver o que se passava com a metade que ficara em perigo: os animais retrocediam para meio do rio, mugindo, assustados. Ouviu um tiro: era Chandler que, do lado oposto, procurava obrigar o gado a retomar a direcção conveniente. Com efeito, os esforços do rapaz foram parcialmente coroados de êxito, mas a corrente, veloz e indomável, começou a arrastar os animais rio abaixo, para longe da margem, direito à curva para lá da qual apenas a morte podia esperá‑los. Brite resignar‑se‑ia a perder todas aquelas cabeças, mas nunca um dos seus guias. Sob este aspecto, sempre fora bafejado pela sorte nas anteriores levas; por isso, agarrou‑se à esperança de que, algures para lá da curva, num ou noutro banco de areia, Chandler conseguisse salvar‑se.

Naquele momento um dos três rapazes que seguiam à frente ganhou a margem e partiu a galope, com as crinas do cavalo esvoaçando ao vento. Não reconheceu a montada de Texas nem a de Pan Handle; por conseguinte, devia ser Ackerman que corria em auxílio de Chandler.

Quando, finalmente, Brite encontrou de novo pé, atrás dele havia, apenas, poucas centenas de cabeças de gado, cansadas, mas salvas, pois todas tinham já chão sob as patas. Na margem encontravam‑se três vaqueiros, esperando‑as; nenhum deles, porém, era Texas ou Reddie. Bender, Pan Handle e San Sabe vinham no coice dos animais, com os olhos postos rio abaixo, sem dúvida na parte da manada que se desgararra.

Pouco depois, Brite juntou‑se aos três rapazes que estavam em terra, assim como os que precedera. No rosto de todos era visível o abatimento.

‑ Tivemos pouca sorte, patrão ‑ lamentou‑se Pan Handle, que parecia o único capaz de falar. ‑ A manada dividiu‑se e a metade da retaguarda foi rio abaixo, levando Chandler consigo. Ainda podemos dar‑nos por felizes de não terem ido mais com ele.

‑ Quero lá saber do gado! ‑ exclamou Bride. ‑ Há alguma esperança de salvar Chandler?

‑ Sim... há a possibilidade de encontrar algum banco de areia ou qualquer outra coisa para onde possa subir. Quanto ao gado, não dou nada por ele. O Deuce foi lá por cima, ver o que podia fazer, e o Texas e a Reddie seguiram‑no.

‑ Acampar. Há muita erva para o gado, que com certeza, não está em condições de ir mais longe, esta noite.

‑ É preciso trazer para aqui o vagão, embora eu não dê já grande coisa por ele.

‑ O vagão foi construído para flutuar, patrão ‑ esclareceu San Sabe. ‑ Tem fundo duplo, de pranchas grossas. Não se preocupe com os mantimentos.

Escalaram a ladeira arenosa, até um planalto arborizado e relvado, ideal para acamparem. Os cavalos estavam, também, extenuados, após a movimentada travessia.

‑ Desaparelhem os cavalos, rapazes ‑ aconselhou Brite, juntando o gesto à palavra. ‑ E um de vocês acenda o lume, para nos secarmos.

Um pouco mais tarde, estava Brite em mangas de camisa, diante do lume, apareceram Texas Joe e Reddie.

‑ Não vale a pena perdermos tempo a lamentar‑nos ‑ começou o rapaz, filosoficamente. ‑ Creio que Ben se foi. Quanto ao gado... há uma possibilidade em mil de o recuperarmos. Já não é mau termos conseguido passar o resto... e, agora, o vagão do Moze... Reddie, o seu cavalo não parece cansado! Também, você é leve como uma palha... Empreste‑o a San Sabe, para ir ajudar a trazer o vagão.

‑ Com certeza! Mas eu também gostava de ir...

‑ Valha‑me Deus, ainda não está farta de águas?!

‑ Oh, gostei imenso, enquanto a manada se não tresmalhou! Pobre Ben. Se o perdermos, nunca mais perdoarei a mim própria o que lhe disse!

‑ Tem razão; de facto, falou de mais... Se me dissesse tanto a mim, ter‑me‑ia afogado logo!

‑ Não... não... diga que tive... a culpa! ‑ suplicou Reddie quase a chorar.

‑ Claro que não; estava a brincar. O Ben quis, apenas, resgatar a sua falta. Pela minha parte, considero‑a mais do que saldada!

‑ E eu vou rezar para que ele se salve ‑ declarou a jovem, desmontando.

San Sabe mudou a sela do cavalo negro de Reddie e seguiu Texas, que se dirigia já para a margem.

O grupo que ficou a enxugar‑se, junto da fogueira, estava sombrio, sobretudo a rapariga, que parecia infeliz e doente e não despregava os olhos das águas lamacentas do rio.

Texas e San Sabe fizeram passar bem maus bocados aos seus companheiros, pois chegaram a ficar totalmente submersos, mas lá conseguiram atravessar para o outro lado, sãos e salvos. Entretanto, Moze conduzira o vagão para a margem, ao seu encontro. Embora estivesse longe demais para distinguir o que se passava, Brite calculou que os rapazes deviam ter lançado o vagão, para ajudarem a parelha que o rebocava. De facto, não lhes deu muito trabalho fazê‑lo entrar nas águas lamacentas, que se ergueram em grandes cachões. Brite conservava poucas esperanças quanto ao resultado de mais aquela aventura e, no momento em que os viu afastarem‑se da margem e serem arrastados rio abaixo, pensou para consigo que isso era o prenúncio de mais um desastre. Mas o vagão flutuava como um verdadeiro barco e aproximava‑se, a pouco e pouco, do acampamento. Afinal, preocupara‑se sem motivo! Consolava‑o, porém, verificar que não fora o único a perder a serenidade: Moze, apesar de preto, parecia pálido...

Os guias não acolheram o cozinheiro com as suas habituais graçolas, facto que Moze logo notou, enquanto dizia, revirando os olhos:

‑ Parece‑me que terão de secar as vossas camas, pois pu‑las todas debaixo dos mantimentos!

‑ Oh! E o meu tabaco? ‑ lamentou‑se um.

‑ Devia esticar‑te, negro! ‑ acrescentou Whittaker, severo. ‑ Tinha a minha única camisa de reserva na cama!

‑ O que vem a ser isso de esticar? ‑ quis saber Moze, começando a tirar os fardos do carro. ‑ Vocês parecem‑me todos com cara de caso, sabem?

‑ Perdemos metade do gado e o Ben Chandler ‑ respondeu Brite.

‑ Deus todo poderoso! Quando vi este rio, logo me pareceu que ia haver desgraça!

Com esta frase terminaram as brincadeiras, assim como a conversa. Aproximava‑se o meio‑dia e Bride teria mandado o gado seguir caminho, se fosse possível, mas tanto a manada como os cavalos estavam esgotados.

A leva que vinha atrás deles devia ficar aquela noite na margem sul e atravessar o rio amanhã, proximidade que não era nada tranquilizadora, mas que não se via como evitar. Pouco depois, os silenciosos vaqueiros estremeceram, vendo surgir Deuce Ackerman. O seu desalento e a forma como conduzia o cavalo eram significativos. Entrou no acampamento com o rosto transfigurado de pesar, enlameado da cabeça aos pés e mais se deixou cair do que desceu da sela.

‑ Aproxima‑te do fogo, Deuce; eu desaparelho o cavalo ‑ ofereceu‑se Little, solícito.

‑ Senhor Brite, o Chandler afogou‑se ‑ informou o rapaz.

‑ Já calculávamos ‑ disse aquele, resignado.

‑ Arranjem‑me de beber, se querem que lhes conte o que se passou.

Ackerman não parecia, porém, ter pressa de relatar a tragédia, e só ao fim de certo tempo começou, contrafeito:

‑ Cavalguei ao longo da encosta, pois o idiota do Chandler não desistia de apontar aquele punhado de cabeças, gritando e rodando o laço, incansavelmente. Berrei‑lhe, até quase rebentar os pulmões, vezes sem conta, mas parecia não me ouvir. Viu‑me, contudo, passado um bocado. Acenei‑lhe que saísse do rio, mas não fez caso: continuou a avançar com a manada, e eu igualmente. Ainda não percorrera três milhas, quando notei, do meu lado, muito ao longe, uma larga brecha na encosta, e, diabos me levem, se ele a não viu, também! Mas continuou a incitar o gado, como se tivesse saído do inferno, para aquele lado, sempre, sempre para aquele lado! E eu seja maldito se não os conseguiu manobrar para terra, precisamente quando a corrente já os levava de roldão! A água, por ali perto, estava enlameada, mas, assim que os da frente pisaram chão, ganharam vida. Meu Deus, como eles saíram de lá!

‑ Queres dizer que Ben conduziu o gado para terra firme? ‑ perguntou Texas, incrédulo.

‑ Seja danado, se não o fez! Mas o seu cavalo estava coberto de água, e, como o gado lhe bloqueava o caminho, ele não pôde sair da corrente e acabou por ser levado rio abaixo. Cavalguei com quanta velocidade pude, gritando ao Ben que se aguentasse, mas ele já estava montado no pescoço do cavalo! Se não fosse a corrente, aquele... aquele estúpido teria morrido. Mal sabia nadar! Procurei uma aberta e dirigi‑me para lá. O Ben passou perto e eu atirei‑lhe o laço. Da primeira vez, lancei‑o em boa direcção, mas era curto e o Ben não o apanhou. Continuei a correr e a atirar o laço, mas em vão: o terreno era quase a pique e muito irregular, e estive mesmo a cair, também. Vendo que estava a perder tempo, andei para diante um bom bocade e esperei que ele passasse por um local adequado... mas, quando estavam quase a chegar ao alcance do meu laço, o pobre cavalo... afogou‑se. O Ben fez um fraco esforço para se aguentar... tinha‑me visto... abriu a boca para falar... só um gorgolejo... a água encheu‑lhe a boca... cobriu‑lhe o rosto... Meu Deus! Depois, flutuou, ergueu uma das mãos, depois o corpo, outra vez a cabeça... e pronto!

Reddie rompeu a chorar e fugiu de ao pé do lume. Texas ajoelhou‑se, sem dizer nada, e começou a deitar pequenas achas na fogueira.

‑ Com Ross Hite ou sem Ross Hite... Ben pagou bem a sua conta! ‑ murmurou, como se falasse consigo próprio.

‑ Foi terrível, Ackerman ‑ declarou Brite, comovido.

‑ Eu... nunca mais esquecerei os seus olhos! ‑ disse o rapaz, tristemente. ‑ Ele queria salvar‑se, queria, que eu vi! Quando me viu a primeira vez, não se interessou, só queria apontar o gado para terra... e conseguiu‑o! Nunca vi nada semelhante!

‑ Vou selar um cavalo e procurar os animais que ele salvou ‑ decidiu Texas, carrancudo e grave. ‑ A que distância, mais ou menos, devem estar, Deuce?

‑ Não sei; talvez quatro milhas...

Shipman afastou‑se, surdo ao pedido de Brite para que ficasse um pouco mais. Talvez quisesse estar só, disposição que, a pouco e pouco, todos os homens foram manifestando. Reddie escondera‑se, com certeza, entre o arvoredo; como mulher, devia tomar a tragédia mais a peito, tanto mais que, em parte, se julgava responsável pelo sucedido.

‑ Pelos vistos, e julgando pelo que ouvi em Dodge e Abilene, estamos a aprender o que é uma verdadeira leva de gado! ‑ murmurou Pan Handle. ‑ É um jogo em que as cartas melhores estão nas mãos do adversário...

‑ A culpa é minha, da minha ganância ‑ acusou‑se Brite, sincero. ‑ Metade da manada era suficiente...

‑ Nunca se pode adivinhar o que vai suceder ‑ sentenciou Whittaker.

Moze chamou‑os para o almoço e todos acorreram, famintos, embora sem pressas. Reddie Bayne não apareceu e Brite decidiu deixá‑la só, até os guias se retirarem. Mas, depois de comerem, os rapazes deixaram‑se ficar no acampamento, abatidos pelo infortúnio e, sem dúvida, à espera que Texas voltasse.

‑ Ele já devia ter regressado ‑ notou Deuce. ‑ Não será melhor eu ir dar uma olhadela?

‑ Podiam desencontrar‑se.

Fizeram conjecturas, quanto aos prováveis movimentos das duas metades da manada, procurando convencerem‑ce, sem darem por isso, de que tudo corria bem. O calor da fogueira secou as roupas de Brite e encheu‑o de sono. O velhote deitou‑se debaixo de uma árvore e adormeceu. Quando acordou, o Sol encaminhava‑se já para o poente e Pan Handle, Reddie Bayne, Rolly Little e Texas formavam grupo, de caras abatidas.

‑ Já voltaste, Tex? ‑ perguntou Brite, sentando‑se, com as articulações doridas.

‑ Sim, patrão ‑ respondeu o outro, com voz cansada.

‑ A que distância estão?

‑ Bem... contando a meia hora a que já aqui estou... talvez a umas dez milhas para Norte...

‑ O quê?!

‑ É como lhe digo. Avançam como se o diabo lhes fosse no encalço!

Adivinhando nova tragédia, Brite encheu‑se de coragem e perguntou, friamente:

‑ Como?

‑ Patrão, custa‑me dizer‑lhe isto ‑ começou o capataz, acabrunhado. ‑ Reddie, tape os ouvidos que quero falar à vontade! Vejo tudo vermelho! Serei um poltrão, um amarelo, e terei de embebedar‑me ou de endoidecer, se não matar...

‑ Com a breca, explica‑te melhor, que não percebo nada! ‑ interveio Brite, zangado.

‑ Explica‑te tu, Pan Handle.

‑ Trata‑se de um negócio porco, Brite, mas que não me parece tão mau como ao Texas ‑ obedeceu o pistoleiro. ‑ Texas foi à procura do gado ou da sua pista, mas não o encontrou em parte nenhuma. Por isso, subiu a um monte e localizou‑o: corria para Norte, bem embalado, à frente de uns dez guias.

- Ross Hite! ‑ explodiu Brite, enraivecido, erguendo‑se

de um salto.

‑ É o que pensa Texas. Por isso, voltou para trás, para nos avisar, como era justo que fizesse, pois estávamos todos em cuidado. O Joe vinha furioso e queria cavalos frescos, para correr atrás do bando de Hite e furá‑los. Os rapazes eram da sua opinião, menos eu. Não concordo, e quanto mais penso no caso, mais me convenço que tenho razão.

‑ Sou do teu parecer, Pan Handle ‑ declarou Brite, imediatamente. ‑ Temos pouca gente e, se déssemos caça ao Hite, haveria luta e algum dos nossos poderia ser morto. Por outro lado, não me agradaria deixar aqui a manada, sozinha; poderia juntar‑se com as que vêm atrás... Não! É melhor conservarmos o pássaro que temos na mão.

‑ Exactamente! ‑ aprovou Pan Handle, satisfeito. ‑ Agora, se me ouvirem, talvez vejam o caso como eu: Ross Hite não poderá afastar‑se tanto que não possamos alcançá‑lo num dia. Deixemo‑lo, portanto, em paz, mantenhamo‑nos no seu encalço, com um dia de diferença... e ele acabará por conduzir o nosso gado, poupando‑nos trabalho! O tipo é tolo chapado: não há mercado de gado antes de Dodge; logo, é para aí que terá de ir, pois Abilene fica longe. Uma noite antes de entrar em Dodge, arranjarei um cavalo rápido, atravessar‑me‑ei na pista e esperarei por ele.

‑ A ideia é boa, patrão, excepto no que respeita a ele ir só. Eu não consinto! ‑ afirmou Texas.

‑ Ir ao encontro de Hite? ‑ monologou Brite, aparvalhado.

‑ Foi o que eu disse ‑ corroborou Pan Handle, carrancudo.

‑ Bem, Pan, é uma ideia generosa, da tua parte! ‑ admitiu o velho.

Compreendera perfeitamente: Handle queria arrostar o perigo sozinho, como um autêntico pistoleiro que era. Os homens da sua espécie buscavam o dramático, procuravam tirar vantagem da surpresa, mas não consentiam que outros se arriscassem.

‑ Patrão, pensando melhor, concordo com o Pan ‑ declarou Texas. ‑ Mas se esse é o último meio de recuperarmos o nosso gado, tão certo como Deus estar no céu, alguma coisa mais no‑lo devolverá! Temos mais de uma dúzia de rios para atravessar, pele‑vermelhas, búfalos... Esse tal Hite não é guia de gado e a sua gente é composta por ladrões de cavalos, alguns deles já maduros, que não sabem guiar manadas. Hite é doido; pensa embolsar 30.000 dólares e, por isso, seguirá a pista e não largará a manada, mas tem tantas possibilidades de tocar na massa como uma bola de neve de se conservar no inferno!

 

A noite caiu quente, já com ar de Verão, na doçura balsâmica. As estrelas brilhavam, prateadas, por entre a folhagem das árvores e o rio murmurava ao longo da margem, sem o ar ameaçador que tivera durante o dia. As rãs coaxavam, melancolicamente... Toda a vasta planície estava mergulhada em silêncio, como se dormisse, mas os ladrões e a morte, esses, não descansavam!

Brite sentia tudo isto enquanto procurava, inutilmente, adormecer. Reddie estendera a sua cama perto da dele, à sombra das grandes árvores. De repente, uma silhueta alta e magra interpôs‑se entre o velho e o firmamento: Texas Joe andava de um lado para o outro, como de costume, horas mortas, talvez preparando‑se para chamar os novos guardas... Desta vez, porém, contornou cautelosamente o leito de Brite e parou ao lado de Reddie, ajoelhando‑se, um momento depois.

Seguiu‑se uma pausa e, por fim, sonolenta, a rapariga murmurou:

‑ Quem está aí?

‑ Caluda! Não fale alto que acorda o patrão... É o Tex.

‑ Outra vez, meu Deus! Não pode deixar‑me dormir em paz? ‑ replicou a jovem, num murmúrio descontente.

‑ Ouvi‑a chorar e quis vir, mas achei melhor esperar que todos dormissem...

‑ Mas, que quer você?

‑ Conversar um bocado. De dia nunca tenho oportunidade... e desde que vi o Ben sentado ao pé da sua cama, naquela noite, fiquei doido.

‑ Não dei por isso... ‑ observou, sarcasticamente. ‑ Se quer conversar, chegue‑se para lá. Está quase sentado em cima de mim!

‑ O Ben também estava apaixonado por si, não estava?

‑ Texas, não sei se ele «também» estava, mas você diz, mas sei que estava ou que, pelo menos, assim o jurava. Eu não acredito em vaqueiros.

‑ Bem vejo, embora não sejam tão maus como julga, Reddie. Gostava do Ben?

‑ Claro que não!

‑ Mas consentiu que a beijasse!

‑ Não consenti coisa nenhuma! Naquela noite em que o apanhou, eu não tive culpa do que sucedeu. Ele agarrou‑me, mas não me tocou na boca!

‑ Ah! Então é diferente... Desculpe.

Seguiu‑se um longo silêncio. Brite sentiu desejos de tossir, de virar‑se ou de fazer qualquer outra coisa, para avisar o jovem de que estava acordado, mas a vontade de saber o que se ia passar foi mais forte e venceu. O rio continuava a seguir serenamente o seu curso, as rãs a coaxar e as folhas das árvores, embaladas pela aragem, a emitirem um doce sussurro... Inexplicavelmente, um não sei quê tornava aquela noite maravilhosa e ímpar.

‑ Era só isso que queria dizer‑me? ‑ perguntou Reddie.

‑ Não. Tenho sempre muito que dizer... mas, quando chega a altura, não sou capaz ‑ murmurou Texas, tristemente. ‑ Tenho pena do Ben. Não era grande coisa, e eu sabia‑o há algum tempo, mas soube morrer bem.

‑ Não me faça chorar, outra vez!

‑ O Ben pediu‑a em casamento?

‑ Juro que não! ‑ afirmou, soltando uma gargalhadinha nervosa.

‑ Parece‑me que a minha pergunta não tem graça nenhuma ‑ protestou ele, formalizado. ‑ E os outros, não lhe fizeram esse pedido?

‑ Que eu saiba, não... ‑ respondeu, rindo à socapa.

‑ Que engraçado!

‑ Agora é a minha vez de não achar graça. Acha que deviam tê‑lo feito?

‑ Pedir‑lhe‑ei eu, qualquer dia...

‑ Está doido!

‑ De acordo, mas é a primeira vez que tal me acontece, por causa de uma rapariga.

‑ Quem pensa que eu sou, para me vir com tretas?

‑ Sério, garota! Desde que me tornei homem, não tenho feito mais do que cavalgar, dar ao gatilho e tratar de gado; tem‑me faltado tempo para olhar para raparigas...

‑ Apostava que tem lidado muito com aquelas mulheres que, segundo diz o senhor Brite, abundam em Dodge...

‑ Oh, Reddie! Se alguma vez isso sucedeu, estava tão bêbado que não dei por nada...!

‑ Gostava de acreditar, Texas.

‑ Pode crer. Sou incapaz de mentir a uma rapariga e muito menos a si.

‑ Mas mentiu‑me, quando disse saber que eu era uma rapariga, desde o princípio.

‑ Não menti, Reddie.

‑ Mentiu, com certeza! Você o que queria era ser superior aos outros, que eu bem vi, Texas.

‑ Dir‑lhe‑ei por que sabia, se jurar perdoar‑me...

‑ Perdoar‑lhe? Confesso que acho isso estranho...

‑ Talvez seja, de facto, Mas ouça...

‑ Texas Jack, não diga nada que me obrigue a odiá‑lo!

‑ Já não se lembra do que lhe disse acerca dessa alcunha?...

Reddie, soube que era uma rapariga antes de matar o Wallen. Parece‑lhe que o abateria tão depressa, se não soubesse?

‑ Cada vez percebo menos! Como soube?

‑ Lembra‑se daquela angra onde acampámos? Foi o melhor acampamento que tivemos até agora. Salgueiros, carvalheiras, amoras silvestres, flores... Era quase ao pôr do Sol e eu dirigia‑me para o acampamento por um atalho... O arvoredo era muito denso... ouvi chapinhar na água e... espreitei por entre a ramaria.

‑ Você... você... Tex Shipman! ‑‑ exclamou, com voz estrangulada.

‑ Sim. Vi‑a tomar banho... vi só a... parte de cima... Não fique tão envergonhada, Reddie! Dei só uma olhadela, virei logo a cara e fiquei como que fulminado. Depois, afastei‑me, mas nunca mais fui o mesmo!

‑ Não sou dessa opinião! Mas... por que nunca me disse? Não foi cavalheiro... e eu, agora, odeio‑o!

‑ Paciência!... Contudo, não acredito, Reddie. Por que havia de odiar‑me?

‑ Porque foi desprezível para comigo!

‑ Desprezível?! Mas se tive de enganar todos! Era preciso evitar que você e o pessoal descobrissem que estava doido por si. Por isso... implicava consigo.

‑ No dia em que me espancou... Tex Shipman... sabia que eu era uma rapariga?

‑ Assim Deus me ajude, como sabia!

‑ Nunca mais olharei para si!

‑ Mas, Reddie, não quer que um homem seja sincero?

‑ Não... não... quando esse homem sabe demais.

‑ Devia dizer‑lhe isto, antes de pedir‑lhe que casasse comigo..... E estou a pedir‑lho, agora.

‑ A pedir o quê? ‑ inquiriu, num sussurro, perturbada.

‑ Que case comigo.

- Francamente! Pensa que sou uma pobre qualquer

coisa da planície, sem família, sem lar, sem amigos, uma simples desterrada?!

- Quando veio para junto de nós, se bem me lembro,

não passava de um garotelho lindo e solitário que devia ter passado os seus maus bocados, e ainda hoje pergunto a mim mesmo, com espanto, como conseguiu transformar‑se numa linda rapariga tão fina e bonita.

‑ Tem razão, Tex, é espantoso! Mas consegui‑o, graças a Deus, e agora sou a mais feliz das raparigas.

‑ Reddie! O meu pedido... para ser minha mulher... tem alguma coisa a ver com o facto de se sentir assim?

‑ Talvez, Tex ‑ respondeu, com falsa modéstia. ‑ Vaqueiro, ignora a que alturas aspira! Eu «era» uma rapariga sem nada, mas «agora» sou uma herdeira!

‑ O quê?

‑ Texas, sou a filha adoptiva do senhor Brite! ‑ anunciou, orgulhosa.

‑ Isso é sério, Reddie?!

‑ Palavra! Não sei como aconteceu, nem me importo; só sei que sou feliz... pela primeira vez na vida.

‑ Não calcula como me sinto satisfeito! Era o melhor que podia acontecer‑lhe! O patrão é um velho cavalheiro do Sul, um autêntico texano! Tem um grande rancho perto de Santo António... Vai ter um lar... ser rica, qualquer dia... Poderá possuir todos os cavalos que desejar... e janotas, também, Reddie!

‑ Janotas?... Que cómico! Eu, Reddie Bayne, habituada a dormir no chão!

‑ Sim, e tudo isso significa que Tex Shipman e toda a sua raça podem ir passear! No entanto, nenhum a amará tão doidamente como eu!

‑ Os corações fracos nunca conseguem conquistar a mulher que lhes convém, Texas Jack... ‑ escarneceu.

Seguiu‑se um ruído abafado, uma luta convulsiva e, finalmente, o som suave de um beijo.

‑ Oh! Não... não...

‑ Tinha‑a avisado! ‑ segredou, apaixonadamente. ‑ Jurei uma vez que, se voltasse a chamar‑me Texas Jack, a levaria a chamar‑me Jack querido..... e vou consegui‑lo!

‑ Não vai nada! ‑ protestou, com calor, embora assustada.

‑ Vou!

‑ Se tentar fazer... isso outra vez... grito!

‑ Não acredito, mas, mesmo assim, arrisco‑me!

‑ Está a aleijar‑me, grande bruto... Não me aperte assim! As suas mãos... Ah!...

‑ Assim! Agora, diga Jack querido., ou beijo‑a outra vez.

‑ Não digo... não digo...

Houve um intervalo, pleno de exclamações abafadas e significativas.

‑ Bem, então terei de beijá‑la duas vezes... Meu Deus, estou desgraçado! Nunca soubera o que fosse um beijo... Agora, pode estar o tempo que quiser, sem dizer Jack querido, que não me importo!

Evidentemente, ela lutou durante algum tempo, a julgar pelo que se ouvia, mas, por fim, com um suspiro, suplicou:

‑ Por favor, Tex! Isso não. são modos de tratar uma rapariga. Oh!...

‑ Posso fazer isto toda a noite! ‑ respondeu o rapaz, com ardor. ‑ Chama‑me querido?

‑ Mas, homem, isso não quer dizer nada! ‑ exclamou, com rudeza.

‑ Muito bem! ‑ e beijou‑a outra vez, e outra, e outra... Brite escutava o som leve e sibilante dos lábios ao tocarem‑se e sentia‑se, ele próprio, comparsa da cena.

‑ Sim... sim... rendo‑me! ‑ murmurou a jovem. ‑ Deixe‑me... respirar!

- Não a largo, enquanto não disser. Já, já, senão...

‑ Idiota! Jack... que... rido!

‑ Obrigado, Reddie. Tome mais este, por ter dito! Da próxima vez, será você a pedir‑me...

Largou‑a e endireitou‑se, com a respiração opressa, declarando :

‑ Desculpe, se a ofendi, mas estou satisfeito. Porque está fora do alcance de um pobre guia de gado, hei‑de lembrar‑me, toda a vida, que me chamou querido e me beijou, Reddie.

Pôs‑se de pé, ocultando, com a sua figura alta e magra, a pálida luz das estrelas que se coava pela folhagem.

‑ Mas foi à força... Texas Jack! ‑ ripostou ela, num sussurro que Brite mal compreendeu.

Pelos vistos o rapaz achou o dito demasiado petulante, pois afastou‑se na escuridão, como o vento.

Depois disso, Reddie suspirou vezes sem conta, virou‑se e revirou‑se na cama, falando sozinha, até que, por fim, adormeceu. O marulhar das águas do rio, o lamento dos coiotes, o zumbido dos insectos, voltaram a reinar na noite. Brite permaneceu desperto, pensando, maravilhado, como fora fácil e inesperado o desabrochar do eterno feminino naquela rapariga selvagem e indomável. Podia ser uma pobre órfã, habituada a andar vestida de homem durante anos, sujeita a uma vida rude, sem tecto nem abrigo, mas nada disso lhe obliterara o coração, a subtileza e a astúcia de mulher! Brite seria capaz de afirmar se ela amava, ou não, Shipman; mas estava certo de uma coisa: ela era capaz de fazer de Texas o mais desditoso dos vaqueiros, antes de capitular!

O velhote conseguiu, por fim, adormecer e só acordou quando o chamaram para almoçar. San Sabe, Whit e Less Holden já se encontravam sentados no chão, de pernas cruzadas, a comer com apetite. Reddie partira, pois a sua cama, enrolada, via‑se sobre o cubo do rodado dianteiro do vagão. A manhã estava linda, mas os rapazes pareciam nem dar por isso. Enquanto comia, apareceu a jovem, com alguns cavalos frescos.

‑ Rapazes, onde fica a Pista, partindo daqui? ‑ indagou o patrão, lembrando‑se que o gado atravessara o rio acima da cidade.

‑ Deuce disse que são perto de quatro milhas mais abaixo informou Holden. ‑ Na realidade, passa pelo sítio para onde Ben conduziu o gado. E, a propósito, senhor Brite, ontem o Deuce esqueceu‑se de falar do barco...

‑ Do barco?... Qual barco?

‑ Sim. Ele viu um barco no rio, do lado da cidade, e ele e o Tex estão convencidos de que foi utilizado por quem roubou o gado.

Brite estava ansioso por recomeçar a marcha. Resignara‑se a perder metade dos animais, mas nem por isso o facto deixava de apoquentá‑lo e de fazer‑lhe sentir uma espécie de amarga derrota. Com efeito, uma coisa era concordar com opiniões sensatas e razoáveis, depois de haver sido roubado, e outra, inteiramente diferente, proceder de acordo com essas opiniões! Os vaqueiros obedeciam às ordens que se lhes davam, mas nunca aceitariam tal perda. Texas Joe e Pan Handle não eram homens que ficassem impávidos depois do que sucedera.

Ao nascer do Sol, os guias estavam de novo na Pista, com o gado avançando uma a duas milhas por hora, mas nenhum deles divisou, durante o dia, a metade do gado que fora roubada.

‑ Bem, se percebo alguma coisa disto, aqueles tipos devem estar agora mais perto de nós do que estavam ontem ‑ observou Tex. ‑ São pouco experientes, como guias, e, ainda por cima, quase só têm bois velhos e fracos... Ross Hite teve pouca sorte com as cabeças que lhe calharam e o Pan viu bem a coisa: o pulha faz o trabalho por nós e, como recompensa, fica com a carcaça cheia de buracos!

No entanto, apesar de todos os esforços, o grupo perdera a sua sadia boa disposição; abalara‑o o inqualificável comportamento de dois dos seus membros e a morte do traidor, e as dificuldades da travessia, o triste fim de Chandler e a perda de uma parte importante da manada, tornaram os rapazes bisonhos e sorumbáticos. Exceptuando Texas Joe, que se modificara muito durante a última noite, todos ajudavam Reddie no que podiam, mas a graça, o espírito romântico e a tendência para o namoro e para o galanteio, haviam desaparecido. O capataz, esse, quase não dirigia a palavra a ninguém, nem mesmo à jovem. Parecia que, instintivamente, todos procuravam poupar‑se o mais possível, como se o que acontecera fosse pouco, comparado com o que podia ainda sobrevir.

