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O HOMEM BICENTENÁRIO / Isaac Azimov
O HOMEM BICENTENÁRIO / Isaac Azimov

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O HOMEM BICENTENÁRIO

 

Ano após ano, a partir do momento em que "Círculo Vicioso" serviu de pretexto para enunciar as três leis que garantem que os robôs sempre serão servos seguros e obedientes do homem, a imaginação de Asimov vem especulando cada vez mais com a possibilidade da inteligência artificial. A pesquisa nesse terreno progrediu de maneira tão vertiginosa que muitas vezes chega a ultrapassar tudo, o que a ficção científica já se mostrou capaz de conceber Asimov tem acompanhado esses desdobramentos e, durante o final dos anos 60 e a década seguinte, escreveu meia dúzia de novas histórias sobre robôs. Os seus autômatos, agora, passaram a ser bem mais sofisticados que os dos primeiros contos que abordaram o tema. Demonstram emoção, intuição e capacidade para emitir julgamentos. Por fim, um robô chamado Andrew deu o passo definitivo no processo evolutivo dos autômatos. A trajetória dele está traçada em "O Homem Bicentenário ".

Asimov considera esta novela a melhor história de robô que ele escreveu até hoje e "comparável aos meus maiores êxitos em qualquer outro gênero literário". Os críticos também concordam com essa opinião. Destinada afigurar numa antologia que seria publicada em 1976 para festejar o segundo centenário da independência dos Esta- dos Unidos, Asimov partiu do título para, aos poucos, criar os pormenores da trama. Estava combinado que não teria mais de 7.500 palavras, mas o autor se deixou empolgar e acabou tendo o dobro. O projeto da antologia gorou, mas os entusiastas da ficção científica têm uma divida de gratidão com o editor anônimo que patrocinou a idéia. Sem ele, "O Homem Bicentenário "talvez nunca tivesse sido escrito, pelo menos não em forma de conto. Asimov afirma que, se soubesse que a antologia não sairia, e que nesse caso deixava de haver problema de espaço, a tentação de transformar a história em romance seria irresistível. Só nos resta fazer especulações em tomo da hipótese de que uma versão mais longa e minuciosa aumentaria o mérito do resultado final. Do jeito que está, a história é muito complexa e rica de significados. Para nós, o que há de mais interessante é a pergunta que o robô Andrews obriga os tribunais de justiça a enfrentar: qual é, afinal, a verdadeira diferença que existe entre um autômato extremamente inteligente e um homem? Várias respostas já foram dada em outros contos, Em "O Homem Bicentenário" Asimov propõe uma inédita. Será que o homem tem responsabilidade ética perante essa nova forma de inteligência que ele está aperfeiçoando? Os fabricantes dos robôs industriais de hoje em dia nem precisam formular essa pergunta, uma vez que os autômatos que  fabricam meros braços mecânicos orientados por um programa de computador não passam aparentemente de máquinas um tanto requintadas e flexíveis. Mas, segundo indica, com o correr do tempo será inevitável encontrar uma resposta para essa pergunta. As três leis da robótica, protegendo os seres humanos da possibilidade de destruição por robôs, irão precisar de uma versão análoga que proteja os robôs da ação destruidora dos seres humanos.

Outra questão analisada em "O Homem Bicentenário " é a relação entre o mundo orgânico e o mineral. Há realmente alguma possibilidade de se traçar limites entre os seres animados e inanimados, entre o que existe e o inexistente? A extrema inteligência, qualidade prezada pelas criaturas humanas como responsável por toma-las pertencentes a uma categoria superior, terá a mesmo valor como parte intrínseca de um ser inorgânico?

 

AS TRÊS LEIS DA ROBÓTICA

1. Um robô não pode prejudicar um ser humano ou, por omissão, permitir que o ser humano sofra dano.

2. Um robô tem de obedecer às ordens recebidas dos seres humanos, a menos que contradigam a Primeira Lei.

3. Um robô tem de proteger sua própria existência, desde que essa proteção não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis.

 

Andrew Martin disse "obrigado" e ocupou a cadeira que lhe foi indicada. Não parecia estar lançando mão do último recurso, mas estava.

Não, parecia, aliás, coisa alguma, pois não havia nenhuma expressão em sua fisionomia, a não ser a tristeza que se imaginava vislumbrar no olhar. O cabelo era liso, castanho-claro, meio ralo; não usava barba. Dava impressão de que acabara de fazê-la, irradiando limpeza. Trajava-se de maneira conservadora, com roupas bem  feitas, onde predominavam cores roxas em tecido de veludo.

Diante dele, do outro lado da escrivaninha, via-se o cirurgião. A placa em cima da mesa incluía uma série de letras e números de identificação completa que Andrew nem se preocupou em examinar. Bastava chamá-lo de "doutor" e pronto. - Quando poderá ser feita a operação, doutor? - perguntou. Em voz baixa, no imperturbável tom de respeito que os robôs sempre usavam com as criaturas humanas, o médico respondeu: - Creio que não estou entendendo. A que operação o senhor se refere e quem seria submetido a ela? Poderia ter demonstrado certo ar de intransigência respeitosa, se um robô dessa espécie, de aço inoxidável meio bronzeado, fosse capaz de demonstrar qualquer tipo de expressão. Andrew Martin observou atentamente a mão direita do médico, acostumada a empunhar o bisturi, pousada sobre a escrivaninha. Os dedos longos eram modelados com articulações metálicas em curvas artísticas tão elegantes e apropriadas que se tomava fácil visualizar os instrumentos cirúrgicos com que deviam, temporariamente, se confundir. O seu trabalho não admitia hesitações, nem tropeços, tremores ou erros. Essa confiança em si mesmo, naturalmente, provinha da especialização, uma aspiração tão ardentemente desejada pela humanidade que raros robôs continuavam dotados de cérebros autônomos. Como esse cirurgião, por exemplo. Só que possuía uma capacidade de inteligência tão limitada que nem reconheceu Andrew e, provavelmente, jamais ouvira falar nele.

- Nunca pensou que gostaria de ser homem? - perguntou Andrew.

O médico vacilou um pouco, como se a pergunta não se enquadrasse em nenhuma das trilhas positrônicas que lhe tinham sido predeterminadas.

- Mas, meu senhor, eu sou robô. - Não preferiria ser homem?

- Gostaria era de ser melhor cirurgião. O que não seria possível, se fosse homem, mas apenas se pudesse ser um robô mais aperfeiçoado. Gostaria de ser um robô mais aperfeiçoado.

- Não se ofende com o fato de que posso lhe dar ordens? Obrigá-lo a levantar-se, sentar, andar para cá e para lá, apenas pedindo para que faça isso?

- Tenho o maior prazer em agradar ao senhor. Se as suas ordens interferissem no meu comporta- mento em relação ao senhor ou a qualquer outro ser humano, eu não lhe obedeceria. A Primeira Lei, relativa aos meus deveres com a segurança humana, teria prioridade sobre a Segunda, que se refere à obediência. Quanto ao mais, tenho o maior prazer em ser obediente. Agora, em quem devo efetuar a operação?

- Em mim mesmo - respondeu Andrew. - Mas isso é impossível. Trata-se, evidentemente, de uma operação prejudicial.

Não interessa - afirmou Andrew calmamente

- Eu não posso causar danos - retrucou o cirurgião.

- Para uma criatura humana, claro que não pode - disse Andrew -, mas eu também sou robô.

 

Logo que foi fabricado, Andrew se parecia muito mais com um robô. Não dava para diferenciá-lo de qualquer outro - o aspecto era funcional e de ótimo acabamento.

Tinha se saído muito bem na casa para onde o levaram, na época em que os autômatos domésticos, ou espalhados pelo planeta inteiro, consistiam verdadeiras raridades. À família se compunha de quatro pessoas: o patrão, a patroa, a filha e a filhinha. Sabia todos os nomes, lógico, mas nunca os usava. O patrão se chamava Gerald Martin.

O número de fábrica de Andrew era NDR... Com o tempo, esqueceu os algarismos da série. Já fazia muitos anos, evidentemente; mas, se quisesse lembrar, com certeza não teria esquecido. Pre- feria que fosse assim.

Como "Filhinha' não sabia ler, começou a chamá-lo de Andrew, e o resto da família passou a adotar o mesmo costume.

"Filhinha'... chegou a completar noventa anos e já fazia muito tempo que tinha morrido. Uma vez, tentei Chamá-la de, patroa, mas ela, não permitiu. Continuou sendo "Filhinha" até o último dia. Andrew estava destinado a desempenhar as funções de criado, mordomo e até de camareira. Foi uma época de experiências para ele e, na verdade, para todos os robôs de tudo quanto era parte, salvo na indústria, nas fábricas de pesquisa e nas estações espaciais, distantes da Terra.

Os Martins se afeiçoaram a ele; passava a metade do tempo sem conseguir se desincumbir de suas tarefas porque a filha e a filhinha só queriam saber de brincar com ele. Filhinha foi a primeira a descobrir a maneira de conciliar as duas coisas.

- Nós vamos te dar ordens para brincar conosco e você vai ter de obedecer.

- Sinto muito, Filhinha, mas as ordens que recebo do patrão têm de ter prioridade.

Ela não se conformou. - Papai só disse que esperava que você fizesse a limpeza. Isso nem parece uma ordem. Ao passo que eu estou mandando.

O patrão não se importava. Gostava imensamente das duas filhas; mais, até que a patroa; e Andrew também era louco por elas. Pelo menos, o efeito que ambas causavam sobre as ações dele se assemelhava ao que num ser humano seria chama- do de afeição. Andrew considerava aquilo como afeição, pois não conhecia outra palavra aplicável.

Foi para Filhinha que Andrew talhou um berloque de madeira. Por ordem dela, claro. A irmã mais velha, pelo visto, havia ganho de aniversário um camafeu de marfim em feitio de arabesco e a caçula ficou muito triste com isso. Tinha apenas um pedaço de madeira, que entregou a Andrew junto com uma faquinha de cozinha.

Ele executou a ordem depressa e Filhinha comentou:

- Que lindo, Andrew. Vou mostrar pro papai. O patrão não quis acreditar.

- Conta a verdade, Mandy. Onde você conseguiu isso?

Mandy era o nome de Filhinha. Quando ela garantiu que estava dizendo a pura verdade, o pai se virou para Andrew.

- Foi você quem fez, Andrew? - Foi, sim senhor.

- O desenho também? - Sim, patrão.

- De onde você copiou?

- É uma figura geométrica que combina com a fibra de madeira, patrão.

No dia seguinte, o pai trouxe outro pedaço de madeira - bem maior - e uma faca elétrica.

- Vê o que dá pra fazer com isto aqui, Andrew. Escolha o que você quiser - disse.

Andrew ficou trabalhando enquanto o patrão observava, e depois se pôs a contemplar, durante muito tempo, o resultado final. A partir daí, o robô não serviu mais à mesa. Recebeu, em vez disso, ordens para ler livros sobre projetos de mobília e aprendeu a fazer armários e escrivaninhas..

- Que trabalhos admiráveis, Andrew - começou a dizer o patrão.

'- É porque eu gosto muito de ficar fazendo isto - confessou Andrew.

- "Gosta"? - Assim os circuitos do meu cérebro, não sei por quê, funcionam com mais facilidade. Já ouvi muitas vezes o senhor dizer "gosto", e a maneira como tem usado essa palavra coincide com o meu modo de sentir. Gosto muito de ficar fazendo isto, patrão.

 

Gerald Martin levou Andrew ao escritório local da United States Robots & Mechanical Men Corporation. Como membro integrante da Legislatura Regional, não encontrou o menor problema para marcar entrevista com o chefe do departamento de psicologia robótica. Aliás, só por participar do conselho regional de legislatura é que tinha direito de ser proprietário de robôs - no inicio, na época em que eram raros.