Round Top, Brushy Creek, Cornhill, Noland Creek, Loon River e Bosque River foram ultrapassados sem incidentes de maior. Uma vez, de uma elevação da vasta pradaria que haviam levado um dia inteiro a vencer, San Sabe localizou a metade de gado roubada apenas a um dia de avanço. Tinham agora a certeza de que fora Ross Hite quem praticara o furto, pois em Belton, num pequeno rancho, Hite deixara atrás de si indícios mais do que suficientes.

As chuvas, embora poucas e espaçadas, haviam sido bastantes para que não faltasse a água. Brite temera nova enxurrada e as consequentes dificuldades de travessia no grande Brazos River, mas, ao chegar, ficou agradavelmente surpreendido: o Brazos levava água cuja passagem não oferecia perigos. Acamparam na margem norte, perto de uma bela enseada, e depararam de novo, após alguns dias de escassez, com abundância de caça.

Os perus e os veados eram tão mansos que não se afastavam dos cavalos e dos homens, e os primeiros, novos, do tamanho de frangos, davam pratos deliciosos...

Brite calculou que, à média a que tinham avançado, deviam terminar a viagem dentro de noventa dias. Um terço deste prazo passara já, ou talvez mais, pois ele perdera um pouco a noção do tempo. Mais quatro dias puseram‑nos a meio caminho entre Brazos e Forth Worth, e era evidente que os rapazes começavam a esquecer‑se dos dissabores que haviam tido nas primeiras tiradas.

Forth Worth, enfim! Julgar‑se‑ia ser uma metrópole, pela importância que possuía para os guias, mas era apenas composta de meia dúzia de edifícios, um armazém, uma taberna e poucos habitantes.

Texas Joe deixou a manada fora da cidade, sem prever que a outra metade do gado de Brite não se encontrava muito longe, naquela noite. Tal notícia foi San Sabe quem a trouxe, pois era o único dos quatro rapazes suficientemente sóbrio para dizer qualquer coisa com jeito. Isto passou‑se poucos minutos antes da meia‑noite, e de manhã Joe afastou‑se com eles, para, segundo Brite supunha, os punir com dureza...

‑ Rapazes, vocês, a noite passada, desobedeceram‑me ‑ começou o capataz, com severidade. ‑ Embriagaram‑se e se, em vez disso, tivessem vindo aqui trazer a notícia de que o nosso gado estava perto, teríamos ido buscá‑lo, enquanto a gente do Hite se encontrava na cidade. Esta manhã verifiquei que ele se foi embora, ao anoitecer, certamente porque soube da nossa presença.

Todos os vaqueiros, entre os quais se contava Less Holden, ficaram envergonhados e cheios de consternação.

‑ Agora já é muito tarde, para fazermos alguma coisa ‑ prosseguiu Texas ‑, mas peço‑lhes que esta seja a última vez que se embebedam, antes de chegarmos a Dodge.

Lá podemos emborrachar‑nos até morrer! A mim também me apetecia beber, para esquecer, como vocês; mas não fiz o que vocês fizeram! Deixem passarmos o Rio Vermelho, se querem saber o que é o inferno! Verão as terríveis tempestades magnéticas, que põem o gado maluco... E os búfalos... Sim, porque também haverá muitos, à farta!... Por isto mesmo, ainda que os Comanches não nos brindem com as suas visitas, serão muitos os perigos a enfrentar.

‑ Tex, não tocaremos num copo enquanto a leva não terminar! ‑ garantiu Ackerman. ‑ Prometo‑te que denunciarei todo aquele que tentar proceder doutro modo.

‑ Excelente, Deuce! Não peço mais do que isso ‑ afirmou Texas, satisfeito.

Antes de os guias abandonarem o acampamento, naquela manhã, passou uma companhia de soldados, cujo sargento parou, para tagarelar com Brite, a quem deu informações perturbadoras. Aquele destacamento estava sob as ordens do tenente Coleman, do quadro de cavalaria, e dirigia‑se a Forth Richardson, onde, pouco tempo antes, os Comanches tinham massacrado alguns colonos. Tanto esta tribo como a dos Kiowas estavam de novo em pé de guerra, pondo em alvoroço todo o extenso território entre os rios Brazos e Vermelho. Também a norte e a sul daquele rio eram frequentes as manadas de búfalos, segundo informações obtidas por Coleman. Acrescentou ainda o sargento que, atrás dos búfalos, seguiam os habitantes caçadores de peles e ladrões de cavalos.

‑ O tenente Coleman aconselha‑o a ficar algum tempo no forte ‑ concluiu o sargento. ‑ À nossa frente vai apenas uma manada, mas aquela gente não ouve a voz da razão...

‑ Trata‑se de Ross Hite, sem dúvida...

‑ Não lhe cei o nome, mas é um texano alto, claro, de rosto apergaminhado e olhos pequenos.

‑ É o Hite! ‑ confirmou Pan Handle.

‑ Ele é capaz de se atirar para a frente, sem olhar a nada, mas o senhor faria melhor deixando‑se ficar aqui alguns dias...

‑ Impossível, sargento ‑ recusou Brite. ‑ Vêm duas grandes manadas atrás de nós, com intervalo de um ou dois dias, apenas. E com seis ou mais, nem se fala; Este Verão devem passar por cá umas duzentas mil cabeças de gado!

‑ Sério? Será possível? Grande parte não chegará nunca a Kansas... Adeus e boa sorte.

‑ Igualmente ‑ retribuiu Texas, que, em seguida, se voltou para os seus guias, com os olhos chispantes: ‑ Ouviram, não é verdade? Portanto, nada mais há a dizer. Patrão, parece‑me aconselhável carregarmos todos os mantimentos e munições que pudermos arranjar. Até Doan não há outro armazém e lá falta sempre de tudo.

A gente de Brite prosseguiu, pronta para o pior. Os dias seguintes decorreram, porém, sem novidade. Em Bolívar, terra de búfalos, a Pista Chisholm bifurcava‑se, seguindo, o caminho da direita para o Norte, na direcção de Abilene, e da esquerda para Noroeste. Aquele, era mais longe, em compensação, mais seguro; o outro, que levava a Dodge, era mais curto, todavia mais difícil e perigoso. Mas terminava no mais lucrativo mercado de gado e de cavalos do país...

‑ Acha, patrão, que seremos capazes de descobrir o caminho que Hite levou? Pagando um par de copos aqui e ali e fazendo‑nos passar por caçadores de peles, talvez apareça quem dê à língua...

‑ Vai, Texas, e, se quiseres, leva fornecimento de «whisky».

‑ Vem comigo, Pan Handle ‑ ordenou o capataz.

‑ Deixem‑me ir, também ‑ pediu Reddie.

‑ O quê?! Para que havia de ir?

‑ Para ver gente. Estou farta de olhar para as vossas caras!

‑ Quer conhecer outros homens, hem?!... Pois não lhe faço a vontade! Continuará connosco, já que connosco tem estado até agora.

A tarde acabara há pouco quando escolheram o novo acampamento, perto de um ribeiro que ia ter a Bolívar. Havia uma grande e bonita clareira onde o gado podia pastar à vontade, sem ser preciso montar guarda muito apertada. Era o seu segundo bom acampamento, naquela leva. Brite convidou Reddie para irem pescar no ribeiro. O rosto carrancudo da rapariga abriu‑se num sorriso e, pouco depois, estavam ambos, ajudados por Moze, a preparar as linhas e os anzóis, para lhes colocarem minhocas e gafanhotos, servindo de isco.

O velho e a sua pupila passaram uma hora agradável e despreocupada. Reddie era novata, mas cheia de entusiasmo e alegria. O ponto culminante da aventura verificou‑se quando um corpulento lobo marinho picou o anzol da rapariga. O peixe era tão pesado, que ela, não só não conseguia segurá‑lo, como, também, corria o risco de ser arrastada por ele, para dentro de água, tal a fúria com que se debatia. A jovem fez quanto pôde, para não largar a presa, mas acabou por ter de gritar por ajuda. Brite tinha como norma não ajudar pescadores, porém, desta vez, desprezou a regra e auxiliou Reddie, até o grande peixe ficar exausto. Então, puxaram‑no para terra e, juntando‑o aos outros já pescados, regressaram apressados e triunfantes ao acampamento, onde Moze os acolheu deliciado:

‑ Ih, que grande pescaria! Vão ver como «nego» sabe cozinhar peixe! Sempre é agradável não comer carne, uma vez por outra...

Antes do jantar, Texas Joe e Pan Handle regressaram, para grande alívio de Brite.

‑ O Ross seguiu pelo caminho de Dodge, ontem, ao meio‑dia ‑ informou Texas, satisfeito. ‑ Leva‑nos um bom avanço, mas, na opinião dos caçadores de búfalos com quem falámos, pode ser detido num abrir e fechar de olhos.

‑ Parece‑me boa a notícia ‑ comentou Brite, duvidoso. ‑ Não vejo, porém, o que conseguirá detê‑lo...

‑ Ora! ‑ replicou o capataz. ‑ Se mais nada os fizer parar, os búfalos encarregar‑se‑ão disso, com certeza!

‑ E também de nós...

‑ Não interessa, desde que consigamos apanhar o nosso gado! Aquele Hite bule‑me com os nervos!

‑ Contudo, um pequeno descanso não nos faria mal nenhum...

‑ Creio bem que este será o último, não devemos encontrar outro acampamento, assim sossegado ‑ resmungou Texas, observando Moze, que limpava o peixe: ‑ Eh, onde arranjaste isso?!

‑ Foram pescados pelo patrão e por «miss» Reddie.

‑ Você pescou algum? ‑ perguntou o rapaz, dirigindo‑se à jovem.

‑ Claro! Três... e o maior, também.

‑ Impossível! Não seria capaz de tirá‑lo da água.

‑ O patrão ajudou‑me. Foi cómico! Aquele maldito peixe quase me levava atrás dele. Tive de gritar pelo senhor Brite... que só me auxiliou quando me viu quase a cair à água!

‑ Gosta de pescar?

‑ Muito! Nunca ninguém me levara à pesca. Tenho perdido muitas coisas boas da vida, mas, agora, hei‑de desforrar‑me...

Texas Joe abanou a cabeça, como se acabasse de ouvir uma verdade fatal e inevitável.

‑ Quando se viu uma rapariga feita pescadora? Diabos me levem, Reddie Bayne, se você não é a minha perdição! Gosto do entretenimento que mais aprecio: sentar‑me à sombra, esperar que o peixe pique, ouvir cantar os pássaros, admirar a Natureza, espreitar os peixinhos e... e...

‑ Oh, senhor Brite, o nosso Texas Jack é um poeta!

‑ exclamou Reddie, trocista.

Por um momento, dir‑se‑ia terem cessado as hostilidades entre ambos, dado o modo como se fitavam mutuamente. O velhote notou, mesmo, enquanto a rapariga corava:

‑ Julguei, Texas, que tinhas conseguido que ela deixasse de chamar‑te Jack...

‑ Também eu, patrão, mas estou a ver que me enganei

‑ redarguiu o interpelado, não deixando à jovem dúvidas sobre o significado das sUES palavras.

De qualquer maneira, estavam terminadas as tréguas.

Quase no fim do jantar aproximaram‑se do acampamento dois desconhecidos, a quem Texas cumprimentou e que provaram ser caçadores de peles estacionados em Bolívar.

‑ Estivemos a ver a vossa manada ‑ disse o mais alto, indubitavelmente texano ‑ e queremos dizer‑lhes que o gado de Hite tem dois ferros dos vossos.

‑ Isso não é novidade para nós. mas sempre agradecemos a informação. Foi assim... ‑ e Texas contou‑lhes a travessia do Colorado e a perda de metade da manada.

‑ Visto isso, é inútil acrescentar o que quer que seja acerca de Hite? ‑ perguntou o homem, em tom seco.

‑ Claro!

‑ Ainda bem. Agora, quero explicar‑lhes por que é que o Pete e eu viemos ter convosco. Precisamos de deslocar‑nos para algures entre Little Wichita e o Rio Vermelho, onde nos disseram haver perto de um milhão de búfalos, e gostaríamos de ir com vocês...

Texas voltou‑se para o patrão, interrogando‑o com o olhar.

‑ Isso é com o Shipman ‑ declarou Brite. ‑ Nós temos, de facto, trabalho para mais gente.

‑ Bem, eu gostaria, na verdade, de aceitá‑los, mas não os conheço... ‑ confessou o capataz, francamente. ‑ Como havemos de saber se não estão feitos com o Hite ou se não trabalham por vossa conta, em qualquer marosca?

‑ É difícil provarmos a nossa boa fé, concordo... mas vocês têm armas ‑ respondeu o homem, soltando uma gargalhada.

‑ Pois temos; no entanto podem roubá‑las... Bem, esperem um bocado que eu já resolvo.

Vagarosamente, Texas ateou o fogo, de modo a iluminar por completo o rosto dos desconhecidos.

‑ Chegue aqui, Reddie ‑ chamou.

‑ Que me quer? ‑ inquiriu a rapariga.

‑ Reddie, estes dois homens querem ir connosco até Little Wichita. Se fosse capataz desta leva, o que faria?

‑ Não tem nada mais simples para perguntar‑me? ‑ protestou a jovem, que, no entanto, se aproximou mais, como se avaliasse a importância do que se lhe pedia.

‑ Minha senhora... ‑ cumprimentou um deles, enquanto ela lhe lançava o olhar mais perscrutador de que jamais devia ter sido alvo. ‑ Conhece os texanos, só de olhar para eles?...

O outro tirou o chapéu de abas largas e fez uma polida vénia à moda do Sul, mostrando o rosto vermelho e alegre.

‑ Boas noites, «miss». Tenho a certeza de que, se estiver na sua mão a nossa sorte, ela não poderá ser melhor...

‑ Texas, já vi bastantes homens maus e nenhum me enganou à primeira vista... Se fosse o capataz, teria muito prazer em aceitar estes homens.

- Sou da mesma opinião ‑ resmungou Joe. ‑ Só queria ver o que você dizia.

‑ O que trazem convosco ? ‑ indagou Brite.

‑ Dois vagões, oito cavalos, e algumas peles, mantimentos e uma caixa de munições.

‑ Essa caixa vem a propósito... Segundo me disse o meu capataz, o vosso pessoal era composto por seis homens...

‑ É verdade, mas o Pete e eu queremos levantar as nossas peles e separarmo‑nos deles.

‑ Está bem, sejam bem‑vindos. Estejam aqui ao romper do dia. Os vossos nomes?

‑ O meu amigo chama‑se Smiling Pete e eu Hash Williams. Boas noites e obrigado por nos deixarem seguir convosco. Até amanhã.

Depois deles partirem, alguns vaqueiros emitiram a sua opinião a respeito dos dois homens, mas Pan Handle arrumou o assunto, dizendo que, naquela noite, não teria medo de dormir desarmado. A guarda rendeu cedo e, pela primeira vez desde a partida da leva, Brite, Reddie e Texas ficaram no acampamento. Pela primeira vez, também, Texas não se afastou do lume, com ar bem disposto. Discutiu com Brite a proximidade de Hite e a certeza que tinha de, antes de alcançarem o Canadiano, recuperarem o gado. No entanto, quando a conversa derivou para as recentes depredações dos índios, Reddie opôs‑se, energicamente:

‑ Não poderão falar de outra coisa? Sempre tive horror de ser escalpada!

‑ Sim, garota, os seus caracóis vermelhos chamariam, decerto, a atenção de um Comanche, mas não para escalpar...

‑ contrapôs Texas. ‑ Talvez se limitasse a fazê‑la cativa, para a transformarem numa «squaw»...

‑ Numa «squaw» morta ‑ protestou a jovem, estremecendo.

‑ Bem, patrão, mudemos de assunto. Vamos ter festa, quando chegarmos a Dodge, não?

‑ Talvez... mas de que espécie?

‑ Diabos me levem se eu sei! Contudo, terá de arranjar isso antes de nos pagar, pois, de contrário, estaremos todos bêbados.

‑ Mas, por que se embebedam vocês? ‑ perguntou Reddie, com vivo desgosto.

‑ Também costumo fazer essa pergunta a mim mesmo, muitas vezes, pois não me embriago por gosto; no entanto, depois de longa permanência na pradaria, especialmente, numa destas terríveis levas, confesso que é um alívio cair de bêbado!

‑ Se tivesse uma mulher à sua espera fazia o mesmo?

‑ Uma mulher! ‑ exclamou Texas, apatetado. ‑ Já lhe disse, Reddie Bayne, que nunca me meti com esse género de mulheres, mesmo bêbado.

‑ Não me referia essas mulheres pintadas, das casas de dança, de que o senhor Brite me falou, mas a... a uma mulher... decente.

‑ Ah! Por exemplo?... ‑ inquiriu Texas, atiçando as brasas com um pau.

‑ Por exemplo... como eu.

‑ Valha‑me Deus! Não consigo imaginar uma rapariga encantadora como você a interessar‑se por mim.

‑ Não é capaz de responder a uma pergunta decente sem essas observações?

‑ Sou! Se eu tivesse uma mulher como diz, não a desgostava, embebedando‑me.

Seguiu‑se um silêncio, que Brite preencheu fumando, com ar resignado, pois compreendera que os dois jovens se haviam quase esquecido da sua presença. Estava certo de que, não obstante a antipatia que mutuamente se demonstravam, mais tarde ou mais cedo cairiam nos braços um do outro, o que a ele, Brite, daria grande satisfação. Todavia, desconfiava que, para castigá‑la da sua anterior recusa, Joe se empenharia em obrigar a jovem a dar o primeiro passo.

‑ Obrigada, Tex ‑ disse ela, por fim. ‑ Já calculava que a sua resposta fosse essa.

A expressão do rapaz revelava bem que ficara satisfeito com o elogio; contudo, limitou‑se a dizer:

‑ Demónio! Terei ouvido mal ou Reddie Bayne teve umas palavras amáveis a meu respeito?...

‑ Tex, faltam apenas três horas para entrarmos de guarda ‑ lembrou o velho.

‑ Tem razão! Vou deitar‑me e aqui mesmo! Juntando o gesto à palavra, o rapaz desenrolou a cama

ao pé da fogueira, deitou‑se, cobriu‑se de forma que as botas e as esporas ficassem de fora, e adormeceu quase no mesmo instante.

Reddie esteve a olhá‑lo durante muito tempo e, por fim, murmurou, sacudindo a cabeça anelada:

‑ Não há esperança... Papá, importa‑se de levar a minha cama?

‑ É já! ‑ respondeu o velho, com alacridade, começando a transportar cobertores para debaixo das árvores.

‑ Juntas, papá ‑ pediu a jovem. ‑ Embora eu use calças masculinas e armas, sinto‑me cada vez mais estranha e fraca por dentro. Sinto‑me... assustada.

‑ Dá‑se o mesmo comigo, querida. Não sei porquê, mas trago uns pressentimentos bem tristes...

‑ É uma sorte inestimável termos o Texas e o Pan Handle connosco ‑ tornou Reddie, fazendo a cama tão perto de Brite que bastaria estender o braço para tocar‑lhe.

Na manhã seguinte, duas horas após o início da jornada, uma nuvem de poeira, turbilhonando entre o gado, espantou‑o, felizmente em direcção ao Norte. Os guias nada mais puderam fazer do que cavalgar ao lado dos animais, procurando mantê‑los unidos. Só ao fim de dez milhas ou mais conseguiram abrandar o andamento. Era a primeira vez que tal acontecia, naquela leva, mas tinha os seus perigos, porque dava à manada predisposição para se espantar mais vezes.

Quando Texas se encaminhou para o vagão já o dia estava prestes a chegar ao seu termo.

Naquela noite, junto da fogueira, os guias relataram o que haviam observado. San Sabe vira colunas de fumo elevarem‑se de trás de uns cabeços situados a Oeste; Ackerman e Little tinham avistado búfalos, ao longe; Brite notara que toda a caça por que haviam passado se mostrara arisca; Reddie descobrira alguns cavalos selvagens, e Pan Handle afirmava que localizara um acampamento, muito ao longe, na margem de um lago arborizado.

Texas Joe, porém, parecia não ter nada a relatar, e Reddie interpelou‑o:

‑ Eh, «Olho de Falcão», que diabo de chefe é você que não foi capaz de ver nada?!

‑ Não queria dizer... desagrada‑me fazê‑lo... mas hoje vi dois grupos de peles‑vermelhas.

‑ Impossível! ‑ gritaram todos, erguendo‑se.

‑ Antes fosse. De ambas as vezes eu ia à frente e era, portanto, o primeiro a chegar ao topo dos cabeços... O terreno está a tornar‑se agreste... Estamos a aproximar‑nos dos Montes Wichita... Confesso que tive de afirmar‑me bem, porque duvidava, mas tenho a certeza de que vi dois grupos de índios, à distância de duas milhas um do outro.

Estou certo de que nos espiavam, pois afastaram‑se rapidamente.

‑ Comanches! ‑ exclamou a rapariga, aterrada.

‑ Não sei, pequena, mas que diferença faz? Comanches, Kiowas, Apaches, Cheyennes, Arapahoes, é tudo o mesmo!

‑ Enganas‑te, Tex. Não me importava de encontrar os outros todos, se com isso pudesse evitar os Comanches ‑ contradisse um dos rapazes.

‑ Homens, mas não há nada de extraordinário no facto de começarem a surgir índios! ‑ observou Pan Handle, friamente. ‑ É natural que, doravante, encontremos peles‑vermelhas todos os dias, que sejamos procurados por eles... Isso não significa, em absoluto, que nos venham molestar.

Smiling Pete e Hash Williams ouviram em silêncio, por não estarem ainda suficientemente integrados no grupo. Contudo, quando os interrogaram, foram prontos no relato das suas observações, desvanecendo assim de uma vez para sempre, qualquer prevenção que Brite pudesse ter a seu respeito. Ambos haviam visto cavaleiros índios a tão curta distância que sem dificuldade os puderam reconhecer como Comanches.

Mais tarde todos concordaram que os dois caçadores tinham sido uma valiosa aquisição. Por seu conselho, Texas mandou colocar os cavalos de reserva próximo do acampamento e com forte guarda, a fim de obstar a que os índios, conforme era seu hábito, tentassem apoderar‑se de alguns. Tratava‑se, com efeito, de uma medida acreditada, porquanto os peles‑vermelhas raramente roubavam gado, excepto se precisavam de carne e algum novilho lhes agradava.

Naquela noite ninguém dormiu mais de duas horas. A manada foi posta a caminho ao alvorecer e, durante o dia, pouco avançou, devido à natureza do terreno, agreste e escarpado. Começaram a aparecer búfalos por todos os lados, e os lobos e os coiotes espreitavam por entre os penhascos, tão numerosos que mal podiam ser contados.

A presença destes animais, em tal abundância, atestava, só por si, a proximidade de importantes quantidades de búfalos. Durante a noite, as feras encheram a pradaria com os seus uivos e lamentos. Os coiotes chegaram ao ponto de se aventurarem a entrar no acampamento, e alguns mais ousados, sentaram‑se junto do lume, uivando, até os enxotarem. Todavia, a noite decorreu sem novidade.

 

Cada dia de viagem aumentava a incerteza e os receios dos guias. Rastos de cavalos índios; cinzas de antigas fogueiras de acampamentos abandonados, nas margens de pequenas lagoas; sinais de fumo no alto dos outeiros; peles‑vermelhas seminus, desaparecendo à distância, como espectros ‑ mantiveram os homens de Brite vigilantes e preocupados, durante toda a viagem para Little Wichita.

Geralmente, o rio, ali, era pouco caudaloso e, portanto, fácil de atravessar; mas, naquela ocasião, a enxurrada tornara‑o intransponível, enquanto o caudal não diminuísse, o que podia demorar um dia ou, talvez, mais. Os homens consultaram‑se e resolveram procurar um sítio abrigado para acamparem, onde houvesse erva para o gado e árvores para se protegerem, em caso de ataque.

Os guias que os precediam - certamente os que conduziam o gado roubado por Ross Hite ‑ também não deviam ter passado; o mais natural é que tivessem seguido rio acima, com a mesma intenção de Texas Joe. Espalhados pelas margens e ao longo das encostas arrelvadas viam‑se grupos de búfalos.

Texas mandou San Sabe rio abaixo, em missão de reconhecimento, enquanto ele seguia em direcção oposta, com o mesmo fim, deixando os restantes homens de guarda à manada.

Aproximava‑se o meio‑dia. No vale onde haviam acampado sentiam‑se os efeitos do calor e da humidade. Os homens repousavam, após tantos dias de dura jornada; naquele momento, nada mais podiam fazer do que ficarem de olhos abertos, vigiando com atenção as orlas arborizadas que os cercavam. Depois de muito procurarem, tinham escolhido aquele sítio para acamparem, embora fosse melhor para o gado do que para os homens, que ficavam ao alcance dos tiros que disparassem do cimo dos cabeços. Tiveram, porém, de resignar‑se.

Smiling Pete e Hash Williams resolveram amarinhar pela encosta, para, encobertos com a ramaria, explorarem as redondezas. Todos os guias tinham preparado as carabinas, que traziam atravessadas nas selas, e aguardavam os acontecimentos, prontos para qualquer eventualidade.

Reddie avisou Brite da aproximação de um cavalo a galope e aquele fez sinal ao guia mais próximo, que se pôs à escuta. A jovem não se enganara, pois, a breve trecho, o próprio Brite ouviu o estropear de cascos no caminho acidentado. Devia ser San Sabe, de regresso, porque o barulho vinha do lado de baixo do rio. No mesmo instante, ouviram‑se tiros, na encosta que os caçadores tinham ido explorar, e Pan Handle e Ackerman, juntamente com os outros guias, galoparam para o bosque, onde Brite e Reddie se encontravam.

‑ É o San Sabe ‑ murmurou a jovem, apontando. ‑ Veja como ele galopa!

‑ Apostava que vêm índios atrás dele! Precisamos de nos abrigar bem!

‑ índios! ‑ avisou, arquejante, o vaqueiro, ao chegar junto deles, ao mesmo tempo que o grupo composto por Pan Handle e pelos outros homens. ‑ Mas não me viram. Ouviram o tiroteio?

Ninguém ouvira nada. San Sabe explicou:

‑ É ali em baixo, para lá daquela curva, mais longe

do que supunha... Ia a avançar, quando ouvi tiros e gritos.

Escondi o cavalo e segui a pé, até um sítio onde me pareceu que deviam ter atravessado o rio a vau, pois a areia estava molhada e revolvida. Eram cavalos índios. Segui‑lhes o rasto e descobri‑os, numa clareira. Ouvi mais tiros e gritos selvagens e, como o arvoredo era muito cerrado, fui avançando, para ver de que se tratava. Uns viajantes estavam acampados num sítio sombrio, sem dúvida à espera que o rio baixasse, para o atravessarem... Vi três carros e alguns homens atrás deles, fazendo fogo, e setas a voarem por todos os lados. Não esperei por mais nada e vim avisá‑los.

‑ Temos de ir socorrê‑los, Brite ‑ disse Pan Handle.

‑ Com certeza. Olhem, ouçamos a opinião dos caçadores, que aí vêm, enquanto esperamos pelo Texas.

Os dois homens confirmaram, em poucas palavras, a história de San Sabe, e Brite relatou‑lhes o que ele vira.

‑ Quantos cavalos eram? ‑ perguntou Hash Williams.

‑ Não mais de vinte... talvez menos, até.

‑ A que distância?

‑ Uma meia milha para lá da curva.

‑ Desmonta, San, e traça‑nos um mapa, na areia.

San Sabe obedeceu: pegou num galho e começou a fazer riscos, sob os olhares interessados dos outros.

‑ Deve vir aí o Texas ‑ observou Brite, ouvindo aproximar‑se um cavalo.

‑ Aqui é a curva ‑ prosseguiu San Sabe ‑ e os cavalos estão aqui, cerca de meia milha mais longe. Uma árvore seca, com as folhas esbranquiçadas, servir‑nos‑á de referência. Podemos arriscar‑nos a galopar até esta distância... Aqui fica a clareira de onde os peles‑vermelhas seguiram para a floresta. É plana e tem uma grande fraga, semelhante a uma cabeça de águia, na orla. Os carros dos brancos não estão a mais de um quarto de milha, no meio de um bosque rodeado de encostas arborizadas por três lados. Os índios estão aqui, num sítio abrigado.

‑ Arranjem dois cavalos, um para mim e outro para o Pete, mas não percam tempo a selá‑los! ‑ pediu Williams.

‑ Que conferência é esta? ‑ perguntou Texas Joe, aproximando‑se por detrás dele, com as rédeas numa das mãos e a carabina na outra.

Depois de San Sabe contar, mais uma vez, o que observara, Hash Williams acrescentou:

‑ Suponho que devemos ir em seu auxílio...

‑ Claro! Têm algum plano? Vocês estão habituados aos peles‑vermelhas.

‑ Vamos preparar‑lhes uma emboscada, assim que tivermos os cavalos! Mas é preciso apressarem‑se, para não chegarmos tarde.

San Sabe afastou‑se a meio galope, seguido pelos guias, e Tex ficou à espera que os dois caçadores montassem, indo depois juntar‑se aos outros.

Apesar de toda a sua excitação, Brite não se esquecia de Reddie, que estava pálida, mais pelo mistério da aventura do que pelo medo na retaguarda, e depois San Sabe desmontou e conduziu‑os para a floresta, situada à direita da Pista. Brite e Bender chegaram a tempo de ver Reddie seguir Texas, por entre o arvoredo, após haverem prendido os cavalos a diversos troncos. Os tiros e os gritos selvagens e sincopados dos índios ouviam‑se cada vez com maior nitidez.

‑ Comanches! ‑ esclareceu Williams, carrancudo.

‑ Os cavalos deles! ‑ avisou San Sabe, passado um momento.

‑ Menos de vinte. Vai ser canja, rapazes! ‑ exclamou o caçador, percorrendo com os olhos os animais inquietos, a margem do rio, a encosta arborizada e, por fim, a orla escarpada e a sua fraga proeminente, como uma sentinela.

‑ Shipman, fique aqui com o Pete e escolha cinco homens para irem comigo ‑ pediu Williams, após longa reflexão.

‑ Qual é a sua ideia? ‑ perguntou Texas, cujos olhos penetrantes observavam, também, tudo.

‑ Se conseguirmos trepar até lá acima, aqueles diabos estão prontos! A maior parte só tem arcos e setas, e devem estar agachados sob as árvores, pela encosta abaixo... admira‑me ouvir tão poucos tiros! Oxalá não seja tarde demais! Bem, vamos ao que interessa. É natural que corram para os cavalos, quando os atacarmos. Nessa altura vocês,

aqui escondidos...

‑ Ah, compreendo! Vou ver onde poderemos abrigar‑nos bem, a uns cinquenta pés dos cavalos... Combinado! Leve o San Sabe, o Ackerman, o Whittaker e o Little.

‑ Tirem as esporas e sigam‑me, sem fazerem barulho!

Depois de os cinco desaparecerem, Texas observou cuidadosamente a clareira onde estavam os cavalos e, afastando‑se sob a ramaria, ordenou, num sussurro:

‑ Venham, sem barulho!