Na ocasião, Andrew não soube de nada. Mas depois, à medida que foi adquirindo conhecimentos, pôde recapitular aquelas antigas circunstâncias e compreender, de fato, o que tinha acontecido.

O psicólogo de robótica, Merton Mansky, escutou carrancudo, e por mais de uma vez conseguiu controlar os dedos no momento exato em que já iam começar, irrevogavelmente, a tamborilar na mesa. Possuía traços marcados e testa enrugada, mas era bem possível que fosse mais moço do que aparentava.

- A robótica não é uma ciência exata, Mr. Martin - explicou. - Seria inoportuno entrar agora em minúcias, mas os cálculos necessários à orientação do comportamento positrônico são complica- dos demais para permitir quaisquer soluções que não sejam apenas aproximativas. É lógico que, uma vez que tudo o que fazemos gira em tomo das Três Leis, elas são incontestáveis. A nossa empresa, natural- mente, vai se encarregar da substituição do seu robô...

- De jeito nenhum - protestou o patrão. - Não se trata de uma questão de defeito no funcionamento. Ele se desincumbe de todas as tarefas corri perfeição. O importante é que também az entalhes de madeira de modo requintado, sem nunca repetir o mesmo modelo. Produz verdadeiras obras de arte.

Mansky parecia confuso.

- Que estranho! Claro que estamos atualmente tentando comportamentos generalizados. O senhor acha que o trabalho dele é realmente criativo?

- Veja com seus próprios olhos. O patrão entregou-lhe uma bolinha de madeira onde havia uma cena de pátio de recreio em que as crianças eram quase pequenas demais para se enxergar e no entanto tinham proporções per- feitas e se harmonizavam de modo tão natural com a fibra que até ela parecia também entalhada.

Mansky se mostrou incrédulo.

- Foi ele que fez isso? - Devolveu o trabalho sacudindo a cabeça. - Pura sorte na distribuição. Qualquer coisa no comportamento'

- Acha possível que se repita?

- Provavelmente não, Nunca ninguém nos comunicou algo semelhante.

- ótimo! Não me importo nem um pouco que Andrew seja o único.

- Desconfio que a empresa gostaria de receber de volta o seu robô para estudos - disse Mansky.

- - Nem pensar! - retrucou o patrão, com súbita firmeza. - Esqueça. - Virou-se para Andrew. - Vamos pra casa.

- O senhor é quem manda - disse Andrew.

 

A irmã mais velha já tinha namorados e não passava muito tempo em casa. Quem enchia as horas de Andrew agora era Filhinha, bastante mais crescida. Ela nunca esqueceu que a primeira peça entalhada do autômato havia sido feita a pedido dela. Usava-a sempre pendurada a uma correntinha de prata no pescoço.

Foi também a primeira a protestar contra o hábito do pai de dar de presente as obras de Andrew.

- Ora, papai, quem quiser que compre. Valem a pena.

- Você não costumava ser tão sovina, Mandy. - Não é por nós, papai. É pelo artista.

Eis aí uma palavra que Andrew jamais tinha ouvido e, quando encontrou um momento de folga, foi olhar no dicionário.

Depois houve outra visita, dessa vez ao advogado do patrão.

- O que é que você acha disto aqui, John? - perguntou Mr. Martin.

O advogado se chamava John Feingold. Grisalho e barrigudo, usava lentes de contato verdes. Examinou a plaqueta que o patrão lhe entregou.

- Muito bonita. Mas já estou sabendo. Não se trata de um entalhe feito pelo seu robô? Este aí que veio junto com você?

- É do Andrew, sim. Não é, Andrew?

- Sim, patrão - respondeu o autômato.

- Quanto você pagaria por uma coisa destas, John? - perguntou Mr. Martin.

- Não sei. Não sou nenhum colecionador.

- Você acredita que me ofereceram duzentos e cinqüenta dólares por esta miniatura? Andrew já fez cadeiras que foram vendidas a quinhentos cada uma. Lá no banco tem duzentos mil dólares provenientes de produtos dele.

- Deus do céu, você vai acabar ficando rico, Gerald

- Vou, mas não tanto - explicou o patrão. – Metade é depositada numa conta em nome de Andrew

- Do robô? - Exatamente, o eu quero saber se não há nenhum impedimento legal.

- Legal?... - A cadeira estalou quando Feingold se recostou nela. - Não há nenhum precedente, Gerald. Como foi que o robô assinou os papéis necessários?

- Ele sabe assinar o próprio nome, então eu levei a assinatura para o banco. Mas ele não foi junto comigo. O que eu quero saber é se a gente precisa tomar outras providências.

- Hum. - Os olhos de Feingold ficaram meio pensativos. Depois disse: - Bom, pode-se abrir um fundo para tratar de todos os problemas financeiros em nome dele, colocando assim um muro de isolamento entre ele e a hostilidade do mundo. Fora isso, o meu conselho é que você não faça nada. Ninguém apareceu até agora para criar obstáculos. Se alguém quiser processar, você deixe que tomem a iniciativa.

- E, se houver processo, você aceita a ação?  - Em troca de um adiantamento, claro que sim. - De quanto?

Isso aí já basta - respondeu Feingold, indicando a plaqueta de madeira.

- Me parece razoável - disse o patrão. Feingold riu ao se virar para o robô.

- Então, Andrew, está contente de ter dinheiro?

- Estou, sim senhor.

- O que é que pretende fazer com ele?

- Comprar muitas coisas, doutor, que do contrário o patrão teria de comprar para mim. As- sim ele não precisa gastar tanto, doutor.

 

As oportunidades para gastar não tardaram. Os consertos custavam muito caros e as revisões ainda mais. Com o tempo, fabricaram-se novos tipos de autômatos e o patrão fez questão de que Andrew contasse com todos os aperfeiçoamentos, até se tomar um modelo de perfeição metálica. Por exigência de Andrew, tudo foi pago com o dinheiro depositado na sua conta bancária.

Só o comportamento positrônico permaneceu inalterado. Quanto a isso, quem insistiu foi o patrão.

- Os novos modelos não são tão bons quanto você, Andrew - afirmou. - Esses novos robôs não valem nada, A firma aprendeu, a determinar comportamentos mais exatos, mais próximos da finalidade, mais bitolados do que nunca. Os robôs agora não saem da linha. Se limitam a fazer o trabalho para que foram destinados e jamais desobedecem a uma ordem. Prefiro do jeito que você é.

- Muito obrigado, patrão. - E não se esqueça, Andrew, de que o mérito é exclusivamente seu. Tenho certeza de que Mansky acabou com o comportamento generalizado assim que olhou bem para você. Ele não gostou da possibilidade de surpresas imprevistas. Sabe quantas vezes me pediu pra devolver você pra que pudesse te colocar em estudo? Nove! Mas eu nunca consenti; e, agora que ele já se aposentou, a gente pode ter um pouco de paz.

E assim o cabelo do patrão foi ficando cada vez mais ralo e grisalho, com o rosto cheio de pregas, enquanto Andrew cada dia parecia melhor do que era quando ingressou pela primeira vez na família. A patroa se associou a uma colônia de artes plásticas qualquer da Europa e a filha mais velha escrevia poemas em Nova York. Volta e meia mandavam cartas, mas não com muita freqüência. Filhinha casou e foi morar na vizinhança. Disse que não queria se separar de Andrew. Quando o filho primogênito nasceu, deixou que o robô segurasse a mamadeira e desse de comer para ele.

Com a vinda do neto, Andrew achou que o patrão finalmente tinha alguém para ocupar o lugar dos que haviam ido embora. Portanto, agora não seria mais injusto fazer-lhe um pedido.

- Patrão, o senhor foi muito bondoso em permitir que eu gastasse o meu dinheiro à vontade.

- O dinheiro era teu, Andrew.

- Só por deliberação sua, patrão. Se o senhor quisesse ficar com tudo, não creio que a lei pudesse impedir.

- A lei não pode me obrigar a agir mal, Andrew.

- Com tudo o que gastei, e já descontando os impostos, patrão, ainda restam quase seiscentos mil dólares.

- Eu sei, Andrew.

- Quero que o senhor fique com tudo, patrão. - Não posso aceitar, Andrew.

- Só peço uma coisa em troca, patrão. - Ah, é? O quê, Andrew?

A minha alforria, patrão.

- A tua...

- Quero comprar minha liberdade, patrão.

 

Não foi tão simples assim. O patrão tinha avermelhado, exclamando- "Ora, já se viu. De-

pois virou as costas e saiu fazendo barulho com os pés.

Quem se encarregou de dobrá-lo, de forma desafiadora e enérgica, foi Filhinha - e na presença de Andrew. Durante trinta anos ninguém jamais hesitara em falar diante dele, mesmo quando o assunto lhe dizia respeito. Não passava de um robô.

- Papai, por que é que você está encarando isso como uma afronta pessoal? Ele não pretende ir embora daqui. Vai continuar sendo leal. É uma coisa que ele não pode evitar, está arraigada nele. A única exigência dele é que seja posta por escrito. Ele quer ser chamado de livre. O que é que isso tem de tão terrível assim? Será que ele não merece essa oportunidade? Santo Deus, há anos que ele e eu vivemos falando nisso!

- Com que então há anos que vocês dois vi- vem falando nisso, é?

- É sim, e ele sempre adiava a ocasião, só de medo de magoar você. Fui eu que abriguei o Andrew a tocar nesse assunto.

- Ele nem sabe o que é liberdade. Não passa de um robô.

- Papai, você não conhece o Andrew. Ele já leu tudo quanto é livro que tem na biblioteca. Não sei o que ele sente por dentro, mas, lá por isso, também não sei o que você sente aí no seu íntimo. Quando a gente fala com ele, o que se percebe é que ele reage da mesma maneira que nós em relação a conceitos abstratos, que é o que de fato interessa. Se alguém demonstra reações idênticas às nossas, que mais se pode exigir?

- É, mas a lei não vai adotar essa atitude - retrucou o patrão contrariado. - Olha, aqui! - Virou-se para Andrew com a voz propositadamente irritada. - Eu só posso te dar alforria por meios legais. Se a questão for parar nos tribunais, é bem

provável que você, além de não obter a liberdade, ainda por cima tenha de revelar oficialmente a existência do dinheiro que juntou. E aí eles vão dizer que você por ser autônomo não tem nenhum direito de receber pagamento pelo trabalho que faz. Acha que vale a pena se meter numa trapalhada dessas?

- A liberdade não tem preço, patrão - afirmou Andrew. - Só a mera possibilidade de obtê-la já vale a pena.

O tribunal, pelo jeito, também estava disposto a concordar que a liberdade não tem preço, mas' justamente por esse motivo, por maior que fosse a quantia que Andrew se prontificasse a pagar, achava que sempre seria insuficiente para comprar a alforria de um robô.

O promotor regional, que representava os interesses da classe que se opunha à concessão dessa liberdade, se limitou a declarar: "A palavra 'liberdade' perde todo sentido quando aplicada a autômato. Só os seres humanos podem ser livres". Repetiu isso várias vezes sempre que lhe pareceu oportuno, de maneira compassada, fazendo questão de bater com a mão em cima da mesa para frisar o que dizia.

Filhinha pediu para falar por Andrew. Foi identificada pelo nome completo, até então desconhecido de Andrew:

- Amanda Laura Martin Chamey, queira se aproximar para prestar depoimento.

- Obrigada, Meritíssimo. Não sou advogada e não sei a maneira adequada de me expressar juridicamente, mas espero que o senhor se concentre mais no significado do que nas palavras.