Holden foi atrás dele, seguido de Smiling Pete, Bender e Pan Handle, e, finalmente, Brite e Reddie. De vez em quando, ouviam‑se os gritos dos selvagens e um ou outro tiro, em resposta. Texas conduziu‑os para um lugar um pouco mais elevado, na base da encosta e no extremo da clareira, onde diversos fragmentos de rocha e arvoredo espesso lhes proporcionaria um refúgio ideal.

‑ Cá estamos! ‑ murmurou o capataz. ‑ Não podíamos arranjar melhor. Vamos fazer esses malvados ver o diabo! Vão andando ao longo desse parapeito e parem onde possam observar tudo, à vossa frente. Deixem‑se ficar o mais quietos possível e esperem que eu mande atacar.

Brite procurou um sítio onde Reddie ficasse bem protegida e acabou por colocá‑la entre ele e Texas, atrás de um rochedo comprido e baixo, sobre o qual pendiam ramos de árvore. Pan Handle, o único que não trazia carabina, ajoelhou‑se longe deles, com uma pistola em cada mão, enquanto Pete Smiling se esforçava por manter Bender sossegado, pois o rapaz estava excitadíssimo. Holden escolheu também uma posição excelente.

‑ Tudo a postos. Agora é só esperar que venham ‑ murmurou Texas. ‑ Oxalá os outros tenham chegado a tempo... Ouço menos tiros do que desejaria.

‑ Ou ainda não começou ou já está quase a acabar

‑ concordou Pan Handle. ‑ De qualquer maneira, não podíamos fazer mais nada. Não te esqueças da Reddie, Tex.

‑ Diabos me levem, mas tinha‑me esquecido dela! Então, garota, como vai isso?

‑ Vai bem!

‑ Assustada ?

‑ Sim, mas fique descansado; estarei pronta quando for preciso.

‑ Espero que, pelo menos uma vez na vida, faça o que lhe mandar...

‑ Farei, não se preocupe.

‑ Óptimo! Agora baixem‑se todos e estejam alerta. Não era a primeira vez que Brite se via envolvido em

escaramuças com os índios, mas nunca, em tais ocasiões, tivera de contar com a vida de uma mulher. E isso inquietava‑o e preocupava‑o. Para se acalmar, dizia para consigo que talvez entre os viajantes atacados também estivessem mulheres, as quais, sim, corriam terrível perigo!

Que aspecto bravio e enraivecido tinham os cavalos deixados pelos índios na clareira! Não tendo mais do que os cabrestos, esticavam‑nos e torciam‑nos a cada tiro, e alguns, colocados bem de frente para o sítio onde os homens de Brite se haviam emboscado, tinham já notado a sua presença e erguiam a cabeça, com as orelhas erectas e as narinas palpitantes.

‑ Cheira‑me a fumo, mas não de pólvora ‑ sussurrou Texas. ‑ Que lhe parece, Pete?

‑ Talvez seja da fogueira do acampamento.

De súbito, d versos tiros simultâneos quebraram o silêncio ‑ primeiro rápidos, depois mais espaçados e, por fim, desordenados. Texas meneou a cabeça, gelado, ao ouvir o terrível grito de guerra dos Comanches. Brite já ouvira falar muitas vezes desse grito, mas nunca imaginara que pudesse ser tão penetrante e horrível.

‑ Estão a acertar nos carros! ‑ exclamou Pete, arquejante. ‑ O Williams não os deve ter localizado.

‑ Pode localizá‑los agora ‑ disse Texas.

Com os olhos muito abertos e o rosto lívido, Reddie estava deitada no chão, apoiada nos cotovelos, entre os quais tinha a carabina.

‑ Parece que está mau para eles, Reddie ‑ observou

Brite.

‑ Para os nossos homens?

‑ Não, para quem está encurralado lá em baixo.

‑ Oh, que gritos pavorosos!

‑ Já não se ouvem tiros de carabina ‑ murmurou Pete, tristemente. - Parece‑me que chegámos ao fim do massacre. Mais uma vitória para os malditos Comanches! Mas há‑de chegar a nossa vez; o Williams não deve tardar!

Como que em resposta, uma revoada de tiros abafou os gritos dos selvagens.

‑ Ouçam, ouçam! Meu Deus, oxalá cheguem a tempo! Agora, abaixem‑se o mais que puderem e abram os olhos! Falta pouco para ser a nossa vez! Os Comanches não tardam aí, com os feridos, porque os mortos não se deterão a recolher, debaixo de fogo.

O tiroteio, porém, cessou tão bruscamente como começara, e gritos angustiosos de brancos substituíram o grito de guerra dos índios.

‑ Ouço‑os correr ‑ murmurou Reddie.

‑ Aí vêm! ‑ avisou o caçador, em voz baixa. ‑ Esperem agora... esperem... tenham paciência... deixem‑nos estar em campo aberto!

Passos apressados, restolhada de folhas e estalar de ramos, confirmaram as afirmações de Reddie e do caçador.

‑ Aponta bem, filha ‑ aconselhou Brite, engatilhando a carabina. ‑ Tens de mostrar o que vales!

‑ Hei‑de matar um! ‑ afirmou a jovem, abrindo mais os olhos e engatilhando também a sua arma, ao mesmo tempo que erguia a cabeça sobre o parapeito rochoso.

- Não se esqueça de baixar sempre a cabeça, depois de disparar, ouviu, Reddie? ‑ recomendou Tex, que parecia ter olhos na nuca. ‑ Já os vejo. Pan!

‑ E eu também, na floresta. Trazem os feridos. Não atirem enquanto não aparecerem todos!

Brite olhou para o lado oposto da clareira e para as sombras que avançavam sob as árvores, pronto a disparar. Os da frente, quais fantasmas escanzelados, passavam de árvore para árvore, escondendo se e olhando para trás. De uma vez, quatro ou cinco estiveram bem à vista, mas desapareceram logo a seguir. Passos rápidos e suaves, como os das panteras, escutavam‑se agora mais perto. Brite lobrigou um selvagem nu, com o rosto inclinado sobre o ombro e os longos cabelos negros, ondulando a cada movimento. Reddie também o viu e soltou uma exclamação abafada. Foram surgindo outros índios. Só dois traziam carabinas; os restantes estavam armados de arcos, mas não se viam flechas. Aproximavam‑se dos cavalos, olhando sempre para trás, fazendo sinais e soltando palavras roucas e guturais. Momentos depois, quando já diversos tinham montado, surgiram quatro ou cinco pares, amparando guerreiros feridos. De repente, um deles soltou um grito agudo, sinal de que qualquer coisa lhe denunciara a presença de estranhos.

No mesmo instante, Reddie disparou sobre o comanche mais próximo, que vinha a olhar para trás, no meio da clareira. O homem recuou, cambaleante, com uma pavorosa máscara de morte estampada no rosto pintado, e acabou por cair para sempre. Todos os guias começaram, então, a disparar. Brite atirou por terra o primeiro que visou e, depois, escolheu outro alvo, entre os guerreiros que caíam e se levantavam. Pelo canto do olho via Pan Handle estender uma pistola e disparar, e, seguidamente, repetir o gesto com a outra mão, alternada e incansavelmente. Disparava com rapidez, mas com marca certa, e não havia dúvida de que todas as suas balas atingiam o destinatário previamente escolhido. Os cavalos, feridos e amedrontados, rebentavam os cabrestos e fugiam em todas as direcções. A pouco e pouco, o tiroteio foi‑se espaçando e acabou por dar lugar a um silêncio pesado e angustioso.

‑ Parece‑me que já estão ‑ rouquejou Texas, soltando uma gargalhada. ‑ Todos por terra e a maior parte morta.

‑ O primeiro que gritou escapou‑se ‑ disse Pete. ‑ Falhou‑me e não voltei a vê‑lo. Acabámos com eles num instante! Pelo meu lado só furei um... Vocês devem ser grandes atiradores...

‑ Um conheço eu!

‑ Vamos «despachar» os feridos ‑ propôs Pete, afastando‑se.

Texas e Pan Handle acompanharam‑no, assim como Bender e Holden. Brite seguiu Reddie, que parecia querer ir também.

‑ Fica aqui, pequena. Para nós, está tudo acabado. Agora vai ser pavoroso.

‑ Oh! ‑ gritou Reddie, afastando a carabina e encostando‑se à rocha, trémula como uma folha batida pelo vento.

‑ Orgulho‑me do teu comportamento, Reddie! ‑ balbuciou Brite, batendo‑lhe suavemente no ombro. ‑ Não desanimes, agora.

‑ Ouça! Oh! É horrível!

Os guias esmagavam a cabeça aos comanches feridos, acompanhando cada coronhada de exclamações ferozes. Brite olhou para o lado dos carros, pois ouvira gritos e a voz dos seus homens.

‑ Vamo‑nos daqui, filha. Não tenhas medo que não nos aproximaremos daquele açougue.

A jovem seguiu‑o até à clareira, onde uma coluna de fumo começava a desfazer‑se, mostrando a primeira vítima da emboscada: o comanche que Reddie alvejara.

Texas foi ao encontro deles, de cabeça descoberta e cabelos desgrenhados, e parou junto do morto.

‑ O patrão não acertou neste pássaro.

‑ Garanto‑te que acertei!

‑ Isso também eu queria! Foi a Reddie quem o furou! Caramba, mesmo ao meio! ‑ Aproximou‑se mais, com os olhos duros fitos na rapariga: ‑ Você teve pressa de começar a batalha!

‑ Não fui capaz de conter‑me, Texas; tive de disparar!

‑ Permita‑me que a felicite, pois é, realmente, a digna filha de um pioneiro texano!

‑ Eu... eu... sinto‑me assassina, mas não me arrependo! Eles pareciam lobos sedentos de sangue!

‑ Sabe o que lhe digo, patrão? Se conseguisse ter um rancho meu, antes de ser velho, gostaria de arranjar uma mulher desta têmpera! ‑ concluiu, satírico e lisongeiro.

‑ Vêm aí o Williams e os outros!

O caçador aproximava‑se, de facto, velozmente, apesar de fatigado.

‑ Só se safou um! ‑ gritou‑lhe Pete Smiling. ‑ Atirámos certo e rápido.

‑ Óptimo! Nós, porém, chegámos tarde ‑ respondeu o outro. ‑ Venham connosco.

Texas correu ao encontro de Williams, que retrocedera com os outros, e Brite e Reddie foram também. A floresta clareava a pouco e pouco, até desembocar num pequeno parque onde os brancos haviam acampado. Os três carros estavam dispostos de maneira a formar um triângulo abrigado, e tinham as rodas barricadas com fardos e camas. As flechas abundavam por todos os lados, num significado bem triste. A primeira coisa que lhes saltou aos olhos foi um homem caído, de cara para o chão, meio escalpado e com uma flecha cravada nas Costas.

‑ Viemos o mais depressa que pudemos ‑ ia explicando Williams ‑ mas era muito tarde. Chegámos no fim.

Brite seguiu os caçadores, pedindo a Reddie que ficasse para trás. Vira cenas bem pavorosas, no decorrer da sua longa vida, mas nenhuma o impressionara tanto como aquela. Williams arrastou para fora dos carros dois homens mortos e um ainda vivo, que devia ter sido atingido por um tiro, pois não se via nenhuma flecha.

Rasgaram‑lhe a camisa e puseram a descoberto uma ferida profunda, na parte superior do tórax. A bala entrara por um lado e saíra por outro.

‑ Aposto que este escapa! ‑ afirmou Williams. ‑ Um de vocês ate um pano, com força, sobre o buraco, passando‑o por debaixo do braço. Procurem bem, rapazes. A batalha deve ter sido longa, pois, como vêem, o sangue da ferida deste homem coagulou.

‑ Vi uma rapariga quando começámos a atirar sobre eles ‑ informou Ackerman, a transpirar. ‑ Iam dois peles‑vermelhas atrás dela. Feri um, mas o outro escondeu‑se no arvoredo.

‑ Está aqui uma mulher morta ‑ anunciou Texas, detrás do terceiro carro.

Correram todos para ver, e Brite estremeceu de horror: do vagão pendia uma mulher meio despida, escalpada e coberta de sangue,

‑ Não é a mesma! ‑ afirmou Deuce. ‑ Acreditem, rapazes! A outra tinha cabelos claros e vestia uma saia de xadrez.

‑ Vão à procura dela ‑ ordenou Texas Joe.

‑ Três homens e uma mulher mortos, com este que ainda vive, cinco ‑ contou Williams ‑ e com a rapariga que o vaqueiro jura ter visto, seis. Pode ser que haja mais. Quando caímos em cima dos índios talvez tenham fugido alguns.

Deuce Ackerman procurava por todos os lados, gritando :

‑ Apareça, menina; está salva!

Mas não a encontrava em parte nenhuma. Deuce correu para a margem do rio, que os salgueiros cobriam totalmente e chamou de novo. De súbito, soltou um grito e desapareceu, a correr, para voltar pouco depois amparando uma rapariga loura. Todos correram ao seu encontro, incluindo Reddie.

‑ Não tenha medo, menina! ‑ dizia Ackerman. ‑ Somos amigos; matámos os índios. Não tenha medo!

Conduziu‑a para junto de um tronco, onde ela se sentou com a cabeça encostada ao ombro dele. Devia ter dezasseis anos e fitava‑os cheia de pavor.

‑ Está ferida? ‑ perguntou Williams, solícito.

‑ Não sei... creio... que não ‑ titubeou.

‑ Quantos eram vocês?

‑ Seis.

‑ Está um homem vivo, que creio se salvará. Tem barba

preta...

‑ Meu pai! Oh, graças, meu Deus!

‑ Como se chama?

‑ Ann Hardy. Meu pai é... John Hardy. íamos para Forte Still, apanhar o comboio... Os índios já nos tinham atacado, há dias... mas depois deixaram‑nos... Tivemos de parar, por causa da cheia... e voltaram hoje.

‑ A mulher era sua mãe?

‑ Não, não era.

‑ Acabou‑se, então. É melhor não perder tempo e levarmos esta menina e o pai para o nosso acampamento ‑ sugeriu Williams. ‑ Vão alguns com ela. Eu ficarei com Pete e mais três. Faremos o que pudermos para transportarmos o Hardy e, se tudo correr bem, voltaremos para enterrar os mortos e tratar destas coisas.

‑ Levo‑a no meu cavalo ‑ ofereceu Ackerman. ‑ Venha, «miss» Hardy, segure‑se a mim.

‑ Salvou‑me a vida! ‑ murmurou ela, comovida. ‑ Estava prestes a deitar‑me ao rio...

‑ Tudo está bem quando acaba bem! ‑ sentenciou o rapaz, rindo, nervoso. ‑ A menina e seu pai tiveram sorte, acredite! Sabe que temos outra rapariga connosco? Chama‑se Reddie Bayne e... Olhe, cá está ela!

‑ Oh, pobre querida! ‑ lamentou Reddie, abraçando‑a. ‑ Connosco estará em segurança: temos bons atiradores, como o Texas Jack, o Pan Handle Smith... e aqui o Deuce Ackerman. Todos maus homens, minha amiga, mas que sabe bem ter ao pé de nós quando aparecem ladrões ou peles‑vermelhas!

Deuce e Reddie acompanharam a rapariga, assim como Brite, Texas Joe e os guias que não ficaram com Williams. O capataz e Holden foram buscar os cavalos, e Deuce sentou a rapariga na sela e montou atrás dela. Poucos minutos depois alcançavam um bosque familiar, mas que Brite nem reconheceu.

‑ Eu seja... ‑ vociferou Texas, parando e soltando tremenda praga.

‑ Que se passa, Tex?

‑ Olhe à sua volta, patrão! O acampamento é aqui; este é o nosso vagão; mas onde está o Moze, onde estão os cavalos, onde está o gado?!

‑ Foram‑se! ‑ gritou Reddie.

 

Brite coçava o queixo barbudo, apatetado. As suas duas mil cabeças de gado ‑ menos de metade da manada com que iniciara a leva ‑ haviam‑se sumido como que por magia!

‑ Não estou surpreendido, no fim de contas ‑ resmungou Texas. ‑ Há bocado, quando regressei de observar os arredores e ouvi o San Sabe contar que vira índios, nem tive tempo de lhes dizer que descobri o Ross Hite e a outra metade da manada!

‑ Maldição! ‑ trovejou Brite. ‑ Teriam tido o descaramento de roubar‑nos a outra metade, mesmo nas nossas barbas?

‑ Talvez não... Os touros são bichos esquisitos; podem‑se ter espantado e fugido...

‑ Mas o Moze, onde se meteu ?

‑ Eh, preto duma figa! ‑ berrou Texas.

‑ Não sou surdo, capataz! ‑ responderam‑lhe, do alto de uma árvore. ‑ Estou aqui!

Pouco depois ouviram os seus pés enterrarem‑se na erva fofa e o negro apareceu, correndo.

‑ O nosso gado, Moze?

‑ Não sei, «siô». Assim que se foram embora, vi uns cavaleiros aproximarem‑se... e este «nego» amarinhou pela árvore acima! Não tardou que os visse bem perto, com aquele compridão do Hite no meio deles... Puseram‑se atrás do gado e levaram‑no... Só se esqueceram dos cavalos!

‑ Pronto, patrão, acabaram‑se os trabalhos! ‑ rosnou Texas. ‑ Assim que o resto do pessoal chegar veremos o que se pode fazer.

‑ Temos uma visita, Moze! ‑ anunciou Ackerman, saltando para o chão e ajudando a jovem a desmontar. ‑ Os índios mataram toda a gente que a acompanhava, menos o pai.

‑ Acende o lume, Moze ‑ ordenou Texas. ‑ Aquece água e prepara ligaduras novas; deve estar a chegar um ferido.

‑ Meu Deus, esta Pista está o diabo de quente! ‑ exclamou Moze, revirando os olhos.

Deuce desenrolou uma cama para a jovem e, com a ajuda de Reddie, instalou‑a à sombra. Sem saber porquê, ao olhá‑lo, Brite pensou o mesmo que Reddie pensara já: o valente vaqueiro do Uvalde fora ferido no coração por qualquer coisa diferente de uma bala!

O caso não era para menos: a rapariga era linda, agora que a palidez lhe fugia das faces e o pavor do olhar. De mediana estatura, era delgada e forte, e de formas bem torneadas. Reddie sentou‑se a seu lado e pegou‑lhe na mão, enquanto Deuce a fitava embevecido.

‑ Feche os olhos e não pense! ‑ aconselhou‑a Reddie. ‑ Deixe esse trabalho para os homens!

E era isso que todos faziam. Sobretudo Texas e Pan Handle, embora silenciosos, nunca tinham dado tanto trabalho aos miolos. Brite pensava, também, passeando de cá para lá, sob o arvoredo. Não podia crer que Ross Hite fosse bem sucedido neste último roubo! O ajuste de contas, que até ali fora adiado, devia agora fazer‑se quanto antes, embora pudesse significar grave risco para as duas raparigas e para o ferido. Hesitava, sem saber se devia ou não permiti‑lo, mas sabia bem que Texas e Pan não eram homens para consentirem que os impedissem de fazer justiça.

Os dois caçadores haviam fortalecido o seu grupo e o patife do Hite, embaraçado com tanto gado, metera‑se num buraco

apertado!

- Deviam estar bêbados! ‑ observou Texas, de súbito.

‑ Quem ?

- os do Hite. A não ser que tivessem contratado mais

gente do que tinham quando o Wallen nos apareceu, meteram‑se numa camisa de onze varas!

- Valerá a pena ir espreitá‑los? ‑ alvitrou San Sabe.

‑ A pé, claro, e escondido.

‑ Não. Já tive a mesma ideia, mas não serve. Basta‑nos a certeza de que foi ele que levou o gado e de que não poderá atravessar já o rio.

‑ Mas que faremos?

‑ Diabos me levem se o sei, San! Ainda por cima temos duas raparigas e um ferido a atar‑nos as mãos! Talvez o Williams, que é esperto, nos dê uma ideia.

Texas afastou‑se, indo espreitar o caminho, e voltou pouco depois, mais satisfeito:

‑ Vêm aí! Agora vamos saber o que faremos.

O caçador notara a falta do gado e perguntou, ainda de longe:

‑ A manada?

‑ Levou‑a o Hite, enquanto matávamos os comanches ‑ respondeu Texas.

‑ Para ele é tudo ou nada, hem? Julgava‑o mais esperto!

‑ É melhor ou pior para nós, Williams?

‑ Duas vezes melhor e mais fácil! Não percebo por que o tipo fez tal asneira!

‑ Mas que vamos fazer?

‑ Temos de estudar bem o caso ‑ disse o caçador, desmontando.

‑ Cá por mim deixava‑o ir, sem o perder de vista, através do Rio Vermelho. Ele não pode vender o gado nem fazer combinações com os índios, pois não levava nada deles...

Pouco depois chegavam os restantes homens, dois dos quais traziam o ferido, que, embora consciente, não podia pôr‑se de pé. Tiraram‑no da sela e conduziram‑no para junto da filha.

‑ Disseram‑me que a ferida não é muito grave, papá!

‑ exclamou a jovem.

‑ Também me disseram o mesmo, Ann... Estou bem...

‑ murmurou o ferido, com voz débil.

‑ Tragam «whisky» e arranjem‑lhe uma cama ‑ ordenou Texas.

‑ Que fazemos dos carros, Brite? ‑ perguntou Williams. ‑ Parecia‑me acertado trazermos um, assim como um carregamento de provisões. Também por lá andavam dois cavalos... Que diz se levarmos o Hardy e a pequena até ao armazém do Doan?

‑ Acho bem, claro. Mande dois homens buscar o vagão e as provisões. Sempre será mais fácil atravessar os carros do que o gado.

‑ Amanhã já poderemos passar. O rio está a baixar rapidamente. Esta noite, como ficamos aqui acampados, teremos tempo de enterrar as pobres vítimas dos comanches.

‑ Não lhe parece que o Hite é capaz de se desviar da Pista, pensando que somos suficientemente parvos para o seguir? ‑ perguntou Texas, ao caçador.

‑ Lá ser capaz é, com certeza; mas nós é que não correremos atrás dele! Já que o senhor Hite foi tão espertinho para roubar‑nos o gado, agora que olhe por ele. Pela nossa parte, limitar‑nos‑emos a olhar por rnós!

‑ Parece‑lhe aconselhável ir espiar,‑ rio acima?

‑ Talvez mão. No entanto, pode mandar o Sabe. Eh, vaqueiro! Trepe pela encosta, sempre escondido, e veja se os localiza! Visto isso, parece‑me melhor não mandarmos buscar o vagão enquanto o batedor não voltar.

Pan Handle mantinha‑se à parte, limpando as pistolas que brilhavam como aço polido à luz do Sol. Parecia absorto na tarefa, com as sobrancelhas franzidas e as faces duras e carrancudas.

Ao olhá‑lo, Brite disse, para consigo, que, só à sua conta, o pistoleiro devia ter mandado para O inferno mais de metade do bando comanche! De pensamento em pensamento chegou à conclusão de que, ante homens como aquele, o futuro de um Ross Hite era bem precário e problemático.

Reddie e Ackerman esforçavam‑se por fazer Ann beber qualquer coisa, e Texas sentara‑se, de cenho carregado, observando a primeira. Moze andava açodado de volta da fogueira, Williams e Smiling Pete ligavam o ferimento de Hardy, e os outros rapazes descansavam e cochichavam juntos, enquanto San Sabe desaparecia entre o arvoredo, sem fazer mais barulho do que um pássaro.

Brite sentou‑se por fim, cansado da luta e da excitação. Reviu os acontecimentos do dia e, apesar de tudo, deu graças a Deus por lhes ter sido poupada a catástrofe que atingira os Hardy. Como se haviam tornado vulgares tais massacres! Os pobres vaqueiros que conduziam gado eram presa fácil destes bandos de salteadores selvagens. Recordava‑se dos rumores que ouvira em Dodge, na última viagem, em que se afirmava que o chefe Kiowa Santana e um outro demónio impiedoso estavam ligados a um bando de malfeitores brancos, cuja especialidade consistia em armar ciladas a pequenas caravanas e massacrar todos os homens, mulheres e crianças, roubar provisões e cavalos e dar

sumiço aos carros, para que nem um só vestígio ficasse â testemunhar a sua passagem.

Na ocasião, custara‑lhe a acreditar em tais barbaridades; mas, agora, os acontecimentos tinham‑se encarregado de abrir‑lhe os olhos. Centenas de comboios cruzavam a planície; milhares de guias de gado percorriam as vastas extensões do Texas, e se alguns se perdiam, de vez em quando, a tragédia mal chegava ao conhecimento da maioria. Agora, porém, o próprio Brite fora comparsa de um deles e já não lhe restavam dúvidas: se saísse com vida daquela leva, muito teria que contar!

No entanto, como parecia pacífico aquele vale, como era bucólico o cenário! O rio a brilhar, como trigo maduro; a brisa a agitar a relva e os salgueirais; as flores a espreitarem pelas margens; as aves a trinarem, felizes; e, acima de tudo e mais belo do que tudo, o céu azul, muito azul, manchado de nuvens brancas, como algodão! Na outra margem do rio, numa alta escarpa, surgiu um búfalo enorme, que se deteve por instantes, reflectindo no céu a sua silhueta negra, magnífico de ferocidade, símbolo da Natureza dominante.

Passaram‑se algumas horas, antes que San Sabe regressasse. Quase ao pôr do Sol, Williams achou prudente que se fosse buscar o carro de Hardy, os cavalos, objectos pessoais e provisões, e que se trouxessem para o acampamento antes de anoitecer, e resolveu ir ele próprio e mais dois homens.

Quando Moze chamou para a ceia San Sabe acabara de chegar ao alto da encosta. Soltou um grito, a fim de sossegá-los quanto à sua Segurança, facto que encheu Brite de júbilo, pois não lhe agradava nada perder mais homens. Pouco depois, o vaqueiro saía do arvoredo e aproximava‑se, com o rosto moreno empastado de poeira e suor.

‑ O Hite leva o gado rio acima, junto numa só manada ‑ explicou, depois de justificar por que se demorara tanto.

‑ A que distância está? ‑ perguntou Texas.

‑ Umas cinco milhas...

‑ Pudeste contar‑lhe os homens?

‑ Vi sete com a manada e um com os cavalos. Contei também seis cavalos de carga.

‑ Viajam leves, sem vagão...

- Parece-te que farão descansar já o gado?

‑ Só Deus o sabe! Mas por que diabo se interessa ele agora por gado? Sem acidentes, perderá uns dez por cento...

‑ Há‑de perder mais do que isso! ‑ afirmou Texas, pensativo. ‑ Que diz o patrão a estarmos perto dele quando a manada atravessar o rio?...

‑ Agrada‑me a ideia! ‑ concordou Brite.

‑ Agrada‑nos a todos! Vamos preparar tudo para partirmos sem demora, depois de ouvirmos a opinião do Williams.

‑ Também tenho confiança nele, Tex.

‑ Todos a temos; é um verdadeiro texano! Até me envergonho de não o ter descoberto logo, mas o Texas Joe já não é o mesmo homem... Acabem de comer, rapazes... e raparigas! Já me esquecia de que havia outra beldade no grupo...

Ann ouviu‑o, e corou.

‑ Não dê grande importância ao que eles dizem, Ann! ‑ aconselhou Reddie, que se esforçava por que ela comesse, tendo o cuidado de elevar bem a voz, para que todos ouvissem. ‑ Isto é, não lhes ligue importância quando vierem com doçuras, pois, de contrário, são um punhado de valentes! Ao pé deles sentimo‑nos em segurança! Siga o meu conselho, não consinta que nenhum ande à sua volta...

‑ Oh, Reddie, não está a ser leal! ‑ protestou Deuce, ofendido.

‑ Bem, para ser franca, o Deuce é o que se salva! ‑ emendou. ‑ ao Whittaker de falinhas mansas e olhos de carneiro mal morto, não dê confiança! E... o bonito também não é de fiar!

‑ A mim parece‑me que há diversos bonitos e, por isso, não sei a qual se refere ‑ observou a outra, maliciosa.

Todos se riram, pois, apesar de tudo quanto lhes acontecia, eram jovens e alegres. Brite riu, também, desconfiado que Reddie ainda não dissera quanto tinha intenção de dizer.

‑ Com certeza, Ann! Os nossos rapazes são todos jeitosos e alguns mesmo bonitos; mas eu referia‑me especialmente àquele diabo de ombros largos, ancas estreitas, cabelos castanhos, olhos cor de âmbar e... perna manca.

A minúcia da descrição foi premiada com grandes aclamações, e o visado, corando como uma menina, ergueu se, tirou o chapéu, e, com uma vénia exagerada, declarou:

‑ Agradecido, «miss» Bayne! É a primeira vez que me faz justiça, nesta leva! ‑ Depois voltou‑se para Ann, com outra vénia: ‑ Alguém poderá dizer‑lhe, «miss», que o chumbo que trago na perna foi recebido quando defendia uma jovem quase tão bela como a menina... e que o homem que mo atirou recebeu o meu na cabeça.

Ann ficou impressionada; sem saber que dizer, Reddie baixou os olhos, desfeiteada, e os guias ficaram silenciosos. Texas ofendera‑se.

Tentando salvar a situação Brite ordenou a Moze que se aprontasse e preparasse tudo para partirem a qualquer momento.

‑ É melhor atrelarem a parelha e montarem guarda aos cavalos de reserva. Tex, creio que o Williams concordará que se carregue o novo carro, para que o Hardy vá confortavelmente. A rapariga podia seguir no banco da frente. Quem quer conduzir o vagão?

‑ Eu! ‑ gritou Ackerman, sem dar tempo a que outro se oferecesse.

Texas Joe, porém, não concordou, frio e autoritário, com o chapéu bem puxado para os olhos:

‑ Desculpa, Deuce, mas quem guia o carro sou eu! Bem vês que não há manada para apontar...

‑ Mas, Tex, tu não és capaz de guiar uma parelha! ‑ protestou Deuce.

‑ Não sou capaz?!

‑ Tu mesmo mo disseste! Eu, pelo contrário, tenho guiado parelhas desde miúdo! Além disso não... não... ando bem, pronto! Estou todo ferido da sela... magro... e...

‑ Meu Deus, Deuce, precisas de um médico! ‑ exclamou Texas, com falsa solicitude. ‑ Ainda não tinha reparado como estás abatido! Claro, podes guiar o vagão dos Hardy!

Deuce ficou radiante e os outros olharam‑no, compreendendo, por fim, as suas intenções.

‑ «Miss» Ann, sabe montar? ‑ perguntou Texas, pouco depois.

‑ Oh, sim, gosto muito! ‑ respondeu a jovem, com ardor. ‑ Na realidade não fui ferida nem estou doente e o susto começa a passar...

‑ Excelente! Nesse caso seguiremos juntos. Tenho um esplêndido ginete para si, um cavalo árabe, que veio do Uvalde.

A alegria de Deuce desvaneceu‑se. O pobre rapaz estava absolutamente alheio à sinceridade e profundidade dos seus sentimentos e, por isso, nem se dava ao trabalho de os disfarçar.

O olhar perspicaz de Brite não tardou a descobrir outra reacção à inocente brincadeira de Texas: Reddie dava todos os sinais de estar possessa do hediondo monstro de olhos verdes...

‑ Um árabe? Oh, gostaria imenso! ‑ declarou Ann, entusiasmada. ‑ No entanto acho melhor ir no carro, junto de meu pai...

‑ Como quiser ‑ acedeu o vaqueiro, mal humorado. Decididamente, o sexo fraco não queria nada com ele!

Embora Brite estivesse convencido de que a rapariga dissera a verdade pura e simples, viu bem que Texas ficara desconfiado de que pretendera apenas desfeiteá‑lo e seguir junto do seu salvador.

Depois desta pequena disputa todos se deitaram ao trabalho, excepto Ann, que ficou a descansar, de olhos fechados, e seu pai, que permanecia imóvel, como lhe haviam aconselhado, sofrendo com resignação. Brite estava convencido de que o homem se salvaria, pois a bala não penetrara no pulmão. A única complicação a temer era a septicemia, que sobrevinha frequentemente nessas circunstâncias, provocada pela penetração na carne de algum grão de chumbo infectado. Williams, porém, era exímio a tratar e ligar ferimentos e os remédios que Brite trouxera, prevendo tais eventualidades, constituíam preventivo seguro, uma vez empregados a tempo.

Estava o Sol a pôr‑se quando os vaqueiros que tinham acompanhado Williams apareceram, conduzindo dois cavalos selados e, logo a seguir, os dois caçadores e o carro.

Texas não tardou a relatar‑lhes a sua intenção de partir imediatamente, de maneira a estarem perto quando Hite quisesse atravessar o rio.

‑ As grandes cabeças têm os mesmos pensamentos, Texas! ‑ gracejou Williams. ‑ Tive a mesma ideia. E o San, que novidades trouxe?

Depois de ouvir as notícias que pedira, Williams declarou:

‑ Excelente! Pode mandar já o Sabe e outro guia; nós

seguiremos o mais depressa possível.

Pan Handle, Texas Joe e Smiling Pete cavalgavam à frente da caravana, seguidos por Reddie e Brite, que guiavam os cavalos de reserva, Ackerman que conduzia o carro dos Hardy, com Ann sentada a seu lado, Whittaker que, após vasta argumentação e alguma zanga conseguira que lhe entregassem o terceiro vagão, Moze com o carro de Brite e, finalmente, Hash Williams, Less Holden e Bender. Se alguma vez existira uma estrada naquela margem do rio, a manada devia tê‑la revolvido, pois a terra solta proporcionava difícil piso aos cavalos. Estava, porém, tão escuro que seria difícil escolher melhor caminho.

Após uma hora de viagem, Brite notou que as estrelas empalideciam e o céu clareava: era a Lua que surgia no horizonte; Porém, não os ajudaria ainda durante algum tempo, pois a escarpa que ficava do lado esquerdo ocultava‑lhe a luz. Mas, pouco depois, o cimo das rochas adquiria um tom prateado, que foi descendo lentamente, até que a terra se tornou luminosa e o rio ganhou reflexos prateados. Agora, sim, era mais fácil a jornada! O vale estreitava‑se a cada passo, chegando a parecer que não havia mais de um quarto de milha de terra entre o rio e a escarpa, e tornava‑se, também, arborizado; isso, embora não constituísse obstáculo para os homens, devia retardar o andamento do gado.

As horas passavam e a cavalgada seria muito agradável se não fosse a ansiedade crescente que a todos dominava, por, a cada momento, mais se aproximarem da resolução inevitável que o caso pedia. A incerteza fora sempre desagradável a Brite e a Texas, que parecia sufocar. De todos só, talvez, Pan Handle e os dois caçadores se mantinham calmos.

Muito depois da meia‑noite Texas voltou para trás, a fim de mandar parar a reserva e os carros:

‑ Ouvimos mugidos, lá para a frente ‑ avisou. ‑ Parece‑me que estamos perto. Que diz, Williams?

‑ Paremos aqui, enquanto eu e alguns de vocês vamos dar uma olhadela. Falta pouco para amanhecer e é preciso estarmos perto quando atravessarem o rio.

‑ Nós queremos deixar passar o gado, Hash; evitam‑nos esse trabalho ‑ atalhou Texas, enervado. ‑ A brincadeira só principiará quando a retaguarda estiver a meio do rio.

‑ Calorzinho para os guias de trás, hem?

‑ Como se sente, «miss» Ann? ‑ perguntou o capataz, ao passar pelo carro dos Hardy.

‑ Bem, obrigada; mas apetecia‑me deitar‑me.

‑ Arranjaste alguma cama para ela, no carro, Deuce?

‑ Ainda não, mas tenho um rolo de cobertores à mão. Está descansado que olharei por «miss» Ann! ‑ afirmou o rapaz, obcecado pela sua importância.

‑ Ainda bem; até logo. É conveniente que alguns de vocês fiquem de guarda, para que o patrão e Reddie possam dormir.

A rapariga agrupara já a reserva no melhor local que descobrira e que felizmente, tinha espaço e pasto suficiente para os animais, e foi estender a cama ao lado da de Brite, como era seu hábito.

‑ Está acordado, papá?

‑ Sim, pequena. Tens alguma preocupação?

‑ Tenho; mas não se trata disso. Queria só perguntar‑lhe se acha que vai haver barulho.

‑ Não vejo como poderemos evitá‑lo, Reddie. Ainda mal chegámos ao Rio Vermelho e já nos roubaram cavalos, o gado todo... e ficámos sem dois rapazes! Entre o Vermelho e o Canadiano é que costumam começar os trabalhos; mas, desta vez...

‑ A minha sorte é assim! ‑ exclamou, triste, descalçando as botas.

‑ Assim como, pequena?

‑ Ora, ser roubada por bandidos, escalpada por peles‑vermelhas, morrer afogada ou perdê‑lo a si, precisamente quando tudo indicava que podia começar a ser feliz!

‑ Então, Reddie, não vale a pena desanimar! Sê corajosa como uma verdadeira texana. Lembra‑te do Álamo!

‑ Do que me lembro é de que, no Álamo, foram todos mortos, apesar da sua coragem!

‑ Queria referir‑me ao espírito deles, filha. Agora dorme, anda!

Texas Joe acordou‑o ao alvorecer:

‑ Tenho novidades, patrão! O Hite está a atravessar a manada! Se não quer perder o espectáculo venha daí! Mas não acorde a Reddie; deixaremos cinco homens de guarda e estaremos de volta daqui a pouco.

‑ Não acorde a Reddie. Com franqueza! ‑ protestou a jovem. ‑ Boa oportunidade para me impedir de ver... o espectáculo, Texas Jack!

‑ Parece‑me que estás a precisar de mais beijos! ‑ resmungou Texas, desdenhoso.

Brite não perdera tempo a aceitar o convite do seu capataz e muito menos a pegar na carabina. Texas esperava‑O com Pan Handle, San Sabe e Williams, e Reddie foi juntar‑se‑lhe, também armada.

‑ Sigam‑me sem fazerem barulho ‑ ordenou Texas ‑ e façam o que me virem fazer. A minha intenção é atacar o Hite antes de concluírem a travessia, pois, como calculam, a maioria dos homens deve ir atrás da manada. Quando estiverem todos dentro de água começamos a atirar. É só isto, por enquanto...

Afastou‑se velozmente e os outros seguiram‑no, um a um, com San Sabe na retaguarda. Texas parou, à escuta, depois de contornar uma curva, e, pelo mugir do gado, Brite calculou que estariam a uma milha ‑ duas, o máximo ‑ do ponto onde Hite tencionava atravessar o rio.

O vale alargava‑se e, do lado oposto, a orla da escarpa descaía em ladeira. Pouco depois, Texas abandonou a Pista e penetrou numa mata onde o avanço era dificultado pelo arvoredo. Por fim, desembocaram na margem arenosa do rio que, naquele local era largo e pouco profundo. A julgar pela areia molhada e pelos detritos que por ali abundavam, a enxurrada devia ter baixado alguns pés, durante a noite. Entretanto, o dia clareara, mas o céu mostrava‑se carrancudo e cheio de nuvens, ameaçando chuva.

Texas continuava a avançar com rapidez, oculto pelos salgueiros e parando de cem em cem passos, pouco mais ou menos. Finalmente estacou e disse em voz baixa:

‑ Olhem!

A meia milha de distância desenrolava‑se um espectáculo deslumbrante: grande quantidade de gado em movimento cobria toda a largura do rio, a margem oposta e estendia‑se até debaixo das árvores, indício de que a manada fora apontada por guia desconhecedor do seu ofício. Não se via um só cavaleiro! Talvez estivessem do lado ascendente, onde a água era, talvez, rápida e profunda. No entanto, o gado tinha pé e isso permitia, apesar dos erros dos guias, uma travessia segura, embora lenta.

‑ Bem, rapazes, vamos fazer trabalho reles de comanches, mas a gente do Hite não merece que nos arrisquemos a apanhar uma arranhadela que seja! Agora, atenção: olhem para mim e não para o rio; a brincadeira está prestes a

começar!

Continuou a avançar sob os salgueiros, quase sem fazer mexer uma folha. O mugir intermitente do gado ouvia‑se agora melhor e, por isso, a marcha era mais lenta e cautelosa.

Texas estacou, de súbito, ao ouvir gritos de guias, baixou‑se sobre um joelho e fez sinal aos outros para se aproximarem.

‑ Mais umas cem jardas e chegaremos ‑ murmurou, ofegante. ‑ Descansem um bocado; um homem a deitar os bofes pela boca não consegue atirar como deve ser. Esperem por mim; já venho.

Afastou‑se, com mil cautelas, mas regressou logo a

seguir:

‑ Dentro de cinco minutos começa o barulho! ‑ avisou, com o rosto coberto de suor. ‑ Não tarda que os homens estejam a meio do rio...

Levantou‑se, deu alguns passos e parou um pouco mais adiante, sem qualquer precaução, certamente por se haver certificado já de que não podiam descobri‑los. Por seu turno, Brite não saía de junto de Reddie e cada vez se maravilhava mais com a coragem da jovem. A rapariga olhava para trás, a intervalos regulares, e sorria‑lhe. Tinha os olhos firmes e cheios de ousadia e só pela palidez do rosto e pela respiração entrecortada se adivinhava a ansiedade que a possuía.

O gado estava perto, abafando com o bater dos cascos e o esparrinhar da água os gritos dos guias e os seus próprios mugidos. Brite sentia o cheiro da «sua» manada e via‑a mover‑se, encarnada e branca, por entre a ramaria das árvores.

Os passos de Texas foram‑se tornando mais curtos e lentos, até que se deteve completamente. Ajoelhou, e, nos seus olhos, lia‑se que chegara o momento de agir. Mas, ainda que os seus olhos não falassem, bastaria ver a maneira determinada como pegava na carabina e apontava.

‑ Temos de começar ‑ murmurou, pouco depois. ‑ Não podemos avançar muito mais e os malvados afastam‑se de nós. Corramos para aquela borda.

Ainda Brite não tivera tempo de desembaraçar‑se dos ramos que o atrapalhavam e já o estrepitar das carabinas o ensurdecia. Correu para a frente, afastando os ramos com a arma, ansioso por ver o que se passava. Reddie precedia‑o, a poucos passos.

A larga retaguarda da manada estava a boas cem jardas da margem e meia dúzia de cavaleiros batia e esporeava os cavalos, numa pressa louca de se pôr a salvo. Brite viu cavalos a cair e um homem aparecer e desaparecer no turbilhão da água.

‑ Aponta baixo e atira, Reddie! ‑ ordenou, com voz dura, vencido pelo entusiasmo da luta.

Tentou ele próprio atingir um cavaleiro cujo cavalo mergulhara, mas o tiro falhou. O estrondear das carabinas, por todos os lados, quase lhe rebentava os tímpanos. O último guia, cujo cavalo fora ferido, ergueu os braços, caiu da sela e não voltou a aparecer.

Os atacados responderam ao ataque e as balas começaram a chover na areia e na água, e a assobiar entre os salgueiros.

O perigo, porém, era pouco, pois os bandidos atiravam com as armas de pequeno calibre e, ainda por cima, montados em cavalos que estavam dentro de água. Apenas por sorte alguma bala atingiria o alvo. A água chegava aos flancos dos cavalos, mas não lhes permitia nadar, dada a sua pouca profundidade. Apesar de tudo, os homens aproximavam‑se da margem, num redemoinhar de balas, e a fuzilaria cessou quase tão depressa como começara, pois os homens de Brite haviam esgotado as munições.

Entretanto, os ladrões alcançavam a margem e juntavam‑se a outro que atravessara à frente, rodeando‑o como uma alcateia de lobos, invectivando‑o, talvez por causa do ataque sofrido, e apontando para três cavalos mortos e para um homem que flutuava, de cara voltada para cima. Texas tornou a carregar a arma e disparou, à guisa de despedida. A bala fez saltar água e areia para o rosto dos homens, que correram a refugiar‑se nos salgueiros.

‑ Foi melhor do que eu esperava! ‑ exclamou Texas, alegre. ‑ Que diz, Hash?

‑ Não foi tão bom como desejaria, mas valeu a pena! Três cavalos mortos... Mas não vi nenhum homem...

‑ Está um ferido ‑ afirmou Texas ‑ que lhe acertei eu próprio!

‑ O senhor Brite terá, de novo, a manada antes de atravessarmos o Rio Vermelho! ‑ afirmou o caçador. ‑ De agora em diante vão andar aflitos e, das duas uma: ou abandonam o gado, ou têm de se haver connosco! Parece‑me que aquele tipo alto montado no cavalo baio era o Hite, a julgar pela maneira como os outros lhe cairam em cima...

‑ Toca a andar! Não vamos agora esquecer‑nos de que estamos em terra de Comanches ‑ lembrou Texas. ‑ Patrão, quem é aquele garoto com o nariz mascarrado de pólvora queimada?

‑ Oh, é a Reddie! ‑ exclamou Brite, a rir, satisfeito. ‑ A tua carabina escouceava, não?

‑ Mais do que uma mula! Não fui capaz de manter a malvada quieta ‑ confessou Reddie, pesarosa.

‑ Agora é correr para o acampamento, a fim de atravessarmos o rio ‑ disse ainda Texas. ‑ De hoje em diante pouco sossego está reservado ao senhor Ross Hite!

 

O feito de Texas entusiasmou os guias que não haviam participado nele e fez Deuce Ackerman soltar um agudo grito de guerra:

‑ Hip, hip! Estás a ver o que perdemos, Rolly? Alguém tinha de ficar, porém... O que me anima é pensar que ainda tornaremos a encontrá‑los e então... então que Deus os ajude!

Passada uma hora estavam outra vez em marcha e, pouco tempo depois, passavam pelo lugar onde os homens de Hite haviam sido atacados. Os três cavalos mortos tinham deslizado rio abaixo e encalhado numa saliência de areia.

Williams mandara um dos homens observar a Pista, à retaguarda, outro de cima da escarpa e um terceiro à frente. Quando todos se reuniram nada tinham visto, além de búfalos.

‑ E se nos armam alguma emboscada? ‑ ponderou Texas.

‑ O Hite escolheria, para isso, sítio melhor do que este ‑ observou Williams. ‑ Tu, Ackerman, empoleira‑te por aí e, com o óculo do patrão, vê se descobres alguma coisa.

‑ Nada ‑ respondeu o rapaz, após minuciosa observação. ‑ Espreitei em toda a parte, sob as árvores e ali, naquela mata espessa.

‑ Achava melhor que algum de nós fosse verificar, para termos a certeza ‑ alvitrou Texas. ‑ Pode ir o San, o Bender e o Less. Olhem com atenção e, se lobrigarem fumo, corram quanto as pernas vos consentirem, se têm amor à pele.

Os guias obedeceram, e o resultado da inspecção comprovou a afirmação de Ackerman.

A seguir, Reddie atravessou o rio, com os cavalos de muda, e depois Moze atravessou, também, sem novidade. Com o carro de Hardy já foi mais difícil, pois encalhou um pouco para lá do meio do rio.

‑ Despachem‑se antes que se enterre mais! ‑ gritou Texas. ‑ Eu levo‑a para terra, «miss» Ann, pois, de contrário encharca-se toda.

Ackerman ficou a olhar, carrancudo, enquanto o capataz transportava Ann Hardy para a outra margem, e os restantes guias, com as suas cordas, ajudavam a parelha a safar o vagão.

Williams conduziu o terceiro, sem dificuldade, mas o quarto e último enterrou‑se no lodo, a meio do caminho. Este incidente reteve a caravana durante muito tempo, pois o vagão era o maior e estava carregado de peles até meio. Apesar de todos os esforços dos homens, porém, cada vez se enterrava mais, e as cordas partiam‑se, umas atrás das outras.

‑ O carro não presta e, quanto às peles, há espalhadas por aí dez milhões delas! ‑ gritou Williams, desatrelando a parelha, conduzindo‑a para terra e abandonando o carro. Prosseguiram a jornada com duas parelhas atreladas ao vagão dos Hardy, que levava a maior carga, e passado pouco tempo estavam longe da margem, na vasta extensão de colinas. Williams observou o terreno e afirmou que a manada abandonara a Pista, desviando‑se para Este, a fim de os despistar.

O dia estava abafado, ameaçando borrasca, e manadas de búfalos pastavam por todo o lado, seguidas por alcateias de lobos e coiotes, e bandos de passarada.

Pelo meio‑dia, Ackerman, que ainda levava o óculo de Brite, anunciou que a manada ia a menos de dez milhas à frente, e durante toda a tarde a caravana continuou a ganhar terreno, facto que não devia ter passado despercebido a

Hite.

Ao pôr do Sol o gado parou, em campo aberto, num lugar onde, com o óculo, não se via nem uma árvore. Vendo iSsO Texas Joe escolheu uma pequena clareira, bem servida de água e arvoredo, e acampou, também, a escassas seis milhas da manada roubada.

O Sol desapareceu, num clarão rubro, e o crepúsculo caiu, pesado e assustador, acompanhado pelo ribombar do trovão e pelo riscar de relâmpagos, no horizonte enegrecido. O silêncio, a ausência total da mais ligeira brisa, aquela como que ansiedade expectante de toda a Natureza, influenciavam desagradàvelmente a caravana.

Brite aproveitou o tempo, contando às raparigas que as tempestades magnéticas, muito frequentes naquela região do Texas, eram o flagelo dos guias de gado e ainda mais temidas por eles do que os próprios peles‑vermelhas ou os búfalos.

‑ Porquê? ‑ inquiriu Ann, admirada.

‑ Primeiro, porque é muito natural que tenham medo, em virtude da extraordinária violência dessas borrascas; depois... porque conduzem cavalos e gado bravo! Fred Bell, um guia meu conhecido, contou‑me que, uma vez, foi apanhado por uma delas, perto do Canadiano, e ficou sem trinta e sete cabeças de gado e um homem, fulminados pelas descargas eléctricas!

Reddie não estava menos assustada do que Ann e prometeu aos homens que rezaria, para que Deus os poupasse a tais cataclismos.

‑ Já assisti a um par de tempestades magnéticas ‑ declarou Texas, que parara a ouvi‑los. ‑ Quer dizer, já assisti a centenas de trovoadas cheias de relâmpagos, mas só vi duas dessas que enchem de electricidade a Terra e tudo quanto ela contém. Vi bolas de fogo nas pontas de todos os chifres e lume, autêntico lume, a correr pelas crinas de um cavalo! Vi... e ouvi! É verdade, patrão; essas tempestades são o inferno para os guias!

Mais tarde, depois de as raparigas se recolherem, Texas voltou a falar com Brite, em voz baixa e séria:

‑ Olhe, patrão, se esta noite houvesse realmente temporal, mesmo que fosse só trovoada e relâmpagos, fazia-nos jeito, a mim e ao Pan Handle.

‑ Que se te meteu na cabeça, homem?

‑ Vamos recuperar a manada, esta noite! ‑Tu e o Pan, sozinhos?

‑ Sim. sozinhos. É a melhor maneira. O Pan queria ser ele a arrumar o assunto, e eu também tinha a mesma ideia, mas chegámos a acordo e combinámos unir forças e ir os dois.

‑ Shipman, eu... eu... não sei se to consentirei!

‑ Ora, se consente! Custar‑me‑ia desobedecer‑lhe, mas na Pista mando eu! Quanto ao Pan, diabo, não é tipo em quem se possa mandar como em qualquer outro!

‑ Mas que pensam vocês fazer? Deus permita que não seja nenhuma tolice! Vocês não são garotos, são homens feitos, e tu deves conhecer a tua responsabilidade aqui... sobretudo agora, que temos de proteger duas raparigas e um ferido!

‑ O patrão imagina as coisas piores do que são. O Pan e eu resolvemos atacar no auge da tempestade. Eu cercarei a manada por um lado e o Pan pelo outro, e, se o gado se espantar, como é natural que aconteça, cavalgaremos com ele, até parar ou sossegar um bocado. Os homens do Hite não devem ter mãos a medir, um por cada lado, tentando manter a manada unida e quieta... Se algum nos vir, à luz dos relâmpagos, não saberá se somos dos seus ou não. Está a perceber, patrão?

‑ Nem sei, rapaz!

‑ Está‑me cá a parecer que a idade começa a endurecer‑lhe a cabeça... Até lhe deu para adoptar a garota, hem?

‑ Não me censures, Tex. É verdade que tenho um fraco pela pequena, mas isso não impede que te estime, também, nem quer dizer que a minha cabeça esteja dura. Provo‑te o que afirmo com esta pergunta: quando tu e o Pan rodearem a manada, em direcções opostas, como diabo se reconhecerão um ao outro, como não se confundirão com os homens do Hite? Não te esqueças de que dar tiros à luz de relâmpagos significa que, pelo menos, se tem de ser tão rápido como o próprio relâmpago! Como vão vocês arranjar‑se para não dispararem um sobre o outro?

‑ Isso também me preocupa, concordo. Depois do jantar consultarei os outros; talvez algum tenha uma ideia. Se resolvermos esse pormenor o Hite e a sua cáfila estão arrumados!

Moze anunciou que o jantar estava pronto e Ackerman, que ficara radiante por ter conseguido sentar Ann a seu lado, num fardo, exclamou:

‑ Viva! É a primeira vez que estamos todos reunidos, ao jantar!

‑ É a primeira e pode muito bem ser a última! ‑ agoirou Texas, fitando Reddie. ‑ É melhor aproveitarem bem a ocasião!

Ao crepúsculo sombrio sucedera uma noite húmida e ameaçadora.

Os trovões eram, agora, mais frequentes e mais próximos e, para os lados do Oeste, as estrelas haviam desaparecido. Nem sequer a Lua iluminava ainda o céu cor de breu.

‑ Deitem mais lenha na fogueira e cheguem‑se para aqui ‑ ordenou Texas, mal terminou a refeição. ‑ A borrasca deve estar a rebentar e eu tenho que fazer, assim como o Pan.

‑ Têm que fazer o quê? ‑ inquiriu Holden.

‑ Venha também, Reddie... e a Ann, se quiser ‑ pediu o capataz, sem responder à pergunta. ‑ Nunca ninguém viu uma boa ideia sair da cabeça de uma rapariga bonita, mas, esta noite, estou desesperado...

Todos o olhavam, sob os clarões incertos da fogueira, cheios de curiosidade e expectativa.

‑ Ouçam bem ‑ começou Texas. ‑ Esta noite vamos caçar o Hite, eu e o Pan. Quando a tormenta rebentar, cairemos sobre o gado, que já sei onde está. Planeámos cercar a manada por direcções diferentes, mas não sabemos como poderemos reconhecer‑nos, imediatamente, quando nos virmos, ao longe. Como há‑de ser?

‑ Como se hão‑de reconhecer à luz dos relâmpagos, não é? ‑ perguntou Less.

‑ É.

‑ Não pode ser.

‑ Tem de poder! Um relâmpago dura um segundo, às vezes um pouco mais... De quanto tempo precisarei eu para ver e disparar?

‑ Ah, é isso!

‑ Deixem‑nos ir!

‑ É trabalho só para dois! Vamos, façam funcionar os miolos!

‑ É provável que esteja a chover e que a manada se mova... que corra até, talvez... Os homens do Hite têm de rodeá‑la, afastados uns dos outros... É uma grande ideia, Tex! O pior é se vocês disparam um contra o outro!

‑ Vejamos... ‑ começou outro guia. ‑ Quando se separarem podem ter por certo que não voltarão a encontrar‑se tão cedo... Talvez precisem de um quarto de hora, ou de mais, para percorrerem uma manada tão grande como a nossa, ainda por cima guiados só pela claridade dos relâmpagos...

‑ As vossas cabeças são demasiado lentas, rapazes! ‑ observou Pan, divertido. ‑ O que nós queremos saber é o que devemos usar para nos identificarmos facilmente, ao primeiro olhar. Não se esqueçam de que ambos teremos as armas engatilhadas...

Um a um, todos os homens apresentaram sugestões que, uma a uma também, foram postas de lado.

‑ Se houver temporal há vento, com certeza, não acham?

‑ perguntou Reddie, no fim de todos falarem.

‑ Já venta um pouco, até! Quando chover haverá ventania forte, pela certa.

‑ Então atem qualquer coisa branca à roda dos chapéus, deixando duas pontas compridas que o vento faça agitar.

‑ Qualquer coisa branca? ‑ repetiu Pan Handle.

‑ Raios! ‑ praguejou Texas.

‑ A ideia é formidável! ‑ exclamou Brite, entusiasmado. ‑ Uma coisa branca a esvoaçar, não os enganará!

‑ Mas onde arranjaremos nós essa tal coisa «branca»?

‑ perguntou Texas, zangado. ‑ Procurar um trapo branco nesta barafunda de coisas e pessoas poeirentas e encardidas é o mesmo que procurar agulha em palheiro!

‑ Engana‑se! ‑ protestou Reddie. ‑ A Ann tem uma toalha branca, bem limpinha!

‑ Tenho, sim! Vou buscá‑la!

Mal apanhou a toalha à mão, Texas começou a rasgá‑la em tiras, com frenesim.

‑ Salvou‑nos a vida, Reddie! ‑ exclamou. ‑ Nem imagina quanta vontade tenho de que o Pan me reconheça bem e depressa! O caso não é para menos, se pensarmos na mão rápida que ele tem! Atamos duas tiras, uma à outra, e depois aos nossos chapéus... Faça lá isso, Reddie.

Baixou a cabeça e Reddie, tão branca como a própria toalha, atou‑lhe as tiras à volta da copa do chapéu.

‑ Para que são essas tremuras todas? ‑ perguntou o rapaz, trocista. ‑ Quem a vir, julgará que receia que eu seja morto e tem pena...

‑ E teria, Tex; teria muita pena!

‑ Isso já é alguma coisa! Aperte bem, para que o vento as não arranque. Isso! E tu, Pan, já estás?

‑ Já, já estou enfeitado.

‑ Vê‑se bem, no escuro. Agora, amigos, escutem: queremos sair com vida desta arriscada aventura, o que só não sucederá se o plano falhar. Depois de feito o trabalhinho, ficaremos com a manada, à vossa espera. Por isso, é conveniente que o Moze prepare o comer cedo e se ponham a caminho assim que clarear. Os carros podem seguir pela estrada. Encontrar‑nos‑ão pelo caminho, tenham a certeza!

Logo a seguir, no meio do maior silêncio, montaram os cavalos para eles preparados e sumiram‑se na noite melancólica e carregada de electricidades.

‑ Aprende, Hash Williams! ‑ exclamou o caçador. ‑ Aqueles diabos nem sequer admitem a ideia de perderem a partida!

Esta observação afrouxou um pouco a tensão em que a abalada dos dois homens os deixara envoltos. Reddie parecia uma estátua, com os olhos fixos na escuridão que tragara Texas Joe; e, desta vez, Brite não precisou de lhos ver: a rigidez do seu corpo, o protesto mudo que emanava da sua imobilidade dolorosa, eram bem eloquentes.

O vento uivava, num coro lamentoso com o ribombar do trovão, e, à luz de um relâmpago, viram avançar nuvens negras, cor de tinta.

‑ É melhor pensarmos na melhor maneira de nos mantermos secos, e às nossas camas também ‑ aconselhou Brite. ‑ Deuce, vê se a Ann e o pai estão bem abrigados. Tu, Moze, prepara tudo. Reddie, vem comigo; abriguemo‑nos sob o vagão.

‑ Parece‑lhe que os cavalos de reserva se manterão quietos durante o temporal? ‑ perguntou a rapariga, hesitante.

‑ Talvez.

‑ Vou dar‑lhes uma vista de olhos, antes que comece a brincadeira... ‑ ofereceu‑se San Sabe.

‑ Olha que tens de correr!

‑ Por enquanto, ainda não chove; só está vento.

Mal Moze, Brite e Reddie acabaram de amarrar as pontas da cobertura de lona, para que não voasse, começaram a cair grossos pingos de chuva. Brite sentiu‑os, frios, no rosto, e correu a recolher‑se, com Reddie, ao mesmo tempo que intensa claridade, dum branco azulado, iluminava carros, acampamento, cavalos, a terra toda. Seguiu‑se um trovão, tão violento que dir‑se‑ia ter feito estremecer o Universo.

A escuridão que reinou a seguir era impenetrável e pavorosa.

‑ Onde está, papá?

‑ Aqui mesmo. Ouves a chuva?

‑ É melhor fazer já as minhas orações, senão Deus é capaz de não me ouvir, com tanto barulho.

‑ Boa ideia, filha! Também me parece melhor não desenrolar‑mos as camas enquanto isto não passar...

Reddie respondeu qualquer coisa que Brite não ouviu, no meio do dilúvio que caía sobre a terra. Novo relâmpago iluminou tudo, mostrando o caudal de chuva, a terra ensopada e os cavalos, unidos uns aos outros, com as cabeças baixas. Seguiu‑se novo trovão e, mais uma vez, o manto negro das trevas envolveu tudo. Foi por pouco tempo, porém; uma faísca, ziguezagueando, fendeu uma nuvem, num clarão sobrenatural, verde prateado. Sucederam‑se descargas contínuas, com raros intervalos de escuridão, e os trovões começaram a estalar num ritmo assustador.

Reddie estava encolhida sob o vagão, coberta com um comprido oleado. Brite via‑lhe à luz dos relâmpagos, as faces pálidas e os olhos cheios de medo ‑ de um medo que não era só por ela nem da borrasca que se desencadeava à sua volta. Olhava para longe, com a consciência terrível do que devia estar a passar‑se naquele momento preciso.

Tal pensamento também não abandonava Brite, que apoiou a cabeça nas mãos preocupado. Moze estava ali, ao pé deles; os outros homens haviam‑se abrigado debaixo dos restantes carros.

O velho rancheiro não apreciava nada as tempestades do Texas, por muito fracas que fossem, e tinha verdadeiro pavor das autênticas tempestades magnéticas, mas, naquele momento, parecia não dar pelos trovões nem pelas faíscas.

O seu pensamento seguia Texas Joe e Pan Handle, os seus audaciosos rapazes que cavalgavam sob tal tormenta para castigarem os ladrões que o haviam roubado. Fora uma ideia original aquela de atacarem Hite sob chuva diluviana, trovões e raios! Não se lembrava de nenhuma que se lhe pudesse igualar em ousadia e nervos, apesar de ter assistido a tantas, na sua longa vida de texano! Pensar que estava ali ao abrigo dos elementos furiosos, enquanto eles, os seus valentes, deviam encontrar‑se encharcados até aos ossos, cegos pelas cordas de chuva e pelas faíscas, quase a saltarem da sela e no perigo iminente de serem pisados por uma manada descomunal ou abatidos pelos homens que eles próprios queriam matar!