"Vamos ver se dá para entender o que representa ser livre no caso de Andrew. Sob certos aspectos, livre é uma coisa que ele já é. Eu acho que há vinte anos, no mínimo, que ninguém da nossa família tem de lhe dar uma ordem para fazer algo que ele não seria capaz de fazer espontaneamente. Mas nós poderíamos, se quiséssemos, passar o tempo todo lhe dando ordens, do modo mais imperioso possível, porque ele é uma máquina que nos pertence. Mas para quê, uma vez que vem nos servindo há tanto tempo, de modo tão fiei e rendoso para nós? O Andrew não nos deve mais nada. O lado do débito cabe inteiramente à família Martin.

"Mesmo que estivéssemos proibidos por lei de colocar o Andrew na posição de escravo involuntário, ele continuaria a nos servir, espontaneamente. Dar-lhe a liberdade, portanto, não passa de um mero artifício de palavras, mas que para ele significaria muitíssimo. Teria tudo o que quer, sem custar nada para nós."

O juiz, por um instante, pareceu disfarçar um sorriso.

- Compreendo o que a senhora quer dizer, Mrs. Chamey. A questão é que não existe nenhuma lei coercitiva a esse respeito e nenhum prece- dente. Existe, porém, o tácito pressuposto de que a liberdade só pode ser desfrutada pelo homem. Eu tenho condições de estabelecer jurisdição nova sobre esse ponto sujeita a ser revogada por tribunal superior. Mas não posso me opor levianamente a esse pressuposto. Permita-me falar com o robô, Andrew!

- Pois não, Meritíssimo. Era a primeira vez que Andrew abria a boca para falar no tribunal. O juiz pareceu momentânea- mente espantado com o timbre da voz.

- Por que você quer ser livre, Andrew? Em que sentido isso pode lhe interessar?

- O senhor gostaria de ser escravo, Meritíssimo? - replicou o autômato.

- Mas você não é escravo. É um robô absolutamente perfeito. Genial, inclusive. Ao que me consta, capaz de se exprimir de uma forma artística simplesmente incomparável. Que mais poderia fazer, se fosse livre?

- Talvez nada mais do que já faço, Meritíssimo, mas com maior alegria. Afirmaram aqui mesmo, neste tribunal, que só o ser humano pode ser livre. A mim me parece que só alguém que quisesse a liberdade deveria ser livre. E eu quero.

Foi essa declaração que convenceu o juiz. O ponto crucial da sentença determinou que "ninguém tem o direito de recusar liberdade a qualquer criatura de inteligência suficientemente desenvolvida a ponto de compreender o conceito e desejar essa condição".

Decisão que foi, eventualmente, homologa- da pelo Tribunal Mundial.

 

O patrão, entretanto, continuou descontente e Andrew tinha a sensação de estar recebendo curto-circuito ao ouvir-lhe a voz áspera.

- Não quero essa droga do teu dinheiro, Andrew. Só aceito porque senão você não vai se sentir livre. Daqui pra frente pode escolher suas próprias funções e fazer o que bem entender. Não lhe darei nenhuma ordem, a não ser a seguinte: faça como quiser. Mas ainda sou responsável por você.. Isso foi determinado pelo tribunal. Espero que entenda.

- Não seja ranzinza, papai - interrompeu Filhinha. - A responsabilidade não é tão grande assim. Você sabe que não terá de fazer coisíssima alguma. As Três Leis continuam vigorando.

- Então, como é que ele pode ser livre? - E os seres humanos, patrão, também não estão sujeitos a leis? - retrucou Andrew.

Não vou discutir.

O patrão saiu da sala, e depois disso Andrew teve pouquíssimas ocasiões de vê-lo.

Filhinha vinha visitá-lo freqüentemente na pequena casa que mandou construir e arrumar para ele. Não havia cozinha, lógico, nem instalações sanitárias. Dispunha apenas de duas peças - a biblioteca e uma combinação de depósito com oficina de trabalho. Andrew passou a aceitar muitas encomendas e a trabalhar com mais afinco do que nunca, até pagar todas as prestações e assinar a escritura da casa.

Um dia o "patrãozinho" - não, George! - apareceu. A mudança de tratamento ocorreu de- pois da decisão do tribunal.

- Nenhum robô alforriado chama alguém de patrãozinho - disse. - Se eu te chamo de Andrew, você tem de me chamar de George.

Isso foi dito em tom de ordem, de modo que Andrew passou a chamá-lo de George - mas a mãe continuou sendo Filhinha.

Noutra ocasião, quando George apareceu sozinho, foi para avisar que o avô estava morrendo. Filhinha já se encontrava ao lado do agonizante, mas ele pedia também a presença de Andrew.

O patrão, apesar de incapaz de fazer movimentos, continuava com a voz bem forte. Esforçou-se para erguer a mão.

- Andrew - disse -, Andrew... Não preciso de ajuda, George. Estou apenas morrendo; não sou nenhum aleijado. Andrew, que bom que você está livre. 56 queria te dizer isso.

Andrew ficou sem saber o que responder. Nunca havia estado diante de nenhum agonizante, mas sabia que era assim que as criaturas humanas paravam de funcionar. Uma destruição involuntária, irreversível, e Andrew ignorava as palavras que se- riam apropriadas. Se resignou a permanecer de pé, em silêncio e absolutamente imóvel.

Quando tudo terminou, Filhinha se virou para ele.

- Talvez ele não tenha se mostrado amável com você perto do fim, Andrew, mas já estava velho, compreende? E ficou muito magoado quando soube que você queria ficar livre.

Então Andrew encontrou as palavras. - Eu nunca teria ficado livre se não fosse ele, Filhinha.

 

Foi só depois da morte do patrão que Andrew começou a usar roupas. Primeiro um par de calças velhas, que George lhe tinha dado.

George já estava casado e era advogado. Entrou para a firma de Feingold. Fazia muito tempo que o velho Feingold havia morrido mas a filha prosseguira com a banca. Com o tempo, o no- me mudou para Feingold & Martin. E assim continuou, mesmo quando a filha se aposentou e não foi substituída por nenhum outro membro da família. Na época em que Andrew começou a an- dar vestido, o nome de Martin acabava de ser acrescentado à firma.

George procurou não sorrir diante da primeira tentativa de Andrew para vestir as calças, mas o olhar do robô percebeu claramente o esforço que o amigo teve de fazer para disfarçar. George mostrou-lhe como controlar a carga estática para abrir a braguilha e enfiar a calça pelas pemas, mas Andrew logo se deu conta de que iria levar um bocado de tempo para aprender a fazer tudo aquilo de uma vez só.

- Mas por que é que você quer andar de calças, Andrew? O teu corpo é tão bem-feito e funcional que até dá pena cobri-lo, ainda mais que não precisa se preocupar com o controle de temperatura nem com pudores. E a fazenda não cai bem numa estrutura metálica.

Andrew não desistiu. - E os corpos humanos, George? Também não são bem-feitos e funcionais? No entanto vocês andam vestidos.

- Por causa do frio, da limpeza, da proteção, do efeito visual. Nada disso se aplica a você.

- Mas a sensação que eu tenho, se não usar roupas, é a de que estou nu. Eu me sinto diferente, George - explicou Andrew.

- Diferente! Andrew, já existem milhões de robôs na Terra. Só nesta região, segundo o último recenseamento, há quase tantos robôs quanto homens.

- Eu sei, George. Tem robô fazendo tudo quanto é tipo de trabalho que se possa imaginar.

- E, nenhum deles anda vestido. - Mas nenhum deles é livre, George. Aos poucos, Andrew foi aumentando o guarda-roupa, Ficava inibido com o sorriso de George e com o olhar espantado das pessoas que lhe faziam encomendas.

Podia ser livre, mas no fundo tinha um pro- grama muito minucioso em relação ao seu comportamento com as pessoas humanas e só ousava avançar com passos bem tímidos; retrocedia meses quando encontrava franca desaprovação. Nem todos aceitavam a liberdade de Andrew. Era incapaz de ficar ressentido com isso, e no entanto sentia certa dificuldade no seu processo de raciocínio quando pensava no assunto. Acima de tudo, não tinha vontade de se vestir - ou de se cobrir com exagero - quando julgava que Filhinha iria visitá-lo. Já estava bem mais velha e passava a maior parte do tempo longe dali, em lugares de clima mais ameno, mas quando voltava a primeira coisa que fazia era visitá-lo.

Numa dessas visitas, George comentou com tristeza:

- Ela me pegou pela pema, Andrew. Vou me candidatar ao congresso no ano que vem. “Tal avô, tal neto", diz ela.

- Tal avô - Andrew interrompeu a frase, indeciso.

- Quer dizer que eu, George, o neto, vou ser como meu avô, que há muitos anos chegou a ser deputado.

- Seria tão bom, George, se o patrão ainda estivesse... - parou, pois não queria dizer "funcionando"; não lhe pareceu conveniente.

- Vivo - completou George. - É, de vez em quando eu também me lembro daquele velho tirano.

Andrew pensou muitas vezes nessa conversa. Já tinha notado a sua própria insuficiência de expressão quando conversou com George. A linguagem havia, de certo modo, mudado desde que o robô começara a usar o vocabulário que lhe deram. Depois, também, George possuía um modo coloquial de se exprimir, o que já não acontecia com o patrão e Filhinha. Por que teria chamado o avô de tirano quando esse termo certamente não era apropriado? Andrew não podia sequer recorrer a seus próprios livros para esclarecer isso. Estavam velhos e a maioria só tratava de marcenaria, de arte, de projetos de mobiliário. Não havia nenhum sobre linguagem, sobre o modo de ser das criaturas humanas.

Por fim, achou que precisava procurar livros adequados; e, como robô alforriado, também achava que não devia consultar George. Iria à cidade e usaria a biblioteca. Foi uma decisão eletrizante e sentiu que o seu potencial de energia tinha ficado tão alto que se viu obrigado a colocar uma bobina de resistência extra.

Vestiu um temo completo, inclusive com dragonas de madeira. Teria preferido que fossem de plástico cintilante, mas George dissera que madeira era muito mais apropriado e que o cedro envernizado também era consideravelmente mais valioso.

Já se afastara uns bons cem metros de casa quando o aumento de resistência o forçou a parar. Modificou o circuito da bobina e, ao ver que isso não resolvia o problema, tomou a entrar para escrever em letra bem legível: "Fui à biblioteca", e deixou o bilhete bem à vista, em cima da mesa de trabalho.

 

Andrew não conseguiu chegar nem perto da biblioteca.

Tinha estudado o mapa. Sabia como precisava fazer para ir até lá, mas não conhecia o caminho. Os pontos de referência não se assemelhavam aos símbolos do mapa e começou a vacilar. Com o tempo, achou que tinha de haver alguma coisa errada, pois tudo parecia esquisito.

Volta e meia cruzava por um acampamento de robôs, mas quando se decidiu a pedir informações, não viu mais nenhum. Os veículos que passavam nunca paravam.

Andrew ficou de pé no meio da estrada, sem ânimo para nada, praticamente imóvel, quando avistou dois homens aproximando-se através do campo.

Virou-se para eles, que mudaram de rumo para vir a seu encontro. Pouco antes falavam em voz alta. Tinha escutado a voz deles. Mas agora estavam calados. Possuíam o aspecto que Andrew classificava de indefinição humana; e eram jovens, mas não em demasia. Vinte anos, talvez? Andrew nunca conseguia avaliar a idade dos homens.

- Por favor, qual é o caminho para ir à biblioteca municipal?

Um deles, o mais alto dos dois, que usava chapéu que lhe aumentava, de modo quase grotesco, ainda mais a estatura, disse, não para Andrew, mas para o outro:

- É um robô. O outro tinha nariz inchado e pálpebras caí- das. Respondeu, não para An w, mas para o companheiro:

- E anda vestido. O mais alto estalou os dedos. - É o robô alforriado. Tem um, lá na casa do velho Martin, que não é de ninguém. Por que será que anda vestido?

- Pergunta pra ele - aconselhou o do nariz inchado.