Olhava para os relâmpagos e pensava se teriam tempo de disparar com precisão em tais circunstâncias. As descargas duravam tempo suficiente para quem tivesse olhos e dedos rápidos, mas, mesmo assim, não seria ele, Brite, quem ousaria enfrentar os perigos de uma noite daquelas para se vingar de ladrões sem escrúpulos!

A tempestade levou mais de uma hora a atingir o auge, mas depois a chuva, o vento e os relâmpagos começaram a enfraquecer. A tormenta afastava‑se, e o que quer que fosse que estivesse destinado a acontecer já acontecera. Brite não duvidava de que o resultado da incursão dos seus homens devia ser bem mortífero... o que talvez fosse excesso de confiança, pois, pelo que se dizia, Ross Hite era um desalmado sem consciência, tão bom atirador como Texas Joe. Mas havia, também, Pan Handle, e esse, sim, era diferente! A ele só os grandes atiradores texanos se podiam comparar!

Reddie estendera a cama e adormecera. Brite imitou‑a, cansado, cheio de uma serenidade incompreensível, sem saber porquê, convencido da vitória.

Ainda era escuro quando acordou, embora se adivinhasse já que o dia não tardaria a romper. Estendeu o braço para despertar a rapariga, mas deparou com a cama vazia. Moze levantara‑se, também, e estava a rachar lenha, tarefa em que o patrão foi ajudá‑lo.

Ouviam‑se vozes ensonadas, nos outros carros, e sombras escuras deslizavam de um lado para o outro, contra a luz baça da madrugada.

A voz sonora e límpida de Reddie anunciou que os cavalos de reserva estavam em movimento e logo, um a um, os vaqueiros foram aparecendo perto do lume, enregelados, carrancudos, molhados e silenciosos. Ackerman não apareceu e Brite deduziu que devia ter ido ajudar Reddie.

Quando os cavalos chegaram ao acampamento o ar encheu‑se do zunir das cordas molhadas, do bater dos cascos e do tilintar das esporas, assim como de uma ou outra praga ocasional. Depois de tudo pronto, todos rodearam Moze, reclamando o seu quinhão de comida.

‑ Está acordada, «miss» Ann? ‑ perguntou Ackerman, que chegara, também.

‑ Estou.

‑ Como se sente?

‑ Bem, senhor Deuce, mas muito encharcada!

‑ E seu pai?

‑ Ainda estou vivo, filho ‑ respondeu Hardy.

‑ Óptimo! Venha secar‑se e tomar uma bebida quente, «miss» Ann. Estamos quase a partir.

‑ O dia vai estar melhor do que o de ontem ‑ declarou Hash Williams, esfregando as mãos e acercando‑se da fogueira.

‑ Parece‑lhe que vamos ter manada outra vez? ‑ perguntou Brite.

‑ Aposto que sim! ‑ afirmou o caçador.

‑ Quando acha que devemos partir, Williams? ‑ inquiriu. Ackerman, por sua vez.

‑ Já! Você guia o carro dos Hardy, como ontem, e o Pete o nosso. Eu irei com os rapazes. Ora deixe ver... São seis... Bem, pode ficar um consigo.

‑ Ficas tu, Rolly.

Momentos depois, os cinco homens montavam cavalos folgados, formando um quinteto forte e corajoso à luz pálida da manhã.

‑ Sigam sempre pela Pista até nos encontrarem ‑ avisou Hash Williams. ‑ Não nos esqueceremos de vocês.

Abalaram velozmente, mas unidos, de maneira que traduzia a incerteza do seu destino e a coragem com que o enfrentavam.

‑ Bons dias, Ann ‑ cumprimentou Brite, vendo aparecer a jovem, molhada e despenteada, mas com os olhos brilhantes de alegria. ‑ Ouviu o temporal?

‑ Foi terrível! Não consegui dormir, só de pensar naqueles dois que andavam lá por fora.

‑ Não foi uma noite agradável, não... Venha para perto do lume. Tu, Moze, despacha‑te que não podemos perder tempo.

Quando se puseram a caminho ainda o horizonte estava coberto de bruma. O céu, porém, mostrava‑se límpido, o ar fresco e suave e o Sol começava a avermelhar o Nascente.

Rolly Little estudou o caminho, os carros seguiram, uns atrás dos outros e, ao fim de tudo, os cavalos de reserva, conduzidos por Reddie e Brite. Os animais estavam folgados e trotavam à vontade, no caminho duro, fazendo saltar a água das inúmeras poças. Entretanto, o vermelho do Nascente tornara‑se rosado e o Sol nasceu, por fim, dissolvendo e apagando sombras e bruma, os mistérios da distância e a obscuridade da madrugada.

Após terem percorrido umas cinco milhas, Rolly Little saiu da Pista, parecendo observar qualquer coisa. Quando os cavalos de reserva alcançaram o mesmo ponto onde ele parara, Brite deteve‑se também, para ver de que se tratava, e descobriu que fora ali que Ross Hite acampara. Albardas, selas e utensílios variados, junto de cinzas apagadas, atestavam a partida precipitada dos ladrões. Um grito agudo sobressaltou Brite, arrancando‑o às suas reflexões. Little acenava-lhe, a certa distância, num gesto que traduzia mais excitação do que alarme. Curioso e excitado, também, Brite cavalgou ao encontro do vaqueiro, mas o rapaz apontou para qualquer coisa, no chão, e afastou‑se.

A breve trecho o velho rancheiro descobriu um homem morto, de braços abertos e arma caída, numa cena bem elucidativa das leis da pradaria. Galopou à volta de um círculo imaginário e não tardou a descobrir outro cadáver, hirto e horrível, com metade do rosto arrancado por um tiro e a camisa aberta e ensanguentada. Ainda mais longe divisou um cavalo e dois homens mortos, em grupo, mas não se aproximou. Preferiu voltar para junto de Reddie, que o fitou com um olhar carregado de perguntas e temores.

‑ Quatro homens do Hite caídos, naquele círculo... e só percorri metade do caminho!

Reddie engoliu a saliva e não disse nada. Continuaram a cavalgar, de olhos postos na pradaria ondulante e enganosa. Fora da Pista viam‑se búfalos, pondo manchas negras no verde dos pastos, e os cabeços cor de púrpura convidavam-nos a avançar, a avançar sempre. Para lá deles erguiam‑se, ameaçadoras, as montanhas Wichita.

As horas de incerteza iam decorrendo, os carros rolavam, barulhentos, pelo caminho, os cavalos trotavam e os guias incitavam os mais ronceiros.

‑ Olhem ali à frente! ‑ gritou Reddie, de súbito.

Smiling Pete estava em cima do carro, acenando com o chapéu, com uma energia que tanto podia traduzir alegria como pânico.

‑ Estará a ver os nossos rapazes e a manada ou um bando de comanches? ‑ murmurou Brite.

‑ Não sei, papá, mas rezo, rezo muito!

 

Do alto da interminável ladeira Brite e Reddie soltaram gritos de alegria, ao divisarem, muito ao longe, no vale verdejante, a mancha de cor, cuneiforme, que escurecia a pradaria. Era a manada, a sua manada outra vez reunida, com a frente voltada para o Norte e a larga retaguarda estendendo‑se para Este e Oeste.

‑ Oh, aquele vaqueiro! ‑ exclamou Reddie, delirante.

Brite encontrou no silêncio o melhor tributo que podia prestar aos seus rapazes e, acto contínuo, cavalos e carros começaram a descer a encosta cada vez com maior velocidade.

Em breve a frescura da manhã deu lugar ao calor do meio‑dia, e, quando alcançaram o fundo arenoso do vale, tanto os homens como os cavalos estavam extenuados e atormentados pelo calor.

Para além daquele lugar árido estendia‑se uma rampa pouco acentuada, onde a erva abundava. A manada estava mais adiante, numa clareira bordejada de salgueiros que denotavam a existência de água.

A cavalgada de Brite chegara ao fim, pois o gado parecia cansado e só no dia seguinte sairia dali. Reddie conduziu os cavalos de reserva para lugar abrigado e o velhote dirigiu‑se para o extremo da clareira, onde Moze se detivera.

Com o gado só estavam dois guias, um de cada lado, inclinados sobre as selas; todos os outros se haviam apeado.

Brite desmontou também, e começou a andar, com as pernas dormentes, até descobrir Texas Joe e Pan Handle.

O coração deu‑lhe um pulo no peito, quando divisou o primeiro deitado debaixo de uma árvore, com um pano ensanguentado à volta da cabeça.

‑ O que queres fazer nem parece teu, Tex ‑ dizia Pan Handle.

‑ No amor e na guerra tudo é permitido! Estou doido por ela, e ela não se interessa nada por mim...

‑ Vem aí o patrão ‑ avisou Pan. Brite, porém, ouvira o suficiente para calcular o que o velhaco do seu capataz premeditara, mas decidiu agir como se de nada desconfiasse:

‑ Tex, meu filho, espero que não seja nada de grave! ‑ exclamou, dando à voz uma entoação alarmada.

‑ Estou quase pronto, patrão!

‑ Meu Deus, é horrível!

‑ Chame a Reddie, depressa! ‑ pediu Texas, angustiado.

Reddie estava a desaparelhar o cavalo, do lado oposto do acampamento, e não mostrou pressa em acorrer ao chamamento de Brite.

‑ Talvez seja melhor eu ir prepará‑la... ‑ insinuou o patrão, desejando ser leal com a pequena.

‑ Mas traga‑a, traga‑a depressa! ‑ insistiu Texas, em tom cada vez mais lamentoso.

Brite não perdeu tempo a ir ao encontro de Reddie, que estava pálida e a tremer.

‑ Eu vi! ‑ exclamou a jovem. ‑ O Tex... foi ferido! Pelo amor de Deus, por piedade, não me diga...

‑ O diabo do rapaz nem ferido está, Reddie! É verdade que tem uma ligadura ensanguentada na cabeça, mas desconfio que quer apenas assustar‑te.

Reddie compreendeu, corou e perguntou, mais calma:

‑ Não me mente, papá?

‑ Juro!

‑ Obrigada! ‑ exclamou, alegre. ‑ Se não me avisasse, o malvado apanhava‑me, pela certa!

- Agora apanha‑o tu!

- Já vai ver!

Numa corrida, dirigiu‑se para onde estava Texas. Brite seguiu‑a, conforme lhe foi possível, e chegou a tempo de ver a rapariga cair de joelhos, com um grito de dor:

‑ Oh, Pan, feriram‑no!

Pan acenou afirmativamente, e Texas deixou‑se ficar imóvel, com a ligadura ensanguentada posta de maneira a cobrir‑lhe os olhos, talvez com medo de os expor à perspicácia da rapariga.

‑ Pois feriram... Reddie ‑ gemeu, em voz abafada ‑ ...mas não importa, recuperámos o gado.

‑ Mas, Jack... não estás... não estás... ‑ titubeou, em tom que devia ter enchido de êxtase o coração do vaqueiro.

‑ Estou... pronto.

‑ Não vais morrer! Não, Jack! Oh, meu Deus!

‑ Sim, pequena... Vou morrer... na pradaria imensa...

‑ Jack, querido! ‑ soluçou, cobrindo o rosto com as mãos.

‑ Vais ter pena? ‑ perguntou, com voz doce.

‑ Ficarei com o coração despedaçado... morrerei também.

Texas Joe agitou‑se de maneira pouco peculiar num homem prestes a dizer adeus à vida e a própria Reddie pareceu à beira de ter convulsões...

‑ Dá‑me um beijo de despedida ‑ suplicou o vilão, disposto a levar a farsa o mais longe possível.

Reddie descobriu bruscamente o rosto, corado e convulso, mas de riso, e arrancou‑lhe a ligadura, expondo a ferida superficial que ele tinha na fronte.

‑ Raios! ‑ praguejou Texas. ‑ Você é esperta!

‑ Descobri‑lhe a manha assim que o vi! ‑ afirmou, trocista, levantando‑se.

‑ Ah, sim?! ‑ exclamou, agastado. ‑ O Pan disse que esta farsa não era digna de mim, e eu dou‑lhe razão. Da próxima vez não será a brincar!

Como sempre Texas Joe não só se mostrava adversário digno de Reddie, mas, também, um mestre de finura. Os olhos negros da jovem mudaram bruscamente de expressão, pois estava convencida de que, naquele momento, o complexo vaqueiro falava sério. Deixou de rir, baixou a cabeça e retirou‑se.

‑ Foi você que me traiu, patrão? ‑ perguntou Texas, fitando Brite.

‑ Eu? Como podia fazê‑lo?

‑ Pois sim, o senhor é um velho muito sabido! Diabo da rapariga quase me fez perder a cabeça! Não achas que a Reddie é a moça mais maravilhosa do mundo? ‑ inquiriu, dirigindo‑se a Pan.

‑ Como queres que te responda se não as conheço todas? ‑ resmungou o pistoleiro, irónico. ‑ Concordo que será difícil ultrapassá‑la... Parece‑me, também, que, de facto, não te liga nenhuma...

‑ O quê?

‑ Nenhuma rapariga desconfiaria com tanta facilidade, ao ver‑te assim, todo ensanguentado, tanto mais que és um bom actor e um excelente mentiroso! Na minha opinião ficaste a saber o que querias...

‑ Já não foi mau de todo ‑ replicou Texas, carrancudo. ‑ Então, velhote, já viu?

‑ Quase me saltam os olhos, rapaz! Não sei como agradecer‑vos, nem que dizer! Espero... que me contem tudo. ‑ Que dizes, Pan?

‑ Se tivesse olhado bem para a manada teria descoberto que temos mais mil e quinhentas cabeças do que quando começámos a leva ‑ observou o fora da lei.

‑ O quê?

‑ É verdade, patrão! ‑ asseverou Texas. ‑ A nossa boa sorte começa a equiparar‑se à má. O Hite tinha uma manada sua, roubada, creio a outros guias.

‑ Estou pasmado! Qual é o ferro?

‑ Vimos uma quantidade de «X» e dois riscos e alguns «HE» dentro de círculos. Conhece‑os?

‑ Não.

‑ Desconfio que são marcas novas sobre outras, anteriores. Os bichos são bravos como o diabo! Como se já não tivéssemos trabalho de sobra! O Pan que lhe conte o que se passou, a noite passada.

Texas afastou‑se e Brite esperou que o sombrio pistoleiro falasse, mas ficou desiludido. Pouco depois, pretextando trabalhos a fazer, o velho dirigiu‑se para junto da fogueira, onde os guias estavam reunidos, conversando em voz baixa. A chegada de Ann e de Reddie fê‑los calar, e Brite, que julgara ir encontrá‑los contentes, ficou desconfiado de que queriam esconder dele e das raparigas qualquer coisa pouco agradável.

Hardy ia‑se aguentando, em virtude da natureza séria do ferimento, mas tinha febre e o seu aspecto era o de uma pessoa muito doente. William dizia que se conseguissem transportá‑lo para Doan, no Rio Vermelho, teria boas possibilidades de se salvar.

Pouco depois, Moze chamou‑os para comerem e a refeição decorreu mais silenciosa do que habitualmente.

San Sabe e Little regressaram da ronda, anunciando que havia búfalos e índios algumas milhas a Oeste.

‑ Esse grupo acompanhou‑nos todo o dia ‑ observou Williams.

‑ Mas não me parece numeroso. Não serão precisas grandes precauções esta noite, mas será melhor não deixar a fogueira acesa.

‑ Tenho de dormir! ‑ resmungou Texas Joe. ‑ O Pan Handle é como as corujas, mas eu, se não durmo, estou arrumado!

Antes de cair a noite Texas chamou Brite de parte, longe dos ouvidos dos outros:

‑ Dê‑me lume, patrão. É estranho, mas estou nervoso. O Pan contou‑lhe o que se passou?

‑ Nem uma palavra!

‑ Estes pistoleiros são duma força! Não se consegue fazê‑los falar! Ou por outra, falam com a pistola, como ele fez, a noite passada... O que aconteceu foi a coisa mais estranha a que já assisti! Se soubéssemos que em vez de seis homens teríamos de enfrentar dez ou doze... andaríamos mais devagar.

‑ Podes dizer o que quiseres, Tex. Basta‑me saber que estão vivos e recuperaram o nosso gado.

‑ A sorte esteve connosco, patrão. Só depois de tudo acabado é que verificámos que o Hite não tinha a manada guardada. Localizámos o gado antes de começar o temporal ; por isso, quando relampejou pela primeira vez, não tivemos de andar muito. Vimos um guarda a galopar que nem um danado, quando estávamos já perto. Tinha‑nos visto, pela certa! Logo a seguir começou a chover e fomos um para cada lado, como estava estabelecido. O gado berrava, baixava a cabeça e entrechocava os cornos, inquieto. Era uma sorte que a chuva, o vento e os relâmpagos estivessem por detrás de nós! Ainda não tinha andado muito quando soou um tiro e ouvi um dos homens de Hite gritar: «És tu, Bill? Ouviste um tiro?» Respondi‑lhe que sim e continuei a galopar. Estava escuro como breu, excepto quando relampejava, e aproximei‑me do tipo precisamente quando o céu parecia incendiar‑se. Só teve tempo de gritar:

«Quem diabo?...». Continuei a galopar, às cegas, quase tropeçando no gado. Se calham a espantar‑se tinham‑me atirado ao chão. Não chovia, caía água a potes; não via nada a mais de vinte passos nem ouvia outra coisa além da chuva, do vento e dos trovões. Vi outro guarda, vi‑o claramente, mas o relâmpago foi curto e disparei às escuras. Quando relampejou de novo vi um cavalo caído e um homem a levantar‑se. Disparei outra vez, mas a luz extinguira‑se. Ele disparou, também, pois ouvi a descarga e vi o clarão, mas o tiro falhou‑lhe, como acontecera ao meu. Como deixei de o ver fui avançando sempre. Depois disso tive luz à farta, mais do que se fosse dia e durante segundos a fio... mas não encontrei mais guardas! Muito tempo depois do que calculara vi o trapo a esvoaçar na cabeça de Pan e fiquei contente. Oh, se fiquei contente! Gritámos um para o outro e o diabo dos bichos deu‑lhes para correrem mesmo para cima de nós! Tivemos de galopar de novo, para sairmos do caminho, mas a chuva acabou por enfraquecer e conseguimos dominá‑los bem. Devem ter corrido umas dez milhas antes de pararem, quando a trovoada acabou.

‑ Como arranjaste esse ferimento na cabeça?

‑ Foi esta manhã, um pouco depois do romper do dia. Estávamos junto da manada, com os ouvidos e os olhos alerta, quando fomos atacados por quatro cavaleiros. Tinham só uma carabina e nós as nossas caçadeiras de búfalos; foi‑nos fácil correr com eles. Apanhei logo esta esfoladela ao princípio e, pelo que vi, não acertámos em nenhum. Vimo‑los afastarem‑se e reconhecemos, no que trazia a carabina e me feriu, o Ross Hite. Só quero voltar a encontrá‑lo no meu caminho!

‑ E eu só desejo que tal nunca aconteça!

‑ O Pan também é dessa opinião, mas por motivos diferentes. Parece‑me que teve sarilhos com o tipo antes disto.

É por isso que, se o Pan o topa primeiro do que eu, escuso de procurá‑lo mais. Não acha, patrão?

‑ Hum... ‑ resmungou Brite, ao ver que as duas raparigas se aproximavam.

‑ É melhor irem‑se deitar, pequenas ‑ aconselhou Texas. ‑ Não tardo a fazer o mesmo.

‑ Não quer que lhe liguemos a cabeça ‑ ofereceu‑se Ann, solícita. ‑ A Reddie disse‑me que o senhor tinha uma ferida horrível...

‑ Pois tenho, Ann, mas não é na cabeça ‑ resmungou o capataz. ‑ Na cabeça é só uma arranhadela que já nem sangra.

‑ Não nos conta o que sucedeu a noite passada? ‑ pediu Reddie, curiosa. ‑ O Pan tem um ar muito estranho e distante; desistimos de o fazer falar...

‑ Não aconteceu grande coisa, Reddie. Assustámos o pessoal do Hite, espantámos o gado... e cá estamos!

‑ Assustaram o pessoal do Hite! ‑ zombou Reddie. ‑ Julga‑nos garotinhas que se contentem com tretas?

‑ Se chama tretas à verdade...

‑ Vocês mataram diversos homens do Hite! ‑ afirmou Reddie, com ardor. ‑ Eu vi‑os!

‑ Refere‑se aos guardas fulminados pelas faíscas, ontem à noite? ‑ perguntou Texas, friamente. ‑ Sabem, meninas, o Senhor esteve do nosso lado, a noite passada... É bastante vulgar as faíscas matarem guias e vaqueiros, e de vez em quando, mas logo quatro de uma vez, e todos perto uns dos outros... é um nadinha sobrenatural.

As duas raparigas encararam‑se, com expressões diferentes: Ann com os olhos muito abertos, cheia de temor e respeito; Reddie com sombrio desdém.

‑ Realmente há qualquer coisa de sobrenatural em si, Texas Jack, se é isso que quer dizer... ‑ zombou.

Naquela noite Brite dormiu com um olho aberto e outro fechado, mas nada quebrou a paz do acampamento. Os guias levantaram‑se vagarosos, quando o Sol já começava a tingir de rubro o horizonte.

Constantemente atentos, os homens perscrutavam a distância, onde, de ambos os lados da Pista, se movimentavam manadas de búfalos, a passo ronceiro, Brite assestou o óculo sobre eles, diversas vezes, mas a sua atenção dirigia‑se, com maior frequência, para os outeiros e cabeços longínquos, procurando sinais de índios.

Os guias não conseguiam, agora, avançar mais de oito a dez milhas diárias ‑ e nem sempre ‑ devido aos obstáculos que se lhes deparavam a cada passo: rios caudalosos que era preciso atravessar, búfalos por todo o lado e a ameaça, quando não a presença, dos selvagens. Os receios e as incertezas pareciam, porém, não afectar os valentes rapazes. Só Brite dava já sinais de fadiga.

Foi quase com alívio que, pelo meio da tarde, lobrigaram, no cimo de uma colina, um bando de cavaleiros índios. Para Brite, pelo menos, a incerteza cessou. Com o auxílio do óculo identificou‑os sem dificuldades: eram Comanches e em número suficiente para causar apreensões.

Correu a dar a notícia a Hash Williams que, sem uma palavra, pegou, por seu turno, no óculo.

‑ Bem os vejo! Quarenta, pouco mais ou menos ‑ confirmou, praguejando entre dentes. ‑ Parecem‑me Comanches. Se for o bando do «Cavalo Negro» temos o enterro pronto... Vá dizer ao Shipman que avance até descobrir um lugar onde possamos defender‑nos, se nos atacarem.

Texas também já vira os índios e resmungou: ‑ Parece‑me que vamos ter sarilho. Não diga nada às raparigas. Eu vou seguir o conselho do Williams.

Apesar de todos os cuidados, quando Brite retomou o seu lugar junto dos cavalos de reserva, Reddie, que desconfiara de qualquer coisa, interrogou‑o. Teve de contar‑lhe o que se passava, pedindo‑lhe, contudo, que nada dissesse a Ann.

‑ Não sei para que me serviria ser sua herdeira se tivesse de perder os cabelos! ‑ exclamou a jovem, tentando brincar.

Depois de muitas buscas a manada parou, ao lusco‑fusco, num lugar onde corria um fio de água, através de um barranco lamacento. Escolheram para acampamento o lado Norte, ao abrigo das rochas, e mandaram acender a fogueira num pequeno nicho que a tornava invisível. Os guias passeavam de lado para lado, silenciosos, atentos e sombrios.

Anoiteceu. Os lobos começaram a uivar e o ar quente do Verão envolveu o acampamento, num abraço ardente, como se nada ameaçasse a tranquilidade dos homens. Nas cavernas e fendas das rochas havia, porém, sombras ameaçadoras...

Três homens montaram guarda ao acampamento e seis ao gado, só permitindo dormir a dois guias de cada vez. Mas a noite extinguiu‑se, a hora pardacenta do alvorecer passou, também, e nada de anormal aconteceu.

O dia, porém, seria fértil em provações: falta de pasto para o gado, mau piso para os cavalos e constante temor pelas duas raparigas e pelo ferido, que era preciso defender. Por diversas vezes depararam com os Comanches a observá‑los, seguindo na mesma direcção e mantendo o andamento lento da manada. E como tudo aquilo era sinistro! Aqueles diabos vermelhos conheciam a Pista e esperavam chegar a qualquer parte ou que qualquer coisa acontecesse para atacarem.

Os búfalos continuavam, também, a aparecer por todos os lados, ainda distantes, mas já mais próximos, formando uma linha negra que se estendia para o Norte, tão longe quanto a vista podia alcançar. Era evidente que a caravana ia ao encontro da enorme manada, que pastava pachorrentamente, e que a situação se tornava, de hora para hora, mais inquietante. Seria impossível desviarem‑se para qualquer dos lados; parar ou recuar redundaria em desastre: só lhes restava prosseguir, dentro da Pista, para a frente, sempre para a frente, ainda que ao encontro da morte.

A Pista Chisholm obliquava de novo, ligeiramente, para Noroeste, e talvez, depois de passado o Rio Vermelho, seccionasse a manada de búfalos. Para complicar ainda mais a situação, a leva que os seguia vinha já escassas dez milhas atrás e, no encalço dela, uma outra. Sobressaltado, brite perguntou aos seus homens por que seria que os outros guias o perseguiam com tanto afã e a resposta que obteve foi esta: índios, búfalos e duzentas mil cabeças de gado que haviam partido para Dodge e que queriam lá chegar a todo o preço.

Naquele dia Texas Joe fez a caravana avançar até mais tarde do que era hábito e teve de acampar onde a água não existia. Durante toda a noite, os vaqueiros cantaram e cavalgaram, esforçando‑se por manterem o gado deitado, e a manhã rompeu com a visão aterradora dos búfalos, cada vez mais perto, e sinais de fumo pouco tranquilizadores, em dois montes distantes.

A falta de descanso, a interminável vigilância nocturna e a marcha forçosamente lenta, de dia, começavam a afectar os homens, a torná‑los irritáveis e carrancudos. Brite deixara já de contar os acampamentos por onde iam passando, sempre preso de incertezas e angústias. Chegaram, finalmente, ao Rio Vermelho, que os búfalos atravessaram algumas milhas acima da Pista. Texas Joe apontou a manada, tomando ele próprio a dianteira, magnífico de energia e temeridade.

O maior perigo deste rio residia no facto de correr entre duas águas, uma alta, e outra baixa, pelo que foram precisas mais de quatro horas para o atravessar e se perderam mais de cem cabeças de gado. Para se conseguir passar os carros para a outra margem foi preciso todos unirem os seus esforços, numa luta titânica e desesperada que só homens comoeles eram capazes de empreender e vencer.

A noite encontrou‑os exaustos, mas encorajados pelo facto de o Posto Doan ficar a pouca distância e de poder ser talvez alcançado na tirada do dia seguinte.

Texas Joe percorreu as dez milhas que os separavam de Doan antes do meio‑dia. Os guias ansiavam por umas poucas horas de folga, para beberem, conversarem e esquecerem‑se de um perigo ouvindo falar de outro, quiçá maior; mas quando Brite pediu voluntários, para montarem guarda à manada, durante umas horas, todos se prontificaram a fazê‑lo.

‑ Temos de resolver o caso de outro modo, meus filhos ‑ disse Brite, comovido. ‑ Tu, Ackerman, conduzes os Hardy ao Posto, e vocês dois, Texas Joe e Pan Handle vêm comigo. Fiquem tranquilos que não nos demoraremos e, depois, todos poderão sair.

Naquele dia Doan tinha mais habitantes e forasteiros do que habitualmente. Viam‑se numerosos cavalos defronte do Posto e meia dúzia de carros junto das casas cinzentas e baixas estragadas pelo tempo. Na fachada da maior lia‑se, em grandes letras negras: «Armazém Doan». Este estabelecimento, dirigido por Tom Doan, era uma espécie de posto comercial para índios e rancheiros e estava nos dias felizes da sua existência útil e perigosa.

Vaqueiros, homens montando cavalos em pelo e índios agachados defronte das portas, observavam, interessados, os recém‑vindos, pois os viajantes de passagem eram a própria essência da vida em Posto Doan. A maneira como Texas Joe e Pan Handle desmontaram, a boa distância dos observadores barbudos, e prosseguiram, a pé, o seu caminho, deve tê‑los impressionado bastante, pois, acto contínuo, um grupo de uns doze dispersou, para lhes dar passagem. Atrás dos dois guias, e ao lado do carro dos Hardy, vinha Brite, e logo depois Reddie que, desobediente como sempre, se lhes juntara.

‑ Viva, Tom! ‑ saudou Brite, dirigindo‑se ao homem corpulento que aparecera à porta.

‑ Olá ‑ correspondeu, efusivo, o outro. ‑ Diabos me levem, é o Adam Brite! Desmonta, homem, e entra!

‑ Não sei se tens ouvido falar do meu capataz, Texas Joe ‑ apresentou o velho rancheiro. ‑ Este é Pan Handle Smith. Naquele carro vem um tipo ferido, chamado Hardy, mais a filha, aquela pequena que está sentada no banco. São o que resta de uma caravana que ia para a Califórnia... Podes olhar por eles, até o Hardy estar apto a seguir de

comboio?

‑ Claro que posso!

Enquanto retiraram o ferido do carro e o conduziram para dentro do Posto, Ann permaneceu sentada, de rosto triste e olhos cheios de lágrimas.

‑ Chegámos a um lugar sossegado da Pista, «miss» Ann ‑ dizia‑lhe Ackerman, com voz exageradamente forte e vibrante. ‑ Aqui ficará em segurança, graças a Deus, e o seu pai há‑de curar‑se! Quanto a nós, talvez cheguemos vivos a Dodge... Acha que faria bem... que não ofenderia... se... se... os esperasse lá?

‑ Oh, teria muito gosto! ‑ afirmou, tímida!

‑ E... seguir para a Califórnia... consigo? ‑ rematou o rapaz, vencendo o seu acanhamento.

‑ Se quiser... ‑ respondeu a jovem.

Durante momentos, tempo e local deixaram de existir para os dois e só ao fim de um bom bocado Deuce conseguiu murmurar:

‑ É muito gentil! Foi... maravilhoso conhecê‑la... maravilhoso! Agora, adeus; tenho de ir ter com os rapazes.

‑ Adeus ‑ titubeou Ann, estendendo‑lhe a mão. Deuce beijou‑lha, com galanteria, e esporeou a montada, freneticamente, partindo a galope.

 

Reddie saltou do cavalo junto do carro, no assento do qual Ann continuava, imóvel como uma estátua, de olhos postos no vaqueiro que desaparecia. Ackerman voltou‑se uma vez, acenou com o chapéu, Ann correspondeu com o lenço, e o rapaz seguiu em frente, sem se deter mais.

‑ Custa dizer adeus, Ann ‑ murmurou Reddie. ‑ Vamos para dentro; tenho a certeza de que vou chorar e não quero fazê‑lo à frente destes homens.

‑ Oh, Reddie, eu... eu... já estou a chorar! ‑ soluçou a outra, descendo do carro, meio cega pelas lágrimas. ‑ Ele era tão bom, tão gentil! Tornaremos a ver‑nos, Reddie?

Brite viu as duas jovens encaminharem‑se para a porta e Ann estremecer, de pavor, ao passar por dois índios sombrios e descarnados.

‑ Temos de resolver isto depressa, Tex ‑ disse o velho. ‑ Comprarei tudo quanto o Doan puder vender.