- Você é o robô dos Martins? perguntou o mais alto.

- O meu nome é Andrew Martin, senhor - respondeu Andrew.

- Ótimo. Tira essa roupa. Robô não anda vestido. - Virou-se para o outro. - Que coisa mais desagradável. Olha só pra ele!

Andrew hesitou. Fazia tanto tempo que não recebia ordens naquele tom de voz que os circuitos da Segunda Lei ficaram momentaneamente interrompidos.

- Tira essa roupa - repetiu o mais alto. - Faz o que estou te mandando.

Andrew começou a se despir devagar. Deixa cair e pronto - disse o mais alto.

Se não é de ninguém - observou o narigudo -, bem que podia ser nosso.

- Seja lá como for - continuou o mais alto quem é que vai reclamar com o que a gente fizer? Não estamos danificando a propriedade de ninguém. - Virou-se para Andrew. - Te coloca de ponta-cabeça aí no chão.

- A cabeça não é para... - começou Andrew. - Estou dando uma ordem. Se não sabe como

se faz, não custa nada tentar.

Andrew hesitou novamente, depois se curvou para apoiar a cabeça no chão. Tentou erguer as pemas, mas desabou com toda a força.

- Fica deitado aí - mandou o mais alto. Virou-se para o outro: - A gente podia desmontar esse troço. Nunca desmontou um robô?

- Será que ele deixa?

- Como é que pode impedir?

Não havia jeito de Andrew impedi-los, se a ordem fosse dada de maneira tão categórica que

ele não conseguisse resistir. A Segunda Lei de obediência tinha prioridade sobre a Terceira, de auto- defesa. Em todo caso, não podia se defender sem o risco de ferir os dois, o que implicava infringir a Primeira. Ao pensar nisso, sentiu cada unidade móvel se contrair de leve e se arrepiou todo enquanto permanecia imóvel.

O mais alto se aproximou e o empurrou com o pé,

É pesado. Acho que vamos precisar de algumas ferramentas para fazer o serviço.

- A gente podia encarregar ele mesmo de fazer isso - sugeriu o narigudo. - Ia ser engraçado ficar assistindo.

- É - concordou o mais alto, pensativo mas vamos tirá-lo daqui da estrada. Se alguém aparecer...

Tarde demais. Alguém, de fato, apareceu. Era George. De onde estava caído, Andrew viu um pequeno vulto assomando a pouca distância. Gostaria de lhe fazer um sinal qualquer, mas a última ordem que recebera tinha sido: "Fica deitado aí!"

George veio correndo e chegou meio ofegante. Os dois rapazes recuaram um pouco, à espera, para ver no que dava.

- Andrew, o que foi que aconteceu? - perguntou George, ansioso.

- Está tudo bem, George - respondeu Andrew. - Então te levanta. Que houve com a tua roupa?

- Este robô é teu, cara? - perguntou o mais alto,

George se virou bruscamente,

- Não é de ninguém. Que foi que aconteceu por aqui?

- A gente só pediu com bons modos para ele tirar a roupa. O que é que você tem com isso, se ele não te pertence?

George se virou para Andrew.

- O que é que eles estavam fazendo, Andrew? - Pretendiam, não sei como, me desmontar. Estavam prontos para me levar para um lugar tranqüilo para mandar que eu mesmo me desmontasse.

George olhou para os dois rapazes com o queixo trêmulo.

Os dois não recuaram nem um passo. Sorriam. - O que é que você pretende fazer, gorducho? - perguntou, com ar de deboche o mais alto. - Vai bater na gente?

- Não - respondeu George. - Não é preciso. Este robô já está na nossa família há setenta e cinco anos. Ele nos conhece e nos preza mais do que tudo. Eu já vou dizer a ele que vocês dois estão ameaçando minha vida e que planejam me matar. Vou pedir para me defender. Se tiver de escolher entre mim e vocês, eu saio ganhando. Sabem o que vai acontecer quando ele começar a bater em vocês?

Os dois já estavam recuando aos poucos, com cara de medo.

- Andrew - disse George com energia -, eu estou em perigo e estes dois caras querem me agredir. Avança em cima deles!

Andrew obedeceu e os dois não hesitaram. Saíram correndo.

- Está bem, Andrew, te acalma - disse George.

Parecia abatido. Já havia passado da idade em que poderia encarar a possibilidade de se atra- car com um homem mais moço, que dirá dois.

- Eu não ia poder machucar eles, George. Era evidente que não estavam agredindo você.

- Não mandei que você agredisse. Apenas pedi para avançar. O medo deles se encarregou do resto.

- Como é que podem ter medo de um robô? - É uma doença da humanidade, que até hoje

ainda não tem cura. Mas deixa pra lá. Que diabo você anda fazendo por aqui, Andrew? Ainda bem que encontrei o teu bilhete. Já estava pensando em dar meia-volta e alugar um helicóptero quando te achei. Que idéia foi essa de ir à biblioteca? Eu teria trazido tudo quanto é livro que você precisasse.

- Eu sou um... - começou Andrew. - Robô alforriado. Sim, sim. Tudo bem. Mas o que é que você pretendia fazer lá na biblioteca?

- Eu quero conhecer melhor os seres humanos, o mundo, tudo, em suma. E os robôs também, George. Estou com vontade de escrever uma história sobre eles.

George então passou o braço pelo ombro do autômato.

- Bom, vamos pra casa. Mas antes pega a tua roupa. Andrew, existe um milhão de livros sobre robótica e todos incluem histórias da ciência. O mundo inteiro já está ficando saturado, não só de robôs, mas de informações sobre eles.

Andrew sacudiu a cabeça, gesto humano que ultimamente passara a adotar.

- Mas não é uma história da robótica, George. Uma história de robôs, escrita por um robô.. Eu quero explicar como eles encaram tudo o que aconteceu desde que começaram a trabalhar e a viver na Terra.

George arqueou as sobrancelhas, mas não falou mais nada que tivesse relação direta com o assunto.

 

Filhinha acabava de completar oitenta e três anos, sem demonstrar a menor falta de energia ou determinação. Usava a bengala mais para gesticular do que para se apoiar nela.

Escutou a descrição do incidente com verdadeira fúria de indignação.

George, que horror. Quem eram esses mal-feitores?

- Sei lá. Que diferença faz? Afinal, não causaram dano nenhum.

- Mas poderiam ter causado. Você é advogado George; e, se está bem de vida, é exclusivamente graças aos talentos de Andrew. Foi o dinheiro que ele ganhou que serviu de base para tudo o que a gente tem. Ele propicia a estabilidade desta família e não permito que seja tratado feito brinque- do de dar corda.

- O que é que você quer que eu faça, mamãe? - perguntou George.

- Já disse que você é advogado. Ficou surdo? Descubra um jeito de entrar com uma ação para forçar os tribunais regionais a se manifestarem a favor dos direitos dos robôs e a obrigarem o congresso a aprovar todas as leis necessárias. Leve a história toda até o Tribunal Mundial, se for preciso. Vou ficar de olho, George, e não vou tolerar nenhuma omissão da tua parte.

Falava sério e, portanto, o que começou como simples manobra para acalmar uma temível anciã virou questão complicada, com suficientes meandros legais para tomá-la interessante. Como sócio fundador da Feingold & Martin, George traçou a estratégia. Mas deixou o trabalho propriamente dito nas mãos dos sócios mais recentes, reservando a parte principal para o filho, Paul, que também participava da firma e apresentava relatórios diários, pontualmente, à avó. Ela, por sua vez, debatia o caso todos os dias com Andrew.

Andrew se interessou ao máximo. Foi adi- ando, cada vez mais, o trabalho no livro que pretendia escrever sobre robôs, dedicando-se a estudar a fundo os argumentos legais e até, às vezes, oferecendo sugestões bem modestas.

- O George me contou, naquele dia em que fui atacado, que os homens sempre tiveram medo de robôs - comentou certa vez. - Enquanto persistir isso os tribunais e os órgãos legislativos não vão se dedicar com afinco à nossa causa. Será que não se podia fazer alguma coisa para mudar a opinião pública?

Por isso, enquanto Paul se concentrava no tribunal, George passou a ocupar as plataformas públicas. Isso lhe dava a vantagem de se mostrar à vontade, chegando inclusive ao extremo de adotar o novo estilo confortável de roupas, que apelidou de "neo-romano".

- Vê se não tropeça na toga quando estiver no palco, papai - advertiu Paul.

- Farei o possível - retrucou George, meio sem graça.

Numa ocasião discursou perante a convenção anual de editores de noticiários holográficos, dizendo, em parte:

- Se, em virtude da Segunda Lei, podemos exigir de qualquer robô uma obediência irrestrita em todos os sentidos não relacionados com prejuízos para os seres humanos, então qualquer homem, qualquer criatura humana dispõe de um poder assustador sobre qualquer robô, qualquer autômato. Especialmente, uma vez que a Segunda Lei se sobrepõe à Terceira, qualquer ser humano pode usar a lei da obediência para superar a da autodefesa. Ele pode ordenar qualquer robô a se danificar a si próprio ou até a se destruir por qualquer motivo, ou mesmo sem motivo nenhum.

"Isso é  justo? Alguém trataria um animal dessa maneira? Inclusive um objeto inanimado que nos prestou serviços tem direito à nossa consideração. E um robô não é insensível, não é bicho. Sabe raciocinar perfeitamente, a ponto de falar conosco, discutir conosco, brincar conosco. Será que podemos tratá-lo como amigo, trabalhar junto com ele, sem lhe dar em troca uma parte dos frutos dessa amizade, dos benefícios do trabalho em conjunto?

"Se o homem tem direito de dar qualquer ordem a um robô que não implique prejuízo para o ser humano, deveria também ter a decência de já- mais lhe dar qualquer ordem que acarretasse prejuízo para outro robô, a não ser que a segurança humana exija isso de modo absoluto. Todo grande poder é acompanhado de grandes responsabilidades, e se os robôs tem três Leis para proteger os homens, seria pedir muito que os homens tivessem uma ou duas leis para proteger os robôs?"

Andrew tinha razão. Foi a batalha para conquistar a opinião pública que terminou abrindo as portas dos tribunais e dos órgãos legislativos. Por fim, aprovaram uma lei que estipulava condições para a proibição de ordens prejudiciais a robôs. Havia inúmeras exceções e as, penas relativas às infrações eram completamente inadequadas, mas o princípio ficou estabelecido. A homologação final da Legislatura Mundial ocorreu no dia da mor- te de Filhinha.

Não por coincidência. Durante os últimos debates, Filhinha se agarrou desesperadamente à vida e só se entregou ao inevitável quando recebeu a notícia da vitória. Seu último sorriso foi para Andrew.

- Você foi muito bom para nós, Andrew - foram as suas últimas palavras.

Morreu segurando a mão dele, enquanto o filho e a nora, em companhia dos netos, se mantinham a uma distância respeitosa dos dois.

 

Andrew esperou pacientemente que o robô- recepcionista desaparecesse na sala intima. O funcionário poderia ter usado o interfone e holográfico, mas estava indubitavelmente perturbado por ter de lidar com outro robô, em vez de uma criatura humana.

Andrew aproveitou para pensar um pouco no assunto: será que dá para se usar "desrobotizado" como analogia de "desvirilizado" ou essa última palavra se tomou um termo metafórico suficientemente desligado do seu sentido literal para ser aplicado aos robôs - ou às mulheres, no mesmo caso? Esse tipo de problema lhe surgia freqüentemente quando trabalhava no livro sobre robôs. A necessidade de criar frases para dar vazão a todas as complexidades tinha, sem dúvida, aumentado o seu vocabulário.

De vez em quando alguém entrava na sala, por pura curiosidade, e ele não procurava evitar o olhar, retribuía bem calmo, até que o bisbilhoteiro terminava disfarçando e indo embora.

Paul Martin finalmente apareceu. Parecia surpreso - ou pelo menos essa seria a impressão de Andrew, se pudesse interpretar sem possibilidade de erro a expressão que ele fez. Paul resolvera adotar a maquiagem exagerada, ditada pela moda para ambos os sexos. Apesar de definir melhor e realçar os traços bastante delicados de Paul, Andrew não gostava daquilo. Tinha descoberto que criticar o comportamento das criaturas humanas, desde que não fosse de modo verbal, não o deixava constrangido. Podia até manifestar a reprovação por escrito. Estava certo de que nem sempre ha- via sido assim.

- Entra, Andrew. Desculpa te fazer esperar, mas eu estava fazendo uma coisa que precisava terminar. Entra. Você disse que queria falar comi- go, mas eu não sabia que era aqui na cidade.

- Se você estiver muito ocupado, Paul, posso continuar esperando sem o menor problema.

Paul olhou de relance para o jogo de sombras que se deslocavam no mostrador da parede, que servia para marcar a hora.

- Tenho um pouco de tempo livre - disse. - Você veio sozinho?

- Aluguei um automatomóvel. - Ninguém criou caso? - perguntou Paul, com certa ansiedade.

- Achei que não criariam. Meus direitos es- tão protegidos.

Com essa, Paul ficou ainda mais ansioso. - Andrew, eu já te expliquei que a lei é in- flexível, pelo menos na maioria dos casos     ' E, se você continuar insistindo em andar vestido, vai acabar arranjando encrenca, tal como aconteceu da primeira vez.

- Primeira e única, Paul. Lamento que você tenha ficado aborrecido.

- Bom, então não se esqueça disto: você é, praticamente, um mito ambulante, Andrew, e uma criatura preciosa demais, sob vários aspectos, para se dar ao luxo de estar se arriscando à toa por aí. Falar nisso, como vai o livro?

- Já estou quase no fim, Paul. O editor está muito contente. - ótimo! - Não quero dizer que ele esteja necessariamente satisfeito com o livro como tal. Acho que pretende vender muitos exemplares porque foi escrito por um robô e é por isso que ele está contente.

- O que é perfeitamente humano, a meu ver. - Isso não significa que eu esteja descontente. O motivo da venda pode ser qualquer um, desde que signifique dinheiro e dê para eu gastar um pouco.

- Vovó te deixou... - Filhinha foi muito generosa e tenho certeza que posso contar com a família para me ajudar ainda mais. Mas estou contando é com os direitos autorais do livro para tomar as minhas próximas providências.

- Quais são elas? Quero falar com o diretor da U.S. Robots & Mechanical Men Corporation. Já tentei marcar entrevista; mas por enquanto não consegui nada. Como a corporação não quis cooperar comigo para escrever o livro, não me admiro, compreende?

Paul começou a achar graça. - Cooperação seria a última coisa que você poderia esperar. Eles não fizeram nada quando precisamos deles para a nossa grande luta pelos direi- tos dos robôs. Muito pelo contrário, e o motivo é bem lógico. É só os robôs adquirirem direitos para que as pessoas talvez não queiram mais comprar nenhum.

- Seja lá como for - insistiu Andrew -, se você ligar para lá, é bem possível que me consiga essa entrevista.

- Não pense que eles gostam mais de mim do que de você, Andrew.

- Mas talvez você possa insinuar que falando comigo eles são capazes de suspender qualquer campanha iniciada pela Feingold & Martin para reforçar ainda mais os direitos dos robôs.

- Mas isso não seria uma mentira, Andrew? - Claro que sim, Paul, e você sabe que eu não posso pregar nenhuma. É por isso que tem de ser você que vai ligar pra lá.

Ah, quer dizer que, mesmo que você não possa pregar uma mentira, isso não impede de me mandar mentir em seu lugar, não é? Andrew, cada dia que passa você fica mais humano...

 

Mesmo com um nome como o de Paul, que se podia imaginar influente, não foi fácil marcar a entrevista. Terminou finalmente se realizando. Aí então, Harley Smythe-Robertson, que, pelo lado materno, descendia do fundador da corporação, tendo adotado o hífen para indicar isso, não se mostrou nada satisfeito com a idéia. Em vésperas de se aposentar, havia dedicado todo o seu período de presidência à questão dos direitos dos robôs. Com os ralos cabelos grisalhos colocados no crânio e o rosto sem maquiagem, volta e meia olhava para Andrew com um pouco de hostilidade.

Andrew iniciou a conversa. - O senhor sabe, há quase um século atrás, Merton Mansky, que trabalhava para esta corporação, me disse que os cálculos matemáticos que orientavam a montagem do comportamento positrônico eram complicados demais para que se pudessem determinar soluções que não fossem apenas aproximativas e que, por conseguinte, não dava para se prever o alcance completo das minhas capacidades.

- Isso foi há um século atrás. Smythe-Robertson hesitou e depois acrescentou friamente:

- Como o senhor mesmo disse. Hoje não é mais assim. Os nossos robôs agora são feitos com precisão e recebem treinamento específico para o trabalho a que se destinam.

- Sim -confirmou Paul, que tinha vindo junto, como disse, para se certificar de que a corporação faria jogo limpo -, com o resultado de que o meu recepcionista tem de ser orientado em todos os pontos quando os acontecimentos se afastam da rotina convencional, até em detalhes insignificantes.

- Você ficaria muito mais aborrecido se ele começasse a improvisar - retrucou Smythe- Robertson.

- Quer dizer então que não fabricam mais robôs que nem eu, flexíveis e maleáveis.

- Exatamente. - Segundo as pesquisas que venho fazendo para escrever o meu livro - continuou Andrew - tudo indica que sou atualmente o robô mais antigo ainda em funcionamento.

- O mais antigo atualmente - disse Smythe- Robertson -, e em todos os tempos. E que jamais há de existir. Hoje os robôs perdem a utilidade de- pois de vinte e cinco anos. São recolhidos e substituídos por novos modelos.

- Eles perdem a utilidade depois de vinte anos - frisou Paul, deixando transparecer uma ponta de sarcasmo na voz. - Nesse sentido, Andrew é literalmente fora de série.

- Na qualidade de robô mais antigo do mundo, e mais flexível também - prosseguiu Andrew, mantendo-se dentro da linha que estipulou para si mesmo -, não sou uma espécie de raridade capaz de merecer tratamento especial por parte da companhia?

- Absolutamente - protestou Smythe-Robertson, já irredutível. - O próprio fato de ser uma raridade é motivo de constrangimento para a corporação. Se tivesse sido alugado, e não simplesmente vendido, por obra do acaso, há muito tempo já teria sido substituído.

- Mas a questão é justamente essa - afirmou Andrew. - Sou um robô livre e dono de mim mesmo. Foi por isso que vim aqui, para pedir que vocês me substituam. O que não pode ser feito sem o consentimento do proprietário. Hoje isso se transformou em autorização compulsória, cláusula obrigatória do contrato de locação, mas no meu tempo não era assim.

Smythe-Robertson parecia simultaneamente espantado e intrigado e se conservou um instante

calado. Andrew contemplou o holograma pendurado na parede. Era a máscara mortuária de Susan Calvin, santa padroeira dos roboticistas. Já fazia quase dois séculos que tinha morrido, mas, em conseqüência dos preparativos do livro que estava escrevendo, Andrew a conhecia tão bem que chegava a praticamente acreditar que a tinha conhecido em vida.

- Como é que eu posso substituir você por você mesmo? - perguntou Smythe-Robertson finalmente. - Uma vez feita a troca, como é que vou entregar o novo robô a você, na qualidade de proprietário, se no próprio ato da troca você deixa de existir?

E sorriu implacável. - Não há nenhuma dificuldade - atalhou Paul. - A base da personalidade de Andrew está no cérebro positrônico que ele possui e que é a parte que não pode ser substituída sem criar um novo robô. O cérebro positrônico, portanto, é Andrew, o proprietário' Todas as outras partes do corpo robô- tico podem ser trocadas sem afetar a personalidade do robô, e essas outras partes são propriedades do cérebro. Eu diria que o Andrew quer dar ao cérebro dele um novo corpo robótico.

- Isso mesmo - disse Andrew calmamente. Virou-se para Smythe-Robertson: - Vocês já fabricaram andróides, não é? Robôs com a aparência exterior de homens, tão perfeita que tinham até a mesma contextura da Dele?

- Fabricamos, sim. Funcionavam muito bem, com pele e tendões fibrosos sintéticos. Não tinham praticamente nenhum componente metálico, a não ser no cérebro, mas eram quase tão resistentes como os robôs feitos de aço. De modo geral, pode-se dizer que eram até mais resistentes.

Paul se mostrou interessado.

- Eu não sabia disso. Quantos existem ainda no mercado?

- Nenhum - respondeu Smythe-Robertson. - Saíam muito mais caros que os modelos de me- tal e uma pesquisa de mercado demonstrou que não teriam aceitação. Pareciam humanos demais.

Andrew estava impressionado.

- Mas eu suponho que a corporação continue mantendo a mesma proficiência. E, nesse caso, pediria para ser trocado por um robô orgânico, um andróide.

Paul levou um susto.

- Puxa vida! - exclamou. Smythe-Robertson se mostrou ainda mais

inexorável.

- Totalmente impossível!

- Impossível por quê? - retrucou Andrew. - Claro que estou pronto a pagar qualquer preço, desde que seja razoável.

- Nós não fabricamos andróides.

- Vocês resolveram parar de fabricar - atalhou logo Paul. - Não é a mesma coisa que não poder fabricar.

- De qualquer modo - insistiu Smythe- Robertson -, fabricar andróides é agir contra o interesse público.

- Não existe lei que proíba - afirmou Paul. - Mesmo assim, não fabricamos, nem pretendemos fabricar. Paul pigarreou. - Mr. Smythe-Robertson – disse. Andrew é um robô livre, protegido pela lei que garante os direitos dos robôs. O senhor sabe muito bem disso, não sabe?

- E como... - Este robô, na qualidade de alforriado, gosta de andar vestido. O resultado é se ver freqüentemente humilhado por pessoas descorteses, apesar da lei que proíbe a humilhação de robôs. Toma-se difícil processar por insultos vagos, que não gozam da reprovação geral por parte de quem deve decidir em matéria de culpa e inocência.

- A U.S. Robots compreendeu perfeitamente isso, logo de início. A firma de seu pai, infelizmente, não.

- Meu pai já morreu, mas pelo que vejo nos encontramos diante de um caso de insulto manifesto visando a um alvo inconfundível.

- Do que é que você está falando? - perguntou Smythe-Robertson.

- O meu constituinte, Andrew Martin - que a partir deste momento passa a ser meu constituinte -, é um robô livre que tem todo o direito de solicitar à U.S. Robots & Mechanical Men Corporation que seja substituído, serviço prestado pela corporação a qualquer proprietário cujo robô já tenha mais de vinte e cinco anos. Aliás, convém notar que a corporação insiste nessa substituição.

Paul sorria,' mostrando-se completamente senhor da situação.

- O cérebro positrônico do meu constituinte - prosseguiu - é o proprietário do corpo dele, que, sem sombra de dúvida, tem mais de vinte e cinco anos. O cérebro positrônico exige a substituição do corpo e se prontifica a pagar qualquer soma razoável em troca de um corpo de andróide. Se vocês se recusarem a aceitar o pedido, o meu constituinte terá de processá-los pela humilhação sofrida.