‑ Está bem, patrão. Eu e o Pan vamos fazer por aí umas perguntas a que, talvez, o Doan não possa responder... Não nos demoramos.

Brite apressou‑se a entrar no Posto. Era um estabelecimento pitoresco, atravancado e odoroso, com enfeites índios cheios de colorido, um formidável arsenal, gavetas e prateleiras atulhadas de mercadorias.

Quando Doan apareceu, depois de ter instalado Hardy, Brite escreveu o que queria.

‑ Julgas que isto aqui é Santone ou Abilwie?

‑ Admirou‑se o lojista, ao olhar para o rol. ‑ Posso arranjar‑te farinha, feijão, café, tabaco e, talvez...

‑ Arranja o mais que puderes, Tom ‑ interrompeu Brite. ‑ Não sou nenhum ladrão, sou um homem honrado. Depois podes mandar tudo ao acampamento.

‑ Daqui a uma hora lá irá ter.

‑ Obrigado. Passaram alguns guias à minha frente?

‑ Ultimamente, não. Tens a Pista toda para ti... e isso é mau.

Brite calou‑se, pensativo, pois bem sabia que assim era, na realidade.

‑ Os Comanches e os Kiowas andam ariscos ‑ prosseguiu Doan. ‑ O «Cavalo Negro» e o Santana meteram‑se na ladroeira e eu vou dar‑te um conselho: se o velho comanche te aparecer pela frente, podes parlamentar e argumentar... mas acabarás por dar‑lhe o que te pedir.

Por isso, deves levar mantimentos em abundância, principalmente café e tabaco. Se for o chefe Kiowa que te visitar, limita‑te a puxar pela inteligência; o Santana é perigoso, quando apanha gente fraca, mas é cobarde e fácil de enganar. Mostra‑lhe que estás bem armado e pronto a disparar ao primeiro sinal!

‑ Lembrar‑me‑ei do conselho, Doan, obrigado!

‑ Vais ser bloqueado pelos búfalos, a não ser que consigas escapar... Este mês já passaram por aqui dez milhões de bichos desses!

‑ É verdade, em que dia do mês estamos?

‑ A dezasseis de Julho.

‑ Eu não digo? Na Pista o tempo voa! Não me sabes dizer se o Ross Hite passou por aqui, mais três tipos?

‑ Esta semana estiveram aí alguns grupos pequenos ‑ respondeu o negociante, evasivo. ‑ Gente que viaja leve e depressa... De resto, só conheço o Hite por ouvir falar dele... não faço perguntas aos meus clientes, Brite.

‑ Tu lá sabes o que te convém; no entanto, para teu governo, sempre te digo que o Hite e a sua companhia me roubaram por duas vezes! Conseguiram ter nas mãos a

minha manada toda!

‑ É o diabo o que me conta?! ‑ exclamou Doan, cofiando a barba. ‑ E que se passou depois?

‑ Recuperámos o gado e deixámos alguns homens a

apodrecer na Pista.

Reddie Bayne apareceu naquele momento, enxugando

os olhos.

‑ Espera, Reddie, vou contigo ‑ disse Brite. ‑ Onde

posso despedir‑me dos Hardy?

A jovem apontou para a porta aberta, de onde saíra, e Brite foi despedir‑se de Ann e do pai.

‑ Só mais um minuto, Brite! ‑ chamou Doan, vendo‑o preparar‑se para sair. ‑ Não sou tão discreto acerca dos índios como dos homens da minha cor, embora tenha de manter relações amigáveis com todas as tribos, pois todas me compram... Quero avisar‑te de uma coisa: os dois passarões que estão lá fora são espiões de um chefe Comanche e têm estado à espera da primeira leva que passasse. Já sabes o que os guias fazem, quando podem: recambiam‑nos para trás, para a manada que os segue. Ora isso é má política, Brite! O conselho que quero dar‑te é este: faz o possível por «parar» os dois tipos!

‑ Parar?

‑ Com certeza! Não os deixes ir bisbilhotar a tua gente e a tua carga e, depois, irem contar ao chefe... que por acaso é o próprio «Cavalo Negro»!

‑ Mais uma vez obrigado! Direi ao Texas ‑ e saiu, acompanhado de Reddie.

‑ Aconselhou‑nos a furar mais Comanches! ‑ exclamou Reddie, admirada.

‑ Assim parece... No entanto, a respeito do Ross Hite, nada adiantou.

Texas Joe e Pan Handle conversavam com dois homens e Williams e Smiling Pete com outro, o único branco presente, naquela ocasião.

‑ Ainda vai despedir‑se de nós ao acampamento, Williams? ‑ perguntou Brite.

‑ Decerto! Não imagina como gostaria de seguir até ao fim com vocês!

‑ E eu também! Foram‑nos muito úteis e nem sei como agradecer‑lhes.

‑ O Pete está com a mania de caçar búfalos! ‑ desculpou‑se Williams. ‑ É por isso que ficamos.

‑ Vem cá, Tex ‑ chamou Brite, quando já estava perto do cavalo.

Texas aproximou‑se, ajudou Reddie a montar e ficou à espera.

‑ Aqueles dois comanches são espiões de um bando de salteadores, segundo me avisou o Doan ‑ murmurou Brite, baixando‑se sobre o pescoço do cavalo. ‑ Macacos me mordam se não me deu a entender o que é preciso fazer... Ele tem de manter relações amistosas com todos os peles‑vermelhas...

‑ Já nos aconselharam a esse respeito, patrão. Também ouvimos umas coisas acerca do Hite, mas conto‑lhas depois, no acampamento.

Reddie percorrera já metade da distância entre o Posto e o acampamento quando Brite a alcançou.

‑ Poupa o cavalo, rapariga! Para que é essa pressa?

‑ Fico doente cá por dentro quando vejo aquele olhar no Texas Jack! ‑ exclamou, incoerente.

‑ Mas que olhar, pequena?

‑ Não sei explicar! A primeira vez que lho vi foi no dia em que matou o Wallen... precisamente antes de disparar...

É assim como os relâmpagos daquela noite...

‑ Ora, Reddie, já é tempo de te ires habituando ao olhar duro dos guias! É uma vida perigosa, a deles...

‑ Mas eu quero que o Texas Jack deixe de dar ao gatilho! ‑ gritou, com inesperado ardor.

‑ Pronto, pronto! E porquê, pequena?

‑ Porque, em breve, será outro pistoleiro como o Pan Handle e, mais cedo ou mais tarde, acabará por ser morto!

‑ Confesso que tens razão! Quando penso nisso, sinto o mesmo que tu, filha; mas, que havemos de fazer, para o deter?

‑ Para deter quem? O Texas? Oh, é impossível!

‑ Aqui na Pista será... mas se terminarmos esta leva vivos... então, talvez! Tu podes conseguir isso, pequena!

Sem lhe dar resposta, Reddie esporeou o cavalo e afastou‑se, veloz como o vento, e Brite teve a certeza de que ela sabia muito bem como poderia amansar o indómito Joe Shipman.

O gado pastava, sossegado. Para os lados do Oeste, ao longo do rio, erguiam‑se nuvens de poeira e, de quando em quando, a brisa quente trazia o ressoar abafado dos cascos: eram os búfalos que continuavam a atravessar o Rio Vermelho.

Brite e Reddie substituíram San Sabe e Rolly Little na guarda à manada, e os dois rapazes partiram, contentes como garotos em férias, a caminho da cidade.

As horas foram passando, lentas e monótonas, sem que a manada se afastasse mais de meia milha. Brite viu um índio montado, a espiar o acampamento, e não gostou nada do seu aspecto, mas calou‑se para não assustar ninguém.

Um pouco mais tarde, quando descansava, foi acordado pelo barulho de tiros e levantou‑se a tempo de ver um índio a fugir, a toda a pressa, pela planura.

Texas e Pan Handle, a umas duzentas jardas à esquerda, disparavam sobre ele, furiosamente, e, na opinião de Brite, haviam‑no assustado bastante, se era isso que pretendiam. Ninguém galopava tão bem como os Comanches, mas aquele batia todos os máximos de velocidade! O homem, na pressa de fugir, tomou por um atalho, que o levou perto da manada, onde um dos vaqueiros que estava de guarda disparou sobre ele. Desde então, e até se sumir, o índio cavalgou escondido num dos flancos do animal.

Quando Texas Joe se aproximou, vinha manifestamente irritado e dando largas a uma linguagem demasiado grosseira.

‑ Que tens, homem? ‑ perguntou‑lhe Brite. ‑ Eu estou bem contente!

‑ Você está mas é doido! Sabe o que fizemos? Subornámos aqueles tipos, para prenderem, uns dias, os dois comanches, no armazém do Doan... Grande ideia não foi? Mas para nada! Este passarão teve tempo de contar os nossos carros, os nossos cavalos, o gado e os homens! Atirámos‑lhe a matar, mas estava fora de alcance. Que raio estavam vocês a fazer, que não o viram há mais tempo?

Brite não respondeu, comprometido, e Texas Joe desmontou.

‑ Os mantimentos devem estar a chegar ‑ informou o capataz, um pouco mais calmo. - Se houver outro cavalo aí à mão vou render um dos rapazes.

‑ E eu também ‑ declarou Pan Handle.

‑ Arranja qualquer coisa para comermos, Moze, mas depressa! Sabe que o nosso Hite passou por aqui, anteontem de manhã?

Trazia três homens, um dos quais tão ferido que ia atado à sela! O Hite vomitava fogo e os outros pouco menos...

‑ Pararam no Doan?

‑ Sim, segundo me informaram. Tinham falta de mantimentos e de munições e só traziam dois cavalos de carga. Com certeza não voltaremos a vê‑los antes de chegarmos a Dodge. Disseram‑me, também, que o tipo costuma ficar por Hays City e que vai muitas vezes a Dodge.

‑ Pois deixem‑no ir! Não se ganha nada em procurar o perigo ‑ ponderou Brite.

‑ O patrão está sempre pronto a perdoar, mas eu não! O Pan é capaz de andar mil milhas para o topar e eu irei com ele!

‑ Não vai nada! ‑ gritou Reddie, com as faces escarlates.

‑ Não querem ver a menina, autoritária como sempre? Sabe o que o patrão deve fazer se me abaterem antes de chegarmos? Entregar à Reddie a direcção da leva!

Texas Joe descobrira o ponto fraco da rapariga e, sempre que podia, martirizava‑a. Era, de facto, muito possível que, antes de chegarem ao fim da Pista, o ousado vaqueiro perdesse a vida, mas a jovem não podia ouvir falar em tal coisa sem trair O medo que a dominava. Daquela vez, a julgar pelo brilho dos seus olhos, preparava‑se para dar‑lhe réplica forte, mas Hash Williams e Pete Smiling apareceram e teve de calar‑se.

‑ Cá estamos para comer a última refeição cozinhada pelo Moze! ‑ exclamou o primeiro, procurando mostrar‑sa alegre. ‑ Custa‑me deixá‑los. As pessoas tornam‑se singularmente unidas em levas como esta!

‑ A Reddie não quer ficar aqui connosco? ‑ perguntou Smiling Pete, irónico. ‑ Não seríamos tiranos para si, como o amigo Texas...

‑ Gosto muito de vocês, acreditem, mas também gosto muito de Santone e do rancho do papá... ‑ respondeu, no mesmo tom.

‑ Do papá?! ‑ exclamaram os dois caçadores, ao mesmo tempo.

‑ Sim. Não sabiam que o senhor Brite é meu pai adoptivo?

‑ Olha o felizardo! Não é ainda tão velho que... Bem, estou a ver que, eu e o Hash, teremos de mandar‑lhes os nossos cartões de parabéns quando vocês...

Reddie, porém, não os deixou acabar e, a correr, foi esconder‑se atrás do carro de Moze.

‑ Falemos a sério ‑ pediu Brite. ‑ Precisamos de todos os conselhos que possam dar‑nos, para o resto da viagem.

A caravana de Brite deixou Posto Doan antes do nascer do Sol, no dia seguinte, com perto da seis mil cabeças de gado. Aparentemente, a manada de búfalos ficara ao longo do Rio Vermelho.

Na tarde desse mesmo dia, um bando de Comanches saiu‑lhes ao caminho, entre dois outeiros, e obrigou‑os a parar. Brite galopou à frente, excitado, gritando a Reddie que deixasse os cavalos e o seguisse. Quando chegou à cabeça da manada, deparou com Texas Joe, Pan Handle e os outros alinhados diante de uns trinta índios de caras afiladas e cabelos compridos.

‑ Apresento‑lhe «Cavalo Negro» e os seus ladrões ‑ murmurou Texas Joe, lacónico.

‑ Viva, chefe! ‑ saudou‑o Brite, enfrentando «Cavalo Negro».

O comanche não correspondia à fama que tinha; parecia um pele vermelha vulgar, estático e inofensivo. No entanto, não lhe faltava dignidade. Para Brite, aquele homem era, ao mesmo tempo, uma surpresa e um alívio, embora naquele momento, desse muito para ter ainda consigo os dois caçadores de peles.

‑ Viva! ‑ cumprimentou o índio, erguendo vagarosamente a mão.

‑ Que deseja, chefe?

‑ Carne.

‑ Sirva‑se ‑ ofereceu Brite, apontando a manada.

O comanche falou aos seus homens, em voz baixa e gutural, e, depois, prosseguiu, voltando a fixar Brite com os seus olhos negros e insondáveis:

‑ Tabaco.

‑ Tenho bastante, no carro ‑ respondeu Brite, apontando Moze, que se aproximava a trote.

«Cavalo Negro» observou o carro, a seguir a enorme manada e, por fim, os guias, armados até aos dentes.

‑ Farinha ‑ o seu inglês era complicado, mas Brite compreendeu‑o e fez sinal de concordar.

‑ Café.

O velhote levantou cinco dedos, designando assim o número de sacos que estava disposto a dar.

‑ Feijão.

‑ Um saco grande ‑ acedeu.

Era manifesto que tanta generosidade, da parte de um guia de gado, não era habitual.

‑ Olhe que a velha coruja quer que lhe recusemos qualquer coisa! ‑ avisou Texas.

‑ E continuará a pedir, até termos de recusar ‑ confirmou Pan Handle.

Moze chegou com o carro, atrás do qual os comanches se postaram, em semicírculo, vorazes e falando entre si numa algaraviada gutural. O rosto negro de Moze não podia empalidecer, mas tinha um ar bem estranho...

‑ Descarrega, Moze ‑ ordenou Brite. ‑ Abre a caixa e tira o que escolhemos para este... negócio missionário...

‑ Si «siô», si «siô» ‑ tartamudeou o negro, assustado.

‑ Primeiro o saco da farinha ‑ continuou Brite. ‑ Coloca‑o no cavalo dele e mostra‑lhe que é pesado.

Esta última recomendação não teria sido necessária, pois, ou o saco era realmente pesado ou Moze enfraquecera muito, visto que, para o colocar no cavalo, quase atirou o índio por terra. Brite mandou depois carregar a generosa dádiva de tabaco, café e feijão.

‑ Aí tem, chefe! ‑ exclamou, com um gesto amigável.

‑ Farinha ‑ recomeçou «Cavalo Negro».

‑ Já lha dei ‑ respondeu Brite, apontando o saco maior.

‑ Velho ladrão! ‑ resmungou Texas. ‑ Quer mais! Se não se opõe, leva‑nos os mantimentos todos!

‑ Não dê mais nada, Brite ‑ aconselhou Pan Handle. ‑ Mais vale lutar do que morrer de fome.

‑ Mais, não! ‑ afirmou Brite, sacudindo a cabeça.

O comanche berrou qualquer coisa na sua língua, com modo pouco tranquilizador.

‑ Pólvora... tiros ‑ exigiu.

‑ Não! ‑ recusou Brite.

O índio repetiu a exigência, a berrar, o que teve o condão de irritar Brite, coisa, aliás, fácil. Sacudiu a cabeça, numa recusa lenta e positiva.

‑ Dêem tudo ao índio! ‑ berrou o chefe.

‑ Só se for o inferno! ‑ gritou Brite, por seu turno.

‑ Assim é que se fala, patrão! ‑ apoiou Texas. ‑

Pode intrujar o velho chaveco.

‑ Não ceda! ‑ aconselhou Pan Handle, com voz vibrante. ‑ Escutem todos! Se isto redundar em sarilho eu e o Texas chegamos bem para «Cavalo Negro» e para mais quatro ou cinco de cada lado dele. Vocês encarreguem‑se dos das pontas.

‑ Reddie, vá para trás do carro e atire de lá! ‑ ordenou Texas.

O momento era crítico: a vida ou a morte pendiam dum cabelo. Que hediondos eram os esgares daqueles selvagens! O velho comanche quisera lograr e fora logrado, e, naturalmente, compreendia melhor a língua dos brancos do que queria fazer supor. Mas mesmo que assim não fosse, a atitude daqueles guias, frios e duros, era elucidativa e clara.

‑ Vamos a descer, rapazes! ‑ gritou Texas, desmontando e avançando, à frente do cavalo.

Num instante, todos o imitaram, com excepção de Brite. Texas e Pan Handle tinham uma arma em cada mão e estavam tão perto dos índios que teriam tempo de sobra para deitar por terra diversos, antes que os outros pudessem, sequer, erguer uma carabina ou retesar um arco. «Cavalo Negro» devia ter visto que batera a porta errada, mas nem por isso abateu a sua arrogância selvagem.

‑ Chefe ‑ começou Brite, inspirado ‑, já lhe fizemos bem, já lhe demos muita coisa; mas, agora, acabou‑se: não daremos mais nada. Se quer luta, terá luta... Amanhã, duas levas ‑, esticou dois dedos e apontou a manada, querendo, com isso, dizer que vinha mais gado, pela Pista. ‑ Vêm muitos, como búfalos: homens brancos e gado, a todo o instante ‑ abriu ambas as mãos, esticou os dedos e contou‑os uma vez, e outra e outra...

«Cavalo Negro» compreendeu e, convencido pela inteligente persuasão de Brite, soltou algumas frases guturais e imperiosas. Dois dos seus homens esporearam as montadas, na direcção da manada, e ajustaram as flechas aos arcos, enquanto o chefe, carregado com as dádivas de Brite, que por nada deste mundo confiaria às mãos ávidas dos seus homens, retrocedeu sem mais palavra, seguido pelo resto do bando.

‑ Estivemos por um triz! ‑ exclamou Brite, aliviado.

‑ Mais à tangente, ainda, escapou esse comanche cabeça de boi e os seus gatunos! ‑ replicou Texas. ‑ Viu bem que se enganou connosco e arrepiou caminho a tempo! Limpávamo‑los todos em dez segundos, hem, Pan?

‑ Bastante pena tive de não poder agir! ‑ lamentou o outro, contrafeito.

‑ Estão sempre esfomeados de tiros! ‑ censurou Brite.

‑ Ficamos juntos até passarem os cavalos de reserva ‑ ordenou Texas, mudando de assunto.

‑ Somos um grupo valente, viva! ‑ exultou Deuce Ackerman, entusiasmado, atirando a cabeça para trás.

Todos os outros soltaram frases idênticas, aliviados e ardentes, e só Whittaker, que era o mais comedido, murmurou, com voz serena, como se falasse consigo próprio:

‑ Não sei como tivemos tanta sorte!

‑ A mim o que me parece é que teria sido preciso que vocês fossem muito ligeiros a dar ao gatilho, para atirarem primeiro do que eu sobre aquela nojenta múmia! ‑ declarou Reddie por seu turno.

‑ A pequena está perdida, meu Deus! ‑ zombou Texas.

‑ «Whoopee!» ‑ berrou o tenro Bender, sentindo crescer em si o espírito bravio e violento que a Pista acaba sempre por transmitir aos que a percorrem.

Brite olhou com um pouco mais de atenção o rosto queimado e forte do jovem vaqueiro da Pensilvânia e verificou que o rapaz estava muito diferente do que fora nos primeiros dias.

‑ Eh, gente! Depois de passado o Canadiano, estaremos a mais de meio caminho de Dodge! ‑ exclamou Brite, querendo dar‑lhes ânimo.

‑ Havemos de lá chegar, patrão! ‑ afirmou Texas, decidido. ‑ Daqui por diante o gado tem de deixar o passo pachorrento de bois na engorda!

Antes de anoitecer tinham percorrido dez milhas ‑ a mais longa jornada desde a partida de Santo António. A noite chegou, negra e tempestuosa. Ouvia‑se, ao longe, o ribombar dos trovões, e viam‑se os relâmpagos riscarem o céu com a sua luz azulada. Os animais deitaram‑se cedo, cansados, e estiveram sossegados até de manhã.

O dia rompeu sombrio e ameaçador, com um vento frio e cortante a soprar do Norte. Não tardou que escurecesse, tornando‑se quase tão negro como o fora a noite, e que uma terrível chuva de pedra se desencadeasse sobre a infeliz manada e os seus guias. O granizo aumentava de volume à medida que a tempestade crescia, chegando a atingir o tamanho de nozes. Não se tratava, já, de sofrerem violento apedrejamento: era a própria vida que a violência da saraivada lhes punha em perigo, obrigando‑os a protegerem‑se com tudo quanto se lhes deparava. Reddie foi retirada do cavalo, sem sentidos, e conduzida para dentro do carro; San Sabe oscilava na sela, como se estivesse embriagado; Texas Joe atara o casaco à volta do chapéu e soltava gritos de dor quando as pedras lhe atingiam o corpo, e os outros homens, ensanguentados e feridos, pareciam haver tomado parte numa luta terrível.

Quando a saraivada parou, a altura de pedras acumuladas no chão atingia quase vinte centímetros!

Toda a pradaria estava juncada de coelhos e antílopes mortos e, tão longe quanto a vista alcançava, havia gado caído por terra, aturdido, ou mal se tendo de pé.

‑ Desta vez, está escrito que terá de acontecer‑nos tudo! ‑ resmungou Texas quando, naquela noite, encharcados e moídos, montaram o acampamento. ‑ Tudo, porém, esqueceria se, ao menos, nos poupassem os búfalos!

No dia seguinte visitou‑os uma tribo Kiowa que vivia em termos amigáveis com os brancos, após longas conferências de paz com o tio Sam... Brite, embora não lhes desse tanto quanto dera aos Comanches, fez por eles quanto lhe foi possível.

Como paga da sua generosidade, os selvagens, durante a noite, espantaram a ponta sul da manada. Só durante o dia os guias descobriram a tramóia, ao verem entre o gado assustado, alguns bois com flechas cravadas nos flancos. Mais de um teve de ser abatido e a manada ficou imobilizada até todos os novilhos e vacas tresmalhadas se lhe reunirem, de novo, o que custou três dias de extenuante trabalho diurno e nocturno que, na expressão de San Sabe, foi de dar em maluco.

O que mais os desgostou, porém, foi verem passar‑lhes à frente duas manadas, depois de, durante mais de sete semanas, levarem a dianteira a todos. Brite não tomou o caso muito a peito, pois, em seu entender, seriam agora essas manadas - que, todas juntas, eram menores do que a sua ‑ que suportariam o primeiro embate dos contratempos que os esperavam pelo caminho.

Quando, no quarto dia, se puseram novamente em marcha, mais uma vez os búfalos fizeram a sua aparição. Soldados do Forte Cobb, um posto que ficava quarenta milhas a Este da Pista, informaram que haviam sido obrigados a retroceder pela enorme e impenetrável massa de bisontes, quando perseguiam um bando de salteadores apaches de Staked Plain.

Os homens de Brite continuaram a avançar, embora deparando cada vez com maiores dificuldades. O gado espantava‑se com frequência; eram apanhados por temporais violentos; tinham constantemente cheias e enxurradas a vencer, e até o carro de Moze deixava entrar água pelo fundo e, para atravessar a ponta norte do Vermelho, quase teve de ser transportado pelos vaqueiros! Diversas vezes foi preciso construir pontões e, para o conseguir, os homens tinham de meter‑se à água, com os cavalos, a fim de os fixarem. Mas, apesar de tudo, continuavam a avançar, teimosamente, seguindo o seu capataz frio e cheio de recursos, por completo devotado à realização daquela tarefa que quase parecia sobre‑humana.

Pond Creek, sessenta milhas a noroeste de Forte Cobb, foi um objectivo de que Texas Joe falou durante vinte e quatro horas e que levou um longo e difícil dia a alcançar.

Brite assustou‑se quando, ao pôr do sol, subiu a uma encosta e viu a manada ganhando ímpeto no caminho em declive, enlouquecida pela visão e pelo cheiro da água, após uma jornada de seca e de calor.

Este ribeiro, que, geralmente, não passava de um pequeno curso de água pouco profundo, levava agora forte enxurrada e transformara‑se num rio estreito e veloz, extremamente perigoso, tanto para os homens como para os animais.

Nas proximidades da região que a manada atravessara não chovera naquele dia, e Texas Joe pensara, logicamente, que o Pond Creek estaria com o curso e a profundidade normais, e deixara, por isso, a manada alcançar o cume do outeiro sem primeiro ir ver o que ficava do outro lado, como era seu hábito. Agora era demasiado tarde para recuar, a não ser que fosse possível deter a avalanche de monstros enlouquecidos.

Brite esporeou o cavalo pela encosta abaixo, gritando a Reddie que se apressasse. Os guias ladeavam o gado, tentando colocar‑se‑lhe à frente, inspirados, sem dúvida, pelo veloz galope de Texas Joe. Tal táctica, porém, era perigosa, como Brite teve de reconhecer, ao ser atirado por cima da cabeça do seu cavalo. Reddie desmontou sem demora, correndo, solícita, para junto dele:

‑ Que trambolhão, papá! Julguei que tivesse partido o pescoço. Sente‑se bem?

‑ Parece‑me que não parti nada ‑ resmungou o velhote, levantando‑se com dificuldade. ‑ Se o chão não fosse macio... tu...

‑ Meu Deus, papá! Olhe! ‑ gritou a jovem, tornando a montar. ‑ O gado vem por aí abaixo, de cambulhada!

Brite ficou a observar a cena, com os ouvidos quase a rebentar sob a acção do tremendo barulho produzido pelos cascos, pelo entrechocar dos chifres e pelos mugidos dos animais.

‑ É só a rectaguarda que vem desordenada...

‑ Pois é, mas empurra os da frente!

‑ Corre! Foge! Podemos ajudar um pouco, mas é inútil arriscarmo‑nos demasiado.

Galoparam ao longo do flanco do gado em fuga, que apenas um quarto de milha separava da água. Os guias, em grupo, gritavam galopando e disparando as armas, atirando, a bem dizer, as montadas para a frente dos bois.

Todos os homens se tinham juntado, numa ofensiva desesperada e veloz, para deterem a imensa mole de carne, alardeando coragem e valentia que quase tocavam as raias da loucura. Texas gritava ordens, de lábios exangues e delgados, mas os guias não o ouviam, tal era a barafunda. Conseguiram que os animais da frente deixassem de correr, mas esse triunfo de pouco valia, pois, mal os detrás recomeçaram a exercer pressão sobre eles, ei‑los que baixam as enormes cabeçorras e escarvam o chão, inquietos e ameaçadores. Era na rectaguarda, que ocupava a parte mais íngreme da encosta, que se encontrava o maior número de bestas, enlouquecidas pela sede. Seria impossível sustê‑las pelo simples facto de a vanguarda não avançar.

‑ Para trás! ‑ gritou Texas Joe, a plenos pulmões, abrindo ambos os braços.

Todos o ouviram ou viram o seu gesto, e afastaram os cavalos para o lado, excepto San Sabe, que estava colocado no centro da manada. Deuce, Texas, Reddie, Whittaker e Bender conseguiram pôr‑se a salvo, por detrás de Brite, e, todos à uma, continuaram a gritar e a gesticular, num esforço supremo para que San Sabe os ouvisse, pois a sua situação era extremamente perigosa. O cavalo dele recuava, e o vaqueiro, com um revólver em cada mão, disparava fumo e fogo sobre o focinho dos touros.

Pan Handle, Holden e Little, quase voando sobre os cavalos aterrorizados, juntaram os seus esforços aos dos outros guias, mas não conseguiram atrair‑lhe a atenção. Como eram apaixonados e ardentes os gestos de San Sabe! Sem chapéu nem casaco, de cabelos ao vento, o valente vaqueiro enfrentava, sozinho, a manada enfurecida, dando largas ao instinto milenário que lhe corria no sangue.

A fila de cabeças e chifres arqueou em ambas as extremidades, como um dique que rebenta, e, bruscamente, o centro cedeu, num estrondear de cascos, cornos e corpos e, como uma maré, avançou direita ao rapaz... O cavalo deu um formidável salto para o lado, escapando a custo da avalanche, como se compreendesse, por si e pelo cavaleiro que o montava, que a fuga era impossível. Assim, quase empurrado pelos chavelhos das bestas, foi recuando, aproximando‑se cada vez mais do rio, sem conseguir ganhar, sequer, um centímetro de intervalo entre ele e os milhares de bois que, inexoravelmente, o levavam à sua frente. Horrorizado, Brite viu o gado ultrapassar San Sabe, o cavalo cair, mesmo junto da margem, e o cavaleiro ser arremessado pelo ar... No instante seguinte, como que por magia, uma parede viva obliterou, com um ruído cavo, a margem do rio...

 

Brite não despregava os olhos do terrível espectáculo, como que fascinado. Uma onda gigantesca elevou‑se a incrível altura e foi cair com estrondo na margem oposta. Logo a seguir a estreita faixa de água lamacenta desapareceu, dando lugar a outro rio, este de chifres erectos que se entrechocavam por todos os lados e deslizavam corrente abaixo. Não fora as águas serem profundas e o leito do rio ficaria pejado de gado, de margem a margem, e os bois que ainda estavam em terra não teriam água, mas sim, centenas e centenas de cadáveres sob as patas.

Num espaço de tempo incrivelmente curto todo o gado mergulhara, fila após fila, tomando uns o lugar dos outros que a corrente ia arrastando. Os animais nadavam e, quando os últimos entraram na água, já os primeiros alcançavam a margem oposta, já muito ao longe.

O silêncio estranho e pesado que se seguiu ao estrondear ensurdecedor de pouco antes pareceu quase tão sobrenatural como a própria salvação da manada. O ímpeto que traziam e a força da corrente haviam obrigado os estúpidos animais a atravessar o rio e, duzentas jardas abaixo, todo o declive da margem oposta estava coberto de bois. À medida que, às centenas, alcançavam terra, outras centenas se aproximavam, tomando o lugar das primeiras, de tal modo que não havia perigo de atropelos naquela maré viva de cabeças e cornos. Nunca, em toda a sua longa vida de rancheiro, fora dado a Brite presencear tão fantástico espectáculo!

Texas joe, que seguira toda a cena, foi o primeiro a romper o silêncio. Tinha o rosto convulso e, de olhos semi‑cerrados, para reter as lágrimas que queriam rebentar‑lhe por entre as pálpebras, fitava o céu de punhos e lábios fechados, como se invocasse auxílio:

‑ Aquele louco! ‑ gemeu, enrouquecido, revoltado contra a inevitável e cruel sorte dos guias de gado.

Pan Handle cavalgou para onde San Sabe desaparecera, seguido de Holden e Rolly Little, vagarosos e aturdidos.

Foi então que Brite se lembrou de Reddie e correu para junto dela. Encontrou‑a inclinada sobre a sela, com os ombros sacudidos pelos soluços.