Embora a opinião pública, em circunstâncias normais, não apoie esse tipo de reivindicação, permita-me lembrar-lhe que a U.S. Robots não desfruta da simpatia do público em geral. Até quem mais usa e lucra com os robôs desconfia da corporação. Pode ser que seja um resquício da época em que os autômatos eram objeto dos piores temores. Ou talvez mero despeito pelo poder e riqueza da U.S. Robots, que detém um monopólio de âmbito mundial. Seja qual for a causa, o fato é que esse despeito existe. Tenho impressão de que vocês não gostariam de enfrentar a possibilidade de uma ação legal, ainda mais que o meu constituinte possui grandes recursos e viverá por muitos e muitos séculos, não tendo, portanto, motivo nenhum para se esquivar de uma batalha judicial que se prolongue indefinidamente.

Smythe-Robertson fora aos poucos avermelhando.

- Você está querendo forçar.. - Não estou forçando nada - atalhou Paul. - Se recusarem a atender ao pedido perfeitamente razoável do meu constituinte, têm toda a liberdade de assim proceder e não nos resta outra alternativa além de ir embora sem dizer mais nenhuma palavra. Mas temos também todo o direito de iniciar uma ação, que vocês, com toda a certeza, acabarão perdendo.

- Bom... - Estou vendo que terminarão concordando - disse Paul. - Talvez ainda hesitem, mas no fim hão de ver que é a melhor solução. Permita-me, pois, deixar bem claro o seguinte: se, durante o transplante do cérebro positrônico que se encontra atualmente no crânio do meu constituinte, para outro corpo orgânico, ocorrer algum dano, por menor que seja, fique certo de que não descansarei enquanto não arrasar com a corporação por completo. E, caso for preciso, tomarei todas as providências possíveis para mobilizar a opinião pública contra a U.S. Robots, se surgir um arranhão sequer na essência de platinirídio que determina o comportamento de meu constituinte. - Virou-se para Andrew e perguntou: - Você está de acordo com tudo o que acabo de falar, Andrew?

Andrew esperou um minuto inteiro para dar a resposta. Aquilo equivalia a concordar com a mentira, a chantagem, a mortificação e a humilhação de um ser humano. Mas sem o menor dano físico, disse consigo mesmo, sem o menor dano físico.

Conseguiu, por fim, emitir um "sim" quase inaudível.

 

Se sentiu como se estivesse sendo fabricado de novo. Durante dias, depois semanas e, finalmente, meses, Andrew teve a vaga sensação de que não era mais o mesmo e as decisões mais banais passaram a ser enfrentadas com hesitação.

Paul ficou possesso.

- Eles estragaram você, Andrew. Teremos de entrar com uma ação!

Andrew falava bem devagar.

- Não ... faça isso. Você nunca vai conseguir .. provar ... que houve... hum...

Premeditação?

- É. Além disso... já estou  ... me sentindo mais  ... forte, melhor. É o tr... tr.. tr ...

- Tremor?

- Não, trauma. Afinal, nunca houve uma op... op... op... assim antes.

Andrew podia sentir o cérebro dentro do crânio. Não existia mais ninguém que fosse capaz de uma proeza dessas. Sabia que estava bem, e durante os meses que levou para aprender direito a integração do jogo positrônico com a coordenação de movimentos passava horas diante do espelho.

Não havia ficado totalmente humano! O rosto estava rígido demais e os gestos eram muito deliberados. Não possuíam a fluência despreocupada e livre das criaturas humanas, que talvez viesse com o correr do tempo. Mas pelo menos já podia andar vestido sem a anomalia ridícula de um rosto de metal que não combinava com aquilo.

- Vou voltar ao trabalho - anunciou um dia. Paul riu.

- Isso quer dizer que você já está bem. O que é que pretende fazer? Escrever outro livro?

- Não - disse Andrew, bem sério. - Já vivi muito tempo para me deixar empolgar por uma só carreira, sem nunca mudar de interesse. Houve época em que era, acima de tudo, artista plástico e posso perfeitamente voltar a ser isso. E houve época em que fui historiador, e nada me impede de continuar sendo. Mas agora quero ser biólogo de robôs.

- Psicólogo, você quer dizer. - Não. Isso implicaria no estudo dos cérebros positrônicos e de momento não sinto a menor vontade de me dedicar a isso. Um biólogo de robôs, a meu ver, se preocuparia com o funcionamento do corpo ligado a esse cérebro. - Não seria um roboticista?

- O roboticista trabalha com o corpo metálico. Eu estaria estudando um corpo andróide orgânico, de que sou o único possuidor, ao que me consta.

- Está limitando o seu campo de ação - disse Paul, pensativo. - Como artista plástico, toda concepção te pertence; como historiador, você lida principalmente com robôs; como biólogo de robôs, vai lidar apenas consigo mesmo.

Andrew concordou com a cabeça. - Ao que tudo indica.

Andrew teve de começar bem do início, pois não entendia nada de biologia comum e muito pouco de ciência. Tomou-se uma figura conheci- da nas bibliotecas públicas, onde pesquisava os índices eletrônicos por horas a fio, não chamando mais a atenção pelo fato de andar vestido. As raras pessoas que sabiam que ele era robô não interferiam de jeito nenhum em sua vida.

Montou laboratório num anexo que construiu junto à casa; e sua biblioteca foi também ficando cada vez maior.

Os anos passaram, até o dia em que Paul o procurou e disse:

- Que pena que você interrompeu a história que estava escrevendo sobre os robôs. Ouvi dizer que a U.S. Robots mudou por completo de orientação.

Paul havia envelhecido e os olhos cansados tinham sido trocados por células fotópticas.. Nesse sentido estava mais parecido com Andrew.

- O que foi que fizeram? perguntou  Andrew

- Estão fabricando computadores centrais, cérebros positrônicos gigantescos mesmo, que se comunicam com um número de robôs que varia de doze a mil, através de microondas. Os robôs, propriamente ditos, não têm cérebro nenhum. Constituem os membros do cérebro gigante, sendo porém fisicamente independentes.

- Isso produz maior eficiência? - A US. Robots afirma que sim. Mas Smythe-Robertson estabeleceu a nova orientação antes de morrer, e tenho impressão de que tudo não passou de uma manobra por tua causa. A U.S. Robots resolveu não fazer mais nenhum robô que lhes dê o tipo de problema que você criou e, por isso, estão separando o cérebro do corpo. Assim, nenhum robô poderá trocar de corpo - que não terá nenhum cérebro para querer coisa alguma.

"A influência que você exerceu na história dos robôs", prosseguiu Paul, "é espantosa, Andrew. Foi o teu talento artístico que encorajou a U.S. Robots a fabricar autômatos mais exatos e especializados; foi a tua liberdade que provocou a determinação do princípio dos direitos robóticos; foi a tua insistência em ter um corpo andróide que levou a U.S. Robots a optar pela separação entre o cérebro e o corpo."

Andrew ficou pensativo. - Estou vendo que no fim a corporação vai acabar produzindo um cérebro enorme para controlar vários bilhões de corpos robóticos. Vão colocar todos os ovos no mesmo balaio. É perigoso. Nada aconselhável.

- Acho que você tem razão - disse Paul -, mas desconfio que isso só vai acontecer daqui a um século, no mínimo, e não estarei mais vivo para ver. Aliás, duvido muito que esteja vivo no ano que vem. 

- Paul! - exclamou Andrew, preocupado. Paul deu de ombros.

- Os homens são mortais, Andrew. Não são como você. Não faz muita diferença, mas considero importante esclarecer uma coisa: eu sou o último representante humano da família Martin. O dinheiro que controlo pessoalmente ficará depositado num fundo em teu nome e, no que diz respeito ao que o futuro tem de previsível, você não precisa mais se preocupar com problemas financeiros.

- Não há necessidade de nada disso - afirmou Andrew, articulando as palavras com dificuldade.

Durante todo 1esse tempo, ainda não tinha se conformado com as mortes sucessivas da família Martin.

- Nada de discussões. É assim que será. Agora, no que é que você está trabalhando?

Num sistema que permita que os andróides - como eu - recebam energia da combustão de hidrocarbonetos, em vez da de células atômicas.

Paul arqueou as sobrancelhas.

Para que possam respirar e comer?

É.

- Há quanto tempo você vem trabalhando nisso ?

- Já faz muito, mas acho que finalmente projetei uma câmara de combustão apropriada para o fracionamento catalisado, controlado.

- Mas a troco de quê, Andrew? A célula atômica é, sem a menor sombra de dúvida, infinita- mente superior.

Em certo sentido, talvez. Mas não é humana.

 

Levou tempo, mas isso Andrew tinha de sobra. Em primeiro lugar, não queria fazer nada en- quanto Paul não morresse em paz. Com a morte do bisneto do patrão, Andrew se sentiu muito mais exposto à hostilidade do mundo, e por esse motivo se determinou a não se afastar do caminho que havia escolhido.

Não estava, porém, realmente sozinho. A morte de um dos sócios não comprometia o funcionamento da Feingold & Martin, pois uma firma tem tanta possibilidade de extinção quanto um robô.

A banca de advocacia mantinha suas diretrizes, que seguia friamente. Com o seu fundo e o da firma jurídica, Andrew continuou a ser rico. Fm troca dos elevados honorários e comissões anuais, a Feingold & Martin defendia os aspectos legais da nova câmara de combustão. Mas, quando chegou a hora de Andrew visitar a U.S. Robots & Mechanical Men Corporation, ele foi sozinho. Já tinha ido uma vez com o patrão e outra com Paul, Agora, na terceira, ia só, na qualidade de homem.

A U.S. Robots havia mudado. A fábrica de produção propriamente dita se transformara num imenso posto espacial, tal como acontecera com um número cada vez maior de indústrias. Isso acarretava a desativação de vários robôs. A Teffa estava virando unia espécie de estacionamento, com a população de um bilhão de habitantes estabilizada e talvez não mais de trinta por cento de um número pelo menos equivalente de robôs dotados de cérebros autônomos.

O diretor do departamento de Pesquisas era Alvin Magdcscu, de pele e cabelos escuros, com pequeno cavanhaque, e usando acima da cintura apenas a faixa ditada pela moda. Quanto a Andrew, trajava-se ainda com o temo completo de muitas décadas atrás.

Magdescu apertou a mão do visitante. - Já o conhecia de nome, lógico, e estou mui- to satisfeito por conhecê-lo pessoalmente. O senhor é o nosso produto mais famoso e é uma lástima que o velho Smythe-Robertson tivesse feito tanta oposição. Poderíamos ter feito muita coisa pelo senhor.

- E ainda podem - disse Andrew.

- Não creio, não. Perdemos a oportunidade, Tivemos robôs aqui na Terra durante mais de um século, mas a situação já está mudando. Eles agora vão voltar ao espaço e os que ficarem aqui não terão mais cérebros.

- Mas ainda resto eu, que pretendo ficar aqui na Terra.

- É verdade, mas o senhor quase não tem mais aparência de autômato. Qual é o seu novo pedido?

- O de ter cada vez menos características de robô. Já que continuo a ser orgânico, gostaria de contar com uma fonte de energia que também fosse. Trouxe comigo os planos...

Magdescu não se apressou em examiná-los. Talvez a princípio até estivesse inclinado a fazer isso, mas se empertigou todo e resolveu ganhar tempo. A, certa altura comentou:

- Está fantástico de tão bem-feito. De quem

foi a idéia?

- Minha - respondeu Andrew.

Magdescu levantou os olhos bruscamente

para ele e depois continuou: - Isso representaria uma transformação completa do seu corpo, e em caráter experimental, uma vez que jamais se tentou fazer antes uma coisa destas. Não aconselho a empreendê-la. Fique do jeito que está.

Os meios de expressão fisionômica de Andrew  eram limitados, mas a voz traduziu claramente a sua impaciência:

- Dr. Magdescu, o senhor está completamente enganado. Não lhe resta outra alternativa senão atender ao meu pedido. Se esses dispositivos podem ser colocados no meu corpo, nada impede que se proceda de maneira idêntica com corpos humanos. A tendência a prolongar a vida humana com recursos protéticos já é bem conhecida. Não existem dispositivos melhores do que os que projetei ou estou projetando.

"Por sinal, registrei as patentes de invenção por intermédio da firma Feingold & Martin. Somos bem capazes de entrar sozinhos no ramo e de aperfeiçoar o tipo de dispositivos protéticos que no fim acabarão produzindo seres humanos com muitas das características dos robôs. Nesse caso, os seus negócios só teriam a perder.

"Se, porém, me operassem agora e concordassem em fazer o mesmo no futuro, em circunstâncias idênticas, teriam licença para utilizar as patentes e controlar a tecnologia dos robôs e da prótese dos seres humanos. A licença inicial só será dada, naturalmente, após o êxito completo da primeira operação e de passar bastante tempo para demonstrar que foi, de fato, um êxito."

Andrew quase nem se sentiu constrangido com as condições rigorosas que estava estipulando para uma criatura humana. Estava aprendendo a raciocinar que o que parecia crueldade podia, no fim, se transformar em bondade.

Magdescu ficou atônito.

- Não estou em condições de resolver uma coisa destas. Trata-se de uma decisão que só pode ser tomada em assembléia geral. E isso demora bastante.

- Posso esperar dentro de um prazo que seja razoável - declarou Andrew -, mas não mais do que isso.

E pensou, com satisfação, que o próprio Paul não teria se saído melhor do que ele.

 

O tempo necessário foi de fato razoável e a operação teve grande êxito.

- Me opus muito a essa operação, Andrew - disse Magdescu -, mas não pelos motivos que você possa imaginar. Não tinha absolutamente nada contra a experiência, desde que fosse feita noutra pessoa. O que eu não queria, de maneira alguma, era arriscar o seu cérebro positrônico. Agora que você dispõe de um comportamento positrônico combinado com o de nervos simulados, talvez ficasse difícil recuperar o cérebro intato, se o corpo não resistisse à cirurgia.

- Eu depositava uma confiança total na competência da equipe da U.S. Robots - disse Andrew. - E agora já posso comer.

- Bem, você pode tomar azeite de oliva. O que vai exigir limpezas esporádicas da câmara de combustão, como já te explicamos. Um detalhe meio incômodo, a meu ver.

- Talvez, se eu não contasse com outros aperfeiçoamentos. Uma limpeza feita por mim mesmo é perfeitamente possível. Estou, aliás, trabalhando num dispositivo que se encarregará da alimentação sólida que, como é de esperar, há de conter frações que não sejam combustíveis; matéria indigesta, por assim dizer, que terá de ser expelida.

- Teria, então, de inventar um ânus. - Ou coisa parecida.

- Que mais, Andrew ... ? - Tudo, simplesmente. - Genitália também?

- Desde que se enquadre em meus planos. Meu corpo é uma tela em que pretendo criar um...

Magdescu esperou que ele completasse a frase e, ao ver que não ia conseguir, sugeriu:

- Um homem?

- Veremos - disse Andrew.

- Que ambição mais sem graça, Andrew. Você vale muito mais do que um homem. Só teve a perder, desde o momento em que optou por ser tornar orgânico.

- Meu cérebro não sofreu nenhum prejuízo. - Tem razão. Admito. Mas, Andrew, todos os novos cantinhos em matéria de dispositivos protéticos que se abriram com o registro de tuas patentes estão sendo explorados com o teu nome. Você é reconhecidamente o inventor e está recebendo todas as homenagens por causa disso; o que é perfeitamente justo. Para que continuar colocando o teu corpo em risco?

Andrew não respondeu. As homenagens se sucediam. Foi acolhido como membro de várias associações eruditas, inclusive uma dedicada à nova ciência que instituíra - que chamara de robobiologia, que acabou sendo conhecida como proteselogia. No sesquicentenário de sua fabricação, a U.S. Robots ofereceu-lhe um jantar de gala. Se Andrew percebeu alguma ironia na homenagem, não demonstrou.

Alvin Magdescu, a essa altura já aposenta- do, reapareceu para presidir a cerimônia. Estava com noventa e quatro anos e continuava vivo graças também aos dispositivos protéticos que, entre outras coisas, preenchiam as funções do fígado e dos rins. O jantar chegou ao clímax quando Magdescu, depois de breve e emocionado discurso, ergueu a taça para brindar o Robô Sesquicentenário.

Andrew tinha remodelado os tendões do rosto a ponto de poder exibir uma variedade de emoções humanas, mas passou toda a cerimônia com o semblante solenemente impassível. Não gostou de ser chamado de Robô Sesquicentenário.

 

Foi a proteselogia que, finalmente, levou Andrew para longe da Terra. Nas décadas subseqüentes às comemorações do sesquicentenário, a Lua se transformou num mundo mais terrestre que a Terra em todos os senti- dos, menos na atração da gravidade; e em suas cidades subterrâneas se concentrava uma população relativamente grande. Os dispositivos protéticos usados por lá precisavam considerar a força de gravidade menor. Andrew passou cinco anos na Lua trabalhando com proteselogistas locais para adquirir condições de adaptação ideais. Nas horas de folga, perambulava no meio dos habitantes robôs, de quem obtinha, sem exceção, a mesma solicitude que teriam com uma criatura humana.

Voltou para uma Terra comparativamente monótona e calma, e visitou o escritório da Feingold & Martin para comunicar seu regresso.

O diretor em exercício da firma, Simon DeLong, se surpreendeu.

- Já sabíamos que você ia voltar, Andrew - ele por pouco não disse Mr. Martin -, mas não esperávamos que isso acontecesse antes da semana que vem.

- Fiquei impaciente - explicou Andrew, todo animado. Estava ansioso para entrar logo no assunto. - Na Lua, Simon, eu era encarregado de uma equipe de pesquisa de vinte cientistas humanos. Dava ordens que ninguém discutia. Os robôs lunares me tratavam como se eu fosse uma criatura humana. Por que, então, não posso ser homem?

Os olhos de DeLong se mostraram cautelosos.

- Meu caro Andrew, como você mesmo acaba de explicar, tanto os robôs como os homens te trataram COMO se você fosse humano. Em última análise, portanto, você já é..

- Em última análise não basta. Não só quero que me tratem como homem, mas que também seja juridicamente considerado como tal. Quero ser homem no sentido legal.

- Isso já é outra coisa - retrucou DeLong. - Aí já estamos entrando no terreno do preconceito humano e do fato incontestável que, por mais que pareça, você não é homem.

- Como que não sou? - reclamou Andrew. - Tenho aspecto de homem e órgãos equivalentes aos de um ser humano. Que, aliás, são idênticos aos de certas criaturas que têm de usar próteses. A minha contribuição artística, literária e científica para a cultura humana, tão importante quanto a de qualquer homem contemporâneo. Que mais se pode exigir? - Eu, pessoalmente, não exigiria mais nada.

O problema é que seria indispensável um ato da Legislatura Mundial para te definir como ser humano. E, para falar com franqueza, acho difícil que isso venha a acontecem

- Com quem eu poderia falar lá na Legislatura?

- Com o Presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia, talvez.

- Você me arranja uma entrevista? - Mas não é preciso nenhum intermediário. Na posição em que você está, pode...

- Não. Eu quero que você se encarregue disso. - Andrew nem percebeu que estava dando uma ordem categórica a um ser humano, de tão acostumado a fazer isso que tinha ficado na Lua. - Quero que ele saiba que a firma Feingold & Martin vai me apoiar nisso até o fim.

- Bem, agora... - Até o fim, Simon. Durante cento e setenta e três anos, de um jeito ou de outro, contribuí mui- to para esta firma. Antigamente tinha certas obrigações com participantes individuais da empresa. Hoje não tenho mais. Agora a situação praticamente se inverteu e faço questão de cobrar a dívida.

- Vou ver o que posso fazer - disse DeLong.

 

O Presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia provinha da Ásia Oriental e era mulher. Chamava-se Chee Li-hsing e os trajes transparentes que usava - encobrindo o queria encobrir só pelo brilho - davam a impressão de que andava envolta em plástico.

- Eu compreendo que você queira ter todos os direitos humanos - disse ela. - A história também registra momentos em que populações inteiras lutaram para conquistar a plenitude dos direi- tos humanos. Mas quais são os que você acha que lhe faltam9

- Uma coisa bem simples, como, por exemplo, o meu direito à vida - afirmou Andrew. - Um robô pode ser destruído a qualquer hora.

- Com o homem acontece o mesmo.

- Sim, mas para que seja executado existem procedimentos legais. E para a minha destruição não há necessidade de processo nenhum. Basta uma ordem, dada por autoridade competente, e estou perdido. Depois... depois...

Andrew fez um esforço desesperado para não demonstrar qualquer sinal de que estivesse implorando alguma coisa, mas se deixou trair por esgares faciais - tão cuidadosamente programados quando foi feito - e pelo tom de voz.

- Na verdade, o que eu quero é ser homem. Venho sonhando com isso há seis gerações de seres humanos.

Li-hsing contemplou-o com a maior compreensão nos olhos escuros.

- A legislatura pode promulgar uma lei que o declare como tal. Querendo, pode até decretar que uma estátua de pedra seja considerada como pessoa humana. Mas a possibilidade de que isso aconteça é tão remota no primeiro como no segundo caso. Os congressistas são humanos como o resto da população, e sempre existe aquele elemento de desconfiança em relação aos robôs.

- Mesmo hoje em dia? - Mesmo hoje em dia. Todos nós estaríamos de acordo quanto ao fato de você fazer jus à condição humana, e no entanto sempre haveria o medo de estabelecer um precedente indesejável.

- Que precedente? Sou o único robô livre que existe, o único no gênero, e nunca haverá outro, Pode consultar a U.S. Robots.

- "Nunca" é uma palavra muito arriscada, Andrew, ou, se prefere, Mr. Martin, uma vez que terei o maior prazer em considerá-lo, pessoalmente, como homem. Mas vai ver que a maior parte dos congressistas não está tão disposta, como eu, a abrir precedentes, por mais irrelevantes que sejam. Mr. Martin, o senhor conta com todo o meu apoio, mas não posso lhe dar nenhuma esperança. Aliás...

Recostou-se na poltrona e franziu a testa. - Aliás, se a questão se tomar problemática demais, é bem possível que se manifeste um certo movimento, tanto no seio do órgão legislativo como em outros, no sentido daquela destruição que há pouco mencionou. Eliminá-lo poderia ser a maneira mais simples de solucionar o impasse. Pense bem nisso antes de levar o caso adiante.

Andrew persistiu: - Será que ninguém se lembra da técnica da proteselogia, uma coisa que desenvolvi praticamente sozinho?

- Pode parecer crueldade, mas acho que não. Ou, se lembram, será só para usar como argumento contra o senhor. Vão dizer que fez isso apenas em proveito próprio. E que foi parte de um plano para robotizar seres humanos, ou para humanizar os robôs e, em ambos os casos, um plano perverso e pernicioso. O senhor nunca serviu de alvo de uma campanha de ódio político, Mr. Martin; mas lhe garanto que seria objeto de um tipo de difamação simplesmente inacreditável e que encontraria crédulos em quantidade suficiente para inutilizar to- dos os seus esforços. Mr. Martin, deixe sua vida do jeito que está,

Se levantou da poltrona. Ao lado da figura sentada de Andrew, parecia pequena e quase infantil.

- Se eu resolver lutar pela minha condição humana, posso contar com seu apoio?

Ela pensou um pouco e depois respondeu: - Pode... até onde me for possível. Se eu, porém, sentir que esse apoio é capaz de chegar a ameaçar o meu futuro político, talvez tenha de retirá-lo, uma vez que não se trata de uma questão que eu considero prioritária no rol dos meus princípios. Estou tentando ser absolutamente sincera com o senhor.