‑ É preciso coragem, filha! ‑ murmurou, dolorosamente impressionado. ‑ Temos de ter coragem!

‑ Éramos já... como uma família! ‑ soluçou a jovem, levantando a cabeça.

‑ Reddie! ‑ chamou Texas Joe, enérgico. ‑ Faça os cavalos atravessar o rio! O Deuce e o Holden seguem a manada e os outros vão ajudar‑me a transportar o vagão.

Mais uma noite desceu sobre a Terra, como outras, silenciosa e triste. Moze atarefava‑se à volta do lume e alguns homens comiam, alheados, como se alimentarem‑se constituísse, apenas, parte da tarefa que tinham de executar.

Texas, Pan Handle, Deuce e Rolly ficaram de guarda, famintos, molhados e tristes. Reddie deitara‑se sem comer e Brite permanecera junto do lume, secando as calças e lutando contra a consciência atormentada, que lhe mostrava, entre as labaredas, como espectros acusadores três rostos jovens e fortes.

No dia seguinte dir‑se‑ia que nada de anormal acontecera, que a dor não os havia quase enlouquecido na véspera. Eram assim os guias: os obstáculos fortaleciam‑lhes o ânimo e matavam‑lhes as recordações.

Deer Creek estava seco e o gado teve de passar o dia sem água.

Nova jornada de milhas e milhas de terra árida e areia solta tornou precário o estado dos animais que, durante toda a noite, mugiram em altos berros, não deixando os homens sossegar. Se, na manhã seguinte, o braço sul do Canadiano estivesse, também, seco e poeirento, seria o fim. Nessa mesma noite, alguns índios passaram por Moze

e gritaram:

‑ Não há água! Búfalos a Oeste! De madrugada, os guias apontaram a manada, incitando‑a sem piedade. O Sol nasceu, vermelho, no céu cor‑de‑cobre, e um manto pesado de calor envolveu a Terra. A milhas de distância do Canadiano os animais farejaram a água e foi impossível detê‑los. Mal os da frente começaram a correr, toda a manada fugiu, como se obedecesse a uma voz de comando, e os homens tiveram de acompanhá‑la, num galope desenfreado, embora sem esperança de conseguirem detê‑la. Não corriam; rolavam com fragor mais forte do que o trovão, estremecendo a terra e erguendo grandes nuvens amarelas de poeira.

Só o rio conseguiu sustê‑los, evitando a Brite considerável prejuízo.

Uma vez atravessado, sem novidade, o braço sul do Canadiano, e de novo cavalgando numa planície onde abundava o pasto, os guias esqueceram dores passadas e olharam apenas para a frente. Dia após dia, a Pista ia sendo vencida. Em Wolf Creek descobriram a tão temida manada de búfalos, estendendo‑se para Este. Texas Joe resolveu descansar um dia naquele excelente acampamento, a fim de recuperarem forças e ânimo para as provações que ainda teriam de vencer. A noite, ardente, pressagiava trovoada; mas as horas pasmaram intermináveis, e não choveu. Prevendo novo temporal o capataz conduziu o gado para o extremo de um estreito vale, entre encostas escarpadas e fácil de guardar.

‑ Não gosto deste tempo ‑ observou Whittaker, quebrando o sombrio silêncio que se estabelecera à volta da fogueira.

‑ Haverá quem goste? ‑ ripostou Texas, abatido. ‑ No entanto, uma boa chuvada ajudar‑nos‑ia...

‑ Sim, se fosse de água!

‑ Hum, o meu cabelo está muito estaladiço!... ‑ agourou outro.

‑ Como estão os cavalos de muda, Reddie?

‑ Inquietos. Farejam o ar, martelam o chão e não sossegam.

Brite estava, também, preocupado, pois a cor do céu e a atmosfera irrespirável pressagiavam uma daquelas tempestades magnéticas, devastadoras e temíveis, a que a região era propícia. Recordava o que ouvira contar tantas vezes e tão incrível lhe parecera, mas em que tinha, agora, de acreditar, pois se desenrolava ante os seus próprios olhos: o pôr do Sol, de um vermelho tão esquisito; o lusco‑fusco, tão absolutamente sereno e ardente; o céu, sombrio, que mal deixava tremeluzir as pálidas estrelas; a fantasmagoria da terra, que parecia perdida no espaço!

‑ É o fim do mundo! ‑ exclamou Texas Joo que, apesar de habituado à fúria dos elementos, era, como todos os guias de gado, supersticioso em extremo e concedia à Natureza uma omnisciência misteriosa.

‑ Linda noite para estar em casa, a fazer tagatés à minha pequena! ‑ brindou Rolly Little.

‑ Rolly, meu amigo, não voltarás a casa nem verás mais a tua bela ruivazinha! ‑ murmurou Deuce Ackerman, fatalista.

‑ Também me parece... Todas as ruivas são frívolas e voluveis ‑ filosofou Texas.

Reddie bem o ouviu, mas pela primeira vez, não pensou em responder‑lhe.

‑ Não é natural isto ‑ murmurou, nervosa.

‑ Ora, pequena, o que quer que seja terá de suceder e passar, e talvez praza a Deus poupar‑nos ainda desta vez! ‑ respondeu Brite.

‑ Parece‑lhe que será uma daquelas tempestades em que a electricidade corre como água? ‑ inquiriu Texas.

‑ Não sei, Texas; juro que não sei! Tenho ouvido dizer que quando o céu parece um grande globo branco, como uma luz a brilhar lá dentro, abre‑se e deixa cair um milhão de estrelas, bolas, cordas de fogo e faíscas!

Texas ergueu‑se, carrancudo e grave, e ordenou.

‑ Todos a cavalo! Se temos de ir para o inferno iremos juntos! Vamos ter com os que estão de guarda!

‑ Que se passa? ‑ gritou Less Holden, vendo‑os aparecer.

‑ Andamos a brincar com a morte, vaqueiro! ‑ respondeu Texas Joe.

E talvez tivesse razão. A claridade era tanta que os rostos dos homens brilhavam, como mármore polido, ao luar, e não havia sombras nem escuridão, embora fosse de noite e não se vissem estrelas nem Lua.

‑ O gado aqui está bem, a não ser que se espante ‑ observou Texas. ‑ Como está a manada?

‑ Não come. Os cavalos estão sossegados.

Brite seguiu Reddie até junto da reserva, reunida num grupo compacto, sob a vertente do lado oeste, íngreme e alta, que não lhes permitiria fugir.

Ao sentirem‑nos aproximarem-se, os animais começaram a bater com as patas no chão, inquietos.

‑ Não tem importância, papá ‑ murmurou Reddie, mais para si do que para Brite.

‑ Não podes cantar qualquer coisa, para ver se sossegam?

‑ Tentarei, embora esta noite não me apeteça fazer de rouxinol...

Em voz baixa e trémula, a jovem começou a cantar «La Palotiia», mas, à medida que as estrofes se sucediam, a sua voz doce e lamentosa tornava‑se mais forte. A atmosfera estranha que os envolvia parecia aumentar‑lhe o volume, de tal modo que, por fim, sob a sua sonoridade e beleza, os vaqueiros pareciam fascinados. Texas Joe esperou que ela terminasse para cantar, também, ele que raramente o fazia, expandindo a sua voz de tenor impetuosa e vibrante. A pouco e pouco, todos se lhe juntaram, enchendo de música o vale solitário.

Os cavalos estavam, de novo, sossegados, assim como o gado, e os guias foram cantando em coro, em quarteto, em dueto e em solo, até esgotarem o seu reportório e exaurirem a sua força vocal.

Quando se calaram era já tarde e os relâmpagos rasgavam o céu, pálido ainda...

Esperaram, inquietos, não ousando fumar nem mexer‑se, muito juntos uns dos outros e falando com frequência. Aparentemente, a tempestade ainda estava longe, mas a luminosidade aumentara e o ar tornara‑se mais pesado, como se um cobertor transparente caísse sobre os homens.

Subitamente, barras de fogo cruzaram o céu, ao mesmo tempo que se ouvia um ruído estranho, como se o próprio firmamento estalasse e se fendesse. Começou a chover, mas Brite esperou, em vão, que trovejasse, até que acabou por ter a certeza de que iam presenciar uma das terríveis tempestades de que tanto ouvira falar.

‑ Vai ser uma das tais, rapazes! ‑ gritou.

‑ Passe a mão pela crina do seu cavalo, papá! ‑ gritou Reddie.

Brite assim fez, surpreendendo‑se de ver e ouvir faiscar perto das orelhas do animal, que escouceou como se recebesse um tiro. Brite não repetiu o gesto e olhou para o cavalo de Reddie. Passava‑se o mesmo com ele: dir‑se‑ia que um fluído eléctrico, uma luz esverdeada, percorria a crina do animal, até às pontas das orelhas, de onde saíam pequenas faíscas. Era evidente que o valoroso animal não gostava de tal fenómeno, mas mantinha‑se firme, apenas ligeiramente empinado.

‑ A atmosfera está carregada ‑ murmurou Brite, para

dizer qualquer coisa.

‑ Pois está e... vai rebentar tudo! ‑ gritou Reddie, ao mesmo tempo que a planície se iluminava sob a abóbada

branca do céu.

Os guias soltaram um grito dilacerante e ficaram mudos de espanto e pavor. Brite cerrara os olhos, cego pelo imenso clarão, mas mesmo com eles fechados, com as pálpebras apertadas, via os relâmpagos iluminarem o céu. Contudo, não trovejava: os clarões saíam de todos os lados, na direcção do zénite, e, fundindo‑se num só, terrível, pareciam incendiar o firmamento.

Os cavalos uniram‑se mais, tão assustados que nem se moviam, e o gado tremia, de cabeça baixa, e mugia tristemente.

Não havia escuridão nem se reflectia no solo a sombra dos cavaleiros. De súbito, os clarões dividiram‑se, como que bifurcados, e espantosas fitas de fogo branco riscaram o céu, logo transformadas em longas e simples cordas

de luz.

As montadas dos guias iam‑se aproximando‑, por iniciativa própria, e, desobedecendo aos cavaleiros, esfregavam os flancos uns nos outros e uniam as cabeças, procurando

escondê‑las.

‑ É terrível, meu Deus! ‑ exclamou Texas, arquejante. ‑ É melhor sairmos daqui; quando este inferno terminar o gado ficará doido.

‑ Agora, estão paralizados pelo medo ‑ murmurou Holden. ‑ Olhem, alguns estão a cair!

‑ Saiamos daqui, homens! ‑ ordenou Brite.

Abandonaram a estreita garganta seguidos pelos cavalos de reserva, de cabeças voltadas para a encosta, de tal maneira que foi a recuar que deixaram o vale.

As fitas de luz aumentavam em número, em intensidade, em comprimento e em largura, até se fundirem num docel do tamanho do céu, tão azul que os olhos dos homens não suportavam o seu fulgor. Nenhum deles saberia dizer quanto tempo durou o fenómeno; quando descerraram as pálpebras, o clarão azul seccionara‑se em incontestáveis bolas de fogo.

Brite julgou endoidecer, assim como os seus destemidos vaqueiros, ao ver, com os olhos muito abertos, as bolas de fogo aparecerem por todos os lados, rolarem pelas encostas e estoirarem, desfeitas em mil faíscas, como se alguém oculto se divertisse a jogá‑las em todas as direcções. O velho rancheiro tomou nos braços a quase desfalecida Reddie e apertou‑a com força ao peito, esperando a morte a todo o momento. As bolas aumentavam em número, tamanho e velocidade, entrecruzavam‑se no chão, desfaziam‑se em chispas ou uniam‑se numa bola maior. Com grande pasmo dos homens, corriam sobre os cavalos, detinham‑se‑lhes nas orelhas, saíam‑lhes pelas narinas, giravam sobre as rédeas, saltavam para as abas dos chapéus ‑ de tal modo que tudo aquilo lhes parecia ilusão de óptica ocasionada pelo pavor. Só se admiravam de ainda estarem vivos‑, de não terem já caído, fulminados.

Brite sentia um calor intenso e sulforoso envolver tudo, e reparou que as bolas de fogo, tal como acontecera às faixas precedentes, se transformavam, com um som esquisito, numa neblina branca e transparente.

O ar estava saturado de enxofre queimado e o oxigénio que continha, mal chegava para manter vivos homens e animais. Aqueles tossiam, meio sufocados, e só devido a grande força de vontade Brite não caiu do cavalo, arrastando consigo Reddie, que estava inconsciente nos seus braços. De súbito, todos se olharam, atónitos: a manada estava envolta naquela cortina pálida e misteriosa e deixara‑se de ouvir o som rascante das faíscas.

Lentamente, a neblina foi subindo, como um véu que se levanta, e descobrindo as formas negras dos cavalos e cavaleiros. Uma brisa fresca sucedeu ao calor sufocante, e um estremecimento de vida percorreu o gado, dando novo ânimo aos vaqueiros.

‑ Acabou‑se o inferno, camaradas! ‑ gritou Texas. ‑ Já passou, amigos! Acabou‑se a tempestade e estamos vivos, todos vivos, para contar a história! Vivam os homens de Brite! Viva! Viva! A manada move‑se! Aguentem! Guiem‑na, vaqueiros! Louvado Deus, a nossa sorte é grande! Má, não; grande, sim; muito grande! E chegaremos a Dodge, chegaremos a Dodge! Guiem‑nos, homens! Carreguem e atirem a matar! A noite findou, vem aí novo dia! ‑ Viva! Viva! ‑ gritaram os vaqueiros, exuberantes, reunindo o gado de volta ao seu lugar.

No regresso ao acampamento, Brite amparou Reddie, que cambaleava na sela.

‑ E os meus cavalos? ‑ perguntou, com um soluço, a jovem. ‑ Como estão?

‑ Estão bem, filha, guardados pelos rapazes. Descansa que olharão por eles.

Só a realidade do nascer do Sol, o ar calmo e doce, a solidez da terra sob os pés e o pasto abundante, foram capazes de vencer o pesadelo daquelas horas de tormenta.

Texas chegou ao acampamento, deixou‑se cair do cavalo e coxeou para junto do fogão, abrindo os braços como se quisesse abarcar toda a doçura da alvorada.

‑ A caminho, homens! ‑ ordenou. ‑ A manada está apontada. Café, quero um galão bem medido de café! ‑ e deixou‑se cair pesadamente sobre um fardo, amparando a perna doente. ‑ Creio que os meus pecados estão expiados; todo o inferno que merecia o sofri, a noite passada, de uma só vez!

Após mais cinco dias extenuantes e intermináveis a leva ultrapassou o braço norte do Canadiano e acampou em Rabbit Ear Creek. No dia anterior, haviam passado por Cam Supply, a meio da manhã, e Texas Joe tivera a sensatez de parar.

O lugar regorgitava de soldados, índios, vaqueiros e homens barbudos sem ocupação aparente, e corriam boatos acerca do massacre dos passageiros do comboio que Hardy tencionava apanhar, em Forte Still; de desastres acontecidos a levas de gado; de façanhas de salteadores que eram dirigidos no Kansas e assaltavam em território índio; de vinte milhões de búfalos entre os rios Canadiano e Arkansas ‑ em suma, do inferno que parecia reinar em Dodge e Abilene. Brite tudo ouviu e tudo calou, dizendo para consigo que os seus rapazes tinham já preocupações de sobra e mereciam que se lhes poupasse o relato de tais horrores.

‑ Que dia é hoje, mais ou menos? ‑ perguntou Whittaker, com ar sonhador, quando estavam no acampamento.

‑ Não vês que o Sol está a pôr‑se, meu parvo? ‑ zombou Ackerman.

‑ Bem vejo, mas queria saber o mês e o dia.

‑ Ah, isso só Deus sabe! A mim nem me interessa...

‑ Apostava as minhas esporas em como o Less Holden é capaz de te informar! É um tipo esquisito, mas gosto dele.

E tu?

‑ Sei lá! ‑ replicou Deuce, carrancudo.

Brite notara mais de uma vez como os rapazes do Uvalde eram dedicados uns aos outros e como Ackerman parecia ciumento de Little, agora que os outros haviam desaparecido. Sobretudo a perda de San Sabe perturbara dolorosamente Deuce.

‑ Vou perguntar‑lhe ‑ insistiu "Whittaker. ‑ Eh, Less, és capaz de me dizer em que dia estamos?

‑ Claro! Sou um calendário ambulante! ‑ exclamou Holden, senhor de si, tirando a bolsa do tabaco da algibeira. ‑ Mas não digam nada ao Tex, pois ele nem quer saber a data em que estamos. ‑ Tirou da bolsa um punhado de pequeninos seixos e começou a contá‑los, cuidadosamente: ‑ Irra, cinquenta e seis dias de viagem! Cinquenta e sete, com o de hoje! Rapazes, faltam só três dias para completarmos dois meses de Pista!

‑ Já? ‑ admirou‑se Whittaker.

‑ Nesse caso, estamos quase em Agosto... ‑ ponderou Deuce, pensativo. ‑ Devemos alcançar Dodge em fins de Agosto, portanto. Estou preocupado por causa do comboio de Forte Still. É verdade, patrão, esquecia‑me de perguntar‑lhe se ouviu falar desse comboio que o Doan esperava?

Brite não foi capaz de fitar os olhos negros e ansiosos do rapaz, nem de dizer‑lhe a verdade...

No dia seguinte, a meio caminho de Sand Creek, Texas Joe ergueu‑se nos estribos e assinalou búfalos. Dia após dia vinham à espera de tal notícia, pois a grande manada devia atravessar a Pista Chisholm algures ao norte do

Canadiano.

Não tardou que Brite visse, também, as manchas negras e irregulares dos bisontes, que mal pareciam mover‑se, mas que se aproximavam cada vez mais.

Texas Joe ordenou que parassem, ainda cedo, todas as conversas convergiram para o assunto dos búfalos.

‑ Não haverá nada a recear se seguirmos na direcção deles ‑ observou Bender.

‑ É só isso que sabes?

‑ Talvez retrocedam para Oeste, de manhã...

‑ E se continuarem para Este... através da nossa Pista?

‑ Os guias de gado nunca voltam para trás!

‑ Seremos cercados por milhares de búfalos? Gado, cavalos, carro, guias, tudo?

‑ É muito provável. Já ouviu falar em tal coisa, patrão?

‑ Em quê? ‑ disfarçou Brite, que compreendera perfeitamente.

‑ Em caravanas completamente cercadas pelos búfalos.

‑ Acontece com frequência levas de gado seguirem a par de manadas de búfalos...

‑ Hum!... E que acontece, se os búfalos lhes dá para desatarem a correr, espantados? Trinta milhões de búfalos a correrem todos ao mesmo tempo?...

‑ Isso é inconcebível, rapazes.

‑ Apostava o meu último cigarro em como pode acontecer.

Eram assim as conversas deles. Uns mostravam‑se optimistas, outros pessimistas, mas todos, sem excepção, ousados, destemidos, inalteráveis!

De manhã, viam‑se já longas filas de búfalos atravessando a Pista, e, durante todo o dia, a manada teve por companhia monstros hirsutos. Passaram por pequenos e grandes grupos, centenas de uma vez, dois ou quatro de outra, pastando pachorrentamente, satisfeitos e indiferentes.

Sand Creek proporcionou‑lhes excelente acampamento e bom pasto para o gado. Os touros pareciam tão satisfeitos quanto os seus irmãos bisontes, deitavam‑se cedo e não davam trabalho aos guias, que até conseguiam dormir na sela.

No dia seguinte, a Pista seguiu por Sand Creek e os rapazes andaram preocupados com as descargas de caçadeira que se ouviam, a Este e a Sul. Ou se tratava de caçadores que atacavam os búfalos, ou de outras levas que se aproximavam. Nesse mesmo dia, uma longa e compacta coluna daqueles animais atravessou por detrás da manada e, virando para Norte, seguiu paralelamente o gado. Para a rectaguarda e para Oeste aquela onda negra, avançando imperceptivelmente, ia aumentando devagar e aproximando‑se cada vez mais da leva de Brite. Como parecia agora insignificante e reduzida a sua manada de seis mil cabeças! Apenas um simples ponto na infinita planície.

No entanto, pelo menos até onde a vista alcançava, o caminho a Norte e a Oeste continuava livre e aberto. Brite pensou, por isso, que atravessara mesmo à frente da grande massa de búfalos e que podia seguir assim, tranquilamente, durante dias... a não ser que uma simples nuvem de poeira, o chicotear de um redemoinho de vento ou algo semelhante, inevitável e imprevisível, a espantasse, transformando os pachorrentos animais numa avalanche descomunal e destruidora.

Sand Creek desaguava em Buffalo Creek, um ribeiro frio e profundo, marginado de salgueirais e de toda a luxuriante vegetação da pradaria. Texas Joe acampou perto do ponto onde as duas correntes de água se uniam.

‑ Descansaremos aqui um ou dois dias ‑ disse. ‑ Que alguém abata um búfalo... um belo bife do lombo calhava bem! A Reddie quer matar algum?

‑ Não. Tenho um coração demasiado sensível... ‑ troçou a jovem. ‑ Vi muitos búfalozinhos e tenho medo de matar a mãe de algum deles...

‑ Coração sensível, bem? Raios me partam! ‑ praguejou Texas, que nos últimos tempos evitava as habituais disputas com Reddie. ‑ E nós que estávamos convencidos de que você era uma matadora fria!

‑ Não me importo de matar peles‑vermelhas, canalhas, gatunos... e um ou outro guia, para variar.

‑ Compreendo... Mas referia‑me a matadora com a sua arma e não com os seus caracóis ruivos, os seus olhos atrevidos, a sua elegância que nenhuma roupa de homem pode disfarçar... Afinal você é assassina das duas maneiras!

Reddie desapareceu num ápice, encerrando, assim, toda a conversa agradável.

‑ Gostaria bem que o Hash Williams ainda estivesse connosco ‑ murmurou Texas, pouco depois, como se falasse consigo próprio.

‑ Ora, Tex, que diferença faria isso, agora?

‑ Muita! Se, ao menos, soubéssemos o que os malditos búfalos vão fazer!

‑ A nós só nos resta continuar para a frente...

‑ Tal vez os búfalos se desviem...

‑ Aquela manada? Não o fará, este Verão. São tantos como os tufos de grama que há por aí!

‑ Que acha o patrão? ‑ perguntou o capataz, desejoso do que alguém compartilhasse as suas ideias.

‑ Esperemos até amanhã ‑ aconselhou o velhote.

A manhã seguinte trouxe‑lhes menos búfalos à vista e maior espaço livre. No entanto, a Sul e a Oeste havia manchas negras sobre o capim verde...

‑ Aponta a manada! ‑ ordenou Brite, indeciso entre esperanças e temores.

‑ Ia fazê‑lo ‑ resmungou Texas. ‑ Só se morre uma vez e se temos de morrer que seja depressa! Isto de ir morrendo todos os dias a todas as horas é como tentar conquistar o amor de uma mulher.

Se Joe soubesse, se visse, como Brite, a luz que brilhava nos olhos de Reddie, aprenderia que essa conquista era bem fácil e que, para a levar a efeito, bastavam pequenos nadas a que ele teimava não ligar importância.

Avançaram e os búfalos foram‑nos cercando, cada vez de mais perto. Manada, cavalos de reserva e guias eram o centro de uma ilha verde rodeada de vagas negras, alterosas e invencíveis, de uma ilha que tinha um par de milhas no maior comprimento e mais ou menos outro par na maior largura, formando um círculo quase perfeito.

Brite sabia que os touros não temiam os búfalos, pois lembrava‑se bem de como berravam e erguiam os potentes chifres quando os topavam no seu caminho, mas, para uma manada descomunal como aquela, o seu gado e os seus cavalos não passariam de meros grãos de areia sob as suas

patorras.

Pelo meio‑dia, Brite teve a impressão de que algo se modificara, de que os búfalos se apressavam por qualquer motivo, mas ficou sem saber que decisão tomar, pois era impossível descobrir as intenções dos bichos.

‑ Ouço qualquer coisa lá para trás, papá ‑ disse Reddie, cheia de medo.

‑ O quê?

‑ Não sei bem; parece o vento nos pinheiros... Brite apurou o ouvido, mas em vão. Texas deteve o cavalo e voltou‑se na sela, de pé sobre os estribos. Também ouvira qualquer coisa... Os búfalos estavam apenas à distância de uma milha, e avançavam a passo mais largo, sem se importarem com o pasto.

‑ Ouço outra vez, papá!

Pan Handle contornou a rectaguarda da manada e foi juntar‑se a Texas, olhando para o mesmo lado que ele, assim como todos os vaqueiros. Fosse o que fosse, a verdade era que o gado continuava a andar pachorrentamente, como se tremendo perigo o não ameaçasse, e só os pequenos cavalos espanhóis denunciavam inquietação, trotando de um lado para o outro, com as orelhas erectas e a cabeça voltada para o Sul. Ao vê‑los, Brite sentiu o coração desfalecer‑lhe e esforçou‑se por não pensar, por não escutar a voz da consciência.

‑ Agora ouço ainda mais forte! ‑ avisou Reddie, que correra para junto dele.

‑ E como é, filha?

‑ Parece trovoada, ao longe... Talvez seja uma tempestade a aproximar‑se...

O céu, porém, mostrava‑se azul e sereno, sem nuvens. Algumas milhas à rectaguarda, ao fundo da linha negra e irregular de monstros hirsutos, erguia‑se uma espécie de fumo amarelado. Nuvens de poeira! Brite preferiria ser cego, a ter de ver tal coisa.

‑ Olhe, poeira! ‑ gritou Reddie, assustada, apontando com a mão trémula.

‑ Talvez não seja nada de grave ‑ murmurou Brite, desviando os olhos.

‑ Vem aí o Texas. Olhe para o cavalo dele!

O capataz galopou para junto de três outros vaqueiros e, após breve conciliábulo, um deles correu para Este, rodeando por aí a manada, e Texas foi ter com Brite.

‑ Ouviu alguma coisa, patrão? ‑ perguntou, com o rosto tenso e os olhos em fogo.

‑ Eu, não; mas a Reddie ouviu. Só vi poeira, lá para trás...

‑ Espantaram‑se! ‑ berrou Texas, confirmando os seus receios.

‑ Oh! Meu Deus! ‑ gemeu Reddie, acabando por compreender o que se passava. ‑ Estamos cercados por eles! Que faremos, Jack?

‑ A ameaça tem‑nos acompanhado todo o caminho e creio bem que se cumprirá agora... Se aqueles brutos caem sobre a manada, temos uma probabilidade, em mil, de escaparmos; mas, mesmo para isso, é preciso que o gado se mantenha unido na rectaguarda, num grupo compacto, como está agora. Vá para lá, Brite, e boa sorte! Quanto a si, Reddie, se os búfalos se aproximarem vá para o vagão. Um carro grande e pesado, como o nosso, é bem capaz de fender uma manada que esmagaria os cavalos.

‑ Oh, Jack! Não se vá embora... enquanto eu... Quis correr atrás dele, mas Tex acenou‑lhe com a mão, num adeus, e foi ao encontro de Moze, que se aproximava a trote. Devia ter‑lhe dado ordens alarmantes, pois o negro incitou a parelha e partiu a galope. Texas esporeou a montada e retrocedeu para a esquerda.

Brite e Reddie conduziram os cavalos de muda para a rectaguarda, atrás dos vaqueiros, e, pouco depois, juntou‑se‑lhes Moze. Tomaram todos os seus lugares, de acordo com os movimentos da manada. Eram apenas sete, atrás do

gado...

Brite voltou a observar os búfalos. Aparentemente, o imenso oval verde que rodeava o gado permanecia tão grande como dantes, mas quem poderia garantir que não se estreitara ou encurtara? Só uma diferença era visível: moviam‑se a passo lento, por todos os lados. Quis convencer‑se de que tudo corria bem e esforçou‑se por dominar os nervos, mas foi trabalho inútil; no fundo de si mesmo sabia que algo de terrível ia passar‑se. Consigo, pouco se importava, embora não lhe agradasse a ideia de ser pisado por milhões de patas e reduzido a uma polpa sangrenta; mas Reddie e o seu amor, e todos aqueles homens valentes e leais que o seguiam, não lhe deixaram o pensamento. Deus é que mandava, porém! Orou mentalmente por todos eles e, depois, como um bom texano, preparou‑se para lutar até ao último arranco de vida.

Olhou para trás, corajosamente, para avaliar o mais depressa possível o que os esperava. Nos búfalos não se notava alteração, mas a nuvem amarela subira mais alto, encobrindo o céu, a meia distância do zénite.

Os seus ouvidos encheram‑se, de súbito, dum som cavo e longínquo, e gritou:

‑ Também ouço, Reddie!

A jovem, porém, correra para junto de Texas Joe e este, num gesto autoritário, mandava‑a para o carro.

Apesar de todas as aparências, Brite recusava‑se a pensar no pior. Não haviam sido já poupados, mais do que uma vez, nesta leva fatal, por uma força invisível e poderosa? «Quien sabe?» ‑ murmurou, por entre os dentes cerrados.

Ambos os flancos da grande massa de búfalos se haviam modificado profundamente. Onde há pouco se notava, apenas, ligeira ondulação, imperava, agora, o tumulto. Os da frente, porém, ainda caminhavam a passo lento, não obstante o barulho aumentar cada vez mais. O cavalo de Brite resfolegava e escarvava a terra, e era preciso esporeá‑lo, como a todos os outros, para não fugir. A própria reserva escouceava, tornando‑se difícil sustê‑la atrás do gado.

Esta situação manteve‑se durante instantes, até que Texas ergueu as mãos, de modo estranho, avisando‑o de que os búfalos vinham a galope. Segundos mais tarde, o som cavo adquiriu intensidade capaz de amedrontar o mais ousado, e a distância que separava a rectaguarda da caravana da manada de búfalos começou a decrescer a olhos vistos. Ao mesmo tempo, de ambos os lados, à frente, os monstros principiaram a apertar o cerco, aproximando‑se e formando uma parede impenetrável e movediça.

Sentindo o perigo, o pachorrento gado começou a correr, também, o que poderia ter o condão de apressar o desfecho por que Brite ansiava, fosse qual fosse. A reserva parecia mais sossegada e Moze continuava a conduzir o carro, atrás dela.

Acima do estrondo provocado pela corrida dos bois, ergueu‑se outro que o reduziu a nada: o do galope dos búfalos espantados, à rectaguarda da colossal manada. Tal ruído, se, por um lado, obrigava o gado a fugir, por outro forçava a vanguarda dos bisontes a apressar, também, submergindo tudo, como uma onda cada vez maior e mais possante.

Chegara o momento trágico, em que o desejo de fugir enlouquecera todos os brutos, e Brite sentiu o chão oscilar sob as patas dos cavalo e os seus ouvidos quase rebentarem com tanto barulho. De repente, porém, deixou de ouvir e, como de comum acordo, bois e cavalos romperam num galope desenfreado.

Olhou para trás. Um milhar de cabeças hirsutas e de cornos hediondos formava a primeira fila, a escassas cinquenta jardas, ganhando terreno gradualmente, mas devagar. Durante algumas milhas, o gado acompanhou o andamento dos búfalos, enquanto o círculo se ia apertando. Os touros investiam contra aquela parede negra, de pêlo crespo, e eram atirados ao chão e esmagados.

Os olhos de Brite viam, à sua frente, um vasto mar negro, uma maré ondulante, como se uma enxurrada de peles cobrisse a pradaria por todos os lados. Apesar da tragédia que viviam, Brite sentiu‑se empolgado pela magnificência do cenário, pensando para consigo que a Natureza concedera aos seus heróicos rapazes um cenário digno do seu fim.