- Eu agradeço e não vou lhe pedir mais nada. Pretendo lutar até o fim, sejam quais forem as conseqüências, e só voltarei a lhe solicitar apoio dentro dos limites que a senhora mesma traçou.

 

Não foi uma luta direta. A Feingold & Martin aconselhou Andrew a ter paciência, coisa que ele, resmungando tristemente, disse que tinha até de sobra. A banca de advocacia iniciou, então, uma campanha para restringir e delimitar a área de ação.

Entraram com uma petição em que se afirmava que um indivíduo portador de prótese cardíaca ficava isento do pagamento de dívidas, com fundamento na asserção jurídica de que a posse de um órgão robótico o destituía da condição humana e, conseqüentemente, dos direitos constitucionais dos seres humanos. Lutaram de modo hábil e obstina- do para provar esse ponto de vista, perdendo terreno a cada instante, mas sempre de tal forma que a sentença teve de ser a mais abrangente possível e depois, então, apresentaram recurso perante o Tribunal Mundial.

Isso levou anos e vários milhões de dólares. Proferida a sentença definitiva, DeLong ofereceu o que equivalia a uma comemoração de vitória por causa da derrota legal. Andrew, naturalmente, encontrava- se presente no escritório da corporação, onde se festejava a ocasião.

- Conseguimos duas coisas, Andrew - disse DeLong -, ambas alvissareiras. Antes de mais nada, ficou determinado que, qualquer que seja a quantidade de membros artificiais que exista no corpo humano, isso não impede que continue a ser considerado como tal. E, em segundo lugar, conquistamos o apoio incondicional da opinião pública a favor de uma ampla interpretação do que vem a ser um homem, já que não há nenhuma criatura que não conte com próteses para se manter viva.

- E você acha que a Legislatura agora vai me conceder a condição humana? - perguntou Andrew.

DeLong pareceu meio constrangido. - Quanto a isso, não me atrevo a ser otimista. Ainda resta o único órgão que o Tribunal Mundial usa como critério para determinar a condição humana. Os homens têm um cérebro celular orgânico, ao passo que o dos robôs, quando existe, é positrônico e de platinirídio; e o teu, sem a menor sombra de dúvida, está nesse caso. Não, Andrew, não faça essa cara. Nós não dispomos de meios para copiar o trabalho de um cérebro celular em estruturas artificiais, de maneira tão idêntica ao do tipo orgânico que possa se enquadrar na sentença do tribunal. Nem você mesmo seria capaz de conseguir isso.

- Que vamos fazer, então? - Continuar tentando, evidentemente. A congressista Li-hsing pretende nos apoiar e um número cada vez maior de outros parlamentares também. O Presidente decerto acompanhará a maioria do corpo legislativo nessa questão.

- E nós temos a maioria?

Não. Pelo menos por enquanto. Mas tal- vez tenhamos, se o público permitir que a vontade de uma interpretação mais ampla da condição humana se estenda a você.. Uma possibilidade mínima, reconheço; mas, se você não quiser desistir da luta, a gente tem de contar com ela.

- Não quero, não.

 

A congressista Li-hsing tinha envelhecido bastante desde a primeira entrevista concedida a Andrew. Não usava há muito tempo aquelas roupas transparentes. O cabelo estava cortado bem curto e o traje era cilíndrico. Apesar disso, Andrew se conservava ao máximo possível dentro dos limites do bom gosto, fiel ao estilo de roupa que resolvera adotar há um século atrás.

- Não dá para se fazer mais do que já se fez, Andrew - admitiu Li-hsing. - Vamos tentar outra vez depois do recesso parlamentar, mas, para ser franca, a derrota vai ser inevitável e aí então teremos que desistir por completo. Todos os meus esforços mais recentes só contribuíram para a certeza de que não serei reeleita na campanha para os cargos legislativos.

- Eu sei - disse Andrew -, e isso me preocupa muito. Você tinha dito que, se a coisa chegas- se a esse ponto, não poderia continuar me apoiando. Por que mudou de idéia?

- A gente pode mudar de opinião, sabia? De certo modo, abandonar a tua causa se tomou um preço caro do que eu pretendia pagar apenas por um período a mais. E, afinal de contas, faz mais de um quarto de século que ocupo cargos legislativos. Chega.

- Não há meios de se fazer com que esse pessoal mude de idéia, Chee?

- Conseguimos abalar a opinião de todos com que era possível contar. O resto, a maioria, vai se manter inabalável nas suas antipatias emocionais.

- Antipatia emocional não se constitui motivo válido para votar assim ou assado.

- Eu sei disso, Andrew, mas o problema" que eles não apresentam a antipatia emocional como motivo.

- Tudo se resume no cérebro, então - disse Andrew, cauteloso. - Mas será que a gente precisa reduzir tudo a uma simples questão de células em contraposição a pósitrons? Não existe um modo de forçar uma definição funcional? Será preciso dizer que um cérebro se compõe disto ou daquilo? Por que não se diz que ele é uma coisa, seja lá qual for, capaz de um determinado nível de raciocínio?

- Não dá - insistiu Li-hsing. - O teu cérebro foi feito por mãos humanas, o que já não acontece conosco. O teu é fabricado, o do homem evolui. Para qualquer pessoa determinada a manter uma barreira entre ela e um robô, essas diferenças representam um muro de aço com mais de um quilômetro de largura e outro tanto de altura.

- Se desse para a gente descobrir a origem dessa antipatia, mas a origem mesmo...

- Com todos os anos de vida que tem - comentou Li-hsing com tristeza -, você não desiste de querer compreender o ser humano. Pobre Andrew, não fique bravo comigo, mas é o seu caráter de robô que insiste em te levar nessa direção.

- Sei lá - retrucou Andrew. - Se ao menos eu pudesse...

 

(Ritornelo)

Se ao menos ele pudesse... Há muito tempo já sabia que a coisa podia chegar àquele ponto e por fim procurou um cirurgião. Descobriu um bastante competente para o que queria - o que significava que também era robô, pois Andrew não podia confiar em nenhum homem que fosse médico tanto em matéria de competência como de intenção.

O robô não efetuaria a operação numa criatura humana, por isso Andrew, depois de adiar ao máximo o momento de decisão, seguindo uma triste linha de raciocínio que refletia o tumulto que sen- tia no íntimo, pôs a Primeira Lei de lado dizendo:

- Eu também sou robô.

E acrescentou, com a mesma firmeza com que aprendera a dar ordens, inclusive a seres humanos, durante as últimas décadas:

- Te ordeno a efetuar a operação em mim. Na ausência da Primeira Lei, uma ordem dada de maneira tão categórica por alguém que parecia tanto ser homem ativou a segunda de forma suficiente para que fosse obedecida.

 

A sensação de fraqueza de Andrew, segundo ele, era apenas imaginária. Tinha se recuperado da operação, Mesmo assim encostou-se, da maneira mais discreta possível, na parede. Se sentasse, não poderia dissimular.

O voto decisivo será nesta semana, Andrew - disse Li-hsing. - Não consegui continuar adiando por mais tempo, e é certo que vamos perder. Depois disso, não tem mais condições, Andrew.

- Me sinto muito grato pela tua habilidade em protelar. Me deu o prazo que precisava e me arrisquei a fazer o que queria.

- Que risco foi esse? - perguntou Li-hsing, já francamente preocupada.

- Não podia contar a você nem ao pessoal da Feingold & Martin. Tinha certeza de que não iriam consentir. Veja só, se o que está em jogo é o cérebro, tudo não se resume numa questão de imortalidade? Ninguém liga a menor importância para o aspecto, a origem ou modo de se fazer um cérebro. O que importa é que as células do cérebro humano morrem, têm de morrer. Mesmo que todos os outros órgãos do corpo se conservem ou sejam substituídos, as células cerebrais, que não podem ser trocadas sem modificar e, portanto, matar a personalidade, com o tempo acabam morrendo.

"O meu próprio comportamento positrônico já durou quase dois séculos sem nenhuma modificação perceptível e é capaz de durar muito mais ainda. Não é essa a objeção fundamental? A humanidade pode tolerar um robô imortal, porque pouco importa quanto tempo a máquina dure, mas não pode tolerar um homem imortal, uma vez que a própria mortalidade só é sustentável na medida em que for geral. E por esse motivo não concordam com minha exigência de me tomar humano."

- Aonde é que você quer chegar, Andrew? - perguntou Li-hsing.

- Acabei com esse problema. Décadas atrás, o meu cérebro positrônico foi ligado a nervos orgânicos. Agora, uma última operação conseguiu dar um jeito para que essa ligação, aos poucos, paulatinamente, perdesse esse potencial do meu comportamento.

Li-hsing não revelou a mínima expressão, por um instante, no rosto delicadamente enruga- do. Depois apertou os lábios.

- Quer dizer, Andrew, que você encontrou uma forma de morrer? Não é possível. Isso representa uma infração à Terceira Lei.

- Não - afirmou Andrew. - Apenas optei entre a morte do meu corpo e a dos meus sonhos e aspirações. Permitir que o meu corpo vivesse, à custa de uma morte muito mais grave, é que seria infringir a Terceira Lei.

Li-hsing pegou-o pelo braço como se quisesse sacudi-lo. Mas se conteve.

- Andrew, isso não vai dar certo! Troca de novo. - Impossível. Os danos foram enormes. Tenho um ano para viver, mais ou menos. Vou sobre- viver até festejar o meu bicentenário. Não tive forças para protestar contra essa condição.

- Mas não vale a pena, Andrew. Você é um idiota

- Como que não vale a pena, se conseguir a minha condição humana? E, se não conseguir, vai acabar com toda essa luta e, portanto, também vale a pena.                                    -

Foi então que Li-hsing fez uma coisa de que não se julgava capaz. Quando viu, espantada, tinha começado a chorar de mansinho.

 

É estranho como o mundo se deixou impressionar com aquela última façanha. Tudo o que

Andrew tinha feito até então nunca abalara ninguém. Mas havia finalmente concordado com a própria morte para chegar à condição humana e o sacrifício era grande demais para ser ignorado.

A cerimônia final foi marcada, de modo absolutamente proposital, para coincidir com o bicentenário. O Presidente do Mundo devia assinar o ato, convertendo em lei a vontade do povo. A cerimônia seria transmitida em rede mundial, alcançando o estado Lunar e até a colônia marciana.

Andrew andava de cadeira de rodas. Ainda estava em condições de poder caminhar, mas de modo muito precário.

- Há cinqüenta anos - disse o Presidente diante de toda humanidade -, você foi proclamado o Robô Sesquicentenário, Andrew. - Fez uma pausa e depois, em tom mais solene, continuou: - Hoje nós o proclamamos Homem Bicentenário, Mr. Martin.

E Andrew, sorridente, estendeu a mão para apertar a do Presidente.

 

Deitado na cama, Andrew aos poucos foi perdendo a consciência. Lutou desesperadamente para se manter lúcido. Homem! Era homem! Que- ria que fosse o seu último pensamento. Queria se desfazer - morrer - pensando nisso.

Abriu de novo os olhos e, pela derradeira vez, reconheceu Li-hsing, aguardando solene. Havia outras pessoas presentes, mas não passavam de sombras, vultos irreconhecíveis. Só Li-hsing se desta- cava no meio da escuridão cada vez mais profunda.

Bem devagar, mediante enorme esforço, es- tendeu-lhe a mão e, já quase sem sentir, muito vagamente, percebeu que ela a apertava entre as suas.

Foi perdendo a visão à medida que os pensamentos também lhe fugiam. Mas, antes que Li-hsing desaparecesse por completo, ocorreu-lhe uma lembrança final, muito fugaz, que pairou um instante na memória antes que tudo terminasse.

- Filhinha - murmurou, em voz tão baixa que ninguém conseguiu ouvir.

 

                                                                                            Isaac Azimov

 

 

                      

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