Texas Joe, de um dos lados do carro, e Pan Handle, do outro, disparavam no focinho dos bichos que se aproximavam demais. A parelha de Moze galopava, os cavalos de reserva galopavam, as seis mil cabeças de gado galopavam... Mas onde? Perdidos, como grãos de areia, naquela horda de bestas.

Quando os búfalos cobriam a terra completamente a poeira obscureceu a visão de Brite, que apenas lobrigava indistintamente e a pouca distância. Nem por isso, contudo, perdeu de vista Reddie e o carro, esperando, a todo o momento que este se voltasse ou perdesse uma roda, devido aos balanços que a velocidade lhe imprimia.

Apenas a reserva se mantinha unida. Todos os guias, excepto Pan Handle, Texas e Reddie, estavam cercados de búfalos. Os estribos do cavalo do velho roçavam pelos monstros, que o faziam oscilar de um lado para o outro.

Bender, no seu cavalo branco, era um alvo demasiado exposto... Brite viu‑o afastar‑se para um dos lados... o cavalo branco cair... e o sítio onde ele estivera ficar coberto de corpos negros. Não podia mais, não queria ver mais nada, sobretudo não queria ver Reddie, a sua Reddie, sacrificada a tão atroz destino! Cerrou os olhos, com força.

Entretanto, a fuga desordenada prosseguia, aquela fuga que, talvez, um nada provocara e tão terríveis consequências podia ter. Um empurrão violento quase o arrancou da sela e Brite abriu os olhos a tempo de ver um monstro gigantesco passar. Louco de medo disparou sobre ele e logo outros o pisaram e esmagaram. Por vezes, conseguia ver nesgas de chão, mas num instante tudo voltava a ser amarelo, infernal, movimentado. Tinha de acabar, tinha de haver um fim para semelhante horror! O gado seria capaz de continuar a correr um dia inteiro, mas os cavalos, apavorados, acabariam por cair, como o de Bender.

Reddie e Texas cavalgavam junto do vagão; portanto, com búfalos apenas do lado exterior. Brite olhou‑os, como se estivesse certo de vê‑los pela última vez. Agoniado, aturdido e cambaleante, agarrou‑se à sela, certo de que o fim estava perto. Vivera muito... O gado fora a sua Nemésias... Oh, se não fosse Reddie!...

De súbito, pareceu‑lhe que os seus ouvidos se abriam, que se enchiam de sons, que ouvia de novo! Num último esforço, o cérebro enevoado raciocinou: se ouvia era porque o estrondo diminuira, porque a fuga abrandara! Oh, sim, abrandara! Via pedaços de céu e via água, por entre as nuvens amarelas. Abrandara! Haviam chegado ao Cimarron! A sua alegria era tão grande que começou a ver tudo negro à sua volta, e lutou com todas as forças que lhe restavam, para não perder a consciência, agora que tudo ia terminar. Continuava a ouvir barulho, sentia o cavalo arrastar‑se pela areia... mas dir‑se‑ia que não era ele próprio, que o seu corpo e o seu espírito se haviam separado. Sentiu ainda um braço rude segurá‑lo e um homem gritar‑lhe aos ouvidos... mas mais nada.

Brite fitava, estupidamente, o largo rio coalhado de gado, que parecia flutuar na direcção de uma ilha, e, a pouco e pouco, foi compreendendo o que se passara: a fuga terminara no Cimarron, onde os búfalos se haviam dispersado à volta da ilha.

‑ A Reddie? ‑ perguntou, quando o tiravam da sela.

‑ Estou aqui, papá, sã e salva! Não me vê?

‑ E... todos?

‑ Estamos aqui, menos Bender e Whittaker.

‑ Sim... Vi o Bender... cair.

‑ Podia ter sido pior, patrão! ‑ exclamou Texas, agradecido.

‑ Viu‑me cair também? ‑ perguntou Reddie. ‑ Fui atirada por cima do cavalo, mas aquele vaqueiro apanhou‑me, como se eu fosse uma pena!

‑ Que vaqueiro, filha?

‑ Texas... Jack! É a segunda vez!

‑ Parte do nosso gado foi‑se com os búfalos ‑ interrompeu Tex, prático como sempre, afastando a rapariga. ‑ O resto anda espalhado por aí. Metade dos cavalos de reserva desapareceu, também, mas, louvado Deus, estamos aqui, vivos, no Cimarron!

Quando os malditos bisontes se sumirem, reuniremos o que restar e continuaremos o caminho.

Antes de anoitecer, já os últimos búfalos tinham desaparecido. Entretanto, haviam acampado num local elevado e dois homens consertavam o vagão, enquanto Moze cozinhava bifes. Pan Handle esmerava‑se a limpar as armas e Texas Joe andava de um lado para o outro, seguindo Reddie com o olhar inquieto. O pesadelo passara, haviam vencido outra vicissitude da Pista.

Os guias que restavam a Brite levaram quatro dias para reunir cinco mil cabeças de gado. O resto perdera‑se, assim como cem cavalos. Apesar de tudo, como os incansáveis rapazes não se fartavam de frisar, tinham mais quinhentas cabeças do que quando haviam iniciado a leva!

Todos os dias diversas manadas passavam o Cimarron, chegando a juntar‑se cinco num dia! A maior parte dos guias gabava‑se de ter tido sorte, até ali, resumindo‑se os contratempos sofridos a pequenas surrafuscas com «Cavalo Negro», umas desgarradas sem importância, uma tempestade magnética que os atrasara e uma saraivada que matara alguns bezeros.

Um vaqueiro grandalhão, de rosto corado e violento, gritou‑lhes, acenando com a mão:

‑ Estamos na última etapa da Pista! Não falta muito para eu estar a cair de bêbado!

Brite continuou a avançar no quinto dia, com o gado e os cavalos folgados e refeitos e os vaqueiros andrajosos como espantalhos, magros e macilentos, mas cheios de coragem.

Em todos os acampamentos que se seguiram tiveram companhia. Snake Creek, Bear Creek, Bluff Creek e, finalmente Mulberry Creek, a escassas milhas de Dodge.

No último, o Sol pôs‑se num deslumbramento de ouro e carmin sobre a vasta pradaria, e os rancheiros chamaram os guias para tagarelarem:

‑ Hoje em dia Dodge parece outra! ‑ disse um deles.

‑ Tiros, bebida, jogo e mulheres pintadas! Elas esperam‑vos, rapazes, essas bonecas pintadas e decotadas, assim como os baralhos de cartas!

‑ «Whoope»! ‑ gritaram os rapazes, excitados, com excepção de Deuce, que permaneceu calado.

‑ Ainda bem que sou livre! ‑ berrou Texas Joe, olhando para a cabeça baixa de Reddie e piscando o olho a Brite. ‑ Ainda bem, pois esta Pista foi um inferno e deu‑me de tudo! Quero receber depressa, patrão! Não beberei enquanto não encontrar o malandro do Hite e o encher de balas, mas depois arranjarei uma dessas raparigas de olhos bonitos, rosto claro, lábios pintados, braços nus e...

‑ Não tem vergonha! ‑ interrompeu Reddie, furiosa.

‑ Detesto‑o! Só pensa no vinho e nessas bonecas nojentas... esquece‑se dos nossos rapazes... dos nossos camaradas mortos, para sempre, na pradaria! Como tem coragem para fazer tais coisas?

‑ Será por isso mesmo que as farei, Reddie! ‑ respondeu Texas, muito sério. ‑ Custa muito a um homem esquecer os amigos, os camaradas que morreram a seu lado... Eu... eu... não tenho nada, mais nada... e uma mulher pintada!...

‑ Oh, mas tem! ‑ gritou Reddie, apaixonada. ‑ Tem! Doido, oh, doido!

 

Dodge City era, na verdade, uma cidade barulhenta! Brite comparava o tráfego, na rua larga, o pó, o barulho e o arrastar de pés ao estrondo de uma desgarrada, na Pista.

Deixando o gado nas pastagens, já contado, correu à cidade, com Reddie, mas a pequena ficou a dormir, no hotel, não sabendo resistir à visão de uma cama, enquanto ele se dirigia ao escritório de Hall & Stevens, com quem já negociara mais vezes. Receberam‑no ruidosamente, antevendo negócio chorudo:

‑ Você parece um pedinte, Brite! ‑ exclamou o mais velho. ‑ Por que não faz a barba e despe essa farpela?

‑ Amanhã terei tempo de sobra para essas ninharias; agora, interessa‑me vender e... dormir. Quanto pagam, este mês?

‑ Oferecemos doze dólares ‑ respondeu o outro, com ar indiferente.

‑ É pouco. Tenho uma manada de cinco mil e oitenta e oito cabeças, digamos cinco mil e oitenta... Belos bichos e gordos que é um amor!

‑ Quanto quer?

‑ Quinze dólares. Não interessa, Hall. O melhor gado é o meu.

‑ Treze...

‑ Nada feito. Vou ao Blackwell ‑ respondeu, encaminhando‑se para a porta.

‑ Catorze, o máximo! Vende?

‑ Vendido! Virei amanhã buscar o cheque. Entretanto, podem mandar os vossos homens tomar conta dos bichos.

‑ Combinado, Brite. Estou satisfeito e espero que você também o esteja. Quantas cabeças calcula que chegarão antes de começar a nevar?

‑ Duzentas mil.

‑ Dodge vai ficar lindo, em fins de Agosto! ‑ exclamou Hall, esfregando as mãos.

‑ Bem, tenho de andar.

‑ Não precisa de dinheiro, para pagar?

‑ É verdade, já me esquecia! Arranjem uns dois mil e quinhentos dólares. Bons dias.

Chegou ao hotel ofegante e mal se tendo nas pernas. Deu cinco, dólares a um preto para lhe arranjar água, tomou banho, barbeou‑se e adormeceu mal encostou a cabeça à almofada.

Acordou‑o uma pancada na porta, na sua opinião, pouco tempo depois de adormecer.

‑ Está morto, papá?

‑ Entra!

‑ Viva, todo bonito - troçou Reddie, olheirenta, sentando‑se na cama. ‑ Lavado e barbeado, seu tolo! Comprou roupa nova?

‑ Ainda não. Fica para de manhã.

‑ De manhã? Já são dez horas! Quando se deitou?

‑ Às quatro! Dezasseis horas a dormir! ‑‑Onde está... onde estão os rapazes?

‑ A dormir, também, não te preocupes. Hão‑de aparecer por aí, à procura do dinheiro.

‑ Faz‑me um favor, papá?

‑ Com certeza; tudo quanto quiseres.

‑ Não lhes dê... isto é, pelo menos ao Texas Jack, o dinheiro.

‑ Não posso fazer isso, querida! ‑ protestou Brite, admirado. ‑ Não tarda que ele aí esteja.

‑ Mas ele irá embriagar‑se, como prometeu, e... e...

‑ Mas com certeza, todos se embriagarão!

‑ E não poderei impedir o Jack de o fazer?

‑ Creio que sim, mas custará um bocado... Interessas‑te assim tanto por ele?

‑ Oh... amo‑o!

‑ Então será fácil! O pobre rapaz adora o chão que pisas!

‑ Dá o seu consentimento?

‑ Porquê, filha?

‑ Porque é o meu pai... e eu não me lembro do verdadeiro.

‑ Tu és tudo para mim, querida, e também gosto muito do Texas Joe.

‑ Ele não poderá deixar de guiar gado? Se continuar a fazê‑lo, terei de acompanhá‑lo...

‑ Ganhei uma fortuna com essa leva... Espera, agora me lembro de que ainda tenho noventa e dois cavalos para vender!

‑ Não pode vender o meu!

‑ Deixamo‑lo com o Selton e ele manda‑o para o Sul na primeira caravana.

Reddie levantou‑se, corada e feliz, com o rosto queimado brilhante de lágrimas.

‑ Despache‑se, pai, vamos fazer compras! Vou ter roupas de rapariga! Oh, parece um sonho! O pior é que não sei o que hei‑de comprar... Então, papá, depressa, não me atrevo a sair sozinha.

‑ Não acredito...

Mal ela saiu, Brite apressou‑se a vestir o fato velho e roto que trouxera e em breve caminhavam os dois pela rua principal de Dodge, onde, apesar do movimento, ainda não havia muito barulho, pois era cedo. Reddie era toda olhos, não deixava escapar nada. Vaqueiros, jogadores, carroceiros, pretos, mexicanos e índios pejavam a rua, como se esperassem que acontecesse qualquer coisa.

Brite levou a rapariga ao grande estabelecimento de Denman e pediu a uma empregada que lhe fornecesse o que tivesse de melhor, sem olhar a despesas. Em seguida comprou um fato para si próprio, para o que não precisou de muito tempo. Demorou‑se depois a conversar com um guia conhecido, chamado Lewis, e quando correu à procura de Reddie foi encontrá‑la, deslumbrada e feliz, sentada no meio de um montão de embrulhos que lhe deram grande trabalho a transportar para o hotel.

Mal chegou, a jovem trancou‑se no quarto, com as suas preciosas compras.

Pouco depois, uma pancada na porta interrompeu Brite, que dava os últimos retoques na indumentária.

‑ Entre.

‑ Bons dias, patrão ‑ saudou‑o Texas Joe, satisfeito. ‑ Santo Deus, como o senhor está fino!

‑ E tu também estarás, em breve. Os rapazes?

‑ Não sei, calculo que estejam a dormir. Vieram a Dodge só para se meterem na cama! Hei‑de encontrá‑los em qualquer lado.

‑ E o Pan?

‑ Também está a dormir, para acalmar os nervos. Não tarda que ande à caça do Hite.

‑ Ouve, Texas. Se eu te pedisse que tomasses o primeiro transporte comigo e com a Reddie, em vez de ires meter‑te em paródias, fazias isso?

‑ Está a pedir demais, patrão! Nesta leva aconteceram‑me coisas espantosas, não sei ainda se boas, se terríveis...

‑ Compreendo‑te, mas é um favor que te peço. Anda comigo ao escritório do Hall e ao Banco, e, depois, à loja onde comprei este fato.

‑ Até aí ainda é fácil... Terá a minha companhia até receber a massa... Estou lisinho, patrão! E olhe que ainda tinha dinheiro quando saí de Santone! Santone!... Voltarei a vê‑la?

‑ Claro que sim! Vamos.

‑ Importa‑se de ir do meu lado esquerdo? ‑ perguntou Texas, ao chegarem à rua. ‑ ‑ Posso precisar de espaço para agir... Se encontrarmos o Hite, o Pan fica a perder.

Não o encontraram, porém. Quando voltaram ao hotel Texas alugou um quarto e foi mudar de fato, e Brite dirigiu‑se ao escritório de Blackwell, para vender os cavalos.

Na volta, foi rodeado por diversos conhecidos que, alegres, o interrogaram sobre diversas coisas, aludindo, sobretudo, à prosperidade do Texas e ao seu fato novo.

Brite reparou numa rapariga bonita, com um vestido colorido e alegre, que passeava no átrio e atraíra a atenção de um elegante de sobrecasaca. O atrevido dirigiu‑se‑lhe e Brite pensou, para consigo, que devia, primeiro, certificar‑se se a jovem gostaria das suas atenções, para evitar desaires. Qual não foi, porém, o seu espanto ao ouvi‑la dizer, numa voz familiar:

‑ Fique sabendo, seu bonitote, que se tivesse trazido a minha arma o faria dançar ao pé coxinho!

‑ Reddie! ‑ exclamou Brite, reconhecendo‑a.

‑ Não me conhecia, papá? Empreste‑me o seu revólver!

O homem não precisou de ouvir mais nada, para desatar a fugir, e Brite ficou a olhar, mudo e incrédulo, para a sua filha adoptiva.

‑ Mas és tu, Reddie?

‑ Claro! Isto é, só quando me vejo ao espelho é que fico sem saber se sou eu! Oh, papá, sinto‑me estranha, atormentada... e feliz! Aquela empregada tinha gosto, escolheu todas estas coisas bonitas para mim! Estou bem?

‑ Se estás bem? Nunca vi ninguém tão bonito como tu! Nem calculas como estou alegre! E pensar que és minha filha!

‑ Se estivesse noutro lugar dava‑lhe um beijo! Acha que «ele» vai gostar de mim, assim?

‑ Ele quem?

‑ O Texas Jack, claro!

‑ Cairá aos teus pés se lhe deres oportunidade!

‑ Olhe, vem aí! Quase que nem o reconhecia, também! Ajude‑me agora, papá! O meu amor vai estar em jogo! Se, ao menos, não me faltar a coragem...

‑ Lembra‑te do Wallen, querida, e daquele dia dos búfalos! ‑ foi tudo quanto Brite teve tempo de dizer.

‑ Patrão... Quem?...

‑ Não me conhece, Jack? ‑ perguntou Reddie, atrevida.

‑ Valha‑me Deus! ‑ exclamou Texas.

‑ Vamos ‑ disse a jovem, segurando cada um por seu braço. ‑ Venha connosco ao quarto do papá, pois tenho uma coisa para lhe dizer.

Joe parecia em transe, ao acompanhá‑los pelas escadas acima, mas Reddie tagarelava sem parar, falando da cidade, dos habitantes e da alegria de terem chegado vivos ao fim da Pista.

Mal entraram, porém, no quarto de Brite a sua atitude modificou‑se. Atirou o chapelinho para cima da cama, como se toda a vida o houvesse usado, e, girando sobre si mesma, perguntou, com voz suave e olhar meigo:

‑ Gosta de mim, Jack?

‑ Está encantadora, Reddie! Não a teria reconhecido...

‑ Fica‑me melhor este vestido do que as calças esfiampadas que usava, não acha?

‑ Melhor? Oh, agora já não é um rapaz, é uma rapariga, uma... senhora! Ninguém que a tivesse visto na Pista gostaria de voltar a vê‑la vestida de homem!

‑ Com este vestido não ousaria espancar‑me, pois não?

‑ Não, meu Deus! ‑ afirmou, corando até à raiz dos cabelos. - Aliás nunca a espanquei como rapariga.

‑ Espancou, sim, pois sabia que eu o era. Tinha‑me visto tomar banho... despida. Não se atreva a negar!

Texas baixou a cabeça, torturado. ‑ Não importa, perdoo‑lhe. Agora ouça o que queria dizer‑lhe: é capaz de desistir de se embriagar?

‑ Lamento, «miss» Bayne, mas não desisto! É um previlégio dos guias de gado e ninguém pode impedir‑me de o aproveitar.

‑ Nem mesmo por mim o faria?

‑ Nem mesmo por si!

Reddie aproximou‑se lentamente, muito branca, e perguntou, com os olhos a brilhar:

‑ E se eu o beijasse? Uma vez pediu‑me um beijo...

‑ É cómica essa ideia! ‑ e o rapaz soltou uma risada desdenhosa. ‑ Você a beijar‑me!

‑ Não me parece assim tão cómica, Jack! Agarrou‑lhe o casaco, com força, pôs‑se em bicos de pés

e beijou‑o. Ficou uns instantes encostada a ele e depois, lentamente, recuou.

Texas Joe estava hirto, de lábios cerrados, todo ele concentrado no esforço de se dominar. Haviam ambos esquecido, mais uma vez, a presença de Brite.

‑ Beijou‑me... e eu envergonho‑me de si, Reddie Bayne! A minha liberdade não se compra com um beijo!

‑ Oh, Jack, não se trata da sua liberdade, mas da sua

salvação!

‑ Bah, que me interessa a vida?! Tudo quanto quero é beber, lutar, matar e adormecer bêbado, bêbado, bêbado!

‑ Eu sei, Jack, e compreendo. Também fui guia de gado, mas desejarei, porventura, esses horrores? Não, não, e não! E quero poupar‑lhos a si, também! A sua frieza enlouquece‑me, Jack! Acabe com isto depressa, peço‑lhe! Poupe‑me!

‑ Estou a poupá‑la mais do que pode avaliar!

‑ Com certeza que há alguma coisa capaz de o fazer desistir dessa ideia horrível! Mas o que é? Diga‑me que farei tudo, tudo!

Texas Joe agarrou‑a com força, ergueu‑a ao ar e encostou‑a ao peito.

‑ Casaria comigo?

‑ Oh, sim, sim, sim!

‑ Mas porquê? ‑ perguntou, cheio de espanto.

‑ Porque o amo ‑ respondeu rodeando‑lhe o pescoço com os braços e beijando‑o nas faces ‑ porque o amo muito!

‑ Ama‑me, Reddie?

‑ Sim!

‑ Desde... quando? ‑ quis saber, doido de alegria.

‑ Desde aquele dia em que o Wallen...

Texas beijou‑lhe os cabelos, os olhos, as faces coradas e, por fim, a boca que se lhe oferecia.

‑ Oh, Reddie, valeu a pena todo aquele inferno só pelo prazer de te ouvir agora! Quando casamos?

‑ Hoje, se quiseres ‑ murmurou, quase desfalecida ‑ mas preferia esperar e casarmos em Santone... em casa de meu pai.

‑ Então esperaremos! ‑ concordou, ardente. ‑ Mas temos de partir hoje, querida. Dodge está a aquecer demais para o meu gosto...

‑ Apressemo‑nos então! ‑ exclamou, soltando‑se‑lhe dos braços e voltando‑se suplicante para Brite. ‑ Está tudo resolvido, papá! Quando podemos partir?

‑ Hoje ‑ afirmou Brite, entusiasmado. ‑ Embrulha as tuas coisas e vai para a paragem, ao fim da rua. Temos tempo, mas despacha‑te! É o sítio mais seguro para esperares por mim. Eu vou pagar aos rapazes e não tarda que lá esteja, também.

Perdeu uma hora à procura dos rapazes e, ao voltar para o hotel, disposto a deixar lá as soldadas e a parte que a cada um cabia no dinheiro de Wallen, encontrou Pan Handle, inteiramente modificado de aspecto e trajo, mas o mesmo nos gestos.

‑ Andava à tua procura, Pan. Aqui está a tua soldada de guia e a tua parte...

‑ Não me deve nada, Brite ‑ recusou o pistoleiro, sorridente.

‑ Deixa‑te de recusas ou não somos amigos! ‑ protestou Brite, obrigando‑o a aceitar. ‑ Parto daqui a uma hora com a Reddie e o Tex. Resolveram‑se e somos todos felizes.

‑ Belo! Também fico contente! Irei despedir‑me de

vocês.

‑ Não seria melhor ires connosco, pelo menos até

Abilene?

‑ Não, embora gostasse muito. Preciso de encontrar

aqui uma pessoa.

‑ Lamento. Importas‑te de ficar com o dinheiro e pagar

aos outros?

‑ Não é preciso, que eles já aí vêm.

‑ Vamos despachar isto depressa! ‑ disse Brite, admirando‑se de estar tão ansioso por ver‑se livre dos seus leais vaqueiros.

Holden estava sentado nos degraus da escada e Ackerman e Little apoiavam‑se à balaustrada. Envergavam ainda os fatos velhos, mas tinham os rostos brilhantes e limpos, barbeados de fresco.

‑ Bons dias, patrão! ‑ saudou Rolly. ‑ Já tem a massa?

‑ Com certeza! Estava à vossa espera para lhes entregar a soldada e o bónus. Só a parte do Wallen é maior do que as soldadas todas juntas!

‑ Eu só recebo dez, patrão. Agradecia que pusesse o resto nas mãos de alguém, para mo guardar ‑ pediu Ackerman. ‑ Já sabe que não volto ao Texas...

‑ Sentiremos a tua falta, Deuce.

Less Holden avançou, com os olhos sôfregos postos no dinheiro.

‑ Eh, Rolly, dá‑me a bolsa! ‑ pediu Deuce, de brincadeira.

‑ É o dás! ‑ respondeu Little, escondendo‑a atrás das costas.

‑ É minha, seu filho da mãe!

E, de brincadeira, engalfinharam‑se os dois, contentes como dois garotos. Holden aproximou‑se e, aproveitando a confusão, arrebatou a bolsa, exclamando:

‑ Achei, é minha!

Sempre a rir, os dois rapazes atiraram‑se a ele e Brite ficou a ver a brincadeira, com Pan Handle.

Ainda não haviam bebido, e divertiam‑se como miúdos.

‑ Não sejas tão duro, Less! ‑ protestou Rolly, quando Less voltou a arrancar‑lhe a bolsa da mão, fazendo‑lhe sangue.

Litlle olhou para o arranhão, sem se ofender, pois era muito bom rapaz, mas Deuce não foi da mesma opinião e arrancou, por sua vez, a bolsa a Holden.

‑ Toma, Rolly, é tua. Deixemo‑nos de brincadeiras. Holden não quis saber do aviso e, dando‑lhe um puxão, fez Rolly desequilibrar‑se. Ágil como um gato, o vaqueiro pôs‑se em pé e, à brincadeira, sucedeu qualquer coisa pior e mais séria. Não conseguindo reaver a bolsa, Holden enfureceu‑se e bateu no rosto de Rolly.

‑ Oh! ‑ gritou o rapaz, zangado, dando‑lhe, por sua vez, com a bolsa na cara, até espirrar o sangue.

‑ Parem com isso! ‑ gritou Pan.

Tarde demais, porém, Holden puxou da pistola, disparou, e Rolly dobrou‑se sobre si mesmo, com o rosto convulsionado, e caiu no chão. Os outros dois enfrentaram‑se, como tigres, com as armas a vomitar fogo. Holden caiu, de cara para o chão, e Brite, paralizado pelo terror, viu Deuce recuar e apoiar‑se à porta.

A expressão feroz desapareceu‑lhe do rosto moreno, a arma caiu com estrondo no chão, ainda fumegante, e o rapaz levou a mão ao peito, enquanto o sangue lhe escorria por entre os dedos. Não olhou para Holden, mas os seus olhos, cheios de mágoa, fixaram o querido camarada Rolly. Depois a bela cabeça descaiu‑lhe para trás.

Pan Handle ajoelhou a seu lado e Brite, lutando por vencer o terror que o paralizava, inclinou‑se também, sobre o pobre rapaz moribundo.

‑ Velho... guia... ‑ murmurou, com um sorriso triste ‑ nós pagamos... Vejo que... não posso esperar... a bela

Ann... dos olhos garços!

Calou‑se, toldou‑se‑lhe o olhar franco e, com um soluço de infinita tristeza, morreu.

Uma hora depois, Brite deixava o hotel, acompanhado por Pan Handle.

‑ Não voltarei a percorrer a Pista, Pan!

‑ Não admira! Os tempos estão maus!

‑ Queridos rapazes! ‑ gemeu o velho, comovido. ‑ Tudo aquilo em menos de dois minutos! Não devemos dizer nada à Reddie, ouviste? Nunca mais esquecerei o olhar de Deuce, e as suas palavras: «Velho guia, nós pagamos!». Eu sei, e Deus também, que ele pagou, que todos eles pagaram! Oh, que pena, que pena!

Pensar que a causa da tragédia foi precisamente a sua valentia, o seu espírito ousado, que os torna quase imortais na Pista!

Dodge, porém, parecia não ligar importância a mais duas ou três mortes. Eram quatro horas da tarde e o barulho daquela metrópole do gado assemelhava‑se ao zumbido de um enxame de abelhas.

Havia cavalos selados ao longo dos carris, carros cobertos de lona e veículos de todos os tipos característicos do Oeste, e uma multidão incansável andava de cá para lá, de ambos os lados da linha. Por todo o lado ressoava o tilintar de esporas e o bater de tacões, os salões abarrotavam e, à porta das casas de jogo, viam‑se homens de grandes chapéus pretos, faces pálidas e lábios apertados. Mulheres e raparigas pintadas, de faces macilentas e olhos de ave de rapina, esperavam que se lhes dirigissem, numa exuberância de trajos coloridos e decotados. Passavam vaqueiros, aos grupos, jovens, vivos, violentos e alegres, às centenas, e cada um deles fazia aumentar a dor de Brite. Eram a taxa da Pista e de Dodge, o tributo que, talvez, fosse necessário para a edificação de um império e para a tragédia do progresso, mas que era odioso ao velho rancheiro. Não, ele não voltaria a arrastar para a morte nenhum jovem!

Embrenhado nas suas divagações nem reparara que Pan Handle caminhava do lado de dentro do passeio e falava pouco. Quando deu por isso, sentiu crescer em si asco e frieza pelos pistoleiros que, como aquele, andavam sempre alerta, farejando violências, sedentos de sangue e fogo.

Sem saber porquê, Brite fitava os olhos de quem passava. Viam‑se tantos olhos azuis e cinzentos, atentos e serenos! Passavam índios, erectos, de olhar sombrio e ar distante, mas já prostituídos pelos vícios dos brancos. Naquele ponto da rua já não se viam rameiras, mas apenas velhos e novos que lidavam com gado, que trabalhavam. Os parasitas haviam ficado para trás, nas tabernas, nos salões de baile e nos antros de jogo.

Quando estavam perto dos estabelecimentos de Beauty e Kelly, Brite reparou num homem vestido de escuro, que saía do barbeiro, ao mesmo tempo que Pan Handle gritava:

‑ Salte!

Brite obedeceu, sem desfitar o rosto macilento, os olhos duros e o corpo curvado do homem... Ross Hite, era Ross Hite, de revólver em punho!

O velho fugiu do passeio, no instante em que soavam dois tiros, quase simultâneos, e uma bala se amachucava no chão, a pouca distância. Olhou para a frente e viu Pan Handle, muito direito, tendo na mão a arma ainda fumegante, e Ross Hite estendido no chão, à porta da barbearia.

Bater de pés, gritos excitados, uma gargalhada... Depois Pan Handle baixou‑se um pouco, desviou os olhos do adversário, guardou a arma e juntou‑se a Brite.

Quando chegaram à estação, Brite ofegava, de excitação

e pressa.

‑ Estamos fartos de esperá‑lo, patrão! ‑ gritou Texas, de dentro de uma grande carruagem. ‑ Não era preciso vir a correr, dessa maneira; eu não deixaria partir esta caranguejola, enquanto você não chegasse!

‑ Oh, papá, já estava com medo! ‑ exclamou Reddie,

muito corada.

‑ Olha o Pan! ‑ gritou Texas, contente. ‑ Foste gentil, vindo dizer‑nos adeus, homem!

Pan Handle acendeu um cigarro, com mão firme, e olhou para Reddie, sorridente:

‑ Tinha de vir desejar‑lhes toda a ventura e felicidades possíveis neste velho e duro Oeste.

‑ Obrigada, Pan! Eu desejava...

‑ É entrar, vamos partir! ‑ gritou o condutor. Brite atirou com a mala para dentro da carruagem e tropeçou, ao entrar, mas a mão forte do pistoleiro amparou‑o, e Pan entrou, também, já o comboio começava a andar.

‑ Então Pan, e a bagagem? ‑ perguntou Texas, semi‑cerrando os olhos.

‑ Toda a minha bagagem está aqui, no quadril ‑ respondeu o outro, olhando‑o intencionalmente.

‑ Estou satisfeitíssimo por vires connosco!

‑ O pai não se esqueceu de dizer adeus por mim aos rapazes, principalmente ao Deuce, que não voltará ao Texas?

‑ Não, Reddie, não me esqueci!

‑ Oxalá a Ann saiba convencê‑lo a não voltar à Pista! ‑ concluiu a jovem. ‑ Gostaria bem de lhe ensinar como é fácil consegui‑lo!

 

                                                                                            Zane Grey  

 

                      

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